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Title: Noites de insomnia, offerecidas a quem não póde dormir. Nº7 (de 12) Author: Castelo Branco, Camilo Ferreira Botelho, 1825-1890 Language: Portuguese As this book started as an ASCII text book there are no pictures available. *** Start of this LibraryBlog Digital Book "Noites de insomnia, offerecidas a quem não póde dormir. Nº7 (de 12)" *** of public domain material from Google Book Search) BIBLIOTHECA DE ALGIBEIRA NOITES DE INSOMNIA OFFERECIDAS A QUEM NÃO PÓDE DORMIR POR Camillo Castello Branco PUBLICAÇÃO MENSAL N.º 7--JULHO LIVRARIA INTERNACIONAL DE ERNESTO CHARDRON _96, Largo dos Clerigos, 98_ PORTO EUGENIO CHARDRON _4, Largo de S. Francisco, 4_ BRAGA 1874 PORTO TYPOGRAPHIA DE ANTONIO JOSÉ DA SILVA TEIXEIRA 62--Rua da Cancella Velha--62 1874 BIBLIOTHECA DE ALGIBEIRA NOITES DE INSOMNIA SUMMARIO Os salões, pelo exc.mo snr. visconde de Ouguella--Uma viscondessa que não era--Bibliographia--Para a historia de D. João 4.º--Inedito de Manoel Severim de Faria--O Manoelinho poeta--Um baile dado a Junot, em Lisboa--Que saudade!--Carta a respeito... d'aquella coisa--Nil admirati. OS SALÕES CAPITULO V TENEBRAE ERANT Portugal ora olhado com desdem o sobrecenho pelas mais nações da Europa, como tendo, desde o ápice de sua grandeza e poderio, baixado rapidamente aos termos derradeiros da sua degradação. Quando lord Tyrawley foi mandado pelo gabinete inglez a Portugal, pouco antes da guerra de 1762, a descripção, que fizera d'este reino, desenhava-o incapaz de nenhuma resistencia, e pouco distante da barbarie. LATINO COELHO. Nous sommes au seuil d'un monde nouveau. L. JACOLLIOT. Dans l'histoire humaine, parfois c'est un homme qui est le chercheur, parfois c'est une nation. Quand c'est une nation, le travail, au lieu de durer des heures, dure des siècles, et il attaque l'obstacle éternel par le coup de pioche continu. Cette sape des profondeurs, c'est le fait vital et permanent de l'humanité. Les chercheurs, hommes et peuples, y descendent, y plongent, s'y enfoncent, parfois y disparaissent. Une lueur les attire. Il y a un engloutissement redoutable au fond duquel on aperçoit cette nudité divine, la Vérité. VICTOR HUGO. Foi em Alcacer-Quivir que rolou a corôa de Portugal pelos areaes d'Africa. Deus sabe o que havia de grandioso, que sonhos esplendidos de futuro iam na mente de Sebastião--_o Desejado!_ Os formosos palmares da India, a opulencia fascinante da Asia, as sumptuosas magnificencias do berço da humanidade, as lendas fabulosas do Preste João, os riquissimos e legendarios templos de Brahma, e dos deuses mysteriosos da cosmogonia secular d'aquella raça, e todos os sonhos e sedenta avidez d'uma nação pobre, habituada a lutas heroicas, e obscuras com os musulmanos d'Africa--fascinaram, e enlouqueceram, por tal fórma, os guerreiros e fronteiros de Ceuta, Tanger, e Arzila, que, aos primeiros descobrimentos dos navegadores do seculo XV, os portuguezes invadiram o Oriente, abandonando aquella escóla de valor e de heroismo, onde expirou o infante santo, e onde a cruz do Redemptor era o incentivo e estimulo das mais nobres façanhas, e dos feitos mais esforçados. Quiz D. Sebastião, com a mystica lenda do Golgotha, salvar Portugal do ignobil desdouro, do scepticismo miseravel, da louca ambição de riquezas, e da cobardia e enervação, que ia corroendo e gangrenando os nobres na sordida mercancia das especiarias da Asia? Sabe-o Deus. Sabel-o-hia a historia--se os aios, e confessores de principes e de reis, em vez de serem bonzos, fakires e derviches d'um credo intolerante e sangrento, e que tem no seu proprio symbolo o germen da sua total aniquilação, fossem chronistas severos e verdadeiros da corrente das idéas, e das leis immutaveis do progresso, na marcha logica e fatal do desenvolvimento da humanidade. Havia, de certo, um profundo pensamento politico detraz d'este fervor religioso, que arrastava a christandade para lutas e pelejas com agarenos. Uma geração enervada e corrupta, uma nobreza effeminada e devassa deixou abater o pendão das quinas, em terras de berberes, quando as intrigas, a sordida cobiça, e traições de Castella almejavam por esta derrota d'um principe christão. Os Philippes de Hespanha iam projectar a sua sombra sinistra n'este estacionamento inexplicavel das gerações europêas. A historia um dia dirá--a historia escripta pelo povo--se foi sómente o fanatismo religioso que arrastou o moço rei aos campos de Alcácer-Quivir, ou se o herdeiro do sceptro de D. João I quiz arrancar ás devassidões e torpezas da India uma nação, que cobrára em Africa pundonorosos alentos, esforços guerreiros, e energicos brios com que escrevêra a mais esplendida e brilhante pagina dos feitos memoraveis nos seculos XV e XVI. Não foi a purpura real que rasgaram os leões africanos, não foi o throno do Occidente que cahiu despedaçado e partido nas vastas planuras da Lybia. O sôpro ardente das tempestades do deserto varreu mais do que um throno, abrazou mais do que uma purpura; abateu, humilhou, e arrancou a seiva a um povo cheio de pundonor, e coroado de gloria, arremessando-o de abatimento em abatimento, de humilhação em humilhação, de desventura em desventura até á invasão franceza, até á fuga do rei portuguez, até á mais ignobil vassallagem prestada á soberba Albion, pela nação mais cavalleirosa, emprehendedora e aguerrida dos extremos da Europa. Dizia a Polonia, quando se debatia nas vascas da mais dolorosa agonia--a agonia d'um povo que vai morrer: «Deus está muito alto, e a França muito longe!» E nós?--Tratados como os rajahs do Indostão, como os nababos, e como os parias, tambem, da India ingleza, dobravamo'-nos, submissos e obedientes, como colonia britannica, á fé punica, á avidez implacavel e inexoravel politica da nossa fiel alliada. A Veneza dos inquisidores e dos doges immergira-se nas lagoas do Adriatico, quando nós invadimos o mar Vermelho, para deixar erguer este colosso da Grã-Bretanha, a quem Cesar appellidára barbara nos seus formosos Commentarios. O leão de S. Marcos escondeu as garras, ao tremularem as nossas quinas no berço da nossa raça, na vastidão do esplendido Oriente, para mais tarde os ferozes leopardos bretões serem a taboleta do commercio da Asia. Na immensa grandeza do nosso heroismo, nós, cavalheirosos, desinteressados, e imprudentes avassallamos os reis de Calecut e Cochim, escreviamos _Os Lusiadas_, empenhavamos as barbas de D. João de Castro, deixavamos agonisar, cheio de affrontas, Affonso d'Albuquerque, na barra de Gôa, algemavamos Duarte Pacheco, enchiamos de odio o nobre coração de Fernando de Magalhães, e recusavamos, com desprezo e altivez, a nobilissima dedicação de Christovão Colombo, a quem Americo Vespucio, mais tarde, roubou o nome e parte da gloria. De affronta em affronta, de vilipendio em vilipendio, de ingratidão em ingratidão degeneramos tanto, que, em 1817, viviamos como parias e ilotas da soberba Albion, sob o mando e dominio do marechal-general Beresford. Trasbordava o calix das humilhações. Portugal era um paiz conquistado. Pouco importava que fossem as aguias do imperio ou os leopardos britannicos que subjugassem este solo. Haviamos tocado os extremos da ultima abjecção. As industrias fabris jaziam completamente arruinadas, a agricultura estava reduzida á maior miseria, o fanatismo religioso campeava sobranceiro por sobre este ignorantissimo povo, as arcas das rendas publicas e particulares iam caminho do Brazil, o paiz achava-se recortado em bens vinculados, entregue aos morgados, aos possuidores de bens da corôa e ordens, e aos opulentos mosteiros de todas as religiões, que escravisavam o solo; o governo fomentava as intrigas politicas, enganava a corôa, escondida n'outro hemispherio; e o exercito, governado e dominado por officiaes inglezes ás ordens da Grã-Bretanha, curvava-se aqui ao mando e poderio do muito alto e poderoso lord Beresford. As citações, que vou dar em seguida, serão mais judiciosas do que todos os meus commentarios. Diz Gervinus, na sua _Historia do seculo dezenove_: «Esta ruina da economia politica de Portugal caminhava parallela com a sua decadencia moral e intellectual.» Era assim. O governo para sustentar uma dignidade ephemera, um simulacro de authoridade, que não tinha, carecia d'um exemplo efficaz e energico, embora o sangue das victimas espadanasse a jorros encharcando o solo da patria. Inventou a conspiração de 1817. Presentiu o desgosto profundo que ia no povo, apoiou-se nos maus instinctos, e na perfida politica do regulo da Grã-Bretanha, revolveu, com a sua abjecta espionagem, as ultimas camadas da plebe, escutou e deu vida a todas as invejas, a todos os odios, e a todas as ruins paixões, que fermentam sempre no coração de todos os intrigantes, e de todos estes reptis immundos e repugnantes, que se criam e desenvolvem n'este torrão luxuriante e vivificador. Aqui, como nos juncaes e densas selvas dos tropicos, existem, com face humana, o tigre real de Bengala, a vibora dos pantanos do Indostão, a hyena das margens do Ganges, a mosca venenosa dos tremedaes e terrenos paludosos da Zambezia, e os cascaveis hediondos das florestas da America, ao lado das virgens mais puras das creações do budhismo. Estas regiões, que vivem em maior contacto com o nosso astro supremo, mais aquecidas pelo sol, não admittem, nem consentem transições. Cortam bruscamente os crepusculos--não teem longos esvaimentos de luz--não desenham penumbras. Quando o sol se immerge no oceano adensam-se rapidamente as trevas. Onde não ha a nobreza do sentimento, o estimulo das mais nobres aspirações, e o exemplo tocante da mais completa abnegação--é porque as sombras do cynismo se espalharam sobre a intelligencia do homem, é porque a ignorancia e os maus instinctos sepultaram, e apagaram a luz viva, o facho ardente, a idéa primordial, que vinha irrompendo na alma humana; e a consciencia do individuo, o senso moral confundem-se nas trevas, que escondem para todo o sempre estes arreboes divinos do ente creado. Assim foi, e assim será sempre. O tenente-general Gomes Freire de Andrade era a synthese d'estes soffrimentos, que minavam todos os membros corroidos da nação. Era o alvo de todas as invejas. Era a voz da patria, n'este estertor em que se debatia, e agonisava um povo inteiro. Por isso foi o martyr. Parecia, talvez, que, ao torturarem aquella alma nobilissima e generosa, Portugal ficaria sujeito e submisso como o ultimo ilota dos banquetes de Sparta. Diz o author da _Memoria sobre a conspiração de 1817_ (livro que não foi estranho ás solicitudes de Beresford): «O tenente-general, Gomes Freire de Andrade, ha sido preso pelo desembargador ajudante do intendente, João Gaudencio, acompanhado de um forte destacamento da guarda da policia, commandado pelo tenente-coronel da mesma, Joaquim José Maria de Sousa Tavares. Depois de cercarem a casa do tenente-general (que morava no alto da calçada do Salitre) arrombaram a porta da rua, e foram arrombando as de mais até chegarem ao gabinete onde elle se achava; assim que foi arrombada esta, os soldados entraram no quarto, apontando as armas contra o general, o qual não fez a menor resistencia, nem se mostrou assustado, e por detraz dos soldados gritou o dito tenente-coronel:--«V. exc.ª está preso»--ao que Gomes Freire respondeu: «Assim se entra com tanta insolencia e desafôro em casa de um tenente-general?--e vossemecê não me póde prender, porque não tem a minha patente.» Então appareceu o desembargador, e mostrando-lhe a ordem, o general se deu á prisão sem nada dizer ao desembargador; mas voltando-se para o tenente-coronel, chamou-lhe um fraco, e insolente, ajuntando, que o seu comportamento não era nem de um official, nem de um cavalheiro, mas sim, de um esbirro, aguazil ou vil agarrador.» O tenente-general foi conduzido logo para a torre de S. Julião, acompanhado pela mesma escolta de cavallaria da policia, que o fôra prender. As outras victimas d'esta perseguição foram conduzidas uma parte para o Limoeiro, e a outra para o Castello. Começou immediatamente o processo, diz o author da _Memoria_, «com aquellas tenebrosas formalidades do costume.» «Parece, que os governadores do reino, acrescenta o mesmo apologista de Beresford, projectaram implicar, na conspiração, todos os maçons, para com este pretexto se desfazerem d'algumas pessoas a quem não eram affeiçoados.» Esta infernal lembrança era uma inspiração do secretario D. Miguel Pereira Forjaz. Vejamos os maçons. A paginas quarenta e uma dos _Annaes e codigo dos pedreiros livres_, lê-se o seguinte: «1814 «N'esta época foi iniciado _José d'Andrade Corvo_, sendo capitão d'infanteria n.º 10, ás ordens do conde de Rezende, na loja _Virtude_ ao oriente de Lisboa. Como então trabalhasse sómente a dita loja, e a _Regeneração_, ás quaes se tinham reunido poucos membros, receosos de que o governo renovasse as perseguições de 1809 e 1810, e houvesse falta de irmãos para os differentes cargos da loja, conferiram-se a José d'Andrade os graus de companheiro e mestre, e pouco depois elegeram-no secretario. Incansavel nos trabalhos da maçonaria, Corvo recrutou muitas pessoas, e encarregou-se de propôr á viscondessa de Juromenha, D. Maria da Luz, o ser iniciada na maçonaria, o que se fez no fim do mesmo anno, na quinta que antes era do marquez d'Angeja, no Lumiar, em sessão magna, a que assistiram alguns personagens respeitaveis, e que n'aquelle tempo occupavam postos e empregos eminentes na capital. Esta iniciação teve por fim o saber-se pela viscondessa quaes os sentimentos do marechal Beresford a respeito da liberdade; mas por fim ella, Corvo, e João de Sá atraiçoaram todos os maçons, e só serviram Beresford. O refalsado Corvo continuando a fazer muitos e valiosos serviços á maçonaria, e a distinguir-se mesmo entre os mais diligentes, obteve alguns dos graus superiores, e na installação da loja _Philanthropia_ ao oriente de Santarem, foi elle um dos tres deputados mandados pela grande loja para a installação. Esta loja nomeou-o depois seu representante, e em consequencia d'isso lhe deram o grau de Rosa-Cruz. Entramos em todas estas particularidades porque este homem de execranda memoria, pagando tantos favores com a mais negra ingratidão, e perfidia, atraiçoou a ordem, e denunciou o infeliz grão-mestre, Gomes Freire de Andrade, para o levar ao patibulo.» Digamos quem era Corvo. Depois veremos Gomes Freire. Continua o author dos _Annaes_: «1824 «Em 30 d'abril o infante D. Miguel prende el-rei D. João VI, no paço da Bemposta, e assoalha _que os pedreiros livres o queriam matar_. «Appareceram tambem duas cartas, que por serem pouco conhecidas, as vamos transcrever: «_Carta de José d'Andrade Corvo a seu irmão em Torres-Novas_ «_Meu Francisco._--Saberás que o bravo infante acaba de salvar a patria, descobrindo uma facção que tentava assassinar el-rei e toda a familia real: toda a tropa d'esta capital esteve hontem em armas, e o _dia 30 d'abril será um dia memoravel nos fastos da historia portugueza_. Já estão presos os malvados, e entre elles os condes de _Villa-Flôr_, _Paraty_, e da _Taipa_, etc. «Eu appareci immediatamente a cavallo n'aquelle dia, e andei sempre ao lado do infante, o mais bravo homem que tenho conhecido, e _portei-me como Corvo_; porém, meu Francisco, qual foi o meu desgosto por tu aqui não estares? Quando vi entrar o teu regimento, e te não vi, _correram-me as lagrimas_. Vai logo ter com o juiz de fóra, e faz com que ahi se acclame el-rei, e que se ponham luminarias, e se cante _Te-Deum_. Paiva Raposo foi quem descobriu tudo ao infante, e agora _levará o diabo_ os pedreiros livres, e triumpharão os homens de bem.--Teu mano, etc.» Parece que o judas de Gomes Freire sentia lagrimas nas faces. É para crer que o Rosa-Cruz da maçonaria desejava que o diabo levasse os pedreiros livres. Aqui fica José d'Andrade Corvo. A segunda carta que apontam os _Annaes_, diz assim: «_Carta da rainha a el-rei, estando em Salvaterra._ «_Meu amor._--Agora me dizem, que os nossos inimigos teem espalhado em Lisboa, que eu pretendia fazer esta manhã uma revolução para ficar regente com o nosso filho Miguel, e mandar-te para Villa-Viçosa: isto é uma aleivosia muito grande, e n'ella por certo entrará o dr. Abrantes; e por isso te peço ordenes ao intendente, que proceda rigorosamente a este respeito, pois tu bem sabes que eu não desejo senão viver socegada, e que tu sejas feliz. D'esta tua--_C. J._» «Esta carta escripta de Queluz--continua o author dos _Annaes_--e sem data, confirmou mais el-rei na existencia da conspiração contra a sua pessoa, por se recordar de que outra identica lhe tinha escripto a rainha para o Alfeite em 1807, por occasião da conspiração tramada em Mafra.» O livro a que me refiro tem a seguinte nota: «Estas cartas acham-se hoje impressas na _Policia secreta_, publicada pelo intendente da mesma.» Voltemos a Gomes Freire. Tinha nascido em Vienna d'Austria em 27 de janeiro de 1727, filho de Ambrosio Freire d'Andrade e Castro, embaixador de Portugal, e da condessa de Schafgoch. Descendia, por tanto, d'uma familia entroncada na antiquissima casa dos condes da Trava, e na dos Pereiras, Forjazes, e Bobadellas, e entre os seus antepassados contava Jacintho Freire d'Andrade, o panegyrista de D. João de Castro. Reputado o melhor general de infanteria portugueza, servira na Russia com um valor inexcedivel, combatêra no Roussillon em honra da patria, e depois de ter deixado o seu nome ligado ás glorias do imperio voltára para Portugal em seguida á paz do continente. Os odios e invejas accendiam-se, e abrazavam em torno d'esta illustre victima. Um dia o povo ha de narrar este prologo afflictivo da liberdade de Portugal. Na madrugada de 25 de maio de 1817 entrou preso, na torre de S. Julião, o heroico martyr portuguez. Posto em um calabouço, sem meios de subsistencia alli, sem providencias tomadas para a sua alimentação, sem uma manta que o cobrisse ou lhe servisse de leito, arremessado para uma masmorra lageada e humida viveu assim cinco mezes--nos primeiros dias da caridade ingleza, mais tarde dos meios que pôde obter pelos seus haveres. A generosidade do governo viera, no fim de seis dias d'encerramento, em seu soccorro, arbitrando-lhe a sumptuosa somma de doze vintens diarios, no caso que elle não possuisse dinheiro ou qualquer outro meio para se sustentar á sua custa. Desamparado, na carencia absoluta de todos os confortos, coberto de pustulas ou lepra hedionda, que lhe alastrava pelas faces, abandonado de tudo e de todos, offendido, injuriado, e calumniado até pelo proprio clero, é para crêr, e affirmam-no alguns, que perdera a razão. Continuemos as citações: «Um desembargador e um escrivão foram repetidas vezes interrogar o réo na sua masmorra sem outras testemunhas, senão os tormentos, e angustias que o cercavam. Quem tolhia, que entre o desembargador, e o escrivão houvesse intelligencia, para fazer constar o que o preso nunca disse, nem imaginou dizer? Quem nos ha de garantir, que isto não aconteceu assim? O seu amor pela justiça? A sua humanidade, e compaixão?... Mas sabem todos que desde o momento da prisão até ao momento da morte, os _officiaes_, e _ministros_ de justiça, que tiveram contacto com elle deram publicamente bastantes provas de serem seus algozes. João Gaudencio disse publicamente a alguem, que lhe representou a _inhumanidade_, com que era tratado Gomes Freire: «Nós não conhecemos essa palavra.» Acresce mais a difficuldade, que todos reconheciam em Gomes Freire de se explicar bem em portuguez; este inconveniente, unido ás dôres que soffria o desgraçado general, procedidas de uma inflammação do rosto, por lhe não quererem permittir que se barbeasse (_o que o tinha continuadamente em um estado de delirio_), é que deu causa a que o marechal Beresford recommendasse ao marechal Archiball Campbell, que vigiasse sobre o estado das suas faculdades mentaes; dava toda a facilidade ao desembargador, que lhe fez as perguntas de o surprehender á sua vontade, fazendo-lhe dizer o que elle desembargador quizesse, sem que o réo d'isso se precatasse.» Basta. Turva-se a intelligencia perante tantos horrores. Apressemos o desenlace d'este medonho drama. Digamos rapidamente como terminou este supplicio hediondo. A execução de onze desgraçados fez-se no dia 18 de outubro no campo de Santa Anna em presença da plebe fanatisada e escrava. O tenente-general Gomes Freire foi enforcado sobre a esplanada da torre de S. Julião ás nove horas da manhã do mesmo dia. Levaram-no d'alva vestida, e descalço. Os odios dos seus algozes careciam d'estas ultimas affrontas. Ainda a 16 d'outubro escrevia elle a seu primo, Antonio de Sousa Falcão: «No caso que se não attenda aos embargos, então, peço-te, que o letrado faça um requerimento em meu nome, para que em vez de me enforcarem, me fuzilem. Quero a morte do soldado. Peço-te que ponhas n'isto toda a efficacia possivel, que é a ultima vontade, que te pede um amigo verdadeiro com o ultimo adeus.--_Gomes Freire._» Baldado pedido--derradeira illusão d'aquelle grande espirito! Quizeram que a morte fosse affrontosa na forca, e assim terminou a existencia um dos mais distinctos generaes portuguezes. O illustre soldado subiu ao patibulo sereno e impassivel. Proferiu algumas palavras. É para crêr que foram as ultimas aspirações d'aquella nobilissima alma, pela independencia e liberdade da patria. Mas os padres que o acompanhavam romperam em vozeria tão escandalosa, e descomposta que não se poderam recolher as intenções solemnes e derradeiras do martyr. Descido da forca, foi o cadaver queimado em presença d'alguns dos seus verdugos, e as cinzas lançadas ao mar na conformidade da sentença. Todos os actores da cruenta tragedia receberam o premio do serviço. Has a patria soube guardar-lhes os nomes execrandos para os transmittir immorredouros ás gerações futuras. Quizera e devêra, talvez, deixar, aqui, impressos os nomes dos ignobeis judas d'este torpissimo martyrio. Mas a penna recusa-se-me a este sacrificio. Não é bom tocar em nomes de carrascos. Ennodôa e macúla remexer os tremedaes do cynismo que se transmitte e contagía como o virus das febres paludosas e epidemicas do Mexico e do Ganges. A urna cineraria d'este grande vulto foi o oceano. Aceitemos ainda o oceano, como o vasto salão da nossa fiel alliada--a Inglaterra. VISCONDE D'OUGUELLA. UMA VISCONDESSA QUE NÃO ERA (EPISODIO DAS PODRIDÕES MODERNAS) Como quer que eu andasse jornadeando, ha cinco annos, por aldêas do Minho, intransitadas e menos conhecidas, encontrei um sahimento, que, ao principio, cuidei ser procissão. Afóra a cleresia, que era numerosa, realçavam com as suas côres rubras, amarellas e roxas os balandraus de tres irmandades. Seguiam-se as alas dos visitantes da familia anojada mui bem postos e quasi serios com as suas casacas de gola enroscada e canhões arregaçados para evitarem os pingos de cêra. A espaços, palmilhava o chão juncado de rosmaninho, espadanas e hortensias, um anjo que atirava as pernas compassadamente ao rythmo da musica, bamboando as saias, as plumas e as azas relampejantes. Seriam seis os anjos, de varios tamanhos e significações imaginosas, parecendo-me todos tão pouco celestiaes, quanto alguns d'elles tinham escanhoado as queixadas para se darem o imberbe rubor de quem fingiam ser. Eram deveras funebres e apropriados ao cortejo. Na vanguarda do prestito ia a banda musical trovejando marchas funebres de metal e bombo; no remate negrejava o esquife, roçagando baeta-crepe, levado á mão por quatro sujeitos de casaca e catadura adequadas. Apeei, e desviei-me a um recanto da estrada, em quanto perpassava o sahimento; depois, perguntei a um homem retardado da comitiva quem era o defunto. --Era a snr.ª viscondessa--disse elle. --Viscondessa de quê?--volvi eu. --De quê?! --Sim; pois ella havia de ser viscondessa de alguma cousa. --Isso não sei, nem me consta. Acho que era só viscondessa. Não prosegui na ociosa averiguação; mas, d'ahi a pequena distancia, encontrei uma casa grande com seu portal de ferro, e na cimalha da padieira esta legenda em letras bronzeadas: _Viscondessa do Salgueiral_. Eu não conhecia este titulo. Parei defronte da vetusta capella, ornamentada de pedra de armas, por onde inferi que o titulo, se era moderno, acrescentára uma corôa a fidalgos antigos. Compunha-se o brazão das quinas de Portugal em campo de prata, e um cordão de S. Francisco á volta do escudo; timbre uma aguia de azul, de azas abertas, com cinco bezantes de prata no peito. Eram as armas dos Eças. Em quanto alli me quedei a esboçar o brazão, não ouvi chorar ninguem, como é costume, em quanto dobram os sinos, e reboam gementes nas quebradas dos montes. Acertou de passar então um pegureiro que vinha do pasto com a _mundice_[1], e perguntei-lhe se a snr.ª viscondessa, que morrêra, era nova. --Era já velhota--respondeu o rapaz, tangendo um boi que se preparava para escornar o meu Terra-Nova. --Ella não tinha familia?--tornei eu. --O quê? --Se não tinha filhos... --Filhos, acho que não; tinha o snr. doutor. O pastorinho foi andando, e eu tambem, em sentido opposto. Ao cahir da tarde, cheguei á aldêa onde havia de pernoitar em casa do abbade, meu condiscipulo em latim. Disseram-me que elle ainda não tinha recolhido do enterro; mas, tendo-me visto no caminho, mandára por atalhos avisar que me hospedassem. Não se demorou o abbade. --Cá pela aldêa--disse-lhe eu--os cadaveres titulares levam tempo a enterrar. --Não foi isso. É que eu, na qualidade de testamenteiro da defunta, fiquei presidindo á arrecadação do espolio miudo. Bem sabes que dez contos e quinhentos mil reis em cruzados novos e peças levam tempo a contar... --Tambem herdaste? --Herdei tambem um relogio de algibeira de repetição com musica, uma livraria padresca em latim que deve pesar vinte quintaes, e duas imagens de martyres de pau preto, que parecem martyrisadas a machado; mas o ditoso herdeiro d'esta senhora é... Olha lá, não te recordas dos nossos condiscipulos na aula do padre Lixa ha vinte e cinco annos? --De dous ou tres. --Lembras-te d'um rapazinho louro, que entrou quando nós iamos sahir do latim, chamado Cordeiro, que andava sempre a lagrimar e a babar-se de saudades da mamã? --Não me recordo d'esse rapaz que se babava de saudades... --Chamavamos-lhe nós a _meiga-giboia_. --Agora, sim!... Estou vendo-o debaixo do alpendre do padre Lixa a scismar com a lingua de fóra. _Meiga-giboia_, sim, senhor; parece-me até que fui eu quem lhe poz a imaginosa alcunha, porque nenhum de vossês, os meus condiscipulos, tinha phantasia para tanto. --Pois ahi tens o herdeiro da viscondessa... que não é. --Que não é o quê? --Viscondessa. --Ora essa! Um lavrador disse-me que ella era viscondessa _tout-court_, viscondessa de nada. Vens tu, e confirmas o lavrador, dizendo-me que não era viscondessa a tal finada! Mas eu li o letreiro no portão de ferro... --É verdade, o letreiro lá está. Depois de cêa, se o somno te não apertar, ouvirás a historia d'este titulo. --Se tem historia, é um bom titulo; que eu sei de centenares de titulos sem historia. Cearemos de modo que o espirito se não comprometta na digestão. * * * * * Depois de cêa, o abbade, acautelando as portas á curiosidade das irmãs que ainda eram moças e casquilhas, contou-me este conto: --Havia em Braga um chapeleiro muito rico, pai de duas meninas. A sua mania era casal-as com fidalgos; e depressa concorreram alguns oppositores ás noivas. Um d'esses, que militava na qualidade de tenente de milicias, era João Ferreira d'Eça, dono da casa onde viste o brazão. O chapeleiro, que não dava a filha sem mandar examinar por pessoa competente os pergaminhos do pretendente, convenceu-se de que o alferes era primo em segundo grau dos condes de Cavalleiros. Deu-lhe, por tanto, a filha e sessenta mil cruzados. D. Antonia, poucos annos depois, viuvou, sem ter filhos. Era bonita e muito rica. Outros fidalgos se lhe offereceram em segundas nupcias; mas a inconsolavel viuva nem recebia visitas nem respondia ás cartas. A outra filha do chapeleiro maridára-se tambem fidalgamente; porém, o marido, que aceitára o desigual enlace para resgatar os bens hypothecados, nem resgatára os bens, nem perdoára á esposa ter-lhe dado o abundante ouro com que elle alargou a área dos vicios. Esta senhora tinha tres filhos. D. Antonia d'Eça pediu-lhe o mais velho, e desde logo o considerou seu principal herdeiro. O pequeno tinha oito annos quando veio para o Salgueiral, e orçava pelos dezeseis quando foi ser nosso condiscipulo em grammatica latina. Aquelle choramigar e scismar com a lingua de fóra, como tu observaste, eram o resultado do amor extremoso com que a tia o creára. Ella não queria largal-o de si; mas as raras pessoas que a visitavam arguiam-na de ser causa a que seu sobrinho, embora rico, ficasse para alli tão estupido como os seus criados. Alvaro Cordeiro não era incapaz de aprender; mas resistia ás maneiras quer brandas quer violentas do professor. Não havia pagina de livro que não tivesse para elle uma cabeça de Medusa a carranquear-lhe. Quando chegou aos vinte e dous annos, induzido pelas descripções da vida airada que os estudantes levavam em Coimbra, disse á tia que se queria doutorar. D. Antonia exultou, encheu-o de caricias e dinheiro, e mandou-o com a sua ama secca, com o seu escudeiro e com o seu cavallo para Coimbra. As estouvanices de Alvaro deram brado entre 1851 e 1858. O dinheiro que a tia lhe enviára fôra tanto que, a final, nem o extremado amor que lhe tinha a impediu de se espantar e doer do abuso. Findos seis annos de Coimbra, apresentou-se á tia dizendo que era doutor em philosophia e direito. Logo em duas faculdades tão desirmãs! Pasmei do reviramento e actividade d'aquella preguiçosa intelligencia! Todos lhe chamavamos doutor, sem offender-lhe a modestia nem a consciencia. Por muito tempo o julguei mais ou menos conscio das duas faculdades; mas, acaso, um dia soube em Braga que o doutor do Salgueiral não fizera, sequer, exame de latim. Nada revelei aos meus patricios, nem a elle o esbulhei do grau de bacharel. Era-me penoso magoal-o sem precisão, crear um inimigo, e abrir occasião a que a boa tia, arrependida de o beneficiar, o desherdasse. Pouco tempo se deteve por aqui. Logo que o inverno assomou com as primeiras nevoas ao espinhaço dos outeiros, Alvaro pediu licença a D. Antonia para ir a Lisboa requerer um emprego na diplomacia. A senhora contrariou-lhe o intento, allegando que seu sobrinho não carecia de ser empregado; mas elle replicou razoavelmente que as suas duas faculdades deviam ser utilisadas no serviço da patria, e que, por meio da diplomacia, lhe adviriam os lugares de maior honra no estado. D. Antonia quiz ouvir o meu parecer a respeito da diplomacia. Fui conforme ao intento do doutor, e approvei que seguisse essa carreira, por ser a que mais se dispensava das duas faculdades em hypothese. Foi Alvaro para Lisboa; e, volvidos quinze dias, deu parte a sua tia que fôra nomeado addido á embaixada portugueza em Paris, primeiro degrau para subir a ministro, onde esperava chegar em menos de tres annos. Esta jubilosa carta concluia por estipular a sua tia a remessa mensal de cincoenta libras, que tanto era necessario á decencia e ao luzimento d'um diplomata em França. Fui chamado a votar sobre a clausula das cincoenta libras. Ora, como eu de antemão sabia que a ternissima senhora lhe daria cem, se elle as pedisse, accedi á necessidade das cincoenta. Ella fingiu-se afflicta, lastimou o vacuo do seu peculio, prophetisou, sem fé, a ruina da sua casa, e encarregou-me de ir ao Porto arranjar banqueiro por onde se transmittissem as mezadas. Foi Alvaro Cordeiro de Magalhães para Paris, como tu e eu poderiamos ir, se tivessemos tias parvoas, ricas e extremosas. Quem não soube da sua partida foi o governo, que nunca tivera minima idéa d'este addido. Perguntando eu mezes depois, em Braga, a um secretario de embaixada se conhecia em Paris o addido Cordeiro de Magalhães, disse-me que conhecera lá um Cordeiro de Magalhães addido sim, mas a uma _cocotte_, e que, a julgar do abysmo pelo cairel, o pobre rapaz dentro em pouco estaria de volta para a sua aldêa sem dinheiro nem honra. Agora, um episodio que prende com esta historia. Um tio materno de D. Antonia era capitão de infanteria, quando os francezes invadiram o reino. Dizia-se que este militar entrára nas fileiras de Napoleão, seguira o grande exercito e nunca mais voltára a Portugal, nem dera noticias suas á familia. D. Antonia escrevera ao sobrinho recommendando-lhe que indagasse em França se existiriam descendentes de seu tio Geraldo de Carvalho, que já era coronel, quando se expatriou com o exercito francez. Respondeu Alvaro que seu tio morrera general em Waterloo; e mais nada, quanto a descendentes. Toma tu nota d'esta digressão que ha de vir a ponto frizar na historia. Já dormes? --Essa pergunta hei de eu fazer ao leitor quando lhe repetir o teu conto. * * * * * As cincoenta libras mensaes tinham subido a cem, quando D. Antonia, ao cabo de dous annos, em apuro de paciencia, fez saber ao sobrinho que não podia continuar a mezada. O pseudo-addido, que já se dizia secretario de embaixada nas cartas á tia, sahiu de Paris, trazendo comsigo a franceza, a quem amava com a cegueira já descabida nos seus trinta e cinco annos, mas natural de um coração mal compleicionado. Chegou Alvaro ao Salgueiral, deixando a franceza no Porto. A tia recebeu-o com a sua inalteravel ternura, e levemente o arguiu de perdulario. Queixou-se elle de lhe ser cortada uma brilhante carreira. D. Antonia consolou-o antepondo á vaidade de o vêr ministro o contentamento de o ter comsigo. Alvaro contrafez o prazer de se sentir tão querido, e nunca fôra tão amoravel para sua tia. Esta senhora herdára da indole do pai a mania de se afidalgar. Muitas vezes me pediu que lhe lêsse uns codices genealogicos, escriptos no seculo XVII, relativos ás proezas dos avós de seu marido; e coriscava-lhe então nos olhos o enthusiasmo, como se o inclito sangue dos façanhosos Eças se lhe infiltrasse das arterias do chorado esposo. Uma vez, contando-lhe eu que o filho de um socio de seu pai acabava de ser agraciado com o baronato, D. Antonia, por entre gargalhadas de sisudo espirito, revelou despeito, e talvez cubiça de ser ridicula como o filho do socio de seu pai. Não me espantei, pois, quando Alvaro Cordeiro me disse que ia a Lisboa agenciar o titulo de viscondessa para sua tia. Dei os parabéns a D. Antonia, persuadido de que o titulo seria negocio feito, desde que o agente levava ordem franca para negociar a mercadoria. Passadas algumas semanas, D. Antonia de Eça recebeu a participação de que era agraciada por sua magestade, em attenção á illustre ascendencia e serviços de seu marido, com o titulo de viscondessa do Salgueiral, em uma vida. Fui eu o encarregado de transmittir mil libras ao sobrinho para pagar os direitos de mercê, luvas, etc. Ora, seria uma offensa á tua critica dizer-te que Alvaro estava em Cintra com a franceza, dissolvendo em prazeres as mil libras da excellente creatura, e forjando cartas de aviso e alvarás de viscondessa. Fazia tristeza a pobre mulher! Só eu sabia que ella era enganada pelo sobrinho, porque tive pessoa que procurasse informações na respectiva secretaria. Todos a tratavam de viscondessa, e eu tambem. E o titulo desconcertára-lhe por tal maneira o siso que, ás vezes, fallando-me do marido defunto, chamava-lhe o _seu visconde_, tornando a graça retroactiva uns bons vinte annos. O letreiro, que lêste na porta, mandou-o ella gravar tambem no jazigo de familia, na baixella, nos reposteiros da sala, que nunca os tivera; e então a corôa essa appareceu mal pintada em tudo, desde os escabellos antigos do salão-de-espera até aos portaes de todas as quintas. Um dia, escreve-lhe o sobrinho de Lisboa, contando-lhe o seguinte: que, ao sahir de Paris, encarregára o seu ministro de continuar indagações ácerca dos descendentes de seu tio o general Geraldo de Carvalho, morto na batalha de Waterloo; e acrescentava que a final o visconde de Paiva descobrira em Saint-Nazaire uma neta do general, menina de muitas prendas e virtudes, vivendo de uma prestação do estado, proposta ao parlamento por Napoleão III. Continuava Alvaro pedindo licença á palerma da velha para ir visitar sua prima, e offerecer-lhe em nome de sua tia viscondessa passar um verão no bello Minho. D. Antonia rejubilou com esta nova, e fez-me participante da sua alegria. Que repugnancia eu senti em obtemperar a esta novissima velhacaria de Alvaro! Mas eu sentia que o descobrir-lhe uma trapacice me obrigava moralmente a descobrir-lhe as outras. Entretanto--pensava eu--quem sabe? Póde ser que exista a neta do general Geraldo. Porém, não seria acertado averiguar primeiro se existia semelhante general? Escrevi a um sabio de Braga perguntando-lhe se tinha noticia de tal nome na historia militar de Napoleão I. Respondeu-me o sabio que consultára miudamente a _Historia do consulado e do imperio_, e entre os generaes vivos e mortos não se lhe deparára tal Geraldo, nem ainda entre os officiaes subalternos; mas que, consultando homens de mais de oitenta annos, de Braga, soubera que Geraldo, cunhado do chapeleiro, capitão de infanteria, morrera na defeza de Badajoz em 1811. Como quer que fosse, á volta de trinta dias, Alvaro Cordeiro estava no Salgueiral com sua prima mademoiselle Cora de Carvalho, para quem D. Antonia se mostrava infinitamente graciosa. Uma franceza velha acompanhava a nova sob o titulo de aia, honestando assim a viagem do uma menina solteira com seu primo. Escuso talvez dizer-te que... --A franceza era a _cocotte_--atalhei para acabar hesitações a respeito da minha perspicacia. --Mas uma rapariga diabolicamente bonita, com uns tregeitos sarcasticos, que me pareceram a expressão de escarneo e zombaria d'aquella senhora tão digna de menos ignobil sobrinho. Era bonito ouvil-a fallar de seu pai, gentil-homem picardo, e de sua mãi, que vinha a ser filha do general Geraldo de Carvalho. E o que mais me espantava era a menina palavrear o portuguez menos mal, tendo fallado, um mez antes, com o primeiro portuguez que encontrára em sua vida! D. Antonia brindou-a com parte de suas joias, foi com ella a Braga mostral-a aos seus parentes; e tanto se lhe devotou que a mim me chegou a dizer que não levaria a mal que seu sobrinho a desposasse. Eu não pude então conter-me, que não exclamasse: «Deus nos livre!» Ella instou por saber o motivo da exclamação involuntaria. Contentei-a dizendo-lhe que as francezas não podiam afazer-se á vida campestre; a que, a final, a snr.ª viscondessa viria a ficar sem o sobrinho, por a esposa lh'o arrebatar para França. * * * * * Planeou-se uma visita ao Palacio de crystal, no Porto. A «viscondessa» nunca tinha visto aquella bonita cousa. Eu tambem fui convidado. Mandou-se fazer o jantar no restaurante do palacio. Quando estavamos á mesa, e nas alturas da lingua grelhada, entrou um grupo de francezes, rapazes esturdios, de cachimbo de espuma, e rosa de Alexandria na lapella. Um d'elles, olhando a fito mademoiselle de Carvalho, estacou; e ella, que de relance o vira, purpurejou-se até aos lobulos das orelhas. Alvaro Cordeiro não foi estranho a esta scena muda, por quanto, guinando entre os dous a vista inquieta, empallidecera. Os francezes abancaram gargalhando e proferindo phrases que eu não entendi. Apenas sentados, estralaram as rolhas do champagne, e a vozeria gralheava em chascos faceis de perceber nos olhares esconsos que dardejavam ao nosso grupo. Alvaro, antes de concluido o jantar, pediu a conta. Observou-lhe a tia que a sobremesa ainda não tinha chegado, e que ella queria pudim de laranja e o seu chá. N'este comenos, um dos francezes, galante rapaz, ergue-se da mesa, vem defronte de nós com um copo de vinho, e solta uma trovoada de palavras, com um ar mixto de zombaria e seriedade, as quaes eu, ignorante da lingua franceza, quando francezes a fallam, não percebi; mas as ultimas proferidas muito de espaço, entendi claramente: _A ta santé, Cora Pearl! Je felicite le beau Portugal et le beau portugais! Voilà un bijou de la corruption française que leur y manquait!_ --E Alvaro que fez?--atalhei eu. --Alvaro que fez? o que eu fiz. Olhou para o francez como se elle estivesse representando um monologo. Lá na mesa d'elles as gargalhadas eram estridentes... --E a franceza? --Levantou-se com a soberania de rainha da sua especie, e fez um gesto de retirada a Alvaro. --E D. Antonia? --Pasmou, abrindo a bocca tumida de feijão carrapato, e jogando com os olhos pelas caras dos circumstantes. --E tu? --Eu estava a traduzir. Sahimos todos silenciosos, e entramos no hotel Francfort. N'essa mesma noite, partimos para o Salgueiral. Alvaro explicou a sua tia o incidente:--aquelle francez amára sua prima que o desprezára; e o infame, que a perseguira desde Saint-Nazaire, vendo-a alli, a insultára. Ouvi estas explicações, e achei-as plausiveis; mas as que me deram depois no Porto foi que o francez havia sido uma das ludibriadas victimas de Cora Pearl, a qual tambem era uma das mais despejadas e absorventes devassas de Paris. * * * * * D'ahi a poucos dias, a hospeda da «viscondessa» mostrou-se enojada da aldêa, e fallou em retirar-se para França. A carinhosa _tia_ pediu-lhe que ficasse até ao inverno; ella, porém, não pôde disfarçar o seu fastio tanto da aldêa como do amante. A meu vêr, a cobardia de Alvaro, na scena do Palacio, devia encher-lhe a medida do tedio. Chegou-lhe a nostalgia dos cafés e dos bosques. Não havia demovel-a. Era justo que o primo a acompanhasse a Saint-Nazaire. A tia forneceu-o de dinheiro abundante para seis mezes de ausencia, recommendando-lhe que, se encontrasse o francez, o mandasse ao diabo, e não tivesse testilhas com tão malcreado homem. Bem se via que o sangue ardente dos Eças não se transfundira no corpo burguezmente pacato d'esta senhora, nem Alvaro Cordeiro desmentia os pacificos pundonores do avô chapeleiro. Ha seis mezes que Alvaro foi para França, e por lá está. D. Antonia adoeceu ha quinze dias, e morreu antes de hontem, legando todos os seus haveres, que montam a cem contos de reis, a seu sobrinho, e as preciosas joias a sua sobrinha Cora de Carvalho, neta de seu tio o general Gonçalo de Carvalho. Que conclues d'esta historia? --Que ha infames felizes, e que é preciso acreditar no inferno de além-mundo. --Eu não tiro essa conclusão assim absoluta. Infames são aquelles que convertem a sua perversidade em desgraça alheia. Alvaro Cordeiro logrou sordidamente a sua honrada tia; mas, logo que ella morreu na ignorancia do seu logro, a responsabilidade do sobrinho é menor do que seria, se lhe tivesse feito chorar uma lagrima. Pelo contrario, fêl-a viscondessa, e deu-lhe a consolação de ter um tio general que morreu bravamente em Waterloo. CONCLUSÃO Alvaro Cordeiro de Magalhães está hoje na sua quinta do Salgueiral, casado com uma senhora de casa muito illustre, e pai de algumas crianças educadas religiosamente. Nos letreiros que diziam viscondessa, subtrahiu as tres ultimas letras; mas é visconde a valer. Fez uma economia na fundição dos caracteres. Ao meu amigo abbade, seu commensal e confidente unico, diz elle que a sanguesuga que lhe defecára o sangue da podridão original e dos vicios da educação, fôra Cora Pearl. * * * * * Esta Circe de illustres cerdos ainda hoje exercita as mesmas funcções depurantes em Paris. Houve, todavia, uns apopleticos de ouro que ella vampirisou até os matar exangues. Se succede uma sanguesuga introduzir-se na larynge, é mister recorrer á bronchotomia--á incisão da parte anterior do pescoço; mas o mais ordinario nestes lances é morrer o doente. As bichas da natureza de Cora Pearl, quando se mettem na alma de um homem, deixam um só recurso: a operação do suicidio. Felizes aquelles que, á imitação de Alvaro Cordeiro, apenas foram sangrados! É a sorte que eu desejo aos meus leitores plethoricos. [1] O rebanho de ovelhas, fato de cabras, e manada de gado bovino chama-se em algumas partes do Minho _mundice_, talvez corrupção de _immundicia_. BIBLIOGRAPHIA (Pedro Ivo--Pedro de Amorim Vianna--Alberto Pimentel--Visconde de Castilho--Pinho Leal). PEDRO IVO. _Contos._ Porto, 1874.--Formoso livro! Dir-se-hia que Julio Diniz, o viajor eterno das regiões luminosas, deixou na intelligencia e no coração dos que mais de perto o conheceram e amaram, as serenas imagens das suas visões, as maviosas figuras dos seus quadros, a suave indulgencia e conformidade com que elle florejava de nenuphares os pantanos da vida. Quando eu li alguns d'estes contos no _Commercio do Porto_, e lhes não conhecia author, nem acreditava na authenticidade de Pedro Ivo, disse sempre commigo: «É a continuação do gentil espirito de Gomes Coelho. Ha de haver muita gente que passe inadvertidamente por estes graciosos romancinhos, reveladores de poderosa vocação; porém, quando o author chegar á meridiana da sua gloria, estes contos--aurora d'um dia esplendido--serão relidos com renovado prazer.» Reli hoje os que já lêra, e os que vem de primeira mão no livro. No correr aprazivel da leitura, quando senti o alvoroço das lagrimas, ao passo que as paginas commoventes eram singelissimas, saudei o amavel romancista, e dei-lhe o culto sincero e raro da minha admiração, como daria um beijo na face de meu filho, se elle um dia legitimasse a minha vaidade de pai com um livro d'este valor. Invejo estas santas alegrias ao snr. José Carlos Lopes. * * * * * _Memorias de M.me Lafarge, traducção de PEDRO DE AMORIM VIANNA, com um estudo moral ácerca da authora, escripto pelo traductor._ Porto, 1874. 2 tom.--Ouço dizer que a sciencia do snr. Amorim Vianna se prolonga até ás fronteiras do hebraico. O que elle desconhece em linguistica é os idiomas francez e portuguez. Isto, porém, não impede que o digno professor de mathematica saiba tudo mais. Eu duvidaria da anthenticidade do traductor, se o estylo do _Estudo_ não apparelhasse tão consoante com o da versão: tamanha é a disparidade de um nome celebrado nas letras com esses dous volumes imperdoaveis a um alumno de lingua franceza. Versão e _Estudo_ ajoujam-se frizantemente. Quanto á primeira, se algum incredulo me quizer obrigar pela palavra, demonstrarei que rara é a pagina em que os erros não orcem pelas linhas,--erros de interpretação franceza e de grammatica portugueza. M.me Lafarge escrevia com a sublimidade e correcção classica de Jules Janin. Desfigurada pelo traductor, dir-se-ha que a franceza escrevia francez como o snr. Amorim escreve portuguez. Pelo que respeita ao presumido _Estudo moral_, o que d'ahi se deprehende é que Lafarge foi ladra e envenenadora porque lia romances. O snr. Amorim, no processo de seu estirado estudo, revela farta leitura de romances; e todavia, os seus costumes são exemplares, penso eu. Verdade é que o insigne professor declara que Méry lhe faz nauseas, e que a reputação de Balzac se deve _á corrupção do seculo, ao rebaixamento dos espiritos, e desfalecimento dos brios no publico_ (pag. 176). E que _Balzac se fanatisou pelo crime desenhando-o com o nome de Vautrin, etc._ Conta que Lafarge tivera _mil pretendentes á sua mão depois de condemnada e presa_; e explica este fanatismo por ser ella o _producto das más paixões da época_. Se Méry faz nauseas ao snr. Pedro de Amorim, quer-me parece que o author da _Guerra do Nizam_, não preferiria o perfume... litterario do snr. Amorim aos aromas das florestas indianas. Balzac, posto em pedestal de corrupção para ser admirado, é um deploravel paradoxo que eu teria pejo de vêr na minha lingua, se o snr. Amorim Vianna escrevesse lusitanamente. Que, ao menos, estes absurdos se não possam tirar a limpo d'entre locuções mascavadas. Que Lafarge tivesse _mil pretendentes á sua mão, porque era mau producto das más paixões da época_, é phantasia do snr. Amorim. Um ou outro poeta lhe fez versos, sem lhe pedir a mão; houve um enthusiasta que lhe propoz a fuga do carcere; e presume-se que um dos seus advogados casaria com ella, provada a sua innocencia, que esteve indecisa entre a ignorancia de tres medicos e a sciencia de Orphila. Isto sommado não dá mil pretendentes; não chegamos sequer a liquidar um. A estas hyperboles são atreitos os sabios enfronhados na derramada florecencia dos idiomas do Oriente. Por concomitancia de crimes, o snr. Amorim lembra-se da virtuosa duqueza de Praslin assassinada pelo marido. Espanta-se das nobilissimas cartas da duqueza, em que brilham elevados sentimentos de amor conjugal, e acrescenta: _Custa a crêr que em classe tão depravada se dê tão grande virtude; que uma fidalga possa escrever com tanta alma._ O cheiro de inepcia, que recende d'este dizer, chega a despontar a iniquidade da injuria. Uma fidalga a escrever honrados sentimentos de esposa e mãi é cousa que não lhe entra na democracia do snr. Amorim. Vamos vêr d'onde vem ao figado do professor estes extravasamentos de succo bilioso contra a classe heraldica. Derivando nas torrenciaes enchentes da corrupção de França, o snr. Amorim poja nas praias portuenses, e acha isto cá peor; clama contra os escandalos d'esta cidade, e nomeia-os para se não parecer com Jeremias e com os outros que iam botar discursos vagos debaixo dos muros de Jerusalem e Ninive. Dá pregão de que um sujeito, acompanhado de outros de boas familias, perpetrára um rapto; que o juiz indecentemente os não condemnou; que a mãi da raptada, movida por sentimentos de christã, perdoára ao raptor, cuja mãi afflicta lhe pedia a liberdade do filho. Assenta que estes dous sentimentos santos, em tal caso, tinham alguma cousa impia; e, em summa, que os réos deviam ser condemnados, a despeito das lagrimas de uma, e do perdão da outra mãi. Averiguado o rastilho d'este velho odio, apura-se que o snr. Amorim ainda não pôde perdoar aos cumplices do raptor, porque um dia, na sua aula, o desauthoraram. Depois, descamba para a vida particular do raptor, e narra com a mais rustica indelicadeza a miseranda catastrophe que abriu uma sepultura, sobre a qual a caridade e a justiça estendem o seu manto misericordioso. Os adros e cemiterios ruraes tem uma grade que defende o ingresso aos esfossadores de sepulturas. Não se podem levar estes empeços a todos os remexedores de cinzas, que são o residuo de enormes incendios, cinzas sagradas pelas dôres que as reduziram a isso. O snr. Amorim espanta-se que Vieira de Castro _ainda depois de morto conserve o favor popular_. Ás doridas paginas que se escreveram a favor d'esse grande infeliz, chama o snr. Amorim, _lôas_. E cita ao proposito as jogralidades do _Puff_ de Scribe, e diz que a _unica moeda corrente é a da peta_. Impropera de consciencia larga o eminente orador, porque _elle elevou ao pinaculo da virtude um homem rico, só porque se mostrou caridoso depois de morto. Todos applaudiram o panegyrico e com tudo ninguem ignorava a vida do elogiado_. Allude ao conde de Ferreira. Isto quando não seja indecencia, é ingratidão. O snr. Amorim Vianna devia lembrar-se que, sem o legado do conde de Ferreira, não se estaria a esta hora martellando no hospital de alienados na Cruz da Regaleira. E eu, á vista do exposto, receio que o author do _Estudo moral_ ácerca da Lafarge esteja no caso, como outros mais sisudos, de aproveitar os favores d'aquelle estabelecimento. * * * * * _O Livro das flôres_ (legendas da vida da rainha santa), _por ALBERTO PIMENTEL_. Lisboa, 1874.--Não é livro para mysticos peculiarmente. É um ramilhete de lendas mais formosas que authenticas enfeitando paginas de historia vernaculamente escriptas. Guiou-se da mão dos chronistas o snr. Pimentel; porém, quando as moutas das flôres lhe esmaltavam o caminho, parava a colhel-as, e tecia com ellas nova corôa á memoria da dulcissima rainha, mensageira do céo, entre inimigos descaroados. Lê-se muito a sabôr este livro, e aproveitam-se na leitura, como estudo, os lances capitaes do reinado de D. Diniz, e a selecta linguagem respigada entre as rudezas das chronicas antigas. O snr. Alberto Pimentel sabe a sua lingua como raros, e ha de escrevel-a com primor dos que melhormente a sabem, e de quem vamos aprendendo todos os que não viemos a este mundo com fadario de burros, não desfazendo em ninguem. * * * * * _Theatro de Molière. Quinta tentativa. O Misanthropo, comedia em 5 actos, versão liberrima, pelo snr. VISCONDE DE CASTILHO._ Lisboa, 1874.--Ainda não pude affazer-me á convenção de que estou lendo Molière quando estudo estas chamadas versões _liberrimas_. Seria preciso que, a intervallos, o torneio da dicção peregrina, a allusão ethnographica, o particular relevo da nacionalidade franceza me trasladasse ao tempo de Luiz XIV e ao meio das condições especiaes de vida em que Molière photographou os seus grupos. Estas mui de siso chamadas _nacionalisações_ renovam-se tão portuguezas do fecundante engenho do nosso poeta, derivam tão affins da graça e donaire lusitanos de Gil Vicente, Ferreira e Antonio Prestes, que não posso interpor aos antigos mestres e ao mestre, em que todos os passados rebrilham, a inspiração forasteira de Molière. O _Misanthropo_ é outro livro que o snr. visconde enfileira na bibliotheca das nossas riquezas litterarias. Estes cinco dramas hão de crear maior numero de affectos e affeiçoados á lingua patria que toda a grave e ponderosa communidade de classicos, inculcados nas chrestomathias. Não havia meio de amaciar as asperezas do estudo da lingua, senão este de offerecer á juventude negligente o fructo em cabaz de flôres. Depois de Molière, o valente pulso de Castilho vai medir-se com o formidavel Shakspeare. O _Sonho d'uma noite de S. João_, editorado pela activissima casa Chardron, já está no prelo. Seguir-se-ha _A tempestade_. Seguir-se-hão as juvenis glorias de um talento que reflorece cada anno afim de que o cantor da _Primavera_ não sinta na quadra final que um anno lhe passou sem flôres. Abençoado sejas da posteridade com o amor que te consagram os teus discipulos, mestre generoso que tanto mais nos amas quanto nos liberalisas as riquezas do teu espirito! * * * * * _Portugal antigo e moderno, diccionario heraldico, geographico, estatistico, chorographico, archeologico, historico, biographico e etymologico, etc., por AUGUSTO SOARES DE AZEVEDO BARBOSA DE PINHO LEAL._ Lisboa, 1874.--Estão publicados dous tomos e algumas cadernetas, abrangendo as letras A--F. As pessoas que estudam e avaliam a natureza do trabalho arido e ingrato a que o snr. Pinho Leal dedicou o maior numero dos seus annos, sabem aquilatar o merito d'aquella obra de tamanho fôlego. Para essas pessoas as imperfeições de tal escripto não lhe desluzem o merito nem esfriam o reconhecimento que se lhe deve. Quem compulsou as obras do mesmo genero anteriormente publicadas e apreciadissimas no mercado, agradece ao laborioso archeologo a grande melhoria do seu trabalho, e ao benemerito editor o alento raro com que o tirou a lume. Já vi arguido o snr. Leal de inexacto em miudezas topographicas, sem lhe descontarem que elle aceitou as noticias divulgadas em livros que os censores não haviam previamente corrigido com a sua esclarecida censura. Com toda a certeza, o meu amigo Joaquim Martins de Carvalho conhece as cousas antigas e hodiernas de Coimbra mais de fundamento que o snr. Pinho Leal; mas seria impertinente exigencia obrigar um chorographo a jornadear muito de espaço nas terras que descreve para convencer-se de que as descripções que o precederam e guiam eram menos exactas. O que é de todo o ponto certo é que eu tenho consultado com aproveitamento o _Diccionario_ do snr. Pinho Leal em variados pontos da sua ampla area. Não sei de outro armazem onde tão variadas noticias se encelleirem, e tão de prompto se deparem ainda aos mais versados. Com muita satisfação me glorio de ter cooperado com o meu sincero voto para a editoração d'esta obra subsidaria de todos os estudos respeitantes á historia, á geographia e ás antiguidades de Portugal. Quem, depois, do infatigavel author d'estes livros, escrever outros com mais primorosa penna, tem de constituir-se em divida e gratidão immensa ao snr. Pinho Leal que está carreando as achêgas para o futuro edificio. Duvido, porém, que n'este paiz em que um livro de 300 paginas representa o supremo esforço da nossa indole preguiçosa, haja quem immole trinta annos de sua existencia, e os bens do seu patrimonio, a um lavor que nas demasias do seu zelo, a critica desconceitua. Deixam-se correr desafogadamente quantas parvoiçadas soltas e rimadas por ahi coriscam de cerebros borrascosos; porém, se um escriptor de indefessa lida concorre ao mercado das frandulagens com os seus suados e tressuados livros, topa logo pela frente o vigilante piquete dos sabios, que só n'estes lances sahem da tenda, como Achilles. Cumpre-me declarar que tenho a maior consideração pelas correcções do snr. Martins de Carvalho, quanto á topographia de Coimbra; mas não a tenho menor pelas improbas fadigas do snr. Pinho Leal com cuja amizade me honro e desvaneço. PARA A HISTORIA DE D. JOÃO IV (DOCUMENTO INEDITO) É notorio que o infante D. Duarte de Bragança, que em 1640 militava no exercito de Fernando III, imperador da Austria, foi traiçoeiramente preso a instancias de Francisco de Mello, seu parente, portuguez, e embaixador de Castella em Vienna. Uns historiadores dizem que seu irmão D. João IV se inquietára quasi nada com a prisão do infante; outros, mais exactos, asseveram que o rei alguns esforços empregou para o libertar. Isto é verdade; mas os esforços eram tão diplomaticamente frouxos que, vistos á luz da sã razão e da boa politica, os historiadores que negam parece ganharem a partida aos historiadores que affirmam a solicitude de D. João IV. O infante estava preso na roqueta da torre de Milão, encadeado de modo que nem sequer podia adormecer, quando o rei de Portugal, mediante o seu embaixador em França, pedia, em 1643, á regente Anna d'Austria, na menoridade de Luiz XIV, solicitando de sua magestade christianissima a liberdade do infante D. Duarte em troca de alguns importantes prisioneiros castelhanos que o governo francez tinha a bom recado. Ahi está a arrojada tentativa que fazia o rei de Portugal no resgate de seu irmão:--requer a uma nação alliada que arranjasse lá isso, desfazendo-se dos seus prisioneiros, em escambo de um principe, que, ao parecer de João IV, valeria tanto como dous ou tres hespanhoes aprisionados em batalha! E, ao mesmo tempo, pedia emprestado dinheiro á França, como se uma só prova de pusillanimidade bastasse a enrilecel-o no conceito do cardeal Mazarin, e solicitava ainda que o governo francez lhe protegesse o bispo de Lamego, em Roma, e lhe restituisse integralmente o dominio da ilha de S. Lourenço (_Madagascar_) onde os francezes, em 1642, se tinham estabelecido com feitorias[2]. Eis a resposta dada por Chavigni, um dos plenipotenciarios que trataram com o embaixador portuguez[3]: RESPOSTA ÁS MEMORIAS DO EMBAIXADOR DE PORTUGAL (_versão_) _El-rei se fará informar particularmente do negocio da ilha de S. Lourenço para tomar tal resolução qual convenha á amizade e alliança que ha entre sua magestade e el-rei de Portugal._ _Sua magestade seria contentissimo em poder contribuir segundo sua affeição para com el-rei de Portugal, no livramento do infante D. Duarte seu irmão, mas pelo que toca á troca que elle fez propor dos prisioneiros dos inimigos para em lugar do dito infante, roga a vossa magestade que considere que os inimigos tem tambem francezes entre suas mãos, e que todos os dias a fortuna da guerra póde fazer cahir outros, os quaes não podem sahir senão por uma tal troca; que sua magestade é obrigado a os conservar e grangear a fim de que elles se empreguem mais animosamente em o serviço de sua magestade e em adiantamentos de causa commum; elle fará, com tudo, tudo aquillo que depender do seu poder pela liberdade do infante D. Duarte, ao qual não tem elle menos affeição que el-rei de Portugal mesmo[4]._ _El-rei fez despezas tão excessivas para o entretenimento de seus exercitos, tanto de mar como de terra, e por assistir a seus alliados, segundo os tratados que lhe havia parecido bem fazer com elles por lhes dar tanto mais de meios para se esforçarem poderosamente pelo bem publico e causa commum, que sua magestade teria antes necessidade de ser alliviado de taes despezas que de se empenhar em outras novas, o que a elle lhe é totalmente impossivel; de sorte que tem grande desprazer de não poder ajudar de dinheiro ou mesmo de emprestimo a el-rei de Portugal, como fizera de bonissimo coração, se o estado dos seus negócios lh'o permittira._ _Sua magestade dá ordem á esquadra dos seus navios na Arrochela de tomar ao snr. bispo de Lamego, embaixador de el-rei de Portugal, vindo de Roma para o levar..._[5] _Pelo que toca ás bandeiras dos navios reaes e mercadores em os portos de França e de Portugal, este negocio se remetteu ao conselho de marinha, e as Memorias se podem metter em mãos do snr. Habrgue (?) com o qual se póde tambem conferir aquelle da ilha de S. Lourenço. Feita em Paris a 21 de março de 1643.==Chavigni._ * * * * * O infante D. Duarte de Bragança morreu, ao cabo de oito annos de prisão, algemado como facinoroso, em um antro destinado aos supremos criminosos. Do mesmo passo que D. João IV pedia dinheiro para se arrostar com as difficuldades da guerra, e conter o exercito hesitante, um insigne historiador, Rebello da Silva, escreve que elle offerecêra 400:000 cruzados pela liberdade do irmão. N'este depoimento falta o testemunho coevo, e critica mais desassombrada que a do conde da Ericeira, cuja authoridade é medianamente veneravel. As letras de cambio, que D. João IV firmou, ninguem as quiz descontar em Amsterdam; e, quando iam ser protestadas, o judeu Jeronymo Dias da Costa as pagou... em recompensa de lhe haverem queimado os parentes em Portugal[6]. [2] Madagascar, ou ilha de S. Lourenço primitivamente, foi descoberta em 1506 por Tristão da Cunha, e não por Lourenço de Almeida, como diz Ellis na _History of Madagascar, compiled chiefly from original documents_. (Londres, 1838). [3] Documento inedito, que falta na collecção dos publicados pelo visconde de Santarem, e não sei se faz parte dos ineditos do marquez de Nisa existentes na bibliotheca publica de Lisboa. [4] Parece ama ironia, se não é antes uma censura, dissimulada em fineza. [5] Palavras desfeitas e inintelligiveis. [6] Veja o _Testamento politico de D. Luiz da Cunha_, sujamente impresso com o nome de _Carta_, por A. Lourenço Caminha. INEDITO DE MANOEL SEVERIM DE FARIA O primeiro bibliophilo portuguez, o snr. Innocencio Francisco da Silva, ácerca da livraria e dos manuscriptos ineditos do doutissimo chantre Manoel Severim de Faria, escreve o seguinte: «As (obras) que ficaram manuscriptas passaram, depois do seu fallecimento (1655), juntamente com a sua copiosa e escolhida livraria a enriquecer outra, ainda mais abundante e numerosa, qual era em Lisboa a do conde de Vimieiro, riquissimo thesouro litterario que foi como tantos outros reduzido a cinzas pelo incendio subsequente ao terremoto de 1755.» (_Dicc. bibliog._, tom. VI, pag. 106). Alguns traslados de pouquissimos ineditos de Severim vieram á minha mão com os manuscriptos do jurisconsulto Pereira e Sousa. Os caracteres são coévos do sabio antiquario; mas a pessima orthographia accusa traslado de mão imperita. Não obstante, como as idéas não padeceram com a ignorancia do copista, dou afoutamente esta copia corrigida orthographicamente. É documento historico, além de these engenhosamente concertada; por onde se deprehende que o desbarato de D. Sebastião e da flôr da fidalguia em Africa redundou em beneficio de Portugal. Senão, vejam: «_Observações dos males que Deus permittiu para bem de Portugal, escriptos e expostos pelo chantre da cidade de Evora, Manoel Severim de Faria. Em 20 de setembro de 1649._ «Permittiu Deus que se perdesse el-rei D. Sebastião, e ficasse toda a fidalguia portugueza captiva de mouros, porque estando os portuguezes muito soberbos com as victorias que houveram por todas as partes do mundo, não as reconheciam já a Deus; mas cuidavam que eram alcançadas só por seu valor. Castigou Deus esta soberba com aquelle miseravel captiveiro, e depois com a entrada dos castelhanos, que conhecendo nós pela experiencia que as victorias que alcançavamos, não era por nossa fortaleza, senão pela misericordia de Deus, nos humilhassemos e fossemos exemplo ao mundo d'este conhecimento, e ficassemos capazes de receber outra vez o reino e a liberdade da sua divina mão. «Permittiu Deus que o conde de Vimioso, D. Francisco, perdesse a vida e a casa defendendo a liberdade de Portugal, e que o conde de Basto e o marquez de Castello Rodrigo ganhassem estes titulos entregando o mesmo reino; e ordenou depois, que as casas de Basto e Castello Rodrigo se perdessem, e a de Vimioso se restaurasse pela mesma valia do conde de Basto, que casou sua filha com D. Luiz, e pela fazenda de Castello Rodrigo, que casou outra filha com o conde D. Affonso, para mostrar a todos com tão raros exemplos, que os que fazem o que não devem, cuidando ganhar para seus filhos, os deixam perdidos, e os que fazem o que devem ainda que de presente padeçam, não deixam seus filhos desamparados, antes acrescentados na opinião dos homens e na protecção divina. «Permittiu a guerra dos hollandezes, no Brazil, para haver capitulações e soldados praticos n'este reino, que soubessem pelejar contra a milicia dos castelhanos. «Permittia que obrigassem aos senhores portugueses a dar soldados para Catalunha, para que tornassem a Portugal praticos depois da acclamação, e isto em tanto numero que por conta tem entrado em Portugal, de Castella e Flandres quasi seis mil homens de guerra. «Permittiu o escrever das fazendas (cadarso), para que com essa occasião se levantassem os de Evora, e entendessem os castelhanos que cá em Evora, havia dez mil homens armados sem a nobreza do reino, e por isso mandavam que sua milicia não passasse de Badajoz e tiveram por felicidade a reducção. «Permittiu que chamasse el-rei de Castella todos os grandes e fidalgos a Madrid para com isso ficarem só em Portugal os que haviam de acclamar a liberdade, estando ausentes os que lhe haviam de resistir, principalmente todos os senhores, que por entregarem Portugal, alcançavam titulos de el-rei de Castella. «Permittiu a destruição da armada de Oquendo para que não houvesse forças maritimas em Castella que excedessem a Portugal. «Permittiu os desafôros que os castelhanos fizeram em Catalunha para se atarantarem os catalães e se entregarem aos francezes, para que el-rei de Castella ficasse opprimido com outra guerra mais perigosa, o que lhe não deu lugar para acudir á de Portugal, estando principalmente com a opinião das grandes forças d'este reino; porque, se de Evora sómente lhe disseram que tinha dez mil homens contra elle, quando não tinha comsigo a nobreza, quanto maior poder seria agora o do reino todo junto!... «Permittiu Deus que el-rei de Castella com a inveja que tinha a sua magestade, sendo duque o obrigasse a ir a Almada, com o titulo de governar as armas, parecendo-lhe que d'este modo o desauthorisava. Para que com esta occasião, o visse e tratasse toda a nobreza do reino e se penhorasse com novos desejos de o reconhecer por seu principe. «Permittiu que el-rei de Castella obrigasse a todos os nobres que fossem militar a Catalunha, ou perdessem as honras e fazendas que possuiam. E tendo-se no reino experiencia que os que partiam para este desterro, não tornavam, entraram em desesperação e com ella se resolveram a acclamar o verdadeiro rei, e deixarem o estranho. «Permittiu Deus que este reino chegasse ao mais miseravel estado que nunca esteve, sem armas, sem soldados, sem armadas, e sem fortificações para que, dando-lhe n'esta miseria um rei, vissemos que esta obra não era alcançada por nosso poder e forças, senão pela misericordia divina, pois que estavamos sem gente de guerra nas quatorze praças que os castelhanos tinham n'este reino e os navios armados que estavam em Lisboa. «E pelo contrario, que as empresas que acommettemos com maior poder, como foi a de Andaluzia com tres armadas, não tivessem effeito: e as das ilhas, que intentando libertal-as com duas armadas, nenhuma d'ellas chegou a tempo; e os naturaes com suas pequenas forças rendessem os castelhanos; com que ficou conhecida a victoria por divina, e os da ilha recuperando a reputação, que no tempo da outra successão perderam. «Permittiu que estando os castelhanos, os primeiros mezes quietos sem Portugal romper contra elles; elles rompessem a guerra com Portugal, com muito pouco poder, com que os portuguezes ficaram melhorando-se, com alcançarem d'elles muitas victorias, e fazendo-se com ellas muito praticos, o que sem esta occasião não podia ser. «Permittiu que antigamente désse o snr. rei D. João, o primeiro, quasi a terça parte do reino ao condestavel D. Nuno Alvares Pereira, para com este grande patrimonio se poder conservar a descendencia real da casa de Bragança com estado grandioso: e agora succedido na corôa, torna-se tão grande parte do reino a unir a ella. «Permittiu que muitos senhores e titulos cahissem no crime de deslealdade, para que com suas rendas e fazendas se ajudar a sustentar a guerra contra Castella. «Permittiu que o marquez de Castello Rodrigo largasse a commenda-mór de Alcantara, para se lhe dar em Portugal satisfação em muitas commendas da ordem de Christo: e que o duque de Villa Hermosa se acommodasse só com a de Alcantara. «D'estes dous homens vagaram grande numero de commendas, com que poder premiar aos leaes, que estavam servindo. «Permittiu que vagassem quasi todos os bispados e arcebispados do reino: e que em Roma os não quizessem prover, para com os fructos d'elles se poder mais facilmente sustentar a defensa do reino, e serem pagos os soldados. «Permittiu que em Roma intentasse o embaixador de Castella affrontar o de Portugal, para que sahisse o de Castella na fugida; e com a reputação perdida desamparasse á vista de todo o mundo a mesma côrte de Roma, acrescentando-se grandemente com isto a reputação do nosso embaixador e do reino de Portugal. «Permittiu que no tempo da acclamação ficasse Ceuta com Castella para nos não dar n'aquella occasião maior gasto de dinheiro e gente. «Permittiu que quasi a quarta parte de Castella fossem portuguezes, e que depois da acclamação padecessem tantas vexações, que muitos d'elles tornassem a Portugal, com que Castella perdeu muita gente, e Portugal a ficou ganhando, assim em numero como em riqueza, com dinheiro que de lá trouxeram. «_Finis laus Deo._» * * * * * Deus permittiu tudo isto. Uma nação que assim está debaixo da fiscalisação divina, com as inscripções a 46 3/8 e o snr. barão de Zezere na municipal, não póde cahir como Carthago ou Roma. O MANOELINHO POETA Cumprindo a promessa do numero antecedente, dou traslado da _Representação_ metrica, enviada a Philippe IV de Castella pelos conjurados de Evora. Onde o sentido das allusões rebuçadas me parecer menos obvio, aventurarei algumas notas explicativas que o leitor versado emendará, se as achar mal entendidas. A EL-REI NOSSO SENHOR Senhor, vosso Portugal, de vossos paes estimado, e sempre d'elles tratado como amigo tão leal, hoje, em miseria fatal, está pobre e lastimoso; e o governo rigoroso, que tanto o tem perseguido, lhe nega, sendo offendido, o allivio de ser queixoso. N'esta dos tempos mudança, n'esta da sorte dureza, na mantuana princeza tinha librada a esperança. Em fim, chegou; mas alcança que já esperar não convém; pois tão ruins lados tem n'este imperio desigual, que só póde fazer mal, e não sabe fazer bem. Algum que este povo unido desejára apedrejado, e em fim foi d'aqui lançado a todos aborrrecido[7], de novo agora admittido exerce imperio violento; que, para commum tormento, n'este governo acontece que o que castigo merece agora é merecimento. Este, agora, por fartar-se de tyrannias, é tal que governa Portugal como quem só quer vingar-se; pois não só quer odiar-se c'os naturaes; mas tambem, sem ser justiça, dotem aos estrangeiros no mar, até mandar-lhes queimar o proprio barco em que vem[8]. De dous bachareis se informa mui diversos na nação[9], O Salazar e o Leitão[10] que só differem na fórma; só com estes se conforma: vêde o effeito qual será; porque um e outro está sinalado com deshonra[11]; e quem não guarda sua honra como a vossa guardará! Este ministro cruel em tudo se intromette. Olhai que cousas promette junto co'o hollandez Sinel! N'estas almas de pichel tudo póde e tudo manda. Ai! do reino, pois tal anda o governo portugues que se vai de um hollandez contra os rebeldes de Hollanda[12]. Este, pois, governo errado, para poder conservar-se, trata de perpetuar-se em dous polos estribado. Mas, ai! que está mal fundado em tão perversa doutrina; que onde a ambição domina é sempre o imperio violento, sendo aos filhos fundamento o que aos paes foi ruina! Porque aquelle pai que eu sei por infamia e por traição até quarta geração foi julgado pela lei; d'este um filho (ó alto rei!) sacrilego bispo é![13] Outro, digno de galé, excluso já por bargante da companhia triumphante assiste a julgar a fé[14]. Vêde como a julgará quem sempre sua fé quebrou; e o que só vicios guardou como ovelhas guardará! Grandes simonias ha, senhor, n'estes provimentos! Examinai os augmentos dos que medram com ambição, por que eu sei bem que não são taes os vossos pensamentos. E, por não parar o extremo, d'estes o mais vil ladrão bebado, torpe e bufão é secretario supremo! Com que a vosso reino temo, senhor, grandes precipicios; pois não só vendem officios a inuteis, fracos judeus; mas vendem a honra de Deus e seus santos beneficios. Que muito! se, nos sagrados dormitorios de Enzobregas, provocou a acções bem cegas ao seu rancho e aos seus prelados! E, para os vêr profanados, certas gaitas ordenaram, com que todos celebraram a bacchanal, suja prole; e foram gaitas de folle porque os odres não faltaram[15]. E quem isto faz, senhor, como é possivel que possa conservar em graça vossa do vosso reino o melhor! E não é damno menor affirmar-vos sem vergonha que é parente do Noronha por lhe roubar o que tem, e com malicia tambem, que está doudo vos proponha. Pois aquella rica prenda n'este reino sentenciada, por grande Caco lançada do tribunal da fazenda! Não me espantarei que venda por baixo preço a valia da patria e da monarchia, pois, nas mudanças que faz, falso traidor e sagaz toda a sua esperança fia[16]. Senhor, estes inimigos são dos melhores sujeitos que não permittem seus peitos conservar sabios amigos. Crêde que em grandes perigos vos hão de precipitar; e sirva-vos de exemplar tantos reinos assolados porque foram governados de homens de baixo solar. É um em tudo guiado de um forneiro mecatrefe; de um pendolista bodefe é o outro governado. Serão suas razoes de estado sempre tisnadas e feias qual corre o sangue nas veias; fazei d'estes expulsão, que um é corrêa de cão, o outro cão para corrêa.[17] Com vossos poderes regios estes traidores astutos torcem vossos estatutos, quebram nossos privilegios. Não faltam homens egregios para governar melhor. Informai-vos, vós, senhor, que não falta quem mereça, quem fiel vos obedeça, quem sirva com mais amor. Assim, para commum damno, e para proprios proveitos convém que busquem sujeitos para o governo tyranno; de sorte, que n'este engano, viveis, senhor, offendido, e d'este reino esquecido; pela divina verdade, que não ha perpetuidade no reino que é dividido. Falta um justo conselheiro que por commum liberdade ante vossa magestade vá com zelo verdadeiro, qual o grande cavalleiro Egas Moniz em que igual foi valor e zelo tal, que, vendo a patria opprimida, arriscou a propria vida pelo bem universal. N'esta universal fadiga, quem manda, fallar não deixa; pois até do pobre a queixa como culpa se castiga. Pois como ha de haver quem diga que a tyrannia insolente inda fallar não consente! E nossa fortuna quiz que se sinta o que se diz; mas ninguem diga o que sente. Em fim de tanta crueldade vos avisa o reino junto, Portugal que, por defunto, se atreve a fallar verdade. Vossa altiva magestade mostre agora seus poderes; que, entre tantos pareceres, qual póde o governo ser, se, á conta d'uma mulher, governam tantas mulheres! _Manoelinho o fez com approvação do senado todo junto._ * * * * * Comparando o torneio e estylo d'esta poesia com as que tenho impressas dos poetas d'aquelle tempo, é muita a semelhança que corre entre ella e os poemetos de Duarte Ribeiro de Macedo, que foi melhor prosador. [7] Diogo Soares, secretario dos negocios de estado, fazenda e justiça. [8] Successos occorridos com embarcações francezas. [9] Nascimento. [10] João de Frias Salazar, desembargadar do paço, e o dr. Francisco Leitão, o _Guedêlha_ de alcunha, de quem dá larga noticia a romance intitulado _O Regicida_. [11] Dr. Leitão, era filho de uma notoria meretriz, e havia casado com outra, a celebrada Vicencia, filha de uma certa Barbara, alcaiota da rua dos Cabides. [12] A historia escripta não nos esclarece a obscuridade da allusão. [13] D. Sebastião de Mattos e Noronha, áquelle tempo, bispo de Elvas; hespanhol de nação, e um dos governadores do reino, em quanto o duque de Bragança, exaltado ao throno, não chegou de Villa Viçosa. Morreu, como conspirador, no carcere da torre de S. Gião. [14] O inquisidor D. Francisco de Castro, um dos conspiradores contra a revolução de 1640, perdoado e reposto no seu officio por D. João IV, em premio de delatar os seus cumplices. [15] Não posso rastrear a satyra, se ella entende com Miguel de Vasconcellos. Póde ser que n'esta copia falte a _decima_ que prendia com o caso picaresco de Enxobregas. Presumo, pelos versos seguintes, que o satyrisado seria o bispo de Elvas, D. Sebastião de Mattos. [16] Francisco de Lucena, apedrejado pelas regateiras do Porto, em 1628, como executor do tributo das _maçarocas_; secretario das mercês de Filippe IV em 1638; secretario de estado de D. João IV em 1641, e degolado, como traidor, em 1643. Da sua innocencia diz D. Luiz da Cunha na sua conhecida _Carta_ a D. José I: «... Conhecendo elle (D. João IV) a innocencia de Francisco de Lucena, seu secretario de estado, o deixou condemnar á morte, porque os fidalgos o fizeram passar por traidor, não podendo soffrer que elle lhe aconselhasse que lhes não devia alguma obrigação em lhe porem a corôa na cabeça, por que lhe era devida, a fim de que se não julgassem credores de grandes recompensas.» Veja o romance historico _O Regicida_, pag. 227, onde se imprimiram pela primeira vez os conselhos de Francisco de Lucena a D. João IV, que lh'os pagou briosamente. [17] Não pude attingir as referencias. UM BAILE DADO A JUNOT, EM LISBOA Os monographos da invasão franceza em Portugal não descrevem nem ao menos citam o baile dado a Junot, no theatro de S. Carlos, na noite de 8 de junho de 1808. Esta omissão, de nenhuma importancia ao primeiro aspecto, significa o receio de ferir as pessoas que assistiram ao obsequio prestado ao general de Napoleão. O resguardo era racional, quanto aos noticiaristas coevos do baile; mas hoje em dia a deferencia é escusada, visto que os filhos e netos dos jacobinos de 1808 se prezam de procederem dos homens mais liberaes d'aquelle tempo. Ao baile de S. Carlos concorreram familias da mais selecta sociedade da capital, e muitas lá não entraram por falta de convite ou carta de admissão, difficil de obter. Entre outras de menos porte, avultavam as familias dos condes de Almada, de Sabugal, da Ega, de Peniche, e de Castro Marim; de D. Francisco Xavier de Noronha, dos desembargadores Lucas Seabra da Silva, Manoel Nicolau Esteves Negrão, e Abreu Girão; dos marquezes de Abrantes, Marialva, Penalva e Valença; concorreram alguns bispos e principaes da patriarchal. A fim de avaliarmos as curvaturas abjectas por que passou o escol da fina sociedade n'aquelle baile, vamos vêr que as cortezias foram de antemão promulgadas como decreto, e rubricadas pelos generaes _Brenier_, _Thiebault_, e _Margaron_. O programma foi enviado na lingua do conquistador ás familias duas vezes conquistadas, quando não eram tres, como certas condessas e viscondessas respeitaveis por sua fragilidade e amor cosmopolita. Um curioso contemporaneo, bem ou mal, traduziu, e acertadamente guardou o programma, tal qual se offerece aqui aos espiritos de boa fé que nos estão apregoando sempre o patriotismo de nossos avós: «ANNUNCIO «A funcção, que o exercito francez de Portugal dá ao snr. duque de Abrantes, quarta feira 8 de junho, consistirá em um baile de ceremonia. «Esta funcção se fará na sala do theatro de S. Carlos. «As pessoas mais notaveis das differentes classes do reino serão convidadas por convites pessoaes, e que servirão de bilhetes para a entrada. «Entrar-se-ha pelo peristillo grande, e vir-se-ha alli dar pela rua de... «As senhoras convidadas serão recebidas pelos mestres das ceremonias, que lhes darão a mão até ao seu lugar. «M.mes Thomières, Trousset, et Foy, farão as honras do baile. «As pessoas convidadas para a funcção, como tambem as que tiverem alcançado camarote, virão das 7 horas até ás 10 da noite. «Chegando s. exc.ª ao theatro, será recebido pelos snrs. officiaes presentes á funcção, os quaes irão adiante d'elle até ao peristillo de baixo. «S. exc.ª ao entrar na sala, achará todas as senhoras convidadas sentadas nas frizas em bancos, ou cadeiras, o interior da sala estará vazio, e os homens encostados todos ao pano da bocca do theatro. «No instante em que elle apparecer, se ouvirá uma musica guerreira, e todas as senhoras se levantarão para lhe agradecer o seu comprimento. «Assentado que seja s. exc.ª, a orchestra executará a cantata composta em seu louvor; acabado este pedaço será s. exc.ª convidado a dar volta á sala, e depois tomar-se-hão as suas ordens para a primeira contradança, que se dançará só, e que estará composta d'antemão. «Esta contradança será só de quatro figuras. Immediatamente depois começará uma contradança franceza com tantas quadrilhas, quantas o lugar permittir. «Cada uma d'estas quadrilhas será de quatro pares e de seis figuras. «Seguir-se-hão as contradanças, as valsas, e as inglezas. «Quanto ás inglezas, para que todos os pares dancem sem as prolongar demasiado, ellas começarão ao mesmo tempo pela cabeceira e pelo centro das columnas, e durarão até ao ponto em que os ultimos pares da cabeceira e do centro tiverem dançado; o que observarão os snrs. mestres das ceremonias. «Se houver duas columnas, as senhoras estarão sempre dentro do circulo. «As inglezas e as valsas serão dançadas sem escolha de lugar; o que chegar ultimamente se porá depois do que lhe tiver precedido. «As contradanças francezas não se poderão dançar senão com bilhetes, o que torna impossivel ter-se feito antecedentemente algum ajuste. «Os mestres de ceremonias, que não dançam, serão encarregados d'esta distribuição, e terão o maior cuidado em fazer que successivamente dancem todos os cavalheiros e todas as senhoras; as quadrilhas terão além disto dous mestres do baile, para dirigir as figuras. «Depois da quadrilha, da valsa, da inglesa, que acabará ao rodar da meia noite e meia hora, os snrs. commissarios convidarão as senhoras a sentar-se, os cavalheiros as conduzirão para a porta da entrada, e o interior da sala ficará inteiramente vazio. «Feitas estas disposições, se levantará o pano, o mordomo passará por entre as abas da tenda, e dará parte, que a cêa de s. exc.ª está prompta; logo as abas da tenda se levantarão, s. exc.ª abrirá a marcha, precedido por um dos generaes commissarios que lhe mostrará o seu lugar. «Todas as senhoras serão conduzidas pelos cavalheiros; as que não poderem sentar-se á mesa serão servidas na sala. Á mesa não haverá homens, senão os que tiverem sido designados pelos commissarios, e a quem isto tiver sido participado pelos mestres das ceremonias. «Acabada a cêa, entrar-se-ha na sala do baile em uma ordem inversa da em que tiverem d'ella sahido, e a tenda se fechará. «Levantada a mesa da cêa, se porão no seu lugar mesas de jogo; a tenda se tornará a abrir, ficando assim maior a sala do baile. «Quando s. exc.ª se retirar será tornado a conduzir á sua carruagem pelos snrs. officiaes, que o receberam. «Os generaes commissarios «Brenier, Thiebault, Margaron.» Este Junot foi tão desmedido ladrão em Portugal que nem propriamente os francezes lhe disfarçam as manhas. A historia de França parece envergonhada quando roça pelo nome infamado do duque de Abrantes. Principiára valorosamente a sua carreira militar, como simples granadeiro de voluntarios. De Lisboa sahiu locupletado e cobarde. Na campanha da Russia, em 1812, contribuiu com o seu indolente sybaritismo para a completa queda de Napoleão. Em 1813 ensandeceu, precipitou-se de uma janella, e morreu da queda. _Malè parta malè dilabuntur._ Esbanjou a opulencia roubada, e legou aos filhos e á viuva o nome deshonrado, e uma quasi indigencia. A duqueza, fallecida em 1838, vivia de escrever, e não escrevia sem graça. No lardo das anecdotas nuamente contadas, consistia o merito das suas variadas _Memorias_, _Scenas da vida hespanhola_, e _Salões de Paris_. Do duque de Abrantes ficaram quatro filhos legitimos. O primogenito, _Napoleon-Audoche_, duque de Abrantes, confirmado no titulo por Luiz XVIII, seguiu a carreira diplomatica, que descontinuou em resultado de vergonhosos processos. Fez-se litterato, abastardou-se na vida dos camarins theatraes de baixa estôfa, e morreu pobremente em 1815. Succedeu-lhe no titulo seu irmão _Alfred-Michel_, que havia nascido em Hespanha, por 1810. Foi capitão de estado-maior, ás ordens do general Mac-Mahon, em 1848. Militou na Africa, e ahi mereceu as divisas de «chefe de esquadrão.» Em 1854, era ajudante de campo do principe Jeronymo-Napoleão, e a 24 de junho de 1859 morreu de ferimentos na batalha de Solferino. _Josephina Junot d'Abrantes_ entrou em 1825 na congregação das irmãs de caridade, voltou aos salões em 1827, casou em 1841 com um tal _Amet_, empreiteiro de carroças, fez-se escriptora de obras moraes, e vivia ainda em 1861. A ultima filha d'este mal sorteado casal chamou-se _Constance_, casou com _Louis-Aubert_, redactor do _National_ e prefeito da Corsega em 1848. Tambem foi escriptora de artigos de modas em diversos periodicos. Fundou as _Abeilles parisiennes_ ha vinte e cinco annos; e, sem ter grangeado colmêas de _louises_ com as suas abelhas, morreu pobre como seu pai, como sua mãi, como seus irmãos. O roubado não luz. Outros dizem que luz. Os ladrões é que sabem. QUE SAUDADE!... Folheando acaso a _Revista Universal Lisbonense_ de 1845, li pela primeira vez a seguinte noticia: UM DUELLO DIGNO DE LOUVOR (CARTA) _Porto 10 de maio de 1845._ _Snr. redactor._--Peza-me o não ter sido testemunha ocular de um caso acontecido aqui, a 5, pelas 4 horas da tarde, e em que se há de fallar por muitos dias. Tinha-se espalhado que dous estudantes da _arte amandi_, fortissimos no capitulo dos ciumes e rivaes por uma triste fatalidade (porque segundo os snrs. estatisticos ha mais mulheres do que homens, e por isso os zelos masculinos quanto a mim deviam ser prohibidos); estes dous meninos, digo, ambos com o sangue na guelra, tinha-se espalhado que a essa hora combateriam em duello de morte (que sempre é obra mais aceada), sendo o sitio da execução o campo da _Torre da Marca_, padrinhos, outros academicos, e as armas, pistolas. Concorreu toda a gente que pôde (eu só faltei por estar com um ataque de gotta, nos pés se entende); e não só povo, mas dous regedores, cabos de policia, um destacamento de tropa e muitas mulheres (não admira, a festa era em nome e louvor do sexo, nada prova tanto os seus feitiços como umas tripas ao sol); só faltava a tumba da misericordia, diz hoje com muita graça o _Periodico dos pobres_. Sôa a hora; apparecem os dous Quixotes montados como dous Sanchos em burros lazarentos de albarda rota e freio de corda, mas muito arrogantes na catadura (não os burros porém os campeões); um dos regedores, aliás bom homem, desapprovou com destempero que duas figuras d'aquelle feitio, brigassem á pistola; maudou-os apear e aos soldados que os prendessem; o povo, que não queria perder as passadas, murmurava contra o regedor, muitos estudantes já começavam a vociferar, um dos duellistas procurava convencel-o em segredo; o magistrado via-se perplexo e creio que assustado. Apressou-se em passar por mão o negocio para superior instancia: acompanhou os zelosos á presença do administrador do bairro. Foi ahi que se descobriu a chave do enigma:--os maganões declararam que o seu unico intuito fôra fazer aos duellos a guerra do ridiculo: mostraram que as suas pistolas levavam polvora mas não bala, e affirmaram, o que era verdade, que entre os dous não havia nenhuma Dulcinéa. Afóra o regedor, todos riram muito; e o administrador mostrou ter pena de que se não tivesse chegado a representar uma farça que poderia ter, talvez, prevenido algumas futuras tragedias. _Um tripeiro velho que nunca brigou nem ha de brigar._ * * * * * Falla-se ahi em _dous meninos_. Ai! um d'estes meninos era o snr. Freitas Barros, actual secretario da administração do concelho de Coimbra. E o outro menino era... eu! Direi alguma cousa nos pontos em que o correspondente do Porto foi omisso. Eu vestia casaca preta de abas em triangulo isosceles com a gola em promontorio, convexa, redonda e algum tanto sebacea. Na lapela esfarpellada alvejava uma camelia, symbolisando tenção amorosa á mingoa da charpa dos Amadis e Lancelotes, meus heroicos antecessores. Os collarinhos de papel almasso embeiçavam com os arcos amarellos dos oculos. A gravata era britannicamente branca, e absorvia-me o queixo de baixo na circumspecta gravidade dos desembargadores d'aquelle tempo. Recordo-me das luvas que eram de lã verde com um antebraço que lhes dava uns longes de manoplas. Em uma das botas duvidosamente marialvas luzia o espigão de uma espora sem roseta. O chapéo de castor, derribado por gebadas _ad hoc_, desformára-se nas fórmas caprichosas de barretina de lanceiro. Se bem me lembro, o meu adversario Freitas Barros vestia o mesmo uniforme, tirante o chapéo que era de bicos, em arco, de alterosas badanas, um pouco desengonçadas pelo attrito de meio seculo. E, n'este feitio, depois de presos, atravessamos a cidade, desde a Torre da Marca até á rua do Almada, bifurcados nos burros espavoridos pela grita do gentio que exaltava n'aquelle intervallo de imprevisto carnaval. Claro é que a minha postura e a plastica do trajar eram bastantemenle ingratas aos effeitos oratorios, posto que a rhetorica não fosse de todo parvoa. Dei ao meu braço direito, durante o discurso, um movimento pendular que depois vi perfeitamente arremedado no parlamento pelo snr. Martens Ferrão. E, dado que, tanto nas posturas como nas expressões, eu mantivesse a seriedade compativel, o magistrado que se chamava fulano Mendanha, não sustentou a gravidade consentanea ao acto, porque me interrompia com espirros de riso assás funestos aos golfos da eloquencia de quem quer que seja. Não obstante, a authoridade compôz sisudamente o aspeito n'este lanço do meu discurso: «Snr. administrador! O ridiculo, na questão sujeita, póde contribuir para defecar a humanidade de um crime que a lei não evita nem pune. O duello, ill.mo snr., só deixa de ser ridiculo quando ha uma victima, quando ha sangue e lagrimas; e, assim mesmo, ninguem sabe dizer qual é o honrado, se o que morre, se o que mata, etc., etc., etc.» Lembra-me que me fiz forte com Voltaire, como se o tivesse lido. Eu não tinha ainda 19 annos; e, n'aquella idade, dou palavra de honra que era estudante sem compendios, e o mais ignorante que podia ser um rapaz que entranhadamente execrava livros, e amava o sol e tudo quanto elle cobria, exceptuados os livros e os sabios. Finalmente, o jovialissimo Mendanha mandou-nos embora; e nós d'alli sahimos com a consciencia convicta de haver escripto um brilhante capitulo na ethologia nacional, e com o estomago palpitante de sorrisos para uma merenda condimentosa no _Rainha_ da Praça Nova. Eu não me considerei então ridiculo a despeito da hilaridade das multidões. Ridiculo me vi eu dez annos depois, quando sahia de um duello com uma cutilada; e, olhando para ella, me acudia á memoria o meu discurso ao administrador Mendanha. .......................................................................... Mas... que saudades!... CARTA A RESPEITO... D'AQUELLA COUSA Agradeço-lhe, meu amigo, a remessa da Moleira que o lacrimavel Silva Pinto distribuiu impressa no theatro da Trindade. Devo á solicitude de v. o conhecimento d'este papel, e a occasião que me facilita de pedir ás pessoas que leram o n.º 6 das _Noites de insomnia_ hajam de me desculpar das expressões menos limpas com que offendi o decôro das letras. Ha muitos annos que eu, forçando os impulsos da indole, algum tanto caustica, á submisão imposta pela idade, tolerava allusões injuriosas com a mais dolorosa conformidade. Quando, porém, vi que os admiradores do snr. Theophilo Braga abusavam do silencio dos velhos como de ignorantes vencidos e cobardemente resignados, fez-se mister de algum modo avisar estes homens, dar-lhes um pequeno abalo ao seu orgulho, fazer-lhes até sentir que as suas reputações litterarias estão assentes em bases pouco solidas. Os termos desabridos que usei com o pobre Silva, na verdade, sahiram-me immoderados. O homem era mais pequeno do que eu cuidava. Enganou-me. Pensei que fosse mais mau que tolo; e, n'essa allocução á opinião publica, vi com tristeza que elle é, no rigor do vocabulo, um desgraçado que, estourando por dentro, todo o hydrogeneo sulfurado lhe subiu aos miolos. É uma doença que, se espirrasse para fóra, todo homem communicavel com Silva devia de andar ensopado em agua de Labarraque. N'este papel, que v. me envia, diz elle que me _escalpellisa com o maximo socego_, e que eu estou _desesperado_. Podéra não estar! Tomára eu que Silva se calasse, a vêr se me despeno d'estas afflicções em que elle me traz. _Escalpellisa-me!_ Vê? Do escalpello á faca de ponta a differença está em algumas pollegadas de aço. O instrumento das glorias de Bichat, posto em mãos de Silva, assusta-me como se lampejasse nas de Cartouche. Ó Pinto! ó carnifice! já sei que garotêas na rua de Santa Catharina, e te alapardas no antro n.º 335. O chefe da esquadra vigia-te a rogos do meu pavor! Elle diz ao publico: Que discute pelo desejo de _formular_ um protesto, etc.; Que adiante _formúla_ observações, etc.; Que tem testemunhos de sympathia publicamente _formulados_, etc.; Que o disparate só um leitor assiduo, etc., ousaria _formulal-o_, etc. Formúla tudo. Este abuso da _fórma_ denuncía costella de sapateiro. Quem te reformulára os aleijões a tirapé, Pinto! Pinto falso! Diz que não me ameaçára na minha vida privada. (O _privada_ é elle e d'elle. Eu escrevi _vida particular_. Não lhe quero maior castigo que a vergonha ante si mesmo de substituir cavillosamente palavras para amanhar um gracejo sujo). Não ameaçou?! Annunciou na _Actualidade_ um livro escripto por um collaborador, e prometteu dar extractos na folha. Que queria dizer isso? Diz que não escrevêra a local da _trilogia_, nem a outra ácerca do Castellar, nem a da cacophonia. Então havia outro sandeu de igual marca no jornal? Que parelha de asneirões! Pelos modos aquelle escriptorio de redacção era uma estrebaria! Se os dous coexistem, são os meninos-siamezes da estupidez; mas o outro desconfio que é elle. Falla de uns meus _contractos litterarios com o snr. Anselmo de Moraes_. Ahi vai, com nojo e brevidade, a historia d'estes contractos já babujada pelo dos _Musicos_, e não sei por quantos da quadrilha. Este Anselmo de Moraes procurou-me, ha seis annos, para me propôr a redacção de um periodico semanal, que se chamou a _Gazeta litteraria_. Aceitei. O contracto estabelecido foi que elle me pagaria a redacção por columna; e, imprimindo em livro os artigos do periodico, me compraria, á parte, a propriedade do livro. Pagou-me oito numeros, e deixou de me pagar os restantes. Neguei-me a escrever o n.º 17, quando a divida montava a 70$000 reis, e eu já tinha pago de minha algibeira a um collaborador, o talentoso Delfim Maria de Almeida. O periodico terminou. Não lhe pedi o estipendio do meu trabalho, porque seria baldado pedir-lh'o, como havia acontecido ao estimado escriptor lisbonense Andrade Ferreira. Esperava eu, todavia, resarcir-me com a propriedade dos meus escriptos, publicando-os em livro; mas o snr. Anselmo de Moraes, esbulhando-me d'este recurso, editorou os artigos em volume, e os pôz á venda com o titulo de _Mosaico e silva de curiosidades historicas, litterarias e biographicas_, precedidos de um prefacio, attribuido ao snr. Theophilo Braga, onde se diz, pouco mais ou menos, que o author dos taes escriptos, sentindo a imaginação fatigada para o romance, se soccorre d'aquelle genero. Era, ao mesmo tempo, espoliação e descredito. Assim que tive noticia d'esta... irregularidade (pacato synonymo de _maroteira_), constitui procurador que impedisse a venda dos livros, cuja propriedade me pertencia, e se apossasse da edição que se achava na casa Moré, se bem me recordo. O snr. Moraes levou d'este acto judiciario aggravo para a Relação, a qual decidiu que se entregassem os livros ao editor, fundamentando o accordão em que eu permittira a publicação do livro. Quem duvidára que eu permittira a publicação do livro? O que eu não queria consentir era que o snr. Anselmo de Moraes m'o não pagasse. A acção judicial foi erradamente posta. Eu devia, em vez de fazer arresto por fraude, requerer arresto por _calote_. Paguei as custas, e desisti de nova acção para não pagar outras; porque o snr. Anselmo era insoluvel. Ahi está a historia. Falta dizer o conceito em que tenho o proprietario da _Actualidade_. Salvo melhor juizo, é um traficante na pessima accepção da palavra; mas tão parvo que me açula os seus mastins, devendo açamal-os em tal assumpto, se tivesse juizo, vergonha e consciencia. Mas, tornando ao outro: Pinto diz que eu o ameacei. Eu! Que me chamasse entidade _escura_, _leproso_ e _ignorante_, perdôo-lhe porque é verdadeiro, menos no diagnostico da lepra; mas escrever que eu lhe _dirigi ameaças_, é peta que talvez me obrigue a matal-o uma d'estas bellas noites na rua de Santa Catharina, n.º 335, 1.º Ando á cata da arma, da unica arma idonea para tal burricidio: é um gato morto e putrido. Em quanto não topar o gato, Pinto póde sacudir a juba aos quatro ventos do céo. A proposito de juba, dizem-me que elle exhibe uma guedelha _king-charles_ ou á Ferré, o petroleiro. Perguntaram-lhe ahi no Porto porque não se tosquiava.--Já viu leão sem juba?--respondeu elle.--Nem urso sem pello--redarguiu o outro. Figados e bofes de petroleo tem elle. Foi a Hespanha offerecer aos communaes o seu... estomago. As manhas que lá o sustentaram hei de pedir authorisação a um cavalheiro de Madrid, muito querido dos portuguezes, para as contar á Europa. Pinto percebe-me. Não são factos da privada, são da vida publica, vida de vergonhas que nos a vexam lá fóra. Na volta de Hespanha, repulso de Lisboa, despejou-se no Porto, e cavalgou Anselmo, ou Anselmo a elle--é ponto controverso. Era aprendiz de caixeiro, em casa do snr. Anjos, se me não engano, em Lisboa. Um dia foi atacado da pestilencia das _piadas_. Entrou a arder em febre de asneiras. Em seus rábidos delirios, espumava injurias. Houve um innocente que o desafiou.--«Eu não me bato, insulto!»--respondeu o alentado cobarde. Moeram-no. Podéra!... Este homem, na sua miseria, é um exemplo salutar á mocidade. É como o bebado nos festins da Laconia. * * * * * Meu amigo, faz-me o favor de pedir novamente perdão á opinião publica? Vá-se habituando a pedir perdão todos os mezes. Sou, etc. NIL ADMIRAM O snr. _G._ escreve um folhetim no n.º 154 do _Primeiro de Janeiro_. Louva as qualidades litterarias do snr. Pedro de Amorim Vianna, manifestadas na traducção das _Memorias de Lafarge_, e no _Estudo_ correspondente. Observa que a celebre envenenadora grangeou sympathias nos salões da França, e attribue o phenomeno á corrupção da moral. Depois, derivando aos costumes contemporaneos, escreve: «Troppmann que em nossos dias póde ser considerado um dos maiores criminosos, chegaria a causar fanatismo, se se lembrasse de percorrer a propria França, theatro das suas tristes façanhas, e não faltaria quem se désse pressa em procurar estender-lhe a mão com intima effusão de contentamento.» Sentir semelhante dislate, mas não o escrever, revelaria, quando menos, um eclipse de razão; mas divulgal-o, atiral-o ao rosto da sociedade, é um insulto. Que conceito fórma da moralidade da França o snr. _G._! Troppmann, o assassino de algumas crianças que a justiça levanta de ao pé de sua mãi cortada de golpes, percorrendo a França, _causaria fanatismo; e não faltaria quem se désse pressa em procurar estender-lhe a mão com intima effusão de contentamento_! Que dirá o seculo XXII, quando lêr isto! Dir-se-ha que o seculo de Jayme José Ribeiro, de Belem, era um periodo de selvagismo, e que o snr. _G._, á imitação de Boecio nas trevas da meia-idade, protestára contra os vicios do tempo, e affirmára honradamente a sua repugnancia em apertar a mão de Troppmann, com intima effusão de contentamento. É justo que cada um exerça o direito de dizer o que pensa; mas os disparates, que ultrajam a consciencia publica, deveria o escriptor, embora anonymo, cohibir-se de alardeal-os. Parvoiçadas d'esta laia, ditas em um botiquim, evolam-se como o fumo agro de um mau charuto de vintem; mas, estampadas em gazeta circumspecta, tornam-se immortaes como as gazetas, e arriscam perante a posteridade os _GG_, os _BB_, e todas as mais letras do alphabeto, sem excepção dos _TT_. FIM DO 7.º NUMERO *** End of this LibraryBlog Digital Book "Noites de insomnia, offerecidas a quem não póde dormir. Nº7 (de 12)" *** Copyright 2023 LibraryBlog. All rights reserved.