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Title: Entre as Nymphéas
Author: Carvalho, João Marques de, 1866-1910
Language: Portuguese
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                       OBRAS DE MARQUES DE CARVALHO

                                    VII

                             ENTRE AS NYMPHEAS


    DO MESMO AUCTOR

    O SONHO DO MONARCHA      Opusculo
    LAVAS                    Opusculo
    PAULINO DE BRITO         Opusculo
    HORTENCIA                1 volume
    O LIVRO DE JUDITH        1 volume
    CONTOS PARAENSES         1 volume



                          J. MARQUES DE CARVALHO

                             ENTRE AS NYMPHEAS



                               BUENOS AIRES
                           Arnoldo Moen,--editor
                           Calle Florida N.º 314
                                   1896



PRIMEIRA PARTE

SUBJECTIVISMO



A minha esposa



_Esta parte do volume é intima, subjectiva._

_Suas paginas constituem o trabalho d'um artista apaixonado e d'um homem
de coração, durante uma viagem entre as nympheas, na região dos
nenuphares e da Victoria Regia, pelos rios Amazonas, Negro e Madeira, ha
seis annos._

_O labutar objectivo do auctor em busca da expressão naturalista da arte
encontra aqui uma occasião de pausa roborante, emquanto fala a alma, na
livre expansão da sua illimitada sinceridade e de todas as forças
affectivas que possue._

_Eu devia esta homenagem ao amparo dos meus desanimos, ao jubilo dos
meus dias prazenteiros,--á insubstituivel companheira a quem dedico esta
metade do volume. Doze annos de intensíssimo affecto necessitavam de uma
commemoração._

Buenos Aires, 1895.

                                                      Marques de Carvalho.



O ISOLAMENTO



O ISOLAMENTO

                                                            A Coelho Netto


I

Ergui-me com a estrella d'alva, esta manhã.

Oppresso pela atmosphera pesada do aposento, saí logo ao terraço, a
receber em cheio na face a brisa que, desde o interior da casa, eu ouvia
sacudir valentemente as grandes arvores da floresta, ali perto.

Logo bebi, sôfrego, esse ar embalsamado que enchia o ambiente.

Uma alegria sem par empolgou-me o espirito, sem duvida suscitada pela
grandiosa belleza circumdante. Embrenhei-me na matta, seguindo uma
azinhaga. Começava a amanhecer. Havia no ar esse murmurio das aves que
despertam,--bulicio tepido que só podem avaliar os madrugadores na
roça,--um como roçar voluptuoso do frouxel suavíssimo que exorna as
innumeras legiões canoras do Amazonas.

Não sei o tempo que andei quasi ás apalpadelas, ao longo do carreiro.
Interessava-me tanto pelo duplo acordar dos ninhos e das plantas, que só
reparei em mim mesmo quando, já dia claro, encontrei-me no cantro de uma
bella clareira. Por cima de mim, balbuciava a brisa dulcíssimos
rumorejos, agitando as copas verdejantes. Em derredor, porém, era, ás
vezes, absoluta a tranquillidade das coisas. Por intermittencias,
nem mesmo um ciciar de passarinho, ou esse mysterioso, farfalhante
correr de lagarto, que parece suscitar não sei que extranhos sobresaltos
nas florestas do meu paiz.

Formava a clareira como um salão circular preparado pela natureza para
receber-me. E, para que nada faltasse, havia, ao fundo, extendido como
um luctador exhausto, um grande tronco secular, que alguma tremenda
tempestade derribara. Amplo, coberto do limo que arremedava a fôfa
disposição dos estôfos valiosos, esse gigante vencido offerecia-me
commodo assento rustico. Entretanto, não utilisei-me d'elle: sentindo-me
bem, sentindo-me feliz, estava longe da fatiga. Por insensivel movimento
de dominio orgulhoso, apenas puz-lhe o pé no dorso, vencedoramente.

Na mesma occasião, porém, penetrou-me o pavor: uma grande ave, um
inhambú graciosíssimo emergiu d'entre as toiças de verdura fresca, de
sob o tronco abatido e ergueu o vôo para o interior do matto, n'um largo
ruflar d'azas com indubitaveis entonações zombeteiras, intoleravelmente
escarninhas.


II

Quedei-me ali muito tempo, a seguir esta ordem de pensamentos.

No entanto, o ceu fôra devassado pelo hilariante clarão com que este
bemdito sol da minha terra doira todas as coisas, em sua
munificencia de soberano insupplantavel. Por toda a parte, só uma coisa
via: luz, luz, luz, esse alastrar de claridade que penetra tudo, que dá
aos objectos uma apparencia de alegria, d'intenso jubilo paradisiaco!

Pelo ar, cantavam sempre a brisa e as aves, estas menos talvez do que
aquella, compromettida a fazer a larga harmonia da alígera volata.

A clareira formava agora um salão redondo alcatifado de velludo
esmeraldino, illuminado d'uma orgia de raios, vibrante da deliciosa
bacchanal dos passarinhos.

Minha alma dilatava-se mais no goso, até ali inexperimentado, de tamanha
quietude, de tão profunda sensação do que é grato na liberdade.

O isolamento! Quanta paz na situação que esta phrase traduz! Que suaves
delicias que meigo langôr frue o espirito no socego completo,
divorciado dos cuidados da vida commum, senhor emfim de sondar a
consciencia propria, com a qual anda, ás vezes, semanas inteiras sem ter
um só instante para escutar-lhe as impressões, para confabular com ella,
extremado dos sêres banaes e falsos que formam a nossa róda habitual!

Haverá porventura alguém que não preze esses momentos de silencio, nos
quaes a alma fala comsigo propria, dizendo coisas ha muito sentidas e
que, entretanto, parecem-lhe,--quando examinadas,--extranhas novidades
jamais ouvidas?

Lembro-me agora da attenta concentração em que surprehendo, algumas
vezes, no alto das ramarias, esses folgazões alados que garganteiam a
todo instante crystallinas fiorituras sonoras. Dir-se-ia
monologarem, resolvendo ponderoso assumpto, tal a profunda gravidade com
que pendem a cabecinha, como recolhidos ao mais intimo de si mesmos.

Conheci um canario ao qual este genero de melancolia era habitual.
Valente cantor, adorado em toda a vizinhança pelo talento com que
desferia os seus bellíssimos gorgeios, valia a pena vel-o, quando
espanejava-se ao sol, muito arripiado e gracioso, revolvendo com o bico,
em rápida immersão, a agua do pequenino tanque de crystal da gaiola
doirada onde vivia.

Tirava horas inteiras para cantar, saltitante e feliz! Podia dizer-se
que empenhava-se em fazer um impossivel, ou que pretendia matar-se n'um
excesso melodico e genial, superior ás forças de seu mesquinho sêr de
passarito delicado!

Porém detinha-se de repente, entre um trinado e um silvo: detinha-se,
interrompendo os elegantes pulinhos e, immovel na travéssa principal,
ficava ali demorados momentos, a curvar a loira cabeça para um e outro
lado, com uma sériedade que poderia fazer sorrir a quem, superficial e
leviano, não ponderasse no mysterio d'aquelle inesperado recolhimento em
que uma alma sonhadora e romantica parecia despertar n'elle com
intercadencias fataes.

Terão também os passaros o prazer do soliloquio, a volupia da meditação?
Terão também a percepção dos gosos inebriantes que provém da certeza de
estarmos sós,--absolutamente sós, que ventura!--emfim libertados da
tyrannia das convenções, capazes de desafivelar a mascara que atam-nos á
face os respeitos mundanos?...

Bem quizera crêr na existencia, n'elles, de um poder de reflexão, pois
d'outro modo não sei explicar aquella postura tão extranha, aquelle ar
philosopho, essa expressão quasi humana,--tão humana, que surprehende!

É que, de certo, sentem o valor do socego, da paz completa, do
tranquillizador influxo da solidão, cujos ineffaveis encantos fascinam,
penetram o organismo d'uma tepidez emolliente, dão este balsamo
incomparavel:--a alegria de viver!

E como assim não acontecer, visto que as aves são as dominadoras do
espaço, os habitantes da matta, onde é de todo sensivel o poder do
isolamento, d'esta situação, que póde ser considerada egoista e
destruidora, porém que o meu espirito acaba de começar a comprehender, a
reverenciar, a amar com descompassados enthusiasmos, porque vae-lhe
perscrutando os largos arcanos de poesia e alento philosophico, o vigor
que insufla a mente para aprofundar-se no estudo subjectivo, no
conhecimento do _eu_, a desillusão a que arrasta-nos em relação ás
pequenas miserias odientas do mundo postiço dos falsos e dos pretensos
civilizados?...

Gloria ao isolamento! Bemdita sejas, ó grande floresta amazonica,
osculada pela ardente paixão do sol, toda sonora dos folguedos da
passarada chilreante, rica de estranhos mysterios e de mysteriosas
riquezas inestimaveis!



GAIVOTAS



GAIVOTAS


I

Um bando de gaivotas, aos pares amoravelmente aproximados, ergueu o vôo
do mattagal e, cortando o espaço por de sobre o borbulhante estirão do
rio, veiu seguindo o vapor, a poucos metros de distancia da pôpa, ora
alteando-se á ponta do mastro, ora descendo rapido, de olhar incisivo e
lesto bico, até esfrolar levemente a agua com as cendradas pennas da aza
desfraldada.

O marulho da agua parecia excital-as, espicaçar-lhes a actividade em
céleres convites de festiva digressão a ignotas paragens, onde o ceu
fosse azul,--muito azul,--e a verdura das ilhas tivesse os tenros e
alegres tons que apresentavam os aningaes das margens defronte das quaes
passavamos n'aquelle instante.

Revoavam jubilosamente, as gaivotas, aproximavam-se do vapor,
descrevendo elegantes circulos, n'uma palpitação d'azas similhante ao
ruflar do leque entre os dedos d'uma bella mulher, quando impéra,
deslumbrante de graça, nos salões selectos. Vinham, parecia quererem
invadir a coberta, participar da ruidosa vida que sobre ella
apresentavam os passageiros, reunidos em intimas palestras.

Sentado á pôpa, eu silenciosamente fitava aquelles aquaticos
viageiros ignorados. Seguia-lhes os caprichosos folguedos sob a limpidez
do ceu, com o olhar perdido traz elles, emprestando-lhes idéas, dando a
mim proprio as razões d'esse livre gaudio perante a pompa triumphal da
tarde moribunda.

Formavam as margens visiveis do rio largas ilhas meio submersas, de que
apenas se viam emergindo da agua,--como braços erguidos para o espaço
n'um enthusiasmo viril de canticos de louvor,--milhares d'arvores
variadíssimas, esparzindo perfumes resinosos e estalando as cascas sob a
demasiada affluencia das tepidas seivas vivificadoras. Como grandes
açafates de caprichosas fórmas espalhados por toda a latíssima extensão
do rio, essas ilhas balouçavam as farfalhantes cômas glaucas, onde os
pássaros, papeando, entreteciam previdentes os diminutos ninhos e a
robustez dos merityzeiros erguia pendentes os pesados cachos de fructos
granadinos.

Pelas margens, começavam a acordar os innominados animaes noctivagos e
um arruido extranho, abafado, levantava-se em surdina sob o machucamento
das folhagens ondulantes.

E a tarde morria a pouco e pouco.

Depois, ao fundo da paizagem, recortaram-se escuras, encobrindo o sol,
as longas montanhas sobre as quaes está erecta Monte-Alegre.

Um dos mais bellos crepusculos vespertinos começou então.

Quadro verdadeiramente formoso! O ceu, entestando com essas montanhas,
apresentava todas as tonalidades do iris, n'uma pujança complexa de
matizes prismaticos, e o sol,--como apertado entre ellas e a brunida
cupula sideral,--disseminava pelo espaço crystalino feixes de raios
luminosos em gigántea expansão que lembrava uma aurora boreal, um enorme
clarão d'apothéose empyrea.

Pelo nascente, subiam gradativas trevas, como poderosíssimo senhor que
sae a combate sem precipitações, na sua convicção d'inilludivel victoria.

Ao mesmo tempo, perto do zenith, un crescentesinho de lua e a estrella
da tarde,--esta quasi tão luminosa como um raio do teu olhar, querida
amiga,--scintillavam merencorios, como annuviados por incognoscivel
saudade, entre longas nuvens delgadas, côr de pérola e lyrio,
rendilhando-se no azul ferrete do firmamento.

As gaivotas, então, que tinham vindo a seguir-nos,--emquanto o meu
olhar, da pôpa do navio, parecia desejar attraíl-as poderoso,--grasnaram
freneticas e, de subito, descrevendo rapido circulo elegantíssimo,
regressaram á terra d'onde tinham partido e fugiram veloces, n'uma
actividade de movimentação d'azas perdendo-se ao longe, na meia
escuridade do crepusculo.

Fiquei sosinho á ré, a fital-as...--a fital-as, oh! não!--a mirar o
ponto do aningal onde se haviam perdido aquelles inconscientes sêres,
que tanto me tinham enleiado o espirito nas invisiveis malhas dos seus
largos circulos graciosos, descriptos no espaço, em reflexões movediças
sobre as gorgolejantes aguas amazonicas.


II

Assim também fugiram-me precipitadas do seio as niveas alegrias, quando,
levado pela embarcação, ausentei-me saudoso da terra onde ficaram as
candidas inflorescencias do meu amor.

Como aquellas gaivotas, preguiçosas e sympathicas, os doces prazeres
familiares deixaram-me seguir sosinho, breve regressaram á terra que
idolátro na minha apaixonada effervescencia de enthusiasmo pela grande
patria digna das maiores dedicações.

Vou-me rio acima, isolado e desconhecido, entre pessôas estranhas,
separado de vossos enlevadores affagos, ó queridos entes cuja
ternura deslaça-me a vida em loiras espadanas de luz puríssima e gentil!
Sigo meditabundo, sem receber na alma entenebrecida um raio do vosso
olhar,--um só raio que me illuminasse o peito, para pôr em relevo dentro
d'elle toda a somma de santos sentimentos para vós,--sómente para
vós--guardados alí!

A abafada canção da agua babujando os flancos do navio faz a surdina
dolente que acompanha as mestas lamentações do meu espirito obsidiado
pela afflicção das saudades.

Ás vezes, a deshoras da noite, quando o firmamento escuro apresenta-se
deserto das suas luzentes tauxiações risonhas, e só a floresta da margem
rebôa agitada pelo cadenciado barulho da possante machina, embalde busco
pelo ceu do meu espirito certo par de estrellinhas annejas,--que são
os doces olhos petulantes de minha filha, fanaes da vida minha.

E só a luminosa palpitação phosphorescente dos pyrilampos tremeluze
rápida no tenebroso velludo dos aningaes da beira.

A solidão augmenta-me os pezares, quando a hora do crepusculo da tarde
vem descaíndo vaga pela terra, deslisando do inflexivel pendulo do tempo
com a dura impassibilidade d'uma desgraça tremenda.

Gaivotas, alegrias do rio! Alegrias, gaivotas do pélago da minha vida!
Porque fugís tão velozes, sem vos deixardes agarrar por estas mãos, que
vagam sem um apoio amoroso, sem vos deixardes aprisionar n'este peito,
fremente de meigas paixões santíssimas?

Rio Madeira, abril.



O Naufragio do Purus



O Naufragio do Purus

                                                     A H. Inglez de Souza


I

Este é o sitio em que, ha vinte annos quasi, afundou-se o _Purús_,
arrastando para o leito do rio algumas dezenas de cadaveres colhidos de
surpreza.

O Amazonas aqui, como conservando ainda a triste memoria do luctulento
successo, rola silencioso as suas aguas, cobre-se eternamente com o
intenso crepe, accentuado e mesto, do vasto rio Negro.

Têm as margens a apparencia de um recinto de funeral: socegadas e
desertas, monotonisam o quadro com a ininterrupta ostentação das suas
ramalhudas verduras densíssimas.

Nenhum gorgeio de passaro percebo na larga mudez circumdante.

No alto, o ceu, apinhado de nuvens escuras, encobre-me aos olhos a
risonha alegria do seu puríssimo azul, adoravel como as pupillas d'uma
imagemzinha da Virgem, que minha Mae, em pequenino, ensinou-me a
reverenciar com o contemplativo respeito das creanças absôrtas!

Passamos n'este mesmo instante sobre o logar onde atufou-se a elegante
embarcação aventureira.

Um pensamento de saudade assalta-me o espirito, agora que deslisei
rápido por cima do líquido sapulchro de tantos infelizes.

Relembro, com a forçosa evocação do meu passado, as confusas recordações
da primeira edade e reproduzo na mente, consoante ás narrações da época,
o pasmoso entrécho do hórrido espectaculo.

Vejo pessôas de todos os sexos e edades, em meio á densa escuridão da
noite, bramindo apavorados gritos, impetrando o auxilio do ceu
impassivel, amaldiçoando o momento final com o tôrvo desespéro das
grandes afflições.

A bracejar contra a correnteza, lobrigo um ou outro naufrago n'aquelle
pégo, quasi tão vasto como o do mantuano cantor. Uns, redobrando de
esforços, conseguirão alcançar a margem anhelada; a mór parte,
porém, certo fraquejará impotente na violencia das aguas e rolará
inanimada aos profundos antros dos caimões!

N'um camarote, vencida, dominada por tredo somno, uma joven mulher
angelical, esposa extremecida e extremosíssima, é surprehendida pelas
aguas em sua descuidosa seminudez inconsciente e logo suffocada sem
haver tempo de reconhecer o perigo por que passa com os seus,--com os
parentes affectuosos e com o infeliz marido, o commandante austero, de
quem separa-a, sem transigencias, a comprehensão do cumprimento do dever.

E ali morre, com o pobre coração retalhado de angustias e amaríssimas
saudades, uma valente mulher de temperamento e actividade virís, guia e
ama de muitos d'aquelles naufragos. É a heroica exploradora d'uma
parte do rio Madeira, a veneranda mãe d'um punhado de homens honrados e
de honestíssimas mulheres,--a idolatrada mãe d'aquella excelsa creatura
que deu-me luz aos olhos e piedosos sentimentos ao coração!


II

Comprehendo agora perfeitamente a dôr que rasgou-te os puros seios
d'alma, querida Mãe, quando correram a referir-te o hórrido successo.

Creança quasi irresponsavel, eu não tinha a percepção completa
d'aquelles affligidíssimos desespêros em que te lançaste, com os olhos
amarados de lágrymas adamantinas.

Entrei a brincar-te com os longos cabellos pretos, minha adoravel amiga,
e um beijo tão sincero como a tua dôr deposeram-te na fronte ensombreada
meus labios deslaçados em simples phrases sem valor.

Hoje, porém, ó Mãe, avalío com justeza a afflicção que em ti causou tão
deshumano flagicio da sorte inclemente. Sondo, linha por linha, todos os
arcanos do teu seio, ausculto-lhe as precipitadas palpitações soluçantes
e lamentosas.

Choravas, inconsolavel e dolentíssima, porque deixaras de ter mãe.

Sinto conhecer-te a intensidade das penas, porque também perdi-te para
sempre e só minha alma pode saber a força de toda a violenta dôr que, ha
seis annos, confrange-a impiedosa, minuto a minuto, persistentemente,
tantas são as vezes que de ti me lembro, inolvidavel mulher que foste a
guia da minha infancia e a amiga insubstituivel da minha adolescencia!

Rio Amazonas--Rio Negro.



Brinde a minha Filha



Brinde a minha filha

Hoje é o dia do teu primeiro anniversario, querida filha.

És pequenina de mais, tens o espirito ainda cerrado á comprehensão
exterior das cousas, para poderes penetrar o jubilo immenso de que devo
estar saturado por esse acontecimento, sobre a vastidão d'esta valente
arteria amazonica, ao tempo que as perspectivas das verdes paizagens
apraziveis se vão succedendo gradativamente, n'uma suavidade que deslisa
tranquilla a meus olhos enlevados nas florituras das folhagens
ramalhudas.

Entretanto, devo escrever estas linhas que, no futuro, destinarei a teus
olhos e a tua alma,--sobretudo á tua alma, querido amor! Intima força
propelle-me a esta communicação silenciosa dos nossos dois espiritos,--o
meu ainda novo, porém já prestes a declinar para as florescencias da
edade madura e o teu velado ainda á vida do espirito, aos sentimentos
santos, pequenino botão de bogary transcendental, que nem sequer pensa
em desabotoar as cerradas corollas aos largos folguedos d'uma existencia
feliz!

E porque não falar-te hoje?

Quem sabe o que o dia de amanhã,--soturno cairel dos arcanos do
tempo,--não guarda para nós envolto nas iriadas roupagens do futuro?

A distancia que entre nós presentemente existe não é motivo bastante
forte para recusar-me ao desejo de escrever estas palavras simples,
destinadas á perfeita simplicidade do teu espirito.... d'aqui a meia
duzia d'annos, quando estejas no caso de entendel-as, meu amôr.

Nem tu sabes que multidão de alegres pensamentos vaga-me no cerebro,
hoje que um anno se completa que pela vez primeira te vi, rosada e
pequenina, quasi imperceptivel átomo-flôr d' uma existencia tão almejada
e bemdita pelo meu espirito milhares de vezes rejubilado!

Como estuava-me o coração, alargado em seus ambitos pelo prazer, todo
aberto ás santas paixões amoraveis de quem começa a gosar as grandes, as
mellifluas, as inebriantes sensações vitaes da paternidade! Com que
ternura immensa não te fitavam meus olhos, rasos d'agua, abertos como
n'um sorriso, revendo a tua pequenina imagem atravez da nervosa
palpitação imperceptivel dos cílios orvalhados das puras lágrymas do
contentamento!

Um mundo de pensamentos risonhos e transcendentaes produzia-se-me no
espirito, em luzida cohorte de festivas alegrias benéficas. Sentia-me
pequeno demais para creal-os, bastante insignificante para soletrar
tramando de emoção todo aquelle mirífico alphabeto enorme da mais santa
das paixões.

Era a completa alegria que manifestava-se d'ess'arte em minha alma,
porque pela primeira vez te via deante de mim, envolta em candidas
faixas, ao collo de tua mãe, que desabrochava o rosto n'um sorriso meio
doloroso e quasi todo espiritualisado já, como n'um altar immaculado,
erguido á tua innocencia pela ternura da Mulher que te deu á luz,
regenerada da culpa da especie pelo immanente martyrio da maternidade!

Hoje, que taes factos completam um anno, dia a dia, os mesmos
sentimentos revoam-me festivos pelo espirito, com egual força de
vitalidade.

Inscrevo-os n'esta folha, registro-os em tua alma, ó flôr, para
offerecer-t'os como presente d'annos em penhor do largo affecto de teu
pae, emquanto, separado de ti por grande distancia, levanto á sorte mil
votos pela tua felicidade futura, por tua existencia, por tua saude,
pela tua angelica pureza de donzella e pela tua inquebrantavel virtude
de esposa.

É bem possivel que não mais exista o auctor d'estas linhas e da tua
existencia quando possas lêr as palavras aqui traçadas.

Não importa! Servirão para lembrar-te que possuiste um pae
amorosíssimo, que teve para ti os pensamentos todos da sua vida e, por
certo, ainda mesmo o pensamento final da hora derradeira!

Rio Madeira, abril.



O cemiterio da floresta



O cemiterio da floresta

Hontem pela tarde o meu espirito confrangeu-se inteiro perante
inesperado espectaculo, cuja reminiscencia me faz pensar ainda e
arrasta-me tremula a mão, na tarefa de consignal-o no papel.

Vou referir-te, meu amor, o que viram meus olhos, e o que meu coração
sentiu n'aquelle instante d'íntimas reflexões maguadas.

Cortada em rapido declive sobre a beira da agua, em meio á floresta
densa, abandonada de todos, uma clareira fazia-se abrupta e essa
clareira era um cemiterio, um pequeno campo santo solitario e
melancholico,--sympathico todavia,--salpicado de cruzes toscas e negras!

A bordo, alegres conversações travavam-se aqui e ali, sob o oiro
refulgente do sol no estivo desabrochar das claras horas diurnas.
Ninguém parecia attentar n'esse triste sitio de repouso, sobre o qual a
tripudiante passarada das mattas volitava cheia de inconsciencia,
garridamente estrepitosa e jovial.

Alargava-se o rio ali defronte, muito socegado, todo brunido das
reflexões solares, como se recebido houvesse um grande banho de prata
fundida.

E um rumorejar da folhagem, dos dois lados do cemiterio e ao fundo,
fechando o horisonte do quadro, cerrando a escarpa, como que parecia
entoar a langorosa monotonia d'uma surdina risonha do prazer,
sacudida em amplas vibrações de volupia.

Entretanto, o meu espirito entenebrecia-se pouco a pouco. Uma tristeza
empolgou-o forte e minha alma deslisou para as mudas divagações dos
sonhos acordados, das reflexões abstractas em que os olhos voltam a
força objectiva para o interior e, eliminando o seu poder observador do
mundo externo, nada comprehendem do que vem, porque só o cerebro
trabalha dentro da materia e o seu meio de acção anniquila-se perante o
vigor do espirito.

De quem aquelles despojos materiaes ali inhumados, longe dos centros de
povoação, roubados ao conhecimento mundano, subtraídos á vaidade dos
homens, entregues á terra com toda a simpleza das grandes devoluções
pungentes, restituidos á obscuridade do nada para sempre, para
sempre furtados á ultima recordação marmorea que lhes lembrasse o nome
na derradeira falsidade dos epitaphios campanudos?

Quantos heróes ignorados se não occultariam n'aquelle recinto, sob a
leve camada de terra ás pressas lançada pelos vivos por cima de seus
cadaveres meio decompostos?

Ali não vinham os falsos amigos ostentar o seu fingido pezar, com o
recolhimento das feições e a compostura do trajo que predominam pelas
cidades, onde até a inhumação é um luxo mais ou menos apurado. O marido
infiel, respirando emfim livremente após a quebra do fio que prendia-lhe
o alvedrio, não viria ali mais uma vez insultar com uma dôr não sentida
a lamentavel memoria da doce esposa traída, nem a joven viuva leviana,
já com o espirito occupado por amorosos pensares--adulterio
posthumo!--appareceria a ostentar o fingimento d'uma paixão que não
possuia e que depressa esqueceu na elaboração de cartinhas piégas ao
primeiro janota impudico que lhe deparou a sorte ironica.

Ali, sim, ao homem honesto e severo, á mulher virtuosa e amante, á
innocente creancinha levada ao descanso perennal após breve apparição na
terra, grato, gratíssimo seria inteiriçar os membros lassos e repousar
alfim, descuidosos na eterna immobilidade dissolvente da ultima
pacificação,--separados de toda a phantasia ephêmera e das convenções
banaes da fallaciosa hypocrisia social.

Para quê ser lembrado após a morte? De que serve um marmore a reproduzir
o nome d'um sêr cuja existencia o tempo consumiu,--candeia extincta,
apagado fanal do pelago da vida? Recordar o nome d'um morto,
perpetual-o petreamente, é ainda uma fórma de insulto, é uma violação
que põe o finado na emergencia de se lembrarem d'elle os maus, os
pérfidos, aquelles que não o comprehenderam em vida e que mais uma vez
negar-se-ão a fazer-lhe a justiça de que tão sedento estava o seu espirito.

Estaes bem ahi, desconhecidos heróes do labutar quotidiano, ó martyres
das privações no meio d'essa esplendida orgia de verduras amazonicas!
Tão bem vos acho, que até sinto inveja ao ver-vos no pequenino cemiterio
escalvado na rapida ribanceira.

A sorte restituiu-vos ao pó com a mais austera simplicidade. Voltastes á
terra na modesta elaboração d'um acto naturalíssimo e a vida que
fermenta entre as raizes d'essas bellas e grandes arvores viridantes
vae buscar nos vossos cadaveres aquillo que lhe podeis dar:--a cada
minuto um átomo de seiva, tirado á tépida fermentação da vosa carne,
outr'ora palpitante, porém banal, agora repousada, mas operadora do
beneficio que a lei natural do transformismo obriga-vos a prestar-lhe.

Apraz-me sentir que o meu espirito se consolaria quando, após á
extincção da minha vida, algum ente querido, depois do ultimo beijo,
enterrasse-me o corpo em vossa companhia, ó eternos moradores do
cemiterio da selva! Julgar-me-ia feliz, com a satisfação e o orgulho
d'este ultimo capricho realisado.

Teria, como vós, o supremo _requiem_ dos trillos dos passaros, do
farfalhar das ramarias densas, do desprezo dos raros viajantes n'estas
longinquas regiões do Madeira e dos murmurosos beijos do
gorgolejante listrão aquoso que incessantemente corre, ora envolto no
denso velludo tenebroso da noite, ora ostenta-se brunido pelas amplas
disseminações de prata fundida que o sol por cima d'elle parece lançar
ás vezes, quando o ceu, sempre misericordioso, não verte sobre vós,
lugubremente, paternalmente, as piedosas orvalhadas dos seus largos
prantos pluviaes.

Salvè, desconhecidos martyres da familia amazonica, eternos habitadores
do cemiterio da floresta!

Rio Madeira, abril.



UM ANNIVERSARIO



UM ANNIVERSARIO

        Á memoria de minhã irmã
        A meu irmão.

Seis annos, hoje, que finou-se a mais santa das creaturas, a mais
querida e amoravel das mães.

Perante a emotividade profundíssima do meu ser, não tem hoje poder as
largas pompas magestosas d'este romper de dia sereno sobre a paizagem
Assoalhada, vibrante de esplendor, fremente de canções d'aves
silvestres. Ao contrario, tudo me parece melancholico, monotono, quasi
hostil, porque recebo as impressões externas atravez dos meus
sentimentos e estes concentram-se nas amaríssimas dôres excitadas pela
inapagavel recordação da morte de minha mãe!

                                     *

Ha d'estas originalidades no fragil espirito humano: diz alegres os dias
pluviosos, encontra-lhes graça, apraz-se em aspirar humidade na
meia-sombra dos nevoeiros,--se algum prazer abala-o jubiloso;
entretanto, encara indifferente ou raivoso as glorias da natureza; não
tem um olhar para as galas triumphaes do espaço azul rutilante,
acolchoado d'alvas nuvens pannejadas harmonicamente; enfastia-se e
agasta-se até com a passiva tranquilidade das coisas, com o chilrear
dos passarinhos,--quando algum desgosto lateja-lhe no coração
encarquilhado ao peso das grandes dores supremas!

                                     *

Estou a recordar-me das funebres e tremendas peripecias d'aquella
inolvidavel tarde de 21 de abril, ha seis annos.

Uma pequenina alcova de matrona,--grave aposento destituido de luxo
banal, apenas confortavel. Ao lado d'um guarda-vestidos, pesado e bom,
uma mesa coberta de frascos de medicamentos com etiquetas multicôres,
borradas de receitas pretenciosamente escriptas em termos barbaros,
chocantes de ouvir, indicando venenos medidos aos millesimos, com
mysterio.

Ao fundo, uma cama austera, toda branca em seus lençóes e colchas, sob
os quaes desenhava-se um corpo longo, pouco amplo, de que apenas via-se,
repoisada em grandes travesseiras alvas, uma cabeça de mulher,
encaixilhada em bastos cabellos negros, lustrosos, apenas aqui e ali, de
longe em longe, irisados de fios brancos que desprendiam o brilho
metallico da prata polida.

Os olhos, semi cerrados, fitavam um ponto unico da parede fronteira,
onde um pequeno raio de sol, atravessando o arco de uma janella da sala,
fixava-se insistente, como receioso de desapparecer além, atraz das
casas da praça, ou desejoso de não abandonar, no meio-tom confuso d'um
crepusculo precoce, aquelle quarto mortuario, em que estava para começar
uma agonia. O olhar de minha mãe persistia fito no luminoso
circulosinho, que accendia de amarello a brancura da parede nua.

Quem sabe o que vém os moribundos nos seus derradeiros momentos lúcidos?
Que visões obsidiam-lhes os ultimos, instantes, subjugando-lhes o
espirito já tão enfraquecido, dominando-os poderosamente? Vêm pela
ultima vez o goso de alguma ventura occulta, entristecem-se pela proxima
separação do encanto da vida ou entrevem já o beatifico descanso
interminavel que aguarda-os no pó da sepultura?

                                     *

Quasi seis horas. Continuavam os olhos presos ao circulo luminoso, que
subira mais, approximando-se do tecto, n'um deslisar de vida que se
extingue suave.

Pelo rosto emaciado de minha mãe não corria sombra de soffrimento. As
faces cavavam-se levemente, o nariz afilava-se, com a transparencia de
cêra dos entes que vão morrer. Entreabertos, os labios deixavam passar a
respiração com um offêjo ciciante e molesto, brandamente. Dir-se-ia
dormitar a enferma, a não serem os olhos, agora um pouco mais abertos do
que antes...

Em torno, alguns parentes vigiavam immoveis, com a expressão
contristada, transida, que temos ao esperar a morte. Á cabeceira, de pé,
encostada ao espaldar do leito, minha irmãsinha chorava em silencio,
enxugava as incessantes lágrymas, suffocava os soluços, para não trair-se.

Quem atrever-se-ia a mostrar que soffria, perante aquelle resignado
soffrimento que tão bem continha-se?

Meu irmão egualmente quedava-se perfilado, os olhos cravados n'esse
rosto pállido, n'essa bemdita fronte eburnea que a virtude aureolava,
n'esses doces labios que presentiamos frios, frigidíssimos, não obstante
o ardente halito que esfrolava-os, ja osculados pela morte!...

Aquelles labios sonorosos, aquelles labios cantantes de mãe
brazileira,--quem poderia mais galvanizal-os, fazel-os vibrar com o
dulcíssimo affecto maternal que era o nosso ineffavel enlevo na quadra
festiva da meninice descuidosa?

Onde iriamos beber os prudentes conselhos que esses puríssimos labios
proferiram, deixaram cair em nossas almas como um desfiar de pérolas
raras em taças de cristal?...

Quem seria, d'ali em deante, a amiga incomparavel, a santa companheira
da nossa adolescencia ardente, a meiga representante d'esse encanecido
vulto,--heroico prototypo da affeição familiar, da honra, da dignidade,
de todos os boníssimos sentimentos,--que foi o nosso Pae?....

Oh! desgraçados que eramos! N'aquelle impassivel expirar de tarde
equatorial pomposa e abrazadora, iamos perder para sempre,--_para
sempre!_--o nosso mais valioso dote, a vida de nossa Mãe!...

                                     *

Seis horas e poucos minutos, Desapparecera do tecto, sempre seguido
pelos olhos da moribunda, o circulo luminoso, a despedida do sol á vida
periclitante. Desmaiara mais, tornara-se apenas uma tênue mancha
amarella, breve transformada em sombra quasi imperceptivel. Depois,
esbatendo-se gradualmente, fôra supprimida. Desappareceu: começou a
agonia na enferma.

É doloroso assistir ao estertor dos moribundos. Terriveis embates
soffremos na alma. Primeiro, o egoismo natural no homem, excitado pela
lembrança de ir perder um ente amado; depois, a constatação de que nunca
mais poderá gosar-lhe do convivio, ouvir-lhe a fala affectuosa,
oscular-lhe a fronte calma, as faces sorridentes com a immensa candura
da virtude. Porém onde haverá mais requintado, mais vivo e agudo
soffrer, do que na propria sensação que experimentamos da agonia do
moribundo amado? Em que série de martyrios archi-excruciantes
classificar esse desespero tôrvo, enlouquecedor, vibrante, que em
nós erguem a comprehensão das dôres a que assistimos e a impotencia de
não podermos participar d'ellas, tomar para nós a maior porção,
attenual-as um pouco, com o osculo das mãos acariciantes e com a ternura
emolliente dos beijos ultra-expressivos dos ultimos, dos supremos
adeuses?...

Vinham-me ao espirito idéas estonteadoras, que levavam-me á meta da dôr.
Ver soffrer a santa mulher que deu-me a vida, que tão feliz foi sempre
em possuir nos braços enlaçantes os filhos queridos e amoraveis, era uma
provação capaz de abalar-me a solidez da razão. E depois, ha sempre, á
beira do tumulo de um ente que viveu em ligação intima comnosco, uma
evocação, rapidíssima porém muito minuciosa, de todo o nosso passado.

E o meu passado... quão unido estava ao d'aquella moribunda, que em vão
buscava, ao vaguear a vista já vidrada pelo aposento, o raio de sol que
viera despedil-a da vida, dar-lhe á alma, por um momento, na hora
extrema, a claridade immaculavel que ella sempre teve na consciencia, na
honra!

Vi-me creança, buliçoso e festivo, sem um desprazer além do provocado
pelas privações dos brinquedos. Vi-me em todas as situações da
existencia, em todas as phases d'uma juventude agitada, em todas as
peripecias das nossas viagens, das nossas diversões, dos nossos gosos.
Em toda a parte, de qualquer modo que manejasse aquellas scenas
retrospectivas, ella apparecia-me sempre como o misericordioso
interprete dos meus votos de felicidade, o meu anjo tutellar, o
amparo inilludivel da minha inexperiencia, o meu aconselhador
ajuizado como todas as boas mães.

Quanta saudade, quanta, do meu passado extincto!...

                                     *

Alguém tinha ido á egreja proxima,--a dez passos d'ali, no lado opposto
do largo,--pedir o soccorro da religião e um levita acudiu, balbuciando
preces indistinctas, a ungir quem ia morrer.

A apparição d'um sacerdote que traz o extremo sacramento a um enfermo
apavora sempre. Ante similhante visita, eu e meu irmão principiamos de
novo a chorar,--nós que pensavamos já ter exgottado as lágrymas, tão
abundante fôra, desde trez dias, o nosso pranto.

Retirando-se o padre,--sempre murmurando orações em latim,--a agonia
augmentou. Vizinhos tinham acudido, serviçaes e bisbilhoteiros.
Causaram-me raiva, quasi molesto-os com uma demonstração mais evidente
do meu enfado pela sua presença, quando desejara, a sós com os meus,
receber o derradeiro alento da querida alma adoravel.

Porque ha de prender-nos a educação n'um circulo igneo, impondo-nos
dominio, heroicos fingimentos, até nos mais tremendos instantes da vida?...

Soluços mais rapidos de minha irmã fizeram-me esquecer esta série de
reflexões, voltaram-me para o leito onde estertorava já a doce
companheira da minha innocencia.

Acabei de comprehender este redobramento de chôro, vendo acercar-se
alguém com uma véla accesa, que foi posta entre as mãos afusadas e
lividas da moribunda.

Minha mae ia morrer! Oh dilacerante, immensa dôr trazida por esta
convicção!

Lancei-me de chôfre a beijar-lhe a fronte camarinhada de suor, os
cabellos sedosos, negros como a afflicção de minha alma, as faces
encovadas, os labios crispados, álgidos, por entre os quaes
esgueirava-se um lancinante estertor crescente, que dizia demasiado a
aproximação do momento fatal... Allucinado, pensei que a minha
vitalidade, a minha florida juventude poderia reanimar, devolver á vida
aquelle espirito immensamente amado e em vão tentava aquecer-lhe o
involucro com o ardentíssimo, impotente contacto dos meus beijos filiaes!

Mas, de subito, houve uma cessação na agonia... Estarreci... Iria minha
alma incrédula defrontar um milagre?... Oh! Deus era bom, Deus
existia então, além da lenda biblica!... O rosto de minha mãe serenara,
conservando, todavia, uma expressão retrahida, grave, como quem escuta a
voz interior d'uma interessante evocação da existencia inteira.

Os cilios palpitaram longos, n'uma projecção calma de sombra nas faces.
Brilharam os olhos, tranquillos de expressão e, vagaroso, subiu o olhar
para o sitio onde cravara-se antes o raio de sol extincto agora.

Logo, porém, desceu, afim de erguer-se ainda, para minha irmã, para meu
irmão, para mim... Demorou-se fito em minhas pupillas lacrymantes esse
inolvidavel olhar, tão sereno como a tranquillidade da sua alma sem
mácula, translucido n'uma expressão de quem medira o alcance do
grande minuto final.

Quem poderá estereotypar o ultimo olhar das mães aos filhos extremecidos?

Attonito, baixei-me a receber o afago d'esse olhar tão expressivo como
um beijo mudo. O milagre providencial ia operar-se, de certo. Eu
abençoava já o eterno Bemfeitor da humanidade... ingênuo no egoismo do
meu almejo.

Os labios, no entanto, descerraram-se. E, emquanto os olhos, um nada
mais vitreos, vagavam sobre os trez rostos dos filhos surprezos,
transidos de admiração e esperança, aquella bôcca lívida moveu-se no
balbucio inextrincavel d'uma phrase indistincta que, certo, era uma
prece, um conselho bom, uma benção, um adeus!

E os olhos fecharam-se, no mesmo calmo palpitar dos longos cilios,
os labios contrahiram-se á passagem d'um suspiro mais longo,--um soluço
dolentíssimo,--e a cabeça pendeu á direita, buscando o meu primeiro
beijo a um cadaver amado, quente do ultimo esforço para dizer-nos com a
vista a intensidade insondavel do seu carinhoso affecto!

                                     *

Ha seis annos passou o horrendo transe que prostrou-me louco sobre os
despojos funebres da mais santa e querida das Mães.

Dura sempre a dôr d'um filho amantíssimo? Creio bem que sim.
Investigando a incalculavel profundez dos meus pezares, cotejando as
impressões de hoje com as do anno passado, com as do outro anno, do
outro e do dia em que estalou sobre mim a grande fatalidade,
verifico a persistencia da mesma dôr molesta, intima, enorme,
saudosamente triste, que levanta-me no espirito uma raiva contra a
gloriosa expansão d'esta manhã rutilante e contra o gorgeio sonoro das
aves, que estão, agora mesmo, a lembrar-me os doces cantos simples da
infancia, quando, todo prazer e venturas, meu coração acolhia-se no
tépido sacrario de affectos e caricias que era para mim o colo amigo e
protector da mais amoravel de todas as mães!

Onde estão os meus deliciosos sorrisos infantis de outr'ora?...

Rio Madeira, 21 de abril.



SEGUNDA PARTE

OBJECTIVISMO



A pesca do Deodato



A pesca do Deodato

Ao Sr. J. T. Lobato de Castro

O tenente-coronel Fernandes salivou com estrépito para longe, afim de
salvar a esteira que se estendia por baixo da maqueira e, ageitando no
longo taquary pintalgado a cabeça de barro topetada de tabaco legitimo
do Acará, proseguiu:

--É como lhes digo. A desobediencia aos preceitos da egreja traz sempre
após si a necessaria e indefectivel punição. Bem o affirma o
ditado:--Deus castiga sem pau nem pedra. É certo que, quasi sempre, a
consequencia lógica da culpa atraza-se tanto, que o peccador impenitente
prolonga uma existencia criminosa no meio da mais impassivel
tranquillidade, como se possivel fôsse á justiça do ceu esquecer. Muitas
vezes, porém, a pena succede-se á culpa sem notavel intermissão e, em
todo o caso, o espirito prudente só tem novo ensejo para arrenegar do
instincto maldoso do homem e colher no exemplo nova convicção da
sabedoria celestial.

Calou-se, pigarreou, fitando com tenacidade, d'um modo quasi severo, o
auditorio resumido e conspicuo: o Antonio Narceja, portuguez enriquecido
n'um barracão á entrada do furo do Pagé; o Dr. Polycarpo Varella,
juiz de direito, cuja recente remoção para Salinas filiava-se a
memoraveis façanhas eleitoraes, nos confins do Paraná, ao expirar a
situação conservadora, havia poucos mezes e Felix Jacaré, um cabôclo
muito republicano, sapateiro de officio, avô do pequenito que
dormitava-lhe ao cólo, esgaravatando machinalmente o nariz com o dedo
titubeante, a cara suja, os labios breiados de assahy, como breiado
estava o peito do camisão de riscadinho azul e branco.

Bateram nove horas n'um relogio pendente da parede caiada. Fóra, bramia
o mar. Pela janella aberta entravam, com a brisa, exhalações salinas e
esse borborinho confuso e melancholico das noites em plena roça. No
tecto de vigamento visivel, trilavam grilos. E, por intercadencias, a
luz do candieiro de porcelana pestanejava de leve, como se também
por ella passasse o arripio mysterioso das coisas tragicas que ali se
falava ou se o apavorasse o tom soturno das considerações philosophicas
do tenente-coronel Fernandes.

--Tem muita razão, acudiu Antonio Narceja, offerecendo obsequiosamente
um phosphoro acceso ao Dr. Varella, que sacára um cigarro de tauary.

--Conforme... obtemperou o Jacaré, cujo espirito de contradição era
conhecido na villa.

--Vou dar-lhe um exemplo, compadre, retorquiu Fernandes, risonho e sereno.

Pigarreou de novo, tornou a salivar. Depois, ageitando-se na rede,
emquanto os companheiros aproximavam curiosos os bancos, principiou.

                                     *

Ha coisa de uns 25 ou 30 annos, vivia no Magoary um preto corpulento e
encanecido, cuja edade ninguém poderia calcular e que toda a redondeza
conhecia como sendo o mais ousado e feliz pescador da localidade.

Methodico, não passava um dia sem ir á pesca; afortunado, não atirava a
tarrafinha sem depois puxal-a repleta de peixes! Era um assombro, um
gosto admiral-o em acção! Parece que rejuvenescia-o o mar. Qualquer que
fôsse o estado do tempo, era infallivel encontral-o todas as noites,
pelas duas horas, descendo ao pequeno porto do barracão, a desencalhar a
canôa e logo fazer-se ao largo.

E que saúde de ferro tinha elle! Jamais conhecera um incommodo, uma dôr
de cabeça! Rijo como o acapú, afrontava os temporaes com a impavidez do
fatalista. E pela madrugada, quem saisse á praia, não deixaria de
descortinar muito ao largo, no mar alto, a pequenina luz intercadente da
canôa do Deodato.

Era rendoso o officio. Quando voltava á casa, depois do nascer do sol, o
pescador trazía atopetado o fundo da embarcação. Ninguém o vencia na
arte da salga, de tal modo que o seu peixe encontrava sempre melhores
offertas do que o dos demais pescadores da costa do Magoary, quando os
procuravam os compradores que iam revender em Belém.

Mas tinha um defeito o Deodato:--era um impio. Deveria possuir a alma
egual á cutis, porque desprezava as leis de Deus e zombava impertinente
de todos os mysterios da religião e de todos os actos do culto catholico.

Em balde buscara algumas vezes o padre
Simplicio--conheceram?--trazei-o á reflexão e demovel-o ao respeito pelo
Senhor. De tudo escarnecia o infeliz e, o que é mais revoltante, possuia
phrases curiosas, sophismas fustigantes, objecções irrespondiveis, para
combater os conselhos do sacerdote. Tudo era inutil. Não havia razão que
o impedisse de ir á pesca ao domingo e dia santificado como em qualquer
outro de trabalho.

--Você ha de acabar mal,--avisava o padre, entre carinhoso e recriminativo.

--Milhor p'ra mim,--retorquia o hereje, sarcastico.

                                     *

Ora, uma tarde, era vespera de não sei que dia santo grande. Creio que a
Egreja rendia culto á Virgem sob a invocação de Senhora de Belém. Fazia
um calor enorme. O ceu estava claro, limpo, muito azul e tranquillo,
como tranquillo estava o mar. Na praia arenosa, as ondas vinham
desdobrar-se preguiçosamente, n'uma languidez ineffavel. Mas, ali perto,
nos mattos, estalavam os galhos, causticados pelo sol. E muito ao longe,
na linha do horizonte, alguns pontos sombrios, a custo avistados a olhos
nus, pareciam nuvens vagabundas no espaço ou podiam ser barcas de pesca
paralysadas á mingua de brisa.

No barracão, Deodato, semi nu, fumava, destrançando as redes. De vez em
quando, assomava a cabeça á porta, a inspeccionar o ceu.

Com a grande pratica que possuia, adivinhava, pressentia calma quasi
completa para toda a noite. Era isto de certo que lhe dava esse pequeno
rictus á commissura dos labios e lhe encrespava levemente a retinta
fronte. Maior trabalho seria o seu, pois far-se-ia necessario o remar
por longo tempo. Emfim, nem tudo podia ser feito á mercê dos desejos
humanos... E volvia á faina, de todo absôrto, fumando sempre.

Á boquinha da noite, appareceu um visitante inesperado á porta do Deodato:

--Póde-se entrar?

Era o padre Simplicio.

Sob o pretexto d'uma visita casual, pelo facto de passar ali proximo, ao
regressar da roça do Xico Sette, o sacerdote penetrava com o intuito de
verificar se o pescador iria aquella madrugada entregar-so ao costumado
trabalho.

A occupação do Deodato mudou-lhe a supposição em certeza.

--Não faça isso, homem de Deus; olhe que a festa é da padroeira da
cidade. Nossa Senhora não lhe perdoará a falta de respeito...

--Ella bem que s'importa co'a minha vida!--respondeu o preto, com um
encolher de hombros que também poderia significar ao padre Simplicio o
fastio que as suas observações lhe causavam.

--E se eu lhe pedisse que ficasse em casa, que viesse á minha missa, em
vez de ir amanhã á pesca; se eu invocasse a nossa amizade, afim de ser
attendido...

Teve Deodato um sorriso franco, dilatado, apresentando entre a dupla
polpa dos labios os largos dentes alvos e disse com uma convicção
profunda, com um tom sarcastico e decidido:

--Eu ia mesmo, sim, senhor!...

Não houve razões logicas, pedidos, ameaças de penas eternas que o
demovessem. O negro era teimoso. Retirou-se o padre amuado, quasi
colerico, benzendo-se repetidas vezes no meio da escuridão do caminho,
tauxiada de pyrilampos loucos e murmurosa do longinquo coaxar de rãs,
nos lameiros.

                                     *

Ficando só, Deodato franziu a testa e, mordendo o labio, lançou contra o
padre a reprovação tacita d'um gesto energico dos braços. O diabo do
padréca que tratasse dos seus negocios. E esta!

Depois, comeu frugalmente, como de costume, um pouco de tainha moqueada
e logo atirou-se á rede, vencido pelo somno.

Aquella alma de incredulo estava entorpecida inteiramente. Do contrario,
teria tempo de reflectir nas observações do sacerdote e quiçá algum
sonho o prevenisse da sorte que aguardava a sua irreligiosidade. Mas o
infeliz dormiu como uma pedra até que os gallos das roças proximas
soltaram no ar socegado os seus cantos da madrugada, despertando-o.

Levantou-se o negro e, accendendo o farol, saíu com direcção á praia.

Trilavam grilos, como n'este momento em que lhes falo. Na noite calma,
rebrilhavam estrellas, espelhando na superficie lisa do mar as suas
cabecinhas irrequietas. Nenhuma aragem movia os arbustos, as arvores do
mattagal. Coaxavam sempre as rãs, emquanto os sapos cururús dialogavam
com enthusiasmo. E, ao longe, dominando esses mil arruidos da noite,
vibrava ainda o cantar dos gallos, com um não sei que de
profundamente triste, n'uma plangencia de alma condemnada.

Instantes depois, a canôa do Deodato fazia-se ao largo. Não havia sôpro
de brisa. A calmaria era completa. Elle, desde a tarde, esperava aquillo
mesmo.

Mas, apezar da edade, tinha ainda bons musculos o velho pescador. Remava
á direita, remava á esquerda e o seu barquinho a pouco e pouco se
afastava, impávido, cortando a vaga indolente.

Á pôpa, como de alcatéa, velava o farol, ia deixando pela esteira da
embarcação um rastro luminoso, que se prolongava desmesuradamente, em
direcção á terra.

Além d'este, nenhum outro signal de vida poderia enxergar-se mais em
toda aquella extensão de costa nem sobre a linha do horisonte, do lado
do mar alto. Quem se atreveria a ir pescar na madrugada do dia
festivo consagrado á padroeira de Belém?

D'isto mesmo deveria recordar-se o Deodato, quando se achava já a mais
de duas milhas de distancia, porque, fazendo meia volta ao corpo, olhou
para traz e teve no rosto renegrido uma suprema expressão de ironia
sorridente.

--Tolos!--rosnou, volvendo logo a remar com furia, cravando a vista nas
redes colhidas ao fundo da canôa.

                                     *

Meia hora depois, algumas pequenas nuvens sombrias tinham-se erguido lá
muito ao longe, escalavam o ceu, vinham galgando distancias,
desdobravam-se assombrosamente. Fitou-as o pescador, desconfiado.

--Ué!--exclamou. Vento ou trovoada?

Apezar da incerteza, ergueu o mastro, preparou a diminuta vela de
muruxy. E estava contente, porque já não precisaria de empregar maior
esforço. O remo já começava a cansal-o, que diabo...

Mas convinha aproveitar o tempo. Levantou-se ainda, tomou uma das rêdes
e, com um gesto largo e facil, fel-a descrever um circulo por sobre a
cabeça, lançando-a depois á distancia que reputou conveniente.

Colhendo-a, sentiu-a leve sobremaneira e não tardou em verificar que a
estréa fôra de todo improductiva. Não viéra um só peixe!

Era estranho, porque aquelle sitio já tinha fama de rico em cardumes.

Longinqua fulguração de relampago fel-o erguer o olhar. As nuvens
tinham subido ainda mais, haviam-se estendido em quasi dois terços do
espaço, pareciam agora as pesadas colgaduras de uma camara ardente.
Segundo relampago, muito distante, scintilou então. E uma pequena aragem
soprou fresca do lado do poente.

Decididamente, ia cair a trovoada. Não podia Deodato perder um segundo:
içou a véla, manobrou no sentido de aproveitar o vento. E assim
afastou-se ainda mais de terra. Iria experimentar o mar a meia milha d'ali.

Quando, depois de lançar a rêde em outro sitio, se dispunha a puxal-a,
pareceu-lhe estar extremamente pesada. Um sorriso de alegria
entreabriu-lhe os grossos labios. E então? Elle bem sabia que aquillo
era infallivel!

Mas imaginem o seu assombro quando, depois de longos esforços,
conseguiu trazer á flôr da agua a rêde que julgava repleta e de repente
sentiu-a tornar-se completamente leve, encontrando-a logo de todo vasia,
sem uma unica pescada!

Deodato não era homem para impressionar-se, porém não deixou de achar
bastante extranho similhante facto.

N'esse momento, o espaço illuminou-se com um grande relampago, seguido
do estrugir medonho do trovão.

O vento augmentara, passava agora sibilando nas cordas do pequeno
mastro, enfunando a véla com raiva, arrastando a canôa n'uma furia,
n'uma vertigem, á luz dos relampagos successivos, no meio de coriscos
que esfusiavam caprichosos por todos os lados.

Comprehendeu o negro que a trovoada ia ter maiores proporções do que as
que lhe attribuira ao principio. Nada mais poderia fazer n'essa
noite. Aquillo era praga do Simplicio, pensava. Bem descontente,
resolveu regressar. Quiz passar o panno para bombordo, porém não teve a
precisa ligeireza e o vento, já de todo impetuoso, quasi invencivel,
arrancou-lhe das mãos o chicote da espia e n'um momento arrebatou a vela
em farrapos, n'um redemoinho sibilante pelo espaço.

Só lhe restava o alvitre da resignação. E elle, habituado ás
inclemencias, affeito a mil e uma tempestades, sentou-se sereno á pôpa,
depois de abaixar o mastro: resolvera esperar o desenlace da crise.

O que presenceou então foi horrivel. Choviam raios á direita, á
esquerda, por toda a parte. O ceu estava negro, agitado de ribombos
infernaes, a cada minuto illuminado tetricamente, deixando a
descoberto as grossas massas das nuvens fugidías.

E o preto, longe de assustar-se, ali estava na barca, de braços
cruzados, sorrindo com cynismo. O mar tinha um aspecto que se casava com
a attitude hostil do espaço. Por toda a parte erguiam-se compactas
collinas liquidas, escancaravam-se horriveis, hiantes valles
phosphorescentes. Não chovia ainda, mas o vento, que zunia aos ouvidos
do negro incredulo, cuspia sobre elle milhares de gottas salitrosas
tiradas ás ondas freneticas, trementes.

De subito, a amplidão toda se convulsionou, vibrou n'um estrepito
pavoroso, repercutindo um som innominado, jamais percebido pelo Deodato
em situações identicas. Avermelhado clarão illuminou tudo, revelou aos
olhos do negro toda a magestade d'aquella scena para a pintura da
qual, meus amigos, não tenho senão palavras inexpressivas e phrases sem
colorido.

Ficou estarrecido o pescador. Sentira que a fragil embarcação era com
vigor sacudida! Mas a força que assim operava não vinha decerto do
embate das ondas. E a canôa tremia toda, rangia, vibrava
incessantemente, como se um braço de Adamastor a agitasse n'uns empuxões
cyclopicos e interminaveis.

--Que diabo é is...

Não pôde continuar. Deante d'elle, rodeado d'uma auréola de chammas,
tresandando a enxofre, emergia Satanaz! Levantou-se indizivel alarido:
os raios duplicaram o faiscar, ribombos estalaram mais cavernosos. Por
seu turno, o vento engrossou ainda mais as vagas, que chegaram
quasi a cobrir o barquinho.

Porém só durou um segundo o estupôr de Deodato. Qualquer outro homem
succumbiria de medo. Elle, entretanto, como envergonhado d'esse instante
de susto que tivéra ha pouco, arrastou-se com esforço, ergueu a meio o
corpo ensopado e transido. Depois, levantando o olhar e o punho para o
ceu, proferiu, ou antes bramiu feroz imprecação satanica.

O diabo,--porque era elle em pessoa que assim surgira do mar,--empunhara
uma espia e, correndo, cabriolando por cima das ondas loucas, entrou a
puxar o batel para o lado de terra.

Aquella corrida frenetica durou um momento. D'ali a pouco, barco e
tripolante desfaziam-se de encontro ás pedras d'uma enseada, perto
da capellinha do logar. Viram os meus amigos a acção da justiça de Deus?

                                   ----

Calou-se o tenente coronel Fernandes. Estava offegante, com os labios
sêccos, o olhar animado.

Mas resoou no aposento uma gargalhada stentorica, que despertou o
molequito no cólo do avô.

Era este proprio, o Felix Jacaré, quem zombara d'aquelle modo. Logo, com
entonação escarninha, ponderou:

--Não creiam n'essa balela de seu c'roné. O tar Deodato não foi pescá,
ficou na rêde muito socegado e despois sonhô essas coisa, 'hi 'sta. Seu
padre Simpricio, antão, arranjô o resto...



MATER DOLOROSA



MATER DOLOROSA

A Bellarmino Carneiro.

Ante-manhã.

O vapor seguia rio acima, bem perto da margem, tão perto que, ás vezes,
as ramarias sussurrantes da floresta roçavam na coberta, estendiam
galhos sombrios por de sobre a borda.

Ainda não haviam despertado as aves. O rio estava ali muito socegado,
reflectindo o mattagal, banhando os aningaes avelludados. Não
começára o arruido de passaros com que a alvorada é recebida, mas
persistiam, comtudo, os derradeiros murmurios dos animaes e insectos
noctivagos.

A bordo mesmo, á ré, tudo parecia descansar ainda.

Só o compassado resfolegar da machina denunciava que alguns entes
velavam a meia-nau, attentos aos avisos do pratico de quarto.

Ao nascente, começava a desenhar-se uma tenue claridade,--o início do
fugaz crepusculo amazonico. A sombria noite diluia o negrume n'um suave
frouxel cinzento, muito mal esboçado, indeciso quasi. Estavam longe as
meias tintas côr de pérola e lyrio, precursoras das tonalidades rosadas
e azues, que a seu turno precedem as estridencias rubras e alaranjadas,
em breve esbatidas na tranquillidade definitiva dos aspectos mais
claros do dia adeantado.

Ia amanhecer.

Em uma porta de camarote, á pôpa, assomara um vulto sombrio de mulher.
Esteve ali um momento. Logo encaminhou-se á borda, perscrutando a
escuridão, por um lado, por outro, attentamente.

Aquelle vulto vestia um trajo simples, de rigoroso lucto.

Saudou-o da matta um silvo de passaro,--a primeira manifestação do
despertar das aves.

O ambiente reacendia. Vinham da floresta virgem aromas capitosos de
cumarú e baunilhas. Pelos cipós que desciam dos galhos, formando
emmaranhamentos caprichosos, deviam escorrer as preciosas resinas que
trescalavam tão fortes effluvios.

A mulher inspirou com força. Queria banhar os pulmões n'aquella
olencia. Em seguida, suspirou um suspiro triste; suspiro de viuva?
suspiro de mãe inconsolavel?

Clareara um pouco mais. Ja se percebia todo o labyrintho de braços
folhudos que as arvores estendiam no ar, em contorsões. Uma suavidade
paradisíaca se diffundia na meia tinta da luz crepuscular. Era quasi sol
nado. Os passarinhos já haviam encetado o canoro certamen, volitavam
céleres. Á beira-rio, nenuphares ostentavam-se opulentos por de sobre as
polposas folhas que pareciam caprichos de esculptura em marmore verde.
Mil flôresinhas silvestres salpicavam a vegetação das margens, sem
nenhum acanhamento de uma ou outra victoria-régia que se dignava
mostrar-se entre os massiços dos mururés, os quaes recebiam da
correnteza um brando movimento de balouço. E, de um a outro lado do rio,
eram grandes bandos altíssimos d'aves aquaticas,--patos grasnadores,
pavõesinhos gemebundos, garças, cegonhas, toda a migração alada dos
desertos amazonicos. Estava ali a natureza intacta, no seu inalterado
aspecto milionario, tal como a viram os primeiros habitantes, as tribus
lacustres que fôram as raças autochtones.

O vapor seguia sempre adeante, rente a terra, na mesma monotonia.
Aquella ascensão parecia o desvirginamento d'um éden.

Iniciou-se a bordo a tarefa quotidiana. Alguns marinheiros appareceram
trazendo baldes, desdobrando mangas para irrigação. Rompeu a subitas o
sol, por além das mattas, n'um deslumbramento.

Fugiu veloz para o camarote a madrugadora passageira.

                                     *

Horas mais tarde, o commandante atravessou o tombadilho, foi bater-lhe á
porta. Seguiam-n'o trez ou quatro pessôas, que se conservaram a curta
distancia, dissimulando a custo grande curiosidade.

Era de certo esperada a visita, porque, immediatamente, a mulher saíu a
recebel-a. Com a luz do dia, via-se que era uma anciã, de rosto enrugado
e fronte encanecida. Não tinha aquella physionomia outra expressão que a
do mais fundo soffrimento. E os olhos brilhavam extranhos, muito negros
e dilatados, entre longos cilios sedosos.

--Já estamos,--disse-lhe o commandante.

Ella penetrou de novo no aposento, mas volveu passado um instante.
Trazia uma corôa de saudades,--uma corôa tosca, evidentemente barata. E,
com o sorriso triste, murmurou ao capitão uma palavra de agradecimento.

Depois, apertando com as mãos crispadas a humilde corôa sobre o coração,
foi ajoelhar-se junto á borda, suspirando, soluçando, toda desfeita em
pranto.

Ali perto, na floresta, rebrilhavam flôres de sonho,--extranhas
orchídeas gigantes, catléas variegadas, osculadas de coleopteros
zumbidores. Crescia triumphal o canto dos passarinhos.

                                     *

O grupo de passageiros arredára-se, n'um movimento de involuntario
respeito por aquella sincera dôr ignorada. No meio d'elles, o
commandante sentou-se taciturno e falou:

--Não notam? Estou emocionado. Ha doze annos que vejo, em cada viagem,
duas vezes repetir-se este espectaculo e, no entanto, até aqui me não
familiarisei com elle. A prova é que abala-me ainda, como da vez
primeira que a elle assisti. Onde encontrar explicação para isto? De
certo que no immenso impulso d'essa dôr, na grandeza do sentimento que a
provoca e que ha de haver compungido o coração dos senhores todos, não é
verdade?

O grupo teve um movimento egual de assentimento. Em algumas physionomias
brilhava uma curiosidade inequivoca. Mas o capitão proseguia:

--Vou referir-lhes a causa d'este espectaculo com que não contavam
certamente os meus amigos. Esta senhora é a viuva do antigo
commerciante C. A., de Belém. O marido possuia seringaes no alto
Madeira, administrados por um primo. Raras vazes vinha a estas paragens:
a escala dos seus negocios no Pará impedia-o de visitar a propriedade,
perto da fronteira boliviana.

Tinham um filho unico,--o pequenito Anselmo,--um mimo de creança, que os
senhores haviam de estimar se o vissem, uma só vez bastava. Moreno,
olhos negros e vivazes, tinha na franca physionomia alegre a
manifestação exacta d'um espirito aberto e elevado. Sympathico a valer,
bem educado aos onze annos, todos o queriam sobremaneira.

Esta creança, um dia, perdeu o pae. Aquella senhora que ali está em
pouco tempo soube que os seus haveres se achavam reduzidos. Ella,
que sempre vivera na abundancia, não teve uma palavra de queixa.
Abençoando á memoria do eterno ausente, resolveu retirar-se para o
seringal, trabalhar como o ultimo cabôclo, afim de attender á instrucção
do pequeno. Para este voltaram-se todos os seus affectos. Quem ignora
ahi como sabem amar as dôces mães amazonicas?

Dona Maria não tinha parentes proximos. Emprehendeu a viagem sem
saudades, n'este mesmo vapor. Trazia comsigo o retrato vivo do morto,
cuja existencia era continuada na louçania dos onze annos risonhos da
creança.

A bordo, corriam felizes os dias. O Anselmito brincava sem pezares,
tinha em cada passageiro um camarada. E a bôa senhora quedava-se horas
esquecidas a fital-o de longe, no enlêvo da sua alma reflexiva,
folheando recordações posthumas, revendo saudades discretas.

Foi ha doze annos. Uma tarde, não sei que passara ao menino: estava mais
brincalhão do que nunca. Ia por toda a parte, correndo, risonho, amavel
com toda a gente. De subito, um grito resoou, acompanhado d'um brado
d'alma, indescriptivelmente lancinante! Olhem, ainda o tenho aqui, a
vibrar-me nos ouvidos, esse grito de mãe desesperada!

O Anselmo cavalgara o parapeito, n'um instante de descuido de todos nós
e, perdendo o equilibrio, rolara para o abysmo. Foi além, defronte
d'aquella immensa sapupêma. Em breves minutos lá estaremos. Parou o
vapor, desceram escaleres, fez-se inuteis pesquizas durante vinte e
quatro horas seguidas.

O cadaver adorado não appareceu.

De então para cá--e quantas viagens tenho eu feito?--a infeliz mãe não
deixa o _Mahissy_. O seu affecto retempera-se em passar incessantemente
por sobre o sitio onde as aguas caudalosas do Madeira tragaram aquelle
corpinho tão fragil e tão querido. De cada vez que por aqui singramos,
dona Maria ajoelha-se lacrimosa e, ao chegar ao logar fatídico, arroja
piedosamente ao rio uma corôa de saudades artificiaes. Não tem aqui
flôres naturaes, a pobre; mas acaso não são bem viridantes as flôres do
seu coração, as tristes flôres do pezar eterno?

Nunca mais foi a terra. O seringal, vendeu-o logo, pela metade do preço,
Gasta o dinheiro em passagens para si, e corôas para o anjinho. Já devem
estar bem reduzidos os capitaes da desgraçada. Causa-me isto uma
lastima profunda. Mas attendam...

                                     *

Dona Maria erguera-se, n'um impulso desvairado. Levantou por cima da
cabeça a mesquinha corôa toda banhada de sol e arrojou-a á agua.

O rio tragou a funebre contribuição, fechou-se murmuroso, em circulos
concentricos. A anciã tornara a cair genuflexa, soluçante e
transfigurada no seu apaixonado desespero.

Em terra, bem á orla da floresta ancestral, mil aves garrulavam na copa
gigante d'uma feroz sapupema secular.



Yaras paraenses


YARAS PARAENSES

No copiar da chacara, aquella noite, haviam-se reunido alguns vizinhos
do commendador Esteves, o principal proprietario do Pinheiro.

Rêdes fechavam os angulos, pendentes dos esteios. Era uma roda de
homens. Todos balouçavam-se, acalorados, aguardando o assahy que n'esse
momento a mulata Josepha amassava na cosinha.

O luar de agosto penetrava em diagonal, diaphano, trazendo toda a
melancholia profundíssima das incomparaveis noites equatoriaes. Da
matta pouco distante, lavada de luar, vinha o monotono arruido dos
insectos nocturnos, o alarido dos cururús teimosos. Na gaiola pendente
do tecto sem fôrro, um caraxué silvava. E do rio, que corria ali perto,
ao fundo da ribanceira, subiam com a brisa refrigerante os rumores dos
barcos de pesca fazendo-se ao largo, para a foz.

Fumava-se, conversava-se. Haviam já discutido os negocios do dia, na
capital. Esteves encetara mesmo um poucochinho de politica. Portuguez de
nascimento, não queria immiscuir-se em assumptos partidarios; mas tinha
por elles sua predilecção e nunca deixava de externar uma ou outra
opinião, sempre muito conservador e ordeiro.

N'essa tarde, viera com elle passar a noite na rocinha o velho Barriga,
seu aviado do alto Xingú. Era um cabôclo adiposo, de ventre
proeminente e face larga. Apparencia insignificante, matreirice innata:
o typo commum do seringueiro indígena. Trouxera a mulher, que já estava
recolhida ao quarto destinado ao casal.

Achava-se também presente o subdelegado Fonseca, antigo solicitador dos
auditorios, agora enviado ao Pinheiro afim de preparar recursos para uma
eleição proxima. Era esta a sua especialidade, ao que parecia. Em todo o
caso, rendia mais do que a primitiva profissão. Um presidente vindo da
Côrte não tivéra extraordinaria difficuldade para convencel-o d'isto.

Mas a palestra veiu naturalmente a versar sobre assumptos do sertão. A
um quint'annista de direito, que villegiaturava todo o anno,
explicara já o Barriga a pesca do pirarucú e o preparo da grude de
gurijuba. O quint'annista era, n'este ponto, d'uma ignorancia absoluta:
não admirava a sua curiosidade.

Os demais circumstantes escutavam n'um silencio discreto, bocejando. Nas
intercadencias da narrativa, apenas se ouvia o ranger das escápulas pelo
movimento das rêdes e o farfalhar dos galhos, matta fóra.

Uma voz reclamou um conto indígena, uma lenda amazonica. Não
comprehendeu a phrase o Barriga. Quedara-se a olhar o interlocutor,
cortado.

--Historias de bôto, do curupira, da mãe d'agua,--explicou o subdelegado.

--Han!--rosnou o cabôclo. Tudo isso é mentira, acredite!

--Como! Pois o senhor atreve-se a negar o que todos no sertão
asseguram ser verdade evidentíssima?

Sorriu o velho, superiormente. Tinha no rosto uma profunda piedade, pela
bôa fé do cidadão. Ergueu-se, afivelou o cós da calça e, espreitando
para o lado do quarto da mulher, congregou os companheiros em circulo
diminuto. Estava transfigurado: era um philosopho stoico.

--Vocês ouviram já falar em yaras, não?--perguntou. Pois é tudo mentira
também.

E abaixando a voz:

--Só ha uma especie de yaras,--proseguiu. Essas, porém, não vivem no
fundo dos rios da minha terra, estão, ahi, na cidade; vi hoje á tarde
uma porção, quando fui com seu Esteves tomar o vapor. São as mulatinhas
cheirosas a periperioca e jasmins, sabem? as verdadeiras yaras
encantadas. Mas precisamente não é para o abysmo das aguas que
arrastam a gente!...

--Seu Barriga, venha dormir!--gritou no outro extremo do copiar a
encanecida e rotunda esposa do velho cabôclo do Xingú.



Uma historia de amor

(DOCUMENTOS HUMANOS)



Uma historia de amor

(DOCUMENTOS HUMANOS)


PRIMEIRA QUINZENA


I

Senhor,--

Não posso attendel-o. Tenho deveres sagrados a cumprir, uma posição
social a zelar. Esqueça-me.

                                                      (_Sem assignatura_).


II

Senhor,--

Julgo-o um cavalheiro e acredito-o sincero, por causa da assiduidade com
que me procura. Acceito o seu convite para jantar,--mas somente no
intuito de o dissuadir d'essa loucura que nunca poderá ser
correspondida. Até logo.

                                                                    ELISA.


III

Sympathico amigo,--

Porque insiste? Estimo-o como um camarada, quasi como a um irmão. Não
posso, entretanto, perdoar-lhe a impertinencia:--meu marido nunca será
enganado.

                                                                    ELISA.


SEGUNDA QUINZENA


I

Bom amigo,--

Exactamento como o senhor, estou bastante incommodada por tremenda
enxaqueca, que obrigou-me a ficar deitada até agora. A sua amavel carta,
cheia de phrases tão meigas, traz-me certo lenitivo e me dá a energia
necessaria para tomar a penna. Demais d'isto, a satisfação de
escrever-lhe faz-me esquecer os proprios soffrimentos.

Não me agradeça tanto o serão de hontem, ao jantar. Se o sr.
comprazeu-se com a minha companhia, o mesmo aconteceu commigo; não
tenho, pois, merito algum em fazer o que ditam os meus mais caros
desejos.

Quanto mais conversamos, mais vou eu descobrindo no meu bom amigo
sentimentos e gostos que correspondem aos meus. A surpreza rejubila-me;
similhante analogia de caracter e de idéas é demasiado rara para que eu
deixe de admirar-me, sobretudo se encarar as barreiras sociaes que nos
separam e a differença de classe a que pertencemos.--A sua cartinha de
hoje é uma pequena obra-prima de cariciosas phrases. Quero crel-o,
desejo acredital-o. Já não posso duvidar do senhor. Julgo-o sincero,
porque _nada_ o obriga a ter procedimento egual ao seu. O sr. é
demasiado superior de espirito para ligar tanta importancia a uma vulgar
questão de materialismo. Por consequencia, a logica me compeliu a
suppol-o franco em seus sentimentos apparentes. Quanto a mim,
entrego-me toda ao senhor, intellectualmente. Juro-lhe que sou sincera,
mesmo--e sobretudo--nas minhas ingenuidades.

O sr. é sceptico, já m'o disse; isto é, preveniu-me do trabalho que eu
teria para fazer-me acreditar. Não ignoro as prevenções que têm os
homens pelos sentimentos affectados. Todas as mulheres são enganadoras,
voluveis, mentirosas, mas todas têm, comtudo, momentos de real
sinceridade. Encontro-me em um d'esses momentos. E note, meu caro Jorge,
que não digo isto para differençar-me das demais mulheres e tornar-me
importante aos seus olhos. Não, porque possúo todos os defeitos acima
enumerados. Melhor do que ningúem, sabe-o o senhor, porque estou prestes
a enganar o homem com quem vivo. Verdade é que esse homem é um
imbecil e que nunca sympathisarei com tal cathegoria de caracter. Não
digo isto para desculpar-me aos meus proprios olhos, pois só me importo
com a minha consciencia e não com alheias opiniões. Digo-o, sim, á laia
de informações a respeito dos meus sentimentos reaes, no intuito de
fazer-lhe comprehender que, do senhor para mim e reciprocamente, deve
estabelecer-se uma corrente de escrupulosa sinceridade, pela simples
razão de que eu e o sr. não somos impellidos um para o outro por outro
interesse que não seja o nosso capricho,--ou, se mais lhe apraz e para
falar mais exactamente, pela especie de correlação que existe entre os
nossos dois espiritos.

Como vê, sou mais franca do que o sr. É talvez um mal. Por
principio, uma mulher, posto que enamorada, nunca deve revelar
inteiramente a sua alma. Eu, porém, tenho-o na conta do mais leal dos
homens, do mais generoso dos corações. Serei algum dia despertada
cruelmente d'este adoravel sonho?

Percebo que tenho ainda muitas coisas a dizer-lhe: tomo, pois, outra
folha de papel. Ha de fazel-o sorrir tamanha expansão. Que quer? Tenho
tantas phrases agitando-se-me na cabeça.... Emfim, perdôe-me. Desejo que
o sr. me conheça bem e saiba completamente o que sou e o que quero.

Não imagina até que ponto aprecio a attenção tão firme mostrada para
commigo, vae fazer um mez. Agradeço-lh'o deveras, porque isto me
satisfaz immenso. Lembra-se da carta em que lhe pedia que me
esquecesse? Pois bem; hoje tem o meu querido amigo a razão por que lhe
dizia essas palavras. Não o conhecia bem e receiava affeiçoar-me
demasiado a um homem cujas apparencias eram as de um aristocratico
_viveur_.--Sinto que hei de amal-o, que hei de amal-o talvez mais do que
o sr. deseja e o amor é, ás vezes, cruel tyranno intransigente e
molesto. O sr. agora está prevenido: póde defender-se. Não venha um dia
lamentar-se pelo facto de haverem-se tornado demasiado serios os meus
sentimentos.

Tenho o genio tranquillo. De temperamento frio, difficilmente me
enthusiasmo. Com respeito a questões graves, nada emprehendo sem antes
prever os resultados do acaso ou do imprevisto. Nunca foi meu fraco a
leviandade. É por isso que faço questão de patentear-lhe a alma da
mulher que o senhor tem deante dos olhos e que espero nunca será
considerada com volubilidade.

Conhece-me agora, querido amigo. Esta carta é uma confissão: nunca fiz
outra egual. Sem falsa vergonha revelo os meus defeitos e fraquezas,
sabendo a quem os confio.

Falemos agora de coisas que interessam á vida physica. Nada tenho a
dizer-lhe sobre o ponto que trata do aposento em questão: approvo o que
fez. Veja que o ninho seja bem discreto, bem mysterioso, para esconder
perfeitamente a felicidade que vae abrigar.

Até amanhã.

                                                                    ELISA.


II

Jorge,--

Volto do passeio n'este instante com meu marido e encontro a tua carta.
Então, meu querido, já estás mau e injusto sem motivo!

Em primeiro logar, dizes--_a senhora_, o que, na correspondencia, é um
matiz bem accentuado de frieza. Não é bonito isso.

Depois, agastas-te sem razão. Não conheces acaso a minha existencia? Não
ignoras que goso de uma liberdade limitada. Além d'isso, não temos
ambos, eu e tu, as nossas respectivas obrigações? Differentes, sem
duvida, dir-me-ás, porém isso não impede que seja imprescindivel
cumpril-as todas.

Tens graça affirmando que eu podia arranjar um pretexto! Invento-os
todos os dias, mas lá vem um instante em que os argumentos minguam e
mistér se faz pagar o tributo da propria presença, como hoje aconteceu.

Não sejas, pois, injusto:--eu soffreria bastante.

A vida que levo não tem alegrias para mim, acredita-me. E, se vens ainda
augmentar-me os desgostos com recriminações que não mereço, ainda mais
me entristecerás.

Amo-te, bem o sabes. Se não o crês, é porque impede-te o teu
scepticismo. Como provar-te, entretanto, o meu amor?

Vê se sou corajosa: escrevo esta carta (e bem notas com que
tranquillidade), deante de quem sabes. Não posso mostrar mais audacia,
mais temeridade, parece-me. _Elle_ anda ao redor de mim, com
olhares atravessados, que me encolerisariam se eu já não estivesse tão
predisposta contra elle.

Até logo. Não sejas tão mau com a tua

                                                                    ELISA.


TERCEIRA QUINZENA


I

Meu querido,--

Vou mais uma vez enfastiar-te com a minha prosa quotidiana, porém agora
tenho uma desculpa:--estás doente.

Como te encontras hoje? Cada vez melhor, presumo-o e desejo-o com toda a
minha alma.

O tempo está mau, trata-te bem, não faças imprudencias nem
affrontes o ar humido e doentio das ruas lamacentas depois da chuva
d'esta noite.

Muito penso em ti e soffro extraordinariamente por te não ver ha longos
dias. Tu, meu amigo, que tão bem conheces o coração das mulheres, ainda
desconheces o meu, que, no emtanto, possues inteiramente... ou antes,
conheces demasiado a esse pobre musculo e é por isso que ás vezes o
fazes soffrer bastante.

Adeus, meu amor. Trata-te com cuidado e recebe toda a ternura da tua

                                                                    ELISA.


II

Jorge,--

Depois do que se passou hontem á noite entre nós, tomo a prudente
resolução de libertal-o da minha presença, que o importuna de certo
tempo para cá. Esta carta é a da sua alforria: sae ao encontro das suas
intenções, que, mais hoje, mais amanhã, seriam propostas de certo.

Não me surprehende a sua conducta. Sinto não haver-me equivocado, porque
amava-o. O sr. é muito caprichoso e nunca teve affeição por mim. Nunca
houve no mundo caracteres tão deseguaes como os nossos. Os nossos gostos
e sentimentos andavam em regiões absolutamente oppostas, bastante tarde
o comprehendo.

Adeus, por tanto. Cure-se, restabeleça depressa a saúde, que eu desejara
saber completa, mesmo sem nunca tornar a vel-o. Adeus.

                                                                    ELISA.

                                   ----

Conforme.



A filha do pagé



A filha do pagé

                                                    A Martin Garcia Mérou


I

No rio Negro.

Das margens, nenhum som da vida animal perturbava a tranquillidade das
coisas. A pino, o sol mordia as densas vegetações sombrias, fustigava
tenaz uma ou outra borboleta vagabunda sobre os nenuphares exhaustos. O
rio seguia monotono, n'um esvaimento; apenas pelo meio, lá ao
largo, a correnteza fervia em cachões, borbulhava entre escumas
alaranjadas, depurava-se de todos os residuos que acarreta a grande
arteria aquatica.

Pela beirada, aproveitando o remanso, ia subindo vagarosa, impellida
pelo remo de pá, a canôa de pae Francisco, o velho pagé de Curralinho.

Vinha de longe, o solitario viajante. Emprehendêra a operosa navegação,
que almejava fôsse a sua ultima ascensão para o centro, em busca do
absoluto socego onde podesse sondar a sua dôr e dar largas ao pranto que
não seccava ha seis mezes. Fugia do logar onde fôra feliz e poderoso.
Além, no mysterio das florestas intactas, na grandiosidade da natureza
virgem, havia de encontrar o lenitivo para as amarguras da alma
lacerada.

Uma ternura afagava-lhe o espirito, onde renasciam vislumbres de
esperança. Esquecer o passado, não o desejava. Seria buscar o
impossivel. A que ousava aspirar, n'uma humildade de supersticioso, era
á pacificação circumdante, para rever a seu gosto agridoces saudades,
resuscitar as reminiscencias, fruir as meigas recordações dolorosas dos
tempos idos. Era isto querer em demasia?

Remava sempre, semi-nú ao centro da embarcação, com o dorso exposto á
soalheira, suarento, a cabeça ora para deante, ora erguida, no movimento
dado ao remo. Nada via do lado da terra. A vegetação crescia opulenta,
emmaranhara glaucas barreiras invenciveis de raizes, troncos, ramagens e
lianas. Por cima de tudo isto, palmeiras carregadas de tractos
trapejavam brandamente e dos galhos, d'entre massiços mais claros
de folhagens tenras, pendiam as orchídeas, na gala aristocratica dos
seus caprichosos matizes.

Ás vezes, adeante da canôa, pinchava um peixe assustado, levantava
innumeras gottas, achamalotava de arripios fugitivos a negrura do
remanso. Mas o velho quedava-se impassivel, remando sempre, fixo na idéa
de fugir de Curralinho. O aspecto exterior do mundo não o interessava;
debatiam-se-lhe tumultuosamente no espirito milhares de pensamentos
retrospectivos, um só dos quaes era bastante para dominar-lhe a attenção
inteira.


II

Era simples a historia d'esse homem.

Nascêra e crescêra em Curralinho. Filho d'um antigo cabano, fizera-se
pagé quando lhe morrêra o pae.

Desconhecido ao principio, teve de esperar paciente que os seus feitos o
acreditassem na população, trazendo a pouco e pouco o exito que tamanha
fama lhe grangeou depois. Ao chegar á edade madura,--estava
definitivamente consolidada a sua reputação. De muitas leguas ao redor,
vinham durante o anno centenas de pessôas recorrer-lhe ao talento com a
fé cega dos supersticiosos e dos crentes.

Uns,--a nata da gente culta de Curralinho,--tinham-n'o na conta de
brégeiro especulador. Mas a parteira Eudoxia proclamava convicta o
sincero devotamento de pae Francisco áquillo a que ella, com um pouco
menos de propriedade na expressão, chamava o seu sacerdocio. Levava
mesmo o espirito justiceiro a assegurar, com a responsabilidade do
testemunho evidente de cem pessôas, que, para resolver uma situação
difficil de puerperio, mais valiam as imposições cabalísticas da dextra
do apregoado pagé, do que toda a sua longa pratica, d'ella depoente
insuspeita, associada á infallivel interferencia de São Raymundo Nonato.

Especulador ou convicto,--não vem a pêllo esmerilhar o fundo d'aquelle
caracter. Talvez mesmo tivesse ella as duas qualidades que são, quasi
sempre, o acúleo do seu e de identicos mestéres. O que havia de positivo
era a adoração que sentia pela filha,--um encanto de caboclinha
rechonchuda e capitosa, que lhe déra a companheira, momentos antes
de morrer. Fôra essa a unica vez que falhara a sua sciencia de mago.
Será verdadeiro o aphorismo de que santos de casa não fazem
milagres?--perguntava, benzendo-se trez vezes, a velha Eudoxia.

Toda a villa conhecia e estimava a repariguita. O pae tinha-a fóra de
casa, com a gente d'um amigo intimo. Ia vel-a todos os dias e passavam
longas horas sem que elle interrompesse o affectuosíssimo colloquio, que
tão deliciosamente banhava de inenarraveis venturas o seu singelo coração.

Que gloria valia a de ser pae de similhante creatura?


III

Creara-a elle proprio, desde os primeiros dias da dupla viuvez do seu
corpo e da sua alma. Descrever toda a serie de cuidados, de attenções,
esperanças e sustos desenvolvidos por pae Francisco, seria traçar o
poema de um heroismo commum no bemdito solo amazonico.

Fôra elle a sua ama secca,--mas disvelado como nenhuma. Tinha um geito
especial para amimar a pequenita creatura, apaparical-a com terna
bondade, que era um gosto espreital-o no desempenho d'essa funcção
providencial. Havia, assim, n'aquelle extranho ser, duas entidades
heterogeneas, uma dualidade admiravel, que tão profundo contraste
estabelecia entre o terrivel feiticeiro abracadabrante e o pae melifluo,
de olhos deslavados em sorrisos de adoravel meiguice.

Quedava-se o cabôclo, a cada instante, longo tempo a rever na face
inexpressiva da creancinha as feições d'um ente estremecido, para sempre
entregue á dissolvencia definitiva, no sombreado cemiterio da villa. O
seu affecto fazia ricochete na muralha da morte e volvia inflorado de
carinhos, fúlgido de enternecidas esperanças, a formar a aureola
transcendente que exalçava o futuro da creancinha.

Felicia chamara-a, n'um augurio de ventura. Quantas horas não ficava
absôrto, á beira rio, sonhando acordado mil felicidades para o
enlevo da sua alma solitaria, para a filha idolatrada que ali
medrava a seu lado, na força da vida ao ar livre, sem peias physicas a
entorpecer-lhe a pujança da infancia?

Vieram, mais tarde, outros cuidados. Necessario se tornava dar fórma a
um espirito vivo, a uma intelligencia agil e vigorosa. Já não bastavam
as attenções materiaes. A _ama sêcca_ devia tornar-se n'um educador
perfeito e elle soube sel-o com exito, no seu meio, nos limites da
propria visualidade espiritual. Não têm as almas, ainda as mais simples,
um mundo de idéas sãs, um thesouro de sentimentos puros, tão efficazes
na comprehensão dos deveres moraes?

A philosophia do pagé de Curralinho era singela como a simplicidade da
sua existencia, vigorosa como a pujante natureza circumdante.

Mas a creança da vespera tornara-se mulher. Novos sobresaltos para o
pae. Não lhe bastava a convicção de lhe haver insuflado á alma os mais
sãos conselhos. Uma nuvem de desconfiança lhe entenebrecia o coração. Os
sustos perseguiam-n'o sempre, mesmo no meio dos somnos agitados. A sua
preoccupação constante era esta: amparar a filha contra o assalto da
concupiscencia. Se houvesse necessidade de comparal-o a algum personagem
do romantismo, nenhum vulto era mais adequado ao símile do que o do
apaixonado truão de Francisco I.

Pozera-se de má catadura, encanecêra, tornara-se rispido e intolerante
com todo o mundo. Em cada individuo via um ladrão da sua felicidade. E,
nos dialogos com a filha, ao luar, ao longo da ribanceira, dominando o
Amazonas, tinha encantadoras expressões de meiguice, phrases cariciosas
como osculos de creança amimada,--admiraveis esforços para prender e
enleiar definitivamente um affecto que elle receiava--ou
adivinhava?--perder um dia. Esta unica idéa lhe dava febre. Era, então,
n'uma languidez voluptuosa e pura, que recebia os beijos filiaes da
virgem, perfumada a periperioca, agitada n'uma ternura reconhecida.


IV

Este encanto durou pouco. Felicia amara, alfim, outro sêr extranho, com
um novo sentimento cuja diversidade reconheceu tão grande, que não teve
animo para confessal-o.

Ignorando tudo, o pagé contemplava satisfeito, na apparente
tranquillidade da caboclinha, o são producto dos seus conselhos.

Um regatão de longe--lá das bandas de Macapá--fôra o perturbador
d'aquelle singelo coração. Era moço, valente, um bello typo de tapuia
varonil. A sympathia da rapariga fez-se primeiro enthusiasmo doidivanas,
assumiu depois as proporções de violenta paixão.

Felicia não tinha já a mesma fixidez attenta no olhar quando a encarava
o pagé. Distrahida, oppressa por vago mal estar, buscava a solidão,
isolava-se por gosto. O pae attribuia esse estado a causas puramente
physicas. Entretanto, quem surgisse, alta noite, por perto do copiar da
casa onde vivia a moça, havia de enxergal-a nos braços do regatão,
soluçante de amor, gemente de desejos.

Não podia prolongar-se o novo estado de coisas. Um dia, ao amanhecer,
foi o pagé avisado que lhe fugira a filha. Por uma reveladora
coincidencia, desapparecêra também do portosinho da villa a canôa do
regatão.

O velho cambaleara, caíra sem sentidos. Trez semanas esteve á morte,
ardendo em febre, delirando entre pesadêlos horriveis. Todo o
povoado emocionou-se á narração de tamanha dôr. Os mais endurecidos
corações, aquelles que chamavam feiticeiro e perverso a pae Francisco,
tiveram para elle um movimento de sympathia, uma pontinha de dó.

Eudoxia, entretanto, não ficara socegada. Varonil, resoluta, organisou,
com o auxilio de dois amigos que equivaliam a duas dedicações poderosas,
uma expedição em busca de Felicia.

Alguém disséra que o regatão tomara o caminho de Gurupá. Na mesma
direcção seguiram a parteira e seus auxiliares. Dois mezes depois--nem
tanto, talvez--estavam de volta. Rocebeu-os o velho n'um desanimo, com
um sorriso triste, quasi idiota, na face desfigurada.

Tudo inutil. Felicia morrêra em viagem. Havia-a destruido a
variola. O regatão enterrara-a n'uma escarpa e ficara louco, ao
abandonal-a para sempre á orla da floresta, sob uma chuva interminavel
de flôres capitosas.

Pae Francisco manteve-se calado, imperturbavel; só dois grandes fios de
lagrymas deslisaram-lhe pelas faces, cortando o rictus que a immensa dôr
formava em cada commissura dos labios.

Meia hora depois, elle também partia, sem despedidas, n'uma canoinha
leve, subindo o Amazonas.

Eis porque, ha pouco, o encontramos, lavado em suor, a cabeça ora para
deante, ora erguida, no movimento dado ao remo. Ha alguns mezes já que
saíu de Curralinho. Segue pela beirada, aproveitando o remanso do rio
Negro.

Foge do logar onde fôra feliz. Não terá direito a aspirar ao
lenitivo para a alma lacerada?

Como nenhum som de vida animal perturba a tranquillidade das coisas,
está perscrutando a intensidade dos proprios pezares, sopesando a agonia
do coração encarquilhado.

Vae sempre para o centro, n'uma ascensão dolorosa, martyr da bôa fé. No
espirito, afagado por indefinida ternura, renascem-lhe vislumbres de
esperança. Não é que pretenda esquecer o passado. Busca apenas o socego
absoluto das florestas intactas, para dar largas ao pranto que não secca
ha seis mezes.

Demais, no meio da pacificação circumdante, não poderá elle rever a seu
gosto agridoces saudades e convulsar baixinho, muito baixinho, com a sua
querida Felicia,--não a fugitiva,--mas a outra, a pequenita, a que
o preferia sempre, aquella que elle creara como ama secca e ainda
conservava pura e infantil no fundo do amantíssimo coração?



INDICE


PRIMEIRA PARTE

Subjectivismo
                             Paginas
    O isolamento                  15
    Gaivotas                      27
    O Naufragio do Purus          39
    Brinde a minha Filha          49
    O cemiterio da floresta       57
    Um anniversario               67

SEGUNDA PARTE

Objectivismo

    A pesca do Deodato            89
    Mater dolorosa               113
    Yaras paraenses              129
    Uma historia de amor         137
    A filha do pagé              153



ESTE VOLUME
foi impresso, gravado e brochado
para Arnoldo Moen, editor,
314, Florida, 314
BUENOS AIRES
10 de fevereiro de 1896





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