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Title: Noites de insomnia, offerecidas a quem não póde dormir. Nº 10 (de 12)
Author: Castelo Branco, Camilo Ferreira Botelho, 1825-1890
Language: Portuguese
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BIBLIOTHECA DE ALGIBEIRA


NOITES DE INSOMNIA

OFFERECIDAS

A QUEM NÃO PÓDE DORMIR

POR

Camillo Castello Branco


PUBLICAÇÃO MENSAL


N.º 10--OUTUBRO

LIVRARIA INTERNACIONAL
DE
ERNESTO CHARDRON
_96, Largo dos Clerigos, 98_

PORTO   EUGENIO CHARDRON
_4, Largo de S. Francisco, 4_
BRAGA

1874


PORTO

TYPOGRAPHIA DE ANTONIO JOSÉ DA SILVA TEIXEIRA

62--Rua da Cancella Velha--62

1874


BIBLIOTHECA DE ALGIBEIRA


NOITES DE INSOMNIA


SUMMARIO


_Beatriz de Vilalva--Se o poeta Bernardim Ribeiro foi commendador--Resposta
de José Anastacio--Prefacio ao sonho do Arcebispo--O ultimo
carrasco--Curiosidades artisticas--Cantada e Carpida--Bibliographia_



BEATRIZ DE VILALVA


I

Era o nome da encantadora bastarda do capitão-mór da Lixa.

Vivia, com sua mãi, na quinta de Vilalva, com que fôra dotada, aos
quinze annos, para casar, aos dezoito, com o morgado de Pildre, Vasco
Pinto de Magalhães.

Isto são cousas antigas. Era no anno de 1834. Ha quarenta annos. Um
seculo d'outras eras, quando vinte annos eram mocidade innocente, e, aos
quarenta, o homem tenteava com timido pé os umbraes do mundo. Agora,
dentro de quarenta annos, fenecem e reverdecem duas mocidades e duas
velhices; o revolutear das variadas paixões, gastando a alma e safando o
cerebro, desmemoría o homem de si mesmo; em cada decada atrophia-se-lhe
o coração com as velhas imagens, e resurgem-lhe, com as imagens novas,
outras faculdades affectivas. Quarenta annos! Eu, quando me lembro que
vi Pedro IV, e por pouco não fui contemporaneo de João VI, entro em
duvidas se conheci o marquez de Pombal, e receio que me peçam noticias
do terremoto de Lisboa, como testemunha presencial.

Beatriz orçava então pelos dezesete. No anno seguinte, devia casar-se
com o morgado de Pildre, que tinha cincoenta e seis annos, e uma casaria
negra, ás cavalleiras de Amarante, com duas torres senhoriaes
escalavradas pela artilheria, no tempo dos francezes.

Aborrecia-o a bastarda do capitão-mór da Lixa; mas obedecia ao pai, que
dava ordens breves e seccas, e condescendia aos conselhos da mãi, mulher
da plebe, que almejava metter sua filha na casa de Pildre, sem se lhe
dar que a morgada a constituisse avó dos filhos do capellão--o menos
escandaloso dos cooperadores anonymos da conservação das varonias e
proseguimento das raças.

Obedecia principalmente Beatriz, porque não amava ninguem, não conhecia
homem nenhum para comparar. Tinha, apenas, a razão a dizer-lhe que um
marido não devia ser velho, e que a sua estrella era má.

N'este tempo, voltaram ás suas casas os frades expulsos. Alli perto de
Vilalva, á casa do Pomar, chegou, vindo do convento da Graça, de Lisboa,
um egresso de vinte e tres annos, com dous apenas de professo. Um guapo
moço, esbelto, rosado, vivo, sanguineo, um frade que rasgára alegremente
o habito, e dera vivas á liberdade quando o mandaram sahir da cella. Eu
conheci-o. Era um donoso velho, a arvore no outono, com a folhagem
amarellida, mas ainda frondosa, copada, recordando as refrigerantes
sombras dos meios dias de julho.

O que não seria elle, o egresso João de Queiroz, aos vinte e tres annos,
ao sahir do convento, a desbordar exuberancias de vida represada, a
desforrar-se da violencia com que lhe desfolharam, como improprias do
homem immolado, as flôres de seis primaveras!

O capitão-mór, quando viu o ex-frade, tão convisinho de Vilalva, mandou
acautelar a filha; e, de passagem, contou á mãi uma duzia de casos
funestos acontecidos com frades, no seio das trinta familias fidalgas de
Amarante, Lixa, Fafe e terras circumjacentes.

A mãi de Beatriz não acautelou bastantemente a rapariga; pareceu-lhe
demasiado o recato do pai, á vista do recolhimento e da gravidade de
padre João, afiançado por todas as mães das mais secias moças da
freguezia, e, sobre tudo, pela compostura do sacerdote, já no altar, já
no pouco trato que tinha com elle no adro da igreja.

Comtudo, se a presumptiva sogra do morgado de Pildre attendesse á
experiencia do capitão-mór e á silva de malfeitorias fradescas que lhe
elle contou, evitaria, quando menos, que Beatriz não andasse sósinha
pelos miradouros da quinta, nem fosse ao fundo da tapada, que embeiçava
na serra, quando ouvia um tiro, e os cães da caça latiam na encosta.

Não sei que alma escrupulosa avisou o capitão-mór dos colloquios de
Beatriz com o egresso, interpondo-se, verdade é, o muro que dividia a
quinta dos montados, por onde o padre esperava a «estranha caça» á
imitação dos menos felizes navegadores de Camões.

O sisudo fidalgo da Lixa, sofreando os impetos do sangue ostrogodo,
absteve-se de immolar á memoria ultrajada dos avós aquelle dom ribaldo
tonsurado. Receoso, talvez, de que o padre, colligado com os
constitucionaes, repellisse qualquer offensa, em desprezo dos
pergaminhos do fidalgo, dicidiu-se a guardar silencio, e apressar o
casamento, conforme á anciosa vontade do morgado.

E, á volta de poucos dias, estava prompto o enxoval, e marcada a
seguinte semana para o consorcio.

Na vespera, porém, do dia prefixo, Beatriz de Vilalva desappareceu,
depois de haver chorado torrentes, pedindo inutilmente á mãi que a não
obrigasse a casar com o detestado velho, se a não queria levar a
matar-se por suas mãos.

Quando se divulgou, na madrugada do dia 3 de setembro de 1834, a fuga de
Beatriz, o capitão-mór remexeu com a authoridade da pessoa e com as
coleras de pai as justiças de Lixa e de Amarante.

A primeira e unica suspeita do rapto foi o egresso; mas o egresso,
quando foi procurado em sua casa, sahiu á sala a receber os officiaes de
justiça com tanta serenidade quanto espanto, ao dizerem-lhe que elle era
o raptor da filha do capitão-mór.

--Eu!--exclamou padre João de Queiroz com as mãos estendidas na
cabeça--eu, senhores! eu raptor de mulheres!...

E, chamando sua velha mãi, disse-lhe com um solemne e brando socego:

--Minha mãi, estes senhores dizem que eu roubei a snr.ª D. Beatriz de
Vilalva.

--Credo!--bradou a velha afflicta.--Credo!...

--Nada de exclamações, minha mãi--atalhou padre João.--O nosso dever é
franquear a estes senhores todos os cantos d'esta casa. Queiram seguir
minha mãi, cuja vida honrada de sessenta annos não permitte que os
senhores a considerem receptadora de meninas roubadas. E, entretanto que
os senhores passam busca, eu vou vestir-me para os acompanhar á presença
de quem aqui os mandou, e não terei grande magoa de entrar na cadeia,
logo que fui ferido por tão perversa calumnia. O mais pungente do
insulto já cá o tenho cravado na alma.

Em quanto os officiaes de justiça cumpriam o mandado, e o padre se
vestia para depois acompanhal-os, um cavalleiro açodado, e que entrára
do lado de Amarante á desfilada, apeou no terreiro da casa do Pomar,
perguntando se alli estavam os meirinhos. A resposta affirmativa, tornou
o emissario do juiz dizendo que sustassem a diligencia, porque á beira
do Tamega se encontrára a capa da menina e um bilhete em que fazia
declarações.

Padre João de Queiroz voltou-se contra o escrivão, e disse placidamente:

--Diga vossa mercê ao snr. capitão-mór da Lixa que eu lhe perdôo.

Os aguazis sahiram quasi edificados, desfazendo-se em satisfações ao
egresso que os despediu com um amoravel e pacientissimo sorriso de
bem-aventurado.

O bilhete de Beatriz declarava que a misera menina preferia morrer a
casar-se á vontade despotica de seu pai, e invocava o testemunho de sua
mãi a quem ella o havia predito com baldadas supplicas. Acrescentava que
lhe rezassem por sua alma, e que morria confiada na misericordia divina.

A mãi, vendo o bilhete e reconhecendo a letra, pegou de berrar que tudo
aquillo era impostura; que a filha lhe tinha dado opio para ella dormir
mais de quinze horas sem acordo; que a sua filha estava escondida; e que
o bilhete e a capa á beira do rio era tramoia de padre João para se
escapar á justiça. E, dadas estas razões que a muita gente pareceram
signaes de demencia, pegou de si, foi-se para a porta do egresso, e
começou a berrar aqui d'el-rei contra elle.

No entanto, gente mais ajuizada procurava entre as ramarias dos
salgueiros, que formavam grutas na ourela do Tamega, o cadaver da
suicida. Depois de laboriosas pesquisas, descobriram no remanso da
corrente que descahia de uma açude, um sapato de cordovão, que uma
criada de Vilalva declarou ser de sua ama.

Como anoitecesse, cessaram as diligencias, e a justiça e o publico
prescindiram do cadaver para dar como praticado o suicidio.

Não obstante, a mãi de Beatriz continuou a gritar contra o roubador de
sua filha, ainda depois que o capitão-mór a removeu d'alli para a sua
quinta de Ovelha, nas vertentes do Marão--sitio azado para qualquer
pessoa desditosa gritar á vontade, e sem grande incommodo dos visinhos.

Corridos seis mezes, o tragico successo estava esquecido, ou apenas era
recordado quando o padre Queiroz apparecia em Amarante, e as pessoas de
bem o apontavam como victima da calumnia, que o teve no gume da
perdição; ao passo que ninguem accusava de assassino de sua filha o
estupido e ambicioso capitão-mór que a quizera atar ao torpe cadaver do
morgado de Pildre.

Padre João apesar de bemquisto e indemnisado pelo respeito das pessoas
honestas, denotava no aspecto profunda tristeza, e aos seus intimos
dizia que tinha saudades da paz do convento; e, logo que se lhe
ageitasse modo, iria parochiar em algum presbyterio rural, bem longe
d'aquella terra onde a aleivosia lhe matára para sempre o contentamento
da liberdade e da familia. Instavam os amigos em despersuadil-o; mas
assim que vagou uma igreja modesta no arcebispado, e nas visinhanças de
Villa Nova de Famalicão, obteve-a de prompto com a sua reputação de
liberal, e mudou-se para lá com immensa magoa dos seus conterraneos.


II

Pouco tempo depois, correram estranhos boatos ácerca do padre e de
Beatriz. Dizia-se que uma mulher de Felgueiras, de má nota, e muito da
casa do Pomar, estando em artigo de morte, dera a perceber que morria
com um grande remorso; e muito apertada pela pessoa a quem revelára os
seus trabalhos de consciencia, começou por dizer que a menina de Vilalva
não se tinha afogado; porém, como as intermittencias no exprimir-se
fossem longas, e o arrancar da vida começasse o seu derradeiro
paroxismo, a moribunda expirára sem dizer mais nada.

E mais se dizia que, por uma noite de lua cheia, uns viandantes da Lixa,
na subida do monte de Santa Quiteria, haviam encontrado um homem a
cavallo em um possante macho, em companhia de uma mulher, por tal
maneira envolta em um capote, que apenas se conhecia ser mulher pelas
andilhas; e que um pouco atraz encontraram um criado a pé, o qual se
retrahira para a sombra de um vallado quando os viu; mas apesar d'isso,
o conheceram, e juravam ser o criado de padre João de Queiroz.

Estas atoardas não provavam nada em juizo; ainda assim, o vigario
capitular oficiou ao prelado para que se devassasse secretamente da vida
do abbade de S. P. de E***[1]. A syndicancia, habilmente dirigida,
elucidou que o egresso abbade vivia exemplarmente. Que a sua familia era
um criado e ninguem mais; que a residencia era só, triste e silenciosa
como um cenobio monastico; emfim, que os freguezes respeitavam o seu
pastor; e que, á excepção da casa do morgado de E***, padre João não
entrava em casa alguma, senão em exercicio das suas obrigações,
religiosissimamente cumpridas.

Depois, mais nada.

Profundo silencio. Os personagens da historia mysteriosa foram morrendo
com a costumada regularidade. A mãi de Beatriz acabou em cheiro de
douda. O capitão-mór morreu mais preoccupado com a derrota do Remechido
que com o desastrado destino da filha. O morgado de Pildre, cuidando que
se despicava do injurioso menospreço de Beatriz casando com uma senhora
geitosa, vinculou-se matrimonialmente com uma sobrinha bonita e pobre;
porém, passados tres annos, quando houve a certeza de que não era pai,
mas sim tio-avô de seu filho, rebentou de paixão exacerbada pela
anasarca. Contavam-se no discorrer dos tempos, estes casos, que faziam
rir. Eu mesmo, ha vinte e seis annos, os ouvira n'aquella casa de
Pildre, quando já era morta a viuva do morgado e fallecido o directo
successor do vinculo, achando-se na administração do morgadio um meu
amigo, já tambem--e ha quantos annos!--sepultado no cemiterio dos
Prazeres em Lisboa.


III

Quando, ha quinze annos, vim, pela primeira vez, a S. Miguel de Seide,
conheci o abbade de S. P. de E***. Procurou-me, pedindo-me que lhe
escrevesse uns versos funebres para a eça de uma senhora de casa
illustre. Não comprehendi logo o destino dos versos. Explicou-me o
abbade que a poesia, copiada em boa letra, seria pregada na eça, e assim
exposta á contemplação do publico. Escrevi duas oitavas com mais
sentimento do que as escreveria se conhecesse a defunta. Eis aqui como
me relacionei com o egresso graciano, ligado á lenda d'aquella menina,
que tivera um nome digno das trovas plangentes de poeta de
soláos--_Beatriz de Vilalva_.

Cincoenta annos contava então o abbade. Rosto de saude e alegria. Poucas
carnes; compleição fina, mas forte; raros cabellos grisalhos; trajo
serio, limpo, elegante; maneiras polidas; dizeres sentenciosos;
anecdotas chistosas, mas decentes; casos do seu convento; tradições
ineditas do seu ex-conventual José Agostinho de Macedo, e d'outros
cerdos que não deixaram tão illustre memoria a ensombrar obscuras
infamias. Era optimo conversador o abbade, e revia, no seu fallar,
alguns signaes de ter estudado applicadamente philosophia. Disse-me que
fôra o primeiro estudante do curso, e que o snr. D. Miguel I, assistindo
ao seu exame de logica, o premiára em publico com a medalha da sua real
effigie. Bom avaliador e juiz! O snr. D. Miguel I foi grandemente
entendido em logica: toda a gente sabe isto, não obstante me asseverar o
abbade que sua magestade não estudara logica; mas premiava os martyres
que a estudavam, a fim de animar os outros votados ao martyrio.

Com o lapso do tempo, relacionei-me com a familia herdeira da defunta
que eu cantei ou chorei. N'esta casa vi algumas vezes o abbade, e outras
na sua igreja. Aconteceu ir eu alli ser padrinho de uma criança
d'aquella familia. Antecipei-me á hora dada. Detive-me a observar a
residencia de padre João de Queiroz--silenciosa como um grande tumulo,
com dous ciprestes á porta, com um rocio coberto de arbustos e herva
espontanea a entestar na escada ingreme do sobrado. Tres janellas de
rotulas fechadas e espessas. As paredes tapizadas de musgo e fetos a
vegetarem das fisgas. Duas pombas pretas a arrulharem na cornija. Um
pardal a sacudir as azas molhadas no beiral do telhado. E á volta d'isto
o rumorejo dos pinhaes circumpostos.

Sentei-me no beiral do adro, a olhar para uma janella interior da
residencia, e a scismar nos vinte e cinco annos que o abbade para alli
trouxera, e nas noites e dias dos outros vinte e cinco alli passados,
com resignação, e até com alegria, tão só e desatado dos agrados da
companhia, e com tantos predicados para dar e receber na convivencia uma
honesta felicidade! Quando esta meditação me estava enlevando áquella
suave tristeza que faz os homens melhores e o fardo da vida mais
leveiro, assomou um rosto de mulher na janella onde eu, sem intenção,
fitára os olhos; e, apenas me viu, retrahiu-se tão de subito como se
dentro tirassem por ella a repelão.

Isto abalou-me. A mulher parecera-me bonita; mas não ha que fiar nos
conceitos da minha vista, que pouco alcança a curta distancia; quer,
porém, fosse feia, figurou-se-me quasi bella: era o bastante para dar
larga tela ao nebrí da poesia, que, lá do alto, crê vêr uma rôla onde ás
vezes está uma cegonha.

N'este comenos, chegou o abbade, e a criança no collo da ama, e o pai
com a madrinha, e o sacristão e as testemunhas, vindo todos da casa do
meu compadre, onde inadvertidamente esperavam que eu fosse.

Finda a ceremonia, o abbade offereceu-me a sua casa por mera civilidade.
Meu compadre acudiu logo, dizendo que nos esperava o almoço. Partimos
para E***, e o abbade acompanhou-nos, depois de ter ido a casa despir a
batina, e revestir-se aceadamente, de casaca preta com habito de
Christo, collete de velludo, bota de verniz, e chapéo alto de brilhante
sêda.

Em quanto elle se demorava, depois de almoço, no quarto de minha
comadre, alegrando-a com apropositadas anecdotas--que as tinha para
tudo--fui eu com meu compadre vêr o pomar de fruteiras peregrinas.

--Gosto muito d'este abbade--disse eu.--Parece-me um bom caracter, pela
satisfação e alegre rosto com que se entrega á sua obscura missão,
podendo com as qualidades que tem aspirar a melhor posição na vida
ecclesiastica!

--Não quer. Affeiçoou-se a isto, e nunca mais d'aqui sahiu. Eu amo-o com
ternura. Já foi elle quem me baptisou. Devo-lhe provas de profunda
estima. Tem sido elle o anjo pacificador das desordens grandes que tem
ameaçado a estabilidade da nossa familia.

--Verdadeiro pastor!--atalhei eu com sincero respeito. E acrescentei,
passados instantes:--A senhora, que vive com elle, é sobrinha?

--A senhora?!--acudiu meu compadre.--Está enganado. Elle não tem mulher
de casta nenhuma em casa. Vive com um criado velho, que já veio com elle
em 1835.

--Perdão! eu vi hoje lá uma senhora na janella que diz para o pateo.

Riu-se meu compadre, e, remoqueando, ajuntou:

--O meu amigo, provavelmente, estava a idealisar castellãs na residencia
que tem ares de castello arruinado, e figurou-se-lhe vêr uma sobrinha do
abbade.

--Compadre--repliquei--eu sei quando vejo castellãs e sei quando vejo
sobrinhas d'abbades. O senhor tem a certeza de que não ha mulher
n'aquella casa?

--Tenho tanta certeza como estar eu com o meu amigo n'este pomar.

--Então, permitta-me dizer-lhe que o seu abbade é um patife.

--Ó compadre!... Um patife?!

--Ou dous patifes em um só abbade. Demonstro: se é sobrinha, e por tanto
uma familiar licita e honesta, não havia razão para escondel-a, nem ella
para se esconder rapidamente de mim: logo, não é sobrinha; e, se não é
sobrinha, é... conclua vossê a demonstração. Que é a mulher que vive com
um abbade, e não quer ser vista?

--Que imaginação! que romancista!--exclamou meu compadre--Desengane-se.
Este homem póde ser que não seja o padre mais virtuoso, nem aspire a ser
canonisado; mas mulher em casa nunca teve alguma, nem, ha vinte e cinco
annos, alguem lh'a conheceu na freguezia ou fóra d'ella. Que mais quer
que eu lhe diga?

--Que me creia; que se convença de que o seu abbade tem na residencia
uma mulher; que esta mulher é bonita; que eu dava n'esta santa hora dous
beijos...

--N'ella?

--Não, em vossê, se me descobrisse o mysterio d'aquella mulher, alli
sequestrada do mundo, e absorvida toda na felicidade de um homem, que a
esconde com tanta avareza, que os seus mais particulares amigos ignoram
que tal creatura exista.

O meu compadre, feita uma longa pausa de reflexão, disse:

--Terá vossê razão!...

--Não é razão: é olhos. Juro-lhe que a vi.

--O que lhe posso dizer é que nunca entrei ao interior da residencia,
nem pessoa alguma que eu saiba. Tem uma saleta onde era d'antes adéga, e
onde recebe as pessoas que o procuram. Quando esteve, ha annos, doente,
e precisava de medico, e de receber mais forçosamente quem o visitava,
passou a cama para a saleta ao rez do pateo. Eu ia lá todos os dias, e
nunca vi ao pé d'elle senão o criado; mas scismava com um rumor de
passos no sobrado superior; e elle dizia-me que eram ratos.

--Eram ratazanas--corrigi eu.

--Pois seriam...--condescendeu o compadre, e prometteu esforçar-se por
satisfazer a minha curiosidade.--Outra cousa,--disse-me elle quando
iamos entrando em casa de volta do pomar.--Aqui vem todos os annos, em
setembro, um rapaz estudante de Coimbra, que é sobrinho do abbade. Este
rapaz dorme lá em cima. É crivel que elle, tão precavido com os outros,
não escondesse a amante das vistas do sobrinho?!

--E quem nós diz a nós que o sobrinho não é filho, e que a amante não é
mãi do tal rapaz?

--Onde isso já vai! Já vossê inventou prole ao homem para ter motivo
para o segundo tomo do romance! Ora, meu amigo... Não me disse que ella
era rapariga e bella?

--Rapariga, não disse.

--Note que o tal rapaz tem vinte e dous annos.

--E ella póde ter quarenta, e ser mãi, e ser ainda bella.

--Isso é verdade. Seja como fôr, estou picado. Hei de esgotar todos os
recursos da minha espionagem; mas com uma condição: o que eu poder
descobrir, dir-lh'o-hei; mas vossê não o divulgará, sob pena de me dar
remorsos de publicar as fragilidades de um homem a quem devo as maiores
finezas.

--Pois se receia que eu, levado do furor romantico, venha a assoalhar os
MYSTERIOS DO SENHOR ABBADE, nada indague, e nada me diga. Eu sou um
homem que conto a minha vida quando não posso, por ignorancia, contar a
vida alheia. Antes quero não saber nada. Passe por cá muito bem o snr.
abbade, e não perturbe vossê a paz d'essa familia, onde bem póde ser que
as lagrimas tenham delido as maculas de muita culpa. Se elle é _padre_,
tambem póde ser _pai_. _Pater, pai, padre._ E _pater_ é _pai_, como diz,
nas _Odes modernas_, o meu amigo Anthero do Quental. Fiquemos n'isto.


IV

Dobraram-se os annos, desde 1861, sem que eu me intromettesse na vida
intima do abbade. Em 1870, ultima vez que o vi, estava elle em
Famalicão, na feira-grande de maio, apostando ao monte com muita
felicidade. Reparei pouco n'esta perfida ventura de quem joga, e dei
grande attenção á rapida velhice do padre. Poucos vestigios conservava
do robusto homem dos cincoenta annos. Estava decrepito, enrugado, curvo,
movia-se arrastando uma perna, trajava negligentemente; o collarinho da
camisa surrado nos vincos revelava a invencivel desconsolação da doença,
a dolorosa convicção de que a morte não merece ser requestada com camisa
lavada.

Deteve-se commigo uns quinze minutos, expondo-me a sua enfermidade, com
tristeza, sem esperança, mas conformado com a previsão da sepultura. A
doença estava acertadamente qualificada: era uma alteração de sangue.
Poucas são as pessoas que podem gabar-se de saber de que morrem.

E então me disse umas palavras que me deram rebates da historia de
Beatriz de Vilalva, consoante a eu ouvira adulterada na casa de Pildre.

Contou-me, ao proposito de um sujeito de appellido _Queiroz_, que
passára cortejando-me, que aquelle sujeito era seu primo em terceiro
grau; por quanto, seu avô era bastardo dos Queirozes Coimbras, e casára
com uma abastada lavradora da casa e quinta do Pomar no concelho de
Felgueiras.

A denominação da quinta suscitou-me a primeira reminiscencia; mas com a
natural indecisão em cousas tão remotas.

Depois, como a conversação descahisse para saudades da mocidade,
notei-lhe o recolhimento subito, e logo um suspiro muito intimo do seio,
e um leve orvalhar de lagrimas.

--A mocidade...--disse elle.--Prouvera a Deus que eu não sahisse do meu
cubiculo antes dos quarenta annos! Eu não saberia a esta hora que tive
mocidade; e, ao termo da vida, olharia sem saudade para o passado, e sem
abalo do porvir.

--Mas...--volvi eu intencionalmente--se não enganam as apparencias, a
vida de v. s.ª correu serenamente e alumiada pela virtude, como os
arroios nas noites do estio prateados pela luz do luar...

--Enganam as apparencias--replicou o abbade, apertando-me
convulsivamente a mão como a despedir-se.--A minha vida teve uma só
tempestade; mas essa durou cincoenta annos. A final, ferrei ancora, e
achei terra; mas terra do sepulcro. A sua curiosidade--bem lh'a vejo no
rosto--ha de ser satisfeita em breve. Espere que a maledicencia, que eu
pude enganar cincoenta annos, se vingue no meu cadaver. O mundo tolera;
mas não perdôa a quem o sabe illudir. Se, a final, se não vinga no vivo,
vinga-se no morto. E adeus. Se eu poder, irei visital-o a Seide, e
conversaremos mais detidamente.

--Se v. s.ª me permitte, irei a sua casa.

--Não vá; que a minha residencia é triste como uma caverna onde não
penetra raio de sol.

Era meu dever não desfiar a lugubre imagem, porque eu bem conhecia os
fios mysteriosos que a teciam. Elle afastou-se, e eu, com tão poucos
dados, fiquei conjecturando se aquelle seria o egresso da lendaria
Beatriz de Vilalva.


V

Era. O leitor, de sobra, sabe que era elle.

Dous mezes depois, vi annunciada a morte do abbade de S. P. de E***.
Estava eu no Porto, e anciei saber as particularidades d'aquelle
trespasse.

Quanto ao morrer, disseram-me que de uma ligeira esfoliação em uma perna
resultára uma rapida gangrena, e a morte seguintemente.

Quando alguns freguezes entraram á residencia, alvorotados pelo dobrar
do sino, viram á beira do morto uma senhora que nunca tinham visto, e o
mancebo que já conheciam como sobrinho do abbade.

Esta senhora tinha os cabellos brancos, as faces cavadas, e a luz dos
olhos embaciada pelas lagrimas. Perguntaram-lhe se era irmã do snr.
abbade. Respondeu que não.

Abriu-se o testamento do defunto, e leu-se que tudo quanto n'aquella
casa existia, tirante os utensilios da igreja, pertenciam á snr.ª D.
Beatriz Pacheco Leite de Menezes, sua herdeira universal. Declarava que
o testamento seria apresentado pela mesma senhora, e os necessarios
esclarecimentos ácerca da idoneidade da herdeira os encontraria quem os
solicitasse confirmados por escriptura na nota do tabellião, que
mencionava.

A herança do abbade montava a doze contos de reis em dinheiro, producto
das heranças provindas de irmãos fallecidos sem descendencia, e de uma
quinta no concelho de Amarante, intitulada _Vilalva_. Por onde se infere
que padre João de Queiroz havia comprado aos herdeiros do capitão-mór da
lixa a casa onde Beatriz tivera o berço, e onde ia encontrar o leito da
morte.

Quando o defunto era conduzido á sepultura, Beatriz de Vilalva sahiu com
seu filho d'aquella casa onde vivera enclaustrada desde 1835 até 1872,
trinta e sete annos sem ouvir de labios estranhos uma saudação.
Acompanhou-os um velho--aquelle mesmo criado que a conduzira á casa de
Felgueiras na noite da fuga, e levára á beira do Tamega a capa com o
escripto, e atirára á corrente os sapatos.

Um dia, amanheceu á porta da quinta de Vilalva aquella familia
desconhecida na terra. O criado abriu as portas. Beatriz correu direita
a um dos quartos da casa. Atirou-se contra um leito, como quem abraça um
cadaver, e chamou a estridentes gritos sua mãi. Ella imaginava que a
douda morrera alli, depois de a ter amaldiçoado. O filho arrancando-a do
quarto escuro, tirou-a para uma sala carinhosamente, e disse-lhe:

--Minha querida mãi, se a senhora não amou quanto devia essa infeliz que
morreu louca, Deus lhe perdoou pelo muito que padeceu sepultando-se viva
para esconder a sua culpa; e eu lhe provarei que Deus teve compaixão da
sua penitencia, enchendo-me o coração do extremoso amor com que farei a
felicidade dos seus ultimos annos.

Beatriz lançou-se a soluçar nos braços do filho, ungindo-lhe o rosto de
lagrimas.

      *      *      *      *      *

As pessoas antigas d'aquelles sitios não cessam de procurar occasião em
que vejam aquella formosissima Beatriz por cuja alma rezaram, posto que
o parocho lhes dissesse que a alma da suicida havia cahido de chofre e a
prumo no inferno.

E, de feito, lá vêem a miudo passar pelos maus trilhos que conduzem á
casa dos pobres e dos enfermos uma senhora vestida de negro, precedida
do criado ancião que a conduz.

--Bemdito seja o Senhor!--exclamam pondo as mãos as velhas que a
conheceram menina.

E ella acercando-as de si, pergunta-lhes os nomes, recorda-se, chora, e
consola-se, quando alguma d'ellas póde acolher-se ao regaço da sua
beneficencia.

Se Deus lhe não houvesse perdoado, seria feito á imagem do homem.

    [1]Certo respeito, demasiado talvez, me cohibe de declarar
    extensamente o nome do abbade, e o padroeiro da abbadia. Os
    leitores, convisinhos do local onde escrevo, sabem que não estou
    phantasiando.



SE O POETA BERNARDIM RIBEIRO FOI COMMENDADOR


Ha bastantes annos que eu sahi com este repto aos biographos do author
das _Saudades_:


«O meu parecer é que Bernardim, e tambem Bernaldim Ribeiro, ou Bernardim
Reinardino Ribeiro, como Faria e Sousa o chama, nem foi governador de S.
Jorge da Mina, nem amou a infanta D. Beatriz, nem sahiu da sua terra,
para Lisboa, senão depois que ella já tinha sahido de Lisboa para
Saboya. Corre-me obrigação de pôr as clausulas d'este meu juizo, tão
encontrado com o de doutos investigadores. Fal-o-hei em pouco, porque
não cabe n'este genero de escriptos grande cavar em terra d'onde o que
sahe, para o commum dos leitores, é pedregulho.

Em primeiro, tenho como provavel que Bernardim Ribeiro, sob o pseudonymo
de Jano, falla de si na ecloga 2.ª Ahi diz elle:

    Quando as fomes grandes foram,
    Que Alemtejo foi perdido,
    Da aldêa que chamam Torrão
    Foi este pastor fugido:
    Levava um pouco de gado, etc.

E continúa:

    Toda a terra foi perdida;
    No campo do Tejo só
    Achava o gado guarida,
    Vêr Alemtejo era um dó;
    E Jano para salvar
    O gado que lhe ficou,
    Foi esta terra buscar, etc.

«Temos, pois, o poeta allegorico do Torrão--naturalidade que todos os
biographos unanimemente dão a Bernardim Ribeiro--em Lisboa no anno das
grandes fomes, que foi em 1522. Ora, D. Beatriz, em 5 de agosto de 1521,
tinha sahido para Saboya.

«Nenhum biographo até agora assignou o anno do nascimento ou o da morte
de Bernardim Ribeiro. Póde, se o meu modo de decifrar a ecloga é
plausivel, marcar-se-lhe o anno do nascimento em 1500, ou 1501 mais
exacto, porque o pastor, n'outro ponto da mesma ecloga 2.ª diz:

    Agora hei vinte e um annos,
    E nunca inda té agora
    Me acorda de sentir damnos... etc.

«Quanto ao governo de S. Jorge, capitania-mór das armadas da India e
commenda de Villa Cova, é tudo isso um equivoco do author da
_Bibliotheca Lusitana_, com o qual se bandeou a boa fé de escriptores de
grande porte. O Bernardim Ribeiro, governador de S. Jorge da Mina,
assistiu em 1526 ao cerco de Mazagão, d'onde sahiu abrasado d'uma
explosão de polvora. (Veja a _Chronica de D. Sebastião_ por D. Manoel de
Menezes).»

      *      *      *      *      *

O snr. Innocencio Francisco da Silva, no tomo VIII do _Diccionario
bibliographico_, pag. 379, não aceita como bastantemente decisivos os
meus reparos. Traslado as razões do insigne escriptor:


«O snr. Camillo Castello Branco, em uma nota do folhetim que com o
titulo _Dous corações guizados_ publicou..., não só põe em duvida, mas
nega redondamente que Bernardim Ribeiro, author das Saudades, seja o
mesmo a quem os biographos attribuem as qualidades de commendador,
governador de S. Jorge da Mina, e amante da infanta D. Beatriz, etc.
Salvo o respeito devido ao nosso... romancista e meu presado amigo,
parece-me que o juizo definitivo que se haja de assentar sobre estes
pontos depende ainda de ulteriores averiguações. Deixo-as a quem tiver
por ellas o tempo e a paciencia que de presente me faltou.»


Ulteriores investigações que fiz em cartapacios genealogicos e coevos
levaram-me da certeza á evidencia de que Bernardim Ribeiro, o poeta, não
era Bernardim Ribeiro Pacheco, o commendador de Villa Cova da ordem de
Christo e capitão-mór das naus da india, casado com D. Maria de Vilhena,
filha de D. Manoel de Menezes, nem ainda o outro Bernardim Ribeiro,
governador de S. Jorge.

Do poeta, que pertencia a familia nobilissima do Torrão, logo veremos
que não se esqueceram os genealogicos contemporaneos.

Do seu homonymo, para quem Barbosa Machado facilmente usurpou a
immortalidade do outro, sei o nome de paes, de avós e de filhos.

Era filho de Luiz Estevianes Ribeiro, criado e thesoureiro do infante D.
Fernando (filho de el-rei D. Manoel) e fidalgo de sua casa. Nasceu em
Lisboa, junto á ponte de Alcantara, na quinta da Rola, que D. João I
dera a um de seus avós.

Casou com D. Maria de Vilhena, filha de D. Manoel de Menezes.

Assistiu á batalha de Alcacer-Quivir, e ficou captivo. Voltando ao
reino, foi despachado capitão-mór das naus da India em 1589, como paga
de ter votado a favor da successão de Philippe II, e n'esse mesmo anno
teve a commenda de Villa Cova.

Se o poeta Bernardim Ribeiro tinha em 1522 os vinte e um ou vinte e dous
annos que se inferem dos versos citados, orçaria em 1589 pela idade dos
noventa, pouco viçosa para capitanear a frota da India.

Dizem que o Bernardim Ribeiro, poeta, deixára uma filha.

O Bernardim, commendador, deixou dous filhos e uma filha: Luiz, Manoel e
D. Maria de Menezes.

Luiz Ribeiro Pacheco herdou a commenda de seu pai, e serviu-a em Ceuta.
Casou com D. Catharina de Athayde, filha de Francisco de Portugal, e já
viuva de Fernão Gomes Dragão.

Manoel serviu commenda em Tanger, e morreu solteiro.

D. Maria de Menezes casou com Luiz da Cunha, cognominado o _Pequenino_.

De Luiz Ribeiro Pacheco nasceu Bernardim Ribeiro Pacheco, fallecido
antes de casar. Os haveres vinculados passaram para sua tia D. Maria de
Menezes.

Temos ainda outro Bernardim (ou Bernardino) Ribeiro, que era o
governador de S. Jorge da Mina, e sahiu abrasado do cerco de Mazagão em
1526, consoante a _Chronica de D. Sebastião_, por D. Manoel de Menezes.

Tres Bernardins andam, pois, fundidos no cantor da _Menina e Moça_, Deus
sabe com que bullas em affinidades intellectuaes: parentes com certeza
eram.

Se um dos tres amou a filha d'el-rei D. Manoel, de semelhante ousadia é
justo censurar-se o poeta, embora d'ahi lhe promane a sua romantica
immortalidade. Se o matassem na rua Nova os moços do monte d'el-rei,
como dizem as _Memorias ineditas_ de Diogo de Paiva de Andrade, a
catastrophe assim contada no poema, no romance, ou na tragedia maiores
realces daria ao desditoso provençal. Morrer assim, ou morrer
commendador, e macrobio, como querem Garrett, e Costa e Silva e tantos
outros engenhos atilados, são cousas diversissimas para a arte, que
houver de assentar o pedestal do solitario bardo da serra de Cintra.

Mas a verdade é outra.

No principio do seculo XVIII ventilava-se uma questão de vinculos entre
familias do Torrão que se assignavam _Ribeiros_ e _Mascarenhas_, e
appenso aos autos andava um instrumento antigo em que João Ribeiro,
filho de Gonçalo Ribeiro, senhor de Aguiar de Neiva e Couto de Carvoeiro
no almoxarifado de Ponte do lima, provava _ser primo co-irmão de
Bernardim Ribeiro, fidalgo principal e muito conhecido pelos seus versos
intitulados MENINA E MOÇA_. O referido instrumento era passado em 1552,
sendo já fallecido Bernardim Ribeiro.

Dos Mascarenhas, que venceram o pleito, era ascendente Manoel da Silva
Mascarenhas, que servira em Tanger e nas armadas de Castella com o
general D. Fradique de Toledo. Voltando a Portugal em 1640, foi um dos
denunciantes da conjuração de 1641; e em premio d'isso o galardoou D.
João IV com a alcaidaria da Torre de Outão, e ao mesmo tempo exerceu as
funcções de guarda-mór da alfandega de Lisboa. Este Manoel da Silva
Mascarenhas editou em 1645 as poesias do seu parente, mudando o titulo
de _Menina e Moça_ para _Saudades de Bernardim Ribeiro_.

D'este ramo não houve successão que hoje possa gloriar-se de parentesco
remoto com o poeta. Manoel da Silva Mascarenhas foi casado com D. Garcia
Pereira, filha de João Sodré, de Ourem; mas não deixou filhos legitimos.
Teve dous bastardos: um mataram-lh'o em Setubal; do outro não fazem
cabedal os linhagistas. Se o leitor e eu tivessemos pachorra, iriamos
esquadrinhar a circulação sanguinea de nove ou dez gerações até
encontrar globulos muito depauperados do sangue de Bernardim Ribeiro na
familia _Leites Pereiras de Mello_, de S. João Novo, no Porto.

Mas um descobrimento de tão magna valia tanto importa á familia Leite
Pereira, como ao leitor, como a mim,--um dos bons tolos que tem
produzido a heraldica n'este seculo XIX!



RESPOSTA DE JOSÉ ANASTACIO


SATYRA FEITA A FRANCISCO DIAS, TENDEIRO, COM LOJA DE MERCEARIA NA RUA
DAS ARCAS, CHAMADO POR ALCUNHA O DOUTOR BOTIJA, EM RESPOSTA DE OUTRA,
QUE FEZ A UM SUJEITO, DE QUEM NÃO TINHA O MINIMO CONHECIMENTO, NEM O
MENOR ESCANDALO.

    Em quanto agora, o rude teu caixeiro
    Unta as guedelhas no mofino azeite,
    Que sobra do nojento candieiro;

    Em quanto se entretem no porco enfeite,
    E fervoroso tu lhe estás prégando
    Para que nas balanças menos deite:

    Ó mofino, meus versos escutando,
    Melhor aprende a venerar a gente,
    Que os jumentos, quaes tu, sabe ir picando.

    Que sequaz te induziu, feio demente,
    A romperes c'o a ovelha? que pateta
    Nas garras te lançou do mal presente?

    Foi talvez o politico de treta,
    Humanado morcego, que na escura
    Noite, á lambuge sahe da branca e preta[2]?

    Calvo peralta, que sem tom murmura:
    Venero-o; que é burrinho sustentado
    Pelos serviços do defunto cura.

    Foi algum minorista relaxado
    Heroe dos Ganimedes, padre velho,
    Nos dogmas de Lieu controversado?

    Bibliographico vão de alto conselho:
    Governa-te por esse moralista,
    Que vende em praça o gato por coelho.

    Nem estes, nem o secco rabulista,
    Aguia manhosa, que folgando espera
    Comer, nas garras, quem tentar na alpista.

    De que hoje te arrepelles defendera,
    Por chamares ao circulo um amigo
    Que de asnos despicar-se não quizera.

    Eia commigo, pedantão, commigo,
    Que da Laconia os cães excedo na arte,
    Com que em vereda os lobos maus persigo.

    Não determino os versos censurar-te;
    Supposto manifestem que os favores
    Calliope comtigo não reparte.

    Nem respondo tão pouco aos rimadores,
    Que dão ás aguas de Hyppocrene o gosto
    N'um cantar, como aos echos dos tambores.

    Phebo a taes ignorantes volta o rosto:
    Das lyras que no Olympo ouvir estima,
    N'um _ão_ com um _ão_ o gosto não tem posto.

    Nem menos aos exemplos teus da rima:
    Sem ella os campos lacios, e os da aurora,
    Deram plectros, que a todos vão de cima.

    Nos mil volumes, creio lês por fóra;
    Mas excede na orelha um mau jumento
    Quem de Apollo as acções assim decóra.

    Menos respondo ao baixo atrevimento,
    De me accusares por fallar das artes,
    Em meio de qualquer ajuntamento.

    Comtigo n'isto a injuria bem repartes;
    O sabio no lugar onde apparece
    Das mãos não larga Homéro, nem Descartes.

    Ditoso quem no mundo isto conhece!
    Ditoso aquelle, que d'um n'outro errando,
    Vagueia, té que a aurora lhe amanhece!

    Cada um na sua herdade anda lavrando:
    Tu desvelas-te em ser rico tendeiro,
    Eu em andar nas artes estudando.

    Nenhum d'estes defeitos, eu requeiro
    Para abaixar-te a longa orelha; emprégo
    Outro arrocho maior, maior fueiro.

    Por isso de outros erros te não prégo:
    Qual é o de seguires que entre os homes
    O lynce represente ser um cego.

    Teme-os embora tu, que d'elles comes;
    Mas olha que ao cobarde a espada corta:
    Nunca livre obra, quem receia fomes.

    Quem te mette a induzir na estrada torta,
    O que voar pretende além dos céos?
    A porta da virtude é estreita porta.

    Pondera, se com taes descuidos teus,
    Não podia opprimir-te, envergonhar-te,
    Se vergonha consente o mal nos seus.

    Vê se bastante era isto a depennar-te,
    D'essa vaidade, com que te apresentas
    Decidindo de leve em qualquer parte.

    Bem como as aves já de orgulho isentas
    A gralha depennaram, que entendia
    Encobrir suas plumas macilentas.

    Que mal c'o as do pavão se revestia,
    Eis lh'as depennam logo, e perseguindo
    Vão todas a infeliz, que lhes fugia.

    Hoje atravessa os mares repetindo:
    Ao vaidoso mui mal serve a vaidade:
    E de echo o exemplo teu lhe está servindo.

    Se não tiveste geito para abbade,
    Nem para leigo ser da Estremadura,
    Quem te mette a inculcar letras de frade?

    A natura não é contra natura:
    Para Minerva, e Clio não tens ara,
    Que um bom senso, não soffre má figura.

    Qual das celestes musas não julgára,
    Se teus metros Apollo a lêr vos dera,
    Que em seu presidio Circe te hospedára?

    E que tornar-te em burro pretendera,
    Com mania de versos maus fazeres,
    Como n'outros por magica fizera?

    Para o que seus veneficos poderes,
    Ajuntando, com vara diamantina
    Te deu, ferindo o chão, a orelha a veres?

    Mas Phebo a cousas taes me não destina.
    Só na grandeza enorme da ambição,
    Que te occupa, meu rude plectro afina.

    Já sinto se me inflamma o coração,
    Ah! Menippo cruel da mercearia,
    Nas tramoias da tenda sabichão!

    Onde férvido corres á porfia,
    Uns dinheiros, sobre outros encofrando,
    Sem afrouxares nunca em tal mania[3]?

    Não vês que eterno mal estás cavando
    A vida, que respiras, praguejada
    Pela miseria dos que estão penando?

    Quem te encontra de capa esfrangalhada,
    Surdindo já pelo sapato o dedo,
    Porcas as mãos, a cara besuntada,

    O ar do rosto, de quem come azedo,
    As melenas hirsutas, mal corridas,
    Figura, que promove o nojo e medo:

    Diria: «que mal correm as medidas
    A este pobre!» a não te conhecer
    Pelo mais traficante busca-vidas.

    Com que razão, te intentas defender,
    Sendo não só nos males teus culpado,
    Mas nos de quantos menos podem ter?

    Não sei como respiras socegado
    Encontrando no mundo a cada passo
    O triste, que tu fazes desgraçado!

    Podes voltar as costas, ó escasso,
    Á vista da miserrima figura,
    De quantos mata o famulento laço?

    Do pobre, que esforçar-se em vão procura,
    Contra o peso dos annos, que servindo
    Lhe estão de açoute, até á sepultura?

    Do enfermo, que o grave mal sentindo,
    Olha, e vê a terrivel desnudez
    Estar-lhe aos pés a fria cova abrindo.

    Presumo que em tal scena te não vês,
    Ignorante selvage inda peor,
    Que os mouros de Marrocos, ou de Fez.

    Não te abrandam os echos do clamor
    Da misera viuva, rodeada
    Dos tenros fructos do passado amor,

    Que rota, lacrimosa, esguedelhada,
    Um dia vê raiar, vê outro dia,
    Sem que lhe digam: «toma, desgraçada!»

    Avaro sabichão da Barberia,
    Aos golpes morrerás dos crueis damnos,
    Que aos tristes motivar tua mania.

    Pondéra meus sinceros desenganos,
    Que de outro peso são, que os palavrosos
    Discursos teus, errados, e profanos.

    Fizeram na terra o mal os cobiçosos;
    N'elles origem teve este direito,
    Que faz o rico, e faz os desditosos.

    N'elles é que se viu o homem sujeito:
    N'elles a causa da ignorancia existe,
    Pois ninguem conhecer quer seu defeito.

    Porque de erros tão feios não sahiste,
    Se ser tentavas critico dos homes?
    N'um bom exemplo a boa lei consiste.

    Outra vereda é licito que tomes;
    Seja essa a de tendeiro, em que nasceste
    Entre os exemplos já, de unhas de fomes.

    Olha a quanto por nescio te expozeste!
    A perderes do ser de humano a gloria,
    Porque outro avaro Midas te fizeste!

    Na terra gravarão triste memoria
    Teus vicios, e acções escandalosas
    Nunca sonhadas na mais vil historia.

    Com que horror te olharão castas esposas,
    Sabendo que aprouveste á tua dar
    Um tostão, vendo-a enferma? E que repousas!

    Com que odio chegarão a recordar
    Não seguiste as leis do deus vendado,
    Por mais cobres na burra accumular?

    Morrendo viva o mal aventurado;
    (Dirão ellas) nem d'elle se encarregue
    O Charonte no Averno ao remo usado.

    De Ixion, e Tantalo aos trabalhos chegue;
    Nas garras das harpias monstruosas
    Com elle, a grã discordia irada prégue.

    Cáia aos pés das Euménides raivosas,
    Que as cabeças de viboras povoadas
    Cingem de escuras fitas sanguinosas.

    Gema nas mãos das funebres e iradas
    Scyllas biformes, cuja enormidade
    As montanhas assombra inanimadas.

    Que inda pequena é calamidade
    Para quem dobra aos pés uma innocente
    Dos vicios, que disfarça em castidade.

    Ah! mofinento critico, indolente,
    Para opprobrios respiras n'este mundo,
    Alvo já dos rapazes, e da gente!

    Vê porque nome trocas o profundo
    Socego da virtude, tão querido,
    Menippo turbulento, vil, e immundo!

    Vê porque gloria vives opprimido,
    Querendo bravo dar a conhecer-te,
    Pela besta maior que tem nascido!

    Sahe vacillante quem chegou a vêr-te
    Sobre côxo banquinho repimpado
    Ao canto do balcão, sem nunca erguer-te.

    Quando ao mais alto o dia tem chegado
    Ergueres essa cara agolfinhada,
    Isto dizendo ao caixa enlabuzado:

    «Ouves, tratante, uma hora é já passada:
    Vai vêr no Talaveiras se sobeja
    Alguma cousa, muito acommodada.

    Senão, á cêa basta que isto seja;
    Que eu por mim, te confesso, estou impando:
    Inda a sardinha de hontem cá branqueja.»

    Sahe aturdido quem te viu ceando
    Negra bolacha, e na herva mal cozida,
    Pingo e pingo o azeite alto deitando.

    Mosca que ao prato vem, dobra a lambida
    Mesa de cão; e ao longe teu caixeiro
    Comendo está n'um canto por medida.

    Mofino, que avançado no terreiro
    O mundo desafias, teme agora
    Morrer na espada do feroz Rogeiro.

    Teme, teme os clamores, muito embora,
    Da grã calamidade, que gemendo
    Triste escrava do avaro, amarga chora:

    Da grã calamidade, que volvendo
    Os olhos para os céos, efficazmente
    Expondo o mal, que á força está fazendo.

    Eterno Padre, Justo, Omnipotente,
    (Diga, vendo-se toda rodeada
    Da miserrima, triste, e pobre gente)

    Não posso respirar mais subjugada.
    Aos erros da avareza repetidos
    Por cujas mãos tyrannas fui criada.

    Mil vezes entre funebres gemidos,
    Vi abraçar os pés aos avarentos
    Homens, estes que trago perseguidos.

    Dizendo-lhes com ais, e pensamentos
    Que as montanhas curvavam de gemer:
    Ó vós, causas crueis d'estes tormentos!

    Já que os templos dos numes soffreis vêr
    Desornados, dos numes que piedosos
    Vos deram vida, humanidade e ser:

    Já que os olhos cerraes aos magestosos
    Preceitos seus, no coração gravados;
    Já que abusaes de serem generosos,

    Ao menos vos commovam, desgraçados,
    Miseros gostos nossos, innocentes
    Combatidos da fome, e destroçados.

    Não sejaes fortes com as humildes gentes:
    Possa-vos compungir esta lembrança:
    Que sois co' os irmãos vossos, inclementes.

    Possa abalar-vos da primeira usança
    As leis, restituindo á natureza
    A gloria, os bens, o ser, a segurança.

    Nada, ó Jove, abrandou sua dureza;
    As razões todo o vicio aos homens tiram;
    Mas a razões não olha o da avareza.

    Ah! fulminante deus, quanto sentiram
    Esses que desthronar-te já quizeram,
    Que as penhas sobre penhas enxeriram!

    Desata sobre avaros, que offenderam
    Da natureza as leis n'um semelhante;
    Que commetter mil males me fizeram.

    Desata já das nuvens coruscante
    Raio que envolva em subtil cinza quantos
    Mofinos tem o mundo, ó deus tonante,

    E dizendo isto, cáiam mil e tantos
    Coriscos logo, serpenteando os ares,
    Que te acabem entre horridos espantos.

    Eis, clamarás então: santos altares,
    Valei, valei!--porém mal acabando,
    Tornado em cinzas te verão ficares.

    Oh! quanto os teus, teus males alegrando
    Correndo logo em turba, o cofre abrindo,
    Vejo as mãos para os céos alevantando!

    Uns o arroz da tenda já medindo,
    Outros de um ar choroso mascarados
    De quando em quando para um canto rindo!

    A fama de improviso aos desgraçados
    Corre, e por cem boccas apregoa,
    Teus fins terriveis, mal aventurados.

    Nenhum mais se entristece, nem magôa.
    É justo o céo, é justo, pois castiga
    Os avaros. Eis quanto n'elles sôa.

    Pedante, não maltrates a barriga,
    Entre saccos, e saccos de alimentos;
    Não sejas mais avaro que a formiga.

    Não queiras ser com muitos avarentos
    Semelhante a Lycurgo, rodeado
    De cofres, expirando nos tormentos.

    Vive de tua esposa acompanhado,
    Tendeirinhos pequenos fabricando,
    Que bem obra quem segue o decretado.

    Vai as medidas tu satyrisando,
    Que para bocca d'asno o mel não é;
    Deixa de andar as musas inquietando.

    Para critico seres, tens mau pé:
    Não murmures de outeiros, que em verdade,
    N'elles Apollo o bom, e ruim vê.

    E se fumos desejas ter de abbade,
    Mostrando-te doutor de mitra, e toga,
    Com primazias de robusto frade;

    Aos ratos deixa a tenda, e desafoga:
    Segue do Paiz Baixo essa mofina
    Estrada; e vai firmar-te á synagoga.

    Porque entre os phariseus da lei rabina,
    Te inculcarás mui bem, já me percebes[4];
    A natureza mais do que a arte ensina.

    Entre nós os do Luso, não recebes
    Louvor algum; olham-te mau tendeiro,
    Um vil que na ambição nunca assás bebes.

    Não saques mais as gentes a terreiro,
    Que aos maus sou formidavel, arrebato
    Nos cornos a capinha mais ligeiro.

    As virtudes abraça de barato;
    Olha que serás mais atassalhado,
    Que na bocca do cão raivoso, o gato.

    Sou semelhente ao genro desprezado
    Por Licambo, ou bem ao inimigo
    Vingativo do bufalo malvado.

    Vende o bom bacalhau, o melhor figo:
    Argumenta c'o teu almotacé:
    Detesta os vicios, anda só comtigo,
    O Alcorão não sigas de Mahomet.

      *      *      *      *      *

A mais completa noticia que temos de José Anastacio da Cunha deve-se ao
esclarecido investigador, o snr. Innocencio Francisco da Silva (_Dicc.
bib._, t. IV, pag. 221-231). Aqui encontramos pela primeira vez a
sentença inquisitorial que condemna José Anastacio da Cunha a ouvil-a no
auto publico de fé, com habito penitencial. A sentença confisca-lhe
todos os bens, encerra-o por tres annos na congregação do oratorio, com
dous dias de penitencia em cada mez no primeiro anno; findo o triennio
da reclusão, desterra-o por quatro annos para Evora, e veda-lhe
perpetuamente o ingresso em Coimbra e Valença.

Concluidos os tres annos de reclusão, José Anastacio requereu á mesa do
santo officio que lhe commutasse o degredo dos quatro annos em
residencia na congregação do oratorio. A inquisição condescendeu.

Os delictos do condemnado estão substanciados no exordio da sentença que
reza assim: «_...e pareceu a todos os votos que o réo pela prova da
justiça e suas confissões estava legitimamente convicto no crime de
heresia e apostasia por se persuadir dos erros do deismo, tolerantismo,
e indifferentismo, tendo para si, e crendo que se salvaria na
observancia da lei natural, como a sua razão e a sua consciencia lhe
ditasse, sem a sujeitar a algumas leis ou preceitos e sem a regular
pelos dogmas da religião revelada que não acreditava; tendo tambem por
injustas e tyrannas as leis com que a igreja obriga os fieis a captivar
os seus entendimentos e a sujeitar os seus discursos em obsequio da fé e
das verdades reveladas que lhes propõem para crerem sem duvida nem
hesitação alguma: persuadindo-se igualmente que qualquer pessoa se
salvaria em toda e qualquer religião que seguisse e fielmente
observasse, capacitado que obrava bem, ainda que errasse, não sendo por
malicia, mas só por falta de conhecimentos_», etc.

A inquisição já não tinha garras n'aquelle anno de 1778. Vinte annos
antes, um réo com menos delictos, seria queimado. José Anastacio orçava
então pelos trinta e quatro annos; era tenente do regimento de
artilheria do Porto, e lente cathedratico da cadeira de geometria na
universidade.

José Monteiro da Rocha, lente de astronomia, figadal inimigo de José
Anastacio, teve o maior quinhão no vingado odio que o perdeu. Em um
debate scientifico degladiado entre os dous sabios, encontro o professor
de geometria assim apreciado por Monteiro da Rocha[5]: _Estes papeis
respiram tanta arrogancia e presumpção, contém tantas falsidades e
imposturas, e desmandam-se em allusões tão satyricas, e dicterios tão
grosseiros, insolentes, e malignos que bem manifestamente dão a conhecer
que o author tem o miolo desconcertado ou damnado o coração._

Se tinha o coração damnado, a inquisição expungiu-lhe o virus
hydrophobo, e Monteiro da Rocha fez uma boa acção proporcionando ao seu
inimigo o ensejo de reconciliar-se com S. Domingos, mediante sete annos
de reclusão e confisco de bens.

O insigne mathematico falleceu aos quarenta e tres annos de idade, na
calçada de Nossa Senhora das Necessidades, nos braços de sua mãi, que
elle adorava extremosamente.

O snr. Innocencio Francisco da Silva publicou em 1839 as _Composições
poeticas do doutor José Anastacio da Cunha_, incluindo n'ellas a _Voz da
Razão_ que não era de José Anastacio. O illustrado bibliophilo
reconheceu depois e confessou o seu engano, por se ater ao boato
publico.

Nas mais completas collecções de poesias ineditas do douto philosopho
não entra a _Voz da Razão_. Prezo-me de ter possuido as suas poesias
completas, e não vi rastro d'esse poema nem d'outros com a mesma
tendencia irreligiosa.

No _Diccionario bibliographico_, tom. IV, pag. 226, o snr. Innocencio
Francisco da Silva, considerando extraviada a maior parte das poesias do
seu biographado, escreve: «... João Baptista Vieira Godinho, outro
intimo amigo de José Anastacio, fallecido no Rio de Janeiro a 11 de
fevereiro de 1811, no posto de tenente-general, teve tambem em seu poder
muitas composições do sobredito; porém, confiando-as algum tempo antes
de morrer ao conde de Linhares, D. Rodrigo de Sousa Coutinho, ignora-se
o destino que tiveram.»

Podiam ter peor destino. Vieram á minha mão em 1872. É um volume em 8.º
encadernado em marroquim, dourado por folhas. Contém parte 1.ª e parte
2.ª dos versos. É prefaciado por _J. B. V. G._ (João Baptista Vieira
Godinho), que se propõe reunir as poesias _do seu desgraçado amigo_. Não
sei como este volume sahiu da livraria do conde de Linhares. Eu
comprei-o ao livreiro Rodrigues, do Pote das Almas, em Lisboa; e elle
comprou-o aos herdeiros do jurisconsulto Pereira e Sousa. O livro, a
final, entrou no pantheon mais digno que lhe podia occasionar o fado dos
livros que não é sempre o melhor: está na livraria do snr. visconde de
Azevedo, no Porto.

Presumo, todavia, que Vieira Godinho não logrou colligir todas as
poesias do seu amigo. A _Satyra_, que o leitor acabou de lêr, pertence a
outro codice.

Tambem possuo da letra de José Anastacio a versão muito emendada do 1.º
e 3.º acto do _Mafoma de Voltaire_. Diz lá uma nota de Pereira e Sousa
que _aquelles mesmos papeis estiveram no cartorio da mesa do santo
officio_. Por isso eu os guardo com muita veneração, e os beijo
reverentemente, pensando que elles passaram pelos bentos dedos do
cardeal de Cunha, inquisidor geral.

    [2] Diogo José da Serra, um escandaloso vadio d'esta cidade, tão
    ignorante como devasso. Este homem foi quem induziu á factura da
    _Satyra_ o doutor Botija.

    [3] Calumnia que os herdeiros de Francisco Dias estimariam que não o
    fosse. O poeta arguido de avarento morreu pobrissimo.

    [4] Francisco Dias Gomes era de geração judaica.

    [5] Documento inedito de que tambem possue traslado o snr.
    Innocencio Francisco da Silva.



PREFACIO AO SONHO DO ARCEBISPO


O correspondente lisbonense do _Jornal da Manhã_, indigitando o rastilho
de futuras combustões no arranjo social das cousas portuguezas, malsina,
sem nomeal-os, uns opusculos mensaes, onde se exhibem contra a casa de
Bragança ineditos attribuidos falsariamente a arcebispos. Os opusculos
accusados com injusta malquerença são as _Noites de insomnia_, e os
manuscriptos arguidos de fraude são os dous innocentes dislates de um
illustremente desgraçado talento, cujos autographos offereço a quem, na
duvida, quizer examinal-os.

Em nenhum dos dous artigos (a _Catastrophe_, e _D. Maria Caraca_) é
atacada a dynastia brigantina, e menos ainda a legalidade que assiste á
testa coroada, com que mui jubilosamente me envaideço e sobremodo me
honro, em nome do partido da ordem, cujo estandarte as _Noites de
insomnia_, desde ora avante, desfraldam.

As noticias, historicamente relativas á familia ducal e real de
Bragança, publicadas n'estes livrinhos, não pesam sobre a memoria do
esclarecido arcebispo;--são todas de minha lavra, e de minha
responsabilidade perante os doutos. Todavia, se alguem me rastreia,
n'esse lavor meramente historico, o insidioso plano de aluir o throno,
sou obrigado a declarar que não se acham ainda bastantemente decisivas
as minhas intenções a respeito de sua magestade, nem me parece que
cheguem as cousas a termos de eu ter de desthronar o snr. D. Luiz I. E,
dado que razões imprevistas, mas rijas, me impulsem a exterminar a casa
de Bragança, hei de fazer quanto em mim couber, na hora do maior perigo,
por ter mão... na manta real. Por onde se vê que, em materia de
Coriolanos, Belisarios, e outros, ainda os ha por aqui, na patria dos
Pachecos. Iniquissimamente, pois, me culpa o escriptor referido, quando
me arrola entre os obreiros subterraneos da oligarchia; e ao mesmo tempo
incute pavores no animo d'um alto personagem. Por causa d'estes alarmas,
temos visto a timidez que se denuncia, e denota pouca firmeza de
consciencia, debilidade de espirito, incerteza juridica do lugar que se
occupa, braço inerme para a defensão da real e sagrada propriedade. Se
conhecem a pusillanimidade d'aquelle a quem cumpre ser forte, e até
heroe no cairel da voragem, não lhe mettam espantos na alma com
phantasmas; robusteçam-no para a provação, quando a hora troar, a hora
maldita em que o povo açacala as garras, e golfa das tabernas com
bramidos de leão. Se não querem prevenir as catastrophes, porque não ha
prevenções contra a fatalidade, não se finjam previstos, pondo estas
innocentes _Noites_ a espreitar Cesar pelo olho esquerdo de Bruto.

Quanto ao arcebispo de Mitylene, não se diga que elle me deixou, como
herança de rancores demagogos uns papeis, de que eu estou estillando
petroleo para o holocausto da casa de Bragança. Posto que o celebre
jurisconsulto, depois de alienado, se imaginasse proscripto dos seus
direitos ao ducado brigantino, nunca lhe coou da penna de ferro injuria
contra a familia real, que era, pouco mais ou menos, a d'elle.

Verá o leitor, no seguinte artigo, quanto o vidente de mundos defezos ás
pessoas que se dizem ajuizadas, respeitava seus regios predecessores, e
nomeadamente seu avô o snr. rei D. Manoel, e seu mais remoto avô o snr.
D. Affonso Henriques, que elle viu em Villa-Real, trezentos annos antes
da povoação d'aquella villa.

Verdadeiramente, a gente não sabe se os doudos são os que vêem cousas
estranhas, se somos nós que não vemos senão trivialidades. Gerard de
Nerval pende a crêr que os doudos são os que tem o condão extraordinario
de vêr o invisivel aos parvoeirões. Regra geral: assim que um homem
descamba da linha recta que vai desde o almoço até á cêa através do
jantar, a razão humana desconfia d'elle. Se este homem suspeito,
unicamente, lesa os seus interesses, chamam-lhe, com piedosa
indulgencia, tolo: se, por demasia de espiritualidades, damnifica os
interesses alheios, estigmatisam-o de mentecapto. Qualquer das
qualificações impellem á morte moral. Eu ainda não atinei bem com a
denominação ajustada ao doutor D. Domingos de Magalhães, porque no seu
modo de escrever historia, philosophia e moral, se revela muito mais
acerto, critica e sciencia que nos livros de uns homens que não se acham
bem definidos nas diversas doenças apyreticas do cerebro. Eis aqui um
rapto de luz que elle denominou:


SONHO

(INEDITO DO ARCEBISPO DE MITYLENE, ESCRIPTO NO PERIODO DA ALIENAÇÃO)

No decurso de dezeseis gerações não veio ao mundo nem assomou ao
pensamento de nenhum sabio o que a actual inspiração ensina, e communica
a todos pelo modo mais extraordinario e divino, ou pela fonte mais pura
e heroica do santo e actual desaggravo. A Divina Providencia jámais se
revelou tão benefica e misericordiosa, nem tão solicita e desvanecida
para com a pobre e triste humanidade, que escurece o beneficio e parece
desprezar o seu author divino, só pela torpe e abominavel gloria do seu
desprezado egoismo e da sua indomita soberba. Estava já endurecido o
coração de Pharaó, e não consentiu a sua vil injuria que o infinito
poder da vara e a sua misericordia o livrassem da ira do mar e do justo
castigo das aguas.

O sonho actual é de outro Pharaó, que só viu as sete vaccas gordas, e
não quiz ou não pôde vêr as magras, e as deixou todas para traz e
desprezadas em poder de herejes e de inimigos do santo nome e da fé. Diz
a historia que Pharaó viu primeiramente sete vaccas gordas, e que a
estas se seguiram sete vaccas muito magras e muito definhadas, que mal
podiam sahir do rio aonde se banhavam e bebiam. Ás nossas sete vaccas
são sete seculos de dezeseis gerações, que deixamos para traz das
costas, magros, definhados e proscriptos, que terminaram pela mais
negra, medonha e absoluta penuria de todo o recurso e remedio. A mãi e o
pai comem a carne do filho, os mortos jazem sem sepultura, a impiedade
triumpha, a verdadeira fé anda foragida, a injuria do Senhor substitue o
culto, e sobre as cadeiras de Moysés já não se assentam os escribas e os
phariseus; os mais depravados inimigos perseguem em nome do Senhor todos
os seus santos ministros, e predizem pelas suas obras o fim do mundo, e
a necessidade do ultimo e geral escarmento.

Tal é o quadro da abominavel heresia, e da mais atroz injuria, que se
pode levantar contra o Senhor em nome do demonio sem o proclamar como
Anti-Christo; o vituperio de tão grande affronta avexa os filhos do
Divino Amor, o mais horrivel pesadelo coarcta as suas faculdades, e o
delirio do sonho chama e reclama a necessidade do mais santo esconjuro,
e da mais afouta e intrepida penitencia. Felizes as mulheres estereis, e
mil vezes mais acordado, ou menos infeliz e desprezivel será o aborto,
que não recebeu a agua do baptismo nem chegou a uso de razão para não
soffrer a injuria da maldita geração do peccado, e do seu enorme e
horroroso castigo.

Passados sete seculos como um sonho, quebraram o preito, apagaram a
gloria, e amofinaram o beneficio de seiscentas batalhas e de outras
tantas victorias, riscaram das paginas mais gloriosas da nossa historia
monumentos eternos para escrever o geroglifico da maior vileza que nega
as façanhas aos heroes, e depõe a estatua do seu pedestal para a
substituirem pela mais desprezivel do seculo, e pelo que tiver deixado
nome mais injurioso, conspurcado e escravo.

Descobriram os nossos antigos o Brazil, e fundaram n'elle a maior
colonia do mundo, que se fundou sem o vicio dos perseguidos e dos
emigrados religiosos e politicos; e os que tiveram esta gloria são
desprezados, e os seus herdeiros perseguidos. O usurpador que se fez
possuidor para proclamar o falso principio de independente, e que
entregou os estados ao ouro, e ao poder da Inglaterra foi levantado e
exaltado; porque emprehendeu entre nós a mesma façanha e legou o seu vil
commettimento ao partido mais vil e fementido, atroz e degenerado, que
pode organisar-se em nome de uma seita protestante e heretica para
commetter esta grande aleivosia e diabolico mandato. D. Affonso
Henriques ainda dorme o somno dos seculos; os seus heroicos serviços
ainda não foram julgados pela posteridade; parece que o grande vulto
espera que a fama das suas façanhas o alevante sobre todos os porticos e
sobre a fronteira de todos os templos e igrejas catholicas. Que fará a
mais hedionda e vil injuria d'este sonho abominavel dos herejes? Levanta
o impio e exacerba o catholico, vende a terra da patria; e, para ter
sepultura em paiz protestante, pactua com o demonio a quem entregou a
alma a traição e o aleive; o seu desdouro é o mais abominavel tramite e
caminho do inferno.

Fez em Lisboa injuria ao veneravel corpo e santelmo d'el-rei o snr. D.
Manoel, meu presado avô. Os usurpadores apodrecem em seus sarcophagos, e
os reis legitimos recendem e perfumam a desfeita porque não legaram a
vileza do seu coração, deixaram os estados, os eternos monumentos, os
mosteiros e a maior grandeza do reino, e não roubaram nem atraiçoaram
nem renegaram de Deus nem da patria, nem abandonaram a justiça nem
venderam as suas consciencias.

Como pôde a nação chegar apesar de tão emeritas virtudes e de tão
relevantes serviços ao ultimo estado de degradação e vilipendio? Devemos
presumir que a nação sempre foi perversa, e que os heroes foram poucos
mas estrenuos, e tão briosos e fieis que conquistaram do mundo a maior
fama, do Senhor o mais desusado e grandioso favor e auxilio. São poucos
os heroes? quantos monarchas illustraram o throno? quantos fieis e
valentes venceram em Ourique? quantos foram os mais dignos missionarios
do Oriente? quantos Pachecos e Albuquerques? quantos Castros e
Mascarenhas? quantos Magalhães e Gamas? Aonde estão as suas estatuas?
que é feito do corpo santo de S. Francisco Xavier?

São estas as perguntas que vos dirijo, as invectivas que hei de
fazer-vos até o fim: eis o martyrio que appeteço e a santidade que o
Senhor me concede, como propheta, para vingar a injuria de sete seculos,
o sonho e o pesadelo do mais atroz delirio. Os filhos de S. Francisco,
de S. Domingos, de S. Theotonio, e de Santo Antonio que dormem nos
claustros dos extinctos e abominados conventos; os monges negros de S.
Bento, os inimitaveis de S. Bernardo, toda a familia de Santo Agostinho,
os proceres d'Alcantara e de Bruno fallam pela nossa bocca, e dirigem o
nosso pensamento n'esta humilde e generosa tarefa. Que fizeste, ó impio,
de tanta santidade que perverteste, e da sua grande fama e publica
utilidade?

No sonho de sete seculos não pôde a sabedoria de tão grandes heroes
levantar o eterno monumento do actual desdouro e da sua fatal cegueira?
Somos nós o vingador das injurias, porque o Senhor nos conserva e
defende, afouta e encaminha para o nosso honroso e santo ministerio.
Está por terra o edifficio de nossa grandeza; vê o mundo, admira e
contemplam os anjos a nossa actual miseria e compadecem-se d'este
ruinoso estado: só não se move o povo, só o interdicto dorme o maldito
somno da morte, e não delira nem appetece a eterna felicidade de sua
salvação e liberdade!

Sabemos que o actual abominio tenta exterminar toda a geração d'ourique,
e cassar as promessas do Divino Salvador matando o Promettido e
Desejado; e d'este projecto ri e zomba, e escarnece a nossa fé pela
vaidade do sonho ser digna e merecedora de mais prompto desprezo; mas
não basta que o Senhor defenda uma causa para que se considere heroica:
convém que o homem e o povo eleito e escolhido para a façanha se mostrem
dignos, timbrosos, sobranceiros ao maior perigo e intrepidos e confiados
na justiça do commettimento, e na gloria da Divina Protecção. O sonho,
que desdoura o homem, cerca de terror o timido e fugitivo escravo do
demonio, porque não confia no poder do seu senhor, nem na justiça da
causa nem na certeza do seu delicto.

Todas as vezes que me occorre algum nobre pensamento do Divino Amor e do
seu desaggravo, não posso resistir ao desejo de o exarar. O amor de Deus
é um sentimento imperioso, porque Deus é o summo bem: o que tem a
felicidade de vêr o Senhor não póde deixar de o amar sobre todas as
cousas; porque assim o exige a natureza do bem que nos arrebata. Se o
triste e mesquinho não ama o Senhor sobre todas as cousas, outro
espirito assenhorêa a alma do possesso, e pode dizer-se que impera
n'ella o demonio. Quem não é por mim é contra mim. A manifestação mais
perfeita de amor é o desaggravo da offensa; o que não desaggrava não
ama: porque ao summo bem corresponde o amor mais perfeito: não amando,
aborrece; e, na presença da injuria e do escandalo do desacato, toma
sobre si e á sua conta toda a cumplicidade da offensa, e faz-se digno do
mesmo rigor da pena, e do maior castigo devido á perpetração do delicto.

Os mais revezados delictos maculam a geração actual; é uma herança que
recorda a dureza de Pharaó e a obstinada e cruel memoria de Herodes e
Pilatos. No Egypto a vara do poder, na Judêa o Divino Verbo, que veio ao
mundo para nos regenerar, pesam e sentem a falta de desaggravo, e só
lamentam a dureza do povo e a sua affectada cegueira. É um sonho, que
sempre se repete, e que manifesta bem palpavel n'este mundo das illusões
o irresistivel poder do maleficio, que actua sobre os escravos do
peccado e filhos da ira e da sua perversa condição. Fuja o homem de
commetter o peccado imperdoavel; porque em sua fatal herança não só
deturpa e cega, senão que domina e arrasta a alma para a maior perdição,
e para o fundo do abysmo.

A quantos d'estes póde aproveitar o desaggravo e o martyrio ninguem ha
que ignore, e muitos desejam ser purificados pelos heroicos processos da
santa penitencia da fé, mas ninguem os sujeita, nem ha força que os
violente; e tremem do exito, vivem no fóco da calumnia e do erro, da
perseguição, e d'um para outro dia soffrem a tremenda metempsychose da
furia do dragão. Fallamos ao povo que conserva o direito de propria
consciencia e algum vislumbre de boa fé para que procure e abrace a
salvação da indulgencia e do martyrio, que tem diante.

Quando o fiel d'uma balança pende por força irresistivel para o abysmo,
são felizes os que se lançam na outra concha; porque a força contraria
os impelle e ascende mais do que a natural virtude dos seus corpos
diaphanos. Que bella monção para tão feliz viagem! que bello sonho para
os sete seculos venturosos que se hão de completar na eternidade!

Quando nosso Senhor veio ao mundo era o cordeiro immaculado, e veio para
o eterno sacrificio do Amor Divino. Nasceu em um presepio, e podia
nascer em um monte, que era dado a sua santidade, e fóra do redil aonde
nascem quasi todos os cordeiros, mas nasceu em um presepio para nascer
entre os pastores e bem resguardado dos lobos, que procuravam o
innocente para o matar. Em Bethlem e no templo, quando o menino foi ao
Agrado e esteve entre os doutores, renovaram os insanos judeus as suas
tentativas e machinações; e por isso o meu Senhor fugiu de Bethlem para
o Egypto e d'este a primeira e a segunda vez para a Lusitania; d'onde
finalmente sahiu para a grande e heroica missão, que nos remiu no
calvario. S. Thiago e S. João eram irmãos do Senhor; veio ás Hespanhas o
grande apostolo, e veio tambem S. João, mas nenhum teve o seu martyrio
na Peninsula. S. Thiago foi receber á Judêa a sua promessa. S. João foi
ao imperio dos Cesares, e á terra do paganismo e do amor depravado da
louca e desnudada Venus. Voltaram os seus corpos? que recondito conserva
o virginal de S. João? Este sonho póde condizer com a Rodhoma por ter S.
João recebido no calvario a santa maternidade da Virgem minha Senhora.

Desde que nascemos para o santo ministerio do actual desaggravo de
dezeseis gerações, um presentimento feroz persegue e incita a indomita
heresia para nos matar; o veneno é a sua arma; actualmente só o mais
decidido milagre me podia salvar da furia; eu presagío que o meio
heretico só tende a abysmar os seus altares e instrumentos. O tetrico
sonho da ira impotente subjuga os escravos que se irritam e despedaçam,
como as ondas que quebram contra o invulneravel rochedo, e se abysmam
pela inutil furia do seu audaz commettimento. Os judeus levaram a sua
insania ao cabo, e veio o maior castigo do povo e sobre a terra com a
justa ira do Senhor: o ultimo propheta foi morto entre o templo e o
altar, e a prophecia foi negada para sempre ao judeu, que só tem
actualmente a de Jonas, que foi sempre mandado em missão de Ninive e de
Babylonia aos pagãos e gentios. A Virgem minha Senhora inaugurou no
Carmo o centro da adoração, e transferiu para o novo reino de Sião o
docel de sua prophecia aonde se conserva. Se em vez do culto devido á
santidade do Senhor o nosso reconhecimento hereditario se convertesse em
fel d'injuria, e dessemos ao meu Senhor e á sua Santissima Mãi o calix
da maldição dos judeus--deviamos recear que viesse sobre nós o mesmo
flagello, e que a falta de desaggravo nos equiparasse para a pena do
escarmento ao detestavel povo e aos seus perfidos ministros e traidores.

O nosso centro de desaggravo installou-se na Penha da Estrella e debaixo
do docel e da egide da Virgem minha Senhora. Quantos mezes se
conspiraram para apagar aquella luz sacrosanta, e comprometteram as suas
almas n'este malfadado empenho e ousadia? O seu pensamento era só um, e
a nossa morte o unico desenlace de todos os estratagemas. O ministro
executor do barbaro decreto trepidou, e desde que chegamos a esta villa
até o presente as suas combinações e ardis tem-se resentido da mesma
canha e imbecilidade. O coche funerario que me destinava a tyrannia
converteu-se na traquitana, que me conduziu á estação; o decreto de
despejo que me lançava fóra de casa em Lisboa e d'esta villa ha de
executar-se pelo santo direito do talião divino contra os vergonhosos
authores, porque todos os seus meios eram d'impios sem fé e sem verdade
de juramento, de crueis perseguidores de fieis, e de profanadores dos
templos e de sua maxima santidade.

O sonho, que actualmente nos alevanta de toda a desanimação produzida
pela heresia, é dos sete seculos magros, que hão de ser coroados por
outros sete seculos pingues e ferteis, heroicos e cheios de fartas e de
briosas chronicas, que encerrem as façanhas dos fieis, a succinta
historia dos povos, e o precinto da catholica santidade e igualdade de
todos os filhos e do mesmo Pai santo e commum no céo e na terra. As
casas de Bragança e de S. Bruno sempre foram perseguidas pelos nobres e
falsos fidalgos: todas as suas façanhas tem sido commandadas por pessoas
de familia no fervor do nobre enthusiasmo do povo, executadas pelo
devaneio e pelo assombro do milagre, por ficarem em esquecimento e sem
galardão do mundo e só com o grande e extraordinariamente mais real e
verdadeiro do proprio som e merecimento: por esta razão faltam as
estatuas aos heroes, e vem no meio da enxurrada as obscenas dos mais
tredos e falsos pyrilampos.

Os seculos, que estão para succeder invocam a audaz cooperação do povo,
e exigem que o novo heroe seja o mesmo comicio, e a centuria, que
defender o templo e desvanecer o seu culto. É necessario que a Terra
Santa reuna o povo mais digno, e que a authoridade e o poder divino unam
o capitel e a cimalha do novo edifficio, e commandem a pureza da fé e a
sua excellente doutrina com o mais sonoro e metallico alarido de
desaggravo e de arguição. Todas as nossas instituições tendem ao valente
ensejo d'esta restauração do povo para o fazer nobre e para o exaltar
pelo martyrio e por meio da virgindade e da santidade da crença; a
corrupção corre em veias e carcome o amago do tronco que apodrece e
cahe: a nova arvore estende as suas raizes por todo o mundo e ha de
cobrir com os seus copados ramos todas as plagas, e zonas da esphera: o
castello que era do procere o do conde ou do rei e senhor, será de Deus
e do padre santo, do fiel e do mais devoto e digno de seu sublime culto.
Todos os heroes rivalisarão com os filhos de Javão, e dar-se-ha o premio
ao que desvanecer maior virtude e sacrificio com mais encarecidas
provas, e com mais heroico desinteresse.

O snr. D. Affonso Henriques vestia o talar ecclesiastico para fallar do
pulpito, e para narrar as maravilhas de todas as suas victorias, se
vinha ao reino algum rei ou principe estrangeiro convidado pelo desejo
de estudar as nossas proezas e façanhas e para se informar do seu
alarido: o grande monarcha não desejava fallar de assento sem subir ao
pulpito, porque n'esta cadeira de verdade recebia as suas inspirações e
mais fortes commoções e graças. Todos os estrangeiros estranhavam o
monarcha, e o seu habito de paz, que era o talar, senão a batina de
estudante: quando o viam subir ao pulpito alguns riam; depois que
sentiam as commoções de sua eloquencia e persuasão louvavam o orador e
choravam quando o orador chorava, commoviam-se e aplaudiam segundo o
costume do tempo com tão fortes demonstrações e signaes, que chegavam a
interromper o discurso. N'este emphase de sua justa admiração pediam ao
rei que repetisse, e como nada levava estudado progredia ao acaso e
sempre com o maior espanto e alarido deixava o auditorio, e corriam a
tomar o seu supplicio e disciplina pelo desacato que os mouros
commetteram em Ourique na occasião da batalha contra o Santissimo
Sacramento, que estava na ermida de Nossa Senhora do Monte.

Qual é o povo perdido? é o gentio de todos os seculos; que corre com os
que correm, que dorme com os que dormem, que se deixa corromper pelos
corruptos e se faz perverso por falta de sal e de doutrina que o
preserve e conserve. A sociedade de homens notaveis e dos falsos
proceres correu atraz da illusão, e levou comsigo e arrastou o maior
numero; vive no meio do fôro a parte sã e sensata. Quem acordará os
dormintes e levantará do pó os que jazem feridos pela scentelha do maior
erro e catastrophe? Só o Senhor nos póde acudir e soccorrer: levantai as
vossas vistas, exaltai o vosso pensamento, fazei-vos fortes no reducto
das vossas consciencias do desaggravo e esperai do santo alfageme o
milagroso remedio e toda a sua recompensa.

Estes são os nossos sonhos. Pensava no sonho de Pharaó o santo José
filho de Jacob, e só o Senhor alevantou o véo do mysterio, e deu ao
mysterioso numero a sua santa e verdadeira significação. Ha sete
peccados mortaes, e contra estes outras sete virtudes, mas vem primeiro
os peccados ao mundo antes que venha o remedio da virtude que supprime o
peccado correspondente: a sabedoria consiste em desvanecer a virtude
para que não tenha lugar o peccado, que a escurece e affronta. Este terá
sido o sonho e o constante pensamento da casa de Bragança no decurso de
dezeseis gerações? é certo que só o Senhor nos concede o mysterio d'este
desvanecimento e a sua gloria futura; venha o povo, e furte a virtude ao
merito, e deixe a torpeza dos bens aos vis forasteiros, que surgem do
inferno por tão negro e absurdo estipendio, e usurpação.

No meio dos seus sonhos e prophecias o santo rei d'Ourique previa e
affirmava, que o seu successor da 16.ª geração havia de ser rei e papa,
e era tão firme n'esta sincera e antecipada previsão, que algumas vezes
via a propria figura, e se compadecia das tramas e desgraças que o
haviam de perseguir, e dos males que haviam de sobrevir ao reino, e das
heresias em que já o via e considerava submerso e como amortecido pelo
diuturno interdicto e geral perdição. S. Affonso devia aos estrangeiros
e ás cruzadas extraordinarios favores; o seu pensamento de grande
estadista e o grande desejo que teve de ser util á santa causa da fé,
fez com que pedisse e solicitasse de sua santidade um decreto para que o
nosso reino fosse considerado reino da cruzada com todas as suas
indulgencias que obteve a grande contentamento de todos os cavalleiros
da cruz, e com grande desgosto e tristeza de todos os falsos monstros do
culto, e membros podres da nobreza. Este decreto causou grande alarma, o
povo defendeu a medida, que até os ecclesiasticos combatiam com muito
alarido de fingido zelo pelo bem da Igreja. Este conflicto ameaçou o
reino nascente, veio o nuncio de Roma, lançou interdicto, e triumphou o
rei com o povo, porque seu coração era real e tão recto e justo, que não
soffria a menor injuria do templo, e desaggravava os desacatos dos
mouros com o mais cruel supplicio de seu corpo e quasi á vista do povo e
para o edifficar como exemplo. A este tempo já muitos ecclesiasticos
seguiam o ocio da paz e principiavam a gozar e appetecer as delicias de
Capua: os simoniacos engordavam capões e perús para as festas do anno e
deixavam nús os pobres, e desamparados os orphãos e as viuvas; que faria
o rei? mendigar o soccorro do padre santo e a virtude de sua santa
indulgencia e receber do Divino Salvador a inauferivel do futuro remedio
e prophecia, e de Roma a anachronica certeza dos males que principiavam
a devorar a santidade da curia e a corcomer o corpo d'aquella santa e
bemfazeja arvore.

A prophecia é dada ao rei; foi David propheta e Salomão, Pharaó sonhava,
e o rei até quando sonha deve prophetisar para que o povo descance e
confie na sua sabedoria e providencia. Todos os prophetas tiveram honras
reaes e de santos, recebiam corôa de martyres e eram mandados ao povo,
ou por causa do povo aos seus reis e ministros do governo.

Se o rei for santo certamente ha de ser propheta; porque todos os reis
legitimos são constituidos por causa do povo; e por isso bem decidiu a
santa sé pontificia quando deixou o complemento da santidade de S.
Affonso reservada para o computo da 16.ª geração: mas pareceu-nos que a
ultima prova se devia presumir e dar por existente ou por verificada e
cumprida como promessa divina, ou desnecessaria e superabundante.

Assim aconteceu sempre em Roma com o milagre d'Ourique; mas nem sempre o
povo recebeu a fé viva d'este santo milagre: os que vivem da falsa
opinião e exploram as más disposições erram e perdem as suas almas, e
não cessam de condemnar as alheias; estes iracundos da propria alma
tramam e conspiram com todos os aventureiros, para levantar o idolo de
suas paixões e sensuaes appetites: não vos pareça menor o numero dos
defensores da boa e santa causa, nem deis por perdida a mais arriscada e
perigosa do juizo humano em quanto se conservar pura da fé, isenta de
contagio, estrenua e airosa pela virtude do desaggravo, e pela mais
sublime e divina da sua penitencia e martyrio: se fôr desvanecido por
virgens, se não tolerar o desacato, nem a vil affronta do impio, nem o
sarcasmo do judeu e do protestante, nem a simonia do falso e perfido,
nem a atrophia das almas sem as marcar com o ferrete, e sem as entregar
ao indefectivel juizo da santidade e da fé.

O nosso sonho foi uma visão ou previsão de S. Affonso, que se verificou
em Villa Real, n'esta antiga villa ou cidade: nós vimos em sonho o que
S. Affonso no seu tempo previu como propheta: o sonho tem uma historia
necessaria para a sua explicação; e como vem os factos traçados e
encaminhados para este mesmo fim, temos unicamente a acrescentar o
seguinte.

S. Affonso foi rei d'Ourique por justa e divina acclamação, as côrtes e
os poderes do estado applaudiram a eleição, juraram seus preitos, e
deram todos os documentos de boa fé e de cordial testemunho, do sincero
empenho e da resolução em que estavam de todos os sacrificios para
sustentar a acclamação e para continuar a guerra aos infieis. S. Affonso
pretendeu o voto universal por ser causa de milagre e de grande
sacrificio e do maior testemunho, e muitos ecclesiasticos que viviam nos
prazeres do ocio, e que sentiam vêr retaliados pela guerra os campos das
suas prebendas e passaes, e muitos ignobeis e falsos nobres, que seguiam
a lei de seu egoismo, e d'estes em o maior numero commentavam a
acclamação desfavoravelmente e persuadindo o povo a que não aceitasse o
rei porque esta acclamação havia de causar grande descontentamento em
Hespanha e traria comsigo algum maior dissabor da parte do supremo
pontifice.

Havia com effeito da côrte de Roma duas exigencias muito fortes e
constantes perante a côrte de Portugal: a primeira por causa do fôro de
S. Pedro que é de morgadio do Divino Salvador, e a segunda por causa das
cruzadas; por se dizer, que não irão do reino as cruzadas á Terra Santa,
como eram obrigados todos os fieis. Sempre o conde-rei se tinha
desembaraçado d'estas interpellações com muito favor, e não cessava a
intriga de urdir novos ardis; por virem de fonte conhecida e poderosa,
que era a côrte de Hespanha: mas obteve S. Affonso a bulla, que
declarava o nosso reino Terra Santa e reino de cruzada, o seu rei como
benemerito filho da santa Igreja e como antigo cruzado da Terra Santa de
Palestina, e applicasse o fôro do Divino Salvador para as despezas da
guerra. E logo a invicta monarchia obteve o suffragio e principiou a
julgar-se invencivel: mas os seus inimigos não dormiam, e agora veremos
o que urdiram em Roma mais calumnioso e atroz.

Formaram em Hespanha um processo secreto contra o rei com muitas
testemunhas de Portugal, gente vil, desconhecida e de negra e atroz
calumnia: os seus depoimentos recheados de torpezas e de peccados
phantasticos que attribuiam ao rei, e com o principal artigo d'esta
infame accusação que o monarcha a quem davam titulo de ambicioso seguia
a falsa lei da polygamia, e que era no seu modo de viver semelhante aos
reis mouros, e que tinha uma e duas mulheres em cada terra e que
obrigava os meninos a beijar-lhe a mão como pai de todos, ou como papa;
e que não havia mulher casada que não tivesse algum filho parecido com o
rei, e que estava o reino cheio de malhados, e que por este signal se
conheciam em melhor sombra do que os filhos dos negros. E mais diziam,
que o rei só era generoso e de real doação para as mulheres, e que os
homens andavam diante do soberbo califa como escravos d'harem. Levavam
este recado os malignos tão bem encadeado, como se fosse verdadeiro: o
demonio os ensinava a mentir a Deus e a jurar falso; verdadeira mentira
é todo o engano, que se faz ao padre santo, que é vigario do Senhor.

E com o mesmo intuito e abominavel pensamento de homens de consciencia
perdida, por terem paz occulta com os mouros e longas tregoas, e por não
quererem renunciar aos commodos e seu egoismo, acrescentava a calumnia,
dizendo que S. Affonso era hereje, e pretendia provar a accusação com
tres factos: primeiro, por subir ao pulpito de habito talar e de cota,
para prégar como prégava a favor do divino apparecimento, que os
calumniadores impugnavam e davam por fabuloso, dizendo que nenhum bispo
portuguez se jactava do milagre, nem prégava a favor da sua existencia,
e que os seus padres tambem não prégavam tal façanha, e por isso subia o
rei ao pulpito para o seu falso ministerio. O segundo facto que ligava
ao primeiro consistia em dizer que distrahia das cruzadas os seus
cavalleiros, e que os convidava para ficar no reino, e angariava para a
deserção das suas bandeiras nacionaes com grandes promessas e doações de
terras, que tirava á santa Igreja, e que n'este numero admittia sem
escolha muitos e grandes herejes da mesma falsa escola dos homens mais
ambiciosos, e que este D. Affonso era tão sofrego de ambição que tinha
guerreado com sua mãi, e que a tivera presa até que morreu no castello
de Lanhoso.

E ligavam a estes factos outro de maior atrocidade; porque directa e
indirectamente offendia a santidade do summo pontifice, mas a nada
d'isto attende a calumnia, quando vem proferida pelo maligno espirito
contra a maxima verdade divina; e diziam os calumniadores e verdadeiros
herejes que S. Affonso obtivera a bulla do privilegio pontificio do
reino por meio de grande e manifesta obcecação e por falsa causa que
allegou, e que era o maior inimigo das santas cruzadas, e que no seu
lidar e batalhar era semelhante ao demonio, e que jámais deixava de
ferir o seu adversario, e que ás vezes o feria pela malha com a sua
espada quatro e cinco vezes superior á abertura da malha ou rede de
ferro, e que este milagre era do demonio; e que elle tinham vencido em
Ourique contra a opinião dos seus generaes por ingerencia do demonio e
por ser grande hereje.

O processo era secreto, e D. Affonso não pôde prevenir o exito da
injuriosa e negra calumnia; andava lidando com mouros ao pé de Cintra,
aonde tinha castello fronteiro, e tinham os mouros o seu sustentado
pelos seus navios, e gente de mar e chegavam com as suas correrias até
Lisboa e talavam os campos, matavam e roubavam; e alli vivia ao pé S.
Affonso solicito do modo porque havia de extinguir o covil, e já tinha
certa a sua presa, quando o surprehendeu a noticia que vinha de
Traz-os-Montes vencendo leguas e horas, de que andava um nuncio de Roma
pelas igrejas principaes das villas e terras do reino a publicar um
interdicto contra o rei e contra os seus soldados, se não abandonassem o
rei no mesmo momento.

Apenas recebeu a tristissima noticia com todas as certezas do que se
publicava e ordenava, o rei chorou por tres causas: pela futura sorte do
reino; pelo erro d'aquelles perfidos calumniadores; e pela fraqueza
humana que sujeitava o vigario do Divino Salvador a tão capciosa e
calumniosa illusão. Fallou aos seus, e nenhum o deixou só n'aquella
altura; e contra a opinião dos que julgaram que devia aceitar uma tregoa
proposta pelos mouros pela causa principal do perigo em que viu aquelle
castello de Cintra, resolveu tomar o castello na mesma noite, e o mesmo
foi que ser o rei o primeiro a saltar dentro--ainda havia luz--e tomou o
castello em duas horas. Deu immediatamente as suas providencias, e
partiu para Traz-os-Montes e correu na distancia de mais de sessenta
leguas a outro maior perigo, por vir de Hespanha o nuncio, e de Roma,
d'onde menos se devia esperar, o flagello. O providente monarcha deixou
a tregoa com o castello tomado; os mouros já não lucravam o armisticio,
mas tinham proposto a suspensão, e não podiam recusar o arbitrio.

Chegou D. Affonso em menos de tres dias e de tres noites sempre armado
de ferro, com a morte de alguns cavallos que deixou estafados para tomar
outros, e já ninguem o acompanhava quando entrou em Villa Real, aonde o
nuncio tinha publicado o abominavel interdicto, e já ia no caminho de
Lamego em direcção a Coimbra. O rei manda prevenir o legado de que
estava em Villa Real para fallar com elle e de que o esperava n'aquella
capital para o receber com todas as honras devidas á sua alta categoria
e jerarchia. O nuncio era o principe real d'Hespanha.

Com esta providencia mandou tocar os sinos de alarma. A tropa que estava
na terra reuniu para um lado, para o outro reuniu todo o collegio das
humanidades com os seus balandraus e opas, mas sem cruz e sem nenhum
ecclesiastico, porque estes se reuniram e assentaram por votos da
maioria, que não deviam apparecer ao monarcha nem concorrer ao templo. O
rei só com o seu talar á porta da igreja que estava n'esse tempo no
sitio aonde está actualmente o templo incompleto da Senhora do Carmo
esperava o concurso no meio de maior anciedade, e nenhum se resolveu a
entrar. A irmandade e a tropa ouviam grandes vivas ao rei, e cada um
sonhava que eram os vivas do outro bando, e não se moviam: o rei já não
podia esperar, porque recebeu a certeza de que o nuncio não voltava a
Villa Real, antes havia de acclamar a sua desgraçada e infausta
commissão até Lisboa.

Que faria? Chorava aquella desgraça e tendo resolvido correr atraz do
nuncio para o informar e para pedir recurso do interdicto por não ter
sido ouvido nem convencido de tão graves causas, via-se só á porta da
igreja; olhou e viu a distancia o successor de dezeseis gerações, que
caminhava para o templo com o poder do summo pontifice e do provigario
do divino Salvador, entrou, despiu o habito talar e partiu.

Nós vimos a scena que S. Affonso viu e previu, mas de que modo? Ouvimos
os vivas, reconhecemos os dous bandos, vimos a porta meia aberta do
templo, a estatua do homem ou do heroe, e sentiamos que se recolhia por
nos vêr; marchamos só para o ministerio do templo, e os bandos receosos,
desconfiados, mas desejosos de nos acompanhar não se moviam: perguntei
de quem era o busto? que motivo tinha o povo e o exercito para se
conservar em tão grande espectação, e recolhi a historia, que fica
narrada, por muito santa e por muito verdadeira.

Antes de me dirigir ao convenio, estava eu no meio de muitos individuos
contemporaneos, que ora me convidavam para o fumo de tabaco, ora para
assistir a algum funeral; ora me assustavam com o perigo de grandes
traições que se armavam contra nós, e como as desprezei? deixando-os e
ficando só.

E como levamos a narração de interdicto a esta altura devemos
acrescentar em poucas palavras o que mais occorreu. D. Affonso devia
estar cançado da lida e da jornada, o que mais tinha mortificado aquella
indomita vontade com o receio do perigo que ameaçava o estado; apenas se
confirmou no seu nobre intento com a previsão de santo remedio, cahiu
cançado. Tinha em Villa Real um filho semelhante aos que trazia em
outras terras, só este o acompanhava e seguia: com um afilhado que
trazia nos estudos para adiantar o pobre mais esperançoso, porque d'isto
tinha elrei cuidado e geral intendencia; e o encarregou de lhe trazer
alguma comida, e apenas comeu logo partiu para Lamego, e o acompanhou
aquelle mancebo, que veio a ser conde de muito e grande merecimento no
reino da Galliza.

Em Lamego tinha o nuncio repetido o enganoso interdicto, e partiu logo
para Vizeu, seguiu o rei aquella falsa e perfida colera de mal avisado
vaticinio até Vizeu, aonde viu a mesma parodia de Villa Real e a scena
de Lamego, e preparou-se de prevenir o nuncio em Coimbra: o que
conseguiu matando-se com trabalho, d'indomito e de invencivel lidador.

Em toda a parte o rei encontrava ciladas de traição e de morte que o
povo logo descobria; e como julgava estes odios vindos d'Hespanha,
matava immediatamente os traidores; e dizia: «Assim como o nosso rei
está interdicto, nós faremos justiça.»

Em Coimbra preveniu o nuncio, e convenceu-o facilmente da injustiça que
commettia pelos principios do direito, e até á vista dos poderes que
trazia de sua santidade; e reuniu um conselho de sabios, que accordou no
meio que se devia seguir; o nuncio pareceu accordar, mas trahiu a sua
missão; de madrugada affixou interdicto e fugiu. Então foi apanhado pelo
rei com tres matadores d'Hespanha, e d'estes não ficou um.



O ULTIMO CARRASCO


Luiz Negro é o nome, terrivelmente adjectivado, do ultimo carrasco
legal, que morreu no Limoeiro, ha poucos mezes.

Na provincia transmontana contam-se ainda, nos saraus aldeãos, as lendas
sinistras do facinoroso soldado de dragões de Chaves.

O _Ultimo carrasco_ é o bosquejo d'esse personagem, tão decahido da sua
antiga importancia, mas tão considerado ainda no funccionalismo, que lhe
concederam as honras, quando o desbalizaram do ordenado.

O snr. visconde de Ouguella possue, do proprio pulso de Luiz Negro, o
escorço dos factos que o constituiram homicida legal, com estipendio;
todavia, não podemos favorecer a memoria d'este executor da justiça,
asseverando que elle cumpriu os seus deveres; por quanto, do contexto da
obra vêr-se-ha que Luiz Negro, quando tinha de enforcar, pagava a quem o
substituisse.

No prologo do _Ultimo carrasco_, no recamado estylo com que todos os
seus escriptos se opulentam, o snr. visconde de Ouguella detem-se na
antiga idéa de abolição da pena de morte. Entre os mais energicos
apostolos d'essa humanissima missão, está Carlos Ramires Coutinho, desde
que passou dos bancos da universidade para a tribuna forense.

Os primeiros brados, que resoaram na imprensa, nos tribunaes e na
consciencia publica, sahiram da alma liberrimamente generosa d'aquelle
moço. Os annos volveram-se, os attritos do desengano desbotaram-lhe o
verniz de muitas e queridas illusões; mas o sentir profundamente
humanitario lá se lhe insurge, apesar dos dissabores, em pró das classes
cuja emancipação os preconceitos retardam. Nem as insignias titulares,
nem o egoismo tão irmanado com os bens da fortuna enervaram a alliança
que travou o visconde de Ouguella com as aspirações da democracia. Para
elle o titulo não é a inerte e absurda indifferença de fidalgo, nem da
superabundancia de meios surtiu a atrophia dos fidalgos sentimentos que
a pobreza, talvez, obrigasse a transigir com a fatalidade das
circumstancias.

Queremos dizer que dos escriptos do visconde de Ouguella reveem,
principalmente, os impulsos liberaes de um animo que não enfraquece nem
descança na lucta. No prefacio, que vai lêr-se, do _Ultimo carrasco_
resaltam um altissimo condoimento da ignorancia, que sob-põem o collo ao
jugo, e uma vehemente invectiva aos que, se podessem, apagariam a
immensa luz que lhes abriu caminho por onde se passaram dos tamboretes
de couro para os flaccidos sophás.



O ULTIMO CARRASCO


INTRODUCÇÃO

É dolorosa a tarefa.

São pungentes, tambem, as recordações.

Todavia a feição singular d'este nosso seculo exige imperiosamente estas
luctas, e obriga-nos a estas pugnas, as mais das vezes, inglorias.

Seja assim.

Tão rapidamente se photographam, hoje, as metamorphoses dos apostolos,
allucinam-se com tanta promptidão os espiritos, e desvairam-se as
consciencias em tão loucas vertigens, que temos nós--nós, os
exploradores obscuros, e audazes obreiros--de lidar e mourejar
constantemente, para affirmar, a cada hora, estes principios
sacrosantos, que consubstanciam, e determinam a religião do dever.

Ainda ha pouco, uma das mais esplendidas intelligencias da peninsula,
rica de todas as opulencias d'este nosso sólo do occidente, marcada com
o sello divino, precursora da boa nova, sentinella e espia vigilante das
mais puras crenças em que se basêa a democracia, esqueceu, nos delirios
que dá o mando e o poder, todas as inspirações, e toda a religião do
povo--religião das massas, que, elevando-o, o engrandeceram e
divinisaram--e, acommettido pelas vaidades pueris dos Nabuchos de todos
os tempos, exilou, deportou, e fusilou como se fôra elle--elle, o
tribuno das escolas e dos congressos--um duque d'Alva nas ferocidades
das conquistas do imperio de Carlos V, ou um deploravel Telles Jordão,
nascido para sicario de todas as reacções.

É triste, é lamentavel, é afflictivo, que o Demosthenes da peninsula
hispanica, berço na actualidade da familia mais heroica da raça latina,
deslembre e olvide, nas allucinações, que ensombram o fastigio do poder,
principios inconcussos e sagrados, e venha dar senão razão, pelo menos
pretexto a essas hordas barbaras de hunos, vandalos ou não sabemos se de
bandoleiros, que atravessam e devastam as Vascongadas, a Navarra, e a
Catalunha, missionando crenças, que seriam ridiculas e apenas abjectas,
n'este seculo, se um rasto de sangue, de fogo, e de metralha não
enchesse de terror e de luto as povoações por onde caminham e perpassam.

Não ha razão d'estado, não ha lei de salvação popular, não ha causa
nenhuma, por mais ardilosa, machiavelica ou especiosa que seja, que
consagre nunca, e em caso nenhum, uma offensa feita ás leis geraes por
que se rege a humanidade.

A vida humana é inviolavel sempre, e para todo o sempre.

Errem os homens--embora!--Succumbam momentaneamente as idéas grandiosas
de emancipação dos povos--resignemo-nos, e esperemos. Mas salvemos todos
esta arca santa, este sacrario das mais nobres aspirações da democracia.

Dêmos ao _sacer esto_ das doze taboas a unica e verdadeira interpretação
das sociedades modernas.

Não votemos o criminoso, qualquer que seja o seu delicto ou a penalidade
em que incorreu, aos deuses infernaes. Rehabilitando-o, votemol-o á
sociedade, ás verdadeiras crenças, á familia, e á patria.

A Vida do homem é sagrada.

Como são sagrados todos os direitos absolutos, como é sagrado e
mysterioso o fim do homem, como é sagrada, indescortinavel, desconhecida
e insondavel a causa da existencia humana, a razão da vida harmoniosa do
universo, o pensamento supremo, que presidiu a todos estes esplendores,
que se formulam e desenrolam nas magnificencias da creação.

E é o homem, na pequenez da mais miserrima e limitada existencia, na
ignorancia fatal das suas transformações futuras, nas trevas densissimas
do seu porvir, que diz a outro homem--a um irmão seu, ao Abel da sua
raça: «Eu mato-te, assassino-te, á face d'este sol esplendido, em
presença de toda a creação, com a consciencia segura e tranquilla de que
Deus me ouve, me vê, e me escuta, em nome d'umas leis que eu inventei, e
escrevi,--por que eu, homem, pelo facto de ser legislador e juiz
arvoro-me em carrasco, e rasgo e devasso consciencias, analyso e preso
intenções, forjo e imagino crenças, e condemno em nome de Deus vivo, e
da justiça absoluta de que me faço interprete, magistrado e saião!»

Crêmos firmemente que a misericordia divina alcança ainda estas
sinistras e ferozes aberrações dos verdugos e dos algozes.

Perdoai a todos, Senhor, e quando o perdão da vossa infinita bondade,
n'esses effluvios repassados de sentimento, como pai e creador, descer
sobre nós, que a vaidade pharisaica, o orgulho ignobil de todos os
sacerdocios, e de todas as theocracias, scepticismo inconsciente de
todas as ignorancias, e a blasphemia perdoavel, nascida do desespero, e
da miseria, achem, nas pregas do vosso manto d'esquecimento, lugar onde
se abriguem, pela omnipotencia do vosso poder, e pela misericordia
infinita dos vossos designios.

Que a religião do futuro seja um hymno de gloria, um hossana de perpetuo
louvor, onde só a myrrha e o incenso subam aos vossos altares--e que as
carnificinas humanas desde os homicidios nos _dolmens_ dos deicidas até
ás fogueiras do fanatismo catholico desappareçam e se extingam em
presença do verdadeiro culto, que o ente humilde, e inconsciente da sua
missão, na terra, presta á sublime causa, ao Ente que regula e dirige o
universo.

                                                     VISCONDE DE OUGUELLA.



CURIOSIDADES ARTISTICAS


No principio d'este seculo, as melhores pinturas ornamentavam as salas
dos marquezes de Borba, de Angeja, de Abrantes, de Tancos, de Lavradio,
de Bellas, e do visconde da Bahia que primava em originaes de grandes
mestres. Manoel Joaquim Collaço e um padre João Chrysostomo, ambos de
Lisboa, e ha muitos annos fallecidos, colleccionaram excellentes
quadros. O possuidor das mais ricas estampas era, por esse tempo, um
José Joaquim de Castro, vulgarmente chamado o _Agua de Inglaterra_, não
sabemos se em razão de a preparar, se por descender do hebreu Jacob de
Castro Sarmento que a inventou.

Fr. José Mayne, confessor de D. Pedro III, legou á academia das
sciencias o seu museu, e não sei se a sua galeria dos melhores pintores
coevos, em que sobresahiam os quadros de Joaquim Manoel da Rocha,
habilissimo na pintura da natureza morta. Tambem fr. Manoel do Cenaculo,
arcebispo de Evora, colleccionou soberbas pinturas, que tiveram variados
e obscuros destinos.

No convento de Bemfica houve um quadro original de Wandyck: era o da
Crucifixão. Presume-se que pouco mais possue Portugal d'aquelle grande
artista. Na sala do marquez de Alegrete (Penalva), havia um quadro de
Raphael. Existia outro na igreja do seminario de Brancannes. Fallamos
sempre no preterito, porque duvidamos que taes preciosidades se
conservem, assalteadas, a um tempo, pelo desamor das artes e pelo amor
ao dinheiro.

No templo de Belem ha tres quadros de Manoel Campello. O que representa
Jesus Christo vergado sob a cruz está na escada principal do extincto
convento. Os outros são o da Coroação dos espinhos e o da Resurreição.

Na tribuna da igreja de S. Roque ha o painel que representa a vinda do
Espirito Santo: é de Gaspar Dias. Em 1740, o celebrado Pedro Guaranti
arrebatou-se na contemplação d'aquella obra prima. É tambem do insigne
pintor o Senhor do Horto que existe em Belem, e o de S. Roque, na
capella da invocação do mesmo santo. São obras de primeira execução.

No refeitorio de Belem, o quadro do nascimento de Jesus é do celebre
Simão Rodrigues. De fr. Marcos da Cruz, coevo de D. João III, havia na
igreja do Carmo, de Lisboa, o painel de Santa Maria Magdalena de Paris.
Os do arco cruzeiro de Jesus, já damnificados no fim do seculo passado,
tambem eram d'elle ou se lhe attribuiam. (Vej. _Mem. hist. do ministerio
do pulpito_, por fr. Manoel do Cenaculo, pag. 135).

De quadros de Vieira Lusitano temos antiga noticia de existirem o de
Santo Agostinho na portaria do convento da Graça, o de S. Francisco na
capella-mór da igreja, o de S. Pedro e S. Paulo em casa dos condes de
Povolide, e alguns na igreja dos Paulistas.

Na casa de Tancos (Atalaias) estiveram oito paineis de Jacob Bassano,
pelos quaes o principe Eugenio (1663-1736) mandou offerecer duzentos mil
cruzados, que foram rejeitados. Entre aquelles inestimaveis quadros
havia um de Leonardo de Vinci, alguns de Corregio, de Miguel Angelo, de
Salviati, e de Antonio Tempesta. Um primoroso Luiz XIV a cavallo era do
famigerado Lebrun.



CANTADA E CARPIDA


A marqueza de Tavora, D. Leonor, justiçada no patibulo em 1759, foi a
mais formosa fidalga das côrtes de D. João V e D. José I.

Morreu aos cincoenta e nove annos. Subiu intrepida ao cadafalso. Parecia
inflexivel ao espectaculo do cutelo. Nem uma lagrima, nem um gemido
supplicante! Mas o meirinho das cadeias e tres algozes tinham ordem de
lhe arrancarem o pranto em um mais doloroso supplicio, que não constava
da sentença.

Começaram, pois, mostrando-lhe, um a um, os instrumentos das execuções,
que se haviam de fazer no marido, nos filhos e parentes: as aspas, em
que deviam ser amarrados, as macetas de ferro com que haviam de ser-lhes
quebrados os ossos dos braços e pernas, as cordas destinadas ao garrote,
e a olandilha com que os desmembrados cadaveres seriam tapados até se
accenderem as fogueiras.

A marqueza então chorou.

Quando o algoz lhe desvelou o collo para a degolar, D. Leonor, com
gentil pejo, murmurou: «Não me descomponhas.»

Testemunhas d'este transe deixaram á escripta e á tradição oral que a
marqueza era ainda magestosa no garbo, na altivez, nas reliquias
admiraveis da belleza, raro permanecente em annos tão adiantados.

Quando tinha cincoenta, acompanhou á India o vice-rei seu marido.

A familia real foi despedil-os até á praia, alli mesmo áquella praia de
Belem, onde, nove annos depois, se passou a horrenda carnagem.

Foi em uma graciosa manhã da primavera de 1750, aos 28 de março.

D'entre os milhares de concorrentes á praia, por onde a heroica marqueza
demandava o bergantim da sua nau, sahiu um poeta dos melhores entre os
pessimos d'aquelle tempo, ajoelhou diante da vice-rainha, e
depositou-lhe na mão, que o levantava da postura humilde, um rolo de
papel atado por laçaria de seda variegada.

A marqueza desenrolou, leu as primeiras linhas, sorriu-se amoravelmente,
e disse:

--Não lhe perdôo a lisonja. Esqueceu-se que tenho cincoenta annos?

--A natureza é que se esqueceu de v. exc.ª depois que lhe aperfeiçoou os
vinte e cinco annos--respondeu o galã.

A poesia constava d'isto:

Á ILL.ma E EXC.ma SNR.ª MARQUEZA DE TAVORA NA HEROICA RESOLUÇÃO DE
ACOMPANHAR SEU QUERIDO ESPOSO, O SNR. MARQUEZ DE TAVORA AOS ESTADOS DA
INDIA.

    Vai, ó formosa heroina!
    do mar essas ondas sulca;
    que, se és Venus na belleza,
    Venus nasceu das espumas.

    Vai, divindade, não temas
    da salgada agua as furias,
    que até impera nos mares
    a immortal formosura.

    Vai ser de Thetis inveja,
    ser de Neptuno ventura,
    das sereias lindo encanto,
    das nymphas formosa injuria.

    Os tritões, e as nereidas
    sendo alegres testemunhas,
    a nau carroça, tu, deusa,
    passeia as ondas ceruleas.

    Vai, que é pequeno hemispherio
    um só mundo ás luzes tuas,
    e quem em um só não cabe
    justamente o outro busca.

    São do sol os diamantes
    producção brilhante, e sua;
    se produz lá um sol tantos,
    tres que farão? Conjunctura.

    Vai examinar o Oriente
    d'onde sahe a luz mais pura;
    verás do teu nascimento
    pelo exemplar copia justa.

    Vai, que d'esta vez, senhora,
    ficará, por tua industria,
    a valentia formosa,
    a formosura robusta.

    Vai, vai só com teu esposo,
    tudo o mais creio se escusa;
    onde basta a sua fama,
    sobeja a sua figura.

    Sem violencia no estrago
    terão teus raios fortuna;
    se ao sol barbaros adoram,
    logo que chegas, triumphas.

    Interesse, e não fineza
    tua heroica acção inculca;
    com este excesso que obras
    immortal gloria procuras.

    Se anima entre os dous corpos
    uma só alma, e não duas,
    pois a não partes na ausencia,
    melhor a vida asseguras.

    Á dôr da saudade foges,
    tens razão, mostras desculpa
    por um estrago suave
    trocar uma morte dura.

    Agua, e fogo são contrarios,
    teu amor naturaes muda;
    pois faz em novo milagre
    que o incendio ao mar se una.

    Vai! Conheça o mundo todo,
    mais alto poder divulga,
    que o sexo que em ti domina,
    o sangue que em ti circula.

      *      *      *      *      *

As esperanças bem fundadas na sensatez e bravura do marquez de Tavora
não foram menos cantadas que a gentileza da esposa. O regulo Canajá,
infesto devastador de Diu, sentiu-lhe o peso do braço vencedor. Arderam
as esquadras do inimigo, espavoridas ainda do arrazamento da fortaleza
de Neudabel. O Bounsuló e o Marata fugiram-lhe a furia, levantando o
assedio de Neutim. O rei de Sunda perdeu os seus fortes, e as terras de
Pondá e Zambaulim. Em quatro annos de vice-reinado, o marquez de Tavora
ceifára louros que lhe promettiam sombra e gloriosa resalva das
contrariedades da fortuna.

E, apenas devolvidos cinco annos, depois que desembarcára, n'aquella
mesma praia de Belem, que espectaculo! Um algoz lhe mostra os corpos
despedaçados da esposa, dos filhos e do genro. Depois explica-lhe por
miudo a acção dos instrumentos que o vão atormentar. E depois...

Repugnam os sabidos pormenores d'aquelle supplicio.

A descripção previa, feita aos padecentes, diz o snr. Soriano, na
_Historia do reinado d'el-rei D. José I_, que deve com toda a razão ser
attribuida ao cruel e ferocissimo coração de Sebastião José de Carvalho.

Ora, o snr. John Smith, author das _Memorias do marquez de Pombal_, diz
que todas as ferocidades d'aquelle supplicio, constantes e não
constantes da sentença, promanaram directamente do coração de D. José I.

Lá se avenham os dous algozes na presença do Supremo Juiz.



BIBLIOGRAPHIA

(Henry Murger--Pinheiro Chagas)


HENRY MURGER. _Scenas da vida de Bohemia_, traducção de GUSTAVO A.
BARBOSA. _Livraria Internacional_. Porto. 1874, 8.º--424 pag.--É um
romance urdido com os brilhantes fios da mais extravagante, verdadeira e
esplendida vida de uns rapazes francezes que, ha quarenta annos, se
chamavam os _bohemios_, e depois attingiram o galarim das artes e
letras, e encheram o mundo com o seu nome. D'esses, ainda ha poucos
annos, sobreviviam cinco ou seis que voltavam ao passado a vista do
coração--o olhar lagrimoso da saudade--em busca dos alegres convivas,
ceifados pela morte, quando as messes da gloria, o ouro e a consideração
não bastavam a esquecel-os da ridente pobreza da sua mocidade.
Adivinham-se, no romance, os nomes mal disfarçados nos pseudonymos. Os
grandes pintores, os criticos intrepidos, os dramaturgos laureados, os
arrebatados poetas, os historiadores austeros, todos ahi entreluzem de
entre as risonhas ficções, pintadas pelo scintillante estylo de Henry
Murger.

Quanto á versão portugueza, é uma das mais aprimoradas que ainda
vimos--um verdadeiro trabalho de intelligente e consciencioso esmero. O
traductor arcou pertinazmente com as maximas difficuldades do original.
Nenhum neologismo lhe afrouxou o alento na transposição acertada com que
o aproximou da phrase portugueza. Por maneira que, a espaços, não se
estremam bem as indoles das duas linguas, como se, entre nós, corressem
analogas subtilezas no dizer, e as mesmas analogias do pensamento.
Assim, comprehende-se que as traducções sejam thesouros literariamente
portuguezes; e ao esclarecido traductor cabe distincto lugar entre os
sabedores das duas linguas. E, quando de par com o estudo se allia o
deleite do enredo, o livro, que proporciona dous prazeres tão pouco
vulgares, é um livro excellente.

      *      *      *      *      *

_O Terremoto de Lisboa_, romance historico, por M. PINHEIRO CHAGAS.
Lisboa. _Livraria editora_ de Mattos Moreira & C.ª, 1874.--Haveria razão
para não exigir livros primorosos de escriptor tão fecundo e variado em
differentes ramos das letras; mas, no author d'este livro, manifesta-se
a rara excepção que constitue o engenho distincto. A fertilidade não
lesa o detido cuidado no esmeril da linguagem. Os raptos da imaginação
não descuram a cadencia da linguagem, o torneio da phrase, o decoro e
pompa d'este nosso formoso idioma que só desserve aos que o exercitam
com insufficiente estudo. N'este romance do _Terremoto de Lisboa_,
pautou o snr. Pinheiro Chagas com rigoroso lapis os delineamentos das
figuras historicas. Diogo de Mendonça e Sebastião José de Carvalho
avultam aqui na tela romantica fidelissimos aos originaes da historia.
Todavia, se, por vezes, o louvor tece corôas ao valido de D. José I com
demasiado colorido de flôres salpicadas do sangue de illustres e
innocentes victimas, isso é um modo de ver pela lente da politica, em
cuja apreciação eu não entro, nem me arrogo o jus de contestar ao
excellente romancista a veridicidade dos seus conceitos. As notaveis
bellezas d'este romance assentam na habilidade da contextura, no tino
com que as peripecias convergem para o desenlace justificado pelo
titulo. Pelo que é da excellencia secundaria em uma novella, o estylo,
isso é já de sobra apreciado nos muitos, posto que rapidos, trabalhos de
Pinheiro Chagas. A florescencia é sobria, os atavios não estofam a
penuria da idéa, os ornatos frisam rigorosamente com a conveniencia dos
lances. Denominamos «secundaria» a excellencia do estylo em romances,
porque sabemos, de propria experiencia, que os livros d'esta especie,
mais lapidados, e, no dizer antigo, mais penteados na phrase, são, por
via de regra, os menormente bem-quistos da maioria de leitores que
desadoram palavras que lhes não sejam da maior familiaridade. Tem,
todavia, o snr. Pinheiro Chagas o raro condão de escrever para todos, e
a todos, lidos e não lidos, deve o abalizado escriptor a sua grande
popularidade.

FIM DO 10.º NUMERO





*** End of this LibraryBlog Digital Book "Noites de insomnia, offerecidas a quem não póde dormir. Nº 10 (de 12)" ***

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