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Title: Sermão contra o Filosofismo do Seculo XIX
Author: Macedo, José Agostinho de, 1761-1831
Language: Portuguese
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*** Start of this LibraryBlog Digital Book "Sermão contra o Filosofismo do Seculo XIX" ***


                                 SERMÃO

                          CONTRA O FILOSOFISMO

                                   DO

                              SECULO XIX.º,

                                PRÉGADO

                                   NA

                    IGREJA DE S. JULIÃO DE LISBOA

         NA QUINTA DOMINGA DE QUARESMA DO ANNO DE M. DCCC. XI.

                                  POR

                       JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO,

             _Prégador do Principe Regente Nosso Senhor._



                                 LISBOA,
                           NA IMPRESSÃO REGIA.
                                  1811.
                              _Com licença._

                      *      *      *      *      *

    _Vende-se na loja de Desiderio Marques Leão, ao Calhariz, N. 12._



ADVERTENCIA.


Não he muito proprio de hum Sermão hum Prologo, mas os ataques
reiterados dos meus gratuitos inimigos me tem obrigado a prevenir o
Publico em qualquer composição minha, ainda que seja de puro
divertimento, e he muito mais indispensavel huma preliminar advertencia
em composição tão séria como he este Sermão, no qual faço triunfar a
Religião dos ataques do moderno Filosofismo. E para compôr este
Discurso, seria licito ler alguma coiza! Parece que sim, e que sem hum
profundo conhecimento dos escritos dos Apologistas da Religião Christã
não poderia nem levantar a fiança do presente edificio. Certos
estouvados se atrevêrão a lançar-me em rosto, que roubava Antonio Vieira
para compor meus Sermões. Ora pois abatamos este importuno Fantasma de
Vieira, e rebatamos esta livre calumnia, e dita por quem nem leo Vieira,
e só ouvio dizer que Raynal fallára de hum Sermão deste Jesuita pelo bom
successo de nossas armas contra as de Hollanda. Saibão pois que eu, que
componho hum Sermão como o presente, não necessito de Vieira, que não
tem hum só discurso, onde se ache huma instrucção christã, e que o
desprezei com todo o meu coração depois que li o principio de hum Sermão
de Mandato prégado na Capella Real no anno de 1655, e neste principio
estas escandalosas palavras==Tomo 4. pag. 358. § 379. col. 2. regra 4.:
_Este cavallo branco he a sagrada Humanidade de Christo._==Nunca mais
o detestavel Vieira.

Ora como até nos doirados domicilios da crapula, e ociosidade, onde a
libertinagem ousa levantar a voz contra a Religião, torpissimos
ignorantes fallão de Sermões, e dos meus Sermões, saibão estes Gazetaes
eruditos, que para compôr este gravissimo Discurso eu li, e estudei.

   1. S. Gregorio Nazianzeno, _Orat. cont. Jul._
   2. S. Fulgencio, _De Fide ad Pet._
   3. S. Cyrillo, _Cath. cont. Juli._
   4. O Cardeal Gerdil, _Impug. do Emilio._
      O mesmo, _Introducção ao estudo da Religião._
   5. Mazoti, _Discursos contra a cred._, T. 2.
   6. Vascelchi, _Provas do Christ._
   7. Roberti sobre a leitura dos Liv. de _Methafysica_.
      O mesmo, _Impugnação do Livro La Predication_.

Não posso ser mais ingenuo: estas são as fontes: o Discurso he meu, as
provas dos santissimos, e doctissimos Mestres do Christianismo.



SERMÃO
CONTRA O FILOSOFISMO
DO SECULO XIX.

    _In malevolam animam non intraibit Sapientia._

                                      Sap. Cap. I.


Não ha, nem póde haver coiza mais aborrecivel, e mais detestavel aos
olhos da boa razão, que a entonada soberba de hum malevolo ignorante. O
homem sisudo não póde olhar sem indignação para essa interminavel
cohorte dos que neste seculo se dizem livres pensadores, quando
contempla o soberbo, e ultrajante gesto, ou amargo surrizo com que
elles olhão para o homem de bem, que fiel a seus principios, e
consequente em sua crença, e conducta, respeita sua Religião, e a
reconhece divina em sua fonte, e sua origem. Deste rizo, e deste
soberbissimo signal de huma ultrajante compaixão, quantas vezes tenho eu
sido testemunha, e tambem objecto no meio desta Capital! Eu julgava que
apenas aconteceria isto no meio das praças da nova, e mais prostituida
Babylonia, mas eu o vi realizado tambem em Lisboa. Se o medo, e o terror
de hum justo castigo continha, e exteriormente refreava estes estólidos
motejadores no centro de hum Governo Catholico, e vigilante, elles
deixárão cahir de todo a máscara, e mostrárão sem pejo a impudentissima
face em quanto sentimos o ferreo jugo do cáos revolucionario, que nos
invadio, e tyrannizou por nove continuos mezes. Então, então esses
malevolos academicos do segredo, e das visagens, imaginando,
vertiginosos e illusos, que havião levantado, e firmado o estandarte
de sua nem realizada, nem possivel liberdade, insultárão os verdadeiros
fieis, e os taxárão de fraqueza, e pusillanimidade, e os titulos menos
affrontosos que lhes davão, erão os de fanáticos, crédulos, e
supersticiosos. E quem serião estes miseraveis entusiastas? Por ventura
alguns Celsos, Jamblicos, ou Profirios doctos, e profundos Filosofos
successores em Athenas, e Alexandria daquelles famosissimos oraculos do
Epicurcismo, e Platonismo? Algum daquelles que apoiados com a
incredulidade, e poder de hum Imperante como Julianno pertenderão com
seus escriptos, e doctrina solapar os alicerces do nascente
Christianismo? Seria honrar, e desvanecer excessivamenre estes átomos de
sabedoria, se eu os comparasse a tão formidaveis, e terriveis talentos
da antiguidade. São verdadeiramente huns átomos, e perdidos no espaço
immenso dos malévolos; huns obscuros adeptos do Illuminismo cobertos
agora de hum ridiculo eterno com os contrarios effeitos daquellas a
que elles chamavão profundas theorias de moral, e de politica: esmagados
agora debaixo do pezo das vergonhosas derrotas do monstro em que
confiavão, e que por certo ignora sua existencia, e do qual não podião,
como a experiencia lhes diz, esperar mais que opprobrios, ferros,
escravidão, e morte. Huns famintos, mas vaidosos mendigos, que esperavão
entrar na divisão da preza dos sanguinarios Tigres, cuja avidade, e
cobiça insaciavel até se rouba a si mesma para se saborear no roubo, e
não haver intervallo neste seu natural exercicio: huns ociosos perennes,
que nesses asilos da embriaguez se asoalhão a si mesmos por fortissimos
espiritos, e não deixão a bocas alheias a trombeta de sua fama, e do
renome de seus relevantes, e sublimissimos engenhos, homens finalmente,
que sem mais estudo, sem mais Universidade, sem mais applicação, sem
mais livros que o Monitor, sem mais academias que as conferencias
das trévas nos subterraneos da crápula, e das enigmaticas, e symbolicas
ferramentas, ousão clamar, que nós os verdadeiros fieis, acreditando, e
respeitando nossos santos, e adoraveis dogmas, não fazemos de nossa
natural razão aquelle uso que podiamos, e que deviamos fazer. Que
dando-nos a Natureza olhos para ver, desgraçada, e voluntariamente nos
fazemos cégos; e que querendo ser humildes, e obsequiosos crentes, nos
tornamos pessimos raciocinadores, que a nossa crença faz resvalar a
dignidade do ente pensador para a classe do bruto, que deshonra a
humanidade, sepulta, ou estraga o mais precioso talento que nos déra o
Creador, que vergonhosamente nos classificamos abaixo dos animaes rudes,
acima de cuja esféra estavamos constituidos pelas faculdades
intellectuaes. Eis-aqui o que eu mesmo escutei, o que eu mesmo soffri; e
ouvindo discorrer tanto a estes livres pensadores, nunca pude arrancar
de suas eloquentissimas linguas a causa, e o motivo desta tão
filosofica accusação. Mas estas idéas ôccas expostas em sesquipedais
expressões, que parecem destiladas pelo vagaroso, e enfatico intervallo
que ha entre huma, e outra, e apoiadas com os estrondosos nomes de
Raynal, Voltaire, e Helvecio, e proferidas diante da juventude
inconsiderada, ociosa, e irreflexiva, obrigão a se formar de nós aquelle
conceito, que se forma de hum rebanho de animaes brutos, e estupidos que
se despenhão, e precipitão cégos por aquelles combros por onde vêm
arrojar-se o primeiro, ou por onde os chama o silvo de hum pastor, ou a
sombra de huma vara. Aquelles que assim nos tratão, e insultão são
acclamados, e tidos em conta de espiritos pensadores, amigos do bom
siso, e defensores da verdade, e até redemptores da oppressa razão, que
sabem magistralmente purgar-se a si, e aos outros de preoccupações
defendendo-os dos ataques da ignorancia, do fanatismo, e infantil
credulidade.

Não sei, Senhores, se podereis ter ouvido em paz, e sem se vos
desprender o fogo da ira, e da indignação, coizas tão vis, e tão
affrontosas; mas socegai, que talvez seja este o dia do triunfo mais
illustre da nossa Fé contra o Filosofismo do Seculo XIX. Eu vos amo,
prezo, e respeito tanto como a verdade, e discorrerei de maneira que
empenhe todas as forças da razão, e da eloquencia, e farei que tão
escandalosas vilanias se não digão mais, ou se não digão impunemente aos
verdadeiros fieis. Mas porque caminho dirigirei eu os passos do
entendimento a esta baliza? Os apologistas da Religião nada tem até
agora omittido: são conhecidos seus escriptos. Holland, e Valceschi
respondêrão a Mirabaud, Bergier a Freret, Abbadie, e Hautevile a
Wolaston. A Celso respondeo Origenes, a Juliano S. Cyrillo, a Profirio o
maior de todos os Oradores, Nazianzeno: eu responderei a todos. Os
modernos Incredulos não são mais que serviz, e miseraveis éccos destes
antigos sofistas: e crêde que tem mais pezo, e força hum fragmento de
Profirio, ou de Celso, que toda a supposta, formidavel artilharia
encyclopedista: e hum Occelo, e hum Timeo mais que o confusissimo
systema da Natureza. Estando pois todas as varedas batidas, e todos os
meios empregados, eu não posso dizer-vos que seguirei hum caminho novo,
seguirei o mais plano, obvio, e descoberto, e que possa ser pizado até
pelos entendimentos menos agudos, e penetrantes sem o afan de profundas
especulações. Eu confrontarei o uso ou emprego da razão natural, que
fazem os verdadeiros fieis com o uso, e emprego, que da mesma razão
fazem os incredulos. Constituirei de huma parte estes estrondosissimos
panegyristas, e redemptores da razão, que segundo elles dizem, e
assoalhão, lhes serve para ver, e conhecer todas as coizas sem ter
necessidade da Fé, e que desprezão, ou regeitão magistralmente tudo o
que ou não comprehendem, ou não vêm com a mesma razão. D'outra parte
constituirei os verdadeiros crentes os mais rendidos, e sugeitos ás suas
decisões, e mais apartados do espirito de duvida: e comparando, ou
confrontando hum com outro partido, fazendo entrar em fechado campo os
humildes, e simplices crentes com os soberbissimos e eruditissimos
Sofistas como víra o vale de Therebintho de huma parte hum Gigante, e
d'outra parte num joven pastor, farei ver, e conhecer victoriosamente a
qual dos dois convenha o brazão e o timbre de fazer uso, e o melhor uso
das faculdades intellectuaes, qual dos dois honre, ou qual avilte a
razão, e a humanidade, e qual dos dois mereça a compaixão como enganado,
e obtuso, qual seja digno de louvor como atilado, e consequente.

Conheço, Senhores, que a vantagem está da nossa parte, e que se
tornará evidentissima com o meu Discurso, e tambem conheço que assim
como os mysteriosos das vizagens, e dos signaes da esquadria se obstinão
em planos de profunda tactica e politica sublime para igualizar,
republicanizar, domocratizar, e fraternizar o Mundo depois que elles
mesmos, e não outros, o encadeárão aos pés do monstruoso despotismo de
hum obscuro aventureiro, sem que se envergonhem nem do mesmo ridiculo de
que estão cobertos; tambem para se vingarem da verdade que lhes dér nos
olhos, se obstinarão ainda mais na impostura, e no engano. Se algum
destes miseraveis existe no meio deste immenso auditorio, e se tem
trazido para aqui o compasso para medir o que não entende, esperando
escutar as frazes do neologismo de seus ridiculos periodicos, eu lhe
peço, que se digne hum pouco de desfranzir as arqueadas filosoficas
sobrancelhas, e ouvir por hum instante hum Christão desapaixonadamente,
e desenganar-se-ha, que só no seio do Christianismo, e no regaço da
Fé se acha o Orador sublime, o Filosofo profundo, e o homem da razão, e
da verdade.



DISCURSO.


Dizem pois os mysteriosos censores, e não tem jámais deixado de o
repetir o mais insignificante folheto da escola tenebrosa, que nós os
Christãos nem fazemos, nem queremos fazer uso de nossa razão natural;
que quando se trata dos mysterios da Religião, accreditamos, e
emudecemos; que não damos conta aos outros homens dos motivos da nossa
fé; que conservamos como encadeadas as faculdades racionaes, e
intellectuaes sem entrarmos no conhecimento analytico destes mesmos
motivos. Tal he a primeira calumnia, que envolta em rebombantes
periodos, sahio do famoso Club de Holbac, e havia de muitos annos antes
apparecido no impio Livro _O Militar Filosofo_; tal he o primeiro
improperio que vem na vanguarda dos impugnadores, e refutadores
analyticos da verdade da Religião Christã. Tal he o principio
puerilmente rebatido até ao enjôo, em tantos livros de identica
substancia, de identica doctrina, e até de titulos identicos, e que já
desafião a irrisão do homem sisudo, vendo que aquellas cégas, e
tenebrosas Toupeiras não sabem mais que hum caminho subterraneo;
_Systema da Natureza_; _Filosofia da Natureza_; _A Natureza_; _Religião
da Natureza_; _Codigo da Natureza_; _Moral da Natureza_. Tal he o grande
achado com que se esmaltão os noventa e nove volumes do palavrosissimo
Sofista de Fresney. A estes malevolos oraculos, em que não cabe a
sabedoria, eu poderia já dizer as mesmas palavras que o Martyr Luciano
disse em Antiochia ao soberbo Proconsul: Sabe, que nós os Christãos
não nos dirigimos, e levamos como tu julgas por huma indisputada, e
paternal tradição como fazem os teus Filosofos. Deos he o Auctor da
nossa crença, e Deos nos falla de Deos. (Euseb. Hist. Eccl. Liv. 9. c.
6.) Isto poderia fazer emudecer os monstros, mas comecemos de mais longe.

Sabei, ou não o affecteis ignorar, que os primeiros annunciadores do
Evangelho, tiverão á frente dentro em Jerusalem os mesmos Hebreos
incredulos, e pertinacissimos, e que a estes mesmos Hebreos se disse, e
se provou, que o alimento da nova crença em o Christianismo era muito
racionavel. Sabei, ou não o affecteis ignorar, que o mesmo Apostolo, que
havia sido perseguidor, fallara ao Areopago de Athenas, e aos Filosofos
de Roma, e que dissera, que o obsequio, que nosso entendimenio fazia á
Fé, era muito racionavel. Por ventura o Areopago de Athenas,
celebradissimo por sua sabedoria, e prudencia, e as Academias da
douta Grecia, e soberbissima Roma erão ajuntamentos de gente escolhida,
ou capaz de se deixar embair de admiração pela doctrina de Paulo, e de
abraçar sem escrupuloso exame, e sem huma muito filosofica discussão os
elevadissimos mysterios, que elle lhe propunha? Que injustiça he esta
dos fataes encyclopedistas, e seus adeptos, cujas ramificações se
estendem tanto pelos domicilios da crápula, e politica desta Capital!
Porque alguns humildes idiotas, e medrosos dos astutos, e capciosos
sofismas emudecem aos altisonantes nomes de Pitaval, e Raynal, ou dizem
simplesmente que accreditão, fazer commum a todos, e até a mim, esta
linguagem, constituindo de seu plenissimo poder ao som de altas punhadas
nas marmoreas bancas huma enorme distancia, e huma irreconciliavel
inimizade entre o discorrer, e o accreditar! E se eu vos fizer ver, oh
malevolos, e incapazes da luz da verdadeira Filosofia, que nenhum dos
Filosofos antigos, e modernos fez tanto uso da natural razão em seus
principios, e opiniões, quanto faz em sua Religião hum verdadeiro
crente? E se pelo contrario eu vos mostrar com evidencia que não existe
hum individuo, que menos empregue a razão, ou que a empregue mais
despropositadamente que hum incredulo do estupido rebanho dos fortes
pensadores? Eu já poderia cortar de hum golpe a grande questão,
constituindo-vos diante dos olhos a pueril differença dos innovadores em
materias puramente Filosoficas, e perguntar-vos se he mais chegado á
razão o systema de Taliamed, ou o de Delisle sobre a formacão do
Universo, e producção das creaturas, se a cosmogonia de Moisés? Se he
mais conforme aos dictames da razão natural o systema de Buffon, que
pertende, que huma pancada dada por hum Cometa no corpo do Sol, das
lascas que saltárão se fizerão todos os globos que em torno delle girão
com tão compassados, e Regulares movimentos, se a creação do mesmo
Sol, e dos astros pela voz de hum Deos Omnipotente como nos declara
Moysés? Mas deixemos por agora esta confrontação de objectos
particulares para procedermos com methodo em materia de tanto momento, e
consequencia; e conheceremos quaes sejão os cégos, e os inconsequentes.

Eu me persuado que estes zelosissimos Apostolos da razão não são tão
encarniçados inimigos da crença Christã, que em odio da mesma crença
queirão abolir, e exterminar de todo a mesma fé humana; nem se poderia
entrar em argumento com estes filosofantes, se negassem este primeiro, e
evidente principio: e tambem me persuado, que se não póde imaginar num
homem nem mais irracionavel, nem mais infeliz do que aquelle, que
vivesse com o firme presuposto de não dar jámais credito a outro homem,
que falle, ou escreva, salvo se sua escritura, e suas palavras não forem
immediatamente apoiadas com o actual, e perenne testemunho dos
sentidos. E se he bom uso, segundo lhes oiço dizer, aquelle que se faz
da razão humana accreditando os homens que fallão, ou escrevem, julgo,
que não dirão, que he mao uso aquelle, que se faz da razão accreditando
a Deos. Eu creio, que este será chamado por elles mesmos o uso mais
perfeito, mais excellente que se possa fazer da faculdade racional, pois
vêm, que assim discorrêrão, e praticárão não os idiotas, e simplices
crentes, mas hum Newton, hum Locke, e hum Pascal. Sim, dizem os
mysteriosos, ou ridiculos iniciados, se esse Deos existe, e, se acaso
existindo, esse Deos fallou... Não se dêm tanta pressa, Senhores, eu sei
que até esses limites chega toda a sua subterranea, tenebrosa, e
escondida illuminação. Trataremos ainda destes dois grandes objectos,
por agora bastará ver, que se os pensadores fortes acreditão mais os
homens que Deos, e se nós acreditamos mais Deos, que os homens,
temos da nossa parte huma incomparavel vantagem, e igual áquella que
tem hum homem de bom siso sobre hum varrido mentecapto. Creio, que esta
duvida dos mysterioros umbriferos sobre a demonstrada existencia de
Deos, he huma especie de espantalho, que me tem querido pôr, pois o mais
superlativo Veneravel, e o do mais empinado cabeço do Libano, sabe muito
bem, que hum verdadeiro Atheismo depois de se haver sofisticado tanto,
ao menos para o estabelecer como provavel, em os dois confusos volumes
do inintelligivel Systema da Natureza, segundo a confissão até do mesmo
Vanini, e Spinosa, he hum verdadeiro delirio. He justo, que os Senhores
politicos tenebrosos procedão, e argumentem de boa fé, e que não sáião
de suas trincheiras, que são as do Deismo, e não as do Atheismo, e
presuposta a verdade que elles absolutamente se não atrevem a negar, que
existe hum Deos, cujas provas _a priori_ até agora não tentadas, eu
produzirei bem depressa em hum Tratado particular, para consolação
da razão humana; eu me não devo obrigar agora a outra demonstração mais,
que á demonstração de ter fallado aos homens. E quantas vezes, e de
quantas maneiras tem elle fallado destes dogmas, que nós accreditamos, e
desta Religião, que sós professamos? Por que meios tão maravilhosos, tão
estupendos não tem elle annunciado aos mortaes seus profundos mysterios,
as Leis, e os Decretos de sua immortal vontade? Fallou primeiro muitos
seculos antes pela lingua, e pela penna de alguns homens, que tão
exactamente annunciárão, e descrevêrão os futuros acontecimentos desta
Religião, e do seu Auctor, bem como os mais imparciaes, e fieis
Historiografos descrevem os factos presentes, ou á pouco acontecidos
debaixo de seus mesmos olhos: e estes futuros acontecimentos
pontualmente verificados, além de seres contingentes, erão destituidos,
(conforme a capacidade do entendimento humano) de toda a apparencia,
e probabilidade de se verificarem: oppostos a todos os raciocinios, a
todas as conjecturas humanas, a todo o systema dos tempos em que se
escrevêrão; e além disto repugnantes entre si, como são repugnantes, e
apparecem contradictorios em huma mesma personagem, em hum mesmo culto;
pobreza, e grandeza; exaltação, e ignominia; throno, e patibulo;
desterros, e conquistas; estragos, e multiplicação; perseguições, e
victorias. Fallou em segundo lugar, pela boca de seu mesmo Filho, pondo
por elle fim evidentissimamente á primeira alliança, e juntamente ao
Altar, ao Sacerdocio, e ao Principado de huma lei figurativa, e só
permanente antes da realidade: e dando principio nelle, e por elle á
nova alliança, conductora de verdadeiras bençãos a todas as Nações,
conforme os clarissimos vaticinios de todos os Profetas. Fallou com á
voz de huma grande parte do Mundo, que passou rapidissimamente do
culto idólatra, que era a Religião dominante, e quasi universal á crença
Christã; dos encantadores deleites á temperança Evangelica; das soberbas
riquezas á desprezivel pobreza; do ambicioso commando á humilde
sugeição, bastando doze homens simplices, e ignorados para fazerem esta
moral revolução por toda a parte do immenso Imperio Romano. Fallou com a
voz de huma grande multidão de homens literatos do Gentilismo, que
conhecendo, sentindo, e admirando a santidade desta Religião, e a
sublimidade destas doctrinas, julgárão huma rematada loucura sua antiga
sapiencia, e se tornárão como hum Justino, de Filosofos Pagãos em
Theologos, e Mestres do Christianismo. Fallou finalmente com o sangue de
hum numero portentoso de Martyres, cuja constancia acompanhada sempre de
hum silencioso, e pacifico soffrimento excede todas as forças da humana
natureza, nem cabe nos confins da humana Filosofia.

Agora eu vos pergunto, ó espiritos incredulos, ó mysteriosos pensadores,
grandes columnas dos Liceos centraes, e dos Printaneos universaes, ó
eruditos profundos em Monitor, e mais nada; ó estupidos sequazes do
Filosofismo Wandalico, e revolucionario, quem vos tem fallado, quem vos
tem feito pensar, e crêr cousas contrarias aos principios, e dictames
desta minha fé, na qual se observa, e se escuta manifestamente a palavra
de hum Deos, que fallou aos homens? Nós somos iguaes nisto só: _Eu
creio, vós accreditais_. Porém nós somos differentes nos motivos, nos
auctores, nos testemunhos, eu, da minha crença, vós da vossa
incredulidade, e futilissimas duvidas. Dizei-me pois, quem sejão
aquelles que vos tem fallado de viva voz, ou por escripura? Ah! vós vos
correis, e envergonhais de os nomear! Tambem eu me envergonho, e corro
de proferir seu nome, para que não julgue, ou se não persuada algum
idiota dos doirados crapulosos domicilios de Lisboa, que eu me digne
de instituir huma confrontação entre os vossos mestres de Fé, e os meus.
Seria fazer o mais injurioso parallelo nomear Freret, Boulanger,
Diderot, e d'Alembert, e depois os mais sublimes Profetas, e os Santos,
e doutissimos Mestres do Christianismo, ainda no seu berço, como hum
Origenes, hum Athanazio, hum Tertuliano, e hum sublimissimo Nazianzeno.
Direi sómente em geral, que estes Coriféos, Enciclopedistas, e Oraculos
do Filosofismo são crentes de propria invenção, e mestres de proprio
moto, trepados em pestilenciaes cadeiras, mestres sempre fluctuantes,
sempre incertos, sempre discordantes entre si, sempre contradictorios
comsigo mesmo como hum Jaques, que em huma pagina exalta o Evangelho
como huma producão divina, e logo n'outra pagina o deprime como num
parto da simplicidade, e do Fanatismo: mestres, que se da sua crença ou
de seus sofismaticos escritos dependesse o mais pequeno, e o mais
insignificante negocio domestico de seus discipulos, ou alguma de suas
terrenas vantagens, ou fico que a todos os de sua escola pareceria summa
imprudencia fazer-se incredulos sobre a sua honrada, e scientifica palavra.

Mas não he este o lugar para esta discussão, he tempo sim de confrontar
uso de razão com uso de razão, o uso que eu faço com o uso que vós
fazeis, ou vos considerei como discipulos, ou vos assoalheis como irmãos
terriveis, e veneraveis: e se esta disputa terminar em desvantagem
vossa, sereis obrigados a confessar racionavel a minha fé, depois que
tantas vezes a tendes escarnecido, e me tendes provocado, e até
reprehendido como rebelde ao bom sizo, como desprovido de razão, e até
ingrato á humanidade. E porque? Oição este porque os Povos mais
selvagens, e incultos da terra, e digão senão he nova até entre
elles tanta extravagancia, e tanta brutalidade! Porque a despeito de
hum arbitrario fabricador de systemas, de hum arguto, e sagaz
filosofante, de hum fantastico pensador, tenho dado credito, e o dou ao
Supremo Ser, á Suprema, e primeira verdade, que fallou em todos os
Seculos, que fallou em todas as lingoas, que fallou em sua propria
pessoa, ensinando-nos por si mesmo dogmas unidos, e ligados entre si com
hum laço maravilhoso, e, se nem todos são accessiveis ao entendimento
humano, são todos conformes aos dictames da recta, e natural razão.

O que acabo de dizer, que a minha fé, e a minha crença tem alguns
artigos que parecem inacessiveis ao entendimento, humano desabafa alguma
cousa meus implacaveis accusadores da consternação, e aperto em que os
lançou a primeira parte da indicada confrontação: porque, se he verdade,
dizem elles, como eu confesso, que a Religião tem alguns dogmas não
perceptiveis ao entendimento humano, eis-aqui porque eu Christão, a
respeito dos mysterios da Fé, sou obrigado a renunciar o lume da razão
natural: em quanto nós... Em quanto vós, oh! Pitavais, oh! Rainais! sois
obrigados a renunciar o lume da razão natural a respeito dos mysterios
da Natureza. Esta minha resposta assim vibrada, talvez seja pouco
sucosa, e muito restricta, he preciso que eu a exponha com mais
perspicuidade, e extensão.

Assim como he hum indispensavel dever do homem pensar segundo a razão
natural, tambem he hum dever indispensavel do mesmo homem conhecer os
confins, ou as balizas que a Natureza constituio a esta razão; e ainda
que exacta, e precisamente se não possão determinar quaes sejão estas
balizas, conhece-se com tudo que existem muito á quem das cousas
invesiveis, e imateriaes. E que conta se dá a si mesma esta tão
orgulhosa razão das cousas corporeas hum pouco superiores, ou
distantes dos nossos sentidos? Que conta se dá daquellas mesmas cousas
que temos entre as mãos, e que com o olho armado de lentes subtilissimas
examinamos todos os dias? Que razão nós damos do movimento de hum
insecto, da sobida de huma lavareda, da tendencia de huma pedra para o
centro da gravidade, da respiração de hum animal, do fenomeno regular do
fluxo, e do refluxo, da causa immediata do magnetismo, dos espantosos
effeitos da electricidade, das fases da lua, da marcha excentrica, e
irregular de hum Cometa, do movimento de hum Planeta, da sua acceleração
na razão inversa do quadrado da distancia ao centro da revolução? E quem
seria tão desasisado que em lugar de confessar limitada a sua razão,
negasse pertinazmente a existencia destes objectos porque os não
comprehende? Que conceito formariamos daquelle profundo pensador, que
porque os não entendia os julgasse, e reputasse a todos outras
tantas imaginações sem fundamento, ou outras tantas illusões da
fantazia, e dos sentidos? Não se dirá de hum menino, que tocasse apenas
o septimo anno de sua idade, que não usa da sua razão, e que injuria a
Natureza que lha communicou, porque senão levanta com o entendimento a
especular os mysterios, e a resolver os problemas da mais recondita
Filosofia? Dir-se-ha com verdade, que considerando a molleza de suas
fibras, e a immaturidade de seus orgãos, estes pensamentos altos, e
estas profundas especulações não são ainda para elle, e que muito faz,
attendida a sua idade, se se adianta hum pouco em o material
conhecimento das letras, e em huma superficial combinação das syllabas.
E se este menino por não poder penetrar, e conceber sciencias maiores
que estes seus primeiros rudimentos da leitura, negasse que existião
mais sciencias, e mais reconditos conhecimentos das causas, e dos
effeitos, todos se ririão, e lhe não darião o nome de louco em attenção
á sua muito tenra, e delicada idade. Direis que eu discorro com clareza,
mas he porque se trata de huma razão tenra, e noviça, mas que o
argumento não tem força onde se trata de huma razão perfeita, e chegada
á sua devida maturidade. Seja embora a razão madura, e perfeita,
dizei-me póde ella acaso transgredir seus naturaes limites? Póde acaso
deixar de ser razão anuviada do sentido material, e céga para todos os
objectos que não forem corporeos? E não são próvas desta verdade alguns
incredulos escarnecido por vós mesmos, por terem a affirmado como
Mirabaud, que nada mais existe em o Universo, que corpo, e materia: ou
por haverem affirmado que esta materia he Deos, que esta materia he a
Providencia, que esta materia he aquella immaterial substancia, Arbitro
supremo, e separado da Natureza, que eu, simples, temo, e adoro como
hum ser infinito, de ordem superior, e todo espiritual? Lembrai-vos, que
he identico o vosso caso, e o do tenro menino, que porque não tem
entendimento capaz de formar idéas mais sublimes, cuida que toda a
sciencia humana consista em saber contar hum pouco melhor, e em combinar
com mais facilidade algumas syllabas materiaes.

Torno outra vez ao campo com as empunhadas armas do parallelo, e vos
peço, que me digais se acaso seja honrar a humanidade, ou pizalla, e
desprezalla furiosamente depois de ter com mil provas conhecido a
limitada capacidade da razão, até no conhecimento, e analyse das cousas
sensiveis, que são de sua immediata jurisdicção, atrribuir-lhe tanto
dominio, e dar-lhe huma vista tão aguda, e penetrante, que nem das
cousas invesiveis, nem da Natureza Divina, nem das Divinas operações, se
não deva acreditar, nem mais, nem menos, senão aquillo que a mesma
razão póde comprehender, e isto com tanta segurança ensinado pelos
Veneraveis aos adeptos dos primeiros gráos, ou dos primeiros momos, ou
visagens, que quem pensar d'outra maneira se deva logo constituir á
carga cerrada na classe dos brutos animaes, desprovidos de razão, e de
conhecimento. E he isto conhecer, como he de obrigacão de todo o mortal
raciocinante, os limites do entendimento humano, e do humano discurso?
Em que direis vós que estes Veneraveis, ridiculamente mitrados,
annunciando enfaticos o ramo d'Acacia, e que a carne deixa os ossos, se
distinguem de hum insensato, que com azas postiças presuma levantar o
vôo, e girar em torno das orbitas dos Planetas?

Porém os crentes não fechão voluntariamente os olhos da razão? Não se
immergem voluntariamente nas trévas da Fé? Vós aqui dissimulais com
vossa costumada perfidia, e malicia ter visto a clara luz que eu vos
mostrei na manifesta palavra de Deos, a cujo clarão inextinguivel
nós caminhâmos, e confundis com hum de vossos ordinarios sofismas as
trévas do entendimento com as trévas da razão: mas eu vos farei bem
depressa conhecer quaes sejão, e a quem pertenção as primeiras, quaes
sejão, e a quem pertenção as segundas. Trévas de entendimento são
aquellas de que se vê rodeado nosso espirito, quando, por mais que
investigue, e procure descortinar certos arcanos da Religião, não chega
a conhecer, nem o seu modo, nem o seu fim, nem a sua causa: eis aqui
aquelle abysmo insondavel á vista do qual bradava o Apostolo--_oh
altitudo_! Mas isto são trévas necessarias a que podemos chamar sagradas
sombras, em quanto se derivão, e se derramão da incomprehensivel
Natureza do Ser Divino, e das Divinas operações, e por isto são trévas
universaes para todos os entendimentos creados, são trévas para mim, e
para os profundos pensadores; são sombras minhas, e sombras vossas
por mais que vos chameis illuminados, nem são mais dos Egypcios, que dos
Hebreos, nem mais dos Gregos, que dos Romanos, nem mais dos incredulos,
que dos infieis, ou dos idolatras. Porém quando, ou por hum estranho
orgulho não se queirão nem conhecer, nem confessar estas trévas, ou
conhecendo-as, e confessando-as se fechão os olhos á luz da divina
palavra, que torna firme a nossa fé no meio destas mesmas sombras, então
as trévas que erão só do entendimento passão para a razão, e se tornão
trevas voluntarias, e por isso trevas culpaveis, trevas deshonrosas,
trevas de homem, que por ser pertinacissimo, renuncia os dictames da
recta razão, e desce, e se faz semelhante aos mesmos brutos.

Eu me magôo, e penalizo, oh espiritos incredulos, devendo dizer-vos que
esta tão tenebrosa, e aviltada razão, he pontualmente a vossa, a
tanto mais me penalizo quando mais conheço que vós quereis ser homens
pensadores fóra do uso commum, e da vulgar esfera. Mas talvez que vos
lembre alguma resposta, que vos livre ao menos em parte desta vergonhosa
infamia. Pensai, estudai, meditai, consultai os vossos mais meditabundos
Veneraveis, lê-de, e relê-de vossos amados livros, o vosso Tindal, o
vosso Collins, o vosso Bolimbrocke, o vosso prezadissimo Oraculo de
Fresney, vê-de se nesse erario de paralogismos podeis achar algum
argumento, alguma palavra que vos possa destruir o vergonhoso labéo de
serdes em materias de Fé homens desprovidos de razão. Eu mesmo, não
posso encontrar, por mais que subtilize, huma só vereda por onde vos
possaes escapar. Vós me concedesteis já, não o podeis negar, que existe
Deos, vós tambem me deveis conceder que elle haja revelado aos homens o
culto com que quiz ser adorado pelos mesmos homens, que o revelou, e
manifestou de huma maneira descoberra, e sensivel, milagrosa em cada
huma de suas circumstancias que este culto, para ser digno delle, devia
conter verdades superiores á esfera do humano entendimento, e que de
outro lado este humano entendimento he tão pouco penetrante, que não
póde presumir sem loucura que conhece, e entende todas as verdades
fysicas, e naturaes. E porque estes Dogmas da Fé se envolvem em
magestosas sombras, e sagrada obscuridade, vós recusaes acredita-los sem
que se vos torne evidente sua possibilidade, ordem, e economia; e nós os
fieis que os acreditâmos sem tão filosoficas delicadezas somos tratados
por vós, profundissimos pensadores, e accreditadores das verdades, do
Monitor, de estupidos inimigos do bom siso, e de pessimos raciocinantes.

Nós, continuão os Veneraveis a clamar, não dizemos que vós sois pessimos
racionantes, dizemos sómente que conservaes em estupido ocio a
razão, e o discurso. Isto he huma retirada que eu não podia esperar, mas
esta mesma retirada não os salva de serem seguidos, e feridos com as
armas da razão. Dizem pois, que eu por ser crente, sou constrangido a
conservar em ocio vituperoso o discurso humano, sepultando o maior
talento, ou dom da Natureza, que he o lume da razão. Grande Deos! E era
de esperar isto de homens que tem olhos para ver, e razão para
discorrer! E era de esperar huma semelhante impostura? Entrai oh
incredulos, em alguma daquellas respeitavel Bibliothecas conservadoras,
e depositarias da sapiencia Christã, e alongai a vista para o
assombroso, e surprendente número daquelles volumes cheios de
amplissimas provas da verdade da Religião Evangelica, e para que não
digaes que constituo ante vossos olhos alguma Legenda crédula, algum
Mistico a que chamais Visionario, lê-de unicamente Grocio, e Locke ambos
defensores, ambos demonstradores da verdade do Christianismo, e de
seus augustos Dogmas. Aqui achareis demonstrações luminosissimas, e
levadas até a evidencia; os quaes os mais pertinazes das vossas
nocturnas, e tenebrosas escolas não se atrevêrão ainda a responder, e os
mais atrevidos não tiverão ainda outra resposta que dar mais do que
vilipendios, e motejos plebeos: e quando tem querido dar resposta, como
serios argumentantes, não tem feito mais que oppôr ás provas daquelles
dois profundos Filosofos, fabulosas relações, Padres suppostos,
Escrituras falsificadas, Authores suspeitos, e desacreditados, e se vós
chamais ás provas do Christianismo fructos do ocio Christão, que
chamarei eu a taes objecções, fructos da vossa pensadora incredulidade?
A respeito pois da Essencia Divina, da sua immensidade, da sua
immutabilidade, da sua eternidade, que tem imaginado de grande, e que
descobrimento tem feito os vossos profundos pensadores, e os maiores
oraculos do maior Oriente, para que se não creia em nossos pensadores
Christãos? Tudo quanto disserão sobre a Natureza Divina os Socrates, os
Platões, os Democritos, os Zenos, e outros Mestres pelo muito uso que
fizerão da razão natural dignos de fama, e de memoria, he apenas hum
balbuciamento de tenros meninos a respeito do que ensina o menos
profundo dos Theologos Christãos, e o mais superficial, e insignificante
dos nossos livros. A causa de tão grande differença entre uso de razão,
e uso de razão, se vos dignaes escutalla o mesmo Evangelho a está
declarando. De differente maneira edifica aquelle que escolhe para o
edificio hum terreno compacto, e pedregoso, do que edifica aquelle, que
escolhe hum terreno movediço, e solto; o primeiro não tem medo de
levantar alto da terra o edificio que constroe, em quanto o segundo,
attendida a natureza do terreno, se vê obrigado a conservar muito
baixo o edificio, nem põe huma pedra sobre outra pedra sem receio de que
crescendo o pezo cahia tudo confuso, e despedaçado sobre o infiel
terreno. De similhante maneira acontece a hum entendimento, que tem
fundamentado suas decisões sobre o firmissimo alicerce da sua Fé. Sobre
estas bases se póde levantar com a razão, até ao solio do Immortal, para
investigar a Essencia Divina, e as Divinas perfeições sem erro, e
conhecer sem perigo cousas remotas, e distantes do entendimento humano.
Pelo contrario os incredulos, e os Veneraveis que tanto me tem taxado de
embecilidade, sem o fundamento da Fé, por pouco que se queirão levantar
com a razão, devem sempre temer huma confusa ruina de caprichosos
fantasmas, e vergonhosas contradicções.

Ainda com o impeto, e força desta evidencia não emudecem os
pertinacissimos impugnadores, ou refutadores analyticos: que ha que
dizer (erguem elles animosamente a voz) que ha que dizer a estas
nossas livres fantazias, ás quaes se dá o odioso nome de caprichosas!
Por ventura, não são elas hum amplo patrimonio, hum direito innato do
espirito humano? Custa-vos acaso, que nós os pensadores recusando crêr,
nos conservemos na posse daquella liberdade de pensar que a Natureza nos
deo, e que tanto tem dilatado os nossos Veneraveis, e da qual tão
injustamente nos despoja a Fé? Ah! Illusos fraternizadores, e
niveladores! E porque não dizeis, que tambem a Filosofia despoja o
entendimento humano da liberdade de pensar? Quantos vôos de engenho he
preciso refrear, quantos systemas he preciso regeitar, quantas invenções
he preciso sacrificar, ás leis daquella, que segundo o vario gosto dos
Seculos se chama boa, e razoavel Fysica? Vos que accusaes a Fé de ligar
o entendimento, e de o condemnar a huma individa servidão, porque não
accusaes tambem as Sciencias, que todas tem seus principios, suas
regras, seus confins, que da mesma sorte que pratica a Fé, põem hum
freio, e prescrevem leis ao licencioso entendimento?

Com effeito, ou se considerem as sciencias, ou se considere a Fé, ou
isto em vós he huma grosseira impostura, ou huma equivocação pueril,
porque esta liberdade de pensar de que dizeis vos despoja a Fé, vós por
certo a julgais, e a entendeis huma liberdade sabia, digna de hum homem
racional, e não huma liberdade de fernetico, ou de hum sonhador
febricitante. Ora dizei-me em que vos violenta, ou vos constrange esta
Fé, cuja prepotencia vós tanto exageraes? Ella vos obriga a dizer que
existe Deos, e esta existencia já está demonstrada pela razão natural.
Ella vos obriga a confessar que este Deos existente fallára aos homens,
e he evidente que elle fallou pelo exactissimo complemento dos
vatecinios. Ella vos obriga a confessar, que as palavras deste Deos
são infaliveis, e he inegavel que não podem deixar de ser infalliveis
pois são de hum Deos que encerra em si todas as perfeições. Fóra disto
eu não posso, nem he possivel descobrir cousa em que se constranja, ou
tyrannize, como vós dizeis, a vossa liberdade; salvo se vos queixaes de
perder aquella liberdade que quereis ter de ajuntar contradicções, de
engrazar impossiveis, e de dar ao Mundo (como tendes feito em tantos
Livros ineptos quantos ha desde o Militar Filosofo, até ás próvas do
Mahometismo, ultima producção de Holbac,) quimericas imaginações por
verdades demonstradas. Se quereis permanecer neste estado como vos
prescreve o Codigo de Weishaupt, o de loucos varridos ainda he mais
vantajoso.

E, á vista disto, que estrepito se não tem feito, e se não continua
ainda a fazer pelos subterraneos, que tremem da Policia vigilante, que
os faz ir republicanizar, e igualizar em masmorras, sobre a
miseravel escravidão do humano entendimento, e sobre o tyrannico
imperio, que a Fé, segundo elles clamão, tem usurpado sobre a razão
natural? Que queixas eu não tenho ouvido fazer sobre os pequenos
progressos que tem feito no Mundo, depois da entrada do Christianismo a
profana Litteratura? Que compaixão não fingem ter dos engenhos
catholicos, que tendo azas com que poderião sobir acima das nuvens, se
curvão, e encolhem ao jugo da crença, abatendo os vôos, e andando quasi
de rojo pela terra? Mas se se quizer examinar, ou vêr sómente que cousa
seja este remontar-se sobre as nuvens, achar-se-ha que não he outra
cousa mais que arrancar do entendimento (á força de pensar livremente) o
innato conceito da honestidade, o innato horror do vicio, fazer das
acções justas, e das acções injustas huma invenção do interesse, ou
apenas huma das ceremonias da vida civíl, e da conducta politica;
collocar, e estabelecer na força maior hum justo direito de roubar, e de
matar seus similhantes; tirar das mãos aos Principes, e aos Dominantes a
espada punidora de suas escandalosas maldades; e fundar toda obrigação
que tem os homens de honrar, e obedecer a Deos, não em seu infinito
merecimento, e em seu supremo dominio, mas unicamente em seu
irresistivel poder. Eis-aqui, dizem elles, hum pensar livre, nobre,
generoso, honrado, sublime, e não pensar com humildade, e sugeição de
escravos, como fazem os Christãos. Eis-aqui o que se chama despregar
soltamente as azas do entendimento, desferir com magestade os vôos como
nos ensina o nosso Mestre Veissauph, e todos os nossos Cavalheiros do
Libano, eis-aqui o que escutamos aos nossos Veneraveis, quando descalção
as formidaveis, e tremendas luvas para nos fazerem vêr a luz em o ultimo
dos nossos gráos, que vem a ser, ensinar-nos em Methafysica o
Pantheismo, e em Moral, a Igualdade acephala, e anarquica. Eis-aqui o
que se chama entranhar-se no conhecimento da verdade, e não querer a
vida, se não para a empregar na indagação da verdade, sem levar sempre
ao lado o cégo, e molestissimo pedagogo da crença sobrenatural. Eis-aqui
o que nos inculcou, e o que nós estudamos nos mais que sobrehumanos
escritos do nosso Cidadão Genebrino.

Á vista disto, Senhores, eu creio, que ainda quando a Fé vo-lo não
vedasse, vós não quererieis huma similhante liberdade de pensar, só para
manter o decôro da vossa razão, e para não mostrar ao Mundo que
constituis na extravagancia, e na loucura a gloria d'espirito forte, e
pensador profundo. Resta pois que os valentes pensadores batão outro
caminho que lhes possa lembrar, porque as veredas até agora tentadas os
não tem conduzido, nem podem conduzir á sua tão vãmente preconizada
victoria. Mas elles são de fecundo engenho, e fertil de estratagemas
na guerra anti-christã; acolhem-se á sua ultima trincheira, conforme a
tactica do guerreiro, ou campião de Genebra, que he a dos milagres que
nós acreditamos como simplices, fundando nelles hum dos motivos da
credibilidade da Fé. Milagres, que elles como sabios, e profundos
pensadores desprezão, ou orgulhosamente desconhecem. Mas he preciso
antes que venhamos ás mãos, que os meus inimigos mostrem boa fé em o seu
ataque, e que se não tornem como costumão pessimos pensadores,
escrevendo, e divulgando, não sem motejos, e improperios, que nós os
fieis somos crédulos em tudo aquillo que se nos offerece prodigioso com
tanto, que encerre em si alguma cousa de devoto, e de mistico. Mas eu os
considero tão amestrados na Ecclesiastica Historia, que não ignorão oue
os tempos de huma tão abusiva, e facil credulidade, ou não existírão na
Igreja, ou se existirão em algum Seculo de decadencia, e dominação
Gotica comprehendêrão em si hum pequeno numero de pessoas idiotas, e
vulgares, fracções infinitezimas em o todo dos illustrados Christãos:
elles não ignorão que a derramada luz da severa critica, da sagrada
Hermeneutica, e das profundas indagações litterarias tem até destruido,
e acabado a sua memoria. Além de que, esta crença dos milagres,
exceptuando aquelles que estão registrados nas Santas Escrituras, não he
entre nós crença divina, nem absoluta, nem sempre igual; he sim huma
crença medida sempre pelo maior, ou menor valor da authoridade em que se
firma. E á vista disto, quem póde taixar de aviltamento da razão o uso
que nós fazemos do bom siso, a respeito dos acontecimentos milagrosos?
Tem por ventura a Natureza ensinado aos homens outra regra de dar
credito, ou de o negar ás mais estranhas, e inexperadas aventuras, mais
que a qualidade, e o numero daquelles, que nos referem, e
testemunhão extraordinarios acontecimentos? Dirão por acaso que usa
rectamente de sua razão aquelle, que porque hum facto he milagroso,
conta em nada a authoridade, a multidão, o caracter, as luzes das suas
testemunhas oculares! Usa bem da razão, quem reputa ignorantes os homens
mais doutos, os mais agudos, e penetrantes por insensatos, os mais
prudentes por superficiaes, e os mais santos, e virtuosos por
impostores?... Mas se os milagres são impossiveis, como he possivel que
se acreditem? Tambem a vossa razão vos diz que os milagres são
impossiveis? Oh entendimentos felizes! E podesteis desde as vossas
tenebrosas, e nocturnas cavernas do mysterio, e das vizagens, sobir aos
ceos, e tomar huma exacta medida das forças da Divindade, e,
considerando, ou a subita vista de hum cégo, ou a ressurreição de hum
morto dicidir magistralmente, que não chega a tanto o infinito poder
do absoluto Arbitro da Natureza? Eu na verdade, não tenho medido palmo a
palmo como vós fizesteis esta Divina Omnipotencia: todavia, parece cousa
fóra de razão, que quem impôz as leis á Natureza, se haja elle mesmo
feito escravo destas leis, com manifesta injuria de sua essencial,
absoluta, e dispotica dominação. Mas se he preciso, oh grandes, oh
profundos pensadores, tirar a Deos o poder absoluto de operar milagres,
e considerar, e ter quantos se contão, ou de Moysés, ou dos Profetas, ou
os de J. C. por outras tantas fabulosas invenções, então he preciso
tambem negar todas as historias profanas, nenhuma das quaes tem por si a
centesima parte daquellas próvas, que tornam autentica, e indubitavel a
Historia Divina.

Eu já começo, de sentir algum tedio, em rebater huma calumnia que talvez
fosse ferir em reverberação com nula ignominia, que fructo, os
escarnecedores, e motejadores da crença Christã. E agora que penso
socegadamente me doe de não ter nesta contestação usado antes da doçura,
que do rigor, para attrahir os incredulos: mas eu lhes supplico que se
persuadão que este calor, e esta aspereza, que tem respirado o meu
Discurso, não he culpa minha, mas se he licito dizello assim, he culpa
da verdade. Esta verdade he branda de sua natureza, suave, e tranquilla,
mas quando se vê impugnada, e atacada com audacia, e com injustiça,
accende-se, inflamma-se em nobre ira, muda o sereno aspecto em
carregado, e severo, veste-se de todas as armas, e toma huma lingoagem,
ou tom, que faz sentir, a quem a ultraja, todo o seu incontrastavel
valor. Com toda esta indignação pois, que he mais indignação da verdade,
que indignação minha, creião que o meu coração os não póde escusar,
ainda que deseje encontrar motivos de se Compadecer. Infelizes! Vivem em
hum Mundo, e frequentão sociedades onde os serios, e verdadeiros
pensadores, não são mui aplaudidos: de outro lado elles querem
sobresahir ao vulgo, e parecer homens, ainda entre os doutos, d'hum
pensar profundo. As materias de Religião lisongeão, ainda mais que as
outras, seus menos regulados costumes, o pouco trabalho de huma
superficial, e desatenta leitura os surte de breves sentenças, ou
triviaes apothegmas, capazes de nutrirem a sua intereçada incredulidade,
e de excitar a admiração dos idiotas. Entre estes apothegmas, eis-aqui o
principal. Que a faculdade racional, he superflua nos Christãos, os
quaes devem crer, e não discorrer, porque se discorressem, talvez não
acreditassem. Mas o paralello, que fiz do nosso discorrer, com o
discorrer dos incredulos, não terá dissipado todo o seu engano? Pézem os
principios de que fazemos partir, nós a nossa crença, elles a sua
incredulidade, e tenhão, não digo vergonha de si, e de sua
scientifica soberba, mas tenhão dó da sua alma, que Deos pelos caminhos
da razão tinha conduzido ao regaço da Fé. Confessem que se obstinão a
pensar brutalmente, por huma soberbissima nauzea de pensar Christãmente.
Que lhes fez J. C. para o não quererem acreditar como Mestre de huma
doutrina celestial? Para que martyrisão perpetuamente seu espirito, e
sua consciencia, contrastando a evidente santidade de seus Dogmas, a
evidencia das Profecias que o annuncião, a evidencia dos factos que o
comprovão, a evidencia dos milagres que o demonstrão? Basta.

Juliano Apostata tinha sempre na boca a inraciocinabilidade que os
incredulos nos oppõem, e dizia que em nós Christãos, tudo era crer.
Porém o immortal Orador Nazianzeno lhe disse, e o confundio desta
maneira (Orat. 1.ª Cont. Julianum) Podes tu, que tanto admiras, e amas
tanto as Seitas Gentilicas, reprehender-nos a nós que fazemos esta
honra, ou mais depressa esta justiça ao nosso Divino Mestre, e á
sublimidade excellentissima, e inimitavel de seus dictames? Os teus
amados Pytagoricos não tem por huma lei fundamental da sua escola,
dever-se eximir das mais difficultosas questões que se lhes proponhão
com aquelle seu decantado--Ipse dixit!--E nós porque não damos outra
razão de nossos mysterios, mais que os ditos de hum Legislador conhecido
com mil próvas por Divino, e infalivel, somos chamados por ti automatos
insensatos, ou animaes sem entendimento?

Esta he huma parte do tão gabado discurso dos incredulos desta idade,
declarar-nos réos de aviltada, e desprezada razão, porque nos apoiamos
em huma manifesta authoridade suprema: porém elles não tem na boca a
toda a ora, mais que certos nomes, que, ou a audacia tem feito famosos,
ou tornou célebres: a habilidade de vestir á moderna, e com estilo
moderno as blasfemias antigas; como por exemplo--não he de crer que hum
Deos, que he todo bondade, e misericordia haja de condemnar hum tão
grande numero de creaturas, que vivem fóra da sua Igreja--(E porque as
não ha de poder condemnar, achando que a sua infidelidade he culpavel!)
Mas não se busquem tantos _porques_. Disse-o hum Sofista de París, ou de
Genebra. _Ipse dixit_. Este Sofista he hum homem que tem em linha igual
a momentanea lascivia, e a continencia Evangelica. He hum homem cujos
incendiarios escritos forão lançados nas chamas pelos Decretos dos
Tribunaes seculares, e vive em toda a terra infamado, e infame pela sua
manifesta impiedade. _Ipse dixit_. He hum Tolland que diz que não ha lei
que obrigue os homens a seguir a Religião revelada; e que seria Deos
injusto se houvesse promulgado tal lei. E este Tolland arrastra-se em
Londres de huma prizão para outra prizão, e morre foragido em o
frio, e nebuloso inferno de Holanda; _Ipse dixit_. Este he o mestre
alegado, acreditado, e seguido. Seja embora condemnado, e proscripto
pelos Magistrados civís, he mestre _Ipse dixit_.

Póde haver maior incoherencia; maior injustiça, que lançar-nos em rosto
a nós o _ipse dixit_ de huma Authoridade Soberana, sustentada com tanta
evidencia, e conservar para si, e querer que valha o _ipse dixit_
vacilante, e humano, e pronunciado por homens sem costumes, sem leis,
sem patria, sem outra authoridade mais que a dos atavios ridiculos da
Confraria das trévas, e dos subterraneos?

Destruamos finalmente o ultimo sofisma destas almas malevolas, ou
dissolvamos o ultimo laço de huma fraudolenta equivocação com que
pertendem tapar os olhos aos simplices. Nós acreditamos os Mysterios, he
verdade: a respeito dos Mysterios acreditados, tudo nos Christãos he
crer, mas a respeito dos motivos de acreditar, tudo em os Christãos he
vêr. Tudo he crer, a respeito dos Mysterios, porque estes sendo remotos
dos sentidos, e superiores á razão humana, só podem ser objectos da
crença: mas tudo he vêr a respeito dos motivos da crença, porque as
provas da revelação destes Mysterios são tantas, e tão irresistiveis,
que o espirito mais pertinaz não póde exigir outras maiores, e renovando
outra vez a confrontação entre nós, e os incredulos, digo, que em nós,
tudo he crer com summa razão aquillo que devemos crer, e nelles tudo he
negar, sem razão alguma de negar, e com todas as razões de crer.

Se destes principios innegaveis, sobre materias de Religião, eu desço a
analysar o uso da razão que os mysteriosos, e tenebrosos fazem sobre
materias de moral, e de politica, eu os descubro igualmente monstruosos,
e inconsequentes. Assim como a incredulidade os conduz voluntariamente á
sua eterna perdição, a mesma incredulidade os conduz á sua desgraça
temporal. Todos os homens desejão efficacissimamente a sua ventura
moral, e a sua ventura politica, como individuos unidos em sociedade, e
diz-se que hum homem faz bom uso de sua natural razão, quando escolhe, e
emprega os meios mais aptos, e porporcionados para aquelle fim. E será
fazer bom uso da razão para ser feliz na ordem moral, não conhecer
differença alguma entre o justo, e o injusto! Não se embaraçar com a
qualidade dos meios, com tanto que se consiga o fim? Julgar licito,
matar, roubar, calumniar, ou denegrir o seu similhante, para se avançar
pelos caminhos da ambição! Julgar licito o furto com tanto que se
empregue a maior força, e affirmar, como eu ouvi a hum, que a passagem
violenta do dominio de quaisquer cousa de humas mãos para outras mãos
não he delicto, porque a objecto arrancado não muda de essencia na sua
passagem, e não ha mais que a differença de seu possuidor, e que nunca
póde neste caso haver perturbacão na sociedade, porque o direito da
propriedade, he quimerico, e se existe, he só fundado na maior força, e
que por isto (continuava elle) erão licitas, e justas as conquistas, e
usurpações de hum monstro? Será fazer hum bom uso da razão natural, não
julgar o adulterio hum crime, mas hum simples galanteio, e só estranhado
pelo Gotico, brusco, anti-social, e preocupado? E com que descaramento,
e impudencia nos diz hum monstro tão desmoralizado como este, que
emprega a sua vida na indagação da verdade, e que não tem outro intento
mais que reformar, e regenerar o Mundo! E não vemos nós espalhados estes
atrocissimos principios pelos escritos da escola encyclopedista, e no
malvado Livro que se chama--Os Costumes?--E a marcha da Revolução, não
foi coherente a estes principios? As acções de que somos testemunhas não
são Corolarios destes infernaes theoremas de Helvecio! Ora ainda antes
que falle no uso da razão que fazem os crentes, pelo que pertence á
moral, não se envergonharão, e não se confundirão estes malevolos
espiritos, em quem não cabe a sabedoria, se eu lhes disser que os mesmos
Filosofos Pagãos, que inquirírão, e anciosamente buscárão o caminho da
felicidade moral, fizeram melhor uso da sua razão constituindo a suprema
ventura na pratica da virtude, e chamando virtude só áquillo que era
conforme ao puro dictame da Natureza? Leião, e envergonhem-se, os
principios de Socrates, quando se introduz em algum dos Dialogos de
Platão, e os axiomas, e sentenças d'outros Filosofos que religiosamente
nos guardárão Plutarcho, e Diogenes Laercio. Leião, se a tanto se
atrevem, os escritos immortaes, e admiraveis de hum Marco Tulio, e
fixem-se ao menos no sonho de Scipião, no Tratado das Obrigações Civís,
e nas eloquentissimas dissertações sobre os verdadeiros bens, e os
verdadeiros males. Leião as engenhosas, e eloquentes paginas de Seneca:
os profundos pensamentos de Epiteto, e os Tratados sublimes do Filosofo
Imperante Marco Aurelio. Oh desgraça digna de lagrimas de sangue! Que
hão de lêr estes detestaveis monstros, cuja liberdade de pensar, de que
tão cégamente se ufanão, voluntariamente se encadeia, e não tem outro
uso livre, mais que a diversa modificação que lhe dá o discurso do
Veneravel, que elles escutão com a face cosida com a terra, e com as
encruzadas mãos acobertadas de sanguinarias luvas.

Lancem-se os olhos para os actuaes resultados da Revolução, veremos quem
faz melhor uso da razão na ordem moral, para a felicidade. E se eu
contemplar os verdadeiros Christãos nesta mesma ordem moral? Bastará
abrir o Evangelho, bastará demorar hum pouco a vista sobre a
conducta dos primeiros fieis, sobre os escritos adoraveis dos primeiros
Mestres do Christianismo. Dizei-me, he fazer máo uso da razão natural,
assustar-se, não só com o crime, mas até com a idéa, e pensamento do
mesmo crime? Será fazer máo uso da razão natural buscar a ventura, e
tranquillidade da vida moral só pelo emprego, e pelo exercicio da
virtude? Ser superior á inquieta, e turbulenta ambiçao, á desasocegada,
e desconfiada avareza, ao sórdido, e vil interesse, á deslumbrada
soberba, ao sórdido, e vil interesse da gloria popular, e finalmente, á
vergonhosa incontinencia? Será fazer máo uso da razão natural, abraçar
os dictames da temperança, fugir da glotonaria, ser moderado, paciente,
humano, compasivo, sensivel, generoso? Será fazer máo uso da razão
natural, chegar com isso, que tanto assoalhais, e não tendes, e a que
chamais filantropia, a hum tão subido gráo de heroismo, que se amem,
não só os homens em geral, como similhantes mas até os mesmos inimigos,
porque são homens? Será fazer máo uso da razão natural vencer os
movimentos tumultuosos da ira, e soffocar os internos brados de todas as
paixões, apenas se fazem escutar nos coração do homem? Confrontesse a
conducta aos verdadeiros Christãos, que no berço da Religião revelada
apparecêrão no meio do Imperio da corrupção, e dos vicios com a conducta
destes illuminados, que rejeitão, e desconhecem o foro interno da
consciencia, e que não admittem para regra das acções humanas, mais do
que o temor dos castigos temporaes, ou a esperança das recompensas
terrenas, e então se conhecerá quem haja feito melhor uso da razão
natural. Elles não querem conhecer senão delictos externos, e publicos,
nós conhecemos além destes mesmos delictos, peccados, e reconhecemos até
crime aquillo mesmo que não foi mais que lembrado, ou imaginado.
Moral verdadeiramente pura, cuja sublime evidencia arrancou da boca do
Sofista de Genebra aquelle admiravel elogio que elle faz ao Evangelho.
Tanto póde a Verdade! A malicia, e a impiedade, nunca poderão contrastar
sua victoriosa força! E poderá ainda dizer a impudencia, que nós os
fieis não fazemos bom uso da nossa razão, quando buscamos a felicidade
em a ordem moral?

Se eu quero dilatar, e espraiar o pensamento pela ordem politica, e
social em que os homens existem, ainda se torna mais patente a
desgraçada condição da incredulidade, que ousa taxar-nos de irracionaes,
e até mentecaptos. Veja o Mundo espantado, vejão os homens todos
assombrados com o medonho quadro que lhe offerece a consternada Europa
depois que rebentou o Volcão revolucionario, se he fazer bom uso da
razão natural, ter preparado com sofisticas idéas de igualdade, e de
liberdade o caos em que se afundárão todas as Jerarquias, todas as
Classes, todas as Instituições, todas as Leis, que o pezo dos Seculos, e
a vontade unanime, e universal dos homens havião sanccionado? He fazer
bom uso da razão perturbar de tal maneira a sociedade, a titulo de lhe
buscar em hum novo estado, e em huma nova ordem de cousas huma
prometida, mas fantastica felicidade? Que procedimento tão chegado á
razão, soltarem-se sanguinarios Tigres, e levados do instincto, ou da
força de nunca vista ferocidade, derramarem rios de sangue, não só pela
terra que os vio nascer, mas quasi por todo o globo atonito á novidade
de scenas tão barbaras, e tão atrozes, vendo que ellas forão preparadas,
conduzias, e executadas por aquelle mesmo Filosofismo orgulhoso, que se
dizia regenerador do Mundo, e salvador da razão aviltada, e abatida aos
pés do Fanatismo, e da Suprestição! He fazer bom uso da razão natural,
preparar a assinte sobre as ruinas de Thronos, e sobre reliquias de
Nações esmagadas, o Throno, ou as bases para se levantar o Colosso do
mais atroz, e escandaloso Despotismo que vio o Mundo em os annaes da
Tyrania! O que os nossos mesmos olhos estão vendo, e o que nós tão
desgraçadamente temos sentido não exige mais próvas, e demonstrações; as
lagrimas que temos derramado, o sangue que temos vertido, os males
pezadissimos que temos suportado, mostrão bem a que ponto de
melhoramento chegára o Mundo politico pelos esforços dos livres
pensadores que tanto exaltão, e apregoão o bom uso da sua razão, e tanto
taxão o nosso procedimento de hum rematado desvario.

E podereis dizer, malevolos, e publicos perturbadores da paz, e do
socego das Nações, que o verdadeiro fiel faz máo uso da sua razão, em
quanto permanece tranquillo naquella situação em que o constutuio a
Providencia, sugeito como lhe manda a Religião ás Potestades dominantes,
sem murmurar, sem innovar, sem rebelar, reconhecendo na suprema
Jerarquia a authoridade emanada de Deos. Quando se vírão, oh Ceos! Com
que pejo o digo! Quando se vírão em Portugal tantos pérfidos, tantos
traidores votados já á execração, e indignação publica, pelas decisões
de rectissimas Sentenças? No Seculo do illuminismo, em que se diz se
levantára o bom uso da razão sobre o abatido fantasma de velhas
preoccupações. E he fazer bom uso da razão natural, conjurar contra a
propria Patria, contra a propria Nação, querer lançar-lhe ao colo os
ferros de hum Tyranno, despoja-la de sua gloria, soberania,
independencia, representação, e grandeza? Será fazer bom uso da razão
natural attrahir sobre a propria cabeça os males que preparavão aos
outros? Será fazer bom uso da razão natural sacrificar a hum monstro que
permanece em huma absoluta ignorancia da sua existencia, a
reputação, a liberdade, o estabelecimento, e a ternissima posse daquella
Patria, e daquelle Reino que lhes deo o berço? Confronte-se o uso da
razão que fazem estes profundos pensadores, com o uso da razão que faz o
honesto Cidadão, ainda que seja o mais ignorante, e idiota, e
conhecer-se-ha com evidencia de que parte esteja a vantagem.

Mas he tão grande, e tão profunda a cegueira, ou a pertinacia destes
monstros, que nenhuma razão os convence, porque huma alma malevola não
dá entrada á verdadeira sabedoria. Fieis, fechai os ouvidos aos
enganadores discursos dos impios, debaixo de sua lingoa existe o veneno
dos áspides, elles errão, e errarão sempre, _erraverunt ab utero, locuti
sunt falsa_. Fugi do precipicio a que vos conduz sua revoltosa doutrina.
Sabei que não querem Throno, não querem Altar, não querem Leis. Segui as
maximas celestiaes da Religião, cujas luminosas provas longe de
aviltarem a razão, a enobrecem, a purificão, a exaltão, e fazendo o
verdadeiro homem de bem na terra, em quanto o tornão virtuoso, nos
assegurão, e affianção huma eterna Bemaventurança.


                                                            Disse.





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