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Title: Contos do Norte Author: Carvalho, João Marques de, 1866-1910 Language: Portuguese As this book started as an ASCII text book there are no pictures available. *** Start of this LibraryBlog Digital Book "Contos do Norte" *** of public domain material from Google Book Search) J. Marques de Carvalho Contos do Norte Belem do Pará Editor--Alfredo Augusto Silva--Editor TYPOGRAPHIA ELZEVIRIANA 1907 Obras de MARQUES de CARVALHO IX CONTOS DO NORTE DO MESMO AUCTOR O Sonho do Monarcha Opusculo Lavas Opusculo Paulino de Brito Opusculo Hortencia 1 volume O Livro de Judith 1 volume Contos Paraenses 1 volume Entre as nymphéas 1 volume A Carteira d'um diplomata (1.ª serie) 1 volume EM PREPARAÇÃO Um livro alegre J. Marques de Carvalho Contos do Norte 2.ª EDIÇÃO Belem do Pará Editor--Alfredo Augusto Silva--Editor TYPOGRAPHIA ELZEVIRIANA 1907 A JOSÉ MARQUES BRAGA UMA HOMENAGEM _Meu caro Marques Braga_, Este livro é, na quasi totalidade, uma homenagem ao povo paraense. O escriptor que traçou os contos seguintes não occulta o pendor do seu espirito pela vida seminomade dos conterraneos, que tão sobriamente vegetam no coração das florestas. Viajar sempre com elles pelos buliçosos rios amazonicos, extendido no paneiro de popa da embarcação indigena, abertas as velas ao sopro galerno do vivificante marajoara, seria a realisação d'um sonho,--bello sonho de retrocesso á existencia primitiva, se quizerem, mas de intensa consolação moral. Quando o caboclo, armado do longo varejão por elle mesmo talhado no matto, impelle a canôa para o leito da correnteza, fazendo-se ao largo, não pensem que leva cuidados no espirito ou maguas no coração: a _cidade_ é para elle um agrupamento complexo de sêres transviados, o antro onde formigam incomprehensiveis falsificações da natureza. Elle afasta-se contente com o cigarro ao canto da bôcca, uma jucunda satisfacção nos recessos da alma. Partindo para o _sitio_, para a roça, o caboclo é o triumphador das selvas, o zombador dos preconceitos, resignado ás inclemencias dos homens,--que as da natureza são-lhe familiares e já insensiveis talvez. E quando, ao meio do rio, desdobra as velas á viração, inunda-se-lhe o cerebro de uma ineffavel volupia, todo o encanto da liberdade dilue-se no seu espirito, deliciosamente infiltrado. Bastam-lhe os horisontes alcançados com o olhar tranquillo. O vapor avistado ao longe, o qual, repleto de passageiros, attinge-o em poucas voltas de helice e o ultrapassa rapidamente,--pensaes acaso que o incommoda ou lhe provoca rebelliões de impotente desespero? O caboclo despreza esses recursos da navegação dos brancos. O que o enthusiasma é justamente a sua canôa, onde foi creado, onde seus filhos vieram á vida e onde á luz do sol paraense fechou os olhos á velha mulher engelhada e querida, que o amammentara com o seu leite maternal. Esse batelzinho, tão fragil e tão veleiro, é o enlevo das suas contemplações de fatalista, tugurio e vehiculo, ganha-pão e leito de amores simples. Toda a singeleza da vida, com pequenas aspirações e nenhum rancor, ali se condensa entre as pranchas do casco e os pannos das vélas,--mortalha e tumba, em caso de necessidade. A canôa é o caboclo, chova ou faça sol, cantem nas ramarias da margem as aves da floresta ou regouguem sobre o pequeno mastro as imprecações do temporal: acolhe-os o caboclo com egual socego de alma, a mesma indifferente resignação, que é o symptoma do mais valoroso espirito resistente e da mais acrisolada bondade nativa. A agua é a grande fascinadora, na Amazonia. Existirão realmente as yaras? Teu velho amigo, MARQUES DE CARVALHO. REPRESALIAS REPRESALIAS Não muito distante de Salinas, a dois passos do mar,--o caboclo Antonio edificara a sua palhoça. A areia das dunas extendia-se-lhe á porta, corria em declive para a agua, formando alaranjado estendal, da côr da madresylva morena. Mas a floresta, que entestava com a habitação, ensombrava todo o recinto. Galhos seculares espalhavam-se em docel por cima do ubim do tecto. Ali, quando o vento do largo sacudia o arvoredo, em noites de plenílunio, o canto do sabiá tinha modulações saudosissimas, como se fôra cantilena de creanças. Maré cheia, poucos passos separavam a porta da cabana do logar onde a areia sorvia o rendilhado das escumas. E do copiar do Antonio ouvia-se então perfeitamente o embate do marulho no flanco da canôa atada ao velho poste de acapú, que uma cruz rematava. * * * * * Havia muito que ali habitavam Antonio e o filho. Elles proprios tinham construido a casa de sapé, com os recursos encontrados na matta. D'antes, moravam em Salinas, onde o caboclo era pescador e dos mais afreguezados. Um drama terrivel, porém, induzira-os a deixar a localidade, procurando no silencio e isolamento da costa despovoada o consolo de uma grande dôr commum. Uma tarde de temporal, a companheira de Antonio tivera a velleidade de tomar banho no oceano. Montanhas de agua corriam do largo, urravam furiosas ao chegar á praia, no desespero com que rebentavam na areia. O ceu todo estava negro, acolchoado de nuvens: coriscos fuzilavam incessantemente e a chuva, levada pela ventania, transformava-se em nevoeiro subtil e frio. Vizinhos, que tinham visto a mulher encaminhar-se para o mar, perguntaram-lhe se estava louca. Ella, porém, dissera que velhos amigos não brigam. --E sei nadar muito bem, concluiu, senhora de si propria. Equivocara-se. Comquanto não se afastasse senão uns quarenta ou cincoenta metros, uma onda maior enlaçou-a fragorosa, suspendeu-a como um argueiro, levou-a para longe. De terra viram-n'a erguida na crista da vaga. Debatia-se valente, bracejava com energia, em direcção á praia. Mas um grito resoou no grupo de espectadores transidos. Antonio, palpitante de pavor, apontava para o mar. Ao longe, em direcção á cabocla, levantara-se outra onda enorme, que vinha correndo vertiginosamente. Comprehendeu-o a rapariga: redobrou de esforços, afim de alcançar o littoral antes que a formidavel serrania d'agua a envolvesse. Esta, no entanto, corria célere, cachoeirando. E, n'um momento, alcançou a infeliz, arrastou-a para a praia, onde rebentou n'um estrepito medonho. Toda a gente, que a curiosidade fizera acercar-se até á agua, tinha fugido, gritando desesperada. Ao voltarem-se, quebrara-se a vaga. Mas a pobre cabocla fôra cuspida na areia com violencia, jazia morta, o peito pisado, um fio de sangue escorrendo da bocca entreaberta. Correu Antonio a tiral-a para a terra, beijando-a com frenesi. Não podia crer que houvesse morrido a mãe do seu filho. Quando, após instantes de vãos esforços para a reanimar, comprehendeu afinal a terrivel desgraça, escapou-se-lhe do peito um grito rouco de angustia e o desgraçado desmaiou, caindo de bruços sobre o cadaver. * * * * * Teve o caboclo profundo sentimento. E não perdoou ao mar,--ao mar que elle tanto amara,--a infidelidade inesperada, a incrivel e covarde traição. Reuniu os amigos, enterrou o cadaver no cemiterio da villa. Quando passava o feretro na praia, ao dia seguinte, ainda o mar sacudia as vagas alterosas, sob o ceu pardacento. Regressando a casa, tomara Antonio a resolução de retirar-se de Salinas. Assim fez, de facto: em menos de uma semana vendeu os poucos moveis, entrouxou a roupa, alguns objectos necessarios á alimentação e uma espingarda; e, embarcando na canôa com o filho, levantou ferro, içou a vela e partiu. Nem elle mesmo sabia para onde devera ir. Deixou-se levar pelo vento, prolongando a costa. Ao cahir da tarde, como avistasse uma enseada, aportou;--saltaram a terra. Essa noite, dormiram-n'a ao ar livre. Mas o caboclo, deixando a embarcação, fechara o punho erguido, proferindo uma ameaça ao mar. Rompera este o pacto tacito que entre ambos existira, roubara-lhe a companheira idolatrada. Pois ali mesmo jurava, invocando o testemunho das estrellas e a memoria da inolvidavel ausente,--que havia de vingar-se. Elle e o filho nada mais fariam do que investigar o horisonte, buscando surprehender qualquer signal, pedindo soccorro, das embarcações que naufragassem. E haviam de roubar ao mar tantas quantas victimas podessem,--tantas vidas quantas eram as penas que lhes ralavam o coração. Essa seria a vingança d'um marido e d'um filho inconsolaveis. * * * * * Annos fazia que ali moravam, na casa por elles proprios construida com os materiaes tirados á floresta proxima. Cada noite, vinham para fóra, extendiam-se na areia, silenciosos e pensativos, esquadrinhando o largo com o olhar affeito á escuridão. Desesperava-os, entretanto, a monotonia da existencia. Parece que a sorte zombava-lhes das intenções. Jamais haviam podido realizar o intento da primeira victoria,--o almejado triumpho, que embriagasse como a cachaça. Calmo ordinariamente, o mar enorme tinha uma impassibilidade irritante. Barcos de pescadores deslisavam ao longe, similhavam grandes gaivotas brancas, esfrolando a vaga com as azas. Vapores passavam também, ora os costeiros, ora os vastos paquetes do sul:--uma navegação precisa, em dias determinados, quasi á mesma hora. * * * * * Uma noite, porém, a tempestade, que desde a tardinha ribombara ao longe, approximou-se dominadoramente. A cabana dos caboclos era a cada instante illuminada pelo clarão dos relampagos, estremecia na vibração de cavernosos trovões. A espaços, segundos após uma fulguração mais accentuada, retinia o raio, na matta vizinha. E os dois irreconciliaveis inimigos do oceano entreolhavam-se mudos, com uma pequena chamma de esperança rebrilhando ao fundo das pupillas irrequietas. Seria aquella a noite reservada para a satisfacção da primeira desforra? O coração dizia-lhes que sim. De subito, no silencio relativo que se estabelecera entre um relampago e um trovão, pareceu a Antonio ouvir um grito longinquo,--som quasi imperceptivel, talvez phantasia do seu vehemente desejo. --Não ouviste? perguntou baixinho, n'um offego. O rapazito conservou-se calado, mas parecia prestar attenção. --Ha de ser coruja, explicou ao cabo d'um instante. Mas outro grito ouviu-se então, d'esta feita mais accentuado. Não havia duvida, alguém pedia soccorro. --É obra! exclamou Antonio. --Parêsque sim, disse o rapaz. E, levantando-se, correram para fóra. * * * * * Ahi, a chuva caía violentamente. Negro o ceu, negro o mar,--tornavam-se a cada instante d'uma lividez violacea, com o lampejo dos relampagos. Ondas debatiam-se em tropel, vinham quebrar-se na praia com extranha furia. Mas os mais pavorosos estrondos eram os da insondavel floresta virgem, sinistro consorcio do cair da agua nas ramarias, do soluço dos galhos agitados e dos gritos indefinidos de toda a sorte de animaes surprehendidos pela tormenta, desalojados dos poisos, atacados nas tocas esconsas. No primeiro momento, nada viram os dois caboclos; cegava-os deslumbradoramente o palpitar dos relampagos. Comtudo, seus olhos expertos breve triumpharam das trevas ululantes. E ao cabo de curta concentração, voltados para o largo, enxergaram a pouca distancia da linha da agua um vulto negro, que ora subia a admiraveis alturas, ora desabava rapido ao seio de profundos valles movediços. Novo grito, indistincto a quem não tivesse a pratica da vida maritima, scindiu o espaço, pedindo soccorro. Não havia hesitar. Antonio, impossibilitado de cruzar a vista com o filho, tomou-lhe um braço, apertou-o nervosamente. Comprehendeu-o o rapaz. Era aquella a hora da famosa represalia! Atiraram-se os dois ao mar, despidas n'um momento as simples calças de dril azul, sem uma indecisão. Eil-os que nadam, com extraordinarios esforços, em direcção ao negro vulto oscillante além, á flôr das ondas indomaveis. Guia-os uma alegria enorme,--o enthusiasmo entôa risonhos hymnos ao fundo de suas almas singelas. Para Antonio, esse é o momento da inebriante desforra. Vae vingar-se do oceano! Vae vingar-se do oceano! --Coragem, curumim! grita ao filho, sem ser ouvido. E nadam os dois, nadam corajosos, avançando com difficuldade, mas, apezar de tudo, avançando sempre. * * * * * Chegaram emfim ao ponto desejado. Era uma pequena canôa, fundeada sem duvida antes da tormenta. Pae e filho saltaram para dentro da embarcação, quasi inteiramente alagada. Á pôpa, sobre o paneiro já tomado pela agua, estava um homem extendido. Hirto, esperou um relampago e indicou por acenos--pois falar seria inutil esforço em meio áquelle barulho macabro dos elementos--que o mastro, partido pelo raio, caíra sobre elle, quebrando-lhe uma perna. E á luz de outro relampago, demonstrou a desconfiança de que a embarcação estivesse prestes a sossobrar. Com effeito, a agua subia sempre. Já Antonio tomara-o nos braços, colhendo-o de encontro ao coração. Firmou-o mais á esquerda, gritou-lhe ao ouvido que não fizesse o menor movimento e, galgando a borda, atirou-se ao mar, seguido do rapaz. Eil-os agora que nadam jubilosa, difficultosamente para a costa. É ainda maior, se possivel, a alegria dos caboclos. Vingaram-se do inimigo, furtando-lhe uma prêza... Que ventura! Não é tarde, entretanto, para o hymno definitivo do triumpho: o mar sabe disputar-lhes a victoria, porque, emquanto a tormenta, no seu auge agora, desencandeia pelo espaço uma estrepitosa arrogancia, o oceano sacode o negro dorso, incha alterosas serranias e atira-os á direita e á esquerda, como tabocas pôdres. Antonio é valente, Antonio conhece o valor do adversario, porém não o teme: bem maior é a gloria, n'essas condições de desegualdade de forças. Está fatigadissimo, que não é pequena façanha affrontar a furia das ondas, em occasião de temporal, trazendo nos braços um corpo humano. Mas a memoria da saudosa companheira perdida em identica situação é um consolo e uma animação. Essa bemdita memoria faz o milagre de o alentar mais efficazmente do que um bom trago de canna. E o forte caboclo, sem saber ao certo a que distancia da praia se encontra, sente-se de repente atirado sobre a areia, abraçado ao seu protegido. Já está de pé, illeso. Fulge-lhe no peito illimitado contentamento. Sem olhar para traz, abaixa-se, toma nos braços a prêza roubada ao mar e parte a correr para a cabana, murmurando na ancia de precipitados offegos: --Ven... ci, ca... na... lha! Porém a lucta foi renhida e longa; mal atirou á sua propria rêde o corpo desmaiado do naufrago, caiu por terra, sem sentidos. * * * * * Voltando a si, ao amanhecer, Antonio levantou-se estremunhado. Após um esforço mental,--no primeiro instante de nada se recordara,--lembrou-se da lucta com o oceano e da sua victoriosa consequencia, a salvação de um homem. Este ahi estava, extendido na rêde, dormindo. Ouvia-o resonar compassadamente. Seu filho teria velado por ambos... O caboclo percorreu com a vista o pequeno aposento, mais illuminado pelo indeciso alvor do que pela tenue luz da candeia de andiroba, bruxoleante. Onde estaria o pequeno? foi a interrogação que fez a si proprio. Havia de ter saido... Prestou attento ouvido aos murmurios do exterior. Uma grande calma devera ter substituido o impeto desordenado da tormenta, porque o mar tinha agora ondulações regularissimas, denunciadas pelo prolongado arrastar das vagasinhas preguiçosas. A floresta jazia entorpecida, sem um silvo de passaro, como reconcentrada na volupia do grande banho da noite. Demorados minutos quedou-se assim aquelle homem, immovel no solo, junto á rêde do desconhecido. Sua attenção, affeita á vida na costa, seguia, pelos arruidos que atravessavam as paredes da cabana, o vae-vem da onda socegada. Ao cabo de longo tempo de applicação, tornou a lembrar-se do filho, que não voltara. Teria ido arriscar um tiro por perto, no matto?... Ergueu-se então Antonio, foi espreitar o rosto do naufrago, que dormia sempre, mergulhado n'um grande somno febril, com a perna assustadoramente inchada. Quando levantava a cabeça, Antonio fixou o olhar n'um ponto da parede e teve um calafrio: pendente de um prego, estava a espingarda e este facto arredava a hypothese de ter ido o pequeno á caça. Mas então, por onde andava elle? Terrivel suspeita ergueu-se-lhe ao fundo do espirito, confrangendo-lhe o coração. Se tivesse morrido?... Era impossivel! O rapaz ia voltar, com certeza. Entretanto, não ficou tranquillo, embora tratasse de distrair-se, preparando um cigarro e apagando a candeia. Lá estava um pezar desassocegado, agachado no recondito do coração. Veiu apressado para fóra. Seus olhos percorreram a praia, n'um relance: tudo deserto. Nas dunas mais proximas da floresta, a vegetação rasteira havia sido lavada e sorria na brandura do seu verde tenro. Á beira do matto, as grandes arvores retorciam immoveis os sombrios musculos nodosos, todos embebidos d'agua. E no firmamento esfumado, poucas nuvens se destacavam, tingindo-se de côr de rosa. Voltou-se Antonio para o mar. As aguas tinham um espreguiçamento suave. Do barco que naufragara á vespera nada mais se via: ou fôra a pique, ou o temporal o arrastara a qualquer ponto longinquo da costa. Signal do rapaz absolutamente não havia. Na areia, banhada pela chuva até mui tarde, tinham-se desfeito as pegadas de Antonio, recolhendo com o naufrago. Mas então, se o filho tivesse dormido na cabana e só pela manhã saísse, o chão pisado de fresco havia de indicar a direcção por elle tomada. E a verificação de que o solo estava todo liso, por egual, foi concludente para o caboclo. Duas lágrymas, ardentes quaes malaguetas, queimaram-lhe as palpebras e um soluço estrangulou-lhe na garganta a emissão de um improperio feroz. Ainda appellando para uma esperança fortuita, deitou o infeliz a correr ás tontas de um a outro lado, chamando o filho em grandes gritos. Respondiam-lhe os echos da floresta, demoradamente. E o oceano, sem perturbar-se, arrastava as ondas languidas, que formavam rendas espumosas, sobre a finissima areia da côr da madresylva morena. A subitas, estarreceu o caboclo. Além, junto á linha da agua, muito distante do sitio onde se achava, lobrigaram seus olhos de pae um vulto extranho e logo o coração bradou-lhe que era o cadaver do curumim. Antonio poz-se a correr--a voar--para o sitio a que o presentimento o compellia. * * * * * Não é um pezar o que leva esse homem no coração: é um mundo de angustias, um turbilhão de agonias. Ensopada, a areia facilita-lhe a carreira, pela resistencia que lhe offerece aos pés descalços. E cada pegada, um instante calcada no solo, fórma, bem depressa, uma pequena poça que reflecte na sua superficie, sobrepondo-os, o verde claro da vegetação das dunas e o rosado suavissimo das nuvens, tocadas de sol. Uma distancia insignificante separa-o já do vulto que tão lugubremente o attrae. E o desgraçado reconhece logo o cadaver do filho. Mais alguns passos vacillantes e Antonio cae a soluçar sobre o corpo da creança afogada. E o seu pranto, as lamentações que profere, têm menos a expressão de um desespero, do que da confissão da propria impotencia, na lucta inutil de represalias que havia travado com o oceano. UM EXGOTTADO UM EXGOTTADO O pobre Heitor foi levado á sepultura n'uma triste e chuvosa manhã de abril. Como não tivesse bens que deixassem aberta a possibilidade de um galanteio posthumo, nas folhas d'um testamento, acompanhou-o até Santa Isabel apenas o bom compadre Fernandes, o inestimavel enfermeiro nos poucos e longos dias de soffrimento. O largo circulo de seus amigos eximiu-se do incommodo da viagem a bond, desculpando-se com o mau tempo, quando, mais tarde, um ou outro defrontava com o paciente Fernandes. * * * * * Não obstante, aquelle infeliz fôra, na vida, um moirejador notavel. Toda a cidade conhecia-lhe o nome. Fizera-o á custa de muitos annos de improbo trabalho, n'uma repartição movimentada e importante. Quando fechava o serviço official, não era para casa que ia o Heitor: tomava o caminho do diario onde collaborava e que lhe devia grande parte de seus melhores exitos. Quantas noites não passou elle em claro, n'uma superexcitação agridoce, obsidiado pela idéa d'um artigo sensacional, enthusiasmado por uma nova secção, enervado na improficua procura d'um termo proprio, d'um vocabulo justo, que exacta e completamente interpretasse o seu pensamento! Mas era mais do que um jornalista, o Heitor: era um litterato de vocação. Seu anhelo mais vehemente consistia na publicação d'um livro, novella ou contos, que fôsse a definitiva consagração do seu nome de escriptor. Muito joven, fizera nas lettras uma estréa banal, quando estudante. Lançara, como tantos, um manifesto politico em verso e commettera sonetos como toda a gente os perpetra, aos 20 annos. Porém depressa lhe disse o bom senso não serem os versos o seu forte e Heitor dedicou-se á prosa. Tivera, ao principio, um estylo guindado, quasi gongorico: influencia de Camillo Castello Branco, que o impressionara violentamente. Fez-se pesquizador de vocabulos raros e tentou remoçar, com honras de neologismos, termos venerandamente archaicos. Seu criterio, entretanto, aconselhou-o com brandura a emancipar-se de alheias influencias, a mostrar-se nú ao publico, sem artificios de linguagem. Foi-lhe salutar a propria observação: a fórma tornou-se mais simples, a expressão mais singela, a idéa mais clara. Succedia que voltava alta noite do trabalho, fatigadissimo, os olhos avermelhados, o cerebro ôco e pesado; e, na vehemencia de seu amor ás lettras, assim mesmo sentava-se á mesa, a rabiscar tiras consecutivas, a esmo, com desespero. Davam-se, então, alternadamente, grandes, desencontradas luctas n'aquelle espirito. Vinham-lhe ás vezes, á lembrança do exito de um livro novo, reviviscentes enthusiasmos. O clangoroso clarim da emulação retinia-lhe aos ouvidos, animadoramente. Sentia-se Heitor capaz de grandes commettimentos, fazia projectos e planos de romances,--uma edição de luxo, á Guillaume, com gravuras artisticas, executadas em Paris. Era um dos seus sonhos mais persistentes um livro amazonico, todo cheio de vinhetas com paizagens nossas, que interpretassem, nas linhas do desenho, as perspectivas que o texto havia de pintar ainda mais eloquentemente do que o lapis. Á idéa d'essas illustrações, seu espirito alcandorava-se em grandes esperanças. Todo o corpo vibrava-lhe de emoção artistica, pregosando os applausos incondicionaes de seus conterraneos. E projectava d'uma assentada dois romances e tres ou quatro contos. Preparava-se para escrever, limpava a penna, dispunha meticulosamente o papel deante de si e... fitava o tecto, á espreita da primeira palavra, como se tivesse de agarral-a de surpresa; mas a phrase tornava-se arredia, occultava-se n'um borborinho de pensamentos e o tempo fugia, na desanimada esterilidade de Heitor. Chegavam-lhe depois á memoria as ruidosas ovações feitas a outros escriptores, a acceitação de seus livros, a popularidade de seus nomes em todo o paiz. Tentava, n'um esforço de energia, vencer a improductividade, forçar a idéa; tornava a molhar a penna, endireitava o papel: tudo era inutil. Estava escripto que nada poderia fazer. Deitava-se então, n'um desanimo, soprava a luz; ficava na escuridão da sua soledade, os olhos escancarados, com um offego de raiva a seccar-lhe a guela. Era justamente isso a sua arrelia. Uma vez deitado, tinha, logo depois, a intelligencia lucidissima: organisava as idéas, formulava phrases mentalmente, alinhava periodos inteiros. E, n'uma crispação, conhecia--presentia--que, se escrevesse assim, teria garantido o agrado publico, que é o vestibulo da immortalidade para o escriptor. Saltava ás pressas para o chão, accendia a vela, atirava-se á mesa:--mas o encantamento quebrava-se, permanecendo ali apenas o homem de lettras impotente, o jornalista exgottado, o funccionario embrutecido, que longas horas de trabalho material impossibilitaram para as lucubrações artisticas. Vinham-lhe então vibrantes assomos de tremulas desesperações. Infeliz Heitor! * * * * * Uma feita, lembrou-se de buscar na historia antiga assumpto para uma novella. Naturalmente, o clarão deslumbrante da Grecia chamava-lhe a intelligente attenção e Heitor deliberou logo que a vida hellenica da éra premessianica seria a preferida da sua penna. Sem grande esforço, presentiu que série de quadros impressionadores poderiam inspirar-lhe os requintes d'aquella civilisação assombrosa, mesmo em suas desabridas paixões carnaes, em seus vicios triumphantes. E que bellas perspectivas havia de esboçar, na phrase curta e incisiva a que insensivelmente affeiçoara-se-lhe o estylo! Assumptos não lhe faltavam. Toda a serie de lendarias hetairas,--Thais, Sapho, Aspasia,--prestar-lhe-ia ensejo para admiraveis paginas. E sonhava então fazer obra nova, fazer obra sua, propriamente do seu cerebro. Queria divorciar-se de intenções preconcebidas, seguir trilha não arroteada ainda. Sua novella seria em todos os sentidos original,--que não fôssem imputar-lhe a pecha de imitador dos Flauberts, dos Anatoles France, dos Pierres Loüys. Excellentemente educado, encontrara Heitor em consecutivas viagens optima occasião para illustrar-se. Seu espirito, em assumptos d'arte, possuia um admiravel senso esthetico, que a contemplação dos grandes trabalhos geniaes de todas as epochas havia creado e corrigido. Sonhara, de prompto, fazer illustrar o seu volume com silhuetas de Carlos Aguiar, paizagens de De Angelis e deliciosos molhos de flôres de Julieta França. Havia de enchel-o de illuminuras, deliciosamente. Seria um livro amoroso, toda a nudez do amor hellenico trescalando vivida volupia no texto e fulgurando em vinhetas, n'uma exuberancia de corpos juvenis, como harmonioso hymno á Forma immortal. E todas estas idéas vinham-lhe ao cerebro sem baixa concupiscencia, antes por enthusiasmo artistico, elevado e regenerador. Entretanto, nada fazia. Quedava-se horas inteiras sentado á secretária, já pensativo, já distraido, rabiscando palavras ermas de senso, ao acaso. E que não havia modo de surprehender a idéa matriz, fundil-a na primeira phrase, definitiva e triumphal. Todos os periodos pareciam-lhe inserviveis, sem nervos. Tocava-os com a vista, sopesava-os com o espirito: eram expressões molles como enguias, que escorregavam-lhe dos sentidos e caíam n'uma laxidão para o olvido, seguidas da saudade dolorosa d'aquelle impotente sonhador. * * * * * Quando adoeceu, Heitor presentiu que estava tudo acabado. Ia morrer. Subiram-lhe então as lagrymas ás palpebras, rolaram pelas faces como pesadas, ardentes perolas em fusão: lamentava o passado, arrependia-se de tantos annos de transigencia com a inercia. Dizia-lhe a consciencia que era de sua culpa, se tão pequena bagagem litteraria legava á Amazonia,--embalde o infeliz, para desculpar-se a si proprio, estivesse no direito de invocar a absorvente tyrannia da existencia, a ingratidão universal. E, em poucos dias, então, cobriu-se-lhe de cans a desgrenhada cabeça scismadora. No instante em que expirou, esboçava Heitor um meio sorriso translucido: dir-se-ia estar a ver perpassarem ainda as frótas d'Alexandre, mar Jonio a fóra, ao som dos instrumentos musicos de cortezãs sagradas, erectas á prôa e á pôpa, adoravelmente nuas. CONTO DO NATAL CONTO DO NATAL O velho padre Jacintho estava já abroquelado na dupla coiraça da virtude e da edade. Não havia cara bonita de mulher nova que lhe attraisse um olhar mais demorado, assim como não existia peccado, venial ou mortal, cuja denuncia pudesse conturbal-o. Tinha o sacerdote ouvidos castos para quantos delictos lhe segredavam as beatas, atravez da lamina de folha esburacada do confissionario. E era sempre com a mais tranquilla meiguice, toda paternal, que monotonamente prescrevia um Padre-Nosso e uma Avè-Maria como penitencia ás mais reincidentes peccadoras. Trinta annos de pastoreio de ovelhas espirituaes haviam-lhe dado, com a calma imperturbavel, o anesthesico da sensualidade. D'entre as suas mais assiduas confessadas distinguia-se, pelo ameno rosto e fervorosa devoção, uma joven mulatinha, filha d'um fazendeiro da comarca de Chaves. Era um primor, a Maricota, requestada por muitas leguas em torno, na cálida terra marajoara, onde o amor bebe roborantes philtros aperitivos, na doce emanação das gordas pastagens restolhadas. Ninguém mais attenta do que ella aos deveres do culto catholico e ao cumprimento de suas obrigações domesticas: «rapariga da ponta», consagrava-a a opinião da comarca, pelo orgão competentissimo do conspicuo juiz de direito. Quando chegou dezembro, Maricota combinara com o vaqueiro Antonio, seu namorado de infancia, que a fosse pedir em casamento no dia de Natal. Tinha fé na data, que havia de angariar-lhe maior mésse de venturas; e ainda em obediencia á inclinação religiosa, abalou campos a fóra, até á residencia do clerigo, a quem confiou a tarefa de formular perante seus progenitores o pedido sacramental em nome do rapaz. Ao tremulo pastor d'almas agradou aquella incumbencia intencional, como lisongeira homenagem á sua dupla auctoridade de confessor e velho amigo da familia. Que fosse com Deus e ficasse certa de que, no dia de Natal, pela tarde, lá estaria a representar o maganão. * * * * * Á porta da casa principal da fazenda, á beira-rio, em Marajó. Tarde assoalhada pomposamente, na magnificencia vencedora do grande astro a descambar pelo espaço translucido. Chovera uma hora antes e o céu, azul e brunido, estava ermo de nuvens. Dos campos infinitos, muito verdes ao perto, gradativamente azulados á medida que a vista buscava o horizonte, subiam olores adocicados, o bom cheiro dos fortes pastos ensopados d'agua. E do lado dos estabulos, era um retintim jovial de cavaquinhos e violas, o ardente sapateio das danças campesinas. Toda a familia da Maricota, sentada no copiar em derredor da secular mangueira frondosa da esquerda, palestrava contente, ouvindo as boas chalaças inoffensivas do sacerdote. Os dois noivos--noivos desde meia hora antes--conversavam a alguns passos de distancia do grupo principal. Para o vaqueiro, esse instante era o mais feliz da vida. Pulava-lhe o coração desencontrado no peito arfante, rebrilhavam-lhe as pupillas, que reflectiam a imagem, sempre meiga e adorada, da sua querida Maricota. Parecia-lhe que a voz da rapariga, n'esse primeiro colloquio já realizado com o assenso da familia, e por isso dotado de um sabor novo, possuia inflexões desconhecidas, entonações extranhas, um avelludado espesso como o refresco do assahy. Á moça, entretanto, como que um pensamento fixo a preoccupava. Duas vezes já, deixara sem resposta, ou respondera demoradamente, a uma apaixonada interrogação do noivo, ternamente segredada em tremulo balbucio de emoção. Notou-o o velho padre, ao observal-os de longe. Erguendo a voz, perguntou-lhe n'um sorriso: --Que tens, filha? Em que pensas? E a Maricota, levantando-se de ao pé do noivo, acercou-se da familia e: --Penso, explicou, que por ser hoje dia de Natal, o sr. padre bem poderia obter para mim a graça de ficar sempre «virgem antes do parto, no parto e depois do parto»... E voltando-se para o vaqueiro, a sorrir--innocente ou maliciosa? ninguem poderia reconhecel-o, no meio da estupefacção geral,--accrescentou: --Não deves zangar-te com isso; Jesus foi filho de Deus, e São José não deu o cavaco! A NETA DA CABOCLA DE OURÉM A NETA DA CABOCLA DE OURÉM D'entre as raparigas que, ha dois annos, se divertiam nos agapes venusinos de Belém, distinguia-se, pela seductora graça de toda a sua pessôa, uma joven cabocla, de feições correctas e penetrantes, de irressistivel olhar, todo malicia e promessas de prazer. Chamavam-lhe os intimos--a Paquinha, pelo apimentado dos saracoteios, nas danças nacionaes. Esta personagem viera para Belém alguns mezes antes. Seu passado, bem poucos o conheciam; sabia-se vagamente que, nascida em Ourém, fôra creada pela avó, humilde tapuia cujo nome a chronica desdenhara registrar. Morrera-lhe a mãe ás poucas horas do puerperio difficil. Até á adolescencia, a vida tinha deslisado sem peripecias notaveis, na insipidez lacustre do logarejo. Um dia, porém, suas graças fascinaram o escrivão de um dos vapores da linha:--deixou-se a rapariga raptar, em triste madrugada de chuva. O seductor, passado o primeiro enlêvo, na capital, diminuiu os mantimentos na dispensa; mas, a pretexto de ciumes, entrou de espancal-a com vigor. Por um momento, resignou-se a neta da cabocla de Ourém; todavia, foi curta a passiva submissão. Lembrou-se dos mimos perdidos, no carinhoso lar da avó e fugiu da casa do embarcadiço, disposta a voltar para junto da velhinha. Na rua, teve a impressão de achar-se n'um labyrintho: era a primeira vez que sahia, em tamanho povoado; a casaria chegou a fazer-lhe medo, perdeu o geito de andar: lagrymas fluiram-lhe dos grandes olhos negros, desconsoladamente. Ao quebrar uma esquina, esbarrou em apressado transeunte, pediu-lhe orientação para o caminho do porto. Acolhida com sympathia, contou-lhe a sua curta historia; n'aquella noite, jantou bem, bebeu champagne pela vez primeira--e resolveu ficar na cidade. O convivio com este novo amante durou apenas uma semana: pobres ambos, que tinham a lucrar na associação de duas miserias? Mudou-se para um hotel. Em poucos dias, tornou-se conhecidissima. A ingenuidade natural dos seus modos, a lhaneza dos ademanes, a propria incorrecção com que se expressava, constituiam outros tantos aperitivos da concupiscencia de seus protectores. Conquistar-lhe as preferencias, um bom sorriso, ao menos, era afan em que se empenhavam dois terços da população viril de Belém. Tenham paciencia os dissimulados paes de familia; aqui lhes delato a fraqueza: muitos dos que me lêm, andaram com o espirito captivo de extranha preoccupação, por causa da heroina d'este conto. E não poucos commendadores, dos mais adiposos e conspicuos, tiveram noitadas de insomnia, flatulencias insidiosas,--ruminando a reluctancia da moça em acceitar-lhes as tentadoras propostas. Paquinha comprazia-se menos em viciosas intimidades do que no revoluteio das valsas; e a inebriante effervescencia de uma taça de champagne, em jucundo banquete, offerecia-lhe maior attracção do que as promessas de installações do luxo, que por experiencia sabia dever serem sempre ephemeras, tão fugidio é o capricho dos homens. Por causa d'esta anomalia, tinha frequentes discussões com as amigas, pessoas praticas, absolutamente divorciadas do seu modo de encarar a vida. Choviam-lhe nos ouvidos os mais ponderaveis conselhos:--que não fôsse tola em desprezar com leviandade os ensejos de fazer-se independente, para preferir adoradores adventicios, optimos rapazes, é certo, porém cujos recursos não poderiam bastar ás exigencias do seu trato. Encolhia a hetaira os bellos, roliços hombros morenos. Ella era assim mesmo: fôssem lá contrafazer-lhe a natureza! E novas razões brotavam ainda á flôr dos labios das solicitas conselheiras e já ella, gingando, a pensar no baile proximo, cantarolava uma copla de modinha, na suprema lascivia de sua juvenil formosura. Tal era a neta da cabocla de Ourém. * * * * * Similhante despreoccupação, entretanto, devia de achar um termo. Paquinha, um dia, amou. Despertando, manhã alta, no amplo, macio leito do seu excellente _chálet_, á estrada São Jeronymo, foi com uma pontinha de descontentamento que verificou a ausencia de Julio, o seu companheiro da vespera. Porque, esse dissabor, se o mancebo ficara de partir pela madrugada, sem a accordar? Nem ella propria, ao principio, soube definir bem o traiçoeiro mal-estar; e apenas quando lhe notou a insidia, foi que desconfiou do novo sentimento, esboçado por uma saudade melancholica. Ergueu-se contrariada, de mau humor. Nem mesmo o banho, saturado d'ervas cheirosas, conseguiu tranquillizar-lhe os nervos. Almoçou pouco e, em toda a tarde, conservou-se reclusa, auscultando a alma. De um natural ingenuo, admirava-se da surpresa d'aquelle affecto incipiente. Discutiu probabilidades de outras causas,--ainda inclinada a não attribuir a uma origem passional a sua preoccupação. Mas atraz de quantos argumentos a volição lhe inspirasse, via sempre o perfil do mancebo que a impressionara,--sorridente perfil, cujo maior encanto residia, certo, n'um ar de meiguice e ternura, que não estava acostumada a ver no rosto, simplesmente luxurioso, de seus habituaes convivas. Sentiu como se no palacio dos seus sonhos se houvesse rasgado uma grande janella, toda ornada de flôres odoriferas. Por lá entrava a luz, a bemdita luz de um sol de felicidade; e entravam tambem auras bemfazejas, varrendo-lhe o intimo do coração. Á rapariga, então, acudiam aspirações novas, uma ancia, até ali desconhecida, empós do idéal,--tudo mal definido ainda, porém já pregosado com intima volupia. Como era bom aquillo, apezar de dar-lhe um todo-nada de incomprehensivel soffrimento moral! Seria isso o amor? Quando anoiteceu, tornou ao banheiro, para a copiosa ablução vesperal. Jorrando na larga piscina de marmore, a agua cantava branda melopéa, que fazia pensar nas yaras. Frascos de vinagres caros aromatizavam de essencias o ar humido. E o amplo espelho do fundo,--a um canto do qual De Angelis, o pintor sacro-mundano, traçara, com o seu pincel malicioso, uma adoravel nudez de caboclinha com feições de archanjo,--expandia a polida superficie, como n'um enorme bocejo de impaciencia, á espera d'ess'outra nudez animada, que estava para vir confiar-lhe as suas mais capitosas intimidades. Despiu-se Paquinha, qual um automato. As mãos, errantes, desabotoavam e deslaçavam, sem segurança; o espirito, alheado, vagava longe, contornando de osculos mentaes a imagem ausente de Julio. Só a sensação da agua fria trouxe Paquinha á realidade. Com certeza, amava ao rapaz. E, alfim convencida, disposta tambem a conquistal-o, entregou-se, com redobrada attenção, ao preparo de todos os artificios da galanteria feminil. O espelho, deante do qual, ao sahir do banho, patenteou o corpo inteiro, n'um brando arrepio mádido, mostrava-lhe com fidelidade os requintes da mais triumphante belleza. Pois era preciso realçar taes dotes, empregal-os com arte, com uma ascendencia discreta, para a realização da conquista projectada. E, n'um derradeiro olhar, satisfeito, ás proprias fórmas,--olhar encerrando beijos,--Paquinha teve a convicção da victoria próxima. Em pouco tempo, quanta mudança n'essa mulher, já tão diversa da primitiva neta da cabocla de Ourém! * * * * * A seducção começou n'aquella mesma noite, no baile da Rapioca. Ao magote de mancebos que affluira á porta da sala, a solicitar valsas e polkas, respondeu ella, sorrindo, estar já compromettida «para todas as danças». E logo, com uma leve anciedade, os negros olhos tentadores de Paquinha perscrutaram o aposento, procurando Julio. Lá não estava o rapaz. Se tinha vindo? perguntou a um janota. Ante a resposta negativa, pulou-lhe um sobresalto no coração, como se algo lhe faltasse de subito na integridade da existencia moral. Tornou-se notada a preocupação da rapariga, doidivanas proclamada em todos os festivaes de Cythera. Não houve galanterio de admiradores que a distrahisse da tristeza em que mergulhara. Nem os mais requebrados maxixes conseguiram chamal-a ao salão de baile. Pedidos, supplicas, ardentes appellos ao seu primitivo enthusiasmo choreographico, tudo foi impotente. --Que terá hoje a Paquinha? perguntavam uns aos outros os moços, intrigados. --Partes! diziam as demais mulheres, com sarcasmo. Breve, porém, houve a explicação do caso. Julio acabava de chegar; a um chamado da tentadora tapuia, enlaçou-a n'um orgulho, e o bello par fez irrupção na sala, rodopiando ao som de um boston. --Ah! disse em côro quasi toda a assistencia, comprehendendo. --Temos novidade! exclamou um velhote careca, de barba ponteaguda e olhinhos amendoados. --Paixão, disque! motejou uma valsista esgrouviada. Emtanto, Julio e Paquinha deslizavam com subida elegancia, ao rythmo da musica, falando baixo, no aconchego de intensa ventura. Terminada a valsa, a rapariga conduziu o cavalheiro para uma janella da ante-sala. Na altura do sobrado, que sobrepujava os predios adjacentes, brisas suavissimas corriam sob a luz serena do luar. Uma ternura sem limites dilatou-lhe a alma enamorada. E ali, no afastamento, ao som d'um preludio de quadrilha, Paquinha tomou uma das mãos de Julio e segredou, com a emoção a sacudir-lhe a voz: --Se eu te amasse?... Estava o moço muito longe de prever similhante pergunta. De surpresa foi a primeira impressão. Logo, porém, sorriu--jubilo ou ironia?--e exclamou: --Serias a mais justa e misericordiosa creatura da terra, meu amor! --Vamo'-nos, então, repoz a caboclinha, sempre a meia-voz, gravemente. Descendo a escada, Paquinha levava o coração repleto de alegria. Seu rosto, transmudado pelo contentamento, exprimia deliciosas impressões. Era ella quem seguia adeante, agarrada á mão direita do rapaz, com um ar de triumpho, que lhe duplicava a belleza. Julio constituia a sua presa,--a presa da alma apaixonada. Como era bom amar e ser amada! Quando o mancebo accordou, na manhã seguinte, poderia attestar que a suprema delicia é privilegio da vida terrena. D'aquella noite datou uma existencia encantadora para ambos, no poetico _chálet_. Todos os momentos que as occupações lhe davam de folga, passava-os Julio ao lado da amante, n'um connubio que offerecia seducções paradisiacas. O joven par desappareceu das agglomerações, isolou-se, para melhor fruir o arroubo de uma prolongada intimidade sem testemunhas. Viveram ambos as mais agradaveis horas que aos mortaes é dado gosar,--na tranquillidade do ninho perfumoso, sem ambições além do proprio amor, em mutua adoração. Descobria cada qual que o outro possuia inestimaveis meritos e, com uma surpresa ingenua, confessavam reciprocamente que a mais perfeita paridade de caracteres predestinava-os para uma eterna comprehensão bemaventurada. Era de vel-os, unidinhos e amorosos, nas doces noitadas de paixão, quando a innata phantasia romantica os encaminhava para a farfalhante penumbra do caramanchel, no jardim! Jasmineiros e eloendros desabotoavam as redolentes flôres, que choviam como bençãos do céu propicio sobre o enlace do joven par. Maior felicidade não podera Julio exigir na terra. O primeiro mez de tal cohabitação foi, deveras, o mais afortunado que jamais passou a neta da cabocla de Ourém. * * * * * Ao começar, porém, do segundo mez, entrou o amante de ser mais demorado nas excursões ao centro da cidade. Desculpava-se com a exigencia dos negocios,--difficuldades imprevistas, que cumpria vencer á força de diligencias pessoaes. Apaixonada em extremo, Paquinha acreditava n'estas razões, tanto mais quanto Julio, sempre delicado, nenhuma differença sensivel apresentava no modo de a tratar. Não obstante, passageiras distracções alheavam, ás vezes, o espirito do rapaz. Tinha, em certos momentos, um como atrazo da memoria, demoras em responder á companheira; esforçava-se, com remorsos, com pena da victima, por vencer a preoccupação que traiçoeiramente o empolgava, mesmo nas horas de intimos devaneios, nos braços da caboclinha. Mau grado a energia com que luctava por afastar de si extranhos pensamentos,--a idéa de outrem, a lembrança d'uma creatura idealmente loira e divinamente bella, entrevista algumas tardes antes, apoderava-se-lhe dos sentidos, com persistencia. E em pouco tempo, a _intrusa_ estabeleceu-lhe na mente absoluto predominio. Foi uma obsidiação desesperadora. Quando, á força de reagir contra a capitulação involuntaria, buscava nos amplexos da cabocla attracções que suppunha efficazes, a contragosto entrecerrava as palpebras e affigurava-se-lhe então que desapparecera d'ali a meiga Paquinha, já gosada e por demais conhecida. Julgava realmente possuir entre os braços a _extrangeira_, a outra, aquella de nome desconhecido até, porém que elle adivinhava deliciosamente bôa para ser assim estreitada com ternura e com frenesi amada. O phenomeno havia de ser descoberto, mais cedo ou mais tarde. Paquinha presentiu-o, advinhou-o mais do que o percebera. Surprehendeu-o de uma feita que o moço, colhido por ella com os braços enlaçantes, fizera ligeiro movimento para furtar-lhe a bôcca á pressão dos rôxos labios sensuaes. Quê! repugnavam-lhe os beijos da amante! Retirou-se de junto d'elle a filha do sertão, dissimulando a pungitiva surpresa. A alcôva, a mansão aromatica e discreta onde tamanhas venturas desfructara, acolheu por todo esse longo dia a lacrymosa hetaira. N'um momento, desvendou-se-lhe a realidade aos olhos da alma angustiada: era o tédio, o enfaro que vencera o companheiro estremecido! Que lhe fizera ella, entretanto, para tornar-se-lhe menos interessante? Pois não tinha sempre os mesmos carinhos dos primitivos tempos, a completa dedicação que se requer entre seres ligados para a vida definitiva? Passou em revista o seu modo de proceder, as phrases das mais pequenas conversas, seus gestos, por insignificantes que fôssem. Com desespero, interpellou a consciencia e esta mostrou-se tranquilla, convicta do dever cumprido. Não atinava com a razão de tal mudança; bondosa de mais, só a si mesma imputava a causa da molesta transição. Desnudou-se ante o largo espelho do guarda-roupa e, examinando o proprio corpo com olhares imparciaes, como se fôssem os de outra pessôa, encontrou-se correctissima de fórmas, seductora de juventude e belleza. D'aquelle corpo, que poucos haviam possuido, que encantos lhe recusara ella? Esta interrogação avultou entre todas, sobrelevando-as. Linha d'elle não havia que lhe não tivesse sido offertada em holocausto, aos cariciosos contactos dos labios sussurrantes de osculos, nos immortaes momentos de voluptuosa vesania. Todo o seu formoso sêr, tão appetitoso como um fructo equatorial, fôra-lhe dado sem complicados pudores, no incondicional sacrificio de immenso amor, sincero e simples. Tambem havia-lhe sido fiel, como as mais puras mulheres, e docemente respeitosa, e patriciamente digna, em todas as relações fóra dos ambitos da alcova. Que mais desejava Julio? Chorando sempre, arrependeu-se quasi de lhe não ter poupado a visão completa da sua pessoa. Segredos supremos, se os houvesse guardado, como avára, poderia agora descobrir-lh'os e com elles talvez conseguisse reconquistar o imperio que previa já perdido para sempre... para sempre... Um desconsolo constringiu-lhe a garganta, com amargura. E o pranto, que então verteu, foi o mais sentido com que já regara o seu infortunio a neta da cabocla de Ourém. * * * * * Não eram essas as derradeiras lagrymas que Paquinha havia de chorar, baptizando o seu desventurado amor. Tinha de resgatar com outras provações mais pungentes a anterior volubilidade, o desprezo a que votara as legiões de adoradores, alfim vingados por Julio. Logo depois da fatal desillusão, quiz tentar captival-o de novo, rehaver o primitivo dominio na alma do mancebo. Fez-se então humilde, muito humilde, quasi servil,--requintando a meiguice dos affagos no anceio de conservar-lhe a affeição e achando ainda ineffaveis carinhos no inextinguivel thesoiro da sua alma attribulada. Quasi não falava, temendo chocal-o por alguma phrase menos justa, ou de duplo sentido; mas toda a eloquencia das doces expressões saltava-lhe dos olhos, em vivos lampejos enamorados. Tudo inutil, ai! Esta mesma passividade, a que o rapaz ficara indifferente ao principio, chegou depois a irrital-o; e, d'uma feita, ao cabo de longo silencio de apaixonada contemplação da amante, ergueu-se elle, exclamando: --Que diabo tens tu, mulher? Pareces uma lesma! Arre! E, tomando o chapéu, foi-se para a rua. Não voltou á tarde. Toda a noite, esperou-o Paquinha debalde. Cada bond que subia da cidade trazia na coloração dos pharoes fulgores da esperança d'aquella creatura; mas tambem levava a sua angustia mais negra quando ultrapassava a porta do jardim, afastando estrada a fóra o arruido das rodas. O insondavel tormento durou ainda no outro dia. Só á tarde, parou um carro á porta. Correu Paquinha a receber o amante,--que outrem não esperava ella, prestes a perdoar tudo a troco de um beijo compassivo. Surgiu-lhe deante o cocheiro, extendendo uma carta. Em dez linhas, Julio despedia-se da rapariga, allegando ter notado que a sua companhia, d'elle, já lhe não offerecia encantos! Foi esta ferina evasiva que mais doeu na alma de Paquinha. Nem um só momento pensou em dissuadir Julio, cuja perversidade, assim tão cruamente cynica, chegou quasi a revoltal-a. Que o desengano era definitivo, sem remissão, comprehendeu-o logo; mas o seu amor-proprio, de tal arte aviltado, teve a força de suffocar o sentimento do abandono. E a cabocla chorou então de raiva,--porque as lagrymas do amor incomprehendido tinham sido todas derramadas quando ella ainda pensava existir no moço uma alma digna de possuir-lhe a immensa paixão. No dia seguinte, cedo, Paquinha mandou chamar um leiloeiro e vendeu-lhe os moveis pela quinta parte do real valor. Horas depois, vestida com simplicidade, levando n'uma só mala as poucas roupas preferidas, seguia para Ourém,--n'uma lancha fretada, com importante agio, pelo mesmo comprador das alfaias. Quando a embarcação deu as primeiras voltas de helice,--a joven tapuia, sentada á pôpa, envolveu a cidade n'um longo, inexprimivel olhar de odio. Descendo por traz da ilha das Onças, o sol rutilava, magnifico; e os milhares de vidraças, pelas janellas da casaria, no littoral, como que retribuiram-lhe esse olhar n'uma deslumbrante reverberação incendida. Mas Paquinha volvera as pupillas para o alto, para o nascente e viu que o ceu, d'uma serenidade auspiciosa, arredondava a pureza da sua cupula toda azul, misericordiosamente, sobre a terra e sobre as aguas. Cabocla,--supersticiosa. Paquinha inferiu gratos augurios d'esse tranquillo aspecto do espaço. Se o nascente assim promissor estava, porque não havia ella de tornar a crer no futuro e esperar o almejado socego para a sua pequenina alma dolorida, cuidando dos derradeiros dias da mãe de sua mãe? A esperança do amor trouxera-a um dia, aguas abaixo; restituia-a o amor da esperança no bem-estar da consciencia. Foi com taes sentimentos que regressou ao lar da saudosa avó, na insipidez lacustre do logarejo paraense, a neta da cabocla de Ourém. O BANHO DA TAPUIA O BANHO DA TAPUIA Clareara ha pouco a manhã e o dia annunciava-se formoso, na serena pompa das galas equatoriaes. Todo o céu escancarava a limpidez da abobada de turqueza, á espera do sol. Tenue viração suspirava nas ramarias do matto, d'onde vinham o papaguear dos periquitos, arrulhos de rôlas, trinados de aves invisiveis. Pela praia arenosa, as garças, poisadas sobre folhagens rasteiras, similhavam grandes, extranhas flôres de immaculada alvura. E rente á agua, atravessando o rio caudaloso, um bando de marrecas desdobrava a escura fita do seu vôo compassado, quasi de margem a margem. No alto da ribanceira, ao fim do caminho do _sitio_, entre dunas verdejantes de ajurús, appareceu Hortencia, a joven tapuia. Vinha estremunhada ainda. Nas palpebras, que longos cilios ensombravam, demoravam-se preguiças de somno. A humida polpa dos labios tinha esboços de bocejos. O farto cabello, preso pelo pente de tartaruga ao alto da cabecinha doidivanas, a custo se fixava ali, não tão bem que, rebelde, não formasse dos dois lados da nuca, sobre os hombros, pesadas quedas sedosas. Deteve-se a rapariga, mordiscando folhas silvestres. Seu olhar devassou o listrão serpeante do rio deserto de embarcações e foi-se para o alto, a mirar o nascente enrubescido. Mas a frescura da riba fustigou-lhe os tenros membros mal vestidos pelo saiote curto e pela camisinha branca, de rendado decote. Estremeceu Hortencia n'um arrepio e, alongando os braços, gemeu voluptuosa no derradeiro espreguiçamento matinal. E, já deslaçando o cós da saia, desceu a correr para a agua, pregosando a delicia do banho. Minutos depois, caíndo pelos quadris a camisinha cheirosa, Venus tapuia ostentava na claridade da manhã o encanto irresistivel da sua juventude, a triumphal perfeição da sua nudez. No mattagal, houve como um redobramento de canto de passarinhos, ao tempo que o sol, vencendo a floresta, mordia com a tepidez dos primeiros raios as carnes morenas de Hortencia. Chapinharam os pequeninos pés; a frialdade liquida provocou brandos offêgos: começara o banho da tapuia. * * * * * Demorado tempo esteve a rapariga dentro da agua. Quem póde resistir á tentação d'um banho ao ar livre, na costa marajoara, pela manhã? Já o sol, aguçando os quentes dardos, vencêra larga distancia pelo espaço. A ella, porém, pouco importavam os insidiosos ataques do astro. Sem parar um momento, ora percorria consideraveis extensões a nado, á flôr do rio, ora caprichava em experimentar o proprio fôlego, com aturados mergulhos. Quando emergia a formosa cabeça atraz da qual a correnteza espalhava a negra cabelleira, tinha nos olhos uma jucunda expressão de gaudio, tentadoramente. Ali estava uma das mais requestadas mulheres de Soure, ignorante dos proprios meritos, apenas interessada no desfructe das sensações de bem-estar proporcionadas pela immersão no rio. No entanto, descrer da existencia das sereias amazonicas certo não poderia quem a visse então, no banho, erguendo sobre a superficie das aguas o bronzeado busto palpitante, de que se destacavam, n'uma seducção vertiginosa, as linhas correctissimas dos pequenos seios virginaes. Taes eram, por certo, as reflexões que tambem estava a fazer, mirando-a, o negro Manoel, por entre as folhagens que limitam o areial da praia. Filho de africanos, enamorado, atrevera-se a amar Hortencia. Feio e boçal, bem comprehendera a impossibilidade d'esta paixão pela creatura que tantas vezes repudiara varonis caboclos das fazendas e até dengosos brancos da cidade. Mas o que não pudera evitar e ninguem no mundo conseguiria impedil-o, era essa quotidiana emboscada, para a ver no banho. Cada dia, não trinavam ainda os primeiros pipillos dos passaros, já elle estava entre os monticulos de areia, agachado na verdura, á espera da tapuia. Enxergal-a núa, era o seu goso suprêmo. Não lhe perdia um gesto; nem uma só linha d'aquelle corpo desejado deixava de ser perscrutado, beijado, deflorado pela sua lascivia de hottentote. Concentrava nos olhos todos os arrancos d'um vigoroso anceio de posse. Os appetites libidinosos da sua raça ferviam-lhe no peito, á vista da rapariga. Entretanto, jamais ousara sair-lhe ao encontro. É que o receio de uma repulsa quasi certa e a consequente descoberta do seu criminoso recurso, detinham-lhe o atrevimento, limitando-o hoje á mesma observação inerte de muitos mezes antes. E quem o divisasse mais de uma vez ali parado perante a conturbativa visão, diria erroneamente que, á força de a admirar com respeito, o negro alfim depurara os desejos, transmudando-os em culto á belleza incoercivel. * * * * * O momento, porém, que elle, o africano sordido, mais prezava, era aquelle em que Hortencia, saindo da agua, vinha seccar aos toques da brisa a nudez amena do corpo. Eil-a justamente que náda para a beira, fatigada emfim dos prolongados brincos. Já tomou pé e a pouco e pouco vêm apparecendo os braços, o busto com os seios e a doce curva abdominal, os quadris salientes, as roliças pernas, toda a perfeição de linhas feminis; já palmilha sobre a areia, que lhe cobre os pés como com um par de sandalias de missanguinhas brilhantes. E agora, o mádido corpo fica erecto aos beijos do vento, emquanto os longos cabellos pendem sobre as costas, gottejantes. É esta a feroz allucinação do negro. Toda a formosura da virgem ali está patente á sua vista, na magestade do quadro paraense, saudado pelo trinar das aves. Bastar-lhe-ia dar alguns passos, reflecte, e extender as mãos, para alcançar e possuir tamanha perfeição. Detém-n'o, comtudo, o receio de trahir-se. E o medo de perder a posse mental da tapuia que o inhibe de saltar para junto d'ella, bramando como caprípede silvano. Innocente e tranquilla, sem desconfiar da luxuriosa surpresa, a banhista, n'um gesto peculiar, que desvenda o emocionante emmaranhamento das axillas, toma os cabellos, torce-os á direita, exgottando-os e os ennastra em trança farta, que prende sobre a cabeça. Veste depois a camisa, passando por ultimo a sáia de riscado azul. E ainda amarrando-lhe o cós, dirige-se cantando por entre as dunas cobertas de ajurús, até ao caminho que leva ao _sitio_. Só então, o negro Manoel sae do mattagal, corre á praia, ao ponto onde, momentos antes, estivera a tapuia. Tem os olhos injectados de sangue, os labios entreabertos: arqueja. O rosto, coberto de ralos pellos que se juntam em ponta bipartida sobre o mento, é bem o de um fauno espicaçado pela animalidade da bérra. Revolve-se no chão, gemendo em ancioso deliquio de erotomano. E, para acalmar o vehemente anhelo insatisfeito, espoja-se, crava os dentes no solo,--esfrega as faces e a fronte no logar onde a agua, escorrendo do corpo da rapariga, tinha ensopado a areia, enchendo-a de frescura. Do seio da matta, sóbe, expirando á distancia, o canto jovial da tapuia; e ali perto, qual ironia da floresta, uma ave sibila persistente a escarninha palavra que lhe deu o nome: --Bemtevi! COMPLICAÇÕES PSYCHOLOGICAS COMPLICAÇÕES PSYCHOLOGICAS A CAMERINO ROCHA. Velas soltas, bandeira topetada no mastro grande, o minusculo hiate de Alfredo singrava galhardo as aguas do Guajará, em rumo do oceano. Manhã clara, d'uma belleza diaphana e prazenteira. O rio tinha scintillações prateadas, fluindo n'uma suavidade infinita. Aqui e ali, para os lados da foz, os pannos das embarcações tapuias espalmavam-se no horizonte, destacadas em vivo contraste sobre o azul esplendente do céu. Em terra, traquinando, borboletas enormes polvilhavam sobre os aningaes das margens a luminosa poeira das azas pintalgadas. E toda a vida das mattas alevantava-se em gorgeios, grasnidos e aromas. A bordo do _Nymphéa_, na diminuta coberta, acabara agora mesmo o serviço do café matinal. Chicaras disseminadas pelos bancos da amurada rescendiam ainda do alegre cheiro da infusão escaldante; e já os cigarros de optimo Bragança fumegavam,--emquanto ao arruido da palestra juntava-se, á meia-nau, o ranger dos moitões e cabos do velame desfraldado. De irreprehensivel córte, a nave offerecia interior e externamente uma perfeição de linhas e uma limpeza completa. N'ella estava a mirar-se, orgulhoso, o proprietario, ali deitado, á popa, em fina rede branca de fio de carretel. Eis a sua maior dita, viajar no pequeno hiate, veleiro e gracioso. Nem a certeza dos bens pecuniarios herdados annos antes, nem a seducção das valsas em que rodopiara outr'ora pelos salões á moda, enlaçando frageis bustos de morenitas capitosas,--tiveram jamais para Alfredo similhante dom de encantamento, esta vertigem ineffavel, que recebia ao deslizar, á flôr das ondas, caminho do Atlantico, a bordo da sua adorada miniatura de navio. Era, com effeito, um jubilo vehemente e incomparavel, uma sensação de liberdade, que o exaltava em deliciosos arroubos. Julgava-se então um sêr á parte, um privilegiado da vida,--predestinada creatura para quem o dinheiro, longe de tornar-se elemento de desequilibrio mental, com a allucinação das grandezas, fôra apenas o meio de realizar aspirações de isolamento que o afastassem, com intermissões felizes, do convivio commum. E cada vez que assim velejava sobre a agua, na manhã triumphal, suas conversas com o mestre eram menos uma palestra coordenada, do que expansões da alma enthusiasmada por estas fugas maritimas, em meio á rude gente da faina. O mancebo sorvia em largos haustos a brisa experta do largo; e, impellindo a rêde com o bico do pé de encontro á antepára metallica da amurada, exclamava n'um soliloquio enlevado: --Voga, _Nymphéa_! Voga, meu hiate! Além, n'uma enseadasinha da costa assoalhada e calma,--é o socego infinito que nos aguarda: a ti, os beijos cadenciados das vagas; a mim, os osculos da unica mulher verdadeiramente sincera que já encontrei! E seus olhos, percorrendo a coberta, beijavam tambem, com ternuras de pae, os ambitos do hiate. * * * * * Podia-se affirmar que estava ali um homem verdadeiramente experimentado. Herdeiro unico de grande fortuna, que o pae amoedara na vida commercial, em Belém, Alfredo vira-se emancipado, independente e cheio de saude, aos 20 annos de edade. Os primeiros tempos decorridos após a morte de seu progenitor fôram para elle uma incessante peregrinação pelos mais remotos paizes. Sequioso de novidade, partira da terra paraense com a pasta pejada de cartas d'ordens sobre bancos de além-mar e a alma transbordante da ancia de tudo ver e fruir. A febre do açodamento juvenil espicaçava-lhe a indomita curiosidade. Viajou toda a Europa, n'um grande goso de intellectual aproveitado. Passou depois ao Oriente, cujo exotismo tamanhas tentações lhe offerecêra desde a adolescencia; e assim percorreu extranhos paizes de lenda, rebuscando embalde as phantasias dos poetas nas decepções da desillusoria realidade. Mas, cançado o proprio idéal, tornou á civilisação do Occidente, cujas requintadas complicações ainda mais o intrigaram, após a recente digressão ás terras do paganismo. De toda a parte, surdiam-lhe duvidas ponderaveis,--terriveis incognitas dos problemas sociologicos, que a sua alma, de tendencias equitativas, em vão queria resolver. Onde está a justiça, na pratica humana? Esta hesitação, esta irresoluta indecisão que nada satisfazia, bem lhe dava a entender quão mesquinhas e oscillantes são as bases em que a sociedade assenta os principios com os quaes pretende reger-se. Chegou-lhe então o primeiro engulho do primeiro enfaro: aos 25 annos! Foi por causa d'esta decepção que resolvera fugir da Europa. Embarcou para o novo mundo, em direcção aos Estados-Unidos. Ao principio, teve um deslumbramento sem par. Aquella admiravel actividade das populações operosas, congregadas á voz do capital omnipotente em torno ás fornalhas, ás bigornas, ás machinas, ás retortas,--aquella actividade unica chegou a fazer-lhe vertigens de enthusiasmo. Ali encontrava elle, alfim, o idéal da raça humana, buliçosa na incessante producção, colmeia enorme compenetrada de que a rapidez da vida não permitte mais um instante de folga sem prejuizo immediato. Comtudo, um curto exame de poucos dias revelou-lhe que os mesmos vicios de origem lá campeavam também, trazidos no sangue europeu. A materia podia agir com afinco maior; mas o espirito soffria de identicas enfermidades,--a sêde das aspirações irrealizadas, o embate dos preconceitos, a agrura das competencias politicas e industriaes, toda a emmaranhada engrenagem das miserias de um seculo de egoistica injustiça a arrastar e esmagar os fracos, os desprotegidos, os simples. Abalou, por isso, terras a fóra. Veiu á America Central,--emblema da inconstancia da vida na inconstancia dos seus governos e leis. Sem deter-se, ultrapassou o isthmo, desceu mais ao sul, transpondo os alcantis dos Andes, e remirou as faces emaciadas na fria onda marulhosa do estreito de Magalhães. Além, nos paizes de idioma espanhol, aguardava-o uma surpresa dolorosa. Habituara-se a ouvir tratarem-n'os de _republiquetas_ e fôram, na maioria, fortes nações progressistas que se lhe depararam. Onde pensava achar povos depauperados e cidades estacionarias, encontrou uma raça viril e ardorosa, e capitaes magnificas, e bellos nucleos urbanos, de feição moderna, amplamente revolvidos e reedificados sob a direcção de intelligentes patriotas. E a convicção de que, mais uma vez, andara errada a balofa ignorancia do chauvinismo brazilico, trouxe-lhe aos olhos duas lagrymas sinceras e uma nova desillusão ao fundo da alma angustiada. Foi após este derradeiro desgosto que regressou ao Brazil. * * * * * Vogava sempre a embarcação, aguas a baixo, impellida na dupla força do vento e da correnteza. Andava na claridade do espaço a hilariante alegria dos bellos domingos nortistas. A natureza em torno possuia, n'essa manhã, uma apparencia de tranquilidade edénica, propicia ás meditações de Alfredo. Sempre extendido na rêde, a baloiçar-se, fumando consecutivas cigarrilhas, o moço passava em revista, no kaleidoscopio da alma, as peregrinações de antanho. Como essa quadra agitada sumira-se fugace! Perdia-se agora nos longos esbatidos das simples recordações da primeira juventude. Viagens; vae-vem do bulicio humano em grandes centros populosos; cavalgatas pelas lezirias do Tejo e nas steppes russas; ascencões alpinas; travessias perigosas de barrancos na Persia e cataractas americanas,--tudo ficava atraz, sem saudades, na meia-sombra dos factos abandonados, para cuja observancia o tempo lhe assignalava um sitio impessoal, de simples espectador desilludido. Só lhe interessava agora o presente, que elle resumia no hiate e em certa caboclinha, amante estremecida. Para esta ultima eram os seus garbos de cavalheiro e os seus mais assiduos pensamentos de namorado. De que servia o passado, se representava apenas a sombra de emoções extinctas? A propria lembrança de antigos amores não tinha mais a força de desviar-lhe a attenção por longos minutos nem de arrancar-lhe um suspiro mais accentuado. E, comtudo, se, n'outros tempos, lhe affirmasse alguém que tal houvera de succeder, quiçá arriscasse ouvir experta reprimenda! Fôssem lá dizer-lhe que as seducções da tapuia paraense, mimosa e ingenua,--duas vezes adoravel pela graça e pela ignorancia timida,--seriam capazes de o transportar aos requintes da ventura, absorvendo-o de corpo e alma, perennemente, e purificando-o dos primitivos contactos como n'uma piscina miraculosa... Protestaria de certo, e com vehemencia. Mas a realidade era essa, entretanto... No decorrer das viagens, claro está que o amor,--ao menos o que pensamos dever ser o amor, aos 25 annos,--occupou-lhe bôa parte dos sonhos e vigilias. O seu album de recordações amorosas offerecia uma admiravel serie complexa de perfis femininos, collecção cosmopolita, que abrangia desde a irresistivel parisiense até á fascinante bayadera, da _mousmé_, extranha na coloração estridente dos garridos arrebiques, á simples gentia sul-americana, melancholica e bondosa na sua passividade fatalista. E havia tambem flôres de oppostos climas, fitas, amuletos, cartas,--um delicado muzeu de objectos desbotados, trescalando o vago odor das coisas esquecidas. Era tudo isto que desfilava pela mente de Alfredo, n'esse mesmo instante. Aprazia-lhe, ás vezes, no capricho da sua volupia, evocar assim antigas epochas e rememorar passadas peripecias prazenteiras, para melhor fruir a actual ventura do seu grande e saboroso amor da maturidade. Nenhuma paixão fôra comparavel a esta, que tamanhas attenções lhe merecia. Das sensações antigas, nem o resabio lhe ficara, ao toque do intenso affecto de hoje, tão fundo lhe invadira elle a alma, com a obsidiação abençoada de predilecta tyrannia. E por vezes, revolvendo papeis velhos, quedava-se interdicto, quasi envergonhado, ao lobrigar uma florzinha murcha ou triste cacho de cabellos descorados; interdicto, por ter-lhes esquecido a procedencia, envergonhado de havel-os guardado por tanto tempo, assim avaramente, quando nem o coração conservara o sentimento que os tornara valiosos, nem a memoria voluvel pudéra reter-lhes a lembrança. Tudo passara, na dissolvencia dos sonhos, na voragem dos annos. Illusões patrioticas e enthusiasmo pelos gosos instaveis, tragara-os o tempo, impassivelmente. Alfredo não lamentava este resultado; pelo contrario, sentia-se feliz ao verificar que o coração, liberto de antigas peias, estava apto a consagrar toda a energia affectiva ao doce culto de um só amor, espontaneo e livre, no seio olente da floresta compassiva. Suas aspirações de reformas radicaes, seus impulsos para a propaganda em prol dos idéaes regeneradores da sociedade, perderam tambem o ardor militante de outrora. Evidentemente, a noção de uma exacta justiça é o paradoxo mais extranho que a razão illogica do homem creou n'um dia de sarcasmo, para o proprio engodo. Então, de nada valia esbofar-se em santo frenesi, conclamando a necessidade da restauração dos principios equitativos. A maldade humana predominaria para todo o sempre, irresistivel, vencedora. Restava-lhe, pois, submetter-se ao embate da onda larga da convenção. E, vencido, era nos arcanos de um novo amor que elle, ao mesmo tempo incredulo e piedoso, levado velozmente pelo minusculo hiate, na clara manhã assolhada, ia buscar o doce balsamo dos beijos sinceros, o supremo conforto para as tremendas desillusões que as complicações psychologicas lhe proporcionaram. UM CASO DA CABANADA UM CASO DA CABANADA Pelo São João, fizera Maria trese annos; e os paes haviam decidido que a primeira communhão se realizasse no domingo de Paschoa do anno proximo, á missa da festa, na matriz da villa. Padre Constancio, o vigario, andava então a preparal-a, bondosamente. Todas as tardes, mal terminava a leitura de vesperas, no breviario, lá vinha elle azinhagas adeante, caminho da palhoça dos pescadores. Corria a pequena a recebel-o, pés descalços, curto o saiote, a face illuminada n'um sorriso. Sob o cabeção de retalhos, duas pequenas proeminencias desenhavam-se, accentuadas em ponta, de cada lado do thorax. Mas o velho sacerdote, que esses dois delicados pólos parecia haverem um instante interessado, baixava os olhos com perfeita serenidade. --Como vae essa força? inquiria prazenteiro. Conversava um momento com o casal caboclo sobre assumptos insignificantes; depois, tranquilamente, vinha sentar-se á porta, ao pé do enorme tamarindeiro, sorvendo uma pitada. E começavam as praticas religiosas. Maria escutava as explicações do catecismo, os olhos pregados na face do padre, n'essa fixidez conturbativa com que as donzellas innocentes encaram os homens. Muito calmo, ia o vigario repetindo e commentando as phrases da Cartilha. Acompanhava-o a caboclinha, a meia voz, a seguir-lhe as palavras, n'uma grande concentração reveladora do ardente desejo de conquistar, com as boas graças do clerigo, os biscoitos que infallivelmente annunciavam o termo das prelecções. Depois, noite cerrada já, erguia-se Constancio, esvasiava o bolso da sotaina sobre a mesa do copiar e, com uma palavra amavel para cada qual, abençoava a rapariga e regressava ao povoado, aspirando novas pitadas. Dos dois lados do carreiro, grillos trillavam monotonamente e, por cima dos arbustos cheirosos, tremeluziam com irrequietas phosphorescencias os vagalumes. * * * * * Uma tarde, mezes depois, havia recolhido a procissão de Ramos. O adro da matriz regorgitava de gente endomingada. Toda a população seguira, ha pouco, o pallio venerando, cujas varas o juiz de direito, o presidente da edilidade, o promotor e o delegado de policia empunhavam orgulhosamente. Sabia-se já que rebentara na capital o movimento da cabanada. Canôas, tripuladas por valentes remadores, haviam trazido, com innumeros fugitivos, a nova da revolução tremenda. E os pormenores, exaggeradamente relatados pelos brancos, tinham demovido o vigario Constancio e as auctoridades a um redobramento de pompa nas festas da Semana Santa,--a ver se Deus fazia passar a villa immune do ataque dos cabanos. A tarde caía em doce esvaimento, por traz da floresta. Deslisava tranquillo o rio, espelhando nuvens preguiçosas. Havia por toda a parte o tom suave das côres vespertinas, diluidas na fluidez das sombras incipientes. Apenas do outro lado, na margem opposta, um derradeiro raio do sol enrubescia o areial da praia, sobre o qual um bando de gaivotas revoava, crocitando. A villa em peso acudira á solennidade, attrahida pelo repique jovial dos sinos. Por entre as portas escancaradas vinham de junto do altar-mór adocicadas emanações de thuribulos; o fumo azulado do incenso evolava-se muito subtil para o alto, como a imagem das aspirações geraes. E as mulheres, lá dentro, oravam contrictas, duplicando as preces ao ceu,--que não viessem os cabanos trazer até acolá as infamias cuja narrativa era bastante para levantar-lhes os cabellos apavoradamente. * * * * * A subitas, um murmurio na matriz annunciou que ia começar o sermão. Houve no adro um movimento de refluxo; afinal, mais ou menos toda gente penetrou na egreja. Raros homens ficaram saboreando as ultimas cachimbadas nos rechinantes taquarys de Cametá. Um minuto depois, erecto no pulpito, pallido na alvura engommada da sobrepeliz de rendas, padre Constancio dominava o auditorio com a singeleza da sua palavra despretenciosa. Appareceu então na praça que antecede o adro um grupo de homens desconhecidos: quatro caboclos de féra catadura olhavam para tudo e para todos, como se visitassem a localidade pela vez primeira. Buscavam, tanto quanto possivel, que ninguem os visse; e auxiliava-os a gosto uma grande moita da carrapateiros, ahi deixados pela foice descuidosa dos capinadores municipaes ou pelo capricho do sacristão, que era o superintendente do asseio do sitio. Ia vindo a noitinha. O ceu fizera-se antes da côr da perola, mas a pouco e pouco ensombrava este matiz com as tintas da sua palheta nocticolor. Tauxiações indecisas de estrellinhas palpitantes picavam-se aqui e ali, na sombria abobada. Volitavam auras fagueiras e, por toda a parte, invisiveis insectos zumbiam. Só o areial da praia fronteira extendia pela orla da floresta um listrão claro, como se houvesse absorvido e conservasse o quente rubor do raio de sol que estivera a mordel-o pouco antes. De repente, estrondou um tiro no adro; a chamma scintillou com viva fulgencia no crepusculo expirante. Um dos caboclos avançava, já affoito, do meio dos carrapateiros. Na matriz foi um só o presentimento geral: os cabanos! Padre Constancio quasi desmaia no pulpito, muito pallido, sem voz. E nem desvanecido estava o sobresalto da primeira surpresa e já toda gente pensava em correr a casa e encerrar-se. Mulheres levavam as mãos á cabeça, chamando os filhos, gemendo de mansinho umas, lamentando-se outras em altos gritos. Uma consternação! Pensar na resistencia ninguem poderia fazel-o. A villa, bonacheirona, confiara ao ceu a tarefa de a livrar dos rebeldes: entre todos os habitantes não seria facil encontrar e reunir mais de meia duzia de espingardas. Que calamidade! Deu-se então, por todos os lados, uma desordem,--os atropellos, a algazarra dos grandes panicos. Buscava-se a porta principal, com fernesi. No entanto, a affluencia do povo formara uma columna espessa, demasiado larga, e não tardaram as compressões. Creanças e mulheres estertoravam sob o sapateio dos fugitivos. Do adro vinha a grita dos cabanos, já senhores da localidade. Tremendo então pelas suas amadas ovelhas, sopesando a responsabilidade em que incorrera, padre Constancio deixou-se cair genuflexo e levantou as mãos, do lado do altar, com desvairado fervor. * * * * * Os cabanos tinham vindo por terra surprehender a villa em plena festa de Ramos. Guiara-os pelo matto o Mané Xico, o inimigo do juiz de direito, ficando no furo da Jararaca, a duas milhas de distancia, as numerosas canoas da expedição rebelde. Quando os primeiros fugitivos sairam para o adro, já a praça contigua estava occupada pelos cabanos, em numero superior a duzentos, muito bem armados. Capitaneava-os o Borba, feroz caudilho que Angelim distinguira como chefe das operações n'aquellas bandas. Este individuo votava profunda ogerisa ao vigario: jamais lhe perdoaria a reprimenda com que, um anno antes, o fulminara, em Curralinho, por ter esbofeteado a propria mulher. Que bello ensejo então para pregar-lhe uma peça! Chamou o seu logar-tenente e mandou buscar o padre. Veiu logo o sacerdote, com a sobrepeliz amarrotada, a estola do avêsso, todo elle tremendo como a sururina moribunda. --Ora passe p'ra 'qui, seu fradalhão! gritou-lhe o Borba, mal o avistou entre dois cabanos, ameaçadoramente armados de clavinotes. E logo ordenou que fôssem buscar tambem a Mariasinha, filha do pescador Sabá. Quatro grandes fogueiras, accêsas por ordem do chefe, illuminavam o recinto. Ninguem mais ousara fugir; o povo agrupava-se pelo adro e pela praça, em recolhida attitude, quasi sem movimentos, temeroso da morte. Eram tão maus os cabanos! Havia pelos grupos feminis silenciosos soluços. Lancinante quadro, em verdade e por elle é que o ancião chorava também perdidamente. --Faça-me soffrer, exclamou, porém não persiga esta boa gente! --Cale a bôcca, idiota! respondeu-lhe o Borba, n'um meio sorriso que a todos apavorou mais do que a maior das ameaças. Entretanto, acercava-se um troço de rebeldes, trazendo comsigo Maria, discipula de Constancio. Que vinha por seus pés quasi não se poderia affirmar, pois era ao collo que o mais espadaúdo caboclo a conduzia, semi-morta de mêdo. Borba tomou petulante attitude, cofiando as raras répas do bigode falho, sempre a sorrir. Ordenou: --Padre Constancio, passe á frente! Arriscou o sacerdote algumas pernadas trôpegas. --Aqui, ao lado da Mariasinha, tornou a dizer o chefe. Constancio approximou-se. --E agora, intimou o caudilho; se quizer, dê um beijo na cunhantan. Eu sei que você gosta d'ella. Pois despeça-se! E, voltando-se para os companheiros, explicou em voz fortissima: --Deliberei repudiar a vibora de minha mulher, amigos, e casar-me com outra rapariga. Convido-os para assistirem á ceremonia que padre Constancio, bem contra vontade, celebrará agora mesmo. A egreja está preparada e a noiva é esta! E designava a mimosa discipula do padre, cuja primeira communhão fôra marcada para o proximo domingo. Não pôde o povo dominar uma exclamação de surpresa e repugnancia. Ao que logo retorquiu o cabano: --Que ninguem arrede d'ahi. O socego é a condição da vida dos habitantes da localidade. E tomando a caboclinha nos braços, levou-a para o templo. Constancio, barafustando, protestava aos gritos, arrastado por dois sicarios. * * * * * O desenlace do caso é evidente: recusando-se a satisfazer ao sicario, o padre foi assassinado sobre os degraus do altar. Mas nem por isso a cheirosa e innocente Mariasinha deixou de ser, d'então em deante, a concubina do caudilho, que a violou ali mesmo, na sacristia. Só por tal preço os cabanos abandonaram a localidade, na manhã seguinte. UM COMO TANTOS UM COMO TANTOS PARA O LICINIO SILVA, ESTA OBSERVAÇÃO. Haviam já passado para Nazareth, de volta do Vero-peso, os derradeiros bonds do espectaculo. A pouco e pouco, os peões tinham rareado no cimento dos largos passeios das avenidas,--o transito fizera-se nullo, um ou outro noctivago impenitente andava errante á sombra propicia das folhudas mangueiras, investigando a distancia com olhares incendidos de uma ponta de lubricidade contida a contra-gosto. Nos renques da illuminação electrica manifestavam-se eclipses intermittentes, contra os quaes praguejava, sem bem saber porquê, o cocheiro d'uma carruagem estacionada em frente ao Club Universal. Poucas mesas restavam no terraço do Café Riche. Entretanto, um creado somnolento, não obstante a ausencia de frequentadores, persistia, pelo habito, em dispôl-as em symetria, rodeando-as de cadeiras. O chão estava zebrado de humidades adocicadas, escorrido de Apollinaris transbordante, coalhado de rolhas, aqui e acolá brilhante de pedaços de capsulas das garrafas de cerveja. Perto, gania um cão. Mas outro cachorro irrompêra do centro da enorme praça, viera em linha recta, cabeça baixa e cauda erguida, para junto d'aquelle e, após as rapidas saudações peculiares, fôram-se ambos, General Gurjão a baixo. Liberrimos animaes! Silverio, meio voltado para a esquerda, acompanhara-os com a vista, distrahidamente; até desapparecerem na silente escuridão da rua. Estava sentado n'um banco, havia muitas horas, defronte da curva dos bonds. O olhar avistara um cartaz collado á parede da Casa Adolpho: uma parisiense, com a saia batida pelo rijo vento de Montmartre, puxava um carro-annuncio, formoso preconicio do estabelecimento. Pareceu-lhe que a sua situação moral estava em analogia com o quadro, afora os matizes garridos. Elle tambem andava atrelado ao carro da vida, fustigado e zurzido pelo tufão dos dissabores domesticos. As tintas, porém, com que se devêra pintar a sua existencia tinham de ser amassadas na palheta das desditas,--toda a gamma sombria das cores carregadas, desde o roxo dos goivos ao negro da infelicidade. Desviou a vista do obsidiante cartaz, pois não fôra para atiçar tristes lembranças que saíra de casa. Bem ao contrario, necessitava de distrahir o espirito, refrescar o cerebro na suave tranquillidade da noite, em plena praça. Tirou o chapéu, conservando-o na mão direita e extendeu os braços pelo espaldar do banco. A cabeça, de largas entradas, pendeu para traz: dir-se-ia um crucificado; e o olhar foi ao alto, cravou-se na insondavel amplidão do espaço, ao fundo da qual phosphoresciam estrellas, aos milhares. Afundou-se então na tremenda reviviscencia dos seus infortunios. --Lá vae ella outra vez, bradou alguém, á direita. Silverio, com um estremeção, voltou á vida exterior, buscando descobrir quem falava. Era o cocheiro,--o Cadete ou o Bruzegas,--á porta do Club, encarapitado na bolêa, a denunciar em soliloquio cada intermissão na luz do foco electrico mais próximo. --Feliz mortal, murmurou Silverio, invejoso da despreoccupação d'aquelle homem. O Riche, a cuja porta cabeceava o proprietario, estava sempre illuminado; e o servente, fatigado alfim de ordenar mesas e cadeiras que ninguém desarrumava, ia toscanejando, mesmo de pé, escorado á cêrca de uma das mangueiras. Cessara de todo o movimento de transeuntes. Os demais cafés da avenida haviam fechado. Pelas janellas abertas do Universal, desciam ondas da illuminacão dos salões desertos. Nos dois passeios, varredores urbanos passavam sobre o cimento, em largos gestos, longas vassoiras de sacahys. E bem adeante de si, viu Silverio, ao meio do enorme quadrilongo, com o pedestal rodeado de fulgurantes globos electricos, erecta no alto da desproporcionada columna, a estatua da Liberdade, emergindo por sobre a folhagem da arborisação. --Liberdade! Não ser eu também livre! murmurou suspirando. E, mau grado o seu empenho em distrahir as idéas, voltou a concentrar-se nas maguadas recordações da propria desgraça. Casado ha quatro annos, com uma compatriota, uma italiana, a quem aliás déra logar em seu leito por um impulso de generosidade, ante a extrema pobreza dos paes d'ella, a breve praso começou a verificar que disparidades capitaes de genios e educação os incompatibilisavam para a vida commum. Ao principio, insignificantes arrufos chegaram a offerecer-lhe um sabor novo na existencia: das pazes que se lhes seguiam vinha um renascimento de ternura, uma ineffavel delicia para a intimidade dos longos e mudos amplexos. Illusorios aperitivos, taes amuos. A pouco e pouco avultaram, tomaram corpo, assumiram as proporções de graves pendencias barulhentas. A mulher tinha a bóssa da loquacidade desenvolvida; e, quando se enfurecia, eram interminaveis gritarias, que o desesperavam na razão directa do natural socegado e taciturno do infeliz. Aggravou-se depois esta situação, já bem penosa, com a intromissão dos paes de Luiza. A sogra levou-lhe para o lar a contribuição de torturas ineditas. A cada gesto, a cada passo de Silverio, uma recriminação. Embalde buscava o pobre comprar a paz do lar á custa de pequenos presentes para seus tres algozes: nada prestava, tudo de infima especie. «Já viram homem tão falto de gosto?» O Silverio experimentara ao principio chamar á ordem a mulher, com o auxilio de raciocinios discretos, arriscados a medo, mansamente, meigamente. Emtanto, por amor dos dois filhinhos que tinham surgido entre accessos de raiva e curtas calmarias, sacrificou todo o resquicio de sua virilidade moral: recolheu-se ao impassivel silencio de quem acceita resignado a brutalidade do destino. Quando rebentavam-lhe no lar os grandes temporaes, recolhia-se a um quarto, embrulhava-se na rêde, tapava ambos os ouvidos. E mulher e sogra, espicaçadas pela inesperada evasiva, iam levar-lhe a saraivada das invectivas superagudas, esganiçadas em falsete,--emquanto o sogro, impando da farta bonaxira de malandrim obeso, fazia em voz cava os soturnos trovões das ameaças: «Hei de quebrar-te as pernas, cão!» Todo o seu affecto reverteu para as duas creanças, um pequeno e uma rapariguita adoraveis, que chegavam a ter graça, tal a sua candidez, mesmo repetindo em timidos balbucios as calumniosas exclamações da velha: «Papae é mau! papae é feio!» Feio, sim, e não era por sua vontade que nascera com uma caraça espalmada, que o sol da America do Sul tostara duramente. Mau, porém, não; e em silencio protestava contra o qualificativo. Dizia-lhe a consciencia não ser merecida a apostrophe; comtudo, sem escorraçar os meninos com a mais leve sombra de censura, tomava-os ternamente pela cinta, sentava-os ao collo, um em cada joelho, acariciava-os de manso, amimava-os, cobrindo-os de beijos e de silenciosas lágrymas. De tudo isto lembrava-se o desditoso Silverio, inerte no banco da avenida, as pernas entorpecidas pela demorada immobilidade. Ainda ha pouco, ao anoitecer, houvera em casa uma terrivel scena. Persuadira-se Luiza estar o marido auferindo grandes lucros n'uma industria inaugurada mezes antes, lucros que desviava ás occultas para a Europa. E deu para exigir-lhe «a sua parte no negocio». Sogro e sogra tinham acudido com argumentos e gritos: «De certo, é preciso pintar já para aqui os cobres!» E, desenvolvendo preceitos juridicos, explicava o velhote que «a não cohabitação material dos conjuges recolhidos sob o mesmo tecto não impedia a co-participação na pecunia». Dispensou-se de se desculpar, o Silverio; e, para não irem mais longe os brados, que estavam já a incommodar a vizinhança, tomou dissimuladamente o chapéu, fugiu precipite rua adeante, até á avenida. Ali, ao menos, estava fóra da socerina alçada. Safa! A vista da estatua suscitara-lhe a nostalgia da liberdade. Relanceou um olhar pelo passado, desde a sua chegada a Belém e pasmou de ainda sentir dentro de si o que se chama um coração e uma alma, após soffrimentos tão longos e tamanhos. Onde teria elle o bomsenso, já revelado desde a adolescencia, quando commetteu a leviandade de casar com Luiza? Nada o libertaria agora, porque a sua inteireza de animo, a sua correcção nativa lhe vedavam o supremo recurso da fuga. Prendiam-n'o ao cepo abençoadas cadeias: os filhos, que eram os doces élos ligando o seu alvedrio á desdita. As creanças! Elle também fôra pequenito, descuidoso e travesso infante, nas amplas veigas lombardas, rescendentes a rosmaninho. Creara-o a inexgottavel ternura da velha mãe, e tinha sido ao som dos rudes osculos bonachões do pae que elle, apaparicado á porfia, encetara a solettração do singelo alphabeto das caricias familiares. Em casa, no antigo e pobre lar, tão arejado no verão e tão cheio de tepidos brazeiros pelo inverno, quando o norte inclemente bramia rispido nos olivaes e carvalheiras, só recebera edificantes exemplos de tolerancia mutua entre esposos amantes, de respeito calmo, de intensissima affeição. E na dupla contemplação do carinho de seus progenitores e da forte paixão com que o gado amava na pradaria, manhã cedo, ao abalar da arribana, iniciara Silverio, desde joven, o seu grande sonho de um lar todo meiguices, em férvida ventura conjugal. O sonho fôra deveras fugaz. Em pesadelo tornara-se depressa, n'estes ardentes paizes americanos, onde tudo parece crescer, desenvolver-se e passar vertiginosamente. Aquelles saudosos tempos estavam longe, formavam um grupo separado, distincto, na vasta collecção de suas recordações de outróra. Presentemente, nada restava da tranquillidade em que se formara a sua adolescencia, na Europa, nem dos esperançosos, dulcissimos sobresaltos que chegavam a tirar-lhe o somno, retendo-o até alta noite no sombrio tombadilho do vapor, quando fizera a travessia do Atlantico. Tudo fugira, na definitiva liquidação da sua felicidade. Esta dolorosa introversão foi interrompida por um relinchar de cavallo. Olhou Silverio á direita, como voltando de um sonho. Tinham-se afastado os varredores, andava ainda no ar, peneirada na luz dos focos electricos, a poeira levantada pelas compridas vassoiras. Sempre aberto, o Universal manchava de claro a ramaria das mangueiras com a projecção das salas illuminadas. Em frente á porta, o cocheiro falava manso aos animaes impacientados. E o creado do Riche, desperto pelo relincho, obtivera do patrão a ventura de um gesto, ordem muda para fechar. Entrou Silverio a acompanhar-lhe com a vista os movimentos, as idas e vindas, mesas levadas aos pares, cadeiras conduzidas a duas e duas em cada mão. Feliz homem, esse creado, pensava, se não tinha a inenarravel desdita de possuir um inferno em vez de lar. Ia dormir socegado, tendo trabalhado materialmente,--reparadoramente. A subitas, atravessou-se-lhe uma idéa no cerebro. Erguendo-se n'um esforço, bateu forte com os pés no lagedo, para os desentorpecer, e chamou o servente: --Deixe essa mesa, disse, traga um cognac. E sentou-se, com esta sentença espipada de sua ironia dolorida: --O alcool é a mortalha da dôr. INDICE PAG. Dedicatoria Uma homenagem I Represalias 13 Um exgottado 35 Conto do natal 49 A neta da cabocla de Ourém 57 O banho da tapuia 83 Complicações psychologicas 95 Um caso da cabanada 111 Um como tantos 127 OPINIÕES DA IMPRENSA ENTRE AS NYMPHÉAS Contos e sensações POR J. MARQUES DE CARVALHO Edição-miniatura de Arnoldo Moen, de Buenos-Aires _OPINIÕES DA IMPRENSA_ Este novo livro do auctor de _Hortencia_ foi muito lisonjeiramente acolhido pela imprensa nacional e extrangeira. Vamos reproduzir algumas opiniões de jornaes e escriptores notaveis, externadas por occasião do apparecimento do formoso livrinho. D'_O Paiz_, do Rio de Janeiro: De Buenos-Aires recebemos um volume do livro _Entre as Nymphéas_, ultimo trabalho litterario do nosso compatriota Marques de Carvalho, Secretario da Legação brazileira. Compõe-se de onze novellas escriptas na Amazonia e foi primorosamente impresso pela casa «La Vasconia» da capital argentina. É o primeiro livro em portuguez publicado em Buenos-Aires, mas não foi posto á venda ali. Apenas será encontrado na livraria Fauchon, d'esta capital. Em breve daremos a nossa opinião sobre o seu merito. Da _Gazeta de Noticias_, do Rio: _Entre as Nymphéas_ é o titulo de um volume, escripto e publicado em Buenos-Aires pelo nosso compatriota J. Marques de Carvalho, já tão vantajosamente conhecido pelos seus trabalhos litterarios. A edição é formosissima e do merito do livro com mais vagar falaremos. Do _Jornal do Brazil_, da Capital Federal: _Entre as Nymphéas_, nitido e elegante volume, impresso em Buenos-Aires e de que é auctor o sr. J. Marques de Carvalho, Secretario da Legação brazileira na Republica Argentina. Contém uma excellente collecção de contos e narrativas, escriptas em estylo correcto e elevado bastante para revelar as aptidões litterarias do auctor, que não é um desconhecido nas lettras patrias. Do _Jornal do Commercio_, do Rio: O sr. João Marques de Carvalho, Secretario da nossa Legação na Republica Argentina, publicou um volume com o titulo _Entre as Nymphéas_, contendo diversos trabalhos litterarios seus: compostos em diversas épocas e que offerecem agradavel leitura. A impressão feita em Buenos-Aires é nitida. Ainda d'_O Paiz_, secção «Livros Novos»: Desobrigamo'-nos hoje do compromisso ha dias assumido, publicando a impressão que nos deixou a leitura do novo livro de Marques de Carvalho, Secretario da Legação brazileira era Buenos-Aires. O volume _Entre as Nymphéas_ contém onze trabalhos, seis dos quaes incluidos na 1.ª parte, sob a denominação geral--_Subjectivismo_, ficando os outros cinco subordinados ao titulo _Objectivismo_. Os primeiros contêm ou descrevem impressões intimas, subjectivas, conforme o proprio titulo indica, falando n'elles a alma «na livre expansão da sua illimitada sinceridade e de todas as forças affectivas que possue». São dedicados pelo auctor a sua esposa, «o amparo dos seus desanimos, o jubilo dos seus dias prazenteiros». A nota dominante do livro é toda de tristeza e de melancolia. Através de suas paginas percebe-se a saudade, a dôr, o desespero, o horror a tudo quanto não é puro, a tudo aquillo que resulta da falsidade, da mentira, do convencional. Collocado em meio das florestas virgens do Amazonas, vivendo a vida simples dos habitantes d'aquellas paragens encantadoras, que outra impressão poderia beber o auctor em tão suggestiva situação, senão a impressão do bom, do justo, do sentimental? D'ahi a naturalidade com que o livro foi escripto, sem grandes arreganhos de fórma, embora n'um ou n'outro periodo a gente fique a suppôr que Marques de Carvalho pende para o falso _nephelibatismo_. Indubitavelmente a naturalidade é uma das primeiras qualidades do escriptor, sendo que os livros que mais successo causam, são justamente aquelles em que o estylo, sempre correcto, sempre bello, não ultrapassa as raias do espontaneo, do natural, para caír no ridiculo das adjectivações estrambolicas, retumbantes e malsonantes. Lê-se com prazer os onze contos concebidos «entre as nymphéas, na região dos nenuphares e da Victoria Régia». Destacamos, porém, da primeira parte, por nos ter melhor impressionado, a fantasia intitulada _O cemiterio da floresta_, em que o auctor faz bonitas considerações sobre a hypocrisia das grandes cidades dos mortos e sobre a poesia de uma sepultura entregue á guarda das mattas virgens e ao eterno choro das aguas que deslisam mansamente junto á orla da floresta. Da segunda parte, onde apparece, com as _Yaras paraenses_, uma ponta de bom humor, pedimos permissão para salientar ainda dois trabalhos: _Mater dolorosa_ e _A filha do Pagê_, conto indigena com que o auctor fecha o seu livro. _Entre as Nymphéas_, embora impresso em Buenos-Aires--o trabalho typographico é admiravel--não está á venda n'aquella capital. Os jornaes platinos têm tecido muito merecidos elogios ao nosso compatriota, com a apreciação do seu livro. _La Patria Italiana_, principalmente, diz ter-lhe causado a mais agradavel das impressões a leitura dos contos de Marques de Carvalho, affirmando que _Entre as Nymphéas_ vem augmentar os louros colhidos pela actual geração litteraria do Brazil. Felicitamos cordialmente o nosso compatriota e collega, cujo talento de escriptor já se tem manifestado nas suas diversas faces com a publicação de tres opusculos e de tres outros volumes: _Hortencia_, _O livro de Judith_ e _Contos Paraenses_--todos bem recebidos no paiz e no estrangeiro. De Valentim Magalhães, em folhetim d'_A Noticia_. _Entre as Nymphéas_ é o lindo titulo de um livro lindo--por fóra e por dentro. É seu auctor o sr. dr. J. Marques de Carvalho, nosso ministro em Buenos-Aires. É um livrinho do feitio e do gosto d'esses da _Collection Papyrus_, impresso n'aquella cidade e editado por Arnoldo Moen. Contém onze narrativas divididas e grupadas em duas partes, que o auctor intitulou _Subjectivismo_ e _Objectivismo_. São contos curtos, muito intimos e suavissimos os primeiros; pittorescos, rapidos, _flagrantes_ os segundos,--todos escriptos com elegancia e colorido. Da primeira parte citarei, como melhores, _O isolamento_, _O naufragio do Purús_ e _O cemiterio da floresta_, e da segunda _Mater dolorosa_ e _A filha do pagé_. O dr. Marques de Carvalho, que já tem atraz de si varios livros, é um fantasista delicado e sentimental, e apaixonado pela sua terra, o que lhe dobra o encanto e o valor. _Entre as Nymphéas_ é um mimo: recommendo-o a quem se sinta embaraçado na escolha de um presente para uma menina ou senhora. De Bellarmino Carneiro, n'_O Paiz_: A imprensa argentina não tem regateado elogios ao precioso e elegante volume com que Marques de Carvalho acaba de fazer a sua reapparicão nas lettras patrias. E Marques de Carvalho bem o merece, pois os seus trabalhos são obra de artista apaixonado e de homem de coração, como elle mesmo o confessa. Espirito educado nas pugnas litterarias, adestrado luctador da imprensa, temperamento rijo e masculo, como em regra o dos filhos da região septentrional, Marques de Carvalho, ao deixar o posto de redactor d'_A Provincia do Pará_, a brilhante folha do norte, onde muito cedo ainda começara a trabalhar ao lado do dr. Assis, de Antonio Lemos, de Jovino Ayres e de muitos outros jornalistas distinctos, trazia um nome laureado. _Hortencia_, _Livro de Judith_, _Contos Paraenses_ e alguns opusculos em que firmou a sua ardente fé republicana, davam-lhe foros de escriptor consagrado pelos applausos publicos. Secretario do governo republicano do Pará e mais tarde diplomata, o auctor de _Entre as Nymphéas_, apezar das responsabilidades e dos labores da carreira politica, não esqueceu o culto ás lettras, nem abandonou os seus antigos idéaes. Prova-o o seu novo livro. Começamos estas linhas dizendo que a imprensa argentina colmara de elogios esse livro, cuja edição é um primor de factura typographica, e referimo'-nos a isto para mencionar de preferencia, entre tantas noticias laudatorias dos jornaes portenhos, como _Patria Italiana_, _El Diario_ e muitos mais que vimos, o bellissimo artigo de Rubén Dario, o elegante e fino estylista, no periodico illustrado _Buenos-Aires_. Rubén Dario é um escriptor venezuelano e critico erudito, que illustra com seus trabalhos litterarios varias folhas da capital argentina, especialmente _La Nación_, onde temos lido ultimamente o seu bellissimo estudo sobre o admiravel livro de Menéndez Pelayo, _Antologia de poetas americanos_. Tratando do livro do nosso compatriota Marques de Carvalho, diz Ruben Dário[1]: «Pouco conhecida é entre nós outros a litteratura brazileira contemporanea, aliás tão opulenta e brilhante, que quasi poderia considerar-se a primeira da America latina. Desde os velhos, os veteranos das lettras, que escrevem na _Revista Brazileira_, até essa ardente e amestrada geração que se manifesta em publicações tão habilmente sustentadas como _A Semana_, a producção mental do Brazil é a muitas respeitos digna de attenção, e d'ella, mais que de nenhuma outra dos paizes latino-americanos, se tem occupado por vezes a critica européa. Quem conhece entre nós--para citar só um nome--esse critico de tão solida e profusa erudição, tão moderna variedade e bella galhardia, que se chama Araripe Junior?» ......................................................................... E accrescenta depois: «Ao percorrer as paginas d'este livro, vê-se que quem o tratou é escriptor que não desdenha o amor da arte da palavra. Se não ha ali o labor de um artista, se não chega até aos virtuosismos de fórma de alguns dos seus jovens patricios--a verdade é que elle se proclama singelamente «naturalista na expressão»--tem uma espontaneidade e um dizer amavel que impressionam mui favoravelmente. Narra sem _ambages_; dá uma bella impressão da natureza tropical nas suas descripções selvagens e fluviaes. No principio conta os suaves deleites do isolamento; Zimmermann ficaria muito satisfeito com elle. Depois, um bando de gaivotas leva-o a exhalar suspiros de vaga melancolia. Recordando o pavoroso naufragio do _Purús_, no grande rio, catastrophe em que pereceu a mãe de sua mãe, a manifestação do sentimento expande-se em commoventes e intimos periodos. As expansões familiares continuam em amorosos trechos dedicados á sua filhinha. No _Cemiterio da floresta_, a phrase se avigora e o cuidado do estylo substitue os anteriores desafôgos pessoaes, que se renovam n'uma pagina profundamente sentida, na qual rememora a morte de sua mãe. Ahi conclue a primeira parte, que elle denominou _Subjectivismo_. Na segunda, _Objectivismo_, encontram-se elegantes, delicadas, graciosas coisas. _A pesca de Deodato_ é um conto repleto do bom-humor, que alegra o fantastico da narração; etc. _Mater dolorosa_ é um triste episodio de dôr materna; _Yaras paraenses_, uma encantadora _humorada_; _Uma historia de amor_, uma série de cartas de um Marcel Prévost, agradabilissimas, e _A filha do Pagé_, uma narrativa muito humana e muito bonita. O livro lê-se rapidamente, gostosamente. Eu felicito o seu auctor, que me proporcionou uma feliz meia-noite até o amanhecer». Taes são os conceitos expressos pelo illustre critico em artigo especial do _Buenos-Aires_, illustrado com um excellente retrato de Marques de Carvalho. O nosso joven compatriota deve sentir-se bem compensado dos seus esforços, vendo-os prestigiados por auctoridade tão eminente nas lettras americanas, e nós não dissimularemos o jubilo que nos enche a alma cada vez que o nome de um brazileiro levanta longe da Patria applausos e acclamações tão raramente e tão avaramente prodigalizados em geral. [1] Rubén Dario é um dos mais competentes criticos litterarios da actualidade e o mais vigoroso estylista em idioma espanhol na America do Sul. De Arthur Azevedo, na secção «Palestra», d'_O Paiz_: Li de uma assentada _Entre as Nymphéas_, o interessante livro que o nosso distincto compatriota J. Marques de Carvalho publicou em Buenos-Aires, onde exerce o logar de 1.º Secretario da Legação brazileira. O volume divide-se em duas partes--_Subjectivismo_ e _Objectivismo_. A primeira consta de paginas intimas, escriptas em estylo agradavel, mas um tanto rebuscado; na segunda, mais curiosa, mais simples e mais variada, encontram-se quatro bellos contos que transportam o leitor ás magestosas margens do Amazonas e _Uma historia de amor_, fantasia psychologica, condimentada _à la mode de Paris_. Essa espirituosa composição contém sete cartas, escriptas por uma mulher durante mez e meio, que são o prologo, a acção e o desenlace de uma aventura de amor. O livro de Marques de Carvalho, que sabe manejar a penna perfeitamente; contém paginas verdadeiramente encantadoras. _A filha do Pagé_ o conto com que termina o livro, é uma chave de ouro. Accrescentarei que o volume, um primor de impressão, imitando as mimosas edições Guillaume, de Paris, faz honra ao editor Arnoldo Moen e á typographia _La Vasconia_, de Buenos-Aires. O general dom Bartholomeu Mitre, que foi commandante das forças alliadas contra o Paraguay e presidente da Republica Argentina,--sendo além de tudo um dos mais eruditos e festejados litteratos contemporaneos, dirigiu a Marques de Carvalho as seguintes linhas, ao receber um exemplar de _Entre as Nymphéas_. Bartholomeu Mitre saúda attenciosamente ao ex.mo sr. J. Marques de Carvalho Encarregado de Negocios do Brazil na Argentina e agradece o precioso livro que se serviu offerecer-lhe, o qual conservará como uma lembrança na sua Bibliotheca Americana, com a honrosa dedicatoria autographa do auctor, a quem deseja todas as felicidades n'este paiz. O sr. dom Mariano Pelliza, diplomata e historiador argentino, tambem enviou estas palavras ao auctor: Mariano A. Pelliza, sub-secretario de Relações Exteriores, saúda ao seu amigo Marques de Carvalho e compraz-se em enviar-lhe os seus agradecimentos pela joia litteraria (por esta vez,--joia--não é metaphora) com que teve a gentileza de o obsequiar. Herculano Marques Inglez de Souza, o illustre jurisconsulto e eminente litterato brazileiro, endereçou a Marques de Carvalho a seguinte carta: Cumpro um grato dever, agradecendo cordialmente a V. a dupla distincção que se dignou fazer-me, offerecendo-me um exemplar do sou bello livrinho--_Entre as Nymphéas_ e dedicando-me as sentidas e delicadas paginas que escreveu a proposito da tragedia do vapor _Purús_. Já conhecia de V. alguns trabalhos e, entre elles, a _Hortencia_, romance em que revela grandes qualidades de observação e muito amor á verdade na Arte. O seu novo livro mostra que áquelles predicados sabe V. alliar muito sentimento _verdadeiro_ e um estylo colorido e sóbrio. A conceituada _Revista Brazileira_, do Rio, estampou o seguinte juizo critico: Como a canôa que deslisa por entre a vegetação aquatica que deu o titulo a este elegante livro de contos, vae a alma de quem o lê levada de narrativa em narrativa, sem se emmaranhar nas enrediças do estylo caprichosamente entrelaçadas. Com effeito, reproduzem-se n'este livro delicado as infinitas gradações de côres que o sol dos tropicos, enfiando o pincel de raios pelo prisma das cataractas, fixou nas pennas das aves e nas folhas dos nenuphares. E com a vehemencia com que pelas regiões do Amazonas brotam as açucenas do seio das aguas, o sentimento do bello enraizado profundamente na alma do escriptor desabrochou em commovidas phrases á flôr do pranto que lhe fez verter a saudade da filhinha ausente ou da mãe que elle viu finar-se. _Brinde a minha filha_ e _Um anniversario_ são paginas escriptas com o proprio sangue e incluidas na 1.ª parte--_Subjectivismo_, que o auctor offerece a sua esposa. O subjectivismo terá sempre esta superioridade incontestavel: que na ignorancia em que depois de tantos seculos de philosophias ainda se encontra o homem com respeito á lei do universo, somente a que em si sente póde ter uma tal ou qual consciencia; d'onde resulta que, ainda quando copía o mundo exterior, é o seu proprio sentimento que empresta ás coisas. Por isso o homem persiste em affirmar que os montes são tristes, que choram os mares, que riem as searas, que folgam as aves, e não quer ver que nem os montes são tristes, nem choram os mares, nem riem as searas, nem folgam as aves e que só elle é triste, chora, ri ou folga, porque só elle possue em toda a natureza a capacidade das alegrias supremas comparada com o dom das supremas angustias. Da 2.ª parte--_Objectivismo_, commoveram-nos principalmente as duas narrativas _Mater dolorosa_ e _A filha do Pagé_, a historia entristecedora de uma mãe que vê o filho engulido pelo gigante rio do Norte e a de um velho indio que chora a filha deshonrada. Estes dois contos confirmam-nos na crença de que é, quando menos, inutil para a arte a distincção entre _subjectivismo_ e _objectivismo_. Se o auctor logra transmittir a quem o lê a emoção espontanea ou reflexa de que se acha possuido (e é o caso do sr. Marques de Carvalho), a obra é verdadeira; se não logra, a obra é falsa, porque, em todo caso, é sempre o objectivismo do leitor que julga em ultima instancia.--S. R. *** End of this LibraryBlog Digital Book "Contos do Norte" *** Copyright 2023 LibraryBlog. All rights reserved.