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Title: Amôres d'um deputado Author: Buffenoir, Hippolyte, 1847-1928 Language: Portuguese As this book started as an ASCII text book there are no pictures available. *** Start of this LibraryBlog Digital Book "Amôres d'um deputado" *** IV--Colecção Diamante HIPOLITO BUFFENOIR Amôres d'um deputado Guimarães & C.ª editores--Lisboa Amôres d'um deputado _Composto e imprenso na Imprensa de Manuel Lucas Torres Rua do Diario de Noticias, 93_ COLECÇÃO DIAMANTE _Hipolito Buffenoir_ Amôres d'um deputado _Trad. de A. Ferreira_ 1911 Guimarães & C.ª--Editores 68, R. do Mundo, 70 LISBOA I _O café Tabourey_ --Paga oito «sous»! gritou Carlos, o moço do café Tabourey, dirigindo-se á menina Amelia Dufer, a filha do dono do estabelecimento, exercendo o logar de «caixa», e acompanhando o grito do lançamento d'uma moeda de cincoenta centimos sobre o marmore d'um pequeno balcão. A rapariga guardou a moeda e deu-lhe o troco de dois «sous», que Carlos fez cahir sobre uma meza do fundo onde um freguez se achava escrevendo uma carta. --Oito e dois dez! resmungou o moço do botequim, tirando um prato e uma chavena que se achavam sobre a meza. --Está bem, guarda o resto para ti! retorquiu suave e tristemente o freguez, mal erguendo os olhos da carta que estava terminando. O relogio collocado quasi junto do tecto da casa, embutido mesmo nos ornatos da cimalha marcava dez horas e vinte e cinco minutos e o freguez do café Tabourey olhando-o, melancholicamente, suspirou e pensou: --Decididamente, não veem esta noite; levanto a sessão! Ainda se demorou alguns minutos procurando na meza do centro, entre um monte de jornaes, o «Soir» e não o encontrando, dirigiu-se á menina Amelia Dufer, entregando-lhe a carta que acabava de escrever. --Se esses senhores vierem, a menina faz-me o favor de entregar esta carta a Maupertuis, sim? --Com todo o gosto, sr. Ronquerolle, respondeu, amavelmente, a joven Amelia, esboçando um gracioso sorriso, completamente perdido, porque o seu interlocutor havia já desapparecido na rua Vaugirard. N'aquella noite, Ronquerolle, que se sentira invadido por um aborrecimento maior que de costume, tomara uma importante resolução. Decidira voltar á sua terra natal, ha tanto tempo esquecida, e a carta que elle entregara á menina Amelia Dufer, ao sahir do café Tabourey, dizia o seguinte: «Meus amigos: Porque não vieram esta noite? Esperei-os durante muito tempo. Tenho necessidade de os ver. Vou partir para a Borgonha. «Estou cheio de tristeza. «Vosso amigo, «Maximo Ronquerolle». Ás onze horas, os amigos de Ronquerolle aos quaes aquella carta era dirigida e que, após o jantar tinham resolvido dar um passeio pelos «boulevards» voltavam ao Bairro Latino, entrando no seu café predilecto, pensando, e com razão, que Ronquerolle, se já ali não estivesse, lhes teria deixado o que elles vulgarmente chamavam as suas «instrucções». Entretanto, o que mais desejavam era vel-o porque tinham a dar-lhe uma importante noticia. Estes rapazes chamavam-se Jayme Maupertuis, Feliciano Didier e Emilio Branche. Eram, como Maximo Ronquerolle, poetas, jornalistas e politicos. Pobres, quasi desconhecidos, procuravam ser alguma coisa e para esse fim corriam em busca da fortuna e da gloria. Todos os quatro eram republicanos. Tinham feito excellentes estudos na provincia, e aos vinte e vinte e cinco annos haviam partido para Paris, com grandes receios das suas familias, que os consideravam perdidos, no movimento e confusão da grande capital. Socegados na apparencia, eram quatro enthusiastas. A imaginação junta a uma clara intelligencia, eram as qualidades predominantes de todos elles. A sua conducta era irreprehensivel. A amizade que os unia era profunda. Estimavam-se, adoravam-se mutuamente. Ronquerolle e Maupertuis tinham-se conhecido na provincia, na sua terra natal, na Borgonha. Travando relações, de creanças, aos quinze annos, durante os dez que se seguiram tinham-se perdido de vista até que se haviam reencontrado em Paris, graças á «Revue des Poétes», que publicava versos de ambos. Didier e Branche eram do norte. Viviam como dois irmãos. Uma bella manhã, juntos haviam deixado Lille, e juraram á sua entrada em Paris, de sempre ahi continuarem a viver juntos e de juntos tambem seguirem a carreira, que a sorte a qualquer d'elles deparasse. Hospedados no hotel «Lisbonne» da rua Vaugirard, em pleno Bairro Latino, ali encontraram á mesma meza, Ronquerolle e Maupertuis. Uma grande sympathia se estabeleceu rapidamente entre esses quatro rapazes, que em poucos minutos comprehenderam que os movia o mesmo pensamento, a ambição e o desejo vehemente d'uma absoluta independencia. Na occasião em que o leitor trava conhecimento com os quatro mancebos, conheciam-se elles ha dois annos. Os primeiros tempos da sua franca e leal camaradagem, tinham sido encantadores. Haviam comunicado os seus pensamentos, os seus projectos de futuro, enthusiasmando-se mutuamente, lendo os seus versos e conversando sobre os seus amôres, pois que cada um d'elles tinha a sua amante. Chegados ao café os tres amigos de Ronquerolle, receberam a carta que este ali lhes deixara encarregando-se da sua leitura Maupertuis, que do seu contheudo deu conhecimento aos seus companheiros Didier e Branche. --Vamos depressa! disse Branche, que tinha por Maximo uma verdadeira adoração. Um quarto de hora depois, os quatro amigos achavam-se reunidos em casa de Maximo Ronquerolle, que habitava no «boulevard» Montparnasse. --Já sabes da novidade? perguntou Maupertuis. --Qual novidade?! disse Ronquerolle surprehendido. --Sahiu o decreto. --Um decreto!? --Pergunta a Didier e a Branche! --É verdade! ajuntaram estes. --Trouxe-te o numero do «Soir», que trata do assumpto, disse Branche. Aqui tens, lê, nas ultimas noticias. Com effeito Ronquerolle leu um decreto do Presidente da Republica, convocando os eleitores para reunirem em 15 de julho. Ronquerolle, pallido de commoção, conservou-se um momento ancioso. É que elle sabia que aquella data, marcada para as eleições de deputados, poderia ter grande importancia na sua vida. Para elle esse dia seria decisivo, na sua existencia, d'aquelles cuja aproximação faz tremer o homem mais corajoso, causando-lhe calafrios. --E então, que me dizes do decreto? perguntou Maupertuis. --Digo-te, respondeu Ronquerolle, que elle me indica, que tenho a dizer-lhes coisas muito graves. Assentem-se que temos que conversar. Os trez amigos de Maximo acceitaram o convite e emquanto Ronquerolle foi buscar uns papeis guardados n'um movel proximo, esperaram anciosos que elle falasse. De volta para junto da mesa perto da qual se achavam os seus amigos Ronquerolle lançou os papeis sobre a sua secretaria e aproximando o seu candieiro de trabalho e tomando uma cadeira, disse rindo: --Está aberta a sessão! Então Ronquerolle contou aos seus amigos que havia algum tempo estava em relações com o «comité» republicano de Saint-Martin, na Borgonha; que os membros d'esse «comité» lhe tinham offerecido a candidatura por aquelle districto, e que elle havia demorado a resposta até ao dia em que o decreto relativo ás eleições fosse publicado. --Explendido! gritaram ao mesmo tempo os trez amigos. Bello! O decreto sahiu. Não ha que hesitar, acceitas! --Mas eu hesito ainda; e se lhes pedi para virem aqui esta noite, foi na intenção de lhes falar d'este negocio e de lhes pedir conselho. E Ronquerolle tornou conhecidos dos seus amigos os documentos relativos á futura eleição por Saint-Martin. Tratava-se de lutar, em nome da Republica, contra o marquez de la Tournelle, que representava ali as ideias reaccionarias, e que seria approvado por todos os fanaticos do throno e do altar. --Mas isso é encantador, exclamou Maupertuis, farás desapparecer o tal marquez como uma simples bolinha de prestidigitador; e entrarás na Camara como uma bala de canhão. --Não me embriaguem com palavras, disse Ronquerolle desenhando-se-lhe no rosto uma nuvem de tristeza. Não vá eu contar com a victoria e me aguardem as desillusões. A lucta será encarniçada, terrivel. O marquez possue influencia, é rico, pode vencer... --Ora adeus! interrompeu Didier. Todo o districto de Saint-Martin se impressionará com a tua embriagadora eloquencia, inflamarás todas as intelligencias com os teus discursos, e no dia da votação, o teu nome victorioso sahirá das urnas. --E depois, accrescentou Branche, que amava mais Ronquerolle do que a um irmão, tu imaginas que vamos deixar-te combater sósinho?! Reclamamos tambem a nossa parte na lucta; proponho que partamos comtigo para a Borgonha, tomando a cidade de Saint-Martin, como nosso quartel-general, da qual faremos fogo, de quatro barricadas, afim de reduzir á expressão mais simples sua excellencia o marquez de la Tournelle e todas as jovens e velhas devotas, que, estou certo, correm já por montes e valles trabalhando a favor da candidatura de tão alta personagem! Uma formidavel gargalhada saudou a arrogante phrase de Emilio Branche, e o proprio Ronquerolle foi obrigado a acompanhal-a olhando o seu amigo. Depois de duas horas de discussão, ora calma ora ruidosa, ficou decidido que Ronquerolle acceitaria a candidatura que lhe era offerecida, que Branche, Didier e Maupertuis deixariam Paris durante o periodo eleitoral, e que iriam a Saint-Martin auxiliar o seu amigo, e que, sendo necessario fundariam um jornal de combate. Ronquerolle mais pallido ainda que do costume, estremecia de satisfação ao pensar que o seu nome ia sahir da obscuridade, e que ia achar-se envolvido nas luctas politicas do seu paiz. Assaltava-o já o desejo, de se encontrar, elle, filho d'um humilde artista borgonhez, em frente d'esse arrogante marquez de la Tournelle, provando-lhe que os filhos dos proletarios tinham mais sangue nas veias, que os filhos e os netos dos emigrados de Coblentz, entrados em França nos carros de mercadorias do estrangeiro. Provava assim possuir o legitimo orgulho dos homens seguros da sua consciencia e do seu valor e o desejo de ajudar generosamente os seus amigos, fazendo-os saltar os obstaculos, que os impediam de obter uma posição que lhes permitisse chegarem até onde a sua justa ambição os attrahia. Não era só por si que Ronquerolle ambicionava uma situação, era por Maupertuis, Branche e Didier. O primeiro a chegar ao ponto desejado devia estender a mão aos outros, e, decerto, não era Ronquerolle dos que poderia esquecer os companheiros dos dias difficeis da mocidade. Era uma hora da manhã quando os quatro rapazes se separaram. Encontrando-se no «boulevard» Montparnasse, os amigos do poeta, preocupados com os acontecimentos que iriam dar-se, guardaram silencio. A noite estava magnifica. Uma brisa suave trazia á grande cidade os vivificantes perfumes dos bosques de Ville-d'Avray, de Sèvres, de Meudon e de Clamart. Alguns trens percorriam ainda os arruamentos e só elles turbavam o socego d'aquelle bairro de Paris. Chegados á encruzilhada do Observatorio, Maupertuis, Didier e Branche voltaram a conversar animadamente. Intimamente, porém, sentiam-se tristes. --Uma nova existencia vae começar para nós, disse Maupertuis, uma vida de discordias, de combates, de lucta. Podemos dizer adeus á bella tranquilidade dos nossos vinte annos! --E o que faremos das nossas amantes? acrescentou subitamente Didier. --Daremos a liberdade a essas gentis avesitas, disse Branche, e não as lamentemos que ellas saberão orientar-se no paiz do amôr. Voces bem comprehendem, que não podemos preocupar-nos com saias durante o periodo eleitoral. --Poderiamos talvez, interrompeu Maupertuis, envial-as para casa de seus paes! --Tu falas bem! tornou Branche; infelizmente ignoramos a sua morada. --Porém, Ronquerolle, accrescentou Maupertuis, não poderá, tão facilmente como nós, desfazer-se da sua amante. Trata-se d'uma ligação séria. O que será de Emilia sem elle? --Meus filhos, disse Branche com ares paternaes, guardemos para amanhã a continuação da palestra, e vamos deitar-nos. A discussão fica suspensa. E os trez amigos separaram-se. Entretanto Ronquerolle, após a sahida dos seus amigos, encontrando-se no seu modesto gabinete de trabalho apressou-se a tomar algumas notas, sobre o que se passava, e entrou no seu quarto. Julgando encontrar a amante adormecida, avançou com precaução para não a despertar. Qual não foi porém o seu espanto, quando a encontrou embrulhada n'um «robe de chambre», sentada n'uma cadeira e chorando copiosamente. --Que tens tu? disse Ronquerolle, aproximando-se e tomando-a nos braços. A pobre rapariga soluçava perdidamente, e não podia articular palavra. Comtudo, como o amante a enchia de perguntas e a envolvia em caricias, acabou por dizer-lhe que tinha ouvido toda a conversação que elle tivera com os seus amigos, e que bem reconhecia que a legitima ambição de Ronquerolle, era uma ameaça á sua felicidade, que seria a separação de ambos, para sempre talvez. E essa incerteza, era terrivel para ella, que apenas podia receiar e chorar. --Creança, disse ternamente Ronquerolle, porque duvidas de meu carinho? Não sou o teu amante, o teu melhor amigo? Por ventura, depois de trez annos, que vivemos juntos, alguma vez te menti, te enganei, te abandonei um dia, uma hora?... Tentava animal-a, mas a duvida e o receio haviam ferido a alma sensivel da pobre Emilia, e tornar-se-hiam mais vivos á medida que se fossem desenrolando os acontecimentos, que tão fortemente interessavam a Ronquerolle. A amante do novo candidato a deputado, era uma rapariga de vinte e trez annos, de cabellos louros, olhos azues, d'um azul encantador, figura insinuante, bem talhada, seio proeminente mas sem exageração. Adorava a Ronquerolle a encantadora Emilinha. Tinham-se conhecido por forma um tanto ou quanto original. Haviam frequentado ambos o curso d'um professor celebre da Sorbonne. A joven Emilia ia ali acompanhada d'uma tia velha, á qual os seus parentes, que viviam na provincia, a tinham confiado. Os amôres do joven republicano e da sensivel Emilinha, tinham começado com o aspecto d'um idylio innocente, e havia tido por moldura o jardim do Luxembourg. Que de encantadores passeios não realizaram Ronquerolle e a linda rapariguinha sob as arvores que ensombram a fonte de Médicis! Que de ternas discussões elles não prolongaram percorrendo a Avenida do Observatorio! Que de alegres pensamentos, não os assaltaram ao atravessarem o arvoredo, por entre as aleas floridas, ou quando sentados nos bancos de marmore, onde ficavam horas esquecidas, a falar do seu futuro, dos seus projectos, dos seus sonhos de felicidade! Toda a força da juventude os aquecia. Um cantico de mocidade cheio de vida, perpassava por elles. Um dia juntaram-se as mãos e apertaram-se com transporte. Depois, Ronquerolle, era natural, atreveu-se a beijar a sua linda companheira, e finalmente deixando o curso do tal professor da Sorbonne, no proprio dia em que elle, eloquentemente, dissertava sobre os encantos dos amôres platonicos, Ronquerolle conduzia Emilia á sua habitação e fazia da pobre pequena sua amante. Desgostos, inquietações e lagrimas tinham já acompanhado essa ligação durante os seus trez annos de existencia. Mas nas edades de Ronquerolle e de Emilia, esquecem-se facilmente as miserias da existencia, as angustias da pobreza, os tormentos da ambição, e as calumnias dos vis e dos preversos. Agora porém Emilia, conforme avançavam os dias e os mezes, sentia avolumarem-se, desenvolverem-se os receios de ser obrigada, por circunstancias imperiosas, a deixar o amante. Previa, com o maravilhoso instincto da mulher que ama, que um homem como Ronquerolle seria envolvido no turbilhão do mundo, que a sua ambição o prenderia completamente, e que ella, pobre flôr colhida de passagem, no caminho da vida, depois de quebrada, perdida, seria abandonada á sua dôr, ao seu desespero. Empallidecia e estremecia de commoção quando ao passar por uma egreja, via descêr, ou subir, para uma carruagem uma noiva toda casta e lindamente vestida de branco, coroada de flôres de larangeira. Tambem á pobre Emilia seria grato, transpor assim as naves do templo, e ali receber o sagrado annel de casamento. Ronquerolle podia esposal-a, é verdade, a mais ninguem ella havia pertencido. Para elle era ella uma mulher honesta; para elle devia ella ser digna de usar o seu nome. Por vezes ella tinha a illusão de que a sua ligação seria santificada, mas pouco depois o seu intelligente espirito abraçava tristes ideias e tinha então o presentimento do futuro, glorioso para Ronquerolle, obscuro e desgraçado para ella. E esse devotado coração de mulher, verdadeiramente amante, preparava-se já para o sacrificio, em favor d'aquelle a quem tanto amava. Emilia tinha ouvido toda a conversação de Ronquerolle com os seus amigos Maupertuis, Didier e Branche. Soubera que o amante ia deixar Paris, partindo para a Borgonha, e o seu coração palpitara com mais força, com violencia. Tinha visto com as mais sombrias côres o futuro que a sorte lhe reservava e por isso chorava. --Não chores assim, supplico-te! disse-lhe Ronquerolle, olhando-a ternamente. Commoves-me profundamente com as tuas lagrimas. O que pode affligir-te assim?! --Julgavas-me adormecida e no entanto eu estava acordada, respondeu Emilia. Conheço os teus projectos e os dos teus amigos. Ouvi o que disseram ha pouco. O que te causa tanta alegria, entristece-me, porque é o fim d'esta nossa ligação que surjirá dos acontecimentos aos quaes vaes entregar todos os teus pensamentos, a tua existencia. --Creança! retorquiu Ronquerolle, pois é esse o motivo da tua tristeza e das tuas lagrimas! Tu bem sabes que nunca te abandonarei! Vamos, socega! Pensa na tua bella mocidade: e dize bem alto que te amo e que te hei de amar sempre com toda a força do meu coração! Estas palavras, pronunciadas com uma sincera convicção, abrandaram um pouco as inquietações de Emilia, mas no seu pensamento ficara uma nuvem de amargura e de pezar. Ronquerolle, por seu lado, embora a sua audacia, a sua energia e a sua poderosa vontade, estremecia ao pensar na brutal realidade dos factos, realidade de que elle se queria aproximar, que precisava abraçar, que, a todo o custo, precisava vencer. A amante cançada por fim das commoções soffridas, adormecera. E elle, sentado perto do leito, perto d'uma pequena meza, e á luz, d'uma lampada, tendo a cabeça encostada ás mãos, parecia recolhido n'uma dolorosa meditação. O seu olhar brilhava e não mudava de direcção Relembrava as palavras do grande poeta inglez Shelley; «O mundo é feio e mau.» Via-se a caminhar pelas estradas e atalhos, de Saint-Martin, de aldeia em aldeia para fallar da Republica, aos cidadãos, aos trabalhadores, aos homems do campo. N'alguns momentos, o seu pensamento mudava de objectivo e olhava a amante adormecida. A cabecita loura de Emilia reclinara-se para o lado do amante. Transportes d'amôr enchiam então o coração do joven republicano e pensava, recordando ainda Shelley: «Não, não! Nem tudo é feio! Nem tudo é mau n'este mundo! Tomo por testemunha esta creança, que dorme aqui perto de mim, este seio que se eleva e abaixa, respirando vida, estes bellos cabellos louros soltos lindamente, e a que os raios da luz d'esta lampada dão reflexos dourados... II _O marquez e a marqueza de Tournelle_ A pequena cidade de Saint-Martin, na Borgonha, conta seis mil habitantes. É uma linda e graciosa sub-perfeitura que tem os seus ares de praça forte, com as suas antigas muralhas, a sua guarnição e sobretudo pelo seu velho castello, dominando a cidade e recordando os tempos do feudalismo. Este castello é habitado desde tempos immemoriaes pela familia «de la Tournelle», que tem nos seus brazões a corôa de marquez. Os «de la Tournelle», durante muito tempo, foram os senhores da região. No tempo da Revolução, e nomeadamente durante o Terror, o seu poder decahiu muitissimo; porém quando Bonaparte se apoderou do throno e se fez imperador, readquiriram o seu antigo prestigio, graças ás habeis generosidades diffundidas na região e mais especialmente na circunscripção de Saint-Martin. No momento em que se desenrolam os factos que relatamos, o marquez Sergio de la Tournelle considerava mais do que nunca, esta circunscripção de Saint-Martin como um feudo que, sem duvida alguma, lhe pertencia. «Maire» da cidade, conselheiro geral e deputado da direita, não poderia affrontar os seus inimigos? Além d'isso, era digno de ouvir-se, quando fallava do pequeno grupo de republicanos que se agitava na sua circunscripção. Chamava a esses bravos democratas, assassinos, patifes, dignos de serem enviados para Cayenna, canalha sempre embriagada, frequentando os antros do deboche e insultando os padres. No entanto, as ultimas eleições municipaes tinham mandado trez d'estes «assassinos» a tomar o seu logar na «mairie», ao lado do sr. marquez, e o senhor «de la Tournelle» tinha d'isso um vivo despeito. A marqueza de la Tournelle, Carlota Maximiliana de Champeautey, era uma mulher d'um bello aspecto e immensamente seductora. Tinha trinta annos, sendo mais nova quinze annos que seu marido. Era bella e forte. Trazendo sempre a cabeça arrogantemente erguida, o seu peito, extraordinariamente desenvolvido nada tinha d'exagerado, por causa da sua elevada estatura. Os cabellos castanhos claros, os olhos azues, as mãos finas com os dedos alongados, os pequeninos pés, completavam o arsenal das suas graças femininas. Além d'isso, amava os perfumes, a «toilette» e dava leis ás grandes elegantes como as adoraveis mulheres do XVIII seculo. Era amavel para todos, ainda mesmo para os humildes e os pequenos. Finalmente, não se poderia vêl-a sem logo a amar. A bella Carlota não tinha um inimigo, exceptuando talvez o barão de Quérelles, um conquistador desprezado, que tinha jurado não morrer sem se vingar dos desdens da altiva aristocrata. O barão vinha rarissimas vezes a Saint-Martin, mas estava ao corrente de todos os acontecimentos da pequena cidade. A marqueza tinha no coração, ou antes na cabeça, uma paixão deveras rara entre as mulheres. Era ambiciosa. Tinha tentado fazer de seu marido um alto personagem, dar-lhe o prestigio superior da vontade e da energia. Porém o marquez «de la Toumelle» pertencia á raça dos mediocres, terminando a marqueza por ter compaixão d'elle. O marquez era um bello homem, muito elegante no seu porte, muito bom cavalleiro, bom valsista, bom caçador, conversador agradavel ainda que futil, mas incapaz de empregar, por seu proprio esforço, a actividade necessaria, e de seguir a um fim com tenacidade. Era vaidoso, mas ignorava o poder do orgulho. Tinha uma grande confiança em sua mulher e não tomava qualquer resolução sem a consultar. Elle era só quem dispunha dos altos cargos da circunscripção, só elle se offerecia aos suffragios dos eleitores. Quem ousaria disputar-lhe a victoria? Deputado em evidencia, proprietario respeitado, dispondo d'um jornal, tendo ás suas ordens um «comité» das pessoas mais elevadas da cidade, batia o seu concorrente completamente, se acaso um se apresentasse, se bem que sabia, dizia elle, que ninguem havia tão tolo que contra elle aceitasse uma candidatura. --Ah! os cobardes! os amotinadores! gritava uma tarde na janella do seu castello, fallando dos republicanos, e dirigindo-se ao presidente do seu «comité»: Elles que nada teem, que são pobres como Job, fallam em ser senhores! Pois bem! onde está o seu candidato? Que appareça! Vamos, mostrae-m'o raça de biltres! Ao pronunciar estas palavras, o marquez estendia os braços no espaço, ameaçando com um gesto o café da «Poule-Blanche», logar da reunião habitual dos republicanos de Saint-Martin. A noite cahia lentamente. Lá em baixo, um ultimo raio de sol dourava melancholicamente o cume do monte. Era uma d'estas tardes de junho que enervam a alma e os sentidos. O marquez olhava a cidade, os logarejos, as aldeias perdidas no horizonte longinquo e ondas d'uma vaidade insaciavel lhe subiam ao coração ao pensar que o seu nome dominava na região, como as torres do seu castello dominavam as choupanas da visinhança. Um sorriso de satisfação lhe animou o rosto e teve palavras d'espirito para se rir dos seus inimigos. Quando estava completamente absorvido no pensamento da sua estrella feliz, o seu creado de quarto, Lapierre, tomou a iniciativa de lhe levar os jornaes que acabavam de chegar de Paris. Rasgou, com um gesto brusco, a cinta que envolvia o «Figaro» e passou rapidamente para a segunda pagina para consultar as noticias dos departamentos e das eleições. Os seus olhos cairam immediatamente sobre estas palavras em normando: *Borgonha*, «circunscripção de Saint-Martin.» Leu soffregamente a seguinte noticia: «Escrevem-nos de Saint-Martin, que dois «candidatos se propõem por aquelle circulo, o sr. marquez de la Tournelle conhecido deputado, representando o partido conservador, e o sr. Maximo Ronquerolle publicista, candidato do «comité» republicano. A lucta, diz-se, será violenta. Temos, porém, todas as razões para acreditar que «o sr. Marquez de «la Tournelle» baterá o seu adversario.» --Ah! ah! ah! riu o marquez; a graça não está má. Em seguida, dirigindo-se á galeria, chamou muitos dos seus amigos que estavam no salão e leu-lhes a noticia que acabava de ler no «Figaro». --Como, diz o conde d'Orgefin, presidente do «comité» realista, esse Ronquerolle ousa apresentar-se aqui! É um homem sem valor, escoria de Paris, um revolucionario, um escrevinhador. Conhecêmol-o creança a esse senhor! Usava uma blusa e tamancos. Creio mesmo que seus paes mendigavam... --Não, disse o marquez, tornando-se sério, o pae Ronquerolle era pobre, mas ganhou sempre honradamente a sua vida. O bom homem era um dos nossos fieis eleitores. Vinha algumas vezes ao casteilo pedir-me conselhos e fui eu quem em tempos o levou a fazer instruir seu filho. Estou bem recompensado! O creançola cresceu e é elle quem nos vae dar combate, meus senhores! --Mas não é um adversario sério, replicou o conde d'Orgefin; é uma creancice! Quem é o senhor Maximo Rouquerolle? Não existe. Os republicanos de Saint-Martin deviam pelo menos oppôr-nos um homem de valor e não um fedelho, um ninguem, um cidadão Ronquerolle! Riram todos muito. Lapierre, o creado de quarto, tinha assistido a esta scena, esperando ordens do seu senhor. --Está bem, diz-lhe o marquez, manda atrelar o break maior. Eu e estes senhores sairemos hoje para fóra da cidade, para Sennevel... Ah! espera, Lapierre, leva o «Figaro» á senhora marqueza. O criado tomou o jornal e retirou depois de saudar o marquez. --Pobre Maximo! murmurava por entre os dentes, atravessando um corredor, como estes tratantes te tratam! Está descançado, que eu te ajudarei com as minhas fôrças a destruir esta nobreza. E isto simplesmente porque outr'ora fômos camaradas na escola... Lapierre foi interrompido no seu monologo pela campainha electrica. Ao mesmo tempo, a marqueza atravessava a galeria que confinava com a escada d'honra do castello. Ia passear um pouco pelo jardim antes que a noite descesse completamente. O criado entregou-lhe o jornal. Apenas o abriu os seus olhos cairam sobre a nota relativa á eleição de Saint-Martin. Ao lêr o nome de Maximo Ronquerolle, publicista, a marqueza empallideceu, murmurando: --Meu Deus! seria elle? será possivel: Sim, sim, chama-se Maximo, como eu Maximiliana, recordo-me. É elle que vae chegar? A commoção da marqueza era tão forte, que as suas mãos finas se humedeceram, como se tivesse febre; em logar de ir passear, como tencionava, no jardim, voltou aos seus aposentos onde se deixou cair n'um «fauteuil». Passado um instante, levantou-se sem fazer ruido e offegante, como uma criminosa, temendo que qualquer dos seus criados a viesse surprehender, abriu uma pequena secretaria e tomou um cofre de que só ella possuia a chave, indo sentar-se junto da janella. A tarde tinha caido completamente. Um ultimo raio, como diz André Chenier, animava ainda o fim da tarde, mas as trevas do crepusculo invadiam toda a natureza. A marqueza affastou as cortinas da janella; á luz do ultimo raio de sol que desapparecia, pôde reler uma carta que estava no cofre e que tinha esta assignatura: «Maximo Ronquerolle.» Era uma carta d'amôr e d'amôr apaixonado. Os versos misturavam-se com a prosa e o signatario falava d'uma tarde, d'um baile parisiense onde tinha dançado com madame de la Tournelle... «Oh! porque vos vi eu? dizia a carta. Porque senti eu bater o vosso peito junto ao meu n'esse baile onde me levou o destino, esse Deus do mundo, segundo o pensamento de Schiller? Penso constantemente em vós, é a saudade por vós que me alenta. Não vivo, não aspiro senão á vossa belleza». Depois, impellido pelo lyrismo da sua paixão, Ronquerolle, ia até á intimidade da marqueza, cantando a sua formosura hellenica em estrophes d'oiro. Os seus lindos olhos azues o seu porte altivo e distincto d'uma plastica impecavel, o seu amôr ardente, tudo alli cantava em arrobos d'amôr e d'enthusiasmo. M.me de «la Tournelle» teve um estremecimento ao lêr de novo esses versos. Com effeito, lembrava-se d'um rapaz com quem uma vez tinha dançado, havia quatro anos e que, no dia seguinte, ousara escrevêr-lhe, fazendo-lhe uma declaração d'amôr ardente... Porque guardara ella essa carta que a podia comprometter? Porque a não rasgara e lançára ao fogo como fizera a tantas outras produzidas pela sua belleza explendorosa? Porque tremia, ao lêr de novo uns versos, escriptos outr'ora por um desconhecido que perdêra de vista no grande mar da vida parisiense? Mysterios do coração que nem mesmo os grandes sabios descobrem. Enigmas do sentimento que zombam das investigações mais cuidadosas. Talvez, no fundo da sua alma, a bella Carlota sentisse uma alegria intima, e como que occulta, de ter inspirado uma paixão tão violenta e tão sincera como a que sentia Ronquerolle! Talvez que os versos do joven poeta, com o seu rythmo harmonioso, lhe recordassem o doce encanto d'uma valsa preferida! Talvez que a audacia de Ronquerolle lhe não tivesse desagradado, e admirasse a sua temeridade corajosa, o enthusiasmo da sua juventude! A noite espalhava-se por toda a parte e ella ficara recostada no seu «fauteuil», com a luz apagada. A escuridão favorecia o seu sonho e, apertando entre as mãos a carta, murmurava, distraida, os versos de Ronquerolle. E era elle, esse terrivel democrata, cuja canditadura os jornaes anunciavam em opposição á de seu marido! Era elle que vinha á circumscripção de Saint-Martin arvorar a bandeira da Republica contra a nobreza contra a sua raça, contra a sua familia, contra ella mesma? Ia voltar a vêl-o e a fallar d'elle a cada momento! --Meu Deus! Meu Deus! dizia, que singular aventura. Se meu marido soubesse! Mas porque estou eu assim perturbada? Quem é, afinal, esse sr. Ronquerolle? Guardou de novo e com cuidado a carta amorosa no cofre que fechou em seguida, e que foi encerrar n'um dos esconderijos mais occultos da secretaria. N'esta occasião, o marquez de «la Tournelle» voltava do logar de Senneval aonde tinha ido levar a nova da candidatura republicana a um amigo da sua familia. Acompanhavam-o conde d'Orgefin e os srs. de Trimolet e de Nipostte, pessoas da mais alta distinção na cidade e em todo o departamento. Os cavallos do marquez passavam estrepitosamente na calçada da rua principal de Saint-Martin. Tinham já passado o theatro e o café da Bolsa. Um minuto mais e a carruagem estaria em frente da «Poule Blanche», o café dos vermelhos, dos assassinos dos «democs», como costumava dizer o marquez de la Tournelle. --Que ruido vem d'este lado! disse o sr. Trimolet, indicando a «Poule Blanche»; ouvem meus senhores? De quem é esta voz? Ha alli uma reunião? Escutem! Applaudem! O marquez deu ordem ao seu cocheiro para demorar o andamento e os cavallos começaram a andar a passo. A porta da «Poule Blanche» que dava para a rua estava completamente aberta. O café via-se cheio de gente, empregados de paletot, taberneiros de blusa, operarios em mangas de camisa e com o avental do trabalho. Sobre o bilhar viam-se muitos garotos. Em cima d'uma cadeira junto do espelho do fundo, um orador fallava. A sua voz sonora fazia tremer tudo e ouvia-se até da praça junto á fonte. A multidão escutava-o religiosamente. --Queridos concidadãos, dizia o orador, accorri ao vosso appelo. Agradeço-vos o não vos terdes esquecido de mim. Trabalhadores, sou dos vossos! Republicanos, podeis contar commigo como eu conto comvosco! ... De que tratamos nós? Tratamos apenas de dezenraizar d'esta cidade, d'este departamento, a arvore pôdre da reacção monarchica e clerical; trata-se de bater no proximo escrutinio legislativo, o senhor de «la Tournelle», esse marquez da idade media perdido nos tempos modernos!... Pois bem! nós o alcançaremos, cidadãos!... Applausos freneticos acolheram estas palavras, ouvindo-se immensos gritos de: Viva a Republica! Viva o cidadão Ronquerolle! Nunca a «Poule Blanche» tinha abrigado egual gritaria popular. N'esta occasião a carruagem do marquez, que caminhava a passo, chegava deante do café republicano. Aos gritos repetidos de: Viva a Republica! Viva o cidadão Ronquerolle! o candidato realista empallideceu de colera. Não havia que duvidar, os democratas de Saint-Martin apresentavam realmente um candidato para lhe fazerem opposição. --Cidadãos, continuava Ronquerolle enthusiasmado com os applausos, faremos tremer os de «la Tournelle» no seu castello feudal e desembaraçar-nos-emos do seu jugo. O povo, libertado pela Revolução, não quer nobres para o representar. É de cidadãos saidos das suas fileiras que deve fiar os seus destinos... Ronquerolle pronunciava estas palavras com uma voz estrondosa e o auditorio tremia d'enthusiasmo. --Como, dizia o conde d'Orgefin, é este tratante quem nos trata assim! E applaudem-no. Mas, meus senhores, é necessario desembaraçarmo-nos d'este canalha! A carruagem do marquez de «la Tournelle» transpunha a porta do castello e ainda se ouviam os applausos e os gritos dos cidadãos reunidos na «Poule Blanche» para festejar a chegada de Ronquerolle e dos seus tres amigos Branche, Didier e Maupertuis. A chegada do candidato republicano e dos seus companheiros de lucta, estava sendo um acontecimento extraordinario na pequena cidade de Saint-Martin. Toda a população estava impressionada. Viam-se pelas portas as mulheres ou faziam grupos nas ruas; os homens tinham invadido todos os cafés na cidade e fallavam com animação da lucta eleitoral. Na «Poule Blanche» a multidão augmentava a cada instante. Os discursos tinham terminado e os ouvintes trocavam as suas impressões acêrca dos oradores que tinham tomado a palavra. Maupertuis tinha fallado depois de Ronquerolle. Recorreu para o tom ironico e os seus sarcasmos, cheios d'espirito parisiense, tinham posto o auditorio n'um bello humor. Depois de Maupertuis, o presidente do «comité» republicano, Kolri, desenvolvêra um pequeno discurso cheio de bom senso e d'energia. Tinha posto o marquez de «la Tournelle» nas peores condições e os exaltados não fallavam já senão em ir cantar a «Marselhesa» debaixo das janellas do castello. Pouco a pouco, porém, a «Poule Blanche» ficou sem ninguem. A hora de fechar tinha chegado. Kolri, «o bravo Kolri» ficara com os parisienses, acompanhando-os a um quarto cujas janellas davam para a rua principal. Organisou-se então, uma pequena sessão onde foi elaborado um plano de campanha. --Em primeiro logar meu caro Korli, disse Ronquerolle, tenho que avisar-vos de que vamos fundar um jornal. O primeiro numero sairá depois d'amanhã. Chamar-se-ha «Reveil de Saint-Martin». --Vamos ter um jornal! gritou Korli; Pois bem, será o suficiente para destruir o marquez. Um jornal! Um jornal independente! Era o que ha muito faltava aqui! Ah! a imprensa! É a alavanca do progresso!... O bravo Kolri ia a continuar o seu discurso quando bateram discretamente á porta. Didier abriu-a e appareceu Lapierre. Contou a Ronquerolle a scena do castello quando o marquez de «la Tournelle» lêra no «Figaro» a noticia da sua candidatura, e referiu quasi palavra por palavra os termos humilhantes com que o conde d'Orgefin fallara a seu respeito. --Perfeitamente! disse Ronquerolle. Maupertuis, toma nota da «delicadeza» da linguagem do conde d'Orgefin! Redigirei immediatamente uma resposta á mensagem d'esse canalha. Os clarões do odio brilhavam nos seus olhos. No emtanto, tinha um ar perfeitamente calmo e a sua voz não traduzia emoção alguma extraordinaria. --Ah! ah! somos homens sem valor, escorias de Paris, revolucionarios e escrevinhadores! Ouvis, amigos, em que termos se falla de nós! Guerra, guerra implacavel a esta nobreza que nada conhece e que se julga ainda antes de 89... antes de 93! Ao pronunciar esta data, Ronquerolle exaltou-se dando um valente murro sobre a mesa, o que atemorisou Lapierre. A meia noite approximava-se. Lapierre retirou-se, promettendo a Ronquerolle trazêl-o ao corrente de tudo o que passasse no Castello. Kolri retirou, tambem, por sua vez. Tinha de convocar o comité republicano para o dia seguinte ás oito horas da noite e, sem perder um minuto, todos os cidadãos convictos deviam collocar-se nos seus postos. A primeira reunião publica effectuar-se-ia mesmo em Saint-Martin. O marquez seria convidado por elle a fim de defender as suas ideias e o seu programma. Outras reuniões seriam organisadas em todos os logares dos districtos do departamento. Os quatro amigos, quando se encontraram sós, riram extraordinariamente. A sua mocidade tinha necessidade de despertar; o imprevisto da situação encantava sobretudo Branche, Didier e Maupertuis. Ronquerolle, esse era mais grave, porque todos os ataques iam cair sobre o seu nome. Por outro lado a sua companheira, a Emilinha, preocupava-o. Deixara-a em Paris mas á partida tinha havido uma scena pungente. A pobre rapariga que não queria ficar só, queria por força acompanhal-o. Que lhe importava a politica? Ella não comprehendia cousa alguma da eleição a não ser que ia ficar separada do homem que amava, do homem que para ella representava tudo n'este mundo. III _Trava-se a lucta_ Ainda que fatigados pela viagem de Paris a Saint-Martin, pelos discursos e conversações enthusiasticas do «Poule Blanche» e se bem que era uma hora da madrugada, os quatro alegres rapazes não pensavam em deitar-se. Não obstante as graves preocupações da occasião os amigos de Ronquerolle conversavam da maneira como se tinham despedido das suas apaixonadas companheiras. Estavam ainda na edade feliz em que a bella despreoccupação da juventude cobre todas as cousas com a sua aza protectora; em que os dias e as noites não teem horas bastantes para pensar nos projectos do espirito e nos encantos do coração, nas confidencias d'amizade e nas caricias da alma. --Meus meninos, disse Branche, para terminar a conversa, é muito bonito fallarmos das nossas amantes, contar as suas phantasias, mas nós não viemos aqui para nos divertirmos. --Temos ainda trabalho a fazer, interrompeu Ronquerolle. Venham pennas, papel e tinta e appareça o que ha de melhor no nosso cerebro. O primeiro numero do nosso jornal, o «Reveil de Saint-Martin», deve apparecer depois d'amanhã. É tempo de descrevermos a nossa chegada. Tu, Maupertuis, redige um curto artigo, descrevendo a recepção que nos foi feita, resume os nossos discursos e retrata bem o enthusiasmo da multidão. Tu, Didier, ridicularisa o marquez «de la Tournelle,» sê implacavel, calca-lhe sem piedade a sua vaidade... Tu, Branche, convida os eleitores a saccudirem o jugo da nobreza, critica as flôres de liz e proclama os direitos do homem!... Vamos; preparae essas pennas! Cravae os ferros até fazerem sangue! Fazei fustigar o chicote do ridiculo!... Os quatro jornalistas pozeram mãos á obra. Ronquerolle, esse encarregou-se de responder ás palavras injuriosas do conde d'Orgefin. Ás duas horas da manhã uma carta volumosa era lançada na caixa do correio por Branche dirigida á empresa do «Reveil», em Paris, visto que o impressor da localidade não ousava encarregar-se d'imprimir um jornal republicano, por causa do sr. marquez, «maire», conselheiro geral e deputado. Antes de se deitar Ronquerolle abriu a janella do seu quarto que ocupava só. A noite estava serena e bella. As estrellas brilhavam no céo, os perfumes das flôres espalhavam no ar, uma frescura deliciosa vinha da terra e um silencio profundo reinava pela cidade adormecida. Á claridade discreta da lua Ronquerolle via a praça de Saint-Martin e a fonte decorativa. Só o murmurio da agua, caindo, perturbava o silencio da noite, ouvindo-se de vez em quando o vento silvar por entre as folhas das arvores, nos telhados visinhos da egreja e nos ulmeiros dos ribeiros. Perante este espectaculo de paz, n'esta noite de junho tão harmoniosa e tão encantadora, o homem politico desapparecia em Ronquerolle e não ficava mais do que o poeta seduzido pelas bellezas da natureza immortal. O mancebo não se cançava de sentir a brisa refrescar-lhe a fronte, de admirar esse espectaculo nocturno, vivo, que lhe recordava as scenas de opera onde vivessem amôres, subindo, de noite, á janella da bem amada a depôr um beijo. Levado pela sua poderosa e febril imaginação o ousado filho da Borgonha deixava-se guiar pelos pensamentos do amôr e versos ardentes lhe occorriam á memoria. Ronquerolle contemplava a egreja de Saint-Martin. Uma fachada estava toda illuminada pelo luar emquanto que a opposta mergulhava na sombra. O seu olhar ficou preso ao portico junto do qual em creança tantas vezes tinha brincado com os seus pequenos camaradas e revia-se correndo em volta da «mairie» nos muros cobertos de cartazes e em frente do mercado fechado por uma grade de ferro. Os seus olhos de repente fixaram-se sobre a collina que dominava a villa, reconhecendo a torre feudal, o velho castello dos «de la Tournelle». Pensou um momento no seu adversario, do que o distraiu uma luz que se via n'um dos lados do castello. --Quem velará a esta hora na habitação do marquez? pensou Ronquerolle. Será o meu inimigo a quem a minha presença impede de descançar? Será alguem doente a quem a febre e a insomnia impedem de dormir? Será alguma linda mulher que lê, com a cabeça repousando no travesseiro, um romance de Balzac ou um poema de Alfredo de Musset? Será uma mulher linda?--Fazendo a si mesmo esta pergunta Ronquerolle bateu na fronte como que recordando-se. Lembrava-se que outr'ora em Paris, fôra apresentado n'uma tarde, a uma mulher soberba que se chamava marqueza «de la Tournelle» com quem tinha dançado e a quem chegára mesmo a escrever uma carta apaixonada. Acontecera isto ha trez ou quatro annos, não sabia ao certo, mas recordava-se claramente d'essa tarde, do baile e da sua carta insensata. Quanto á mulher não se esquecera que era loira, que tinha uns seios opulentos, olhos azues e, quando caminhava uns ares de deusa. Os acontecimentos da vida parisiense são tão accidentados e tantos, as sensações succedem-se tão rapidamente, as paixões são postas tantas vezes em jogo, sobre tudo para um mancebo que faz os seus inicios na vida e na sociedade, que não é para admirar o ver Maximo Ronquerolle recordar, por acaso, uma das suas aventuras, que, depois de tanto tempo, encontrava perdida na sua memoria. Essa luz, que brilhava na escuridão da noite em uma janella do castello do seu inimigo vinha lançar um clarão na sua memoria obscurecida e, occorrendo não sei que presentimento do destino, o pobre rapaz imaginou que a pessoa que trabalhava lá em cima, na habitação luxuosa do marquez «de la Tournelle», era a linda e elegante mulher que em tempo lhe perturbara a cabeça e o coração. --Mas não! murmurou Ronquerolle. Não é possivel! Estas cousas só acontecem nos romances e não na vida real!... No emtanto, essa loira divina d'olhos azues chamava-se, era com toda a certeza a marqueza «de la Tournelle». Revejo-a ainda na occasião em que dançava commigo e encostava o seu peito desolado contra o meu... Pouco a pouco as recordações reviviam. Tornara-se nervoso, o seu coração batera fortemente, querendo esclarecer a duvida em que se debatia. Os «de la Tournelle» eram numerosos. Havia-os no Norte, no Meio-dia, na Borgonha. Nada poderia dizer a Ronquerolle que a mulher, que elle conhecera outr'ora, estava alli, no seu castello batido pela lua. --Vamos! disse fechando a janella, são horas de dormir. Sei bem a quem hei-de recorrer, interrogarei Lapierre. Quando adormeceu, a aurora começava a apparecer. O seu ultimo pensamento fôra de que seria bem extraordinario que ao marquez «de la Tournelle» alem da cadeira de deputado lhe conquistasse tambem a mulher. Ronquerolle não se enganara nos seus presentimentos. A pessoa que velava no castello senhorial era a marqueza, a loira, a seductora, a divina Carlota. Não lia, porém, nem romances de Balzac nem poesias de Musset. O seu espirito estava demasiado agitado para se entreter com os doces e consoladores devaneios litterarios. Trabalhava pelo triumpho da sua causa, escrevendo sobre um bello papel assetinado um artigo para o seu jornal, um artigo em que envolvia os candidatos republicanos com uma maneira encantadora e em que fustigava o cidadão Ronquerolle com toda a malicia e crueldade d'uma mulher. Tambem ella espetava as esporas até fazerem sangue. O marquez «de la Tournelle», dissemol-o já, tinha um jornal o «Echo de la Bourgogne», velha folha monarchica, assignada por todos os curas da circunscripção de Saint-Martin. De vez em quando, a amavel marqueza não se dedignava em publicar nas columnas do jornal, na primeira pagina, um elegante artigo em que estimulava habilmente a indolencia do partido realista e em que zombava dos democratas. Esses artigos, que agradavam, eram lidos por todos, mas ninguem sabia, quem fosse o seu auctor. Quando o marquez entrou na sua habitação, após o passeio a Semeval, contou toda a scena de que fôra testemunha em frente ao «Poule Blanche». --Meus senhores, disse a marqueza, esses republicanos dão-vos o exemplo; trabalham, estão no seu direito e teem razão. Vivemos n'um tempo em que é necessario arriscar-se a gente. O prestigio da raça, do nascimento não é mais do que uma lembrança longinqua. É necessario trabalhar-se, é necessario descer á arena para se vencer. O poder, o futuro não pertence senão aos homens d'acção. O marquez «de la Tournelle» achou este discurso de sua mulher um pouco atrevido, mas temeu fazer qualquer objecção. Convinha voluntariamente em se mostrar ao povo no seu trem, fallar-lhe por intermedio dos seus criados ou dos seus secretarios; mas fallar-lhe n'uma reunião publica, expôr-se a ser interrompido, a ter diante de si por adversario de tribuna um atrevido como Ronquerolle, com a sua voz de trovão, e que saido do povo, lhe conhecia as emoções e as coleras, ser um homem d'acção, n'uma palavra, no sentido em que o entendia a marqueza; todo este papel, toda esta tarefa não se apresentava ao espirito do castellão de Saint-Martin sob uma perspectiva muito attrahente. Depois que fôra eleito deputado, não fallara uma só vez na camara. Perfeitamente correcto nas suas maneiras, sempre barbeado de fresco, limitara-se a soltar alguns gritos de quando qualquer orador da esquerda tomava a palavra. Quando, porém, nas galerias reservadas ao publico appareciam algumas elegantes, que vinham mostrar a sua vaidade e os seus sorrisos como nos camarotes d'um theatro, não se esquecia nunca de as requestar, lançando amiudadamente o seu monoculo. O marquez era, n'uma palavra, uma das mais brilhantes inutilidades do Parlamento. Sua mulher que era ambiciosa, enfurecia-se por não possuir mais que a apparencia do dominio e do poder. Teria preferido disfarçar sob uma fraqueza fingida as alegrias intimas do mando. --Ah! que se eu fosse homem! disse a marqueza, ao concluir o seu artigo para o «Echo de la Bourgogne» e lançando com despeito a penna; ensinaria a viver este senhor Ronquerolle. Ao mesmo tempo que Ronquerolle se mettia no seu leito d'hotel, imaginando a maneira, de dar ao sr. «de la Tournelle» um golpe traiçoeiro, a marqueza deixava-se vencer pelo somno no seu grande leito Luiz XV, coberto com um baldaquino que amôres gorduchos seguravam. Fecharam-se-lhe as palpebras e meia adormecida murmurava uns versos de Ronquerolle. .......................................................................... Uma grande actividade começou a desenvolver-se nos dous campos, a partir d'esse famoso dia da chegada de Ronquerolle. A guerra declarara-se entre o castello soberbo dos «de la Tournelle» e a humilde «Poule Blanche» onde estavam hospedados Ronquerolle e os seus companheiros. Faziam-se apostas. Agitaram-se todas as paixões em Saint-Martin. As proprias mulheres, se mettiam nas discussões. Muitas d'entre ellas se mostraram favoraveis a Ronquerolle, porque era novo, diziam ellas, e um bonito rapaz. Tinham immensa vontade de o ouvir fallar. Porque se não organizava uma conferencia publica no theatro, um domingo, depois do meio-dia? Ellas iriam lá. E depois, não era só isso. Tinham simpathisado com os «tres parisienses». Eram d'este modo que designavam Maupertuis, Branche e Didier. Estes cavalheiros diziam ellas, teem muito espirito; conhecem a alta vida de Paris. Porque se não convidam? É necessario deixal-os abandonados na «Poule Blanche?» Tal era o objecto das conversações quando, no domingo, 24 de junho, appareceu o primeiro numero do «Reveil» o jornal de Ronquerolle. Principiava por uma apologia vigorosa do regimen republicano, seguindo-se-lhe um pequeno artigo intitulado: «O sr. conde d'Orgefin». N'esse artigo Ronquerolle pregava o seu inimigo no pelourinho. Lembrando as injurias que o conde proferira, terminava assim: «Por consequencia, a redacção do «Reveil» decreta que o sr. conde d'Orgefin seja considerado como um tolo e convidamol-o a vir receber o attestado do seu novo titulo na quinta feira, 28 de junho á reunião publica que se ha de effectuar em Saint-Martin. Por sua vez, reservamos uma queda honrosa para o nosso elegante adversario, o marquez «de la Tournelle», cujo papel na camara tem sido até hoje egual a zero. Os eleitores julgarão depois de ter escutado os dois concorrentes». O artigo não levava assignatura alguma. Ao mesmo tempo que rebentava esta bomba, apparecia do seu lado o «Echo de la Bourgogne» e o artigo da marqueza, brilhando na primeira pagina com a assignatura «Phenix». Ronquerolle era ali martyrisado a picadas d'alfinete, discutia-se com habilidade o seu talento d'escriptor, os inicios da sua carreira litteraria, considerando-o apenas como um estudante. «Queremos poupar este menino, concluia o artigo da marqueza. Seriamos dignos de censura se o fizessemos chorar e tomar a serio os seus brinquedos. D'aqui a vinte annos os eleitores da circunscripção de Saint-Martin poderão talvez saber que existe M. Ronquerolle. Hoje perdoam-lhe os destemperos mas com a condição de que em breve acabarão. Em todo o caso seria bom que lhe impozessem silencio». Ronquerolle não se impressionou com a tirada. Ainda que alvejado nunca se alterava. Leu muitas vezes o artigo que tinha tentado humilhal-o. Separou o estylo e as ideias como homem de «metier». --Esta Phenix, dizia elle aos companheiros, não é um principiante mas o medo que lhe provoco é manifesto. A ameaça final denota despeito e fraqueza Ah! bello desconhecido! queres fechar-me a bocca! Eu saberei quem tu és! No castello houve uma discussão animada a proposito da reunião publica annunciada. A marqueza queria por força que seu marido e o conde d'Orgefin acceitassem o desafio dos republicanos. O comité conservador decidiu por unanimidade que se deixassem sós os republicanos a fazer e a dizer o que quizessem na reunião publica. Era por outros meios mais discretos e mais seguros, pensavam, que era necessario operar. A marqueza ao ter conhecimento d'esta deliberação encolerizou-se extraordinariamente. --Meu amigo, dizia ao marido, tremeis deante de M. Ronquerolle. Mas desconheceis por completo o poder da palavra sobretudo no povo! Toda a Saint-Martin irá a essa reunião. Contam comvosco lá e vós não ides. Ainda uma vez lembrai-vos da minha advertencia, dizei adeus á eleição se vós proprio não defenderdes as vossas ideias! A marqueza sentia que lhe faltava o terreno. Comprehendia que as simpathias iam para o novo candidato. A classe operaria tinha sido conquistada por Ronquerolle que se arvorara seu defensor. O pequeno commercio e a burguezia, indifferentes até então, davam coragem ao candidato republicano. Na sua colera a marqueza agarrava-se a seu marido sem piedade, e perguntava a si mesma porque casara com esse homem, só bom para se pavonear n'um baile ou n'uma «soirée». --Como este Ronquerolle é ambicioso! Como sabe chegar depressa ao seu fim, abertamente, sem demora, com o bom «humour» da força, com a coragem da mocidade e com a resistencia das grandes convicções! E eu que o ataquei com colera! eu que tentei envergonhal-o! É um prestigio do talento, o impôr-se áquelles que merecem o nome d'adversarios. M.me «de la Tournelle» censurava-se de ter cedido á phantasia, de ter querido attingir Ronquerolle com a sua penna mordaz! Alem d'isso, as grandes almas, de qualquer lado que venham, sentem-se sempre attrahidas por uma estima reciproca. Podem ter um fim differente na vida, podem ter, sobre os homens e sobre as cousas, as ideias mais diversas, que se assemelham sempre pela honestidade superior da conducta, pelo respeito do que é verdadeiramente grande e bello e pelo desprezo soberano de tudo que é mesquinho, pequeno falso, venal e baixo. Advinham-se, conhecem-se, muitas vezes, sem nunca se terem visto, sem nunca terem trocado duas palavras; seguem-se por uma visão intelectual, nas suas acções, admiram-se mutuamente a distancia e desejam-se porque só ellas se podem comprehender. É isto que explica muitas vezes o segredo d'essas melancholias profundas que absorvem o pensamento completamente, d'esses sentimentos, d'essas ligações, d'esses amôres que o mundo julga extraordinarios e anormaes mas que um observador de paixões considera naturaes e fataes. A pezar seu a marqueza sentia-se attrahida para Ronquerolle porque o republicano fallava e trabalhava com a facilidade d'um genio, porque era novo, porque caminhava para a gloria, porque era verdadeiramente o filho das suas obras, porque nada devia ao dinheiro, á lisonja e á intriga. Tudo entretanto os separava, o nascimento, as ideias, a raça, a fortuna, as relações e a sociedade em que viviam; mas á lei mysteriosa que preside aos sentimentos humanos, agrada vencer os obstaculos e acaba sempre por ligar os que se procuram, os que sentem a necessidade de se amarem. A marqueza chamou a sua criada de quarto a quem ordenou que a ajudasse a vestir. Eram quasi quatro horas. Metteu-se na sua carruagem, mandando bater para os «Passeios». Estava encantadora na sua «toilette» de verão. Agitada, contrariada na sua ambição, cheia de colera contra seu marido, sentia a necessidade de respirar o ar puro do campo, de descançar os seus lindos olhos azues no espectaculo harmonioso dos bosques, dos valles, dos prados, das collinas e de se sentir levada pelo galope rapido dos seus cavallos. O retiro conhecido pelo nome de «Passeios» é um dos mais bellos logares de Saint-Martin. Entra-se por um largo caminho ladeado de ulmeiros. O rio, parallelo ao caminho, corre pelo fundo do valle, vendo-se do lado opposto uma cadeia de collinas que nos fecham o horizonte parecendo tocar o ceu azul. Os «Passeios» são formados por tres avenidas magnificas, com castanheiros e tilias centenarias. No fundo da avenida central levanta-se uma estatua em marmore, datada do XVIII seculo e representando Cybele. Alguns metros distante corre uma fonte rustica mugindo d'um rochedo e cercada de plantas aquaticas. É um passeio verdadeiramente encantador feito para o amôr e para a ambição. Estas avenidas levavam outr'ora a um castello grandioso, abandonado durante a revolução e que, com o tempo, tombara em ruinas. As pedras amontoaram-se, as silvas e as ervas cobriram-as, os parasitas invadiram-as, mas as arvores resistiram á acção do tempo. A communa de Saint-Martin, que adquirira este velho dominio ha cerca de quinze annos fez restaurar cuidadosamente as trez avenidas. Quanto ás ruinas do castello não ousou tocar-lhe, o que lhe era recommendado pelas suas economias. Aos domingos, durante o verão os «Passeios» eram muito frequentados. Vinha gente de tres ou quatro leguas em redor. Os rapazes davam alli «rendez-vous» ás suas namoradas e a deusa, immovel e com a sua cara de marmore, passa por ter visto cousas «lindas». Á semana, pelo contrario, era um silencio absoluto. A distancia era grande de mais para ir a pé de Saint-Martin. No mez de setembro eram raros os frequentadores. A marqueza sentia renascerem-lhe as ideias alegres á vista do rio e das suas margens floridas. O sentimento da natureza penetrava-a e fazia-lhe sentir um encanto mysterioso. --Meu Deus! como isto é bello! murmurava. Os seus desejos renovavam-se ao contacto d'esta paysagem. Vendo um bello carvalho desejava vêr debaixo da sua sombra tudo o que amava; viu um barco preso á margem do rio, balouçando ao capricho do vento, e desejou sentar-se alli, tendo em frente um sympathico e elegante remador. N'uma palavra, toda a sua energia se fundia como n'um circulo de fogo em presença d'essas florestas voluptuosas, d'essas aguas perfidas, d'essa verdura que a sombra torna mais attrahente. M.me «de la Tournelle» mandou parar a sua carruagem no principio da grande avenida. Desceu e caminhou a pé por entre os castanheiros e as tilias. Habituara-se a dar este passeio; ia saudar a deusa Cybele, gosar o frescor da fonte depois do que voltava devagar e entrava na carruagem para regressar a Saint-Martin. Uma vez alli, começou a andar mais rapidamente, nervosa e irritada contra seu marido. Appoiava-se ligeiramente á sua sombrinha e um largo perfume d'heliotropo exhalava, a sua «toilette», perfumando a atmosphera. Caminhava arrogantemente, levando alta e direita a sua linda cabeça loira, olhando para diante com uma elegante arrogancia. Esta mulher encantadora abandonava-se ao divino prazer de se sentir nova e bella n'aquelle sitio campestre, debaixo d'essas arvores centenarias, no meio do silencio da natureza. O coração batia-lhe mais forte do que de costume. A solidão do logar inquietava-a, e a folhagem que a briza fazia murmurar docemente produzia-lhe um tremor d'inexpressavel voluptuosidade. Quando se dirigia para a fonte dos «Passeios», viu de repente n'um banco um homem mergulhado no mais profundo scismar. Estava só. Tinha os braços cruzados sobre o peito, o chapeu collocado ao lado e absorto n'uma meditação de tal modo que não ouvira o passo ligeiro da marqueza nem dera pela sua presença. Tinha a cabeça um pouco inclinada sobre o hombro e poder-se-hia acreditar que dormitava se não fosse o seu olhar vivo e expressivo. M.me «de la Tournelle» parou. Não ousava afastar-se nem ir mais longe. Impressionara-se ao encontrar um homem na occasião em que se encontrava só, de modo que esteve a ponto de soltar um grito de surpreza. Ficou, portanto; mas, sem por isso dar, fez um movimento brusco com a sombrinha o que attrahiu as attenções do mancebo que se levantou saudando-a. Este mancebo era Maximo Ronquerolle. Viera alli, a occultas dos amigos, para meditar sobre as aventuras da sua mocidade, sobre as incertezas do seu futuro, sobre os destinos da sorte que tanto nos fazem subir á superficie e nos põem em evidencia como nos deixam na sombra e nos lançam no nada. Quando reconheceu M.me «de la Tournelle» sonhava com a poesia da natureza, com as delicias d'um sitio pittoresco, com o attractivo das solidões e pensava que talvez para elle fosse melhor renunciar ás agitações da vida publica, ás febres e ás agonias das ambições e ter uma existencia pacifica em qualquer humilde habitação do seu paiz natal. Distraido do seu sonho simples e puro, saudou a mulher que se encontrava junto d'elle e que reconheceu immediatamente. Era bem a soberba creatura que a sua memoria recordava: aquelles olhos azues, aquelles cabellos loiros nunca os esquecera! --A senhora marqueza «de la Tournelle?» perguntou Ronquerolle. --Sim, senhor! respondeu a marqueza perturbada. Não o conheço! Que me deseja? Ao dizer isto, M.me «de la Tournelle» recuou um pouco, olhando a carruagem que tinha ficado á entrada da Avenida. Viu-a através a folhagem do arvoredo e Ronquerolle comprehendeu esse olhar. A marqueza temia ser vista pelos seus criados que acreditariam facilmente n'um «rendez-vous,» decidindo-se por isso a retirar-se e a deixar absorto o desconhecido que lhe dirigira a palavra. --Minha senhora, chamo-me Maximo Ronquerolle e quero crêr que não sou para vós absolutamente um desconhecido. Ah!... que de segredos que tenho a confiar-vos! Que de confidencias que tenho que fazer-vos! --Vós?! interrompeu a marqueza, o senhor, o nosso adversario, o nosso inimigo! --O destino, dizia Ronquerolle, é verdadeiramente o deus do mundo, como já vos escrevi, citando Schiller. É necessario aproveitar. Não fiqueis immovel debaixo d'estas arvores, minha senhora, os vossos criados perceberão que não estaes só. Escondei-vos atraz d'esta tilia immensa, onde ninguem nos poderá ver e vos direi todo o meu pensamento. A marqueza hesitou a principio. O medo fez com que ella se decidisse e tranquillamente caminhou para traz da arvore cujo tronco a escondia de todas as vistas. --Devia evitar-vos, dizia ella, detestar-vos, odiar-vos e arrisco-me a perder-me por vós. Ronquerolle tinha os olhos fixos nos seus. Fascinado, louco, contemplava-a e sentia-se vencido pela belleza magestosa d'aquella mulher. Não via n'ella a marqueza inimiga da sua causa, a aristocrata que desejava a volta da realesa e que sonhava uma côrte brilhante em que triumphasse; não, ella não era para elle, n'essa hora, mais do que a incarnação da elegancia, da juventude, da vida, do amôr, da paixão incandescente, que queima, que devóra. Por um phenomeno análogo, a castellã de Saint-Martin esquecia que o homem que alli estava deante d'ella representava o povo trabalhador, os infelizes que se revoltam, que fazem as revoluções e que prendem os reis e os imperadores. Não pensava que esse homem incarnava o odio fatal do pobre contra os rico, do humilde contra o poderoso, do opprimido contra o oppressor. O que n'elle via era o talento promettedor, o enthusiasmo da sua linda edade, a coragem do homem que luta, a poesia do ideal e da acção, o encanto emfim d'um espirito superior e d'um coração preso ao destino. Alem d'isso, nem um nem outro tinham tempo de reflectir, as convenções imbecis da sociedade não podiam ser attendidas n'aquelle encontro e a natureza boa e fecunda recuperava os seus direitos. A presença, por si mesma, tem a sua eloquencia e dois olhares que se encontram diminuem singularmente as distancias. --Perder-vos por mim! disse Ronquerolle, mas não sabeis que me perderei para vos agradar! Amo-vos com toda a minha coragem, com toda a minha energia e não é d'hoje este amôr, não é d'hontem. Ha quatro annos que viveis na minha saudade. Recordae o baile em que dançámos juntos, onde vos tive junto do meu peito!... Recordai-vos... --Amaes-me, vós! o orador das multidões, o republicano fogoso, o apologista do Terror! M.me «de la Tournelle» estava de pé e encostada á larga tilia, paternal e tranquilla. A velha arvore servia-lhe de abrigo mas não a occultava. Ronquerolle, na sua frente, conservava-se a uma distancia respeitosa. O seu busto, alto e esbelto, dominava o da marquesa. --Se vos amo! dizia elle, aproximando-se, e com uma voz em que havia lagrimas. Se vos amo! Fez-se silencio. A commoção impedia Ronquerolle de fallar! Sentia desejos de tomar a marqueza e de a cobrir de beijos. Temia assustal-a e pensava: como convencêl-a? Sê simples e verdadeiro! respondia-lhe a sua nobre intelligencia; era a arma mais digna para conquistar uma mulher como aquella. --Sim amo-vos, porque a vossa belleza me arrasta; desejaria resistir a este encanto, mas não posso. Oh! minha senhora, não misture com a minha paixão as irritantes discussões politicas. Não pairará acima d'essas questões, para almas como as nossas, a ideal visão do amôr? Não se encontram os grandes corações n'esta esphera superior onde veem acabar as disputas dos homens? Vêde! tenho um orgulho que por vezes me arrasta e que resistencia alguma fará dobrar... appareceis-me, e estou prompto a cair de joelhos deante de vós. Está domado o meu orgulho? Certamente não, mas, por cima d'elle, encontrar-nos-emos e parece-me que lá nos amaremos. ... Não pensaes assim? Sei-o bem, não me enganei comvosco: o mundo ideal a que aspira a vossa alma não tem nada de commum com as infamias, com as pequenas coisas, com os miseraveis calculos das castas e dos partidos. Vá, respondei, senhora! Não disse eu a verdade? Ao terminar, Ronquerolle ousou approximar-se, quasi tocando na marqueza. Appoiava-se, como ella, á velha tilia e esperava resposta. --Escuto-vos, senhor, e sinto-me perturbada. As vossas theorias parecem-se ás flôres do Oriente cujo perfume muito forte enerva os que o respiram. --Não me amaes? perguntou Ronquerolle com a voz perturbada. --Elle duvida ainda! respondeu a marqueza, empallidecendo. Ao escutar estas palavras Ronquerolle tomou-lhe a mão que uma luva finissima calçava e levou-a aos labios. A marquesa retraiu-se e quiz escapar-se. --Por favor, uma palavra para acabar! disse elle. Onde e quando vos voltarei a ver? A marqueza hesitou, sentia-se embaraçada para responder. N'este momento os cavallos da sua carruagem relinchavam de impacientes; finalmente fugiu a Ronquerolle, dizendo: --Aqui, d'hoje a tres dias, ás dez horas da noite. Ronquerolle viu-a partir e escutando o ruido do seu vestido de seda, o «frou-frou» harmonioso de toda a sua «toilette», custava-lhe a acreditar na sua felicidade. Quando escutou o ruido da portinhola da carruagem que o trintanario fechava, quando viu a carruagem desapparecer a caminho de Saint-Martin entre uma nuvem de pó, pareceu-lhe que a terra girava por todos os lados e que o ceu ia sair-lhe do peito. Durante muito tempo olhou a carruagem que dous cavallos ageis arrastavam. Quando emfim ella desappareceu n'uma volta do caminho, voltou a sentar-se sobre o banco solitario em que M.me «de la Tournelle» o tinha surprehendido no meio dos seus sonhos e das suas doces illusões. --Dentro em tres dias voltarei a vêl-a; dentro em tres dias será minha. Ó delicia! Ó felicidade inesperada! E já antecipadamente, escutava os transportes da sua paixão, a alegria dos novos amôres. De repente bateu na testa e empallideceu. --Mas, d'aqui a tres dias, á noite, ha uma reunião eleitoral em Saint-Martin. Não posso enganar-me pois que fui eu que convoquei os eleitores... Que fazer? Ronquerolle acreditou por momentos que M.me «de la Tournelle» lhe tivesse pregado uma peça. Ella conhecia a data e a hora da reunião publica já publicadas no «Reveil». Quereria ella d'esta fórma pôr á prova o amôr de Ronquerolle, forçando-o a sacrificar a sua palavra de homem politico? Quereria ella rebaixal-o para com os eleitores e tentar destruir a sua influencia em proveito da sua causa? Emfim, terá fallado sem calculo algum e o «rendez-vous» que lhe marcou, na sua coindencia com a reunião de Saint-Martin, não passaria d'um acaso que por vezes tanto nas grandes como nas pequenas coisas, se torna um obstaculo ás vontades do homem? Ronquerolle não sabia que pensar. IV _O barão de Quérelles_ Quando se davam os acontecimentos que acabamos de narrar, chegou o barão de Quérelles a Saint-Martin. Como dissemos já, era o unico inimigo da marqueza por causa do despreso a que ella votara a sua paixão. Pequeno, bilioso, trajando com o maximo apuro, os cabellos cortados á escovinha, desenvolvia uma actividade febril quando algum projecto lhe enchia o cerebro. Agitava-se em todos os sentidos, luctava tenazmente até conseguir o seu fim e se o não conseguisse era por que ninguem o poderia conseguir. Com trinta e cinco annos, rico, este «petit baron» tinha tido uma paixão louca pela marqueza «de la Tournelle» quando ainda era apenas M.elle Carlota Maximilana de Champeautey. Por uma singular lei dos contrastes, o seu maior, o seu mais insaciavel desejo era possuir uma grande e inteligente mulher por esposa. A orgulhosa Carlota ria das suas pretenções. --Meu Deus! meu Deus! dizia a marqueza, quando o ousado barão teimava em conseguir o seu «desideratum», que hei de fazer d'esta creança? É tão baixo que se torna ridiculo. No emtanto, Domingos de Quérelles não era um imbecil. Era para elle um contra tempo a sua estatura minguada e muitas vezes repetia que os homens não se mediam aos palmos. Infelizmente para elle, M.elle de Champeautey não se via obrigada a debruçar-se para tomar o braço de seu marido e o elegante «Sergio de la Tournelle» não tivera muito trabalho para eclipsar o seu rival. A repugnancia d'artista que a futura marqueza sentira pela antistetica personagem que era «Quérelles» contribuira immenso para o triumpho do marquez. --Ah! dissera Domingos de Quérelles, M.elle de Champeautey quer desposar um pateta? Pois bem, que o faça, que d'isso se arrependerá. O barão viajava por Italia quando, pelos jornaes, viu que no seu departamento os republicanos oppunham um candidato aos monarchicos. Immediatamente arranjou as suas malas e veio a toda a pressa para Saint-Martin onde possuia uma propriedade. As ideias politicas de «des Quérelles» tinham sido até então conservadoras se bem que com uma certa tendencia liberal. A côr de conservador era uma tradicção na sua casa de fidalgo, mas o seu espirito, moderno e liberal, não desdenhava em admittir as modernas theorias democraticas. Não era um inimigo do progresso e quando via que alguma asneira se fazia, reprovava-a absolutamente quer ella viesse dos conservadores quer dos republicanos. Era extremamente estimado na Borgonha. Não se desprezava em comer á mesa dos operarios quando para isso se offerecesse occasião e secretamente, desejava pertencer ao conselho geral. Se não perdoava á marqueza o tel-o despresado, mais o acabrunhara com os seus sarcasmos o sr. «de la Tournelle», «maire» conselheiro geral e deputado. --É um asno, dizia «des Quérelles», fallando do marquez; sim, é um estupido esse espigado marquez «de la Tournelle». Aposto vinte luizes em como não sabe distinguir a sua mão esquerda da direita e que a respeito de ortographia é um ignorante. A candidatura de Ronquerolle era um balsamo sobre as feridas d'amôr proprio e sobre as irritações do «petit baron». Encontrava assim maneira de se vingar d'aquelles que tinha como seus inimigos, vingança que tinha acalentado durante tantos annos. --Emfim, dizia, chegou a hora da minha vingança. Por mais «pequeno» que eu seja podem contar commigo aqui. Disponho de muitos milhares de votos que vão ser n'este momento o meu instrumento de vingança. Dal-os-hei ao novo deputado Ronquerolle. É um republicano exaltado... que me importa isso. É necessario a todo o transe que esse papalvo, esse marquez «de la Tournelle» perca a eleição... Ah! o patife, não me exterminou ainda! Ah! sr.ª marqueza, despresastes as minhas homenagens! Sereis vós quem d'esta vez virá implorar a paz e então entabolaremos as condicções. Como todos os apaixonados, o barão «des Quérelles» não renunciara, ainda, á sua ultima esperança em commover o coração da mulher que elle tão extraordinariamente amara. Era seu inimigo, por amôr. Queria tirar a sua desforra. Alimentava ainda a esperança de que, apezar de se não ter podido desforrar, talvez podesse um dia fazer d'ella sua amante. --Quem sabe, dizia, o que será aquella mulher, que sentimentos lhe dominam a alma, sobretudo depois da desillusão que deve ter sentido após o seu casamento com esse estupido marquez. Era digno de ver-se o homemsinho, passados dois dias, pavoneando-se sobre os elevados saltos das suas botas, fumando o seu cigarro. --Vamos! Vamos! pensava, tudo caminha á mercê dos nossos desejos. Declaro guerra aos «de la Tournelle», colloco todas as minhas baterias em campo, excitando os eleitores contra elles... A marqueza pedir-me-ha treguas na lucta, enviar-lhe-hei um parlamentar e tudo conseguirei; será finalmente o resumo de todas as minhas esperanças, de todos os meus desejos. Quanto aos candidatos, elles que se arranjem, que resolvam o caso como entenderem. Se porém ainda assim a marqueza continuar a mostrar-se esquiva, será Ronquerolle o novo deputado por Saint-Martin. Domingos de Quérelles adquiriu então uma rara actividade junto dos eleitores, em toda a parte. Este liliputiano mexia-se como um diabo n'uma pia d'agua benta. Entrava nas choupanas, conversava com os operarios, pagava-lhes de beber, comia com elles, acabando sempre as suas conversas pela politica. Em breve em todas as communas se espalhou a noticia de que o barão advogava a candidatura de Ronquerolle. Foi uma surpreza para o castello. O conde d'Orgefin, presidente do «comité» conservador, era d'opinião que se devia tomar uma medida energica, e em plena reunião de todos os marechaes do partido reacionario ficou planeada. Devia convocar-se, no castello do marquez «de la Tournelle», a reunião dos oitenta a cem proprietarios influentes da circunscripção; coroaria a reunião um grande banquete. --Que reles canalha que é este barão «des Quérelles!» dizia uma manhã o conde d'Orgefin ao marquez. Hein! Comprehendeis este homem? Excitar a população contra nós! Defender um Ronquerolle! Romper abertamente com as tradições da sua familia! Ah! marquez, é preciso que não nos enganemos, se o barão fôr contra nós até ao fim da lucta, perderêmos votos, mesmo muitissimos votos. --É uma vingança de biltre, respondeu o marquez. O barão «des Quérelles» é um poltrão. Morde cobardemente, receando encontrar-se frente a frente commigo, não dizendo a causa da lucta porque tem d'isso vergonha. Sabeis por que elle nos odeia a este ponto? --Sim, sei, meu caro amigo, respondeu o conde. O tôlo, queria desposar a marqueza, e não vos pode perdoar o terdes vencido na conquista do coração da marqueza, calcando assim os seus caprichos. Tratemos, antes de tudo, de o atrair; depois de feita a eleição, lançamol-o á margem, desprezamol-o como a uma casca de laranja. Emquanto todo este alarme se produzia no castello perante o seu procedimento e emquanto o seu nome era injuriado, tratava o barão de gosar deliciosamente os golpes que desapiedadamente despedia sobre os seus adversarios. Via-se atravessar de carruagem as ruas de Saint-Martin, guiando os seus cavallos, e cumprimentando significativa e affectuosamente os democratas mais avançados. N'uma occasião em que na praça publica atravessava com a sua carruagem, encontrando por acaso o bravo Kolri, presidente do «comité» republicano, disse-lhe em voz alta de maneira a todos ouvirem: --Sabei, pae Kolri, que sou dos vossos de todo o coração. Fazei-me o favor de dizer a esses senhores, M. Ronquerolle e aos seus amigos de Paris, que lhes desejo fallar. Alem d'isso tenciono ir á reunião publica na quinta-feira á tarde. Pouco me importa o que digam de mim. Logar aos homens intelligentes e nada de deputados sem valor! O barão «des Quérelles» dispunha de tres a quatro mil votos. Era um influente nada para despresar n'um escrutinio onde só votavam dose mil eleitores. --Tenho o castello nas minhas mãos! dizia o barão n'uma ceia, quando bebia cognac em companhia dos seus amigos. No fundo da sua consciencia pensava: --Serei o senhor da soberba Carlota que sem duvida capitulará por ambição. Como ella me tem feito soffrer! Como me tem despresado! Emquanto o marquez «de la Tournelle» e o conde d'Orgefin tratavam da sua reunião plena das fôrças conservadoras, emquanto o colerico barão «des Quérelles» meditava como Machiavel e punha a sua influencia politica ao serviço das suas paixões amorosas, os tres amigos de Ronquerolle, Branche, Didier e Maupertuis, não perdiam o seu tempo. Os rapazes, arrojados para as mulheres, como todos os jornalistas, produziam estragos terriveis nos corações das burguezinhas de Saint-Martin. Ronquerolle e os seus amigos tinham sido convidados para uma pequena «soirée» em casa do mestre Desbroutin, notario republicano da cidade, que não temia defender as suas opiniões democratas e que alem d'isso, possuia uma bella fortuna. Desbroutin era ao mesmo tempo um bom «vivant» amando os prazeres da mesa e tendo sempre a sua despensa bellamente fornecida. Recordava muito as suas travessuras de rapaz no tempo em que vivera na capital. Havia muito tempo que isto accontecera, ha pouco mais ou menos vinte annos. Que praser sentiria, ao receber em sua casa os quatro parisienses com os quaes conversaria dos tempos passados e das suas loucas amantes. Ás nove horas da noite, Branche, Didier e Maupertuis fiséram a sua entrada no salão de M.me Desbroutin, uma senhora loira, pequena e nutrida, muito amavel, muito simples e muito mais nova que seu marido. --Como, meus senhores, vindes sós? O sr. Ronquerolle não vem? --Perdão, sr. Desbroutin, respondeu Maupertuis, o nosso amigo está preparando n'este momento um discurso politico mas estará aqui antes d'uma hora tendo-me encarregado de vos apresentar as suas desculpas. Tinham já chegado muitas pessoas, toda a burguesia descontente de Saint-Martin; todos os que nada tinham a esperar do castello e que não podiam por mais tempo supportar que os cavallos e os trens do marquez os continuassem a enlamear, tinham sido convidados por mestre Desbroutin. As mulheres vinham acompanhadas de seus maridos. Desbroutin andava por todos os lados a explicar que não tardaria a chegar o sr. Ronquerolle, a quem uma pequena occupação detinha em casa. Esperava-se só por elle para ser servido o chá. Quasi todos os homens se tinham retirado para o gabinete de trabalho do notario, que se seguia ao salão e onde fumando, se entretinham a fallar das eleições. Maupertuis fallava no meio d'elles, Branche e Didier tinham ficado perto das mulheres a quem contavam como no inverno se passava a vida em Paris e como ella era immensamente mais divertida do que na provincia. Alem d'isso, Branche testemunhava uma sympathia particular a M.me Desbroutin, emquanto que Didier fazia evidentemente a côrte a M.me Beaumenard, a mulher do banqueiro Beaumenard. Esta tinha um espirito romanesco. A sua maior felicidade consistia em lêr folhetins e ser heroina ideal das mais ternas aventuras. --A vida sem paixão, dizia-lhe eloquentemente Didier, é semelhante a um deserto arido. É um pouco a minha, e nem vós calculaes, senhora, o quanto tenho soffrido pelo coração. Ah! Se não fôra a politica por onde faço carreira e que me faz esquecer as amarguras da vida, seria o homem mais infeliz da terra. A graciosa M.me Beaumenard estava encantada com esta linguagem. Encontrava vivas, nas palavras do fino e amoroso Didier, as tiradas apaixonadas que a faziam quasi chorar nos seus livros. Branche, pelo seu lado, tinha levado a linda mulher do notario até ao precipicio encantador mas perigoso das confidencias amorosas. Eram onze horas quando chegou o barão «des Quérelles». Desbroutin tinha-o convidado verbalmente e sem ceremonia. O barão promettera vir e viera com o fim d'excitar os espiritos contra o marquez «de la Tournelle». Pretendia ao mesmo tempo conhecer de perto e assegurar-se por si proprio se o joven deputado republicano era realmente o homem intelligente de que lhe tinham fallado. A presença do barão interrompeu por momentos a interessante conversação de Branche com M.me Desbroutin. Quanto a Didier, aproveitou o vae-vem dos convidados e a curiosidade que se fizera em volta do barão, para apertar docemente a mão de M.me Beaumenard que lh'a retirou, é verdade, mas sem muito esforço. Ronquerolle entrou finalmente no salão. Apresentou as desculpas da sua demora, sendo facilmente desculpado. Desbroutin apresentou-o ao barão, ficando os dois a conversar. Desbroutin andava radiante. A pequena «soirée» fôra ainda além dos seus desejos e no dia seguinte todo o mundo o invejaria. Ronquerolle escutava attentamente o barão «des Quérelles». No fundo desconfiava d'este homemzinho que tão calorosamente defendia a causa republicana. --Que interesse poderá ter este barão, pensava, na actividade que desenvolve contra o representante da sua casta, contra o meu adversario? Evidentemente não trabalha por convicção. Ha pois, na sua conducta um mobil occulto. Qual será? E Ronquerolle, com o seu olhar penetrante, mirou o barão dos pés até á cabeça. Pelo seu lado o barão tratava de sondar o espirito de Ronquerolle; abordou successivamente todos os assumptos para ver até que ponto podia confiar n'elle. Ronquerolle exprimia-se com a maxima clareza sobre todas as questões politicas, mas fóra d'isso conservava-se impenetravel. Bruscamente, «des Quérelles» interrogou d'esta maneira o joven candidato: --Conheceis a marqueza «de la Tournelle?» Ronquerolle empallideceu ao ouvir esta pergunta directa, e hesitou um instante antes de responder. Mas adquirindo de novo o seu sangue frio, respondeu com uma soberana indifferença. --A marqueza «de la Tournelle!». Mas senhor barão, conheço-a como toda a gente, e menos que V. Ex.ª certamente. Tenho eu tempo para me occupar de mulheres? Tenho muito que fazer, tratando dos meus eleitores e procurando bater o meu adversario. O barão queria conhecer melhor Ronquerolle, para lhe contar toda a historia da sua paixão por M.elle de Champeautey. Não receava tomal-o para seu confidente e dizer-lhe o quanto desejava humilhar o altivo castello «de la Tournelle». A pergunta do barão tinha feito tremêr um pouco intimamente Ronquerolle. Terá este tagarella alguma suspeita? Terá advinhado a minha paixão, a minha loucura pela loura e adoravel Carlota? Terá surprehendido o mysterio da nossa entrevista? O que será, emfim? Todos tinham saido satisfeitos da «soirée» de M. Desbroutin e, no dia seguinte ninguem falava d'outra cousa. Os mais pequenos incidentes foram discutidos e recontados dez vezes, commentados segundo a intelligencia e a malicia dos narradores. Recahia toda a consideração sobre o notario e algumas más linguas começaram a insinuar que a gentil M.me Desbroutin não era quem mais lastimava os resultados da reunião politica de seu marido. V _Os infortunios do marquez_ A reunião publica estava annunciada e determinada para quinta-feira, mas á ultima hora o proprietario da sala onde tinha de se realisar essa reunião veiu avisar Ronquerolle de que confiava pouco na resistencia do soalho e que seria, a pesar seu, obrigado a faltar á sua promessa e ao preço estabelecido, porque um particular tinha pedido cincoenta francos pelo aluguer. A sala do «Poule Blanche» era demasiado pequena e por esse motivo foram ter com Matteus Baliverne, proprietario do café do Commercio, que tinha, no primeiro andar, uma magnifica sala de baile podendo conter mil e quinhentas a duas mil pessoas. Baliverne acolheu admiravelmente o presidente Kolri, Ronquerolle e os seus amigos na entrevista preliminar; Kolri deu-lhe dez francos de signal pelo aluguer da sala e beberam n'essa occasião em boa companhia um copo de cognac. --Ao bom sucesso da vossa candidatura, disse Baliverne, tocando com o seu o copo de Ronquerolle. Não obstante, Baliverne fugiu ao contracto depois de ter recebido os dez francos do signal. --Como! gritou-lhe Ronquerolle furioso, quereis convencer-nos de que a vossa sala não está segura e daes bailes n'ella! meu caro senhor Baliverne, tomaes-nos por uns imbecis! Quando as raparigas e os rapazes do logar veem bailar aos domingos em vossa casa mandai-los por acaso, descalçarem-se no vestibulo, afim de dançarem descalços para não prejudicar a solidez das vossas salas?! Basta de gracejos, senhor Baliverne! tendes o aspecto d'um bom rapaz e ha dias comemos juntos, por isso é preciso fallarmos com toda a franqueza. Vamos, dizei-nos qual a verdadeira razão que vos leva agora a recusar-nos a sala que já nos havieis promettido. Mas, por amôr de Deus, se Deus existe, deixae em paz o vosso soalho. Matheus Baliverne estava embaraçado, de cabeça baixa, não sabia que responder a Ronquerolle, que o fitava attentamente, esperando resposta. --Vejamos, disse Ronquerolle, quereis que vos ajude a confessar a verdade? É o marquez, não é verdade, que vos ameaça se nos concederdes a sala? Deve ter-vos lembrado a sua qualidade de «maire» da cidade, e, como necessitaes da sua auctorisação para conservardes o vosso baile aberto até ás 5 horas da manhã, o marquez fez-vos comprehender que d'ora avante vos recusará essa licença, no caso de eu vir fallar em vossa casa aos meus eleitores! Baliverne, olhando em volta de si para se certificar que ninguem o escutava, respondeu a Ronquerolle: --Palavra d'honra sr. Ronquerolle, ouvi-me, eu sou um homem energico mas tenho filhos a sustentar e vejo-me por esse motivo obrigado a agradar a todo o mundo; não me trahireis não é assim? Confio em vós. Pois bem, haveis adivinhado tudo o que aconteceu! Foi o marquez, o maire que me fez comprehender como o sr. disse, que não queria que a reunião se realisasse em minha casa. Aquelle canalha tem-vos medo, e, se me recusasse licença para os meus bailes, ao mesmo tempo que me tirava o sustento, privava os rapazes de se divertirem. Ronquerolle tremeu ao ouvir tal confissão. Sorriu ironicamente, depois do que se apoderou d'elle uma colera fria. Despediu-se rapidamente de Baliverne e encerrou-se no seu quarto. N'este mesmo dia, na mesma quinta-feira para que fôra convocada a reunião devia elle ter o «rendez-vous» combinado, com «M.me de la Tournelle», nos «Passeios» ás dez horas da noite. Por uma estranha coincidencia, este «rendez-vous» apaixonado, a que julgava não poder assistir, tornava-se agora possivel. Quem destruira, afinal, os obstaculos? Quem lançára nos seus braços a bella, a divina Carlota? O proprio marquez de la Tournelle. Invejando-o como rival, temendo o poder das suas convicções, impedia-lhe que fallasse em publico e que conquistasse a popularidade que lhe dava a sua eloquencia. O infeliz! Impedindo Ronquerolle de n'essa noite subir á tribuna, deixava-lhe livre a mulher e era elle mesmo o causador da sua infelicidade. --Dentro de tres dias, ás dez horas da noite! tinha segredado a marqueza n'essa inolvidavel noite dos «Passeios». A reunião que devia realisar-se na quinta-feira, ficou adiada para mais tarde. Ronquerolle explicou em o seu jornal o «Reveil» que o detestavel «maire» de Saint-Martin queria tapar-lhe a bocca e impedir ao mesmo tempo que as lindas raparigas da cidade se divertissem com os seus namorados, mas que pouco importava a sua ridicula e idiota firmeza pois que breve teria de se recolher ao seu castello socegadamente a tratar da sua vida particular. Visto que nada se oppunha á entrevista fixada pela marqueza «de la Tournelle», Ronquerolle preparou-se para isso. Fez irreprehensivelmente a sua «toilette», perfumou o lenço, poz uma gravata nova da ultima moda, pegou no chapeu mais elegante, calçou as luvas mais lindas que possuia e as botas mais elegantes e chegou uma hora mais cedo ao logar da entrevista. Sentou-se, nos «Passeios», no mesmo banco onde a marqueza o encontrara, recordando as tempestades da sua juventude. O dia estivera quente mas a brisa fresca começava a murmurar por entre o arvoredo. Vinha caindo a noite, e ouvia-se ao longe o ruido harmonioso da fonte e o canto do rouxinol. Alguns cães uivavam nas herdades longinquas e uma indefinivel voluptuosidade saía dos campos, dos bosques, dos valles e descia dos céus. --Comtanto que ella venha, dizia Ronquerolle. Oh! meu Deus! Comtanto que ella venha! Mas, sem duvida, ella virá! Sinto que se aproxima! E poder-me-ha ella enganar? Mas, porque não está ella já junto de mim? Porque não tenho entre as minhas a sua mão mimosa, porque me encetou os meus juramentos, porque me deixou dizer-lhe que a adorava, que era o meu idolo? O apaixonado mancebo poz-se a passear rapidamente, atormentado pela sua impaciencia em esperar. Quando ouviu soar as dez horas no relogio d'uma herdade, parou. --Soou a hora que me indicou. Estará aqui dentro de poucos momentos? Porque não veiu já? Porque não ouço ainda o ruido do seu vestido de seda passando na areia da avenida? E Ronquerolle, immovel, escutava, attentamente, no silencio da noite, mas não se ouvia som algum sob aquelle immenso arvoredo. Uma hora se passou, hora d'angustias profundas para Ronquerolle. Pensava que talvez não tivesse podido deixar o castello, e que tivessem surgido difficuldades imprevistas que a impedissem de cumprir a sua palavra. Resolveu esperar toda a noite. Nuvens pesadas pairavam no céu, occultando as estrellas. Não havia luar e a escuridão da noite tornava-se cada vez mais densa. Um vento forte succedera á brisa calma da tarde. D'ouvido attento, os olhos pretendendo desvendar a escuridão, Ronquerolle espreitava os caminhos, os atalhos, os campos. Esperava-a impacientemente, queria vel-a, correr ao seu encontro. Cêrca da meia-noite, uma fórma occulta e mobil appareceu lá no fundo d'um caminho orlado de macieiras. Surgia como uma sombra na direcção dos «Passeios». --Eil-a, gritou Ronquerolle. Sabia-o bem! Viria com certeza! É minha emfim! O coração batia-lhe fortemente dentro do peito. Occultou-se por detraz d'uma sebe e quando a forma escura e indecisa estava junto d'elle, murmurou docemente: --Sois vós, minha querida? --Sim, sou eu, respondeu uma voz debil. Onde estaes? Era com effeito a marqueza de la Tournelle. Trazia o rosto coberto com um espesso veu e tremia de esperança e d'amôr. Sentiu-se tranquilisada com a presença d'aquelle a quem ia tornar seu amante, abandonando-se-lhe. Ronquerolle tirou-lhe o duplo veu que a envolvia e deu-lhe o braço, ajudando-a a caminhar, arrastando-a quasi. --Como podesteis vós vir aqui a estas horas? perguntou Ronquerolle. --Sabel-o-heis mais tarde, respondeu a marqueza. Commeto por vós imprudencias que podem tornar-me alvo dos motejos publicos; se não me amaes verdadeiramente, como creio, sereis um grande culpado! Ronquerolle jurou que seria eterno o seu amôr e que só a morte o poderia destruir. «M.me de la Tournelle» descançou um pouco mais ao ver-se sentada ao lado de Ronquerolle, sob as tilias centenarias, escutando com attenção as suas palavras, os juramentos que lhe fazia. Jamais ouvira tão apaixonadas palavras. Nunca acreditara que fóra dos romances, existissem d'aquelles enthusiasmos. Nunca Ronquerolle, pelo seu lado, tivera para seduzir uma mulher, usado de termos tão ardentes, d'exclamações tão enthusiasticas, como nunca occasião tão favoravel se lhe offerecera. Durou muito tempo a entrevista dos dois amantes. Tinham ao seu dispor as horas tranquillas da noite. As nuvens tinham desaparecido, o vento acalmara-se e as estrellas silenciosas percorriam o seu eterno curso. Ronquerolle tinha, entre as suas mãos, as mãos delicadas da marqueza e contava-lhe as aventuras da sua mocidade ardente. Ella escutava-o, admirava-o intimamente e estabelecia pequenas perguntas de amôr. Tremia ao pensar na aventura em que se lançára e o seu seio arfava sob a emoção commovente do remorso e da felicidade. --Que felicidade a minha! segredava-lhe Ronquerolle. Sou todo vosso, sem restricções, sem pensamentos reservados e é a primeira vez que o faço. A fatalidade creou-nos um para o outro e torna-se impossivel que não nos amemos. Ah! quem descobrirá os mysterios da ternura humana? Quem conhecerá a lei que preside ás preferencias do coração humano? Quem nos explicará como é que nos achamos aqui reunidos na calma d'esta noite linda, devorados pelo fogo da paixão, decididos a tudo vencer antes do que deixarmos de nos amar, de que nos separarmos?... Oh! como sois bella! E como vos amo! E febrilmente o mancebo enlaçava a marqueza. Contou-lhe tudo quanto sacrificava para que alli estivesse ao lado d'ella, apresentando-se decidido a tudo immolar ao seu amôr para lhe provar que era digno da sua ternura e que a comprehendia em tudo e por tudo. --Tinha como que um presentimento mysterioso de que influenciarieis na minha vida e que o destino nos uniria mais cedo ou mais tarde; disse a marqueza. Lembrais-vos d'aquelles versos, d'aquella linda poesia que um dia me mandastes? Ha quatro annos já. Pois bem, conservo essas estrophes que talvez tenhais esquecido. Porque guardei eu tão fielmente essa vossa lembrança? Porque foi que tudo o que dissestes e tudo o que fizestes se me gravou na memoria? Porque não deixei de vos admirar nas vossas luctas e de vos amar?... «M.me de la Tournelle» e Maximo de Ronquerolle viajavam pelas altas espheras da paixão. A voluptuosidade sensual desaparecera dos seus pensamentos. A sua suprema felicidade consistia em ver que se comprehendiam, e que á delicadeza d'um correspondia maior delicadeza d'outro, que por mais alto que fosse o amante mais alto iria a mulher amada. Era um phenomeno raro e admiravel. Em todos os tempos, as affeições humanas se nortearam por considerações mesquinhas, por interesse, pelo dinheiro, pela vaidade, e por prazeres grosseiramente sensuaes. Por isso pouco tempo duram e se arrastam na banalidade da vida de todos os dias. Mas quando, não obstante os prejuizos sociaes, os costumes do mundo, as barreiras sociaes, os obstaculos da pobreza d'um e da fortuna d'outro, dois entes se atraem, se encontram e se amam, este amôr profundo, é tão puro e tão bello, que por si mesmo constitue a base da vida d'aquelles que o sentem, e que não esperam, senão a hora em que o tumulo o destruirá. Era um amôr assim, um thesouro de divinas sensações que unia a marqueza e o republicano. E, como n'este ultimo residia a força do caracter, e intelligencia e o talento, Ronquerolle devia absorver completamente a existencia de «M.me de la Tournelle». Ella tendia mais para elle do que elle a amava a ella. É o privilegio do homem: a força fascina a graça. É a planta que se agarra ao tronco da arvore e que com ella vive e morre. Todas as barreiras da sociedade estavam destruidas entre a aristocratica marqueza e o fogoso republicano. Tudo aquillo que constitue as castas, separa as classes, sustenta o orgulho d'uns e envenena a inveja d'outros, desapparecia aos olhos d'esses dois seres que a fatalidade se entretinha a approximar e a unir n'um beijo. Não era a altiva e imperiosa Maximiliana Carlota de Champeautey, tornada «M.me de la Tournelle» que alli estava, n'este momento. Não havia n'ella mais que uma mulher nova e soberba, que uma creatura adoravel, embriagada d'amôr, abandonando-se livremente nos braços d'um homem que para ella attingira o mais alto grau da força moral e da coragem. O mesmo acontecia a Ronquerolle. Esquecera as suas coleras e odios, abandonara as suas indignações, nada tinha, n'este momento, do vingador dos soffrimentos populares. Todo entregue ao encanto d'aquella paixão, o seu coração trasbordava d'amôr, a sua juventude brilhava, não vendo em «M.me de la Tournelle» mais do que a formosa personalidade da belleza e da vida. Nunca dois seres mais sinceros, mais dignos um do outro, mais desinteressados, mais enthusiastas, mais feitos para se comprehenderem e se adorarem se tinham unido debaixo do céu e jurado um amôr eterno! --Amo-te até á loucura! dizia Ronquerolle á marqueza. --E eu, respondia ella, amo-te até morrer! .......................................................................... Como tinham decidido os directores do «comité», um grande banquete se devia realizar no castello de Tournelle. Toda a nobreza da região tinha sido convidada para este banquete eleitoral que devia destruir a fortuna politica do sr. Ronquerolle, como diria o conde d'Orgefin. Foi convidado o senhor bispo de Dijon, bem como o vigario e quasi todos os curas de Saint-Martin. Não se tinham esquecido dos grandes industriaes da circunscripção, que dirigiam numerosos operarios e que convinha prender por qualquer delicadeza. Quando chegou o dia fixado para o banquete, numerosas carruagens se viam chegar de todos os lados ao castello «de la Tournelle», conduzindo toda a nobreza. Mancebos em «breaks» de caça, sorriam ás condessas, viscondessas, baronezas e ás velhas donas de castellos que vinham cooperar na manifestação contra a Republica. Outros convidados, que na vespera tinham chegado a Saint-Martin, transpunham a pé o portão do castello, e, ás onze horas e meia, o grande salão estava completamente cheio. Não se esperava mais que o sr. bispo de Dijon que tinha promettido vir e que, como se sabia, se encontrava justamente nas visinhanças do castello n'uma viagem pastoral. Meio dia soou, quando o ruido d'uma ultima carruagem se fez ouvir. Os lacaios correram ao seu encontro. Era a carruagem de monsenhor. O bispo vinha acompanhado do seu primeiro vigario geral e do seu secretario particular. A carruagem parou em frente do perystilo do castello e, sorrindo, de bom humor, o prelado desceu, sendo acolhido entre duas alas de admiradores, de mulheres elegantes e de lindos rapazes, levando, quasi todos, nas suas gravatas em forma d'alfinete uma flôr de liz. O marquez «de la Tournelle» adiantou-se para receber o principe da egreja, dando-lhe as boas vindas. O bispo, galante como um abbade do seculo passado, perguntou pela saude da marqueza. --Senhor, disse o marquez, é o unico contratempo que temos em tão bello dia. A marqueza está um pouco adoentada e não poderá assistir ao banquete de que tenho a honra de vos offerecer a presidencia. O bispo continuou a sorrir, mas intimamente, no fundo do seu pensamento, perguntava o porquê e a causa d'esta ausencia da dona da casa. As dignidades da egreja, padres, abbades, curas, vigarios, bispos, arcebispos e cardeaes, gostam de conhecer os segredos das familias. Nunca se deixam illudir pelas apparencias, pelos pretextos allegados; querem conhecer o fundo, a rasão, segundo a expressão popular, dos pequenos e dos grandes acontecimentos que se passam na intimidade dos lares, na choupana do pobre, como nos palacios dos ricos. --«M.me de la Tournelle», disse o bispo de si para si, é uma mulher que vende saude. Que motivo mysterioso a tem presa nos seus aposentos, quando tudo a está convidando a apparecer? Não obstante a sua perspicacia e o seu profundo conhecimento do coração o prelado estava longe de conhecer a verdade. Acreditava em alguma discussão por amôr proprio entre marido e mulher, qualquer disputa interna, mas a supposição de que uma adultera estava em casa dos «de la Tournelle» não passára ainda pelo seu espirito. «M.me de la Tournelle» recusára-se abertamente a comparecer ao banquete. Tinha havido uma scena entre ella e o marido, scena fria, sem violencia, sem longas explicações, mas mais do que significativa. Fôra no proprio quarto da marqueza que se dera essa discussão. A bella Carlota fôra d'uma impiedade extrema. O marquez comprehendera que lhe era inutil insistir e que era prudente retirar-se em boa ordem. A marqueza não cuidou mais da agitação politica do seu partido. O amôr vencera-a; Jamais tinha pensado em que semelhantes tempestades se desencadeassem na sua alma. Quasi que se não conhecia. A paixão que sentia por Ronquerolle invadira-a completamente como uma onda subita, e tudo aquillo que até então constituira o seu ideal submergira-se, obliterara-se, aniquilara-se quasi. Começava a amar a solidão dos seus aposentos. Estava impaciente, febril. Tentava entregar-se á leitura mas a sua attenção divagava. Tomava rapidamente um livro, passava-o pelos olhos depois do que o lançava para o lado sem o ter lido. O amôr invadia esta adoravel mulher, como a febre ardente invade uma doente. Coisa extranha! Soffria e era feliz ao mesmo tempo! O que experimentava era uma «melange» de dôr e de alegria, de inquietação e de esperança, d'orgulho e de medo. Louca d'amôr, passeava febrilmente no seu quarto quasi que fallando em voz alta, aproximando-se de vez em quando da janella e contemplando os prados, a relva e, lá no fundo, a pequena cidade de Saint-Martin. --Amigo, amigo! dizia ella, pensando em Ronquerolle, que haverá em ti para assim me esquecer do que sou? Já não pertenço a mim mesma desde a nossa entrevista... Oh sim!... foi depois que te vi que me considerei feliz... Tua! Tua para sempre! E, levando os dedos aos seus finos labios, enviou, como uma creança, beijos ao joven republicano e ao mesmo tempo toda a sua alma. O banquete realista! A lucta dos partidos O triumpho d'uns e a perda d'outros! Que lhe importava isso? Nada d'isto a interessava no momento em que o imperioso delirio da paixão se apoderava d'ella e a torturava. .......................................................................... O famoso banquete terminara no meio d'alegria geral dos convidados. A principio decorrera frio. A ausencia da marqueza tinha impressionado toda a gente. O seu logar, logar d'honra, ficara por occupar. A sua cadeira vasia lá estava e cada conviva lançava muitas vezes um olhar involuntario para esse lado, fazendo, intimamente, os commentarios mais maliciosos. Presidia o bispo, tendo sentado «vis-á-vis» o conde d'Orgefin. Ao todo os convivas subiam a noventa e cinco. Os lacaios, de calção, com as armas dos «de la Tournelle» bordadas nas fardas, faziam um serviço irreprehensivel sob todos os pontos de vista. Os pratos exquisitos, os vinhos finos aqueceram pouco a pouco os cerebros, destravaram-se as linguas e a animação augmentou. D'Orgefin observáva os convidados e tirava um bom presagio das suas felizes disposições. D'uma sobriedade notavel, o conde não bebia senão agua, conservando o seu sangue frio. Ao «toast» fez encher a sua taça de «champagne» para levantar um brinde ao triumpho dos principios monarchicos, fazendo um «speech» enfatuado d'odio ao governo republicano. Esperava-se um pequeno discurso da parte do bispo, mas a este, passaro bisnau, não convinha comprometter-se muito com o partido conservador. Intimamente, detestava extraordinariamente as novas ideias; via, com a morte na alma, os triumphos dos principios da Revolução, mas os membros da egreja são prudentes. O bispo gostava antes de estar do lado do cabo, como se diz em linguagem popular e quando o futuro estivesse mais conhecido, elle cuidaria do seu caminho. Emquanto se festejava a causa realista no castello do marquez, os habitantes da pequena cidade de Saint-Martin estavam seriamente preocupados. Este banquete era um acontecimento que entretinha todas as conversações. Em toda a parte se fallava d'elle; na pharmacia, na praça, na fonte, e em frente da «mairie» formavam-se grupos, dizendo cada um o que lhe appetecia. Por uma necessidade natural de se encontrarem juntos os republicanos de Saint-Martin foram todos para os lados da «Poule Blanche». O presidente Kolri discursava a uma grande mesa cercado de Ronquerolle, Branche, Didier e Maupertuis. A maior parte dos individuos estavam de pé e, a cada instante se ouvia copos tocando o do candidato republicano. Ronquerolle encorajava-os, fallava-lhes das lutas que encontram sempre n'um paiz a liberdade e a justiça que nascem, fazendo-lhes comprehender que, na maior parte do tempo, o luxo do rico é sustentado pelo trabalho do pobre. O joven republicano estava d'uma pallidez excessiva. Devorado pela febre da ambição e do amôr, pensava nas suas aventuras de ha dois dias com a marqueza «de la Tournelle», deixando-se levar pela sua paixão. Todos os seus sentidos se sentiam presos d'uma languidez indefinivel. A sensação dos beijos da sua amante parecia não poder deixar o seu rosto, não podendo ao mesmo tempo esquecer a sua lembrança. Ignorava que, por elle, se recusara a comparecer ao banquete realista. Não suppunha que recordações amorosas tinha gravado no coração da bella Carlota. Parecia que era elle Ronquerolle, que a amava com uma intensidade mais violenta, emquanto que, na realidade era a marqueza que tinha pelo republicano uma amizade mais profunda. --Oh! meu Deus! dizia Ronquerolle, pensando na sua amante, quando poderei voltar a vel-a? Oh! minha linda amiga, quando nos encontraremos alfim reunidos, sós, no silencio da natureza e fóra do ruido das cidades? E recordava os seus grandes olhos, o seu sorriso, a graça das suas longas tranças, a sua mão tão fina, os seus seios incomparaveis, o perfume da sua «toilette». Separando-se, após a sua entrevista nos «Passeios», Ronquerolle e a marqueza prometteram voltar a encontrar-se em Paris, depois da eleição de 15 de julho. --Voltarmos a encontrar-nos aqui, no campo, é impossivel, disse a marqueza. Perder-nos-iamos os dois inutilmente. Eu seria envilecida, expulsa, vilipendiada como uma mulher publica. Tu, meu querido, tornar-te-ias suspeito a todos os que defendes e pezar-te-ia sempre o teres-me comprometido. Sejamos prudentes. Partirei para Paris alguns dias antes de ti. Virás então juntar-te a mim e lá construiremos um ninho para o nosso amôr. Ronquerolle recordava este plano delineado pela sua amante e consultava as datas. --Ainda oito dias! dizia elle. Encontral-a-hei em Paris, n'esse immenso Paris, quando partir. Já elle calculava que partiria no dia seguinte ao da eleição quer vencesse ou não o marquez. O amôr e a ambição confundiam-se no seu espirito e no seu coração. No coração da marqueza só o amôr vivia. Ella amava-o e n'estas palavras se reunia tudo para si. Ronquerolle pagava em amôr, amando-a tambem, mas, dotado de faculdades poderosas, tinha antes d'isso, um fim a cumprir, e com esse fim esperava elle construir o pedestal do seu amôr. VI _Momentos decisivos_ O partido conservador, um momento enfraquecido, voltara de novo a cobrar confiança e serenidade. O banquette do castello de «la Tournelle» produzira um grande alarido. Relatorios, habilmente redigidos pelo conde d'Orgefin appareceram em differentes jornaes e foram enviados a todos os eleitores. A presença do bispo era commentada de muitas maneiras e fizera-se correr o boato de que Ronquerolle se encontrava extremamente desanimado a ponto de se dizer que renunciaria á sua candidatura. Ronquerolle, porém, não perdia o seu sangue frio. Sem descançar percorria a circumscripção, reunindo os eleitores nas salas da estalagem onde repousava. O seu «comité» trabalhava na expedição das profissões de fé, boletins para votos e nos cartazes. Branche, Didier e Maupertuis redigiam os numeros do «Reveil» que saía agora tres vezes por semana. Um facto que preocupava extraordinariamente o publico era o silencio subito do barão «de Quérelles». No principio da campanha eleitoral, viram-no lançar-se abertamente na lucta e tomar o partido, senão, por Ronquerolle, ao menos contra o marquez «de la Tournelle»; passados, porém, quinze dias o barão emudeceu e tornou-se quasi invisivel. Áquelles que se lhe approximavam e que o interrogavam respondia que era necessario esperar para a ultima hora para poder inclinar-se definitivamente para um dos partidos. Uma colera estranha se apoderara do barão. Sentia-se indisposto com todo o mundo; contra o marquez, contra a marqueza, contra Ronquerolle e até contra si proprio. As suas manobras não tinham dado resultado algum e conhecia que afinal era mais do que o tolo da farça. O seu zelo na lucta afrouxava por isso, não saindo, quasi, do seu castello. Alguns dias antes do dia 15 de julho, data fixada para as eleições, o barão levantou-se uma manhã com mais mau humor do que o do costume. Maltratava os criados, dava ordens que annulava d'ahi a momentos, passeando com impaciencia e anciedade n'uma galeria, contigua aos seus aposentos, e que dava sobre o jardim. Quando um dia estava assim preso da irresolução e do desgosto de vêr que a bella Carlota se lhe escapava uma vez ainda, vieram annunciar-lhe que uma deputação d'eleitores o procurava para lhe fallar. Feliz por ter essa nova distração no meio dos seus desgostos internos, desceu para fallar aos que o procuravam. Na sala encontravam-se assentados uns quinze homens. Viam-se muitos «maires» influentes dos arredores da cidade e lavradores de blusa que esperavam de chapeu na mão. --Vejamos, senhor barão, disse o mais velho dos eleitores presentes, por quem devemos votar nas proximas eleições? Vimos pedir-vos este conselho. Faremos o que o senhor barão nos ordenar. Estas palavras envaideceram o amôr proprio do barão «des Quérelles». Sabia bem que a delegação que se encontrava na sua frente representava bem umas vinte communas importantes. --Ah! scelerado marquez, pensava elle, depende de mim a tua sorte e vós, senhor repuplicano, tendes a vossa eleição na minha mão. Após este discurso mental, o barão voltou a ter o bom humor antigo. --Meus senhores, disse, dirigindo-se aos eleitores, estou immensamente envaidecido com a vossa resolução. Dar-vos-hei, sinceramente o meu conselho. Mas a questão merece um exame muito cuidadoso. Convido-vos para almoçardes commigo e antes que nos separemos, tomarei as minhas resoluções energicas. Na realidade, o barão não sabia que responder aos eleitores que o vinham consultar. Como todos que se veem embaraçados pediu tempo para reflectir. Se por um lado, odiava de morte o marquez por que fôra o rival que «m.elle de Champeautey» lhe preferira, por outro lado custava-lhe favorecer a eleição de Ronquerolle. Não comprehendia bem porque este homem lhe inspirava tal anthipatia mas o certo era que o aborrecia. Adivinhava que este senhor Ronquerolle havia de ser mais tarde um obstaculo aos seus desejos, porque o arrebatado barão não renunciara á esperança de possuir mais tarde ou mais cedo o coração da bella Carlota. Durante os preparativos do almoço, os homens da delegação foram passear para o parque do barão, que por sua vez se retirou para o seu gabinete de trabalho, preso d'uma perplexidade inquietadora. --Meu Deus! que hei de aconselhar a estes homens? Se lhes digo que votem por esse tolo do marquez «de la Tournelle» saberá a marqueza reconhecer que é a mim que deve o não ver o seu orgulho e o seu nome humilhados? Se os aconselho a deitarem a sua lista pelo Ronquerolle quem me assegura que a sua eleição não vem pôr uma barreira invencivel entre mim e a minha paixão? Torturado pela duvida o infeliz barão não sabia para que lado se havia de voltar, quando o creado lhe entregou o ultimo numero do «Echo da Borgonha», o jornal monarchico que pertencia ao marquez. Abriu, e de vermelho que estava, tornou-se pallido como cêra. Na primeira pagina do jornal destacava-se em normando um suelto ironico que lhe dizia respeito. O auctor do pequenino artigo troçava do barão pela sua pequena estatura e fazia insinuar que a pequenez da sua intelligencia estava na proporção da do seu corpo. Era ferir a corôa sensivel. Este artigo afiado como a lamina d'um punhal, pôz fim ás suas hesitações e decidiu da eleição do circulo de Saint-Martin. Ah! é isso? Pois bem! disse o barão. Senhor «de la Tournelle», meu amigo, ficarás fóra da lucta, serás vencido, assim o espero. Feliz Ronquerolle, um bom genio te protege! O barão «des Quérelles» desconhecia por completo a grande verdade que dissera. Sim, um bom genio protegia Ronquerolle. Sim, a felicidade vinha para elle. Que artigo perfido! Quem o redigira? Quem sacrificára assim a vaidade d'um barão? Quem tanta sorte dera a Maximo? Quem? A propria marqueza «de la Tournelle». Louca pelo seu amante, capaz de fazer por elle todos os sacrificios, não pensando senão na sua fortuna e na sua gloria começou a por ao seu serviço toda a artilharia dos seus ardis femeninos. «Des Quérelles» estava alegre, como um homem que acaba de tomar uma resolução. O seu caracter colerico encontrou em que se empregar, durante o almoço que offerecêra aos eleitores inflúentes que tinham vindo consultal-o. --Bebam, meus amigos! dizia aos seus hospedes. Viva Deus! Vamos, finalmente, ver-nos livres d'esse magrizela do marquez. Está entendido, não é assim, no proximo domingo votaremos como um só homem no bello Ronquerolle. Eis um que têm sorte. Os convivas, bravos lavradores e vinhateiros, bebiam vinho puro, comendo constantemente e rindo á vontade ao ouvir os gracejos do seu amphitrião. A conversação foi declinando a pouco e pouco da politica para os boatos que corriam na cidade e na região. Fallou-se da marqueza, de «M.me de Beaumenard», a mulher do banqueiro; de «M.me Desbroutin», a mulher do notario. --Parece que esses senhores, dizia o barão, não teem muito que se queixar do periodo eleitoral. Vamos, tanto melhor! Os tres parisienses não vem para aqui só para trabalhar, os galhofeiros; levam-nos, porém, o melhor. O que está nas boas graças da gentil «M.me de Beaumenard» é um finório. Ah! que linda coisa é a mocidade! O almoço terminou alegremente, como havia começado. Tomou-se café no jardim, onde pouco depois se bebia tambem cerveja. Eram apenas tres horas da tarde. O barão fez a ultima recommendação aos seus hospedes: O «mot d'ordre» é que o marquez tem de ser vencido. Ide, meus amigos, e levae por toda a parte a boa nova! Estas palavras deviam dar a Ronquerolle tres mil e setecentos votos. A intelligente marqueza tinha calculado bem, redigindo ella mesma o artigo contra o barão, para excitar a sua colera e para o fazer sair da sua reserva. Ficou louca d'alegria e louca d'amôr quando soube da resolução de «des Quérelles». Era o bom exito da lucta de Maximo assegurado. --Ó meu querido amante, dizia ella, sou eu que te abro o caminho da fortuna e da gloria. Serás tu fiel, ao menos? O caracteristico do verdadeiro amôr foi sempre o sacrificio pela pessoa amada. Sacrifica-se tudo por ella, por ella se affrontam os perigos e a morte, por ella se commettem prodigios, por ella se perde o apetite e o somno e se é feliz com este tormento, com esta dôr, com este mal implacavel que invade todo o nosso ser. A soberba Carlota estava no paroxismo da paixão. Calma na apparencia sentia-se devorada pelo frenesi do amôr. Passeando no seu jardim, sentia-se tão dominada pela imagem e recordação do seu amante que a custo caminhava. Uma languidez indizivel a fatigava. Podia-se tomar por uma d'essas deusas antigas que atravessavam os bosques sagrados da Grecia e que desappareciam n'uma nuvem azul. Jámais visão tão bella podia inspirar um poeta. Jámais a incarnação da vida se tinha manifestado n'uma mais nobre creatura! Ronquerolle sentia-se falto de energia. No ultimo sabbado, vespera da eleição, esteve dominado por um febre ardente. A inquietação devorava-o. Sairia vencedor do escrutinio? Iria de novo passar á obscuridade? Além d'isto o amôr de «M.me de la Tournelle», como uma ferida incuravel, invadia-o, torturava-o, dominava-o. Elle, um homem forte, o cidadão inflexivel, sentia-se vencido por essa mulher, por essa sereia de cabellos loiros. --O destino! Ella sacrifica-se por mim emquanto que eu, egoista, onde está o meu sacrificio? Uma agitação extraordinaria o reteve durante as horas em que se procedeu á abertura do escrutinio. Os partidarios do marquez percorriam a cidade e os arrabaldes, fazendo promessas a uns, ameaçando outros, espalhando profusamente por toda a parte as listas. Por seu lado os partidarios de Ronquerole não ficaram inertes. Durante toda a noite de sabbado para domingo desenvolveram uma energia sem igual a fim de levarem os operarios a votarem no candidato republicano. Luctavam com a intrepidez da ultima hora, com a coragem suprema que tem o soldado quando está prestes a derrotar o inimigo. Quando, no domingo de manhã, o escrutinio se abriu, os dois partidos estavam perfeitamente calmos. O momento decisivo approximava-se. Viam-se grupos formados na praça publica e que depois se dirigiam a votar á mairie. Misturavam-se os amigos e inimigos politicos; uns chasqueavam o marquez de «la Tournelle», outros riam-se de Ronquerolle. Este ultimo abatido pela fadiga e atormentado pelo desassoçego não abandonou o leito n'este domingo fatal que ia dicidir a sua sorte. Victima da ambição, debalde tentava adormecer. Elle proprio tinha censurado o seu procedimento e só o seu amigo fiel, Branche, estava junto d'elle absorvido pela mesma incerteza pelas luctas do futuro. O escrutinio fechou-se ás seis horas, começando immediatamente o apuramento de votos. A sala da «mairie» estava completamente cheia. Os eleitores presentes escutavam silenciosamente a contagem dos votos. Alternadamente escutavam-se os nomes dos dois candidatos. --Sr. de la Tournelle! --Sr. Ronquerolle! Cêrca das nove horas os murmurios d'alegria ouviam-se já entre os operarios. Vencia o cidadão Ronquerolle, segundo todas as probabilidades. Tinha a maioria de 1500 votos só na cidade de Saint-Martin. O ruido d'esta vitoria estalou como uma bomba de dynamite. Uma multidão compacta que esperava as noticias em frente á casa da camara, gritou instinctivamente: Viva a Republica! Este grito resoou pelo silencio da noite como o ronco d'um trovão. O seu ruido fez-se ouvir no castello feudal do marquez de «la Tournelle» e gelou de terror os realistas que se encontravam reunidos no salão. --A canalha triumpha disse friamente o conde d'Orgefin. Escute estes gritos marquez! Tenho receio de que tenhamos sido batidos! De minuto em minuto chegavam estafetas das communas, succedendo-se sem interrupção os telegrammas. Por toda a parte o candidato republicano saía vitorioso. Cêrca da meia noite a victoria definitiva de Ronquerolle foi proclamada. Vencera pela maioria de quatro mil seiscentos e vinte sete votos. Foi um delirio entre os republicanos. O «Poule Blanche» illuminou-se, organisando-se grupos que cantavam pelas ruas hymnos patrioticos. Ronquerolle não podia acreditar no seu triumpho. Tinha os olhos cheios de lagrimas continuando a ser devorado pela febre. Foi preciso que se mostrasse á multidão, da janella, entre bandeiras tricolores e illuminações. Estava pallido como a morte. Quando se fez silencio pronunciou um d'aquelles discursos que inflamam as imaginações e fazem transbordar os corações d'enthusiasmo. Durante quasi uma hora, o intrepido mancebo fallou á multidão da maneira a mais patriotica. A sua fadiga desappareceu deante d'esses homens rudes e valentes que o applaudiam freneticamente. Quando de novo recolheu ao seu quarto, quando já tinham terminado todas as manifestações, Ronquerolle encontrou-se fresco e bem disposto, tendo-lhe desaparecido a febre; tinha passado a hora d'angustia. Subia, finalmente, a essa tribuna que tanto ambicionava. Os obstaculos que lhe impediam o caminho desappareceram como uma nuvem ligeira. O caminho do futuro, apparecia claramente agora aos seus olhos. Estava satisfeita a sua ambição. --Restava-lhe ainda a amante. Ronquerolle passava a maior parte da noite a escrever-lhe. Toda a poesia da sua natureza inquieta e apaixonada se desenvolveu livremente e as palavras mais ternas sairam da pena. --«Mulher adorada, escrevia Ronquerolle, devo-te a primeira gloria da minha carreira! Sê bemdita, porque me ajudaste, porque foste immensamente corajosa para sacrificares por mim os prejuizos da tua raça; porque, afinal, tu sacrificaste-te... Que farei eu para recompensar o teu amôr que tão alto vae? Ah! no inicio da minha carreira, pobre, obscuro ainda, não tenho senão a minha mocidade para te dar, a ti minha encantadora e bella amiga, incomparavel Carlota, a ti, cuja graça me encanta, a ti cujos olhos azues me fazem louco, a ti cujo ser me enebria!... «Que dias felizes eu antevejo! Que ideal visão me persegue! Que nobre destino eu entrevejo para ti e para mim, cara e mysteriosa amante! «Ninguem saberá que nos amamos, ninguem advinhará o segredo da nossa amizade; amar-nos-hemos, adorar-nos-hemos por nossos proprios merecimentos e não para obedecer ás convenções sociaes, não para nos conformarmos com interesses pueris. «... Para ti toda a minha alma, para ti o melhor do meu pensamento, para ti a minha vida»! Ronquerolle não podia de maneira alguma terminar a carta. O seu coração transbordava de ternura, quizera encerrar n'esse papel toda a sua existencia: o passado, o presente e o futuro. Antes de a fechar releu-a; lagrimas ardentes lhe marejaram os olhos, a ponto de a si mesmo perguntar se não estaria preso d'uma allucinação. E lacrou a carta sentindo-se moralmente fatigado. VII _Vida nova_ Na quinta-feira seguinte ao dia da eleição, pelas dez horas da manhã, a cidade de Saint-Martin apresentava um aspecto de festa fóra de costume. O sol de julho brilhava n'um ceu purissimo, e o calor era já asphyxiante. Quinhentas a seiscentas pessoas estacionavam em frente do edificio da Camara, onde acabava de chegar uma fanfarra com o seu estandarte, e ia formar-se o cortejo. Os republicanos preparavam-se para acompanhar até á estação dos caminhos de ferro o cidadão Ronquerolle que partia para Paris. Por entre os grupos que se viam formados pela praça, o observador prespicaz teria notado tres mulheres novas, que muito chegadas umas ás outras pareciam tristes e preocupadas. Entretanto sorriam mas o seu sorriso era contrafeito. Esse grupo feminino compunha-se da graciosa Madame Beauménard, a mulher do banqueiro, da buliçosa Madame Desbroutin, a mulher do tabellião, e finalmente da elegante Madame Jolibois, a mulher do recebedor das contribuições. Todas tres muito amigas, não tinham segredos umas para as outras. Madame Beauménard deixara-se prender pelas declarações amorosas de Didier; Madame Desbroutin adorava Branche, e, finalmente, Maupertuis conseguira fazer sossobrar a virtude um pouco arisca de Madame Jolibois. Ai, como são rapidos os dias felizes! Os apaixonados retomavam o vôo em direcção a Paris, e a vida monotona da provincia ia recomeçar para aquellas galantes mulheres. De repente, o deputado Ronquerolle appareceu seguido dos seus tres amigos, de todos os membros do «comité» republicano e de numerosos cidadãos, pertencentes ás diversas classes da sociedade. Estava pallido, quasi livido e uma gravata vermelha fazia ainda resaltar essa pallidez, resultante da fadiga e das commoções soffridas. A fanfarra executou a «Marselheza» e o cortejo poz-se em marcha. Quando Branche, Didier e Maupertuis passaram junto das suas tres amantes, trocaram-se rapidos olhares e as tres mulheres não puderam conter as lagrimas. --Amava-l'o muito? disse Madame Jolibois a Madame Beauménard. --Minha querida, era louca por elle! E tu? redarguiu a interrogada. --Eu, quereria partir com elle, respondeu Madame Jolibois. Quanto a Madame Desbroutin, estava tão commovida, que apenas poude dizer: --Que ha de ser de nós, agora? Esses rapazes que partiam eram a poesia, o amôr a paixão. A marqueza de Tournelle havia deixado Saint-Martin no dia seguinte ao das eleições. Estava em Paris havia quatro dias, quando Ronquerolle ali chegou. A grande cidade estava n'essa occasião deserta. A alta sociedade partira já para as estações de aguas, para os banhos do mar, para o campo. Apenas ficára a população que as necessidades da vida prendiam em Paris. O calor tornava-se mais violento dia a dia. A marqueza habitava um soberbo palacete na rua de Varennes, construido entre um pateo e um jardim. Habitualmente demorava-se no campo até aos fins de novembro, mas o seu regresso inesperado a Paris foi explicado pelo cheque eleitoral soffrido pelo marquez seu esposo. O sr. de La Tournelle, sentindo-se envergonhado, humilhado, diante de sua mulher, não ousava acompanhal-a á grande capital. Por outro lado o continuar em Saint-Martin lhe parecia tambem insupportavel e por isso partira, sem demora, para a Suissa, em companhia do conde de Orgeffin. Ronquerolle, em vista da sua nova situação, alugara uma bôa habitação perto dos Invalidos, ficando estabelecido que Branche seria seu secretario e rezidiria com elle. Quanto a Maupertuis e a Didier installar-se-hiam nas immediações. A abertura das camaras devia realizar-se em outubro, e por isso restavam ainda ao novo deputado dois longos mezes para se preparar para as luctas parlamentares, para se concentrar antes do combate, e para se entregar inteiramente á sua amante. Durante esse espaço de tempo esses dois entes privilegiados foram completamente felizes. Encontravam-se todos os dias e a sua intimidade augmentando, augmentou a sua paixão. Até então elles tinham-se mais adivinhado do que conhecido. E que alegria foi para elles o reconhecerem, mutuamente, que eram ainda superiores á ideia que se haviam formado de sentimentos, de intelligencia e da elevada concepção do amôr. Ronquerolle estava completamente fascinado, maravilhado da audaz belleza de Madame de la Tournelle e a marqueza adorava o seu amante pela sua mocidade, simplicidade, pela vehemencia da sua paixão e do seu formoso espirito, e tambem pela sua insaciavel ambição. Ronquerolle comprazia-se em fazer-lhe longas confidencias sobre os seus projectos de futuro. Não queria entrar na camara dos deputados para se deixar seduzir pelo apparato do poder, para ser cumplice ou victima da corrupção, da ignorancia ou do embuste; mas sim para representar verdadeiramente o papel de reformador, tomando o povo como ponto de apoio... Uma tarde, quando o sol desapparecia por detraz do Arco do Triumpho, e quando já descia o crepusculo sobre a grande cidade, o orgulhoso rapaz repetia á sua amante os seus sonhos de esperança, deixando as palavras seguirem o curso do seu fogoso temperamento. Electrisas-me, meu adorado, dizia-lhe a encantadora e loura Carlota de la Tournelle; perdôa-me mas sou ciumenta como uma panthera, e estremeço ao pensar que em breve te tornarás uma figura celebre, que os mais provocantes sorrisos te vão ser dirigidos, e que, pode ser, que então, eu não seja a unica a possuir toda a tua alma! --Tranquilisa-te, respondeu Ronquerolle; porventura não sentimos que este amôr é de vida e de morte. --Sim, sim, retorquiu vivamente e apaixonadamente a marqueza, amôr para a vida e para a morte! Algumas vezes, tambem pelas onze horas da noite, os dois amantes passeavam juntos, a pé ou de carruagem, percorrendo os bairros mais afastados e solitarios, pois que a marqueza ficaria perdida se fosse reconhecida nos seus passeios em companhia do joven deputado republicano. N'um sabbado, pela meia noite, quando entravam por uma pequena rua desviada da habitação de Ronquerolle, estremeceram ambos ao mesmo tempo ao cruzarem-se com um individuo que seguia em sentido contrario. Felizmente para madame de la Tournelle ella usava um véu espesso e não poude por isso ser reconhecida. O homem que passara perto d'elles era o barão de Quérelles, que, por seu turno, acabara de chegar a Paris, com a firme rezolução de vigiar a marqueza. Como seguia preoccupado e muito rapidamente, o barão nem mesmo reconheceu Ronquerolle, mas fôra reconhecido por este e por madame de la Tournelle. --Diabo, exclamou Maximo, vamos ter este pequeno barão a seguir-nos os passos. É preciso acautelarmo-nos até que d'elle estejamos livres. Por esta epocha, Ronquerolle recebeu uma carta que profundamente o impressionou. Era a pobre, a pequena Emilia, sua amante d'outros tempos, que lhe escrevia. Ronquerolle ainda não a tinha ido ver, e a infeliz rapariga sabendo do seu regresso a Paris, lamentava-se do abandono a que elle a votara. «Eu bem sabia, lhe dizia ella, que a tua partida para a Borgonha era o fim dos nossos amôres! Eu bem sabia que uma nova vida ia começar para ti, meu adorado Maximo, e que eu, pobre flôr desfeita, seria sacrificada á tua ambição, que uma nova paixão exige. «Bem sabia ao vêr-te partir que tudo era perdido para mim, o meu unico amigo, o meu bem amado, o meu querido amante! Escuta, prefiro antes morrêr a descêr pela escada fatal das raparigas bem educadas mas pobres. Tornar-me-hia a amante d'um outro, que me abandonaria tambem, depois d'um terceiro, e depois, de todo o mundo! Não! Não! Repito-te, antes a morte! «Não me digas que ainda me amas; se assim fosse não terias vindo abraçar-me logo após a sahida do comboio que te conduziu a Paris? E tu estás aqui ha quinze dias, e em vão te hei esperado todas as manhãs e todas as tardes. «Oh! Maximo! Meu querido Maximo! Não poderei eu ainda apertar-te nos meus braços, antes de ser envolvida na mortalha dos pobres, antes de fechar os meus olhos á doce claridade do sol, antes de ser conduzida ao cemiterio e coberta com algumas pás de terra? «A tua querida toutinegra d'outros tempos «Emilia.» Ao ler esta impressionante carta, Ronquerolle sentiu que um suor frio lhe banhava a fronte. Não tinha esquecido completamente aquella pobre creança companheira dos dias de maior adversidade, essa sensivel Emilia á qual jurara eterno amôr, mas da qual a imagem havia sido eclipsada no seu coração e no seu cerebro pela visão estonteante da marqueza de la Tournelle. E comtudo, durante o periodo eleitoral, elle tinha-lhe escripto, á pobre rapariga, jurando-lhe ainda que nunca a abandonaria, mas, mau grado os seus desejos, a sua linguagem, as suas palavras eram sem calôr, e o amôr d'outros tempos transformara-se n'uma affeição de irmão. Emilia havia comprehendido essa mudança, mulher de sentimento, sentira que lhe fugia o amante a quem adorava, e ficou profundamente abatida. Ronquerolle era tudo para ella, sem parentes, sem familia, só n'essa immensa Paris, ella só o tinha a elle no mundo para proteger a sua juventude, e a sua fraqueza de mulher nas luctas contra a dura necessidade. Com esse instincto maravilhoso que possuem as verdadeiras amantes, Emilia comprehendêra que uma outra paixão enchêra a alma do seu querido Maximo, e então todas as suas esperanças, já de si tão frageis, se abateram de um só golpe. Nem o pensamento de luctar contra a adversidade lhe assaltou o espirito. A pobre creatura, imagem fiel da resignação disse a si propria: Maximo já não me ama, pois bem, só me resta morrêr. Quando soube da chegada de Ronquerolle, quando soube que elle estava em Paris ha quinze dias e o esperou em vão, chorou lagrimas de sangue e decidiu-se por fim a escrevêr-lhe, como unica esperança de vêl-o, ao menos uma vez antes de morrer. Ronquerolle, tomado d'uma inquietação mortal, ao terminar a leitura da carta da sua pobre Emilia, sahiu immediatamente, tomou um trem e dirigiu-se a casa da pobre rapariga. Emilia reconheceu-lhe os passos, e quando elle lhe bateu á porta, abriu-lh'a com o coração despedaçado, mas ainda com uma migalha de esperança. Foi tal a violencia da commoção recebida, que a pobrezinha, cahindo nos braços do seu adorado Maximo, durante bastantes minutos não poude articular palavra. O triumphador não podia crêr no que os seus olhos viam. A sua pequenina Emilia não era mais que uma sombra do que fôra. Pallida, magra, os olhos amortecidos pela angustia, pelas lagrimas, e pelas noites de insomnias, davam áquella creaturinha o aspecto d'um phantasma. --Meu Deus! pensava Ronquerolle, oxalá que eu não chegasse demasiado tarde! A pobre creança está ferida de morte pelo desgosto que lhe causei, e a sua extrema sensibilidade attrahe-a para o tumulo. Passados os primeiros momentos Emilia retomou o seu doce sorriso e n'uma alegria verdadeiramente infantil exclamou: --Eis-te emfim, meu querido Maximo! exclamou ella. Oh! Como eu sou feliz em tornar a ver-te! Como eu te esperava! Como eu receava morrer sem te abraçar ainda uma vez! Como eu te amo! Se tu soubesses como eu te amo! Tu, bem sei, tu não podes amar-me da mesma forma. Sei muito bem que tu não podes prender na tua vida uma simples sensitiva como a pobre Emilia... Tu tens um grande destino a cumprir, tens uma vasta carreira a percorrer. Tens que alcançar a gloria. Eu vejo bem a differença da minha vida para a tua. Precisas de amôres enebriantes; desejas o explendôr que possa satisfazer o teu immenso orgulho... Eu conheço-te bem! Ronquerolle, profundamente impressionado sentia que a sua companheira d'outros tempos tinha razão. Elle procurava distrahil-a, animal-a, mas a pobre rapariga voltava sempre a reconhecer o fatal abandono a que fôra votada. Entretanto sentia uma especie de melancholica voluptuosidade em remover as recordações dos felizes dias passados, dos primeiros mezes dos seus amôres, dos seus passeios de outr'ora nos bosques, a Saint-Cloud, a Mendon, a Montmorency, a Ermenonville. --Como soubeste que eu voltara a Paris? perguntou Maximo. --Como o soube! retorquiu Emilia; muito simplesmente, adivinhei. Podes crêr. Sentia-te perto de mim. Os que amam verdadeiramente teem presentimentos que jámais os enganam. Além d'isso, eu vi os teus amigos atravessarem a rua Vaugirard. A sua presença confirmou a tua. Eu sabia quanto sois inseparaveis. Tu não estavas de certo longe, visto que me apparecia Branche, Didier e Maupertuis. O novo deputado demorou-se bastante tempo junto de Emilia. Um extranho encanto havia em volta d'ella. Emilia vestia um penteador azul e estava sentada n'um canapé, perto da janella. Lembrava uma convalescente que procurava cobrar fôrças, e a quem o menor esforço enfraquecia. --Voltarei a vêr-te muitas vezes, disse-lhe Ronquerolle deixando-a. Tem coragem. A tua vida terá ainda dias felizes. --Não, meu amigo, respondeu ella. Tudo se acabou! Pois não reparas? Não vês que eu não te faço a menor pergunta? Nem sequer me queixo! É a suprema resignação do condemnado. Maximo affastou-se lentamente da casa de sua pequena amiga. Seguiu para o «boulevard» de Vaugirard, voltando-se mais d'uma vez, para olhar a janella onde outr'ora tantas vezes, elle vira o rosto sorridente da pobre creança. A sua dôr tão verdadeira, tão sincera, tão eloquente, envenenava a sua felicidade. Aguardou assim a hora em que M.me de la Tournelle o esperava. A marqueza não teve muito trabalho para reconhecer que o seu amante tinha qualquer pensamento que o fazia soffrer. Interrogou-o. Perguntou-lhe a causa da sua dôr. Ronquerolle hesitou um momento, mas depois, para alliviar o enorme peso que tinha sobre o coração, contou-lhe toda a historia da sua ligação com a pobre Emilia. --Seria indigno de mim, o occultar-lhe o menor segredo da minha vida, disse-lhe elle. O soffrimento d'essa pobre creança, cahe sobre mim como um remorso. É o primeiro da minha vida! Dois dias depois o deputado republicano recebia nova carta da pobre abandonada. «Eu bem te dizia Maximo, escrevia Emilia, que estava proximo o meu fim: estou cada vez peor, meu amigo, vêm depressa. Eu não nasci para viver n'este mundo demasiado brutal. O meu pobre coração quebrou-se ao embate da primeira amargura. Tombou como uma flôr que a tempestade lança por terra, e cousa alguma n'este mundo pode já reanimal-o, dar-lhe a alegria, sem a qual elle não pode viver. A flôr arrancada da haste nunca mais pode readquirir a sua frescura e o seu perfume. Vive um dia e morrre. Nada resta d'ella. Outras flôres vêem substituil-a, outros felizes dias vão nascer, e a outra a pobre florinha morreu e não ressuscitará. E que bellos momentos nós tivemos na vida meu querido Maximo! Recordas-te de quando tu me esperavas ao terminar as tuas lições da Sorbonne e do Collegio de França, quando iamos passear de braço dado, sob as sombras de Luxemburgo, quando trocavamos ainda timidas palavras de amôr, quando tu apenas ousavas apertar-me a mão? Abençoados tempos, dias felizes da minha adolescencia, da minha juventude, porque tão depressa me fugiste? Porquê meu bem amado é tão rapida tão fugitiva a felicidade? E porque será que ha na vida fatalidades que nos quebram o coração? Conheci-te nas mais bellas horas da tua mocidade, meigo e ao mesmo tempo terrivel amante pelo qual eu fui vencida e pelo qual eu vou bem cêdo morrer! Entretanto a ambição vae devorar-te, mas as mulheres que te amarem não descobrirão nos teus labios esse encantador sorriso que tu tinhas para mim, essa bella alegria e esse enthusiasmo dos vinte annos, que eu pude apreciar. É essa a minha suprema consolação.--A tua pequenina amiga d'outros tempos--Emilia». Estas cartas preoccupavam sobremaneira Ronquerolle. Augmentava o seu remorso, e a imagem da terna Emilia, doente, morrendo do peito e morrendo de desgosto não o deixava um instante. Era um espectaculo commovedor o apresentado por aquella joven que não tinha a força para supportar as brutalidades da existencia e que o primeiro abalo derrubava. Ha no meio da corrupção das cidades, d'essas creaturas excepcionaes que possuem todas as virtudes, todas as bellezas moraes e todos os heroismos. Nada as mancha; ellas veem o mal que para ellas avança, mas os seus olhos se fecham sobre a visão pura que vive na sua alma e a perversidade jámais as alcançará. A sua innocencia conserva-se inalteravel. Vivem e morrem presas ao seu ideal como a hera em volta da arvore. É esse todo o seu destino. E ha d'estes seres sublimes em todas as classes sociaes: tanto nos palacios dos ricos, como nas habitações dos burguezes ou nas cabanas dos pobres. O observador á primeira vista não os apercebe, tão modestos elles são, tão simples, tanto se occultam na sombra; mas por pouco que o seu olhar investigador saiba lêr nas consciencias, analysar a vida dos homens e o aspecto das coisas, elle não tarda a reconhecer o heroismo do coração, onde, na apparencia só ha uma existencia monotona, sem colorido e sem perfume. As mulheres mais do que os homens, teem d'essas dedicações obscuras, que toda a gente ignora, de que ninguem falará e de que mesmo o que d'ellas é objecto não suppôe toda a grandesa. É quando essas creaturas amantes e tão felizes por se sacrificarem já não existem, que se adivinham todos os primores das suas virtudes. É quando o frio tumulo as occulta nas suas negras sombras, que se reconhece a bondade do seu espirito e do seu coração e que se lhe faz verdadeiramente justiça. Mas então, é já tarde! Esse arrependimento posthumo não consola do remorso de haver quebrado desapiedadamente uma alma encantadora, franca, leal; de ter perdido um thesouro de ineffavel ternura e de amôr sincero, de ter feito chorar dois lindos olhos, de ter feito o desespero d'um inexperiente coração. Dar-se-hia então dez annos da existencia para tornar a vêr uma hora apenas essa devotada creatura, para se lhe dizer que emfim foi comprehendida e que é amada. Mas são já inuteis então os desesperos e estereis os votos. A morte não mais devolverá a sua presa, e o turbilhão do mundo, chama-nos e attrahe-nos com os seus risos, as suas canções, o ruido das suas orgias, o estonteamento dos seus prazeres. Emilia era do numero d'essas pobres raparigas que, se não tivessem amantes, se fariam irmãs de caridade, dedicando-se aos doentes e á paixão pela cruz. Dependia ella mais da poesia, que da vontade propria; possuia mais humildade que orgulho, mais resignação que coragem para a lucta. Tinha sonhado o amôr como a juncção de duas vidas não formando mais do que uma. Aos dezesseis annos, essa fragil creança realizava o typo perfeito da joven que ama perdidamente. Nenhum halito impuro bafejava a superficie da sua alma de virgem. Inspirava respeito, e, instinctivamente, todo o homem, ou todo o rapaz tirava o seu chapeu quando com ella se crusava nas ruas e quando ella para elle erguia os seus grandes olhos ingenuos e leaes. D'uma delicada saude, ter-se-hia tornado robusta se a alegria a tivesse acompanhado. Mas vindo os desgostos ella podia morrer, e morria effectivamente, e o mal fazia constantes progressos. Ronquerolle não a abandonava. Sentava-se aos pés do seu leito e prodigalisava tantos cuidados á doente como se fôra mãe da infeliz rapariga. Graças a madame de la Tournelle, um dos principes da sciencia fôra chamado a tractar da joven Emilia. Todas as manhãs esse medico vinha vêl-a e ficava surprehendido dos progressos da doença, e resumia por estas palavras as suas impressões: uma saude delicada morta por um desgosto terrivel. Algumas vezes, Ronquerolle acompanhava-o quando elle sahia de ao pé da doente, e ambos conversavam na casa de entrada da habitação da pobre rapariga. --Ora vêde, dizia o medico, que de mysterios encerra a natureza! «Ahi está uma sublime rapariga que vae morrer, porque n'ella o equilibrio das fôrças é incompleto. «É cortada pela dôr, como um fragil canniçado pela ventania. «A sua fraqueza faz d'ella uma santa. «Os entes verdadeiramente fortes (e vós pertenceis sem duvida a esse numero, reconhece-se rapidamente no vosso olhar), os entes verdadeiramente fortes, são talvez mais feridos pela desillusão do que essa infeliz creança, mas vivem, não soffrem materialmente, sorriem até quando é preciso, teem-lhes inveja, crêem que elles são felizes. «Olhae, por exemplo, para mim! «Tenho eu porventura o ar d'um homem digno de lamentações? «Possuo uma fortuna e goso d'um nome glorioso, entretanto um grande ferimento moral, me atormenta.» Ronquerolle estava surprehendido pelas confidencias do notavel medico. Esse homem parecia adivinhar o seu pensamento, via claro na sua vida e comtudo devia ignorar em que mundo de emoções se encontrava agora o seu espirito. E o amante da marqueza ia no entanto prodigalisando todos os cuidados, todos os carinhos a Emilia. Installou juncto d'ella uma excellente enfermeira, e vinha todos os dias, de manhã e á noite informar-se do estado da doente. Muitas vezes mesmo durante o dia elle enviava ali o seu dedicado amigo Branche, para distrahir a infeliz rapariga. Mas o mal fazia os mais rapidos progressos. Os pulmões esphacellavam-se, o medico perdêra ja toda a esperança de salvar a terna creaturinha. Emilia tinha uma tosse constante e uma febre ardente. Não podia já deixar o leito. Encostada a duas almofadas, ella tinha entretanto ainda fôrças para lêr. E satisfazia-se ainda, sentia um ineffavel prazer em voltar a lêr as bellas paginas lidas n'outros tempos com Maximo, junto do fogão nas noites de inverno. Qualquer soberbo romance de Balzac ou de Stendhal, qualquer livro de deliciosos versos de Alfredo de Musset, de Lamartine, de Victor Hugo e outros. Ah! Como ella agora comprehendia melhor os gritos de desesperação dos poetas e o scepticismo dos grandes observadores ante a alegria que passa e a felicidade que se aguarda. E a pobre Emilia sentia mesmo um extranho prazer em sentir-se abatida pela dôr, agarrada pela morte. Envolvia-se no seu infortunio como em luxuosa e linda capa de baile. Quando, após ter lido muito, a fadiga a prostrava, deixava cahir o livro sobre o leito e a sua ainda bella cabeça tombava sobre o almofadão, e perdia-se n'um mundo de recordações. Via-se então ainda muito creança; rodeada de carinhos, adorada por sua mãe, que tambem bem cêdo a morte arrebatara. Como esses dias lhe pareciam estar ainda proximos. Recordava-se da egreja onde ia ouvir missa todos os domingos, com os seus modestos mas lindos vestidinhos claros, e onde pondo as mãos rogava a Deus e á Virgem toda a sorte de felicidades para a sua familia e para si. Depois viera para Paris, recolhida por uma tia, após a morte de sua santa mãe. Tinha então quinze annos e o seu maior desejo era estudar, aprender para ser quanto possivel independente. Seguira para isso o curso da Sorbonne. Foi ahi que ella conheceu o Maximo, que ella o amou com toda a sua alma; sim, com toda a sua alma tão leal, tão enthusiastica. E quando apenas tocara na taça da vida era preciso deixar o festim e seguir até lá baixo, ao cemiterio, a deitar-se na terra fria. Emilia não podia, mau grado a resignação do seu temperamento e do seu caracter, olhar para o seu destino sem uma secreta revolta. Como a «Joven captiva», de André Chenier, ella desejaria não morrer ainda. Pois quê! a sua vida estava terminada, ella ia desapparecer da scena do mundo sem ter visto acabar a primavera, sem ter colhido as flôres d'essa estação, sem ter repousado sob os ridentes arvoredos, sem ter conhecido o verão abrasador, nem o outomno fecundo!... Tres mezes decorreram n'estas angustias moraes. Ronquerolle foi admiravel de dedicação. Quando o fim se approximou, quando o medico declarou que Emilia ia morrer, Ronquerolle nunca mais abandonou a doente. Sombrio ante a implacavel fatalidade que pesa sobre os sêres humanos, accomodára-se juncto do leito da moribunda, sem ter a coragem de a animar. Emilia, no delirio da febre falava-lhe como se longos annos de felicidade lhe tivessem sido promettidos. --Maximo, dizia ella no desvairamento da rasão, Maximo, meu querido Maximo, nós vamos unirmo-nos para sempre! Coisa alguma nos poderá separar, não é verdade? A minha vida vae ficar unida á tua. Sou a tua mulhersinha! Sim! A tua mulher. Ah meu adorado Maximo! Se tu soubesses como eu desejava ser a tua esposa. Se soubesses como eu soffri por ser sómente a tua amante! Era o meu sonho chamar-te o meu marido, e poder caminhar com firmeza, sobre o teu braço, e de cabeça erguida, sem receio! Pois bem, o meu sonho, está realisado, não é verdade? E eu sou feliz. Já posso acompanhar-te sem córar. Agora dizem ao vêr-nos passar em Luxemburgo: ahi vão dois jovens noivos; e como elles vão contentes, como se amam! Ronquerolle chorava ante o delirar da sua pequenina amiga, da sua «querida toutinegra» d'outros tempos, como elle tinha por costume chamar-lhe, brincando com ella como duas creanças. E o deputado de agora tapava o rosto com o lenço e soluçava. Emilia entretanto nos seus delirios febris, tinha projectos adoraveis, d'uma simplicidade encantadora. --Dize, Maximo, exclamou ella, quando voltar a primavera tu levar-me-has para o campo, não é assim? Iremos pelas veredas embalsamadas, pelos trigaes, pela beira dos bosques e das vinhas... Vestir-me-hei como tu gostas; porei um d'esses chapeus de verão, que tanto te agradam e que, dizes tu, me ficam muito bem. N'um dos seus momentos de lucidez, Emilia pediu a presença d'um sacerdote e recebeu os sacramentos com a devoção e recolhimento d'uma creança na sua primeira communhão. Quando Ronquerolle viu a sua pobre amiga erguer-se, aproximar o rosto e receber a hostia sagrada das mãos do sacerdote, a impressão n'elle produzida foi tão violenta, que não poude conservar-se ali por mais tempo e sahiu a respirar por um momento no boulevard Montparnasse. Uma vez ali, reparou n'uma carruagem fechada que perto estacionava. Aprumando-se viu que alguem de dentro da carruagem o chamava. Era madame de la Tournelle que inquieta, viera ali para informar-se do que se passava. --A pobresinha, disse-lhe Ronquerolle, morrerá mal chegue a noite, são estas ás palavras do medico. Parte-se-me o coração e soffro muito por vêl-a assim desfallecer. «Não quero abandonal-a assim. Volto para junto d'ella. Eram umas quatro horas da tarde. A marqueza quiz acompanhar Maximo até á cabeceira da moribunda. Emilia já mal respirava. A garganta comprimia-se-lhe e apenas podia volver os olhos sem mover a cabeça. O medico tambem estava perto d'ella. O seu aspecto grave e triste era como uma phrase completa e fatal. A morte reclamava aquella pobre rapariga e elle tinha que se curvar, aguardando apenas o momento em que aquella existencia teria que cessar. Madame de la Tournelle collocára-se ao lado do medico. O perfume a heliotrope da sua toilette enchia, embalsamava o quarto de Emilia. A marqueza contemplava curiosamente aquella pobre moribunda e pensava que durante muitos annos a infeliz que ia morrer fôra a amante de Ronquerolle. Este, sentado aos pés do leito da pobre creaturinha sentia a mais violenta das punhaladas que pode atravessar o peito d'um homem de coração. E olhava essa figura magra, descarnada, que elle amara nos dias da sua irrequieta mocidade. Quantos beijos elle tinha deposto n'aquelles labios agora sem côr, n'aquellas faces, n'aquelles olhos, sobre esse rosto outr'ora encantador! E não podia acreditar que a morte ia apagar a luz d'aquelles olhos que elle amára, e gelar aquelle coração que lhe pertencêra. Emilia fez ainda um esforço para se sentar no leito. Ronquerolle correu a ajudal-a. A infeliz voltou-se então para o lado onde se encontrava madame de la Tournelle, e poude ainda dizer: --Oh! Minha senhora! Amae-o como eu o amei, apenas por elle! Depois pondo a mão fria de neve sobre o rosto de Ronquerolle, proseguiu: --Não tenhas remorsos, meu amigo, a minha vida estava condemnada! Eu teria querido viver apenas para ti... «Tu não sabes como eu te amava! Mais tarde o comprehenderás e sinto que não poderás esquecer-me!... E nada mais poude dizer. A sua linda cabeça cahiu novamente sobre a almofada, e alguns instantes depois a pobre rapariga expirava. No dia seguinte um coche magnifico, coberto de flôres, dirigia-se lentamente, pelas dez horas da manhã, para os lados do cemiterio do Père Lachaise. Uma unica carruagem de luto seguia o coche funerario. Tres pessoas occupavam essa carruagem. A um dos cantos um rapaz soluçava, immerso na dôr, aniquilado. Uma dama com o rosto coberto por um espesso véu, tentava inutilmente animal-o. Em frente d'elles, silencioso, sombrio, um homem, com o queixo encostado ao castão dourado da sua bengala, embrenhava-se em mysteriosos pensamentos. Estas tres personagens eram Ronquerolle, madame de la Tournelle e o medico que tratara Emilia. Eram elles que acompanhavam a querida creaturinha á ultima morada, tanto do rico como do pobre, do sabio como do ignorante, do valente como do fraco. Em volta d'elles o ruido, o movimento da grande cidade, eram de estontear. A manhã estava bella, o sol de outubro era ainda lindo com os seus reflexos de ouro e aquecia os boulevards. Alguns passeantes reparavam n'esse bello coche funerario coberto de flôres e seguido apenas por uma carruagem. E pensavam que havia ali talvez um d'esses dramas patheticos, que Paris possue em tão grande numero. Ronquerolle, do qual a superior intelligencia cedêra o logar á tristeza, conservou-se muito tempo inconsolavel pela morte de Emilia. A febre da ambição fôra dominada pela da dôr. Passou os dias a evocar a tocante recordação d'essa rapariga que elle tinha amado, que a elle se havia dado com todo o seu coração, que elle possuira e que morrêra por elle. De noite não podia dormir, erguia-se e ia contemplar o retrato da querida defunta, pendente d'uma das paredes da sua habitação. Quando olhava para essa figurinha tão graciosa, de olhar tão singello e tão suave, o seu coração estremecia com as recordações do passado, e grossas lagrimas cahiam dos seus olhos e rolavam sobre o seu rosto varonil de tribuno popular e de poeta. Depois ia tirar d'uma gaveta um masso de cartas, e relia-as. Sabia-as de cór, mas o fixar a calligraphia da sua joven companheira da mocidade, era para elle motivo de intima consolação. Eram já de longo tempo essas cartas. A tinta havia empallidecido e as datas traziam recordações a Ronquerolle. --Que fatalidade! exclamava elle. Tudo se acabou. O luto entrou no meu pensamento e jámais o amôr me dará uma alegria sem uma triste recordação. Encantadora e bôa creança, com a tua mocidade levaste tambem a minha para o tumulo. Os tempos de illusão acabaram-se, as horas tranquillas não voltarão mais. Agora só vejo na minha vida sombras e tempestades. Para acalmar as suas apprehensões, para procurar serenar os seus nervos, Ronquerolle começou a escrever versos em memoria da sua adorada Emilia. Compoz um verdadeiro poéma em sua honra e fêl-o publicar n'uma revista litteraria. Esses versos foram notados e commentados nos jornaes politicos. A marqueza de la Tournelle respeitou a dôr do seu amante. Ella sentia uma infinita e deliciosa commoção ao pensar que tambem seria adorada por aquelle homem, e mais ainda que a bôa, mas simples creaturinha que acabava de morrer. Entretanto aproximara-se o dia da abertura das Camaras e Ronquerolle sahiu como que d'um sonho quando leu no «Jornal Official,» o decreto presidencial, e recebeu aviso, na sua qualidade de deputado, de que o Parlamento ia recomeçar os seus trabalhos. Estava como um homem que após um longo e profundo somno, desperta com a impressão de que tem um rude trabalho a desempenhar, e um grande caminho a percorrer. Experimentado pela dôr, devorado pela paixão, Ronquerolle ia entrar na vida politica como um verdadeiro athleta, treinado por violentas luctas. VIII _Policia dupla_ As tribunas da Camara estavam cheias de gente. Personagens officiaes, jornalistas, provincianos ha pouco chegados a Paris, mulheres da moda, elegantes, avidas de emoções oratorias, politicos de varios matizes, alguns más linguas e intriguistas e parentes e amigos dos deputados, de tudo ali havia. As ordens eram severissimas relativamente á entrada; era impossivel assistir á sessão legislativa, sem um bilhete perfeitamente em regra, e verificado mais d'uma vez com o maior cuidado. N'uma das primeiras tribunas, um pouco á esquerda, viam-se duas mulheres novas, e notava-se mais que uma era trigueira e outra loura. Sorriam e agitavam habilmente os seus leques. De quando em quando, percorriam com o olhar atravez o «lorgnon» de aros de ouro, as bancadas dos deputados, e communicavam uma á outra as suas impressões. Vestiam «toilettes» muito elegantes; no emtanto mostravam-se á vontade sem procurarem attrahir a attenção da camara ou das galerias, embora não podessem passar despercebidas. A loura era a marqueza de la Tournelle e a outra senhora que a acompanhava era uma das suas amigas, a esposa d'um deputado da Direita, madame de Fleurus. O ministro da guerra acabava de dar á camara explicações sobre as despezas não previstas pelo orçamento, e das bancadas do Centro ouviam-se ainda appoiados, quando o prezidente da Assembleia pronunciou gravemente estas palavras: --Na ordem do dia figura uma interpellação do sr. Ronquerolle sobre a politica geral do governo. --Tem a palavra o sr. deputado Ronquerolle. Estabeleceu-se silencio. Das bancadas mais distantes da extrema esquerda, ergueu-se um homem novo, de excellente figura, que depois se dirigiu lentamente até á tribuna dos oradores. Subiu os degraus com passo cadenciado e pousou sobre o marmore alguns papeis. Depois lançou um rapido olhar sobre o auditorio e começou a falar n'um tom muito baixo. Tinha deante de si os ministros aos quaes não perdia de vista. Pouco a pouco, a sua voz foi-se avolumando, tornando-se mais forte, e resoou em todo o ambito do Parlamento. Ronquerolle passava á fieira os actos do ministerio, e fazia resaltar a hypocrisia d'alguns dos membros do governo. Fustigava todos os homens que ambicionavam o poder só para adquirirem fortuna, não considerando o povo senão como uma machina util ás suas ambições. Erguendo os olhos para o lado das tribunas reservadas, Ronquerolle viu a sua amante. Ao clarão d'esse olhar apaixonado, á visão rapida d'essa bella figura, d'esses cabellos dourados e abundantes, d'esse collo admiravel apertado n'um delicioso corpete, á vista d'essa mão fina e bem desenhada agitando o leque finissimo, o joven deputado sentiu como que uma vertigem, uma forte commoção electrica, e encontrou para as suas palavras uma dicção e uma accentuação de tanta eloquencia que fez estremecer todo o auditorio. Ronquerolle, porém, nem via a Assembleia, esquecêra os seus collegas, os seus inimigos da direita da Camara e os seus amigos da esquerda; não via mais ninguem pelo espirito, senão a sua bella Carlota, a sua conquista, a sua felicidade, o seu thesouro, a sua vida. Queria conquistar a inteligencia d'aquella mulher que adorava, como já havia conquistado o seu coração e os seus beijos. Queria unir-se a ella pelos laços indestrutiveis da estima, e do respeito pela sua coragem e pelo poder do seu cerebro. A bella Carlota toda estremecia de prazer no seu logar. Respondia ligeiramente á sua amiga, que lhe dava conta das suas impressões: --Que pena, dizia ella á marqueza, que este homem não seja dos nossos! Desejaria vêr a causa dynastica, defendida assim com esta energia e com este vigor. A marqueza fechou os olhos por um momento, n'uma grande commoção de felicidade. Ella, positivamente, bebia soffregamente as palavras do amante. Gozava assim deliciosamente do mysterio da sua ligação com Ronquerolle. Tudo n'ella se satisfazia n'esse momento, o seu orgulho de mulher, a sua superior concepção do amôr; o seu voluptuoso ideal, a sua propria vaidade, n'uma palavra, a sua intelligencia e o seu coração. Essa sessão da Camara gravou-se na sua memoria com uma tal intensidade de traços, que jámais se apagariam. Comprehendeu n'esse dia como a sua existencia estava ainda incompleta, e teve como que um grande arrependimento de tantos annos perdidos já, e que se assemelhavam a um campo arido sem arvores, sem verdura e sem flôres. O discurso de Ronquerolle causou enorme impressão. Foi discutido por toda a imprensa. Uns encheram de elogios o joven orador, outros criticaram vivamente as suas doutrinas, mas toda a gente se curvou perante a sua incontestavel eloquencia. Na quinzena que se seguiu, o novo deputado não teve mãos a medir. Era uma alluvião de solicitadores. Ou vinham felicital-o, ou enviavam-lhe delegações, ou convidavam-n'o para conferencias e banquetes. Janeiro estava a findar e os dias eram pequenos; desde as cinco horas que a noite envolvia Paris, e o inverno era rigoroso. N'uma quinta-feira, Ronquerolle sahindo da Camara, dirigia-se a pé para sua casa pela explanada dos Invalidos. Cahia gelo e por isso eram raras as pessoas que andavam pelas ruas. Chegado á altura da rua de Grenelle, o deputado de Saint-Martin, parou um momento para deixar passar uma fila de carruagens... Como olhasse em torno de si, antes de atravessar a rua, notou á sua esquerda, um individuo cuja figura não lhe era desconhecida. Esse homem conservava-se a distancia, e quando viu que Ronquerolle o observava, alargou o passo e passou adeante do deputado. --Ah! Já sei, disse Maximo, este homem é um agente da policia. Depois da minha interpellação ao ministerio, este honesto espião não me deixa um segundo. Não se enganava. O homem era effectivamente um agente da policia secreta. O discurso de Ronquerolle tornara-o um deputado perigoso, temivel para um ministerio na agonia. A consequencia natural d'esse facto era fazel-o submetter a uma rigorosa espionagem. Chegariam com essa espionagem a colher elementos da sua vida privada, de que naturalmente se serviriam no momento opportuno para entravar essa eloquencia que vinha de nascêr e que se apresentava implacavel para com a traição. Ao mesmo tempo que os adversarios de Ronquerolle o submettiam a essa vergonhosa e ignobil observação dos agentes da policia secreta, o inimigo da marqueza de la Tournelle não dormia tambem. Mais enraivecido que nunca, o barão de Quérelles tinha resolvido, elle tambem, fazer passar a bella Carlota por uma espionagem assidua. Adivinhava que ella tinha um segredo a occultar, e esse segredo queria elle conhecêl-o, afim de a fazer estremecer ante a sua pequena estatura. O pygmeu, o tacanho, desejava humilhar a nobre mulher cujo coração não vivia senão para o amôr e pelo amôr, cujo espirito jámais conhecêra o que fosse uma baixeza. É assim que, na vida, as almas mesquinhas e cubiçosas attacam a belleza, a generosidade, a coragem, a franqueza que lucta á luz do sol, a franqueza que procura sempre a verdade e segue ousadamente no seu caminho claro e leal. Em redor dos entes superiores e brilhantes giram os perversos silenciosos e invejosos. Não teem senão um fim, incommodar, prejudicar; senão um pensamento, infeccionar, macular; não teem mais que um desejo, um empenho, buscar trazer até elles, até á lama que os envolve, as creaturas de eleição, que lhes fazem sombra, e das quaes elles não podem imitar as qualidades e as virtudes. E assim é que, n'um jardim, se vê muitas vezes uma lagarta repellente instalar-se na mais bella rosa deixando a sua nojenta baba sobre as petalas da flôr. O barão de Quérelles era um ente odioso, desprezivel, abjecto, mas não era um imbecil. Comprehendia que só uma mulher podia espionar outra mulher, e poz-se em campo para descobrir esse cumulo da infamia. Á uma hora depois do meio dia vinha elle descendo a Avenida dos Campos Elyseos, após um copioso almoço, quando subitamente deu uma palmada na testa, como se fôra illuminado por uma inspiração celestial e apressou o passo. --Mas, sem duvida, exclamou elle comsigo mesmo, M.me William tratará perfeitamente do negocio. Como não havia eu pensado n'ella ainda?! Oxalá que ella não tenha mudado de rezidencia! E Dominique, sem se envolver n'outras meditações, cortou á esquerda, seguiu ao longo do palacio do Elyseu e chegou rapidamente ao «boulevard» Malesherbes, onde outr'ora M.me William occupava uma vasta habitação em que dava soirées muito concorridas de jovens ricaços, jornalistas, romancistas mundanos, mulheres novas e bonitas, casadas com maridos velhos ou de habitos sedentarios, preferindo o canto do fogão, ou o leito, ás seducções d'um baile, que começa ás onze da noite, para terminar ás seis horas da manhã. --M.me William! perguntou Dominique timidamente ao porteiro. --No segundo andar, á esquerda, respondeu o homem. Podeis subir, madame está em casa. O barão respirou. Havia bem uns cinco annos que elle não visitava a mulher, cuja recordação lhe viera tão aproposito. Receava não a encontrar, pois que M.me William era pessoa que se mudava a miudo e que viajava mais a miudo ainda. --Que milagre! pensou de Quérelles. O quê! Depois de cinco annos, ella não deixou esta casa, onde eu a vi pela ultima vez! Terá renunciado aos elegantes negocios d'outros tempos! M.me William era de origem ingleza. Habitava em Paris ha uns dez annos com suas duas filhas. Porque a tinha deixado seu marido, official superior no exercito britannico? Ninguem ao certo, o sabia. M.me William, no emtanto, dizia que seu marido não tivera razão para a abandonar e todos fingiam acredital-a. Fôra recebida na sua qualidade de estrangeira, em muitos salões frequentados pela alta sociedade. Entretanto o papel que ella dezempenhava no meio parisiense dava-lhe protectores altamente collocados e a sua elegancia mundana attrahia indulgencias ao seu procedimento. Tinha por pessoas da sua amizade, financeiros, homens politicos e especuladores de negocios varios. O fundo da sua existencia era o dinheiro, a intriga, a galanteria, o proprio vicio. Se se tratava de fazer propostas deshonestas a uma consciencia recta, a uma mulher cubiçada, procurava-se para esse fim M.me William. Por cada operação d'esse genero recebia ella os seus emolumentos. O seu alojamento de seis mil francos era pago com toda a regularidade, assim como as suas bellas «toilettes» e os ordenados dos seus innumeros serviçaes. M.me William era uma mulher sem pudôr e que dispunha para satisfazer os seus vergonhosos compromissos d'uma actividade inacreditavel. Era, n'uma palavra, a encarnação poderosa e perigosa da immundicie coberta de ouro, passeando de coche, adulada, procurada; infame podridão, merecendo ser lançada ao monturo, depois de ter sido esmagada debaixo dos pés. Era a lagarta sem nome, de corpo repellente, devastando esse immenso jardim humano que se chama Paris. Tal era a immunda creatura á qual o barão de Quérelles ia confiar a missão de perder a marqueza de la Tournelle. M.me William não tinha ainda attingido os quarenta annos. Era bastante formosa; e só por vêl-a e ouvil-a ninguem podia jámais suppôr as torpezas da sua vida. Falava muito correctamente o francez, com uma ligeira accentuação estrangeira, o que lhe dava mais uma linha de seducção. --Que foi isso, barão, disse ella a Dominique, que bom vento vos trouxe até aqui? Julgava-vos casado. Sabeis que me haveis abandonado bem singularmente?! De Quérelles mostrava-se embaraçado. Não sabia como abordar o assumpto pelo qual ali viera, e sentia desejos de abreviar aquella visita mesmo sem ter dito cousa alguma. Mas M.me William é que comprehendia claramente que se elle voltara a procural-a após tel-a esquecido durante cinco annos, era porque no seu espirito existia qualquer preocupação grave. Tinha a impressão de que era preciso manobrar com toda a astucia dos dias solemnes e dispunha já em linha de ataque todas as suas baterias. Fez assentar o barão n'um sophá, perto d'ella, e interrogou-o sobre os assumptos mais extraordinarios. Jamais um confessor empregou mais habeis estratagemas para facilitar a confissão a um penitente, para o obrigar a confessar qualquer grande peccado dos que não se ousam contar em voz alta, de que só se fala na meia escuridão d'um fim da tarde e fechando os olhos. Após duas horas de conversação o barão descarregára do coração um grande fardo. A sua confissão fôra completa. M.me William soubera que Dominique gostava da marqueza de la Tournelle, que elle tinha sido alvo dos desdens d'essa dama da aristocracia, que elle desejava vingar-se humilhando a altiva fidalga; que era preciso portanto, descobrir á marqueza qualquer amante verdadeiro ou falso, fazer estalar o escandalo, e depois recolher, em bôa ordem, algumas excellentes notas de mil francos na sua bolsa. A intrigante experimentou uma alegria diabolica, pensando que ia achar-se em frente da marqueza. Havia muito tempo que esta aranha ingleza não envolvia nos fios da sua teia tão bella presa. Detestava por natureza as mulheres d'um mundo superior ao seu, e reservava-lhes as suas mais crueis ciladas. Começou por encommendar duas soberbas «toilettes» n'uma modista da moda, no «boulevard» Haussmann. --Meu pequeno De Quérelles, disse ella comsigo mesma, subindo para o seu coupé, depois de ter escolhido os tecidos de que deviam ser feitos os vestidos que encommendára, serás tu quem pagará a factura como inicio do negocio, que em seguida realizaremos sob um aspecto de seriedade. Eu sou como o governo, tenho neccessidade n'esta occasião de abrir emissões para fazer effeito, e conto comtigo, meu caro barão, para satisfazeres na caixa as obrigações contrahidas. E desatou a rir, imaginando que tinha tanto espirito como Voltaire. M.me William applicava uma certa consciencia no cumprimento da sua ascorosa tarefa. Gostava de penetrar nos segredos das familias, mas queria obter dados precisos, exactos, constatados por ella tanto quanto possivel, depois do que manobrava com uma espantosa segurança e firmeza de pulso. Uma manhã, acabando de tomar o seu chocolate, começou a pensar seriamente, no que ella chamava o negocio do barãosinho. --Vejamos, vejamos, dizia ella para comsigo, trata-se de saber se essa formosa marqueza tem um amante, ou antes, como ella com certeza o possue, trata-se de descobrir quem elle é. Devo seguil-a ou fazel-a seguir, quando ella sae, quando ella vae a qualquer entrevista? Não, deixemos esses processos vulgares á policia. A marqueza ama o grande mundo, os bailes, as «soirées»; adora tambem o theatro e tem um camarote na Opera. Ora, é evidente, que ella deve encontrar ali o homem a quem ama. É necessario portanto seguir-lhe ahi os gestos, as expressões, os olhares; e d'isso me encarrego eu, M.me de la Tournelle! A ingleza via bem as cousas. Desde que ha apaixonados sobre a terra, elles teem sentido sempre uma volupia indifinivel em admirarem junctos as scenas harmoniosas da natureza, em repartirem as mesmas sensações litterarias e artisticas, em trocarem olhares de ternura, quando a emoção produzida attinge a sua maior intensidade. O quadro onde se desenha a nossa vida nunca nos parece tão bello, como quando n'elle apparece tambem um traço da vida d'aquella a quem amâmos. M.me de la Tournelle e Ronquerolle não fugiam á regra geral, á lei commum, doce lei que ordena áquelles que se amam que tudo sintam em commum, prazeres, alegrias, desgostos e tristezas. Os dois amantes não podiam encontrar-se na sociedade. O logar de deputado republicano não era, decerto, nos salões aristocraticos que a marqueza frequentava. Era para elles esse facto motivo de pezar, mas comprehendiam que a sua ligação era impossivel se não observassem a cada instante a maior prudencia. O marquez regressara a Paris em companhia do conde Orgefim, e o seu palacete havia readquirido a animação de todos os invernos. O que se diria se o seu adversario politico, o seu feliz rival fosse visto a conversar com sua esposa n'uma «soirée» do grande mundo. M.me de la Tournelle assistia ás sessões da camara dos deputados, afim de vêr ali o seu amante. Do seu logar na tribuna ella contemplava-o sentado á sua carteira, escrevendo, gesticulando, discutindo com os seus collegas, interrompendo os oradores da direita, n'uma palavra, dispondo de toda a sua actividade, e a marqueza era feliz vendo-o assim. Quanto a Ronquerolle o seu prazer supremo era ir á Opera, onde ella apparecia decotada, ornada de diamantes e eclipsando pela sua belleza todas as outras mulheres... --Oh felicidade, pensava elle, o intrepido republicano, é minha essa sublime mulher! Amâmo-nos, adorâmo-nos e ninguem no mundo, além de nós, conhece o nosso segredo. E prolongando estes pensamentos, n'uma febre de amôr, Ronquerolle atravez a sala do theatro enviava toda a sua alma á incomparavel Carlota. Ella via-o tambem, do seu camarote, seguia-lhe os olhares, transmitia-lhe tambem os seus pensamentos e enviava-lhe por entre as varetas do seu lindo leque beijos discretos. Algumas vezes Ronquerolle ouvia os seus visinhos dos fauteuils de orchestra interrogarem-se. --Quem é, diziam elles, aquella linda mulher, que occupa o segundo camarote do lado esquerdo, aquella que ostenta nos cabellos uma formosa estrella de diamantes? --É a marqueza de la Tournelle! respondia um interlocutor melhor informado. É na verdade uma das mais seductoras mulheres de Paris. Que altivez, e ao mesmo tempo que encanto na sua figura!... Ella tudo possue, mocidade, saude, riqueza, um nome illustre, dignidade, belleza e espirito. Ronquerolle empallidecia de felicidade, ouvindo o elogio da sua deliciosa amante. Desejaria estar juncto d'ella, no seu camarote, a murmurar-lhe aos ouvidos essa palavra tão doce de pronunciar e mais doce ainda de ouvir: --Amo-te! Amo-te! Invejava e tinha ciumes de todos os que visitavam o camarote da marqueza, onde ella sorria em meio do perfume das flôres e dos canticos que enchiam o theatro. As convenções sociaes não permittiam que aquelles dois amantes se apaixonassem, que fallassem em publico. Não podiam trocar palavras senão na intimidade, nas suas secretas entrevistas, que Ronquerolle tinha organisado com uma arte consummada. Alli, sem duvida, elles se desforravam amplamente, de todas as privações e mentiras a que os condemnava a sociedade, mas nem por isso soffriam menos, por não poderem repartir as mesmas alegrias da vida exterior, as mesmas emoções, os mesmos prazeres. Uma noite, na Opera, Ronquerolle não poude conter-se. M.me de la Tournelle estava só. Dirigiu-se ao seu camarote, e erguendo o reposteiro do pequeno salão interior, do mesmo camarote, sem poder ser visto da sala, chamou a attenção da amante. Carlota veiu ao fundo e exclamou em voz baixa: --Que imprudencia! E deu-lhe os labios, onde elle depositou um beijo ardente. Apertou-a um momento nos seus braços e depois retirou-se com a alma embriagada por esse vinho capitoso, o orgulho da posse. Esta rapida scena não teve testemunhas, comtudo M.me William, a aranha ingleza, que assistia tambem ao espectaculo, notou que a marqueza estando só, tinha-se affastado por alguns minutos da frente do camarote. --Por acaso o amante da marqueza não pertencerá á sua sociedade? disse comsigo a perfida observadora. É um enygma então, e como decifral-o? M.me William havia já começado a sua sombria tarefa de espionagem. Sabia já o nome e a morada de todas as pessoas que frequentavam o palacete da marqueza. Mas os apontamentos colhidos tornavam-n'a perplexa. Não podera ainda achar um facto preciso, que podesse collocal-a n'uma pista que devesse seguir. Quanto a Ronquerolle tinha-se desembaraçado dos agentes lançados nas suas piugadas pelo ministerio, fazendo publicar nos jornaes do seu partido uma noticia nos seguintes termos: «O deputado de Saint-Martin interpellará proximamente o ministro do Interior sobre assumptos da perfeitura da policia. Trata-se, ao que parece, de pequenas e grandes infamias dos agentes secretos. O sr. Ronquerolle apresentará factos, não baterá ao acaso. Desejamos que o ministro seja d'esta vez, um pouco mais feliz do que na sua ultima derrota.» O ministro havia comprehendido a intenção e a ordem fôra revogada, ou fôra suspensa por algum tempo a observação secreta de que Ronquerolle era alvo. Este não poude deixar de sorrir-se da covardia dos seus adversarios. Comprehendia agora que ignobil procedimento se acoberta sob as apparencias de legitima defeza politica. Quanto mais penetrava no exame dos actos e dos homens do poder, maior numero de ignominias encontrava. A colera invadia-o e teria querido desmascarar os homens que se fingiam honestos e dignos. --De que valem os discursos contra a villanagem? dizia elle. Não são phrases que é preciso lançar-lhes ao rosto, o que é preciso é cuspir-lhes na cara. M.me William reconheceu a necessidade de realizar uma larga entrevista com o barão de Quérelles. N'essa entrevista contou-lhe elle a historia da ultima eleição de deputados em Saint-Martin, a queda do marquez e o triumpho de Ronquerolle, o candidato republicano, e a parte que elle proprio tomára nos acontecimentos. --Não faço ideia, interrompeu M.me William, como seja o aspecto d'esse tal sr. Ronquerolle, de quem tanto se fala na Camara e cá fóra, e que derrotou com tanta felicidade o pobre de la Tournelle? --É um homem alto e delgado, disse o barão, e elegante como um principe. Mas porque me faz essa pergunta? --Simples curiosidade de mulher! exclamou a descarada ingleza tomando uma attitude de denguice. M.me William viu depois muitas vezes a Ronquerolle, na Camara dos deputados. Occupava logar n'uma tribuna não distanciada d'aquella onde M.me de la Tournelle tinha por costume assistir aos debates parlamentares, deliciando-se com a vista do amante. A esperta ingleza reparou em que a loura Carlota não desviava os olhos do joven deputado. --Seria interessante, pensou ella. Aqui ha mysterio! Decididamente senhora marqueza é necessario que eu vos faça seguir durante os vossos passeios atravez a cidade de Paris! As entrevistas de Ronquerolle com a sua formosa amante, realizavam-se alternadamente em tres logares differentes, em tres bairros affastados uns dos outros. Era assim mais difficil surprehender os dois amantes nos locaes das suas reuniões. Além d'isso a marqueza mudava de carruagem cada vez que ia juntar-se a Ronquerolle, de fórma a estabelecer a duvida na espionagem de que podesse ser alvo. Ella bem sabia que por uma moeda de vinte francos é facil fazer falar os creados e os cocheiros. Assim nem mesmo estes podiam ter a mais leve suspeita. Esses agradaveis encontros tinham sido organisados pelo intelligente deputado republicano com especial habilidade, uns dias realizavam-se de manhã e d'outras vezes á tarde ou á noite. M.me de la Tournelle poderia mesmo passar a noite inteira fóra de seu palacete sem se comprometter. Paris tem essa immensa vantagem sobre a provincia. Em geral as pessoas que vivem na grande cidade não se occupam dos visinhos. Nas casas habitadas por pessoas de alta posição só se exige uma qualidade aos locatarios, e essa qualidade consiste em não fazer ruido nas escadas. O socego e algumas peças de cinco francos lançadas de tempos a tempos nas mãos dos porteiros auxiliam efficazmente os amôres illicitos nos ninhos dourados, impenetraveis. Accresce que certas casas e certos predios teem duas entradas, e portanto duas sahidas. Este systema aperfeiçoado permitte ás pessoas que teem motivos para se envolverem em mysterios o rirem-se nas bochechas d'aquelles, que pelo contrario, teem todo o interesse em conhecerem os nomes e as caras das pessôas que se occultam nas mysteriosas habitações. Ronquerolle era bastante parisiense, pelo espirito e pelos habitos para n'aquelle jogo de amôr obter todos os trumphos. De resto, a intelligencia que qualquer recebeu da mãe commum, a natureza, serve-nos de auxiliar poderoso em todos os lances da vida. Que prodigios de imaginação não teriam os amantes, para se vêrem a miudo. Ronquerolle por si nada tinha a recear, era livre como o ar; mas preoccupava-se com o salvaguardar a honra da sua amante, uma mulher casada, pertencendo a um mundo de apparato, de vista, e que teria tudo a perdêr, se o segredo da sua ligação viesse a ser desvendado. O marquez de la Tournelle não tinha a menor suspeita sobre a virtude e a fidelidade de sua esposa. Era-lhe submisso como um cão ao dono e nem sequer discutia os seus menores caprichos. Sentia e sabia que ella lhe era superior, e amava-a com uma especie de devoção, como se ama e se venera uma divindade. Depois do chéque eleitoral soffrido, elle considerava-se perdido aos olhos da marqueza, porque não seguira os seus conselhos. Tremia deante d'ella e nem tentava explicar a si proprio as causas da frieza que sua mulher lhe testemunhava. Por caricia unica, depois que Ronquerolle triumphára, M.me de Tournelle apenas permittia ao marido que a beijasse na testa. Uma noite, pelas 11 horas, o infortunado marquez veiu bater á porta do quarto de sua mulher. --Sois vós, Sergio? perguntou ella com voz irritada. E como elle lhe respondesse affirmativamente: --Tende paciencia, mas não vos posso attender. Voltae para os vossos aposentos. Estou fazendo a minha toilette para ir ao baile a Saint-Germain. Effectivamente estava vestindo uma elegantissima «toilette» depois de se ter perfumado dos pés á cabeça. Ronquerolle esperava-a n'essa noite n'um dos seus ninhos de amôr; mas para salvar as apparencias a marqueza foi effectivamente a um baile em Saint-Germain, d'onde rapidamente sahiu sem os outros convivas darem por isso, para ir cahir nos braços do seu adorado, do seu querido Ronquerolle. --Fui eu que errei, dizia Sergio de la Tournelle dirigindo-se para os seus aposentos. Devia ter escutado os seus conselhos e obedecêr-lhe escrupulosamente... Oh! A politica! Infernal politica! Para que me lancei eu n'essa odiosa engrenagem? Carlota! Carlota! Se tu soubesses como eu te amo! Morreria por ti se m'o ordenasses! E o desgraçado desesperava-se suppondo que havia perdido a estima de sua esposa apenas por uma serie de fraquezas suas, e acreditando, o que era verdade, que jámais a podia reconquistar. O pobre marquez devorava a sós o seu profundo desgosto, porque as suas dôres eram d'aquellas que não se confiam a pessoa alguma, nem mesmo a um amigo intimo. N'essa noite o marquez de la Tournelle não dormiu. Ouviu dar todas as horas até ás quatro da madrugada. A essa hora a marqueza entrava em casa. Sergio ouviu tudo o que passou no seu palacete: o porteiro abrira a porta da rua, a carruagem entrára no pateo, depois a porta envidraçada da escadaria abrira-se para dar passagem á encantadora Carlota, e depois tudo voltára á tranquilidade e ao silencio. --E dizer que minha mulher está aqui perto de mim, exclamava elle, que acaba de entrar vinda d'um baile, perfumada como uma rosa e bella como uma Venus, e que eu não ouso entrar no seu quarto, e que se tal ousasse ella me acolheria com um sorriso de piedade! E o senhor de la Tournelle virava-se e revirava-se sobre o leito como se estivesse sobre um brazeiro, e de raiva, de desespero pela sua fraqueza, mordia as almofadas e rangia os dentes como atacado d'um accesso febril. No emtanto o pobre marquez estava ainda longe de suppôr toda a importancia da sua desgraça. A marqueza, como é sabido, vinha não só do baile como d'um delicioso «rendez-vous» de amôr. Fatigada dos abraços estonteantes de Ronquerolle, despia-se vagarosamente, lançando o seu vestido de baile, levemente amachucado, sobre uma poltrona. Tinha ainda nos labios vermelhos como que o calor dos beijos do fogoso republicano. E adormeceu feliz recordando as phrases de amôr, o delirio do olhar apaixonado de Ronquerolle; e jurando não amar no mundo mais ninguem senão a elle. IX _Drama sangrento_ M.me William, se bem que se entregasse a uma activa espionagem, não podia penetrar nos segredos da vida privada da bella Carlota. Dispunha-se ella a organisar uma espionagem especial e astuciosa, quando uma manhã recebeu um aviso muito secco, pelo qual era convidada a apresentar-se das 8 ás 10 horas na repartição do sr. prefeito da policia. Desconcertou-se, e estremeceu, á vista d'esse papel impresso e com o timbre da Prefeitura. No emtanto resolveu não se preoccupar com essa nota inesperada e logo que chegou o dia em que o prefeito da policia a esperava no seu gabinete, conforme o aviso que lhe enviara, M.me William tomou um trem e fez-se conduzir para a Prefeitura. Apezar da sua ousadia e da sua depravação não se sentia muito tranquilla ao subir as escadas d'aquelle edificio policial. Tinha a pezar-lhe na consciencia uma serie de acções más, que suppunha terem sido descobertas, e achava singular que a policia viesse metter o nariz nos seus negocios. Esperou uma bôa meia hora n'uma ante-camara, em companhia de muitas personagens de apparencia suspeita e de olhar equivoco, sem duvida, como ella, chamadas ali, para receberem qualquer salutar reprimenda. Por fim um empregado chamou em voz alta: «Madame William»! Esta ergueu-se rapidamente como se lhe tivessem dado uma picada de alfinete, e passou a um gabinete onde esperou apenas um instante. Bem depressa um homem novo ainda appareceu por uma porta em que ella não havia reparado. --Meu caro senhor, exclamou logo ella, é extraordinario! Ha sem duvida um engano, um lamentavel equivoco. Não comprehendo que a policia me faça comparecer aqui, obrigando-me a... E ia proseguir n'aquella cadeia de protestos ou lamentações, quando o individuo que se achava na sua presença, grave como uma sentença de morte, lhe fez signal para se sentar, sem dar a menor attenção ás suas palavras. --Vós sois madame William, disse elle; madame William do «boulevard» Malesherbes; não é assim? --Effectivamente, respondeu a criminosa mulher. --Está bem, accrescentou o empregado da policia, mantendo a sua linha de serenidade e firmeza, tenho ordem de vos participar que se continuardes a fazer por mais tempo concorrencia á Prefeitura de policia, vêr-nos-hêmos obrigados a reconduzir-vos á fronteira. M.me William quiz ainda balbuciar algumas explicações, e tentou ainda enternecer o empregado, que falava em nome do prefeito da policia. Mas foi trabalho perdido. O homem não se desmanchou e disse-lhe ainda: --Madame, sabemos tudo. Não viestes aqui para fazer phrases sentimentaes, mas para receber uma advertencia. Essa advertencia já vol-a dei. Fazei por não a esquecerdes. E, como M.me William se erguesse, o homem accrescentou ainda, pondo a mão sobre um masso de papeis. --Madame, estão aqui documentos que vos dizem respeito. Como vêdes o masso é bastante volumoso. Devo prevenir-vos de que estaes sob a vigilancia da nossa policia e que ella vale bem mais de que a vossa. M.me William regressou á sua habitação fortemente impressionada com o que se passára. Não se entendia já dentro dos acontecimentos. Teve um verdadeiro ataque de nervos e n'esse mesmo dia escreveu ao barão de Quérelles, pedindo-lhe para ir vêl-a sem demora. A criminosa via bem que a Prefeitura de policia estava ao corrente das suas pequenas intrigas, mas não soube explicar como tinham esperado tanto tempo para a advertirem de que tivesse cuidado nos seus «negocios». Havia annos que ella intrigava a sociedade parisiense, e sempre a tinham deixado «trabalhar» á vontade. Mas apenas dirigira as suas baterias contra M.me de la Tournelle logo a policia intervinha no caso. Realmente a maldita Prefeitura queria tirar-lhe o pão da bocca. Afinal, pensava M.me William, aquelle trabalho a que ella se entregava era como outro qualquer; era um meio de ganhar a vida «honestamente». O que se tinha passado, perguntará o leitor, para que a policia se intromettesse no assumpto? Uma coisa muito simples. Ronquerolle, que velava sobre a sua amante, como uma mãe vela pelo seu filho, havia tido a suspeita de que a marqueza estava ameaçada d'um grande perigo; e redobrando de vigilancia, havia sabido da existencia de M.me William. Entretanto prevenira o prefeito da policia, e como este receava os ataques na Camara, do joven deputado, déra immediatamente as ordens mais severas relativamente á aranha ingleza tão compromettedôra. E foi assim que M.me de la Tournelle, sem o saber, foi desembaraçada d'uma infame espionagem que poderia ter trazido as mais deploraveis consequencias. O marquez, porém, começava a sentir algumas suspeitas. Era tão desdenhosamente tratado por sua esposa de cada vez que tentava a sua intimidade, que acabou por perguntar a si proprio se a politica seria a causa unica da repulsão que a marqueza por elle demonstrava. E nunca a bella Carlota fôra mais attrahente e digna de ser adorada. Vestia toileites encantadoras, estonteantes; apparecia nos bailes mais aristocraticos de Saint-Germain, não faltava ás sextas-feiras da Opera, nem a uma unica quinta-feira de Comedie; e viam-n'a em todas as interessantes sessões parlamentares. Passeava tambem no Bois, nos dias e nas horas em que as grandes elegantes da vida parisiense vêem ali apresentar os seus maravilhosos encantos e as suas deliciosas frivolidades. Nas secções mundanas dos jornaes, falava-se da marqueza de la Tournelle nos termos os mais elogiosos; era ali citada como uma das rainhas do bom tom e da verdadeira elegancia, e dava-se-lhe o estandarte da belleza no batalhão das formosas louras. A sua amiga, M.me de Fleurus, era rainha na côrte das morenas. Esta possuia um particular encanto, que constava de bem pouco, mas que muitas mulheres desejariam possuir. M.me de Fleurus tinha o labio superior ligeiramente ensombrado, por um adoravel e quasi imperceptivel buçosinho. --É este o privilegio de nós outras as morenas, dizia ella algumas vezes sorrindo, para M.me de la Tournelle. E devemos tirar todo o partido possivel do que a natureza nos concedeu. Era para fazer o orgulho do seu amante que a marqueza apparecia constantemente nas festas e nos logares de prazer da sociedade parisiense. Ella bem sabia como os homens mesmo os menos vaidosos, mesmo os mais fortes e os mais incorruptiveis, se sentem felizes de ouvir falar nos encantos, na elegancia, e na belleza da mulher a quem amam. Ronquerolle, com effeito estava louco de felicidade. Não era só a sua vaidade que se achava plenamente satisfeita, era tambem, o seu orgulho. Quando percorria com a vista as secções elegantes do «Figaro» ou do «Gaulois», onde se falava da sua amante, elle sentia-se disposto a abraçar o mundo inteiro, e teria querido conhecer os «reporters» que haviam redigido essas noticias tão simples, mas para elle tão encantadoras, afim de lhes offerecer opiparos jantares na «Maison d'Or», em que o Champagne corresse a rôdo. Tambem o marquez de la Tournelle lia essas noticias dos jornaes onde se falava de sua mulher como d'uma maravilha de graça e de seducção. Esses elogios despertavam n'elle a paixão d'outros tempos. E tornava-se a sua paixão mais ardente que a d'um rapaz. E desejava sua propria esposa, como se inveja a mulher d'um outro. Passavam-lhe por deante dos olhos sonhos voluptuosos, desejos insaciaveis e soffria na sua terrivel intensidade o tão falado supplicio de Tantalo. O divino licôr mostrava-se deante dos seus labios febris, mas o marquez não podia mitigar a sêde que o devorava. E não tentava sequer aproximar o calice que brilhava como faiscas de diamantes. Soffria em silencio, e a sua dôr accumulava-se, como a agua d'uma corrente que cae no fundo d'um precipicio. Se elle fôra verdadeiramente um homem, se elle tivera a energia moral que quebra os obstaculos e consegue os seus fins, o marquez de la Tournelle teria falado a sua mulher n'um tom que não permittiria a replica, e teria arrombado sem difficuldade a porta do quarto de dormir onde a marqueza se encerrava pretextando a fadiga ou o arranjo da sua toilette. É verdade que se elle tivesse sido capaz de tal procedimento, que indicam o dominador, o conquistador, a marqueza não lhe teria jámais fechado a porta; viria mesmo abril-a ao vencedor, e elle teria entrado na fortaleza com a serenidade e a alegria do triumpho. A mulher ama a força e despreza ou pelo menos sente piedade pela fraqueza. É feliz em sentir-se martyrisada, não por um poder brutal, feroz ou louco, mas por uma força intelligente, bella e harmoniosa. O papel d'um homem é na acção o que o da mulher é pela graciosidaoe. Para M.me de la Tournelle o homem de acção era Ronquerolle; com elle sentia-se submettida pela unica supremacia que sabia reconhecer, a do talento, a d'um grande caracter, a d'uma grande alma. Assim ella estava ligada ao joven republicano por uma grande ternura cada vez mais solida, augmentando dia a dia pela força adquirida e pelo encanto da recordação. O marquez estava preso da maior angustia. Uma noite, soffria com tal violencia, que, como machinalmente, invadiu os aposentos de sua esposa. Ella acabava de sahir. O seu quarto de dormir, o seu «boudoir», o seu gabinete de toilette estavam saturados de perfumes. Reinava ali a deliciosa desordem que deixa uma mulher do grande mundo, quando acaba de se preparar para ir a um baile, a um theatro, ou a uma entrevista de amôr. Estonteado por esses perfumes capitosos, por todos esses objectos que concorrem para os attractivos d'uma mulher, o senhor de la Tournelle cahiu sobre uma poltrona, e experimentou um sentimento de desespero impossivel de descrevêr. Uma extranha recordação invadiu todo o seu sêr, e lagrimas ardentes queimaram as suas palpebras. No «boudoir», viu elle o pequeno cofre que a marqueza trazia sempre comsigo nas suas viagens, e nas suas mudanças de Paris para Saint-Martin e de Saint-Martin para Paris. Acudiu-lhe á mente a ideia de o abrir. Veiu até junto do cofre e tentou erguer-lhe a tampa. O cofre estava fechado á chave. --É singular! disse o marquez. Porquê este mysterio?! E o seu ávido olhar envolvia o elegante e pequeno cofre. Poz-se a sacudil-o. Nenhum som se fez ouvir. Então a colera atravessou o coração d'aquelle desgraçado homem. Tomou o cofre entre as duas mãos, acima da altura da cabeça, e lançou-o violentamente contra o marmore branco do fogão. O cofre abriu-se e duas cartas saltaram d'elle. O senhor de la Tournelle hesitou ainda um momento, antes de apanhar as cartas. Parecia-lhe que commettia uma falta, que se deshonrava entrando assim nos segredos de sua mulher, mas a angustia, de que se achava possuido, lançava-o de encontro ás catastrophes. Com mão tremula, abriu uma das cartas, reconhecendo que ella continha apenas alguns versos, e respirou. A julgar pelo amarellado da tinta, havia já bastante tempo que esses versos tinham sido escriptos. Olhou para a assignatura: «Maximo Ronquerolle». --O quê, pensou elle, o nome d'esse homem! Mas é uma infamia! Oh que fatalidade! A outra carta não continha assignatura. Era escripta mais recentemente mas a lettra era a mesma que a da poesia. Á medida que proseguia na leitura o marquez sentia como que um punhal a atravessar-lhe o coração. Comprehendeu emfim todo o seu infortunio. Sua mulher tinha um amante e esse amante era um republicano, e esse republicano era o seu rival politico, o seu implacavel inimigo, aquelle a quem tinham por habito chamar o cidadão Ronquerolle. As duas cartas que haviam saltado do cofre eram as unicas que Ronquerolle tinha enviado á sua amante. Os versos datavam de longe, eram a sua primeira expressão de amôr. A outra missiva tinha-a elle escripto no proprio dia da sua eleição, após o apuramento do escrutinio d'onde o seu nome sahira victorioso. A carta dizia: «Mulher adorada, devo-vos uma parte do meu triumpho. Sêde bemdita, pois haveis secundado os meus esforços, tendo a coragem de me sacrificardes os preconceitos da vossa raça, e a vossa posição. Que hei de eu fazer para chegar até á altura do vosso amôr, que se affirma tão poderosamente»! E mais adeante lia-se: «Que bello destino antevejo, para ti e para mim, deliciosa amante! Ninguem saberá que nos amâmos, ninguem advinhará o segredo da nossa paixão... Amar-nos-hêmos, adorar-nos-hêmos por nós mesmos, e não em obdiencia a tôlas convenções sociaes, não por nos conformarmos com pequenas cousas ou interesses pueris!» A leitura dos versos e da carta de Ronquerolle foi um martyrio para o infeliz marquez de la Tournelle. Pela primeira vez na sua vida esse aristocrata de nascimento, esse espirito fraco, comprehendêra de quanta magia dispunha sua mulher. E sentiu um duplo soffrimento reconhecendo, que nunca tivera nem podia ter aos olhos da marqueza esse prestigio secreto, admiravel, que faz as verdadeiras conquistas do amôr. Muitas vezes Ronquerolle tinha aconselhado á sua amante que queimasse os seus versos e muito principalmente a sua longa carta de amôr. Ella sempre o promettera fazer mas jámais tivera coragem para cumprir a sua promessa. Essas lettras do amante eram para ella deliciosas recordações do inicio dos seus amôres, e sentia uma extranha voluptuosidade em relêl-as. É tão agradavel conservar os objectos que hão acompanhado o nascer e o desenvolver d'uma paixão sincera! As palavras escriptas pela pessôa amada, quer sejam receosas, prudentes, conselheiras ou loucas e irreflectidas; as pequenas lembranças ou recordações, um annel um lenço, um livro; uma simples flôr que secca mas que assim se conserva durante muitos annos, tudo, tudo, mesmo na sua pequenez e na sua apparente insignificancia, representa a mais eloquente testemunha do nosso amôr. Ha quem conserve esses pequeninos nadas, que são tudo para quem amou, e que não trocaria essas recordações d'um dia, d'uma hora, ou d'um instante feliz na sua vida, por uma perola, um diamante, uma corôa, um reino. M.me de la Tournelle não daria por um imperio aquelles dois papeis escriptos pelo seu amante. Era supersticiosa a marqueza em tudo que dizia respeito a Ronquerolle. Pensava que se desapparecessem aquellas cartas, com ellas lhe fugiria Ronquerolle. Dava a maior importancia a tudo que lhe dizia respeito; e o amante, pela sua parte, não a ligava menos a tudo que respeitasse ao seu idolo. No fundo do precioso cofre admiravelmente cinzelado jaziam as duas cartas de Ronquerolle como um thezouro de alto preço. O marquez, perante a horrivel realidade, sentiu renascer a calma no seu pensamento. --Está bem! exclamou elle com resolução. E tornou a collocar as duas cartas no cofre. O pequenino e lindo movel tinha a fechadura arrancada. Reparou o melhor que poude os estragos causados no cofre e foi pôl-o no mesmo logar onde o encontrára. Não queria que sua mulher percebesse o que se passára e principalmente que elle tinha conhecimento da sua falta. A partir d'essa noite fatal, o senhor de la Tournelle começou de apparentar uma grande tranquillidade em todas as suas palavras. Sorria com satisfação e mostrava grande prazer em offerecer aos seus creados pequenas lembranças. Quem o visse pela primeira vez e quem com elle entretivesse duas horas de conversação, teria dito: Que homem tão feliz! E, no emtanto o desgraçado estava ferido de morte. Durante um mez occupou-se em pôr os seus negocios em ordem. Todas as manhãs o seu secretario vinha trabalhar com elle. Algumas dependencias de sua casa, que estavam em más condições foram arranjadas, alguns moveis foram renovados. As propriedades do marquez receberam a sua visita e por toda a parte elle deu ordens uteis. A marqueza não sabia que pensar do procedimento de seu marido. Parecia que se preparava para emprehender uma grande viagem por mares perigosos d'onde ignorava se voltaria, e que antes da sua partida tratava de assegurar a sorte dos entes que lhe eram caros. E no emtanto o marquez não tinha no cerebro qualquer projecto definitivo. Sentia que ia dar-se um acontecimento grave, um drama sem duvida. Mas qual? Não teria podido dizêl-o. --Devo provocar, pensava elle, esse sinistro e fatidico Ronquerolle? Devo cruzar o ferro, ou trocar uma bala com elle? Para quê? É uma loucura. Elle está no seu papel. Encontrou no seu caminho uma bella mulher a quem sorriu e que se lhe entregou... Eu é que deveria ter feito com que ella me amasse. Devo matal-a, a ella, á culpada, ou pôl-a fóra de minha casa? E seria eu menos desgraçado, após essas violencias? Não, não. O golpe está dado, a minha vida está envenenada e o meu destino traçado. Não posso confiar a minha dôr a pessoa alguma sem me tornar ridiculo. Sou eu quem deve morrêr! Ah! Se eu não a amasse!... E o desgraçado sentia uma alegria amarga ao pensar na morte. Era o seu unico refugio. N'uma quinta-feira, pelas onze horas da noite, a marqueza sahiu segundo o seu costume, indo a uma «soirée» que dava a sua amiga, M.me de Fleurus. Era nos fins de maio. A estação dos bailes e recepções estava a terminar. M.me de la Tournelle via decorrer os minutos com impaciencia, para voar para os braços de Ronquerolle. Estava prestes a deixar os salões da sua amiga, quando esta se aproximou d'ella, e lhe fez signal de que precisava falar-lhe áparte, e immediatamente. M.me de Fleurus estava pallida e a sua apressada respiração denotava grande emoção. --Minha querida Carlota, disse-lhe ella; é preciso que voltes já a tua casa, e se me permittes, acompanhar-te-hei. Um creado teu acaba de trazer aqui uma triste noticia. Teu marido encontra-se muito mal... Partamos depressa. Por sua vez a marqueza se tornou pallida. Suppoz logo que uma desgraça irreparavel acabava de se passar. Quando as duas amigas chegaram ao palacio de Tournelle ia ali uma confusão enorme. Á porta encontrava-se immensa gente e os creados, muito afflictos, corriam d'um lado para o outro falando e gesticulando. Um commissario de policia, acompanhado do seu secretario e de muitos agentes descia pela escadaria principal. Ao vêr a marqueza e madame de Fleurus, o commissario descobriu-se respeitosamente e ahi mesmo participou a M.me de la Tournelle o que se passára. Varios tiros de revolver se tinham ouvido no palacete e um creado do marquez tinha ido procural-o a elle commissario. Com o mesmo creado entrára nos aposentos do sr. de Tournelle a quem encontrára morto sobre um tapete, no seu quarto de dormir. Tinha-se suicidado; não restava duvida. Na manhã seguinte, Ronquerolle, que em vão esperára pela amante até ás 2 horas, ao pegar no «Figaro», deparou com estas linhas: «Á ultima hora acabâmos de receber uma triste noticia: «O sr. marquez Sergio de Tournelle acaba de fallecer. Tinha quarenta e cinco annos, era um leal defensor da causa da ordem, e um amigo dedicado dos principes da casa de França. O sr. de Tournelle tinha sido, ao que parece, fortemente affectado pelo triumpho do partido republicano no seu circulo e pelo cheque soffrido nas ultimas eleições. A sua morte é atiribuida á ruptura d'uma aneurisma. A marqueza está inconsolavel. Todos os representantes do partido conservador lhe enviam com os seus mais sinceros sentimentos de condolencia, as suas respeitosas homenagens.» --Diabo! exclamou Ronquerolle, relendo ainda a noticia. Oxalá que esta desgraça não venha a recahir tambem sobre ella! A morte do marquez de Tournelle fez grande ruido e foi vivamente commentada, menos por elle talvez, que por causa, da marqueza, que era uma das senhoras mais conhecidas de mundo parisiense. Nenhum jornal falou em suicidio, e o infortunado marquez passou aos olhos do publico por ter succumbido á ruptura d'uma aneurisma, como o «Figaro», habilmente tinha noticiado. A policia conhecendo a verdade não guardou menos o segredo. Os intimos d'alguma cousa desconfiaram, assim como os creados, mas precisavam da marqueza e calaram-se. Ronquerolle soube pela marqueza de tudo o que se passára. Quando os dois amantes se encontraram após a catastrophe e depois dos funeraes do marquez, estavam inquietos e tremendo. Abraçaram-se fechando os olhos, e conservaram-se assim algum tempo sem proferirem uma palavra. --Saberia elle da nossa ligação? perguntou, por fim, Ronquerolle. «Porque se matou elle? «Teremos sido nós os culpados d'essa morte? --Não, respondeu M.me de la Tournelle. Meu marido de cousa alguma suspeitou. --Estás certa d'isso? interrompeu o deputado republicano. --Sim, estou certa, replicou a bella Carlota. Ronquerolle respirou mais á vontade. Elle não explicava o suicidio do marquez senão pela descoberta da verdade. M.me de Tournelle era sincera, nas suas affirmações. Antes de se matar seu marido tinha-lhe escripto uma longa carta que ella encontrára sobre a sua meza de trabalho. Essa carta não encerrava a menor reprehensão, qualquer allusão que a podesse ferir. Pelo contrario, era ella uma expressão do mais violento amôr. O desespero que essa carta manifestava parecia ter por causa unica motivos politicos. Lendo essa carta d'um homem que ao escrevêl-a resolvêra já fazer saltar os miolos, Ronquerolle demonstrára um sentimento de piedade. --O desgraçado, exclamou elle, não estava á altura da sua missão. Comprehendeu-o, por fim, e a vida tornou-se-lhe um pesado fardo. Que descance em paz. A marqueza nunca suppoz que seu marido tinha lido as cartas de Ronquerolle, e que se havia suicidado louco de desespero, comprehendendo que nunca seria amado por ella. Atribuiu realmente aquelle suicidio, como outras pessoas que d'elle tiveram conhecimento, aos grandes aborrecimentos que lhe tinha causado a sua derrota politica. Carlota de la Tournelle reconheceu um dia que o seu pequeno cofre estava partido, mas acreditou que a sua creada particular o tinha deixado cahir, e como encontrára dentro d'elle a poesia e a carta de Ronquerolle, que tanto amava, nunca lhe veiu á ideia que se passára em sua casa um grande drama, que determinára a morte d'um homem. _Epilogo_ Um anno é decorrido. As rosas de maio perfumam os jardins. Na sociedade parisiense não se fala d'outra coisa, senão do casamento da marqueza de la Tournelle com o deputado Ronquerolle. O bairro de Saint-Germain considéra como uma escandalosa união a d'uma mulher da sua sociedade com o joven tribuno republicano, o arrojado orador, o inimigo do throno e do altar. Se bem que os novos esposos desejassem que o seu casamento fosse o menos conhecido possivel, todos os jornaes n'elle falaram. A fama, a gloria, ia procurar Ronquerolle, mesmo quando elle desejaria occultar-se na sombra e que em volta do seu nome se fizesse o maior silencio. Quando o bispo de Dijon teve conhecimento d'essa união nos seus labios brincou um sorriso singular. Monsenhor acabava de almoçar, e saboreava uma chavena de café tomado a pequenos golos, no seu gabinete de trabalho. O seu secretario estava perto d'elle acompanhando-o no saborear do fino Moka. --Recordaes-vos, meu caro Duboeuf, disse o bispo, d'aquelle banquete que ha tres annos nos offereceu esse pobre marquez de la Tournelle? Nós ali estivemos os dois. --Sim, monsenhor, bem me recordo, respondeu o vigario. A marqueza não assistiu a esse banquete politico. --E porque não assistiu ao jantar a formosissima Carlota? E o bispo de Dijon fazia esta pergunta com um ar trocista e malicioso e em voz quasi afflautada. --O cidadão Ronquerolle, poderia talvez responder-vos monsenhor, retorquiu o padre, em voz baixa, acariciando o queixo com a mão esquerda e fazendo os olhos mais pequenos, n'um grande ar de espertalhão. O prelado ficou um momento pensativo. Depois enchendo um calice com finissimo licôr offereceu-o ao seu interlocutor e tomou um outro calice para si. Os dois homens tocaram amigavelmente os copos, trocando uma saude, e levaram-os em seguida aos labios. --Pobre marquez de la Tournelle! disse o bispo. --Era um fraco de espirito, accrescentou o vigario. Deve pertencer-lhe o reino dos céus. --E ella, a marqueza? disse o bispo piscando o olho esquerdo. --Ella! replicou o travesso vigario, é uma deusa do Olympo, que desceu até nós. Emquanto esta scena se passava no gabinete de trabalho do bispo de Dijon, uma outra scena não menos interessante se dava em Paris entre Ronquerolle e os seus tres amigos. Tinham n'essa manhã almoçado juntos em casa do deputado republicano, e depois como o tempo estava lindo, a temperatura agradavel e o sol cheio de belleza e alegria, tinham ido passear ao jardim do Luxemburgo. Haviam posto de parte a politica, e evocavam as recordações dos primeiros annos da sua mocidade na grande Paris. Instinctivamente, como n'outros tempos, se dirigiram para o Café Tabourey, onde juntos tinham feito tantos projectos de gloria, de amôr e de ambição. Lá estava ainda, esse café attrahente, esse cantinho parisiense tão propicio aos homens de lettras e aos poetas. Reconheceram a sua meza preferida e a ella se instalaram. Os mesmos freguezes liam os jornaes e as revistas. O aparador, ao centro da casa, lá estava, como sempre, carregado de garrafas com cerveja e de copos. A menina Amelia Dufer, a filha do dono do estabelecimento estava um pouco mais nutrida. Annunciava-se o seu casamento para breve e seu pae tratava de trespassar o café. A sua fortuna estava feita, os filhos estavam empregados ou estabelecidos e elle precisava descançar. A edade assim lh'o exigia. Ronquerolle e os seus amigos entregaram-se ás suas recordações. E cheios de melancholia reconheciam quanto é verdadeira a phrase do poeta: «Ha lagrimas nos objectos que nos rodeiam.» Ali encontravam a sua inquieta e desgraçada juventude, os dias da adversidade; quando eram desconhecidos, sem fortuna, sem auxilio, sem fama, tendo apenas por unica arma para as luctas da vida o seu indomavel orgulho. Que de noites de invernia elles tinham passado, ali, encostados áquella meza, sonhando com o futuro, escrevendo artigos, compondo versos, imaginando romances, escutando a voz de Ronquerolle, que muitas vezes a todos reanimava e que d'outras se desesperava sentindo-se tambem vencido pela adversidade. Como parecia que esse tempo já ia longe! --Como estamos tristes e sombrios! disse Maupertuis. Sacudâmos os nervos, vamos. «Bebamos um ponche em honra das bellas raparigas que nos saltavam ao pescoço e nos beijavam apaixonadamente nos nossos dias de miseria! «Merecem bem que as recordêmos, essas loucas, mas lindas e alegres companheiras dos tempos que não voltam.» Ronquerolle estava mais triste que os seus amigos. Calava-se e absorvia-se n'um secreto pensamento. Branche comprehendeu o motivo da sua profunda tristeza. Fez um signal rapido aos seus amigos e a conversação não proseguiu no caminho para onde a desviára Maupertuis. Depois d'alguns minutos de silencio, Ronquerolle ergueu-se e disse para os seus amigos: --Acompanhem-me. E encaminhou-os para o cemiterio do Père-Lachaise, até junto do tumulo da infeliz Emilia. O excellente rapaz não podia evocar os dias da sua primeira mocidade, sem pensar na pequenina e gentil creatura que tanto o tinha amado, que morrêra por elle. Quando essa lembrança lhe invadia o cerebro, o coração soffria e Ronquerolle sentia uma dolorosa tristeza que o acabrunhava. Avançou sósinho até ao tumulo da sua amante. Os seus amigos conservaram-se respeitosamente a alguma distancia. Ronquerolle curvou-se ante o marmore da lousa funeraria e descoberto ali se conservou algum tempo, como que petrificado. --Pobre creança, exclamou elle com toda a sua alma, tu foste colhida pela morte ao principiares a viagem tormentosa da vida. «A primeira dôr quebrou o teu debil coração; os rigôres do destino hão encontrado em ti uma presa facil. «Como tu me adoraste! «Ah! Tinhas razão quando no teu leito de agonia, me disseste que eu nunca te poderia esquecer. «Tu foste a poesia e a flôr da minha juventude e viverás eternamente no meu pensamento.» Depois tirando um lapis da algibeira escreveu estes versos sobre o marmore da lapide tumular: Appareces-me sempre, oh candida Visão! E choro-te saudoso, oh minha Primavera! Se não soffrêra assim seria ingratidão. Furtar-te á morte, amôr, eu bem quizéra, Mas sempre viverás na minha adoração. Muito tempo ainda decorreu. Branche, Didier e Maupertuis, começaram a inquietar-se. --É preciso arrancal-o d'aqui, disse Maupertuis; a dôr pode matal-o. Branche aproximou-se e tomando o seu amigo por um braço, afastou-o d'ali. Ronquerolle deixou-se conduzir como uma creança. Pararam depois um instante nas immediações do Père-Lachaise e d'ali contemplaram Paris que se desenrolava deante d'elles. --Vamos, disse Maupertuis, que era um homem de energia, desçâmos ao turbilhão, e esqueçâmos as miserias d'este mundo, proseguindo na nossa obra de justiça... A nós a fortuna e a gloria! A nós a vida! Ronquerolle apertou a mão do seu companheiro de luctas e sorriu tristemente. Depois os quatro amigos seguiram no seu caminho e desappareceram na immensa cidade, na grande capital. .......................................................................... Em cada anno, pelo começo do mez de agôsto, se vê chegar ao lago de Côme um par que se instala n'uma deliciosa vivenda, em meio da verdura e de cascatas emolduradas de flôres. Dir-se-hia que se trata de dois namorados que fugiram de casa de seus paes, e que ali se occultam, para furtarem a sua alegria e o seu amôr a olhares indiscretos. Nunca dois entes mais sympathicos pela harmonia da sua mocidade, appareceram por aquelles logares. Quando elles passeiam ao longo do lago, volta-se a gente para os admirar na sua encantadora marcha. Sente-se, advinha-se, o maravilhoso accordo das suas almas. Uma aureola de voluptuosidade os envolve; e reconhece-se que hão conquistado a unica felicidade que existe na terra: Adoram-se! Saudae essas felizes creaturas! É a marqueza de la Tournelle que passa pelo braço do seu adorado e apaixonado marido, o deputado Ronquerolle. FIM *** End of this LibraryBlog Digital Book "Amôres d'um deputado" *** Copyright 2023 LibraryBlog. All rights reserved.