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Title: Á Ilha da Madeira
Author: Coelho, José Ramos, 1832-1914
Language: Portuguese
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Ramos-Coelho


Á Ilha da Madeira


LISBOA

Empreza do «Occidente»

1898



Á ILHA DA MADEIRA


    Ao nauta que do mar tempestuoso
    Vem dos baldões asperrimos cansado,
    Tu te mostras, ó ilha feiticeira,
    Como, depois de somno fadigoso
          De horriveis pezadellos,
          Um dia delicioso,
    Todo alegria e festa e raios bellos,
    Um claro dia pelo sol doirado.

          Se isto é hoje d'est'arte,
          O que seria d'antes,
    Quando te desvendaste a vez primeira
    Da nevoa e do mysterio em grande parte
    Á vista dos pasmados navegantes!
    Que, não bastando ainda estar perdida
          No meio do oceano,
    Por seculos dos homens escondida
          Em recondito arcano,
    Tu, qual donzella candida e medrosa,
          Que do banho sahisse,
          E a nudez, vergonhosa,
          De alvo cendal cobrisse,
    Em manto de neblina te embuçavas:
    E até do mar, que ás plantas te gemia,
    E até do proprio sol, que te queria,
    A virgem formosura recatavas.

          Porêm chegou o dia
          Pelo Eterno marcado,
          Em que, apezar d'esquiva,
          Te rendeste captiva
    Do sol da nossa gloria á viva chamma,
          Ao generoso brado
    Do grande Henrique de perpetua fama,
    Quando, assim como do Sinai o monte,
    Sagres de raios coroou a fronte,
          E, desmedido pharo,
          Ao marinheiro ignaro
    Fez dissipar as trevas do horizonte.

          Pandas as brancas velas,
    Atravessadas pela cruz de Christo,
          Eis no liquido argento
    As fortes, portuguezas caravellas
    Correm ao sopro do inconstante vento.
    Assim na edade-media a Europa ha visto,
    Assignalados por egual emblema,
          Passarem os guerreiros
    Á Asia, para em rabido combate
          De annos e annos inteiros
    Dar ao sagrado tumulo o resgate.
          É o mesmo o nosso thema:
    A fé; tambem o oriente procuramos,
    E, como elles, tambem a amiga espada,
    A par da cruz, intrepidos levamos
          A uma outra cruzada.

    Ruem os furacões; troam os ares;
    É plumbeo o céo; das lobregas entranhas,
          Quaes liquidas montanhas,
    Volvem-se em desespero os torvos mares.
          Pelas ondas corridos,
    Os pequenos baixeis tragam a morte,
          Já quasi submergidos;
    Porêm não desanima a gente forte.
    Invoca a soberana potestade,
    Que a protege de ha muito, e a praia ignota,
    Na escura cerração da tempestade,
    Compadecida, lhe dirige a rota.

    Alçando as mãos a Deus, inda molhadas
          Das ondas salitrosas,
    A maritima turba lh'agradece
          As terras deparadas,
    As vidas tanto a pique assim poupadas,
          Com palavras piedosas,
          E murmura esta prece:

    Senhor, se, como outrora do teu povo
    Os passos pelo ermo encaminhaste,
    A este porto santo nos guiaste,
    Dá-nos, dá-nos ainda um signal novo,
    Outro maior signal de teus favores;
          Teus filhos tambem somos;
          Ás asperas fadigas,
    Ao bravo pego, ás armas inimigas
    Por ti só, pela patria nos expomos;
    Faze que esta primeira descoberta,
    Que o dom d'esta ilha esteril e deserta
    Seja seguido d'outros dons melhores.

    Dizem; abaixam da cerulea altura
    Os olhos; e, ao baixal-os, de repente
    Vêem longe sahir de nevoa escura,
    Que mais e mais se torna transparente,
    Uma visão da phantazia ardente?
    De um monte a sobranceira catadura?

    Eia; ao mar; o Senhor nos presta ouvidos;
    Temos fé que é verdade essa apparencia,
    Não devaneio apenas dos sentidos.
          É da sua clemencia
    Quem sabe se o signal; ao mar corramos.
    Bradam; soltam ao vento a larga vela;
    Já chegam; já de todo a alva neblina
    Aqui, ali, se esvae ou se adelgaça,
    E mostra, meio occultos, com mais graça,
    Flores, verdura, emmaranhados ramos,
          Uma terra tão bella,
    Que mais semelha apparição divina,
    Ou cahida do céo fulgida estrella.

    Assim aos denodados portuguezes
    Appareceste, ó ilha da Madeira,[1]
    Para os avigorares nos revezes;
    Assim aos olhos de Noé outrora,
          Depois das grandes aguas,
    Appareceu o arco da alliança,
    Entre elle e Deus, o iris da bonança,
    Que do diluvio o confortou nas maguas.
          Sim, tu foste a esperança,
    Que Deus, á nossa empreza favoravel,
    Nos amostrou para nos dar alentos,
    E, atravez do luctar dos elementos,
    Cumprirmos nosso fado incomparavel.
    D'aqui, cheios de arrojo, nós partimos,
    E d'Asia, e d'Africa e do Novo Mundo
    Em grande parte as plagas descobrimos,
          E pelo pégo fundo
    Em roda o globo co'os baixeis medimos.

    Como és bella! Da Grecia conhecida,
    Tu serias de Venus a morada,
    Ou fôra, ao ver-te assim do mar sahida,
    A nascença de Venus fabulada.
    Ficara a téla dos Jardins d'Armida,
    Sendo feita por ti, mais bem pintada,
    E a descripção da Ilha dos Amores
    Realçariam mais os teus primores.

    Todos, á uma, os povos te namoram;
    Mas a todos te mostras insensivel.
    Embalde os filhos de Albion te exoram,
    Te chamam Flor do Oceano immarcescivel.
    Nossos antigos os primeiros foram;
    Por outrem nos deixar não te é possivel.
    Do céo, dos mares e de Deus á face
    De nós comtigo se firmou o enlace.

    Por seres tão fiel, tão portugueza
    Mais ainda te estimo, ilha formosa;
    Mas por laço diverso anda a ti presa
    Minh'alma: da existencia trabalhosa
    Com risos esmaltaste-me a tristeza,
    Na quadra, embora amarga, descuidosa
    Da passada, inexperta juventude,
    Quando uns dias viver em ti eu pude.

    E agora que de ti me tem distante
    O logar e dos annos a carreira,
    Phantaziu-te ainda mais brilhante,
    Vejo-te mais ainda feiticeira,
    Que me recorda teu florir constante
    A minha primavera passageira,
    A minha tão querida mocidade,
    E és para mim um echo, uma saudade.

Lisboa 1808.


[1] Só por conveniencia poetica se tornou aqui immediatamente successivo ao
descobrimento da ilha de Porto Santo o da ilha da Madeira, quando, segundo
a opinião mais assente, foram distanciados um do outro pelo espaço de
alguns mezes, se não de um anno.





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