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Title: Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 03 Author: Herculano, Alexandre, 1810-1877 Language: Portuguese As this book started as an ASCII text book there are no pictures available. *** Start of this LibraryBlog Digital Book "Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 03" *** produced from images generously made available by National Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).) *Nota de editor:* Devido à quantidade de erros tipográficos existentes neste texto, foram tomadas várias decisões quanto à versão final. Em caso de dúvida, a grafia foi mantida de acordo com o original. No final deste livro encontrará a lista de erros corrigidos. Rita Farinha (Nov. 2009) OPUSCULOS OPUSCULOS POR A. HERCULANO SOCIO DE MERITO DA ACADEMIA R. DAS SCIENCIAS DE LISBOA SOCIO ESTRANGEIRO DA ACADEMIA R. DAS SCIENCIAS DE BAVIERA SOCIO CORRESPONDENTE DA R. ACADEMIA DA HISTORIA DE MADRID DO INSTITUTO DE FRANÇA (ACADEMIA DAS INSCRIPÇÕES) DA ACADEMIA R. DAS SCIENCIAS DE TURIM DA SOCIEDADE HISTORICA DE NOVA YORK, ETC. TOMO III CONTROVERSIAS E ESTUDOS HISTORICOS TOMO I LISBOA VIUVA BERTRAND & C.^a--SUCCESSORES, CARVALHO & C.^a Chiado, 78 M DCCC LXXVI Lisboa--Imprensa Nacional Contem este volume diversos escriptos sobre duas questões historicas. A primeira, que se refere ás tradições fabulosas ácerca da batalha de Ourique, quasi que não tem valor algum á luz da sciencia. Expôr semelhantes tradições era, por assim dizer, refutá-las, e perante a historia tal refutação seria de sobra. A segunda, relativa á situação das classes servas na Hespanha desde o VIII até o XII seculo, versa sobre a legitimidade da solução que adoptei n'um dos mais difficeis problemas que se me offereceram ao escrever o terceiro volume da Historia de Portugal na epocha decorrida desde a fundação da monarchia até o fim do reinado de Affonso III. As phases da lenta transformação do escravo das sociedades antigas no obreiro, cidadão livre das sociedades modernas, obscuras ainda em parte na historia da civilisação e do progresso humano entre as nações d'além dos Pireneus, muito mais o são áquem delles. As divergencias, e divergencias profundas, entre os que se dedicam a estudar o assumpto nascem dessa obscuridade, e é dos debates que elle pode suscitar que ha de surgir a final a luz. Como tantas vezes succede, não foi a questão grave e difficil que alevantou arruido: foi a insignificante que despertou as attenções e que produziu viva agitação na imprensa e fóra da imprensa, dividindo em dous campos o publico que lê. É que na primeira interessava apenas a sciencia, e a segunda contrariava os intuitos de uma parcialidade e as preoccupações dos espiritos vulgares, que constituem o grande numero. Se a religião era extranha ao assumpto, ou antes ganhava na suppressão de uma pia fraude, perdia com isso a maioria do sacerdocio, atarefada, hoje mais que nunca, em tecer a rede de suppostos milagres em que parece querer amortalhar o catholicismo. Escrevendo um livro serio, eu affastara brandamente para o limbo das fabulas aquellas ficções ridiculas, porque era forçoso fazê-lo. Nem tivera a intenção do escandalo, nem a cousa o valia. A maioria, porêm, do clero não o entendeu assim. Na carta ao patriarcha de Lisboa, com a qual este volume começa, está a resumida noticia das aggressões de que fui alvo e que por algum tempo supportei com resignação ou indifferença, resignação ou indifferença em que provavelmente, hoje, que sei melhor o que taes aggressões valem, continuaria a permanecer. Estava, porêm, então naquella epocha da vida em que a paciencia christan não é a virtude mais vulgar do homem. O leitor ajuizará se os prelados portugueses foram ou não imprudentes em tolerarem ou talvez favorecerem aquellas ineptas e brutaes manifestações da ignorancia e do interesse ferido. Pelo que toca ao opusculo sobre o estado das classes servas da Peninsula no decurso dos seculos VIII a XII, destinado a combater as opiniões do erudito Muñoz y Romero, é bem de crer que ao meu illustre adversario não faltassem argumentos para contrapôr ás objecções que lhe fiz; mas affastaram-no do debate outros estudos, até que veio salteá-lo a morte, quando a Hespanha tinha a esperar os melhores fructos da alta intelligencia daquelle incansavel cultor da historia. Buscando ambos a verdade, a discussão encetada conduzir-nos-hia, provavelmente, a modificarmos, tanto um como outro, as nossas ideas, talvez absolutas em demasia, e a estabelecermos uma doutrina solida sobre tão espinhoso assumpto. Entretanto, ainda hoje me persuado de que, para nos aproximar-mos, seria elle que teria de andar mais caminho. Julgá-lo-hão os que, depois de lerem attentamente o meu modesto trabalho, examinarem com igual attenção o escripto de Muñoz y Romero e a apreciação desse escripto por Mr. de Rozière. Janeiro de 1876 A BATALHA DE OURIQUE I EU E O CLERO AO PATRIARCHA DE LISBOA (_Junho, 1850_) É debaixo da impressão de vivo desgosto, e cedendo emfim ao impulso de justa indignação, que dirijo a vossa eminencia esta carta. A desculpa que merece um animo turbado por offensas immerecidas, e o favor que sempre encontrei em vossa eminencia me fazem esperar que esse favor não padecerá quebra, se alguma phrase mais forte do que eu desejara me fugir da penna ao escrever este papel; papel que, solemnemente o declaro desde já, não tem por objecto, como alguem poderia suppôr, pedir desaggravo das offensas a que alludo. De natureza são ellas, que nem preciso nem quero que outrem as puna. Sei e posso eu fazê-lo, se cumprir, de um modo que sirva de escarmento á ignorancia perversa e á hypocrisia insensata. O meu intuito é apenas rogar directamente a vossa eminencia, e indirectamente aos demais prelados de Portugal a cujas mãos chegar esta carta por intervenção da imprensa, que, obstando a novas provocações da parte do clero, me poupem a dar uma dura licção a individuos, que, desconhecendo os deveres do sacerdocio e incapazes de sentimentos de moderação, tentam excitar as paixões odientas de um fanatismo que já nem, talvez, o povo comprehende contra um homem que nunca lhes fez mal, e que nem sequer se lembra delles, porque tem cousas um pouco mais sérias em que cogitar. Ha quatro annos que publiquei o primeiro volume de uma Historia de Portugal, que tem feito certa impressão no paiz, e ainda fóra delle. Na benevolencia com que esse livro foi recebido por naturaes e extranhos nada ha provavelmente que deva lisonjear o amor-proprio litterario do auctor, mas ha uma prova de que o publico reconheceu nelle certa independencia de espirito e uma estricta imparcialidade, para a qual o longo e severo exame dos factos o habilitava. Como eu o previra na advertencia posta á frente daquelle primeiro volume, a sinceridade da narrativa, estribada em monumentos indisputaveis, destruindo muitas dessas tradições, mais ou menos improvaveis, que deturpam a historia de todos os povos, suscitou contradictores. Era cousa natural. As manifestações de colera, as injurias vertidas contra mim na imprensa, não podiam causar-me nem estranheza nem abalo. Estava resolvido a guardar silencio perante ellas e a proseguir na senda que abrira, sem me distrahir com luctas estereis. A verdade fica, e as preoccupações passam. Ao mesmo tempo a minha resolução inabalavel era, e é, desprezar todos os respeitos humanos que se contraponham á voz da propria consciencia. Todavia o não nos affastarmos dos seus dictames é empenho que não sae de graça neste mundo de paixões pequenas e más; e bem louca esperança seria a minha, se a tivesse de evitar os effeitos de uma lei universal. Era por isso que estava resolvido a esgotar resignadamente o meu calix. Pouco depois da publicação do primeiro volume da Historia de Portugal, n'um periodico litterario da universidade de Dublin um critico inglês punha em duvida se eu, que expurgara de lendas fradescas a historia do berço da monarchia, teria esforço bastante para avaliar como cumpria as longas e violentas dissensões dos reis da primeira dynastia com os bispos e com a curia romana. Quando li isto, sorri-me. Nessa mesma conjunctura publicava-se em Lisboa o meu segundo volume, onde se continha a narrativa de boa parte daquellas discordias. Ahi me parece ter dado documento de que os receios manifestados na imprensa inglesa não eram dos mais bem fundados. Mas esse volume, accendendo novas coleras, despertou em alguem a idéa de me refutar de modo inaudito. Do pulpito de uma das igrejas de Braga, da antiga metropole, onde ainda devem estar bem vivas as memorias do veneravel Caetano Brandão, do illustre prelado que pretendia reformar o breviario e missal bracharenses por causa _das suas intoleraveis patranhas e falsidades_ (phrase do grande arcebispo), o meu nome foi lançado ás multidões ladeado dos epithetos de hereje, de impio e de outros semelhantes. Um egresso fanatico e ignorante (como o são centenares de sacerdotes no meio do nosso clero, que não recebe ha muitos annos nem educação moral nem educação litteraria) cubriu-me de injurias diante de um concurso numeroso, segundo me informaram, porque no meu livro usara do direito de historiador, qualificando devidamente essas intelligencias vastas e energicas, mas corruptas, violentas e cubiçosas que cingiram a thiara papal, e que se chamaram Gregorio, Innocencio ou Honorio. A principio acreditei que isto não passara de um impulso de fanatismo individual; mas em breve me desenganei de que o facto pertencia a um systema organisado de aggressão. A imprensa politica noticiou procedimentos analogos para comigo em outros lugares do arcebispado. Se o objecto das invectivas era o mesmo, se igual a violencia das expressões, ignoro-o: mas o que me pareceu evidente foi que havia, como disse, em tão insolito proceder um systema uniforme e combinado. Calei-me. A minha equanimidade foi bastante para tolerar este ataque brutal á liberdade do pensamento; foi tamanha como a do respectivo prelado, que guardou silencio, e que devera ter advertido o seu clero de que, não havendo eu offendido doutrina alguma da igreja, e tendo-me limitado a julgar os homens e os factos da epocha sobre que escrevia, por mais erradas que fossem as minhas opiniões, ellas não podiam ser qualificadas publicamente de hereticas, concitando-se assim contra mim a credulidade popular. Um sermão não é o meio de refutar erros litterarios, e muito menos o é qualificar taes erros como offensas da fé para os transformar em crimes religiosos. Em semelhante terreno a lucta sería impossivel, porque delle brota o risco pessoal, ou pelo menos a perda da reputação moral para um dos contendores, ou melhor direi para a victima indefensa, amarrada ao poste desse novo genero de patibulo. Os ignorantes olhariam com horror para o Luthero ou Calvino que surge na terra da patria, e esse odio publico é uma verdadeira coacção á liberdade legitima do escriptor: legitima, digo, porque, apesar de tantas declamações e queixas, é evidente que no meu livro não ha uma unica palavra que offenda a orthodoxia da igreja. Se eu tivesse proferido alguma heresia, os prelados portugueses, e em particular vossa eminencia como meu pastor, não seriam capazes de faltar aos seus mais estrictos deveres, deixando de me advertir do erro com caridade evangelica, e de me condemnar se eu insistisse n'elle. Era então que aos bispos, e não a qualquer desses cirzidores de farrapos de sermões velhos, desses inimigos figadaes da lingua, da grammatica e do senso commum, denominados, por antiphrase, prégadores ou oradores, que era licito, que cumpria lançar sobre mim o anathema. A guerra desleal que uma parte do clero (digo uma parte, porque no seu gremio ha muitos homens leaes e verdadeiramente illustrados) me declarara no norte do reino não tardou a apparecer no meio-dia, no recincto da propria capital. O primeiro commettimento foi tentado n'uma solemnidade notavel, e n'um dos templos mais frequentados de Lisboa. Nesse acto o absurdo da aggressão nasceu antes da impropriedade do logar, do que das formulas empregadas pelo aggressor, que se absteve de injurias grosseiras. Lisboa não é Braga, e o negocio precisava aqui de maior circumspecção. Entretanto a tentativa desagradou geralmente, e eu pensei que emfim me deixariam em paz. Não succedeu assim. Ultimamente na minha propria parochia, e dous dias depois n'outra igreja da capital, fui de novo arrastado perante as turbas na torrente da eloquencia clerical. Se no primeiro caso houve a intenção de se me administrar face a face uma correcção fraterna, o calculo falhou. Creio que vossa eminencia me faz a justiça de acreditar que não me deleito excessivamente em ir ouvir máus sermões de ha sessenta annos, ou traducções detestaveis de fragmentos de sermonarios franceses, declamadas, ou antes carpidas, em tom ainda mais detestavel. O annuncio de um sermão é para mim por via de regra a espada percuciente do anjo do paraiso flamejando á porta do templo. Salvo em rarissimos casos, não haveria forças que podessem arrastar-me a assistir aos partos da oratoria, que, por irrisão sacrilega, se denomina sagrada. A resistencia dos meus nervos em tal conjunctura seria mais forte do que a propria vontade. Em Braga, e creio que nos outros logares daquella diocese, a censura tinha sido fulminada contra a liberdade com que falei dos chefes da igreja nos seculos médios, da curia romana, e talvez dos bispos portugueses de então. Ao menos lá a invectiva tinha certa originalidade. No patriarchado, porém, as accusações, postoque menos brutaes, tiveram o defeito de ser um verdadeiro plagio. Narrando no primeiro volume da Historia de Portugal o recontro de julho de 1139 em Ourique, reduzido ás dimensões que suppús e supponho exactas, ommitti a fabula do apparecimento de Christo, como cousa indigna da gravidade da historia, e, sob certo aspecto, demasiado irreverente para com o sublime Fundador do Christianismo. Apenas n'uma nota alludi a essa tradição absurda, affirmando que se estribava n'um documento falso, o celebre juramento attribuido a Affonso I, juramento que ainda existe no supposto original. Eis o grande escandalo para os prégadores de Lisboa. Confesso que ahi tractei esse embuste com o desprezo que elle merece, porque, na verdade, conhecendo eu muitos diplomas forjados com maior ou menor destreza, este é, sem contradicção, o mais inhabilmente executado. As poucas palavras que dediquei a semelhante ninharia suscitaram o zelo de alguns individuos, persuadidos de que eu tinha despedaçado, com as tres ou quatro linhas que a tal proposito escrevi, o palladio da independencia nacional, que bem fraca independencia sería se estivesse como adscripta á crença ou á descrença n'um conto de velhas. Houve até um pobre homem, o qual, no meio das discordias civis que assolaram o reino pouco depois da publicação do meu livro, dirigiu aos povos do Alemtéjo uma proclamação, em que affirmava que, ligado por um pacto infernal com os membros do governo então derribado, eu ia demolindo as glorias portuguesas para vendermos de commum accordo a independencia da patria. Não me recordo agora do preço, nem de quem foi o comprador, mas a venda parece que era indubitavel. Entretanto publicavam-se artigos de jornaes e folhetos avulsos contra mim. Nada mais legitimo; nada mais liberal. Se os corsarios da palavra de Deus, que esbombardeam o meu pobre livro de um logar aonde eu não posso subir, do alto do pulpito, convertido em chapiteu de proa de junco malaio, houvessem seguido este rumo, seria eu tão ridiculo como o instrumento da apparição, se disso me queixasse a vossa eminencia ou aos outros prelados do reino. A imprensa é uma estacada onde nos julgadores do combate, e sobretudo de um combate litterario ou scientifico, ha já um grau de illustração, que até certo ponto affiança uma decisão justa. Reptado ahi, eu podia erguer a luva, ou deixar, quando assim o entendesse, que o livro delatado servisse por si mesmo de resposta aos accusadores. Em um e outro caso procederia livremente, e não ficaria, como no campo em que sou aggredido, collocado debaixo de uma coacção moral. Ahi os reverendos prégadores, que tem tido a condescendencia de tractar da minha humilde pessoa, até poderiam appellidar-me, se quizessem, hereje, impio, atheu, demonio incarnado: eu respondia-lhes que elles estavam bem livres de ser nenhuma dessas cousas, e ficavamos perfeitamente pagos. Dous dos folhetos avulsos dirigidos contra a Historia de Portugal, que me chegaram ás mãos, tractavam justamente desse gravissimo negocio da apparição, que em parte me tem feito victima, por me servir de uma phrase do padre Isla, da _dialectica eloquencia dos selvagens da Europa_. Ambos comedidos e corteses, ao mesmo tempo que produziam no meu animo um sentimento de tristeza, inhibiam-me de responder-lhes, ainda quando não estivesse, como ha pouco disse a vossa eminencia, no firme proposito de evitar luctas estereis. A tristeza que senti á leitura daquelles folhetos nascia de achar nelles a prova da decadencia a que tinham chegado neste paiz os estudos historicos. N'um livro que, com bons ou maus fundamentos, mudava completamente o aspecto até aqui attribuido ao complexo dos successos do nosso paiz, na infancia da sociedade portuguesa, havia por certo mais de uma inexacção, mais de um defeito importante, como obra que era de homem--de homem desajudado n'uma empreza de tal ordem, e entregue unicamente aos proprios recursos e forças. Ácerca, porém, das materias positivas, historicas, susceptiveis de serio exame, apenas appareceu, que me conste, um artigo no periodico litterario a _Revista Universal_, e outro no _Observador_ de Coimbra. As duas publicações avulsas que me vieram ás mãos, ambas, como disse, curavam exclusivamente de me demonstrar o milagre da apparição, milagre do qual (atrevo-me quasi a affirmá-lo) ainda que os meus adversarios o tivessem sustentado com boas razões _historicas,_ me parece que eu, vossa eminencia, toda a gente, que não seja algum leigo capucho, haviamos de continuar a rir, cada qual segundo o papel que acceitou nesta grande comedia humana--uns em publico, outros em particular. Agora pelo que respeita aos motivos que, além da razão geral já dada, me inhibiam de responder aos dous escriptores, permitta-me vossa eminencia que eu dilate um pouco o discurso a este proposito. Não é a digressão alheia ao assumpto. O meu silencio ante contendores francos e leaes, que me buscavam com armas corteses no campo da imprensa, interpretou-o a ignorancia como um signal de fraqueza. Não contribuiria isto para despertar a audacia dos meus anathematisadores? Não seria eu proprio o culpado da minha affronta? Desculpe vossa eminencia uma comparação, acaso ambiciosa em demasia. Tem o merito de se referir a uma fabula, e nós achamo-nos n'uma questão de fabulas. Quando o leão jazia moribundo, foram as feras valentes e generosas que arrostaram o perigo. O onagro só veio ferir-lhe a fronte pendida, depois que, averiguada a situação do rei das florestas, se persuadiu de que podia injuriá-lo a seu salvo. Se fui, pois, o causador do mal, devo justificar o silencio que o gerou. É a esse alvo que se dirige a digressão de que falo. Um dos folhetos era escripto por um ancião respeitavel, não só pelas suas cans, mas tambem pelos seus padecimentos physicos, consideração fortissima para mim, que entendo ser sempre digna de respeito a desgraça; era producção de um homem chegado áquelle quartel da vida, em que o espirito parece eivado da ruina do corpo, que vem annunciando a proximidade do tumulo. Com a mão na consciencia eu protesto a vossa eminencia que ainda hoje sentiria remorsos, se, na força da vida e do pouco talento que Deus repartiu comigo, não tivera sabido domar os impulsos de um ridiculo amor-proprio; se houvera ido derramar a afflicção sobre o leito de dor do afflicto, para saborear o triste e vergonhoso prazer de ouvir os apupos do publico a um pobre velho, que queria, que tinha direito de morrer em paz abraçado com as tradições da sua infancia; que precisava de protestar contra um homem, o qual, embora involuntariamente, ia prostituir-lhe no coração idéas e affectos, amigos constantes da sua larga existencia. Se Deus podesse fazer milagres absurdos e inuteis, como o da apparição, eu preferiria ver-me convertido em cirzidor e carpidor de farrapos pareneticos a ter de accusar-me de uma acção, que não sei qual seria mais, se covarde, se despiedada. Quanto ao outro folheto, composto por um homem de talento, instruido, e no vigor da idade, não militavam as mesmas razões de conveniencia moral; militavam, porém, outras assaz fortes, e de natureza analoga. Affastadas as considerações poeticas, alheias a materias historicas, os argumentos colligidos naquella publicação a favor do milagre de Ourique dividiam-se em duas categorias, ou antes eram apenas dous argumentos. Um consistia no consenso de certo numero de escriptores, todos de epochas mais recentes que o meado do seculo XV. A futilidade desta argumentação é evidente. Os _classicos_ são respeitaveis como mestres de lingua; mas como testemunhas de um facto, que se diz acontecido pelo menos trezentos annos antes que elles escrevessem, de nada servem. A qualidade de classicos não exclue a de credulos, e nem sequer a de inventores de patranhas. A chronica de Clarimundo, a da Tavola-redonda, a de Palmeirim d'Inglaterra são escriptas por tres classicos como Barros, Jorge Ferreira, e Francisco de Moraes, e eu supponho, não sei se me engano, que esses livros não encerram senão mentiras. Se o auctor queria provar-me a perpetuidade da tradição de Ourique, não devia esquecer o _criterium_ estabelecido por Vicente de Lerins, e com elle pelo senso commum, para distinguirmos das falsas as tradições verdadeiras: _Quod semper, quod ubique, quod ab omnibus creditum est_. Era-lhe necessario mostrar-me essa tradição através de todos os seculos, e sobretudo dos seculos onde ella desapparece, os tres immediatos ao supposto facto. Confesso a vossa eminencia um peccado, e alliviarei delle a consciencia, porque o confesso perante o meu pastor: a minha intelligencia foi demasiado orgulhosa para descer a refutar semelhantes objecções. Que me importava, de feito, que a fabula tivesse este ou aquelle motivo, nascesse no seculo XVI ou no XV? Tomara eu tempo e monumentos para averiguar os successos verdadeiros e as suas causas, circumstancias e effeitos. Genealogico d'embustes é mistér para o qual me falta inteiramente a vocação. A segunda categoria de argumentos, ou antes, o segundo argumento em favor do milagre era a citação de dous textos precisos, de duas auctoridades contemporaneas, que relatavam o successo. Uma era nada menos que a de S. Bernardo; outra a de uma copia coeva do juramento, copia conservada em Roma, e transcripta no volume 51 da _Symmitica Lusitana_, manuscripto da Bibliotheca Real, de cuja existencia é abonador o illustre Cenaculo. Este argumento estava longe da obvia fraqueza de est'outro. A tradição ía assim prender-se do seculo XV ao XII, embora obscurecida no periodo intermedio. Alguem imaginará, portanto, que para não responder a objecções deste valor apparente só me conteve o proposito de evitar disputas escusadas. Não foi assim. Contiveram-me considerações de maior monta. Se o eram ou não, vossa eminencia o julgará. Antes de tudo, observará vossa eminencia que eu digo _disputas escusadas_. Digo-o, porque esses testemunhos contemporaneos não bastam, como vossa eminencia sabe, para acreditarmos nos milagres da idade média. Á excessiva devassidão e bruteza aquelles tempos de trevas uniam uma crença fervorosa, confundida com superstição extrema. A idéa religiosa formulava-se em tudo, na guerra, na vida civil, nos affectos do coração, nas artes, na litteratura, na sciencia; e quando uma idéa domina assim a sociedade, converte-se em prisma através do qual as cousas se illuminam com as côres que elle lhes transmitte. O maravilhoso introduzia-se em todos os factos em que as imaginações, possuidas de uma especie de febre moral, achavam pretextos mais ou menos plausiveis para lh'o attribuir. Accrescia a tendencia innata dos homens para indagar as causas dos diversos phenomenos. Comprimida n'um ambiente de ignorancia e rudeza (ambiente em que vive boa parte do nosso clero), essa tendencia dilatava-se, respirava pelo unico resfolgadouro possivel, pela facil theoria do maravilhoso, do sobreintelligivel. Nas chronicas d'então quasi que o miraculoso é o regular, e o natural a excepção. Dos chronistas dos seculos barbaros o mais despreoccupado é o benedictino inglês Matheus Paris. Todavia centenares, que não dezenas, de milagres absurdos são gravemente narrados na _Historia Major_. Permitte-me vossa eminencia que lhe recorde um exemplo do modo de vêr daquellas eras? Sem sairmos do reino, nem do seculo XII, e até limitando-nos á vida do personagem a quem se attribue o singular favor de Ourique, temos á mão um exercito de milagres, postoque em sentido inverso ao da apparição. Alludo aos desgostos de S. Rosendo com o nosso primeiro rei. A vida do sancto, _escripta no seculo XII_, foi, como vossa eminencia sabe, publicada por Florez, e uma copia, talvez coeva, ou quando muito do seculo XIII, existe ainda entre os manuscriptos de Alcobaça (codice 133). Ahi lemos que o rei português fora obrigado a levantar o sitio do castello Sandino, nas margens do Arnoia, por uma tempestade de raios que o sancto desfechou contra elle. Se acreditarmos o pio agiographo, o seu implacavel heroe nunca perdoou a Affonso I, apparecendo por tres vezes a diversas pessoas para protestar vingança contra o principe, que nas suas correrias na Galliza não respeitara as terras do mosteiro de Cellanova. Nesta lucta atroz entre o grande da terra e o grande do ceu, S. Rosendo não poupava maravilhas. Debalde; porque, como observa o monge historiador, o coração do rei, que elle compara caritativamente a Simão Mago, estava obdurado, qual o de Pharaó, _para maior cumulo da sua condemnação_. A malevolencia milagreira do sancto não abandonou Affonso Henriques senão no tumulo. Os contratempos dos ultimos annos do reinado do fundador da monarchia, incluindo o desbarato de Badajoz, a fractura da perna, o aleijão com que ficou até a morte, tudo foi obra de S. Rosendo, e havia mesmo quem affirmasse ter visto o sancto revestido do corpo humano e muito atarefado, na occasião em que o rei de Portugal caíu prisioneiro do genro. São pelo menos vinte milagres attestados por um escriptor desses tempos. Penso que não me accusarão de avaro ou de desagradecido os que querem enriquecer á força o thesouro das minhas crenças com a apparição de Ourique. Vinte por um. Indisputavelmente eu sou muito mais rico do que elles em provisão de milagres. De todas essas maravilhas, porém, apesar de subministrarem á credulidade melhores fundamentos que a de Ourique, faço eu tanto caso como desta ultima, pelas considerações que indiquei, aliàs bem escusadas para a comprehensão e litteratura de vossa eminencia. Mas nem foi unicamente o preceito que a mim proprio impusera de não malbaratar o tempo em questões desta ordem, nem essas considerações, que obstaram a que eu respondesse a um escripto, em que o erro, e talvez o despeito, vinham envoltos em fórmas tão corteses, que tocavam a raia de lisonjeiras, e em que a argumentação tomava emfim o aspecto de uma cousa séria. Não, eminentissimo senhor! A refutação sería na verdade facil, decisiva, fulminante; mas ella lançaria uma torpe mancha sobre nomes illustres e caros á igreja portuguesa. Repugnava-me sobretudo esta idéa. Por maiores precauções de que eu me rodeasse, a logica implacavel do publico tiraria as legitimas illações das minhas palavras, e convertê-las-hia em desdouro commum de uma classe que nenhum mal me havia feito. Se hoje a necessidade de repellir a insolencia covarde, como a insolencia o é sempre, me obriga a expôr actos vergonhosos e inqualificaveis, a culpa não m'a lancem. Dous annos de paciencia provam que o faço constrangido por aggressões demasiado graves, não por si, nem por seus auctores, cousas profundamente insignificantes, mas pelo logar onde se commettem, por serem feitas com a intenção de excitar contra mim animadversões immerecidas, por se tentar, emfim, converter atraiçoadamente uma questão, que nem chega a ser historica, em questão religiosa. A gloria do escandalo deixo-a inteira aos que o provocaram. Se vou bater sobre campas, que cobrem cinzas envoltas em vestes sacerdotaes; se perturbo a paz dos mortos para lhes bradar--«_Falsarios!_»--esta mão que se estende para indicar os criminosos, esta voz que se ergue para os condemnar, são minhas, mas protesto a vossa eminencia, que quem as suscitou não foi o meu coração, nem a minha vontade. Ha no soffrimento um ponto que sem deshonra não é licito ultrapassar. Consta-me que o mais recente dos meus reverendos accusadores clamara no excesso do seu _sincero_ zelo pela historieta da apparição, que _melhor fora que eu não houvera falado em tal_. Melhor ainda do que isso me parece teria sido que elle não houvesse feito trasbordar o calix, já demasiado cheio, de uma justa indignação. A affirmativa de que no volume 51 da _Symmitica Lusitana_ se encontra trasladada uma còpia do instrumento da apparição, coeva de Affonso I, É MENTIRA. O texto de S. Bernardo, relativo á mesma apparição, que se encontra inserido no Breviario, no officio das Chagas, É FALSO. Se algum dos reverendos cirzidores sabe latim (é licito duvidar disso com a igreja, que manifestou a sua hesitação a este respeito mandando accentuar as palavras dos livros rituaes com temor das syllabadas) que venha á Bibliotheca Real, e ahi, no volume 51 da Symmitica a paginas 128, lerá ou soletrará as seguintes palavras, escriptas na lingua latina, por baixo do traslado do instrumento da apparição, nota escripta pela mesma letra do copista==_Brandão, Monarchia Lusitana, Parte 3.^a pagina 127. Extrahido de um codice que o auctor viu em Lisboa._==Eis em que consiste o traslado da copia _coeva_. Cenaculo, citando o documento pelo indice, quando podia citá-lo pelo logar competente da collecção, o que lhe era igualmente facil, commetteu uma daquellas levezas que não raro occorrem nos seus escriptos, ou practicou uma _pia fraude_? O bello e nobre caracter do bispo de Béja me faria adoptar sem hesitação o primeiro supposto, se o empenho em que elle entrara de provar a farça de Ourique, cuja vaidade o seu elevado espirito necessariamente havia de sentir, não podesse perturbá-lo a ponto de practicar um acto indigno de quem, como elle, era um homem de letras, um prelado virtuoso, e a todos os respeitos um varão singular. A historia da passagem falsamente attribuida a S. Bernardo, é, porém, materia mais grave, porque nessa vergonhosa historia se acha compromettida a honra e a dignidade moral e litteraria do alto clero português no meiado do seculo passado. Não direi da curia romana, porque nesse ponto não ha já para ella compromettimento possivel: vossa eminencia conhece tão bem e melhor do que eu os seus annaes. A narrativa desse escandalo é em resumo a seguinte: O patriarcha D. Thomás d'Almeida requereu a Bento XIV que concedesse ao clero de Portugal o officio proprio e missa das cinco Chagas, que, por decreto de 4 de julho de 1733, fora concedido a certas freiras de Florença. Accrescentava-se na supplica dirigida ao pontifice que na sexta lição se houvessem de addicionar as seguintes palavras==_Quas lusitanum imperium etc._==que constituem o texto allegado contra mim. Consistindo, porém, a sexta lição daquelle officio n'uma passagem de S. Bernardo, uma vez que não houvesse a devida distincção entre essa passagem e o novo additamento, este se converteria n'um testemunho importante a favor da lenda da apparição, de que provavelmente os homens instruidos começavam a rir-se depois do impulso que aos estudos historicos dera o governo no reinado de D. João V. Accedeu Bento XIV á supplica do prelado português. O decreto de concessão, o officio e a missa expediram-se para Portugal impressos na typographia da camara apostolica. Segundo parece, a impressão foi feita no estio, e o compositor romano, no acto de compor a fatal sexta licção, estava perturbado pela febre da _malaria_. O additamento ficou enxertado nas phrases solemnes do grande abbade de Claraval com tão subtil sutura, que faria honra a um operador de rhinoplastica. Atacado tambem pelos miasmas putridos das lagoas pontinas o revedor da camara apostolica _esqueceu-se_ de emendar o erro. Aquelle _innocente_ engano partiu, emfim, para Portugal. Aqui, n'uma epocha em que ainda os estudos do clero não tinham chegado á decadencia em que hoje os vemos e de certo vossa eminencia lamenta como eu, e em que as cadeiras episcopaes do reino estavam occupadas por muitos homens notaveis por sciencia e virtudes, o antecessor de vossa eminencia que então presidia á metropole de Lisboa _esqueceu-se_ de que essa passagem perfilhada a S. Bernardo tinha um auctor bem moderno, e entre os bispos, entre os theologos do clero secular não houve um só que _advertisse_ no falso testemunho que na sexta licção do novo officio se alevantava ao fundador dos cistercienses. Os seus filhos, os seus proprios monges, calaram-se. Os prelos têm gemido durante um seculo com as reimpressões do breviario, e neste longo periodo nem uma voz, que eu saiba, se ergueu para dizer que em nenhuma edição, em nenhuma codice manuscripto das obras de S. Bernardo se encontra a supposta passagem. «E que admiração?--respondeu-me um malicioso, a quem manifestava em certa occasião o meu espanto á vista deste phenomeno singular.--O clero não lê os padres da igreja: deixou essa tarefa aos seculares. E para que os havia de ler, se lhes é de sobra o Larraga?» Dou a minha palavra a vossa eminencia de que repelli com todas as minhas forças este rude epigramma. Eu sei que ha, conheço, até, sacerdotes cuja instrucção é tão solida como vasta. O tracto de vossa eminencia, durante a epocha em que fomos collegas no parlamento, me fez conhecer um dos mais distinctos entre elles. Infelizmente, esse epigramma, injusto na sua fórma absoluta, não deixa de ser merecido em muitos, talvez no maior numero de casos. Sabe vossa eminencia quem protestou contra essa falsificação audaz, contra essa fingida ignorancia, contra esse torpor inexplicavel ou explicavel de mais? Foi aquella ordem ácerca da qual então se repetiam, e hoje se repetem diariamente graves accusações de immoralidade. Foram os jesuitas, que n'uma edição do novo officio, feita para o proprio uso, separaram com um asterisco o texto de S. Bernardo da invenção moderna. Acaso este procedimento deu origem a um livro, _os Novos Testemunhos_, do celebre e implacavel inimigo dos jesuitas, o padre Pereira, livro que se o não tomarmos como uma longa ironia, deshonra a memoria de uma das mais fortes intelligencias que Portugal tem gerado. Agora fica vossa eminencia habilitado para avaliar se eu procedi com circumspecção guardando silencio ante as refutações que se me dirigiam pela imprensa; se não houve no meu proceder uma dessas abnegações que não são vulgares, em desprezar um triumpho tão facil como decisivo, preferindo ficar como vencido e humilhado aos olhos dos menos instruidos a salvar o meu nome de uma nodoa litteraria e até certo ponto moral. Se, emfim, é justo, se é decente, que membros do clero aggridam de um modo illicito, e profanando a sanctidade dos templos e a sanctidade do seu ministerio, um homem que sacrificou o proprio orgulho para não rasgar o véu de uma fraude dessas, que os hypocritas qualificam de pias, e que eu qualificarei de immoraes. Como Sem e Japhet queria encubrir a falta de pudor de Noé: o sacerdocio obrigou-me emfim a ser como Cham. Fizeram-me voltar a face: contrangeram-me a descerrar os olhos. Practicaram uma boa obra: devem della gloriar-se. E quem é o homem que os prégadores de Portugal offerecem á execração publica, porque não quiz vender a sua alma ao demonio da mentira; porque não quiz deshonrar-se e deshonrar com embustes o seu livro? Que vossa eminencia me consinta fazer aqui esta dolorosa pergunta á minha consciencia; interrogar severamente o meu passado. Tem o clero a combater em mim um inveterado e perigoso inimigo? É o seu tão insolito proceder um impeto de vingança, que o excita a repellir um perseguidor implacavel? Ha quinze annos que trabalho na imprensa, e senão por merito proprio, ao menos por circumstancias, que não importa aqui recordar, muitas das paginas avulsas que tenho deixado após mim na carreira da vida se derramaram por todos os angulos do paiz, penetraram aonde livros e jornaes de mais alto pensar nunca haviam chegado, e talvez nunca depois chegaram. Haverá nessas pobres paginas alguma cousa que possa incitar a colera sacerdotal? Como procedi eu sempre ácerca da igreja e do clero? As idéas do seculo, recalcadas por uma compressão violenta, a que, força é confessá-lo, a maioria do sacerdocio se havia associado, tinham reagido violentamente, e assentavam-se triumphantes sobre as ruinas do passado quando eu entrei no campo da imprensa, no campo das batalhas do espirito. De roda de mim jaziam os fragmentos da sociedade que fora, e no meio delles o clero, disperso, empobrecido, cuberto de affrontas, experimentava as consequencias do predominio de um partido adverso e irritado. A situação da igreja portuguesa nessa epocha, e sobretudo a situação dos regulares, sabemos todos qual era. Foram feridas de que, porventura, ainda mais de uma goteja sangue. Os homens das velhas opiniões politicas, no meio do terror, vergados pelo desalento de uma quéda tremenda, duplicadamente dolorosa pela desesperança, calavam. Nem uma voz amiga se alevantava nesta terra de Portugal a favor da igreja batida pela tempestade. Ainda então esse grupo de mancebos cheios de talento, de inspirações grandiosas e de crença fervente na liberdade humana, e pela liberdade na eterna justiça; essa phalange, no meio da qual todos os dias apparecem novos soldados, e que não se envergonha de Deus nem do seu Christo, não tinha ainda começado a surgir para ser generosa, amplamente generosa, com os adversarios das suas idéas, quando a desventura os sanctifica. Na imprensa liberal, revolucionaria, impia, como quizerem chamar-lhe, eu, só eu, tive por muito tempo palavras de affeição e consolo para a desgraça; só eu tive animo para accusar os homens do meu partido d'espoliadores e d'insensatos; para tentar revocá-los á poesia do christianismo, do eterno alliado da liberdade. A voz que do campo do progresso saudava o templo enlutado e deserto era debil, mas sincera: a mão que se estendia para amparar o sacerdote curvado sob o peso da agonia era bem pouco robusta, mas era leal! Como Yorick guardava a caixa do pobre franciscano entre os symbolos da sua religião de affectos, eu guardo para mim, e só para mim, mais de um papel escripto por mãos trémulas de velho monge, e talvez regado por lagrymas, em que se reconhecia a possibilidade de haver um homem das novas idéas que não fosse absolutamente um malvado. É sobre estas reliquias que eu quero encostar a cabeça para dormir tranquillo o ultimo e longo somno em que todos devemos repousar. Não receiem pois os que me chamam hoje impio e herege, que eu os envergonhe com o testemunho dos que valiam mais do que elles, dos verdadeiros martyres do passado. São cousas queridas e sanctas para mim. Estejam certos de que não as prostituirei jámais. Depois, pouco a pouco, foi-se estabelecendo nos animos uma reacção salutar: começou-se a sentir que o templo e o sacerdote eram importantes elementos de paz, e que podiam ser instrumentos de liberdade. Vieram outros pelejadores, todos mais fortes e déstros, combater na arena onde por tanto tempo eu me tinha achado só. Não foi de certo a minha influencia litteraria que trouxe este resultado. Trouxe-o o progresso da razão humana, a força irresistivel da verdade. Entretanto, parece que, retirando-me do posto que defendera com os limitados recursos que Deus repartira comigo, merecia do clero, por si e pela igreja, um _vale_ de paz. Em logar disso tenho a guerra, acerba, covarde, atraiçoada. Porque? Porque trouxe para o campo da historia o mesmo amor da verdade singela, que tinha mostrado n'uma das mais graves questões sociaes. Não me arrependo do que fiz. Cumpri um dever que me impunham Deos e a minha consciencia. Não espero arrepender-me do que faço. Cumpro uma obrigação litteraria, e estou certo de que bem mereço da terra em que nasci escrevendo a verdade. Sabe vossa eminencia sobre que eu hesito? É sobre a legitimidade absoluta das minhas queixas; é sobre se, no que supponho um dever d'honra, não haverá um pouco da obcecação da vaidade. Quando Roma, que parece ter jurado nas aras de Jupiter Stator o exterminio do catholicismo, crucifica no seu _Index_ nomes como os de Chateaubriand e Lamartine; nomes como os de Gioberti e Ventura, terei eu, verme que passo á sombra do meu nada, direito de offender-me porque de pulpitos obscuros, n'um canto obscuro da Europa, alguns clerigos maus ou ignorantes lançam sobre mim o vilipendio das suas palavras? Quando a igreja, envolvendo a fronte no véu da sua immensa tristeza, e sentindo humedecer-lhe os pés o sangue humano vertido pelo ferro sacerdotal, contempla atterrada o futuro, ha dor de individuos a que seja licito um brado? Cerrarei aqui o discurso, porque temo ir mais longe do que eu quizera. Permitta-me vossa eminencia que conclua fazendo um voto, ao qual sei que vossa eminencia se associa, bem como os outros prelados de Portugal:--Oxalá venha em breve o dia em que o clero d'este paiz possa receber uma educação digna do seu elevado destino, e conhecer, por estudos severos e bem dirigidos, que o ser christão não é ser nem hypocrita nem fanatico. II CONSIDERAÇÕES PACIFICAS SOBRE O OPÚSCULO EU E O CLERO AO REDACTOR DA NAÇÃO (_Julho, 1850_) A necessidade de reprimir o abuso do ministerio do pulpito que contra mim se estava practicando obrigou-me a dirigir a sua eminencia o Patriarcha de Lisboa uma carta, na qual, sem faltar á consideração devida ao prelado da diocese, nem aos outros bispos do reino, entendi que cumpria usar de uma linguagem severa, mas justa, para com a maioria do clero. Habituado a patentear livre e singelamente as minha opiniões ácerca dos homens e das cousas, não soube nem quiz buscar rodeios, ou adoçar as phrases para me exprimir de modo menos aspero n'uma questão que me respeitava pessoalmente, e em que até certo ponto estava compromettido, não só o meu caracter litterario, mas tambem, o que mais importa, o meu caracter moral. Toda a imprensa periodica, politica e não politica, sem distincção de partidos, foi unanime em condemnar actos que me obrigavam a dar um passo a que bem desejaria me houvessem poupado. Como os outros jornaes, a _Nação_ reprovou as aggressões inauditas perpetradas por uma parte do clero, e toleradas por outra. O procedimento de v.. para comigo foi nessa conjunctura tanto mais nobre, quanto é certo que a indole do seu jornal deveria talvez levá-lo a rebater a opinião de diversas publicações periodicas, se o sentimento da justiça não fosse mais forte no animo de v.. do que outras quaesquer considerações. É assim que o sacerdocio da imprensa cumpre a sua grave missão, e remedeia do modo possivel a decadencia do sacerdocio religioso. Continuando, porém, a tractar de uma questão, que, embora interessasse um simples e quasi obscuro individuo, era demasiado importante pelo alcance e significação dos factos que a haviam suscitado, v.. teve a bondade de dirigir-me algumas observações, que me pareceu exigirem de mim explicações como christão e como homem de letras. Não as dei logo, porque não tardou a annunciar-se publicamente uma refutação da minha carta, em desaggravo do clero. Falava-se n'um milagre de sciencia e de raciocinio, diante do qual eu teria de fugir desalentado como os sarracenos de Ourique diante do da apparição. Citavam-se, até, nomes: falava-se em summidades da igreja e da eschola. Como entendo que não é bom fugir sem ver de que, esperei que rebentasse o temporal. Se fosse por elle submergido, de que aproveitariam as explicações dadas a v..? Se, porém, podesse salvar o meu fragil baixel, pediria misericordia aos vencedores, e daria ao mesmo tempo a v.. razão de mim. Fiquei, portanto, como o sentenciado no oratorio, com o ouvido attento ao som que devia annunciar a hora do supplicio. Esta hora, todavia, segundo creio, passou. A dizer a verdade, eu alimentava esperanças de salvação com um argumento que fazia a mim mesmo. Não é provavel, dizia comigo, que um membro do clero illustrado e honesto queira vir combater-me no terreno desigual e escorregadio em que a imprudencia collocou o sacerdocio, e o vulgo clerical tem impedimento dirimente para entrar neste empenho. Para escrever é preciso saber ler e ter lido; saber reflectir, e ter reflectido muito. Por este lado podia eu estar tranquillo. É certo que o annuncio feito nos jornaes não foi materialmente vão. Appareceu um folheto, que parece ter por objecto refutar-me. Dizem-me que é de um mancebo principiante. Revela, sem dúvida, algum talento no auctor. Com o tempo, e estudando, este póde vir a ser um escriptor soffrivel, e habilitar-se emfim, para tractar d'estas ou d'outras questões com honra sua e proveito do paiz. Non ragioniam di lui, ma guarda, e passa. É pois tempo de me explicar com v.. e fa-lo-hei do modo mais breve que me for possivel. Se alguma phrase menos comedida me fugir da penna, declaro desde já que a retiro. Dirigindo-me a um escriptor como v.., tão urbano nas proprias censuras que me faz, embora sobre tão melindrosa materia como o são as cousas da fé, espero que v.. não veja por caso algum nas minhas palavras a menor intenção offensiva. Tres censuras irroga v.. ao conteúdo da minha carta; a primeira contra a antithese contida no titulo do opusculo _Eu e o clero_: a segunda contra as expressões de _intelligencias vastas e energicas, mas corruptas, violentas e cubiçosas_, de que me servi para qualificar alguns papas: a terceira contra a phrase, _Roma que parece ter jurado nas aras de Jupiter Stator o exterminio do catholicismo_, e contra os terrores que attribuo á igreja ácerca do futuro. Considerarei em especial cada uma dessas tres censuras. Diz v.. que me era licito collocar-me em antagonismo com um ou outro clerigo, porém não com o clero em geral, por honra e credito meu, que nada podia ganhar em lucta tão desigual, e que, a existir, seria a minha condemnação. Antes de tudo é necessario observar duas cousas: 1.^a, que o antagonismo não o creei eu: resultou de factos practicados pelo clero, que tolerei com paciencia durante annos, e que toleraria talvez sempre em silencio, se não receiasse que no progresso da aggressão chegassem a levantar-me um pulpito diante da porta, para d'ahi me fazerem um sermão sobre a sanctidade dos papas da idade média, ou sobre os milagres referidos por S. Bernardo: 2.^a, que é pelo opusculo e não pelo seu titulo, que se há de avaliar até onde esse antagonismo vai, e se elle é legitimo. Não apparece uma unica passagem da minha carta em que eu me refira com phrases hostis a _todo_ o clero português. Os homens que ha no meio delle illustrados e virtuosos, respeito-os; respeito-os duplicadamente pela sua illustração e pelas suas virtudes; pelo seu caracter litterario, e pelo seu caracter sacerdotal. Esses não sobem aos pulpitos a dizer despropositos; não me querem mal, nem a mim nem aos meus pobres escriptos. Ao que eu me contrapús foi ás turbas tonsuradas; foi á maioria material e numerica; minoria nos dominios da intellectualidade, das idéas, e dos puros e nobres affectos. Faria uma offensa gratuita; practicaria uma brutalidade indesculpavel, estaria em contradicção comigo mesmo, com as minhas opiniões, se assim, sem motivo, sem provocação, tivesse o proposito de maltractar aquell'outra parte do clero. É esta a idéa que ha de resultar da leitura da minha carta para todos os animos desprevenidos; para v.. mesmo, se tiver bastante paciencia para a reler. Quanto a esses de quem me queixo, não sou eu homem que esconda as proprias convicções. Na minha vida litteraria tenho dado mais de um documento de que costumo ser sincero. Estou persuadido de que a maioria do nosso clero é tal como eu a qualifiquei, e se não fosse a natural repugnancia a despedaçar um cadaver, daria aqui as razões da minha persuasão. Em todo o caso, acceito inteira a responsabilidade della: não tergiverso, não me arrependo. Tenho dicto e escripto muitas verdades, senão mais deploraveis, por certo mais perigosas para mim, sem que o meu somno deixasse de ser profundo, como o é habitualmente. Postas as cousas nestes termos, que são os exactos, não me é possivel comprehender a affirmativa de v.. de que o meu credito e honra padeceriam pelo antagonismo com a maioria do clero, _nessa lucta desigual, que envolveria a minha condemnação_. Se v.. viu naquella fatal antithese um peccado de orgulho, talvez o seja; mas eu vi nella apenas um acto de humildade. Pois, em consciencia, eu não valerei mais, litteraria e moralmente, do que um clerigo mau ou insipiente? Mas cem, mas mil, mas dez mil clerigos máus ou insipientes, ainda que os fundam e os acrisolem, chegarão, acaso, a produzir o equivalente de um homem de alguma intelligencia e de alguma honestidade? Não. O resultado de todas essas operações será sempre, a meu ver, um _substratum_ de parvoice ou de corrupção. Peccado de soberba não creio, portanto, tê-lo commettido. Por este lado mal posso ser condemnado. Referir-se-hia, porém, v.. ao perigo litterario? Tambem não póde ser. É v.. assaz instruido para sentir que por esse lado a lucta me dá tanto cuidado como daria a v.. se estivesse no meu logar. É o perigo religioso? A idéa da condemnação antes de contestada a lide, e envolvida na proposição da causa, torna talvez plausivel esta interpretação. Nessa hypothese, v.. não teria advertido n'um facto indubitavel. A maioria do clero português não é a maioria do clero catholico: a maioria do clero catholico não constitue por si a igreja de Deus. Bem infeliz seria eu se me visse em opposição com esta; mas confio em que a Providencia me livrará de cair nesse abysmo, não só agora, mas sempre. Todavia a minha linguagem severa, embora justa e legitima, será condemnavel, senão pela substancia, ao menos pelos accidentes? Será condemnavel porque vai ferir duramente um grande numero de sacerdotes, de homens, infelizmente, ungidos do Senhor? Que v.. me consinta invocar em meu auxilio um exemplo acima de toda a excepção. É de um padre da igreja, a cujas obras o nosso clero foi tão affeiçoado, que até lh'as quiz augmentar, com grande gloria do sancto e proveito destes reinos. Alludo a S. Bernardo. As phrases da minha carta são de suprema doçura comparadas com as que o celebre cluniacence empregava para qualificar a corrupção, não do clero de um paiz, não da maioria desse clero, mas em geral do sacerdocio do seu tempo. «_Manou a iniquidade_--dizia S. Bernardo--_dos anciãos, dos juizes, dos teus vigarios, oh Deus; daquelles que parecem governar o teu povo! Já não é licito dizer_--_tal o povo, tal o sacerdocio; porque este é peior. Oh meu Deus, meu Deus! Os teus maiores perseguidores são os que mais ambicionam a primazia, e exercem na igreja o mando supremo_[1]». E, como se estas acres expressões não bastassem, o terrivel benedictino desfecha, n'uma carta dirigida, não a algum prelado metropolitano, mas ao proprio Innocencio II, na seguinte diatribe: _A insolencia do clero_, a qual nasce da indulgencia dos bispos, _turba o mundo e afflige a igreja. Entregam os bispos as cousas sanctas_ a cães, _e as pedras preciosas_ a porcos, _e elles em paga mettem-nas debaixo dos pés. Assim o quizeram, assim o tenham_[2]». Se eu me servisse de semelhante linguagem, imagine v.. que matinada se alevantaria contra mim! Dir-me-ha v.. que S. Bernardo foi um sancto padre da igreja, e eu não passo de um peccador e obscuro christão? Assim é. Por isso o segui de longe, _non passibus æquis_. Comtudo, v.. não deixará de advertir em que, quando elle escrevia essas phrases violentas, era um pobre monge, humilde, simples, sem pretensões orgulhosas, sem presciencia de que tinha de ser um sancto e um luminar da igreja. E que lhe importava? O espectaculo do procedimento do clero arrancou da sua bôca esses brados d'indignação, como loucas provocações arrancaram da minha penna palavras muito menos violentas. Já agora consinta-me v.. que cite ainda um veneravel prelado português quasi do nosso tempo, a quem tambem tive occasião de alludir na minha carta; que recorde as palavras geraes de D. Fr. Caetano Brandão ácerca do clero português no principio deste seculo. O metropolita explicava n'uma carta a certo ministro d'estado quem era que fazia recair a desconsideração sobre o poder pontificio: «_São aquelles_--dizia o arcebispo de Braga--_que á força de supplicas importunas, de respeitos humanos, e outros motivos_ ainda mais vergonhosos, _costumam extorquir da curia romana provisões beneficiaes_, que mais parecem titulos de contractos de predios rusticos, do que de beneficios ecclesiasticos; _provisões a favor das quaes tem infestado as parochias e córos_ (collegiadas e cabidos) de todo o reino _uma tropa confusa de_ sujeitos indignos, etc.[3]». Que se leia inteira a passagem impressa daquella carta, e ver-se-ha se foi o arcebispo, se eu, quem usou de mais desabrida linguagem. Apesar disso, suas reverencias hão de tolerar-me a crença de que não estão no inferno nem a alma de D. Fr. Caetano Brandão, nem a de S. Bernardo. Ainda algumas palavras sobre o antagonismo, em que de nenhum modo v.. me quer ver collocado, em relação á maioria do clero. Foram apenas alguns que me provocaram do pulpito, e eu chamo á autoria o grande numero. É verdade. Não sei com certeza senão de alguns factos de aggressão, mas a noticia de parte d'esses factos obtive-a casualmente: alguns constaram-me apenas, porque um jornal a elles alludiu de passagem, dizendo que se practicavam por diversos logares de Entre-Douro e Minho. É acaso provavel que se não repetissem por outras dioceses? Em Lisboa, onde eu resido, onde os sacerdotes podem ter mais illustração, onde, até, o fanatismo deve ser mais raro, porque a propria fé é mais tibia, onde, emfim, os prégadores mais devem receiar que o seu auditorio se ria delles, houve dous exemplos. Não me será licito inferir que, não tendo eu uma policia ás minhas ordens, ignoro muitos successos analogos? Depois, houve, á vista desses factos repetidos, não digo punição de semelhante abuso do ministerio sagrado, o que não peço, o que até me contristaria, porque me lembro das palavras de Christo «_Perdoa-lhes Pae, que não sabem o que fazem_, mas a minima providencia para impedir a renovação de taes escandalos? Para que servem os vigarios da vara, os arcediagos, os representantes ou delegados do poder episcopal? Como informam os respectivos prelados do que se passa entre o clero diocesano? Não tenho eu direito de suppôr que elles tambem entendem que a sanctidade dos papas da idade média ou o apparecimento de Ourique são partes integrantes da crença catholica, e que se trepassem ao pulpito, e lhes viesse a talho, me chamariam do mesmo modo impio ou herege? Se não estão de accordo com os prégadores, como se esquecem de que os padres de Trento prohibiram aos bispos que consentissem aos oradores sagrados _divulgar ou tractar factos incertos, ou que tenham caracteres de falsidades_[4], e de que os do concilio 1.^o de Colonia ordenam aos mesmos oradores que _não falem imprudentemente de milagres, limitando-se aos que refere a Biblia, ou aos que forem narrados por escriptores de peso, estribados em solidos fundamentos historicos_[5]? Como quer pois v.. que eu não increpe o maior numero e que não o supponha alistado contra mim nesta vergonhosa cruzada d'ignorancia? Passando ao segundo capitulo de accusação, sinto verdadeira magoa em ser constrangido a dizer que v.. leu menos attentamente o que escrevi ácerca dos papas na minha carta ao eminentissimo senhor Cardeal Patriarcha. Qualifiquei ahi de intelligencias vastas, energicas, mas corruptas, violentas e cubiçosas, alguns delles que se chamaram Gregorio, Innocencio ou Honorio, e v.. reprehende-me por classificar como taes Gregorio VII e Innocencio III!? Onde me refiro eu a estes dous papas no meu opusculo? Na epocha abrangida pelo que se acha publicado da Historia Portugal houve diversos pontifices desses nomes. A cada um delles fiz, creio eu, justiça, e Gregorio VII foi aquelle em que menos falei, porque viveu antes de nascer a monarchia. É singular como v.. pôde perceber que, entre tantos, alludi a esses dous em particular! Não teria eu direito de dizer, que uma voz da propria consciencia trahiu e tornou van a benevolencia para com elles manifestada nas palavras de v..? O que me parece indubitavel é que alguma convicção historica preoccupava o espirito de v.. quando nas minhas expressões vagas e geraes viu um ataque directo e especial á memoria daquelles homens extraordinarios, cujos meritos não neguei, nem tenho empenho em negar. Entretanto não pense v.. que com isto pretendo lançar fóra de mim a responsabilidade de julgar severamente Hildebrando ou Innocencio III. Não tenho a minima dúvida em lhes applicar as designações de intelligencias violentas e cubiçosas, como não a tenho em chamar corruptos a outros papas, como, por exemplo, a Innocencio IV. É verdade que v.. cobre Hildebrando com a egide da canonisação, e Innocencio III com a da sua sciencia e litteratura. Mas nem vejo que a sciencia e litteratura sejam synonimos de virtude, nem creio que uma canonisação constitua dogma de fé, e obste á liberdade do historiador para avaliar como entender os caracteres historicos. V.. sabe perfeitamente que, fundando-se as canonisações em provas humanas, e não em factos revelados, as decisões pontificias a tal respeito são sempre falliveis, o que bem se manifesta da oração que ainda no seculo XIV os papas faziam na solemnidade das canonisações, pedindo a Deus permittisse que não se houvessem enganado. Esta doutrina é corrente, e v.. não a ignora, nem poderia ignorá-la[6]. Recorda-me v.. que os escriptores protestantes fazem a estes dous pontifices a justiça que merecem. Tambem eu a fiz, ao menos como a entendi, a elles e aos seus successores, e sobretudo ao papado, em mais de um logar do meu livro. Ninguem admira mais do que eu os progressos que a civilisação lhes deve. Dos historiadores protestantes modernos não conheço nenhum mais celebre, dos que exaltam Gregorio VII, do que o professor Leo. Mas, para isso, elle proprio sentiu a necessidade de se valer exclusivamente da idéa em que se resume a historia do progresso humano. Esta idéa é a _lucta do espirito com a sua manifestação, com a fórma, com a materia; o desenvolvimento do raciocinio predominando no meio da força do acaso_[7]. Elle vê-a representada, incarnada, digamos assim, em Gregorio VII e nos seus immediatos successores, na indole e tendencias desses individuos; eu vejo-a no papado, na indole da instituição. É inquestionavel que nenhuns pontifices levaram mais longe a manifestação da idéa, e em philosophia historica os defeitos desses papas desapparecem, quando se considera a maneira _vasta e energica_ por que elles desempenharam a missão providencial do papado n'aquella epocha. Todavia, na apreciação _moral_ dos seus actos como individuos, é por outros principios que devemos regular-nos. Tanto o professor Leo conhecia que Gregorio VII ficava mal collocado a essa luz, que a excluiu da historia «_No mundo dos phenomenos_--diz elle--_a luz da verdade não se derrama sobre uma face unica, mas reparte-se por todas. Não são os phenomenos individualmente que constituem a verdade, mas sim o complexo delles_.» Para avaliar o pontifice como representante e typo da instituição, a regra é exacta; para o avaliar como homem, não; porque a _intenção_, a causa moral dos actos, é necessaria para a apreciação abstracta de um caracter. A suberba, a ambição e até a cubiça de Gregorio VII estão pintadas nos factos a que accidentalmente me referi n'um logar do meu livro[8]. Destruam, se é possivel, documentos irrefragaveis. Queremos, porém, saber, por testemunho insuspeito, qual era essa intenção moral, qual o caracter de Hildebrando? Ouçamos um seu contemporaneo, um sancto padre. Tenho gosto especial em citar nestas cousas os sanctos padres. São respeitaveis auctoridades! «_De resto_--diz um delles--_rogo humildemente ao meu S. Satanaz que não se enfureça tanto comigo, e que a sua veneranda suberba não me fustigue com tão longa flagellação_[9]». De quem se escrevia isto? Do cardeal Hildebrando. Quem o escrevia? Um pobre velho: S. Pedro Damião n'uma carta dirigida a Alexandre II e ao proprio cardeal. Verdade é que não sabía quão grande sancto havia de vir a ser o seu _S. Satanaz_. Nessas palavras amargas do veneravel monge está explicada a actividade irresistivel com que Gregorio VII proseguiu na lucta gigante entre o espirito e a materia. Superior intellectualmente aos outros homens, a ambição de os dominar a todos fê-lo até negar a realeza, não só como facto, mas tambem como principio. Houve, ha hoje um democrata mais virulento do que Hildebrando? Não o creio. V.. conhece por certo uma passagem singular das suas cartas. «Que!--diz elle--uma dignidade inventada pelos homens do seculo (a dos principes) não estará sujeita á que Deus estabeleceu para gloria propria? Quem não sabe que os reis, que os chefes procedem dos principes pagãos, os quaes por instigações do diabo, _que é o verdadeiro principe do mundo_, movidos por cega paixão e levados por intoleravel presumpção, _usurparam o poder supremo sobre os seus iguaes_, pondo por obra, com esse intuito, a rapina, a perfidia, o homicidio, em summa quasi todos os crimes?[10]» Não lhe parece a v.. que se hoje Hildebrando resuscitasse, o tinhamos presidente da republica democratica e social? Veja v.. o caso que o sancto varão fazia do famoso texto biblico: _Per me reges regnant._ Dir-se-hia que tinha lido: _Per diabolum reges regnant._ Podemos nós os monarchistas (embora o sejamos por differente feitio) acceitar as idéas do celebre S. Satanaz? Não ha nessas idéas um orgulho, uma intolerancia para com os poderes da terra, que não comprehenderiamos, talvez, hoje, se não tivesse vivido no nosso seculo uma intelligencia igualmente _vasta e energica_, chamada Napoleão Bonaparte? Vamos ás ultimas censuras de v.. em que me parece não ter mais razão do que nas primeiras. Diz v.. que Roma, _significando o poder pontificio_, não póde jurar o exterminio do catholicismo. Que!?--Pela palavra Roma não se póde entender senão o poder pontificio, não se póde significar senão o papa? V.. ha de permittir-me que eu recorra ainda uma vez a S. Bernardo para me salvar da condemnação eminente. Nesta contenda, não sei porque, o meu espirito recorda-se a cada momento daquelle illustre padre da igreja. Falando das horriveis desordens que produziam as appellações para o papa, e alludindo a dous bispos allemães carregados de crimes, que, tendo appellado para Roma e levando comsigo bastante dinheiro, haviam sido repellidos nas suas pretensões e offertas, S. Bernardo exclama: «_Grande novidade! Quando até o dia de hoje rejeitou Roma dinheiro?_[11]» Note-se que o sancto vivia no seculo immediato ao governo de Hildebrando e que S. Bernardo dirigia o discurso ao papa Eugenio III, que frequentemente louva, e a quem, por certo, não pretendia affrontar. Que significa pois a palavra _Roma_ na bôca do grande abbade de Claraval? A curia romana; essa curia, onde, segundo a opinião do severo cluniacense, «_era mais facil entrar honesto, do que tornar-se lá homem de bem_[12]»; essa curia que me obrigaria a encher paginas e paginas de citações se quizesse colligir as passagens relativas ao seu desprezo por todas as leis divinas e humanas, quando se tractava de receber ouro, passagens que se encontram ás dezenas nos escriptores mais respeitaveis, e onde se memoram, até, versos das cantigas populares contra a cubiça da curia, o que prova ter-se tornado proverbial a corrupção de Roma[13]. Mas concedamos que, ultrapassando além da curia romana, eu tivesse em mente o pontifice. Como homem, como principe temporal, os seus actos publicos são do dominio da imprensa; se esses actos pelos seus effeitos moraes e politicos poderem trazer graves turbações, dias de amargura á igreja, não é licito a todo e qualquer christão deplorar essas consequencias, reprehender esses actos? Quando eu digo que Roma _parece_ ter jurado o exterminio do catholicismo, accuso o papa, a curia, alguem de ter a intenção directa de o destruir? Ou eu não sei português, ou empreguei uma phrase trivial, cujo alcance todos comprehendem. Que se diz do valetudinario que despreza os conselhos dos medicos? _Parece que se quer matar!_ E quando dizemos isto passa-nos acaso pelo espirito a idéa de attribuir a esse individuo a intenção directa do suicidio? Ou será que as expressões simples, as phrases innocentes dos outros homens se convertem em peste e veneno, quando saem da bôca do feroz herege que ousou duvidar do testemunho posthumo, e bem posthumo, de S. Bernardo ácerca do milagre de Ourique? Em que tempos estamos nós? Para onde caminha a reacção religiosa? Que!? Eu não poderia apreciar como entendesse o procedimento politico de um papa, em relação aos futuros destinos da igreja, e S. Thomás de Cantuaria poderia sem ser um reprobo lançar em rosto a Alexandre III as gravissimas accusações de o trahir, e de querer conduzi-lo á morte[14]? Poderia S. Thomás de Aquino, o mais profundo philosopho do seculo XIII, ao observar-lhe Innocencio IV que tinha passado o tempo em que S. Pedro dizia «_não possuo nem ouro nem prata_»--responder-lhe «_que tambem era passado o tempo em que S. Pedro dizia ao paralitico--levanta-te e anda_[15]» epigramma pungente atirado ás faces de um papa, cuja cubiça não conheceu limites; poderia, digo, S. Thomás ser um doutor da igreja, depois deste attentado? Podia sequer ser papa o successor do mesmo Innocencio, Alexandre IV, que lhe chamava o _vendilhão de igrejas_[16]? Riscae do catalogo dos bemaventurados S. Antonino de Florença, que não duvidou de pintar com as mais negras côres os vicios hediondos de Clemente V[17]. Não chameis o ultimo padre da igreja a Bossuet, porque taxou de velhaco o papa Eugenio IV[18]. Rejeitae do gremio catholico o erudito e pio Fleury, porque escreveu o 4.^o discurso sobre a historia Ecclesiastica. Para serdes logicos despovoae a igreja de sanctos, de doutores, de homens illustres, se credes que, dentro della, eu, que não sou nenhuma dessas cousas, não tenho direito de aferir pelos principios eternos da moral, da justiça e da caridade evangelica as acções dos papas sem renegar da igreja. Não disputarei com v.. sobre os successos de Roma nos ultimos tempos. Cada qual póde vê-los á luz que julgar verdadeira. Ao que, porém, eu tenho jus é a averiguar se é exacta a proposição absoluta de v.., de que o futuro da igreja é muito sabido, claro e indisputavel _para os catholicos_. Por este modo v.. parece excluir-me do gremio do catholicismo, porque hesito sobre o seu futuro. Advertiu acaso v.. em que a proposição assim absolutamente enunciada, conduziria ao impossivel? O que é certo, sabido e claro para a igreja, e para cada um dos seus membros, é que ella será perpetua, indestructivel. Mas por quaes phases tem de passar; se a esperam dias serenos, se dias de tribulação; se acres resentimentos, imprudentemente preparados, virão ou não como a procella despir a folhagem, lascar os troncos da arvore eterna do christianismo, eis o que nem a igreja, nem eu, nem v.. sabemos. Está acaso v.., que eu creio profundamente catholico, habilitado para me dizer de um modo _certo e claro_, se a idea revolucionaria da Italia apodreceu para sempre encharcada no sangue que as balas e bayonetas francesas e austriacas derramaram á voz da curia romana? Se a politica das masmorras, dos desterros, da compressão inexoravel, preferida á politica evangelica da tolerancia, do perdão das injurias, da caridade sem limites, poderá varrer para sempre dos animos italianos o odio do dominio estrangeiro (quer directo quer indirecto) e o amor da liberdade politica? Esse odio e esse amor póde v.. julgá-los legitimos ou illegitimos: não disputarei sobre isso. Mas que elles não existam; que elles não possam triumphar algum dia, eis o que v.., por certo, não affirmará com a mão na consciencia. E nessa hypothese, quem saberá dizer até onde chegarão os excessos da colera e da vingança, azedadas pelo padecer, e até certo ponto legitimadas por elle, se legitimidade se póde dar em taes sentimentos? Parece-me que ao homem catholico é licito imaginar, sem que por isso vacille a sua fé ácerca da perpetuidade do catholicismo, que a igreja se entristece, ou deve entristecer, aterrada pelo porvir; é licito suppôr que as lagrymas dos seus futuros martyres vem já de antemão cair-lhe ardentes sobre o seio materno. Se attribuir ao gremio dos fiéis, composto de homens, os affectos de dor e amargura desdiz de alguma cousa, não é, de certo, das tradições evangelicas, nem das tradições dos antigos padres. Já no seculo IV S. Hilario de Poitiers observava quão frequente era pintar-nos o evangelho como triste e afflicto o Filho de Deus[19]; e S. Gregorio Magno não duvidava de dizer: «_A sancta igreja, emquanto vive esta vida de corrupção, não cessa de chorar os damnos das vicissitudes por que passa_»: e n'outra parte: «_A dor esmaga a igreja quando vê os perversos prosperarem na propria maldade_»[20]. É dessas vicissitudes a que allude o sancto pontifice que eu falo; é a essas vicissitudes, demasiado provaveis, que os erros dos homens, as paixões anti-christans do sacerdocio triumphante ajunctam, nas minhas previsões, um caracter de terribilidade. Tenho dado razão de mim. Diz v.. que poderia accrescentar mais. Sinto que o limitado espaço de uma folha periodica, ou outro qualquer motivo, o inhibisse de assim o practicar. Gósto de ser advertido dos erros em que caio, quando é a sciencia e o talento quem se incumbe deste mister, e certifico a v.. de que facilmente me retractaria, se nas suas ulteriores observações v.. me convencesse de que eu errava. Á ignorancia presumida, ou á insolencia estupida, é que não costumo fazer a honra de responder. Quanto a esta questão, que não suscitei, e que até deploro, ella terminou para mim. Que os hypocritas façam visagens beatas contra a minha impiedade; que me proclamem herege ou o que elles quizerem, cousas são essas com que nenhum homem de juizo se afflige, porque as assaduras inquisitoriaes, mercê de Deus, acabaram para sempre. A raça dos escribas e phariseus, o peior flagello que Christo encontrou na terra, e que elle mais cordealmente amaldiçoou, é immortal e immutavel; mas deixá-la viver. Quem diz ao sapo:--«não sejas asqueroso?»--Quem diz á vibora:--«não sejas peçonhenta?»--Babem e mordam; é o seu destino, coitados! O que não tolerarei é que me chamem de novo, a mim ou aos meus escriptos, a figurarmos no meio das parvoices sacrilegas com que se deshonram os pulpitos. Que os prelados façam ou não o seu dever a este respeito, pouco me importa. Estejam certos de que não será a suas excellencias que pedirei desaggravo. III SOLEMNIA VERBA AO SR. A. L. MAGESSI TAVARES (_Outubro, 1850_) Porque virá tempo em que muitos homens não soffrerão a san doutrina; mas..... accumularão para si mestres conforme aos seus desejos: E assim apartarão os ouvidos da verdade e os applicarão ás fabulas. _S. Paulo, Epistola II a Thimoteo c. 4. v. 3, 4._ Permitta-me v.. que, sem existirem entre nós outras relações que não sejam aquellas que fortuitamente nascem entre os homens de letras quando se encontram no campo da imprensa, eu dirija, por essa mesma imprensa, uma carta a v.. Esta carta será um pouco extensa. Será talvez seguida de outras. Não o sei ainda. N'uma questão litteraria, a meu ver de bem pouco valor, que o procedimento de alguns individuos da ordem sacerdotal converteu n'uma contenda que não sei até onde chegará, v.. fez-me a honra de ser meu adversario, escrevendo dous opusculos em que combate as minhas opiniões n'um, ou para melhor dizer, em alguns pontos d'historia patria. Naquelles dous opusculos, escriptos em diversas epochas, v.. se houve sempre para comigo com a nobreza de um cavalheiro, e com a cortesia de um espirito cultivado. Póde haver ahi uma ou outra expressão mais viva, que feriria certas vaidades demasiado mimosas; se, porém, as ha, não me feriram a mim, endurecido já nestes recontros, e que tambem não sou dos menos sujeitos a ceder ás vezes aos impulsos da vivacidade. No meio dos que me tem combatido, v.. representa a meus olhos a parte san, os homens sinceros do gremio, da eschola, do partido (como quizerem chamar-lhe, porque os nomes importam pouco) a que v.. pertence. Representa, digo, essa parte, postoque, e ainda bem que assim é, não a resuma. Igual testemunho devo deixar aqui, se os meus escriptos tem de viver mais algum dia que eu, ácerca dos Redactores do jornal _A Nação_. Meus adversarios tambem, não recebi delles na impugnação das minhas doutrinas, senão provas de consideração e de urbanidade. Consinta, pois, v.. que, alargando a orbita em que quiz encerrar-se no seu ultimo e recente opusculo, eu fale, dirigindo-me a v.., com esses homens probos e leaes que estimo e respeito, embora julgue erroneas, deploraveis até, as suas opiniões n'uma contenda, que, não por minha culpa, vai tomando na imprensa portuguesa uma direcção fatal. Deus queira que os imprudentes que lhe deram origem não tenham de chorar a sua loucura com lagrymas amargas! Sería bem triste que essa porção de compatricios meus em cujos corações o amor do passado é um sentimento puro, postoque, a meu ver, ás vezes se manifeste de modo pouco reflectido, me cressem traidor á sancta causa da patria. Se os erros de nossos paes e os erros de todos nós os que vivemos, erros que nos trouxeram a uma situação que não posso, que não quero definir aqui, fizerem algum dia com que o velho Portugal, ameaçado na sua independencia e nacionalidade, brade por todos os seus filhos para um esforço supremo, para o salvarem ou para morrerem, espero em Deus, e depois de Deus na minha consciencia, que, sem crer no milagre de Ourique, não serei o ultimo a acceitar esse terrivel convite. O passado! Quem mais o amou do que eu nesta terra? Quem volveu nunca os olhos com mais saudade para as suas tradições? Mas as tradições de que tenho saudade; mas o passado que eu amo, não o são essas lendas absurdas (desculpe v.. o epitheto, que espero justificar) inventadas por interesses mundanos, dos quaes, por mais graves que sejam, nem a philosophia nem o christianismo consentem se faça o céu instrumento. Nos tempos que foram o que me sorri, não só como saudade, mas (porque não direi agora o que hei-de dizer mais largamente um dia?) tambem como esperança, são as tradições dessa liberdade primitiva, postoque incompleta, filha primogenita do evangelho, que elle gerara para mãe, para abrigo das sociedades da Peninsula; dessa liberdade, rude e turbulenta como uma creança educada á lei da natureza, mas como ella robusta e viçosa; dessa liberdade que se estribava nos habitos, que resultava de instituições positivas e exequiveis, e não de instituições copiadas quasi ao acaso da primeira theoria que tivesse transposto os Pyreneus; dessa liberdade que tornava a monarchia uma cousa sancta, necessaria, indestructivel, e que a monarchia, por desgraça sua e nossa, foi lentamente esmagando debaixo do seu throno, formado dos infolio, politicamente fataes, do Digesto, do Codigo e das Glossas e Commentarios das escholas d'Italia; dessa liberdade, que, desenvolvida e organisada logicamente com a sua origem, nos teria poupado talvez á gloria immensa, mas para nós mais que esteril, de nos convertermos em victimas da civilisação da Europa, de revelar o Oriente á sua cubiça, para logo virmos assentar-nos extenuados n'um occaso de tres seculos; dessa liberdade que nos teria salvado por certo de um longo estrebuxar em esforços impotentes de emancipação, que tomámos como licções d'extranhos, e que era mais velha para nós do que o era para elles. Eis-aqui a maravilha, melhor que milagres imaginarios, na qual não só creio, mas tambem espero. Peço a v.. e aos animos honestos que pensam como v.. se persuadam de que o homem que não admitte certas narrativas infundadas, nem por isso deixa de ser bom português, e que, se não está excessivamente inclinado a adorar o Deus de Ourique, nem por isso deixa de crer em Deus. Com elles, com v.. a discussão grave, pausada, modesta, é possivel; é mais, é uma necessidade do espirito, em que este se sente viver da vida, a elle tão congenita, do raciocinio. Mas como replicar seriamente a homens, não só ignorantes e ineptos, do que elles não tem culpa, mas que falsificam, truncam, omittem as palavras do adversario, que lhe alteram as ideas, que, mettidos no charco mais fetido dos becos da Alfama ou do Bairro Alto, atíram ás faces do _impio_ que passa quanto lodo lhes cabe nas mãos, contrahidas e convulsas pela colera? A taes desgraçados que se póde fazer, senão dar-lhes a triste celebridade dos Cotins ou dos freis Gerundios, e enviá-los á geração futura, envolvidos no sudario do escarneo, para lhe distrahir os tedios? Se as expressões, talvez severas e acres em demasia, que me escaparam n'um impeto de indignação contra a maioria do nosso clero, e não contra os homens honestos e instruidos que pertencem a essa classe, como sem pudor se inculca, não estivessem justificadas pelos actos que as suscitaram, as consequencias do meu escripto tê-las-hiam remido. Dos que me impugnaram, foi aos seculares que coube a moderação, a lealdade, e a elevação dos pensamentos; foi a sacerdotes que couberam as manifestações de odio incrivel[21], a transfiguração das minhas ideas, e a linguagem sem nome das prostitutas. Isto é significativo. É que esses seculares nunca tinham trajado a roupeta, usada a cubrir mais hypocritas e devassos ignorantes do que varões religiosos e sabios: tinham, sim, vestido a farda de soldado, costumada a despertar tantas vezes nobres e grandes instinctos. E que me importam a mim esse odio impotente, essa linguagem vergonhosa? O que o futuro ha-de deduzir delles sei eu; sabe-o v.. As ameaças, que ahi se murmuram pelos cantos, essas causam-me dó. Se ao poder publico faltasse a força para manter illesa a segurança dos cidadãos, devolvia-se a estes o direito da propria defesa. Mas os Jacques-Clementes não apparecem senão onde a sinceridade das convicções degenerou em delirio, e não onde as crenças são especulação. Para ser Jacques-Clemente requer-se mais alguma cousa do que saber assassinar; é necessario saber morrer. Entrarei na materia. Na questão suscitada pelo modo como tractei na Historia de Portugal a lenda de Ourique, e ainda outras lendas analogas, é necessario confessar que se tem partido sempre de um ponto nebuloso e fluctuante. Para se chegar a um resultado preciso era necessario ter convindo em certo numero de principios, acceitar certas formulas de raciocinio. Não se fez isso. E todavia, a crítica historica tem regras para a credibilidade, regras a que todo aquelle que tracta de taes materias deve sujeitar-se, porque se estribam, não só na acceitação dos homens de sciencia, mas tambem na razão commum. Estes preceitos são no nosso seculo, em que os estudos historicos têm feito na Europa tantos ou mais progressos que as outras sciencias, assaz severos; mas essa severidade começou a desenvolver-se desde os fins do seculo XVII, em que a congregação de S. Mauro, aquelle brilhante seminario de homens illustres, creou a diplomatica. O estudo dos archivos, estudo alumiado pela philosophia crítica, mostrou quanto havia a desprezar nessas vastas compilações de trabalhos historicos dos seculos anteriores. É de S. Germão dos Prados, de S. Brás da Selva Negra, e dos outros mosteiros benedictinos da França e da Allemanha, que partiu o movimento intellectual da Europa nesta parte do saber humano. O que o seculo presente, amestrado por maior experiencia, tem feito é apertar mais as condições da credibilidade, evitando ao mesmo tempo todo o genero de preoccupação que possa proceder dos interesses de partido politico ou da incredulidade em materias de religião; é tambem o ter dirigido as indagações historicas mais para o estudo da indole das sociedades, do que para os actos dos individuos. Não nega as tradições da antiga sciencia; completa-as, aperfeiçoa-as. No exame dos monumentos, na sua confrontação, tem dado exemplos de imparcialidade e de paciencia, que mereceriam os applausos dos grandes reformadores benedictinos, se podessem contemplar os resultados da eschola que elles crearam, embora a sciencia moderna, como era natural, os tenha deixado bem longe de si. Os doutos que têm comparado os _Monumenta Germaniæ Historica_ de Pertz, os _Monumenta Historiæ Patriæ_, publicados em Turin, a Collecção dos Archivos d'Inglaterra, a continuação dos _Scriptores Rerum Francicarum_, e emfim as demais publicações desta ordem com o que os maurienses nos deixaram nesse genero, sabem que passos gigantes tem dado a crítica das fontes historicas. O uso dessas fontes, a applicação dos preceitos a ellas, tem produzido historiadores como Ranke, Guizot, Eichhorn, Savigny, Amári, Maccaulay e tantos outros que a Europa inteira conhece e admira. É a estes typos que hoje forçosamente ha-de tentar aproximar-se quem escrever historia, se não quizer deshonrar-se e deshonrar a litteratura do seu paiz. Foi essa aproximação que eu tentei, persuadido de que bem merecia por isso da terra em que nasci. Se é assim ou não, pertence decidi-lo áquelles que vierem após nós. No meio de uma revolução litteraria não ha desafogo de animo bastante para se fazer inteira justiça, nem aos meus esforços, nem á candura das minhas intenções. Conheço a difficuldade de se abandonarem antigas preoccupações, e seria louco se me irritasse com isso. Mas para refutar as impugnações que até aqui têm apparecido não me parece necessario invocar a sciencia no seu estado actual, e nem sequer a sciencia anterior na sua applicação á historia profana. Bastam-me as regras acceitas pelos historiadores ecclesiasticos mais respeitaveis, inculcadas por theologos, estabelecidas por membros illustres do clero, a quem nem uma unica voz ousará accusar de menos crentes, ou sequer de menos piedosos. É, creio eu, e v.. o julgará, acceitar a situação mais desvantajosa possivel: é tambem o que eu já tinha feito invocando a regra de Vicente de Lerins. Se a religião (cuja base é a crença em cousas que excedem a comprehensão humana, e que nos impõe a synthese, o dogma, sem que nos seja licito recorrer previamente á analyse) exige dos factos tradicionaes, antes de os acceitarmos, as condições de terem sido acreditados _sempre, em toda a parte, e por todos_, quem pede para crer ou deixar de crer factos puramente humanos (sujeitos pela sua natureza a toda a discussão possivel) apenas as garantias de liberdade intellectual que a igreja, tão parca em concedê-las, concede aos fiéis para acceitarem uma parte das suas crenças, não abdica evidentemente de uma liberdade, de uma vantagem que é sua, que ninguem lhe disputaria? Mais de uma vez terei talvez de appellar para a probidade litteraria e para a intelligencia de v.. e dos homens sinceros e honestos que pensam como v..; mas aqui, parece-me tão evidente a materia, que a deixo á discrição do espirito mais vulgar, da consciencia mais prevenida. Se Galileu, quando descobriu que era a terra e não o sol que andava, tivesse presentes as condições do Comonitorio, não o teria affirmado, e evitaria as perseguições da inquisição, postoque deixaria para outro a gloria de ter descuberto um facto importante. Aquelle canon, applicado á sciencia, é mais perigoso para a verdade nova do que para o erro antigo. Eu disse que as auctoridades que estabeleceram as regras historicas acceitas por mim serão ineluctaveis para aquelles mesmos que mais ferrenhos se mostram em conservar quanto os tempos passados nos transmittiram. Essas regras, pois, ao menos as principaes, permitta-me v.. que as transcreva aqui. Pasme Portugal de ver uma parte do clero insultar-me nos pulpitos e na imprensa, calumniar-me nas praças e corrilhos, porque segui como historiador as doutrinas estabelecidas _para se estudar e escrever a historia da igreja_ por homens que são a gloria e honra da classe sacerdotal. Se diante dos olhos de todos, na consciencia de todos não estivesse quanto escrevi ácerca da decadencia intellectual da maioria do nosso clero, parece-me que o que vou transcrever sería medida sobeja para por ella se aferir essa verdade. Já que falei dos religiosos da congregação de S. Mauro, começarei pelo mais celebre membro d'aquella ordem, o grande Mabillon. Eis o que elle nos ensina: 1.^o «Aquillo em que sobretudo devemos acautelar-nos no estudo da historia é em evitar todos esses vicios em que é facil cair; quero dizer, evitar admittir por verdadeiro o que é falso, ou deixar-nos dominar pelas affeições particulares dos historiadores. É necessario, primeiro que tudo, pesar attentamente os dotes do auctor; se é idoneo e sincero; o que o moveu a escrever; se pertence a algum bando ou seita...» 2.^o «Devemos averiguar _se o auctor que lemos é synchrono_ (contemporaneo); se escreveu elle proprio, ou se copiou outro; se é prudente nas suas affirmativas, ou se apenas se estriba em conjecturas; porquanto, dada a paridade no demais, deve preferir-se a opinião do auctor coevo á do mais moderno. Digo--dada a paridade no demais--porque póde acontecer, e acontece ás vezes, escrever a historia com inteira madureza o auctor não synchrono, estribado _em monumentos serios_ e boas razões, e o contemporaneo muito ao contrario, ou seja por negligencia, ou seja por ignorancia dos factos, ou seja por alguma prevenção, ou finalmente porque o _subjuga a força do proprio interesse_.» 3.^o «Segue-se d'aqui _não se dever confiar demasiado naquelles factos sobre que os escriptores rigorosamente contemporaneos, ou quasi contemporaneos, guardaram silencio_; postoque possa acontecer que um auctor mais moderno consultasse alguns monumentos importantes, guardados em logar occulto quando os factos aconteceram, ou visse escriptores synchronos, ou quasi synchronos, cujas obras depois se perdessem. «_Se, porém, esses escriptores, ou os que lhes succederam, no intervallo de um até dous seculos, nada dizem a tal respeito, e não obstante isso, um historiador mais moderno, sem se estribar em testemunho ou auctoridade alguma, se atreve a asseverar temerariamente esses factos, bem pequena conta se deve fazer delle_, aliás abririamos ampla estrada para errarmos, e para enganarmos os outros.» 4.^o «Com todo o cuidado nos devemos premunir para não sermos illaqueados por alguns auctores suppositicios, inventados nestes nossos tempos...» 5.^o «Não se deve proscrever qualquer auctor por um ou outro defeito de paixão ou allucinação, pela rudeza do estylo, ou por outra imperfeição propria da natureza humana, comtanto que seja sincero e pontual no resto...» 6.^o «Não se devem desprezar os antiquarios, auctores de resumos historicos, e compiladores...» 7.^o «Quando as narrativas variam, não nos devemos deixar attrahir pela consideração do numero, mas sim pelo merito e gravidade[22] dos auctores; visto que muitas vezes acontece que a auctoridade de um auctor grave e sincero merece preferir-se ao testemunho de cem de menos fé, _porque estes se foram repetindo uns aos outros sem madura discussão e diligente exame das cousas_...» 8.^o «Por este mesmo motivo não deve fazer-se grande fundamento na quasi innumeravel multidão de casos que muitos modernos costumam amontoar nas vidas de certos sanctos... Dizendo isto, sinto apertar-se-me o coração, e com magua devo accrescentar, que são muitissimo mais exactos os auctores profanos escrevendo vidas de ethnicos, do que muitos christãos relatando vidas de sanctos, o que já não receou affirmar Melchior Cano, referindo-se a Diogenes Laercio e a Suetonio.» Ouçamos ainda n'outra parte o fundador da diplomatica francesa: «É necessaria a crítica para distinguirmos as historias verdadeiras das falsas; para não darmos temerariamente credito a narrações supersticiosas, a vans opiniões, a delirios aereos, a _milagres fingidos ou duvidosos_, a _escriptos suppostos dos sanctos padres_. O veneravel Guigo, quinto geral dos Brunos, estabeleceu utilmente uma norma de crítica: ..._Buscae a prova de tudo; o bom respeitae-o. Quem crê de prompto é leve de coração._» Agora Fleury, o pio mas illustrado historiador da igreja catholica. Depois de varias considerações sobre os documentos falsos com que o clero innundou a Europa nos seculos de trevas, e da falta de instrucção que entre elle reinava, o historiador observa: «Outro resultado da ignorancia é tornarem-se os homens credulos e supersticiosos, por falta de principios seguros de crença e de exacto conhecimento dos deveres religiosos. Deus é poderosissimo, e os sanctos têm alto valimento para com elle: verdades são estas que nenhum catholico rejeita: logo devo acreditar todos os milagres attribuidos á intercessão dos sanctos. Má conclusão. Cumpre examinar as provas delles, e com tanta mais exacção, quanto esses factos mais incriveis e importantes forem. Porque, dar por certo um milagre falso nada menos é, segundo S. Paulo, que dar testemunho falso contra Deus, como mui judiciosamente observa S. Pedro Damião. Assim, longe de ser acto de piedade crê-los de leve, é a propria piedade que nos obriga a averiguarmos com rigor as provas em que se fundam. _O mesmo se deve dizer das revelações, das apparições de espiritos, das operações do demonio... Em summa, toda a pessoa dotada de bom juizo e religiosidade deve ser cautelosissima em acreditar factos sobrenaturaes._» Mas observemos as precauções de que Fleury se rodeava, as balisas que para si proprio punha, ao começar o immenso lavor da sua _Historia Ecclesiastica_, ainda hoje não substituida, apesar de tantas monographias excellentes com que depois tem sido illuminada, por um ou por outro aspecto, n'uma ou n'outra epocha, a historia da igreja. Eis os limites que elle estabeleceu á credibilidade n'um genero de escriptos onde esta poderia ser mais ampla, limites que á _fortiori_ não será nunca licito ultrapassar em matéria de tradições humanas. Mas antes permitta-me v.. que cite algumas passagens, as quaes me parecem grandemente applicaveis a essa parte do clero, que, em vomitando, no pulpito ou na imprensa, contra quem diz a verdade, quantos adjectivos injuriosos contém o diccionario da lingua, pensam que salvaram a honra dessas fabulas e crendices que estão costumados a propalar entre o povo, provavelmente pela mesma razão por que prégam mal, isto é _porque os festeiros gostam d'isso_, embora os concilios lh'o prohibam, os apostolos os condemnem, os membros mais doutos e pios da igreja catholica lhes mostrem o abysmo em que se precipitam! Para onde has tu fugido, oh religião de Christo?! «Vejo bem--diz Fleury--que a minha historia não ha-de agradar aos espiritos acanhados, atidos ás suas preoccupações, e sempre promptos em condemnar os que pretendem desenganá-los; aos que tapam os ouvidos quando a verdade soa, para se abraçarem com as fabulas, buscando doutores que vão com elles. Não lhes faltarão livros acommodados ao paladar. Escrevo em vulgar para ser util aos homens de juizo...» «Dous excessos vejo eu que ha a evitar: um de credulidade, outro de critica. Nem só a simpleza faz credulos. Pessoas ha que o são por politica e por deploravel sobranceria. _Julgam que o povo é incapaz ou indigno de saber a verdade; e tem por necessario alimentar-lhe todas as opiniões que lhe foram inculcadas como religião_, receiosos de abalar o que é solido, atacando o que é frivolo. Na essencia, estes suberbos politicos são ignorantissimos. Desconhecendo a religião, não a tomam a serio, e nada os liga a ella senão as preoccupações da infancia e os interesses temporaes. Nunca examinaram as seguras provas do evangelho, nem sentiram a excellencia da sua moral e a esperança dos bens eternos. _É por isso que não ousam profundar as cousas antigas e temem conhecê-las_: sabem que lhes não são favoraveis. Querem crer que sempre se viveu como hoje, porque não querem mudar de vida, como se nos fosse proveitoso enganar-nos a nós mesmos, ou se a verdade podesse trocar-se em mentira á força de averiguações. Graças a Deus, a fé christan passou pelo chrysol; o que ella _teme_[23] é que não a conheçam. «A outra especie de pessoas credulas em demasia são christãos sinceros, mas fracos e escrupulisadores, que á propria sombra da religião respeitam, e sempre receiam crer de menos. Falta a uns a instrucção; cerram os outros os olhos, e não querem fazer uso do entendimento. É para os taes objecto de devoção crer quanto escreveram os auctores catholicos e quanto crê o ignorante vulgo. A meu vêr, a _legitima devoção consiste em prezar a verdade e a pureza da religião, e em observar, primeiro que tudo, os preceitos expressamente estabelecidos na sagrada escriptura_. Ora, vemos que S. Paulo recommenda repetidas vezes a Tito e a Timotheo que evitem as fabulas, predizendo tambem que uma das desordens do fim do mundo será o affastarem-se os homens da verdade para se aterem a crendices; vemos que as fabulas eruditas não merecem menos desprezo a S. Pedro que os contos de velhas de S. Paulo; e do mesmo modo que elle condemna as fabulas judaicas, teria condemnado as christans, se já então as houvesse. Que dirão a isto aquelles que a timidez torna tão credulos? Não terão escrupulo em menosprezar semelhante auctoridade? Dirão que nunca houve fabulas entre os christãos? Seria desmentir a antiguidade em peso...» «A critica é portanto, necessaria. Sem deixar de respeitar as tradições, deve averiguar-se quaes são dignas de credito; devemos fazê-lo, até, se não queremos desacatar as verdadeiras, confundindo-as com as falsas. Sem que duvidemos da omnipotencia de Deus, podemos e devemos examinar se os milagres estão bem provados, para lhe não levantarmos falso testemunho, attribuindo-lhe os que elle não fez.» Eis como pensava o grande historiador ecclesiastico ácerca dos milagres, estribado nos livros que Deus inspirou. Quem será, pois, o impio, o incredulo? O que seguiu os conselhos dos apostolos e as doutrinas dos homens mais piedosos e sabios do gremio catholico, ou aquelles que esquecidos dos deveres, não digo do sacerdocio (porque neste caracter, o seu procedimento não tem nome), mas do simples christão, ousam perguntar ao historiador sincero: «_Se é necessario, se é util que o historiador se constitua campeão acerrimo contra essas tradições que deturpam a historia?_ e que respondem:--_É um arrojo mui imprudente e reprehensivel no historiador semelhante intento. Que precisão, que vantagem ha em destruir as crenças theocraticas[24], que uma tradição de seculos fora radicando no coração do povo? Nenhuma ha:_» e depois accrescentam esta maxima impia de Laharpe--«_a politica sabia e devia tirar partido do poderoso movel da geral crença, cujos effeitos são geralmente bons em todo o governo, mesmo quando a crença é erronea!_» Não peço a v.. tão cavalheiro e tão indulgente para comigo; peço ao homem que mais me odiar, mas que conserve um resto de pudor, que seja juiz entre mim e os desgraçados que não se envergonham, christãos e sacerdotes, de invocar contra a Historia de Portugal taes principios e taes maximas, e que insultam, não a mim, nem o meu livro, mas os apostolos, mas a biblia, mas os escriptores mais sabios, mais respeitados do catholicismo. Mancebos, cujos corações generosos a indignação póde desvairar! No meio destas saturnaes hediondas que vedes passar; no meio dos gritos descompostos da hypocrisia, que, embriagada de colera, deixa tombar dos hombros seu velho e já tão roto manto, e nua e vinolenta pragueja a verdade, atira com a fé aos pés da politica, rasga as sacras paginas, maldiz as cinzas dos sanctos, dos martyres, e dos sabios, não volteis, cheios de horror e de tedio, as costas ao Calvario. Não! A philosophia, a honesta liberdade do pensamento, bem vedes que estão sanctificadas no livro dos livros, O Christo foi o Deus da verdade. Se ao entrardes no templo ouvirdes dizer que a mentira é sancta, que o povo só póde ser virtuoso se crer em falsos milagres, saí, porque o templo está polluido pela blasphemia e pela calumnia; mas não renegueis da cruz. A cruz está pura; a cruz será eterna. Se esta gangrena que corroe o sacerdocio chegasse, o que não creio, a corrompê-lo inteiramente; se não achassemos uma ara, juncto da qual orassemos _em espirito e verdade_, a cruz lá está hasteada nos cemiterios, sobre os ossos de nossos paes, para nos irmos abraçar com ella: os mortos não tem ouro, os mortos não são festeiros, que paguem para se lhes falar a sabor: ahi não se tem blasphemado. Mas, reprimindo a amargura que deve causar a todo o christão sincero o ver sacerdotes sacrificarem assim a conveniencias mundanas o verbo de Deus, e semelhantes ao apostolo desleal contarem e recontarem o preço por que o venderam, acolhamo-nos ás placidas discussões da sciencia, e vejamos, como já disse, as mais importantes dessas regras que o pio e douto Fleury punha a si proprio para evitar os erros da nimia credulidade. «Não tenho em conta de provas, senão o testemunho dos auctores originaes, isto é, daquelles que escreveram _contemporaneamente, ou pouco depois_. Porque a memoria dos successos não póde subsistir por muito tempo sem ser escripta. _Bastante será se durar um seculo._ O filho póde lembrar-se passados cincoenta annos do que o pae ou avô lhe referiram cincoenta annos depois de o haverem presenciado. Os successos que tem passado por varias gerações não obtem a mesma certeza: cada qual lhes vai accrescentando alguma cousa de sua lavra, talvez sem o pensar. _É por isso que as tradições vagas de factos muito antigos, que tarde ou nunca se escreveram, nenhum credito merecem_, principalmente repugnando a factos provados. _Nem se diga que as historias pódem ter-se perdido; porque, dizendo-se isso sem provas, posso tambem eu affirmar que ellas nunca existiram._ O mesmo direi dos escriptores que escreveram successos anteriores a elles muitos seculos; _se não citam os auctores d'onde os tiraram, temos o direito de desconfiar de que acreditaram de leve os rumores vulgares_.....» «Os proprios auctores contemporaneos não devem adoptar-se sem exame... deve averiguar-se bem se o escriptor é digno de fé, quasi como quem inquire testemunhas n'um processo... _O que se encontra em cartas, ou em outros diplomas da epocha, deve ser preferido ás narrativas dos historiadores._» Até aqui Fleury. Para estas largas citações preferi dous homens de indubitavel sciencia e de catholicismo insuspeito. V.. sabe que eu poderia tambem citar escriptores da primeira ordem, pagãos ou protestantes, mas cuja auctoridade nem por isso seria menor n'uma questão que evidentemente não interessa os dogmas da nossa fé. Poderia invocar a bella sentença de Cicero: _«Quem ignora que a primeira lei da historia é não ousar dizer a menor falsidade, e a segunda não nos faltar jámais valor para dizermos a verdade?_» É certo que uma parte do clero português do seculo XIX se ergueria para lhe responder:--«_Ignoramo-lo nós._»--Eu poderia tambem repetir as palavras do luminar da critica no seculo XVII, as palavras de João Leclerc:--«Quando se escreve a historia, _sobretudo de tempos antigos_, não é licito dissimular a minima cousa; porque a verdade, sem ser nociva aos mortos, aproveita muito aos vivos; e pelo contrario a dissimulação, inutil para aquelles, é profundamente damnosa a estes.»--Não me quiz aproveitar dessas auctoridades summas, porque um não era christão, outro não era catholico. Parece-me que é levar longe o escrupulo. E todavia, o protestante Leclerc estribava-se na opinião de S. Isidoro Pelusiota--«Aquelles--diz o sancto--que com artificiosas palavras encobrem a verdade, muito mais desgraçados me parecem de que os que não a comprehenderam. Porquanto, os que por curteza de engenho não a alcançaram, estes não são talvez indignos de desculpa; mas os que, sendo dotados de agudeza, investigaram a verdade e criminosamente a occultam, commettem mais grave e imperdoavel peccado.» Mas, apesar de catholicos e pios, Mabillon e Fleury eram sobretudo eruditos. Haveria nelles menos luzes theologicas? Serão os theologos de profissão mais indulgentes para com as lendas e tradições não provadas? Exigirão, ao menos em referencia á historia da igreja, maior credulidade nos que a estudam ou escrevem? Ouçamos o celebre Melchior Cano, o qual ninguem accusará de excessivo amor pelos fóros e liberdades do raciocinio: eis algumas das suas observações ácerca do credito que deve dar-se ás tradições infundadas. «A principal regra (para distinguir as narrativas falsas das verdadeiras) deduz-se da probidade e inteireza humanas; regra perfeitamente applicavel quando os historiadores _testificam terem presenciado os successos que narram, ou terem-nos sabido daquelles que os presenciaram_...» «É cousa averiguada que esses que escrevem fingida e enganosamente a historia ecclesiastica não podem ser gente boa e sincera, e que toda a sua narrativa é tecida _para d'ahi tirarem lucro_, ou para persuadirem o erro; _torpes no primeiro caso_, perniciosos no segundo. Justissimas são as queixas de Luiz Vives ácerca das historias inventadas no seio da igreja; _prudentes e graves as arguições que dirige áquelles que julgam obra pia fazerem de mentiras religião_, cousa altamente perigosa e profundamente inutil. Do mentiroso nem a propria verdade ousamos acreditar. Por isso _os que pretendem concitar os animos ao culto dos bemaventurados com falsos e mentirosos escriptos, nenhum outro resultado tirarão, talvez, se não negar-se fé ás cousas verdadeiras por causa das falsas, e tornar-se duvidoso aquillo mesmo que referem com severa consciencia auctores de inteira veracidade_.» Preciso de implorar toda a indulgencia de v.. para transcrever em seguimento a esta passagem, admiravel de cordura e de legitima piedade, outro bem diverso extracto. Juro que não o faço com o intento de humilhar os homens sinceros e honestos, a quem, a meu vêr, cega um erro deploravel. É para vingar a religião injuriada; é para dar ao paiz um desses espectaculos repugnantes, mas salutares, a que os lacedemonios recorriam para evitar um vicio hediondo, mandando assistir um escravo em completa embriaguez ao jantar commum da mocidade d'Esparta. Só advirto que a passagem é concepção de um sacerdote, que celebra por certo tranquillamente o tremendo sacrificio do altar, sem que em todas as paginas do missal[25] leia, escriptas em letras de fogo, estas palavras que Jesus, o inimigo da mentira, dizia aos escribas e phariseus de outro tempo: «Hypocritas! Bem prophetisou ácerca de vós Isaias, quando disse: «Esta gente honra-me com os labios; mas o seu coração está affastado de mim.» Eis a inqualificavel passagem, que, ainda uma vez, peço venia de lançar, depois das doutrinas de Melchior Cano, n'um papel que é dirigido a um homem tão delicado como v.. «Os historiadores têm advertido que os factos maravilhosos, os prodigios singulares, que registavam em seus escriptos _não eram fundados senão em rumores populares_; outras muitas vezes tem-nos tambem referido sem esta precaução, já porque _elles mesmos fossem povo a tal respeito_... já porque elles não julgassem dever abalar a crença vulgar; bem convencidos que á sombra de um prejuizo repousava ás vezes uma verdade util, a que talvez tivessem vergonha de prejudicar.» «Eis aqui os _dictames prudenciaes_, adoptados pelos mais distinctos historiadores, ácerca dos successos de caracter maravilhoso, que devem dirigir todo o escriptor sensato. _O contrario é querer campar por uma anomalia extravagante e ridicula..._» «Se, porém, gravemente offende o melindre patriotico de uma nação aquelle que simplesmente contradiz os pontos _theocraticos_ das suas tradições historicas constantemente recebidos e venerados; quanto não se torna mais altamente _réu d'este attentado_ aquelle escriptor, que não só os nega, mas tem a _asquerosa villania_ de á cara descuberta os vir insultar? Se alguem ha no orbe litterario que mais demonstrativamente tenha commettido _tão reprehensivel e extranho excesso_, é por certo o auctor da carta aviltante, a respeito da Apparição de Christo a D. Affonso Henriques. _É uma das ulceras mais pustulentas que conspurcam e aviltam esse escripto sandeu_, que rancorosamente a impropéra...» «Como é crivel que uma fabula... fosse sustentada como facto verdadeiro por seculos...? _Quando, porventura, o tivesse sido, teria, não receio dizê-lo_, por effeito dessa universal crença dos sabios, _perdido a sua natureza e deixado de o ser!!!_...» Basta! Refujamos deste hediondo espectaculo, para continuarmos a averiguar tranquillamente se os theologos de profissão concordam com os eruditos de reconhecida piedade nas bases da critica historica. Ainda algumas palavras de Melchior Cano. «Achareis outros, não tão ineptos, mas quasi tão imprudentes, que não buscam a verdade das cousas onde a deviam buscar, mas naquelle logar onde é raro encontrá-la, _em aereos e vagos rumores_. Acontece isto frequentemente aos inconstantes e leves de cabeça; _porque os homens graves e severos não costumam andar á caça dos dictos vãos do vulgo_.» Desçamos já aos fins do seculo XVIII, quando a incredulidade corria como lava ardente pela face da Europa, e devorava as crenças mais sanctas e legitimas em milhares de corações. Vacillou, acaso, por isso a critica dos homens probos e pios nos seus principios de severidade? No meio de tantas ruinas, quizeram elles salvar com os restos do edificio a sua falsa miragem? V.. o julgará pelas doutrinas de muitos varões religiosos dos ultimos tempos, inteiramente accordes com as dos que os haviam precedido. Por exemplo, o theologo piemontês Denina, diz-nos: «Acontecem algumas cousas fóra da ordem natural, que, de per si só, são incriveis... a esta categoria pertencem, na igreja de Deus, os milagres, os quaes, _nem é licito rejeitar na sua totalidade, nem se devem acceitar todos sem selecção_...» «Pertence á prudencia do historiador _nada escrever, que não saiba por si proprio, ou não se estribe na auctoridade de pessoas fidedignas_, cumprindo-lhe, não menos, ser pouco credulo. Mas _ninguem póde ter conhecimento do que narra, se não viveu no tempo em que os factos aconteceram; nem sabê-los de pessoas fidedignas, se estas não os presenciaram_; nem escapa de credulo, se não explicar e expender as razões, causas e circumstancias do que relata. Auctores que assim o fazem _nenhum credito merecem_...» «Nem tudo quanto o historiador relata do seu tempo se ha-de acreditar; salvo constando que fôra curioso em indagar e explorar...» «Se o historiador referir cousas, não do seu tempo, mas succedidas muitissimo antes, dar-se-lhe-ha credito, _se individuar os auctores d'onde as tirou_, sendo _aliàs daquelles que as podiam saber_...» «Não duvido de chamar _máu historiador_ a todo aquelle que devendo ter por norma o não ousar dizer a menor falsidade, _nem faltar-lhe animo para dizer qualquer verdade_, encubrir esta aos leitores, _seja por que motivo for_...» Assim pensavam os theologos d'Italia nos fins do seculo passado: assim pensavam tambem os theologos catholicos da Allemanha, ou antes do paiz mais religioso d'ella, a Austria. Citarei dous, um dos quaes, ou ambos, a nossa universidade honrou, escolhendo as suas instituições de historia ecclesiastica para compendios nas faculdades de theologia e de direito canonico. Falo de Gmeiner e Dannenmayr. As secções desses compendios relativas ao _criterium_ da verdade historica nada mais são do que o desenvolvimento das doutrinas de Cicero, de Mabillon, de Fleury, de Melchior Cano, de Riegger, de Leclerc, de Muratori, de Baumeister; em summa de todos os criticos, historiadores, e philosophos, que falaram ex-professo ou accidentalmente da crítica historica. Andam esses livros nas mãos de todos, menos nas do clero ignorante e corrupto, porque este, coitado, não sabe ler. Não serei, por isso, demasiado extenso em citá-los, escolhendo apenas as passagens mais frisantes, e que fazem sobretudo ao intento. «Como os narradores--diz Gmeiner--por falta de _habilidade_ sufficiente, ou de sciencia, nos _possam_ enganar, ou por falta de _sinceridade_, ou por vontade nos _queiram_ illudir, só podêmos acquiescer ao seu testemunho, se não houver razões sufficientes para duvidar da sua habilidade ou sinceridade.» «A auctoridade das testemunhas não é uma e a mesma, e portanto deve attender-se a esta diversidade. Observa-se ella 1.^o em relação aos sentidos, 2.^o em relação ao entendimento, 3.^o em relação á vontade. Em relação aos sentidos, essas testemunhas ou são de vista ou de ouvida. _As de ouvida ou são coevas, ou não coevas mas que ouviram aos coevos o que narram_...» «D'aqui se segue, _que pouca fé deve dar-se áquillo que os escriptores ou absolutamente contemporaneos, ou quasi contemporaneos deixaram de mencionar_...» «A verdade dos conhecimentos historicos não depende de modo nenhum da abundancia dos historiadores, visto que _não provém maior certeza a um facto historico de ser relatado em livros de muitos auctores mais modernos, cada um dos quaes foi copiando o que outro tinha dicto. Todos elles junctos não valem mais do que o primeiro que o referiu_...» «A consideração do paiz em que o escriptor viveu, e do tempo em que escreveu importa muito em relação ao seu intuito de falar verdade. N'alguns paizes a liberdade de escrever é franca; n'outros opprimida; n'outros, emfim, ha premios para a lisonja, odio e castigo para a verdade... Ensina-nos a historia que os escriptores lisonjeiros da curia romana receberam ás vezes em premio _de suas fadigas_ o barrete cardinalicio ou a dignidade do episcopado. _Naquellas provincias onde vigorou o terrivel tribunal da inquisição, a fogueira estava prompta para a verdade._» «Não faltaram impostores e falsarios, que trabalharam em alterar varias passagens nos antigos monumentos, e que tiraram a uns e accrescentaram a outros.» Consinta-me v.. que ainda transcreva poucas linhas do theologo Dannenmayr: «Para tirarmos proveito... da historia ecclesiastica--diz elle--devemos principalmente ter em mira, _que nem se nos inculquem fabulas sobcolor de verdades, nem consideremos como duvidosos factos absolutamente certos e largamente provados._» Tenho talvez sido prolixo. Mas era necessario estabelecer uma doutrina, uma norma, por onde os animos imparciaes, e ainda os prevenidos, mas sinceros nas suas prevenções, houvessem de julgar-me, não tanto no foro da sciencia, que era o meu foro, que era aquelle para onde eu tinha direito de trazer o litigio, mas nó da mais restricta piedade. Em these, a contenda dos que blasphemam contra a verdade, que fazem a apologia (e que apologia, meu Deus!) das tradições fabulosas, não é comigo; é com os apostolos, com os sanctos, com os historiadores do catholicismo, com os theologos, com todos aquelles e com tudo aquillo a que mais importava á hypocrisia mentir acatamento nesta comedia beata. A tonta e imprudente não se lembrou de que lhe caía a mascara, e de que alguem poderia levantá-la para a entregar ao povo, que nos seus grandes instinctos de justiça lhe fustigaria as faces com ella. Na hypothese, no que me diz respeito, o meu dever é provar aos homens sinceramente pios que, rejeitando falsas lendas, não ultrapassei os limites de uma crítica irreprehensivel. Será esse o objecto da carta immediata, que em breve espero dirigir a v.. Nas seguintes darei razão das minhas opiniões ácerca da maioria do nosso clero, e ácerca da curia romana. Compelliram-me a isso; fá-lo-hei gemendo. Quizeram que o paiz os conhecesse: hão-de ser satisfeitos. Emquanto os ecclesiasticos virtuosos e instruidos choram em silencio a vergonha da sua classe, e emquanto os prelados dormem tranquillos nas suas cadeiras episcopaes, Deus salve a igreja portuguesa dos tristes dias de tempestade! IV SOLEMNIA VERBA SEGUNDA CARTA AO SR. A.L. MAGESSI TAVARES (_Novembro, 1850_) Na minha antecedente carta deixei eu, ou para me exprimir com mais exacção, deixaram muitos e mui piedosos escriptores catholicos apontadas as principaes regras da critica, em relação ás fontes historicas. Dessas regras resulta o que a boa razão está por si indicando; que é necessario premunir-nos contra a credulidade, não só por honra da sciencia e pela consideração do proprio credito litterario, mas tambem, o que é mais grave, para não deslizarmos da doutrina dos apostolos, inculcada nos livros sanctos. O mais necessario canon, em que de certo modo todos os outros se consubstanciam, é o atermo-nos unicamente aos testemunhos synchronos ou quasi synchronos, aos testemunhos daquelles que presenciaram os factos, ou, pelo menos, que os ouviram narrar aos contemporaneos, quer esses factos sejam naturaes e criveis, quer sobrenaturaes e incriveis para a razão humana; quer elles nos sejam transmittidos por narrativas coevas ou quasi coevas, quer por documentos do tempo, embora descubertos por escriptores modernos. Quando, porém, se tractar de milagres, a critica deve ser tanto mais severa, quanto é certo que a isso nos constrange o dever religioso, que nos impõe as palavras de S. Paulo, o dever de não levantarmos falsos testemunhos a Deus. Que podia eu fazer em relação ao supposto milagre de Ourique, escrevendo a historia do reinado de Affonso I? Faltavam-me absolutamente chronicas, historias, documentos coevos ou quasi coevos, que o narrassem. O exame attento de quanto modernamente se escrevera para supprir a falta de provas daquella celebre tradição, só tinha servido de convencer-me das aberrações em que se podem transviar ainda os espiritos mais elevados, quando, em vez de buscarem simplesmente a verdade, buscam accommodar os caracteres desta a um preconceito. Não me era possivel omittir a batalha de Ourique. Que podia eu fazer, repito, ácerca do milagre da apparição? Ou mentir á minha consciencia, alevantar um testemunho a Deus, pospôr as doutrinas dos homens mais pios e eruditos do orbe catholico, que falaram de critica historica, calcar aos pés a maxima do mais illustre escriptor romano, ou então manifestar sem hesitação as proprias convicções, que julgava e julgo legitimas, isto é, proceder de um modo que v.. mesmo crê nobre e honroso[26]; affirmativa, que, seja dicto em boa paz, não sei se está em perfeita harmonia com a idéa geral que predomina nas considerações que v.. tem tido a bondade de dirigir-me sobre os inconvenientes que resultam, no entender de v.. para a nossa patria commum, da manifestação das minhas doutrinas. Disse, pois, o que suppús e supponho verdade: disse-o sem sobre isso me dilatar, sem exaggeração, sem pretensões a ter feito um importante descobrimento historico; porque realmente o não era: disse-o singelamente, simplesmente: indiquei apenas de passagem as incongruencias historicas, que desmentiam a importancia que se costuma attribuir ao successo. E n'esta parte, seja-me licito dizê-lo, nem v.. nem ninguem se encarregou de me refutar; porque, na verdade, seria um pouco difficil de admittir que houvesse centenas de milhares de sarracenos para virem combater em Ourique, quando os almoravides concentravam todas as forças em Africa, para salvarem o imperio da ultima ruina, exhaurindo a Hespanha de soldados, a ponto de abandonarem a heroica guarnição de uma praça como Aurelia ao seu triste destino. A narrativa anterior, o quadro da situação dos lamtunitas e das perturbações quo agitavam as provincias mussulmanas do Gharb habilitavam o leitor para por si fazer conceito das dimensões da batalha de Ourique. Se em alguma cousa cedi da inflexibilidade da historia foi em procurar, talvez em demasia, achar resultados moraes dessa batalha, para de algum modo desculpar a significação exaggerada que depois se lhe attribuiu. Sobre a apparição disse apenas o restrictamente necessario para o leitor vulgar conhecer que eu não a admittia. Se tivesse o proposito deliberado de combater quando podesse ferir o chamado sentimento religioso do povo, crê v.. que eu não teria recursos para aproveitar o lado contradictorio e até ridiculo, (que cousa ha neste mundo onde elle se não possa encontrar?) do celebre milagre, sem todavia abandonar o estylo grave da historia? Crê v.. que se eu intentasse buscar as causas provaveis da invenção dessa maravilha, e avaliá-las severa ou, se quizerem, malevolamente, me faltariam meios para assim o practicar? Permitta-se-me dizer que foi necessaria demasiada prevenção contra mim, ou a favor da inviolabilidade da apparição, para se não ver que procurei, quanto me era possivel sem offender a verdade, não converter os factos que se prendem a esse falso milagre n'um escandalo historico. As extensas notas com que finalisa cada volume do meu livro são destinadas para os homens da sciencia, para debater os fundamentos das minhas opiniões. Estas notas são, portanto, para poucos. A generalidade dos leitores não se cansa com essas discussões tediosas. Foi, porém, ahi que eu alludi ao ridiculo instrumento do cartorio d'Alcobaça, o que fiz apenas pelo desejo de dar uma satisfação aos homens professionaes. Se eu fosse o impio, o atheu, e não sei que mais, que por ahi me chamam os padres ignorantes e mal procedidos, não tiraria vantagem dessa falsificação insigne, para mostrar como a hypocrisia costuma fazer joguete das cousas do céu para fins terrenos? Não practicaria ao menos aquillo que a justissima indignação de qualquer homem religioso o levaria talvez a practicar? Se tal se houvesse de crer, não deveriam qualificar-me de impio, mas sim de insigne mentecapto. Em ambos os opusculos que v.. me fez a honra de escrever contra as minhas opiniões, v.. insiste em que, citando naquella nota a Memoria de Fr. Joaquim de Sancto Agostinho contra a genuinidade do diploma de juramento conservado em Alcobaça, eu fiz uma citação contraproducente[27]. Contraproducente?! Pois o erudito augustiniano não nega ahi redondamente a authenticidade do diploma? O que dizia eu ao citar a Memoria sobre os codices d'Alcobaça?--«_Quem desejar conhecer a impostura desse documento famoso consulte a Memoria, etc._»--Se o auctor concorda comigo em que elle é falso, onde está a improcedencia da citação? Se v.. me permitte que seja interprete do seu pensamento, o que v.. queria talvez dizer era, que Fr. Joaquim de Sancto Agostinho affirma que acreditava na apparição, posto negasse a genuinidade do pergaminho de Alcobaça, e que eu não creio nem no documento, nem no facto. Exprimindo-se assim, v.. teria sido exactissimo. Não era, porém, para a opinião manifestada pelo academico em relação ao successo, mas sim para as suas razões contra o diploma que eu remettia o leitor. E realmente, o que elle diz em favor do facto não é mais do que repetir o que outros disseram antes delle, e citar uma copia de 1597 existente em S. Vicente de Fóra vista por elle, e a qual, duas paginas adiante, dá como provavelmente tirada _de outro original falso_. O que se vê de tudo aquillo é que o pobre frade, conhecendo o risco de mostrar o que era e o que valia O ridiculo thesouro dos monges d'Alcobaça, quiz ao menos salvar-se, protestando pela pureza da sua crença no milagre de Ourique. Talvez, se eu vivesse então, fizesse o mesmo, em attenção á circumstancia que nos recorda Gmeiner: «_onde vigorou o terrivel tribunal da inquisição, a fogueira estava prompta para a verdade_». Soffra-me v.. dizer eu aqui que me envergonho pelo meu paiz desta necessidade de disputar ácerca de um diploma falso, que se acha depositado nos archivos do estado, onde qualquer pessoa póde examiná-lo. Qualquer pessoa, sim; porque não é preciso ter a menor idéa de paleographia para o reconhecer por falso. Basta pôr-lhe ao lado dous ou tres diplomas genuinos do meiado do seculo XII, e comparar. Esses multiplicados recursos que possue a diplomatica para desmascarar falsarios são aqui perfeitamente inuteis. Estou certo de que v.. nunca o viu; porque tambem estou certo de que, se o houvera visto, eu acharia v.. a meu lado para dizer aos homens sem pudor que ainda ousam inculcar como legitima essa invenção torpe: «_Sois uns miseraveis!_» Sinto sinceramente que v.. se dignasse de tomar para si, a favor da apparição, um argumento que devia pertencer precipuo aos apologistas dos clerigos ignorantes e devassos. Consiste elle em que, negando eu que a tradição de Ourique remonte aos tempos a que se refere, devo dizer quando, como, e para que a forjaram. Onde existe semelhante canon de critica historica? O que sei é que ella começou a apparecer no ultimo quartel do seculo XV, mais de trezentos annos depois da epocha em que se diz succedido o milagre; o que sei é que em nenhum escriptor, nem em nenhum documento legitimo, coevo ou quasi coevo, ha o menor vestigio de semelhante tradição; o que sei é que os escriptores modernos que a publicaram não se referem a testemunho contemporaneo ou proximo; o que sei, portanto, é que as regras de critica adoptadas por homens não menos pios que sabios me obrigam a rejeitá-la. Diga-me v..: se um devedor seu pretendesse pagar-lhe certa quantia em moeda falsa, v.., depois de a examinar e convencer-se da sua falsidade, o que fazia? Pelos principios por que pretende julgar-me, devia reconhecê-la por boa e acceitá-la, emquanto não podesse mostrar quando, como, por quem e para que fora forjada. Não vê v.. que uma tal regra de critica nos obrigaria a adoptar como verdadeiras até as lendas indicas de Vishnú e de Brahma? Outro argumento me faz v.. que eu tambem desejara tivesse deixado aos ex-frades ignorantes e hypocritas: é o da impossibilidade de nossos avós terem adoptado uma tradição que não fosse verdadeira. Quer v.. que lhes concedamos a mesma critica, a mesma intelligencia, a mesma honra, o mesmo amor da propria fama e dignidade que nós temos. Concedo por um momento. Mas o patriotismo de v.. não será tão inimigo da logica, nem tão cego, que recuse os mesmos dotes aos avós dos actuaes castelhanos, franceses, italianos e allemães. Por aquella doutrina, v.. deve acreditar todas as lendas desses paizes, ainda quando a critica historica as tenha feito abandonar aos castelhanos, franceses, italianos e allemães de hoje. Mais: v.. deve, por exemplo, acreditar _à fortiori_ a historia da papisa Joanna, embora já os proprios protestantes se riam dessa calumnia ridicula, porque a Europa inteira a acreditou por seculos. Mais ainda: v.. é assaz instruido para não ignorar qual foi a civilisação dos arabes nos seculos IX, X, XI, sobretudo dos arabes hespanhoes, qual a sua sciencia e litteratura, qual a nobreza do seu caracter. Apesar disso, elles nunca deixaram de crer na tradição dos milagres de Mafoma. Não é de esperar da justiça de v.. que recuse a esse povo tão culto os dotes intellectuaes e moraes que attribue a nossos avós. Adoptará v.. as lendas mussulmanas ácerca do propheta de Mekka? Principios que provam tanto, ou antes que provam tudo, permitta-me v.. desconfiar de que não provam nada. Deus nos livre de pensar que uma fabula que se generalisa, se converte por isso em verdade. Semelhantes doutrinas, deixe-as v.., christão, cavalheiro, e homem de letras, para essa parte da cleresia, que quer lucrar com as illusões populares. A nós, christãos, incumbe recordar-nos daquellas tremendas palavras do divino Mestre: «Guardae-vos do fermento dos phariseus, que é a hypocrisia:» «_Porque nenhuma cousa ha occulta que não venha a descubrir-se; e nenhuma ha escondida que não venha a saber-se_....» «E todo o que proferir uma palavra contra o filho do Homem ser-lhe-ha dado perdão; mas _áquelle que blasphemar contra o Espirito Sancto, não lhe será perdoado_.» V.. sabe, tão bem como eu, que, segundo Sancto Agostinho, uma das blasphemias contra o Espirito Sancto _é o negar a verdade conhecida por tal_. E é isto o que responde a todas as considerações que v.. me faz sobre a conveniencia de não desilludir o povo ácerca das suas tradições mentirosas: são estas palavras do Salvador, que fulminam os phariseus modernos, como fulminaram os antigos, que me obrigam a falar verdade escrevendo a historia. Ainda que essas considerações fossem exactas, a patria verdadeira do christão é o céu, cujas portas ficarão cerradas, conforme a doutrina de Christo, aos que tiverem desmentido a verdade na terra. A patria deste mundo é nosso dever amá-la, sacrificar-lhe tudo, menos a honra, menos as esperanças de além do tumulo, menos a fé. É esta a mais sancta das tradições que herdámos de nossos paes. O crucifixo sobre o qual deposeram o derradeiro suspiro os que nos geraram, não o insultemos na vida, para podermos tambem despedir o ultimo alento, abraçados com elle, sem terror, sem remorsos, e para o legarmos immaculado a nossos filhos; para que elles, no momento de o transmittirem moribundos a nossos netos, não se lembrem horrorisados de que essa imagem do Redemptor já foi bafejada pelo extremo respirar de um blasphemo. Amemos e respeitemos a tradição divina, e tenhamos esforço bastante para repellir mentiras, sobretudo quando, segundo as palavras do apostolo, ellas envolvem um falso testemunho contra Deus. Isto é para os christãos. Para os falsos politicos, que cuidam ser a religião apenas um instrumento que serve para conter os humildes e pobres, a que Christo chama os grandes do seu reino, e a que elles chamam massas brutas; para esses, que não crendo acaso em Deus, accusam os que escrevem sinceramente a historia, de demolidores de nossa gloria; para esses liberaes e até democratas, que desprezam o povo ainda mais do que o desprezavam os poderosos de outros tempos; para os taes não applico eu só o dicto de Fleury, de que são ignorantissimos em materias de religião; digo tambem que o são em materias de politica. Para o povo ser livre, é necessario que seja religioso e honesto; não que seja credulo. Para que elle seja religioso e honesto é necessario que conheça as doutrinas do evangelho, que não são mais do que a confirmação divina da moral universal. Em vez de inculcar crendices ao povo, cumpre inculcar-lhe os principios do christinanismo, e as consequencias daquelles principios: cumpre illustrá-lo, em vez de o conservar na ignorancia; fazer-lhe sentir que a força de practicar grandes e nobres sacrificios, tão recommendados por Jesus, é o caracter que distingue o espirito immortal do homem do instincto que anima as alimarias. É preciso convencê-lo de que o patriotismo, de que esse puro e sancto affecto que nos faz abandonar os commodos domesticos, as affeições do coração, e arrostar com a fome, com a sede, com a nudez, com a intemperie das estações, para irmos morrer n'um campo de batalha, salvando a terra em que dormem nossos maiores, defendendo a cruz do nosso adro, a vida de nossos paes, a honra de nossas irmãs e mulheres, é a manifestação mais solemne da energia do espirito humano, e da abnegação christan. E estas verdades eternas; estas verdades, que, gravadas nos corações do povo, tantas vezes têm salvado as pequenas nações dos intentos ambiciosos das grandes, d'onde se deduzem? É das invenções dos milagreiros e falsarios, ou das divinas paginas da biblia? V.. deve conhecer, como homem de letras que é, a historia dos povos mussulmanos. Houve nunca no mundo crença que se estribasse tanto como o islamismo em falsos milagres, quasi sempre conducentes a inspirar o amor da guerra e o enthusiasmo das multidões credulas? E todavia, quaes foram os effeitos desse enthusiasmo, que não correspondia a doutrinas accordes com os instinctos naturaes da nossa alma, que não se fundava em convicções reflectidas, na certeza moral do dever, mas que se inspirava de promessas fingidas do céu? Os mussulmanos devastaram e submetteram a melhor porção da Asia e da Africa, e ainda uma pequena parte da Europa: formaram quinze ou vinte nações de falsos crentes, e estas nações cresceram e civilisaram-se combatendo sempre. E depois? Depois, quando foi preciso conservar o edificio; quando se tractou de defender a patria, em vez de a tirar aos outros; quando foi preciso repellir em vez de aggredir, mostrar essa perseverança, que nem se exalta com o triumpho, nem desanima com o revés; que padece, calada e soffrida; essa perseverança que é a mais poderosa arma dos povos ameaçados na sua existencia, tudo faltou. As nações mussulmanas desmembraram-se, fundiram-se, annullaram-se umas, desappareceram outras, e conservando todas as suas crenças, todos os seus milagres, ei-las ahi estão as que restam, ludibrio da humanidade, corruptas, decadentes, vivendo ao crepusculo da passada gloria, lançando nos dias da afflicção e do perigo os olhos para o occidente, a vêr se os filhos da cruz estendem o braço para proteger o crescente. As tradições das victorias, as maravilhas celestes dos tempos heroicos de Islam lá estão gravadas na memoria de todos. Porque não salvam, não regeneram ellas essas sociedades atrophiadas e moribundas? Ainda hoje ha homens das novas idéas, os quaes se dizem cheios de illustração e de philosophia, que, abandonando os milagres suppostos, não porque os tenham por infundados ou absurdos em si, mas porque suppõe que o fanatismo póde lucrar com elles, não querem que se toque nas tradições humanas que se ligam á gloria nacional. É verdade que não sabem bem que deva consistir a gloria de uma nação, porque nunca pensaram nisso. Para elles, que vivem no seculo XIX, onde quer que pereceram milhares de homens, combatendo por interesses que não comprehendiam, ou por torpe cubiça; onde quer que o ferro e o fogo arrasaram as cidades, despovoaram os campos, embora dessas cidades e campos nenhum mal tivesse vindo aos seus destruidores, ha uma gloria sem mancha, immensa, immarcessivel. Herdeiros pequeninos e pacificos dos gigantes da assolação, dos Tamerlans, dos Attilas e dos Gengiskans, avaliam pela estimativa daquelles illustres selvagens as façanhas dos proprios avós. Se a historia pergunta:--«Acaso esses combates, em que, sem duvida, se practicaram grandes feitos, foram uteis ao progresso moral e material do povo em cujo nome se peleijaram, ou trouxeram a sua decadencia? Está ou não essa gloria militar, aliàs indisputavel, assombrada por grandes crimes? Foi a intenção, a qual só determina o valor moral das acções, nobre, grandiosa, pura, ou teve motivos menos elevados? Foi um arrojo, um impeto nacional, ou um impulso dado pela ambição, ou pelo capricho de algum principe?»--A historia que faz estas perguntas ou outras analogas, porque esse é o seu dever, commette aos olhos dos taes um crime de leso-patriotismo. O castelhano, por exemplo, que disser:--«As barbaridades e crimes commettidos por Cortez, Pizarro, ou Almagro, na conquista da America, deshonram as emprezas arriscadas e longinquas dos filhos da Peninsula, embora o descubrimento do Novo Mundo demonstre a sua pericia, o seu ardimento de navegadores e de soldados. Os effeitos dessa conquista foram o corromperem-se os costumes, morrerem as industrias nascentes, despovoarem-se os campos da Hespanha, seccarem-se, em summa, todas as fontes da sua prosperidade solida e legitima: foram amontoarem-se nas mãos do fisco e dos poderosos o ouro e a prata, que, obtidos sem custo pelos crimes, se desbarataram sem pudor pelos vicios; foram o perderem-se as velhas liberdades, e com ellas o sentimento da dignidade humana, cujo ultimo brado soou nas rebelliões contra a tyrannia de Carlos V:»--o hespanhol que disser isto é um mau cidadão aos olhos dos mansos guerreadores destes nossos tempos. E porque? Porque, affirmam elles, o povo ha de moralisar-se, elevar-se pelas tradições da sua grandeza e gloria. O povo! Pois o povo que tantas vezes tracta de perto a fome e a nudez; cuja vida, desde o berço de farrapos até a enxerga rota em que fenece, vai travada de receios, de sobresaltos, de desalentos, e de agonias, pensa lá nas cutiladas que se deram, nas bombardadas que se despediram, ha tres ou quatro seculos, por mãos d'uns homens, cujos nomes e cujas façanhas se memoram n'uns livros que elle nunca leu, porque não sabe ler, nem tem dinheiro para pão, quanto mais para livros? Que são essas palavras retumbantes de regeneração pelas tradições, senão sons ôcos, que não correspondem a nenhuma idéa? Supponhamos, porém, que todas essas recordações chegavam ao povo. Podem ellas servir-lhe de exemplo, de licção para as suas necessidades actuaes? N'um paiz onde a riqueza passageira destruiu os habitos do trabalho e da economia, entorpeceu pela miseria, resultado infallivel da prosperidade ficticia, a energia do coração, que faz luctar o homem com a adversidade e vencê-la, de que serve estar de contínuo a prégar ao povo:--«Teus avós levaram o terror do seu nome aos confins do mundo, saquearam e queimaram emporios opulentos em plagas remotas, metteram a pique poderosas armadas, derribaram os templos alheios, violaram as mulheres extranhas, passaram á espada os que eram menos valorosos que elles, abriram caminho ao engrandecimento dos outros povos da Europa, e affeitos a gosos faceis, deposeram aos pés do absolutismo as suas velhas franquias, beijaram os grilhões que lhes deitavam aos pulsos por que eram dourados, e tornaram-se ludibrio do mundo.»--Estas licções é que hão-de ensinar a actividade no trabalho, a severidade nos costumes, o amor da liberdade moderada, mas verdadeira, o desejo de cultivar as artes da paz, no meio de um paiz decadente, cuja unica esperança de salvação está em se desenvolverem nelle essas e outras tendencias analogas? Não! O povo, que tem mais logica do que os prégadores de vãos apophtegmas, ha-de concluir outra cousa d'ahi: ha-de concluir que é assaz fidalgo para não contrahir habitos villãos e ruins. De historias d'aggressões e de conquistas brilhantes não se deduz a necessidade de morrer obscuramente em defesa da terra da patria; não se deduz a moderação revestida de firmeza, que faz respeitar pelas grandes as nações pequenas; não se deduzem nem o amor do trabalho, nem o amor da virtude. Em vez de contarem ao povo as façanhas da Africa e do Oriente, contem-lhe qual era o commercio de Lisboa, e o movimento agricola do paiz no no seculo XIV. Estejam certos de que a noticia desses e de outros factos analogos lhe é mais proveitosa, material e moralmente, de que recordar-lhe a gloria de batalhas e de conquistas. Falsas lendas religiosas, falsas ou verdadeiras lendas humanas nunca salvaram um paiz, quando a podridão penetrou no amago da arvore social. Onde e quando o homem renega da sua origem divina, vende a liberdade a troco de delicias, esquece que o elevar-se acima de viciosas paixões traz um goso interior que vale bem todos os que dão os sentidos, não é lisonjeando-lhe vaidades, que, nem sequer respeitam a magestade de Deus, que o havemos de revocar ao sentimento da dignidade e do dever. V.. sabe, talvez melhor do que eu, a historia do imperio romano, e nomeadamente a historia do baixo-imperio. Não leio essas paginas melancholicas, sem que involuntariamente volva os olhos para o estado actual de algumas nações modernas: as analogias que encontramos entre estas e aquella são symptomas dolorosos; mas não vem para aqui. Eu peço a v.. que reflicta sobre essa historia em relação á efficacia das tradições. Ella completa o quadro que nos offerecem as nações mussulmanas. Não foi no tempo da republica, foi sob o ferreo dominio dos cesares, que os poetas cantaram os mythos da gente romana, que os historiadores celebraram as suas glorias, e deram a importancia da verdade a centenares de lendas tradicionaes e fabulosas, que a sciencia moderna, as investigações do grande Niebuhr, reduziram já ao seu justo valor. De que serviram, porém, essas glorias, esses milagres do polytheismo, contados gravemente a um povo servo e gasto, que apodrecia aos pés dos tyrannos? Nos ultimos tempos do imperio os rhetoricos espraiavam-se em exaggerações sobre as grandezas passadas, emquanto os cidadãos recusavam combater por uma patria que se tornara em nome vão, e preferiam o jugo dos barbaros a uma nacionalidade mentida. Os hymnos, as gloriosas recordações romanas serviram só para acompanhar ao cemiterio da historia o ataúde de Roma. Consinta v.. que a estas rapidas considerações eu ajuncte ainda um exemplo domestico, sobre o qual peço a v.. que medite. Na lucta violenta e tenaz que Portugal sustentou nos fins do seculo XIV para repellir o dominio estrangeiro, ninguem se lembrou de fortalecer os animos invocando o milagre de Ourique; ao menos não espero que v.. me aponte o menor vestigio historico que me desminta. A razão para desaproveitar tal auxilio foi demasiado forte; foi a razão do cordeiro da fabula--_o milagre ainda não era nascido_. E todavia o triumpho coroou os heroicos esforços de um povo pequeno, que quiz verdadeiramente ser livre. Dous seculos depois o milagre de Ourique dominava, absoluto e não contradicto, no commum dos espiritos. V.. se encarregou de o provar de modo innegavel. E todavia, quasi sem combate, as espadas castelhanas acabaram com a independencia de Portugal n'um dia. Entre os dous factos está, além do milagre, a grande gloria das conquistas, gloria que não era uma tradição remota, quasi oblitterada na memoria do vulgo, mas um facto vivo, recente, e a bem dizer actual. Alguns dos que mais tinham contribuido para ella ainda viviam. Estes dous phenomenos, que determinam duas epochas principaes da nossa historia, assim aproximados, são a negação mais solemne da utilidade dos embustes religiosos, ou para melhor dizer, anti-religiosos, e do orgulho selvagem de ter annaes escriptos com o sangue humano vertido em guerras não provocadas, em guerras de aggressão, e sobretudo de cubiça. Mas concedamos que, n'um ou n'outro caso singular, um general ou um homem d'estado tirasse vantagem dessa deploravel força moral que se estriba nas superstições, ou nas idéas de uma gloria feroz. A questão é, se hoje o povo português tem alguma vantagem que tirar dessas tradições, na situação em que a Providencia o collocou. Sejamos sinceros. Póde elle sonhar em ser conquistador, ou sequer em constituir uma potencia maritima ou continental que pése com demasiada força na balança dos acontecimentos politicos? Parece-me que nenhum sisudo o dirá. Somos pequenos; mas nem isso é vergonha, nem impedirá que as grandes nações nos respeitem, se formos respeitaveis. Para obtermos consideração basta que os nossos progressos intellectuaes e moraes mostrem á Europa que sabemos, queremos, e podemos regenerar-nos pela sciencia, pelo trabalho e pela morigeração. Morigeração, trabalho, sciencia, eis as armas com que a philosophia politica deste seculo ensina as nações civilisadas a combaterem n'uma lucta generosa. Os espiritos mais altos, seja qual fôr a sua crença religiosa e politica, proclamam a paz e a fraternidade entre os homens. E não só as proclamam, mas até empregam a poderosa alavanca da associação para promoverem, digamos assim, uma cruzada sancta contra as tendencias guerreiras. Os esforços collectivos desses homens summos serão baldados? Não o cremos. Elles tem um alliado irresistivel. Quando os exercitos permanentes e as grandes marinhas militares tiverem devorado todo o peculio de cada povo, e exhaurido a melhor e mais pura seiva da sua vida economica, é então que a philosophia politica hade alcançar um triumpho decisivo. Mas esse triumpho que outra cousa será senão o ultimo termo de uma sorites immensa, composta dos factos de dezenove seculos, de uma demonstração practica e invencivel, de que a lei moralmente necessaria das sociedades modernas é o christianismo, é o verbo de amor e da paz revelado no Evangelho? Nesses dias, que porventura tardam menos do que muitos pensam, que destino darão os sacerdotes da bombarda, da lança e da espada aos seus deuses fulminados? As palavras «façanhas, gloria guerreira, conquistas,» como serão definidas nos diccionarios das linguas vivas, dentro de um ou dous seculos? Como julgará a historia os milagres inventados para sanctificar o derramamento de sangue humano? Desculpe v.. esta digressão, que não creio nem inutil nem extranha ao assumpto. De novo entrarei directamente nelle, para proseguir nas explicações que devo aos meus adversarios sinceros, honestos e instruidos, e não á ignorancia malevola e presumida de hypocritas insignificantes. Começarei por dar a v.. a razão moral, a razão suprema, porque rejeito não só o milagre de Ourique, mas tambem os outros milagres, como o de Alcacer, a que ou a má fé, ou a piedade pouco illustrada quizeram attribuir a sorte das batalhas, sorte dependente dos occultos designios da Providencia e de mil accidentes, previstos ou fortuitos, explicaveis ou inexplicaveis para a historia. Não creio que essas guerras contra os infiéis fossem cousa excessivamente christan, e por isso o meu espirito recusa-se a acceitar como factos verdadeiros os testemunhos de approvação divina a um procedimento anti-evangelico. Na idade média passava como cousa corrente, que o guerrear os infiéis e fazer-lhes acceitar á força o jugo, aliàs tão suave e tão livre, do christianismo, era obra meritoria. Os principes aproveitavam-se desta doutrina, ou, para sermos justos, acreditavam-na, em geral, sinceramente: acreditavam-na, até, a maior parte dos homens intelligentes e pios. Entre estes se distingue o proprio S. Bernardo, que o excessivo zelo da gloria do christianismo incitou a promover a segunda cruzada, cujo infeliz resultado lhe acarretou tantas accusações amargas, tantos desgostos pungentes. A favor das guerras contra os mussulmanos durante a idade média, principalmente a favor da que se fazia na Peninsula, podem militar boas razões de politica, e até de direito, porque essa guerra não era mais do que a reacção contra uma conquista. Razão religiosa é que eu não vejo nenhuma que a favoreça. Repugna-me á consciencia que o Christo, o Deus de paz e misericordia, viesse pessoalmente ou enviasse os seus anjos a incitar christãos a derramarem o sangue humano, a levarem a assolação e a morte ao meio daquelles que não o adoravam. Será este um modo errado de vêr? A S. Thomás de Aquino, que ainda alcançou os tempos das cruzadas, não fizeram força alguma as opiniões que haviam dado origem áquellas expedições longinquas, para deixar de estabelecer que a diversidade de crença não é motivo bastante para um povo atacar outro. Reprovando a guerra de religião, não era possivel cresse que Deus approvava essas luctas crueis com manifestações sensiveis. Vê-se, portanto, que os _milagres militares_, que então se contavam a tal respeito, pouco credito mereciam a um dos homens mais pios do seculo XIII, e sem contradicção ao mais profundo philosopho do seu tempo. Ouçamos, porém, o grande historiador da igreja, falando dessas guerras contra os mussulmanos. «Os christãos--diz Fleury--devem applicar-se, não a destruir mas sim a converter os infiéis... Quando Jesus disse que tinha vindo trazer ao mundo a guerra, da sequencia do seu discurso, e do procedimento dos seus discipulos se manifesta claramente que só se referia ás turbações que havia de excitar a sua doutrina celestial, turbações em que a violencia havia de vir toda dos inimigos, a quem os christãos opporiam a resistencia que as ovelhas oppõem aos lobos. A verdadeira religião deve conservar-se e dilatar-se pelos mesmos meios por que se estabeleceu, pela prédica discreta, pelas obras virtuosas, e mais que tudo por illimitada paciencia. Se a isso Deus quizer ajunctar o dom dos milagres, mais prompto será o effeito. Quando Machiavello dizia que os prophetas desarmados nunca saíram com seus intentos, mostrava-se a um tempo ignorante e impio; porque Jesu-Christo, o mais desarmado de todos, foi o que fez conquistas mais rapidas e firmes; conquistas como elle as queria, ganhando as almas, mudando de todo os homens, e tornando-os de maus em bons, o que nenhum conquistador jámais fez....» «Repito pois, que não se deve tractar de diminuir as falsas religiões, ou dilatar a verdadeira pelas armas e pela violencia: não são os infiéis que se devem destruir, mas sim a infidelidade, conservando os homens, e illustrando-os ácerca dos seus erros. Em summa, para isso não ha senão um meio, persuadir e converter....» Imagine v.. se Fleury acreditaria nos milagres d'Alcacer e de Ourique, milagres em que se faz intervir o céu para o derramamento do sangue humano; milagres, que nem tem o merito de originalidade, porque não havia por essa épocha paiz da Europa, onde tambem a credulidade de muitos, e a má fé de alguns não tivessem associado largamente o céu ás luctas sanguinolentas daquelles tempos tumultuarios e rudes; milagres, emfim, que, por sua natureza, são, religiosa e moralmente, absurdos. De passagem lembrarei a v.. que não é bem fundada a accusação que me dirige, de que não appliquei ao milagre de Alcacer a regra de Vicente de Lerins, quando foi exactamente o contrario que fiz. Dos tres testemunhos presenciaes que temos ácerca daquelle celebre recontro, só em dous se allude aos signaes miraculosos que se viram no céu. O auctor da Historia Damiatana, que assistiu ao successo, ommitte a circumstancia milagrosa. Não acha v.. significativo este silencio? Em todo o caso falta o _ab omnibus_ de Vicente de Lerins, e v.. ha de ter presente a doutrina de Mabillon, citada por mim na carta antecedente, de que é _temerario_, não só o acreditarmos em milagres falsos, mas até nos simplesmente _duvidosos_. Quando o sentimento religioso, o respeito das doutrinas evangelicas não obstasse á crença nesse favor do céu, obstar-lhe-hia a severa doutrina do grande benedictino. Se não fosse o desejo de dar satisfação plena aos homens escrupulosos, mas capazes de se convencerem da verdade, como v.. talvez concluisse aqui esta carta, porque as grosserias parvoas da ignorancia e os rugidos do interesse ferido, que vê fugir atraz da apparição de Ourique todos os milagres rendosos, só se punem com a immortalidade do ridiculo. Não concluirei, porém, sem dizer alguma cousa em especial sobre a tradição do apparecimento de Christo a Affonso I, considerada na sua origem, e no modo como foi propagada e defendida. Os principios mais solidos da critica, o silencio absoluto, não só dos contemporaneos, mas tambem de dez gerações successivas, bastaria para condemnar a tradição aos olhos dos desapaixonados, quando ella não fosse absurda em si, porque é absurdo pôr Deus em contradicção com a indole do christianismo. Ha, porém, na historia da invenção, propagação, e aperfeiçoamento dessa lenda tanta hesitação, tantas contradições, tanta imprudencia, tanta falsificação, tantos desejos de se illudir ou de illudir os outros, em homens que parece deveriam ser superiores a taes fraquezas, que o colligir as provas disso é offerecer uma licção salutar do perigo que ha em abusar do sentimento religioso do povo para fins mundanos, e da miseria a que podem chegar ainda os altos engenhos, quando se esquecem das doutrinas evangelicas, e de que as duas cousas que o Salvador mais solemnemente amaldicçoou neste mundo foram a mentira e a hypocrisia. O silencio de mais de tres seculos sobre um facto estrondoso, que deveria andar na memoria de todos, como o milagre de Ourique, não é só negativo, por assim nos exprimirmos; é tambem positivo. Conjuncturas houve, antes dos fins do seculo XV, em que elle se teria publicamente invocado, se não fosse uma fabula ainda não inventada. Citarei duas. Seria inexplicavel, se admittissemos a existencia da tradição cem annos antes de 1485, que nem um só dos prégadores, letrados, e capitães de D. João I, os quaes mais de uma vez, nas suas allocuções ao povo e aos soldados, reccorreram ás cousas religiosas para accender os animos contra os castelhanos, e para crear a confiança de victoria final na lucta brilhante da independencia; que nem um só desses prégadores, letrados e capitães, os quaes não cessavam de accusar os inimigos de scismaticos, pretendendo ligar á sua causa a causa de Deus, se lembrasse jámais de citar as promessas feitas por Christo a Affonso I, o que era decisivo. Antes disso, tambem, nos principios do seculo XIV, tractando-se com grande empenho da separação da ordem de Sanctiago em Portugal do grão-mestrado de Castella, o mestre e os freires portugueses dirigiram ao papa um longo arrazoado em que argumentavam, que, sendo os bens que a ordem possuia em Portugal, reino separado e independente de Castella, dados pelos reis deste paiz, não era justo que o grão-mestre castelhano os continuasse a desbaratar a seu bel-prazer. Para firmar na origem do reino a independencia daquella parte dos cavalleiros que nelle residiam, o mestre Pedro Escacho e os seus commendadores allegavam ao papa um facto novo, mas do qual era quasi impossivel que separassem a historia da apparição, se della houvesse vestigios. O facto novo era a acclamação de Affonso I em Ourique. «Outr'ora--diziam em Roma os procuradores dos spatharios--o rei de Portugal, D. Affonso I de clara memoria, o qual, esmagando com mão poderosa a barbara fereza dos sarracenos no campo de Ourique, foi elevado a rei pelos seus nobres e _pelos outros concelhos_, combateu os dictos sarracenos inimigos da religião orthodoxa com todas as forças, para exaltação da fé catholica e defensão do proprio reino. O mesmo rei, debellando e expugnando os infiéis, acommetteu-os e tirou-lhes castellos, fortalezas e muitas terras. Acceso em zelo da fé, e attendendo ao esforço do mestre e freires de Sanctiago que então viviam, concedeu-lhes, etc.» Não fazendo caso da ignorancia dos procuradores de Pedro Escacho[28] ácerca do estado da sociedade portuguesa no meiado do seculo XII, quando mencionam os villãos dos concelhos como intervindo n'uma eleição de rei, não faz peso a v.. que não se lembrem do milagre da apparição? Se existisse a tradição, poderiam elles ignorá-la, e não a ignorando ommitti-la, quando tanto convinha invocá-la? Não era evidente que o titulo e a independencia do rei obtinham incomparavelmente mais importancia e firmeza dos mandados positivos de Christo, do que das acclamações da soldadesca? Deixo á imparcialidade de v.. o resolver estas questões. Eis-aqui por que eu digo que o silencio de todas as memorias e documentos anteriores a 1485 ácerca da apparição não é só negativo; que é tambem positivo. Mas existe realmente este silencio?--perguntar-me-ha v.. Conforme a sua opinião, estribada na de Cenaculo e Pereira, elle não existe. No folheto recentemente publicado, que v.. intitulou _Nova Insistencia_, com lealdade de cavalheiro e de homem de letras v.. abandonou o texto forjado de S. Bernardo, e entendo que tambem o antigo documento da _Symmicta_ ao destino que elles mereciam; mas insiste nos outros documentos que se citam. Examinarei se v.. tem razão na insistencia. Mas antes disso cabe-me consolar aqui v.. das injurias que a bruta ignorancia de um pobre tonto vomitou indirectamente contra v.. por não distinguir o texto attribuido no breviario a S. Bernardo; cabe-me, digo, consolá-lo com o meu exemplo, e com o de um sacerdote instruido, que, enganado com v.. por aquella insigne falsificação, expondo-lhe eu as minhas opiniões ácerca do milagre de Ourique, me contrapunha o testemunho do grande abbade de Claraval, inserto no breviario. Como, porém, para escrever a historia do nosso paiz é necessario caminhar como quem passa pelo pinhal d'Azambuja, lá com todas as prevenções contra os salteadores, cá attentos sempre a que não nos illuda a cada momento um fabricante de mentiras ou um falsificador de documentos e textos, amestrado pela experiencia repliquei que duvidava da passagem do breviario, e que duvidava sobretudo pelo adjectivo _lusitanum_, que nella se lê, e que eu tinha a certeza de não se encontrar em monumento nenhum do seculo XII para significar _português, cousa portuguesa_. Na duvida, passámos a examinar o texto do sancto, e a falsificação appareceu-nos logo mais clara que o dia. Assim v.. teve companheiros na illusão; nem creia que tem tido só dous: ha-de ter tido milhares delles. Ria-se destes eruditos que adivinham tudo quanto se lhes diz: ria-se dos Mabillons de agua chilra, que logo distinguem _pelo estylo_ quatro ou cinco linhas interpoladas nas obras de qualquer escriptor. Mas, voltando ás cousas sérias, v.., repito, insiste nas outras provas, desprezadas as evidentemente falsas. E quaes são as que ficam? Creio que v.. tem presentes a regra de Gmeiner, de Mabillon, e de toda a gente que não esteja em guerra declarada com o senso-commum, _de que não provém maior certeza a um facto historico de ser relatado em livros de muitos auctores mais modernos, cada um dos quaes foi copiando o que o outro tinha dicto. Todos elles junctos não valem mais do que o primeiro que o referiu._ Assim, tendo nos escriptores dos fins do seculo XV que relatam o milagre, todas as auctoridades que v.. cita do seculo XVI annullam-se completamente. Ha, porém, outras anteriores, dirá talvez v.. É verdade que Cenaculo as propõe. Mas quaes são ellas? Examinemos. 1.^o Um indice, escripto em Roma, de documentos relativos a Portugal em que se memora o facto da apparição. Como Cenaculo nos não diz a data do indice, estamos desobrigados de discutir o documento a que se refere: provavelmente havia de ser pelo gosto do da Symmicta. 2.^o A doação ao mosteiro de Claraval, feita por Affonso Henriques. Tem o pequeno inconveniente de ser falsa. João Pedro Ribeiro reduziu-a a lastimoso estado na segunda das suas Dissertações Chronologicas. Estou certo de que o bispo de Béja, se resuscitasse, não havia de ter vontade de tornar a falar nella. 3.^o Nos _Commentarios_ de Affonso sabio, traduzidos em português no tempo de Affonso IV, termina o capitulo 416 por uma passagem, em que Cenaculo quiz ver a memoria do milagre, embora nella não haja uma palavra a semelhante respeito. Este testemunho, ainda suppondo que a passagem diga o que não diz, tem tambem outro pequeno inconveniente. É que Affonso sabio não escreveu Commentarios nenhuns. Veja v.. se os encontra mencionados no extenso e minucioso artigo ácerca de Affonso X, na _Bibliotheca Hespanhola_ de Rodrigues de Castro, ou se acha em parte alguma vestigios de taes Commentarios. 4.^o Uma passagem de uma chronica inedita dos reis de Portugal, que, _pela fórma da letra e pela linguagem_, se conhece ser do tempo de Affonso IV. Esta passagem diz-se transcripta de um codice da camara d'Evora. Pedirei pela primeira vez um favor a v.. É que não acredite demasiado na pericia paleographica de Cenaculo. A diplomatica ainda não acho meios sufficientes para distinguir com certeza pela fórma dos caracteres, nos codices portugueses, os que são do seculo XIV ou do XV. Tanto em letra assentada como em cursivo, não ha nelles senão a alleman pura, ou a francesa com maior ou menor resabio de monachal ou alleman. Isto é commum a ambos os seculos. A mesma romana pura ou restaurada, que começa a apparecer nos fins do XV, tem ainda resabio da monachal. Pelo que respeita á outra adivinhação de Cenaculo relativamente á linguagem, v.. como homem de letras, está por certo habilitado para avaliar a _força_ deste meio de apreciação. Se o bispo de Béja vivesse, eu compromettia-me a apresentar-lhe passagens extensas, escriptas em vulgar no meio do seculo XIV e outras escriptas já na segunda metade do XV, e se elle fosse capaz de dizer quaes eram as antigas e quaes as modernas, dava-lhe a minha palavra de honra de ficar crendo no milagre de Ourique. Esta experiencia que eu offereceria ao erudito bispo, estou prompto a offerecê-la a quem quer que pretender tentá-la. Agora accrescentarei mais alguma cousa. No archivo da camara d'Evora, que examinei por meus proprios olhos, posso certificar a v.. que nada ha anterior a D. João I; nem diplomas, nem codices. Que é feito da tal chronica que o bispo de Béja diz existir no archivo da camara d'Evora? O que havia de estimação naquelle archivo foi distrahido pelo antiquario Lopes de Mira, que viveu um pouco antes de Cenaculo. Isto é sabido pelas pessoas eruditas d'aquella cidade. V.. deduzirá d'aqui as conclusões legitimas. A erudição immensa de Cenaculo tem um defeito que nelle provinha do excesso de uma util faculdade unida a uma indole inquieta e impetuosa. Era essa faculdade a da memoria comprehensiva e tenaz. Lia muito e fiava-se na força da propria reminiscencia. Seria facil provar pelos seus escriptos que grande numero das citações que fazia e das auctoridades em que se estribava não as verificava, e que a memoria o trahia ás vezes, quando menos em particularidades e accidentes que modificavam a significação dos textos, servindo mal os intuitos do bom do prelado e tornando suspeita a sua candura. Os _Commentarios_, por exemplo, de Affonso sabio, traduzidos em português, podiam ser, não uma invenção, mas sim uma reminiscencia, ou uma nota tomada á pressa por Cenaculo, e talvez a chronica inedita dos reis de Portugal, que _pela fórma da letra e pela linguagem_ se conhecia ser do tempo de Affonso IV, fosse cousa analoga aos taes _Commentarios_, isto é, apenas uma confusão de idéas, ou, quando muito, uma inexacção de apontamentos. Existe uma compilação historica em vulgar, ou colligida ou accrescentada nos meiados do seculo XV, visto que na parte relativa a Portugal abrange a regencia e morte do infante D. Pedro (cap. 438) e nada contém posterior a este facto, continuando nos capitulos seguintes a historia dos outros estados da Peninsula. Conhecem-se tres exemplares desta compilação, que constitue, ao menos intencionalmente, uma historia geral das Hespanhas desde os tempos mais remotos até os seculos XIV e XV. Em París e em Madrid conservam-se os dous exemplares mais antigos. O de París trasladou-o o dr. Nunes de Carvalho com o intuito de imprimir aquelle curioso inedito. Dadiva do meu tão erudito como modesto amigo José Gomes Monteiro, possuo eu o terceiro exemplar, que parece ter pertencido a Manuel Severim de Faria. O codice de Madrid é talvez o mesmo que menciona pouco explicitamente Ferreira Gordo nas Memorias de Litteratura da Academia, Tom. 3, pag. 49. A _Cronica General_ attribuida a Affonso sabio subministrou ao compilador a historia fabulosa e a historia antiga da Peninsula atè a epocha leonosa. A corographia d'Hespanha, bem como a narração da entrada e conquista desta pelos mussulmanos e dos primeiros tempos do seu predominio são extrahidas da historia arabe de Arrazi, conhecido vulgarmente pelo nome de Mouro Rasis. Attribue-se ao reinado de D. Dinis e á iniciativa daquelle principe uma traducção do livro do historiador musulmano, e effectivamente esta parte da compilação é uma daquellas que parecem mais antigas pela rudeza da linguagem. A chronica do Cid, publicada modernamente pelo P. Risco, e cuja authencidade foi disputada por Masdeu, era conhecida já do compilador, que largamente a aproveitou na composição do seu livro. No exemplar de París, conforme o que se vê da copia de Nunes de Carvalho, faltam os capitulos 411 a 441. Ignoro se o mesmo succede no exemplar de Madrid. Encontram-se, porém, no que pertenceu a Severim de Faria; e é justamente nestes capitulos, desde o 412 até o 438 que está inserida a chronica dos reis de Portugal, começando na vinda do conde D. Henrique e finalisando nos primeiros annos do governo de Affonso V. É uma narrativa assás resumida, distinguindo-se apenas a parte relativa aos reinados de Affonso I e de D. Dinis, cujos successos verdadeiros ou fabulosos são mais particularisados. Conserva-se na Bibliotheca Publica do Porto, com o n.^o 79, um antigo codice transferido para alli em 1834 do archivo de Sancta Cruz de Coimbra. Contém varias memorias historicas e outros papeis avulsos escriptos por diversas mãos, tudo colligido, segundo parece, nos fins do seculo XV. Acaba o codice por dous chronicons em vulgar[29]. Um tem por titulo «_Como e donde descenderom os reis de Portugal_»: o outro «_Aqui se compeça a istoria dos reys de Portugal_»: Ambos se referem em breves palavras ao conde Henrique, dilatando-se com os successos e lendas da vida de Affonso Henriques, successos e lendas aproveitados pelo chronista Galvão. Ao passo, porém, que o primeiro chronicon não ultrapassa a epocha de Affonso I, o segundo abrange, postoque em breve resumo, as vidas dos seus successores até D. Dinis. Em relação aos tempos de Affonso Henriques são em parte identicos, não só no contexto, mas até nas phrases. Ha todavia entre elles uma differença digna de reparo: é a de que no primeiro se repetem mais de uma vez as palavras _conta a historia_, que não apparecem no segundo, ao passo que n'aquelle se referem tradições relativas a Affonso I ommittidas neste, donde se conclue que o primeiro foi tirado de um trabalho historico mais antigo, de que talvez o segundo seja apenas um extracto, embora accrescentado com leves traços dos subsequentes reinados. No exemplar da compilação que pertenceu a Severim de Faria a narrativa dos successos de Portugal durante a vida de Affonso I póde dizer-se que é um complexo dos dous chronicons de Sancta Cruz, ás vezes perfeitamente semelhante, outras variando nos vocabulos e phrases. Aproveitaram-se os chronicons na compilação ou tiraram-se della? Por outra: qual dos tres monumentos é mais antigo? É o que não importa nem eu me atrevo a resolver. O que importa é o que se lê nestes monumentos, os mais remotos que nos restam escriptos em vulgar, ácerca da batalha de Ourique. Vejamos se lá se encontram vestigios do celebre milagre. O primeiro chronicon de Sancta Cruz diz-nos que Affonso Henriques, acclamado rei pelo exercito antes do combate, depois deste, _por memoria daquelle boo aquecimento que lhe deus dera pôs no seu pendam cinquo escudos por aquelles cinquo reis e pose-os em cruz por renembrança da cruz de nosso senhor ieshu christo, e pôs em cada huum XXX dinheiros por memoria daquelles XXX dinheiros por que iudas vendeo Ieshu christo._ No segundo chronicon, entre a narrativa particularisada da lucta de Affonso Henriques com sua mãe e com o conde de Trava (a que faz seguir immediatamente o recontro de Valdevez) e a lenda do cardeal legado e do bispo negro medeia a noticia da batalha de Ourique por estas simples palavras: _E depois ouve batalha em nos quanpos dourique e venceo a._ Indicio notavel de que ainda no seculo XV havia quem desse áquelle acontecimento uma importancia secundaria. Na compilação a passagem relativa á jornada de Ourique é a seguinte: «Ajuntou suas gentes e foyse sobre os mouros e correolhes a terra dês coimbra ataa santarem, e deshy passou o tejo e correo toda a terra ataa o campo de Ourique, onde achou elRey ismar, que a essa sazon era Rey da estremadura, com sinco Reys que o vinham buscar sabendo o grande dapno que lhes fazia em sua terra, e entrou com elles em batalha no lugar que se chama crasto verde, e vencêos e prendêos e matou a mayor parte de todas suas gentes; mas antes que entrasse em na batalha os seus o alçaram por Rey, e dês enton se chamou Rey de portugal: e depois que os Reis forom vencidos, elRey dom Affom de portogal, por memoria daquelle boo acontecimento que lhe deus dera trouve por armas sinco escudos por aquelles sinco Reis e pozeos em cruz por nembrança da cruz de nosso senhor jesu cristo, e poz em cada huum escudo trinta dinheiros por os trinta dinheiros por que judas o vendêo, e dêsi tornouse para sua terra muy honradamente». Onde estará o milagre em qualquer destas tres passagens não posteriores aos meados do seculo XV e que por ventura são mais antigas? É muito possivel que Cenaculo, homem d'immensa e variadissima leitura, tivesse visto alguma copia dos chronicons de Sancta Cruz, e igualmente a compilação no exemplar de Severim de Faria, que viveu no Alemtejo, onde tambem Cenaculo residiu longamente, e onde o manuscripto podia conservar-se ainda no tempo do bispo de Beja. Uma circumstancia digna de notar-se torna mais plausivel esta suspeita. Cenaculo cita o fim do capitulo 416 dos suppostos _Commentarios_, e na compilação os ultimos periodos do capitulo 415 são os que se referem á batalha de Ourique e aos seus resultados. O logar do capitulo citado é o mesmo: a differença está na numeração deste, e essa differença é apenas de uma unidade. Preoccupado pela idea do milagre, do qual se faz derivar o imaginario escudo de Affonso Henriques, nada mais facil do que Cenaculo, citando de memoria, dar á compilação, tirada em grande parte da _Cronica general_, o titulo de Commentarios d'Affonso sabio, e aos chronicons de Sancta Cruz o de chronica inedita, confundindo ao mesmo tempo a lenda do escudo d'armas com a lenda da apparição, acerca da qual não ha ahi uma palavra. Tudo isto não passa de conjecturas, mas de conjecturas que põem em salvo a probidade litteraria de um dos nossos mais illustres prelados de uma epocha ainda pouco remota, em que os bispos portugueses eram bispos, e não vigarios do papa[30]. Em Cenaculo a defensão do milagre de Ourique era empenho cego. Não sei, nem me importam os motivos. Importa-me o facto, que annullaria melhores testemunhos do que esses que cita, quando elle fosse o seu unico abonador. Quer v.. uma prova decisiva da cegueira do douto prelado? Eu lh'a dou, e irrefragavel: é o seguinte periodo: «O advertido padre Pereira faz ver que desde o seculo XV se acham escriptores mui auctorisados, que referem o acontecimento como de cousa _então vulgar entre as pessoas que haviam tractado os immediatos contemporaneos do successo, em maneira que a tradição é coetanea._» Traduzido em linguagem chan, quer isto dizer que em 1485 (epocha do primeiro testemunho preciso sobre a apparição, o de Vasco Fernandes de Lucena), havia gente que tinha conhecido individuos do tempo da batalha de Ourique, ou por outra, que no seculo XV havia pessoas _com trezentos annos de idade._ Quem diz isto póde dizer livremente o que lhe aprouver. Quando um espirito não-vulgar chega a este estado, que nos resta senão confessarmos o nosso nada diante da summa intelligencia de Deus? Aqui tem v.. por que eu me limitei, quanto me foi possivel, a falar de leve na apparição; eis porque tenho até hoje reluctado em descer á discussão especial dessa mentira ridicula, com que os prégadores vão ludibriar o povo na cadeira do evangelho. Estas miserias e vergonhas, e as que successivamente apontarei, sobre quem recaem? Sobre homens que aliàs têm direito á reputação que adquiriram na historia litteraria do paiz e nos annaes da igreja portuguesa, mas que um impulso talvez de amor proprio[31], talvez uma piedade ou um patriotismo irreflectido, fizeram com que, em vez de buscarem a verdade, buscassem a prova de que tal ou tal cousa era verdade, caminho deploravel em cujo termo é certo o precipicio. Fóra dos testemunhos cujo nenhum fundamento acabo de mostrar, Cenaculo reduziu-se a adoptar as pretendidas provas do padre Pereira, sem exceptuar o juramento de Alcobaça. E note v.. que elle o conhecia tão pouco ou era tão fraco diplomatico, que não hesitou em escrever estas palavras memoraveis:--«_Duvidar da apparição_ emquanto o desconhecimento dos testemunhos a faz presumir de piedade popular e crença apaixonada, _pode ser critica_; mas a interpretação livre e esquerda da palavra real e fundada (o juramento de Alcobaça) merece ser sempre vista com desapprovação e desagrado».--Isto quer dizer que, se não houvesse o instrumento da apparição, podiamos com boa critica deixar de crer no milagre. Assim, se o bispo de Béja vivesse hoje, á vista da declaração official da falsidade do documento, que o meu amigo Rebello da Silva arrancou ao juiz mais competente na materia, o lente de diplomatica e guarda-mór interino do Archivo Nacional, elle teria de passar com armas e bagagens para o campo dos _impios_, se quizesse (havia de querer) intitular-se bom critico. Mas, deixando de parte o conjecturar qual seria hoje a opinião de Cenaculo, vamos aos _Novos Testemunhos_ do padre Pereira. Disse eu que este escripto traria deshonra ao auctor da _Tentativa Theologica_, e da _Vida de Gregorio VII_, se não fosse uma ironia. Confesso a v.., que antes quero salvar, por esta hypothese, a reputação de um nome illustre na nossa litteratura, do que acceitar a anecdota, a que alguns attribuem a concepção dos _Novos Testemunhos_, anecdota que mais de uma vez tenho ouvido referir. Conta-se, que, sendo o padre Pereira pouco aferrado ao dinheiro (é defeito de classe: não creia v.. que usurario nenhum fosse nunca homem de letras) veio a achar-se um dia com a bolsa completamente vazia. Advertido da apertura da situação pelo creado, pegou n'algumas folhas de papel, escreveu os _Novos Testemunhos_, mandou-os ao seu editor, e recebeu dez moedas, com que ficou rico, ao menos por dous ou tres dias. Eu prefiro a ironia á anecdota, que não sei se é verdadeira. Mas ou a musa do opusculo fosse a precisão de dinheiro, ou fosse a vontade de gracejar, o que tenho por certo é que, a não ser assim, a obra fora indigna de um homem, que pulverisou as pretensões illegitimas e insolentes da curia romana, e que fez tremer boa meia duzia de hypocritas e pedantes do seu tempo. As provas de que os _Novos Testemunhos_ precisam da minha explicação, ou d'outra qualquer, vou dá-las a v.., começando por transcrever uma passagem da introducção do opusculo. Depois de apresentar como demonstração de não ser forjado _o juramento d'Alcobaça_ o haver, antes de Brito o publicar, testemunhos _da tradição_ de Ourique (argumento na verdade singular!) o padre Pereira prosegue: «Mas quanto a verificar o caso da apparição, tem a dita demonstração _o defeito de que nenhum dos testemunhos em que ella se funda remonta a maior antiguidade que o reinado d'elrei D. Manuel_. E assim _poderão_ os emulos das nossas glorias _repôr_ que uns _testemunhos do principio do XVI não são sufficientes_ para extorquir delles o assenso a um facto, que se suppõe _acontecido no meio do seculo XII_.» Depois d'isto, que digam todas as pessoas que lerem esta carta, não sendo algum clerigo mau e ignorante; diga v.. mesmo, pondo de parte quaesquer prevenções, o que se deve esperar no opusculo? O auctor confessa que a favor da apparição não bastam os testemunhos posteriores ao anno de 1495, insufficientes para provas de um facto succedido em 1139, logo elle vai offerecer-nos documentos, trezentos, ou, pelo menos, duzentos annos anteriores. Eu digo o que nos offerece Pereira em logar dos _testemunhos insufficientes_. 1.^o A narrativa de Olivier de la Marche na introducção ás suas Memorias. Esta introducção foi começada a escrever em 1492, conforme o proprio auctor das Memorias declara[32]: isto é, as passagens relativas ás armas reaes de Portugal foram escriptas dous ou tres annos antes de começar a epocha em que os testemunhos ácerca de um milagre succedido 357 annos antes nada provam, segundo confessa o padre Pereira, advertindo que, por esses não prestarem, nos ía expor quatro novos, _todos de tanto peso e authoridade, que não ha para que se desejem outros mais graves_. Destas premissas segue-se, que o testemunho dado a favor de um facto 357 annos depois do tempo em que se diz succedido é _defeituoso e insufficiente_, mas dado 354 annos depois do successo é igual ao de qualquer pessoa, ou de muitas pessoas que houvessem presenciado este, visto que _nada ha mais grave_, do que um testemunho posterior de 354 annos, emquanto o posterior de 357 não presta para nada. Pereira estava doudo, ou gracejava com o publico? Deixo a escolha a v.. postoque estou certo de que das duas explicações ha-de preferir a ultima. Mas o caso não pára aqui. Tenha v.. paciencia, porque não fui eu que quiz discutir o milagre de Ourique; foram os padres, que me têm insultado porque o tractei como elle merecia, que me compelliram a isso. Hão-de esgotar o calix da ignominia até as fézes. Elles dizem do pulpito abaixo que era melhor que eu não tivesse falado em tal; e eu digo-lhes da imprensa, do meu pulpito, que era melhor continuarem a aleijar o latim do breviario e do missal, e deixarem-me em paz escrever a historia verdadeira do meu paiz. Digo que o caso não pára aqui, porque o modo como é narrada a historia da apparição por Olivier de la Marche, descrevendo as armas portuguesas, é curiosissimo. Segundo elle, o conde Henrique tinha escudo branco: depois este escudo adornou-se por quatro vezes: 1.^a quando Affonso I, passando o Tejo, desbaratou em campo d'Ourique (_Cambdorick_) os cinco reis mouros, e, em allusão a cinco bandeiras que lhes tomou, pôs no escudo branco cinco escudetes azues. 2.^a Houve nova mudança quando _o mesmo rei foi a Roma_ emprazado pelo papa. Reprehendido em pleno consistorio por varias culpas, o bom do rei respondeu pondo-se inteiramente nú, e desafiando o papa e os cardeaes para que lhe mostrassem todos junctos tantas chagas no corpo como as cicatrizes das que elle tinha recebido pela fé de Christo. Era maravilhoso, de feito, o numero d'ellas: cinco com visiveis indicios de deverem ter sido mortaes, a não se haver dado milagre no caso. O argumento fora peremptorio. O papa e os cardeaes disseram-lhe que vestisse a camisa; e para lhe darem uma satisfação da injusta pronuncia, mandaram-lhe que em cada um dos escudetes posesse cinco besantes ou arruellas, em memoria daquellas famosissimas lançadas de que os mouros o haviam servido. 3.^a Tendo o infante D. Fernando, rei de Portugal, casado em França com a condessa Maria de Bolonha, teve um filho, chamado Henrique, o qual accrescentou a orla do escudo em que estão os castellos. E sobre este ponto discute o auctor o erro que havia nos dictos castellos, estribando-se na opinião de portuguêses notaveis. Entre estes devo advertir, para o que v.. logo verá, que elle havia já mencionado especialmente _e com elogios extraordinarios_ o celebre Vasco Fernandes de Lucena, que tinha a dignidade de escanção de Madama Margarida, viuva de Carlos o Temerario[33]. A 4.^a alteração, que vinha a ser a quinta fórma das armas reaes portuguesas, foi o pôr-lhes uma cruz firmada no escudo um rei de Portugal (já se vê que muito posterior a Affonso I), facto cuja origem _alguns attribuiam (aucuns veulent dire) a ter-lhe apparecido uma cruz no céu_ durante uma batalha com os sarracenos, o que vendo o principe dissera, orando a Deus, que _mostrasse_ antes a _cruz_ aos infieis, e _assim se fez_, com o que os mouros ficaram desbaratados. Accrescenta Olivier de La Marche que talvez o milagre seja verdadeiro; mas que _para elle a verdade é que o bom rei João_ (D. João I) foi quem ajunctou ás armas portuguesas os quatro braços floreteados firmados no escudo. Aqui tem v.. o testemunho de Olivier de la Marche em toda a sua força e pureza, postoque resumido. Não lhe faço commentarios. Deixo a v.. e a todos homens instruidos que os façam. Eu por mim estou satisfeito. Inverterei aqui a serie dos quatro _irrecusaveis_ testemunhos do padre Pereira, porque tenho uma razão de ordem que me obriga a reservar o segundo para o ultimo logar. Falarei, portanto, do terceiro. Gomes Eannes de Azurara, na continuação da chronica de D. João I por Fernão Lopes, transcreve um discurso feito áquelle principe pelos seus confessores, frei Vasco Pereira e frei João Xira, a quem elrei pedira lhe dissessem se era serviço de Deus intentar a conquista de Ceuta. A resposta dos frades foi affirmativa, estribando-se no exemplo de muitos outros principes e cavalleiros famosos, que haviam acommettido os infiéis na persuasão de que practicavam uma obra meritoria, offerecendo-se á morte. Os que a tinham alcançado, entendiam os dous frades que ficavam equiparados no céu aos martyres, e que os que não a haviam obtido, nem por isso deixavam de ser sanctos, estando resolvidos a morrer alegremente pela fé. Os theologos terminaram a serie dos exemplos (nos quaes figuram entre aquella especie singular de bemaventurados o Cid Ruy Dias e o conde de Castella Fernão Gonçalves, que nunca desconfiaram de que eram sanctos) pela seguinte passagem, conforme se lê na edição de 1644: «...temos ante nossos olhos a memoria do mui notavel, fiel e catholico christão elrei D. Affonso Henriques, cujas reliquias tractamos entre nossas mãos. Vêde, senhor, os signaes que trazeis em vossas bandeiras, e perguntai e sabei como e por que guisa foram ganhados; os quaes certamente de todas as partes mostram a paixão de Nosso Senhor Jesu-Christo, _por cuja reverencia e amor o bemaventurado_ rei offereceu o seu corpo em o campo de Ourique, vencendo aquelles cinco reis, como vossa mercê sabe. Considerae _isso mesmo_ (do mesmo modo) Senhor, _se elle duvidara se o seguinte trabalho era serviço de Deus, não tivereis vós hoje em dia esta mui nobre cidade_ (Lisboa) nem a villa de Santarem, com outros logares, etc.» Este ultimo periodo supprimiu-o Pereira, porque illustrava o sentido das phrases relativas á batalha de Ourique. O que frei João Xira queria dizer era evidentemente, que Affonso I se offerecera a morrer por Christo em Ourique, entendendo que fazia serviço a Deus, como depois, na tomada de Lisboa, Santarem, etc. Onde se fala aqui no milagre? Se houvesse outras testemunhas daquella epocha (1415), que positivamente referissem a apparição, ainda se poderia, embora com violencia, suppôr nas phrases do frade uma allusão ao successo; mas faltando-nos absolutamente esses testemunhos, nada auctorisa tal supposição. Trazer esta passagem para provar, que já em 1415 existia a tradição, ao passo que, para ella poder ter a significação forçada que se lhe quer dar é necessario suppôr a existencia da mesma tradição, o que é, senão um circulo vicioso, uma petição de principio? Não é, porém, só isso. Nestas lendas, inventadas com fins humanos por milagreiros e falsarios, quasi que não é possivel dar um passo sem encontrar falsificação. A chronica de Gomes-Eannes, publicada no fervor da guerra contra os castelhanos, depois da revolução de 1640, e precedida por uma gravura representando a apparição, foi viciada nesta passagem, provavelmente para se ver nella uma allusão obscura ao milagre, como depois viu, ou fingiu ver, o padre Pereira. No codice authentico do Archivo nacional, onde no impresso se lê «_vencendo_», está escripto «_vendo_». «Vendo» torna o sentido da passagem claro. O rei _vendo_ os _cinco_ reis mouros, offereceu o seu corpo a Jesus, e pôs nas suas bandeiras os _cinco_ escudos. Substituida, porém, a palavra _vendo_ por _vencendo_, a phrase obscurece-se; a causa de se pôrem os cincos escudos nas bandeiras, isto é, o serem os reis mouros cinco, desapparece; e a lenda, de que se cria tirar vantagem em 1644, ganha em frei João Xira um novo, postoque bem debil, alliado. Mas supponhamos tudo quanto quizerem. Adoptemos como exacto o texto impresso de Azurara: vejamos ahi a apparição, embora não haja lá uma unica palavra a semelhante respeito. O testemunho singular de frei João Xira em 1415 não seria um pouco tardio para provar um successo de 1139, profundamente esquecido nos chronicons e monumentos coevos? Não o rejeitam as regras da critica sincera; regras estabelecidas accordemente por tantos e tão respeitaveis escriptores ecclesiasticos; regras, emfim, cuja solidez a experiencia demonstra de contínuo aos que se votam a serios estudos historicos? Quer v.. um exemplo domestico da utilidade das doutrinas dos Mabillons, dos Melchior-Canos, dos Fleurys, desprezadas só por aquelles que desprezam tudo, menos os dezeseis tostões de um sermão de milagres? É exemplo que não está no cartorio da camara de Evora, nem nos Commentarios ideaes de Affonso X, mas no Archivo Nacional, onde todos o podem vêr. Consiste n'uma especie de summario historico dos reis de Portugal, lançado no 4.^o volume de Inquirições de Affonso III, no reinado de D. João I. No preambulo daquelle summario, destinado a avaliar-se, á vista dos factos historicos, a genuinidade das doações dos reis anteriores, affirma-se que para o escrever se averiguara com extrema exacção a verdade, fixando-se assim a serie chronologica dos principes portugueses. Sabe v.. qual é a exacção desse monumento destinado a servir de padrão legal, para por elle se afferirem diplomas que importavam á fortuna particular e aos direitos da corôa? Citarei só os erros relativos a Affonso I. Segundo o summario official, elle nasceu em 1092, foi casado com a filha de D. Affonso de Molina, neta do rei de Castella, e morreu em dezembro de 1184. D'aqui verá v.. o credito que deveriam merecer-nos os testemunhos do seculo XIV ou XV, para admittirmos um milagre do seculo XII, quando esses testemunhos existissem, e não fossem um rol vergonhoso de falsificações e mentiras. O quarto testemunho do padre Pereira é o proprio instrumento da apparição, que existiu em Sancta Cruz de Coimbra, antes de se conhecer o de Alcobaça. O auctor dos Novos Testemunhos diz que não sabe se os dous foram uma e a mesma cousa, passando o celebre documento do archivo daquelle mosteiro para o d'Alcobaça. Como demonstra elle, porém, essa existencia? Pelo depoimento de um frade de Sancta Cruz, dado em 1556, e publicado por outro frade cruzio, insigne forjador de textos e diplomas, e chronista da ordem, frei Nicolau de Sancta Maria, declarado falsario pelos seus proprios confrades[34]. Se acreditarmos este, os conegos de Sancta Cruz, _empenhados em fazer canonisar Affonso I_, requereram se tirasse um depoimento de testemunhas sobre os milagres do primeiro rei português, do _Pharaó obdurado_ dos monges de Cella-Nova. Quem primeiramente depôs foi um _dos conegos empenhados_, e foi este que disse constar o milagre de Ourique pelo juramento que existia do mesmo rei. Desse juramento original tiraram-se então em duplicado copias authenticas; uma para se guardar no mosteiro, outra para ir a Roma, o que não chegou a verificar-se. Havia, pois, em Sancta Cruz o original e uma copia em instrumento, e fóra d'alli outra copia authentica. Tudo isto se perdeu, e nada resta de um documento de tanta valia, que forçosamente se havia de guardar com recato, senão a grosseira impostura dos frades bernardos, restando tambem, nos fins do seculo passado, um traslado que se dizia transcripto de _um original_, diverso no seu theor do _outro original_ de Alcobaça, e só semelhante a elle em ter sellos pendentes, cousa que não existia na epocha em que o juramento se diz exarado. O que tudo isto vem a ser é uma serie de vergonhas e miserias repugnantes, e sobretudo de falta de juizo. Se o houvesse nos falsarios, elles nos dariam hoje mais trabalho para atinar com os seus embustes. Se frei Nicolau, ou os conegos de 1156 (porque eu não sei se a historia do depoimento se verificou, ou se é invenção do chronista) se lembrassem do que passou antes d'elles, teriam procedido com mais cautela nas suas mentiras. Quem lê a façanhosa chronica dos conegos regrantes conclue que no tempo de frei Nicolau os pergaminhos originaes eram aos milhares em Sancta Cruz de Coimbra. Pois aqui está o que não só elle proprio, postoque fraca testemunha, mas tambem escriptores mais serios, que se reportam a um documento coevo, nos referem como acontecido em 1411. No dia de Corpo de Deus desse anno, uma tempestade que estourou sobre Coimbra produziu uma chuva espantosa, que quasi destruiu o mosteiro de Sancta Cruz. «A agua (diz o auto que sobre isto se redigiu) levou, além de muitas outras cousas, quatro caixas de escripturas de memorias antigas e de doações que os reis fizeram ao dicto mosteiro, que _todas_ foram molhadas _e a mór parte dellas perdida_». Sabendo elrei D. João I do successo, segundo confessa o mesmo frei Nicolau, ordenou se trasladassem em publica fórma as _doações e mais escripturas_ que restavam dando-se a este transumpto a mesma força dos originaes, «_com o que_, prosegue o chronista, _se restaurou parte da perda de tantas e tão antigas escripturas que hoje nos fazem grande falta_». De duas uma: ou o instrumento da apparição depositado em Sancta Cruz pereceu em 1411, ou escapou. Se escapou, devia ser trasladado no chartulario em que, segundo a ordem delrei, se lançou o que restava. Esse chartulario existia ainda no tempo do chronista, e provavelmente existe ainda hoje. Para que inventaram, pois, o ridiculo pergaminho de Alcobaça? Porque, em vez de imaginarem cem mentiras para amparar a tradição, não foram a Sancta Cruz extrahir desse traslado authentico dez ou cem traslados novos, que tambem seriam historica e até legalmente authenticos? Porque não vão lá buscá-los ainda hoje para confundirem a minha impiedade? Se, porém, o pergaminho original pereceu em 1411, que são essas historias de publicas-fórmas _do original_ feitas pelos notarios Manso e Thomé da Cruz, e não sei por quem mais, senão embustes, ou copias tiradas de um documento falso. Porque eu não disputo, nem me importa, que elle fosse forjado pelos frades de Sancto Agostinho ou pelos de S. Bernardo. Falta o segundo testemunho, que deixei para ultimo logar, porque se prende com o que me resta a dizer a v.. sobre a lenda da apparição. Esse testemunho é o de Vasco Fernandes de Lucena, que, indo como orador da embaixada enviada por D. João II ao papa em 1485, referiu a historia da apparição no discurso que recitou perante Innocencio VIII e perante a curia. Como prova do successo, elle tem pouco mais ou menos o valor do de Olivier de la Marche. Se aos historiadores que escreveram depois de 1495 se não póde attribuir, segundo Pereira, e muito mais segundo as doutrinas dos pios e eruditos escriptores a que me referi na carta antecedente, auctoridade bastante para nos compellirem a acceitar a tradição de Ourique, tê-la-ha, porventura, o testemunho singular de um homem que o refere apenas dez annos antes, tractando-se de um milagre que se diz succedido n'uma epocha anterior de mais de tres seculos? É impossivel que v.. não sinta que semelhante auctoridade nada vale. Eis aqui os testemunhos que Pereira colligiu. O primeiro e o segundo são dos fins do seculo XV, e ainda assim, ao que parece, reduzem-se a um só. Persuadem-no o affirmar Olivier de la Marche que sobre a questão das armas portuguesas ouvira pessoas _notaveis_ de Portugal com quem tractara[35] tendo-se espraiado pouco antes em encarecidos elogios á sciencia e talento de Vasco de Lucena. O terceiro é uma passagem, aliàs viciada, de Gomes Eannes, a qual, quer viciada, quer correcta, não contém uma unica palavra ácerca da apparição. Finalmente, o quarto é o juramento de Affonso Henriques, que _consta_ existia em Sancta Cruz muito antes de Fr. Bernardo de Brito encontrar o de Alcobaça, o qual se não sabe se é o mesmo que estava em Sancta Cruz, mas que nós sabemos perfeitamente que é falso. Eis aqui os testemunhos do milagre de Ourique, «_de tanto peso e auctoridade, que não ha para que se desejem outros mais graves_». Ainda uma vez lembrarei a v.. que lhe deixo a decidir se o padre Pereira escreveu isto em seu juizo, ou se estava dando largas á sua jovialidade. Resta-me só fazer um esforço para acceder, até onde é possivel, a uma pretensão de v.. embora já ficasse provado que ella era infundada. Diz v.. que para refutar plenamente a fabula da apparição deveria eu dizer quando, como, para que, e por quem fora inventada. É evidente que o falsario havia de precaver-se para não o descubrirem, e só elle poderia dizer positivamente qual era o seu intuito quando forjou a patranha. Sendo homem astuto, saberia não somente guardar segredo, mas tambem fazer espalhar com arte a fabula. Que calumnias não tem alevantado uns aos outros os partidos politicos nestes nossos tempos? Muitas dellas, passando primeiro de boca em boca, vindo á imprensa, combatidas pelos calumniados, nem por isso hão deixado de generalisar-se, e de tomar ás vezes tal consistencia, que é possivel passarem algumas, d'aqui a um seculo, por factos historicos, até que uma critica severa e desapaixonada as reduza ao seu justo valor. Sobre a origem da fabula de Ourique não se podem produzir factos decisivos, mas podem reunir-se alguns, que, assim aproximados, offerecerão fundamento a suspeitas vehementes sobre a epocha do nascimento da tradição, sobre seus auctores, e sobre os fins com que foi inventada. Note v.. que eu falo da tradição e não do juramento, que provavelmente, no estado em que hoje o temos, é mais moderno. Quanto a esse invento grosseiro, considerado em si, confesso que me fallece o animo para o analysar. Partamos de um facto. O primeiro testemunho sobre a existencia da tradição relativa ao milagre de Ourique, preciso, incontroverso, é o de Vasco Fernandes de Lucena em 1485: tudo o mais são chronicas que _se perderam_, vestigios que _se apagaram_, obras que _ninguem conhece_. Isto faz lembrar o gracioso livro das _Antiguidades de Evora_, que muitos tem tomado por obra de um tolo, e que na realidade são a satyra dos falsarios e crendeiros, feita por um homem espirituoso e engraçado. Tudo quanto se cita anterior a 1485 são embustes e ridicularias, sem exceptuar as chronicas do tempo de Affonso Henriques attribuidas aos imaginarios chronistas João Camello e Pedro Alfarde, onde se diz que _talvez_ se achasse a tradição. A invenção dos taes chronistas, frades de Sancta Cruz, tinha já sido reduzida a pó pelo cruzio D. Thomás da Incarnação, e por frei Manuel de Figueiredo, frade d'Alcobaça. A referencia a semelhantes mentiras feita por Pereira e por Cenaculo, que escreveram depois de ellas estarem refutadas, prova a _sinceridade_ com que foram redigidos nesta parte os _Cuidados Litterarios_, e tambem os _Novos Testemunhos_. Temos, pois, um homem celebre, um castelhano, erudito, valido de D. João II, que, n'um discurso recitado perante Innocencio VIII, menciona pela primeira vez a apparição. Singular origem de uma fabula, que, revelada por um estrangeiro, vem á luz em terra estrangeira, regida por um governo theocratico, que tem por fundamento primitivo do seu dominio temporal um titulo falso. A memoria de D. João II é odiosa. Entre todos os reis legitimos portugueses, é elle o unico ao qual sem injustiça a historia póde attribuir a qualificação de tyranno. Elle foi quem deu o golpe mortal nas velhas liberdades desta nossa terra. No seu reinado tem de ir buscar o historiador a causa fundamental da nossa decadencia, que começa com o estabelecimento do absolutismo, embora a podridão que corroe a arvore se esconda por alguns annos no cerne. É tambem singular por esta circumstancia a origem da tradição. Nasce, dilata-se, cresce, firmando as raizes no tumulo da liberdade. Vivia em Roma nos primeiros annos do reinado do _principe perfeito_ um foragido português, seu inimigo entranhavel, o cardeal D. Jorge da Costa. Depois do assassinio judicial do duque de Bragança, o cardeal aproveitou o ensejo para malquistar o rei português com Sixto IV. Em consequencia d'isso (ao menos assim se acreditava), o papa enviou em 1483 um nuncio a Portugal, a queixar-se dos abusos do poder temporal contra as pretendidas immunidades da igreja, que o filho de Affonso V respeitava tanto como os foros politicos do reino. Foi o rei emprazado para apparecer ante o papa, por si ou por procurador, para dar explicações ácerca do seu procedimento. Nomearam-se embaixadores; mas antes de partirem, Sixto IV relevou o rei da citação, diz-se que a instancias do mesmo cardeal que excitara a tempestade, receioso de que os ministros portugueses, chegando a Roma, lhe pagassem em igual moeda, fazendo-lhe perder parte do poder e credito de que gosava[36]. Parece, porém, que, emquanto proseguia em Portugal a lucta tenebrosa e encarniçada de uma aristocracia suberba com um rei ambicioso e inexoravel, o cardeal não dormia em Roma. Invectivava-se ahi ou fingia-se invectivar contra a frouxidão de Sixto IV, que deixava o rei português quebrar os privilegios do clero sem se lhe comminarem censuras[37]. Deste clamor sincero, ou desta farça, resultou uma bulla concebida em durissimos termos, que se expediu nos primeiros mezes de 1484. A linguagem della era a linguagem habitual da curia, insolente e grosseira; mas havia ahi uma circumstancia digna de reparo. O papa recordava uma cousa de que os reis portugueses se haviam esquecido; recordava a D. João II que _tinha a dignidade real por dadiva da sé apostolica e de que era seu tributario[38]_. Uma bulla destas faria hoje desatar a rir quaesquer ministros portugueses, até em pleno parlamento. Naquelle tempo, porém, ainda o negocio era um pouco serio. D. João II, se riu, foi em particular. O arcebispo D. João Galvão, um dos valídos do rei e inimigo figadal da familia de Bragança[39], tinha sido transferido, ainda em tempo de Affonso V, da sé suffraganea de Coimbra para a metropolitana de Braga. O arcebispo olhava para as cousas ecclesiasticas como certos prégadores d'hoje olham para a prédica; pelo lado solido. Sem lhe importar obter o pallio, foi usando do titulo de arcebispo e tomando conta das rendas da mitra. Ligado com o rei, que lhe deixava devorar pacificamente tão bom quinhão na mesa ecclesiastica, ajudava-o do modo que podia a opprimir o clero[40]; mas até que ponto eram graves as culpas do arcebispo, que assim se arriscava a perder a dignidade archiepiscopal (como tem succedido a muitos outros) não sei eu dizer: falo pela boca do papa, que lhe dirigiu tambem uma carta de ameaças. O que é certo é que o movedor das fulminantes bullas de Sixto IV, o cardeal da Costa, não devia esquecer-se de carregar a mão no valído do seu adversario. Odio de padre contra padre ainda é mais profundo e tenaz do que contra qualquer secular. As relações com Roma offereciam, pois, um aspecto pouco agradavel, quando Sixto IV veio a fallecer (agosto de 1484) na mesma conjunctura em que elrei apunhalava em Setubal o Duque de Viseu, mandava envenenar o Bispo d'Evora, assassinar D. Gotterre no fundo de um calabouço, e degolar e esquartejar em praça outros fidalgos. D. João I tomara da côrte de Inglaterra o esplendor, os habitos cavalleirosos, o amor da cultura litteraria, as virtudes domesticas, que ainda hoje distinguem as classes elevadas na Gran-Bretanha. Seu bisneto tomava da côrte de França apenas um typo, o de Luiz XI, pelo qual buscava modelar as manifestações da sua alma. A casa de Bragança procedia de D. João I, mas de D. João I antes de rei e simples mestre da ordem d'Aviz. A cruz dessa ordem tinha-se enlaçado com as armas de Portugal, porque D. João I não se esquecera, depois de rei, de que fora o chefe dos freires portugueses de Calatrava. Com as mãos tinctas do sangue do duque de Viseu, D. João II arrancou a cruz do escudo de Portugal, e alterou a posição dos escudetes lateraes, collocados até ahi horisontalmente, dando assim nova fórma ás armas do reino. Dir-se-hia que até d'alli quizera affastar a memoria da linhagem dos seus principaes adversarios. Era essa a causa da mudança? Não o sei. Ruy de Pina, um dos amoucos do principe perfeito, attribue-a a outros motivos. Podemos acceitar ou recusar o seu testemunho, assaz suspeito. O que é certo é que a alteração se fez no mesmo anno de 1484. Hoje a heraldica e os brasões são dixes com que se entretem as creanças barbadas: o jogo do xadrez é cousa incomparavelmente mais grave. Nos fins do seculo XV não era, porém, assim. A attenção da Europa devia volver-se principalmente para o ensanguentado drama que se representava na côrte de Portugal; mas a cruz de Christo expulsa das moedas, dos sellos e das bandeiras do reino, pelas mãos de um rei algoz, havia de dar occasião a mais de um commentario pouco favoravel. Todavia, se, como resavam as lendas, os cinco escudetes representassem uma cruz, e ao mesmo tempo contivessem uma allusão mysteriosa á paixão de Christo; se as arruellas que os ornavam representassem os trinta dinheiros por que Judas vendeu o Senhor, que falta faria a cruz floreteada de Aviz nas armas de Portugal? Não ficava ahi uma cruz mystica, um symbolo piedoso? Fallecido o papa que recordara a D. João II qual era a origem da independencia de Portugal relativamente a Leão, e que ainda ousava lembrar-se do signal de vassallagem que outr'ora se offerecera á igreja de Roma, elle fora substituido por Innocencio VIII. Sabido o successo, elrei resolveu mandar a Roma uma embaixada, para orador da qual escolheu um homem de plena confiança, o castelhano Vasco de Lucena. Quem sabe se elrei tinha algum titulo melhor que as bullas de Lucio II e de Alexandre III ácerca da independencia do reino, e que talvez Affonso Henriques houvesse dado a guardar aos seus chronistas, João Camello e Pedro Alfarde? Se o tivesse, bom seria que os embaixadores advertissem dessa circumstancia o novo papa, tirando assim á curia a vontade de repetir as doutrinas carunchosas e oblitteradas da bulla de Sixto IV. Porei aqui a parte mais interessante do discurso, que o orador de Portugal fez ao papa rodeado dos seus cardeaes, em cujo numero se contava o implacavel velho D. Jorge da Costa. O padre Pereira já traduziu uma porção desse discurso; mas era um preguiçoso aquelle bom do padre Pereira. V.. hade permittir que eu o seja menos, e dê um talho mais largo. Depois de indicar em poucas phrases as origens de Portugal, o orador fala dos primeiros annos do governo de Affonso I e da pequenez dos seus estados; diz-nos em seguida quaes as suas empresas e conquistas: Leiria, Santarem, Lisboa tomadas, o Tejo transposto, a provincia transtagana submettida, com Evora sua capital, Cezimbra e Palmela, fortalezas inexpugnaveis, reduzidas, sendo por elle desbaratados _milhares infinitos_[41] de mouros com poucos cavalleiros. «Outra vez (ou _novamente_)--prosegue Lucena--no campo de Ourique, naquelle sitio a que o _vulgo_ chama _agora_ Cabeças dos Reis, com um pequeno exercito venceu cinco poderosissimos reis mouros. Na qual batalha, para se ver quão porfiada fosse, e quão excessivo o seu valor, cinco vezes lhe quebraram as lanças dos barbaros os escudos que embraçava na mão esquerda. Desta singular e famosa victoria procedeu _fixar elle as insignias e armas dos reis de Portugal_, pondo nellas cinco escudos, e collocando em cada um delles cinco dinheiros, sendo sabido que até então as armas eram um escudo só, todo semeado de besantes. Estes cinco escudos _postos em fórma de cruz_, e estes besantes quinarios _tambem distribuidos em cruz_, que nos indicam senão os trinta dinheiros, preço do sangue de Christo, pelo qual este foi entregue aos judeus pelo crudelissimo Judas? Antes de dar o signal para a batalha, este rei, orando de joelhos, viu o Salvador pendente da cruz, e foi tal a confiança do regio animo, tal a fé gravada no seu coração, que, sem se aterrar com a estupenda maravilha, _se atreveu_ a dizer que _não convinha_ que Christo apparecesse a um firmissimo crente, mas que tal apparecimento era necessario aos hereges, aos que se afastavam da fé christan. D'isto e d'outras cousas, que por brevidade calo, vossa sanctidade conhecerá mais claro que esta luz que nos alumia _por qual constancia d'animo, por qual ardor de virtude, por que prendas, por quaes degráus e successos subiu ao fastigio regio_; como esse varão tão religioso, forte e pio augmentou os estreitos limites do reino, e o libertou do tristissimo jugo da servidão; com que razão, por força da _clarissima vontade e da suprema direcção_ (optimo auspicio) _da eterna magestade_, com _auxilio do povo_ e _adjutorio_ da sancta igreja romana, _tomou o regio nome com direito perfeito_ (optimo jure) _e o legou aos seus successores_; mais feliz nisto que outros principes, dos quaes muitos aspiraram ao titulo real pelo favor dos povos; outros por temor dos seus satellites armados; poucos, a quem o justo Jupiter amou, pelo verdadeiro caminho da virtude.» Aqui tem v.. o que se lê na oração de Lucena relativamente a Affonso I. Note v.. que o orador passava por um dos homens mais instruidos do seu tempo, e não podia por ignorancia fazer o que fez; isto é, inverter a ordem dos successos do reinado d'aquelle principe. Deste discurso o que se deduz é que a batalha de Ourique foi a ultima façanha notavel delle, posterior a tudo, inclusivamente á tomada de Evora, e quem sabe se á bulla de Alexandre III, que concedeu ao principe português a qualificação de rei? O que é certo é que, se a chronologia fingida por Lucena fosse verdadeira, a batalha e o milagre de Ourique, em que elle visivelmente quer fundar a independencia de Portugal, _embora com o favor do povo e de Roma_, teriam sido posteriores á carta de feudo á sé apostolica e á bulla de acceitação de homenagem expedida por Lucio II. Assim, a dignidade do rei e a independencia de Affonso I assentariam n'um titulo, não só incomparavelmente melhor, qual era a vontade de Deus milagrosamente manifestada, mas tambem posterior á offerta e acceitação da homenagem feita em 1144, que por esse facto ficavam invalidadas por inuteis. Presupposto isto, a impertinente recordação da curia romana, inserida na bulla «_Ut saluti_» de Sisto IV, ficava tambem de todo o ponto refutada. Mas dirá v..--o cardeal D. Jorge da Costa, presente ao acto, não podia impugnar este inaudito milagre?--Não se impugnam assim milagres. Reflicta v.. na furia dos padres actuaes contra mim, porque no seculo XIX não creio n'uma fabula provada tal até a saciedade, e imagine se um padre se atreveria a rejeitar o minimo milagre nos fins do seculo XV; e quando se atrevesse a dizer alguma cousa, seria em particular ao papa e aos cardeaes. Outra flagrante mentira dizia ahi Lucena sem temor de que D. Jorge o contradissesse: era a historia dos cinco dínheiros em cada escudete, desmentida por todas as armas reaes gravadas nos sêllos e moedas dos nossos antigos reis da primeira dynastia, começando em Sancho I. Restam muitos desses sêllos e moedas; muitos mais deviam restar naquella epocha: o cardeal era homem instruido e pessoa notavel: havia de ter visto muitissimos; mas nem por isso Lucena titubeou, antes nesta parte o seu discurso, geralmente frio, melifluo, calculado, tem certo sabor de colerica invectiva contra os que disso duvidassem. O descaramento é, ha muitos seculos, um dos dotes do homem d'estado. Outro facto: Vasco Fernandes tinha sido orador de Portugal no concilio de Basiléa, e na embaixada a Roma de 1450; tinha recitado as orações de abertura nas côrtes de 1478 e de 1481. Todas essas orações, que não deviam ser menos elegantes e curiosas, se perderam; apenas escapou a da embaixada de Roma de 1485, e não só escapou, mas tambem foi impressa, e não só foi impressa, mas ainda mais; fizeram-se della duas edições em caracteres gothicos e sem data, ao que parece, estampadas _fóra do reino_ e com todos os signaes de _pertencerem aos primeiros tempos da arte da impressão_[42]. Se de feito a oração foi reproduzida pela imprensa pouco depois de recitada, devia sê-lo fóra do reino, onde a imprensa de livros latinos e vulgares não consta que existisse ainda. Mas duas edições da mesma epocha, que provam, senão que _alguem interessava em dar áquelle discurso a maxima publicidade_? Recorde-se v.. do que eu disse a proposito de Olivier de la Marche, e da influencia que é provavel Lucena tivesse na narrativa do chronista flamengo ácerca das armas de Portugal. Vê-se que em 1492, em que este escrevia, as opiniões andavam encontradas. As armas que ahi mais se deviam conhecer eram as antigas com a cruz d'Aviz, porque a reforma de D. João II tinha apenas oito annos. Entretanto a noticia do milagre de Ourique, postoque alterada, corria já alli, e a alteração provinha de quererem _alguns_ acommodar a fabula ás armas antigas. Consequentemente, outros não queriam: logo disputava-se ácerca disso: logo a historia da apparição era uma cousa nova e incerta. Se ella fosse a explicação sabida e ordinaria, como Lucena dissera em Roma, teria De la Marche accumulado a serie de despropositos que anteriormente transcrevi? Elle falara ácerca d'isto com muitos portugueses, e escrevia á vista das suas informações. O que indica essa completa confusão d'idéas do chronista? Que o milagre de Ourique, caindo inesperadamente no meio das lendas que se ligavam ao brazão dos reis de Portugal, as tinha inteiramente baralhado. Agora note v.. que por estes mesmos annos de 1491 e 92 Lucena devia estar em Flandres, porque é neste tempo que elle começa a intitular-se conde palatino (titulo que parece provir-lhe do cargo d'escanção da viuva de Carlos o Temerario), ao passo que nessa conjunctura o achamos ausente de Portugal[43]. V.. ajuisará das illações que destes factos se podem tirar. Mais ou menos inexactas que sejam as noticias que nos restam ácerca da existencia em Sancta Cruz de Coimbra de um monumento relativo á apparição, parece todavia que alguma cousa ahi houve, e o transumpto do juramento de Affonso I, feito pelo notario Manso _em tempo d'elrei D. João II_, não é de desprezar, logo que um homem como frei Francisco Brandão affirma tê-lo visto. Tal transumpto, se não prova a existencia de um documento verdadeiro, faz crer que _alguma cousa sobre a apparição tinha_ apparecido _em Sancta Cruz no tempo daquelle rei_. Advirta, porém, v.. que D. João Galvão, o arcebispo de Braga, valído de João II, tinha sido prior mór de Sancta Cruz, devendo por isso conservar estreitas relações com os frades, e que a familia Galvão parece ter tido particular tendencia para aquelle mosteiro; um outro D. João Galvão era seu prior crasteiro no principio do seculo XVI, e, como vimos, diz-se que em 1556 um frade cruzio, velho de oitenta annos, o _cartorario_ D. Manuel Galvão, depôs que existia o auto do juramento de Affonso I, _em que os prelados e os grandes da corte estavam assignados_, grossa mentira, seja de passagem dicto, porque o estylo constante, sem excepção no seculo XII e ainda no XIII, era escrever nos diplomas regios o mesmo notario que os exarava os nomes dos prelados e ricos-homens confirmantes. Mas os Galvões não acabam aqui. Duarte Galvão, _irmão do arcebispo valído_, escrevendo depois de 1500 a chronica de Affonso Henriques (no fim da qual adverte _innocentemente_ que seu irmão o arcebispo lhe dissera que tinha motivos para crer _que Affonso Henriques fora sancto_,) introduz na narrativa da batalha de Ourique a historia da apparição, aperfeiçoada com a scena do ermitão que esquecera a Lucena. Galvão refere-se nesta parte ao que _elle mesmo_ (Affonso I) _disse, e dentro da sua historia se contém_, o que parece alludir a uma especie de memoria ou diploma em que figura o filho de D. Theresa, o _Pharaó obdurado_. Tudo o mais, pelo que se colhe da narrativa, andava em fama; isto é, a reprehensão dada pelo rei a Christo por lhe apparecer a elle; as promessas da protecção perpetua do reino feitas por Deus; emfim tudo aquillo que os frades de Alcobaça metteram para dentro do _seu original_ do juramento, porque em verdade era pena que andasse tanta cousa boa só em _confirmada fama_, como diz Duarte Galvão. Mas se os frades bernardos souberam aproveitar esses fragmentos soltos para delles fazerem um juramento vistoso, e de uma apparição rachitica uma apparição ancha e acabada, o chronista não tinha mostrado menos juizo em lhe dar uma applicação util. Para D. João II, morto e sepultado, não servia ella já de nada. A bulla _Ut Saluti_, e Sixto IV, e o seu successor Innocencio VIII tinham desapparecido da scena politica. Na cadeira de S. Pedro estava assentado o sancto padre Alexandre Borgia, que tinha assaz que fazer em administrar piamente a igreja de Deus, para não cogitar na sujeição politica de Portugal á sancta sé. O milagre de Ourique andava de todo desaproveitado. Era uma lastima. O chronista olhou para o mosteiro de Sancta Cruz, especie de viveiro dos Galvões, e entendeu que a apparição lhe podia ser util. Descobriu, portanto, a causa efficiente da apparição, no que ninguem até ahi sonhara. Fora a causa de tamanha mercê do céu o ter Affonso I fundado e enriquecido Sancta Cruz _com grande devoção_. Na verdade isto era em parte mentira; porque as grandes doações de terras, castellos e padroados, feitas por Affonso Henriques áquelles frades, são todas posteriores a 1139 e anterior á batalha de Ourique apenas a de uma horta em Coimbra[44]. Antes, porém, da pontilhuda dialectica dos diplomaticos não se olhava de tão perto para as cousas. A mentira util tornava-se em verdade pelo consenso dos sabios, e sabios eram os inventores de pias fraudes. Ora a utilidade de explorar a tradição em beneficio dos conegos cruzios era indisputavel. Os caseiros e emphyteutas do mosteiro, raça dura e rebelde em pagar suas rendas e foros, não pagava, e ria-se das excommunhões; os officiaes da coroa quebravam impiamente os privilegios da ordem, e até, anteriormente, os villãos de Montemor tinham ousado accusá-la de haver obtido com dolo e mentira parte das suas rendas e direitos senhoriaes[45]. Depois, naquella conjunctura, o mosteiro estava gasto e desbaratado das guerras que pouco antes o prior D. João de Noronha tivera com o bispo de Coimbra, em razão de uma pouca de carne furtada da cozinha do bispo pelos criados do prior; guerras em que se deram cruas batalhas nas praças de Coimbra, sendo necessario que o poder publico mandasse marchar tropas para pacificar á força os dous reverendos campeões[46]. Postos o dominio directo, os direitos senhoriaes, os bens e rendas de Sancta Cruz sob a protecção de um bom milagre, naquella occasião desoccupado, d'ahi só podia provir utilidade aos cruzios sem damno de terceiro. Valia a pena, por isso, de achar a causa verdadeira do milagre de Ourique, com que ninguem ainda tinha atinado. Paro aqui; e peço desculpa a v.. da minha linguagem. Ha cousas que nenhuma equanimidade basta para dellas se falar sem indignação, ou sem riso. É necessario escolher, e eu prefiro o ultimo quando se tracta de embustes e miserias que já não fazem mal. V.. tomará na conta que merecem os factos e as reflexões que no decurso desta carta lhe submetto, e de que no seu foro intimo tirará as conclusões que julgar razoaveis. Terminarei por dizer que sinto haver v.. declarado pela imprensa que se retirava da arena da discussão. Por mais oppostas que sejam em tantas cousas as nossas doutrinas, a contenda pacifica com um homem honesto, cortez e instruido, era-me summamente agradavel. Mas d'hoje avante, dirigindo-me a v.. diz-me a consciencia que não faria uma acção boa. Até certo ponto sería ferir pelas costas um adversario leal. Cessou por isso a nossa correspondencia. Restam mil outros meios de falar com o geral dos homens de bem e sinceros, e de dizer ao meu paiz as verdades em que a guerra da maioria do clero me obriga, por propria defesa, a fazê-lo pensar. V A SCIENCIA ARABICO-ACADEMICA AO SR. A. J. DA SILVA TULLIO (_Março, 1851_) Meu amigo.--Remette-me v.. o folheto de A. C. P. (que me diz ser um «academico» o sr. Antonio Caetano Pereira) destinado a mostrar os crimes, as fabulas, as contradicções, as ignorancias e não sei quantas cousas mais, em que o peccador de mim caiu na narrativa da batalha de Ourique. Pede-me v.. que diga eu alguma cousa no seu jornal acerca desta publicação, a qual fez, segundo v.. affirma, certo effeito, por causa das garabulhas ou gregotins mouriscos, appensos por lithographia ao folheto, como prova dos progressos da arte typographica entre nós, que é o mais que podem provar aquellas esgaratujadas rabiscas. Sabe o bom redactor da _Semana_ a primeira impressão que o folheto me causou? A que em mim produzem muitas cousas que se publicam nesta nossa terra. Lembrei-me da Divina Providencia, para lhe agradecer que o estudo da nossa lingua esteja tão pouco generalisado na Europa. A reputação litteraria do paiz ganha immensamente com isso. Dizem que não se deve nunca desesperar da patria; mas eu confesso-lhe que litterariamente desesperava della, se não fosse a mocidade, á qual Deus queira dar bastante amor do estudo, e alumiá-la com um sancto horror a cruzar os umbraes da Academia. A dizer a verdade, meu amigo, começa a fallecer-me a paciencia e a vontade para discutir cousas que nos escorregam para o chão quando tentamos submettê-las á analyse. Demais, do que eu tracto agora é de pôr quanto antes na imprensa o quarto volume da _Historia de Portugal_, que, em consciencia, me tem dado mais que pensar do que todas as criticas academicas, presentes e futuras. Com a mão no coração, digo-lhe que, _exceptis excipiendis_, o areopago censorio mais inoffensivo, mais divertido até, que ha em todo o mundo é a Academia de Lisboa. Collectivas ou individuaes, as censuras que partem d'alli nem sequer arranham a supposta victima. Se não escorchassem, por via de regra, a grammatica e o senso commum, não só seriam suaves e morbidas; seriam até, permitta-me dizê-lo, voluptuosas. Traduzidas em chim, tomavam-nas por obra de algum collegio de mandarins letrados do celeste imperio. O opusculo que o meu amigo me remette é pasmoso no genero: é um botaréu da maravilhosa fabrica das memorias e actas academicas tirado do seu logar, e a que fizeram perder aquella parte de formosura que lhe houvera resultado da harmonia do todo. Sinceramente, é uma cousa que lastimo. Agora o que, tambem sinceramente, eu não esperava era achar no opusculo certa cortezia nas fórmas que o auctor empregou. Sabía que se estava imprimindo contra mim um cartapacio mourisco. Pensei que fosse obra dos reverendos, que, tão pobres de saber e de intelligencia como ricos de odio, resfolgam pelo respiradouro da injuria a colera que os abafa. E ainda bem! Apesar do nojo que tenho desses pobres-diabos, não quero que elles estourem, porque são meus irmãos, como em gira jesuitica se costuma dizer a cada punhalada que se dá no proximo. Estou já tão affeito aos improperios da imprensa devota, á caridade dos nossos khatibs e ul-máis, que não esperava no imminente opusculo senão mais uma prova a favor da minha crença na atrophia moral e intellectual da maioria do nosso clero, crença que elle se encarregou de demonstrar até a saciedade. Enganei-me: era obra secular; academica, porém cortez; cortez (entendamo-nos) até o ponto de não usar o auctor das phrases dos prostibulos e das tabernas, mas não até o ponto de respeitar o meu caracter moral, porque ahi sou accusado de _falto de sinceridade_ (pag. 10), de _critico cheio de fel_, de _criminoso_ (pag. 15), de _aviltador do valor português_ (pag. 18). Isto, porém, pode ser violento, mas não é immundo. Os mentecaptos indecentes são os que a minha dignidade de escriptor e de homem me não consente refutar. Assim, ser-me-ha licito satisfazer aos desejos do bom redactor da _Semana_ e remetter-lhe algumas notas ácerca deste curioso papel. Uma explicação. Quando digo que não posso refutar mentecaptos indecentes, não quero significar que essa guerra que se me faz, atroz na intenção, ridicula nos effeitos, ha de ficar sem punição. Não sou homem disso; mas tambem não sou homem que gaste polvora com guerrilhas. Hei de ir buscar a seu tempo as columnas de infanteria e os macissos de cavallaria que estão atraz dellas. As miserias que ahi vão pela imprensa contra mim são um veu que encobre, ou antes descobre por demasiado raro, negocio mais grave. Tracta-se hoje de saber se a Europa catholica se hade infeudar de novo ás corrupções da curia romana, com o seu cortejo de jesuitas de todos os formatos, de todas as idades e de todas as mascaras; com os seus titeres inquisitoriaes, com os seus Torquemadas em miniatura. Tentêa-se este solo de Portugal: manda-se hostilisar em mim o progresso das novas idéas, a independencia das opiniões, não porque eu seja o mais forte, mas porque circumstancias, que não preparei nem provoquei, me collocaram na primeira linha do combate. O que é certo é que alguem se ha de enganar ácerca do desfecho da lucta, ou nós, ou esse grupo, essa cousa, que por ahi anda a ajunctar quanto pó e podridão ha no cemiterio dos seculos e a tentar insufflar-lhe vida; essa cousa hedionda, que, incapaz das ambições grandiosas, do despotismo esplendido da Roma de Gregorio VII; repellida pelo evangelho que ella desmente, fulminada pela philosophia que ella detesta, depois de apurar as suas doutrinas espirituaes nas fontes catholicas das margens do Neva, vem refocilar-se para a peleja, e desafiar a justiça de Deus e dos homens atraz dos olhos buliçosos da madona de Frosinone. Aqui, no ultimo occidente, o recontro final ha de ser mais tarde. Que a mocidade não durma, porém! Prepare-se para os dias de prova, e talvez de tribulação, com a severidade dos costumes, que dá a energia moral, e com a severidade do estudo, que subministra as armas para a victoria. Por ora pedem-nos só jesuitas; o perigo da petição não é grande. A igreja da _Memoria_, cujas grimpas vejo d'aqui, collocada lá a meia encosta, vigia a foz do Tejo. Os filhos de Loiola não passariam áquem da barra sem que o sangue de D. José I gemesse nos fundamentos do templo, e este gemido retumbaria pelo reino de Portugal, porque a imprensa tem echos. Entretanto, meu amigo, forcejemos todos por não deshonrar esta terra: empreguemos unidos os nossos esforços para augmentar os thesouros da civilisação no paiz; associemo-nos lealmente a quantas idéas generosas e puras de progresso material e intellectual surgirem no meio de nós. Filhos da imprensa, os nossos deveres são arduos; mas é necessario cumpri-los. Porque estou eu tranquillo no meio da tormenta que ruge? Porque tenho a consciencia de os haver desempenhado escrevendo a historia. Se transigisse com vaidades e mentiras; se vendesse a minha penna a paixões pequenas e más; se recuasse diante de considerações miseraveis, as horas da solidão e do silencio, que são as mais da minha vida, não seriam tão repousadas para mim. Alumiado por essa luz moral, que nunca devemos perder de vista, espero levar ao cabo o empenho que tomei, até porque a historia de Portugal é uma das mais ricas em licções para nos prevenirmos contra as astucias de hypocritas, e essas licções são hoje altamente proficuas. Não ha nella, sob tal aspecto, uma só epocha infertil, desde os tempos barbaros em que o arcebispo João Peculiar, furioso contra o seu suffraganeo de Coimbra, se apoderava dos paços episcopaes deste, convertia a cathedral em estabulo dos seus cavallos, e espalhava por terra as sacras fórmas, n'um impeto de bruta colera, até aquelles, não barbaros mas corruptos, em que os devotos e pios inquisidores, depois de mandarem desconjunctar nos tractos do potro os membros delicados das virgens hebreas, ou das tidas por taes, iam, curvados sobre o leito da dôr, pousar mollemente os olhos lubricos nos debeis corpos das martyres, e fartar a sua luxuria de tigres palpando aquellas carnes pisadas e sangrentas. Quando a justiça de Deus põe a penna na dextra do historiador, ao passo que lhe põe na esquerda os documentos indubitaveis de crimes que pareciam escondidos para sempre debaixo das lousas, elle deve seguir ávante sem hesitar, embora a hypocrisia ruja em redor, porque a missão do historiador tem nesse caso o que quer que seja de divina. E o opusculo sarraceno? Perdoe, meu amigo! O opusculo tinha-me profundamente esquecido. O eruditissímo academico meu adversario declara-me inhabilitado para escrever a historia do dominio mussulmano na Hespanha, porque não sei arabe. Pois então dou-a por não escripta. Largo o titulo de historiador; mas consolo-me com a boa companhia. Masdeu, Noguera, Ferreras não sabiam arabe; Barros não sabia o sanskrito; Raynal não sabia as linguas bunda, tupinamba e iroquesa; Bossuet não sabia as setenta e duas linguas da torre de Babel. O auctor do opusculo passa a demonstrar como eu não sei arabe. Não era preciso: nas notas do meu livro estou mais que confesso. Nunca citei um texto escripto nessa lingua, que não dissesse de que traducção me tinha valido. Eis, todavia, as provas _da minha_ insciencia: Primeira: Attribuo ao nome do Guadiana origem phenicia. E continúo a attribuir-lh'a. O nome radical do rio é _Ana_: e os eruditos concordam geralmente em que a palavra é phenicia. _Guadi_, _wadi_, ou como em mouro direito for, é árabe, e significa rio. Até ahi chega o meu arabismo. Mas não são essas syllabas que o distinguem, porque os sarracenos as ajunctavam a muitos _nomes proprios_ de rios. _Guadiana_ nada mais é que o _rio Ana_. Segunda: Digo que _Alcacer_ significa _paços reaes_. E porque não o havia de dizer? Os _Vestigios arabicos_ de Moura dão-lhe a significação de _palacio acastellado_; e eu, que não sei arabe, mas que sei outras cousas que o auctor do opusculo ignora, affirmo-lhe que naquella epocha o _Al-kassr_ ou _Al-kassba_ (aqui me colhe n'alguma tropelia arabica) era isso, ou mais exactamente, um _castello apalaçado_. Quanto ao adjectivo _reaes_, asseguro-lhe á fé de christão (e tanto da gemma, que não entendo o alcorão) que em virtude das instituições politicas d'aquelles tempos, assim entre sarracenos como entre nazarenos, o _alcacer_ era necessariamente _real_, isto é, dependente do poder publico. Terceira: Chamo a _Ourique_ nome proprio de logar. Sobre isso falaremos d'espaço. Quarta: Interpreto _Iman_ dignidade religiosa. Esta accusação deixou-me quasi academico. Para um arabista parece-me gracejo forte de mais. Pois _Iman_ não significa dignidade religiosa? O auctor do opusculo devia então dizer-nos se o _iman_ era algum capitão de mar e guerra, mercador de retalho, dentista, ou que demonio era o _iman_. Quem a mim me metteu nestes trabalhos sei eu. Foi o celebre traductor e refutador do alcorão, Marraccio, que teve a insolencia de dar sempre á palavra _iman_ a significação de _chefe do culto_, de _principal sacerdote (sacrorum antistes)_[47]: foi o orientalista Von-Hammer[48], que sabe mais das cousas mussulmanas, que toda a eschola arabica de Lisboa desde a sua fundação até hoje: foram todas as exposições da organisação religiosa entre os mussulmanos, não só da Peninsula, mas de todo o mundo. Quinta: Digo ser _Ismar_ corrupção de _Omar_ ou de _Ismael_. É possivel que eu me enganasse: todavia, porque não me fez o auctor do opusculo um favor especial; porque não me citou na historia de Abdel-Halim, na de Conde, na de Al-Makkari, ou na de Al-Keiruani, onde se mencionam milhares de individuos mussulmanos, um só que se chamasse _Ismar_? Assim fico em duvida, e desconfiado de que tenhamos outra anecdota como a d'_Iman_. Felizmente as provas não continuam. Se o auctor proseguisse, temo que demonstrasse contra mim que eu sabía arabe. Era um aperto em que me punha; porque na realidade eu não sei decifrar um unico daquelles engaços de passas, que elle lithographou ao cabo do seu opusculo. Passado o preambulo, o auctor annuncia que vai provar-me pelos historiadores arabes que a batalha d'Ourique foi uma grande batalha e o _golpe fatal dado no dominio mussulmano_. Sancto breve da marca! Sempre são mouros! Se tal affirmam, digo ao illustre arabista que não os acredite. Os monumentos christãos, ainda os mais exaggerados, não contam tanto. O dominio mussulmano ficou como estava depois da jornada d'Ourique. Affonso I voltou muito depressa para os seus estados, ao norte do Mondego, porque sabía do officio de soldado. Sessenta annos de lucta depois da bulha d'Ourique não bastaram para expulsar de todo do actual territorio português os mussulmanos. Apesar da celebre jornada de 1139, Affonso Henriques teve de ir conquistando palmo a palmo a Estremadura e o Alemtejo. Que _golpe fatal_ foi, portanto, esse de Ourique? Ah mouros, mouros! Isso é debicar com o proximo. Depois de citar o que eu refiro como introducção á narrativa da batalha, o opusculo vem deitar-me tudo por terra com um sopro. Errei a chronologia, os nomes dos imperadores almoravides, tudo. Oh peccador de mim! Lá vai o texto do nosso academico arabico: «Nada tem o facto de Ourique, succedido no reinado de Ali-Ben-Taxefin, com Aly-Ibn-Iussuf; porque este Aly-Ibn-Iussuf foi o primeiro imperador da dynastia dos morabethins e falleceu no anno 496 da Hegira, 1103 da era Christã...» «Não foi, _portanto_, no reinado de Aly-Ibn-Iussuf, nem durante o de Aly-Ben-Taxefin, que começou a pretensão do celebre El-Mohdy, mas sim no reinado de Taxefin-Ben-Aly, que succedeu a Aly-Ben-Taxefin, isto é, principiou no reinado do III imperador e só tomou seu maior incremento no meio do reinado do IV imperador da dynastia dos morabethins, que foi Ibrahim-Ben-Taxefin: logo no reinado de Aly-Ben-Taxefin, em cujo tempo foi a batalha de Ourique, não houve revolução, nem politica, nem religiosa, que distrahisse as tropas; o que tudo confirmamos, convidando nossos leitores a que leiam os capitulos desde 32 até 36 inclusivamente da Historia Genealogica dos imperadores mussulmanos, escripta por Abu-Mohammed-Salihn-Abd-Alihim.» Transcrevi todas estas blasphemias historicas, para que se veja com quanta razão dou graças a Deus de que a nossa lingua seja pouco conhecida, e o que se deve esperar de uma academia onde ha destes eruditos. Pús á vista de todos o corpo de delicto. Vamos ao auto. A serie dos imperadores almoravides que resulta das precedentes passagens é a seguinte. 1.^o Aly-Ibn-Iussuf 1103 (morto) 2.^o Aly-Ben-Taxefin 1139 (batalha d'Ourique) 3.^o Taxefin-Ben-Aly (apparecimento do Mahadi) 4.^o Ibrahim-Ben-Taxefin. Em que se funda o auctor? Que é o que cita em seu abono? Unicamente os capitulos 32 a 36 da Historia de Assaleh-Ben-Abdel-Halim, ou Salihn Abd-Alihim, conforme for em mouro a graça de sua mercê, porque não ha dous arabistas que escrevam um nome de gente do mesmo feitio. Ora os capitulos citados[49] têem apenas o pequeno inconveniente de se referirem ás primeiras conquistas dos lamtunenses, e ao estabelecimento do seu dominio na Africa _na segunda metade do seculo XI_. É no capitulo 37 que se narra a primeira passagem á Hespanha de Iussuf-Ibn-Tachfin e a victoria de Zalaka em 1080; no 38 a segunda passagem; no 39 a terceira em que Iussuf incorporou nos seus dominios os estados mussulmanos da Peninsula, que tinham invocado o seu auxilio. Iussuf foi o primeiro imperador almoravide d'Africa e de Hespanha. A serie dos imperadores, que resulta dos capitulos 39 e seguintes da Historia de Assaleh-Abdel-halim é: 1.^o Iussuf-Ibn-Tachfin (fallecido) em 1106 2.^o Aly-Ibn-Iussuf (appel. Abu-Hassan) (fallecido) em 1142 3.^o Tachfin-Ibn-Aly (morto em) 1145 Se o meu amigo comparar isto com o que se diz no opusculo, não me ha-de acreditar. Tem razão. É monstruoso, é incrivel, é absurdo; mas está la. Se quizer desenganar-se, procure a versão de Assaleh pelo padre Moura esplendidamente impressa pela Academia em papel pardo e letra safada. Veja o que diz o historiador arabe, o que eu digo, e o que diz o opusculo. Depois julgue-nos; e, ainda depois, faça idea do que irá pela _Classe de Sciencias Moraes e Bellas-letras_ (ou, como quem o dissesse em português, _e Boas-letras_) da Academia[50]. É assim que esta gente salva a gloria nacional e vindica a bulha d'Ourique contra a minha má fé, contra o fel da minha critica. A má fé é minha. Repare bem nisso. Mas haverá outros textos de Abdel-halim, que tenham alguns capitulos 32 a 36, que nos contem essas historias do opusculo? Na parte da _Historia do Dominio dos Arabes_ por D. J. Conde, relativa á dynastia almoravide, o erudito hespanhol seguiu Assaleh. Esta parte do seu trabalho ficou imperfeita e por isso deve aproveitar-se com cautela. Todavia Conde era incapaz de commetter um erro tão grosseiro como transtornar completamente a chronologia daquella epocha. Isto estava reservado para um membro da nossa academia. Eis o resumo da chronologia de Conde quanto á dynastia almoravide[51]: 1.^o Abu-Bekr-Ibn-Omar (unicamente na Africa) 2.^o Iussuf-Ibn-Tachfin, fallecido na egira 500 (1106-1107) 3.^o Aly-Ibn-Iussuf, fallecido na egira 534 (1139-1140) 4.^o Tachfin-Ibn-Aly fallecido na egira 541 (1146-1147) A ordem dos imperadores é a mesma. Conde atraza dous annos a morte de Aly-Ibn-Iussuf e adianta um a de seu filho. Ainda admittida a chronologia Conde, a jornada de Ourique cai dentro do reinado de Aly-Ibn-Iussuf; porque a Egira 534 correu de _agosto_ de 1139 a agosto de 1140. Os historiadores sarracenos Ibn-Khallekan e Ibn-Al-Khatib consideram Iussuf-Ibn-Tachfin como o fundador da dynastia almoravide. Eis a chronologia seguida por elles: 1.^o Iussuf, fallecido na egira 500 (1106-7) 2.^o Aly, fallecido na egira 537 (1142-3) 3.^o Tachfin, fallecido na egira 539 (1144-5)[52] Já se vê que, segundo a chronologia de Ibn-Khallekan e de Ibn-Al-Khatib, a ordem da dynastia é a mesma, e que o successo d'Ourique tambem cai no reinado de Aly-Ibn-Iussuf. O celebre Abu-l-Feda concorda com elles. «Na Egira de 500--diz Abu-l-Feda--morreu Iussuf-Ibn-Tachfin, _amir al-moslemin_. Succedeu-lhe Aly seu filho (Aly-Ibn-Iussuf) que tomou o titulo de _amir al-moslemin_, como seu pae[53].» Resta apontar o que resulta da narrativa do principal historiador arabe do dominio mussulmano Peninsula, Al-Makkari, ácerca da dynastia almoravide: 1.^o Iussuf-Ibn-Tachfin 1052 a 1106 2.^o Aly-Ibn-Iussuf 1106 a 1143 3.^o Tachfin-Ibn-Aly 1143 a 1145 4.^o Abu-Ishak-Ibrahim-Ibn-Tachfin 1145 a 1147[54] Que tal parece ao meu amigo a erudição arabica da parte sarracena da nossa Academia? Nos arabes vê-se que se encontra exactamente o contrario do que se lê no opusculo. Certamente o auctor descubriu essa deliciosa historia dos almoravides, que nos conta, nos escriptores christãos coevos ou quasi coevos. Sempre era gente que se confessava. Mouro e judeu mentem por officio. Vejamos: A chronica dos godos nas suas referencias aos imperadores almoravides: 1.^o Iussuf (batalha de Zalaka) 1085 aliàs 1086 2.^o Aly-Ibn-Iussuf (cerco de Coimbra) 1117[55] A conimbricense: 2.^o Aly (cerco de Coimbra) 1117[56] Rodrigo de Toledo, o escriptor do seculo XIII mais instruido na litteratura arabe e christã da Peninsula, estabelece para a dynastia almoravide d'Africa e de Hespanha, que diz ter durado 55 annos desde a Egira 484 até a Egira 539, a seguinte chronologia: 1.^o Iussuf-Ibn-Tachfin (principio da dynastia) 1091-2 2.^o Aly-Ibn-Iussuf 3.^o Tachfin-Ibn-Aly (fim da dynastia) 1144-5[57] Ao _digno_ academico restam talvez para estribar as suas famosas historias _almoraviditicas_ (na falta de arabes e christãos) alguns historiadores tartaros, mongoles, ou chinas. É provavel que seja assim. Perdôe, meu amigo, estas extensas citações. Era necessario dar uma prova, que não admittisse subterfugios, dos deploraveis, por não dizer vergonhosos, extremos a que o desejo de me combater tem levado certas pessoas. O auctor do opusculo negou, com a mesma sem cerimonia com que transtornou a serie dos imperadores, que o Mahadi ou Al-mohdi (Mohammed-Ibn-Tiumarta) começasse a revolução almohade no reinado de Aly, e que nos ultimos annos deste reinado, isto é, na epocha da batalha ou recontro de Ourique, essa revolução houvesse tomado um incremento irresistivel. Todavia são os mesmos escriptores arabes que contam o successo como eu o narrei: conta-o o proprio Abdel-halim, em que elle finge estribar-se com uma citação _falsa_; _falsa_, digo, porque tanta confusão involuntaria é moralmente impossivel. A narrativa de Abdel-halim é, que em 1120 appareceu o Mahadi; que de 1122 a 1125 já se achava com forças para vir assentar campo perto de Marrocos; que, tendo fallecido em 1130, tomou o commando dos almohades Abdel-mumen, o qual foi acclamado imperador em 1133, continuando guerra incessante contra os almoravides até os destruir[58]. É elle que, depois de narrar as victorias de Tachfin-Ibn-Aly contra os christãos desde 1126 até 1137, refere que logo passara á Africa[59]. Conde diz-nos que fora chamado por seu pae ameaçado da ultima ruina[60]. Habil e feliz general contra os christãos, esta causa da sua partida parece confirmada, não só pela razão, mas tambem pelo texto de Al-Khatib[61]. Um monumento christão, escripto por individuo do mesmo seculo, a _Chronica Adefonsi Imperatoris_, confirma e particularisa o facto. Narrando os successos de 1138, diz que Tachfin levara comsigo, retirando-se para a Africa, até os mosarabes e os prisioneiros christãos para os oppôr aos almohades[62]. Deixaria acaso em Hespanha a flor das tropas almoravides, quando a defesa de Marrocos o obrigava a converter em soldados os proprios nazarenos captivos? Destroem-se estes factos com citações falsas? Como se explica o abandono d'Aurelia, suppondo a existencia de uma grande batalha dada (exactamente na conjunctura do cerco) no occidente da Peninsula entre almoravides e portugueses, quando de Africa se não dispensava um soldado para a salvação d'aquella chave da fronteira musulmana? Que se póde dizer que tenha um vislumbre de senso commum contra o que a este proposito reflecti? Quem dá documentos de má fé? Sou eu ou os meus adversarios? Ia-me irritando! Em boa paz, o nosso academico arabe não vale a pena disso. Depois d'estas façanhas, o auctor do opusculo prosegue com accusações curiosissimas. Fora extenso de mais citá-las todas. Uma d'ellas é que chamo á serie dos imperadores almoravides _dynastia lamtunense_ para explicar o apparecimento das mulheres no recontro de Ourique, e para taxar de covardes os mesmos almoravides. O auctor faz a mercê de dizer-me que o vocabulo _lamtunense, ou antes almolatamenense_, não serve para indicar covardia. Devéras? E eu que não caía em nada! Isto é incrivel, amigo redactor da _Semana_. Digo mais: era impossivel haver quem fizesse d'estas, se não houvesse academias. Chamei aos principes almoravides _dynastia lamtunense_, ou _lamtunita_, porque todos os historiadores arabes, Ibn-Khaldun, Abdel-halim, Al-Makkari, Al-Khatib, Al-Keiruani, lh'o chamam, e chamam-lh'o para indicar valentia ou covardia tanto como eu. Chamam-lh'o porque, entre as raças bereberes que serviram de nucleo ao imperio almoravide, a de Lamtuna ou Lamta[63] era a principal, e porque Iussuf, o primeiro imperador almoravide, era da tribu de Masufah pertencente a essa raça. Aquella phrase do opusculo «_ou antes almolatamenense_», é deliciosa. Como o nosso arabista precisava de mostrar a sua pobre erudição, fez pouco mais ou menos este raciocinio: «o auctor da Historia de Portugal denomina os principes almoravides _lamtunenses_; eu digo-lhe, _ex auctoritate qua fungor_ que era melhor chamar-lhes _almolatamenenses_»: ora como esta denominação provinha de terem os almoravides cuberto o rosto com veus de mulheres n'uma batalha, e possa crer-se um epigramma contra o seu esforço, embora elle não usasse de tal vocabulo, devia usar, para eu poder reprehendê-lo por isso; porque é uma violencia negar a um pobre escholar arabico a occasião de mostrar erudições _reconditas_. Sabe o meu amigo o que isto faz lembrar? Faz lembrar o prégador que punha o barrete na borda do pulpito, encarregava-o do papel do diabo, e depois convencia-o á sua vontade. Vamos a outro exemplo. No opusculo mourisco affirma-se contra mim: Que os principes almoravides usaram do titulo de _amir-el-muminin_[64]. A prova disto é curiosa, como tudo o mais. Os almoravides usaram-no, segundo o opusculo sarraceno, porque Abdel-halim diz que foi usado duzentos annos antes pelos Benu-Umeyyah (ommiadas) soberanos arabes de Cordova. Não o diz Abdel-halim; di-lo toda a gente; mas que tem o que fizeram os ommiadas com o que fizeram os almoravides? Isto, meu amigo, é incrivel! Acima transcrevi uma passagem de Abu-l-Feda, pela qual se vê que o titulo dos soberanos lamtunenses era _amir-al-moslémin_ (principe dos mussulmanos). Ouçamos agora o sr. Gayangos: «Não consta da historia--diz elle--que Iussuf-Ibn-Tachfin ou algum dos seus successores tomasse nunca o titulo de _Amiru-l-muminin_, que era reservado para o khalifa, ou vigario do propheta no oriente. Contentaram-se pelo contrario, ao que parece, com o titulo mais modesto de _Amiru-l-muslemin_, ou _principe dos moslems_ (de Africa e de Hespanha). Os proprios sultões de Cordova, postoque descendentes do tronco dos Benu-Umeyyah, e tão intimamente ligados com a familia do propheta, não se atreveram a tomar este titulo honorifico emquanto a familia de Abbás não chegou a ser quasi extincta na Asia pelos turcos; e ainda assim, o uso desse titulo foi reputado sacrilego por alguns theologos de Cordova e d'outras cidades da Peninsula[65]». Effectivamente Abu-l-Feda nos certifica que Abderrahman III «foi o primeiro entre os principes ommiadicos do Andalus que se arrogou o titulo de _amir-al-muminin proprio do Khalifa_[66].» Isto não são citações falsas. Por ellas póde ver o meu amigo com quanta exacção eu escrevi ácerca dos almoravides, embora não fosse esse o objecto essencial do meu trabalho, e com quanta leveza foi escripto o opusculo sarraceno destinado a refutar-me. Não fica, porém, aqui o negocio. O academico auctor do opusculo accusa-me de ignorancia da lingua arabe e de historia por dizer que os principes da dynastia almohade adoptaram o titulo de khalifa ou de _amir-al-muminin_, porque, diz elle, o de khalifa só se deu aos imperadores do oriente, e estas palavras khalifa e amir-al-muminin significam diversas cousas. Agradeço a ultima novidade; mas eu não escrevia grammatica; escrevia historia, e, politicamente, as duas expressões eram synonimas. Que se pensaria de quem accusasse d'ignorancia de grammatica e de historia aquelle que, falando do imperador da Russia, dissesse «_o czar ou autocrata_?» Por outra parte para o academico auctor do opusculo affirmar que o titulo de khalifa se deu ou não se deu aos principes mussulmanos do occidente, ainda tem que estudar muito a historia moslemica d'Africa e de Hespanha, cujos rudimentos parece ignorar. Se ler o capitulo 5 do livro 6 d'Al-Makkari, ahi achará que o imperador ommiada de Cordova Abderrahmam III «foi o primeiro soberano da sua familia que assumiu _os titulos de khalifa e de amiru-l-muminin_». Se tambem quizer saber se os principes almohades tomaram ou não o titulo de khalifas, leia Al-Keiruani, e lá achará este periodo: «El-Mohdi _elevou o khalifado_ para os que lhe succederam[67]», e mais adiante, onde se conta certa anecdota do primeiro imperador almohade, Abd-el-mumen, lerá que um poeta da côrte dizia a outro: «Até quando importunarás tu _o khalifa_?»; porque é de advertir que naquelle tempo havia poetas impertinentes, como hoje ha criticos academicamente originaes. Mas, em consciencia, meu amigo, eu ás vezes merecia ser feito socio effectivo da classe de sciencias moraes e bellas-letras! Pois ha simpleza maior do que citar ao auctor do opusculo sarraceno tanta mourisma, quando o proprio Abdel-halim, que, segundo parece, constitue toda a matalotagem arabica do _digno_ academico, se lhe rebella e tumultua dentro do bornal litterario em que o traz mettido? E senão, ouçamo-lo. As palavras mandadas ensinar ao leão e ao papagaio, de que Abdel-mumen se serviu para os almohades o acclamarem imperador, traduzidas por Moura na sua versão de Abdel-halim, são «_as victorias e o poder competem ao califa Abdelmumen_[68]». É verdade que o auctor do folheto, que repete a historia do leão e do papagaio, não sei para me provar o que, traduz, em logar de _califa_, _successor_. Mas aqui para nós, meu amigo, postoque eu não saiba arabe, apostava que isso foi uma esperteza, e que naquella expressão _algalifatu_ (ou, como Moura lê, _el-califa_) anda o que quer que seja de _khalifa_. Estou com pressa de chegar ao fim, porque temo fazer uma carta tamanha como o opusculo, o que seria para o publico, em vez de uma desgraça, duas. Mas faltou-me o animo quando fui a saltar por cima do precioso paragrapho 8, que o auctor destinou para me provar que Ourique não é nome proprio de logar, como eu disse, mas sim appellativo, que significa _adversidade_ ou _infortunio_. Sou, porém, nesta parte absolvido do peccado, porque quem me deitou a perder foi o padre Moura, conforme resa o folheto. Ao menos, valha-nos isso! A consequencia, todavia, immediata deste importante descubrimento, que o digno academico fez, é exactamente a contraria da que elle desejava. Se assim é, torna-se impossivel achar jámais uma passagem de auctor arabe que se refira com certeza ao conflicto de Ourique. Embora até aqui não tenha apparecido essa passagem, podia ainda apparecer; mas desde que a palavra ourique (tirei-lhe o _O_ maiusculo, não pensem que teimo em fazê-la nome proprio) significa só _adversidade_ ou _infortunio_, o caso muda de figura. O combate que Affonso I teve, no fossado de julho de 1139, com os mouros do Alemtéjo é um facto provado pelos testimunhos que eu colligi; o que não está provado, nem se ha de provar nunca, é que elle fosse um successo importante. N'algum escriptor arabe, ainda inedito, que particularisasse muito os acontecimentos de Hespanha naquella epocha podia vir mencionado o recontro do _campo de Ourique_; mas como o auctor do opusculo não consente que esse pobre _o_ tome as dimensões de letra maiuscula, qualquer passagem que appareça ha de ser traduzida pelos arabistas da seguinte maneira: «Houve em 1139 um combate entre os moslems e os infieis _no campo da adversidade ou do infortunio_». Ora como nesse anno, do mesmo modo que nos antecedentes e consequentes, houve muitos recontros entre os christãos e os mussulmanos, segue-se que não saberemos a que conflicto allude o auctor arabe; porque todos os campos de combate são de adversidade ou infortunio para um dos contendores, e talvez para ambos. Realmente este modo de defender a importancia da batalha de Ourique é galantissimo. O que, porém, é verdadeiramente academico e digno do pincel de Molière é o que pondera o auctor do folheto sobre o erro de Moura ácerca da etymologia de Ourique. «É bem clara--diz elle--_ainda para os que não sabem arabe_, a nenhuma analogia que se nota _com o ouvido_ entre _orique_ e _arique_». Agora, quer o meu amigo saber com que palavra arabe _orique_ se parece muito? É com _araka_. Isto não precisa de commentario. Nas contendas dos nossos rapazes ácerca da Stoltz e da Novello, quem devia dar a sentença definitiva era o illustre arabista. Proponham a questão á Academia. Mas a cousa mais sublime, talvez, de todo o folheto vem neste mesmo paragrapho. É uma novidade que escapou a todos os etymologistas e ethnographos. Na translação das palavras de umas linguas para as outras, ellas se transfiguram com a irregularidade que necessariamente resulta da ignorancia das multidões, que são quem ordinariamente faz essas adopções de termos peregrinos. As proprias transformações das linguas são assim, e assim foi que a latina se transformou nos modernos idiomas da Europa occidental. Nestas mudanças e adopções não ha letra que não possa alterar-se; e basta ter uns rudimentos de linguistica para não o ignorar. Agora ouça o meu amigo um mysterio da lingua arabe: «Moura--diz o opusculo--foi buscar a raiz de tal vocabulo no verbo _araka_, cuja primeira letra radical, que é um _alif, não soffre a conversão_ para a letra _o_ nas linguas europeas». Isto quer dizer que aos rudes portugueses do seculo XII, que escorchavam sem piedade quantas letras, quantas palavras celticas, phenicias, gregas, romanas, germanicas lhes caíam nas unhas, era prohibido tocar no _alif_, especie de _noli-me-tangere_ arabico. Certamente, meu amigo, no alcorão ha uma sura intitulada «_Dos escorchamentos etymologicos_» onde o propheta diz: «Todo o infiel nazareno que bulir na sancta letra _alif_ para della engenhar um dos seus maldictos _ós_, vai preso». Foram peccados meus que me impediram d'aprender arabe: teria com isso evitado deixar-me embair por aquelle herege do padre Moura, que pelo que vejo, era um pessimo sarraceno. Depois vem uma longa chicana (perdoe, meu amigo, o gallicismo, mas como isto ha de ser lido pelo digno academico arabista membro da classe de sciencias moraes e bellas-letras, elle entenderá assim melhor a phrase); vem uma longa chicana sobre as palavras _fossado_, _correria_, _entrada_, e não sei que mais, em que o auctor desenvolve uma erudição pasmosa em diccionario de Moraes. Chamei fossado á expedição de Affonso I em 1139, porque todas as etymologias do mundo não podem fazer com que uma cousa deixe de ser o que é. O fossado era uma expedição que se fazia em regra todos os annos no começo do verão ás terras inimigas: questionar sobre isto não sería mais do que mostrar-se profundamente ignorante das nossas cousas antigas. _Correria_ é um nome que cabe ao fossado tão bem como _expedição_; porque correria é uma especie do genero expedição, mais nada. Quem faz uma expedição, fossado, ou correria no territorio inimigo, entra nelle (emquanto o alcorão ou a Academia não mandarem o contrario) e por consequencia faz uma _entrada_. Não é uma miseria, além disso, affirmar-se n'um papel que tem a pretensão de ser cousa séria, que eu me contradigo, porque, chamando correria ao fossado de 1139, exprimo ao mesmo tempo a idéa de que os mussulmanos hespanhoes buscaram em si proprios recursos para atalhar o passo aos invasores na falta das tropas almoravides, visto que (diz-se ahi), sendo a correria um acto repentino, os mussulmanos não podiam precaver-se? Que resposta séria se póde dar a isto? Fique-se entendendo que quando um paiz é invadido rapidamente, os habitantes deixam-se matar como carneiros e não se unem para se defenderem, ou que os soldados que fazem correrias, não andam, mas voam, ou vão em aerostatos descer aonde e quando querem sem que ninguem os veja passar. Dizer que no fossado de Ourique não houve audacia, a ser como eu o narrei, embora as tropas almoravides, ou a melhoria dellas, faltassem, é cousa tão absurda, quanto é certo que essa expedição importava uma longa marcha de cincoenta leguas (que tantas irão de Coimbra ao campo de Ourique) quasi toda por paiz inimigo, porque, como bem observa a chronica dos godos, Ourique ficava _no coração das terras mussulmanas_. Qualquer cabo de esquadra sabe que difficuldades se offerecem á marcha de tropas, embora disciplinadas (como de certo não eram as de Affonso I) atravez de um paiz excitado contra essas tropas pelo fanatismo politico e religioso. O principe português deixava, além disso, na sua retaguarda, por um e por outro lado, logares importantes fortificados, e bem ou mal guarnecidos, taes como Santarem, Lisboa, Alcacer, Elvas, Evora, etc.; o que tornava a volta de Affonso I aos proprios estados duplicadamente arriscada. Emfim, meu amigo, eu deixo nesta parte aos homens intelligentes avaliar se o fossado de Ourique, com as poucas circumstancias que delle sabemos, embora não tivesse as dimensões que lhe attribuiram depois, foi ou não foi um acto de bastante ousadia. De passagem, meu amigo, deixe-me protestar contra um falso testimunho que me levanta o auctor do opusculo, quando, citando textualmente as minhas palavras, me attribue o uso do vocabulo _derrota_ por _destroço_ ou _desbarato_ (dos sarracenos em Ourique). Não escrevi o meu livro para se inserir nas actas da Academia: escrevi-o para o publico português, e por isso na sua lingua, ao menos até onde eu a sabía. Vamos á questão principal. Para a tractar não me parece que fosse necessario accumular previamente tanta inexacção e tanto desproposito. Eu tinha affirmado que os diversos escriptores arabes que nos transmittiram a historia daquella epocha guardaram silencio ácerca da batalha de Ourique. O auctor do opusculo sarraceno firma a proposição _contraria_, isto é, que nesses diversos escriptores arabes se encontram, não só vestigios della, mas tambem a sua _descripção_, e as suas _consequencias terriveis_. Algum de nós, pois, engana o publico; algum de nós commette uma acção indigna de homens de letras affirmando uma cousa opposta á verdade. Eu consultei os historiadores arabes que escreveram a historia do dominio mussulmano na Peninsula, e que estão traduzidos. Era essa unicamente a minha obrigação, porque não sei arabe. O auctor do opusculo _devia_ tê-los visto antes de escrever, e _podia_ ter lido outros, porque diz que sabe arabe. Se a minha narrativa fosse conforme com os primeiros comparados com os monumentos christãos, e o auctor achasse que esses não-traduzidos os desmentiam, devia provar que o seu testimunho era preferivel ao delles e ao dos monumentos christãos, sendo accordes uns com outros. Sem isso nada tinha feito. Ora eu estribei-me na narrativa de Abdel-halim, como a haviam vertido Moura e Conde, e esta narrativa concorda em geral com a chronica latina de Affonso VII, escripta ainda no seculo XII ou nos começos do XIII. Das tres fontes historicas resulta ou não resulta o que eu disse? Resulta ou não resulta, que antes de julho de 1139 Tachfin-Ibn-Aly tinha partido para Africa, levando comsigo as tropas que pôde, sem exceptuar os mosarabes e os captivos christãos? É verdade que o cerco de Aurelia ou Cazorla durou _de abril a setembro ou outubro_[69]? É verdade que os seus defensores pediram debalde soccorro a Tachfin, _que se achava então em Africa_? São, portanto, bem deduzidas as minhas inferencias de que é absurdo imaginar que havia trezentos ou quatrocentos mil mouros para saltarem por cima do exercito do imperador Affonso VII, e virem dar uma batalha campal a Affonso Henriques, e não os havia para descercarem uma praça daquella importancia? É para responder negativamente a estas perguntas de um modo tão categorico como eu as faço, que desafio o auctor do opusculo sarraceno. Ao que se colhe dos monumentos christãos e mussulmanos coevos ou quasi coevos[70] que textos exquisitos e reconditos vem, porém, oppôr o _digno_ academico? Vejamos: Um mouro chamado Hamed-el-Nabil, _que viveu no principio do seculo_ XVII, vindo a Hespanha, escreveu um itinerario. Nelle diz, falando da epocha em que succedeu o caso d'Ourique, as palavras seguintes, que vou transcrever, porque gósto de apresentar o corpo de delicto: «E dizem alguns dos sabios precedentes _sobre_ o governo da Andaluzia (_sic_) que ella muito se engrandeceu: _e na verdade conquistou com boa posse_ (_sic_) muitos dos logares _os_ (_sic_) mais notaveis: e foi isto depois que l'Enrick _derrotou_ os mussulmanos; (_sic_) não persistiram estes depois disso no paiz senão quando obravam pacificamente; e _por isso_ (_sic_) ficaram os christãos neste paiz senhores de suas terras e de suas riquezas (_sic_), (_sic_), (_sic_).» O meu amigo ha de ficar espantado quando souber que nesta salsada, que até certo ponto simula lingua portuguesa, ha, _não só claros vestigios_ da batalha de Ourique, mas tambem a _descripção della e das suas consequencias_. Pois saiba que ha. Saiba tambem que, um ou dous mezes antes de se imprimir o opusculo sarraceno, se dizia pelos cantos, que na Academia se lera uma cousa mourisca, que excitara o enthusiasmo d'alguns daquelles padres-conscriptos, porque ahi se me provava com textos arabes que eu não soubera o que tinha dicto quando falei com tanta irreverencia e falta de patriotismo nesse facto d'Ourique. Rogia-se de um papel achado n'uma tenda de Marrocos, que desmanchava todas as minhas opiniões aereas. No fim de contas era o sr. Hamed, que no principio do seculo XVII tinha escripto em mouro o que o meu amigo ahi vê em meio-mouro. Realmente a cousa é séria, sobretudo exornada com as erudições e commentarios do traductor, a quem Deus dê alguma inclinação mais proveitosa do que esta de traduzir para lingua franca os itinerarios dos viajantes marroquinos. Pretende-se nesses commentarios que o mouro Hamed, na phrase relativa a l'Enrik (que é possivel seja Affonso Henriques) se refira aos mesmos escriptores a quem, sob o nome de sabios precedentes, allude no principio do periodo, e que por sabios precedentes se devem entender antigos escriptores sarracenos, porque os arabes servem-se da palavra _ulmá-i_ para significarem os _seus_ historiadores. Vamos por partes. Se o sr. Hamed escreveu _sabios precedentes_, é porque já tinha dicto quem elles eram: nesse caso, em vez de uma dissertação ácerca da palavra _ulmá-i_, não seria mais simples e mais a proposito dizer-nos o traductor os nomes delles? Teriamos a Bibliotheca de Haji-Khalfah traduzida por Fluegel; teriamos a Bibliotheca de Casiri; teriamos as notas de sr. Gayangos á versão de Al-Makkari, notas preciosas como fonte de erudição arabica; teriamos, emfim, estes ou outros recursos para sabermos que importancia deveriamos dar aos _sabios precedentes_ como auctoridades para os successos do seculo XII, que era o que importava. Hamed ou trinta Hameds, que vivessem em tempos modernos ou houvessem vindo a Hespanha e repetissem o que por cá tivessem ouvido ácerca do recontro d'Ourique ou de outra qualquer cousa succedida 400 ou 500 annos antes, provariam tanto a favor della como a _precedente_ traducção prova que o auctor do opusculo sabe grammatica e conhece a indole da nossa lingua. Suppondo, porém, que Hamed se refira no principio do periodo a historiadores arabes, e que esses historiadores sejam assaz antigos, o que é certo é que a phrase relativa a l'Enrik não é dos taes _sabios precedentes_, mas do proprio Hamed-el-Nabil. Creio que o meu amigo sabe bastante da lingua franca para ver que desde as palavras «_e na verdade_» não são os _sabios precedentes_, mas sim o proprio Hamed, em corpo e alma, quem fala; quem parece querer confirmar com o seu testimunho o dicto delles, se é possivel perceber aquelle _imbroglio_ que o traductor alli arranjou. Mas a curiosidade maior é que o proprio texto está provando que Hamed, longe de alludir ao facto d'Ourique ou a facto algum especial, se refere em geral ás victorias e conquistas de Affonso I, (se é que se refere a isto) as quaes ninguem contesta, e que eu particularisei com a miudeza e exacção, a que os _sabios precedentes_, os _ulmá-i_ da nossa terra, não tinham chegado. Se Hamed se referisse a Ourique falando do desbarato dos mussulmanos por l'Enrik, tudo o mais que vem na passagem seria um rol de mentiras; porque as consequencias materiaes desse recontro foram nenhumas. Como já disse, Affonso Henriques voltou aos seus estados sem conquistar um palmo de terra, e foi annos depois que submetteu a Estremadura e o Alemtéjo, ficando no paiz os mussulmanos que curvaram a cabeça ao jugo christão. Aqui tem o bom redactor da _Semana_ o que é e o que vale o papel da tenda de Marrocos, que devia vir pulverisar o que eu escrevi firmado nos monumentos coevos, e em argumentos de congruencia irresistiveis. É o dicto vago e obscuro de um viajante moderno, dicto que se torce para se fazer com que o pobre mouro diga aquillo em que nem sequer pensou. Que terra esta nossa, meu amigo, em que o auctor de um livro serio é ás vezes obrigado a acceitar o triste encargo de refutar taes miserias! O famoso texto do viajante marroquino é reforçado com um contraforte tirado do Abdel-halim do uso particular do auctor do opusculo; digo do uso particular, porque nem em Conde, nem em Moura se encontra semelhante passagem, nem no logar indicado, nem em outro qualquer. Vamos ver o texto _inedito_ de Assaleh ou de Ibn-Abi-Zara, que o meu critico trouxe á luz do dia: «E neste anno 533 (8 de septembro de 1138 a 27 d'agosto de 1139) desbaratou o general Taxefin as multidões dos christãos _nos campos de Attibbat_; e fez perecer delles um numero extraordinario; e levou de seus prisioneiros _seis mil captivos: em consequencia do que_ partiu para Marrocos, e á sua chegada _lhe saiu ao encontro seu pae_, o imperador dos mussulmanos, _que ficou em profundo desgosto e cheio de grande susto_.» No capitulo 33 do Karttás traduzido pelo padre Moura não vem esta passagem. Entretanto não devo crer que o auctor do opusculo a inventásse. Cumpre suppôr que elle se serviu de algum exemplar mutilado, viciado, ou extremamente incorrecto da obra de Abdel-halim. Na versão de Moura é no capitulo 40 que se contém as ultimas acções do Tachfin na Hespanha, antes de partir para a Africa. Eis o que ella nos diz: «No anno 532 (19 de septembro de 1137 a 7 de septembro de 1138) passou o principe Taxefin de Hespanha para a Mauritania, depois do ter combatido e tomado de assalto _a cidade de Segovia_, levando comsigo _seis mil captivos_; e tendo chegado a Marrocos _veio seu pae encontrá-lo_ com grande pompa e _se alegrou com elle_, etc.[71]» As duas passagens são, se não identicas, por certo parallelas. Tracta-se em ambas da partida de Tachfin para a Africa, depois de obtido um triumpho em que captivou seis mil homens. A differença está nas circumstancias, e _na data_. Qual dessas se deve preferir? Vejamos. Conde refere a partida de Tachfin menos precisamente: mas põe-na como immediata á reducção de Cuenca, a qual fixa em 531 (29 de septembro de 1136 a 18 de septembro de 1137) e assim concorda com Assaleh quanto ao anno da partida, visto que, se Cuenca fosse reduzida nos fins de 531, a saída do principe almoradive para a Africa devia verificar-se já em 532, isto é, nos fins de 1137 ou nos principios de 1138. Com esta data concorda o auctor da chronica de Affonso VII, mencionando a partida de Tachfin para além-mar entre os successos de 1138, e descrevendo a mensagem que lhe enviaram á Africa os defensores de Aurelia durante o cerco posto a esse castello por Affonso VII _em abril de_ 1139. O chronista christão vai de accordo na chronologia com os historiadores arabes sem os conhecer, e limitando-se a narrar os factos que _ouvira ás pessoas que os tinham presenciado_[72]. Não quero suppôr, torno a repetir, que o auctor do opusculo forjasse a passagem que cita, ou que alterasse a data da hegira para provar que Tachfin estava em Hespanha em julho de 1139. N'uma questão em que se tem procurado associar á idéa de que caí n'um erro historico a de que tive em mira deshonrar o meu paiz, tal procedimento fora duplicadamente torpe. Todavia o _digno_ academico ainda assim tem d'escolher entre a ignorancia e a má fé. Se conhecia a chronica de Affonso VII, a narrativa de Conde e a versão de Assaleh por Moura, tinha que fazer duas cousas: primeira, provar que essas auctoridades em que eu me estribava eram insufficientes; segunda, mostrar que o seu manuscripto tinha uma importancia, uma auctoridade tal, que as annullava. Onde o fez? Como o fez? Acaso só porque se mandaram escrever n'uma pedra lithographica uns poucos de caracteres arabicos ou o que quer que seja, provou-se que as palavras que resultam da sua união são indubitaveis como o evangelho, ou sequer que é preferivel a leitura do codice de que se tiraram á leitura de codices já conhecidos e traduzidos por outros arabistas, que pelo menos sabiam tanto arabe como o auctor do opusculo? Á vista destas simples e claras reflexões, o texto de Abdel-halim citado pelo digno academico vale tanto e prova tanto como o de Hamed-el-Nabil. Eu, porém, acceito-o por um momento. Vamos a discuti-lo em si. Que diz o tal texto? Que Tachfin desbaratou no campo da total destruição (Attibbat) as multidões dos christãos; que aprisionou seis mil homens, e que partiu para Marrocos, com o que seu pae ficou cheio de desgosto e de susto. Onde se fala aqui em Ourique? Para entender _Ourique_ por _Attibbat_ o auctor faz o seguinte raciocinio:--«a batalha de Ourique foi de _total destruição_ para os mussulmanos, logo _Attibbat_ é Ourique:»--e querendo provar que o recontro de Ourique foi uma grande batalha, faz outro raciocinio do mesmo jaez:--«Attibbat quer dizer Ourique, logo em Ourique houve uma _total destruição_.»--Todos os argumentos, todas as erudições do folheto nesta parte, embora por outras phrases, reduzem-se a isso; reduzem-se a duas petições de principio. Depois, não é admiravel o desgosto e susto de Aly-Ibn-Iussuf vendo seu filho voltar á Africa depois de uma victoria em que desbarata os christãos, mata muitos, e leva seis mil captivos? Felizmente para Aly, Tachfin não levou, em vez de seis, doze mil captivos, e não deixou o resto passado inteiramente á espada. Se tal acontece, o pobre amir el-moslemin caía fulminado por uma apoplexia. Até o auctor do opusculo achou a cousa absurda. Mas como saíu da difficuldade? Dizendo-nos que o texto arabe tanto póde significar «_Tachfin desbaratou os christãos_» como «_os christãos desbarataram Tachfin_.» Estava eu tão desgostoso por não saber arabe como o velho Aly por seu filho ganhar victorias, quando veio esta declaração consolar-me. A historia é impossivel na lingua arabe; porque a mesma phrase significa branco e significa preto; exprime os dous factos mais oppostos. Os traductores de historias sarracenas tem andado a debicar com a Europa: onde dizem que tal batalha foi ganhada por A contra B, podiam ter dicto com a mesma veracidade que fora ganhada por B contra A. Isto, meu amigo, não se discute: está discutido por si. Depois de vermos sacrificada a logica e até o simples senso commum á necessidade de achar um texto arabe que prove a importancia da batalha de Ourique, o que é mais divertido é o completo esquecimento em que o auctor do opusculo sarraceno, enlevado no seu Abdel-ha-lim _particular_, deixa os monumentos christãos coevos que referem o successo. A chronica lamecense, a conimbricense, a dos godos, todas dizem que o general sarraceno era Ismar (_præside rege Smare_). Se Ismar não significa Tachfin como Attibbat significa Ourique, segue-se que ou mentem as chronicas coevas, ou mente o Abdel-halim _particular_, que diz ter sido o general dos sarracenos o proprio Tachfin, ou a passagem citada não se refere ao successo de Ourique. Daqui parece-me que não ha fugir. A ultima explicação é sem duvida a verdadeira. Essa passagem é evidentemente a que Moura traduziu, e Conde substanciou; passagem que se combina chronologicamente com a narrativa da chronica de Affonso VII, e que no opusculo apparece alterada nas circumstancias e na data. Quem a alterou, e para que fim? Isso pertence a Deus, que vê os corações, e nos ha de julgar a todos no dia de juizo. Depois, como accommodar os factos, que o auctor do opusculo acceita do seu Abdel-halim particular em demonstração da grandeza da batalha, com o que nos diz a chronica dos godos e com o resultado daquella jornada? Pois os mussulmanos são postos em fuga ao primeiro recontro, por um troço de cavalleiros escolhidos (_electi milites_) ficando entrincheirados os restantes dos poucos soldados (_paucis suorum_), de Affonso Henriques, e Tachfin, que foge, leva seis mil prisioneiros? Que digo eu, seis mil! Segundo o commentario do digno academico eram muitos mais. Aquelles seis mil foram escolhidos um a um, no meio do grande vagar que para isso tinham os sarracenos fugitivos, entre milhares de christãos de rebotalho, aos quaes iam cortando os pescoços. As causas determinantes da escolha (que eu deixarei nas paginas do opusculo, porque não as consentem as paginas da _Semana_) deviam tornar os bons dos sarracenos demasiado pechosos na selecção, e pelas minhas contas, para apurarem seis mil como lhes eram precisos, não podiam deixar de refugar os seus cento e noventa quatro mil, esmando pelo baixo. A mim parece-me, salvo o respeito devido a um representante da parte sarracena da Academia, que era melhor ter traduzido do Abdel-halim particular, (lithographando tambem no fim do opusculo o original mourisco e subministrando assim mais abundante alimento á pasmaceira dos parvos) uma carta de Tachfin dirigida ao principe português, escripta ao começar a retirada, e concebida pouco mais ou menos nos seguintes termos: «Meu Affonso-Ibn-Errik. Estou capaz de renegar Mafoma com a grande róta que me déste. Vou para Africa amuado, metter-me em casa de meu pae, que se chama Aly-Ibn-Iussuf, embora os _ulmá-i_ academicos da tua terra queiram á fina força chamar-lhe Aly-Ben-Taxefin. A guerra é guerra, e uma batalha perdida ou ganhada não é motivo para nos desestimarmos. Eu preciso de levar comigo em ar de prisioneiros uns seis mil rapazes christãos airosos e bempostos. Se os podéres dispensar, far-me-has nisso particular favor e uma acção de cortezia. Só Deus é Deus e Mohammed o seu propheta. Aos 26 de zilkhada da Hegira 533.»--Com isto ficava tudo explicado. Os seis mil prisioneiros tinham sido uma generosidade do _Pharaó obdurado_, embora fingida; porque, tendo Christo acabado de lhe asseverar que havia de vencer sempre os sarracenos, não só podia fazer presente a Tachfin de todos os soldados imberbes do exercito, mas tambem de quanto soldado barbudo, velho e relho, achasse alli á mão vasculhando o acampamento, os quaes, se não prestassem para mais nada, prestariam para bichos da cozinha do amir-el-moslémin. Meu amigo, n'outro qualquer paiz, uma academia, cujos membros fossem capazes de escrever opusculos destes, dissolvia-se para se reconstruir com outros elementos, aproveitando só, e com grandes cautellas, o pouco que ahi houvesse de aproveitar. A nossa Academia, especie de congregação bernarda que come e dorme, acodem-lhe ás vezes á pelle estes tumores litterarios, estas secreções eruditas, que, longe de a matarem, lhe fortificam a compleição. Deus lhe dê uma longa vida. DO ESTADO DAS CLASSES SERVAS NA PENINSULA DESDE O VIII ATÉ O XII SECULO 1858 I Por mais que a tradição de antigas malquerenças e o ciume da nossa autonomia nos affaste dos outros povos da Hespanha, dos quaes os eventos politicos fizeram, mais ou menos forçadamente, uma só nação, é certo que, apesar de todas as repugnancias entre portugueses e hespanhoes, nas opiniões, nos costumes, nas tendencias moraes de ambas as nações se está revelando a cada passo uma origem commum. Postoque cada uma dellas tenha defeitos especiaes, como os ha de provincia para provincia, dão-se alguns tão nossos e tão hespanhoes, que de per si, sem outros adminiculos, provam de sobejo essa communidade de origem. Esta reflexão occorreu-me naturalmente ao começar um escripto, em que tenho de dizer poucas palavras ácêrca do homem a quem elle é dirigido. Ha na Academia da Historia, de Madrid, um modesto empregado, envolvido na obscuridade da sua situação, sem cargos publicos, sem condecorações, sem pingues sinecuras, e de que talvez se podesse dizer--sem pão--se a Academia não o houvera encarregado das suas collecções litterarias. Este empregado modesto, este homem socialmente obscuro, é todavia um dos maiores eruditos da Hespanha, um dos que mais profundamente e com mais san consciencia (dote raro nestes nossos tempos) tem cavado na rica e tão pouco explorada mina das antigas instituições e costumes da Peninsula, isto é, do que na historia della ha mais serio, mais importante e mais difficil d'estudar. Falo de Thomás Muñoz y Romero, do auctor da _Colleccion de Fueros Municipales_, obra notavel, que, sendo de um homem só, honraria uma corporação litteraria, que a houvesse emprehendido e executado. E todavia, esse livro importante foi interrompido, segundo me affirmam, por falta de protecção; e Muñoz y Romero ainda nada mais é hoje do que era ha dez annos, quando publicou aquelle seu primeiro trabalho, o modesto official da bibliotheca da Academia da Historia! É o que provavelmente succederia ao livro e ao homem nesta terra, neste fragmento da Peninsula chamado Portugal, irmão gemeo desse maior fragmento, que chamam especialmente a Hespanha. Na _Revista Española de Ambos-Mundos_, nos numeros correspondentes a novembro de 1854, appareceram successivamente dous artigos, assignados por Muñoz y Romero, sobre o estado das pessoas nos reinos de Asturias e Leão nos primeiros seculos posteriores á invasão dos Arabes. Escriptos como aquelles, manifestações tão brilhantes de verdadeira sciencia, não são frequentes em publicações periodicas, ainda além dos Pirenéus. Li-os com avidez e interesse sempre crescentes. Ahi encontrei que aprender, e sobretudo pude emfim assentar as minhas idéas ácêrca da origem, ou antes da denominação dos malados e das maladias, ponto em que a propria opinião que adoptara no terceiro volume da Historia de Portugal não me satisfazia completamente. Vi, porém, que discordavamos n'uma questão capital d'historia; no modo de apreciar o estado das classes servis nas Asturias e Leão durante os seculos immediatos á reacção christan, e tive o desgosto de não poder, apesar de todas as considerações do sr. Muñoz, abandonar a propria opinião para adoptar a sua. Ou seja por um modo errado de interpretar os antigos monumentos, a que o meu espirito se tenha affeito, ou porque a razão esteja do meu lado, é certo que nenhum dos muitos documentos que o sr. Muñoz oppõe ás minhas opiniões me pareceu contrariá-las: alguns, pareceu-me que até serviam para as corroborar. Desde esse momento entendi que não sería absolutamente inutil ao progresso dos estudos historicos da Peninsula expôr as duvidas e reflexões que me occorriam sobre a materia, deixando depois aos homens competentes comparar os dous systemas e escolher entre elles. Quando pensava em realisar este designio, sobrevieram acontecimentos que durante quasi dous annos me forçaram a abster-me dos trabalhos historicos. Affastado por tão largo tempo dos meus habituaes estudos, se, á custa de serios desgostos, aprendi muito a respeito dos homens e das cousas do meu tempo e do meu paiz, esqueci tambem muito do que sabía ou cria saber ácêrca dos homens e das cousas do passado. Aberto para mim de novo o caminho dos trabalhos historicos pela força da opinião em lucta com a immoralidade do poder, renovei esses abandonados estudos, mas renovei-os como um dever de consciencia, como um serviço que me exigem, como o cumprimento de um contracto tacito com o publico. O amor, diria antes a religião ardente, com que cultivava a sciencia da historia, perdi-o no campo de batalha. Escrever é hoje para mim o mesmo que ser vereador, jurado, ou membro de um conselho de districto: é um encargo e mais nada. No horisonte das minhas ambições, e Deus sabe se falo sincero, só vejo o dia em que possa depôr a penna, e sumir-me em completa obscuridade. Será esse o melhor da minha vida. Na situação d'animo em que por tanto tempo me achei, a questão dos servos na Peninsula durante os seculos medios esqueceu-me completamente. Veio recordar-m'a, porêm, uma circumstancia casual. Tendo de examinar um volume da _Revue Historique du Droit Français et Étranger_, passou-me pelos olhos um artigo de M. de Rozière (julho e agosto de 1855) sobre o escripto do sr. Muñoz, escripto que o illustre professor, a quem devo mais de uma prova de benevolencia, resume com a sua habitual lucidez, e cuja doutrina acceita como a mais verosimil. A doutrina, porêm, expressamente combatida pelo auctor do opusculo sobre o estado das pessoas nos reinos de Asturias e Leão, nos primeiros seculos depois da invasão arabe, é unicamente a minha. É de mim que elle declara discordar completamente sobre a natureza da servidão na monarchia néo-gothica desde o VIII até o XII seculo. A verosimilhança da sua opinião torna portanto menos provavel para o illustre professor da _École des Chartes_ a doutrina que estabeleci. Se a questão pendesse tão sómente entre mim e o sr. Muñoz, demorar, ou, até, pospôr completamente a defesa da minha theoria ácêrca da servidão n'aquelle periodo não teria grande inconveniente. Os documentos invocados pelo sr. Muñoz e as suas ponderações, e bem assim os documentos que eu citei e as conclusões que delles deduzi estão ao alcance dos homens de letras da Peninsula que se dedicam aos trabalhos historicos; e os archivos de Portugal e de Hespanha encerram centenares de outros monumentos ainda não estudados, que poderiam lançar nova luz sobre o assumpto. Nada mais facil, até, do que conduzirem-nos novas investigações, a mim ou ao sr. Muñoz, a abandonar o proprio systema, porque ambos buscamos sinceramente a verdade. Mas desde que a materia do debate, transpondo os Pirenéus, foi exposta a uma luz que não creio verdadeira, por um homem como Mr. de Rozière, e a um publico privado dos meios de apreciar por si proprio os documentos e raciocinios em que se fundam as duas opiniões oppostas, entendo que é do meu dever publicar as observações que se me offerecem relendo os artigos do sr. Muñoz, observações que, feitas ha dous annos, quando estas materias eram quasi a unica occupação do meu espirito, seriam sem duvida mais efficazes para a defesa de um systema que ainda hoje me parece ser o que melhor se estriba nos antigos documentos, e que ao mesmo tempo melhor os explica. Antes de tudo cumpre determinar bem a materia controversa e circumscrevê-la. Tanto eu como o sr. Muñoz falámos da servidão no periodo em que por successivas transformações o homem de trabalho, o homem escravo, o homem _cousa_ dos romanos chegou a ser a pessoa civil, a pessoa livre, o cidadão mais ou menos humilde dos tempos modernos. Deixando de parte maiores ou menores differenças de opinião entre nós quanto aos tempos da monarchia gothica, ou que se possam deduzir das nossas palavras quanto aos tres ultimos seculos da idade média, limitar-me-hei a expôr o que contradictoriamente entendemos ácerca da situação das classes servis do VIII até o XII seculo. Escrevendo um artigo e não um livro, procurarei affastar todas as questões secundarias que se ligam a esse grande facto da transformação das classes trabalhadoras, e abstrahindo das causas e consequencias da situação em que se acharam os servos depois da invasão arabe e da reacção asturiana (successos coevos e quasi simultaneos) em tudo o que não fôr indispensavel para a clareza da materia, reduzirei o discurso ao que a razão persuade e os monumentos confirmam ácerca do facto geral da transformação gradativa da população serva naquelle periodo de quatro para cinco seculos. II O estudo reflectido dos historiadores arabes e dos monumentos christãos da épocha da conquista e do dominio sarraceno tem feito sentir que essa conquista e esse dominio extranho foram, na historia das invasões e da sujeição de raça a raça, de povo a povo, entre os factos de semelhante ordem, um dos que custaram á humanidade menos tyrannias, menos lagrymas e menos sangue. Tem-se dado o devido desconto ás exaggerações das chronicas e á linguagem de certos escriptores christãos contemporaneos, aonde auctores mais modernos foram buscar os lineamentos dos seus quadros de terror, quando ahi mesmo se encontram as provas de que os factos não correspondem ás expressões genericas com que é descripto como um dos mais crueis flagellos o predominio dos sarracenos na Peninsula. Se juncto ao Guadalete se desmoronou o imperio dos godos, a sociedade wisigothica ficou. As provincias ou as cidades que acceitaram sem resistencia o jugo dos novos senhores não tiveram que padecer senão as consequencias dos grandes movimentos militares sobre qualquer territorio, as violencias accidentaes e individuaes durante a lucta. Em geral, a ordem das relações civis, e uma parte das publicas continuam a subsistir do mesmo modo que d'antes. O tributo e o exercicio das altas funcções da administração do Estado é que mudam. Nas provincias meridionaes da Hespanha fica, até, por algum tempo um simulachro do imperio gothico, o reino de Theodemiro, tributario mas livre, que se incorpora obscuramente depois nos dominios do khalifa. No meu livro busquei desenhar com fidelidade essa nova situação; dar aos successos o seu verdadeiro valor, estribando-me nos monumentos coevos, e fazer sobresair a população mosarabe (godo-romana), tão esquecida em geral pelos historiadores. Entre os mosarabes a situação dos servos devia ser a mesma que entre os godos antes da conquista. Não é provavel que esta formula da sociedade civil se alterasse quando todas as outras se mantinham. Nessa parte a conquista arabe não trouxe o que trazem sempre os grandes abalos politicos, um progresso de civilisação. Succedeu o mesmo com a reacção asturiana? Podia succeder? Pús este problema a mim mesmo, e resolvi-o negativamente; porque a razão e os documentos me forçavam a essa solução negativa. O levantamento de Pelaio não chegou a ser uma revolução: foi uma resistencia: resistencia feliz nos primeiros passos e que não tardou a converter-se n'um perigo serio para o dominio mussulmano. Dentro de poucos annos a reacção obscura de um punhado de soldados godos fundava uma monarchia christan e independente, que se contrapunha ao islamismo triumphante, que estabelecia fronteiras, embora variaveis, e que tomava ou fundava logares fortes, onde os novos senhores da Hespanha encontravam dura repulsa ás suas diligencias para suffocar esta perigosa entidade politica. Da desproporção das forças entre as duas potencias mussulmana e christan, se o nome de potencia póde dar-se aos estados de Pelaio e dos seus immediatos successores, resultava necessariamente um facto. Todo o homem válido devia ser chamado ás armas nas Asturias, mas de um modo em que interviesse a espontaneidade individual. Não alcanço sequer como podesse ser de outro modo. A servidão dos godos; os senhores levando os servos armados ao combate, sem crença, sem ardor, sem interesses moraes ou materiaes que defender, como nos tempos gothicos, sería um facto que não sei como poderia dar em resultado a fundação e engrandecimento da monarchia de Oviedo. Na verdade, com o tempo, as instituições wisigothicas foram-se restaurando á medida que se engrandecia o novo reino, que uma parte do territorio deixava de ser perenne campo de batalha, e que a segurança, maior ou menor, favorecia o maior ou menor desenvolvimento da agricultura e de uma especie de industria. Uma parte da população mosarabe, ou pelas migrações tanto forçadas como espontaneas, ou pela aggregação successiva de territorios habitados por ella, incorporava-se gradualmente na sociedade néo-gothica, e, trazendo comsigo a jurisprudencia antiga, que tinha conservado intacta sob o jugo sarraceno, devia exercer naquelle sentido uma influencia, digamos assim, reaccionaria. Mas o que não podia era destruir a força das circumstancias; o que não podia, n'uma sociedade em cuja origem, em cujo amago estava a resistencia, a espontaneidade, a liberdade, era restabelecer a servidão pessoal antiga em toda a sua plenitude. Supponhâmos um nobre, e até um simples _possessor_, acolhendo-se ás Asturias, a Oviedo, nos tempos de Pelaio ou dos seus immediatos successores. Como arrastará elle comsigo os servos que o rodeiam? Invocará a força publica, a auctoridade mussulmana para os constranger a acompanharem-no? Sería absurda a hypothese. Esse nobre, ou esse _possessor_ ha-de descer á persuasão; ha-de falar de manumissão, ha-de approximar de si o homem envilecido, ha-de recorrer aos afagos, ás promessas. Ficar onde se acha é para o servo a liberdade, quando o senhor abandona o lar domestico. Devemos acaso crer que nelle estão inteiramente mortos todos os instinctos humanos? Supponhâmos a conquista; a accessão de territorio. O mosarabe senhor de servos, que se incorpora por esse facto na sociedade ovetense, acha actuando energicamente nesta o sentimento da liberdade e da espontaneidade individuaes, as classes servis armadas, os antigos laços hierarchicos quebrados em grande parte. Esse facto não influirá em nada nas suas relações com os proprios servos? Depois, além, pouco além, estão os castellos sarracenos, a administração mussulmana. Se elle não affrouxar os rigores da servidão; se não ligar a si o homem de trabalho por algum interesse, por algum motivo racional, será difficil que esse homem o abandone, e que conquiste pela fuga, e talvez pela mudança de fé, a sua emancipação? Se os documentos nos não provassem que a servidão de gleba fora o passo immediato dado pelas classes infimas para a liberdade, a razão, longe de nos persuadir que a servidão se mantivera em Oviedo e Leão como nos tempos gothicos, far-nos-hia antes acreditar que ella fora substituida pelo colonato espontaneo. O colonato, eis o grande meio de ligar o homem de trabalho á terra, por este instincto, por este amor quasi connubial, que une a mãe commum ao individuo que a faz fructificar. Da servidão gothica, porém, para a adscripção havia um passo gigante, e as classes servis eram assás rudes para não perceberem toda a differença do colonato á adscripção, porque essas differenças são pela maior parte de ordem moral. Na practica, materialmente, sobretudo em tempos de bruteza e violencia, n'uma sociedade perturbada e vacillante, as distincções entre a posse e o uso da terra pelo colonato ou pela adscripção não podiam ser demasiado sensiveis. O sentimento, a aspiração do individuo que cultivou o solo, que construiu a choupana, que plantou a arvore é principalmente o não separar-se do campo, da choupana, da arvore. A este sentimento correspondem ambas as formulas de consorcio entre o homem e a terra, mais ou menos imperfeitamente, não tanto em virtude das condições theoricas de cada uma das duas formulas, como do estado mais ou menos civilisado da épocha em que se applicam. Acaso a historia não nos subministra provas de oppressões exercidas sobre colonos espontaneos, e consagradas até por contractos, tão barbaras como as que padeciam os adstrictos á gleba, quando já a adscripção do homem tinha cedido o campo á servidão exclusiva da terra? Assim comprehende-se como a transformação do servo em adscripto podia resultar da situação em que se achou a monarchia ovetense-leonesa no seculo VIII, em vez de resultar della o colonato livre, que á primeira vista a razão nos pinta como mais provavel, e que de feito o era, se abstrahirmos das circumstancias sociaes para só attendermos ás politicas. Mr. de Rozière, expondo o debate entre mim e o sr. Muñoz, diz: «Esta transformação (a da servidão para a adscripção) tinha-se realisado de todo quando os christãos se refugiaram nas Asturias sob o mando de Pelaio? Não o crê o sr. Muñoz, e combate, neste ponto, a opinião dos historiadores de maior credito. Os exemplos, em que esteia o seu pensar, dão a este um alto gráu de verosimilhança. Nelles se vêem escravos destinados ao serviço domestico; uns são cozinheiros, padeiros, sapateiros ou alfaiates; outros empregam-se no commercio e servem nas lojas de venda. Nada ha fixo nas suas funcções, que dependem do capricho do dono. A sorte dos escravos agricolas não é mais segura: uns trocam-nos por cavalgaduras; outros entregam-nos aos mussulmanos em resgate de captivos: todos podem ser separados da propria familia e do campo que cultivaram». N'esta exposição ha uma inexacção chronologica: a doutrina que eu estabeleci não é que a adscripção se tinha já substituido á servidão quando occorreu o alevantamento de Pelaio: é que este alevantamento e a fundação do reino de Oviedo trouxeram de necessidade essa transformação. Sejam quaes forem a differença ou a semelhança entre o meu modo de pensar e o sentir do sr. Muñoz sobre a servidão gothica, não é ahi que está a profunda divergencia entre nós. A divergencia completa refere-se aos tempos posteriores á invasão dos arabes. É, até, o que se deduz do titulo do opusculo do sr. Muñoz: é a essa épocha que verdadeiramente se refere o trabalho publicado na _Revista de Ambos-Mundos_. Eis as suas palavras: «Um escriptor... do vizinho reino de Portugal estabelece a doutrina de que a servidão se distinguia, _na épocha de que tractamos_, em estar vinculada ao solo, não admittindo outra classe de servos senão a dos adscriptos á gleba. A seu vêr não existia nenhuma outra servidão pessoal senão a dos arabes captivos na guerra, o que cremos não ser conforme com o que o mesmo escriptor diz n'outra parte, isto é, que o serviço domestico dos senhores e nobres parece ter sido desempenhado, sob o dominio leonês, por membros das familias adscriptas, e que este serviço se converteu n'um acto espontaneo no seculo XIII. Se os homens e familias podiam contra sua vontade ser separados da gleba, onde se achavam estabelecidos, para o serviço domestico, não podiam chamar-se adscriptos, porque este nome traz comsigo a idéa de inamovibilidade do colono do torrão que cultiva. Além d'isso, a sua opinião não concorda com os monumentos da nossa historia.» N'outra parte do opusculo do sr. Muñoz leem-se as seguintes passagens, em que elle estabelece positivamente a sua theoria relativa á servidão dos tempos neo-gothicos. «A condição dos servos era indubitavelmente a de cousas. Podiam ser vendidos ou dados como um animal domestico, como uma alfaia... Esta opinião, que sustentámos n'uma obra publicada ha annos, foi impugnada pelo sr. Herculano n'uma extensa nota sobre o caracter da servidão na monarchia néo-gothica... Na monarchia néo-gothica continuaram os servos a ser o mesmo que na dos godos... E se em Asturias e em Leão se encontram vestigios de servidão diversa da dos adscriptos, poderão julgá-lo os que examinarem os documentos que já publicámos e os que damos agora á luz.» Effectivamente aos documentos impressos na _Colleccion de Fueros Municipales_, o sr. Muñoz ajuncta muitos outros tendentes, segundo crê, a corroborar a sua doutrina. Que antes de entrar na apreciação delles, me seja permittido fazer breves reflexões. O sr. Muñoz, limitando o debate aos textos dos documentos pospôs os factos sociaes e politicos de que deduzi, digâmos assim _à priorì_, a necessidade de uma profunda alteração das classes servis nas origens da sociedade néo-gothica. Os factos podem não ser como eu os expús, ou as consequencias que delles tirei ser inexactas, ou finalmente essas consequencias não ter tido força bastante para mudar a situação d'aquellas classes: podem peccar de muitos modos as largas observações que fiz a este proposito no terceiro volume da Historia de Portugal, e que tentei resumir em poucos periodos deste modesto trabalho. Mas seria licito deixar ou esquecidas ou inconcussas essas ponderações? O methodo que segui foi estudar os acontecimentos, examinar qual devia ser a sua influencia na condição dos servos, e verificar se os documentos confirmavam _à posteriori_ as illações deduzidas dos mesmos acontecimentos. Bem sei que, prevenido por essas illações, era possivel, era até facil, se quizerem, apreciar preoccupadamente os documentos; não poderia, porém, o sr. Muñoz, interpretando-os sem attender aos factos geraes, ás consequencias naturaes dos successos historicos, ás leis moraes que regem as phases das sociedades, dar-lhes uma significação diversa da verdadeira? Foi, se não me engano, o que de feito lhe succedeu. É essa justamente uma das difficuldades capitaes dos trabalhos historicos relativos á idade media. O historiador tem de attender constantemente á acção e á reacção mutuas dos factos politicos e dos factos sociaes uns sobre os outros para d'ahi deduzir factos desconhecidos; tem de substituir por illações fundadas nas leis que actuam nas sociedades humanas, independentes da vontade dellas, o silencio tantas vezes inopportuno dos monumentos. Quando estes existem e são genuinos, claros e precisos, sem duvida constituem o guia mais seguro para determinar os factos, e se as illações que tirámos os contradizem, é necessario confessar que os principios eram inapplicaveis á hypothese, ou que se applicaram mal. Mas, abstrahindo da questão de genuinidade, são a clareza e a precisão qualidades vulgares nos documentos dessas épochas tenebrosas? O sr. Muñoz sabe tão bem como eu quão raros são os que achamos com taes condições; quantos annos, quantas vigilias é necessario applicar ao estudo dessas fontes historicas para nos habituarmos a comprehendê-las. Á difficuldade, que resulta das referencias a cousas vulgares no tempo em que o documento se redigiu, e que actualmente são desconhecidas ou conhecidas imperfeitamente, ajuncta-se a lingua barbara, ás vezes horrivelmente barbara, que nelles se empregava, mistura monstruosa de latim de todas as epochas com uma linguagem vulgar que hoje se pode reputar morta, tão transformada se acha nas linguas modernas da Peninsula: accresce a isto a differença profunda entre os homens daquelle tempo e os do nosso, no modo de conceber e exprimir as idéas; ajuncta-se a tendencia, quasi invencivel, para vermos as cousas da idade media através do prisma dos habitos, das opiniões, dos costumes, e direi, até, das preoccupações actuaes. Subjugar esta tendencia é difficil; porque presuppoem um esforço de abstracção, de que não são capazes ás vezes os mais robustos espiritos. Mas, vencidos todos estes obstaculos, resta ainda a vencer o que resulta da comparação dos proprios documentos, especialmente quando nelles estudamos as instituições, a organisação da sociedade. É ahi que o talento historico tem de passar por mais dura prova, e onde o discernimento nas apreciações precisa de ser mais subtil. A idade media não procedia sempre como nós das idéas geraes para a applicação especial, ou antes possuia poucas idéas geraes. Os costumes, as instituições, os usos, os factos tinham principalmente o caracter individual, local. Essas poucas idéas geraes que havia eram pela maior parte mal circumscriptas, fluctuantes. D'aqui as antinomias nas doutrinas, a contradicção frequente nos factos. Na verdade o senso moral, a tendencia instinctiva para a generalisação produziam a maior parte das vezes em contraposição ao desordenado, ao repugnante, as analogias ou a identidade de factos, quando se davam as analogias ou a identidade de circumstancias; mas o phenomeno era mais casual do que intencional, e nem por isso faltavam as excepções, a desharmonia, quando as paixões, os interesses ou a inexperiencia vinham augmentar a confusão natural dos tempos barbaros. Saber deduzir os caracteres geraes de uma épocha, debaixo dos seus diversos aspectos, não dos principios que guiavam os homens na vida practica, porque a maior parte das vezes não os havia, mas dos factos isolados, dos monumentos especiaes; differençar a regra da excepção, regra e excepção, que não raro existem só por uma abstracção para nós, e que não existiam para elles, eis a summa difficuldade no estudo dos documentos, da legislação, e das memorias historicas da idade média, mas difficuldade que cumpre superar para se escrever de modo util a historia daquellas obscuras éras. Longe de mim a pretensão vaidosa de ter navegado sem naufragios nesse mar d'escolhos; mas seja-me ainda permittido duvidar de que tal infortunio me occorresse na questão do estado dos servos do VIII até o XII seculo; seja-me licito por emquanto suspeitar que fiz fazer um progresso á historia da Peninsula, collocando á sua verdadeira luz a situação dessa classe durante aquelle periodo. Como já disse, o sr. Muñoz, abstrahindo das considerações _à priori_ que fiz a semelhante respeito, limita-se a combater a minha opinião e a propugnar a sua com os factos que elle crê resultarem de um grande numero de documentos que invoca: limitar-me-hei tambem por isso a apreciar esses documentos e a examinar o que elles provam, recorrendo sómente a outros quando o julgar indispensavel para estribar melhor as minhas affirmativas. III Estabelecendo a doutrina de que o servo continúa a ser na monarchia de Oviedo e Leão o que era entre os godos, o sr. Muñoz funda-a n'uma serie de factos, que em seu entender resultam dos documentos e caracterisam a condição do escravo, a posse e dominio absolutos do homem sobre o homem, a servidão na sua fórma mais completa e humilhante, a do homem-cousa, a do homem animal de trabalho. Estes factos consistem na venda, doação e troca dos individuos sem dependencia de um contracto ácêrca do solo em que elles habitam; em serem arrebatados nas guerras privadas os colonos de herdades privilegiadas ou nobres ou ecclesiasticas, reduzidos á escravidão dos raptores e vendidos por estes como escravos; na entrega dos servos christãos aos sarracenos como preço de resgate de nobres captivos (pag. 5 a 7)[73]; em exercerem os servos os diversos misteres do serviço domestico e os officios mechanicos, sendo parte de taes misteres incompativeis com o cultivo do solo; em viverem alguns nos coutos de igrejas e mosteiros obrigados a serviços geraes, isto é, a quaesquer que lhes mandassem fazer (pag. 12 a 13). Excluidos da representação em juizo pela lei (wisigothica), que não admittia o seu testemunho senão á falta de outras provas, não tinham acção para perseguir um delicto contra a propria pessoa ou contra os filhos; ao dono competia sollicitar a indemnisação do damno padecido pelo servo como de cousa sua. No caso de homicidio, era elle quem tambem obtinha a compensação pecuniaria; e do mesmo modo se o servo matava, feria, ou atacava propriedade alheia, o responsavel era seu dono (pag. 15 e seg.). Os filhos de um servo e de uma serva de diversos donos eram pessoalmente divididos entre elles (pag. 24 e 25). Taes são os factos sociaes que o sr. Muñoz apresenta como contrariando a minha opinião: esses factos estriba-os nos documentos cujas passagens correlativas transcreve, referindo-se outras vezes aos monumentos por elle já publicados na _Colleccion de Fueros_, ou a alguns que se encontram em outros escriptos, principalmente nos appendices da _España Sagrada_. Se o meu animo não fosse sincero; se eu não quizesse trazer á evidencia o erro em que me parece laborar o sr. Muñoz, limitando-me ao que menos importa, á defesa do meu livro, facil me seria annullar as illações tiradas dos documentos invocados contra mim, visto que o sr. Muñoz não nos mostra, nem talvez lhe sería possivel mostrar, que elles se referem a servos de raça e não a prisioneiros de guerra, a sarracenos captivos nas continuas luctas entre os reis de Oviedo e Leão e os principes mussulmanos, ou aos filhos e descendentes desses captivos[74]. Um ponto em que estamos ambos de acôrdo é que a sorte destes era a de verdadeiros escravos. Das chronicas de Sebastião de Salamanca, de Sampiro, do Silense e de outros vemos que o systema de exterminio adoptado a principio pelos immediatos successores de Pelaio não tardou em ser modificado, e que milhares de captivos vinham successivamente caír nos ferros da escravidão, ou reservando-os o rei para si, ou distribuindo-os pelos seus guerreiros. Uma parte dos edificios religiosos alevantados por Fernando-magno foram construidos por esses desgraçados, salvos da morte por uma politica menos deshumana que a dos barbaros reis das Asturias. Com um monumento, porém, tão incontroverso como explicito, eu provei[75] que ainda no meiado do seculo XII a sorte dos mosarabes, aprisionados com as armas na mão pelos soldados dos principes christãos, era analoga á dos crentes do islam, sendo como elles reduzidos á escravidão. Não é crivel que a sua sorte fosse melhor nos seculos anteriores. Ainda suppondo que os documentos citados pelo sr. Muñoz se devessem entender em geral como elle pretende que se entendam, ninguem poderia affirmar que os nomes gothicos a que ahi se allude não fossem sempre e em todos elles de captivos mosarabes ou de filhos seus e não de mouros convertidos ou não convertidos. Tambem me parece que poderia limitar-me a advertir que, fundando-se a minha opinião em muitos documentos, que o sr. Muñoz não se encarrega de interpretar de um modo acorde com a sua doutrina, e tendo, alêm disso, a meu favor as illações que tirei dos successos politicos, poderia considerar todos esses diplomas a que elle recorre apenas como manifestações das violencias, das excepções; como mais uma prova da falta de caracteres constantes, de regras geraes absolutas nos factos sociaes de uma épocha de barbaria e de transformação. Mas estas soluções, que talvez bastassem ao debate, não bastariam á minha consciencia: poderiam abonar uma opinião, aliás estribada em outros fundamentos, mas deixariam certa duvida no espirito dos que estudassem o assumpto. Desçamos, por isso, á analyse dos factos e documentos a que o sr. Muñoz recorre para assentar a existencia da escravidão pessoal como regra nos quatro primeiros seculos da monarchia leonesa. IV A venda, troca e doação dos individuos da classe servil sem dependencia de um contracto relativo ao solo em que habitam é o primeiro facto que affirma o sr. Muñoz, e que estriba nos seguintes documentos: 1.^o Carta de doação á sé de Oviedo por Affonso II em 812. Incluem-se entre as dadivas _mancipia, id est, clericos sacricantores_, dos quaes um é presbytero, outro diacono, e os mais simples _clericos_, talvez ostiarios, psalmistas, exorcistas, etc. Alguns, declara-se terem sido comprados pelo rei. Os outros _mancipia_ são seculares, declarando-se tambem que alguns foram havidos por compra. Os nomes tanto de uns como de outros são godos. 2.^o Carta de dote de 887. O noivo doa á esposa, além de alfaias, bens semoventes e dinheiro, dez _pueros_ e dez _puellas_, 30 villas (aldeias granjas) as quaes diz serem situadas _in Nemitos_, e enumera-as _Generoso_, _Vivente_ etc. 3.^o Doação de marido a mulher, de 1029. Doa, entre outras cousas, _mancipios et mancipiellas quos fuerunt ex gente hismaelitarum et agareni_, os quaes nomeia: uns tem nomes godos, outros nomes arabes. Além destes, doa-lhe _de avolengarum criazone parentum_ varios individuos cujos nomes parece serem todos godos. 4.^o Carta de agnição de 962 em resultado de uma demanda entre o mosteiro de Cella-nova e o conde Ordonho Romaniz. Versava a questão sobre duas granjas ou aldeias, querendo o conde tirar _homines et hereditates de jure monasterii volens eos ad servitutem abdigare_. Apresentaram os monges os seus titulos perante elrei, e quando iam a provar, diz o sr. Muñoz, que o rei Ramiro dera os homens que o conde usurpava, e o bispo D. Rosendo os entregara ao mosteiro, o conde supplicou aos magnates que obtivessem dos monges darem-lhe as duas villas em prestamo vitalicio, _absque homines in adtonitum_, no que os monges convieram. 5.^o Carta de agnição de 1074, em resultado da demanda entre o mosteiro de Cella-nova e a condessa D. Guncina, que affirmava ter o rei Ramiro tirado do testamento (predio ecclesiastico) de Vanate dez homens, os quaes dera ao mosteiro de Porcária. Replicava o abbade de Cella-nova que _de hodie, quod est 120 annos nunquam auditum fuit istum tale verbum_. Julgou-se a favor do abbade. 6.^o Doação de 1094 feita á sé de Lugo por Suario Moniz de varias _villas cum sua criacione et homines pertinentes... excepto Alvito Pepiz et suos filios_. 7.^o Carta de arrhas de 1108 em que o noivo doa varios bens de raiz, e alêm disso, um cavallo baio e _uno homine de creacione_. 8.^o Doação do mosteiro de Sobrado em 1118 feita pela rainha D. Urraca a Fernando Peres e a seu irmão com todos os termos e coutos antigos e suas pertenças, _et cum sua criacione, servos et ancillas, exceptis quibusdam_. 9.^o Memoria da divisão de Rovoredo, sem data, caractéres do seculo XIII. Na opinião do sr. Muñoz pertence ao seculo XI. Um certo Vermudo Cresconiz comprara o sarraceno Sendimiro (nome godo) que fora visavô de Diogo Erit. Este foi a Rovoredo e casou com uma mulher que era vaqueira de Ardio Dias, uma de duas irmans, que, herdando Rovoredo, haviam dividido entre si o predio. Veio em busca delle Pelagio Froilaz (provavelmente herdeiro ou representante de Vermudo Cresconiz) e levou-o comsigo. Seguiu-se uma manda entre Ardio Dias e Pelagio Froilaz, que terminou por uma composição, em virtude da qual ficou Diogo Erit em Rovoredo e foi dada em trôco delle uma irman da vaqueira de Ardio Dias. Taes são os documentos de doação, vendas e escambos, exclusivamente de individuos, que o sr. Muñoz cita em prova da inexacção da minha doutrina. No 1.^o documento peço que se note que as pessoas doadas são denominadas _mancipia_, e não _servos_, e que entre elles um é presbytero, outro diacono, e outros simples clerigos; que os seculares são tambem denominados _mancipia_, e que todos elles tem nomes godos. Pergunto: tolerava a disciplina ecclesiastica recebida na Peninsula naquella epocha, que homens servos, e que continuavam a ser servos, doados ou vendidos depois a bel-prazer de seus donos, fossem elevados não ás menos importantes funcções do culto, mas á ordem do presbyterado e ainda do diaconado? Não era impossivel acumular as condições da servidão e do sacerdocio? Basta abrir o resumo dos canones da igreja d'Hespanha publicados por Aguirre e Cenni para nos desenganarmos da impossibilidade desta associação monstruosa. Todavia o facto da venda de um presbytero, de um diacono e de outros clerigos deu-se no principio do seculo IX, como o prova este documento. Não haverá, porêm, atraz desse facto outro ou outros que o expliquem? A designação de _mancipium_, applicada a individuos dos mais elevados gráus do sacerdocio, o presbyterado e o diaconado, é não menos singular. Notei mais de uma vez no meu livro[76] que a palavra _mancipium_, entre os godos, sem deixar de se tomar ás vezes na significação lata de servo, significava de ordinario o servo infimo, o _escravo_, o individuo reduzido á ultima degradação; significava antes uma _situação_ de aviltamento do que uma _condição_ originaria. São notaveis a este proposito dous logares do codigo wisigothico, a lei que tracta dos _escravos dos servos fiscaes_, e a que tracta dos _mancipia_ dos judeus, quer _ingenuos_, quer servos. Antes de mim já Masdeu tinha feito com pouca differença a mesma observação. Entre os romanos _mancipium_ era synonimo de _servus_, mas a origem dos vocabulos era diversa: _servus_ de _servire_; _mancipium_ de _manu captum_, do homem aprehendido, do prisioneiro reduzido á á escravidão. Evidentemente a designação de _mancipium_ serviu a principio para indicar o captivo, o individuo a quem se deu a vida, que se lhe podia tirar, para o collocar na situação de um animal de carga, de uma alfaia; representou um facto accidental, personalissimo, differente da servidão herdada, da servidão de raça, ou para exprimirmos com dous vocabulos modernos duas idéas semelhantes, mas diversas, o _mancipium_ era servo, mas _escravo_. Na Russia ha _servos_; na America ha _escravos_. Note-se, porêm, que com este exemplo não quero estabelecer analogia completa entre a distincção primitiva e a distincção actual. Baste, porém, que _mancipium_ servisse entre os godos para exprimir especialmente a mais vil servidão, a escravidão. Não teria a palavra na monarchia neo-gothica este mesmo valor especial, embora ás vezes pela fluctuação da linguagem (fluctuação que existe sempre, mas que é grandissima nas epochas barbaras) se tomasse como synonimo de servo, por isso que, n'um grande numero de relações, a sorte de um e a sorte de outro eram identicas? No 3.^o documento que cita o sr. Muñoz, os individuos doados são denominados _mancipios_ e _mancipiellas_, e exprime-se que são da gente ismaelita e agarena; que são captivos. N'uma carta de doação á sé de Lugo[77] de 897 Affonso III doa-lhe, além de outras cousas, _mancipia, quae ex hismaelitarum terra captiva duximus_. No meio de uma lucta odienta e atroz, como foi durante o seculo VIII e ainda durante o IX a das monarchias de Oviedo e de Cordova, é natural, é crivel, sequer, que a sorte dos prisioneiros de guerra que não eram passados á espada fosse inteiramente a mesma dos servos de raça, classe a que, além de outros, um documento de 985 chama _servos originales_[78], por infima que se reputasse a condição destes? E não haveria um meio de expressar por palavra ou por escripto a differença das duas situações, quando fosse necessario fazê-la sentir? É indubitavel, á vista das chronicas coevas e dos documentos, que os reis de Oviedo e Leão e os seus capitães, alargando os limites da monarchia ou reduzindo o poder mussulmano por victorias repetidas, por saltos e correrias inesperadas, por devastações e incendios, conduziam annualmente para o interior das provincias ovetense-leonesas milhares e milhares de captivos. Devemos acaso suppôr que nenhum desses contractos sobre individuos pessoalmente escravos, em que se calla a procedencia dos mesmos individuos, se refira a prisioneiros de guerra, e que entre estes não houvesse muitos mosarabes? A pretensão parece-me que sería insustentavel. Embora eu não queira, nem seja preciso explicar por esse facto muitos dos documentos citados pelo sr. Muñoz, ha outros em que semelhante explicação é a mais simples e natural, e a este numero pertence indubitavelmente a doação de 812. Civilmente, socialmente, os mosarabes eram sarracenos. Do modo como essa grande maioria da população romano-gothica buscava em geral assimilar-se aos conquistadores temos sobejas provas nos escriptos contemporaneos de Alvaro de Cordova, d'Eulogio, do biographo de João de Gorze, nas actas dos martyres Voto e Felix e em outros monumentos. Os mosarabes serviam nos exercitos mussulmanos e por consequencia combatiam contra os seus correligionarios. Entre os altos officiaes da coroa na corte de Cordova figuram condes godos, e apparecem-nos a cada passo magistrados, funccionarios, prelados, sacerdotes godo-romanos nas provincias do vasto imperio dos Benu-Umeyyas. Quantos destes, pospondo as questões religiosas, e adoptando a tolerancia dos dominadores arabes, seriam verdadeiramente addictos á situação politica em que se achavam, elles que abraçavam não raro os nomes proprios, os costumes, as usanças, a civilisação e a lingua dos mussulmanos, a ponto de esquecerem completamente o idioma neo-latino, segundo o testemunho de Alvaro de Cordova; elles que admittiam, até, a circumcisão, se acreditarmos o _Indiculum_ e a biographia de João de Gorze? Não achamos nós ainda no seculo XI os bispos mosarabes, esquecidos das funcções episcopaes, e dedicados inteiramente á vida politica, empregarem-se no serviço profano dos respectivos soberanos sarracenos?[79] Se nos proprios estados dos reis de Leão a mistura dos usos mussulmanos com os christãos dava ás vezes, nas exterioridades do culto, occasião a factos que seriam comicos, se não fossem irreverentes[80], o que seria essa mistura entre mosarabes e ismaelitas nos estados mahometanos? Imaginar, portanto, que entre os milhares de captivos que annualmente eram arrastados da Spania para os sertões das Asturias e de Leão não vinha um grande numero, digamos assim, de _sarracenos christãos_; que entre uns e outros captivos se fazia distincção, se poderia sequer fazer; que os violentos e brutaes barões e cavalleiros dos reis leoneses consentiriam em perder uma parte dos seus escravos, que exteriormente em nada se differençavam dos restantes, dos verdadeiros mussulmanos, ainda admittindo gratuitamente que os principes o desejassem, seria suppôr uma cousa inacreditavel, embora não existisse o testemunho do biographo de S. Theotonio, testemunho preciso de que a praxe era inteiramente contraria. Na adiantada civilisação de hoje não se comprehenderia o direito de vida ou de morte sobre os prisioneiros de guerra, e nem sequer a escravidão para o vencido, ou que possa haver outros prisioneiros senão combatentes. Deste estado da civilisação derivam a distincção entre prisioneiro e prisioneiro, e os diversos gráus de benevolencia e de attenções para com os mais qualificados. Entre barbaros ou nas eras barbaras, o nosso proceder, as nossas idéas actuaes a este respeito seriam igualmente incomprehensiveis. Na verdade o senhor do captivo, sabendo que se apoderara de um homem opulento, importante entre os adversarios, podia por calculo de cubiça tractá-lo melhor, evitar-lhe os padecimentos e as injurias á espera de avultado resgate. Mas a regra, o principio, a idéa de então consistia em ser o captivo, fosse quem fosse, como um ente novo, a cujo nascimento, digamos assim, não se tinha opposto o gume da espada. O passado desse ente não importava para nada. Era um animal, uma propriedade do que o captivara e que licitamente poderia ter feito com que não existisse: era o _manu-captum_, a acquisição, o escravo; emfim, o _homem-cousa_. Tendo presentes todos estes factos, que o sr. Muñoz não ignora, mas que me era necessario recordar aqui, entende-se facilmente a doação de Affonso II á sé de Oviedo: entende-se como esses clerigos podiam ser em parte comprados, em parte libertados pelo rei, e unidos á sé ovetense. Eram mosarabes arrebatados, mau grado seu, por occasião de alguma correria. Pelos canones da igreja gothica os sacerdotes viviam n'uma especie de adscripção canonica á igreja a que pertenciam, e Affonso II, conforme o chronicon de Albaida, foi quem restabeleceu em Oviedo as jerarchias civis e ecclesiasticas dos godos[81]. Resgatando aquelles individuos da escravidão, e ligando-os indissoluvelmente á sé ovetense, respeitava as idéas do seu tempo e mantinha a antiga disciplina ecclesiastica, embora o fizesse de modo um tanto rude. Se admittissemos, porêm, a hypothese de que elles eram servos originarios semelhantes aos servos dos tempos gothicos, que como taes haviam recebido ordens sacras, que, depois de doados á sé de Oviedo, continuavam a ser o que eram, segundo a theoria do sr. Muñoz, isto é cousas e não pessoas, e que, portanto, podiam ser destinados pelo bispo Adaulfo para exercerem os mais abjectos misteres, o diploma de 812 ficaria não só repugnando á historia, mas sendo, alêm disso, um indecifravel mysterio. Este documento não me escapou quando redigia o VII livro da Historia de Portugal; mas tinha de attender a muitos outros, de condensar muitos factos sociaes em poucos periodos. Não podia descer á analyse minuciosa delle. Estava tão convencido da verdade da doutrina que estabeleci, que não o julguei sufficiente para a destruir. O leitor avaliará se elle effectivamente a destroe. Suppús que, quando muito, era uma das anomalias tão frequentes nos factos sociaes dos tempos barbaros, a manifestação da anarchia que reinava ainda nas idéas e nos factos. A analyse parece-me provar que nem sequer isso era. O 2.^o documento explica-se como o antecedente pela existencia d'escravos captivos. É notavel que nelle tambem se evite a palavra _servos_, mais generica, para se empregar a singular expressão _pueros_ e _puellas_. Parece haver a necessidade de recorrer a um vocabulo especial para exprimir uma variedade da servidão. Além disso, este documento parece igualmente entrar na categoria de varios outros que citei no meu livro para provar a adhesão do servo originario á gleba, pelo modo por que indistinctamente se empregava o nome do individuo ou o da propriedade para designar esta. Doando trinta granjas, o doador declara que são situadas no districto de Nemitos, e que são _Generoso_, _Vivente_ &c. nomes proprios de individuos e não de predios. O 3.^o documento creio servir antes para combater a opinião de sr. Muñoz do que a minha. O doador distingue em dous grupos os servos doados: a 1.^a dos _mancipios_ e _mancipiellas que foram das gentes dos ismaelitas e agarenos_, e dos quaes, todavia, uns tem nomes godos, outros nomes arabes: a 2.^a dos _homens de creação havidos de avoengas_ (heranças de familia) _dos antepassados_ (do doador) e cujos nomes são todos godos. Porque a divisão em dous grupos, se a condição dos que pertencem a uma e a dos que pertencem a outra é absolutamente identica? Porque uns são chamados _mancipios_, outros _homens de creação_, equivalente de servos de raça? Porque entre os _mancipios_ tem uns nomes godos e outros arabes, emquanto os de _criazione_ são todos godos? Peço ao sr. Muñoz que aproxime estes factos das ponderações que acima fiz, e que decida depois se o documento prova contra a minha, se contra a sua doutrina. Refere-se no 4.^o documento a historia de uma demanda entre o conde Ordonho Romaniz e o mosteiro de Cellanova ácêrca de certas herdades do mosteiro e dos homens que n'ellas viviam. O que neste documento importa para a questão é o desfecho da contenda. Convencido de que não tinha razão, o conde propôs aos monges uma transacção, que acceitaram, e que consistia em elle possuir as granjas emquanto vivo _absque homines in adtonitum_. Nestas ultimas palavras o sr. Muñoz vê a separação dos homens da terra. Será essa a verdadeira interpretação? _Adtonitum_ é evidentemente a traducção latino-barbara da palavra _atondo_. _Atondo_ significava alfaia, _traste de uso_, _objecto de serviço_. As obrigações do servo de gleba, como depois as dos colonos livres em seculos mais proximos de nós, eram, em relação ao senhor da gleba, e depois em relação ao senhorio directo do predio, de duas especies--prestações agrarias e serviços pessoaes; estes abrangiam serviços de todo o genero, ainda os mais baixos; alguns, até, que poderiam ser feitos por animaes domesticos. Nada mais facil, portanto, do que applicar a palavra _atondo_ ao serviço pessoal dos servos, n'uma épocha que de certo se não distinguia pela precisão rigorosa da linguagem[82]. Que ficava percebendo Ordonho por aquella concessão dos frades? As prestações agrarias. Os serviços pessoaes ficavam ao mosteiro. E os monges procediam assisadamente fazendo uma concessão restricta ao homem poderoso. Pelos individuos que agricultavam as glebas, cujos redditos senhoriaes elles cediam vitaliciamente ao conde, ficando aliás esses individuos ligados pelos serviços pessoaes ao mosteiro, era facil provar a todo o tempo a quem o solo pertencia, se, como eu creio, o servo se achava unido ao predio que agricultava e onde vivia. Não comprehendo como possa applicar-se á materia debatida o 5.^o documento citado pelo sr. Muñoz. Para elle servir ao intento era necessario que a condessa D. Guncina provasse o que affirmava. Não o provou, porque a sentença deu-se a favor dos frades. Logo a separação dos dez homens pelo rei Ramiro nunca existiu conforme o que pretendia o abbade de Cellanova. Supponhamos, porém, que fosse verdade o que ella dizia. N'esse caso perguntaria: d'onde consta que dez glebas do testamento de Vanate não passaram com os dez homens para o dominio do mosteiro de Porcária? A contenda podia versar sobre os dez servos e os dez predios, embora se falasse unicamente de homens: esta confusão da linguagem juridica nos documentos daquelles tempos é uma cousa que me parece ter demonstrado no meu livro até a evidencia. No 6.^o documento doam-se varias granjas _com sua criacione et homines pertinentes_, exceptuando um d'estes homens com seus filhos. Não comprehendo igualmente como se possa invocar contra mim um documento de que me poderia ter servido, cumulativamente com tantos outros, para estribar a minha theoria, se o houvera conhecido. A phrase latino-barbara acima citada exprime exactamente a situação dos servos: doam-se as glebas com a _sua_ creação, com os homens _que lhes pertencem_. Supponhamos que a reserva que se faz de uma familia signifique o que o sr. Muñoz pretende. Sería um acto legitimo ou illegitimo; mas o que é certo, pelo menos, é que até ahi essa familia pertencia áquellas glebas como os outros homens de creação. Isoladamente este documento não seria bastante para provar o facto geral da adscripção, embora prove que havia adscriptos; mas o que elle de certo não prova é que a situação dos servos na sociedade leonesa fosse a mesma dos tempos gothicos. A adhesão á gleba era um facto de indole complexa. Por um lado era um progresso immenso das classes laboriosas no caminho da liberdade; por outro uma garantia para os donos do solo; porque, circumscrevendo, coarctando a acção do senhor sobre o servo, a tornava por isso mais legitima e por consequencia mais solida. Nas relações entre ambos havia vantagens mutuas, de que espontaneamente se podia ceder de parte a parte para as trocar por outras vantagens maiores. A adscripção não era uma lei escripta, como na Russia moderna; pelo menos nenhuns vestigios restam de que o fosse: era um facto social, um costume, uma praxe, que resultava da natureza das cousas, de factos politicos anteriores. É possivel apparecerem exemplos de separação entre o servo e a gleba por um acto violento do senhor. De que actos violentos deixa de nos subministrar exemplos a idade media? Mas o senhor tambem podia quebrar os laços que prendiam o servo ao predio com vantagem e assenso delle, como por exemplo para o unir a uma gleba mais productiva ou mais vasta, sem que por isso se reputasse offendida a praxe, a especie de lei mental que a força das cousas trouxera, e sem que hajamos de inferir d'ahi a não existencia do facto contrario como regra. Isto explicaria a reserva de Alvito Pepiz e seus filhos na doação de 1094 á sé de Lugo, se não se podesse tambem entender que com elles fora exceptuada a respectiva gleba. Depois do que fica dicto a analyse dos 7.^o, 8.^o e 9.^o documento do sr. Muñoz parece-me inutil, e a theoria da adscripção não obstará por certo á sua facil interpretação. Seja-me, todavia, licito fazer algumas observações a respeito do ultimo documento. Não me lembra ter jámais visto mencionado, nem nos historiadores nem nos monumentos, um unico mussulmano cujo nome seja godo. E comtudo na memoria da divisão de Rovoredo menciona-se o _sarraceno_ Sendimiro. Não sería um captivo mosarabe? Mosarabe, porêm, ou arabe, elle não fora um homem de creação, fora um escravo. Diogo Erit fugindo para Rovoredo casou ahi. Mas porque não sería a mulher da sua condição e da sua raça? E então porque não se daria em troco d'elle uma irmã da sua mulher? Que póde esse facto provar contra a adscripção dos servos originarios? Onde neguei eu que a escravidão dos sarracenos ou de seus filhos fosse a servidão pessoal? V Outra ordem de factos, que o sr. Muñoz recorda como vehemente indicio de que a condição dos servos era a mesma dos tempos gothicos, é que ás vezes os poderosos nas suas depredações roubavam uns aos outros os colonos e iam vendê-los, o que não poderia acontecer se a servidão pessoal não existisse; que se davam servos aos mouros em resgate d'illustres captivos[83]; que os servos eram obrigados ao serviço domestico, a trabalhos mechanicos da industria, como por exemplo, a serem cozinheiros, padeiros, tecelões, carpinteiros, ferreiros, alfaiates, etc.; que alguns tinham os mais baixos encargos, como limpar os logares immundos, concertar os caminhos, tractar das cubas em que seus senhores se banhavam etc.[84]; o que tudo, no entender do sr. Muñoz, repugnava á adscripção. Lembra-se então de alguns monumentos em que esses factos podem estribar-se, e que crê servirem para condemnar a minha opinião. Examinemo-los. N'uma doação de Bermudo III á sé de Santiago fala-se de um certo Galiariz, que, entre outras rapinas que fez, roubou seis homens alheios e vendeu-os como captivos (_et vendivit eos sicut captivos_). Se eu procurasse um documento que positivamente contradissesse a doutrina do sr. Muñoz, não o acharia por certo mais a proposito. Galiariz vendeu os servos alheios _como se fossem captivos_, e este acto enumera-se entre os seus delictos. O que pois se vendia sem offensa dos usos e costumes era o prisioneiro, _captivum_. Vender como tal o servo alheio é uma circumstancia que aggrava o roubo, e porque? Porque o servo, o homem d'alguem, não era um captivo, uma _cousa_ venal. Peço que se reflicta neste documento. Dous nobres de Galliza, conforme refere a Historia Compostellana, foram aprisionados pelos sarracenos. Tractou-se do seu resgate, e deram-se para os remir LX _captivos christianos, tamen ex servili conditione_. E é sobre semelhante texto que o sr. Muñoz assenta a idéa de que se entregavam servos originarios aos sarracenos em resgate de cavalleiros leoneses! Que é o que se deu pelos dous nobres? Captivos christãos. Pois _captivo_ foi nunca synonimo da palavra generica _servo_? _Captivo_, na idade media, significava o que significa hoje, o que significou sempre, o prisioneiro. O que houve foi uma troca de prisioneiros. Deram-se por dous sessenta, facto que o historiador explica: _tamen ex servili conditione_. Se dessem sarracenos nobres dariam um, dous, quatro, ou seis. Não tinham prisioneiros de mais elevada jerarchia ou não os quizeram entregar: deram sessenta de condição servil. Mas esses homens eram christãos. Por certo; mas tambem eram indubitavelmente captivos. A Compostellana é igualmente explicita a ambos os respeitos. Eis a necessidade de nunca esquecer a população mosarabe. Por ella se explica facilmente a existencia de prisioneiros christãos em poder de christãos. Aprisionados com seus senhores ou sem elles n'uma batalha ou n'uma correria dos leoneses na _Spania_, tinham mudado de donos, e agora entregavam-nos a outros donos em cujo poder de certo a sua condição desgraçada não melhoraria. Eis o que unicamente se pode inferir com plausibilidade da narrativa da Compostellana. Não escrevendo a historia de Leão, ou dos outros estados da Peninsula, mas a de Portugal, eu era obrigado a esboçar rapidamente a organisação social da Hespanha de que se desmembrara a monarchia portuguesa; só, porêm, até onde fosse necessario para se entender a historia social do meu paiz. Apesar disso, creio que fui o primeiro que tentei fazer sentir aos escriptores hespanhoes a importancia de dedicar profundas investigações á historia dos mosarabes, dessa população distincta, que, em meu entender, devia constituir a maioria dos habitantes da Peninsula, ainda dous ou tres seculos depois da invasão dos arabes e da tentativa de Pelaio, pela simples razão de que a grande massa da população de um vasto paiz não se pode substituir como o poder supremo, como o predominio de um precedente conquistador, sobretudo quando se tracta de uma nação civilisada, e não de tribus selvagens, sempre insignificantes em numero, e que a atrocidade fria e permanente dos vencedores chega a destruir no decurso de seculos. Depois das invasões e conquistas germanicas, a grande massa da população do imperio romano ficou sendo celto-romana: depois da invasão e conquista da China pelos tartaros mantchús, a maioria dos habitantes daquelle immenso paiz ficou sendo chim: o sangue inglês é o sangue anglo-saxonio, apesar do predominio normando. E todavia nenhuma daquellas raças de conquistadores foi tão moderada, tão benigna para com os vencidos como os arabes na Hespanha. Por essa mesma brandura e tolerancia certa ordem de factos politicos e sociaes, que se dão depois dos grandes cataclysmos das nações, deviam ser mais prominentes, mais efficazes na Hespanha, e portanto influir mais poderosamente nas phases dos acontecimentos posteriores tanto politicos como sociaes. Nós, os homens d'hoje, que vimos ou ouvimos contar a nossos paes as scenas do dominio francês na Peninsula no principio d'este seculo, deveriamos saber adivinhar o estado moral da população romano-gothica depois do estabelecimento do imperio dos khalifas, se aliás os monumentos fossem menos explicitos ou guardassem silencio a tal respeito. O transitorio dominio francês na Peninsula não deixou de produzir logo um grande numero de _afrancesados_ na Hespanha e de _jacobinos_ em Portugal. Qual sería o jacobinismo, permitta-se-me a expressão, entre os godo-romanos em relação aos sarracenos pode imaginar-se tendo presente o estado de dissolução moral do imperio wisigothico, anniquilado n'uma unica batalha; o longo dominio dos arabes; a superioridade da sua civilisação material; a sua tolerancia para com a religião dos vencidos; o respeito guardado ás instituições civis destes; a benevolencia, emfim, dos principes mussulmanos para com os seus subditos christãos. Não quero dizer com isto que o patriotismo wisigothico; que a impaciencia do jugo extranho; que o sentimento de hostilidade religiosa não ardessem em muitos corações, e até subissem ao gráu de fanatismo. Pelo contrario. Não era preciso que os monumentos nos dissessem que a reacção se manifestava até na corte de Cordova. O conhecimento da indole das paixões humanas dispensa ás vezes em historia o testemunho dos monumentos. O homem é essencialmente o mesmo em todas as epochas. Mas é por isso que os interesses, a reflexão, os vicios, as virtudes, os habitos, a educação, as mil causas moraes que impellem e dirigem o individuo e lhe determinam os affectos e as tendencias, deviam impellir outros, e talvez o maior numero, a manifestações oppostas. O _Indiculo Luminoso_ de Alvaro de Cordova, especie de extenso artigo de fundo de jornal partidario, libello apaixonado contra o mosarabismo, revela-nos quão numeroso e importante era o partido arabe entre os romano-godos da Spania, partido que abrangia nobres, guerreiros, prelados, sacerdotes, magistrados, povo. Se não existisse este testemunho insuspeito, a razão e a experiencia nos diriam o mesmo que elle nos diz[85]. Imagine-se agora qual sería durante a lucta entre a monarchia néo-gothica e o imperio dos Benu-Umeyyas o papel dessa maxima parte da população peninsular chamada os mosarabes: uns indifferentes á contenda, acceitando do mesmo modo o dominio dos reis d'Asturias e Leão ou o dos principes sarracenos, no meio dos éstos da guerra; outros forcejando por identificar-se com a nova sociedade que se constituia á semelhança da patria wisigothica; outros, emfim, addictos por esperanças, por cubiça, por beneficios recebidos, e até por laços de sangue, resultado dos consorcios mixtos, á manutenção do dominio mussulmano, e calcule-se quantos factos politicos haviam de dimanar de um estado de cousas tal; quantas peripecias, quantas violencias se dariam em qualquer districto ou provincia da Hespanha a cada invasão, a cada correria, quer dos sarracenos, quer dos leoneses; como se traduziriam em vinganças acerbas os odios occultos; como as paixões mais oppostas trariam a mudança de partido e até de crença; como os homens da mesma raça e da mesma religião se perseguiriam, se denunciariam por desleaes a um ou a outro dos dous poderes publicos, que pelos accidentes da guerra se succediam tão frequentemente nos variaveis limites dos dous estados; como a condição do mesmo individuo mudaria mais de uma vez; como o nobre, o rico, o funccionario, o sacerdote poderiam cair de repente da situação mais elevada na mais abjecta servidão, e os mais humildes elevarem-se por acontecimentos imprevistos até as mais altas graduações sociaes; como, finalmente, os monumentos na sua linguagem, nos factos que delles resultam podem illudir-nos, se entre os elementos a que devemos recorrer para a sua apreciação esquecermos o elemento mosarabico. Que se me permitta referir aqui uma anecdota que pinta a vida agitada da população mosarabe nos territorios submettidos ora pelos arabes, ora pelos leoneses, no meio das vicissitudes da guerra, e que está confirmando o que precedentemente disse ácêrca do mosarabismo e das peripecias a que estavam sujeitos os individuos naquella situação incerta e cambiante. Dos territorios da Hespanha nenhum, talvez, mudou mais vezes de senhores durante a lucta do que os districtos d'entre Douro e Tejo, sobretudo nas proximidades do oceano, e porventura que em nenhum ficaram mais vestigios da existencia da sociedade mosarabica, da sua civilisação material, das suas paixões, dos seus interesses encontrados, e até dos seus crimes e virtudes. A publicação, que a Academia prepara, dos documentos dessas epochas, e especialmente dos que nos foram conservados nos archivos da cathedral de Coimbra e do mosteiro de Lorvão, lançará grande luz sobre o assumpto. É um desses documentos, tirado do chartulario de Lorvão, o Livro dos Testamentos, e que foi publicado já por Fr. Munuel da Rocha, mas horrivelmente deturpado, que me subministra os elementos de uma narrativa, a qual reproduz, embora apenas n'uma das suas phases, o viver daquelles tumultuarios tempos. Era nos fins do seculo X e regia o abbade Primo o cenobio de Lorvão. Coimbra, em cujo territorio estava situado o mosteiro, pertencia á coroa leonesa pouco antes da epocha em que a espada irresistivel do hadjib Al-manssor fez recuar de novo as fronteiras da monarchia néo-gothica para além do Douro (987). Os districtos ao sul deste rio, que depois da invasão de Tarik e Musa tinham pertencido a maior parte do tempo aos sarracenos, encerravam uma população essencialmente mosarabe. Cordova era ainda para ella a capital da industria, das artes, da civilisação. O architecto cordovês Zacharias viera a Lorvão, provavelmente chamado pelo abbade Primo para alguma obra do mosteiro. Sabendo isto, os regedores de Coimbra falaram com o abbade para que o architecto cordovês construisse algumas pontes sobre os rios das circumvizinhanças. Primo accedeu, e acompanhou Zacharias na empreza. Edificaram-se então quatro pontes, em Alviaster (Ilhastro), em Coselias (Coselhas), em Latera Buzat (Ladeiras do Bussaco?) e na ribeira de Forma (Bossão?) Aqui, em memoria da ambos, e por conselho do architecto, Primo construiu umas azenhas que ficaram pertencendo ao mosteiro. Taes foram os factos succedidos nos fins do seculo X que narra o documento de Lorvão. Passaram tres quartos de seculo. Coimbra e o seu territorio, submettidos de novo por Al-manssor, tinham-se conservado sob o jugo do islam. Fernando magno veio, porêm, a unir definitivamente aquella provincia á coroa de Leão nos meiados do seculo XI. As azenhas da ribeira de Forma já não eram do mosteiro. Fernando I restituiu-lh'as, ajunctando o senhorio da ponte. Pelagio Halaf, nome que indica um mosarabe christão, fora, segundo parece, espoliado naquella restituição. Demandou os monges, affirmando que seu avô Ezerag edificara as azenhas, ao passo que o abbade Arias invocava os nomes de Primo e Zacharias. O mosarabe Sisnando, conde ou wasir de Coimbra, exigindo o juramento de Arias ácêrca do que este affirmava, manteve a restituição. Surgiu então novo contendor. Era Zuleiman Alafla, primo-coirmão de Pelagio, talvez mussulmano, talvez christão, mas como elle da raça mosarabe. Sisnando enviou os contendores á curia do rei. Ahi, longe de estribar o seu direito na fundação do avô, Zuleiman recorreu a um titulo que hoje sería singular, mas que então elle cria assás natural, e sufficiente para legitimar a sua pretensão. Era a historia do que se havia passado quando Al-manssor se apoderara de Coimbra. Ezerag habitava em Condeixa quando se restabeleceu o dominio de Cordova. No tumulto da invasão os habitantes das aldeias internavam-se nos bosques. Ezerag pensou então que a desordem geral podia enriquecê-lo. Dirigiu-se ao chefe sarraceno Farfon-ibn-Abdallah, e abraçou o islamismo. Depois pediu trinta soldados sarracenos, escondeu-os nas brenhas, e dirigindo-se á gente foragida, aconselhou-os a voltarem aos seus lares, asseverando-lhes que tudo estava pacificado. Acreditaram-no e voltaram ás aldeias. Os soldados sarracenos, saindo então dos escondrijos, captivaram muitos, e levando-os a Santarem venderam-nos por grossas sommas. Os captivos foram conduzidos a Cordova com guia de Ibn-Abdallah e com o preço por que tinham sido vendidos. Então Ezerag pediu em recompensa os moinhos de Forma e diversas aldeias. Al-manssor concedeu-lhe tudo; porque Al-manssor era um heroe, e os heroes não tem tempo para pensar nos direitos da humanidade conculcados[86]. Era nesta concessão que Zuleiman fundamentava a sua justiça. A doação do hadjib aos olhos de Alafla, do neto do renegado, era um titulo legitimo, embora essa mercê tivesse tido por causa uma atroz villania, e procedesse de um acto de auctoridade que o tribunal leonês, conforme as ideas de hoje, não poderia reconhecer. Zuleiman, porêm, suppunha tão legitima, tão respeitavel a concessão de Al-manssor como o julgamento da curia de Fernando-magno. Era um poder que passara na terra: era outro que nella existia agora. Nisto se resumia, necessariamente, a crença politica de uma grande parte dos proprietarios e agricultores mosarabes. Mas o mais importante neste documento é o proceder d'Ezerag e os factos que d'ahi resultaram. Elles nos explicam como quaesquer individuos da grande maioria da população podiam descer ao misero estado d'escravos. Sem duvida a historia de Ezerag não é a unica da sua especie succedida naquelles quatro seculos de uma terrivel lucta: devia repetir-se com circumstancias variadas. E é mais que provavel que as conversões ao christianismo por baixos intuitos de cubiça, de vingança ou de traição, fossem, pelo menos, tão frequentes como as conversões mussulmanas. Insisti neste ponto, porque o reputo capital. Passemos agora á objecção deduzida de serem os servos originarios obrigados a trabalhos industriaes e ao serviço domestico dos senhores, trabalhos e serviços que, no entender do sr. Muñoz, repugnavam á adscripção da gleba. No opusculo do sr. Muñoz parece-me haver duas preoccupações que allucinam o illustre escriptor. A primeira é a das idéas modernas applicadas ás expressões, ás phrases e aos factos da idade media. Desta é facil possuirmo-nos, e nella terei eu caído mais de uma vez. A outra é na verdade singular, mas em boa parte deriva da primeira. Consiste em suppôr a impossibilidade de accumular os trabalhos da vida rural com os industriaes e mechanicos, ou com os serviços pessoaes feitos a outro individuo. Entre as nações onde o progresso das industrias fez predominar quasi exclusivamente o principio economico da divisão do trabalho, effectivamente não se dá tal associação: o official mechanico, o operario fabril, o creado domestico não associa de ordinario a occupação a que se entregou com o grangeio dos campos. Mas assim como a divisão e subdivisão dos misteres se vai multiplicando com o desenvolvimento industrial, assim quanto mais atrazado se acha um povo, mais o homem varía de occupações, porque é obrigado a variar, e porque justamente a imperfeição das industrias, a simplicidade e grosseria dos artefactos favorecem a accumulação e a variedade das occupações individuaes. Não sei o que succede em Hespanha: em Portugal, nos districtos ruraes, mais de uma industria fabril se associa com a agricultura sob o tecto do lavrador. E todavia, por atrazado que esteja este paiz nos progressos fabris, está sem comparação mais adiantado do que a monarchia leonesa no seculo X ou XI. Recusar admittir que o servo da gleba podesse separar-se do cultivo da mesma gleba para se empregar de outro modo no serviço do senhor, não é só negar o passado; é negar o presente. O camponês russo é servo da gleba, e nem por isso deixa de separar-se della para exercer outros misteres. O que não pode é ser vendido como os brutos. Muda de senhor, ao menos legalmente, só quando é alienada a terra a que pertence. O V volume da Historia de Portugal, ainda não publicado, conterá uma parte relativa ao systema do tributo, da renda, e do serviço publico nos seculos XII e XIII. Ahi se encontrarão numerosas provas de que n'uma épocha em que já a adscripção voluntaria succedera á forçada existiam para o colono, pessoalmente livre, ao lado das prestações agrarias esses mesmos encargos de serviço pessoal que ao sr. Muñoz parece repugnarem, não ao colonato livre, mas á propria servidão da gleba; e o mais é que continuamos a encontrá-los ainda nos contractos emphyteuticos de seculos mais modernos. Por singulares, por extranhos á vida rural que esses serviços se nos affigurem nos documentos citados no opusculo que examino, os dos colonos portugueses do seculo XIII, colonos indubitavelmente livres de uma gleba serva, não são menos singulares e extranhos. Lembrarei, entre outros, o encargo que pesava sobre os moradores de tres casaes de Tras-os-Montes. Deviam ir servir de espias em Leão quando a isso os enviassem.[87] Era, por certo, um serviço mais abjecto do que o _purgare tristigas_ de que falam os documentos leoneses. Mas o mais notavel é que o proprio sr. Muñoz se encarregou de combater a sua opinião. Ao lado da servidão _pessoal_ dos servos _originarios_ admitte a existencia da servidão de gleba, a existencia simultanea de adscriptos, de que fórma uma classe á parte. Depois de enumerar as prestações agrarias que pagavam esta especie de colonos-servos, o sr. Muñoz adverte[88] que, além de uma quota de fructos, e de variadas foragens, esses colonos forçados estavam adstrictos a serviços pessoaes, que consistiam nos amanhos de predios diversos da propria gleba, em construcções de edificios, e _em fazer quanto se lhes ordenasse_. Suppôs o sr. Muñoz que havia contradicção em dizer eu que os servos originarios eram todos adscriptos e ao mesmo tempo obrigados a serviços pessoaes fóra da respectiva gleba, e todavia não só acceita essa doutrina contradictoria no seu mesmo opusculo, mas, além disso, acceita-a depois de affirmar a sua impossibilidade, para desta inferir contra mim a continuação na monarchia ovetense-leonesa da servidão wisigothica. Se os serviços pessoaes alheios ao cultivo da gleba importavam forçosamente a não-adscripção, é necessario confessar que a adscripção, cuja existencia o sr. Muñoz crê descubrir ligada com quaesquer encargos de serviço pessoal ao senhor, é um sonho, e que os documentos que se referem a esse estado de cousas, ou são falsos, ou se hão de entender, custe o que custar, de escravos semelhantes aos dos wisigodos ou aos captivos sarracenos. Na _Colleccion de Fueros Municipales_[89] publicou o sr. Muñoz dous interessantes documentos sem data, mas que parecem do seculo IX, relativos aos encargos pessoaes dos servos originarios. A estes documentos se reporta igualmente no seu opusculo para abonar a these que estabelece da existencia simultanea de adscriptos e de escravos originarios. É o primeiro uma memoria dos serviços a que era obrigada para com a sé de Oviedo cada familia serva da terra de Gauzon: é o segundo uma memoria especial das obrigações dos servos de Pravia, logar ou aldeia incluida no mesmo territorio de Gauzon. Na _Colleccion_ vê-se que as idéas do sr. Muñoz fluctuavam ainda. Estas duas memorias suppõe-nas elle ahi relativas indistinctamente aos servos da sé ovetense residentes naquelle territorio, quer adscriptos, quer não: no opusculo[90] suppõe-nas, porém, relativas exclusivamente aos não-adscriptos, isto é, aos servos de raça, que, segundo a sua doutrina, continuaram a ser na monarchia néo-gothica de condição identica á dos servos do VI e do VII seculos. Permitta-me, todavia, o sr. Muñoz pensar que se houvera reflectido mais detidamente nestes documentos elles o teriam, talvez, conduzido a diverso resultado. Suppondo que se refiram a servos que, no seu entender, equivaliam a cousas, e de que seu antes dono que senhor podia dispôr livremente, a propria existencia dessa especie de memorias sería incomprehensivel. Na idade media não se escreviam cousas absolutamente inuteis, porque a arte de escrever poucos a possuiam, e até a materia da escriptura era assaz rara. Ora nada mais completamente inutil do que esses _cobrinellos_ ou ementas, dada a theoria do sr. Muñoz. Para que escrever n'um pergaminho: _a familia de fulano de tal aldeia ou granja_ (villa) _é obrigada a tal serviço_? Pois uma familia de escravos, que pode ser empregada a bel prazer do senhor nos mais oppostos misteres dentro do mesmo anno, do mesmo mez, do mesmo dia, como um animal domestico; que por arbitrio delle pode mudar de domicilio quando isso convier; que, em summa, pode collectiva ou individualmente ser vendida, escambada, doada; uma tal familia, digo, tem acaso obrigações determinadas, de que seja necessario conservar a memoria para o futuro? De que serve declarar a granja, o villar, o casal onde cada uma dessas familias reside, se, no dia seguinte ao da redacção da ementa, o senhor pode achar mais conveniente outra distribuição dos seus escravos? Apesar da facilidade com que hoje se escrevem cousas inuteis, não se reputaria louco o proprietario que escrevesse e archivasse a seguinte memoria: _A raça do cavallo N. tem de conduzir madeiras; a raça do touro_ _N. tem de lavrar taes terras; tal vehiculo tem de servir de transporte a tal objecto; tal alfaia é destinada a tal uso_? Na minha opinião, o que estas memorias provam é o mesmo que provam directa ou indirectamente todos os documentos que se referem á condição ou aos encargos dos servos originarios, ou homens de creação: é que estes estão unidos a certos predios indissoluvelmente; que desse complexo do homem e do predio o senhor tem de auferir prestações agrarias e serviços determinados. Nesta hypothese o _cobrinellum_ é uma cousa racional. A _casata_, isto é, a familia que vive n'uma certa choupana ou grupo de choupanas, (_casa_) tem de satisfazer, de geração em geração, perpetuamente, aquelles encargos. Os enlaces inevitaveis com outras familias podem produzir complicações de direitos entre diversos senhores, mas o _cobrinellum_ ou ementa particular de cada um servirá para os deslindar, indicando os serviços, independentes das prestações agrarias, que essas familias devem, _debent_. Esta idéa de dever que se manifesta nos documentos presuppõem a do direito. O escravo não tem deveres; porque as _cousas_ são incapazes delles. Nos proprios tempos barbaros dever e direito são inseparaveis; porque as duas idéas são forçosamente correlativas. Conforme o que n'outro logar adverti, a adscripção não era de feito simplesmente uma grande restricção da liberdade; importava tambem vantagens, as de uma especie de co-propriedade do servo colono na sua gleba. O sentimento do servo de gleba devia ser analogo ao do camponês russo dos nossos tempos. «No momento em que os servos separados da terra--diz o marquez de Custine--vissem vendê-la, arrendá-la, cultivá-la independentemente delles, amotinar-se-hiam de golpe, clamando que os despojavam _dos seus bens_[91]. Do mesmo modo que na Russia, onde se caminha da barbaria para a civilisação, nas origens barbaras da monarchia néo-gothica a adscripção como regra succedeu naturalmente á servidão pessoal, e a servidão da terra cultivada por um colono pessoalmente livre succedeu á adscripção nos seculos XII e XIII, como me persuado que demonstrei no meu livro. Suppôr que da escravidão se passou de salto á liberdade pessoal affigura-se-me a supposição de um impossivel historico. Effectivamente: como achamos mais geralmente estabelecido o colonato nos seculos XII e XIII? O colono é _obrigado_ a morar no predio que cultiva, mas não é forçado a isso. Se delle sai, não lhe é licito cultivá-lo; perde-o; não o reconduzem, porém, violentamente a elle. A união do homem á terra subsiste, mas essa união não é indissoluvel. A liberdade pessoal nasceu. Entre esta situação e a do homem-cousa, do escravo, ha um abysmo. Como se transpôs? O meio principal consistiu na servidão da gleba. O homem-cousa foi-se transformando em _pessoa_ serva: a pessoa serva em pessoa livre; mas ficou ainda adscripta na qualidade de colono. Para ser plenamente pessoa livre precisava de desaggregar de si esta qualidade; de divorciar-se da gleba, a que aliás o prende esse amor ardente do homem de trabalho ao solo que cultiva. E que importava, se _podia_ fazê-lo? É por isso que disse no meu livro que a servidão desceu do homem para a terra. Depois, lentamente, é que veio o colonato na sua fórma quasi definitiva: o laço unico que liga o colono é a solução do canon e a prestação dos serviços pessoaes ao já não _senhor_, mas _senhorio_. Depois, finalmente, chegou-se á formula definitiva: os serviços pessoaes ou desappareceram ou poderam ser substituidos, á vontade do colono, pela solução de um _quantum_ que os representasse. Desde este momento o colonato não conteve mais em si elemento algum que repugne ás nossas idéas actuaes de direito, e nem sequer ás da economia politica. Eu cri ver a liberdade humana despontando tenue nos horisontes da vida do povo desde os tempos wisigothicos. Para o sr. Muñoz a noite profunda da escravidão durou nesses horisontes até a fatal jornada do Guadalete. E não só, na sua opinião, durou até aquella epocha, como tambem subsistia ainda com todo o peso das suas sombras no seculo XI. Mas em que periodo collocar a transição para a liberdade pessoal dos seculos XII e XIII, cuja existencia demonstrei como facto predominante no colonato dessa epocha, se não for no estado dos servos originarios da monarchia leonesa? Se assim não houvera sido, singular excepção á lei de desenvolvimento gradual e constante do progresso humano sería a historia da Peninsula durante quatro seculos! VI O sr. Muñoz contrapõe ainda á minha opinião varios factos, que entende provarem ser o estado dos servos o de cousas na monarchia de Oviedo e Leão. Um delles é não ter o servo representação em juizo, nem poder servir de testimunha, havendo outro meio de prova. De se me oppôr este facto parece poder inferir-se ter eu affirmado em alguma parte que o servo se convertera em homem plenamente livre na monarchia leonesa. Nesta hypothese a objecção poderia parecer plausivel, ainda que realmente o não seja; porque não se segue da plena liberdade do individuo, em qualquer estado social, a necessidade positiva de ser igual em direitos, ainda civis, a todos os individuos livres. O que, porêm, affirmei, e o que julgo poder continuar a affirmar é que a servidão mais ou menos absoluta dos wisigodos se tornou na monarchia néo-gothica em servidão da gleba, e que esta modificação foi um grande passo para a emancipação das classes populares. Se o servo não podia desaggregar-se da gleba, é evidente que a gleba tambem não podia desaggregar-se do servo, e que desse estado resultava para elle uma especie de co-propriedade de facto, que, por indestructivel, creava um direito positivo. O alcance deste direito era tal que as suas consequencias, na successão dos tempos, deviam trazer mais tarde ou mais cedo a plena liberdade pessoal, como de feito trouxeram. Eis o que eu estabeleci. Objectivamente, a existencia da pessoa civil resulta da manifestação da sua capacidade juridica, embora essa manifestação seja incompleta. Entre os romanos, o servo considerava-se como cousa, porque objectivamente era incapaz, não de um ou de outro direito, mas de todos elles, e por isso perdia a personalidade: nas sociedades modernas, porêm, o privilegio, a jerarchia, a idade do homem, o seu estado physico ou moral produziram sempre e produzem ainda differenças de direitos, até civis, que nem por isso destroem a personalidade de ninguem. Fosse o poder publico, fosse o proprio adscripto que podesse invocar o principio da adscripção para não ser violentamente separado da gleba nativa; fosse o costume, a opinião, ou a lei que sanctificasse a união da terra com o seu cultor, o que é certo é que se invocava, sanctificava e mantinha um direito, uma vantagem importantissima do adscripto. Fosse qual fosse a dependencia deste do respectivo senhor, a sua personalidade existia. Assim, quaesquer que fossem as restricções que houvesse a respeito dos servos no systema judicial desde o seculo VIII até o XII, essas restricções nem provam contra a personalidade objectiva dos servos, nem importam á adscripção ou não adscripção. Sobre aquelle systema judicial e sobre o papel que os servos representavam nos pleitos poderia accrescentar aqui algumas ponderações que me parece mereceriam a attenção do sr. Muñoz, mas que me levariam mais longe do que comportam as dimensões deste pequeno trabalho, e que seriam sobejas para o fim que me proponho. Deixando, pois, de parte questões agora inuteis, venhamos a outros factos juridicos em que o sr. Muñoz vê a morte da personalidade, e que evidentemente não provam o que elle pretende, antes em parte demonstram que do mais ou menos incompleto dos direitos civis em individuos desta ou daquella classe nunca se poderá deduzir a escravidão, a não-personalidade, a suppressão absoluta desses direitos. «Competia ao dono sómente--diz o sr. Muñoz--reclamar a indemnisação do damno padecido pelo servo como cousa de sua propriedade[92].» Os documentos, aliás numerosos, em que esta affirmativa póde estribar-se não servem de modo algum para dirimir a contenda; porque para provarem a não-personalidade dos servos e a sua não-adhesão á gleba (suppondo que o facto o provasse) cumpria mostrar que elles se referiam aos servos originarios, e não a escravos captivos. Admittindo, porêm, que taes documentos se refiram a servos originarios, essa concessão de nada servirá para revalidar a opinião do sr. Muñoz. A representação pelo senhor não se limitava ao escravo, e nem mesmo a este e ao servo de gleba: estendia-se a individuos livres collocados na dependencia juridica de alguem. Seguir-se-ha d'ahi que semelhantes individuos eram cousas; não tinham personalidade? O sr. Muñoz estabeleceu excellentemente no seu opusculo[93] a natureza da maladía. O malado era o homem livre, que se collocava n'uma especie de vassalagem para com seu senhor adoptivo, e esta especie de relações provei eu que eram inteiramente pessoaes e independentes do caracter de colono, situação em que o malado podia estar em relação a outro senhor, bem como mostrei a transmissão da maladia de paes a filhos[94]. A reparação, porêm, dos damnos feitos aos malados revertia ainda no seculo XI em beneficio do patrono[95]. Admittida a doutrina estabelecida depois pelo sr. Muñoz, esta jurisprudencia provaria contra elle proprio; provaria que o malado, longe de ser, como tal, homem livre, era apenas uma cousa, apenas uma propriedade do _dominus_. Como os malados, os solarengos (solariegos) eram colonos livres. Di-lo o sr. Muñoz, e com elle dizem-no os monumentos. Todavia nós lemos no Foro Velho de Castella[96]: «_Ninguem deve pousar nem entrar por força em casa de nenhum solarengo, e se alguem o fizer deve pagar 300 soldos ao senhor, de quem for o solar, e o damno em dobro ao lavrador que recebeu o aggravo_». Nos foraes do typo de Salamanca lemos tambem: «_Se alguem matar o creado de qualquer vizinho, receba este a multa do homicidio. O mesmo é applicavel ao seu hortelão, ao caseiro que lhe paga quartos, ao seu moleiro e ao seu solarengo_[97]». A simples relação de vassalagem e clientela produzia ás vezes os mesmos effeitos. Assim, em alguns desses foraes do typo de Salamanca se estatue tambem que _se forem assassinados homens que alguem tenha nas suas herdades, ou que sejam seus vassalos pertencerá ao senhor a multa do homicidio_[98]. Eis aqui como ainda nos seculos XII e XIII o senhor ou patrono havia a multa dos crimes commettidos contra os seus dependentes, sem que d'ahi se possa nem por sombras inferir que a dependencia do cliente, do vassalo, do malado, do solarengo ou do creado fosse a da escravidão. Nada direi acerca de o sr. Muñoz qualificar a _calumnia_, a multa judicial, _de compensação pecuniaria imposta como pena ao matador_. O sr. Muñoz sabe perfeitamente que não era essa a indole de taes multas: foi uma phrase inexacta que lhe escapou na rapidez da composição, como talvez me terão escapado a mim outras analogas. Mas o que não posso deixar de observar é uma circumstancia que prova como os espiritos mais elevados e de mais solida sciencia chegam a precipitar-se quando subjugados por um preconceito. Possuido da idéa da escravidão dos servos originarios nos quatro primeiros seculos da monarchia leonesa, o sr. Muñoz, ao passo que viu dimanar a não-personalidade do servo do direito do senhor ás multas dos crimes perpetrados contra elle, não viu, buscando estribar-se em documentos, que o primeiro que citava, tirado de um chartulario do mosteiro de Cellanova, continha a refutação peremptoria da sua doutrina. Este documento do anno 940 é uma carta ao mesmo tempo de _agnição_ e de _incommuniação_, em que Pelagio _incommunía_ os bens que tinha em certas aldeias a D. Ilduara e a seus filhos, por elle haver com uns clientes seus espancado por tal modo Froila, _junior_ de D. Ilduara, que o espancado morrera, e Pelagio, não podendo talvez pagar a D. Ilduara a multa que lhe fora imposta, recorria ao expediente de lhe _incommuniar_ aquelles bens[99]. Mas Froila era um _junior_, colono da mais humilde classe, porêm livre. O texto das cortes de Leão de 1020 e a sua antiga versão em vulgar não consentem que se interprete de outro modo a palavra _junior_: nisto o sr. Muñoz está perfeitamente de acôrdo comigo no seu commentario áquelle celebre monumento legislativo[100]. Como, pois, se invoca um diploma que formalmente contradiz a doutrina que é destinado a sustentar? VII Os consorcios entre individuos das classes servis offereciam varias hypotheses juridicas: o servo podia casar com uma serva do mesmo senhor, ou com a de outro: ter um ou mais filhos ou nenhum: o marido podia ir viver na residencia anterior da mulher, ou a mulher na residencia anterior do marido: materialmente, essas translações de domicilio podiam occorrer com licença do senhor ou sem ella. Estes diversos factos influiam necessariamente nas relações do senhor e do servo. Restam em Portugal e em Hespanha bastantes documentos de que elles se davam, e de que se buscavam arbitrios para solver as difficuldades que d'ahi procediam. Achamos contractos, inqueritos, memorias particulares, sentenças, em que se previnem, se memoram, ou se remedeiam as consequencias dessas varias hypotheses em relação aos direitos dos senhores, e em que, portanto, obtemos a certeza de ellas se haverem dado desde o VIII até o XII seculo. Para occorrer aos conflictos de interesses e de direitos, vê-se dos mesmos documentos que se recorria á divisão das familias. Em que consistia esta divisão? O que é que se passava na realidade? O desacôrdo entre mim e o sr. Muñoz já se vê que deve ser completo na apreciação dos documentos relativos a semelhante assumpto. Elle vê a escravidão como condição geral dos individuos da classe servil do seculo VIII ao XII: eu vejo-a só em relação aos captivos sarracenos, e a servidão da gleba em relação aos _homines de creatione_, aos _servi originales_. N'uma nota do meu livro[101] mostrei, segundo creio, que os documentos com que elle pretendera provar que os filhos do servo e da serva de differentes senhores se dividiam entre estes[102] se deviam entender de um modo diverso. Na minha opinião, o que se dividia eram os serviços pessoaes, e em certos casos (como na incerteza de pertencer a um ou a outro senhor o dominio da gleba habitada pelo homem de creação) as prestações agrarias. Em relação ás glebas possuidas de paes a filhos pelas familias servas, a minha theoria era e é que o _dominio_ e o _uso_ de qualquer desses predios se moviam em duas espheras: que o _dominio_, manifestado, traduzido materialmente na percepção das prestações agrarias e na exigencia de serviços, era a propriedade do senhor; constituia o objecto de uma grande parte desses milhares de contractos do seculo VIII ao XII que restam nos archivos da Peninsula; que o que se vendia, doava, escambava mais ordinariamente era o direito a haver dos servos, dos _juniores_, dos malados, dos solarengos, do homem de trabalho, em summa, ingenuo ou não ingenuo, certas prestações agrarias e certos serviços pessoaes, que nas glebas servis derivavam da duplicada servidão do homem e da terra a que estava unido, e que na herdade ou casal do peão (_junior_), na maladia, no solar, derivavam de um contracto voluntario, tacito ou expresso; que as prestações e os serviços do adscripto, representando a renda da terra e a obrigação servil do individuo nella incorporado, eram duas cousas que facilmente podiam distinguir-se quando por consorcios, ou por outra qualquer eventualidade, o direito ás prestações da gleba e aos serviços do homem ou da familia vinha a achar-se dividido entre dous proprietarios (_domini_) diversos; que, assim distinctos, tanto aquellas prestações, como aquelles serviços podiam não só affastar-se, unir-se de novo, mudar de proprietario separadamente por toda a especie de transmissão, mas até fraccionar-se em si mesmos ou accumular-se, sem que por isso mudasse a condição do individuo que usufruia o predio, quer como adscripto, quer como colono livre. Não sei se varios documentos que o sr. Muñoz cita, logo no principio do seu opusculo[103], provam, como elle pretende, que as palavras _servus_, _homo_, _creatio_, _familia_ se applicavam indistinctamente aos servos, ás familias da mesma origem, aos adscriptos, e não poucas vezes aos homens livres, postoque sujeitos a alguma especie de vassalagem. Não vem isso para esta questão. O que sei é que mostram, como muitos outros, a verdade da precedente theoria, por ser ella unicamente que os explica. Assim, lemos alli que em 934 Eximina doou a aldeia ou granja de Malares ao mosteiro de Sobrado com todos os seus bens e pertenças, _e com todos os seus homens, assim servos como livres, que serviram na mesma aldeia no tempo de meus paes e avós_; lemos que em 1016 o mesmo mosteiro fez um escambo com Gutier Dominico dando este a aldeia de Luzario com as suas dependencias e _com a sua creação, servos e libertos e homens livres, quantos servem na mesma aldeia_; vemos que na doação de certas aldeias ao mosteiro de S. Salvador, em 932, se diz doarem-se _com a familia, libertos e pessoas livres (que façam) ao dicto mosteiro e aos dictos senhores o serviço que costumavam fazer_. Como explicar doações e escambos de pessoas livres e ainda de libertos conjunctamente com os de servos e com os das aldeias em que tantos estes como aquelles moravam, se entendermos esses documentos ao pé da letra? Não é evidente que se tracta das prestações agrarias, que pagavam tanto as glebas servis, como os predios colonisados por homens livres, e dos serviços que tanto os adscriptos como os ingenuos, forçadamente uns e por contractos espontaneos outros, eram obrigados a fazer? Não vemos, até, no 1.^o documento que os individuos de ambas as categorias são, sem distincção, _herdeiros_, uns nos predios colonisados, outros nos predios de adscripção, porque os serviços que delles devem uns e outros vem de tempos remotos: _tam servis seu ingenuis qui ad ipsam villam deservierunt in vita aviorum et parentum meorum_? A hereditariedade do servo na gleba, consequencia forçosa da adscripção, eis, como já disse n'outra parte, o grande passo dado na Peninsula, desde o seculo VIII até o XII, pelo homem de trabalho, pelo antigo escravo, para a liberdade. Quando o artigo VII do concilio ou cortes de Leão de 1020 diz:--_Ninguem compre_ a herdade do servo da igreja, do rei ou de alguem. _Quem a comprar perca-a e o que deu por ella_--faz-nos recordar a doutrina parallela do codigo wisigothico[104]. Mas ha na lei de 1020 duas palavras que assignalam um abysmo entre as duas legislações: _haereditatem servi_, phrase que seria monstruosa no seculo VII, mas que no XI indica apenas um facto assás trivial para exigir providencias que o regulem e limitem. _Haereditas_ é nas actas daquella assembléa, como em geral nos documentos das Hespanhas, o _hereditagium_ de além dos Pirenéus; é o predio possuido de paes a filhos, o predio em que se succede por herança. O servo ligado á gleba sabe que, quando morrer, ficarão ahi os proprios descendentes; porque tambem sabe que elles e a gleba mutuamente se pertencem. Nas palavras _herdade do servo_ está resumida a historia de uma transformação social. Que oppõe o sr. Muñoz a um facto que as leis, os contractos, as decisões forenses conspiram em mostrar não só como existente, mas tambem como universal em relação a todos os servos originarios ou homens de creação? Uma difficuldade practica. Suppõe que o servo de uma gleba poderia ir casar com uma mulher de uma gleba remota e de diverso senhor. Prestações agrarias não as podia pagar, porque a terra era de outro dono; serviços pessoaes não os podia prestar, pela distancia em que vivia. Assim seus filhos. Dividindo-se estes materialmente, e levando o senhor do pae metade delles, emquanto a outra metade ficava na gleba materna, aquelles podiam ter o destino que conviesse a seu dono se eram escravos, ser repostos na gleba paterna se fossem de raça adscripta. D'aqui a necessidade de entender os documentos no seu sentido apparente, e de crer que a praxe de se dividir a prole dos servos de dífferentes senhores era a geralmente seguida. Ora esse facto, equiparando a classe servil aos bens semoventes e aos moveis, destruia a personalidade dos individuos de semelhante classe, escrava em tal hypothese, situação que o opusculo do sr. Muñoz tende a provar ser a dos servos desde o VIII até o XII seculo. Mas este argumento pécca pela sua propria indole. Inferir que não existiu, ou pelo menos que não foi geral e predominante certa instituição, de ter ella inconvenientes, que aliás não existiriam predominando uma instituição diversa ou contraria, e concluir d'ahi que foi esta a que existiu ou predominou, parece-me que seria um pessimo raciocinio na historia de épochas e de paizes altamente civilisados, quanto mais na de eras semi-barbaras e de um paiz semi-barbaro. Que havia em Oviedo e Leão desde o VIII seculo até o XII no direito publico, na administração, no estado das pessoas, nas relações civis, que fosse absoluto, uniforme, sem excepção na practica? Que condições sociaes havia que não fossem incompletas, antinomicas, obscuras sob um ou sob outro aspecto? Que foi a idade média, senão a infancia dolorosa e longa da civilisação moderna; que foi, senão uma serie de experiencias e tentativas de organisação das nações, que surgiam do singular consorcio da sociedade romana, corrupta e dissolvida, com as aggregações quasi selvagens das hostes e das tribus germanicas, mixto tornado ainda mais confuso na Peninsula pelo influxo da cultura arabe? Que cousa mais enredada, mais desharmonica, mais cheia de soluções difficeis do que a vida social d'então? Sem duvida que certas leis supremas, que regem a humanidade em qualquer situação que ella se ache, actuavam então entre os povos, como sempre, e as paixões impelliam os individuos do mesmo modo e produziam effeitos identicos ao que produzem em todos os tempos; mas disto á perfeição, á harmonia das instituições vai uma distancia immensa. Acceitando, porêm, a doutrina do sr. Muñoz sobre a escravidão absoluta dos servos originarios ficam, acaso, resolvidas as difficuldades de applicação practica que elle vê na existencia da servidão de gleba? A hypothese que lembrou póde modificar-se. Supponhamos que o escravo, ido para outro logar e ahi casado com uma escrava de diverso dono, tinha um filho só. Como se dividiria materialmente esse individuo? Supponhamos que tinha um filho e uma filha. Á luz a que os escravos eram considerados, isto é, como animaes de carga, como machinas de trabalho, como cousas, emfim, o sexo dos individuos representava forçosamente um valor diverso. A quem cabia o filho? A quem a filha? Mais: supponhamos a união infecunda. Conforme quer o sr. Muñoz, o meio ordinario de reparar a perda do escravo ou escrava, que pelo consorcio ia viver na gleba de um senhor differente, era a repartição material dos filhos. Na falta destes, resignava-se, acaso, o senhor do servo fugido a perder os serviços delle, porque, não podendo dissolver-se o matrimonio e vivendo a familia escrava a grande distancia, não era possivel exigi-los? A lei wisigothica, porêm, ainda em vigor na monarchia néo-gothica, estatuia a respeito destes consorcios, não devidamente consentidos, entre servos de differentes donos uma regra clara e exequivel. Aquelle dos dous senhores que se aproveitara desse acto irregular, que se appropriara por tal meio o servo ou a serva alheios, perdia os dous conjuges e a respectiva prole em beneficio do que fora espoliado[105]. Se a situação dos servos originarios não tinha mudado, porque não se applicava a lei? Que a divisão das familias, quer como a entende o sr. Muñoz, quer como eu a entendo, constituia já a jurisprudencia ordinaria do seculo XI é uma cousa de que os documentos citados por elle, e outros que poderia citar, não permittem que se duvide. Porque se oblitterou a lei wisigothica nesta parte? É evidentemente porque, tendo mudado a situação dos individuos a que ella era applicavel, devia buscar-se um meio de reparar a offensa do direito sem tractar os servos como bens semoventes. O direito dos senhores das glebas, ás quaes os servos pertenciam, sobre as prestações agrarias das mesmas glebas e aos serviços dos individuos ou familias a ellas adscriptos não offereceria realmente os inconvenientes practicos que suscitaria o systema supposto pelo sr. Muñoz. Já notei que este argumento é máu; mas é certo que nem esse máu argamento favorece a sua opinião. O servo, que se desaggregava da gleba sem consentimento do senhor, podia ser reconduzido violentamente a ella. Este era o principio. Mas se elle lhe fizesse os serviços pessoaes que d'antes fazia, parece que devia ser facil o chegar-se a uma transacção, a um acôrdo. A gleba lá ficava cultivada pelo resto da familia adscripta e produzindo as mesmas prestações agrarias, ao passo que o individuo desempenhava os mesmos deveres pessoaes. Suppondo que este fosse residir a grande distancia (hypothese rarissima n'uma epocha em que não existia a menor facilidade de communicações) esses serviços podiam ser transformados em prestações em generos, ou em moeda. Se o servo se casava e tinha filhos, metade dos serviços da nova familia pertenciam ao seu antigo senhor, obrigação herdada, que podia ser satisfeita do mesmo modo. Era um systema complicado, e que daria, como dava, origem a mais de um pleito entre senhor e senhor, mas que me parece não offereceria hypotheses insoluveis como a theoria adoptada pelo sr. Muñoz. Na _noticia_ dos homens do mosteiro de Cartavio publicada na _Colleccion de Fueros_[106] lê-se _in Garrio, Maria Ectaz medium cum suis filiis mediis... in Mirites... Savaricum integrum... in Mintes... Petrum Vistiz integrum cum suis filiis mediis_, etc. Temos, pois, nos proprios documentos publicados pelo sr. Muñoz a prova de que um individuo morador em certa granja ou aldeia podia pertencer integralmente ou parcialmente ao dono dessas glebas. É uma das hypotheses que eu figurei, e que o sr. Muñoz nos não diz como se resolveria no seu systema.[107] A interpretação que dou aos documentos que se referem á divisão dos servos originarios, e que eu supponho geralmente adscriptos, é tão obvia; esses documentos provam tão pouco que a divisão dos membros da familia serva se haja forçosamente de entender como uma divisão material; era tão possivel moverem-se os individuos, em relação ao dominio, n'uma esphera diversa daquella em que se moviam as prestações agrarias e os serviços pessoaes; a confusão da terra com o homem, da obrigação com a pessoa a quem ella imcumbia, era tão vulgar na linguagem juridica, que o proprio sr. Muñoz adopta o meu systema de interpretação a proposito de documentos analogos nas expressões áquelles com que pretende refutar o mesmo systema. Falando de diplomas, em que se faz doação, venda, ou permutação de solares incluindo os solarengos, accrescenta: _Obstam muito pouco alguns documentos de venda, doação e troca feitas junctamente com os solarengos. Não quer isto dizer que se vendessem as pessoas; mas sim os tributos e serviços que estas tinham obrigação de prestar._ Se a linguagem dos documentos se póde tomar como figurada em relação aos solarengos, porque não se poderá entender do mesmo modo em relação aos servos originarios ou homens de creação? Como se pretende deduzir dessa linguagem um argumento para provar que estes eram vendidos, escambados, ou doados como cousas, como bens semoventes, e sem personalidade, não se permittindo tirar igual inferencia a respeito dos solarengos? A questão do estado das classes servas na monarchia néo-gothica comportava maiores desenvolvimentos. Esses desenvolvimentos não cabem, porêm, neste breve opusculo e na forma de publicação a que é destinado: por isso pararei aqui. Permitta-me o sr. Muñoz y Romero que repita, acabando, as expressões de sincero apreço pelo seu alto merito litterario, e pelos seus esforços para derramar luz nas trevas da nossa idade media. O que ha de abnegação, de zelo pela sciencia, de forças intellectuaes consummidas em desbravar os desvios por onde o sr. Muñoz se embrenhou só o conhece aquelle que nesse duro lavor deixou passar os melhores dias da vida, sem saber o que a mocidade tem de gozos, a idade viril de ambições, e a velhice de vaidades, e cuja recompensa unica será escrever-se-lhe na campa: _Aqui dorme um homem que conquistou para a grande mestra do futuro, para a historia, algumas importantes verdades._ INDICE *A batalha de Ourique* I Eu e o Clero 3 II Considerações pacificas 35 III Solemnia Verba 1.^a 72 IV Solemnia Verba 2.^a 99 V A Sciencia arabico-academica 185 *Do estado das classes servas na Peninsula* I 237 II 245 III 263 IV 265 V 285 VI 317 VII 318 Notas: [1] Sermo De Convers. S. Paul. [2] Epistolar. Epist. 152. [3] Mem. de D. Fr. Caetano Brandão, T. II, p. 411. [4] Concil. Trident. Sess. 25, Decr. de Purgat. [5] Concil. Colon I, tit. 6 c. 25. [6] Van-Espen, Jus Eccles. P. 1 tit. 22 cap. 10. [7] Gesch. der Italienisch. Staat. IV B., 4 kap. § 6. [8] Vol. 1 Nota 3 p. 466 e segg. [9] S. P. Damiani Epistol. ad Sum. Pontif. L. 1 Epist. 16. [10] Greg. VII Epistolar. Liv. 8 Epist. 21. [11] De Considerat. L. 3 c. 3. [12] Ibid. Liv. 4 c. 4. [13] Um grande numero dessas passagens e cantigas, relativas aos seculos XI, XII e XIII, acham-se colligidas na Historia dos Hohenstaufen de Raumer, Vol. 6, pag. 178 e segg. [14] Scriptores Rer. Francicar., T. XVII p. 558. [15] Art de Verif. les Dates, vol. 1 pag. 299. [16] Matth. Paris, p. mihi 607 col. 2. [17] Chronic. pag. mihi 287. [18] Def. de la Declar. I. 6. [19] D. Hilar. Pictav., In Psalm. 53. [20] D. Gregor., Expos. in Job L. 8 c. 6, L. 13 c. 4. [21] Recordo-me de ler em a _Nação_ um communicado de Coimbra, assignado por um parocho, em que se me dizia que, se as assaduras da inquisição tinham acabado, cá estavam os bispos. O bom do homem ainda espera que os bispos de Portugal possam queimar gente. É uma doce illusão como qualquer outra. [22] «ne ab uberiori auctorum copia alliciamur, sed potiùs ab ipsorum merito et _gravitate_; multotiès enim fit, ut _gravis_, periti atque sinceri scriptoris auctoritas, etc.» Que diria um desses furiosos que crêm que o vocabolario dos prostibulos póde supprir os rudimentos da sciencia, e que me condemnou como ignorante por falar em _gravidade da historia_ em relação, não ao estylo, mas sim á materia, se ouvisse o venerando Mabillon falar na gravidade do historiador tambem em relação á essencia e não á forma, e isso duas vezes n'um unico paragrapho!! Chamava-lhe ignorantissimo. Oh clero português, clero português! [23] «Elle _ne craint que_ de n'être pas connue»: Fleury diz que, não a igreja, mas o proprio christianismo _teme_. Em Portugal a theologia das tabernas entende-o d'outro modo. É uma consolação ser impio e herege com o virtuoso prior de Argenteuil. Pobre igreja portuguesa. [24] Todas as pessoas mediocremente instruidas sabem o que quer dizer _theocratico_; mas o demente que escreveu estas blasphemias não sabe português, quanto mais grego. Fez uma phrase ridicula para introduzir ahi um vocabulo que os ignorantes não entendessem e que portanto admirassem. [25] Accentuado por causa das freiras que dizem missa. A ignorancia das freiras é a razão capital da accentuação nos livros rituaes, segundo o digno sacerdote que, por vingança, acceitou das _capellas_ o pio mister de me injuriar e calumniar sanctamente. [26] Nova Insistencia, etc., pag. 34. [27] Demonstração pag. 34.--Insistencia pag. 10. [28] Poucos annos antes, os embaixadores de D. Dinis tinham offerecido inutilmente ao pontifice uns artigos com o mesmo intuito, e contendo em substancia o mesmo que os de Pedro Escacho. Ahi nem uma palavra se diz sobre a acclamação em Ourique, em que tambem não fala nenhum dos chronicons coevos. Assim, a invenção da historia da acclamação póde fixar-se no principio do seculo XIV, tendo talvez em parte dado motivo a ella esta questão da desmembração da ordem de Sanctiago, negocio que foi assaz rudioso e importante. Veja-se a Historia de Portugal, Vol. I, pag. 489 (Nota XVIII). [29] Estes chronicons estão publicados nos _Portugaliae Monumenta Historica_, Vol. 1, p. 26. [30] Tanto este como os dez paragraphos precedentes foram supprimidos nas edições avulsas das _Solemnia Verba_. Era uma digressão que pouco servia para rebater as opiniões adversas, e que entretanto affrouxava o cerrado da argumentação. [31] Os Cuidados Litterarios de Cenaculo, a Memoria de frei Joaquim de Sancto Agostinho sobre os codices d'Alcobaça, o Elucidario de Viterbo, as Observações de J. P. Ribeiro publicaram-se proximamente pelo mesmo tempo. Viterbo, frei Joaquim de Sancto Agostinho, Ribeiro eram _innovadores perigosos_ então, como eu o sou hoje. Cenaculo era um bispo erudito. Quantas palestras litterarias, quantas contendas oraes precederiam a publicação daquelles escriptos oppostos! [32] «à l'heure que je commence a dicter ce present escrit je suis en la soixante sexieme année de ma vie.» Petitot fá-lo nascido em 1426. Falleceu no 1.^o de fevereiro de 1502, segundo se deprehende da sua inscripção sepulchral, com 76 annos d'idade. [33] D'aqui vinha por certo o titulo de _conde palatino_ de que usava Vasco de Lucena, titulo que tanto tem feito scismar os nossos antiquarios. [34] Vejam-se as provas indisputaveis d'isto em Ribeiro, Observações de Diplomatica, pag. 79 e seg. [35] Et cette opinion je tiens de plusieures notables gens portugalois qui ont esté de ma congnoissance. [36] Pina, Chron. de D. João II, c. 15. [37] Bulla: _Ut saluti_ 5 febr. 13.^o Sixti IV. [38] Preafatae ecclesiae, a qua regiae dignitatis culmen accepisti, cuique annuum censum debes: Ibid. [39] Bulla: _Venerabilis frater_: 6 febr. 13.^o Sixti IV. [40] Carta de D. Alvaro de Bragança escripta de Castella a D. João II. (Ms. da Biblioth. R.) [41] Talvez seja gente de mais. Mas deixe v.. passar; porque isto era já estylo peninsular naquella epocha. [42] Jorn. de Coimbra, 1813, Abril, p. 310. [43] Memor. do R. Archivo, pag. 59. [44] Chancell. d'Aff. II. (M. 12 de For. Ant. N.^o 3). [45] Veja-se o alvará de D. Manuel, de 1502, no Liv. dos Privileg. de Sancta Cruz fl. 2, o doc. de 1458 a fl. 157 do mesmo Liv., o do L. 5 da Estremadura fl. 116 v. no Arch. Nac., etc. [46] Chron. dos Coneg. Regr., L. 9, c. 29. [47] Prodrom. ad refutat. Alcorani _passim_. [48] Uber die Länderverwaltung unter dem Khalifate (Berlim 1835) Schaefer, Gesch. Span. 3 Th. S. 145. [49] O _digno_ academico refere-se evidentemente á traducção de Moura; porque nem o commum dos leitores, que elle convida para lerem esses capitulos, entendem o arabe, nem o original tem capitulos, como se deprehende do prologo de Moura, e se vê das citações do texto arabe feitas pelo sr. Gayangos nas suas notas á versão inglesa de Al-Makkari. [50] Nesta classe, como em todas, ha excepções respeitaveis: falo em geral. [51] Dominac. de los Arab., P. 3 in fine. [52] Al-Khatib, Bibl. apud Casiri Bibl. Arab., T. 2, p. 216 e segg. [53] Abu-l-Feda, Annales Moslemici, T. 3, p. 359. [54] Al-Makkari (versão de Gayangos), Liv. 7 c. 5 e segg. L. 8 c. 1 e 2. Veja-se tambem a taboa chronologica a p. 89 dos Append. do 2 vol., e os extractos no livro _Kitabu-l-iktifá_ (Append. C. ad fin.). O reinado de Abu-Is'hák, sitiado em Marrocos pelos almohades, foi apenas nominal. [55] Chron. Gothor. ad aer. 1125-1155. [56] Chron. Conimbric, ad aer. 1155. [57] Roder. Tolet. Histor. Arabum, cap. 49. [58] Assaleh, versão de Moura, c. 43, 44, 45. [59] Ibid. c. 40. [60] Conde, P. 3, c. 33. [61] Casiri, T. 2, p. 218, col. 2. [62] España Sagr., 21, 373. [63] O nome mais geral nos auctores arabes é _Lamtuna_; mas Ibn-Khaldun (Gayangos, vol. 1, p. 408 nota _a_) chama-lhe _Lamtah_ e Leão Africano (Casiri, vol. 2, p. 219) _Lemta_. [64] A pag. 22 do opusculo diz-se que escrever _emir_ é erro do vulgo dos traductores em vez de _amir_ (o caso é serio), e a pag. 11 diz-se que em vez de _emir-el-muminin_ eu deveria escrever _emir el-muminina_. Em que ficamos? Em _emir_ ou em _amir_? Quanto a _muminina_, Gayangos, Casiri, etc. escrevem sempre _muminin_. [65] Gayang. vers. d'Al-Makkari, Vol. 2, p. 386 [66] Abulfeda, Annal. Mosl., T. 2, p. 471. [67] Versão francesa de Pellissier et Rémusat p. 192. Ibn-Khalddun denomina frequentemente khalifas os imperadores almohades. (Gayangos, Vol. 2, App. D.) [68] Assaleh. c. 45. Neste capitulo fala-se muitas vezes no _califado_ e no _califa_ Abdelmumen. [69] Não é só a chronica de Affonso VII que refere a queda de Aurelia: os Annaes Toledanos referem-na igualmente. [70] O Karttás (titulo da historia d'Abdel-halim), é propriamente, segundo o testimunho de Haji-Khalfah, e conforme o que se lê em diversos exemplares da obra, escripto por Ibn-Abi-Zara, que viveu no seculo XIII. Ab-del-halim parece ter sido um copista, ou talvez um abbreviador. Veja-se a nota do sr. Gayangos ao L. 8, c. 2 de Al-Makkari. [71] Assaleh--vers. de Moura, c. 40 p. 182. [72] Chronica Adef. Imper. Praef. et § 64. [73] Sigo a paginação do opusculo, tirado á parte depois d'impresso na _Revista de Ambos-Mundos_. Um exemplar delle que possuo, devo-o á urbanidade e benevolencia do sr. Muñoz, que teve a bondade de m'o remetter. [74] Em documentos do seculo XIII vemos ainda a designação de servos applicada aos escravos mouros. N'um testamento de 1232 são legados ao mosteiro d'Alcobaça _sarracenos et sarracenas servos et servas_. Doc. de Alcobaça na Collecç. Especial, Gav. 81 na Torre do Tombo. [75] Hist. de Port., T. 3, p. 313 da 3.^a edic. [76] Hist. de Port., T. 3.^o, p. 255 (nota 4) 274 &c. [77] Esp. Sagr., T. 40, Append. 19. [78] Doc. de Moreira na Torre do Tombo, Collecç. Especial, G. 78. [79] Por exemplo, o 1.^o bispo de Coimbra depois da restauração, Paterno, que, sendo bispo de Tortosa e vindo por embaixador dos Beni-Huds de Saragoça a Fernando-magno, foi alliciado pelo alvasir Sesnando para acceitar o episcopado de Coimbra, o que fez alguns annos depois. _Qui suprafatus episcopus_ (diz o documento do Livro Preto da Sé de Coimbra que refere o facto) _eo tempore Tortuosane Urbis sedem tenebat, sed propter societatem paganorumofficium et ordinem suum minimè adimplere valebat_. [80] N'uma doação de 1083 á igreja de Vouséla (Livro Preto f. 144) mencionam-se entre outras alfaias _una casula tiraz et una dalmadiga tiraz_. O _tiraz_ era um estofo precioso de fabrica sarracena, de que usavam as pessoas principaes entre os mussulmanos, onde se liam bordadas orações do culto islamitico e sentenças de koran. Quando os sacerdotes da igreja de Arcozelo á qual tinham pertencido aquelles paramentos, ou os da de Vouséla, á qual se doaram, celebrassem, revestidos com elles, os officios divinos, os assistentes que não ignorassem a leitura do arabe poderiam ir misturando as preces da igreja com as do islamismo, e lendo as sentenças do koran, emquanto os celebrantes repetiam os textos do evangelho. [81] Gothorum ordinem... tam in ecclesia... quam in palatio... statuit: Chron. Albeld § 58. [82] Martim Moniz (genro do conde Sesnando e seu successor no governo de Coimbra) doa perpetuamente a João Gosendes os bens na villa de S. Martinho _que ibi obtinuit Cidel Pelagis in autondo de consule domno Sesnando_. (Livro Preto da Sé de Coimbra f...) Aqui _atondo_ significa serviço (_no serviço do conde Sesnando_) ou retribuição por serviço, mas temporaria, por isso que os bens se doam depois hereditariamente a outro. Documento hoje publicado nos _Portugaliæ Monumenta Historica, Diplomata et Chartæ_, Pars. 1.^o N.^o 770. [83] Pag. 7. [84] Pag. 12 e 13. [85] surda aure cum inimicis summi Dei amicitias conligamus, et placentes eis nostrae fidei derogamus--Quotidie opprobriis et mille contumeliorum fascibus obrupti, persecutionem nos dicimus non habere--Christianos contra fidei suae socios, pro regis gratia et pro vendibilibus muneribus et defensione gentilium praeliantes, non maledicimus nec detestamus, sed religiosos pro vero Deo certantes anathemate percutimus et infamamus--Nonne ipsi qui videbantur columnae, qui putabantur ecclesiae petrae... nullo cogente... Dei martyres infamaverunt? Nonne pastores Christi, doctores ecclesiae, episcopi, abbates, presbyteres, proceres et magnates haereticos eos esse publicè clamaverunt?--Dùm enim circumcisionem ob improperantium ignominiam devitandam... cum dolore etiam non medio corporis exercemus--Et dùm eorum versibus et fabellis mille suis delectamus, eisque inservire, vel ipsis nequissimis obsecundare etiam premio emimus... ex inlicito servitio et execrando ministerio abundantiores opes congregantes, fulgores, odores, vestimentorumque, sive opum diversarum opulentiam, in longa tempora nobis filiisque nostris atque nepotibus praevidentes,--ob honores saeculi fratres cum crimine regibus impiis accusamus,.. inimicis summi Dei ad occidendum gregem Domini gladium revelationis porrigimus, ducatumque eorum et ministerium ad ipsum facinus exercendum pecuniis emimus.--Nonne omnes juvenes christiani, vultu decori, linguae disserti, habitu gestuque conspicui, gentilitia eruditione praeclari, arabico eloquio sublimati, volumina chaldaeorum avidissimè tractant, intentissimè legunt, ardentissimè disserunt?--linguam suam nesciunt christiani, et linguam propriam non advertunt latini, ita ut omni Christi collegio vix inveniatur unus in milleno hominum numero, qui salutatorias fratri possit rationabiliter dirigere litteras, et reperitur absque numero multiplex turba qui eruditè chaldaicas verborum explicet pompas. _Alvar. Cordub. Indicul. Lumin. passim._ [86] ille dixit quomodo fuit suo avolo Ezerag de Condeixa, et quando filarunt mauros Colimbria fuit ille Ezerag ad Farfon ibn Abdella et fecit se mauro et petibit XXX.^a mauros de arragaza et metivit illos in matos et dixit ad illos christianos de illas villas exite gente benedicta quia jam pace filavi cum mauros et exibant de illos matos et populabant illas villas et exiebant illos mauros de illos matos et levarunt eos ad Sanctaren et venundabant eos et fecerunt in illos VI haretas de argento et inderenzarunt illos ad Cordova cum carta de Farfon et cum isto ganato, et petivit illos molinos de Forma et alias villas multas et donavit illos. Almanzor: _Lib. Testamentor. f. 76 v._ [87] Na freguesia de S. Martinho, aldeia de Valloura, districto de Aguiar de Pena, havia 3 casaes, cujos moradores, além de outros onus, tinham o seguinte: _et vadunt in mandatum ad Legionem, ut sciatur per ipsos quid facit rex legionensis_: Inquirições de 1220: Liv. 5 de D. Diniz f. 118 v. [88] Pag. 19 e 20. [89] Pag. 124 e 153. [90] Pag. 12. [91] La Russie, Lettre X. [92] Pag. 15. [93] Pag. 44 e segg. [94] Hist. de Port., T. 4, pag. 336 e 482. [95] Doação de Diogo Olidiz a Tructesindo Gutierriz da igreja de S. Marina: «damus ad vobis illa pro plagas et feridas malas que cemus (_sic_) ad vestros malados, et non abuimus unde illas pectare:» Doc. original do mosteiro de Moreira de 1075 no Arch. Nacional. [96] Liv. 1, Tit. 7, l. 2. [97] Qui conductarium alienum occiderit dominus ejus accipiat inde homicidium. Similiter de suo ortolano et de suo quartario et de suo molendinario et de suo solarengo. [98] Et homo de Nomam qui suos homines habuerit in suis hereditatibus, aut sui vassali fuerint, et aliquis illum mactaverit, suus senior colligat inde homicidium: For. de Numão de 1130. [99] ...... peccato impediente battivimus vestro junior, nomine Froila, cum alios meos galiasianes... et pervenit ipse Froila de ipsa badtedura ad mortem, et pro ipso homicidium abui vobis ad dare in judicato quinque boves, et pro ipsis quinque boves incommunio vobis pro medio &. Est. de las Person., pag. 15. [100] Collecc. de Fuer. Municip., pag. 130 e seg. [101] Hist. de Port., Vol. 3., Nota final XVI. [102] Collecc. de Fuer. Municip., pag. 126. [103] Pag. 2. [104] Liv. 5, tit. 4, l. 13. [105] Liv. 2, tit. 4, l. 5. [106] Pag. 160 [107] A confusão, na phrase, entre o colono e o predio, tomados um pelo outro, confusão que sobretudo se deduz claramente das singulares expressões _homem inteiro_, _meio homem_, etc. apparece ainda ás vezes nos nossos monumentos do seculo XIII. Nas Inquirições da terra de Faria, feitas naquella epocha, lê-se, por exemplo: «S. Leocadia de Pedrafurada: homines de ista collacione solebant pectare vocem et calumniam, sed modo non pectant nisi quinque homines et medium qui dant annuatim singulas gallinas, et _medius homo_ dat mediam gallinam: et ista casalia... dant vocem et calumniam et singulas gallinas et duos, duos solidos, tribus vicibus in pedida, sed _medium casale_ medium forum facit. Inquir. d'Affons. III, L. 7, f. 14 v. Lista de erros corrigidos Aqui encontram-se listados todos os erros encontrados e corrigidos: +----------+---------------------+----------------------+ | | Original | Correcção | +----------+---------------------+----------------------+ |#pág. 21| a a que | a que | |#pág. 36| aggresssões | aggressões | |#pág. 50| encarnada | incarnada* | |#pág. 106| esse invenção | essa invenção | |#pág. 137| instinctos | intuitos* | |#pág. 157| desprezados | desprezadas* | |#pág. 160| de | do* | |#pág. 171| as creança | as creanças | |#pág. 187| giria | gira* | |#pág. 191| pena | penna* | |#pág. 249| ?uccessores | successores | |#pág. 287| da | de* | |#pág. 288| prudente | precedente* | |#pág. 292| conpição | condição* | | | | | |#nota 80| celebran | celebrantes* | +----------+---------------------+----------------------+ * correcções feitas com base na errata do próprio livro. Aspas foram adicionadas nos locais onde deveriam existir: (#pág. 50: delles.» Para) O número da nota de rodapé #55 (#pág. 202) encontra-se omitido na obra, tendo sido acrescentado neste e-book. Variantes da palavra "mussulmano" foram mantidas de acordo com o original. *** End of this LibraryBlog Digital Book "Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 03" *** Copyright 2023 LibraryBlog. All rights reserved.