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Title: A India Portugueza - Conferencia feita em 16 de março de 1908 Author: Brion, Hypacio de Language: Portuguese As this book started as an ASCII text book there are no pictures available. *** Start of this LibraryBlog Digital Book "A India Portugueza - Conferencia feita em 16 de março de 1908" *** of public domain material from Google Book Search) Sociedade de Geographia de Lisboa A INDIA PORTUGUEZA CONFERENCIA FEITA EM 16 DE MARÇO DE 1908 POR _Hypacio de Brion_ Capitão de Fragata S. S. G. L. 1908 Typographia da Cooperativa Militar 30--Rua de S. José--42 LISBOA DO MESMO AUCTOR DUAS MIL LEGUAS NO HINDUSTÃO 1 vol. Illustrado com muitas photogravuras á venda em todas as livrarias--2$000 rs. _Sr. presidente, minhas senhoras e meus senhores:_ Agradeço a V. Ex.ª, sr. presidente, as palavras amaveis com que me apresentou a esta assembléa, onde tenho a honra de me apresentar pela primeira vez, palavras inspiradas mais pela amisade do que pela justiça. E a V.as Ex.as digo que não poderei nem satisfazer o meu desejo nem a vossa espectativa. Estou aqui no cumprimento d'um dever, desempenhando-me d'uma difficil missão, mas entendi que não devia recusar o convite, que tão amavelmente me foi feito, e ainda pela razão de não se tratar d'uma conferencia ou dissertação, para o que eu seria completamente incompetente, mas sim d'uma palestra que servisse como que de prologo á apresentação de algumas projecções photographicas, que de certo vos interessarão muito mais do que o que eu vos possa dizer. Não exerci na India, cargo algum administrativo e portanto outro, que não eu, vos poderia explanar quaesquer projectos de melhoramentos e planos de boa economia administrativa, tendo observado de perto quaes as necessidades mais urgentes, quaes os serviços a montar ou a remodelar n'essa India de que Diogo do Couto, no seu _Soldado pratico_, já tanto se queixava! Estive ali como commandante da estação naval nos annos de 1897-1898; fazia da India uma idéa completamente differente da que faço hoje, interessou-me a ethnographia, a religião e vida d'aquelles povos tão differentes do que até então tinha visto, percorri uma parte d'esse Estado, que foi gloria da nossa raça, mas bem longe estava eu de que tivesse de vir a publico dizer alguma coisa do que tinha visto em tão rapida visita. Maior campo onde satisfizesse a minha curiosidade offereceu-m'o a India Ingleza e, aproveitando o ensejo, visitei Bombaim e Calcuttá, os dois grandes emporios commerciaes, as duas cidades cosmopolitas, depois, subindo a Darjeling, a 10:000 pés de altitude d'onde me foi dado comtemplar a gigantesca cordilheira do Hymalaia, o espectaculo mais majestoso e empolgante que a natureza nos pode apresentar desci ao Ganges, visitando a India santa nas margens do rio sagrado, Benáres, a cidade dos fakires, Allahabad, a cidade das peregrinações, passei depois á India dos Sultões, que teve por capitaes Agra e Delhi, onde tantas riquezas existiram e onde tão interessantes obras de arte ainda hoje o attestam, e por fim á India das Mil e uma noites em Ahmedabad e Jeipur, onde se encontra o palacio do Vento, a porta das Esmeraldas, a entrada do Paraiso, a porta das Saphiras, tudo como nos contos de fadas, onde os macacos passeiam á solta nas ruas e entram nas casas e em que doirados pavões abundam em liberdade como n'uma aldeia, as gallinhas! Em tudo que vi não falta materia para interessantes narrativas. A India foi, é, e ha de ser, ainda por longo tempo, vasto campo de observação onde todos os investigadores e estudiosos encontram largamente em que applicar o seu espirito. É certo, que muito se tem estudado n'essa grande peninsula, que os nossos antepassados tiveram a gloria de abordar, por caminho até então desconhecido, trazendo-a por assim dizer, ao convivio dos povos occidentaes, mas tão vastos são os assumptos interessantes, que ella ainda hoje apresenta, quer na sua ethnographia, quer na sua legislação ou nas suas religiões e seitas, que ainda muito tempo decorrerá, antes que bem interpretados e conhecidos sejam os Védas e os Puranas, ou que se desvendem as secretas cerimonias que se passam no silencio dos templos, desde as danças lascivas e louvores entoados em honra do _Lingam_, até aos assombros do fakirismo! Fallar-vos da India em geral, é remontar a epocas de nós afastadas de milhares de annos, é ir quasi ao berço da humanidade e da civilisação, é embrenharmo-nos no labyrintho d'um phantastico pantheismo, é encontrarmo-nos em presença do principio que divide estes povos em castas, perfeitamente separadas, cavando entre ellas profundos abysmos impossiveis de transpôr, ao mesmo tempo que teriamos de admirar a sã moral do Budhismo, os extraordinarios exageros do Jaisnismo e as phantasticas e dantescas descripções do Ramáyana ou do Mahábaratha. Fallar-vos da nossa India, é rememorar dois seculos da historia patria, é invocar Affonso de Albuquerque, D. Francisco d'Almeida, Duarte Pacheco e tantos outros, os vultos mais grandiosos, d'esse aureo tempo em que este pequeno povo occidental, abriu com as quilhas das suas naus os mares que se estendem até ao extremo oriente, e em que a nossa bandeira, tremulou em mais paizes e dominou mais povos, do que os que foram avassalados pelas aguias de Augusto! É, trazer-vos uma série não interrompida de feitos de armas, qual d'elles mais valoroso, desde a heroica defeza de Cochim por Duarte Pacheco até ao cerco de Diu, em que a coragem de D. João de Castro, conseguiu conservar esse florão da corôa portugueza, e que ainda hoje mais nos parecem phantasticos e sobrenaturaes, do que realidades! E quem não se assombrará correndo a costa de Canará e do Deccan, desde Calicut até Bombaim, ao ver essa linha de grossas muralhas de longe em longe, cortadas por baluartes e torres, todas feitas pelas mãos d'esses homens, que assim empregavam o tempo entre dois combates? Já vêdes, pois, meus senhores, que bem verdade vos fallava, quando classificava de difficil esta missão, que mais difficil ainda se torna quando, para contrastar com a abundancia e elevação do assumpto, se me depara a escassez e pequenez dos meus recursos. Tentarei comtudo desempenhar-me d'elle, procurando não abusar da paciencia de vv. ex.as. [Ilustração: Arco dos Vice Reis (Velha Gôa)] Foi no fim do seculo 15, que as caravellas portuguezas, pela primeira vez singraram nos mares de além Cabo da Boa Esperança. Em maio de 1510, Affonso de Albuquerque conquistava Gôa, que, por falta de lealdade e obediencia dos capitães, que tinha sob as suas ordens, foi obrigado a abandonar. Em novembro do mesmo anno realisava a segunda conquista, assentando definitivamente o seu poder, e cravando ali a primeira estaca, á qual devia prender a rede, que se estenderia de Ormuz a Malacca, que essa fulgurante intelligencia tinha sonhado, para suster todo o commercio do Oriente, arrancando-o ás mãos de mouros, de genovezes, e de venezianos, obrigando-o a vir a Portugal, e transformando Lisboa no grande deposito das especiarias e riquezas d'esses paizes, que a muitos se affiguravam encantados! É desde essa epoca, que, pode dizer-se, foi firmada de uma maneira immorredoura a nossa soberania na India. E se bem comprehendido tivesse sido o plano d'aquelle grande civilisador e legislador, se n'aquelles que lhe succederam, houvesse a illuminar-lhes a intelligencia, um raio só, que fosse d'aquelle sol, talvez a conquista de toda a peninsula tivesse sido feita sem derramamento de sangue, fixando-se pelo crusamento das raças, pelos laços de sangue, e pelo respeito dos costumes e das leis. Mas não foi assim. A intransigencia fanatica de muitos, que foram chamados a governar aquelles povos, a cubiça e a ambição de se apossarem das riquezas dos naturaes, a preoccupação constante de augmentarem o seu cabedal, abandonando os interesses da nação, foram as causas que pouco a pouco, mas de uma maneira fatal, derruiram os alicerces do nosso poder, tornando-nos execrados em vez de estimados, ou pelo menos respeitados. Não tinha sido essa a politica do grande Affonso, por isso os indios muito tempo depois da sua morte, iam ao tumulo, implorar-lhe a justiça que os vivos lhes negavam! É com essa mesma politica iniciada ha 400 annos, que a pratica Inglaterra consegue apenas com 60:000 homens dominar 180 milhões de habitantes. Pelo espaço de seculo e meio, esse novo caminho ensinado por Vasco da Gama foi seguido por numerosas armadas que, além das conquistas que faziam, não poucas vezes assignalavam com as quilhas os baixios das costas da Africa, da India e do mar Vermelho, levando no seu bojo os aventureiros que, por seu turno, em vez de trazerem as riquezas que buscavam, deixavam a vida nas mãos dos negros, quando depois de naufragarem eram obrigados a percorrerem em longas jornadas, paizes desconhecidos e povos selvagens, em busca de alguma feitoria ou fortaleza em que se abrigassem. Os chronistas, bem commoventes descripções nos deixaram de taes naufragios! Assim, foram colhidos muitos elementos para as cartas e roteiros! Atravez de muitas vicissitudes e difficuldades, repetidamente atacada mas sempre valorosamente defendida, Gôa conservou-se a capital da India. Pela extensão d'essa cidade, pela sua população, que chega a computar-se em mais de 150:000 almas, pelo seu grande commercio e pelos majestosos edificios cujas ruinas chegaram até nós, pode bem avaliar-se o que foi a nossa obra de civilisação e de colonisação. Não é só o Brazil, meus senhores, que attesta as nossas faculdades de povo colonisador, implantando a nossa lingua, os nossos costumes e o nosso commercio n'esse vastissimo paiz, a India tambem foi uma grande obra da nossa raça, e se d'ella nos restam apenas pequenos retalhos perdidos nas costas do Canará e do Guserate, nem por isso a devemos admirar menos. Só um grande povo, dotado de qualidades excepcionaes de caracter, só uma grande perseverança e uma grande coragem. podiam ter fundado entre povos inimigos uma tão vasta cidade, cujas ruinas, que logo terei occasião de vos mostrar, em projecções photographicas, nos causam verdadeiro assombro. Em 1610, isto é, a pouco mais de um seculo da data em que Vasco da Gama foi recebido pelo Samorim de Calicut, a cidade de Gôa, na ilha de Tissuary (que quer dizer trinta aldeas) estendendo-se pela margem esquerda do Mandovy, estava no seu apogeo.--Largas ruas ladeadas pelos mais majestosos edificios, abriam-se em espaçosas praças, ao fundo das quaes se levantavam grandiosos templos que podiam rivalisar com os melhores da metropole. Por ellas transitava a grande multidão, composta de individuos de todas as raças e em extraordinaria promiscuidade podiam vêr-se os habitos dos frades, as armaduras dos guerreiros, as capas dos fidalgos e os pelotes do povo. O turbante musulmano alvejava proximo da escura mitra do Parsi. O negro cafre passava preste, junto do bronzeado malaio ou do amarello chinez. Toda essa gente labutava na vida afanosa do commercio entrando e sahindo dos innumeros bazares e mercados. [Ilustração: Ruinas do convento de S. Paulo (Velha Gôa)] Por vezes cortavam os ares os repiques dos sinos da Sé, e alguma procissão ia rompendo por entre as ondas de povo, que pressuroso se accumulava pelas ruas de transito ou os sons de tambores e pifanos da guarda avançada, davam signal da approximação do vice-rei, que se dirigia á Ribeira, para assistir á partida de alguma expedição. Pela praia naus encalhadas, concertavam e breavam os fundos e em torno d'ellas dezenas de artifices trabalhavam. No rio ostentavam-se vaidosas, de verga alta, e engalanadas, aquellas que deviam partir para o Reino e as tranquillas aguas do Mandovi eram cortadas em todas as direcções por dezenas de tones, galeotas e pangaios, que lhe iam despejando nos fundos porões o producto de tanto trabalho. Este ridente quadro, teria mais tarde de ser illuminado pelos sinistros clarões dos autos de fé! Do palacio dos vice-reis, grande construcção, que se erguia sobre um pequeno outeiro proximo do rio, descia a rua Direita, de 800 metros de extensão, onde se encontravam os mais ricos estabelecimentos de ourives, lapidarios, mercadores e artifices. Era essa a arteria principal, chamada tambem a rua dos Leilões. Ao fundo via-se a egreja da Santa Misericordia dedicada a Nossa Senhora da Serra, sobre cujo portico estava a estatua de Affonso de Albuquerque, de pedra dourada, que foi transferida para Pangim, onde ainda existe, debaixo de um pavilhão, no meio da praça das Sete Janellas; monumento começado pelo governador conde das Antas e terminado por José Ferreira Pestana. Ao lado direito levantava-se a casa da Santa Inquisição, um dos maiores edificios da cidade, que se defrontava com a Casa da Camara, separadas por um vasto terreno, onde os cavalleiros iam quebrar lanças e onde o povo se entretinha assistindo aos combates de gallos. Percorrendo uma rua para o lado esquerdo encontrava-se a Sé, com o seu cemiterio, que levou mais de 50 annos a concluir, a seguir vinha o palacio do arcebispo, do outro lado, o convento dos franciscanos, cheio de riquezas e preciosidades, onde grandes quadros representavam a vida do santo apostolo. Descendo mais deparava-se com o Hospital Real, notavel pelo tratamento, commodidades e até luxo, que n'elle encontravam os doentes, em média de 400 habitualmente, mas que subiam a 2:000 quando as armadas chegavam do reino. Os leitos tinham cobertas de seda e contavam-se por centenas os servidores. Proximo a este hospital existia a capella de Santa Catharina, levantada no mesmo sitio, onde a cidade foi entrada pelo grande Affonso, com a lapide commemorativa do facto, lapide que chegou aos nossos dias, onde se lê: «_Aqui n'este logar estava a porta, por que entrou o governador Affonso de Albuquerque e tomou esta cidade aos mouros, em dia de Santa Catharina, anno de 1510, em cujo louvor e memoria o governador Jorge Cabral mandou fazer esta casa no anno de 1550, á custa de Sua Alteza._» D'essa capella no dia da festa da santa, que podia considerar-se como festa nacional, sahia a mais imponente procissão, onde comparecia todo o clero, fidalgos e gente grada da cidade, acompanhada de musicas e folias, danças e cavalhadas. Para não cançar mais a attenção de V.s Ex.as direi que n'esse tempo Gôa possuia os conventos de S. Francisco, Santo Agostinho, S. Caetano, S. João de Deus, S. Filippe Nery, S. Domingos, Reformados de S. Francisco e Carmelitas, a Sé, doze egrejas grandes, fóra outras de menor importancia e capellas, tres hospitaes, sendo o de S. Lazaro para leprosos, um para mulheres e o hospital Real de que fallei, um arsenal, a casa da moeda, a fundição de canhões, quatro prisões, que eram os Carceres da Inquisição, o Aljube, do arcebispo, o Tronco (prisão civil), e a prisão da Ribeira ou Sala das Bragas onde se recolhiam os condemnados ás galés, muitos palacios, boas casas, ruas largas, aceiadas e empedradas. Por toda a parte grandeza e luxo, e tudo foi pouco a pouco desapparecendo e os famosos edificios cahiram, como cahiu o poder que os tinha levantado. As intrigas, as guerras, as rivalidades e a grande falta de criterio administrativo, causaram e apressaram essa queda, e bem podemos dizer como disse o grande poeta Thomaz Ribeiro: Eis a cidade morta, e solitaria, Gôa, Seis templos alvejando entre um palmar enorme Eis o Mandovy-Tejo, a oriental Lisboa, Onde em jazigo regio immensa gloria dorme! A Europa, porém, tinha acordado, nações audazes e invejosas levantavam-se, querendo tambem a sua parte na partilha do mundo. A Hollanda, a Inglaterra e a França armavam os seus navios e os povos cançados do jugo, que os vencedores não tinham sabido suavisar, revoltaram-se. A guerra alastrou-se por toda a parte. A fé, o fanatismo e o ideal religioso, tinham em grande parte guiado os nossos primeiros navegadores, levavam sempre alçada a cruz, e se se apossavam das terras, derramando, por vezes, ondas de sangue, ainda tinham perante o espirito da epoca, aquelles sentimentos por desculpa, mas agora os que se levantavam não tinham o mesmo fim, não eram impulsionados pelas mesmas forças, o seu desejo era apossarem-se do nosso patrimonio. Combater para enriquecer. Durante os 60 annos, que decorreram de 1580 a 1640, em que Portugal esteve debaixo do jugo castelhano, muitas fortalezas, feitorias e praças se perderam, embora a coragem dos portuguezes nunca tivesse sido desmentida. Pelos fins do seculo XVI, principios do seculo XVII, innumeras naus hollandezas atacavam os galeões e naus portuguezas, que vinham esperar, pelas alturas do Cabo da Boa Esperança, da ilha de Santa Helena e dos Açores. Rijos combates se travaram, verdadeiras heroicidades se praticaram, hoje quasi de todo desconhecidas. Permittam-me comtudo V.s Ex.as que rememore um desses combates, em que a altivez fidalga do soldado, se allia á coragem e á honra. Em 1601 saiu de Gôa o galeão _S. Thiago_, commandado por Antonio de Mello e Castro, trazendo 300 soldados e marinheiros, trinta fidalgos e pessoas nobres. Tão carregado vinha, que para melhor governar, a poucos dias de viagem teve de alijar parte da carga ao mar. Dobraram o Cabo a 26 de fevereiro de 1602 e a 14 de março, chegavam á vista de Santa Helena, onde encontraram ancoradas tres naus hollandezas. Aconselharam o commandante a não entrar, mas considerando este, quanto o galeão era mau de vella e o animo, que aos seus inimigos daria a retirada, resolveu demandar o ancoradouro. O commandante hollandez com receio que os portuguezes encalhassem o galeão e o queimassem, como mais de uma vez tinham feito, destacou uma lancha para lhes ir fallar, astucia para os entreter, emquanto duas das naus levantavam ferro e vinham fundear mais a barlavento. Antonio de Mello, percebendo o intento, mandou fazer-lhes um tiro, a que elles responderam com toda a artilharia, começando o combate a tiro de arcabuz, que durou todo o dia. Durante a noite, deitaram os nossos os mortos ao mar, trataram dos feridos, reformaram o apparelho e julgando Antonio de Mello que os hollandezes, dentro da bahia, teriam sempre grande vantagem, resolveu ir para o mar largo, pois se este estivesse agitado, obrigaria os hollandezes a fecharem a primeira bateria, que era a mais importante. Rendido o quarto de prima, levantou ferro, os hollandezes receiando que os abordasse, alaram as naus á terra e tomando-lhe barlavento, evitaram-n'o. Antonio de Mello fez-se ao mar e as tres naus foram-lhe na esteira, travando-se novo combate que durou até á noite. Na manhã seguinte o valente portuguez desafiou os inimigos á abordagem, mas estes preferiram continuar o combate a distancia, fazendo-lhe grande damno. A este tempo já o galeão não tinha governo, a mastreação desarvorada, sem panno, sem cabos e as bombas entupidas com a pimenta que tinha corrida para a arcada da bomba. Os soldados e marinheiros pediram ao commandante para se render, salvando-lhe as vidas, mas Antonio de Mello conseguiu dissuadil-os e serenar-lhes os animos, voltando todos aos seus postos. Em breve, porém, correu a voz que o galeão ia ao fundo, e de novo vieram pedir ao commandante para que se entregasse. Quando assim fallavam chegou o mestre Simão Peres, que ouvindo o commandante responder: _Pois ajudae-o a ir_, disse: _Logo vossa mercê quer morrer? Pois se quer, tambem, eu morrerei com elle!_ A isto volveram os marinheiros dizendo: _Se vossas mercês querem morrer nós queremos salvar as vidas. Já que não aproveita pelejar nem ha remedio de defeza._ E logo, desobedecendo ás ordens, içaram a bandeira branca. O commandante hollandez veiu a bordo e, entrando na camara onde estava Antonio de Mello, disse-lhe: _Que lhe daria em nome da republica toda a fazenda que fosse sua e lhe entregasse os papeis e pedraria que levasse._ A isto respondeu Antonio de Mello: _Esse partido fazei vós com os que entregaram o galeão e vos chamaram e deixaram entrar, que eu não hei mister de mercês vossas, nem da vossa republica, que tenho rei para m'as fazer, nem eu tenho para vos entregar nada, pois não me dou por vencido senão quando abordardes e me renderes pelas armas!_ Voltou colerico o hollandez para bordo do seu navio, e entretanto Antonio de Mello deitava ao mar todos os livros, papeis e pedraria. E como lhe censurassem o que fazia, pelo perigo que corria, respondeu: _Que perecesse embora a vida e não perecesse um ponto da sua obrigação, nem permittisse Deus que os inimigos soubessem os segredos de El-Rei!_ O combate continuou. Por fim o galeão foi para o fundo e os portuguezes recolhidos a bordo de uma das naus foram abandonados na ilha quasi deserta de Fernando Noronha. Os que sobreviveram á fome e aos trabalhos chegaram a Lisboa em 1603! Eis como se combatia n'esse tempo e eram d'estes os exemplos que esses valentes marinheiros e altivos soldados nos deixaram! Os inglezes não menor mal nos faziam, ora no mar, ora em terra, onde comtudo grandes perdas soffreram. Francisco de Mello bate-se valentemente com tres naus inglezas á vista do Fayal. André Furtado de Mendonça vence a expedição que os inglezes e hollandezes enviaram ás Molucas; Salvador Ribeiro de Sousa conquista o reino de Pegu; Alvaro de Moraes desbarata em Colombo tres naus hollandezas, e como estes dezenas de factos eguaes e centenas de heroes! Emfim por toda a parte a guerra, de que os portuguezes, por esforços sobrehumanos, saíam quasi sempre vencedores, mas esses esforços eram por assim dizer isolados, faltava-lhes a unidade do mando, a traça d'um plano a seguir, a boa administração e o senso pratico. [Ilustração: Capella de Santa Catharina (Velha Gôa)] No decorrer do seculo XVII, libertado Portugal do jugo castelhano, revivem as nossas qualidades guerreiras. O Brazil, a Africa e a India são ainda theatro de novos combates e de novas victorias, entramos pouco a pouco na posse do que era nosso, mas muito estava perdido sem remedio! Accentua-se gradualmente a queda do nosso prestigio e vão-se perdendo e abandonando successivamente Malaca, Colombo, Cochim, Tana, Baçaim e tantas outras. No ultimo quartel do seculo XVII ainda um clarão illumina essa India já tão obscurecida, e o conde da Ega augmenta o seu territorio com a conquista de Pondá, Zubulim e Salsete, chamadas as Novas Conquistas. Mas alvorece o seculo XIX e toda a Europa arde em guerra. Napoleão domina e vence os seus mais fortes e encarniçados inimigos. As aguias triumphadoras passeiam de Moscow a Lisboa. Portugal lá vae arrastado na torrente, seguindo a sorte d'aquelles a quem se ligou. A côrte foge para o Brazil, é Junot que governa. Como vae longe o tempo em que os povos da Europa e do Oriente procuravam a nossa alliança! Agora, somos nós, que para salvarmos Gôa, essa perola tão querida do grande Affonso, vamos pedir á Inglaterra, que mande alguns dos seus soldados guarnecer as fortalezas, que a tanto poder tinham resistido! De facto ali se alojaram, e só a muito custo de lá sairam em 1813. Em 150 annos tinhamos feito tão grande obra, que foram precisos, quasi, outros 150, para que outros a destruissem, mas por muitos seculos ainda, as lapides e os padrões, d'ella conservarão memoria nas suas lettras de pedra! Gôa, a grande, desappareceu e hoje os terrenos por onde ella se dilatava, são palmares fechados, onde muito difficilmente se podem assignalar alguns logares, tendo para pontos de referencia apenas algumas paredes derrocadas! Talvez pela insalubridade do local ou pela tendencia das cidades approximarem-se da foz do rio que as banha, Gôa veiu occupar a antiga aldeia de Taleigão, a 10 kilometros mais para a foz, tomando o nome de Pangim, sendo elevada á cathegoria de cidade em 1843. Oito annos depois de ser transferida a Alfandega de Gôa para Pangim, foram egualmente transferidos os tribunaes, os cartorios, a Relação, a contadoria ou repartição de fazenda, e pouco a pouco se foram alastrando as construcções pelas bases dos outeiros de Santa Ignés e da Conceição, sendo muitos os embellesamentos e as obras de utilidade feitas por D. Manuel de Portugal e Castro, conde de Torres Novas, Caetano de Albuquerque e outros governadores mais modernos. O actual palacio levanta-se sobre as muralhas da fortaleza de Hidalcão e pouco mais ou menos na altura do rio onde fundeou Affonso de Albuquerque. A cidade tem alguns bons edificios, quarteis, imprensa, bibliotheca, casa da camara, hospital, lyceu e escola medica. No Cabo que divide os cursos do Zuary e do Mandovy, a 8 kilometros da cidade, existe o palacio de verão dos governadores, installado pelo conde de Torres Novas, no antigo convento dos Franciscanos, mandado edificar em 1594 por Mathias de Albuquerque, d'onde se disfructa um lindo panorama. Emquanto o nosso poder se abatia, as armadas desappareciam, abandonavam-se as fortalezas, e o commercio difficilmente se sustentava, o poder da Inglaterra, que pela nossa mão tinha entrado na peninsula, alastrava-se por todo o Industão. Um a um, todos os rajados e sultanados lhe foram caindo nas mãos, Delhi e Agra, as formosas cidades do Grão Mogol, são hoje as capitaes das suas provincias. Levantaram-se Bombaim e Calcuttá em dois emporios commerciaes, que denominam os mares de Oman e de Bengala grandiosos monumentos se erigiram, cortaram-se largas estradas, desenvolveram-se milhares de kilometros de viação accelerada, que como uma forte rede de aço aperta nas suas malhas 180 milhões de habitantes. Seculo e meio ou pouco mais, é tambem tempo que essa nação tem levado na sua obra, mas se outros teem sido os elementos de que dispõe, se o vapor e a electricidade a facilitam outra tambem tem sido a sua administração e a sua politica. Não é ella que mandará arrazar pagodes, templos ou mesquitas, indus ou mulsumanas, fazendo d'essa destruição um titulo de gloria! Não! bem pelo contrario, deixando a cada um a sua religião, respeitando-lhes tanto quanto possivel os costumes, as crenças e as leis fará prosperar as industrias, fundando innumeras fabricas, a agricultura rasgando a enorme rede de canaes de irrigação do Sone e dos Ganges, que tem mais de 4:000 kilometros de desenvolvimento, e as artes abrindo escolas e museos. [Ilustração: Egreja de S. Francisco d'Assis (Velha Gôa)] Pelas suas obras hidraulicas, que regularisam a falta das chuvas consegue salvar da fome muitos milhares de pessoas, restringindo tanto quanto possivel os effeitos d'essa calamidade, que tantas vezes assola a peninsula industanica. Conserva como monumentos nacionaes os grandes palacios, os fortes, os soberbos mausoleos, e as interessantes ruinas, que encontrou. Estuda, escreve, investiga, espalha o bem e a justiça. É por isto e só por isto, que ella se mantém, a despeito da má vontade d'aquelles a quem domina. Os naturaes em vez de fugirem, como fugiam os da nossa India deante da espada fanatica e destruidora de D. Constantino de Bragança, levando para longe as riquezas, a influencia e o trabalho, gastam as fortunas em museos, palacios, monumentos e escolas, que depois offertam ao governo de Sua Magestade Britanica. Mas voltemos ao nosso pequeno Estado. Estende-se elle por 60 milhas de costa, tendo 30 na parte mais larga. É limitado na fronteira de leste pelos primeiros contrafortes das montanhas dos Gattes. Em tão pequena area, de 400:000 hectares, é cortado por muitos rios, sendo os mais importantes os de Chaporá, Bagá, Sinquerim, Mandovy, Zuary e Sal, que fertilisam extensas varseas de arroz e facilitam muito as communicações para o interior. A sua população computa-se em 586:000 habitantes, numeros redondos, dos quaes 250:000 christãos asiaticos ou canarins. Possue, com toda a boa terra portugueza, um enorme funccionalismo burocratico, aduaneiro, judicial e militar, não sendo este o que menos pesa no orçamento, como terei occasião de mostrar. Ao norte confina com o rajado de Sawante Vadi, sob a protecção ingleza, rajado que, pela area territorial, pelas raças que o habitam, pela sua fauna e flora, póde considerar-se egual á nossa India. Pois sabem vv. ex.as o que ali vi quando o visitei? A força militar era de 400 soldados marathas, effectivo a quem estavam reduzidos os 1:000 que primeiro se julgou necessario manter, e que em breve seriam transformados em policia rural, e todos os ramos da administração, desde o commando da força até á applicação da justiça, desde o correio até á fazenda, eram, superintendidos pelo coronel Walch, residente inglez, que tinha sob as suas ordens meia duzia de europeus. Disse-me elle, muito vangloriado e com razão, que no rajado que governava havia 15 annos, não existia um pobre, e a prisão estava quasi sempre pouco habitada. Escusado será dizer-lhes que em Gôa, aos sabbados, os indigenas andam aos bandos e o carcereiro não tem pouco que fazer. Só muito modernamente é que as attenções da metropole se teem dirigido para a longiqua colonia, bastando dizer que foi só em 1857 que a capital da India foi ligada ao mundo, por meio de linha telegraphica. A estatistica de 1899 a 900 accusava 896 contos de receita total n'um movimento commercial de 6:216 contos. A exportação, via caminho de ferro, vinda de além Gattes, era representada por 2:728 contos e a importação para o mesmo destino, 882 contos. A subvenção que o Estado é obrigado a pagar á companhia do caminho de ferro, como garantia de juro, é de 73:000 libs. No anno a que me refiro, a receita bruta foi de 133 contos e a despeza de 160 contos, havendo, portanto, um _deficit_ de 27 contos! Gôa, durante os mezes em que sopra a monsão de SW., fica perfeitamente inaccessivel pelo mar. A barra fecha, isto é, a violenta arrebentação do mar sobre os baixos que a formam une-se de lado a lado, de tal modo que não permitte a entrada a qualquer especie de embarcação. Facil é ver os enormes inconvenientes e difficuldades que de aqui derivam para o commercio, emquanto que a barra de Zuary um pouco mais ao sul dá entrada franca em qualquer epoca do anno. João de Andrade Corvo, sendo ministro da marinha e ultramar pensou, que Mormugão podia substituir Gôa, tornando-o o porto mais importante da costa de Malabar, fazendo-o testa de um caminho de ferro. Começou as negociações para tal emprehendimento, mas tendo sido substituido na gerencia da pasta pelo conselheiro Julio de Vilhena, foi este quem as ultimou e assignou o contracto. Notavel coincidencia, entre estas idéas e as do conde de Alvor, que governou a India em 1684. Este vice-rei depois de consultar os tres estados reunidos em Banastarim, resolveu transferir a capital para Mormugão, onde já existia uma magnifica praça de guerra, construida em 1624 por D. Francisco da Gama, 3.º visconde da Vidigueira. Em 1685 começaram as obras sob a direcção do padre jesuita fr. Antonio Ribeiro, sendo continuadas pelo padre da mesma ordem fr. Manuel de Carvalho. [Ilustração: Egreja e palacio de S. Caetano (Velha Gôa)] Em 1703, estavam construidos os seguintes edificios, palacio dos vice-reis, um grande armazem, um terreiro com 14 casas, a alfandega, o hospital, a cordoaria, a casa da polvora, a relação, a casa da fazenda, um convento, tanques, poços, bombardeiras, o baluarte da Conceição e o forte de S. Ignacio, tendo-se gasto 160:000 xerafins. Extraordinario trabalho! O primeiro e o unico vice-rei que ali residiu, creio eu, foi Caetano de Mello e Castro em 1707. Em 1712 pararam as obras por determinação regia, e tudo caiu em abandono, perdendo-se tanto trabalho, tanto dinheiro e tão boa idéa. Pois bem melhor fôra, que tal não tivesse succedido, porque existiria de facto a cidade que João de Andrade Corvo, n'um voo da sua imaginação sonhava que se levantaria, como que por encanto na testa do seu caminho de ferro, e que attraindo ali todo o commercio do interior da peninsula tornar-se-ia rival de Bombaim! E que esplendida não seria hoje essa cidade, com mais de 200 annos de existencia _terminus_ de uma linha ferrea, que entroncando com as da Southern Maratha encurta de mais de 400 milhas o trajecto do commercio de grande parte da peninsula! O caminho de ferro fez-se com grande sacrificio, estabelecendo-se a garantia de juro de que já fallei. Foi director da construcção, o illustre engenheiro Xavier Cordeiro, já fallecido, que ali affirmou duma maneira notavel a sua alta competencia. O traçado é de um arrojo e de uma execução dignas de todo o elogio, pois n'um curto desenvolvimento de 80 kilometros attinge a altitude de quasi 900 metros. A construcção é perfeitissima como logo veremos. Como accessorio necessario e indispensavel fizeram-se caes acostaveis, e um quebra-mar para os abrigar; levantaram-se armazens e armaram-se guindastes, preparando-se tudo para um grande movimento commercial. Nos palmares proximos cortaram-se e marcaram-se as ruas da futura cidade Vasco da Gama. Estando tudo prompto esperou-se. Mas os capitaes eram inglezes, o serviço das obrigações, isto é, o seu juro, estava garantido, a linha por si só, dentro do nosso territorio nada valia, era um troço _terminus_ que só podia utilisar do movimento que lhe trouxesse a linha ingleza, e a esta não convinha desviar o trafego para a concorrente estrangeira, accrescendo ainda que a exploração era muito cara, devido á sua curta extensão. D'esta serie de circumstancias e jogo de interesses e da nossa proverbial inacção resultou o que é facil de prever. Os caes ficaram desertos, os armazens vazios e a linha vivendo á custa do dinheiro do Estado. O sonho evaporou-se e ficámos em face d'uma dura realidade. D'esde 1888, anno em que a linha foi aberta á exploração, até 1902, foi arrastando-se a sua administração com alternativas, umas vezes para melhor, devido a combinações entre a Southern Maratha e a West India Portuguese, outras para peior, derivadas da guerra de tarifas feita pela Great India Peninsular, mas sempre fataes para o thesouro portuguez, que pagou durante aquelles annos libras 1.238:264, tendo pago em cheio a subvenção das 73:000 libras nos annos de 1898 a 1902 e tendo havido _deficit_ em alguns annos nas proprias despezas de manutenção, _deficit_ que em 1896 foi de 32 contos e 700$000 réis, em 1897--64 contos e 314$000 réis, em 1898--44 contos, em 1900--26 contos, em 1901--19 contos. Estes _deficits_, por uma convenção posterior, são lançados na escripturação da companhia como divida do governo, que deverá ser paga pelas receitas da linha! Bom é comtudo deixar consignado que o pobre Estado da India concorreu para pagamento do juro, durante a vigencia do contracto, conhecido pelo tratado do _sal e abkari_, com a Inglaterra, isto é, de 1878 a 1892 com 40 laques de rupias ou 160 contos por anno e desde 1892 a 1904 com um total de 1:330 contos. D'esta data para cá é consignado no orçamento do Estado da India, para ajuda do pagamento do juro, o saldo das receitas, que tem sido de 30 a 40 contos, sendo a differença paga pela metropole. [Ilustração: Sé Cathedral e Convento de S. Francisco d'Assis (Velha Gôa)] Foi mal pensado o caminho de ferro? Não. Quem olha para a carta da costa da India vê que effectivamente o melhor porto do Malabar é Mormugão, que está inquestionavelmente destinado a representar um grande papel no movimento commercial de toda aquella região. O governo inglez, durante muito tempo, mostrou-se adverso ao desenvolvimento d'este porto, julgando ver n'elle um rival de Karwar, porto que fica um pouco mais ao sul. Mas o relatorio do commandante Dundas Taylor, superintendente dos estudos dos portos da India, veiu destruir pela base essa idéa, provando que Karwar, nem mesmo dispendendo-se alguns milhões de libras, poderia satisfazer as exigencias do commercio maritimo. Mormugão conservou, e conserverá a sua importancia e Karwar, que durante quatro mezes no anno vê o seu porto completamente fechado, que não póde aspirar a ter uma linha propria, porque a passagem dos Gattes pode considerar-se impossivel, se quizer estar sempre em contacto commercial com o resto do mundo terá de adoptar o plano que ultimamente se estudou e que tem por fim ligal-o por uma linha ferrea com a nossa linha em Margão, tornando-se assim nosso subsidiario. Creio bem que d'aqui resultaria sensivel augmento de trafego para a linha de Mormugão e é caso para dizer: tudo que vier é ganho. Claro está que a realisar-se o intento, o governo portuguez não daria um real nem garantiria qualquer juro ou subvenção. A lição tem sido dura. O governo da India Ingleza, que deve ter n'isso um grande e immediato interesse, que attenda a essa necessidade se quizer. Em 1897 foi nomeado governador da India o distincto colonial e infatigavel trabalhador o coronel de engenheria Joaquim José Machado, que bem vinculada tem deixado a sua passagem em todos os logares que tem desempenhado. O intelligente official, vendo o enorme sacrificio que o thesouro portuguez estava fazendo, estudou o problema e procurou dar-lhe solução, começando desde logo a entabolar negociações com a Southern Maratha, para vêr se a chamava a uma conjugação de interesses, augmentando o trafego em Mormugão, livrando-se ella propria da dependencia de que em grande parte estava da Great India Peninsular, companhia cujas linhas tambem entroncam com as suas e cuja _testa_ é o porto de Bombaim. O principio das negociações não foi animador, mas, perseverante como sempre, o coronel Machado não largou o assumpto de mão, e apesar de ter saído da India em 1900, continuou o seu trabalho como delegado do governo, até que ao cabo de cinco annos, em 1902, conseguiu accordar uma convenção, que foi assignada entre a West India Portuguese e a Southern Maratha, pela qual a linha portugueza passou, para todos os effeitos de exploração e conservação, a fazer parte das linhas d'aquella companhia, embora em tudo o mais conserve a sua autonomia. Não posso deixar de mencionar que esta convenção, cujos resultados vou já dizer quaes foram, foi acceite e decretada pelo illustre conselheiro sr. Teixeira de Sousa, então ministro da marinha e ultramar, que teve a coragem de ir, n'este despacho, contra a opinião de algumas das estações que tiveram de ser ouvidas sobre o assumpto, prestando assim um excellente serviço. Bem haja. É elucidativa a leitura das percentagens da exploração. Em 1900 explorava-se a 105%, em 1901, a 115%, isto é, exploração negativa, a média dos doze annos anteriores dava 80%. Feita a convenção, em 1903 baixou a 53%, e o anno passado a 49%. Augmentaram as receitas e successivamente foram augmentando os saldos positivos, sendo estes em 1903, 85 contos; em 1904, 114 contos; em 1905, 109 contos e em 1906, 100 contos. A receita do anno passado attingiu 1 milhão e 100:000 rupias ou sejam 440 contos. D'esta fórma vê-se que o caminho de ferro está rendendo mais de 5:000$000 réis por kilometro, rendimento que julgo não ser excedido, nem mesmo egualado, por nenhum outro. Depois de escripto o que acabo de dizer, tive conhecimento de ter findado para a Southern Maratha a concessão que tinha para a exploração das suas linhas, as quaes passaram a ser propriedade do governo; este, em seguida, entregou á mesma companhia a exploração das linhas que tinha recebido, accrescentando-lhe as de Madrasta. D'esta maneira a nova Companhia Southern Maratha and Madras está hoje á testa de uma rede com mais de 1:500 ou 2:000 kilometros de extensão. Este novo estado de coisas ha de reflectir-se favoravelmente na linha de Mormugão, não só porque a percentagem de exploração ha de diminuir, mas ainda porque essa companhia deixou de ser uma companhia particular, recebendo a sua administração ordens e instrucções do governo inglez. Soubemos mais que, em quinze dias do mez de janeiro, entraram 18 vapores, com um movimento de 2:375 passageiros, de 32:800 volumes de mercadorias e 4:500 toneladas de minerio. O mez rendeu 157:000 rupias ou 62 contos. Parece que merece a pena olhar para uma linha ferrea que apresenta estes numeros! Eis em traços muito rapidos o que tem sido o caminho de ferro de Mormugão, o problema mais importante da moderna administração da India. A India produz magnificas madeiras de construcção, ricas essencias e saborissimas fructas, é um paiz essencialmente agricola, merecendo maior attenção, o arroz e o coqueiro. O arroz é artigo indispensavel para estes povos, entra na alimentação, nos doces, nas massas, na pharmacia, nos juramentos e nas praticas religiosas. Na epoca da colheita faz-se a festa Adáo, que tem logar a 24 de agosto, em que entram guerreiros e bailadeiras. Feita a ceifa e a debulha, o arroz não se levanta da eira, em quanto os differentes individuos da communidade não vêem receber as quotas partes, que lhes pertencem, desde o Estado até á bailadeira. Tiradas estas quotas, o que fica é dividido pelos que trabalharam ou forneceram capitaes. Por isto, se póde fazer uma pequena ideia do que são as communidades da India. O arroz come-se com molho de caril, composto de tamarino, côco, carne ou peixe, malagueta e outras especiarias, acompanhado de papari, que é a farinha de nanchenim amassada tambem com especiarias e frita em fatias muito delgadas. O coqueiro é uma verdadeira fonte de riqueza, basta meia duzia destas arvores para sustentar uma familia. Os seus productos constituem o mais rico ramo de exportação. A producção é superior a 50 milhões de côcos. Do coqueiro póde extrair-se, o assucar, o vinho, o vinagre, o oleo, agua, leite, madeira e filaça, a folha serve para cobrir as casas, e a casca tem varias applicações. O amanho e cultura d'esta arvore pede muitos cuidados, porque emquanto é pequena tem muitos inimigos. [Ilustração: Vista geral de Pangim tirado do bairro Alto Guimarães] A fauna é variadissima, abundando os tigres, bufalos selvagens, ursos, variados antilopes e cobras das mais venenosas, como a capello, a alcatifa e a vibora. Acabo de vos dar em traços muito rapidos e mal esboçados uma ideia do que é a India, que pela sua pequenez, parecerá a muitos que não serve senão para padrão de passadas glorias. Não, meus senhores. A India, apezar de pequena, é rica e não só pode sustentar-se, mas ainda deve dar saldo positivo muito apreciavel. Não tenho eu auctoridade para dizer o que deve ser a sua administração, pois como já vos disse, não exerci cargo algum, que com ella se ligasse, mas durante o tempo que ali estive interessei-me pela colonia e vou dizer-vos o que julgo possivel e necessario. O grande onus, que assoberbava a sua administração vae desapparecendo. Pelo actual regimen de exploração do caminho de ferro, as receitas chegarão talvez em breve para pagar a divida antiga e satisfazer todos os encargos do contracto. Livre de tão grande pesadelo, parece-nos que as attenções devem dirigir-se de preferencia para a agricultura, sendo tambem de primeira necessidade, estabelecer uma linha de navegação regular com a metropole. Já em tempo existiu, a carreira da companhia Bristh India, subsidiada pelo governo, mas coisa notavel acabou exactamente, quando se fez o caminho de ferro. Entendemos que tal carreira deve existir embora com algum sacrificio. Ninguem pode dizer que seja inconveniente haver tal meio de ligação entre as colonias e a metropole, como tambem ninguem pode dizer o que será ou o que poderá ser o futuro d'uma carreira de navegação, antes d'ella se estabelecer. Em taes assumptos todos os calculos são falliveis. Veja-se o que aconteceu com as carreiras para a Africa Oriental, devidas á tenacidade do sr. conselheiro Teixeira de Souza. Em annos regulares a importação de arroz, orça por 400 contos em média, chegando a 700 quando os annos são de sécca. Para obviar tal inconveniente julgamos, da mais absoluta necessidade, a construcção de uma rede bem estudada de canaes de irrigação, com o que se duplicaria a producção e evitaria a constante drenagem de oiro, para a India Ingleza. Claro está, que feita a rede o governo trataria de adoptar medidas moldadas pelas, em uso na presidencia de Calcutá, afim de tirar d'esse melhoramento o maior beneficio, além d'aquelle que lhe proviria directamente pelo imposto agricola. E será difficil pôr em pratica esta obra cujo alcance economico é extraordinario? Será difficil arranjar dinheiro para isso? Creio que não, pois no proprio orçamento do Estado da India, elle se encontrará, fazendo desapparecer ou por outra, dando esta applicação a verbas que estão desviadas para serviços, que não podem soffrer a mais pequena comparação com aquelle a que me refiro. Deveria tambem o governo auxiliar e facilitar a formação de companhias para o estabelecimento de fabricas de fiação de cairo e tecelagem, animando qualquer iniciativa que appareça. Demarcar, conservar e repovoar as mattas, que tão abandonadas e roubadas teem sido fazendo d'ellas um rigoroso cadastro. Tambem seria conveniente e proveitoso que o governo, explorasse por sua conta a navegação fluvial. Mormugão, parece-nos, visto não termos navegação directa para o Oriente, que poderia ser, um como que entreposto commercial, onde fossem nacionalisar todas as mercadorias d'aquella procedencia, principalmente, o chá, as porcellanas e as sedas, livrando assim este importante commercio dos intermediarios inglezes e allemães. Outra necessidade a attender é a desamortisação das propriedades de mão morta, que na India são importantissimas, fazendo-a com muito criterio e gradualmente, conjugando-a com o estabelecimento do credito agricola. O regimen de arredamento d'aquellas propriedades tal como está em uso, é causa do empobrecimento do solo, por isso que os arrendatarios não podendo prolongal-os por mais de tres annos tiram da terra o que ella póde dar, não a beneficiando de qualquer fórma. Examinemos agora o orçamento de previsão de 1907-908 e vejamos o que n'elle se encontra. A receita está prevista em 997 contos e está equilibrada com a despeza de 997 contos. Muito bem, mas é caso de perguntar, damos a todas as verbas d'essa despeza boa applicação? ou poderiam ser desviadas para onde melhor proveito déssem? Não podemos deixar de nos pronunciar pela segunda hypothese, principalmente em relação a duas verbas que muito pesam e esmagam qualquer tentativa de desenvolvimento que queira dar-se a determinados serviços. A primeira é a que se gasta com o Padroado, que custa ao Estado da India mais de 60 contos por anno, para manter egrejas e escolas na India Ingleza, onde não se ensina uma unica palavra de portuguez! Ora, realmente, se vencermos a lucta, que sustentámos com Roma, por causa do Padroado, foi um triumpho diplomatico, o resultado foi um desastre financeiro, estou certo, que mesmo aquelles, que com tanta tenacidade e intelligencia defenderam os nossos antigos direitos, não o teriam feito se imaginassem que seria este o proveito que tirámos da victoria. Será gloria, não nego, o continuarmos a missionar e a cathechisar por territorios, que não nos pertencem, deixando alguns dos nossos quasi ao abandono, mas parece-me que é gloria sem proveito, porque de certo no céo, não serão separadas as almas que nós lhe ganhamos, d'aquellas que a Propaganda Fide lhe envia, a qual em todo o caso querendo colher já na terra algum proveito, ficou com as egrejas mais ricas e na partilha deu-nos as que mais despezas tinham. Mas o mal está feito e não haverá coragem para o remediar! Apezar d'isso não posso deixar de dizer, que me parece isto demasiado apego a antigas regalias, mas visto que as temos, julgo que d'ellas poderiamos tirar melhor proveito, tomando-as como base de novas negociações com a Santa Sé, para regularisarmos por exemplo a nossa Egreja africana, estabelecendo-lhe uma acção mais definida, uma jurisdicção mais completa, o que alliado a uma sabia e bem orientada propaganda, nos daria maiores e melhores resultados, quer debaixo do ponto de vista da civilisação, quer debaixo do ponto de vista politico e patriotico, servindo de grande auxiliar á fixação da nossa soberania. Não seria assim aquella verba, embora na mesma orientação evangelica, mais proveitosamente gasta? Creio que sim, como tambem creio que Roma se daria por satisfeita. [Ilustração: Rua de Malacca (Pangim)] A outra é a administração militar. Não se explica realmente, nem será facil encontrar a razão porque o Estado da India tem necessidade d'uma organisação militar, que absorve 410 contos ou sejam quasi 50% da sua receita, tendo de accrescentar ainda a esta verba mais 100 contos em media, que a metropole paga em passagens e ainda outra importantissima, proveniente dos adeantamentos para fardamento. Vejamos como esta apparece. O serviço obrigatorio nas colonias é de dois annos, no fim dos quaes as forças teem de ser rendidas. Cada vez que é mandada uma expedição, fardam-se e equipam-se convenientemente os soldados que a compõem, sendo tudo pago pela metropole, por operações de thesouraria, debaixo da rubrica de _adeantamentos_, por isso que os soldados deverão descontar no pret as respectivas importancias. Acontece, porém, que no decorrer dos dois annos, veem vindo para o reino muitas praças doentes, que teem baixa e aquellas que regressam no fim do tempo, em geral, não tem concluido o pagamento do que lhe foi adeantado. D'esta fórma não entra nos cofres do estado a quantia que de lá saiu, perdendo o thesouro a differença que sobe a contos de réis. Eis os resultados que dá a actual organisação militar das colonias. Não concordo com ella, em geral, mas muito menos com a parte relativa á India Portugueza, pois a julgo prejudicial não só para a colonia financeiramente, como acabo de mostrar, mas até para a propria força militar. Pois que? nós que tanto elogiamos o que no estrangeiro se faz, nós que tanto imitamos o que outros organisam, tendo ali ao pé da porta uma nação que tão sabiamente administra um enorme paiz, em tudo parecido com o pequeno retalho que nos pertence, não encontraremos n'essa administração e na sua organisação em geral, coisa alguma que nos sirva? De certo que encontramos. É, pois, da mais absoluta necessidade, transformar aquella organisação, alliviando o orçamento de tão pesada verba, remodelando e desenvolvendo a guarda fiscal, não militar, embora disciplinada e a policia rural, tão proveitosa e util, aproveitando as aptidões dos elementos indigenas, que as teem e muito apreciaveis como vi por todo o Industão, em vez de transportar para um clima deprimente soldados europeus, que se anniquillam e desmoralisam na vida enervante e sedentaria dos quarteis! Guardadas as devidas proporções, sustentando nós uma força militar de 3:000 e tantos homens e 191 officiaes para uma população de 586:000 habitantes, a Inglaterra teria de sustentar um exercito de 900:000 homens, em vez de 200:000, entrando n'este numero a força indigena em numero de 130:000 homens aproximadamente. E perguntarão V.s Ex.as, mas o clima tambem não é enervante e deprimente para elles? É. Mas os quarteis são estabelecidos em bairros separados, nos pontos mais saudaveis, e podem considerar-se verdadeiros sanatorios, onde o soldado tem todas as commodidades, vivendo com a sua familia, fazendo todos os exercicios de _sport_ e perfeitamente separado do elemento indigena, que é inquestionavelmente uma das maiores causas de desmoralisação. Das economias que proviriam de uma orientação, como a que deixo apontada, creio que conseguiriamos sem difficuldade, o sufficiente para amortisação e juro do capital necessario para dotar a India de uma boa rede de canaes de irrigação. Continuando, como é de crer, o accrescimo que até hoje se tem manifestado, no trafego do porto de Mormugão, é evidente que deverão ser augmentados os caes acostaveis e o quebra-mar. A vida não pára, o commercio progride, e ainda ha pouco vimos no _Times of India_ que Bombaim vae augmentar os seus caes, n'uma extensão de duas milhas e meia. Sabemos que tambem se tem pensado n'isto e que é ainda devido ás boas diligencias do coronel Machado, que a West India encetou n'esse sentido algumas obras em Mormugão, mas não é bastante. É preciso que o governo da metropole se convença, que tudo seja facilitar, prestar auxilio, e mostrar boa vontade á companhia Mormugão Railway, reverte, pode dizer-se, em nosso exclusivo proveito, visto os seus obrigatarios terem o juro garantido e nada mais exigirem. Portanto, repetimos, a unica maneira de tirarmos directa ou indirectamente, algum proveito dos enormes sacrificios a que aquelle contracto nos obriga e cujas consequencias ainda podem vir a ser mais desastrosas do que já foram, por isso que o artigo 28.º reconhece á companhia o direito de, passado um primeiro periodo de trinta annos, que termina em 1910, entregar ao governo a linha, telegrapho e outras obras executadas pela importancia realmente dispendida, isto é, 1.500:000 libras approximadamente, é desenvolver a navegação, facilitando e garantindo as commodidades que o commercio maritimo deseja e exige. [Ilustração: Monumento a Affonso d'Albuquerque na Praça das Sete Janellas (Pangim)] São estas, julgamos nós, as questões mais importantes e de maior alcance economico, a tratar na moderna administração da India, que seriam resolvidas com relativa facilidade aproveitando melhor as suas condições naturaes, os seus habitantes, e os 977 contos da sua receita cobrados em geral sem difficuldades, pois basta dizer que o anno passado não se processou a falta de pagamento de uma decima! Antes de terminar, dir-vos-hei muito rapidamente alguma coisa dos costumes e religião dos povos da India em geral, o que, com pequenas modificações, se applica á nossa India, cujas raças teem intima affinidade com as que se encontram em toda a peninsula. Os indigenas dividem-se em quatro castas fundamentaes, duas nobres e duas plebeias. As nobres são Brahmanes e Charodós, as plebeias os Vaixás e os Sudras. A estas castas são attribuidos os quatro serviços, sacerdotal, militar, industrial e servil. Além d'estas castas ha os parias, ou farazes, que são producto illegitimo do commercio entre castas diversas, e estão abaixo de toda a classificação. Os brahmanes nasceram da cabeça de Brahma, e por isso são destinados á sciencia e ao ensino, os Charodós vieram dos braços, são os que governam e commandam, os Vaixás do ventre, são os que trabalham no commercio e na agricultura, os Sudras dos pés e fazem todos os serviços mais ordinarios. Além dos indus, encontram-se os Parsis, os Mulsumanos, os Africanos e os descendentes, que são brancos nascidos na India, de paes europeus e que durante muitos annos occuparam quasi todos os cargos na administração e no militarismo. O principio das castas é rigorosamente mantido, o filho segue invariavelmente a vida do pae, ninguem tem o direito de sair da esphera de acção que lhe é marcada pelo nascimento, ligação entre castas differentes não pode admittir-se e tão arreigada está esta idéa, que mesmo entre indigenas christãos, e que o são ha mais de duas ou tres gerações, quando querem contrair matrimonio nunca deixam de procurar noiva em familia, que tenha origem egual á sua. Atravez os seculos as leis de Manú conservam a sua influencia. Mysterios de atavismo. Os sacerdotes e os gentios de castas superiores depois de comerem pintam na testa varios symbolos indicativos da seita a que pertencem: Os sectarios de Vichnu usam tres traços verticaes, os de Siva tres traços horisontaes. Estes traços são feitos com cinza de bosta de boi secca, com lodo do Ganges, com açafrão ou com tinta vermelha extraída do Cucomb. Antes de comer tomam sempre banho, conservando durante algum tempo um bochecho de agua na bocca: depois sentam-se no chão, e servem-se sobre folhas de bananeira. O terreno, que serve de mesa é primeiro barrado com bosta de boi. Antes de começarem a comer percorrem, com a mão as bordas da folha que lhe serve de prato e tomando cinco bocadinhos de alimento, por duas vezes, offerecem-os aos Deuses e aos cinco sentidos. Em seguida comem no mais absoluto silencio. Fui hospede durante alguns dias de um importante personagem gentio, que me tratou admiravelmente, mas naturalmente obriguei-o a tomar maior numero de banhos, porque a minha presença era sufficiente para se julgar poluido, não podendo comer, resar, etc., sem proceder a previas abluções. Quando um europeu visita um indu, a primeira cousa que este faz é offerecer-lhe a areca e cal, envoltas n'uma folha de bétle, para lhe desejar a boa vinda. São em geral muito hospitaleiros, attenciosos e intelligentes. Nas festas que são muitas, o que mais os extasia é o _nautch_ ou dança das bailadeiras, servas do templo ou _devassadis_, e diga-se de passagem que taes espectaculos bem longe estão do que a maior parte dos europeus imaginam. As bailadeiras são em geral magras e pouco attrahentes, nem mesmo as encontrei melhores em Benáres. Apresentam-se vestidas com muitas saias de gase ricamente bordadas a ouro, calças apertadas no tornozello, onde atam uma fita com guisos. A dança consiste n'um rodopio mais ou menos prolongado nas pontas dos pés, batendo o compasso com os guisos, erguendo e torcendo os braços e as mãos, cantando com voz dolente, nasal, e por vezes regularmente desafinada. A musica é composta da _mordanga_, especie de tambor, tocado com os dedos, e o _serungui_ do feitio de uma rebeca. Eis tudo. A mulher indiana está bem longe de disfructar a millesima parte da liberdade que tem a mulher europeia, e não será ali que facilmente entrarão as modernas idéas do feminismo. [Ilustração: Egreja de Pangim] A indiana não tem nem gosa dos mais pequenos direitos. Vive sempre na mais absoluta dependencia primeiro, do pae, depois do marido e dos filhos masculinos. As leis de Manú determinam que a mulher nunca póde conduzir-se pelo seu proprio criterio. Os casamentos contractam-se na infancia, mas só se effectuam na idade appropriada. Caso o futuro marido morra antes de ter effectuado o casamento, a noiva fica viuva para todos os effeitos e não póde tornar a casar. Antigamente as viuvas faziam o sacrificio á deusa Satty, deitando-se na fogueira, que consumia o cadaver do marido. Hoje, devido aos esforços do governo inglez, póde considerar-se abolida esta pratica, calculando-se que existem mais de 20 milhões de viuvas que não existiriam se ainda lhes fosse permittido o sacrificio. A vida que a viuva actualmente passa é infelicissima. Apóz a morte do marido quebra os braceletes, renuncia ao mundo, rapa o cabello, não póde usar o mais pequeno ornamento, não come senão uma vez por dia e vive no mais completo isolamento, mesmo entre a sua familia. Os indus acreditam que não podem entrar no céo se não deixarem na terra um filho que lhe recite as orações á hora morte, por isso a esterilidade é humilhante. O nascimento de um filho varão dá logar a grandes festas. O pae offerece ao seu Deus, côco e assucar, esparge a casa com bosta de boi diluida em agua para afugentar os maus espiritos. Todos os que habitam a casa esfregam a cabeça com oleo de côco, lavam-se e purificam-se. Em algumas localidades faz-se ao sexto dia, a festa á deusa Satty, pondo-se ao pé da mãe uma porção de arroz, dez ou doze litros, rodeada de côcos e uma candeia accesa. Durante toda a noite tangem as _gumatas_ e outros instrumentos, não sendo permittido ás pessoas da casa dormirem. Na casa em que se fizer esta cerimonia todas as mães que tiverem filhos, que ainda não tenham attingido a epoca de dentição teem de sair com elles com receio que o diabo Xatam não se introdusa no corpo da creança cuja bocca desprovida de dentes não pode evitar-lhe a entrada. Ao decimo primeiro dia todas as pessoas se purificam com agua benta Panchá Gaviá, de Panchá _cinco_, e _Gaviá_, _vacca_, quer dizer as cinco excreções e secreções de vacca, a saber: o leite, a manteiga, o sôro, a bosta e a urina. [Ilustração: Tumulo de S. Francisco Xavier, riquissimo trabalho em prata no Bom Jesus (Velha Gôa)] Se acontece a mulher morrer antes do decimo dia, então fazem-se coisas extraordinarias. Quebram-lhe as articulações dos braços e das pernas, cravam-lhe na cabeça um prego e o corpo sae por um buraco que se abre na parede e logo se fecha. Isto tudo se faz para que a morta não possa voltar para traz e não saiba entrar em casa, visto imaginarem que o espirito só pode entrar por onde sahio o corpo. É uso entre os gentios a incineração, por isso não ha mausoleus, limitando-se a plantar no logar da queima a arvore Tussoly, pela qual tem grande veneração. Tambem é muito venerada a Veddo ou Ficus Religiosa, porque os seus ramos esconderam a deus Chrisna, quando menino, aos olhos dos seus perseguidores. Os brahmanes, reconhecidos por este serviço, introduziram as praticas de dar algumas voltas em roda da arvore, collocar-lhe flôres ao pé do tronco e espargil-a com agua. Se se contam por centenas as cerimonias religiosas d'estes povos é por milhares que se podem contar os seus deuses ou objectos a que prestam veneração. Para o indu, tudo que existe no mundo material ou immaterial é uma manifestação da divindade e tem uma parte da emanação divina. Creio bem que não há no mundo povo mais arreigado ás suas crenças. Em Benares, a Roma indu, ha mais de 4:000 templos e sanctuarios e o seu poder sagrado é tão grande, que o avistar as flechas dos seus templos é sufficiente para purificar o maior peccador, mesmo que o seu peccado tenha sido comer carne de vacca! A mais pequena descripção ou noticia que eu tentasse dar-vos sobre o pantheismo indu levar-me-hia muito longe e para não vos fatigar direi apenas duas palavras. A base do brahmanismo puro é o culto ás origens da vida, ao poder creador, ás forças da natureza em todas as suas manifestações. Pelo seculo V, antes da nossa era, appareceu Çakia Mouni prégando a sua admiravel doutrina, que tomou o nome de Budhismo, porque elle mesmo foi chamado Budha, que quer dizer _sabio_. D'esta doutrina nasceu o Jaisnismo e por toda a parte appareceram outras seitas, cujas differenças são tão subtis, que se tornam completamente incomprehensiveis para nós. Budha foi absorvido no brahmanismo e das alterações que lhe foram successivamente introduzindo, resultou o neo-brahmanismo. A trimurty ou trindade indu, compõe-se de Brahma, que cria, Vichnu, que conserva, e Siva, que destroe. Os livros sagrados são Riga-Veda, Jaiur-Veda, Sama-Veda, e Atarva-Veda. A alma soffre varias transmigrações antes de entrar no Calás, o paraiso de Siva. Vichnu tem apparecido no mundo nove vezes debaixo de encarnações differentes ou avatares, de Peixe, de Tartaruga, de Javali, meio homem meio leão, brahmane anão, Purisseramo, Rama, Crisna e Budha, vae agora para a decima, chamada Calunguy, em que apparecerá em forma humana, com tres braços, montado n'um cavallo branco alado. Esta apparição terá logar no fim do periodo que vamos atravessando, isto é, d'aqui por uns 430 e tantos mil annos. Como se vê indus são prodigos nos seus calculos. A terra tem de atravessar quatro periodos. O primeiro chamado Critayuga, durou um milhão 728:000 annos, o segundo Tritayuga, um milhão 2:960, o terceiro Duapar 864:000. No fim do quarto, tudo se desfará e voltará ao chaos de onde saiu. Quem sabe se elles terão razão? Como vêdes, meus senhores, pouco interesse vos poderá ter merecido esta desataviada exposição, e por isso mais vos agradeço a vossa benevola attenção. Para concluir passarei a mostra-vos algumas projecções photographicas. *** End of this LibraryBlog Digital Book "A India Portugueza - Conferencia feita em 16 de março de 1908" *** Copyright 2023 LibraryBlog. All rights reserved.