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Title: Juizo Verdadeiro sobre a carta contra os Medicos, Cirurgioens e Boticarios
Author: Morganti, Bento
Language: Portuguese
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                              JUIZO
                            VERDADEIRO
                      SOBRE A CARTA CONTRA OS
                              MEDICOS,
                            CIRURGIOENS,
                            E BOTICARIOS
  _Ha pouco impresa com o titulo de Sustos da Vida nos Perigos da Cura._
                          EXPOSTO EM HUMA
                               CARTA
                        DE HUM AMIGO A OUTRO,
                 que sobre ella lhe pedio o parecer.



                               LISBOA
                    Na Officina de JOSEPH FILIPPE.
                        Anno de M.DCC.LVIII
                    _Com as licenças necessarias._



JUIZO

VERDADEIRO

SOBRE A CARTA CONTRA OS

MEDICOS, CIRURGIOENS,

E BOTICARIOS

Meu amigo, e Senhor, satisfazendo á sua recomendaçaõ de lhe enviar os
papeis coriosos, que sahirem nesta Cidade mais bem compostos, e
recebidos; remetto a v. m. esse que a semana passada se publicou com o
titulo de Sustos da Vida nos Perigos da Cura, taõ agradavel aos
curiosos, como aos medicos odiozo. E ainda que sei, que v. m. naõ he
muito inclinado a obras satyricas, com tudo me parece, lhe naõ
desagradará, pelo que tem de discreta. Eu desejara que v. m. agora se
achasse nesta Cidade para ouvir os pregoens dos cegos; pois naõ
contentes com o primeiro titulo, para dar mais clara noticia da obra,
apregoaõ; Carta contra os Medicos, Cirurgioens, e Boticarios (verdade
he, que naõ lhe levantaõ nenhum testemunho) e por fazer pirraça aos
mesmos servindose dos olhos dos moços, pois elles naõ pódem ser
testemunhas de vista, ás portas de Boticarios, e na passagem dos
Medicos, e Cirurgioens levantàõ com mais forte, e duplicada vós o pregaõ
da sua fazenda, alguns sugeitos tenho ouvido louvar muito este papel de
discreto, e util á republica, para que se desenganem com estes homicidas
disfarçados. Eu porèm com juizo indiferente, espero pelo seu parecer,
para que instruindo-me como costuma, eu possa julgar com acerto. Deos
guarde a v. m. &c.


RESPOSTA.

Meu amigo, recebi a sua carta sempre estimavel, como sua e juntamente a
obra, que me remette, e lhe recomendo agora me mande todos os papeis,
que nesta Cidade se publicarem, porque quando nem todos sirvaõ para
instruçaõ, seraõ ao menos para divertimento do animo, e antidoto da
ociozidade. He já antigo em V. m. querer ouvir o meu parecer nestas
materias literarias, em que eu naõ tenho voto, julgando que o excederei
no bom gosto, quanto o excedo nos annos. Engana-se V. m. pois na sua
pouca idade tem aprendido mais estudo, do que eu vivendo. Se comtudo
dezeja ouvir-me lhe digo: que faço muito diverso conceito desta obra, do
que esses curiosos fazem. Eu confeço, que quando acabei de a ler me
lembrou _o novo cazo da consciencia_, excogitado pela jocosa agudeza do
Doutissimo P. Feyjó: pelo qual ficaõ obrigados restituir aos compradores
o dinheiro aquelles escriptores, que com titulos especiozos atrahem os
curiozos á compra das obras inuteis. Nesta obrigaçaõ julguei eu
incurso ao autor da carta pois quem haverá, que ouvindo o pompozo titulo
de Surtos da Vida nos Perigos da cura, naõ espere alguma obra erudíta, e
composiçaõ discreta? Pois gaste o seu dinheiro, compre, e leia; e nada
mais achará, que huma carta extensissima, ou satyra prolongada, com
alguns contos de velhas, que por vulgares já naõ recreaõ ao leitor: tudo
afim de injuriar os nobres professores da medicina. Por isso os cégos,
vendo isto, trocáraõ o titulo proposto no frontespicio em o da _Carta
contra os Medicos, Cirurgioens, e Boticarios_. E se me consultassem,
ainda eu lhe ensinaria outro pregaõ mais proprio, e mais bonito.

Ora já que falamos nisto; eu entendo, que naõ he precizo ver a obra mas
basta ouvir os cegos, para formar della o devido conceito. Tantas legoas
distante me parece, que me está horrorizando os ouvidos o escandaloso
ecco deste pregaõ. E que homem de juizo haverá, a quem naõ escandalize
esta voz pelas ruas publicas. No capitulo 38 de Ecclesiastico nos manda
Deos honrar muito aos Medicos, dizendo; que a mesma ciencia, que
professaõ, os havia de exaltar, e fazer recomendaveis na presença dos
grandes. A ley os enobrece, Deos os recomenda, e quem diséra, que se
haviaõ de ver publicamente offendidos, e pela gente vulgar com vozes
ultrajados! Tudo he effeito de huma paixaõ cega.

Nem diga algum ignorante apaixonado, que esta satyra só se dirigia a os
Medicos imperítos, pois naõ deve a sua imperiencia ser cauza de huma
descomposiçaõ publica; a nimguem se deve afrontar: e desta irrisaõ
universal toma o povo occasiaõ para escarnecer confusamente de todos
pois nem sabe, nem he posivel distinguir o bom do máo. Porventura será
motivo bastante haver alguns máos Theologos, Filosofos, ou Juristas para
que se publique huma invectiva contra os Juristas, Theologos, e
Filosofos; com que sejaõ objecto da illuzaõ do vulgo ignorante, e fabula
do povo, que por ter lido alguns erros dos professores destas ciencias,
pois ninguem delles se izenta (só se for o A. da carta) levante, que
todos saõ huns nescios, que nada sabem, que naõ ha, que fiar nos seus
pareceres? Quem tal disera? Por isso eu digo, que esta obra, e seu
pregaõ só hade ser agradavel ao vulgo nescio, mas odioza aos homens de
juizo.

E entendo, que os offendidos, ainda que sentidos, e envergonhados,
desprezaraõ nos gritos dos cegos os clamores do A. da carta como nos
reprezenta Alciato a Lua continuando a sua carreira, e desprezando os
latidos daquelle caõ importuno: que só o desprezo he o castigo de
similhantes atrevimentos.

Porém, se só por fóra he taõ escadalozo este papel, por dentro ainda he
muito mais, a quem com attençaõ o ler (se acazo alguem o pode ler com
attençaõ) pela impaciencia, que causa, naõ só a futilidade das suas
razoens, e liberdade da invectiva; mas tambem a prolixidade da sua
locuçaõ. Eu certamente acho muito admiravel o engenho, com que encheo o
seu A. mais de 2. folhas de papel, sem dizer huma razaõ cabal, e
convincente ao seu proposito. Louve muito embóra Seneca por arteficio
grande incluir o muito em pouco, seja arteficioso engenho rezumir em
breves periodos copiosas expreçoens; que eu naõ sei, se he mais
encher o dilatado espaço de 17 paginas sem alguma experçaõ judicioza:
pois ainda que ali se acham muitas couzas notaveis, todos saõ de má nota.

Leia V. m. na primeira pagina, e logo achara falando da Medicina estas
palavras Consegueriamos huma melhor utilidade sem o suffragio deste
chamado bem, do que com a entruducçaõ deste ingano! Pondere bem o seu
discurso estas palavras, e verá que daqui se colhe, que na opiniao do A.
da carta: a Medicia naõ deve ser chamada bem, antes mal; que, he inutil,
antes pernicioza no mundo que; que melhor se passaria sem ella, e que
foi hum engano, que se introduzio na terra, e conseguintemente nos
enganou, quem a introduzio. Elle bem claro o diz. Ora leia agora o cap.
já alegado do Eccles. e achará hum panegyrico da Medicina, e huma
recomendaçaõ dos seus professores. Mas aqui ficara abismado, quem depois
de ver que o A. chama introduçaõ de hum engano a Medicina achaõ que o
seu introductor foi Deos, em quem a Fé ensina naõ pode haver engano. Na
opiniaõ dos Hebreos o primeiro que exercitou esta ciencia, foi o Anjo S.
Rafael, quando ensinou a Tobias, que extrahise a o peixe o coraçaõ,
fel e figado para composiçaõ do remedio: mostrando-nos assim o mesmo
Deos quanto tem de divina esta ciencia; pois do Ceo mandou quem a
exercitasse.

Naõ aparte V. m. a memoria das palavras deste A. disfarçado, nem os
olhos da Scriptura; e verá como se oppoêm a este cap. Nelle nos manda
Deos honrar ao Medico, e acrescenta que delle temos necessidade que se
naõ aparte de nós o Medico; porque as suas operaçoens saõ neçessarias;
que Deos o introduzio, que lhe demos nós logar; que o Altissimo creou os
medicamentos, e delle se derivou, e nasceo a Medicina, e que o varaõ
prudente, e homem de juizo a naõ hade aborrecer. Daqui vem a resposta
para o que diz o A. que o mundo tem concebido hum odio entranhavel, e
desprezo universal a esta arte: pois só podera concebello algum louco.
Elle he que quer persuadir a todos, que o concebaõ; pois lhe quer
introduzir, que he huma arte enganosa, hum louvavel engano, que melhor
utilidade se consegueria sem o suffragio deste chamado bem; que será
mil vezes melhor viver com alguma queixa, do que entregarse ao
Medico, para que o cure; que será muito melhor viver com o discomodo de
huma saude arruinada, e outras couzas deste genero, que tudo saõ
palavras suas. Mas só algum rude, material se hade capacitar destas
razoens ditas, e naõ provadas; porque naõ repara, que o mesmo A. se está
contradizendo a si. Em huma parte diz, que a Medicina he necessaria; em
outra naõ só diz, que he escuzada, mas nociva: em huma parte attribue a
Medicina os enganos; em outra affirma que tem preceitos certos. Eu
supponho, que elle cuida que enganaremse algumas vezes os Medicos he o
mesmo, que ser a Medicina enganosa: pois isso sabe qualquer menino, que
principia a estudar logica, que os erros dos professores naõ tiraõ a
infalibilidade de qualquer ciencia. Mas naõ falemos em encoherencias;
que disso está a carta chea.

Até reprova a experiencia, que se tira do exercicio de curar sem
advertir, que a ella deve a Medicina a maior parte dos seos progressos.
Bem o veremos, se olharmos para os seos principios. Costumavaõ os homens
nos antigos seculos, quando saravaõ de alguma enfermidade escrever
os remedios; com que se curaraõ; cuja noticia se guardava nos tempolos.
Expunhaõ-se no Egypto, e Babylonia, e em outras naçoens os enfermos nas
praças publicas; e os passageiros, se algum remedio sabiaõ, lho
ensinavaõ: e se com elle sarava, se punha por escripto no templo
guardado, como em archivo. Destas memorias se aproveitou Hipocrates,
natural da ilha Coo, que foi o primeiro, que coordinou os perceitos da
Medecina, extrahindo do templo de Diana muitos destes escriptos, de que
se utilizou, e juntando com a experimental a especulativa fez admiraveis
curas, que lhe immortalizaraõ o nome. A experiencia, e observaçaõ ainda
dos animaes, ensinou aos homens cousas utilissimas. Assim aprenderaõ dos
leoens a virtude da quina, da Andorinha a da celidonia, do Hippotanco a
sangria, o cristal da ave Ibis, e outros muitos remedios de suma
utilidade. A experiencia, dizem os Filosofos, gerou a arte; e Cornelio
Celso affirma, que a Medicina empirica se deve juntar com a racional.

Ja me esquecia dar a razaõ, porque asima eu dice, que este escriptor
mascarado nada convencia com as suas razoens. Muitos se haviaõ de
admirar, se tal me ouvisem; quando vem tantas paginas escriptas, tantos
cazos, e tantas noticias para este fim amontoadas. Pois na minha opiniaõ
isso he a couza mais estravagante, que se pode dar. Ninguem nega, que
haja hum, ou outro Medico indigno que hum, ou outro errasse a cura ao
doente, como elle prova com os seos contos de algebeira; porém tambem se
tem feito curas taõ admiraveis, que parecem exceder a força do discurso
humano. Mas essas, ou se ignoraõ pelo A. ou por malevolencia se
occultaõ. Elle quer, que o Medico seja pura intelligencia, que nunca
erre: isso naõ pode ser; porque quando a enfermidade he mortal, ha de
enganarse o Medico, ou naõ hade aproveitar a cura: elle mesmo o concede,
sempre houve, e hade haver molestias incuraveis; já dice Ouvidio, que
nem sempre estava na maõ do Medico o remedio do enfermo; que muitas
vezes vence o poder da doença as forças da arte: mas he certo, que se
todos morrem por ley insespensavel da mortalidade, muitos conservaõ a
vida, e restauraõ a saude por beneficio especial da Medicina. Frustraõ-se
necessariamente as diligencias, nas doenças incuraveis e se erraõ
muitas vezes os Medicos nas curaveis, ou indifferentes, nem sempre he
facil o acerto em huma materia taõ incerta, e taõ escura. Por isso a
antiguidade nos reprezentou a Medicina em figura de mulher idoza com hum
bordaõ nodoso em a maõ? significando na ancianidade a experiencia, que
para ella se necessita, e no bordaõ nodoso a difficuldade, que nella se
experimenta.

Assim que naõ se deve confusamente fazer huma indiscreta illuzaõ, e
univeral zombaria dos Medicos; porque hum, ou outro errou porem a
malevolencia do A. naõ quer mais, que criminallos, e descompollos, seja
como for. Naõ póde chegar a mais o seu odio, do que a fazer-lhes
calumnias, e crimes de huma galantaria, que disse hum sugeito. Fallo
naquelle conto, que traz a paginas 15. de hum homem, a quem elle chama
discreto, que attribuio a morte repentina de hum amigo a ter visto em
sonhos hum Medico mao, que havia no seu tempo. Isto, que se naõ foi
materialidade, foi graça daquelle sugeito, toma elle com verdade, e
antecedente certo, para o seu argumento: e passa a dizer, e a exclamar,
que foraõ na realidade, quando só a imagem na fantazia produzio hum
hum tal effeito, se hum só visto em sonhos matou hum homem! Está muito
bom argumento mas se lhe negarem o supposto, logo ficará calado.

Para vomitar contra os Medicos o veneno da sua malevolencia, até comessa
a sua jocosidade indiscreta a illudilos por andarem a cavallo: e como os
faz inimigos mortaes do genero humano, diz, que andaõ assim, como mais
expeditos para o exercicio da mortandade, porque sempre a cavalaria fez
mais estrago, que a infantaria (veja como saõ insulsas estas graças) e
lá vai a sua erudiçaõ exquesita achar para prova hum texto de S. Joaõ,
que vio a morte a cavallo. Está bem trazido! Gasta mais de huma pagina
em ponderar, como condemnaõ á morte os Juizes, e os Medicos; pois
aquelles o fazem com multiplicidade de votos, elles só pela sua
sentença. Bella comparaçaõ? de sorte que o Juiz da pozitivamente a morte
em justa pena do delito; o Medico quer intencionalmente dar a vida; mas
ou porque errou, ou Deos assim o quiz, morreo o doente: logo (infere o
A.) condemnou o Medico a morte ao enfermo, assim como o Juiz ao
deliquente; só com a differença, que o Juiz com o voto de muitos, o
Medico pela sua vontade. Notal filosofia, bem tirada conclusaõ!

Mas he muito para rir hum idea, que elle confessa ser tirada das suas
experiencias, e logo se vê que he sua. Aconselha as Potencias
belligerantes (he palavrinha sua) que introduzaõ nos exercitos oppostos
hum pequeno pelotaõ de Medicos; porque elle sem duvida fariaõ em 8. dias
mais destrosso, do que o exercito podia experimentar em 6. mezes de
campanha. A invençaõ está exquezita. Assim ficavaõ as guerras mais
suaves, e naõ experimentariaõ nellas os reinos taõ funestos, e
irreparaveis estragos. Escusavaõ os miseraveis soldados de expor o peito
á bala, e dezemparar as familias, perderem-se as cazas, devassarem-se as
cidades, profanarem-se os templos, estragarem-se as riquezas, e poderes,
e sucederem todas aquellas calamidades, que causa o furor de huma
sanguinolenta guerra. Em boa paz se fazia tudo: hiaõ os Medicos,
Cirurgioens, e Boticarios matando descançadamente de seu vagar, ou para
melhor dizer, muito depressa, porque faziaõ em 8 dias, o que os
exercitos em 6 mezes, e em breve tempo se declarava feliz, e suavemente
a victoria. A muito chega o discurço humano! E ainda se naõ tinha
dado nisto! Eu era de parecer, que esta carta se mandasse a essas
naçoens, que actualmente andaõ belligerando (deixeme aproveitar desta
palavra do A.) aver se sortia bom effeito a idéa. Mas era percizo, que o
enigmatico Jozé Acursio desse tambem o modo, com que se havia fazer que
a doecesse o exercito opposto; porque estando todos sãos, pareceme que
naõ pode ter effeito; pois quando muito só se lhe podia dar a morte nos
remedios, que se lhe receitassem para a saude. Deve tambem declarar, se
he da essencia, que os ferros dos Cirurgioens sejaõ ferrugentos pois
elles diz assim: Os Cirurgioens armados com os seos estojos, e patronas
com 4 lancetas, e huns poucos de ferros ferrugentos. Eu nunca vi que os
Cirurgiões troxesem os ferros ferros ferrugentos antes bem limpos, e
amolados: e assim, se isso he condiçaõ necessaria, declare-o; naõ se
frustre a idea por falta desse requezito. O certo he que a paixaõ cega
aos homens; e naõ he muito que fallem delirios quando falaõ apaixonados.
Assim naõ me admiro, que elle homem, que sempre venero douto, querendo
illudir jocoseriamente aos Medicos cahise em tantas inepcias, e
jocosidades insipidas, quando se está vendo a sua malevolencia, e
odio e odio; pois até os calumnias de ganharem, com que se sustentem;
admirandose, de que o tempo se converta para elles em dinheiro. Bem
disse eu, que a paixaõ cega aos homens; pois naõ ve este discreto, que
isso naõ he só para os Medicos. Todos trabalhaõ pela vida; todos cuidaõ
em ganhar o necessario, e ainda o superfluo, e para todos se converte o
tempo em dinheiro, quando recebem o lucro do seu trabalho. Diga-o elle
mesmo confesse para que compôz aquella carta, e a mandou imprimir? Para
ganhar dinheiro: em dinheiro se lhe converteo o tempo, em que a trabalhou.

Eu naõ sey, que lhe fizeraõ os Medicos, Cirurgioens, e Boticarios; pois
publica contra elles taõ cruel guerra. Só louva aquelle, que curou hum
homem ás palmatoadas: eu naõ sei, que graça elle achou na cura. Ella
certamente dá vontade de rir, e elle mesmo o confessa. Palmatoadas he
remedio, que se naõ acha na botica. Verdade he que se applica nas
escolas, e estudos aos rapazes, e faz bom effeito; mas he medicina para
a preguiça: para outros doenças naõ me consta. As palmatoadas
inventaraõ-se para castigo eu naõ sey que adoecer seja crime. Mas repare
V. m. na habilidade, que aquelle Cirurgiaõ tinha para guarda do
Collegio, e certamente que era mais bem empregado nesta occupaçaõ, e
ficaria aperder de vista Manoel Mendes, naõ obstante ser taõ insigne
official de palmatoadas, de que escaparaõ os pobres estudantes, quando
as groseiras mãos de hum alfayate suaraõ imposibilitadas de trabalhar
ainda depois de saõ. O A. naõ se farta de lhe louvar o bom raciocinio, e
bom discurso; mas eu ainda lhe acho hum defeito, que vem a ser naõ lhe
dar açoutes em lugar de palmatoadas; pois escusava de lhe cauzar o
prejuizo de perder ao outro dia o seu jornal, e talvez fizessem melhor
effeito; pois haviaõ mais facilmente puxar o mal abaixo. Julgo que o A.
tomara para si elle Cirurgiaõ; ainda que isto, como he mezinha cazeira,
naõ necessita, que lha venhaõ applicar de fóra. Quem lhe agradar
encomende aos seos domesticos, que quando lhe vier alguma doença, lhe
descarreguem humas poucas de palmatoadas, ou açoutes (cada hum do que
mais gostar) e em quanto naõ sarar, lhe vaõ dando rijo, a ver se fazem
fugir o mal ás pancadas. E para que naõ pareça que faço zombaria do
remedio, eu quero tambem contar o meu cazo a imitaçaõ do A. da carta.
Certo rapaz se fazia maliciozamente cocho, e tendo noticia o mestre do
fingimento lhe dava meya duzia de palmatoadas: sarou repentinamente
o rapaz, e começou a andar muito direito. Logo com estas duas
experiencias, se confirma a bondade do dito remedio.

A fallar a verdade, meu amigo, eu naõ me persuado, que este escriptor
dissese em seu serio, e porque assim o entendese, todas as couzas, que
neste papel escreve: com tudo naõ deixa de me cauzar escrupulo, e horror
o que pertende persuadir ao povo; pois toda esta carta he dirigida a
meter lhe sustos, para que naõ se curem com os Medicos, nem Cirurgioens.
Assim o diz o titulo: _Sustos da vida nos Perigos da cura_; e todo o seu
empenho he intoduzir nas gentes hum medo, pavor, e susto dos mesmos
Medicos. Elle entra a exclamar, quem se hade metter sem sustos nas mãos
de hum Medico? Quem naõ terá sustos de ver a sua cabeceira hum homem, de
quem depende á sua vida. Quem deixará de estar a cada hora esperando que
lhe cortem os fios da vida? Elle faz a Medecina chea de enganos diz que
he hum engano introduzido, que se naõ deve chamar bem, que melhor
utilidade se consegueria sem ella. Elle diz que será mil vezes melhor na
prezença de alguma queixa viver antes com ella, do que entregar-se nas
mãos de qualquer Medico; que he muito melhor viver sujeito ao
discommodo de huma saude arruinada; do que pertenderse curar-se; que o
estudo destes professores só he pelos vivos, a quem tiraõ a vida,
enganando o povo nescio com alguns afforismos, que de memoria repetem.
Elle quer introduzir ao vulgo, que os Medicos saõ coadjutores da morte,
que o seu officio he matar; que sentenceaõ aos homens camerariamente á
morte; que saõ hum contagio, cujo damno se pode experimentar nos lugares
mais sadios; que he milagre estarmos vivos entre elles; que só vistos em
sonhos mataõ; que fazem mais estragos em 8 dias, do que hum exercito
armado em 6 mezes, andando para isso a cavallo para assim mais expeditos
despojarem das vidas aos homens: e outras couzas similhantes; sendo
todas estas tiradas fielmente da sua carta, quasi pelas mesmas palavras.
Finalmente elle persuade ao leitor, que as juntas saõ superfluas, e os
chamar Medicos se reserve só para a ultima enfermidade, e ainda isso
para morrer a moda, ou que só o faça quem se enfastiar de viver, e
quizer matarse por modo, que fica salva a sua consciencia.

Neste passo naõ posso deixar de me impacientar, nem haverá coraçaõ
catolico, e pio, que que se naõ escandalize com propoziçoens taõ
absurdas. Matar-se por modo que fique salva, a consciencia! Ha quem tal
diga! Isto naõ pode ser; repugna direitamente aos dogmas da Religiaõ
Catholica. A morte propria naõ he, nem pode ser licita: e o vulgo
ignorante, vendo isto, pode persuadir-se que sim, quem chamar hum Medico
com tençaõ de que elle o mate, ainda que se naõ sigua a morte, pecca
mortalmente. Eu sertamente tenho hum grande receio, de que este papel
enchendo de prejudiciaes preoccupaçoens o povo, cause fataes, e
irreparaveis damnos a muitos dos seos leitores. Quantos se privaraõ de
algum bom arbitrio, que se houvesse de dar na junta, que sobre a sua
enfermidade se convocasse; sendo serto que muitas vezes se discorrem
nestas conferencias operaçoens de admiraveis effeitos, que naõ occuriaõ
ao Medico assistente. Quantos se deixaraõ morrer á falta de remedidos?
quando lhe tira o A. o escrupulo do peccado; se ainda entendendo todos
estarmos obrigados a tratar da saude, deixavaõ por negligencia fazer as
doenças incuraveis, acudindo-lhe quando ja naõ tinhaõ remedio. (E ao
depois se attribuia ao Medico a culpa, que só tinha o doente) Quantos
haverá, que se atégora por desencarregar a consciencia chamavaõ os
Medicos bem a pezar da sua avareza, agora vendo que he gasto superfluo
morreraõ mizeravelmente? Quantos lendo no A. que isto só se faz por
moda, naõ fazendo cazo de modas, guardaraõ o dinheiro para os gastos
precizos, e abreviaraõ, desgraçadamente as vidas? Quantos finalmente
cheos de sustos, receios, temores, e medo dos Medicos, e suas curas,
deixando multiplicar, e inveterar as queixas viveraõ com huma saude
arruinada, e acabaraõ infilizmente com huma morte imtempestiva? He fatal
disgraça, que o odio particular, seja taõ pernicioso ao bem publico! Eu,
meu amigo, lhe peço naõ só pela nossa amizada, mas pelo zelo, e amor de
Deos, e do Proximo, que em seu peito se anima, empenhe agora toda a sua
efficacia, em dissuadir destas noticias preocupaçoens a este miseravel
povo ensinando-lhe; que temos como catholicos, rigoroza obrigaçaõ de
conservar a vida, uzar dos remedios, e do conselho dos Medicos, e de lhe
obedecer nas couzas uteis para a saude persuadindo-o evidentemente
contra a opiniaõ destes curiosos das duzias, que este papel he todo
cheio de mentiras, embustes, futilidades, e incoherencias.

Tenho exposto a V. m. o meu voto; e naõ sey, se com molestia sua pela
extençaõ de que uzei; porèm os velhos difficultosamente se izentaõ da
prolixidade, e ainda eu deixei muitas couzas censuraveis. Mais extensa
fora esta minha, se eu introduzira huns poucos de textos bem, ou mal
trazidos, como faz o nosso Acursio. Porèm eu estou já muito esquecido
destes latinorios; deixemos isto a sua vastidaõ, a quem nem escapou o
exquezito: _Hoc opus hic labor est._ Com tudo por naõ deixar tambem de
dizer minha palavrinha latina, que sempre faz muita secia, direi ao
menos a da despedida, e assim me despeço em latim. Vale.

                                                     _Amicos ex corde._


F I M





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