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Title: Memórias
Author: Brandão, Raul Germano, 1867-1930
Language: Portuguese
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*** Start of this LibraryBlog Digital Book "Memórias" ***


produced from images generously made available by National
Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal) and
The Internet Archive.)



    *Nota de editor:* Devido à existência de erros tipográficos neste
    texto, foram tomadas várias decisões quanto à versão final. Em caso
    de dúvida, a grafia foi mantida de acordo com o original. No final
    deste livro encontrará a lista de erros corrigidos.

                                           Rita Farinha (Abril 2011)



Direitos reservados



MEMORIAS



DE RAUL BRANDÃO



A PUBLICAR:

Theatro cinematographico
A historia humilde



RAUL BRANDÃO

Memorias

1.^o VOLUME


EDIÇÃO DA

«RENASCENÇA PORTUGUESA»

PORTO



AOS MORTOS



[Figura]



PREFACIO


                                                      Janeiro de 1918.


Se tivesse de recomeçar a vida, recomeçava-a com os mesmos erros e
paixões. Não me arrependo, nunca me arrependi. Perdia outras tantas
horas diante do que é eterno, embebido ainda n'este sonho poído. Não me
habituo: não posso vêr uma arvore sem espanto, e acabo desconhecendo a
vida e titubeando como comecei a vida. Ignoro tudo, acho tudo
esplendido, até as coisas vulgares: extraio ternura duma pedra. Não
sei--nem me importo--se creio na imortalidade da alma, mas do fundo do
meu sêr agradeço a Deus ter-me deixado assistir um momento a este
espectaculo desabalado da vida. Isso me basta. Isso me enche: levo-o
para a cova, para remoer durante seculos e seculos, até ao juizo final.
Nunca fui homem de acção e ainda bem para mim: tive mais horas
perdidas... Fugi sempre dos phantasmas agitados, que me metem medo. Os
homens que mais me interessaram na existencia foram outros: foram, por
exemplo, D. João da Camara, poeta e santo, Correia d'Oliveira, um chapeu
alto e nervos, nascido para cantar, Columbano e a sua arte exclusiva, e
alguns desgraçados que mal sabiam exprimir-se. Conheci muitos ignorados
e felizes. Meio doidos e atonitos. O Napoles ainda hoje dorme sobre a
mesma rima de jornaes?... Outro andava roto e dava tudo aos pobres. O
homem é tanto melhor quanto maior quinhão de sonho lhe coube em sorte.
De dôr tambem.

A que se reduz afinal a vida? A um momento de ternura e mais nada... De
tudo o que se passou comigo só conservo a memoria intacta de dois ou
tres rapidos minutos. Esses sim! Teimam, reluzem lá no fundo e
enebriam-me, como um pouco d'agua fria embacia o copo. Só de pequeno
retenho impressões tão nitidas como na primeira hora: ouço hoje como
hontem os passos de meu pae quando chegava a casa; vejo sempre diante
dos meus olhos a mancha azul ferrete das hydranjas que enchiam o
canteiro da parede. O resto esvae-se como fumo. Até as figuras dos
mortos, por mais esforços que eu faça, cada vez se afastam mais de
mim... Algumas sensações, ternura, côr, e pouco mais. Tinta. Pequenas
coisas frivolas, o calor do ninho, e sempre dois traços na retina, o
cabedelo d'oiro, a outra banda verde... Passou depois por mim o tropel
da vida e da morte, assisti a muitos factos historicos, e essas
impressões vão-se desvanecidas. Ao contrario este facto trivial ainda
hoje o recordo com a mesma vibração: a morte daquella laranjeira que, de
velha e tonta, deu flôr no inverno em que seccou. O resto usa-se hora a
hora e todos os dias se apaga. Todos os dias morre.

Lá está a velha casa abandonada, e as arvores que minha mãe, por sua
mão, dispoz: a bica deita a mesma agua indiferente, o mesmo barco
archaico sobe o rio, guiado á espadela pelo mesmo homem do Douro, de pé
sobre a gaiola de pinheiro. Só os mortos não voltam. Dava tudo no mundo
para os tornar a vêr, e não ha lagrimas no mundo que os façam
resuscitar.

Esta Foz de ha cincoenta annos, adormecida e doirada, a Cantareira, no
alto o Monte, depois o farol e sempre ao largo o mar diaphano ou
colerico, foi o quadro da minha vida. Aqui ao lado morreu a minha avó;
no armario, metido na parede como um beliche, dormiu em pequeno o meu
avô, que desapareceu um dia no mar com toda a tripulação do seu brigue,
e nunca mais houve noticias d'elle. Lembro-me da avó e da tia Iria, de
saia de riscas azues, sentadas no estrado da sala da frente, e possuo
ainda o volume desirmanado do Judeu que ellas liam, com o _Feliz
Independente do mundo e da fortuna_ e as _Recreações philosophicas_ do
padre Theodoro d'Almeida. Ouço, desde que me conheço, sahir do negrume,
alta noite, a voz do moço chamando os homens da companha:--Ó sê Manuel
cá p'ra baixo p'r'o mar!--Vi envelhecer todos estes pescadores, o Bilé,
o Mandum, o Manuel Arraes, que me levou pela primeira vez, na nossa
lancha, ao largo. Ha que tempos!--e foi hontem... A quarenta braças
lança-se o ancorote. Na noite cerrada uma luzinha á prôa; do mar
profundo--chape que chape--só me separa o cavername. Deito-me com os
homens sob a vela estendida. Primeiro livor da manhã, e não distingo a
luz do dia do pó verde do mar. Nasce da agua, mistura-se na agua, com
reflexos baços, a claridade salgada que palpita, o ar vivo que respiro,
o oceano immenso que me envolve.--Iça! iça!--e as redes sobem pela polé,
cheias de algas e de peixe, que se debate no fundo da catraia. Voltamos.
Já avisto, á vela panda, o farolim, depois Carreiros; um ponto branco,
alem no areal, é o Senhor da Pedra, e a terra toda, roxa e diaphana,
emerge emfim, como uma aparição, do fundo do mar. A onda quebra. Eis a
barra. Agora o leme firme!... As mulheres, de perna nua, acodem á praia
para lavar as rêdes, e o velho piloto mór, de barba branca, sentado á
porta da Pensão, fuma inalteravel o seu cachimbo de barro. O azul do
mar, desfeito em poalha, mistura-se ao oiro que o céo derrete. Mais
barcos vão aparecendo, vela a vela: o _Vae com Deus_, a _Senhora da
Ajuda_, o _Deus te guarde_, e os homens, de pé, com o barrete na mão,
cantam o _bemdito_, tanta foi a pesca.--Quantas duzias?--Um cento! dois
centos!--Nas linguetas de pedra salta a pescada de lista preta no lombo,
a raia viscosa, o ruivo de dorso vermelho, ou, no inverno, a sardinha
que os bateis carreiam do mar inexgotavel, estivando de prata todo o
caes. Ás vezes o peixe miudo e vivo é tanto, que não bastam os
almocreves com os seus burros canastreiros, as varinas com os seus
gigos, nem as mulheres de saia ensacada e perna á mostra, para o
levarem, apregoando-o, por essa terra dentro. Dá-se a quem o quer,
faz-se o quinhão dos pobres. Em setembro são as marés vivas. Mais tarde
cresce do mar um negrume. Acastelam-se as nuvens no poente, e forma-se
para o sul uma parede compacta que tem legoas de espessura. A voz é
outra, clamorosa, e, á primeira lufada, bandos de gaivotas grasnam pela
costa fóra, anunciando o inverno que vem proximo. O quadro muda, e os
homens morrem á bocca da barra, na Pedra do Cão, agarrados aos remos,
sacudidos no torvelinho da resaca, o velho arraes de pé, as duas mãos
crispadas no leme, cuspindo injurias, para lhes dar animo, e todo o
mulherio da Povoa, de Matosinhos, da Afurada--vento sul, camaroeiro
içado--com as saias pela cabeça, salpicadas de espuma e molhadas de
lagrimas:--Ai o meu rico homem! o meu filho que o não torno a ver!--E
chamam por Deus, ou insultam o mar, que, inverno a inverno, lh'os leva
todos para o fundo.

O que sei de bello, de grande ou de util, aprendi-o n'esse tempo: o que
sei das arvores, da ternura, da dôr e do assombro, tudo me vem desse
tempo... Depois não aprendi coisa que valha. Confusão, balburdia e mais
nada. Vacuidade e mais nada. Figuras equivocas, ou, com raras excepções,
sentimentos baços. Amargor e mais nada. Nunca mais. Nunca Londres ou a
floresta americana me incutiram misterio que valesse o dos quatro palmos
do meu quintal. Nunca caça ás feras no canavial indiano foi mais fertil
em emoção e aventura, que a armadilha aos passaros na poça do Monte, com
o Manuel Barbeiro. Uma nora, dois choupos, a agua empapada, e, entre as
hervas gordas como bichos, pégadas de bois cheias de tinta azul,
reflectindo o céo implacavel de agosto. Os passaros com as azas abertas
desconfiam e hesitam: a sêde aperta-os, o sol escalda-os. Mal pousam na
armadilha agarramol-os com ferocidade. Chiu!... Uma andorinha descreve
lá no alto um circulo perfeito, e vem, no vôo desferido, arripiar com o
bico a agua estagnada. Toca n'uma palheira de visco--é nossa! Já tiveste
nas mãos uma andorinha? É pennas e vida phrenetica. E essa vida
pertence-te!... Só ao fim da tarde regressava a casa com os bolsos
cheios de rans e os olhos deslumbrados. Nenhuma figura tôrva, nem o
Anti-Christo, me communicou terror semelhante ao do inofensivo Manco da
esquina, que escondia de manhã a barba que lhe chegava ao umbigo, entre
o peito e a camisa, para a sacar de noite, quando sahia á estrada... Sou
capaz de te dizer qual o tom verde de certos dias, quando o pecegueiro
bravo encostado ao muro floresce. O murmurio da minha bica não me sae
dos ouvidos até á hora da morte. Quasi todos os meus amigos--o Nel, que
não tornei a ver...--são d'essa epocha. D'outras impressões mais tardias
não restarão vestigios, mas tenho sempre presentes os mesmos pinheiros
mansos--que já não existem--acenando para a barra, e alta noite acordo
ouvindo o rebramir do mar longinquo. Nos dias de desgraça é sempre a
mesma voz que chama por mim... Olha, olha ainda e extasia-te: o rio
parece um lago, e um bando de gaivotas desfolhadas alastra sobre a tinta
azul, com laivos esquecidos do poente. Boia espuma na agua viva que a
maré traz da barra... E não ha cheiro a flores que se compare a este
cheiro do mar.


                                                       Agosto de 1910.


Aos 23 do mez passado morreu meu pae amachucado, exhausto e pobre.
Encontrão de um, repelão de outro, assim foi até á cova. Tinha 67 annos
incompletos. Não podia mais. Encontraram-lhe alguns cobres no bolso. Ha
muitos annos que se arrastava, e só tinha de seu uma alegria e um
repouso: os domingos. Aos domingos metia-se no quarto, calçava uns
chinelos, e toda a tarde chorava lagrimas sem fim sobre um velho romance
de Camillo. Minha mãe pouco mais durou, com um olhar de pasmo. Lá ficou
a velha casa abandonada...

Sobe a lua no céo, e a sombra no monte. Seis arvores, quatro
paredes--tudo aqui me enche de saudades. A bica continua a correr, mas
outras sêdes se apagarão n'aquella agua. Outros virão tambem sentar-se
no banco de pedra... Só me resta a tua mão querida, que a meu lado
segura a minha mão. Os mortos chamam por nós cada vez mais alto... Olho
para ti e os teus primeiros cabellos brancos fazem-me chorar.


                                                     Setembro de 1910.


Hoje acordei com este grito: eu não soube fazer uso da vida!

O que me pesa é a inutilidade da vida. Agarro-me a um sonho;
desfaz-se-me nas mãos; agarro-me a uma mentira e sempre a mesma voz me
repete:--É inutil! é inutil!

A aquiescencia, o sorriso:--pois sim... pois sim...--a necessidade de
transigir, o preceito, a lei, fizeram de mim este sêr inutil, que não
sabe viver e que já agora não pode viver. Não grito de desespero porque
nem de desespero sou capaz.

A vida antiga tinha raizes, talvez a vida futura as venha a ter. A nossa
epocha é horrivel porque já não cremos--e não cremos ainda. O passado
desapareceu, de futuro nem alicerces existem. E aqui estamos nós, sem
tecto, entre ruinas, á espera...

Não entendo nada da vida. Cada dia que avança entendo menos da vida.
Contudo ha horas, as horas perdidas--e só essas--que queria tornar a
viver e a perder.

Deus, a vida, os grandes problemas, não são os philosophos que os
resolvem, são os pobres vivendo. O resto é engenho e mais nada. As
coisas bellas reduzem-se a meia duzia: o tecto que me cobre, o lume que
me aquece, o pão que como, a estôpa e a luz.

Detesto a acção. A acção mete-me medo. De dia pódo as minhas arvores, á
noite sonho. Sinto Deus--toco-o. Deus é muito mais simples do que
imaginas. Rodeia-me--não o sei explicar. Terra, mortos, uma poeira de
mortos que se ergue em tempestades, e esta mão que me prende e sustenta
e que tanta força tem...

Como em ti, ha em mim varias camadas de mortos não sei até que
profundidade. Ás vezes convoco-os, outras são elles, com a voz tão
sumida que mal a distingo, que desatam a falar. Preciso da noite eterna:
só num silencio mais profundo ainda, conto ouvil-os a todos.

Nunca os meus me chamaram tão alto. Sentam-se a meu lado. Rodeiam-me, e
pouco a pouco o circulo da minha vida restringe-se a um ponto--a cova.

Teimo: ha uma acção interior, a dos mortos, ha uma acção exterior, a da
alma. A inteligencia é exterior e universal e faz-nos vibrar a todos
d'uma maneira diferente. Destas duas acções resulta o conflicto tragico
da vida. O homem agita-se, debate-se, declama, imaginando que constroe e
se impõe--mas é impelido pela alma universal, na meia duzia de coisas
essenciaes á Vida, ou obedece apenas ao impulso incessante dos mortos.

A minha alegria em velho consistiria em ter aqui meu pae para falar com
elle. Não é só saudade que sinto: é uma impressão physica. Agora é que
acharia encanto até ás lagrimas em termos a mesma idade, conversarmos ao
pé do lume e morrermos ao mesmo tempo...


                                                    Fevereiro de 1918.


Isso que ahi fica não são memorias alinhadas. Não teem essa pretensão.
São notas, conversas colhidas a esmo, dois traços sobre um
acontecimento--e mais nada. Diante da fita que a meus olhos absortos se
desenrolou, interessou-me a côr, um aspecto, uma linha, um quadro, uma
figura, e fixei-os logo no canhenho que sempre me acompanha. Sou um mero
espectador da vida, que não tenta explical-a. Não afirmo nem nego. Ha
muito que fujo de julgar os homens, e, a cada hora que passa, a vida me
parece ou muito complicada e misteriosa ou muito simples e profunda. Não
aprendo até morrer--desaprendo até morrer. Não sei nada, não sei nada, e
saio d'este mundo com a convicção de que não é a razão nem a verdade que
nos guiam: só a paixão e a chimera nos levam a resoluções definitivas. O
papel dos doidos é de primeira importancia neste triste planeta, embora
depois os outros tentem corrigil-o e canalisal-o... Tambem entendo que é
tão dificil asseverar a exactidão de um facto como julgar um homem com
justiça. Todos os dias mudamos de opinião, todos os dias somos
empurrados para leguas de distancia por uma coisa phrenetica, que nos
leva não sei para onde. Succede sempre que, passados mezes sobre o que
escrevo--eu proprio duvido e hesito. Sinto que não me pertenço... É por
isso que não condemno nem explico nada, e fujo até de descer dentro de
mim proprio, para não reconhecer com espanto que sou absurdo--para não
ter de discriminar até que ponto creio ou não creio, e de verificar o
que me pertence e o que pertence aos mortos. De resto isto de ter
opiniões não é facil. Sempre que me dei a esse luxo, fui forçado a
reconhecer que eram falsas ou erroneas. Sou talvez uma arvore que cresce
á sua vontade, pernada para aqui, pernada para acolá, á chuva e ao
vento. Não admitto poda. Perco horas com inutilidades, e passo alheado e
frio diante do que os outros contemplam extasiados. Admiro, por exemplo,
muito mais, perdoem-me, a vida ignorada do meu visinho, o senhor Crasto,
que morreu de oitenta annos, curvado, a lavrar a terra, do que a do
senhor Hintze Ribeiro, que considero inutil e destituida de toda a
belleza.

Por isso, repito, muitas folhas destes canhenhos serão mal
interpretadas, talvez alguns tipos falsos. Só vemos mascaras, só lidamos
com phantasmas, e ninguem, por mais que queira, se livra de paixões. No
que o leitor deve acreditar é na sinceridade com que na ocasião as
escrevi. Poderão objectar-me:--Então com que destino publico tantas
paginas desalinhadas, de que eu proprio sou o primeiro a duvidar? É que
ellas ajudam a reconstituir a atmosphera d'uma epocha; são, como dizia
um grande espirito, o lixo da historia. Ensinam e elucidam. Foi sempre
com a legenda que se construiu a vida. Sei perfeitamente que a historia
viva tanto se faz com a verdade como com a mentira--se não se faz mais
com a mentira do que com a verdade. Para gerar um acontecimento é
preciso crear-lhe primeiro a atmosphera propicia. «Algumas palavras sob
caricaturas grosseiras dispersas pelos campos, formaram uma lenda na
imaginação popular, concernente ao rei, á rainha, ao conde de Artois, a
madame Lamballe, ao pacto da fome, _aos vampiros que sugam o sangue do
povo_, etc. Dessa lenda, que elle acha util, sahiu a grande
revolução»--diz um historiador. A gente nunca sabe ao certo se da
infamia poderão nascer coisas bellas... A mentira, o boato, o que se diz
ao ouvido, o que se deturpa, e que tanta força tem, a meada de odio, de
ambição e de interesses, que não cabe na historia com H grande, tem o
seu logar n'um livro como este de memorias despretenciosas. Eis uma
razão. Tenho outra ainda: torno a vêr e a ouvir alguns mortos. Recordo,
o que é necessario a quem cada vez mais se isola com o seu sonho e as
suas arvores. Isto aquece quasi tanto os primeiros annos da minha
velhice, como o lume que arde até junho na lareira d'esta casa[1].

Cantareira, Foz do Douro--1918.



ALGUMAS FIGURAS


                                                        Janeiro--1900.


Urbano de Castro, com um olho tôrto e um chapelinho afadistado, na
aparencia reservado e sardonico, sae-se encantador na intimidade. Os
seus amigos adoram-no, o Camara, o Schwalbach, a antiga roda do _Correio
da Manhã_. Trouxe para o jornalismo uma grande leitura de
classicos--conhece muito a lingua--e uma forma ironica e precisa: em
meia duzia de linhas incisivas deixa o adversario a sangrar. Os
politicos temem-no tanto, que uma das condições impostas pelo José
Luciano, quando do pacto com o Hintze, foi que o Urbano terminasse na
_Tarde_ com o _Espirito de S. Ex.^a_.

Eis algumas maximas de Urbano de Castro:


     --A paciencia é uma virtude de capote e lenço.

     --Quanto mais leve é a cabeça da mulher, mais pesada é a do marido.

     --Os homens publicos são como os papeis de credito--o que hoje tem
     uma alta cotação, amanhã não vale, e inversamente.

     --Quando tiveres muitos argumentos, não empregues senão os
     melhores. Quando não tiveres nenhum, emprega todos.

     --A paternidade é, muitas vezes, um rotulo. A garrafa é a mesma,
     mas o vinho é outro.

     --Viuva rica, com um olho dobra, com outro repica.

     --No coração mora-me Deus, no figado o diabo.

     --Mortal é o contrario de imortal. Imortal é o que é sempre. Logo,
     mortal--é o que não é nunca.

     --Theologia--a arte de fazer comprehender aos outros aquillo que
     nós não entendemos.

     --De todas as armas, a mais dificil de manejar é o pau... de dois
     bicos.

     --Jornalista--fabricante da opinião publica. Cada um afirma que a
     unica genuina é a da sua lavra.

     --Se os homens de mais juizo pensarem a serio em muitos dos seus
     actos hão de reconhecer que não teem juizo nenhum.

     --O suicida tem para mim um lado sympathico--não se julga
     insubstituivel.



                                                          Junho--1903.


Deparo hoje com o Garrido, redondinho, baixo, de bigode grisalho e um
ventre de proprietario. Nunca se altera nem perde a paciencia. Jovial?
Não, triste e falando sempre baixinho. Tem ganho fortunas, tem dissipado
fortunas com o mesmo ar inalteravel. Houve ocasiões em que todos os
theatros do Rio representaram peças com o seu nome. Está cheio de
dividas. E o seu ideal, o ideal d'esta existencia de acaso, com aflições
de morte, ou dispersa pelo Brazil entre dois numeros de opereta--pan!
pan! pan!--e dinheiro atirado a rodos, é um casebre no campo, duas
arvores n'um retalho de horta viçosa e uma nora pingue que pingue no
fundo do quintal. Paz. E não escrever uma linha.

Um agiota não o larga. É este velhinho paternal, de cabellos brancos,
que faz recados, deita as cartas ao correio e leva coiro e cabelo.
Parece inofensivo. Começou a vida por creado de servir e esfolou os
patrões. Afirma que o Garrido é capaz de arrancar dinheiro a um morto:

--Este senhor Garrido dá-me cada aflição! Até me faz crear caspa!


                                                      Fevereiro--1900.


A paixão d'este homem é não ter um livro de geito. G... só escreveu trez
folhetos, e por ahi ficou o seu talento. Espremido não deu mais nada. É
no entanto uma figura epigramatica e nitida de conversador e um typo
curioso de bohemio lisboeta. Dormiu nas escadas dos predios, pertenceu
ao grupo que o Fialho arrastava pelas ruas até ante manhã, dispersando
com elle o oiro da sua esplendida phantasia. Para essa meia duzia de
bohemios improvisou o grande escriptor as suas melhores satyras. Uma
noite, no café, G... aludiu á sua obra, e logo do lado o Fialho acudiu:

--A tua obra, bem sei... Vinte e cinco cartas a vinte e cinco amigos
pedindo vinte e cinco tostões emprestados.

G... embezerrou. Mas passados minutos aproveitou uma pausa no dialogo,
para perguntar com indiferença ao Fialho, que tinha ha pouco casado rico
com uma prima, que gastou a vida a esperal-o no fundo da provincia:

--O Fialho fazes favor de me dizer que horas são... no relogio do teu
sogro?


                                                      Fevereiro--1903.


Vejo sempre diante de mim o D. João da Camara, já cansado e e asmathico,
olhando por cima das lunetas, e falando baixinho com receio, uma
modestia no dizer, e um medo de magoar... A barba espessa, a grenha
espessa e um chapelinho pôsto ao lado, completam a figura um pouco
molle. É quasi um santo. Joga e jejua. Dá tudo o que tem. Exploram-no.

--O que me perdeu na vida foi não ter energia. Nunca me decido.--E mais
baixo:--Isto vem talvez dos jesuitas que me educaram. Tive alguns
condiscipulos que são homens notaveis e ninguem dá por elles.

Vive de noite, com uns e outros, ao acaso, nos bastidores dos theatros,
ou encantado com uma ceiasinha na taberna, que descobriu no Arco da
Bandeira. Se encontra o Pinturas está perdido: não se largam mais. Vae
sempre para casa de manhã, e a sua vida é tão aflictiva que desejaria,
como o Schwalbach, que o metessem algum tempo no Limoeiro, para não
pensar no dia seguinte.

Hontem contou-me isto que é encantador:

--Não me importava nada de ter quatorze filhos em vez de sete. São muito
meus amigos. O Vicente nunca sae de casa sem me dar um beijo. Eu estou
sempre a dormir... Esta manhã--estava acordado, mas fingi que dormia,
quando aquelle rapagão me entrou no quarto, pé ante pé, para não me
acordar, e beijou-me...

E fica extatico.

Ás vezes fala-me das peças que ha-de fazer, do _Sermão da Montanha_ e de
outra com tipos de sonhadores, que se alimentam de mentira e de um
passado que nunca existiu, forjado ponto por ponto. Assobia-se, por
exemplo, um trecho d'opera, e logo este atalha:--Bem sei é da
_Dinorah!_... Tempos que já lá vão! O que eu vivi com Fulano e Sicrano,
e as ceias que demos juntos!--Tudo ilusão! tudo sonho! Vae-se a ver nem
sequer conheceram as pessoas de quem falam... Outras vezes conta-me a
sua vida:

--O que eu tenho sofrido! Tive muitos dias d'angustia... N'essa noite _O
Pantano_ cahira. Toda a gente dizia mal de mim. Nos bastidores a intriga
fervia com a Lucinda á frente. Sahi do theatro a pensar no que havia de
empenhar no dia seguinte. Fui para casa muito tarde.--Não haveria que
pôr no prégo?--Por fim descobri uma casaca, e, ainda muito cedo, sahi
com o embrulho debaixo do braço, n'um papel de jornal. O papel amolecia,
a casaca rompia para fóra, e eu batia de prégo em prégo. Sete horas da
manhã... Estavam todos fechados. N'um disseram-me com seccura:--Não
emprestamos sobre casacas.--Fui a outro e esperei no portal que abrisse.
Lembro-me como se fosse hoje. Chovia a potes. Defronte, estava uma
carroça, com um cavallo branco. Era um burro pelle e osso, a cabeça
metida n'uma linhagem, a comer. E eu no portal, com o embrulho já todo
roto debaixo do braço, invejei aquelle cavalo!...

Já não joga. Mas antigamente ia todos os dias para casa ás cinco horas,
tendo perdido tudo:--Foi n'essas noites que imaginei as minhas melhores
peças...--Cuidadosamente punha sempre de lado um tostão para o
americano--e quasi sempre succedia tambem que um velho fidalgo, das suas
relações, lhe pedia o tostão emprestado para um calice de vinho do
Porto, que se habituara a beber ahi pelas tres da madrugada. O D. João
dava-lh'o, e lá ia a pé para a Junqueira, a sonhar nas peças, sob a
lufada, molhado até aos ossos, de casaco de alpaca.


[Figura: _Columbano._--Auto-retrato.]


                                                          Junho--1903.


Passei a noite em casa do Columbano, com o Raphael Bordalo Pinheiro.
Durante o jantar falou sempre. Todo elle mexe, todo elle é caricatura e
imprevisto: os olhos, o nariz, as mãos e até o bigode que se encrespa,
desenham e imitam.--Era um homem com um ôlho assim...--E logo o ôlho se
lhe envieza. Em rapaz o seu sonho era o theatro. Chegou a ter lições do
Rosa pae. Está um pouco cansado. Queixa-se muito. Amua.--Ninguem faz
caso de mim...--Estranha quando o não vão esperar á estação--e está
sempre a chegar das Caldas e partir para as Caldas. Depois esquece-se e
põe-se a rir. Depois torna:--Eu não jogo, mas lá em casa todas as noites
jogam e pedem-me dinheiro emprestado.--Agora arremeda este e aquelle de
quem fala. Conta que em Paris ouviu o rei dizer:--Isto aqui é uma terra,
lá é uma piolheira.--E que o infante, quando lhe perguntaram:--Então em
Londres que tal, com aquelles principes todos?--Mal, mal... eu sou um
principe aza de mosca...

E acaba--é nas vesperas do jantar que lhe vão oferecer no theatro D.
Maria--por dizer:--Veja o senhor que desgraça a minha! Daqui a pouco não
posso fazer a caricatura de ninguem!

Efectivamente lá estavam no banquete todos os homens imponentes, os
conselheiros, os politicos decorativos, a serie completa das figuras do
_Antonio Maria_. Não faltou ninguem á chamada. E nos camarotes
aplaudiram-no com delirio as lisboetas palidas de que troçou em tantas
paginas de genio. Confundiram-no e arrazaram-no. Creio que foi a
primeira vez que perdeu a linha.

Gostou sempre de fazer partidas. É o Schwalbach que conta:

--O imperador do Brazil logo que chegava ao theatro metia-se no
camarote, descalçava as botas e calçava com regalo uns chinelos. Uma
noite o Raphael, que estava então no Rio, foi pé ante pé, meteu a mão
pela cortina e roubou-lhe as botas. O pobre homem não se desconcertou:
sahiu em chinelos, atravessou em chinelos a multidão, saudando para a
direita e para a esquerda, desceu ao pateo, e meteu-se em chinelos na
carruagem.


                                                       Dezembro--1900.


Latino Coelho, contado por Maximiliano d'Azevedo:

Tinha coisas absurdas: estava sentado a conversar e levantava-se sem
mais nem menos, compunha a trumpha, e ia espreitar á janella. Era todo
de enguiços. Nunca sahia de dia. E que memoria! Dizia-se-lhe qualquer
banalidade, e elle, d'ahi a mezes, repetia-a palavra por palavra.
Discursos que revelam o conhecimento inteiro d'uma epocha, como o de
Camões, que leu na Academia, e que foi escripto das sete ás onze da
manhã, e lido ao meio dia, compunha-os com extrema facilidade.

D'uma vez estava elle em casa politicando com alguns amigos reformistas,
o Mariano, o Lopo Vaz e não sei quem mais. Discutia-se a revolução de
onze de maio. O Latino, dando um geito á trumpha, chegou á janella e viu
o carro, puxado a mulinhas, do Saldanha:

--Ahi vem o duque... E aposto que vem para cá.

Efectivamente o carro parou á porta. Era o Saldanha. O Latino foi
recebel-o n'outra sala, e, depois dos cumprimentos habituaes, o Saldanha
perguntou-lhe:

--Sabe a que venho? Venho saber a sua opinião sobre o dia de hontem.

--Mas não tenho opinião nenhuma...

--Não se recuse, Latino. Peço-lho como amigo.

--Então, marechal, deixe-me dizer-lhe que quem como V. Ex.^a conquistou
um nome glorioso com a espada, não deve servir-se da canalha para fazer
o que fez. A sua situação é deploravel.

--Não me diga isso! E se eu aproveitasse a situação para firmar de vez a
liberdade em Portugal e salvar o paiz?

--Se V. Ex.^a quizesse...

--Mas é que quero, e para isso venho ter comsigo.

Combinaram que o Latino redigiria os decretos ampliando as liberdades
publicas, tornando-as efectivas, e convocando constituintes com poderes
amplissimos.

--O maior segredo...--recomendou o Latino.

N'essa noite não dormiu. Acompanhado d'um amanuense do ministerio,
redigiu os decretos, que no dia seguinte o proprio Saldanha foi buscar,
metendo-os dentro da pasta. Mas fosse que os amigos que lá estavam em
casa tivessem desconfiado; fosse que o Saldanha désse á lingua, o que é
certo é que o rei foi prevenido a tempo por alguem que lhe disse:

--O Saldanha vae trazer-lhe uns decretos. V. Magestade não os assigne ou
está perdido.

Quando o Saldanha chegou ao Paço o rei abraçou-o:

--Pois o duque ajudou a conquistar-me o throno e não quer que meus
filhos reinem? Nem talvez eu chegue até ao fim da vida no poder...

Saldanha que era um fraco recuou. D'ahi a dias encontrou-se com o Latino
que lhe disse:

--V. Ex.^a não podia deixar-me dormir a minha noite socegado?

Por trez vezes, conclue Maximiliano, o Latino me contou isto. Já tenho
querido descobrir os decretos. Devem estar em casa do irmão, n'um quarto
interior, onde a traça vai roendo os papeis do grande escriptor...

       *       *       *       *       *

Um dia o Saraiva de Carvalho foi propor a revolução ao Latino:

--Mas ha-de ser tudo assassinado--toda a familia real.

--Isso não!--protestou logo o Latino.

       *       *       *       *       *

Morreu virgem, como Newton. No dia de sua morte, estava o cadaver na
cama, apenas coberto com um lençol. Alguem disse para o Maximiliano:

--Bastaria arrancar aquelle lençol para descobrirmos o segredo de toda a
sua existencia.

       *       *       *       *       *

Junqueiro dizia de Latino:

--Sim, é um homem admiravel, que em logar de c... tem duas castanhas
piladas!


                                                           Maio--1903.


Um jornal publica hoje esta noticia:


     POVOA DE LANHOSO, 29--Faleceu, sepultando-se hoje, o sr. dr.
     Joaquim da Boa Morte Alves de Moura, da freguezia de Santo Emilião,
     bacharel formado em philosophia e mathematica pela Universidade de
     Coimbra.

     O povo apelidava-o de santo, pelas suas sublimes virtudes christãs.
     Tinha 92 annos de edade; o falecido fôra frade agostinho.


O homem, a quem estas seccas linhas se referem, era na verdade um santo.
Deixou tudo para viver pobre, perto de S. Martinho do Campo, entre
cavadores e a gente humilde da terra que o adorava. Vi-o muitas vezes
passar na estrada, todo branco, minguado, com o burel, que nunca quiz
largar, no fio, e os sapatos rotos. Era efectivamente formado em
philosophia e direito, e até por vezes fôra convidado para lente da
Universidade de Coimbra. Recusou sempre, recusou tudo, preferindo a
convivencia com a gente do povo e com a natureza que o rodeava. Ha entre
as duas povoações, S. Bento e S. Martinho, que ficam á beira da estrada
da Povoa de Lanhoso, uma fonte que brota da raiz de uma arvore. Perto
fica a ermida. Alli se costumava o santo homem sentar, horas e horas
embebido nas suas meditações. Em que scismava? Decerto no passado
longinquo...

Lembram-se d'uma narrativa de Alexandre Herculano, que se chama, creio
eu, «O ultimo dia de convento?» Um frade chora ao deixar para sempre a
cella caiada, onde passou a vida inteira. É só isto, afóra a ternura, as
lagrimas, a prosa do grande escriptor. Assim D. Joaquim da Boa Morte
contava tambem as ultimas horas de convento. Velhinho, tremulo, vivendo
de esmolas, recolhido por caridade em casa de duas mulheres, que o
cuidavam, nunca esqueceu o convento, a cella, o dia de separação. E, ao
pé da arvore, junto ao fio limpido d'agua, lhe ouvi mais d'uma vez
contar o que sofrera.

--E dos seus companheiros lembra-se? Teve mais tarde noticias?

E elle, com os olhos razos de lagrimas:

--Viveram ainda dispersos por esse mundo. Ha annos, ha muitos annos,
recebi, dum d'elles um recado, esta palavra:--«Adeus!» Foi o ultimo!

Agora acompanhava-o sempre um rapazinho. Com a vida, ia-se-lhe desfeito
o burel, rôtos os sapatos. Deixára de dizer missa, mas o povo d'aquelles
logares, que é ingenuo e crente, consultava-o nas suas doenças e nos
seus sofrimentos. É que D. Joaquim fazia milagres. Excusam de sorrir...
O milagre é uma comunicação entre pessoas que têm radicada e viva esta
força enorme:--a fé. D. Joaquim da Boa Morte curava as creaturas
simples, as mulheres, as creanças e os homens da serra que o iam
visitar, com boas palavras, e, quando muito, com alguns cachos de uvas,
que elle proprio colhera e lhes distribuia, depois de benzidos.

Antes de morrer pediu que o enterrassem embrulhado na manta coçada que
pertencera a sua mãe e que alli tinha no fundo da arca. Essa velha manta
como eu lh'a invejo! Era n'um farrapo assim, com um resto de calor e de
ternura, que eu queria ir aconchegado para a terra. Nem a eternidade das
eternidades, nem o isolamento, nem o frio dos frios, conseguiriam jamais
trespassal-a.

Que descance em paz. Quem escreve estas linhas deve-lhe uma das maiores,
mais elevadas e puras impressões que tem recebido na vida. A sua grande
figura só desaparece da terra, depois de ter feito muito bem e estancado
muitas lagrimas.


                                                          Julho--1903.


O Silva Pinto a respeito do Cardia, que ha tres dias, em plena mocidade,
meteu uma bala no coração:

--Eu não faço como elle, não me vou embora, porque tenho duas creanças,
o Mario e o Raul. Era de certo a isto que o Manuel se referia ao
escrever: «Não faço falta a ninguem». Isto atura-se lá a sangue frio e
determinadamente! Matava-me para me ver livre d'estes bandalhos!

E os olhos enchem-se-lhe de lagrimas, arrasta a perna apegado á bengala,
e sacode a cabelleira branca. Parece um trapo ameigado, mas resistente
ainda:--Arre bandidos!

De repente, sem transição, põe-se a rir:

--Sabe de que me rio? Lembrou-me o Camillo, que tinha uma lingua
viperina e dizia mal de toda a gente. Um dia em Seide falei-lhe n'este e
naquelle, disse mal de todos. Por fim:--Sempre me refugio em Victor
Hugo, para ver se você tambem diz mal d'elle...

E o mestre:

--Esse velho não era nada tolo!

Ri-se. Depois fica outra vez triste:

--Aquellas paginas de Hugo quando o avô vê entrar o neto ferido pela
porta dentro!

       *       *       *       *       *

O Fialho descrevendo o Cardia, esse rapaz ingenuo, insinuante e
espontaneo, que aos dezanove annos se lembra de estourar o coração com
uma bala, por causa d'uma reles cantora de quarenta e dous annos--o
Fialho diz:

--...era isto e aquillo e uma mão enorme atirada p'ra aqui e p'ra acolá
a toda a gente, apertando a nossa.

O que nunca mais me esquece são aquelles olhos tristes e a bocca moça
sempre a sorrir!...


                                                      Fevereiro--1904.


Hoje almoço em casa do Schwalbach com o Bulhão Pato, o Camara, João
Chagas, Antonio Bandeira, etc. O Bulhão Pato é um homensinho secco e
resistente, de cabeleira e pera branca--miniatura do alentado Pato
caçador que todos nós imaginamos ao ler-lhe algumas paginas. Parte no
dia 20 para S. Miguel, de passeio... Quando morrer desaparece com elle
toda uma epocha:--Meu rapaz podes ter lido todos os philosophos, que se
não tiveres sentimento... Minha mulher, uma velhinha lá fica... Não vae
comigo, porque recolhemos em casa uma pequena pobre, pobrissima, e
queremos-lhe como se fosse nossa filha. Sentamol-a á nossa meza... Bem
sei que ha por ahi uns moços que dizem mal de mim. Não me importo.
Quando vejo um rapaz de talento abro-lhe logo os braços.

No fim do almoço, beija a mão ás senhoras. Conviveu com o Herculano,
ouviu-lhe dizer:--Isto dá vontade de morrer! «Que faria--accrescenta--se
vivesse hoje!»--O Conservatorio lembra-lhe o Palmeirim--«que foi da
minha creação»--É simpathico, vivo e cheira a outros tempos: conserva,
como o linho guardado no fundo d'um armario, o perfume da maçã. E que
contraste com os outros, com o Chagas, com o Schwalbach, sempre aflicto
e sempre despreocupado, com o Antonio Bandeira, que, sob uma aparencia
futil, é pratico como o diabo, e que conta que foi uma noite em Roma,
com alguns portugueses, mulheres e guitarras, bater o fado para as
ruinas do Colyseo! Depois, por _blague_, sustenta com o Chagas, que
ninguem devia ter mais de duzentas e cincoenta grammas de principios.


                                                          Março--1904.


Encontrei hoje o Marcellino Mesquita: ventas largas, marcas de bexigas,
barba com muitas brancas aparada rente, chapeu desabado, capinha curta e
olho vivo. Tipo crestado do sol, materialista e secco.

--A gente quando chega a certa edade tem de se isolar para não viver
n'uma perpetua irritação. Olhem agora se eu encontrava o Pequito
ministro, o Pequito de quem a gente fazia troça em rapaz! E muitos
outros, que aos quarenta annos começam a desafinar-nos os nervos... Vivo
no Cartaxo, n'um descampado: a quinta fica entre duas estradas. Não
passa lá ninguem... Leio, fumo, e trabalho. Tinha um moinho; primeiro
acrescentei-lhe uma cozinha, depois um quarto: agora tenho lá uma casa.
E já não posso viver sem o ruido das mós. O meu quarto fica mesmo por
cima. D'aqui a oito dias, com as macieiras em flôr, aquillo é
adoravel...


                                                          Abril--1903.


Vi o Marianno nas camaras. É um cadaver, com uma sobrecasaca riquissima
de gola de veludo. Nunca phisionomia exprimiu maior cansaço, indiferença
ou desprezo, a palpebra cahida, o olhar vazio de expressão.--Que me
importa! que me importa!...--Parece um morto, farto de sofrimento e de
goso, e, sob aquella apparencia de sceptico raros se magoam como elle.
Toda a vida tem sido ludibriado. Contam que a mulher passa horas a
descompol-o. Elle, sentado, escreve tiras e tiras de papel, a tarefa do
jornal, sem dizer palavra nem levantar a cabeça. D'uma vez chamou-lhe
tudo quanto lhe veio á bocca, e elle inalteravel, curvado sobre os
linguados, sem lhe dizer palavra... Por fim ella, desesperada,
berrou-lhe:

--És um estupido!

Elle então parou, ergueu a cabeça, e muito calmo:

--Teem-me chamado tudo, mas estupido é a primeira vez!

E continuou a escrever.

Por fóra uma aparencia de sceptico, por dentro uma sensibilidade enorme.
Anda sempre metido em complicações e negocios, em caminhos de ferro, em
pedaços de Africa, bahia de Lobito, etc., e afinal não passa d'um
sonhador que tem as propriedades de Azeitão hipothecadas em quatorze
contos de reis.


                                                       Setembro--1903.


O Antonio José de Freitas, homem de lettras mediocre, é um conversador
admiravel. Se conseguisse escrever como fala, e désse á prosa aquella
vida que dá á palavra, seria um grande escriptor. Pequeno, branco, na
ponta dos pés, sempre a segurar as lunetas, todo elle nervos:

--Dei-me muito com o Castello-Melhor. Um dia começou a imaginar que
estava pobre, porque no Banco de Portugal lhe não quizeram, como sempre
se fez, descontar uma lettra só com o nome d'elle. Disse ao Barros
Gomes:--Vae beber da merda!--E sahiu furioso. D'ahi começou a imaginar
que tinha cahido na pobreza e alugou o jardim para o circo Whytoine. Uma
vez sahi com elle d'um baile pela madrugada e acompanhei-o a
casa.--Sobe.--Tenho ainda que escrever para o Brazil...--Insistiu,
subi--e eil-o a clamar no quarto:--Que diriam meus avós se vissem alli o
circo e os palhaços!...--Estava desesperado. Descompul-o.

Passaram-se annos e morreu de repente. Vestimol-o n'aquelle mesmo
quarto, e, altas horas da noite, ouvimos, de repente, um clamor: era o
circo Whytoine que ardia. E eu assisti ao espectaculo do cadaver,
iluminado pelo clarão do incendio, alli onde o ouvira evocar com
desespero os seus mortos. Foi tudo ao enterro. O povo abria alas, e
quando chegamos ao cemiterio e quizemos pegar no caixão, veio de roldão
uma chusma de cocheiros e vadios, que nol-o arrancaram das mãos, e,
erguendo-o no alto dos braços, levaram-no até á cova...

       *       *       *       *       *

--O Eça usou toda a vida bentinhos ao pescoço. Vi-lhos eu, que dormi por
diferentes vezes com elle no mesmo quarto...

       *       *       *       *       *

Depois fala no Resende:

--Se vivesse era decerto o chefe do partido conservador. Que homem
encantador, polido e sceptico! E tinha uma poderosa ascendencia
magnetica sobre nós todos. O medico, já quando elle estava muito mal,
recomendou-lhe ares do mar. Passeava n'um bote no Tejo. Umas vezes ia eu
com elle, outras o Soveral, e levavamos-lhe botijas com agua quente,
porque sentia sempre um frio mortal. Estou a ver o Soveral, com uma
botija em cada mão. O _Rabecão_, um jornal de caricaturas do tempo,
disse que nós iamos emborrachar todas as noites para o rio. Muito nos
rimos... Pois o Resende, atheu toda a vida, morreu como um crente.

Foi elle que se esmurrou com o Eça n'uma das piramides do Egypto. Nessa
viagem ouviram ambos missa no tumulo de Jesus, em Jerusalem. O Eça cahiu
logo de joelhos; quando levantou a cabeça para ver o quadro, dois ou
trez mil peregrinos tinham como elle ajoelhado sob o mesmo impulso
irresistivel: só a seu lado, de badine e sobretudo no braço, se
conservava de pé, sem perder a serenidade nem a linha, um unico homem: o
Resende.

       *       *       *       *       *

Os _vencidos da vida_, depois que se juntaram diziam mal uns dos outros.
Não se podiam ver.


                                                          Março--1900.


Ha mezes que Junqueiro não aparecia na Praça, onde outrora era certo á
noite, rodeado de esbirros, e discutindo politica ou arte com alguns
amigos mais intimos. Eil-o agora de volta, depois de umas febres
palustres apanhadas n'essa longinqua quinta que replanta de vinha lá
para a Barca d'Alva.

Vem curioso. Teem por acaso os senhores noticia d'um Junqueiro adunco e
janota, mephistophelico, com ditos em braza explodindo sobre o ultimo
acontecimento, e conhecem talvez a lenda da casa de hospedes celebre da
rua dos Retrozeiros, d'onde em tempos sahiram gritos subversivos,
pamphletos, versos, theorias philosophicas, satyras e revistas do anno,
e onde--consta dos archivos da policia--morou o proprio Diabo em pessoa,
na intimidade do poeta?... Lembram-se? Depois, n'outra phase da vida,
viram-no talvez autoritario e feroz, com o mesmo perfil em bico d'aguia,
sob um chapéo molle e gasto, atacar o velho Padre Eterno?... Pois ahi o
teem agora philosopho e christão. Parece um prégador
socialista-tolstoiano, um santo cavador, de barba negra e inculta: traz
ainda terra pegada nas mãos e uma roupa velha, a que só faltam alguns
remendos cosidos á ultima hora... Usa uma camisola de lã e diz
assim:--Eu não me visto: cubro-me.

Chega da Barca d'Alva, um terreno enorme lá para a raia, entre pantanos,
que reuniu leira a leira, depois d'uma scena, que dava um capitulo á
Balzac. É elle mesmo que a evoca em meia duzia de traços, e a gente vê
logo d'um lado os cavadores tartamudos e hesitantes, do outro o Senhor
Poeta, como elles lhe chamam, com um livro de cheques na algibeira,
encafuando-os a todos na sala do cartorio:--Se chegam a concertar-se era
uma discussão para seculos. Pediam-me uma fortuna!--Um a um compareceram
diante do tabelião:--Quanto quer? Assigne!--E sahiam logo por outra
porta.

Já pouco a pouco a lenda se forma, discutindo-se a nova thebaida, que
d'aqui a annos será visitada como Valle de Lobos e Seide. Que procuram
os nossos grandes escriptores, desde Herculano a Fialho, na natureza,
que pouco nos dá em troca do muito que lhe damos? Afastar-se dos outros
ou esquecer-se a si proprios? Talvez as arvores e os montes nos preparem
melhor para o sepulchro e para o verme, ainda que eu julgue que não ha
como um 6.^o andar, com livros e papeis, e um cinematographo no rez do
chão, para acabar com a vida.

Seria um curioso estudo aquelle que comparasse Valle de Lobos, Seide e a
quinta de Junqueiro, a decoração escolhida por tres homens superiores--o
fundo de tres grandes retratos. Na Barca tem o poeta uma casota de cão,
com os muros ainda em osso, e uma varanda onde passeia todo o dia
infatigavelmente. De quando em quando escreve na cal da parede versos ou
contas. Seide, n'um cahir de tarde outomniça, lembra a alma de Camillo.
Ha lá um calvario d'arvores decepadas que parecem forcas. Ha lá uma casa
tragica, pintada d'amarello. Um ermo, que, a meia legoa da estrada, fica
ao cabo do mundo, e que parece escolhido de proposito para esconder uma
desgraça ou combinar um crime. Peor: ficou na casa abandonada, no
ambito, nas pedras, alguma coisa daquella alma dilacerada de sceptico e
de crente, mixto doloroso que só tinha como solução o infortunio. O que
se ouve são risos ou gritos de dor? Depressa! depressa!... Parece que
elle anda ainda por aqui, sardonico e immenso, desgraçado e immenso.
Valle de Lobos, se uma vez o avistaram, não emociona de uma forma toda
diferente, e não diz bem com a alma de Herculano?... Quanto a Junqueiro,
a sua paizagem querida é indubitavelmente a trasmontana, grave, revolta
e grandiosa como o seu genio.

Camillo não encontrou decerto resignação nas arvores, nem nos montes,
porque, para o mestre, em toda a natureza só o homem existia:--Não ha na
sua obra uma arvore, nota o poeta...--Nem Guerra Junqueiro por ora se
isola. Está na lucta, com os seus livros, as suas theorias, a sua
maneira suprema de discutir e de encarar os problemas do universo.

--Para viver na aldeia é preciso, diz elle, ser João Brandão ou S.
Francisco d'Assis.

De forma que a Barca d'Alva não é bem uma thebaida para o poeta. Os
senhores vão agora conhecel-o sob este aspecto novo--agricultor. A Barca
é-lhe mais que um refugio: é (palavras que fazem bater o coração de
todos os homens) o futuro dos seus filhos. E Junqueiro, agricultor, tem
ainda genio: inventa e descobre. Quatrocentos cavadores desbravam-lhe a
terra, que deve produzir um vinho magnifico. O mosquito propaga a febre.
O jornaleiro macilento bate o queixo com sezões. Elle ordena, dirige e
resolve as questões agricolas muito melhor que os lavradores da região,
de quem diz:

--Plantam vinhas, como quem joga na batota--ao acaso!

Ouçam-no! Desfilam os jornaleiros, que adquirem logo uma vida
extraordinaria, as boccas que não falam, a Maria Colhôna, que tem filhos
de toda a gente, filhos para o Brazil, filhos para soldados, filhos para
a desgraça, os sêres deformados e enormes, os tipos que se transformam
em simbolos... Descobriu um novo processo para evitar que a enxertia,
essa operação cirurgica, como elle lhe chama, falhe, e, sob as suas
ordens, trabalham alguns centos de homens, que se encostam ás enxadas
para ouvirem o Senhor Poeta... Não é raro vel-o subito, tempo humido,
perigo para as vides, abalar para a quinta com saccos de sulphato.
Adivinha, presente melhor a natureza que os sabios--e cria. Tudo o que
toca toma sob as suas mãos um aspecto novo, tão certo é que os homem de
genio, como quer Carlyle, são sempre superiores e ineditos.

E de que maneira paradoxal elle expõe as suas theorias! Nervoso,
pequeno, calcando o lagedo da Praça, a mordiscar a ponta do charuto, que
giganteas formas de sonho não vae creando aquella magica palavra!... A
sua phantasia é eminentemente decorativa.

--Sabem--dizia o poeta uma noite--sabem que scismo na fórma de
transformar toda a agricultura? Acabaram-se os pobres, a fome, os annos
tristes! Para o vinho, d'aqui em deante, não bastarão toneis como torres
e para o pão arcas como predios. Uma carrada de bois será apenas
suficiente para carregar uma abobora, e um simples cacho de uvas dará
vinho para duzias de borrachões. Como? Aplicando ás arvores, ás vides,
ás plantas emfim, o methodo de Brown-Séquard. O sabio dá a um organismo
gasto uma vida assombrosa, injectando-lhe a vitalidade de coelhos.
Calculem o resultado d'esse sistema aplicado na agricultura...

Um castanheiro dura seculos, tem uma vida extraordinaria. É mais que uma
arvore--é uma força. Apodera-se dos montes. As suas raizes alastram, os
seus ramos tocam no céo. Imagine que injecto polen de castanheiro n'uma
vide... Obtenho logo uvas como as da Terra da Promissão. D'um pé de
melancia tiro um fructo capaz de carregar um carro. Tres maçãs metem no
fundo uma náu.

E eis, por uma noite de invernia, a natureza transfigurada, pelo poder
da phantasia e do sonho. Flores são arvores abrindo lá em cima no céo em
parasoes roxos; pinheiros transformam-se em montanhas; monstros erguem
as suas corolas de veludo, e na verdade não passam de humildes flores
bravias. Uma petala desaba com o fragor de penedos, e multidões sobre
multidões sequiosas veem dessedentar-se n'este fructo colossal:--o
morango. Ha que tempos que eu erro perdido n'esta floresta monstruosa de
papoulas!...

Junqueiro na intimidade é prodigioso de genio, de imprevisto, de
elevação. Vê os factos mais simples com um olhar que os engrandece.
Assombra de pitoresco e de inedito. O homem de genio é, como todos os
homens, filho da mesma lama, mas, por acaso, vão n'esse humus lagrimas,
aguas correntes, detrictos de florestas, restos de nuvens e a emoção
profunda da natureza. Por isso sabem tudo, sentem tudo... É pena que as
suas conversas, os seus fragmentos, esses pedaços de sonho e de vida,
atirados com febre, perdidos, e decerto esquecidos, se não possam
juntar, porque dariam um dos aspectos mais extraordinarios do seu genio.
Seria esse talvez o seu melhor livro. Assim, por exemplo, as cathedraes
de Hespanha, onde Jesus está preso e a ferros, a explicação prodigiosa
dos Christos de madeira--o Christo dos soldados, o dos ladrões, o dos
cavadores, da sua sala de jantar, unicas obras d'arte de que não quer
desfazer-se, e a sua philosophia, a maneira superior como encara o
universo e ilumina o desconhecido...

Pois ahi o teem de novo no Porto, de barba hisurta, embrulhado n'um
casaco coçado, com um ar iluminado de Santo. Direis que vae prégar ás
multidões. Demais já ha annos que elle escrevia:


     Tolstoi o meu sapateiro...


E um dia, ao saber Camillo sceptico, Camillo com noites de sombrio
desespero, palpando a coronha do revólver, não foi de proposito
procural-o para lhe prégar Deus?

Era n'uma dessas tardes tragicas de Seide, de que o grande escriptor
fala nos _Serões_. A natureza chorava revolvida: a acacia de Jorge
batia-lhe devagarinho nos vidros. Quem é que o chama? Atormentado de
dores, ouve vozes, vê phantasmas, e sae do horror com blasphemias e
sarcasmos. Junqueiro encontra-o mergulhado na dolorosa tinta do
crepusculo, com a pala com que escrevia sobre os olhos, absorto, calado,
desesperado, o rosto marcado de dedadas, «esboçado n'uma argila côr de
mel», segundo o retrato de Ricardo Jorge. Eu tinha-lhe medo... O poeta
tenta arrancal-o ao negrume que o envolve: desenrola theorias,
explicações, argumentos; ataca-o a fundo, persuade-o talvez... Já o
julga abalado e convertido, quando d'essa figura só osso e dor, saem
emfim estas palavras ironicas:

...--Sim, sim, Junqueiro, você convencia-me se eu não tivesse ainda no
estomago, desde o almoço, tres bolinhos de bacalhau, que me estão aqui
como tres Voltaires.


                                                          Março--1904.


Veiu a Lisboa acompanhar, por solidariedade, os lavradores do Douro, o
poeta Guerra Junqueiro. É outro homem, que perdeu talvez em
exterioridades mas ganhou em funda emoção. Tendo-se-lhe um dia deparado
universaes interrogações no caminho; tendo encontrado frente a frente,
ao meio da vida, idéas abaladoras, que só o homem de genio pode encarar
sem o pavor e o deslumbramento que o grande mistério comunica--as raizes
do universo--elle mudou de rumo, tão simplesmente como se praticasse o
acto mais banal da existencia. Sendo já um dos maiores poetas da
Europa--quiz ser tambem um santo... Durante annos procurou como Fausto o
segredo da vida no fundo dos laboratorios. E n'outra phase do seu
espirito decorativo tendo entrevisto, pelo poder do genio, novas veredas
a tentar, seguiu-as, fazendo experiencias que a sciencia d'hoje
plenamente confirma.

Guerra Junqueiro está na mesma: alguns fios brancos a mais na grande
barba de santo, começo de calva amarelada no alto da cabeça, chapéo
baixo, uma simplicidade de trajo que vae bem com a simplicidade
verdadeira ou ficticia da sua alma. E sobre isto os olhos terriveis que
nos fitam e nos adivinham até ao fundo. A conversa é prodigio que evoca,
ilumina, toca em todos os problemas da vida, dando-lhes uma grandeza e
novos aspectos que entontecem.

Fala-se a proposito de um livro, e elle diz, não palidamente, nem
decerto com as inexactidões com que reproduzo, o seguinte:

--É um livro interessante. O autor conseguiu deixar falar a parte de
inconsciente que cada um de nós traz comsigo... Porque, meu amigo, a
porção de infinito que cabe a cada homem é exactamente a mesma. O
camiseiro alli defronte e um homem de genio teem na alma identico
quinhão. Sómente o camiseiro não consegue encontral-a nem pode
exteriorisal-a. Porque? Porque só pensa em camisas. O homem é o universo
reduzido... Que cada um pudesse deixar-se narrar--e teriamos a mais
maravilhosa historia do mundo!...

E como incidentemente se refira á sciencia, eil-o que se desvia por
outro esplendido caminho:

--As ultimas descobertas modificaram completamente a sciencia. Foi um
terremoto. E eu entrevi isto mesmo: ha annos que chegára ao seguinte
resultado:--radiação universal e desassociação dos atomos. Fiz
experiencias, que me deram resultados incompletos, procurei homens de
sciencia que não me quizeram atender. Um dia vim de proposito a Lisboa
falar a Sousa Martins e expuz-lhe as minhas theorias. Ouviu-me... Quando
me fui embora encolheu decerto os hombros. E no emtanto, passados annos,
vejo confirmado experimentalmente tudo o que eu previra... Que quer?...
Faltavam-me como comprehende os meios de verificação. Precisava de
factos.

[Figura: _D. João da Camara._]

Cala-se um momento e depois continua:

--Hei-de publicar, depois da _Oração á luz_, que sae brevemente, uma
serie de memorias, com os resultados dessas experiencias. A vida--é o
Amor e a Dor. Procurar as suas leis eis tudo. Seguir-se-ha a minha
theoria philosophica. Adivinhei todo este terremoto que se deu
ultimamente na sciencia. Hoje a materia não existe: já a
definem--associação d'energias. O que é feito dos materialistas? A
sciencia futura será portanto o estudo de energias. Por ultimo
publicarei uma introducção á sciencia, visto que não posso escrever essa
obra: seria a revisão dos trabalhos de Spencer--a tarefa de toda uma
vida.

--E tem muitos documentos?

--Tenho tudo prompto. Necessito apenas de encontrar a fórma precisa, a
fórma mathematica, para exprimir as minhas idéas.

Incansavel. É de ferro. Pequeno e mirrado passeia horas e horas, a
conversar... Não conversa--monologa.

       *       *       *       *       *

Da Barca d'Alva diz:

A minha casa de jantar tem uma meza e cadeiras de pinho. Depois de
comer, quando quero um palito, corto-o na meza.

       *       *       *       *       *

Ramalho definido por Junqueiro:--um pinheiro com uma melancia em cima.

       *       *       *       *       *

Junqueiro na redacção do «Mundo»:

--D'aqui a pouco reparto a minha fortuna com as minhas filhas e o que me
restar dou-o aos pobres.

       *       *       *       *       *

Ha outro Junqueiro de que a caricatura se apoderou, o Junqueiro do
_bric-á-brac._ O Junqueiro que a má lingua do Porto afirma que percorre
disfarçado as ruas de Hespanha, com um burro pela arreata
apregoando:--Ha por ahi quem tenha louça para vender?--O Junqueiro que
foi procurado um dia no hotel, em Salamanca:--Está cá o grande poeta
Guerra Junqueiro?--Não conheço,--disse o porteiro.--Mas elle vem sempre
para aqui. É um homem de barbas...--teimou, explicou o outro.--Esse es
Guerra el antiquario!...

Mas até no Junqueiro caricatural algumas linhas são indispensaveis para
completar o retrato. Ha n'este grande homem uma mascara. Sinto uma parte
que se deve ao arranjo--e que é a inferior e outra em que elle obedece á
raça e que é a mais viva, a que tem raizes nos mortos. Melhor: o homem é
sempre um tablado onde varios phantasmas se despedaçam. Ha mãos que nos
puxam para o fundo, ha outras que nos procuram levantar cada vez mais
alto. Deus nos livre de julgar os mortos!

       *       *       *       *       *

Junqueiro, de volta do Bussaco, indignado:

--E não aparecer um doido, com um grande martelo, que deite tudo aquillo
abaixo! Qualquer dia botam as arvores a terra e põem pedraria até á
Pampilhosa!


                                                       Dezembro--1907.


Encontro-o hoje em Lisboa, emagrecido, com um velho casaco comprado n'um
adelo, e muitas rugas, finas como linhas, ao canto dos olhos. E, como o
José de Figueiredo lhe fale no Rodin:

--É verdade, passei um dia inteiro com o Rodin, a explicar-lhe a sua
obra. Disse-lhe: você é um grande artista, mas exactamente, como em
todos os grandes artistas, a melhor parte da sua obra é inconsciente.
Porque em todos nós a razão é nada, o que é grande é o inconsciente.
Aquella cabeça que você tem no Luxembourg, emergindo da pedra--é assim,
é aquillo... Mas falta-lhe não sei quê de simbolico que ligue a cabeça á
pedra. Assim choca, é brutal. É como o _Pensador_, a estatua que está no
Pantheon. Toda a critica franceza tem tentado explicar aquella estatua,
e ainda ninguem disse as palavras necessarias. Eu lh'as digo: Aquillo
não é o _Pensador_, nem o _Pensamento_: é o primeiro pensamento em
cabeça de homem. Dispa você um tipo de verdadeiro pensador, Kant, o
Dante, por exemplo, e encontra um corpo deformado. Porque o pensamento
peza mais de que montanhas. Devora. O que você fez foi uma besta, um
gorilha, um homem capaz de arrastar calháos: Pois bem: inconscientemente
fez uma grande obra d'arte: o primeiro pensamento na cabeça d'homem.
Esse primeiro homem athletico, ao deparar com o primeiro pensamento,
essa flor abstracta, fica dominado, subjugado: cae-lhe o Atlas em cima e
esmaga-o... E adeus, são horas de partir para o comboio.

       *       *       *       *       *

D. Carracida, professor de chimica biologica na Universidade de Madrid,
homem ilustre e que conhece perfeitamente a literatura portugueza, diz
assim de Junqueiro... (D. Carracida fala portuguez pausadamente).

--O senhor Junqueiro, grande poeta, é um mistico... Está agora no
misticismo. O senhor Junqueiro e eu passeavamos juntos no jardim de
Villa do Conde, de cá para lá--e o senhor Junqueiro prégava a piedade e
o amor. Uns rapazinhos acendiam balões para uma festa, e eu e o senhor
Junqueiro passeavamos de cá para lá... O senhor Junqueiro prégava a
piedade e o amor, e um dos balões cahiu na cabeça do senhor Junqueiro,
que levantou a bengala e deu com ella no rapazinho... E nós continuamos
a passear de cá para lá, e o senhor Junqueiro a prégar a piedade e o
amor...


                                                          Março--1903.


Fialho não é este janota de palio rico, com uma joia tão grande que
parece falsa na gravata de veludo. Fialho era outro estranho tipo,
intratavel e pobre, com o pêlo ralo e a bocca enorme cheia de sarcasmo.
Um principe de gabinardo, que fazia cahir as peças do alto do
galinheiro, a um gesto seu irrespeitoso. Seguia-o a malta atonita de
matulas suspeitos e jornalistas de ocasião, que deslumbrou de sonho e
atascou em sonho.--Fialho! Fialho!...--Esses aplaudiram-no e
amaram-no... Esquecidos do frio e da pobreza, não despregavam os olhos
d'aquelle sonho desconforme.--Fialho! Fialho!...--Depois sumia-se n'um
terceiro andar, ou procurava os pobres que não pedem: só a mão sae da
noite e implora. Havia uma velha--nunca mais me esquece--alli á porta do
Monte Pio, que fazia parte do muro alto e espesso, e a quem elle, ao
dar-lhe esmola, lhe afagava a cabeça... Depois, amargo, feroz,
insuportavel, eil-o tornava com sarcasmos, transtornando as figuras
decorativas, cheias de veneras, que á sua voz desatavam ás cambalhotas
como palhaços. Vi-o exasperado, vi-o atordoado de phrases, como quem
quer fugir ao proprio phantasma. Vi-o mergulhar n'uma absorpção
dolorosa, e desaparecer na noite em correrias que duravam até de manhã
pelos bairros escusos ou pelas azinhagas de crime, n'um debate perpetuo
de que sahia livido, exhausto, e com a mascara transtornada. Este que
fala do seu vinho:--Livros?... O que eu trato de editar é um vinhinho
branco lá de Cuba...--este, que vem, de quando em quando, a Lisboa
deslumbrar-nos com um novo e horrivel fato, é outro Fialho, que talvez
tenha saudades d'essa vida absurda de outros tempos...

Fialho! Fialho!... Pronuncio este nome e diante de mim desfila o
assombro, pamphletos, a obscenidade e o genio--farrapos arrancados a
ferro e tão vivos que mal ouso tocar-lhes--o estoiro d'uma bexiga
d'entrudo--ironia e esgares. E logo gritos! e agora gritos!... Ouço a
dor, sinto a dor, sinto-a sempre atravez da forma imprevista, d'uma
audacia e d'um rithmo incomparavel, escorrendo sonho, aflição, miseria,
sinto-a até nos impetos de máo gosto, nos pontapés aos leitores
surprehendidos e irritados. Está aqui diante de mim aquella bocca
enorme, aquella figura de gabinardo e chapeu molle que nas noites de
tristeza e abandono me dizia:--O que eu sofri! o que eu
sofri!...--Vejo-o sempre invejar o barqueiro louro e sardento, de que
fala nos _Gatos_, bello como um ephebo á prôa do seu barco.--Como eu
queria ter saude e ser forte!--Deu-lhe Deus o mais rico quinhão que
imaginar se pode, a lingua incomparavel para exprimir a chimera e a dor,
e, esse macaco sem fé, esbanjou-a com o mais absoluto impudor:
serviu-lhe para a chacota. Transtornou tudo, engrandeceu tudo, riu-se de
tudo. As descripções perderam a proporção, as figuras a realidade,
transformadas em figuras de dor ou de grotesco; a propria cidade
resurgiu a uma tinta livida de antemanhã, com a casaria a escorrer vicio
e aspectos tetricos... É isto sim, mas isto creou-o elle de pobreza e
desespero, creou-o de gritos que nunca ninguem lhe ouviu.--E maior!
ficou maior! A sua obra só tem outra que se lhe compare, a de Camillo.
Exigem-lhe um livro harmonico--_Os cavadores_. Porque é que toda a gente
reclama dos outros aquillo de que elles são incapazes? A obra de Fialho
não podia ser senão esta, aos arrancos e enorme. Fialho via os
pormenores atravez d'uma lente, e deturpava tudo, deformava tudo, dando
genio á propria obscenidade. Nunca conheceu Barjona, nunca viu Barjona,
e, com duas ou tres anecdotas, creou uma figura com um relevo que falta
ao mediocre Barjona da realidade. Precisou sempre de se exagerar para se
encontrar. Sacrificou o seu melhor amigo a um dito, é certo, mas começou
por se sacrificar a si próprio. Foi sempre o primeiro a sofrer. Houve
tempo em que alguem o definiu um doente com inveja das doenças dos
outros... Desatou então a gargalhar com lagrimas nos olhos. Perdeu o pé.
Arrancou as azas disformes ao Sonho e rojou-as com maldade no
enxurro.--Encharcou-as de lama e empoou-as de estrellas... O vestido
ficou mas era o d'um espectro... Não nos podemos medir todos pela mesma
craveira. Fialho tem de tudo na alma: a casa de hospedes, a existencia
reles d'estudante, a pobreza, as mil saburras, os pequenos nadas que
gastam, desgastam e transformam, e uma alma vibratil, um feixe de nervos
(capaz de tempestades que se domam com uma palavra) ligado a uma
enchente de sonho e a um orgulho doentio, como os que sentem dentro de
si, e o suportam, um mundo desconhecido e nunca dantes navegado. Fialho,
se o virassem do avêsso, escorria ternura... É tambem um timido capaz de
todas as audacias, e que sae da doença e do isolamento com desespero e
escarneo. Esta figura tão conhecida de todos nós, não é a exacta
expressão da sua alma. Ainda hoje ninguem se entende...

[Figura: _Eça de Queiroz._--Desenho de Antonio Carneiro.]

Silva Telles, por exemplo, conheceu um estudantinho aplicado e mediocre,
que se chamava José Valentim Fialho d'Almeida; ha ainda talvez quem se
recorde d'um moço de botica reservado e triste; e, o que é mais
extraordinario, de outro Fialho respeitoso, que não podia suportar o
exagero alheio, e d'outro, noctambulo e feroz, com risadas estridulas de
sarcasmo--e de outro, de outro maior, de outro espectro, que vem aqui
sentar-se a meu lado na sua tragica mudez. No fundo talvez tudo aquillo
fosse dor. No fundo, bem no fundo, quando irrompia n'uma phrase cruel,
não era aos outros que dilacerava, era a si proprio que se dilacerava, e
tão a serio que todos o viamos sangrar. Reparem: pouco a pouco a figura
range de dor. Arfa atravez da sua obra. É o filho do professor
d'instrucção primaria, d'aquelle homem severo, de quem dizia
baixinho:--O meu pae foi duro! o meu pae foi tão duro! Era um homem sem
ternura...--É o praticante de botica alheado e transido, o neto
deformado de cavadores, que inveja a sociedade distante, e que só aos
impetos se atreve a enchel-a de sarcasmos. Que inveja o grande
escriptor, o desgraçado Fialho, o homem de genio que passou a vida a
fazer chacota das veneras, das academias, das elegancias, dos grotescos
cobertos de patacos--que lhe faziam falta? Tanta tinta, tanto desespero
calcado e recalcado, tanta contradição e pobreza, e uma lucta de noites
e noites de que sae amarfanhado--e com paginas soberbas! Mas tu não vês
que no dia em que te roçares por elles estás perdido, como no dia em que
a cobra perde o veneno? Vae-se-te o melhor do teu genio...--Não, eu
rio-me, eu sofro...--Tantas paginas bellas!--Se soubesses como isso se
paga!--Então explica-te...--Não posso, não sei. Até dos idolos postiços
que deito abaixo me ficam saudades... Nem eu proprio sei o que
quero.--Pobre Camillo, que estoirou a cabeça de desespero, pobre
Anthero, exilado e em debate com uma sombra com que não podia arcar;
pobre Fialho, pobre cavador de genio, em perpetua discussão com os seus
mortos, em lucta comsigo e com os outros e no fundo um reverente--foi-o
sempre--sahindo em farrapos d'este inferno a que se chama a vida!...

Da sua existencia oculta faz parte uma figura de dor calcada e
recalcada, sobre a qual outra se encarniça com desespero. Talvez seja a
verdadeira... Contentemo-nos em fixar duas ou tres aparencias, apontando
n'este canhenho algumas anecdotas frivolas... Se elle podesse gritar
gritava ainda. D'essa figura contraditoria restam farrapos--mas que
farrapos! d'essa lucta suprema existem vestigios, que nunca encarei sem
espanto... Vio-o algumas vezes ao amanhecer, n'um 3.^o andar do Arco da
Bandeira, quando elle cahia exhausto sobre a banca de tortura, á luz
d'um candieiro de petroleo, com um frasco d'alcool ao lado e o cobertor
enrodilhado nos pés. A mascara livida estava de todo mudada. Era outro!
era outro! Surprehendi-o em noites, nos giros sem destino pela Graça,
pela Penha, pelo Monte--quando o seu dedo apontava boqueirões de treva,
tropeis de casaria, sitios ermos onde duas ou tres oliveiras torcidas se
ajuntam para concertar um crime, ou, peor ainda, nas horas de amargo
descalabro, em que, dorido e sem phrases, procurava fugir de si proprio
para muito longe. Não queria então que ninguem o seguisse nas caminhadas
que duravam até ao dia--elle e a dor, elle e a noite! Amigos,
silencio...

       *       *       *       *       *

--O que eu sofri!--dizia elle.--Tiveram-me preso oito annos n'uma botica
alli na Bemposta, ao pé da Escola do Exercito, na idade em que queria
viver. Estragaram-me a vida, encheram-me de desespero. Quando me
soltaram não imagina a minha alegria! Podia ter sido outro... Ter saude,
ser forte!... O que eu sofri! D'uma vez, no _Reporter_, o Martins
mandou-me escrever um artigo sobre uma kermesse de fidalgas. Fui e fiz
uma troça, e elle rasgou-me os linguados na cara. Para me vingar,
tirando um bocado ás noites, escrevi um artigo formidavel para publicar
em folheto. Era na occasião em que essas peidorreiras arranjavam um
bazar para os pobres, que rendeu oitocentos mil reis. Ora eu descobri
por acaso um gallego, que se juntava com outros e tiravam todas as
semanas meio dia de ganho, para irem ao domingo ao hospital dar cigarros
aos doentes, penteal-os, cortar-lhes as unhas, untar-lhes a cabeça com
banha de porco. É um velho, de barba de passa piolho, que está sempre no
largo de Camões. Homem de poucas falas. Tratou-me mal. Tive prompto o
folheto em que comparava essas mulheres, cheias de snobismo, com
adulterios e infamias, com esse santo desconhecido... Imagine... Perdi o
artigo.

E depois, falando da mulher Oliveira Martins:--Não era a mulher que
convinha áquelle homem. E elle subordinava-se-lhe. Foi ella que o fez
confessar á hora da morte. Contou-me o Sousa Martins que a sacudira de
ao pé de si ao morrer...

       *       *       *       *       *

Fala do livro _A Cloaca_, um d'estes livros que se sonham e nunca se
chegam a escrever:

O primeiro capitulo está feito: é uma festa da alta sociedade no
claustro da Batalha... Aproveito a epoca do Burnay e do marquez da Foz,
a lucta da finança, quando o Foz tinha palacios e o Moser carro a duas
parelhas. Deram-se festas esplendidas... Tenho as figuras todas, homens
de negocio e jornalistas, o Mariano e o Navarro... Um dia alugam um
comboio especial e vão dar uma festa no claustro da Batalha. É uma ceia
formidavel, com mulheres da grande roda, politicos, literatos, e, dentro
do claustro, entre a grandeza e a severidade d'aquellas pedras, caem de
bebados e mijam pelos cantos, nos tumulos. O principe tambem lá está,
com o conde de Maricas--fedes: no fim do banquete, á sahida, a babar-se,
escreve nas paredes monumentaes esta palavra obscena: p... Os outros
riem-se, as mulheres aplaudem. Fora a multidão apupa. Outro capitulo ha
de ser a noite em que os jornaes apregoaram em suplemento o escandalo
Foz e a sua prisão:--Foi n'essas horas--dizia a marqueza--que os
cabellos se me puzeram brancos da noite para o dia.

       *       *       *       *       *

Nunca terminou outro livro _A Quebra_, que chegou a trezentas paginas
impressas, no editor Costa Santos. Tinha capitulos admiraveis. Acabou
por o inutilisar:--A minha dificuldade é a falta de proporções. Perco-me
n'um incidente, e quando mal me percato estou em quatrocentas
paginas.--Sei tambem que escreveu alguns capitulos d'_Os Cavadores_.
Talvez d'_Os Ceifeiros_ pertencessem a esse livro, em que elle queria
pegar no homem do campo e leval-o, sempre explorado, desde o baptismo
até á morte...

       *       *       *       *       *

Inventou este nome para o conde de Arnoso, a _rainha Draga_, e diz do
retrato a oleo que o Columbano lhe pintou:

--O Columbano é tão cortezão que lhe poz um velho olho do Eça de
Queiroz.

       *       *       *       *       *

Contemplando o cadaver do Cardia:

--Só aos quarenta anos é que se sabe o que é isto!

_Isto_ é a morte, á qual tem horror, assim como á velhice.

       *       *       *       *       *

E falando a proposito do Cardia:

--Eu tambem sou assim... Ha dias em que ninguem me arranca seja o que
fôr da cabeça. Sinto a mesma impressão de vasio que o Cardia sentia.
Depois escrevo por impetos uma pagina, pedaços destacados que me matam
de desespero para ligar. E se não escrever logo, passadas horas já não
posso, não sei... Varreu-se-me tudo!

       *       *       *       *       *

Está furioso com a inauguração do monumento ao Eça. No fundo nunca o
pode vêr: faltou-lhe o carinho, a consideração--e isso maguou-o
muito--que rodeou o grande escriptor dos _Maias_. Elle proprio diz:
ganhou sempre a trabalhar menos que um pedreiro. No jornaleco _A
Tribuna_ escreveu em dois numeros successivos, sem assignatura, as
seguintes notas com o titulo


     O MONUMENTO

     Já noticiamos n'outro numero do nosso jornal com todos os seus
     detalhes e pormenores, como foi a festa d'inauguração do monumento
     a Eça de Queiroz. Damos hoje um reflexo do humor da multidão que
     assistiu ao acto. Porque, emfim, a nosso vêr, tudo é documento para
     a historia.

       *       *       *       *       *

     --_Sobre a nudez forte da Verdade, o manto diaphano da phantasia_.
     Dizem os amigos que n'esta frase se alegorisa a obra de Eça. Mas
     olha cá. Estando a _Verdade_ completamente nua do ventre para cima,
     e só rebuçada d'ahi para baixo, o que sob o manto da fantasia se
     guarda é indecente.

     --Ahi está a razão porque a alegoria é flagrantissima.

       *       *       *       *       *

     --Tu, se fosses casado, davas o _Primo Bazilio_ a lêr a tua mulher?

     --Lá isso não. Mas não tinha a mais pequena duvida em o dar á tua.

       *       *       *       *       *

     --Que lhe parece a _Verdade_ do monumento?

     --Um calix de _bitter_ para fazer bocca ao _Chat Noir_, que fica em
     baixo.

       *       *       *       *       *

     --Condessa, de todos os cavalheiros que fallaram, qual d'elles é o
     conde d'Avila?

     --O conde d'Avila são todos.

       *       *       *       *       *

     --Este Monteiro Milhões, que inconveniencia! Consentir que das suas
     cavallariças um burro esteja a interromper os oradores!

     --Condessa, é o echo.

       *       *       *       *       *

     --O que eu n'esta consagração sobretudo admiro, é o grande coração
     do conde d'Arnoso. O Municipio devia premiar tão nobre musculo.

     --Com uma urna, como se fez ao D. Pedro IV?

     --Com uma urna não. Com uma travessa.

       *       *       *       *       *

     --Seria interessante conhecer todos os tramites do trabalho de
     creação do esculptor, até ao momento da estatua apparecer.

     --Ah, eu lh'os conto. Primeiramente, o Carlos Mayer, na sua
     qualidade de judeu, queria uma descida da Cruz, e por isso, o grupo
     do Eça e da Verdade cheiram um pouco á scena da Paixão. Veio depois
     o Arnoso a lembrar se dessem ao monumento reminiscencias mais
     contemporaneas, ex.: o Genio perguntando á Verdade quantos dentes
     queixaes queria tirar. D'esta dualidade d'inspiração resulta o
     _mysterio_, que faz com que o monumento seja o que v. ex.^a quizer,
     sendo o melhor--não perguntar.

       *       *       *       *       *

     Apparece no estrado o Conselheiro António Candido.

     --Silencio! Vae fallar o maior orador da Peninsula.

     --«...no povo portuguez ainda ha o grande brio dos feitos altos,
     (_sussurro_). Se ámanhã esta Verdade tão núa fôr ter ao Pelourinho,
     ninguem sabe até onde o amor da Pátria ha-de crescer! (_ovação_).

       *       *       *       *       *

     Interview com o conselheiro Barahona.

     --V. Ex.^a leu alguma vez o Eça?

     --Ler, nunca, mas conheci-o em Evora, delegado do thesouro, e até
     por causa d'isso vim ao Principe Real ver-lhe um drama de ladrões,
     que estava mesmo escripto ao meu sabor.

     --Mas isso não é o Eça de Queiroz, é o Eça Leal.

     --O que?! Não é o mesmo? Ai, os meus ricos dois contos de réis!

       *       *       *       *       *

     _Interview_ com o Snr. Monteiro Milhões.

     --V. Ex.^a que pensa do monumento?

     --Penso que tenho de voltar a frontaria da minha casa, para o
     Theatro D. Amelia. Imagine que os meus netos estão constantemente a
     perguntar quem é aquella senhora sem camisa. Já o outro dia lhes
     disse que era D. Maria II, mas com estes frios, os pequenitos,
     educados na compaixão, não me largam para que lhe mande dar um
     cobertor.

     --E que impressão faz das suas janellas a barriga da Verdade?

     --Aqui entre nós (_arregalando o olho_) é uma d'aquellas barrigas
     que está mesmo a glorificar a «sensação nova» (_irritado_). Não era
     mais condizente á minha camoneana, transferirem o epico immortal
     aqui para o meu largo, e levarem _aquelle senhor_ para as
     proximidades do Bairro Alto?

     --De modo que V. Ex.^a, irritado, nem chega á janella?

     --Emquanto a Camara não mandar pôr, de roda da figura um resguardo
     pintado de cinzento.

       *       *       *       *       *

     --Tu ouviste os discursos. Que opinião por elles se pode ter da
     capacidade mental dos oradores?

     --Metade d'aquelles senhores não leu o Eça, e a outra metade não
     tem lucidez para o julgar. Isto foi uma festa de «snobs»; o
     monumento que ali está, não foi erguido á memoria do Eça litterato:
     é a glorificação do conde Reinaldo e da Alfonsine.

     --E se o flamejante garoto agora cá tornasse? Mettia-os a todos
     n'um romance endiabrado.

     --Já estão mettidos. Mas o que tu acabas de vêr é os _Maias_ em
     quadro vivo.

       *       *       *       *       *

     Duas guapissimas, na turba.

     --_Pero Eça de Queiroz, quien és?_

     --_Un caballero que escribió del minuete._


       *       *       *       *       *

G..., antigo companheiro de Fialho, sepultado hoje no fundo d'uma
biblioteca, diz assim a proposito da livraria do grande escriptor[2]:

«Eu chamo a estes livros as onze mil virgens. São apenas quatro mil
volumes ou pouco mais, mas--vae surprehendel-o esta minucia--estam quasi
todos por abrir. Ha aqui Balzac e Zola, Eça e Ibañez, os Goncourt e
Ponson du Terrail. Fialho tinha muito Ponson na sua biblioteca. Esta
litteratura de costureiras e guarda-portões era para as grandes horas
amarguradas».

Era. A elle e a outros grandes espiritos basta-lhes o proprio drama para
os amargurar. Anthero, nos dias aziagos de Villa do Conde, deitado n'um
sofá, só lia Gaborieu. Para tragedia chegava-lhe a sua.

«O Fialho tinha uma admiração extraordinaria pela obra camiliana.
Imagine que até n'um livro da mocidade poz uma dedicatoria a Camillo, em
que dizia: «acabo de lêr toda a sua obra». E quasi nada lêra a esse
tempo... Afora as obras portuguesas, na biblioteca de Fialho só ha
volumes em espanhol e em francez. Nos ultimos anos merecera-lhe uma
atenção particular a literatura espanhola.»

E a proposito de Fialho intimo assevera:

«O Fialho, que tinha grandes rasgos generosos e perversidades
femininas--repito-o não era bem o Fialho que se vê atravez dos seus
livros admiraveis. Era o _outro_. As suas irreverencias das paginas
rubras eram fundamentalmente apenas o odio do plebeu que inveja o
fidalgo. Sim, porque ele invejava a sociedade na sua fase demolidora
_só_ porque não tinha nela um lugar. Uma infantilidade de homem de
genio.»

E explica:

«Como se sabe o Fialho não tinha meios de fortuna nem ascendencias
nobres. Fez a sua vida ali no «Martinho», vivia de noite e era um
_blageur_ incorrigivel, e apezar de valer bem os seis milhões de
portugueses que existem sobre esse solo, a Monarquia, o Paço, os
conselheiros, não lhe achavam _qualidades_ para triunfar nessa sociedade
formalisada e cheia de convencionalismos. Está explicado o Fialho dos
_Gatos_--foi a revolta. Meteu-lhes medo--oh sim, um medo terrivel com as
suas _blagues_ sangrentas--fazia-os passar de largo, mas ainda mais se
afastou do _ancien régime_. Entre os republicanos, onde se lançou de
alma e coração, sentiu-se depois desconsiderado. O Fialho continuava a
ser... o _blageur_. Nunca lhe deram um cargo de confiança. Que pena teve
o Fialho de não ficar na Comissão da subscrição nacional a quando do
_ultimatum_!»

E termina com esta nota inedita:

«Sabe que o Fialho era um orador. Nunca ouviu dizer talvez que elle
fizesse um discurso? Mas ouvi-lhe eu muitos, todos os dias, durante
longos annos. A sua timidez invencivel nunca o deixou falar em publico
apesar de, como ninguem, sentir a necessidade do aplauso. Muita vez me
disse que desejaria ser actor, ser um grande actor, para ouvir bem de
perto o som das palmas com que o saudariam, para viver intensamente,
ruidosamente, uma grande hora de triunfo. Tinha coisas o Fialho...
Registe esta nota curiosa pois muito poucos a sabem: era soberbo, orando
alucinado para um auditorio de tres amigos intimos no alto da Avenida,
ou noite alta, á beira do Tejo.»

       *       *       *       *       *

Á figura que se senta ao pé de mim falta-lhe talvez a rigidez das
estatuas. O gabinardo, reparem, está amachucado e encardido, a
phisionomia retrae-se no escuro e só a bocca se salienta, enorme e
prestes a escorraçar-nos com gritos e apupos. Atravessou a vida: foi
injusto, foi cruel por vezes, foi amargo. Desatou a rir para não chorar.
Atordoou-se com sarcasmos e phrases. Foi incoherente. Obedeceu ao
impulso. Não se pôde furtar a sentimentos que veem do fundo dos fundos e
nos deixam prostrados, reclamando da morte que nos apavora--enfim!
enfim!--o primeiro dia de descanço bem ganho, ao termo desta discussão
que nunca cessa e em que nos despedaçamos, sem nos comprehendermos a nós
proprios quantos mais aos outros... Toda a sua alma, que deixou
fragmentada em varias figuras, em todas as paginas dos seus livros, nos
retratos, nos tipos, nas paisagens, no Manuel, em Guilherme de Azevedo
ou na manhã do Tejo, se condensa enfim n'esta bocca amarga capaz ainda
de nos fulminar de colera ou de acusar bem alto a vida que lhe foi
impiedosa... É assim que te vejo ao pé de mim, com detrictos,
escorrencias, lama, mas tão grande, tão vivo, tão humano, que para
sintetisar a tua vida, só me servem as palavras com que um espectador
ilustre sauda o Hamlet no fim da representação:--Boas noites, meu
principe, és um homem, o homem e todo o homem!


                                                   4 de Janeiro--1908.


Morreu ante hontem d'albuminuria o pobre D. João da Camara. Tinha feito
annos no dia 27. Conheci-o sempre, até nos maiores frios, de casaco
d'alpaca, a sorrir... Antes de acabar sahiu do torpôr e, em dois acessos
de delirio, descreveu o fim do mundo com terror e espanto. Depois rezou,
disse versos seus, e ficou, n'um ultimo suspiro. Remexeram-lhe nos
papeis e nos bolsos: só lhe encontraram recortes de jornaes, anuncios de
desgraçados pedindo esmola.

Mezes depois ainda os pobres o procuravam nos sitios do costume:--O
senhor D. João? o senhor D. João?--Morreu.--Morreu! morreu!...--E
partiam a chorar.

Agora é que eu sinto todo o encanto d'esse homem falando baixinho, a
olhar a gente por cima das lunetas. Andou mal vestido. Não soube o valor
do dinheiro. Desceu aos desgraçados com uma ternura e uma simplicidade
de fidalgo e de santo. Nos ultimos quatro annos ganhou alguns contos de
reis: deu tudo, levaram-lhe tudo. Até de madrugada o procuravam para lhe
pedirem dinheiro emprestado. E nunca o ouvi queixar-se, nem dizer mal de
ninguem. Foi um poeta e um santo. Deixa, alem de algumas obras
admiraveis, uma peça incompleta, com poucas scenas escriptas--_As
comadres de Panoia_, e talvez se lhe encontrem tambem apontamentos de
outra em que tanto falou e em que tanto sonhou--_O Sermão da Montanha_.


                                                    18 de Março--1900.


Faz hoje annos que morreu Antonio Nobre. Foi uma figura inconfundivel de
poeta. Por mim nunca encontrei tambem rapaz mais lindo. Um pouco
afectado talvez... Em pequeno ia com Eduardo Caminha enterrar os seus
versos no jardim solitario do Palacio, e pedia, com os olhos limpidos e
sofregos, uma Biblia para repousar a cabeça quando o levassem no
caixão... Estou a ve-lo, com uma camisola de pescador, saltar pela
janella da casa á beira rio, de Mattosinhos, onde Alberto d'Oliveira já
imperava, esse mesmo Alberto d'Oliveira, esperto e tão dominador, que,
quando entrava em casa dos outros, começava por os convencer a
desarrumar os móveis, para os arrumar de novo a seu modo... Antonio
Nobre usava uma abotoadura de cabeças de pregos e sorria com um modo e
um ar de ternura e desdem. Fugiam d'elle antes de publicar o _Só_; os
poetas do seu tempo odiaram-no depois de publicar o _Só_. Ser diferente
dos outros é já uma desgraça; ser superior aos outros é uma desgraça
muito maior. Viveu efectivamente isolado. No concurso para consul
quizeram reprová-lo: foi preciso que Alberto d'Oliveira explicasse ao
jury quem era o poeta Antonio Nobre. Não pôde formar-se em Coimbra, e
até os seus amigos mais intimos lhe fugiram. Entrou na morte como tinha
vivido--só. Até Alberto d'Oliveira teve de interromper uma amizade de
irmão quando se encontrou diante d'este dilema: ou deixar-se dominar por
elle, que o tratava como uma creança, ou feril-o em pleno coração:--A
nossa amizade é de tal ordem que não admite que lhe desçam dois ou trez
pontos á craveira. Ou mante-la ou quebra-la.--Quebrou-a. O ilustre
escriptor possue d'esse tempo um caixão enorme, tão pesado como o que
levou o poeta para a cova, com as cartas afectadas e vivas de Antonio
Nobre, as cartas que tem obrigação de publicar, com um prefacio que só
elle pode e deve escrever.

Digamol-o, digamol-o... No fundo detestaram-no, detestaram-no todos. Não
lhe poderam perdoar a impertinencia, o desdem, o genio. Era um sêr
diferente. Não agradava a ninguem. Só as mulheres o amaram. Era um
Poeta. Desconheceu a vida pratica. Tinha a consciencia do seu valor, e
uma superioridade que se não podia aturar. Estavamos todos mortos por
nos desfazermos d'esse ser aparte, d'esse eterno consul sem consulado,
d'esse estudante de Coimbra que os lentes reprovavam e que nos fazia
sombra. Mas debalde o arredamos: houve uma coisa nova que passou no
mundo e que ficou no mundo--que nos ficou na alma...

[Figura: _Antonio Nobre no caixão._]

Agora estamos todos apaziguados, todos podemos esquecer a superioridade,
a afectação e o desdem infantil de Antonio Nobre.

Foi para a cova completar trinta e tres annos n'um dia de chuva como
este, frio e sujo, o poeta insolente como um principe e adoravel como
uma creança. Quantos estavam alli á beira do tumulo? Meia duzia escassa,
o Frei, o Justino, o Eduardo de Souza, eu--e quem mais? quantos mais? Os
jornaes deram a sua morte em duas rapidas linhas. Respirou-se.

Hoje é um dos poetas portuguezes com mais admiradores. É um poeta de
simpathia. Nunca teve sorte senão depois de morto. Porquê? Porque não
misturou, como nós todos, o sonho com a vida pratica. Ao contrario,
raros homens terão posto tão de acordo a vida com o sonho. Fez mais:
suprimiu a vida. Correu o globo e só a si proprio se encontrou. Viu o
mundo e nunca assistiu a outro drama que não fosse o da sua alma. E
poentes, arvores, estrellas ou pedras, entraram-lhe no coração como
espadas. Nenhum outro exprimiu d'uma forma tão sua o universo. Que
universo dirás? O meu? o teu?... Não, o que elle descobriu, scismando
como um navegador, á prôa do seu barco... Por isso nunca hão-de faltar
sonhadores que evoquem essa singular figura de poeta, que uma vez
atravessou a terra, soluçou, monologou como Hamlet, e sumiu-se logo no
sepulchro.


                                                  30 de Janeiro--1911.


Janota e coçado, com uma flor na botoeira e a fumar um charuto de dez
reis, ahi vae o poeta Gomes Leal. Quem não viu n'outro tempo este homem
extraordinario, não conheceu um verdadeiro, um authentico poeta
satanico. Passou nas ruas de chapéo alto, falando com intimidade ás
estrellas e tocando no céo com as guias do bigode. Escreveu as paginas
das _Claridades do Sul_, da _Traição_ e do _Anti-Christo_. Viveu
alheado, como é indispensavel a quem convive todo o dia, tu cá, tu lá,
com o sonho. Cantou a plebe, destruiu os deuses, arremessou sarcasmos
aos banqueiros, satirisou o grotesco, e tocou-nos hombro com hombro,
apontando altivo o cravo vermelho da lapela:

--Amigos, as flores são as condecorações dos poetas!

Prodigalisou-o a caricatura: teve na vida misterios perturbantes: um dia
acometeram-no no comboio, em Espinho, quando regressava do Porto, até
onde seguira a rainha Maria Pia, depois de lhe atirar uma rosa
escarlate, que arrancou da botoeira, em plena praça, com um desdem
supremo pela burguezia endinheirada... Sim, foi este que teve a gloria
da cadeia, que cantou as estrellas, Jesus e Mephistopheles, foi este
mesmo homem, a quem falta roupa na cama no inverno glacial, e que sorri
com humildade para nós, avelhantado e timido... As janellas não teem
vidros, a roupa é pouca, mas tu viveste o que não vive um rei, e o
imperio deslumbrante, que creaste á custa de dôr, cheio de obscuridades
e de genio, com catadupas d'oiro, como nas lendas, e palidas figuras;
essa mescla de gritos, de paixão; esse sonho confuso e immenso,
pertence-te, e não ha quem t'o roube, mesmo com as janellas abertas de
par em par. Deixa entrar o frio--e sorri...


Agora vae todas as manhãs ouvir missa á Pena ou ao Resgate. É um homem
encolhido e friorento, que a banalidade tem gasto e desgasto como as
moedas fóra de curso que se fartaram de correr de mão em mão, e ainda ha
dias o encontrei no Porto, n'uma manhã de sol, de casaco de borracha e
colarinho suspeito. Ia pregar á Associação Catholica, e atravessava a
Praça entre os aplausos dos palidos sachristas, que o rodeavam como quem
força um deus, sem repararem que só levavam um simulacro. No sonho de
outrora não ha mãos que se atrevam a tocar... Elle sorria enlevado, com
o eterno charuto ao canto da bocca.

A vida feroz torna-nos grotescos. Consegue tudo. Deforma-nos. O proprio
sonho entra ás vezes no dominio da chacota. Onde, porém, Garrett chega
ao ridiculo, com tres cabelleiras postiças, Gomes Leal, de casaco de
borracha e discursos de propaganda, atinge o tragico... Eu bem sinto a
tristeza, bem sei, bem vejo o arranco, bem palpo a dôr. A figura que
cheira a bafio como se sahisse do fundo do armario do passado para a
plena luz, faz rir e faz chorar. No esforço para não ir ao fundo, no
gesto de naufrago que se apéga com desespero, quando a dôr estala por
todas as costuras, ha um rictus de clown. Olha lá: o peor é tu ousares
tocar no que ha em mim de mais sagrado, o peor é tu transformares-me o
sonho n'uma noticia do _Seculo_, o peor de tudo é tu atreveres-te a
tocar n'este jardim da vida--e, peor ainda, é que eu continuo a sorrir
como se possuisse o antigo thesouro de Ali-Baba. Mais um momento, outro
passo e reduzes-me á condição de trapo. Deitas-te commigo, acordo
comtigo ao meu lado, e ha occasiões em que até o som da minha voz me
sobresalta. Por ora debato-me, por ora sinto o coração opresso, fingindo
que não existes, mas ha já terror no meu sorriso, e, quando me ouço,
ouço-te tambem os passos. Sei perfeitamente que o momento terrivel
depende de um unico traço de separação--agora, já, d'aqui a bocado...

Estás por traz de mim e o minuto grotesco será quando eu deixar de te
conhecer e quando sentir a tua mão gelada... Estás por traz de mim!
estás por traz de mim! Bem sei que estás por traz de mim, e que vaes ser
a minha companhia até á cova. Confesso-te: o que me aterra não é o
momento que passou, nem o que ha-de vir--é o momento, que vale um
seculo, em que tenho de galgar o abysmo. Por ora teimo, por ora ainda
digo:--A sciencia, meu rapaz, sabes o que é? É um cifrão cortado.--Mas
como o digo!...

...Ha um momento tetrico nos _Espectros_ em que um novo personagem se
introduz em scena. Desde o principio que o sabemos atraz da frandulagem
de papelão: está alli presente, não como uma figura de theatro, mas
monstruoso, real e patente, como o Destino, á espera de intervir. Desde
então perco o fio da peça, não sigo mais os bonecos que se agitam no
tablado, só ouço o meu proprio monologo, e quedo-me d'olhos atonitos
n'outro espectaculo atroz. Tenho a certeza absoluta de que não ha forças
humanas que lhe detenham a marcha. Começa então a tragedia...

É este mesmo personagem que se intromete na vida do poeta. As palavras
conteem ainda e sempre as mesmas letras, mas até as palavras mirraram.
Esqueci tudo, troquei tudo pelo sonho, e, quando tu quizeres, de mim
proprio ficarei desconhecido! Como eu comprehendo agora aquella phrase
de outro poeta: «Sinto que não posso trabalhar! sinto que não posso
trabalhar!» É com esta angustia que te ouço os passos mais perto. Já não
é só a scena que tu enches, é a sala toda, figura invisivel, unico
personagem do drama, que te entranhas na alma dos espectadores. Emquanto
os bonecos teimam em pronunciar palavras que não ouço, que não teem
significação nem importam, tu levas-me, quer eu queira, quer não queira,
a sorrir com enlevo á propria banalidade.

       *       *       *       *       *

A casa em que mora Gomes Leal, na esquina do palacio da Bemposta, parece
arrancada a um velho quadro de Velasquez, com a sua entrada de pedra e
um arco na escada. O soalho entreaberto oscila, as janellas não teem
vidros. Conheço-a. Já lá morei ha annos no mesmo quarto que dá para um
quintalorio, com duas ou trez oliveiras carcomidas. Do buraco, onde
nunca chega o sol, sae um frio de morte. Bato, a porta abre-se, o soalho
range, e o poeta surge com o velho chapeu ás trez pancadas, luvas
pretas--até de luvas escreve Gomes Leal!--e no quarto desagasalhado ha
luvas por toda a parte, por cima das mezas, entre os livros, penduradas
no tecto. O leito é um catre. Ao lado um Christo, uma mezinha de pé de
gallo, e no soalho apodrecido, montões de jornaes e de livros. Na
parede, que ressuma humidade, um quadro a crayon, com o vidro partido: o
retrato da mãe de Gomes Leal.

--Vivo só, não tenho familia. Minha mãe morreu-me e aqui estou como um
orphão.

--Vive isolado sempre?

--Levanto-me cedo, vou aos templos. Depois passo pelas bibliothecas e
pelos livreiros e venho para casa escrever. Almoço e janto onde calha.
Quando tenho bebo para esquecer, á noite escrevo, deito-me cedo e
durmo... Tenho trez livros para publicar: _As memorias d'um revoltado_,
continuação da historia da minha vida, _O macaco de Nero_, estudo de
Roma, e o livro em prosa _Cidade do Diabo_, onde trato da decadencia do
mundo moderno. Comecei tambem _Christo nos infernos_, poema em verso.
Conservo as minhas ideias religiosas, que não são incompativeis com a
republica, e ficarei contente por ver realisado o sonho de toda a minha
vida, que acalentei como um poeta, e que desejo que se não dissolva como
uma bola de sabão na cabeça d'um prego...

E queda-se n'um silencio amargo. A chuva cae lá fóra. A noite e um frio,
uma humidade de poço, trespassam-me...


No seu genio houve sempre sincopes, falhas, absurdos. Se tropeçou,
ergueu-se sempre mais alto. Aos trinta annos reage-se. Mas chega um
momento da vida em que a gente se sente transida pelo ar do sepulchro e
uma sombra desmedida avoluma-se e sufoca-nos. Foi d'esse negrume, que se
chama a Morte, que elle ouviu sahir uma voz cheia de ternura--a ternura
que toda a vida o envolveu--e que começou a falar-lhe baixinho. N'esse
momento Gomes Leal deixou de viver no mundo da realidade para cohabitar
com um phantasma...


                                                       Setembro--1907.


Antonio Corrêa d'Oliveira, ossos, nervos e a pelle necessaria para os
cobrir--com um chapeu alto e lustroso em cima--grande poeta, com raizes
profundas na natureza, tem na Beira uma tia que passa a vida em dialogos
estranhos com as arvores e as pedras. E mal chega á noite eil-a começa a
cumprir o seu fadario: leva até á madrugada a dar de beber
indistinctamente ás plantas do seu quintal e ás dos quintaes vizinhos,
n'uma aflicção, n'uma piedade que se estende até ás hervas ignoradas e
ruins. Monologando sempre, vae e vem,--que não fique alguma com
sede--com o regador nas mãos, até que a manhã a encontra exhausta,
feliz, encharcada até aos ossos e ainda embebida n'aquelle sonho
phrenetico de ternura... Toda a emoção do poeta está aqui, do grande
poeta que diz:--Sinto em mim uma força da natureza... hei-de
aproveital-a.--Os avós deram cabo da casa. O pae ninguem o arrancava ás
suas arvores, e um tio, personagem de Camillo, morreu cosido de facadas.
A mocidade do poeta foi tambem dolorosa. Chamavam-lhe magico. Para não
pezar á mãe escreveu á raza n'um tabelião e foi proposto de recebedor em
Cezimbra, elle que nunca soube sommar. Iam as mulheres dos pescadores
pedir-lhe perdão das decimas; e nunca na memoria de homem se viu
recebedor em semelhantes apuros, perplexo diante dos papeis, dos pobres,
da desgraça, das contas e da sua propria alma! Um dia gostou d'uma
mulher e escreveu os primeiros versos, _Ladainhas_,--Eu não sabia o que
eram versos, nem medir versos. Sahiu-me aquillo... Troçaram-me tanto que
estive para endoidecer. Sabe o que me valeu? Um artiguinho do Trindade
Coelho no _Reporter_. Essas palavras salvaram-me!

[Figura: _Corrêa d'Oliveira em 1903._]


                                                        Janeiro--1911.


Passei a noute de hontem em casa do Fernandes Thomaz, um velho
bibliophilo, coleccionador de autographos, de livros raros, de gravuras
antigas. Bom como o pão arruinou-se em papeis velhos... Eis emfim um
homem feliz, suponho eu, entre as estantes que revestem os muros, como a
traça entre as folhas d'um pergaminho. Ingenuo, surdo, com sessenta e
tres annos e coleccionador apaixonado de papeis velhos ainda por
cima--que sorte!...--De repente pega-me nas mãos e desata a chorar:

--Tenho sido um martir!

Á roda muitos documentos, muitos alfarrabios, muitos calhamaços
preciosos. São duas, tres salas catalogadas, onde tem livros e papeis
por toda a parte. A sua vida devia correr esquecida e placida, sem
sobresaltos nem duvidas, folheando, rabiscando, anotando, sonhando
sempre em coisas faceis.

--Não imagina o que tenho sofrido! Sempre gostei muito de creanças...
Trouxe para casa uma sobrinha, morreu-me de raiva nos braços. Minha mãe
um dia teimou:--Has-de casar.--Fiz-lhe a vontade. Casei. Minha mulher,
ao fim de dois annos, abalou levando-me quasi tudo o que eu tinha.
Demandas, processos--fiquei pobre. Agora meu filho quer ir por força
para a Africa.

E põe-se a chorar como uma creança, com a cabeça branca pousada sobre os
livros, os papeis, as gravuras...--deante d'aquella documentação cerrada
e inutil, que tem sido a razão da sua vida.


                                                       1 de Fevereiro.


Venho de casa do Fernandes Thomaz. Teve um ataque apopletico. Está
hemiplegico, deitado n'um sofá, somnolento e tremulo. Nunca encontrei
bibliophilo que tivesse prazer em indicar, em ensinar, senão este... É
outro homem adoravel que morre, mas felizmente não sabe que morre. Á
beira do tumulo ainda me pede que lhe arranje um catalogo da guerra
peninsular. E diz-me de Theophilo: (estes homens dos papeis velhos nunca
se puderam vêr...):

--Pode crer que nunca passou necessidades como elle diz. Conheço-o de
Coimbra, morava em casa do conde de Valença. Todos os mezes o pae lhe
mandava pelo correio duas libras em oiro n'uma caixinha de madeira. Ora
n'esse tempo valiam tanto como hoje quatro...



PÓ DA ESTRADA


                                                          Março--1902.


Este homem immenso e louro, o Alpoim, não tem um minuto de seu: não
descansa, não pode. Escreve cincoenta cartas por dia, faz a chronica do
_Janeiro_, corre ao parlamento, intriga nos corredores, enche uma pagina
do jornal, recebe toda a gente, encanta e domina toda a gente n'um riso
aberto:--Meu querido amigo...--e, mal se fecha por dentro, arranca os
ultimos pêlos do bigode e cae exhausto, exclamando n'um pranto:--Ai que
filhos da p...! ai que filhos da p...! Eu não posso! eu morro!--Nem para
ser rei de Portugal valia a pena semelhante esforço.

No fundo é um politico com este fito: o poder. Mas alguma coisa o
distingue dos outros que conheço, do espesso Ferreira d'Almeida, por
exemplo, que exclama diante de mim sem pudor:--Hei-de ser ministro
porque quero mandar! gosto de mandar!--É um fidalgo com talento, e tanto
serve um amigo como um desgraçado de quem nada tem a esperar. O esforço
é identico.--Vou ao inferno por um amigo...--Ha ainda quem se lembre dum
Alpoim de chapeu desabado e capa á espanhola, mas o amor fel-o janota...

Na sua vida, como em todas estas existencias de aparencia e lucta, ha um
trabalho de sapa, que quasi totalmente desconheço. Sabe tudo, pode tudo
com os seus e com os outros. O Hintze tem por elle um fraco, o José
Luciano entrega-lhe nas mãos a meada politica:--Nada se faz sem mim. Sei
tudo!--diz muitas vezes com o olho esperto a luzir. O Teixeira de Souza
é o seu amigo mais intimo. Uns temem-no, respeitam-no os outros. Este
que lhe sorri atraiçoa-o--e elle fala-lhe amavelmente:--Não me podem vêr
porque lhes faço sombra. Eu sei... Mas ninguem exija dos homens mais do
que elles podem dar.--Conspira. Tem nas mãos os mil fios da emaranhada
teia politica. Vae mais alto ou mais fundo?... Não sei, mas é talvez a
isso que elle se refere quando afirma:--Ninguem sabe a que portas vou
bater!

Hoje conta o movimento de protesto quando dos comicios contra o governo
regenerador. Reuniam-se já ha tempos alguns pés de boi em casa de José
Luciano, que um dia sae-se com esta:

--Bem, meus senhores, precisamos de acabar com isto senão cahimos no
ridiculo. A tomar chá não fazemos nada. Que é que os senhores resolvem?

--A revolução! queremos a revolução!--concluiram todos.

--Eu disponho de seis mil homens.

--Vamos para a rua!

--Estamos dispostos a tudo, mas temos um pedido a fazer a V. Ex.^a: é
que se responsabilize a que a guarda municipal não atire sobre nós...

O José Luciano, a puxar pelo bigode, sem sahir da sua pachorra ironica:

--Oh senhores, mas se eu dispozesse da municipal não precisava dos meus
amigos para nada!

--O José Luciano o que tem tido toda a vida é sorte,--observa alguem do
lado.

--Garanto-lhes pela saude dos meus filhos, atalha logo o Alpoim--que é
um homem inteligentissimo. E senão vejam como elle conseguiu arredar e
vencer todos os do seu tempo. Ninguem luctou mais do que eu para a
eleição do Mariano a chefe do partido progressista, ninguem!... E que
succedeu?... O José Luciano tinha em segredo conseguido pôr o paço de
seu lado. Na vespera da eleição o Mariano disse-me:--Está tudo perdido,
votem no José Luciano...--Se não o elegessemos, o rei nunca mais chamava
o partido progressista.

Sob aquelle aspecto de inalteravel bonhomia, é um homem d'uma alta
inteligencia pratica. Muitos ao seu lado caminharam para o mesmo
destino, e elle, não sendo nem um grande jornalista nem um grande
orador, sem brilho mas solido--e com caracter! com tenacidade e
caracter!--pouco a pouco ficou sosinho em campo: arredou-os todos.


Fui do seu meio e do seu tempo. O Fuschini chamava-lhe com desdem:--Essa
vil alforreca...--Diz-se que no salão dos Navegantes se dava tudo o que
se podia dar--e que não lhe pertencia: logares, negocios e empregos.
Talvez. Mas se não teve a grandeza de resistir aos homens, conteve os
interesses fataes dentro de certos limites. Não podendo ser nem um santo
nem um genio, manteve essa linha de superioridade, chegando, mais tarde,
a ser uma figura. Sentado na cadeira de rodas, o velho obstinado, n'uma
sociedade a liquifazer-se, resistiu até á ultima, e adquiriu relevo e
grandeza como se os alicerces fossem de pedra. Foi dono do paiz, dictou
a lei, e, arredado e sempre lucido, leu no futuro pronunciando algumas
phrases que a historia terá de registar...


                                                          Junho--1902.


Contava o marquez de Ficalho, pae deste Ficalho, e que era vivo ainda ha
quinze annos, o seguinte caso, que mostra bem o medo que D. João VI
tinha a Carlota Joaquina. Um dia o D. João VI, ia de sege para Cintra,
Queluz, ou não sei para onde. Ao lado galopava o Ficalho, com dezasseis
annos, cavalariço do rei. De repente, ao longe, avista-se na estrada uma
nuvem de pó, e o rei, deitando a cabeça de fóra da sege, brada:

--Parem! para traz que ahi vem a p...!

A p...--era a mulher. As palavras são textuaes.

[Figura: _Fernandes Thomaz._]


                                                          Março--1903.


Diz o Abel d'Andrade:

Dos oito mil contos de deficit, quatro mil é a casa real que os gasta.
Que ministerio tem força para se impôr ao rei? Ambos os chefes estão com
medo ao João Franco...

       *       *       *       *       *

Arroyo queria atacar o rei nas camaras. Houve mosquitos por cordas para
o dissuadirem...

       *       *       *       *       *

Sabem quanto faz o Arroyo por anno? Dez contos.

       *       *       *       *       *

O rei foi aqui ha tempos para Setubal, e, depois de jantar, bateu o fado
com um malandrão. O Duval Telles, no outro dia, ao jantar, aludiu ao de
leve ao caso, achando-o improprio. Á noite encontrou na mezinha de
cabeceira uma carta do rei com estas palavras: _Dispenso-te do meu
serviço_. Seis meses não fez serviço; agora, antes da rainha partir,
pediu-lhe apoquentadissimo a sua intervenção. Outra carta do rei com
estas palavras: _Entra outra vez de serviço, mas nunca mais me dês
conselhos sem t'os pedir_.


                                                          Março--1903.


Alpoim:

--Antes de seis meses temos ahi graves acontecimentos...

--?

--Um governo fóra dos partidos, uma dictadura feroz.

E a proposito dos acontecimentos de Coimbra:

--Em Coimbra existem sociedades secretas. O governo sabe. Quando foi da
espera do Carrilho, tinham tudo combinado. Dois grupos fariam
descarrilar o comboio, apoderando-se dos papeis que o Carrilho trazia e
matando-o. Entravam lentes e estudantes...

       *       *       *       *       *

O Alpoim:

--O Mousinho d'Albuquerque antes de morrer disse-me:--O unico homem com
quem eu poderia ser ministro era com o José Luciano.--Dantes dizia muito
mal d'elle. D'uma vez estava no Paço, no vão d'uma janella, a dizer
cobras e lagartos de José Luciano; o rei, um pouco afastado, ouviu-o:

--Ó Mousinho cala-te.

--Se incomodo V. Majestade saio d'aqui.

--Não, podes estar, mas acaba lá com a conversa.

       *       *       *       *       *

--E porque é que o rei não gostava do Mousinho?

--Se lhe parece! Vêr sempre o Mousinho a seu lado, carrancudo, sem
palavra, mas severo como um censor... Irritou-se. Quem lhe valeu mais
d'uma vez foi a rainha.


                                                          Abril--1903.


O Adrião de Seixas, secretario do Banco de Portugal:

--Já por diferentes ocasiões o Estado tem corrido o risco de ir a pique.
Houve mezes em que quasi faltou o dinheiro para pagar á tropa, e mais
que uma vez o Banco de Portugal se viu em transes para arranjar
trezentos contos de reis.

       *       *       *       *       *

Um architecto do Paço conta que a rainha D. Maria Pia fuma
constantemente charuto como um homem, e atira as pontas para onde calha,
sobre os sofás e os tapetes. Atraz d'ella anda sempre um creado de
farda, com medo que pegue o fogo, a apanhar as pontas. Anno passado,
antes de ir para o extrangeiro, mandou fazer umas obras no Paço.

--E não volto sem estar tudo prompto.

Quando voltou nem foi vel-as, mas, dias antes de ir outra vez para fóra,
lembrou-se das obras--e mandou deitar tudo abaixo.

--Não volto sem estarem concluidas.

As provas dos vestidos são um martirio para as pobres costureiras, que
mantém de joelhos duas horas seguidas, pregando-lhe alfinetes. Quando as
vê cahir exhaustas, arranca tudo, despedaça tudo...

       *       *       *       *       *

O Alpoim conta:

O rei é muitissimo bem educado, mas não gosta nada que ponham a rainha
em primeiro logar. Não se importa com o paiz e julga-se um grande rei
constitucional. Os ministros para elle não existem: só ouve e atende o
presidente do conselho. É tão governamental que trata delicadamente os
politicos quando estam na oposição, mas não conversa com elles. Não é
como o D. Luiz, que ás vezes fazia-se com os ministros contra o
presidente do conselho. Chegava a conspirar contra o José Luciano,
partidario da aliança ingleza, com o Barros Gomes, que era pela
Alemanha. Ás vezes andava uma hora de braço dado com o Mariano e Emydio
Navarro, sem fazer caso do presidente do conselho. E depois d'elles
sahirem, perguntava-lhe:

--Olha lá, quando é que tu pões fóra estes gatunos?

O D. Carlos não é assim: para elle os ministros não existem. Trata-os
sempre por tu, menos quando é da assignatura. Não conserva odios. E fica
contentissimo se os ministros descompõem a oposição. Quando foi da
exhoneração do Mousinho pelo Dias Costa, este quiz demitir-se e
queixou-se ao José Luciano:

--No Paço todos me fazem má cara.

O José Luciano disse-o ao rei, que protestou:

--Não, por mim não é verdade. Quanto á rainha que a trate com todas as
atenções, mas que não faça caso.

E para reforço traz o caso Oliveira Martins: O José Dias Ferreira nunca
chegava a presidente de conselho se o Martins tem cathegoria. Imaginou
que manejava facilmente o velho rabula--e escolheu-o para taboleta.
Enganou-se... O Valbom ainda tentou organisar ministerio, mas o Martins,
sem manha politica, teimou no José Dias. Pois ao fim de dois mezes era
elle quem mandava e que o queria alijar... No Paço, nem este rei nem o
D. Luiz, gostavam do José Dias; apezar d'isso, quando o Martins,
aborrecido, se fingiu doente, e o José Dias se queixou, o D. Carlos
disse ao Arnoso:

--Olha lá, diz ao Joaquim Pedro--era assim que elle o tratava--que se
levante ou que se demita. Isto não é vida.

       *       *       *       *       *

Diz-se para ahi que o D. Carlos tem o habito de mentir, e que pensa em
restaurar a monarchia no Brazil.


                                                           Maio--1903.


Os jornaes d'hontem contam que a Rainha D. Amelia não quiz receber o
presidente Loubet, por escrupulos de consciencia. Como é muito religiosa
respondeu, quando lhe foram anunciar a visita:

--Viajo incognita.

--Peor fez ella na Italia. Estava em Napoles, e o rei mandou-a convidar
para ir a Roma. Acceitou, e no dia seguinte safou-se para Livorno. O
governo italiano deu immediatamente ordem aos navios que estavam em
Livorno--para sahirem uma hora antes da entrada do _yacht_...

       *       *       *       *       *

Silva Pinto contado por D. Maria Augusta:

O Silva Pinto escrevia de quando em quando cartas á condessa d'Edla,
pedindo-lhe dinheiro. A condessa architectou um romance: nunca o vira e
imaginou um poeta pobre, n'umas aguas-furtadas, morrendo por ella. E
mandava-lhe ás vinte e trinta libras. Um dia viu-lhe o retrato no
atelier de Columbano...

--Então este velho é que é?!...

E não lhe deu mais vintem.


                                                           Maio--1903.


Hoje 11 o Arroyo discutiu nos pares a viagem da rainha. Acusou-a de não
ter querido receber Loubet. O Wenceslau de Lima levantou-se e negou.

Comentario do Alpoim:

--Que havia elle de responder? Mentiu como um cão!

De resto o discurso foi cheio de alusões. Chegou a isto: a lançar
suspeitas sobre as relações do Soveral com a rainha. «Que está fazendo o
snr. Soveral em Paris? Façam-no recolher imediatamente a Londres[3]!»

--Triste simptoma--afirma o D. João de Alarcão--n'um paiz monarchico
ninguem se levantou para defender o rei. Alguns como o Ayres de Gouveia
foram cumprimentar o Arroyo; outros, como o José Luciano, sahiram dos
seus logares e chegaram-se mais para perto, para não perderem pitada.

       *       *       *       *       *

--O que nós fazemos não é discursos, é historia--diz o Arroyo.

       *       *       *       *       *

Diz-se:

O rei chama nomes ao Arroyo, o Arroyo chama-lhe corno...

       *       *       *       *       *

O Alpoim:

O Arroyo chama corno ao rei, o rei chama aos outros ladrões. Eu sempre
queria que me dissessem o que elle é...

       *       *       *       *       *

A quinta da Bacalhôa--continua o Alpoim--foi comprada pela casa de
Bragança. Quem faz as obras é a Casa Real, isto é o Estado.


                                                           Maio--1903.


O rei--diz hoje D. João d'Alarcão em conversa com o Alpoim--não se
importa nada com isto. Tomára elle ser kkediva d'este cantinho,
defendido pelas baionetas inglezas.

       *       *       *       *       *

O rei tem uma lista celebre a que chama _a lista dos ladrões_.

       *       *       *       *       *

O Arroyo volta á discussão e, a proposito, conta-se de novo a historia
dos tapetes:

«--Havia em Mafra um grande tapete persa, o mesmo que está hoje em
Vila-Viçosa, por signal muito mal tratado. Ninguem fazia caso d'elle,
até que um dia disse ao almoxarife que o guardasse. Mas fiquei sempre
com a impressão de que era magnifico. Duma vez que D. Carlos apareceu
extasiado por ter comprado qualquer tapete insignificante, lembrei-lhe:

--V. Magestade tem em Mafra um muito melhor do que esse...

--Ora adeus!

Teimo, chama-se o almoxarife, reclama-se o almoxarife e o tapete, e o
homem instado apresenta, em logar do tapete, dois papelinhos... A saber:
a ordem de Pedro Victor para entregar o tapete e o respectivo recibo.
Não vi o telegrama do rei, mas vi a resposta do administrador da casa
real: «Vossa Magestade manda, obedeço».

Dahi a dias aparecia o tapete. O Arroyo tinha-o lobrigado em Mafra e
comprado por 75$000 ao Pedro Victor. Entregou-o, e está hoje n'uma
parede do palacio de Vila-Viçosa».

       *       *       *       *       *

Conversa entre o Soveral e o Alarcão:

--Ninguem diga d'este Soveral não beberei. Ainda has-de ser presidente
do conselho.

--Para quê? Então tu imaginas que deixo a minha situação lá fóra por
isto? Que mais quero eu? Sou par, sou do conselho d'estado marquez...

E o Alarcão conclue:

--Acredito que elle não queira. Só se fôr para arranjar algum negocio,
que elle anda muito precisado de dinheiro...


                                                           Maio--1903.


É certo que o rei falou ao José Luciano na dissolução da camara dos
pares, substituindo-a por outra em bases diferentes. A noticia foi para
os jornaes para assustar o Arroyo--que quer fazer outro discurso
sensacional contra o rei.

       *       *       *       *       *

O José Luciano procurou o Arroyo em casa:--Venho pedir-lhe que não faça
o discurso contra o rei. É um homem na minha edade, perto da cova, que
lhe pede isto em nome d'interesses superiores.--Sim senhor... se V.
Ex.^a me assevera que por traz d'isto não está o sr. Hintze Ribeiro...

E chorou.

       *       *       *       *       *

--O rei--diz o Alpoim--está contentissimo. O discurso era tremendo. O
Arroyo afirmava que o rei pedia dinheiro aos ministros. D'uma vez pediu
mil e seiscentos contos. Elle proprio, quando ministro, lhe deu muitas
vezes dinheiro.--Aqui estam as provas!--E apresentava-as.--O primeiro a
ser castigado devo ser eu, porque delinqui.


                                                          Junho--1903.


Os jornaes trazem a noticia de que o rei partiu para o mar no _yacht_ D.
Amelia e de que o duque d'Orleans chega na segunda-feira a Lisboa.

O rei safou-se de proposito para o mar, para o não receber. Do Paço
mandaram ordem para se antecipar a festa ao Barbosa du Bocage, na
Sociedade de Geographia. Tudo porque o rei supoz que os acontecimentos
de Paris com a rainha se relacionavam com imposições da familia Orleans.

...Afinal o rei sempre veio do mar e recebeu o duque.--Mas houve o
diabo!...--diz o Alpoim.

       *       *       *       *       *

--O Navarro defende-o, senhor Alpoim...

--O Navarro diz hoje bem de mim, como amanhã diz mal--por doze vintens.


                                                          Junho--1903.


O _Diario de Noticias_ publica hoje esta curiosissima informação:


     As recepções em casa do sr. conselheiro João Arroyo, constituem
     sempre um acontecimento na nossa sociedade elegante. O talento
     multiforme do illustre parlamentar, que é um artista de raça,
     converteu o antigo palacete da rua do Telhal em uma das residencias
     mais notaveis de Lisboa, tanto sob o ponto de vista da decoração
     dos salões, como pelas preciosidades do mobiliario e valiosas
     collecções de arte ornamental que elles encerram.

     Não se encontra ali um "bibelot" que não seja um objecto de arte ou
     não faça parte de uma collecção, paciente e sabiamente reunida e
     disposta com perfeito gosto e conhecimento. De todos aquelles raros
     objectos que se agrupam pelos tampos dos buffetes, das commodas e
     dos contadores seculares ou nas prateleiras dos armarios e
     «vitrines», resalta sempre uma vibrante nota de arte, que define o
     criterio do colleccionador e marca fundamente o seu temperamento
     esthetico. A sala dos xarões e dos cobres e bronzes esmaltados e
     «cloisonnés» é por certo a mais bella que existe no nosso paiz, e
     só por si basta para aferir o elevado grau que occupa o
     colleccionador no nosso meio artistico. Ha, porem, muito mais, tão
     bom ou melhor que admirar nas salas do sr. João Arroyo, as quaes
     dão aos «gourmets do bric-a-brac» a impressão de verdadeiros
     escrinios de arte. Nestes casos estão a graciosa collecção de
     figuras e mascaras chinezas, a preciosa exposição de leques, cujos
     pannos ostentam as mais lindas illuminuras dos pintores francezes
     do seculo XVIII ou são apenas formados de finissimas rendas a
     ponto, de Allençon ou de Bruxellas; os limpidos cristaes da Bohemia
     e os finissimos vidros de Veneza; as raras faianças da China, e de
     Saxe; as soberbas «boiseries» da casa de jantar, bello trabalho
     decorativo no estylo Renascença, do architecto Bigaglia, com o seu
     fogão monumental, o seu grande lustre de ferro forjado e as
     prateleiras dos «lambris» repletas de exquisitas pratas, faianças e
     cristaes.

     Por toda a parte, emfim, desde o vestibulo e da galeria da escada
     até ás salas do jogo, quadros a oleo das escolas italiana,
     flamenga, hollandeza e franceza, tapeçarias de Gobelins e do
     Oriente, colchas da India e da Persia, tudo quanto o persistente e
     criterioso esforço de um artista e o bom gosto de um homem elegante
     poude colleccionar, tudo chama a nossa attenção, que só encontra
     ali maior attractivo no bondosissimo tracto da illustre dona de
     casa, a sr.^a D. Maria Thereza Pinto de Magalhães (Arriaga) e na
     conversa scintillante de seu marido, um dos mais espirituosos e
     interessantes cavaqueadores da nossa sociedade, e que tem tido
     naquella senhora uma valiosa collaboração artistica, assignalada em
     mais de uma das preciosidades que se contem na sua bella
     residencia.

     Por tudo isto, o «raout» de hontem esteve concorridissimo e
     encantou todos os convidados dos illustres amphitriões, entre os
     quaes estavam:

     Conselheiro Hintze Ribeiro e esposa, ministros da justiça, obras
     publicas, guerra, fazenda, marinha e esposas, nuncio de S. S. e
     secretarios, Rouvier, ministro da França e esposa, ministro de
     Hespanha e esposa, conde e condessa de Azevedo, Miguel da Motta e
     esposa, monsieur e madame Bruno, marquez da Foz e filha D.
     Marianna, duqueza d'Avila, condes d'Avila, marquezes de Guell,
     marqueza de Bellas, conselheiro Schroeter e esposa, Costa Pinto e
     esposa, conselheiro José Vianna, Pedro Diniz e filha, Carlos
     Ribeiro Ferreira e esposa, viscondessa de View e filhas, José
     Sassetti e esposa, viscondes de Santo Thyrso, conselheiro Germano
     Sequeira e esposa, condes de Paçô Vieira, almirante conde de Paço
     d'Arcos, Sarrea Prado, conselheiro Achilles Machado e esposa,
     conselheiro José de Azevedo e esposa, conselheiros José e Antonio
     Arroyo, conselheiro Matheus dos Santos e esposa e filha, condes de
     Sabroso, conselheiro José Ribeiro da Cunha e esposa, José E. de
     Barros e esposa, Joaquim Lima, Alberto Braga, João de Freitas Rego,
     F. Baerlein e esposa, Albino Freire d'Andrade, viscondes de
     Mangualde, conselheiro Ferreira Lobo Francisco d'Aguiar,
     conselheiro Souza Monteiro, Barbosa Colen, conselheiro Deslandes e
     esposa, Terra Viana, esposa e cunhado, Carlos Blanch e esposa, D.
     Elisa Pinto de Magalhães e D. Luiza Pinto de Magalhães, Alberto
     Monteiro, conde de Mesquitella, Dr. Furtado e esposa, Virgilio
     Teixeira, marquezes de Funchal, monsenhor Santos Viegas,
     conselheiro Moraes de Carvalho, Henrique Burnay, conselheiro
     Francisco Mattoso, Henrique Anjos e esposa, Carlos Soares Cardoso e
     esposa, conde de Verride, D. Juan de Castro e filha, Condes de
     Tattenbach, Alvaro Rego, conselheiro Poças Falcão e esposa, José
     Fernando de Sousa, barão de S. Pedro, conselheiro Thomaz Rosa,
     condessa d'Almedina e filha D. Luiza, Antonio Caria e esposa, M.
     Emygdio da Silva, etc., etc.


       *       *       *       *       *

O que faltou a esta sociedade foi um Balzac, que os trouxesse desde a
obscuridade e da pobreza, que nos contasse o esforço, as transigencias,
o talento gasto e o fel gasto, até chegarem ao poder--Navarro, filho
d'um mestre de musica de Bragança, Mariano pobre, Arroyo pobre. Alguem
que nos desse a vida occulta, a audacia e o descalabro, a chaga politica
que os engrandece e corroe, que corroeu o proprio Chagas, o romantico da
_Morgadinha_, até ao ponto de acabar por estas palavras amargas, com o
ultimo suspiro:--A vida é uma comedia!--Alguem que nos mostrasse Arroyo
e os seus phantasmas, Mariano e os seus phantasmas, Navarro e os seus
phantasmas.

Como a vida efectivamente transtorna, enxovalha e envilece--se lhe falta
ideal, paixão, ou um forte sentimento que caldeie as figuras e as eleve!
Não, a vida não é uma comedia. A vida é profunda. Elles é que lidaram
apenas com inferioridades e interesses mesquinhos. Mariano acabou quasi
desprezado. O talento não lhe serviu de nada. Talvez o prejudicasse...
Ha um momento tragico na sua vida, aquelle em que João Chrisostomo
d'Abreu e Souza lê em plena camara a declaração, em seu nome e no dos
seus colegas, de que lhes haviam sido desconhecidos os actos irregulares
praticados pelo ministro da fazenda Mariano de Carvalho. Vejo-o mudo,
livido--com um olhar atono, como nunca vi em mais ninguem. O sceptico! o
sceptico amarfanhado, reduzido a trapo, com um golphão de desprezo, por
si e pelos outros, na bocca, com um golphão de negrume!... Jamais me
esquece esta figura, que vi morta entre os vivos, sentado n'um canto da
camara, sem ninguem fazer caso d'elle, vendo sem vêr, ouvindo sem ouvir,
e não tendo podido realisar nenhuma das suas ambições:--Deixem-me!
deixem-me!--Deixem-no com os seus phantasmas! Arroyo talvez encontrasse
na musica um refugio... Navarro, porém, acabou no mesmo abatimento.
Temiam-no--mas só o temiam. Arredaram-no. No fim da vida ficava horas e
horas absorto ou ia para o fundo d'um camarote do Gimnasio ouvir musica.
Apegara-se--mau simptoma--aos netos. Desconfio que o celebre estadulho
não passava d'um espantalho, e que era grande a sua
sensibilidade:--Sinto-me ferido em pleno coração--Do coração morreu, sem
nunca o deixarem realisar as suas ambições.

[Figura: _Guerra Junqueiro._]

Metidos n'aquella roda de navalhas foram até ao fim do combate, luctando
sempre. Os que tinham de escrever, escrevendo sempre, espremendo o
cerebro, os que tinham de intrigar, intrigando sempre, com a mascara
livida e sorrindo sempre, ferindo sempre, e cahindo de pé. Oh quem me
dera um momento, só um momento para vêr a série de phantasmas em que se
desdobrou cada um destes sêres, para os lêr até ao amago, para lhes
descobrir o instante de cansaço e o ponto vulneravel--rodeados de
invejas, de odios, de inimigos, que esperavam na sombra e não perdoavam
um desfalecimento--uns fingindo-se cinicos, sorrindo aos insultos, e
cravando as unhas na carne até ao sangue, como Rodrigo da Fonseca
Magalhães, outros respondendo á audacia com audacia, outros sucumbindo
ao nojo, com estas palavras que já surprehendi a alguem n'um momento
supremo:--Não, não valia a pena!

       *       *       *       *       *

O mundo politico é tão curioso! O que está á vista não tem importancia,
o que se mostra não passa de scenario. Para viver aqui dentro é preciso
habituar a pelle a todas as alfinetadas e afivelar na cara uma mascara
perpetua. Este homem elogia outro e combate-o a occultas. O que se diz
nas camaras precisa de ser explicado nos corredores, para ser
comprehendido. O Cypriano Jardim atacou ha dias o governo. Porquê?
Estava nas colonias a ganhar seis libras em oiro por dia e chamaram-no á
metropole. O artigo _D. Folião_ do Colen fez successo... Já se
diz:--Escreveu-o porque o Mattoso dos Santos lhe não despachou uma
pessoa de familia. Foi preciso um ataque rude, para o ministro lhe dar,
antes de cahir, um logar não sei onde. Ha politicos que se servem de
todos os meios: ha-os--sei eu--que se escrevem cartas anonimas. Parece
até que os ha mais completos... Um franquista barafusta hoje nos
corredores das camaras, ácerca dum deputado da maioria:--O que eu admiro
é o descaramento de Fulano, que se atreve a fazer discursos alli na
minha frente, quando sabe perfeitamente que trago na algibeira uma acta
em que elle se confessa ladrão!--Este mundo tem as suas leis, as suas
convenções, os seus preconceitos, e a sua honra especial. O principal é
o que se diz ao ouvido. Aquillo alli nas côrtes é apenas aparato: o José
Luciano combina tudo com o Hintze, o Alpoim com o Teixeira de Souza. Mas
surge ás vezes o inesperado e deita a frandulagem de pernas ao ar... A
atitude violenta do Arroyo explica-se assim: O Arroyo queria ser do
conselho do Estado, o Hintze prometeu nomeal-o, o rei opoz-se. O Hintze
teimou--o rei teimou:--Vae para casa e pensa...--A atitude do Navarro
explica-se porque o rei nunca o deixou ser par...[4] D'ahi o odio--d'ahi
barafunda... O José Luciano procurou o Arroyo para lhe pedir que não
fizesse o discurso contra o rei:--Sou eu, chefe dum grande partido, que
lhe afirmo que não está inutilisado.--E publica no _Correio da Noite_ o
discurso com alusões á rainha--que o Alpoim manda retirar do _Dia_, por
causa do Paço... Os chefes ainda conservam certa linha, mas cá em baixo
vêm-se referver os interesses, as ambições, os despeitos. O D. Carlos
mantem-se n'uma atitude que faltou ao D. Luiz--e é talvez por isso mesmo
que o atacam e o acusam. Não intriga. O D. Luiz mais de uma vez propoz
ao José Luciano, no tempo de Braamcamp, que organizasse
ministerio:--Isso não, meu senhor! E vou já d'aqui dizel-o ao
Braamcamp.--Tudo parece confusão, todos os dias a teia se emaranha.
Ainda ha quem defenda este e aquelle, que pertence ao seu partido, por
interesse, por camaradagem, seja pelo que fôr, mas já não ha ninguem que
defenda o rei. Alto ou baixo, ao ouvido ou em plena rua, só se fala no
rei... O rei! o rei! o rei!...


                                                          Junho--1903.


--Os Braganças, dizia o Latino Coelho, ou são pedantes ou fadistas.

A este proposito o D. João da Camara conta, que um dia D. Pedro V leu um
discurso á mãe, dizendo-lhe ella no fim:

--O menino ha-de sahir um bom pedante.

Se tarda em morrer acabava odiado.


E acabava. As grandes figuras moraes são sempre uma calamidade para si e
para os outros. O universo é amoral, e não ha como os acomodaticios, com
alguma hipocrisia ao seu dispôr... Os outros só fazem a sua desgraça e a
desgraça dos que os rodeiam.


                                                          Junho--1903.


Pateo de Martel. Um cantinho com uma figueira e malvaiscos. Uma fiada de
casas e no extremo o atelier do Columbano. Por traz a quinta... E outra
luz diferente, outra atmosphera... O mestre, pobre e obstinado, fez alli
os seus melhores retratos; a senhora D. Maria Augusta, n'uma sala de
trez metros quadrados, creou as suas mais bellas rendas. Lá no fundo
morou Eugenio de Castro, pobre, morou depois o Justino e outros
diplomatas ilustres... Alli o mestre, como os artistas da Renascença,
experimentou o _fresco_, as tapeçarias, os trabalhos em cêra e prata. A
senhora D. Maria Augusta sorria-nos com a maior bondade e carinho e
dizia:

--Quando meu pae morreu ficamos sete irmãos. Criei-os a todos.

--E o Columbano?

--Esse é meu irmão, meu filho e meu mestre. Por alli passaram tambem os
maiores homens de Portugal, de quem o Columbano ás vezes fala:

--O Oliveira Martins contou-me, quando veio ao meu _atelier pousar_ para
o retrato, que um dia a rainha o mandou chamar e lhe apareceu
transtornada:

--Salve-nos! salve-nos!

Era depois dos acontecimentos do _ultimatum_. O Martins procurou ou
escreveu--não me lembro--ao Anthero do Quental e elle afastou-se e
abandonou tudo.

São curiosos os grandes homens contados pelo Columbano, que os retratou.
Um levava um pente na algibeira para compor o cabelo, outro pedia para
se lhe não ver a careca. O Junqueiro era mephistophelico. Aparecia,
desaparecia logo: não pousava cinco minutos a fio. Um dia o Columbano
ouviu bater a porta, e entrou-lhe no atelier um homem já cansado, de
grossos sapatões, apegado a uma bengala, que parecia um bordão de
pedinte:

--Disseram-me que gostava de fazer o meu retrato e aqui estou...

Era o Anthero. Parecia um cavador, de meias grossas de lã azul--mas
quando falava!... Nunca olhou para o retrato.

--Está prompto?

Foi-se embora como viera...


                                                          Junho--1903.


O José de Figueiredo diz-me:

--Copiei por minhas mãos, para o Antonio Candido, a carta em que o
Soveral é durissimo para os partidos, fala d'alto ao rei e lhe diz que,
se não tivermos juizo, a Inglaterra tutela-nos.


                                                          Junho--1903.


--Ninguem me mete na cabeça que esta rainha é boa pessoa--diz o Alpoim
ao vel-a descer o Chiado.

Mas, quando passa, toda a redacção do _Dia_ corre á janella, para a
cumprimentar, e o Moreira d'Almeida, que tem por ella culto e paixão,
põe á pressa o chapeu na cabeça, para se ir desbarretar n'uma grande
cortezia.

       *       *       *       *       *

Fala-se hoje do Soveral na redacção do _Dia_, e da amizade que o liga ao
rei d'Inglaterra.

--São tão amigos que por occasião do ultimatum, ainda Eduardo VII era
Principe de Gales, este pode prevenil-o da atitude da Alemanha. Iam
ambos n'um cortejo: o principe, de passagem, chegou-se-lhe ao ouvido e
só lhe disse estas palavras:--A Alemanha está comnosco...

O Soveral correu ao telegrapho.


                                                          Junho--1903.


O Adrião de Seixas, que, nos seus tempos aureos, entrou em muitas
combinações de finança, negociou emprestimos, esteve ligado aos Mosers,
etc.:

--Quasi todos os homens publicos recebiam luvas, posso garantir-lh'o.
Todos estendiam a mão. Duma vez trouxe para um, um aparelho de chá,
magnifico, de prata, comprado em Paris. Elle recebeu-o e, destapando o
assucareiro, afirmou com desplante, sorrindo:--É magnifico... só lhe
falta o assucar.--Eu, que já ia prevenido, tirei das algibeiras alguns
rolos de libras, despejei-os dentro e perguntei:--E agora?--Agora está
optimo.--E concluiu:--Você é uma mercearia ambulante!


                                                          Junho--1903.


O marquez de Soveral em conversa com o Alberto Braga:

--É que eu vivo em Londres longe de tudo isto... Se me visse forçado a
viver em Portugal, fazia-me revolucionario.

       *       *       *       *       *

Tambem o Alpoim diz hoje:

--Quem me dera uma revolução!

E, deante do nosso espanto, explica:

--Para pôr o rei no seu logar... Eu não tenho nada a perder, meus filhos
estão colocados, o que tenho chega-me para viver na Regoa como um
fidalgo... Era preciso que o rei tivesse medo. Mas quê! Agora com a
aliança ingleza é muito peor. Ainda outro dia dizia o José
Luciano:--Podem vir os republicanos todos juntos, os de cá e os de
Hespanha, que não fazem nada. É da aliança que, se houver qualquer
movimento, desembarcam tropas e defendem o rei.

E acrescenta:

--Eu vi tudo, vi as perguntas e as respostas, posso assegurar-lho.

       *       *       *       *       *

--Elle é mau, é--diz o Alpoim do rei--mas a gente não tem outro.


                                                          Junho--1903.


O Abel d'Andrade:

--Conheço muito bem o Hintze. Tem duas qualidades magnificas n'um homem,
pessimas n'um chefe. É delicadissimo. Sorri sempre, mesmo quando sabe
que o enganam--e nunca resolve nada, o que lhe acarreta dificuldades,
que vão crescendo á medida que elle as adia. Tem outro defeito enorme;
não é capaz de dizer _não_ peremptoriamente a ninguem.


                                                          Junho--1903.


O Emygdio Navarro está furioso com o rei. Sentiu immenso que o não
convidassem para nenhuma das festas dadas ao rei d'Inglaterra--quando
foi elle que iniciou, defendeu e preparou a aliança anglo-portugueza.


                                                          Junho--1903.


Estive hoje em casa do juiz Veiga, lá para o Rato, por causa d'uma
querela do _Dia_. É um homem atarracado e forte, com um ar de falsa
bonhomia. Ha n'elle não sei quê de inquisidor e de satiro, e é tão
desconfiado, que, logo que eu entro, pousa sobre os papeis da secretaria
uma larga folha azul, com medo que lh'os leia. Na sala, de cadeiras
doiradas de palhinha e _consoles_ com gatos de vidro, ha varios
mostrengos em exposição: o retrato delle e retratos de familia,
temerosos, o busto do rei D. Carlos em marmore e outro não sei de quem,
ambos de arripiar. E, entre a papelada que trasborda e estas coisas de
mau gosto, o juiz Veiga fuma n'um cachimbo d'espuma com uma mulher em
pêlo...

É este o homem que sabe tudo e pode tudo, que conhece os segredos das
familias e os segredos da politica. N'outro dia obrigou um janota a
entregar-lhe as cartas, que comprometiam uma mulher casada. Contam-se
mais casos curiosos. É omnipotente e omnisciente. Comanda, diz-se, bufos
ilustres de quem ninguem suspeita. Tem um cofre sem fundo á sua
disposição para distribuir dinheiro a rodos. Acode a desgraçados.
Tortura--verdade ou mentira?--no fundo das celulas alguns presos
politicos para lhes arrancar segredos. Ainda ha tempos me contaram que
ao José do Valle não o deixaram dormir sem elle confessar tudo...--É uma
especie de Pina Manique, que pouco abusa do seu lugar e da sua
autoridade. Afirmam-no bondoso. Ha até quem o diga uma especie de
Providencia. É incontestavelmente um homem esperto, que
protesta:--Quero-me ir embora antes que tudo isto desabe. Esta gente não
sabe ou não quer defender-se...

Fala baixinho, sem me olhar nos olhos e resolve n'um prompto, como quem
não encontra nunca obstaculos. Quando saio, no patamar da escada,
surprehendo duas creadas de avental sujo e chinelos esbeiçados, que dão
de comer, ás escondidas, a um policia. Enganam-no na sua propria casa e
deitam a fugir quando me vêem.


                                                          Junho--1903.


O artigo de hontem, das _Novidades_, sobre a mortandade da Servia, cheio
d'alusões ao rei, fez sensação. E dizia-se por ahi:

--Quando se faz cá o mesmo?

--Foi uma limpeza!--phrase do Alpoim.

       *       *       *       *       *

O Beirão:

--O Alpoim não quer vêr que o partido do João Franco, apezar de pequeno,
é um partido de protesto. Qualquer dia o rei chama-o e dá-lhe os mesmos
poderes que tem dado ao Hintze ou ao José Luciano.


                                                          Junho--1903.


Judice Bicker, casado com uma filha do Andrade Corvo, conta, a proposito
do rei e do poder pessoal:

--Possuo diferentes cartas do D. Luiz, e entre ellas uma ao Corvo,
pedindo-lhe que apresente certa proposta, mas de maneira que não pareça
_poder pessoal_... Os homens desse tempo impunham-se. Um dia ao D.
Augusto meteu-se-lhe em cabeça casar com uma infanta d'Hespanha. Era no
tempo em que se falava muito na união iberica. O Corvo opoz-se, apesar
da insistencia desesperada do infante. Por ultimo procurou-o e
disse-lhe:

--Escusa de insistir, que não casa. É pelo bem do paiz.

       *       *       *       *       *

O Corvo foi um dos primeiros estadistas a pensar a serio na Africa e no
seu engrandecimento. Quiz augmentar o territorio de Angola e
estabelecer-lhe os limites, d'acordo com a Inglaterra. Tudo era possivel
n'esse tempo e tinhamo-nos livrado de dificuldades, do Estado livre do
Congo, etc. Avançavamos um seculo, se elle não cae por causa do tratado
de Lourenço Marques. Deitaram-no a terra, espalhando que recebera
milhões. Eu que casei com a filha, sei o que elle deixou!...

Nas camaras o governo d'então declarou que o tratado não tenha ido a
conselho de ministros. O Andrade Corvo possuia o tratado com anotações
do punho de Fontes e Thomaz Ribeiro. Apesar d'isso calou-se. Se fosse
hoje!...


                                                          Junho--1903.


--O rei tem pensado. E tanto que o infante quiz ir agora ao estrangeiro
e pediu dinheiro ao Hintze, que lhe respondeu:--Peço-lhe que desista.--O
infante rasgou a carta furioso. Com a Maria Pia sucedeu o mesmo. Essa
inventou uma doença d'olhos e preveniu o D. Carlos de que precisava de
ir ao estrangeiro. Resposta do rei:--Cá ha um bom
especialista.--Mandou-lho, e elle disse ao rei que a Maria Pia não tinha
nada. A Maria Pia insistiu, n'um desespero, e o rei mandou-lhe o Antonio
Lencastre. O rei tem pensado...

--Se isso fosse verdade!--exclama o Alpoim.


                                                          Junho--1903.


Esta tarde sahiu dos Martires, mesmo em frente do _Dia_, a procissão do
Corpo de Deus. Todos á janella cahiram de joelhos--quando o bispo de
Trajanopolis passou, a barba loura, muito cuidada, e um capachinho no
alto da cabeça, apartado ao meio... O Alpoim exclamou:

--Ó que maroto! Foi a este que o Barros Gomes, quando ministro, disse um
dia: Ajoelhe a meus pés! Peça perdão!--Tinha hypothecado lá fóra os
rendimentos do curia por noventa annos!


                                                          Junho--1903.


O D. João da Camara conta que no Algarve encontrou em todas as casas
dois retratos--o de João de Deus e o do Remexido. E a proposito diz que
um tio de Coelho de Carvalho levava já a galope o comutamento da pena do
Remexido, quando o fuzilaram. E termina:--A Angela Pinto é neta do
Remexido. Aposto que não sabiam!


                                                          Julho--1903.


--Vou pedir um logar que está vago no Supremo Tribunal--disse um patusco
ao Marçal Pacheco.

--De juiz?!

--Isso.

--Mas você endoideceu! Não lh'o dão!

--Isso sei eu.

--Mas então porque é que o pede?

--Já pedi umas poucas de coisas, vou pedir mais esta. Recusam-ma, já
sei, mas é _capital_ de queixa que amontôo.

       *       *       *       *       *

O Alpoim:

--Um dia o cardeal patriarcha convidou-me para jantar. Estavam muitos
bispos. São jantares que nunca acabam, de quinze pratos, serviço
esplendido--e não calcula a impressão que eu senti, no fim, quando elles
se levantaram muito congestionados, cheios de vinhos magnificos, mamando
charutos enormes e com as saias arregaçadas...


                                                       Setembro--1903.


O Henrique de Vasconcellos, genro do Navarro, contou-me hoje que o Paço
por trez vezes mandou insistir com o sogro, para elle não continuar com
os ataques nas _Novidades_.


                                                        Outubro--1903.


O Alpoim recomenda no _Dia_ que se não publique nada que possa ferir as
susceptibilidades da côrte hespanhola. Afonso XIII está
desconfiadissimo. Além d'isso o nosso rei e rainha de Hespanha não se
podem ver: têem um pelo outro odio figadal.

       *       *       *       *       *

Um coronel inglez, que ahi esteve, veio por ordem do seu governo vêr em
que estado tinhamos as fortificações de Lisboa. Examinou tudo.

[Figura: _José Luciano encerra o Parlamento._--Caricatura inedita de
Celso Herminio.]

       *       *       *       *       *

Com as festas de Afonso XIII encheu-se muita gente. Um regabofe. Da
iluminação da Avenida diz-se:--Dos Restauradores para cima dirige o
Costa Pinto, dos Restauradores para baixo digere o...

       *       *       *       *       *

Ao ouvido conta-se que o rei de Hespanha e os que o acompanhavam
troçaram tudo isto: o paiz, a côrte, as festas. De manhã, no quarto,
emquanto elle tomava café ou chocolate, os particulares e os intimos
maldiziam, n'uma chacota pegada... Só o rei, fracamente, se opunha.


                                                        Outubro--1903.


O D. João da Camara conta o seguinte:

--O D. Luiz deu, até pouco antes de morrer, trezentas libras por mez á
Rosa Damasceno. Todos os dias 10, 20 e 30, o Nazareth lhe entregava cem
libras em oiro, que elle nem sequer contava: mandava-as logo á Rosa.
Morreu no dia 19 de Outubro: pois no dia 10 ainda lhe mandou o
dinheiro.--E o Brazão?--Cuido que não são casados, apezar do que por ahi
se diz. O que é certo é que antigamente, as coisas arranjavam-se por
forma que a Rosa e o Brazão nunca entravam na mesma peça, e um d'elles
ia sempre passar a noite ao Paço. O D. Luiz dizia do Brazão:--É o meu
melhor amigo. A Rosa nunca abusou da situação: apenas empregou dois ou
tres homens e o D. Luiz sentia por ella verdadeira ternura. Traduziu-lhe
a _Odette_ e assistia aos ensaios. A Maria Pia sabia tudo. Um dia deixou
no quarto do Paço onde a Rosa costumava ficar, um lenço de rendas a
tapar a fechadura. Ás vezes o D. Luiz apresentava-lhe joias para ella
escolher e depois levava-as á Rosa. E ia com a rainha ao theatro, para
que ella visse o efeito das joias no colo da actriz.


                                                        Outubro--1903.


--Vi eu, vi eu!--exclama o Antonio José de Freitas--o Oliveira Martins,
n'uma sala, deslumbrado, solicitar a apresentação d'um janota qualquer,
d'um janota banal.


                                                       Dezembro--1903.


O Adrião de Seixas, secretario do Banco de Portugal:

--Não se fazem descontos, porque não ha dinheiro e o Banco já recorreu
ás reservas de prata. O governo está sempre a pedir dinheiro. Imagine o
meu amigo que todos os annos ha um _deficit_ de 7:000 contos. Ninguem
tem a coragem de dizer as coisas como ellas são e por isso se faz um
orçamento falsificado. Resultado: como o orçamento é falso, pode-se
roubar á vontade!

       *       *       *       *       *

O José Luciano está a morrer. O que ahi vae com a chefia do partido
progressista! Ao Antonio Candido não o tragam os progressistas, ao
Beirão não o quer o Paço, nem o Navarro, nem o Mariano. Lança-se o nome
de Antonio Candido para encobrir o seguinte proposito: presidente do
conselho o Mathias de Carvalho, com o Alpoim na pasta do reino.

Mathias de Carvalho é uma figura decorativa, sempre de palito na bocca e
de miolos empedernidos, que ficará na presidencia e estrangeiros. Esta
solução é preferida pelo Navarro e pelo Mariano. De Mathias apenas se
sabe que é incapaz: como diplomata foi quem deu ensejo a esfriarem-se as
relações com a Italia.

--Se o José Luciano morrer é á facada!--exclama o Alpoim.

Morrer era ainda--Deus me perdoe!--uma solução... Peor será conserval-o
na cadeira de rodas, obstinado, querendo mandar, e os herdeiros á espera
do testamento. Toda a politica portugueza vae girar em volta d'este
leito de enfermo, onde o velho continua a dar ordens imperiosas.--Hoje
deitou um litro de pus pela pelle.--Está salvo!--Morre!--Fica
invalido!--Tem sifilis!--Nesta altura da politica portugueza, é elle
quem manda tudo. Que o diga, o José d'Azevedo, por exemplo, que o não
pode vêr, porque o José Luciano o não deixou realizar as suas
pretenções. É na sua casa que se resolvem as questões maximas. A
politica é pelo menos n'uma grande parte, na melhor parte, representada
nos bastidores... «Vejam a vergonha desta gente! O Campos Henriques vae
a casa do José Luciano com o Julio de Vilhena, para conseguir que as
emendas do codigo civil passem. Não passam e elle fica no ministerio! O
Teixeira de Souza vae lá todas as semanas. Não, este Hintze... Eu
palavra de honra antes queria ser ladrão d'estrada!...»

Outro facto extraordinario da nossa politica: é sempre no campo adverso
que estes homens tem mais radicadas amizades. E tambem se percebe
nitidamente que no fundo da lucta só ha uma força, o rei. Por isso mesmo
o rei é sempre o culpado. Quem tudo manda é o Paço--dizem todos os
politicos--e tanto mais que não ha um nucleo de resistencia no paiz. Os
republicanos não estão organizados e o Paço nem sabe o que póde. Uma
revolução no paiz é, segundo a opinião geral, impossivel, a não ser que
se succedam trez annos de fome.--Tudo quanto se faz de mau é o rei quem
o faz...--Ainda hoje ouvi esta conversa:--Foi o Hintze quem disse ao
Arroyo, como disse ao Mariano e ao Navarro. «É el-rei que não quer».
Nunca lh'o deveria ter dito.--Os politicos inutilisam-no e
inutilizam-se. Todos os dias inventam novas atoardas. Hoje a proposito
d'uma nota oficiosa que o ministro da fazenda fez publicar no
_Noticias_, no _Seculo_ e no _Diario_, anunciando um grande emprestimo
no estrangeiro, conta-se que é um negocio de acordo com a casa Fonseca,
Santos & Viana, que tinha comprado fundos. Acusa-se o Teixeira de Souza
de conivencia. Mas já a 2 de junho o Alpoim afirma:--Quem não deixa
passar o emprestimo é o Burnay. N'outro paiz devia ter a cabeça cortada.
No ministerio da fazenda ha documentos que provam as suas maquinações no
estrangeiro. Elle manda em tudo:--manda no Credito Predial, no Banco de
Portugal, na Companhia Real. É uma desgraça que o emprestimo não passe.
Temos nós de o fazer e em que condições!... E tudo isto com que fim? E o
Burnay a ver se obriga os progressistas ao contracto dos tabacos.--A
esta trapalhada juntem a doença do José Luciano e as ambições, que
levantam a cabeça, a guerra de sapa que se encarniça.--Hoje deitou mais
pus!--Morre!--Com quem está o Paço?--O Moreirinha com a algalia não lhe
sae da cabeceira.--Quem vae ao poder? O João Franco?

--Nem elle sabe a guerra oculta que eu lhe tinha feito. Ha-de pagar-me
caro o discurso que fez contra mim: Viva a folia, dançar! dançar!... São
mil os interesses, mil as ambições.--Tudo menos o Beirão, que só tem por
si a gente velha, a gente conhecida pelos _batibarbas_.

Mas o velho teimoso e perspicaz, não admite sequer a idéa de que alguem,
que não seja elle, vá ao poder. Até á ultima--ambição ou
grandeza?--ha-de disputar e mandar, como o Alpoim, até ao ultimo
suspiro, ha-de conspirar. Aqui, á roda d'esta agonia, não se discutem
apenas os interesses d'uma familia. O drama é maior: são os interesses
dos partidos, com mil e uma ambições e enredos que nem sequer se
suspeitam. A confusão augmenta, redobra. O Ressano Garcia comanda o
ataque, á frente dos _batibarbas_, contra o Alpoim, e o Alpoim, que
ainda hontem atacava o João Franco, já hoje (Janeiro 1904) diz, depois
do conluio feito pelo Silva Graça:--Com esse me entendo eu!


                                                      Fevereiro--1904.


Hontem, terça-feira de entrudo, assisti ao espectaculo em S. Carlos.
Estava tudo, o rei, a rainha, a côrte... Senhoras decotadas com os
vestidos presos aos hombros por uma fita. A D. Amelia de vermelho.
Andava no ar uma bola enorme de borracha, e ao janota que quiz saltar
dentro d'um camarote tiraram-lhe as botas dos pés. Mas a risota, a
chalaça, a delicia, era um penico em miniatura, que passava de mão em
mão, por entre as grosserias, que é do uso antigo as senhoras dizerem
umas ás outras na terça-feira gorda. O fundo d'estes risos vem sempre da
mesma palavra pegajosa: merda! merda! merda! O rei, gordo e louro,
soprava por um canudo setas de papel, botando o olho de revez, e houve
um momento em que o infante mostrou do camarote o quer que era de
borracha, um canudo cheio de vento, immenso e obsceno. Foi um delirio
entre aquellas cabeças empoadas, na gente da alta roda de que se contam
baixinho os escandalos.

Ouçam um destes rapazes que estão na plateia, e que falam das senhoras,
como quem fala com desprezo das mulheres da Antonia. Muita desta gente
não se sabe aonde vae buscar o dinheiro. É um misterio. Aquelle louro e
correcto, que está além n'uma atitude romantica, ainda ha dias quiz
extorquir alguns contos de reis, para o jogo, a uma mulher casada. Outro
só vive da roleta. Mais além, o herdeiro de um nome ilustre, tem um
modesto logar na alfandega, e a mulher usa brilhantes esplendidos.
Aquelle, acolá, tão decorativo, é conhecido pelo conde de Monta-a-Velha.
São raros os que não têm alcunhas. A uma senhora de perfil soberano
chamam-lhe a Vareira. Outra tem um sobriquet infame. Deste e de aquella
diz-se alto a chronica escandalosa. A mulher do S. deu este anno grande
escandalo em Cintra. Outra foi apanhada aos beijos a um embaixador. Com
aquella, mais além, fina como uma cobra, e que ostenta um colar
magnifico, puzeram-se os B. de mal, acusando-a de lhes ter roubado uma
carteira com trezentos mil reis, depois de terem sido todos seus
amantes. A mulher do J... deixa o marido, pé de boi rico que só lhe
serve para puxar á nora, e gasta-lhe a rodos o dinheiro que juntou. Eis
esta mãe viciosa com a filha ao lado--de olhos limpidos e innocentes.
Peor, ha peor... E mais esta--e mais esta--e mais esta condessa, que
n'outro dia foi apanhada no comboio n'uma atitude peor que equivoca...

Puz-me a ouvir, a ouvir,--verdade? mentira?--e lembrei-me ao mesmo tempo
da côrte da senhora D. Carlota Joaquina e da _Chartreuse de Parma_.

       *       *       *       *       *

O general Lencastre de Menezes:

--Se o 31 de Janeiro fosse agora as coisas não se tinham passado
assim...


                                                          Março--1904.


Morreu um dia d'estes um preto riquissimo, que quiz por força passar por
branco, o que lhe custou os olhos da cara. Se teima em viver mais algum
tempo acabava a pedir. Rodeara-se d'uma corte que lhe custava carissima:
lisongeavam-no e rapavam-lhe o cofre até ao fundo. Depois inventavam-lhe
processos, depois demandas... Depois sopravam-lhe á vaidade
incomensuravel. E o preto sorria, o preto dizia sempre que sim.
Tinham-no casado com uma linda rapariga branca--e o preto, á farta,
pagara tudo, dotara tudo, a noiva, os paes da noiva, os parentes da
noiva... E cada vez mais brancos lhe faziam a côrte e o enredavam n'uma
vasta teia de interesses, com muitas zumbaias e papel selado.

Um dia foi a Inglaterra e quiz viajar como um principe branco: comprou
um _yacht_ de luxo para ir a S. Thomé. Cincoenta contos. Na volta não
havia carvão a bordo e deitaram-se a queimar a madeira entalhada, os
doirados do barco, as portas, os salões, as molduras. E o preto sorria.
Quando chegou a Lisboa vendeu o barco por uma côdea.

Rodearam-no mais brancos, apareceram-lhe mais brancos infatigaveis,
pressurosos, obsequiadores. E mais papel selado, mais contractos e
procurações para assignar--o enredo, a teia subtil em que o negralhão
foi arrastado e envolvido, o verdadeiro, o authentico drama, emfim, do
preto que quer ser branco... Se elle tinha por acaso um sobresalto,
falavam-lhe logo á vaidade ou davam-lhe noticia d'uma coisa que se chama
o Codigo, a Lei, a Formula, e o preto, que não comprehendia e que se
sentia feliz, submetia-se sem contestar, com uma grande satisfação por
fazer parte d'esta raça ilustre e respeitada de brancos, por ser
visconde, por pertencer á côrte e á alta sociedade elegante.

...Antes de morrer lá lhe deram o ultimo golpe--de preto. Os brancos
ficaram-lhe com as roças, e as propriedades de S. Thomé foram
transferidas para uma sociedade por quotas. É o que consta por ahi,
emquanto o negralhão estoira com uma pneumonia dupla--e lá em casa se
toca desaforadamente piano, com as janellas abertas de par em par.


                                                          Março--1904.


As obras da sala de jantar do Paço das Necessidades custaram 180 contos.

       *       *       *       *       *

O Abel d'Andrade contou-me que a modista da mulher lhe dissera que a
mulher do Hintze lhe devia lá uma capa ha mais dum anno.


                                                          Março--1904.


O Celso morreu ha um mez n'um dia de chuva como este. Mas, quando o
caixão chegou ao pé da cova, luziu o sol no alto. O ar parecia novo e no
vasto campo dos tumulos agitaram-se as cabeças amarellas dos
malmequeres. Os passaros começaram a cantar. E viu-se logo o Brito
Aranha, de pera branca, dar um passo em frente e fazer um discurso:--O
amigo... o camarada... descança em paz.--Depois o Cunha e Costa falou na
nossa decadencia, e por fim o Carneiro de Moura mastigou tambem uma
banalidade... Sentia-se que tudo aquilo era postiço. Mas os passaros não
cessavam de cantar--e a meu lado o D. João da Camara suspirou baixinho:

--Quem me dera que quando eu morrer só o saibam meia duzia de amigos!...


                                                          Abril--1904.


O Ovidio d'Alpoim ácerca da D. Maria Emilia Seabra de Castro:

--Mete-se em tudo. D'uma vez eu e o José Luciano estavamos a discutir
umas alterações á Carta Constitucional e ella começou do lado a dar a
sua opinião. O José Luciano mandou-a embora. D'outra vez sahia eu de
casa do José Luciano com o Antonio Candido e vinhamos á porta da sala
grande, quando ella do alto da galeria:

--Ó senhor Antonio Candido então agora é que vae para Amarante, quando é
cá preciso? E é para isto que nós os fazemos pares e os enchemos de
honrarias?...

O Antonio Candido não respondeu. Ficou tão vexado que, de casa até á
baixa, não trocamos palavra.


                                                          Março--1904.


As filhas de D. Carlota Joaquina, com excepção de duas, eram tal qual
como a mãe. O Camara conta que a duqueza de Loulé, que foi casada com o
mais lindo homem do seu tempo, estava um dia, em solteira, á janella,
quando o conde de Vimioso passou a cavallo para os touros, já vestido de
oiro e prata. Ella chamou-o, trocaram meia duzia de palavras, elle
subiu--e depois desceu e foi tourear...

O marquez de Vallada sabia quem eram os paes de todos os filhos de D.
Carlota Joaquina.


                                                          Abril--1904.


A Hespanha concentra tropas na Galliza. Nós não podemos mobilisar quinze
mil homens. Nem dez mil! Hontem o Pimentel Pinto queixava-se ao
Maximiliano d'Azevedo, de que nem artilharia de campanha possuimos: a
que temos ficava liquidada no fim de meia hora de combate. A artilharia
do campo entrincheirado de Lisboa, comprehendendo os obuzes, serve
apenas para navios imperfeitamente protegidos. Peor: o municiamento mal
chega para uma hora de combate!


                                                          Abril--1904.


O dr. Antonio Centeno protesta:

--Isto não pode ser! O ministro deu pela iluminação electrica do Paço de
Belem quarenta contos! Havia quem a fizesse por sete. Agora vae dar a
iluminação electrica de todos os paços por trezentos contos. Ha quem a
faça por quarenta. Mas d'esta vez oponho-me porque prejudica a Companhia
do Gaz. Vou procural-o e dizer-lho. Se teimar levo a questão para a
camara e para os jornaes.


                                                          Abril--1904.


Quem faz a politica externa é o rei e o Several. O ministro dos
estrangeiros chancela.


                                                          Abril--1904.


Isto é um paiz para estrangeiros. Não ha nenhum que não enriqueça. Hoje
afirma-se que o Chapuy, engenheiro da Companhia Real, vendeu machinas á
Companhia por cento e trinta e tres mil francos, que valiam setenta mil.
O Croneau, director do Arsenal, tambem está rico.


                                                          Abril--1904.


Diz o Alpoim:

--O rei não ouve ninguem. Antigamente ainda atendia o general Queiroz,
que era nosso amigo. Agora não: só ouve os presidentes do conselho.
Tratava muito bem o Teixeira de Souza; pois quando o Hintze resolveu
pol-o na rua, passou logo a tratal-o mal.


                                                           Maio--1904.


O alferes que no 31 de Janeiro comandava a guarda municipal, por traz do
campo de Santo Ovidio, nas escadas da Egreja da Lapa, e que depois
comandou o fogo na rua de Santo Antonio, garante que o Lencastre e
Menezes, então comandante do 18, não sahiu com o regimento emquanto não
viu tudo decidido. E dentro do quartel havia socego...

--Eu disse-o depois ao rei.

       *       *       *       *       *

A proposito de 31 de Janeiro sei pelo José de Figueiredo, que o ouviu
por diferentes vezes ao Antonio Candido, que o rei e a gente do Paço
queriam um castigo exemplar. Antonio Candido opoz-se e ficou mal visto
durante muitos annos.


                                                          Junho--1904.


Disse-me hoje o Camara que o Soveral tomou parte, activa no tratado
d'_entente_ entre a Inglaterra e a França. É hoje um dos melhores amigos
de Delcassé.


                                                          Julho--1904.


A Maria Pia, que quer ir por força ao estrangeiro, mandou pedir dinheiro
aos agiotas de Paris sobre hypotheca das suas propriedades--chalet do
Estoril e parte do palacio das Necessidades, que ella afirma
pertencer-lhe... Ao todo cento e oitenta contos. De intermediarios
serviram um agiota do Porto, uma mulher designada na correspondencia
pelo nome de madame Blanche, e que recebia dez mil francos, etc.

       *       *       *       *       *

Do Antonio José de Freitas:

O marquez da Fronteira nunca poude levar a bem o casamento de D.
Fernando com a _comica_, como elle lhe chamava. Uma senhora da
aristocracia conversando com o marquez:

--Fui visitar el-rei que me disse:--Não queres vêr a condessa?--Falei
com ella e parece-me...--hesitando--muito interessante...

[Figura: _Celso Herminio._]

E o marquez logo:

--A senhora já tinha, é claro, relações anteriores com a condessa...


                                                       Dezembro--1904.


O João da Camara repartiu com os netos de Camillo os direitos de auctor
do _Amor de Perdição_. Os filhos de Nuno nem pão tinham no dia em que
receberam inesperadamente esse dinheiro. O Camara, quando juntou
duzentos e tantos mil reis, escreveu á viuva e mandou-lhe
metade.--N'esse dia--disse ella ao Alberto Pimentel--não tinha que lhes
dar de comer.

       *       *       *       *       *

O rei e a rainha vivem separados. Os seus aposentos são, uns n'um
extremo, outros no outro extremo do palacio. E por ahi afirma-se que
elle, depois do tifo, ficou como Affonso VI...


                                                       Dezembro--1904.


O velho obstinado teima... Não lhe falem na successão! Ainda n'outro dia
fez uma scena, quando a D. Maria Emilia lhe leu o artigo das
_Novidades_. Um amigo disse-lhe:--Deixe lá o Sebastião Telles ou o
Alpoim ser presidente do conselho.--Essa hypothese não a admito
eu!--protestou logo. O Hintze está gasto, o João Franco foi acolhido no
norte como um Messias. O Beirão fez um discurso nas camaras--talvez
proposital--dizendo que cortaria nos empregos publicos e que não admitia
direitos adquiridos senão dentro da lei.--Elle quer inutilisar-se...--É
um tipo esgalgado, d'astronomo, com uma grande penca--o nariz do
Beirão--motivo facil de caricatura. Homem de costumes simples, alheado e
indiferente a corrilhos, agarrado aos seus livros[5]. Já em Abril, no
conselho d'estado, taes coisas disse que, á sahida, afirmou:--Acabo de
dar uma enxadada na minha reputação!--Quanto ao Alpoim desconfia que o
José Luciano o quer comer, e o Teixeira de Souza trata de crear forças
dentro do seu proprio partido: comprou _A Tribuna_ e parece influenciar
no _Diario_.--Ao Hintze custa-lhe a largar o poder, elle bem sabe
porquê...--Os tumultos nas camaras succedem-se e a situação politica
agrava-se.

Do rei diz-se o peor possivel. Diz-se que colocou muito dinheiro no
Banco d'Inglaterra, (11 de Junho) diz-se que deu um colar de brilhantes
á bailarina Imperio, que ahi está na zarzuella... As questões
prendem-se, e agora com o contracto dos tabacos só se fala em
escandalos. Tudo come! tudo come! Come o Navarro, come o Mariano, e um
amigo meu, literato e jornalista, afirma-me:--Se a Companhia dos
Phosphoros tem feito o contracto, eu estava rico.--Corre que os
republicanos se organisam e o Bernardino Machado publicou manifesto,
aproveitando um jornal e um jornalista hespanhol:


     ...«Ha uma lei que domina todas as outras na historia da
     humanidade: nenhuma instituição vive, se sustenta e se radica senão
     pelo amor á liberdade. A lei, em virtude da qual existem
     instituições liberaes, cumpriu-se nos nossos annais contemporaneos.
     De 1851 a 1885 tivemos um periodo de liberdade e de paz. Foi um
     periodo de ascensão liberal.

     «Aboliu-se a pena de morte, e só por esse feito se proclamou pela
     lei o direito á Vida. Proclamou-se esse direito com toda a sua
     elevação, dando a todos, inclusivamente aos indigenas das nossas
     colonias, onde se acabou com a escravatura, a faculdade de existir
     espiritualmente, como uma personalidade moral. Alargou-se a
     liberdade religiosa, tornando-a efectiva com o registo civil.
     Alargou-se a liberdade economica pela extinção dos bens de mão
     morta, pela abolição dos monopolios e pela criação legal das
     associações de socorro mutuo e das cooperativas. Dilataram-se as
     liberdades politicas com a extensão do sufragio e representação das
     minorias. Descentralizaram-se os municipios, deram-se as maximas
     franquias aos distritos e até se exarou na Constituição o principio
     liberal da eleição parcial da Camara dos Pares. Nesse periodo, que
     começou ouvindo-se a voz do grande tribuno José Estevão, parece que
     resoaram até ao final os acentos do seu verbo eloquentissimo.

     «Essa epoca venturosa termina com a morte de Sampaio, Braamcamp e
     Fontes. E a prova de que todos os partidos colaboravam nessa grande
     obra de pacificação e de liberdade, está em que foi o conservador
     Fontes quem mais contribuiu para ella.

     «Os partidos de governo definem-se pela sua concepção da
     constituição nacional: Constituição liberal, partido liberal;
     Constituição arbitral, partido reaccionario. Porque o arbitrio póde
     ser, num dado momento, a liberdade; mas sempre se converte por fim
     em absolutismo.

     «No periodo de iniciação liberal fez-se a Constituição quasi
     republicana de 1822, e, em troca, os constitucionais da campanha da
     Terceira, do Cerco do Porto, de Almoster e da Asseiceira, tiveram a
     carta outorgada de 1826, que foi, consoante o livre alvedrio do
     imperante, a liberdade com D. Pedro IV, e a opressão com D. Maria
     II. Em oposição á carta outorgada, Passos Manuel e os setembristas
     fizeram a democratica constituição de 1838, decretada pela vontade
     da nação.

     «No segundo periodo da nossa vida constitucional, que abre com José
     Estevão e se encerra pouco depois da morte de Sampaio, periodo que
     inaugura entre nós o parlamentarismo, os regeneradores fizeram os
     actos adicionaes de 1852 e de 1885, que são verdadeiros pactos
     constitucionaes, e não intervalos historicos, mas reformistas,
     constituintes, republicanos, que apresentavam os seus projectos,
     qual delles mais avançado, da reforma constitucional.

     «De 1886 até hoje sopra um vento imperialista. A inspiração, em vez
     de vir da Inglaterra liberal, vem da Alemanha cesarista. O partido
     progressista faz a centralisação dos serviços materiaes.
     Segue-se-lhe, no Poder, o partido regenerador, e faz a
     centralisação dos serviços espirituaes na instrucção, e depois
     dissolve as associações, rasga as liberdades municipaes, acaba com
     as representações das minorias, legisla dictatorialmente... E, por
     fim, para que toda esta centralisação não suscite uma revolução
     violenta, promulga a lei sobre o anarquismo, que é uma ameaça
     sempre suspensa sobre todos os liberaes.

     «Antes de 86, o partido republicano, como partido de tal natureza,
     não era um perigo. Caminhava-se lentamente, pacificamente, para a
     Republica, e não haveria ninguem tão insensato que sonhasse fazer
     uma revolução para conseguir pela força o que se conseguiria, num
     prazo fatal, pela lei e pela liberdade. Além disso, ninguem faz
     revoluções por meras fórmas. Nós, os verdadeiros liberaes,
     duvidamos se não é preferivel uma monarchia, com todas as
     liberdades efectivas, com todas as descentralisações vivas, ou uma
     Republica como a francesa, em que o Poder central é omnimodo, e o
     regimen autonomo local nulo.

     «Depois de 86, fracassadas todas as tentativas para regressar ao
     antigo caminho constitucional; fracassada a grande, generosa e
     derradeira tentativa de 93 a 94; com a fazenda publica em
     bancarrota; com todas as liberdades suprimidas; com a pena de morte
     restabelecida para os delictos militares e até para certos delictos
     civis; com a politica do engrandecimento do Poder Real no seu
     auge,--toda a gente pensa na Republica, porque ella não é já uma
     questão de mera fórma mas sim um problema organico de vida ou de
     morte para Portugal...

       *       *       *       *       *

     «A anarchia da nação demonstra-se: no interior pelo desencadeamento
     das forças dissolventes do caciquismo, da plutocracia e a agitação
     do clericalismo e fóra, pelas mesmas consequencias dolorosas que se
     seguem a qualquer dictadura progressista ou regeneradora. Depois da
     dictadura progressista, o ultimatum, a bancarrota, a invasão
     congreganista, sobresaltando os animos, como no caso da irmã
     Collecta. Depois da dictadura regeneradora, Kionga, o convenio
     definitivo da divida, e o fanatismo clerical, irrompendo no caso
     Calmon.

     «Os partidos estão em dissolução. O regenerador, com dois chefes; o
     progressista, com a perspectiva tremenda de uma herança
     tempestuosa. Mas poder-se-hão reconstituir dentro da monarchia?
     Andam varios nomes de boca em boca: os dos srs. Dias Ferreira,
     visconde de Chancelleiros, Costa Lobo, Augusto Fuschini, Anselmo
     d'Andrade e Augusto de Castilho. Viu-se, porém, o caso da monarchia
     rodear-se d'esses homens de positivo merito? São convidados sequer
     para as suas festas, que são oficiaes e não particulares?

     «Entenderá e quererá a monarchia apoiar-se nas classes
     trabalhadoras, visto a burguezia estar contaminada? Foi esse o
     sonho do socialismo do Estado de Oliveira Martins e talvez o do
     militarismo democratico de Mousinho de Albuquerque. Mas a monarchia
     não soube aproveitar-se nem de um nem doutro. Oliveira Martins
     morria politicamente poucos mezes depois de ser chamado ao governo.
     Mousinho de Albuquerque não chegou sequer aos conselhos da Corôa, e
     suicidou-se. A monarchia tinha para a realização desse programma,
     alem d'esses homens, a voz mais eloquente dos nossos dias, a de
     Antonio Candido, successor de José Estevão, que teria sabido
     conquistar as massas populares, e para captar as simpathias
     internacionaes um diplomata, o marquez de Soveral, que pelas suas
     maneiras e espirito, é da raça dos Palmellas. Aproveitou-os,
     porventura? Antonio Candido, desiludido, emudeceu. O marquez de
     Soveral nada mais pode fazer do que abrandar o protectorado inglez.

     «Hoje as massas afastam-se cada vez mais da monarchia, porque, como
     tudo se concentrou no Poder Real, todas as responsabilidades se lhe
     atribuem; o protectorado inglez serve para salvaguarda da
     monarchia; a ruina financeira do paiz vem da confusão dos dois
     erarios, e até o jesuitismo, se bem que não se imputa ao rei, é
     comtudo imputado aos que o rodeiam.

     «Não é licito pois esperar a salvação dentro da monarchia. Por
     grande que seja a cultura do chefe do Estado, por muito que seja o
     seu valor, a empreza da nossa regeneração não é para um individuo
     só. Só a nação é que pode erguer sobre os seus hombros tão imenso
     peso.

     «E não se diga que a monarchia está identificada com a
     independencia da patria. A nação foi, com efeito, sempre
     monarchica; mas desgraçadamente a monarchia tem-se encarnado na
     monarchia usurpadora dos Filippes, no governo napoleonico de Junot,
     no governo de Beresford, sob Jorge IV. A monarchia teve um papel
     soberano no começo da nossa Historia, mas foi-se gradualmente
     divorciando do povo.

     «E as nossas alianças? Essas não são dos reis, mas dos povos. A
     aliança da Inglaterra é com Portugal, e não com as suas fórmas de
     governo.

       *       *       *       *       *

     «É indispensavel organisar as forças vivas da nação portugueza.
     _Organisando-se o partido republicano salvar-se-ha a nação_. É
     preciso que o partido republicano se transforme em partido do
     governo, e que cesse com a sua obra de demolição, já feita. Se não
     pode alcançar logares no parlamento, conquiste-os nos municipios;
     se não pode intervir no municipio, intervenha na parochia. Não
     deixe ao abandono nenhum logar, por minimo que seja. E faça
     sobretudo por apoiar todas as justas reivindicações dos pobres e
     dos humildes.

     «Deve ser um partido republicano profundamente socialista. Quando
     os republicanos, por meio de toda a sua campanha, se mostrarem
     homens de governo, podem estar certos de que a Republica se fará em
     Portugal como se fez no Brasil, e á maneira do que succedeu em
     1871, em França, onde a Assembleia Legislativa, com uma maioria de
     monarchicos, elegeu para seu chefe o republicano Grévy e para chefe
     do Estado Thiers, que era um monarchico convertido á Republica.

     «A Republica em Portugal é necessaria para elevar a sua cultura,
     para acabar com o numero incrivel de analfabetos, para se consagrar
     á educação do povo. O estado actual o demonstra: _tanto é certo que
     quando sofre a liberdade sofre tambem com ella a instrucção_.

     «A Republica em Portugal é necessaria para que a religião seja a
     união das almas pelo amor, como na economia social o é pelo
     trabalho. As ordens religiosas atacam não só o Estado como a
     verdadeira religião, cujos primeiros vinculos devem ser o amor da
     familia, a cooperação economica e o progresso politico da
     sociedade. O primeiro é combatido e negado pelo voto de celibato; o
     segundo pelo voto de pobreza, e o terceiro pelo voto de obediencia
     servil.

     «Torna-se necessario defender a religião como um principio
     immanente de justiça e de bem, e não como uma superstição e um
     instrumento politico. O partido republicano não pretende destruir a
     religião; o que nós pretendemos é tornal-a sincera e pura,
     tornando-a voluntaria e livre.

     «A aspiração do partido republicano encerra-se nestes tres
     principios: _liberdade politica, liberdade economica e liberdade
     religiosa_. Em nome de todos que querem saber, e não podem,
     oprimidos pela reacção politica, essa infinidade de creaturas
     analfabetas; em nome de todos os que querem trabalhar e não podem,
     oprimidos pela reacção economica, essa infinidade de proletarios;
     em nome de todos os que querem amar e ser bons e em cujo seio a
     reacção religiosa lança a semente de odio; em nome dessa infinidade
     de santas e piedosas mulheres que o clericalismo tenta desvairar e
     arrastar para fóra dos seus deveres; pelos pobres, pelos humildes,
     pelos fracos, saudemos a Liberdade e com ella o unico partido que
     hoje a sustenta e defende em Portugal: _o partido republicano_.

     «Se a Republica que não pede senão o restabelecimento e o respeito
     á lei, não vier bem depressa, corromper-se-ha e perder-se-ha o
     santo fundo deste povo exemplar, um dos modelos de virtude, de
     paciencia e de resignação que existem sobre a face da terra».


D'outubro para novembro cae o governo, abalado pela questão dos tabacos:
os homens estão cada vez mais divididos por ambições e interesses. D'um
lado os Phosphoros, do outro os Tabacos; dum lado o _Seculo_ e o
Navarro, que ainda ha tres dias (Novembro) teve uma conferencia com o
José Luciano, dizendo depois á familia:--O José Luciano está cada vez
mais velhaco!--De outro o Burnay e o seu grupo... Os homens vão dia a
dia diminuindo de estatura moral! Ainda hontem alguem me contou esta
anecdota que define uma figura:--O Rebello da Silva era muito amigo do
Latino--mas muito mais amigo ainda da sua ambição: queria ser ministro
depressa. Um dia, de repente, cessou com as visitas que fazia ao grande
escriptor. Tinha descoberto um prefacio antigo, em que o Latino advogava
a união iberica, e foi para as camaras atacal-o. A questão durou tres
dias, o governo cahiu, e o Rebello da Silva substituiu o Latino na pasta
da marinha. Nessa mesma noite procurou-o de novo, e foi encontral-o a
lêr serenamente uma grammatica russa, cujo estudo interrompera durante o
tempo do governo.

--Tu já sabes, se queres alguma coisa é como se fosses ministro.

--Eu?!...--e sorriu-se, encolhendo os hombros. Mas tão triste, tão
sereno, que o outro ficou gelado...


                                                       Dezembro--1907.


O velho major Fumega, em conversa com outro militar reformado:

--Em 66 o Saldanha d'acordo com o Prim, tinham resolvido proclamar o D.
Luiz imperador da Iberia. Chegaram a distribuir dinheiro aos sargentos.
A mim, que era então sargento, deram-me seis contos, para distribuir
dezoito tostões por soldado. Tornei a entregal-os intactos. Se fosse
hoje gastava-os no brodio.

--Eu apanhei trezentos mil reis e dei cabo d'eles.

--O movimento abortou, porque foi denunciado pelo Graça, mais tarde
celebre como major Graça, no 31 de Janeiro, que, depois de assignar as
actas, como quartel-mestre, descobriu tudo. Era um denunciante, foi-o
sempre--conclue o Fumega, fumando placidamente o seu cigarro.


                                                       Dezembro--1907.


O D. Carlos a um oficial do exercito, depois da lucta com o João Franco,
das descomposturas ao rei, etc.,--e referindo-se aos politicos:

--Tu ouvel-os falar, não é verdade? Pois se lesses as cartas que todos
os dias me escrevem, e que estão alli n'aquella gaveta, enchias-te de
nojo!


                                                       Dezembro--1907.


Conta-me o D. João da Camara:

--A rainha era amicissima do meu irmão, o conde da Ribeira Grande.
Visitou-o seis vezes durante a sua doença. N'uma das ultimas noites elle
puxou-a a si, beijou-a, e explicou:

--É como se fosse minha filha.

Já na agonia, ella entrou-lhe no quarto e elle pode ainda dizer-lhe,
n'um ultimo arranco, estas palavras proheticas:

--Os politicos! Cautela com os politicos!

E ella respondeu-lhe:

--Descanse, não ha-de ter duvida, se Deus quizer.

       *       *       *       *       *

Era um pouco apagado, mas bondosissimo. D'uma vez uma senhora foi
dar-lhe os pezames pela morte do filho. Tinha-lhe tambem morrido um
filho fazia um mez e desatou a chorar, a falar n'elle, cheia de saudade
e de lagrimas. E o conde da Ribeira, esquecendo a propria dôr, passou a
consolal-a...


                                                        Janeiro--1908.


O Fialho conta, indignado, que a viuva do Eça de Queiroz, a quem o
Estado dá uma pensão, vae vender uma propriedade no Alemtejo, por cento
e tantos contos.

--Veja você que pouca vergonha! São uns poucos de kilometros de terra de
semeadura e montado de azinho e bolota, que sustenta um cento de
cevados! Bem sei que metade da propriedade é da irmã, da mulher do Luiz
Osorio... Ainda assim são cincoenta contos. Mas n'este paiz faz-se tudo
o que o senhor Arnoso quer!...


                                                        Janeiro--1908.


Um oficial d'armada, ao José de Figueiredo:

--Todos os oficiaes d'armada, á excepção de meia duzia, não podem vêr o
rei, a quem chamam _o pulha_. Se houvesse em terra um movimento
republicano, secundavam-no logo.

       *       *       *       *       *

Diz-se por ahi:

--Venha tudo, venha o peor, venha o diabo do inferno, que nos livre
d'isto!


                                                        Janeiro--1908.


No _Turf_ e no _Club Tauromachico_ joga-se sempre escandalosamente. O
conde de... lá vae outra vez para a Africa, arruinado pelo jogo no _Club
Tauromachico_, o visconde de... tambem lá perdeu uma fortuna.


                                                        Janeiro--1908.


Grosso escandalo com o livro do Albuquerque, _O Marquez da Bacalhôa_.
Este Albuquerque, conhecido pelo _Lendea_, é o ultimo descendente, pelo
pae, do grande Afonso d'Albuquerque, e, pela mãe, do grave, do douto
João de Barros. Ainda aqui ha annos, quando o rei visitou uma terra de
provincia e se hospedou na casa delle, sahiram das lojas caixotes de
louça da India, que nunca tinham sido abertos. Elle tem tido uma vida de
aventuras: bateu-se em duello em Madrid, caçou no Cabo com lords, tocou
guitarra em Ourville e teve uma loja d'instalações electricas na Italia.
Agora é jornalista, escriptor, poeta e publica este livro d'escandalo,
em que a rainha, Senhora na mais alta acepção da palavra, é posta de
rasto... Mas faça-se-lhe justiça: tudo aquillo--e peor--anda por ahi de
bocca em bocca ha muito tempo. E não vem de baixo--vem de cima...

       *       *       *       *       *

Do Paço mandaram buscar um exemplar á livraria Ferreira.


                                                        Janeiro--1908.


O rei em Villa Viçosa caça; o João Franco em Carnide dorme com a casa
cercada de policia. Fala-se em conspirações, na tropa, em transferencias
d'oficiaes e sargentos. O Maximiliano d'Azevedo disse hoje na livraria
ao Bernardino Machado:

--Isto cheira a cadaver...

--Cheira a polvora, é que é--respondeu lhe elle.

Espera-se tudo: a falencia, tiros, a revolta. Ha prisões--fala-se em
mais prisões ainda e os jornaes estão garrotados.

       *       *       *       *       *

O Maximiliano d'Azevedo:

--É falso que fosse o Correia de Barros quem matou a Manuela Rey.
Disse-me muitas vezes a Emilia Adelaide como o caso se passou: Um irmão
do Tanas (Pereira das Neves) fez a corte á Manuela. Ella aceitou-lha, e
uma noite o Correia de Barros surprehendeu-os. O Tanas, ao vel-o
brandindo a bengala, saltou por uma janella. A Manuela fugiu e foi para
a rua das Galinheiras, para uma casa onde morava a cabeleireira do
theatro, e deitou-se vestida sobre a cama, a chorar.

Debalde o Correia de Barros lhe perdoou:

--Não! Não!

Chorou--e morreu. Já estava tisica ha muito tempo.

       *       *       *       *       *

E conta-me tambem:

--A Emilia das Neves estava n'uma casa de mulheres. Deram com ella por
acaso. Quem primeiro a ensaiou foi o Garrett. Tinha genio: mal sabia lêr
e toda a vida deu sylabadas.


                                                        Janeiro--1908.


O governo retira as munições a alguns regimentos e á marinha: só tem
confiança na guarda. Diz-me o Schwalbach:--«Ouvi-o da bocca do oficial
encarregado d'esse serviço. A noite passada retiraram as munições a um
regimento da capital». Corre com insistencia que o coronel Albano da
Fonseca morreu envenenado... Os navios de guerra foram desarmados, sob
pretexto de estudo de renovação e adaptação das munições, que se
removeram para o serviço de torpedos. O Maximiliano diz-me tambem que
varias peças do campo entrincheirado ficaram assestadas sobre os navios
de guerra.

[Figura: _Gomes Leal._--Desenho de Antonio Carneiro.]

       *       *       *       *       *

O Fialho está um franquista ferrenho:

--O João Franco já me mandou chamar tres vezes.

E, como eu me espante de o vêr conservador, elle diz:

--Fui-o sempre. Já esse maroto do Arnaldo Fonseca dizia a meu
respeito:--É um bohemio que trata a roupa com nephetalina!

       *       *       *       *       *

A Angela Pinto está com um preto que lhe poz automovel.

--Ó Angela, então tu agora?!

--Vocês que querem? Não andam todos os dias ahi a prégar que o futuro de
Portugal está nas nossas colonias?


                                                        Janeiro--1908.


Prenderam hontem o Antonio José de Almeida. O João Barreira conta-me que
a policia apanhou sessenta rewolveres aos republicanos, mas não
descobriu os depositos d'armamento. O João Pinto dos Santos diz:

--A prisão de Antonio José d'Almeida é um ensaio. Se virem que as massas
populares não protestam, desatam a prender a torto e a direito. Eu estou
aqui estou preso: o João Franco odeia-me.

       *       *       *       *       *

Um livreiro:

Fizeram mal em prohibir _O Marquez da Bacalhôa_. Já ha quem tenha dado
por um exemplar tres mil reis, e o preço corrente é agora de dez a
quinze tostões... Se o queriam inutilizar aprehendessem-no, tanto mais
que toda a gente sabia onde era impresso.


                                                  28 de Janeiro--1908.


A atmosphera é electrica.--Isto não pode ser! isto não pode
ser!--ouve-se a cada passo. Toda a gente espera acontecimentos. O boato
corre de ouvido para ouvido: o comandante da municipal afirmou ao rei
que não podia contar com a guarda para combater a tropa; ha tumultos no
Porto e Villa Real; está assignado um decreto expulsando do paiz
republicanos e dissidentes; e--sabem? sabem?--o movimento é preparado
pelo João Franco para tomar medidas d'excepção... O Coelho de Carvalho,
de grandes barbas brancas, sempre ironico, pontifica na livraria
Ferreira:--Tudo isto obedece a um plano para estabelecer o protectorado
inglez, com o rei gordo e replecto, e a dotação augmentada em cento e
sessenta contos, pagos em oiro.

Ás sete da noite encontro o Alpoim que me pergunta ancioso:--Que ha? que
ha?...--Eu sei... diz-se por ahi que varios oficiaes se reunem no Arco
da Bandeira....--Só?--E arranca-me das mãos o _Correio da Noite_:--Vem
feroz! vem optimo!...--No comercio não se desconta uma letra. A rua do
Oiro não tem metade do movimento habitual. Consta que o João Franco
disse hontem:--Dá-se-lhes uma sangria...--O que eu lhe posso garantir, e
sei-o por uma senhora de relações intimas do João Franco--diz o
Fialho,--é que elle passa as noites sem dormir.--Medo--ou revolução? As
mulheres vão buscar os maridos ás repartições e aos bancos, outras, na
previsão de acontecimentos, fornecem-se á pressa nas lojas. Ha nervos na
atmosphera. A questão dos adeantamentos levantou todo o paiz contra o
rei. Ha muito que o D. Carlos é visado, discutido e injuriado.
Atribuem-se-lhe todos os males. O Hintze morreu: foi elle quem matou o
Hintze com desgostos. Os Braganças são todos ingratos. Que quer o rei? O
rei só quer dinheiro, o rei chama ao paiz, que despreza, a _piolheira_,
o rei é um ladrão. Dizem-no até os cavadores d'enxada da provincia:--O
rei é um ladrão! o rei é um ladrão!--Gera-se não sei que excitação que
se apega e propaga. Todos estamos debaixo da mesma pressão a que não ha
fugir. Nas esquinas ainda se vêem farrapos de cartazes, anunciando o
folhetim _Soror Amelia_, com o retrato da rainha vestida de freira...

O que os jornaes de grande circulação não se atrevem a dizer, o
_Seculo_, o _Mundo_, o _Noticias_, propala-se de ouvido para ouvido, ou
publica-o o _Correio da Noite_, do velho José Luciano, que ataca com
violencia o rei e o governo.--Que há? Que há?--Um policia aliciado pelo
João Chagas denunciou a revolução; o juiz ao lêr o depoimento do Antonio
José d'Almeida, exclamou:--Ora até que emfim encontro um homem!--O Cunha
e Costa pequenino, d'oculos e olho esperto atravez dos vidros:--Vocês
que querem? Está tudo minado. Hoje, ao entrar na Boa Hora, deparei com
este quadro: d'um lado da porta um municipal lia _O Mundo_, do outro,
outro municipal lia _A Lucta_.

E no entanto a vida segue o seu curso habitual: todas as noites
enchentes nas revistas, _Ou vae... ou racha, Pr'a frente!_ Todas as
noites o mesmo falatorio no Rocio, o mesmo formigueiro humano seguindo
as suas manias, as suas ambições, os seus interesses...

       *       *       *       *       *

Os populares atacaram as esquadras. No largo do Rato um bando, que
queria matar o João Franco, entrou n'um café. A policia tentou
apalpal-os--defenderam-se a tiro. Um cahiu varado: e retiraram em ordem,
fazendo fogo. Na esquadra dos Terramotos trocaram ainda balas com os
guardas. Havia um plano de revolução? É fóra de duvida. Lançaram-se
bombas que não explodiram a varias esquadras--á do Campo de Sant'Anna,
por exemplo. A policia estava, prevenida, e prendeu-os, quando um grupo
de dissidentes, Alpoim, João Pinto, Ameal, etc., se dirigia para o
elevador da Bibliotheca, no intuito de lançar um foguetão, que desse o
signal á esquadra e a varios grupos que, ao mesmo tempo e em diferentes
pontos, deviam assaltar os quarteis. Só o Alpoim e o Ameal conseguiram
fugir. No elevador havia armas, destinadas ao ataque dos correios e
telegraphos. No forte de Caxias estão presas 93 pessoas, e presos estão
tambem o Afonso Costa, o João Pinto dos Santos, o Ribeira Brava, etc. A
policia desandou então a prender a tôrto e a direito. O José de
Figueiredo que mora no Campo de Sant'Anna, por cima da esquadra, ouviu
isto: Ao telefone, o chefe da esquadra para o governo civil:--Já
prendemos quatro.--Prendam mais.--Era preso quem passava na rua.

Á revolução adheriam varios oficiaes e toda a armada. Havia fanaticos
decididos a correr a municipal á bomba, e todo o trabalho do directorio
parece que foi sustel-os á ultima hora. Varios bandos foram prevenidos
logo que o signal falhou. Os que esperavam no café do Rato, a hora do
assalto á casa do João Franco, foram presos. Um creado do Moura Cabral,
que m'o contou, foi aliciado para atacar a esquadra da Graça--e
deram-lhe um rewolver e bebidas. Em diversas partes tem sido encontradas
bombas, e diz-se que quem denunciou um deposito d'armas, escondido em
casa d'um negociante, foi uma irmã dum actor de D. Maria.

       *       *       *       *       *

--Isto--toda a gente o afirma--acaba logicamente no atentado pessoal.


                                                  30 de Janeiro--1908.


Corre com insistencia que o João Chagas morreu d'uma pleurizia no
hospital.

       *       *       *       *       *

Os _bufos_ são aos centos. Pára-se a conversar--tem-se logo um _bufo_ á
perna. O Baracho procurou hoje o ministro da guerra e declarou-lhe:

--Eu não conspiro; portanto não me mandem espionar, senão corro os
_bufos_ a tiro. Se desconfiam de mim, julguem-me, que eu me defenderei.
E deixe-me tambem dizer-lhe uma coisa: Os senhores não hão-de ser sempre
ministros. Se me incomodam ou me infamam, quando deixarem de o ser, eu
lhes tomarei as responsabilidades.--Ao que o ministro respondeu:--Se
soubesse, general, as saudades que eu tenho do meu caminho de ferro!...

       *       *       *       *       *

Tem sido tambem presos alguns oficiaes do exercito. E o Fialho faz
_blague_:

--Desde que a policia entrou no caminho das descobertas, foi dar com a
escripturação completa da revolta. Tudo por ordem e por partidas
dobradas. Uma revolução burocrata!


                                                  31 de Janeiro--1908.


Sabem qual é a impressão geral? Pena de que o movimento gorasse.

       *       *       *       *       *

Até as mulheres estão furiosas com o Franco. Ha-as que dizem:--Eu vou
matal-o!--Mas ha tambem quem o defenda e aplauda como nenhum ministro
foi defendido e aplaudido. Um padre franquista barafusta em plena rua do
Ouro:

--Eu até agora dizia que o João Franco tinha uns c... que não cabiam em
Lisboa. Agora não, agora digo bem alto: o João Franco tem uns c... que
não cabem em Portugal!

       *       *       *       *       *

O Bernardino Machado:

--Sabe o que isto parece? Parece que o rei disse ao João Franco,
entregando-lhe uma carabina:--«João arranja-me dinheiro».--O João Franco
executa.--«João torna a levar a carabina e traz mais dinheiro».--E a
atitude vergonhosa das nações estrangeiras que assistem com aplauso a
este espectaculo! Porquê? Pelo que eu disse um dia d'estes a um
negociante francez:--Ha um dictado em Portugal que explica
tudo:--Ladrões não se encobrem de graça!


                                                 1 de Fevereiro--1908.


O João Franco responde aos clamores e á revolta com o decreto d'hoje:


     Senhor--São bem conhecidas de Vossa Magestade as occorrencias dos
     ultimos mezes, em que uma pequena minoria d'elementos
     revolucionarios criminosos tem ultimamente procurado impedir a vida
     politica e representativa do Paiz, alterar a ordem publica e pôr em
     perigo a segurança das pessoas e das propriedades.

     Imperturbavelmente tem o governo obedecido ao proposito de limitar
     a acção das medidas de circumstancia á esphera restricta de
     legitima defeza social, reduzindo-as ao que de momento se tem
     afigurado absolutamente indispensavel, sempre na esperança de que
     essa publicação fosse um meio preventivo sufficiente e constituisse
     aviso efficaz aos agitadores.

     D'essa ordem d'ideias derivaram o decreto de 21 de Junho sobre
     publicações attentatorias da ordem publica e o de 21 de Novembro
     sobre crimes contra a segurança do Estado, das pessoas e das
     propriedades.

     Factos dos ultimos dias vieram, porém, demonstrar que as tentativas
     e propositos criminosos, longe de afrouxarem, se teem mantido
     obstinadamente e aggravado a ponto de ser urgente e indispensavel o
     rapido afastamento do nosso meio social dos principaes dirigentes e
     instigadores d'esta pertinaz conspiração contra a paz publica e
     segurança do Estado antes que perdas lamentaveis de vidas venham
     accrescentar se ás desgraças já occasionadas e, porventura,
     originar prejuizos irremediaveis ao credito publico e á fortuna
     nacional.

     Ha poucos dias ainda, o governo da Nação vizinha apresentou ás
     côrtes um projecto de lei que auctoriza a fazer sair do reino por
     deliberação do conselho de ministros, sob prévia informação das
     auctoridades locaes, as pessoas que pertençam a associações hostis
     á ordem social e que de semelhantes principios façam propaganda, e
     como sejam estes factos muito graves e perigosos, seguramente não o
     são mais nem podem ter mais larga, mais profunda repercussão em
     toda a vida nacional que os tramas e attentados para mudar violenta
     e criminosamente a forma de governo de Estado.

     N'essa ordem d'ideias, procuramos com o presente diploma, habilitar
     tambem o governo com a faculdade d'expulsar do Reino ou fazer
     transportar para uma provincia ultramarina aquelles que, uma vez
     reconhecidos culpados pela auctoridade judicial competente, importe
     á segurança do Estado e tranquillidade publica e interesses geraes
     da Nação afastar, sem mais delongas, do meio em que se mostrarem e
     tornarem perigosa e contumazmente incompativeis.

     Não podem, por egual, gosar immunidades parlamentares aquelles que
     contra a segurança do proprio Estado se manifestam ou que como
     inimigos da sociedade se apresentam.

     Taes são, Senhor, as principaes disposições do diploma que tenho a
     honra de submeter á apreciação de Vossa Magestade.

     Paço, em 31 de Janeiro de 1908. _João Ferreira Franco Pinto
     Castello Branco_--_Antonio José Teixeira d'Abreu_--_Fernando
     Augusto Miranda Martins de Carvalho_--_Antonio Carlos Coelho
     Vasconcellos Porto_--_Ayres d'Ornellas de Vasconcellos_--_Luciano
     Afonso da Silva Monteiro_--_José Molheira Reymão_.


       *       *       *       *       *

O Alpoim fugiu para a Hespanha.

       *       *       *       *       *

O Cunha e Costa:

--Ha mais de duzentas pessoas apostadas em matar o João Franco. Isto
acaba por um atentado pessoal.


                                                 1 de Fevereiro--1908.


Está uma tarde linda, azul, morna, diaphana. Converso na livraria
Ferreira com o Fialho, quando entra esbaforido e palido, o pintor Arthur
de Mello, que conheço do Porto, e diz n'um espanto, ainda
transtornado:--Acabam de matar agora o rei!--O quê?!--Eu vi, ouvi os
tiros, deitei a fugir...

Fecham-se á pressa os taipaes das lojas. Uma mulher do povo
exclama:--Mataram agora o rei. Vi os que o mataram. Eram tres. Dois lá
estam estendidos. Passou um agora por mim, a rasto, com a cabeça
despedaçada!...--Ha palmas para o lado da praça da Figueira. Anoitece.
Um esquadrão desemboca da rua da Mouraria... Mais tarde no comboio, um
empregado do Jorge O'Neill confirma:--Vi do escriptorio um policia
correr atraz d'um dos assassinos. A certa altura cahiu-lhe o chapeu: era
calvo. O policia varou-o com um tiro.

E pela narração do Mello, do Armando Navarro e d'outros, que assistiram,
reconstituo assim a tragedia:

O comboio descarrilara. Seguia atrazado. Durante o trajecto o rei não
fumou nem jogou, como costumava. Vinha aprehensivo e a autopsia
demonstrou mais tarde que não tinha comido n'esse dia.

O Malaquias de Lemos contou que na vespera, em Villa Viçosa, o rei
jogara com o principe. Era ao entardecer. Na chaminé um grande brazeiro.
Trouxeram-lhe uma carta. Para a lêr melhor, levantou-se, chegando-se á
janella. Duas vezes a percorreu com a vista, e depois rasgou-a em
bocadinhos que atirou ao lume. Petrificou-se um momento envolto na
sombra...--El-Rei não joga?--perguntou o principe.--Jogo,
jogo...--Sentou-se, jogou, mas tão preocupado que quasi não jantou
n'esse dia nem almoçou no seguinte.

Nem uma nuvem. «Tarde sem par»--escreveu Ramalho.--Linda tarde para uma
bomba--exclama uma menina da alta, na ponte da estação. Havia, é
natural, um certo receio, e a duqueza de Palmella, ao ouvido de João
Franco:--Não haverá perigo?--V. Ex.^a vae ver que ovação!--Tinha-lha
preparada para a recita da noite, em S. Carlos. O rei e a rainha
detiveram-se uns minutos, com o João Franco e o Vasconcellos Porto, que
queria mandar vir um esquadrão de cavalaria para acompanhar o rei. D.
Carlos opoz-se. O carro descoberto partiu a chouto, com toda a familia
real junta. Ao pé da estatua um grupo... Dissiminados pela Arcada alguns
policias, e, sentado n'um banco da praça um homem de varino, que veio,
sem precipitação, colocar-se á porta do ministerio do reino[6].

Os empregados da fazenda tinham-no notado. Seria um bufo? Os bufos eram
tantos, que se não conheciam uns aos outros.--«Eu assisti--diz o
Navarro.--Fui para lá uma hora antes fumar o meu charuto. Tres descargas
cerradas partiram da Arcada do ministerio da fazenda. Ficou tudo
desorientado. Os policias deitaram a fugir»... Um negociante da rua de
S. Julião teve de os sacudir da escada. «Eu estava a quatro
passos--confirma o pintor Mello. Um homem subiu ás trazeiras do carro,
olhou o rei cara a cara e deu-lhe um tiro de rewolver. Vi um fumosinho
branco sahir-lhe do pescoço. O rei voltou-se, e, cem annos que eu viva,
nunca mais me esquece a expressão de espanto d'aquella mascara. Disse
uma palavra que não percebi bem»...--«Ao primeiro tiro--continua o
Navarro--a cabeça do rei descahiu para a frente, ao segundo tombou para
o lado». O Buiça, que tirára a carabina debaixo do gabão, apontava e
descarregava. O principe real ergueu-se--cahiu varado. A rainha, louca
de dôr, sacudia o Alfredo Costa com um ramo de flores.--Então não
acodem?! Não ha quem me acuda?!--Ninguem. Um cartuxo falhara ao Buiça:
sacou-o, e ia apontar outra vez, quando o Francisco Figueira o estendeu
á cutilada. Ouvi que, logo aos primeiros tiros, alguem procurara
intervir--mas uma roda de gente desconhecida protegeu-o. Succederam-se
então os tiros sem interrupção. Muita gente falou em descargas... A
policia disparava os rewolveres a torto e a direito. O Correia de
Oliveira esteve para ser morto:--Vinha de chapeu alto e foi o que me
valeu!... Um policia avançou direito a mim com o rewolver apontado,
exclamando como um doido:--Matei agora um! matei agora um!

       *       *       *       *       *

Correu hoje que o João Franco se suicidára e que o tinham acabado a tiro
quando sahia do Paço.

       *       *       *       *       *

O infante D. Afonso seguia desvairado atraz do carro, com o rewolver em
punho, dizendo:

--O mano nunca quiz ouvir os conselhos da mãe!

Depois, no Arsenal, para onde foram conduzidos o rei e principe, teve
este movimento colerico: bater no João Franco.

       *       *       *       *       *

Acusam á boca cheia o João Franco--que não tomou precauções para o
rei--de se meter por um corredor quando foi ao Arsenal, e de, mais
tarde, endireitar por uma cavalariça, para se enfiar na carruagem. De
alguns ministros diz-se que, aos primeiros tiros, se esconderam no sotão
dos ministerios entre a papelada e as cadeiras sem fundo.

       *       *       *       *       *

A rainha no Arsenal disse ao João Franco:

--Veja a sua obra...

       *       *       *       *       *

O rei chegou ao Arsenal já sem vida; ao principe custou-lhe muito a
morrer. Foram ungidos depois de mortos. O padre não teve escrupulos,
porque os medicos garantiram-lhe que a vida podia prolongar-se por meios
artificiaes.

       *       *       *       *       *

Do Arsenal seguiu a marcha tragica para as Necessidades; n'um carro a
rainha e o D. Manuel, n'outro carro o cadaver do rei, que a custo
conseguiram meter lá dentro, e que o oficial de serviço amparava, e, no
ultimo, o duque de Bragança. Que se iria seguir? A revolução? Um
negrume, o terror do inesperado, afasta do Paço todos os que lá deviam
estar áquella hora. Vem a noite... Se seis tambores fossem rufar para
deante do Paço a monarchia acabava hoje mesmo. Espera-se tudo, espera-se
o peor. E cada um trata de não se comprometer, ou de se comprometer o
menos possivel...

       *       *       *       *       *

Phrase cruel d'um popular:

--Foi caçado como elle caçava os javardos--e em tempo defezo.

       *       *       *       *       *

No dia dois, depois da morte do rei, foram assaltados alguns quarteis,
evidentemente chamando as tropas á revolução. Em artilharia os soldados
sahiram das casernas e fizeram fogo: os oficiaes não os puderam conter.
Em Campo d'Ourique houve tiroteio. No alto da Avenida ficaram estendidas
vinte e tantas pessoas.

       *       *       *       *       *

A caminho do Paço, depois do atentado, o pequeno dizia:

--Vamo-nos embora! vamo-nos embora!...

E a rainha:

--Has-de cumprir o teu dever até ao fim.

[Figura: _D. Carlos I de Portugal._]

O organisador da revolta militar era Candido dos Reis, oficial superior
da armada. Muitos oficiaes se reuniam no Arco da Bandeira.

       *       *       *       *       *

Na tarde do regicidio estavam na Arcada homens com faixas á espanhola e
as faixas cheias de bombas. Diz-se tambem que havia varios grupos
postados nas esquinas até ás Necessidades.

       *       *       *       *       *

A rainha, quando o João Franco chegou ao Paço:

--Foram portuguezes?

--Foram.

--Ahi tem o que o senhor fez dos portuguezes.

E a Maria Pia, que há muito o não pode ver:

--Diziam por ahi que o senhor era o coveiro da monarchia, mas o senhor
foi peor, foi o assassino do meu filho e do meu neto!

Isto cheira a phrase feita, mas como esta repetem-se, insiste-se,
inventam-se outras mais.

       *       *       *       *       *

O João Franco tinha perdido a cabeça. Só elle mandava: não queria ouvir
ninguem. Quando fugiu d'uma esquadra um homem que estava preso pelo
fabrico de bombas, o juiz d'instrucção criminal foi-lhe dar parte do
caso. Ficou furioso:

--Vá beber da merda!

--Digo a V. Ex.^a que a policia não teve culpa...

--Vá beber da merda o senhor e a policia!

--Mas...

--Vá beber da merda! vá beber da merda! vá beber da merda!

       *       *       *       *       *

Diz-se que o Alpoim estava escondido em casa do Teixeira de Souza e que
fugiu emquanto a policia lhe cercava a casa.

       *       *       *       *       *

Paçô Vieira:

--Na noite do regicidio fui ao Paço, com o Campos Henriques. O Julio de
Vilhena, a quem procurei em casa, não foi porque lhe faltava um botão na
braguilha. Assisti a tudo: tiraram o rei e o principe de dentro do
carro. O rei estava disforme. A rainha, se tinha dito alguma coisa
desagradavel ao João Franco no Arsenal, no Paço não lhe disse palavra. A
Maria Pia perguntava de quando em quando:--A morte do rei será muito
sentida?--Estava tudo preparado para uma revolução. O Afonso Costa não
deu o signal porque esperava a morte do Franco. Pormenor absolutamente
authentico: o João Franco ainda se ofereceu para governador civil de
Lisboa.

--Na noite tragica o Antonio Candido foi dos raros que apareceram no
Paço. Estavam lá tambem o Campos Henriques e o Teixeira de Souza. Mais
ninguem--nem sequer o corpo diplomatico. Esperava-se a cada momento a
revolução. Os creados carregaram em padiolas pelas escadas acima os
corpos do rei e do principe. A D. Amelia passeava na sala de cá para lá,
infatigavelmente. Passou, perguntou-lhe:--Que diz o Antonio
Candido?--Elle não respondeu e ella continuou a passear de cá para lá
como um automato. A rainha velha estava sentada n'uma cadeira, sem uma
palavra, sem uma lagrima, d'olhos vitreos fixos na parede. E assim ficou
horas, muda e de pedra, emquanto a D. Amelia passeava na sala, de cá
para lá, infatigavelmente...


                                                 3 de Fevereiro--1908.

Venho agora de Lisboa e--caso curioso--a impressão geral é d'alivio.
Respira-se. Estava muita gente n'um grupo: o João Barreira, o Armando
Navarro, o Rangel de Lima, o Antonio Arroyo, o Columbano, o Maximiliano
d'Azevedo, e todos concordaram em que o rei era mau e quasi glorificaram
os homens que o assassinaram.

--Era um pulha, um pulha e um doido. Vejam o retrato que vem estampado
no _Je sais tout_... Era elle quem escrevia cartas anonimas á propria
mulher--afirma o João Barreira.

--Foi um grande exemplo e uma tremenda lição.

--Se escapa tinhamos ahi uma dictadura feroz. Era capaz de tudo!

Só o Manuel Ramos, obstinado e cego, teima:

--A memoria do rei há-de ser rehabilitada.

       *       *       *       *       *

No conselho d'estado o João Franco foi absolutamente inconsciente. Por
proposta do Julio de Vilhena não se leram as actas da sessão anterior,
como é costume, para lhe não ser completamente desagradavel.

       *       *       *       *       *

O João Franco teimou até á ultima, agarrou-se a tudo, para meter um
ministro no governo--o Penha Garcia. Disseram-lhe:

--Mas não pode ser, bem vê que o governo tem de revogar a maior parte
das suas medidas.

--Mas eu concordo com isso. Eu escrevo até uma carta concordando com
isso.

       *       *       *       *       *

A ultima piada do ministro dos estrangeiros, Luciano Monteiro:

--Então V. Ex.^a não faz testamento?

--Não, o rei tambem o não fez...

       *       *       *       *       *

O rei e os principes traziam rewolveres comsigo. Afirma-se que o
principe real e o infante D. Manuel ainda chegaram a dar dois tiros n'um
dos assassinos.

       *       *       *       *       *

Hoje correram boatos de revolta no Porto, de ter chegado a Cascaes uma
esquadra ingleza, etc.. Tudo falso.

       *       *       *       *       *

No Paço, na camarilha, havia dois partidos, o do rei e o da rainha. O da
rainha está agora de cima.

       *       *       *       *       *

Insiste-se em que se o rei escapasse ao atentado havia uma hecatombe.
Diz-se que o Fontes, que tinha a qualidade intuitiva de conhecer os
homens, dizia de D. Carlos:--«Nunca o pude perceber».

       *       *       *       *       *

Agora voltam-se as atenções para o novo rei. Dizem:--É Saboia.--No
conselho d'estado foi simpatico. Chorou, entregou-se nas mãos dos que o
ouviam:--Não estou preparado para reinar.

Os irmãos adoravam-se. O que foi assassinado zangava-se quando este lhe
chamava _prior do Crato_. D. Luiz Fillipe era mais reflectido. Este é
mais impetuoso--mas tem melhor coração.


                                                      Fevereiro--1908.


Nos ultimos tempos o rei tinha scenas violentissimas com a D. Amelia.

       *       *       *       *       *

A impressão no Porto foi curiosa: Quem ás onze horas da noite passava na
praça de D. Pedro via muita gente aos grupos de dez a onze pessoas cada
um. Ninguem discutia, não se falava alto. Era um borborinho de quem
conversa em segredo, a medo--ch... ch... ch...--ao ouvido. A noticia
soube-se pelo telephone do Borges & Irmão.

       *       *       *       *       *

Foi no automovel do Baltar do _Janeiro_ que o Alpoim se safou para a
Hespanha.

       *       *       *       *       *

As Anjos contaram á D. Maria Augusta que o electricista de S. Carlos
tinha tudo preparado para o D. Carlos morrer quando se encostasse ao
rebordo do camarote no theatro.

O homem suicidou-se quando se viu descoberto.

       *       *       *       *       *

O novo rei não gosta de _sport_. Sofre de reumatismo. Adora a musica. Em
pequeno dizia:

--Reger uma orchestra n'uma grande sala e ouvir no fim os aplausos do
publico, isso sim, é que é gloria!...

As meninas da alta roda, falando d'elle, diziam desdenhosas:

--Isso são _mariquices_ do senhor infante.

       *       *       *       *       *

Uma velha, a tia Julia, da familia Bordallo:

--Coitadinho do principe! Parecia mesmo uma menina!... E não estava
estragado como estes rapazes d'agora. Tinha uma carinha de menina. E não
era porque elle não _tivesse vontade_, era porque _o não deixavam!_...

       *       *       *       *       *

Muita gente que tinha bombas em casa tem-nas deitado ao rio.

       *       *       *       *       *

Da camarilha contam-se coisas como esta. Alguem me diz:

--Conheço uma senhora muito de bem, a quem este e aquelle (e cita os
nomes) foram fallar da parte do rei, para ir a bordo do _yacht_. Ella
deu-lhes uma desanda tremenda.

       *       *       *       *       *

O João Franco já tinha organisado listas de proscripções. A alguns
administradores de concelho foram enviadas circulares, pedindo o nome
dos individuos que na localidade entravavam a marcha do governo.

       *       *       *       *       *

O pae do João Franco e os redactores do _Jornal da Noite_ foram corridos
do Suisso.

       *       *       *       *       *

Trindade Coelho conta que João Franco, nas vesperas dos acontecimentos,
foi consultar a bruxa--M.^{me} Brouillard, uma transmontana esperta que
ahi está em Lisboa.

       *       *       *       *       *

Já ha seis contos para a familia do Buiça. Muita gente lhe arrancou
botões, cabellos, bocados de vestido. João de Deus Guimarães foi vel-o á
_morgue_. Era prohibido tocar no cadaver. Entrou em conversa com o
guarda:

--Ah! O Buiça tem ainda o braço rigido!

--Qual!

--Parece...

--Já teve, já, mas agora está lasso.

--Mas olhe que...

E aproximando-se do cadaver correu-lhe a mão pelo braço, como quem
apalpa, e deu-lhe _um formidavel aperto de mão_.

O _frigorifico_ é um buraco, e os tres cadaveres foram atirados uns por
cima dos outros a trouxe mouxe, de mistura com pedaços de gelo. Toda a
gente tira o chapéu e fala baixinho. O regicida está amarfanhado, com
lama na barba e nos cabellos. Seus olhos não são olhos de
morto--exprimem espanto e colera, e a figura é séria, é tremenda. Tem
rasgões, feridas na cara, e mãos nervosas, mãos delicadas de mulher.

       *       *       *       *       *

Diz hoje um professor que conheceu o Buiça:

--Era um homem profundamente serio e que protestava sempre com colera,
quando se lhe falavam em politica:--Não me falem em politiquices! não me
falem em politiquices!

       *       *       *       *       *

O João Pinto dos Santos:

--Emquanto estive preso alimentei-me de vegetaes e de odio. Nos
primeiros dias aquillo impressionou-me; mas logo que tive livros
serenei... Queriam fechar as janellas, mas eu disse ao Malaquias de
Lemos:--O ar não! o ar não m'o tirem, prefiro morrer! E tambem lhe peço
que quando bater á porta m'a abram logo, senão não aguento. Antes duas
balas!--Deixaram-me a janella aberta... Mandei vir uns poucos de fatos,
calças de verão, d'inverno, etc.--para ter a sensação de que estava
livre. Depois emprestaram-me livros. Entre outros um volume de viagens
na China, onde ha algumas paginas sobre a vida da mulher chineza. E
aquillo fez-me chorar, tão certo é que a desgraça nos aproxima dos
desgraçados. Afinal chegaram os livros que tinha pedido, um compendio
francez de philosophia, sete calhamaços de economia politica--e fui
quasi feliz. O juiz interrogou-me:--Porque está preso?--Não sei.--Há uma
testemunha que o viu no elevador da bibliotheca.--É falso. Estava n'uma
casa perto da bibliotheca, para combinar com o Alpoim e alguns amigos a
nossa atitude perante as prisões que estavam sendo feitas.--Chamou-se um
policia a quem o juiz perguntou: --Conhece o snr. João Pinto dos
Santos?--Não senhor.--Diante d'isto é claro que o juiz tinha de me
mandar embora. Que imagina que fez o João Franco? _O João Franco avocou
o processo a conselho de ministros e condemnou-me!_ Era odio pessoal. Na
municipal fui sempre bem tratado.

--E souberam?

--Alguma coisa presentimos na noite em que foi atacado o regimento de
Campo d'Ourique. Supozemos uma revolução gorada. Se atiram bombas ao
quartel eramos indubitavelmente fuzilados. Uma noite ouvimos formar as
tropas, carregaram com precipitação as armas, um oficial passou a correr
e diante do meu quarto bradou á sentinella:--Cuidado com esse
sujeito!--O Chagas disse-me hontem que, quando chegou á janella, um
soldado lhe fez um _manguito_. Os oficiaes é que continham a
soldadesca--mas até onde?

--E disse no seu depoimento que havia de matar o João Franco?

--É falso; o comandante da guarda falou-me n'isso e eu
respondi-lhe:--Bem vê V. Ex.^a que não quero que meus filhos possam
dizer:--Meu pae foi um assassino.--Isso não! Mas se um dia, depois de o
insultar bem insultado, n'uma discussão em plena camara, elle avançar
para mim, deito-lhe as mãos ás guellas, e nem V. Ex.^a nem toda a guarda
municipal m'o arrancam das unhas!

       *       *       *       *       *

Ha quem diga do João Franco:--Foi sempre um cobarde. Em Coimbra a
valentia vinha-lhe do José Lobo e dos irmãos, uns tipos d'aquelle
feitio, e agora da municipal e da policia. O pae era a mesma coisa, e o
tio, o _Mil diabos da capinha_, dava tiros e fazia disturbios sempre que
tinha as costas quentes.

       *       *       *       *       *

João Franco fazia cincoenta e quatro annos este mez de Fevereiro.


                                                 8 de Fevereiro--1908.


É hoje o dia do enterro. Essa gente que veio de fóra para assistir ao
funeral, principes, duques, generaes, diplomatas, está cheia de medo. E
por ahi diz-se á bocca cheia:

--Ainda bem que foram portuguezes os que executaram o rei. É a primeira
vez que um rei portuguez morre ás mãos do seu povo. Até agora acabavam
ás mãos das camarilhas.

       *       *       *       *       *

Não me sae dos olhos este quadro do enterro. Esperam-se bombas... Os
sinos tocam, todos os sinos das egrejas; rufam os tambores cobertos de
luto. Desfilam coches com principes e carros com fardas. Um homem
apregoa:--_O ultimo granadeiro!_ quem quer _O ultimo granadeiro?_--Mais
carros, mais coches, o filho do imperador da Allemanha, guardado por uma
escolta de prussianos, que o pae mandou com elle com medo que lh'o
matem. Tropas em fila, carroças de gala, generaes, diplomatas glabros,
com o olho desconfiado e vontade que aquillo termine depressa... Agora a
carroça com o sceptro e a corôa, e outra com crepes a rasto como se
levasse o luto da monarchia.--_O ultimo granadeiro!_...--Mais coches, e
aqui e alli o desfile cortado pela multidão irrespeitosa. Um laivo de
grotesco na tragedia, riscos exagerados de carvão que fazem medo...
Phisionomias lividas nas fardas pomposas, decorações, gente que mal se
atreve a olhar a plebe temerosa--silencio e um largo ah! a que se segue
uma gritaria d'inferno. Bicha de carros interminavel, mortos por
largarem n'uma abalada de pavor--carros funerarios passando entre a
indiferença gelada--farrapos de multidão que atravessam o prestito
propositalmente, tropas esbandalhadas, corôas que parecem velhas... E
por fim mais tropas e o mesmo grito insistente:--_O ultimo granadeiro!_
quem quer _O ultimo granadeiro?_...

Dias mais tarde havia sujeitos que se chegavam á beira das pessoas que
deitavam luto e perguntavam-lhe com ar de troça:--Então morreu-lhe
alguem da familia?...

       *       *       *       *       *

O Correia d'Oliveira:

--Se visse!... Quasi ninguem tirava o chapeu quando o enterro passou...
A sombra do rei comeu, sumiu a do principe.

       *       *       *       *       *

Tem-se distribuido muitos papeis com estes dizeres:


     Morte aos Sanguinarios Afonso Costa, Alpoim, Ribeira Brava, os
     Verdadeiros Assassinos

     DE EL-REI E DO PRINCIPE REAL.


E outros, escriptos á machina, atribuindo o crime a este e áquelle...

       *       *       *       *       *

A preocupação do rei é esta:

--N'este caso que faria D. Pedro V?

       *       *       *       *       *

O João Franco possue cartas do rei, em que elle lhe apontava escandalos
em diferentes secretarias.

       *       *       *       *       *

O dr. Curry Cabral, que é um homem ponderado, disse em casa das
Thomares:

--Ha cinco annos que o João Franco está doido.

E o Silva Bastos, que foi da sua intimidade:

--Ás vezes avançava para a gente de punhos fechados, n'um phrenesi.
Depois dava-lhe a nevralgia e deitava as mãos á cara ou desatava aos
berros--e, n'um instante, como n'uma roda que gira vertiginosamente e
vae passando por dois buracos, lia-se-lhe nos olhos, sucessivamente e
sem interrupção, colera, despreso, ambição, serenidade, medo, orgulho,
riso, ferocidade, paz, vertigem...

       *       *       *       *       *

E outro:

--Era a obra de Martins posta em pratica por um doido. Sómente o Martins
dissera, arrependido, a Junqueiro:

--Nas penitenciarias está gente muito melhor que o rei.


                                                11 de Fevereiro--1908.


Espalha-se que, se isto não socegar, o rei e a rainha se vão embora e o
estrangeiro toma conta das colonias. Pede-se repressão. Diz-se que há
oficiaes de artilharia e cavalaria que querem fazer uma _intentona_--e
os politicos já se não entendem por causa das nomeações dos governadores
civis!

       *       *       *       *       *

O João Chagas surge na livraria, mais gordo, com um esplendido casacão
alvadio:

--Tenho estado preso diferentes vezes, mas nunca senti tanto a falta de
liberdade como d'esta. Das outras falava, tinha ar e luz á minha
disposição. Agora foi a incomunicabilidade absoluta. E, se atirassem
bombas ao quartel, eramos despedaçados. E eu, que sabia que alguns
grupos tinham combinado tudo como quem resolve um problema--dizia
comigo:--Se esses diabos não têm a caridade de se lembrarem de nós,
estamos perdidos!--Um dia á noite tive a impressão nitida de que iamos
ser fusilados. Ouvi reboliço, as tropas carregaram as armas, e até senti
que, com a precipitação, deixavam cahir alguns cartuxos. Tentei
espreitar por um postigo. Um oficial que passou correndo disse á
sentinela:--Cuidado!--O frio era mortal. O soldado encostou-se á
porta--não pude espreitar. Ignorava tudo. Estendi-me em cima da cama e
só ás quatro horas da manhã sucumbi de cansaço... Que horas! É horrivel
morrer assim sem lucta. Cheguei a fazer um pequeno testamento...

[Figura: _Oliveira Martins._--Desenho de Antonio Carneiro.]

E o João Pinto dos Santos:

--Pude ver d'uma vez o _Diario Illustrado_, nas mãos d'um soldado, com o
retrato do rei, mas calculei:--chegaram de Vila Viçosa.

--Mas nem sequer reparou na tarja de luto?

--Eu não. O Antonio José d'Almeida diz que reparou e que desconfiou que
o rei tinha sido morto.

--Os oficiaes--continua o Chagas--trataram-me muito bem, mas á despedida
disse-lhes:--Agradeço-lhes muito a amabilidade com que me trataram, mas
para outra vez prefiro ir para a Penitenciaria. Lá talvez chegue algum
rumor.

E conclue:

--Acalmação sim, acalmação, se assim o entenderem, _durante alguns
mezes_. Ah não foi em vão que trabalhamos vinte annos!...

       *       *       *       *       *

Fui hoje ao café do Gelo ver o sitio onde o Buiça se reunia com os
amigos. O café é já de si curioso, com duas salas d'aspecto
completamente diverso, uma para o Rocio, d'aparato; outra, nas
trazeiras, baixa, para os freguezes envergonhados, com portas para a rua
do Principe. Era ali, n'aquella meza, do canto, á direita quem entra
pelas trazeiras, que o professor se juntava com os outros e passavam
horas a conversar baixinho.

--Eram muitos?

--Ás vezes doze ou quinze--diz o creado.--E ficavam até tarde em grandes
discussões...

       *       *       *       *       *

Todos os politicos são concordes n'isto: o D. Carlos gastara nos ultimos
annos, alem da dotação, dez ou doze mil contos.

       *       *       *       *       *

E toda a gente diz que era um mentiroso e que difamava a mulher. Ainda
hoje alguem contou que um dia apareceram uns papeis inventando infamias
da rainha com a Sandoval. Investigou-se. E o José Luciano disse
logo:--Escusam de procurar, isso é d'El-Rei.

       *       *       *       *       *

O _Seculo_, disse-me o Avelino d'Almeida, tem tido tiragens de 160:000
exemplares.


                                                      Fevereiro--1908.


Depois da morte do rei o Arnoso foi ao Malaquias de Lemos propor-lhe a
contra revolução.

--Nem me fale n'isso. Se veem para a rua corro-os a bala raza e vou já
d'aqui contar tudo ao Ferreira do Amaral.


                                                20 de Fevereiro--1908.


Era hoje que devia rebentar a contra revolução, para impôr ao Paço uma
dictadura militar.

       *       *       *       *       *

Hoje fui a casa do Schvalbach, ao Conservatorio. Coisas antigas e louça
das Caldas, velhos quadros do Liborio e tectos pintados em caramanchão
pelo Augusto Pina. O homem está aqui: é uma revista de
anno--dificuldades de que sae com um sorriso, enredo, e um fio de oiro e
de ternura a envolver tudo isto...

Conheceu o rei e explica-o:

--Quando queria era um _charmeur_. Ás vezes ninguem o podia aturar e
mentia como uma cesta rôta. Ultimamente déra nesta: quando se falava
d'alguma rapariga bonita, ahi dos seus quinze annos, dizia com um
sorriso:--É minha filha.

E conclue:

--Era um grande pantomimeiro!


                                                      Fevereiro--1908.


O Antonio José de Freitas, amigo do Paço, do Arnoso e do Sabugosa:

--O rei era d'estes homens que gostam de esconder as boas qualidades e
de salientar os seus defeitos. Inteligente, de bom coração, artista, não
soube ou não quiz tratar com os homens. Podia ter com elle todos os que
pensam ou escrevem em Portugal--afastou-os. Ha annos para cá o caso
explica-se: garanto-lhe que, depois que teve o tipho, ficou impotente e
sentia-se humilhado e inferior ao primeiro gallego que passa na rua...
Ha cartas d'elle adoraveis de simplicidade, ha casos da sua vida e da
vida palaciana que se não comprehendem.

--E como artista?

--Era elle, sem duvida, que fazia com talento os esboços. Mas, como não
tinha tempo--outros lhe acabavam os quadros... Como rei só teve um
mal--começou a sel-o apenas ha um anno.


                                                      Fevereiro--1908.


Todos os dias no Paço se recebem cartas anonimas com ameaças de morte. O
medo é enorme. A rainha tem sempre deante dos olhos o quadro horroroso,
e, se acorda de noite, quer por força vêr o filho.

       *       *       *       *       *

O Manuel Ramos:

Serviam-se, o Franco e os outros, da pimponice do rei, para lhe
arrancarem medidas de repressão. Se o viam hesitar:--Mas se Vossa
Magestade receia...--E elle logo decidido:--Eu não!--E assignava tudo. E
fique você sabendo: não foi elle só que comeu: a maior parte do
dinheiro, dos dez ou doze mil contos gastos a mais, ficou no bolso dos
politicos.


                                                      Fevereiro--1908.


A guarda-fiscal de Cascaes tem ordens apertadas. Teme-se um desembarque
de armas e munições.

       *       *       *       *       *

Foi prohibido o desfile do publico diante dos cadaveres regios, porque a
urna do rei era coberta de escarros!


                                                      Fevereiro--1908.


O João Chagas:

--Tem visto a atitude palaciana do _Dia_? Eu, de mim, tenho um caderno
com este titulo _Alpoim_ e todos os dias collo pedaços do _Janeiro_ e do
_Dia_. Tome logares porque vai assistir a um espectaculo
estraordinario... Nunca o estrangeiro fez tanta pressão sobre nós como
agora... Impõe-nos um governo--e esse governo, não podendo ser rotativo,
ha-de sahir da praça publica. Ora não sendo republicano, á maneira do
que se fez na Italia ou no Brasil, vae ser do Alpoim. E verá! verá!...
Eu já disse: escrevo logo um artigo com este titulo _O Regicida_, se
elle e os seus amigos nos atraiçoarem--os seus amigos, que, diante de
mim e de Afonso Costa, se declaravam todos republicanos. D'antes
procuravam-nos todas as noites, agora fogem-nos. Vae ver, vae-os ver
servirem-se da policia contra nós. Oh, mas eu hei-de declarar que elles
é que nos forneciam as bombas! O Alpoim ha-de morrer ás nossas mãos!


                                                          Março--1908.


O Brazão conta que na _première_ do _Othelo_, o irmão de Augusto Machado
foi cumprimental-o ao camarim:

--Vaes admiravelmente no papel, mas deixa-me dizer-te (aqui para nós) a
peça é uma grande borracheira...


                                                     9 de Março--1908.


Na recepção de ante-hontem a raínha tinha os olhos cheios de lagrimas
sufocadas e disse:

--Não tenho medo por mim, é por elle...

--Os politicos, agora vão ter juizo...--disse alguem. E ella respondeu:

--Os politicos não teem coração.

E o rei dizia a um e a outro:

--Seja bom portuguez e meu amigo.


                                                          Março--1908.


--Vou a Lisboa--diz o Columbano ao conde d'Arnoso.

--Tambem eu vou a essa Penitenciaria onde andam os assassinos á solta.


                                                          Março--1908.


Antonio José de Freitas:

--O Marianno de Carvalho tinha ido a Paris negociar um emprestimo e,
conversando com Rouvier, perguntou-lhe:

--Se se fizer a republica em Portugal?...

--Que me importa! Que me importa mesmo que se faça a republica em
Hespanha. Mas se se fizer a federação iberica, então alto lá! fazemos a
federação latina.


Rodrigo da Fonseca dizia dos Castilhos:

--Que familia! O melhor de todos é o cego--mas esse mesmo, se tivesse
olhos, era preciso furar-lhos!


                                                          Março--1908.


O João Chagas:

--O Alpoim foi quem nos forneceu as armas para a revolução. Foi o que
elle fez. Nós tinhamos homens, elles deram-nos as armas e uns contos de
reis. Todos elles se declaravam republicanos, menos o Moreira d'Almeida,
que disse:--Eu não só não sou republicano, mas sou
anti-republicano.--Quando sahiamos das reuniões, eu e o Afonso Costa
riamos ás gargalhadas.

Este João Chagas tão facil, tão insinuante, com o riso prompto nos
labios grossos e sua pôpa branca no alto da cabeça, nunca conversa,
nunca o vi conversar: se encontra alguem, seja onde fôr, conspira logo.
Tem passado a vida, sempre simpathico e facil, sempre bem vestido e
correcto como um actor que desempenha o seu papel. Mas no fundo d'esta
alma, sob este riso e esta pôpa que parece pintada, só existe uma
vontade que nunca esmorece, uma ambição tenaz e um egoismo feroz.

--Isto ha-de resolver-se em 1909. Ah, não passa d'ahi! É um conflicto
inevitavel. Que me importa o Porto?

E como eu duvide:

--Temos o exercito comnosco. Até na municipal. Na provincia ha terras em
que os regimentos são completamente nossos.


                                                          Abril--1908.


Hontem no Porto encontrei o Junqueiro, mais velho, mais magro, e a
proposito da atitude palaciana de Eduardo Burnay no _Jornal do
Commercio_, conta que elle em tempos, quando atacava o rei, o fôra
procurar ao Porto e lhe disséra do D. Carlos:

--D'uma vez, n'uma d'aquellas ceias que dava no Alemtejo aos esturdios
seus amigos, ofereceu a cada conviva uma navalha de ponta e mola, com as
armas reaes.


                                                       Novembro--1908.


A rainha não disse que conhecia o assassino do rei. Phrase textual
ouvida pelo Batalha Reis:

--Os outros não os conheço, mas aquella cara do homem das barbas nunca
mais me sae dos olhos[7].


                                                       Dezembro--1908.


O caso do dia é este:--Um alferes da guarnição no Paço, quando assistia
ao jantar levantou-se, e, contra todas as regras e todas as
conveniencias, falou ao rei pouco mais ou menos n'estes termos:--Vossa
Magestade anda iludido. Esta gente que o cerca engana-o. A situação do
paiz é deploravel, etc.

Imaginem, se podem, as atitudes, o espanto, o espectaculo d'esta gente,
interrompida pela primeira vez naquella representação em que o
formulario é respeitado como um culto. Mas na verdade o alferes disse o
que cada um sente no fundo da sua consciencia. Foi inconveniente, mas
poz o dedo na ferida. O rei está rodeado de ficções e de mentiras. Não
soube assumir as responsabilidades do pae, com decisão e coragem, nem
totalmente repelil-as.

Enredam-no. Os politicos dão-se o ar de o proteger e é elle quem os
protege. Hesita, tem medo... Sente-se que tudo isto vacila...


                                                        Janeiro--1909.


--Esta vida artificial como lhe sinto a falta!--exclama o Fialho ali ao
pé do Suisso.

--E porque não vive em Lisboa?

--Não posso! não posso! Se soubesse!... Tenho um irmão epileptico, que
meu pae me legou á hora da morte. Não devo abandonal-o, nem entregal-o a
mãos mercenarias... Depois as arvores, depois as vides, a que a gente
cria amor...--Uma pausa triste, uma hesitação, uma duvida e acrescenta
isto:--Não tenho tido quinze dias de felicidade em toda a minha vida!

Falamos de politica:

--Isto está a pedir sangue... E olhe: no Alemtejo não ha
republicanos--ha odios. O pobre não pode vêr o rico. É uma gente roída
de invejas e rancores, que passa annos e annos da vida a cubiçar um
campo...

       *       *       *       *       *

O João Barreira, pequenino, inalteravel, de capinha:

--A revolução abortou em onze de Fevereiro porque os chefes foram todos
presos. O Chagas tinha nas mãos as chaves do movimento.

       *       *       *       *       *

Quem são os regicidas?... O Ferreira do Amaral, ao sahir do ministerio,
declarou que não tinha apurado nada de definitivo. Diz:--Eu bem sabia,
por cartas anonimas, que se preparavam para me alijar, mas deixei-os
fazer...--Porquê, almirante?--A situação não me era agradavel.

       *       *       *       *       *

Novos boatos de intentonas, de massacres, novos boatos de reacção. Agora
é certo!... Os regicidas vão ser presos. Conta-se que o Heitor Ferreira
dissera:--Vendi a carabina a Fulano.--O ministerio Amaral cahiu, porque,
dispondo de todos os elementos, não quiz prender os assassinos. Um dos
regicidas está em França, mas Clemenceau recusa-se a extradital-o.

       *       *       *       *       *

O Mello Barreto garante como absolutamente autentico o boato que por ahi
correu, de que o rei se confessa todas as semanas.

       *       *       *       *       *

Larga distribuição d'estes papelinhos:[ver nota de editor]


                                                        Janeiro--1909.


Fala-se hoje d'um Munhoz, oficial do exercito, tipo acabado de
lisboeta--café, conversa e parodia, cheio de graça popular e literaria.
Já reformado, vae aos domingos aos touros para a Outra Banda, com um
cabaz no braço e um chalemanta ás costas... Esteve amigado com uma
mulher já _fannée_, mas ainda com linha e um grande nariz imperial, que
ahi andou por Lisboa e se fazia passar como aparentada com as mais
ilustres familias de Hespanha. A mulher não tinha dinheiro, mas alguem
presenteara-a, quando a deixou, com uma rica mobilia. E Munhoz e ella
iam vivendo dos trastes, hoje um tremó vendido, amanhã uma comoda,
depois um sofá...

--E que tal, Munhoz?

--Vae-se vivendo, filho. Vamos vendendo os trastes. Olha, menino, hoje
almoçamos nós um _bidet_--e por signal que não estava nada mau!...

       *       *       *       *       *

Lá no alto, no friorento Paço d'Ajuda, entre gente caduca e algumas
damas do passado, a rainha Maria Pia passa os dias e as noites, como uma
figura de tragedia, a regar as flores d'um tapete. Mataram-lhe o pae, o
filho e o neto. Peor: envelheceu. Se pára de regar conta:--Um... dois...
três...--A quem se refere? Ao pae, ao rei, ao principe, todos
assassinados? Senta-se á meza e diz a figuras imaginarias ou aos
phantasmas que se sentam a seu lado:--Come, Luiz? Não queres d'este
prato, Carlos?--E lá torna a regar um dia, outro dia, sempre, as flores
que não reverdecem do mesmo tapete do seu quarto... E esta mulher
elegante, que despertou paixões e inspirou poetas, parece uma velha
actriz, cheia de rugas, sem contracto, fóra do seu meio e da sua época.
Ao vel-a passar, baixando a cabeça para aqui e para acolá, no mesmo
gesto machinal, a gente supõe que o passado sahiu do sepulchro e teima
em sorrir-nos, com os dentes postiços e o cabelo pintado a escorrer
amarelo...

       *       *       *       *       *

O D. Afonso adora o sobrinho. Afiança:--Se m'o matarem quero ser rei uma
hora, mas n'essa hora hei-de mandar...

       *       *       *       *       *

--E o rei?

--O rei...--diz alguem que foi duas ou tres vezes ao Paço--O rei é um
fidalguinho muito religioso e temente a Deus, e cheio de vontade e de
orgulho.--E acrescenta:--Não trata, como o pae, a gente por tu, mas por
você.


                                                        Janeiro--1909.


Fala-se com o Antonio José de Freitas, do D. Pedro V e um do lado diz:

--Era um pedante.

--Se era! O que vocês não sabem é que deixou vinte e tantos calhamaços
sobre coisas militares com o titulo em latim. E de todos esses livros
não se apura uma pagina...

Do D. Luiz e da D. Maria Pia narra anecdotas, ditos...

--O D. Luiz mandava-me chamar muitas vezes ao Paço--e algumas por causa
do Shakespeare. Uma vez quiz discutir o _Hamlet_ commigo--elle que me
roubou duzentas e tantas phrases!--e eu disse-lhe:--Pois sim, vamos lá
discutir, mas V. Magestade não ha-de extranhar que eu me defenda com
quantos argumentos tenha, nem que fale mais alto, porque fui professor
de meninos e tenho esse mau habito. Alem de tudo isso sou um homem
nervoso...--E discuti, discuti com unhas e dentes. Por fim elle
disse-me:--Pois sim, Freitas, mas você o que não pôde é conceber o
_Hamlet_ como eu, sob o ponto de vista de dissimulador, porque não tem a
minha categoria. Só um principe sabe o que é dissimular...

E eu respondi logo:

--Se V. Magestade dissimula por causa da sua categoria, é porque é um
diplomata; se é por organisação é porque é um histerico...

E elle mandou-me embora.

       *       *       *       *       *

Quem os põe assim aos reis, ao D. Carlos, ao D. Luiz, ao imperador do
Brazil, são os grandes homens, o Victor Hugo, o Rossini, os que os
incensam a torto e a direito. O D. Luiz era inteligente e conhecia os
classicos musicaes, mas, como não estudava, tocava mal. Pois um dia o
Rossini, em Paris, depois de o ouvir, disse-lhe:--Vou organisar um
concerto em minha casa, para que V. Magestade, que é um dos melhores
musicos que conheço, seja ouvido e apreciado.

       *       *       *       *       *

O D. Luiz, como todos os fidalgos portuguezes, gostava de conviver com
gente baixa. Quando se iam embora os ajudantes e a côrte, ficava com os
particulares, com a gente que lhe chamava _doutor Tavares_, e então
regalava-se de escandalo, de ditos, de má lingua ordinaria.

       *       *       *       *       *

Não me admira que elle gostasse da Rosa Damasceno. Era uma mulher
_caline_, muito meiga. Na intimidade devia ser adoravel. E boa. Desde
que foi amante de D. Luiz, dava todo o dinheiro que ganhava no theatro.

       *       *       *       *       *

A Maria Pia é uma mulher inteligente, apezar de pessimamente educada,
sem mãe. Detestavam-se, mas que diplomatas, ella e o rei! Quando se
anunciou o casamento do D. Carlos, D. Luiz disse-me:

--Casa por amôr. Fez a côrte á mulher, escreveram-se, elle mandou-lhe
flôres e ia para a plateia d'um theatro em Paris namoral-a para o
camarote.

       *       *       *       *       *

Não sei quem fala do Saldanha...

--Foi o diabo para o mandarem para Londres, quando se quizeram vêr
livres d'elle. O governo perguntou para a Inglaterra e de lá responderam
que não era _persona grata_. Foi preciso que o D. Fernando escrevesse á
rainha Victoria, que acabou por ceder, dizendo:--Mandem lá esse velho
pecador.


                                                      Fevereiro--1909.


O Judice Bicker, oficial da armada e antigo governador da Guiné no tempo
do Hintze:

--Não, não me falem em dictaduras nem em governos de repressão! Quando
fui governador da Guiné apareceram-me lá um dia cem homens mandados pelo
governo. E com elles uma simples lista de nomes, sem a minima indicação
de crimes. Nada. Era gente que o governo me mandava e de que se queria
desfazer. Que lhes havia de fazer na Guiné? Sentei-lhes praça, e d'esses
_criminosos_, aos quaes nunca tive ocasião de aplicar um castigo, seis
mezes depois tinham morrido _cincoenta_ de febres!...

       *       *       *       *       *

No outro dia--diz o Freitas--estive com a rainha D. Amelia. Está uma
mulher amarella e feia, enorme, com as mãos do tamanho do Maximiliano
d'Azevedo. E, como lhe notasse os dedos cheios de joias, estranhei,
perguntei e explicaram-me:--São os aneis de brilhantes, que ella
arrancou aos cadaveres do marido e do filho--e que traz sempre comsigo.

       *       *       *       *       *

Um empregado da fazenda:

--Em cada um dos grandes bairros de Lisboa ha milhares de processos de
dividas á fazenda parados. Companhia que tenha votos paga quando quer e
como quer. Só os desgraçados são penhorados. Isto representa muitas
centenas de contos, que se perdem por empenho, por politica, por
desleixo.


                                                      Fevereiro--1909.


O Pad'Zé contado pelo Vicente da Camara:

--O extravagante Pad'Zé era no fundo um homem methodico. Quando chegava
a Coimbra ia sempre com grandes ideias de aprumo e arranjo: uma cama
para dormir, uma meza para escrever, etc.. Excusado será dizer que, meia
duzia de dias depois, dormia no chão. Mas á cabeceira lá estavam sempre
muito arranjadinhos os seus livros e os seus papeis. Se no dia em que se
matou, na propria hora em que deitou a mão ao rewolver, alguem o
convidasse para uma ceia,--adeus suicidio! adeus morte! trocava-a por
uma guitarrada.

       *       *       *       *       *

No dia em que fugiu para Badajoz o D. João da Camara encontrou-o: levava
para o exilio um livro de Garrett, um par de meias e cinco mil reis
emprestados.

       *       *       *       *       *

Trazia sempre nas algibeiras envolucros de bombas e mostrava-os ás vezes
aos amigos, no Suisso. Na algibeira do medico que morreu na explosão foi
encontrada uma carta sua, pedindo-lhe que lhe mandasse pelo portador
«seis peras do Fundão». Trazia-as ás vezes pela rua n'uma malinha de
mão, e, quando ia ao urinol, pedia ao Anibal Soares, de quem era amigo
intimo, para lha segurar:--Mas tem cuidado que são ovos!...--observava
sempre.

       *       *       *       *       *

Dizem por ahi que se matou, para não matar... Tinha-lhe cahido em sorte,
n'uma _loja_, executar um alto personagem...


                                                25 de Fevereiro--1909.


Visita ao Coelho de Carvalho, que está doente, e mora n'um velho
palacio, na rua do Arco do Cego. Moveis Imperio, uma cama imponente com
golphinhos doirados e espelhos, falsos quadros de mestre nas paredes
d'estuque, onde todos os caiadores de Lisboa pintam sempre o mesmo friso
azul ferrete, e salas que se sucedem com alguns moveis antigos isolados.
São restos de grandeza d'uma existencia d'artista... Como sempre,
fala-se em politica. Não se fala n'outra coisa...--A policia tem o
processo do atentado concluido, mas fica-se por ahi. Sabe-se que no dia
21, n'uma _loja_ maçonica, foi proposto o assassinato do rei. O Alpoim
esperava na rua, dentro d'um carro, os seus amigos. Mal foi que o acordo
com os franquistas gorasse. Sabe que o Alpoim teve uma combinação
politica com o João Franco? Disse-mo elle a mim:--«O acordo esteve feito
para uma dictadura liberal, mas o rei opoz-se. Foi quando eu e Sicrano e
Beltrano decidimos perdel-o»...--Posso garantir-lhe isto: ouvi-o a elle
proprio... Quem os aproximou, ao Alpoim e ao Franco, foi o Silva Graça.
Tinham até ajustado uma serie de comicios de propaganda contra os
adiantamentos. E foi por isso que o João Franco pôde responder como
respondeu ao Centeno, dizendo-lhe que tinha nas mãos provas d'essa
combinação.

Um tipo fino. Literato e homem de negocios, tendo ganho fortunas e
dissipado fortunas. Tem um castello em Arade sobre rocha e mar e uma
existencia um pouco dispersa. E com isto curioso e alegre, phantasista
acima de tudo, paradoxal acima de tudo. O seu escriptorio de advogado
que foi muito tempo no ministerio da justiça, é hoje alli n'uma meza do
Martinho. Desconfio que mistifica os clientes--para se divertir... As
dificuldades da sua vida são talvez invenciveis, mas a desgraça
encontra-o sempre de pé, com o mesmo riso nas mesmas lindas barbas todas
brancas enquadrando uma face moça, e oculos redondos de tartaruga, que
lhe dão uma aparencia de retrato de Holbein.--Os oculos de
Spinoza...--como elle lhes chama.


                                                          Março--1909.


O Armando Navarro:

--D'aqui por cincoenta annos estamos absorvidos pela Hespanha, sob a
forma federativa. A autonomia municipal, a mais rasgada de todas as que
conheço, e que o conservador e reaccionario Maura acaba de dar á
Hespanha, é o primeiro passo...


                                                     6 de Março--1909.


Foi hoje o enterro do Taborda. Aqui ha tempos cahiu de cama e disse a
alguem a chorar:

--D'esta vez é certo! Sinto que vou morrer... E a vida é tão linda!

Tinha oitenta e cinco annos. Os jornaes contaram d'elle esta coisa
enternecedora: D'uma vez foi recitar um monologo a um asylo de raparigas
da sua terra. O monologo começava assim: «Boas noites, meus
senhores...». Entrou no palco e disse a phrase:


     Boas noites, meus senhores...


E as meninas do asylo, que o conheciam todas, levantaram-se e
responderam á uma:

--Muito boas noites, senhor Taborda!

A morte engrandece sempre, mas acho horrivel acabar na rua dos
Calafates, entre a convenção e a mentira, andar por cima, andar por
baixo, corôas secas, photographias e recordações de bastidores. Um velho
tem direito a morrer entre arvores, em plena natureza. Os bichos, quando
sentem aproximar-se o fim, procuram um buraco para se esconder... São
mais felizes.


                                                          Março--1909.


As declarações do Ferreira do Amaral na Camara dos Pares vieram
autenticar o que se dizia do rei. O Ferreira do Amaral afirmou:--«A
reacção envolve o rei».--Acrescenta-se cá fóra que é um jesuita
hespanhol quem dirige o rei e o Paço, e parece certo que o Ferreira do
Amaral o impedia por vezes de ir de livro e contas á missa--fazendo-o
visitar no Porto tres fabricas por cada missa que ouvia...

       *       *       *       *       *

Espalha-se que foi a rainha quem pôz fóra o Ferreira do Amaral, e que
elle quer lá voltar para lhe dar uma lição.


                                                          Março--1909.


Apresentam-me hoje um velho janota, o visconde da Torre da Murta. É um
velho magro e esticado, de luvas e chapeu alto. Cheio de pretensões e os
cabelos todos brancos. Parece ligado por arames. Vive na miseria. A
mulher enganou-o, deixou-o. Pagou-lhe as dividas--e ficou pobre: são as
Thomares que o sustentam. O velho conserva uma grande dignidade e só sae
de luvas e chapeu alto. Mas quem sobretudo lhe vale é a creada, uma
destas extraordinarias mulheres do povo, que nascem para os outros e que
já disse que quando morrer lhe ha-de deixar as suas economias «para o
senhor visconde não passar necessidades». O senhor visconde vive n'um
cubiculo, e da sua passada grandeza restam-lhe meia duzia de livros com
magnificas encadernações.


                                                          Março--1909.


Fuschini, que fui hoje visitar, está velho e tem uma doença de coração
muito adiantada.

--Porque não escreve as suas memorias?

--Não sei, custa-me. Tenho pensado em escrever a minha autobiographia...
Depois deixo-me d'isso.

E conta-me:

--Quando foi da conversão da divida externa fui eu e poucos mais que
obstamos a que viessem tres estrangeiros para Portugal mandar n'isto.
Creia... Chegaram a dizer-me:--Não faça questão, que será um dos membros
da junta.

E diz:

--Ao tempo da dictadura do João Franco lembrei-me de reunir em Lisboa um
congresso de todos os homens publicos. Procurei os republicanos, o
Afonso Costa, que me prometeram o seu apoio. Estava de relações cortadas
com o Hintze, mas mandei-lhe falar e elle fez-me ir ao Estoril. Disse-me
o peor que é possivel do rei e acrescentou:--Aceito a sua idéa... E tem
casa?--Tenho.--E se a policia intervier?--Resistimos e apelamos para o
povo.--Bem, vá falar ao José Luciano.--Procurei essa _vil alforreca_,
que exclamou:--Mas isso é a revolução!... Preciso de falar primeiro com
o Hintze. Tenho uma idéa melhor...--Dias depois o Hintze dizia-me:--O
José Luciano não quer fazer nada, disse-me que era melhor esperarmos
para Outubro, quando o rei regressar a Lisboa.--Tambem me lembrei de
escrever um manifesto dirigido ao estrangeiro e assignado pelos
estadistas portuguezes.--Excelente, disse-me logo o Hintze, venha cá
amanhã... Olhe, amanhã não, que é o enterro do Casal Ribeiro. Depois de
amanhã.--No dia seguinte estava morto.


                                                          Março--1909.


Eis a impressão geral: Foi a rainha quem tramou a queda do Ferreira do
Amaral. O Julio de Vilhena queria que saissem apenas dois ministros
regeneradores, substituindo-os por outros. Foi uma tramoia do Paço. Toda
a gente diz que a rainha está feita com os reaccionarios. O D. Carlos,
emquanto vivo, opunha-se-lhe, e, logo ás primeiras investidas--festas de
Santo Antonio, etc.--poz-se do lado dos que combatiam a reacção. Agora
manda. E conta-se que o Ferreira do Amaral entrou um dia d'estes no Paço
e perguntou pelo rei.--Está com o seu director espiritual.--Então
preciso de falar á rainha.--Está tambem com o seu director espiritual.

       *       *       *       *       *

A rainha--dizem-no todos--arrisca-se um dia a ser desfeiteada. Acusam-na
de deitar a perder o rei.


                                                          Março--1909.


Barreira conta-me que varios republicanos teem insistido junto do
general Baracho para se pôr á frente d'um movimento.

--Bem sei, vocês querem que eu tire as castanhas do lume, para que os
outros as comam!


                                                          Março--1909.


O Cunha e Costa:

--O Ferreira do Amaral desarmava pela bonhomia. Um dia constou ao
Bernardino que para os lados do Campo Grande havia tumultos. Telefonou
ao Amaral:--São os reaccionarios que querem repetir as scenas de cinco
de Abril...--Vou indagar.--Meia hora depois:--Está? Sou o Amaral.--E
muito placidamente:--Ó Bernardino, olhe que aquelles homens que os
senhores mandaram para o Campo Grande ainda lá não chegaram...--!!!--Os
republicanos do _Mundo_, quando lhes constou que iam ser
atacados:--Senhor presidente do conselho, consta-nos isto...--A casa do
cidadão é inviolavel e todos teem o direito de se defender.--Ao Pimentel
Pinto, cheio de dividas e que não paga a ninguem, respondendo á acusação
de jantar com os makavenkos:--Janto, janto, mas pago, meus senhores,
pago sempre.--Ao Arroyo, quando lhe dizia:--Enganaram-no, almirante.--É
que eu sou um ingenuo.


                                                          Abril--1909.


Fazem correr por ahi esta infamia: que o Wenceslau de Lima é amante da
rainha D. Amelia.

       *       *       *       *       *

O Eduardo Pimenta, que serviu com o Mousinho em Africa:

--Um orgulho desmedido, uma decisão rapida, e uma insensibilidade, como
nunca vi, ao frio, á fome, ao trabalho... D'uma vez, por qualquer
questiuncula, fomos obrigados a dar uma satisfação á Alemanha. Que
scena! O Mousinho arrancou do peito constelado todas as medalhas, todas
as condecorações--todas. Só lá deixou a Aguia Vermelha que obriga o
alemão a conservar-se de pé diante dos que a teem. Poz o _bonnet_ às
tres pancadas e entrou por a casa do consul dentro. Ergueram-se todos--e
elle, á porta, sacudido, impertinente, enorme, disse a phrase
protocolar:--O governo de Sua Magestade Fidelissima encarrega-me,
etc.--E sem esperar pela resposta, outra vez levou dois dedos ao
_bonnet_ e rodou sobre os calcanhares, deixando-os estupefactos.

       *       *       *       *       *

Jayme de Seguier encontra o João Franco no estrangeiro. São amigos. E
João Franco que não queria, que jurára não tornar a falar em politica,
durante duas longas horas não conversou, não falou n'outra coisa.

--Tinha previsto tudo. Tinha previsto a minha morte: o que eu não
previra foi o assassinato do rei. Isso nunca me passou pela cabeça...

--Mas o que eu não comprehendo é que dissolvesse as côrtes estando
aliado com os progressistas...

--Tinha-lhes pedido ministros, recusaram-mos. Ficava enfraquecido. Isso
é que não. Não podendo tel-os como amigos, então antes como inimigos
declarados.

Quem me fornece estas notas (Jaime Victor) fala d'um João Franco cheio,
de sensibilidade e de coração, capaz de ir até ao fim...--P'ra diante!
p'ra diante contra tudo e contra todos!--Era um convencido. Diz-se que
os outros o empurravam. A verdade é que ninguem o podia deter: nem
palavras nem acções o faziam recuar; ia como uma bala na sua
trajectoria. Contam-me que n'um dos ultimos conselhos de ministros João
Franco expoz a situação: o movimento revolucionario, as medidas que
tomára, etc.. Vasconcellos Porto, placido e enorme, expoz a sua opinião
e concluiu:

--Deixe-os vir para a rua, que eu conto com o exercito. E depois de
vencermos, governaremos...

Ao que João Franco respondera:

--Não, podendo evitar-se o sangue--evitamol-o.

E Jaime Victor conclue:

--A morte de D. Carlos trouxe-nos extraordinarias complicações. Elle,
por exemplo, tinha seguro o tratado de comercio com o Brazil, que nunca
mais se fará. No Brazil fizeram-se despezas extraordinarias para o
receber.


                                                       Novembro--1909.


Guerra Junqueiro desalentado:

--Isto está liquidado, a ocasião passou. Agora o rei casa com uma
ingleza e vem para ahi um caixeiro qualquer da Inglaterra, que manobra
por traz da cortina. Não reparou n'isto?... Nas camaras passou uma lei
que os auctorisa a vender inscripções. É a bancarrota adiada por muito
tempo. D'aqui a annos o juro da divida interna é reduzido, mas vae-se
vivendo e paga-se ao estrangeiro, que é o principal.

       *       *       *       *       *

Do João Franco diz:

--Mentia com o coração nas mãos... Então é que era ocasião. O Franco e o
rei eram dois cães damnados... A ocasião passou, a republica passou.

       *       *       *       *       *

O Carneiro de Moura:

--Os bispos e as beatas deram para a imprensa reaccionaria, para _O
Portugal_, vinte contos. Já lá vão em pagodes!

[Figura: _Dantas Baracho._--Caricatura inedita de Celso Herminio.]


                                                       Novembro--1909.


Conta hoje o Fuschini--sempre com a Alice Lawrence atraz, sempre a
caminho da Sé, com o chapeu sobre os olhos e um rôlo de papeis debaixo
do braço, sempre sufocado quando sobe as escadas, porque o coração cada
vez lhe trabalha peor, sempre irrequieto e interessante, apesar da edade
e dos cabelos todos brancos:

--O Soveral é um homem de negocios[8]. O que elle quer é dinheiro. Já
tive todos os fios d'essa meada nas mãos... Obrigou agora o rei a ir á
Inglaterra fazer uma figura triste. Pois posso garantir-lhe que ha dois
mezes esteve em Lisboa um correspondente do _Dail Maily_, que contou á
Alice que o proprio duque de Fife mandára ao jornal o seu secretario
desmentir a noticia do casamento.

       *       *       *       *       *

O Avelino de Almeida, jornalista com a especialidade de padres e beatas:

--Quem deu o dinheiro para _O Portugal_ foram as beatas. Um padre
lazarista é que andou metido n'isso. Arranjaram dezoito contos. Só a
viscondessa de Sarmento deu seis.

       *       *       *       *       *

Um artigo curioso do _Corriere de la Sera_, assignado pelo Gomes dos
Santos:


     «Um caso singularissimo poz recentemente a policia na pista d'uma
     conspiração de aventureiros que punham o seu braço ao serviço do
     radicalismo, promptos para tudo quanto lhes fosse ordenado em
     nome... da utopia. Uma longa serie de crimes politicos que datam do
     regicidio e cujos auctores até agora tinham ficado envoltos no
     mysterio, coloca em evidencia os factos preteritos e abre um
     caminho seguro para a liquidação das responsabilidades. Hoje
     ninguem duvida da existencia d'uma sociedade secreta que, sob a
     aparencia de loja maçonica, é o verdadeiro poder executivo do
     partido revolucionario, o braço sempre prompto a ferir, a espada
     que cae traiçoeiramente sobre as victimas designadas pelos
     dirigentes da politica radical?

     Ninguem ignora em Portugal as circumstancias em que se desenrolou o
     regicidio. Na confusão da tarde tragica, a policia cae sobre dois
     dos regicidas e mata-os em legitima defeza. Mas permanece sempre
     firme a convicção de que os regicidas não eram sómente Buiça e
     Costa, que pagaram com a vida o seu delicto! Esta convicção
     fundava-se em factos de ordem material e moral, sobre os quaes não
     havia duvida de especie alguma. A prova moral da existencia
     d'outros cumplices reside na impossibilidade do atentado haver sido
     organisado e levado a efeito apenas por dois homens. A prova
     material forneceram-na numerosissimas testemunhas que viram a
     carruagem real ser alvejada, simultaneamente, de varios pontos e
     observaram a fuga de alguns dos cumplices do regicidio, um dos
     quaes, perseguido pela policia quando fugia, com o rewolver
     fumegante em punho, conseguiu perder-se de vista ao voltar uma rua,
     confundindo-se depois com a multidão espavorida que fugia do logar
     do crime.

     É um vulgar principio de investigação judiciaria que os deliquentes
     se devem procurar entre aquelles a quem o delicto aproveita. Ora
     quem podia aproveitar com a carnificina da familia real? Se
     houvesse produzido uma mudança politica, aproveitavam evidentemente
     os republicanos cujo triumpho teria sido d'esta arte facilitado. Se
     tivesse originado apenas (como realmente produziu) uma substituição
     de governo resultaria proveitosa para os mesmos republicanos aos
     quaes João Franco havia fechado todos os caminhos. Vendo presos os
     seus principaes chefes e ameaçada toda a sua organisação, os
     republicanos esperavam reconquistar, com um golpe de mão, as
     posições primitivas. Não ha outras hypotheses a considerar, visto
     que o crime não podia ter sido perpetrado por uma conspiração de
     monarchicos nem representa um caso individual de terrorismo porque
     os regicidas não eram anarchistas.

     O Buiça e o Gosta eram republicados militantes: trabalhavam nas
     ultimas filas dos revolucionarios. Livres pensadores, pertenciam á
     sociedade de propaganda d'onde, de resto, teem sahido todos os
     criminosos politicos. Homens de acção, pertenciam a uma loja
     secreta, a «Montanha», mixto de instituição maçonica e de comité
     revolucionario, sem local fixo e sem estatutos, que se reune a um
     simples convite dos jornaes da seita, ninguem sabe onde e que se
     compõe de homens _capazes de tudo_. Tudo deixa crer que o regicidio
     foi ahi deliberado e que, como é costume, os executores foram
     tirados á sorte, visto que apenas o sorteio explicava a escolha
     d'um dos regicidas, cujo passado se não ilustra com actos de grande
     coragem individual.

     Mas sobre o regicidio, que inaugura a conhecida série de delictos
     politicos, não mais se tratou de fazer luz. Não se chegou a apurar
     quem foram os cumplices da emboscada e, se porventura se tentou
     esclarecer o caso, acabaram por concluir que era melhor guardar
     silencio sobre elle. No entretanto, occorriam novos factos que
     vieram documentar melhor a existencia d'uma organisação que
     liquidava pelo assassinio as dificuldades susceptiveis de embaraçar
     o movimento revolucionario. Poucos mezes depois do regicidio, um
     humilde engraxador apresentava-se á policia perfeitamente apavorado
     e narrava que dois republicanos lhe tinham proposto lançar uma
     bomba no coche que devia conduzir D. Manuel ao Parlamento. A
     declaração era verdadeira? Ignoro-o. Mas a policia prende os dois
     mencionados instigadores, um dos quaes é fulminado por uma
     congestão cerebral no gabinete do juiz. Este, quando se prepara
     para colher do denunciante novos esclarecimentos, vê o engraxador
     morrer envenenado n'um hospital no meio de horriveis aflicções. O
     desventurado declarava que morria por haver dito a verdade. Por
     falta de provas o processo foi archivado, o que poz de bom humor a
     imprensa revolucionaria, que já se dispunha a desviar a opinião
     publica com um diversivo.

     Poucos mezes depois outro crime vem afirmar a existencia da seita.
     Alguns militares acusados de terem tomado parte no movimento
     revolucionario de 28 de janeiro, foram condenados a penas graves
     pelo tribunal, graças ao depoimento d'um sargento chamado Lima, que
     se insurgiu e referiu o facto aos seus superiores. O sargento
     passeava um dia em Setubal, para onde fôra transferido, quando um
     revolucionario se lançou contra elle e lhe cravou um punhal no
     coração. O assassino, preso quando fugia, allega uma historia
     inverosimil de rivalidade que as investigações policiaes
     desmentiram. Quanto á opinião da auctoridade e dos que conhecem de
     perto as scenas, referidas anteriormente, da quadrilha
     revolucionaria, é clara e expressa: o sargento foi condemnado á
     morte por ter denunciado a existencia da conspiração.

     Dois suicidios mysteriosos--um sob o comboio de Cascaes, outro na
     redacção d'um jornal revolucionario--parecem ter intimas relações
     com a existencia da Mão Negra local.

     Diz-se que os suicidas, designados para certos cometimentos,
     preferiram escapar pela morte ás intimações d'uma implacavel
     organisação secreta. Não faço aqui menção do caso das bombas
     explosivas com que ultimamente pretenderam alvejar algumas egrejas,
     depois da execução de Ferrer. Não ha provas da intervenção da Mão
     Negra, mas simples indicios de presumpção. Mas o que acabou de
     esclarecer o paiz sobre a existencia d'uma formidavel e perigosa
     associação secreta foi o recente crime de Cascaes, a que os jornaes
     independentes dedicaram longas columnas.

     Vão decorridos alguns mezes depois que na administração das
     alfandegas se descobriu um importante furto de armas, que estavam
     para chegar ao seu destino. A ausencia d'um operario da fabrica de
     armas provou a sua responsabilidade no furto, logo confirmada pela
     captura d'um cumplice--um dos implicados na revolução republicana
     de 28 de janeiro--que era o receptador das armas roubadas. Já a
     policia averiguou o destino das armas, que se reservavam, com a
     complacencia de empregados aduaneiros, ao movimento revolucionario,
     quando no meio dos rochedos das arribas de Cascaes, a oito
     kilometros de Lisboa, se encontra assassinado mysteriosamente o
     empregado da alfandega, auctor do furto.

     Com os documentos que lhe encontraram nas algibeiras e com as
     indicações fornecidas pela familia do assassinado, a policia
     reconstituiu facilmente o crime. O pobre empregado, vendo
     descoberto o furto das armas, dirigiu-se aos que o tinham impelido
     e suplica-lhes que o salvem. Deram-lhe dinheiro para transpôr a
     fronteira com promessa de o sustentarem no estrangeiro e o homem
     refugiou-se em Badajoz, territorio hespanhol. Mas o dinheiro falta;
     as promessas não são mantidas e o refugiado escreve aos que o
     haviam levado ao crime, suplicando socorro. Como não obtivesse
     resposta, ameaça-os com declarações. A Mão Negra destaca para
     Badajoz um dos seus agentes, que o conduz a Lisboa enganado com
     promessas de continuar a viagem para Africa; na primeira ocasião
     levam-no a Cascaes a fim de seguir ocultamente para o seu novo
     destino e matam-no, arrastando-o para o mar e precipitando-o do
     alto das ribas.

     O assassino foi preso na fronteira, quando tentava refugiar-se em
     Hespanha, e conduzido a Lisboa, sob rigorosa escolta. Aqui, depois
     de alguns dias de apertados interrogatorios, apanhado em
     contradição, não sabendo explicar as manchas de sangue que tinha no
     fato, confessa finalmente que cometera o crime,--e que, além de ser
     antigo empregado n'um centro republicano, é membro da associação
     secreta a «Montanha», como os regicidas, como os auctores dos
     outros crimes politicos. É a existencia da Mão Negra averiguada e
     confessada.

     Os jornaes da seita, republicanos e revolucionarios, perante esta
     sensacional descoberta, mantiveram a principio o maior silencio;
     jornaes que costumavam ocupar columnas com o mais insignificante
     acontecimento, evitaram, por todos os modos, referir-se a elle.
     Depois, desesperados por não poderem conservar-se calados,
     começaram a agredir violentamente e, por ultimo, a ameaçar a
     imprensa independente que, mostrando-se bem informada, se ocupou
     dos factos com uma certa largueza. E, emquanto a imprensa vermelha
     assim procedia, a policia vinha a saber que os revolucionarios
     tinham projectado fazer evadir o preso e teve a finura de o
     transferir do deposito de segurança para uma caserna militar, onde
     está de sentinella á vista.

     Por outro lado, diz-se que as declarações relativas ao crime de
     Cascaes revelaram uma nova pista para a descoberta dos regicidas e
     a policia afadiga-se no intuito de descobrir e prender os membros
     da Mão Negra. Alguns jornaes lembram, a proposito d'este facto, a
     fuga precipitada de certa personagem para o estrangeiro. A Mão
     Negra é uma especie de comité executivo, dentro do qual se encontra
     todo o elemento revolucionario. Disporá o Estado de força para
     resistir a esta formidavel organisação que nem sequer hesita ante o
     crime?

     A experiencia da fraqueza dos governos, que se sucederam no poder
     após o regicidio, não auctorisa a responder tranquilamente a esta
     interrogação...»



                                                       Dezembro--1909.


Segundo varias pessoas, ha efectivamente em Lisboa muitas agremiações
carbonarias.


                                                       Dezembro--1909.


O A... que se suicidou hontem tinha-se alcançado em não sei
quanto--outros, passeiam por essa Lisboa. Um, o M., alcançou-se em
dezoito contos. Castigaram-no reformando-o com o ordenado por inteiro.

       *       *       *       *       *

Conta o Columbano que a seu pae Manuel Bordallo Pinheiro, pediu um dia
um companheiro de repartição:

--Tenho lá em casa na cocheira (do conde de Lumiares), um quadro muito
negro que queria que você visse.

Manuel Bordallo foi buscar a tela, limpou-a da bosta dos cavalos,
lavou-a da camada de negro... Era, nem mais nem menos, o retrato de
Carlos I d'Inglaterra, por Van Dyck, que o D. Luiz depois comprou e está
hoje na galeria do Paço d'Ajuda.


                                                       Dezembro--1909.


O Avelino d'Almeida:

--A verdadeira razão por que o _Seculo_ se fez republicano?... É que no
Paço, das ultimas vezes que o Silva Graça lá foi, receberam-no mal,
trataram-no d'alto.

       *       *       *       *       *

--Um homem muito honesto o Hintze--diz o Carneiro de Moura--um homem
muito honesto que fazia assim:--Ó Val-Flôr, empreste-me vinte contos.--E
o Val-Flôr emprestava-lhos--e recebia do Estado compensações que valiam
o dôbro. Um homem muito honesto, o Hintze; que nunca tirou dos cofres do
Estado o valor de cincoenta mil reis.


                                                       Dezembro--1909.


Ministerio novo. O bloco foi comido. O Alpoim furioso, exclama, em pleno
Chiado:--O rei mentiu-nos! o rei é um imbecil! o rei tinha-nos prometido
o poder!

E o Vilaça conta:

--O José Luciano reuniu-nos hontem á noite, a mim, ao Beirão, ao Dias
Costa, ao Moreirinha e disse-nos:--Se os senhores estão no partido
apenas para serem pares do reino e para que os encha de favores, isto
acabou, hoje mesmo se liquida o partido progressista. Não podem recusar
as pastas que eu lhes indicar.--Todos se curvaram, o Vilaça, que perde
dez contos por anno, e o proprio Dias Costa, que de forma alguma queria
ser outra vez ministro.


                                                 23 de Dezembro--1909.


O Julio de Vilhena deixou hoje de ser chefe do partido regenerador.
Conta o João Pinto dos Santos, que o Vilhena falou ao rei de cabeça
alta, e por tal forma, que D. Manuel sahiu afogueado d'essa ultima
entrevista, dizendo a alguem:--Só lhe faltou bater-me...


                                                       Dezembro--1909.


O Mardel é um homemzinho pitoresco e anecdotico que conhece Lisboa como
as suas mãos. Ninguem como elle desenha um tipo ou vae ao passado buscar
uma figura. Sabe tudo e inventa o resto. É um prazer ouvil-o. Constroe
genealogias, negoceia em _bric-à-brac_ e escreve satyras. D'uma vez, a
um figurão que se dizia filho natural de D. Pedro IV e que mostrava
desvanecido a toda a gente o retrato do rei que tinha na sala,
perguntando:--Hein, com quem se parece?...--escreveu elle a seguinte
quadra:


Do Imperador, de quem diz que é filho,
Tem o retrato na sala,
Mas da p... que o pariu
Não tem retrato nem fala...


       *       *       *       *       *

Encontro em casa do Mardel o marquez da Foz, de barbas brancas e aspecto
venerando, que desata a narrar conversas extraordinarias, surprehendidas
a meninas do _Sacre Coeur_ sobre a masculinidade dos creados... Depois
fala d'arte, de mobilia, quadros e maravilhas que comprou e vendeu. Vive
hoje arredado em Torres Novas.

--D'uma vez, quando se vendeu a mobilia do palacio de Oeiras, dos
Pombaes, os que fizeram a liquidação, pediram-me para lhes ceder um
andar d'uma casa que eu tinha com escriptos na rua do Ferragial, para se
fazer o leilão. Cedi e antes da praça fui lá, agradaram-me diferentes
coisas e comprei-as. Custaram-me oito contos. Entre varias trapalhadas
iam cinco vasos da China, cinco maravilhas, como nunca tinha visto. Eram
precisas duas pessoas para lhes pegarem. Ao centro de cada vaso viam-se
as armas de Pombal. Quatro coloquei-os á entrada da minha casa, o outro
levei-o para a sala de jantar e pul-o defronte d'uma estufa... Um dia
reparei: por causa do calor o verniz estalára. Levantei-me, olhei: sob a
casca aparecia outro desenho. Tirei com uma faca o _craquelé_--e debaixo
das armas, do Pombal apareceram as armas dos Tavoras! Tão certo é que
até os grandes homens estão sujeitos a estas miserias...

Depois trata da baixela do Paço, que no tempo de D. Luiz estudou a
fundo, e que então andava a trouxe-mouxe pelos armarios. São peças
magnificas, _signé Germain_, e que valem um milhar de contos.--D'uma vez
disse a D. Luiz:--Deixe-me V. Magestade arranjar-lhe uma sala de jantar
com a _boiserie_ de Queluz e a sua baixela, que nenhuma côrte da Europa
apresenta uma sala assim.--Ainda hoje não ha côrte nenhuma, nem a da
Russia, que tenha uma baixela tão rica. São mil e tantas peças
admiraveis. É falso que lá esteja tambem a baixela do duque de Aveiro.
Vi as contas todas, photographei tudo...

       *       *       *       *       *

--Um dia fui ao Leitão ourives, a esse artista...--e sorri com
ironia--comprar qualquer joia. Ia a sahir quando dei com uma prata
antiga a um canto.--Que é aquillo?--Está alli para derreter.--Deixem-me
vêr.--Eram três peças esplendidas, com as armas do duque d'Aveiro--uma
salva enorme, a que faltava um bocado da aza, com desenhos
magnificamente gravados, e duas enormes compoteiras de prata com festões
d'ervilhas, tudo marcado, assignado, admiravel.--São para derreter?
Então venda-m'as. Quanto pezam?--Quinhentos mil reis.--Dou
seiscentos.--Venderam-mas, levei-as para casa. Tinham feito uma
tentativa para lhe apagar as armas. Quando depois as vendi deram-me
alguns contos de reis.

Por fim fala de ninharias, d'isto, d'aquillo--e d'algumas peças que
tinham pertencido ao D. Fernando e «nas quaes alguem fez mão baixa»...

       *       *       *       *       *

Uma anecdota que elle tem como absolutamente autentica e que andou
sempre na tradição da sua familia:

--O D. João VI estava para morrer. O patriarcha procurou a D. Carlota
Joaquina para a reconciliar com o rei. Recebido na sala do throno, em
Queluz, diz-lhe as palavras banaes do costume--mas ella não cede. Pede,
suplica--perde o seu tempo. A rainha está renitente. Então retira-se
depois das contumelias da pragmatica--e, ao sahir, volta-se de repente e
dá com ella a fazer-lhe um grande, um imponente, um magestoso
manguito...

       *       *       *       *       *

Ha dias comprou por cento e cincoenta mil reis um quadro de Alberto
Durer, absolutamente autentico e com a assignatura perfeita.--É o
_pendant_ do que está no Museu. E estou em vesperas de comprar mais
quatro, entre os quaes um Corregio. Suspeito, pela proveniencia, que
todos estes quadros pertenceram á galeria do duque d'Aveiro.


                                                        Janeiro--1910.


Contam-me hoje a morte tragica do Marianno de Carvalho. Estava doente,
de cama, e a familia sahiu, deixando-lhe uma campainha á cabeceira. Os
creados aproveitaram a oportunidade e safaram-se tambem. Quando voltaram
foram dar com elle morto, agarrado á campainha, n'um ultimo desespero...


                                                        Janeiro--1910.


O juiz d'instrucção criminal, dr. Antonio Emilio, a um amigo meu:

--No dia vinte e oito de Janeiro os soldados apanharam junto a qualquer
quartel da municipal um homem com um caixote de bombas e duas pistolas
automaticas. Meteram-no no calabouço--e confessa, não confessa... o
homem nada! Então o oficial chamou um soldado e disse-lhe:--Nós vamos
alli para a porta do calabouço e tu diz-me a tudo que sim. Vamos lá.--E
começou:--Carrega lá essa pistola para darmos cabo d'esse diabo, que
vinha aqui para nos atirar bombas!--Quando o oficial abriu a porta do
calabouço o preso atirou-se-lhe aos pés:--Não me matem que eu confesso
tudo.--Então quem te entregou o caixote?--Foi o Alfredo Costa.--Veio a
participação para o governo civil--mas só chegou ás mãos do juiz depois
da morte do rei...

[Figura: _José Maria de Alpoim._]

       *       *       *       *       *

O juiz:

--Estamos sobre um vulcão. Prendi varios homens das associações
secretas, podia prender mil. Já ninguem salva isto a não ser uma forte
dictadura militar. E eu vou-me embora porque não quero incorrer nas iras
populares.

       *       *       *       *       *

O dr. Antonio Emilio ao Beirão:

--Ou vamos para a frente, ou os senhores metam-se em casa á espera que
os chacinem.

E garante que a explosão de outro dia na Baixa, atribuida a gaz
extravasado, foi devida a uma bomba de dinamite.


                                                        Janeiro--1910.


Os brincos de brilhantes que o Pedro d'Araujo deu á mulher do José
Luciano quando o fizeram par, custaram cem mil francos. Diz-se,
diz-se...


                                                      Fevereiro--1910.


O Paço está rodeado de piquetes. Forças vigiam a Tapada. Garante-se por
ahi que, emquanto os regicidas não forem presos, o rei não casa. O
Maximiliano d'Azevedo, oficial do campo entrincheirado, conta-me que as
forças do campo foram ante-hontem (1 de Fevereiro) postas sob as ordens
do general de divisão e com ordem de marcharem sobre Lisboa ao primeiro
aviso.

       *       *       *       *       *

O que se diz por ahi baixinho, de ouvido para ouvido, é tremendo. Diz-se
o que _O Povo d'Aveiro_, que está tendo tiragens enormes, publicou nos
ultimos numeros[9].

       *       *       *       *       *

O T..., d'_O Mundo_, disse-me que janta duas vezes por semana com o
Alpoim, e já se tem gabado que é elle um dos auctores do _Diz-se_...

       *       *       *       *       *

O Colen, n'um jantar intimo, onde esteve alguem que m'o conta:

--No dia vinte e oito de Janeiro estava tudo preparado e seriamente
preparado para a deposição de D. Carlos--marinha, tropa, organisações,
tudo. E tudo falhou porque o Afonso Costa não quiz dar o signal sem que
o João Franco estivesse morto.


                                                          Março--1910.


Á reunião celebre do Castello, onde se decidiu a morte do rei,
assistiram trinta pessoas.

       *       *       *       *       *

Paçô Vieira:

--A carta que o rei escreveu ao Hintze e que fez com que o ministerio
cahisse, foi conhecida, antes de lhe ser enviada, pelos republicanos. Eu
lhe conto: um dia estava em Paçô, quando o Hintze me chamou. Parti logo,
corri logo a casa d'elle. Encontrei-o na sala de bilhar: tinha um papel
na mão.--Desculpe e obrigado. Já não é necessario. Recebi hoje esta
carta do rei que me levou a pedir a demissão.--Repliquei-lhe:--Sei
perfeitamente o que diz essa carta. Posso repetir-lha quasi phrase por
phrase.--E diante do espanto do Hintze:--Vim no comboio com o Afonso
Costa que me disse, palavra por palavra, o que continha essa
carta...--Assombro do Hintze. A copia da carta fôra mandada pelo rei aos
republicanos--naturalmente ao Bernardino--antes de ser enviada ao
Hintze.


                                                          Março--1910.


Quantos Fialhos, todos diferentes, tenho conhecido pela vida fóra! Este,
de ventre e barbicha de bode, esta figura de que os mortos se
conseguiram apoderar, agarrado á terra, conservador, discutindo com o
padre da freguezia os melhoramentos da sua egreja, este é--emfim!
emfim!--o descendente autentico dos cavadores alemtejanos. Custou... As
suas melhores obras--as que sonhou e nunca se resolveu a
escrever--leva-as elle para a cova... De quando em quando ainda tem uma
revolta:

--É horrivel a minha vida na aldeia. Se não fossem os livros já me tinha
suicidado. Cada vez preciso mais de ver gente e d'esta vida artificial
de Lisboa. Na aldeia, em Cuba, não falo com ninguem, não tenho ninguem
com quem comunicar. São de bronze aquelles filhos da p...! E nem a mais
pequena sombra de sensibilidade. E se imaginam que a gente não tem
dinheiro, estamos perdidos!...

--Fuja.

--Não posso. Quem me ha-de tratar d'aquillo? E depois criei interesse ás
oliveiras que plantei, á vinha... Ah, mas as noites!... Tenho noites em
que pego n'um livro e saio. Ha uma estrada em volta de Cuba--e eu alli
ando á roda toda a noite a falar sósinho como um condenado!


                                                          Março--1910.


Centenario d'Herculano. Missa nos Jeronymos pelo padre Matos. O S.
Boaventura diz-me que, pela avó materna, é ainda parente de
Herculano.--Que eram seus avós?--Pedreiros.--Efectivamente no retrato
Herculano parece um pedreiro da minha aldeia; efectivamente Herculano
descende de pedreiros e toda a sua obra é, na realidade, a d'um homem
que moe e lavra com solemnidade a pedra, a d'um d'esses extraordinarios
montantes que metem o ferro até á raiz da fraga, racham o penedo,
afeiçoam a lage, e acabam, emfim, por construir a cathedral. Herculano
edificou em granito--e no granito abriu pacientes e admiraveis
lavores... A seriedade, a obstinação, e até o amôr á terra, ao azeite e
ao pão, seu ultimo ideal e refugio, são caracteristicos e o ideal tambem
d'essa legião de trabalho imensa e obscura, cuja alma, á força de lidar
com a pedra, adquire dureza e grandeza tambem. Essas figuras, só osso e
pelle, descarnadas, que partem de manhã com o saquitel e a borôa, que só
pronunciam palavras graves, e ao dar do meio dia se descobrem e mastigam
o pedaço sêco de pão com um ar solemne,--acabaram, emfim, por encontrar
um descendente como elles austero e grave, capaz de exprimir o
universo--o que sentiram, o que sofreram e o que sonharam--e capaz de
edificar com alicerces para seculos. Tudo, até a falta de phantasia e
imaginação, até o miudo lavor pacientemente trabalhado, até a casa
simples, vulgar e mal repartida, até a companheira, até a austeridade,
veio a Herculano d'essa grande geração de pedreiros portuguezes, que
antes d'elle fizeram obra digna de homens e desapareceram para sempre no
pó--mas poderam transmitir, filho atraz de pae, a solemnidade e a
grandeza, a quem um dia erguesse uma cathedral mais vasta e com raizes
mais fundas do que elles todos juntos. Mas todos trabalharam tambem,
sabe Deus durante quantos seculos, com tenacidade e firmeza, para a obra
do pedreiro maximo de toda a sua geração.


                                                          Março--1910.


José d'Azevedo:

--Anno passado o rei chamou-me e pediu-me para votar o projecto da União
Vinicola. Disse-lhe logo:--Não, meu senhor, não voto. E V. Magestade
pede-me isso porque não sabe de que se trata. O projecto é ruinoso.


                                                          Abril--1910.


O Fernando de Serpa, agora em foco por causa das cartas que o Afonso
Costa leu no Parlamento[10] e se teem publicado n'_O Mundo_--esteve
estes dias para se suicidar. A mulher não dorme e o irmão d'ella entrou
hoje n'_O Imparcial_ e disse ao José d'Azevedo:--Se isto assim continua
minha irmã endoidece, e se minha irmã endoidece eu mato o Afonso
Costa.--Segundo elle, esse Fernando de Serpa que se metia em tantos
negocios, deve afinal quinze contos de reis e tem agora os seus
vencimentos suspensos...

       *       *       *       *       *

Porque o José d'Azevedo não foi ministro com o Hintze:

--O Hintze tinha por mim uma grande admiração, mas nunca me fez
ministro, porque a sua vida economica andava muito atrapalhada e um dia
em que me mostraram uma lista de pares que elle ia fazer, entre os quaes
estava o meu nome, eu disse:--Mas isso não é uma lista de pares--é uma
lista de credores.--Soube-o logo e nunca me perdoou.

       *       *       *       *       *

Quem roubou ao Paçô as celebres cartas de que o Afonso Costa se serviu
no parlamento, foi o creado. Soube-o hoje por acaso. O Urbano Rodrigues
vendo um rapaz de dezeseis annos na redacção d'_O Imparcial_,
disse:--Este é o creado do Paçô, que vae muito ao _Mundo_ e pertence ás
associações secretas.

       *       *       *       *       *

--O José Luciano foi sempre um homem pernicioso--diz o José d'Azevedo.

--Emquanto fôr uma sombra ha-de mandar--conclue o Fuschini. E
acrescenta:--Quem manda é o seu _salão_ onde se fazem os negocios mais
escuros e mais porcos d'este paiz.

       *       *       *       *       *

--Esse ministro italiano que ahi está--conta o José d'Azevedo--foi um
dos que mais concorreu para salvar Dreyfus. Paulucci, então secretario
de legação em Paris, viu os documentos da embaixada e convenceu-se da
inocencia de Dreyfus. Falou ao embaixador, seu tio, que lhe
disse:--Prohibo-te que te metas n'isso.--Não se importou. Procurou
Bernard Lazare, que o recambiou para o José Reinach.--Isso é
extraordinario. Vamos ter com Max Nordau e com Zola.--Reuniram-se e
examinaram os documentos da legação italiana. Dos papeis não só se
deprehendia que era outro o traidor, mas resaltava nitida e clara esta
preciosa informação: o adido encarregado da espionagem alemã possuia a
esse respeito vinte e nove cartas absolutamente decisivas. Max Nordau
partiu para Berlim e pediu ao imperador da Alemanha a publicação das
cartas. O imperador opoz-se. Paulucci não desanimou: foi a Roma, bateu á
porta d'um cardeal, pediu-lhe que o partido catholico tomasse a defeza
de Dreyfus inocente, o que assegurava ao catholicismo um papel
triumphante no mundo; falou emfim a Leão XIII, a quem só arrancou boas
palavras. (E d'ahi veio o combate da França republicana contra o
clericalismo. Que outro não seria o papel da Egreja se Leão XIII se
manifesta!) Nem assim Paulucci desanima. Insiste com o tio:--Pois meu
tio tem nas suas mãos documentos que provam a inocencia de Dreyfus e
pode dormir descançado! Apresento-me como testemunha.--O embaixador
conseguiu que todos os secretarios fossem testemunhas no processo.
Paulucci tinha doze mil e setecentos documentos (copias) da questão
Dreyfus, que arderam no ultimo fogo da embaixada italiana no campo de
Santa Clara. Paulucci dizia muitas vezes:--Andei dois annos com febre!

       *       *       *       *       *

José d'Azevedo:

--Fui eu que machinei e atirei com o ministerio Ferreira do Amaral a
terra. Tinha-me feito um agravo que, se é directo, m'o pagava n'um
conflicto pessoal. Fui eu que fiz tudo. O José Luciano não queria.
Procurei-o na Anadia. Obstinava-se. Mas eu fui ao Porto--e venci. Uma
tarde o Campos Henriques recebeu uma carta do Paçô, que encontrára o
Tavares Festas no comboio (o Tavares Festas vinha de casa do José
Luciano), carta em que lhe dizia: «Ouvi que vae formar ministerio com
estes nomes...» O Campos Henriques mostrou a carta á mulher:--Olha o que
me diz o Paçô...--E riu-se. No dia seguinte era chamado ao Paço e
organisava o ministerio, tal qual o Paçô lhe dizia na carta. Ordens de
José Luciano.


                                                      1 de Maio--1910.


José d'Azevedo diz a respeito do escandalo do Credito Predial:--Não são
sessenta contos que faltam, são oitocentos! A escripta está toda
viciada. Venderam-se obrigações, deram-se juros entrando-se pelo
capital, emfim um descalabro medonho, que se não podia fazer sem
auctorisação dos governadores.

       *       *       *       *       *

É um politico reservado e frio? Não sei. É um homem audacioso e
inteligente, que parece calmo. Mas ha n'elle uma parte em carne viva.
Sente-se a ferida sob aquella aparencia forte. Escreve sem uma emenda,
linguado atraz de linguado; nem hesitações nem duvidas e um prazer que
synthetisa n'estas palavras:--Babo-me... Não escrevo, babo-me...--Não
crê senão em si mesmo, e não deve ter um amigo, como todos os que contam
apenas com as suas proprias forças. A mulher d'um diplomata que viajou
com elle, dizia:--As maneiras encantaram-me, os olhos meteram-me
medo.--São os olhos dos Brocas.

--Sou das raras pessoas que teem assistido ao suplicio dos chinezes. Fui
com o meu creado, a cavalo--e por signal que elle desmaiou. Cortam-lhes
primeiro a carne dos ante-braços, depois a das pernas, depois os seios,
depois os braços e as pernas pelas articulações; dão-lhes emfim um golpe
no coração e acabam por os decepar. Pois durante todo o suplicio atroz,
os desgraçados não deram um unico grito, um só gemido: erguiam a cabeça
e bufavam ou mijavam-se. Mais nada. Um d'elles prestou-se, sorrindo, a
que o photographassem, emquanto o carrasco levantava a espada para o
degolar...

       *       *       *       *       *

Uma phrase camilliana de uma tia, irmã de Camillo:--Sobrinho, Deus não
existe... ou embarcou!

       *       *       *       *       *

E esta de Camillo, que tinha vindo a Lisboa muito doente, e a quem Souza
Martins, para o sacudir, começou ralhando muito. Camillo, para o José
d'Azevedo, depois do medico sahir:

--Vê, meu sobrinho, vê, não me perdoam o _Eusebio Macario_, estes filhos
de boticario!

       *       *       *       *       *

Camillo para o José d'Azevedo, mostrando-lhe o filho, que já estava no
primeiro periodo de loucura:--Veja esse desgraçado... Era um rapaz
inteligente...--E depois d'uma pausa dolorosa:--E tudo isto porquê,
sobrinho? Por ter lido as obras do Theophilo Braga.


                                                          Junho--1910.


Nos quarteis continua a fazer-se uma larga propaganda republicana.
Distribuem-se aos soldados versos e folhetos. Exemplo:


                       ||  Ide escravos quebrar os grilhões,
                       ||  As algemas da fome homicida;
                       ||  Armas promptas contra esses ladrões,
                       ||  Que nos roubam a bolsa e a vida! (bis)
                       ||  Nova aurora de Paz, Redempção,
                       ||  Vá doirar nossos valles e cerros,
PROPAGANDA ELEIÇOEIRA  ||  Libertando os captivos dos ferros,
  DO BLOCO PREDIAL     ||  Dando aos pobres a luz e o pão.
  ----------------     ||
(Musica--A MARSELHEZA) ||            Avante! Lusitanos!
                       ||            Largae a servidão!
                       ||      Unir! Unir! contra os tyramnos,
                       ||            Salvemos a Nação!
                       ||            Avante Lusitanos,
                       ||            Salvemos a Nação.
                       ||
                       ||
                       ||                                  Tareco.



E o folheto «Os Barbadões»[11]:


     «O rei D. João I da gloriosa dynastia de Aviz, enamorou-se da filha
     de Pero Esteves, sapateiro alemtejano, conhecido pela alcunha _O
     Barbadão_; d'estes amores nasceu um filho que foi conde de
     Barcellos e primeiro duque de Bragança; casando este com uma filha
     do condestavel Nun'Alvares, deu origem á nobre casa que ha 267
     annos reina em Portugal.

     A casa de Bragança foi-se engrandecendo á custa de doações regias,
     bens nacionaes que os reis cediam em usufructo apenas, e que o
     capricho do soberano ou a conveniencia do Estado, podiam fazer
     voltar ao seu legitimo proprietário: *A Nação*.

     Não foram os serviços relevantes que engrandeceram esta casa, mas
     as intrigas continuas, salientando-se entre todas a que levou o
     glorioso infante D. Pedro á chacina de Alfarrobeira.

     Com a revolução de 1640 que libertou Portugal do jugo da Espanha, o
     oitavo duque de Bragança foi aclamado rei com o nome de João IV;
     beato e poltrão liga-se aos jesuitas, e para salvar a pelle e o
     titulo de rei, não hesita em negociar por intermedio do padre
     Antonio Vieira (jesuita) a entrega do seu paiz á França, ou
     novamente á Espanha, a troco de o reconhecerem como rei do Brazil;
     a sua pessoa era tudo, o seu paiz era nada. Os melhores servidores
     do Estado foram lançados em prisões ou conduzidos ao cadafalso (o
     ministro Lucena, o marquez de Montalvão, Mathias d'Albuquerque
     vencedor de Montijo, etc.). O seu reinado foi coroado pelo presente
     que fez á Inglaterra, como dote de sua irmã, das cidades de Bombaim
     e Tanger, ricas flores de laranjeira que a infante portugueza levou
     prezas ao seu vestido de noiva!

     Seu filho _Afonso VI_ que no throno lhe sucedeu, corria de noite as
     ruas da cidade, com a sua purria fidalga, assaltando os cidadãos
     indefezos; era doido, e d'isso se aproveita seu irmão _Pedro II_
     para lhe tirar a corôa e... a mulher, com o consentimento do papa;
     este (Pedro II) dominado pelos jesuitas tambem, desterra o conde de
     Castello Melhor, glorioso ministro (que por tres vezes salvou
     Portugal da dominação espanhola), e celebra com a Inglaterra o
     vergonhoso tratado de Methwen, que nos tira o comercio do Oriente e
     nos impossibilita de montar fabricas e oficinas.

     *João V* que lhe sucede, gasta o oiro que do Brazil lhe vem, na
     construção de conventos, em festas de egreja e em presentes ao
     padre santo; deixa perder sem enviar socorros, as nossas colonias
     da India, Ceylão e Oceania, porque o dinheiro era pouco para
     presentear as freiras de quem fez amantes e o papa de quem se fez
     lacaio.

     *José I* faz morrer no cadafalso toda a familia Tavora, por meio de
     horriveis tormentos, com o pretexto de serem cumplices na
     conspiração do duque de Aveiro, o que se não provou, sendo a causa
     verdadeira a oposição que essa familia fazia aos seus amores
     adulteros com a marqueza; nada escapou ao seu furor sanguinario:
     nem velhos, nem mulheres, nem creanças. Para dignamente coroar o
     seu reinado, abandona aos mouros as cidades que possuiamos em
     Marrocos, e que tanto sangue portuguez custaram.

     [Figura: _Teixeira de Sousa._]

     *Maria I* tira o poder ao Marquez de Pombal, entrega-o aos frades e
     endoidece; seu filho _João VI_ que em seu nome governou e lhe
     sucedeu, foge covardemente para o Brazil abandonando o povo de que
     era rei, quando os francezes invadiram o paiz; Junot entra em
     Lisboa á frente de 70 soldados!!! Portugal revolta-se contra os
     francezes, e o rei entrega-o aos desprezos de Wellington e ás
     brutalidades de Beresford; os inglezes protegendo-nos, fazem-nos
     peor mal que os invasores: arrazam as nossas provincias, queimam as
     nossas fabricas, conquistam a Madeira, e impõem-nos os vergonhosos
     tratados de 1810, ainda peores que o de Methwen. O general Gomes
     Freire, por tentar libertar o paiz das garras inglezas, é enforcado
     em S. Julião da Barra; outros 17 martires pagam com a vida, no
     Campo de Sant'Anna, a sua dedicação patriotica. A revolução popular
     de 1820 salva Portugal do leopardo britanico, obriga o rei a voltar
     ao seu posto e liberta o exercito do oprobrio de ser comandado por
     oficiaes inglezes.

     *D. Miguel* foi quem primeiro estabeleceu em Portugal um governo de
     força, á semelhança do que desejam actualmente alguns idiotas
     barriguistas; nada lhe faltava: as alçadas, as forcas, o cacete,
     80.000 homens de tropa e um povo fanatico e imbecil; contra si, em
     todo o paiz, apenas tinha alguns liberaes desarmados; o seu retrato
     figurava nos altares, e as mães pediam-lhe a honra de lhes
     desflorar as filhas. Prende, enforca ou manda fuzilar toda a gente
     de que suspeita, mas com toda a sua força, deixa que uma esquadra
     estrangeira lhe escarre na cara e no Paiz, sem que um só tiro
     partisse a repelir a afronta. Este idolo poderoso cahe do seu
     pedestal de sangue, é corrido do throno pela _revolução_
     triumphante; seu numeroso exercito pouco a pouco o foi abandonando,
     vindo para o lado do povo liberal, e o bronco tigre que ao começar
     a guerra civil tinha 80.000 homens ás suas ordens, perde a batalha
     de Asseiceira com os 5.000 homens unicos que até esse momento lhe
     ficaram fieis.

     *Pedro IV*, o que tem estatua no Rocio, revolta o Brazil contra
     Portugal, faz-se seu imperador e manda fuzilar no Rio de Janeiro os
     soldados portuguezes á traição; corrido do Brazil, volta a Portugal
     a tentar fortuna, dirigindo a guerra civil contra o irmão; emquanto
     esta se não decide a seu favor, não tem vergonha de offerecer á
     Inglaterra, em troca de auxilio desta, o pouco que nos restava do
     nosso imperio indiano.

     *Maria II* para se aguentar no throno chama marujos inglezes e
     30:000 soldados de Espanha; faz invadir a sua patria e assassinar o
     seu povo, para satisfação do seu orgulho de rainha _liberal_.

     *Pedro V* não poude passar sem irmãs de caridade, e deixa que
     mansamente de novo se estabeleçam entre nós as congregações
     religiosas; novamente, um almirante estrangeiro (Lavaud) nos faz o
     mesmo que Roussin fizera em tempo de D. Miguel.

     *Luiz I* arvora o cynismo em governo e faz reinar a bandalheira;
     deixa que na conferencia de Berlim nos roubem a maior parte do
     nosso territorio Africano, e conduz o paiz á bancarrota que estala
     pouco tempo depois da subida ao throno de seu filho _Carlos_. Este,
     esbofeteado pela Inglaterra, curva-se rasteiramente, chama
     piolheira á nação que lhe paga, e... rouba-a; rouba-lhe o seu
     dinheiro e rouba-lhe a liberdade; no seu reinado perdemos vastos
     territorios nas nossas colonias de Moçambique, Angola e Guiné. O
     seu ultimo ministro João Franco, que queria pôr tudo isto no _xão_
     atirou com elle ao chão. Seu filho _Manuel II_ que lhe succedeu,
     com sua bella e radiosa mocidade, já deu a seu povo uma explendida
     amostra do muito amor que lhe tem: a chacina de 5 de abril (14
     mortos e 100 feridos!); em troca o seu primeiro ministerio entendeu
     que o povo lhe devia dar mais ordenado; ainda não roubou como o
     papá, mas paga-se melhor; passa a sua vida de rozario na mão,
     envergando a roupêta de jezuita, seguindo os conselhos das fraldas
     femeninas reaccionario-palatinas.

     Até hoje 14 reis da casa de Bragança teem governado o Paiz, e como
     se vê são os legitimos representantes duma nação de idiotas,
     barriguistas e poltrões; tambem não resta duvida que esta dynastia
     é, como tem sido, a mais solida garantia da integridade do nosso
     imperio ultramarino. Grandes são os beneficios que a Nação lhe
     deve: uma divida colossal de *oitocentos mil contos*, nenhumas
     industrias, nenhum commercio, uma agricultura atrazadissima, um
     povo tuberculoso e analphabeto, esmagado com impostos á mercê dos
     pontapés estrangeiros; nem exercito nem marinha; estradas ao
     abandono e bufos com fartura, taes são as fontes de riqueza que os
     Braganças nos deixam, e tudo isto por pouco dinheiro, baratinho:
     *365 contos* por anno só para elle, mais *60 contos* para a mamã,
     *outros 60* para a vóvó e *16* para o titi; tem tambem para
     alfinetes *160 contos* a mais por anno que o generoso Amaral lhe
     deu, pagamos tambem á sua guarda real de archeiros, á orchestra da
     sua real Camara, e ao seu yacht, e como isto é pouco, damos-lhe
     dinheiro pela honra que nos faz em alojar os seus cavallos e carros
     nas nossas casas e pela licença que nos deu de utilisarmos em
     serviço do Estado os nossos palacios; tudo isto, bem entendido,
     nada tem com os rendimentos da casa de Bragança que disfructa.
     Quando casar, se S. M. nos der essa felicidade, dar-lhe-hemos mais
     *60 contos* para os alfinetes de sua esposa; e se tiver meninos?
     então morreremos de alegria e daremos *20 contos* annuaes por cada
     pimpolho.

     Como veem, não é pagar cara a certeza que temos de ganhar o reino
     do ceu pela mão do nosso radioso soberano, com a benção de Pio X,
     as indulgencias de Merry del Val e as preces solemnes do sr.
     patriarcha e do reverendo bispo de Beja.

       *       *       *       *       *

     Oliveira Martins, que foi ministro de D. Carlos, diz na sua
     historia de Portugal: Força é reconhecer que na familia dos
     Braganças não vingou a semente da nobre raça dos Nun'Alvares;
     viu-se em todos elles a descendencia do crasso sangue alemtejano da
     filha do _Barbadão_.

       *       *       *       *       *

     *Portuguezes!* façamos votos pela conservação d'esta gloriosa
     dynastia--*Oremos*--*Padre Nosso*--*Ave-Maria*.


                                                          Junho--1910.


Fui hoje a casa do Fernando Martins de Carvalho consultal-o. Não sae
ainda com medo aos republicanos. É pequeno, inteligente, arguto. Está
livido.

--A rainha D. Amelia é que quiz forçosamente que o ministerio João
Franco fôsse abaixo e até se opunha a que se lavrassem os decretos como
habitualmente.

--E o rei?

--O rei, como dizia o Totenbach, não é um homem... Oh, vivemos dias
horriveis! Olhe, tenho provas moraes absolutas de que os republicanos
quizeram assassinar o João Franco, quando elle viesse de Carnide no
automovel. Ha na estrada uma azinhaga: de repente uma carroça surgia,
fazia parar o automovel e os assassinos cahiam-lhe em cima...


                                                          Julho--1910.


Do João de Menezes:

--Possuo documentos (que hão-de aparecer a seu tempo) e que provam que
foi a rainha D. Amelia, d'acordo com a condessa de Paris e a duqueza de
Monpensier, quem introduziu as ordens religiosas no paiz. Foram ellas
que deram dinheiro para jornaes e o resto.

       *       *       *       *       *

A dissidencia, o assassinato do rei, o caso do Credito Predial, foram
golpes profundos e certeiros vibrados na monarchia. Está efectivamente
tudo minado... E os ataques dos republicanos ao juiz de instrução
criminal demonstram que elle lhes tocou na ferida... Mas quem ha ahi que
se queira comprometer a serio pela monarchia, sobretudo depois do
exemplo de João Franco?--A um ministro foi preciso escrever-lhe uma
ordem necessaria «porque a mão lhe tremia...» O que resta de pé não
passa de ficção. Quem manda, quem governa, mesmo na oposição, são os
republicanos, que o Alpoim leva pela mão até ás questões importantes.--O
exercito é nosso.--E o João Chagas, para convencer um oficial incredulo,
manda desfilar certa noite no Rocio os soldados d'um regimento, que, por
senha, um a um lhe fazem todos a continencia. Sucedem-se os governos,
mas a força é outra, que se sente por traz do scenario... O José
d'Azevedo desafia-os:--Venham para a rua!--Fiado em quê? O pacto de Vila
Viçosa efectivamente existe?[12] Já o João Franco dizia tambem com
arrogancia:--Se podem fazer a republica façam-na depressa, porque d'aqui
a dois annos garanto-lhes que a não fazem.--Mas será este rei um
chefe?--pergunta necessaria e decisiva, a que os proprios monarchicos
respondem d'esta forma n'_O Liberal_:


     «O rei de Portugal está exautorado, está reduzido a uma chancella
     de quem lhe bate os pés.

     «Podia ser um rei, e é um simulacro da realeza.

     «Em tempo algum se curvaram os reis perante ameaças de qualquer
     natureza e ainda menos, quando tendentes a esquecer os nossos
     protestos e juramentos a que está ligada a propria dignidade e a
     honra de uma nação.

     «Póde asseverar-se que o snr. D. Manuel não chegou a ser rei. No
     momento em que se esqueceu do que devia á sua dignidade de nós
     todos, *que lhe confiamos um cargo, que é incapaz de conservar sem
     o deixar cair, o snr. D. Manuel deixou de ser rei*».


A excitação politica não tem diminuido, e o Teixeira de Souza, no poder,
ignora tudo que o juiz d'instrucção repete a quem o quer ouvir:--Estamos
sobre um vulcão!--A audacia dos republicanos todos os dias
augmenta:--Lisboa é nossa!--exclama o Chagas.--Se os republicanos
fizessem um comicio ao alto da Avenida e viessem por ali abaixo, a
republica estava feita!--afirma o Silva Graça--E o Porto e a
provincia?--pergunto eu ao Chagas.--Que me importa a provincia! Que
importa mesmo o Porto! A republica fazemol-a depois pelo
telegrapho.--Outro diz-me:--A marinha está toda comnosco. Tem havido
ocasiões em que a esquadrilha do Algarve nos pertence desde o oficial
mais graduado até ao ultimo fogueiro. O dificil tem sido
contel-os...--Todos os dias corre um boato e a agitação popular augmenta
pela carestia da vida[13]. Que vae sahir d'aqui? Uma grande revolução, o
terror, mortes?...--Não, soceguem, quando se fizer a republica--já o
anunciou ha annos o pontifice maximo Guerra Junqueiro--o que se ha-de
ouvir não é um grande ruido de espadas, é um grande ruido de talheres...



A SOCIEDADE ELEGANTE


Rodeiam a rainha o Figueiró e a Figueiró, e algumas relações intimas da
Figueiró e Sabugosa; e o rei o Ficalho, alguns velhos em oficio na
côrte, como o marquez d'Alvito, o conde de Villa Nova de Cerveira, que,
ao que se disse, morreu por ser preterido pelo conde de Sabugosa, por
influencia da rainha--o que é redondamente falso: D. Pedro de Noronha,
vulgo o Paço d'Arcos, morreu de velho. Era um homem sem cultura, e tinha
oitenta e seis annos quando foi preciso nomear novo mordomo mór por
morte do Ficalho. Acompanham o rei no yacht o Fernando de Serpa, o
Manuel Figueira, o Pinto Basto (Nico), o Malaquias de Lemos, o Queiroz,
que passou por ser a alma danada do paço; e que na realidade tinha um
certo geito para disciplinar soldados, montar a cavallo, dirigir esperas
de touros--e mais nada; algumas vezes o major Santos, feitor da
Bacalhôa, e o Soveral que, quando estava em Lisboa, era o menino bonito
da corte, onde tinham influencia o Bernardo Pindella, o Caldeira,
comandante do yacht, e poucos mais.

A seguir ao paço podem citar-se os Palmellas, em casa de quem se dava
beijamão aos creados e ás creadas, se isto não é uma lenda como muitas
outras... Era uma pequena corte. Ella, a duqueza, viveu sempre entre
coisas bellas; elle, o duque, era um apagado guarda livros[14]. Só
recebiam raros parentes, e a duqueza toda a vida detestou os Sousa
Holstein. No tempo de D. Luiz ainda muita gente nobre mantinha uma
grande linha, que se foi pouco a pouco apagando: os Penafieis que então
fizeram uma vida brilhante; o marquez de Vianna cujo palacio se vendeu
ao marquez da Praia.--Aquella gente nem sabe acender um lustre, dizia o
velho marquez ao falar d'«esses morgadotes da ilha...» Os condes de
Lumiares davam bellas festas no palacio quasi pegado, onde é hoje o do
Marquez da Fóz. Abriam-se as janellas, apagavam-se os milhares de
lustres e continuava-se a conversa ate á missa das almas na capella
proxima.

Chamavam-se essas festas «rosas divinas». Debutou ahi, nas salas de
Lisboa, o snr. Luiz de Soveral. No rez do chão do mesmo palacio davam
pequenas partidas os Castellos Melhor. Tocava o seu amigo Bomtempo e
juntavam-se alguns politicos, entre os quaes o Manuel Vaz Preto. No fim
do reinado de D. Luiz já a maior parte dos palacios de Lisboa ou tinham
sido alugados ou mudado de dono. No palacio de Tancos estava o colegio
do dr. Sicuro; nos dos viscondes de Asseca instalou-se o visconde de
Ouguella e depois uma fabrica; o dos condes de Murça transformou-se
n'uma escola; o do marquez de Abrantes--que ocupava apenas um
recanto--foi alugado pela legação da França; o dos condes Barão, no
largo do mesmo nome, passou a uma familia de judeus, barão de Villa de
Foscôa; o dos Almadas Carvalhaes, senhores d'Ilhavo, á Empreza Editora;
no do conde da Ribeira, de quem o rei dizia que era o homem mais honesto
do seu tempo, e que morava na casa dos Mordomos, instalou-se o colegio
Arriaga. Já os Angejas, representados pelo conde de Peniche, tinham
deixado o palacio de S. Lazaro, que depois ardeu, e o visconde de
Sampaio mudára para a rua de S. Vicente. Os condes Valladares e Povolide
haviam vendido ao snr. Burnay o palacio das Portas de Santo Antão e
retirado para a provincia. O palacio dos condes de Paraty é hoje escola
municipal, no dos condes da Ponte, á Boa Morte, habitou o general
Palmeirim, e no dos condes de Farrobo móra o snr. Monteiro Milhões, que
tambem comprou as Laranjeiras, vendidas depois successivamente até
cahirem nas mãos do snr. conde de Burnay. O palacio dos Castellos Melhor
passou ás mãos do marquez da Fóz, que alli deu algumas festas
sumptuosas. Mas a mais brilhante, a que deixou grande impressão na gente
da epoca, foi o celebre baile das Chagas, na antiga residencia, antes de
mudar para o palacio da Avenida. N'esse baile se exhibiram todas as
preciosidades que o marquez adquirira--quadros, baixelas Germain, etc.
Romperam-se os tectos da sala de baile, para se construir uma galeria
onde tocaram os musicos, acompanhados pelo côro de S. Carlos. Ahi
começou tambem o marquez a arruinar-se. Gastou, gastou... Só as grades
de ferro do corrimão do palacio da Avenida custaram noventa e cinco
contos. O marquez chegou a ter cem contos de renda.

Muitas outras familias ilustres ocupavam, retiradas da vida mundana, os
seus palacios: o conde de Alcaçovas, na rua da Cruz dos Poiaes, o
marquez de Pombal na rua Formosa, os marquezes de Penalva, etc. Os
condes de Sabugosa, n'uma residencia que o conde tornou encantadora,
recebiam ainda com brilho. Na rua Formosa existia tambem o salão da
snr.^a D. Maria Kruz Brito, que no seu genero foi o unico comparavel aos
salões da Restauração e 2.^o Imperio, de Paris. Sua filha, a senhora
condessa de Ficalho, no solarengo palacio dos Mellos de Serpa, aos
Caetanos, reunia a fina flor da elegancia em certos dias da semana
(segundas-feiras). É o palacio ainda hoje ocupado pela senhora D. Maria
de Mello, condessa de Ficalho. O destruido e inhabitavel palacio da
Rosa, solar dos viscondes de Villa Nova de Cerveira, marquezes de Ponte
de Lima, resurgiu pelos esforços do actual marquez de Castello Melhor,
visconde da Varzea pelo seu casamento com a herdeira das casas Castello
Melhor e Ponte de Lima, e alli se deram e dão esplendidas festas.


Citam-se como as mulheres mais lindas d'essa epoca--fim do reinado de D.
Luiz e principio de D. Carlos--a duqueza de Palmella, a condessa de
Penamacôr, a condessa de Ficalho, a condessa de Villa Real e Mello, e a
formosissima D. Anna de Sousa Coutinho, filha do Conde de Linhares,
portanto neta da Senhora Infanta D. Anna de Jesus Maria, dama da rainha,
e pelo espirito, pelo talento, a condessa de Rio Maior (mãe), a marqueza
sua nora, filha dos marquezes de Bemposta Sub-Serra (Saint Leger) e
tantas outras sumidas ou desaparecidas no turbilhão da vida.

Uns pobres, outros mortos, outros arredados, deram logar a esta
sociedade mais mesclada, a gente de dinheiro, a gente que enriquece,
alguns nobres de mistura, alguns fidalgotes feitos á ultima hora, e a
uma certa roda que se diverte, citada nos jornaes, e que constitue em
toda a parte o que se chama a sociedade elegante. Uma senhora de
espirito dividia a sociedade portugueza em aristocracia, _smart set_,
alto pirismo (pirismo, é claro, vem de Pires), baixo pirismo e povo.
«Esta ideia veio-me--diz ella--d'uma visita que recebemos um dia e que
muito nos impressionou: num grupo d'automobilistas do Monte Estoril
nossos conhecidos, tinha vindo a F..., aquelle sitio apartado á
beira-mar, onde já o nosso pae costumava passar o verão, uma menina da
boa sociedade de Cascaes. Essa menina, dizia minha irmã cheia de
extranhêza, que nunca tinha vindo áquella casa, esteve durante toda a
tarde exclusivamente a namorar um dos taes automobilistas, e nem antes
nem depois nem nunca, esboçou para com os donos da casa um leve sorriso
de agradecimento! Porquê n'uma menina tão fina tanto «falta de chá!...»?
Porquê, entre ellas, e as meninas finas nossas conhecidas com mais
intimidade, tamanha diferença?... Foi assim por comparações
estabelecidas e deduções tiradas, que concluimos em dividir as classes
da sociedade actual em aristocracia, _smart set_, _alto pirismo_, _baixo
pirismo_ e povo.

É inutil explicar o que se entende por aristocracia e povo. Cada uma
dessas classes, no seu extremo oposto, está suficientemente definida por
sua propria natureza. _Baixo pirismo_ é nome novo para a baixa
burguezia, classe de que tanto, com tanta graça, e tanta verdade, se
ocupou Gervasio Lobato. _Alto pirismo_... alto pirismo, somos nós, por
exemplo, as manas da descoberta, muito bem acompanhadas por todas as
nossas amigas e por quasi todos os nossos conhecimentos, mais ou menos
endinheirados (ha de tudo!) de maior ou menor bom gosto e cultura.
Classe numerosissima, em que está incluida toda a boa gente que cuida de
ser bem educadinha e agradavel e que trata de sustentar, por um
alevantado valor civico--que muitas vezes é inconsciente...!--as regras,
os preconceitos, as convenções, de que uma sociedade bem organisada não
pode prescindir.

Ha alguns grupos no alto pirismo, muitissimo agradaveis--se n'elle
incluimos tanta gente!...--em que se cultiva ainda a boa conversa, em
que, sem sombra de pedantismo, se discutem livros, ideias, arte, e em
que ninguem sente saudades de jogar o bridge. Mas ha outros grupos, em
que nas festas os homens não estão na mesma sala em que estão as
senhoras, festas em que só dança, e pouco, a gente muito nova, e em que
as meninas, nada interessantes, mas com aquelle ar de timidez e de
recato, que tanto agrada aos portuguezes á volta d'uma viagem pelo
extrangeiro, namoram pelos processos archaicos, sob os olhares mais ou
menos adormecidos da mamã. Festas essas em que, a alturas tantas, nós,
com a certeza absoluta de que o relogio está parado, começamos a sentir
verdadeiro odio pelas begonias artificiaes--ainda se encontram!--que
ornamentam a étagère, e que cresceram em leque de dentro d'uma especie
de musgo sêco, muito mal imitado; festas em que só pela muita fôrça da
boa educação recebida nos obrigamos a trocar umas palavras vazias de
interesse por uma contorsão dificil e dolorosa do corpo, com a senhora
gorda que está sentada no _borne_ atraz de nós! (Tambem ainda se
encontram muitos _bornes_!!)

São estes grupos do alto pirismo, é preciso dizer a verdade toda, que
nos enchem precocemente a cabeça de cabelos brancos.

A _smart set_ (cá está a tal menina que apareceu na F...) foi certamente
organizada em Cascaes. Deve ter nascido na Parada...--e foi fundada
provavelmente por um pequeno grupo de aristocratas neurasthenicos e
comodistas, aos quaes logo, muito contentes, se agregaram por
facilidades de convivencia e porque os souberam imitar, alguns membros
do alto pirismo. Hoje é uma classe bastante numerosa e certamente a mais
_chic_. Distingue-se das outras por varias coisas; por exemplo: desprezo
absoluto pela prudente instituição do «chaperon» (esses entreteem-se com
o bluff)--desprezo absoluto pelas boas maneiras, pela cortezia corrente
(só se cumprimentam as pessoas que passem perto e essas mesmas com
marcada indiferença)--ignorancia completa das regras da gramatica (isso
seria «falar dificil»!) e da orthographia. Cultivam só o corpo
diplomatico e a religião; vestem bem, jogam muito, dançam muito e bem, e
flirtam na perfeição. Votaram ao ostracismo algumas palavras que nós
dizemos e que são _pessidonias_ como: chavena, trem, pharmacia, carnaval
etc. etc. etc. Tratam-se todos por «você»; alguns teem muita _piada_ e
usam todos um ar muito _chateado_. (É da praxe, o calão.) A _smart_
diverte-se... mas não sabe sorrir».

Esta sociedade, que anda todos os dias nos jornaes, vem do alto até
baixo, da aristocracia ao povo, forma uma lista infindavel, tem um
chronista celebre, o snr. Luiz Trigueiros, e pode ser vista ás tardes no
_Dia_ e de manhã no _Diario Nacional_. Dessa lista destaca outro
informador algumas senhoras: Branca de Gonta Colaço, poetisa distincta,
voz de ouro, herdada do pae, bonita a valer e sempre apaixonada pelo
marido, o artista Jorge Colaço; Magdalena Trigueiros de Martel Patricio,
pequenina, vivissima compleição d'artista, gostos aristocraticos,
fazendo versos em francês e d'uma alegria comunicativa; Elisa Baptista
de Sousa Pedroso, pianista eximia, sempre em concertos, em recitas de
caridade, em festas que dá em sua casa e onde reune uma sociedade
mesclada de artistas, diplomatas, aristocratas e politicos; Sarah da
Motta Vieira Marques, voz rica e sciencia no cantar, só rivalisando com
a sciencia de receber: o seu salão pode considerar-se um dos poucos
refugios dos ultimos dez annos, no dizer dos seus amigos; Adelaide
Coelho da Cunha, esposa do director do _Diario de Noticias_, grande
organisadora de festas, no seu palacio a S. Vicente de Fora, festas
dramaticas d'uma grande riqueza de apresentação e mise-en-scêne; a
malograda Ada Weinstin, a esposa do conhecido banqueiro, recitando
maravilhosamente, vestindo com suprema distincção, bonita, elegante,
cheia de _charme_; Candida da Nova Kendall, formosura triumphante, que
passou pela sociedade lisboeta como um meteoro louro, cantou como um
rouxinol, e voou para terras da Santa Cruz, sua patria: ella a bem dizer
tinha duas patrias: Bahia-Paris; Alda Decken Lino, figurinha de madona,
de bandós negros e olhos transparentes, mulher do architecto Raul Lino;
Maria Emilia Macieira Lino, cantora e organisadora de soirées artisticas
com representações de autos de Gil Vicente; Alice Munró dos Anjos, dando
festas na sua casa da Praça dos Restauradores, onde se dança
alegremente, presididas pelas suas filhas, a linda condessa de Arnoso e
a simpathica condessa de S. Lourenço; Luzia Patricio de Balsemão, grande
linha de elegancia, certa em todas as premiéres; Irene Gilman, filha de
Thomaz Ribeiro, loura, inteligente, maliciosa e dançando
maravilhosamente; Christina Rezende da Silva, d'uma belleza e elegancia
patricias; Elisa Baerlein; Conceição de Carvalho, filha de Mariano,
organisadora de festas artisticas, para que escrevia peças, em casa de
seus sogros os Viscondes de Carnaxide, bonita e intelligente; Zulmira
Franco Teixeira, pequenina, d'uma requintada elegancia, fazendo versos,
como sua irmã a condessa de Almeida Araujo, etc. etc.

       *       *       *       *       *

A sociedade lisboeta tinha dois pontos principaes de contacto--Cascaes e
o theatro de S. Carlos. Era ahi que os ricos, ou os que aparentavam,
procuravam impor-se a certa roda, que dificilmente os recebia.


De 1880 para cá as emprezas succedem-se em S. Carlos como os ministerios
progressistas e regenerador e Valdez disputa com Freitas Brito a vinda a
Lisboa das grandes celebridades. Se Valdez traz Masini, Patti, Devriés,
Vidal, Castel Mary, Devoyod, Cotogni, a tragica Ristori, a Regina
Pacini, Novelli, de Bassini, que passou por amante d'uma rainha (vêr
Fialho), os irmãos Andrades, etc.; Freitas Brito apresenta Varesi,
Gayarre, Rapp, irmãos De Reskée, Navarrini, Tetrazzini, Theodorini,
Gabrielesco, Nevada, Kaschmann, Sarah Bernhard, Marini, Ristori,
Salvini, Rossi, Desreins, Sherie, Belincioni, Ferrani Darclée, Tamagno,
Borghi Mamo (Herminia), baritono Aldighieri, Pandolfini, Saloni, Arkel,
maestro Gula, Delman, tenor De Marchi, Morconi, Sarasate, e tantos
outros. Os partidarios de Freitas Brito pateavam sempre na epoca de
Valdez, os de Valdez na epoca de Freitas Brito--o que não os impedia de
se juntarem em jantares semanaes, a que assistiam os dois emprezarios...
A estas duas emprezas segue Paccini, que faz fortuna. Foi n'essa epoca
que S. Carlos se transformou n'um grande salão. Vem a Lisboa os reis e
presidentes de republicas. O numero de recitas augmenta, a assignatura
augmenta. Paccini dá cincoenta recitas de assignatura, vinte e quatro
extraordinarias e doze extraordinarissimas, a que o publico chama dos
_Sebastiões_, e no palco desfilam Belincioni, Krucinisky, De Lerma,
Renaud, Tita Ruffo, Lassalle, etc., etc. Segue-se Anahory, com a
carruagem, o charuto, Wagner--e o desastre.

Ahi está todo o mundo literario e elegante, nos camarotes ou na plateia,
toda a Lisboa como se diz nos jornaes: Carlos de Freitas Jacome, antigo
diletanti, e que se julgava pae da Patti, Freitas Rego, o Principe
Negro, conquistador irresistivel, D. Luiz da Camara, o conde de
Mesquitella e Antonio de Brito, que formavam um grupo, de que Bordallo
fez tres medalhões para distribuir pelos assignantes de S. Carlos;
Joaquim Pessoa, do _Diario de Noticias_, apaixonado da Baresi; José
Saragga, critico do _Jornal do Commercio_; o phantastico Eduardo Cheira;
Mr. Garaty e mulher, assignantes chronicos de S. Carlos, elle muito
baixo, ella muito alta; dr. Patrocinio, professor de mathematica, com
uma paixão assolapada pela cantora Pasqua; Antonio da Costa e Silva, um
dos mais elegantes rapazes de Lisboa; Alfredo Anjos, enamorado da
Devriés, e que na noite do seu beneficio lhe mandou compor um
deslumbrante jardim natural para o 3.^o acto do Fausto; Francisco da
Fonseca Benevides e esposa, o auctor da «Historia do Theatro de
S.Carlos» (recitas impares n'uma frisa, recitas pares n'uma torrinha),
Freitas Branco, Silva Canellas, Jayme Arthur da Costa Pinto, que foi
director da sociedade lyrica que se fundou em S. Carlos com o Paccini
pae; Motta Marques, que casou com a cantora Meccoci; May Figueira, o
exotico marquez de Franco e Silva Carvalho, todos tres adoradores do
corpo de baile; Custodio Borja, José Bacellar e Ottolini da Veiga, com
mania de canto e voz de _basso_--e que, d'uma vez, corrido pelo publico,
a quem fizera um manguito, fugiu no comboio para o Porto, ainda vestido
de frade, com o fraque enfiado por cima--Eduardo Cordeiro e Augusto
Ribeiro, enorme e sempre com muitos calos; Dantas Baracho; Eduardo
Tavares; Espregueira e mulher n'uma frisa; José Martinho da Silva
Guimarães; o Guerra, pae das meninas Guerras; o barão da Regaleira,
Antonio Duarte da Cruz Pinto, Agostinho Franco, José d'Alpoim, Rufino
d'Almeida, o padeiro gordissimo de S. Carlos, etc., etc. e n'uma
torrinha, que ficou na tradição, a 115, o Antonio Manuel Teixeira,
depois secretario de S. Luiz de Braga, o Luiz Campeão e o Oliveira,
chamado das _cautelas_ de _25_: era d'ahi que partiam sempre os aplausos
ou as pateadas monumentaes.

Nos camarotes e nas frizas as lindas sobrinhas do marquês de Franco,
Falcarreras; a lindissima baroneza da Regaleira; e a mais bella mulher
de todos os tempos, já velha e sempre decotada, a duqueza de Avila e
Boiama; Espregueira, que foi a primeira que se apresentou com vestidos
sem hombros, ostentando magnificos collares de brilhantes; Moreira
Marques; a condessa de Figueiró; a condessa de Taveira, acompanhada pelo
marido, sempre de casaca com botões amarellos; a condessa d'Edla, o
gentilissimo pagem do _Baile de Mascaras_,--da cantora a rainha--;
Poitier, loira ideal, que casou com o filho de Monteiro Milhões; a
duqueza de Palmella; a condessa de Alferrarede; a condessa de Alverca; a
viscondessa de Idanha, e a de S. Luiz de Braga etc. etc. e no camarote
de bocca de 3.^a ordem n.^o 70--esta Lisboa foi sempre monumental!--a
Antonia Moreno com as suas espanholas, pilar do estado, necessario e
decerto muito mais util que a Junta de Credito Publico. Essa mulher
acabou deixando por testamenteiro Frederico Arouca, que repudiou a
fortuna que ella lhe legou, e depois de passar para alguns camarotes
brazonados de fresco uma ou outra das suas mais lindas pupilas...


«Cascaes, com a adjacencia dos Estoris,--diz-me um frequentador--era a
côrte na intimidade, em robe-de-chambre, mais faceis as relações, mais
accessiveis e amaveis, tu cá, tu lá. Quasi tudo gente do rei, que ia
para lá cedo, por meiados de setembro, cansados de Cintra onde D. Carlos
raro pernoitava, fugindo, a pretexto de tudo e de nada, á convivencia da
rainha e da Figueiró. A separação do rei e da rainha, segundo me
informaram, porviera de certa dama, que lançou entre elles a sizania.
Conheci-a ainda linda e elegante, um pouco roliça, de olhos aveludados e
labios vermelhos: nos ultimos annos engordára, e banalisara-se. Tinha a
furia do dominio, e rodeava-a uma côrte de gente em que ella mandava e
da qual fazia parte um diplomata mais tarde em evidencia. Passava por
ter relações anormaes com a rainha... O marido pouco esperto, só tinha
como ideal ser ministro plenipotenciario e par do reino.

Em Cascaes, a rainha não se vulagrizava. Saía a cavalo emquanto poude
montar. Tinha varizes nas pernas,--informou um dia o D. Afonso. No meu
tempo não passeava de barco, passeava de carruagem, descendo ás vezes
para andar a pé. Dava as suas recepções á tarde, principalmente em
vespera de festa, para serem apresentadas pessoas que desejavam ir aos
bailes, e que em Cascaes mais facilmente obtinham o convite e a
apresentação preliminar indispensavel, que o conde da Ribeira, quando
estava de serviço, facilitava extraordinariamente. A Figueiró voltava
para Cintra logo que acabava serviço.

O D. Carlos fazia vida hygienica de madrugador, tirava photographias,
pintava ligeiramente algumas marinhas, _sentindo_ o mar. Logo de manhã,
saía de carro ou a cavalo, com chuva ou com sol (demorava-se até meiados
de novembro em Cascaes), ou ia á procura de senhoras que elle perseguia.
Tivera, pelo menos um anno, n'uma vila do Mont'Estoril, uma amante, mas
isso não o dispensava de querer que o julgassem homem de boas fortunas.
Escrevia a miudo a outras damas, em caligraphia disfarçada, cartas em
prosa e verso á mistura, quasi sempre em francez. Eram muito tolas. Vi
algumas e podia ter guardado uma, que rasguei. Serviam-no dois
alcoviteiros ilustres, que o faziam encontrado com as mulheres que lhe
agradavam. Outro chegou a dar um baile, para que o rei conhecesse uma
senhora da burguezia media atraz de quem andou annos.

Iam ao Sporting Club, mais conhecido pela Parada, jogar o tennis. Não
havia escolha nos pareceiros. O almirante Capelo, o explorador, ficava
com o sobretudo do rei no braço, emquanto elle jogava. D. Carlos era um
timido, falava pouco, nunca olhava de frente: seus pequenos olhos claros
evitavam sempre os dos outros.

A Parada era a capital do reino de Cascaes. Ahi se reunia a flor da
aristocracia e o ingresso não era facil, como socio. Só nos ultimos
tempos é que o Tompson, a quem chamavam moço fidalgo, facilitou a
entrada. Aos domingos davam-se salsifrés á noite, e todos os annos um
grande baile, a que assistia o rei, que distribuia os parceiros e
dançava uma contradança. A rainha, se ia, não se demorava. Nos dias de
semana, poucas pessoas lá estavam, preferindo os casinos á beira-mar,
principalmente o Estoril.

O rei, todas as tardes, ia para a Boca do Inferno e quedava-se ali, se
encontrava algumas senhoras que o interessassem. Por isso chegaram a
chamar ao D. Carlos o _balão cativo_...

O rei mal recebia os ministros, de que se desfazia logo que lhe era
possivel. Não se demoravam em Cascaes, não os convidava para assistir,
sequer, ás partidas. Teve d'uma vez, como hospede, o Soveral. Não lhe
conheci nenhum outro.

O D. Afonso ia cedo para o Monte Estoril, para a vila sobre o mar, que
ali possuia a mãe. Descia a praia, com uma grande simplicidade de
maneiras. Falava pouco, era bom rapaz, e a maior manifestação
intelectual que lhe conheci foi anti-clerical. Vestia-se sumariamente:
uma camisola azul, casaco e calça da mesma côr e bonet. Assim andava, de
manhã até á noite. Ás vezes ia ao mar, e os barqueiros gostavam d'elle.
Nunca tinha vintem. Os ajudantes ou oficiaes ás ordens não lhe
emprestavam dinheiro, porque sabiam que elle não lhes pagava.

Não era dado a senhoras--preferia as outras... Certa condessa é que
conseguiu ser amante d'elle, porque conhecia todas as maneiras de
conquistar um homem. Deu um baile para que convidou o infante e a fina
flôr. O marido estava encantado. Nenhuma moral em nenhum d'elles. Elle
era muito cioso da sua nobreza e gostava de parecer. Ella queria gozar a
vida. O A... que foi seu amante, contou-me que em Madrid ella dissera
d'uma vez ao marido, que não tinha um ceitil quando casou: «Tu, para
chulo, és caro de mais!»

Em Cascaes era dificil chegar a vias de facto com uma mulher. Meio
pequeno, coscovilheiro, maldoso, maldizente. Não se falava senão nesta
ou naquella, em escandalos, repetindo-se os ditos de ouvido para ouvido
ou acentuando-se as infamias. A M... foi apanhada no pinhal dos Olivaes
n'uma atitude equivoca... A S... faz namoro descarado ao rei... Mas as
coisas arranjavam-se para Lisboa. Vinham ao dentista, ás compras, etc. A
forçada e grande intimidade estabelecida, de manhã na praia, á tarde na
Boca do Inferno, onde toda a gente ia, apezar do vento e da poeira, na
Parada ou á boquinha da noite no passeio Maria Pia, junto á cidadela,
onde ás vezes fazia uma ventania infernal, á noite nos casinos, ou
nalguma partida de bridge, a vida quasi em comum e os namoros travados,
o ar do mar que desiquilibra os nervos e torna os amores exigentes,
fizeram tecer muitas aventuras escandalosas. Um ainda fugiu a tempo com
a mulher, que já madura, esteve em vesperas de cair... Nunca mais voltou
a Cascaes.

As ceias nos bailes eram pugnas. Vi isso até no Paço. Uma descendente de
D. João IV, vi-a eu agarrar-se a um bufete, com unhas e dentes. Em
certas casas, as ceias nunca chegavam. Uma madrugada, num baile do M...,
chegou a iniciar-se a lucta... A alta sociedade era, em regra, pelintra.
As grandes familias tinham gasto as fortunas, e muitas não queriam, ou
não podiam, dar bailes. Só tinham dividas. Não era possivel deixar d'ir
a S. Carlos e de satisfazer outras exigencias. Havia-os com actrizes com
dezasseis annos de assignatura... Fóra o Palmella e poucos mais, não
recebiam porque de todo não podiam. E, se o faziam, era sem-cerimonia.
Não havia dinheiro! não havia dinheiro!

Descaiam muito os fidalgos, mas obstinavam-se sempre em _parecer_. Um
oficial jogador e pae de uma serie de filhos, mandava a miudo incomodar
D. Carlos... Todos os seus famulos lhe extorquiam dinheiro, quanto
podiam. Choravam, punham-se de joelhos, contavam-lhe miserias reaes ou
falsas. Tive, em Cascaes, semanas uma arca com prata para fugir a uma
penhora iminente... Um grande fidalgo, no fim de algum tempo, despediu
os creados--mas nunca pagou a nenhum. Outro chegou a não ter que jantar,
porque o mercieiro não lhe fiava, ninguem lhe fiava, mas bebia todos os
dias garrafas de champagne.

Havia mancebias antigas e tão respeitaveis, como o casamento, assim, por
exemplo, F... e F... Já ninguem convidava uma sem o outro.

Quer que lhe fale tambem da gente que fingia de nobre, da burguezia
vaidosa e que fazia mexerico para ser convidada? A mulher d'um grande
industrial conseguiu entrar na casa d'um fidalgo, onde ia toda a gente,
da grande e da baixa. Convidou-a para jantar, para o theatro e andava
contente como um cuco. Um dia não a convidou mais. Chorou. Isto foi-me
afirmado por uma amiga que o viu. Era uma dama, muito linda, com um
soberbo colo, mas com o cerebro d'uma arara...»

Ahi fica o quadro levemente esboçado por um frequentador de Cascaes.
Tudo isto é frivolo e tragico. Lembremo-nos que d'esta maledicencia, dos
ditos d'estas boccas que sorriem, da ninharia e do encanto, se gerou
parte da athmosphera donde devia sahir o descredito da rainha e o
assassinato do rei.



O MUNDO POLITICO


                                                       Novembro--1918.


Os acontecimentos dos ultimos reinados afiguraram-se-me sempre faltos de
logica e de nexo. Estão talvez muito perto de nós ainda: precisam de
perspectiva que os coloque nos seus devidos logares. Só o historiador
poderá crear mais tarde, com documentos e memorias, e certa aparencia de
verdade, o romance da nossa vida. Nós, por ora não sabemos nada, nem
mesmo dar resposta plausivel ás perguntas que nos obsidiam... Porque
foi, por exemplo, morto D. Carlos? É fora de duvida que até os
monarchicos receberam com alegria a sua morte. «Não vi lagrimas»--diz
Julio de Vilhena. Eu avanço mais: só vi aplausos. E no entanto já hoje
se pode afirmar sem erro que D. Carlos não foi morto pelos seus
defeitos, mas pelas suas qualidades. Respirou-se! respirou-se!--o que
não impede que, a cada anno que passa, esta figura cresça, a ponto de me
parecer um dos maiores reis da sua dinastia. Já redobra de proporções e
não se tira do horizonte da nossa consciencia. O rei tinha na verdade
defeitos, mas--diga-se! diga-se!--não foram os seus defeitos que o
mataram, foram as suas qualidades. Só o assassinaram quando elle tomou a
serio o seu papel de reinar, e quando, com João Franco, quiz realisar
dentro da monarchia o sonho de Portugal Maior. Foi esse o momento em
que, talvez pela primeira vez na historia, os monarchicos aplaudiram um
crime que os deixava sem chefe, e se abriram de par em par as portas das
prisões, congraçando-se todos os politicos sobre os corpos ainda mornos
dos dois desventurados.


O D. Luiz pôde ir até ao fim do seu reinado, porque elle proprio o
disse--«um principe é um dissimulador». Mas D. Carlos é que não foi
nunca um dissimulador. D. Carlos desprezava os politicos. Dizia:--Tu
ouvel-os falar? Se lesses as cartas que me escrevem enchias-te de
nojo.--Essas cartas existem... Na verdade toda a gente dizia mal da
politica e desprezava os politicos: só elle os não podia desprezar. É
authentico tambem que no seu desdem chegou a envolver o paiz. Toda a
gente, desde o literato ao homem rude, dizia mal do paiz. Tempo houve em
que foi moda dizel-o. Só elle não devia dizer mal do paiz. Realmente
pediu muito dinheiro aos politicos, mas os politicos pediram muito mais
dinheiro á nação, dando cabo d'elle com as suas clientelas. E ninguem
lhes tomou nunca contas: todos morreram honrados. Hintze passou por ser
um homem integro. José Luciano tambem. Pessoalmente decerto, mas com o
que ambos elles esbanjaram reconstruia-se o paiz de alto a baixo. O
partido regenerador tinha tal fama que se dizia em Lisboa: «quem não é
regenerador é ladrão de si mesmo». Na realidade não havia a esse
tempo--porque hoje tudo mudou de figura--senão um partido em Portugal
capaz de sacrificios, o partido republicano: os outros, para me servir
da phrase tão justa de Homem Christo, eram apenas «quadrilhas
politicas». Ser politico em Portugal foi a mais rendosa de todas as
industrias. «Logo que chega ao poder um chefe de partido não pensa senão
em explorar o paiz em proveito das suas clientellas. O Estado é a preza
dos politicos... Se eu podesse encontrar um homem integro que podesse
modificar tudo isto dar-lhe-hia todo o meu apoio».

Parecia que o proprio paiz na verdade só queria comer:--Pedem tudo!
pedem as maiores poucas vergonhas!--exclamava o Alpoim; e o dr. Antonio
Cabral escrevia:


     «No tempo da monarquia essa mesma maioria acomodaticia e
     pedinchona, só conhecia o caminho dos ministérios para ir
     importunar os secretarios de Estado com solicitações de empregos,
     de benesses, de estradas, de favores, até de escandalos. Não ia
     levar aos ministros uma ideia, um plano, a lembrança de um
     beneficio para o país. Ia procurar interesses, buscar comodidades,
     exigir condescendencias, sem se lembrar de que tudo isso custava,
     muitas vezes, dinheiro ao Tesouro Publico e só causava prejuizos á
     nação.

     Depois, quando a tempestade bramia e as moscas varejeiras zumbiam
     em tôrno da montureira politica, essa mesma maioria, de larga guela
     e incomensuravel ventre, era a primeira a gritar contra as
     imoralidades que provocara, contra os atropelos da lei que
     impuzera, contra os êrros de administração que imperiosamente
     reclamara! Para essa maioria prudente... e de muito comer, os
     culpados de tudo--criminosos execrandos!--eram o Rei, os ministros,
     os deputados, todos, emfim, que tinham na mão as rédeas da
     governação publica. Ella, a maioria exigente e dificil de
     contentar, era inocente e de tudo lavava as mãos.

     Ella, a maioria composta dos influentes, dos caciques, dos
     compadres, dos despoticos senhores do país, que hoje se encolhem,
     transidos de pavor, e então barafustavam do alto do seu pedestal de
     mandões; ella, a maioria que ordenava, que dispunha de votos, que
     sabia impôr-se com arrogancia--ella, de nada era culpada e escondia
     o rosto púdico na alva clamide de vitima dos maus politicos!...

     Veiu, por fim, a queda no abismo, em que se evidenciou a traição de
     muitos e a incompetencia de tantos. A _maioria dos portugueses_, se
     não delirou de contentamento, remeteu-se ao cómodo e discreto
     silencio em que se comprazem os covardes e os maus cidadãos, para
     só os interromper com murmurios de reprovação, soprados nos centros
     de conversa contra os politicos... que ella empurrára para o mau
     caminho e ajudara a despenhar no precipicio.

     Oh! a maioria dos bons cidadãos de larga pança!...»


Hintze e José Luciano tinham-se congraçado no reinado de D. Carlos, e só
elles podiam tudo, só d'elles dependiam lugares, favores, vaidades e
interesses. Antonio Cabral está certo que foi pelos seus meritos--que
não são poucos--que chegou a ministro?... Ai de quem lhes desagradasse.
Ao irrequieto Fuschini entretiveram-no com as obras da Sé para o
arredarem da politica; ao José Dias Ferreira, que foi dos raros homens
de governo comezinho do seu tempo, nem sequer o ouviam nas camaras. Toda
a gente lhe voltava as costas quando falava. Sabia-se que o Paço o
detestava. O José Luciano e o Hintze sucederam-se, d'acordo, no governo
do paiz e no governo do Credito Predial, com identico sucesso!

Ambos elles eram pessoalmente muito boas pessoas, ambos elles tiveram um
fraco extraordinario pelos tratantes. O Hintze, o _homem que não ri_, o
_casaca de ferro_, era um homem um pouco cansado e com um lindo sorriso
para toda a gente:--Pois sim, pois sim...--Trato encantador. Nas camaras
era vel-o! Ninguem apresentava assim as questões: tinha tudo catalogado,
arrumado, disposto, e os papeis saltavam-lhe da carteira por arte
magica. O José Luciano, mais bonacheirão e ao mesmo tempo mais caustico,
conhecia como poucos os homens que lhe tinham passado em fita pelo salão
da sua casa, com as suas vaidades, as suas miserias, os seus rancores e
os seus vicios, e tocava-lhes sempre no ponto fraco. Pessoalmente
honesto,--quem o duvida?--mas tendo cada vez mais imperiosa a
necessidade de satisfazer clientelas cada vez mais sofregas--ambos
acabaram de corromper o paiz, já meio corrompido, até á medula. Importa
pouco que o snr. D. Luiz de Castro diga: «Hintze vendeu todo o seu
patrimonio e o de sua mulher para servir o reino e o rei» (_Dia_,
fevereiro, 1917). Sim, mas Hintze distribuiu a rodos o dinheiro da
nação, principalmente depois da scisão João Franco, e colocou toda a
gente a começar pelos seus[15].

Não resistiu. Delapidou, principalmente depois da scisão João Franco,
sem conta nem pezo nem medida. Anselmo Vieira diz: «José Maria dos
Santos entregou á viuva do Hintze, no dia do enterro, 21 contos de
lettras vencidas. Ora a questão do alcool entre o norte e o sul foi
sempre adiada pelo Hintze, o que fez ganhar 300 contos ao José Maria dos
Santos.» Na sua phrase pitoresca a politica portugueza estava condemnada
porque era um regimen de validos e _badamecos_. E cita este e aquelle e
aquelloutro, que, na sua opinião, e todos juntos, não valiam um
estadista. O Hintze não resolvia um problema, arredava-o, e as
complicações augmentavam sempre; se tinha a escolher entre dez homens,
escolhia sempre o peor... O honradissimo capitão Machado, duro como o
silex, chegou a par, porque, quando atacavam o José Luciano na camara
alta, dizia sempre:--Viessem elles cá para os deputados e quem os
ensinava era eu.--O pobre monsenhor inutil, que se chamou Santos Viegas,
achou outro _truc_ para o Hintze o elevar á mesma cathegoria: quando o
chefe do partido regenerador falava, cahia n'um assombro, de que não
havia arrancal-o!...--«Chegaram a ministros seres destituidos de todo o
miolo. O honradissimo Pequito, santissima creatura, foi um dia para uma
comissão, a que o José Dias presidia, com o Contracto dos Tabacos, que
elle só tinha assignado e mais nada. Havia um artigo redigido de forma
que cincoenta milhões de francos ficavam encobertos, para se poderem
pagar as dividas da Casa Real. José Dias pediu explicações, o outro
embrulhou-se, José Dias insistiu, o outro ficou de bocca aberta, com
cara de pasmo--até que o velho rabula lhe disse com soberano
desprezo:--Comprehendo, comprehendo... o snr. ministro da fazenda
precisa de ouvir os seus colegas para depois responder...--Se o José
Dias tem deixado passar aquella trapalhada talvez D. Carlos não tivesse
sido assassinado.»

A politica portugueza chegára a estar apenas nas mãos e dependente da
vontade dos chefes. O José Luciano dizia:--O meu partido não é que me
leva ao poder--sou eu que levo o meu partido ao poder. Dois homens e
clientelas. Alguem se filiou jamais n'um destes partidos por principio,
por ideal? ou foi por interesses, e, mais simplesmente, por simpathias
pessoaes?

E assim a força desses dois homens chegára tambem a ser ficticia:--não
provinha do paiz--provinha do rei... As camaras mero scenario; os
discursos, as atitudes, theatraes: o que havia a decidir não se decidia
alli. Tudo estava resolvido, preparado de antemão, nos salões, nas ante
camaras, nos gabinetes ou nos corredores, entre os chefes. O resto era
um espectaculo com as suas regras e os seus figurantes, absolutamente
inutil--absolutamente falso--absolutamente fóra de toda a realidade...

       *       *       *       *       *

As camaras... Por lá passou Junqueiro, que de lá sahiu um dia
dizendo:--Vão áquella parte--; por lá passou o grande, o pobre João de
Deus, que nunca poude abrir a bocca, e outros homens ilustres. De lá
sahiu Fuschini, que se foi embora fazendo-lhes um manguito, quando
Arroyo n'uma sessão celebre lhe disse:--Ajoelhe a meus pés!--Oliveira
Martins, exhausto de trabalho; o romantico Chagas, cujas ultimas
palavras foram estas:--A vida é uma comedia.--Já não os ouvi, mas vi e
ouvi ainda o pachydermico Antonio d'Azevedo Castello Branco, o esguio e
taciturno Beirão, sempre alheado, o grande orador Antonio Candido, o
canarim Elvino de Brito, que manejava a palavra como quem maneja um
florete, e que o Hintze tratava d'alto, o anecdotico Baracho, cujos
discursos não tinham fim, o Campos Henriques, _lyrio pendente_, o
theatral Arroyo, o José d'Azevedo, o Eduardo Villaça tão amavel para
todos, tão afavel que ficou para sempre o Villacinha, o Chanceleiros,
com a sua grande gaforina branca, o severo e taciturno Dias Costa, que
morreu de desgosto, tendo cumprido o seu dever como um soldado, a
nobilissima figura do conde de Arnoso, que vejo sempre diante de mim,
bradando por justiça, e que acabou envolto em treva, jungido á sua dor,
o Jacintho Candido, um pouco apagado, mas resistente e teimoso, o João
Franco, o decorativo Wenceslau de Lima, o Pimentel Pinto, do alto dos
seus tacões, o Albano de Mello, tão admirador do José Luciano que chegou
a ponto de se parecer com elle na atitude, na voz e até no rosto, e, na
outra camara, a um lado o pitoresco conego José Dias, apopletico e
jovial, lá das bandas de Monsão, o torrencial Oliveira Mattos, que, a
primeira vez que falou, fez rebentar os cós das calças ao Chagas, que
perguntava entre spasmos de riso:--Mas quem é este homem? onde foram
buscar este homem?--e a quem ouço ainda invectivando o ministro da
guerra:--Heroe de Trajouce! heroe de Trajouce!--os Cabraes, um polido e
soturno, que o Hintze estimava, o outro, Antonio, de bigodes assanhados,
como um galo de combate; o José d'Alpoim, impulsivo, terrivel na
replica; o João Pinto dos Santos, um sistema de philosophia para cada
caso futil do dia, já branco, de punhos solidos, e sempre o mesmo
aprumo, a mesma linha, a mesma conducta; o Moreirinha, o Centeno, e o
juiz Francisco Medeiros que pouco antes de morrer (estou a ouvil-o) me
disse assim:--Tenho pena de não ter roubado como os outros...--E, diante
do meu espanto, concluiu:--Quando morrer deixo a minha filha pobre e os
outros estão ricos.--E a outro lado, o elegante, o frivolo conde de Paçô
Vieira, o lustroso conde de Castro Solla, o Anselmo Vieira, sempre a
debater finanças, sempre á espera das grandes ocasiões, sempre esquecido
á ultima hora na lista do ministerio, o estrabico Dias Ferreira, falando
baixinho para dois fieis que lhe restavam; o Matoso dos Santos, sempre
enfronhado em algarismos, o Sergio de Castro, o D. Alberto Bramão e
outros jornalistas da _Tarde_, o Schwalbach aparecendo, desaparecendo,
atarefado, e tantos outros sumidos lá para o fundo na obscuridade e no
silencio.

Juntem a este mundo o mundo dos jornaes, os meios politicos onde tudo se
comenta e desfigura, e o mundo financeiro, com alguns tipos que é
necessario anotar rapidamente: primeiro os Mosers e o Foz, predominando
com o Mariano, a casa Torlades e outros grupos; a casa Burnay e o
impenetravel Jonh, e, nos ultimos tempos da monarchia, a casa
Wernestein, Alfredo da Silva e a casa alemã Ernest George. Entre essas
figuras conheci uma d'um alto pitoresco: Gomes Netto, sem instrucção,
mas d'um grande senso pratico. Não raro o encontravam em mangas de
camisa no seu escriptorio. Escrevia em largos quartos de papel e depois
dizia:--Ponham-lhe lá a gramatica!--Acabou já velho e amoroso, fazendo
todos os dias compras de legumes e peixe, na Praça da Figueira, que
depois ia distribuir de _coupé_ por casa das amantes, pescada aqui,
pescada alli... Juntem a isto as redacções dos jornaes, em forja rubra a
certas horas da tarde ou da noite, os ditos, as noticias espalhadas, a
côrte ao senhor conselheiro... Era peor o que se dizia do que o que se
fazia... Era o descredito lançado sobre tudo e todos, a tal ponto que um
dia, mais tarde, quando um juiz monarchico (Paçô Vieira) foi despachado
para a provincia, o delegado disse-lhe muito a serio:--Mas como queria
V. Ex.^a que se sustentasse um regimen em que as filhas do José Luciano
eram apalpadeiras da alfandega com cem mil reis por mez?--Nos comicios
asseverava-se que a rainha D. Amelia comprava no estrangeiro vestidos
por vinte e quatro contos. Peor, peor... Depois da republica o Eduardo
Villaça encontrou-se com João Chagas em Paris e perguntou-lhe com
ironia:--Então esses famosos inqueritos da republica, com que fizeram
tanto espalhafato, não deram nada?--Ao que o outro, lépido,
respondeu:--Vocês que querem? Tanto se acusaram de ladrões uns aos
outros, que a gente acreditou...

       *       *       *       *       *

--Um homem! um homem!--reclamava o D. Carlos. Um momento de hesitação e
de duvida na sua vida... Dois caminhos na frente: um commodo e largo, de
transigencias faceis, o outro perigoso mas util para o seu paiz.
Decidiu-se pelo peor. Ia jogar a vida.

Elle era, como toda a gente, um mixto de qualidades e defeitos... Ha
homens que se nos afiguram d'uma só peça. Desconfiem d'elles: andam
mascarados... Timidez e orgulho. Todos dizem:--Era encantador.--Todos
estão de acordo n'este ponto: ninguem o podia aturar. Um oficial
afirma:--Tratava os politicos como lacaios, tratava a gente do povo com
extrema bondade.--Um dia escreveu um bilhete nas costas do Hintze, que
se curvou para lhe servir de secretária; outro dia, já a cavalo para uma
ferra de touros, atirou com a capa a um velho general seu
servidor:--Guarda lá isso!--D'outra vez dispoz o ministerio á chuva para
lhe tirar o retrato. Tratava-os com desdem. Sacrificou sempre os homens
que se lhe dedicaram, o Martins e o Mousinho, por exemplo. O Carlos Lobo
d'Avila tinha-lhe dado uma formula que o lisonjeou e o deitou a perder.
Era um valente. Escrevia cartas anonimas á mulher. Media tudo pela mesma
bitola--e, se o deixam viver, tinha sido um dos maiores reis da sua
dinastia. Acabou á bala, quando ia matal-o o figado: comia e bebia
enormemente e pezava-lhe em cima esta tara: era filho d'uma histerica e
d'um sifilitico. Este mixto, n'um homem inteligente como elle, só tem
uma explicação: timidez e orgulho--timidez e orgulho...

Efectivamente resolver-se a luctar contra os interesses dos partidos e
dos homens, desencadear paixões, era lançar-se n'um combate de que não
podia esperar senão contrariedades e a morte. Salientaram-lhe logo todos
os defeitos. Tudo que se fazia de mau era sempre o rei que o fazia.
Obscureceram-lhe de proposito as qualidades. Esqueceram que D. Carlos
colocara o paiz n'uma situação externa admiravel, e que os dois ou tres
actos de homem d'estado do seu tempo lhe pertencem, como a unica acção
grande da republica pertence a Bernardino Machado, que conseguiu levar
as tropas portuguezas para a frente europeia--quando os inglezes
reclamavam apenas o nosso esforço em Africa[16]. As viagens a Paris, a
Berlim, a Londres corôam o anno de 1895. A aliança ingleza é um facto.
Veem a Lisboa os grandes chefes d'estado. Vae começar uma grande época.
Aponta a Africa a uma pleiade brilhante de oficiaes, que elle proprio
incita, comprehendendo que o grande Portugal é outro, e que esta facha
de terreno, com um clima agricola horrivel, só pode ser uma vinha e um
logar de repouso e prazer. De lá, d'esse novo Brazil--dos extensos
planaltos d'Angola, que duas vezes por anno produzem trigo--tem de nos
vir o oiro e o pão. O resto é visão de pequenos estadistas de trazer por
casa. Só elle concebe e incita. Só elle fala e sonha n'um Portugal
maior, n'um Portugal esplendido. O plano estabelecido e iniciado,
fecha-se com um ponto culminante: o tratado de commercio com o Brazil,
que D. Carlos teve realisado, e que, ao que parece, tarde, dificilmente,
ou jamais, se conseguirá. Foi este homem que assassinaram como ladrão a
uma esquina de Lisboa...


Porque foi morto, afinal, o rei?... Um velho philosopho meu amigo
traduziu um dia toda a ancia contemporanea n'aquella grande phrase, que
não me canso de repetir:--Nós tambem queremos comer...--Sómente para ser
justo e completo, a uma verdade devia juntar outra verdade:--E não
cabemos todos!

Não, os partidos não cabiam todos, não podiam caber todos, e estavam
completamente desacreditados. A grande força de João Franco foi, na
realidade, de protesto. E quem falhou, diga-se já, não foi o rei, foi
João Franco; quem não esteve á altura do seu papel, não foi D. Carlos,
foi o dictador. João Franco tinha atraz de si um partido pouco numeroso
(as clientellas haviam de vir...), mas resistente, tenaz, entusiastico.
Os franquistas de hontem são ainda hoje franquistas. Não perdem a fé, e
nem agora nem nunca despegam um olho do Fundão, embora lancem o outro,
com prazer, ironia ou desdem, sobre o ridente panorama da vida... É
preciso que realmente esse homem disponha de qualidades excepcionais
para conseguir tal poder de dominação. Era um impulsivo: grande fraqueza
e grande força. Procurava os obstaculos para os dominar e gastou uma
energia desmedida a resolver ninharias. Em Lisboa dizia-se com
espanto:--Este homem só levanta carrapatas!--Ora caçava no seu terreno,
ora no terreno dos republicanos. Homem d'estado, ia talvez ter ocasião
de o mostrar--depois da morte do rei. Ahi é que era vel-o!... Valente e
calmo foi-o decerto. Vi-o eu n'uma ocasião grave da sua vida. Os
republicanos (Ribeira Brava, talvez) tinham obtido a sua prisão logo
depois do cinco d'outubro. De Cintra levaram-no para um gabinete da
Boa-Hora. Cá fóra o França Borges, refestelado n'uma poltrona, gosava a
sua vingança e o seu triumpho, separado do cacifro por uma porta
escancarada. O juiz Meirelles e um delegado de pera ruiva e gravatinha
vermelha, vinham de quando em quando trocar não sei que impressões com
elle. Pela porta aberta vi o João Franco de pé, sereno e palido: parecia
enorme, junto dos dois bonifrates. E quando o juiz lhe disse, acabado o
interrogatorio:--É talvez melhor sahir por outra porta, porque o povo
mata-o!...--o homem teimou, o homem cresceu dois palmos:--Eu só saio por
a porta por onde entrei.--Estava preso, obrigaram-o emfim a descer umas
escadinhas, a meter-se ás escondidas no automovel, que o esperava na
calçada que sobe quasi a pique para a Biblioteca, emquanto
alguem--juro-o--prevenia a furiosa onda popular, que correu aos gritos
de--morra! morra!--a esperal-o em baixo, á esquina. Um borborinho. Tiros
de pistola. Dois marinheiros apontaram as espingardas, defendendo o
automovel, que só a custo arrancou--emfim! emfim!--pela calçada
acima.--Morra o João Franco!...--E as vozes colericas gritavam:--Morra!
matem-no!...--Era este o homem, que, com o rei, estava em frente dos
partidos progressista, regenerador, dissidente e republicano. Os ataques
sucediam-se e agravavam-se. Os monarchicos, dificilmente sustidos pelos
chefes, ameaçavam ingressar no partido republicano, que todos os dias
ganhava em numero, cohesão e audacia. O proprio José Luciano perdia a
serenidade:


     «Ha uma coisa que aos governos nunca deve esquecer, que a lição da
     historia a cada instante repete: á revolução do alto, pode muito
     bem suceder que responda a revolução de baixo». (_Correio da
     Noite_, 14 de Maio de 1907).

     «O presidente do conselho blazona e conta com o auxilio, sem
     duvida, poderoso e eficaz do Rei, e zomba da opinião publica, que
     tanto pretendeu captar, antes de subir ao poder? Faz mal, porque
     ha-de chegar e oxalá que chegue a tempo o momento em que El-Rei se
     recorde das suas palavras de ha um anno:

     A responsabilidade do decreto, ainda que aparentemente só acto do
     poder executivo, recahe mais uma vez sobre o Rei, a quem todos hão
     de pedir a responsabilidade da sua assignatura». (_Correio da
     Noite_, 15 de Maio de 1907).


E a 24 de Maio vociferava: «A monarchia precisa dos monarchicos... a
monarchia precisa dos monarchicos, mais do que estes precisam da
monarchia». Todos os dias novos boatos, todos os dias nova causa de
excitação. Barafunda, prisões, protestos. N'uma reunião celebre, por um
triz que os regeneradores não passam em massa para o campo republicano.
E o _Correio da Noite_, no acesso do delirio, apelava já para a
linguagem biblica: «O que tem ouvidos para ouvir ouça; o que tem olhos
para ver veja...»


     «Do alto deve descer o exemplo, e quando as acções dos que governam
     são de preversão e de crime, de corrupção e de suborno, de
     desbarato dos dinheiros publicos e de abuso do poder, os actos dos
     governados não podem ser de veneração e de paz, de obediencia e de
     acatamento.

     ...................................................................

     Com torrentes de sangue se conquistou a alforria do povo, com
     oceanos de lagrimas se lavou a mancha do absolutismo». (_Correio da
     Noite_, 1 de Junho de 1907).


Que faziam os dissidentes, o mais avançado dos partidos monarchicos? Os
dissidentes conspiravam. As dissidencias anteriores, a do Mariano, a do
Navarro, tinham fracassado: a do Alpoim ia dar como resultado a
revolução.--Foi o senhor que fez a republica.--E elle dizia, com o olho
esperto a luzir:--Levei-os pela mão.--Julgando conquistar o poder,
perdeu-o para sempre. «Baralhou para dar», como aconselhava o Marçal
Pacheco--mas enganou-se no trunfo. Depois que se separou do José Luciano
nunca mais acertou, na phrase do Moreira d'Almeida... Era um grupo
tremendo: o João Pinto dos Santos, tenaz e resoluto como as armas; o
pratico Centeno, mola distendida sabe Deus até onde; o Queiroz Ribeiro,
o Pedro Martins; o sagacissimo Egas Moniz, a quem ninguem consegue ouvir
os passos--mas que toda a noite, todo o dia, roda nos meandros da
politica, conspirador e politico até á medula; o Moreira d'Almeida,
capaz de falar e de escrever um dia inteiro, sem um desfalecimento,
enfiando todas as formas e todos os estilos, de tal maneira que, muitas
vezes o Antonio Ennes ou o Alpoim duvidavam se os artigos, que elle
escrevia, lhes pertenciam, apanhando no ar as questões, e com um grupo
de amigos _a latere_, que conheciam a fundo as colonias e as finanças;
mais este e aquelle, e outras raizes lançadas ao acaso, e ligações no
Porto com um «mercante espertissimo», como nas discussões ouvi chamar a
Lima Junior. O chefe d'este grupo unido e compacto era extraordinario...
Agitação perpetua. Orador admiravel, sobretudo na réplica, em que perdia
a retorica e ficava incisivo e nu como uma espada. Um passo a mais e
seria um escriptor ilustre: não teve um momento de seu para rever as
provas. Com a paixão, a colera, o arrebatamento, um grande coração.
Nunca lhe conheci odios, e muitas vezes lhe ouvi defender até o seu
maior inimigo, o José Luciano. Ao proprio D. Manuel elle diz: «...O José
Luciano vale mais do que todos os progressistas e regeneradores juntos,
contando com elle proprio Alpoim ». (_Documentos politicos_). E quem
conheceu o Alpoim sabe que as notas que o rei escreveu são mais que
exactas, são phonographadas. É elle a falar d'este e d'aquelle, dos
amigos, dos inimigos--de Deus e do Diabo. Uma ambição do poder que o
leva arrastado, mais pela lucta em si, necessaria a um temperamento
excessivo, do que por vaidade ou vangloria. Principios poucos--meios
aquelles que os adversarios, a tenacidade e o rancor de José Luciano,
lhe deixavam. Acusaram-no de tudo--acusaram-no da morte de D. Carlos...
«Até disseram, Senhor, que fui eu que matei El-Rei D. Carlos!!!»
(_Documentos politicos_). Resistiu sempre; morreu a conspirar. Nos seus
ultimos annos não sei que tristeza o envolve... A figura parece maior,
as palavras simplificam-se-lhe, os sentimentos tambem. Engrandece. Raros
teriam, como elle teve, a sinceridade de escrever: «Na minha defeza, que
teve de ser espectaculosamente rude por vezes e d'uma acção subterranea
por outras, excessos cometi de que me penitenceio--mais do que se
imagina»... E repete e insiste: «Em muitos actos da minha vida de lucta,
por vezes injustamente combatido, tenho sido exagerado--e errei. De
muitas coisas estou repezo, e d'ellas hoje se admira a minha
inteligencia e peço perdão á minha propria consciencia e até aos
homens!» Quantos ha ahi capazes d'esta grandeza? Quantos--tendo todos
juntos concorrido para a morte de D. Carlos--o acusaram a elle só, com a
tinta do _Correio da Noite_ ainda fresca?


     «Aqui d'El-Rei--se nos pode ouvir El-Rei--contra quem mandou
     assassinar o povo de Lisboa.» (_Correio da Noite_, tarjado de
     luto). «Aparecem hoje, segundo ameaças do governo e segundo as suas
     notas oficiosas sempre irritantes á imprensa, decretos esmagadores.
     Tanto peor para o Rei e para as Instituições. *As responsabilidades
     d'esses decretos, ainda que aparentemente só do poder executivo
     recairão mais uma vez sobre o Rei, a quem todos hão-de pedir a
     responsabilidade da sua assignatura.* (_Correio da Noite_, 20 de
     Junho de 1907).


       *       *       *       *       *

Quem reina agora em Portugal não é o senhor D. Manuel, é sua Magestade o
Mêdo. Que quadro para um Saint-Simon, que descrevesse os politicos e a
côrte, o que se diz e o que se adivinha, o que resalta dos _Documentos
politicos_, e o que se conserva na sombra como um baixo relevo de odios
e de interesses! Enredam, intrigam-se, perdem-se todos juntos. A
politica portugueza gira sobre este fulchro: «O José Luciano, não
podendo governar por se achar impossibilitado... e não querendo
substituir-se para não perder o comando de que é muito cioso»[17]
emprega até ao fim todos os esforços para inutilisar o Julio de Vilhena.
Só pela vã ambição de mandar? O velho é perspicaz e teimoso, o velho
conhece, como poucos, os homens e entende que só elle pode e sabe
governar. É teimosia e grandeza. Não abdica, não pode. Toda a vida foi
obedecido. Aferra-se. O que elle quer é ser o «Deus ex-machina da nossa
politica sem se mexer da sua _chaise-longue_». Que tipo! Governou
sempre, mandou sempre, conservou-se sempre lucido. E tanta serenidade,
que até no dia em que lhe assaltaram a casa dos Navegantes, é o unico
que não perde o sangue-frio, e, quando o querem esconder n'uma banheira,
teima em ficar na cadeira de rodas! Tem a logica do diabo e uma manha,
um conhecimento dos homens, a que os outros não chegam. Desde o
principio que todos se congregam para enfraquecer o partido regenerador.
«Isto--diz a velha rapoza--é uma lucta de politicos que se querem
inutilisar e desacreditar uns aos outros». É assim--e nenhum d'elles se
lembrou que só os republicanos lucravam. Até os franquistas. «Os
franquistas, por intermedio do Martins de Carvalho, forneceram aos
republicanos todos os elementos que poderam colligir para descredito dos
rotativos» (T. do Amaral ao rei). Até os nacionalistas. Entretanto o rei
ouve-os e toma notas... A sua vontade é acertar. Passa a vida a acertar,
o que não é bem a missão d'um chefe, mas a d'um relojoeiro. Não creio
que os homens se governem só pelo interesse ou pelo terror, como queria
Napoleão, mas creio que se não governam com pannos quentes, e que mais
vale tomar uma decisão má do que não tomar nenhuma. O povo, como o
soldado, precisa de sentir um chefe, e adivinha-o logo. Tudo no rei são
boas intenções. Mal ousa dar um passo, não se resolve nunca--e atraz
d'elle está a mãe, que quer educal-o para rei, mas que tem diante dos
olhos o quadro horroroso... Apezar d'isso é ella propria que o incita a
passear á luz do dia, como uma vez quando o trouxeram a galope, entre
uma escolta de cavalaria, do Rocio ao Paço... Arrisca-o. Procura
congraçar toda a gente. E odiada. A D. Maria Pia, histerica e
perdularia, agradou sempre: até os seus ditos se repetiam:--O senhor é
um merda!--ao D. Luiz, quando elle aceitou as imposições do Saldanha;
até os seus vestidos, a sua ostentação, a atmosphera de rainha
extravagante, que só sabia que existiam contos e patacos, os chapeus que
mandava vir de Paris, aos trinta e quarenta, em cada estação; até a sua
desordem elegante de histerica. Nem os jornaes republicanos a atacavam.
E quando foi para o exilio, já doida, com um pão debaixo do braço e uma
manta pela cabeça, só ella deixou saudades. Era a Rainha. A D. Amelia
não. Essa senhora, de quem alguem disse:--É um grande homem de
bem!--subiu todo o calvario da vida. Era religiosa--o que só a
honra--chamaram-lhe beata. Andou nos folhetins e nos pamphletos. Os seus
criados detestavam-na[18]. Ao passo que a rainha D. Maria Pia, falso
anjo de caridade, pouco fez com o seu espalhafato e foi adorada, a D.
Amelia, que combateu metodicamente a tuberculose, espalhando o bem a
mãos cheias, fundando a Assistencia Nacional, com os seus sanatorios e
dispensarios, as cozinhas economicas, o hospital do Rego, o Instituto de
Socorros a Naufragos, e contribuindo para a fundação do Instituto
Bacteriologico, etc., foi sempre odiada, calumniada, insultada. Nem
dentro de sua casa lhe era possivel conversar. Um dia, para falar em
segredo com um ministro, chamou-o para o meio da sala:--Aqui, porque
senão vem tudo amanhã no _Mundo_.--E vinha. Até o homem dos telephones
era carbonario... Estou em dizer que é o acaso que governa a vida: a
razão não é, com certeza.

Ponham agora á roda d'estas figuras, os politicos e as paixões falando
cada vez mais alto. É o momento em que todos á uma querem ser chefes!
Querem ser chefes o Teixeira de Souza e o Alpoim, querem-no ser o
Wenceslau de Lima e o Campos Henriques, e até o pobre, o inculto
Pimentel Pinto, que Antonio Candido fez um dia ministro, tem um
deslumbramento e sonha na candidatura. Elle é «o Vilhena muito
afectuoso, muito lisongeiro e muito avido de poder»; elle é o Teixeira
de Souza, «todo agrado, comtanto que elle entre no governo n'uma
situação que não seja inferior á do Campos Henriques»--retrata-os o
Wenceslau, que é o unico que sobe, como um balão cheio de vento, no
conceito de quasi todos os politicos, que se reveem n'elle como n'um
espelho.--E o José Luciano teima: «O Vilhena está quasi abandonado pelos
seus marechaes». Todos á uma proclamam ao rei e ao mundo que esse homem
é incompetente.--É um homem de talento--afirma um ex-ministro
graduado--mas nunca vi incompetencia maior como politico.--Porquê? É o
que resta saber. Elle é dos poucos que sabe o que quer, que tem um plano
e que o apresenta (_Antes da Republica_)--é tambem o unico com
superioridade mental organisada. Pequeno, sempre pendurado no charuto,
conserva, até nas ocasiões criticas, serenidade e firmeza. Mas todos
concordam na sua inferioridade politica...

Se só pelo triumpho é que se demonstra tino politico, como quer
alguem--na verdade Julio de Vilhena falhou completamente. Nem todos os
meios lhe serviam, e em Portugal não existem correntes de idéas ou de
principios que levem um homem ao poder. O que se chama opinião não se
pronuncia. Os chefes de partido são simples chefes de bando. O Paço é
que faz ou desfaz os politicos, ou outros meios obscuros, de que cada um
se pode servir, como no tempo de Luiz XIV. Escolheram-no para chefe
n'uma occasião em que nenhum dos outros o podia ser, mas atraz delle
estava a tenacidade do Teixeira de Souza, a politiquice de Campos
Henriques e a astucia de Wenceslau.--Esse sim, chame V. Magestade o
Wehceslau--diz o Alpoim.--O Wenceslau sim--concorda o José Luciano. Elle
é o homem do Paço e dos politicos. Começa a ser indispensavel. O outro
tropeço não lhes sae da frente. Era a occasião de governar quem
governasse, mas ao José Luciano só lhe convêm «governos mixtos em que
elle mande, ou que, pelo menos, ponham o cofre das graças á sua
disposição.» (P. Pinto). E todos ou quasi todos só pensam no Wenceslau,
que promete muito, que sorri a toda a gente, e que não tem nada lá
dentro. É o optimista necessario. Impõe-se pela parte decorativa, pela
boa educação, pela maneira como contenta o mundo. As vezes chega a
oferecer o governo a um, tendo-o já oferecido a outro... (J. de
Vilhena). Só o lunatico não entende... Elle bem protesta: «Quem o
conhece tem obrigação de saber que nunca foi um aventureiro ambicioso,
nem um intrigante ordinario, capaz de empregar processos menos correctos
para obter quaesquer posições». Mas foi exactamente isso que o perdeu!
Num paiz onde não ha opinião, não pode haver chefes de partido. Que
diferença entre elle e o Teixeira de Souza, espadaúdo e forte,
abundante, abrindo logo os braços a toda a gente:--Tu que queres,
filho?!--D'outro feitio era o Campos Henriques, procurador encartado do
norte, escrevendo a meio mundo e satisfazendo a outro meio (agua molle
em pedra dura...); d'outro feitio, emfim, era o palaciano Wenceslau de
Lima, o favorito, que censurava as cartas do rei e lhe escrevia os
borrões. Nenhum homem mais _souple_ nem mais agradavel, sempre a
mastigar e a sorrir. Está nas antecamaras quando o rei conferenceia, e
ha um momento em que só elle põe e dispõe, e em que aconselha ao
rei:--Chame-me a mim, para eu declinar!--E o rei chama-o. As duas
grandes figuras do reinado, vinham a ser o Wenceslau de Lima e o
Soveral. O proprio José Luciano estava condemnado...

Tudo isto se passa sob o olhar ironico ou severo dos republicanos e
diante do phantasma da republica. Nem assim os interesses e as ambições
abdicam. Nunca, nem no inferno, abdicaram! Acima de tudo está o odio do
José Luciano, estão as paixões do Alpoim, que sonha no poder, e que na
manhã de 5 d'Outubro ainda dizia:--Agora, sufocada a revolução, o rei
não pode deixar de me chamar a mim...--Interesses e homens, tendo cada
um «a sua policia», como diz o Teixeira de Souza. E o rei no trono, no
palacio onde as paredes teem ouvidos, sempre a rabiscar papeis,
incitando-os ás vezes (J. de Vilhena), sem prever o mundo de coleras que
está para vir á superficie. Quando á noite se apanha só, abre a gaveta e
desata a escrever aquelle interminavel romance politico, que caminha a
galope para o remate da fuga e do exilio. E as vozes, cada vez mais
altas, obstinaram-se:--Não pode haver ordem nem tranquilidade com o
Alpoim no paiz--exclama um.--Elle é um espirito claro e nada mais!
protesta outro.--É uma cambada! A propria dissidencia que é? É um
inferno!--conclue o Alpoim.--É um idiota! O mal foi elegel-o para
chefe.--E o Teixeira do Amaral observa ácerca d'um grupo:--São
pescadores d'aguas turvas...

Quem ha-de conter os homens e os acontecimentos? O rei? O rei escreve,
escreve sempre... O Credito Predial desaba:--Foi então que os burguezes,
vendo-se roubados, nos deixaram fazer a republica...--asseverou
Junqueiro. Ao poder sobe emfim o fatidico Teixeira de Souza. Os
acontecimentos precipitam-se. Atraz dos homens está uma força monstruosa
que parece empurral-os a todos--até ao rei, que, de quando em quando,
pára de escrever e sorri enlevado para os dois bonecos que tem em cima
da comoda, a caricatura d'um marinheiro inglez e a caricatura do
Soveral--e vae leval-os a todos, sob o olhar impassivel do destino, para
o desenlace fatal.

Todos esses homens tinham defeitos. Alguns eram até ridiculos. Mas,
apezar de tudo, não ultrapassavam determinada linha, apegados a
preconceitos e a formulas, de que não havia arrancal-os... Vae o senhor
D. Manuel, não tarda, porque a monarchia ha-de voltar--tudo sucede
vertiginosamente n'este paiz--conhecer outros, com muito menos
escrupulos, que o hão-de encher de desgostos. V. Magestade verá.


FIM DO 1.^o VOLUME



INDICES



LISTA DAS PESSOAS CITADAS NO 1.^o VOLUME



A

Abel d'Andrade
Abrantes (Marquez de)
Ada Weinstin
Adelaide Coelho da Cunha
Adrião de Seixas
Affonso Costa
Affonso (Infante D.)
Affonso VI
Affonso XII
Affonso XIII
Agostinho Franco
Albano de Mello
Albano da Fonseca (Coronel)
Alberto Bramão (D.)
Alberto Braga
Alberto Pimentel
Alberto d'Oliveira
Albuquerque (Alexandre)
Alcaçovas (Conde de)
Alda Decken Lino
Alexandre Herculano
Alferrarede (Condessa de)
Alexandre Cabral
Alfredo Anjos
Alfredo Costa
Alfredo da Silva
Alice Lawrence
Alice Munró
Alpoim
Almada Carvalhais
Almeida Araujo (Condessa de)
Alvito (Marquez de)
Ameal (Conde do)
Amelia (D.)
Anna de Sousa Coutinho (D.)
Angejas
Anibal Soares
Anjos (As)
Anna de Jesus
Antonio Azevedo
Antonio Bandeira
Antonio de Brito
Antonio Cabral
Antonio Candido
Antonio Centeno
Antonio Emilio
Antonio da Costa e Silva
Antonio D. da Cruz Pinto
Antonio Ennes
Antonio José d'Almeida
Antonio José de Freitas
Antonio Manuel Teixeira
Antonia Morena
Antonio Moreira da Camara Coutinho
Antonio Nobre
Angela Pinto
Anselmo Vieira
Antero
Armando Navarro
Arnaldo Fonseca
Arnoso (Conde de)
Arnoso (Condessa)
Arroyo (Antonio)
Arroyo (João)
Arthur de Mello
Asseca (Viscondes de)
Augusto Cymbron
Augusto Machado
Augusto Pina
Augusto Ribeiro
Avelino d'Almeida
Aveiro (Duque de)
Avila e Bolama (Duqueza de)
Avila (Conde de)
Ayres de Gouveia


B

Baltar
Barão (Condes)
Barahona
Barbosa Colen
Barbosa du Bocage
Barjona
Barros Gomes
Batalha Reis
Bemposta Sub-Serra (Marquezes da)
Beirão
Bernard Lazare
Bernardino Machado
Bernardo Pindella
Bomtempo
Borges & Irmão
Bourbon de Menezes
Braamcamp
Branca de Gonta Colaço
Brazão
Brito Aranha
Brouillard (Madame)
Buiça
Bulhão Pato
Burnay


C

Caldeira
Camillo
Campos Henriques
Candida da Nora Kendall
Candido dos Reis
Capelo (Almirante)
Cardia
Carlos (D.)
Carlos de Freitas Jacome
Carlos Lobo d'Avila
Carlos Mayer
Carlota Joaquina (Dr.)
Carnaxide (Visconde de)
Carneiro de Moura
Carracida
Carrilho
Casal Ribeiro (Conde de)
Castello-Melhor
Castilho
Castro Solla (Conde de)
Celso Herminio
Chancelleiros
Chapuy
Christina Rezende da Silva
Cipriano Jardim
Coelho de Carvalho
Columbano
Conceição de Carvalho
Correia de Barros
Correia d'Oliveira
Costa Pinto
Costa Santos
Croneau
Cunha e Costa
Curry Cabral
Custodio Borja


D

Dantas Baracho
Delcassé
Dias Costa
Dreyfus
Duval Telles


E

Eça de Queiroz
Eça Leal
Edla (Condessa de)
Eduardo Burnay
Eduardo Cheira
Eduardo Cordeiro
Eduardo de Sousa
Eduardo Pimenta
Eduardo Tavares
Eduardo VII
Egas Moniz
Elisa Baerlein
Elisa Baptista de Sousa Pedroso
Elvino de Brito
Emidio Navarro
Emilia Adelaide
Emilia das Neves
Ernest George
Espregueira
Eugenio de Castro


F

Falcarreras
Fernandes Thomaz
Fernando (D.)
Fernando de Serpa
Fernando Martins de Carvalho
Ferreira d'Almeida
Ferreira do Amaral
Fialho
Ficalho (Conde de)
Ficalho (Condessa de)
Ficalho (Marquez de)
Fife (Duque de)
Figueiró (Conde de)
Figueiró (Condessa de)
Fonseca, Santos & Viana
Fontes
Foz (Marquez da)
França Borges
Francisco Figueira
Francisco Medeiros
Franco (Marquez de)
Francisco da Fonseca Benevides
Frederico Arouca
Frei
Freitas Branco
Freitas Brito
Freitas Rego
Fronteira (Marquez da)
Fumega (Major)
Fuschini


G

Garrett
Garaty (Mr. e M.{me})
Garrido
Guerra Junqueiro
Gervasio Lobato
Gomes dos Santos
Gomes Leal
Gomes Netto
Graça (Major)
Guilherme de Azevedo


H

Heitor Ferreira
Henrique de Vasconcellos
Hintze Ribeiro


I

Idanha (Viscondessa de)
Imperador do Brazil
Irene Gilman


J

Jacintho Candido
Jayme Arthur da Costa Pinho
Jayme de Seguier
Jayme Victor
João d'Alarcão (D.)
João Barreira
João Chagas
João Chrisostomo
João da Camara (D.)
João de Deus
João de Deus Guimarães
João Franco
João Pinto dos Santos
João de Menezes
João VI (D.)
Joaquim da Boa Morte Alves de Moura
Joaquim Pessoa
John Burnay
Jorge Colaço
Jorge O'Neill
José d'Azevedo
José Bacellar
José Dias (conego)
José Dias Ferreira
José de Figueiredo
José Lobo
José Luciano
José Maria dos Santos
José Nunes
José Paulo Menano
José Reinach
José Saragga
Julio de Vilhena
Judeu
Judice Bicker
Julia Bordallo
Justino


L

Latino Coelho
Leão XIII
Leitão (Ourives)
Lencastre de Menezes (General)
Lima Junior
Linhares (conde de)
Lopo Vaz
Loubet
Loulé (Duqueza de)
Luciano Monteiro
Lumiares (condes de)
Luiza Patricio de Balsemão
Luiz (D.)
Luiz da Camara (D.)
Luiz Campeão
Luiz de Castro (D.)
Luiz Fillipe (D.)
Luiz Osorio
Luiz Trigueiros


M

Machado (capitão)
Malaquias de Lemos
Manuela Rey
Manuel (D.)
Manuel Bordallo Pinheiro
Manuel Figueira
Manuel Hintze Ribeiro
Manuel Ramos
Manuel Ribeiro Borges
Manuel Vaz Preto
Marçal Pacheço
Magdalena Trigueiros
Mardel
Maria Augusta (D.)
Maria Emilia Seabra (D.)
Maria Emilia Macieira Lino (D.)
Maria (Infanta D.)
Maria II (D.)
Maria Kruz Brito (D.)
Maria Pia (D.)
Maria Tereza Pinto de Magalhães (D.)
Marquez da Foz
Marcelino de Mesquita
Mariano
Martins de Carvalho
Mathias de Carvalho
Matoso dos Santos
Maura
Max Nordau
Maximiliano d'Azevedo
May Figueira
Mello Barreto
Mesquitella (conde de)
Monpensier (Duqueza de)
Moreira d'Almeida
Moreira Marques
Moreirinha
Monteiro Milhões
Motta Marques Meirelles (Juiz)
Moser
Moura Cabral
Mousinho
Munhoz
Murça (condes de)


N

Napoles
Navarro
Nazareth
Norton de Mattos
Nuno Castello Branco


O

Oliveira (das _cautellas_)
Oliveira Martins
Oliveira Mattos
Ottolini da Veiga
Ouguella (Visconde de)
Ovidio d'Alpoim


P

Paccini
Paçô Vieira (conde de)
Pad' Zé
Padre Matos
Palmeirim
Palmeirim (General)
Palmella (Duqueza de)
Paraty (condes de)
Paris (condessa de)
Patrocinio (D.)
Paulucci
Pedro d'Araujo
Pedro Martins
Pedro de Noronha (D.)
Pedro IV (D.)
Pedro V (D.)
Pedro Victor
Penalva (Marquez de)
Penamacor (condessa de)
Penha Garcia (conde de)
Peniche (conde de)
Pequito
Pereira das Neves
Pimentel Pinto
Pinheiro Chagas
Pinto Basto
Poitier
Pombal (Marquez de)
Ponte de Lima (Marquezes)
Povolide (conde de)
Praia (Marquezes da)
Prim


Q

Queiroz
Queiroz Ribeiro


R

Ramalho
Rangel de Lima
Raphael Bordalo
Rebello da Silva
Regaleira (Baroneza da)
Ressano Garcia
Rezende
Ribeira Brava (Visconde da)
Ribeira Grande (conde da)
Ricardo Jorge
Rio-Maior (condessa de)
Rodin
Rodrigo da Fonseca Magalhães
Rosa Damasceno
Rosa pae
Rossini
Rufino d'Almeida


S

Sabugosa (conde de)
Saldanha (Duque de)
Sampaio (Visconde de)
Santos (Major)
Santos Viegas
Sarah da Motta Vieira Marques
Saraiva de Carvalho
Schwalbach
Sebastião Telles
Sergio de Castro
S. Boaventura
S. Lourenço (condessa de)
S. Luiz de Braga (Viscondes de)
Silva Bastos
Silva Canellas
Silva Carvalho
Silva Graça
Silva Pinto
Silva Telles
Sousa Holstein
Sousa Martins
Soveral (Marquez de)


T

Taborda
Tavares Festas
Taveira (condessa de)
Teixeira de Sousa
Teodoro d'Almeida
Theophilo Braga
Thomaz Ribeiro
Tompson
Torlades (casa)
Torre da Murta (Visconde da)
Totenbach
Trindade Coelho


U

Urbano de Castro
Urbano Rodrigues


V

Valbom
Valdez
Valença (conde de)
Val-Flôr (Marquez de)
Vallada (Marquez de)
Valladares (conde de)
Varzea (Visconde da)
Vasconcellos Porto
Vianna (Marquez de)
Vicente da Camara
Victor Hugo
Victoria (Rainha)
Vilaça
Villa de Fozcoa (Barão de)
Villa Nova de Cerveira (conde de)
Villa Real e Mello (condessa de)
Vimioso (conde de)


W

Wenceslau de Lima
Wernestein


Z

Zola
Zulmira Franco Teixeira



INDICE DOS CAPITULOS



                                     Pags.

Prefacio                                 9
Algumas Figuras                         27
Pó da Estrada                           93
A Sociedade Elegante                   267
O Mundo Politico                       289



INDICE DAS GRAVURAS



                                     Pags.

Columbano, Auto--retrato                33
Fialho d'Almeida                        49
D. João da Camara                       57
Eça de Queiroz                          65
Antonio Nobre no caixão                 81
Correia d'Oliveira                      89
Fernandes Thomaz, no seu gabinete       97
Guerra Junqueiro                       113
José Luciano encerra o Parlamento      129
Celso Herminio                         145
Gomes Leal                             161
D. Carlos I de Portugal                177
Oliveira Martins                       193
Papelinhos sobre o regicidio           206
Dantas Baracho                         225
José Maria d'Alpoim                    241
Teixeira de Sousa                      257



ACABOU DE SE IMPRIMIR
NA TIPOGRAFIA DA «RENASCENÇA PORTUGUESA»
RUA DOS MÁRTIRES DA LIBERDADE, 178,
AOS 21 DE JANEIRO DE 1919.
PORTO



Notas:

[1] Estas _Memorias_ devem formar quatro volumes:--2.^o vol.--Os
bastidores da monarchia. Vida literaria. Theatro por dentro; 3.^o
vol.--A Republica. O comercio e a finança. Jornaes e jornalistas; 4.^o
vol.--A Republica e os seus homens. Vida militar.

[2] _Republica_, 23 de Fevereiro de 1915.

[3] «Volta-se para o governo do seu paiz, e pede-lhe que se lembre da
recepção de Afonso XII em Paris, e que ponha Sua Magestade a coberto de
qualquer manifestação que possa porventura nascer, da atitude da Rainha.
Limem-se as dificuldades, empreguem-se todos os esforços, nossos e
alheios; lancemos mão da nossa situação privilegiada com a Inglaterra;
ponhamos todos os elementos disponiveis em acção, para que o céo serene.
Por exemplo: que está fazendo o sr. Soveral em Paris? Façam-no recolher
imediatamente a Londres».

[4] Existe uma carta em que o rei D. Carlos diz ao Navarro, que é
absolutamente falso que elle se oponha a que o nomeiem par do reino.
Seriam os politicos capazes de armar a intriga?...

[5] Um dos seus sobrinhos escreveu um artigo interessante, do qual
extracto os seguintes periodos:

«No seu espirito fluctuava uma bondade inata que se traduzia por uma
profunda afabilidade na vida intima e por uma indulgencia estranha no
julgamento dos homens. Jámais acreditou em malevolas intenções e nunca
da sua bocca saiu uma insinuação maliciosa. Confiava sempre na bondade
dos outros, não hesitando, nos momentos de agitação popular, em
atravessar serenamente as ruas da capital revoltada, como sucedeu em 5
de outubro e 14 de maio. E quando a familia, naturalmente receiosa, lhe
solicitava para não sahir, respondia sempre com toda a tranquilidade: «a
mim ninguem me faz mal, pois eu nunca fiz mal a ninguem».

«As suas ferias passava-as a estudar. Ora meditava trabalhos de
jurisprudeneia, ora, para descansar, apreciava as mais belas obras de
literatura. Dotado de uma memoria privilegiada, sabia de cór longos
trechos de versos, e até nos ultimos horriveis momentos da sua
existencia, arquejando no leito de dôr, ora recomendava pontos
importantes dos processos que trazia entre mãos, ora citava frases de
grandes poetas e filosofos referentes á hora suprema que rapidamente se
aproximava. E quando a noite cahia, tudo envolvendo no seu manto de
tristeza, era com uma anciedade estranha que esperava, na longa vigilia
dolorosa, a chegada do sol radiante. E foi com uma precisão rara que
previu a hora da sua morte. Mais tres dias, mais dois dias e tudo estará
acabado. E, de facto, assim sucedeu!

«Apaixonava-o o estudo da astronomia, e nos ultimos tempos antes de
morrer, apesar da sua avançada idade de 75 anos, vergado sobre obras da
especialidade e, nas horas silenciosas das serenas noites de verão,
passeando na sua quinta dos Covas, ou encostado ás amplas janelas da sua
biblioteca, que tanto amava, reconhecia uma a uma as constelações e
descobria entre os inumeros astros que recamavam o firmamento, aquelles
que os seus auctores haviam indicado.»

[6] «Effectivamente, segundo nos informam... o homem das _barbas e da
carabina não sahiu debaixo da Arcada_ (sic) do Ministerio do Reino,
visto, que com outro individuo se encontravam juntos da aludida
arvore.»--Para quê?... por José Nunes.

[7] Parece que o que salvou a rainha foi o cocheiro poder arrancar,
bater nos cavalos, por ordem da condessa de Figueiró, e aquilo seguir,
com os mortos e a rainha louca de dôr:--Mortos! mortos! e ninguem para
os salvar!--N'um gesto maternal debruçara-se cobrindo o filho com o
proprio corpo.


--Quem matou o rei... «O grupo foi em parte organisado durante o dia 31
e ás 3 horas da madrugada do dia 1 de fevereiro, em uma quinta dos
arredores de Lisboa decidiu-se que só fossem cinco os individuos a
executar o plano do Boulevard Poissonière.»--Para Quê? por José Nunes.

...«Se na tarde do 1.^o de fevereiro de 1908 não se désse mais que o
primeiro tiro que se deu, e esse foi de carabina, ficariam vivas todas
as pessoas reaes, excepto o rei. Não obstante o tiroteio ter-se
desenvolvido momentaneamente, assaltando-se ao mesmo tempo a carruagem,
foi então que, sobre o pae e o filho, se dispararam mais tiros, alguns
d'elles mortaes».--Para Quê? por José Nunes.


...--Ao menos responda-nos a esta pergunta: o Buiça e o Costa teriam
cumplices?

E o sr. Laranjeira, sorrindo, affirma:

--Tinham varios amigos...?--E hesita.--O que lhe posso garantir, é que o
Buiça não foi o heroe principal; quem preparou tudo foi o Alfredo Costa
na «Loja Obreiros do Trabalho». O Costa tinha uma grande influencia
sobre varios rapazes de valor e de audacia. Tambem sem receio de ser
desmentido lhe posso asseverar que o Alfredo Luiz da Costa foi
assassinado por mão occulta, quando vinha, preso e vivo, para o posto da
Camara Municipal. Note que as suas ultimas palavras foram estas.--Ai
minha mãe, que me trahiram!--E o chefe Bazilio, um dos que o conduzia,
não pôde vêr quem lhe descarregára a arma, matando-o... No meu modo de
vêr, os novelleiros encartados, dizem coisas sobre coisas, sem
conhecerem o _fio á meada_, e é exactamente o que tem prejudicado tudo e
todos.»

Revelações sobre o regicidio--Entrevista com o sr. Rodrigues Larangeira
publicada no _Imparcial_ de 1 de julho de 1910.

[8] Apurou-se que o ex-ministro em Londres, de julho de 1892 a 12 de
Novembro de 1910, recebera o seguinte:


1892-1893                           10.833$890
1893-1894                           12.841$593
1894-1895                           16.699$006
1895-1896 (10 de Junho a 30
  de Setembro)                       2.163$750
1896-1898                           17.264$456
1896-1897 (26 de Abril a 26 de
  Julho)                             2.441$625
1898-1899                           15.618$168
1899-1900                           15.835$443
1900-1901                           12.976$500
1901-1902                           14.211$412
1902-1903                           21.807$881
1903-1904                           15.963$505
1904-1905                           35.481$112
                                  ------------
           A transportar           194.138$341


              Transporte           194.138$341
1905-1906                           21.437$118
1906-1907                           25.749$787
1907-1908                           20.447$868
1908-1909                           11.802$562
1909-1910                           12.487$687
1910-1911 (de 16 de Julho a 12
   de Novembro)                      3.515$680
                                  ------------
                                   289.679$044

Recebeu mais:

  Pela rubrica de adeantamentos      5.743$815
  Pela rubrica de suprimentos          226$035
  Pela rubrica de adeantamentos        450$000
  Pela rubrica da visita aos Reis
     d'Inglaterra, 1904-1905.       21.042$935
                                  ------------
                  Total--Reis      317.041$828


--As despezas legaes auctorisadas eram de 10.950$000 réis por anno.
Vê-se como eram excedidas!

--Segundo o oficio do ex-ministro Vilaça para o ministro da fazenda,
pedindo mais dinheiro para Soveral, este, no almoço e ornamentação da
legação, na visita do rei Carlos, consumira mais o seguinte:


Almoço, libras                       325-12-0
Vinho, libras.                        49- 6-6
Decorações, libras                 1.760- 1-0
                                 ------------
               Total, libras.      2.134-19-6


--Averiguou-se, pelo oficio do ex-director geral da thesouraria,
Perestrelo, que pelo mesmo motivo da visita do rei Carlos, Soveral
recebera mais:


Em 30 de Novembro de 1904,
  libras                                1.500
Em 10 de Dezembro do mesmo
  anno, libras                          1.000
                                 ------------
               Total, libras.           2.500


Todas estas quantias, em libras, ou em réis, foram calculadas ao cambio
par. Como n'aquellas épocas houve subido agio sobre o ouro, e calculando
esse agio n'uma media de 15%, vê-se que notavel aumento ha nas despezas
descritas!

Soveral recebeu mais, pela verba de despezas diversas extraordinarias no
anno economico de 1909-1910, sem qualquer justificação, réis 1.934$855;
e pela verba destinada á viagem a Londres do rei D. Manuel, réis
4.468$900.

Na liquidação e pagamento dos direitos de mercê, emolumentos e sellos,
houve enorme trapalhada durante muitos annos, d'onde resultou Soveral
esquivar-se ao cumprimento das leis fiscaes.

Deve os direitos de mercê e emolumentos e sello pelo titulo de Conselho,
pelo titulo de Marquez, pelo cargo de secretario da legação em Londres,
pelo cargo de ministro em Londres, pela gran-cruz da Torre e Espada,
etc.

Quando foi ministro dos negocios estrangeiros, teve a habilidade de em
17 mezes, só á sua parte, consumir em despezas reservadas, réis
37.757$515, sem deixar no ministerio qualquer documento, explicando ou
justificando o emprego de qualquer verba!--_Intransigente_, de 31 de
Março de 1911.

[9] «Escrevem-nos de Braga:

Joaquim de Sequeira Lopes, negociante, e Manoel Coelho dos Santos,
penhorista, são pessoas de bem e residem em Espinho.

Sequeira Lopes foi em Novembro de 1907 para Lisboa curar uma molestia
hospedando-se em casa de seu irmão Frederico, negociante, chefe graduado
do alpoinismo. D'ali escrevia semanalmente ao Coelho, com quem tinha
negocios, quando na capital começou a agitação para derrubar o Franco,
dando em cada carta uma noticia politica, que o Coelho lia em toda a
parte onde se lia politica. Na quarta-feira ou quinta da semana do
regicidio, essa noticia era d'este theor: _Disseram hoje a Frederico, no
escriptorio forense... que João Franco seria assassinado em 24 horas_.
Quando chegou a Espinho a carta que continha esta noticia, tinham
passado as taes 24 horas, por isso o valor da noticia estava
prejudicado. Deu-se o atentado no sabado e na quarta-feira seguinte a
carta habitual dava esta noticia:

_Os revolucionarios, vendo-se perdidos pela prisão dos chefes,
reuniram-se secretamente, republicanos e dessidentes d'acção, e
resolveram a morte da familia real. Propoz-se que os executores fossem
tirados á sorte, mas o professor Buiça protestou, oferecendo-se
voluntariamente, sendo o seu alvitre secundado por muitos que se
promptificaram a auxilial-o_.

Estes apontamentos foram dados ao ministro Campos Henriques logo depois
da formação do gabinete Amaral. Foram em carta anonyma, mas acompanhados
d'um grande numero de testemunhas que viram e leram as taes noticias,
figurando n'ellas o coronel reformado Raul de Passos, d'Elvas, que na
ocasião residia em Espinho e dava a semelhantes noticias um grande valor
para a investigação.

Campos Henriques, o que demitiu o juiz Alves Ferreira e chamou o outro
da Meda, fez de conta que nada era com elle. N'esta pista ninguem
mexeu.»

       *       *       *       *       *

«A reunião, afirma-se, teve logar na Costa do Castello. Tomaram parte
n'ella quadrilheiros da quadrilha republicana e de todas as quadrilhas
monarchicas»...[9a]

[9a] Quem quizer conhecer a historia contemporanea tem de lêr e
consultar a colecção d'_O Povo d'Aveiro_. É indispensavel. Essa voz
tremenda e colérica préga, ha annos, sem um desfalecimento, meia duzia
de verdades essenciaes ao paiz. Além d'isso Homem Christo é o maior
jornalista portuguez e um pamphletario que só tem outro na nossa
literatura que se lhe compare--José Agostinho de Macedo.

[10] Essa extraordinaria sessão, em que o parlamento parecia estar no
banco dos réus e o Afonso Costa, theatral, surgia como um acusador
triumphante!... O ministerio tinha desaparecido. Fugira! Ninguem sabia
do que se ia tratar: esperava-se peor, muito peor... A impressão real,
patente, autentica, era de que elle ia fulminal-os com provas á vista,
acusando-os d'um crime... De que crime tremendo? Quando leu os
documentos houve uma impressão de alivio, quasi a exclamação:--Era só
aquillo?...--E quando baralhou e se enganou nos nomes da pessoa que
acusava--ninguem soube aproveitar o momento, o erro, a oportunidade...
Ninguem se quiz comprometer... A defeza feita pelo Paçô foi fragil,
risonha, quasi «pedindo desculpa»...

[11] Folheto de 10 paginas, com este titulo: _Os Barbadões, resumo
historico por D. Sebastião de Vasconcellos, Bispo de Beja, Par do Reino
e Comendador da Nobilissima Ordem de N. S. da Conceição de Villa Viçosa.
Propriedade da Empreza Editora do Jornal «Portugal» Limitada_.

[12] Carta publicada n'_O Norte_ de 1 de Setembro de 1918 pelo snr.
Bourbon e Menezes:


                                                           Meu Senhor:


Tenho a honra de communicar a V. Magestade que, nos termos assentados,
escrevi ao seu encarregado de negocios em Berlim para fazer-lhe saber a
conveniencia q. haveria em retro-trahir _(sic)_ a data da visita de V.
Magestade para 20 de novembro e nesta orientação lhe expuz, para levar
ao conhecimento do Ministerio dos Negocios Estrangeiros allemão, os
argumentos e razões que me pareceram apropriados ao fim que se pretende.
Julgo q. isto merecerá a aprovação de V. Magestade.

Quanto ao assunto da nossa conversação no Paço das Necessidades, entendi
hoje aproveitar a oportunidade de vir o marquez de Villalobar dar-me uns
informes que é natural que V. Magestade já conheça pelo conde de
Sabugosa, para entrar com elle em conversa officiosa sobre a
conveniencia de estreitar em bases definidas as nossas relações
politicas, visto os dois paizes soffrerem de um mal commum--a invasão da
onda democratica. Neste sentido lhe fiz um longo arrazoado que elle
recebeu com agrado a ponto de me perguntar se queria que levasse isso ao
conhecimento do seu soberano ou apenas do Presidente do Conselho.
Fiz-lhe notar que esta idea era apenas _pessoal_ e _minha_, que sobre
ella não tinha consultado o governo e que V. Magestade nem de leve
suspeitava d'este meu ponto de vista, que a minha idea era de que as
duas nações por um instrumento secreto se comprometessem a um mutuo
auxilio, no caso de irrompessem _(sic)_ movimentos revolucionarios que
puzessem lá e cá em risco a segurança das instituições.

Elle concordou em que o interesse era commum e por isso reciproca a
vantagem e lhe parecia que seria grato ao coração de S. Magestade o Rei
D. Affonso o lembrarmo-nos d'elle em tal conjunctura, independentemente
das estipulações da nossa alliança com a Inglaterra. Entendi pôr n'este
pé a questão porq. tinha opurtunidade _(sic)_ e corresponde a uma
necessidade que não é _só nossa_ mas tambem d'elles. O ministro
comprehendeu bem a minha idea e disse-me que a ia transmitir a Espanha,
a Canalejas, afirmando-me que poria n'isto todo o seu empenho. Fiz-lhe
sentir que seria bom pôr só a questão _em principio_ e quanto á extensão
e detalhes do acordo seria para regular depois quando V. Magestade e o
governo conhecessem o assumpto. Não quiz ir mais longe para me não
envolver em dissertações sobre acordos economicos que me parecem pouco
convenientes agora para nós. Eis o que fiz e o que me parece que diviria
_(sic)_ fazer-se por emquanto, pois que este assumpto, quanto ás outras
nações, carece de opurtunidade _(sic)_ e entrados na via de explicações
correriamos o risco de prejudicar os interesses que temos em vista.

O que se me affigura necessario e conveniente é ligar os dois paizes
n'uma deffeza _(sic)_ commum, visto que as vantagens e riscos são
communs e não julgo difficil chegar-se ao desejado fim, tanto mais
quanto as suas informações se referem a um movimento revolucionario nos
dois paizes, com dinheiro vindo de França.

Muito prazer terei se o meu parecer merecer a subida honra da aprovação
de V. Magestade, pois que outro não é o meu desejo se não de
corresponder á sua confiança com a pratica de actos meus que sejam
acertados.

Mostrou-se o Marquez de Villalobar muito empenhado em saber o quer que
fosse do casamento de V. Magestade. Continuei affirmando-lhe q. nada
sabia porque o que se estava ainda fazendo em Inglaterra era _à l'insu_
do governo, mas que logo q. soubesse cousa digna de ser-lhe communicada,
lhe não faltaria com essa confidencia.

Disse-me elle q. o seu empenho de saber correspondia ás sucessivas
perguntas que de Espanha lhe fazia o seu Soberano.

_Forse che si: forse che nó._

Beijo respeitosamente as mãos de V. Magestade e em tudo aguardo, com o
devido respeito, as ordens que se dignar dar ao


                                               seu ministro
                                            e subdito obediente

Lisboa, 19-7-910.

                                 (a) _José d'Azevedo Castello Branco_.


[13]

             PREÇO DA VIDA

Pão--kilo                                  90
Carne de segunda qualidade                300
Carne limpa                               600
Vitella                                   800
Carne de porco                            480
Toucinho                                  320
Banha                                     320
Assucar pilé                              240
Bacalhau                                  200
Massas                                    150
Manteiga                                  800
Ovos--duzia                               250
Feijão branco--litro                       70
Petroleo                                   90
Leite                                     100
Feijão frade                               50
Feijão da ilha (manteiga)                 100
Azeite                                    400
Carvão--arroba                            300
Uma pescada                               500
Um vestido de senhora                  30$000
Um fato de homem                       20$000
Um par de botas                         4$000
Média do aluguer d'um andar, por
  semestre (casa para uma familia
  da mediania)                        120$000

[14] Foi oficial na marinha ingleza, condecorado na campanha do Baltico
com a medalha militar, e um excelente administrador. Diz-se que graças a
elle é que a casa da mulher sahiu da barafunda e quasi ruina a que
chegára á data do casamento. Por isso talvez é que passou por um apagado
guarda livros...

[15] Do _Correio Nacional_, na sua secção _Ecos_:


     O sr. Hintze Ribeiro é d'uma grande generosidade para com a sua
     familia.

     Demonstra-o a seguinte lista, cuidadosamente confeiçoada sob
     informes do _Diario do Governo_:

     Para o elevado logar de inspector dos impostos no Porto foi
     transferido o sr. dr. José Paulo Menano, de 24 annos de edade,
     casado com uma cunhada do sr. Hintze.

     Ha tempos, foi colocado no logar de director do hospital das Caldas
     da Rainha o sr. dr. Augusto Cymbron Borges de Sousa, cunhado do sr.
     Hintze.

     O sr. Manuel Hintze Ribeiro, irmão do sr. Hintze, foi graduado em
     inspector superior da alfandega de Ponta Delgada, passando de
     1.170$000 a 1.700$000, mais do que ganha um director geral.

     O sr. Antonio Moreira da Camara Coutinho, sobrinho do sr. Hintze,
     foi nomeado director da alfandega do Porto, com quatro contos de
     reis anuaes, o ordenado d'um ministro, quasi.

     O sr. Manuel Rebello Borges, 2.^o oficial da alfandega de S.
     Miguel, foi nomeado director da mesma casa fiscal, com um conto
     seiscentos e vinte mil reis.

     É uma fortuna para o paiz que a familia do sr. Hintze não seja mais
     numerosa.

     Aliaz, não haveria contribuintes cuja pelle chegasse para pagar
     tantos encargos...


[16] De passagem apontemos a figura de Norton de Matos, o maior ministro
da guerra contemporaneo, organizador capaz d'um trabalho de ferro, que
só os technicos serão capazes de avaliar em toda a sua extensão.

[17] Todas as palavras entre comas são dos _Documentos politicos_.

[18] Introduziu a ordem no Paço.--Até o preço do peixe quer
saber!--dizia-se cá fóra com indignação. Quando do 5 d'outubro todos os
creados diziam bem do rei--todos diziam mal da rainha. O pequeno quadro
que segue explica talvez muita coisa:

«Havia familias das proximidades do Paço que se alumiavam só com as
vellas do palacio real, compradas por vil preço. As contrabandistas
andavam pelas casas dos seus freguezes oferecendo roupas, desde os
vestidos da rainha e dos fatos do rei até ás roupas brancas, meias de
seda e sapatos de setim com a corôa real, para não oferecer duvidas
acerca da procedencia. D'estes factos tivemos conhecimento de sciencia
certa, por vivermos n'esse tempo perto do Paço e nos terem vindo
oferecer por mais de uma vez os espojos do saque, que não aceitamos por
varias razões, sendo uma d'ellas a falta de vocação para receptadores de
roubos. A vocação nasce com a pessoa. Da ucharia do Paço banqueteavam-se
os parentes dos empregados e cremos que até os amigos.

A audacia do latrocinio chegou ao extremo. Indo um dia o rei D. Luiz
caçar á Tapada e tendo morto tres coelhos, ao chegar ao Paço lembrou-se
de os mostrar á rainha.

Mandou-os buscar, mas apenas lhe apresentaram um, porque os dois
restantes tinham desaparecido durante o breve precurso da Tapada até á
Ajuda.

Nos proprios charutos do rei todos os dias dava um ataque epileptico que
os obrigava a saltar das caixas sem que se soubesse para onde tinham
desertado. Chegou o descaramento a ponto de não deixarem um charuto para
o rei fumar».



Lista de erros corrigidos


Aqui encontram-se listados todos os erros encontrados e corrigidos:


  +----------+---------------------+----------------------+
  |          |      Original       |      Correcção       |
  +----------+---------------------+----------------------+
  |#pág.   91| iuutil              | inutil               |
  |#pág.  263| esqueeeu            | esqueceu             |
  |#pág.  291| eomer               | comer                |
  +----------+---------------------+----------------------+

Identificou-se a não existência nos dois originais de uma figura que se
encontraria entre as páginas 206 e 207. Presume-se que por não se
encontrar em ambas as obras da mesma edição, que se trata de um erro de
impressão que afectou esta edição em particular.

Foram efectuadas correcções na numeração das páginas no indíce de forma
a coincidir com a localização correcta no livro.

As figuras no original encontram-se entre páginas.





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