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Title: Scenas da Aldeia
Author: Miranda, A. Augusto de
Language: Portuguese
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A. Augusto de Miranda


SCENAS DA ALDEIA



Editor

A. Augusto de Miranda

                 1909



SCENAS DA ALDEIA

Compos. e impres.--Typ. Universal
54, Trav. de Cedofeita, 56
e Rua das Oliveiras, 75, 77 Porto



A. Augusto de Miranda


SCENAS DA ALDEIA



PORTO
Typographia Universal, a vapor
75, Rua das Oliveiras, 77
1909



_Ao Ill.mo e Ex.mo Snr._

Conselheiro Albano de Mello

    _Permitta-me V. Ex.ª, confidente das vicissitudes que tem agitado a
    minha vida de ha sete annos a esta parte, que eu colloque o seu nome
    illustre nesta pagina d'esta insignificante producção litteraria,
    que para V. Ex.ª só tem o merecimento de ser um testemunho de
    gratidão._

                                                        _A. A. Miranda._



AOS MEUS PROFESSORES


Aos meus Condiscipulos


AOS MEUS AMIGOS



                                                           _Meu amigo:_

_As resumidas linhas em que eu condensarei as impressões que da leitura
do seu livro me ficaram não podem constituir, de fórma alguma, isso a
que, nas nossas lettras, se chama--um prefacio. Serão apenas uma ligeira
carta sem subtilezas de critica profunda--a critica que nunca soube
formular, porque os criticos são personalidades todos de intellecto
raciocinado e frio e eu sou um homem todo de emoções._

_Esses criticos diriam ao meu amigo que as obras realisadas aos vinte
annos não deviam ser atiradas aos alaridos da publicidade sem que
primeiro os seus auctores tivessem, além de um exacto conhecimento da
vida, completamente afinadas as suas faculdades d'observação, e sem que
o seu temperamento esthetico adquirisse uma perfeita sagacidade, para
que depois, já em pleno triumpho, não se arrependessem dos
inconsiderados impulsos da juventude. Eu, pelo contrario, digo-lhe que
nenhum escriptor deve envergonhar-se da sua actividade artistica dos
primeiros annos, mesmo quando na superior florescencia do seu talento um
dia sentir a viva anciedade de vêr como principiou. Os trabalhos da
iniciação representam até um documento essencial para o estudo das
intelligencias evolutivas e ascendentes..._

_Não affirmarei que o seu livro seja impeccavel. Nem o meu amigo terá a
vaidade d'assim o julgar nem eu desfiguraria a verdade simplesmente para
ser-lhe agradavel--e isto pela viva sympathia que me inspirou. A
novella, para que a illumine a belleza, carece de unidade de concepção e
de realisação, da plasticidade e do vigor da fórma, da perspicacia da
analyse psychologica, de dextreza na modelação das figuras, da
diversidade dos coloridos na pintura dos scenarios: e estes dons apenas
advêm da tenacidade disciplinada e do estudo, porque ninguem nasce com
um quinto sentido capaz de tudo adivinhar e tudo comprehender._

_Não lhe esconderei, no emtanto, que o seu livro me communicou um certo
prazer espiritual pela sua candura, pelo poetico sentimento que
enternece algumas paginas--que é o sentimento d'uma alma pura e com
finas delicadezas emotivas. Ora isto indica, no escriptor que agora
começa, um evidente talento ainda balbuciante mas que ardentemente
deseja orientar-se e que virá a impôr-se ás admirações se fôr animado
por uma vontade sem desfalecimentos. E tão certo estou d'essa victoria
futura que desde já calorosamente o applaudo, lamentando no emtanto que
para a sua apresentação se houvesse lembrado do meu nome humilde e sem
auctoridade para estas ceremonias solemnes._

_Porto, 5 d'Abril de 1909._

                                               _Amigo muito affectuoso_

                                                           João Grave.



PROLOGO

Ex-alumno de um dos seminarios da diocese do Porto e actualmente
estudante mediocre do lyceu, dou á luz o producto de tres longos mezes
de trabalho para a consecução do qual tirei instantes preciosos
destinados á ardua tarefa de que depende a minha vida futura--tarefa
tanto mais ardua, quanto mais consideradas sejam as minhas escassas
luzes intellectuaes.

Eis aqui, pois, uma obra que, apreciada por todos os lados, só tem valor
por ser o fructo de um trabalho em que gastei, mórmente durante um bom
mez, uma parte do tempo precioso destinado ás minhas lições. É
appellando para essa attenuante que espero merecer a complacencia do
publico em geral--tanto dos que convivem commigo de perto e que, vendo
em mim um individuo sem aptidões para qualquer ramo do saber humano, vão
ficar admirados da ousadia de semelhante passo, como dos que, sem nunca
sequer me terem visto, esperam encontrar neste pequeno livro a summula
do valor d'uma intelligencia promettedora que começa a manifestar a sua
tendencia.

Á minha inaptidão vem juntar-se a inexperiencia dos meus vinte e tres
annos; e assim é que o meu livro, fatalmente eivado de todas as especies
de imperfeições, só por uma disposição do leitor benevolo para uma
extraordinaria condescendencia, poderá ser absolvido das faltas que
inconscientemente commetti.

Abstenho-me de appellar para a complacencia dos meus companheiros e dos
meus collegas em geral, porque elles, mais que ninguem, avaliam as
difficuldades com que eu deveria luctar para conseguir o meu intento.

Ha seis mezes, approximadamente, publiquei no _Correio d'Albergaria_ um
artigo sobre a vida do Belbuth, que subordinei ás Scenas da Aldeia, que
eu declarei em preparação, mas que ainda existiam em projecto na minha
mente. Passados perto de dois mezes dei principio ao meu trabalho e
publiquei então no mesmo jornal um excerpto sobre a transformação
psychica de Maria Luiza.

Por varias vezes hesitei se deveria continuar esta empreitada que me
preoccupava o espirito, desviando-o do cuidado dos meus affazeres
quotidianos, e absorvia o melhor do meu tempo que eu não podia dispensar
sem prejuizo das minhas obrigações.

Mas, quando no meu espirito se travava a lucta da obrigação com a
devoção, esta acabava por triumphar, coadjuvada por uma promessa que, de
caracter inteiramente intimo, eu tinha feito um dia.

O meu livro está impregnado, na sua essencia, de um pronunciado sabor
religioso, porque julguei que, tirar á simplicidade da vida aldeã o
sentimento religioso, que caracterisa os seus costumes, era despil-a
d'essa graça original e tão cheia de poesia que lhe dá todo o seu valor;
julguei que era arrancar á vida da aldeia a sua alma.

Obedeci a esse principio, e não á gratidão com que retribuo a meu
pae--um padre catholico que obedeceu ao dever da sua consciencia e do
seu coração quando me perfilhou--os desvelos que um filho recebe de seu
pae carinhoso. Nem tão pouco obedeci á doçura dos fructos que deveria
ter colhido da minha reclusão de alguns annos num seminario.

D'este só me lembro com mágua, quando considero a falta que me fazem os
annos que lá gastei inutilmente. De resto, repressões, o pouco respeito
com que os padres tratam um homem de vinte annos, etc., tudo isso lhes
fica em caracter, e é tudo com o fim de amoldar ao seu o caracter dos
alumnos: finalmente, cumprem o seu dever, porque são, por assim dizer,
uns criminosos inconscientes.

D'elles só conservo um resentimento: alimentarem animadversão contra a
minha terra--Aveiro, talvez por causa das suas tradições de inimiga da
hypocrisia.

Um, chegou a dizer numa aula, na minha presença--quando se discutia no
parlamento o projecto do caminho de ferro do Valle do Vouga--que todos
os que se deixaram levar pelas palavras de José Estevam foram uma corja
de brutos--palavras textuaes--porque a variante da linha ferrea que
então se construiu, além de acarretar enormes dispendios á companhia,
prejudicava immenso, por causa d'uma terra _que não prestava para nada,
sem valôr nenhum_, toda esta região que anceava pela execução do caminho
de ferro do Valle do Vouga.

Tirado d'isso, não tenho d'elles resentimento nennum. Apenas tiveram,
com o culto das suas virtudes, o poder de me abalar algumas [crenças]
que levava arreigadas no coração, e de apagar outras. Se ha quem diga
que actualmente já se não fazem milagres, ou nunca houve quem os
fizesse, engana-se.

Já vê, pois, o leitor, que sou religioso e sou christão; não sou,
talvez, catholico, mas isso dá-se na maioria dos padres, se não na sua
totalidade.

Ponto final sobre este assumpto. Não vá o meu livréco parar ao _Index_.

Terminando este prologo, nada mais tenho a fazer que impetrar mais uma
vez do leitor benevolo a sua complacencia que, em vista das razões que
expuz, não deixo de merecer com alguma justiça; e, confiado em que a
minha petição não será infructifera, agradeço-a antecipadamente, e deixo
aqui consignado tambem o meu agradecimento pelos preciosos momentos que
o leitor haja de dispender na leitura d'este ensaio.


Aveiro, março de 1909.



SCENAS da ALDEIA


I

Na margem direita do Vouga, a cerca de doze kilometros da sua foz,
espreguiça-se indolentemente, numa série de formosos outeiros e encostas
de suave declive, uma aldeia.

A vista das casas disseminadas, como que em monticulos, por entre o
verde das arvores e dos pinheiraes numa extensão de mais de quatro
kilometros, suggere-nos a ideia de que Deus as atirara para cima da
verdura d'aquellas collinas, como o lavrador atira a mão-cheia da
semeadura á terra fecundante.

Mirando com galhardia do alto dos seus outeiros os logares que lhe ficam
proximos, ella parece sorrir-se com aquelle sorriso de superioridade que
uma mulher, conscia da sua formosura, lança áquellas que não receberam
da natureza os dons com que ella foi dotada.

Bafejada pela amenidade do clima e pela limpidez e doçura de um ar
diaphano, as suas melênas são brandamente agitadas pelo sopro suave duma
aragem fagueira, e a fimbria do seu vestido, d'um verde puro da
vegetação do campo, é banhada pelas aguas transparentes do meigo e terno
Vouga.

Eis, em simples bosquejo, o que é essa aldeia que se chama Alquerubim.

Alquerubim!

Só o nome é bonito! Parece que nos deixa nos ouvidos um tinir semelhante
ao de uma gargalhada innocente e ingenua d'uma creança!

Pensareis talvez que estas palavras são a expressão expontanea do
sentimento que me inspira, como a todos nós, a evocação da terra que me
viu nascer.

Não.

Quando pronuncio a palavra «Alquerubim», a minha alma não experimenta
aquella sensação que nos faz pulsar de enthusiasmo o coração quando
pronunciamos o nome da terra em que pela primeira vez abrimos os olhos
no mundo; porque não foi alli que sorvi os primeiros tragos de leite no
seio materno.

Mas se não foi alli que lancei os primeiros vagidos, foi comtudo onde a
minha juventude deslisou suavemente como um murmurante arroio serpeando
por um prado tapetado de boninas e violetas.

É por isso que, ao evocar esse nome, o sentimento que brota dentro do
meu peito, se não tem o vigor patriotico, tem comtudo uma doçura
inexprimivel--a saudade.

Nessa aldeia, uma saudade me ficou entrelaçada com os ramos de cada
arvore; em cada rua, uma gotta de sangue dos meus tenros pés feridos por
uma pedra desligada da calçada; em cada salgueiro sobranceiro ao Vouga,
um pedaço da minha alma... Por isso, ao recordal-a e ao contemplal-a,
invade-me a mesma tristeza que invade uma pomba que, depois de ter, em
manhãs frescas do vêrão, adejado mansamente sobre um campo tapetado de
verdura, o vae encontrar, no inverno, sepultado nas aguas.

Acaba de passar sobre o meu dôrso o frio do meu vigesimo segundo
inverno. Acabo de transpor o atrio do edificio que se chama--Vida. E,
ainda que na primavera da minha mocidade, tenho comtudo já sido açoutado
por vendavaes ferozes. É no meio das tormentas que tão cêdo começaram de
me assaltar, que eu procuro refocilar o espirito e fortalecer o coração
nas dôces recordações da minha juventude.

Ao fazer retroceder o pensamento por esse caminho orlado de odoriferas
madresilvas e tapetado de violetas aromaticas, sinto que do meu intimo
se eleva um não sei quê parecido com um fumosinho que vem
condensar-se-me nos olhos. Lagrimas? Não. Não chega a formar gottas. Um
nevoeiro que me tolda a vista, mas muito tenue, que eu considero o
chorar da alma. Porque a alma tambem chora.

Nas horas de angustia, quando uma nuvem me obscurece o horisonte,
percorro com o pensamento esses caminhos silvestres por onde tantas
vezes andei horas esquecidas á procura de ninhos; supponho-me deitado na
caminha de ferro que minha mãe comprara para mim e quando, aos domingos,
ao ouvir o badalar do sino logo de manhãsinha, eu me levantava, lavava,
e minha mãe ia ajudar-me a vestir a roupa nova para ir á missa; e eu lá
ia, muito serio, ao lado de minha mãe, com uma bengalinha de bambú que
me tinham dado, e depois da missa voltavamos para casa, eu almoçava e em
seguida ia brincar, a maior parte das vezes para o campo, com os meus
companheiros. Recordo-me d'estes com saudade, alguns dos quaes, talvez
mais felizes do que eu, já morreram, e outros, andam muito longe, alguns
nem eu sei por onde, luctando com a vida, abreviando os annos da
existencia...

E nestas recordações sinto um bem-estar indefinivel que, commovendo-me,
attenuam os dissabores da minha vida presente.

Oh! Quem me dera voltar aos dias da juventude! Tornar a gosar a unica
felicidade que nos é dado gosar na vida!... Impossivel! A vida tem o seu
movimento como as aguas do meu querido Vouga que vae morrer ao mar. Elle
tambem não retrocede ás suas montanhas para d'alli voltar, em suaves
murmurios, a beijar as melênas dos sinceiraes o ouvir os dôces cantares
das camponêsas em dias estivos e mitigar a ardencia de tantos peitos
apaixonados...............................................................
..........................................................................

Meu caro leitor, se és cidadão, se passas a vida na atmosphera doentia
da cidade, vem commigo á minha aldeia. Aqui, n'este paraizo, serás o
Dante e eu serei Beatriz.

Verás maravilhas: mas não as maravilhas que nos fazem arregalar os olhos
de espanto e que tens em abundancia na tua cidade. Verás maravilhas da
natureza que nos sensibilisam a alma e dulcificam o coração.

Serás conviva entre gente pobre, mas bôa, nas suas simples refeições;
serás testemunha e confidente de conversações despretenciosas e intimas
de paz, socêgo e alegria, á lareira, emquanto o vento zune lá fóra e a
chuva fustiga as folhas das larangeiras e entôa, nas telhas grossas da
choupana, a sua canção monótona; assistirás ás festas intimas dos
simples, ao seu labôr quotidiano, aos seus regosijos, ás suas alegrias,
aos seus pezares; palrarás com a gente do campo e estudarás a sua bôa
indole; espraiarás a vista por horisontes muito extensos, por sobre
montanhas longinquas; aspirarás a largos sôrvos o ar purificado pela
folhagem de centenares de arvores, cruzado pelo esvoaçar de milhares de
avesinhas silvestres e aromatisado pelo odôr de myriades de florinhas
espalhadas por estes campos além; e o teu rosto adquirirá as côres
róseas das pintadas maçãs camoêzas que aqui ha em abundancia.

Depois, quando voltares á tua cidade, levarás d'aqui profundas saudades;
a tua alma, ao recordares os mil encantos que a electrisavam, sentirá a
mesma commoção que sentiu a do velho Horacio, quando este inclito poeta,
vendo-se sem a tranquillidado dos campos, disse--_ó rus, quando te
aspicio!_--oh! campo, quando te tornarei a vêr!


II

O anno passado, n'uma manhã serena e fresca de maio, fui ao campo para
vêr nascer o sol.

Uma tenue claridade, precursôra do dia, innundava já o ambiente da
aldeia. O ar, sem um movimento, sem a mais leve aragem, conservava as
arvores em completo repouso.

O mez de maio é um bouquet formado de trinta e uma flores. Este dia era
uma d'essas flores, das mais formosas, de petalas mais coloridas e
frescas. Desabrochava garbosamente, acariciado pelo dôce orvalho da
madrugada.

Em frente das ruinas d'uma casa pequena, envolvida n'um massiço de
heras, cantava um rouxinol, pousado n'um sabugueiro. Parei, a ouvir os
seus trinados.

Nos requebros das suas melodias, nas inflexões dos seus variados
garganteios, havia um tão expressivo influxo de dôce sensibilidade, um
tão grande sentimento, que, sob a poderosa influencia d'aquelle
silencio--apenas entrecortado pela voz do rouxinol--que pairava em volta
de mim, eu, em frente d'aquellas paredes derruidas pelas quaes trepava
um massiço de verdes heras, sentia-me infinitamente pequeno--mais
pequeno que o rouxinol.

Absorvido na audição d'aquellas melodias que arrancavam á minha alma
vibrações d'uma indizivel doçura, e contemplando as ruinas d'aquella
casa que, talvez, outr'ora, tivesse sido uma mansão ditosa de felicidade
e amôr ou, quem sabe? de expiação para uma alma desditosa e amargurada,
debaixo da ascendencia que sobre a minha alma exercia a voz do rouxinol,
eu tive o desejo de saber a historia d'aquella casa; porque, com um
rouxinol ao pé a cantar melopêas tão sentimentaes que pareciam
repassadas de pungente saudade, a entoar canções tão tristes como a
solidão em que aquellas paredes estavam mergulhadas, ella devia ter a
sua historia, como a casa da Menina dos Rouxinoes de Almeida Garrett.

Parece que o acaso capricha em deixar ao abandono, para não serem
profanados, os santuarios onde uma alma apaixonada, ou edificada na
pratica da virtude, passou as horas tristes da soledade na mais santa
das resignações, palpitou-me que aquella casa devia tambem ter sido um
d'esses santuarios, e o rouxinol o musico, o cantor incumbido pelo
destino de acompanhar e realçar com as suas melodias sentimentaes
aquelle quadro de saudade...

Fui arrancado á minha meditação pelo ruido do rodar pesado d'um carro de
bois.

O dia aclarava progressivamente; por detraz da serra do Caramulo
estendia-se já uma faixa afogueada, que cada vez se ia alastrando mais.

Era a «bellissima aurora, coroada de resplendores e lirios», na phrase
de Vieira.

O rouxinol interrompeu a sua melopêa e fugiu do arbusto.

O carro approximou-se: trazia um arado e uma grade.

Um homem, que reconheci ser o tio Luiz da Nóra, vinha dentro d'elle,
arrimado a uma aguilhada. Ao pé de si vinham dois rapazes: um, dos seus
14 annos, encostado ao timão do arado; o outro, ainda creança de não
mais de 7 annos, encostado á sebe de vimes, as mãositas mettidas
profundamente nos bolsos do casaco que devia ter sido do irmão, pois não
era cortado segundo as dimensões do seu corpo.

--Eh! Tio Luiz! Bom dia.

--Olá! Bom dia, sr. Antonio. Então por aqui já, tão cedo?--Oh! Pára ahi,
_loura_! Oh! _castanha_!--Isso é que foi madrugar, hein?

--Que quer? Eu gosto muito de respirar este ar fresco e puro da
madrugada.

--Ah! é bom, lá isso é. Pois nós vamos alli abaixo lavrar uma terra para
semear milho. Vamos assim cêdo, que é para fugir ao calôr; porque ahi
por volta das dez horas, elle já apoquenta bastante quem anda no
trabalho. Lá os senhores, é como o outro que diz «se tenho frio vou-me
aquecer, se tenho calôr vou p'rá sombra!» e não sabem o que é andar a
puxar pelo corpo debaixo d'um calôr de rachar!

--Não sei, mas calculo. Mas, meu amigo, você não sabe que todos os modos
de vida têm os seus espinhos? Olhe que a vida do lavrador, apesar de
laboriosa, é a melhor que ha! Diga...

--Ai! ai! ai! Se vamos...

--Espere! Diga-me lá uma coisa: você faz lá uma pequena ideia do que é
uma pessôa levantar-se ao nascer do sol e dizer lá comsigo: «vamos agora
a vêr que tal está o milho d'aquella terra que eu semeei ha tantos dias;
preciso agora de fazer isto, fazer aquillo», etc., e, á noite, fatigado
mas contente, dando graças a Deus por lhe ter feito nascer o milho, as
ervilhas ou a herva muito bem, deitar-se socegado do espirito--do
espirito, que é o melhor socêgo!--e dormir a somno solto a noite
inteira! Você sabe lá quanto isso vale?

--Tambem não sei, mas calculo... Mas, se quer que lhe falle com
franqueza, eu trocava com todo o gosto esta vida, que vocemecê está
pr'áhi a elogiar, por um emprêgosito que me desse cinco ou seis tostões
por dia, sem precisar de calejar as mãos nem me vêr obrigado ás vezes a
levantar cêdo com um frio de rachar as pedras. Isso! Isso ó que é uma
vida bôa! Mas, com'assim, quem nasceu p'ra isto, d'isto não póde sair. E
vae a gente assim vivendo n'esta vida tão regalada, como vocemecê lhe
chama...

--Vê? Pois n'isso é que consiste a felicidade: não nos importarmos nem
ambicionar coisa nenhuma. Vive você resignado com a sua sorte, e não
aspira a outra melhor, partindo do principio que foi Deus ou o destino
que assim determinou...

--Pois é isso mesmo. Deus quer, não ha remedio senão sugeitar-se a
gente...

--Ora suppônha o meu amigo que lhe davam um emprego de quatro ou cinco
tostões diarios. Você, ao cabo de algumas semanas, começava logo a olhar
com olhos de cubiça o emprego d'um seu collega que ganhasse um ou dois
tostões mais; punha-se a metter empenhos, incommodava-se a pedir a uns e
a outros influentes politicos, arranjava o emprego, e, chegadas as
eleições, lá tinha de ir dar o seu voto pelo individuo que o favoreceu.
Depois, quando tivesse adquirido uma certa convivencia com essa gente
_fidalga_, como vocês lhe chamam cá, o seu ordenado tinha de ser muito
bem governado para chegar para as despezas caseiras e despezas de
vestuario, etc., para você se apresentar decentemente em publico.
Entretanto ia já deitando o olho a um logar mais vantajoso, isto é, mais
rendoso; supponhamos que o conseguia, e você talvez não saiba que os
empregos publicos, em regra, quanto mais bem pagos são, menos trabalho
dão. Você ia-se habituando a ganhar cada vez mais, e a trabalhar cada
vez menos. Começava o seu corpo a resentir-se do torpôr resultante da
inacção physica, e ahi estava o meu amigo e senhor Luiz atacado da mesma
doença que ataca quasi toda essa gente que só come borôa por desfastio.
La tinha de andar com trinta mil cuidados com o seu corpo, não apanhar
uma corrente de ar frio ou um boccado de sol, não comer de mais nem
d'isto, nem d'aquillo, etc., etc., mil trapalhadas!

--Mas ao menos, ganhava dinheiro que chegasse para tudo isso...

--Podia ganhar e podia não ganhar. Olhe, meu caro: não ha vida como a de
lavrador. Creia! Olhe que eu digo isto com franqueza.

--Mas então porque é que o sr. não tomou esta vida?

A pergunta do tio Luiz deixou-me um pouco embaraçado, e pude
tartamudear:

--É que... bem vê, o mundo é assim... Nós vamos para onde nos
encaminham...

--Ah! Ah! Ah! Será melhor mudar de conversa; vou-me á minha vida, que
está o sol quasi a nascer. Para esta vida--acrescentou elle, rindo-se
zombeteiro ainda do meu enleio--de que o sr. tanto gosta! Ah! Ah! Ah!
Venha d'ahi no carro até alli abaixo, quer vir?

--É verdade. Já o pudera ter feito, escusava você de estar a perder o
seu tempo.

--Ora essa! A grande coisa! Suba! Suba! Eu é que me devia de ter
lembrado d'este offerecimento ha mais tempo.

Saltei para cima do carro, segurei-me com uma das mãos á sebe e o tio
Luiz, tocando levemente com a extremidade da aguilhada no lombo das
vacas, exclamou, na palavra consagrada para pôr o gado bovino em
andamento:

--Eixe!

O carro poz-se em movimento.

--Diga-me cá uma coisa, ó tio Luiz: de quem foi ou quem viveu nesta
casa, que alli está em ruinas?

--Esta casa? Aqui foi onde viveu, em solteira, aquella brasileira, ou,
por outra, a mulher do brasileiro que móra acolá em cima na Herdade.

--Ah! Bem sei! Por signal que até a vida d'essa mulher em solteira é
muito interessante.

--Coitada! Foi infeliz e causou bastantes infelicidades. Mas
arrependeu-se, e depois o que soffreu e fez soffrer foi bem descontado.

--Mas o que acho esquisito é eu ter aqui passado tantas vezes e nunca
reparar para a casa senão hoje. E estou meio impressionado. Diabo! Estou
capaz de escrever a historia da casa. Você que diz, ó tio Luiz?

-Ah! Ah! Ah! A historia da Maria Luiza, que morou nella! Faz muito bem,
e olhe que é uma historia bem bôa, além de ser verdadeira, que é o
principal!

--Pois está dito. Não descansarei emquanto a não escrever. Mal ou bem,
depressa ou devagar, ella ha-de sair!

--Ó senhor Antonio! olhe que eu depois quero tambem...

--Descance, que ha-de ser você talvez a primeira pessôa que nesta
freguesia ha-de têl-a.

--E isso levará muito tempo, ó sr. Antonio?

--Leva, leva! Vê que a minha vida não me permitte dispôr de muito tempo
para isso. Com certeza que antes de tres ou quatro mezes não a escrevo.
Depois...

--Sim, sim! É preciso tambem depois _imprensal-a_, e tudo leva tempo.

--Pois é isso. Antes de meio anno ou mais, você não a vê.

--Seja lá quando fôr! Mas que Deus não me mate sem a ouvir lêr. E olhe
que ha-de ser vocemecê que m'a ha-de lêr, ouviu?

--Está dito.

O carro seguia por entre duas alas de salgueiros viçosos, cheios de
orvalho, que rolava das suas folhas verdes como perolas da mais fina
transparencia.

O Vouga, a uns duzentos passos, deslisava silencioso. Nas suas ribas
semelhantes a dous grossos cordões que tarjavam o seu leito, os
passaritos, esvoaçando e chilreando, numa alegria infantil, cantavam a
alvorada.

Numa encosta proxima, a vidraça duma janella reflectiu um clarão--era o
sol que emergia por detraz da serra, cujo dorso gigante parecia em fogo.

O tio Luiz fez parar as vaccas, e disse:

--Agora vamos á nossa lida.

Emquanto saltei, respondi:

--Vão, vão; que se não fosse eu, já vocês tinham um bom par de leiras
lavradas.

--Que tem lá isso! retrucou elle bondosamente. Mal tinhamos tempo de pôr
as vaccas á charrua!

--Olhe lá! Que vem cá fazer o petiz? perguntei, indicando o pequeno que,
lesto, saltara do carro e se preparava para fazer algum trabalho; não
podia ter ficado a dormir?

--Quer vir, deixal-o vir! É para se ir acostumando. Como já chega a uma
prateleira que lá tenho na cozinha, diz que já é um homem. Que quer que
lhe faça?

      *      *      *      *      *

Quando me retirei--já o sol ia alto--o tio Luiz lá andava a revolver a
terra, agarrado á rabiça do arado, o dorso meio curvado pelo esforço.

Preparava a terra para lhe lançar os grãos, cada um dos quaes se
multiplicou em dezenas d'elles.

Semeado naquella manhã formosissima de maio, o milho nasceu, passados
alguns dias, lindo e verde: lançou raizes, cresceu, desenvolveu-se; foi
sachado, mondado, arrendado e, por fim, cortado.

Durante os mezes que esteve na terra, mereceu ao lavrador cuidados e
caricias verdadeiramente filiaes.

Trabalhos e fadigas, chuva e calôr, tudo soffreu resignado, sempre na
sua fronte estampada a alegria e no seu coração a esperança...--A
esperança de quê?

Nem elle o sabe, o lavrador.

Amando religiosamente a sua aldeia, alli vegeta sem ambições,
idolatrando os torrões que seus paes regaram com o suor da sua fronte,
colhendo os fructos das arvores que elles plantaram, e plantando outras
de que seus filhos depois colherão os fructos.

E, sem o saber, vive feliz. Deus compensa-lhe as horas de labor insano
com instantes de suprema ventura, passados, sem preoccupação de
espirito, no dôce convivio da familia reunida em volta da lareira nas
noites amenas do outomno.

Todos os dias, á hora crepuscular da tarde, quando um socêgo religioso
repousa sobre a aldeia depois do toque cheio de ternura das Avè-Marias,
a sua cozinha denegrida, mas alegrada pela claridade intensa duma
robusta fogueira, transforma-se em um cenaculo onde reina a paz e o
amôr; a familia inteira, collocada a magra mas abundante refeição da
noite sobre a tosca mesa de pau de pinho coberta por uma grossa toalha
de estopa, senta-se em volta radiante, semelhando os discipulos do
Nazareno na noite da ultima ceia.

Entretanto, cá fóra, cortando o socêgo da noite allumiada pelo meigo
luar ou pela claridade das longiquas estrellas, o sino da egreja começa
a dobrar ás almas, segundo o tradicional costume da aldeia,
repercutindo-se o som de valle em valle, pelos campos além, penetrando
os limites da freguezia visinha, até se perder na solidão da noite...


III

O tio José da Alameda era uma bom velhote de perto de setenta annos.

Curvado pela dureza do trabalho de mais de meio seculo, dentro do seu
peito rijo existia um coração sempre jovial e bondoso, cuja ternura se
derramava em obras caridosas com que accudia aos infelizes, e uma alma
candida que logo se manifestava na ternura do olhar com que a todos
envolvia.

Enviuvara antes dos sessenta annos e possuia dois filhos: o mais velho,
mocetão de vinte e quatro annos, era um rapaz cheio de vida, alegre e
bondoso, a flôr dos mancebos da freguezia. O segundo filho era uma
rapariga de dezoito annos--o terceiro filho do casamento do tio Alameda
com a sr.ª Maria das Dôres--chamada Helena, possuidora de uns olhos
que--não é por eu gostar de olhos escuros em rosto moreno--lhe diziam
tão bem, naquelle seu troso trigueiro e encantador, que não havia rapaz
nenhum na aldeia que não desejasse andar toda a vida perdido na
escuridão d'aquelles olhos. E quando ria, deixava vêr, por detraz de
dois labios nacarados que deviam ser dôces como favos de mel, duas filas
de dentes brancos como a neve pura.

A familia do tio Alameda, além d'elle e dos dois filhos, compunha-se de
um creado, rapazote de 17 annos, chamado Paulo, fallador e alegre, que
para alli tinha ido aos doze annos; e de uma rapariga de quinze, uma
pupilla que, orphã de pae e de mãe, encontrara nos braços do tio Alameda
os carinhos paternaes que tão cedo lhe faltaram.

Chamava-se Julia. Tendo ficado sem mãe aos cinco annos, a infelicidade
vibrara-lhe novo e mais profundo golpe arrebatando-lhe, no principio da
adolescencia, o pae que a estremecia e que era o seu unico amparo.

Foi então que a misericordia do tio Alameda se patenteou devéras; porque
o moribundo, reconhecendo que a sua pobre Julia não podia ficar só no
mundo, mandou, na hora extrema, chamar o tio Alameda e disse-lhe numa
voz apagada e apertando nas suas mãos febris as do bondoso velho:

--Tio José... esse anjo, que ahi está a chorar... vae ficar sem ninguem
no mundo...

--Descança, João; dizia-lhe o tio Alameda com as lagrimas nos olhos e
limpando-lhe o suor que escorria da fronte ardente; descança, que a tua
Julia fica na minha companhia.

O moribundo, em agradecimento, apertou-lhe a mão que segurava na sua que
caiu pezada sobre o leito, e duas grossas lagrimas rolaram-lhe pelas
faces mortalmente pallidas.

Desde esse dia, Julia ficou fazendo parte da familia do tio Alameda.

--Olha o que te digo, pequena--dizia-lhe elle carinhosamente uns dias
depois da morte do pae. Tu agora és minha filha. Deus levou uma que eu
tinha e mandou-te a ti em seu logar: voltei a ter tres filhos. Mas tu
não has-de andar sempre a chorar! Isso são saudades, é certo, e as
saudades dos paes nunca se acabam. Mas faze-me a vontade; eu não posso
vêr ninguem a chorar.

E o bom velho passava-lhe com carinho a mão pela cabecita loira.

--Sabes? Eu tambem chorei quando era novo, quando não conhecia ainda o
mundo. Mas depois que comecei a tomar conhecimento d'este mundo todo de
enganos, deixei-me d'isso. Se fosse a chorar todas as vezes que tinha
motivo para isso, então não fazia outra vida.

A contradizer as suas palavras, duas lagrimas lhe assomaram aos olhos.

--Olha: vem para a cozinha. Vem para junto da Helena que está a fazer a
ceia, e espairecer.

E pegando-lhe docemente na mão, obrigou-a a seguil-o.

--Helena? chamou elle ao transpor a porta da cozinha; é preciso que o
Belbuth venha cá hoje. Quando os rapazes voltarem do trabalho, o Paulo
que vá vêr se o encontra. Precisamos de nos rir um pouco com as suas
chalaças, para distrahir esta pequena, que não faz senão chorar.

Quem não conheceu o Belbuth, em toda a freguezia, ainda não ha muitos
annos?

Quem ha ahi que se não recorde d'esse velho, rijo como um pêro, e que
contava cerca de cem annos quando morreu?

Apparecia em todas as casas onde lhe podessem dar uma côdea e uma
tigella de caldo, ou um ninho no palheiro para passar a noite, em troca
de reduzir a achas o tronco duma arvore, sempre com aquella physionomia
austera e encarquilhada debaixo d'um chapeu velho que cobria dois ou
tres barretes sobrepostos e enterrados na cabeça.

Chamavam-lhe tolo. Eu direi que era um «tolo com juizo». Sim; porque
trabalhava. Um homem que, para receber uma esmola, offerece o braço,
embora vacillante pela decrepitude, ao seu bemfeitor, tem o instincto de
uma boa acção. E que melhor acção pode haver que o trabalho?

O Belbuth não era, pois, um tolo na verdadeira significação da palavra.
Não fazia diabruras. Não se ria frequentemente e sem motivo, como
succede tantas vezes com quem se arroga de ter a massa encephalica em
equilibrio. Os garotos atiravam-lhe pedras; eu tambem lhe atirei
algumas. E elle que lhes fazia? Por instincto de defeza e de
conservação, pegava tambem numa pedra ou num pau, e atirava-o, com
phrenesi, pela estrada adeante, não reparando nos estragos que podia
causar se viesse algum incauto. Era o unico indicio vago de loucura que
lhe conheci.

Os garotos, em regra, embirram com os velhos. Se estes dão _sorte_ têm
para pêras. Era o que se dava com o Belbuth.

Tirado d'isso, era um velho austero que devia gosar, porque a merecia, a
estima de toda a gente, em vista da sua edade avançada, e era, além
d'isso, uma testemunha das guerras peninsulares, em algumas das quaes
tomou parte.

Era para estes homens que os governos deviam tambem estabelecer pensões.
Dando frequentemente um ordenado supérfluo a um glutão, que passa a vida
regaladamente, em paga de meia duzia de assignaturas semanaes--e ás
vezes nem isso!--, deixam morrer na miseria, depois de em vida serem
escarnecidos--sómente porque eram pobres--homens que, outrora, no vigor
da mocidade, perderam, por amor da patria, o amor ao sangue que lhes
corria nas veias.

O Belbuth era apenas um miseravel, sem eira nem beira, possuidor dos
farrapos que o cobriam e ganhos a trabalhar, tendo muitas vezes por
habitação o ceu estrellado, sob o qual dormia, muitas outras vezes,
entre dois lençoes de neve.

Limitando o campo da sua vida de vagabundo á área d'esta aldeia, o
Belbuth era um typo popular de genio differente do de Luiz de Paus--um
outro vagabundo de espirito irrequieto, que vagueava ao acaso por esse
mundo como um cometa errando no espaço, apparecendo de tempos a tempos
no logar de Paus, d'onde era natural.

Sobre este contam-se vários episodios, alguns com bastante
originalidade, revelando o mau instincto do seu agente.

Conta-se que o Luiz de Paus apparecia com frequencia, quando soffria
crise o combustivel do seu apparelho digestivo, pelo quartel de
cavallaria 10 em Aveiro, onde era muito conhecido dos soldados, que lhe
matavam a fome com uma parcella que cada um tirava á sua lata de rancho.

Um dia passou por uma guarita onde um soldado estava de sentinella. O
Luiz de Paus approximou-se, e, vendo a arma encostada--pois a sentinella
estava a dormir--pegou nella e apresentou-se no quartel, tendo o pobre
soldado do responder a um conselho de guerra.

Desde esse dia o Luiz de Paus nunca mais tornou a ter entrada no
quartel.

Uma outra occasião, foi elle tocar os sinos a rebate numa freguezia
qualquer, alvoroçando o povo todo.........................................
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--Olha lá, ó Belbuth! Tu namoraste alguma vez?

--Se eu namorei alguma vez? O quê?

--O quê! Uma mulher! Pois que havia de ser, homem?

--Nada! Tive sempre mêdo desses demonios!

--Porquê? Fizeram-te algum mal?

--A mim não, porque eu nunca lhes dei confiança. Depois que vi o que
succedeu a alguns companheiros meus por causa de taes mafarricos, nunca
as pude vêr. Quer saber, tio José, o que succedeu um dia a um camarada
meu por causa d'uma rapariga?

--Conta lá.

--Aquillo, andam de combinação com o demonio! Um companheiro do meu
regimento arranjou conhecimento lá com um d'esses demonios qualquer;
quando veio ordem para o regimento partir outra vez contra os francêses,
acolá para uma terra que já me não lembra, o rapaz desappareceu. Logo
ordem para ser procurado antes do regimento partir, por esses campos e
montes. Partiram umas poucas de patrulhas para diversos lados, e eu fiz
parte d'uma.

«No segundo dia, foi a minha patrulha encontral-o num pinhal, alli para
os lados de S. Pedro do Sul. Nós iamos perguntando se tinham visto um
homem assim, assim: até que uma mulher, que andava a guardar umas cabras
nos apontou um pinhal. Quando viu que não havia meio de nos escapar,
poz-se de joelhos deante de nós, a chorar tanto, que era uma dôr d'alma!

«Prendémol-o e trouxemol-o, e elle contou-nos então pelo caminho que a
tal desavergonhada é que tinha feito com que elle desertasse.

--«E então que é d'ella? perguntamos-lhe nós.

--«Essa maldita, como eu tinha de andar escondido, emquanto andasse em
terras de Portugal, para me não conhecerem, enfastiou-se de tal vida e
abandonou-me.

«Pediu-nos então elle que o deixassemos vir á vontade, jurando que nos
não fugiria.

«Fizemos-lhe a vontade, e, na verdade, não nos fugiu; mas, quando
passavamos por uma ponte, atirou-se abaixo, e já o não tornamos a
apanhar senão morto.

«Tivemos de dizer que o encontramos já assim, para não sermos
castigados.

«E agora, diga lá, tio Alameda; eu, depois de uma coisa assim, podia lá
olhar com bons olhos uma mulher?

--Mas ellas não hão-de ser todas assim! disse, a rir, Helena.

--Pois sim: não serão todas. Mas, como a gente vê caras e não vê
corações, devemos jogar sempre pelo seguro; e quando se trata de
mulheres, perde-se quasi sempre!..........................................
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IV

Era em setembro, num domingo em que se festejava o santo Estevam, cuja
capella, assente na lomba do cabeço que se designa pelo nome do mesmo
santo, domina, para o sul e nascente, um panorama gracioso entrecortado
pela encosta de Travassô--uma encosta de aspecto taciturno, que olha com
melancholia toda a região opposta simetricamente, sobre a qual se
estende, beijada desde a manhã á tarde pelos raios do sol, a alegre
Alquerubim.

D'essa lomba vê-se espreitar, por uma clareira entre Alumiar e a ponte
da Rata, a região paludosa de que faz parte a magnifica e extensa
páteira de Fermentellos. E para a esquerda, estendendo a vista por sobre
o extenso planalto onde poisa a branca Mourisca, vê-se ao longe,
desenhando-se nitidamente sobre o fundo azul celeste, a serra do
Caramulo, com punhados de casinhas brancas a luzir no pardacento do
sopé.

Nesse dia, o cabeço do Santo Estevam apresentava-se galhardamente
revestido de alegres bandeiras que fluctuavam á viração da tarde como um
bando de pombas.

O sol, declinando no horisonte, despedia-se, atirando, como ternos
beijos, raios de calôr frouxo sobre o arraial onde a musica de S. João,
disposta em circulo, lançava aos ares harmonias que eram levadas, por
sobre montes e valles, a uma grande distancia.

Junto á capella, um rapaz de 24 annos, uma viola a tiracolo, encostado a
um varapau, ria e conversava alegremente com um grupo de moças.

Era o João do tio Alameda, o rei dos cantadores d'estes sitios.

Causava gosto vêl-o chegar a um arraial, viola em punho, encostar-se ao
seu bordão, e, depois de passar levemente o dedo pollegar da mão direita
pelas cordas da viola e ter dado tres ou quatro puxões numa ou noutra
caravêlha para afinar o instrumento, começar a dedilhar um
acompanhamento de fado. Punha-se a cantar e, entretanto, já cercado de
curiosos, não tardava que uma voz feminina lhe respondesse de entre o
circulo que o rodeava, e que logo se quebrava para dar passagem á
atrevida cantadeira. Porque, na verdade, era um atrevimento bater-se com
o João do tio Alameda.

A derrota era certa. Só havia uma que algumas vezes o levara de vencida:
era uma rapariga tronchuda, com um palmo de cara regular, muito alegre e
expansiva. Era a Maria Luiza.

Havia quem dissesse que o João se deixava algumas vezes vencer por ella;
e com certo fundamento se dizia isto, porque, no olhar com que a
envolvia, tão differente do que lançava ás outras, via-se
claramente--porque o amôr não pode estar em segredo--que ella não lhe
era indifferente.

--Olhae! lá acabou a musica! exclamou elle desandando para o meio do
arraial.

Arrimou-se ao cajado, collocou a viola em attitude, dedilhou as cordas
uma por uma, e, dando uma ultima demão á afinação, tirou um accorde.

Entretanto, uma compacta massa de espectadores o rodeavam--homens e
mulheres, novos e velhos, anciosos todos por presenciarem o debate do
«rei dos cantadores» com a Maria Luiza, a sua rival... Porque ella lá
estava, fresca como uma alface e risonha e purpúrea como uma papoila, em
frente d'elle que a envolvia num olhar todo affectuso e terno:

    --Se tu soubesses, menina,
    Quantas 'strellas ha no ceu,
    Saberias quantos suspiros
    Dá por ti o peito meu.

A sua voz era sonora e forte e elle cantava moderadamente, de maneira a
ser ouvido pelo grupo todo.

A Maria Luiza, fitando nelle um olhar de victoria, respondeu-lhe
sorridente:

    --Que importa o que diz um louco,
    Se falla sem sentimento?
    Cartas d'amor são papeis,
    Palavras leva-as o vento.

--Bravo! exclamaram do grupo.

--Sim, senhor!

--Responde-lhe agora, ó João!

--Essa chegou p'ra ti! Hein?

Elle sorria, como congratulando-se com a victoria do adversario.

    --P'ra que vaes, pois, ao sermão,
    Ouvir o padre prégar!
    Palavras leva-as o vento,
    Acabaste de o affirmar.

--Ah! Ah! Ah! Salvou-se, o maganão!

Mas ella não se atemorisou, e replicou, sempre no mesmo tom:

    --Palavras santas, eu ouço-as
    Com amôr e devoção;
    As que Satanaz profere
    Não me entram na coração.

..........................................................................

Quando terminou o debate, já o luar inundava o cabeço de Santo Estevam.

O arraial limitava-se ao grupo de curiosos, dos quaes muitos tinham
retirado, que rodeava os nossos joviaes contendores.

O João da Alameda rendeu-se mais uma vez, isto é, Maria Luiza alcançou
mais uma victoria sobre o invencivel cantador que, no seu intimo,
exultava com estas derrotas que, se lhe faziam perder terreno quanto á
sua reputação de eximio cantador, lh'o faziam ganhar por outro lado.

Quando todos se retiraram, aos bandos, cantando, em alegre expansão do
ardôr da mocidade, o cabeço lá ficou, na solidão da noite, triste, com
as bandeiras esmorecidas e a capella branca a luzir no alto, allumiado
pelo frouxo luar que parecia querer minorar-lhe as saudades d'aquelle
ditoso dia que só se repetiria d'ahi a um anno...


V

Na vasta eira do tio José da Alameda haviam-se despejado quatro enormes
carradas de milho para ser desfolhado numa bella noite, cheia de luar,
dos fins de setembro.

O Paulo tinha sido encarregado de convidar as raparigas, do que se saiu
optimamente, pois que affluiu alli o que de melhor havia no genero no
logar.

Eram oito horas, e já uma boa duzia de alegres moças estavam a contas
com o monte, numa satisfação propria da mocidade em occasiões de
folguedo.

Alguns rapazes iam chegando tambem, chamados pelas gargalhadas das
raparigas.

Não é uso convidal-os. «Elles cá virão ter» é a phrase consagrada.
Effectivamente, elles, de ouvido á escuta, collocam-se nas
encruzilhadas. Ouvindo cantar ou chegando-lhes ao ouvido o alarido das
vozes nas desfolhadas, ahi vão como o cão de caça farejando o rasto do
coelho até lhe dar com a cama.

--Eia! vamos lá a isto! gritava o João da Alameda, alapardando-se entre
a Maria Luiza e a Joanna Mulata. Isto é dar-lhe! Isto é dar-lhe! Em uma
ou duas horas está tudo prompto! Havemos de bailar ahi hoje até ao sol
fóra!

--Viva o rei dos cantadores da nossa terra! gritou um que chegou nesse
momento encafuado num gabão.

--Viva! gritaram todos.

--Obrigado! obrigado! dizia com bondade o João. Mas olha lá, ó tu do
gabão! Nós aqui não queremos caras encobertas. Tira o capuz da cabeça e
senta-te p'rahi como os outros. Já todos sabem que aqui, ás nossas
desfolhadas, só se vem de cara descoberta.

--E se eu não quizer? perguntou com falla ventriloqua o disfarçado.

--Se não quizeres, replicou o João meio azedo, vaes já pelo caminho por
onde vieste.

Todas as vozes se haviam calado, e o individuo retrucou, meio insolente:

--Ah! Ah! Ah! Sempre gostava de vêr isso!

O João da Alameda levantou-se colerico sem attender aos rogos dos
circumstantes nem ao gesto da Maria Luiza que, a tremer, lhe puxou pela
jaqueta.

Os rapazes imitaram-no levantando-se promptamente, e seguiram-no
dispostos a expulsar o insolente para evitar algum dissabôr maior.

O João dirigiu-se ao atrevido e este, na occasião em que elle estava a
dois passos, atirou o gabão ao chão, dizendo risonho:

--Olá, patrão?

O João da Alameda, vendo na sua frente Paulo, deteve-se como se uma
visão lhe houvesse de repente apparecido.

Ficou-se a olhar para elle, e todos com palmas, gargalhadas e motejos
inoffensivos, o decidiram a voltar para o seu logar.

--Boa partida! Ah! Ah! Ah! gritavam de todos os lados.

--Olha o espertalhão do rapaz!

O Paulo ria-se e foi-se sentar junto do monte de milho, contente com a
sua brincadeira que fez «ir á serra» o filho de seu amo.

O alarido restabelecera-se, e o João, fuzilado pelas chufas das
raparigas, continuou alegremente a sua tarefa.

O numero dos desfolhadores, augmentado pelos que iam affluindo ao local,
elevava-se já a algumas dezenas.

O montão de milho, ripado de todos os lados por aquellas dezenas de
mãos, desapparecia a olhos vistos.

--Ora Deus vos ajude, disse uma voz pausada e trémula.

Era o tio José que chegava, acompanhado de Helena e da sua pupilla,
trazendo numa das mãos uma tripeça.

--Viva, sr. José!

--Então tambem vem tomar parte na desfolhada ao pé da gente nova, hein?

--Com'assim!... É para me recordar dos meus tempos passados.

Entretanto ia-se ageitando na tripeça, entre Helena e Julia que ficara
junto a Paulo, e proseguiu, puxando por um pé de milho:

--Porque um homem, quando chega á minha edade, que outra coisa póde
fazer, para se não entristecer e não pensar na morte que se approxima,
do que alimentar o seu espirito com recordações dos tempos passados,
fingindo-se ainda nesses tempos que foram e não voltam?... E será este o
ultimo, quem sabe?...--ajuntou num tom contristado, dando um suspiro.

--Ahi vem o pae com coisas tristes! disse do lado, estouvadamente,
Helena. Não se quer cá tristezas! Quer-se alegria! Ora tapa a boquinha
alli ao pae com uma cantiga das tuas, ó João!

Todos approvaram a ideia de Helena, e o tio José, sorrindo bondosamente,
submeteu-se.

--Sim, sim! Uma cantiga! diziam.

--Muitas cantigas, muitas, ó João!

--Haja animação! Viva a mocidade! Eh! rei dos cantadores! Sae-te com uma
das tuas!

O bondoso rapaz, encolhendo os hombros em signal de resignação,
preparou-se para cantar.

Todos se calaram. Só se ouvia o murmurio produzido pelo rasgar
simultaneo das camisas de dezenas de espigas e o som monotono d'estas a
cair nos cestos de vime.

O João pegou num pé de milho, deitou um olhar de soslaio á Maria Luiza,
e cantou na sua voz sonora:

    --De tantas estrellas que ha
    Por'hi além nesses ceus,
    Eu não encontro nenhuma
    Comparada aos olhos teus.

E todos, unindo as suas vozes, d'entre as quaes sobresaía uma esganiçada
em falsete, repetiram em côro, que se repercutia de valle era valle, os
dois ultimos versos da quadra:

    Eu não encontro nenhuma
    Comparada aos olhos teus.

Elle continuou:

    --Ás ondas dos teus cabellos
    Gostava de me atirar;
    Teus olhos, faróes de esp'rança,
    Haviam de me salvar.

E o côro repetiu:

    Teus olhos, faroes de esp'rança,
    Haviam de me salvar.

--Isto é com a Maria Luiza, cochichou uma á sua visinha da direita.

--É, é! Se fosse de dia, havias de vêr a cara de malaguêta com que ella
deve estar.

    --E do que morrer amando
    Se não ha nada mais bello,
    Queria amando morrer
    Nas ondas do teu cabello.
         Queria amando morrer
         Nas ondas do teu cabello.

    --Amei um dia uma estrella
    Que vi lá no ceu brilhar:
    --Serei tua, me disse ella,
    Mas has-de vir-me abraçar.
         Serei tua, me disse ella,
         Mas has-de vir-me abraçar.

    --Dia de Natal hei-de ir
    Ao menino perguntar
    Qual será a rapariga
    Com quem eu hei-de casar.
         Qual será a rapariga
         Com quem eu hei-de casar.

    --E se não me responder,
    Pedirei a S. Joaquim
    Me dê a Maria Luiza
    Tão babadinha por mim.

O ultimo verso foi quasi abafado por palmas e gargalhadas e dictos dos
circumstantes. A Maria Luiza baixou a cabeça, e, com effeito, se fosse á
luz do dia, vêr-se-lhe-ia o rosto tingir-se de uma côr purpurina.

Na mesma occasião, um bando de rapazes que, ao approximarem-se do local
da desfolhada, se occultaram a ouvir o cantador, aguardando o final dos
seus improvisos para o acclamarem, sairam do seu esconderijo e
appareceram juntando ao alarido as suas exclamações e motejos
inoffensivos dirigidos á Maria Luiza que, na opinião d'elles,
encavacara.

--Ora deixem-se d'isso! deixem-se d'isso! Dizia o tio Alameda. Quero que
se divirtam, cantem e riam, mas nada de fazer «ir á serra» a ninguem.

Os recem-chegados dispozeram-se todos em volta do monte que já estava
reduzido a metade.

No meio da confusão d'aquellas vozes em que sohresaiam as estridulas
gargalhadas das raparigas, entre tantos corações jovens que, pondo de
parte todas as preoccupações, só cuidavam de dar curso ás catadupas do
ardor que d'elles dimanava, havia um coração joven, um coração de quinze
annos, amavel como o de um anjo e puro e sensivel como uma camelia de
cambraia fina.

Julia, desde o principio da desfolhada, parecera estar alheia a todo o
enthusiasmo que reinava em volta de si.

Paulo notou essa abstracção e, pondo de parte as attenções ao seu genio
folgazão, perguntou a Julia, com voz terna e compassiva.

--Então a menina para que está sempre assim triste? Nem ao menos agora
se alegra? Ha já mais de um mez que está nesta casa, e ainda não houve
um dia em que estivesse alegre!

Julia respondeu ás palavras compassivas e ternas de Paulo com um olhar
agradecido e ao mesmo tempo tão dôce, que elle, sentindo na sua alma
umas vibrações extranhas e no coração umas palpitações que jámais
sentira, baixou os olhos como uma creança envergonhada. Á luz da lua,
que dera em cheio no rosto de Julia, elle vira-lhe nos olhos duas
lagrimas, e nos labios brincar um sorriso candido de reconhecimento; e
na expressão desse rosto, no conjuncto das lagrimas com o sorriso
angelico desse rosto encantador, Paulo esqueceu-se de si, do logar onde
estava, do mundo onde entrara pela porta da infelicidade, e julgou ouvir
dentro de si uma musica celeste, de harmonias extranhas; pareceu-lhe
que, num sonho, vagueava sem saber por onde, talvez pelas nuvens, e que
só via deante de si esse rosto...

Despertou do seu curto êxtase, e olhou para Julia, que sorria para elle,
muito mais bella do que d'antes, com os seus cabellos loiros brilhando
como fios d'oiro e com os seus olhos azues que pareciam dois ceus
pequeninos toldados de nevoas.

--Oh! a menina chora?... pôde elle articular.

--Você, Paulo, parece ter muito bom coração; por isso deve entender que
tenho razão para estar triste, quando todos aqui riem e cantam. Você
ainda tem pae e mãe?

--Não sei!... murmurou elle quasi imperceptivelmente e profundamente
triste.

--Não sabe?!... disse ella verdadeiramente admirada.

--Não, porque nunca os conheci... Julia, intrigada, ficou a olhar para
elle. Julgou que estaria gracejando com ella, mas, vendo a sua expressão
de verdadeiro pezar, perguntou:

--Então é porque lhe morreram quando você era pequeno?

--Não sei!...

--Você quando para aqui veio que edade tinha?

--Doze annos.

--E até então onde esteve?

--Estive em casa da mulher que me criou. Essa é que me disse que meus
paes me tinham abandonado quando nasci...

--Abandonaram-n'o?!... Que corações tão duros! E você não chorou quando
ella lhe disse isso?

--Não, porque nunca os tinha conhecido. A ella me habituei a chamar mãe
e outra não conheço.

--E você gostava de conhecer seus paes?

--Gostava!... disse elle num murmurio, tão intimamente triste, que Julia
não se atreveu a fazer-lhe mais perguntas.

A animação em volta d'elles continuava. Passados momentos, Paulo tomou
uma expressão resoluta e disse:

--Já vê a menina que eu tenho mais motivos para chorar, porque sou mais
infeliz, e comtudo não choro!

--É verdade, Paulo. Você tem razão. Não torno a chorar! Hei-de agora
esforçar-me por ser alegre como você.

--Ena! cá está uma! gritou, vibrante, a voz de João que, em pé,
empunhava uma espiga vermelha. Um abraço! Vou já dar um abraço a cada
uma!

Fôra a Maria Luiza que atirara, a occultas das suas companheiras, uma
maçaroca ás mãos do João.

Este dispunha-se a abraçal-as e ellas, com intenso gaudio intimo,
preparavam-se para receber o seu abraço.

Porque, afinal, não havia alli nenhuma que não sentisse o seu fraco pelo
João do tio Alameda. Pois se elle era um rapaz forte que nem um tirante
e com um coração como o de uma pomba! E que bem elle cantava! Depois,
juntava a todos estes dotes um bom par de geiras que já herdara da mãe e
outras tantas que o pae lhe havia de deixar.

Ora, um rapaz assim não era mal empregado na Maria Luiza, uma pobretona,
sem um palmo de terra? As outras assim pensavam, e com alguma razão.

As leis da attracção da riqueza são as mesmas dos corpos celestes. «A
materia attrae a materia na razão directa das massas e na inversa do
quadrado das distancias» disse Newton. Esta lei rege as riquezas, com a
differença porém, que na gravitação universal não ha excepção alguma do
que resultaria algum cataclysmo que nos dava que contar; e na lei das
riquezas ha as suas excepções, de quando em quando.

Antes as não houvesse, porque se evitariam grande desgraças. O pobre,
embora inspire paixão ao rico, nunca este o olha como um ser egual a si.
Nas mulheres, pelo menos, que é onde a vaidade humana se concentrou mais
impetuosa, o amôr pelo pobre não é mais que um passatempo ephemero, um
capricho que se evola ao embate das primeiras reflexões em que a vaidade
serviu de juiz.

Póde ella, em virtude duma mais pronunciada sensibilidade do coração,
submetter-se a esse capricho. Mas um coração d'esses é tão difficil de
encontrar como as perolas no oceano Atlantico.

Não admira, pois, que a affeição do João pela Maria Luiza não inspirasse
ciumes ás suas companheiras. Ellas riam-se no seu intimo da illusão em
que a rapariga parecia andar, e, maliciosamente, occultavam-lhe os seus
pensamentos, aguardando a desillusão da sua _doidice_, como lhe
chamavam.

Todas com intenso gaudio intimo, se preparavam para receber o abraço do
João da Alameda, disse eu.

Elle dirigiu-se á Maria Luiza, emquanto ia dizendo:

--Começo por ti, rapariga, já que estás aqui mais perto. As outras que
vão esperando.

E depois cantarolou:

    --Chuchem agora no dedo,
    Mas é tudo sem maldade:
    São apenas brincadeiras,
    Tudo proprio d'esta edade.

E voltou para o seu logar.

Os rapazes acclamaram e bateram palmas.

--«Bella partida!» diziam de todos os lados. Ellas, encolhendo os
hombros desdenhosamente, ruminavam o seu despeito, fingindo não darem
importancia ao caso.

No rosto de algumas deslisou um sorriso contrafeito, e, entretanto, a
desfolhada terminou.

      *      *      *      *      *

O sol, no hemispherio opposto, tinha já brilhado no zenit dos nossos
antipodas quando começou a retirada dos nossos personagens.

Na eira, desoccupada com presteza depois da desfolhada, dançara-se
alegremente na mais dôce expansão d'aquellas almas inflammadas do ardor
da mocidade.

A lua, recolhendo ao seu leito, convidou o nosso jovial bando a
seguir-lhe o exemplo.

Na retirada, formaram-se varios grupos alguns dos quaes foram cantando
pela estrada fóra; outros, cedendo o logar do enthusiasmo da mocidade á
maledicencia, ventilavam, atravez o fôsco prisma da inveja, o caso da
Maria Luiza.

--E que vos parece?! dizia, contraindo os labios em signal de surpresa e
admiração, ás suas tres companheiras a Joanna Mulata, que, tão proxima
do João como a Maria Luiza, não podera levar em paciencia que elle
preferisse esta a si. E a lambisgoia d'aquella Maria Luiza, hein? Um
mocetão d'aquelles, gostar d'uma delambida assim!

--Ora! Vocês tambem fiam-se em boas!

--Pois decerto! dizia a terceira. Que pretende ella d'elle?

--O que pretendeu, segundo ouvi dizer, inventou a quarta.

--Sim?!

--É verdade! E vocês não viram, inventou ella de novo, aquella grande
descarada dar-lhe um beijo quando elle a abraçou?

--Sério?!

--Deu! Eu vi! Não admira, pois, que, segundo as famas que correm, elle
se mostre assim para com ella. São rapazes! o que querem é...

--Pois decerto!

--E faz elle muito bem! Quando ellas são assim, é bem feito!

--Que grande descarada!

--Cara sem vergonha!


VI

Natal, eu te saúdo!

Quer a tempestade ruja lá fóra com indomavel fúria ameaçando prostrar as
oliveiras tristes e a chuva fustigue e amarelleça as brancas e
innocentes camelias do meu jardim; quer um sol claro e resplandecente e
benefico paire no firmamento alegrando a natureza durante o dia, e á
noite um docél azul marchetado de meigas estrellas se desenrole por
sobre a minha fronte--eu amo-te, óh! Natal!

Amo-te, quer rias como uma creança loira perseguindo uma borbolêta que
saltita de flôr em flôr, quer chores como um velhinho, acabrunhado pelos
annos e de dorso curvado, chorando, sobre o netinho que acaricia no
regaço, lagrimas de saudade!

És bello quando ris; mas o teu sorrir é forçado porque a tua alma é
triste: e a tristeza encanta-me. Por isso eu amo-te.

És meigo e terno quando choras, porque as tuas lagrimas são sinceras,
são o desabafo de mil amarguras, de mil saudades. E as lagrimas são uma
doçura tão intima, e tão celeste! Por isso eu adoro-te.

Amo-te nas aguas frias do Vouga que corre melancholicamente lá em baixo
por entre os salgueiros entristecidos; amo-te nas arvores despidas de
folhagem destas collinas; na monotonia destas varzeas e destas lezirias,
e na atmosphera tépida da cosinha do bom lavrador que olha com carinho a
familia reunida em volta da lareira; amo-te, finalmente, em tudo o que,
inspirando tristeza e melancholia, segreda á minha alma attribulada mil
poêmas de amôr, mil recordações da minha infancia!

Viver de esperanças é um viver de incertezas e de decepções; cada dia
que desponta é um sorrir velhaco e traiçoeiro cuja hypocrisia a nossa
alma incauta e offegante não vê.

Viver de saudades e um viver mais suave, mais santo; é um viver, por
assim dizer, morto, porque a nossa alma, com o ultimo golpe, já não tem
alento para novas esperanças e decepções; o sol já não tem aquella
expressão pérfida que nos ludibriava, e cada dia que passa é uma conta
do rozario das nossas recordações que a nossa alma alanceada percorre
orando e offerece ao Creador.

E tu vives de recordações e de saudades. Oh! Natal! Viver santo, viver
celeste!

Ha mil novecentos e oito annos que uma creança, tenra e mimosa como os
nenuphares do poetico Jordão, veio lançar sobre a humanidade obcecada os
raios da luz vivissima que jorrava de seus olhos celestes. Nas miseras
palhas onde nasceu essa creança--tão pobre como a mais pobre de todas as
creanças, podendo, se quizesse, ser a mais opulenta--tu nasceste tambem:
tiveste o mesmo leito, e o recem-nascido bafejou-te com o halito
vivificante da sua bocca divina.

E desde esse momento, não obstante o rolar dos seculos, conservaste
sempre a frescura innata que recebeste d'esse halito sacrosanto. O teu
nome, envolvido duma auréola fulgente de luz divina, é proferido com
amôr por todos que têm no peito um coração que soffre.

E tu viverás sempre, oh! Natal! emquanto no mundo houver uma mãe que
beije com ternura o pimpolho fecundado no seu ventre e existir um
infeliz; que chore uma lagrima!

      *      *      *      *      *

O dia de Natal amanhecera triste e soturno.

Atravez da escuridão que desapparecia lentamente, o vulto d'um casarão
se desenhava ao fundo do adro, semelhante a um gigante enorme, muito
velho já, com uma das mãos levantada para o ceu, numa attitude de
misericordia.

Era a egreja com a sua torre.

Que velhinha! Que velhinha!...

Nas suas paredes, cobertas de lichens, ella está recordando com mágoa as
innumeras intempéries que têm zurzido o seu dorso, e, extenuada,
profundamente abatida, parece impetrar do céu a piedade que dos homens
ingratos não tem conseguido obter...

O dia amanheceu triste e sombrio, ia eu a dizer.

Durante a noite tinham caido grandes e consecutivas bátegas de agua, e o
ceu, como que cançado, apresentava um aspecto soturno.

Ao longe, para o oriente, a serra do Caramulo, na negrura das nuvens que
sobre ella se encastellavam num espesso e elevado nimbo, parecia
elevar-se muito alta.

Os eucalyptos da alameda contigua ao adro eram encrespados pelo soprar,
em pequenas lufadas, do vento do sul, e por sobre a aldeia
repercutiam-se, com maior intensidade para o norte, as ondulações
sonoras que partiam do sino que chamava os fieis para a missa da manhã.

Á esquina do adro, o Facca, abrindo uma das portas da loja, olhou
sombrio para o ceu pardacento e resmungou:

--Hum!... Temos mais môlho!...

Uma mulher, encafuada num mantelête, conduzia uma pacifica vacca que
puxava a uma carroça. Acampou no adro e, depois de ministrar á vacca uma
ração de pasto, affastou uma das extremidades do tolde que cobria a
carroça, deixando a descoberto uma parte da sua mercadoria, que
consistia em hortaliças.

Á entrada do recinto que cerca a egreja, uma outra mulher, collocando no
chão um cêsto de castanhas cosidas e uma ceira de figos, sentou-se num
pedregulho, á espera de freguezes.

O sachristão abriu a porta principal da egreja, e d'ahi a pouco tempo,
embrulhadas em chales pretos, duas beatas, semelhantes a duas almas
penadas, depois de, ao passarem pelas vendedeiras da hortaliça e dos
figos, mastigarem, numa linguagem cantarolada, um «Deus vos dê muito bom
dia!», entraram, benzendo-se seraphicamente, com o pé direito na egreja.

Dentro d'esta, encantadoramente recostado num presepio collocado num dos
altares do lado direito, o Menino Jesus sorria, pequenino e nú, com um
sorriso infinitamente bom e amavel. Deitada graciosamente num presepio
todo engalanado e alumiado, essa pequenina estatua divina estendia os
braços, n'uma alvura de jaspe, como querendo abraçar a humanidade
inteira num amplexo de amôr divino e paternal.

Ao lado do altar estava um grande cesto destinado a receber as offertas
de pequeno lóte.

Os fieis começaram a affluir ao templo.

O velho prior...

--Que bom homem que elle era! Que candura d'alma se reflectia sempre
naquellas pupillas que se fixavam nos nossos olhos cheias de amôr e
affabilidade! Com que bondade me pousava a mão na cabeça, era eu
pequeno, afagando-me com palavras de indizivel doçura que só as sabe
pronunciar quem tem uma alma predestinada que encontra o bello ideal na
contemplação das tres perfeições naturaes--creanças, musica e flores!

Elle appareceu, com a expressão jovial de sempre, envolvendo num olhar
carinhoso todo o ambito da egreja com as pessoas que já lá estavam, e
ajoelhou na escada do altar-mór, inclinando humilde e religiosamente a
cabeça encanecida.

Assim permaneceu um quarto d'hora; depois, o capellão veio, já a egreja
estava cheia de gente, paramentado e abrindo alas docemente por entre o
povo que enchia a capella-mór.

Depois da missa, elle revestiu-se d'um pluvial e dirigiu-se para o altar
onde o Menino Jesus estava reclinado no seu presepio.

O sachristão abriu a umbella emquanto o sacerdote pegava no Menino, e o
povo começou a entoar o Bemdito.

Todos então, homens e mulheres, affluiam a depositar um osculo de amôr,
acompanhada d'uma genuflexão, nos pésinhos, que pareciam pinhões, d'essa
pequenina estatua que o padre segurava cautelosamente e com respeito nas
mãos, acompanhando cada genuflexão que faziam d'um «Natus est nobis».

Finda a adoração, que durou cerca de meia hora, o adro regorgitava de
gente que aguardava o leilão das offertas.

Um homem dos seus quarenta annos, de aspecto agradavel, subiu para uma
das extremidades do muro que veda o recinto em volta da egreja, e,
pegando numa abóbora, exclamou, sorridente:

--Vale bem sete vintens! Para mais, e não para menos!... É massiça e
deve ter pouca pevide! Isto para filhoses, é de estalo!

--O dia das filhoses foi hontem.

--Todos os dias e todas as noites se fazem filhoses. Eia! Está em sete
vintens!...

--Oito! gritou um do lado.

--Oito vintens! repetiu o pregoeiro. Oito! Oito! Oito! quem dá mais?...
Oito!...

--Nove!

--Nove vintens! Não ha coisa mais barata! Eu não a fazia nem por nove
mil reis!

--Mas comial-a de graça, mesmo assim crúa!

--Coma-a você. Não sou seu irmão. Nove vintens!... Nove!... Nove... uma.
Nove... duas. No...

--Cento e oitenta reis! gritou um, meio chocarreiro.

--Cento e oit...--Vá p'r'ó diabo! São os mesmos nove vintens. Quem dá
mais? Nove... uma. Nove... duas. Nove...

--Abóboras?

--...tres!--Vá p'rá missa.--Assentem alli ao snr. Manuel da Silveira.

Vieram depois mais aboboras, cujo leilão decorreu sempre no meio de
inoffensivas zombarias do mesmo theor.

Cebôlas, borôas, garrafas de vinho fino, pés de porco, tudo appareceu no
leilão.

--Ora até uma gallinha cá appareceu! Cinco tostões! Se ninguem a comprar
fico eu com ella.

--Para comer, ainda hoje, mais a sua Francisca, hein?...

--Tomaria você que eu o convidasse tambem. Cinco tostões!

--Seis!

--Seis tostões! Está pezadinha. Seis tostões e meio a mim!

--Sete tostões.

--Sete! Mau! Já não fico com a gallinha!

--Veja se tem ovo. Se tiver, dou mais dez reis.

--Não metto o dedo onde você costuma metter o nariz. Sete tostões! Sete!
Sete tostões, uma. Sete... duas. Sete... sete... tres! Acolá ao tio
Manuel Joaquim.

Chegou a voz ás quinquilharias e brinquedos. Appareceu um caixinha
coberta de setim, fechada.

--Que linda caixinha! dizia o pregoeiro mirando-a por todos os lados.
Parece que foi feita por mãos de fada! Não vale menos de cinco tostões.
Está fechada e deve ter qualquer coisa bôa cá dentro!

--Abra! Abra! Queremos saber o que tem dentro!

--Querem saber?! Comprem-na! Vale bem cinco tostões e... e... tres--vá
lá!--pelo que tiver.

--Nove tostões! gritou de longe uma rapariga.

--Ah! Estás com o olho nella? Não que ella é bonita, lá isso é! Nove
tostões!... Nove tostões!...

--E meio, disse o snr. Silveira.

--Nove tostões e meio! Só o setim vale o dinheiro. Depois, isto cheira
a... cheira a não sei ao quê que tem cá dentro...

--Dez tostões! repetiu a mesma rapariga.

--Estás morta por ella, diabo! Deixa estar, que se a não comprares,
hei-de dar-te uma caixinha mais linda que esta. Dez tostões!

--Mais um vintem, disse o snr. Silveira.

--Dez tostões e um vintem! berrava o pregoeiro, mostrando a caixa para
todos os lados.

--Onze tostões! gritou de novo a rapariga.

--Estás desesperada! Onze tostões!...

--E meio!

--Onze tostões e meio!

--Mil cento e cincoenta! gritou outro zombeteiramente.

--Falle claro, se quizer que o entenda. Onze tostões e meio! Eh!
rapariga? Então tu?

--Um quartinho! disse ella.

--Um quartinho. Vá lá! Um quartinho! Quem mais dá? Isto deve ter
amendoas dentro. Pelo cheiro... com certeza. Um quartinho! Um quartinho,
uma. Um quartinho... duas! Que linda! Que linda! Até é uma pena ir para
as tuas mãos, rapariga! Um quartinho...

--Tres!

--...tres!--Não preciso cá de ponto.--Acolá para aquella cachópa.

A linda caixinha passou de mão em mão até á compradora.

Todos admiravam as côres garridas do setim que a cobria, e apinhavam-se
em volta da rapariga, anciosos por saber o que encerraria a caixa.

Presa a uma fita estava uma chave que foi applicada á fechadura. Todos,
em bicos de pés, aguardavam a surpreza.

A chave deu volta... A rapariga levantou a tampa e de dentro saltou uma
coisa que poz em murmurinho todos os que se apinhavam em redor.

Era um rato.

      *      *      *      *      *

Retrocedamos á vespera do Natal, á noite da conçoada--a noite
tradicional da confraternisação de todos os corações que, ligados pelo
sangue e pelo amor, se reunem para, na santa simplicidade aldeã,
offerecerem em holocausto a Deus, concretisado na pessoa d'um infante
prestes a descer á terra, o que de mais puro e sincero ha nos seus
corações transbordando do mais acendrado amôr divino.

Penetremos em casa do tio José da Alameda.

Antes de passarmos á cosinha, detenhamo-nos alguns momentos na sala,
para contemplarmos um pequeno altar, profusamente allumiado, com um
presepio onde um Menino Jesus parece estar suspenso numa nuvem de
camelias brancas, tão brancas, tão puras, como pura era a alma de quem
com tanto carinho e desvelo as collocou alli.

Fôra Julia quem se encarregára da confecção do altar, em que gastou duas
horas.

Colhêra, no pequeno jardim que estava entregue aos seus cuidados, as
camelias mais brancas e menos damnificadas pela frieza das chuvas, e
alli, naquelle altar, as collocára uma por uma, pacientemente, com um
angelico sorriso nos labios e nos olhos uma ternura em que se traduzia a
candura da sua alma.

Ao terminar a sua tarefa, corrêra, cheia de contentamento, a chamar
todos os da casa para verem a sua obra.

--Muito lindo! Está muito lindo! dizia-lhe o tio José, passando-lhe
paternalmente a mão pela cabecita loira. Dou-te os meus parabens por
teres tanta habilidade.

--Logo, depois de ceia, vimos para aqui fazer serão? perguntou,
radiante, Julia.

--Decerto! Havemos de vir fazer companhia ao Menino Jesus até á meia
noite, que é para elle ser sempre muito nosso amigo! Agora vamos para a
cosinha, emquanto a ceia se faz.

E ella deitou a correr aos saltinhos, adeante d'elle.

O coração sempre é um grande artista! Aquella creança, ha tres mezes
ainda, tão triste, tão pensativa... Oh! o amôr! o amôr!...

É que Paulo e Julia amam-se.

Lançadas no berço da orphandade, essas duas almas, como dois infelizes
que se encontram no mesmo caminho, contaram as suas maguas,
compadeceram-se mutuamente, comprehenderam-se, deram-se as mãos,
acalentaram-se, amaram-se e proseguiram juntas, não já pelo caminho
agreste que as martyrisava, mas por uma vereda em que os espinhos tem a
suavidade das rosas, em que já não ha agruras, onde tudo são madresilvas
e violetas rescendendo um aroma inebriante. Esqueceram as desditas
passadas para gozarem, juntos, os beneficios d'esta nova phase que a
Providencia lhes deparou; e, junto d'esses dois lyrios, transportados
d'uma encosta arida para a beira d'um fresco arroio, nasceu uma
trepadeira de flores odoriferas, que os enleou, ás quaes flores um anjo,
transformado em uma abelha, vem diariamente haurir o dôce nectar e o
leva ao seio de Deus...

Paulo e Julia amam-se com um amôr todo ideal; amam-se com aquelle amôr
dos corações predestinados que amam uma só vez na vida.

Occultando, o mais possivel, aos olhares estranhos a impulsão que os
anima um para o outro, esses corações, quando sós, estudam-se
mutuamente, em conversas banaes, conversas de creanças apaixonadas que
não se atrevem a manifestar-se o seu amôr; mas nesse natural
retrahimento, nessa timidez que os retem muitas vezes em silencio sem
ousarem quebrar o encanto que sentem na contemplação mutua das suas
almas, durante esse silencio em que cada um d'elles só ouve o ruido do
pulsar do seu coração, as suas almas fallam, entendem-se, estudam-se,
amam-se cada vez mais...

Penetremos tambem na cosinha.

A formosa Helena prepara, sobre a meza tôsca, a massa para as filhoses;
com as mangas do vestido arregaçadas deixando vêr os seus bem torneados
braços até ao cotovello, falla e ri com a sua peculiar jovialidade.

Na lareira, em volta d'uma fogueira onde arde um grande cepo, estão
sentados o tio José, Julia, João, e, na extremidade do banco, Paulo.

O tio José entretem a familia com historias alegres que fazem rir todos,
excepto o João que, com o olhar fito num ponto do brazido, parece alheio
ao que se passa em volta de si. De vez em quando, despertando da sua
abstracção, olha para o pae, passeia o olhar em roda, e volta a
mergulhar-se nas suas reflexões.

--Ó paesinho! diz Helena ao pae, que acaba a narração d'um conto; isto
está quasi prompto: agora é preparar a certã e fazêl-as. Mas, emquanto
as faço, o pae ha-de contar aquella historia tão engraçada que nos
contou o anno passado.

--Que historia?... Eu já me não lembro do que contei hontem...

--Aquella de um demonio que andava ás almas na noite do Natal e que,
tendo ido a casa d'umas pessoas que eram muito bôa gente, teve de fugir,
porque se arriscava a ficar na certã das filhoses mais rilhado que um
torresmo. Lembra-se?

--Ah! Ah! Ah! Bem sei! Bem sei! Essa historia ouviu-a eu contar á minha
avó, era eu pequeno. Ha que tempo lá vae isso!... Mas como era o
principio? Lembras-te?

--Tambem já não sei! Tu sábel-o, ó João?

O João pareceu despertar d'um sonho.

--O quê?!...

--Em que estavas tu para ahi a scismar, homem? perguntou o pae, risonho
e bondoso.

--Eu?... Estava a pensar em... que... Esava a vêr o que amanhã hei-de
levar ao Menino Jesus--disse elle sorrindo, admirado da sua inspiração.

--Ora! O que lhe has-de levar? Leva-lhe uma abobora _menina_ e duas ou
tres linguiças. Têm muito bôa venda no leilão.

--Eu é que arranjei uma caixinha linda para lhe dar; acrescentou Julia.
Não é bonita, Helena?

--Gosto muito d'ella. Mas olha que é preciso metter-lhe qualquer coisa
dentro. Amêndoas, por exemplo.

--Ah! É verdade! Não me lembrava!

--Esperem! Eu encarrego-me de arranjar uma coisa para lhe metter, disse
do canto Paulo.

--O que é? O que é? perguntou com curiosidade Julia.

--A caixa é muito linda, ou é assim, assim?

--Oh! é toda coberta a setim de duas côres! E com fitas de seda muito
chics! Helena que diga.

--A caixinha até é mal empregada no leilão, disse Helena, porque póde ir
parar ás mãos de quem a não saiba apreciar e a não estime.

--Bom! disse Paulo com resolução. Pois nesse caso mais graça tem a
brincadeira. É uma coisa que vou metter dentro da caixa amanhã de manhã,
e que vae fazer rir ás bandeiras despregadas toda a gente que estiver no
leilão. Porque, indo fechada, hão-de ter a curiosidade de vêr o que vae
dentro. Ella tem chave?

--Tem; vae presa a uma fita. Mas o que é, Paulo?

--É um rato!

--Ah! Ah! Ah! Tiveste bôa lembrança, e...

Na porta da cosinha soaram duas pancadas surdas, e uma voz um tanto
aldrabada chamou de fóra:

--Ó tio Alameda! Você não dá um caldo e dormida ao Belbuth?

--Ah! o Belbuth! exclamou Julia batendo as palmas, e erguendo-se
pressurosa a abrir-lhe a porta.

Elle entrou, tartamudeando umas «boas noites» e todos o acolheram
jubilosamente.

Deixemos o Belbuth conçoando com esta bôa gente e alegrando-a com
narrações de episodios da sua longa vida de miseravel, e entremos na
casinha modesta da Maria Luiza, que está triste e pensativa...

Triste e pensativa?! A Maria Luiza de ha tres mezes?!

Sim. Essa mesma rapariga, desembaraçada e alegre, que, no arraial do
Santo Estevam, supplantara o João da Alameda, o cantador invencivel; a
mesma da desfolhada, em que ella gosara o exclusivo do seu abraço, goso
momentaneo que foi a origem de mil dissabores.

Na lareira da sua cosinha arde uma pequena fogueira, a cuja claridade a
Maria Luiza costura debruçada: e a mãe, já velha, talvez de mais de
sessenta annos, com uma roca a tira-colo, faz ainda girar o fuso entre
os dedos com facilidade.

As telhas, denegridas do fumo, e as paredes, de egual aspecto, dão um
tom de tristeza áquella mansão de paz e socego.

No poste da chaminé, está dependurada uma candeia de lata, cuja luz, nos
estertores da agonia, bruxoleante, augmenta a taciturnidade do aposento.

--Vae deitar petróleo naquella candeia, Maria, disse a mãe.

Ella levantou-se, deitou um olhar para a porta, ministrou á candeia o
almejado liquido que fez soluçar a luz, tornou a olhar com olhos de
anciedade para a porta da cosinha, e voltou á sua costura, dando um
suspiro.

Porque olha ella tão insistentemente, perguntará lá para si o leitor,
para a entrada do seu tugurio, e porque toma ás vezes no peito tanto ar,
que ao expelil-o, semelha a aragem da tarde a agitar brandamente, em
suave murmurinho, as espigas maduras d'uma ceára?

E porque é que tu, leitor ou leitora, vaes algumas vezes, em noites
serenas, para a tua varanda ou para o aido, sósinho, a contemplar as
estrellas, procurando espalhar, na immensidade do infinito, as mágoas
que suffocam o teu peito?

Impressiona-te a concentração do espirito d'essa rapariga que, outrora,
sempre de expressão radiante, espalhava em volta de si a alegria, como
uma flôr odorifera espalha o aroma pelo ambiente dum jardim?

Segredos do coração.

Sim: o coração, pequeno como é, pratica obras estupendas. Fazer de Maria
Luiza de ha tres mezes a Maria Luiza de hoje, é uma obra que eu colloco
na ordem dos impossiveis.

Pois o impossivel realisa-se?

Realisa. É um exclusivo do coração.

O pae severo impõe as mais terminantes ordens de reclusão á filha
enamorada. Fecha-a na alcôva, e volta com a chave, que colloca,
juntamente com a do portão, debaixo da sua cabeceira.

Dorme descançado, porque a janella é alta e, a dar-se a evasão, o
gradeamento, difficil de transpôr, torna impossivel a fuga.

O sol, de manhãsinha, ergue-se sorridente de sarcasmo no horisonte e
penetra, pelas portadas entre-abertas da janella, na alcova do pae que
accorda e leva a mão ao sitio onde guardara, na vespera, a chave do seu
thesouro.

--Cá estão! monologa somnolento e carrancudo.

--E ella? a tua andorinha?..., murmura-lhe ao ouvido um raio mais
chocarreiro do sol.

Elle despreza a chufa e volta-se para o outro lado, a saborear,
descançado, o somno da manhã.

Quando accorda, já o sol vae alto, esfrega os olhos, levanta-se pezado
de avareza e vae abrir a porta á sua andorinha...

Oh! decepção cruel! A linda andorinha voou de noite, atravez da
escuridão, por esses ares fóra!

É que o coração vôa quando quer. Não tem elle azas?

É um grande artista. Os maiores prodigios que têm assombrado a
humanidade são obra sua.

Pegar numa pedra muito tosca e muito dura, desbastal-a a cinzel, dar-lhe
a fórma de um homem, polil-a e collocal-a num altar, tornando-a de
penedo tantas vezes maltratado em um santo que se venéra, é possivel a
qualquer artista.

Polir uma alma... só o coração.

A Maria Luiza d'outr'ora e a Maria Luiza d'hoje, differem entre si como
a peccadora de Magdalo differe da penitente que está osculando e
orvalhando de lagrimas os pés do Nazareno.

Mas... quem espera ella?

O João do tio Alameda. Aquelle que, num rasgo de generosidade e de amôr,
se compadeceu d'ella; porque, desde a noite d'aquella desfolhada em que
ella tivera o privilegio de ser abraçada por elle na presença das
companheiras que tentaram disfarçar a inveja que lhes causára, a Maria
Luiza começou de ser envolvida numa mephitica atmosphera de
maledicencia. Esta nasceu da inveja, e a inveja começa por sua vez
quando se tem o reconhecimento da inaptidão ou da inferioridade.

Se se podesse obter de um invejoso resposta á pergunta «porque invejas?»
elle diria inevitavelmente «invejo porque valho menos».

Mas o invejoso não fica por aqui.

Dado o primeiro passo na senda das depravações, prosegue.

Assim como uma alma cultivada na pratica da virtude e por ella
purificada, sente um ineffavel e celeste prazer em praticar novas e
consecutivas virtudes, assim um espirito maligno, um coração embotado
pelas acções vis, sente um infernal prazer em percorrer a escala das
depravações.

_Abyssus abyssum invocat._

Imagine-se um vaso cheio de agua pura, em que se lhe deitam algumas
gôttas d'um liquido venenoso. A agua crystallina, que até então poderia
dar a vida a quem se debatesse nas ardencias da sêde, affectou-se das
propriedades mortiferas da peçonha que, de mollecula em mollecula, foi
affectar, com o seu terrivel contacto, o puro liquido.

Meia duzia de linguas depravadas infectaram tambem com a peçonha da
maledicencia as linguas restantes da freguezia; e a honestidade da Maria
Luiza, como a flôr branca da açucena açoutada pelo vento cortante da
tempestade que não consegue prostral-a no lodaçal que ameaça conspurcar
as suas petalas de pura cambraia, foi maltratada pelo vento cortante
d'essa maledicencia.

João comprehendeu a situação de Maria, e não hesitou em collocar ao
abrigo do seu peito essa flôr que, por sua causa, tinha sido exposta ao
rigôr das intempéries.

--Maria--disse-lhe a mãe depois de um muito prolongado silencio; são
horas de deitar. O João não vem cá hoje decerto, o pae talvez o não
deixe sair, porque, nesta noite, todos os paes querem a familia reunida
em volta de si.

--Mas vá a mãe deitar-se, que eu espero ainda um pouco. Falta-me além
d'isso ainda aqui uma bainha, e entretanto acabo-a. Talvez não falte...

Como deve ser ditoso ter esperança num coração que nos ama!

Deve ser tão ditoso esperarmos num coração que nos estremece, como
penosa deve ser a deseperança num coração que idolatramos.

João amava Maria Luiza; ella bem o sabia, porque não ha ninguem que
melhor leia nos olhos do homem apaixonado do que a mulher amada. E a
mulher sabe, por instincto, que um homem não tem a habilidade com que
ella finge um sentimento que está longe de possuir.

O João não havia, pois, de faltar. Não tinha elle sido sempre pontual em
vir ministrar ao seu coração o alento de que tanto necessitava para não
desesperar de viver?

Que significavam tres mezes de constantes provas de amôr, de tantas
promessas e juramentos que no auge da sua paixão, elle lhe fizera,
traduzindo no olhar incendiado todo o fogo que lhe devorava o peito?...

Uma lufada mais forte de vento soprando nas arvores da rua arrancou-a á
sua profunda meditação e fel-a olhar para a porta. Olhando depois em
volta, viu-se só. Engolfada nos seus dôces pensamentos, nem notara a
retirada de sua mãe.

O vento continuava sussurrando lá fóra, semelhante ao gemer do mar, e a
porta já gasta da choupana rangia ao embate de cada rajada mais forte.

No sino da egreja de Eirol soaram onze longinquas e monótonas badaladas
que Maria Luiza contou em crescente anciedade do seu coração impaciente.

--Onze horas!... Já tão tarde!... E elle sem vir!...

Ficou perplexa, a olhar para o sobrado, e estremeceu ao som de tres
leves pancadas na porta.

Com certeza que não era o bater de João que ella tão bem conhecia,
porque o coração começou a pulsar-lhe violentamente e ella, sem se
levantar, perguntou, entre admirada e sobresaltada:

--Quem bate a esta hora?!

Em resposta, ouviu o ruido de uma bastonada applicada talvez á cabeça
d'um homem, a seguir um gemido, e após isso a fuga de duas pessoas que
se perseguem.

E nada mais ouviu, que as pulsações agitadas do seu coração sobresaltado
e o sussurro do vento a soprar nas arvores do caminho e nos salgueiros
sobranceiros ao Vouga.


VII

Tres dias depois, o tio José da Alameda recebia a visita da snra.
Joaquina das Dôres, uma creatura, que, á semelhança de mais meia duzia,
frequentava diariamente a egreja na _perfeita_ observancia dos preceitos
do Divino Mestre.

Estas creaturas, umas verdadeiras corujas sempre mettidas pela egreja,
tanto se servem da lingua para orar a Deus como para murmurar do
proximo, assoalhando tôrpemente a vida intima de cada um. Não
distinguindo, atravez da imbecilidade que lhes turva o cerebro, o grau
de torpeza e abjecção que encerra o procedimento de vasculhar os actos
menos meritorios que outrem pratique, não alcançam ao mesmo tempo a
quanta belleza de virtude encerraria o seu procedimento se, em vez de
auxiliarem a conspurcação da vida alheia, lhe tecessem louvores, ainda
que immerecidos, tratando de occultar-lhe as manchas sob o pó bemdito da
caridade.

A snra. Joaquina das Dôres era uma d'essas creaturas, que não pudera
soffrer que um rapaz tão bom, tão sympathico, fosse arrastado tão cedo,
e sem necessidade, ao bando dos renegados.

--Nada! dizia ella comsigo, tomando a resolução de se dirigir a casa do
tio Alameda; isto não póde ser! O pae precisa de sabel-o, para desviar o
filho do caminho do peccado em que anda!

E fôra com a consciencia em vias de satisfazer-se por ir praticar um
acto dum _valôr altamente humanitario e divino_, como era o de conduzir
uma ovelha ao redil, não lhe pezando, porém, o remorso de que, para o
conseguir, tinha de sobrecarregar de injurias outra alma lançada ao
desprezo pelo sopro horripilante da maledicencia, que se dirigiu a casa
do tio Alameda.

--Em que posso ser-lhe util, snra. Joaquina? perguntou o velho com o seu
sorriso de bondade á beata.

--Quero fallar-lhe em particular, snr. José. É um negocio de muita
importancia que lhe quero communicar.

--Sim?! Queira então vir aqui para a sala, para que ninguem nos oiça.

Entraram, e a beata, limpando o nariz adunco a um enorme lenço
tabaqueiro, tomou uma expressão de affectada piedade, e, sentando-se, a
um signal do velho, cruzou as mãos sobre os joelhos, dizendo:

--Snr. José! Deus Nosso Senhor, quando andou pelo mundo feito homem,
prégou a sua religião e indicou o caminho que nós deviamos seguir para
nos salvarmos. Com os seus exemplos e as suas palavras que ficaram
escriptas e foram passando de bôcca em bôcca, a sua religião chegou até
nós e continuará seguindo emquanto no mundo o espirito do mal não deixar
de dar geração. Muitos acereditam nas palavras dos santos padres, a quem
Deus encarregou de o representar no mundo e de fazer respeitar a sua
religião. Outros não acreditam em nada d'isso, e esses são os réprobos
condemnados ás penas eternas. Mas o nosso dever, o dever de todo o bom
christão, é, por meio das boas obras e dos bons conselhos, chamar ao
caminho do ceu esses perdidos na escuridão do peccado.

E quando nós temos obrigação de chamar ao caminho do dever esses que
nasceram já debaixo da protecção do demonio (a snra. Joaquina fez o
signal da cruz,) muito maior obrigação temos de conduzir ao caminho da
bemaventurança os que, tendo sido bons christãos, se deixaram seduzir
pelas imposturas do demonio (aqui fez outra cruz e a sua voz, mais
inflammada, dava fifias como uma corda de rebeca mal calcada pelo arco).

O tio Alameda ouvia-a muito attento, não comprehendendo onde a beata
queria chegar. Não a interrompeu, e ella, sorvendo uma pitada,
continuou, mais moderada:

--O snr. José desculpe-me de eu não começar logo a expôr-lhe o caso...

--Eu, na verdade, não sei onde quer chegar, senhora...

--Eu me explico. Espero que tomará na devida consideração as minhas
palavras, pois que, tratando-se de seu filho...

--De meu filho?!... Que fez elle?

--O seu filho, snr. José, vae numa vida muito má! Numa vida que lhe fará
perder a sua alma se vocemecê, com a auctoridade de pae, se não
oppusér...

--Mas explique-se, por Deus, sr.ª Joaquina!

--Olhe, snr. José: o senhor conhece aquella rapariga chamada Maria Luiza
que, segundo as famas que tem, não é das mais honestas?

--Conheço! Eu conheço a Maria Luiza!

--Pois o seu filho anda mettido com ella já vae para tres mezes; e isso
fica muito mal a um rapaz como elle, filho d'um homem tão temente a
Deus. Reprehenda-o, snr. José, reprehenda-o! É uma bella alma que se
perde. Além d'isso, dizem que anda tão cégo por ella, que vae todas as
noites lá a casa...

--O meu filho?! O meu João?!

--É verdade, sr. José. E tão desavergonhada é a filha como é a mãe, que
consente poucas vergonhas lá em casa. É preciso que elle mude de vida,
que já anda muito nas bôccas do mundo! E anda tambem em muito maus
lençóes, porque, na vespera do Natal do Redemptor--aqui baixou a voz,
fallando com calôr e vehemencia, e meneando os braços nuns gestos
disparatados--espancou um rapaz que ia a passar á porta dessa tal Maria
Luiza!

--Na verdade, sr.ª Joaquina, custa-me acreditar que meu filho faça isso!

--Pois é verdade, sr. José. O pobresinho de Christo ia a passar muito
socegado da sua vida, quando sentiu uma forte bordoada na cabeça, que o
ia matando. E matava-o, se não foge. Ora vocemecê não ha-de querer que
seu filho ande assim nas bôccas do mundo por causa de uma mulher
perdida.

O tio Alameda ouvia, pensativo, e extremamente penalisado, a narração da
beata.

Esta continuou, dando ás suas palavras um tom mais mellifluo e repassado
da mais revoltante hypocrisia:

--Reprehenda-o, sr. José, reprehenda-o! Deus nos livre que o sr. prior o
saiba, que é capaz de mandar dizel-o para o bispo, que lhe lança alguma
excommunhão! E o peor mal é d'elle, que condemna a sua alma ás penas
eternas.

O tio José da Alameda limpou duas lagrimas que lhe rolavam pelas faces;
e, meneando tristemente e com desalento a cabeça encanecida, e pondo as
mãos num gesto de supplica, levantou os olhos para o ceu, exclamando com
amargura:

--Meu Deus! Não permittaes que estes poucos cabellos brancos que me
restam sejam manchados nos ultimos dias da minha vida pela deshonra de
meu filho! Levae-m'o antes, meu Deus! ou levae-me a mim primeiro!

      *      *      *      *      *

--Que viria cá fazer aquella beata? perguntou Paulo a Julia, ao vêr
retirar-se a sr.ª Joaquina, muito satisfeita pelo _dever de consciencia_
que acabava de cumprir.

--Não sei. Esteve na sala a fallar com o patrão, e este appareceu com as
lagrimas nos olhos.

--O diabo da velha! Não veio fazer coisa bôa, pela certa.

O curto dialogo foi interrompido pelo ruido do passo cadenciado do tio
Alameda.

Elle appareceu, a physionomia contristada, o olhar velado por uma
profunda angustia que lhe opprimia a alma.

--Pae? chamou Helena. O jantar está prompto.

--E o João onde está?

--Está no alpendre. Vae chamal-o, Paulo.

Durante o jantar, o tio Alameda esforçou-se por conservar uma expressão
de contentamento; pela sua parte, João parecia nunca ter estado tão
alegre. Depois da refeição, o pae chamou-o a occultas da familia, e
disse-lhe:

--Meu filho: tenho um pedido a fazer-te. E é de tamanha importancia o
que te quero pedir, que a tua desobediencia abreviaria os poucos dias de
vida que me restam.

Fallava com uma tão pronunciada amargura, que João, prevendo o fim que
elle queria attingir, e commovido mais pelas más impressões que seu pae
teria colhido de quaesquer mexericos que lhe houvessem trazido (porque
não lhe escapára a vinda da beata) do que pelas palavras do pae,
respondeu, resoluto como o homem que espera o golpe que lhe vão vibrar:

--Sabe, meu pae, quanto o amo; e sabe tambem que tenho sido sempre um
cumpridor fiel dos deveres de um filho para com seu pae, em tudo
obediente...

--Sei tudo isso, meu filho; e sei tambem que o erro que praticas é na
tua bôa fé.

--O erro que pratico?! E que erro é esse, meu pae?

--Praticas o erro de dar, sem necessidade que fallar ao mundo. Ora eu,
que tenho de dar contas a Deus dos bons ou maus conselhos que dei aos
filhos, quero prevenir-te de que andas por máu caminho. Muda de vida,
filho da minha alma, se queres dar-me alguma felicidade no fim da minha
velhice!

--Meu pae: sei ao que se refere, disse elle, com os olhos humildes no
chão. Pois isso são contos do mundo, que...

--Mas o mundo é o grande juiz dos nossos actos, e o escandalo é um
grande peccado!

João levantou resignado os olhos para o pae, e disse:

--Não me importa o que diz o mundo, porque tenho a consciencia
tranquilla e a convicção de proceder bem. Diga-me, pae: se uma pessôa,
por sua causa, se visse desprezada de toda a gente e na maior indigencia
porque ninguem lhe dava um pedaço de pão a ganhar, o meu pae, que tinha
sido o causador de toda aquella desgraça, o que fazia?

--Soccorria-a...

--E não lhe importava o mundo, com a sua má lingua?

--Mas que relação tem isso com o caso de que se trata?

--É exatamente a mesma coisa. Oiça-me, meu pae, porque vou fallar-lhe
com o coração nas mãos. Pela alma de minha mãe, d'essa santa a quem eu
tanto queria e cuja memoria para mim é sagrada e a quem meu pae
idolatrava, acredite as minhas palavras, porque vou expôr-lhe toda a
verdade.

O velho, commovido e silencioso, sentou-se num banco; e o filho
continuou, com um olhar firme em que transparecia toda a verdade das
suas palavras:

--Meu pae lembra-se d'aquella noite, em outubro, quando fizemos a nossa
ultima desfolhada em que todos os que nella tomaram parte se divertiram,
e quando eu, nas minhas cantigas, fiz uma referencia inoffensiva á Maria
Luiza? As amigas d'ella, as quaes de amigas só tinham o nome, riram-se
do pouco sangue-frio com que ella ficou ao ouvir a cantiga. Troçaram-na
muito, e eu então, quando encontrei uma espiga de milho vermelho, tratei
de recompensal-a e ao mesmo tempo castigar as trocistas. Prometti correr
a roda, dando um abraço a cada uma, como é costume. Abracei, porém, a
Maria Luiza, e sentei-me. Ficaram todas, como se costuma dizer,
achatadas, mas eu levei tudo a rir. Pois foi isso o bastante para essas
linguas damnadas começarem a levantar falsos testemunhos á pobre
rapariga, cuja reputação foi maltratada; porque, a sua honestidade,
tomaram muitas dellas possuil-a! Pensavam talvez que eu me deixava levar
por esses zumbidos de varejeiras! Mas enganaram-se! Porque eu, que
conheço ha muito a Maria Luiza e sei que o seu porte foi sempre honesto,
não me deixei levar por cantigas d'essas invejosas que nunca tiveram
nada que dizer d'ella senão depois d'essa occasião!

«Continuei a estimal-a, e mais ainda que antigamente. Confortava-a
quando a via, e a tristeza da rapariga, antes tão alegre, impressou-me
muito. Contava-me as suas desditas, e eu comecei a sentir cá dentro uma
certa necessidade de a vêr todos os dias para a animar, e, quando
fallava com ella, sentia-me mais satisfeito. Disse-me que nenhuma casa a
recebia onde pudesse ganhar o sustento para si e para sua mãe que já não
podia trabalhar pura viver; e quando, com as lagrimas nos olhos, ella me
disse que se via na necessidade de abandonar esta terra para procurar
outra onde pudesse trabalhar para ganhar o sustento para as duas, eu,
meu pae, senti dentro do meu peito não sei o quê que me fez humedecer os
olhos, e disse-lhe que não se apoquentasse, que eu olharia por ellas.

«Agora, meu pae, é occasião de eu lhe fazer uma declaração, que ha muito
desejava fazer-lhe, mas...--e ao mesmo tempo pedir-lhe perdão do meu
procedimento:--eu, todos os sabbados, tenho tirado do celleiro tres
alqueires de milho que lhe entrego para ellas, com o producto, não
morrerem á fome... Perdôe-me, meu pae, e consinta que continue a
soccorrer aquellas infelizes com o pão de cada dia!

O velho envolveu o filho num olhar de ternura, e, suspirando satisfeito,
disse:

--Perdôo-te, porque praticaste uma obra de caridade, o que, comtudo, não
devias ter feito, sem m'o participares. Essa franqueza devial-a ter tido
ha mais tempo para commigo, que me não opporia a isso. Mas tambem é
preciso que uma pessôa não se deixe levar só pela bondade do seu
coração, que muitas vezes nos não deixa vêr certas coisas que... Emfim,
é preciso sempre raciocinar e vêr...

--Meu pae! A Maria Luiza é honesta!--interrompeu o filho com vehemencia.
Essa rapariga padece por minha causa; e por isso tenho a obrigação de a
defender da desgraça que a ameaça. E digo-lhe mais ainda, meu pae: a
minha estima por ella converteu-se em amôr, e este em paixão. A minha
resolução é salvál-a por completo da deshonra com que quizeram
maltratal-a!

--Que dizes?! Pois tu queres...

--Quero casar com ella, meu pae. A Maria Luiza está innocente, ia
jurál-o pelas cinzas de minha mãe. É uma victima das linguas invejosas.

--Já te disse, filho, que ha coisas que o nosso bom coração encara
debaixo d'um aspecto e a razão debaixo d'outro. Não me opponho a nenhum
casamento que meus filhos queiram fazer, mas o que eu quero é a minha
honra acima de tudo...

--A sua honra não soffre nada com isso, e a minha dignidade exalta-se.
Cumpro um dever de consciencia e do coração.

O tio Alameda ficou pensativo por alguns momentos; depois, placidamente,
disse:

--Mas consta-me que ha dias, de noite, espancaste um homem que passava
ás onze horas á porta d'essa rapariga. Foi verdade?

--Foi verdade. Como vissem que eu não desistia do meu proposito,
quizeram lançar sobre ella nova affronta e fazer com que eu duvidasse da
sua honestidade. Para confirmarem o que dizem, fizeram com que um
individuo, ou mais do que um, fosse por horas mortas bater á porta de
Maria Luiza. Eu todas as noites lá vou, e ella preveniu-me de que,
depois de eu sair, hade haver uns dez dias, tinham lá ido bater de
mansinho á porta. Espreitei no dia seguinte, mas não vi ninguem. Não fiz
mais caso, e passados cinco dias voltaram lá. Eu então, nessa tal
noite--foi na vespera de Natal--fui pôr-me de novo á espreita. Passado
muito tempo, um embuçado approximou-se, muito cautelloso, e bateu
devagar tres pancadas. Ia já a retirar-se, talvez por me não ter visto
sair e receando que eu estivesse a espreital-o, mas ainda lhe pude dar
uma bastonada, que é para lá não tornar.

--Fizeste mal, filho. Não te devias precipitar d'essa maneira. Isso pode
ser-te fatal, porque por vingança, esse homem pode fazer-te peor. Se te
certificaste da má intenção d'esse homem e confiavas na seriedade da
Maria Luiza, devias deixar correr. Não ha nada melhor que entregarmos
certas coisas ao desprezo. As más linguas chegam a cançar-se, e lá vem
um dia em que a maledicencia cede o logar ao arrependimento; porque a
verdade é como o sol que dissipa as trevas mais espessas.
Precipitaste-te, e agora és censurado e tido como desordeiro, e isso é
muito penoso para um coração de pae. Dá tempo ao tempo, é um dictado
muito antigo; porque atraz da tempestade vem a bonança.

E quando, convencidos da verdade, toda essa gente se calar, faz então o
que a tua razão e o coração te aconselharem. Não sou como muitos paes
que, possuindo dois palmos de terra, querem que seus filhos casem com
quem tenha outro tanto. Não. Eu quero que meus filhos vivam contentes e
felizes; e a felicidade não se alcança com a riqueza.

--Obrigado, meu pae! disse João com os olhos marejados de lagrimas,
radiante de alegria e ao mesmo tempo commovido. Obrigado pelos bons
conselhos que acaba de dar-me e que eu observarei, e pela maneira como
attendeu ás minhas supplicas, ainda que outra coisa não esperava da sua
bondade!

E, apoderando-se das mãos de seu pae, beijou-lh'as com soffreguidão.

O tio Alameda retirou-se commovido occultando ao filho duas lagrimas que
lhe bailavam nos olhos.


VIII

Era n'um domingo do mez de janeiro; varios grupos d'homens estacionavam
no adro, depois da primeira chamada do sino para a missa conventual,
emquanto outros, já velhos, e algumas mulheres, de todas as idades,
entravam religiosamente na egreja.

Dentro d'esta, o velho prior, sentado na sua cadeira, fazia a pratica do
evangelho do dia, emquanto no adro, gosando a amenidade do dia alegrado
por um sol resplandecente, os outros fieis aguardavam a segunda chamada
para a missa.

O tempo deslisava, havia já uma semana, sereno e cheio de doçura. Á
quadra invernosa do Natal seguira-se uma quadra toda jovial e alegre:
parecia que se tinha antecipado n'aquelle anno a primavera, o que era
desmentido apenas por algumas arvores de folhagem caduca que se elevavam
tristes e graves como esqueletos, como querendo lembrar á natureza que
não era aquella a epocha de ostentar as suas galhardias.

Os dias succediam-se serenos, limpidos e transparentes como taças de
crystal, doces como favos de mel; e as noites, tomando uma alegria
ficticia para occultar a sua melancholia, pejadas d'um luar magnifico,
lembravam os sorrisos repassados de amargura d'uma viuva inconsolavel.

O sino, agitando-se n'um crescente movimento oscillatorio, fez a segunda
chamada, e um bando de pombas que estava poisado no espinhaço da egreja
espreitando o sol, levantou vôo, ás primeiras badaladas do sino, e foi
adejando para os lados do campo.

Ao mesmo tempo um carro de quatro rodas, carregado de malas, puxado por
tres alazões, atravessava o adro, absorvendo a attenção de todos.

Ao lado do cocheiro ia sentado um outro homem de trinta e tal annos,
typo de brasileiro, a avaliar pelo modo de vestir--fato claro de
casimira, e calças d'uma largura de pernas que lh'as permittiria enfiar
sem difficuldade com as botas calçadas; parecia alem d'isso, a avaliar
pela quantidade de bagagem que o precedia e pela grossura d'uma cadeia
de oiro que lhe bamboleava no collete cuja abertura lhe abrangia quasi
toda a altura do peito, que era um brazileiro rico.

Deitou, ao passar, um olhar de relance, um d'estes olhares com que muita
gente, affectando um ar de superioridade, em que transparece, comtudo, a
sua imbecilidade recalcada, geralmente, pelo pezo do ouro, vê as pessoas
e as coisas que julga n'uma esphera inferior á sua.

Cada grupo ficou fazendo os seus commentarios á _pose_ do pedaço
d'asno--de que logo o apodaram--no qual os mais velhos reconheceram o
filho da tia Quiteria de Jesus, por alcunha a _bisnaga_.

--Então vocês não se lembram, dizia um homem dos seus sessenta annos aos
quatro do seu grupo todos regulando pela mesma edade--d'aquelle
garotêlho que a Quiteria _bisnaga_ tinha?

--Ah! sim! Dá uns ares d'elle, dá!

--Pois é este figurão que ahi vae. Andava por ahi á maçã do chão, todo
esfarrapado e ranhoso. A mãe pôl-o a servir alli em casa do fallecido
pae do Silveira, que era um lavrador rico, como vocês sabem. Esteve lá
uns dois annos, se tanto, até que um dia pede dinheiro emprestado ao
patrão para ir para o Brazil, na condição de lh'o mandar quando o
ganhasse. O patrão disse-lhe: nunca o diabo mais leve; olha, se o
ganhares, manda-m'o; e se o não ganhares, fica por intenção da minha
alma.

--E ganhou-o bem, logo se vê!

--Ai! teve sorte! No fim de dois mezes mandou-lhe o dinheiro, e
mandou-lhe tambem dizer que só voltaria á terra quando estivesse tanto
ou mais rico do que elle; que, do contrario, não punha cá mais os pés!

--Ora vejam o que é a sorte!

--É assim! Deu em enriquecer, e mandava sempre uma mezada á mãe.

--Por isso ella anda por ahi muito gaiteira, e já não apparece na feira
dos cinco a comprar e vender creação!

--Já não tem necessidade d'isso. Até parece que anda mais nova.

--É verdade! Olha a _bisnaga_! Se ella não tivesse tido a habilidade de
arranjar aquelle filho, não tinha agora uma velhice tão mimosa.

--Meu caro... é a sorte. Pois foi para o Brazil ha vinte annos, pouco
mais ou menos, pobre como Job, sem saber lêr nem escrever...

--Ora vejam!

--Quero dizer... elle aprendeu lá a lêr, mas isso foi já depois de estar
bastante rico. E fez bem. Um homem, com riqueza, sempre precisa de ter
alguma instrucção. Mas, quando foi, era um perfeito miseravel. Pois
dizem que tem uma bôa fortuna.

--Meu amigo:

    «Se fôres ao mar pescar,
    Que a fortuna te não deixe.»

--Isso, isso! Ah! Ah! Ah!

    «Lança as redes, vem-te embora,
    Quanto mais burro, mais peixe.»

E, batendo-lhe no hombro, disse para os do grupo:

--Vamos para a missa, que deve estar a começar.

      *      *      *      *      *

Nesse mesmo dia, á tarde, o filho da tia Quiteria de Jesus fazia a
digestão do jantar, preguiçosamente espernegado num escabello,
saboreando um aromatico charuto, cujo fumo, desenrolando-se serenamente
em espiraes na atmosphera, elle contemplava com os olhos indolentemente
semi-cerrados.

Estava só, na saleta terrea que lhe servia de triclinio, pois que a
cosinha não era, segundo o seu modo de vêr de homem rico, logar
apropriado para isso.

A mãe, na companhia d'outra mulher que convidara para a ajudar nos
serviços domesticos d'esse dia--dia de gala em casa da tia
Quiteria--ultimava as arrumações da sua cosinha onde n'esse dia um
frango, uma posta de vitella e outra de carneiro e mais uns guisados,
deram ás paredes denegridas a honra de as mimosear com um fumo mais
agradavel, impregnado de aromas recendentes que espantaram metade da
visinhança.

--Viva, sr.ª Quiteria! disse da porta da cosinha um homem de trinta e
cinco annos, com a sua roupa domingueira de saragoça, fazendo uma mesura
com o chapéu na mão. Então está contente, hein? Tem cá o seu filho...

--É verdade, Francisco. Como não hei-de estar contente, se ha tantos
annos o não via?

--Decerto, decerto! Pois eu queria vê-lo, porque a gente gosta sempre de
vêr as pessoas do nosso tempo de rapaz... Elle é capaz de fazer que me
não conhece... Deus Nosso Senhor deu-lhe sorte; enriqueceu, emquanto que
eu, sempre...

--Não digas isso, homem! O meu Joaquim não é d'esses. Olha: entra para
alli, que lá o encontras.

O nosso novo personagem era o visinho mais proximo da sr.ª Quiteria (é
necessario agora dar-lhe senhoria, em honra do dinheiro do filho); era
um antigo companheiro do brazileiro, inseparaveis no jogo do pião e na
procura de ninhos. Vivia só com sua mãe, a tia Maria das Neves, que
corrêra logo a dar os parabens á sua visinha e as boas vindas ao filho,
a quem achou muito desconhecido mas muito bom, com muito boa côr, que
não parecia até vir de terras brazileiras.

Elle abriu a porta que dava para a salita, e, lançando um olhar meio
perscrutador, meio timido, para dentro, perguntou da porta:

--Ó senhor Joaquim! Que bons olhos o vejam!

--Ah! és tu, Francisco? perguntou phleugmaticamente, sem se mexer, o
brazileiro. Entra, homem. Entra, e senta-te ahi mesmo nessa mala.

--Ora então, com sua licença. Pois eu, sabendo que vossa senhoria tinha
chegado, mal parecia que não viesse visital-o, porque, sempre foi um
rapaz com quem brinquei muitas vezes; lembra-se, sr. Joaquim, quando
jogavamos o pião?...

--Ah! sim! sim! interrompeu o _bisnaga_ com expressão de desdem.

--Depois, pensei lá commigo: elle sempre se ha-de lembrar de mim ainda,
embora eu seja pobre e elle esteja rico...

--Arranjei uns patacos, é verdade. Não é muito, mas... contentar.

--Teve sorte! Teve sorte! É porque Deus lhe achou merecimentos para
isso. Ah! quem o viu e quem o vê! Quando nós iamos á cata de ninhos,
acolá por...

--Ah! sim! sim! Olha lá uma coisa: tu não fumas?

--Fumo...

E, puxando por um _kentuk_, ajuntou:

--É que eu não queria... faltar ao respeito...

--Ah! sim! Deixa lá isso; fuma este charuto. E deu-lhe um que tirou do
bolso do casaco.

O filho da tia Maria das Neves pegou cautelosamente com dois dêdos no
charuto que o brazileiro lhe offerecia, contemplou-o com um sorriso
mixto de parvoice e de contentamento, e metteu uma das extremidades na
bôcca.

--Espera lá, homem! É preciso aparal-o. Por onde diabo querias tu que
saisse o fumo?

E deu-lhe um canivete, mostrando-lhe, para exemplo, o seu charuto, que
tirou da boquilha de aros de oiro.

O Francisco cortou uma das extremidades ao charuto, e, depois de o
metter na bôcca, puxou d'um phosphoro de pau, dos que vulgarmente se
chamam de _espera gallego_ por causa da grande demora do enxofre entrar
em combustão, e, raspando-o nas calças de saragoça, com elle accendeu o
charuto.

Entretanto, a _bisnaga_ recebe a visita, na cosinha, de varias visinhas
que a vêm felicitar pelo alegrão que a vinda do seu Joaquim lhe veio
dar.

Este, abrindo a bôcca n'um cantarolado bocejo, pergunta ao seu antigo
companheiro, que mais parece um servo que um antigo amigo dos tempos de
rapaz:

--Olha lá uma coisa: a respeito de _pequenas_, como vae isso por ahi?

E ao dizer isto, piscava velhacamente um olho.

--Ha por ahi uns peixões bem bons!

--Sim?

--Conheceu a tia Joanna Maneta?

--A tia Joanna Maneta?... Ah! aquella mulher que uma vez nos queria...
Bem sei, bem sei. Então?

--Então, tem lá uma cachopa de estalo, ahi dos seus vinte e dois annos!

--E será facil de...

--Ai! Ai! Ai! Isso é só chegar-lhe!--e esfregava, um de encontro ao
outro, os dêdos pollegar e index. Fazem-se finas, os diabos! Ha por ahi
um par d'ellas que não vão assim com duas razões! Querem só que os
rapazes lhes fallem em casorio. Mas vossa senhoria não precisará de
muito trabalho. Isto de mulheres, cheirando-lhe a dinheiro... se não é
uma é outra. Porque ha por ahi bastantes! Mas obra fina, d'aqui de traz
da orelha, tem lá o tio Alameda!

--Alguma filha geitosa, hein?

--Oh! de estalo! Isso é o que ha de melhor por estas redondezas. Mas
está nova!...

--Que edade tem?

--Deve andar pelos seus desenove. Se tanto! Além d'isso, era uma grande
desfeita ao velho, que é muito respeitado, e quer-lhe como á luz dos
olhos.

--Isso de desfeita é o menos. O diabo é ella ser menor.

--Pois é isso... Ah! a proposito do tio Alamêda! Não sei se vossa
senhoria sabe que elle, além d'essa rapariga, tem um filho ahi dos seus
vinte e quatro a vinte e cinco annos?

--Não sabia, mas fico sabendo.

--E vossa senhoria lembra-se da tia Rita Serôdia?

--Hum! Não me reccordo, não.

--Bem, é a mesma coisa. Pois uma filha d'essa tal Serôdia, uma rapariga
toda espevitada e geitosa, cantava ao desafio com qualquer, que era um
gosto ouvil-a! O tal filho do tio Alameda tambem canta muito bem; é até
chamado o rei dos cantadores, porque por estes sitios e arredores, não
ha ninguem que se lhe compare. Qualquer que se fosse bater com elle, era
derrota certa. Ora essa tal filha da Serôdia, e que se chama Maria
Luiza, deu em ir cantar sempre com elle; em todas as festas onde
appareciam os dois, ahi estavam em frente um do outro! Até algumas vezes
ella vencia-o, mas dizia-se que era elle que o fazia de proposito. Mas
mais tarde é que se soube que o rapaz dava o cavaco por ella, tanto que
se tem feito os esforços para o retirar, porque dizem que casa com ella,
e não ha meio; e é porque, segundo consta, a rapariga é mal empregada
n'elle, porque se portava mal, e, além de elle ser um bello rapaz,
estimado de todos, dá um desgosto ao pobre velho do pae, que não faz
ideia. Ora por estas razões, é uma obra de caridade desviar o rapaz
d'alli. Isto de mulheres, vossa senhoria sabe-o melhor do que eu, porque
tem corrido mundo, em lhe cheirando a riqueza, illudem-se como ratos!

--Ah! Ah! Ah! Queres então dizer que, com duas arrastaduras de aza e
outras tantas promessas...

--Ora nem mais! Além d'isso, não é mau petisco! E como anda toda inchada
por o rapaz andar assim pela beiça, sabendo toda a gente o que ella foi,
era bem feito.

--Oh! diabo! Mas é preciso fazer isso com geito. Não vá o rapaz fazer
alguma...

--Isso fica por minha conta! Com geito tudo se arranja. Sou amigo do
rapaz, começarei a metter-lhe em cabeça que a rapariga anda a perder a
cabeça com vossa senhoria, que nem sequer ainda pensou n'ella, e,
finalmente, quando vossa senhoria começar a entrar em combate, ella, com
certeza, não resiste, e então eu direi ao rapaz se fôr preciso, que foi
ella até que se entregou a vossa senhoria. Verá depois como elle até me
agradece o cuidado que tive em lhe abrir os olhos.

--Bem. Arranja lá as coisas, e, quando fôr occasião, mostra-me a
rapariga. Agora ouve lá uma outra coisa: não ha por ahi quem queira
vender uma propriedade bem situada, que seja fertil, isto é, com agua em
abundancia, e onde se possa fazer uma casa?

--Falla-se que o Lopes vae vender aquella casa com a propriedade que
fica aqui nesta rua, á beira da estrada, mesmo á esquina da viella da
Nóra. É um aido grande, tem boa agua, e está num sitio lindo, donde se
vê o campo todo...

--Pois isso é que me convinha comprar.

--Se vossa senhoria quer, vamos ter com elle, e, se o homem estiver
resolvido...

--Paga-se-lhe bem e...

--E arranja-se tudo á surrelfa; escusa de a annunciar.

--Pois é isso. Vamos então lá.


IX

Estava-se no principio da primavera, a quadra em que a natureza, banindo
a melancholia em que estivera mergulhada durante alguns mezes, começa a
vestir-se de galas. As arvores que, na nudez dos seus ramos, só
inspiravam tristeza, começam a revestir-se d'uma folhagem pequenina e
tenra, e os passaritos, passeando d'umas para as outras, chilreando,
cantando, juntam a sua alegria á alegria da natureza, parecem inebriados
com tanta doçura.

Era num dia limpido da primavera, ás sete horas da manhã--uma manhã de
agradabilissima frescura, clara, serena, animada por um sol cheio de
vida e sorridente, pairando no ceu azul e coando-se atravez da
atmosphera d'uma extrema limpidez--uma d'estas manhãs cheia de vida que,
gosadas na aldeia, teriam o dom sobrenatural de inocular no animo d'um
desvairado o gosto pela vida de que estivesse prestes a desfazer-se.

O tio José da Alameda, sentado no muro da sua eira, contempla o aido com
um sorriso de amargura e satisfação. Contempla as arvores rejuvenescendo
de encantos, muitas das quaes elle plantou e outras lhe foram legadas
por seus paes; faz passear a sua memoria pelos tempos passados,
recordando, com amarga saudade, esses tempos ditosos que foram para
nunca mais voltar, e, na sua profunda abstracção, estremece á voz d'um
homem que, por detraz de si, o chama.

--Viva, sr. José! Está gosando a frescura da manhã, hein?

Elle voltou-se, e viu na sua frente o filho da sr.ª Quiteria de Jesus,
de arma ao hombro, trajo de caçador, chapéu molle derrubado e cheio de
orvalho.

--É verdade, sr. Joaquim Velloso. (O Velloso, tomou-o elle por lhe
parecer um nome pomposo que se casava bem com a sua situação). Então
anda caçando, logo de manhã?

--Saí a dar um passeio matutino, eram cinco horas. Dei uma volta alli
pelas Chans, e matei dois melros, que trago aqui na bolsa. Apenas para
me entreter e gosar a manhã que está muito linda, e fazer vontade ao
almoço. Entrei por aqui dentro sem pedir licença...

--Ora essa! Não precisa! Quando quizer, não só o meu aido está ás suas
ordens para passear, mas tambem a minha casa está sempre aberta para o
receber.

--Muito obrigado! Muito obrigado!

--Olhe: vamos até lá e descança um pouco. Entretanto faz-se o almoço
e...

--Oh! sr. José! Muito obrigado pela franqueza!

--Obrigado pela franqueza! Essa não é má! Nem pelo almoço eu quero que
me fique obrigado...

--Mas deve comprehender que tambem devo ter o meu á espera em casa, e...

--Mas tambem comprehendo que, depois de uma passeata d'essas, deve
trazer bom appetite; e como a sua casa ainda fica distante...

--Oh! senhor! Nesse caso, obriga-me a almoçar duas vezes...

--Olhe que não faz mal nenhum! Eu, quando era da sua edade, era capaz de
almoçar tres vezes. O senhor desculpe-me a franqueza com que lhe
fallo...

--Oh! nem nisso se deve fallar. E já que assim quer, terei hoje o prazer
de almoçar na sua amavel companhia.

--Vamos lá. Se estamos com ceremonias, não saimos d'aqui hoje.

E o velho, travando-lhe do braço, encaminhou-o para casa, que ficava a
cerca de cem metros.

Conversando e parando a cada passo, o tio Alameda ia-lhe fallando da
agricultura d'aquelle anno, que promettia não ser fecundo, de pouca
novidade, pois que, se assim continuava o tempo, sem chuva, ter-se-ia um
anno de fome; applicou o adagio «se não chover em março e abril, venderá
el-rei o carro e o carril».

--Olhe o sr. Velloso: ha um dictado que diz «em março queimou a velha o
maço; em abril queimou o carril; uma cama que lhe ficou, em maio a
queimou; e ainda lhe ficou como um punho, que o queimou em Junho».

O brazileiro ria-se dos dictos do tio Alameda, e interrompia as suas
considerações sobre a agricultura, de que não percebia nada, com
monosyllabos, acênos de cabeça e breves repetições do que ia ouvindo.
Por fim, a conversa incidiu sobre coisas de que já podia fallar, e, como
quasi todos os individuos que, tendo nascido na lama, se vêem um dia
deitados em leitos fôfos e voluptuosos e gostam de alardear os seus
haveres, elle fallou dos seus negocios, das transacções dos seus
capitaes, dos seus projectos da vida futura que tencionava passar, na
aldeia onde nasceu, fallou da compra da propriedade ao Lopes, onde
andava já a construir uma casa, etc., etc.

Por fim, chegaram, ao cabo de uma boa meia hora, a casa do tio Alameda.

--Helena! chamou o velho ao chegar a casa. O sr. Velloso almoça hoje
comnosco. Prepara-lhe o almoço.

Helena viera lesta ao chamamento do pae e recebeu com um encantador
sorriso o seu hospede que, levando a mão ao chapeu, a cumprimentou com
uma mesura envolvendo-a num olhar de sympathia.

O tio Alameda conduziu-o á sala, onde conversaram emquanto Helena,
coadjuvada por Julia, prepara um succulento fricassé com ovos e
linguiça.

Ás oito e meia chegavam João e Paulo do trabalho, jaqueta ao hombro, as
calças empoeiradas.

--Helenasinha, perguntou João entrando alegremente na cosinha; está
prompto o almoço?

--Sim senhor.--E acrescentou a meia voz: temos cá hoje um hospede para
almoçar.

--Um hospede? E quem é?

--O brazileiro, o sr. Velloso.

--O sr. Velloso?! E a que proposito vem esse homem almoçar hoje cá?!

--Oh! parece que não ficaste contente! respondeu contristada. Estás
zangado com elle, João? perguntou com visivel anciedade.

--Não, não estou. Mas parece que tu... parece que te preoccupas muito
com elle?

--Ora! Isto é geito meu, respondeu com um sorriso; e, para occultar uma
leve vermelhidão que lhe tingiu as faces, o que não passou despercebido
ao irmão, affastou-se, dizendo:

--Ah! que já me ia esquecendo o estrugido!

Entretanto, Julia ia estendendo sobre a mesa a toalha, sorrindo
angelicamente para Paulo que a contemplava apaixonadamente com o rosto
entre as mãos e os cotovellhos apoiados sobre a meza......................
..........................................................................

Terminado o almoço, o sr. Velloso despedindo-se cortezmente e muito
reconhecido pelas deferencias com que aquella excellente gente o
tractara, e intimamente jubiloso pela retribuição de olhares ternos com
que galanteara disfarçadamente Helena prometteu voltar uma vez por
outra, fazendo ao mesmo tempo com antecipação o convite para irem
egualmente á sua casa nova, logo que estivesse concluida.

--Isso ainda leva uns mêzitos, dizia o tio José. Segundo dizem, vae
ficar uma obra bôa, e...

--Tambem me custa a modica quantia de tres ou quatro contos!

--Meu amigo! Trabalhou, para agora gozar. É porque Deus lhe achou
merecimentos para isso.

O sr. Velloso encolheu ou com modestia ou com desdem os hombros, e,
estendendo a mão ao velho, cumprimentou com uma venia a familia.

--Pois faz-me um grande favor em vir por aqui bastantes vezes para me
entreter, dizia-lhe o velho, apertando na sua mão rugosa a mão macia do
brazileiro. Um velho como eu, que já não pode ir trabalhar, estima
sempre que lhe façam companhia, mórmente pessoas delicadas como o sr.
Velloso.

--Afinal, continuou, voltando para dentro depois que o brazileiro
partiu--dizem que é muito cheio de presumpção e vaidade. Não acho!
Parece-me até muito boa pessoa! Muito cortez, delicado e parece ter
muito bom coração. Parece muito bom sujeito.

--Parece muito bom sujeito, parece! repetiu quasi machinalmente, como
num echo, Helena.

Paulo e Julia, a quem não passaram de todo despercebidos os olhares
incendiados que o sr. Velloso deitava a Helena, trocaram um sorriso; e
João, pegando no casaco, pôl-o ao hombro, e pondo-se a caminho,
precedido de Paulo, murmurava comsigo:

--Será muito boa pessoa, será! Pode até ser um santo! Mas... não vae á
minha missa! Aquelle olhar não indica coisa boa!... E então a lôrpa da
minha irmã a modos de... Isto de mulheres!... Ora faça elle alguma, e
verá quanto peza um marmelleiro!... Pensa talvez que ainda está no
Brazil? Experimenta! Experimenta, que o cacete t'o dirá!...

E caminhando alguns momentos silencioso, continuou, monologando, num
intelligivel crescendo:

--Vêm para ahi com uns poucos de contos, ganhos sabe Deus como, e, sem
se lembrarem que já foram uns pelintras, uns miseraveis, fazem-se então
uns pedaços d'asnos que pensam terem o rei na barriga!... Ora vem para
cá com as tuas basófias, que eu te ensino como se bate um lombo!... Tem
então lá um palerma d'um visinho, mais chapado que um portão de ferro,
que--Ah! Ah! Ah! até dá vontade de rir!--me vem dizer «que tome conta na
Maria Luiza, que anda tôla pelo _bisnaga_! Que era só elle fazer um
gesto, que a rapariga era d'elle! Que Deus me livrasse de elle tomar a
peito fazer-me alguma desfeita!» Que grande bruto me saiste,
Francisquinho das Neves! Que se livre mas é elle! Ah! Ah! Ah! A Maria
Luiza! Que dois brutos me sairam o _bisnaga_ e o Neves! Este, embruteceu
com o dinheiro; o outro, embruteceu talvez pela grande vontade d'elle!
Ah! Ah! Ah!

--Ó patrão! Então o tio Francisco das Neves disse-lhe essas coisas?!

--Pois tu vinhas ahi, rapaz?!... Diabo! Nem me lembrava de ti, homem.
Não digas do que ouviste, percebes?

--Sim senhor.

--Tudo aquillo que eu vinha a dizer, é como se ninguem o ouvisse...

--Não ha duvida, patrão.


X

O Francisco da Neves tornou-se o confidente do filho da sr.ª Quiteria de
Jesus.

Com uma dedicação quasi servil que, geralmente, todos os imbecis prestam
áquelles que, graças á plutocracia, têm o dom de os fascinar como um
individuo, com o poder soporifero, hypnotisa a sua victima, o filho da
tia Maria das Neves passou, por assim dizer, a exercer as funcções d'um
cão fiel, prompto a defendel-o na primeira arremetida que lhe fizessem.
Com uma differença, porém: o cão serve seu amo a troco do alimento que
lhe dá, e o Neves dedicou-se ao Velloso de corpo e alma, imbecilmente,
com a dedicação dos espiritos boçaes que se inclinam, sem mesmo saberem
nem procurarem saber o motivo, a uma causa.

Confidente dos seus mais importantes negocios, elle estava ao facto das
ninharias mais abjectas da vida intima do brazileiro.

--Francisco, disse-lhe este apenas chegou de casa do tio Alameda, após o
que foi logo procurar o visinho--parece-me que estou apaixonado pela
filha do Alameda.

--Vossa senhoria falla serio?! Onde a viu?

--Estive lá em casa esta manhã, e até me deram de almoçar. O velho é um
bello homem, coitado. Mas o filho é que me parece pouco de brincadeiras!
E é por isso que venho prevenir-te para que haja toda a cautela no
negocio.

--Pois então vossa senhoria, gostando assim, como acaba de dizer, da
rapariga, ainda tem coragem de...

--És pateta! Mais motivos ha para desviar o rapaz. Eu gosto da irmã a
valer. Sou até capaz de casar com ella: por isso tenho a obrigação de
pugnar pela honra da minha futura noiva. Percebes?

--Perfeitamente. Diz vossa senhoria que...

--Digo que vou empregar os esforços para que o filho do Alameda deixe a
tal Maria Luiza. Mas agora é preciso tento no jogo!--E, fallando mais
confidencialmente, continuou--Eu vou, primeiro que tudo, vêr se engano a
Helena. Não sei se me comprehendes...

--Muito bem. Eh! Eh! Eh! Vossa senhoria sempre tem uma arte!

--Entretanto, vae vendo se despersuades o rapaz do que lhe disseste.
Dize-lhe agora que fizeste aquillo, sómente para o rallar, que é para
elle não andar de pé atraz commigo.

--Percebo muito bem.

--Depois... eu te direi, quando as coisas estiverem em bom caminho, o
que has-de fazer.--E ajuntou com um sorriso malicioso:--E é mais uma
sôpa que se molha... Porque a Maria Luiza ainda não é má de todo!...

--Eh! Eh! Eh! Vossa senhoria tem uma arte! Tem uma arte!... É capaz de
as levar todas a fio!...

--Pois tu não sabes, homem, que o dinheiro faz tudo? Acaso serei mais
bonito do que os outros? Não! Ha até por ahi caras muito melhores do que
a minha. Mas... bem vês que hoje o mundo não olha a formosuras... Isto
em questões d'esta ordem. Mas, como te ia dizendo, tu, agora, nem mais
um pio dás sobre o caso: só dizes ao filho do Alameda que aquillo foi um
gracejo da tua parte...

--Sei muito bem.

--Que é para eu cá dispôr as coisas á minha vontade.

--Já está mais que percebido.

--Eu agora vou fazendo umas visitas a miudo lá a casa do Alameda, e a
rapariga, que não parece desgostar de me lá vêr, ir-me-ha assim ganhando
uma certa amizade... um certo amôr... até que...

--Vossa senhoria lá arranja! E, quando fôr preciso farejar...

Ainda bem que o filho da tia Maria das Neves reconhecia--ou talvez o
dissesse instinctivamente!--a cathegoria do seu baixo mister.


XI

Fins d'abril, em plena primavera que, depois d'uma pequena quadra de
chuva, decorria garbosa e sorridente como uma creança.

Era uma noite serena e sem luar, apenas allumiada pela luz tibia das
estrellas.

Um socêgo religioso repousava sobre a aldeia, apezar da hora pouco
adeantada da noite--eram nove e meia.

Na aldeia, os homens têm por norma a natureza: levantar com o sol e
recolher com elle. Não ha o bulicio nocturno confuso e ás vezes
estonteante dos grandes centros, com os seus pontos de reunião e
cavaqueira nos cafés, casinos e theatros. Chegada a noite, cada lar é um
cenaculo de alegria, paz e amôr, e sómente ás vezes, quando nas noites
longas de inverno podem dispôr de algum tempo de distracção, juntam-se,
até ao toque das almas, meia duzia de homens numa ou noutra loja, onde
ouvem lêr o jornal que o lojista assigna. «As noites dão para tudo»,
dizem então. É ahi, nas lojas, e nas casas de barbeiro, ao sabbado, que
se estabelecem os principaes pontos de reunião--os nucleos da ingenua
cavaqueira do povo d'aldeia, onde se ventilam os successos occorridos
que mais impressionaram a curiosidade publica.

Era uma noite serena e sem luar, e nem a mais leve aragem fazia mover as
folhas das arvores. A amplidão do ceu, recamado de myriades de
estrellas, parecia um immenso campo cheio de flôres.

A portaria do alpendre da casa do tio José da Alamêda abriu-se
cautelosamente, e um vulto, espreitando para a rua, se desenhou na
sombra.

Em seguida um outro vulto--o vulto d'um homem encapotado--se deslocou do
escuro do cômoro fronteiro, e approximou-se.

--Boa noite, menina Helena, disse, a meia-voz, o homem, ao
approximar-se.

--Boa noite, sr. Joaquim, respondeu timidamente a voz dôce de Helena.

--Não sabe, não pode calcular a satisfação que me dá, accedendo aos
desejos do meu coração, que ha tanto tempo ambicionava expandir-se, que
ha tanto tempo suspirava por traduzir por palavras o fogo que o
apoquenta e que só tenho podido exprimir por olhares!

--Senhor Joaquim, deve tambem calcular, attendendo á gravidade do passo
que dei comparecendo á entrevista que prometti, que o meu coração não é
insensivel aos sentimentos que vossa senhoria diz ter por mim, e que me
parece ter lido nos seus olhos: a não ser que eu me engane, porque não
tenho experiencia do mundo...

--Helena da minha alma! Oh! eu amo-a muito, muito! Prouvera a Deus que
da sua parte houvesse para commigo egual affecto!

--Ha! Talvez mais...

--Oh! Não diga isso!--E, tomando-lhe as mãos, continuou com ardor
crescente--É fazer uma injustiça ao meu amôr por si, que não tem
limites!...

--Será o que diz... não duvido. Mas deve attender a que, para eu dar
este passo, devia haver da minha parte uma grande lucta do coração com a
razão, em que esta ficou vencida por aquelle...

--Sim: comprehendo isso, e oxalá que eu tenha a felicidade de poder
mostrar-lhe o meu reconhecimento de forma que possa satisfazer as
aspirações do meu coração!

--Isso, senhor, só depende de si. Eu, uma mulher que pela primeira vez
sente o perfume das flôres do amôr que o calôr dos seus olhos teve o
poder de fazer desabrochar, outra coisa não desejo que a minha
felicidade, que consiste em gozar, na companhia do ente por quem o meu
coração suspira, a vida inteira.

--É esse tambem o meu desejo, Helena. Por esse mundo por onde andei, vi
muitas mulheres, muitas das quaes algumas extremamente formosas. Mas
agora, Helena da minha alma, daria todas ellas, todas, por si só!

--Oh! Nunca ha-de ser tanto assim, respondeu ella candidamente, com um
sorriso. Eu, uma simples mulher do campo, valerei mais que todas
essas...

--Vale, para mim! Nem eu mesmo sei explicar o motivo d'esta minha
transformação. Acredite-me, Helena! Eu amo-a muito, muito!

E, com as mãos d'ella enleadas nas suas ia dominando, a pouco e pouco,
transmittindo-lhe o calôr que o inflammava, aquelle anjo tão bello e tão
candido, que pela primeira vez ouvia aquelle linguagem que lhe echoava
nos ouvidos como uma musica celeste, causando-lhe no seu intimo
sensações até ahi desconhecidas, d'uma indizivel suavidade.

--Não acredita, Helena? perguntava elle, apertando nas suas mãos febris
as mãos tremulas d'ella.

--Acredito. Eu tambem o amo muito...

--Oh! muito!... muito!... Vós, as mulheres, sabeis tão bem fingir um
sentimento que não tendes, que não sei se a hei-de acreditar!

--Pode acreditar. Por Deus lhe juro que o amo. Mas peço-lhe que falle
mais baixo, porque Deus me livre que alguem ouvisse!

--Não tinha duvida! Que me importa o mundo? Helena hade ser a minha
mulher, em breve o mundo o verá! Sim! Nesse caso, que importa que nos
vissem?

--Falle mais baixo, senhor. Pode vir meu irmão, e pensar... Deus nos
livre que elle viesse dar comnosco a estas horas a fallar!

--Sim. Tem razão. Podia formar máus juizos e seria perigoso.--E,
baixando a voz e approximando do rosto d'ella o seu, murmurava-lhe
palavras ternas ao ouvido, que ella ouvia como num cicio
dulcissimo.--Helena, meu amôr! Dizes que me amas! Isso dar-me-ia tanta
felicidade, que o julgo quasi impossivel! Se eu fosse pobre, talvez
acreditasse no que dizes. Ahi está para que serve o dinheiro! Para nos
lançar o coração no desespero! Helena! Juras que me amas?

--Juro!...

A sua voz era trémula; e elle, tendo-lhe lançado um braço á roda do
pescoço, com os labios collocados ao ouvido d'ella, murmurava-lhe com
meiguice:

--E juras amar-me sempre?

--Sempre!...

--E muito? Tanto como eu a ti?

--Sim! respondia ella com a voz apagada, completamente dominada por
aquelle braço que lhe paralisava as forças d'animo e as physicas.

Elle então depositou numa das faces d'aquelle anjo que se lhe abandonava
inconscientemente, um beijo ardente de impudicicia, semelhante a um
salpico de lama que caisse numa das pétalas dum alvissimo lyrio.

E nada mais se ouviu, senão o arrastar surdo e quasi imperceptivel da
portaria que se fechava occultando á exigua claridade da estrada as
sombras unidas d'aquelles dois seres apaixonados--um, com um sentimento
todo ideal, todo celeste; outro, com um sentimento todo terreno, todo
lubrico...................................................................
..........................................................................
..........................................................................

A lua erguia-se no horisonte melancholica e triste, quando a portaria se
abriu, inundando o alpendre um jorro de luar.

Helena estremeceu, e, apertando fortemente o braço de Joaquim, exclamou:

--O luar não te parece hoje mais sombrio e a lua mais tristonha,
Joaquim?!

--Tontinha! Até me parece mais alegre! Olha como ella sorri! Está-nos
annunciando um paraiso de felicidades.

--Deus te ouça. Mas parece-me vêr no rosto da lua uma expressão de
tamanha melancholia!

--Ora! Havemos de ser muito felizes. Olha: a minha casa--a nossa
casa!--d'aqui a tres ou quatro mezes fica prompta. Depois viveremos lá
juntinhos; iremos passear por aquelles caminhos do outeiro, á tardinha;
e havemos de ir, á noite, para a janella ou para o jardim, que hei-de
mandar fazer, vêr nascer a lua a sorrir-se para nós.

--Oxalá que sim! Deus te ouça! E juras-me que farás a minha felicidade?

--Helena! Juro-te, pelo Deus que me protegeu durante muitos annos por
esse mundo além, que hei-de fazer a tua felicidade!

E, depositando-lhe um beijo na fronte, disse:

--Adeus. Até ámanhã.

--Adeus Joaquim!

Helena conservou-se á porta até ver desapparecer o vulto do seu
bem-amado numa curva da estrada.

Suspirou, olhou outra vez para a lua, e, ao voltar para dentro, ouviu o
piar lugubre d'uma ave nocturna.

Estremeceu, e, fechando a portaria, murmurou estarrecida:

--Jesus! Não sei o que o coração me adivinha!...


XII

E Maria Luiza?

Maria Luiza vive feliz na companhia de sua mãe, na reclusão da sua
casinha, aonde, todas as noites, o João da Alamêda vae levar ao seu
coração o balsamo suavissimo da esperança.

Que importa que o vento sopre frigido e impertinente lá fóra, se temos
dentro de casa o lume acariciador que nos salvaguarda do rigor das
intemperies?

Mas, como succede a tudo neste mundo, as linguas maledicentes foram
affrouxando, e Maria Luiza começa a ser envolvida no esquecimento, que é
para ella d'um prazer indefinivel.

«Elles tanto hão-de fallar, que hão-de cançar!» dizia-lhe o João, sempre
que ella, contristada, procurava na doçura das suas palavras animadoras
refrigerio para as mágoas que a affligiam.

E com effeito, ella, ao sair de manhã a buscar á loja a sua provisão
diaria, já não ouve os dichotes com que a principio alguma bôcca menos
polida lhe feria os ouvidos e que muitas vezes lhe faziam marejar de
lagrimas os olhos. A torrente do enxurro foi affrouxando de
impetuosidade; e agora, já de quando em quando lhe sôa ao ouvido um
«adeus» pronunciado com um certo acanhamento, com uma especie de
arrependimento.

Os vaticinios do tio Alamêda iam-se realisando--á tempestade segue-se a
bonança; a verdade é como o sol que dissipa as trevas mais espessas.

Mas a verdade ainda se não patenteava e apenas se iam notando uns certos
retrahimentos de animo nos emprehendedores d'essa nefasta cruzada que,
longe de se inspirar em sentimentos humanitarios e altruistas ou
obedecendo aos principios dum dever e virtude civicos, inspirava-se,
vergonhosa e torpe, no vil sentimento da inveja.

Comtudo era já um symptoma de justiça. Esta viria, no tempo devido, a
occupar o seu logar, e Maria Luiza começava a sentir as delicias de um
proximo regresso á vida alegre, de um lento resurgimento ao convivio das
suas amigas em cujo olhar já lia o arrependimento.

E Maria, neste desanuviar do horisonte, antevê já um paraizo de
delicias, muito distante, mas para o qual ella se encaminha a passos de
gigante. No dissipar, ainda que lento, dos densos nevoeiros que lhe
toldam o horisonte, ella sente nascer em si uma alma nova, e no ceu
azul, outr'ora carrancudo e tempestuoso, ella pensa vêr um sorriso
despretencioso e ingenuo, como que annunciando-lhe não sómente o
regresso á vida de outr'ora, mas um mundo desconhecido, uma vida de
fausto...

Ella afugenta da sua imaginação taes devaneios, e refugia-se então na
meditação das palavras do seu João, a sua unica esperança, a sua vida,
porque foi elle, durante seis mezes, a sua vida, e continuará a sêl-a...
Sim! Continuará a ser a vida de Maria Luiza! Que importa as fanfarrias
do sr. Velloso com o seu dinheiro? Poderá ella olvidar, num momento,
seis mezes de dedicações, seis mezes que são todo um protesto
eloquentissimo d'um coração apaixonado? Não! Maria Luiza não póde
ouvir-te, ó novo Creso da modesta aldeia, onde dardeias mundos e fundos
com que pretendes fascinar, com o brilho das tuas libras, o olhar
ingenuo e inexperiente d'este santo povo!

Maria Luiza repudiar-te-ha! Olha como ella recebe, com a alma querendo
chispar-se em jactos de luz pelos olhos, o seu João!

Elle delinéa, em palavras animadas da mais firme esperança, o seu
futuro--o futuro de ambos!--risonho como o sol ao nascer, lindo e
aromatico como um campo coberto de flôres.

E ella ouve, extasiada, essas palavras que para si valem como se viessem
da bocca d'um profeta.

--Maria! tinha-lhe dito ha tres mezes, radiante de jubilo, o seu
João--Meu pae pediu-me hoje explicação d'uns ditos que lhe foram
assoprar. Disseram-lhe que eu te amava apaixonadamente, e que era mal
empregado em ti. Convenci-o de que o enganaram. E elle--que coração
d'oiro!--acreditou-me; prometteu-me até dar o seu consentimento para eu
casar comtigo. Mas disse-me que deixassemos passar primeiramente a
tempestade, que havia de serenar como serena o mau tempo que Deus manda.
Beijei-lhe as mãos em signal de reconhecimento; e vi-lhe nos olhos duas
lagrimas! Que coração aquelle!

--É como o teu, João!

--É melhor, é melhor que o meu. Depois, contei-lhe tambem que todos os
sabbados ia ao celleiro buscar o milho que te trago; e elle, não só me
perdoou, mas ainda elogiou o meu procedimento. Já vês que, com um pae
assim, não devemos pensar senão em sermos felizes. Quando essas linguas
malvadas deixarem de fallar, então... verás! verás!

      *      *      *      *      *

Maria Luiza estava um dia sentada a costurar á janella da sua casinha.
Era á tardinha, principios de maio. Pelo campo ouviam-se aqui e além os
balidos dos cordeiros retoiçando em volta das mães, e o mugir das vaccas
jungidas á canga puxando pacientemente a charrua que rasgava a terra, e
as vozes dos lavradores incitando os animaes ao trabalho, e os cantares
alegres das creanças que guardavam as ovelhas.

Maria Luiza está mergulhada no turbilhão dos seus pensamentos, sem
prestar attenção a toda esta harmonia do campo, nem ás melodias d'um
rouxinol que canta em frente da sua janella.

Mas o rouxinol interrompeu a sua cantilena. Seria despeitado pelo
desprezo da Maria Luiza? Não; porque esta tambem d'ahi a momento
estremeceu, cortando o fio aos seus pensamentos. Estremeceu á voz de um
homem que a saudava da rua.

--Olá! menina! Boa tarde!

Olhou e viu na sua frente um homem bem vestido, sympathico, sorrindo
para ella.

Ella reconheceu-o, porque respondeu, um tanto admirada, mas com a mesma
expressão sorridente:

--Boa tarde, sr. Velloso!

--Oh! conhece-me, e eu não tenho a honra de a conhecer!

--Quem o não conhece nesta terra, senhor? Numa terra de pobres, um rico
é bem conhecido, respondeu ella sempre com o sorriso a brincar-lhe nos
labios.

--Numa terra de pobres!... Sim! Terra pobre de dinheiro, mas rica de
formosuras.

--Não percebo bem o que vossa senhoria quer dizer..., respondeu um tanto
embaraçada.

--Quero dizer que tenho aqui encontrado mulheres formosas como em parte
alguma por onde tenho andado. Vou para um lado, encontro uma rapariga
bonita! Vou para outro, encontro uma ainda mais bonita! Vou para alli,
outra mais bonita ainda! Venho para aqui, e encontro a menina, mais
bonita que todas as outras!

--E vae por ahi abaixo, e encontra outra mais bonita que todas...

--É impossivel. Parece-me que a escala das mulheres formosas parou aqui.
É impossivel mesmo que continue... A menina desculpe-me o atrevimento
com que me dirigi a si, sem a conhecer, mas...

--Oh! senhor! Não tem nada que...

--Mas é que eu, com franqueza o digo, não pude resistir á vontade de
contemplal-a mais detidamente que por um simples relance. Fiquei
impressionado com os seus encantos. Eu costumo dizer o que sinto e
perdôe-me se a offendo com a minha franqueza.

--Oh! Não diz nada que me offenda. São umas mentiras tão sem valor,
que...

--Creia! isto é do coração. Trabalho tinha eu em chegar ao pé de todas
as mulheres de que gostasse e dizer-lhes: «a menina é bonita!» Não!
Agora é que realmente fiquei devéras impressionado, e não pude resistir
á vontade de contemplal-a por momentos, já que não poderei contemplal-a
todas as vezes que quizer, durante toda a vida. E então havia de estar
pasmado no meio do caminho, a olhar para si sem dizer palavra? Digo
então o motivo da minha admiração.

--É uma questão de pachôrra...

--Não é, creia. É uma sympathia que a menina me inspirou. Não é uma
simples curiosidade ou pachorra, como diz, o contemplal-a por a sua
belleza ter despertado a minha attenção. É que realmente no seu todo ha
não sei quê que captiva; e parece que quanto mais tempo aqui estou, mais
captivado fico! Vou-me então embora, para não ter de ficar aqui toda a
vida.

--Oh! snr. Velloso! Seria melhor que mentisse menos; retrucou ella
sempre com o mesmo sorriso.

--Ahi está como são as coisas no mundo! Muitas vezes um homem serve-se
de mil embustes que são acreditados como as palavras do Evangelho; e eu
agora, dizendo o que realmente sinto, sou considerado um impostor!--E
accrescentou, com expressão ficticia de pezar--Mas não admira, porque,
segundo o mesmo Evangelho, Christo só fazia bem e dizia verdades, e
comtudo foi castigado como o maior dos embusteiros e como um grande
criminoso...

--Peço-lhe perdão, se o offendi; eu não queria chamar-lhe impostôr.
Queria sómente dizer que, embora as suas palavras tivessem um fundo de
verdade--atreveu-se ella a dizer--não deixavam comtudo de ter os seus
enfeites para... para se tornar talvez mais agradavel...

--Ora ainda bem que faz um pouco de justiça aos meus sentimentos. Alguma
justiça... não toda a que elles têm direito. Mas...

--É melhor mudarmos de conversa, ou retirar-se, sr. Velloso, porque
sinto que minha mãe chegou agora a casa e...

--Eu retiro-me. E peço-lhe que não fique fazendo fraco conceito das
minhas palavras. Se sympathisar com uma pessoa é crime, peço-lhe
humildemente perdão... e adeus!...

--Adeus, sr. Velloso.

--Bem! Isto não correu mal! ia o brazileiro dizendo com os seus botões.

E, sorrindo, continuou:

--Isto de mulheres!... Pellam-se porque as gabem! E, com franqueza, o
demonio da rapariga não é peste nenhuma! Por isso o rapaz deu em
embeiçar com ella! Tem uns modos agradaveis, um sorriso muito ingenuo,..
Nem parece o que dizem. Mas... as mulheres são impostôras como o diabo.
Nem que eu as não conhecesse! Oh! conheço-as tão bem como a mim mesmo!
Ou talvez melhor, porque muitas vezes não sei o que quero, e o que ellas
querem sei eu muito bem... Com mais duas ou tres palestras, sônda-se a
coisa; por demais é fingir-me apaixonado e prometter-lhe uma vida de
fidalga. Prometter-lhe-hei até casar com ella, pois que duvida ha
n'isso? Dir-lhe-hei que fiz uma promessa de casar com uma mulher pobre
de quem gostasse, se a sorte me ajudasse. Valeu! Que bella ideia! E o
rapaz, quando o souber, que se cale com a roupa. É para bem d'elle... e
meu!--accrescentou com um sorriso velhaco. Ah! Velloso! Velloso! Não ha
mulher que te resista!...

E caminhava cheio de contentamento, em direcção ao campo, rindo-se
sósinho, como um idiota.

O sol declinava, quasi a submergir-se. Uma dôce penumbra começava já a
inundar o campo, e aqui e alli, bandos de meigas ovelhas, barregando,
eram apartadas em manadas por pequenos guardadores que, de chibata ao
hombro, se punham a caminho de casa, assobiando ou cantando, precedendo
os rebanhos.

--Ora vamos cá dar uma passeata pela fresca até ao campo, monologou o
sr. Velloso, espraiando a vista pela planicie, empertigando-se e
affrouxando o andar, de mãos nos bolsos das calças.

Uma creança de oito annos, pobremente vestida, mas com uns olhos cheios
de vivacidade, conduzia uma manada de ovelhas e, ao passar pelo
brazileiro, interrompeu a cantilêna que vinha assobiando, e disse:

--Adeus!

O sr. Velloso respondeu á salvação cheia de candura da creança com um
quasi imperceptivel e mal humorado «adeus», resmungando em seguida:

--Que raio de costume! Podem esquecer-se de comer. Mas de incommodarem
as pessoas com estes impertinentes «adeus» que nada significam e que não
se esquecem! E os filhos já vão pela mesma toada!... Que raio de
costume!

O sol escondera-se e a penumbra ia-se tornando cada vez mais espessa;
uma suave nebrina se evolava mansamente sobre o Vouga.

O sr. Velloso parou num sitio ensombrado pela ramagem d'um espêsso
salgueiral, onde dois caminhos se cruzavam; puxou de um charuto que
accendeu, e retrocedeu.

Ouviam-se os balidos das ultimas ovelhas que recolhiam aos apriscos, e
as Ave-Marias soaram, lentas e cheias de ternura, nos sinos da egreja.

--«Trindades na aldeia são horas de ceia», dizem elles por cá. E não ha
remedio senão dizer e fazer como elles, quando não chamam-me figurão.

Quando passou á porta de Maria Luiza, a janella estava fechada. Parou
alguns instantes em frente da porta, e ouviu uma toada de duas vozes
distinctas que se alternaram.

Approximou-se e escutou. Mãe e filha rezavam o terço.


XIII

Maio florido, maio encantador e poetico, porque foste traidor?!...

Um sol cheio de vida espalhava-se por estas collinas verdejantes
bafejadas por uma briza fagueira e meiga, semelhante ao halito da bôcca
d'um anjo. Cada despontar do sol era precedido de uma longa e pittoresca
symphonia executada por milhares de gargantas de passarinhos
chilreantes, alegres como creanças. Estes outeiros, elevando-se
garbosamente em ondulações suaves, eram tablados do mais colorido e
pittoresco scenario--o magnificente scenario pintado pela mão da
natureza, ao ar livre, com ramagens reaes e pujantes de seiva e
frescura, debaixo d'um ceu offuscante de belleza.

Tudo era poesia, tudo era amôr.

O proprio Vouga, correndo por entre duas alas de salgueiros viçosos que
se bamboleavam donairosos retratando-se cheios de vaidade na superficie
polida das aguas, sorria-se para elles, com um sorriso amargo de
despedida, beijando ternamente as franjas da sua ramagem verde que sobre
elle se debruçava com carinho.

E tu, maio risonho, deixaste que um branco e puro lyrio que embellezava
o teu jardim, roçasse as suas pétalas mimosas na terra negra e immunda!

Maio florido, maio risonho e poetico, porque foste traidor?!...

      *      *      *      *      *

O coração humano e, em especial, o coração da mulher, é uma fonte de
enygmas.

Maria Luiza, a flôr predilecta do jardim do amôr do João da Alamêda, o
anjo tutelar dos sonhos doirados d'esse mancebo que nem talvez por
pensamentos lhe tivesse profanado a candura, essa mulher que alcançara
d'um coração bondoso quanto amôr se pode dedicar a um ideal e quanta
dedicação se pode prestar a um ente que vê deante de si o cháos
horripilante da desgraça e da miseria--Maria Luiza cedeu ás insidias do
brazileiro, vergou á logica revoltante das suas palavras maleficas como
a tenra açucena da encosta vergada ao sopro do Aquilão.

Desde então, parece que até a sua casa ficou com um aspecto tristonho,
que o rouxinol que, de madrugada e á tardinha, ia cantar para defronte
da sua janella, já não sabia canções alegres, e que os cordeirinhos,
balando em volta das mães que pastam no campo, já não retoiçam como
costumavam.

O triumpho, porém, que o sr. Velloso alcançou, longe de o contentar, foi
contra a sua espectativa e contra a nossa, leitor, porque de noite, ao
chegar a casa, o sr. Velloso encommendava ao diabo tal triumpho mais a
lembrança que o visinho Neves teve quando lhe aconselhou tal coisa.

Nessa noite, ás horas do costume, compareceu á entrevista com Helena, a
quem continuava a acalentar com a esperança de dias felizes passados na
sua casa nova.

Nessa noite, porém, a demora foi curta.

Allegando uma forte enxaqueca que o tinha apoquentado todo o dia,
retirou-se e recolheu a casa onde, fincando os cotovellos sobre a meza,
metteu a cabeça entre as mãos, e scismou mais de uma hora.

Parece que não tirou resultado da sua meditação--que era antes uma
catadupa de pensamentos que se amontoavam no seu cerebro--porque,
levantando-se mal humorado, pôz-se a passear agitado na sua sala de
pavimento terreo.

Outra hora assim passou n'estes curtos passeios que, ligados, dariam
para cima de uma boa legua, até que resolveu deitar-se.

Se dormiu ou não, é que ainda não sei. Elle o dirá ámanhã ao seu amigo
Neves.

--Diabos te levem, dizia elle entrando, logo de manhã cêdo, no alpendre
do visinho que, ao vêl-o entrar assim esbafurido, ficou com o machado,
com que escavacava uma acha, levantado no ar--diabos te levem mais a
lembrança que tu tiveste!

O filho da tia Maria das Neves poisou o machado no chão, e, appoiando
sobre o cabo as mãos, ficou a olhar para o brazileiro, sem pestanejar,
como quem não comprehendia nada do que ouvia; até que, passados
momentos, perguntou, meio parvo, ao brazileiro que passeava apressado
d'um lado para o outro no alpendre, retorcendo com uma das mãos o
bigode:

--Que lembrança?!

O brazileiro parou, e, olhando para o Neves, respondeu mal humorado.

--Essa lembrança maldita que tu tiveste de eu ir perseguir essa rapariga
que, afinal, estava mais pura que a tua lingua e as de toda essa canalha
que dizia mal d'ella!

E continuou a passear agitado d'um lado para o outro.

O Neves abriu os olhos e a bocca de espantado, meio aparvalhado, e,
depois de seguir machinalmente com a vista, durante um bom meio minuto,
os movimentos do brazileiro, gaguejou:

--Mas... Vossa senhoria falla sério?!...

--Antes não fallasse! resmungou o sr. Velloso, como fallando comsigo, e
collocando, sem interromper a sua marcha, as mãos atraz das costas.

Seguiu-se um silencio egual, em que apenas se ouvia o ruido dos passos
do brazileiro caminhando no pavimento terreo do alpendre.

O Neves tornou a interromper o silencio, perguntando:

--De maneira que a rapariga... não...

--A rapariga estava honrada como as mais honradas! É o que é!

Novo silencio. Foi ainda o Neves quem o interrompeu, dizendo n'uma
especie de lamuria, muito pausado e sentencioso:

--Ora vejam vocês como ás vezes uma pessoa padece injustamente!... Quem
havia de dizer!... Que ella tinha sido esta, tinha sido aquella, que se
portava assim, se portava assado!... Já me não torno a fiar em nada que
se diga!

--Pois se tu assim tivesses feito!...

O Neves calou-se áquella observação, feita á maneira de censura.

«Effectivamente, pensava elle comsigo, eu é que fiz mal em o metter em
contradanças! Mas... sêbo! Eu não sabia! Nem tenho culpa do que se
dizia! Sou culpado e não sou!... Mas... que raio de historia! Que diabo
de mal tem isso?»

Foi sob a influencia d'esta ultima reflexão, que quebrou de novo o
silencio, dizendo resoluto:

--Afinal... vossa senhoria está para ahi com uns taes incommodos por
causa d'uma coisa que não presta para nada! Deshonrou a rapariga,
acabou-se! Uma coisa muito natural! Vossa senhoria tambem ficou
deshonrado?

O sr. Velloso parou, e, olhando para o visinho, retrucou:

--Tu é que não sabes as coisas. Não é a deshonra que me incommoda! Já
não é a primeira, nem a segunda, nem... eu sei lá! O diabo é que a
nenhuma fiz promessa, sob minha palavra d'honra, de casar, caso a
encontrasse pura, senão a esta. E eu, o que mais prezo neste mundo, é a
minha palavra. Depois, ainda que não fosse isto, bastava só o remorso de
lançar no desespero esse bello rapaz, sem necessidade nenhuma. Tudo por
causa d'essas malditas linguas, que precisavam ser arrancadas, todas as
vezes que se põem a fallar da vida alheia!

--Oh! senhor! Mas então...

--Então, o quê?

--Quero eu dizer que...--replicou o Neves coçando na cabeça,
contrariado--que, se não quer faltar á sua palavra...

--Sim: e a outra?

E voltou a passear.

--A outra?! Tambem lhe deu a palavra d'honra?

--Não lhe dei a palavra d'honra, mas jurei-lhe por Deus que lhe havia de
dar a felicidade, respondeu o brazileiro com voz abafada, sem se deter
no seu passeio. E accrescentou--Além d'isso, a essa amo-a devéras!

O Neves, perplexo, olhava para o chão, sempre com as mãos appoiadas no
cabo do machado.

--Na verdade, foi uma dos diabos!... E agora, que tenciona vossa
senhoria fazer?

--Eu sei lá! Tenho dado voltas á mioleira, que nem sei como não
endoideci. Esta noite, quasi que nem preguei ôlho. Se pudesse casar com
ellas ambas, casava.

--Mas o melhor é chamal-as a um accôrdo, e não casar com nenhuma...

--Qual accôrdo, nem meio accôrdo! És pateta, homem! Bem se vê que não
tens pratica nenhuma de mulheres. Engalfinhavam-se uma na outra, que era
o cabo dos trabalhos.

--Que diabo! Se se pudesse chamar essa gente toda a um accôrdo...
Contar-lhe tudo, a bôa intenção que vossa senhoria tinha de salvar o
rapaz da deshonra... finalmente, um accôrdo é que servia. Vossa senhoria
está contra isso, mas é cá a minha ideia, e talvez désse resultado.
Porque, combinadas as coisas, tudo ficava em casa, e...

O sr. Velloso parou, e reflectiu; depois respondeu:

--Parece que dizes bem. Contarei primeiramente á Helena o succedido. É
uma facada que lhe dou no coração, mas que se ha-de fazer? O diabo é
para o contar ao irmão. É capaz de matar a outra.

--Levando-o por bem, não faz nada. É um pobre diabo!

--Bem. Não ha remedio senão fazer isso. Esta só pelos demonios!

--Não foi das melhores, não, sr. Velloso.

--Porque afinal, mesmo que eu deixasse a Maria Luiza, o rapaz, vindo a
saber depois a traição d'ella, levava-se dos diabos! Bom: vou até casa.
Foste o culpado de tudo isto; mas, como foi na tua ignorancia,
perdôo-te. Senão, tinhas de desemaranhar a meada.

--Oh! senhor! Pois eu... estava convencido, porque era tudo cheio! E
ainda estou a pensar num caso: como diabo é que o João da Alamêda se
conteve, indo lá a casa todas as noites... Tareco impossivel! Mas... ó
senhor Velloso! Vossa senhoria não se enganaria?

O brazileiro sorriu-se como um individuo que, perito num assumpto, ouve
uma objecção; e, retirando-se, observou:

--Pensas que nasci hontem...

O Neves riu-se por sua vez; e, já sósinho, monologou, respondendo á
observação do Velloso:

--Sim... Deves estar mais pratico nessas coisas do que eu...

E, levantando o machado, continuou a sua tarefa.


XIV

No mesmo dia, á tardinha, no campo, o João da Alamêda gradava uma terra
que, durante o dia, tinha lavrado. Lançara-lhe a semente e procedia, com
a grade, á cobertura dos grãos.

Á frente do gado andava Paulo, de aguilhada ao hombro, com a sóga numa
das mãos.

O tempo continuava claro e sereno.

O immenso tapete de flôres que se estendia no campo apresentava já, de
onde a onde, uma interrupção: aqui e alli, uma terra, resolvida,
sobresaía no meio d'aquella superficie florida como no azul do ceu uma
ou outra nuvem pardacenta.

É neste mez que o campo se despe do seu variegado tapete de flôres: mas,
em substituição, cobre-se d'uma camada de milho verde que, agitado pelas
brizas, nos dá a ideia d'um extenso e placidissimo lago mansamente
encrespado pelo vento brando. E no meio d'esse pittoresco lago de
verdura--permittam-me a expressão--apparecem, de onde a onde, como
bandos de cysnes, ranchos alegres de rapazes e raparigas; elles,
despidos dos casacos, com as camisas brancas a lusir entre o verde dos
milharaes; ellas, de lenços garridos amarrados graciosamente em volta da
nuca fluctuando ao sopro da aragem; todos cantando, sacham o milho
pequenino e tenro, desde o despontar do sol até ao crepusculo da tarde.
Á hora da sesta, depois da refeição do meio dia sorvida á sombra
deliciosa dos salgueiraes, uns estiram-se para dormitar sobre a relva
mimosa, outros, collocando-se em circulo, jogam qualquer jogo de regaço,
sempre em alegria e folgança honesta; e ainda outros, mais irrequietos e
folgazões, saltam para um d'esses bateis que se encontram a cada passo
atracados ás margens do Vouga, e vão passear pelo rio.

O João da Alamêda terminou a sua tarefa ao pôr do sol. Collocaram a
charrúa e a grade sobre o carro, jungiram as vaccas, e pozéram-se a
caminho de casa, Paulo á frente, guiando o carro, e João atraz.

Ao passar á porta da Maria Luiza, João olhou para a janella onde ella,
todas as tardes, costumava estar, e não a viu.

--Está talvez lá para o quintal, pensou. Pois vou fazer-lhe uma
surpreza!

E, com um sorriso do satisfação, metteu por uma cancella contigua á
casa, pé ante pé, esperando encontral-a e rir-se de a vêr surprehendida.

Espreitou para dentro e não viu ninguem. Machinalmente, entrou no
pequeno quintal, e parou. Viu a porta, que dava para a cozinha, aberta,
e dispunha-se a entrar, quando lhe pareceu ouvir um sussurro de vozes
vindo d'um pequeno alpendre que estava ao lado do quintal.

--Ah! Está ali mais a mãe. Pois vou metter-lhes um sustosinho.

E dirigiu-se para lá, com precaução, para não ser presentido.

O alpendre era constituido por um telheiro formado de duas paredes: a do
fundo, e a lateral, que era a mesma da cozinha, e no angulo opposto ao
formado por estas duas paredes havia um pilar construido de lages. Os
vãos entre o pilar e as paredes estavam vedados por taipaes de madeira.
Num destes havia uma porta, e João ficou um tanto surprehendido ao vel-a
fechada, devendo ser mãe e filha que lá estavam. Mas, de subito,
percebeu que uma das vozes era de homem, ao mesmo tempo que o seu
coração começou a pulsar precipitadamente.

Avançou até junto da porta, e escutou.

Ouviu a voz de Maria Luiza, compungida, que dizia:

--Sr. Velloso! Que Deus me perdôe o passo que dei! D'hontem para cá,
tenho chorado talvez mais lagrimas que em todo o resto da vida. Eu não
devia fazer o que fiz. O remorso pesa-me na consciencia duma maneira que
não me deixa socegar o espirito.

João da Alamêda agarrou-se com uma das mãos a um barrote, e com a outra
esfregou os olhos, como querendo certificar-se de que realmente não
sonhava. Livido, os labios tremulos, conservou-se no seu posto a ouvir a
mesma voz que proseguia:

--Deve comprehender a infelicidade que me espera, se acaso não tiver
piedade de mim, se não cumprir o juramento que me fez!

--Nada mais prezo neste mundo que a minha palavra, Maria, respondeu a
outra voz, a do brazileiro.

--Infames! murmurou, com os punhos cerrados, o João, luctando no seu
intimo contra a tentação de arrombar aquella porta. Homem infame, e
infame mulher! E, voltando-se, desvairado, com os punhos apertando a
cabeça, cambaleando, murmurava:

--É assim que pagas tantos sacrificios que fiz por ti, mulher ingrata?!
Tanta dedicação, tanto amôr?!...

E, chorando como uma creança, olhou mais uma vez para o alpendre.
Depois, como tomando uma resolução, continuou:

--Não! Não quero manchar as mãos no sangue d'um bandido! Que ganho com
isso? E, como um ébrio, voltou pelo caminho que tinha tomado.

Era quasi noite, e perto da casa de Maria passou pela mãe d'esta, cuja
saudação não ouviu.

Alguns homens que, de volta do trabalho, recolhiam a casa, e algumas
mulheres, de cantaro á cabeça, davam-lhe as boas noites, que elle não
retribuia.

Tinha sempre, para cada saudação, um dito gracioso acompanhado d'um
sorriso; e d'aquella vez passava como um desvairado, o passo vacillante
e apressado.

Ficavam-se a olhar para elle por momentos; depois, encolhendo os
hombros, continuavam o seu caminho.

João, quando chegou a casa, não tratou de vêr, como era seu costume, se
o gado estava recolhido e os utensilios de lavoura que tinham servido
nesse dia estavam acondicionados. Entrou na cozinha, deu
sorumbaticamente as boas noites, pediu que lhe levassem ao quarto uma
escudella de agua mórna para lavar os pés, e, allegando uma violenta dôr
de cabeça, despediu-se do pae e recolheu á alcova.

--Queres que te traga a ceia, João? perguntou-lhe Helena quando lhe foi
levar a agua.

--Não; não quero. Não me appetece comer.

--Eu não sei o que tens, João! O Paulo diz que não te tinhas queixado no
campo de incommodo nenhum. Diz que só se foi que te désse pelo caminho:
que ficaste atraz...

--Pois foi no caminho. Olha, vou dizer-te uma coisa, que talvez te não
seja muito agradavel, embora pretendas negal-o...

--Que é? perguntou Helena com anciedade.

--É o seguinte: mas digo-to só a ti, para não causar barulho, porque és
tu só quem pode fazer o que te peço.

E, esforçando-se por dar serenidade á voz que lhe tremia, proseguiu:

--Esse brazileiro, esse maldito brazileiro que ahi costuma vir, que
nunca mais aqui appareça!

--Ah! pois tu...--perguntou Helena, meia aterrada. Não queres que...

--Sim! Que não volte cá mais, para evitar alguma desgraça!

--Ó João! Mas... dize lá: como o soubeste?!--E, entre a anciedade e a
surpreza, repetiu--Como o soubeste?!

--Como o soube?! Oh! Essa é boa! Então, pelo que vejo, tu sabial-o, e...

--Então vistel-o sair?!...

--Diabo! Estás a modos... Mas se eu vi o quê?!

--O sr. Velloso... Como não queres que elle cá volte, para evitar alguma
desgraça...

--Pois vi! E tu sabial-o, e não m'o tinhas dito!

--Se eu o sabia?! Mas eu não te percebo nem tu percebes a mim!

--Tambem me parece. Mas tu perguntaste-me se eu o tinha visto sair.
D'onde?

--D'alli, do alpendre. Pois tu ainda agora disseste tambem que sabias
tudo e que tinhas visto...

--Sim... Era isso o que eu queria dizer... E, abafando a colera que,
contra o brazileiro, a revelação da irmã lhe suscitara, disse:

--E é por isso que eu não quero que elle aqui volte mais. Vae-te embora,
que não paro da cabeça.

--Passa bem a noite, João. Até ámanhã.

--Até ámanhã. E não digas nada disto a ninguem.

--Descança.

João, ao ficar só, sentiu que tinha febre.

Atravez das suas ideias em desordem, só dois vultos divisava distinctos:
Velloso e Maria Luisa. Elle, o ladrão da sua noiva, o roubador da
felicidade do seu coração, e, para epilogo de tanta malvadez, o
pretendente roubador da... O Pretendente?! Quem sabe?! E esta ultima
observação saiu-lhe distinctamente expressa por palavras, tal foi o
abalo que sentiu dentro em si.

--Ah! Infame! Não! Tu não has-de ficar impune! Hei-de castigar-te de
tanta malvadez! Miseravel!...

E, fazendo depois incidir o pensamento sobre a ingrata que calcara tão
desapiedadamente aos pés o seu verdadeiro amôr, a sua dedicação extrema,
atirou-se, soluçando convulsivamente, sobre a cama, chorando como uma
creança.

      *      *      *      *      *

Nessa noite, Helena prevenia o brazileiro de que era preciso muita
cautella com o irmão, que o tinha visto sair d'alli.

--Temo até que elle venha por ahi ainda hoje, Joaquim! Diz que está com
uma forte dôr de cabeça; mas, ainda assim...

E o sr. Velloso, que vinha disposto a relatar a Helena os acontecimentos
que, desde a véspera, tanto o apoquentavam, achou mais conveniente
addiar a confidencia.

--Mas quando hei-de voltar, Helena?

--Não sei... É melhor deixarmos passar dias... O melhor, até, Joaquim,
era tu chegares ao pé de meu irmão e dizer-lhe: «descança, João, que a
tua irmã vae ser minha mulher». Oh! Joaquim! Quanto eu seria feliz!

--Por estes dias, não, Helena. O motivo, depois t'o direi. Mas confia em
Deus, e pede-lhe que nos auxilie para alcançarmos a felicidade.

--Pedir a Deus? Pois Deus póde lá oppôr-se á nossa felicidade, Joaquim?
Deus deseja-o, e por isso não precisa que lhe peçam! Só se fôr para
metteres a mão na tua consciencia, e...

--És louquiuha, meu anjo. Jureit'o. E que Deus me auxilie no cumprimento
do meu juramento.

--Sim. Juraste-me que me havias de dar a felicidade. Queres então que
peça a Deus para que te auxilie no cumprimento de tal juramento?

--Quero.

--Pois bem: pedir-lhe-hei... O coração, porém, annuncia-me coisas tão
tristes!... Parece-me que nuuca serei feliz a teu lado, Joaquim!

--Se Deus o consentir, has-de ser!

--Mas eu não comprehendo bem as tuas palavras!...

--Não disseste tu que era conveniente que eu me retirasse por causa de
teu irmão?

--Sim; mas...

--Mas é que o que te quero dizer, só poderei dizert'o com mais socêgo.
Ámanhã, venho cá e...

--Não venhas... Ou antes: esconde-te ahi pela rua, ao largo, e só te
approximas se eu abrir a portaria. Então, é porque meu irmão não saiu.

--Bem. Boa noite, Helena.

--Adeus, Joaquim! Até... quando Deus quizer!


XV

No dia seguinte, ao toque das almas, João da Alamêda envergava o seu
capote e, pegando no marmeleiro--seu inseparavel companheiro
nocturno--saiu de casa. Deu a volta á Herdade, no que gastou cerca de um
quarto d'hora, e, na volta, na estrada dos eucalyptos, se se tivesse
affirmado bem para um ponto do escuro das arvores, teria notado uma
negrura mais densa. Fôra o Velloso que escolhera aquelle ponto para seu
posto de observação, donde se descortinava, atravez da negrura daquella
noite sem luar, o vulto da casa de Helena, divisando-se no seguimento da
estrada esbranquiçada e sobre o fundo do ceu allumiado pelas estrellas.

João passou e, proximo de sua casa, coseu-se com a escuridão do cômoro
fronteiro.

O brazileiro, no seu posto, não ousava respirar mais fortemente.

Um silencio sepulchral se seguiu. Nem um sussuro de vento se ouvia nas
folhas das arvores.

Passou-se meia hora, e mais outra. As dez horas soaram, lentas e quasi
imperceptiveis, na torre de Eiról.

Ás dez e meia, João saía do seu esconderijo e mettia-se em casa.

Um quarto d'hora depois, o brazileiro punha-se tambem a caminho, e nada
mais se ouviu na estrada deserta.

      *      *      *      *      *

O sr. Velloso, com a preoccupação de espirito que lhe causaram estes
acontecimentos imprevistos, e consummido no seu intimo por não saber que
resolução havia de tomar, pois, emquanto não entrevistasse Helena acerca
do succedido, nada poderia resolvêr, faltou á entrevista na tarde do dia
seguinte a Maria Luiza.

Esta que, no dia antecedente, occultava a sua mãe as lagrimas que o
remorso lhe fazia verter, chorava agora com ella as suas infelicidades,
attribuindo a causa das suas lagrimas á ausencia de João, cuja causa não
comprehendia.

Sua mãe acalentava-a, insuflando-lhe esperança no amôr de João que, se
faltara um dia, algum incommodo lhe sobreviera, porque na vespera, á
hora das Ave-Marias, encontrara-o proximo d'alli, quando elle voltava do
campo, e não respondera á sua salvação.

--Sentia-se talvez incommodado..., accrescentava.

--A mãe que diz?! Encontrou-o...

--Encontrei-o alli acima.

--Hontem?! E a que horas?... perguntou Maria com expressão de terrivel
anciedade.

--Ao toque das Ave-Marias.

E Maria, alanceada por uma suspeita que lhe opprimiu dolorosamente o
coração, occultou o rosto nas mãos, debulhando-se em lagrimas.

A esse dia seguiu-se outro de crescente anciedade e soffrimento para
Maria Luiza, durante o qual nem fallar ouvia de Velloso, nem de João, de
quem se recordava com o coração amargurado e a alma mortificada pelo
remorso.

Sua mãe, que ignorava por completo a traição que sua filha perpetrara a
João, attribuia as lagrimas de Maria ao soffrimento que lhe devia causar
a ausencia de quem não tinha a menor noticia, porque não ousava
interrogar ninguem a seu respeito, para se não expor a algum riso
ironico; e, não achando outro remedio que pudesse alliviar a afflicção
em que a via, resolveu, sem o communicar á filha, ir a casa do tio
Alamêda saber da saude de João, pois outro motivo não podia haver que o
impedisse de sair, senão a doença.

Custava-lhe muito isso, mas, como João tinha já dito que seu pae não
oppunha obstaculo algum á affeição do seu coração, encheu-se de animo, e
foi no mais firme proposito de expôr ao tio Alamêda as razões imperiosas
que obrigavam o seu coração de mãe a dar aquelle passo, que ao terceiro
dia, se dirigiu para lá, eram dez horas da manhã.

Encontrou o velho sentado no alpendre a aparar um pedaço de páu de
sobreiro para uma chavêlha.

--Sr. José, Deus vos dê muito bom dia!

--Muito bom dia, sr.ª Rita.

--Deve admirar-se de me vêr por aqui, não é verdade?

--Com effeito, é uma novidade. Ha que annos vocemecê cá não vem! E ha
que tempos tambem que a não vejo!

--Não admira... Eu, passo a vida lá em baixo, quasi nunca venho cá para
cima...

--E, nem que viesse, tambem me não veria facilmente. Eu não saio do meu
aido, porque já não posso, estou velho.

--Está acabado. Velho não. Mas ao menos tem a consolação de viver em
socêgo, com os filhos ao pé de si, que lhe querem muito.

--Pois elles, coitados, não têm motivo para me quererem mal. Fiz por
elles o que pude...

--Decerto. Foi sempre bom pae para elles. E elles, tambem, têm sido uns
bons filhos.

--Graças a Deus... Não sairam dos peores, não senhora.

--Olhe, sr. José: com'assim, para o não estar a maçar mais, vou
dizer-lhe o motivo que me trouxe aqui...

--Dirá...

--Sei que o sr. José não é desconhecedor da affeição do seu filho João
pela minha filha, e da grande generosidade que elle tem praticado para
comnosco, que Deus sabe o que seriamos agora se não fosse o seu bom
coração...

--Sei. Elle, coitado, tem um bom coração, lá isso tem! Mas admitto-lhe
isso, porque, emfim, parece que a sua filha não é nenhuma ingrata que
não reconheça a dedicação d'elle, e não deixa de ser digna d'isso,
apezar do que para ahi diziam...

--Linguas do mundo, sr. José! Linguas do mundo! Sabe como é o mundo, e
por isso...

--Sim! O mundo inveja sempre a pouca sorte que um pobre tenha! Se é um
rico, quanto mais favorecido da sorte, mais venerado é. Emquanto que um
pobre...

--Pois é isso mesmo. Ora, como eu lhe ia dizendo, o seu filho ganhou uma
grande affeição á minha Maria, e, até hoje, ha já sete mezes, faltou só
tres vezes á noite em minha casa, onde a vae visitar: foi na noite de
Natal--na noite de ceia--e hontem e ante-hontem. Como faltou estes dois
ultimos dias sem nós sabermos o motivo, a rapariga tem-se lá desfeito em
chorar, que até me retalha o coração.

--Pois olhe que eu não sei o motivo...

--Então elle não está doente?!

--Não. Ante-hontem á noite é que, ao chegar do campo, queixou-se d'umas
fortes dôres de cabeça, e foi-se deitar sem ceia. Mas hontem, logo de
manhã, levantou-se e foi para o trabalho.

--Sim?!

--É verdade.

E a mãe de Maria Luiza teve de retirar-se, mais preoccupada ainda do que
viera, não comtudo sem pedir ao velho que expozésse ao filho a anciedade
de sua filha, que não podia adivinhar a causa de tal procedimento.

Quando, ao meio dia, João e Paulo chegaram, de enxada ao hombro, do
trabalho, o pae chamou João ao alpendre e participou-lhe que a mãe de
Maria Luiza tinha ido havia pouco tempo d'alli, onde tinha vindo, muito
contristada, saber a razão porque ha dois dias elle não dava parte de si
á filha que outra vida não fazia senão chorar.

--Sim? perguntou, ironicamente João. Coitada! Pois que chore, que quanto
mais chorar menos urina! A mãe quer saber a razão porque lá não vou?
Pois que o pergunte á filha, que o sabe tão bem, ou melhor, que eu!

--Vê lá, João! Não sejas injusto. Deixar-te-hias agora por ultimo levar
por contos...

--Não, meu pae. Tenho muita razão para assim proceder, e outro, no meu
logar, procederia d'outra fórma.

E o tio José, por sua vez, ficou tambem impressionado com as palavras do
filho, sem outra conclusão ter tirado que a suspeita de qualquer
acontecimento grave que viesse transtornar a felicidade d'aquelles dois
seres que tanto se amavam.

Nesse dia, á tardinha, um mendigo entregava occultamente uma carta a
Helena.

Esta, em virtude dos acontecimentos que a impediam ha tres dias de
fallar com Velloso, e preoccupada, além d'isso, com as palavras d'elle,
cuja significação não alcançava e traziam o seu coração amargurado por
uma terrivel angustia, tinha emmagrecido.

O corpo resente-se do soffrimento da alma. Recalcando no seu intimo a
dôr que a pungia, esse esforço ia a pouco e pouco affectando-a
phisicamente. Uma unica consolação encontrara para a mágua: as
lagrimas--esse terno confidente dos infelizes--que vertia a sós na
reclusão da sua alcova, que lhe alliviavam as amarguras do coração mas
lhe desbotavam as côres do rosto e tarjavam de roxo as cavidades dos
olhos.

Foi num mal dissimulado alvoroço intimo que recebeu das mãos do mendigo
a carta, vinda da parte de Velloso.

Correu ao seu quarto e leu:

«Minha querida Helena: Ha tres dias que passo uma vida tão cheia de
tristezas, que não podes imaginar. Na esperança de te fallar, todas as
noites vou pôr-me á espreita da tua casa, a vêr se vejo abrir-se essa
portaria que é para mim a porta do ceu. Em vez, porém, de te vêr
apparecer como o meu anjo salvador, vejo teu irmão, que me espia,
esconder-se na escuridão do muro fronteiro, e, depois de, durante cerca
de duas horas de cruel espectativa, me conservar no meu posto de
observação, vejo-o retirar-se.

Á minha tristeza motivada por te não vêr, junta-se a anciedade que tenho
de te communicar um segredo. Este é de tanta importancia, minha Helena,
e vae, com certeza, ferir de tal modo o teu coração bondoso, que até
receio de o confiar a uma carta. Mas farei as diligencias para que esta
chegue ao seu destino; e, visto que não tenho outro meio de
communicar-t'o, principio, pedindo-te que conserves a maior presença de
espirito e confies em Deus para que não te faça desanimar á vista do que
vaes lêr.

Quando cheguei do Brazil a esta terra, corriam por ahi uns boatos a
respeito de teu irmão que se apaixonara por uma rapariga chamada Maria
Luiza, que eu não conhecia. Dizia-se que ella fôra uma mulher leviana, e
que por isso não era digna da dedicação de teu irmão, um rapaz querido e
estimado de toda a freguezia; que este perdia muito no seu conceito se
casava com ella, segundo constava. Como não me interessava com o caso,
apenas lamentei a sorte de teu irmão, com quem eu não tinha relações.

Depois, porém, que te conheci, que te comecei a amar com este amôr louco
que te dedico, pensei no caso, e achei que era necessario, para honra
d'elle e minha, porque era irmão da minha noiva, affastal-o do caminho
errado que trilhava. Resolvi eu proprio ser o seu anjo salvador.
Convencido como estava, pelos boatos que corriam, de que Maria Luiza
tinha sido uma fraca mulher, e que agora se mostrava outra para
conservar teu irmão na illusão em que andava, resolvi que ella
resvalasse ao lodoçal d'outrora, para que teu irmão, abrindo os olhos,
visse a desgraça que estivera imminente de si.

Consegui, com effeito, graças ás minhas promessas, o meu intento.
Jurei-lhe até que casaria com ella, se ella estivesse isenta das manchas
de que a accusavam. E... cruel decepção! Maria Luiza estava pura, tão
pura como tu, minha Helena, quando...»

Helena, que com difficuldade levara a leitura da carta até este ponto,
sentiu uma nuvem toldar-lhe a vista e, amarfanhando a carta, caiu de
bruços sobre o leito num chôro convulsivo, murmurando em delirio, a voz
cada vez mais apagada:

--A lua estava tão triste!... Um môcho, a piar mais triste, fez-me
calafrios... E elle jurou-me que eu havia de ser feliz, muito
feliz!....................................................................
..........................................................................

Quando voltou a si, o medico, com a sua peculiar expressão de bondade,
tacteava-lhe o pulso, e ella, deitada no leito, olhou em roda, com olhar
ancioso, e perguntou ao pae, sentado á cabeceira da sua cama:

--Pae?... A carta?...

--Está aqui, minha filha. Socéga. A agitação faz-te mal; não é verdade,
sr. doutor?

--É verdade. Ella quer muito socêgo de espirito. É o unico remedio que
lhe receito.

--É coisa de cuidado, sr. doutor? perguntou, profundamente commovido, o
velho.

--Não. Não vale de nada. Ámanhã pode levantar-se. Mas has-de estar muito
socegadinha hoje, ouviste?

Quando o medico se retirou, Helena perguntou ao pae:

--Leu essa carta, meu pae?

--Filha da minha alma, não ouviste o que disse o senhor doutor? Não te
preoccupes com a carta, porque te faz mal. Socéga...

--Estou boa, meu pae. Alem d'isso estou resignada. Pareceu-me ouvir em
sonhos uma voz que me animava e que me dizia que ia ser muito feliz: mas
que era preciso abandonar o mundo, porque a verdadeira felicidade não é
aqui. Já vê que não agito o espirito a modos de me fazer mal.

--Mas não falles mais n'isso. Ámanhã fallaremos e...

--O pae leu a carta toda?

--Li... Quiz saber o motivo do teu desmaio... e até quem a leu foi o
João.

--O João?! E que disse?!

--O João está socegado. Está na cozinha. Mas peço-te por amôr de Deus
que não falles mais nisso hoje.

E, pegando-lhe numa das mãos, acariciou-lh'a, emquanto, com as lagrimas
nos olhos, dizia:

--Faz-me a vontade, sim, filha?...

Helena prometteu: mas pediu-lhe ainda que queimasse a carta, cuja
leitura não queria terminar. O pae fez-lhe a vontade.


XVI

Levantou-se na aldeia uma celeuma contra o brazileiro, que, no dizer de
toda a gente, era um seductor de donzellas.

Dois dias volvidos sobre os ultimos acontecimentos, durante os quaes o
brazileiro não abandonara á noite o seu posto de observação, toda a
freguezia, conhecedora dos successos que elle causara, augmentados,
naturalmente, pela phantasia popular, murmurava indignada contra esse
homem que viera, com a presumpção do seu dinheiro, interromper a paz e o
socego da aldeia e lançar a desgraça no seio d'uma tão boa e santa
gente.

A propria Maria Luiza, o espirito do mal até ahi, passou a ser a pobre
avesinha da silveira arrebatada nas garras do gavião.

Nos dois dias que se seguiram áquelle em que Helena recebeu a carta de
Velloso, este, á mesma hora, fôra para o mesmo ponto da alameda dos
eucalyptos, na esperança de que Helena, quando o irmão desistisse de o
perseguir, apparecesse á porta.

Porém, naquellas duas noites seguintes, a decepção do brazileiro foi
indizivel, quando não viu apparecer João a vigial-o, nem tão pouco
Helena dava signal de si.

--Que se terá passado?... pensava, ao retirar-se.

Os dias passava-os em sua casa e na do visinho, que lhe communicava as
impressões que a seu respeito occupavam o espirito popular.

Era a unica pessoa com quem o brazileiro tinha conversas d'este theor:
nem sua propria mãe, que ás vezes lhe queria manifestar os seus
queixumes da vida lamentavel que elle levava, obtinha licença para lhe
tocar nesse ponto.

Elle começou a sentir remorsos da sua conducta.

Receando os olhares estranhos como se ejaculassem raios de um fogo
devorador, elle não se atrevia mesmo já a apparecer na presença dos
obreiros que se occupavam na construcção da sua nova habitação.

--Ó senhor Velloso! dizia-lhe o Neves chegando esbafurido na manhã do
terceiro dia. Uma novidade de alta importancia: o Alamêda ficou sem
filho nenhum em casa! Ficou com elle o moço, mais aquella rapariga que
lá tem, filha do fallecido João da Junqueira, e dizem que vão casar para
ficar na companhia do velho...

Mas o Neves achou inutil continuar, a não ser que quizesse fallar para
as paredes, porque o brazileiro, a meio do discurso, rodou nos
calcanhares, e, como um ébrio, sem dizer palavra, deixou o visinho
embasbacado a olhar para elle, fallando comsigo:

--Mas onde diabo irá elle?... Pois sim! Vae depressa que ainda vaes a
tempo! Onde irão elles já!

E depois, como um individuo que reflexiona com acerto, disse com ar de
presumpção:

--Ora ahi está para que diabo serve o dinheiro! Se elle fosse pobre como
eu, succedia-lhe isto? Olha lá se eu me incommodo com nada! Não tenho
dinheiro; assim, as mulheres não esperam nada de mim, por isso não deito
a perder ninguem! Nem me perco a mim!...

      *      *      *      *      *

O brazileiro, como um allucinado, penetrou no páteo do tio Alamêda.

Parou, olhou em roda, e não viu ninguem. Chorou então ao vêr-se só
n'aquelle recinto, onde cada objecto despertava na sua memoria uma
saudade do dia em que pela primeira vez alli entrou, e arrancava ao seu
coração uma gotta de sangue que lhe assomava aos olhos transformada
n'uma lagrima.

A porta da casa estava fechada; e elle, não podendo resistir á desolação
do seu coração, sentou-se no tronco d'uma oliveira que estava estendido
no pateo. Appoiou a fronte sobre as mãos e deu curso ás lagrimas que lhe
affluiam aos olhos........................................................
..........................................................................
..........................................................................

Meia hora depois, sentia que lhe tocavam n'um hombro.

Olhou, e viu na sua frente, ao pé de si, o tio Alamêda, a olhal-o com um
olhar velado por uma profunda angustia e cheio de ternura.

Instinctivamente, estendeu para o velho os braços e cingiu-lhe os
joelhos, proferindo estas palavras com desalento:

--Perdão! Perdão para um infeliz!

O velho, tentando erguel-o, disse, com as lagrimas rolando pelas faces
enrugadas:

--Levante-se! Que Deus lhe perdôe, assim como eu lhe perdôo.

O brazileiro ergueu-se, e, com voz trémula o angustiada, perguntou:

--Helena para onde foi?!

--Helena foi procurar a felicidade que o senhor lhe não podia dar.
Morreu para mim e para o mundo.

--Para um convento?!...

--É verdade! E meu filho partiu na companhia d'ella com tenção de
embarcar para o Brazil. Acompanhou-os o nosso bom e santo prior, que
prometteu internal-a n'um recolhimento.

--Oh! Isto e cruel!

--Sim! É cruel, para um pae que, d'um instante para outro, se vê privado
da companhia de seus dois queridos filhos. Um, para nunca mais voltar.
Outro... quem sabe?! Talvez tambem para nunca mais me tornar a vêr, nem
voltar a esta casa onde viveu vinte e cinco annos tão feliz e contente!

Os dois choravam. O brazileiro não ousou interromper as lamentações do
velho, que proseguia:

--O senhor está vivo graças ás minhas lagrimas que puderam conter o
braço armado de meu filho. Agora, que Deus o reservou, não queira
continuar na sua senda de opprobios por onde tem caminhado. Ainda pode
compensar uma parte d'esta serie de infelicidades que causou.
Arrependa-se do passado, e faça por esquecel-o com um futuro glorioso.
Eu, pela minha parte, perdôo-lhe; Helena, que tem um coração d'oiro,
tambem lhe perdoará, e meu filho da mesma maneira. Falta só Deus. Para
conquistar o seu perdão, faça o que eu já lhe disse: salve o passado com
o futuro.

--Mas Helena... como poderei obter o seu perdão, se...

--Deus lhe transmittirá a sua prece. Não precisa de o ouvir, para lançar
sobre a sua memoria o perdão que se concede ainda aos maiores
criminosos.

O brazileiro estendeu ao velho a mão, e, com firmeza e resolução, disse:

--Aperte esta mão: é a mão de um rehabilitado.

E, conservando apertada na sua mão mimosa a mão rugosa do velho,
continuou, com voz pausada:

--Fui criminoso; mas fui um criminoso inconsciente. Farei como o senhor
me diz e como me dicta a minha consciencia, procurando no futuro
regenerar-me do passado. Se, até aqui, o meu dinheiro tem sido olhado
como um instrumento criminoso para eu conseguir fins vergonhosos e
deshonestos e como uma base tôsca sobre a qual eu edificava, sem olhar
para o berço pobre onde nasci, o meu castello de opulencia, quero que
para o futuro seja olhado como um maná celeste que, descendo ao seio da
miseria, vá mitigar a angustia dos necessitados. Quero que elle seja a
alavanca que me erga do lodaçal em que me sepultei. Já que eu, nascido
na pobreza, tive a sorte de me elevar de modo a poder estender as azas
na mesma camada atmospherica onde os ricos se libram sem lançar um olhar
para baixo a contemplar, com olhos de piedade, as luctas cruciantes da
miseria, eu quero, então, descer d'essa altura para penetrar nos
tugurios pestilentos, nas espeluncas, para alimentar quem tem fome,
aquecer quem tirita de frio, e seccar as lagrimas de quem chora.

O velho abraçou-o commovido, e accrescentou:

--E d'esse modo será amado dos homens e abençoado de Deus; e subirá mais
alto, muito mais alto do que aquelles que, conservando-se lá em cima,
não lançam um olhar de misericordia cá para baixo!


CONCLUSÃO

Tres annos depois erguia-se, no sopé d'um outeiro de suave declive, uma
casa de apparencia sumptuosa, dominando, como uma rainha, a planicie
que, semeada de casinhas pobres de lavradores, se estendia na sua
frente.

O outeiro era revestido em toda a volta do seu sopé por pampanos verdes
de vides que o engrinaldavam como uma immensa corôa de verdura que
estremecia sob o sopro da viração; e no seu planalto estendia-se um
pinheiral de pinheiros miudos e distanciados que cresciam por entre um
tapete de urzes floridas, dando, visto de longe, a ideia de um jardim
suspenso de Babylonia.

Edificada na face oriental da falda, aquella casa, afagada logo de manhã
pelos raios alegres do sol despontando ao longe por detraz da serra do
Caramulo, bafejada pela amenidade da natureza sorridente que a cercava,
parecia uma d'aquellas vivendas phantasticas que nós, quando fomos
pequenos, anteviamos atravez da nossa imaginação infantil, excitada pela
narração d'um conto de fadas ou de princezas encantadas que nossa avó
nos contava ao serão.

Todos os dias, á tardinha, quando o ceu era claro e a atmosphera
limpida, e o sol pendia esmorecendo para o ocaso, um casal saía
d'aquella vivenda e ia passear pelas veredas do outeiro, contemplando,
ditoso, as varzeas sorridentes por onde serpéa o poetico Vouga.

Ao passar por elle, os aldeãos descobriam-se respeitosos e cheios de
acatamento, envolvendo-o n'um olhar dôce de sympathia e veneração, e ás
vezes ficavam-se a contemplal-o com expressão de intimo jubilo até o
verem desapparecer na curva de um atalho.

Nunca um mendigo se lhes approximava que não voltasse com aspecto
sorridente, pronunciando palavras de agradecimento.

--São uns santos! São uns santos! murmuravam sempre ao affastarem-se.
Deus lhes pague no ceu o bem que fazem, cá no mundo!

Egualmente a porta da casa se conservava sempre aberta para mitigar a
fome, a sede ou o frio dos necessitados, e muitas vezes, depois que a
noite estendia o seu manto negro sobre a aldeia, uma mão esmoler e
caritativa saía a ministrar o alento aos infelizes que, por vergonha ou
impossibilidade, não ousavam sair do seu tugurio onde se debatiam com os
horrores da miseria.

Essa mão que se estendia misericordiosa a acalentar o infortunio dos
infelizes e se subtraía modesta aos ósculos de gratidão, era de Maria
Luiza, a esposa do dôno d'aquella casa, tão rico como caritativo, que
distribuia santamente os rendimentos da sua riqueza.

O tempo passou uma esponja sobre os acontecimentos que, tres annos
antes, circulando em volta d'aquelles dois sêres, tanto emocionaram a
alma popular, e o sr. Velloso é agora a caridade personificada, amado
dos infelizes, respeitado por todos os que o conhecem.

Um velho, alquebrado e arrimando-se a um cajado, de andar pezado e de
cabeça calva, com o olhar velado por uma tristeza profunda, vem quasi
todos os dias passar alguns momentos com elles.

Esse velho é o tio Alamêda, que nos ultimos tres annos envelheceu mais
que em todo o resto da vida.

Privado dos affagos dos filhos que a infelicidade arrebatou da sua
companhia, minora o seu soffrimento com os carinhos que lhe prestam
esses dois seres--Paulo e Julia--que a Providencia lhe atirara pela
porta dentro, para encontrarem no seu coração o que tão cêdo lhes
faltara.

Seus filhos, ao partirem, tinham-lhe dito, como Cristo, da cruz, á sua
Mãe: «ahi lhe ficam os seus filhos. São dignos do seu amôr; por isso,
conserve-os na sua companhia».

E o tio Alamêda, amando, aquelles entes como seus filhos, sentiu a
necessidade dessa companhia. Resolveu, no seu intimo, casal-os.

Chamou um dia Paulo á parte, tinha elle já desenove annos, e
perguntou-lhe:

--Paulo, eu amo-te como a um filho. Amo tambem Julia como se egualmente
fosse minha filha. A separação dos meus verdadeiros filhos da minha
companhia abriu-me a sepultura, e a vossa separação agora atirar-me-hia
para ella. Convém que vós vos não separeis de mim nos ultimos dias da
minha vida. Vou perfilhar Julia; a ti talvez não, porque tenho uma ideia
que, se concordares com ella, dispensa isso. Queres casar com Julia?

O pobre rapaz, como não querendo acreditar no que ouvia, abriu os olhos,
sem poder responder á pergunta que o velho lhe fazia.

--Responde. Parece que ficaste espantado? Queres ou não casar com Julia?

--Se quero!...

Nestas palavras, proferidas quasi instinctivamente, traduziu toda a
paixão da sua alma, manifestou quanto amôr occultara durante dois
annos no seu peito.

--Bem! disse o tio Alamêda cheio de contentamento. Pela tua resposta,
vejo que gostas d'ella a valer, não é verdade? Não sabes quanto estou
contente com isso. É preciso agora saber se é do gosto d'ella casar
comtigo. Vae chamal-a.

E Paulo, não cabendo em si de alegre, correu a chamar Julia.

Esta veio, e perguntou, fitando nos olhos do velho os seus olhos azues
cheios de doçura e de submissão:

--Que quer, pae?

--Perguntar-te simplesmente uma coisa: se eu quizesse que casasses com
Paulo, fazias-me a vontade?

Julia fitou os olhos no chão, ruborisada, dando naquelle silencio a
resposta mais eloquente que lhe podia dictar o seu coração apaixonado.

O velho, comprehendendo então nesse momento que o seu desejo era a unica
felicidade que aquellas duas almas anhelavam, sorriu-se jubiloso, e
poisando paternalmente a mão na cabeça loira da creança, disse com
extrema bondade, pondo-se em pé:

--E tiveste a coragem de me não revelares esse segredo, hein? Vejo que o
amas a valer, e não me tinhas dito nada, minha másinha?

Julia levantou para elle os olhos castos, depois olhou para Paulo que a
contemplava apaixonadamente, e, tornando a baixar os olhos, sorriu com
candura.

--Está bem; continuou o tio Alamêda. Quando o nosso João vier, o que não
ha-de tardar, segundo elle diz, nenhum anno, ha-de festejar-se a sua
chegada com o vosso casamento; e...

O som d'uma buzina fez olhar todos para a portaria, onde estava um
homem, com uma porção de cartas numa das mãos e um sacco de couro a
tiracóllo.

--Ill.mo senhor José Nunes da Alamêda!

E estendeu um braço com uma carta na mão.

Julia correu ao alpendre; e, ao receber a carta tarjada de luto,
estremeceu. Olhou para o sello, e reconhecendo que provinha do Brazil,
occultou o rosto no avental, soluçando.

O velho, por sua vez, estremeceu, e perguntou com a voz trémula:

--Que é, Julia?! Alguma nova desgraça que nos sobreveio?!...

Julia tirou o avental de deante do rosto, e approximou-se, as faces
banhadas de lagrimas, estendendo a carta para o velho.

--Seja o que Deus quizer! Lê, filha, lê. Estou resignado com a vontade
de Deus!

E, appoiando-se, curvado, sobre o bastão que segurava com ambas as mãos,
meneava dolorosamente a cabeça.

Julia, em frente d'elle, pallida como um cadaver, rasgou o enveloppe e
desdobrou a carta.

Paulo tinha-se approximado, egualmente pállido, e, sem proferir uma
palavra, collocou-se ao lado esquerdo de Julia, encostando a sua cabeça
á d'ella e olhando, machinalmente, numa enorme anciedade, para as
lettras que não entendia, porque não sabia lêr.

Julia lêu para si a primeira linha, a participação do óbito de João, e,
deixando cair os braços, olhou, banhada em pranto, para o velho.

Este ergueu os olhos para o ceu, e exclamou com indiscriptivel cummoção:

--Meu Deus! Levastes-me os filhos. Seja feita a vossa vontade.

E, estendendo as mãos para os jovens, que estavam na sua frente
semelhando os conjuges em frente do padre, disse:

--Levou-me os filhos, e deixou-me a vós. Sois os meus pupillos, e d'ora
avante sereis meus filhos.

Abraçou-os n'um demorado amplexo, continuando com a voz entrecortada
pelos soluços:

--E que Deus abençoe o vosso amôr, como eu o abençôo!


FIM





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