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Title: Astucias de Namorada, e Um melodrama em Santo Thyrso
Author: Chagas, Manuel Pinheiro, 1842-1895
Language: Portuguese
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                          ASTUCIAS DE NAMORADA

                                    E

                      UM MELODRAMA EM SANTO THYRSO



                                 ASTUCIAS

                                    DE

                                 NAMORADA

                                    E

                      Um melodrama em Santo Thyrso


                                    DE

                            M. PINHEIRO CHAGAS



                                  LISBOA
                           TYPOGRAPHIA PROGRESSO
                          40--Rua do Alecrim--40
                                   1873



PROLOGO


Este livro é um livro de verão. Fez-se para ser lido á sombra de uma
arvore copada, á hora do meio dia, quando póde prestar-se apenas á
leitura uma vaga attenção, e quando portanto se querem livros de enredo
ligeiro e risonho, que nem resolvam problemas, nem arripiem os nervos.

As _Astucias de Namorada_ estão escriptas ha largo tempo. As aventuras
do seu manuscripto davam assumpto a outro romance; Teem de curioso o ser
o seu entrecho baseado sobre um facto succedido realmente em Lisboa. Ha
de haver leitores que o taxem de inverosimil, pois saibam que é
verdadeiro. Mais uma vez tem razão Boileau

    _Le vrai peut quelquefois n'etre pas vraisemblable._

O romance que fecha o volume, e que se intitula _Um melodrama em Santo
Thyrso_, ponho-o aqui a titulo de curiosidade archeologica. Foi a minha
estreia no jornalismo. Fundára-se a _Gazeta de Portugal_. Eu tinha
conhecimento pessoal do seu proprietario, Teixeira de Vasconcellos.
Procurei-o para lhe lêr o romance. Elle ia sair.

--Deixe-me vêr alguma coisa que lhe pareça melhor, disse-me elle.

Li-lhe tremendo a scena em que Eduardo descreve as physionomias dos
litteratos lisbonenses; Teixeira de Vasconcellos rio-se, e tirou-me das
mãos o manuscripto.

--_Il y a quelque chose lá_, continuou elle, isto para estreia basta. O
seu romance ha de ser publicado.

E foi. Estava eu baptisado folhetinista.

Hoje, relendo o romance, sorrio-me das ingenuidades do principiante, e,
para conseguir desculpa do leitor, vejo que não tenho remedio senão
dizer-lhe retrospectivamente com Alfredo de Musset

    _Surtout considérez, illustres seigneuries
    Comme l'auteur est jeune, et c'est son premier pas._

                                                          PINHEIRO CHAGAS



ASTUCIAS DE NAMORADA


I

Havia baile, ou antes sarau dançante, n'uma casa em Almada.

N'um pequeno jardim, que se espraiava até a beira dos rochedos
pendurados sobre o rio, vinham os grupos dos convidados descançar um
pouco das polkas e das valsas, respirar, e relancear os olhos pelo
delicioso panorama do Tejo, em cujas aguas traçava a lua como que uma
estrada argentea. De quando em quando enchia-se o jardim de risos, de
segredinhos; a lua illuminava por entre as folhas roupas alvejantes,
que passavam fluctuando como o véo dos sylphos; depois pelas janellas
abertas da sala saía uma bafagem de harmonia, proveniente dos primeiros
compassos d'uns lanceiros, os grupos dispersavam-se e engolphavam-se em
turbilhão pelas portas de vidraças, e o jardim ficava de novo solitario,
mas não silencioso; porque n'elle se escutava o rumorejar da brisa, o
echo da musica do baile, e o murmurio do rio que gemia docemente em
baixo nas fragas.

N'um dos intervallos das polkas, e quando o jardim se povoava de novo
com os fugitivos do baile, um par, mais fatigado talvez que os outros,
veio sentar-se n'uma especie de caramanchão, que ficava na extremidade
do jardim, mais proximo da orla do rochedo, e por conseguinte quasi
suspenso, como um ninho de gaivotas, sobre as aguas. Devo rectificar o
que disse; não foram ambas as pessoas indispensaveis para formarem um
par, não foram ambas as pessoas, que se sentaram; só o fez uma senhora
de vinte e cinco annos talvez, alta, elegante, morena e viva, de olhos
rasgados e cabellos negros, que scintillavam como o ébano á luz
brilhante da lua cheia.

O cavalheiro ficou de pé, apesar de sua gentil companheira lhe ter
visivelmente proporcionado um logar junto de si, como se podia deduzir do
modo como aconchegou o vestido, fazendo occupar á crinoline o menos espaço
possivel; mas essas piedosas intenções foram perdidas, porque o seu
braceiro não ousou percebel-as, e conservou-se, como dissemos, em pé, ainda
que os seus olhos ardentes, cravados no rosto da sua companheira, quando
esta o não podia ver, denunciavam que não era a indifferença que o impedia
de aproveitar o favor que se lhe queria conceder.

E comtudo esse timido moço estava na idade em que esses favores se
ambicionam com mais ardor do que aos trinta e cinco annos a pasta de
ministro, estava na idade em que se devaneiam escadas de seda fluctuando
ao sopro das auras, serenatas interrompidas por um amante cioso, amores
aventurosos, mil perigos a atravessar para se obter um sorriso, uma
flor, uma palavra, na idade feliz em que se inveja Leandro só ao pensar
quantas vezes se teria accendido o pharol de Hero antes da terrivel
noite, em que a morte, _envolta em horrendas vagas_, segundo a admiravel
expressão de Bocage, arrojou um cadaver livido aos pés da torre, em
que ainda não expirára o echo dos beijos da antecedente noite.

E o timido rapaz alisava a luva branca, e procurava com frenesi uma
palavra qualquer, que lhe não occorria em presença d'essa formosa
senhora, cujos pés desejava beijar; e pensava que immensa felicidade não
seria a sua, se em vez de estar sem animo, embaraçado e vermelho, diante
d'ella, estivesse na outra margem do Tejo, e tivesse que o atravessar a
nado para cair offegante e exanime junto d'esse adorado vulto. Então não
seria necessario fallar; a sua pallidez, os seus olhos cheios d'amor
diriam tudo, e muito infeliz seria, se a nova Hero, vendo-o ensopado por
causa d'ella, lhe não dissesse alguma cousa que lhe desembaraçasse a
lingua, e partisse o gelo, que se interpunha obstinadamente a dois
corações, que anciavam por se unir.

A gentil senhora esteve um instante olhando para elle com um sorriso
meio despeitado, meio zombeteiro, e afinal, vendo que a malfadada luva
branca ainda não parecia sufficientemente alisada, meneou a cabeça com
um gesto encantador, que fez ondular as suas tranças negras, e que
espalhou na atmosphera um aroma inebriante, aspirado com delicias pelo
timido moço. Depois voltou os olhos para o rio, encostou a face á mão
enluvada, e ficou-se a contemplar esse quadro magnifico.

A noite estava linda, uma d'estas noites de luar, como o calido estio as
envia aos paizes meridionaes. No céu d'um azul suavissimo, algumas
nuvens, volteando em torno da lua, recortadas em mil arabescos pela
brisa nocturna, embebidas todas no candido fulgor do astro da noite,
pareciam as maravilhosas rendas do véu luminoso que Phebe arrasta pelo
firmamento, em noites assim languidas e serenas. O Tejo desenrolava a
sua immensa toalha liquida, prateada no centro pelo luar, e negra junto
do caes, ou á sombra dos mastros dos navios immoveis nos ancoradoiros.
Ao longe Lisboa avultava, espraiando a sua casaria á beira do rio, e
pelas faldas das suas sete collinas. As longas fileiras dos seus
candieiros de gaz formavam á borda do Tejo como que uma fita de chammas.
Alguns barcos de pescadores deslisavam silenciosamente, soltando ao
sopro da brisa as suas velas brancas. Este panorama, que só tem rivaes
na bahia de Napoles ou na enseada de Constantinopla, devia fascinar quem
o contemplasse, como a gentil senhora em quem fallamos, do caramanchão
d'um jardim, cheio de arvores, onde expiravam os ultimos echos d'uma
valsa, onde o luar, coando-se por entre as folhas, luctava com os
luminosos reflexos, que dimanavam dos lustres, scintillando nas salas.

Parecia ella effectivamente toda absorvida na sua contemplação, quando a
voz tremula e profundamente commovida do seu joven companheiro a fez
estremecer.

Essa voz, toda vibrante de paixão, dizia simplesmente estas palavras:

--Que... linda... noite!

--Lindissima, não é? respondeu ella, voltando para o seu interlocutor o
rosto ainda encostado na mão, o que lhe permittiu erguer os olhos para
elle sem levantar a face, dando assim ás pupillas uma expressão
voluptuosa, que encerra um encanto irresistivel, um magnetismo
fascinador... Como que parecem fluctuar na atmosphera todos os sonhos
dos poetas! Sabe no que eu pensava agora, vendo aquelle bote, que
resvala á flor das aguas, como um cysne da noite? Pensava se seria esse
o barco de Lamartine, e se levaria tambem dois amantes, que fossem
murmurando um ao outro, com as mãos enlaçadas, as doces palavras que
tanto nos encantam, quando o auctor do _Lago_ as traduz na melodiosa
linguagem da sua poesia.

--Ah! bem sei, respondeu o desastrado:

    _Ainsi toujours poussés vers de nouveaux rivages..._

--Oh! meu Deus, tornou a senhora visivelmente impacientada, conheço os
versos, mas, como não quero prival-o do praser de os recitar, peço-lhe
que me acompanhe á sala, e permitto-lhe depois que venha de novo confiar
á lua e ao Tejo as inspirações de Lamartine.

E a formosa menina, rubra de despeito, levantou-se, e tomou o braço do
seu interlocutor, que ficára fulminado por aquella inesperada
apostrophe, e que debalde tentava balbuciar umas palavras sem nexo.

Frederico era um moço esbelto de vinte e dois para vinte e trez annos,
d'uma gentileza verdadeiramente notavel, d'um espirito intelligente e
cultivado, d'uma bondade proverbial, mas tambem d'uma timidez
invencivel. D. Lucinda, a gentil senhora que entra n'este momento na
sala, podera apreciar as brilhantes qualidades de Frederico, ouvindo-o
conversar desembaraçadamente em uma reunião intima, onde o seu
acanhamento não tivera motivo para se revelar. Deslumbrada por esse
esplendido conjuncto de predicados, Lucinda tentára fixar a attenção do
gentil moço, e a _coquette_ conseguira-o em breve, mas, quando se
tratára de dar o passo decisivo, manifestára-se toda a timidez do
espirito virginal de Frederico. Era o seu primeiro amor, e só os tolos
conseguem atravessar affoitamente essas columnas d'Hercules. Lucinda,
experimentada n'essas questões, comprehendera primeiramente o embaraço
do mancebo, e, lisongeando-se com isso, entendera tambem que o devia
auxiliar. Mas o que animaria qualquer outro, acanhou ainda mais, se me
permittem o termo, a timidez desconfiada de Frederico. Se Lucinda fosse
uma timida menina, que córasse como elle corava, que tremesse como
elle tremia, os olhos d'ambos fallariam tanto, as palpebras mesmo,
abaixando-se a um tempo, teriam uma linguagem tão eloquente, que afinal
os labios ver-se-hiam obrigados a traduzir em palavras esse mudo idioma.
Porém, como podia succeder semelhante cousa, se o olhar ardente de
Lucinda deslumbrava aquelle em quem se fitava, se a sua tranquilla
superioridade assustava Frederico, e o fazia tremer a cada instante, com
o receio de desempenhar o papel de criança ridicula diante d'essa
esplendida mulher?!

O ridiculo, que espera nos dois extremos da estrada da vida tanto os que
avançam como fanfarrões, como os que recuam com demasiada fraquesa,
assustando Frederico que temia vel-o diante de si, assaltava-o quando
elle para lhe fugir retrogradava sem ter animo para obedecer ao férvido
olhar, que lhe dizia: «Ávante.» O pobre rapaz, vendo assim de subito
desfeitos em pó os seus planos estrategicos, preferiria um abysmo
abrindo-se-lhe debaixo dos pés a ouvir as palavras friamente zombeteiras
de Lucinda.

Entretanto o baile findára, e os lisbonenses preparavam-se para
atravessar o Tejo. Frederico e a familia de Lucinda eram as unicas
pessoas, que tinham de emprehender essa excursão. Era pouco mais de uma
hora quando Lucinda e sua mãe pozeram as capas, e foram arrancar ás
delicias do whist o patriarcha da tribu, que saiu furioso de ter de se
embrulhar em dez mantas e de ter perdido dez _rob_ consecutivos,
Frederico, depois da scena do caramanchão, bem desejaria ficar, mas a
mãe de Lucinda, sabendo que era elle o unico dos cavalheiros presentes
que regressava a Lisboa, reclamou sem ceremonia o auxilio do seu braço
para descer a ingreme calçada. Assim, Frederico viu-se obrigado a pegar
no chapéu, e a seguir, supportando o peso da sua volumosa braceira, o
pae de Lucinda, que se apoderára d'esta para lhe explicar durante o
caminho as infernaes combinações que tinham dado em resultado a derrota
memoravel d'essa noute, verdadeiro Waterloo nos seus annaes de jogador
de whist.

As circumstancias conspiravam-se todas contra Frederico. Chegados ao
caes de Cacilhas, notou-se que apenas um barco se baloiçava nas
aguas negras, que batiam murmurando nos degraus da escadaria. Bradou-se
pelos barqueiros, que dormiam no fundo do bote, e, quando estes se
levantaram, reconheceu-se que eram os remadores de Frederico. Os
venerandos progenitores de Lucinda protestaram, em alta voz, contra a
insolencia dos seus barqueiros, que os tinham posto inconsideradamente
na dolorosa necessidade de atravessarem o Tejo a nado, ou de dormirem ao
relento nas pedras humidas do caes. Frederico offereceu immediatamente o
seu bote. Não era possivel proceder d'outro modo. Por infelicidade o
barco era vasto bastante para que todos coubessem. Frederico viu-se
obrigado a entrar e a sentar-se defronte de Lucinda. O pobre rapaz nem
ousava levantar os olhos. Desfraldou-se a vela, e o barco resvalou
silenciosamente á flor das aguas.

Os dois velhos tinham-se sentado na popa do barco. O vento, sem ser
forte, era sufficiente para infunar a vela e para dar ao bote um leve
balanço, que foi suavemente acalentando os dois esposos. Estes
principiaram a bocejar alternadamente; depois foram deixando pender as
cabeças até que tocaram quasi nos joelhos. Levantaram-se a um tempo,
e olharam espantados, com os olhos meio abertos, para o céu azul. Depois
os olhos fecharam-se de todo, e os comprimentos recomeçaram. Pareciam
dois mandarins _d'étagére_. Frederico e Lucinda a custo soffreavam o
riso, e trocavam entre si olhares de intelligencia, que presagiavam uma
reconciliação. Os dois velhos resmungavam palavras inintelligiveis, e
recostavam a cabeça para traz, de fórma que a cabeça, em vez de lhes
descair de pôpa a prôa, descaia-lhes de bombordo a estibordo, e de
estibordo a bombordo, movimento bem combinado, que produziu um
abalroamento, que os despertou a ambos.

--Senhor Azevedo, bradou a matrona indignada, não tem vergonha de vir a
dormir no bote? Já me estragou as flores da cabeça.

--Senhora D. Leocadia, respondeu o velho com dignidade, veja se dorme
com mais cautella para não amarrotar o chapéu das pessoas, que vão
acordadas a scismar nos seus negocios.

Estas apostrophes promoveram a explosão das gargalhadas, já muito
reprimidas, de Frederico e de Lucinda. O velho mirou-os com espanto,
embrulhou-se mais na manta, encostou-se para traz e principiou a resonar.

--Este Azevedo sempre foi assim, disse a velha esposa fazendo côro com
os dois, dorme em toda a parte... Como elle resona!

E dizendo isto, a boa senhora olhou com despreso para seu marido, deixou
descahir a cabeça, e entrou no duetto resonando egualmente.

A brisa refrescára, e, infunando a vela, fazia tombar o barco para um
lado. Os marinheiros pediram a Frederico que se fosse sentar junto de
Lucinda.

Já vêem que o acaso continuava a fazer das suas.

Foram calados um instante, com os olhos fitos na lua, que desdobrava a
sua placida luz pelo céu azulado e pelas aguas do rio. A face formosa da
antiga Diana reflectia-se no espelho vacillante das ondas encrespadas
pela viração. Ouvia-se o chapinhar das aguas batendo no costado de uma
fragata immovel; um bote de remos passou rente do barco onde iam os
nossos heroes. Os remos, sulcando a agua, erguendo-se e recaindo de
novo, pareciam arrancar do seio do rio as palhetas luminosas com que o
matizava a lua, e que depois lhe devolviam n'uma chuva d'alvas perolas.
Um marinheiro, recostado ou antes deitado á pôpa, com os olhos vagamente
embebidos no firmamento, dedilhava uma guitarra, e fazia-lhe vibrar nas
cordas algumas d'essas melancholicas toadas das nossas canções
populares. Muito tempo a corda fremente da guitarra enviou de longe aos
ouvidos de Frederico e de Lucinda, a sua melodia toda impregnada n'uma
vaga tristeza, e expirou ao longe n'uns quebros de indizivel suavidade.
Frederico suspirou.

--Pensa nos seus amores? perguntou Lucinda sorrindo.

--Amores, balbuciou elle, como, se os não tenho?

--Não os tem? Quem não tem amores aos vinte e dois annos?

--Eu que sou um desherdado da fortuna, eu para quem a natureza, mãe
benefica de todos, sempre se tem mostrado implacavel madrasta, eu para
quem as flores não tem aroma, nem luz brilhante o sol, nem suavidade
melancholica o luar.

--Oh! meu Deus, exclamou Lucinda, quererá imitar esses Obermans da moda,
que se declaram scepticos, quando ainda não tiveram nem sequer uma
illusão, quanto mais as decepções que alardeiam?

--Não, minha senhora, tornou Frederico, tenho muitos ridiculos, mas
d'esse livrou-me Deus. Porém sou um d'estes entes malfadados, que nunca
ousam levar aos labios a taça que se lhes apresenta cheia a trasbordar;
uma d'essas abelhas, a quem as rosas mostram o calice entre-aberto, e
que volteiam em torno d'ellas, sem ousarem ir delibar o seu mel na
redoma fragante que se lhes apresenta. Sou como Rousseau, deitando as
cerejas no avental de mademoiselle Galley, sem ousar ver os labios mais
vermelhos do que os fructos, convidando-o e attrahindo-o. E o que fez
mademoiselle Galley ao desastrado philosopho? voltou-lhe as costas, e
foi zombar d'elle com as suas companheiras, deixando esse Tantalo d'amor
a amaldiçoar a sua falta de audacia. Esse riso argentino, que Rousseau
ouviu talvez trepado ainda na ceregeira, oiço-o eu a cada instante
nos labios, que poderiam matar com duas palavras meigas esta sêde que me
devora.

--E essas duas palavras ainda ninguem as proferio?

--Ninguem, respondeu Frederico suspirando.

--E com tudo, tornou Lucinda, conheço eu uma pessoa em cujos labios
ellas fermem.

--E quem é essa pessoa? perguntou elle ancioso.

Lucinda estacou. Decididamente o proprio selvagem Rousseau perceberia
melhor.

--Alguem, cujo nome lhe não posso dizer.

--Oh! diga ao menos a primeira letra.

Lucinda fez-se vermelha de colera, e mordeu os labios impaciente. Subito
uma idéa qualquer, travessa de certo, illuminou-lhe o espirito, porque
os labios, que mordera para occultar o despeito, mordeu-os afinal para
suffocar o riso. Depois respondeu com ar de mysteriosa confidencia:

--Diga-me; não passa frequentes vezes pela rua de...?

--Porque? perguntou Frederico espantado.

--E, levando os olhos baixos até ao meio do comprimento da rua, quando
chega a este ponto não os levanta instinctivamente, e não os crava n'uma
varanda onde não ha só flores nos vasos?

--Assevero-lhe, minha senhora... tornou Frederico estupefacto a mais não
poder ser.

--Oh! eu sou discreta.

--Juro-lhe...

--Não jure, mas prometta-me apenas uma cousa.

--Qual é?

--Escolher-me para confidente dos seus primeiros amores.

--Mas, minha senhora... bradou Frederico, desesperado por ver fugir-lhe
o momento que tanto ambicionára, e que julgára já tão proximo.

--Silencio, respondeu Lucinda pondo-lhe a mão alva e tepida no braço,
não vê que estamos em Lisboa?

Frederico não sabia se havia de beijar ou morder essa mão travessa, que
lhe approximava da boca a taça do philtro suave do amor, para lh'o
furtar depois aos labios calcinados. Afinal não fez nem uma nem outra
cousa.

Mas effectivamente estavam em Lisboa. Nas aguas negras do Tejo, aqui e
ali ainda prateadas por um raio da lua, que se insinuava por entre a
intrincada floresta dos mastros das embarcações, ondeava o reflexo
trémulo dos candieiros do gaz. Ao choque do barco parando de subito,
acordaram estremunhados os progenitores de Lucinda. Frederico ainda
esperava ao menos poder sentir o doce peso da gentil menina, ajudando-a
a saltar em terra. Mas a volumosa mamã offereceu-lhe o braço, e em medos
e tremores reteve-o tempo bastante, para que Lucinda, ligeira como uma
gazella, saltasse para o caes, poisando apenas ao de leve os dedos finos
e alvos no braço d'um dos remeiros.

Frederico despediu-se pouco amavelmente dos seus companheiros de viagem,
e teve vontade de mandar passeiar Lucinda, quando esta lhe disse ao ouvido:

--Não se esqueça do que prometteu.

É verdade que o pobre rapaz, voltando a cara com um gesto de amuo,
não poude ver o longo olhar, apenas levemente malicioso, com que Lucinda
o seguia.


II

Na vespera d'esse dia, em que se passára a scena que narrámos recebera
Lucinda d'uma sua amiga de collegio a seguinte carta:


                                                      Minha querida amiga

Que saudades eu tenho do nosso tempo de collegio! d'aquelles bons
serões, que passavamos juntas, quando todas já estavam adormecidas,
emquanto nós deixavamos divagar a nossa imaginação por todos os
assumptos, por todos os sonhos, por todas as phantasias d'este mundo!
como eu tenho impressa na memoria a tua palavra eloquente e colorida, e
a audacia com que tu, com a superioridade da tua intelligencia,
julgavas tudo e te arrojavas aos devaneios mais longos, chegando a
assustares-me a mim, pobre criança, timida e fragil, que não ousava
seguir-te nos teus vôos, e que ficava, pallida, vendo-te pairar por
esses espaços desconhecidos, e contemplando na chamma da tua pupilla um
reflexo do fogo intimo, que te devorava.

Creio que foi mesmo essa differença de genio, que tornou mais forte a
nossa ligação. Tu consagraste á pobre orphã a amizade protectora das
mães, eu tive por ti a veneração e os extremos de filha. Eras o roble e
eu o vime, ou antes a hera que me enroscava a ti.

Mais velha do que eu, saiste primeiro do collegio, e deixaste a pobre
criança, isolada no meio de companheiras com as quaes sempre me ligára
pouco. Ah! como o collegio então me pareceu triste e sombrio, como a
regente me pareceu insupportavel, como olhei com raiva e frenesi para os
altos muros do jardim, e que odio tive á hora do recreio, outr'ora tão
alegre, porque eu, fugindo ás brincadeiras das meninas mais novas, tu
ás frivolas conversações das da tua idade, procuravamo-nos uma á
outra, e passavamos horas infinitas a contarmos as nossas impressões, e
a explicarmos o sentido dos sonhos da nossa noite.

Depois, os meus dias de jubilo foram aquelles em que recebia as tuas
cartas; mettia-as no seio, e esperava com impaciencia a hora de descer
ao jardim para as poder ler á vontade, longe do frivolo ruido dos jogos
das educandas. Assim que resoavam na pendula as bemaventuradas
vibrações, ahi descia eu toda jubilosa a escada, e ia esconder-me
n'aquelle caramanchão tão nosso favorito, que ficava junto d'aquella
fresta gradeada por onde ás vezes espreitavamos os raros passeiantes que
atravessavam a nossa rua solitaria, tu achando sempre no teu espirito
fertil um epigramma para arrojares aos pobres homens que passavam sem
suspeitarem a rapida analyse a que n'um dado instante ficavam sujeitos,
eu rindo, como uma louca, das tuas chistosas malicias.

Ahi lia pois, as tuas cartas, d'ahi te seguia n'esse mundo que me
pintavas tão bello, como o espaço immenso assusta a avesinha apenas
emplumada, que lança a cabeça fóra do ninho, e que segue em parte
com inveja, em parte com receio os graciosos vôos que a mãe descreve nos
ares, para a convidar a seguil-a. Mas a fascinação do teu espirito
vencia, como sempre, os receios do meu, e ficava com a tua carta nas
mãos, pensando nos bailes, de que tu eras rainha, nos amores, que
volteiavam em torno de ti, como as borboletas em torno da luz, e a que
tu, incorrigivel _coquette_, te comprazias tanto em requeimar as azas.

D'ahi resultou que esperei anciosa, bem que timidamente, a minha saida
do collegio, e que os prismas das tuas cartas me fizeram sonhar um mundo
côr de rosa, que está bem longe, devo confessal-o, da realidade tal como
ella se me tem mostrado nos quinze dias que já passei fóra do ninho da
nossa infancia.

Effectivamente minha tia deu a minha educação por acabada, e levou-me
para a sua companhia, muito contra vontade, segundo me parece. Não
porque ella me não tenha affecto e pelo contrario; mas minha tia, optima
senhora no fundo, tem um terrivel sestro; aos cincoenta annos quer ainda
inspirar amor, e combate, com uma energia desesperada, as asserções
da sua certidão de baptismo. Ora, uma sobrinha de dezenove annos, filha
d'uma sua irmã mais nova, é um terrivel documento, que protesta contra
os cabellos d'um ébano artificial, e contra a rebocada lisura do rosto
de minha tia.

Ah! que vida vae ser a minha, se não acho meio de diminuir a minha
edade, e de usar de novo fato curto. Minha tia, que ainda aspira a
dançar com sufficiente ligeireza, e que não deseja entrar no numero das
supplentes das contradanças, que só se convidam quando falta algum par
para fazer a quadrilha completa, não me leva aos bailes, porque são, diz
ella, perigosos para as meninas da minha edade, e até comtigo mesma,
perdôa-lhe, minha boa amiga, se não quer relacionar, dando para isso
razões frivolas, mas sendo o verdadeiro motivo os teus vinte e cinco
annos que não podem ficar bem á amiga de collegio d'uma menina tão nova
como eu devo ser, segundo os seus calculos.

Aqui vivo, pois, n'esta casa da rua de... mais triste do que no
collegio, depois da tua partida, sem chegar uma unica vez á janella,
lendo, bordando, desenhando, ou conversando com o meu piano, emquanto
minha tia, preparada, enfeitada e auxiliada por todos os cosmesticos
imaginaveis, passa o tempo á janella, travando cem namoros por dia, e
apresentando, da altura do seu quarto no segundo andar, a cuja varanda
se colloca de preferencia, um rosto juvenil, que illude um ou outro
passeiante ocioso, que ande procurando pelas janellas quem lhe acceite
as homenagens.

O que me consola um pouco da minha vida insipida é um grande jardim,
cheio de sombra e de mysterio, de flores e de aromas, onde passo as
tardes, e onde muitas vezes me esqueço e me esquecem á noite, ficando eu
largas horas scismando ao luar, e deixando-me ás vezes surprehender
pelos primeiros clarões da alvorada.

Ahi tens a vida que eu passo, minha querida Lucinda; não achas que tenho
razão para me lembrar com saudades do collegio? Escreve-me tu ao menos,
já que minha tia se obstina em me ter reclusa, e em não me permittir
a doce consolação de te vêr e de te abraçar; escreve-me, porque só as
tuas cartas me ajudarão a supportar o fastio d'esta existencia.

                                                            Tua boa amiga

                                                                Adelaide.


Comparem os leitores o que n'esta carta se diz com as indicações dadas a
Frederico por Lucinda, e perceberão qual era a travêssa idéa da
maliciosa rapariga.


III

Renunciemos a descrever o despeito de Frederico, quando teve uma prova
da completa indifferença de Lucinda no desprendimento com que ella se
fazia interprete d'um outro amor. Depois folgou de ter encontrado um
pretexto para desculpar comsigo mesmo a sua desastrada timidez, e
louvou-se de não ter avançado a ponto de se vêr collocado n'uma posição
ridicula com pessoa que a aproveitaria com tão boa vontade. A todos
estes sentimentos, que primeiro lhe tumultuaram no cerebro, succedeu o
amor proprio offendido, «Pois que! dizia elle, é de marmore esta mulher?
Está junto de mim n'aquella noite voluptuosa, toda impregnada de
languidas emanações, de vagos murmurios, de maviosissimos fulgores,
sente a minha respiração abrazada, crava os seus olhos nos meus, aperta
as minhas mãos trementes, deixa-se embalar commigo, commigo como uma
creoula na rede, pelo movimento lascivo das ondasinhas do Tejo, e nada
d'isso a commove, e lhe faz perder por um instante ao menos, os seus
habitos de _coquetterie_? A propria Leonora Falconieri de Feuillet
sentiria uma vaga impressão amorosa n'aquelle bote que resvalava ao lume
d'agua, todo banhado de luar, abrindo no rio um sulco phosphorescente, e
Lucinda, depois de me ter abrazado toda a noite com o fogo infernal das
suas pupillas, acaba por me fazer friamente a confidencia do amor d'uma
das suas amigas? Oh! _coquette_.

«Pois bem, continuava elle, hei de lhe fazer a vontade, hei de namorar
essa mulher desconhecida, e será Lucinda a minha confidente? Oh! então,
quando não tiver o receio do ridiculo que accommette um pretendente
desastrado, então serei audacioso, então fallarei com eloquencia, então,
far-lhe-hei sentir bem tudo o que ella perdeu, tortural-a-hei se não
com os espinhos do ciume, pelo menos com os da vaidade ferida,
triumpharei... e talvez conseguirei d'essa fórma attrahil-a e
fascinal-a, como ella me fascinou a mim.»

E o modesto moço, acabando este longo monologo, vestiu-se, alindou-se, e
saiu com uns modos conquistadores, para passar pela rua de...

Logo no principio da rua elle ergueu a cabeça, e principiou a revistar
as janellas; o coração pulsava-lhe com violencia, mas animou-se com a
idéa de que se não veria obrigado a dizer uma só palavra, e um olhar não
era cousa que muito custasse á sua timidez rebelde.

Effectivamente no sitio designado estava uma senhora á janella.
Frederico fitou os olhos n'ella, e achou-a linda, apesar da distancia ou
por causa d'ella; voltou a cabeça depois de passar, e encontrou de novo
os olhos da galante menina, que logo os desviou o mais depressa que
pôde, mas sem que podesse evitar o ter sido surprehendida em flagrante
delicto. Frederico affastou-se triumphantemente.

Uns poucos de dias se repetio esta manobra, sem que Frederico ousasse
passar d'essas demonstrações visuaes, mas continuando com intrepidez o
seu passeio diario. Afinal chegou a occasião de ir contar a Lucinda os
seus novos amores. A sr.ª D. Leocadia d'Azevedo encontrou-o na rua, e
convidou-o para jantar.

Á tarde desceram todos ao jardim, que tinha muro para a rua, e um
pequeno mirante cercado de madresilvas. Os convidados dispersaram-se em
grupos, e Lucinda e Frederico acharam-se sós no mirante.

A vista que d'alli se gozava era linda; via-se uma parte da cidade
baixa, e do lado do Occidente a vista estendia-se desassombrada, sobre
uma porção do rio, que se prolongava até ao extremo horisonte.

Era ao cair da tarde; o sol atufava-se nas aguas, e illuminava com um
resplendor d'oiro e purpura o horisonte, semeando de aureas palhetas o
Tejo, rodeando co mum nimbo luminoso o vulto distante da Ajuda, e mais
além uma sombra tenue, uma especie de vapor doirado, que, pela posição,
devia ser o vago perfil da torre de Belem.

A brisa fresca da tarde, ondeiando os cabellos de Lucinda, e meneiando
brandamente os ramos e as folhas da madresilva, enchia os ares de
perfumes. Frederico scismava.

--Esqueceu-se da sua promessa? perguntou Lucinda.

--Ainda se lembra d'ella? tornou Frederico amargamente.

Um relampago d'alegria illuminou os olhos da gentil senhora.

--Se lembro, tornou ella, sou uma credora inflexivel.

--Pois bem, respondeu Frederico, córando muito, e fazendo um esforço
sobre si mesmo, deixe-me agradecer-lhe o ter feito a felicidade da minha
existencia.

--Sim? tornou ella ironicamente. Então ama-a loucamente?

--Se a amo! tornou elle cravando os olhos ardentes na formosa menina que
tinha diante de si, tanto que nem eu suppunha que se podia amar assim.
Oh! mas é que tambem é uma creatura celestial, tão bella que os anjos a
invejam.

Lucinda mal podia soffrear o riso.

--E essa belleza, é provavelmente como a de Marilia, tornou ella, para a
pintarem não bastam as tintas da terra, são necessarias as do céu. Por
conseguinte nem ouso pedir-lhe que m'a descreva.

--Porque? Não a conhece! perguntou Frederico espantado.

Lucinda embaraçou-se, mas promptamente recuperou o sangue-frio.

--Somos amigas intimas, como sabe; comtudo não desgostaria de poder
apreciar o seu talento de pintor.

Frederico fitou os olhos nos d'ella, como se tentasse prescrutar o seu
pensamento. Lucinda desviou os seus.

Uma idéa, que elle julgou louca, passou pela mente de Frederico.

--Vou tentar, disse o timido rapaz, com mais animação do que a que lhe
era habitual, e cravando pela primeira vez com firmeza e ardor os seus
olhos ao rosto de Lucinda; e para me ser mais facil a tarefa,
permitta-me que lhe narre como e onde me senti verdadeiramente
deslumbrado pela sua rara belleza, e como ousei dizer-lhe com os meus
olhos o amor immenso que me enchia a alma. Era a hora do sol posto; ella
estava com a face encostada á mão e como v. ex.ª n'este momento. Nos
seus olhos negros parecia fluctuar a vaga tristeza do crepusculo; os
cabellos, arfando suavemente com a brisa, enquadravam-lhe uma fronte
alva e limpida, tão limpida, que de vez em quando parecia que n'essa
testa innundada de luz se via passar a vaga sombra do pensamento.
Rodeiava-se de flores, que formavam ao seu doce vulto uma profunda
moldura. Ao vel-a assim, melancholica como o anjo da tarde, suave e
meiga, como a anjo dos celestes amores, pensei que a ventura suprema
seria viver a seus pés, e enviando-lhe a minha alma n'um olhar,
votei-lhe um affecto, profundo e ardente como os seus negros olhos.

Lucinda ouvia-o arrebatada; fôra isso mesmo o que ella desejára, fôra
isso mesmo o que ella tivera em vista acenando-lhe com essa miragem
d'amor da velha tia, amor nada perigoso, porque, da mesma fórma que a
miragem, de longe podia fascinar, mas de perto conhecia-se o
areial... dos cincoenta annos.

Se Frederico se deixasse arrastar pelo demonio da inspiração, e
levantasse um pouco mais o véu de gaze com que encobrira a sua
declaração, Lucinda poderia auxilial-o, confessando-lhe o seu ardil, e
quebrando d'essa forma o gelo. Mas infelizmente a maliciosa rapariga, um
instante docemente perturbada pela eloquencia de Frederico, pensou de
subito, quando elle findou o seu trecho, na ficticia inspiradora d'esse
memoravel discurso, e deu aos seus labios uma expressão de riso
reprimido, que bastou para que o espirito sensitivo de Frederico logo se
retraisse, e tremesse de ter avançado tanto.

Lucinda percebeu o erro, e quiz remedial-o. Já era tarde. Frederico
retirou-se desgostoso. Ella, vendo-o partir, bateu o pé com despeito. A
_coquette_ ia-se enleiando nas suas proprias redes.

--É necessario que esta comedia acabe, murmurou ella com as lagrimas nos
olhos, ainda que eu tenha de me lançar nos seus braços, como uma doida;
porque sinto agora essa commoção desconhecida, de que tanto me
fallavam, e de que eu tanto zombava. Amo.


IV

Não conhecem os leitores o caracter de Lucinda, se supposeram que ella
se importasse um instante só com o desejo que a tia d'Adelaide
manifestára de não se relacionar com a amiga de collegio de sua
sobrinha. Foi ella mesma que tomou a iniciativa; apresentou-se em casa
da sua antiga companheira, não pareceu reparar na frieza da dona da
casa, lisongeiou-a na sua mania de combater a velhice, declarou alto e
bom som que Adelaide era no collegio uma creancinha, de que ella fôra
não a companheira, mas a protectora, a segunda mãe. Esteve quasi dizendo
que a sua amiguinha entrára para o collegio ainda de mama. Estas
asserções illuminaram n'um momomento o rosto da tia, dissiparam como por
encanto a sua frieza, e deram a Lucinda o logar d'amiga intima. Esta,
affectava sempre tratar D. Marianna com familiaridade, fazia-lhe
confidencias imaginaveis, e pedia-lhe egual franqueza. A boa senhora
caiu no laço, e, córando pudicamente, principiou a narrar-lhe aventuras
não menos suppostas, porque os namoros que obtinha desfaziam-se sempre á
luz traidora do dia, quando o desgraçado pretendente, fazendo sentinella
á porta da casa, via a dois passos de distancia os encantos que o haviam
fascinado da altura d'um segundo andar.

D. Marianna devia ter sido formosissima; e d'essa formosura extincta
conservava olhos, onde ainda se não apagára de todo o sacro fogo. Eram
elles o nucleo em torno do qual se agrupavam os feitiços artificiaes.

Notava, comtudo, Lucinda, uma extraordinaria tristeza em Adelaide.
Preoccupada e melancholica, a loira creança, em vez de procurar a
companhia da sua amiga de collegio, evitava-a pelo contrario, e parecia
estar cada vez mais affeiçoada á solidão do seu jardim. Debalde
Lucinda tentava penetrar o segredo d'esta preoccupação. Adelaide era
impenetravel. Lucinda, devemos confessal-o, não insistiu muito, e,
pensando unicamente no meio de deslindar a comedia, cuja teia
imprudentemente urdira, depois de scismar alguns instantes na
extraordinaria melancholia da sua amiga, não fez mais esforços para
penetrar o mysterio.

Os seus amores é que progrediam maravilhosamente, Frederico fallava-lhe
do seu amor tão fervidamente, acompanhava as suas confidencias com tão
ardentes olhares, que não se podia duvidar que, apesar de toda a sua
timidez, um levissimo impulso bastava para quebrar os cordões da
mascara, e transformar n'uma declaração franca e discreta, as confissões
que se trocavam enygmaticamente, por meio d'essas bemaventuradas
confidencias e que se commentavam e explicavam pelo fogo das pupillas.

Comtudo o momento decisivo approximava-se, estava já por tal fórma
retezada a corda do arco, que por muito que Frederico hesitasse em
despedir a frecha inflammada, ella partiria expontaneamente, n'um
instante de exaltação. Vinte vezes Lucinda julgára que esse momento
cubiçado era chegado emfim, vinte vezes vira Frederico apertar-lhe a mão
convulso, e mover os labios como se fosse a proferir a palavra que
rasgaria o véu transparente, que encobria esses amores, e vinte vezes a
mão lhe descaira gelida, e vinte vezes os labios se tinham cerrado sem
balbuciarem um som. E comtudo não era a timidez de Frederico o
obstaculo; n'esses instantes estava elle n'esse estado d'ebriedade
doida, em que se não pensa, em que os sentidos, o espirito, a
imaginação, tudo se acha exaltado a tal ponto que o mais timido se
arroja a audacias que depois o fazem estremecer. É como esse instante
rapido, em que nas batalhas o fumo da polvora, o troar da artilheria, os
gritos de victoria, o clangor das trombetas exaltam os proprios covardes
e os arrojam, momentaneamente intrepidos, ao centro das fileiras
inimigas. Lucinda estava tambem demasiadamente commovida para que
podesse gelar esse enthusiasmo fervente com um sorriso ironico, uma
palavra mordaz. Mas parecia que uma voz desconhecida, uma sombra
fatal vinha murmurar ao ouvido de Frederico algumas palavras sinistras,
e, remorso ou receio, Frederico ficava melancholico e sombrio, como os
convivas de Lucrecia Borgia, ouvindo no meio dos seus cantos bachicos
resoarem as notas funebres do côro dos monges.

Lucinda não percebia esta hesitação de nova especie, e receiando
vagamente um novo perigo, resolvera dar á comedia o seu desenlace.

Duas palavras de Frederico decidiram-n'a de todo.

Um dia, depois de terem feito mil floreados sobre o amor a proposito ou
antes a desproposito de intangivel, da vaporosa Laura d'aquelle
Petrarcha inconstante, Frederico deixou pender a fronte melancholica, e
murmurou:

--Pobre criança!

Lucinda ia desatando a rir; a frase «pobre criança» applicada á
quinquagenaria tia era d'um effeito comico, ainda realçado pelo tom
sentimental do romantico mancebo.

Mas, ao mesmo tempo, Lucinda sentiu um inexprimivel jubilo. Essa frase
queria dizer: «Pobre victima, que julgas ser o alvo dos meus
pensamentos, e que não és mais do que o escudo, que me serve para
conquistar, com mais resguardo, o amor da mulher a quem adoro.» Assim,
essas suas palavras eram uma confissão explicita do que se passava na
sua alma; encerravam em si a chave do enygma.

Porém, Lucinda não desejava que esse sentimento de compaixão soasse
indefinidamente no peito de Frederico Nunes; julgára que, apesar da
distancia, o seu namorado chegasse a tomar a sério o amor de D.
Marianna. A pretenciosa tia podia parecer uma galante senhora, bem
conservada, nunca uma formosa rapariga. Lucinda sempre julgára Frederico
cumplice do seu amoroso artificio. Vira que elle precisava d'um meio,
por mais tenue que fosse, para fallar sem receio, proporciona-lhe a
occasião de o obter. Se elle a acceitasse, é porque realmente a amava.
Assim succedeu, e como, nos termos a que tinham chegado, o véu, além de
ser inutil, era tambem prejudicial, tratou de o dilacerar.

Para isso dirigiu-se a D. Marianna, e disse-lhe que um mancebo elegante
que nutria por ella a mais violenta paixão, que se julgava
correspondido, se podia acreditar nos ternos olhares com que da
janella o favorecera, sabendo a amisade que as ligava, e sendo da
intimidade de Lucinda, se dirigira a esta para que obtivesse da sua
amiga uma entrevista, em que lhe podesse declarar o seu affecto e o
desejo que alimentava de o ver coroado por um feliz hymineu. D. Marianna
caíu das nuvens. Tinha distribuido os seus olhares ternos com tanta
prodigalidade que não sabia qual dos felizes mortaes contemplados na
distribuição, queria dar ao crepusculo da sua vida uma ventura raras
vezes reservada para essa idade, a d'um casamento por amor.

Escusamos de dizer que, depois da resistencia pudica e indispensavel, D.
Marianna consentio na entrevista. Marcou-se dia, ou antes noite, porque
D. Marianna, allegando a maledicencia das visinhas, mas na realidade
para não ter que affrontar senão a luz mentirosa das vellas, exigio
obstinadamente que fosse a essa hora. Convencionou-se que Lucinda daria
a chave do jardim ao aventuroso namorado, e que passaria aquella noite
em sua casa para entreter Adelaide, e velar assim para que não fosse
perturbada a amorosa entrevista.

Combinado por este lado o plano estrategico, Lucinda dirigiu-se a
Frederico. Disse-lhe que a sua amiga desejava ardentemente fallar-lhe,
que o encarregava de lhe dizer que era tão urgente a necessidade d'uma
entrevista que a obrigava a pôr de parte a modestia feminina, e a
dirigir-se a elle, fiando-se na sua honra de cavalheiro. Demais uma
senhora respeitavel assistirá á entrevista. Concluiu dizendo-lhe que era
na seguinte noite que devia realisar-se a entrevista, ensinando-lhe a
topographia da casa e dando-lhe a chave do jardim.

Lucinda dissera isto com voz artisticamente suspensa, como se debalde
tentasse reprimir os soluços. Estava preparando uma explosão. Podia ser
esse o instante supremo. Frederico devia talvez cair-lhe aos pés, e o
susto que teria, elle o timido moço, de ter uma entrevista com uma
mulher, apressaria o desenlace. Teria nesse caso a coragem do medo.

Effectivamente era esse o caminho que iam tomando as coisas. No primeiro
impeto Frederico ia arrojar-se aos pés de Lucinda, atirando para
longe de si a chave do jardim. Mas a reflexão sobreveio, e o extranho
rapaz apanhou a chave, e passando a mão pela testa, disse com voz firme:

--Irei. É um dever d'honra.

Lucinda amaldiçoou os escrupulos do seu namorado. O destino
obstinava-se; a comedia tinha de se representar até ao fim.


V

Chegou finalmente o dia marcado, e esperado com impaciencia por D.
Marianna. Lucinda andava perturbada, e tanto que nem deu por um
redobramento de tristeza que se tornava bem visivel no rosto da sua
amiga Adelaide, de quem ella se esquecia tanto. Adelaide primeiro fugira
a escolhel-a para confidente, porque bem conhecia a sua indole
sarcastica, e não queria expor os pobres passarinhos dos seus sonhos a
terem a aza magoada por algum epigramma de Lucinda.

Mas pouco a pouco Adelaide sentiu-se despeitada, por vêr que á sua boa
amiga era tão completamente indifferente o estado do seu espirito.
Adelaide, vendo isto, julgou-se a pessoa mais infeliz d'este mundo;
tinha na vida, negro o presente, o passado, e o futuro; o presente
ensombrava-lh'o a ciosa preoccupação da sua vida, o passado, onde ella
se engolphava com jubilo quando a realidade da existencia a torturava,
ennegrecera tambem com a indifferença de Lucinda, o futuro, esse
devaneiara-o ella bem dourado, e bem cheio de luz, um sonho rapido e
fragrante atravessara-lhe, e perfumára-lhe o viver.... mas esvaíra-se bem
ligeiro como sonho que era, tornando apenas com a sua luz fugitiva mais
espessas as trevas, que voltaram de novo a enlutar-lhe a mocidade.

A amisade, que votava á sua companheira de collegio, e a profunda
tristeza que a salteiára, venceriam a resolução em que estava de
conservar secreto tudo o que se passava no seu espirito, e o receio que
tinha dos sarcasmos de Lucinda, se a indifferença d'esta não a ferisse
mais do que todos os seus motejos. Mas Lucinda andava preoccupada,
Lucinda nem reparava na pallidez da sua amiga. Vir ella passar um dia a
sua casa, prometter ficar á noute, e não lhe dirigir durante esse
tempo todo, mais de quatro ou cinco palavras, era uma cousa que a pobre
Adelaidesinha não podia perceber, e ainda menos, a intimidade subita que
se estabelecera entre sua tia e a sua amiga. N'esse dia andou aquella
toda azafamada a enfeitar-se, a pintar-se, a lustrar o cabello, a dispor
_coquettemente_ a sala de visitas; Lucinda ajudava-a n'este trabalho, e
trocava com ella em voz baixa palavras mysteriosas. Perguntou Adelaide,
espantada de ver tantos preparativos, se se esperava alguem nessa noute,
recebeu uma resposta secca das duas senhoras; e a pobre menina,
suffocada em soluços, e não podendo conter as lagrimas, refugiou-se,
levando um livro, no seu caramanchão favorito. Ahi desaffogou, derramou
prantos copiosos, nomeou-se, por decreto proprio, a mais infeliz de
todas as mulheres, e pensou que estava abandonada por todos, e que,
orphã desde a infancia, era destino seu caminhar solitaria no mundo.

Entretanto, descia a noute, e ella não pensava em voltar para casa.
Lucinda, vagamente inquieta, não se tirava da janella. Apezar das
palavras que Frederico dissera, ao receber a chave do jardim, Lucinda
conhecia bastante a sua timidez organica (se assim podemos dizer) para
suppôr que elle não ousaria nunca transpor o limiar da porta. Embebida
n'esses pensamentos, esquecera-se completamente de Adelaide, e do
encargo que recebera de a entreter, emquanto durasse a entrevista. D.
Marianna, enebriada por aquella inesperada aventura, collocava as vellas
de modo, que se conservasse na sala a tibia luz, aconselhada por
Garrett, a penumbra tão util aos amantes, e duplamente util, a quem só
dispõe d'esse recurso para combater, com mais ou menos vantagem, os
inconvenientes d'uma certidão de baptismo, que já podia entrar na classe
honrosa dos documentos historicos.

Lucinda, encostada á janella do seu quarto, cravava os olhos na
escuridão, procurando distinguir o vulto elegante de Frederico. De vez
em quando ia espreitar á porta da sala e ria-se. D. Marianna, sentada no
canapé, vestida com o fato mais fresco e juvenil, esperava
magestosamente a visita d'aquelle a quem os seus encantos tinham
rendido.

Afinal, Lucinda viu um homem que se dirigia, envolto n'uma capa escura,
para a porta do jardim. As pulsações febris do seu coração
indicaram-lhe, mais depressa do que a vista, que era esse o vulto de
Frederico.

A noute estava negra; mas um candieiro de gaz, illuminando em cheio a
porta do jardim, permittia a Lucinda seguir todos os movimentos de
Frederico. Viu-o hesitar, metter a chave na fechadura, tiral-a e
affastar-se. Lucinda sorriu-se.

--Deita-a por cima do muro, e foge, murmurou ella.

Mas enganava-se; Frederico pareceu tomar uma resolução definitiva,
tornou rapidamente a metter a chave na fechadura, abriu a porta e entrou
no jardim.

--Está predestinado, murmurou Lucinda affastando-se da janella. Os seus
tolos escrupulos obrigam-n'o a enterrar-se até á cintura no tremedal do
ridiculo. E depois quem sabe? Talvez depois de reconhecer a
quinquagenaria formosura da Calypso que vae abandonar, o punjam mais os
remorsos.

E Lucinda desatou a rir. Mas a reflexão veiu, e uma sombra de
melancholia se lhe espalhou no semblante.

--Esta minha indole zombeteira, murmurou ella, ha de ser sempre um
obstaculo á minha felicidade. Devo fazer penitencia. O ridiculo, a que
expuz os dois actores da scena que se vae passar na sala, é enorme. Eu
não o perdoava. Perdoal-o-ha Frederico? Perdôa de certo, perdôa e com
que jubilo, em sabendo o motivo que me guiou! Mas não devo deixar passar
uma noute sobre o seu resentimento. Agora mesmo, agora quando esse D.
Quixote de donzellas cincoentonas voltar mal-ferido da sua justa cortez,
farei como Altisidora, ousarei pôr de parte o pudor feminino para lhe
dizer «Amo-te» e para o consolar com essa palavra só do encantamento da
nova Dulcinéa.

E a travessa rapariga, desatando a rir, desceu a escada que ia ter ao
jardim.

Não havia ainda luar como dissémos, porém, emquanto não surgia a rainha
da noute no seu carro triumphal de madre-perola, as estrellas
scintillavam com vivissima luz no ceu azul, e insinuavam os seus raios
d'ouro pallido por entre a folhagem das arvores, que a brisa meneava.

Lucinda esteve alguns instantes scismando tristemente. A _coquette_
lamentava talvez o ter-se enleiado, para conseguir o seu fim, n'esse tão
complicado enredo, que afinal a nada remedeiára, porque se via obrigada
a dar o primeiro passo, exactamente como se não tivesse ideado tantas
combinações machiavelicas para obrigar esse timido Cesar, que podia
chegar, ver e vencer, a passar o Rubicon.

N'isto um vulto de homem appareceu, vindo do lado da habitação,
cosendo-se com os troncos d'arvores, mas fugindo ligeiramente. Devia ser
Frederico.

Lucinda avançou para elle, com o coração a pulsar-lhe violentamente.

--Frederico! balbuciou ella.

O homem parou.

--Sou eu, sou Lucinda, continuou a ousada menina n'esse momento mais
timida do que elle, eu que venho expiar a minha culpa, e fazer-lhe a
confissão que me absolve. Sim dil-o-hei, sem temer que me accusem de
immodesta: «Amo-o».

E as suas mãos procuravam as de Frederico. Mas coisa notavel, ou as mãos
d'este se lhe esquivavam, ou D. Marianna, arranjando uma variante á
mulher de Putiphar, em vez de lhe arrancar a capa, lhe arrancara as mãos.

Mas quando Lucinda passava do espanto á colera, recebeu um impulso
violento que a fez ir, cambaleando, segurar-se a um ramo de jasmineiro,
e ouviu uma voz grosseira e avinhada, que lhe dizia:

--Você, além de ser descarada, é ladra tambem? Dize-me ternuras, minha
Phylis, mas larga os timidos volateis.

Lucinda soltou um grito horrivel, e fugiu como louca na direcção de
casa. A esse grito sentiram-se passos precipitados, que vinham do fundo
do jardim. Um outro homem lançou-se ás guellas do interlocutor de
Lucinda, e uma outra voz juvenil de senhora começou a bradar por soccorro.

A este barulho correram os criados e destrancaram-se as portas, o jardim
innundou-se de luz. D. Marianna appareceu com esplendida _toilette_ á
porta de casa, o causador d'este tumulto fugiu por cima do muro,
deixando os seus despojos nas mãos do seu contendor, e Lucinda, que
ficára offegante á sombra de uma alta figueira que se afferrava ao muro,
pôde vêr, com doloroso espanto, a seguinte scena:

Frederico victorioso, mas vermelho de colera e vergonha, tinha nas mãos,
como tropheus da sua gloria, duas gallinhas. A pouca distancia estava
Adelaide escondendo o rosto nas mãos. D. Marianna ficára como que
petrificada, os criados riam e segredavam.


VI

Voltemos agora ao instante em que vimos Frederico desapparecer no jardim.

Os calculos de Lucinda peccavam pela base. A auctora d'este enredo não
podia costumar-se a considerar Adelaide, que tinha menos seis annos do
que ella, como uma mulher capaz de amar e de ser amada, não suspeitára
que por baixo da varanda do segundo andar, onde estava Marianna, havia
uma janella de peitos, que n'essa janella, por maior que fosse a
reclusão em que Adelaide vivesse, ia esta espairecer por alguns
instantes, que seria exactamente n'uma dessas occasiões que Frederico
passaria, e que o vulto elegante e nobre d'este moço não produziria
menos impressão na creança de dezenove annos, do que produzira na mulher
de vinte e cinco.

Frederico amava realmente Lucinda, e aproveitára com avidez a occasião
que se lhe offerecia de vencer a sua timidez, e de ter com a esplendida
_coquette_ essas longas conversações d'amor, que nunca ousaria encetar
se esse pretexto se lhe não proporcionasse. Mas a suave figura
d'Adelaide não deixára de lhe fazer impressão, e a tristeza que
principiava a ver na physionomia d'ella, á medida que os dias iam
correndo, sem que essa troca de olhares tivesse resultados, causára-lhe
um vago remorso. Parecia-lhe que essa formosa menina merecia mais do que
servir de pretexto á poesia, de que era outra o objecto verdadeiro;
parecia-lhe que elle commettia um crime, povoando de sonhos d'ouro
aquella juvenil imaginação, para depois só os esmagar com a massa brutal
do desdem.

Portanto aceitára a entrevista, como se acceita o calice d'amargura, que
um dever nobre e elevado nos impõe a obrigação de bebermos. Queria
fallar com Adelaide, confessar-lhe tudo, mostrar-lhe uma franqueza
tal, humilhar-se tanto, que, se não lhe podesse amortecer a dôr, lhe
lisongeasse pelo menos o amor-proprio e o impedisse de se ferir no
doloroso espinho, que lhe ia fazer brotar na tenra haste d'essa namorada
flor da phantasia. No mesmo dia da entrevista (era um domingo) entrava
elle n'uma egreja. Acabava a missa, e no templo solitario estavam apenas
duas mulheres, uma, elegante e airosa, parecia absorvida n'uma prece
fervente, a outra, que era uma criada velha, mostrava impaciencia
visivel de se retirar.

Finalmente a devota senhora ergueu-se, e os seus olhos encontraram os
olhos de Frederico, que reconheceu com espanto a mulher, cuja imagem o
perseguia como um remorso. Estava pallida, os olhos azues languidos e
tristes denunciavam lagrimas enxutas de pouco. Fitou um longo olhar em
Frederico; este pallido e trémulo curvou-se respeitosamente, levando a
mão ao coração, como se uma dôr subita o ferisse, e desviando os olhos
d'ella, affastou-se rapidamente.

N'essa noite, como vimos, estava elle á porta do jardim. Entrou, e,
apenas dera dez passos n'uma pequena alameda, encontrou um vulto
feminino, que se dirigia vagarosamente para casa. Á luz do candieiro de
gaz, que illuminava uma pequena porção da alameda, os dois
reconheceram-se. Adelaide recuou um passo, e soltou um pequeno grito.

--O senhor aqui! bradou ella com voz que debalde procurava tornar firme
e austera. Ah! percebo, continuou ella como que ferida por uma idéa, e
desatando a chorar, julga talvez que sou uma d'essas mulheres levianas,
com as quaes basta empregar a audacia...

Não pôde dizer mais. Os soluços suffocaram-a. Audacia! Era a primeira
vez que Frederico ouvia uma mulher dirigir-lhe similhante accusação.

--Oh! juro-lhe que se engana, exclamou elle caindo-lhe aos pés e não
reparando até no incomprehensivel espanto d'essa mulher, que, segundo
elle julgava, fôra a primeira a conceder-lhe um _rendez-vous_, a ninguem
n'este mundo merece mais respeito. Sou culpado, bem o sei, mas tudo vou
resgatar com a minha franqueza extrema e sem limites.

Adelaide não o ouvia; pendia-lhe desfallecida nos braços; não ousamos
dizer que fosse completamente involuntario esse desfalecimento.

Frederico, consternado, olhou em torno de si, e vio um banco ao fundo da
alameda. Segurando com o braço na cintura de Adelaide, foi-a levando
para esse lado.

Adelaide caiu sentada no banco, e escondeu o rosto entre as mãos.

Frederico ficou silencioso junto d'ella. Sentia d'elle uma desconhecida
perturbação. Aquelle encontro inesperado, a solidão e a noute, o perfume
das flores, combinado com essas vagas e voluptuosas emanações das noites
d'estio, esse vulto flexivel e airoso de mulher que lhe pendera nos
braços, tudo isso, sobrevindo d'um modo tão imprevisto, o enebriava e
entontecia.

Vendo aquella mulher tão linda, com o rosto banhado de lagrimas, o animo
desfalleceu-lhe; como havia elle de dizer a essa creatura do ceu, quando
estava elle mesmo sujeito ao indizivel magnetismo, á fascinação do seu
olhar, como havia elle de lhe dizer: «Illudi-a, sacrifiquei-a a uma
_coquette_, fiz do seu vulto gracioso e angelico, anteparo, que me
resguardasse do fogo d'uns olhos audazes, que me fascinavam e me
queimavam?»

Impossivel! completamente impossivel!

Por isso Frederico pôde apenas balbuciar:

--Perdoa-me?...

Ella abaixou para elle os olhos, em que atravez das lagrimas
transparecia um amor immenso, e com voz suave, tremente, doce e
suavissima, como vibração longiqua d'harpa eolia, murmurou:

--Perdoar-lhe! como lhe não hei de perdoar, se por este momento anciava,
se o meu desejo era vel-o ahi onde está, e ouvir a sua voz? Oh! meu Deus
bem sei que me vae julgar mal, bem sei que o devia repellir, que devia
estranhar o seu proceder? Que quer? Não tenho animo. Ha tanto tempo que
a ventura me foge, que não posso fugir-lhe agora que ella me surge de
subito! Depois eu sei que é cavalheiro, sei que me ama, li-o no seu
olhar, e esse livro mysterioso para nós outras mulheres não tem
segredos. Confio na sua honra, e sequiosa ha tanto d'esta suprema
felicidade, ouso dizer-lhe: «Obrigada por ter vindo, obrigada por
ter prevenido o meu secreto desejo, obrigada por ter lido nas minhas
faces pallidas, nos meus olhos amortecidos a anciedade que me devorava,
por ter adivinhado que morria longe de si, como a flor, a que falta o
orvalho, como a arvore a que falta o sol.»

Frederico, arrastado por esta eloquencia ardente, fascinadora, auxiliada
por uma indescriptivel melodia de voz, pelos murmurios dulcissimos do
jardim, sentia abrazar-se-lhe a imaginação, e o vulto de Lucinda, que
por momentos fluctuava diante d'elle, esvaía-se ao longe como um sonho
ao romper da alvorada, e as palavras d'ella, que primeiro se haviam
interposto ao seu ouvido, e á voz d'Adelaide, pareciam-lhe agora tão
frias e descoradas, comparando-as com essas phrases vehementes, que lhe
iam ferir o coração, porque do coração partiam!...

--Minha senhora... balbuciou elle.

--Oh! chame-me Adelaide, tornou ella, apertando-lhe as mãos com impeto
febril, e diga-me o seu nome para que os meus sonhos o saibam, e mo
venham repetir á noite, depois de eu adormecer balbuciando-o.

--Adelaide, que me enlouquece, bradou o mancebo com a cabeça em fogo.

--O seu nome, o seu nome!

--Frederico! murmurou elle e tão proximo d'ella, que os labios
d'Adelaide pareceram aspirar essa palavra, assim que saiu da bocca do
seu amado, como se temesse que a surprehendesse a brisa.

As arvores meneavam as suas folhudas copas impellidas pelo sopro da
viração; a luz das estrellas tremia no ceu azul, e os seus pallidos
raios, coando-se por entre os ramos, illuminavam frouxamente a alva
fronte de Adelaide.

Subito soou um grito de mulher ancioso e dilacerante.

Frederico levantou-se d'um impeto, e correu para o sitio d'onde partia o
brado; na escuridão topou um homem que fugia, estendeu as mãos e
afferrou-se-lhe ao pescoço.

O resto sabem-n'o os leitores.

.........................................................................

D. Marianna, que, sentada no sophá, vestida, enfeitada, e collocada
na sombra, debalde esperava a promettida visita, correu ao jardim,
ouvindo o grito, e já lá encontrou os criados.

Viu então o ladrão das gallinhas fugir por cima do muro, deixando os
seus despojos no campo de batalha, Frederico empunhando os volateis, e
junto d'elle Adelaide.

A tia ficou fula de colera, notando que sua sobrinha estava n'um
_rendez-vous_, emquanto ella esperava debalde o seu. Era possivel mesmo
que os dois não fizessem senão um.

--O que é isto? bradou ella. A menina com um homem no quintal!

--Minha senhora, disse Frederico abandonando as gallinhas, confesso que
fomos culpados occultando a v. ex.ª os nossos amores, mas estamos a
tempo de reparar essa culpa, porque tenho a honra de pedir a v. ex.ª a
mão de sua sobrinha.

--O logar é improprio bastante, respondeu seccamente D. Marianna, queira
portanto sair. E a menina recolha-se ao seu quarto e seja mais prudente.

Debalde a pobre tia pedia explicações a Lucinda. Esta furiosa
declarou-lhe que nada percebia, e no dia seguinte retirou-se para sua casa.

D'ahi a quinze dias recebia uma carta de Adelaide, a qual, como podem
suppôr, ignorava tudo o que se passára.

A carta dizia o seguinte:


                                                       «Minha boa amiga.

«Caso-me daqui a um mez. Não podes imaginar como sou feliz. Quero fallar
comtigo muito, muito e muito.»


Lucinda rasgou a carta, e pizou-a aos pés com lagrimas de raiva. Ao
outro dia tanto instou com seu pae, tão doente disse que estava que o
resolveu, apesar da extrema repugnancia da sr.ª D. Leocadia em deixar
Lisboa, a irem passar o resto do verão n'uma quinta que possuiam no
Ribatejo.


FIM



UM MELODRAMA EM SANTO THYRSO



UM MELODRAMA EM SANTO THYRSO


I

Estou embirrando solemnemente com o titulo do meu romance. Um melodrama
em Santo Thyrso, n'uma terra pacifica e bem morigerada, cujos habitantes
mais notaveis pela sua respeitabilidade, lêem o _Flos Sanctorum_, e
suspiram pelo tempo dos frades, d'esses incançaveis moralisadores e
bemfeitores da população!

Eu podia inventar um enredo terrivel, e tornar editores responsaveis das
peripecias mais criminosas do meu entrecho, alguns habitantes de quem eu
tivesse tido razão de queixa, quando estive em Santo Thyrso (porque eu
estive em Santo Thyrso, oh! patricios alfacinhas) mas n'aquella boa
terra não fui offendido senão pelas pulgas da estalagem, e, a respeito
de pulgas, nem mesmo as industriosas são proprias para personagens de
melodrama.

Mas eu não quero inventar, quero apenas ser chronista da muito veridica
historia (chavão infallivel) que passo a contar a quem tiver paciencia
de me ler, e declaro desde já aos Santo Thyrsenses, que, se os factos,
que historio, teem uma apparencia melodramatica, a culpa não é minha...
é dos acontecimentos.

Anoitecia; a tarde, apesar do outono ir já adiantado (a acção do meu
romance passa-se em novembro), tinha estado linda, e até mesmo quente;
mas ao pôr do sol levantára-se um vento fino e glacial que ameaçára os
prudentes frequentadores da botica com um diluvio de catarrhos e
constipações, e os narizes dos veneraveis minhotos, victimas d'um abuso
de confiança atmospherico, tinham obrigado os seus donos a procurarem um
abrigo nos lares domésticos, para não apanharem o ar humido da noite,
quando, segundo o seu costume, abandonassem o gamão, para voltarem para
casa a horas mortas.

A horas mortas?! Sim, não posso deixar de confessar que a perversão dos
costumes tinha chegado a Santo Thyrso! Uma roda de jovens extravagantes,
todos de menos de sessenta annos de edade, haviam instituido, com grave
escandalo das pessoas sérias, o costume de se recolherem ás dez horas!!!
Ás dez horas! Ás dez horas, raça degenerada! Quando, no quintal
fronteiro á botica, as gallinhas se recolhiam á capoeira, não vos
parecia ver passar d'envolta com ellas as sombras venerandas dos vossos
avós, aconselhando-vos o regresso a casa?! Netos degenerados, as cinzas
dos vossos antepassados tremem de indignação, não vos sentindo ressonar
ás oito horas da noite... Horror!

Fataes consequencias do progresso! E por toda a parte vae lavrando este
contagio funesto. Tudo está impregnado de immoralidade; a litteratura
mesmo está viciada. Ó adoradores do passado, compadecei-vos de nós!
Actualmente lêem-se os romances de Alexandre Dumas, filho. No vosso
tempo lia-se o _Cavalheiro de Faublas_, e a _Justina_ do marquez de
Sade. Ó tempos felizes d'outr'ora! Ó moral das passadas éras!

Começo eu a perder-me em digressões. É um defeito, que confesso
humildemente; prometto emendar-me d'elle, e vou entrar immediatamente na
minha narração.

Começava pois a anoitecer, quando á porta de uma das melhores casas de
Santo Thyrso um moço e esbelto official de caçadores se apeava de um
cavallo, que mereceria uma descripção especial, se o meu protesto de me
deixar de digressões não fosse ainda tão recente. Basta dizer-se que o
sendeiro de Nicolau Tolentino era um prodigio d'obesidade, comparado com
o ente (rebelde a toda a classificação zoologica), em que vinha montado
o nosso joven official.

A casa, junto á qual tinha parado o intrepido rocinante d'aquelle D.
Quixote arregimentado, tinha uma apparencia seductora para um lisboeta
desterrado na provincia. Via-se que o proprietario attendera ás
condições de elegancia e conforto, quando mandou construir a casa. Duas
senhoras novas ainda, soffrivelmente feias, um tanto pardas, e ambas de
luneta, adornavam ou desadornavam uma das sacadas. Os sons d'um
piano desafinado, (como qualquer piano d'um terceiro andar da baixa, e
tocado com a mestria com que o poderia tocar em Lisboa a menina da casa,
filha d'um negociante rico, em funcção de annos com enthusiasticos
applausos dos convidados... se o serviço ao chá foi bom) chegaram aos
ouvidos do official de caçadores, e vieram demonstrar-lhe que os
instinctos phildesharmonicos da nova geração feminina se revelavam em
Santo Thyrso com tanto vigor, como na terra das alfaces.

O nosso lisboeta (o rapaz effectivamente era de Lisboa) comprimentou
aquelles dois exemplares do sexo feminino, tirados em papel pardo, e
perguntou:

--V. ex.as teem a bondade de me dizer se mora aqui o sr. Bernardo da
Fonseca Guimarães, antigo negociante?

--Sim, senhor, respondeu uma das interpelladas, é meu pae.

--N'esse caso tem a bondade de lhe dizer que lhe trago uma carta do seu
amigo de Lisboa o sr. Antonio Ricardo de Sousa.

--Ó _paesinho_, tornou a rapariga, voltando-se para dentro, está
aqui um senhor official, que o procura.

--Manda subir, Adelaide.

Ao mesmo tempo abriu-se a porta, e o nosso amigo, depois de ter atado á
aldrava a redea do rocinante (o arrieiro chamava-lhe redea, com o mesmo
direito com que o governo chama barão a um lapuz opulento), subiu a
escada, no patamar da qual encontrou o nosso Bernardo Guimarães, em
chinellos de moiro, na mão um barrete conico, em fórma de apagador, e
prompto a receber diplomaticamente a visita inesperada.

--_Antão bossenhoria_ traz-me uma carta do meu amigo Antonio Ricardo?
Ora pois, muito estimo, muito estimo. Como está aquelle maganão?

--Menos mal!

--Elle d'antes padecia muito de callos!

--Ainda hoje.

--Ora bom, entre aqui para a sala... como se chama _bossenhoria_? Quero
apresental-o a minhas filhas, a quem dei uma educação, que não a teem
melhor as fidalgas de Lisboa! Como é a sua graça?

--Eduardo Augusto d'Almeida Teixeira.

--Vá entrando, vá entrando que eu vou ler a carta do meu Antonio Ricardo.

Eduardo Teixeira entrou na sala, e achou-se em frente das duas pardas,
que já tinha visto, e d'uma terceira, que estava sentada ao piano,
bonita fallando em absoluto, e formosissima comparando-a com as outras.
Lindos olhos pretos rasgados, um pouco morena, grande a bocca, mas não
muito desgraciosa,--tal é o retrato da desalmada pianista.

Eduardo comprimentou-as; ellas responderam com um comprimento
ceremonioso, e ficaram todos em silencio.

As raparigas olhavam para Eduardo, como olhariam para um objecto de
curiosidade; e o nosso alfacinha, que não gostava de ser contemplado
como se fosse um macaco de especie rarissima, ou um embaixador japonez,
entendeu que devia sair d'aquella posição embaraçosa, lançando mão da
primeira banalidade, que lhe occorresse. Lembrou-se que ao subir a
escada tinha ouvido o _La dona é mobile_ desfigurado com a maior bulha
possivel pela pianista provinciana.

Foi uma idéa salvadora! Eduardo, por conseguinte, puxou os punhos da
camisa, torceu o bigode com toda a affabilidade, tossiu agradavelmente,
esboçou no sorriso o prologo de uma fineza, e disse com o tom mais
mellifluo que pôde encontrar:

--Minha senhora, eu assim que entrei n'esta casa, tive uma surpresa
muito agradavel.

--Sim, então qual foi? tornou a martyrisadora de Verdi.

--Ouvi tocar admiravelmente no piano um trecho do _Rigoletto_.

As tres meninas olharam umas para as outras boquiabertas. Finalmente a
pianista desfez provisoriamente o ponto d'admiração em que tinha
transformado a cara, e exclamou:

--É espantoso! Como conheceu!

--Mas, minha senhora... observou Eduardo.

--Não admira, é de Lisboa, interrompeu uma das pardas.

--Mas, minha senhora... acudiu o lisboeta.

--Frequenta muito o theatro lyrico, tornou a parda n.º 2.

--Mas, minha senhora... continuou Eduardo já atterrado por aquella
insistencia.

--Oh! o theatro lyrico, acudia a pianista em tom inspirado, e
arregalando muito os olhos, o sanctuario do prazer. Como deve ser bello!
Vio a Lotti, sr. alferes? Tem ouvido o _Rigoletto_? Como elle conheceu!

Eduardo escandalisou-se; o espantarem-se de que elle conhecesse _La dona
é mobile_ era a maior offensa que se podia fazer aos seus conhecimentos
musicaes, por isso não poude deixar de responder:

--Mas, minha senhora, em Lisboa não ha um só gaiato, que não conheça
este trecho.

--Ah! é vulgar!

--Sim, minha senhora, é do dominio do realejo.

N'este momento entrava na sala o sr. Bernardo Guimarães. Vinha com uma
cara prazenteira, oculos no nariz, e sorvendo com delicia uma pitada de
simonte.

--_Antão_ já se conhecem, bradou elle, olhem que este senhor é afilhado
do nosso Antonio Ricardo. _Antão_ está agora em caçadores 7, e tem
licença de um mez? Anda a ver o nosso Minho. Isto para quem vem de
Lisboa, não tem que ver.

--Ora se tem, sr. Guimarães! é um torrão abençoado. Que deliciosas
paisagens, que magnificos panoramas! É realmente uma provincia muito
pittoresca, e muito curiosa até pelas suas recordações historicas.
Guimarães possue reliquias archeologicas importantissimas, e é pena que
as não saibam avaliar devidamente, e que profanem os venerandos
monumentos do berço da monarchia, sarapintando de verde e azul, por
exemplo, a pia do baptismo de D. Affonso Henrique.

--Ora, não me venha com lerias. Os conegos fizeram muito bem. Estava a
pia suja, que mettia medo, e envergonhava a collegiada. Ha mais tempo
que o deviam ter feito. Vejam como agora está bonita. Ninguem ha de
dizer que tem oitocentos annos a tal pia. Vão lá adivinhal-o. Agora nem
o mais pintado.

E o bom do negociante confirmava a sua dissertação artistica com o silvo
estrondoso d'uma pitada.

--_Bossenhoria_ agora fica comnosco alguns dias, tenha paciencia. Hei de
lhe dar agua da fonte da Maria Velha, que tem a virtude de fazer que
quem a bebe só com muito custo saia de Santo Thyrso. Já tem um quarto
preparado, vá descançar um pouco, depois ceia comnosco ás sete horas,
sem ceremonia, sem ceremonia.

--Ó _paesinho_, observou a mais bonita das filhas, este senhor póde ser
que esteja costumado a tomar chá e _tostas_, veja lá não lhe faça mal
ceiar.

--Oh! não, minha senhora, muitissimo obrigado; o meu estômago é d'uma
flexibilidade espantosa, presta-se a todos os usos gastronomicos das
differentes terras. Isto para um militar é essencial.

--Bem dito, bem dito, tornou o sr. Bernardo, até d'aqui a pedaço, hein?

--Até já, minhas senhoras; um creado de vv. ex.as

E Eduardo Teixeira saiu da sala, guiado pelo seu hospedeiro.


II

Vamos nós, amigo leitor, assistir á ceia do sr. Bernardo Guimarães. O
digno negociante não se deve zangar comnosco; eu pelo menos vou com o
proposito firme de não lhe acceitar cousa alguma; porque ao amaldiçoado
caldo verde, e ao detestavel vinho verde tenho um odio particular. Venho
simplesmente, como grande curioso que sou, espreitar o aspecto da mesa,
e ver se pesco a conversa dos convivas, que deve estar interessante.

Ao pé do respeitavel sr. Bernardo, está sentado o nosso alferes de
caçadores, a cair de somno, segundo parece; porque as palpebras
cerram-se-lhe a miudo, e os bocejos, apesar dos esforços incriveis que
faz para os reprimir, tornam-se cada vez mais frequentes.

Á esquerda do nosso Eduardo Teixeira senta-se a veneranda metade do
venerando Bernardo. Cincoenta vezes tem florido a amendoeira desde, que
Santo Thyrso teve a gloria de produzir um dos mais feios especimens da
fealdade humana. Apesar d'isso, rosnavam os maldizentes que um certo
mestre de meninos da villa se encarregára do papel de Cyrineu, que
ajudasse o sr. Bernardo a levar aquella cruz desdentada ao Calvario
matrimonial. Linguas damnadas, que não poupam nem a virtude... nem os
mestres de meninos.

Defronte estava sentado o sobredito sr. Themudo (que este era o nome do
chichisbéo) homem rubicundo, e de proporções herculeas, capaz de levar
trinta cruzes, principalmente carunchosas como aquella, ao Golgotha mais
elevado.

Este senhor estava flanqueado pelas tres meninas da casa, e felizmente
para o equilibrio gastronomico, ficava elle d'esse lado da mesa, porque
as filhas do negociante, donzellas vaporosas e ideaes, achavam feio
comer diante de gente; mas o nosso amigo tratava com muito cuidado do
seu estomago, do coração de D. Belizaria Guimarães, e da cabeça do
ex-negociante, porque comia como quatro, deitava olhos ternos á
respeitavel matrona, e aconselhava o uso do chinó ao marido, que se
queixava de frequentes constipações na cabeça.

No momento em que eu e o leitor começámos a espreitar aquella scena
domestica, tinha um formidavel prato de arroz doce entrado em scena, e o
nosso Eduardo Teixeira, apreciador d'esses doçuras gastronomicas,
atacava-o com um denodo, que honrava sobremaneira o valor do seu...
appetite.

As meninas da casa entretanto apoquentavam-n'o com perguntas ácerca de
Lisboa, do casamento do rei, dos theatros, dos litteratos, emfim, de
todas as cousas da capital, d'esse eldorado das donzellas pretenciosas
das provincias.

--Então, diga-me uma cousa, sr. Teixeira, como ia vestida a rainha no
dia do casamento?

Eduardo, que em questões de _toilettes_ femininos era perfeitamente um
selvagem, e que demais estava saboreando com delicias uma colher d'arroz
doce, respondeu com toda a serenidade:

--Ia vestida de verde, branco e escarlate.

--Uma noiva!

--Sim, minha senhora, trajava as côres italianas, para mostrar o affecto
que tem á sua patria!

--Mas os jornaes não fallavam em tal cousa!

--Ora, os jornaes sabem lá o que dizem,--respondeu Eduardo cortando com
a colher a questão, e um castello d'arroz doce, que se formára ao canto
do prato,--os jornaes estão sempre pessimamente informados.

Ninguem ousou replicar; fallára o oraculo lisbonense, emmudeciam os
profanos da provincia.

--Ó sr. Eduardo, exclamou a menina Adelaide, que era uma das pardas, já
leu o _D. Jayme_?

--Já, sim, minha senhora; v. ex.ª tambem o leu, segundo vejo. É um
bonito poema.

--O que é isso do D. Jayme? perguntou o sr. Bernardo.

--O meu amigo nunca leu aquella sandice, observou o mestre de meninos em
tom... de mestre de meninos, fez bem, fez bem; é um pessimo livro; tem
um erro de grammatica, e meia cacophonia; e demais a mais é
revoltantemente immoral, accrescentou elle, lançando um olhar terno para
a mulher do seu amigo.

--O sr. Themudo deve ser muito enthusiasta da _Historia da Imperatriz
Porcina_, observou Eduardo com a maior gravidade.

--Não desgosto, não desgosto; mas lá o _D. Jayme_, não presta para nada;
e aquelle pateta do Castilho a elogial-o... Ora o Castilho sempre é
homem, que quer ensinar as creanças com um methodo racional! Como se,
para ensinar meninos, fosse necessario ser racional! Aqui estou eu para
prova do contrario. Ensino os pequenos com a cartilha do mestre Ignacio,
e no fim de quatro annos estão promptos. Eu cá sou assim.

--Diga-me uma cousa, sr. Teixeira, conhece o Thomaz Ribeiro? perguntou a
pianista.

--Se conheço o Thomaz Ribeiro? Perfeitamente, minha senhora, tornou
Eduardo, que tinha adormecido quasi, ouvindo o discurso do sr. Themudo.

--Então diga-nos como é a physionomia do poeta?

--Cabellos louros, e olhos azues!

--Ah! é! logo vi que havia de ser assim, e o Julio Machado, conhece-o?

--Ora essa... minha senhora... se conheço o Machado, conheço-o como os
meus dedos.

--Descreva-o lá.

--Cabellos louros, e olhos azues.

--Ah! tambem?!

--Tambem, sim, minha senhora, estatura ordinaria, e bocca regular!

--E o nariz, e o nariz?

--O nariz, tornou Eduardo surprehendido em flagrante delicto de
contemplação diante d'um copo de vinho do Porto, que estava observando á
luz; o nariz arrebitado!

--Arrebitado, tornaram as raparigas em côro, e depois voltando-se umas
para as outras accrescentaram em _rezza-voce_: O auctor das _Scenas da
minha terra_ tem o nariz arrebitado!

--Já se vê, minhas senhoras, observou Eduardo, nariz de folhetinista!
Todos os folhetinistas teem o nariz arrebitado!

--Ora essa, então a mana Emilia, respondeu uma das pardas apontando para
a pianista, a mana Emilia deve escrever folhetins, tem o nariz arrebitado.

--Exactamente, minha senhora, se tivesse o nariz aquilino,
aconselhava-lhe que escrevesse poemas epicos, ou tragedias em cinco actos!

Eduardo, julgando-se livre de interrogatorios, dispunha-se a pedir
licença para se retirar, quando a mana Emilia accrescentou:

--Gostou do _Prato d'arroz doce_?

--Muito, minha senhora; os ovos estavam em muito boa conta, o assucar
magistralmente distribuido, e a canella dizia-lhe muito bem!

--Mas eu fallo do romance de Antonio Augusto.

--Ah! o romance está muito bem escripto, é uma bella obra!

--Conhece o Teixeira de Vasconcellos!

--Ora essa, n'isso nem se falla... sou intimo amigo d'elle. Inda v.
ex.ª me pergunta se conheço o Teixeira de Vasconcellos!

--Descreva-nos lá a cara d'elle. Nós temos muita curiosidade de conhecer
a physionomia dos litteratos notaveis!

--Oh! o Antonio Augusto! Tem cabellos louros e olhos azues!

--Então todos os litteratos de Lisboa teem cabellos louros e olhos azues?

--Todos, minha senhora, exceptuando os ultra-romanticos, que esses teem
olhos verdes e cabello ruivo, e se me dão licença, minhas senhoras,
retiro-me; porque estou caindo de somno e de cansaço.

E saiu, deixando ficar os seus hospedeiros, como se vê, perfeitamente
conhecedores da physionomia dos litteratos lisbonenses.


III

No dia seguinte acordou Eduardo sobresaltado, ouvindo o piano
revoltar-se em guinchos desafinados contra os incriveis tormentos, com
que uma das meninas martyrisava o inoffensivo teclado.

Eduardo julgou que seria pelo menos meio dia; saltou fóra da cama, e
correu á janella. Um nevoeiro densissimo não deixava calcular as horas
pela altura do sol. O nosso alferes tinha vindo na vespera com tanto
somno, que nem reparára que havia um relogio em cima da mesa; quando
voltava da janella, deu com elle, e viu que ainda não eram oito horas!

Com effeito, pouco depois da aurora ter vindo abrir com os dedos
rosados as portas do Oriente, viera a menina Feliciana (parda n.º 2)
abrir o piano com os dedos côr de cobre, e sobresaltar Eduardo com
aquella desafinação matutina.

O nosso heroe arranjou-se á pressa, e abriu a porta do quarto. Apenas o
ex-negociante o sentiu, veiu ter com elle rindo muito.

--Ora viva o nosso mandrião; vá almoçar, ande que lá tem guardado o
almoço. Como passou a noute?

--Perfeitamente; eu peço mil desculpas do incommodo involuntario que lhe
dei; mas vinha tão cansado, e com tanto somno, que, por melhores tenções
que formasse, não consegui levantar-me a horas, mas protesto que será a
ultima vez, que isto me ha de succeder.

--Nada... não incommoda, vá almoçar, ande, e volte depois para a sala
ouvir as pequenas tocar piano.

Quando d'ahi a dez minutos o nosso heroe fez a sua entrada na sala, a
menina Emilia, que estava sentada junto á janella em attitude
melancolica e romanticamente scismadora, cumprimentou-o suspirando
plangentemente; a menina Adelaide fez esforços incriveis para
substituir a camada de secia que lhe cobria as faces, pela camada
carminica indicativa de modestia; e a menina Feliciana, sacerdotisa do
deus _Charivari_, sacrificou o _Miserere_ do _Trovador_, para solemnisar
a entrada de Eduardo Teixeira.

O sr. Bernardo, querendo mostrar ao seu hospede, que conhecia
perfeitamente a musica que a filha estava tocando, assobiava
ingenuamente o _Pirolito_. Eduardo, muito longe de suppôr que aquillo
era musica de Verdi, inclinava-se para a interpretação musical do
honrado negociante.

O nosso alferes foi sentar-se ao pé da menina Emilia, ouviu primeiro em
silencio o _pseudo-Miserere_, e depois, inclinando-se para a
provinciana, que suspirava amiudadamente, disse-lhe a meia voz:

--Está hoje um dia triste, não acha, minha senhora?

--Ah! não me falle n'isso; dias assim esmagam-me o coração. Estes dias
_chubosos_ são horriveis para os soffrimentos interiores!

--V. ex.ª padece do interior... azias de estomago, talvez?!

--Ah! não, senhor, sou excessivamente _nerbosa_; o espirito domina o que
ha em mim de material!

--Hade-lhe fazer muito mal o café, minha senhora, aconselho-lhe os
banhos do mar.

--Para os soffrimentos da alma não tem a medicina _valsamos_, respondeu
a provinciana suspirando ruidosamente.

--Na sua idade, minha senhora, tornou Eduardo, vendo que não havia
remedio senão afinar a conversa no tom de Emilia, na sua idade, só uma
paixão infeliz produz grandes infortunios. Ora v. ex.ª póde inspirar,
mas não sentir uma paixão infeliz, não julgo os santo-thyrsenses tão
faltos de gosto, que algum d'elles recusasse a felicidade invejada por
todos. Só se a morte lhe veiu truncar nas primeiras paginas algum
romance da juventude...

E Eduardo, ufano (com rasão) do romanticismo da sua linguagem,
recostou-se na cadeira com gravidade igual á d'um illustre orador, que,
ao acabar um discurso monumental ácerca do sino da sua parochia, é
cumprimentado por varios senhores deputados de todos os lados da camara,
e de todas as côres politicas.

--Oh! mas vêr as illusões desfolharem-se pouco a pouco, observou a sr.ª
D. Emilia, e ver trocar-se o amor ideal, que sonhámos, pela vil
realidade d'este mundo prosaico... é atroz, não é?

--Soffrer tormentos horriveis... eis a fatal predestinação das almas
privilegiadas, tornou Eduardo, abanando a cabeça lugubremente.

--Diz bem, diz. Ah! não encontrar eu no mundo uma alma irmã da minha,
que comprehenda e avalie o meu affecto! Oh!

--Ih! que massadora, disse Eduardo com os seus botões; tem curso
completo de romances sentimentaes. E o caso é que não é feia. Vou-me
propor a candidato ao throno do seu affecto.

--Ó Feliciana, dizia entretanto o sr. Bernardo á menina que tocava
piano, toca-me aquelle bocadinho do _Ernani_, de que eu gosto tanto.

--Qual é?

O illustre Bernardo começou a assobiar a _Maria Cachucha_ aproximadamente.

--Ah! já sei, é a _cabatina_ do soprano. Já toco.

--Eu, minha senhora, dizia Eduardo em voz cavernosa á sua interlocutora,
tambem por muito tempo vaguei errante no mundo, sem encontrar a mulher
que a Providencia me destinava, aquella que devia realisar os sonhos
mais arrojados da minha phantasia. Nenhuma comprehendeu o amor santo e
puro que eu lhe queria offertar... escarneceram-me e passaram.--Isto não
vae mau, dizia elle lá de si para si; mas eu d'aqui a pedaço
engasgo-me.--Sim, minha senhora, continuava Eduardo enthusiasmando-se,
só agora posso dizer: _Eureka!_ achei no mundo o anjo que eu sonhava...
achei... sim, encontrei... sim, minha senhora, quero dizer que
sympathisei com v. ex.ª desde que a vi, e que serei o mais feliz dos
homens, se corresponder ao meu ardente amor.--Lá estraguei o effeito,
concluiu elle em _áparte_, parece-me que este final é do _Secretario dos
Amantes_.

--Eu, sr. Teixeira, respondeu a menina, procurando córar, eu
acceitaria o seu amor, mas os homens são tão lisongeiros...

--Eu sou uma excepção, creia, minha senhora...

--A mim agradam-me os seus sentimentos, e sympathisei com o senhor
tambem, logo que o vi; mas...

--Ó Emiliasinha, bradou o negociante, vem tocar tambem.

--Lá vou, _paesinho_.--Cale-se, continuou ella, dirigindo-se a Eduardo.

--Mas eu desejava tanto fallar-lhe mais em particular...

--Pois sim, logo ás onze horas da noite, desça ao quintal, que eu lhe
fallo da janella do meu quarto, que deita para lá.

--Oh! quanto lhe agradeço!

--Silencio!

--Então, que lhe parecem as pianistas, exclamou o sr. Bernardo, sorvendo
uma pitada, ha-as melhores em Lisboa?

--Qual historia! Suas filhas tocam admiravelmente! Se as levasse a
Lisboa, haviam de ser muito admiradas.

--A Lisboa? Nada, isso é muito longe, lá esteve agora o meu
Dyonisio; por signal que hade estar a chegar. Elle é rapaz, pode ir; mas
eu e a minha Belizaria, já estamos velhos para essas danças.

--É verdade, o mano Dyonisio temol-o cá um dia d'estes... muito se
divertiu elle por lá provavelmente, observou a menina Adelaide com um
suspiro.

--Deus queira que o Dyonisio se não esqueça de me trazer a musica, que
lhe pedi. Ó sr. Eduardo quer ouvir a aria final da _Lucia_? perguntou a
romantica Emilia.

--Pois não, minha senhora, com todo o gosto, respondeu Eduardo
aproximando-se do piano.

--Como a musica exprime bem os sentimentos da alma! observou Emilia,
quando o viu sentado ao pé de si--eu adoro as musicas tristes!

--Tambem eu, minha senhora, tambem eu.

--Acho prazer em derramar lagrimas, quando oiço algum trecho pathetico.

--Tambem eu, minha senhora, tambem eu.

--Que doce conformidade de sentimentos!

--Tambem eu, minha senhora, tanbem eu, tornou Eduardo distraidamente.

--Que diz?

--Que tambem me enleva, emendou elle, essa conformidade de sentimentos!
Estou ancioso por ouvir a _Lucia_.

N'este ponto vejo-me obrigado a estygmatisar o meu heroe. Tornou-se
cumplice de um assassinio. Para se salvar da entalação, em que a sua
distracção o tinha collocado, sacrificou Donizetti, e a sua opera
magistral. É imperdoavel!

--Quando o crime de lesa-harmonia se consummou, e foi devidamente
applaudido por todos os circumstantes,o nosso Bernardo Guimarães,
dirigindo-se ao moço alferes, convidou-o a ir dar um giro pela villa.
Eduardo acceitou o convite com o enthusiasmo que os seus ouvidos
magoados lhe inspiravam.

E, depois de ter trocado um olhar amoroso com a romantica donzella, saiu
para ir admirar a villa de Santo Thyrso, e o seu convento.

N'essa mesma noite, pouco depois das onze horas, estava Eduardo Teixeira
collocado no quintal da casa do sr. Guimarães, ao pé de uma janella
pouco elevada, janella que servia de tribuna, onde a joven provinciana,
declamava emphaticamente os seus discursos sentimentaes.

Infelizmente para a romantica oradora, a noite estava fria e humida, o
que tinha por tal fórma congelado a pouca doze de sentimentalismo, de
que Eduardo podia dispôr, que respondia a uns protestos d'amor ardentes,
com uns queixumes sobre a frialdade dos pés, e a um trecho sublime
ácerca da lua argentea, da rainha da noite, com um espirro acompanhado
por uma dissertação scientifica sobre o perigo das constipações desprezadas.

Estavam pois aquelles dois entes poeticos embebidos em tão suaves
colloquios, quando de repente no quintal se sentiram passos apressados.

--Que será? bradou Emilia bastante assustada, retire-se depressa, não
quero que ninguem o veja aqui.

--N'esse caso é impossivel safar-me, porque estão interceptadas as
communicações!

--Mas como ha de ser isto, meu Deus!

--Como quem quer que fôr não se dirige ao seu quarto, conceda-me v.
ex.ª por um instante licença que me esconda n'elle, porque lhe dou a
minha palavra de honra, que saio, apenas o perigo tenha cessado.

E, juntando a acção á palavra, Eduardo lançou as mãos ao parapeito da
janella, e n'um pulo se achou dentro do quarto.

Com grande espanto dos dois, um outro vulto appareceu junto da janella,
e, repetindo a manobra de Eduardo, entrou logo atraz d'elle no quarto da
sr.ª D. Emilia Guimarães.

--Dyonisio! bradou aterrada a romantica donzella.

--Querem vêr que é o irmão, murmurou Eduardo.

--_Enbiou-me a Probidencia_, regougou o recem-chegado com intonação
irreprehensivelmente melodramatica, é grande o crime, sr.ª D. Emilia da
Fonseca Guimarães; a vingança ha de ser tremenda, senhor desconhecido!


IV

Os meus leitores, se forem imparciaes, hão de confessar, que nunca leram
scena de tanto effeito, nem de interesse tão palpitante.

O sr. Dyonisio, tyranno interino, typo de janota portuense (vide
romances de Camillo Castello Branco) vinha embuçado n'um capote de
camellão. Ora sabido é, que todos os embuçados, mesmo em chales-mantas,
são terriveis; mas os embuçados em capotes de camellão attingem as raias
da sublimidade melodramatica!

A victima masculina é Eduardo Teixeira, que um defluxo, complicado por
uma grande frialdade de pés, torna duplamente interessante aos
olhos de todos os leitores compassivos. A victima feminina é D. Emilia
Guimarães, a qual, comprehendendo a situação n'um abrir e fechar
d'olhos, _elevou-se_ rapidamente á altura do seu papel, _caindo_
artisticamente em cima d'uma poltrona, á falta de confidente, a quem
dissesse como nas tragedias classicas:

    Desmaiar vou! Recebe-me em teus braços.

--Então quem é _bossenhoria_? Que fazia o senhor n'este quarto?
perguntou o sr. Dyonisio, tirando o chapéu desabado com gesto magestoso,
e armando-se de luneta, á falta de punhal.

--Eu... senhor... eu, tornou Eduardo, convencido que era o irmão, e
conscio por conseguinte do direito que elle tinha para fazer a pergunta.

--Dyonisio, juro-te que sou innocente, exclamou a menina Emilia,
levantando-se rapidamente, e correndo a ajoelhar-se aos pés do homem de
capote de camellão, acredita-me Dyonisio.

--Levantai-vos, senhora, vós não sois culpada; mas o infame seductor...

--Oh! senhor eu não seduzi ninguem.

--Calai-vos.

--Dyonisio, peço-te justiça, e não indulgencia. Eu não trahi os meus
deveres, juro-o perante o ceu, que estende sobre as nossas cabeças o seu
manto azul, puro como a minha alma.

Exageração de metaphora. Sobre as suas cabeças estava apenas o tecto,
que nem era azul, nem puro; porque estava muito sujo das moscas.

--Póde acreditar o que sua irmã lhe diz, atalhou Eduardo, posso
asseverar-lh'o debaixo da minha palavra de honra.

--Minha irmã? As filhas da casa de Val-de-Camellos portam-se d'um modo
mui differente do d'esta menina, indigna mesmo de sustentar o nome
honrado de seu pae, o sr. Bernardo Guimarães.

--Não lhe admitto mais insultos, sr. Dyonisio Antunes de
Val-de-Camellos, tenho a honra de lhe apresentar meu marido, o sr.
Eduardo Augusto d'Almeida Teixeira.

--Perdão, perdão, minha senhora, interrompeu com vivacidade o moço
alferes, eu não hesitaria um momento em a chamar minha esposa, se
devesse a v. ex.ª uma reparação, mas não ha coisa alguma que a isso se
assimelhe, e, visto este senhor não ser seu irmão, vou ter com elle uma
explicação mais corrente. Direi pois ao sr. Dyonisio de Val-de-Camellos,
que está perfeitamente equivocado a meu respeito. Esta senhora lhe
explicará, se a isso quizer descer, o motivo porque entrei no quarto
d'ella. Poder-lhe-ia eu perguntar tambem o motivo porque veio cá metter
o nariz. Comtudo, dir-lhe-hei unicamente que não tenho que lhe dar
satisfações, a não ser n'um sitio mais conveniente do que este a
explicações da natureza, das que hão de ter logar entre nós. O modo
insolente com que me tratou a principio, merece uma correcção, e hade
tel-a. Estou ás suas ordens.

--Um duello, e por minha causa, bradou Emilia, despenteando-se e
procurando arranjar um olhar desvairado, oh! não façaes com que o sangue
venha manchar as minhas vestes virginaes.

--Vamos embora, sr. Dyonisio.

--Vamos lá, respondeu o homem de capote de camellão, em tom um pouco
menos arrogante.

--Suspendei! Dyonisio, sr. Eduardo, horror! Meu Deus, valei-me!

E desmaiou.

«Bravo!»--diria um espectador do theatro normal, enthusiasta da _Dama de
S. Tropez_.

Eu e o leitor applaudimos silenciosamente, e vamos seguir os nossos dois
heroes, que sairam pela janella, perdendo-se assim todo o effeito de uma
saida solemne pela porta de fundo, cujos batentes de papelão se abrissem
de par em par.

Dyonisio e Eduardo atravessaram o quintal silenciosos; chegando a uma
portinha que deitava para a estrada, o sr. de Val-de-Camellos tirou uma
chave que trazia na algibeira, abriu a porta, e os dois contendores sairam.

--O sangue de um de nós ha de ser hoje derramado, vociferou o illustre
janota do Porto, com tetrica intonação.

--Está dito; mas, a proposito, parece-me que não temos remedio
senão jogar o sôcco; parque não temos armas, nem padrinhos, de sorte que
o nosso duello tem todas as condições d'irregularidade.

--Ora diga-me uma cousa, tornou Dyonisio, descendo das regiões
melodramaticas ao terreno das explicações prosaicas, isto não se poderia
conciliar amigavelmente?

--Oh! homem, isso é impossivel, o senhor descompoz-me atrozmente,
abusando da identidade do seu nome com o do irmão d'Emilia, e realmente
eu não vim ao Minho para receber descomposturas.

--Oh! senhor, tenha paciencia, a Emilia gosta d'essas cousas, e eu não
tive remedio senão fazer aquella scena. Eu não tinha intenção offensiva.
Mas que relações tem o senhor com a rapariga?

--Um simples namorico.

--Olhe, tornou Dyonisio coçando a cabeça, a D. Emilia Guimarães é uma
senhora muita estimavel.

--Não duvido.

--Muito prendada!

--Apoiado.

--Formosissima, continuou o sr. de Val-de-Camellos animando-se pouco a
pouco.

--Pois não!

--Espirituosa! bradou o homem encaixando a luneta magestosamente no
rubicundo nanz.

--Oh!

--Senhora, a quem amo delirantemente!

--Muitos parabens, sr. Dyonisio, muitos parabens!

--Unica mulher, que me pode tornar feliz.

--Oh! sr. Dyonisio, não me commova!

--Adoro-a, senhor, adoro-a como a uma estrella, que reluz nas trevas do
meu viver.

--Bravo, ia-me arrancando lagrimas.

--E tem um dote de vinte contos de reis! concluiu o homem do capote de
camellão com sublime expressão d'enthusiasmo.

--Muito bem, sr. Dyonisio, muito bem. Permitta-me que o abrace. Que
rasgos de sentimento! Commoveu-me profundamente. Foi o coração quem lhe
dictou essas phrases enthusiasticas. Esse argumento dos vinte contos
revela claramente a pureza dos seus sentimentos. Ó patriarchal
Dyonisio, cedo-vos Emilia. Não serei eu quem vá perturbar a felicidade
conjugal, tão solidamente baseada. O amor, fugindo das grandes cidades,
vem, segundo vejo, aninhar-se á sombra de vinte contos nos corações
desinteressados dos jovens provincianos. Sr. Dyonisio Antunes de
Val-de-Camellos, não servirei de obstaculo á sua felicidade. Adeus, seja
venturoso!

--Oh! muito obrigado, generoso desconhecido! volveu Dyonisio, que estava
decididamente infectado de romanticismo sombrio.

--Ámanhã parto para o Porto. Deixo-lhe o campo livre.

--Espero que me perdoe a involuntaria offensa.

--Não fallemos n'isso. O que lá vae, lá vae. Adeus.

--Adeus. Disponha do meu fraco prestimo.

Se os nossos dois amigos estivessem em Lisboa, tinham ido juntos a uma
ceia no Matta, ceia, que (se elles fossem bem conhecedores dos costumes
portuguezes em materia de duello) deveriam ter encommendado antes do
desafio.

Assim, Dyonisio embuçou-se simplesmente no capote de camellão, e voltou
para a cama, onde resonou pacificamente o resto da noite, sonhando que
tinha comprado, com o dote de Emilia, uma junta de bois, e dois pedaços
de terra, em que semeára milho, obtendo uma colheita formidavel, e
grangeando deste modo tal consideração em Santo Thyrso, que tinha sido
nomeado por unanimidade de votos... juiz eleito.

Eduardo meteu-se na cama, aqueceu os pés, transpirou muito, e no outro
dia estava quasi livre do defluxo teimoso, que o apoquentára tanto.

Apesar de ter tido a felicidade de se curar com rapidez, o nosso
alferes, que era um rapaz prudente, jurou nunca mais ter namoro com
raparigas romanticas em noites de novembro


V

Ainda que as intenções madrugadoras de Eduardo Teixeira fossem as mais
sinceras deste mundo, passou segunda vez pelo desgosto de não assistir
ao almoço da familia. O nosso alferes chegou a convencer-se de que o
almoço em Santo Thyrso, como a _tremenda_ nos conventos dos monges
negros, era lá por alta noite.

Quando entrou na sala achou a menina Emilia sósinha sentada ao piano. O
vestido branco, que tinha envergado apesar do intenso frio, o cabello
muito de proposito em desalinho, as olheiras, que supponho tinham origem
identica á das do Silvestre da Silva, de Camillo Castello Branco,
mostravam que Emilia se tinha caracterisado convenientemente para
representar a ultima scena de um melodrama.

Quando viu Eduardo, levantou-se, e caminhou a encontral-o, hirta e
vagarosa. O joven official estacou á porta pasmado.

--Qual dos dois morreu? perguntou ella solemne e lugubremente.

--Fui eu, minha senhora!

Seguiu-se um curto silencio.

--O senhor está zombando de mim? tornou Emilia.

--Não, minha senhora, estou respondendo á pergunta de v. ex.ª Com
effeito, morri para o seu amor, sr.ª D. Emilia. Interroguei o meu
coração, achei-o frio de mais para sentir uma d'essas paixões ardentes,
que v. ex.ª deve inspirar. Não acontece o mesmo com Dyonisio. Minha
senhora, vim descobrir um vulcão em Santo Thyrso, desmentindo por esta
fórma a geographia. Esse Vesuvio desconhecido é o coração do sr. de
Val-de-Camellos... Hontem os discursos de Dyonisio, se não me aqueceram
os pés, que tinha muito frios, como v. ex.ª sabe, pelo menos
aqueceram-me... o coração. Na lava candente, que brotou espontanea
do peito d'aquelle joven, accendi eu o lume prompto da generosidade.
Entendi que devia aconselhal-a a visitar essa cratera de paixão.
Asseguro-lhe que se ha de abrazar. Digo-lh'o eu.

--Não zombe tanto de mim, sr. Eduardo. Se tive ligeiro namoro com esse
rapaz, o amor verdadeiro, que sinto agora, dissipou completamente esse
frivolo galanteio.

--Mas, minha senhora, v. ex.ª deve fazer a felicidade d'um Dyonisio.
Attenda, por amor de Deus, á influencia dos nomes nos destinos dos
individuos. O nome de Dyonisio dá logo a conhecer que o possuidor deve
ter um caracter patriarchal. Ora casem, casem, meus pombinhos, tenham
muitos filhos, e sejam muito felizes.

--Assim me despresa, sabendo que o amo!

--Não, minha senhora, não creia tal. Hei de ser sempre o maior dos seus
admiradores.

--E mais nada?

--E de v. ex.ª o mais attento venerador.

--Ingrato, perfido! Disse-lhe que o amava, menti-lhe, detesto-o!

E a romantica menina ia aproveitar a situação, e a proximidade d'uma
poltrona para desmaiar, quando felizmente entraram as duas manas.

Acabados os comprimentos preliminares:

--Que pena tenho, minhas senhoras, de as ter conhecido, disse Eduardo;
os momentos deliciosos, que aqui passei, servem apenas para tornar mais
pungente a saudade, que me vae atormentar.

--Porque, deixa-nos? bradaram em côro as tres provincianas.

--Sim, minhas senhoras, recebi hontem noticia de ter obtido passagem
para um regimento da capital, de forma que hoje mesmo tenciono partir
para o Porto.

--Partir, quem falla aqui em partir? bradou o sr. Bernardo que entrava
n'esse instante.

--Eu, sr. Guimarães, replicou Eduardo, que, depois de lhe agradecer
immenso o modo amabilissimo com que me recebeu, lhe peço agora as suas
ordens para o Porto e para Lisboa.

--Mas porque não se demora pelo menos alguns dias?

--Sou militar, sr. Guimarães, e devo cumprir á risca a ordem que recebi.

--Esta é que eu não esperava!

--Ingrato, e eu amava-o tanto, murmurou Emilia, recostando-se na poltrona.

--Então, minha senhora, cá fica Dyonisio para a consolar. É um bello
rapaz, d'um caracter excellente, e com alguma applicação póde-se tornar
um heroe de romance. Dê-lhe v. ex.ª vinagre todos os dias, e receite-lhe
uma dose forte de Visconde d'Arlincourt, e verá como faz do sr. de
Val-de-Camellos um rapaz ideial. Vou para Lisboa formar votos pela sua
felicidade.

.........................................................................
.........................................................................

N'essa mesma tarde, Eduardo Teixeira empoleirado no seu fiel rocinante,
dizia adeus a Santo Thyrso, depois de ter aturado uma scena pathetica de
despedida, tal como a poderia imaginar o mais lamuriento auctor de
melodramas.

O sr. Dyonisio Antunes de Val-de-Camellos, veiu com grato coração, e com
um jumento chibante, em que montava, acompanhar o nosso heroe á
Travage, onde se despediu de Eduardo, protestando-lhe eterno
agradecimento, e amisade constante.

Dyonisio Antunes continua serenamente o namoro com Emilia, sujeitando-se
comtudo a uma dieta rigorosa, a ver se abate um pouco a sua nutrição
anti-romantica.

O sr. Themudo cada vez embirra mais com o _D. Jayme_; e quando, em doces
colloquios amorosos com D. Belizaria Guimarães, interrompe a conversação
intima para fallar da depravação do seculo, cita o enredo do _D. Jayme_,
e véla o rosto pudicamente com uma toalha de mãos. Belizaria sorve com
indignação uma pitada de simonte.

Eduardo Teixeira, diz-nos pessoa fidedigna, que passa bem de saude,
sendo comtudo muito sujeito a ataques de nervos, que o assaltam sempre
que ouve... um piano!...


FIM





*** End of this LibraryBlog Digital Book "Astucias de Namorada, e Um melodrama em Santo Thyrso" ***

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