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Title: O Marquez de Pombal - (folheto para poucos)
Author: Cordeiro, Manoel Caldas, 1869-1914
Language: Portuguese
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*** Start of this LibraryBlog Digital Book "O Marquez de Pombal - (folheto para poucos)" ***


                       _Manoel Caldas Cordeiro_

                          O MARQUEZ DE POMBAL


                         (FOLHETO PARA POUCOS)


                                  PORTO
                 TYPOGRAPHIA DE A. J. DA SILVA TEIXEIRA
                       Rua da Cancella Velha, 70
                                   1890



O MARQUEZ DE POMBAL



PUBLICAÇÕES DO AUTOR

_A Vigilia_, n.º 1, 1886.

_A Vigilia_, n.º 2, 1886.

_Pyrilampos_ (collaboração de Eduardo Pacheco, n.º 1), 1888.

_Pyrilampos_ (collaboração de Eduardo Pacheco, n.º 2), 1888.

_O Marquez de Pombal_, 1890.

_Rimes Folles_ (em preparação).

_Contos Sinistros_ (em preparação)



                       _Manoel Caldas Cordeiro_

                          O MARQUEZ DE POMBAL


                         (FOLHETO PARA POUCOS)


                                  PORTO
                 TYPOGRAPHIA DE A. J. DA SILVA TEIXEIRA
                       Rua da Cancella Velha, 70
                                   1890



O MARQUEZ DE POMBAL


Elle tinha duas envergaduras como esses palhaços que apparecem no circo
com um fato de duas côres. A envergadura do beato, do amigo de D. José,
do providencial expurgador da impiedade; a envergadura do
livre-pensador, do philosopho preoccupado com o que d'elle diziam os
contemporaneos.

Diziam boas cousas os contemporaneos. O Choiseul--um visinho da
sobre-loja, portanto,--chamáva-lhe: «um tacanho aventureiro que tinha
sempre um jesuita a cavallo no nariz». O massador Garção e o semsaborão
Antonio Diniz da Cruz e Silva chamávam-lhe «genio, muito alto e muito
poderoso» e outras baboseiras. Os que viviam junto d'elle
elogiávam-n'o uns por medo, outros por interesse. Os de longe, embora
corressem parelhas, no talento e no caracter, eram tão amaveis como o
ministro de Luiz XV.

Como politico os seus actos de governo derivam das duas attitudes que se
quiz dar toda a vida. Attitudes que estão em antithese guerreira e são
uma revelação do caracter repugnante e hypocrita d'este doutrinario que
não teve nem a aberta franqueza, nem o espirito absolvidor dos homens
que imitou sempre.

Chamam-se elles D. Luiz da Cunha, Alexandre de Gusmão, Francisco Xavier
d'Oliveira (o cavalleiro d'Oliveira), e o dr. Antonio Ribeiro Sanches.

Eis os homens que tomou para norma das suas idéas occultas de livre
pensador. De D. Luiz da Cunha apanhou as idéas de governo e de
administração mas não lhe imitou o _dandysmo_, a resignação espirituosa
com que este _impio_ de oitenta annos esperava a morte em Paris, nos
braços de uma amante.[1]

Quando queria ser _dandy_ o marquez de Pombal nem sequer o era como um
doutrinado ridiculo. O unico traço de supposto _dandysmo_, que
historiadores como Rebello da Silva e o snr. Pinheiro Chagas nos dão, é
a maneira porque elle assestava a sua tremenda luneta. Tal e qual um
velho de entrudo, de rabicho, bastão, oculos e o corninho pendurado ao
pescoço. Elle tinha tudo isto, menos o corno de que possuia talvez o
plural.[2]

As paginas que vão lêr-se são um protesto contra a lenda idiota que fez
do marquez de Pombal um homem extraordinario, um homem unico, um homem
immortal, um homem deslocado no seu meio e no seu seculo. Elle estava
até muito bem posto, o marquez--no meio e no seculo!

O marquez de Pombal viveu em Londres d'onde trouxe a crassa ignorancia
da lingua ingleza e a ausencia completa,--de resto propria do seu
esquerdismo de desastrado--do puritanismo britannico, o grande
puritanismo que antecedeu os _dandies_ George IV, Brummell e lord
Pellehan. O marquez tinha o caracter e as attitudes de um jacobino digno
do ridiculo da época ridiculissima da revolução em que chafurdeiáram um
Saint-Just, um Robespierre e um Marat. Monstro de caracter como este
ultimo o era de corpo, o ministro applaudido e consagrado pela historia
tinha uma tão ingenua maldade que a sua attitude dominante consistia em
carregar o sobr'olho para fingir a polvora da colera que lhe explosia na
pedreira do coração.

Actos que lhe merecessem a immortalidade, não lhe conheço senão os que
lhe dão a immorredoura recordação do homem mais barbaro e mais
estupidamente bestial que existiu no regimen absoluto. O marquez de
Pombal como estadista tem o mesmo merito que na litteratura teria o
escriptor que herdasse os manuscriptos de um fallecido, e, publicando-os
em seu nome, fosse declarado um dos maiores talentos do seculo.

N'este escripto analysam-se alguns actos culminantes do reinado de
Sebastião e o autor procura cingir-se o mais possivel aos manuscriptos
da bibliotheca publica de Lisboa, aproveitando n'elles o que ha de
racional.

      *      *      *      *      *

A conspiração de 3 de setembro de 1758 está envolvida em densas trevas.
Todas as hypotheses que se têm formado, todas as divagações que se têm
feito, só têm concorrido para perder os historiadores n'um labyrintho de
conjecturas.

Assim, uns dizem que a conspiração foi inventada pelo marquez de Pombal;
outros que os tiros não alvejavam o rei, mas um criado, Pedro Teixeira,
que tratára insolentemente o duque d'Aveiro. Tudo póde ser; mas como não
ha um documento que favoreça ou desfavoreça semelhantes hypotheses, nada
póde considerar-se como certo. O que é incontestavel é que o rei foi
ferido no braço: «gravemente» dizem alguns historiadores. É provável
que haja engano.

N'aquelle tempo a ferida teria mais importancia, visto o atrazo da
cirurgia; no emtanto a gravidade da ferida é contestavel; porque, n'um
braço, o cirurgião remediava o perigo da gangrena, cortando-o.

Ferido grave ou ligeiramente, o rei recolheu-se a casa do marquez
d'Angeja onde lhe foram dados os primeiros curativos.

Não fazemos a narração minuciosa do attentado, porque ella vem repetida
em quasi todas as _Historias de Portugal_. Na do snr. Pinheiro Chagas
vem elle narrado com muita exactidão.

Na mente rancorosa do marquez de Pombal os conspiradores eram os
Tavoras, o duque d'Aveiro e alguns criados. A innocencia da familia
Tavora é hoje tida como certa. O duque d'Aveiro, posto a tratos,
confessou que elles eram culpados; mas depois negou. O marquez de Pombal
com a confissão havia de ter um jubilo feroz. Elle detestava os Tavoras,
fidalgos honestos, vaidosos dos seus pergaminhos que o tratavam
desprezivelmente por _Sebastião José_. O tribunal aceitou a confissão do
duque; mas quando se retractou, não lh'o consentiram. Os desgraçados
postos a tratos, segundo confessa Michelet e como logicamente se
comprehende, muitas vezes confessavam crimes de que estavam innocentes,
só para se livrarem d'aquelle supplicio medonho.

Os criados do duque foram mais honrados do que elle: nem á força de
torturas, confessáram a culpabilidade dos Tavoras, confessando porém a
sua, dos seus, e do seu amo.

Mas que importava isto ao marquez de Pombal e ao tribunal de
Inconfidencia, todo composto de malandros e de estupidos da casta
d'elle? Sebastião José jurou perder os Tavoras, porque julgou, talvez
com razão, que a tentativa da conspiração visava mais a elle do que ao rei.

Os Tavoras viveram no antigo luxo e socego depois do dia 3 de setembro.
Corriam boatos de que elles eram cumplices--e elles ouviam perfeitamente
esses boatos. Porque não fugiam?

Porque não tentavam precaverem-se contra essas accusações?

Estavam innocentes.

Resposta que resume tudo; resposta que os absolve da louca serenidade
com que aguardavam a colera do rei e do ministro que, no tenebroso
espirito ao serviço do seu coração empedrado, preparava as
minuciosidades selvagens do cadafalso de Belem.

A historia a unica reprehensão que póde fazer aos desgraçados é esta:

--Vossês deviam conhecer melhor Sebastião José! Julgavam que elle
hesitaria em condemnar-vos innocentes?

Os Tavoras não esperavam tanta infamia da parte do seu inimigo. Senão
fugiriam como depois fugiu José Polycarpo de Azevedo.

Quanto ao duque d'Aveiro, varia muito a attitude. Só uma estolida
soberba e uma inabsolvivel leviandade o podia fazer ficar em Portugal.

Lamentemos estas infelizes victimas do ministro e do rei:--um malandro
porquissimo e um gordurento repugnante.

Um escriptor francez, Victor Joly chega a dizer que «o duque d'Aveiro
tinha a queixar-se d'um duplo ultrage: a mulher e a filha tinham sido
seduzidas pelo rei e entregues a todos os caprichos de um escandaloso
deboche».

Cito este escriptor porque não será facil que algum historiador o
desminta.

Os Tavoras tinham recebido desconsiderações do rei; mas o mais offendido
era o segundo marquez de Tavora cuja mulher era a marafona de D. José I.
Não havia porém uma prova cabal contra elles.

Isto não impediu que o tribunal os condemnasse.

      *      *      *      *      *

Nunca em Portugal se viu uma tão intensa crueldade na morte dos
infelizes, considerados reus. Havia um proposito firme de os fazer
soffrer na alma e no corpo, prolongando-lhes o martyrio, infamando-os,
torturando-os, insistindo d'uma maneira infame sobre o destino dos seus
restos mortaes.

Aos apologistas do marquez de Pombal offerecemos a narração que passamos
a fazer e que tiramos do manuscripto da bibliotheca publica de Lisboa,
escripto por testemunha ocular, observando-lhes que todas estas
minuciosidades bestiaes foram o additamento que o marquez fez á sentença
condemnatoria.

      *      *      *      *      *

A 12 de janeiro de 1759 foi proferida a sentença, e, n'essa noite
sinistra, á luz dos archotes, os operarios martellavam o cadafalso. As
pancadas dos martellos ouviam-n'as os infelizes condemnados, reunidos
todos n'uma casa do palacio de Belem. A marqueza, D. Leonor Tavora,
tinha sido conduzida, do convento das Grillas para Belem.

Ahi se juntáram todas as victimas do odio dos dois estupidos.

Pela madrugada já o povo enchia a praça e os logares d'onde se podesse
contemplar o horroroso supplicio.

Passava das seis horas e meia, quando se abriu a porta do pateo dos
Bichos e sahiu o grande acompanhamento tenebroso: os ministros do crime,
o corregedor e a tropa.

Atraz vinha a cadeirinha d'onde se apeiou a marqueza de Tavora amparada
por dois padres da congregação de S. Vicente de Paula. Confessou-se no
começo da escada. Depois subiu com agitação os degraus do patibulo.
Recebeu-a o algoz, e, quando ella julgava que elle ia acabar-lhe a
vida, o carrasco descreveu-lhe minuciosamente o instrumento que ia
servir ao seu supplicio, mostrou-lhe a corda que havia de estrangular os
seus dois filhos, e o genro, o maço que havia de quebrar-lhes as pernas,
os braços; contou-lhe como havia de morrer o marido, e em que divergia a
morte do pai da dos filhos.

A marqueza, exhausta pela tortura moral, pedia de joelhos que lhe dessem
a morte. Amarráram-n'a á cadeira, tiráram-lhe o lenço do pescoço,
vendáram-n'a; e, o cutello ferindo-a na nuca, decepou-lhe a cabeça.

Cobriram o cadaver da primeira victima com um panno preto.

Sahiu a cadeirinha outra vez do pateo e apeiou-se quasi desfallecido,
pallido como um cadaver, entorpecido na lembrança do martyrio que lhe
iam infligir, um rapaz de vinte e um annos, loiro, amado talvez.

Subiu difficultosamente a escada amparado pelos frades. Fallou ao povo,
mas a testemunha cujo manuscripto seguimos diz que a voz quasi se lhe
sumia na garganta. Devia de dizer que morria innocente.

Os algozes estenderam-n'o n'uma aspa, passáram-lhe uma corda pelo
pescoço, e emquanto lhe quebravam as pernas e os braços, procurávam
estrangulál-o. A corda partiu, e o infeliz, estalados os ossos, dava
gritos tremendos. Como esses gritos deviam penetrar como balas pelos
ouvidos dos espectadores! Hoje ainda o coração se nos mirra com as
dilacerantes minuciosidades d'estas mortes.

Pela terceira vez trouxe a cadeirinha a terceira victima, o marquez de
Tavora, o novo, o que o rei tinha corneado. Este foi um pouco mais feliz
do que o irmão:--os algozes estranguláram-n'o e depois quebráram-lhes as
pernas e os braços.

O mesmo supplicio foi infligido ao conde d'Atouguia e aos criados.
Antonio Alvares Ferreira, Braz José Romeiro e João Miguel.

Houve um pequeno intervallo.

Veio a cadeirinha com o velho marquez de Tavora. Apeiou-se serenamente,
subiu os degraus do patibulo, ajoelhou, beijou a aspa em que o haviam de
quebrar, e só quando os algozes lhe mostráram os corpos desfigurados da
mulher, dos filhos e dos criados é que essa estoica e santa serenidade
se acabou por um momento. Estenderam-n'o sobre o cavallete,
amarráram-lhe os pés e os pulsos, e quebráram-n'o em vida. Morreu
heroicamente[3].

Seguiu-se-lhe o duque d'Aveiro, o medonho arrependido que denunciára a
familia Tavora. Tinha as feições contorcidas, e, horrivelmente
desfigurado, sujeitou-se á operação de lhe amarrarem os pés e os pulsos.
Estendido na aspa o carrasco vibrou-lhe a pancada na barriga, e,
emquanto o infeliz uivava uns gritos lancinantes, iam-lhe quebrando os
braços e as pernas. Eram tantos os gritos e as contorsões, que o
carrasco apiedado--talvez!--deu-lhe com a maça na cabeça.

O ultimo martyr era Manoel Alvares Ferreira, o criado, cujos tiros
entraram pelo braço do rei. Morria queimado. Fizeram os preparativos
para a fogueira diante do infeliz que, quasi desmaiado, assistia ás
minudencias da tortura. Lançaram-lhe finalmente o fogo, ao passo que
queimavam os cadaveres das outras victimas. O vento soprava as chammas e
avermelhava o corpo em braza do desgraçado que gritava, torcia,
blasphemava, apesar das consolações dos dois frades.

Já as chammas o envolviam todo, já as mãos se tinham tornado carvão, e
ainda o infeliz erguia os cotos, cruzando-os, como que pedindo
misericordia. José Polycarpo d'Azevedo foi queimado em estatua porque se
tinha evadido. Sobre este sujeito veja-se a historia curiosissima que
vem no _Perfil do Marquez de Pombal_ do snr. Camillo Castello Branco. O
cadafalso, os cadaveres, tudo, reduzido a cinzas, foi deitado ao mar.

Os bens dos fidalgos foram todos confiscados e o marquez de Pombal
roubou-lhes alguma prata, algumas baixellas e alguns livros. Ainda na
ultima compra feita pela bibliotheca á casa Pombal vem uma _Genealogia
dos Tavoras_ que Carvalho apanhou quando os bens se confiscáram. A prata
foi achada ha annos em vida do marquez, fallecido ha pouco, guardando-se
d'isso muito segredo.

      *      *      *      *      *

Reflexões sobre estes supplicios:

O rei, convencido pelo marquez de Pombal da culpabilidade dos
infelizes, não os deixaria com vida. O atoucinhado D. José não era
animal de coração, embora não tivesse o requinte de selvageria de
Pombal. Mandaria fuzilar os fidalgos ou garrotal-os, e enforcar os do
povo. E, façamos-lhe esta justiça, elle não faria morrer a velha
marqueza. Condemnal-a-ia a prisão perpetua. O marquez, inabalavel na sua
porca vingança, induzia o animo amedrontado do covardão a não empregar a
minima indulgencia. E depois como elle punha e dispunha de tudo, a
vontade do rei, quando se não tornava imperiosa e rude, era para elle
cousa secundaria.

Entregues á vingança do ministro ninguem, no emtanto, tinha direito de
esperar tanta barbaridade. O Sebastião José inventa para matar os
Tavoras os mais medonhos tormentos de que não ha exemplo na historia;
confisca-lhes os bens; arraza-lhes as casas; prohibe que qualquer
pessoa, sob pena de confiscação de todos os bens, use do appellido de
Tavora, e, passados nove annos sobre esta inesquecivel tragedia, casa o
seu segundo filho José de Carvalho e Mello com D. Francisca de Tavora e
Lorena, sobrinha e prima dos sentenciados de Belem e filha de Nuno
Gaspar de Tavora e Lorena!

      *      *      *      *      *

Quando se prenderam os suppostos conspiradores, foram encarcerados no
forte da Junqueira os jesuitas João de Mattos, Jacintho da Costa, José
d'Oliveira, João Alexandre, José Moreira, Pedro Homem, Timotheo
d'Oliveira, Francisco Duarte e Gabriel Malagrida.

Diz o snr. Pinheiro Chagas na sua _Historia de Portugal_:

«O grande marquez tinha fraquezas, que mancham a sua vida, aliás toda
consagrada ao bem do paiz.»

Não estão más fraquezas! Por estas e outras fraquezas pagaram os
Tavoras, o Malagrida, o Pelle, os jesuitas, os encarcerados nas medonhas
masmorras, os roubados, os despojados, e, finalmente, aquelles que este
livre pensador, para acabar com elles mais summariamente, entregava ao
Santo Officio!

Assim succedeu ao padre Gabriel Malagrida. Malagrida era um velho
septagenario a quem o sublime histerismo christão fazia venerado de
todos. Os devotos consideravam-n'o santo e procuravam-n'o com
insistencia; os dignos respeitavam-n'o. O marquez de Pombal, como não
era nem devoto, nem digno, e como o odiava, prometteu perdel-o.

Todos os que se aproximavam de Malagrida, depois da sua vinda do Brazil,
onde o irmão de Sebastião José lhe não tinha querido fazer umas
concessões justas para a sua Ordem, notavam-lhe o exaltado mysticismo,
aggravado por uma mania prophetica. Era como que o prologo d'uma loucura
mansa.

Os jesuitas, que lhe comprehenderam a doença, evitavam que elle fosse ao
paço. Preso nas regeladas prisões do forte da Junqueira, a sua mente de
visionario começou por ver fórmas celestiaes, visões, apparições.
Escreveu na prisão a _Vida da gloriosa Sant'Anna_, livro em que se
revela o apogeu da loucura serena.

Que admira que Malagrida estivesse louco? A prisão, a velhice, os maus
tratos, os antecedentes da sua vida agitadissima, cortada de trabalhos,
os annos de missionario, tudo concorreu para tornar inevitavel esta
loucura. O livro de Malagrida foi um pretexto para o marquez de Pombal o
entregar á Inquisição. O processo foi summario e toda a
responsabilidade d'elle cabe ao repugnantissimo cynico que a maior parte
dos historiadores consideram ainda como um illuminado. Todos proclamavam
a innocencia do martyr immolado ao odio do ministro. A sentença é
escripta n'aquelle estylo manhoso, vago, solemne, perfido, jesuitico,
como se diz hoje, de que o marquez de Pombal foi o mestre e o inspirador.

Accusava-se o padre de heresiarcha como João Huss, como Savonarola, como
Calvino; e, depois de um extenso rol de perfidias fortuitas, inventadas
pela corja do ministro, condemnavam-n'o a ser garrotado e queimado.

Voltaire, esse pequeno grande homem do seculo XVIII, Voltaire que não
tinha nem o espirito de Rivarol e de Chamfort, nem o colossal talento de
Diderot, Voltaire, o senhor de La Palisse do livre pensamento, escreveu
sobre esta condemnação que «o excesso do horror só era vencido pelo
excesso do ridiculo». O conde d'Oeiras, como era bastante tapado, talvez
julgasse, quando lhe disseram a phrase do homem que não fez outra cousa
na sua vida, que o philosopho d'algodão em rama achava ridiculo o
jesuita garrotado. Por isto devia alegrar-se. Só, passados annos, quando
lhe fizeram comprehender o sentido das palavras de Voltaire, é que elle
se certificaria que os philosophos quando fallavam d'elle, não o
considerávam nem mais intelligente, nem mais perspicaz, nem menos cruel
que o seu real amo D. José.

No _Perfil do Marquez de Pombal_ escreve Camillo Castello Branco: «A sua
mão (a do marquez), onde quer que pousava, punha nodoas de sangue. A
Companhia dos vinhos foi inaugurada no Porto com uma fileira de forcas
que trabalháram seis horas e por um crebro ulular de gemidos de uns
açoitados que se tinham amotinado em seguida á bebedeira de terça-feira
de entrudo.» Com effeito os taberneiros excitaram o povo á revolta na
manhã de quarta-feira de cinza.[4]

Antes d'isso, convem advertir que a Companhia dos vinhos, que alguns
Plutarchos de Sebastião de Carvalho consideráram como um acto
providencial que salvou do descredito os vinhos portuguezes e
augmentou a exportação (dizem elles), não foi mais do que um
monopolio infame, tendente a proteger aquelles que o Sebastião queria,
contrario a todas as leis de liberdade do commercio e de economia,
absurdo, tolo, e, sobretudo, inutil.

A Companhia tinha o privilegio de vender vinho em tres leguas de redor
da cidade em 1760 em quarto; tinha o exclusivismo do fabrico da
aguardente no Minho, em Traz-os-Montes, na Beira. Os proprietarios, como
eram contrarios á Companhia, só podiam vender uma certa quantidade de
vinho, fixada pela Companhia, e eram obrigados, sob penas graves, a
declarar a quem o vendiam. Immortal legislador! Era d'esta e d'outras
maneiras que este grande liberal impulsionava o commercio e a agricultura.

Ainda ha mais uma série de medidas que são o complemento d'este
amontoado de desconchavos, de tolices e de privilegios.

Os amotinados de 23 de fevereiro entráram nos escriptorios da Companhia
dos vinhos, quebráram os moveis e queimáram os papeis.

Eu não quero crêr que operasse n'estas creaturas o espirito liberal
e revolucionario, mas sim, como o dá a entender o grande escriptor
citado, vestigios das bebedeiras de terça-feira de entrudo.

Sebastião José de Carvalho, esse illuminado, viu na revolta dos bebados
um attentado contra a pessoa do rei, um crime de lesa-magestade, um
protesto contra os irrevogaveis decretos do seu real amo. Que malandro!
O real amo de Sebastião de Carvalho era elle mesmo. O cynico
considerava-se mais rei do que o proprio rei, e quando via indisciplinas
contra os seus decretos, punia-as como crimes de lesa-magestade. Assim
bem podia o escrupuloso desembargador João Pacheco Pereira de
Vasconcellos escrever-lhe do Porto notificando-lhe o escrupulo de
condemnar os infelizes como reus de crime de lesa-magestade; bem podia o
fraco e respeitavel homem querer induzir um pouco á piedade o reles
selvagem. Tudo foi inutil. O processo durou cinco longos mezes, longos
para Sebastião de Carvalho, que de Lisboa não fazia senão mandal-o
abreviar summariamente. Elle anciava que se soubesse, que morria gente
enforcada por sua causa. O mostrengo bem sabia que viriam historiadores
que depois escreveriam: «Sebastião de Carvalho tinha a inquebrantavel
severidade dos grandes espiritos.»

Finalmente--rejubilou Sebastião!--a 11 de outubro foi proferida a
sentença condemnando á forca 21 homens e 5 mulheres; á pena de açoites e
confiscação de metade dos bens 26 homens; á pena de açoites, confiscação
de metade dos bens e degredo para Africa 8 homens e 9 mulheres, e uma
outra infinidade de penas um pouco menores.

No dia 14 sahiram a morrer na forca treze homens (oito tinham fugido) e
quatro mulheres. Uma escapou da forca, por causa da gravidez. A somma
total dos condemnados ás diversas penas é de 237.

E os vinhos nem por isso se vendiam mais. Historiadores affectos ao
marquez, não occultam a revolta de semelhantes iniquidades, e não deixam
de confessar a completa inutilidade que a Companhia trouxe ao commercio
e á exportação.

Têm-se publicado listas, mais ou menos exactas, sobre o numero de pipas
exportadas antes e depois do monopolio. Ahi vai uma, inteiramente
inédita, ao mesmo tempo imparcial, visto que é copiada dos
manuscriptos adquiridos, no anno de 1889, á casa Pombal pela bibliotheca
publica de Lisboa. O numero d'estas pipas é exportado para os
commissarios inglezes. Eis a lista, nos sete annos anteriores ao monopolio:

Annos ... Pipas

1750 ... 15:121

1751 ... 17:406

1752 ... 13:238

1753 ... 21:257

1754 ... 14:773

1755 ... 13:124

1756 ... 12:094

Somma ... 107:013

Nos sete annos depois do monopolio:

Annos ... Pipas

1757 ... 11:317

1758 ... 16:568

1759 ... 16:413

1760 ... 17:130

1761 ... 14:785

1762 ... 21:199

1763 ... 9:683

Somma ... 107:095

Para augmentar 82 pipas sómente na exportação ingleza (que nas outras
foi grande a diminuição depois do monopolio) mandou Sebastião de
Carvalho enforcar, açoitar e degradar a enorme porção de desgraçados,
que além de terem fome, pagáram com a vida, com o corpo, com a saude e
com o dinheiro a mania reformadora do delirante mostrengo. Ha a fazer um
estudo pathologico sobre o coração e o cerebro d'este homem
verdadeiramente extraordinario n'uma qualidade unica:--a suprema
crueldade. Elle era um bicho estranho, que n'outro qualquer paiz seria
considerado como um delirante furioso, mas que em Portugal é ainda
tido--graças aos historiadores que fazem _historias_!--um ministro
providencial.

Alguns historiadores, entre elles o snr. Pinheiro Chagas, afiançam com
uma ingenuidade indesculpavel que Sebastião de Carvalho, indignado com o
procedimento do escrivão da alçada, José de Mascarenhas, filho de João
Mascarenhas Pacheco, o bom e fraco homem, e não podendo punil-o n'essa
occasião sem comprometter-se, deu-lhe uma commissão no Brazil, como
desterro simulado, reservando-se para mais tarde o prender, o que fez
com effeito em 1758. Sebastião José de Carvalho indignado com um sujeito
por suppôr que elle levava o zelo e a emulação a ponto de querer
igualal-o! Se isto não é para fazer rir. Dir-se-ia que o ministro não
queria rivaes n'uma qualidade em que elle realmente não os tinha. Mas
José de Mascarenhas estava longe de aspirar a semelhante rivalidade.
Elle era um pouco menos fraco do que o pai, mas foi sempre durante o
processo o fiel e talvez o brando executor das ordens tremendas do
ministro.

Os historiadores que imaginam que um sujeito, que servia sob as ordens
de Carvalho, podesse metter «crueldade de sua casa», são muito ingenuos
e muito ignorantes. As ordens do ministro eram formaes: «que
considerasse o crime como de lesa-magestade, que mandasse enforcar os
cabeças do motim, açoitar, degredar e roubar os outros».

José de Mascarenhas ainda teve a condescendencia de perdoar a forca á
mulher gravida. Os que desejem saber os motivos da prisão de José de
Mascarenhas leiam o _Perfil do Marquez de Pombal_ pelo snr. Camillo
Castello Branco. Tendo pouco espaço, não me posso occupar de assumptos
menos importantes que digam respeito á crueldade de Pombal; por isso,
lendo o livro do maior escriptor portuguez d'este seculo, encontrarão
desfiada a meada em que se enredáram historiadores de talento.

      *      *      *      *      *

O ministro por essa época já começava a ter jesuitas a cavallo no seu
porquissimo nariz--immundo e purguento deposito de rapé e de ranho.

Accusou os jesuitas de terem incitado o povo á revolta fazendo-lhe
suppôr «que os vinhos vendidos pela Companhia não eram proprios para a
celebração do santo sacrificio da missa».

O porcalhão tinha maravilhosos pretextos, sufficientes talvez para lhe
provarem o grau de intelligencia.

Os jesuitas nunca poderiam dizer tal coisa, porque, segundo o costume de
todas as ordens religiosas, usavam nas missas vinho preparado por elles.

Appello para o testemunho de todos os padres pertencentes a ordens
religiosas. E se os jesuitas dissessem o que o Sebastião lhes attribuiu,
não mentiriam. A Egreja ordena, sob pena de inutilidade do
sacrificio, que o vinho, que o padre tem de benzer, seja natural,
puro, sem mistura alguma. Ou pelo menos o padre deve ter a consciencia
de que o é. Os jesuitas e os padres d'aquelle tempo não podiam ter a
consciencia d'isso, porque sabiam que o vinho da Companhia era
falsificado com misturas reles.

O fallecido escriptor Francisco Luiz Gomes no seu livro _Le Marquis de
Pombal_, explica que a Companhia não melhorou os vinhos nem impediu as
misturas, que ella mesma fazia, tomando apenas o monopolio da
adulteração. Não era preciso o testemunho. Quem quizer ter mais
conhecimento das manhosas trapalhadas do ministro consulte os
manuscriptos insuspeitos da bibliotheca de Lisboa.

      *      *      *      *      *

Burguezes que lêm as declamações de historiadores mellifluos, acreditam
ingenuamente que foi Pombal e a sua energia quem reedificou a capital,
depois do terremoto de 1 de novembro de 1755.

Em Portugal quantos terremotos não houve antes do de 1755? E medonhos e
terriveis. E as cidades reedificávam-se, sem que o nome dos
ministros de então fosse sequer citado. N'uma miscellanea de
manuscriptos que possuo, descreve-se um terremoto na ilha Terceira em
1614, maio, succedido «durante o tempo em que se póde resar um credo».
Abriu-se a terra, sumiram-se casas, cresceu o mar, morreram mil e mil
almas sepultadas nas ruinas e sumidas pelas voragens, eis o que diz a
narração.

Carvalho fez o que qualquer faria. Os architectos dos Arcos das
Aguas-Livres e do palacio de Mafra não seriam mais do que competentes
para construirem os paredões funebres e alinhados da rua do Ouro, da rua
Augusta e rua da Prata?

O que pertence ao marquez--e traz o cunho indelevel d'esta
individualidade--são os avisos mandados expedir depois do terremoto.
Isto sim, é original d'elle. Mandava que se prendessem todas as pessoas
suspeitas, que se enforcassem os ladrões e os que fossem encontrados com
quantias superiores, e lhes expuzessem os cadaveres na forca durante
tres dias. Ordem providencial e hygienica! Tambem lhe cabem as honras do
monopolio da escravatura branca que elle empregava mandando
trabalhar nas obras da cidade bandos de operarios com fome,
chicoteados e mal remunerados.

Tudo isto é d'elle; e, se os democratas que hoje applaudem o ridiculo
despota, soubessem as ignominias, a fome e os rebaixamentos soffridos
pelo povo durante o reinado do idolo, talvez esfriassem o enthusiasmo
com que ha sete annos lhe celebraram o centenario.

Porque--que isto se saiba!--quando este homem se retirou do poder
deixando o erario cheio de milhões, o povo e o exercito soffria
fome![5]

      *      *      *      *      *

Quando Sebastião de Carvalho começou o ajuste de contas com os jesuitas,
já as côrtes da Europa mostravam descontentamento a esta Ordem, a mais
zelosa, a mais pugnadora pelos interesses da Egreja.

Em Hespanha, _ministrava_ Aranda. Em França, Choiseul, um emplasto, um
intrigante que troçava espirituosamente das patifarias solemnes de
Sebastião de Carvalho. Coroava este cenaculo um philosopho que as
gravuras do tempo apresentávam com um sorriso saloio de creado de servir
em dia de banquete. O defunto Voltaire, de quem o leitor ha de talvez
ter ouvido fallar, como dizia Rivarol, era um homemzinho que
monopolisava o espirito nos salões do seculo XVIII, o grande seculo da
conversação. Monopolio facil:--monopolio do espirito dos outros:--de
Rivarol, de Diderot, de Chamfort. Desastrado artista, mau poeta, mau
romancista, mau dramaturgo, mau critico, horroroso estylista, e por
todas estas razões declarado genio, homem encyclopedico, apostolo
sublime, e alojado no Pantheon, onde hoje repousa com o nojento e
impotente Rousseau ao lado de Victor Hugo!

Ironia medonha! O homem que no seculo XIX mais enthusiasmo, mais estylo,
mais arte, mais energia moral, dispendeu na factura de um monumento de
poesia, cofre á prova de fogo onde estão guardados todos os versos
torturados, todas as perolas da poesia, todas as phrases filtradas,
junto dos dois que com o seu cynismo mais concorreram para o
descredito da grande arte. Homens criminosos porque não esforçáram o
talento que tinham e porque consentiam que desperdiçassem a grande
faculdade da admiração os que os adjectivávam banalmente. Talentos
diffusos, solemnes, precisando d'um campo largo e aplainado para se
espojarem, foram o alvo das acclamações d'um seculo, e hoje
seriam--talvez!--dois citados escriptores illegiveis da _Revista dos
Dois Mundos_! Juntava-se a elles a Pompadour, a espirituosa mulher que
deu aos francezes mobilia, alegria e gozo. Esta sim, tinha razão de
queixa dos jesuitas, que lhe compromettiam e refreavam as ambições.

A guerra contra elles foi tão iniqua e tão tola que até os seus
inimigos--até Voltaire!--protestáram contra ella.

D'Alembert dizia:

«Foi a philosophia que, pela boca dos magistrados, lavrou a sentença
contra os jesuitas. Diremos tambem, porque é preciso ser justo, que
nenhuma ordem religiosa se póde glorificar de ter possuido um tão grande
numero de homens celebres na sciencia e nas letras.» Etc. etc.

«A todos estes meios de augmentar a sua consideração e credito
juntavam um outro não menos seguro, que era a regularidade do seu
comportamento e costumes. Embora se tenham publicado calumnias contra
elles, devemos confessar que nenhuma Ordem deu menos motivos para isso.»
Até aqui D'Alembert. Não citaremos mais por inutilidade. Em 1759 foram
expulsos, de Portugal; em 1764 foi a sociedade supprimida em França e os
bens confiscados, e em 1773 apparecia o breve _Dominus ac Redemptor_,
que supprimia a Companhia de Jesus, considerando perigosa a sua doutrina.

Firmava-o o pulso fraco,--mas parricida!--de Clemente XIV que em pleno
peito apunhalava os seus mais zelosos filhos.

Sejamos logicos: negar que os jesuitas prestávam innumeros serviços á
Egreja é parvoice. Se prestavam serviços, porque é que a Egreja os
supprimia? Quem não vê aqui o grande erro e o grande crime de
Ganganelli, o cardeal que obteve a tiara com a expressa condição de
supprimir a Ordem.[6]

      *      *      *      *      *

Eis uma prova da honradez inquebrantavel do velho marquez: D. José quiz
casar o principe do Brazil, seu neto, com a infanta D. Maria Francisca.
Sebastião oppunha-se teimosamente e manhosamente a este enlace porque,
dizia elle, uma alliança com a França seria muito proveitosa a Portugal:
e propunha o casamento do principe com a filha de Luiz XVI. Como quasi
toda a côrte e o rei eram contrarios á idéa do marquez, mandáram-se vir
de Roma os breves da dispensa para se effectuar a primeira alliança
projectada. Os papeis chegáram e ficáram em poder de Sebastião José. O
rei adoeceu da paralysia mortal e ateimou para que se abreviasse o
contrato. Procuráram-se os papeis em casa de Pombal, que os sumiu.

Julgo que este ultimo facto foi o que denunciou abertamente a D. José o
empalmador de documentos. Pois que passado tempo, quando o marquez ia a
entrar na camara em que jazia o rei enfermo, este apontou-lhe a porta
disparando sobre elle um olhar carregado e colerico.

O pobre D. José com o horror religioso que os antigos cortezãos lhe
influenciáram, possuiu-se de um justo remorso pelos crimes commettidos
de connivencia com o asqueroso mostrengo que fizera seu primeiro
ministro. Uma tardia bonacheirice, onde havia um pouco de energia, de
odio, de piedade e de gratidão para com o companheiro repulsivo dos seus
crimes, evitou que o rei punisse com severidade o aventureiro
desprezivel--e já desprezado!

A côrte, sabedora da repulsão do rei pelo grande e ridiculo criminoso,
começou a fazer a Sebastião toda a qualidade de desfeitas, sendo um dos
maiores desfeiteadores o cardeal Cunha--um antigo amigo do marquez. Bom
homem!

D. José--o gordo--morreu no palacio da Ajuda em 24 de fevereiro de 1777.
A 4 de março de 1777, dia seguinte ao de um decreto da rainha D. Maria I
que exilava o ex-ministro amavelmente para Pombal e lhe fazia mercê da
commenda de S. Thiago e da Ordem de Christo, partiu o marquez para a
villa do titulo. No largo do Convento de Belem foi apedrejada pelo povo
a carruagem em que ia. D. Maria I resolvêra deixar em socego Sebastião
de Carvalho. Mas elle, que não comprehendeu isso, publicou a
apologia dos seus actos n'um idiotissimo volume provocador em que se
póde, como amostra, avaliar a mesquinhez do seu talento de politico e de
escriptor.

D. Maria I, instigada com razão pelos escandalisados, mandou a Pombal os
desembargadores José Luiz da França e Bruno Manoel Monteiro da Rocha
interrogar o marquez. D'estes interrogatorios resultou um decreto em que
se dizia que o marquez, arrependido de tudo, pedira perdão; pelo que
havia por bem a rainha perdoar-lhe, attenta a avançada idade e grandes
enfermidades, os castigos corporaes que elle merecia. O decreto tem data
de 16 d'agosto de 1781. O marquez de Pombal, de joelhos, pedindo perdão!
O velho tigre, desdentado para morder, lambia, encolhendo as
garras--porque já não podia arranhar.

Abandonado n'um exilio nem sequer mitigado pelas considerações e pelos
respeitos que não recebia, este velho--velho como a estupida maldade do
seculo em que viveu--era o espantalho sinistro do seu passado
terrorista. Espantalho que não espantava senão moralmente, pois que era
o espectro vivo d'um monstro amortalhado no sudario de infamias,
parecia que o remorso amarráva á sua columna de fogo este cadaverico que
durante o seu reinado de sangue e de lama não perdoára nunca--e fôra
perdoado!

É provavel que algumas das suas victimas se compadecessem d'elle. Os
jesuitas, as victimas do seu odio jacobino, quando entráram em Portugal,
recolheram-lhe piedosamente os ossos espalhados pelo chão da capella nos
despojos da invasão franceza.

Parece impossivel que algum historiador se não tenha lembrado de dizer
que o marquez teria estremecido no tumulo. Qual estremeceu! A poeira
ficou piedosamente collocada na urna e a que se misturou com o lixo do
chão foi varrida para a rua. Não houve estremecimentos.

      *      *      *      *      *

Não intentámos biographar o marquez de Pombal, mas sómente resumir os
seus actos de governo e de crueldade. O homem para ahi fica exposto
n'este pelourinho de justiça e de indignação. Quando o marquez de Pombal
morreu, o medico achou-lhe duas pedras no coração. Devia de ter mais
quem mandou cortar a mão direita e arrastar á cauda de quatro cavallos
um pobre pyrotechnico genovez sob pretexto que attentára contra os seus
dias![7] Devia de ter mais o contradictorio mostrengo que inventou as
minuciosidades do cadafalso de Belem, a impiedade de Malagrida, a
conspiração dos jesuitas, e o crime de lesa-magestade na revolta do
Porto. Escriptores metaphoricos comparam o coração do velho a uma
caverna, a um antro. Aquillo era, indulgentemente fallando, uma latrina
para onde escorriam as fezes da sua alma sempre abundante.

FIM.

    [1] Vide o magnifico livro de Camillo Castello Branco _Perfil do
    Marquez de Pombal_. Porto, 1882.

    [2] Uma das primeiras leis providenciaes do «grande reformador» foi
    a que mandava reprimir severamente «os libertinos que escolhem
    sempre a noite para assignalar o deboche e que, querendo fazer
    duvidar da honra das mulheres que se casavam, punham-lhes nas casas
    dos maridos os emblemas de ignominia (cornos) que tornam suspeita a
    fidelidade conjugal.» O sublinhado é tirado d'um livro em francez
    _l'Administration de Sebastien de Carvalho e Mello_, etc., etc.
    Amsterdam, 1786, tomo II, pag. 13.

    Talvez que os taes libertinos puzessem o emblema na porta do
    ministro, que, para se não tornar grotesco, abafou a crueldade.

    [3] O marquez de Tavora e o duque d'Aveiro, segundo a sentença,
    deviam ter os braços e as pernas quebrados e serem queimados vivos.
    O rei modificou-lhes esta tremenda morte.

    [4] 23 de fevereiro de 1757.

    [5] Soldados, cabos e sargentos pediam esmola publicamente. Os
    guardas do ministro pediam esmola a quem ia visital-o.

    [6] Vide os historiadores Saint-Priest, Schoell, Muller, Schlower,
    Ranke, Luiz Gomes, Pinheiro Chagas, etc., etc.

    [7] Foi tão medonho o supplicio do Pelle que os frades arrabidos
    desmaiaram no meio da execução, e o carrasco para acabar com a
    victima teve de estrangulal-a com o lenço.



PORTO--TYP. DE A. J. DA SILVA TEIXEIRA.

_Cancella Velha, 70_



OBRAS PUBLICADAS

José de Sousa

Notas de pedagogia philosophica. 1 vol. ... 400

Caldas Cordeiro

O Marquez de Pombal. (Folheto para poucos) ... 100

Victor Hugo

O rei diverte-se. Drama em cinco actos, em verso. Traducção de ACACIO
ANTUNES. 1 vol. ... 600

NO PRÉLO

Teixeira Bastos

Sciencia e Philosophia (Ensaios de critica positivista) ... 1 vol.

Sá Chaves

Episodios militares e casos contemporaneos (Etographias portuguezas) ...
1 vol.





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