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Title: Alexandre Herculano
Author: Lima, Jaime de Magalhães, 1859-1936
Language: Portuguese
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                        JAYME DE MAGALHÃES LIMA

                                ALEXANDRE
                                HERCULANO



                             F. FRANÇA AMADO,

                             EDITOR. COIMBRA.



                           ALEXANDRE HERCULANO



Composto o impresso na Typographia França Amado,
rua Ferreira Borges, 115--Coimbra.



JAYME DE MAGALHÃES LIMA

Alexandre Herculano



COIMBRA
F. FRANÇA AMADO, EDITOR
1910



I

Um paladino illuminado e moço, intemerato no ardor da juventude e na
exaltação da crença que nem o martyrio lograria dominar ou perverter,
sonhou a redempção da patria desolada pelas guerras, pela fome, pela
oppressão de tyrannias ávidas e corruptas, por hypocrisias sordidas e
degradações monstruosas. Sonhou dias de luz e de ventura, de liberdade e
de paz, de boa vontade entre os homens, de trabalho honesto, de civismo
austero e de religião sublimada, formosura e virtude, o resgate da
miseria desalentada e tenebrosa em que se afundava um povo, outrora são
e justamente altivo e agora debatendo-se por se salvar e erguer dos
abysmos em que a desventura o havia precipitado. E o paladino partiu a
conquistar para a patria a fortuna revelada em visões de
claridade; e armou-se soldado, transpondo para exercitos do mundo
aspirações divinas, a todos os perigos sujeitando a existencia ephemera,
sem que algum fosse capaz de lhe turvar a fé.


II

Combateu. Foi vencido. Em vez de palmas de triumpho, recebeu as penas do
exilio. Desterrado da «terra cara da patria», que saudou entre a dôr,
verteu lagrimas de «saudade longiqua sobre as ondas do mar irriquieto»,
chorando o

    «Berço do seu nascer, sólo querido,
    Onde cresceu e amou e foi ditoso,
    Onde a luz, onde o céu riem tão meigos,
    Seu pobre Portugal..................[1]

Proscripto e errante, entre as brumas do norte,

    «.......................as auras puras,
    O murmurar do arroio, o canto da ave,
    O fremito do bosque, o grato aroma
    E o vistoso matiz do ameno prado,
    O lago quedo a reflectir a lua,
    As montanhas tão ricas de mysterios,
    De éccos, de sombras, de tristezas santas:»

isso tudo que eram encantos da sua terra, trazia-lh'o ante os olhos,
cruelmente, a memoria inexoravel[2].

    «..................A dôr está no coração do profugo
    Como um cadaver hirto quando espera
    De noite, em leito nú, que á tumba o desçam.
    A dôr aqui é gelida, immutavel;
    Pousa em labios alheios que sorriem
    E até em sorrir nosso; está sentada
    Ao pé do umbral do tecto que nos cobre,
    Embebida na enxerga do repouso,
    Entranhada no pão que nos esmolam,
    Enroscada qual cobra peçonhenta
    No nodoso bordão do peregrino,
    E em toda a parte e em todo o tempo é nossa.»[3]

Embora

    «Sob as azas do amor abrigue o Eterno
    Homens, nações e o mundo; o amor por elle
    Nasce, cresce, avigora-se enredado
    Com os beijos da mãe, com sorrir amigo
    De nossos paes e irmãos, ensina-o a tarde,
    O por do sol da nossa terra, o choupo
    Da nossa fonte, o mar que manso geme,
    Nosso amigo da infancia, em praia amiga.»[4]

Soffreu o supplicio da revolta impotente, algemada em prisões
inexpugnaveis, e entenebreceu-lhe o espirito a turbação negra da
impiedade e da duvida, a derrota da fortaleza do proprio coração, mais
cruel para o crente do que a ruptura de todos os laços d'affecto imposta
pela violencia estranha. Para o proscripto, quando tudo o que amava se
converteu em sombra, a cada passo evocada pela lembrança desperta em
mágoas,

    «Quando em confuso passado apenas surge
    Qual fumo tenuissinio ou phantasma
    Á meia noite visto, á luz da lua,
    Ao longe, entre arvoredo, quando o sopro
    Da tempestade assobiou nas trevas
    Pela antena da náu do vagabundo;
    Quando a dôr sua em olhos d'ente vivo
    Não achou uma lagrima piedosa,
    E nos seus proprios são vergonha as lagrimas,
    Quando, se 'inda as derrama, ellas gotejam
    Não sobre seio que as esconda e enxugue,
    Mas sobre a vaga que se arqueia, e passa
    Sem as sentir; então o soffrimento,
    Filho de longo padecer, converte
    O coração do desditoso em marmore,
    Onde nunca penetra um puro affecto,
    Onde o nome de Deus sossobra e morre
    Entre o bramir de maldições e pragas.»[5]

Ao rigor da desventura juntou-se a agonia do desfallecimento. Não a
morte! Porque de toda a oppressão o sonho renascia. Para os loucos
d'amor que por amor combatem, os golpes da fatalidade ateiam a exaltação
em vez de a suffocarem, e nem o nome de Deus jámais «sossobra e morre»,
nem as pragas e maldições respondem aos flagellos da desgraça, sem que
logo as condemne e cale uma outra voz intima e soberana. Fortificam-se
nas provações. Amarguras da alma e mortificações do corpo, pobreza
extrema, abandonno sem lenitivo, o opprobrio da derrota, o insulto dos
vencedores, torturas dos inimigos e a altivez dos ricos, em vão passaram
pelo vencido. Perdido na solidão de ilhas inhospitas para o seu coração
a trasbordar de tristeza, não houve adversidade que lhe vergasse o
animo, inflexivel na firmeza de combater e na confiança da victoria.

E cantava, o peregrino! As tribulações incendiavam-lhe o genio. Esse
mesmo sangue denegrido pelas pedras contundentes d'asperos caminhos
creava e alimentava flores altas e resplendentes de celeste pureza. O
peso das armas não partiu as cordas da lyra. Ia occulta e guardada no
seio, murmurando de continuo seus gemidos e preces. Nem o fragor das
batalhas e as blasphemias atrozes de luctas inhumanas lhe
perturbariam a harmonia religiosa. No soldado habitava o poeta, e não
foi necessario que o soldado pousasse o fusil, para que o poeta
deferisse apaixonadamente a voz grandiloqua.

Advinhava o «dia de ventura» que o destino lhe reservava.

O tempo justificou-lhe a aprehensão. Pela audacia heroica de guerreiros
destemidos, a que o sonhador foi juntar-se, pelejando as suas duras
pelejas, os desterrados voltaram «ás plagas da saudade e á terra dos
seus sonhos», e de novo avistaram «os gestos tão lembrados, os campos
tão risonhos, o tecto amigo da infancia, a fonte que murmura, o céu puro
da patria», que no exilio haviam chorado, consumidos de saudade.


III

Ah, a sua patria! A sua desvairada patria!... O poeta imaginava
trazer-lhe legiões angelicas para a abençoarem d'infinitas bençãos, e
trazia-lhe apenas um bando de homens, muitos quasi santos, todos
denodados, e muitos outros fracos porque á intrepidez do braço não
correspondia a generosidade do animo. E o paladino ingenuo viu rebentar
d'esse mesmo sólo que a imaginação lhe cobrira de pomares umbrosos e
doces, paradisiacos, os fructos mortiferos de seivas envenenadas. A
furia das ambições agitadas, a desordem e o egoismo vilmente
triumphantes, o delirio das obsessões afogueiadas dos fanaticos, ondas
de impiedade céga e estupida, o fraco desprotegido contra o forte e a
victoria degenerando em ferocidade, o misero recalcado na miseria pela
cobiça infrene do opulento, a virtude insultada, o escarneo e o roubo,
tudo quanto ha de infimo nas perversões humanas, tudo o poeta viu
manchando o

    «Berço do seu nascer, sólo querido,
    Onde cresceu e amou e foi ditoso,
    Onde a luz, onde o sol riem tão meigos
    Seu pobre Portugal!................»


IV

Perante «as vagas d'esse mar de abjecção chamado o vulgo»[6],
que assolavam a querida patria, cobrindo-a, apodrecendo-a e
arrastando-a pelas praias turbidas da cobiça, não se quedou, desalentado
e mudo, o sonhador. Não se «sumiram os cantos que lhe transudavam da
alma», por se encontrar «n'um seculo sem vida, sem virtude e sem fé, em
que desabavam as crenças todas do passado, e era sonho a constancia e o
amor»[7]. Partida a espada, agora inutil porque os seus
combates haviam cessado, o apostolo surgiu na tunica branca e rude da
sua austeridade; e foi-se a missionar sua missão fraterna d'affecto e de
grandeza, piedoso e confiado, empunhando um facho deslumbrante, a
mostrar-nos a estrada por onde ha longos seculos vinha caminhando o povo
eleito do seu genio, descerrando-nos os páramos da nobreza impoluta a
que quereria conduzil-o, renovando-o á sua imagem, renascendo-o nos seus
translucidos sonhos.

Então, d'entre aquelles mesmos que elle amava e pelos quaes padecera,
muitos lhe voltaram as costas, alguns lhe cuspiram injurias e
anethemasiram-no, outros por timidez o abandonaram, e todos assim por
diverso modo desconheceram ou negaram a luz que lhes trazia.

Mas elle venceria, na força invencivel dos fortes, alimentada
d'emanações divinas. Pagavam-lhe os homens com ignominia e deserção o
amor que prodigamente lhes tributava?!... O chão da sua patria o
receberia, aquelle que todo o alento retribue e a nenhum mente.
Resurgiria em lirios a formosura que se mirrava sob o halito pestilento
de paixões funestas; o amor que o pó das baixezas occultava e repellia
no rolar de suas nuvens escuras, pousaria na frescura salutar dos campos
reverdecidos pelo suor do ermita.


V

Distante dos homens para melhor os servir dando-lhes exemplo, foi o
infortunado sonhador offerecer seu esforço e fadigas a um pedaço de
terra que encontrou inculta, engrinaldando-a de rosas e nutrindo-a de
cuidados, para que de seu seio uberrimo dimanasse a delicia do perfume,
o refrigerio da sombra, a abundancia do pão e consolações do espirito. A
enxada do cavador não se mostraria inferior, para remir de penas a
humanidade, á bayoneta do soldado e ao verbo inspirado do apostolo; a
todos santificaria igualmente o calor do coração que os ungia.

Agora, a recompensa era certa. Uma vez ao menos sentiria a realidade
igual ao sonho. Antecipadamente o sabia, d'uma certeza intima, absoluta.
Quando ainda no peito lhe borbotavam vigorosas as esperanças de
regeneração dos homens pelas luctas e combates, já entrevia as bençãos
ineffaveis da solidão, já o seu enlevo se lhe mostrára. E apetecendo-a,
cantava-a, implorando da generosidade do destino a concessão d'essa
magnifica e incomparavel riqueza, e imaginando, em um lance de
antegozo e deleite, a plenitude de vida que ella importava para o seu
divino anceio. Muito cedo a invocou e adorou, antes de a encontrar e
possuir:

    «...........oh, dae-me um valle
    Onde haja o sol da minha patria, e a brisa
    Matutina e da tarde, e a vinha e o cedro,
    E a larangeira em flôr, e as harmonias
    Que a natureza em vozes mil murmura
    Na terra em que eu nasci, embora falte
    No concerto immortal a voz humana,
    Que um ermo assim povoará meus dias»[8].

Rendido á visão que toda a vida o acompanhou, correu a abraçal-a.

No seu bemdito captiveiro viveu os derradeiros dias e n'elle morreu,
curadas as feridas do mundo nos balsamos da natureza.

Amou sempre! A robustez inviolavel do coração havia de salval-o de toda
a tormenta, retemperando-o continuamente em estos de amor a Deus e aos
homens, por fim consubstanciado na terra mãe e nos filhos dilectos do
seu doce ventre, a seára, a rosa e a arvore.


VI

Esse paladino e sonhador, que tão gloriosa orbita seguiu e,
perfazendo-a, nella consumou a existencia, tem na historia de Portugal o
nome de Alexandre Herculano.



FASCINAÇÃO DO ERMO


FASCINAÇÃO DO ERMO

Uma apparente deserção da cidade, em que vivêra tantos annos, para se
encerrar no retiro d'um tranquillo casal rustico em Val-de-Lobos, a
dissolução abrupta de multiplicadas relações mundanas, litterarias e
politicas, d'affectos, de commercio intellectual e de velhos habitos,
serena e deliberadamente substituidos pelo isolamento e rudeza do
aldeão, no seu aspecto e modo de ser externo, pois, sem embargo, no
intimo não cessava nem podia cessar a superior distincção do espirito;
esse acto de estranha energia, que alguns julgaram orgulho e
desprendimento irritado, e outros tiveram por enigma indecifravel, foi o
facto capital da vida de Alexandre Herculano. Os que na sua existencia
anterior se tornaram notaveis e parecem designar marcos da jornada e os
que se seguiram a esse golpe de soberano arrojo, não parecem mais em
ultima conjuncção do que a experiencia, primeiro, e depois a
affirmação definitiva d'uma individualidade, homogenea na substancia e
invariavelmente identica no movimento e nas tendencias, logica, seguida
e firme, producto e revelação d'um caracter inalteravel.


I

A solidão será eternamente o refugio dos fortes, d'aquelles que as
tempestades do mundo não affeiçoaram á sua obra de descrença, de
mesquinhez, de destruição, d'aviltamento, de frouxidão desalentada, de
duvida resignada e de contentamento saciado nas commodidades d'uma
vulgarissima animalidade e na trivial vaidade dos instinctos primitivos.
Prophetas, santos e heroes, obscuros crentes e almas singelas,
innumeraveis espiritos d'eleição que o isolamento atráe, conquista e
salva de tormentos, dia a dia vão renovando essa perpetua pagina da
historia da humanidade, que fórma alguma de civilisação pôde apagar ou
corrigir.

«A nossa alma é progressiva, nunca se repete, mas em todo o acto procura
a realisação d'um todo novo e mais bello»[9], mais proximo da revelação
intima: e assim o vidente se vae isentando pouco a pouco, no correr da
existencia, de tudo o que constrange, e perturba e offusca a aspiração,
para mais de perto se lhe unir e a contemplar. Pela propria necessidade
da missão a que o destino o votou, gradualmente se desprende das cadeias
que lhe tolhiam a liberdade d'expansão.

A critica, na interpretação e auctorisado exame d'um extraordinario e
grande mestre, cujo saber e elevação foram dignos d'aquelle a que
honrou, analysando-lhe a obra portentosa e prestando culto ardente ao
seu caracter, viu no «solitario de Val-de-Lobos», como em respeitoso
carinho o cognominou, um suicida. «Quando as feridas, as perseguições,
os ataques, os ultrages são profundos e agudos como os que expulsaram da
politica--e tambem das lettras,--Alexandre Herculano, o stoico,
repetindo a historica phrase do Africano, suicida-se. É então que
vivamente nasce, pois só então o caracter apparece com toda a sua
pureza. Não o mata o scepticismo, mata-o o excesso d'uma imperfeita
doutrina. Não descrê, e é por cada vez mais acreditar em si que foge a
um mundo rebelde a ouvir a verdade. A morte não é pois um acto de
desespero, é um acto de fé. Só a differença dos tempos fez com que no
suicidio não entrasse o ferro, como entrou nos suicidios stoicos da
antiguidade»[10].

Porventura seria porém mais justo ou, pelo menos, mais exacto considerar
a attitude do ultimo periodo da vida d'Alexandre Herculano, não
propriamente um suicidio, a morte voluntaria d'uma parte da sua
individualidade, mas o perfeito remate, o termo ultimo da evolução
natural do seu espirito desde o começo promettida, contida nas primeiras
confissões da sua consciencia. Com o stoico coincidia no mesmo peito o
poeta; e os poetas não se suicidam, a não ser por pressão de desordem
physiologica grave ou no desvairamento de uma surpreza. O poder de
crear, sollicitando-lhes de continuo a actividade de que carecem e são
avidos, salva-os da tentação do anniquilamento; das visões que se esvaem
e, perdendo-se, os deixam prostrados, reanimam-nos as que sem cessar se
geram e de novo os inflammam: e caminham, caminham infatigaveis, d'amor
em amor, tão depressa succumbidos como de subito arrebatados por
energias mysteriosas e immortaes. Nem Camões, nem Dante, nem Petrarca se
suicidaram, embora a dôr a nenhum d'elles houvesse poupado.

Jámais se penetrará inteiramente, porque o genio sempre guarda para si
certa essencia transcendente dos seus segredos, a natureza do impulso
intimo que conduziu Herculano ao ermiterio de Val-de-Lobos; se foi
desgosto do mundo e protesto contra as suas vilanias, se a seducção da
paz dos campos e rendição aos seus encantos, se uma libertação que as
exigencias do caracter austero ha muito reclamavam, se a doçura de
bençãos que a terra prodigamente lhe offerecia e todo o seu ser lhe
pedia. Sem duvida, diversos sentimentos se conjugaram na mesma
tendencia, mas nas suas palavras ha signaes claros de que a corrente
d'affectos teria prevalecido sobre rigores de condemnação; não será
muito desvairada suspeita julgar que amou tanto as arvores e as rosas
dos seus estreitos canteiros como a _Historia de Portugal_ ou a
promulgação de leis justas que engrandecessem a patria. Para elle, como
para tantos outros da sua feição e estatura, até a tristeza e mágoa se
convertem em belleza, pela serenidade de que as revestem, pela religiosa
conformidade com que as acceitam e pelo objecto em que as transformam. O
que nos fracos redunda em estereis contracções torturadas de desespero,
é nos fortes o ensejo de subirem a maior altura.

Eurico, que Alexandre Herculano modelou cedo e cedo amou, «era uma
d'estas almas ricas de sublime poesia, a que o mundo deu o nome de
imaginações desregradas, porque não é para o mundo entendel-as»[11]. «O
povo rude de Carteia não podia entender esta vida d'excepção, porque não
percebia que a intelligencia do poeta precisa de viver num mundo mais
amplo do que esse a que a sociedade traçou tão mesquinhos limites».
«Ensinado pelas largas horas de intima agonia, esmagado o seu coração
pela soberba dos homens, Eurico percebera, emfim, claramente que o
christianismo se resume em uma palavra--fraternidade. Sabia que o
Evangelho é um protesto ditado por Deus, para os seculos, contra as vãs
distincções que a força e o orgulho radicaram n'este mundo de lodo,
d'oppressão e de sangue; sabia que a unica nobreza é a dos corações e
entendimentos que buscam erguer-se para as alturas do céu, mas que essa
superioridade real é exteriormente humilde e singela»[12]. «Os
virtuosos» não perceberiam os poemas em que o poeta lançava torrentes
d'amargura, «como, tranquilla a consciencia e repousada a vida, um
coração póde devorar-se a si proprio, e os máus não criam em que o
sacerdote, embebido unicamente em suas esperanças credulas, em suas
cogitações d'além tumulo, curasse de males e crimes que roiam» a patria.
Ignorariam a colera e maldições que podem dimanar e dimanam dos
prophetas do perdão e do amor. «Era por isso que o poeta escondia as
suas terriveis inspirações. Mostruosas para uns, objecto de ludibrio
para outros, n'uma sociedade corrupta em que a virtude era egoista e o
vicio incredulo, ninguem o escutaria, ou, antes, ninguem o
entenderia»[13]. «A força moral da nação tinha desapparecido e a força
material era apenas um phantasma; porque, debaixo das lorigas dos
cavalleiros e dos saios dos peões das hostes, não havia senão animos
gelados, que não podiam aquecer-se ao fogo do santo amor da terra natal.
Com a profunda intelligencia do poeta, o Presbytero contemplava este
horrivel espectaculo d'uma nação cadaver e, longe do bafo empestado das
paixões mesquinhas e torpes d'aquella geração degenerada, ou derramava
sobre o pergaminho, em torrentes de fél, d'ironia e de colera a amargura
que lhe trasbordava do coração ou, recordando-se dos tempos em que era
feliz porque tinha esperança, escrevia em lagrimas os hymnos de amor e
de saudade»[14]. No coração de Eurico, que parecêra morto, porque havia
procurado o ermo, o enthusiasmo e a virtude nem um só instante se tinham
todavia apagado; um surdo labor da sua alma perpetuamente os alimentava.
Apenas mudavam as vidas a que se applicavam e consagravam. O vulgo, na
inercia propria do acanhamento do seu espirito, não podendo alcançar os
voos do sonhador, desconhece-os e injuria-os, reputando-os insensatez,
delirio, uma dissipação inexplicavel de faculdades preciosas; incapaz de
prender o genio no circulo estreito dos seus interesses, imagina que o
illuminado os despreza e atraiçoa, desamando-o, quando o viu elevar-se e
perder-se n'uma atmosphera inaccessivel á debilidade commum das forças
mortaes. O mundo nunca poderia entender plenamente o affecto que,
«vibrando-lhe dolorosamente as fibras do coração», arrastou Eurico para
a solidão, «quando os outros homens nos povoados se apinhavam á roda do
lar acceso e fallavam das suas mágoas infantis e dos seus contentamentos
d'um instante»[15].

De longa data, Herculano traçára a propria carreira na contemplação do
filho do seu genio. Porque o conflicto da inspiração e do mundo é e será
o mesmo, irreductivel, eternamente, _heri et hodie, ipse et in secula_.
Se a inspiração veio alojar-se n'um pobre corpo humano, deixae-o, não
cuideis mais do seu destino. É só o tempo de percorrer a via dolorosa
pela qual tem de seguir seus fados. O termo da jornada está previsto, e
será o unico que á sua condição convém, o isolamento e o espaço que a
intensidade de irradiação reclama, provoca e determina nos astros ou nos
prophetas, nas parcellas minimas da luz da materia ou do espirito.

Alexandre Herculano foi para Val-de-Lobos, não para morrer e sepultar-se
ainda quente das palpitações do seu sangue, mas para viver inteiramente
sua vida; não para deliberada cessação de actividade, mas para a sua
mais perfeita expansão e mais lidima e bella applicação. Apenas
eliminava relações e cousas que o atormentavam, estorvando-o de se
manter continuadamente, face a face, na presença da aspiração intima.
Entrou no claustro que a seu modo edificou, naturalmente porque os das
antigas communidades estavam prostituidos e em ruinas. Não lhe
regateiára o mundo, atravez das injurias, as lisonjas que concede á
inanidade vaidosa com a mesma insensatez e inconsciente impudor que usa
na calumnia, na inveja e na flagellação do merecimento. Se não foi
amortalhado em trajo de grande do reino, recamado de chaparia, foi
porque constantemente repelliu de si esses symbolos de grandeza
emprestada, cobrindo o mais das vezes uma real mesquinhez. O premio que
buscava dos seus combates, aquelle que o alegraria, se os estranhos lh'o
houvessem dado, era a communhão na sua fé, de que contrariedade alguma o
arrancaria, e o fortalecimento nas suas virtudes, em cuja propagação se
lhe figurava uma nova patria, rejuvenescida para a gloria. E como essa
communhão e essas virtudes não encontrou, senão em raros companheiros,
desventurados como elle, e da outra, da communhão na sordidez em que os
demais folgavam, estava excluido por aversão da sua alma, viu-se expulso
do banquete, e foi alimentar-se ao longe, n'um recanto obscuro e
impoluto, do pão grosseiro e bemdito da singeleza incorruptivel, a
guardar o sacrario que Deus lhe confiára. «Cantor da solidão, foi
assentar-se junto do verde cespede do valle, e a paz de Deus consolava-o
do mundo»[16].

«Consolava-o», disse o poeta candidamente, imaginando carecer de consolo
ao deixar o mundo.

Não era assim. Os resplendores enganosos do mundo por que passou,
sómente para os aborrecer e desprezar, é que nunca poderiam furtal-o á
fascinação do ermo. Na verdade, emquanto habitou esse mundo de torpezas
é que necessitava compensação da violencia imposta ás suas tendencias e
caracter, e compensação não alcançou.

    «Céu livre, terra livre, e livre a mente,
    Paz intima, e saudade mas saudade
    Que não dóe, que não mirra e que consola
    São as riquezas do ermo, onde sorriem
    Das procellas do mundo os que o deixaram»[17].

Essas riquezas abandonára o apostolo, para partilhar com os homens dos
bens que no seu peito abundavam. Os homens desconheceram-nos. Para que
pois privar-se de beneficios preciosos, sem proveito do sacrificio para
os desvairados no tropel da ruindade impenitente?!... Não ignorava,
quando desceu aos mercados da cidade, nem a fortuna incomparavel da
solidão nem a profundeza do esqualido tremedal onde ia arriscar a saúde
do corpo e a paz do espirito, para estender a mão aos desventurados que
n'elle se afogavam[18]; mas incitava-o e arrebatava-o a esperança de
levar opulentissimos thesouros aos estranhos que tanta miseria soffriam.
Destroçada a esperança pelos repetidos vendavaes da desillusão, voltava
ao ermo a que jurára fidelidade antes de se empenhar no combate[19]. Ao
fim de incerta jornada, o peregrino vinha cumprir a promessa que ao
partir fizera nos altares da sua crença, da verdadeira patria dos seus
sonhos, onde tinha em recompensa a liberdade.

    «Feliz ou infeliz, triste ou contente
    Livre o poeta seja.»[20]

De facto, libertou-se. E, libertando-se, em toda a sua magestade se
mostrou, na atmosphera a que anciosamente aspirava, fóra d'aquell'outra
que o desfigurava pela incessante coacção das suas energias
caracteristicas.


II

Pouco indulgente com a sensualidade, porventura deshumanamente rigoroso
com os seus impulsos, a solidão e a vida rural não seriam para Alexandre
Herculano isenção de fadigas physicas e desenlace d'aspirações
naufragadas, adormecimento de mágoas e repouso n'uma animalidade
cuidada, bem mantida, satisfeita e robusta. Não seriam uma festa lauta
dos sentidos, por demais castigados da escuridão da cidade, mas uma
devoção gratissima do espirito desonerado de temporalidades que o
mortificavam, tão pesadas pelo tumulto e pressão ininterrompida, como
estereis pela inanidade das consequencias moraes. Amando o ermo e
procurando-o, não o chamava a delicia pagã; se tanto lhe queria, era por
obediencia religiosa, porque alli melhor interpretava e cumpria a
vontade do Senhor. O sentimento da alegria e equilibrio no pulsar livre
da natureza, a contemplação da harmonia e belleza das formas que por si
vivem como divindades independentes e distinctas, só por excepção
prenderiam Herculano. É um accidente raro, muito raro, que elle se
quede com sympathia a escutar nymphas do rio, dryades da floresta e as
felizes gentes dos reinos de Apollo. Por duvida teria condescendido em
attentar nas crueldades e exaltações orgiacas das estações e dos astros.
Se por elle passaram faunos e bacchantes ou lhes suspeitou os folguedos,
voltou o rosto descontente; os olhos habituados a luz divina, vinda dos
céus, e outra não procuravam, não supportariam fumo e labaredas,
ateiados com o sangue e erguidos dos infernos em que penam condemnados.
Mal sorriu ao carvalho magestoso que encontrou em meio do valle.

              «Na primavera
    Vinham os moços adornar-lhe o tronco
    De capellas cheirosas de boninas,
    E coreias gentis traçar-lhe em roda,»[21];

e o quadro captivou-o um rapido instante. Que encanto de formosura,
perfume e gentileza e côr! Outros eram, porém, os enlevos do poeta, que
não esses, candidos, sem duvida, na sua graça, mas fugitivos e
pereciveis, de perto vigiados pela enfermidade e pela corrupção. A
fecundidade da imaginação, a riqueza de conhecimentos e a expontanea
intensidade da attenção todas as relações dos seres e todos os
estados da alma lhe representariam, d'ascetismo ou de expansão; mas o
arrebatamento religioso não lhe consentia identificar-se senão com
aquelles que traduzissem nos mais elevados modos o dominio e amor d'essa
vontade omnipotente e omnipresente, de summa sabedoria, que tudo
ordenava e a quem tudo obedecia, na verdade Deus e Senhor, como o poeta
lhe chamou, invocando-a para o guiar e consolar, deus pela magestade e
virtude infinita, e senhor pelo imperio sem limites na vida do universo.

«Ante o olhar do Senhor vacilla a terra!»[22]. E Alexandre Herculano
renunciaria, por ignoto impulso, ao seu quinhão nas incertezas
vacillantes da terra, para mais firmemente receber o olhar do Senhor,
que era eterno e por isso lhe insinuava uma eternidade, inflamando-o no
seu fulgor. A abdicação salval-o-ia da degradação inherente aos timidos
e fracos que, acorrentando-se á caducidade das cousas mortaes, com ellas
se afundam e desapparecem, nenhumas outras de sua substancia infinitas
tendo visto ou amado, além d'essas mesquinhas e passageiras nas quaes se
absorveram.

«Entendimento bronco», tomando com adoravel candura por aspereza a
fortaleza ingenita, «lançado em seculo fundido na servidão atraviada de
goso, cria que Deus era Deus e os homens livres»[23]. Aos infieis
clamava, para os defender de perdição, que «entrassem no templo e não
temessem aquelle Deus que os labios negam e o coração confessa»[24];
«não escarnecessem do que em Deus confiou»[25]. Ahi se isentavam da
morte, porque «o justo, chegando á meta extrema que nos separa da
eternidade, transpõe-na sem temor e exulta em Deus»[26].

O apostolo tinha jurado a sua fé. «Louvaria o Eterno!» Embora humilde
reconhecesse que os seus hymnos d'amor não eram dignos d'aquelle a que
adorava, embora vis hypocritas, mentindo, o Eterno pintassem como um
tyranno barbaro, para assim dominarem o vulgo cégo e insano, o poeta
passaria tranquillo entre os abrolhos dos males da existencia, guardado
por essa Providencia, a cuja misericordia de todo se entregava[27].


III

Antes porém da libertação extrema, o crente teria de experimentar as
tentações da impiedade e n'esse combate succumbir ou armar-se,
invencivel, para o ultimo triumpho.

Alexandre Herculano passou pelo baptismo pessimista. Não lhe poupou o
destino o transe supremo, que é provação da grandeza, e perante o qual
succumbiram ou se desvairaram nobilissimos espiritos do seu tempo.
Sómente o soffre quem entreviu reinos sublimados de pureza e, para os
alcançar, lançou o vôo que invariavelmente o mundo corta, na sua miseria
eterna, com crueldade e escarneo. E então a dôr é tão aguda e funda que
ainda os mais fortes muita vez lhe preferiram a rendição total e ultima
desgraça, entregando-se, exultando, a quem os remisse do supplicio e
lhes desse a paz, anjo ou demonio que se lhes apresentasse.

A «doce mãe do repouso» com o seu «amoroso aspecto», a «calumniada
morte» tentou Alexandre Herculano, como sempre, invariavelmente, tentou
quantos se enlevaram em aspirações santas e, «sentindo-as morrer no
fundo do coração», calcadas por «quanto ha vil no mundo», sonharam
libertar-se do conflicto terrivel das visões celestes com as realidades
terrenas. Tambem elle soffreu os negros anceios de anniquilamento que
essa angustia provoca; tambem lhe entonteceu os sentidos a vertigem dos
abysmos da inconsciencia, para se resgatar de contradicções intimas,
pungentes, em que n'uma agonia infinda a negação das cousas respondia ás
affirmações da alma, satanica e desapiedadamente, com irrisão e
ludibrio. E implorou então o soccorro da «peregrina eterna» que, sendo
temida em seu mysterio, a elle, infeliz e naufrago, lhe promettia a
redempção de todo o mal:

    «Oh morte, amiga morte! É sobre as vagas
           Entre escarceus erguidos
    Que eu te invoco, pedindo-te feneçam
           Meus dias aborrecidos:
    Quebra duras prisões que a natureza
           Lançou a esta alma ardente;
    Que ella possa voar por entre os orbes
           Aos pés do Omnipotente.

    Doce mãe do repouso, extremo abrigo
           De um coração oppresso
    Que ao ligeiro prazer, á dôr cansada
           Negas no seio accesso,
    Não despertes, oh não! os que abominam
           Teu amoroso aspeito;
    Febricitantes que se abraçam, loucos,
           Com seu dorido leito!
    Tu, que ao misero ris com rir tão meigo,
           Calumniada morte;
    Tu, que entre os braços teus lhe dás azylo
           Contra o furor da sorte;
    Tu, que esperas ás portas dos senhores,
           Do servo ao limiar,
    E eterna corres, peregrina, a terra
           E as solidões do mar,
    Deixa, deixa sonhar ventura os homens;
           Já filhos teus nasceram:
    Um dia accordarão d'esses delirios,
           Que tão gratos lhes eram.
    E eu que vélo na vida e já não sonho
           Gloria nem ventura;
    Eu, que esgotei tão cedo, até ás fezes,
           O calix da amargura:
    Eu, vagabundo e pobre, e aos pés calcado
           De quanto ha vil no mundo,
    Santas inspirações morrer sentindo
           Do coração no fundo,
    Sem achar no desterro uma harmonia
           De alma, que a minha entenda,
    Porque seguir, curvado ante a desgraça,
           Esta espinhosa senda?»[28]

Respondia-lhe uma voz intima, assegurando não só a necessidade de
proseguir na jornada, atravez de todas as angustias, mas tambem a
certeza da recompensa, se fosse em obediencia á vontade divina e
sujeito á sua inspiração.

A tentação da morte teria sido para Alexandre Herculano apenas um
«pensamento infernal», gerado em meio da tempestade[29]. Ao
seu rugir comparou o clamor da consciencia desvairada, quando,
accordando para o conhecimento das cousas e dos homens e reconhecendo
mentira nas esperanças cujos sonhos nos affagavam ao «despontar do dia»,
ao entrar na vida da aspiração, recua aterrada e endoidecida, sem saber
que caminho a possa conduzir a salvamento. Mas a tempestade é de sua
essencia transitoria, por muito violenta e assoladora que haja sido nos
effeitos de destruição irreparavel; seguem-se-lhe horas de bonança, a
serenidade reapparece e mantem-se, illuminando os destroços e
atenuando-lhes a tristeza do aspecto; embora jámais deixemos de os vêr,
duradouros, claros e manifestos, sobrevém reparações do tempo, lentas e
imperfeitas, sem duvida, mas capazes todavia de nos trazerem momentos de
calma e até de ventura; sobre as ruinas crescem verduras. Na propria
terra ha poderes de renovação indestructiveis, eternidades cosmicas
que de toda a tormenta sáem illesas e intactas.

Do mesmo modo acontecia ao poeta. A angustia em que os primeiros golpes
da desillusão o lançaram, a agitação de que nascia o desejo de se
afundar n'essa noite sem fim da inconsciencia, dissipava-se como os
bulcões varridos pelo vento que elles geraram e que o vento na sua
violencia desfaz. Acalmada a tormenta, contemplando o que lhe restava da
sua devastação e procurando unil-o e reanimal-o em novas creações d'uma
fortaleza intangivel, precavida contra o assalto de toda a adversidade,
o poeta encontrava «um consolo», e pressentiu que «nas trevas da
existencia Deus lhe deixára doce amizade e amor». Por elle se ergueria
para «passar sua noite a luz tão meiga até ao amanhecer, até subir á
patria do repouso, onde não ha morrer»[30].

É que ás eternidades cosmicas correspondem eternidades do espirito, e
n'ellas se formára e retemperava incessantemente a alma de Alexandre
Herculano, defendida contra toda a traição da amargura, para todo o
combate armada invencivel, em toda a contingencia.



APPARIÇÕES E ESPECTROS


APPARIÇÕES E ESPECTROS

O poeta tinha uma missão na terra. O Deus que na consciencia se lhe
revelava e elle adorava, não era um principio de puro extasi e absorpção
contemplativa, uma corrupção da energia organica no arrebatamento e na
abdicação de todo o desejo proprio, mas uma vontade determinando a
acção, desenvolvendo-se de continuo nas cousas da terra, exigindo dos
homens de fé que se subordinassem ao seu imperio, e lhe traduzissem a
essencia nas realidades contingentes e mortaes.

Sentindo no intimo o dominio d'essa vontade suprema, Alexandre Herculano
logo cogitou os modos de a cumprir, tão perfeitamente quanto em suas
forças coubesse, e sem tardar se entregou á execução dos seus mandados
com uma fidelidade absoluta.


I

Ordenava-lhe Deus que servisse a patria, a gloria e a virtude.

    Deus á poesia deu por alvo a patria
            Deu a gloria e a virtude[31].

Mas o que era a sua patria? Que queria ella do seu affecto? Como
conhecel-a e concebel-a, para se identificar com a sua vida e encorporar
o impeto do seu genio no pulsar d'essa vida maior que a sua,
commungando-lhe da aspiração e n'ella se abrazando, immolando-se ao seu
triumpho?

«Os annos e os seculos confundem-se e igualam-se deante da vida perpetua
do universo»[32].

Ha uma eternidade no mover das cousas do mundo que Alexandre Herculano
não ignorou; ha uma continuidade e repetição que apaga a distancia, o
espaço e a individualidade, as distincções entre o dia de hoje e o dia
de hontem, entre o pólo e os tropicos, entre o rochedo e o homem, entre
as raças, nações e epocas. Mas a repetição e a continuidade operam-se
pela renovação successiva, pela dissolução e reconstituição incessantes;
as distincções e as distancias, de cujo confronto e verificação ha de
resultar a percepção da unidade, só se revelam nas creações ephemeras e,
para bem servir o eterno, havemos de o sentir e amar na caducidade a que
descer, no transitorio e momentaneo.

«Debaixo dos pés de cada geração que passa na terra dormem as cinzas de
muitas gerações que a precederam»[33], e só ligando a nossa geração
áquellas de que procede, conseguiremos, por nossa vez, encarnar a
vontade divina. Sendo a mesma atravez dos seculos, demanda para
integridade da sua expressão a filiação estreita dos seres em que se
mostra.

D'ahi vinha que o poeta, para se guiar no presente olhava para o
passado, procurando descortinar-lhe as tendencias e a direcção, os
affectos e as aversões, os beneficios e os damnos, a robustez e a
fraqueza, a luz e as trevas, as bençãos e os castigos; e assim, por amor
da «patria», mandamento da lei do seu Deus, e á força de escavar,
observar e meditar, viu-se cercado de apparições bemfazejas e espectros
terriveis, surgindo das brumas que o olhar inflammado de sublimadas
paixões penetrava, encaminhando-o «á gloria e á virtude», mandamentos
tambem do seu Deus, e defendendo-o da queda em abysmos de ignominia e
tortura. «Pelos becos tortuosos, sombrios e lodacentos» da cidade,
embrenhando-se no «labyrintho de terreirinhos, escadas, pateos, arcos,
passagens, indelineaveis e enredados como meada a que se perdeu o
fio»[34], Alexandre Herculano ia procurar no amontoado informe dos
restos do passado a revelação do seu fausto e da sua miseria, das suas
degradações e da sua nobreza, de todos os seus impulsos, para os exaltar
no que tivessem de elevado e digno e para os condemnar no que
encerrassem de vil. «Muitas vezes passava largas horas deante dum portal
de capellinha carcomida como velha enrugada; deante duma hombreira
partida, onde apenas se divisavam cansados e gastos lavores da arte da
edade media»[35]. Interrogava as pedras, a saber se as suas confissões
confirmavam as palavras dos homens; remexia a poeira, sobre a qual
pesavam annos innumeraveis, a experimentar se, posta á luz do sol, lhe
descobria ainda particulas palpitantes da vida d'outras eras; e dos
lichens e musgos, cobrindo ruinas, desprendia lembranças que alli se
tinham abrigado de contrariedades, e redivivas lhe vinham contar
desgraças infinitas e magnificas victorias, esperanças e desenganos,
paixões ruins e ardor santo, penas e bemaventuranças. De tudo tirava
ensinamento avidamente, confiado em que por seu influxo havia de se
salvar ou perder, conforme o empregasse, e por elle tambem, a sua
patria, o chão onde nascera e os seus irmãos que o habitavam,
encontrariam a felicidade ou a desventura.

A riqueza que n'essas peregrinações amontoou e nos legou, é estupenda; e
o uso que d'ella fez, os sanctuarios em que devotamente a enthesourou,
as edificações que com ella ergueu e onde a recolheu, o espirito em que
por toda a parte a purificou e ungiu, ficaram como monumentos de
perpetua gloria do povo portuguez, attestando o poder mental da raça e a
susceptibilidade, d'óra avante para sempre provada, da grandeza
religiosa da sua alma.

A epoca de Alexandre Herculano favoreceu-lhe singularmente as
inclinações do espirito. A exploração historica entrava no
desenvolvimento assombroso de que as gerações modernas são testemunhas,
colhendo-lhe os copiosos e preciosissimos fructos. A Allemanha, paiz que
Herculano considerou, «por via de regra, o fóco de toda a sincera e
verdadeira sciencia»[36], chamava a attenção da mocidade para uma
renovação da arte, «a qual veio dar nova seiva á arte meridional que
vegetava na imitação servil das chamadas lettras classicas, e ainda
estas estudadas no transumpto infiel da litteratura franceza da epoca de
Luiz XIV»[37]. E as formas em que esse renascimento se fundia e
estampava eram abundantissimas, desde o trabalho de erudição rigida e
analyse minuciosa até á novella opulenta de trajos resplendentes,
palpitante de movimento e pujança no perpassar das multidões que
desfilavam por deante dos nossos olhos atonitos, misturando lances
dramaticos e gargalhadas comicas, placidez, heroismo e abjecção,
generosidades e cobiças, ostentando sem reservas nem piedade todo o
vigor e anceio do coração das sociedades nas conjuncturas infinitas a
que a fatalidade o traz sujeito. O romance historico, ou a novella
historica, como então se lhe chamava, iniciada na Inglaterra por um
talento de rara fertilidade e fascinação, espalhava-se na Europa
inteira, abrindo caminho para desusadas concepções da litteratura e da
arte. Associando as cousas vividas e as cousas sonhadas, a imaginação e
a realidade, embora producto d'uma alliança hybrida perigosa que
constrangia a imaginação pelas pressões da realidade e desfigurava a
realidade pelas violencias da imaginação, o seu apparecimento assignala
um fermentar de fecundidade inexaurivel e o descerrar de largos
horisontes. Corrigiu com elementos sãos e de verdade os desregramentos
da phantasia morbida, entontecida pela vertigem de liberdade infinita;
conduziu á comprehensão das possibilidades, fundadas, logicas,
acautelando-nos dos desenganos de ambições e esperanças insensatas;
produziu salutares effeitos educativos. Na verdade, disciplinou e
moralisou a imaginação, infundindo-lhe a consciencia do limite,
obrigando-a a mover-se na esphera do facto e nos termos por elle
marcados. Influiu até, em ultimo mas não menor resultado, no modo de
comprehender e escrever a historia. Sem embargo, por virtude de
influencias geraes contemporaneas mas um pouco, incontestavelmente, pela
repercussão das tendencias da litteratura imaginativa, a historia
começou a esquecer-se da narração dos feitos d'armas e a emancipar-se do
deslumbramento de façanhas heroicas e entrou com um esplendor sem
precedente na resurreição integral dos seculos passados, tomando-lhes em
conta todos os factores, apreciando e coordenando os multiplos poderes
que collaboram na vida social dos povos e das nações, perante os quaes
se reduz a proporções inferiores a efficacia da acção individual;
dirigindo «as indagações historicas mais para o estudo da indole das
sociedades do que para os actos dos individuos»[38]; verificando a
concorrencia do clima, da situação geographica, das raças e dos
accidentes do destino nos caracteres das diversas civilisações,
representando-as e reconstituindo-as na plenitude da sua substancia.
Coube á novella historica um papel de feliz equilibrio, accudindo por um
lado áquella necessidade de exactidão e rigor scientifico que cada vez
se exigia com maior instancia, annunciando a prodigiosa altura a que a
ergueu a segunda metade do seculo XIX, e por outro lado deixando ainda
livre curso e largo campo á liberdade da imaginação, que a ruptura e
ruina da antiga ordem e de vinculos caducos provocava a reclamar os seus
direitos. Todo o devaneio e ingenua falsidade do romance historico,
todos os seus exaggeros, correcções e corrupções, quasi invariavelmente
motivados por desejos candidos de dar formosura e realce a muita cousa
que merecia ser amada: os seus vicios e deficiencias estrictamente
litterarios, porque para o produzir eram necessarios estudos aridos e,
«no meio de estudos tediosos e positivos, é impossivel que o imaginar
não descore, que o estylo não ganhe asperezas»[39], e obliteram-se
faculdades creadoras essenciaes--todas essas faltas merecem prompta
indulgencia, quando consideramos os beneficios de que elle foi vehiculo
no progresso do pensamento humano. Que profundezas não cavou e abriu á
nossa meditação a novella historica! Que clareza de visão do nosso ser
não nos deu, como nos protegeu de fraquezas e errores dum imaginar sem
lei, confiado a mero capricho, que estabilidade não nos infundiu! Com
que delicia não nos insinuou o sentimento da immutabilidade das cousas e
dos homens, a impossibilidade de nos esquivarmos a moldes, regras e
sujeições, que se tornaram como ingenitas pela diuturnidade da sua
influencia, e de que circumstancia alguma é capaz de nos isentar! Quanta
vaidade desfez, que loucuras d'orgulho não dissipou, que vigor não nos
infundiu, que alma nova e bella não ajudou a crear e a alimentar, em
logar d'aquell'outra, desnorteada e turva, formada nos turbilhões da
poeira intellectual e moral erguida do ruir do velho edificio!
Convertendo-se em propulsor energico do conhecimento da historia, em
todos os aspectos da vida social, e simultaneamente sua filha e escrava,
a novella alimentada n'esse riquissimo manancial foi, sem duvida, obra
de grande proveito na jornada das nações e dos homens para os reinos
luminosos de paz e felicidade, a que tão lenta e dolorosamente se
encaminha. De todas as bençãos são dignos os trabalhadores pacientes e
apostolos que lhe desprenderam de nuvens a claridade.

Teve Alexandre Herculano a incontestada gloria de desbravar na
litteratura portugueza esse campo tão fecundo como saudavel. Elle mesmo
nol-o confessa na _Advertencia_ do primeiro volume das _Lendas e
Narrativas_, cujos merecimentos se lhe afiguravam minguados pela
inexperiencia, pela «singeleza da invenção, pouca firmeza no contorno de
alguns caracteres e o menos bem travado do dialogo»; mas quiz
colligil-as, tentando apenas preservar do esquecimento «as primeiras
tentativas do romance historico que se fizeram na lingua portugueza,
mormente dos esforços do auctor para introduzir na litteratura
nacional um genero duplamente cultivado, n'aquelles tempos, em todos os
paizes da Europa». «Na historia dos progressos litterarios de Portugal,
desde que a liberdade politica trouxe a liberdade do pensamento, e que o
engenho poude apparecer á luz do dia sem os anginhos de uma censura tão
absurda na sua indole, como estupida na sua applicação e esterelisadora
nos seus effeitos», n'essa historia, dizia, aquella nova edição,
reunindo pequenos romances e narrativas, que andavam dispersos em
volumes separados e em publicações periodicas, devia ser julgada
principalmente com attenção «á prioridade das composições n'ella
insertas, e á precisão em que, ao escrevel-as, o auctor se via de crear
a substancia e a forma, porque para o seu trabalho faltavam
absolutamente os modelos domesticos».

Desconfiava do talento com que produzia as primicias d'essa renovação
litteraria, mas tinha certeza e fé na fecundidade e belleza dos
resultados que promettia, sobretudo no resurgimento moral que nos
infiltraria. «Fossem as memorias da patria, que tivemos, o anjo de Deus
que nos revocasse á energia social e aos santos affectos da
nacionalidade. Que todos aquelles a quem o engenho e o estudo
habilitavam para os graves e profundos trabalhos da historia se
dedicassem a ella. No meio d'uma nação decadente, mas rica de tradições,
o mistér de recordar o passado era uma especie de magistratura moral,
era uma especie de sacerdocio. Exercitassem-no os que podiam e sabiam;
porque não o fazer era um crime. Que a arte em todas as suas formas
externas representasse esse nobre pensamento; que o drama, o poema, o
romance fossem sempre um ecco das eras poeticas da nossa terra. Que o
povo encontrasse em tudo e por toda a parte o grande vulto dos seus
antepassados»[40].

N'esse «quinto imperio de mentecaptos dissertadores e mexediços»[41],
em que por sua desgraça se via involvido e de cuja inanidade
e degradação tremia, n'essa liberdade de especulação e impudor que foi a
primeira das liberdades asseguradas ao fim de tantas batalhas e
sacrificios, já aterrado pela ruina e devastação de toda a casta,
material e moral, no meio da qual se debatia, tropeçando e
ensanguentando-se a cada passo nos destroços de tanta cousa querida e
digna de ser amada, clamava aos homens de espirito são e coração puro
que corressem a defender e guardar o patrimonio das nossas infinitas
riquezas, desbaratadas pelas mãos ignorantes e sacrilegas de ambiciosos
depravados e sordidos, e de imbecis não menos funestos do que os
mercantes ingenuamente avidos e cynicos. «Com a rapidez da colera ou da
peste corria por todos os angulos de Portugal e encasava-se em todos os
povoados uma cousa hedionda e torpe, que, inimiga do passado e do
futuro, se chamava illustração; que tendo por logica o escarneo e por
syllogismo o camartello, se chamava philosophia. Deus a mandára ao mundo
como mandou Attila e a Inquisição, como um verbo de morte. Seu mistér
era apagar todos os santos affectos da alma, e incarnar no coração, em
logar d'elles, um cancro para o qual nossos avós não tinham nome, e que
estranhos designaram pela palavra _egoismo_. Que se apressasse aquelle
que quizesse guardar alguns fragmentos do passado para as saudades do
futuro; porque a illustração do vapor e do atheismo social alli ia
livelando o que foi pelo que era, a gloria pela infamia, a fraternidade
do amor da patria pela fraternidade dos bandos civis, as memorias da
historia gigante do velho Portugal pelo areal plano e pallido da nossa
historia presente, a obra artistica pelos algarismos do orçamento, o
templo de Christo pela espelunca do rebatador. Que se apressasse;
porque esses rastos dos antepassados que o tempo e os incendios, e os
terremotos nos deixaram, não nol-os deixaria o descrer brutal d'aquelle
seculo, que a historia distinguiria pelo epitheto de bota-abaixo, e cujo
legado monumental para os seculos que viriam após elle seria um
cemiterio immenso; mas cemiterio sobre o qual não se elevará sequer a
humilde distincção d'uma cruz»[42].

Elle, por sua parte, dava-lhes exemplo. No sagrado trabalho a que
chamava os outros era o primeiro, infatigavel no ardor com que lhe
votára uma energia e capacidade de todo o ponto raras, e copioso na
abundancia com que desentranhava diamantes de filões obscuros e nunca
encetados, e até muitas vezes desprezados, estando aliás bem patentes á
luz do sol, de continuo pisados pela vulgaridade obtusa. Foi assim que
nos deu o _Eurico_, o _Monge de Cistér_, _Lendas e Narrativas_, _O Bobo_
e mil outras pequeninas joias prodigamente dispersas onde quer que o seu
genio passasse, em qualquer assumpto sobre que discorresse.

Sem duvida, nem sempre o fez com perfeição. Muitas d'essas joias ficaram
por lapidar, ou melhor, foram lapidadas de modo que não lhes poz em
evidencia todo o seu brilho. As suspeitas de Alexandre Herculano quanto
á sua obra d'arte imaginativa, eram fundadas. «A singeleza da invenção»
tocou por vezes a pobreza de esqueleto; «a pouca firmeza nos contornos
de alguns caracteres» aqui e além se manifesta, enfraquecendo-os por
insuficiencia d'accentuação, não lhes facultando ensejo de intervirem em
situações tão multiplicadas e diversas que a diversidade de conjunctura,
coincidindo com a identidade de proceder, ponha bem clara a
invariabilidade das feições; e ao dialogo, embora habitualmente «bem
travado», contra o que o auctor aventa, acontece com frequencia
encurtar-se e terminar muito áquem do desenvolvimento necessario ao
pleno effeito de impressão. Mas todas essas faltas, que em outros seriam
grandes, porque a magreza das creações não lhos dispensava cuidados de
trajo, a debilidade da estructura carecia de se occultar na opulencia do
adorno e só por si, sem o amparo e esmero do involucro, não se sustinha
nem realçava, todas essas faltas em Alexandre Herculano somem-se na
torrente d'um cabedal avultado, cuja enorme somma nos confunde e
avassala. Ou procure esboçar-nos o quadro d'uma epoca, como no _Monge de
Cistér_, ou se restrinja ao desenho de simples incidentes, como nas
_Lendas_ e demais obras d'igual natureza, a exuberancia da seiva que
as nutre, a intensidade de vibração psychologica que as anima e o grau
de concentração em que tudo isso se nos revela, são um facto unico na
litteratura portugueza, um limite nunca antes nem depois de Alexandre
Herculano excedido ou sequer alcançado. O que nos fica na lembrança
quando pousamos qualquer d'esses livros, por magia igualmente deliciosos
e severos, é um torvelinho indescriptivel de objectos estranhos e não
menos estranhos espiritos. Se a riqueza é grande em materia
descriptivel, trajos, moveis, armas, habitações, combates, festas,
jogos, banquetes e bens do mundo, movimento e côr, não é inferior na
prodigalidade de aspectos moraes; n'esse tropel de servos e senhores, no
conflicto de dependencias e instituições, a violencia do drama, riqueza
tambem e preciosa em todos os tempos, não cessa de jorrar um instante,
agitando de ondas humanas as materialidades ambientes, espargindo-se em
uma atmosphera de ambições, de cobiças, de hypocrisias, de traições, de
heroismo e dedicação a par da mesquinhez e da perfidia, de grandeza e de
miseria, de todas as paixões emfim que constituem e eternamente hão de
constituir o supremo mysterio e seducção suprema da nossa alma. Porque
todas essas cousas que Alexandre Herculano resuscitou as tirou das
cinzas, não para por si só reviverem mas para de novo se mostrarem nas
suas relações com os homens; por isso que no passado adivinhou problemas
d'uma actualidade perpetua, por isso os seus romances nos prendem e
vencem, rendendo-nos á apreciação e ao peso de forças immortaes, communs
ao passado e ao presente, mostrando-nos docemente o passado no presente
e o presente no passado. Esta unidade da historia realisada na unidade
do coração humano atravez de todos os tempos e modos, ergueu-lhe a
phantasia litteraria a tal altura que não podia perturbar-se-lhe a
grandeza por escassez de adornos, de refolhos de expressão ou
fertilidade de invenção--revestimento, tantas vezes enganoso, d'uma real
e profunda inanidade, supprida por alimento succulento para os que por
sua fortuna e gloria foram dotados de excellencia authentica de faculdades.

Mas «no meio de estudos tediosos e positivos é impossivel que o imaginar
não descore», dizia-nos o mestre no escrupulo da sua franqueza; e, por
certo, dizendo-o tinha em lembrança a sua propria experiencia. Emquanto
se afferrava a compulsar e a interrogar a historia, e o amor da patria
lançára-o n'esse caminho e ahi o mantinha quasi sem admittir desvio,
o espirito tornou-se cada vez menos indulgente com os errores da
imaginação, menos docil para as suas exigencias, menos affeiçoado aos
seus prazeres; enamorado de realidade extrema, deixava affrouxar sem
saudades impulsos creadores, e nem sequer tentara conservar-lhes a
vivacidade primitiva. De facto, o sonho ia descorando; desvanecia-se. As
tendencias, de sua natureza divergentes e algum tempo conciliadas por
muito e subtil engenho, recobravam independencia e em campo proprio
abrigavam-se da rudeza dos attritos que as enfraqueciam, inutilisando
largo capital, sacrificando a embates e antagonismos bens valiosos,
perdidos em restricções obrigadas e concessões mutuas indeclinaveis. O
novellista e o poeta tinham de abdicar nas mãos do historiador, para o
deixarem livre de toda a coacção, não todavia tão absolutamente que lhe
privassem as obras dos reflexos da presença de tão leaes servidores,
nunca de todo affastados, mas apenas distanciados o bastante para o
dominio e evidencia da robustez herculea do mineiro e escriptor do
passado. Desembaraçou-se do enleio em forças estranhas, e, desprendido
das paixões e artificios que abalavam a affirmação e a impediam de
accentuar-se e dilatar-se, foi então até onde o incitavam a chegar uma
abundancia e valor de materiaes desentranhados dos archivos e uma
lucidez de interpretação, até aquella data ignoradas em terras
portuguezas. Embora os caprichos de narrativas romanticas muito
encantassem, estorvavam todavia o inteiro desenvolvimento da capacidade
de revelação, justamente avida de ostentar-se na plenitude do seu vigor.
Necessario se tornou ceder-lhe a preponderancia.

Singular fortuna! Exactamente quando a arte não buscava e só d'uma
extrema exactidão historica cuidava, Alexandre Herculano produziu a sua
mais bella obra d'arte. Em nenhum dos seus trabalhos, e é de notar que
em toda a ordem do pensamento humano discorreu, alcançou a lucidez, a
ponderação, a singeleza e a elasticidade de forma que attingiu na
_Historia de Portugal_. Olhamos com temor para os seus quatro volumes
bem providos de citações, de factos e referencias, tumidos de velharias
extravagantes e termos obsoletos na linguagem e nos objectos que
significavam, suspeitamos do peso do saber e agouram-se-nos enfados de
repetições e minucias, de analyses prolongadas e discussões infinitas; e
vamos encontrar uma suavissima lição, rapida sem insufficiencias
levianas nem obscuridade de precipitações e lacunas, profunda sem
oppressão e cansaço de dissertações ociosas, sem a fadiga de
esforços de attenção e applicação á destrinça de elementos agglomerados
ao acaso e mal ordenados, lição tão segura quando tem motivos de
affirmar como discreta quando pressente alguma duvida, infundindo-nos um
encanto e confiança que d'um só golpe nos subjugam e nos arrancam
applausos de admiração e de affecto sorridente e grato a quem nos
concede um elevado e purissimo prazer e o fabricou, para nosso bem e
cultura, á custa d'um trabalho gigantesco.

Exemplifiquemos. É desnecessario escolher, ou antes, é inutil. O tecido
é d'uma tão unida igualdade que em todo o ponto ostenta a homogeneidade
e o bem ligado da trama, a constancia da côr e a suavidade e rythmo da
ondulação:

«A actividade de Sancho ou, talvez antes, do seu habil ministro, o
chanceller Julião, é na verdade admiravel, se attendermos aos
multiplicados objectos pelos quaes naquella epoca essa actividade se
repartia. No meio de uma guerra violenta com Leão tratavam-se as graves
questões politicas de que procurámos acima dar uma ideia, bem que
necessariamente imperfeita. Não era, porém, só isso. Na mesma
conjunctura em que se promovia a povoação por uma e outra margem do
Tejo, entregando-se ás ordens militares, principalmente aos
templarios, vastos territorios, onde estas corporações poderosas pouco a
pouco iam estabelecendo aldeias e granjas e fazendo arroteamentos, saiam
de Portugal agentes encarregados de conduzir das regiões centraes da
Europa novas colonias que supprissem a escasseza das que desciam das
provincias septemtrionaes do reino. Este encargo devia ser dado com
preferencia aos estrangeiros já estabelecidos no paiz e cujas relações
com a sua patria natural os habilitava para atrairem novas migrações á
patria adoptiva. A doação de Pontevel feita em 1195 ás antigas colonias
da Lourinhã e de Villa Verde, presuppõe um incremento de população mais
rapido do que poderia resultar do seu desenvolvimento natural: e assim
cremos que esses municipios haviam augmentado com os aventureiros que
vinham buscar melhor fortuna n'este paiz hospitaleiro. Entre as
providencias que se davam já em 1198 para tornar menos solitarias as
provincias meridionaes, devastadas pela longa e variada lucta da
conquista e pelas recentes invasões dos almohades, foi uma das mais
importantes diligencias a vinda de novos colonos. Offerecia esta gente
duas utilidades; porque, não só servia para ir desbravando os logares
ermos, mas era tambem seminario d'onde se podiam transplantar para
os campos de batalha valentes homens de guerra. Guilherme, deão de
Silves, que, segundo parece, ahi ficára com o bispo Nicolau na occasião
da tomada d'aquella cidade aos musulmanos, expulso da nascente diocese
pela terrivel reacção de Yacub, passou a Flandres, d'onde voltou com bom
numero de companheiros, deixando muitos outros alistados para depois o
seguirem. Era o chefe principal d'esta colonia flamenga um certo Raolino
(Raulin?). Destinaram-lhes para se estabelecerem uma parte dos largos
campos que se estendem entre Santarem e Alemquer, dando-se-lhes por
termos as varzeas que o Tejo fertilisa com as suas enchentes e que já
eram conhecidas n'aquelle tempo pelo nome de Leziras. Entre elles
fundaram a villa-dos-francos (Villa-franca), designação que depois se
mudou na de Azambuja. Raolino foi feito alcaide-mór do novo municipio e,
homem talvez pobre e obscuro no seu paiz natal, honrado e enriquecido
agora pelo principe portuguez, viu prosperar no processo de uma dilatada
existencia aquelle simulacro da patria que levantara para si e para os
seus em terra estrangeira, mas amiga»[43].

Passemos algumas paginas. Não teria sido esta lucidez e serenidade
maravilhosas um momento de feliz disposição, e porventura toda a obra
estará repassada de igual encanto? Experimentemos uma outra passagem:

«Aquillo em que o reinado de Sancho tem acaso mais subida significação
historica é em ter então começado esse facto tão variado como complexo
que se protrae por tres seculos e que constitue a principal feição
publica da nossa edade-media. Falamos da alliança do rei e dos concelhos
contra as classes privilegiadas, o clero e a fidalguia. N'estas
primeiras phases da lucta ha não só um começo, mas tambem um resumo ou,
antes, um symbolo de toda ella. Os burguezes do Porto, acomettendo o seu
bispo e o seu senhor com os officiaes da coroa, sequestrando-lhe os
bens, expulsando-o coberto de ignominia e affrontando a colera dos
membros da poderosa familia de Martinho Rodrigues, são o typo da
resistencia e da má vontade que nos municipios e nos reis acharam
geralmente as duas altas classes do estado, até a monarchia obter
d'ellas final e decisiva victoria. Sancho, abandonando os habitantes do
Porto, transportando, digamos assim, a sua força inerte de moribundo
para o campo adverso, associando-se, até, ao clero para ajudar a
submetter os burguezes, dava um deploravel exemplo aos seus
successores e entibiava os animos populares para as futuras contendas.
Não póde, apesar d'isso, condemnal-o a historia, pois que tudo parece
indicar que os ultimos mezes da sua vida foram uma dilatada agonia; e se
ainda n'estes nossos tempos, em que o sentimento religioso se acha
atenuado e frouxo, almas que se dizem rijamente temperadas vacilam ao
aproximar-se a morte e se acurvam, não só aos terrores salutares e
santos da religião, mas até muitas vezes ás crenças supersticiosas da
infancia, que revivem então importunas, como deixaremos de desculpar um
homem ignorante e credulo, nascido numa epoca ferrea, de sacrificar á
voz dos remorsos, muitos dos quaes seriam legitimos, tanto as
conveniencias como a lealdade politica?»[44].

Não foi, porém, esta arte incomparavel na subtileza de analyse, de
conjuncção e de expressão, não foi esta virtude que os contemporaneos e
a posteridade reconheceram mais promptamente na _Historia de Portugal_.
A impressão do pasmo pela renovação da historia e pela fortaleza de
verdade que a acompanhava e a tornava subsistente, esse foi o impeto que
de subito lhe deu um logar de excepcional proeminencia.
Consideravamos a nação uma tarefa cavalheiresca do genio militar
rematada com bom exito, questão de audacia militar e fortuna na peleja,
de paixão da guerra e de conquista, consequencia dos dotes dos reis e
principes, do seu temperamento e do seu querer, uma intriga de acções
generosas e de cobiças vãs; raras arremetidas de justiça atropeladas por
muita traição e vingança, revoluções e luctas saidas de roubos,
violencias e especulações de senhores ambiciosos, despoticos, mais rudes
ainda na alma insensivel e sem escrupulos do que no corpo prompto a toda
a fadiga, dureza e excessos. Consideravamos a historia patria obra da
vontade d'alguns homens, e Alexandre Herculano, sem lhes contestar a
intervenção, antes examinando-a e verificando-a em toda a latitude,
rasgava-nos caminhos novos para a descoberta de origens da vida nacional
inteiramente occultas. Graças a processos de investigação e methodos de
correlação aprendidos no estudo paciente dos mestres estrangeiros e por
elle nacionalisados, importando-os e empregando-os com uma habilidade
que o collocava a par dos maiores e mais destros n'essa ordem de
conhecimentos e nos seus espantosos progressos, mostrava-nos a
multiplicidade das forças que haviam cooperado na constituição da
nação portugueza, a influencia de tradições seculares e até da simples
fatalidade, a pressão de massas anonymas da villanagem e do povo ao lado
das façanhas dos capitães, o destino e o instincto das raças superior ás
ambições dos chefes prepotentes, que em seu proveito proprio as guiavam
e serviam, a surda e lenta elaboração do sentimento da collectividade,
confuso e frouxo, sobrepondo-se, em uma ascenção penosa, á absorpção de
tyrannias d'um ferino egoismo despotico, embriagando astuciosamente as
multidões em fumos de gloria emquanto as acorrentava aos seus
insaciaveis apetites. Collocando nas suas relações de existencia e
dependencias logicas os factores da vida nacional, muitos dos quaes foi
exumar do acervo informe de documentos e chronicas onde jaziam inuteis e
suffocados no logar para que o acaso os atirará, juntando um trabalho
colossal de investigação a um talento de organisação e interpretação sem
precedentes na litteratura portugueza e entre os seus raros e apagados
pensadores e philosophos, Alexandre Herculano fez para alguns seculos do
passado o que mais tarde Oliveira Martins conseguiria para algumas
decadas da politica contemporanea.

Note-se--a impressão de surpreza foi nos dois casos identica, como
identicos foram o louvor e a condemnação que se lhe seguiram; louvor
dos que prezam a lucidez de entendimento e a clareza de consciencia; e
creem na sua efficacia para a fortuna dos povos; e condemnação dos que,
fanatisados e tresloucados pelo interesse de castas, de classes, dos
bandos e das clientelas, só esses veem e sabem defender com acrimonia
exaltada, quando o bem publico lhes exige o cerceamento e a quebra de
regalias ou o espirito de justiça lhes denuncia as oppressões, os crimes
e torpezas a que recorreram e recorrem para acrescentar e conservar o
seu predominio nefasto.


II

Porventura tinham razão esses muitos que deixaram passar sem reparo a
delicada e peregrina belleza de arte na _Historia de Portugal_, para
attentarem sómente na soberba e tremenda lição que ella encerrava, lição
moral sobretudo. Os primores litterarios, por muito notaveis que se
tornem e por muita suavidade que deem á vida, são na verdade cousa
inferior perante as forças intimas que regulam o coração humano e
determinam a nobreza ou a degradação, conforme triumpham ou são
vencidas. Tinham razão. A lição que Alexandre Herculano para si mesmo
tirava do estudo da historia, mostrava cabalmente aos estranhos o que
tinham a aproveitar na meditação da sua obra. Se é certo, como algum
disse, que a historia é a philosophia ensinada pelo exemplo, alli
tivemos uma extraordinaria demonstração da justeza de semelhante conceito.

Foi folheando a historia patria que Alexandre Herculano concebeu e nos
desvendou na terribilidade tragica do seu inferno as profundezas da
injustiça social. Foi alli que, registando os conflictos de classes e os
desmandos, abusos e rapinas dos senhores, conheceu e nos denunciou
os crimes da sociedade, acautelando-nos contra a nossa propria quéda em
orgulhosas demencias de virtude, satisfeita e pedante nas commodidades
da sua condição e alheia de sensibilidade e intelligencia aos males
gerados d'ella mesma. «Mentirosa, corrupta e má, cheia de erros,
preoccupações e vicios, damnada nas instituições e nas leis, nas crenças
e nos costumes», a sociedade, disse-nos Alexandre Herculano em conclusão
do estudo dos factos que lhe corroborava os impulsos do coração, «educa
as gerações e os individuos, legando-lhes largo capital de perdição; e
quando os arbustos plantados em terra peçonhenta, tendo bebido uma seiva
venenosa produzem seus fructos de morte, o mundo, ao mesmo tempo malvado
e hypocrita, horrorisa-se, abomina a sua obra, e ajuntando-se á roda do
cadafalso dos suppliciados, que elle proprio lá conduziu, saúda uma
cousa, a que pôz por nome justiça, e que não é mais que uma desculpa
embusteira da ignorancia e de perversidade, não do individuo criminoso,
mas desse vulto hediondo e informe chamado sociedade, para o qual não ha
nem leis, nem punição nem algozes»[45].

Se, hoje, um alto espirito caustico da actualidade[46],
definindo a noção corrente de justiça entre os que se orgulham de a
praticar, nos diz que, «quando o homem mata o tigre é um sport e quando
o tigre mata o homem é uma ferocidade, e a relação entre crime e justiça
é pouco mais ou menos isso», comparamos o seu indignado escarneo com a
maldição inflamada do poeta e verificamos que o poeta não leu menos
claro nas paginas da historia do que o moralista na observação do
espectaculo quotidiano d'um mundo turvado de violentissimas paixões e
possuido de pretensões estultas de haver encarnado a rectidão. Por ahi
podemos avaliar a natureza do scismar do grande historiador, quando nas
vigilias se curvava sobre os pergaminhos da terra natal: que cordas
vibravam então no seu peito, que divino e solemne canto ellas soltaram,
redemptor e austero.

Tudo aquillo que o apostolo carecia de saber e confirmar em sua
consciencia, tudo a historia lhe dizia.

A obra demolidora da revolução, a que se associou com tão claro
applauso, não seria um acto de ruina e destruição, mas sómente o
desafogo e desobstrucção das tendencias evolutivas nacionaes. Para
se continuarem e perfazerem, careciam d'essa violenta remoção de
obstaculos que as prendiam e paralysavam. Aborrecia o modernismo.
Detestava a mania das imitações estrangeiras. «Deplorava profundamente
essa abdicação vergonhosa da razão nacional».

A liberdade, aspiração suprema da sua geração e da sua alma, não seria
uma innovação trazida de terra alheia pela phantasia aerea de
sonhadores: era uma planta nascida e creada no solo da sua patria e
apenas calcada e esmagada, mas não morta, aos pés da crueldade despotica
dos reis e dos ministros do estado.

«As tradições de que tinha saudade, o passado que amava, não eram lendas
absurdas, inventadas por interesses mundanos, dos quaes, por mais graves
que fossem, nem a philosophia nem o christianismo consentem se faça o
céu instrumento. Nos tempos que foram o que lhe sorria, não só como
saudade, mas tambem como esperança eram as tradições d'essa liberdade
primitiva, posto que incompleta, filha primogenita do evangelho, que
elle gerara para mãe, para abrigo das sociedades da Peninsula; d'essa
liberdade, rude e turbulenta como uma creança educada á lei da natureza,
mas como ella robusta e viçosa; d'essa liberdade que se estribava
nos habitos, que resultava de instituições positivas e exequiveis, e
não de instituições copiadas quasi ao acaso da primeira theoria que
tivesse transposto os Pyreneus; d'essa liberdade que tornava a monarchia
uma cousa santa, necessaria, indestructivel, e que a monarchia, por
desgraça sua e nossa, foi lentamente esmagando debaixo do seu throno,
formado dos infolio, politicamente fataes, do Digesto, do Codigo e das
Glossas e commentarios das escolas d'Italia; d'essa liberdade que,
desenvolvida e organisada logicamente com a sua origem, nos teria
poupado talvez á gloria immensa, mas para nós mais que esteril, de nos
convertermos em victimas da civilisação da Europa, de revelar o Oriente
á sua cobiça, para logo virmos assentar-nos extenuados num occaso de
tres seculos; d'essa liberdade que nos teria salvado por certo de um
longo estrebuxar em esforços impotentes de emancipação, que tomámos como
lições de estranhos, e que era mais velha para nós do que o era para
elles. Eis aqui a maravilha, melhor que milagres imaginarios, na qual
não só cria, mas tambem esperava»[47].

O apostolo ardente d'essa crença «amaria o passado do seu paiz e as suas
tradições primitivas. Desejava-lhe uma maneira de ser logica com as
suas origens, porque, nas formulas sociaes de cada nação no berço, tudo
vinha naturalmente; as instituições derivam dos instinctos de liberdade
innatos no coração do homem, das suas necessidades materiaes e moraes,
que a força então despreza e algumas vezes reduz ao silencio, mas que
ninguem pensa em sophismar. N'esta epoca da vida dos povos, ha muitas
cousas incompletas, barbaras; muitos absurdos de detalhe; mas a
estructura da sociedade nunca era absurda. Essas epocas são em geral
ainda muito grosseiras para a inanidade de legisladores chimericos,
fabricantes de systemas, jurisconsultos encarregados de embrulhar os
usos simples do povo. Queria que se prendesse a liberdade moderna á
liberdade antiga». Não importava o facto desamor ou menosprezo do
progresso e das alterações que no seu juizo seriam como phases de um
desenvolvimento organico. «Amava as cousas antigas mas não amava as
velharias. Porque sabia que, estudando as instituições da nossa
edade-media, lá descobriamos quasi todos os principios de liberdade que
julgavamos haver descoberto em nossos dias; porque ahi via garantias
mais reaes, no fundo mais solidas do que aquellas que gozavamos, não se
seguia que desconhecesse a experiencia dos seculos, as vantagens da
civilisação e as verdades adquiridas para as sciencias sociaes». As
instituições que procurava derrubar eram apenas uma sobreposição funesta
aos principios em que a nação portugueza se constituira. Não attentava
contra a tradição nacional, desenterrava-a e limpava-a da corrupção em
que andava perdida, embora a corrupção pretendesse abrigar-se e
defender-se «na sombra santa dos tumulos, dourada pelo sol de milhares
de dias». «Desafiava quem quer que fosse a provar-lhe que as
instituições que Mousinho lançou a terra tivessem existido antes do
seculo desesseis, ou que, no caso affirmativo, houvessem chegado ao
começo do seculo desenove sem terem sido desnaturadas, a ponto de se
tornarem completamente desconhecidas: desafiava-o a provar-lhe que
n'essa epoca satisfaziam de qualquer modo ao seu destino primitivo; a
provar-lhe, emfim, que o que se chama meios de governo fosse outra cousa
senão meios de absolutismo»[48].

A tolerancia religiosa, sonho das grandes almas dos seus companheiros da
epopeia liberal, encontrava-a tambem na historia. A ambição,
porventura intangivel para o inveterado despotismo latino, pela qual se
derramava tanto sangue e se exaltava tamanho esforço de meditação e de
propaganda, isso que parecia um reino novo, conquistado pela philosophia
e por ella arrancado ao fanatismo cruel de sectarios tenebrosos, a
tolerancia, seria para Alexandre Herculano uma singela tradição de bons
tempos da vida nacional. Seguissemos-lhe o rasto: conduzia a paraisos de
candida e repousada fraternidade. E contava, rememorando a jornada em
que a abençoada curiosidade do historiador lhe trouxera por lá o
pensamento:

«Restello, como quasi todas as aldeias das cercanias de Lisboa, parecia
quasi uma terra musulmana ainda no fim do seculo XIV. Ainda então
avultava, entre a raça goda e christã, a raça africana-arabe. Até esta
epoca, ou antes até quasi o fim do seculo seguinte, as Hespanhas
offereciam um phenomeno unico, talvez, na historia: o de tres povos,
sectarios de tres religiões inimigas, vivendo juntos, e cada qual
adorando Deus a seu modo, sem que por isso viessem ás mãos, apesar de
todas essas crenças serem persuasões profundas, e por conseguinte
exclusivas. As tres religiões eram o christianismo, o islamismo, e o
judaismo: o primeiro dominante, o segundo tolerado, o terceiro
consentido. Nobres, cavalleiros e o grosso dos burguezes pertenciam ao
primeiro, os homens de trabalho, em boa parte, ao segundo, os
mercadores, em grande numero, ao terceiro. E acima do Evangelho, e da
Toura, e do Alcorão, havia um livro que fazia o que nunca souberam fazer
os comentadores de cada um d'elles; um livro que os conciliava. Esse
livro era a lei. A lei protegia os diversos cultos nacionaes, sem que
todavia fosse incredula, como as leis da tolerancia moderna... Por
algumas d'estas leis, feitas na primeira metade do seculo XV, chegaram a
ficar sujeitos a graves penas aquelles que ousavam offender estes
desgraçados na unica herança que lhes restava, a religião de seus paes.
Todavia não se creia que os legisladores ou o povo eram tibios na fé.
Como religionario, o christão detestava, ou antes desprezava o mouro e o
judeu; como cidadão vivia e tratava com elle. Nas leis relativas a estas
duas raças reprobas, não ha uma só palavra que revele hesitação ou
indifferença religiosa; mas vê-se que á sua promulgação presidiu a
sabedoria. O fanatismo cego, bruto e feroz, veio-nos com as primeiras
luzes de uma falsa civilisação, nos fins do seculo XV, e progrediu com
ella por todo o seculo XVI. D'antes a raça christã tinha a
consciencia d'uma grande superioridade religiosa, e fazia-a valer na
legislação; mas não confundia a crueldade e a intolerancia com as
distincções que nascem da differença entre o superior e o inferior[49]».

Internando-se nos labyrinthos da historia, nem sempre teve porém a
alegria de contemplar suaves apparições bemfazejas, como essa de serena
magnimidade que viu na aldeia de Restello, povoada de gentes para as
quaes a adoração de Deus não era motivo de oppressão e odio entre os
homens, e onde se mostrasse, em qualquer templo da sua eleição, ou
erguesse um hymno a Christo ou o consagrasse ao propheta islamita,
seria invariavelmente protegida pela largueza dos corações, pela
severidade dos tribunaes e pelas armas dos magistrados da cidade. Por
vezes o assaltaram espectros terriveis, em logar de apparições
consoladoras; e, fiel ao seu apostolado, d'elles nos deu fidelissima
imagem, sem occultar o pavor que lhe infundiam nem a temerosa suspeita
de que desvairados impios tentassem restituir-lhes a vida para flagello
da humanidade.

D'este modo, na presença de espectros hediondos, filhos legitimos de
Satanaz, negação sacrilega de Deus, contou-nos Alexandre Herculano a
_Historia da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal_,
pamphleto, libello e homilia, extraordinario e unico de eloquencia, pelo
calor da enunciação, pela solidez dos fundamentos, pela magestade altiva
da construcção, pelo poder de dominio, por esse caracter augusto de
sentença emanada, não do juizo fallivel dum homem, mas da auctoridade
incontestavel da experiencia e legados das gerações. E, com aquella
sinceridade perfeita que usava em todos os actos da sua vida,
previamente confessou os motivos que o instigaram a facultar-nos essa
lição soberba.

«Confundindo as ideias de liberdade e progresso com as de licença e
desenfreiamento, o direito com a oppressão e a propriedade, filha
sacrosanta do trabalho, com a espoliação e o roubo; tomando, em summa,
por systema de reforma a dissolução social», certos homens e certas
escolas traziam aterrada a classe media. Esse erro «de muitas
intelligencias aliás eminentes e a quem, em parte, sobrava razão para
taxar de viciosas ou de incompletas muitas instituições dos paizes
livres, abria caminho e subministrava pretexto por toda a Europa a uma
reacção deploravel.» Era um acontecimento grave pelas consequencias
materiaes e sobretudo pelas suas consequencias moraes; era o
«espectaculo repugnante» da tyrannia, esmagando o governo representativo
aos pés dos batalhões de infanteria e dos esquadrões de cavallaria, e
demonstrando que os «exercitos permanentes, nascidos com o absolutismo e
só para elle, com elle deviam ter passado para o mundo das tradições.»
Mas a reacção moral que ia acompanhando a reacção material era mais
grave para os destinos da liberdade e da civilisação e para as crenças
dos seus fieis. Ouvia-se já o alarido da soldadesca embriagada:
applaudia-o o vulgo, que saúda sempre o vencedor; applaudiam-no velhos
interesses mortalmente feridos que agora se proclamavam alto «em nome do
direito, em gritos de furor e ameaça»; applaudia-o a hypocrisia que,
depois de minar debaixo da terra, surgia á luz do sol «balouçando o
thuribulo e incensando todos os que abusam da força, declarando-os
salvadores da religião, como se a religião precisasse de ser salva ou
coubesse no poder humano destruil-a». Renasciam os milagres em frente
dos quarteis; «o cercilho e o bigode jogavam o futuro sobre o tambor
posto em cima da ara».

Isso era grave, era atroz. Mas havia ainda cousa mais grave. Entre os
grupos que por quasi toda a Europa aclamavam as saturnaes da
reacção, havia um mais forte e mais perigoso, porque em muita parte era
senhor do poder politico. Era o «d'aquelles que deviam quanto eram e
quanto valiam aos triumphos da liberdade; que sem as lides dos comicios,
dos parlamentos, da imprensa; sem o chamamento de todas as
intelligencias á arena dos partidos; calcados por um funccionalismo
despotico, por uma nobreza orgulhosa, por um clero opulento e
corrompido, teriam fechado o horisonte das suas ambições em serem
mordomos ou causidicos de algum degenerado e rachytico descendente de
Bayard ou do Cid ou em vestirem a opa de meninos do côro de algum
pecunioso cabido.

«Estes taes que trocaram o aposento caiado pela sala esplendida, o nome
peão de seus paes pelos titulos nobiliarios, a sapato tauxiado e o trajo
modesto do vulgo pelos lemistes e setins cortezãos, cobertos d'avelorios
e lantejoulas, das condecorações com que o poder costuma marcar os seus
rebanhos de consciencias vendidas», esses «sentiam esvair-se-lhes a
cabeça com os tumultos eleitoraes, com as luctas da imprensa, com as
discussões tempestuosas», e, sem se atreverem a abjurar a nova ordem mas
atraiçoando-a, imaginavam desvario as necessarias e dolorosas
experiencias e aterrados, «renegando as ideias que propugnaram»,
tentavam salvar pela restauração d'um «absolutismo cachetico e
impotente» «as suas carruagens, mitras, bastões, veneras, rendas e
dignidades». Esse era o grupo «dos grandes miseraveis».

Ao pé d'este, estava ainda a burguezia, timida, a tremer dos terremotos
politicos, pela perturbação que traziam á sua avareza e ganancias.
Começava a vêr na liberdade espoliações, esquecida das que o absolutismo
creára, ferozmente protegia e de todo tinham trazido manietada nas
ambições economicas essa mesma burguezia que agora se afreimava pelo
grave risco dos seus haveres. Insensata e egoista, com o medo de perdas
hypotheticas no futuro, auxiliava a renovação das oppressões que no
passado a suffocavam.

«Felizmente, no meio das loucuras do terror, muitas almas fortes, muitas
cabeças intelligentes tinham sabido conservar frio o animo para não
abdicarem o senso commum» e não consentirem que espiritos vãos ou
«corações fementidos fizessem das nações materia bruta das suas
experiencias politicas ou preza das suas ambições desregradas», indo
«aspirar a vida no cemiterio dos seculos». Nós mesmos, «nação pequena e
que a historia desconsiderava ainda pela ideia que d'ella fazia»,
davamos n'esta parte mais de um exemplo de alta sabedoria a algumas das
maiores nações.

«Em certa esphera e até certo ponto, a reacção geral tinha
representantes entre nós. Cumpria combatel-a, não para convencer
aquelles que sempre amaram o passado e nunca negociaram com as suas
crenças, porque esses respeitava-os; mas para fortificar na fé liberal
os tibios do proprio campo e premunil-os contra as ciladas dos transfugas».

«Levado pelas suas propensões litterarias para os estudos historicos,
era, sobretudo, por esse lado que Alexandre Herculano julgava poder ser
util a uma causa, a que estava ligado, rememorando um dos factos e uma
das epocas mais celebres da historia patria; facto e epoca em que a
tyrannia, o fanatismo, a hypocrisia e a corrupção nos apparecem na sua
natural hediondez. Quando todos os dias lhe lançavam em rosto os
desvarios das modernas revoluções, os excessos do povo irritado, os
crimes de alguns fanaticos, e, se quizessem, de alguns hypocritas das
novas ideias, fosse-lhe licito chamar a juizo o passado, para vermos,
tambem, onde nos podiam levar outra vez as tendencias de reacção, e se
as opiniões ultramontanas e hypermonarchicas nos davam garantias de
ordem, de paz e de ventura, ainda abnegando dos foros de homens livres e
das doutrinas de tolerancia que o Evangelho nos aconselha e que Deus
gravou em nossa alma»[50].

A demonstração foi completa. Será difficil produzir mais persuasiva
accusação das demencias crueis do despotismo do que essa estampada para
sempre nas paginas da _Historia da Inquisição_. A irradiação do espectro
correspondeu ao ardor da fé que o evocou para o anathematisar.
Petrificados de terror ao vêl-o, não sabemos se nos fulmina a suspeita
de que elle renasça da treva para nos infligir o martyrio, se nos faz
cair prostrados a vergonha da prostituição da honra da especie, a
perversão humana que affrontou até a presença da cruz de Christo e a sua
imagem.


III

A historia, a cujo conselho Alexandre Herculano pedia o conhecimento dos
homens e a confirmação das aspirações do seu genio, esclarecia-o e
ditava-lhe de continuo regras de vida. Teria por isso de lhe traçar
parallelamente uma politica, que não deve ser outra cousa senão a regra
da vida publica, a expressão do dever civico, ampliando e completando o
systema de obrigações com o proprio individuo e nas suas relações mais
proximas.

Por esta ligação, o principio religioso do amor entre os homens, luz
perpetua do apostolo em toda a contingencia, iria encontrar a definição
concreta mais completa no povo, no ser anonymo, substancia e alma das
sociedades, presente em todos os movimentos de caracter collectivo e
modificando a communidade, imprimindo-lhe tendencias, direcção e forma,
embora o resultado ultimo houvesse dado por longo tempo a illusão de ser
obra do esforço de genios e heroes. Pulsava no povo a bondade do
coração; esse dote tão cobiçado e raro entre os maiores, era vulgar nas
ultimas camadas sociaes, onde o continuo roçar das privações e dores
predispõe os animos para a compaixão»[51]. N'elle se refugiava a
franqueza e a sinceridade, a negação da mentira, principio fundamental
de virtude e expressão primaria da religião; o povo «póde ser injusto,
voluntarioso, insolente, cruel; póde arrastar pelas ruas bispos
traidores, donas prostituidas, alcaides vendidos ao rei estranho; mas
tem uma virtude: é franco e sincero; franco e sincero no seu amor e no
seu odio; usa verdade, e dil-a sem curar se dóe ou não dóe»[52].

O caracter do povo, comendo o pão com o suor do seu rosto, revestiria
uma grandeza austera no labor rude, se o comparava com a dissolução e
dissipação das aristocracias, de todo o tempo occultando sob o manto do
cavalleiro e suas armas fulgurantes, avidez, luxuria e cobiça.
Santificava-se, se o confrontava com os fidalgos do reinado de D. João
I, jogando nas tavolagens «o producto dos terradegos, chavadegos e
maninhadegos, das osas, gayosas e luctuosas, das eiras, angueiras,
perangueiras, carreiras e fossadeiras, e dos mais fôros, direituras e
costumagens em adegos, em osas, em eiras, e em todas as rapinas
possiveis da rapina legal e tradicional»[53]. Clamava justiça e bradava
aos céus, parecendo imploral-a do rei, quando pela bocca dos
procuradores dos concelhos se lhe ia queixar «dos senhores, que,
rodeiados dos seus vassalos e clientes, costumavam residir nas terras a
elles sujeitas, e que, para evitarem os tedios da triste vida
provinciana, consummiam, em lautos banquetes, ás vezes n'um mez, as
subsistencias d'um anno, esquecendo-se de pagal-as, queixa absurda,
visto que elles por serem nobres não eram isentos das debilidades da
retentiva humana; e se por ahi violavam donzellas e viuvas, segundo os
artigos rezavam, menos por fartar paixões más o faziam que por
benevolencia para com essa raça achavascada, meio-mourisca meio-servil,
de labregos desagradecidos»[54].

Aquella mesma burguesia, cuja erupção Alexandre Herculano presenciava
convertendo em desapiedadas usuras descaradas os sonhos da ingenuidade
liberal que lhe facultou o poder, essa mesma, dissimulada em trajos de
modestia e com gestos patrioticos, era aquell'outra, igualmente
abominavel, que no tempo de D. João I se viu representada a primor
em mestre Esteveannes, «uma parcella rudimental d'essa classe media que
se ia organisando no meio das transformações sociaes de edade media,
classe cujos caracteres appareciam já no modo de pensar do honrado
mester--a má vontade para tudo quanto a fortuna ou o berço pôz acima
d'ella, e um orgulho tyrannico para com as camadas inferiores do povo,
d'entre as quaes foi surgindo;--classe egoista e oppressora como a que
substituiu em influencia e riqueza, e peior do que ella na hypocrisia,
tendo na bocca a liberdade, a moral, a justiça, e no coração o despreso
do pobre e humilde, a cobiça insaciavel, a vaidade e a corrupção;
_classe_, emfim, ácerca da qual a historia terá no porvir de lavrar uma
sentença ainda mais severa, do que ess'outra que já pesa sobre a memoria
dos ferozes e dissolutos barões e cavalleiros dos seculos de
barbaria»[55].

Não perdoou Alexandre Herculano á classe media a impostura e astucia que
a tornou algoz quando jactanciosa apregoava a sua misericordia, como não
perdoou nem podia perdoar o crime de lesa-sociedade e traição do seu
mandato á monarchia absoluta, que desrespeitou o povo e as instituições
populares, «mostrando-se parenta proxima do liberalismo moderno no
desprezo estupido e brutal dos mais venerados monumentos d'essas epocas
de liberdade incompleta mas sincera, em que o monarca era o alliado dos
povos, o braço que estes estendiam para annular a tyrannia da casta
privilegiada, se ella ousava quebrar-lhes os seus foros, avexal-os ou
opprimil-os»[56]; degradando em comedia «qualquer cousa grande e forte»,
a vida municipal, que essa mesma monarchia absoluta legou «transformada
em farça de titeres, ás hexarchias ministeriaes, que acceitamos
benevolamente como governo representativo»[57].

Todas as formas do poder politico, todo o systema de direito publico em
qualquer gráo que o presentisse, todo o dominio de senhores e classes
Alexandre Herculano desamava, se opprimiam o povo e não eram filhos do
seu genio. «A mais bella, mais energica e mais vivaz» instituição,
derivada do principio da associação, a mais perfeita consubstanciação da
aspiração commum no seu modo de ser politico, para elle «era e seria
sempre o municipio»[58].

Ouçamol-o. Necessario se torna ouvil-o com mais pausa do que até aqui o
temos feito. Tocamos no amago da sua politica, no coração da cidade que
elle sonhou. Meditemos as suas palavras. Comparemos a sua concepção da
sociedade politica com todas aquellas muito captivantes que
architectaram os mais profundos pensadores do nosso tempo e os mais
zelosos apostolos da democracia, ao fim de innumeraveis annos de estudo
e de experiencias cruciantes que devoraram milhares de martyres. Talvez
depois possamos entrever como o poeta, o crente e o historiador geraram
o propheta, que clarão elle accendeu nos amortecidos fachos do passado
para nos illuminar uma rutila estrada no futuro:

«Na essencia de todas as associações humanas, em todas as epocas e por
toda a parte actuam dois principios: um da ordem moral, intimo,
subjectivo; outro da ordem material, visivel, objectivo. É o primeiro o
sentimento innato da dignidade e da liberdade pessoal; é o segundo o
facto constante e indestructivel da desigualdade entre os homens. As
revoluções interiores das sociedades, as suas luctas externas, as mesmas
mudanças lentas e pacificas da sua indole e organisação constituem
phases mais ou menos perceptiveis do ascendente que toma um ou outro
d'esses principios em lucta perpetua entre si. Cavando até o amago de
qualquer grande facto historico, lá vamos encontrar esse perpetuo
combate. As conquistas, o despotismo, as oligarchias, seja qual for o
seu nome, são manifestações diversas do predominio do mesmo principio de
desigualdade, quer este se estribe na força bruta, quer na destreza e
intelligencia, quer na propriedade: as resistencias, felizes ou
infelizes, das nacionalidades ou das democracias, emquanto não degeneram
na exclusão e na tyrannia do maior numero, são manifestações do
sentimento da dignidade e liberdade humanas, do principio subjectivo ou
de consciencia. Factos ambos innegaveis e indestructiveis, a grande
questão social é equilibral-os, e não tentar o impossivel, pretendendo
annular um ou outro: porque foi Deus quem estampou um na face da terra,
ao passo que escrevia o outro no coração do homem. A inutilidade dos
esforços d'este seculo para assentar a sociedade em novas bases, a
frequencia dos terriveis abalos que agitam a Europa tentando
regenerar-se não procedem, porventura, senão do exclusivo dos partidos
que representam as duas ideias, da negação de legitimidade com que
mutuamente se tratam. Sobranceiras ao immenso campo de batalha onde se
disputa o futuro, duas tyrannias esperam que se resolva a contenda para
vêr qual d'ellas se assentará no throno do mundo, a democracia absoluta,
que desmente a lei natural das desigualdades humanas, ou a oligarchia
oppressora e materialista que se ri das aspirações do coração, que não
crê na consciencia das multidões, que confunde o facto da superioridade
com o direito de opprimir as classes populares, cujos membros são para
ella simples machinas de producção destinadas a proporcionar-lhe os
commodos e gosos da vida. Seja, porém, qual fôr o desfecho do combate, a
paz que resultar do triumpho exclusivo dum dos principios nunca será
duradoura; porque esse triumpho importa a condemnação de uma lei eterna,
que não é licito offender impunemente: nunca a liberdade e a paz poderão
subsistir emquanto concessões mutuas não tornarem possivel a
coexistencia e a simultaneidade dos dous principios.

«A historia dos successos politicos que não é senão o resumo das
experiencias do genero humano, quer se refira á vida interna, quer á
vida externa das nações, cifra-se em descrever phenomenos mais ou menos
notaveis dessa lucta interminavel. A conquista emprehendida ou realisada
pelo mais forte corresponde a resistencia ou a reacção do mais
fraco, ao despotismo de um as conjurações de muitos; á opposição
oligarchica a revolução democratica. Nenhum, porém, d'esses factos traz
uma situação definitiva. Na conclusão da peleja em que um dos principios
triumpha absolutamente começa a preparar-se a victoria do principio
adverso. D'este modo a historia encerra um protesto perenne da liberdade
contra a desigualdade, digamos assim, activa, e ao mesmo tempo
attesta-nos que todos os esforços para a substituir por uma igualdade
absoluta teem sido inuteis e que esses esforços ou degeneram na tyrannia
popular, no abuso da desigualdade numerica, ou fortificam ainda mais o
despotismo de um só, ou o predominio tyrannico das oligarchias da
intelligencia, da audacia e da riqueza.

«Allumiada pelo clarão do evangelho triumphante, a edade media, epocha
da fundação das modernas sociedades da Europa, offerece no complexo das
suas instituições e tendencias um começo de solução ao problema que o
mundo antigo não soubera resolver. Causas diversas preparam, durante os
seculos XIV e XV, o estabelecimento das monarchias absolutas, que
impediram o desenvolvimento logico d'aquellas instituições, na verdade
barbaras e incompletas mas que, apezar da sua imperfeição e rudeza,
continham os elementos do equilibrio entre a desigualdade e a
liberdade. Longe de negar ou condemnar com colera infantil as
differenças de intelligencia, de força material e de riqueza entre os
homens, ou de tentar inutilmente destruil-as, a democracia da edade
média, representante do principio de liberdade, confessava-as,
acceitava-as plenamente, acceitava-as até em demasia; mas, por isso
mesmo, mostrava instinctos admiraveis em organisar-se e premunir-se
contra as tendencias anti-liberaes d'essas superioridades. Foram
semelhantes instinctos que produziram os concelhos ou communas; esses
refugios dos foros populares, essas fortes associações do homem de
trabalho contra os poderosos, contra a manifestação violenta e absoluta
do principio de desigualdade, contra a annulação da liberdade das
maiorias. Em nosso entender, a historia dos concelhos é em Portugal, bem
como no resto da Hespanha, um estudo importante; uma lição altamente
proficua para o futuro; porque estamos intimamente persuadidos de que,
depois de longo combater e de dolorosas experiencias politicas, a Europa
ha-de chegar a reconhecer que o unico meio de destruir as difficuldades
de situação que a affligem, de remover a oppressão do capital sobre o
trabalho, questão suprema a que todas as outras nos parecem
actualmente subordinadas, é o restaurar, em harmonia com a illustração
do seculo, as instituições municipaes, aperfeiçoadas sim, mas accordes
na sua indole, nos seus elementos com as da edade media. Sem ellas, o
predominio do despotismo unitario, o do patriciado do capital e da força
intelligente, que sob o manto da monarchia mixta domina hoje a maior
parte da Europa, ou o da democracia exclusiva e odienta, expressão
absoluta do sentimento exaggerado da liberdade, que ameaça devorar
momentaneamente tudo, não são a nossos olhos senão formulas diversas de
tyrannia, mais ou menos toleraveis, mais ou menos duradouras, mas
incapazes de conciliar definitivamente as legitimas aspirações da
liberdade e dignidade do homem em geral com a superioridade indubitavel
e indestructivel d'aquelles, que, pela riqueza, pela actividade, pela
intelligencia, pela força, emfim, são os representantes da lei perpetua
da desigualdade social.

«A historia da instituição e multiplicação dos concelhos é a historia da
influencia da democracia na sociedade, da acção do povo na significação
vulgar d'esta palavra, como elemento politico»[59].

Porque esse elemento politico era na vida social das nações o elemento
vital, Alexandre Herculano teria de applaudir, e eloquentemente o fez, a
obra revolucionaria de Mousinho da Silveira. Que fôra ella senão um
resgate de servidões do povo?!...

Aboliu os dizimos ecclesiasticos e os direitos de senhorio, e por esse
modo libertou a propriedade e o trabalho agricola, a pequena industria e
o pequeno commercio de dois terços dos impostos que sobre elles pesavam,
dos quaes o fisco recebia apenas uma parte minima. Separou as funcções
judiciaes das administrativas. Organisou os tribunaes de justiça.
Deixaram de ser pessoaes e hereditarios os empregos publicos. Decretou a
liberdade do ensino. Deu o primeiro golpe nos morgados, supprimindo os
de rendimento inferior a duzentos mil reis. Secularisou um certo numero
de conventos e lançou as bases para a suppressão gradual e total dos
estabelecimentos d'este genero e das outras corporações ecclesiasticas
não comprehendidas na verdadeira hierarchia da egreja, suppressão «mais
tarde realisada com uma imprevidencia e uma brutalidade inauditas, e, o
que foi peior, inuteis». Limitou as sisas ás transacções sobre bens de
raiz, e reduziu-lhes a importancia a metade, a até a menos de metade
em certas hypotheses. Aboliu monopolios como o do sabão, da venda do
vinho do Porto, e outros. Á liberdade politica, que os concelhos
traduziam, era necessario que correspondesse a liberdade moral e
principalmente economica, que as leis de Mousinho decretavam. «Era
necessario arrancar o povo das garras do absolutismo que o
estrangulavam; e para o conseguir o meio mais seguro e certo era
cortar-lh'as». Foi isso o que o duque de Bragança fez; e o povo
comprehendia-o. Não «a populaça, que não reflectia; que quasi não tinha
interesses materiaes ou moraes dependentes das medidas do gabinete
Mousinho: que todos os dias era prégada, excitada, fanatisada por padres
e frades. Essa parte da nação era então o que é hoje, o que será amanhã.
Gostava de mendigar ás portas dos conventos e das abbadias, e alistar-se
entre a creadagem dos donatarios da corôa, dos commendadores, dos
capitães móres, de todos aquelles que viviam do producto dos velhos
impostos, que as instituições e as leis tornavam legaes, mas que a
justiça, a razão e a humanidade tornavam illegitimos»; essa não podia
apreciar os decretos de Mousinho. Mas ess'outro povo que é «alguma cousa
de grave, de intelligente, de laborioso; os que possuem e trabalham,
desde o simples rendeiro ou o trabalhador do seu proprio campo até
ao grande proprietario; desde o bofarinheiro e o tendeiro até ao
mercador por grosso; desde o official até ao fabricante»; estes
espalhavam, liam e comentavam as leis de Mousinho; «comparavam os seus
resultados necessarios com os pesados cargos que esmagavam as classes
laboriosas e impediam todo o progresso»; e debalde o partido realista
tentava obstar ao effeito moral d'aquelles decretos sobre o espirito dos
que elles favoreciam.

E porque o povo as apreciava e applaudia, por isso Alexandre Herculano,
que via no dominio do povo a victoria da liberdade, applaudiu as medidas
de Mousinho, «vassoura immensa de instituições carunchosas», a que
embaraçavam a seiva da vida social e formavam os contrafortes do
absolutismo». Tinha presentes, porque a historia lh'os havia pintado, os
quadros da oppressão do antigo regimen. Vira «no pateo de cada granja,
na eira de cada campo, no limiar de cada adega os agentes do commendador
ou do bispo, do capitulo ou do abbade, do donatario e do alcaide-mór a
pedirem, um a dizima, o outro o quarto, um outro o oitavo do rendimento
total dos cereaes, do vinho, do linho, do azeite, de quasi todos os
productos». Sabia que a miseria do paiz havia de perpetuar-se «emquanto
se encontrassem aquelles agentes, computando aqui quantos carros de
milho o lavrador devia, em virtude de um foral de Affonso I, a um gordo
senhor bochechudo, companheiro divertido, illustre vadio, vindo de
nobres avós, mas que por certo não havia herdado a corôa do dito Affonso
I; enumerando acolá uma ladainha de rendas, com nomes heteroclitos e
barbaros, exigiveis da choupana e da granja; emquanto se visse ainda por
cima, quando o pobre cultivador cahia exausto, o coração rasgado de dôr,
sobre os restos do fructo do seu trabalho, chegar o exactor fiscal e
pedir, em nome do rei vivo, novos dizimos e outros impostos que não se
lhe havia tirado em nome dos reis mortos»[60]. A injustiça contra o
povo, filho dilecto de Deus porque consagra o amor pelo trabalho,
clamava indignada na alma do poeta, e por isso elle abençoava a obra do
dictador revolucionario.

Esse povo, porém, que ella amava e queria enthronisado e defendido nos
baluartes do municipalismo, não seria um rebanho de animaes possantes,
bem mantido no seu vigor bestial, selvaticamente alheio á grandeza moral
da humanidade. Seria livre e forte, mas para «ser livre, era
necessario que fosse religioso e honesto; e para que fosse religioso e
honesto era necessario que conhecesse as doutrinas do Evangelho, que não
são mais do que a confirmação divina da moral universal. Em vez de
inculcar crendices ao povo, cumpria inculcar-lhe os principios do
christianismo, e as consequencias d'aquelles principios: cumpria
illustral-o em vez de o conservar na ignorancia: fazer-lhe sentir que a
força de praticar grandes e nobres sacrificios, tão recommendados por
Jesus, é o caracter que distingue o espirito immortal do homem do
instincto que anima as alimarias. Era preciso convencel-o de que o
patriotismo, de que esse puro e santo affecto que nos faz abandonar os
commodos domesticos, as affeições do coração, e arrostar com a fome, com
a sede, com a nudez, com a intemperie das estações, para irmos morrer
n'um campo de batalha, salvando a terra em que dormem nossos maiores,
defendendo a cruz do nosso adro, a vida de nossos paes, a honra de
nossas irmãs e mulheres, é a manifestação mais solemne da energia do
espirito humano, e da abnegação christã»[61].

Quereria o povo glorioso, mas a gloria que lhe appetecia era a do
trabalho e a do amor. E definia-a. Era indispensavel definil-a
porque, precursores de uma reacção do despotismo que em nossos dias teve
suas horas de favor e de triumpho com o nome de imperialismo, já em
tempo de Alexandre Herculano havia «homens de novas ideias, que se
diziam cheios de illustração e philosophia», para os quaes «onde quer
que perecessem milhares de homens, combatendo por interesses que não
comprehendiam, ou por torpe cobiça; onde quer que o ferro e o fogo
arrasassem as cidades, despovoassem os campos, embora d'essas cidades e
campos nenhum mal tivesse vindo aos seus destruidores, havia uma gloria
sem mancha, immensa, immarcessivel. Herdeiros pequeninos e pacificos dos
gigantes da assolação, dos Tainerlans, dos Attilas e dos Gengiskans,
avaliavam pela estimativa d'aquelles illustres selvagens as façanhas dos
proprios avós. Se a historia pergunta:--Acaso esses combates em que, sem
duvida, se praticaram grandes feitos, foram uteis ao progresso material
e moral do povo em cujo nome se pelejaram, ou trouxeram a sua
decadencia? Está ou não essa gloria militar, aliás indisputavel,
assombrada por grandes crimes? Foi a intenção, a qual só determina o
valor moral das acções, nobre, grandiosa, pura, ou teve motivos menos
elevados? Foi um arrojo, um impeto nacional, ou um impulso dado pela
ambição, ou pelo capricho de algum principe?--A historia que faz estas
perguntas ou outras analogas, porque esse é o seu dever, commettia aos
olhos dos taes um crime de leso-patriotismo... O povo, affirmam elles,
ha de moralisar-se pelas tradições da sua grandeza e gloria. O povo!
Pois o povo que tantas vezes trata de perto a fome e a nudez; cuja vida,
desde o berço de farrapos até á enxerga rota em que fenece, vae travada
de receios, de sobresaltos, de desalentos e de agonias, pensa lá nas
cutiladas que se deram, nas bombardadas que se despediram, ha tres ou
quatro seculos, por mãos d'uns homens, cujos nomes e cujas façanhas se
memoram n'uns livros que elle nunca leu, porque não sabe lêr, nem tem
dinheiro para pão, quanto mais para livros? Que são essas palavras
retumbantes de regeneração pelas tradições, senão sons ocos, que não
correspondem a nenhuma ideia? Supponhamos, porém, que todas essas
recordações chegavam ao povo. Podem ellas servir-lhe de exemplo, de
lição para as suas necessidades actuaes? N'um paiz onde a riqueza
passageira destruiu os habitos do trabalho e da economia, entorpeceu
pela miseria, resultado infallivel da prosperidade ficticia, a energia
do coração, que faz luctar o homem com a adversidade e vencel-a, de
que serve estar de continuo a pregar ao povo:--«Teus avós levaram o
terror do seu nome aos confins do mundo, saqueiaram e queimaram emporios
opulentos em plagas remotas, metteram a pique poderosas armadas,
derribaram os templos alheios, violaram as mulheres estranhas, passaram
á espada os que eram menos valorosos que elles, abriram caminho ao
engrandecimento dos outros povos da Europa, e affeitos a gosos faceis,
deposeram aos pés do absolutismo as suas velhas franquias, beijaram os
grilhões que lhes deitavam aos pulsos porque eram dourados, e
tornaram-se ludibrio do mundo».--Estas lições é que hão de ensinar a
actividade no trabalho, a severidade nos costumes, o amor da liberdade
moderada, mas verdadeira, o direito de cultivar as artes de paz, no meio
de um paiz decadente, cuja unica esperança de salvação está em se
desenvolverem n'elle essas e outras tendencias analogas? Não! O povo,
que tem mais logica do que os prégadores de vãos apophtegmas, ha de
concluir outra cousa d'ahi; ha de concluir que é assaz fidalgo para não
contrahir habitos villãos e ruins. De historias d'aggressões e de
conquistas brilhantes não se deduz a necessidade de morrer obscuramente
em defeza da terra da patria; não se deduz a moderação revestida de
firmeza, que faz respeitar pelas grandes as nações pequenas; não se
deduzem nem o amor do trabalho nem o amor da virtude»[62].

«Morigeração, trabalho, sciencia, eram as armas em que a philosophia
politica d'aquelle seculo ensinaria as nações civilisadas a combaterem
n'uma lucta generosa. Os espiritos mais altos, fosse qual fosse a sua
crença religiosa e politica, proclamavam a paz e a fraternidade entre os
homens. E não só as proclamavam mas até empregavam a poderosa alavanca
da associação para promoverem uma cruzada santa contra as tendencias
guerreiras. Os esforços collectivos d'esses homens summos seriam
baldados? Não o cria. Tinham um alliado irresistivel. Quando os
exercitos permanentes e as grandes marinhas militares tivessem devorado
todo o peculio de cada povo, e exhaurido a melhor e a mais pura seiva da
sua vida economica, era então que a philosophia politica havia de
alcançar um triumpho decisivo. Mas esse triumpho que outra cousa seria
senão o ultimo termo de uma sorites immensa, composta dos factos de
dezenove seculos, de uma demonstração pratica e invencivel, de que a lei
moralmente necessaria das sociedades modernas é o christianismo, é o
verbo do amor e da paz revelado no Evangelho?

«N'esses dias, que porventura tardavam menos do que muitos pensavam, que
destino dariam os sacerdotes da bombarda, da lança e da espada aos seus
deuses fulminados? As palavras «façanhas, gloria guerreira, conquistas»
como seriam definidas nos diccionarios das linguas vivas, dentro de um
ou dois seculos?»[63].

Era para esses seculos futuros que Alexandre Herculano queria educar o
povo na sua crença, e outra mais nobre e pura, é certo, até ao presente
se não encontrou ainda. Justificaram-na os tempos, e as esperanças de
hoje n'ella nos exaltam, glorificando em nossos corações o apostolo e a
sua fé.


IV

Seria ainda fructo da applicação ao estudo da historia, nasceria do
conhecimento profundo das origens e vicissitudes das instituições e do
prolongado manusear dos seus codices, a notavel capacidade de
jurisconsulto que Alexandre Herculano revelou e usou com felicissimo
exito em diversas conjuncturas da sua vida de publicista, e sobretudo na
discussão e redacção do projecto do codigo civil? Foram as qualidades de
historiador que crearam as aptidões de legislador?

Evidentemente, o exame da estructura juridica tradicional das sociedades
em geral e, em particular, da constituição da nação portugueza por esse
lado, a comprehensão dos systemas de direitos e obrigações que
cimentaram a formação e desenvolvimento da unidade nacional,
incital-o-iam a confiar na efficacia das leis e, por impulso logico,
passaria da analyse d'aquellas que nos seculos passados nos regeram á
critica das que encontrou vigorando, e á elaboração de outras que, para
fortuna da patria, as modificassem e as substituissem no futuro. Os
meios de governar, cujas virtudes se lhe mostraram claras durante
seculos, manifestando-se identicos áquelles que tinha vindo encontrar
energicos e activos, operando no momento presente e imprimindo-lhe
caracter, convence-lo-iam da permanencia d'uma força com a qual as
sociedades tinham a contar em toda a conjunctura. Verificando-lhe a
constancia e os effeitos no correr dos seculos e no presente, por isso
se esforçava em a corrigir de desvios e erros funestos á prosperidade e
á paz entre os povos, e em convertel-a, quanto possivel, em instrumento
de felicidade e justiça entre os homens.

O alto valor das aptidões de jurisconsulto de Alexandre Herculano, esse
notabilissimo traço do seu genio na capacidade da applicação pratica dos
principios e da sua reducçáo a obrigações e direitos, é abonado pelo
testemunho de contemporaneos auctorisados, ainda mesmo para aquelles
que, por falta de conveniente educação de espirito ou por diversidade de
inclinações, hesitassem em a apreciar ou de todo a julgassem assumpto
interdicto á sua critica. Vicente Ferrer Netto Paiva, jurisconsulto e
publicista eminente, companheiro e intimo de Alexandre Herculano,--para
citarmos apenas um entre muitos dos mais competentes, disse no _Elogio
historico_ do amigo, lido em sessão do Instituto de Coimbra a 23 de
maio de 1878:

«O sr. Alexandre Herculano, que gostava de questionar e discutir, tomava
a palavra em quasi todas as questões que se ventilavam no seio da
commissão (revisora do codigo civil). E, apezar de não ser
jurisconsulto, fallava com tanta proficiencia, que era sempre escutado
com a maior attenção pelos outros membros da commissão, que se tinham
dedicado á sciencia do direito; e conseguiu muitas vezes fazer vencer as
questões pela parte que elle sustentava. Muitas propostas suas
melhoraram o projecto do codigo civil e são hoje leis do paiz. O que
porém admirava aos jurisconsultos da commissão era ver que nunca ia de
encontro a um principio de direito, apezar de as questões serem muitas
vezes complicadas e difficeis. Parecia que tinha estudado a fundo a
sciencia do direito. Se duvidaes do meu testemunho, como de amigo
suspeito, vêde o que escreveu sobre a questão do chamado casamento civil
em os diversos opusculos que publicou a este respeito, batendo-se com o
auctor do projecto do codigo civil, um dos maiores jurisconsultos d'este
reino. Vêde a subtileza, com que analysou as velhas leis do reino, as
leis canonicas e os textos das leis romanas; os immensos recursos que
descobriu na historia e costumes antigos; e os profundos
conhecimentos que mostrou da philosophia do direito. O debate entre
estes dois grandes homens foi digno d'elles».

«Ainda o sr. Alexandre Herculano fez outro serviço importante na
commissão revisora do codigo civil. Esta commissão, por ser de quatorze
membros, julgou-se muito numerosa para poder fazer a redacção final do
projecto, e nomeou uma commissão pequena, composta do sr. Alexandre
Herculano e de quem escreve estas linhas. Ambos concordámos em que o sr.
Alexandre Herculano fizesse a redacção, que eu leria depois, para vêr se
n'ella ia alguma palavra de uso vulgar, que devesse ser substituida por
outra propria da sciencia do direito. E não me lembro de substituir
senão uma ou duas palavras. Todo este serviço deve-o a nação ao sr.
Alexandre Herculano».

Todavia, este homem que tanto confiava nas determinações juridicas da
sociedade e tanto se inflamava na sua discussão, que tinha fé na lei
como portadora da ordem e de grandes beneficios, e a temia e lhe queria
como fautora de destinos varios e distribuidora de bens magnificos, esse
homem dizia-se individualista ferrenho e proclamava-se inimigo do
confuso e impetuoso socialismo do seu tempo, de esse que poderiamos
chamar do periodo religioso e apostolico, mal esboçando ainda a sua
phase organica. Antevendo na victoria de semelhantes principios a
restituição das armas e a consagração dos direitos que conduziam ao
resurgimento de tyrannias nefandas, não podia conformar-se com a
reconstrucção do edificio tenebroso, derrubado ha pouco á custa de
campanhas heroicas e prolongadas, das quaes fôra soldado. «Que a
tyrannia de dez milhões se exercesse sobre um individuo, que a de um
individuo se exercesse sobre dez milhões d'elles, era sempre a tyrannia,
era sempre uma cousa abominavel». «Passado um seculo, era muito possivel
que o liberalismo tivesse desapparecido. As gerações precisam ás vezes
retemperar-se nas luctas da anarchia ou nas dores da servidão:
concentram-se para a explosão calcadas sob o pé ferreo da força brutal.
Deixassem-no levar, para se entreter a ruminal-a pelo caminho, a
convicção de que, entalada entre duas betas negras,--a tyrannia em nome
do céu e a tyrannia em nome do algarismo,--surgiria como um fóco de luz,
nas paginas da historia, a epoca em que se proclamavam os direitos
individuaes absolutos e imprescriptiveis, embora as paixões humanas nem
sempre os respeitassem». «As ideias democraticas tendiam pela sua indole
a apoucar o individuo e a engrandecer a sociedade, se é que elle as
comprehendia. Era por isso que, nas trevas do seu pensar, a democracia
estendia constantemente os braços para o phantasma irrealisavel da
igualdade social entre os homens, blasphemando da natureza, que,
impassivel, os ia eternamente gerando physica e intellectualmente
desiguaes. Era por isso que ella acreditava ter feito uma religião seria
d'esse phantasma, quando o que realmente fez foi inventar a idolatria do
algarismo... A sua intelligencia amotinava-se contra a conversão do
homem em molecula. Repugnava-lhe vel-o apoucado, quasi annulado, deante
da sociedade, e esta, pessoa moral, individuo collectivo, artificial,
subrogando-se ao individuo[64]».

O individualista intransigente, tomando porém responsabilidades de
governo, abrandou do rigor do philosopho e cedeu á evidencia e
instancias das necessidades publicas e das indicações da justiça. Eleito
presidente da camara municipal de Belem, estadista por um rapido momento
em uma espera acanhadissima mas na sua extrema exiguidade sufficiente
para demonstração das tendencias de quem n'ella exercia magistratura,
Alexandre Herculano depressa se conciliou com um radicalissimo
inicio de tyrannia em nome da sociedade, fazendo que a camara da sua
presidencia sollicitasse do parlamento auctorisação para crear uma
«Caixa de Soccorros Agricolas», cujas bases expunha.

Pretendia a camara crear um fundo permanente destinado a subministrar
capitaes baratos aos cultivadores, para os amanhos ruraes. Para isso
reservaria annualmente tres quartos do producto do imposto da farinha
fabricada, até completar a somma de 35:000$000 réis, podendo todavia
substituir aquelle imposto por qualquer outro, uma vez que o seu
producto fosse pelo menos equivalente aos mesmos tres quartos
designados. A caixa emprestaria aos cultivadores do concelho, por prazo
nunca excedente a um anno, e a juro de 1/4 por cento ao mez, o capital
necessario para o movimento da cultura annual dos predios respectivos, e
desde logo ficavam determinadas minuciosas condições regulamentares dos
emprestimos, incluindo a hypotheca especial dos fructos do anno corrente
ao contracto, e, se esses não chegassem, dos dois annos immediatos, até
integral reembolso; a preferencia de direito e acção da caixa sobre
qualquer outra acção e direito particular em relação aos fructos do anno
corrente; e muitas mais exigencias das quaes resultava uma
fiscalisação assidua da caixa sobre a economia individual do lavrador.

Se esse projecto houvesse sido convertido em lei, deixaria ampla a
admissão do mais rematado socialismo. Não haveria motivo para recusar a
todas as demais forças da economia nacional o beneficio que para uma
d'ellas se tinha mostrado legitimo; não haveria razão para que o estado,
arvorando-se capitalista por meio do imposto, descontasse aos lavradores
e não procedesse de modo igual com o commercio, com a industria, e com
todos os outros elementos da riqueza do paiz. O communismo era perfeito;
a socialisação da riqueza completa. O estado reclamava da economia
individual os capitaes necessarios á communidade, pelos meios
obrigatorios e coercitivos de que dispunha, e iria depois entregal-os á
classe que carecia de auxilio; aprehendia por imposto e repartia por
justiça. Mas, porque seria banqueiro a municipalidade e não o seria
igualmente a administração geral de toda a fazenda publica?

O jurisconsulto, quem reconheceu o valor das instituições juridicas como
Alexandre Herculano, não podia declinar as consequencias de tal condição
de espirito e havia de as levar até onde ellas se impõem por virtude
da logica e pressão do bem publico. Mas não houvesse legado exemplo
pratico do seu systema e processos de estadista, ainda em campo
puramente doutrinario nos facultaria elementos para julgar que o seu
individualismo andava sujeito a quebras e restricções, apezar da
robustez formidavel. Não nos mostrou Alexandre Herculano como no seculo
XII a lei, fortalecendo os costumes, conciliava as religiões mais
discordantes e as punha lado a lado vivendo em harmonia? E, se a lei
conciliava os deuses e continha as paixões religiosas, como nos disse,
se convertia a tolerancia em regra de governo, porque não conciliaria os
homens e as necessidades terrenas elementares? Não nos fallou elle da
«propriedade, filha sacrosanta do trabalho» e, se essa lhe mereceu tão
sagrado respeito e absoluta defeza, que designação e sentimentos lhe
provocaria ess'outra propriedade que, em vez de ser filha do trabalho,
se funda na espoliação do trabalho,--a elle que do coração abominava
todas as tyrannias?

A vulnerabilidade do individualismo de Alexandre Herculano,
descobrindo-se em mais de um ponto e por diversos lados, como acabamos
de notar, não viria porém da deficiencia do principio de liberdade, que
proclamava com uma fé indomita, mas unicamente do atrazo das
concepções politicas da sua epoca e da impossibilidade de se definirem
de um modo positivo e pratico, n'essa altura incapazes de traçar uma
construcção da sociedade, nos seus aspectos economicos, solida e bem
ponderada sem prejuizo da inteira garantia das liberdades essenciaes.
Para um devoto da tradição, que viu todo o organismo social enraizado no
passado e o estudou nas suas mais delicadas e profundas ramificações e
origens, para quem soube prender por laços estreitos a existencia das
gerações presentes ás instituições, aos sentimentos, á sabedoria
acummulada das gerações extinctas, aos seus erros e desvarios e ás suas
virtudes, a sociedade não podia pulverisar-se em um aggregado de
liberdades desconnexas, no concurso fortuito dos seus atomos, em simples
associação mecanica ou mera juxtaposição. Não; uma constituição juridica
a ligaria, traduzindo as relações moraes e a dependencia religiosa e
suas derivações--tudo o que elle sentia instantemente. Se, por amor da
intangibilidade dos principios, contestou a legitimidade da nova ordem
que lhes offendia a coherencia, não foi porque ella afinal deixasse de
se conter nas suas crenças, mas tão sómente porque ainda não tinha
conseguido definir-se na lucidez perfeita que o correr dos tempos, a
meditacão dos apostolos e o clamor de experiencias dolorosas vieram
a attingir em epocas posteriores. Não era possivel vêr-se ainda, como
claramente hoje se demonstra, que a divisão e concorrencia anarchica das
classes, importando victorias relativas e tyrannias consequentes,
significam em resultado ultimo a annulação de toda a garantia de
liberdade; não era ainda possivel vêr-se não só como a condição
economica se tornava a base da liberdade politica, moral e religiosa,
mas tambem em que termos e com que segurança a independencia economica
se alcançaria sem privação da liberdade, antes fortalecendo-a. Não
haviamos chegado a comprehender de uma maneira precisa--grandes
correntes do pensamento nos offuscavam! até que ponto importava moderar
as asperezas da lucta pela vida, onde não podessemos supprimil-as
totalmente, para que a liberdade, nas suas formas politicas e sociaes
concretas se penetre de todo o amor, para que ella, principio religioso
e de dever na esphera do sentimento e da moral, se consubstanciasse em
simples regras de justiça e de cooperação na esphera juridica.

A conciliação de duas phases de um estado de espirito, identico na
essencia embora diverso nas modalidades, de prolongada gestação na
qual se consumiram o scismar e o trabalho de inumeraveis e altissimas
capacidades e as paixões de exercitos de combatentes e martyres, essa
duplicação de vida mental que permittiu respirar com igual facilidade o
alento de duas epocas, atmospheras de uma mesma substancia mas
differentes todavia na proporção e logar dos elementos constituivos,
foram phenomenos absolutamente excepcionaes, tão fóra das normas
vulgares que mal os comprehenderam os que os presenceiaram. A
ductilidade de pensamento que a tão variada extensão pôde amoldar-se, de
tal modo se destacava do commum, provavel e logico, que a muitos se
tornou impossivel deslindar a surpreza e lançaram-na á conta das
apostasias de crença, debilidades de animo e collapsos de entendimento.
A propria tenacidade dos principios, levada a ponto de exaltação
religiosa, tornava-se impedimento de progresso, reagindo contra tudo o
que se lhe afigurava morder a integridade rigida na qual elles se haviam
fundido.

De resto, mais poeta e historiador do que pensador, mais moralista do
que philosopho, mais prompto em contemplar as cousas creadas e as
renascer do que propenso a martelar systemas novos e apural-os,
Alexandre Herculano não se sentiria talvez muito inclinado á
correcção e revisão amiudada, senão continuada, dos principios cuja
influencia de inspiração e fortaleza usufruira por largos annos.

O caso de Stuart Mill é uma excepção surprehendente na historia das
doutrinas politicas no seculo XIX; não seria facil repetir-se, mesmo
entre os da sua força e edade[65]. Da liberdade comprehendida no sentido
de uma larga emancipação não só da lei mas da influencia da opinião e do
costume, por uma rarissima agilidade de pensamento, verdadeira
prolongação de juventude que lhe facultou deducções imprevistas dos seus
principios, Stuart Mill veio até á acceitação d'aquellas concepções que
no seu tempo o individualismo encorporava na vaga designação de
socialismo, temendo-as e proscrevendo-as, como resurreição de
despotismo, reacção calamitosa e sem nome. «Por um lado», escreveu[66],
a repudiavamos com a maior energia esta tyrannia da sociedade sobre o
individuo que se suppõe contida na maior parte dos systemas socialistas;
por outro olhavamos para um tempo em que a sociedade não mais se
encontrará dividida em duas classes, uma de ociosos, outra de
trabalhadores; na qual a regra de que os que não trabalham tambem não
devem comer será applicada, não só aos pobres, mas a todos
imparcialmente; em que a divisão do producto do trabalho, em vez de
depender, como em alto grau agora acontece, dos accidentes de
nascimento, será feita d'accordo, sobre um principio de justiça: em que
emfim não mais será impossivel, ou se julgará impossivel, que os seres
humanos se esforcem energicamente procurando bens, destinados não para
elles exclusivamente mas para serem partilhados com a sociedade á qual
pertencem. Consideravamos que o problema social do futuro consistiria em
unir a maior liberdade individual de acção com a communidade de
propriedade das materias brutas do globo e com uma igual participação de
todos nos beneficios do trabalho combinado». Sem a presumpção de julgar
que se podia prever immediatamente a forma exacta das instituições
conduzindo com segurança áquelle fim, nem em que epoca, remota ou
proxima, seria possivel applical-as, criam todavia que «a educação, o
habito e a cultura dos sentimentos fariam que um homem cavasse ou
tecesse pelo seu paiz tão bem como por elle combatia».

Assim pensava já e o escrevia, vagamente, Stuart Mill em 1848, e quatro
annos depois, em 1852, aberta e firmemente o advogava; e isto se póde
considerar ainda hoje a mais bella e a mais cathegorica aspiração
socialista, a mais accessivel a todo o entendimento e a mais pratica na
execução. É maravilha que tão longe alcançasse quem partira de ponto tão
distante e diverso. Viver duas vidas, duas epocas, em uma só existencia,
fazendo succeder em um unico cerebro, aliás igualmente poderoso em ambas
as modalidades, o espirito duma geração ao espirito da geração
precedente, é, na verdade, um acontecimento de incomparavel estranheza.

Por certo o conheceu Alexandre Herculano no seu vastissimo saber. Mas
não se convenceu. Convém verificar o facto para inteira comprehensão do
seu caracter e disposição de espirito. Não lhe amesquinhou, todavia, a
grandeza; reconheçamol-o. Em taes alicerces se fundava que podia bem
affrontar rebeldias caracteristicas da propria fortaleza, compensadas
por uma solidez de estructura, sem embargo alguma vez impenetravel á
irradiação de novos astros mas sempre protecção e defeza de magnificos
thesouros, ideaes elevadissimos, que serão a eterna medida do valor
dum ser humano.

Quando hoje lemos a discussão do socialismo e do individualismo entre
Oliveira Martins e Alexandre Herculano, posta n'aquella altura de
sinceridade affectuosa e vitalidade mental de que esses dois
extraordinarios espiritos foram dotados, sorrimos sem desrespeito, antes
com uma carinhosa gratidão pelo sagrado esforço de quem assim procurava
trazer ao mundo felicidade, e por alcançal-a se consumia e atormentava
em cogitações e em duvidas. O que então era obscuro e incerto para
homens realmente grandes, é hoje evidente e incontestavel para o vulgo.
«O decurso de trinta a quarenta annos, no turbilhão, cada vez mais
rapido, em que hoje as ideias passam, modificando-se, transformando-se,
é um periodo que corresponde a seculos nos tempos em que o progresso
humano era sem comparação mais lento. As doutrinas, as apreciações
criticas, os systemas, os livros quasi que envelhecem tão depressa como
o homem. O pensamento que ha vinte annos parecia uma verdade nova póde
hoje parecer apenas um problema não resolvido, e até um erro condemnado;
a observação profunda de então ser hoje trivialidade; a critica subtil,
que levou um raio de luz a certos recessos obscuros dos factos,
achar-se incorporada e transfigurada em apreciação mais complexa que
illumine dilatados horisontes»[67]. Sómente não envelhecem,
antes vivem e se prolongam em perenne frescor e mocidade, o consolo e
orgulho de verificarmos quanto o pensamento humano tem caminhado, quanto
valeu para a fortuna dos homens e das sociedades a exaltada coragem dos
seus obreiros, que bençãos devemos e tributamos aos apostolos, como
Alexandre Herculano e Oliveira Martins. Como é fertilisante e bella a
irradiação dos seus sonhos! Os tempos e as ideias mudam incessantemente;
mas não muda nem póde mudar o espirito que pesa e julga e ordena as
realidades. Para sempre sejam louvados aquelles de muita bondade que
nol-o inspiram elevado, puro e grande!



ESCUDOS DE FORTALEZA


ESCUDOS DE FORTALEZA

Abrigava-se sob escudos impenetraveis a fortaleza de Alexandre
Herculano. Não se segue no mundo caminho recto, como elle seguiu, sem o
auxilio continuado de armas proprias para remover os obstaculos
infinitos que se nos deparam, sem o bordão em que o peregrino se apoia
para vencer asperrimos fraguedos. Não se mantem a firmeza de animo, que
foi talvez a maior gloria da sua auréola, sem a protecção de um nimbo de
sentimentos inaccessiveis a toda a corrupção e assalto de fraquezas. Em
torno da sua figura humana de athleta, adejam legiões angelicas,
baixando invariavelmente em seu soccorro, se as contingencias da sorte
transitoria, a que o seu ser mortal andava exposto, ameaçavam
prostral-o, feril-o ou desvial-o da derrota luminosa do seu sonho.


I

Guardava-o Deus de cair em tentação. Resoava-lhe do continuo nos ouvidos
a harpa do crente e, perpetuamente, sem hesitar, rendeu-se ás modulações
das suas cordas. Cria que «Deus era Deus e os homens livres». «A terra
vacillava ante o olhar do Senhor». «Louvaria o Eterno!» Quando se ergueu
a voz d'aquelle moço «velador de angustias», pallidas as faces, nas
veias a febre, alagada a fronte de um suor frio, os olhos humidos de
pranto e dentro do peito a dôr que o ia roendo; quando a poesia lhe
murmurou na alma a «ultima nota de quebrada lyra», «o triste adeus do
trovador que expira», que hymnos cantou, que visões perpassaram

    «No delirio febril d'aquella mente
    Que, balouçada á borda do sepulcro,
    Volve apoz si a vista longamente?»

Turvou-o a _Desesperança_; segredou-lhe maldições do Deus que «por
insania» adorára. Aos pés do seu throno não chegavam os gemidos da
terra. A Providencia era uma crença vã, e mentia quando apontava ao
poeta, em ancia de gloria, a immensidade. Mas o _Anjo da Guarda_ impôz
silencio á rebeldia blasphema. Se o misero agonisante podesse
comprehender a amargura com que o anjo lhe chorava a perdição no amor
terreno, e a doçura que ha no affecto do homem aos mensageiros de Deus,
despiria, rindo, o corpo enfermo, para se lhes unir, «para aspirar o
goso celestial do amor sem termo». E logo, sem tardar, respondendo á voz
do anjo, a _Graça_ ungiu o moribundo. Era uma «harmonia suave», perante
a qual a sombra da morte se aclarou e o coração, alliviado do peso da
dôr, pediu «o hymno da oração em vez do canto irado». O poeta sentiu
então de novo o que o «revocava a Deus». Inspirava-o a esperança. E
adormece na Resignação, contricto, rogando ao anjo bom que não o
abandone na «hora fatal», e lhe repita aquelles segredos de doçura onde
aprendera

    «Que é o céu a patria nossa;
    Que é o mundo exilio breve;
    Que o morrer é cousa leve;
    Que é principio, não é fim»[68].

A successão dos estados da sua alma, os termos pelos quaes attingiu a
constituição ultima, a religião, «abrigo extremo», consolação de toda a
miseria terrena, da deshonra, do exilio ou da injustiça, essa formação
progressiva do seu ser espiritual, deixou-a Alexandre Herculano marcada,
estampada, na pintura da morte do trovador, de resto apenas um incidente
e exemplo, porque toda a sua obra poetica é uma profissão de fé quasi
ininterrompida. Em toda ella prevalece o cantico religioso sobre o
anceio mortal; resume-se em louvor, adoração e abdicação do homem em
face do principio divino, embora considere esse principio nas
modalidades transitorias, como convém ao poeta, embora o encontre e veja
com os olhos do corpo e da lembrança, extasiando-se em delicia, nas
capellas, nas ermidas, nos mosteiros, nos templos, pelos campos
desertos, pelos adros, pelos cruzeiros e pelos cemiterios das aldeias,
nas tradições e nos momentos ingenuos disseminados pela terra patria.

O confronto do caracter de Alexandre Herculano com o de José Estevão
poderá talvez definir melhor do que qualquer outra explanação os
attributos proprios de cada um.

Foram ambos figuras primaciaes da grandeza moral do seu tempo. Sel-o-iam
em qualquer epoca, culminantes. Resumem as duas formas mais nobres
da dignidade humana. E, todavia, quanto são differentes! Alexandre
Herculano procede por principio religioso; José Estevão por
humanitarismo. Um tira a sua força da obediencia a uma Vontade suprema,
que n'elle vive e se realisa mas que não é d'elle; o outro é arrastado
por sympathia e inspiração fraterna, basta-lhe para razão de heroismo o
sentimento da solidariedade, auxilio mutuo e reino da justiça entre os
homens. D'ahi, d'essa reducção essencial da sua natureza psychologica,
conjunctamente synthese e centro de derivação da vida de cada um
d'elles, as consequencias praticas diversas da expansão das respectivas
individualidades. Amaria José Estevão a vida civica e a vida urbana, até
mesmo caprichos e complexidades mundanas, o calor de carinhosas
amizades, tudo aquillo em que os homens se juntam mais estreitamente e é
filho do seu aturado commercio; inclinar-se-ia Alexandre Herculano á
solidão, ao labor silencioso dos campos, ao isolamento meditativo, a
tudo aquillo em que mais por completo podia conceber a invariabilidade
do divino e a relatividade das relações do contingente e do infinito.
Este nunca trocaria pela glorificação de faculdades humanas o culto
do Eterno, como era corrente nas revoluções do seu tempo que
trouxeram na rua, postas em andores, mulheres figurando a Razão. Ás
tendencias de Alexandre Herculano para o claustro, para a contemplação,
e para o estudo e apologia dos primeiros seculos do christianismo e do
seu vigor e dilatação na edade-media, corresponderia em José Estevão a
paixão politica e a actividade impetuosa, e o sentimento da justiça
fundada, não em determinação divina, mas na imposição dos principios
abstractos concebidos e affirmados pela intelligencia humana e em seu
nome enthronisados. Dum ao outro ia toda a distancia que medeia entre
uma philosophia, embora de affecto sublimado, e uma religião de amor
que, ainda por amor, algumas vezes será rigida em excesso, nada propensa
á indulgencia. E da diversa natureza do impulso fundamental veio a
diversidade de attitude no decorrer da existencia terrena d'aquelles
dois genios, conduzindo Alexandre Herculano ao recolhimento e á
fascinação do ermo, porque para elle de prompto se purificava n'esse
estado e se mantinha illesa a crença religiosa, a consciencia da
presença de Deus no universo e os estimulos de obediencia á sua vontade,
emquanto José Estevão, atravez de todos os desenganos e recobrando animo
de todos os desalentos, voltava constantemente á interferencia nos
combates das multidões, porque assim sentia de perto effectuar-se a
aspiração humanitaria, em absoluto dissolvida, reduzida a nada, fóra
d'esse ambiente. Para o crente, impregnado de adoração e abdicação, o
amor, mensageiro do Senhor e seu interprete, poderá encarnar em toda a
materia e em todo o orbe; não percebe quebra do principio divino ou
infidilidade aos seus mandados consagrando-se ás arvores e fugindo dos
logares em que o convivio dos homens é activo. Porém para o humanitario,
o amor, symbolisado em justiça e acção, só nos homens teria o seu
principio e não podia, por uma logica instinctiva e imperiosa,
desviar-se d'elles sem em absoluto se perder pela ausencia de objecto
que o consubstanciasse. José Estevão vivia cercado de amigos em todas as
contingencias da vida publica e da vida intima, nas alegrias e mágoas do
seu lar e nas luctas politicas; Alexandre Herculano, que tambem teve
amigos, e exaltados na admiração e no affecto, aliás retribuindo com
infinitos carinhos do seu coração, era facil em se refugiar no
isolamento e consolar-se de toda a amargura na beatitude do silencio da
vida ingenua, onde por certo acharia realisada e integra a aspiração de
serena e plena conformidade com a vontade do destino. Não valeria
tanto para o poeta religioso a meiguice das petalas das rosas como o
sorrir de labios humanos, e não mentiria menos á missão divina?

Assim tambem, ainda por consequencia de um mesmo pendor, a religião que
para Alexandre Herculano era uma força intima, immanente, inflexivel, e
por isso essencialmente sujeita a suscitar conflictos insoluveis com a
ordem mundana, para José Estevão podia sem difficuldade acceitar-se em
termos de compromisso entre necessidades presentes, tradições e
principios eternos, resolvidos os antagonismos, quando se declarassem, a
beneficio da paz publica e dos interesses da sua causa. O caso de
consciencia, intransigente na primeira d'essas duas concepções
religiosas, admittia na segunda concessões mutuas e limites
convencionaes, formulas de conciliação politica, subordinada por
momentos á salvação da republica, e por contradicções estranhas, mas
afinal beneficas, corroborando-se e negando-se ao mesmo tempo. O clero,
a egreja constituida, não quiz mais a José Estevão do que a Alexandre
Herculano, mas por differente motivo. Um desfazia-lhe a virtude dos
milagres, atacava-o na capacidade intrinseca e arguia-o de traição a
Christo: o outro deixava-lhe a liberdade dos milagres e não o
incommodava nas relações divinas, e apenas se esforçava por lhe
restringir o despotismo e as cobiças terrenas, cerceando-lhe regalias e
reduzindo-lhe a auctoridade de adquirir, mandar e dispôr, e accusando-o
de infidelidade aos interesses do povo e da nação[69].

O confronto do modo de ser religioso d'esses dois grandes caracteres não
significará, todavia, que a religião de Alexandre Herculano fosse
inactiva, e muito menos deshumana. Revelará apenas que a sua alma,
religiosa por essencia, dependente conscientemente de uma outra alma
infinita e eterna, da qual se reconhecia mero instrumento e frouxo
reflexo, encontrára, por virtude d'essa constituição e prisão, as
obrigações supremas de vida entre as quaes a primeira seria o amor,
imposto pela abdicação no principio divino. O humanitarismo não seria
n'esse systema de deveres uma religião, como de facto foi no sentir de
José Estevão; consubstanciaria sómente a summula dos deveres religiosos,
e manifestamente aquelles a que Alexandre Herculano mais quiz e com
extremo ardor se consagrou. O mundo estava subordinado a Deus; e não
seria absorvido pela humanidade, renegando a subordinação, posto que na
humanidade tivesse a obra de Deus mais bafejada do seu alento.

De resto, a emoção religiosa em Alexandre Herculano, sendo christã e
demais educada na tradição do christianismo latino, tão rematadamente
caridoso e, por concreto, distante da abstracção cruel em que redundou
no espirito oriental, não poderia tender ao extasi, esteril e mortifero
além do resgate individual, mas logo se transfundiria na objectivação
pratica, na traducção do seu principio dominante em forma e movimento,
em acção. Não resultaria em ascetismo, mas na moralisação de todas as
energias organicas, aliás livres em sua esphera, reconhecendo-se-lhes a
legitimidade da expansão. Assim como lhe impunha entre os impulsos
iniciaes o amor da terra e da patria, levava-o consequentemente ao amor
dos homens que a povoam e á intervenção em toda a complexidade das suas
relações, tão extensas na multiplicidade de manifestações e aspectos
como coordenadas e indivisiveis na unidade do espirito que as liga e rege.

Esse amor illuminara-se duma vez para sempre aos olhos de Alexandre
Herculano no «clarão do Evangelho triumphante». Toda a consolação e todo
o saber encontrou no «Verbo que renovou o mundo corrompido». Os
arrebatamentos do poeta, as affirmações do publicista e os combates do
soldado e do apostolo, toda a sua vida e toda a sua obra estão
repassadas de christianismo. Vibra em cada palavra e em cada gesto, nas
victorias e no desalento, na ira e nas bençãos, na lucta e no repouso.
Até a propria historia e a obra d'arte imaginativa, não menos que a
contemplação da natureza, seriam para elle desenvolvimento de verdade
religiosa do christianismo e ensejo da sua propagação. A visão da cruz e
a atmosphera moral que d'esse symbolo irradiava, acompanhavam todos os
passos do sonhador; os seus poemas são uma floresta espessa de cruzeiros
e templos onde de continuo perpassam murmurios de orações e canticos de
louvor. Toda a enredada architectura do _Monge de Cistér_ parece
erguida, quando no conjuncto a observamos, para inscrever alli, em
traços d'uma fulguração diamantina, a sentença do Evangelho que lhe
serve de fecho:--_Se não perdoardes, tambem Deus te não perdoará._

Humanisou o christianismo; quebrou-lhe a rigidez e a seccura,
amortecendo os rigores da consciencia, que elle facilmente accusa, pela
uncção da suavidade, que a cada passo vae derramando entre os homens.
Mais do que isso: soube como ninguem, pelo poder do genio, trazel-o á
terra, infundil-o em todas as cousas creadas, vividas e sentidas,
infundil-o em a natureza inteira por uma insinuação cheia de
mysterio, que todavia nos arrebata em encantos de doçura e luminosidade
intraduziveis. Esse dia santo, que elle celebrou com palavras que ficam
como pergaminhos da nobreza de uma geração e seu orgulho, maravilha da
união subtil mas vigorosa do amor divino e do amor terreno, do amor das
cousas da terra santificado pela presença de espiritos angelicos, será
perpetuamente o espelho da candura religiosa. «Um dia santo; um dia
santo!...» disse o poeta comovido, deixando transbordar os seus
affectos. «Assim juntas, estas duas palavras são as mais sonoras, as
mais pinturescas, as mais saudosas da nossa lingua; para mim, ao menos.
De todas essas memorias passadas, cujas ruinas o descrer da edade de
homem me tem alastrado pelo coração, uma sei eu que vive ainda n'elle
fresca e viçosa, e que me parece morrerá só quando eu morrer. É a
lembrança dos dias santos dos meus tenros annos. Um domingo de então
ainda me sorri suavemente quando deito olhos longos para o caminho
tortuoso e agro, por onde já derramei, sem saber como, um terço de
seculo da vida. Na orla d'esse horisonte crepuscular do passado
avulta-me a capellinha da habitação da infancia ao dia santo, e o altar
com os seus castiçaes de talha dourada e as jarras de flores, que lá se
punham no sabbado á noite, e o alevantar cedo para todos e tudo
estar lavado, espanejado, escovado e ordenado para a missa. Sabe Deus
com quanta fé e devoção a minha alma tenra se balouçava na toada
monotona que murmurava o velho frade arrabido, calvo e macilento, cujo
burel desapparecêra debaixo das vestes variegadas do sacerdocio! Atravez
da alta gelosia o sol vinha, semelhante a uma columna de vidro amassado
com pó de ouro tombada do seu pedestal, bater de soslaio nos degraus do
altar. As luzes trémulas das velas, cuja claridade se annulava no
esplendor do dia, pareciam-me espiritos que se inclinavam esperando a
presença real de Deus para o adorarem. Depois o frade que viera de
longe, do convento de Ribamar ou da Boa-viagem, almoçava e jantava. E
todos estavam contentes; porque era um santo mas jovial frade o bom do
arrabido, e contava historias que era um pasmar. N'aquelles dias
abençoados juraria eu que a folhagem das arvores era de um verdor mais
vivo, os fructos mais saborosos, o ar mais diaphano, a agua mais
transparente, o ceu mais azul, e até as alfaias da casa mais novas, e o
caio dos muros mais alvo. Á tarde corria pela relva com os outros moços
da minha edade, e travava luctas e gritava e ria e suava e
tripudiava nos jogos e brinquedos que são proprios d'aquella edade;
mas quando o sol descia para o horisonte ia assentar-me á sombra de uma
grande nogueira, sósinho, a ouvir cair n'um tanque uma pequena bica
d'agua, e alli ficava muito tempo a scismar. Em que? Eu sei lá! Em nada,
provavelmente. Mas scismava e sentia levantar-se-me no coração um
fumosinho de tranquilla melancolia, fumosinho, que se condensava
brevemente nos olhos em lagrimas, que não chegavam a rolar, mas que
n'elles bailavam. E alli me achava á noite, e buscavam-me, e
desfaziam-me o encanto; mas ficava-me cá a saudade... Domingos dos doze
annos, em que o meu espirito se harmonizava com o hymno eterno da
natureza, salvé! A gloria litteraria, o amor da independencia, e talvez
até o orgulho de proceder honesto, todos os meus sonhos de ambição
dal-os-ia a troco de me sentir viver comvosco; comvosco, oh dias santos;
porque os outros, esses, se não eram palidos como os de hoje, eram
acres, dolorosos, inquietos. As paixões fervidas e insensatas da
mocidade vinham chegando; e como que já sentia rugir a pouca distancia
as tempestades que iam agitar e devorar-me os annos mais bellos da
vida... Não tenho saudades dess'outros dias. Não tenho. Deixal-os ir. É
pelos meus ricos dias santos de então que eu hei de sempre chorar.

«Ainda hoje ha um individuo, que exerce singular predominio sobre mim, e
ignora-o. É o sineiro da minha meio-rural, meio-urbana parochia. Na
escala das reputações de sinos, os da minha freguezia occupam logar
modesto, e todavia, quando repicam antes da missa do dia, sinto passar
em volta de mim uma como aura fugitiva dos dias santos da meninice, e o
sol illumina-se da luz d'aquelle tempo. O repique, por estes sitios, é
ainda patriotico e tenaz: ainda não o perverteu a peste da civilisação.
Nem as cantigas populares, nem as harmonias do theatro se atreveram a
pôr pé sacrilego nos degraus do campanario. Abençoado sineiro, que me
parece has de morrer abraçado com as tradições do teu antecessor. Oxalá
que, se eu te sobrevier, tenhas um herdeiro digno de ti! Mal sabes tu,
quando no teu ardor d'artista te penduras por essas cordas, e as fazes
vibrar, saltando de um a outro lado, banhando-te numa catadupa de sons
estrugidores, que se despenham sobre ti, jorram pelas sineiras, e vão
ennovelados esmorecer por esses ares; mal sabes tu, que, a certa
distancia, no alto da montanha, alguem larga o livro, a pena, as ideias,
e fica abstracto e immovel a aspirar as harmonias que lhe mandas
frouxas, sacrosantas, ricas de saudades da infancia! Mal sabes tu
quantas cogitações profundas, quantas dôres do espirito tens suspendido
com essas divinas toadas. Oh, que se me podesses restituir a capella, e
o velho arrabido, e a sua missa, e as suas historias, e o murmurio que
tinham outrora as pequenas bicas a correr nos pequenos tanques, e a
sombra que davam as nogueiras, e a melancolia do sol posto de ha vinte
annos; se tal podesses!... Eu sei!? Caindo adorar-te-ia, fosses Deus ou
Satanaz.

«Ai, não pódes; não pódes! Isto tudo sumiu-se. Hoje sou cidadão, jurado,
eleitor, homem de lettras; podia ser commendador, conselheiro,
governador civil, deputado, ministro, se navegassem para esse rumo as
minhas ambições, e Deus me houvesse concedido o ser um nada mais parvo.

«Vida positiva, realidade do mundo, se tu fosses uma realidade tangivel,
uma realidade que sentisse, uma realidade real, quizera ver-te jazer
ante mim, para te pôr um pé sobre os peitos e calcar-te e cuspir-te nas
faces! Só isto me consolava das saudades dos dias santos infantis e
d'este viver miseravelmente desbotado.»[70]

Esta interpenetração das cousas e da alma, esta vibração unisona da
essencia etherea do espirito e da materia visivel e palpavel, esta
harmonia religiosa da consciencia e de toda a creação terrena, marcarão
a orbita da qual nunca se affasta a alma de Alexandre Herculano.

Em Val-de-Lobos, no ermo da sua clausura, construiu uma capella. A
religião carecia de symbolos, e reclamava para si um pedaço de terra
onde os guardasse e fossem invocados e venerados. N'elles se havia de
encontrar e integrar a adoração de Deus em espirito e nas visualidades
tangiveis. O idealismo germanico e o symbolismo romano juntavam-se e
completavam-se fundindo aspirações do espirito, absolutas na sua
abstracção, e tradições da ordem terrena, essenciaes tambem pela
permanencia e pela vitalidade historica, e captivantes pela belleza
sensivel. E, assim, o templo, a que Deus descia para olhar os homens,
seria o degrau mais alto a que os homens subiam para vêr a Deus.


II

Ha no _Monge de Cistér_ «um filho das Hespanhas» em que «a côr, o gesto,
o olhar, tudo dizia que ahi dentro havia o espirito dum godo e ao mesmo
tempo que n'essas veias corria o sangue dum arabe»; e as cartas de
Alexandre Herculano a Oliveira Martins, que este ultimo publicou no
_Reporter_, quando se fez a transladação dos restos do historiador para
os Jeronymos, referem-se a «estas sociedades, meio romanas, meio
germanicas na indole, e celto-romanas na raça, que estanceiam ao
occidente.»

Porventura, estão alli designados os elementos ethnicos e tradicionaes
que se associaram na formação do genio de Alexandre Herculano, meio
romano e meio germanico na indole e na raça, com o espirito dum godo na
idealisação da vida e o senso pratico dum romano na concepção da
sociedade, por vezes sonhador e ethereo como um bardo errante das
margens do Rheno, a espaços accordando e rompendo em impetos dum
cavalleiro nado e tisnado nas terras ardentes do islamita, e de
repente recobrando a serenidade e a capacidade de ordenamento pratico
que distinguiu e tornou famoso o conquistador romano. Tinha a sêde de
liberdade, a consciencia da responsabilidade, a paixão da sinceridade, a
febre de apostolado e a tenacidade de combater caracteristicas do sangue
anglo-saxonio, e possuia ao mesmo tempo aquelle espirito de sequencia,
lucidez e justa distribuição, aquelle horror do desequilibrio e do
incerto e indefinido, a percepção penetrante das realidades e a arte de
as sujeitar á regra e á lei que engrandeceram o mundo latino.

A liberdade, essa era para Alexandre Herculano um dogma, e capital.
Sabia que «Deus era Deus e os homens livres». O reconhecimento de Deus
implicava a liberdade; a existencia de um ser superior, ao qual tinhamos
de obedecer, revelado em nossa consciencia e n'ella habitando, exigia a
anniquilação de todo o estorvo á contemplação da sua grandeza e á
insinuação e execução da sua vontade.

Para Alexandre Herculano, como para todos os grandes caracteres do seu
tempo, a liberdade foi o primeiro dos artigos de fé. Sobre todos os
demais prevalecia e a todos os outros synthetisava. Onde menos acatada a
encontraram, ahi se esforçaram por lhe assegurar a soberania. E assim
deram a precedencia á revolução politica sobre quaesquer outras, e
n'essa collocaram os principios de liberdade acima de qualquer outro
principio ou conveniencia.

Seguiu-se ás esperanças d'essa geração um periodo historico adverso. É
certo. Uma pleiade de philosophos e devotos da realidade, analysando os
homens e as sociedades, e entrincheirando-se nos baluartes de uma
sciencia que se reputou inexpugnavel e a ultima e terminante verdade,
sorriu das crenças dos paladinos ingenuos de que era filha. Tomando-as
sinceramente por illusão de romanticos generosos, aliás com a mesma
candura que tinham posto em as amar aquelles de quem os novos prophetas
immediatamente descendiam, apressou-se a desvanecer o erro e deu a mão
ás arremetidas de um despotismo renascido e vestido em trajos
desconhecidos e atraentes, mas herdeiro e fiel representante do
absolutismo antigo e, a seu exemplo, fatal á felicidade dos homens.

A experiencia e mesmo o desenvolvimento da analyse scientifica e suas
conclusões logo trouxeram, porém, o desengano. Pela segunda vez a
supposta illusão de nossos paes se revela a verdade fundamental do
progresso. Contradictou-se a religião da liberdade com a legitimidade da
oppressão, a aspiração individual com a razão d'estado; mas a ideia
imperialista que d'ahi cresceu e teve longos annos de triumpho,
parecendo por momentos absorver e desbaratar em sua gloria rutila de
baionetas, os planos magnificos da ideia liberal, vae por sua vez e em
nossos dias descendo ao accaso. Favoreceram-na a concepção biologica das
sociedades, accentuadamente reaccionaria, que oppôz a força á justiça e
ao direito e nos imbuiu na convicção de que a base de toda a aggremiação
animal era um estado de lucta interior permanente e essa lucta
significava um bem, factor essencial do desenvolvimento da sua
capacidade. A victoria do mais forte e a subordinação do mais fraco
seriam consequencias de leis naturaes indeclinaveis e beneficas, ás
quaes nos cumpria prestar reverencia, auxiliando-lhes a execução em toda
a extensão da vida physica e moral do individuo e da communidade. Os
interesses materiaes, levados já por circunstancias economicas a um
subido grau de concentração e anceiando por se constituirem n'aquelle
estado de tyrannia soberana, a que o capitalismo europeu e sobretudo o
capitalismo norte-americano souberam conduzil-o, aproveitaram habilmente
as instigações crueis de uma sciencia alheia a inspirações moraes; se a
lei da vida organica consistia na victoria dos fortes e na
escravidão dos fracos, as instituições sociaes, para serem salutares,
logicas e efficazes, haviam de respeital-a, e a divisão entre servos e
senhores seria tambem condição natural de boa ordem. E entretanto,
emquanto semelhantes doutrinas se propagavam e captivavam os espiritos
mais puros e os melhores corações, a guerra franco-prussiana e a
formação do imperio formidavel que ella creou e consolidou, antepondo ao
cesarismo desmoralisado, que derrubava, um cesarismo disciplinado,
rigido, e intellectualmente riquissimo de saber, justificava e apregoava
de modo pratico, com esplendor, o principio, então por excellencia
scientifico, da força brutal. Para o effeito da boa administração o
mandavam acatar as boccas dos canhões e os sabres dos guardas do estado,
convencendo por esse meio os menos promptos em lhe descobrir as
virtudes. Homens d'estado e multidões fanaticas, governantes soberbos e
doceis governados, uns por ambição, outros por cegueira, uns na avidez
do mando e outros na esperança de ventura, e todos victimas dos
vendavaes que repetidas vezes vergam a seu bello prazer as sociedades e
as arrastam em delirio, inconscientes e desvairadas, abjuraram os
evangelhos da liberdade que se lhes figurou um culto da debilidade e de
rebellião insensata contra o despotismo da natureza, e, preferindo
o gendarme ao sacerdote, desconfiando da crença para se renderem ás
armas, trocaram a reverencia da justiça e da caridade christã pela
desapiedada glorificação da caserna.

Não cessavam, todavia, os estudiosos na observação e cogitação das leis
intimas da vida; e os ideaes do humanitarismo e da religião desthronados
não tardaram a rehaver um logar de proeminencia. A doutrina da evolução,
que parecera o seu peior inimigo, provou ser o seu apoio mais solido;
por ella deixaram de representar o sentimentalismo absurdo e enfermiço,
de que foram acoimados, para se reduzirem a uma comprehensão exacta de
lei organica das sociedades, producto e derivação do proprio
desenvolvimento evolutivo. Um dos mais notaveis espiritos do mundo
scientifico vinha a concluir o exame da doutrina evolutiva pela
demonstração de que a resistencia e o progresso da especie resultavam,
não da lucta mas da sua atenuação, não da força mas da união e auxilio
mutuo; a livre cooperação substituiria pois a sujeição oppressiva dos
fracos ao capricho e engrandecimento dos fortes, se quizessemos, como
deviamos, respeitar a ordem natural. E, simultaneamente, a miseria dos
trabalhadores, precipitados na escravidão do capitalismo pela
torrente dos interesses materiaes, accelerada e engrossada pela
abundancia de doutrinas que consagravam o imperialismo em toda a sorte
de relações, desde as de amo e creado até ás das nações e estados, o
clamor dos servos tornou-se uma ameaça e uma dôr, para as quaes os
piedosos procuravam balsamos, os timidos e previdentes inventaram
prevenções attenuantes, e os homens d'estado buscavam remedio, vendo
periclitante a estabilidade e a propria vida do corpo social, e
cumprindo-lhes defendel-a.

Apoz o eclipse de algumas decadas, o idealismo liberal resurge,
inscrevendo nos livros da lei o principio da igualdade juridica dos
homens, da igualdade de opportunidade, como modernamente se diz,
corrigindo a phantasia do absolutismo igualitario de outras eras. Nos
corações restaurou-se o culto da liberdade. E n'este renascimento da luz
que um sonho de terrivel barbarie escureceu, a figura de Alexandre
Herculano, protegida pelas sagradas paixões que o animavam, reapparece
no resplendor de uma aureola eterna. Como o poeta de Além-mar[71],
Alexandre Herculano, sentindo a onda de imperalismo que nos seus
derradeiros dias avassalava a Europa, poderia exclamar:--«Triste,
desthronada rainha, oh liberdade! Ainda que contra ti se volte todo o
mundo, hei de eu ser-te fiel!» Na sua adoração da liberdade havia laivos
de fanatismo, o unico talvez que em toda a vida revelou. D'ahi viriam
todos os seus temores em acceitar normas de organisação social que de
toda a parte lhe apregoavam efficazes para salvação de angustias. Na
ordem moral, o socialismo estava justificado. Não o contestava; «não se
lhe afigurava que chamar socialista a quem discute, que impôr um labeu
mais ou menos affrontoso desfizesse um argumento, nem que fosse
demonstração concludente e irresistivel o affirmar que taes ou taes
theorias são más porque são socialistas, e que o socialismo é mau porque
propaga essas theorias. As escolas socialistas, (que nem elle já sabia
quantas eram então), teem doutrinas positivas e critica negativa. As
doutrinas positivas pareciam-lhe longos rosarios de despropositos; a
critica negativa, embora frequentemente exaggerada, era a seu vêr uma
coisa seria. Havia ahi indicações de males profundos e dolorosos no
corpo social, que faziam estremecer as consciencias; que faziam cogitar
tristemente os espiritos liberaes e sinceros»[72]. Mas apavorava-o
sómente o perigo que em cada explosão de socialismo ameaçava a
democracia de se converter gradualmente em uma burocracia ou em uma
oligarchia, perigo que a violencia despotica do espirito de partido e o
odio das classes expropriadas temerosamente asseguravam, inevitavel.

Em ultima analyse, a tendencia politica de Alexandre Herculano, no
encadeamento logico da sua crença espiritual e religiosa, seria o que
actualmente se chama anarchismo, por absurda que a muitos possa parecer
á primeira vista uma tal classificação applicada a um tradicionalista
fervoroso;--anarchismo no bom sentido, no sentido de uma doutrina
philosophica, temperado, ou, digamos melhor, limitado pela visão
historica e sua demonstração da força de organisação inherente a toda a
vida em communidade, mas, sem embargo, suspirando por toda a sorte de
libertação, crendo no resgate da humanidade em Deus e aborrecendo todo o
constrangimento imposto pelas vontades humanas isoladas ou colligadas.
Aquelle socialismo de que mostrou signaes na presidencia da camara
municipal de Belem, não se lhe teria figurado traição ao principio
da liberdade; tornava-o inoffensivo, quebrar-lhe-ia todas as velleidades
de despotismo a descentralisação extrema em que se realisava. E são de
notar os compromissos a que no presente veio a ideia socialista para se
conformar com o principio de liberdade,--as restricções que a si mesmo
vae impondo, o desamor das grandes aggremiações, tão promptas em
degenerar em tyranias, o valor cada vez maior attribuido á communa como
instrumento da distribuição das commodidades elementares da vida. O
socialismo contemporaneo da Inglaterra com a sua caracteristica
insistencia na liberdade da terra e na liberdade do commercio, essa
concepção da sociedade renovada, tão diversa do socialismo continental
facilmente propenso á restauração cesarista, está mostrando até que
ponto a intransigencia do apostolo da liberdade em Alexandre Herculano
era a voz do propheta dos tempos proximos, ainda mesmo quando parecia
combater-lhes o advento.

Essa crença na liberdade que obrigações não importava aos que passavam
no mundo levando-a no peito?!... Conquistar a liberdade era servir a
Deus, facultar aos homens a inteira sujeição aos seus mandados. A
responsabilidade perante Deus, a todo o instante exigida na consciencia,
em que elle se revelava, não podia tornar-se effectiva senão pela
liberdade. Os despotismos da terra figurar-se-lhe-iam uma offensa á
divindade. Urgia derrubal-os onde quer que se acoitassem, sob o manto
dos reis ou sob as vestes do sacerdote, em nome do estado ou em nome da
egreja, nos castellos do feudalismo ou nas officinas dos mestéres, na
altivez dos capitães de guerra ou na vilania cupida dos rebatedores.

A religião determinava uma politica. Mandava desembaraçar o caminho que
conduz a Deus. A predica, o sacrificio e o martyrio, as luctas civis e
as guerras dos homens, todas as armas eram de Deus e Deus reclamava para
sua defeza e triumpho, se pela liberdade, sua filha e serva, combatiam.
Mas a religião determinava sobretudo uma moral, o exame constante da
conducta da actividade humana, em toda a extensão, e a sua conformidade
com a essencia divina, até aos movimentos minimos, até ao mais pequeno
objecto em que da nossa vontade dependesse.

Pessoalmente, emquanto se tratava de dar exemplo, a tarefa não foi
difficil a Alexandre Herculano. Por virtude do seu raro vigor quebrou de
prompto muito estorvo ao proposito de servir em acção os principios que
adorava em espirito. Cedo se libertou, e com firmeza e audacia, das
escravidões vulgares do commum dos homens, e até das de muitos que
se elevam não pouco acima do commum.

Riquezas? Não o tentavam. A simplicidade espartana dos seus habitos
contentava-se com pouco; estava-lhe no animo, e confessava-a, a aversão
a negocios e a aproveitar com boa arte mercantil os bens magnificos da
sua intelligencia[73].

Honrarias? Detestava-as. D. Pedro V levou-lhe a casa a commenda da Torre
e Espada. Recusou-a. E em uma carta publicada no _Jornal do Commercio_
deu as razões do seu procedimento. «Pertenço», dizia, «a uma classe
obscura e modesta, quero morrer como nasci. Ha nisto uma grande ambição
solapada. No meio do immenso consumo que se está fazendo e que se tem
feito, ha trinta annos, de distincções, insignias, uniformes
bordados, de titulos, gráus, tratamentos e rotulos nobiliarios, o homem
do povo, que queira e possa morrer com esta classificação, deve adquirir
em menos de meio seculo uma celebridade extraordinaria... Não sou
commendador da Torre e Espada. O senhor D. Pedro V, que Deus tem
comsigo, procurou-me um dia para pedir-me, dizia elle, um favor. Era o
de acceitar a commenda da Torre e Espada. Recusei; e com a sinceridade,
que elle sempre encontrou em mim, expuz-lhe amplamente os motivos da
minha recusa. Aquelle grande espirito, complexo de extrema doçura, de
alta comprehensão e de profundo sentir, debateu, sem se irritar, as
ponderações, talvez demasiadamente rudes, que lhe fiz. Concluiu por me
dizer que cada um de nós podia proceder n'aquelle assumpto em harmonia
com as proprias convicções. Que elle cumpria o que reputava um dever de
rei, e que fizesse eu o que a consciencia me ditasse. Como os outros
homens, os reis, embora se chamem D. Pedro V, estão sujeitos a apreciar
mal as pessoas e as coisas. Nem eu valia o que elle suppunha, nem a
commenda valia nada. O que valia muito, apezar do seu innocente erro,
era esse moço de vinte e quatro annos, esse filho de João I, D. Duarte
extraviado no seculo XIX, vindo pedir como favor ao filho do povo
que lhe acceitasse uma mercê, porque entendia que o dever a isso o
obrigava».

Não quiz mais á lisonja do mundo do que aos regalos da riqueza e á
ostentação das honrarias. Por não perder uma liberdade de critica sempre
severa com a propria pessoa e com as estranhas, não o atemorisou a fama
de impertinente ou orgulhoso, e desprezou, aborrecendo-o, o titulo de
_excellente pessoa_ «que o mundo costuma dar a quem se acommoda com as
suas opiniões, quer absurdas, quer judiciosas»[74]. Ouvindo,
invariavelmente e exclusivamente, as indicações e o conselho da sua
consciencia, desacatou com frequencia e por completo a opinião publica,
«o mais sublime, o mais respeitavel, o supremo embuste d'este mundo».

A intuição moral não se limitaria, porém, á imposição de regras
adoptadas na vida individual e intima. Fixando leis, conduzia ao
julgamento de quantos as offendessem e á apreciação de toda a
circunstancia em que fosse offendida.

O amor da patria, inspiração de Deus, levou Alexandre Herculano ao
estudo da historia, e da conjuncção do historiador e do poeta e
crente devia resultar, e resultou, um moralista profundo e ardente.

O conhecimento do mundo e do fatalismo das suas leis, o mecanismo
inconsciente e intransgressivel do seu movimento, que bem cedo a
historia lhe revelou, posto em presença da aspiração divina, que mais
cedo ainda se lhe revelou no coração, fatal tambem por inspiração da
consciencia religiosa e por demonstração das civilisações e das raças,
imperativa e absoluta por essencia, obrigava o poeta a cogitar e a
estabelecer as formas de existencia dos homens e das sociedades nas
quaes se conciliassem em virtude, belleza e felicidade os elementos
diversos que a intelligencia e a observação lhe apresentavam.

Isso preferia mesmo á concepção de systemas, que para o fim pouco
adeantavam, capazes de ligar e synthetisar o amontoado de relações e
dependencias oppostas e desconnexas no seu aspecto exterior.
Compadecendo-se mal a nitidez descarnada e fria das systemathisações com
o prisma multiface dos factos concretos e as suas penas, o seu peso na
ventura e na desgraça dos homens, a philosophia cederia a primazia á
regra da vida, porque a instancia intima de crear belleza sob o poder de
visões era evidentemente em Alexandre Herculano superior á sêde de
saber por mero orgulho ou simples curiosidade. A satisfação do
dever podia mais na sua alma do que o deleite de penetrar e vêr e
comprehender, exultando no reconhecimento das suas faculdades de
aprehensão e exame. Ha na philosophia estreme, que em si contem e limita
o seu destino e fim, qualquer cousa de peccaminoso egoismo e
indifferença que o apostolo de uma missão divina não acceita sem
correctivo. Se é philosopho, e não pode deixar de o ser em alto grau
quando a robustez mental lhe descobre o encadeamento das cousas, logo
aproveitará a philosophia, subordinando-a e apeando-a do throno, para
instrumento e maior efficacia da sua missão, sem muito cuidar do mais
que ella encerra ou se esforçar por o definir com clareza, em quanto não
aproveita á fortuna dos homens e á elevação da sua dignidade. Só n'estes
termos convém, e d'ahi resultou, sem duvida, que em Alexandre Herculano
o moralista seguisse de perto o historiador, como este seguiu o poeta,
deixando ambos a grande distancia e em manifesta obscuridade o
philosopho e sua impassibilidade, a cujos dotes e companhia nunca
mostraram grande afêrro, naturalmente porque lhes pareciam debeis na
substancia, de caracter por demais altivo, insensato e vaidoso, e
mesquinhos em beneficios, se os referiamos á desmedida presumpção
com que pretendiam representar a sabedoria das sabedorias.

Foi implacavel. Nada indulgente comsigo, Alexandre Herculano mediu os
outros pela propria craveira, e sem piedade flagellou vicios, erros,
crimes e fraquezas, em todo o logar, tempo e circumstancia, onde quer
que os encontrou. Costumes, instituições, processos politicos, religiões
e crenças, tudo apreciou e julgou com uma severidade indomavel, a que os
impetos illuminados do seu genio e a isenção da sua vida deram uma
auctoridade tremenda.

As intrigas politicas e occupações analogas, «que são o recreio, o
comodo, o alimento, a respiração e a vida do estadista e do
cortezão»[75], em que Alexandre Herculano andou «extraviado», não por
«culpa da vontade mas do entendimento», serviram-lhe para comprehender
toda a abominação de taes manejos e fins, astuciosamente occultos em
verdades graúdas, porque «em cada seculo ha uma verdade graúda que
predomina, e que vae ajudando os espertos a consolarem-se dos dissabores
da vida á custa do animal, alvar por excellencia, chamado cidadão, para
cujo consolo vieram á terra as bruxas, a therapeutica, os fundos
publicos, a ontologia, os duendes, as infusões, a esthetica, as petas e
o palavreado»[76].

Quando emergiu do atoleiro, sentiu-se renascer. As circunstancias
haviam-no «baldeado no charco da vida publica», mas «a Providencia, que
provavelmente não o achou assaz corrompido para fazer d'elle um homem de
estado, deu-lhe uma hora de contricção em que podésse desempegar-se,
escorrer o lodo dos vestidos, lavar o rosto, e voltar ao gremio do mundo
moral»[77].

Não foi debalde, como debalde não foi a sua passagem na côrte e a
approximação das classes nobres, quer consideradas no convivio
immediato, quer observadas nos fastos das eras passadas. Ahi teria visto
e aborrecido «a etiqueta, as minucias de cortezania escolastica, as
vaidades inquietas de todas as supremacias e eminencias politicas,
litterarias, agiotas, artisticas, da impertinente aristocracia burgueza,
mirando-se, escarnecendo-se, detestando-se»... «o egoismo das pequeninas
vanglorias, as pontualidades parvoas e a sensaboria de convencional
contentamento»[78].

Tudo isso e a repulsão do espectaculo de miserias ainda maiores levaria
deante dos olhos quando ia a caminho do seu ermiterio de Val-de-Lobos, a
viver entre a gente rude, cujos thesouros de ingenuidade reconhecera e
adorava. «As fileiras dos antigos pelejadores cujo ardor aliás se achava
enfraquecido pelo cansaço, haviam-nas rareado os annos, e os novos não
tinham braços assaz robustos para o combate. Então chamava-se á tibieza
tolerancia, e aos calculos do egoismo e da pusillaminidade civilisação.
Os velhos interesses e as velhas preoccupações tinham voz e voto,
preponderante ás vezes nas cousas publicas. Os tumultos, as luctas das
facções, as guerras civis, eram ainda possiveis: as revoluções não. Para
isso requeria-se que nas veias dos homens houvesse sangue, no coração
crenças, e na sociedade seiva moral»[79].

Fugido da mentira de requintes de sensualidade e perfidia em que os
senhores do mundo folgavam; buscando uma atmosphera de sinceridade e de
paz, não só pelo anceio de se banhar em summa candura mas tambem,
decerto, pela alta sapiencia de collocar em ambiente adequado o poder de
meditação do seu espirito, affastado assim das distracções e
constrangimentos que sem repouso o irritavam; «envelhecido antes de
tempo pela contensão do espirito em comparar, conjecturar, deduzir»[80]
e sobretudo pelo tremor de uma consciencia inquieta, meticulosa, votada
a uma continua febre de acertar; a affastado pelas illusões de um
momento das occupações litterarias a que se dedicára com intimo affecto
e reconduzido por asperos desenganos ao tranquillo retiro d'onde não
devera talvez ter saido; concebendo como, no desabar do imperio romano,
tantas almas severas e energicas, desesperando do futuro de Roma, iam
buscar os ermos, onde o christianismo nascente lhes indicava um refugio,
e alli, a sós com as suas cogitações, cerravam os ouvidos ao importuno
ruido de uma sociedade gasta e podre que esboroava, não tanto ao impulso
dos barbaros, como pelos effeitos da propria dissolução interior»;
convencido emfim de que «luctar com a Providencia não é esforço, é
loucura»[81]:--uma fadiga mortal lhe reclamava horas de repouso, a
defeza instinctiva do minguado alento de um organismo exausto de
aspirações, contrariedades e desillusões, e rendeu-se-lhe. Reaccendeu
então na alma o vigor amortecido e quebrado em luctas vãs; e deu-nos o
exemplo da nobreza na derrota quem primeiro nos mostrára dignidade e
gloria nos combates.

Combates!... Os que o vulgo apreciou nas obras de Alexandre Herculano e
nos actos publicos da sua vida seriam bem frouxos comparados com os que
no seu peito se travavam para o isentar de cair em falta. Conheceu as
profundezas fataes da fraqueza humana, e do vigor com que procurou e
alcançou remir-se da sua atracção depõe uma existencia inteira de
dignidade.

O trovador prisioneiro, «á vista dos homens, saberia esconder o seu
delirio e morrer com firmeza; mas, na solidão, a saudade de uma
existencia cheia de amor e d'esperanças, a vergonha de supplicio
affrontoso, e o temor da morte lhe não consentiam velar-se deante de si
proprio com a mascara que a vaidade e o orgulho põe na face humana ainda
nas suas mais terriveis situações, para que a vida seja uma continua
farça, da qual o coração é o actor mentiroso desde o berço até ao
sepulcro»[82]. E Alexandre Herculano, tambem trovador e
prisioneiro dos ferros das contingencias e convenções mundanas,
teria soffrido as angustias do seu irmão do romance medieval; mas,
mais corajoso, tirou deante de si mesmo a mascara que a vaidade e o
orgulho põe na face humana, e do mesmo modo, virilmente, descobriu o
rosto perante as multidões atonitas de tão estranha fortaleza,
provocando, sem duvida, a aversão e escarneo da debilidade vulgar, para
a qual estabelecia um confronto accusatorio.

Essa sinceridade, essa facilidade e até sollicitude em patentear em
todos os actos da sua vida os mobis intimos, como para se certificar da
rectidão do proprio procedimento sujeitando-o ao julgamento de
estranhos, indifferentes, amigos e inimigos, constitue um dos mais finos
traços da delicadeza o escrupulo da moral de Alexandre Herculano. A cada
passo se confessa. Voluntariamente, com uma corajosa franqueza, expõe-se
á affronta e á calumnia que da revelação do seu intimo lhe possam
derivar; dava aos homens as contas que de todas as suas acções dava a
Deus, sem temer a injustiça do mundo que tantas vezes lhe ignorou e
menosprezou a inteireza e a candura. O sentimento da responsabilidade,
filho dilecto da liberdade e seu fiel companheiro, obrigava-o a
julgar-se frequentemente com o rigor que o dever lhe impunha na
apreciação dos actos alheios, e até mesmo, não raro, com a
severidade que por indulgencia e amor não tinha com os outros.

As relações de Alexandre Herculano com D. Pedro V e os termos em que
nol-as expõe no prefacio da terceira edição da _Historia de Portugal_,
são testemunho da sinceridade mais perfeita, mais repassada de grandeza
moral, que pode coroar as faculdades portentosas de um talento
peregrino. Nem amesquinha o proprio valor nem o isenta de confronto e
subalternisação ao valor alheio; não cede um palmo do que lhe pertence e
não regateia uma pollegada do que deve a outrem. Reconhece a propria
força, sem jactancia, descobre com uma serena e firme justiça os escudos
da sua fortaleza; e sem pejo, sem córar por se sentir vulneravel e fraco
á semelhança dos communs mortaes, é o primeiro a apontar os golpes com
que um outro mais forte lhe rompia e penetrava a armadura.

Emprehendera o estudo da historia de Portugal para educação do principe.
Pagava ao filho a divida que contraira com o pae; a este devera a
situação isenta de encargos pesados, que lhe permittiu dedicar-se por
completo ao aturado trabalho da compilação da historia. Levára o estudo
quasi até ao fim da primeira epoca da monarchia, quando a parte
publicada suscitou a «animadversão d'aquelles que querem accomodar
a historia ás crenças do vulgo, ás preoccupações nacionaes e aos
interesses que n'ellas se estribam.» Abriram então na imprensa e no
pulpito uma campanha contra o auctor de tão estranhas revelações, e os
seus inimigos encontraram adeptos até nas regiões do poder.
Difficultaram-lhe a edificação da sua obra. Inhibido de proseguir sem
sacrificio de dignidade, abandonou-a.

Reagindo contra essa violencia deploravel, que privava a nação de
conhecimentos fundamentaes para a sua vida e consciencia moral e
politica, «demonstrações incessantes e sempre crescentes dentro e fóra
do paiz»[83], obrigaram os poderes publicos a reconsiderar. Os homens do
poder, «se não respeitam, geralmente fallando, a moral e a justiça,
quando estas tão sómente se affirmam, acatam-nas quando estribadas em
qualquer genero de força e quando, portanto, significam um risco. Por
isso e só por isso, do mesmo modo que por meios indirectos lhe fôra
tirada, a possibilidade de continuar a _Historia de Portugal_ foi emfim
indirectamente restituida» a Alexandre Herculano. Mas era tarde. Na
lucta contra a torpe estupidez que o assaltára, «a ambição litteraria, a
confiança no futuro, a energia e o vigor da alma, o habito dos penosos
estudos e das meditações, a perseverança no trabalho, e, até, a robustez
physica tinham em grande parte desapparecido».

Depois, passado algum tempo, ainda tentou um ultimo esforço para
proseguir no trabalho. Se porém o tentou, ingenuamente confessava que
«não fôra para servir o seu paiz.» Só por uma grande amizade o fazia.
«Emquanto alheio, não ao estudo dos homens e do mundo, mas ás suas
ambições vulgares, consumia os melhores dias da vida em trabalhos a cuja
sinceridade, ao menos, o futuro havia de fazer justiça, um acontecimento
impensado tinha chamado ao throno aquelle para quem, na sua puericia,
fôra destinada a _Historia de Portugal_. Devera-lh'a por mais de um
titulo; mas, annulados, sem culpa sua, os meios de pagar, a obrigação
desapparecia. Fôra, todavia, por elle, e só por elle, que ainda uma vez
tentára o que a razão lhe representava como quasi impossivel.»

«Na procella em que naufragára o seu pobre livro o nome do soberano fôra
murmurado em voz baixa, associado ao dos satellites da reacção,
calumniado, como tinha de o ser depois, com torpeza sem exemplo, em
negocio mais grave. Ouviu esse murmurio: conhecia bem os homens de que
vinha, deu-lhes o asco que pediam e volveu a face. O facto tinha uma
significação e um valor bem sabidos.

«Malquistar o soberano com o cidadão era nobre e grande; mas era
incompleto: completava-se malquistando o cidadão com o soberano.
Infelizmente a tentativa falhou. O vago, o mysterioso, o terrifico teem
attractivos para as almas novas de profundo e energico sentir; para as
intelligencias juvenis e robustas que a ambição da ideia devora e que,
impacientes, forcejam por se precipitar nas vastidões do mundo
moral para lhe devassar os segredos. A alma do rei era d'essas. Buscou-o
e desceu, como diria o mundo, a justificar-se, porque nunca inquiriu se
para chegar do throno ás regiões do dever ou da justiça era preciso
descer ou subir. Movia-o, além d'isso, o instincto proprio da sua edade
e da sua indole. Queria sondar o abysmo de orgulho, de odios
implacaveis, de impiedade, de paixões tempestuosas de que lhe fallavam
com susto. Parece que a lenda exaggerava: o precipicio, o abysmo, eram
de dimensões menos amplas. Verdade é que os precipicios e abysmos
fascinam e atraem: póde tambem ser que fosse isso. Que, porém, se
illudisse ou que acertasse, o rei achára que todas essas negruras do
feroz plebeu se reduziam a uma sinceridade talvez rude, e a sinceridade,
ainda rude, tinha para elle o attractivo do novo, do impensado. Achava
onde retemperar o animo lasso do incessante espectaculo da
condescendencia interessada, do applauso grosseiro que vale o insulto,
da devoção requerente, do regirar e mentir dos que buscam recamar-se de
avellorios e lantejoulas para se inebriarem, para esquecerem que se
arrastam porque são lesos. Entrava apenas na edade de homem e estava já
saciado do serpeiar flexuoso das linhas curvas: attrahia-o por isso
irresistivelmente a dureza da linha perpendicular, recta. Aquella
alma, tão rica de abnegação de si, quanto o era de affectuosa sympathia
para com todos os opprimidos, para com tudo o que padece, comprazia-se
em fitar a vista em olhos que não se abaixassem deante dos seus, em
encontrar na ideia alheia a resistencia á propria ideia. Não tinha ciume
de uma soberania superior á sua, a da razão, nem o humilhava a dignidade
humana, que equivale no subdito á magestade do rei. O que repugnava
profundamente a esse espirito era o baixo, o abjecto. O reptil,
infusorio em grande, inquieta-nos, tenta a nossa fé na immortalidade com
o dogma horrivel da geração espontanea, da omnipotencia do
fermentescivel: o homem, que é homem, esse é que prova Deus.

«Foi na affeição de D. Pedro V, no desejo de lhe comprazer que achou
alentos para galgar de novo a ingreme ladeira d'onde o tinham
despenhado; foi animado por elle que proseguiu em ajuntar materiaes, não
para levar a cabo os ambiciosos designios concebidos na edade das
grandes audacias, mas para concluir o quadro sincero da epoca mais
obscura da nossa deturpada historia; para deixar no mundo um livro em
vez de um fragmento. Expressa apenas como desejo, a sua vontade tinha-se
tornado para elle irresistivel: nem se pejava de confessar que elle
começava a exercer já sobre o seu espirito aquella especie de
absolutismo moral que, provavelmente, aos trinta annos havia de exercer,
se vivesse, sobre o geral dos animos; singular especie de absolutismo,
que encerrava a esperança da regeneração dos costumes publicos e,
conseguintemente, a unica esperança da manutenção da nossa autonomia e
da nossa liberdade; autonomia e liberdade que foram para elle crença e
culto, porque lh'as tornavam santas a voz de uma consciencia virgem e as
revelações de uma poderosa intelligencia.»[84].

Que alma segredava essas confissões! Que essencia sobrehumana as animou!
Que resplendor divino nos confunde! O orgulho do stoico e a rigidez do
crente abdicaram perante a personificação candida da justiça. Não
temeram degradação no desprendimento. Conscientemente o tributavam,
pesando sem impostura o proprio valor e sem aviltamento depondo-o no
altar do affecto que o reclamava, devido por gratidão e não offerecido
pela livre generosidade do devoto. O crente engrandeceu-se
renunciando á altivez do propheta e trocando-a pela humildade do servo.

Nem sempre, porém, o espirito de Alexandre Herculano pairava n'essa
esphera religiosa de adoração, e não raro de indignação, a que tão altos
impulsos o erguiam. Por vezes, baixando ao meio das vulgaridades
terrenas, benignamente as viu e lhes sorria.

Esta ironia grave, e affirmativa todavia atravez dos reflexos inquietos
da multiplicidade dos seus prismas, objecto de justiça e simultaneamente
desenfado de austeridade, o rigor sem crueldade, o rir sem malevolencia
ou escarneo e ao mesmo tempo sem indulgencia, sem cobrir a nudez da
falta, jocoso sem insolencia e agressivo, por corrigir, sem durezas de
expiação ou vindicta; esse humorismo caracteristico do sangue
anglo-saxonio insinuou-se na obra de Alexandre Herculano e nos seus
prolongados combates de polemista. E é de vêr a doçura, salpicada de
ingenuidade, com que nos colloca em frente das ambições e cobiças
barbaras d'outras eras, no intimo condemnadas e condemnaveis, embora
sejam pesado attributo das miserias humanas de todos os tempos.

Exemplifiquemos.

Na côrte de D. Thereza, mãe d'Affonso Henriques, ricos homens,
cavalleiros e clerigos discutiam acremente, entre si e ao sabor de
cada um, a legitimidade das pretensões do filho á posse do reino e o
direito da mãe em lh'a negar. «As injurias voavam de parte a parte, os
ferros polidos dos punhaes principiaram a reluzir meio-arrancados dos
cintos, e a sala do conselho ia a converter-se n'um campo de batalha,
quando dois homens, talvez os unicos que pelo seu caracter politico e
ainda mais pela sua condição moral o podiam alcançar, atalharam as
scenas de sangue de que os paços de Guimarães estavam a ponto de serem
theatro. Quasi ao mesmo tempo dois sacerdotes se alevantaram a pedir
treguas em nome de Deus. Era D. Tello, arcediago de Coimbra, um d'elles:
o outro: Fr. Hilarião, o bom velho abbade do mosteiro de D. Muma.
Áquelle dissera muitas vezes D. Thereza que assaz grato lhe seria vel-o
bispo da sua sé, a qual então se achava orphã de pastor; a este, a
predilecção que sempre mostrára ao seu mosteiro e a elle em especial o
moço principe, fazia crêr com bom fundamento que não eram vãs de todo
varias palavras que uma vez lhe ouvira soltar ácerca não sabemos de que
doação ao santo asceterio de Guimarães, de certa villa ou herdade, com
cincoenta homens de creação, e seus montes e pastos, fontes e lagoas,
exitos e regressos. Não os moviam na verdade estas circunstancias
que apontámos casualmente, a serem, D. Tello, inclinado a favorecer a
justiça da bella infanta, e Fr. Hilarião a justiça de Affonso Henriques.
Pregoava-os o mundo por virtuosos: nós ajuntamos o nosso brado ao do
mundo. Mas é indubitavel que ambos elles estavam persuadidos de que o
outro seguia uma causa má e affligiam-se profundamente de verem assim a
virtude desvairada e perdida no campo contrario... Ainda cremos na
virtude dos cultores de politica: sabemos por experiencia que a maior
parte das vezes as suas expressões são singelas e nascem de crenças mui
fundas; sabemos tambem que as suas opiniões são em geral
desinteressadas, e que jámais é o medo que os incita a prégarem a
concordia e a paz. E se isto é assim n'estes tempos de perversão moral,
com bom fundamento affirmamos que eram puras e generosas as intenções
d'aquelles dois ministros do Senhor, n'um seculo em que as doutrinas do
christianismo estavam vivas e a caridade era fervorosa e sincera. É
certo, porém, que apezar das deligencias que faziam cada um d'elles para
aquietar o furor da respectiva parcialidade, por muito tempo o alarido
dos cavalleiros, que se doestavam com bastas e grossas injurias, cobriu
as debeis vozes dos varões apostolicos. Finalmente foram ouvidos. A
reputação de santidade de que ambos gozavam,--no seu bando já se
entende,--porque em epocas de odios civis as reputações facilmente tocam
o extremo da profundeza, mas na extensão ficam sempre em metade; essas
reputações, dizemos, mais ainda que a força das suas ponderações,
fizeram pouco a pouco asserenar a tempestade. Os ricos homens, infanções
e cavalleiros vieram emfim a uma conclusão razoavel; isto é, sairam
d'alli cada vez mais afferrados ás suas opiniões e sem concluirem
nada»[85].

Assim nol-os pintou o romancista historiador, em momento de os
considerar sem impaciencia.

Se necessario fosse descobrir a couraça de ferocidade dos fundadores de
dynastia, com tal destreza e arte procederia Alexandre Herculano n'essa
tarefa que sorrimos, quando aliás poderiamos sem injustiça voltar a face
indignada pelo espectaculo de crueldades barbaras. Assim, por exemplo,
que sacrilegos aggravos não se teriam feito ao conde D. Henrique,
duvidando-lhe da bondade! Apressa-se o historiador a corrigil-os, porque
«devemos crêr, ao menos piamente, que o conde D. Henrique, na epoca
em que alevantou o castello de Guimarães, não lançou nos fundamentos do
seu edificio soberbo um carcere seguro e vasto com os intuitos de rapina
que guiavam o commum dos senhores n'estas tristes edificações. Ainda que
algum documentinho de má morte provasse o contrario, cumpria-nos pol-o
no escuro, ou contestar-lhe francamente a authenticidade, porque o conde
foi o fundador da monarchia, e a monarchia desfunda-se uma vez que tal
cousa se admitta. Assim é que se ha-de escrever a historia, e quem não o
fizér por este gosto, evidente é que póde tratar de outro officio»[86].

Muitas vezes castigava rindo. É certo. Não cessava todavia atravez do
riso a tenacidade de combater, a intuição e o ardor apostolicos,
caracteristicos, como o humorismo, do sangue germanico. Sempre se uniam
na alma do poeta aquella visão exacta das realidades e sua ordem,
propria da educação romana, e o espirito de missão religiosa que nunca
abandona os povos de origem septentrional. Se alguem representou por
completo, resumindo-as nas tendencias e altos talentos de um só
individuo, «estas sociedades, meio romanas, meio germanicas na
indole, e celto-romanas na raça, que estanceiam ao Occidente», foi
Alexandre Herculano, foi exactamente quem melhor as definiu na historia.
O polemista manteve-se inquebrantavel até ao final da sua vida. De facto
nunca abandonou as armas. Os derradeiros annos da sua existencia, as
condições de desprendimento em que os passou, e a voz que de longe em
longe nos vinha do ermiterio de Val-de-Lobos, foram pelo exemplo e pela
affirmação explicita uma exortação ininterrompida á virtude, e um clamor
instigando a contricção e emenda as gerações corrompidas cuja degradação
presenciava com amargura. Corria-lhe nas veias a febre de exame intimo
constante e de ambição de conquista moral e religiosa peculiares
áquelles que deram á humanidade a renovação fecunda do protestantismo.
Chamaram-lhe lutherano os que suspirariam por o levar ás fogueiras da
Inquisição, se ainda as houvesse, porque lhes arruinava os milagres e a
consequente exploração de estupidas crendices populares. Havia qualquer
cousa de verdade n'essa designação. Sómente o honrava, em vez de ser
pejorativa. Traduzia o reconhecimento de uma independencia rebelde a
toda a seducção e lisonja de sensualidades satisfeitas e vaidades
saciadas, a confirmação da posse de faculdades raras entre latinos,
commodamente conciliadores, a verificação da revolta insubmissa do
combatente, inimigo jurado e exaltado de todas as oppressões, do
despotismo dos homens e da escravidão da consciencia. Por erro o
julgaram desalentado e vencido. Jámais o foi. Reagiu sempre, nunca
tolerou ambiente que lhe repugnasse ao coração. Defendeu-se
constantemente, de reducto em reducto, levando intactos e intangiveis
seus escudos. Onde achou terreno ingrato para a sua alma, logo a
transpôz para logar em que podesse offerecer-lhe resguardo conveniente.
Deixou as armas, deixou a politica, deixou as lettras, deixou o seu
minguado mundanismo da cidade, mas não por fraqueza; deixou-os, para
renovar com uma energia inexaurivel as condições da sua vida apenas se
convencia de que as não tinha adequadas á preservação da sua pureza.

Vicente Ferrer diz-nos que Alexandre Herculano «_gostava_ de questionar
e discutir». Presente-se, com effeito, nas suas polemicas certo prazer
de se defender e flagellar a matilha que o assaltava latindo
raivosamente. Com facilidade acceita o duelo, não mostra pressa de o
rematar, e, muito ao contrario, procede com tal pausa na destituição do
antagonista, arrancando-lhe uma a uma as suas armas, que, se não
lhe foi deleite a tarefa, pelo menos não a houve por enfadonha ou
penosa. Sendo o combate instrumento de propagação da verdade,
logicamente não poderia desamal-o, antes deveria apetecel-o quem tinha a
verdade em conta de missão suprema. Combatendo reconheceria, não só a
constituição vigorosa das proprias forças, o que o alegrava, mas tambem
a expansão e derramamento da sua crença, o que lhe satisfaria a
consciencia e lhe premiava o esforço.

Tornou-se materia corrente que o dominava o orgulho.

Não é exacto. Confundiu-se o orgulho com a defeza attenta e prompta da
dignidade, com a justificação vigilante dos seus actos em que a
salvaguarda da propria honra se juntava á necessidade constante de exame
de consciencia. Na polemica que mais fundamente deveria feril-o, porque
lhe contestava crenças religiosas, e nenhumas tinha mais arreigadas em
seu peito, vinha adduzir com exactidão e vigor os factos em que na vida
patenteára, muito mais do que generosidade com os vencidos e
perseguidos, verdadeiro amor da egreja e do clero. «Como procedera elle
sempre ácerca de egreja e do clero?» perguntava, indignado pela offensa
que um catholicismo estreito de intelligencia e de coração fazia á
nobreza cavalheiresca do seu caracter, n'este caso inflamada pela fé
religiosa, e pelo respeito e encanto da tradição e por toda a poesia do
culto. E respondia, com uma serenidade em que se advinham tremores de
mágoa e mal contidos impetos de desaggravo: «As ideias do seculo,
recalcadas por uma compressão violenta, a que, força é confessal-o, a
maioria do sacerdocio se havia associado, tinham reagido violentamente,
e assentavam-se triumphantes sobre as ruinas do passado quando eu entrei
no campo de imprensa, no campo das batalhas do espirito. De roda de mim
jaziam os fragmentos da sociedade que fôra, e no meio d'elles o clero,
disperso, empobrecido, coberto d'affrontas, experimentava as
consequencias do predominio de um partido adverso e irritado. A situação
da egreja portugueza n'essa epoca, e sobretudo a situação dos regulares,
sabemos todos qual era. Foram feridas de que, porventura, ainda mais de
uma goteja sangue. Os homens das velhas opiniões politicas, no meio do
terror, vergados pelo desalento de uma queda tremenda, duplicadamente
dolorosa pela desesperança, calavam. Nem uma voz amiga se alevantava
n'esta terra de Portugal a favor da egreja batida pela tempestade. Ainda
então esse grupo de mancebos cheios de talento, de inspirações
grandiosas e de crença fervente na liberdade humana, e pela liberdade na
eterna justiça; essa phalange, no meio da qual todos os dias apparecem
novos soldados, e que não se envergonhava de Deus nem do seu Christo,
não tinha ainda começado a surgir para ser generosa com os adversarios
das suas ideias, quando a desventura os santifica. Na imprensa liberal,
revolucionaria, impia, como quizerem chamar-lhe, eu, só eu, tive por
muito tempo palavras de affeição e consolo para a desgraça; só eu tive
animo para accusar os homens do meu partido de espoliadores e
insensatos; para tentar revocal-os á poesia do christianismo, do eterno
alliado da liberdade. A voz que do campo do progresso saudava o templo
enlutado e deserto era debil, mas sincera: a mão que se estendia para
amparar o sacerdote curvado sob o peso da agonia era bem pouco robusta
mas era leal! Como Yorick guardava a caixa do pobre franciscano entre os
symbolos da sua religião de affectos, eu guardo para mim, e só para mim,
mais de um papel escripto por mãos tremulas de velho monge, e talvez
regado por lagrimas, em que se reconhecia a possibilidade de haver um
homem das novas ideias que não fosse absolutamente um malvado. É sobre
estas reliquias que eu quero encostar a cabeça para dormir
tranquillo o ultimo e longo somno em que todos devemos repousar»[87].

Havendo, porém, fallado d'este modo, que a leviandade tomaria por
altivez aggressiva ou desdenhosa, logo se apressa a esclarecer e
dissipar por palavras de humildade essa impressão, como suspeitando-a,
temendo-a, e não querendo que subsistisse tão mal pensado e calumnioso
conceito. «Trouxera para o campo da historia», dizia elle então, «o
mesmo amor da verdade singela, que tinha mostrado n'uma das mais graves
questões sociaes. Não se arrependera do que fizéra. Cumpria um dever que
lhe impunham Deus e a sua consciencia. Não esperava arrepender-se do que
fazia. Cumpria uma obrigação litteraria, e estava certo de que bem
merecia da terra em que nascêra escrevendo a verdade». Só hesitava
«sobre a legitimidade das suas queixas; sobre se, no que suppunha um
dever de honra, não haveria um pouco da obcecação da vaidade. Quando
Roma que parecia ter jurado nas aras de Jupiter Stator o exterminio do
catholicismo, crucificava no seu _Index_ nomes como os de Chateaubriand
e Lamartine; nomes como os de Gioberti e Ventura, teria elle, verme
que passava á sombra do seu nada, direito de offender-se porque de
pulpitos obscuros, n'um canto obscuro da Europa, alguns clerigos maus ou
ignorantes lançavam sobre elle o vilipendio das suas palavras? Quando a
egreja, involvendo a fronte no véu da sua immensa tristeza, e sentindo
humedecer-lhe os pés o sangue humano vertido pelo ferro sacerdotal,
contempla aterrada o futuro, havia dôr de individuos a que fosse licito
um brado»[88]?

A victima de um odio estupido defendera-se do aggravo, mas o christão,
dominado pelo desprendimento divino e pela abdicação na vontade do
Senhor, duvidava não só do direito de defeza mas até da legitimidade de
accusar a injuria e se queixar. Na hesitação do combatente revelar-se-ia
um eterno problema de consciencia; na apreciação do facto accidental
transpareceria o conflicto, porventura insoluvel, da religião da honra e
da religião de Deus. Mas o que, com certeza, se sumia e dissipava era o
ultimo vestigio de sentimentos de orgulho.

No fundo, não poderia tel-os quem se sentiu presa de arrependimentos
porque expontaneamente reconheceu, desconfiando de haver caido em
erro, «não ser dos menos sujeitos a ceder ás vezes aos impulsos da
vivacidade»[89]. Em ultima analyse, bem ponderados todos os
elementos que entravam na sua constituição moral e de que elle nos
deixou bastas indicações, Alexandre Herculano não seria orgulhoso nem
humilde. Quem tão singela e modestamente confessava gratidão e, pelo
facto, se mostrava commum mortal, fraco e sujeito á bondade do auxilio
estranho; quem, longe de alardear independencias mentirosas e estultas a
que a comprehensão do proprio valor o poderia sem estranheza tentar,
declarava dever á intelligente previdencia de um rei a situação isenta
de encargos pesados que lhe permittiu dedicar-se por completo ao aturado
trabalho da composição da historia e haver emprehendido o estudo da
_Historia de Portugal_ para educação do principe, pagando ao filho a
divida que contraira com o pae e tributando em troca do pão e do socego
que lhe concederam a fortuna immensa de talentos assombrosos: quem
pretendia collocar-se n'esse terreno chão da fraqueza e do affecto
vulgar, não seria nem orgulhoso nem humilde, seria apenas um justo,
pedindo justiça para si pelos impulsos da mesma rectidão em que aos
estranhos procurava fazel-a, tendo reclamado o seu logar entre os
da sua graduação moral, sem ignorancia ou preterição dos que por
qualquer titulo lhe estavam acima, e muito menos sem desprezo dos que
lhe ficavam inferiores, sem prescindir dos direitos que possuia e sem
regateiar as obrigações que lhe cabiam ou occultar fraquezas a que se
reputava exposto. Julgaram-no orgulhoso, porque alliando a força á
justiça, uma virilidade intemerata a um sentimento indefectivel do
dever, abominando a impostura, a hypocrisia, toda a ostentação de falsa
modestia, não cedendo a incentivos do proprio capricho, se é que por
elle passaram, affrontando valoroso toda a contingencia, disse de si e
dos outros com uma energia superior toda a verdade. É singular até que
seja quasi estranha ao caracter de Alexandre Herculano a melancolia,
esse suave desfallecimento e queixume proximos da voluptuosidade na
mágoa; no seu peito sómente responderiam á dôr a tristeza, os soluços
ingentes e as lagrimas abundantes e francas de vencidos. A magnitude da
reacção, o grito de mortificação denunciava a valentia do opprimido, as
contracções gigantescas em que se debatia antes de succumbir, e nunca a
morbida debilidade de quem se allivia renunciando ao seu querer e
entregando-se ás fluctuações do destino.

A robustez inviolavel no combate, na crença e no soffrimento
consentiu-lhe a sinceridade e a largueza na ternura. Sómente os
verdadeiramente fortes a possuem. Demanda profundezas taes de
desprendimento, tão larga vibração de sympathia, que só a confiança de
uma perfeita fortaleza intima as admitte. A bondade e o affecto
vulgares, justamente porque são fracos, não ousam sujeitar-se a perdas,
guardam sempre com avareza, em toda a expansão carinhosa, certa reserva
de um egoismo que nem por instantes descura os seus pequeninos
interesses. Mas Alexandre Herculano, porque era forte, pôde ser terno
sem pusillanimidades de uma acanhada prudencia. Podia amar esquecendo-se
por completo no amor; instinctos vigorosos o afoitavam, assegurando-lhe
que em toda a abdicação o seu ser se enriquecia em vez de alienar e
depauperar-se. As suas relações com D. Pedro V e as cartas intimas á
esposa, das quaes com muita razão se tornou famosa a que vem publicada
no _Estudo Critico-Historico de Alexandre Herculano_, de D. Antonio
Sánchez Moguel, lido na Real Academia de Historia de Madrid, são
testemunho eloquente de como o amor sublimado d'aquelle inspirado
apostolo baixou intacto e perfeito das regiões em que é um poder divino,
universal e soberano, para o conforto do lar e para o respeito e
dedicação de homem a homem, em que se torna doçura, encanto e lenitivo
da vida mortal dos miseros seres ephemeros onde habita a consciencia
eterna. Esse homem, que não podia ignorar a sua estatura herculea porque
as rudezas das batalhas e dos trabalhos lh'a punham em prova e em
evidencia aos olhos dos estranhos e aos proprios olhos, não temia
aviltar-se, ou sequer amesquinhar-se, publicando que o rei, um moço,
começava a exercer sobre elle «aquella especie de absolutismo moral que,
provavelmente, aos trinta annos havia de exercer, se vivesse, no geral
dos animos»; não tinha pejo nem admittia desdouro em se confessar
vencido pela vontade e pelo entendimento alheio, satellite do prestigio
d'aquelle deante do qual, pela edade e pela experiencia, ainda que por
mais não fosse, poderia sem offensa allegar superioridade. E, ao mesmo
tempo, as mãos que votou ao trabalho da terra e n'elle endurecera, para
as purificar e avigorar n'aquelle salutar mestér e sacerdocio, guardavam
doce flexibilidade de ternura, capaz de proteger e amaciar o ninho em
que abrigava a companheira e de a amar com carinho, interessado e
collaborando de continuo nas suas fainas, indulgente para os seus
appetites e sollicito em lhe alliviar enfermidades.

Da grandeza stoica reservou para si sómente a força de supportar
contrariedades e dôres, remindo-se das suas feridas pela propria
energia. Mas o que de frieza, impassibilidade e orgulhoso isolamento e
desprendimento houvesse n'aquella doutrina, isso dissipou-o, apagou-o no
fogo das emoções affectivas, na expansão ingenita de sympathia o de
dedicação, nos apetites e doçura de aturado commercio com os homens.
Val-de-Lobos consolou-o de muita amargura; collocou-o a salvo do
desgosto de muita vilania, a distancia sufficiente para lhe não sentir
continuadamente as picaduras irritantes; libertou-o na contemplação e
beatitude dos mundos da infinita ingenuidade. Mas não foi sem lhe fazer
pagar seu preço, sem lhe impôr enfados da soledade, vaga saudade. Alguma
cousa alli lho faltaria que a rigidez estoica não podia supprir. O
stoicismo, quando traduzido na existencia concreta, tinha suas
tyrannias. A Val-de-Lobos não chegava o tumulto da cidade, o rumor das
suas infamias, das suas dissipações e das suas depravadas demencias; mas
calava-se tambem, no affastamento dos homens, o murmurio de amizades,
aspirações e crenças, que todo o coração amoravel escuta e repete,
distinguindo-o no meio de pragas e discordias, alimentando-o e
alimentando-se por esse pulsar de harmonia que incessantemente
funde a sua vida na vida estranha. Sequioso d'esses filtros d'amor,
d'esse sustento que fôra a paixão de toda a sua existencia, para dar e
receber o qual combatera, estudára e se exaltára em esperanças, em
combates, e em fadigas de apostolado e na febre das creações do genio,
não lhe supportou sem lamentos a privação, quando os muros da voluntaria
clausura em que se encerrára o impediram de o possuir em abundancia, de
todo lh'o roubando até durante longas horas. Na _Advertencia_ que
precede o primeiro volume dos _Opusculos_, explicando porque começara a
ajuntar os retalhos dispersos do seu passado intellectual, Alexandre
Herculano, com a habitual e irreprimivel senceridade de todos os seus
passos, não nos occulta como e quando o ermo lhe fôra tambem pesado. Nem
só o espectaculo e a vozeria infernal dos odios e atropelos das cobiças
da multidão importavam magoas. Outras se encontravam na sua ausencia,
ainda que inspirada por uma sagrada repulsão. Eram differentes de
caracter mas identicas na essencia: ou um rumor de sympathia nos falte
em absoluto e o substitua um frigido silencio, ou o nosso coração sinta
e chore a divergencia e opposição entre os seus anceios e os impulsos
alheios, em qualquer caso deplora a separação dos homens, o
apartamento moral ou physico dos nossos irmãos, e suspira pela sua
proximidade.

Procurando allivio a semelhantes males, proprios da ternura do seu
temperamento e caraterisando-o fundamente n'esse ponto, para lhes
moderar os effeitos começou Alexandre Herculano a colligir e ordenar nos
ultimos annos da vida os seus escriptos dispersos. «Para o velho que
vive na granja, na quinta, no casal, como que perdidos por entre as
collinas e serras do nosso anfractuoso paiz, ha na existencia uma
condição que todos os annos lhe prostra o animo por alguns mezes, doença
moral, mancha negra da vida rustica, facil de evitar nas cidades. É o
tedio das longas noites de inverno; das horas estereis em que o peso do
silencio e da soledade cai com duplicada força sobre o espirito. Para o
velho do ermo, n'esses intervallos da vida exterior, a corrente
impetuosa do tempo parece chegar de subito a pégo dormente e espraiar-se
pela sua superficie. A leitura raramente o acaricia, porque os livros
novos são raros. A decima visão da mesma ideia, vestida do seu decimo
trajo, repelle-o, não o distráe. As convicções ardentes, as alegrias das
illuminações subitas, as coleras e indignações que inspiram e que, na
mocidade e nos annos viris, enchem a cella do estudo de
turbulencias interiores, de arrebatamentos indomaveis, de debates
inaudiveis, de lagrimas não sentidas, de amargo sorrir, cousas são que
se desvaneceram. Matou-as o gear do inverno da existencia... para o
velho não ha a febre da alma que devora o tempo... É verdade que a
natureza compensa o esmorecer e passar do vigor e da actividade
intellectual com a propria somnolencia do espirito, voluptuosidade da
velhice, ameno e dourado pôr do sol, que se refrange no espectro da
sepultura já visinha e o illumina suavemente. Mas o dormitar do
entendimento, para ser deleitoso enleio, exige o movimento externo e as
singelas occupações e cuidados da vida campestre. Sem isso, e é isso que
falta muitas vezes nas interminaveis noites de inverno, a inercia da
intelligencia, que vagueia no indefinito sem o norte da realidade,
vae-se convertendo pouco a pouco em intoleravel tormento; tormento no
qual ha, por fim, o que quer que seja da cellula circular e
esmeradamente branqueiada, onde o grande criminoso é entregue, sósinho,
á eumenide da propria consciencia. N'esta extremidade, por mais
somnolenta e obscurecida que esteja a mente, por mais que ella ame o
repouso, o trabalho do espirito, ainda o mais arido, é preferivel,
cem vezes preferivel, ao fluctuar indeciso no vacuo»[90].

O stoicismo bastaria para infundir na alma de Alexandre Herculano uma
robustez inviolavel; mas não teria sido sufficiente para lhe facultar um
contentamento indefectivel e povoar de alegria a soledade. É que o
stoico commungára do amor de Christo, e esse annuncia desgraça a quem se
encontrar sósinho. Mandava-lhe amar a Deus sobre todas as cousas, e esse
bem o encontrava no ermo; mandava-lhe porém simultaneamente amar o
proximo como a elle mesmo se amava, e esse preceito não dispensava a
presença constante dos homens, desvairados ou santos que elles fossem,
para lhes minorar a desgraça ou para lhes seguir o exemplo, em todo o
caso para correr seu destino e o partilhar. O stoico pôde fortalecer o
seu adepto com uma disciplina mas não pôde supprir o alento humano que
anima o christão, esse anceio de dar e receber constantemente que é a
sua razão de ser. Por isso, sentindo que lhe faltava, corria a juntar-se
em espirito aos homens e a partilhar das suas preoccupações quem pela
pressão cruel de sua sorte fôra pessoalmente lançado fóra dos turbilhões
do mundo.

Sem duvida, pela firmeza de animo e mais pelo exemplo do que por
qualquer tentativa de systematisação philosophica ou defeza intencional
de doutrina, a vida de Alexandre Herculano abunda na conformidade com os
preceitos do stoicismo. Em grande extensão, poderia Seneca descobrir
n'elle um discipulo. Acceitou-lhe leis fundamentaes. Confiou na virtude,
teve-a «pelo maior dos bens»; «n'ella se alegrou e desprezou os
accidentes da fortuna». Attingiu a «invulneravel grandeza de espirito
que não se eleva nem abate com a boa ou má sorte». Sentiu que «em todo o
homem bom habita um deus», um espirito sagrado, indicador e guarda do
que é bem e do que é mal, «um ser divino e razão que reside no mundo e
em todas as suas partes». Pela temperança, pela paciencia, pela coragem
e pelo culto vigilante da integridade do caracter moral, saccudindo
todas as servidões, e sobretudo as servidões dos sentidos, da cobiça, do
luxo e da avareza, dominando as paixões e submettendo-se puramente aos
mandados da razão, ensinou-nos eloquentemente como se enriquece «não
augmentando os bens mas diminuindo as necessidades». Mostrou-nos assim
como a virtude é accessivel a todos e até como a adversidade se converte
em benção, porque «conheceu a sua propria força e valor pondo em
prova a virtude», quando a desgraça lhe bateu á porta.

Mas esse stoicismo que podia ser e foi alicerce de fortaleza, não tinha
o calor bastante para fóco de irradiação, para inundar de luz e conforto
a alma estranha. E inflamou-o então no evangelho de Christo, ungindo-o
de piedade e por ella o convertendo á humildade, supplicando dos céus
para os outros a indulgencia e auxilio que por intangivel capacidade de
soffrer não carecia de pedir para si.

Abrangendo d'este modo todos os gráus da dignidade humana, da acção á
contemplação, da firmeza á caridade, do humano ao divino, do heroismo á
santidade, Alexandre Herculano a todos honrou igualmente,
engrandecendo-se e legando-nos um exemplo unico e supremo na historia do
povo portuguez.


    [1] Alexandre Herculano, _Poesias_. Lisboa, 1860, pag. 165.

    [2] _Poesias_, pag. 172.

    [3] _Poesias_, pag. 178.

    [4] _Poesias_, pag. 182.

    [5] _Poesias_, pag. 182.

    [6] _Poesias_, pag. 56.

    [7] _Poesias_, pag. 208.

    [8] _Poesias_, pag. 169.

    [9] Emerson, _Essays_ (Grant Richards, London, 1902). Pag. 199.

    [10] Oliveira Martins, _Portugal contemporaneo_. Lisboa, 1881, tom.
    II, pag. 305.

    [11] _Eurico_, 5.ª edição. Lisboa, 1864, pag. 10.

    [12] _Eurico_, pag. 15.

    [13] _Eurico_, pag. 19.

    [14] _Eurico_, pag. 22.

    [15] _Eurico_, pag. 30.

    [16] _Poesias_, pag. 57.

    [17] _Poesias_, pag. 51.

    [18]

        «E eu comparei o solitario obscuro
        Ao inquieto filho das cidades:
        Comparei o deserto silencioso
        Ao perpetuo ruido que sussurra
        Pelos palacios do abastado e nobre,
        Pelos paços dos reis; e condoí-me
        Do cortesão soberbo que só cura
        De honras, haveres, glorias que se compram
        Com maldições e perennal remorso.»
        «Oh cidade, cidade que trasbordas
        De vicios, de paixões e de amarguras!
        .........................................
        Soberba prostituta alardeiando
        Os theatros, e os paços e o ruido
        Das carroças dos nobres recamadas
        De ouro e prata, e os prazeres de uma vida
        Tempestuosa e o tropeiar continuo
        De fervidos ginetes que alevantam
        O pó e o lodo cortezão das praças
        .........................................
        Braqueado sepulcro, que misturas
        A opulencia, a miseria, a dôr e o goso
        Honra e infamia, pudor e impudecicia
        ......................................... »
                          _Poesias_, pag. 52, 53 e 54.

    [19]

        «Bello ermo! Eu hei de amar-te emquanto esta alma
        Aspirando o futuro além da vida
        E um halito dos céus, gemer atada
        Á columna do exilio, a que se chama
        Em lingua vil e mentirosa o mundo.
        Eu hei de amar-te, oh valle, como um filho
        Dos sonhos meus. A imagem do deserto
        Guardal-a-ei no coração, bem junto
        Com minha fé, meu unico thesouro.»
                   _Poesias_, pag. 50 e 51.

    [20] _Poesias_, pag. 112.

    [21] _Poesias_, pag. 27.

    [22] _Poesias_, pag. 20.

    [23] _Poesias_, pag. 4.

    [24] _Poesias_, pag. 31.

    [25] _Poesias_, pag. 61.

    [26] _Poesias_, pag. 49.

    [27] _Poesias_, pag. 81, 85 e 86.

    [28] _Poesias_, pag. 89 e seg.

    [29] _A Tempestade_, é o titulo, bem caracteristico, da poesia em
    que o exprimiu.

    [30] _Poesias_, pag. 92 e 93.

    [31] _Poesias_, pag. 111.

    [32] _Monge de Cistér_, tom. I, pag. VII, (Lisboa, 1859).

    [33] _Monge de Cistér_, tom. I, pag. III.

    [34] _Monge de Cistér_, tom. I, pag. VIII.

    [35] _Monge de Cistér_, tom. I, pag. XI.

    [36] _Opusculos_, tom. V, 3.ª ed., pag. 294.

    [37] _Opusculos_, tom. IX, pag. 278.

    [38] _Opusculos_, tom. III, 2.ª edição, pag. 70.

    [39] _Monge de Cistér_, tom. II, pag. 376.

    [40] _O Bobo_, pag. 31 e 14.

    [41] _Monge de Cistér_, tom. I, pag. XII.

    [42] _Monge de Cistér_, tom. I, pag. IX a XII.

    [43] _Historia de Portugal_, 3.ª ed., tom. II, pag. 93 e 94.

    [44] _Historia de Portugal_, tom. II, pag. 137 e 138.

    [45] _Monge de Cistér_, tom. I, pag. 61.

    [46] George Bernard Shaw.

    [47] _Opusculos_, tom. III, pag. 65 e 66, 2.ª edição.

    [48] _Opusculos_, tom. II, pag. 217 e seg., 2.ª edição, Lisboa,
    1880.

    [49] _Monge de Cistér_, tom. I, pag. 73 e 76.

    [50] Vid. o prologo da _Historia da Origem e do Estabelecimento da
    Inquisição em Portugal_.

    [51] _Monge de Cistér_, tom. I, pag. 262.

    [52] _Monge de Cistér_, tom. I, pag. 243.

    [53] _Monge de Cistér_, tom. I, pag. 219.

    [54] _Monge de Cistér_, tom. I, pag. 227.

    [55] _Monge de Cistér_, tom. II, pag. 70.

    [56] _Monge de Cistér_, tom. II, pag. 152.

    [57] _Monge de Cistér_, tom. II, pag. 137.

    [58] _Monge de Cistér_, tom. II, pag. 78.

    [59] _Historia de Portugal_, tom. III, pag. 223 e seg., 8.ª edição.

    [60] _Opusculos_, tom. II, _Mousinho da Silveira_.

    [61] _Opusculos_, tom. III, pag. 111.

    [62] _Opusculos_, tom. III, pag. 113 e seg.

    [63] _Opusculos_, tom. III, pag. 121 e 122.

    [64] _Reporter_, n.º 178, 28 de junho de 1888. Cartas de Alexandre
    Herculano a Oliveira Martins.

    [65] Stuart Mill viveu de 1806 a 1873, antecedendo portanto
    Alexandre Herculano quatro annos no nascimento e na morte.

    [66] _Mes Mémoires._ Trad. fr.; Paris, 1874. Pag. 221 e seg.

    [67] Alexandre Herculano. _Opusculos_, tom. I, pag. XV. 4.ª edição.
    Lisboa, 1897.

    [68] Vid. _Poesias_.

    [69] É singular e significativa certa frieza que transparece no
    elogio, quando José Estevão apreciou a pouca fortuna de Alexandre
    Herculano no parlamento. Dizia o tribuno na _Revolução de Setembro_,
    em um pequeno artigo que o meu erudito conterraneo Sr. Marques Gomes
    transcreve no seu _José Estevão, Apontamentos para a sua
    Biographia_:

    «Coube a palavra ao Sr. Alexandre Herculano, litterato conhecido e
    deputado debutante. O discurso d'este senhor foi modelo em dicção,
    mesquinho na intenção e falho nos meios. Este senhor deputado,
    tendo-se declarado opposicionista, não proferiu uma palavra de
    censura contra o ministerio, e querendo inculpar as administrações
    da Revolução mostrou que nem sempre os bons desejos supprem a
    escassez de recursos. O senhor deputado é um talento, e póde vir a
    ser um bom orador applicando os encantos da sua dicção aos termos
    logicos das questões.»

    Ora José Estevão era de uma generosidade e largueza d'animo com os
    adversarios verdadeira e superiormente nobre. Se escreveu com
    semelhante leveza de Alexandre Herculano foi porque em consciencia a
    tinha por merecida, e nunca por qualquer sombra de mesquinhez
    partidaria ou pessoal, de que de todo e sempre se achou isento. E
    desconheceu-o, ou melhor, talvez o conhecesse mal n'aquelle tempo,
    porque a diversidade de temperamento tornava embaraçosa e lenta a
    mutua comprehensão dos caracteres, que de resto veio a mostrar-se. É
    sabido como esses dois homens acabaram por se estimar profundamente,
    como o exigia a conformidade da grandeza moral de um e outro.

    [70] _Monge de Cistér_, tom. II, pag. 57 e seg.

    [71] Ernest Howard Crosby.

    [72] _Opusculos_, tom. II, 2.ª edição, pag. 141 e 142.

    [73] A carta em que propunha a Bertrand a edição da _Historia de
    Portugal_ é sobre esse ponto sufficientemente elucidativa.
    Encontram-se publicadas pelo Sr. Dr. José Pessanha as suas passagens
    principaes, no _Boletim da Real Associação dos Archeologos
    Portuguezes_, em o numero especial com que recentemente aquella
    aggremiação commemorou o centenario de Alexandre Herculano. Todas as
    condições commerciaes da empreza confiava á experiencia e probidade
    do editor; nem sequer se importava de as determinar; e gracejava da
    propria incapacidade para semelhante ajuste e para materias do
    negocio em geral.

    [74] _Monge de Cistér_, tom. I, pag. 122.

    [75] _Monge de Cistér_, tom. II, pag. 9.

    [76] _Monge de Cistér_, tom. II, pag. 170.

    [77] _Monge de Cistér_, tom. II, pag. 331.

    [78] _Monge de Cistér_, tom. II, pag. 246 e 247.

    [79] _Opusculos_, tom. IV, 2.ª edição, pag. 102.

    [80] _Monge de Cistér_, tom. XI, pag. 377.

    [81] _Historia de Portugal_, tom. IV, pag. 5 e 6.

    [82] _O Bobo_, pag. 261.

    [83] Graças ainda á generosidade do Sr. Marques Gomes, foi-me
    possivel lêr a representação das pessoas d'Aveiro pedindo ao governo
    que a Alexandre Herculano se facultassem todos os meios de continuar
    a _Historia de Portugal_. A representação está publicada no _Campeão
    do Vouga_, n.º 536, de 16 de julho de 1857. Conheci a maior parte
    dos homens que a assignaram. São tudo o que em Aveiro havia de
    superior pela intelligencia e situação social; e encontro alli, a
    par dos liberaes mais exaltados, os nomes de catholicos severos e
    intransigentes, legitimistas ferrenhos, cabralistas, padres e
    seculares de todas as classes.

    Diz-me mais o Sr. Marques Gomes que a representação foi promovida
    por José Estevão, o que de resto logo suspeitei porque não falta
    alli a assignatura de nem um só dos amigos mais dedicados do
    tribuno, dos que cegamente o seguiam. Mas, se duvidas houvesse a tal
    respeito, estavam tiradas em a nota que o Sr. Marques Gomes
    encontrou nos apontamentos de seu pae, o dr. Francisco Thomé Marques
    Gomes. Este apontou o dia em que assignou a representação, e
    accrescenta que o fez a pedido de José Estevão.

    [84] Vid. toda a _Prefação_ da 3.ª edição da _Historia de Portugal_.

    [85] _O Bobo_, pag. 89 e 92.

    [86] _O Bobo_, pag. 254.

    [87] _Opusculos_, tom. III, pag. 30 a 32 da 2.ª ed.

    [88] _Opusculos_, tom. III, pag. 83 e 84 da 2.ª ed.

    [89] _Opusculos_, tom. III, pag. 63.

    [90] _Opusculos_, tom. I, pag. IX a XII da 4.ª ed.



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                                                Pag.

    PROLOGO                                     VII
    _Fascinação do Ermo_                          1
    O poeta e a solidão                           3
    Paganismo                                    15
    Caracter religioso                           17
    Pessimismo                                   19
    _Apparições e Espectros_                     27
    A patria e a tradição                        28
    O romance historico                          32
    O historiador                                44
    Sentimento da justiça                        54
    A liberdade e a historia                     57
    Tolerancia religiosa                         60
    Espectros do despotismo                      63
    O povo                                       70
    A burguezia                                  72
    As liberdades municipaes                     74
    Resgate das servidões                        82
    Concepção da grandeza do povo                84
    A gloria                                     86
    O jurisconsulto                              91
    O socialismo e a historia                    94
    _Escudos de Fortaleza_                      111
    Religião                                    112
    Alexandre Herculano e José Estevão          114
    Christianismo                               119
    Symbolismo religioso                        122
    Caracter ethnico                            129
    Liberdade                                   130
    O moralista                                 139
    Sinceridade                                 149
    Humorismo                                   158
    O apostolo                                  162
    Orgulho                                     165
    Humildade                                   168
    Sympathia e ternura                         172
    O stoicismo de Alexandre Herculano          179



DO MESMO AUCTOR

    _Vozes do meu lar_, 1 vol.
    _Na Paz do Senhor_, romance, 1 vol.
    _Reino da Saudade_, romance, 1 vol.
    _Via Redemptora_, 1 vol.
    _Apostolos da Terra_, 1 vol.
    _Sonho de Perfeição_, romance, 1 vol.
    _S. Francisco d'Assis_, 1 vol.
    _José Estevão_, 1 vol.
    _S. Francisco d'Assis_, 1 vol.
    _José Estevão_, 1 vol.





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