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Title: Flores do Campo
Author: Deus, João de, 1830-1896
Language: Portuguese
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Notas de Transcrição

Foram corrigidos pequenos erros de impressão, sem que seja feita qualquer
nota dessa correcção, visto que em nenhum dos casos a correcção altera
o significado do texto.

Para facilitar a identificação de cada poesia nesta edição electónica,
foi adicionado o seguinte marcador como divisão entre elas:

      *      *      *      *      *



FLORES DO CAMPO


A propriedade d'este livro pertence, no Brazil, ao snr. Joaquim Augusto
da Fonseca.



João de Deus


FLORES DO CAMPO


2.ª EDIÇÃO CORRECTA



PORTO

LIVRARIA UNIVERSAL
de
Magalhães & Moniz, Editores

12--Largo dos Loyos--14

1876


PORTO: 1876--TYP. DE A. J. DA SILVA TEIXEIRA
62, Cancella Velha, 62



A POESIA


EMBLEMA

Camões e Byron--Scepticismo e Crença

    Vem d'alto gozar, lirio!
    Noite estrellada e tepida;
    A vista ao céo intrepida
    Lança, penetra o Empyreo.

    Dilata os seios tumidos;
    Larga este terreo albergue;
    Nas azas d'alma te ergue;
    Ergue os teus olhos humidos

    Que vês?--Soes, de tal sorte
    Que os crêra tochas pallidas,
    Quando as guedelhas, madidas
    De sangue, arrasta a morte.

    --Transpõe-n'os; que, elevando-te,
    Por cada um d'aquelles,
    Milhões e milhões d'elles
    Verás alumiando-te.

    Ávante pois, acima
    Dos soes d'uma luz tremula;
    Alma dos anjos emula!
    Deus o teu vôo anima.

    Que vês?--Um vacuo eterno.
    --E n'elle?--Em ermo tumulo,
    Em ignea letra (cumulo
    D'horror) _Byron_--o inferno.

    --Foge.--O horror fascina-me.
    São reprobos que exhalam
    Horridos ais que abalam
    O inferno: oh Deus! anima-me.

    --Escuta-os.--Escutemol-os.
    Como elles bramem, rugem,
    E o espaço uivando estrugem...
    Gelam-se os membros tremulos.

    --Entra.--Não posso.--Arromba.
    --Prohibem-m'o.--Subleva-te.
    --Prohibe-o Deus.--Eleva-te.
    Acima, ingenua pomba!

    Que vês? A luz clareia-me.
    Que céo, que azul ethereo!
    Oh extasi, oh mysterio!
    Sobeja a vida, anceia-me.

    --Falla.--Deus! que harmonia!
    Aqui a alma exalta-se;
    A alma aqui dilata-se...
    _Camões!_--É a poesia.

Coimbra.

      *      *      *      *      *



  A UMA CARTA ANONYMA


    Não sabe a flôr quem manda a luz do dia,
    Nem quem lhe esparge o nectar que a deleita
             Ao vir raiando a aurora,
    E ella agradece as lagrimas que aceita,
    E ella as converte em balsamos que envia
             Ao mysterio, que adora.

                                     LAMARTINE.

Coimbra.

      *      *      *      *      *



DUAS ROSAS


    Que bonita, meu amor!
    Que perfeita, que formosa!
    A ti pozeram-te Rosa,
    Não te fizeram favor.
    A rosa, quem ha que a veja
    Bandeando, sem gostar?
    Mas por mais linda que seja
    A rosa, quando se embala,
    Não te ganha nem iguala
    A ti em indo a andar.

    A rosa tem linda côr,
    Não ha flôr de côr mais linda;
    Mas a tua côr ainda
    É mais fina e é melhor.
    Murcha a rosa (que desgosto!)
    Só de lhe a gente bulir;
    E essas rosas do teu rosto
    É em alguem te tocando
    Que parece mesmo quando
    Ellas acabam de abrir.

    Cheiro, o da rosa, esse não,
    Não é mais do meu agrado,
    Que o teu bafo perfumado,
    A tua respiração.
    Depois a rosa em abrindo
    Vai-se-lhe o cheiro tambem:
    A tua bocca em te rindo
    Só o bom cheiro que exhala...
    E quando fallas, a falla,
    Isso é que a rosa não tem.

    Ella o que tem, meu amor?
    O cheiro, a côr e mais nada.
    Confessa, rosa animada!
    Que és outra casta de flôr.
    Os olhos só elles valem
    Duas estrellas, bem vês;
    Pois vozes que a tua igualem
    Na doçura, na pureza,
    Na terra, não, com certeza;
    Agora no céo, talvez.

    Não ha assim perfeição,
    Não ha nada tão perfeito,
    Mas é um grande defeito
    O de não ter coração.
    N'isso é que te leva a palma
    A rosa, sendo uma flôr
    --Sem voz, sem vida, sem alma,
    Que abre logo á luz da aurora
    E á noite esconde-se e chora
    Pelo sol, o seu amor.

    Ora e se a rosa, vê bem,
    Tem amor, não tendo vida,
    Será coisa permittida
    Tu não amares ninguem?
    Suppões que Deus te agradece
    Essa isenção, minha flôr!
    Deus a ninguem reconhece
    Por filho senão quem ama:
    A terra e o céo proclama
    Que elle é todo puro amor.

Messines.

      *      *      *      *      *



A UMA MULHER


    Amo-te a ti, e a Deus.
    Teus sonhos são riquezas
    Talvez e fasto. Os meus,
    És tu, que me desprezas.

    Deixal-o. Amor acaso
    É racional? Não é.
    O fogo em que me abrazo
    É como a luz da fé;

    Que além de cega, apaga
    O facho da razão.
    Ama-se e não se indaga
    Se se é amado ou não.

    Amo-te. O mais ignoro.
    Mas os meus ternos ais
    E as lagrimas que chóro
    Podem dizer o mais.

    Que chóro; se te admira.
    Nunca tiveste amor.
    Quem tem amor, suspira,
    E o suspirar é dôr.

    Ah! quando abraço e beijo
    O travesseiro e, assim,
    Acórdo e te não vejo,
    Vejo-me só a mim;

    Não sei, mulher! que anceio
    Se me traduz n'um ai!
    Confrange-se-me o seio,
    Rebenta o pranto e cái.

    Então, se por encanto
    Fallando em ti, mas só,
    Todo banhado em pranto
    Me visses, tinhas dó.

    Tinhas. A piedade
    É filha da mulher,
    Que sempre quiz metade
    D'uma afflicção qualquer.

    Havias ao teu rosto
    De me apertar a mim,
    D'encher, fartar de gosto,
    Todo este abysmo; sim.

    Vós desprezaes embora
    Culto e adoração
    De quem vos ama; agora
    As dôres, essas não.

Messines.

      *      *      *      *      *



A D. CANDIDA NAZARETH

Por occasião da morte de sua irmã Rachel e, poucos dias depois, de sua mãi


    Despe o luto da tua soledade
    E vem junto de mim, lirio esquecido
            Do orvalho do céo!
    Tens nos meus olhos pranto de piedade,
    E se és, mulher! irmã dos que hão soffrido,
            Mulher! sou irmão teu.

    Consolos não te dou, que não existe
    Quem de lagrimas suas nunca enxuto
            Possa as d'outro enxugar:
    Não póde allivios dar quem vive triste,
    Mas é-me dôce a mim chorar se escuto
            Alguem tambem chorar.

    Botão de rosa murcho á luz da aurora!
    Que peccado equilibra o teu martyrio
            Na balança de Deus?
    Se é como justo e bom que elle se adora
    Quem te ha mudado a ti, ó rosa! em lirio,
            E em lirio os labios teus?

    Não enche elle de balsamos o calix
    Da flôr a mais humilde, e esses espaços
            Não enche elle de luz?
    Não veio o Filho seu, lirio dos valles!
    Só por amor de nós tomar nos braços
            Os braços d'uma cruz?

    Mulher, mulher! quando eu n'um cemiterio
    Levanto o pó dos tumulos sósinho:
            Eis, digo, eis o que eu sou.
    Mas quando penso bem n'esse mysterio
    Da virtude infeliz: vai teu caminho;
             Dois mundos Deus creou.

    Deus não dispara a setta envenenada
    Á pombinha que aos ares despedira
            Com mão traidora e vil.

    Imagem sua, Deus não volve ao nada,
    Não aniquila a flôr que ao chão cahira
            Lá d'esse eterno abril.

    Has-de, cysne! expirando alçar teu canto,
    Has-de lá quando a lua da montanha
            Te acene o extremo adeus,
    Voar, Candida! ao céo, e ebria de encanto,
    No oceano d'amor que as almas banha,
            Unir teu canto aos seus.

    Seus, d'ellas, mãi e irmã, cinzas cobertas
    D'um só jacto de terra... oh desventura!
            Oh destino cruel!
    Vejo-as ainda ir com as mãos incertas
    Guiando-se uma á outra á sepultura,
            E a mãi: Rachel! Rachel!

Coimbra.

      *      *      *      *      *



AMOR


    Amo-te muito, muito.
    Reluz-me o paraiso
    N'um teu olhar fortuito,
    N'um teu fugaz sorriso.

    Quando em silencio finges
    Que um beijo foi furtado
    E o rosto desmaiado
    De côr de rosa tinges;

    Dir-se-ha que a rosa deve
    Assim ficar com pejo,
    Quando a furtar-lhe um beijo
    O zephyro se atreve;

    E ás vezes que te assalta
    Não sei que idéa, joven!
    Que o rosto se te esmalta
    De lagrimas que chovem;

    Que fogo é que em ti lavra
    E as forças te aniquila,
    Que choras, mas tranquilla,
    E nem uma palavra?

    Oh! se essa mudez tua
    É como a que eu conservo,
    Lá quando á noite observo
    O que no céo fluctua;

    Ou quando, á luz que adoro,
    Ás horas do infinito,
    Nas rochas de granito
    Os braços cruzo e chóro;

    Amamo-nos... Não cabe
    Em nossa pobre lingua
    O que a alma sente, á mingua
    De voz, que só Deus sabe.

Coimbra.

      *      *      *      *      *



A DONZELLA E O MUSGO


    Um dia, não sei que eu tinha...
    Uma tristeza tamanha!
    E lembra-me ir á montanha,
    Que temos aqui vizinha,
    Onde em tempo me entretinha
    Horas e horas sósinha
    Quando ainda se não estranha
    Que n'uma teia de aranha
    Se prenda uma innocentinha,
    Ou atraz d'uma avesinha
    Se cance a vêr se a apanha.

    Depois é que o mundo falla
    E se mette com a vida
    De quem ás vezes se cala
    Por ser mais bem procedida.
    Que esta gente que faz gala
    Em coisa, que vê, contal-a,
    E sendo mal permittida
    Inda em cima acrescental-a,
    Teem a lingua comprida
    E bem deviam cortal-a.

    Vou pelo córrego acima,
    Subo á ponta do penedo;
    Que a vida só quem a estima
    É que da morte tem medo.
    A mesma tristeza anima
    A encarar a pé quedo
    A morte que se aproxima
    A tirar-nos do degredo,
    Que inda a gente se lastima
    De não acabar mais cedo.

    E alli sósinha chorando
    Me lembrava, ora a ventura
    Da minha infancia, inda quando
    Levava os dias brincando;
    Ora a desgraça futura,
    Que me estava annunciando
    Não sei se a minha amargura,
    Se uma nuvem, grande e escura,
    Que se ia no ar formando
    E vinha já avançando,
    Como que á minha procura.

    E ainda o pranto corria
    E o cabello me batia
    No rosto, que me doía,
    Tal era a força do vento;
    Já tudo tão pardacento
    A nevoa e chuva fazia
    Que eu olhava, mas dizia:
    É nuvem ou penedia
    Aquelle vulto cinzento?
    O mar brilhante algum dia
    Como prata luzidia
    Já ninguem o distinguia
    Da terra e do firmamento:
    Uivar só é que se ouvia,
    Mas uivar sem sentimento;
    E como em grande tormento
    Se desvaira a phantasia:
    --Fosse eu mar, disse; valia
    Mais ser coisa bruta e fria,
    Como a rocha onde me sento.

    Faz um trovão no momento
    Que soltava esta heresia;
    E áquella rouca harmonia
    Occorre-me um pensamento,
    Que me dá uma pancada
    O coração de tal modo,
    Como se o rochedo todo
    Desandasse na chapada.

    Era a voz da consciencia
    Que me accusava do crime
    De negar á Providencia
    A razão com que me opprime.
    Peço perdão, commovi-me
    E n'um extasi sublime
    Lagrimas de penitencia,
    Como um balsamo, uma essencia,
    Purificam-me e senti-me
    Com uma nova existencia.

    Ólho; as nuvens esvaíam-se:
    Os roncos do mar ouviam-se,
    Mas já mais de espaço a espaço.
    O sol ainda tão baço,
    De luz tão pouco brilhante,
    Que se media a compasso
    Como a cara d'um gigante,
    Descobre-se e resplandece!
    Ao longe o mar apparece;
    E tudo, mar, terra e céos
    Tão formoso me parece,
    Como se agora tivesse
    Sahido das mãos de Deus!

    No rochedo onde descança
    Meu corpo desfallecido,
    O verde musgo, vestido
    Sempre da côr da esperança,
    Agora reverdecido,
    Me ensina a ter confiança
    N'esse que do céo nos lança
    Em dia tempestuoso,
    Só para nosso repouso
    O arco da alliança.

    Pobre musgo, descuidado,
    Sem olhos para chorar,
    Sem poder alliviar
    Com seu pranto um desgraçado,
    Consolar-se e consolar!
    Fallas mais a meu agrado
    Que o livro mais afamado
    D'esses livros, que em lugar
    De nos dar consolação,
    Nos fazem cahir no chão
    Um pranto mal empregado,
    E inda mais amargurado
    Nos deixam o coração.

    Colhi-o, pul-o no seio,
    E é hoje o livro que leio.

Messines.

      *      *      *      *      *



ULTIMO ADEUS


    Prestes, se inda na rocha de granito
    D'onde em tempo me vias te sentares,
    Não olhes para a terra ou para os mares,
    Olha sim para o céo, que é lá que habito.

    Lá tão longe de ti, mas não do terno,
    Bondoso pai que os dois nos ha gerado,
    Só para mágoas não, que bem guardado
    Nos tem tambem no céo prazer eterno.

    Não se é só pó no fim de tanta mágoa.
    Senão, diga-me alguem que allivio é este
    Que sinto, quando á abobada celeste
    Alevanto os meus olhos rasos d'agua.

    Mentem os céos tambem? Os céos maldigo.
    Feras, tigres, tambem o céo povôam?
    Tambem os labios lá sorrindo côam
    Veneno desleal em beijo amigo?

    Mas na dôr é que os astros nos sorriem,
    E os homens não sorriem na desdita.
    Astros! fio-me em vós, e Deus permitta
    Que os infelizes sempre em vós se fiem.

    Intima voz do fundo, bem do fundo
    D'alma me diz (e as lagrimas me saltam):
    Vês os milhões de soes que o espaço esmaltam?
    Pisa a terra a teus pés, inda ha mais mundo.

    Ha depois d'esta vida inda outra vida.
    Não se reduz a nada um grão d'arêa,
    E havia de a nossa alma, a nossa idêa
    Nas ruinas do pó ficar perdida?

    --Isso que pensa e quer (até me admiro),
    Isso que a luz nos traz, que a luz nos leva,
    Isso que me abre o céo que ao céo me eleva
    N'um teu cançado olhar, n'um teu suspiro!

    Onde, não sei eu bem, mas sei que existe
    Deus remunerador. Depois de mortos
    Hemos de vêr-nos, e um no outro absortos
    Fartar de glorias este amor tão triste.

    --Tão triste, e o coração que me adivinha
    N'este supplicio nosso este tormento!
    Nunca dos labios teus minimo alento
    N'um só beijo bebi em vida minha!

    E morro sem te vêr! Cabeça doida,
    Desasisado amor! Sonhar afflicto
    Um sonho até morrer... Não: resuscito;
    Morto tenho eu vivido a vida toda.

***

      *      *      *      *      *



ROSAS


    Trazeis-me rosas; d'onde as heis trazido,
    Boa velhinha e minha boa amiga?
    Rosas no inverno! permitti que o diga,
    Sois feiticeira: d'onde as heis colhido?

    Na primavera de meus annos, ólho,
    Mas vejo abrolhos e não vejo flôres:
    E vós colhêl-as, como as eu não colho...
    Sois feiticeira--enfeitiçaes d'amores.

    Enfeitiçaes que a formosura, crêde,
    Não vem da face avelludada e bella;
    A formosura vem só d'alma; é d'ella
    Que brota a fonte que nos mata a sêde.

    Vós sois velhinha, já não tendes côres
    Que o rosto animem e que os olhos prendam,
    Mas tendes prendas que o amor accendam,
    Tendes ainda no inverno... flôres.

Evora.

      *      *      *      *      *



ROSA E ROSAS


    A Rosa trouxe-me rosas
    E nada mais natural,
    Mas eu prendas tão mimosas
    É que não tenho; inda mal.

    Quando tinha, se me désse,
    Não digo mais que uma flôr,
    Talvez de flôres lhe enchesse
    Esses cofrinhos d'amor.

    Aguas passadas, Rosinha!
    Deixal-o; veja se vê
    N'este chão que já foi vinha
    Coisa que ainda se dê.

    Veja e escolha. Está na mesa
    O que ha em casa; é tirar
    --Tirar com toda a franqueza;
    Inda hão-de espinhos sobrar.

    Mas se espinhos, mas se abrolhos
    Lhe não agradam, amor!
    Mire-se bem nos meus olhos,
    Que ha-de ahi vêr... uma flôr.

Evora.

      *      *      *      *      *



A HERMANN

Por occasião d'um beneficio a um asylo


    «Conchega a mãi ao peito o filho caro;
    Estende a pomba as azas no seu ninho
          Pelos filhinhos seus.
    Embala o arbusto agreste; o fructo amaro.
    Guia a bussola o nauta em seu caminho,
          Como um dedo de Deus.

    «Bebe a nuvem no mar, no rio a fera;
    Acha o tigre covil na antiga Hyrcania,
          Hoje em dia, Ghilã;
    Renasce a planta á luz da primavera,
    E no calix da flôr gotta espontanea
          Cahe á luz da manhã.

    «Só eu no mundo um gosto em vão pretendo:
    Guebro entre os persas, entre os indios pária,
          Judeu entre christãos,
    Só eu debalde ao céo as mãos estendo,
    Como o naufrago á praia solitaria
          Debalde estende as mãos.

    «Tenho no livro azul onde Elle escreve
    Esse nome, que nunca pronuncia
          Quem bem o soletrou,
    Mil vezes tenho lido que não deve
    Queixar-se mais que a flôr que vive um dia
          Um verme como eu sou.

    «Porém, chorando, as mágoas diminuem.
    Custa muito soffrer sem que um gemido
          Ah! solte a nossa dôr.
    E se aos olhos as lagrimas affluem,
    É que este allivio nosso é permittido.
          O céo orvalha a flor.»

    Diz isto o orphão. De alma os ais lhe sahem,
    Como os suspiros de harpa eolea em ermo.
          Ninguem no mundo o ouviu.
    Mas, se a teus pés as lagrimas lhe cahem,
    Tocou a mão de Christo a mão do enfermo;
          O Lazaro surgiu.

    Por isso, Hermann! espantas-me. Não scismo
    Nos prodigios da milagrosa vara
          Que o Senhor Deus te deu.
    Teu coração, Moysés do christianismo!
    Tua alma é que eu admiro, e te invejára
          Se o que é teu... fosse teu.

Coimbra.

      *      *      *      *      *



PRESENTIMENTO


    Emilia! não vês a lua
    Como vacilla e fluctua,
    Ora avança, ora recúa,
    E não ha passar d'alli?
    Tu és a imagem d'ella;
    És tão sympathica e bella,
    Meiga e timida, que ao vêl-a
    Me lembra sempre de ti!

    Tu és o botão de rosa
    Que abraçado á mãi formosa
    Só folga, só vive e goza
    N'aquella triste união;
    Treme até de ouvir a aragem
    Passar por entre a folhagem:
    Emilia! tu és a imagem
    Do mais timido botão.

    Mas embora: o tempo gira.
    Um dia o botão, que aspira
    O ar da manhã... suspira
    E levanta o collo ao céo:
    Vê vir raiando a aurora,
    Abre o seio á luz que adora,
    Correm-lhe as lagrimas, chora...
    Chora o tempo que perdeu!

    Porque elle, Emilia! não teme
    Que a luz da aurora o queime;
    Elle suspira, elle geme
    Por vêr a luz que o creou.
    Nem tambem a lua pára:
    Se algumas vezes repara
    N'uma nuvem menos clara,
    É um momento e... passou.

    Não ha existencia alguma
    Que não tenha amor; nenhuma;
    Porque o amor é, em summa,
    Essencia de todo o sêr.
    Ha sempre quem nos attráia.
    Mil vezes que a onda cáia,
    Ha uma rocha, uma praia
    Aonde a onda vai ter.

    Tu andas já presentida
    D'essa voz que te convida
    A encetar n'esta vida
    Ai! uma vida melhor...
    E em breve desenganada
    D'essa existencia isolada,
    Darás n'alma franca entrada
    A sentimentos de amor!

Silves.

      *      *      *      *      *



MARINA


I

APPARIÇÃO

    Como esse olhar é dôce!
    Dôce da mesma sorte
    Como se nunca fosse
    Toldado pela morte:

    Como se alumiasse
    O sol ainda em vida
    As rosas d'essa face...
    Agora carcomida.

    Colhesse-as eu mais cedo
    E logo que alvorece;
    Já não tivesse medo
    Que a terra m'as comesse.

    Mas pura, como a neve
    Que ás vezes cahe na serra,
    É que a nossa alma deve
    Tambem voar da terra.

    Gelasse a morte fria
    A mão profanadora
    Que te ennublasse um dia
    A luz que dás agora.

    É n'essa côr tão linda,
    Rosa da madrugada!
    Que sinto a alma ainda
    Andar-me enfeitiçada.

    Se um dia nos meus braços
    Te desbotasse as côres,
    Passavam os abraços...
    Passavam os amores!

    Oh! não: mil vezes antes
    No céo lá onde habitas,
    E os rapidos instantes
    Que vens e me visitas

    N'este degredo nosso,
    Que tanta gente estima,
    E eu, só porque não posso,
    Não largo e vou lá cima.

    Vem tu cá baixo, abala,
    Deixa em podendo o collo
    Tão terno que te embala,
    E vem-me dar consolo.

    Como essa imagem pura
    Ah! sobrevive ao nada
    E escapa á sepultura,
    Tão fresca e perfumada!

    Nunca uma noite eu deixe
    De estar a vêr que existes,
    Em quanto me não feche
    O somno os olhos tristes.

    E n'esse largo espaço
    Que te não vejo, espero
    Lhe contes o que eu passo
    N'este aspero desterro:

    Que assim que te não veja
    É noite fria e escura,
    Noite que mette inveja
    Á mesma sepultura!


II

SAUDADE

    Em acordando agora,
    O meu contentamento
    É vêr em cada aurora
    Um dia de tormento!

    Podesse eu dar-te a prova
    Dos dias que me esperam,
    Lançando-me na cova
    Onde elles te pozeram!

    Lançassem-me algum dia
    Ao pé, que de repente
    O coração te havia
    De ainda pular quente...

    A face cobrar logo
    A fórma e côr perdida,
    E a bocca toda fogo
    Ah! inspirar-me a vida!

    Supplíca, ó anjo! implora
    Ao Pai universal
    Que me deixe ir embora
    D'este horroroso val

    De lagrimas amargas,
    E turvas de tal modo,
    Como umas nuvens largas
    Que tapam o céo todo!


III

ETERNIDADE

    Inferno e céo, conforme
    A nossa fé, confesso
    Que é um mysterio enorme,
    É um mysterio immenso.

    Mas um mysterio é tudo:
    Folhinha d'herva, e estrella,
    Não ha comprehendêl-a!
    É contemplal-a mudo.

    E a herva, como existe,
    A mim quem m'o diria,
    Se a luz que me alumia
    Nem sabe em que consiste?

    Mas uma coisa sabe
    O que a cabeça ignora
    --O coração... que mora
    Em peito onde não cabe.

    Ha uma luz mais clara
    Que a luz do pensamento:
    A d'essa imagem cara...
    A d'este sentimento!


IV

... 21 DE SETEMBRO

    Ha uma hora ou mais,
    Marina! que contemplo
    A casa de teus paes
    Que é para mim um templo.

    Está a porta aberta,
    E vejo alumiada
    A parte descoberta
    Da casa da entrada.

    Lá andam a passar
    Do quarto onde acabaste
    Á casa de jantar
    Os vultos, que deixaste.

    Os vultos, que os vestidos
    Tão negros que pozeram,
    De luto, tão compridos,
    Não sei que ar lhes deram!

    A tua bella irmã,
    A tua piedade,
    A rosa da manhã,
    A flôr da mocidade,

    Quem lhe diria a ella,
    Tão cheia de alegria,
    Que haviamos de vêl-a
    Assim já hoje em dia!

    É esta vida um mar,
    E bem se póde a gente,
    Marina! comparar
    A rapida corrente,

    Que vai de lado a lado
    Por esses valles fóra
    Sem nunca lhe ser dado
    Ter a menor demora.

    Pára, quando a engole
    Aquelle mar sem fundo;
    Nem pára; é como o sol
    E como todo o mundo...

    Ahi não pára nada,
    Tudo viaja e anda,
    Que a ordem lhe foi dada,
    E dada por quem manda.

    Chega a corrente lá,
    Engole-a logo a onda:
    Depois, que é d'ella já?
    A nuvem que responda.

    Que a nuvem que nos passa
    Pela manhã nos ares,
    Era hontem a fumaça
    Que andava n'esses mares;

    E a nevoa, que tu vês
    Nas ondas fluctuantes,
    Corria-nos aos pés
    Talvez um dia antes.

    A agua é que no giro
    Em que anda eternamente
    Não deu nunca um suspiro
    Em prova de que sente.

    .....................

      *      *      *      *      *



N'UM ALBUM

Pedindo-se ao author uma poesia

    Não me admira a mim que o sol, monarcha
    De indisputavel throno, e throno eterno
            Em céo e terra e mar;
    Que em seu imperio o mundo inteiro abarca
    Abaixe á pobre flôr seu dôce e terno,
            Mavioso olhar.

    Não me admira a mim que a crystallina,
    Tão pura, onda do mar, que espelha a face
            Do astro creador,
    Que essas asperas rochas cava e mina,
    Á praia toda languida se abrace
            E toda amor!

    Mas sendo vós um sêr mais precioso
    Do que onda e sol--um anjo de poesia
            Inspirada e que inspira;
    Que ás minhas mãos, das vossas, tão mimoso,
    Delicado penhor descesse um dia
            É que me admira.

    Quizera nos meus cofres de poeta
    Ter as riquezas todas do Oriente,
            E com mãos liberaes
    Expulsar esta duvida que inquieta
    Um grato coração que apenas sente
            E... nada mais!

    De limpido diamante e fio de oiro,
    Quizera-vos tecer collar que á aurora
            Vencesse em brilho e côr;
    Mas o poeta, o unico thesoiro
    Que tem, ah! são as lagrimas que chora
            E o seu amor.

    Eu vol-o dou. E lá do espaço immenso
    Se amada estrella olhar piedoso envia
            A quem da terra a adora;
    Se o sol aceita á flôr humilde incenso;
    Ha no amor tambem muita poesia...
            Minha senhora!

Evora.

      *      *      *      *      *



    Beijo na face
    Pede-se e dá-se:
        Dá?
    Que custa um beijo?
    Não tenha pejo:
        Vá!

    Um beijo é culpa
    Que se desculpa:
        Dá?
    A borboleta
    Beija a violeta:
        Vá!

    Um beijo é graça
    Que a mais não passa:
        Dá?
    Teme que a tente?
    É innocente...
        Vá!

    Guardo segredo,
    Não tenha medo...
        Vê?
    Dê-me um beijinho,
    Dê de mansinho,
        Dê!

    Como elle é dôce!
    Como elle trouxe,
        Flôr!
    Paz a meu seio;
    Saciar-me veio,
        Amor!

    Saciar-me? louco...
    Um é tão pouco,
        Flôr!
    Deixa, concede
    Que eu mate a sêde,
        Amor!

    Talvez te leve
    O vento em breve,
        Flôr!
    A vida foge.
    A vida é hoje,
        Amor!

    Guardo segredo;
    Não tenhas medo
        Pois!
    Um mais na face
    E a mais não passe!
        Dois...

    Oh! dois? piedade!
    Coisas tão boas...
        Vês?
    Quantas pessoas
    Tem a Trindade?
        Tres!

    Tres é a conta
    Certinha e justa...
        Vês?
    E o que te custa?
    Não sejas tonta!
        Tres!

    Tres, sim. Não cuides
    Que te desgraças:
        Vês?
    Tres são as Graças,
    Tres as Virtudes,
        Tres.

    As folhas santas
    Que o lirio fecham,
        Vês?
    E que o não deixam
    Manchar, são... quantas?
        Tres!...

      *      *      *      *      *



    Thuribulo suspenso inda fluctuo,
    Em quanto a alma em incenso restituo;
    Mas, quando como fumo que se esvai,
    Minha alma! vás teu rumo... sobe e vai.
    Vai d'estas densas trevas, d'esta cruz,
    Levar-lhe... quanto levas, pobre luz!
    Amor, que em mim não cabe, vai depôr
    Em Deus, e Deus bem sabe se era amor;
    Se d'outra flôr o calix mais libei
    Por esses quantos valles divaguei;
    Se um nome em igneo traço li no céo,
    Nas ondas e no espaço, mais que o seu...
    Deus sabe se eu dos montes vi tambem
    Nos vastos horisontes mais alguem;
    Nos tristes e risonhos dias meus,
    Se alguem vi mais em sonhos, que ella e Deus.
    Porém quem é que apanha o aereo véo
    Da nuvem da montanha, se é do céo?
    Se á terra a nuvem desce, quando vai
    Tocar-se-lhe, desfez-se como um ai.

Coimbra.

      *      *      *      *      *



    Luz d'intima influencia,
    Oh fugitiva luz!
    Luz cuja eterna ausencia
    É minha eterna cruz.

    Podessem-te, ainda antes
    Do meu extremo adeus,
    Meus olhos fluctuantes
    Vêr lampejar nos céos.

    Se ainda n'esse espaço,
    Tão longe onde tu vás,
    Visse um reflexo baço
    Da pura luz que dás;

    Tornaram-se-me estrellas
    As lagrimas de dôr;
    E lagrimas são ellas...
    Sim, lagrimas d'amor!

    Vê n'esse espaço immenso
    Os astros como estão
    Bem como eu estou, suspenso
    Por intima attracção.

    Porque ha quem os attráia;
    É essa eterna paz
    Que a mim de praia em praia
    A suspirar me traz.

    Converte-me este inferno
    Em azulado céo,
    Ou quebra o laço eterno
    Que a tua luz me deu;

    Ou antes muda em espuma
    De nunca estavel mar
    Esta alma que alma alguma
    Póde exceder em amar.

    Em cinza, em terra, em nada,
    Meu sêr converte, ó luz,
    Mas sempre, sempre amada,
    Deliciosa cruz!

Portimão.

      *      *      *      *      *



RESPOSTA

A A. DO QUENTAL


    Em fumo se vai tudo, amigo! Olhando
    Para as nuvens do céo, nuvens d'aquellas,
    E parece-me ainda que mais bellas,
    Anda a gente fazendo e desmanchando.

    Dá-me uma saudade em me lembrando
    O bello tempo que passei com ellas,
    Por essa immensa abobada de estrellas,
    Por esse mar de fogo viajando...

    Andasse ainda eu lá, que não me havia
    De vêr por estes charcos atolado,
    Onde nem sol nem lua me alumia.

    Andasse ainda eu lá, desenganado
    Mesmo já como estou de achar um dia
    A patria d'aonde ando desterrado.

      *      *      *      *      *



    Pois se o homem, se anjo e nume,
        Planta e flôr,
    Dá seu canto, luz, perfume,
        Crença e amor;

    Pois se tudo sobre a terra
        Que ame alguem,
    Rosa ou espinho, quanto encerra
        Dá, se o tem;

    Se os carvalhos, nus, medonhos,
        Veste abril;
    Se inda a noite presta aos sonhos
        Graças mil;

    Se onde ha ramo, voz uma ave
        Desprendeu;
    Se onde ha folha, gotta suave
        Cahe do céo;

    Se na praia, quando a onda
        Vem de lá,
    Beijos, antes que se esconda,
        Mil lhe dá;

    Tambem, anjo meu saudoso!
        Te hei de emfim
    Ah! dar quanto de precioso
        Sinto em mim!

    Dou-te o nectar, que me acalma;
        Toma-o tu!
    Sim, meu pranto; mais uma alma
        Que eu possuo!

    Dou-te os sonhos meus ardentes,
        Mas leaes;
    Dou-te as notas mais cadentes
        Dos meus ais!

    Do que ha lindo, tudo quanto
        Me seduz;
    D'esta vida, riso e pranto,
        Noite e luz!

    Dou-te o genio meu, que á sorte
        Vês fluctuar
    Sem mais véla, sem mais norte
        Que esse olhar!

    Dou-te a lyra, que me inspiras,
        Sonho meu!
    Que suspira, se suspira,
        Flôr do céo!

    Dou-te; aceita: tudo é santo,
        Tudo, flôr!
    Dou-te uma alma toda encanto,
        Toda amor!

                          V. HUGO.

Coimbra.

      *      *      *      *      *



FLÔR E BORBOLETA


    Tu vôas, borboleta! e que eu não possa
              Voar, amor!
    Diversa como é n'isto sorte nossa!
              Dizia a flôr.

    No valle, ambas irmãs, nascidas fomos;
              És como eu sou;
    E amamo-nos, e flôres ambas somos,
              Mas eu não vôo.

    A ti leva-te o ar; prende-me a terra
              A mim; e eu
    Como hei-de perfumar-te em valle e serra,
              E lá no céo!...

    Mais longe inda tu vás, por outras flôres...
              Girar, talvez,
    Em quanto a minha sombra, meus amores!
              Gira a meus pés!

    E vens-me vêr depois, mas vaes-te embora,
              Sabendo, assim,
    Que em lagrimas me encontra sempre a aurora!
              Pobre de mim!

    Acabem-se estas mágoas, meu thesoiro
              E meu amor!
    Cria raiz ou dá-me as azas de oiro,
              Celeste flôr!

                                        V. HUGO.

Coimbra.

      *      *      *      *      *



REMOINHO


    Olha como embrulhado
    Que está ainda o céo
    E o chão, como ensopado
    Da agua que choveu...

    Foi um diluvio d'agua;
    E o furacão, que fez,
    Emilia! até dá mágoa
    Tantos estragos: vês?

    Esta infeliz víuva,
    Foi-lhe o telhado ao ar;
    Depois, já nem da chuva
    Tinha onde se abrigar.

    De mais a mais sósinha,
    Sem ter nenhum dos seus
    Aqui ao pé; ceguinha...
    Bemdito seja Deus!

    Além n'aquelle serro
    Parece que raspou
    Com uma pá de ferro
    A terra que encontrou.

    Nem um só pé de trigo
    És lá capaz de vêr.
    Já eu disse commigo:
    Como póde isto ser?

    As arvores arranca
    O vento muito bem;
    Serve-lhe de alavanca
    A rama que ellas tem.

    Vem de lá elle e, topa
    N'uma arvore, o que faz?
    Enrola-se na copa
    E, tronco e tudo, zás!

    Que as folhas não são nada,
    Uma por uma, não;
    Mas já uma pernada...
    Tão poucas ellas são?

    Vê lá se o teu cabello
    É para comparar;
    Mas, possa alguem sustel-o,
    Levanta-te no ar.

    Aqui um loureirinho,
    Que era o que havia só,
    Encontra-o no caminho,
    Ia-o fazendo em pó.

    D'aqui passa, á maneira
    Assim d'um caracol,
    Áquella farrobeira
    Põe-lhe a raiz ao sol.

    Aquelle enorme tronco
    Quiz resistir, depois,
    Ouviu-se um grande ronco,
    Quando o eu vejo em dois.

    Andava a rama toda,
    Emilia! assim, vês tu?
    Á roda, á roda, á roda,
    Eis senão quando, rhuh!

    Foi quando veio o outro
    Urrando como um boi,
    Oh que horroroso encontro!
    Então é que ella foi.

    Vês uma cobra enorme
    Á calma, quando está
    Grande calor, conforme
    As tenho visto já?

    Que não tem ar avonde,
    Falta-lhe já o ar,
    Quer sangue ou agua onde
    Se possa refrescar;

    Anceia-se, sacode
    O corpo todo a vêr
    Se vôa, mas não póde;
    Voar não póde ser;

    E como não supporta
    Já o calor do chão,
    Ao vêr-se quasi morta
    De raiva e afflicção,

    Apenas finca a ponta
    Do rabo em terra, e sái;
    E faça-se de conta
    Que é a voar que vai

    N'aquellas roscas todas
    Que, olhando-se-lhes bem,
    São outras tantas rodas
    Em cima d'onde vem;

    N'aquelle parafuso
    --Aquelle rodopio,
    Á roda como um fuso
    Suspenso pelo fio;

    Com a cabeça chata,
    Aquelle olhar feroz,
    Aquelle olhar que mata
    Sempre de fito em nós?

    Assim d'essa maneira
    É que elle vinha, o tal;
    Salta-lhe á dianteira
    Este de força igual;

    E assim que se avistaram,
    Não sei o que lhes dá;
    Ficam suspensos, param,
    Como com medo já;

    Aquelles sorvedouros,
    Em vez de remoinhar,
    Parecem-se dois touros
    Jogando a terra ao ar;

    Ouvia-se a oliveira
    Zunir no ar, então,
    D'um para o outro inteira,
    Nem bala de canhão;

    E assim se vão chegando
    Cada vez mais, até
    Que eu ólho, eis senão quando
    Vejo... mas vejo o que?

    . . . . . . . . . . . . . . .

Messines.

      *      *      *      *      *



AMORES, AMORES...


    Não sou eu tão tola
    Que cáia em casar;
    Mulher não é rola,
    Que tenha um só par:
      Eu tenho um moreno,
    Tenho um de outra côr,
    Tenho um mais pequeno,
    Tenho outro maior.

    Que mal faz um beijo,
    Se apenas o dou
    Desfaz-se-me o pejo,
    E o gosto ficou?

      Um d'elles por graça
    Deu-me um, e depois,
    Gostei da chalaça,
    Paguei-lhe com dois.

    Abraços, abraços
    Que mal nos farão?
    Se Deus me deu braços,
    Foi essa a razão.
      Um dia que o alto
    Me vinha abraçar,
    Fiquei-lhe d'um salto
    Suspensa no ar.

    Amores, amores.
    Deixál-os dizer;
    Se Deus me deu flôres,
    Foi para as colher.
      Eu tenho um moreno,
    Tenho um de outra côr,
    Tenho um mais pequeno,
    Tenho outro maior.

      *      *      *      *      *



FABULA


    Um dia os deuses, cada qual uma arvore,
    Á sua guarda consagraram: Jupiter
    Esse o carvalho, a murta Venus, Hercules
    Lá esse o alemo, e o loureiro Apollo.
    Vendo-as Minerva todas infructiferas:
    Que é isto? exclama. Jupiter acode-lhe:
    Senão, diriam, filha! que as guardavamos
    Só pelo fructo.--Que me importa digam-no;
    É pelo fructo que a oliveira escolho.

    Minerva! brada o pai d'homens e deuses,
    És quem, de todos, sabes mais sem duvida;
    No que não luza... mal fundada gloria.

    _Honra sem proveito
    Faz mal ao peito._

                                       PHEDRO.

Coimbra.

      *      *      *      *      *



BOAS NOITES


    Estava uma lavadeira
    A lavar n'uma ribeira,
    Quando chega um caçador.

    --Boas tardes, lavadeira!

    --Boas tardes, caçador!

    --Sumiu-se-me a perdigueira
    Alli n'aquella ladeira,
    Não me fazeis o favor
    De me dizer se a bréjeira
    Passou aqui a ribeira?

    --Olhai que d'essa maneira
    Até um dia, senhor,
    Perdereis a caçadeira,
    Que ainda é perda maior.

    --Que me importa, lavadeira!
    Aqui na minha algibeira
    Trago dobrado valor.
    Assim eu fôra senhor
    De levar a vida inteira
    Só a vêr o meu amor
    Lavar roupa na ribeira...

    --Talvez que fosse melhor,
    Vêr... coser a costureira!
    Vir, de ladeira em ladeira,
    Apanhar esta canceira
    E tudo só por amor
    De vêr uma lavadeira
    Lavar roupa na ribeira...
    É escusado, senhor!

    --Boas noites... lavadeira!

    --Boas noites, caçador!..

Messines.

      *      *      *      *      *



GASPAR


    Ora se não sei eu quem foi teu pai!
    Fidalgo: sei perfeitamente bem.
    O que eu não sei, Gaspar! é o que vem
    N'esta vida fazer quem já lá vai.

    Já se vê que é aos paes que a gente sái.
    Tal pai, tal filho; sim, duvída alguem
    Que um pai se é como o teu, homem de bem,
    Tu és homem de bem como teu pai?

    D'isto não ha quem possa duvidar.
    Mas queres um conselho que eu te dou?
    Não mexas n'isso... cala-te, Gaspar!

    Que eu, cá por mim, bem sabes como eu sou,
    Mas é que outro talvez mande tirar
    Certidão de baptismo a teu avô.

Coimbra.

      *      *      *      *      *



    Deixa que ao romper d'alva o cravo abrindo,
            Á rosa envie o aroma;
    E lá quando alta noite a lua assoma,
            O rouxinol carpindo!

    Que pela face a lagrima resvale
            De quem no exilio geme;
    E quando a propria sombra o homem teme,
            Que a mãi seu filho embale.

    Deixa que ao espaço immenso os olhos lance
            O sol antes que expire;
    Que pelo norte a bussola suspire
            E nelle só descance.

    Amam leões e tigres. Não ha nada,
            Anjo! que a amor se esconda.
    Beija a pomba o seu par; e abraça a onda
            A rocha inanimada.

    Deixa que a nuvem negra tolde a lua
            Se a leva a tempestade;
    Deixa que eu te ame a ti, cara metade,
            D'esta alma toda tua!

Coimbra.

      *      *      *      *      *



CARTA


    Maria! vêr-te á porta a fazer meia,
    Olhando para mim de vez em quando,
    É o que n'esta vida me recreia.

    Acordo até de noite suspirando
    Por que rompa a manhã e tenha o gosto
    De te vêr já tão cedo trabalhando.

    Desde pela manhã até sol-posto
    Que não tens de descanço um só momento;
    Por isso tens tão bella côr de rosto.

    E eu pallido, Maria! O pensamento
    Não é trabalho que nos dê saude,
    Esta imaginação é um tormento.

    Que bello tempo aquelle em quanto pude
    Levar, como tu levas, todo o dia
    N'essa vida chamada ingrata e rude!

    Nunca soube o que foi melancolia,
    Nunca provei as lagrimas salgadas
    Com que a nossa alma as penas allivia;

    Andava sim por essas cumiadas
    Ao sol, á chuva, muita vez, sósinho,
    Vendo os valles, das rochas escarpadas;

    Descendo pelo córrego estreitinho,
    De pontal em pontal, cortando o matto,
    Pelas chapadas, fóra de caminho;

    Mas não era que já o teu retrato
    Me andasse a mim no coração impresso,
    Onde hoje o trago no maior recato,

    E um desengano teu que não mereço
    Me tivesse tirado a fé tão dôce
    D'alcançar algum dia o que appeteço.

    Não foi, não, a paixão que assim me trouxe
    Tão erradio a mim, digo a verdade
    E nem eu te negava se assim fosse.

    É que a gente na sua mocidade
    Não cabe em si, não pára de contente,
    E assim fui eu na flôr da minha idade.

    Tu eras n'esse tempo simplesmente
    A flôr que vai nascendo e mais valia
    Seres tão tenra ainda e innocente.

    Já esse lindo pé que tens, Maria!
    Esse quadril tão largo, e cinta estreita,
    Me não vinha á idéa noite e dia;

    Esses encontros de mulher perfeita,
    Esse peito redondo e arqueado
    Como o de pomba farta e satisfeita.

    Talvez vivesse então mais socegado,
    Ou já que minha sorte é sempre triste
    Ao menos não andasse enfeitiçado.

    Esse bello pescoço, não existe
    Outro assim torneado: o rosto é lindo
    E a tão meiga expressão ninguem resiste.

    A bocca é tão vermelha que, em te rindo,
    Lembra-me uma romã aberta ao meio
    Quando já de madura está cahindo.

    Esses olhos azues... que olhar! Receio
    E desejo estar sempre a contemplal-o;
    Não ha mais dôce e mais custoso enleio:

    Eu não oiço fallar então, nem fallo
    De enlevado que estou e, juntamente,
    Gemendo e abafando os ais que exhalo.

    Oh nuvem da manhã resplandecente,
    Manto real de sêda delicada,
    Cada fio um grilhão que prende a gente.

    Bem podias, Maria! andar tapada
    Só com o teu cabello, á semelhança
    Do sol em nuvem de manhã doirada.

    É tudo encantador. A gente cança,
    Cança de estar olhando e sempre vendo
    Um novo encanto a cada olhar que lança.

    E se essa linda voz nos sái dizendo
    As mimosas palavras que costuma,
    Sente-se a gente logo derretendo;

    Que além d'um rosto tão perfeito, em summa
    Coube-te em sorte um coração perfeito
    E em ti não ha, Maria! falta alguma.

    Oh que ditoso, alegre e satisfeito
    Não viverá o homem que algum dia
    Sentir pular-te o coração no peito,

    E que em deliciosissima agonia,
    Vendo-te já os olhos desmaiando
    Como desmaia o céo á luz do dia,

    Nas azas da ventura atravessando
    Os espaços d'um extasi ineffavel
    Abraçado comtigo fôr voando
    Lá para onde tudo é bello e estavel!

Messines.

      *      *      *      *      *



    --Dá-me esse jasmim de cera,
          Minha flôr?
    --Mas e depois se lh'o dera,
          Meu senhor?

    --Depois? era uma lembrança.
          --Mas de quê?
    --D'uma tão linda criança,
          Já se vê.

    --Oh tão linda! Mas, parece,
          Sendo assim,
    Que inda quando lhe não désse
          Tal jasmim...

    --Não me esquecia, de certo.
          --Nunca já?
    --Nunca.--Nunca, é muito incerto,
          Mas... vá lá.

    --E a rosa, que bem lhe fica,
          Dá-m'a, flôr?
    --Oh a rosa, a rosa pica,
          Meu senhor!

Messines.

      *      *      *      *      *



MARGARIDA


    Oh que formosos dias, Margarida!
    Esses da tua vida;
    E que nublados
    Meus dias desgraçados!

    Nasci tambem assim risonho e meigo,
    Mas hoje apenas chego
    O calix da ventura
    Á bocca ancioso,
    Torna-se a agua impura
    E o liquido que bebo
    Venenoso,
    Sim, venenoso o liquido que bebo.

    Nem eu concebo
    Como Deus me creasse
    Para tormento eterno;
    Elle que tão affavel, meigo e terno
    Te beija a ti a face
    E te embala no collo, Margarida!
    A mim dar-me esta vida...

    Mas vejo á sombra d'altos edificios
    Miudissimas flôres
    De tão subtís e delicadas côres
    Que se o sol lhes chegasse
    Talvez que nem resquicios
    Lhes ficasse.
      Com uma d'essas azas, estendida,
    Me tapavas tu todo,
    E d'esse modo,
    Com esse escudo,
    Eu ria-me de tudo
    E levava esta vida alegremente.
    Tenho essa fé.

    Vejo tambem a flôr que nasce ao pé
    D'agua corrente,
    Ir tão suavemente
    Levada pela agua!
    Talvez até sem magua
    De deixar sua mãi.
      D'esse modo tambem,
    Amparando-me tu a mim nos braços,
    Eu seguia-te os passos,
    Fosse por onde fosse;
    E d'essa sorte
    Até a morte
    Me seria dôce.

Messines.

      *      *      *      *      *



NO LEITO NUPCIAL


    Dorme, estatua de neve,
    Vergontea de marfim!
    Tocar que impio se atreve
    No que é sagrado assim?

    Dois são: o mais, mysterio
    Vedado á terra. Deus
    Talvez do solio ethereo
    Nem baixe os olhos seus.

    Respeita-os, tapa-os, como
    Japhet e Sem, o pai...
    Pende, sagrado pomo!
    A vista ergue-se e cai.

    Ergue-se e cai, conforme
    A lei, que o manda assim.
    Ergue-se e... Dorme, dorme,
    Vergontea de marfim!

    Mas dize: o espelho a imagem
    Te estampa mal te vê;
    Beija-te o seio a aragem,
    Doira-te o sol; porquê?

    Não segue acaso a sombra
    Teu corpo sempre, flôr!
    E pois, porque te assombra
    Meu insensato amor?

    Ás vezes passas tremula
    Como sagrada luz;
    E os olhos dizem: vemol-a
    Como no alto a cruz.

    Perdoa se isto exprime
    Maldade aos olhos teus;
    Perdoa-me se é crime...
    Amo tambem a Deus.

    E á tarde quando o albergue,
    No solitario val,
    Incenso queima e se ergue
    D'Abel o fumo igual;

    Da pomba solta o vôo,
    Baixa-me um olhar teu
    E dize-me: perdôo;
    Sim, tudo aspira ao céo!

Coimbra.

      *      *      *      *      *



A MINHA MÃI


    Patria! berço d'amor, que a alma embala
    Em quanto a luz vital nos illumina,
    E onde só descançado se reclina
    Quem, longe d'ella, dôr contínua rala...

    Se n'essa essencia, mãi! que a flôr exhala
    Na essencia d'uma flôr d'essa collina,
    Vês lagrimas d'amor que dentro a mina,
    Com saudades de quem do céo lhe falla:

    Se quando, o céo buscando, o fumo ondeia,
    Quando esse valle o sol deixa indeciso,
    Vês como fumo e flôr aspira, anceia

    Um pai, um Deus, um céo, um paraiso,
    Ah! tendo eu tudo, tudo, em minha aldeia,
    Vê tu se labio meu desfolha um riso!

Coimbra.

      *      *      *      *      *



BEATRIZ


    Tu és o cheiro que exhala
    Ao ir-se abrindo uma flôr,
    Tu és o collo que embala
    Suas primicias d'amor.

    Tu és um beijo materno,
    Tu és um riso infantil;
    Sol entre as nuvens do inverno,
    Rosa entre as flôres d'abril.

    Tu és a rosa de maio,
    Tu és a flammula azul,
    Que atam á flecha do raio
    As nuvens negras do sul.

    Tu és a nuvem d'agosto,
    Meu alvo vello de lã!
    Tu és a luz do sol-posto,
    Tu és a luz da manhã.

    Tu és a timida corça
    Que mal se deixa avistar;
    Tu és a trança que a força
    Do vento leva no ar.

    És a perola que salta
    Do niveo calix da flôr;
    És o aljofar que esmalta
    Virgineas rosas d'amor.

    És a roseira que a custo
    Levanta os cachos do chão,
    És a vergontea do arbusto,
    Anjo do meu coração!

    Tu és a agua das fontes,
    Tu és a espuma do mar,
    Tu és o lirio dos montes,
    Tu és a hostia do altar.

    És o pimpolho, és o gommo,
    És um renovo d'amor;
    Tu és o vedado pomo...
    Tu és a minha Leonor...

    Tu és a Laura que eu amo,
    E a minha Taboa da Lei,
    E a pomba que trouxe o ramo,
    E a margarida que achei.

    És o lirio, és a bonina
    Dos valles do meu paiz;
    És a minha Catharina...
    És a minha Beatriz!

Coimbra.

      *      *      *      *      *



INNOCENCIA


    Encolhe as azas, que te abrazas, louca!
    O fogo mata a quem o gera, attende;
    Foge e, se a vida te aborrece, estende
    Um braço aos anjos, que a distancia é pouca.

    Porque uma nuvem, onda transitoria
    Do mar immenso, vem pousar na serra,
    Não fica a nuvem pertencendo á terra:
    Tu és o anjo que desceu da gloria.

    Estranhas forças para ti me attrahem;
    E ás vezes cedo, tua cinta enleio;
    Teus olhos beijo; mas, contemplo o seio,
    Tua alma dorme, e os meus braços cahem...

    Desfallecidos, flôr celestial!
    Como ante um berço cahe a foice erguida,
    Se ha n'elle mais do que uma simples vida,
    Se ha innocencia que mil vidas val.

    Oh! não: teus labios o meu fel não provem:
    Outros os lirios d'essa face esmaguem;
    D'outros mãos impias teu sorriso apaguem,
    Em quanto os labios tuas graças louvem.

    Já no meu berço d'innocencia pude
    Pesar as joias, que hoje em vão te invejo:
    Provei os favos de illibado pejo,
    Sei o que perde quem o vicio illude.

    Alcantil ingreme, onde o raio é certo,
    Contém mais seiva, que inda o musgo cria:
    Quanto de fertil em nossa alma havia
    Só deixa o ermo da saudade aberto.

    Cahir no abysmo de intimos pezares
    D'essas alturas onde mal te vejo,
    O ponto estava derreter n'um beijo
    O fio de oiro que te manda aos ares.

    N'esses dois cofres, n'esse collo aonde
    Tantas riquezas enterrei ciumento
    (E que alta noite vela o pensamento
    Pelo crystal que o coração te esconde)

    Em oiro em barra, fina prata e quanto
    Coalha o vasto e opulento Oriente,
    Fôra em ruinas encontrar sómente
    Carvão, se um dia te quebrasse o encanto.

    Casta innocencia, de Deus filha e bella
    Entre as mais bellas! virginal aroma!
    Rosa ineffavel, que, se á luz assoma,
    Haste e raiz apodreceu com ella!

    Sol, que uma vez em nossa vida passas!
    Flôr, que uma e neutra, como Deus, não gera;
    Que se abre morre, mas sem prole, inteira
    Com todo o côro das virgineas graças:

    Ao vêr-te, embora meu olhar te envia
    O impio incenso de Nadab, ajoelho...
    Rosa da face e, não só rosa, espelho
    Da face occulta de quem espalha o dia!

    Se por teus membros orvalhadas flôres
    Prodigas mãos da formosura entornam,
    Flôres mais bellas o teu seio adornam...
    Vós, lirios d'alma, virginaes amores!

    O céo me encanta, como encanta o inferno.
    Mysterio... espaço... mente exploradora!
    Morre nas mãos o que a nossa alma adora
    --Vago, impalpavel, infinito, eterno!

Evora.

      *      *      *      *      *



    A Escriptura Sagrada
    Lá diz que uma mulher má
    Não ha fera, não ha nada
    Peor no mundo: e não ha.

    Uma lá da minha aldeia,
    Que era muito impertinente,
    Muito má (e muito feia)
    Morre um dia de repente.
    Morreu; desgraçadamente
    Mais tarde do que devia;
    Mas em summa toda a gente
    Teve a maior alegria.

    Passados annos (é boa!)
    Foi-lhe preciso ao coveiro
    Abrir a cova, e achou-a
    Ainda de corpo inteiro,
    Ainda rosas na face,
    Ainda signaes de vida...
    Milagre! coisa sabida;
    Pois mais fresca que uma alface
    Ha tanto tempo enterrada,
    Devendo estar reduzida
    A pó, terra, cinza e nada...

    Vem dar parte; e corre a vêl-a
    O povo atraz do prior;
    E passam logo a trazel-a
    Em cima do seu andor
    E a pol-a n'uma capella
    De grande veneração;
    (Elles ás costas com ella,
    E elle a cantar canto-chão;)
    Mas seja lá o que fôr,
    O que é certo e mais que certo
    É que santa como aquella
    E nem de mais devoção,
    Não ha por alli tão perto.

    E dizem que não ha santos
    Como nos tempos passados!
    E cá opinião minha
    Que muitos (quantos e quantos!)
    Que ahi morrem desprezados,
    Se não são canonisados
    É que está cheia a _Folhinha_.

Messines.

      *      *      *      *      *



A UM NUNO

Provando a existencia de Deus a pobres camponezes


    Ora a provar que ha Deus, Nuno! isso é teima:
    Pois ha alguma ovelha no rebanho
    Que não saiba que só a mão suprema
    Creava um animal d'esse tamanho!

      *      *      *      *      *



A ***


    Pois se como sempre fomos
          Somos
    Pétalas da mesma flôr,
    E o que eu sinto, ou eu me illudo,
          Tudo
    Tambem sentes, gosto e dôr;

    Que te arraza os olhos d'agua?
          Magua
    Em que eu não deva tocar?
    Oh! mas se ha quem a suavise,
          Dize,
    Vou-lhe um suspiro levar.

    Não se alcança, não se avista,
          Dista
    D'aqui muito o allivio, ou não?
    Dos teus olhos muito; e pouco,
          Louco!
    Pouco do teu coração.

    Sei o que vai em teu seio;
          Sei-o
    Porque em materia d'amor,
    Debalde os labios se calam!
          Fallam
    Ainda os olhos melhor!

Batalha.

      *      *      *      *      *



LUZ DA FÉ


    Tu, sol! já não me alegras
    Como alegravas, não:
    Vós, sim, ó nuvens negras,
    Relampago e trovão!

    Quando o trovão me aterra,
    Recordo-me de Deus;
    Abalo cá da terra
    E vou por esses céos:

    E lá n'essas alturas,
    Por onde só a fé,
    Em regiões tão puras,
    Nos deixa tomar pé;

    Voar, pairar nos ares
    Como uma aguia cá,
    De lá só vejo os mares,
    E é porque a luz lhes dá.

    O mais como se apanha
    E empolga com a mão,
    Seja a maior montanha,
    Seja a maior nação;

    O mais fica no fundo
    D'esse infinito mar;
    O mais pertence ao mundo,
    É escusado olhar.

    Deus deixa ás creaturas
    Cá baixo a sua cruz,
    E fecha as almas puras
    N'um circulo de luz.

    As chagas, as miserias
    Cá d'este lamaçal,
    Nas regiões ethereas,
    Lá não se avista tal.

    É só a luz, que foge,
    Mais uma irmã que tem
    --A alma, que até hoje
    Não a prendeu ninguem;

    São essas duas luzes
    (Qual d'ellas tão subtil
    Que ás forcas e ás cruzes
    Do despota mais vil,

    Se escapam de tal modo
    Que é de o fazer raivar)
    Cá d'este mundo todo
    O que se vê brilhar!

    Porque uma e outra aspira
    Continuamente ao céo,
    A alma que suspira,
    E a luz que Deus nos deu.

    Porque uma e outra é pura,
    Perpetua e immortal;
    E a sua formosura,
    Não ha nenhuma igual.

    Quem é, ó luz formosa,
    Ó minha bella irmã!
    Quem é que faz a rosa
    Abrir pela manhã?...

    Eu amo-te e (as trevas
    Não teem esplendor!)
    Tu só é que me levas
    O tempo e o amor.

    Mas eu estimo o raio
    E gósto do trovão,
    Por vêr que quando cáio
    É que me elevo então.

    Por vêr que em tendo medo
    Mais se me aviva a fé;
    E a fé, não ha rochedo
    Firme como ella é.

    Por cima da desgraça
    Ou seja do que fôr,
    Ella, não olha, passa
    De fito no Senhor!

    A essa luz divina,
    Ó luz! é que tu és
    Tão pura e crystallina
    Como o Senhor te fez.

    Por isso a noite escura,
    Ah! se eu a preferi
    Á tua luz tão pura,
    É por amor de ti!

Messines.

      *      *      *      *      *



RESPOSTA

A A. DO QUENTAL


    Tal é a confiança que te inspira
    Estes reis, estes povos, esta gente,
    Que é para o céo que appella e se retira
    Tua alma já de triste e descontente.

    Mas Deus então seria ou impotente
    Ou seria um Deus barbaro: mentira!
    Não póde suspirar eternamente
    Quem ha já tantos seculos suspira.

    Vai ganhando terreno a luz brilhante,
    Luz toda liberdade e toda amor
    Que ha-de salvar o mundo agonisante.

    A idéa, esse Verbo creador
    Ha-de fazer que um dia e não distante
    Só o nome de imperio inspire horror.

Messines.

      *      *      *      *      *



    Meu casto lirio,
    Terno delirio,
    Gloria e martyrio
    Do meu amor!
    Amo-te como
    A haste o gomo,
    O labio o pomo
    E o olho a flôr.

    Se ao meu ouvido
    Sôa um rugido
    Do teu vestido,
    Que ouço roçar;
    Que som me vibra
    Não sei que fibra
    Que me equilibra
    A mim no ar!

    E que harpa santa
    É que me encanta
    E enche de tanta
    Consolação,
    Quando uma falla
    Terna se exhala
    D'onde se embala
    Teu coração!

    Quando te vejo
    D'um simples beijo
    Córar de pejo,
    Mudar de côr,
    Que susto é esse
    Que me parece
    Te empallidece,
    Rosa d'amor!

    Quando no leito,
    Teu niveo peito
    Sonho que estreito
    E aperto ao meu;
    Vendo tão perto
    O céo aberto,
    Porque desperto...
    Anjo do céo!

    Não fujas, rosa!
    Não fujas, goza
    Manhã mimosa,
    Manhã d'amor;
    De folha em folha
    A flôr se esfolha
    Bem cedo, e olha
    Que és como a flôr!

Coimbra.

      *      *      *      *      *



VENTURA


    O sol na marcha luminosa vôa
    Lançando á terra magestoso olhar;
    Passa cantando quem o ar povôa
    E a praia abraça venturoso o mar.

    No bosque o vento dôce canto entôa,
    Ouvem-se em côro as multidões cantar;
    Que a um só triste o coração lhe dôa,
    Que eu seja o unico a soffrer, chorar...

    Por ti, saudade... de quem vai tão perto
    E a quem dos olhos e das mãos perdi
    N'este tão ermo lugubre deserto!

    Por ti, ventura... que uma vez senti;
    Por ti, que ás vezes a meu peito aperto
    E... o peito aperto sem te vêr a ti!

Evora.

      *      *      *      *      *



    Arida palma
    Tem seu licôr,
    Tem como a alma
    Tem seu amor;
    Tem como a hera
    Tem seu abril,
    Tem como a fera
    Tem seu covil.

    Tem toda a planta
    Que o sol queimou
    Lagrima santa
    Que a orvalhou,
    E o passarinho
    Que hontem nasceu
    Lá tem seu ninho
    Que a mãi lhe deu.

    Só eu na magua
    Do meu penar
    Sou como a agua
    Que anda no mar,
    Sou como a onda
    Que á busca vem
    D'onde se esconda,
    E onde, não tem!

    Folha revolta
    Que anda no chão,
    Lagrima solta
    Do coração;
    Corpo sem vida,
    Haste sem flôr,
    Folha cahida
    Do meu amor.

Coimbra.

      *      *      *      *      *



A UNS OLHOS AZUES


    Cahe a folha da rosa pudibunda,
    Cahe a rosa da face virginal,
    Cahe das nuvens a aguia moribunda,
    Cahe o sol na montanha occidental.

    Cahe a onda na praia, cahe do somno
    O poeta na luz; e cahe das mãos
    Dos despostas o sceptro, elles do throno,
    Como a seus pés cahiram seus irmãos!

    Cahe dos labios o riso; cahe dos olhos
    A lagrima tambem, que d'alma sahe;
    Cahe a rocha no mar, cahe nos abrolhos
    A flôr de liz; de louro a folha cahe.

    Cahe do céo a centelha incendiaria,
    A nuvem cahe se um sopro Deus lhe dá,
    Cahe ante o dia a noite solitaria
    Como o falso Dagon ante Jehovah.

    Cahe tudo, flôr! cahe tudo; eu só não cáio:
    Mais do que um rei, que o sol, igual a Deus,
    Cahir, mulher! só posso á luz d'um raio
    Se elle cahir do céo dos olhos teus!

Luso.

      *      *      *      *      *



HERESTA


    Que magua ou que receio
    Dos olhos te desata
    Aljofares de prata
    No jaspe do teu seio?

    Bem intima ser deve
    A pena que te opprime,
    Flôr tenra como o vime,
    Flôr pura como a neve!

    --Compunge-te isso, dóe-te
    Vêr esmaltando o calix
    Da erma flôr dos valles
    O balsamo da noite?

    Se aos olhos nos affluem
    As lagrimas, parece
    Que a dôr nos adormece,
    E as maguas diminuem.

    --Heresta! pois inclina
    Na minha a tua face
    E deixa me repasse
    Teu balsamo, bonina!

    Abraça-me, divide
    Commigo esse consolo,
    Enlaça-te ao meu collo
    Como ao olmeiro a vide!

    Ás vezes tambem quando
    Os olhos se me estendem
    Ás luzes, que se accendem
    No templo venerando;

    Tão intima saudade,
    Tão intimo desejo,
    D'um mundo, que não vejo,
    Me inspira a immensidade...

    Que o pranto se agglomera
    Na palpebra, onde morre;
    Sim, gela-se, não corre,
    Tal é a dôr que o gera!

    --É Deus que a si te aspira,
    É Deus que ao céo te chama;
    Que em tudo amor derrama,
    A tudo amor inspira!

    Canta-o, o justo, o santo!
    E a flôr que o campo adorne
    Thuribulo se torne
    Mal te ouça o dôce canto.

    --Inspira-o pois, inspira,
    Virgem de intacto pejo!
    Seja um teu riso o harpejo
    E um teu cabello a lyra!

          ----------

    O sol já da montanha
    Te disse adeus! adeus!
    E a cupula dos céos
    Ficou pallida e estranha.

    E aquella, que a bondade
    De Deus em si reflecte,
    Em quanto ao sol compete
    Mostrar-lhe a magestade,

    Á luz extrema d'hoje
    Ergueu livida a face
    Com medo que avistasse
    Quem busca, e de quem foge.

    Fluxo e refluxo eterno
    D'alma contradictoria,
    Que após continua gloria,
    Anda em continuo inferno.

    Poeta! é copia tua,
    Supplicio igual te inquieta.
    Mas que alma de poeta
    Teu seio arqueia, oh lua?

    Amor, amor como este,
    Visão timida e casta
    Em giro eterno arrasta
    A lampada celeste.

    Como esse que a deshoras
    A ti te ergue a cabeça
    E aos ermos te arremessa
    Em busca do que adoras.

    Mas, ah! pallido globo!
    É pio d'ave nocturna,
    Echo em alguma furna
    Do uivo d'algum lobo?

    Ouço uma voz... escuta:
    É ella a voz que se ouve?
    Ou monge que inda louve
    A Deus, n'alguma gruta!

    Quem lá em baixo á escarpa
    D'um ingreme penedo
    No tremulo arvoredo
    Entorna os ais d'uma harpa?

    É ella a minha Heresta,
    A minha branca ermida
    Do ermo d'esta vida,
    Mais erma que a floresta?

    Tu, lua, que no val
    D'Aialon paraste,
    Já viste em sua haste
    Suspenso lirio igual?

    Não é, não é mais bella
    A rosa entre os abrolhos,
    Nem ha como os seus olhos
    No céo nenhuma estrella!

    É á luz d'uma alvorada,
    Apenas desabrocha,
    Nos angulos da rocha
    Vêl-a despedaçada!

    Vós, lobos! ide em bando,
    Trepai pelo rochedo,
    Uivai, mettei-lhe medo,
    Levai-a recuando!

    Que faz quem se aproxima
    D'um precipicio, diz-m'o?
    Que buscas tu no abysmo
    Se o céo é lá em cima?

    Não tarda muito, creio,
    Que acabe esta ancia nossa,
    E Deus unir-nos possa
    No seu eterno seio.

    É lá que a alma falla,
    Lá que o amor se mede,
    Que em brilho o sol excede,
    E em gloria a Deus iguala!

    Na nuvem do futuro
    Teus vagos olhos prega!
    Depois de noite negra
    Vem sempre um céo mais puro.

          ----------

    E agora, se o desejo
    Te satisfiz, em premio
    D'um canto d'alma gemeo,
    Um gemeo e dôce beijo!

Coimbra.

      *      *      *      *      *



FRAGMENTO


    ..........................................

    Deixal-o: os olhos fecho á luz e quero...
    Quero-te, oh sonho, se és doirado e lindo:
    Mais que a teus fachos, pedagogo austero!
    Que me condemnas em chorando e rindo.
    Sempre olhos fundos, sempre esse ar severo...
    Razão! não te amo; mas a ti, bemvindo,
    Tu que os conselhos nunca, amor! lhe tomas;
    Dás luz á lua, dás á rosa aromas.

    Oh! ha tres vistas com que as coisas vemos;
    Ha tres razões que as coisas determinam;
    Uma a dos olhos; outra a que escondemos
    N'isso ante que os alemos se inclinam;
    Outra a que dentro no coração temos,
    Que os limites do espaço só terminam:
    Coube a primeira em sorte á borboleta;
    A outra ao homem; a terceira ao poeta.

    Mas será só poeta quem faz versos?
    Não é a flôr poeta que o sol canta?
    Não cabe aos ais tão intimos, dispersos
    Do cantor triste nome e gloria tanta?
    Esses aereos tão mimosos berços,
    Que, excepto o homem, o furor quebranta
    A quanto é fero e sanguinario, acaso
    Cada um d'elles não é um parnaso?

    Mais poesia em pobre margarida,
    Que aos pés se pisa, enthesoirada vejo,
    Que em muita madreperola polida
    Que as cinzas guarda de finado harpejo.
    Dize-me, pomba! que no ar sustida
    Vens como a nuvem coroar d'um beijo
    Quem teus desvelos maternaes comparte:
    Camões excede-te em engenho e arte?

    Vaidade humana! Do que é simples, claro,
    Fazem mysterio; dão-lhe um nome e basta:
    Como esse eunucho sacerdocio avaro
    Que da verdade as multidões afasta...
    Mas a verdade não é pedra d'ara
    Nem arca-santa que só certa casta
    Tem privilegio de levar ao hombro
    Ou vêr de perto, sem morrer d'assombro.

    Padre, ministro do Crucificado
    É bom ferreiro afeiçoando o ferro
    Com que ha-de prestes ir rompendo o arado
    Os campos d'este secular desterro.
    Melhor explicam um lugar sagrado
    Bigorna e malho, que explica o berro
    De bonzo inutil; que asperos abrolhos
    Não viram nunca seus inchados olhos.

    Apostolo é o pai que se afadiga
    Só para que descance o filho amado;
    Apostolo é a rocha em que se abriga
    Ave agoureira e pobre desgraçado;
    Apostolo é a lagrima que amiga
    Cahe pela face em peito amargurado;
    E esse monstro do céo que solitario
    Correu o mundo á busca do Calvario.

    E assim vós outros, falsos sacerdotes!
    Que a mesma crença sustentar devêreis,
    Poetas vos chamaes se em ôcos motes
    Sabeis vasar combinações estereis?
    Monges! tendes o habito; se os dotes,
    Os doze dons do Espirito tivereis,
    Crêreis que é mais poeta o dôce favo
    Que a abelha fabríca em mato bravo.

    Fechei a minha bocca largo espaço
    Para vêr e pasmar; eu não podia
    Tirar os olhos do tributo escaço
    Que paga o albergue quando acaba o dia.
    Pelo filhinho em maternal regaço
    Como ave em ninho a balançar, medía,
    Não essa Iliada a compasso austero,
    Mas a de Christo, a do celeste Homero.

    Lia esse livro que anda encadernado
    Em pelle humana e embrulhado em pranto,
    Mas para bençãos, para amor dictado
    E quanto ha puro, quanto ha bello e santo:
    Livro que o impio soletrou tocado,
    Se o impio os olhos pôde erguer a tanto;
    Mas que a moirama só conserva vivo
    Porque não morre o immortal captivo.

    Não morre: eterno como a fonte d'onde
    Dimana a luz, a vida, amor e tudo,
    Que amostra a terra, amostra o mar, e esconde
    O céo, o espaço, o infinito mudo...
    O mundo mudo! para quem? responde,
    Valente martyr! que o pesado escudo,
    Com que a verdade os olhos encobria,
    Morreste mas quebraste á luz do dia.

    «Existe um pai commum, que a todos ama
    E d'elles só juiz a si reserva
    Punil-os de seu mal; o sol derrama
    Por cedro erguido e enterrada herva;
    Desarma o laço que a perfidia trama,
    Ou n'elle a prende e faz cahir; enerva
    Braço que se ergue contra irmão; fecunda
    Semente que não cahe de mão immunda.

    «Diante d'elle as obras apparecem
    Taes como as gera o intimo do peito:
    Basta o amor do bem, se as mãos fallecem;
    Sem esse amor é nada o grande feito.
    Embora os homens de soltar se esquecem
    Quem chora escravo; porque, em seu conceito
    Deixe chorar quem purpuras arrasta,
    Cante que é livre na verdade, e basta.»

    Ella o resto fará; porque a seu braço
    Reis não resistem, não resistem povos:
    Um raio a nuvem parte e deixa o espaço
    Coalhado d'astros que parecem novos:
    Põe ao sol, que o fecunde, o simples traço,
    Como a grande avestruz os grandes ovos;
    E quem depois no mundo a luz lhe apaga?
    Ninguem apaga a luz que o mundo alaga.

    Sacerdocio embusteiro as mãos lhe prega
    Em tronco immovel que seus labios gele;
    Á justiça profana o justo entrega
    (Sua irmã gemea que a verdade expelle:)
    Já das almas senhor o rosto alegra,
    Já morto o canta, sepultado e elle
    Só o consome o incendio que já lavra
    De bocca em bocca, o incendio da palavra.

    Nenhum de nós o viu andar prégando,
    Nenhum seu olhar vago lhe notámos,
    Nunca o vimos no ermo a Deus orando,
    Nunca a mão estendida lhe apertámos;
    E por todos seu nome vai passando,
    Todos, os seus preceitos, decorámos...
    E que vá vêr-lhe a campa ao Oriente
    Quem os olhos da carne tem sómente.

    Que é um tumulo acaso, esse tributo
    Pago pela materia á vil materia?
    Quem vai na campa alliviar o luto
    Se a vista alonga á amplidão aerea?
    Quem a copia de Deus rebaixa a bruto,
    E a mais que bruto a immortal, etherea,
    Celeste pomba, que em seu vôo a vida
    Em factos deixa ás almas esculpida?

    Não me embala inda Homero nos seus braços
    E me pinta nas mãos a natureza?
    Não lhe ouço eu inda a voz...como ouço a espaços
    A voz da grande Fama portugueza...
    Quando me apraz olhar para os pedaços
    D'este grande gigante que a fraqueza
    Expoz aos coices...leão moribundo...
    O rei antigamente d'este mundo?

    Eu não sou dos que a patria sua adoram
    Como adora o seu deus o fiel crente.
    Vejo que todos n'uma patria moram
    E sobre todos vejo um céo sómente:
    Mas ame cada qual; que se outros choram
    Nas mãos dos tigres que só comem gente,
    Tambem meus olhos choram seu tormento
    D'onde quer que seus ais me traga o vento.

    Deixai ir em seu transito divino
    Desde a Cruz do Calvario na Judêa,
    Té á ponta da espada d'aço fino
    Desembainhada em Italia, o tempo, a idêa.
    Deixai andar a vêr o peregrino
    Onde a ventura abunda, onde escassêa
    Para vos dar, no oiro (Fé e Esperança!)
    Rei e pastor nas conchas da balança.

    Ha-de vir esse dia; e se a figueira
    Em abrolhando perto vem o estio,
    Não longe está: a cobra carniceira
    De mil roscas e lugubre assobio
    Que terra come, e come a terra inteira,
    Se á terra inteira se enrolar, despiu
    A pelle enorme com bastantes dôres
    Esfolada por tres imperadores...

    Eu não sei qual mais chore; se essa sêde
    De sangue insaciavel dos tyrannos,
    Ou se é a escuridão vossa que eu hei-de
    Antes chorar, oh miseros humanos!
    Que solimão vos deram, loucos! vêde:
    Não vale a gloria que vos faz ufanos
    Um só pingo de sangue, um só, vertido,
    Um gemido de mãi, um só gemido!

    É do sangue e das mães que eu fallo; e certo,
    Que ha na vida mais santo? O sangue é vida;
    E as mães fonte da vida: eu nunca esperto
    Esta lampada d'alma, suspendida
    Na abobada eterna e que tão perto
    Parece ter a origem............
    ................senão quando
    Vejo essa cara imagem suspirando.

    Eu amo as mães, seu nome é terno e dôce;
    Sim, amo as mães: nossa alma d'ellas nasce:
    Quem n'um collo de mãi cahiu, achou-se
    D'um pulo ao pé de Deus: a alma pasce
    Lirios celestes vendo-as; e seccou-se,
    ........................................
    Do casto e candido a sagrada fonte,
    Se ella no tumulo encostou a fronte.

    Essa é a virgem-mãi, voz suavissima
    D'esse cantico eterno--o Evangelho;
    A Virgem... Mãi... de Deus! virgem purissima,
    Cheia de graça e de justiça espelho.
    Oh poesia, poesia altissima
    Como o fecho do empyreo! eu me ajoelho
    E beijo a tua base, harpa celeste!
    O coração, a corda que nos déste.

    Em que labios se bebem mais delicias,
    Em que face de virgem se desatam
    Rosas mais puras d'intimas primicias,
    Que nas que por dar vida a nós se matam?
    Sempre a bem nosso, a nosso amor propicias
    Na menina dos olhos nos retratam;
    E nunca premio vil em paga pedem
    De quanto, tanto d'alma, nos concedem.

    Na montanha da Fé, mulher formosa
    Se ante mim a meus pés desenrolasse,
    Como o demonio, a vastidão pasmosa
    Que elle dava a Jesus se o adorasse;
    E me pedisse em premio uma só coisa
    --Ás mãos de minha mãi furtar a face;
    Eu lançava-lhe o cuspo, essa tesoira
    Que em mil bocados faz a vacca-loira.

    Vêde-a ao berço, sofrega de vida,
    Que a sua é pouca para a dar ao filho;
    Ella em cama de espinhos, mal vestida;
    Elle enfaxado, em berço de tomilho;
    Ella em contínua, azafamada lida,
    Elle vendo se apanha á luz o brilho...
    Já descobrindo em tão tenrinha idade
    Que toda a sua sêde é de verdade.

    E esses lobos que em duas patas andam
    Para ter sempre em guarda as outras duas;
    Que a monte sahem só, e só debandam
    Como os ladrões, á noite, pelas ruas;
    A empecer que os animos se expandam,
    Que a luz se espalhe, e que as imagens tuas,
    Bom Deus! de imagens passem: e que admira...
    Sem o sopro que ao barro a vida inspira!

    Já se iam vendo os campos relvejando
    Cá da banda do sol n'este horisonte
    Por onde já n'um mar se andou nadando
    E onde apenas se encontra secca fonte;
    E eil-os já os hypocritas minando,
    Cortando ao povo hebreu na marcha a ponte
    Só para que o manná que o céo lhe chove
    No deserto dos reis jámais nem prove.

    Retalhou-lhes o labio omnipotente
    O habito comprido, a manga larga,
    Olhar submisso mas lugar na frente;
    E nem despido o monstro a presa larga.
    «São sepulchros caiados, vêde, oh gente!
    Por dentro podridão:» em voz amarga,
    Em voz de grande horror, de grande abalo,
    Christo clamou d'aquelles de quem fallo.

    «Dizimam-te o coentro e a arruda,
    Mas sua consciencia é generosa.
    Chamam-se mestres... de sciencia muda,
    A sciencia da cobra venenosa:
    Olhai, não espia a fera, espreita, estuda
    Toda a volta do dia, mais manhosa,
    Que essa raça de viboras, que espalha
    Veneno em todo o mundo, que coalha.»

    Irmãs da Caridade! A Caridade
    Tem só duas irmãs--a Fé e a Esperança:
    Não traja as côres só d'uma irmandade,
    Traja as côres do Arco-da-alliança:
    Leva sósinha o pão da piedade,
    Tira da roda essa infeliz criança...
    Roda da vida, que anda de tal sorte
    Que, em se lhe dando, é já contar com a morte.

    Bemdita sejas tu, victima triste
    De um peito amante e d'um amante ingrato!
    Que nunca á mesma loba lançar viste
    Inda mamando o cachorrinho ao mato;
    Bemdita sejas tu, que o que pariste,
    Teu fructo, imagem tua e teu retrato
    Conservas como espelho onde te vejas;
    Bemdita sejas tu, bemdita sejas.

    Pára suspensa a pomba no seu vôo
    Ao vêr-te contemplando-o ajoelhada;
    E dizendo-te, a pomba: eu te abençôo
    Da parte do pai nosso, irmã amada!
    Abriste o seio ao dia e fecundou-o
    Aquella luz que o mundo fez de nada,
    E deu ao campo a flôr, á flôr semente
    Com que a mãi os filhinhos seus sustente.

    Bemdita sejas tu. Quando se esconde
    Debaixo da tua aza o que criaste,
    Abraça e beija os anjos Deus lá onde
    A jarra está da flôr de que és a haste;
    E um dia que não tenhas pão avonde
    Ou do céo te não chova agua que baste,
    Lança-lhe á luz do dia a mão direita,
    Mostra-lh'o; Deus os filhos não engeita.

    Pai não tinha o filhinho de Maria
    E ella o bercinho lhe arma de mil flôres,
    Deixando entrar em casa a luz do dia
    Que em perfume as derreta em seus amores;
    E inda abrindo os olhinhos mal lhe via,
    Já os pinceis preparam os pintores;
    Que o pai d'esse menino... Oh maravilha!
    Os que não teem pai Deus os perfilha.

    Deixa passar de largo a desposada...
    De cujo filho o pai quem é, Deus sabe!
    Deixa-a roçar-te os fatos enfadada
    Se comtigo na praça a par não cabe:
    Talvez um dia a casa levantada
    Sobre a areia solta ao chão desabe
    E em ruinas se encontre este letreiro:
    «Não era o pai dos teus mais verdadeiro.»

    Quem é que nasce aos pares como a rola,
    Ou como a pomba morre em viuvando,
    Que pela vêr sósinha em lodo atola
    Fresca vide que está do chão lançando?
    Acaso é só dourada altiva estola
    Que liga os corpos em as mãos ligando,
    Confunde os corações, e faz em summa
    Que a Deus se elevem duas almas n'uma?

    Amor é a palavra, o brado eterno
    Solto por Deus ao vêr já feito o mundo,
    Que fez tremer os carceres do inferno
    E o sol ficou da côr d'um moribundo:
    A primavera, estio, outono, inverno,
    Terra, céo, alma pura, bicho immundo,
    Tudo ahi cabe á larga de tal modo
    Que n'essa concha Deus se fecha todo.

    Amor enrola a nuvem na montanha
    E espalma a onda em praia que não sente,
    Ata ao raio de sol o fio d'aranha
    E humilha ao conductor o raio ardente.
    Quanto na rede immensa a vista apanha.
    Tudo que jaz e cresce e vive e sente,
    De Deus brotou n'um jorro de bondade
    E póde amar-se em espirito e verdade.

    Amo á aurora a luz doirada e clara,
    E ao crepusculo as nuvens da tristeza,
    A solida montanha, a nuvem rara
    Por invisivel fio aos astros presa;
    Amo a ancia feroz, a sêde avara
    Com que a loba parida engole a presa,
    E os crystallinos ais d'ave innocente
    Que comprimenta o sol ingenuamente!

    Amo o sopro que parte, esmaga, estala
    Esses corvos que aos bandos vem das ondas
    N'essas noites que o impio até se cala
    Receando, trovão! que lhe respondas...
    E amo o bafo subtil que a flôr embala
    Pedindo-te, botão, que dentro o escondas,
    E as primicias lhe dês que leve áquelle
    Que te fez a ti flôr e vento a elle.

    Tu só, que horror! a ti oh não te amo!
    Cheiras-me a sangue tu; teus olhos baços
    Olham, não vêem; tu tens bocca, chamo,
    Não me respondes; tens como eu dois braços,
    E não me abraças; brado afflicto, clamo,
    Tens duas pernas, e não dás dois passos:
    Ris, mas teu riso é d'enrilhados dentes;
    Mettes-me medo; tu, cadaver! mentes.

    Ninguem (prohibe-o Deus) o braço córte
    Que lhe roubou o espirito divino;
    Deus a Cain apaga sul e norte
    E condemna a viver o assassino:
    Mas tu, mentira! symbolo da morte...
    Hypocrisia! teu sorrir felino
    Te deixe arreganhada a bocca aberta,
    Gele-te a morte a mão que a minha aperta.

    ..........................................

Evora.

      *      *      *      *      *



    Se ao enlaçal-a no peito
    Me cahe desfeita uma flôr,
    Lembras-me, sonho desfeito!
          Sonho d'amor!

    Se a borboleta do calix
    D'um lirio aos ares se ergueu,
    Lembras-me, estrella dos valles!
          Lirio do céo!

    Se inda um affecto em mim vive
    Entre os que mortos possuo,
    Lembras-me, sonho que eu tive!
          Lembras-me tu!

Coimbra.

      *      *      *      *      *



    Nunca me ha-de esquecer (ingrata! escuta)
    Não tendo eu mais talvez que os meus dez annos
    Esses olhos crueis, esses tyrannos
    Commigo em porfiada aberta lucta.

    Se eu fôra voraz lobo ou fera bruta
    D'entranhas más, instinctos deshumanos,
    Talvez o fructo então de teus enganos
    O não colhesses tu de face enxuta.

    Mas eu perdôo-te o mal que me has causado;
    A culpa não é tua e só devia
    Vingar-me em quem tão bella te ha formado.

    E hei-de vingar-me, crê; mas isso um dia
    Depois d'um beijo teu me pôr em estado
    De disputar a Jove a primazia.

Evora.

      *      *      *      *      *



DINHEIRO


    O dinheiro é tão bonito,
    Tão bonito, o maganão!
    Tem tanta graça o maldito,
    Tem tanto chiste o ladrão!
    O fallar, falla d'um modo...
    Todo elle, aquelle todo...
    E ellas acham-no tão guapo...
    Velhinha ou moça que veja,
    Por mais esquiva que seja,
             _Tlim!_
             Papo.

    E a cegueira da justiça
    Como elle a tira n'um ai!
    E sem pegar n'uma pinça;
    É só dizer-lhe: ahi vai...
    Operação melindrosa
    Que não é lá qualquer coisa;
    Catarata! tome conta:
    Pois não faz mais do que isto,
    Diz-me um juiz que o tem visto:
            _Tlim!_
            Prompta.

    N'essas especies de exames
    Que a gente faz em rapaz,
    São milagres aos enxames
    O que aquelle diabo faz.
    Sem saber nem patavina
    De grammatica latina,
    Quer-se a gente d'alli fóra?
    Vai elle com taes fallinhas,
    Taes gaifonas, taes coisinhas...
            _Tlim!_
            Ora...

    Aquella physionomia
    E labia que o diabo tem!

    Mas n'uma secretaria
    Ahi é que é vêl-o bem!
    Quando elle, de grande gala,
    Entra o ministro na sala,
    Aproveita a occasião:
    Conhece este amigo antigo?
    --Oh meu tão antigo amigo!
           (_Tlim!_)
           Pois não!

Coimbra.

      *      *      *      *      *



DUVIDA


    Amas-me a mim! Perdôa;
    É impossivel! Não,
    Não ha quem se condôa
    Da minha solidão.

    Como podia eu, triste,
    Ah! inspirar-te amor,
    Um dia que me viste,
    Se é que me viste... flôr!

    Tu, bella, fresca e linda
    Como a aurora, ou mais
    Do que a aurora ainda,
    Mal ouves os meus ais!

    Mal ouves porque as aves
    Só soltam de manhã
    Seus canticos suaves;
    E tu és sua irmã!

    De noite apenas trina
    O triste rouxinol:
    Toda a mais ave inclina
    O collo ao pôr do sol.

    Porquê? porque é ditosa!
    Porquê? porque é feliz!
    E a que sorri a rosa?
    Ao mesmo a que sorris!

    Á luz doirada e pura
    Do astro creador.
    Á noite, não, que é escura,
    Causa-lhe a ella horror.

    Ora uma nuvem negra,
    Uma pesada cruz,
    Uma alma que se alegra
    Só quando vê a luz

    De que elle, o sol, inunda
    O mar, quando se põe!
    Imagem moribunda
    D'um coração... que foi!

    Uma alma semelhante
    Não póde captivar
    Um rosto tão galante,
    Um tão galante olhar!

    E eu vi os caracteres
    Que a tua mão traçou:
    Mas vós... ah! vós, mulheres,
    Quem já vos decifrou!

    Mal te sustinha o pulso
    A delicada mão!
    Sentia-te convulso
    Bater o coração!

    Via-te arfar o seio...
    Corar... mudar de côr...
    E embora, ah! não, não creio...
    Tu não me tens amor!

Portimão.

      *      *      *      *      *



CATURRAS


    Ah! compadre, a gente foge,
    Desabelha com calor;
    Aqui faz fresco na loge,
    É onde se está melhor;
    Mas que calor que fez hoje!

    --Pois, olhe, assim eu me désse
    De inverno quando faz frio,
    Como agora que elle aquece.
    Tome dois banhos no rio,
    Logo vê como arrefece.

    --Compadre, nunca me traga
    Taes coisas á collação;
    Lembra-me a maldita draga,
    Compadre do coração!
    Não me falle n'essa praga!

    --Tenho-lhe a mesma amizade
    Que o meu compadre lhe tem,
    Ás vezes dá-me vontade
    Até de a tragar tambem...
    Digo-lhe isto com verdade.

    --Ha-de isto chegar a pontos
    Que quem viver ha-de vêr!
    Já lá vão setenta contos,
    E a draga a apodrecer,
    E trabalhos nenhuns promptos.

    --Setenta, diz o compadre?
    Dão-lhe elles esse verniz...
    Lá como a sua comadre...
    Mas eu cá o que ella diz
    É como o que diz o padre...

    --Pois inda isso continúa?
    --Eu sei lá, compadre, eu sei!
    Ora canta, ora se amua...
    Eu é que já me lembrei
    De a pôr um dia na rua!

    --Compadre, tenha miolo,
    Isso não se faz assim;
    Eu não me tenho por tolo,
    E ponha os olhos em mim...
    Sirva-lhe isso de consolo.

    --Pois bem sei que é ninharia,
    Mas o compadre o que quer?
    Estimo a minha Maria,
    E isto de homem com mulher...
    Mas vamos á vacca fria:

    Com que a draga...--É empregada,
    Coisa que nunca se viu,
    Sendo uma peça aceada,
    A tirar lama do rio!
    Parece isto caçoada...

    --E caçoada indecente
    Porque outra coisa não é.
    Mais economicamente
    Quando vasasse a maré
    A tirava mesmo a gente.

    --E depois aquillo é lodo
    Que nunca póde prestar.
    Veja aterrar o caes todo
    Quando não ha-de importar...
    É gastar dinheiro a rodo.

    --Haja decima e derrama;
    Por causa do quê? do caes,
    Da draga ou como se chama,
    E outras coisinhas que taes
    Que tudo a final é lama.

    Pois sendo tudo bem feito
    Como á antiga, vá lá!
    Mas olhe, o caes não tem geito;
    De tudo quanto alli ha,
    A meu gosto, o parapeito.

    --Sim, senhor, obra segura,
    Obra como deve ser;
    Feio e forte; é o que dura:
    Foi sempre o que ouvi dizer
    A quem está na sepultura...

    --Mas era tudo escusado;
    N'esta, compadre, é que estou;
    E isto dá-me algum cuidado,
    Que o que meu pai me deixou
    Não foi nada mal ganhado.

    --Pois e, se quer que lhe conte,
    Já se ahi falla outra vez
    Em mandar fazer a ponte:
    Cuida esta gente talvez
    Que temos alguma fonte...

    --E havendo então uma barca...
    Como a Arca de Noé!
    Lá porque a gente se enxarca
    E não póde andar a pé
    Quando embarca e desembarca.

    --Escarranchem-se ao cachaço
    Dos marujos: pois então?
    Cá em taes obras nem passo
    Que pernas minhas darão;
    É gosto que lhes não faço.

    --Nada! havemos de ir agora
    Vêr ambos o que lá vai;
    Que a nós aquillo por ora
    Bem sei que nos não distrahe;
    Mas temos pouca demora.

    --Pois vamos, compadre, vamos.
    Sentamo-nos nos poiaes,
    Alli mesmo conversamos
    Ambos sósinhos no caes,
    E depois logo voltamos.

Portimão.

      *      *      *      *      *



        Cosi trapassa, al trapassar d'un giorno,
        Della vita mortale il fiore e 'l verde,
        Nè, perchè faccia indietro april ritorno
        Si rinfiora ella mai, nè si rinverde.

                                          TASSO.

    Foi-se-me pouco a pouco amortecendo
    A luz que n'esta vida me guiava,
    Olhos fitos na qual até contava
    Ir os degraus do tumulo descendo.

    Em se ella anuveando, em a não vendo,
    Já se me a luz de tudo anuveava;
    Despontava ella apenas, despontava
    Logo em minha alma a luz que ia perdendo.

    Alma gemea da minha, e ingenua e pura
    Como os anjos do céo (se o não sonharam...)
    Quiz mostrar-me que, o bem, bem pouco dura.

    Não sei se me voou, se m'a levaram,
    Nem saiba eu nunca a minha desventura
    Contar aos que inda em vida não choraram.

    Ah! quando no seu collo reclinado,
    --Collo mais puro e candido que arminho,
    Como abelha na flôr do rosmaninho
    Osculava seu labio perfumado;

    Quando á luz dos seus olhos... (que era vêl-os,
    E enfeitiçar-se a alma em graça tanta!)
    Lia na sua bocca a Biblia Santa
    Escripta em letra côr dos seus cabellos;

    Quando a sua mãosinha pondo um dedo
    Em seus labios de rosa pouco aberta,
    Como timida pomba sempre álerta,
    Me impunha ora silencio ora segredo;

    Quando, como a alveloa, delicada
    E linda como a flôr que haja mais linda
    Passava como o cysne, ou como, ainda
    Antes do sol raiar, nuvem doirada;

    Quando em balsamo d'alma piedosa
    Ungia as mãos da supplice indigencia,
    Como a nuvem nas mãos da Providencia
    Uma lagrima estilla em flôr sequiosa;

    Quando a cruz do collar do seu pescoço
    Estendendo-me os braços, como estende
    O symbolo d'amor que as almas prende,
    Me dizia... o que ás mais dizer não oiço;

    Quando, se negra nuvem me espalhava
    Por sobre o coração algum desgosto,
    Conchegando-me ao seu candido rosto,
    No perfume d'um riso a dissipava;

    Quando o oiro da trança aos ventos dando
    E a neve de seu collo e seu vestido
    --Pomba que do seu par se ia perdido,
    Já de longe lhe ouvia o peito arfando;

    Tinha o céo da minha alma as sete côres,
    Valia-me este mundo um paraiso,
    Distillava-me a alma um dôce riso,
    Debaixo de meus pés nasciam flôres.

    Deus era inda meu pai. E em quanto pude
    Li o seu nome em tudo quanto existe
    --No campo em flôr, na praia arida e triste,
    No céo, no mar, na terra e... na virtude!

      Virtude! Que é mais que um nome
    Essa voz, que em ar se esvái,
    Se um riso que ao labio assome
    N'uma lagrima nos cái!

    Que és, virtude, se de luto
    Nos vestes o coração?
    És a blasphemia de Bruto
    --Não és mais que um nome vão.

    Abre a flôr á luz, que a enleva,
    Seu calix cheio d'amor,
    E o sol nasce, passa e leva
    Comsigo perfume e flôr!

      Que é d'esses cabellos d'oiro
    Do mais subido quilate,
    D'esses labios escarlate,
            Meu thesoiro!

    Que é d'esse halito, que ainda
    O coração me perfuma!
    Que é do teu collo de espuma,
            Pomba linda!

    Que é d'uma flôr da grinalda
    Dos teus doirados cabellos,
    D'esses olhos, quero vêl-os,
            Esmeralda!

    Que é d'essa alma que me déste!
    D'um sorriso, um só que fosse,
    Da tua bocca tão dôce,
            Flôr celeste!

    Tua cabeça que é d'ella
    A tua cabeça d'oiro,
    Minha pomba! meu thesoiro!
            Minha estrella!

      De dia a estrella d'alva empallidece;
    E a luz do dia eterno te ha ferido.
    Em teu languido olhar adormecido
    Nunca me um dia em vida amanhecesse.

    Foste a concha da praia. A flôr parece
    Mais ditosa que tu. Quem te ha partido,
    Meu calix de crystal, onde hei bebido
    Os nectares do céo... se um céo houvesse!

    Fonte pura das lagrimas que choro!
    Quem tão menina e moça desmanchado
    Te ha pelas nuvens os cabellos d'oiro!

    Some-te, vela de baixel quebrado!
    Some-te, vôa, apaga-te, meteoro!
    É n'este mundo mais um desgraçado.

      E as desgraças, podia prevel-as
    Quem a terra sustenta no ar,
    Quem sustenta no ar as estrellas,
    Quem levanta ás estrellas o mar.

    Deus podia prevêr a desgraça,
    Deus podia prevêr e não quiz;
    E não quiz, não... se a nuvem que passa
    Tambem póde chamar-se infeliz!

    A vida é o dia d'hoje,
    A vida é ai que mal sôa,
    A vida é sombra que foge,
    A vida é nuvem que vôa;
    A vida é sonho tão leve
    Que se desfaz como a neve

    E como o fumo se esvái:
    A vida dura um momento,
    Mais leve que o pensamento,
    A vida leva-a o vento,
    A vida é folha que cái!

    A vida é flôr na corrente,
    A vida é sôpro suave,
    A vida é estrella cadente,
    Vôa mais leve que a ave;
    Nuvem que o vento nos ares,
    Onda que o vento nos mares,
    Uma após outra lançou,
    A vida--penna cahida
    Da aza d'ave ferida--
    De valle em valle impellida,
    A vida o vento a levou!

    Como em sonhos o anjo que me afaga
    Leva na trança os lirios que lhe puz,
        E a luz quando se apaga
        Leva aos olhos a luz;

    Como os ávidos olhos d'um amante
    Levam comsigo a luz d'um dôce olhar,
        E o vento do levante
        Leva a onda do mar;

    Como o tenro filhinho quando expira
    Leva o beijo dos labios maternaes,
          E á alma que suspira
          O vento leva os ais;

    Ou como leva ao collo a mãi seu filho,
    E as azas leva a pomba que voou,
          E o sol leva o seu brilho,
          O vento m'a levou.

    E tu és piedoso,
    Senhor! és Deus e pai!
    E ao filho desditoso
    Não ouves um só ai!
    Estrellas déste aos ares,
    Dás perolas aos mares,
    Ao campo dás a flôr,
    Frescura dás ás fontes,
    O lirio dás aos montes
    E tiras-m'a, Senhor!

    Ah! quando n'uma vista o mundo abranjo,
    Estendo os braços e, palpando o mundo,
    O céo, a terra e o mar vejo a meus pés;
    Buscando em vão a imagem do meu anjo,
    Soletro á froixa luz d'um moribundo
          Em tudo só--talvez...

    Talvez é hoje a Biblia, o livro aberto
    Que eu só ponho ante mim nas rochas, quando
    Vou pelo mundo vêr se a posso vêr;
    E onde, como a palmeira do deserto,
    Apenas vejo aos pés, inquieta, ondeando
          A sombra do meu sêr.

    Meu sêr, voou na aza da aguia negra
    Que, levando-a, só não levou comsigo
          D'esta alma aquelle amor!
    E quando a luz do sol o mundo alegra,
    Chrysalida nocturna, a sós commigo,
          Abraço a minha dôr!

    Dôr inutil! Se a flôr, que ao céo envia
    Seus balsamos, se esfolha, e tu no espaço
    Achas depois seus atomos subtis;
    Inda has-de ouvir a voz que ouviste um dia,
    Como a sua Leonor inda ouve o Tasso!...
          Dante... a sua Beatriz!

    --Nunca; responde a folha que o outono,
    Da haste que a sustinha a mão abrindo,
          Ao vento confiou:
    --Nunca; responde a campa onde, do somno,
    E quem talvez sonhava um sonho lindo,
          Um dia despertou.

    --Nunca; responde o ai que o labio vibra;
    --Nunca; responde a rosa que na face
          Um dia emmurcheceu:
    E a onda, que um momento se equilibra
    Em quanto diz ás mais: deixai que eu passe!
          E passou e... morreu!

Coimbra.

      *      *      *      *      *



MÃI E FILHO


    Primicias do meu amor!
    Meu filhinho! do meu seio
    Tenro fructo que á luz veio
    Como á luz da aurora a flôr!

    Na tua face, innocente,
    De teu pai a face beijo,
    E em teus olhos, filho, vejo
    Como Deus é providente.

    Via em lamina doirada
    O meu rosto todo o dia
    E a minha alma não se havia
    De vêr nunca retratada?

    Quando o pai me unia á face,
    E em seus braços me apertava,
    Pomba, ou anjo nos faltava
    Que ambos juntos abraçasse!

    Felizmente, Deus que o centro
    Vê da terra e vê do abysmo,
    Que bem sabe no que eu scismo,
    Na minha alma um altar viu dentro:

    Mas com lampada sem brilho,
    Sem o deus a que era feito...
    Bafeja-me um dia o peito,
    E eis feito o meu gosto, filho!

    Como em lagrimas se espalma
    Dôr intima e se esvaece
    D'alma o resto quem podesse
    Vasar n'um beijo em tua alma!

    Mas em ti minha alma habita!
    Mas teu riso a vida furta...
    Mas (que importa!) morte curta!
    Se um teu beijo resuscita!

Coimbra.

      *      *      *      *      *



    Toca a capello, vou vêl-o
    E vejo de toda a côr,
    Não doutores de capello,
    Mas capellos de doutor.

Coimbra.

      *      *      *      *      *



    Amas, pobre animal! e tens tu pena?...
    Sim, póde na tua alma entrar piedade?
    Se póde entrar, eu sei! Negar quem ha-de
    Amor ao tigre, coração á hyena!
        Tudo no mundo sente: o odio é premio
    Dos condemnados só, que esconde o inferno.
    Tudo no mundo sente: a mão do Eterno
    A tudo deu irmão, deu par, deu gemeo.
        A mim deu-me esta gata, a mim deu-me isto...
    Esta fera, que as unhas encolhendo
    Pelos hombros me trepa e vem, correndo,
    Beijar-me... Só não vivo! amado existo!

Evora.

      *      *      *      *      *



NÃO!


    Tenho-te muito amor,
    E amas-me muito, creio;
    Mas, ouve-me, receio
    Tornar-te desgraçada.
    O homem, minha amada!
    Não perde nada, goza;
    Mas a mulher é rosa...
    Sim, a mulher é flôr!

    Ora e, a flôr, vê tu
    No que ella se resume...
    Faltando-lhe o perfume,
    Que é a essencia d'ella,
    A mais viçosa e bella
    Vê-a a gente e... basta.
    Sê sempre, sempre, casta!
    Terás... quanto possuo!

    Terás, em quanto a mim
    Me alumiar teu rosto,
    Uma alma toda gosto,
    Enlevo, riso, encanto!
    Depois, terás meu pranto
    Nas praias solitarias...
    Ondas tumultuarias
    De lagrimas sem fim!

    Á noite, que o pezar
    Me arrebatar de casa,
    Irei na campa rasa
    Que resguardar teus ossos,
    Ah! recordando os nossos
    Tão venturosos dias,
    Fazer-te as cinzas frias
    Ainda palpitar!

    Mil beijos, dôce bem!
    Darei no pó sagrado,
    Em que se houver tornado
    Um corpo tão galante!
    Com pena, minha amante,
    De me não ter a morte
    Cahido a mim em sorte...
    Cahido a mim tambem!

    Já exhalando os ais
    Na lugubre morada
    Te vejo a sombra amada
    Sahir da sepultura...
    A tua imagem pura,
    Fiel, mas illusoria...
    Gravada na memoria
    Em traços tão leaes!

    Então, se ainda alli
    Teus vaporosos braços,
    Poderem dar abraços
    Como dão hoje em dia,
    Peço-te, sombra fria!
    No mais intimo d'elles
    Que a mim tambem me geles,
    E fique ao pé de ti!

    Mas, ai! meu coração!
    Tu porque assim te affliges,
    E tremula diriges
    A vista ao céo piedoso!...
    O quadro é horroroso,
    A scena triste e feia,
    Basta encerrar a idéa
    D'uma separação...

    Mas, ouve, existe Deus.
    Ora e, se Deus existe,
    Tão horroroso e triste
    Que pódes temer? Nada!
    Desfruta descançada
    O extasi, o enleio
    Em que eu já saboreio
    O jubilo dos céos!

    Deixa-me n'esse olhar
    Vêr como a lua assoma...
    Sim, deixa no aroma,
    Que a tua bocca exhala,
    Vêr como a rosa falla
    Quando a aurora a inspira...
    Vêr como a flôr suspira
    Por vêr o sol raiar!

    A morte para amor
    É exito sublime.
    A morte para o crime,
    É que é amarga e feia.
    A morte não receia
    O verdadeiro amante;
    Por ella a cada instante
    Implora elle o Senhor.

    É juntos, tu verás,
    Que nós expiraremos!
    Sim, juntos, que os extremos
    Olhares cambiando,
    Iremos despegando,
    Do involucro terreno,
    O espirito sereno
    Como a eterna paz!

    Vê, só porque suppuz
    Chegado esse momento,
    Já esse olhar mais lento...
    As vistas mais serenas...
    Bruxuleando apenas,
    Em languido desejo,
    Symphatico lampejo
    D'uma ineffavel luz!

    Ha, n'este triste valle
    De lagrimas, a imagem
    De dois n'essa passagem
    Para a eternidade...
    A nevoa, a anciedade,
    O jubilo que mata,
    Dão uma idéa exacta
    Do transito fatal.

    Mas essa imagem, flôr!
    É tão fiel, tão viva
    Que á sua luz activa
    Se cresta a flôr mimosa!
    E nem o homem goza:
    Se goza é um momento!
    Depois... o desalento!
    Depois... o desamor!

Portimão.

      *      *      *      *      *



NA FOLHA D'UM ROMANCE


    Moldada ao bem nasci, mas debil planta
    Verguei de vicio ao sopro pestilente;
    D'entre o vicio porém minha alma ardente
    Castos hymnos a Deus saudosa canta.

    Ah! se um mentido affecto amor levanta
    N'um pobre coração inexperiente,
    D'elles a culpa é toda! uma innocente
    Não consulta a razão, razões supplanta.

    Cahi, verguei, Senhor! já pervertida
    Graças, beijos vendi, vendi belleza,
    Triste commercio de mulher perdida.

    Oh! mas, Deus do amor! foi só fraqueza:
    De impias mãos me arrancai, tirai-me a vida,
    Alcance-me o perdão mortal tristeza!

Messines.

      *      *      *      *      *



    Lagrima celeste,
    Perola do mar,
    O que me fizeste
    Para me encantar!

    Ah! se tu não fosses
    Lagrima do céo,
    Lagrimas tão dôces
    Não chorára eu.

    Se nunca te visse
    Bonina do val,
    Talvez não sentisse
    Nunca amor igual.

    Pomba desmandada,
    Que é dos filhos teus,
    Luz da madrugada,
    Luz dos olhos meus!

    Meu suspiro eterno,
    Meu eterno amor,
    D'um olhar mais terno
    Que o abrir da flôr,

    Quando o nectar chora,
    Que se lhe introduz,
    Ao romper da aurora,
    Ao raiar da luz,

    Por entre a folhagem
    Onde mal se vê,
    Como a terna imagem
    Da que eu adorei.

    Que esta voz te enleve,
    Que este adeus lá sôe,
    Que o Senhor t'o leve,
    Que Deus te abençôe.

    Que o Senhor te diga
    Se te adoro ou não,
    Minha dôce amiga
    Do meu coração!

    Se de ti me esqueço,
    Se já me esqueci,
    Ou se mais lhe peço,
    Do que vêr-te a ti;

    A ti que amo tanto
    Como a flôr a luz,
    Como a ave o canto,
    E o Cordeiro a cruz,

    E a campa o cypreste,
    E a rola o seu par,
    Lagrima celeste!
    Perola do mar!

Coimbra.

      *      *      *      *      *



DESCALÇA!


    Quem és, que ao vêr-te o coração suspira,
            E em puro amor desfaz-se!
    Raio crepuscular do sol que nasce,
            De lampada que expira!

    Como os teus pés são lindos! como é dôce
            A curva do teu peito!
    Oh! se o meu coração fosse o teu leito,
            E o teu amado eu fosse!

    Que preciosas perolas descobre
            Teu meigo humido labio!
    E, virgem! como Deus foi justo e sabio
            Em te fazer tão pobre!

    Não tens fofo velludo onde se atole
            Tua angelica imagem;
    Mas quando é bello o céo, bella a paizagem
            E quando é bello o sol?

    Limpo de nuvens, nú, derrete a neve
            E a aguia até desmaia.
    Tu não tens mais do que uma pobre saia,
            E essa, curtinha e leve.

    Onde o corpo te alteia, a saia avulta;
            Onde te abaixa, desce...
    És como a rosa! A rosa nasce e cresce,
            Não para estar occulta.

    O que te falta pois? os teus desejos
            Quaes são? de que precisas?
    Ah! não ser eu o marmore que pisas...
            Calçava-te de beijos!

Coimbra.

      *      *      *      *      *



ADEUS!


    Adeus tranças côr de oiro,
    Adeus peito côr de neve!
    Adeus cofre onde estar deve
    Escondido o meu thesoiro!

    Adeus bonina, adeus lirio
    Do meu exilio d'abrolhos!
    Adeus oh luz dos meus olhos
    E meu tão dôce martyrio!

    Desfeito sonho doirado,
    Nuvem desfeita de incenso,
    Em quem dormindo só penso,
    Em quem só penso acordado!

    Visão sim mas visão linda!
    Sonho meu desvanecido!
    Meu paraiso perdido
    Que de longe adoro ainda!

    Nuvem, que ao sopro da aragem
    Voou nas azas de prata,
    Mas no lago que a retrata
    Deixou esculpida a imagem!

    Rosa d'amor desfolhada
    Que n'alma deixou o aroma,
    Como o deixa na redoma
    Fina essencia evaporada!

    Adeus sol que me alumia
    Pelas ondas do oceano
    D'esta vida, d'este engano,
    D'este sonho d'um só dia!

    No mesmo arbusto onde o ninho
    Teceu a ave innocente
    Se volta a quadra inclemente
    Acha abrigo o passarinho:

    Mas eu n'esta soledade
    Quando em meus sonhos te estreito,
    Rosto a rosto, peito a peito,
    Acordo e acho a saudade!

    Adeus pois morte! adeus vida!
    Adeus infortunio e sorte!
    Adeus estrella do norte!
    Adeus bussola perdida!

Coimbra.

      *      *      *      *      *



A VICTORIA COLONNA


    Não sei que ha de divino, força é crêl-o
    N'esses teus olhos d'uma luz tão pura
    Que, ao vêl-os, tive logo por segura
    Aquella paz que é meu constante anhelo.

    Filha de Deus, nossa alma aspira a vêl-o;
    Desprezando caduca formosura,
    Ella, em seu giro eterno, só procura
    A fórma, o typo universal do bello.

    Não póde amar, não deve, uma alma casta
    Fugaz belleza, graça transitoria,
    Coisa que o tempo leva, o tempo gasta.

    Nem tambem alma digna de memoria
    Póde amar o prazer, que o bruto arrasta,
    Em vez do puro amor--sombra da gloria.

                               MIGUEL-ANGELO.

Coimbra.

      *      *      *      *      *



N'UM CONVENTO


    Como a agua em funda gruta
    Gotta a gotta filtra e cái,
    Sem saber quem isso escuta
    O que lá por dentro vai:

    Como ao longe incerta e baça
    N'uma igreja alveja a luz,
    Que da lampada esvoaça
    E a vidraça reproduz:

    Mal te vi, moira encantada!
    Mas á luz dos olhos teus
    Murcha a lampada sagrada
    D'um altar do nosso Deus.

    Mal te ouvi, mas as suaves
    Melodias, que te ouvi,
    São mais dôces que as das aves
    Da aldêa onde nasci!

    Quem teve, bella captiva,
    Coração de te deixar
    Aqui enterrada viva,
    Sem amor, sem luz, sem ar!

    Era cego e surdo, juro,
    O miseravel algoz
    Que não viu olhar tão puro,
    Não ouviu tão pura voz!

    Eu não tendo a faculdade
    D'arrazar esta prisão,
    Sacrifico a liberdade
    Por tão dôce escravidão!...

Coimbra.

      *      *      *      *      *



SONHO


    Ha muitos sonhos de imaginação,
        De mera phantasia:
    Outros, que são a voz da prophecia,
        A voz da intuição,
        A voz do coração.

    Pões fé em sonhos taes, Maria?... Pões?
        E fazes bem, que ás vezes
    Sonha a gente venturas e revezes,
        Que se tornam depois
        Bem certos! Ouve pois:

    Sonhei que era n'um valle. Anoiteceu.
        Então duas estrellas.
    (Tão lucidas, tão limpidas, tão bellas!)
        Vieram lá do céo
        Alumiar-me. E eu...

    Não sabia e pergunto: o que buscaes,
        Alampadas celestes!
    Vós, cá por este mundo... o que perdestes?
        Na terra não achaes
        Senão prantos e ais!

    Respondem-me as estrellas (como a quem
        As tivesse captivas,
    Tão tremulas! as bellas fugitivas)
        --Buscavamos alguem
        Que nos quizesse bem:

    É sorte nossa, é nossa condição
        Dar luz, ser norte e guia;
    Mas de mais boamente se alumia
        Na terra um coração
        Que nos tem affeição.--

    --Pois e se vós do céo, lá onde até
        Se ignora o que são dôres,
    Vindes á terra procurar amores,
          Estrellas! se assim é,
          Tendes-me aqui ao pé:

    Que em summa a noite da minha alma é tal
          Que eu pobre viajante
    Ando... se para traz, se para diante,
          N'este profundo val,
          Não sei nem bem mal.

    Guiai-me pois, estrellas do Senhor!
          E a jura que vos faço
    É que na terra não darei um passo
          Senão só por amor
          Do vosso resplendor!--

    Ellas então sorrindo-se, que eu vi,
          Tão meigas e suaves!
    Voaram como duas lindas aves;
          Indo poisar ahi...
          N'esse teu rosto... em ti!

Lisboa.

      *      *      *      *      *



Á VISTA D'UM RETRATO


    Amo-te, flôr! Se te amo, Deus que o sabe
    Que o diga a teus irmãos, que o céo povoam,
    E ebrios de gloria canticos entoam
    A quem no mar, na terra e céos não cabe.

    Se te amo, flôr! que o diga o mar--que expelle
    Quanto é dominio, beija humilde a praia:
    Se mal que a lua lá das ondas sáia
    Nas rochas me não vê gemer com elle.

    Amo-te, flôr! se te amo, o sol que o diga!
    Quanto lá da montanha aos céos se eleva,
    Se entre os vermes do pó que o vento leva,
    Me banha a mim tambem na luz amiga.

    Se te amo, flôr? Sem ti, que noite escura,
    Meu céo, meu campo em flôr, meu dia e tudo!
    Diga-te a noite minha se te illudo,
    Se em vida já sem ti, sonhei ventura!

    O anjo que a berço humilde e escasso
    Do céo me veio alumiar piedoso,
    E em lagrimas e riso, pranto e gozo,
    Desde então me acompanha passo a passo;

    És tu! Amo-te e muito! O que fluctua
    Na fornalha que o sopro eterno accende,
    Não beija a mão do anjo que o suspende
    Com mais amor que eu beijo a sombra tua!

Coimbra.

      *      *      *      *      *



A LUA


    Esse olhar silencioso
    Em que lingua se traduz?
    Falla-me, oh astro saudoso,
    Luz do céo, pallida luz!
      Que aereas visões me acordas,
    Que imagem, lua, recordas
    N'essa prateada côr?
    Que ha em ti, que a dôr mitiga,
    Que ha em ti, lampada amiga,
    De meigo e consolador?

    Escuta, pallida lua,
    Dá-me um sorriso dos teus,
    Dá-me uma lagrima tua,
    Se és a pupilla de Deus!
      Vê que outros mimos não tenho,
    Que em tua face desenho
    A face do meu amor:
    Uma só lagrima! fria,
    Que ella me cáia... diria
    Que uma lagrima cahia
    Do céo ao menos na dôr!

Coimbra.

      *      *      *      *      *



JOVEN CAPTIVA


    Respeita a foice a espiga verde ainda;
    Sem medo da vindima, o estio inteiro,
    Bebe o pampano as lagrimas da aurora:
    E eu verde como a espiga, tenra e linda
    Como o pampano, hei-de morrer? não quero:
            Quero, mas não por ora!

    Talvez que a outrem, morte, grata fosses.
    Espero! Embora em lagrimas me lave,
    Varre-me o norte a mim a face? inclino-a.
    Se ha dias tristes, ai! ha-os tão dôces...
    Sem amargo, que mel, por mais suave
            Que mar, em paz continua?

    Benefica illusão meu seio habita.
    Sepulte-me este carcere inhumano;
    A aza nivea da fé não se agrilhôa.
    Escapa ao laço da prisão maldita,
    Mais viva e alegre, a esse aereo oceano,
            A alvéloa canta e vôa.

    Hei-de morrer? porque? se não diviso
    Em minha alma um remorso; durma ou vele,
    Se eu velo e durmo em paz, na paz do justo!
    Se em cada rosto a luz me abre um sorriso;
    Aqui mesmo, onde a mágoa o riso expelle;
            E a luz assoma a custo!

    O fim do meu destino é lá tão longe!
    Quantos passei dos alemos que adornam
    Esta bella viagem? Assentada
    Ao banquete da vida apenas hoje,
    A taça ainda cheia as mãos entornam,
            Dos labios illibada.

    Estou na primavera, oh segadores!
    E as mais quadras do anno havia agora
    De não acompanhar o sol? havia?
    Debruçada em meu pé, gloria das flôres,
    Eu não vi mais do que raiar a aurora;
            Quero acabar meu dia.

    Espera um pouco, oh morte! nada perdes.
    Antes consola os que o remorso, o medo,
    O desalento pallido devora!
    Guarda-me ainda o campo grutas verdes!
    As musas, cantos! e o amor... Segredo!
            Não morro, não, por ora!

    Assim, encarcerada, o rosto lindo
    E a vista alçando a regiões ignotas,
    Minha musa entoou na fé mais viva:
    E eu, as languidas mágoas sacudindo,
    Moldei em dôce verso as dôces notas
            D'essa joven captiva!

                             ANDRÉ-CHÉNIER.

Coimbra.

      *      *      *      *      *



    Mulher! quando nos braços
    Te escuto uma canção,
    Não vês em meus abraços
    Profunda commoção?
      É que o teu canto á mente
    Me traz vida melhor...
                Ah!
    Cantai continuamente,
    Cantai, oh meu amor!

    Quando sorris, assume
    Teu rosto uma expressão,
    Que o mais feroz ciume
    Se desvanece então.
      Sorriso tal desmente
    Um coração traidor...
                Ah!
    Sorri continuamente,
    Sorri, oh meu amor!

    Quando tranquilla e pura,
    Te estou a vêr dormir,
    Que vozes se afigura
    Teu halito exprimir?
      Contemplo então contente
    Teu corpo encantador...
                Ah!
    Dormi continuamente,
    Dormi, oh meu amor!

    _Letra de_ V. HUGO. _Musica de_ GOUNOD.

Lisboa.

      *      *      *      *      *



UM BEIJO


    Seria o beijo
    Que te pedi,
    Dize, a razão
    (Outra não vejo)
    Porque perdi
    Tanta affeição?

    Fiz mal, confesso;
    Mas esse excesso,
    Se o commetti,
    Foi por paixão,
    Sim, por amor
    De quem?... de ti!
    Tu pensas, flôr,
    Que a mulher basta
    Que seja casta,
    Unicamente?
    Não basta tal.
    Cumpre ser boa,
    Ser indulgente.
    Fiz-te algum mal?
    Pois bem: perdôa!

    É tão suave
    Ao coração
    Mesmo o perdão
    D'offensa grave!
    Se o alcançasse,
    Se o conseguisse,
    Quizera então
    Beijar-te a mão,
    Beijar-te a face...
    Beijar? que disse!
    (Que indiscrição...)
    Perdão! perdão!

Lisboa.



FRANCISCA DE RIMINI


    Disse eu então: poeta, vês aquelles,
    Abraçados, velozes como o vento?
    Desejava poder fallar com elles.

    --Chamando-os com enternecimento,
    Em cá passando mais do nosso lado,
    São dois amantes, lograrás o intento.

    Assim que o vento os aproxima, brado:
    Oh almas d'uma eterna anciedade,
    Vinde fallar-me, se vos isso é dado.

    Como um casal de pombas, com saudade
    Do ninho, vem no ar, d'aza espalmada,
    Não mais que por impulso da vontade;

    Rompendo aquella aragem empéstada,
    Acodem lá do bando onde anda Dido
    Á supplica tocante e magoada.

    «Ah mortal generoso e condoído,
    Que nos visita n'este escuro horrendo,
    Deixando nós de sangue o chão tingido!

    «Do Senhor impetráramos podendo,
    Já que tens dó do nosso mal enorme,
    O teu descanço eterno em fallecendo.

    «Queiras ouvir-nos ou fallar, conforme,
    É só dizer ou perguntar, mais nada;
    Em quanto o vento, como agora, dorme.

    «A terra, onde nasci, fica assentada
    Na praia onde a final o Pó descança,
    E os que o seguem na marcha arrebatada.

    «Amor, que em nenhum moço acha esquivança
    Prendeu este a um corpo... que roubado
    Foi á minha alma em barbara vingança!

    «Amor, que obriga amar quem é amado,
    Poz-me com elle tão condescendente,
    Que ainda, como vês, me anda abraçado.

    «Amor nos deu a morte juntamente.
    Quem nos matou irá para as Caínas.»
    Disseram elles isto fielmente.

    Depois d'ouvir as victimas mofinas,
    Scismando cabisbaixo, em tal postura,
    Pergunta-me o poeta: em que imaginas?

    Começo respondendo: oh desventura!
    Quanta esperança! quanta sympathia
    A ambos não cavou a sepultura!

    E voltando-me a quem me referia:
    Olha Francisca! dó dos teus tormentos
    Estas lagrimas tristes desafia.

    Mas na quadra dos vagos sentimentos,
    Conta-me: como foi que conheceste
    Os amorosos languidos momentos!

    «O desgosto maior d'um triste é este,
    Fallar do tempo que passou, confesso:
    Que o diga o proprio guia que trouxeste

    «Mas desejando tu com tanto excesso
    Conhecer de raiz esta amizade,
    Entre vozes e lagrimas começo:

    «Liamos ambos, por curiosidade,
    Certa historia d'amores, que idearam,
    Nós sós, um dia, livres de maldade.

    «Muita vez nossos olhos se espantaram,
    E descoramos, lendo a historia estranha;
    Mas dos lances que mais nos abalaram,

    «Foi quando em summa o terno amante apanha
    O dôce beijo, por que andava ardendo:
    Este, que eternamente me acompanha,

    «Beija-me a bocca a mim, todo tremendo!
    A culpa foi do livro que se lia!
    Não se continuou o dia lendo.»

    Em quanto assim Francisca respondia,
    Chorava Paulo, a ponto, d'aterrado
    Me vêr nas convulsões da agonia,
    E cahir, como um corpo inanimado!

                                        DANTE.

Lisboa.

      *      *      *      *      *



PAIXÃO


    Suppõe que d'uma praia, rocha ou monte,
    Com essa vista embaciada e turva
    Que dá aos olhos entranhavel dôr;
    Tinhas podido vêr transpôr a curva,
    Pouco a pouco, do liquido horisonte,
    A saudosa barca, que levasse
    Aquelle, a quem primeiro uniste a face
        E o teu primeiro amor!

    Depois, que toda mágoa e saudade,
    Da mesma rocha ou alcantil deserto,
    Olhando ávidamente para o mar;
    Vias na solitaria immensidade,
    Vagas ficções d'um pensamento incerto,
    Surgir das ondas, desfazer-se em espuma;
    Não alvejando, nunca, vela alguma
        E, sempre, a suspirar.

    Até que á luz d'uma intuição sublime
    D'alma arrancavas o gemido extremo
    De saudade, desespero e dôr!...
    Pois é assim que eu soffro, assim que eu gemo!
    Que nuvem negra o coração me opprime;
    Nuvem de mágoa, nuvem de ciume,
    Em te não vendo á hora do costume,
        Meu anjo e meu amor!

Lisboa.

      *      *      *      *      *



ESCREVE!


      Não sei o que suppôr
    Do teu silencio. Escreve!
    Quem é amado deve
    Ser grato ao menos, flôr!
      Se eu fosse tão feliz
    Que te fallasse um dia
    De viva voz, diria
    Mais do que a carta diz.
      Mas, olha, tal qual é
    Não rias d'esse escripto
    Que, pouco ou muito, é dito
    Tudo de boa fé.
      Ha n'esse teu olhar
    A dôce luz da lua,
    Mas luz que se insinua
    A ponto de abrazar...
      Pareça n'elle sim
    Que ha só doçura, embora:
    Ha fogo que devora...
    Que me devora a mim!
      Que mata, mas que dá
    Uma suave morte;
    Mata da mesma sorte
    Que uma arvore que ha:
      Que ao pé se lhe ficou
    Acaso alguem dormindo
    Adormeceu sorrindo...
    Porém não acordou.
      Esse teu seio então,
    Que encantadora curva!
    Como de o vêr se turva
    A vista e a razão!
      Como até mesmo o ar
    Suspende a gente logo...
    Pregando olhos de fogo
    Em tão formoso par!
      Oh seio encantador,
    Delicioso seio!
    Que jubilo, que enleio
    Libar-lhe o nectar, flôr!
      Eu tenho muita vez
    Já visto a borboleta
    Na casta violeta
    Poisar os leves pés:
      E n'um enlevo tal,
    N'uma avidez tamanha,
    Que a gente a não apanha
    Com dó de fazer mal!
      Pegada á flôr então
    No pé curvinho e molle,
    As azas nem as bole
    Toda sofreguidão!
      Poisou... adormeceu!
    Só vê, só ouve e sente
    O calix rescendente
    D'aquelle mel do céo!
      Pois vê com que prazer
    E com que ardente sêde
    Te havia... (que não hei-de!...)
    Tambem beijar, sorver!
      Mas eu só peço dó,
    Só peço piedade!
    Mata-me a saudade
    Com duas linhas só!
      Eu, a não ser em ti
    Achar allivios, onde?
    Escreve-me! responde
    Á carta que escrevi!
      Cançado de esperar
    Ás vezes quando sáio,
    Pensas que me distraio?
    Pois volto com pezar!
      Concentra-se-me em ti
    A alma de tal modo
    Que esse bulicio todo
    Nem o ouvi, nem vi!
      Ninguem te substitue,
    Porque só tu és bella!
    Que estrella a minha estrella,
    E que infeliz que eu fui!
      Mas devo-te suppôr
    Sempre indulgente e boa,
    Escreve-me e perdôa
    Meu violento amor!
      Respeita uma affeição
    Inutil mas sincera.
    Tu és mulher, pondera
    O que é uma paixão.
      Com sangue era eu capaz
    De te escrever; portanto,
    Tinta não custa tanto!
    E não me escreverás?
      Uma palavra, sim,
    Que me não amas... Queres?
    Em quanto me escreveres,
    Tu pensarás em mim!
      Só essa idéa, crê,
    Encerra mais doçura
    Que as provas de ternura
    Que outra qualquer me dê!

Lisboa.

      *      *      *      *      *



MALMEQUER


    Talvez em eu morrendo a teus ouvidos
    Chegue a noticia, que hoje os factos vôam,
    E oiças então os intimos gemidos
            Que exhalo e te não sôam.

    Talvez então, embora me não ames,
    Com esses olhos humidos de fito
    Na minha sombra: «Desgraçado! exclames;
             Amava-me, acredito.

    «Levou a vida amando-me: que prova
    Me podia alguem dar de mais ternura,
    Ingrata como eu era! Abri-lhe a cova,
            Cavei-lhe a sepultura!

    «Hei-de regal-a de meu pranto. Julgo
    Do meu dever... agradecer-lhe agora!
    Purificar-me em lagrimas! O vulgo
              Que me censure embora.

    «Hei-de ir dispôr um pé de saudade
    Na terra onde elle descançou da lida;
    Mostrar-lhe amor, mostrar-lhe piedade,
              Que não mostrei em vida!»

    Se fôres, meu amor! uma perpetua,
    E uma saudade ser-me-hia dôce!
    Mas só perpetua ou saudade, aceito-a,
              E um malmequer que fosse.

Lisboa.

      *      *      *      *      *



VIRGINIA

Para se recitar no theatro do Príncipe-Real


    Senhores! vêde o sol; diariamente
    Nasce, cruza esse espaço e, no poente,
            Acaba de brilhar.
    É util, é preciso, é necessario,
    Não é pois inconstante, não é vario;
            É certo, é regular!

    Hervas que nutrem, animaes que comem,
    E a imagem de Deus--que falla--o homem,
            Sem essa luz, dizei:
    Vegetavam acaso, existiriam?
    Os echos d'esses valles repetiam
            Alguma voz? O que!...

    Seria tudo um ermo escuro e mudo;
    Tudo insensivel, solitario tudo!
            Mas Deus cria essa luz;
    E um mar sem praias de silencio e morte,
    Sêres de toda a casta--toda a sorte,
            Produz e reproduz!

    Sim, essa luz benefica converte,
    Por mysteriosa alchimia, frio, inerte,
            Imperceptivel grão
    Em tenras hastes, em botões mimosos,
    Folhas, flôres e fructos saborosos
            Que recamam o chão!

    Mas julgaes vós agricola sómente
    A mão do creador omnisciente?
            Pergunta singular!
    Basta só vêr a ondeada trança
    Com que elle adorna a virgem que vos lança
            O seu primeiro olhar!

    A terra é de côr varia, a planta, verde:
    Porque e para que? O que se perde
            Em ter tudo uma côr?
    O que se ganha em ser tão bem pintada,
    Symetrica, mimosa, perfumada
            Uma ephemera flôr?

    É que Deus é artista! e noite e dia
    E céo e terra e mar o denuncia...
            Vêde nascer o sol!
    Pôr-se alta noite a lua encantadora...
    Em quanto ao mesmo tempo canta e chora
            Ao longe o rouxinol!

    Deus é artista, sim; Deus ama o bello,
    Mais talvez do que o util. O desvelo
            Com que elle trata a flôr!
    Antes de abrir... que mãi tão carinhosa
    Resguarda, mais solicita que a rosa,
            Um seu botão d'amor!

    Nem podia sahir obra incompleta
    Das mãos de Deus: geometra e poeta
            Em summo grau, traçou
    A compasso a abobada celeste;
    Mas de que lindas nuvens a reveste
            Que ao vento tomam vôo!

    Creou, de fogo, o sol--o grande astro!
    E creou, não de fogo, d'alabastro
            A sua bella irmã
    --Sombra apenas do sol, desnecessaria,
    Luz phantastica, vaga, solitaria,
            Inutil, fátua, vã...

    Mas luz intima! luz do sentimento!
    Luz d'amor e de fé! que inspira alento
            A nossos corações!
    Unica luz, á qual se mede o fundo
    D'esse concavo mar... d'esse outro mundo...
            D'esse mundo de soes!

    Porque se ao sol deveis fructos e flôres,
    Á lua deveis mais, deveis amores...
            Deveis... como direi?
    Esta entranhavel, vaga saudade
    De não sei que melhor realidade,
            Que o mundo que se vê...

    Quantas vezes, depois da lida insana
    D'um dia, n'este mar da vida humana,
            Vendo surgir no céo
    Essa luz melancolica e suave,
    Eu acho então, e com que allivio, a chave
            D'este mysterio meu!...

    D'este amor por phantasticos amores...
    Comtudo mais leaes e duradores
            Que os d'esse mundo são!
    D'este mundo de sombras... até prestes,
    Sombra tambem, á sombra dos cyprestes
            Achar satisfação!

    E eu digo, digo á lua scismadora
    Com os olhos risonhos de quem chora
            Pranto consolador:
    Se pois Deus te creou porque eras bella...
    O que vale o sol mais do que uma estrella?
            Um rei do que um pintor?

    Ao vêr-te, dôce lampada, suspensa
    De vaporosa nuvem, n'essa immensa
            Abodada dos céos,
    Pareces-me o thuribulo sagrado
    Com os rolos de incenso evaporado
            Em tua honra, oh Deus!

    E a minha vista sofrega acompanha
    Esse clarão phantastico á montanha
            Ou da terra ou do mar,
    Onde, acabada a obra do seu dia,
    Astro d'amor e de melancolia,
            Se deita a descançar.

    E eu descanço tambem; filha da arte...
    Cumpre-me a mim, oh lua, contemplar-te!
            E pergunte-me alguem:
    --Tu que fazes no mundo, mulher futil?
    --O que Deus faz... na flôr, na lua inutil...
            Sou artista tambem.

Lisboa.

      *      *      *      *      *



PRIMEIRO PSALMO DE DAVID


    Bemdito o que não cahe em se guiar
    Por conselhos de gente depravada;
    E em vendo que vai mal, muda de estrada,
    E nunca se demora em mau lugar;

    Que o seu empenho é só unicamente
    A lei de Deus, que estuda noite e dia.
    Como a arvore ao pé d'agua corrente,
    Dá a seu tempo o fructo que devia.

    Nunca lhe cahe a folha; empresa sua
    Sahe por força conforme o seu intento;
    Em quanto o impio, o mau trabalha e sua,
    E é sempre como o pó, que espalha o vento!

    No tribunal, onde ha-de ser ouvido,
    Não conte com sentença a seu favor;
    Que não entra no numero escolhido
    Dos justos, dos amigos do Senhor.

    O justo, Deus bem sabe o seu caminho,
    E guia-o, não o deixa andar sósinho:
    E o caminho do mau, pelo contrario,
    É beco sem sahida e solitario.

Messines.

      *      *      *      *      *



SEGUNDO PSALMO DE DAVID


    Porque anda o mundo todo enfurecido,
    Se esforços contra Deus são todos vãos?
    Os grandes, mais os reis, deram as mãos
    Contra o Senhor, contra o seu Ungido,

    --Estas correntes, é despedaçal-as,
    Este jugo atirar com elle fóra!
    E lá cima no céo, o que lá mora
    Não faz mais que sorrir-se de taes fallas.

    Mas em lhe dando a ira, aonde então
    Se hão-de metter, com medo, os desgraçados!
    Coroou-me rei no alto de Sião,
    Cumpre-me publicar os seus mandados.

    «Tu és meu filho; disse-me o Senhor:
    Gerei-te hoje; pedir com confiança!
    Verás o mundo todo ao teu dispôr,
    Terras e povos, como propria herança.

    «Vara de ferro para os ir guiando,
    E fazel-os guardar-te obediencia;
    E elles de barro mal cozido e brando
    Que os partas em te oppondo resistencia.»

    Agora pois vós outros, reis, juizes,
    Reparai no que eu digo, e vêde lá;
    Servi a Deus, e dai-vos por felizes
    Cumprindo á risca as ordens que elle dá.

    Tomai os meus conselhos; ou, senão,
    Tende já como certa a perdição.
    Que em se elle irando, é como um raio; aquelle
    Que o despreza e não crê, infeliz d'elle!

Messines.

      *      *      *      *      *



CANTICO DOS CANTICOS DE SALOMÃO

Para os corações puros tudo é puro.

S. Paulo a Tito.


I

CHEGADA


        A SULAMENSE

    --Tomára já ter o gosto
    De o sentir beijar-me o rosto!

        CORO DE VIRGENS

    --E onde ha mulher que te exceda?
    Só esse collo embebeda.
    O aroma que elle exhala,
    Nenhum balsamo o iguala.

        2.º CORO

    --O teu nome, fallar n'elle,
    Só fallar n'elle é tão dôce
    Como se um oleo nos fosse
    Escorrendo pela pelle.

        SALOMÃO

    --Olha como todas ellas
    Te estimam tanto, as donzellas.

        A SULAMENSE

    --Sou tua, leva-me, vamos.

        CORO

    --E nós, que te não largamos,
    Te iremos correndo atraz
    Pelo rasto de perfume,
    Que deixas por onde vás,
    Das pomadas com que dás
    No corpo, como é costume.

        A SULAMENSE

    --Já el-rei me manda entrar
    Para a sala do jantar.

        CORO

    --Para saltar de alegria
    E festejar este dia,
    A nós basta-nos lembrar
    Que esse teu seio embebeda;
    Nem ha mulher que te exceda.

        2.º CORO

    --Quem te vê seja quem fôr
    Fica bebado d'amor.

        A SULAMENSE

    --Sou trigueira mas formosa,
    Moças de Jerusalem!
    Senão vêde o pavilhão
    Que arma em campo Salomão,
    Se ha coisa mais preciosa,
    E por fóra a côr que tem;
    Vêde as barracas dos moiros,
    Por dentro tantos thesoiros,
    Por fóra negras tambem.

    Não vos dê pois isso pena,
    Ter assim a côr morena:
    Minha mãi mandou-me pôr,
    Por culpa de meus irmãos,
    De guarda á vinha, o calor
    Queimou-me o rosto e as mãos:
    E eu, a vinha, é escusado
    Dizer-vos que nem eu tinha
    Senão agora o cuidado
    De estar a guardar a vinha.

    Ah! para que banda vás
    Com o gado, meus amores!
    E pela folga onde estás!
    Bem vês os outros pastores,
    E a gente não adivinha.
    Eu não hei-de andar atraz
    D'esses rebanhos sósinha.

        SALOMÃO

    --Ah rainha das mulheres!
    Olha como tu te enganas,
    Que medo tens das cabanas,
    Que medo tens dos rebanhos,
    Que medo tens dos estranhos?
    Não te dê isso cuidado,
    Anda por onde quizeres
    Tambem guardando o teu gado.
    Em te vendo, mesmo só,
    Toda a gente se desvia,
    Como da cavallaria
    Dos carros de Pharaó.

        CORO

    --Dás no rosto certo ar
    D'aquella graça da rola,
    Que até encanta, arrebata.

    A garganta pódes pôl-a
    Ao pé do melhor collar.

        2.º CORO

    --Um te havemos de nós dar
    De oiro, ás pintinhas de prata,
    Que é lindo, e has-de gostar.

        A SULAMENSE

    Já não sei pelo que aguardo
    Que estando el-rei a jantar
    Lhe não entorno por cima
    Esta redoma de nardo
    Que é um balsamo de estima.

    Mas ha outro mais perfeito,
    E com o qual me perfumo:
    Eu a myrrha que costumo
    Trazer aqui em meu peito,
    É mesmo aquelle a quem amo.
    Nunca apanhei outro ramo
    Nem outro alcanfor colhi
    Nas hortas dos arredores
    Da cidade de Engaddi.

        SALOMÃO

    --Como és bella, minha amante!
    Terá a pomba esse olhar?
    Outro não ha semelhante.

        A SULAMENSE

    --E quem mais bello e galante
    Mais formoso, meus amores!
    E mais de se cubiçar?

        SALOMÃO

    --Vês, o nosso leito é este,
    Armado todo de flôres:
    E olha o tecto é de cypreste,
    Portas de cedro, tambem;
    Aqui não entra ninguem.

        A SULAMENSE

    --Sou a rosa de Sarão,
    A açucena do val.

        SALOMÃO

    --Amada do coração,
    Entre as mais és tal e qual
    Uma açucena entre espinhos.

        A SULAMENSE

    --E entre os mais o meu amado
    A que ha-de ser comparado?
    Vês tu no bosque a maceira?
    És assim d'essa maneira.
    Por lograr os teus carinhos
    E boa sombra ha já muito
    Que eu andava a suspirar:
    Com effeito sombra e fructo
    Nada deixa a desejar.

    Elle deu-me do melhor
    Que tinha na sua adega;
    Mostrando-me assim primeiro
    Como faz quem tem amor.
    Trazei-me flôres de cheiro,
    Que estou como tonta e cega...
    Algum pomo, que esmoreço...
    Já um braço me elle passa
    Pelos hombros e me abraça
    Pela cinta... desfalleço...
    Ah desfalleço d'amor!

        SALOMÃO

    --Pela corça e o veado,
    Moças de Jerusalem!
    Não a acordeis, cuidado!
    Deixar dormir o meu bem,
    Um somno bem socegado.


II

ENTREVISTA


        A SULAMENSE

    --Quem é que eu oiço bradando?
    Oiço uma voz e por força
    Que é a voz d'elle esta voz:
    Ah! lá vem além saltando
    Montes e valles, nem corça
    Nem veado é mais veloz.

    Eil-o detraz da parede
    Além já da outra banda
    E o que elle faz, como elle anda
    A vêr no vallado todo
    E na cancella se ha modo
    De me pôr olho: ora vêde.

        SALOMÃO

    --Oh minha amada! depressa
    Vem vêr o campo, anda, vem:
    Mettida em casa, meu bem!
    Que demora tua é essa?

    Foi o inverno passando,
    Até que a chuva acabou:
    Veio a herva rebentando,
    Revestiu a terra toda,
    Chegou o tempo da poda,
    Ouviu-se a rola arrulhando,
    O figo vem já inchando
    E a vinha está já em flôr:
    Pelo que estás esperando?

    Quando has-de tu, meu amor!
    Andar então passeando?
    Ouve lá que estamos sós,
    E aqui não ha quem nos oiça:
    Vês esta fresta? é um gosto
    Até pela pedra ensossa
    Vêr assomar o teu rosto,
    Ouvir essa linda voz.

        A SULAMENSE

    --Toda em flôr, como está bella!
    Mas lá o ter flôr que monta?
    Se as boas das raposinhas
    A tomam á sua conta,
    Depois a uva que é d'ella?
    Bons laços se lhe hão-de armar,
    Que ellas dão cabo das vinhas
    Se ninguem as apanhar.

    Tu és meu; e eu tambem
    Sou tua, de mais ninguem.
    Nós somos como um casal
    De corcinhas, com effeito;
    Andamos sempre a vêr qual
    Guarda ao outro mais respeito
    E lhe ha-de ser mais leal.
    Logo ali de manhãsinha,
    Ou pela fresca, á tardinha,
    Quando a corça e o veado
    Volta aos valles de Belher,
    Cá ficas sendo esperado:
    Não te esqueça, haja cuidado,
    Vê lá o que has-de fazer.


III

SONHO


        A SULAMENSE

    --Não sei bem que sonho tive
    Esta noite, que acordei
    Sobresaltada, e que estive
    Ainda apalpando a cama
    Á busca de quem me ama
    E a quem ama; não achei:
    Levantei-me, rodeei
    A cidade toda em roda,
    Corri a cidade toda,
    Busquei tudo, não achei.
    Na rua pergunto á ronda:
    O meu amante que é d'elle?
    Não ha ninguem que responda.
    Vou andando; a poucos passos
    Vi vir um vulto: é aquelle.
    Chega e digo-lhe depois
    De o apertar nos meus braços:
    Quem se ama como nós dois,
    Só em mudando de estado
    É que vive descançado.
    Anda d'ahi, vamos pois
    Ao quarto mesmo onde dorme
    Minha mãi que me gerou
    (Que eu tua ainda não sou,
    Nem tu és meu, meu amigo!)
    A pedir a nossos paes
    A sua benção, conforme
    Costumam fazer os mais,
    E é já um costume antigo.

        SALOMÃO

    --Pela corça e o veado,
    Moças de Jerusalem!
    Não a acordeis, cuidado,
    Deixai dormir o meu bem
    Um somno bem socegado.


IV

NOIVADO


        CORO

    --Oh que mulher tão perfeita
    A que vem além andando!
    Vem espalhando um perfume
    E é tão airosa a andar!
    Parece quando se deita
    Incenso e myrrha no lume
    Que se vai desenrolando
    Aquella nuvem no ar.

        2.º CORO

    --Realmente é de invejar;
    Mas haja alguem que se afoite...
    Sessenta homens armados
    Dos mais desembaraçados
    Manda Salomão ficar
    De vigia toda a noite.

        CORO

    --É tudo á satisfação
    E gosto de Salomão.
    O andor onde elle sai,
    De tudo de que é composto,
    Cedro do Libano, olhai,
    É a coisa mais barata:
    Pernas e braços de prata,
    De oiro o mais fino o encosto;
    Onde põe os pés velludo:
    Não fallando em diamantes
    E pedras as mais brilhantes
    Que lá isso excede a tudo.

        2.º CORO

    --Além vem já Salomão:
    Lá vem elle já coroado
    Com a corôa do noivado
    Que a mãi lhe poz na cabeça
    Pela sua propria mão.
    Hoje é o dia fallado:
    Moços, moças de Sião!
    Assomai-vos já depressa.

        SALOMÃO

    --Que enlevo, que formosura!
    A pomba não tem de certo
    No olhar tanta doçura:
    E fóra o que anda encoberto.

    O cabello, em quantidade
    E tamanho, é singular;
    E não me lembra senão
    Das cabras de Galaad
    Que lhes rola pelo chão
    Em ellas indo a andar.

    Os dentes, em tu abrindo
    A tua boca, que lindo!
    Nem um rebanho d'ovelhas
    Todas brancas e parelhas
    Quando, em sendo tosquiadas,
    Veem saindo do banho
    D'uma em uma, enfileiradas,
    E atraz d'ellas, cada uma
    Seus dois gemeos d'um tamanho,
    Sem ser maninha nenhuma.

    Pois a bocca é comparada
    A uma fita encarnada.
    A voz ouvil-a é um gosto:
    Parte a romã pelo meio
    Verás as rosas do rosto;
    E fóra no que eu receio
    Fallar que me não é dado.

    O pescoço, pensa a gente,
    Em o vendo de collares,
    Que é a torre exactamente
    De David, n'esses ares,
    De baluartes, e toda,
    Lá cima, escudos á roda.

    Os peitos é um casal
    De corcinhas, que o seu pasto
    São açucenas do val:
    Nada mais timido e casto.
    E deitam um cheiro á goma,
    Da myrrha mais do incenso,
    A ponto que ás vezes penso
    Que elles são duas collinas
    Por onde aquellas resinas
    Espalham aquelle aroma.

    És formosa sem senão,
    Amada do coração!
    E que fazias tu lá
    Pelo Libano, pombinha!
    Deixa o Libano, anda cá.
    Vaes ser coroada rainha
    No mais alto d'Amaná
    Ou d'Hermão ou de Sanir,
    Onde ha leões e onde ha
    Leopardos... deves vir.

    Trespassou-me o coração
    O teu olhar; o cabello
    Prendeu-me como um grilhão.
    O teu peito, basta vêl-o,
    Para embebedar d'amor.
    E só o cheiro que exhala
    O teu corpo, não ha flôr,
    Não ha rosa, não ha cravo
    Capaz de cheirar melhor.

    A tua bocca é um favo
    De doçura quando falla;
    A tua lingua, uma sopa
    De leite e mel; essa roupa
    Cheira a incenso, regala.

    Não ha nada comparado:
    Agua a mais pura e suave
    De fonte fechada á chave,
    Não é mais suave e pura.
    Esse rosto, essa figura...
    E só o bem que tu cheiras!
    Não me parece senão
    Um jardim todo plantado
    De romeiras e maceiras,
    Canfora, nardo, assim como
    Açafrão, canna de cheiro
    Aloes, myrrha e cinnamomo:
    O que ha no Libano em fim;
    Não ha fruta nem aroma,
    Que se ahi não cheire e coma.
    És a fonte d'um jardim
    Toda pureza e frescura:
    Torno d'agua que rebenta
    Inda mais viva e mais pura
    Lá no Libano, e ninguem
    Lhe tem mão nem aguenta
    A força com que ella vem.

    Fizesse já sul e norte
    No meu jardim, de tal sorte
    Que alegretes e pomares
    Andasse tudo nos ares.

        A SULAMENSE

    --É natural que tu comas
    Da fruta do teu jardim.

        SALOMÃO

    --E que duvida que sim?
    Vamos primeiro aos aromas;
    O mel em favo depois
    E mais o vinho e o leite.
    Hoje é dia de banquete,
    Amigos do coração!
    É comer-lhe por quem sois
    E beber-lhe até mais não.


V

SURPREZA


        A SULAMENSE

    Estava a dormir... que importa?
    Velava o meu coração.
    Oiço o meu amado á porta:

    --Ah formosa sem senão,
    Minha pomba, minha amada!
    Trago a cabeça molhada,
    E os anneis do meu cabello
    Todos escorrendo orvalho,
    Estou mais frio que um gelo.

    --Dá-me isto agora um trabalho...
    Despi-me, lavei os pés,
    Estou na cama deitada,
    E é uma pena, bem vês,
    Vestir-me agora outra vez,
    Andar inda levantada.

    Vai elle empurra o postigo,
    E eu assusto-me de modo
    Que, na verdade vos digo,
    Tremia-me o corpo todo.

    Salto da cama exhalando
    Um cheiro delicioso:
    Eu tinha-me estado untando
    Com um oleo precioso
    E inda as mãos me iam pingando.

    Abro a porta, eis senão quando
    Elle foge de repente...

    Eu só de lhe ouvir a falla
    Fui ás nuvens de contente.
    E em paga de tudo, abala;
    Bradei-lhe, não me acudiu,
    Vou por essas ruas fóra
    Á busca d'elle, até'gora:
    Parece que o chão se abriu...

    Encontro a ronda, espancou-me;
    Um dos da guarda á entrada
    Da cidade, esse, roubou-me
    A capa onde ia embrulhada.

    Peço-vos isto por bem,
    Moças de Jerusalem!
    Contai tudo ao meu amado,
    Que elle é por amor de quem
    Estou n'este triste estado.

        CORO

    --O teu amado... responde,
    Formosura sem igual!
    Ha tantos onde escolher
    Que é necessario um signal.
    Qual é o signal por onde
    Havemos de o conhecer?

    --Eu vos digo: o meu amado,
    D'aquellas côres no mundo,
    Estou que não ha segundo;
    É muito branco e córado.
    A cabeça é um thesoiro
    Do que ha de mais principal;
    Que a sabedoria vale
    Mais do que a prata e o oiro.

    De negro que é o cabello,
    Vêr um corvo, é mesmo vêl-o.

    Os olhos, aquelle olhar,
    Ha n'elles uma doçura,
    Que não sei a que os compare;
    Só sendo a um casalinho
    De pombas, que estão no ninho,
    Todas pureza e candura.

    As suas faces rosadas,
    Rescendem como um canteiro
    D'aquellas plantas de cheiro
    De que fazem as pomadas.

    A bocca, digo a verdade,
    Que a açucena mais pura
    Cheia da myrrha melhor
    Não apresenta a doçura,
    Pureza e suavidade
    Das fallas do meu amor.

    Aquelles dedos, vereis,
    São uns canudos de anneis!

    O ventre d'elle é assim
    Como um cofre de marfim.
    As pernas, de musculosas,
    São columnas magestosas
    E de marmore inteiriço
    Em bases de oiro maciço.
    É o Libano em altura,
    É como um cedro na matta
    A sua bella figura.

    É tão suave, tão pura
    A sua voz, que arrebata.

    Todo elle é singular
    E todo de cubiçar.
    Eil-o ahi retratado,
    Moças de Jerusalem!
    E não só o meu amado;
    O meu amante tambem.

        CORO

    --Ah rainha das mulheres!
    Se sabes para que banda
    Elle iria o teu amigo,
    Anda d'ahi, vamos, anda:
    Nós imos todas comtigo
    Á busca d'elle se queres.

        A SULAMENSE

    --Elle parece-me a mim
    Que ha-de andar no seu jardim,
    A apanhar açucenas,
    Que é do que elle gosta apenas.

        SALOMÃO

    --Oh que formosa, meu bem!
    Não ha cidade afamada,
    Nem Thirsa ou Jerusalem,
    Mais bella que a minha amada.

    Mettes mais respeito andando,
    Que um exercito avançando.

    Os olhos faiscam fogo.
    Tira de mim essa vista,
    Que ao depois fugi eu logo
    Porque não ha quem resista.

    O cabello, em quantidade
    E tamanho, é singular!
    E não me lembra senão
    Das cabras de Galaad,
    Que o arrastam pelo chão,
    Em ellas indo a andar.
    Os dentes, em tu abrindo
    A tua bocca, que lindo!
    Nem um rebanho d'ovelhas,
    Todas brancas e parelhas,
    Ao vir sahindo do banho
    D'uma em uma, e cada uma
    Seus dois gemeos d'um tamanho,
    Sem ser maninha nenhuma.
    As faces não ha de certo
    Assim casca de romã
    De cor tão linda e tão sã.
    E fóra o que anda encoberto.

    És tão formosa, vê lá,
    Que as rainhas são sessenta,
    As concubinas oitenta,
    Donzellas, quem é que as dá
    Todas contadas? ninguem.
    Pois e de quantas possuo,
    A minha pomba, o meu bem,
    A minha mimosa, és tu.
    E o mesmo dizia já
    Lá em casa tua mãi,
    Com tantas filhas que tem.

    Quando chegaste, as donzellas,
    Concubinas e em summa
    As rainhas, todas ellas
    Sem excepção de nenhuma,
    Gritaram todas á uma:
    Viva a rainha das bellas!


VI

PASSEIO


        CORO

    --Que linda mulher aquella!
    Nem a aurora lhe ganha.
    A lua não é tão bella
    Nem a luz do sol tamanha;
    Mette mais vista só ella
    Que um exercito em campanha.

        A SULAMENSE

    --Nunca tive um susto igual!
    Ia á horta das nogueiras,
    Ia passear ao valle,
    Vêr se tinha flôr a vinha
    E já romãs as romeiras;
    Mas a multidão que vinha
    Atraz de mim era tal
    Que não vi nada, e tão cedo
    Apanho tamanho medo.

        CORO

    --Oh não fujas, anda cá,
    Sulamense! deixa vêr
    Belleza como não ha
    No mundo nem póde haver.

        SALOMÃO

    --Arrebata na verdade,
    Mas como um canto de guerra,
    Porque ao mesmo tempo aterra
    Este ar e magestade.

    O teu andar, que nobreza!
    E tem o pé uma graça
    Assim calçado, princeza!

    Os joelhos, que perfeitos!
    Não ha ourives que faça
    Eixos de oiro mais bem feitos.
    Umbigo, qual é a taça,
    D'estas taças pequeninas
    Por onde a gente costuma
    Beber bebidas mais finas,
    Tão redondinha? Nenhuma.

    É o ventre de tal modo
    Casto e fecundo, que apenas
    Um monte de trigo, todo
    Rodeado de açucenas
    Me parece haver no mundo
    Assim tão casto e fecundo.

    O teu seio é um casal
    De corcinhas, que o seu pasto
    São açucenas do val:
    Nada mais timido e casto!

    Lembra-me o pescoço a mim,
    Uma torre de marfim
    E os olhos, esses então
    Os dois lagos de Hesebão.

    Vês a torre que apparece
    Lá no Libano, e que diz
    Para Damasco? parece
    Na lindeza esse nariz.

    A cabeça vêl-a toda
    Por cima das mais, é bello,
    Como a serra do Carmelo,
    Toda collinas á roda.

    O cabello é tal e qual
    Um grande manto real!

    É tudo uma perfeição,
    Amada do coração!

    Vêr-te é vêr uma parreira
    Armada n'uma palmeira;
    E lá em cima os teus peitos,
    No tamanho e no feitio,
    Dois cachos d'uvas perfeitos
    Que a parreira produziu.
    E eu disse d'esta maneira:
    Dois cachos d'uvas tão bellos
    Hei-de ir lá cima colhel-os;
    Que bem se vê que a doçura
    Corresponde á formosura;
    E que a tua bocca é pura
    E a respiração é sã
    Como o cheiro da maçã
    Quando se apanha madura.

    --Como é suave e me encanta
    O que me estás a dizer!
    A voz da tua garganta
    Embebeda como o vinho,
    D'esse que a doçura é tanta
    Que se costuma beber
    Aos sôrvos, devagarinho.

    És só meu e eu tambem
    Sou tua, de mais ninguem.
    Anda com a tua amada
    Morar para o campo, amor!
    Iremos de madrugada,
    Logo ao romper da manhã,
    Em se a gente levantando,
    Vêr se a vinha já tem flôr,
    Se está em flôr a romã
    E se a fruta vai vingando.
    Alli é que eu hei-de então
    Abrir-te o meu coração.

    Estamos na primavera,
    A mandrágora já cheira,
    E em minha casa, estar lá,
    É como estar n'uma horta:
    Mesmo ao pé da nossa porta
    Temos quanta fruta ha.
    E o teu quinhão, meu amado!
    Assim do anno passado
    Como da que vem agora,
    Esse está sempre guardado.

    Ouvisse-te eu n'esta hora
    Chamar mãi á minha mãi!
    Como se tu com effeito
    Fosses criado ao seu peito
    Assim como eu fui tambem:
    Então já eu te beijava
    Ás claras e te abraçava
    Sem vergonha de ninguem.

    Vamos aonde ella dorme,
    A pedir a nossos paes
    A sua benção, conforme
    Costumam fazer os mais,
    E depois seja o que fôr
    É só mandar, meu amor!

    Verás como te hei-de dar
    D'um vinho delicioso
    E d'um licor precioso,
    De romã, que has de gostar.
    .........................
    Um braço já me elle passa
    Pelos hombros... e me abraça
    Pela cinta... o meu amado!
    --Deixai-a dormir, cuidado,
    Moças de Jerusalem!
    Deixai dormir o meu bem
    Um somno bem socegado.
    ......................

Messines.

      *      *      *      *      *



    Ouviste-me não sei quê
    Trincolejar n'algibeira,
    Acudiste mui lampeira,
    Que me amavas. Já se vê.

    Tens amado mais de mil,
    Não era agora o primeiro.
    Mas pensas que era dinheiro?
    É a pedra e o fuzil.

Messines.


FIM

      *      *      *      *      *



INDICE


    A poesia                                          1
    A uma carta anonyma                               4
    Duas rosas                                        5
    A uma mulher                                      8
    A D. Candida Nazareth                            11
    Amor                                             14
    A donzella e o musgo                             17
    Ultimo adeus                                     23
    Rosas                                            26
    Rosa e rosas                                     28
    A Hermann                                        30
    Presentimento                                    33
    Marina                                           36
      I--Apparição                                   36
      II--Saudade                                    39
      III--Eternidade                                41
      IV--... 21 de setembro                         42
    N'um album                                       46
    Beijo na face                                    49
    Thuribulo suspenso inda fluctuo                  53
    Luz d'intima influencia                          55
    Resposta                                         58
    Pois se o homem, se anjo e nume                  59
    Flôr e borboleta                                 62
    Remoinho                                         64
    Amores, amores                                   71
    Fabula                                           73
    Boas noites                                      74
    Gaspar                                           76
    Deixa que ao romper d'alva o cravo abrindo       77
    Carta                                            79
    Dá-me esse jasmim de cera                        85
    Margarida                                        87
    No leito nupcial                                 90
    A minha mãi                                      93
    Beatriz                                          94
    Innocencia                                       97
    A Escriptura Sagrada                            101
    A um Nuno                                       104
    A ***                                           105
    Luz da fé                                       107
    Resposta                                        112
    Meu casto lirio                                 113
    Ventura                                         116
    Arida palma                                     117
    A uns olhos azues                               119
    Heresta                                         121
    Fragmento                                       129
    Se ao enlaçal-a no peito                        145
    Nunca me ha-de esquecer                         146
    Dinheiro                                        147
    Duvida                                          150
    Caturras                                        154
    Foi-se-me pouco a pouco amortecendo             160
    Mãi e filho                                     170
    Toca a capello, vou vêl-o                       173
    Amas, pobre animal! e tens tu pena?             174
    Não!                                            175
    Na folha d'um romance                           181
    Lagrima celeste                                 182
    Descalça!                                       185
    Adeus!                                          187
    A Victoria Colonna                              190
    N'um convento                                   191
    Sonho                                           193
    Á vista d'um retrato                            196
    A lua                                           198
    Joven captiva                                   200
    Mulher! quando nos braços                       203
    Um beijo                                        205
    Francisca de Rimini                             207
    Paixão                                          212
    Escreve                                         214
    Malmequer                                       219
    Virginia                                        221
    Primeiro psalmo de David                        227
    Segundo psalmo de David                         229
    Cantico dos Canticos de Salomão                 231
      I--Chegada                                    231
      II--Entrevista                                239
      III--Sonho                                    242
      IV--Noivado                                   244
      V--Surpreza                                   251
      VI--Passeio                                   259
    Ouviste-me não sei quê                          266





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