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Title: Napoleão no Kremlin
Author: Leal, José da Silva Mendes, 1818-1886
Language: Portuguese
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NAPOLEÃO

NO KREMLIN

POR

J. DA S. MENDES LEAL


LISBOA

TYPOGRAPHIA DA GAZETA DE PORTUGAL

26, Travessa da Parreirinha, 26

1865



AO PRINCIPE DA LYRA


ANTONIO FELICIANO DE CASTILHO

    Philósopho, poeta, obreiro do futuro,
    Qual és, benigno acceita o canto que murmuro,
    Ante as urnas da historia, á minha solidão,
    Da tua ethérea luz á sombra estende a mão!



                                       Sic fata voluerunt.


I

    Era a collina sancta, e em volta a gran-cidade!

    Revolvera o cabeço uma audaz tempestade
    De granito e de bronze, arremeçando aos ceus
    Por ondas bastioens, por vagas coruchéus!
    Era nova Babel, soberba e formidavel;
    Tudo o que é oppressor; tudo o que é implacavel;
    Das impostas pendendo os anneis dos grilhoens;
    Sétteiras nos jardins; nos eirados canhoens;
    Cem vigias de pedra em cada miradoiro;
    Ao rez grades de ferro; em cima tectos d'oiro;
    Uma pompa violenta, uma anciosa mansão,
    Que dirieis romper da bocca d'um vulcão!

    A espaços, coroando a tétrica cerviz
    D'um torreão firmado em rudes alcantis,
    Metalico zimborio esplende ao astro esquivo,
    Como o élmo que aperta a fronte de um captivo.
    Emmaranham-se á vista arcadas e quarteis,
    E os grossos revelins, e os rendados maineis.
    A um tempo Europa e Asia, opprobrio e maravilhas;
    N'um reducto um bazar; as áras nas bastilhas;
    Abrolhando o recinto um selvoso espessor
    De agudos campanis--e no todo o terror!

    Era a suspeita armada, eterna sentinella,
    Por dentro Pantheon, por fóra cidadella!
    Era, ao dubio alvorar que precede a manhan,
    O poema d'Igôr em torno á cruz d'Ivan;
    Revolta construcção d'um Encélado novo;
    Garra adunca e brutal sobre o peito d'um povo;
    Funesta allegoria, affronta da razão,
    Que intenta dizer: gloria! e diz: escravidão!
    Era a ameaça feroz na túrbida grandeza;
    Templo, ergástulo, paço, erario, e fortaleza!
    Era o alcaçar do Norte, o seu sanctuario, emfim
    A acrópole augural do Scytha--era o Kremlin!


II

    No mais alto mirante um vulto grave e mudo,
    Todo nevoas o ceu, na terra immovel tudo,
    Contempla vagamente as vagas solidoens.
    De força e de grandeza inda não satisfeito,
    Aspira o espaço e a noite--a dextra sobre o peito
    Como para conter a furia das paixoens.

    A metrópole immensa, adormecida ou morta,
    O immenso pedestal, que rendido o supporta,
    As planuras que ao longe ondulam como um mar,
    As hostes, os tropheus, a conquista, os portentos,
    Nada d'isto ja vê; taes são seus pensamentos,
    Tam alta a mente foi, tam fundo é seu scismar.

    Quem é elle? O que faz? D'onde vem? Com que fito?
    Incansavel obreiro interroga o infinito;
    Paz não tem; lei não quer; vai, vai; não conta os sóes;
    E se instantes parou, quando a fortuna o prova,
    É para meditar alguma audacia nova,
    Na attitude que toca aos Numes e aos heróes!

    D'onde vem? Attentae. Correi; segui-lhe o rasto.
    Nunca sulco mais fundo em terreno mais vasto!
    Manda: o Occidente afflue.--Que estrugir! Que avançar!
    Que longo! Que voraz! Que enorme! Que terrivel!
    Esta chamma? Hontem era um castello invencivel.
    Esta cinza? Era ha pouco arrogante solar.

    O facho precursor alonga um ermo aberto.
    Investe a legião, defende-se o deserto.
    D'Átilla a grande sombra, ao ver os capitaens
    Violar da patria selva os não cursados trilhos,
    Pensativa procura, afastando seus filhos,
    Um tumulo que sirva aos filhos dos Titaens

    Quem é? O homem-cratéra; emblema, sphinge, arcano;
    Tanto como um propheta, e mais que um soberano.
    Um dia o viu reinar mal outro o viu surgir.
    Sam-lhe os povos degraus; o imperio foi-lhe ensaio;
    Na larga fronte um Deus; nos olhos d'aguia um raio;
    Pelas trevas se entranha, e elabora o porvir.

    De Karl, o Invicto, o Magno, o Imperador espectro,
    Tomou nas fortes mãos o gladio, o globo, o sceptro;
    Co'a tunica viril das desprendidas greys
    Tam amplo manto fez, que esconde, dilatado,
    D'um lado os Pyrenéus, os Alpes d'outro lado,
    E nas sobras talhou dez purpuras de reis.

    Quem é? Seu grande nome o espanto e o ardor espalha,
    Como o som d'um clarim n'um dia de batalha.
    Ha muito o Austro o acclama. Hoje o Septemtrião
    Atérrito o escutou no horror de Borodino...
    A Historia escreverá: «chamava-se o Destino!»
    Á voz dos seus canhoens troou: «Napoleão!»

    No humilhado frontal das basilicas nuas
    Levantam-se-lhe aos pés, velando, as aguias suas,
    As aguias triumphaes, as aguias d'Austerlitz.
    Volve acaso o semblante. Olhou. Mira a victoria
    Nos amados pendoens, que inflamma tanta gloria,
    E o coração trasborda, e rompe o verbo, e diz:


III

    --«Eis-me. Cheguei. Mais fúlgido
    Meu astro se alevanta:
    No coração do Tártaro
    Encosto o ferro e a planta.

    Eis-me. O leão da Córsega
    Emfim vos empolgou,
    Ó capital das cúpulas,
    Ó torres de Moskow!

    Eu sou o Ajax authentico,
    A authentica epopéa,
    Aurora apoz crepusculo,
    Espada feita idea.

    Fadou-me Arcóle e Rívoli
    Marengo, e Lodi, e as mais;
    Rompi d'um canto homerico
    Em dias immortaes.

    O mesmo sou, que os seculos,
    De tanto ousar pasmados,
    No cimo das pyramides
    Mostrei aos meus soldados.

    Fiz n'essa terra, symbolo
    De olympicos avós,
    Estremecer nos tumulos
    Os velhos Pharaós;

    N'essa, ao potente estrépito
    Do arrojo e das victorias,
    Cubri co'as palmas ínclitas
    As maximas memorias;

    N'essa, mysterio pávido
    Onde o passado rue,
    N'essa, de assombros pródiga,
    Maior assombro eu fui.

    Era Alexandre o prólogo.
    Tentou-me. Em cem combates
    Arremessei, seu émulo,
    O Nilo sobre o Euphrates.

    No turbilhão phantástico
    Dos rapidos corseis,
    Ardentes vi cercárem-me
    Os esquadroens dos Beys;

    Vi mais--ceára horrifica
    De alfanges e trabucos!--
    Os marciaes Janizaros,
    Os feros Mamelukos;

    E a densa turba innúmera,
    Ao breve aceno meu,
    Sombra tornada, súbito
    Ás sombras se volveu.

    No pó de heroicas épochas
    Ficaram meus vestigios;
    A par das lendas bíblicas
    Tracei novos prodigios.

    Aos vãos chegou do Libano
    Meu bellico trovão,
    E do Thabor aos pincaros,
    E ás margens do Jordão.

    Sobre os dispersos idolos
    Meus batalhoens marcharam;
    De feito a feito alçândo-se,
    Ovantes acamparam

    De Thebas entre os pórticos,
    Em Memphis sem rival...
    Fêz-se ás gigânteas fabulas
    A minha historia egual.

    E o proseguir esplendido
    Da triumphal carreira,
    Quando a meus pés atónita
    Prostrei a Europa inteira!

    Quando, as cohortes férvidas
    Dispondo a meu sabor,
    Ao fim de um dia tragico
    De universal terror,

    Em vindo a erguer-se o Véspero,
    Surgia da metralha
    Nas mãos trazendo, incólume,
    Um reino e uma batalha!

    Meu curso meteórico
    Não pára; a lucta é van:
    Succedem-se fatidicas
    Iêna, Eylau, Wagram.

    Sou vencedor, sou árbitro
    Aos curvos hemispherios;
    «Surgi» ordeno, e surgem-me,
    Quaes os desejo, imperios.

    Triumphos e catastrophes,
    Estados, leis, naçoens,
    Os fulgurantes prestitos,
    As bastas legioens,

    Confundem-se, ennovellam-se
    Na cerração turbada
    D'um cahos, ao relampago
    Que vibra a minha espada.

    Quiz Deus tornar-me o Génesis,
    Que em breve ha de accender
    Nos homens novo espirito,
    Nas eras novo ser.

    A evolução recôndita
    Avança d'hora em hora:
    Trabalho sobre a íncude
    A humanidade agora.

    O herdeiro dos Apostolos
    Ungiu-me entre os christãos,
    E eu mesmo a c'roa altissima
    Cingi com estas mãos.

    Deixei submisso, trémulo
    Como exorando as Parcas,
    Aos meus humbraes um séquito
    De palidos monarchas.

    Este diadema unico
    D'estrellas constellei;
    Em nova, summa Ilíada
    Sou já de reis um rei.

    E aqui!... aqui rodêam-me,
    Activos serviçaes,
    Os meus ministros-principes,
    Meus duques-marechaes!

    Fervem do Sena ao Vistula
    Os arraiaes em peso,
    Como nas veias tumidas
    Um sangue em febre accêso!

    Olhae! Conduzo unânimes,
    Mais fortes cada vez,
    Germanos, frankos, ítalos,
    O proprio portuguez;

    O portuguez, que intrépido
    Sabe ir, honrando os lares,
    Descortinar o incógnito
    Vencendo terra e mares!

    Quem ha-de pois com exito
    Meus planos impedir?
    Aos orbes posso o âmbito,
    Com braços taes medir!...

    Moscow, teu solo as máculas
    D'escravo teve; apague-as:
    Venci o repto altisono
    Das aguias contra as aguias.

    E tu, rival maritimo,
    Aqui te enfreio a acção!...
    Ó Russia, emfim pertences-me!
    Emfim és meu, Bretão!»


IV

    No ardor que o move, a mão comprime ao peito ingente,
            Absorto fica, e de repente
    O tolhe, e todo o enleva, um extasi sem par.
    Encontrára no seio a leve miniatura,
    Que o filho, o filho tenro, ao vivo lhe figura,
            E n'elle o amor, a esposa, o lar.

    Humanou-se o colosso. O tenue quadro encara;
            Revê na mente a imagem cara;
    Quer-lhe, apesar da sombra, o rosto distinguir;
    Um rosto angelical, alvo, louro, rosado,
    Candido lyrio em flor, de purpura orvalhado,
            Que estrélla a noite, e a faz sorrir.

    Foi prenda conjugal. Ao recebel-a o esposo,
            Rompia o choque pavoroso
    Da batalha que abriu as portas de Moskow!
    Com saudades talvez, talvez tambem com prantos,
    O grão conquistador anceia affectos santos...
            É pae!--Depois continuou:


V

    --«Ó filho, foi-te oráculo
    O genio meu profundo:
    Ó filho, achaste um mundo
    No berço imperial.
    Que resplendor, que auréola
    De gloria, de thesouros,
    De conquistados louros,
    De pompa triumphal!

    Cesar, que vens de Césares,
    Deus pôz-te, alma adorada,
    A tradicção, a espada
    Nos braços infantis.
    Nasceste rei. Teu titulo
    Da mór grandesa assoma.
    Nasceste rei de Roma,
    E Roma o globo diz.

    C'a herança conta. Alargo-t'a.
    A immensa monarchia
    Apuro noite e dia
    No paternal crysol.
    Legar-te quero o circulo
    Que os povos encorpora,
    Desd' onde surge a aurora,
    Té onde baixa o sol.

    Dissiparão no vórtice
    Os diques derradeiros
    Meus bravos granadeiros,
    Meus esquadrões sem fim.
    Da cupula estellifera
    Dominarás robusto,
    Ó tu, futuro Augusto,
    Que és hoje cherubim.

    Meu mando, egregio e próvido,
    Cabal a terra invade.
    Não mais que uma vontade,
    Que um throno, e que um altar!
    É tempo. Os fados cumprem-se.
    Desvende-se o mysterio...
    Universal imperio
    Começo hoje a fundar!...»


VI

    Nisto uma chamma, e outra, e cento, e centos
    Brotam-lhe em torno, as trevas arraiando;
    Abrazam-se os minados monumentos;
    Cresce o mal, cresce o damno, desabando
    No rubro chão os rotos pavimentos;
    Negro e espesso vapor, de quando em quando,
    O espaço tolda, golpha nas verédas.
    É tudo em pouco um mar de labaredas!

    Soprando sobre a ardente cataracta,
    Rijo aquilão o estrago faz mais breve,
    E o hynverno boreal, veloz, desata
    Dos rócheos hombros o lençol de neve.
    Triumpha a morte; o horror o horror dilata;
    O espirito a medil-o mal se atreve.
    Que dôr! Que fim! Que circulo medonho!...
    Tal foi o despertar qual fôra o sonho!

    Inspira patrio amor delirio intenso.
    Do rude Scytha a barbara energia
    Faz do seu Capitolio um facho immenso,
    (Funerea tocha em lugubre agonia!)
    E brada ao vencedor tôrvo e suspenso:
    --«Hospede vens: meu braço te allumia!»
    Pressagio triste ao grande temerario!
    O incendio, occaso! Os gellos, um sudario!

    D'esse lume ao revérbero inimigo
    Vê-se, na encosta qu'inda o sangue innunda,
    Descendo, só, quem só contou comsigo;
    E no extremo fatal (licção profunda!)
    Como o padrão do Prometheu antigo,
    Um rochedo surgir, que o mar circumda--
    O mar, espelho azul da immensidade,
    Cantico eterno á eterna liberdade!



VENDE-SE NOS-SEGUINTES LOCAES


Escriptorio da Typographia da _Gazeta de Portugal_, travessa da
Parreirinha, 26, 1.º andar.

Livraria de Silva, praça de D. Pedro, 22 a 25.

Livraria de Pereira, rua Augusta, 50 e 52.

Liyraria de Lavado, rua Augusta, 29 e 31.


Preço 100 réis.





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