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Title: A mulher; Os Portuguezes em Tanger
Author: Matos, J. J. Rodrigues de
Language: Portuguese
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A MULHER

OS PORTUGUEZES EM TANGER

POR

J. J. Rodrigues de Mattos

COIMBRA

IMPRENSA LITERARIA

1860



A

MEU PAE

EM

TESTIMUNHO DE AMOR FILIAL

O

SEU FILHO

MUITO OBEDIENTE

João José Rodrigues de Mattos



A MULHER

                                    Otez l'amitié de la vie,
               Ce qui reste de biens, est peu digne d'envie.
                                                   DESMAHIS



Prologo


Auctorisado por aquelle que me deu o ser, e de que posso lisongear-me,
venho receioso offerecer-lhe este insignificante trabalho.

Pouco versado nas lides da litteratura, não posso dedicar-lhe uma obra
digna do seu bom nome, mas o desejo que tenho de testemunhar a minha
gratidão pelos obsequios de que lhe sou devedor, anima-me a proseguir na
empresa encetada.

Tenho razões para acreditar que a sua bondade não póde ser satisfeita
por uma offerta de tão pouca importancia, mas, tal qual é, acceite-a
como a primeira producção d'uma arvore nova, cujas vergonteas ainda
fracas pelos poucos annos, que tem de vegetação, apezar do
extremoso cuidado que o agricola tem empregado na sua cultura, não podem
dar ao fructo senão a belleza compativel com as suas forças.

Regozijo-me com a escolha da pessoa a quem offereco a minha producção;
porque tenho a certeza de que o seu bom senso e indulgencia, hão-de
desculpar as faltas que ella necessariamente ha-de conter.

                                                          O AUCTOR.



A MULHER


I

        La femme est l'etre le plus parfait entre les créatures;
        elle est une création transitoire entre l'homme et l'ange
                                                          BALZAC

Ser extraordinario, tu só, rainha absoluta do coração do homem, sabes
por elle ser adorada, nunca, porém, aborrecida! Quando as tuas faces
estão ainda cobertas com o veu da innocencia, vês a teus pés um cortejo
de escravos que só acham ventura em merecer-te um sorriso. O nobre
orgulhoso, se julga feliz ao ouvir-te uma palavra, que lhe faça sorrir
uma lisongeira esperança; o avarento, julgando-se pobre, vê em ti um
thesouro, que o faria feliz; o pobre, que te ama, se rala de ciumes
ao ver-te rodeada d'homens que não como elle te saberiam amar. Do nobre
não fujas, se não receiares que o amor que no peito lhe ferve, se póde
gelar com ambição de brazões.

O avarento evita, porque ao possuir-te, esconderia 'num canto essas
galas da natureza herdadas, profanando assim o que o Creador soube
formar para admiração do homem. Do pobre não rias porque tem coração.

Mulher, doce fructo do amor da divindade, se vires o homem abraçado ao
feio scepticismo, eleva, com sorriso angelico, aos ceus os olhos, e
farás renascer 'num coração frio o fogo das crenças.

Se quizeres que umas faces sêccas se cubram de pranto, chora, e verás
umas novas lagrimas unidas ás tuas.

Se quizeres que o moribundo conheça todo o fogo da vida, senta-te á
cabeceira d'esse leito da morte, e elle julgará, ao ver-te, um anjo de
Deus que o vem consolar; e se o não revocares á vida, é maior o teu
triumpho; não terá elle necessidade de orar, porque acreditará que tu, o
seu anjo da guarda, o vens visitar, para o acompanhar contente á morada
dos justos.

Mulher, para que fostes criada? Nem tu o sabes! Quando pura sahiste das
mãos do Eterno, foi-te confiada uma missão sublime. Nasceste para
consolar o homem das fadigas da vida, para lhe lembrares que ha um
Deus, para lhe apontares com um sorriso a estrada da felicidade, quando
o espinho cruciante da mágoa lhe houver trespassado o coração. Nasceste,
em fim, para dizeres, sorrindo, ao homem--queres ser feliz? Ama.

Oh! mulher, se esse sorriso te cobre de bençãos, para que abusas algumas
vezes d'elle?

O sorriso que dá ventura, collou-t'o Deus nos labios; mas o do desdem,
que leva ao fundo d'alma todo o fel da desgraça, só t'o podia ensinar um
demonio! Quando com aquelle encaras o homem, podes vêl-o louco de amor,
podes apontar para um ferro, que elle contente rasgará o peito, e ao
aproximar-se da campa pronunciará religiosamente o teu nome! Quando,
porém, com este ris sarcasticamente do seu amor, não lhe aborreces
ainda; ama-te, mas com esse amor alimentado de ciumes e vivente de
desenganos! O homem então crê não merecer-te, forceja por adquirir meios
de ser amado, e quando 'nisto pensa, o seu amor é mais intenso; se é
criminoso, julga ser o crime o que de ti o aparta, e é então que abraça
a virtude; se ainda assim o não chamas com um sorriso, e o seu amor não
acha raias a occupar, vêl-o-has morrer, definhado pela dôr e victima de
uma paixão louca e não correspondida!

Mulher sabes quando és grande? Quando apertando ao seio um filho,
pareces querer suffocal-o com caricias, e lembrar-te só de teu filho e
de Deus.

És grande tambem, quando a morte rouba de teus braços esse mesmo filho,
e com os olhos no ceu, e banhados de lagrimas, exprimes só--saudade. És
grande, em fim, és sublime, não pareces mulher, és um anjo, quando ebria
do amor cahes, como de fadiga nos braços de teu esposo, e pareces querer
articular, sem forças, essa palavra, inventada pelos anjos--amor!

Oh! Quanto é bom ser feliz!

Como o viver é delicioso quando se encontra no mundo uma mulher a quem
idolatramos, a quem adoramos e prestamos homenagens, como se fôra a
propria Divindade!...

No alvorecer da vida, o coração do homem tem necessidade d'amar, d'amar
com todo o fogo, com toda a loucura d'uma alma verdadeiramente
apaixonada!...

E é tão bello amar! é tão delicioso contemplar a belleza e os encantos
da mulher que adoramos, e por quem sentimos o coração pulsar docemente a
todos os instantes! E que fôra o mundo se n'elle não existisse a mulher?...

Supponde--diz um dos nossos mais profundos e distinctos
escriptores--todos os contentamentos, todas as consolações que as
imagens celestiaes e a crença divina podem gerar, e achareis que estas
não supprem o triste vácuo da soledade do coração. Dai ás paixões
todo o ardor que poderdes, aos prazeres mil vezes maior intensidade, aos
sentidos a maxima energia, e convertei o mundo em paraiso, mas tirai
d'elle a mulher, e o mundo será um ermo melancólico, os deleites apenas
o preludio do tedio. Muitas vezes, na verdade, a mulher desce arrastada
por nós ao charco immundo da extrema depravação moral; muitissimas mais,
porém, ella nos salva de nós mesmos, e pelo affecto e enthusiasmo nos
impelle a quanto ha bom e generoso.

Quem ao menos uma vez, não creu na existencia dos anjos, revelada nos
profundos vestigios d'essa existencia impressos 'num coração de mulher?
Porque não seria ella na escalla da criação, um anel da cadeia dos
entes, presa d'um lado á humanidade pela fraqueza e pela morte, e do
outro aos espiritos puros pelo amor e pelo mysterio? Porque não seria a
mulher o intermedio entre o ceu e a terra?

........................................................................
........................................................................

E quem ha ahi, que não tenha amado, ao menos, uma só vez na vida; que
não tenha sentido as doces e suaves emoções de uma verdadeira paixão;
que se não tenha curvado submisso, como um escravo, ante essas mulheres,
cuja belleza e attractivos magicos e fascinadores, sabem fazer nascer em
nossos peitos um affecto ardente e sem limites?!...

Oh! ninguem, de certo; porque no alvorecer da vida, 'nessa risonha
quadra da existencia, em que vegetam e brotam todas as nossas
esperanças, o homem tem precisão d'amar, sente a necessidade de unir a
sua vida á d'uma companheira affectuosa e desvelada, que partilhe assim
das suas tribulações e penas, como dos seus prazeres e gozos, e que
derrame em sua alma o precioso balsamo de consolação.


II

        Sans sa beauté, sans ses dons precieux la vertu même
        est moins belle à nos yeux.
                                              J. B. ROUSSEAU

Salve mimosa e fragrante flôr que nos embalsamas a existencia,
levando-nos ao amago do coração felicidades!

Que seria a sociedade sem ti? Seria um viver monotono um viver sem
delicias!

A mulher é a rosa que sobresahe virente no centro dos folguedos. Seus
languidos olhares dão-lhes alma e suas meiguices mimo: suas fallas
dictadas pelo instincto forte do sentimento deleitam-nos na
escandecencia das frágoas, e o sorriso modesto onde se póde soletrar a
sua bondade angelica, arrebata-nos, attrahe-nos ao borbulhar das festas.

Não fallo da mulher prosaica porque é um ente nullo, ama porque ouviu
dizer que se amava; ama só com o intuito de ter um escravo dos seus
caprichos e um alvo dos seus sarcasmos!

A mulher prosaica é o escarneo da vida. D'essa não fallo eu. Fallo da
mulher que sente e comprehende essa paixão e que é o termo dos vôos do
nosso pensamento, e a paragem da mente embriagada do poeta, quando
vaguêa escandecida por entre milhares de illusões;--que é o elo mais
forte que vincula a sociedade.

Fallo da virgem que na manhã da vida, na maior influencia d'um baile,
tranzida, por uma saudade amarga, entristece e se lhe pendura na
palpebra uma lagrima que de repente se some, abafando um ardente suspiro
que lhe fugira do coração.

Da mulher que no madrugar d'um dia formoso pára e scisma, contemplando a
natureza, e junta aos hymnos que as aves elevam ao seu criador uma prece
cheia de sentimento,--uma oração que os anjos lhe vem colher!

Esta mulher é um beijo do Criador;--é a corda mais afinada da lyra dos
anjos.

Assim é! Pergunte-se ao filhinho que desabrochou no regaço de sua mãe;
acalentado e acariciado pelos seus mimos, se póde haver no mundo amor
que iguale os desvelos e cuidados de mãe!

Pergunte-se ao esposo, que levado por uma affeição sincera e pura,
escolheu uma mulher para companheira da sua vida, se não encontra um
balsamo consolador para as suas dôres e procellas da vida, nas
fallas e conselhos d'essa mulher!

Pergunte-se ao mendigo, coberto de miseria e corrido pelo infortunio, se
jamais pediu a uma mulher que lhe mitigasse a sua dôr sem que lhe ella
recebera os ais no coração, e lhe minorasse as mágoas e privações que
lhe vão gastando a existencia!

A mulher poetica é uma viçosa grinalda, cujas flores foram colhidas por
Deus e entrelaçadas pelos anjos!

É o campanario que a fallar-nos de longe, nos inspira um sentimento
religioso!

É o raiar d'um dia formoso trazendo-nos no canto das aves, e nos raios
do sol que vem trepando os montes, felicidade e poesia ao coração.

Deus na sua poderosa e immensa criação, copiou 'neste ser a bondade que
os anjos teem,--engrinaldou-o com as odoriferas flores do Paraiso,
pousou-lhe sobre a fronte uma corôa de virtudes, e entornou-lhe no
coração todo o amor de que encheu a natureza.

Que poesia nos não inspira uma lagrima a marejar nos olhos d'uma donzella?!

É o nectar do seu coração que se nos vem mostrar languido e puro,
sulcando-lhe as faces purpurinas do seu rubicundo rosto.

É uma gotta do lindo orvalho da manhã, pousado no calix d'uma rosa, que
a buliçosa brisa, com seu suave balancear, pendurou em suas viçosas
e escorregadias folhinhas.

A mulher é o sanctuario do coração do poeta, o asylo dos vôos da sua
imaginação, a inspiração das suas trovas, e a delicia da sua vida.

Consulte-se cada homem que tem amado, e ver-se-ha o que diz. Quando a
alma se lhe dilata a receber um supremo gozo, ou quando se lhe comprime
por algum atroz soffrimento, a primeira idêa que lhe assalta a
imaginação, é ter junto a si a mulher que ama, para que ambos partilhem
igual sentimento.

Escute-se a lyra d'um bardo, traduzindo-lhe os sentimentos affaveis do
seu coração em melodiosos sons, arrancados por sua incerta
mão..................

    Mimosa c'rôa de encantos
    Te cinge a fronte, mulher!
    Prendem-nos a alma teus prantos
    Que meiga nos deixas vêr,
    És uma estrella radiante,
    Uma pérola brilhante,
    Um celestial descante
    Que nos mitiga o soffrer.

    Qu'importa no mundo a vida
    Quando é vivida sem ti?
    É qual florinha pendída
    Que o tufão matou assi!
    É como a triste saudade
    Que nos veda a f'licidade.
    No verdor da mocidade
    Quando a vida nos sorrí!

    Tu és uma harpa divina
    Que os anjos vem desferir,
    És quem meiga nos ensina
    A crer, amar, e sentir!
    Fallam d'amor teus olhares,
    Fallam de amor teus pezares,
    Teus innocentes folgares,
    Teu deslumbrante sorrir!

    Mimosa c'rôa d'encantos,
    Lindo sol do coração,
    Prendem-nos a alma teus prantos
    Que n'alma cahir-nos vão!
    Mulher tu és n'esta vida
    A nossa esperança qu'rida,
    A florinha enriquecida
    Pelo Auctor da criação!


FIM



OS PORTUGUEZES EM TANGER


Prologo

Que é um prologo? É quasi sempre um antecipado remedio aos achaques dos
livros, porque andam sempre de companhia os erros e as desculpas. Eu
esforçar-me-hei em desviar-me do caminho trilhado, porém se acharem que
dizer não me perdôem.

Escrevi este opusculo com verdade de memorias fieis, sem que a penna, ou
o affecto, alterasse o menor accidente. Antes que este pequeno livrinho
sahisse dos borrões, algumas pessoas o taxaram de escasso, dizendo, que
eu devia de dilatar esta parte da nossa historia com allusões, e passos
da Escriptura, que fizessem mais crescido volume; estes compram os
livros pelo peso, e não pelo feitio; outras queriam que me valesse do
estrepito de vozes novas, a que chamam cultura, deixando a estrada limpa
por caminhos fragosos, e trocando com estimação pueril, o que é melhor,
pelo que mais se usa.

Mas como não determinei lisongear a gostos estragados, quiz antes com a
singelleza da verdade servir ao applauso dos melhores, que á fama
popular e errada.



OS PORTUGUEZES EM TANGER.

        Oh! ditosos aquelles que poderam
        Entre as agudas lanças africanas
        Morrer, em quanto fortes sustiveram
        A santa Fé nas terras Mauritanas:
        De quem feitos illustres se souberam,
        De quem ficam memorias soberanas,
        De quem se ganha a vida por perdel-a
        Doce fazendo a morte as honras d'ella.
                CAMÕES--C. VI.--E. 83.ª


Foi no dia 6 de março de 1503.

Apenas rompia a madrugada quando appareceu sobre as colinas dos
arredores de Tanger o poder mouro em força de 12:000 cavalleiros e muito
maior numero de infantes. Era o proprio rei de Fez que commandava as
suas tropas, e que julgava tomar de assalto aquella praça pelo segredo e
velocidade com que cahia sobre ella.

A Providencia, porém, ja havia denunciado este facto traiçoeiro aos
portuguezes com assás antecipação, para que estivessem prevenidos contra
o ataque brutal de feras ainda mais brutas.

Os antigos davam o nome de destino ou fado a esta influencia occulta,
absoluta, e irresistivel de Deus sobre a humanidade; os modernos povos
chamam-lhe Providencia, expressão mais significativa, mais religiosa, e
mais de Deus.

E a providencia nunca deixa de favorecer as boas causas.

Assim já na noute anterior a este dia de recordação e saudade, soube D.
João de Menezes, governador de Arzilla, por espias que trazia no campo,
os intentos e maquinações d'aquelle rei.

Era-lhe portanto impracticavel avisar a D. Rodrigo de Monsanto, que
então governava Tanger, porque estas duas praças distavam uns quarenta
kylometros uma da outra, e além d'esta distancia accrescia a
impossibilidade de fazer a viagem por terra, por estarem occupados os
caminhos por troços do exercito inimigo, e por mar nem uma embarcação
havia aprestada para esse fim.

No entretanto reluziam nos arraiaes mouriscos as lanças e os escudos, e
atroavam os ares os sons guerreiros das trombetas e outros instrumentos
barbarescos.

Parecia que os mouros preparavam nos seus arraiaes em canticos e
folgares mais uma corôa de gloria para os portuguezes.

      *      *      *      *      *

Em quanto isto se passava nos arredores de Tanger, sem que os
portuguezes o advinhassem, esforçava-se D. João em Arzilla por achar um
meio de communicação com aquella praça. Tal era o amor com que queria
salvar seus irmãos d'armas.

Saudosos tempos de gloria nacional foram estes, em que o povo portuguez
era admirado no mundo civilisado pela audacia e grandeza de
commettimentos! Mas esse povo era de si mesmo grande porque tinha fé em
Deus, fé em si, e fé no futuro!

Hoje porém, chorâmos esses tempos.... nada mais............

........................................................................
........................................................................

E como não estremecer de mágoa e de orgulho a um tempo ao recordar essas
paginas d'ouro em que a nossa historia se espelha, reproduzindo-nos a
toda a hora, a todo o momento os feitos maravilhosos dos conquistadores
de Ceuta, Tanger, Anafa, Mazagão, Azamor, Alcacer-Seguer, Tetuão e Azafa?

Como não pasmar á vista deslumbrante d'este panorama de nobres
recordações e eterna saudade, que nos mostra as acções façanhosas de um
punhado de homens, que levados do amor da patria e do brio nacional
penetravam as lapas mais escuras, subiam os pincaros mais elevados,
rompiam bosques, desciam fragas e alcantís medonhos, e atravessavam os
sertões mais intransitaveis, e perigosos, sem recuarem diante da
natureza, dos homens ou das feras.

E será raro hoje encontrar homens como D. Fernando, D. João de Menezes,
D. Vasco Coutinho, Nuno Fernandes de Athayde, Lopo Barriga, D. Duarte,
denominado o Achilles africano, e o Conde D. Pedro?

Não o sabemos.

O que é certo é que todos estes combatiam sem descanço, e nunca as
terras da Africa os viram voltar ao costas, a não ser já sem vida.

E não será honroso descender de taes heroes?

De certo.

      *      *      *      *      *

Estava portanto D. João em grande apêrto quando lhe occorreu um meio
verdadeiramente providencial.

Havia ficado em Arzilla uma cadella de um morador de Tanger, e assim,
lembrou-se D. João de lhe amarrar ao pescoço uma carta com a noticia do
que se passava, e de a espancar de modo que fugisse em busca do dono.
Assim aconteceu.

Foi levado o bom do animal para a praia de Arzilla e alli açoutado, até
que desappareceu para o lado de Tanger, para onde o instincto o guiava,
a dôr o conduzia.

No dia seguinte, ao romper d'alva, chegou o novo mensageiro ás portas de
Tanger, lasso do caminhar constante e longo.

Era de vêr como foi festejada e admirada a lembrança feliz de D. João,
bem como o instincto fino da cadella.

Começava já então a mover-se o exercito mourisco, que distava dez tiros
de canhão.

Foi immediatamente posta em armas toda a guarnição, e em todos ardia o
fogo ambicioso da gloria.

Mandou D. Rodrigo formar um esquadrão mais luzido do que numeroso, que
sahiu ao campo a esperar os inimigos, que julgavam colhêr os portuguezes
descuidados.

Mas não succedeu assim.

Dêmos mais uma lição a estes barbaros,--exclamou D. Rodrigo ao sahir as
portas de Tanger--mostrêmos-lhes que sômos os mesmos portuguezes que os
temos vencido sempre.

As tropas portuguezas ouviram estas palavras com um excesso
d'enthusiasmo, e sahiram a encontrar as hordas barbarescas.

Chegaram finalmente os mouros.

Mal se poderá avaliar o assombro que os acommetteu logo que encontraram,
contra a sua expectativa, tropas portuguezas fóra dos muros, á sua espera.

Travou-se o combate, asperissimo combate foi elle, em que os nossos
sustentaram por espaço de duas horas e meia o peso enorme de tão grande
exercito.

Estavam todos os campos vizinhos juncados de tropas inimigas. E nós
eramos um contra cem!! A pequena guarnição de uma praça contra o poder
de um exercito commandado pelo proprio rei em pessoa!!!

Foi então que mais uma vez obraram os portuguezes acções que hão-de em
todos os tempos deixar muda a eloquencia.

Os mouros combatiam como tigres selvagens que irrompem das suas jaulas
de ferro, mas vinham enfiar-se nas espadas e nas lanças dos briosos
defensores de Tanger.

Lucta encarniçada foi esta.

Esteve por momentos duvidosa a peleja, mas finalmente foi tal a multidão
de Kabylas que acudiram de refresco que os nossos capitães julgaram mais
acertado ir cedendo campo aos infieis.

Era demasiadamente grande a desigualdade do numero.

Foram-se portanto recolhendo os portuguezes em boa ordem e sempre com a
frente para os mouros, mas houve alguma difficuldade nas portas de
Tanger, porque estes fizeram esforço para entrarem de envolta com os nossos.

Custou muito detêl-os, por cambaterem então mais furiosos, mas as
adagas portuguesas souberam fazel-os recuar.

      *      *      *      *      *

Teve então lugar um acto de valor; practicou-o Ruy Martins, soldado de
reconhecido merito militar. Foi este o ultimo que entrou, deixando a
porta meio aberta, pelo que instaram seus companheiros que a fechasse de
todo, ao que respondeu elle com a arrogancia militar, digna de um
bravo:--não convém essa medrosa prevenção ao brio portuguez; que eu só
defenderei a toda a mourama o que resta por fechar.

Mal soltou estas palavras, já estavam ellas reduzidas a factos.

Os mouros intentaram forçar a entrada, mas repelliu-os elle por tal
arte, que acharam mais prudente o retirarem-se.

Eis aqui como ha mais de tres seculos eram temidas as quinas portuguezas
nas terras d'Africa.

Hoje porém representam outros povos no grande drama da civilisação.

E lá está a Hespanha a braços com a Mauritana, como para continuar a
obra gloriosa de D. João I e D. Affonso V.

Eia, hespanhoes, é tempo de apagar a opinião desfavoravel em que ereis
tidos pelas grandes potencias, com o aniquilamento d'esses barbaros que
ahi jazem á beira da europa, ennodoando a moderna civilisação com as
atrocidades mais inauditas, mais revoltantes, e mais selvagens.



NOTA


Tanger, Arzilla, assim como, Alcacer-Seguer foram conquistadas aos
mouros no reinado de D. Affonso V, em cuja menoridade era então regente
seu tio o Infante D. Pedro. Desde então por diante continuaram as
grandes descobertas maritimas ao longo da costa Occidental d'Africa até
ao golfo de Guiné, onde se encontraram as ilhas de S. Thomé, Principe,
Anno Bom, Corisco, Fernando Pó, das quaes as ultimas tres pertencem hoje
aos hespanhoes.

No reinado de D. João III perderam os portuguezes Safi, Azamor,
Alcacer-Seguer e Arzilla.



Assigna-se e vende-se em Coimbra, na livraria do sr. J. de Mesquita, rua
das Covas, e no Gabinete do _Instituto_, rua Larga.

Para os srs. assignantes... 100 réis.

Avulso... 120 réis.





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