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Title: Quadros de historia portugueza
Author: Mota, Inácio Francisco Silveira da
Language: Portuguese
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                                 QUADROS

                                   DE

                            HISTORIA PORTUGUEZA



                                 QUADROS

                                   DE

                            HISTORIA PORTUGUEZA

                                   POR

                          I. F. SILVEIRA DA MOTTA

                              SEGUNDA EDIÇÃO

                          correcta e augmentada


                                 LISBOA

                      LALLEMANT FRÈRES TYPOGRAPHOS

                      6, Rua do Thesouro Velho, 6

                                  1870



Em dous grandes cyclos póde naturalmente dividir-se a historia
portugueza, cada um dos quaes abrange algumas epochas mais ou menos
importantes; no primeiro a nação constitue-se, desenvolve-se,
fortifica-se, estende o seu poder pelas terras de Africa, senhoreia
ignotos mares, dicta leis ao Oriente, ganha vastos e productivos
terrenos na America, abre caminho ao engrandecimento dos outros povos da
Europa, e a final decae rapidamente até chegar á sepultura de 1580;
no segundo resurge, reconquistando n'um dia a antiga independencia
politica, e, procurando depois rehaver no decurso de seculos não o
poderio de outras eras, mas os fóros de liberdade, e a robustez e
firmeza, que são os meios mais poderosos com que as nações, assim como
os individuos, podem luctar contra a adversidade e vencel-a.

Traçando este humilde esboço historico quiz o author rememorar alguns
factos e algumas phases do primeiro cyclo, que julga mais fecundo em
lição e exemplos; e publicando-o agora suppõe fazel-o em occasião
opportuna. Quando, no meio das dissensões partidarias, dos erros
politicos e das aberrações populares, nos fere os ouvidos a ameaça de
que a nossa autonomia e independencia não podem durar muito, é justo e
util buscar no estudo dos fastos nacionaes os titulos do nosso
direito, a memoria do que fizemos, e por ventura nobres estimulos para
que os nossos progressos intellectuaes e moraes mostrem ao mundo que, se
já não somos potencia maritima ou continental, pesando com decisiva
força na balança dos acontecimentos politicos, queremos, todavia, e
devemos ser respeitados pela sciencia, pelo trabalho, pela energia, pelo
amor da liberdade, pela severidade dos costumes, unicas armas com que o
espirito da nossa epocha ensina as nações civilisadas a combaterem n'uma
lucta generosa.

Possa esta tentativa não ser de todo perdida, e servir ao menos de
incentivo para que obreiros mais robustos levantem o monumento grandioso
das tradições nacionaes.



QUADROS

DE

HISTORIA PORTUGUEZA



I

Fundação da monarchia

1097 A 1179


Bem como a vida dos individuos a vida dos povos é dilatada ou curta.
Assim muitas nações, que existiam robustas e altivas durante a edade
média, annullaram-se ou desappareceram, absorvidas umas por estados mais
poderosos, desmembradas outras pelas conveniencias politicas; e
Portugal, apparentemente debil na origem, mas que por milagres
d'esforço e de perseverança chegou a constituir a nação mais forte e
audaz da Europa, vive ainda, e encontrará a sua defensão em saberem seus
filhos repellir, com energia, quaesquer suggestões traiçoeiras ou
tentativas violentas contra a terra que livres herdaram, e onde livres
querem morrer.

Qual tem sido, porém, a causa d'essa longa vida, d'esse vigor da
juventude e da edade viril, d'essa tenacidade que se conserva ainda no
seio da decrepidez? É o que procuraremos descobrir, examinando
rapidamente a historia dos seus primeiros annos.

Logo que o imperio wisigodo se desmoronou ao embate impetuoso do
fanatismo dos arabes, a reacção christã e europêa começou
immediatamente. Desde a batalha do Chryssus até o recontro de Cangas
de Onis mediou curto espaço, mas tanto bastou para que os mussulmanos
gastassem nas dissensões intestinas o provado valor, e para que os
godos, retemperados pelo infortunio, recuperassem a ousadia e firmeza,
que são as mais seguras armas dos povos ameaçados na sua existencia. O
poderio christão foi, pois, crescendo de novo e prosperando, lenta mas
persistentemente, e já, meado o seculo XI, Affonso VI, reinava sem
resistencia nas Asturias, Galliza, Leão e Castella, e conquistava ou
fazia tributarias as principaes cidades e provincias dos sarracenos da
Peninsula.

Para as suas guerras brilhantes muitos cavalleiros francezes
atravessaram os Pyrineos. Impellia-os a tendencia guerreira e aventurosa
da epocha; animava-os a idéa religiosa, que attrahia a pelejar contra os
infieis quantos homens de fé viva tinha n'esse tempo a Europa;
dava-lhes esforço, por ventura, a esperança de encontrarem fortuna n'um
paiz onde, no tumultuar de incessantes combates, se offereciam
frequentes conjuncturas para adquirir riqueza e gloria. Entre os
estrangeiros mais notaveis vieram a Hespanha Raymundo, conde de
Borgonha, e Henrique seu primo co-irmão. Ao primeiro deu Affonso VI em
casamento sua filha D. Urraca, havida da rainha Constancia,
encarregando-o ao mesmo tempo do governo da Galliza e da terra
portugalense; a Henrique concedeu D. Thereza, sua filha bastarda e da
nobre dama Ximena Muniones, entregando-lhe com esta alliança o governo
do districto de Braga, como condado dependente de seu primo. Em breve,
porém, todo o territorio desde as margens do Minho até o Tejo foi
destroncado definitivamente da Galliza, para constituir um vasto
senhorio, regido pelo conde Henrique, e sujeito apenas á supremacia da
corôa leoneza.

O illustre cavaleiro francez, que via realisados os seus designios ainda
para além do que imaginára, applicou provavelmente então toda a
actividade á guerra com os sarracenos, e posto que a viagem que
emprehendeu á Syria nos primeiros mezes de 1103 devesse retardar a sua
influencia e conquistas, é certo que já em 1106 havia concebido as idéas
de engrandecimento e independencia, a que deveu acaso Portugal a sua
existencia como nação. O pacto secreto celebrado entre elle e Raymundo
para a repartição dos estados do sogro, alliança que a morte do conde de
Galliza inutilisou; as sollicitações perante Affonso VI moribundo; e
finalmente o modo por que soube valer-se das discordias civis, a que o
fallecimento do rei de Leão deu origem, ligando-se ora com D. Urraca,
ora com o monarcha de Aragão, e ainda com os fidalgos de Galliza,
traduzem um pensamento unico:--converter o senhorio, que lhe fôra
concedido para reger como simples consul, em nucleo de um poderoso
estado ao occidente da Europa. E no meio das tempestades politicas, que
varreram o solo ensanguentado da Peninsula durante o governo de D.
Urraca, teria decerto satisfeito essa arrojada ambição, se a morte não
viesse ceifar-lhe os designios junto dos muros de Astorga.

Fallecido Henrique (1 de maio de 1114) e contando o infante Affonso
Henriques apenas tres annos de edade, tomou D. Thereza o governo, e
com elle o encargo de continuar a obra politica do marido.
Apresentava-se ardua e arriscada a empreza, mas a filha de Affonso VI
não desdizia das nobres tradições da sua raça. A leôa defendeu o antro
com o ardor e constancia de que seu fero senhor lhe deixára assombrosos
exemplos. Cercada dos seus vassallos, identificada com certo instincto
de nacionalidade, que já então animava todos, ambiciosa, astuta,
energica e tenaz, luctou durante quatorze annos para conservar intacta a
independencia da terra que lhe chamava rainha. Submettendo-se ao rigor
das circumstancias, inclinou por vezes o collo á soberania da côrte
leoneza; mas não hesitando em quebrar solemnes promessas, o que aliás
era frequente n'esses tempos de bruteza, e ainda hoje não é raro a
despeito da civilisação, recusou sempre a obediencia quando julgou
possivel resistir. Seguindo, emfim, o caminho traçado pelo conde
Henrique, alimentou habilmente rivalidades e rancores entre sua irmã D.
Urraca, e o cubiçoso e soberbo bispo de Compostella, e não obstante os
damnos e calamidades provenientes das invasões de christãos e
sarracenos, augmentou a extensão dos seus dominios ao oriente e ao
norte, dando-lhes ao mesmo tempo incremento em população, em riquezas e
em forças militares.

A affeição intima a Fernando Peres, um dos mais illustres ricos-homens
da Galliza, quebrou-lhe nos ultimos annos a cadeia brilhante de uma vida
aventurosa e feliz. Esquecida de que o terrivel neto de Roberto de
Borgonha deixára no mundo um successor do seu genio, a formosa rainha
entregára ao amante a administração dos districtos do Porto e
Coimbra, e é de presumir que lhe outorgasse tambem a supremacia sobre os
outros condes ou tenentes do paiz. Nenhum acto indica, talvez, que a
intervenção de Fernando Peres fosse desleal ou funesta para a
independencia da provincia, que procurava desmembrar-se dos vastos
estados leonezes; mas a fortuna do valido excitára desde o principio o
descontentamento e ciume dos barões portuguezes, e estes, aproveitando o
enthusiasmo de nacionalidade já então radicado no povo, e a sede de
poder que devorava Affonso Henriques, lançaram entre a mãe e o filho o
facho da discordia, e accenderam a guerra civil, quer conforme todos os
indicios, começou em 1127, para se decidir, decorrido um anno, na
batalha do campo de S. Mamede, junto de Guimarães, onde o exercito de D.
Thereza foi desbaratado, e ella ficou prisioneira.

Assumindo o poder que tanto ambicionára, o moço principe não se limitou
a recusar obediencia ao rei de Leão, cujo dominio toda a Hespanha
christã e ainda parte da França mais ou menos reconheciam; ousou invadir
por vezes as provincias limitrophes, fundando-se, por ventura, nas
convenções feitas com seu pae, e sobretudo na posse que D. Thereza
tivera dos districtos de Limia e Tuy. No meio de graves difficuldades,
Affonso VII, que por morte de D. Urraca empunhára irrevocavelmente o
sceptro de Leão e Castella, não poude a principio impedir essas
correrias, nem procurar submetter seu primo; mas em breve, favorecido
pela fortuna, aprestou um numeroso exercito, e dirigindo-se aos
territorios de Galliza, avassallados pelos portuguezes, repelliu de
toda a provincia os invasores. Entretanto, apesar das vantagens obtidas,
não se attreveu a proseguir na aggressão, e Portugal, que n'aquelle
tempo abrangia apenas metade do actual territorio, conservou sempre
hasteado o pendão da independencia.

Assim duraram as cousas até que o anno de 1137 viu de novo rebentar a
guerra. Seguindo a direcção do enthusiasmo popular e a do seu genio
inquieto e bellicoso, Affonso Henriques alliou-se com os condes Gomes
Nunes e Rodrigo Peres e com o monarcha de Navarra, e em quanto este,
quebrando a especie de vassallagem que prestára, rompia as hostilidades
contra Affonso VII, o principe portuguez caminhava de victoria em
victoria, sujeitava os districtos meridionaes da Galliza, desbaratava os
mais illustres capitães inimigos, e iria ávante em novas conquistas,
se a tomada de Leiria pelos sarracenos e as suas tragicas consequencias
não lhe attrahissem a attenção para a defensa dos proprios estados.

Depois de asserenada a tempestade, que expunha parte das fronteiras ás
irrupções dos arabes, Affonso Henriques voltou a Galliza, onde já estava
tambem o rei de Leão; mas avistando-se em Tuy, os dous primos celebraram
pazes, e como de accordo volveram os olhos para mais nobre empreza:--o
proseguir n'essa longa, patriotica e tenaz cruzada da Peninsula contra
os mussulmanos, lucta encetada havia mais de quatro seculos, e cujas
probabilidades de completo triumpho já claramente se mostravam
favoraveis áquelle dos dous contendores, que, combatendo pelo
christianismo, tinha por si a força e o enthusiasmo, fructo de
convicções profundas e da certeza moral do dever.

A guerra contra os infieis foi favoravel ao filho do conde Henrique.
Penetrando até o coração do Al-Gharb, onde nunca desde a invasão dos
arabes os christãos haviam chegado, ganhou a batalha de Ourique, e
saldou assim com os sarracenos os ultimos damnos recebidos. A tradição
engrandeceu a pouco e pouco o facto, exaggerando o numero dos vencidos,
inventando apparições e milagres, e tecendo uma notavel lenda, que as
regras da boa critica historica irrefutavelmente condemnam. Se as
circumstancias, porém, são fabulosas, nem por isso foram pouco
importantes os resultados moraes d'essa batalha, que, habituando os
portuguezes a affrontar em campanha os agarenos, lhes deu animo e
vigor para futuras conquistas.

Terminada esta empreza, volveu o intrepido principe á lucta com os
leonezes. Apoz varios successos, em que a fortuna das armas ora pendeu
para Affonso VII, ora para o infante de Portugal, o grosso dos dous
exercitos avistou-se perto de Valdevez; mas o captiveiro dos mais
notaveis fidalgos de Leão, que em recontros singulares foram vencidos, a
conhecida ousadia dos cavalleiros. e homens d'armas portuguezes, e emfim
a vantajosa posição que estes occupavam, tudo isso e talvez algumas
outras causas, que as memorias do tempo nos não dizem, constrangeram o
orgulhoso filho de D. Urraca a sollicitar a paz. Ajustaram-se então
tregoas, deu-se liberdade aos prisioneiros, restituiram-se os castellos
reciprocamente conquistados, e os dous principes abraçaram-se no
campo de batalha.

Estes acontecimentos converteram a separação de Portugal em facto
consummado e completo. Tomando o titulo de rei, que havia muitos annos
recebia já dos seus subditos, Affonso Henriques realisou, em fim, o
altivo pensamento concebido por seu pae, desenvolvido largamente por D.
Thereza, e abraçado com ardor pelos barões portuguezes; e quando em 1143
os dous primos assentaram em Samora uma concordia definitiva, o
imperador das Hespanhas ou de toda a Hespanha, como se intitulava nos
seus diplomas Affonso VII, não poude escusar reconhecer a realeza do
principe que pozera magestoso remate no edificio da independencia
portugueza.

Prevendo, todavia, futuras disputas sobre a legitimidade d'esse facto,
que aliás nem as armas nem os tractados tinham conseguido impedir,
Affonso I resolveu collocar o throno á sombra do solio pontificio.
N'aquelles rudes tempos, em que a exaltação das crenças se associava
intimamente com a ferocidade e soltura dos costumes, o poder dos papas
tornára-se uma especie de dictadura, que todos os monarchas christãos
directa ou indirectamente reconheciam; e a influencia da côrte de Roma
era a espada suspensa por um fio sobre os thronos mais firmes, e ao
mesmo tempo como que a columna de fogo, que dirigia as dynastias
recentes na carreira das suas ambições. Acceitando as doctrinas
theocraticas então por assim dizer incontestadas, e aproveitando-as para
o intento quasi exclusivo a que se votára, o novo soberano fez homenagem
do reino ao summo pontifice, promettendo obediencia a S. Pedro,
sujeição nominal mais supportavel do que o preito ao imperador; e depois
de longas evasivas e ambiguidades, vicio que já então caracterisava a
politica da sé apostolica, alcançou a confirmação da dignidade real por
bulla de Alexandre III de 23 de maio de 1179.

A esse tempo havia já o monarcha comprado o titulo por bem caro preço em
quarenta annos de lides contra os infieis. Depois da larga campanha com
o imperio leonez os portuguezes tinham escolhido para theatro das suas
emprezas os territorios sarracenos; á lucta de desmembração succedêra a
de assimilação; e as conquistas de Santarem, Lisboa, Cintra, Almada e
Palmella em 1147, as de Alcacer do Sal e de Beja em 1158 e 1162, e
finalmente as de Evora, Serpa, Moura e Aljustrel em 1166 haviam
constituido a nacionalidade portugueza com a seiva e robustez
bastantes para resistir ás procellas que agitavam a Peninsula.

Taes são os lineamentos capitaes da historia da fundação da monarchia.
Julgando imparcialmente os homens e as cousas, não hesitâmos em affirmar
que o esforço dos portuguezes neste longo periodo é uma das
manifestações mais solemnes dessa tenacidade heroica, que nem se inebria
com o triumpho nem desanima com os revezes; desse affecto generoso e
altivo, que nos leva a luctar com a fome, com a sede, com a morte para
defender a terra que cobre as cinzas de nossos paes; dessa abnegação
nobilissima, que no meio da rudeza da epocha constitue gloria pura e
immarcessivel. Volvamos, pois, os olhos para as velhas glorias da
patria. O tracto dos que foram grandes e fortes livrar-nos-ha,
talvez, do lethargo febril que nos consome, revocar-nos-ha, por ventura,
á energia social e aos vividos affectos de nacionalidade. No meio da
indifferença ou do terror, que cérca a geração actual, ouvem-se como que
umas melodias suaves que vem consolar-nos dos males que nos affligem, e
dar-nos animo e ousadia para arrostar as tempestades que se enxergam no
futuro. É o cantico de recordações que nos legou o passado, recordações
tanto mais fecundas, quanto nos alimentam a esperança de que este paiz
tem ainda nobres destinos a cumprir antes de se envolver na bandeira do
fundador da monarchia, e de ir, emfim, occupar no cemiterio da historia
o largo jazigo das nações que morrem.



II

Ultimos annos de D. Sancho II

1245 A 1247


Era deveras tumultuaria a situação do reino na epocha que pretendemos
esboçar. Bandos de salteadores, para quem o viver era acaso e a morte
espectaculo quotidiano, assolavam os campos, infestavam as povoações, e
refugiando-se nos logares do asylo zombavam do castigo; os officiaes
publicos, attentos principalmente a saciar a propria crueldade e cubiça,
commettiam em nome do fisco toda a casta de prepotencias; e a
propriedade, invadida e devastada, em vão pedia segurança e invocava as
leis. Na côrte o desbarate das rendas publicas tornava desastrado e
temeroso o estado da fazenda, os ministros succediam-se rapidamente, e
as luctas de valimento multiplicavam-se, não se astringindo á guerra de
tenebrosos enredos, mas semeando cruentas discordias, que depois
encontravam nos solares, nos mosteiros, nas municipalidades, nos
herdamentos, nas maladias, nos páramos terreno fertil para germinarem,
crescerem e fructificarem. A anarchia, emfim, era por todo o paiz como
os fogos de terreno vulcanico; ao passo que n'uma parte se extinguia o
incendio, rebentavam em outras turbilhões de chammas.

Dotado de indole generosa, D. Sancho II procurára ao principio
attrahir todos os animos turbulentos e ambiciosos para um pensamento
unico, collocando-se á frente dos barões, dos cavalleiros nobres, dos
homens d'armas, da cavallaria e besteiros dos concelhos para continuar a
guerra de crença e de raça, no seio da qual a nação surgira, e que
parecia ser para ella um dos primeiros elementos de vitalidade e
robustez. Nos campos de batalha, sobresahindo entre os guerreiros mais
esforçados, mostrára-se digno neto do fundador da monarchia, conquistára
muitas povoações mussulmanas de grande monta, taes como Elvas, Serpa,
Jurumenha, Aljustrel, Arronches, Mertola, Ayamonte e Tavira, e
finalmente dera á auctoridade real o prestigio das victorias; mas as
desordens do governo interno invalidaram em grande parte o resultado das
batalhas com que se dilatavam as fronteiras pelos dominios
sarracenos. Depois o principe, que durante largo espaço quasi nunca
descançára a espada de conquistador, e que ao mesmo tempo pretendêra pôr
em pratica as severas leis de seu pae com relação ao clero, deixára
esmorecer o esplendor da gloria em annos de indolente repouso; e os
prelados portuguezes, aproveitando os descontentamentos e perturbações
que enfraqueciam a acção da corôa, começaram a trabalhar com fundada
esperança n'essa longa têa de enredos, de corrupção e de hypocrisia,
cujo remate tinha de ser a deposição do monarcha.

Varias circumstancias, dentro e fóra do paiz, favoreciam mais ou menos
os designios facciosos. Consistia a principal na situação em que estava
o papa, cuja intervenção era indispensavel, não obstante já ter Roma
perdido, pela dobrez e perfidia da sua politica, grande parte da
força immensa que havia conseguido com as virtudes austeras dos
primitivos padres. A Gregorio IX succedêra na thiara Innocencio IV,
intelligencia vasta e energica, mas irascivel, ambiciosa e indomita, que
logo mostrára querer sustentar com vigor as antigas doutrinas de
Gregorio VII e de Innocencio III. Era o novo papa affeiçoado a Frederico
II, imperador da Allemanha, mas este só viu no exito da eleição a perda
de um amigo, e não teve esperança de que terminassem as luctas
implacaveis e freneticas, que, accendendo a irritação em todos os
animos, dividiam o sacerdocio e a realeza. De feito, depois de muitas
negociações e tumultos, Innocencio, perseguido e expulso de Italia pelo
imperador, e repellido de França por S. Luiz, de Hespanha pelo rei
de Aragão, de Inglaterra por Henrique III, dirigiu-se a Lyão, e ahi
tractou logo de reunir um concilio para depôr Frederico. No seu animo
deviam, pois, causar profunda impressão as amargas queixas dos prelados
portuguezes, e movel-o a desthronisar o principe que ousava resistir ao
poder ecclesiastico, esquecendo-se não só de que a sociedade civil era
apenas imagem grosseira da sociedade catholica, mas até do signal de
vassallagem, que outr'ora se offerecêra á sé apostolica, e que tornava o
paiz de certo modo tributario do solio pontificio.

As circumstancias internas favoreciam tambem a empreza. Os interesses
oppostos, os ciumes do poder, os odios que resultavam da vehemencia das
paixões, a cubiça, a soltura de costumes, o amor de licenciosa
independencia, todas as desordens communs em tempos de ignorancia e
fereza, achavam então ensejo favoravel para se patentearem com audacia;
muitos fidalgos, além dos que haviam seguido a França o conde de
Bolonha, eram adversos a D. Sancho; e o povo, offendido pelo esforço
brutal com que os nobres exerciam impunes tanta oppressão, quanta lhe
permittiam a extensão dos seus dominios e a fortaleza dos seus
castellos, parecia indifferente á sorte do monarcha. Finalmente D.
Sancho, impellido pela mais energica das paixões humanas, o amor
contrariado e impetuoso, casára com a viuva de Alvaro Peres de Castro,
D. Mecia Lopez, filha do senhor de Biscaya, Lopo Dias de Haro, e de D.
Urraca, bastarda de Affonso IX de Leão; e esse consorcio augmentára
ainda a desorganisação interna do reino, pela desigualdade da alliança,
e pelas emulações e despeitos que desde logo suscitára.

Em tal conjunctura só faltava aos conspiradores encontrar um chefe,
capaz de substituir no throno o desditoso monarcha. D. Affonso, irmão de
D. Sancho, e conde de Bolonha pelo seu casamento com a condessa
Mathilde, foi o indigitado. Talento militar e politico, fôra elle um dos
que mais se tinham distinguido na famosa batalha de Saintes, dada por S.
Luiz a Henrique III de Inglaterra; ambição energica e tenaz, podia pela
nobreza do nascimento, pela indole altiva e valorosa, e pela influencia
dos fidalgos que de Portugal o haviam acompanhado, reunir em volta de si
todos os interesses feridos, e ser efficaz instrumento do trabalho dos
conjurados.

Julgando, portanto, o terreno preparado, e tendo a quasi certeza de
realisar amplamente esperanças por muito tempo affagadas, partiram para
Lyão os prelados do Porto e de Coimbra e outros descontentes a reunir-se
com o arcebispo de Braga, e ahi se queixaram ao pontifice, attribuindo a
D. Sancho o estado lastimoso a que havia chegado o reino. Acolheu
Innocencio de bom grado os prelados portuguezes, predisposto já em seu
favor pelas negociações anteriores, expoz o assumpto ao concilio, e na
semana immediata ao encerramento d'essa notavel assembléa, expediu aos
barões, concelhos, cavalleiros e povo de Portugal uma bulla, declarando
os varios delictos praticados por D. Sancho, e nomeando para a regencia
do reino o conde de Bolonha.

Escudado com as comminações do pontifice, e depois de ter assignado as
vergonhosas promessas de subserviencia ao poder absoluto,
illimitado, omnimodo do clero, promessas que só esqueceu quando viu que
o podia fazer sem perigo, partiu D. Affonso para Portugal, onde de feito
chegou nos principios de 1246. Não alcançou, porém, immediatamente a
realisação dos seus desejos. Muitas povoações importantes sustentaram
seu preito ao monarcha, muitos cavalleiros-villãos e besteiros dos
municipios resistiram á usurpação, e entre os proprios membros do clero
encontrou D. Sancho quem não fraqueasse ante as poderosas armas do conde
de Bolonha, e o stygma espiritual das censuras.

Teve, pois, o infante de recorrer, por um lado aos assedios e batalhas,
por outro ás dadivas, ás promessas, ás seducções de toda a especie; e se
em muitos cavalleiros e alcaides de castellos os calculos interesseiros,
as ligações de parentesco, a recordação de antigos aggravos tomaram
o passo sem escrupulo ás mais justas considerações, alguns houve tambem
que pelo nobre procedimento constituem exemplos memoraveis de lealdade e
energia. A defensa de Coimbra por Martim de Freitas, em que este teve de
vencer a audacia e vantagem dos sitiadores, e o desalento e desespero da
propria guarnição, abatida pelas fadigas, pela fome, pela sede, e acaso
pelos terrores que gerára o anathema pontificio, é d'aquelles grandes
factos que symbolisam uma epocha; mas quando a tradição não referisse
outros, ou quando a todos faltassem bons testemunhos historicos, a
diuturnidade da contenda, em tempo que não existiam exercitos
permanentes, provaria por si só o denodo e constancia dos fieis
partidarios de D. Sancho.

Apesar de tudo, porém, a fortuna das armas pendeu para o lado do
infante, e o infeliz monarcha, depois de se ter defendido com a coragem
que sempre mostrára no fervor dos combates, teve, emfim, de soccorrer-se
á alliança com Castella. Um corpo de tropas castelhanas, capitaneado
pelo valente conquistador de Murcia, o filho primogenito de Fernando
III, e de que tambem fazia parte Diogo Lopez de Haro, irmão de D. Mecia,
veiu dar novo alimento á guerra, que se protrahiu até os fins de 1247.
Chegou já tarde, comtudo, esse soccorro. A ambição e astucia de D.
Affonso, juntas a valor intrepido, tinham aproveitado todos os recursos
para se firmar em bases solidas o novo poder, e os intuitos generosos,
tanto da invasão, como das diligencias perante a curia romana, a que
ainda recorreu o principe castelhano, foram completamente mallogrados.

Vergado o animo pela desdita, D. Sancho preferiu o desterro a viver
captivo na patria, debaixo do jugo do irmão, e escolheu Toledo para
residir. O exilio veiu então completar-lhe a escola do infortunio. O
orgulho offendido, o desejo de vingança, a compaixão pelas desgraças da
patria, os remorsos dos erros commettidos, as vãs esperanças, emfim, que
nunca abandonam o desgraçado, rebatiam-se, travavam-se, recuavam,
succediam-se consumindo-lhe o coração. As memorias saudosas da terra de
que fôra senhor, gravadas como sêllo de amargura no intimo d'alma,
tornavam-lhe detestavel o presente pelo contraste do passado. Capitão
victorioso em muitos combates, açoute e terror dos sarracenos, tinha-se
engrandecido com gloriosos feitos de armas no conceito de amigos e
de inimigos, de naturaes e de estranhos; depois conhecêra por dolorosa
experiencia as intrigas da politica, as conspirações dos partidos, as
ingratidões e perfidias dos validos, o ciume e rancor dos despeitados; e
a final via-se deshonrado por uma sentença calumniosa e infamante,
despresivel para o povo que só applaude o triumpho, e podendo a custo
desafogar em actos de piedade e penitencia a dôr causada na sua alma
pelos vicios, pelas torpezas, pelas traições, pelas negruras d'aquelles
de quem mais devia esperar lealdade e verdadeiro affecto.

Na solidão irremediavel do desterro abreviou-se-lhe a existencia, a
fronte curvou-se para a terra, e antes de passar um anno depois de
foragido (janeiro de 1248) falleceu em Toledo, pedindo em testamento
que o sepultassem no mosteiro de Alcobaça, onde jaziam as cinzas
paternas. Nem essa ultima vontade, porém, lhe foi cumprida. Ha
infortunios que perseguem o homem ainda além da campa.



III

Batalha do Salado

1340


Reinava em Portugal D. Affonso IV, e em Castella seu genro Affonso XI.
Protrahia-se com varia fortuna a guerra entre as duas nações, porque os
laços de familia não tinham podido suffocar as discordias entre os
principes, quando o rei de Fez, Aly-Abul-Hassan, preparando-se para
invadir a Hespanha, reuniu um dos mais famosos exercitos, que
atravessaram o Estreito emquanto o crescente dominou na Peninsula.
Apparelhado tudo para a expedição, começou o embarque dos sarracenos, e
no decurso de cinco mezes quasi não se passou um dia, sem que as galés
muslemicas viessem lançar nos portos de Gibraltar e Algeziras novos
esquadrões de soldados. Reuniram-se a estes as tropas do rei de Granada,
Jusef-ben-Ismail, e sitiou-se logo Tarifa, povoação importante e
excellente ponto estrategico para proseguir a invasão e conquista.

Defendia-se energicamente a guarnição da fortaleza. A presença da armada
christã, que fundeára proximo á cidade, impedia de algum modo o
transporte de viveres e munições para o campo dos mussulmanos; e dava ao
mesmo tempo aos cercados a esperança de soccorro ou de refugio. Em
breve, porém, uma terrivel borrasca destruiu-a completamente, e tudo
então pareceu annunciar que ia bater a derradeira hora do dominio da
cruz n'aquellas terras, regadas já com o sangue de tantos martyres.

Em presença do perigo, o orgulhoso Affonso XI tractou de celebrar pazes
com o sogro e de lhe sollicitar a alliança, a fim de resistir á procella
que ameaçava rebentar sobre os seus estados. Cedendo á força das
circumstancias, e humilhando-se perante aquella que tanto offendêra e
ainda odiava, enviou sua mulher a el-rei de Portugal, rogando-lhe
prompto e poderoso auxilio; e depois veiu elle proprio pedil-o,
ponderando a multidão dos barbaros, o aperto do sitio em que estava
Tarifa, o risco com que se defendiam os cercados, e o muito que
importava a brevidade de soccorro, da qual dependia talvez a sorte de
toda a Hespanha. Satisfez D. Affonso IV a instante supplica, e
dentro de breve tempo partia para Sevilha, á frente de uma lustrosa
companhia de gente escolhida, posto que pouco numerosa, adiantando-se ao
grosso do exercito, que tinha de marchar mais lentamente por causa dos
petrechos de guerra e provimentos.

Juntos os dous monarchas, convocaram-se os prelados, os barões, os
mestres das ordens militares, os ricos homens, e entre todos se disputou
a conveniencia de soccorrer Tarifa. O susto fez ahi seu officio, e
muitos aconselharam se entregasse a praça aos mouros como condição de
paz, evitando-se uma lucta, que n'aquella conjunctura só por milagre não
seria funesta. Venceu, porém, o voto contrario, que foi o do rei
portuguez e o dos seus vassallos, e depressa o enthusiasmo substituiu
pela confiança o temor. Achavam-se ali reunidos os principaes
cavalleiros das duas nações rivaes; tinham de ser julgados uns pelos
outros; tinham de se julgar mutuamente; e tanto bastou para que a
emulação d'esforço se accendesse em todas as veias, exaltasse todos os
animos, dominasse todas as vontades. Resolvida, pois, a guerra,
dirigiram-se sobre Tarifa os dous monarchas, fazendo pequenas jornadas
por esperarem as tropas que de instante a instante engrossavam o
exercito; e no dia 27 de outubro, ao cahir da tarde, avistaram, emfim, a
multidão dos infieis, cujas tendas, derramadas pelas raizes dos montes e
pelos cimos dos outeiros, formavam como que uma cidade vastissima,
cercada por selva de lanças.

Logo que nas asperas cumiadas de _Peña del Ciervo_ fluctuaram os pendões
de Castella e de Portugal, juntos ao estandarte da cruzada, as
tropas mussulmanas, que se calculavam em sessenta mil homens de
cavallaria e quatrocentos mil infantes, unindo-se com a rapidez do
relampago e deixando o recinto das tendas, arrojaram-se para as margens
do Salado, e ahi aguardaram firmes o acommettimento dos inimigos. A
noite, porém, aproximára-se, e os principes christãos não quizeram no
meio das trevas começar a terrivel batalha, em que a fortuna das armas
tinha de resolver se os filhos da Peninsula deviam de novo curvar-se ao
jugo dos africanos.

No dia seguinte já o sol ia alto, quando o som das trombetas, dos
tambores, das charamellas, dos anafis, dos atabales deu o signal de
combate. O exercito portuguez, entoando o psalmo _Exurgat Deus_,
arremeça-se pela planicie, transpõe o rio por entre milhares de
frechas, que sibilam nos ares como saraiva espessa, e encontrando-se com
a hoste do rei de Granada trava uma lucta implacavel, frenetica,
vertiginosa. No meio da ebriedade do sangue, baralham-se amigos e
inimigos; as espadas faiscam nas espadas; as lanças, topando em cheio
nos escudos, nos capacetes, nos arnezes dão um som profundo, que se
mistura com o estalar d'aquellas que voam despedaçadas; muitos ginetes
correm á solta, nitrindo d'espanto e de terror; muitos cavalleiros
pelejam a pé; e os elmos e cervilheiras rolam pelo chão fendidos e
amolgados. A final os mussulmanos vacillam, e as suas fileiras, vergadas
em semicirculos, recuam ante a gente portugueza, ondeam, espalham-se e
abandonam o campo, procurando na fuga a salvação. Por outro lado as
tropas castelhanas, capitaneadas pelo principe de Vilhena D. João
Manuel, dirigem-se contra o exercito de Abul-Hassan, e depois de renhida
peleja conseguem romper aquellas grossas muralhas de homens, affoutos e
impavidos no primeiro conflicto, mas incapazes de resistir tenazmente ao
embate incessante dos cavalleiros christãos, que, poucos mas bem
armados, investem como leões onde mais acceso vae o travar da batalha.
Não ignoram elles que da sua audacia depende nessa hora talvez a sorte e
a gloria da patria. Emfim a guarnição de Tarifa, sahindo da fortaleza,
apodera-se dos arrayaes mouriscos; fere, mata, vence quasi sem combate
os que encontra; e derrama assim a ruina entre os inimigos, que, no meio
de completa anarchia, chegam a pelejar uns contra os outros, ou expiram
sem defensa nem gloria debaixo dos pés dos cavallos e dos troços de
infanteria.

Então o terror consumma o desbarato; e, pela volta da tarde, apenas do
brilhante exercito dos mouros de Africa e de Hespanha alguns milhares de
fugitivos, acompanhando os reis de Fez e de Granada, correm desalentados
diante dos cavalleiros christãos, que os perseguem incançaveis até perto
de Algeziras.

Grande numero de mussulmanos ficaram captivos, e foi immenso o despojo
em ouro, prata, armas e preciosidades de toda a casta. Convidado a
escolher d'entre essas riquezas a parte que lhe aprouvesse, D. Affonso
IV acceitou sómente alguns alfanges e bandeiras, e um clarim que
pertencêra ao rei de Granada. Os despojos, porém, daquella famosa
batalha constituiam o preço de menos valia para o monarcha
portuguez. Mais graves eram, sem duvida, os resultados de ordem moral.
Sahindo victorioso da empreza em que nobremente se empenhára, D. Affonso
IV cingira-se ás tradições, por tanto tempo esquecidas, das instituições
wisigothicas, que consideravam como dever impreterivel do principe estar
sempre á frente dos seus subditos, na hora dos grandes perigos e das
grandes glorias; renovára o brado de guerra contra os infieis, que
parecia ter de todo emmudecido desde a conquista do Algarve; patenteára
ao rei de Castella qual era ainda a ousadia dos cavalleiros e homens de
armas portuguezes; e sobretudo livrára a Peninsula da invasão dos
africanos, e dera a estes uma aspera demonstração de que não era empreza
facil, nem talvez possivel, subjugar de novo a Hespanha e o
christianismo.



IV

Morte de D. Maria Telles

1377


De todas as obras da creação é a mulher aquella em que mais
profundamente está gravado o verbo indefectivel e supremo da providencia
omnipotente. O seu nome resoa-nos como o de um ente predestinado para
nos servir de guia e amparo nos trabalhos e alegrias da vida; as suas
graças infiltram-se por cada sentido, e são para cada desventura um
balsamo, para cada descrença um milagre; o gesto, a voz, os meneios,
o volver de olhos, a ternura do sorrir, o perfume e brilhantismo dos
cabellos, tudo tem encanto indecifravel, que domina as vontades mais
isentas; mas no coração principalmente é que ha thesouros inexhauriveis
de generosidade e innocencia, e uma suave melancolia, que parece não ter
objecto, e que só é por ventura a saudade incerta mas indelevel da sua
origem divina. No meio das tempestades da existencia acalma-nos as
aspirações insensatas, as paixões fervidas, as esperanças mesquinhas e
heterogeneas, e consegue salvar-nos de nós mesmos, esquecendo resignada
as proprias dores, e exaltando-nos pela ternura e pela constancia ás
regiões ideaes e bem-aventuradas do puro sentimento. Ás vezes, porém,
anjo despenhado, a mulher arrasta-nos comsigo; devora-nos, entre
fingidas lagrimas e seductoras caricias, os annos, a energia, os nobres
affectos, os sentimentos honestos, as noções da verdade e do dever;
suscita-nos, desenvolve-nos, completa-nos as más paixões e os ruins
instinctos, e faz com que aquelle, a quem um louco amor fascina, desça
ao infimo grau da abjecção. Uma dessas mulheres, excepções que
infelizmente não são raras, foi decerto Leonor Telles, de cuja terrivel
historia, longa iliada de crimes, procuraremos narrar um episodio.

A affeição cega de D. Fernando havia já annos que tinha satisfeito as
ambições da mulher de João Lourenço da Cunha, alma soberba e ousada,
cubiçosa e perfida, que não se contentára de vêr a seus pés, desvairado
pela paixão, o moço e generoso monarcha. A corôa real, por tantas
vezes divisada em sonhos, sentia-a, emfim, segura na formosa fronte; os
ultrages, que recebêra durante a lucta, lavára-os largamente com o
sangue dos homens que mais odiava; e perante o seu olhar, sublime de
altivez e energia, não havia cabeça que se não curvasse, nem coração que
não estremecesse.

Fôra-lhe para isso preciso supplantar considerações sagradas; vencer
obstaculos poderosos; derramar pelo reino a devastação e a miseria;
aviltar o homem que tudo lhe sacrificára, riquezas, poderio, gloria, a
honra propria e a do nome herdado; mas que importam desgraças alheias a
um animo profundamente egoista? As balizas, que separam a iniquidade e a
justiça, o crime e a virtude, a abominação e a sanctidade, desapparecem
aos olhos do espirito reconcentrado n'um pensamento unico, e contra
uma vontade assim inabalavel póde haver difficuldades, mas não ha
impossiveis. Um processo de divorcio, julgado por juizes affectos a D.
Leonor, livrára-a de seu primeiro marido, que atterrado fugira da
patria. O repudio da infante de Castella, cujo casamento fôra
contractado em celebração de pazes, annullára o outro obstaculo. A
alliança com o duque de Lencastre, tractado impolitico e perfido, que só
póde disculpar-se por ser obra de animo turbado por suggestões
estranhas, fizera com que D. Henrique, entrando de repente em Portugal,
tomasse Almeida, Pinhel, Linhares, Celorico e Vizeu, atravessasse a
Beira, offerecesse proximo a Santarem batalha a el-rei D. Fernando, que
este não ousou acceitar, e cercasse e destruisse na sua melhor parte
a capital do reino, realisando assim os calculos de fria e paciente
vingança, que o instincto de tigre ensinára a D. Leonor pelas affrontas
ahi recebidas. Finalmente a influencia irresistivel da rainha no
espirito fraco do soberano conservára na côrte só aquelles d'entre os
nobres, que por sympathia, por gratidão, por temor, por intuitos
interesseiros ou por ligações de parentesco se mostravam inclinados á
nova ordem de cousas, e substituira á severidade dos antigos tempos o
brilho e a devassidão de uma côrte voluptuaria.

Apesar de tudo, porém, no regaço da opulencia e do poder, essa mulher,
ora hypocrita e vil, ora insolente e orgulhosa, receiava a cada instante
ver derrubado o edificio da sua fortuna, cimentado com o sangue de
tantas victimas. Quando a vida lhe sorria sómente esperanças e
venturas, parecia que descortinava no horisonte a victoria definitiva
dos adversarios, e acaso se lembraria de que semeára odios na terra, e
de que ainda não colhêra o fructo.

Entre os nobres que mais temia contavam-se os filhos de D. Ignez de
Castro. D. Diniz, o filho predilecto do rei justiceiro, achava-se em
Castella, e era odiado pelo povo que aos seus conselhos attribuia a
invasão de D. Henrique em Portugal. D. João, todavia, era geralmente bem
quisto, e no caso de fallecer o monarcha, podia ser um emulo poderoso
contra os direitos da filha de D. Leonor. Demais, levado por amor que
reputava sincero, e que talvez então o fosse, o infante casára
clandestinamente com D. Maria Telles, a qual, apesar de não ter já o
viço da primavera da vida, conservava ainda a flor e a graça de uma
formosura rica de seiva, pura nas fórmas, e dotada do enlevo que mais
prende e mais seduz, o de uma alma cheia de bondade e affecto.

Irmã da rainha e viuva de Alvaro Dias de Sousa, fidalgo illustre e de
linhagem real, D. Maria era respeitada pela severa virtude do seu
caracter, e querida pelas mercês que fazia, para as quaes lhe
subministravam fartos meios as rendas das suas muitas propriedades, e as
do mestrado de Christo, que lhe fôra dado para o filho, e que em grande
parte usufruia. Vendo-a, e accendendo-se-lhe a imaginação com essas mil
seducções, concedidas pela natureza ao sexo fragil, para que não haja
alma que se lhe não franqueie, ousára o infante confessar-lhe o seu
amor, e como a bella viuva, entre indignada e piedosa, lhe
respondesse que de reis tambem vinha ella, e que não era dama que se
sacrificasse aos devaneios ephemeros de um capricho, crescêra com os
rigores o affecto, e D. João recebêra-a por mulher, celebrando um desses
casamentos clandestinos, vulgares na epocha que tentâmos descrever,
epocha em que a hypocrisia estava já longe de ser tão rara como
geralmente se cuida, posto que as paixões ainda se mostrassem muitas
vezes grosseiras, impetuosas, indomitas.

Chegada a noticia ao conhecimento da rainha, esta em vez de se lisongear
com tal consorcio, que lhe podia servir de esteio na situação a que se
tinha elevado, julgou-o contrario aos planos que formára para collocar
na cabeça da filha a corôa de D. Fernando, e desde logo a morte da irmã
foi resolvida. N'aquelle peito de marmore só existia um sentimento
sancto e suave, o amor materno; e esse mesmo affecto apenas lhe inspirou
o desenho de novos crimes. Como conseguir, porém, sacrificar a irmã, e
desfazer ao mesmo tempo o favor popular de que D. João já gosava pelo
genio aventuroso e esforçado? Soprando na alma d'este as duas paixões
mais ferozes do coração humano, a ambição e o ciume.

N'uma conferencia com o infante communicou-lhe João Affonso Tello, irmão
da rainha e inteiramente dedicado aos seus interesses, que esta desejára
a sua alliança com a princeza Beatriz, e que se o casamento d'elle
infante não tivesse vindo destruir designios e projectos de longo tempo
affagados, a preferiria muito á do duque de Benavente, principe de
origem castelhana, odiosa por em quanto aos portuguezes, em cuja
memoria não se tinham desvanecido antigas inimisades, e cruentos e
recentes aggravos.

A perfida insinuação produziu o desejado exito. Dominado pela cubiça de
succeder no throno depois da morte do irmão, o filho de Ignez de Castro
só pensou nos meios de se livrar da que havia escolhido por mulher, mais
n'um impeto de ardor brutal e ephemero, do que por esse affecto intenso
e intimo, que se dilata com sereno contentamento até os extremos
horisontes da vida. Acceitando como verdadeiras accusações
injustissimas, ou, o que por ventura está mais proximo da verdade,
creando elle proprio essas calumnias, partiu logo para Coimbra, onde
então estava D. Maria Telles, e dirigindo-se a furto ás casas que esta
habitava, mandou arrombar as portas. Acordada de subito, a irmã de
D. Leonor levantou-se assustada e afflicta, e envolvendo-se n'uma colcha
que lhe cobria o leito, perguntou ao infante a causa d'aquelle
procedimento que tanto a offendia. Na voz, no gesto, nas lagrimas da
desditosa mulher traduzia-se a innocencia e a candura; no arrebatamento
de pudor e de colera, que lhe abrasava as faces, havia um energico
protesto contra a suspeita infame; mas D. João tornára-se inaccessivel á
justiça e á piedade. Accusando-a em altas vozes de divulgar o segredo do
seu casamento e de trahir a fé conjugal, arrancou-lhe a unica vestidura
que lhe velava a formosa nudez, e com um bulhão, com que nas vesperas o
presenteára o conde de Barcellos como que indicando-lhe o destino, a
feriu no seio e no ventre. Um grito indizivel de angustia partiu dos
labios da pobre victima, que, cerrando para sempre os olhos enxutos,
porque n'elles a afflicção estancára as lagrimas, teve apenas tempo para
invocar com o ultimo suspiro a misericordia de Deus.

Então em todos os rostos se viu pintado o espanto e o terror; a triste
noticia percorreu logo a cidade, e no povo a irritação dos animos
depressa chegou ao seu auge, mas o infante já havia sahido de Coimbra, e
dentro de pouco tempo, tendo alcançado o perdão d'el-rei, era acolhido
na côrte, como se não tivesse sido o assassino feroz de sua mulher.
Entretanto só para arrependimento lhe serviu o crime commettido. Lançado
o cadaver da irmã sobre a estrada por onde suppunha que a filha subiria
ao throno, D. Leonor Telles nem tratou de disfarçar quanto se
inclinava de preferencia ao casamento de Beatriz com um principe
castelhano; e o infante, perdida de todo a fé no amparo e protecção da
côrte, fugiu para as provincias do norte, e d'ahi para Castella, onde
acabou a vida no meio da saudade e dos remorsos, justa punição que se
tornou ainda mais dura, quando depois da morte de D. Fernando conheceu
que tinha destruido toda a possibilidade de succeder no throno, ao qual
de certo o elevaria o povo se não fôra o seu crime.

Nos livros dos chronistas e nos contos populares se perpetuou esta
triste historia; e ainda hoje no antigo castello dos templarios, theatro
do tragico successo, se mostra o quarto onde foi assassinada a boa e
desditosa irmã da nossa Lucrecia Borgia.



V

Tomada de Ceuta

1415


Rica mais do que nenhuma em homens e feitos grandiosos é a historia da
gente portugueza. Quem, lançando os olhos para um mappa da Europa,
divisa ao occidente da Peninsula este paiz, encerrado na estreiteza de
breves limites, imperceptivel quasi no meio dos grandes imperios da
terra; e considera que ahi existe ha sete seculos uma nação
independente, e que chegou a estender o seu dominio por uma parte da
Asia, da Africa, da America, e até ás regiões encantadas e indefinitas
do Oceano Austral, antevê logo n'esse povo grandes virtudes politicas e
guerreiras, e nos seus fastos uma excellente escola de enthusiasmo e
heroicidade. E se depois d'isso volta o pensamento para as recordações
bellas e puras, para os tropheus e monumentos honrosissimos d'esta
mimosa e abençoada região, que não deixou parte alguma no mundo onde não
chegasse um ecco das suas glorias de todo o genero, o resultado d'esse
estudo é a confirmação incontrastavel das primeiras impressões.

Pequeno e fraco na origem, Portugal é apenas um condado, que ameaçam ao
mesmo tempo o já então vastissimo imperio de Leão e Castella, e o poder
ainda formidavel dos bellicosos sarracenos, e todavia não só lhes
resiste com intrepidez e constancia, mas até ousa invadir o territorio
dos seus dois temiveis inimigos, conservando sempre hasteado o pendão da
nacionalidade. Depois, logo no começo da monarchia, os portuguezes,
movidos pelo amor da patria, affecto que amadurecêra e se radicára nos
animos de um modo indestructivel, conquistam uma grande parte da
Hespanha mussulmana, terra abundante de população, enriquecida pela
industria, cheia de villas e cidades importantissimas, fortificada por
todos os meios que a experiencia d'aquelles tempos ensinava, e defendida
por homens naturalmente esforçados, e aos quaes o aferro á terra natal e
o fervor religioso ainda, como é de crer, multiplicavam os brios. Depois
estabelecem-se em larga escala os concelhos; promove-se a vinda de
colonos; povoam-se granjas e aldeias; arroteam-se charnecas e
mattos; repairam-se e abastecem-se castellos; organisa-se a milicia, a
administração, a magistratura judicial, a fazenda publica; consolidam-se
intimas allianças com algumas das maiores nações, e dá-se sufficiente
vigor ao espirito municipal, que em parte alguma talvez, durante a edade
media, teve mais viva influencia no progresso da civilisação. Em
seguida, apenas Portugal se vê collocado vantajosamente com relação aos
varios povos da Peninsula, já não lhe basta a certeza da sua
inviolabilidade, e confiado nas proprias forças e destinos, eil-o que se
apressa em ir pagar ao islamismo, no solo abrazado de Africa, a divida
da invasão e os trances do jugo estranho.

Reinava então em Portugal D. João I. Ao monarcha inconstante e frivolo,
cujos defeitos como homem bastam para escurecer os actos do
legislador, succedêra o principe mais popular que se encontra nas nossas
dynastias de imperantes; a um rei hereditario um rei eleito. Ganha a
victoria de Aljubarrota, recuperadas uma a uma as praças de guerra, de
que o soberano estrangeiro se havia assenhoreado; firmada, emfim, a paz
com Castella depois de longos annos de lucta frenetica, começaram os
infantes a instar com D. João I para que emprehendesse conquistar Ceuta,
a famosa cidade que desde o tempo dos romanos até ao fim do reinado de
Witiza fôra dependencia de Hespanha; conquista que lhes daria ensejo de
alcançarem com honra o grau de cavalleiros, e que dilataria ao mesmo
tempo os limites do imperio e os da fé. Folgou com a idéa o monarcha, a
quem os annos não haviam amortecido o pensamento fixo de gloria, a
que devem attribuir-se quasi todos os actos da sua vida, mas não quiz
resolver-se sem pesar cuidadosamente os perigos e vantagens do
commettimento, que não se limitava ao assalto de uma praça, aliás bem
defendida e guardada, mas que era de feito um repto aos infieis, que,
inflammados em brios nacionaes e em fanatismo ardente, formariam cem
exercitos poderosos e intrepidos contra os temerarios invasores.

Reflectiu, pois, em todas essas circumstancias; ponderou o voto dos
guerreiros illustres, a censura dos conselheiros leaes, as preoccupações
populares; avaliou com exacção a importancia dos esforços e a escacez
dos recursos; viu que ia travar uma lucta em que todo o odio e valor da
raça inimiga haviam de empenhar o ultimo alento; mas lembrou-se de
que era preciso não deixar esquecer aos seus soldados o duro mister da
guerra, de que o unico systema consequente e legitimo de engrandecimento
para o reino era alargar-lhe os limites pelas fronteiras costas
africanas, de que celebraria assim com um feito memoravel o occaso da
sua venturosa carreira, e decidiu-se por fim á expedição mais
determinado, mais perseverante, mais enthusiasta do que os proprios
filhos. Conciliando, todavia, a confiança na sua fortuna com as
admoestações da prudencia, tratou dos apercebimentos adequados á
magnitude da empreza, e para evitar suspeitas que de certo trariam raiz
de taes preparativos, resolveu que se aproveitasse o pretexto da
pirataria com que os hollandezes infestavam as nossas costas, e se
reclamasse satisfação do conde de Hollanda com ameaças de guerra.
Fernão Fogaça, veador do principe, homem astuto, cauteloso e atrevido,
foi enviado a Hollanda para proclamar em embaixada publica os aggravos e
exigencias do soberano portuguez, e revelar secretamente ao conde a
verdadeira causa da sua vinda. Prestou-se este ao disfarce, lisongeado
pela demonstração de confiança, ou por ventura aterrado com a lembrança
de que as ameaças podessem ainda traduzir-se em factos, e o artificio
produziu o desejado effeito de socegar até certo ponto as populações de
Hespanha e Africa, posto que não tanto que os reis de Castella, de
Aragão e de Granada não mandassem immediatamente embaixadores a
Portugal, renovando todas as garantias de paz e amizade.

Preparado tudo, levantou ancora do porto de Lisboa a poderosa armada aos
25 de julho de 1415, não obstante haver fallecido poucos dias antes
D. Philippa de Lencastre, chamada pelo povo a boa rainha, e a cujas
virtudes e desvelos deveu acaso Portugal a mais generosa prole, que tem
rodeado um throno. Partiu em demanda das praias sarracenas; em
desaffronta dos gravames n'outro tempo padecidos; em nome da raça
romano-gothica contra o islamismo que lhe lançára a luva; da supremacia
da civilisação christã contra as caducas instituições politicas,
estribadas nas doutrinas falsas ou incompletas do koran. Partiu, sem que
nem um leve estremecimento pelo futuro quebrantasse o enthusiasmo dos
que iam participar dos riscos da empreza; o excitamento religioso, o
espirito aventureiro, a emulação de esforço, e em muitos ainda a cubiça,
menos hypocrita que n'estes nossos tempos, erguiam com demasiada
força aquelles animos para que lhes consentissem vacillar.

O mysterio da expedição, na qual tomavam parte os grandes, os nobres, os
infantes, o herdeiro do throno e o proprio monarcha, assustou de novo
toda a costa de Africa, e não menos a de Hespanha, que ainda occupavam
mouros; mas sobretudo as terras de Gibraltar, por se verem abertas e mal
defensaveis. Em breve, porém, se dissiparam esses receios, porque,
consultados em Algeziras os principaes capitães, foi fixado o dia 12 de
agosto para se caminhar contra Ceuta.

Ahi de feito surgiu a frota no dia designado, mas depois de duas
tentativas de desembarque, que o temporal estorvou, foi constrangida a
voltar para Algeziras. O contratempo desanimou alguns. Eram esses de
voto que não se tentasse outra vez o desembarque em Ceuta, que para
gloria bastava já o arrojo da empresa, e que se não deviam tornar ao
reino sem tingir as mãos em sangue inimigo, se dirigisse a armada a
Gibraltar, que n'aquella conjunctura se offerecia como facil conquista,
e que daria campo aos valentes para mostrarem esforço, ao passo que
satisfaria as ambições do povo e os interesses da patria. Nenhuma
consideração, todavia, dissuadiu D. João I do intentado proposito.
Perseverante como o homem que, apontando fixamente ao alvo, não desvia
nem por um momento a arma senão depois de acertar, desprezou os avisos
cautelosos, que aliás já não poderiam ser acceitos sem desaire, e, como
é facil de suppor, foi a vontade do monarcha que afinal prevaleceu.

Entretanto os mouros, attribuindo a medo a demora dos portuguezes,
trataram de despedir as tribus numidas que os tinham vindo auxiliar,
Soldadesca indisciplinada e feroz, que nem só entre os inimigos deixava
largos vestigios de ruinas e estragos; mas ainda ellas mal tinham
sahido, quando no dia 20, ao declinar da tarde, se dirigiu contra a
cidade toda a armada christã. Confiados na fortuna, os habitantes de
Ceuta pareciam desprezar a procella que de perto os ameaçava, e quando a
noite desceu com denso manto de trevas, illuminaram-se as casas em
signal de torva alegria.

Com a primeira luz da manhã seguinte a gente da armada, mettendo-se nas
fustas, dirigiu-se para a cidade, e os infantes D. Henrique e D. Duarte,
saltando em terra com cento e cincoenta soldados, começaram a peleja com
os mouros que fóra das portas os desafiavam, terçando lanças,
arremessando azagaias, e animando-se uns aos outros com pragas e
insultos contra os invasores, intelligiveis para estes pelos gestos de
rancor dos que as proferiam. N'aquelle primeiro impulso os alfanges
sarracenos cruzaram as espadas portuguezas com todo o estrepito do
enthusiasmo guerreiro, com todo o ardor do excitamento religioso, com
todo o fogo de uma colera por muito tempo concentrada. Dir-se-ia, ao ver
a furia do combate, que só adejaria a victoria sobre um dos campos
quando tivesse cahido sobre o outro a total ruina. No entanto foram
desembarcando mais soldados portuguezes, e, havendo já na praia
trezentos homens escolhidos, apertaram estes com os mouros, que, levados
mais pelo temor que pelo perigo, voltaram costas retirando-se para a
cidade. Lembraram-se então os infantes de que n'aquelle mesmo dia
poderiam talvez dar fim á empresa, evitando assim o trabalho e combate
incessante de semanas e mezes, que naturalmente resultaria de um longo
assedio, e os perigos a que se expunham n'uma terra callidissima, onde
de certo recrudeceria a peste que de Lisboa os seguíra. Decidiram, pois,
entrar na cidade com os que fugiam, e, lançando mão do ensejo que o caso
offerecia, perseguiram rijamente os mouros, arrancando-os de todas as
posições, e fazendo-os apinhar sobre as portas.

Ahi foi terrivel o recontro e disputada tenazmente a victoria. O
apertado revolver das armas formava uma selva de ferros, atravez da qual
já quasi não era possivel abrir caminho sem galgar por cima dos
cadaveres amontoados, que embargavam os passos dos vivos; nem os
invasores desistiam nem os da cidade affrouxavam, e de um e outro lado
os contendores haviam chegado áquelle paroxismo de furor, que faz
desprezar a vida para só cuidar em produzir a morte. Por fim, não
obstante o muito que os defensores trabalharam, não poderam cerrar as
portas, nem tolher entrarem os nossos de involta com elles. Os
portuguezes dividiram-se então em dous bandos; D. Duarte, capitaneando
um d'elles, foi subindo aos logares altos e fazendo-se senhor de todos
até chegar á maior eminencia da cidade; D. Henrique tomou por outras
ruas; e ambos encontraram porfiada resistencia, porque aos habitantes de
Ceuta, reduzidos á defensiva, o affecto, que nos costuma prender ao lar
domestico, redobrava alento e brios. Afinal, porém, essa mesma
resistencia acabou; os vãos esforços da população mussulmana para
salvar Ceuta foram os clarões derradeiros da lampada que se extinguia. A
audacia dos infantes e dos que os seguiam, a cobardia do chefe
sarraceno, Salat-ben-Salat, que fugiu apenas soube ter sido entrada a
cidade, e o habito da victoria, que, desde a batalha das Navas de
Tolosa, os proprios mahometanos, consideravam como devendo tarde ou cedo
pertencer definitivamente aos inimigos da sua crença, facilitaram a
conquista de uma das povoações de Africa mais de receiar para os povos
christãos do mediterraneo. El-rei, tendo posto em terra toda a sua
gente, mandou fazer alto, e logo que soube estar a cidade de todo ganha,
deliberou começar a combater o castello. Depois, impellido pelo
enthusiasmo religioso, entrou n'uma mesquita, e ahi de joelhos agradeceu
a Deus esse feliz resultado de uma tentativa que a muitos parecêra
loucura. Recebendo então a noticia de que o castello estava sem defensa
e despejado, mandou arvorar na mais alta torre o estandarte real; e os
raios do sol, que se escondia no occidente, já não encontraram a
bandeira de islam, derribada n'esse dia para nunca mais se erguer sobre
os muros da soberba Ceuta.

Assim, por meio de uma victoria alcançada em poucas horas, dilatou D.
João I as fronteiras da monarchia pelos territorios africanos,
principiando a realisar o grande pensamento dos reis chamados da
primeira raça, e abrindo caminho aos vastos projectos, ás atrevidas
empresas, aos descobrimentos e conquistas, que deram a esta nossa boa
terra portugueza uma epocha de gloria e predominio, das maiores que o
mundo tem visto.



VI

Regencia do infante D. Pedro.--Combate de Alfarrobeira

1439 A 1449


O cadaver do virtuoso D. Duarte havia descido ao sepulchro, onde, emfim,
repousava das amarguras de tão curto como desditoso reinado. Para a
menoredade de seu filho Affonso V, que então contava seis annos, ficára
regente do reino a rainha D. Leonor. Esta, sentindo a necessidade de
buscar na côrte seguro esteio contra a má vontade dos subditos, que lhe
não perdoavam ser mulher e estrangeira, e sobretudo ter contribuido
com solicitações e conselhos para a funesta empresa de Tanger, procurou
associar ao imperio o infante D. Pedro, duque de Coimbra,
promettendo-lhe ao mesmo tempo o casamento do rei com sua filha D.
Isabel, e julgando prendel-o assim pelo esplendor da invejada alliança.
Em breve, porém, instigada pela cubiça do poder, que foi a paixão
predominante dos ultimos annos da sua vida, ligou-se com o conde de
Barcellos, filho natural de D. João I, e á frente dos seus parciaes,
aproveitando todos os pretextos, tentou de dia em dia coarctar a
auctoridade do infante.

Então o povo de Lisboa começou a alborotar-se, e depois de muitos
tumultos e desordens proclamou regente e defensor do reino o duque de
Coimbra. Suppondo que pouco duraria um poder, assente em tão movediço
alicerce como é o favor da plebe, a rainha acolheu-se a Alemquer,
onde se fez forte; mas as côrtes, reunindo-se immediatamente,
confirmaram a nova regencia, e resolveram que a educação d'el-rei e de
seu irmão fosse confiada a D. Pedro.

O estado da nação n'aquella épocha era, na verdade, lastimoso. Parecia
que uma estrella aziaga tinha constantemente presidido aos destinos do
fallecido monarcha. A peste assolava o reino; a miseria publica tomava
todos os aspectos; o infante D. Fernando, heroe e martyr, jazia captivo
em Africa; as prophecias de mestre Guedelha, o astrologo judeu,
realisavam-se fatalmente; e as gloriosas recordações de Aljubarrota e de
Ceuta tornavam ainda mais duros os flagellos com que a fortuna, como que
arrependida de ter sempre protegido D. João I, se vingára em
crueldades sobre o seu successor. Por cumulo de infortunios o prior do
Crato, o conde de Barcellos e outros fidalgos, poderosos em influencia e
valor, julgaram opportuno o ensejo para realisarem projectos de ambição,
e proclamando a resistencia em nome da viuva de D. Duarte, constrangeram
o regente a empunhar as armas para os conter. Apezar de tudo, porém, D.
Pedro dirigiu com tal prudencia o leme do estado, que dentro de pouco
tempo desvaneciam-se os fumos da discordia, e Portugal respirava á
sombra das leis, dilatando as forças e engrossando as riquezas no seio
de perfeita bonança.

Chegado el-rei aos quatorze annos, edade em que, segundo o fôro de
Hespanha, qualquer principe devia haver inteiramente posse do seu reino
e senhorio, quiz o duque de Coimbra entregar-lhe o supremo poder,
que D. Affonso, ainda não pervertido por suggestões calumniosas, recusou
acceitar. A inveja, comtudo, não se enfreia nem com as ligações de
familia, nem com as obrigações de gratidão, simples vinculos moraes que
a historia tem muitas vezes mostrado serem fracos para conter a
violencia das paixões; e as intrigas do conde de Barcellos, já então
elevado á dignidade de duque de Bragança por aquelle mesmo contra quem
conspirava, fizeram com que o moço rei exigisse pouco depois ao infante
os fios da administração, para os sujeitar ás influencias de uma nobreza
aventurosa, insoffrida de todo o jugo, mais habituada aos enredos da
côrte que ás pesadas occupações do governo, e incapaz por isso de
sustentar com lealdade, energia e destreza os interesses da monarchia.

Tornados d'este modo reis de facto na resolução das questões mais
importantes, os conselheiros de D. Affonso V sentiram recrudecer ainda a
aversão contra o principe, cujo caracter generoso e firme os havia
confundido ou humilhado. Ha almas impiedosas, abysmo de odios violentos
e de paixões profundas, que, no momento em que se realisa a ventura por
largo tempo sonhada, se deixam, todavia, subjugar por estranho
sentimento de benevolencia; n'outras, porém, a perversidade é singular
genero de fome que quanto mais damno causa mais appetece, é lodaçal que
até entre formosas paizagens impregna a atmosphera de miasmas
pestiferos. No regaço da fortuna continuaram, pois, esses homens a
malquistar o infante com o monarcha, que, apesar de ter já casado com
sua prima D. Isabel, entrou a afastar o sogro e a dar-lhe claros
signaes de que condescendia sem hesitar com as villezas d'aquelles, por
quem mostrára sempre decisiva predilecção. Dotado de indole altiva e
pouco soffredora, lasso do serpeiar flexuoso dos cortezãos, D. Pedro, em
vez de permanecer junto do sobrinho a fim de lhe expungir da mente as
perfidas calumnias, retirou-se logo para Coimbra, deixando d'esse modo
livre o campo aos adversarios para a seu salvo satisfazerem rancores,
que o tempo cada vez mais exacerbára.

Debalde correu então á côrte a defender o irmão o infante D. Henrique,
que já n'essa quadra residia em Sagres; debalde o conde de Avranches, D.
Alvaro Vaz de Almada, o mais illustre cavalleiro da Peninsula, alma
grande, generosa, leal e intrepida, reptou os accusadores do duque de
Coimbra, nenhum dos quaes se atreveu a levantar o guante; debalde
interveiu a propria rainha, procurando entre lagrimas e caricias
reconciliar o marido com o pae. Tudo foi inutil. Dominado pela
contumacia dos validos e cego pelo orgulho dos verdes annos, D. Affonso
V prohibiu ao sogro que voltasse á côrte, e como este se recusasse a
entregar as armas que possuia em Coimbra, allegando que necessitava
dellas para se defender dos seus inimigos, declarou-o rebelde e partiu
contra elle á frente de um poderoso exercito.

Este procedimento do monarcha operou no animo de D. Pedro uma revolução
moral, d'essas que só as grandes crises podem produzir; foi sobresalto,
embate, transformação repentina de todas as suas idéas e sentimentos.
Entretanto, aconselhando-se com aquelles em que principalmente
confiava sobre o que havia de fazer, acceitou o aviso do conde de
Avranches; e, partindo de Coimbra com diminuta hoste, determinou buscar
o sobrinho e genro, pedir-lhe justiça contra os que o infamavam, e se a
moderação e firmeza não bastassem, rota a ultima barreira, repellir a
força com a força, arvorando o pendão negro da revolta.

Chegando proximo a Alverca, assentou D. Pedro arrayal nos plainos de
Alfarrobeira em sitio assás defensavel. Ahi o encontrou el-rei, e logo o
cercou completamente, mandando ao mesmo tempo apregoar por seus arautos,
que seriam tidos por traidores todos os que não desamparassem o infante.
Essa intimação, todavia, não produziu o ambicionado exito, e pelo
contrario alguns cavalleiros e soldados, movidos por nobre sentimento de
generosidade, vieram unir-se áquelle que o soberano tratava como
rebelde. Emquanto isto succedia, e talvez fosse possivel evitar o
funesto conflicto dos dous bandos, um acontecimento fortuito apressou o
desfecho do terrivel drama.

Os bésteiros e espingardeiros do exercito real, abrigados uns pelo denso
arvoredo que sombreava o ribeiro de Alfarrobeira, collocados outros no
cimo de um outeiro que dominava o acampamento, começaram a varejar com
tiros o arrayal do infante. Vendo este os seus leaes companheiros
immolados sem combate nem gloria, mandou disparar algumas bombardadas,
uma das quaes acertou perto da tenda de el-rei. Então a briga
empenhou-se decisivamente. De uma parte estava um troço de homens
intrepidos, aos quaes a desesperança augmentava o esforço; da outra
um exercito numeroso e aguerrido, contra cujo poder seria impossivel a
resistencia. Como se não bastasse, porém, a desegualdade entre os dous
contendores, o infante, ferido por uma setta que lhe varou o corpo,
tombou por terra logo ao principio da peleja, e com a sua morte feneceu
em redor d'elle todo o esforço dos animos mais robustos. Sómente o conde
de Avranches, que havia jurado não sobreviver a D. Pedro, luctou
denodadamente contra os de el-rei, já senhores da victoria. Cegos de
furor, cavalleiros e peões arrojavam-se e cahiam diante d'aquelle vulto,
como os vagalhões de mar tempestuoso se arremessam e desfazem em frente
dos rochedos da costa. No meio de larga clareira, só, impavido e
magestoso, D. Alvaro derribava a seus pés quantos d'elle se aproximavam,
e parecia, como o Campaneu de Stacio, ameaçar os deuses e os homens.
Afinal, perdidas as forças, baqueou por entre os inimigos, que a poder
de golpes depressa o acabaram.

O sangue do infante, vertido n'esta carnificina, a que mal podemos dar o
nome de batalha, não ficou inulto. Da filha do duque de Coimbra nasceu o
principe que tomou sobre si a obra terrivel da expiação. O cadafalso de
D. Fernando de Bragança vingou o assassinio do infante D. Pedro, e mais
uma vez se realisou a terrivel sentença biblica, que ameaça punir nos
filhos as iniquidades dos paes.



VII

Conspiração da nobreza contra D. João II

1481 A 1484


Nos ultimos annos de D. Affonso V a aristocracia tinha chegado ao apogeo
do predominio, e as instituições feudaes, que se haviam mesclado com a
nossa primitiva organisação social, achavam-se enraizadas e vigorosas,
parecendo poder resistir perpetuamente aos esforços do povo e do
monarcha. Já D. João I, o rei de boa memoria, quizera destruir a quasi
independencia dos orgulhosos barões, que governavam nos seus
solares como senhores absolutos, não hesitando, sob quaesquer pretextos,
em arvorar o estandarte da revolta, e até em combater contra a patria;
mas os principes, que se lhe tinham seguido, haviam governado com tal
frouxidão e timidez, que a nobreza retomára o antigo valimento, e
preparára-se para defender a todo o custo os seus fóros e prerogativas.
Foi então que subiu ao throno D. João II, alma energica, robusta e
negra, que conseguiu debellar o poder dos fidalgos, apoiando-se no braço
do povo, e enfraquecer o braço do povo, pesando depois sobre elle com
toda a força e intensidade do poder da corôa.

A uma falta absoluta de escrupulos juntava D. João II grande firmeza de
genio, extraordinaria sagacidade e o retrahimento bastante para
occultar, debaixo de um aspecto frio e de sorrir forçado, o ardor
de violentas paixões. Os chronistas, que escreveram sob o patrocinio dos
immediatos successores d'este soberano, chamaram-lhe o principe
perfeito. Poucas vezes, porém, escriptores cortezãos e lisongeiros têm
respeitado menos a verdade dos factos. Retrato vivo do seu contemporaneo
Luiz XI de França, manifestou sempre, quer nas leis geraes, quer nos
actos proprios e espontaneos, a influencia de um pensamento capital, a
que sujeitou todos os affectos e considerações; e esse foi o de alluir
de vez a preeminencia e immunidade dos grandes vassallos da corôa. No
seu reinado tem de ir tambem buscar o historiador a fixação das fórmas
politicas, que ressumbram em toda a legislação subsequente, e a que
poderemos chamar a transfiguração do absolutismo em despotismo,
como a estructura social anterior se póde igualmente considerar um meio
termo entre a monarchia e as instituições representativas.

Tal era o inimigo com que a nobreza tinha de combater para conservar a
sua preponderancia nos negocios publicos, inimigo formidavel não só pelo
seu caracter, mas ainda pelo prestigio que o rodeava, e pelas
circumstancias que favoreciam os planos da sua politica. O throno,
affagando as sympathias democraticas do terceiro estado, que já começava
a conhecer a sua força, lançava mão do instrumento mais seguro para
assentar o poder em bases solidas. O resultado, pois, da lucta não podia
ser duvidoso. Nos paizes governados pela vontade de um só homem, quando
á pressão enorme d'essa vontade se associa a opinião popular, o
pensamento que vive no animo do principe e das multidões, quer justo
quer iniquo, hade triumphar infallivelmente, e a lucta dos que lhe
resistem pode ser grande e nobre, mas é inutil esforço.

Logo que falleceu D. Affonso V, o primeiro acto de D. João II foi a
convocação das côrtes em Evora, onde lhe prestaram homenagem os
senhores, villas e cidades do reino. Ahi começaram os golpes profundos
na propriedade, na jurisdicção e em toda a especie de regalias das
classes privilegiadas; reformas cujo fim capital era abater a nobreza e
em parte o clero, invalidando-lhes duas poderosas armas, a que dá a
riqueza e a que provém da opinião. Exigiu-se, pois, dos alcaides e
donatarios nova fórma de menagem, chamaram-se a exame as cartas de
mercês e doações, cerceou-se muito a jurisdicção criminal, que os
fidalgos exerciam em suas terras quasi sem peias nem termo, e ampliou-se
o direito de appellação para as justiças reaes.

Os nobres não souberam encobrir o descontentamento. Educados na guerra e
na côrte de D. Affonso V, habituados a illimitado poder dentro dos seus
coutos e honras, unidos, em fim, pela communidade de interesses e de
perigos, de boa e de má fortuna, offenderam-se de que o rei ousasse
tomar-lhes contas das violencias de um valimento, ao qual a impunidade
de largos annos quasi dera fundamento legitimo. D. Fernando, duque de
Bragança e de Guimarães, marquez de Villa Viçosa, conde de Ourem, de
Barcellos, de Arrayolos, de Neiva e de Penafiel, senhor de trinta
villas, e por nobreza e possessões o principe mais illustre das
Hespanhas, foi escolhido como chefe dos descontentes, e isto bastou para
o seu tragico fim. As expressões arrogantes dos fidalgos contra a quebra
dos seus fóros, os alvitres suggeridos a alguns procuradores do povo, as
vãs ameaças, os secretos conluios, e até os actos inoffensivos e
indifferentes, tudo foi traduzido, decifrado, envenenado e exposto com
as côres necessarias para que D. João II podesse, de um só lance,
satisfazer os aggravos de rei e as vinganças de homem. Prevenido a tempo
dos riscos que o cercavam, o duque de Bragança não soube ou não quiz
evital-os; e em vez de se refugiar em Castella, asylo fiel contra a
cólera do monarcha, dirigiu-se á côrte, que então estanciava em Evora, e
ahi foi recebido com taes demonstrações de contentamento e affecto, que
chegou a julgar-se tão seguro ao lado do seu implacavel inimigo,
como no palacio de Villa Viçosa no gremio dos seus parciaes.

Não tardou, todavia, que a confiança se lhe convertesse em
arrependimento, e que ao bater a hora da desgraça, conhecesse por
dolorosa experiencia que um coração como o do monarcha, abysmo
insondavel de perversidade e hypocrisia, podia disfarçar odios, mas não
sabia esquecel-os. Indo n'um dia, ao cahir da tarde, despedir-se de D.
João II para voltar ás suas terras, conduziu-o este a uma casa apartada,
onde, certo de que não vibraria já em vão o golpe, lhe disse que
convinha ficasse preso até se averiguarem as suspeitas do crime de
rebellião que lhe imputavam. Vendo o perigo que corria o duque, muitos
fidalgos offereceram dar a el-rei suas alcaidarias em refens pelo
nobre vassallo; e porque, ao tempo em que essas propostas foram feitas,
ainda D. João II receiava as consequencias do terrivel lance que
tentára, quasi conveiu em acceital-as. Apenas soube, porém, que as
comarcas, villas e fortalezas que mandára cobrar tinham sido entregues,
e que de Castella não havia a temer clamores importunos, mandou logo que
o caso se visse e determinasse por justiça. Assim se exprimem os dous
panegyristas do principe perfeito, Ruy de Pina e Garcia de Resende,
pobres homens cujo espirito cortezão nem sempre soube esconder a
tenebrosa astucia e a suprema perversão moral do heroe dos seus fastos.

A justiça fez-se vingança, e a execução significou sómente um assassinio
judicial, fria e solemnemente resolvido. Accusado por testemunhas
vis e por inimigos inexoraveis, julgado tumultuariamente por juizes
não seus pares, aos quaes a presença do rei coagia além d'isso o voto, o
amigo e conselheiro de D. Affonso V foi condemnado sem o ouvirem, e
entregou a vida ao cutello do algoz, no meio dos brados e doestos de uma
multidão sem piedade nem pudor, que de toda a parte corrêra frenetica
para assistir ao cruento espectaculo. N'esse mesmo dia (20 de junho de
1483), e depois de ter ficado exposto o cadaver por espaço de uma hora,
os conegos da sé de Evora sepultaram no mosteiro de S. Domingos os
restos do homem, que fôra por muito tempo talvez o arbitro do reino.

Á conjuração, por ventura chimerica, succedeu outra verdadeira. O
desgosto dos grandes, durante algum tempo sopeado pelo temor ou pela
esperança, convertêra-se em odio profundo. Decididos a vingarem a
morte do duque de Bragança, e a restabelecerem os fóros e immunidades da
nobreza, accordaram que o meio mais adequado aos seus intentos era
assassinarem o monarcha. O duque de Vizeu, o bispo de Evora, seu irmão
D. Fernando de Menezes, Fernão da Silveira, D. Gutterres Coutinho, D.
Alvaro e D. Pedro de Athaide, o conde de Penamacor e Pedro de
Albuquerque eram os cabeças da insurreição; o bispo de Evora, porém, é
que, como a aranha no centro da têa, urdia e combinava os planos. D'ahi
lhes proveiu a ruina, porque o incauto prelado não soube prever a
traição, e foi justamente essa falta, que destruiu todos os seus
calculos. Fiado na apparente amisade de Diogo Tinoco, cuja irmã
seduzira, revellou tudo a esse homem, não se lembrando de que lhe
dava assim ensejo de vingar offensas, que não podia ter esquecido; e o
aviltado cavalleiro preveniu logo Antão de Faria, camareiro do rei e seu
privado, e, encontrando-se depois com o proprio D. João II no convento
de S. Francisco em Setubal, relatou-lhe circumstanciadamente os
projectos dos conspiradores.

Agradecendo a Tinoco com dadivas e promessas o serviço que prestára, o
rei recommendou-lhe inviolavel segredo, e continuou, como se tudo
ignorasse, abalançando-se indefenso no meio dos conjurados, oppondo
dissimulação a dissimulação, e enganando com fingido affecto aquelles de
quem mais se temia. Era a calmaria que antecede a procella. No seio das
trevas o filho de D. Affonso V ia aperfeiçoando os planos de vingança,
e por isso aguardava sem impaciencia o dia propicio em que podesse
colher no fôjo os seus mortaes inimigos.

Este finalmente chegou. Depois de terem por vezes tentado em vão
assassinar o rei, os fidalgos assentaram esperal-o em Setubal, ao
desembarcar vindo de Alcacer, e realisarem então o seu intento. D. João
II, porém, que lhe presentia os movimentos, fez o caminho da Landeira
por terra, bem acompanhado pelos ginetes de Fernão Martins, e pelos
besteiros e espingardeiros da guarda; e chegando a Setubal no dia 22 de
agosto de 1484, mandou logo na manhã seguinte chamar o duque de Vizeu,
que pousava em Palmella. Resolvêra, emfim, tirar a mascara, e a explosão
devia ser tanto mais terrivel, quanto fôra duradoura e profunda a
necessidade de conservar latente, debaixo de superficie de gelo, o
ardor de odio intenso e concentrado.

Entrando o duque no palacio ao anoitecer, chamou-o el-rei ao aposento
que lhe servia de guarda-roupa, e ahi, accusando-o de traição, o matou
ás punhaladas, na presença de alguns cavalleiros, que para assistirem a
esse acto tinham sido convocados. Na manhã seguinte via-se sobre um
estrado, no centro da egreja matriz da villa, o cadaver do duque de
Vizeu, com o rosto descoberto e dez feridas de punhal. D'ahi a poucos
dias o bispo de Evora, preso na camara da rainha, morria envenenado no
castello de Palmella; D. Fernando de Menezes, D. Pedro de Athaide e
Pedro de Albuquerque eram degollados na praça publica; e D. Gutterres
Coutinho expirava ás mãos do carrasco no fundo de um calabouço. Emfim,
passados cinco annos, Fernão da Silveira, a quem a nobre dedicação
de um amigo salvára do patibulo, cahia assassinado em França por mandado
do rei de Portugal.

A negrura de semelhante proceder é evidente; e se as cousas da terra
podessem despertar o profundo somno dos mortos, os cadaveres d'esses
homens deveriam muitas vezes apparecer á consciencia de D. João II,
tornando ainda mais penosas as desgraças, que lhe enlutaram o coração
durante os restantes annos do seu curto reinado.



VIII

Primeira viagem de Vasco da Gama á India

1497 a 1499


Julgam profundos historiadores que os descobrimentos além do cabo
Bojador, posto que encetassem para o reino uma grande epocha de gloria e
prosperidade, foram talvez a causa capital da rapida e angustiosa
decadencia a que chegámos nos fins do seculo XVI. Entretanto não seremos
nós que condemnaremos esse espirito aventuroso e intrepido, que levou os
nossos marinheiros e soldados a practicarem tantos feitos
assombrosos de ousadia, de abnegação, de patriotismo. Das victorias que
alcançaram já nem existem tropheus, das nações que se prostraram ao seu
esforço indomavel são outros hoje os senhores, do respeito e temor em
que os tinha o mundo apenas resta a lembrança, e todavia a maravilhosa
narração das façanhas d'aquellas eras, das homericas batalhas de poucos
homens contra exercitos, das expedições e conquistas que ergueram uma
nação pequena e pobre ao fastigio da soberania e da opulencia, ainda nos
alvoroça o coração de enthusiasmo e amor patrio, não obstante as
preoccupações prosaicas e calculadoras do seculo em que vivemos.

O descobrimento do caminho maritimo para a India é, sobretudo, um
d'aquelles factos extraordinarios, de que o espirito mais
penetrante mal póde medir a extensão. Não fallando já dos paizes e
regiões incognitas que acrescentámos á communhão europea, do
aperfeiçoamento da navegação e do commercio, do novo e immenso mercado
que abrimos a todas as industrias, do ascendente da classe média que
eficazmente fomentámos, basta dizer-se que ás victorias dos portuguezes
na India deve talvez a Europa não ter succumbido ao jugo mahometano. Ao
passo que nós e os castelhanos nos preparávamos para dilatar os ambitos
do mundo conhecido, hastear por toda a parte a cruz, e estabelecer em
redor d'ella uma transformação social; ao passo que as outras nações
christãs, agitadas por muitas e diversas causas, se entretinham em
luctas feudaes de castello com castello, e de paiz com paiz; os
mussulmanos iam crescendo em poder, as suas dynastias radicavam-se
desde o Indostão até o Mediterraneo, os seus navios sulcavam todos os
mares, o monopolio do commercio asiatico constituia os povos em
vassallagem dos seus mercados, e os seus exercitos, animados pelo amor
da guerra e pelo fanatismo da crença, ameaçavam de nova invasão os
estados da christandade. Veneza, a rainha do Adriatico, ousava a custo
contrastar em parte a influencia de Constantinopla, mas esse obstaculo
depressa desappareceria se as conquistas dos portuguezes não viessem
produzir no mundo completa metamorphose mercantil e politica. Malaca e
Ormuz, os dous principaes emporios das producções indianas, abriram seus
portos sómente aos novos dominadores; as armadas turcas e as do Achem e
Jaoa, os exercitos de Cambaya e Cananor, as forças do Samorim, dos
reis de Dekan, do Hidalcão e do soldão do Egypto não conseguiram
arrancar das nossas mãos o imperio da Asia; e as nações mussulmanas,
perdido o principal elemento da sua força, foram-se desmembrando,
fundindo, esvaecendo, e eil-as as que restam, fracas e decrepitas,
alongando humildemente os olhos para o occidente, na esperança de que os
filhos do christianismo estendam um braço que ampare os representantes e
sectarios do propheta.

Foi essa a epocha da nossa gloria mais esplendida. Quem examinasse então
um mappa cosmographico, desde a linha que distingue a Europa e a Africa
até ao cabo da Boa Esperança, quasi não encontraria ilha, promontorio,
costa, golpho ou enseada, onde a fama do nome portuguez não
guardasse por si só a conquista; e montando o cabo veria tremular o
pendão das quinas nos pontos mais importantes do Oriente, e ainda nos
remotos archipelagos que depois se deviam chamar a Oceania. Antes d'essa
epocha, porém, houve uma lucta, que durou perto de um seculo, e que
votou ás paginas da historia universal e ao applauso da posteridade a
memoria d'esses homens valorosos, que alteraram os destinos do mundo em
proveito do christianismo, da civilisação e da politica. Os
descobrimentos de Gonçalves Zarco e Tristão Vaz, de Gil Annes, de Nuno
Tristão, de Gonçalo de Cintra, de Lançarote, de Gonçalo Velho, de
Antonio de Nolle, de João de Santarem, de Pedro d'Escobar, de Diogo da
Azambuja, de Diogo Cão, de Bartholomeu Dias e João Infante foram como
que os preliminares dos grandes commettimentos. D. Manuel, subindo
ao throno no anno de 1495, resolveu continuar a empreza de seus
antecessores, porfia magnanima que tantos sacrificios tinha já custado.
Ao infante D. Henrique haviam-se devido os primeiros trabalhos e
tentativas que prepararam o descobrimento da India; D. João II fundára
na Africa o imperio portuguez, e deixára ao seu successor abundantes
materiaes para o estabelecer na Asia; ao monarcha venturoso estava
destinada a missão de traduzir n'um facto estupendo este vasto projecto.

Vigorosa foi, comtudo, a resistencia que D. Manuel encontrou nos seus
conselheiros. Reprovavam estes o descobrimento como origem infallivel de
ruina, lembrando os riscos de mar e terra, o acanhamento do reino e
de seus recursos, a vastidão e difficuldade da conquista, e
propondo que a vida energica da metropole se applicasse exclusivamente a
explorar as possessões adquiridas, o que aliás era já difficil encargo
para um povo tão pouco numeroso. Mas nem duvidas nem suggestões abalaram
a vontade do monarcha, que, na febre do enthusiasmo que o incitava á
tentativa, como que antevia a aurora do triumpho. Encarregou, pois, de
executar a empreza a Vasco da Gama, filho do alcaide mór da villa de
Sines, Estevão da Gama, e, entregando-lhe em acto publico a bandeira,
determinou a partida.

Prestes a armada, que se compunha de duas naus, _S. Gabriel_ e _S.
Raphael_, da caravella _Berrio_, e de um navio de mantimentos,
embarcaram-se em Restello todos os que deviam ir na expedição, e que
seriam cento e sessenta homens entre marinheiros e soldados. Magestoso
espectaculo offereceram então aquellas praias. Era o dia 8 de julho de
1497. O sol esplendido banhava de luz o Tejo, as suas margens e a pobre
ermida da Senhora da Invocação de Belem, ermida que o infante D.
Henrique mandára construir para animar a devoção dos maritimos, e que
depois tinha de converter-se no grandioso templo dos Jeronymos. D'ahi
sahia uma procissão, guiada pelos freires da ordem de Christo, e seguida
de grande concurso de povo, que consternado tinha vindo despedir-se dos
audazes navegadores. O fito que attrahia a multidão provinha do enlevo
que excitam sempre as tentativas arrojadas, e esse sentimento achava-se
ahi concentrado como no seu grande fóco, ancioso pelas contingencias da
viagem, afflicto pela probabilidade das catastrophes, engrandecido pela
communicação rapida, electrica, fascinadora, irresistivel de tantos
espectadores. Tristes estavam todos, excepto os que partiam, porque a
esses animava o fervor e alvoroço da empreza, não obstante irem cruzar
mares nunca navegados, dobrar promontorios, evitar restingas, resistir a
tempestades e correntes, domar barbaros de Africa, combater os mouros,
procurar, emfim, o desconhecido com todos os seus encantos e esperanças,
mas com todos os seus assombros e perigos.

Desfraldadas as velas partiram-se de foz em fóra, aportaram a Cabo
Verde, entraram na bahia de Sancta Helena, e depois de montarem o cabo
da Boa Esperança com menos tormentas e riscos do que os marinheiros
temiam, e de passarem pela aguada de S. Braz, pela costa do Natal,
pelo rio dos Bons Signaes, chegaram, no fim de quasi oito mezes de
viagem, a Moçambique, d'onde logo desaferraram algumas barcas, ahi
chamadas zambucos, que vieram abicar ás naus. Guarneciam-n'as muitos
indigenas, e entre elles alguns brancos que pelos trajos e linguagem se
conheceu serem mouros. Por um d'elles, natural de Fez, mandou Vasco da
Gama ao xeque d'aquella terra, dizendo que se dirigia á India, e que
para esse fim lhe pedia um piloto. Prometteu o xeque satisfazer o pedido
e veiu visitar os navegantes, porque, a despeito das informações
obtidas, cuidava ainda que seriam turcos; conhecendo, porém, que eram
christãos, determinou destruil-os, e quando, desfeitos os varios ardis
que para a traição empregára, se viu constrangido a entregar um
piloto, instruiu-o para que em vez de guiar os navios procurasse
perdel-os. A fortuna, todavia, que no meio dos seus caprichos se inclina
a proteger os que muito ousam, salvou os portuguezes, que no dia 7 de
abril de 1498 chegaram a Mombaça, cidade importante e para esses tempos
civilisada, onde tambem escaparam a graves perigos. Em Melinde, em fim,
o rei, não obstante o antagonismo de crenças e de raça, entendeu que
devia soccorrer os estrangeiros, e com esse intuito acolheu-os sem
perfidia e deu-lhes um habil piloto que os levasse á India.

Vinte e tres dias depois de terem partido de Melinde suppozeram os
marinheiros ver terra. Já por vezes, em dias anteriores, se lhes tinha
affigurado o mesmo, e haviam estremecido de contentamento e esperança;
mas o tempo mostrára sempre que taes imagens eram apenas
hallucinação, e a alegria se lhes transformára em profunda tristeza,
porque cousa alguma abate mais os animos do que essas alternativas de
illusões e desenganos, que são como os sarcasmos do destino.
Desalentados, pois, e fitos sombriamente os olhos no horisonte, os
mesmos homens, que com tão escassos recursos, e estando ainda na
infancia a arte nautica, se haviam affoutado aos abysmos com
desassombrada resolução, trepidavam agora, e quasi que sentiam as
angustias do desespero. D'esta vez, porém, apresentava-se a realidade
incontestavel, e não tardou muito que distinctamente se conhecesse a
proximidade de um continente vastissimo. Appareciam afinal essas praias
da India, que eram já para os atrevidos navegadores o sonho, o
enlevo, a paixão que a todos avassallava, paixão que fôra crescendo
com os obstaculos até constituir a idéa fixa, o pensamento constante
d'aquellas almas energicas.

Chegada a noite tornou-se necessario virar de bordo, porque fôra
perigoso no meio das trevas entestar com a terra, mas no dia seguinte,
ao romper da manhã, corria a armada ao longo da costa com vento
bonançoso. Uma cadeia de montanhas, tendo por corôa as nuvens,
sobresahia em distancia; por entre florestas de palmeiras divisavam-se
soberbos edificios; o Oriente, emfim, o recesso dos mysterios, a região
dos prodigios, cujas fabulas nebulosas eram ainda inferiores ás
maravilhas que já se presentiam, patenteava-se com toda a magestade da
sua vegetação opulenta. Avisinhavam-se n'aquella costa tres povoações:
Calecut, Capocate e Pandarane. Os marinheiros, tomando a segunda
pela primeira, por engano de Canacá, o piloto indiano, dirigiram as naus
a Capocate, pobre aldeia de pescadores; mas, sabendo ahi qual das
povoações era Calecut, foram lançar ferro na enseada da cidade.

Considerava-se n'esse tempo Calecut uma das mais importantes escalas
commerciaes da India, e era sem duvida a mais poderosa de todas as
terras do Malabar. Viam-se girar no seu commercio os diamantes e pedras
preciosas das ricas minas de Narsinga e do Pegú, as perolas de Kalckar,
o oiro de Sumatra, o ambar das Maldivas, o marfim, a porcelana, as sedas
e damascos da China, o sandalo de Timor, o algodão, o anil, o assucar,
as especiarias mais apreciadas, tudo, emfim, quanto póde contribuir para
o uso e delicias da vida. Capital do reino do mesmo nome,
constituia Calecut a séde do sacerdocio e do imperio; tinha, além de
innumeraveis casas feitas de madeira e cobertas de palma, muitos
palacios, templos, arcos e torres soberbas; e estendia-se por largo
espaço, contendo, segundo o computo dos naturaes, cerca de duzentos mil
habitantes. Fundada com pouco poder, havia ganho dentro de breve tempo
aquelle grande esplendor, e o seu rei, a que chamavam o Samorim, era o
mais respeitado e temido entre os monarchas do Indostão.

Annunciada a vinda dos portuguezes, recebeu-os o principe com affago,
deu audiencia a Vasco da Gama, e declarou acceitar a alliança do rei de
Portugal, promettendo que na frota lhe enviaria embaixadores. Os mouros,
porém, costumados de longo tempo aos lucros commerciaes d'aquella
terra riquissima, e receiando que a influencia dos portuguezes não lhes
consentisse de futuro nem protecção, nem accordo, nem tregoas, nem
misericordia, começaram a urdir traições, tentando persuadir o Samorim
de que os navegantes eram piratas miseraveis que levariam o terror do
seu nome aos confins do imperio, como já em Moçambique e Mombaça tinham
deixado vestigios de crueldade e perfidia; e de que ainda quando fossem
subditos de monarcha poderoso, eram decerto homens orgulhosos e ávidos,
que não pretendiam, sob as apparencias de paz e amisade, senão a
conquista e posse exclusiva do solo descoberto. Convenceu-se facilmente
o principe indiano, e desde logo se lhe transformou a boa vontade,
dissimulando apenas o seu odio para encontrar ensejo favoravel de
colher ás mãos os estrangeiros.

Debellados, todavia, os tramas pela intrepidez e astucia de Vasco da
Gama, levantaram ancora as naus, e depois de quasi tres mezes de demora
n'esse paiz inimigo, seguiram viagem para Portugal, tendo que vencer de
novo graves perigos, e perdendo tantos a vida com as febres, que dos
cento e sessenta homens que partiram poucos mais de sessenta regressaram
á patria.

Em Portugal a noticia do descobrimento da India encheu de enthusiasmo
todo o reino. Estavam depostos os temores, patente o caminho, encetada,
em summa, a nova cruzada de religião, de guerra, de industria e de
gloria, que ia devassar as barreiras da antiga civilisação oriental.
Justificára-se o firme proposito que vencêra as apprehensões
anteriores, e D. Manuel, depois de premiar Vasco da Gama e os famosos
companheiros, acrescentou aos titulos do seu dictado os de senhor da
conquista, navegação e commercio da Ethiopia, Arabia, Persia e India.

O soberbo mosteiro dos Jeronymos foi o padrão erguido á grandeza do
emprehendimento, á fortuna do resultado, ao favor da providencia; a
torre de S. Vicente de Belem, edificada quasi no mesmo periodo,
tornou-se a testemunha gloriosa do immenso poder que depois alcançámos,
e que ao passo que avassallava o imperio da Asia, vencia na Berberia as
bellicosas turbas agarenas, cravava marcos de posse em quasi tres mil
legoas da costa oriental da Africa, e dava á Europa a primazia entre as
outras partes do mundo, abrindo caminho á grande revolução
intellectual, moral, politica, mercantil e guerreira, que tornou o
seculo XVI talvez a epocha mais maravilhosa da historia da civilisação.



IX

Descobrimento do Brazil

1500


No anno seguinte ao da volta de Vasco da Gama encarregou D. Manuel a
Pedro Alvares Cabral, senhor de Belmonte e alcaide mór de Azurara, o
mando de uma armada de treze velas, que devia na sua derrota correr a
costa de Sofala, visitar o rei de Melinde, chegar a Calecut, e proseguir
na empreza, a um tempo mercantil e guerreira, iniciada com tanta fortuna
pelo primeiro descobridor. Era a frota magnifica e poderosa, e
tinha como capitães entre outros, além de Pedro Alvares Cabral, Nicolau
Coelho, que fôra na anterior expedição, e Bartholomeu Dias, o primeiro
que ousára dobrar o cabo da Boa Esperança, e que no seio das suas
tormentas ia encontrar d'esta vez o perpetuo somno da morte.

Preparado tudo para a partida, levantaram-se ancoras, desfraldaram-se
velas, e cortando as aguas sahiu a armada de mar em fóra no dia 9 de
março, e seguiu viagem próspera até ás alturas de Cabo Verde, onde um
temporal desfeito de tal modo agitou os mares, que os navios, envolvidos
entre serras de ondas, ora eram alçados no cume das vagas como se ellas
os quizessem expellir de si, ora quasi se submergiam na concavidade do
abysmo. Acalmada a procella, juntou-se toda a frota, á excepção de
um navio que depois arribou a Lisboa, e continuaram os doze restantes
pelo oceano, affastando-se das costas d'Africa, ou para evitarem as
calmarias de Guiné, como já o practicára Vasco da Gama, ou porque para o
proseguimento de tal rumo influisse de algum modo o espirito aventuroso
e obstinado d'esses homens energicos, que tudo arrostavam e a tudo se
atreviam com o ardor que só deriva do verdadeiro enthusiasmo.

As plantas maritimas encontradas no dia 21 de abril, as aves
redemoinhando nos ares ou pousando sobre as aguas, um halito perfumado
impregnando a atmosphera, annunciaram aos navegantes a proximidade de
regiões desconhecidas; e por isso, na manhã seguinte, apinhavam-se todos
nos chapiteus da proa, fixa a vista no extremo dos mares, onde já
se divisava como que um ponto escuro que gradualmente ia crescendo.
Afinal a voz do gageiro da nau capitania bradou no cesto da
gavia--_terra!_--, e durante minutos só esse grito de contentamento
indisivel resoou em todos os navios. A ligeira nevoa avultára no
horisonte, a frota surdia sempre ávante, e por fim já distinctamente se
observava um monte de fórma arredondada, largas serranias para o sul, e
ao longe uma extensa planicie, vestida de sombrios arvoredos. Aproaram
então as naus á terra, que pela ignorancia d'aquellas eras julgaram os
pilotos que só podia ser uma grande ilha, como alguma dos Açores ou das
Antilhas, ancoraram perto da costa, e na manhã seguinte sulcavam as
aguas em direcção á praia.

Grupos de homens, de mulheres e de creanças appareciam por entre as
arvores, e ora se adiantavam a medo ora se retrahiam, testemunhando nos
gestos o espanto que lhes causavam as embarcações, as velas, as vergas,
os mastros, cousas como que animadas e sobrenaturaes, que pareciam
obedecer ao impulso de uma vontade unica. Não tinha essa gente os
caracteres phisicos das raças africanas ou europeas, e apenas se
semelhava com as da India na côr baça e no cabello comprido e corredio.
Os corpos eram altos e robustos, as feições regulares, a physionomia
franca e benevola; e apesar das armas que traziam mostravam-se de indole
pacifica, ditosos com seus costumes singelos, e satisfeitos com o que o
solo espontaneamente lhes offerecia.

Não podendo desembarcar ahi, porque o mar quebrava então muito na
costa, seguiram os portuguezes na volta do norte, buscando á feição do
vento algum porto seguro onde surgissem; e de feito, tendo navegado
cerca de dez leguas, encontraram no dia 24 de abril uma enseada, onde
logo entraram os navios menores, ficando ao principio as naus fóra dos
recifes, por não se conhecer se havia dentro sufficiente fundo.
Entretanto alguns marinheiros aproximaram-se em bateis á praia, e
conseguiram tomar de sobresalto dous indigenas, que andavam n'uma
jangada ou almadia, formada a seu modo de tres traves unidas, e que nem
tentaram resistir, não obstante trazer um d'elles arco e frechas, e
poderem ser facilmente soccorridos. Levados á presença de Pedro Alvares
Cabral, procurou este de alguma fórma interrogal-os, deu-lhes o que
indicaram desejar, enviou-os no dia seguinte para terra afim de
evitar suspeitas ou receios, e estabeleceu assim as primeiras relações
com os habitantes d'essa parte do novo mundo que o acaso nos sujeitava,
como o acaso entregára a Colombo as costas occidentaes da America.

Não tentaremos descrever as varias scenas de curiosidade e de innocencia
por parte dos indigenas, de contentamento, de enthusiasmo e de nobreza
por parte dos descobridores, que tiveram como theatro essas praias
emquanto ahi se demorou a armada. O quadro que apresentassemos seria
apenas um esboço desenhado a largos traços, que mal conseguiria
trasladar a narração synchrona de Pero Vaz de Caminha, onde miudamente
se representam os factos e circumstancias, e como que resurgem os
proprios protogonistas. Cingir-nos-hemos, pois, a dizer que, tendo
o capitão mandado reconhecer o paiz, e sabendo que era fertil, retalhado
de rios caudaes, coberto de arvores fructiferas, e povoado por gentio
docil, com o qual se mostrava facil a entrada, resolveu tomar
solemnemente posse d'essa região, oceano de soberbas e virginaes
florestas em que parecia reproduzir-se o eden dos livros sanctos.

Designado para aquelle acto o primeiro dia de maio, assistiram á missa
em terra os navegantes, ataviados das melhores telas e de lusidas armas;
e debaixo d'aquelle céo puro, n'aquella atmosphera balsamica, perante
aquelles horisontes explendidos, um profundo sentimento de confiança em
Deus devia animar esses homens ajoelhados em frente do mesmo altar,
esquecidos dos perigos e fadigas, e enlaçados pelas recordações, pelas
crenças, pelos trabalhos e pelo pensamento de gloria, que mais ou
menos se erguia em todas aquellas almas de bronze. Em seguida, no meio
do resoar das charamellas e tambores, das acclamações da marinhagem e
dos gritos festivos dos indigenas, levantou-se perto da praia uma grande
cruz, feita com madeira d'aquellas selvas, padrão glorioso da nobre
empreza, que nenhum acto de crueldade deshonrára.

Não quiz Pedro Alvares Cabral demorar noticia tão extraordinaria, e
expediu Gaspar de Lemos para a transmittir a el-rei, partindo elle
proprio d'aquellas praias no dia 3 de maio, e deixando em terra dous
degredados, vivo testemunho de posse incontestada. A fortuna, porém, que
até então lhe fôra propicia, depressa o desamparou. Assaltada a frota
por uma tempestade horrorosa proximo ao cabo da Boa Esperança,
abysmaram-se no oceano, com a gente que levavam, quatro dos onze navios
que se dirigiam á India.

Passados mezes Gaspar de Lemos transpõe de novo a foz do Tejo, e vem
annunciar a Lisboa, ao reino, ao mundo o novo descobrimento. A febre do
enthusiasmo exaltou então todos os animos, dando-lhes a energia e
confiança que até essa conjunctura faltára a muitos. O pendão das
quinas, que tremulava na Europa e na Africa, nas ilhas do Atlantico e
nos mares da India, ia alongar-se pelo occidente, e Portugal podia dizer
com legitimo orgulho que tomára o primeiro logar entre as nações.

Hoje o Brazil é vastissimo imperio, vivido, esperançoso e livre.
Emancipado da metropole não só pelos successos politicos, que se
realisaram no primeiro quartel do seculo em que vivemos, mas ainda
pela logica natural do progresso das sociedades, está destinado, pela
sua posição geographica, pela excellencia do clima, pelas riquezas que
possue e pelo patriotismo dos seus habitantes, a desempenhar um grande
papel na historia do novo mundo. Possa o povo infante, filho e em tudo
descendente de uma nação pequena mas nobilissima, viver e prosperar por
muitos seculos, dando exemplos de sabedoria e de humanidade ás velhas
monarchias da Europa, que se julgam mais civilisadas, e que só têm mais
poder ou fortuna.



X

Matança nos christãos novos de Lisboa

1506


Até o principio do seculo XVI os hebreus portuguezes eram considerados
como nação á parte, com magistrados, leis, usos e até bairros separados;
mas á força de intelligencia, de estudo, de actividade, de astucia, de
perseverança e de união, e a despeito das leis mais ou menos oppressivas
a que sempre estiveram sujeitos, haviam conquistado no reino
irresistivel preponderancia. Essa preponderancia, de que, como é
natural, frequentemente abusavam, desafiára o rancor das multidões, que
não podiam vêr sem inveja homens desamparados de Deus possuirem grandes
riquezas, e exercerem por toda a parte uma especie de senhorio. Depois
de executada a fatal lei, que expulsou de Portugal os judeus não
convertidos, o furor popular conservára-se por algum tempo latente. Era
o vulcão que socegava depois de violenta erupção, mas cuja chamma
inextinguivel se escondia debaixo das cinzas, para se alçar de subito
com mais força n'uma explosão tremenda. Aquelles, portanto, que,
vencidos e não convencidos, enervados pelo medo, sedentos de ouro,
detidos pela execução de algum grande plano, ou presos pelos laços do
amor patrio e das affeições de familia, tinham trahido as suas
opiniões, e renegado a crença de seus avós sómente para se
conservarem na terra natal, não alcançaram em paga de tantos sacrificios
senão uma tranquilidade equivoca e pouco duradoura. Detestados pelos
christãos posto que na apparencia membros da mesma egreja, despresados
como apostatas pelos instigadores da sua apostasia, envilecidos a seus
proprios olhos pela vergonha de uma falsa conversão, tragando
humilhações e aleives, sujeitando-se a toda a especie de gravames,
receiando a cada hora perder a fortuna e a vida, e como que suffocados
com a mascara da hypocrisia, é provavel que esses homens acolhessem na
sua alma, como direito imprescriptivel, um odio profundo contra os seus
tyrannos, e que não perdessem occasião alguma de o satisfazer, ou por
via da usura, vicio aliás commum da raça hebraica, ou até por meios
violentos, quando podessem ser empregados sem imminente risco. Essas
vinganças, porém, exacerbavam ainda a irritação dos animos, e tudo
denotava que a cólera popular, agitada pelo fanatismo, ia em breve
rebentar impetuosa e feroz.

Era na primavera de 1506. A peste assolava Lisboa, tornando ainda mais
dura a triste condição dos seus habitantes, muitos dos quaes, no meio de
sobresaltos, de desalentos e de agonias, já a custo resistiam ao
flagello da fome. Faziam-se preces publicas, e no dia 19 de abril,
domingo de Paschoela, ao celebrarem-se os officios divinos na egreja de
S. Domingos houve quem visse ou suppozesse vêr uma luz extraordinaria,
que illuminava a imagem do Redemptor na capella chamada de Jesus.
Realisára-se o milagre em dias anteriores; muitos dos circumstantes,
porém, mostravam-se incredulos, e entre elles um christão novo, ao qual
escaparam sobre o caso algumas palavras imprudentes. Tanto bastou para
alborotar o povo, porque á devoção associára-se o terror; e o desditoso
blasphemo foi arrojado para o adro, onde o assassinaram e queimaram, ao
passo que dous frades dominicanos, erguendo nas mãos impias um
crucifixo, clamavam contra a heresia. Accendeu-se mais com este estimulo
a furia da plebe, e crescendo o numero dos amotinados com a marinhagem
de muitas naus estrangeiras ancoradas no porto, cresceu em todos a
ousadia. Os conversos, que andavam desprevenidos pelas ruas, eram mortos
ou mal feridos, e arrastados indistinctamente para as fogueiras, que se
haviam preparado no Rocio e na Ribeira. A côrte e a nobreza estavam fóra
da cidade, e os poucos officiaes publicos que não se tinham retirado e
que tentaram apasiguar a revolta, apedrejados e perseguidos, só
escaparam com a fuga ao impeto irresistivel das turbas.

Com as trevas aggravou-se a desordem. Na segunda feira as scenas da
vespera repetiram-se com maior crueza. Já não apparecia nas ruas nenhum
christão novo, mas aquelle tropel de canibaes não estava satisfeito de
matança. Foram acommettidas as casas suspeitas, das quaes, depois de
saquearem tudo, traziam para fóra os habitantes, e vivos ou mortos os
lançavam nas fogueiras. Mulheres, velhos e creanças eram postos a
tormento para confessarem onde havia que roubar; os templos, os altares,
as imagens dos sanctos, os sacrarios não livravam da morte os que á
sombra d'elles se acolhiam; e muitos christãos velhos, sacrificados á
cubiça ou á vingança, cahiam promiscuamente com os neophytos ás mãos dos
assassinos.

A noite veiu cobrir com o seu veu aquelle longo drama de exterminio, que
se renovou no dia seguinte, porém mais frouxamente, porque já faltavam
as victimas. O numero dos mortos n'esses tres dias orçava por dous mil;
um silencio sepulchral abrangia a vasta área da cidade; e apenas a
intervallos o rugido já cançado dos algozes reboava por entre os gritos
afflictivos das victimas. Emfim, pela tarde, o regedor da justiça, Ayres
da Silva, e o governador da casa do civel, D. Alvaro de Castro, entraram
em Lisboa acompanhados de guardas; os estrangeiros acolheram-se aos
navios; e o socego restabeleceu-se.

D. Manuel estava em Aviz quando lhe deram a execravel noticia. Indignado
pelas atrocidades commettidas, mandou logo o prior do Crato e o barão de
Alvito com largos poderes para inquirirem dos crimes e castigarem os
culpados. Presos os mais notaveis e julgados summariamente, foram muitos
condemnados á morte, e entre elles os dous frades, que haviam promovido
e patrocinado aquella festa de sangue. As auctoridades, que por
negligencia ou temor não procuraram conter os revoltosos, e os
habitantes da cidade, que de algum modo intervieram no motim, dando-lhe
favor e ajuda, tiveram por pena o confisco. Finalmente um decreto,
expedido a 22 de maio, extinguiu a casa dos vinte e quatro, e condemnou
Lisboa a perder grande parte dos antigos privilegios. Debalde a camara
supplicou a el-rei misericordia para a capital. D. Manuel respondeu
que era preciso dar ao mundo aquelle exemplo de rigor, por um lado
contra a fereza dos maus, por outro contra a pusillanimidade dos que não
o eram.



XI

Conquista de Goa

1510


«A cidade de Goa, diz Barros, está situada em a terra a que os
portuguezes chamam Canará, em uma ilha por nome Tiçuary, que quer dizer
trinta aldêas, porque tantas havia n'ella quando os mouros a
conquistaram, e tantas lhes pagavam direitos da novidade que colhiam.»
Os geographos modernos consideram-n'a a mais importante possessão das
que ainda temos na Asia, e todavia apenas conserva um pallido
reflexo da grandeza antiga. Ruinas sobre ruinas, marcadas com o cunho
solemne da historia, e um resto de actividade commercial que os
desvarios dos governos não têm podido destruir, eis quasi só o que
existe da que foi capital das Indias, quando ensinámos aos demais povos
da Europa o caminho do poderio e da gloria.

Era Goa, ao tempo em que os portuguezes a commetteram, excellente ponto
maritimo, e a principal entrada dos reinos de Narsinga e Dekan. A
segurança do porto, a brandura do clima, a fertilidade do territorio
adjacente, e a altura das muralhas, assentadas á beira do rio,
tornavam-n'a um dos mais ricos emporios do commercio asiatico, e talvez
o logar mais adequado para se estabelecer a metropole das nossas
conquistas no Oriente. Accrescia ter sido, havia pouco, avassallada
pelos mouros, e não estarem os indigenas ainda de todo submissos ao jugo
dos vencedores.

Com estas circumstancias é natural que Affonso de Albuquerque, logo que
tomou posse do governo da India, resolvesse no seu animo apoderar-se de
Goa; outros cuidados, porém, e por ventura a consciencia das poucas
forças de que dispunha, far-lhe-hiam espaçar a tentativa para occasião
favoravel. Esta em breve se offereceu, e accommodada maravilhosamente
aos seus designios. Partido de Cochim com vinte e tres velas e pouco
mais de mil combatentes, e encaminhando-se a destruir a grossa armada
que o sultão do Cairo apparelhava em Suez, encontrou-se proximo a Onor
com Timoja, antigo corsario d'aquella costa e já então nosso alliado,
que o dissuadiu de expedição tão longinqua, quando tinha perto a
ilha e cidade de Goa, que n'aquella conjunctura podia invadir com
vantagem, por estar o Hidalcão muito desviado d'esses sitios, e detido a
conter o fogo da revolta, que lavrava nos seus subditos, e ameaçava
devorar-lhe o throno. Aproveitando um aviso tão conforme aos seus
desejos, Albuquerque não quiz, comtudo, decidir por si só a
opportunidade da empreza, ou porque receiasse a má vontade de alguns dos
seus companheiros, ou por outros quaesquer motivos ignorados hoje; e
convocando a conselho os principaes capitães, ahi assentou com elles o
dirigirem-se a Goa, onde de feito surgiu a frota no dia 27 de fevereiro
de 1510.

O resultado foi feliz como o previra Timoja. Tanto que os habitantes e
governadores da cidade viram aquella floresta de navios ancorar no
seu porto, prepararam-se para a defensa não obstante o sobresalto do
nome portuguez; mas a audacia com que os invasores arremettiam ás
muralhas, ou pelejavam no campo peito a peito, depressa os desanimou,
agigantando-se-lhes o perigo á força de o temerem. Era gente
collecticia, a maior parte sem aquelle despreso da vida que nasce do
exercicio da guerra, e por isso não admira que logo aos primeiros
revezes desesperassem da victoria. Resolveram, pois, capitular com o
partido das vidas e fazendas, e propozeram n'este sentido as condições
da entrega. Incitado pelos generosos impulsos da sua alma, Affonso de
Albuquerque accedeu á proposta, querendo antes recusar aos seus soldados
o promettido despojo do que protrahir inutilmente os horrores da guerra;
e no dia seguinte entrou em Goa, no meio das acclamações festivas
dos indigenas, que lhe entregaram as chaves da cidade, como homens que
já não se julgavam inimigos, mas só vassallos do rei de Portugal.

Entretanto o conservar este dominio não era cousa tão facil como tinha
sido adquiril-o. Os indios, naturalmente pacificos e já de certo modo
affeitos ao despotismo estranho, contentaram-se quasi todos com a
segurança e amparo que lhes garantiu o vencedor; mas os mouros, nossos
implacaveis adversarios por odios de crença e de raça e por emulação de
conquista, conspiraram desde logo contra o poder das quinas com a
actividade incançavel, com a perseverança e talento de quem não attenta
nos obstaculos senão para completamente os vencer. Por outro lado o
Hidalcão, apenas soube a fatal nova, celebrou pazes com muitos reis
seus inimigos, os quaes determinaram logo auxilial-o, mandou tropas
numerosas a fim de reconquistar Goa a todo o custo, e elle proprio se
preparou para as seguir, resolvido a dar aos intrusos uma pesada
demonstração de que pagava com usura as offensas recebidas.

Ao principio resistiram os portuguezes com alguma vantagem, repellindo
constantemente os successivos assaltos, e fazendo grande estrago no
exercito dos mouros; mas quando chegou o Hidalcão com sessenta mil
soldados, e entre elles cinco mil cavalleiros, conheceram os mais
valentes como a situação era impossivel, e instaram com Albuquerque para
que, abandonada por em quanto a empreza, tentasse a fortuna por outro
meio, temerario muito embora, mas não de tal sorte imprudente, que
o resultado só podesse ser funesto. De mau grado annuiu a isto o animo
de ferro do heroe da India; faltando-lhe, porém, os soccorros que
mandára vir de Cochim, vendo-se rodeado de traições, e conhecendo que os
cercadores pretendiam queimar-lhe as naus, unico refugio com que contava
no caso de extremo perigo, mandou embarcar a gente e recolheu-se á frota
por entre os tiros dos inimigos, que, ao retirarem-se os portuguezes, os
saltearam de improviso, furiosos pela inopinada resolução, que lhes
frustrava, acaso para sempre, os planos de vingança.

Seguiu-se durante alguns mezes um combate incessante e terrivel, cujas
diversas phases deixaremos de memorar por não valerem para o nosso
principal intuito. Baste saber-se que nos principios de agosto
sahiu a frota da barra de Goa, e que aos 22 de novembro ahi surgiu outra
vez, trazendo cerca de dous mil homens entre portuguezes e malabares.

Com esta gente determinou Affonso de Albuquerque rehaver Goa ou acabar
na contenda. Reconhecendo, todavia, a insufficiencia dos seus recursos
militares para tomar á escala vista uma cidade tão fortificada e
guarnecida de defensores, meditou n'um ardil, que equilibrasse até certo
ponto a desegualdade de forças. O engenho natural e a experiencia da
guerra depressa lh'o suggeriram; e o logar tenente de D. Manuel, que via
realisarem-se uns apoz outros quasi todos os seus planos, contou de
antemão com a victoria, não esquecendo, todavia, nem as mais leves
precauções para o bom exito do commettimento. Era isto, era a
audacia nos projectos junta á prudencia nas combinações que tornavam
invencivel o insigne capitão. Quanto, pois, o systema offensivo dos
assedios em taes casos recommendava, quanto os petrechos e provimentos
de que dispunha podiam subministrar, tudo foi por elle empregado para
que a tentativa, que parecia desatino, tivesse por termo a desaffronta e
a gloria.

No entanto os soldados, convictos do proprio esforço, pediam com
enthusiasmo o combate. Não tardou elle muito. Fixado para o assalto o
dia 25, e reunidos na vespera os capitães da armada, decidiu Albuquerque
que se investisse a cidade pelo lado da ribeira, em quanto alguns bateis
com gente e artilheria simulavam o ataque por differentes partes, e
distrahiam d'esse modo a attenção dos sitiados. A empreza assustou
os nossos, não por si, mas pelo general que declarou querer expôr-se ao
balanço da aventura. Supplicaram-lhe, por isso, que deixasse a elles sós
o risco, e aguardasse o resultado, para que, se cahissem, houvesse quem
os vingasse, e não se perdesse de todo o que se possuia na India.
Resistindo, porém, Albuquerque ás reiteradas instancias, e
conhecendo-lhe todos o caracter inflexivel, prepararam-se para aquelle
feito, que já então seria indecoroso deixar de levar a cabo.

A fortuna favoreceu mais uma vez a audacia dos conquistadores. Os
mouros, ao sentirem o rumor dos bateis que vogavam ao longo da praia,
correram á frontaria da cidade, suppondo que por alli queriam os
cercadores tomar terra; e só reconheceram o engano, de que já não era
possivel resguardarem-se, quando, ao romper d'alva, ouviram o som
dos instrumentos bellicos na ribeira e pela costa acima. Entretanto não
desanimaram com isto, mas comparando o seu numero com o diminuto dos
sitiadores, e a vantajosa posição com a de quem, apesar de tudo, só
debaixo dos pés os poderia investir, offereceram resistencia
desesperada, e tanto mais terrivel, quanto o rancor entre os dous
exercitos se accumulára por largos dias sem poder resfolegar. Por outra
parte os portuguezes, trepando pelas tranqueiras, não obstante choverem
sobre elles milhares de tiros e arremeços, pelejando braço a braço com
os cercados, luctando e rolando de pedra em pedra para de novo subirem,
e cada vez com mais denodo, conseguiram a final arrombar uma das portas,
por onde se arrojaram destemidos, como homens aos quaes a febre dos
combates exaltára até o delirio.

Despedaçado o dique, começou na apertada senda um fluxo e refluxo dos
dous bandos contendores, combate indeciso e accerrimo que apenas durou
instantes. Era denso o enxame dos que vedavam a entrada, mas aquelles
mesmos, que ao principio tinham mostrado impetuoso esforço, tomaram-se
de repentino susto ao experimentarem de perto a tempera das espadas
inimigas, e desamparando tumultuariamente os postos, acolheram-se ao
interior da cidade, onde os invasores, cegos de ira, se entranharam apoz
elles. Então teve logar nas ruas e praças de Goa a maior força da
refrega, porque os mouros eram dez vezes mais numerosos, e pelejavam
enraivecidos por terem cedido o passo a tão poucos; mas isto não impediu
que os soldados de Albuquerque, soccorridos a cada instante pelos
companheiros que chegavam, constrangessem, emfim, os defensores da
cidade a deixal-a para sempre.

Se os mouros levavam, fugindo, perda e desar, a victoria não sahira
incruenta aos portuguezes; poucos havia que não estivessem feridos, e
Albuquerque, abraçando um d'elles, exclamou: «Filhos, que não sei que
vos faça senão que romperei as vestiduras diante de el-rei, porque vos
faça mercê, que vos honrastes a vós e a mim.» Assim sabia o varão
extraordinario, que a providencia parecia ter creado para perpetuar nas
nossas mãos o imperio da Asia, adquirir a affeição dos seus soldados,
aos quaes com o exemplo infundia esforço, com as revelações luminosas do
genio uma confiança sem limites, com a severidade talvez excessiva
o respeito e a obediencia.

Albuquerque, porém, não era sómente guerreiro. O homem que fundou e
firmou o imperio portuguez do Oriente, subjugando Ormuz, Goa e Malaca;
que planeou a ruina completa do poder mussulmano com o desviar o curso
do Nilo e destruir a casa de Meca; que deixou, emfim, tal memoria entre
os vencidos, que elles vinham depois diante do seu tumulo invocal-o,
pedindo-lhe justiça, era uma d'essas intelligencias eminentes, que
abraçam por inspirações subitas e fecundas todos os ramos do saber
humano; era um desses nobres espiritos, que, perseguidos pela
incredulidade, pela inveja, pelo terror, pelo odio, por todas as paixões
mesquinhas dos que os não podem comprehender, conseguem, todavia,
elevar-se radiantes acima de tudo quanto os cérca. Profundo
conhecedor das boas doctrinas politicas não quiz confiar á sorte das
batalhas o emprehendimento de novas conquistas antes de assentar o
dominio de Goa em bases seguras e duradouras, começando assim a realisar
o programma pacificador, que devia pôr magestoso remate á nossa grandeza
na Asia. Admittiu, pois, vassallagem aos indigenas; prometteu segurança
e protecção aos mercadores estrangeiros; recebeu embaixadas e homenagens
da maior parte dos soberanos indiaticos; mandou cunhar moeda em nome de
D. Manuel; melhorou e refez as fortificações; promoveu com dadivas e
promessas casamentos entre os portuguezes e as mulheres da ilha; dirigiu
de tal modo as cousas que dentro de pouco tempo esta povoação
importantissima parecia que desde muitos annos estava sujeita ao
imperio portuguez; e só depois de lançar á terra essas sementes de
grandeza e de prosperidade é que continuou a cadeia de feitos de armas,
que lhe mereceu dos adversarios o nome de leão dos mares, e que o eleva,
no conceito dos historiadores, com Cesar e Bonaparte, á altura d'esses
gigantes de acção, a que chamâmos heroes.



XII

Defensa de Mazagão

1562


Portugal, chegado ao fastigio do poder no reinado de D. Manuel, não
podia escapar ás leis da humanidade e ás vicissitudes dos grandes
imperios. A seiva da arvore social exhauria-se no bracejar immoderado, e
nessa lucta temeraria contra nações poderosas e soberanos traiçoeiros,
contra linguas, costumes, interesses, religiões e preconceitos
diversissimos, o que admira, attenta a nossa pequenez e a extensão
illimitada das conquistas, é que a estrella das nossas victorias não
declinasse mais depressa do zenith para o occaso. Não foi, todavia, sem
gloria essa mesma decadencia, porque os poucos portuguezes, que
dispersos pelo mundo defendiam as colonias, animosos na desgraça como na
fortuna, só as cederam depois de porfiada lucta, e diante de adversarios
contra os quaes não vale audacia nem esforço; acabando de se gastar mais
por fomes de assedios que por armas de peleja, e buscando honroso tumulo
nos rotos pannos de muros das desmanteladas fortalezas.

Mas não é da prolongada agonia do imperio portuguez na Asia e na Africa,
que por ora temos de tratar; chamam-nos factos e successos realisados
n'uma épocha em que ainda a nação se julgava cheia de vitalidade e
vigor, posto que os primeiros symptomas de decrepidez já fatalmente
se tivessem apresentado na perda de Cabo Aguer, e sobretudo no desamparo
de Safim, Azamor, Arzilla e Alcacer em tempo de D. João III.

Sabendo o scherif Muley-Abdalá, rei de Marrocos, de Fez, de Terudante,
de Suz, e de muitos reinos e provincias d'Africa, que a fortaleza de
Mazagão estava mal provida de artilheria e munições de guerra, e
guardada apenas por poucos arcabuseiros, determinou conquistal-a. Era
nesse tempo Mazagão um ponto verdadeiramente importante. Situada nas
praias do Atlantico, o mar banhava-lhe os muros, deixando-lhe nos fossos
sufficiente altura de agua, e tornando-lhe facil receber da metropole
soldados, viveres e toda a especie de soccorros. Podia, pois,
considerar-se excellente base de operações, e o padrasto mais de
receiar para a visinha cidade de Marrocos.

Com estas circumstancias as tentativas dos sarracenos para se apoderarem
da fortaleza, tentativas frequentemente repetidas e sempre mallogradas,
eram faceis de explicar. Desta feita, porém, parecia certa a victoria, e
por isso o scherif encarregou a seu filho Muley-Hamet, moço brioso e
valente, o mando de numerosas tropas, que um historiador italiano desse
tempo avalia em duzentos mil homens, mas que, conforme calculam
escriptores tambem coevos, a poucos mais poderiam subir de cento e
cincoenta mil. Fosse como fosse, era espantoso o numero em comparação
com o dos portuguezes, e havia sobretudo entre essa gente, em parte
collecticia e desordenada, muitos cavalleiros e infantes habituados
á guerra e á disciplina, e habeis capitães encanecidos nos cargos da
milicia e no tumulto dos combates.

Acampado o exercito a curta distancia de Mazagão, começaram os trabalhos
do cerco, e com tal actividade e enthusiasmo, que em poucos dias se
elevou defronte da fortaleza uma grossa trincheira, onde os mouros
assentaram as baterias com grave damno dos cercados. Estes por seu lado
não estavam ociosos, e Rui de Sousa de Carvalho, capitão mór na ausencia
de seu irmão Alvaro de Carvalho, accudia com diligencia a remediar o que
faltava na fortificação, mandando ao mesmo tempo jogar a artilheria
contra os trabalhadores do campo, e determinando por vezes sortidas e
escaramuças, em que o impeto dos portuguezes, repentino e devastador,
conseguia sempre assombrar a turba dos inimigos.

Soou depressa no reino a noticia do cerco, e desde logo muitos
cavalleiros e soldados quizeram participar dos riscos da empreza. Posto
que os habitos de luxo e as riquezas adquiridas na Asia tivessem de
certo modo amortecido as virtudes politicas dos nossos maiores, não
estava o caracter portuguez ainda gasto, como moeda velha, cuja marca o
roçar de muitos annos houvesse já extincto; e o ardor de patriotismo,
que então se revelou, recorda os actos mais heroicos da nossa edade
média. Moços illustres, a quem os brios sobrepujavam os annos,
embarcavam-se furtivamente; fidalgos velhos, exaltados por bizarria
sublime, emprehendiam a jornada de que aliás estavam isentos pela edade
e longos serviços; muitos imploravam como mercê e recompensa
affrontarem os combates e a morte; outros, reputando em pouco o
sacrificio da vida, levavam ainda á sua custa navios cheios de
soldadesca e munições. Havia como que uma embriaguez de enthusiasmo, o
esforço convertêra-se em delirio, e o espirito religioso associado á
cubiça de renome abrazava com tal intensidade os animos, que foi preciso
que a rainha D. Catherina, regente na menoridade de seu neto D.
Sebastião, prohibisse com penas severas novos embarques, e desse
terminantes ordens para que não partissem mais navios.

Entretanto os mouros preparavam-se para o assalto, disparando a
artilheria contra a fortalesa, e procurando ao mesmo tempo cegar o fosso
com faxina; e supposto que os tiros, os arremeços e as materias
escandecentes, que sem tregoa choviam das ameias, ferissem e
inutilisassem muitos dos que se empregavam n'aquelle trabalho, venceu,
afinal, a constancia dos sarracenos, que conseguiram não só entulhar a
cava, senão levantar proximo á muralha um grande terrapleno, que
emparelhou com a maior altura do baluarte, a ponto que assaltantes e
defensores pelejavam corpo a corpo, braço contra braço, á espada e lança
varada, como em desafio ou batalha campal. Nem assim, porém, poderam os
mouros entrar na fortaleza. Alvaro de Carvalho, que fôra dos primeiros
que chegára do reino, combatia á frente dos seus soldados, onde mais
acceso ia o fervor da batalha, sem todavia esquecer o officio de
capitão; e o nobre exemplo e a emulação de esforço tornavam invenciveis
os portuguezes.

Frustradas as tentativas de assalto, começaram os cercadores a
minar o principal baluarte; presentido o perigo pelos de dentro,
procedeu-se logo á contramina; e desta maneira as duas estradas
subterraneas desembocaram uma na outra, e os sitiadores topando ahi com
os sitiados travaram renhida lucta, em que por algum tempo se ouviu
sómente o tinir das espadas e alfanges, o bater das alavancas e alviões,
e rapidos gemidos de agonia abafados pelo praguejar dos que pelejavam.
Quem quer que, todavia, olhasse para os dous grupos, poderia facilmente
prever a qual delles pertenceria a victoria. De um lado os mussulmanos,
transbordando de colera por verem descoberto o ardil de que se tinham
valido, mais cuidavam de ferir que de guardar-se; do outro os christãos,
aproveitando a estreiteza das galerias, que de algum modo
neutralisava a desproporção de forças, combatiam com a serenidade e
confiança de quem evita o perigo sem o temer. Era a lucta do furor e da
intelligencia; indubitavel, pois, o desfecho. Não conseguindo quebrar
aquella muralha de homens, ligados pela cadeia fortissima da disciplina
e do renome, os sarracenos recuaram desesperados; e os portuguezes,
ficando senhores da obra, utilisaram-n'a desde então em damno dos
cercadores.

Seria longo descrever todas as scenas desta defensão heroica, lances e
episodios pasmosos, que a muitos parecerão hoje fabulas sonhadas. Baste
saber-se que durante quasi dous mezes os defensores da fortaleza,
combatendo peito a peito nos adarves, sustentaram o apertado cerco, e
detiveram no repetido acommettimento os innumeraveis assaltantes. Estes,
quebrados os animos pelas difficuldades imprevistas, fallavam já de
levantar o sitio, mas Muley-Hamet, que na sua soberba tinha crido facil
o triumpho, quiz proseguir na empreza, e no dia 1 de maio deram os
mouros ultimo assalto.

Durou elle largas horas, mais ardido e sanguinolento, mais bravo, mais
atroz, mais pavoroso do que nenhum outro tinha sido. Ao principio diante
dos sitiados, firmes e immoveis como rochedos, cahiram e despedaçaram-se
os esforços successivos dos esquadrões da mourisma; depois as duas
hostes, revolvendo-se, enlaçando-se, confundindo-se como as ondas em
sorvedouro profundo, formaram quasi um grupo unico, ennovelado,
convulso, monstruoso; emfim, já o sol se inclinava para o occaso, e
ainda a victoria estava indecisa. Assaltantes e defensores, julgando-se
instrumentos de missão divina, tinham um só pensamento, uma
esperança, uma vontade, um intuito, o da gloria da sua crença se
triumphassem, o da palma do martyrio se morressem.

A noite veiu pôr termo ao combate e juntamente ao cerco. Baldadas todas
as tentativas para submetter a fortaleza, o desalento apoderou-se dos
sarracenos, e Muley-Hamet, sem tentar mais fortuna nem feito de
importancia, levantou o campo d'ahi a poucos dias.

Desde então até que o poderoso ministro de el-rei D. José a cedeu por
tractado aos marroquinos, foi sempre Mazagão o ponto a que se dirigiram
as correrias, os acommettimentos, os asfaltos da flor das tropas
muslemicas; mas o nome dos defensores que luctaram como heroes, e em
frente de cuja firmeza expirou constantemente a furia dos adversarios,
jazem ignorados ou esquecidos, porque a guerra que durante tres
seculos sustentámos em Africa, theatro onde até mais tarde se patenteou
nobre e desinteressado o esforço portuguez, não teve Barros nem Coutos
que a escrevessem.



XIII

Desastre de Alcacer-quibir.--Reinado do cardeal D. Henrique.

1578 a 1580


As recordações da patria são como as memorias de familia; tem o quer que
é saudoso e sancto, que occupa suavemente as largas horas da solidão,
que attenua muitas dores do espirito, que povoa a alma de mais entes
para amarmos, e que engrandece e vigora o sentimento de nacionalidade,
suscitando, com as virtudes e façanhas dos nossos antepassados, o altivo
e nobre desejo de imital-os. Ás vezes, porém, esse fallar de avós
comprime-nos de amargura o coração, quando nos commemora certas epochas,
em que a patria, ludibriada e abatida, viu desfazerem-se uma apoz outra
todas as suas grandezas; epochas tanto mais desastrosas, quanto a
degeneração e ruina, que assignalam, contrasta com o poder e fortaleza
de outros tempos. A historia portugueza, aliás tão formosa e invejada,
não está isenta dessas paginas de luto, e uma dellas, e por certo a mais
triste, é a que lembra os reinados immediatamente anteriores á dominação
castelhana, espaço de poucos annos que bastou ás glorias de Portugal
para descerem do apogeo ao occaso.

O reinado de D. Sebastião é notavel por um facto unico, a derrota de
Alcacer. O projecto de submetter as terras da Berberia, berço das
nossas conquistas de alem-mar, não era tão louco como a desgraça o
apresentou, e devia encontrar favor na vontade popular, porque assentava
nas tradições e rancores de uma guerra de seculos, e na conveniencia
incontestavel de se alargar o territorio portuguez pelas fronteiras
costas africanas. A nação, comtudo, sentia-se cançada e pobre para a
ousada tentativa, e ainda que assim não fosse, invalidavam-lhe as
probabilidades de victoria, por um lado a cega vaidade do monarcha, por
outro a tenebrosa politica de D. Philippe II, cuja desregrada cubiça
contava por alliadas uma astucia e actividade inexcediveis.

Em tal estado de cousas, esmorecidas as grandes virtudes guerreiras da
edade média, julgou-se necessario que o monarcha, antes de se aventurar
longe da patria á sorte das batalhas, aguardasse que a febre da
discordia consumisse politica e moralmente as forças dos sarracenos; mas
até nisso foram mal logrados todos os bons planos de fortuna, porque o
imperio de Marrocos, apesar das luctas intestinas, e das perturbações e
males causados pelas oppostas parcialidades, não decahira a tal ponto,
que não podesse resistir com vantagem a uma invasão estrangeira.
Muley-Moluk, homem de extraordinarios talentos militares e politicos, e
de um denodo a que a escola do infortunio associára a prudencia, tinha
derrubado do throno seu sobrinho Muley-Hamet, que, frustradas todas as
tentativas para recuperar o poder, implorára por fim o soccorro dos
portuguezes. Essa alliança, porém, convertêra uma contenda domestica
n'uma lucta de religião e de liberdade, guerra sancta que dava aos
soldados africanos a força que resulta sempre do fanatismo
religioso e do amor da independencia, natural em todos os povos; e
Muley-Moluk fizera-se depressa estimado da maior parte dos mussulmanos,
não tanto pela firmeza com que restabelecêra a ordem e administração do
estado, como pela repugnancia que, conforme é facil de suppôr, excitára
nas multidões a liga do rei desthronisado e dos seus parciaes com um
povo inconciliavelmente inimigo por antagonismo de crenças e de raças.

Eram 4 de agosto de 1578 quando o moço rei portuguez, despresando o voto
cauteloso dos principaes capitães, determinou romper a peleja contra o
poderoso exercito dos mouros. Ao principio conseguiram os nossos
manifesta superioridade. A cavallaria que acompanhava o rei, intrépida
posto que pouco numerosa, e o terço de aventureiros romperam e
desbarataram, logo do primeiro impeto, a vanguarda dos adversarios, que,
incapazes de sustentar o violento embate e de resistir frente a frente,
se dispersaram, fugindo, pela extensão da planicie; Muley-Moluk,
buscando com heroico esforço reanimar os seus, cahira moribundo nos
braços dos alcaides; e os clamores de alegria com que os christãos se
arremessavam á refrega, como se o dar e receber a morte fosse o prazer
de um torneio, diffundiam o temor no centro dos infieis, que mal
obstariam á furia da torrente, se o grosso das nossas tropas,
aproveitando o ensejo, se empenhasse com egual denodo n'aquelle repto
tremendo. Mas em vez d'isso uma voz de desalento, produzindo nos
cavalleiros e peões um daquelles terrores panicos, de que não faltam
exemplos nem até entre os soldados que uma severa disciplina
prepára para a victoria, mudou n'um instante o aspecto da batalha. Os
arabes, conhecendo a desordem no arrayal contrario, e cobrando novos
brios com o auxilio das forças de reserva, voltaram a disputar o
terreno, que quasi haviam cedido sem combate, e em breve o sangue
europeu regou abundantemente os aridos campos de Alcacer.

Então, quando as fileiras dos velhos soldados de Castella, da Italia e
da Alemanha já debalde tentavam ordenar-se, e era grande a confusão e o
susto nos terços dos portuguezes, precipitaram-se contra o nosso
exercito as ondas dos cavalleiros mahometanos, e apoz elles a turba dos
alarves, que do alto dos visinhos montes observavam o resultado da
peleja, para baixarem, como aves carniceiras, sobre os restos dos
vencidos. Desde esse momento os signaes de derrota tornaram-se
dolorosamente certos para os nossos, que, todavia, ainda combateram só
com o fito na desesperada empreza de soccorrerem o soberano,
facilitado-lhe os meios de retirar-se a salvo.

D. Sebastião, porém, nascera com animo altivo e coração generoso. Os
mimos com que fôra tratado desde o berço; a educação acanhada que
recebêra na adolescencia; as maximas de castidade que o privaram dos
affectos puros e sanctos de familia, affectos que suavisam os caracteres
mais duros; as suggestões dos validos, que, despertando-lhe pensamentos
ambiciosos, lhe devoravam o socego, a reflexão e a mocidade; e
finalmente, como é certo, as intrigas e mesquinhos enredos da côrte
haviam excitado as más paixões, que fermentaram terrivelmente no seu
coração de mancebo, mas não tinham de todo prevertido os nobres
sentimentos da sua alma. Vendo a batalha perdida, não quiz sobreviver
aos seus, e, arrojando-se como leão onde quer que o combate era mais
acceso, recusou sempre com altivez o entregar-se ou fugir. Afinal cahiu
ou desappareceu no meio da multidão, e com a sua falta expirou o vigor
nos peitos mais esforçados. O resto foi uma larga carnificina com que os
mouros, senhores do campo, saudaram o triumpho, humilhando a intrepidez
e constancia dos cavalleiros e homens de armas portuguezes.

Chegada a Lisboa a noticia do tragico desfecho da jornada de Africa, e
duvidosos os animos sobre o destino do monarcha, foi entregue o governo
do reino ao cardeal D. Henrique, velho insensato e timido, tão sequioso
como incapaz do poder; e Portugal despenhou-se então sem amparo na
mais afflictiva phase da sua longa existencia. As virtudes militares e
politicas de nossos maiores, e sobretudo as antigas leis do paiz, em
completa harmonia com as suas necessidades e indole, haviam-nos até esse
tempo conservado livres do jugo de Castella, cuja tenaz ambição nunca
deixára de olhar para esta pequena faixa de terra como para uma
provincia rebellada; mas o estabelecimento do regimen absoluto sobre as
ruinas da monarchia liberal da edade média; o espirito de intolerancia,
que, perseguindo e expulsando os judeus, privou todos os dominios
portuguezes do trabalho, do conselho e dos capitaes de uma raça
intelligente e activa; a sede do ouro, que fez desestimar a agricultura
e industria do solo natal pelo engôdo das faceis riquezas que se
adquiriam na India e no Brasil; os desacertos economicos e
administrativos do governo da metropole, e dos seus delegados na Asia,
na Africa e na America; e por fim a ultima catastrophe nos campos de
Alcacer-quibir tinham produzido a irremediavel e extrema decadencia, que
nos obrigou a curvar o collo ao despotismo estranho.

Durante o curto reinado do cardeal D. Henrique, os animos estiveram
sempre alvoroçados com os receios, cada vez maiores, ácerca da
successão. O prior do Crato, o duque de Bragança e D. Philippe II eram
os pretensores que contavam maior numero de probabilidades, mas nenhum
dos dous portuguezes possuia as forças necessarias para tomar sobre os
hombros a empreza de D. João I, em quanto que o rei de Hespanha, dotado
de caracter energico e de uma perfidia sem limites, tinha todo o
poderio de vastissimos dominios para combater e debellar as resistencias
que encontrasse. Essas não foram longas nem obstinadas.

O velho cardeal rei, pouco favoravel no principio a D. Philippe II, em
breve mudou de resolução, compellido não menos por apprehensões
pusillanimes, do que pela cubiça e pelo odio, que foram as paixões
permanentes dos largos annos da sua vida. A principal aristocracia,
antepondo os calculos interesseiros ao nome illustre de seus avós e á
propria dignidade, não duvidou pactuar com os procuradores de Castella,
que, á força de ouro e promessas, arrastaram a nacionalidade portugueza
ao mercado das traições infames, dos enredos miseraveis, das torpes
vinganças, das abjecções ignavas. O povo, irreflectido e variavel
como o mar, que ora freme colerico e se despedaça em vagalhões gigantes,
ora se espreguiça brincando com os flocos de espuma que lhe saltam no
dorso; o povo, dilacerado pela fome, pela peste e pelos desastres da
guerra, não podia senão murmurar, porque os seus soldados, os seus
capitães, os seus jurisconsultos, os seus magistrados, os seus bispos,
os seus principes, tudo quanto no reino havia de nobre e rico por
illustração e por linhagem, ou tinha já desertado para o partido
estrangeiro, ou se conservava indeciso não obstante os riscos da patria.
Finalmente a persuasão commum de que a paz, individual e domestica, só
poderia conseguir-se com o sacrificio completo da independencia politica
tirava ás almas mais robustas aquella tenacidade fria, aquella firmeza
de vontade, que não mede os obstaculos e para a qual não ha
impossiveis.

Debalde nas côrtes, que se reuniram primeiro em Lisboa e depois em
Almeirim, côrtes que já eram apenas pallido reflexo de representação
nacional, alguns homens intrepidos e probos protestaram eloquentemente
contra a imbecilidade e corrupção dos poderes publicos; debalde a voz
auctorisada de Phebo Moniz, alto exemplo de virtudes publicas no meio da
prostituição geral, instou com os procuradores dos povos e com o
moribundo monarcha para que não se entregasse o reino ao dominio
estrangeiro, e se respondesse com energia ás ameaças de D. Philippe II;
debalde, emfim, a plebe, que é a ultima onde se desvanece o aferro á
terra da patria, dava visiveis signaes de supportar de máo grado a ruina
que lhe preparavam; a força moral da nação tinha desapparecido, e a
força material, que aliás é sempre illusoria quando falta a unidade do
pensamento e o ardor do enthusiasmo, havia-se dissipado, a pouco e
pouco, na extensão desmedida das conquistas, até acabar de todo nas
planicies d'Africa.

Assim, apenas fallecido D. Henrique (31 de janeiro de 1580), os
governadores do reino, nomeados anteriormente, dissolveram as côrtes,
receiando que podessem ser o centro onde se alimentasse energica
resistencia aos interesses de Castella; e a acceitação do filho de
Carlos V para rei de Portugal foi definitivamente resolvida. Pouco
depois um exercito de vinte mil homens, capitaneados pelo duque de Alva,
o sinistro _pacificador_ dos Paizes Baixos, entrava no Alemtejo para
lavrar com a espada o epitaphio das liberdades portuguezas; e o
monarcha odioso, denominado o demonio do Meio-Dia n'uma epocha em que os
progressos da civilisação ainda não tinham diffundido a brandura do
tracto entre os homens, conseguiu tomar posse do seu novo reino, tendo
só que vencer a fraca opposição de uma parte do povo, e desses raros
cavalleiros que, no meio de gente gasta e prevertida, conservaram sempre
os nobres sentimentos de integridade e patriotismo.



NOTAS


Pag. 9

«Fundação da monarchia»

Neste quadro e em parte do seguinte tentámos resumir em breves paginas o
que está admiravelmente exposto nos tomos 1.º e 2.º da Historia de
Portugal, do sr. A. Herculano. Sem este facho brilhantissimo ser-nos-hia
decerto impossivel sahir da confusão e obscuridade, em que se involvem
os primeiros tempos da monarchia.


Pag. 21

«Penetrando até o coração do Al-Gharb»

Em quatro grandes divisões, conforme a geographia arabe, se repartia a
Peninsula: Al-Djuf, o norte; Al-Kiblah, o meio dia; Al-Sharkiah, o
oriente; Al-Gharb, o occidente. Com este nome, por isso, se designava
n'aquelle tempo a vasta extensão de territorio, que comprehende hoje as
provincias do Alemtejo a Algarve, e que, juntamente com uma porção da
Extremadura hespanhola e acaso da Andaluzia, formava os estados dos
emires de Badajoz.


Pag. 30

«Nos herdamentos, nas maladias, nos páramos»

A palavra herdamento significou até o seculo XV o mesmo que herdade,
quinta, casal ou qualquer predio rustico, arrendado ou não arrendado, e
quer incluido dentro de muros ou marcos, quer composto de courellas
separadas.

A denominação de maladia, muito frequente nos documentos dos seculos XI,
XII e XIII, indicava o tributo a que eram obrigados os individuos, que,
incapazes por qualquer motivo de se defenderem e a seus bens, alcançavam
protecção de algum homem poderoso, do qual por esse facto como que se
constituiam servos. Chamavam-se tambem maladias as habitações e
terras, em que os serviços, foros ou pensões se pagavam.

O termo páramos equivalia ao de honras e coutos, e designava qualquer
porção de territorio, demarcado pela auctoridade do monarcha, e livre de
imposições ou alcavalas.


Pag. 34

«Dirigiu-se a Lyão»

Nessa épocha a cidade de Lyão, hoje uma das mais ricas e industriaes da
Europa, pertencia nominalmente ao imperio romano-germanico, mas era na
realidade tão independente do imperador da Alemanha como do rei de
França, e só de algum modo estava sujeita ao proprio arcebispo.


Pag. 45

«Aly-Abul-Hassan»

Os nossos chronistas, geralmente pouco escrupulosos em questões
de investigação e de critica, chamam-lhe Ali-Boacem. A inscripção
commemorativa que se encontra na cathedral de Evora, confundindo
o nome de familia com o do individuo, designa-o por Abenamarim.
Conde, na historia do dominio dos arabes, chama-lhe
Aly-Abul-Hassan-ben-Otman-ben-Jacub-ben-Abdelhac de-Beni-Merin.

Já que fallámos na inscripção que está na sé de Evora, junto á
capella da invocação da Cruz, transcrevel-a-hemos na integra, alterando
unicamente a extravagante orthographia do original, porque não podemos
comprehender que sirva conserval-a na publicação de antigos inéditos,
senão para difficultar a leitura destes.

==Era de 1378. Rei Abenamarim, senhor de alem do mar, confiando em si e
do seu grande haver e poder, passou áquem do mar com Naforra, filha do
rei de Tunes, para perseguir e destruir os christãos. Tarifa, e o seu
poder era tamanho, que se não poude tomar, e pois rei D. Affonso viu que
não pode ser certo, houve receio de por si veiu a Portugal a demandar
ajuda ao IV Affonso de Portugal, seu sogro, e a elle prouve muito de
lh'a fazer com seu corpo e com seu poder; logo sem tardança começou o
caminho para a fronteira, e mandou que os seus se fossem apoz elle. De
Evora levou cem cavalleiros e mil peões, de que Esteves Carvoeiro foi
por alferes. Lidaram com os mouros, e o rei de Portugal entendeu com
elrei de Granada, e rei de Castella com Abenamarim, e foi mercê de Deus
que nunca mouro tornou rosto, e morreram delles tantos que não poderam
dar conta. O rei Abenamarim e o de Granada fugiram. No arrayal de elrei
Abenamarim acharam grande haver em ouro e prata, e o houve el-rei de
Castella. Mataram alli Naforra, e muitos mouros ricos, e outros mouros,
e meninos infinitos. Captivaram um filho de Abenamarim, um seu
sobrinho e uma sua neta. Deus seja para sempre bento, por tanta
mercê, quanta fez aos christãos.==


Pag. 133

E D. Manuel...... accrescentou aos titulos do seu dictado os de
senhor da conquista, navegação e commercio da Ethiopia, Arabia,
Persia e India.»

Nesse mesmo anno de 1499 mandou elrei lavrar os portuguezes de ouro, com
a legenda==_Emanuel Rex Portugaliae, Algarbiorum citra et ultra in
Africa, et Dominus Guinae_, e ao redor das armas==_Conquista, Navegaçam,
Commercio Aetiopiae, Arabiae, Persiae, Indiae._

Decorrido pouco tempo eram já insufficientes esses titulos para
corresponderem com exactidão aos descobrimentos, ás conquistas, á
influencia e poder dos portuguezes. Hoje, que vivêmos ao crespusculo da
nossa passada gloria, conservâmos ainda a antiga formula, van lembrança
do largo patrimonio que dividimos com as outras nações.


Pag. 153

«O numero dos mortos nesses tres dias orçava por dous mil.»

Os judeus, na allegação ao pontifice Paulo III, descrevendo as scenas de
sangue e agonia, que neste quadro tentámos esboçar, affirmavam que
mais de quatro mil pessoas haviam nesses tres dias cahido ás mãos dos
assassinos, em Lisboa e nas aldêas circumvisinhas; mas as memorias
coévas e os historiadores calculam consoantemente em dous mil o numero
dos que foram victimas na horrorosa hecatomba.



INDICE


     Introducção                                                        V

   I Fundação da monarchia                                              9

  II Ultimos annos de D. Sancho II                                     29

 III Batalha do Salado                                                 45

  IV Morte de D. Maria Telles                                          55

   V Tomada de Ceuta                                                   69

  VI Regencia do infante D. Pedro.--Combate de Alfarrobeira            87

 VII Conspiração da nobreza contra D. João II                          99

VIII Primeira viagem de Vasco da Gama á India                         115

  IX Descobrimento do Brasil                                          135

   X Matança nos christãos novos de Lisboa                            147

  XI Conquista de Goa                                                 157

 XII Defensa de Mazagão                                               175

XIII Desastre de Alcacer-quibir.--Reinado do cardeal D. Henrique      189

     Notas                                                            205





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