Home
  By Author [ A  B  C  D  E  F  G  H  I  J  K  L  M  N  O  P  Q  R  S  T  U  V  W  X  Y  Z |  Other Symbols ]
  By Title [ A  B  C  D  E  F  G  H  I  J  K  L  M  N  O  P  Q  R  S  T  U  V  W  X  Y  Z |  Other Symbols ]
  By Language
all Classics books content using ISYS

Download this book: [ ASCII | HTML | PDF ]

Look for this book on Amazon


We have new books nearly every day.
If you would like a news letter once a week or once a month
fill out this form and we will give you a summary of the books for that week or month by email.

Title: A espada de Alexandre - Corte profundo da questão do Homem-Mulher e Mulher-Homem
Author: Castelo Branco, Camilo Ferreira Botelho, 1825-1890
Language: Portuguese
As this book started as an ASCII text book there are no pictures available.


*** Start of this LibraryBlog Digital Book "A espada de Alexandre - Corte profundo da questão do Homem-Mulher e Mulher-Homem" ***


of public domain material from Google Book Search)



                         A ESPADA DE ALEXANDRE.

        CORTE PROFUNDO NA QUESTÃO DO HOMEM-MULHER E MULHER-HOMEM

                                   POR

                UM SOCIO PRENDADO DE VARIAS PHILARMONICAS



                                  PORTO
                         TYPOGRAPHIA DA CASA REAL
                        Praça de Santa Thereza, 63

                                   1872



                         A ESPADA DE ALEXANDRE.



                         A ESPADA DE ALEXANDRE.

        CORTE PROFUNDO NA QUESTÃO DO HOMEM-MULHER E MULHER-HOMEM

                                   POR

                UM SOCIO PRENDADO DE VARIAS PHILARMONICAS



                                  PORTO
                         TYPOGRAPHIA DA CASA REAL
                        Praça de Santa Thereza, 63

                                   1872



CARTA AO MEU VISINHO RAIMUNDO,

POETA LAUREADO NA «AGUIA-D'OURO»


MEU CARO SENHOR E VISINHO!

Era por uma noite de lua cheia do agosto preterito. Estava eu á janella
do terceiro andar, onde moro, n'esta fragrante rua das Congostas, ninho
de poetas e philosophos, floresta ramalhosa onde v. s.ª regorgeia as
suas lyras, e eu medito Theophilo e Rozalino Candido.

Estavam então v. s.ª e sua esposa, com as vidraças erguidas, banhados de
resplendores da lua, altercando em voz alta a respeito de um livro de
Alexandre Dumas-Filho, obra que por ahi gira com o titulo hermaphrodita
de HOMEM-MULHER.

Dizia sua esposa que o auctor do livro atacava o direito, a justiça, a
religião e o pudor. Replicava o snr. Raimundo que o auctor do livro
não atacava nada; pelo contrario defendia tudo.

Redarguia s. exc.ª que a mansão conjugal não é açougue, nem a esposa
vaca, nem o marido megarefe. Recalcitrava v. s.ª que a esposa devia
considerar-se vaca, desde que o marido era boi. _L'Homme-Femme--Le
Boeuf-vache!_ Está claro.

Contenderam largo espaço os meus prezados visinhos n'este honesto
certame; e, ao mesmo passo que mutuamente se illustravam nos deveres de
cada um, abriam no meu cerebro um jacto de philosophias que eu passo a
golphar aos quatro ventos da terra.

Os sentimentos bem ou mal expendidos n'esta carta, meu prezado visinho,
são uma especie de prolegómenos com que tenciono predispor os animos
para a representação de uma tragedia, em que trabalho ha muito,
intitulada _O homem de Claudia_. Não se presuma, porém, que eu venho com
esta noticia aliciar espectadores para a minha tragedia no
Theatro-Circo. Não, snr. Raimundo. Eu sou publicista da eschola de
Mestre Theophilo--o symbolico,

    _.......... um que tem nos MALABARES_
    _Do summo sacerdocio a dignidade,_

como a respeito d'elle vaticinou Luiz de Camoens, no Cant. X, est. 11.

Publico um livro, sei que ninguem m'o compra, nem m'o lê; mas
convenço-me, á laia do mestre, que os meus livros ensinam tudo que os
outros sabem. Esta ronha pegou-m'a elle, o Grão-Lama, que imagina fazer
reformas de raças com os seus livros de dentadura anavalhada como Cadmus
fazia homens com a dentuça do dragão. Ajoujei-me, pois, na canga d'este
pedagogo, e vou bem.

Revertendo ao ponto:

Affirmam auctores de boa nota que a mulher é femea, _femina_. N'este
parecer abundam D. Antonio Ayres, bispo do Algarve, na «Reforma» do
aprisoamento, e Bento Pereira, na _Prosodia_. Auctoras tambem de boa
nota asseveram que o homem é macho. Do inlace e coezão d'estas entidades
heterogenias forma-se o Macho-Femea, o colchete phyloginio. Faça-me o
favor, snr. Raimundo, de alçapremar o seu intellecto á altura d'estes
principios. Em materias transcendentes seja-me aguia e não kágado.

No principio do mundo (não iremos mais longe por em quanto) extrahiu
Deus a femea do intercôsto do homem. Aurora do paraizo! Então era a
costella do homem que dava a mulher; hoje em dia, ha homens com todas as
costellas partidas por que desejaram uma ou duas mulheres! O lombo do
rei da creação perdeu bastante da sua importancia desde que os nossos
irmãos anthropophagos pegaram d'extrahir d'elle sandwichs.

Este exemplo indelicado seduziu a esposa a considerar o marido uma
substancia comestivel entre o prezunto de javali e o fiambre de viado.
D'ahi, o desacato, o deslize d'aquella patriarchal idolatria com que dez
centos de mulheres genuflectiam ao sancto rei Salomão.

Abastardado o antigo preito da costella ao costado, da parte ao todo, os
philosophos inventaram a alma para d'alguma fórma afidalgarem a juncção
da carne á carne, do osso ao osso--phraze biblica sobremaneira bonita e
aziatica. Ideada a alma, cumpria ungir com os oleos mysticos o pacto da
alliança entre alma e alma. Accudiram os canonicos com a invenção do
sacramento.

Espero que o meu visinho não ignore inteiramente que os Sacramentos são
sete. E, se esta sombra de duvida offende a sua orthodoxia, sirva-me de
desculpa aquillo de Plutarcho no seu tractado «Da maneira de lêr
poetas.» Diz elle: «A religião, coisa difficil de perceber, está acima
da intelligencia dos poetas». Mas do sacramento do matrimonio sei eu que
o snr. Raimundo, sem embargo do seu alto lyrismo, percebe o essencial,
porque eu mesmo o ouvi dizer a sua esposa:

«O matrimonio foi divinamente instituido». Por signal que ella,
áttica e sceptica, lhe respondeu:--Bem me fio eu n'isso!

E a razão de sua esposa duvidar da procedencia divina da instituição,
meu caro visinho, eu lhe digo em que bases se funda.

Instituição divina ha só uma: é o mundo. Esta crença hade prevalecer
emquanto meu mestre Theophilo não quizer provar que o mundo é obra dos
mosarabes. Divino é tão sómente aquillo que humanamente se não faz. Os
sonetos de v. s.ª, por exemplo, não me parecem absolutamente de
instituição divina. O cazamento tambem não, por que em tal acto influem
o amor, o interesse, o medo, a vergonha, o reumatismo, a papa de linhaça
posta por mão de esposa carinhosa nas irritações do apparelho digestivo,
_etc_. Estas coisas são tão divinas como eu; e, senão ouso dizer como o
visinho, é por que v. s.ª, na sua qualidade de bardo, tem lumes divinos,
_mens divina_; arde, fumega, evola-se como Elias--volatisação de que se
não gabam aqui os nossos visinhos pecuniosos por que o dinheiro pucha
por elles para baixo como os elythros pela tartaruga.

V. s.ª sabe que, na antiga Germania, consoante Cornelio Tacito descreve,
aquelles barbaros ditosos cazavam-se sem sacramento, sem sacerdote e sem
templo. O noivo, em presença de parentes seus e da noiva, dizia-lhe:
«Recebo-te como minha legitima mulher, para te haver e possuir, de hoje
ávante, boa ou má, rica ou pobre, para te amar e assistir em tempo de
saude e doença, até que a morte nos separe».

Alli, divindade e padre, n'aquella augusta ceremonia, eram os arcanos
sagrados, _arcana sacra_, o mysterioso respeito ao Deus invisivel,
consagrado nos solitarios murmurejos da selva, _lucos ac nemora
consecrant_.

Ora, medite, snr., n'estes selvagens, onde as mulheres rapadas, as
adulteras, eram por tanta maneira raras, que apenas apparecia uma para
cevar a execração das turbas! Pois olhe que não havia lá n'aquellas
florestas dodonicas idea de femea fabricada da costella do homem. Lá
dizia-se que a creadora do mundo havia sido uma enorme e desmedida vaca,
e vivia-se honradamente apesar de tão estupida cosmogonia de uma vaca
bruta; e, por aqui, no pino da civilisação, com tantas vacas sabias,
vamos a pique! As nossas femeas restituem-nos a costella, pondo-no'l-a
como apendice ao craneo; e, em vez de se tosquiarem á guiza das
germanicas, alcantilam as cabeças com uns riçados delirantes. Atroz!

Diga-me, poeta laureado: não será injuriar Deus attribuir-lhe o vinculo
sacramental do matrimonio, d'onde derivam tantos infernos sabidos,
tantos infernos ignorados, tantos coraçoens nobilissimos
pervertidos, tanta deshonra escarnecida pelos folioens dos palcos,
tantas alcovas devassadas, tanta mulher emborcada no gôlphão das
lagrimas a que a sociedade chama o lodo da prostituição?

Levam a taes voragens as estradas complanadas pela mão de Deus?

Ó snr. Raimundo, não parvoejemos por amor ao catholicismo. Não façamos
da nossa hypocrisia aspa de patibulo em que estamos sempre a cravejar a
memoria de Jesus, sobre quem Deus refrangiu o mais divino reflexo da sua
gloria.

Jesus não fez o cazamento: quiz fazer a nova Eva, com o pé sobre os
colmilhos da serpe, e a fronte amparada no seio amantissimo do homem.
Ah! Jesus disse: «Amai-vos!» Isto de: «maridai-vos» é preceito de
concilios, e é palavra que não sôa no lexicon hebreu nem chaldeu.
Ser-me-hia mais facil encontral-a em Petronio que em S. Paulo. Ressuma
d'essa palavra um travo de impudor. Quando ella vier do intimo seio aos
labios da mulher, já lá dentro não ha flôr que lhe perfume o furtum.
_Maridança!_--expressão deslavada de um acto sem vislumbre de ideal, a
desfloração a começar na prosodia, um rebaixamento d'aquelle prodigio da
fantasia genetica--da mulher--á condição da femea, da retorta, do
recipiente, da maquina de costura silenciosa, da materia grangeada para
reproduzir, como quem aduba um torrão que hade verdejar couves lombardas!

Atroz, snr. Raimundo, atroz!

Que é o adulterio?

É a razão insurgida contra o absurdo do vinculo indissoluvel.

A mulher, que morre no acto da sua rebellião, que é? Hoje, é uma
criminosa que uns deploram, e outros impropéram na sepultura. D'aqui a
cem annos será celebrada como holocausto da emancipação.

Por que, d'hoje a cem annos, visinho, não haverá matrimonio, nem
adulterio--crime convencional e estranho á natureza, na judiciosa phrase
de Girardin--; haverá amor duravel e mantido mutuamente pela liberdade
de quebrantar o pacto. O sacramento, o nó indesatavel, serão os anjos,
os filhos. Por que os filhos, as creanças amadas do defensor de Maria
Magdalena, desde então conversam com Deus, e haurem-lhe dos olhos
divinos o raio de luz que reverbera entre os coraçoens de seus pais. Não
descerá a treva do tedio sobre as almas amadas. A aza pura e alva do
filho cobril-as-ha, quando a hydra da lascivia resurtir das ruinas de
algum extincto mosteiro de bernardos ou bernardas.

Que é o matrimonio?

A definição, dada recentemente pela minha collega Maria Deraismes,
recende aromas de tão subtil feminilidade, que não ha ahi coisa mais
balsamica de donzellice e pudicicia!

Ora, leia, poeta e senhor meu, e confesse que, ao par d'isto, os seus
madrigaes são trovas de marujo que fadeja nas fontes cabalinas da
Travessa dos Barbadinhos.

«O cazamento--diz a dama, invectivando Alexandre Dumas--é a união de
dois organismos, cada qual com seu officio a exercer, em consequencia de
precisoens, appetites, e desejos que reciprocamente pendem a
satisfazer-se um pelo outro, sendo o objecto desta satisfação a
perpetuidade da especie. Eis a essencia, o fim do cazamento.»[1]

Esta minha collega physiologica, ao que parece, é lida em Sanches, _De
matrimonio_, e tem bastantes luzes de anatomia. Para alguns espiritos
rasteiros e ignaros prefiguram-se no hymeneu suavidades, arrôbos,
idealisaçoens, evoluçoens mais ou menos gasosas, borboletas iriadas,
_etc_. A snr.ª D. Maria da EVA, não. Essa vê dois orgãos com appetites.
Em materia de cazamento não é christan, nem mahometana, nem pagan: é
organista.

Em outro lanço, pag. 38, a mesma philosopha, discreteando ácerca dos
ditos orgãos, pondera que «a physiologia, parte da biologia, quando
tracta dos órgãos em exercicio, requer a mais rigorosa imparcialidade, e
a regeição plena de tudo que é postiço.»

Apoiada! Gosto d'esta senhora! Se eu tivesse um filho parvo, dizia-lhe :
«Caza-te com esta D. Maria da EVA, se queres saber biologia.»

Outra minha collega, que por nome não perca, diz que: «se a sua filha
for sanguinea e de compleição robusta, lhe não escolherá marido fraco ou
desfalcado de forças por libertinagem.»[2]

É tambem organista.

Cá está outra: a snr.ª D. Hermance Lesguillon, versada em Aristoteles.

Esta dama abespinha-se rasoavelmente contra Dumas, porque elle parece
alvitrar que as meninas se abstenham de interpretar muito á lettra o
preceito genesiaco. A douta matrona, authora de quatorze livros, exclama:

«Qual é o fim da creação? É decisivamente convento para as mulheres e
mosteiro para os homens? Isto, a fallar verdade, é ridiculo! Onde quer o
snr. que ellas vão? Aos vicios contra-natura, como Aristoteles os
attribue ao masculino nas republicas gregas?»[3]

Veja-me esta sábia, ó snr. Raimundo!

Quer agora regalar-se com um pedacinho de apostrophe contra o mesmo
vicio dos gregos?

«Cautela, eterno masculino! O proprio Deus se offende d'esses attentados
contra a natureza! Esses impudicos mysterios que commetteis contra a
mulher--obra da predilecção e ternura divinas--ultrajam Deus!»[4]

_Mysterios_ impudicos que ella lá sabe, como se não fossem mysterios.
Vista dupla do genio. Emfim, sempre é dama que lê Aristoteles, como a
sua esposa, meu visinho, não é capaz de soletrar a _Palavra_, gazeta de
lettras de 10 reis, as quaes não podem formar uma intelligencia de pataco.

Conta a referida litterata que certa donzella sua amiga, em vespera de
cazar, leu o _Homem-mulher_. Entrou o noivo, e achou-a a tremer de pavor
com o livro entre mãos. Pergunta-lhe que tem; ella mostra-lhe a
brochura, e aponta-lhe com o dedo de ágatha aquelle truculento _Tue-la_!
Mata-a!»

--Que lhe parece isto?--disse a pallida noiva.

--Soberbo!--responde o gentil namorado--Não ha ahi palavra ociosa. O
remate principalmente é optimo!

E a menina, sem mais delongas, desmaiou. E, assim que recobrou os
sentidos, disse á mãe que não queria semelhante marido.

Rodeiam-na as suas amigas; forma-se synagoga de senhoras conspicuas, e
concede-se á loira Alice a palavra para explicaçoens.

E a menina entre outras phrases, expediu estas do seio arquejante:

--Aquelle _mata-a! mata-a!_ zumbia-me nos miolos! Estarreci!.. Como hade
a gente jurar que será sempre a mesma, quando o livre arbitrio está
dependente de outro? Poderei responsabilisar-me por amal-o sempre? Se me
elle sahir abominavel, por sentimentos, e violento, caprichoso e
despota, poderei soffrear a minha impaciencia? Se elle me não agradar
depois, poderei amal-o?--

Visinho, bacorejou-lhe á prevista menina onde iria parar ao diante, e
teve medo. Honrado susto! Não lhe assevero que ella soubesse biologia,
nem miologia, nem manuseasse as politicas aristotelicas; mas de tal
donzella ha muito que esperar, scientificamente fallando. D'estas
vitellas tenras é que se fazem as vaccas sabias e duras.

Mas não se persuada, senhor meu, que a discreta Alice aprezilhe no colo
de alabastro a tunica de vestal. Longe d'isso. Tenciona cazar,
porque as matronas academicas lhe preleccionam biologicamente que a
perpetuidade da especie é condição indeclinavel. Diz ella então muito
aforçurada:

--Heide cazar com pessoa cujos sentimentos eu conheça radicalmente;
quero que eu e elle saibamos com o que podemos contar, e se as nossas
sympathias são reciprocas... Lá do enxoval, que estava prompto, não se
me importa já... Eu ia cazar com um sujeito que não amava nem conhecia.
Primeiro que tudo, quero amar os sentimentos honestos do meu namoro. Com
taes condiçoens, tudo se arranja bem. _Seremos depois indulgentes um
para o outro._[5]

Bastante petisca; mas boa rapariga de lei! E ingenua então... até alli!
Confessa que esteve a ponto de cazar com homem que não amava; mas cazava
tão de vontade como voluntariamente o regeitou. De sorte que, se não
apparecesse o livro de Alexandre Dumas, veja v. s.ª que destino se
estava aparelhando para o marido d'aquella senhora!

Ó visinho, sabe o snr.? eu, se tivesse um filho indulgente, dizia-lhe:
«Rapaz, se não levas a mal que o almoxarife da caza de Bragança, em
Villa Viçosa, te mande agarrar e recolher á tapada como cervo
tresmalhado, caza com esta menina perliquiteta.»


Agora, duas paginas sérias, snr. Raimundo.

Cá tenho a pitada engatilhada ao nariz circumspecto. Devo-me ao futuro
do meu paiz. Vou enviar-me gravemente á posteridade.

Não me consta que em Portugal, por em quanto, alguma das gentilissimas
damas, que recolheram a herança das Sigeas, Alornas e Possolos, haja
sahido á liça a esgrimir com o fulminante estylista francez. Parabens á
constellação de estrellas que scintillam annualmente no _Almanach das
Senhoras_! Que não baixem da região excelsa em que são contempladas cá
d'estas cavernas onde urram alcateas de féras. Se anjos descerem a
involverem-se comnosco, sahirão desluzidos, com as candidas plumas
incarvoadas do suor negro dos nossos pugilatos. Nós, os gladiadores
d'esta arena, se as sanctas estrellas se apagarem, não teremos a quem
saudar, moribundos.

Não as induzam exemplos de escriptoras francezas n'esta melindrosa
contenda. A sciencia perigosa, que lhes sobeja, é escorregadia, pudor
abaixo, até ao desdouro da idéa e da forma. Já lhes não basta a área
modesta dos argumentos colhidos nos mananciaes doces do coração e da
alma. Rompem as fronteiras das sciencias physicas e graduam
chimicamente os globulos cruoricos do sangue de cada mulher.

Dão venia e desculpa aos temperamentos rijos, e acham menos perdoavel o
desacerto da esposa lymphatica. Devassam os latibulos de Sodoma, e
dardejam por sobre a espadua de Aristoteles frechas sarcasticas á cara
purulenta dos lazaros que raspam a sua lepra nas sargentas. Abrem Bichat
e De Bienville para nos ensinarem o que é a esposa anatomica e
physiologicamente. Uma, que diz ter filha ainda creança, promette
consultar o calorico, os estos e o arphar do sangue de sua filha
nubente, quando houver de lhe escolher o homem.

É uma senhora quem cogita e escreve estas carnalidades, e as estampa e
atira o livro á onda suja, que espuma nos tapetes das salas de Pariz e
de todo mundo. As avezinhas, esvoaçadas do pombal do _Sacré-Coeur_ para
o baile, para o theatro, para o _Bois_, seguem o olhar lavateriano das
mães a cada homem anémico ou plethorico, descarnado ou inxundioso, que
se aproxima. Isto sobreleva a torpeza tolerada á mulher que esconde o
seu aviltamento nas alfurjas. N'este phrenesi de esgaravunchar em
temperamentos, será racional que o noivo se exhiba e sujeite a ser
apalpado no craneo pela mãe da noiva, com Spurzheim aberto, para
averiguações de bossas, e confronto de protuberancias das duas cabeças
examinadas como aptas ao maquinismo da procreação. Alvitres
d'aquella estôfa, dados por um ebrio no _estaminet_, revessam-se
precipitados no sedimento do absyntho e do _hachich_; mas, decoados
pelos prelos, tornam a chronica das orgias de Trimalcião um livrinho
digno da puericia, um «Ramilhete de christãos»; e, se derivam por entre
os dedos translucidos de uma senhora, ah! eu não lhes sei o nome!--a
minha vontade é chorar um choro grande como o propheta Ezechias: _flevit
fletu magno!_

E v. s.ª não chora, snr. Raimundo? Esponje-me d'essas entranhas de poeta
fios de lagrimas; depois, enxugue-se, e leia, se está de pachorra.


Aquellas e outras damas que taes livros escrevem, inspirando-se da
catastrophe de Denise Mac Leod, assassinada, pouco ha, pelo marido,
afugentam a piedade de ao pé da sepultura onde o archanjo sombrio e
mesto da paixão se abraça á cruz das Manas Egypsiaca e de Cortona. A
desgraça no tumulo é inviolavel. As mais austeras consciencias se
commiseram das infelizes dilaceradas pelas rodas d'este pessimo
maquinismo social; todavia, a compaixão não é assentimento ás
irreflectidas damas que peróram ás turbas mostrando a tunica
ensanguentada da victima, como quem mostra o punhal de Lucrecia. Se nos
querem commover, chorem primeiro. Lagrimas, lagrimas. Nada de
rethoricas lardeadas de doutorices. Em vez de physiologia,
espiritualismo. Alma; e de corpo só o _quantum satis_. Contem-nos
segredos das suas fragilidades maviosas; coisas do seio para dentro;
flores de coração, que, ainda afogadas e delidas na raiz por abundancia
de lagrimas, espiram sempre olores de innocencia. Se se desviam da
honra, aconselhadas por suas sabenças, então está tudo perdido! Em
organismos, em sangues ricos ou depauperados, em disciplinas do 3.º anno
medico, façam-nos o favor de nos não aperfeiçoarem. Receamos que s.
exc.as nos intimem tarefa de _chrochet_, emquanto ellas, montando os
oculos, abrem o grande volume de Harveus, e, para nossa confusão e
escarmento, pegam de declamar: _Exercitationes quædam de partu: de
membranis ac humoribus uteris et conceptione._ Eu tenho este livro,
visinho; e, se uma filha que heide ter, me abrir o livro e o traduzir no
capitulo _Propagação da especie_, mato-a; para que o filho do snr.
Alexandre Dumas, vindo a ser meu genro, m'a não mate, aconselhado pelo pai.


Snr. Raimundo:

Eu não sei se sua esposa é instruida e bastante profunda em _Ponson du
Terrail_. Que não vá ella arrenegar do mau visinho da porta como de
todos os diabos, malsinando-me de zoilo de damas que versam com mão
diurna e nocturna os romances da «Bibliotheca economica».

Não, senhor.

Acato a sabedoria das senhoras, quando a figura lhes dá geito de
virágos, feitio de mestras regias jubiladas, e um não sei que de sexo
canonico.

Que sua esposa, moça e galante, recite ao piano trovas de lavra propria,
e escreva o soneto acrostico no dia natalicio do marido, acho isso
bonito, senhoril e benemerito de um até dois osculos castos e dignos da
testa da Minerva antiga. Mas, se ella descambar das branduras erothicas
de Sapho para as meditaçoens sociologicas da snr.ª Canuto, peco-lhe,
visinho, que a obrigue a lêr as obras de meu mestre doutor Theophilo, a
fim de ganhar odio á letra redonda--virtude supranumeraria dos escriptos
d'aquelle varão.

Houve damas que lograram intalhar seus nomes na arvore immortal da
sciencia; essas, porém, não desgarraram da senda florída por onde as
abelhas do Hymeto lhes sahiam a dulcificar mulherilmente a phrase.
Dou-lhe como exemplo Stael.

De involta com vastissima lição entreluzem, nos seus livros mais grados,
donaires feminis, e genio acendrado na fragua do coração. Ao proposito
d'esta esteril peleja, que se renova cada vez que um marido se furta
ás prezas da irrisão publica, atirando ás da morte a esposa adultera,
Stael perpassou ligeiramente, como lhe cumpria, pela solução do
divorcio, reprovando-o. No extremado livro chamado _Da Allemanha_,
escreve a insigne pensadora: «É forçosa coisa confessar que a facilidade
do divorcio, nas provincias protestantes, macula profundamente a
sanctidade do matrimonio. Tanto monta mudar de marido como urdir as
peripecias de um drama. Lá, a boa indole dos homens e das mulheres
permitte que semelhantes rompimentos não sejam amargurados... É,
todavia, certo que, á conta d'isso, a consistencia do caracter
alquebra-se, os bons costumes abastardam-se, o espirito paradoxal alue
as mais sagradas instituições, e não ha ahi determinar regras sobre
coisa nenhuma».[6]

Aqui tem sentimentos que frizam honradamente primorosos em indole de
senhora n'esta questão, a todas as luzes pessima, por nimiamente
arriscada. Aquelle parecer é talvez vulneravel, e não resistirá, por
ventura, a Portalis ou Montesquieu; mas o que a sciencia lhe respeita é
a honestidade. Filha, esposa e mãe,--tudo no extremo em que a eminente
escriptora logrou ser, em vida tão aparcellada de angustias--respiram
n'aquelle pudibundo resguardo á seriedade do cazamento. Ella não quer o
divorcio: quer a dignidade na paciencia, quando falleça no homem a
probidade de marido.

Compare-m'a, snr. Raimundo com estas Hippatias de 1872. Em quanto a
poetisa de _Corinna_ linimentava suas maguas de expatriada com a
_Messiada_ de Klopstock, est'outras, com o cerebro ainda escaldado dos
meteoros de petroleo, justificam o desaire das esposas com a physiologia
de Muller, e vão ler, ao lampejo dos cirios mortuarios, que ladeam o
ataúde de Denize Mac Leode, as vaias que o philosopho de Stagyra
desfrechava contra os pederastas espartanos.

Quer v. s.ª ler, a occultas de sua esposa, um molde de altercação, entre
marido e mulher, que D. Maria da EVA, lhe offerece em desculpa da adultera?

MARIDO

O adulterio de minha mulher póde fazer-me pai de filhos alheios.

ESPOSA

O adulterio de meu marido póde arruinar-me os bens de fortuna.

MARIDO

Tu devias ter força e juizo para não succumbir.

ESPOSA

E tu, que representas a razão, foste o primeiro a prevaricar: não fiz
mais que pagar-te na mesma moeda.

MARIDO

A minha culpa foi um mero capricho dos sentidos.

ESPOSA

E a minha foi uma necessidade. Quizeste que eu fizesse de viuva sem ter
inviuvado.[7]

      *      *      *      *      *

Aqui tem! Que senhoraças! Não lhe faz saudades a decencia das _Cartas_
de Ninon de Lenclos? Eu estou em dizer-lhe como o poeta,

                    _que honras e famas_
    _Em taes damas não ha para ser damas_[8]

E, por tanto, visinho e amigo, á vista do que pregam estas pandorgas
folicularias,--symptomas de acirro incuravel no coração da
França,--somos entrados em periodo de decomposição. Salve-se quem poder
com a sua companheira d'esta peor Troya, e leve alguns penates reduzidos
em especies bancarias sobre os hottentotes, e vamos para lá muito nas
boas horas, se v. s.ª não prefere antes que fiquemos para moralisar as
massas.

Eu, de mim, anteponho o martyrio á fuga. Irei bradar debaixo dos
muros d'esta segunda Jerusalem, sem me esquecer de Barcellos, Amarante,
Lamego e outras Ninives corrompidas. Se os de dentro me amolgarem a
cabeça á pedrada como fizeram ao outro enviado do Senhor, arrange v. s.ª
a formar de mim um sugeito legendario, depois de consultado mestre
Theophilo--o arbitro das castas--sobre a raça em que me hade grudar.


Sou apostolo commedido e modesto, snr. Raimundo. Não me desvanecem
presumpções de o convencer. O que faço é alqueivar bravios: o semeador
virá mais tarde.

Repare, no emtanto, por essa vida de seis mil annos fóra que vem
fluctuando desde o cháos. Não vê uns altos e eternos padrões
assignalando paragens que o genero-humano fez para ouvir a consciencia
de sua força, o Deus interior, pela voz dos oraculos? Sobre esses
padroens ha umas estatuas que topetam com as estrellas. Chamam-se
Moisés, Fó, Kong-Fou-Tsée, Socrates, Platão, Aristoteles, Cicero, Paulo,
Galileu, Luthero, Vico, Descartes, Kant, Kepler, Leibnitz, Newton,
Pascal, Montesquieu, Voltaire, etc.

Cuida v. s.ª que as torrentes da vida intellectual e progressiva se
rebalsaram n'este pantano descompassado em que as rans, por entre os
rabaçaes, nos estão coaxando sciencia... de rans? Está illudido,
visinho. A natureza humanal fermenta, tem febre como puérpera d'um
grande feto que lhe escouceia os flancos, fita grandes orelhas abertas
aos rugidos da idéa nova que vem da Cafrária, e assesta o oculo de longa
mira ás brumas do horisonte, onde, a espaços, lhe corisca um pyrilampo,
que, se não é Theophilo, sou eu.

Se é elle, digam-lhe que se abra. _Epheta!_--palavra hebraica, que quer
dizer: _abre-te!_ Melhorar os costumes das raças deve ser-lhe mais facil
que a costumeira de invental-as. E elle, como o visinho
sabe--inventou-se a si, inventou aquillo! Pois então que falle, com
dispensa até da syntaxe. Que espirre candeias na treva que se está
condensando á volta do cerebro social--a familia. Que laqueie a grande
arteria aórta da sociedade humana--o matrimonio. Que defeque o intestino
cego das raças germanicas e latinas da ténia que o róe--o adulterio. Que
nos diga, em fim, Theophilo o que se hade fazer ao dono ou dona d'esta
prenda!

Ninguem receia que se esquive de entrar n'esta gafaria de tabardoens,
com o seu emplasto, elle, que entrou com 3725 paginas em-8.º no
gasofilacio da patria. Sabia isto, visinho? E nós, os seus discipulos
laudanisados, esperamos que o mestre, depois desta somnolenta operação
de Mesmer, nos transporte ás regioens translucidas do espiritismo.

Entretanto, porém, que o vidente incuba, vou eu arroteando o chavascal
que elle depois tozará mais a preceito.

Snr. Raimundo, poeta laureado e amigo:

Alexandre Dumas-Filho quer que Caim cazasse com uma macaca, natural do
paiz de Nod, terra desconhecida a Strabão. É logicamente rigoroso que um
paiz desconhecido a Ptolomeu e outros geographos antigos seja paiz de
macacas. Se v. s.ª não achar no mappa de Portugal a terra onde fui
creado e educado, a Samardan, tão chasqueada por Filintho Elysio, fica
authorisado a decidir que eu, em pequeno, andava lá pelos bosques a
brincar com as caudas dos cynocéphalos, meus mestres de gymnastica e
gesticulação.

--D'onde és tu, meu amor?--pergunto, na praia da Foz, á mulher que adoro.

--Sou de S. Gonhedo--responde ella.

--De S. Gonhedo? Espera ahi.

Abro o «Diccionario geographico», de que ando munido depois dos ultimos
acontecimentos. Procuro _S. Gonhedo_, e não acho.

Começo a suspeitar que o meu amor é de Nod;--que é, pelo menos,
amacacada. Disfarço, accendo o meu charuto, e safo-me. É o mais prudente.

De Caim e de sua esposa Catarhina (sem _dom_: receio que v. s.ª,
esquecido dos seus estudos zoologicos, faça a mulher quadrumana de Caim
homonima da inspiradora de Luiz de Camoens. _Catarhina_ é o nome de uma
das duas tribus da primeira familia de macacos. Veja Milne-Edwards,
Dumeril, Lamarck, e a mim, _passim_)--de Caim e de sua esposa Catarhina
procedem, segundo Alexandre Dumas, as mulheres de má raça e condição
bravia. Pelos modos, n'esta progenie maldita, os machos são poucos, sem
embargo de enxamearem por ahi em barda uns que macaqueam Schlegel e Kant
como uma foca póde remedar um acrobata arabe.

A geração de Caim, continuada em Cham, brunida pelo esmeril dos seculos,
adelgaçou-se e puliu-se de feitio que já se confunde hoje em dia com a
descendencia abençoada de Sem e Japhet.--V. s.ª (permitta o
exemplo)--está persuadido que sua senhora é da raça boa, e faz muito
bem; mas vá de hypothese que sua mulher amua e trinca o labio porque o
visinho resiste a renovar-lhe a cuia. Parece-me que será então acertado
reparar se ella n'essa occasião róe o sabugo, se coça os quadris com o
dedo indicador, e anda de cadeira para cadeira a dar uns saltos
suspeitos. Se este desgraçado presupposto se realisar, v. s.ª não será
demasiadamente iniquo desconfiando que está matrimoniado com uma senhora
que tem nas veias um litro de sangue de macaca. Feito o
descobrimento anthropomorpho (queira desculpar esta gregaria),
nenhuma cautella é de mais. O bom siso pela minha boca humilde,
aconselha o visinho que lhe dê a cuia, duas cuias, e tres nozes para
ella se desarrufar. Se não fizer isto,... estende-se, snr. Raimundo.

Começam a entre-luzir os meus principios ácerca do adulterio. Já achou,
visinho?

O adulterio é um fatalismo organico. A mulher de stirpe macaca é
irresponsavel do fratricidio e cazamento bestial de Caim. A rôla
arrulha, o sagui chia, cada qual segundo a sua natureza glottica. O
homem não deve sangrar á ponta de punhal a arteria onde o supremo
gerador injectou sangue viciado. Ninguem se lembrou de fazer irmans da
caridade as hyenas, nem encarregou os pachidermes de missionarem aos
pretos seus visinhos.

O crime deprehende-se da liberdade de o não praticar. A bossa impede o
arbitrio.

O homem, que descadeira a mulher victima da fatalidade do seu organismo,
será capaz de me desfechar um rewolver á queima roupa, se eu lhe não
aceitar a côrte. E eu não lh'a aceito, por que não está na minha
organisação aceitar a côrte do masculino nem do neutro. Sou
irresponsavel da minha esquivança ás caricias ardentes d'essa pessoa.
Não posso amar o sugeito que me enviou uma camelia, ou um frasco de agua
de Colonia do Farina. Se esse galan me bater, sobre ser asno, é feroz.

Os legisladores, menos arredios das leis naturaes, estatuem que marido e
esposa se divorciem, dada a incongruencia de genios, aggravada pela
prevaricação dos reciprocos deveres da fidelidade conjugal. O divorcio,
porém, restricto á separação do foro conjugal e bens, não sanêa as
feridas abertas na honra. A mulher resvala com o nome do marido a todas
as voragens onde a irresistivel condição a baqueia.

Hade elle, por tanto, matal-a para desacorrentar-se do pelourinho do
vilipendio? Não; por que mata um authomato inconsciente da sua queda. É
como se andasse ás facadas aos seus amigos, por que elles, na sua
qualidade de corpos, obedecendo á lei da gravitação, pendem para o
centro da terra.

«O divorcio judiciario constitue o cazamento escola de escandalo»--diz o
douto dramaturgo do _Supplicio de uma mulher_.[9]--E acrescenta: «A
interferencia de juizes é quasi sempre cega ou nociva. Se entre cazados
ha motivos de divorcio, deem-lhes plena liberdade de se desligarem». Até
aqui o primeiro publicista de França.

Mas divorcio incondicional, rompimento sem clauzulas. Se ha dote ou bens
paraphrenaes, a mulher é credora, não já do marido, que é um titulo
extincto, mas do detensor incompetente dos seus haveres.

Essa mulher, livre, póde encontrar marido de sua especie, com tres
partes de macaco ou mais, que lhe não estorve os instinctos, e ser
ditosa, como a esposa de todos os sujeitos de prol e tino,

    _Que não são de ciumes offendidos._

E, simultaneamente, aquelle homem, desatado do vinculo infamante, póde
topar uma descendente de Japhet, esposa leal, sanguinea ou biliosa, mas
sobre tudo honrada, que é melhor que lymphatica.

E o sacramento?--pergunta-me o visinho com a Cartilha de Mestre Ignacio
em punho.

O sacramento, snr. Raimundo, é um attentado contra a natureza; é, na
phraze energica de Girardin:--«uma pretenção impia dos fabricadores de
leis positivas, prophetas e legisladores a desfazerem as leis naturaes
para refazerem o genero humano sob o nome de Sociedade».

Observe que Girardin foi marido exemplar de Delphine Gay, a mais formosa
e illustrada alma no mais gentil corpo de parisiense. Pondere n'isto.

Mas muito mais ponderosa é a questão dos filhos.--Que se hade fazer
ás creanças, flores que desbotoam á ourela d'essas sentinas, anjos
nitidos que passam deplorativos por entre as lavaredas d'esses infernos?

Os filhos, legitimos ou bastardos, adulterinos ou incestuosos são eguaes
perante a mãe. Ella é quem não duvida que os filhos são seus. Receba-os,
leve-os, que talvez leve comsigo os esteios do seu rehabilitado decoro.
Mas, se o marido os quizer, deixe-lh'os, que bem amparados ficam no seio
do amor. Deve de ser immenso o bem-querer do homem que lava com suas
lagrimas os estygmas na face do filho da mulher perfida e repulsa.

Pergunta-me o visinho se, em harmonia com estes paradoxos, o cazamento,
a alliança sacramental de homem e mulher acabam.

Acaba o que a sociedade fez, violentando o que a natureza tinha feito.
Mulher e homem volvem ao que foram.

Target, o collaborador do Codigo Civil da Convenção, responde-lhe melhor
do que eu: _Onde quer que a sociedade encontrar um homem vivendo com uma
mulher, deve reconhecer um consorcio apto para dar aos filhos o direito
da legitimidade._

--Paganismo!

Seja o que v. s.ª quizer; mas olhe que já não é bom tom trejeitar
visagens e momos quando a razão joeira perolas no lixo da Roma de
Aggripa e Seneca, de Catão Censorino e Marco Aurelio. Se o visinho
admira nos Congregados e na Trindade muita senhora, devota e escrava de
Maria Sanctissima, não se edificaria menos entrando em Roma no templo do
Pudor, edificado pelas Veturias, Cornelias, Calpurnias, Sulpicias
Pretextatas e Arrhias Marcellas. Estas ou morriam com os maridos amados,
ou vingavam-os. O opprobrio não ousava erguer a cabeça petulante de
sobre a alta barreira que extremava aquellas matronas das Silias e
Octavias, das Apuleias Varilias e das mulheres de Claudio.

O visinho sabe que na Roma pagan, dado que o divorcio pendesse da
simples deliberação de um ou de ambos os conjuges, ou ainda do mero
capricho do marido immoral--quer elle se chamasse Nero ou
Cicero--decorreram quinhentos e vinte annos sem um exemplo de divorcio.

Montesquieu explica o phenomeno: «Marido e mulher soffriam-se
pacientemente os mutuos dissabores cazeiros, por isso mesmo que podiam
acabal-os; e, só por que tinham livre o uso d'esse direito, passavam
toda a vida sem pratical-o».


Ahi está a minha idéa peneirada aos ventos quadrantes da opinião
tempestuosa das turbas. Ruja a leôa da hypocrisia na sua
caverna--que eu, á laia do varão justo de Horacio, ouvirei sem pavor o
estrondear do mundo derruido á volta de mim, visto que tenho assistido
impavido aos estrondos de todas as philarmonicas de que sou socio
prendado. _Impavidum ferient ruinæ._


Direi agora de v. s.ª, e de mim, e aqui do visinho especieiro da
esquerda, e d'outros sucios do masculino.

Napoleão I, na ilha de Sancta Helena, mandou escrever no seu _Memorial_
que «um homem deve ter muitas mulheres». Fez o que disse, e formulou uma
maxima ao alcance de todos os tolos, salvo seja. A aguia de Austerlitz
alçou aos páramos da sua ascenção axiomatica os infimos escaravelhos e
osgas d'estes nossos paues burguezes.

O nosso velho amigo D. João Tenorio incorporou-se em toda a casta de
galan esgrouviado, de galan mazorro, de galan aparrado no corpo e na
alma. Os monarchas, constituidos Luizes XIV de refugo, metteram nos
paços uns retalhos de Constantinopla, com a differença que os seus
camaristas--os lançarotes--não poderiam gargantear de falsete na capella
sixtina. Por sua parte, os sapateiros, convictos da egualdade do homem
perante a mulher, fizeram-se tambem califas de sultanas cozinheiras,
immolando á sua intemperança d'amores o decoro das cozinhas e a
perfeição das almondegas.

Está, pois, derrancado o masculino desde o throno até á tripeça.

E diga-me cá, ó visinho: onde iria cada homem buscar as muitas mulheres
decretadas por Napoleão--o grande? Fóra do triangulo? era impossivel. V.
s.ª está bem certo do que é o triangulo? Vem isso lucidamente explicado
no _Homme-Femme_ de Alexandre Dumas. Triangulo é o homem-movimento, é a
mulher-fórma, e é Deus manifestado n'essas duas coisas que se unem. E,
se não se unirem e amalgamarem n'uma só, nem o homem terá fórma, nem a
mulher se moverá. Por tanto, homem sem mulher tem pezo, mas não tem
feitio; mulher sem homem, nem se quer é um _movel_, por que é immovel.
Mais claro do que isto, só um preto e a _Poesia do Direito_ de mestre
Theophilo.

Logo que o Codigo Penal não providenciou contra o homem, contra o
movimento, que se quizesse apropriar vinte fórmas de uma assentada, era
de esperar que a sociedade soffresse grande terramoto nas suas mais
augustas instituiçoens. Assim aconteceu. O homem, abroquellado com a
impunidade, desfraldando a bandeira da natureza em bruto, arpoou as suas
prêas no proprio thalamo conjugal. Tal marido, que tinha uma só
fórma, perdeu a mulher, e ficou amorpho, sem feitio de casta nenhuma.

Outros, que tinham duas fórmas e d'ahi para cima, lá se avieram melhor
com a sua vida. A mulher, essa é que nunca ficou intrevada, á mingua de
movimento, porque o homem para ella era como o ramo de Virgilio:--homem
ido homem substituido:

      _Primo avulso non deficit alter._

Choveu então aquella praga de leoens devastadores, _Leo vastratix_ de
Lineu--uns ribaldos que se gabavam de ser pais de todos os nossos
filhos. E seriam;--o diabo o jure!

Estes homens eram negros ou pallidos--Othellos ou Romeos. Tinham
maneiras scismaticas nas salas. Sombrios como anjos precipitados;
demonios ainda bellos do resplendor do céo perdido. Liam romances do
visconde de Arlincourt, cheirando a patibulos ensanguentados. Bebiam
cognac, na abundancia, em que o _crévé_ de hoje em dia, o seu filho
degenerado, bebe agua de Entre-ambos-os-rios para desimtupir o figado.
Comiam bribigoens e outros testáceos com salada de malaguetas.

Ás duas da manhan sahiam dos seus antros da Aguia-d'ouro, chapeo
derrubado, capote ás canhas, e içavam a devastação das familias
pelas trapeiras com escadas de corda.

Estes devassissimos Richelieus de esnoga eram conhecidos. Toda a gente
fina sabia que elles bebiam as lagrimas de umas senhoras pelos craneos
das outras. E, não obstante, a sociedade decretava-lhes a primazia na
elegancia, o primor na cortezia, e bom-gosto nas fidalgas estouvices.

Era vêl-os nas salas.

As meninas remiravam-os de esguelha, tremidas de amor e mêdo; e
aconchegavam-se da egide tutelar da mãe que lhes segredava em suores de
afflicção:

--Aquelles homens tem manfarrico! Meninas, não olhem para elles, que tem
perdido muitas donzellas, e de cazadas não ha conta nem medida.

E as meninas ficavam sabendo que as donzellas se perdiam como as
cazadas; e, se perguntavam o destino d'essas perdidas, as mães respondiam:

--Não vês alli D. Pulcheria? D. Athanazia? D. Herminigilda? e _etc_?!

Ellas reparavam castamente, e viam as trez nomeadas, e as _etcoeteras_,
refesteladas em poltronas, arraiadas de seda e pedras. E, depois,
viam-as ir, sobraçadas pela cinta desnalgada, nos braços d'aquelles
homens precítos, regamboleando a perna com furor macábro n'aquellas
polkas de então que eram a propria lascivia, o segredo descoberto das
corêas na festa da deusa Bona.

Eram assim iniciadas as meninas ao sahir do collegio: mostrava-se-lhes o
seductor fatal com o prestigio das salas e dos amores defesos;
mostrava-se-lhes a mulher deshonesta com as regalias dos diamantes e das
polkas.

Parabens, visinho! D'aquelles homens, uns morreram; outros, prostrados
ao canto da leoneira, urram nas angustias da gotta, e pitadeam do
meio-grosso.

Durma v. s.ª socegado nos braços da esposa fiel e da policia civil.
Escada de corda não consta ha muitos annos que as patrulhas topassem uma
funccionando contra o pudor publico. Das muitas cordas que houve,
suspeito que os seus possuidores se serviram, inforcando-se a final com
ellas para desaggravo dos bons costumes.

Verdade é que se dispensam escadas, se a hypothese ethologica de
Alexandre Dumas é verdadeira--a hypothese das macacas, á qual eu
racionalmente associo a hypothese dos macacos, com bastante desaire do
meu sexo. Aquelles bichos atrepam contra todas as previsoens da policia.
Um bugio é capaz de enroscar a cauda na sacada do visinho da esquerda, e
baloiçar-se á janella do snr. Raimundo com a maior limpeza de
trabalho: _quod di omen avertant_--o que os deuses não permittam!

Seja como fôr, oiço dizer que os defunctos leoens, se não deixaram
leonculos com as mánhas paternas, inocularam na geração actual o que
quer que fosse da sua posthema. Por aqui na nossa rua e nas travessas
limitrophes, graças aos temperamentos, não tem havido, que eu saiba,
supplicio de macaca; observo, porém, cheio d'estas tristezas modernas,
que, uma vez por outra, lá ao longe, certos maridos, ignorantes do
cazamento de Caim no paiz de Nod, vão exercitando o officio do avô sem
se importarem dos costumes da avó: matam.

Esta acção, visinho, se me não parece digna, sem reserva, do maior
elogio, tambem a não impropéro em diatribes de Sganarello que defende o
seu impudor proprio, arguindo a crueldade alheia.

Isto de trahir é um funesto pendor do organismo. E matar, a meu vêr, é
uma funesta e irrecusavel influição da nevroze. Mulher, que refrear os
impetos do seu temperamento, é tanto como divina, senão é mais, porque
sopeza a natureza, divinamente saturada do deus universal, do grande Pan
indivisivel. Homem trahido, que sente em si o retalhar de dois gumes,
amor e honra, dois cauterios a sarjar-lhe a um tempo coração e
cerebro,--que arde em ancias de matar como ardêra outr'ora em ancias
d'amor, tal homem, se perdoou, é um sancto, é a mais bella e perfeita
desgraça que Deus creou.

Não temos, porém, que ver com aquellas excepçoens. Balancemos o
thuribulo da nossa admiração á Providencia d'essas almas, e desandemos
para a feira franca onde o sátan de Gil Vicente infeirava as suas
vitualhas.

O commum dos adulterios é a retaliação, o despique, a mulher que a si se
despreza por que se vê aviltada do marido. Elle, sacerdote do amor,
erigira-lhe altar e idolatrára; depois, esfriado o fervor, apeára o
idolo, e assentará sobre a peanha profanada a deidade nova, com
resplendor de seducçoens infames. Primeiramente, o amor e vaidade
choraram no coração da mulher expulsa do templo; em seguida, o orgulho
represou as lagrimas, fêl-as peçonha de vingança; e, por derradeiro,
livelou a mulher vingada hombro a hombro do homem libertino. Elles ahi
estão, dignos um do outro, levados pelo delicto social ás leis
authenticas da natureza. Acabou o artificio do marido-esposa.
Restaurou-se o macho-femea. Romperam o pacto da fidelidade?
deshonraram-se reciprocamente? Muito bem! Hossana aos filhos da
natureza! _Urrah_ pelo rebanho de Epicuro! Qual matarem-se! Vivam! no
lar ou na rua, na lama ou nos arminhos; mas vivam e medrem como gente de
boas e bem saldadas contas.

Isto é o que a lei quer, o que a religião da caridade aconselha, e o que
a sociedade tolera com um bem dissimulado respeito.

Todavia, ha ahi uns celibatarios, extraviados dos concilios, amantes
extremosos, pais loucos de amor aos filhos, mas, em fim, celibatarios
impudicos, que sorriem, a occultas, dos maridos logrados.

Quem disse a esses malsins do lar alheio que taes maridos são logrados?
Com que protervia se marêa a fama da esposa estygmatisando-a de perfida?
Esposo trahido e mulher treda são os que reciprocamente se mentem. Cessa
a ignominia da perfidia onde começa a luminosa tolerancia da desforra.
E, por tanto, a invasão da crytica ao seio da familia, que não reclama a
interferencia do Codigo Penal, é uma villania estupida, um insulto á
liberdade dos cultos.

Snr. Raimundo, sei de umas pessoas, que mofam cruelmente dos maridos
enxovalhados pelo desdouro das mulheres. Ora, esses que hoje escarnecem
o homem deshonrado, apedreja-l'o-hão ámanhan, se elle offerecer o
cadaver da adultera como resgate da sua honra.

--Matar! Oh! não, assassino! Despenhassel-a antes com um ponta-pé, de
abysmo em abysmo, até aos nossos alcouces. Nós já temos encontrado cá
mulheres illustres como a tua. Borrifamol-as com a champagne das
nossas orgias. Ouvimol-as espumejar dos labios roixos o nome dos maridos
por entre o acre do alcool. Vimo-'las repintadas de esfoliaçoens
esqualidas no rosto. Soubemos emfim que o lençol da misericordia as
baldeou da infermaria á vala. E os maridos viveram e sobreviveram, por
que tinham juizo na cabeça, e abrigavam religiosamente no coração o
augusto preceito: _não matarás!_--

Apoiados! snr. Raimundo, apoiados! Estes homens fallam bem: são os
sociologicos, os philosophos, os estoicos, os cultos, sou eu, é v. s.ª,
se me não illude a confiança que puz na sua capacidade, hão de ser os
jornalistas, os legisladores, os juizes e os jurados, quando a brocha
der a ultima de mão n'este mascarrado edificio social.

Se eu tivesse um filho, havia de encouraçal-o para se affrontar,
intemerato e invulneravel com esta sociedade cancerada. Creal-o-hia
debaixo de mão, e no regaço da mãe virtuosa, até aos trinta e cinco
annos, vestido de menina. Depois, mandal-o-ia estudar primeiras lettras,
e ultimas, com professor de acrizolada sanctidade de costumes--mestre
regio que houvesse tido a heroica abnegação de viver com o que lhe dá o
governo, sem me sahir á estrada a roubar-me o relogio. Aperfeiçoada
d'esta arte a educação intellectual de meu herdeiro, eu iria com elle a
um ponto culminante da cidade, á Torre dos Clerigos, por exemplo, na
falta da montanha de Alexandre Dumas, e dir-lhe-hia o seguinte:

«Meu filho, tens quarenta annos. Fizeste exame de instrucção
primaria:--coisa que eu não era capaz de fazer. Sabes as _Raizes da
formação dos tempos_, conjugas um verbo irregular, tens luzes não
vulgares do _Preterito mais que perfeito composto_, bebeste a longos
haustos os _Logares selectos_ do snr. Padre Cardoso, e vislumbraste
Guizot atravez da historia patria do snr. Motta Veiga. Estás prompto. Eu
é que não sei nada d'isso; que desbaratei a minha mocidade com o
_Thesouro de meninos_, e depois com a tisoura das meninas, umas
costureiras que me cortaram os voadouros, quando eu batia as azas para a
região superior do _Manual encyclopedico_. Perdi-me. _Delicta juventutis
meæ._

«Em compensação, meu filho, fiz enxertar no teu cerebro dois garfos da
sciencia universal. És um reportorio dos conhecimentos humanos e
prestadíos. Estás habilitado para tudo, desde porteiro do Monte-pio dos
empregados publicos até ministro da Marinha.

«Portugal é conquista dos talentos, como sabes.

«Espera-te uma cadeira velha na Academia Real das Sciencias, e outra no
Gabinete de Leitura de Lamego. Tem-me d'olho estas duas couçoeiras
luzentissimas dos penetraes da immortalidade.

«Tenho a satisfação de saber que chegaste á florida idade dos quarenta,
sem que uma só petala se haja fenecido na tua grinalda de virgem. Em
meio d'esta fornalha de Babylonia, portaste-te como verdadeira
salamandra. Era grande o meu jubilo quando te via chegar a caza em
mangas de camiza, e, rosado de pejo, me dizias que mulher de Pharaó te
despira o fraque! És um menino das eras antigas. Em tempo de D. João V e
outros reis castos, serias sacristão de Mafra ou da Patriarchal. Hoje em
dia, a virtude da continencia levada a tamanho apuro, poderá, quando
muito, permittir-te a directoria interna do Azilo das velhas do Camarão.

«Meu filho, é tempo de intrares na fórma, quero dizer, de teres fórma,
de completares o triangulo com a esposa.

«Caza-te, se queres; mas, se te parece, espera mais cinco annos--periodo
não de sobra para bem digerires e ruminares certos preceitos. É bom
ruminar desde já, para que depois não estranhes as operaçoens
physiologicas de ruminante.

«Entretanto, procura esposa que não saiba lêr nem escrever, se tanto fôr
possivel; receio, porém, que a não topes n'este paiz onde a instrucção
está por tanta maneira derramada. _Derramada_ é o termo lidimo.

«Se, á mingua de outra, o coração te esporear para mulher versada no
alphabeto, fornece-a desde logo de livros uteis, brindando-a com as
copiosas _Artes da cozinha_, que se publicaram n'este abençoado
refeitorio de Portugal, desde Fernão Rodrigues até Ramalho Ortigão. Não
se te importe que ella conheça este segundo sujeito; mas tão sómente do
_Cozinheiro dos Cozinheiros_, que elle deu á estampa com outros poetas
causticados da inspiração satanica de Beaudellère. Que tua mulher
procure o vampiro d'aquelles genios unicamente no seio de um timbal de
borrachos.

«Averigua, antes de mais nada, se tua noiva procede directamente de sua
quinta avó e respectivo avô, sem travessia. Tal avó tal neta. Indaga que
frades, e de qual ordem, entravam em casa das avoengas do teu namoro; e
não será demasiada pesquiza esquadrinhar se a mãe d'ella ainda alcançou
os bernardos.

«Sabido e provado que a menina é de boa linhagem, observa se isto de
fundilhar ciroulas e apontar piugas não são para ella coisas mero
legendarias, tradicçoens mythicas de Peneloppe e da rainha Bertha. Bom
será que ella seja caroavel da criação de parrecos e gallinhas, e outros
«lances cazeirissimos» ao modo de fallar de D. Francisco Manoel de Mello.

«Que não se te olvide de espiar-lhe com aturada vigilancia o
temperamento, como clausula em que muito bate o ponto. Se te sahir
sanguinea,--alimentação vegetal, legumes, muita chicoria, fructas e
macarrão. Se lymphathica, não privo que a faças quinhoeira de
substancias fibrosas. Se os nervos predominarem, subordina-lhe a
alimentação calmante aos banhos de chuva. Em summa, pelo que é de
temperamentos, intende-te com Alberto Pimentel, auctor dos _Sanguineos,
lymphaticos e nervosos_, amavel escriptor que todos os noivos devem
convidar para lhes tirar o horóscopo da systole-dyastole, e da espinal
medula.

«Estás, pois, cazado, meu filho. Tens outra alma no ámago da tua, uma
segunda consciencia a dirigir, como pai, esposo e sacerdote. Na
qualidade de padre de tua mulher, não me admittas acolyto, percebes?

«Serás fiel a tua mulher; leval-a-has ao Circo de quando em vez; e de
tempo a tempo á musica do quartel-general, e ás Figuras de cera,
auctorisadas pelo chefe da policia, por causa das Venus. De comedias
chamadas «de cazaca», e dramas lardeados de can-can, e Quadros-vivos,
livra como de peste.

«Irás onde ella fôr; passarás á sua beira as noites de janeiro, fazendo
«paciencias» ou jogando o burro: isto emquanto não ha prole. Quando
houver pequenos, andarás com elles ás cavalleiras, emquanto a mãe
jubilosa lhes está costurando os atafaes.

«Visitas de casta nenhuma, sem resalva de sexo ou idade. Diz o esperto
Rozado nas _Lagrimas de Jerusalem_: «Está o mundo cheio de velhos e
velhas que lêem de cadeira vicios aos moços e ás moças.» Foi isto
estampado ha duzentos e cincoenta annos! Que diria elle hoje? O que
escreveu n'outro lanço: «Já não ha virtudes nem cherume d'ellas».

«Ora bem: conjecturemos agora, meu filho, que tua mulher, lealmente
amada, farta e cheia, querida e acariciada, pega de sentir-se invadida
ob e subrepiticiamente pela imagem de certo homem que viu no Circo ou
nas Figuras de Cera. Considera, ó misero, que o freguez da Gran-Duqueza
é um d'esses cachorros da raça funesta dos citados «leoens», que,
atravez das lentes do binoculo, despede coriscos á alma de tua consorte,
queimando-lhe as grandes arterias, as medias, as filamentosas, os vasos
capillares, tudo em que ha sangue e palpitar na economia animal.
Considera, outrosim, que ella, ouvindo a cavillosa natureza, mãe dos
escandalos, em vez de confessar-se a ti, que és o seu padre lareiro,
manifesta-se á cozinheira; e, por entre os soluços da honestidade
moribunda, abre-lhe o peito onde a sua má sina lhe photographou a
ternissima cara do Saint-Preux do Circo.

«Por te não polear inquisitorialmente com hypotheses, vamos á ultima. A
cosinheira introu no triangulo. Tua mulher recebeu cartas, e
respondeu-lhes, servindo-se dos teus diccionarios, do teu papel pautado,
dos teus enveloppes, e, para remate da affronta, da penna com que tu
enriquecias de glossas o _Cozinheiro dos cozinheiros_, ou esboçavas
narizes tortos para intreter os rapazes.

«N'este tempo,--vá outra conjectura desgraçada--suppõe tu que eras socio
prendado, como eu, de varias philarmonicas aonde ias, uma noite por
outra, prestar a Offenback o preito da tua corneta de chaves. Com refece
sorriso, tua mulher dava-te á sahida o osculo do costume, e esperava-te
de volta, perguntando-te com a voz convulsa da consciencia irrequieta se
fôras feliz nos bemoes, e tiveras palmas no solo do 2.º acto da «Ilha de
Jafanapatão.»

«Ah! filho! Estavas trahido como todos os musicos incautos, trahido como
todas as victimas generosas das bellas artes, quando a alma enthusiasta
as etherisa assima do capacho onde as esposas se amesendram com as suas
aspirações razas!

«Atraiçoado, pois!

«E, por tanto, se essa mulher, que tanto amavas, te cravou o punhal
hervado da deshonra no intimo seio onde lhe tinhas a imagem;--se te coou
mortal peçonha no beijo que te deu com os labios crestados da lava de
outros lubricissimos;--se te fez a fabula dos visinhos, e te plantou
na praça onde ha o gargalhar dilacerante, e ahi te poz ao cêvo dos
corvos que crocitam á volta do corpo onde farejam morta uma alma;--se te
levou o nome pelos seus muladares, a rojo da cauda de seus vestidos
mercadejados com o corpo;--se te acalcanhou o coração, e te matou no
cerebro o roixinol dos teus cantares;--se te incutiu no _eu_ objectivo a
dyspepsia, a hepathite, a hypocondria, a cacochimia, e emfim te poz a
honra e os intestinos entre o suicidio e o inevitavel opprobrio: sabes o
que hasde fazer? Sabes o que hasde fazer a essa macaca, meu filho?--Não
lhe faças nada: deixa correr o marfim».

      *      *      *      *      *

Isto é o que eu diria a meu filho; v. s.ª, porém, faça o que bem lhe
parecer: eu não aconselho ninguem.

Visinho, se a questão do _Homem-mulher_ não está assim resolvida, sou eu
mais lorpa do que penso, ou a questão é mais infame que o acto que ella
discute.

Seja como fôr, _Pax Domini sit temper tecum_, e boas noites.


S. C. 10 de setembro, Anno da Graça 1872.


(_Á sombra . . . dos 240 réis._)



240 REIS


    [1] EVE, _contre Monsieur Dumas, Fils_. Pag. 47.

    [2] LA FEMME-HOMME, _Réponse d'une femme a M. Alex. Dumas Fils_,
        pag. 40.

    [3] L'HOMME, _Reponse a M. Alex. Dumas Fils_. Pag. 31.

    [4] _Id._, pag. 32

    [5] _Pag._ 43 e 44.

    [6] _De l'Allemagne, Des Femmes_, Pag. 27. ediç. de 1864.

    [7] _Marie Desraimes, ÉVE, contre M. Alex. Dumas Fils_, pag. 49 e 50.

    [8] _Lusiad, cant. 6.º est. 44._

    [9] _L'homme et la femme. Lettre a Mr. Alex. Dumas par E. Girardin._





*** End of this LibraryBlog Digital Book "A espada de Alexandre - Corte profundo da questão do Homem-Mulher e Mulher-Homem" ***

Copyright 2023 LibraryBlog. All rights reserved.



Home