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Title: Quatro Novelas
Author: Osório, Ana de Castro, 1872-1935
Language: Portuguese
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produced from scanned images of public domain material


QUATRO NOVELAS



Composto e impresso na Typographia França Amado,
rua Ferreira Borges, 115--Coimbra.



ANNA DE CASTRO OSORIO

QUATRO NOVELAS



    A VINHA.
    A FEITICEIRA.
    DIARIO DUMA CRIANÇA.
    SACRIFICADA.

COIMBRA

FRANÇA AMADO--EDITOR

1908



I

A Vinha



A VINHA


Luis sahira para o colegio ainda criança e de lá para as escolas
superiores; assim os anos tinham decorrido sem que nunca mais visitasse
a terra natal.

Dez anos, dez longos anos se tinham passado, e só agora voltava, como um
foragido ou como um ladrão, que enlouquecido de saudades arrisca a vida
e a liberdade para revêr a terra que primeiro conheceu e é sempre para o
homem a mais querida, a mais bela, a melhor de todas.

E--pobre Luis!--era na verdade como um foragido que voltava,
escondendo-se para que o não vissem, envergonhado dessa fraqueza
sentimental que já não ia nada bem com os seus galões de guarda-marinha
e o seu bonito bigode a ensombrar-lhe o labio superior.

E voltava amesquinhado aos seus proprios olhos, elle que se julgava tão
importante pelos estudos transcendentes, que seguira com certo brilho,
porque só agora compreendia o sacrificio de cada momento, a luta de cada
hora, o verdadeiro heroismo obscuro e respeitavel que a sua educação
representava na vida da familia.

Compreendia, afinal, um pouco tarde demais para que a consciencia lhe
ficasse limpa de remorso, quanta mentira santa fôra preciso inventar,
com quanta delicadeza envolver as palavras, quanta historia arquitétar
para que elle aceitasse sem desconfiança o propositado afastamento em
que o tinham conservado durante esse longo periodo de tempo.

Chegara por vezes a pensar, as poucas ocasiões em que reparara nisso,
que o desprezavam, que era um pária, que os pais afastavam receando a
vergonha de o apresentarem como seu herdeiro e continuador.

Dizia-lhe a consciencia que tal procedimento não era justo, porque--se é
verdade que não fôra nunca um estudante desses que se mostram com
desvanecido orgulho, carregados de distinções e premios que esmagam o
proprio dôno e irritam os companheiros,--é certo que o curso lhe sahira
limpo, seguido como de empreitada, numa indiferença risonha de quem o
levava com uma perna ás costas.

Lembrava-se de pensar ás vezes no facto, um tanto irritante, do seu
afastamento sistematico da casa paterna, e pôr-se consigo a acusar os
pais; mas á mais leve referencia acudia uma carta de Eduarda, que varria
do seu coração, voluvel e bondoso, a desconfiança cruel.

Era sempre a mesma delicadeza inteligente, procurando as palavras para
não maguar nem esclarecer, fugindo graciosamente duma pergunta mais
nitida, dizendo pouco em longas cartas, que satisfaziam plenamente a sua
ansiedade de momento mas muito deixavam escondido nas dobras duma alma
que se não pode expandir, sob pena de infelicitar os outros.

Eduarda, apenas mais velha dois anos do que Luis, fôra desde criança uma
pequena figura simpatica de mulher, dessas mulheres adoraveis sem
deixarem de ser profundamente humanas, ou talvez por isso mais adoraveis
ainda, que tudo compreendem, por tudo se interessam, para todos são a
providencia, o refugio e a esperança.

Quando fôra resolvida a sua entrada para o colegio militar, Luis ficara
radiante. É que essa admissão fôra o seu maior empenho, a ambição de
largos mêses e dias--desde que na terra aparecera, a proposito de
qualquer festa pública, um regimento de lanceiros, que o tinha
enlouquecido com o seu ar soberbamente marcial e as bandeirolas,
vermelho e branco, a panejarem ao sol.

Não pensava noutra coisa senão naquella sua entrada para o colegio em
que todos os alunos são já pequeninos homens, pequeninos militares de
botões reluzentes, barretina, dragonas, e duma compostura grave de
disciplina rígida.

Fazia projectos, contava as peças do enxoval, que a mãe lhe ia
empilhando na mala, lia e relia a relação das coisas que lhe mandavam
levar e prometia a si mesmo só quebrar o seu, mialheiro de barro quando
tivesse já a farda, para ir tirar o retrato de grande uniforme.

Mas quando chegou o dia da partida e viu á porta o carro em que devia
seguir, os criados arrastando as malas, o pai gritando porque não
estavam as coisas em ordem--e o comboio não espera!--quando viu a mãe
soluçante por vêr partir o mais novo, o mais fraquinho, o
preferido--todos o sabiam--o Luis perdeu a coragem. E chorou, chorou
intensamente, num soluçar fundo, proprio dessas naturezas impulsivas,
febris, doentias, a que os nervos emprestam uma acuidade dolorosa,
embora passageira, nas sensações.

E ella, a irmãsita, já com a orla do vestido a procurar o cano da bota,
a trança loira cahida pelas costas, o corpo airoso e fino ainda sem o
quebrado das linhas feminis, não tivera lagrimas que correspondessem
áquella dôr excessiva, nem palavras que consolassem aquella alma desolada.

Sorria até, para esconder uma ligeira tremura significativa no labiosito
ainda criancil, mas o seu olhar era limpido, e a face, ligeiramente
enrubecida, em coisa alguma trahia o esforço enorme de vontade que a sua
atitude representava. É que era realmente heroica aquella criança que
represava as lagrimas, bem naturais no entanto, para encobrir o seu
legitimo desgosto ao vêr partir o irmão, o seu companheiro e amigo mais
certo.

Porque Luis e Eduarda eram, mais do que pelo sangue, que tantas vezes
corre desemelhante em filhos da mesma arvore, irmãos pela camaradagem no
estudo e nos passeios, nas distrações como nos desgostos, nesses tão
maguados desgostos infantis, que todos desprezam e são talvez os mais
violentos e os mais desesperadores de toda a vida.

Mas Eduarda tinha a rara delicadeza de certas almas de excéção, que em
si concentram a propria dôr e só têm para a dos outros carinho e
consolo.

Se o Luis soubesse o que ella sofria, ficando ali a vê-lo partir,
debruçado na portinhola da carroagem e ainda a recomendar-lhe as suas
coisas--os animais, as flôres, os brinquedos abandonados!... Se elle
soubesse como a pequena sentia já a solidão em que ia ficar, naquella
pobre terra sem diversões e sem conhecimentos, ella que não cultivara
mais amizades infantis álêm da delle!...

Nos primeiros tempos as cartas amiudavam-se: elle, contando tudo quanto
via de novo e o trazia em contínua sobreexcitação, em duas linhas
sugestivas, sempre apressado por falta de paciencia para escrever; ella,
narrando detalhadamente os pequenos casos domesticos, que tanto
interesse despertam sempre ás crianças. Eram recordações de passeios e
brinquedos, a relação de todas as pessôas avistadas, os amigos da casa
que perguntavam sempre por elle, os seus recados, as suas proprias
palavras.

Luis bem o conhecia: eram verdadeiros _recados_ aquelles,--não
banalidades ceremoniosas--que evocavam, á sua recordação saudosa, as
figuras amigas que as enviavam, de longe.

Depois, no fim das cartas, como repique festivo de sinos em vespera de
dia santo, a esperança das férias, a contagem dos dias que faltavam
para essa felicidade tão desejada e retardada sempre.

Quando se aproximava esse abençoado mês de setembro e elle já só
esperava a ordem para embarcar no grande comboio resfolegante que o
levaria ao conchêgo da familia e ao abrigo das velhas paredes amigas,
que tinham visto nascer e crescer umas poucas de gerações de rapazes
como elle, uma carta vinha preveni-lo de que aguardasse o pai para
seguirem ambos para uma dessas famosas praias do litoral onde um mês se
passa sem se sentir na vida duma criança.

Assim foi passando o tempo: aos anos de colegio seguiram-se os da
escola, sempre despreocupados e alegres, sem que coisa alguma o
preparasse para o martirio incomportavel que estava agora sofrendo, sem
que coisa alguma lhe fizesse supôr o doloroso drama, obscuro e
martirisante, que lá longe se ia desenrolando lentamente, esmagando com
ferocidade os corações que tanto lhe queriam...

Tambem, que satisfação, livre de preocupações, elle teve quando recebeu
aquella carta em que Eduarda lhe dizia, entre coisas ligeiras e
banais:--que tinham resolvido vender a velha casa e o quintal para irem
viver para Lisbôa. Ficariam assim mais perto delle, quando as suas
longas viagens o deixassem descansar por algum tempo com a familia.
Assim estariam juntos durante todo o tempo em que estivesse em Portugal.

Que alegria a delle! Nem sequer lhe passou pela cabeça a lembrança dessa
velha casa, que os abrigara, carinhosa e maternal, como tinha já
abrigado os pais e os avós, e vivia como sêr consciente dentro do fundo
da sua alma.

Como Eduarda, querendo poupar toda a mágua ao seu coração mal preparado
para a dôr, mostrava bem conhecer essa natureza de amoravel e
sentimental, que um nada arrebata á mais acêsa alegria como á mais
desolada tristeza!...

A vida intensa das grandes cidades, que mais a fariam a ella viver
adentro de si mesma, concentrando-a no seu eu, tirava-lhe a elle a
sensação nitida da sua vida propria e, apanhando-o nessa engrenagem
barulhenta e niveladora, dava-lhe apenas as ideias e os sentimentos de
toda a gente.

Agora, com a vinda dos pais e da irmã, sentia-se bem feliz para nem
sequer se deter a pensar nos provaveis motivos que tinham determinado
aquella resolução.

Como estaria Eduarda, que deixara ainda uma criança, tantos anos
volvidos sem se verem? E a mãe? Dizia-lhe sempre, nas suas cartas, que
se sentia muito velha e doente, mas elle sorria-se confiante e não a via
senão como a deixara, sorridente, laboriosa e desempenada, a alma de
toda aquella colmeia que era a casa paterna.

Com que impaciencia febril esperou o dia marcado para a chegada, e como
logo de manhã, ao alvorecer desse dia bemdito, se sentiu outro, alegre
até á loucura de ter vontade de abraçar toda a gente, de saltar pelas
ruas como uma criança, sentindo-se leve, surpreendendo-se diferente, mal
cabendo na sua bonita farda de guarda-marinha!

Ás horas da comida não conseguiu engulir com desfastio os costumados
manjares da velha hospedeira, a quem deu um abraço apertado
prometendo-lhe trazer a familia para que os conhecesse,--havia ella de
vêr como eram seus amigos...

E a velha D. Engracia, que tantas vezes se arreliara com _as suas
telhas_, como ella dizia, sentiu que as lagrimas lhe vinham aos olhos
com a comunicativa sensibilidade daquella alma que se escancarava
para lhe mostrar quanto sentia de bom.

Muito antes da tarde já elle se dirigia para o Rocio, na ideia
inconsciente de se aproximar da estação onde os iria esperar, algumas
horas mais tarde.

Falando com um e com outro, discutindo um pouco sem se interessar muito
nas conversas, entrando no Tavares Cardoso para folhear um livro, indo
ao Martinho beber uma cerveja, mastigando cigarros sobre cigarros,
impaciente e febril, mas alegre e falador como nunca os seus amigos o
tinham visto...

A hora chegou por fim, porque todas as horas chegam, por mais doloroso
ou lento que seja o seu caminhar esmagante, como fogem todas, por mais
que as queirâmos retardar um instante nos raros momentos que nos trazem
felicidade. Elle lá estava, desde muito cedo, esperando na gare,
sentindo o coração bater desordenado, quando ao fundo do túnel despontou
a luz vermelha da locomotiva e o guarda tocou a corneta anunciadora, ao
passar nas agulhas... Depois, que estranha sensação a sua ao vêr as três
cabeças, que resumiam todos os seus grandes afectos, debruçarem-se nas
janelas do vagão, sorrindo-lhe e reconhecendo-o de longe! E elle,
que só reconheceria o pai, com certeza, se os não esperasse, tal era a
diferença que faziam as duas: Eduarda, uma mulher perfeita, sem nada que
recordasse a criança esbelta que deixara; a mãe, debilitada e
encanecida, tão vélhinha, que não podia afirmar que não houvesse engano.

Oh, mas a vélhinha é que o reconhecia bem, ao seu Luis, beijando-o e
abraçando-o com frenesi e achando-o mil vezes mais bonito do que ao
retrato.

Tambem Eduarda o abraçou alegremente e achou muito bom, apesar de um
pouco menos forte do que ella, que se talhara e desenvolvera longe da
atmosféra falsificada da cidade, no puro ar criador da montanha.

Chegou tambem a vez da Maria o abraçar,--Maria; a criada fiel que os
acompanhara sempre, que era alguem na familia, uma pessôa que a todos
satisfazia e com quem todos contavam.

Inolvidavel momento aquelle que os reunia, depois de tão grande e
inexplicavel afastamento; encantador de contentamento esse primeiro
repasto, num restaurante trivial da Baixa, para darem tempo a que as
bagagens podessem chegar á casa muito alegre que elle escolhera, com
vistas sobre todo o estuario azul do Tejo, onde a lua entornava,
nessa noite gloriosa de junho, a sua luz branca e leitosa, vagamente
adormecedora...

Luis sentiu-se orgulhoso com os elogios que a sua escolha cuidadosa
mereceu á irmã e queria convencer a mãe de que nada havia que se
comparasse ao espétáculo grandioso de toda essa cidade picada de luzes,
estirando-se ao longo do rio, que centenares de pequenos faroes faziam
tambem palpitar e viver, como outra cidade flutuante.

A pouco e pouco, abertas as malas para que tudo fosse colocado no seu
logar, Luis começou a reconhecer com enternecimento as velhas coisas que
os seus olhos de petiz haviam conhecido e admirado. Foi com alegria
quasi infantil que levou á mãe a velha caixa de xarão, herança da
avósinha, onde eram guardadas cuidadosamente as pequeninas coisas
preciosas que queriam roubar á curiosidade, nem sempre segura, das suas
mãositas de criança.

Uma chavena, uma jarra, qualquer coisa emfim que ia aparecendo, lhe ia
trazendo uma saudade da infancia longinqua e que esvoaçava agora na sua
alma como farrapo branco de nuvem distante a dissolver-se num rubro poente.

A mãe, que um momento ficara só junto delle, chorava silenciosamente,
olhando-o com ternura.

Luis não compreendia--chorar!?... Então não estava satisfeita por estar
em Lisbôa, com elle? Não viera por sua muito livre vontade?

E então a pobre senhora, incapaz de por mais tempo o iludir, desejando
mesmo--no egoismo inconsciente dos que sofrem--associar todos á sua dôr,
não se fez rogada e disse, disse tudo, tudo quanto de amargurado e
desesperador lhe tinham dado esses anos em que o não vira.

--Fôra uma luta tremenda e desigual, essa que o pai sustentara durante
anos, contra tudo e contra todos, sem perder a energia, sem trepidar nem
recuar. Primeiro, ia muito bem nos seus negocios--o Luis devia
lembrar-se... Depois, as fianças, os roubos, a má fé de uns, a inveja
mesquinha de outros, abalaram-lhe o crédito, envolveram-no em questões e
demandas, fizeram-no perder uma a uma todas as suas belas propriedades,
as compradas á custa de muito trabalho e as que herdara pessoalmente, e
até a sua propria casa de moradia, quando já nada mais tinha que
desafiasse a cubiça alheia, lá se fôra embora, com o quintal. Sim, esse
fôra o último e o mais certeiro dos golpes, que sangrava ainda e tarde
se poderia cicatrisar na sua pobre alma dolorida.

As lagrimas corriam sem parar pelas pálidas faces da bondosa criatura,
que assim foi contando, uma a uma, todas as suas dôres, não poupando
Luis a nenhum dos incidentes, a nenhum detalhe desse martiriologio
incomportavel de lutar com os maus, os inferiores, esses que acorrem
sempre a lançar a sua pedra quando presentem que a fortuna abandonou os
que ha pouco invejavam.

Luis, calado, ouvia, sem a compreensão bem fixada da realidade, olhando
com uma persistencia dolorosa essa vélhinha que chorava um passado em
frangalhos, e era a sua mãe, a mesma que elle deixara rica e tão feliz
dez anos antes.

--E porque lhe não tinham dito o que se passava?! Porque o tinham
alheado assim de todos os desgostos da familia, como se fosse um
estranho? Não era filho como os outros, não devia ser igualmente filho
para as alegrias como para os sofrimentos?...

--Ah, sim! Por sua vontade ter-lhe-ia contado logo o que se ia passando,
mas nem o pai nem Eduarda o consentiram para que elle se não
impressionasse e desviasse a atenção dos estudos, que era preciso levar
ao fim sem uma falta.

Luis padecia naquelle momento uma tão insofrivel amargura, que no fundo
do seu coração, humanamente egoista, sentia uma onda de
reconhecimento pelos que o tinham poupado daquella maneira... Devia-lhes
uma pacifica e alegre mocidade, que lhe preparava uma serena vida futura.

Então, nesse impulso que dá a propria revolta em toda a criatura contra
a dôr que a esmaga, começou a consolar a mãe, consolando-se a si mesmo.

O pai, com o emprego que arranjara numa das principais casas bancarias
que até ao fim o tinham sustentado, sustentando-lhe o seu crédito para a
liquidação voluntaria, ganhava certamente mais do que negociando por sua
conta. Depois, elle não estava ali com tudo quanto ganhasse para lhes
dar, tudo sendo pouco, é claro, para o que lhes devia?!...

E a mãe sorria por entre lagrimas, numa grande consolação de
apaziguamento, porque a sua dôr encontrava abrigo em outra alma que a
lamentava.

--Sim, a situação economica não era de todo desesperada. Dispensariam
apenas o superfluo, a que se tinham habituado, e mesmo esse não
completamente, porque na liquidação grande parte do seu dote podéra
ficar intacto.

--Oh, elle compreendia bem que não era a questão material a que mais os
afligia, era a recordação dum longo passado de paz e de desanuviadas
venturas que já ia longe; era a amargura desses últimos anos em que
todas as suas energias se concentravam em aparentar uma soberba que não
sentiam, em mostrar um orgulho que era feito de toda a condensação
amargurada da sua dôr por vêrem o egoismo e a maldade dos que ferozmente
lhe espiavam as lagrimas e as decéções.

--Elle compreendia bem, finalmente, que o que mais lhe custara fôra o
deixar essa casa que representava tanto na vida afectiva da sua bôa alma
de sofredôra.


Desde esse dia nunca mais Luis perdêra aquella ideia, que se tornou uma
obsessão: ir visitar a velha casa e reviver diante das suas paredes, que
lhe falariam do passado, todo o martirio a que o tinham furtado
generosamente. Em vão Eduarda o dissuadia desse capricho do sentimento,
que classificava de criancice; em vão ella lhe dizia que o passado
estava morto e ninguem mais o poderia resurgir; que não havia imaginação
nem vontade humana capaz de fazer voltar atraz o curso da vida, que para
elles se precipitara numa cachoeira desatinada e agora ia deslisar num
mais bello e sorridente campo.

Mas não! Elle fizera desse projecto o seu sonho, o seu misterio de
apaixonado, e iria, sem que ninguem o podesse impedir de o fazer.

A ideia de que a casa que fôra o lar abençoado de toda a sua familia já
lhes não pertencia, desvairava-o. Iria, acontecesse o que acontecesse,
num romantico impulso de sentimento--que mal compreenderia quem lhe não
tivesse compulsado os arrebatamentos de apaixonado--evocar todo o
passado e embeber-se bem na dôr das eternas e irremediaveis separações.

Agora, elle ali vinha, como um namorado, revêr pela ultima vez as coisas
que já lhe não pertenciam, e que indiferentemente iam tornar-se para
outros as suas coisas, os seus afectos.

Para que viera?--pensava já--porque não se deixara guiar pelos conselhos
da corajosa rapariga que tão alegremente ia entretecendo um novo ninho
com os restos dispersos do antigo, desfeito pelo temporal? Porque
viera?!...--É que queria sofrer, ali mesmo, tudo o que tinham sofrido
aquelles que amava.

Fugir a isso parecia-lhe uma covardia excessiva. Imaginava sentir assim,
pelo poder evocativo da sua memoria despertada pela visão, lagrima por
lagrima, desespero por desespero, vexame por vexame, revolta por
revolta, a vulgar mas horrivel tragedia desse incidente numa familia
burguêsa.

No vagão onde passou a noite, nem uma só vez os olhos se lhe fecharam
num sôno reparador. Os nervos em sobreexcitação faziam-no reviver, na
memoria, todas as circunstancias torturantes em que se déra o desastre
final. Sentia uma doentia voluptuosidade em pensar nos tormentos por que
o seu coração teria passado se a elles tivesse assistido.

Os nervos irritados por tantos dias de ansiedade obrigavam-no a
agitar-se numa febre de movimento, um desejo de choro, de gritos
convulsivos, que lhe desoprimissem o peito...

Cada nome de estação gritado monotonamente, cortando na noite arrastada
o sôno dos viajantes, era para elle o martelar desesperador do condenado
que assiste ao levantar da sua propria forca.

Em breve, mais um desses gritos ouvidos, a perder-se na noite, e estaria
na linda terra, que revia: toda branca e faiscante nos dias ensoalhados
de verão, varrida pelas nortadas ásperas da serra, nevada como uma noiva
nas invernias inclementes--com as suas paisagens cristalisadas de sonho;
as suas feiras rumorosas; as ladainhas atravez dos campos em flôr, pelo
despertar das primaveras amorosas; as romarias barulhentas, sob um
sol sufocante de canícula... Depois, os descantes; os natais, em que
fôra, romeiro piedoso e crente, ao presepe do menino; as _janeiras_,
cantadas á sua porta e em que os versos laudatorios lhe agradavam
sempre; as semanas santas, com procissões na rua, por esse agonisar de
sol doirado em que um Deus assistia á morte doutro Deus...

Tudo isso elle revia, todo esse passado distante se apoderava da sua alma
e o fazia viver por momentos uma existencia, que se não repetiria mais.


Agora, em frente da antiga casa que lhe enchêra de sonhos os últimos
mêses de vida, Luis sentia-se frio.

Quizera sentir muito e não sentia nada. Nenhuma comoção, nenhuma dôr--na
sua alma gelada.

Nem a casa lhe parecia a mesma--e decerto não era!--cortadas as
trepadeiras que a revestiam de verde e lilaz e que a perfumavam
dôcemente com os cachos exoticos das glicinias rôxas. Até as janelas
tinham sofrido o insulto de serem repintadas de vermelho, e as paredes
estavam caiadas de branco, essas paredes de granito polido que tinham ao
sol faiscamentos de mica e escureciam sem se resentirem das
intemperies, suavemente, como se envelhece sem sobresalto nem luta,
quando se vive sem preocupações.

Já não era a mesma--nada lhe dizia ao seu coração que era a mesma.

Lançou pelas janelas abertas um olhar de indiferente curiosidade para o
interior e então quasi lhe deu vontade de rir, tanto era banal o
mobiliario que a guarnecia, tão charramente burguêsa e sem gosto a
decoração que a tornava uma casa trivial de _endinheirados_, de
_adventicios_ sem educação.

Fechou os olhos, concentrou-se por segundos na evocação do passado, quiz
enganar-se a si proprio, mas não o conseguiu; a sua alma quedou-se, por
fim, numa frieza e numa desolação de completo desmoronamento.

Faltava-lhe o quintal; voltou-se para seguir ao longo do muro, deitando
um olhar prescrutador para o pequeno jardim gradeado, que era no seu
tempo um tufo apenas de verdura, e sofrêra, como a casa, a influencia
dos novos dônos.

Sim, no quintal ao menos iria encontrar as mesmas arvores, os mesmos
recantos amaveis de sombra, o mesmo perfume saudavel do pomar e da horta
verdejantes.

E seguia, rapidamente, olhando o muro de pedra solta e que era bem o
mesmo que bastas vezes saltara para comer os bellos cachos de uva
ferral de grandes bagos córados.

Isso não mudara, ao menos; era o mesmo que conhecera e lhe fazia lembrar
tantas garotices, tanta alegria passada...

Quando chegou ao alto do caminho descobriu a parte do quintal que menos
estimava, porque tinha sido adquirida ulteriormente, poucos anos antes
da sua ida para o colegio.

Lembrava-se bem de quando o pai comprara aquelle grande campo de
oliveiras e terra centeeira a entestar com o pomar, que sempre tinham
desejado na familia e por teima de camponios rudes lhes não pertencia
desde muito.

Como elle ria, satisfeito, olhando a mulher, muito contente tambem, ao
vêr cahir uma a uma as pedras do muro que ia fazer do seu pequenino
quintal uma quintasinha deliciosa, mas que para elles nunca deixara de
sêr o quintal.

Luis sentira então, ao correr pela carreira principal, tão comprida que
ao fundo deixava de se avistar a casa, uma sensação de posse, que o
fazia agora sorrir.

Lembrava-se bem como Eduarda estava melancolica naquella tarde de
outôno, olhando o desmoronamento que lhe parecia um começo de
destruição--porta escancarada por onde entrariam todos os
desastres... Presentimentos de alma extremamente vibratil, ou acaso sem
nenhuma significação, quem pode ao certo dizer o que determinados
estados de espirito representam?!

Ali tambem havia mudança... Luis começou a sentir a ansiedade da dúvida.
Tinham plantado vinha nesse campo, que dantes ondulava num verde tenro
pelas primaveras, e pelos verões era um manto de oiro, com as espigas
acurvadas ao pêso do grão já maduro.

Entrou pelo fundo do quintal, que no seu tempo tinha apenas um pequeno
muro como signal de posse e agora se alteara numa hipótese de muralha
orgulhosa.

Seguindo pela rua mais larga, ia recordando, uma por uma, as arvores do
pomar. Uma certa pereira que se erguia em roca, toda florida e branca
como fogaça, e era a primeira a amadurecer as suas peras magnificas; uma
rua de aveleiras baixas e tufadas, donde apanhavam ás mãos cheias as
avelãs ainda em leite, que eram dum verdadeiro apetite... Depois
lembrava-se dumas certas ameixas, muito rôxas e carnudas, que ainda lhe
faziam crescer a agua na bôca. E a nespereira imensa que sombreava a
horta, com grande desespero do velho Antonio hortelão... e a enorme
cerdeira, que tinha uma historia engraçada, que os pequenos sempre
contavam ao ouvido dos visitantes e os fazia desenhar gestos de nojo, o
que lhes provocava uma esfogueteada de risos!?... E tantas outras que
eram mais conhecidas, como suas irmãs, que iria abraçar piedosamente
numa despedida derradeira.

Se fosse tempo de lilazes, como teria gosto de levar um grande mólho de
flôres para a mãe! Sim, roubaria, porque ao seu inconsciente criterio
isso não lhe parecia um roubo: se o quintal era o seu, o mesmo que tinha
deixado anos antes, que mal poderia haver nisso?!

Apressou o passo até avistar a grande nogueira, plantada no ano do
nascimento de Eduarda, e que já no seu tempo era uma bela arvore que
desafiava a cubiça do rapazio que de fóra namorava as suas verdes nozes
de bôa casta. Se não fosse noite poderia vêr no tronco rugoso as
iniciais do seu nome, que Eduarda tinha aberto, na vespera da sua
partida para o colegio.

Mas ao chegar junto á arvore, donde se descobria todo o quintal, não
poude reprimir um gesto de pavôr.

Ah, para que viera ali, numa febre apreensiva de lembranças,--para
reviver uma vida que já não existiria mais, para materialisar uma
saudade que já não poderia sêr realidade... para quê?!...

Bem lho dissera Eduarda, aconselhando-o a não dar ao passado mais do que
a melancolica e vaga recordação que merece, e lembrando-lhe o dever de
caminhar para a frente, de viver, como ella, uma nova vida mais nobre e
mais cheia de ideais, que a faziam até abençoar esse desastre material
que a libertara de preconceitos e costumes seculares...

Mas elle sofria verdadeiramente e intensissimamente; era uma dôr
material como a de lhe cortarem um pedaço do seu proprio corpo, ao vêr
que tambem o pomar não soubera resistir á mudança de proprietario, na
sua passividade de natureza vegetativa.

Oh, as lindas arvores de fruto, as ruas de plumeiras
decorativas,--inuteis para o criterio mesquinho do vulgo--os crisântemos
estrelados, os lirios rôxos, as roseiras já grossas como arvores, tudo,
tudo fôra sacrificado ao ignobil desejo do lucro. Tudo desaparecêra,
para dar logar á vinha!

Como sofria com tal hecatombe, e como sentia no seu proprio sêr os
gemidos doloridos das suas plantas mortas, cujas almas erravam ali sem
dúvida--elle ouvia-lhes e compreendia-lhes as queixas esparsas naquelle
ar triste de cemiterio...

Vinha: toda a horta, todo o pomar, o seu proprio jardinzinho cultivado
com tanto disvelo!

Um soluço lhe subiu do peito oprimido, e as lagrimas vieram-lhe, sem
querer, aos olhos ardentes.

O quintal tinha pouca agua, sim, elle sabia isso,--fôra até a grande
preocupação da familia--estando numa encosta que declivava dôcemente até
ao ribeiro... Mas nunca lá tinha morrido nada com sêde; pelo contrario,
as arvores desenvolviam-se a olhos vistos.

Todo o desespero das coisas fatalmente irremediaveis o sacudia e fazia
halucinadamente padecer.

A vinha! Como detestava essa planta, de que transformam em subtil veneno
o dôce e aromatico sumo do seu fruto, e que estropia mais criaturas e
faz correr mais sangue e mais lagrimas pelo mundo do que exercitos em
campanha!

Como se tornava odiosa aos seus olhos essa planta, que torce
convulsamente para o céo os braços descarnados de esqueleto, e como a
desejaria queimar, numa furia vingativa de inquisidor!

Luis amaldiçoava mil vezes essa planta, que é tão estimada, porque
representa a cupidez explorando o vicio.

Diante dos seus olhos, embaciados pelas lagrimas, todos esses troncos
nus se animavam e viviam dançando numa roda selvatica de possessos.

Como detestava entranhadamente, sagradamente, a vinha!

Não lhe lembrava, por certo, a alegria rubra e ruidosa das vindimas,
quando elles iam todos, pelos poentes fulvos dos lindos outônos da sua
terra, ás propriedades de fóra, e voltavam atraz dos carros que as
dornas a transbordar faziam chiar doridamente, ora enterrando-se na
areia solta das azinhagas orladas de silvas, ora trambulhando pelas
lages e pedras dos caminhos carreteiros.

Nem sequer recordava o delicado e suave perfume a resêda da vinha em flôr,
quando na primavera as noites são frescas e os rouxinois cantam pelas
ramarias os lirismos dos seus amôres e as romanzas dos seus noivados.

Via sómente os esqueletos tristes que tinham expulso as suas arvores
amadas, as suas flôres escolhidas, as esbeltas trepadeiras, tudo emfim
que fazia o encanto daquelle pedaço de natureza que fôra uma parte da
sua propria alma e deixara de existir para sempre.

Luis abraçou a nogueira, numa última expansão de sentimental, beijou-a
devotamente, como a uma velha amiga que se lhe tivesse conservado
fiel ao coração, e afastou-se lentamente daquelle logar que fôra de
martirio para a sua alma, como a mêsa de operações dum hospital onde se
amputa um membro infermo.

Ainda de longe olhou para traz, e, num instintivo movimento, tirou o
chapéo num último adeus á leal amiga que o vira nascer e fôra a unica
que lhe soubera conservar a ilusão do passado.

Um adeus, um último e enternecido adeus, e tudo tinha acabado.

Foi quasi com indiferença que de novo transpôs o muro, sorrindo para o
pinhal que marulhava como as vagas de vagabundo mar, e que era o mesmo
ainda. Esse não tinha mudado.


Quando o comboio se pôs em marcha para o internar de novo na sua vida do
presente, depois daquella tentativa de viver pela recordação um passado
sepulto, Luis sentia a impressão estranha de que a terra que deixava não
era aquella em que tinha vivido uma tão importante época da sua vida.

Essa, parecia-lhe ter desaparecido completamente, como se a tivessem
rasgado do mapa e a tivessem substituido por uma outra vila
burguesinha, cheia de sol e de gente palradora e vasia, a mexer-se e a
dançar indefinitamente.

Quasi a dormitar seguia vagamente essa gente, ia escutar-lhe as palavras
para rir do mesmo riso banal, e ficava silencioso, sem nenhuma impressão
de alegria ou tristeza.

Depois... tudo se foi diluindo, aos poucos, e adormeceu profundamente,
revendo de novo a terra antiga, com varandas revestidas de trepadeiras
perfumadas, silencios religiosos, as arvores, as casas, os costumes, e a
gente que era dantes...



II

A Feiticeira



A FEITICEIRA


    «La peur qui met dans les chemins
    Des personnages surhumains
    La peur aux invisibles mains qui revet l'arbre
    D'une carcasse ou d'un linceul
    Qui fait trembler comme un aïeul
    Et qui vous rend, quand on est seul,
    Blanc comme un marbre.»

                        MAURICE ROLLINAT.

De todos os rapazes da aldeia era o Manoel da Clara o mais querido das
raparigas.

Fôra sempre um belo rapaz de afugentar rivais, mas, desde que viera da
tropa e de lá trouxera aquelle ar desdenhoso de feliz D. João, aprendido
no convivio dos camaradas presunçósos e mulheres de vida airada, parece
que as enlouquecia.

Acostumado a ajustar a farda, como apertava bem a cinta de lã preta ou
carmezim, que parecia trazer espartilho, o démo do rapaz!

Os sapatos com o lustro bem puxado, que pareciam de verniz; o chapéo
garbosamente descahido sobre a esquerda; a ponta do cigarro atraz da
orelha; e o lenço, com flôres e uma legenda bordadas a côres vivas, a
sahir da pequena algibeira da jaqueta, as mais das vezes levada ao
hombro; o Manoel era na verdade a nata da rapaziada do logar.

No meio dos outros, com as suas caras rapadas de lôrpas, valentes mas
sem a elegancia dos gestos disciplinados pelo exercicio regular, o seu
pequeno bigode de cidadão retorcia-se aos domingos com uma petulancia
irresistivel.

Nas feiras e romarias, firmado no varapau metido debaixo do braço, toda
a vaidade satisfeita a brilhar-lhe nos inquietos olhitos garços,
desafiava toda a concorrencia desagradavel. Ás raparigas iam-se-lhes os
olhos nelle, e mediam-se com o rancôr de rivalidades latentes.

E valentão!?--como aquilo poucos! E, como sempre, era a superioridade
material da força e da coragem o que mais o fazia valer aos olhos de
primitivas femeas, oferecendo-se orgulhosamente ao vencedor, ao macho
forte e soberbo.

Quando o Manoel, com um rapido piparote atirava para a nuca o chapéo
móle de largas abas, dava um passo atraz, fazia girar o varapau em
sarilho sobre a cabeça, e torcia a bôca espumante num esgare de raiva...
podiam fugir delle!

Contavam-se na aldeia as valentias do Manoel com o mesmo entusiasmo e
ufanía com que se contariam as de um heroi da historia, um heroi
autêntico, de que a tradição nos deixasse o nome e a memoria de largos
feitos.

Uma vez era todo o povo de Infias que se juntara para o desafiar,
raivosos por uma questão de mulheres de que o Manoel era afortunado
protogonista, e que elle _enfiara_ pela serra abaixo--que até parecia
que o vento os levava.

«Ó Manoel, lembras-te?...

«E daquella vez na romaria da Senhora dos Verdes?...

«E na feira, quando foi da compra dos meus bois?!...

As perguntas, as respostas, as diferentes versões e comentarios,
envolviam o Manoel num côro de louvôres, que elle recebia mal
disfarçando a vaidade num meio sorriso modesto emquanto ia enrolando o
cigarro entre os dedos fortes onde brilhava um anel de cobra, o encanto
e a inveja dos mais rapazes.

No jogo da bola, ao domingo, no terreiro da igreja, nenhum o excedia,
como ninguem era capaz de o vencer numa partida de chinquilho ou no jogo
do pau. Um valentão, um rapaz ás direitas, sempre pronto a fazer um
favôr, riso franco, coração nas mãos para os amigos; ninguem emfim mais
digno da estima dos seus patricios e ninguem que de facto fosse mais
estimado do que o Manoel da Clara.

Álêm de todos estes merecimentos fisicos, que o superiorisavam, ainda
era senhor de algumas belgas, e unico herdeiro da meação da mãe, a viuva
do Rezadeira, que ajuntara o seu peculiosito na _casa dos fidalgos_. E
era uma mulher de trabalho, a velha Clara do Rezadeira, que só tinha
olhos e coração para o filho, o seu enlevo e orgulho. Primeiro do que
ninguem, como o galo da manhã, saltava da cama, onde a asfixia dum
coração emperrado mal a deixava socegar, e começava a labuta de todos os
dias: amassando o pão, chegando ao forno a prevenir a forneira,
cosinhando a vianda para os cevados, chamando a gente para o trabalho,
despachando serviço, ralhando com um, combinando com outro, e sem nunca
perder de vista a panela onde se cosiam as batatas para o caldo verde
que o seu Manoel havia de comer antes de sahir, na sua tigela bem
meada de brôa. Mal elle aparecia, ainda espreguiçando-se e os olhos mal
abertos mas já risonho e feliz como soberano que se julga crédor de
todos os afétos e homenagens, a vélhota aprontava tudo num ápice, rindo
e ralhando num visivel contentamento de quem se revia no rapagão, que
era o seu filho.

É claro que não havia rapariga na aldeia e arredores á qual não
agradasse a ideia de poder vir a sêr a mulher estimada do Manoel, a
senhora do seu coração e do rico bragal de linho que a velha mãe
guardava avaramente nos grandes arcazes de madeira de fóra, grossamente
chapeados de ferro.

Elle ria-se com todas, o patife, querendo gosar o mais possivel a sua
situação de desejado, sem até ahi mostrar preferencias comprometedoras
por nenhuma.

Mas, entre todas, havia duas que nos últimos tempos mais preocupavam o
Manoel, com grande contentamento da mãe que ansiava por o vêr casado com
rapariga que fosse do seu calhar:--só assim morreria descansada, pois
uma cabeça alevantada como a delle precisava bem do arrimo duma bôa
mulher de trabalho.

Por felicidade, as duas raparigas que o Manoel trazia debaixo de vista
agradavam por igual á velha Clara--assim tinha liberdade para á
vontade consultar o coração.

Uma, Maria Tereza--a Terezinha, como lhe chamava quando acertava de a
topar no seu caminho--era afilhada da _fidalga_ e lá pelo palacio se
tinha criado com mimos e delicadezas que as outras não conheciam. Era
com uma graça toda senhoril que punha os olhos no chão e enrubecia como
romã bem madura quando elle a fitava de frente, bem de frente, como
fazia ás mais, sem conseguir com isso chamar-lhes o sangue ao rosto, mas
fazê-las explodir em jocundas gargalhadas. O seu andar lento e ondulado
dava um realce de elegancia exotica ao seu corpo delgado de anemica,
flôr tristemente desabrochada entre paredes sombrias e velhas coisas
impregnadas da melancolia dos tempos passados. Como era a unica que na
terra sabia lêr, eram tambem os seus os unicos olhos que na missa se não
levantavam do livro para andarem em leilão pela igreja á procura dos
rapazes, que lá de longe, e de soslaio, não perdiam o grupo buliçoso da
raparigada.

A madrinha queria-lhe muito, era o que todos afirmavam, e se não tivesse
morrido nem a Terezinha sahia do palacio, onde era respeitada como filha
da casa, e, talvez, se a morte não fosse repentina, tivesse ficado
senhora daquella fortuna, quem sabe!?... Tem-se visto coisas mais raras.
E melhor teria sido para a terra, pois a casa dos fidalgos, que fôra
sempre abrigo de miseraveis como consolação de desgraçados, mal a
senhora morgada fechara os olhos fechara-se tambem á pobreza, com uma
crueldade que revoltava toda a gente.

Os herdeiros, uns primos em último gráu legal, souberam da sua morte sem
testamento e acorreram de Lisbôa em marchas forçadas. Mas, tudo
liquidado á pressa, apartaram gulosamente, para figurarem nos salões da
capital, as preciosidades que enchiam e decoravam o velho solar. Durante
alguns dias não se ouviu senão o martelar dos carpinteiros fazendo e
pregando caixotes e não se via senão a moderna condessinha, muito
prática em antiqualhas preciosas, abrir portas e armarios, percorrer os
salões e os sotãos, dar volta ás paredes e ás bojudas cómodas de
floreados embutidos, que seguiram com os candelabros, as joias, os
quadros e os Sèvres ricos como os incontaveis Chinas para o sorvedoiro
de Lisbôa. Depois, mal o Conde, com o seu ar mais chic de fadiga, deu
por terminadas as contas e entregues as propriedades ao feitôr trazido
das lezirias ribatejanas como pessôa de inteira confiança, fugiram
atemorizados pela tristeza pesada e humida que resumbrava o casarão
quasi deshabitado havia anos, desde que a fidalga se tolhêra de todo e
passava os dias nos aposentos mais ensoalhados onde fizera a sua
habitação e a da Terezinha, que lhe lia os autôres predilétos e a
arrastava na cadeira de rodas pelas ruas ensombradas pelos buxos
seculares do jardim.

Verdade seja que a Senhora Condessa, sabendo o amôr que a velha prima
dedicava á afilhada e a docilidade e o desinteresse com que ella a
servira e cuidara até ao fim, ofereceu-lhe o logar de sua criada de
quarto e obrigou o marido a pôr em seu nome algumas propriedades
arredadas ou a arbitrar-lhe o seu valôr em dinheiro, coisa duns cem mil
réis, para os seus alfinetes, o que a tornaria na aldeia uma pequena
morgada.

A Terezinha agradeceu cheia de reconhecimento a generosa munificencia da
condessinha, a quem serviu, como ella nunca fôra servida, até á última
hora que se demorou no palacio. Depois, quando se viu fóra do ninho onde
a sua alma se emplumara e o seu corpinho debil de criança pobre crescêra
e se tornara de mulher perfeita, sentiu-se como que isolada num vasto
campo deserto.

Mas, séria e ponderada como era, tomou logo a mais acertada resolução:
indo viver com a tia, a Zéfa do Padre, uma que fazia belos dôces e
fôra por muitos anos ama do velho abade. E para encher os dias, tão
longos agora quanto lhe pareciam pequenos dantes a rodear de cuidados a
madrinha paralitica, metêra-se a tecedeira. Em breve era a melhor, sem
favôr, que havia na terra.

O seu tear, no monotono bater do pedal e correr da lançadeira, só parava
aos domingos e algumas horas da noite.

Aquella vida de reclusão mais lhe amaciava a pele e dava um tom
ligeiramente empalidecido ás suas feições miudas.

--«Mas era alegre dantes!... Agora, _dês_ que o _Manél_ da Clara veiu de
soldado e entrou de atentar nella, é que de mais em mais se vai
definhando, que nem já parece a mesma. Louvado seja Deus, que só
trabalhos e desgostos me chegam _pró_ fim da vida.

Dizia isto a Zéfa do Padre á Gertrudes Zarôlha, velha conhecida dos
longinquos tempos da mocidade, assentadas á porta, com a roca á cinta e
o fuso girando e torcendo o linho cuspinhado pelas suas bôcas palreiras.

--«Mas então aquelle desaustinado não diz nada cá á nossa cachopa?!...

--«Qual historia! Que eu saiba, ainda não lhe disse fala _pró_ bem nem
_pró_ mal.

--«Que desaforado! O que elle precisava sei eu!... Uma rapariga como a
nossa Terezinha!... Crédo, santo nome de Jesus! Mal empregada é ella
para tal libertino, que veiu mesmo perdido da tropa!...

--«Lá isso, ó Gertrudes, mau rapaz não é elle, e tem o seu bocadinho...

--«Ah, mas tem uma cabeça mais leve! No nosso tempo parece que não eram
assim, ó Senhora Zéfa! Quando algum pretendia duma rapariga, dizia-lho,
e estava acabado, iam _prá_ igreja os banhos!...

--«Ora, eu sei lá! Haveria de tudo. Estas coisas esquecem muito, e o
nosso tempo já lá vai ha tanto!...

--«Ai eu cá lembra-me perfeitamente, que o meu _home_ assim fez. Foi até
numa cava; calhou eu ficar ao pé delle, e fômos ao desafio. Como eu é
que ganhei, elle então deu-me um abraço muito grande e disse-me
assim:--Ó Gertrudes, és uma mulher _duma cana_; ámanhã se tu quizeres
vou falar ao senhor abade e _vame-nos a botar os pregões_. E assim é que
foi...

--«E eu que ainda me lembra do senhor abade vir p'ra casa a rir muito e
a contar o caso á minha tia--que Deus haja! Ainda ella então andava rija
e _féra_, coitadinha.

--«Mas vocemecê já lá estava, pois não estava?

--«Pois estava, desde a idade de oito anos que fui p'rá companhia da
minha tia até á idade dos cincoenta em que aquelle santo rendeu a alma a
Deus! Ficou-me nos braços...

--«Coitadinho! Tão bom homem, tão sério, era como o nosso pai de todos.
Veja lá se tudo não vai a peor! Olhe-me para o desatino em que este anda
por ahi, com as raparigas e as mulheres dônas de sua casa, atraz, sempre
em cantorias, e em rezas novas, que nem podem agradar a Nosso Senhor...

--«Já o dizia o senhor abade: a religião deve sêr a consolação da nossa
vida e não o seu unico fim. Mas essa jesuitada entrou por toda a parte
com este rapazelho do seminario--e bem mal têm já feito e hão de fazer
ás familias!... O senhor abade bem dizia, bem dizia... E bastantes
desgostos teve nos últimos tempos, que lhe amarguraram o resto dos
dias... Coitadinho! Assim Deus lhes perdôe, que eu não posso tragá-los.
Até me custa ouvir a missa daquelle avejão--Deus me perdoe se péco!

--«E o que me diz ás amizades delle com os feitôres da fidalga?! Ella
toda _trinques_, caminho da missa logo de madrugada; as filhas de güelas
abertas com as tais _onzenices_ de cantorias na igreja, e mais florinhas
p'rá qui, e mais rendinhas novas nas toalhas do altar, confissão a
cada passo... Eu nem sei, eu nem sei!...

--«E o marido? Vocemecê hade ouvir alguma coisa--está ali á beirinha da
casa...

--«Ora o marido!... Tambem gosta muito daquellas coisas, e reza e canta
e leva o padre p'ra casa a jantar e a tomar o chá, as mais das vezes.

--«_Eia!_--vivem como fidalgos!

--«Aquelles grandes excomungados! No tempo da fidalga, graças a Deus
ninguem batia áquella porta com fome que não trouxesse uma
consolaçãosinha; agora nem um chavo! Tudo querem para elles, aquelles
ladrões!... Parece que ainda estou a vêr a Terezinha ir a correr contar
á fidalga e vir logo com uma abada de pão ou de fruta, ou umas
batatinhas, ou uma tigelinha de papas e o bocadinho de carne!...

--«Pobre Terezinha, tão mimosa foi da madrinha e agora tão triste a vejo!

--«Mas aquelle maroto não lhe dizer nada é o que me dá no gôto!...

--«Elle passa por ahi ás tardes, e ri-se para ella... Quando vai a
alguma romaria sempre lhe traz uma prenda e um cravo com um verso _bem
calhante_, mas nada mais! Ella então é uma tôla pelo rapaz! Mas
quando o vê faz-se encarnada como um pimentão, põe os olhos baixos,
e nem sequer o salva.

--«Ora essa! Tem sua graça, tem!

--«Eu nem posso explicar isto. Que a minha Tereza--não é por sêr minha
sobrinha--não é de engeitar... é a melhor cachopa cá da terra.

--«Ora isso, nem se fala! Compara-se lá! Basta saber lêr e têr a
_inducação_ que teve. É a flôrsinha da nossa vila.

--«Pois isto dá-me cuidado, dá! E não é pouco... A pequena só me tem a
mim no mundo, e eu estou velha e cansada; queria-a vêr arrumada antes de
fechar os olhos. E com o _Manél_ da Clara do Rezadeira gostava, lá isso
gostava: a mãe é rapariga do nosso tempo, e elle tem alguma coisa de
seu, e no fundo não é mau rapaz. Mas então!... Parece bruxaria.

--«Ai senhora Zéfa, não pônha mais na carta. Isso hade sêr, hade! E não
é mais nada senão coisas daquella atrevida da Maria do Próspero! Aquilo
sempre fôram de má raça. Até o pai... hade saber! Não?! Pois eu lho
conto. Crédo, santo nome de Jesus! Cada vez que me lembra até os cabelos
se me põem em pé. O que aquelle malvado disse de mim, que sempre entrei
em casa da fidalga, que Deus tem, com toda a franqueza!...

--«O que foi então?

--«Ai não sabe?! Aquele grande diacho, Deus me perdôe! Então não disse
elle que eu é que chupara o morgadinho, o filho da senhora fidalga!?
Aquella aventesma!... Nem que eu não soubesse!... Bom, calo-me, que é
melhor...

E mudando de tom, muito confidencial e amigavel:

--«Posso dizer-lhe de certeza: a Maria do Próspero conversa com o
_Manél_ e parece que o traz enfeitiçado. Olhe que lhe ouvi eu dizer--que
primeiro estava ella, que já o namorava ha muitos anos, ainda antes de
elle ir para a tropa, e que nunca a _lesma_ da Terezinha o havia de
apanhar! Desculpe, senhora Zéfa, aquilo é uma atrevida, uma doida!...
Pois de que raça ella é!...

--«E o que é certo é que vai levando ávante o seu intento; tem artes do
demonio!...

--«Deixe estar, deixe estar... Eu sei cá umas coisinhas que hãode voltar
o _Manél_, oh se hãode!... Assim eu tivesse uma coisa que lhe
pertencesse... Coisa de vestir era melhor... Punha-lhe a pedra de ara e
dizia a oração... É coisa certa.

--«A Terezinha tem um lenço que elle lhe deu, mas fosse lá falar-lhe
nisso!... Toda se zangava, não acredita nestas coisas...

--«Pois são bem verdadeiras...

--«O outro dia ensinei-lhe que cruzasse as pernas mesmo de pé quando a
atrevida da Maria passar por ella... Desatou a rir!

--«Ah, isso é uma coisa certa para livrar do mau olhado de quem nos quer
mal. Sabe o que era muito bom? Era fazer á pequena um defumadoiro com
hervas colhidas na manhã de S. João... É o alecrim, o funcho, a
dedaleira, o rosmaninho, o sabugueiro... Se quizer, eu tenho lá.

--«Muito obrigada. Assim ella quizesse!... Bem se fazia um defumadoiro
que a livrasse daquelle enguiço.

Assim continuaram em conversa larga, cheia de combinações e reticencias,
que muito as interessava, emquanto a Terezinha dentro de casa trabalhava
na teia branca, que parecia sempre a mesma, eterna como as suas máguas.

O tear monotonamente fazia subir e descer os _pentes_ com um barulho
sêco e igual, emquanto ella levantava a sua vózinha agradavel de soprano
numa toada melancolica:

    --«Eu heide amar uma pedra,
    Deixar o teu coração;
    Uma pedra não me deixa,
    Deixas-me tu sem razão».

E ao dizer a quadra, que parecia sahir-lhe do proprio coração, os olhos
enturvecidos de lagrimas fitavam a estampa ingenua que elle lhe
trouxera da Senhora do Castelo, a grande romaria de setembro.

Todos os anos lá ia--era o costume--e tambem a Maria do Próspero, que
punha nos ranchos um contínuo esfusiar de gargalhadas terçando
galhardamente com os mais afamados _piadistas_ as armas perigosas da
chalaça e da resposta á letra.

Cantavam ao desafio, ella e o Manoel. Tinham fama por todas aquellas
redondezas, e, mal as suas vozes se trocavam num principio de duelo, os
auditores cercavam-nos e apertavam-nos num círculo de admiração
excitando-os com risos e ápartes.

Tambem era o par certo em todas as romarias--talhados um para o outro!

A Maria era alta e desempenada! A sua tez, dum moreno intenso, fôra
brunida pelas soalheiras ardentes e curtida pelas ventanias agrestes. A
bôca, sempre aberta em riso, era vermelha e fresca como cerejas maduras,
e os dentes brancos e agudos cravavam-se com delicia no pão de milho,
sua unica escôva.

As saias, rodadas em balão, faziam-lhe mais altas as ancas já de si
redondas e fortes; o cabelo, em duas tranças pregadas, enchia-lhe a
cabeça como uma touca de veludo negro.

Quando punha o cáchené vermelho e amarelo de grandes ramagens verdes, o
chale em bico traçado deixando livre o braço esquerdo, a chinela branca
pespontada na ponta do pé, nenhuma como a Maria do Próspero para
arrebanhar admiradores.

Depois, sempre satisfeita, radiava em plena expansão dos seus vinte anos
sadios, vividos em plena natureza.

Nas ceifas, ao ardôr dos sóes caniculares, mangas arregaçadas mostrando
os braços trigueiros e musculosos; ou no gesto mecânico de juntar as
paveias e sobraçar os mólhos, tinha a harmonia escultural e grave duma
Céres fecunda.

Nas vindimas, era a primeira dos ranchos, vermelha do môsto que corre
como sangue generoso, a bôca escancarada em risos e cantigas... Tinha um
aspecto quasi tragico e uma beleza perturbante e assustadora de bacante.

Pela apânha da azeitona, quando os campos amanhecem brancos da geada que
toda a noite cahira manso e manso, tudo uniformisando sob a sua alvura
de sudario, e o frio corta as mãos, que se _engatinham_, e entorpece os
dedos que mal se podem dobrar, ella motejava de todos, sempre na frente,
cantarolando e rindo, enchendo de ânimo os mais desanimados,
encorajando os mais entanguecidos pela friagem.

Sempre pronta para o trabalho, a Próspera, em todas as sáfaras e com
todos os tempos!

Mas, tambem, não faltava ás romarias e ás feiras das cercanias, com o
seu lenço berrante, o casaquito branco engomado a capricho, e a sua
alegria saudavel, que fazia bem vêr.

O Manoel não resistia áquella força que chamava a sua força, áquella
exuberancia de mocidade que atrahia a sua mocidade. Quando a via, nem
sequer pensava na Terezinha, que se ia finando lentamente ao compasso
triste e monotono do seu tear caseiro.

E, no fim de contas, para falar a verdade, a Maria era tambem uma bôa
rapariga, que nunca tivera outro conversado. Nem havia lingua danáda de
velha de soalheiro que se atrevesse a debicar nos seus créditos. Alegre,
sim; rir com todos, vá! Mas atrevimentos não os consentia a ninguem. E
tinham-lhe respeito--que a sua mão era lésta, e um sopapo da Próspera
não era brincadeira!

Só o Manoel gosava da sua confiança e só com elle tinha as suas _graças_
e brincalhotices mais livres, o que mais o afervorava naquelle amôr
crescente que o ia conquistando dia a dia.

Á noite, nas esfolhadas, quando o luar é môrno e as flôres têm um
perfume mais intenso, corriam um atraz do outro, batiam-se fortemente, e
cahiam ás vezes sobre a palha ainda quente do sol, com um cheiro sêco
que entontece.

As gargalhadas seguiam-nos de todos os lados da eira, as chalaças
cruzavam-se no ar como morcegos de pesado e estonteado bater de
azas:--Eh lá, Maria, vê se tens mais força do que elle! Isso é que era
um riso, o valentão deixar-se bater por uma mulher!...

--«Talhados um para o outro--isso é que não havia dúvida, nenhuma!

--«A Zéfa do Padre que se deixasse de querer casar a sobrinha com o Manoel.

--«Bôa rapariga, lá sobre isso não havia duas opiniões; mas a Maria é
que estava a calhar para um homem de trabalho, uma mocetona daquellas
que era capaz de voltar um campo sósinha.

Os homens votavam pela Maria, bela mulher para tudo e forte como uma
torre. As mulheres, essas eram pela Terezinha, delicada e amavel, pondo
sorrisos de aquiescencia onde a outra só tinha ruidosas gargalhadas de
troça.

Era ella que lhes talhava e cosia á máquina, sem paga, as chitas pobres,
mas apesar disso tão dificilmente compradas, e lhes ajustava os
coletes de linho grosso que tão irmanados lhes erguiam os seios até á
raís do cólo:--«Ora, sempre era _outra loiça_! Podia lá comparar-se! Bem
se via que tivera outra criação, lá em casa da fidalga, que a tratara
como filha.

--«Que elle gostasse della, vá! Agora da Maria, uma cachopa como as
outras!...

O Manoel, ainda indeciso, mas já a inclinar-se para a Maria, irritava as
mulheres que se ofendiam com a insolente alegria da rapariga, que andava
radiante com o seu ar de triunfo certo.

A velha Gertrudes Zarôlha vivia sobre brazas, nos últimos tempos.

Com meias palavras ou redundancias enigmaticas conseguia sobresaltar o
coração do rapaz, mas não desviá-lo duma paixão que se harmonisava
inteiramente com o seu modo de sêr moral e fisico.

--«Casar com a Maria--dizia a velha á bôca cheia--era até um
pecado!...--e benzia-se com gestos de apavorada, que não explicava mas
punha de sobre-aviso as consciencias timoratas.


Por uma noite de verão, sinistra pelo negrume de nuvens carregadas de
eletricidade e prometedoras de fortes aguaceiros que toldavam o céo,
voltava o Manoel da Clara da vila proxima onde assistira á feira.

Um calôr asfixiante pesava como chumbo no abandono pungente da paisagen
lugubre. Os pinheiros esguios tinham um murmurio mais triste e vago,
como soluços suspensos de almas em pânico, e o olival verde negro
destacava-se no fundo, apertando como num cilicio doloroso a pobre terra
que se dependura de fraguedos rudes, sempre ameaçada pela montanha que a
cavalga e lhe limita o horizonte, cortando-lhe toda a esperança de se
expandir por ali, como o pecado véla e corta toda a esperança da alma
piedosa...

O Manoel, que tinha ficado um pouco para tarde, conversando com uns
amigos na taberna do Geitoso, vinha assobiando alegremente, caminhando
despreocupado e sem grande pressa.

Ao passar pela _Fonte do Inferno_... diabo!... que ouviu elle?! Um rumôr
confuso de gargalhadas, que aflavam no ar como grasnar longinquo de
corvos...

Mêdo?.... Elle não tinha mêdo, mas desde que acontecera aquella historia
da casa dos Carneiros... _Crédo! Abrenuncio!_

--E não se benzeu, o Manoel, como lhe cumpria fazer, ao lembrar-se de
coisas daquellas!... A tropa é que estraga os rapazes, está visto...

Agora, as gargalhadas já soavam mais perto... diria mesmo que ouvia a
Maria do Próspero.

--Mas naquelle sitio, áquella hora!... Quem se atreveria?!...

--Em casa dos Carneiros,--lembrava-se involuntariamente--aquelle barulho
de cadeias a arrastar, os ferros em braza que vinham cahir aos pés da
gente da familia, o vozear sinistro que se escutava em toda a aldeia e
trazia apavorados os mais valentes... Deus do céo, que terror fôra na
terra toda! Já ninguem dormia nem descansava. Muitas mulheres tiveram
então _espiritos_ que os padres e os _bentos_ esconjuravam, e se batiam
com elles como forças iguais.

--Só depois que o senhor Vigario velho se resolveu a sahir, de capa de
asperges, para benzer a casa endemoninhada, é que tudo socegou...

O Manoel já não assobiava, e ia olhando de soslaio para o Camborço,
pedraria escalvada suspensa por milagre sobre o abismo e que a toda a
hora parece desabar e soterrar as pobres casas de pedra solta tisnadas
pelo tempo.

Um ventito picado e quente levantou-se então, trazendo o rumôr distinto
de vozes, gritos surdos e gargalhadas abafadas...

O Manoel era destemido; apesar da má fama do sitio, tido como logar de
maleficas reuniões diabolicas, resolveu-se a transpôr o pequeno muro que
separava o caminho da _Fonte do Inferno_, a propriedade de mais
estimação dos velhos fidalgos.

Primeiro, não viu nada; depois, vaga e confusamente, luzinhas que
saltavam e atravessavam-se corriam e perseguiam-se, juntavam-se e
tornavam a afastar-se...

Um calafrio lhe percorreu o corpo e sentiu na espinha dorsal uma
sensação desagradavel que o fez tremer. O Manoel era valente,--nisso não
podia haver dúvida!--mas é que aquilo que via tão realmente como se á
luz do sol olhasse as suas proprias mãos eram as feiticeiras, tal qual a
sua mãe as tinha visto tambem quando em pequenino esteve ameaçado de sêr
chupado por ellas...

Entre curioso e medroso--já agora não sahiria dali sem vêr o que aquilo
era.

Acercou-se da eira onde a ronda sinistra era mais febril...--Jesus, que
coisa horrivel!--Olharapos corriam vertiginosamente, que mais pareciam
voar, na noite negra, com o seu unico olho flamejante no meio da testa,
lanterna magica das profundezas do averno!...

Um lobis-homem passou a galope, no seu fado triste, procurando alma
christã á qual podesse, antes da meia-noite, entregar a sua cruz
martirisante. Se elle o tivesse topado!... Até os cabelos se lhe punham
de pé.

As luzinhas continuavam correndo alígeras, voando na escuridão dura da
noite.

Surrateiramente foi-se aproximando da eira onde chamejavam em halucinado
rodopio... A pouco e pouco ia-as distinguindo na sua fórma humana,
girando buliçosas e gárrulas.

No meio da roda--cruzes! como podia aquilo sêr?!...--o Diabo passeando
altivo, vestido de encarnado e de chapéo guisalhante, poisando os pés de
forquilha sobre as cabeças das feiticeiras, que riam sarcasticamente.

Dessa vez o Manoel não poude deixar de rir, tão patusca lhe pareceu a cêna.

Ah! mas quando elle viu com os seus proprios olhos--tão certo como haver
a luz do sol que nos alumia!--adiantar-se uma das luzinhas e, tornando
rapidamente á sua figura de mulher, aparecer-lhe a Maria do Próspero,
tal qual ella!... E quando a viu chegar ao pé do _homem vermelho_,
estender-lhe os fortes braços roliços e trigueiros, abraçá-lo com ardôr,
não poude retêr um surdo grito de raiva.

Aquelles braços, que só o pensar nelles lhe fazia febre; aquella mulher,
que o trazia prêso havia tanto tempo e com a sua honestidade alegre
e simples conseguira o seu respeito e o seu amôr, estava ali em frente
delle abraçando outro! E esse outro--Deus do céo, que até a sua alma
tremia!--esse outro era o proprio Diabo em pessôa!

Tremia de desespero e horror por essa criatura, que não passava afinal
duma feiticeira.

Uma tremura nervosa e um frio de gelo o faziam vibrar todo. O sangue
subia-lhe á cabeça, punha-lhe zoeiras nos ouvidos, halucinando-o.

As luzitas recomeçaram a dansa, numa _farandola_ de _sabbat_, correndo e
saltando, num delirio de gargalhadas frias como entre-chocar de ossos
numa dansa macabra.

Ao Manoel parecia-lhe que tudo dansava á volta delle, que elle mesmo se
sentia voar num rodopio de entontecer. Agora o Diabo, sentado num trôno
luminoso de feiticeiras, os pés de bode torcidos e negros a descansar
sobre o formoso corpo de Maria, como se fosse um estrado, lia um grande
livro de capas encarnadas. A cada folha que voltava, sahia uma nuvem de
diabitos fantasticos, saltitantes, folgazões como garôtos ao sahir da
escola, que iam juntar-se ás feiticeiras, e tudo corria, voava, num
cabriolar estonteante e doido.

Uma das luzes aproximou-se então do Manoel, que ficara empedrado na
contemplação da cêna que o atordoava e lhe tirava toda a sensação da
vida, e rapidamente se fez mulher. Ficou boquiaberto, pois a bruxa era
nem mais nem menos do que a Gertrudes Zarôlha, a velha amiga e
confidente da Zéfa do Padre.

Se tivesse pensado melhor não se teria espantado tanto, pois essa era
tida e havida por tal desde que o compadre Marques, o alfaiate, a
encontrara feita galinha, lá para as bandas da vila, arrastando após si
uma ninhada de frangas, as discipulas que ia exercitando pela noite
alta. Admirou-se:--uma galinha tão tarde fóra da capoeira!?--e dando-lhe
com o metro partiu-lhe uma aza. Logo a Gertrudes tornou á sua fórma
natural e lhe pediu que se calasse, pois em paga do seu silencio lhe
daria todos os anos uma camisa nova.

Mas o que é certo é que toda a gente soube do caso, sob segredo, e elle
nem por isso deixou de receber anualmente a bôa camisa de pano de linho.

A Gertrudes quedou-se diante do Manoel: feia e engelhada, a bôca vasia
de dentes, o cabelo esbranquiçado e crespo a fugir do lenço de chita,
uma cavidade vermelha no logar do olho direito perdido não se sabia por
que desastre.

--«Ai, Manoel, pobre rapaz, desgraçado!... Se o Senhor te visse, estavas
perdido neste mundo e no outro!...

Elle olhava-a emparvecido, numa confusão labirintica de ideias, que não
explicava nem compreendia.

--«Ouves, Manoel?--continuava a velha bruxa.--Eu sou tua amiga, não te
quero vêr perdido. Olha, escuta, toma sentido no que te vou dizer: O
_Senhor_ vai perguntar quem corre mais, para lhe entregar a caldeirinha
que veiu hôje do inferno para a nossa missa. Tu hasde dizer que corres
como o pensamento, agarra nella, e foge. Corre quanto podéres! Só
estarás em segurança agarrado á corda do sino da igreja, depois do galo
preto romano cantar pela terceira vez depois da meia-noite. Corre, corre
quanto podéres, e livra-te de olhares para traz, oiças o que ouvires,
sintas o que sentires. Ainda que te chamem pelo teu nome, não olhes nem
páres,--olha que depende dahi a tua salvação e a tua vida!

Afastou-se saltitando, outra vez luzinha, a misturar-se com as outras na
dansa macabra.

O Manoel ficou estarrecido, mas o proprio mêdo lhe deu energia bastante
para responder com segurança á pergunta que o _homem vermelho_ fazia
em voz tão formidavel e soturna que toda a natureza estremeceu de pavôr
e os corvos no visinho cemiterio grasnaram agoirentamente.

Tendo gritado, no meio de vozearia geral, como lhe ensinara a Gertrudes
Zarôlha,--«corro como o pensamento!»--agarrou na caldeirinha magica que
estava no meio da roda e desatou a correr com quanta força tinha, em
diréção á igreja, cujo campanario singelo donde pendia a corda do sino
era agora a sua unica esperança de salvamento.

Mas, fosse porque o conhecessem pelo andar ou fosse por penetração
diabolica e subtil, o que é certo é que, logo que voltou costas, uma
grita ensurdecedora lhe chegou aos ouvidos. Sentiu-se perseguido por
toda uma canalha de demonios, fúrias vêsgas e feiticeiras esguedelhadas,
pequeninos trasgos e enormes gigantes, que ardendo em sêde do seu sangue
e da sua alma christã lhe corriam no encalço.

Via-se quasi perdido, sentia-se quasi agarrado por enormes braços
descarnados e com unhas aduncas e enclavinhadas, que se lhe cravavam na
carne como tenazes... Chamavam-no pelo seu nome, ouvia coisas pânicas, e
ora o insultavam com palavras que se desprendiam como pedradas de funda,
ora o seduziam com promessas tentadoras.

E dizia mesmo que essas vozes sedutôras, que se misturavam ás outras
brutais e agressivas, eram ditas pela bôca vermelha e fresca da Maria...

Mas, fiel á recomendação da Gertrudes, corria numa ânsia ofegante, num
desespero de loucura. Na cabeça enfebrecida duas unicas ideias se lhe
espetavam, como navalhas agudas:--a Próspera abraçando o _Senhor_, como
lhe chamara a Zarôlha, e o campanario humilde onde estava a sua salvação.

Não compreendia nem via mais nada, e nada mais lhe interessava no mundo.
Mas chegaria a tempo de poder agarrar a corda do sino antes do galo
preto romano cantar pela terceira vez á meia-noite?!...

Já as pernas lhe fraquejavam, a cabeça andava-lhe á roda, e os gritos
satanicos, que mais e mais se avisinhavam, davam-lhe a certeza do seu
triste fim, se não conseguisse chegar.

Mas já estava perto--num último arranco, estava salvo!

Se fosse vinte passos mais longe não poderia resistir. Quando deitou a
mão á corda do sino, que deu na noite negra uma badalada lugubre, o galo
preto romano soltava pela terceira vez a sua voz clara e sonora de
espancar visões e pesadelos.

Um gargalhar surdo e um rumôr de maldições e pragas perderam-se no ar,
emquanto o Manoel cahia pesadamente no chão, agarrado ainda á corda do
sino que tremia nas suas mãos crispadas. Ao lado tombara a caldeirinha
tilintando numa vózita escarnicadora.

Para quem duvide do caso, lá está ella na igreja matriz, da pequena
terra triste, cortada na rocha bruta, estrangulada entre pinhais
melancolicos e oliveiras de folhagem eternamente sombria.

Lá anda ella, cheia de agua benta, tilintando sempre a sua vózinha
escarnecedora e fantastica, acompanhando enterros de cavadores tisnados
que na terra encontram o seu unico repouso, e criancinhas frageis que
vão para o céo aspergidas com a agua benta da caldeirinha infernal...

Lá anda, muito serena, orgulhosa do seu metal desconhecido forjado nas
profundezas ardentes do mundo sobrenatural, a acompanhar o senhor
vigario na visita anual em dia de Páscoa alegre e florída:--«Bôas
festas, bôas festas, santas festas!, sorri no seu arzinho petulante.


De madrugada, quando os homens iam para o trabalho, encontraram o Manoel
ainda desmaiado, agarrando-se á corda do sino como naúfrago a táboa
salvadora.

Levaram-no para casa, alvorotando toda a vila com o extraordinario caso.
A Clara de Rezadeira,--coitada!--mal viu o filho, o seu Manoel,
estendido como um cadaver sobre o leito de cabeceiras embutidas, para
onde os homens o atiraram já cansados da caminhada com semelhante pêso,
ia morrendo tambem, sufocada pelo sangue cujos impetos o pobre coração
mal podia regular.

Mas o mestre barbeiro afiançou a cura para breve, dando uma picadélasita
no braço do rapaz--que era de humôr muito quente, e apanhara algum golpe
de sol lá pela feira.

A febre sobreveiu e teve-o entre a vida e a morte, dias e noites ardendo
num fogo de que o delirio e a agitação eram o corolario logico. O que
elle via, os sonhos e os pesadelos que lhe enchiam a pobre cabeça
enfebrecida, mal o compreendiam os seus enfermeiros. E todo aquelle mal
se agravava e a agitação chegava ao delirio furioso dum louco se por
acaso a Maria do Próspero chegava á porta, a pedir noticias ou a querer
ajudar a tia Clara nos arranjos domesticos.

Ninguem podia compreender tal horror á rapariga, nem ella, que se
consumia e chorava sem consolação por vêr a mudança brusca do seu
Manoel.

Quando se levantou estava pálido, cambaleava, e uma tristeza
profundissima lhe encovava os olhos.

No primeiro dia em que sahiu, o seu cuidado foi logo ir procurar a
Gertrudes Zarôlha, que encontrou sentada á porta da casa, fiando e
conversando com o gato preto gordo e pesado, seu unico companheiro e amigo.

O Manoel não esteve com ceremonias, foi direito ao fim. Contou á velha
tudo quanto tinha visto na _Fonte do Inferno_ quando viera tarde da
feira, e exigiu explicações completas sob a ameaça duma sóva se ella não
quizesse dizer a verdade.

Ao principio a Gertrudes indignou-se, pôs as mãos no peito, jurou a sua
inocencia e negou que fosse feiticeira.

--Na _Fonte do inferno_?!

--O Manoel que não sonhasse em tal--_crédo!_ _cruzes, canhoto!_ Fôra
aquelle patife do Próspero que levantara aquella calúnia e dizia a quem
o queria ouvir--que fôra ella quem chupara o filho da fidalga...

Mas o Manoel atalhou:--não negassse a Senhora Gertrudes; tinha-a elle
visto, ora essa! Querer dizer-lhe que não era verdade uma coisa que elle
mesmo vira, com aquelles mesmos olhos que a terra havia de
comer?!... Demais, não tinha nada com a sua vida nem o contaria a
ninguem, pois até lhe estava muito agradecido por o têr ensinado a
livrar-se de tamanho perigo. Agora o que queria saber era a
verdade--sobre a Maria do Próspero. Seria ou não certo tê-la visto
abraçar o _Senhor_?... Seria ou não certo o sêr ella feiticeira a
valer?! Podia têr-se enganado... podia-a têr confundido com outra... Ás
vezes, e como foi ao longe...

Era a última esperança, e a ella se agarrava com todo o afinco de quem
não quer perder uma dôce ilusão.

E pensava, horrorisado, que aquilo poderia sêr verdade e teria que
deixar de pensar na Maria, agora que a paixão por ella chegara ao
halucinamento, hesitante entre o amôr e o odio.

Quanto daria para que a Gertrudes lhe désse a certeza de que os seus
olhos o tinham iludido, quanto daria!... Tornar a têr na Maria a
confiança que tinha dantes; podê-la levar para a sua casa, como ainda na
vespera lhe dissera a mãe, que morria pela rapariga--tão trabalhadeira,
tão desembaraçada e bôa... Não tinha nada, mas isso o que importava?
Ella, a Clara do Rezadeira, não se importava nada com isso e
aconselhava-lhe a que escolhesse antes uma rapariga de trabalho do
que uma com dinheiro, que nada vale quando dá em mãos que o não sabem
guardar nem aumentar.

Como elle esquecia, evocando a formosa rapariga, a pálida Terezinha, que
lentamente se ia definhando e morrendo aos poucos, ao compasso surdo e
monotono do seu tear!...

Mas a Gertrudes foi impiedosa. A pouco e pouco começou a dizer tudo;
primeiro timidamente, tenteando o assunto, depois entusiasmando-se,
contando detalhes, dizendo coisas que arrepiavam e indignavam o Manoel.

Era certo e mais que certo sêr a Maria feiticeira! Havia pouco tempo que
aprendera, mas já a consideravam das mais finas e das mais queridas do
_Senhor_.

--O lobis-homem que tinha visto--mas isso em grande segredo, porque
tinha medo de levar alguma sóva--era o Próspero velho. Andava com o fado
ha tantos anos! Não tinha sorte nenhuma, coitado!

Que de historias lhe contou, e elle ouviu pasmado, vencido por aquella
verdade irrefutavel:--a Maria era feiticeira!

A Gertrudes comentava com gestos curtos e vozes de confidencia:--Ora
essa! De que se admirava? Sempre lhe dissera que não era mulher capaz
para um homem de brio e de honra.

Tinha-lhe odio, o odio implacavel das velhas criaturas despresiveis aos
que têm a insolencia da alegria, da juventude e da beleza. E então,
depois que a rapariga dissera numa sacha, entre as gargalhadas do
rancho, que não queria estar ao pé della porque lhe podia dar quebranto
ou chupá-la como fizera ao filho da fidalga, a Gertrudes não a podia
tragar.

--Se fosse com a Terezinha,--continuava convencedora--com essa era de
sua aprovação. Uma rapariguinha tão recolhida, sem uma _nota_, sem más
palavras para ninguem, e sempre tão bôa, tão condoïda! Mesmo um anjo do
céo!

O Manoel calava-se, abismado no seu desgosto, não podendo seguir-lhe a
tagarelice nem dizer uma palavra que lha fizesse estancar. De quando em
quando, uma palavra ou outra feria-lhe o ouvido, chamando-o á realidade,
aos repelões, sobresaltando-lhe ainda mais a alma amarfanhada.

Por vezes já a imagem da Terezinha, com a sua esbelteza delicada, o seu
vestido escuro de luto aliviado, o sorriso maguado da sua bôca virgem de
beijos, se começava a esboçar na sua memoria. Via-a córada como a romã
quando acertava de lhe dirigir a palavra, sofredora e resignada quando o
sabia mais prêso pelos encantos de Maria; lembrava-a fugindo arisca
da porta para o espreitar da janela, mal assomava ao cimo da rua com os
seus ares triunfantes, bamboleando-se com a importancia de janota de
aldeia.--«Coitadinha! Gostava tanto delle! Emquanto esteve doente, nunca
ella deixou apagar a lampada á Senhora do Castelo...

O Manoel afastou-se por fim--a velha já o enjoava com as suas historias.
E, ao sahir dali, pensava com funda melancolia em todo o passado
extinto, nessa alegria radiosa que não voltaria mais. Da sua vida, tão
profundamente abalada, nem a si mesmo sabia dar conta.

Quando subia vagaroso e preocupado a rua estreita e ingreme, os seus
olhos poseram-se com sobresalto na Maria do Próspero, que caminhava em
sentido contrario, cabisbaixa, os braços cahidos ao longo do corpo, os
olhos pisados postos no chão, o fato em desalinho de quem perdeu o gosto
e a garridice.

Que mudada estava! Nem parecia a mesma,--não a reconheceria por certo
fóra dali.

O rapaz, olhando-a, sentiu subir-lhe do largo peito um soluço doloroso.

Meteu-se na sombra duma porta e deixou-a passar, avergada ao pêso da
tristeza e do remorso do seu pecado sinistro.

Estremecia de horror como se a visse ainda na noite demoníaca, cuja
lembrança o perseguia como uma ideia fixa de monomaníaco.

Como podia ser feiticeira uma rapariga tão linda, tão alegre, tão
sincera?!...

Mas era-o, tinha a certeza, porque a vira abraçando o _homem vermelho_
de negros pés de forquilha, e porque a Gertrudes lho afiançara havia
instantes.

Todo o pavôr daquella noite tragica o tomou de novo, e involuntariamente
evocou o _sabbat_ infernal:--as luzinhas bailando, entrechocando-se, e
afastando-se num compasso rítmico; as gargalhadas que soavam como
crucitar de corvos; os olharapos correndo, com o seu unico olho a
furar-lhes a testa; os lobis-homens galopando, no seu fadario triste;
avejões, diabitos galhofeiros, lémures, trasgos, duendes, feiticeiras,
e, sobre tudo, como ferro em braza a causticar uma chaga, a recordação
da cêna em que a Maria abraçava o _homem vermelho_ e lhe servia de estrado.

Era de endoidecer!

Quando despertou desse pesadelo de acordado, já a Maria ia longe,
andando lentamente, acurvada pelo imenso desgosto de vêr o Manoel tão
diferente do que fôra, e sem razão nenhuma que ella lhe désse!

Se ao menos soubesse explicar o motivo porque tão cruamente a repelira
durante toda a doença, quando ella passava as noites sem se deitar,
sempre pronta á primeira voz,--uma verdadeira filha para a Clara do
Rezadeira, que já lhe queria como tal!...


Alguns mêses depois, os sinos da antiga igreja matriz repicavam
freneticamente mostrando o entusiasmo do sacristão pelo casamento do
Manoel com a Terezinha da Zéfa do Padre.

A noiva ia radiante, mais linda do que nunca. Os olhos brilhantes, os
labios ardentes, as faces ligeiramente córadas pela felicidade
inesperada que a chamava á vida, quando ia já caminhando para a morte,
ao compasso monotono do tear subindo e descendo no contínuo trabalho.

Satisfeito e feliz, tambem o Manoel ia, triunfante, com o seu fato preto
de pano fino, o seu chapéo lustroso, a sua fina camisa engomada a
primôr, ao lado da noiva--uma santinha do altar!, dizia a Gertrudes
benzendo-se.

Tambem elle se sentia alegre e despreocupado, sem pensar na pobre Maria
do Próspero, que curtia sósinha, num desespero tôrvo e sem remedio, a
sua derrota miseravel.

Quando a Gertrudes Zarôlha começou a espalhar o que se passara, o que
vira o Manoel na noite em que viera mais tarde da feira, por se têr
demorado a conversar com uns amigos na taberna do Geitoso, a Maria teve
um violento acesso de cólera, uma rubra indignação, que estava na logica
da sua forte e sadia natureza. Quiz bater na velha, que fugiu
espavorida, gritando-lhe que fosse perguntar ao Manoel--e elle lhe diria
tudo quanto vira...

E ella fôra logo, forte da tranquilidade da sua consciencia, certa de
que elle estaria ao seu lado para a defender de tão absurda acusação...

Mas quando ouviu da bôca delle a confirmação dos ditos da velha, quando
elle lhe atirou com despreso o epíteto de _feiticeira_, sucumbiu. Ficou
quieta, a olhá-lo pasmada, sem encontrar uma palavra para se defender,
cheia de dúvidas e de desânimo... Sem a confiança do Manoel, o que podia
fazer?!

E desandou dali, com grossas lagrimas a rolarem-lhe pelas faces, e um
aperto na garganta que a estrangulava.

Fechou-se em casa; e, sem ninguem que a consolasse, nenhuma alma
compassiva que a ajudasse a levantar daquelle abismo em que a propria
consciencia desaparecia sob a sugestão alheia, rebolou-se pelo chão,
rasgou o fato, atirou contra as paredes a cabeça que sentia perdida e
desvairada, soltou gritos que lhe despedaçavam o peito, até que,
exausta, ficou como morta no meio da casa. Ao voltar do trabalho é que o
pai a levou para a cama, limpando, num repelão, á camisa suja de suor e
poeira, uma lagrima que teimava em rebolar-lhe pela face encarquilhada e
dura.

--A sua pobre filha, a alegria da sua vida--em que estado a encontrava!
Maleitas ou mau olhado, espirito ruim que lhe entrara no corpo e já a
não largaria...

Quando voltou a si, pesou bem a desolação da sua vida, e chorou toda a
sua esperança, a sua alegria como a sua mocidade exuberante que tinham
fugido espantadas diante daquella noite negra e sem fim.

.........................................................................

Emquanto os sinos cantavam na manhã clara, de sol radioso e céo azul em
festa, as alegrias do casamento da Terezinha com o Manoel da Clara, a
caldeirinha magica tilintava o seu risito escarninho e macabro e todos a
consideravam com admiração e respeito pelo sobre-natural.

A Maria, agora feiticeira conhecida e apontada por todos, já não canta
nem vai ás romarias.

Nos trabalhos do campo, as mulheres e as crianças afastam-se della
apavoradas, e os homens, lamentando-a, não têm coragem de vencer esse
pavôr.

Um brilho ardente de febre queima sempre os seus lindos olhos negros,
que vagueiam inquietos, num mêdo doentio e tragico.

Atormentada de visões, mordida de maus olhados, mêses inteiros prêsa de
delirios histericos, sente-se, na verdade, transportada nas azas do
vento para sitios ermos em que luzinhas saltitam em rondas buliçosas,
lobis-homens passam em cavalgadas doidas para se irem espójar nas
encruzilhadas sinistras, moiras encantadas tecem em teares de oiro
contando as saudades antigas da sua vida humana, e olharapos, duendes,
lémures e trasgos povôam as noites horrificas de _sabbat_.



III

Diario duma criança



DIARIO DUMA CRIANÇA


Creio que não é bem exáto o titulo que escrevi no alto da página. Isto
não é verdadeiramente o _Diario duma criança_, não é, mas sim a minha
vida toda recordada dia por dia, hora por hora, com uma precisão de
factos e sensações de que o Chico muito se admira.

Decerto não sou muito velha--fiz em março vinte e dois anos--mas, assim
mesmo, elle acha extraordinario como os episodios da minha infancia se
me fixaram na memoria tão vivamente, e os posso recordar com tanta
nitidez, como se a minha alma tivesse a receptibilidade mecânica de um
fonógrafo.

Não pensei nunca em escrever; sei, tão pouco, que nenhuma novidade pode
trazer ao mundo a minha prosa descuidada e frouxa.

Fui sempre pouco estudiosa e nenhuma honra dei aos meus professores. O
Chico, que é um sábio, é que me disse, uma tarde, resumindo toda uma
longa palestra em que eu lhe contei os mil incidentes de vida estranha
em que o meu pobre espirito se debateu até chegar á dôce paz da nossa
felicidade de hôje:

--«Se tu escrevesses isso tal qual o contas, fariamos um belo estudo de
psicologia infantil!...

Eu, que adoro o meu Chico, não o queria desgostar, mas escrever tudo
quanto sentia, tudo quanto me lembrava têr sofrido, parecia-me tão
dificil!... Vida toda feita de sensações e estranhêzas de caráter, quem
poderá têr interesse em conhecê-la?!

Oh que coisa tão custosa de realisar, este desejo, quasi imposição, do
Chico!...

As minhas memorias são leves fios de aranha que não servem para urdir e
tecer utilmente uma sólida obra caseira.

Escrever o _Diario_ da minha infancia, eu que nunca tive paciencia de
rabiscar cartas muito grandes--a não sêr para o Chico!...

Depois, sei unicamente escrever o que sinto, e os escritôres--dizem--não
fazem assim. O Chico sente os versos que faz tão lindamente, mas esse...
oh esse é outra coisa!

Por muito tempo discutimos, mas, como o senhor meu marido é
adoravelmente teimoso e eu não sei ainda contrariá-lo, deixei-o ir uma
noite destas ao teatro, recusando-me a acompanhá-lo a pretexto de ter
sôno, e quando voltou, eram duas horas da manhã, entreguei-lhe o
manuscrito, que leu sem descansar, tal qual o mandou imprimir logo no
dia seguinte.

Isso é que me custou!... Porque, depois de o escrever duma só vez, e sem
hesitar diante duma unica palavra que não correspondesse ao meu
pensamento, deixando correr a penna nervosamente, em galopada doida,
quando as recordações vinham em montão, chamadas umas pelas outras, numa
lufada de quasi vertigem, sempre imaginei que elle emendaria aquilo e
lhe daria uma fórma mais corréta.

Mas--qual historia!--o querido _infame_ teve o descaramento de se rir na
minha cara e de me responder:

--Que se o emendasse estragaria tudo!

Foi assim que sahiu, tal qual o escrevi, numa hora de febre.


Chamo-me Raquel. Creio que este nome é hereditario na minha familia,
porque a minha avó e a mãe da minha avó eram tambem Raquel. Não sei.
De genealogias, como de tudo mais, entendo pouco.

O mais longe que posso recordar na minha existencia humana, vejo-me feliz.

Era uma grande casa de aldeia, a nossa. Havia ali de tudo quanto pode
desejar uma criança acostumada á simplicidade da vida campestre.

Os pateos eram habitados por uma multidão de animais domesticos, que nos
conheciam bem, de tanto milho que ás escondidas lhes deitavamos.

Eu era a mais velha, e os meus quatro irmãositos seguiam-me alegremente
pelos campos fóra, como um rebanho segue o pastor. Nada nos era defêso,
nem parede que não tivessemos escalado, nem arvore que não conhecessemos
como os nossos dedos. Os frutos eram vigiados desde que as arvores se
cobriam de prometedoras flôres, e antes, muito antes da familia os vêr
em casa, já nós tinhamos feito a nossa primeira escôlha. Quando a nossa
pobre _burrica_ descansava do fatigante trabalho da nóra, iamos
desamarrá-la da manjedoura, saltavamos-lhe para cima, e fazíamo-la
trotar pelos caminhos pedregosos da aldeia como um _pur-sang_ trotaria
nas avenidas areadas dum luxuoso parque.

Felizes tempos!... Mas, no fim de contas, eu era uma rapariga; ás vezes
lembrava-me disso, e nem sempre estava disposta a fazer de general no
exercito _fraternal_.

Muitas vezes mesmo, o instinto do meu sexo pedia-me brincadeiras mais
socegadas: queria _governar casa_, _sêr a mãe_, exercer a minha
atividade de mulher trabalhadeira e que conhece o seu logar. Chamava
então as pequenas da minha idade e brincavamos _ás dônas de casa_:
improvisando os nossos lares em qualquer recanto do jardim, servindo de
baixela fragmentos de loiça, _cosinhando_ pétalas de flôres e hervas que
tinhamos mais á mão; indo ao tanque lavar a roupa das bonecas, _as
nossas filhas_; carregando a agua com a cantarinha em equilibrio sobre a
_rodilha_, no alto da cabeça; tendo as nossas disputas e conversas como
viamos ás _senhoras visinhas_, lá no povo. Ralhavamos com os _homens_,
os meus irmãositos--porque entravam tarde, andavam por lá com os amigos...

Na aldeia não havia meninas _finas_, e então arranjara as minhas amigas
e companheiras nas humildes filhas dos nossos caseiros e serviçais.

Tinha os seus modos desempenados, os seus gostos simples, e, apesar
disso, não me parecia com ellas!

Sempre me hade lembrar o que escandalisava meus pais quando afirmava
perentoriamente: que de todas as casas da vila proxima, onde as havia
muito bôas, era a mais humilde de todas a que mais me agradava.

Cuidaram que era uma perversão do meu senso estético, mas vendo-a ha
pouco, já depois de mulher, confesso que não mudei de opinião. É que
sentia intuitivamente o pitoresco que os nossos artistas andam hôje
procurando com tanto afan...

Na verdade a casinha térrea, construida sobre a rocha onde tinham cavado
os degraus, com seu alpendre e o seu pé de videira a ensombrá-lo, era
duma originalidade, na sua singeleza primitiva, que me encantava.

Nunca, como tantas crianças na minha idade, me lembrei de imitar a mamã,
as tias, ou as senhoras das nossas relações. Nada! Só procurava sêr
aquilo que nunca conseguiria, por mais esforços que empregasse.

Melhor fôra que tivesse conseguido o meu desejo e ficasse como as outras
raparigas da minha aldeia: uma perfeita camponeza, cheia de saude e de
alegria, sem mais cultura do que a dellas!...

--Meu Deus! A delicada ternura do Chico compensa-me de muitos desgostos
passados, abre-me um caminho largo a uma existencia toda inundada de
sol; mas, quando penso em quatro anos da minha existencia, sinto em mim
uma tão grande repercussão de dôres passadas, que não sei quanta bondade
lhe será precisa para mas fazer esquecer!...

Emquanto eu suportei todos os tormentos que uma pobre criança pode
sofrer, sequestrada de tudo quanto lhe rodeou e acariciou os primeiros
anos; emquanto o meu espirito, sacudido pelas lutas mais violentas,
angustiado pelas mais sombrias dúvidas, se abria á compreensão duma vida
que dizem superior; emquanto o meu coração aprendia na dôr os infinitos
cambiantes dos sentimentos complicados; a Rosita, a Maricas, e a
Anninhas da méstra--as queridas companheiras da minha infancia--cresciam
e faziam-se bôas e laboriosas mulheres, cheias de vida e saude, sem
incompreensões mortificantes do seu proprio coração.

Quando ellas me viram voltar á aldeia, tristemente grave, empalidecida
pela dôr, adelgaçada pelos anos, o trajar cuidado de quem não desconhece
os preceitos da elegancia, não compreenderam as lagrimas que bruscamente
me vieram aos olhos e correram impetuosas pelas faces, como vaga
interior vencendo todos os diques.

Imaginaram--as pobres!--que eu tinha saudades das amigas de Lisbôa e as
desprezava a ellas. Oh não, mil vezes não! Tinha uma pungente saudade do
tempo em que o meu espirito, não fatigado, se comprazia nas suas
conversas simples, e em que os seus gostos naturais eram tambem o meu
gosto.

Chorava desesperadamente a minha alegria, para sempre tocada de mal
incuravel; tinha desprezo--e muito--por essa educação que me roubara
quatro anos de vida feliz e proveitosa, dando-me em troca uma ignorancia
mais completa do que a sua! Porque as minhas amigas e companheiras de
infancia sabiam muita coisa util, e eu apenas me podéra convencer de que
não sabia nada--o que é altamente desconsolador.

Como já disse, durante a infancia considerei-me feliz. A minha mãe era
bondosa, como muita gente o é, porque assim tinha nascido, pela mesma
fatalidade psicologica que a podia têr feito nascer uma criminosa. Mas
juntava a essa inconsciente bondade muita justiça e bom-senso.

Cuidava escrupulosamente do amânho interior da nossa casa, não deixando
as criadas levantar mão dos serviços, com uma disciplina que invejariam
muitos instrutores de recrutas. Rezava as orações obrigatorias de cada
dia; cabeceava á bôca da noite, antes de se acender o candieiro para
o serão; e depois de espertar era a última a deitar-se em casa, depois
de vêr todas as portas e apagar todas as luzes--não, fôsse o inimigo
sonso que se lhe metesse algum ladrão em casa, ou as raparigas se
descuidassem com o lume! De manhã era a primeira a madrugar, para a
mesma labuta de todo o ano,--que era afinal a de toda a sua vida.

De sabedorias para si, importavam-lhe pouco, mas queria-as para mim, que
no seu entender devia tornar-me uma verdadeira _menina educada_: tocando
piano, ataviando-me com geito de quem sabe, que não privasse com as
_raparigas da rua_, que lêsse romances para têr umas luzes de historia,
que bordasse a matiz e a escama de peixe ou a casca de castanha,
cantasse ao piano em francês ou italiano, soubesse, emfim, estar numa
sala...

Duma tão grande infelicidade que a unica filha tinha modos de rapaz,
detestava o piano, adormecia a lêr os mais pateticos romances, e fazia a
cabeça doida ao padre José, que nos dizia a missa na capela da casa e
toda a semana carregava com a pesada cruz de nos iniciar nos misterios
da lingua portuguêsa.

Ralhavam comigo, mas, por mais que ralhassem, não conseguiam fazer-me
compreender a possibilidade de estar perfilada numa cadeira a
receber as visitas na sala, como via as filhas do recebedor e as do
medico da vila quando vinham á nossa casa. Francamente, abominava as
adoraveis meninas, que ficavam com sorrisos murchos ao cimo da escada,
recusando-se a seguir-nos á quinta com mêdo de estragar os lindos
vestidos á moda, esses vestidos aparatosos, cheios de fitas e rendas,
que usam na provincia as meninas ricas.

Eu, que era uma selvagem incapaz de tolerar um colête justo ou umas
botas apertadas, que pedia para que me cortassem o cabelo para não
sofrer os penteados, que só gostava dos vestidos depois de afeitos ao
corpo pelo uso, olhava com verdadeiro assombro aquellas meninas modelos.

Ás vezes, a minha bôa Maria Augusta tentava apertar um pouco os cordões
do colête,--«para me tornar elegante»--mas eu protestava tão
energicamente que tinha de desistir logo, dizendo-me arreliada:

--«Ó menina, é preciso sofrer para sêr formosa!

--«Pois sim, espera por essa... Eu nem quero sofrer nem quero sêr formosa!

Uma vez levantei-me cedo, estava uma manhã gloriosa de inverno, deste
inverno tão nosso, em que o azul do céo é limpo, puro e transparente
como se fabricado fôsse pelo mais escrupuloso dos artistas e da mais
preciosa das porcelanas.

Em casa apenas as criadas traquinavam na cosinha, encetando a labuta do
dia, e a Maria Augusta abria janelas e portas para a limpeza do
rez-do-chão.

Acordara cedo; a chilreada dos pardais madrugadores era o meu despertador.

O sol começava a aureolar o cume dos montes, e, como a nossa casa ficava
ao cimo dum vale, depressa me inundou o quarto duma luz rosea que enchia
de alegria os meus olhos e me fazia cantarolar e rir sósinha, como se
estivesse no maior divertimento.

E vesti-me á pressa, com grande abundancia de gestos, batendo na agua
fria, que atirava para a cara com as mãos em concha, satisfeita e feliz
como se uma alma nova despontasse em mim.

Em baixo, a Maria Augusta e as outras criadas festejaram o meu sorriso
jubiloso, a minha madrugada feliz.

Correndo para o pateo, comecei por dar liberdade a toda a capoeira que
ainda permanecia fechada, por soltar o Tigre que os criados já tinham
acorrentado á sua grilheta diurna, e fui á estrebaria vêr a nossa bôa
Cacilda, a burra, que me cumprimentou com um zurrar festivo.

Iniciando assim o que a Maria Augusta chamava irreverentemente a série
dos meus disparates, não parei no principio, o que seria prova de pouca
independencia de caráter... Desprender a Cacilda e trazê-la para a
horta, para que ella podesse saborear á vontade as couves que o velho
hortelão guardava avaramente dos seus dentes de apreciadora, pareceu-me
a coisa mais natural do mundo.

Depois, ella bem almoçada, e naturalmente tão alegre como eu e como o
Tigre, que a seguiamos satisfeitos de a vêr escolher uma a uma as mais
tenras folhas da horta, achei tambem natural, como um simples remate de
tal festa, que fôssemos dar um passeio até á mata.

Chamando a Cacilda, acariciei-lhe o pescoço, dei uma volta á corda na
mão, e dum pulo fiquei-lhe montada sobre o dorso como um rapaz.

Um pequeno assobio ao Tigre preveniu-o da minha resolução, e ahi vamos
nós todos três, alegres e felizes, porque o céo estava limpido e o sol
brilhava, porque o ar era puro e os campos reverdeciam numa jovialidade
de primavera proxima.

A meio da carreira sobreveiu-nos um obstaculo inesperado, na vera pessôa
do bom padre Zé, que já voltava das suas arvores em cata do almoço,
e fez estacar a Cacilda com os seus gestos e gritos indignados.

--«Para onde vai a menina assim montada?!

--«Dar um passeio á mata. É para abrir a memoria e o
apetite--respondi-lhe a rir.

--«Mas isso não são modos de menina bem educada!--apostrofou-me aflito.

--«Eu não sou _menina_, nem _bem educada_!--retorqui-lhe numa gargalhada.

--«Se a mamã sabe!....

--«Não lhe diga nada, que eu já volto.

E, dando um sinal á Cacilda, partimos a galope, deixando o bom do padre
no mais profundo pasmo.

Agora são os medicos os primeiros a preconisar ás senhoras essa maneira
de cavalgar, e não tardará que a moda a impônha como a última palavra do
_chic_. Como a razão é intuitiva e se faz sentir na inteligencia liberta
da criança!

Mas á volta é que fôram ellas! Tinha levantado um verdadeiro temporal de
protestos e queixas com os meus átos, tão espontaneos e naturais quanto
me pareciam humanos e justos...

Pois não seriam elles meritorios: abrir as prisões, soltar os presos,
dar de comer aos que tinham fome, e em seguida premiar-me a mim
mesma indo passear?!

Não o entenderam assim em casa, lá porque as galinhas tendo encontrado
aberto o portão do quintal tinham acabado a destruição da horta, que a
Cacilda encetara com tanto brio! O hortelão parecia doido e a minha
pobre mamã benzia-se assustada, temendo que eu tivesse o diabo no corpo.

Fui chamada ao escritorio, áquelle escritorio de paredes revestidas de
velhos livros onde o meu pai recebia os caseiros, fazia a sua
escrituração, e lia, a maior parte das vezes, os seus in-fólios mofentos.

O caso era realmente grave, mais do que poderia presumir, para que assim
se tivesse apelado para a autoridade paterna...

Assentado na larga cadeira antiga, de coiro lavrado e braços abertos num
carinhoso aféto, onde elle descansava as suas finas mãos de intelectual,
diante do pesado bufete de pau santo torneado em três cordas, como um
juiz austero, o meu pai admoestou-me severamente por tanto disparate e
terminou por dizer:--que me tornava o escandalo da familia e assim não
podia continuar...

E como esta outras muitas fiz, que não acabaria se as fôsse a contar
todas.

A mamã queixava-se da minha extrema ignorancia e incapacidade de sêr
apresentada diante de gente, o que o meu pai corroborava dizendo por seu
turno:--sêr absolutamente preciso, e muito urgente, mandar vir uma
professora que tomasse conta de mim e me sujeitasse a uma «disciplina de
ferro».

--Que não, isso que não!--acudia a minha mãe--não queria estranhas
metidas em casa a vêrem e a ouvirem tudo quanto se faz e em pouco tempo
a saberem mais da nossa vida do que nós proprios. Nem a gente pode falar
á sua vontade, nem têr as suas coisas, porque emfim não ha casa que as
não tenha, sem que tudo se saiba e se comente... Depois, ceremonias,
_niquices_, exigencias... nada, isso não!

--«Pois é o unico meio:--opinava o papá triunfante--uma senhora que lhe
fale uma lingua estrangeira e que a sugeite a um regimen invariavel.

--«Nada, um colegio é ainda o melhor; mete-se lá a pequena e fica-se
livre de cuidados.

Meu pai hesitava,--tinha lá as suas ideias contra os internatos--e estou
em crêr que me preferia ignorante, como a _Zéfinha da horta_ ou a
_Teresita do barbeiro_, a têr que me mandar para um colegio.

Os meus irmãositos todos se afligiam quando se ventilava a magna
questão, que os ameaçava da minha ausencia, e eu, sem bem saber o que
preferia, ia gosando alegremente os dias na bela paz da minha aldeia
florída e ensoalhada.

Mal suspeitava que a desgraça estava a bater-me á porta--e mais terrivel
do que podia imaginar! Parece-me estar a vêr entrar na cosinha de grande
chaminé, onde se enxugava o _enchido_ e as castanhas secavam no
_caniço_, a mulher dos recados que fôra á vila buscar o correio, e me
dizia, alviçareira:

--«Olhe, menina, aqui vem uma carta para a mamã. É do seu tio Manoel; já
lhe conheço a letra.

Muito alegre, arrebatei-lha das mãos e fui-me pela casa fóra a gritar
pela mamã até dar com ella no celeiro a receber uma _pensão_. Lembro-me
bem--_cincoenta e sete!_--gritava o caseiro, e a mamã, muito serena, ia
apanhando um grão de milho por cada alqueire que o homem despejava na
tulha. Quando entramos--eu e os meus quatro irmãositos--como se fôssemos
uma revoada de pardais bulhentos, ella toda se agastou...--Como isto me
ficou nitido na memoria!--Quando viu de quem era e o que dizia a carta,
correu toda satisfeita em busca do marido, emquanto nós
aproveitavamos a falta de vigilancia para saltarmos todos para dentro do
milho. Eu, que era a maior, enterrava-me até á cinta nos grãos amornados
e enchia os bolsos do meu bibe branco, para levar uma lembrança ao
pombal. Um dos pequenos gritava que as suas botas, de canos muito largos
por têrem pertencido ao mais velho, levariam mais dum saco de milho,
para a ração suplementar da Cacilda.

Riamos perdidamente, atirando uns aos outros aquella chuva de grãos
muito sêcos, ainda cheirando a campo e ao sol das eiras onde se aloirara
e brunira!

O caseiro achava muita graça aos meninos--podéra não!--e na sua cabeça
lanzuda esboçava-se, talvez, o pensamento finório de se enganar na conta
com alguns alqueires a menos. É provavel que assim sucedesse, porque a
carta do tio Manoel tinha transtornado por tal fórma a mamã, que até se
riu quando nos veiu encontrar a todos aninhados dentro do milho, e não
passou revista ás nossas algibeiras quando saltamos para fóra e nos
safamos com presteza--não fôsse ainda cerceada a merenda que levavamos
aos nossos protegidos da capoeira, do pombal e da estrebaria!

Já fóra e ainda ouviamos a contagem dos alqueires que entravam para a
tulha, arrastada e monotona. Os bois, jungidos ao pesado e primitivo
carro de duas rodas, estacionavam no quintal, ainda carregados com os
sacos cheios com o resto da _pensão_, guardados por uma criancita
vestida de jaqueta, calças compridas e grande chapéo, como um pequeno
homem de caricatura. O que nós rimos! Era o filho do caseiro, o
_Tonito_, mais novo do que o mais novinho dos meus irmãos, mas já util
como uma pessôa crescida.

São assim os filhos do nosso povo, duma sujeição ao trabalho que os
predispõe para uma longa existencia paciente, sofredora e productiva.

Como esse foi o último dia feliz da minha infancia, não me esqueceram
nenhuns destes detalhes, nem o cheiro á poeira do milho e aos queijos da
Serra da Estrella, que secavam em tábuas prêsas ao této do celeiro por
cordas isoladas com têstos de barro, por causa dos ratos, providencias
caseiras da minha mãe.

Desde essa luminosa tarde de outôno, ainda quente como se o sol cahisse
a prumo, num estiramento inesperado de estio, e já perfumada pelos
frutos maduros, que se recolhiam á pressa, e pelo môsto de cheiro forte
que ferve nas dornas ainda antes de recolher ao lagar, a nossa casa
transformou-se completamente. Eram só conferencias sobre o que se
daria aos _manos_, e mais os lençois bordados, a coberta de damasco para
a cama, as toalhas de linho com ricas franjas de renda de Peniche...
Tudo quanto havia de melhor se levava para _o quarto da laranjeira_, o
mais vasto e cómodo da casa, o proprio quarto de meus pais, que tudo
achavam pouco para receber condignamente o mano Manoel, que voltara
havia pouco tempo do ultramar, casado com uma estrangeira. E assim
passaram oito dias em que se não pensou nem falou noutra coisa.

A minha mãe fazia esforços de memoria por se recordar bem nitidamente
dos traços fisionomicos do irmão, como se volvidos tantos anos gastos em
trabalhos e fadigas, elle podesse têr ainda o rosto levemente rosado, o
buço mal lhe sombreando o labio superior, a cabeleira negra ondeada que
lhe davam um tão gentil aspéto no retrato em _daguerreotipo_, tirado
quando assentara praça em cadete, e que nós não nos cansavamos de ir vêr
á sala de visitas, no seu estojo forrado de veludo granada.

Até o Padre José afroixava a sua vigilancia pelo nosso estudo e punha-se
ao dispôr da mamã--para o que fôsse necessario. A minha mãe sorria
benevola e agradecia, mas não o ocupava em coisa alguma, porque elle,
muito forte no português e no latim e mesmo um tanto no francês,
tirado disso só á mêsa, diante duma travessa cheia de açorda, ou no
pomar podando e cuidando das suas queridas arvores, era homem de alguma
utilidade.

Um santo, o nosso bom professor! Que saudades delle eu tive depois,
quando comparava a sua maneira tão lhana de ensinar, a sua ingenuidade
de bom, respondendo meio comprometido ás nossas curiosidades
extemporaneas, e quando se atrapalhava á nossa pergunta atrevida:

--«Ó padre Zé, para que está sempre a falar no diabo?

Era o costume delle, o seu _bordão_.

--«É verdade--respondia-nos muito ingenuo--é um diabo duma mania que eu
tenho de estar sempre a falar no diabo!...

Um bom homem, afinal de contas; um santo velho, nada fanatico, de bolsa
franca para todas as miserias, palavras de consolação para todas as
lagrimas, espirito bem equilibrado e muito logico, um filósofo sob a
aparencia dum sólido camponez. Conseguira que eu aprendesse da minha
lingua aquilo que ainda hôje sei; conseguiria--era capaz!--ensinar-me
talvez o latim e até a ajudar-lhe á missa. O que não faria desta sua
rebelde discipula a paciencia beneditina do bom Padre José!

O tio Manoel era irmão mais velho da minha mãe. Sahira de casa muito
novo; a última vez que empreendera a incómoda viagem á aldeia, era
apenas cadete, como tirara o retrato. Depois fôra para a Africa, na
ânsia de ganhar honras e postos. De lá percorrera quasi todas as
possessões ultramarinas, sem mais se lembrar de escrever á familia. Só
havia pouco tempo mandara noticias participando têr casado, e dizendo a
sua resolução de voltar em breve ao reino.

Alguns mêses mais tarde, nova carta dava conta da sua chegada a Lisbôa,
onde estava tratando de se instalar, e convidava a irmã e cunhado para
irem fazer-lhes uma visita. Na última carta, aquella que tanta impressão
causara em todos nós, dizia:--que, em vista da dificuldade que os meus
pais opunham em deixar a casa, viria elle visitá-los e apresentar a sua
senhora.

No dia em que deviam chegar, logo de manhã nos envergaram os fatos
domingueiros, recomendando-nos muita cautela--não fôssem os tios
julgar-nos uns besuntões!

Nesse dia era escusado o _lembrete_, pois nenhum de nós pensava em
diabruras, ansiosos como estavamos por vêr chegar os hospedes.

O Papá partira cedo para a vila, para esperar a diligencia que traria os
viajantes, e nós subimos ás janelas mais altas a vêr se
descobriamos o carro por entre as faias da estrada real.

Lá para o meio dia descobriu um de nós uma nuvem de poeira ao longe--tal
qual como no Barba Azul--e, logo depois, ouvimos o guizalhar da
diligencia que já se avistava numa volta da estrada. Corremos
alvoroçados a prevenir a mamã, que na cosinha dava as últimas instruções
á criada sobre a cosedura do perú e o assado de leitão.

Um quarto de hora depois apeava-se á nossa porta, entre o povo curioso,
a mais extraordinaria pessôa que até esse tempo eu tinha conhecido.

Depois disso, no caminho da vida, que já não é curto pelo muito que
tenho sentido e sofrido, tenho visto bastas figuras caricaturais: gente
de todos os modos e feitios, tipos de comedia e tipos dolorosos de
tragedia, riscados em dois traços por Gavarny, risos disformes em
pálidos abortos, exageros de vestuario igualmente ridiculos, ou pela
extrema elegancia ou pelo extremo desleixo... Tenho visto de tudo, e
jámais senti o pasmo que essa primeira pessôa estranha causou no meu
espirito desprevenido.

Os meus irmãos, em frouxos de riso, fugiram para dentro de casa, e o
Miguelsinho, que era o mais velho, abaixo de mim, puxava-me pela
manga sublinhando risos muito ironicos.

Eu, não sei porquê, não tive vontade de rir; qualquer coisa me dizia cá
dentro de mim que era para pranto, e não para riso, a entrada daquella
gente na minha vida.

Primeiro apeou-se o meu tio, um vélhote bastante alquebrado, mas alegre
por se vêr na terra natal. Abraçava toda a gente, e tratava por _tu_
velhas que eu me acostumara a considerar avós, e que limpavam os olhos
lagrimejando por o vêrem tão acabadinho... E elle ria--raparigada do seu
tempo, todas essas vélhinhas, e queriam que elle estivesse um rapaz, e
mais que não tinham andado por trabalhos e canseiras de climas
inhospitos!...

E achava extraordinario que a irmã, uma garotinha de saias curtas quando
elle partira, estivesse já mãe de filhos...

--«E já de cabelos brancos--visse bem o mano!...

Atraz delle, sahiu do carro uma pequena de cinco anos, parecendo têr o
dobro, nem bonita nem feia, extravagantemente vestida á inglesa de
torna-viagem, e toda doutoral nas suas frases. Fôra a última a nascer,
depois de bastantes anos de casamento, em que todos os filhos lhes
tinham morrido; por isso era respeitada como milagre vivo.

Por fim, quando os criados tinham carregado uma aluvião de malas,
necessarios, sacas de linho bordadas, e tanta coisa que nos fazia
arregalar os olhos de espanto, a nós pobres pequenos selvagens, que, a
respeito de viajar, iamos ás quintas proximas pelo tempo da vindima e
até ao rio em folgada pescaria uma vez por festa. Depois começou a sahir
um prodigioso chapéo de palha envolto em gaze côr de castanha, e, a
seguir, um corpo enorme vestido com um guarda-pó de xadrez em largas
mangas perdidas.

Era monstruosa a minha tia! Nunca lhe poude dar este nome porque o meu
espirito se recusou sempre ao convencimento desse parentesco, que
repugnava á minha afétividade.

Alta como um carvalho e gorda em proporção, o que a tornava ainda mais
exotica entre gente miuda como é a nossa. Talvez não tivesse sido feia,
mas as feições estavam enterradas em tecido adiposo, e só naquelle
deserto de cara branca brilhavam uns olhos metalicos e frios que nenhum
sentimento conseguia adoçar. Quando os poisava na miudinha figura de
morenita que eu era então, toda a minha carne se arrepiava numa tremura
e os meus nervos vibravam desagradavelmente.

Trazia o cabelo, já a embranquecer, cortado pelo pescoço,--_á
estudanta_, diziam por lá as pequenas da aldeia--modos autoritarios, voz
de comando, andar de granadeiro, e uma lingua de trapos que ninguem
entendia.

Mãos e pés não tinham fim, e o seu desembaraço irritava-me pela mania
que tinha de fazer tudo e melhor do que ninguem, de falar alto e atirar
os braços para a frente num gesto resoluto de jogador de _box_.

Meu pobre tio admirava-a e escutava-a, submisso, como a um oraculo, nada
fazendo sem a consultar.

Sobretudo nenhuma delicadeza feminil, muito orgulhosa da sua
superioridade e senhora da sua pessôa, dizendo mal--de _pórtuguês_, _e
tudo quanto é pórtuguês, muito estupidos_!...

Dizia-se filha dum banqueiro da Havana prodigiosamente rico, mas tais
riquezas--como as de _Pedro Cem_--perdiam-se na sombra da lenda.

Contava coisas estupendas de _seu papá_, descendente em linha réta de
_grandes de Espanha_, pelos vistos, dos soberbos companheiros de
Colombo... A _sua mamã_, essa era uma aristocratica _lady_, viuva dum
membro da aristocracia britanica, que não se dedignara de aliar o seu
puro sangue azul ao de descendente dos audazes conquistadores...

A fortuna de _seu papá_ pesara por muito tempo nos destinos do visinho
reino, como o luxo da _mamã_ déra brado na côrte de Madrid e na
vilegiatura de San Sebastian, uma vez que os dois tinham visitado a
metropole.

Coisas que ella dizia, que, ao certo, quem pode dizer donde vem essa
gente, retalhos desencontrados e disparatados das raças do mundo inteiro?!

Apreendi depois, no decorrer da nossa convivencia, por meias palavras
escapadas a uns e a outros e por inconfidencias de pessôas das relações
e que os tinham conhecido lá fóra, que o banqueiro cahira
vergonhosamente numa falencia que fizera estrondo e a _lady_ não passava
duma aventureira, dessas que a Inglaterra exporta, sob a capa angelical
de sérias _institutrices_, e que por todos os meios querem arranjar uma
existencia mais cómoda.

Orgulhava-se extremamente dessa sua origem britanica, como de têr
nascido na America, como se fôsse uma legitima filha dos Estados-Unidos...

Oh, a livre America, sonho de todos nós os que nos sufocâmos sob a
pressão do convencionalismo europeu, como essa mulher nô-la
mostrava odiosa, opressiva, duma rigidez de puritanismo fanatico!

--«Oh! _Amérricana_, grande coisa!... _Eurrópa, muito desmoralisada!...
Pórtuguês, muito estupida!..._

Igual ao seu orgulho de têr nascido numa ilha da America e de pais tão
ilustres, só o desprezo, e a ignorancia propositada, por nós, pelos
nossos gostos e aspirações, pelo nosso povo tão laborioso e inteligente,
embora inculto, pelo nosso país tão belo, o nosso clima tão dôce no sul
e tão soberbo junto ás montanhas que a neve cobre nas invernias grandes...

Desconhecia a nossa historia, não sabia lêr os nossos poetas, não se
entusiasmava com os nossos prosadores. Os nossos costumes, tão
pitorescos, eram, aos seus olhos, de selvagens; as canções do nosso povo
achava-as sem brilho nem graça, melopeias só proprias para adormentar
crianças.

Oh, o horror que nos causava essa criatura, que assim abocanhava tudo
quanto nos era querido, achando sempre que dizer das superioridades dos
outros países! Nós, os pequenos, que não tinhamos adquirido com o
decorrer da vida a fleugma risonha com que meu pai a escutava, a
indiferença com que a minha mãe ia tratando da sua vida sem lhe
prestar atenção, nem a paciencia do Padre Zé, que abanava a cabeça
embranquecida como unica resposta; nós desesperavamo-nos por não nos
permitirem contrariar a hóspeda. E o Miguel, que já pensava muito bem e
tinha observações muito a proposito, dizia-me baixinho, de cada vez que
a ouvia denegrir as nossas coisas:--Não sei como, sendo tão mau o nosso
país e a gente tão estupida, ella casou com um português e veiu para cá
maçar-nos!...

Mas o que eu não compreendo é como essa criatura, que para nós era tão
desagradavel, conseguiu convencer meus pais da sua inteligencia,
chegando a dar-lhe razão nos seus grossos dislates.

Principalmente na minha pobre mãe, que se julgava uma ignorante,--ella
que dirigia a sua casa com tanto criterio e olhava providencialmente por
nós todos--fizera profundo sulco a torrente de sabedoria enciclopedica
que jorrava enfaticamente da sua bôca.

Logo que chegou, desembaraçada dos apetrechos da viagem, olhou-nos com
altivez. Depois tomou-me á sua conta, por sêr eu a mais velha e por ser
rapariga. Um dia sujeitou-me a um interrogatorio em fórma:

--«Menina sabe francês?

--«Não, menina não sabia francês.

--«Oh!... vergonha!

Estive para lhe responder:--E a senhora sabe português?!

Chamaram-me sempre atrevida nas respostas, mas o que é certo é que me
arrependo sempre das poucas que tenho deixado de dar tal qual as penso.

--«Menina sabe inglês?

--«Não.

--«Oh! sabe _desenha_?

--«Não.

--«Oh! muito _linda_! Aquellas sombras!... Na _Amérrica_ toda a gente
sabe _desenha_!...

--«Sabe _piana_?

--«Não.

--«Oh! vergonha, vergonha, uma menina não tocar nem cantar!...

E seguiu-se uma preléção sobre tudo quanto enumerava e que eu,
pertinazmente, ignorava. Na verdade eu sabia pouquissimo, mas estou
certa que ella não conhecia senão de nome a maior parte do que dizia.
Aquilo tudo era papagueado, elementos de coisas que aprendera no
decorrer movimentado da sua vida.

O meu querido Padre José pasmava:--«Como podia uma senhora saber tanto?!...

E a minha mãe desculpava:--«Oh, a mana não imagina a falta de
professores que ha por estes sitios! Temos pensado em mandar a
pequena para um colegio, mas o pai prefere uma professora... Eu,
professoras em casa--tenho-lhes um mêdo!


Demoraram-se, apesar de todos os incómodos a que se sujeitavam naquele
selvatico país, um longo mês em nossa casa. Depois...

Quando penso, ainda estremeço de raiva! Depois de longas conferencias e
segredos com os meus pais, combinaram que eu iria com elles para Lisbôa
e ficaria em sua casa para me educar.

Quando nós, os pequenos, soubemos o que significavam tais misterios, já
tudo estava resolvido. Eu desanimei; os meus irmãositos choravam pelos
cantos, e chegavam-se a mim para os animar. O Miguelsinho, que era o
preferido da mãe, tentou discutir tal resolução e pedir para que me não
entregassem á _estrangeira_, mas ficou desiludido da sua influencia
porque o chamaram pateta e prohibiram-lhe terminantemente de se meter
onde não era chamado.

Cá por mim, nada pedi nem objétei; fechei-me num mutismo que exprimia
já, mais do que as palavras, a onda de revolta que se me ia formando no
coração.

Sucumbi. Já não tinha gosto para nada: não voltei á quinta nem procurei
mais a Cacilda, para a cavalgar como os rapazes e percorrer os caminhos
tão conhecidos e amados. Os meus amigos do pombal sentiram por certo a
minha falta, como os da capoeira a tinham já sofrido...

Nunca mais procurei as pequenas minhas companheiras, mas via-as por
detraz dos vidros da janela dansarem em rodas, ouvia-lhes as cantigas
joviaes, percebia que jogavam a _laranjinha_ ou faziam de _senhoras
visinhas_... E ficava-me indiferente, já alheada da sua alegria,
afastada para sempre do seu convivio, desprezando inconscientemente a
sua humildade. Era como aquellas pessôas, quasi na agonia, que já não
são deste mundo nem o que nelle passa lhes interessa--e ainda não
entraram no supremo descanso da morte.

Decerto que muitas vezes pensara em sahir da aldeia, percorrer novos
caminhos, vêr paisagens inéditas, terras lindas de encantar como as
sonhava por esse mundo fóra!... Invejara, não poucas tambem, os
vagabundos que passavam pela aldeia e nos contavam coisas estranhas para
os nossos espiritos, e de que elles traziam nos olhos um vago
assombro... Devaneando, o Miguelsinho e eu, quantas vezes não
conversamos sobre a divertida existencia dos ciganos, que andam de
terra em terra com os ursos e os macacos e sob a sua esfarrapada tenda
têm todo o seu aféto e interesse no mundo?!

Sahir dalí... ir viajar... vêr paisagens novas em folha para a minha
retina, terras desconhecidas, gentes exoticas, seria uma libertação, mas
ir na companhia duma pessôa que nos era tão particularmente antipatica,
confiada á sua guarda, colocada sob a sua autoridade, isso nunca o podia
têr sonhado, nem como pesadelo me assaltara jámais o espirito.

Não chorava, porque a profundeza do golpe me revoltou até quasi á
loucura. Desde o dia em que me deram a noticia do meu destino, deixei de
sêr a criança que fôra até ahi para me tornar numa sombria criatura,
raro abrindo em risos a sua alma ingenua.

Tinha doze anos, cheios de saude e alegria; era uma perfeita criança,
sem sombra de malicia a macular-me o espirito--uma pequena criatura
muito humana e muito bondosa. Fui depois uma pobre alma torturada,
contorcida em odios, desprezando e desconfiando de tudo e de todos.

O mundo deixou de sêr para mim uma festa cheia de sol para se tornar num
algido subterraneo.

Hãode dizer que exagero, que o caso não era para tanto, nem a mulher de
meu tio merecia o repulsivo odio que lhe votei... Mas que querem?! Não
ha animais que odeiam uma determinada criatura, numa repugnancia
instintiva, sem aparente razão?

Tal o meu sentimento por ella: instintivo, invencivel, fatal.

Meus irmãos choraram muito quando eu parti; a minha mãe abraçava-me
soluçando convulsivamente, apesar de toda a sua serenidade de mulher que
nunca sentira rebate de nervos em vibrações assustadoras, mas eu
desprendi-me dos seus braços, de olhos enxutos, pálida e sombria,
concentrada na convicção íntima de que não me estimava verdadeiramente
quem assim me expulsava do seu lar, para me colocar sob a autoridade
despotica duma quasi desconhecida e já detestada criatura.

Antes o colegio!--pensava com amargura. Ao menos teria amigas que
sofreriam comigo o cativeiro, teria talvez professoras que estimasse...

Toda a gente da aldeia acorrêra para me dizer adeus; assim eu andava de
braços para braços, levando beijos que me repugnavam mas aos quais não
tinha coragem de me negar. As criadas, uma por uma, vieram ainda á
porta do carro dizer-me os últimos adeuses, e quando a Maria Augusta me
abraçou apertou-me com tal ânsia que um nó se me deu na garganta, e
teria fraquejado ali, diante da _estrangeira_, se a não visse no fundo
do carro sorrir com ironia da cêna, que aos meus olhos nada tinha de
ridicula.

Quando na vila, ao partir da diligencia, meu pai se voltou para limpar
as lagrimas furtivamente, toda a minha alma explodiu num adeus--que mais
era um grito de protesto... Até elle! Todos, todos, me abandonavam. Era
demais!

Aninhei-me a um canto da carroagem, estupidificada pelo assombroso do
caso, e deixei-me transportar como um fardo, sem vontade nem iniciativa;
era mais um volume a acrescentar aos inúmeros sacos, malas e maletas que
abarrotavam a diligencia alugada por conta da minha enorme tia.

De pouco me recordo dessa jornada triste que me levou a Lisbôa. Dias
chuvosos de princípio de outôno, estradas desertas, campos desnudando-se
numa paisagem uniforme, tristezas da alma e tristezas da bôa natureza,
que se despedia dos meus olhos num compungimento de simpatia.

Ainda bem que chovia! Se fizesse sol, se as raparigas cantassem pelos
campos, e os carros de bois arrastassem pelos caminhos a fartura da
colheita, quanto isso seria infinitamente mais desolador para a minha
pobre alma confrangida!

Assim cheguei a Lisbôa por uma madrugada nevoenta, sem sequer me têr
admirado do caminho de ferro que pela primeira vez vira no
Entroncamento, onde o fômos tomar. O que podia interessar e comover o
meu espirito atordoado por esse repelão da vida, que tão cedo começava a
maguar-me?!

Ah, como se sofre quando se é criança, quando ninguem respeita a nossa
dôr e a nossa vontade, quando decidem do nosso querer como se fôssemos
títeres animados por maquinismo industrial!

Lisbôa não me deslumbrou, porque mais, muito mais, fantasiara dos seus
encantos e fausto no meu sonhar de criança. As ruas da Baixa, com as
suas altas casarias alinhadas e uniformes, que a rigidez pombalina
decretou, faziam-me uma terrivel saudade dos campos largos por onde a
vista passeia e cabriola como cabritinho montez. Apertava-se-me o
coração recordando os horizontes que se esbatem ao longe, nas serranias
violetas; e o marulhar da multidão irritava-me os nervos, mal me podendo
recordar o rumorejar embalante dos pinheirais atravessados pelos
ventos em livres carreiras de tardes outonais...

O meu pobre tio mostrava-me coisas, queria que me extasiasse com a
capital, eu pobre serrana que nunca vira nada, mas a faculdade
admirativa tinha-se embotado em mim. Era um corpo sem alma--que essa por
lá me ficara, errando pelos campos da minha risonha terreola.

Só quando o mar se descobriu diante dos meus olhos, elles se abriram
numa atenção de velha simpatia. Não, nunca tinha visto o mar, mas
sonhava-o e amava-o desde muito, com o aféto entranhado e atavico que
todos nós lhe temos. O mar, a nossa estrada movediça e terrivel!... O
mar, essa nossa segunda patria, foi a unica coisa onde descansei a vista
com enlevo e que durante os quatro anos de cativeiro me deu algum prazer
á vista. Quando, entre duas ruas, o descobria lá ao fundo, numa nesga
rutilante de sol, toda a minha alma se refrescava e florejava de sorrisos.

Felizmente que a casa do tio era num bairro afastado e novo, onde raro
chegavam os pregões berrados das ruas e só de longe em longe o rodar
duma carroagem fazia estremecer os vidros das janelas. E, por fortuna,
tinha atraz um jardinsito, entalado entre casas é verdade, mas
emfim mimoseando-nos com um pouco de ar mais puro para os robustos
pulmões desenvolvidos pelo ar forte da montanha.


A _cubana_ tinha fórmas dogmaticas sobre a educação, que serviam para os
cinco anos da filha e para os meus doze de rapariga nubil.

Era preciso que me levantasse cedo--vá! Isso não me custava, acostumada
desde criança ás madrugadas na aldeia. Mas, depois de me levantar, não
podia correr pela quinta, abrindo o apetite ao almoço suculento que me
esperava na mêsa; tinha que fazer a cama, arrumar o quarto, e estudar.

Em casa, para ajudar a Maria Augusta, muitas vezes lhe tirava a vassoira
das suas pobres mãos encarquilhadas, e varria, cantando festiva,
auxiliando-a no fazer das camas e mais arranjos domesticos; ali,
obrigada, mandada por aquella monstruosa criatura, sentia um tal
desespero, um tal rancôr a referver-me na alma, que todas as minhas
ideias eram negras como fuligem, todos os meus sentimentos eram maus a
roçarem pela perversidade.

Encostada aos vidros da janela do meu quarto, olhava a gente que seguia
o seu caminho, apressada ou vagarosa, alegre ou triste, pobre ou
rica,--e a todos eu invejava com verdes invejas de reptil!...

Era preciso que estudasse três horas antes do almoço, e o meu espirito
vagabundeava pelos caminhos pedregosos da minha terra, debruçava-se na
ribeira onde os salgueiros reflétiam a folhagem leve e as margaridas
rosadas, as pervincas azuis e os miosotis da côr do céo espreitam entre
a verdura da herva tenra.... Era preciso que inclinasse sobre os livros
a minha pobre cabeça pesada de sôno, e os meus olhos fechados reviam os
milharais regados de fresco, as cerejas vermelhas suspensas como pingos
de lacre das arvores amigas, as amendoeiras em flôr, as encostas
cobertas de olivedos pálidos, os pinheiros esguios, os castanheiros
arreganhando a bôca dos seus ouriços para nos darem o fruto saboroso. O
meu espirito não acompanhava o pobre corpo oprimido, que se estiolava
num quarto fechado, diante de estereis livros que não compreendia; não!
Elle assistia, lá ao longe, á ininterrupta festa da natureza;
alegrava-se com os divertimentos do campo; procurava os magustos, onde
se comem as castanhas assadas na fogueira; ia aos _serões_, onde as
velhas avós contam lindas historias ás raparigas, fiando á mortiça luz
da candeia suspensa do velador de pau enegrecido pelos anos;
evocava as ranchadas que vão ás romarias, cantando e tocando a viola e
os ferrinhos, e os que vão para as feiras álacres, entre festivos e
afadigados, na policromia do trajar das mulheres e na gravidade
interesseira do comerciante que oferece ou compra a mercadoria e discute
largamente o seu negocio...

A fuga era o unico deleitoso pensamento que se esboçava no meu cerebro.
Fugir! Sêr livre! Não têr mais diante dos meus olhos a figura estupenda
da mulher de meu tio, nem a face simiesca da petiza!... Era o ideal
supremo que acariciava, um sonho redentor que se me fixava na cabeça por
mil pontos delicados e impercétiveis. Formava com esta unica e obsessiva
ideia projétos sem conto, e se não fôsse a covardia ante o escandalo,
que é ainda uma servidão do nosso espirito, se não fôsse o receio atroz
de sêr apanhada pela policia, vir o meu caso por miudos nos jornais, e
sêr finalmente trazida de novo alí, certamente teria _feito alguma_!...
Faltava-me a energia determinante dos fortes caratéres. A revolta
traduzia-se pelo embrutecimento, pela apatia, pela oposição passiva dos
fracos e dos ignorantes.

Fechada no quarto todas as manhãs, em vez de estudar deitava-me sobre a
cama, e afiguravam-se-me as tábuas alinhadas e estreitas do této como se
fôssem as tábuas do meu caixão.

Lá fóra era a vida: os pregões que atravessavam a rua solitaria numa
festa ruidosa de côres, revoadas de andorinhas riscando o azul em
zig-zagues caprichosos, a chilreada estúrdia dos pardais pelos telhados...

Morria de aborrecimento, e morrer, creio, foi o pensamento mais
consolador que nesse tempo se alojou no meu cerebro.

Não estudava, o que era em mim um velho habito, mas com as lições do
Padre Zé tinha chegado a compreender alguma coisa, e agora sentia-me sem
nenhuma inteligencia, sonolenta, parada, sem sombra de vivacidade
intelectual.

Tinha uns poucos de professores, pagos pelos meus pais é claro. E por
sinal que eram bem generosos com o dinheiro dos outros...

O inglês ensinava-mo ella, mas eu odiava-a tanto e o meu espirito
começava a achar um tal prazer em contrariar os outros, que me sublevava
contra mim mesma quando começava a compreender essa lingua que ella
tinha como sua.

Farta já de a saber, obrigava-a a algaraviar o português para me rir
intimamente dos seus comicos disparates.

Estava assim.


Pouco sahi durante os quatro anos que durou o meu cativeiro--porque a
sua companhia me desagradava cordialmente, porque os passeios por ella
escolhidos eram odiosamente disparatados, e porque a sua imposição de me
ensacar em verdadeiros horrores, que ella alcunhava de vestidos á
inglêsa, me causava um asco invencivel.

Sem têr nunca apreciado os _laçarotes_ e as rendas esbanjadas nos
vestidos provincianos das minhas antigas conhecidas, sem ambicionar a
elegancia casquilha das meninas lisboêtas, o meu espirito era
demasiadamente meridional, demasiado artista, para se não prender com a
fórma e não se encantar pela côr e pela beleza do trajo, como de tudo
quanto me pertencia e rodeava.

Assim, achava meio de me esquivar sempre que sahiam, o que era raro,
pretextando estudos que nunca fazia.

De mêses a mêses, a visita ao consul inglês era o unico parentesis de
luz na tristeza da minha vida. Tinha umas filhas encantadoras,
algumas já senhoras, e, entre ellas, a Maud era muito gentil para mim,
consolando-me e alegrando-me, nas poucas vezes em que nos avistavamos,
das muitas horas de incomportavel tedio que passava naquella casa.

Maud era muito inglêsa na sua educação para censurar uma pessôa das
relações da casa, mas o simples sorriso dos seus labios finos, a ligeira
caricia dos seus olhos puros, era quanto bastava para me encher o
coração de reconhecimento e têr na sua amizade toda a confiança.

Pobre Maud! Levada pelo destino para longe, obrigada a ganhar a sua vida
pela morte dum pai afétuoso e inteligente, em que país, em que terra, em
que familia, o seu sorriso honesto, a sua graça séria, serão consolo e
júbilo para alguma criança infeliz, como eu era?!

Outra qualquer pessôa, por menos melindrosa e suscétivel que fôsse, não
se sentiria feliz num meio em que tudo era violento e desagradavel.

A _cubana_ ralhava por tudo, nada estava feito a seu gosto, de manhã á
noite lamentava têr vindo para um país de que dizia indelicadamente,
grosseirônamente, os ultimos horrores:--a vida era carissima, os criados
eram mandriões e inhabeis, era preciso olhar por tudo, vêr tudo,
desde a roupa da lavadeira até á limpeza da casa...

Tornava desgraçada toda a gente, e não consentia que ninguem se
considerasse infeliz--possuindo a rara fortuna de a têr ao lado!

Ao meu pobre tio impunha uma felicidade que elle estava longe, bem
longe, de sentir. Não podia formular uma opinião sua; era obrigado a
confirmar tudo quanto ella dizia, e ainda dizer-se o mais ditoso dos
maridos e fazer elogios á sua alta inteligencia, bom-senso e sábia
economia.

Meu pobre tio! Verdadeiramente, aquella pressão moral em que conservava
o bom do velho, revoltava-me. Nunca pensei em impôr a minha vontade a
ninguem, e tudo quanto seja coagir a dos outros, tirar ao sêr humano a
liberdade de sentir e pensar por si mesmo, exaspera-me como violencia
contra mim propria exercida.

Depois, a pequena tinha a bela qualidade de espiar e ir contar-lhe tudo
quanto se dizia e fazia em casa, e por muitas vezes o que nem sequer se
sonhava dizer ou fazer. Um _amôr_ de criança!

As criadas entravam e sahiam com uma velocidade de comboio expresso.

Quando mal humorada, dava-lhes bofetada e descompostura que as fazia
fugir espavoridas; mas, se por outro lado lhe désse na cabeça,
enchia-as de presentes e favôres. Era conforme ellas sabiam ou não
lisongear-lhe a vaidade.

A última que lá conheci, talvez a mais velhaca de todas, essa soube
cativá-la, e fazia quanto queria sem que ouvisse uma simples reprimenda.
Adiante falarei na menina Eulalia, que entrou para muito na minha vida.

Meu tio é que escrevia para casa e lá dizia dos meus adiantamentos, que,
francamente, não eram nenhuns. Ás noticias dos meus pais, tão carinhosas
e prolixas, eu respondia com aquellas cartas incolôres que todas as
crianças prisioneiras nos internatos, ou onde quer que lhes pônham
sentinela ao pensamento, têm escrito. Cartas em que nem um vislumbre da
alma infantil entreluz; cartas feitas só de palavras ouvidas, e que são
o primeiro passo para a mentira social a que nos querem sujeitar, como a
cães sábios sob o chicote domesticador e o mêdo... A criança, que sabe
que as suas cartas serão maculadas pelos olhares indiferentes, e os seus
verdadeiros sentimentos procurados nas linhas em branco da sua pobre
correspondencia, perde a sinceridade, não se expande com lisura, não diz
o que sente...

Os bilhetes que metia no mesmo sobrescrito de meu tio eram frios, pouco
mais ou menos o que me diziam que era dever escrever:--que estava bem,
que era bem tratada, que me sentia feliz... Nada do que, em verdade, eu
teria desejo de dizer!

É certo que a minha alma irritada julgava-se ofendida pelo desamôr com
que me tinham expulso de casa para me atirar para o poder daquella
mulher, que para mim resumia tudo quanto eu podia odiar mais.

Nesse tempo não gostava de ninguem--nem de mim mesma. Era injusta, mas
era humana. O animal criado em toda a expansão da sua vida material e
forte, não se subjuga sem rebelião, não se obriga sem muito custo a
entrar no regimen de servidões a que se convencionou chamar _deveres
sociais_.

Assim, quando meu pai empreendia a longa viagem da aldeia á capital para
me vêr, eu não correspondia de modo algum ao seu aféto e interesse.

Sem compreender o enorme sacrificio que faziam para me dotarem com uma
educação que supunham sêr um precioso instrumento de felicidade para
toda a minha vida, achava que era desamôr o que me consagravam e tão
sómente desejo de me vêrem longe da sua casa, porque o meu feitio moral
os desconcertara e lhes era talvez odienta a minha presença...

Ás perguntas insistentes que me fazia, vendo-me tão delgadinha e triste,
o meu orgulho fazia-me responder com sistematica negativa.

Se elle se demorasse, se insistisse, a minha energia não seria mais
forte do que a revolta contra o sofrimento, tão natural ao sêr humano
quando novo e saudavel.

Mas o meu pai não supunha encontrar tais meandros e subtilezas no sentir
duma criança que conhecera defeituosamente franca e impulsiva. Por outro
lado, os negocios da casa não o deixavam demorar mais do que um dia ou
dois, o que não era muito para fundir o gêlo que se formara no meu
coração contrariado e amarfanhado.


Ora de estudos ia eu muito mal. Os meus professores classificavam de
estupidez a minha incapacidade de satisfazer as lições, e creio bem que
o era.

Não estudava, e mesmo que estudasse não compreendia.

A cabeça parecia-me de chumbo, pesava-me como o capacete dum guerreiro
antigo. Não faziam nada de mim, pela certa!

A professora de desenho era a unica que tinha dó dos meus traços
indecisos e me dirigia com bôas palavras, por isso fiquei sabendo um
pouco mais dessa arte, que das outras, e com imensa pena de não poder
fazer tudo quanto ella me dizia que seria capaz de realisar, com a minha
paixão pela corréção das linhas classicas, a minha expansiva busca das
côres, que ousava procurar inéditas e brilhantes na paleta de
principiante...

Sentia-me infeliz, e, se verdadeiramente me quizesse queixar, não
saberia bem precisar o que me maguava naquella casa. Talvez porque era
tudo, desde a gente até á comida. Chegava a sêr um suplício; acostumada
em casa a encher abundantemente o meu pequeno estomago voraz, ali tinha
até mêdo de meter na bôca um pedaço a mais, porque via todos os olhos a
pesarem e a medirem tudo o que a minha garganta oprimida conseguia
deixar passar.

Por economia e por habito, eram todos frugais, e eu, por ceremonia,
quando os via recusar o _roast-beef_, que se comeria frio no almoço do
dia seguinte, recusava-o tambem, embora ás vezes sentisse um bom apetite
de animalsinho carnivoro, que não se sente satisfeito.

O meu unico desafogo era o jardinsito, que tratava com todo o cuidado.
As sementeiras iam a horas para a terra, e não lhes faltavam as
regas, com a agua que eu mesmo tirava da bomba, nem a cobertura de
palha, mais tarde, por causa das geadas.

Andava sempre a espreitar o crescimento das plantas tenrinhas, que mal
despontavam na terra pobre de adubos vitalisadores; e quando, na
primavera, as arvores que mal se desenvolviam na sombra daquelle
jardinsito entalado entre predios altos, se enfloravam, toda a minha
alma florescia com ellas, recordando as que lá ao longe perfumavam os
campos onde a minha saudade me levava errante...

Ora o jardim era dividido do que pertencia ao rez-do-chão da esquerda
por uma sebe de madeira, que eu pensara em disfarçar sob a verdura
abundante duma trepadeira de folha permanente. Passava horas
desembaraçando as finas hastes para as ir guiando e atando. Quantas
vezes, de tanto as querer estender e espaldar, não parti grandes
pedaços, que depois lamentava muito contristada! O mal de quem tem muita
pressa... em contrafazer a natureza.

Ao fundo, era limitado pela parede dum outro jardim, que nunca tivera a
curiosidade de procurar vêr, embora por lá sentisse as risadas de
crianças mais felizes do que eu...

A tristeza até embota a curiosidade, essa fórma, embora inferior, da
vivacidade intelectual. Concentrava-me no meu proprio sentir, e todo o
mundo me era estranho.

Ora isto foi assim até que num dia veiu para o rez-do-chão visinho uma
nova familia: pai, mãe, e filha, uma pequena encantadora, que começou a
sorrir-me e a cumprimentar-me quando me via na minha faina de jardineira.

A Mariquinhas, com a sua mobilidade graciosa, falou-me uma primeira vez,
a proposito de nada, só para encetar conversa. Respondi-lhe
acanhadamente de principio, mas em breve toda a minha timidez
desaparecera diante da sua ampla cordialidade. Conversamos, e logo á
despedida nos beijamos, por cima da sebe que já conseguira vestir duma
folhagem de lindo verde brunido.

Em poucos dias ficamos as maiores amigas do mundo. Pela minha parte
entreguei-me com ardôr ao estranho prazer dessa amizade; agarrei-me a
essa ventura com o desespero de quem se vê só, num meio irritante e
hostil, sem um unico aféto a confortar um pobre coração feito para o
sentimento.

A Mariquinhas era a unica e amimada filha duns pais, que a tinham só a
ella, duns poucos que no seu ninho tinham batido azas palpitantes de
alegria e esperança e a morte lhes levara numa impiedosa e cega
colheita.

Era em casa uma pequenina rainha, que não abusava é certo da sua
autoridade, antes punha uma suprema graça nas suas ordens e caprichos.

Hôje, recordando bem as suas feições, que o tempo já quasi deliu na
minha memoria, acho que não devia sêr, talvez, uma formosura, mas nesse
tempo era para mim tudo quanto conhecia de mais puro enlevo.

Magrinha, elegante, duma finura de traços angelicais, tinha a pálida
beleza das camelias delicadas, que as fortes chuvas do inverno desfolham
rapidamente.

Era muito instruida, uma pequena e encantadora sábiasinha, que sorria,
maternalmente conselheira, da minha supina ignorancia.

Já quasi mulher, um tudo-nada garrida, vestindo divinamente os lindos
vestidos da sua escôlha, ella materialisou no meu espirito o ideal duma
santa ou dum anjo salvador, que Deus tivesse mandado ao meu purgatorio.

Porque... esquecia-me mais esta: a mulher de meu tio era protestante,
mas da última hora. Com todo o fanatismo dos neófitos e a sua terrivel
mania de impôr as suas ideias e de prégar as suas convicções, todos os
dias me ensinava e explicava o evangelho, á sua moda, isto é:
analisando-o e adaptando-o á vida quotidiana, com uma banalidade
desesperadora.

Na minha aldeia nunca ouvira falar em evangelho senão no latim do Padre
Zé, á missa, quando a minha mãe nos dava a consolação de nos pôrmos de
pé. Mas estava acostumada a conversar com o Anjo da guarda como se fosse
um irmão, e no rosto delicado das esbeltas Santas góticas, que ornavam
as paredes da nossa velha igreja, lia enlevadoras historias que ellas me
sorriam...

Arrancar a uma pobre alma de meridional, apaixonada pela côr e pela
fórma, o olôr dos incensos subindo em dolentes preces para um céo
recamado de oiro e pedrarias, onde lindas crianças cantam e tocam
flautas e guitarras maravilhosas, onde florescem jardins ideais, e
correm fontes inesgotaveis de perfumes suaves; tirar-lhe a ilusão
magnifica duma vida embalada pela esperança do milagre, e dar-lhe em
troca a frieza do raciocinio, a clara e positiva significação das
palavras, a simplicidade da fórma despida do encanto da arte, será por
certo de muito bons resultados futuros--e foi-o para o meu espirito, que
se habituou ao rigoroso cumprimento da verdade--mas nesse tempo
constituia um sacrificio a mais a juntar aos muitos outros.

Pois a Mariquinhas encarnou para a minha imaginação mortificada, o anjo
meu companheiro e protétor. Pela sua mão seguiria por sobre a _fragil
ponte_ que representa o dificil caminho da virtude, nas imagens
popularisadas pela oleografia barata, em que o guarda angelico guia uma
criancinha, com a sua mala de viagem a tiracolo, pela áspera senda do
bem...

Fôram os dias bons da minha permanencia naquella casa.

Não sei como a terrivel _cubana_ se não opôs á nossa convivencia, embora
distanciada, apenas entretida pelas fugitivas palestras trocadas a mêdo
por sobre a sebe que as minhas trepadeiras iam vestindo e matisando com
uma floração polícroma.

Lembro-me agora que a Mariquinhas, com a sua viva inteligencia cultivada
no convivio da sociedade, compreendera desde logo de quanta vaidade e
orgulho se enchia a enorme criatura, e sabia lisongeá-la com leves
delicadezas, das quais eu nem sequer compreendia o alcance, na minha
inteireza selvagem.

Hôje, era uma linda flôr mandada pela pequena para a mamã pôr no seu
logar, á mêsa; ámanhã, noticias lidas por acaso nos jornais sobre coisas
passadas em Inglaterra ou nos Estados-Unidos; depois, uma corréta
atenção aos discursos que lhes algaraviava, quando acontecia vê-la da
janela.

Com tão pouco, a Mariquinhas vencera a resistencia feroz daquella
fortaleza e achava-se senhora da situação. Nunca pensei que eu teria,
talvez, conseguido o mesmo se o orgulho--que é uma virtude que nos
nobilita, mas torna dificil a vida social--não me fizesse olhar com
desprezo para esses processos que me punham numa dependencia moral que
me irritava. Decididamente a Mariquinhas era muito melhor politica; onde
o meu temperamento voluntarioso punha energia revoltosa, a doçura do seu
espirito, tão levemente ironico quanto profundamente conhecedor das
fraquezas alheias, usava o suborno da lisonja, que a todos conquista e
agrada.

Apesar das familias não têrem nunca encetado relações que as tornassem
do mesmo convivio,--porque a mãe da Mariquinhas detestava a _espanhola_,
como lhe chamava--conseguira a criança, com as suas blandicias de
lisboêta amavel, que me deixassem ir passar algumas tardes a sua casa.

Era um banho dulcissimo de calma para o meu espirito, que fermentava em
sublevações concentradas mas nem por isso menos violentas.

A D. Emilia era uma destas almas bôas e sãs, tal qual a da minha mãe,
modestas no cumprimento religioso duma existencia que nunca teve dúvidas
nem sobresaltos de consciencia. O seu espirito era simples, e os seus
olhos diziam na clara expressão o que ás vezes os labios não se atreviam
a proferir, com receio de ir infelicitar os outros com uma observação
menos resignada... ou mais verdadeira.

Conversar com a bonissima criatura era abrir o coração e deixar correr
as palavras livremente, numa fluencia de ribeira múrmura e limpida
deslisando por campo sem obstaculos; ouvi-la era escutar o carinhoso
conselho duma rara alma humana que nunca se tinha poluido numa mentira.

Ah, como o meu coração se aliviou da tristeza imensa em que se afundava,
contando-lhe a minha vida; e como ao contar-lha precisei verdadeiramente
o _mal de viver_, que me vencera e arrastava para o desespero! E como ao
escutar-lhe a palavra mansa e insinuante, compreendi, e melhor apreciei,
a modesta e nobre missão da minha pobre mamã!...

O pai da Mariquinhas parecia viver só para tornar felizes as duas
criaturas, que eram todo o seu cuidado e amôr. Aposentado do seu
logar de lente duma escola superior, passava os dias estudando e lendo
no seu gabinete cheio de livros, que já lhe invadiam a secretária, que a
filha todas as manhãs lhe ia enflorar com lindos ramilhetes que ella
mesma cortava e ageitava nas jarras.

Que suave e dulcida existencia! E como a vida corria sem se sentir entre
aquellas três criaturas, tão estreitamente unidas pelo amôr, sem
violencias nem coáções... Que diferença da nossa casa, onde a mulher de
meu tio queria impôr não só a sua autoridade absoluta, o que já seria
abominavel, como os seus gostos e sentir e toda a sua maneira
particularissima de vêr as coisas!

Aquella atmosfera pacificadora fazia-me bem, domesticava-me o coração
que se tinha tornado feroz no odio e na desconfiança.

A unica receita eficaz para se sêr amado sinceramente é amar; era a que
usavam os meus amigos, e por isso venceram a minha rudeza e fizeram com
que os amasse com todo o entusiasmo da minha alma apaixonada.

Com o refrigerio daquelle contacto a vida tornou-se-me menos pesada;
suportava melhor a desgraça desde que tinha quem me compreendesse e
lamentasse. Pobre criança expatriada, que eu era,--naquelle meio tão
estranho e adverso!

Passado o sofrimento que nos crucifica, tirados do logar em que fômos
martirisados, olhando a frio para o que nos fizeram sofrer, é que
verdadeiramente compreendemos e sentimos a dôr, mas com um sentir
retrospétivo que se torna tanto mais agudo quanto maior é a convicção do
que foi a nossa miseria.

Durante o sofrimento a sua propria vehemencia nos atordôa e dá um
anestesico moral, que é a unica compensação para os que têm sentido
pesar sobre si a infinita maldade humana.

Quantas vezes, lendo a historia do passado, não nos atravessa o espirito
a dúvida de que fôsse possivel ao fragil organismo humano resistir aos
ferozes martirios fisicos e morais que as paginas ensanguentadas de
todos os povos nos mostram; mas, olhando em roda de nós, sabendo o que
se faz ainda hôje e que a tirania já não pode esconder ao nosso
conhecimento, porque os protestos dos condenados resôam mais alto na
consciencia humana ou os nossos ouvidos se apuram mais para os escutar,
convencêmo-nos de que é um facto esse embrutecimento sensacional que
pela propria violencia da dôr atenua a mesma dôr, que quasi nos
insensibilisa á força de sofrer.

É o motivo porque hôje pasmo da resistencia passiva que eu fiz ao
martirio daquelles quatro anos de educação inquisitorial. Ou não
fôsse a minha tia uma legítima descendente dos _hidalgos_ inquisidores
que civilisaram a ferro e a fogo os infelizes seus conquistados!


Ora na casa a que pertencia o jardim que confrontava com o fundo dos
nossos, vivia uma familia das relações dos meus amigos,--fôra até a
causa delles virem morar para o nosso lado, soube-o depois.

A Mariquinhas falava-me muitas vezes no Chico, que vivia do outro lado
do muro e era filho da grande amiga de infancia da sua mamã. Dizia-me
que nessa ocasião passava elle as férias no campo, e que quando voltasse
eu veria como era gentil e bom companheiro de brinquedos.

E falava com tal entusiasmo do seu pequeno amigo, um belo estudante já
quasi a terminar o curso do liceu, que o meu aféto--confesso--se
sobresaltou, e um dia perguntei-lhe ansiosa:

--«Ó Mariquinhas, tu gostas mais do Chico do que de mim, não gostas?!...

Teve um fino sorriso incompreensivel para a minha ingenuidade lôrpa e
respondeu-me com o ar ironico duma verdadeira mulher:

--«Elle é um rapaz, e tu uma rapariga.

--«E isso que tem para sêres mais sua amiga?

--«Tem tudo. Não é a mesma coisa.

Não percebi como podesse existir tal diferença nos afétos, mas
resignei-me a ficar sem mais explicações para que o sorriso de desdem
com que a Mariquinhas acolheu a minha evidente tolice não lhe aflorasse
de novo aos labios finos.

Bastas vezes me ficava meditabunda, entristecida, perguntando a mim
mesma se nova complicação não viria por aquelle lado entenebrecer a
minha pobre existencia, onde se abrira uma nesga de céo azul.

Felizmente não foi assim. O Chico, apesar de mais velho do que nós dois
anos, foi um ótimo companheiro das nossas tardes de recreio.

A Mariquinhas ao pé delle tornava-se mais senhora, mais cheia de
gravidade e importancia, sorrindo-se para o Chico quando eu dizia alguma
infantilidade, como uma mãe que acha encantadora a ingenuidade do seu
filhinho.

E bem criança que eu era, apesar dos meus quatorze anos, ao pé da
Mariquinhas, reflétida, instruida e séria como o não são muitas mulheres
feitas.

O Chico, que já então era um sábio em miniatura, ensinava-me muita
coisa, lia-me lindas historias de viagens e descobertas, que era o que
mais o interessava, e explicava-me cheio de paciencia as minhas lições.

Saltava pelo muro para o quintal da Mariquinhas, de maneira que não
fôsse visto de minha casa, com receio de sobresaltar a _estrangeira_, e
vinha têr comnosco associando-se aos nossos brinquedos com um bom humôr
que nos encantava.

Que a Mariquinhas e o Chico esboçassem já então um destes idilios
deliciosos de infantilidade que são ás vezes o princípio de grandes e
puros afétos, que se enroscam na alma e influem para sempre na sua
modalidade, pode sêr, mas que eu não compreendia nada dessas
precocidades sentimentais, é tambem certo!

Foi nesta altura da minha vida que entrou para criada da nossa casa a
menina Eulalia. Não sei de que terra ignorada de provincia teria vindo
aquelle especimen bem acabado da criada alfacinha, mas é certo que ella
já trazia o cunho particular, os vicios e o geito dessa peste que entra
nas casas como a traça na roupa. Que diferença entre essas criaturas
falsas, interesseiras e intrigantes e as nossas criadas da provincia, á
moda antiga, um pouco boçais e confiadas, é certo, vivendo com os
amos numa certa igualdade familiar, mas tão fieis, tão amigas e
carinhosas para nós! A Maria Augusta, coitada, com quanta ternura eu
pensava na bôa mulher que nos criara com extremos de mãe, e tanto
chorara a ultima vez que me fôra vestir, para a jornada!

E a cosinheira solícita e desembaraçada, que nunca esquecia de meter na
fornada semanal do pão de milho, para os criados, os bôlos para os
meninos?! E a _paquêta_, a pequena criada que se vai avesando de criança
aos usos da casa, e é, ás vezes, no futuro, a melhor de todas?! E a de
fóra, encarregada da criação e dos porcos, que nos trazia abadas de
fruta quando ia ás propriedades distantes?! E os criados, desde o rapaz
dos recados ao feitôr, como toda essa gente era sincera julgando-se na
sua propria casa--dizendo as _nossas_ casas, as _nossas_ matas, as
_nossas_ rendas!...

Quanto melhores, apesar dos defeitos de educação que lhes notava a
mulher de meu tio, do que essa turba avarenta e mal educada que vi
desfilar por sua casa durante os quatro interminaveis anos que lá vivi!

Eulalia era baixa e magra, as faces manchadas, os dentes postiços, os
cabelos frisados, e uns olhos pequenos e inquietos que nunca se
fixavam em nós com franqueza.

Não gostava della intimamente, mas acostumara-me já a nada mostrar dos
meus sentimentos e nada, pois, lhe disse que a fizesse supôr tal antipatia.

No entanto, ella compreendeu desde logo que eu era pouco na casa, e
ria-se de mim com a _Lóló_ (o nome familiar da pequena de meu tio), que
enchia de falsas caricias. Tinha grandes demonstrações de aféto pela
_sua rica senhora_, a quem lisonjeava para despertar a sua generosidade,
que percebera existir quando gostava das criadas, o que não era vulgar.

Com o meu tio, cada vez mais doente e enfraquecido, ninguem se dava mal.

Portanto, ia a menina Eulalia sêr a primeira que por lá se conservasse
mais de um mês ou dois.

Era mais uma criatura hostil a seguir os meus passos, mais uma bôca a
denegrir o meu procedimento, mais uns olhos a espiarem-me, e um
pensamento álerta que se exerceria contra mim.

Apesar disso, as minhas relações com a Mariquinhas não afrouxavam, e a
mulher de meu tio não se opunha a ellas porque encontrara emfim o meio
infalivel de domar o meu orgulho e fazer-me docil e estudiosa. Á
simples ameaça de me prohibirem esses momentos de desafogo, não havia
nada que eu não fizesse! Se era a unica felicidade para o meu coração--e
o sêr humano tem della tanta necessidade! Nem os professores já se
queixavam de mim, que a Mariquinhas e o Chico tinham-me tornado quasi
estudiosa, com os seus conselhos e com os seus exemplos.

O tempo nunca pára e por peor que estejâmos corre do mesmo modo veloz,
ainda que tal nos não pareça, dobradas como são as horas de amargura. Já
ia para quatro anos que ali estava e, relativamente, os últimos dois,
desde que conhecera a Mariquinhas, tinham sido de relevado encanto para
mim. Não pensava nem queria pensar no que me rodeava, para só vêr os
meus amigos e com elles viver, mesmo quando ausente.

Foi então, quando nós iamos já contar dezeseis anos, que a Mariquinhas
entrou a adoecer.

A toda a hora se sentia mal. A mãe, muito inquieta mas sem o querer
mostrar, envolvia-a de carinhos, procurava satisfazer-lhe todos os
desejos. Enchia-se de apreensões, e toda a sua alma se enregelava e
tremia num pavôr de dôres já sentidas a prognosticarem amarguras ainda
inéditas.

Pobre mãe! Era bem certo que a Mariquinhas lhe daria, e breve, o maior
desgosto da sua vida.

O outôno vinha chegando, duma estranha doçura esse ano, a infiltrar-se
na alma, todo doirado nos poentes tepidos a esmorecerem em lentas
agonias, como nas arvores que se cobriam do oiro das folhas mortas para
mais depressa se despirem e esperarem arrepiadas e friorentas o triste
inverno.

O jardim constelava-se de crisântemos, que na nossa terra têm o
sugestivo nome de _despedidas de verão_, brancos como flocos de neve,
rubros, amarelos, dum rôxo desmaiado como leves aguadas, outros de côres
intensas, mesclados e rajados, variando na côr como na fórma, desde o
desgrenhado da cabeleira bohemia ao recorte regular da máquina de fazer
flôres de papel.

Debaixo do caramanchão, que tambem se ia despindo, primeiro das flôres,
depois das folhas, a Mariquinhas, quasi deitada na cadeira de verga que
a mãe lhe almofadava desveladamente, olhava melancolica os seus queridos
crisântemos, que todas as manhãs desabrochavam de novo e vinham
preencher a falta dos que se cortavam ou pendiam emurchecidos.

Com as suas mãos translucidas, que eram uma das suas grandes vaidades,
entretinha-se por vezes a juntar em ramilhete as flôres que eu lhe
ia levando. E mandava-me ir dispô-las no gabinete do pai, como outrora
ella fazia. Mas o triste velho é que não lhe achava o mesmo encanto, e
com a cabeça entre os braços cruzados sobre a secretária, mal me via
desatava num soluçar de criança, que me compungia extraordinariamente.

Ás vezes mandava-mas cortar duma só côr, e juntando-as num ramo,
dizia-me, sorrindo enigmatica:

--«Vês? Gosto mais assim. As brancas junto das outras pareciam-me ainda
mais pálidas. É como os doentes ao pé dos que têm saude.

Tinha então manias esquisitas, caprichos inconcebiveis, maus humôres,
que me faziam sofrer enormemente. Impacientava-se quando me via chorar
com as suas maldades, mas chamava-me dahi a pouco para me beijar, numa
solicitude, numa súplica, de quem deseja sêr perdoado.

Ás tardes, quando o Chico recolhia depois das aulas, pedia-lhe para que
fôsse lêr-lhe historias, lindos romances, que elle ia escolher á estante
clara, de _érable_, do seu lindo quarto de donzela.

Foi assim que ouvi, como o decorrer dum sonho delicioso, aquelles
adoraveis romances de Julio Diniz, que ficaram sagrados como livro
de rezas para o meu coração de rapariga.

Depois, nem já mesmo isso; ás horas a que costumava entrar o Chico,
mandava-me embora, com uma crueldade, um desamôr, que me enchia de
desespero e me fazia chorar horas seguidas, com a cabeça enterrada nas
almofadas da minha cama para que ninguem suspeitasse do motivo da minha
pena.

Voltavam todos os meus desesperos e tristezas como bando de corvos, por
um pouco afugentados pela alegria.

Dizia adeus ás tardes joviais de recreio, adeus a tudo quanto me tinha
consolado de viver!...

Algumas vezes, mas sempre quando não estava o Chico, a Mariquinhas
mandava-me chamar com muito empenho. Ia logo, correndo alvoroçada, e
encontrava-a então carinhosa como nunca, num redobramento de aféto e
ternura que me fazia esquecer todos os agravos.

Era então a Mariquinhas doutro tempo, a bôa fada que transformara a
minha dura existencia, o dôce e querido anjo da guarda dos meus sonhos.

Uma tarde, em que estava melhor, olhou fixamente para mim, com um
estranho olhar que nunca lhe vira, e disse-me, como quem faz uma
descoberta:

--«Ó Raquel, tu és bonita, sabes?

Eu ri-me francamente, como quem nunca ouvira tal nem se preocupara com o
assunto.

--«Não... sério!--acrescentou convincente--tens uma cara estranha, que
não é bonita á primeira vista, mas que, pensando bem, te hade fazer uma
simpatica mulher.

E quiz que a acompanhasse ao seu quarto, que tinham mudado para o
rez-do-chão, para que não se fatigasse a subir escadas; enfeitou-me com
todos os seus enfeites e joias, penteou-me de muitas fórmas, e batia as
palmas satisfeita, queria que todos me vissem, perguntava á mãe: se
realmente eu não tinha o tipo daquella mulher que o Chico lhe trouxera o
outro dia numa magnifica gravura tirada duma revista e era a cópia dum
quadro que obtivera o premio na última exposição do _Salon_.

A pobre mãe sorria, um pouco animada por aquelle entusiasmo que lhe
parecia prenúncio de melhoras.

Mas não, aquilo foi como descanso da doença, como que para retomar força
e voltar ao assalto com redobrada violencia.

Sofria muito, a pobre alma! Já mal podia andar; melhor se poderia dizer
que se arrastava, encostada ás pessôas que a acompanhavam. Tinha
gestos tão cansados, sorrisos tão murchos, caricias tão frouxas, que eu
chorava sem saber porquê, só de olhar para ella.

Queria consolar-me e sorria, mas esse sorriso vinha molhado de lagrimas
e descobria-lhe os dentes descarnados numa bôca exangue.

Nunca mais os nossos encontros fôram a horas em que estivesse o Chico.
Tambem, pouco me lembrava delle, triste como andava com a doença da
Mariquinhas; mas, quando ás vezes perguntava noticias do nosso amigo,
respondia-me tão sêcamente que cheguei a imaginar que estavam mal.

A D. Emilia metia dó, e ella tambem olhava para mim fixamente e tinha
uma frase de profundo desconsolo, de quasi inveja, que revelava o estado
do seu espirito:

--«Como a Raquel tem saüde!...

O mal agravava-se de dia para dia, sem remedio possivel para a pobre
querida que suportava heroicamente todos os martirios que a medicina tem
inventado para prolongar a vida dos condenados. E ella que queria tanto
viver! Tinha tanto amôr á vida que nunca tivera senão caricias para os
seus adoraveis dezeseis annos!...

Os pais já sabiam: todos os filhos na idade da Mariquinhas lhes tinham
ido da mesma maneira, com os pobres pulmões esfacelados, deitando
pela bôca todo o sangue dos seus corpinhos exauridos, sem que a opinião
dos medicos chegasse a sêr uniforme sobre o verdadeiro mal.

Quando o tempo peorou e ella tambem já se não podia arrastar até ao
caramanchão, ficava por traz dos vidros da janela para que eu a podesse
vêr de longe.

Depois, nem isso, deixei de a vêr; e, por mais que espiasse no jardim os
movimentos da casa, raro conseguia saber noticias.

Vivia num tal desespero, agora que, desde que a doença se agravara, não
consentiam que visitasse a Mariquinhas, com mêdo de contagios!...

E viver ali, a dois passos da unica afeição que me enchia a alma,
sabê-la gravemente inferma, vê-la de longe e não poder falar-lhe, era
uma verdadeira tortura para o meu temperamento de impulsiva e apaixonada.

Era uma angustia curtida em silencio, que me despedaçava brutalmente o
coração.

Um dia, quando atravessava a cosinha para ir á minha piedosa espionagem,
a Eulalia voltou-se para mim com uma frigideira na mão e disse-me, com
um ar escarninho que me arrepiou:

--«A menina Mariquinhas--sabe?--está a morrer.

E ante a dúvida, claramente expressa no olhar com que a fitei, esclareceu:

--«É verdade! Disse-mo a criada da cosinha. Até lá ficou o medico esta
noite.

Empalideci, e cambaleei como se fôsse perder os sentidos. A Eulalia, que
me dissera a novidade mais por espirito alviçareiro do que por
verdadeira maldade, ao vêr a minha dôr teve realmente pena. Chegou-me
uma cadeira, foi a correr buscar agua, que me obrigou a beber, e tentou
consolar-me. Era tarde. O medico em casa da Mariquinhas a passar a
noite... tinha-me soado como um dobre a finados. Sempre, para o meu
espirito de criança, a sua presença assidua fôra presagio de desgraça
proxima. Era a certeza de que a morte, que tantas vezes chamara para
mim, andava perto, a bater á porta da Mariquinhas...

Uma tremura convulsiva fazia-me bater os dentes como se estivesse a
tiritar de frio--era todo o frio da alma que me enregelava o sangue.

A Eulalia consolava-me, apiedada,--talvez que no fundo ella não fôsse
verdadeiramente má. A vida, com as suas exigencias e cruezas, torna tão
diferentes as criaturas que não têm a alma temperada para as grandes
resistencias!--Porque não pedia eu licença para ir visitar a minha
amiga? Talvez não fôsse verdade!...

--Pedir á tia?! Nunca lhe tinha pedido nada, a Eulalia sabia. Era esse o
meu orgulho, a unica coisa que me tornava, aos meus proprios olhos, num
sêr independente e respeitavel.

E a criada, muito conciliadora, como se tivesse despertado na sua alma a
natural bondade da nossa raça de sentimentais pelo apiedamento que a
minha mágua lhe causava, ofereceu-se para pedir, como coisa sua, a
devida licença, se eu quizesse...

Eu quiz, é claro. Era a primeira vez que o meu orgulho se dobrava numa
convivencia com a criada, o que me amarrotava e inferiorisava á minha
propria consciencia, que foi sempre o unico julgador que temi.

A licença não veiu logo, para mais cruelmente me fazerem sentir a
dependencia, mas a rapariga não desistiu e tanto disse que á tarde me
entrou no quarto triunfante com a autorisação para ir fazer a visita tão
ambicionada.


A noite cahia num agonisar de luz, que as nuvens pesadas de chuva mais
velavam.

Ao entrar distingui apenas fórmas indecisas, movendo-se silenciosamente
no quarto mal alumiado. Logo a seguir, não sei quem colocou uma
lamparina de vidro coalhado sobre uma mêsa, aos pés da cama onde a
Mariquinhas agonisava.

Olhei com dolorida surpreza: ella, que fôra tão linda, duma graciosidade
que doirava toda uma mocidade que se abria em flôr, tornara-se com a
doença pavorosamente feia.

De princípio apenas percebera o estertor rouco, que fazia arfar o seu
corpinho mumificado, e uma frouxa mão muito pálida, que apanhava,
inconsciente, a roupa da cama. Depois, com os olhos afeitos á quasi
obscuridade em que me encontrava, fitei-a com terror e não podia, por
mais que quizesse, deixar de olhá-la, num crescendo de angustia que me
apertava a garganta e me comprimia o coração.

Chorei então silenciosa mas desesperadamente, num desânimo de quem vê
afundar-se todo um passado de alegrias e não vê no futuro luzeiro de
esperança.

A Mariquinhas ali estendida, a sofrer, a morrer, ella tão linda, tão
gentil, a gárrula, algum tempo antes! Ai, pobre, pobre querida, como
desejei sinceramente e como formulei no silencio da minha consciencia o
desejo de que a morte me levasse antes a mim e a deixasse a ella, á bôa
fada dos meus sonhos, ao anjo da guarda que descera até á minha
miseria desdobrando as suas brancas azas acalmadoras!

Mas a luz, avivada num momento, bateu-lhe em chapa no rosto, naquelle
pálido rosto tão completamente mudado; a impressão foi por tal fórma
brutal que as lagrimas secaram-se de subito nos meus olhos e um grito de
terror veiu expirar nos meus labios.

Endireitei-me sufocada, e ia fugir, numa revolta instintiva, á miseria
do meu ideal despedaçado. Antes, antes a não tivesse procurado vêr, e
guardasse na memoria a linda imagem do que fôra--dizia no íntimo da
minha alma aquella voz egoista, e tão fundamente humana, que faz a
felicidade dos que a podem escutar a tempo.

Não sei quem me ciciou ao ouvido:--vai morrer!

E, não sei porque estranha percéção daquella inteligencia prestes a
desaparecer, ella me presentiu e me reconheceu. Abriu os olhos, uns
olhos enormes já postos noutro fito; levantou a mão, já quasi
entorpecida; e soltou uns sons inarticulados, que mal pareciam de voz
humana.

--«Chamou-a, quer-lhe dizer alguma coisa--murmuraram-me ao ouvido,
empurrando-me para a cama.

Fui cahir, desorientada, de joelhos, junto desse corpinho debil que
tanto sofria para sêr arrancado á vida.

E nunca, nunca mais poderei riscar da memoria o olhar fundissimo de
amargura, quasi odiento, com que a Mariquinhas me envolveu toda, como
que sondando-me...

Meu Deus! eu não compreendi, não podia compreender então o desespero da
pobre alma ao vêr-me cheia de saüde e de vida, emquanto ella--que tanto
amava e desejava viver!--ia desaparecer, para todo o sempre!

Ai pobre querida, que remorso imenso senti depois! Mas nesse instante,
fixada por esse seu doloroso olhar cruel, senti uma surda revolta que
subiu do mais íntimo da minha alma e me invadiu completamente o
espirito. Toda a animalidade saudavel e forte do meu sêr se insurgia
contra a inveja expressa nesse olhar de moribunda--que não queria sêr
vencida...

E que tinha ella que invejar-me, se alguns momentos antes toda a minha
vida, toda a minha saüde, o meu sangue quente e palpitante, tudo eu lhe
daria de bôa vontade?!...

A mãe, de joelhos, do outro lado da cama, escondia a cabeça na roupa
para que os soluços não amargurassem a doente que tudo ouvia e
compreendia.

O pai, enterrado numa poltrona, parecia paralisado pela violencia
extrema da dôr.

Dahi para diante não fui mais senhora de mim. Criaturas serviçais, muito
práticas em identicas cênas, aconselhavam-me o que devia fazer. Uma
velha, principalmente, apoderou-se da minha pessôa e foi-me indicando,
com uma intimativa que não admitia tergiversações,--o que é costume
fazer uma menina na morte de uma amiguinha.

--«Ella quer falar,--segredava-me--pergunte-lhe se quer alguma coisa.

E tocava-me nos hombros, para que me inclinasse sobre a face cadaverica
da Mariquinhas.

Queria fechar os olhos ao ritus de quasi caveira que tinha nos seus
dentes descarnados, e cada vez os abria mais, até que a sua imagem me
ficou tão profundamente vincada na memoria, que me vem sobre todas, que
é superior a todas, ás mais ridentes como ás mais dolorosamente tragicas.

Um som qualquer escapou desses labios que inutilmente se moviam num
esforço para falar, e a velha murmurou, traduzindo o que ninguem poderia
ter compreendido:--Coitadinha, falou no menino Chico!

Depois, tive que apertar-lhe a mão, mas ao tocar na frieza placida desse
corpo que vinha morrendo aos poucos, não sei que onda de sangue me
subiu ardente do coração confrangido, que perdi a compreensão nitida das
coisas e fugi desastradamente, empurrando todos, sentindo atraz de mim
mãos de moribundos agarrarem-me nas costas, leves mãos feitas de sombra
que não tinham força já para segurar-me...

Ninguem deu pela minha fuga, suponho, porque logo após senti o chorar
ruidoso dos que já não tinham que contêr a explosão da sua dôr diante do
pobre corpo que umas tenues radículas de vida prendiam á terra. Voltei
atraz. A mãe da Mariquinhas, abraçada ao corpo inanimado da filha,
chorava tão angustiadamente que eu sentia ao ouvi-la uma dôr fisica tão
aguda, tão sangrenta, como se me estivessem esfaqueando o corpo.

O pai estava sucumbido--era como se o seu espirito tivesse acompanhado o
da filha estremecida.

Não sei como sahi dali e me encontrei nos braços da pobre D. Emilia, que
chorava beijando-me com uma ternura que nunca lhe tinha conhecido. E não
sei dizer, tambem, quem me levou para casa e me fez deitar essa noite no
meu quarto onde fiquei transida de pavôr, esperando o dia como se com a
luz terminasse aquelle terrivel pesadelo, que me recusava a aceitar
como a verdade irremediavel!

Com a morte da Mariquinhas toda a alegria acabou para mim. Nunca mais
voltei ao jardim, a olhar as janelas do seu quarto, agora sempre fechadas.

O Chico, quando voltou, pensativo e triste, só de longe me acenava com a
mão um cumprimento amigo.

A vida tornou-se-me insuportavel: despida de interesse, vasia de desejo.
Voltei a não estudar, e peor do que nunca tolerava as repreensões,
conselhos e imposições da inevitavel estrangeira. Com o sofrimento
voltava-me a revolta; e, como com os meus dezeseis anos já raciocinava
mais, via melhor as coisas, compreendia que meus pais não me tinham
abandonado...

Sim... eu confesso que me tornei alguma coisa dificil de aturar. A tia
queixava-se, queria domar a selvagensinha--como me tratava--e
convencia-se que havia de vencer o meu espirito rebelde.

Mas isso, já o devia saber, era menos facil do que sujeitar uma aguia a
viver numa capoeira.

Uma tarde, encostava-me aos vidros da janela do meu quarto quando na rua
vi passar o Chico.

Sorriu-se para mim e perguntou-me se estava doente, tão demudada e
triste eu lhe parecia. Mal o vi, uma onda de lagrimas me subiu aos olhos
e retirei-me soluçando da janela, sem atinar com palavras com que
respondesse á sua surpresa.

Nesse dia chorei sempre, e já a noite ia adiantada quando me levantei da
cama, acendi a vela, e assim mesmo, em camisa e descalça, fui escrever
ao Chico a contar a minha dôr, dizendo-lhe o meu desespero, e
pedindo-lhe que me livrasse daquella prisão onde em breve morreria, como
a Mariquinhas,--estava certa! Escrevia, pela primeira vez, tudo quanto
sentia, vertiginosamente, sem pesar as palavras, surpreendendo-me a
escrever melhor do que se falasse...

Depois da carta escrita e arrecadada debaixo do travesseiro, eu puz-me a
imaginar o que faria o Chico. Certamente não me abandonaria á minha
sorte, correria em meu auxilio como paladino doutras eras...

O que uma cabeça de rapariga arquiteta aos dezeseis anos na sua primeira
noite de insónia!...

Toda a minha esperança era o Chico--se elle me faltasse, o mundo
acabaria para mim!

De manhã reli a carta, que me pareceu ainda dizer pouco do que sentia, e
tentei escrever outra--que me sahiu peor. Meti-a no bolso e fui ao
jardim com ideia de a entregar ao meu amigo, mas um invencivel
acanhamento fez-me voltar para casa.

A Eulalia, na cosinha, parecia adivinhar a minha intenção, e disse-me,
maliciosa, muito habituada a _fazer de capa_ ás meninas que servira--«O
menino Chico está aqui em casa da S.ª D. Emilia, entrou ha pouco para lá.

E eu, fingindo uma grande serenidade, que ella bem conheceu ser
falsa:--«Ah, sim?! Eu queria entregar-lhe uns papeis... uma carta... que
a Mariquinhas deixou para elle.

A mentira fez-me córar, balbuciar; envergonhei-me de mim mesma.

--«Se a menina quer, eu levo-lha lá...

E quiz. E ella levou a carta, emquanto eu ficava ansiada, mal contendo o
coração, que parecia saltar-me no peito.

--«Elle disse que respondia já--veiu a Eulalia, toda prazenteira,
anunciar-me.

Recolhi ao meu quarto, muito triste, sem saber o que fazer, até que a
carta do Chico viesse trazer-me a esperança ou a morte.

Como aos dezeseis anos a vida se nos apresenta duma simplicidade que não
admite a resignação nem a tolerancia!...

Não tardou muito sem que a Eulalia viesse, com um ar de camaradagem e
cumplicidade que me irritou, trazendo a resposta do Chico debaixo
do avental.

Recebi-a simulando indiferença, e pú-la de lado, sem a querer abrir
emquanto os seus olhos maliciosos ali estivessem a prescrutar os meus
sentimentos, como que a assoalhar-me a alma...

Desconcertada pela minha atitude, sahiu; e então, tremendo como quem
comete uma áção criminosa, rasguei o sobrescrito, e li e reli cem vezes,
com os olhos turvados, as poucas linhas que o Chico me escrevia:

«_Raquel:_

«Obrigado pela sua carta e pela confiança que deposita em mim. Escreva
aos seus pais contando-lhe a sua tristeza e mande-me a carta que eu me
encarrego de lha fazer chegar ás mãos. A Senhora D. Emilia e a mamã
acrescentarão algumas palavras para dar força ás suas queixas. Todos nos
interessamos pela nossa amiguinha Raquel e temos muita pena de a vêr
sofrer. Creia na dedicação e aféto do seu amigo--Chico.»

Não era muito para o que eu tinha sonhado, mas era alguma coisa, era o
apoio moral que me faltava.

Sentia-me protegida e amada, e isso era o bastante para me tornar feliz.
Relia ainda a carta, que ia meter no seio, quando a porta do quarto
se abriu de improviso e a cara detestada da minha prima apareceu
perguntando-me, trocista:

--«Então a menina recebe cartas de namorados e não diz nada á gente?!...

--«Vai-te daqui para fóra!--gritei desesperada.

--«Ah, estás assim soberba com o teu Chico?! Pois eu direi á mamã, deixa
estar!

--«Importa-me pouco a tua mãe, dou-lhe tanta importancia como a ti--e,
empurrando-a com violencia para o corredor, fechei a porta por dentro.

A rapariga vingou-se: foi levantando um grande alarido de queixa que
tudo contou á mãe. E não tinham decorrido talvez cinco minutos sem que a
abominavel criatura não estivesse a bater com violencia á porta,
gritando como possessa para que lha abrisse.

Com uma serenidade de que ainda hôje me surpreendo, fui abrir, e ficando
entre portas perguntei, sem me alterar, o que desejava.

--«_Oh! Não ter vergonha! Menina dizer a mim você recebeu carta dum
maroto e pergunta o que mim quer! Vêr esse carta já! Vergonhas,
vergonhas, dar maus exemplos a meninas! Quando vier seu tio mim dizer
tudo!..._

E a torrente de destemperos parecia não se estancar.

No meio daquella gritaria poude apenas levantar a voz para lhe dizer
resolutamente:

--«Não lhe dou a carta, pode berrar á vontade.

Perdeu então de todo a cabeça e fez um gesto de ameaça, que me desvairou.

--«_Dá-me carta já!_

Á sua violencia respondeu a minha violencia. O meu caráter altivo, o meu
temperamento indomavel, a minha educação livre, o meu proprio sangue,
que vinha de herois, tudo se poderia amoldar e quebrar na luta surda e
persistente de todos os dias; assim brutalmente, pela violencia, dava-se
a reáção que produz a revolta.

Ergui-me duma só vez a toda a altura do meu orgulho e tornei-me soberba
de energia desesperada.

--«Dar-lhe esta carta?!--E passei-lha insolentemente por diante dos
olhos--Nunca! Fique sabendo, nunca! Prefiro enguli-la.

As palavras vinham-me aos labios tumultuosamente, numa abundancia que me
espantava.

Então, a terrivel criatura vomitou coisas abominaveis que me insultaram
infamemente e das quais--tenho hôje quasi a certeza--, na sua ignorancia
do português, ella não sabia o verdadeiro sentido.

Uma onda de sangue me subiu ao rosto e me turvou os olhos; toda a
candura da minha alma, todo o pudôr do meu corpo de virgindade absoluta,
se insurrecionou. Fitava-a, desvairada; sim, creio que, se não recuasse
e não baixasse as mãos que tentavam prender-me, a teria estrangulado.
Sahi do quarto violentamente, empurrando a Eulalia, que observava
sardonica a cêna que preparara com a sua baixa intriga. Ao contacto do
seu corpo a minha raiva explodiu com mais furôr:

--«Vá, sua canalha!--gritei-lhe halucinada--vá chamar gente para lêr as
cartas que me traz!

Estava cega, como um toiro de bôa pinta longamente encurralado, quando
lhe abrem a porta do curro e entra na praça louco de furia, correndo
para um e outro lado, fazendo saltar para a trincheira, como bonecos, os
toureiros que de longe o irritam agitando as capas vermelhas.

A pequena agarrou-se a mim, aos gritos, mas rolou para o meio do chão
com uma bofetada; e a porta da cosinha aberta, com um pontapé, que fez
cahir um vidro que se estilhaçou no chão, enfiei por ella, sem bem saber
o que fazer, e achei-me no jardim.

Dum pulo saltei a sebe florida que separava o nosso jardinsinho, agora
abandonado, do da D. Emilia, e entrei-lhe como doida pela casa dentro.

Então cahi-lhe nos braços, soluçando perdidamente todo o meu desespero
desfeito em lagrimas.


Á noite o meu tio veiu buscar-me. Deu-me conselhos, tratou-me com muita
bondade, desculpou a mulher, pediu, ordenou... Nada conseguiu.
Agarrei-me á mãe da Mariquinhas, e de tal maneira me impuz ao seu pobre
coração de mãe tão dolorosamente experimentado que ella pediu a meu tio
que não insistisse. Eu ficaria com ella emquanto os meus pais não
resolvessem o incidente.

O meu tio concordou, vencido pela palavra persuasiva e dôce da minha
protétora, e ao sahir bateu-me na cabeça e disse-me com ternura
maguada:--«Ah, cabecinha, cabecinha louca, que herdaste, por teu mal,
todo o sangue rebelde da nossa familia!

E sahiu, desculpando-me no seu íntimo, elle o rebelde doutro tempo,
vencido agora pela doença e dominado, contra vontade, sabendo muito bem
que o era, só para não desencadear a tempestade caseira e não aturar o
genio furibundo da mulher. Pobre e querido tio! Ninguem reconheceria
nesse velho alquebrado, mas ainda de soberbo e distinto porte, o
heroi de tanta façanha que deixara nome entre os rapazes da escola, como
mais tarde entre os colegas do exercito e companheiros de trabalhos e
perigos. Era o nosso sangue, na verdade, que o fazia sorrir, quasi
indulgente, quando me admoestava por tanta loucura; o nosso sangue que o
fizera, quando rapaz, desafiar, sósinho, uma companhia de pequenos
colegiais como elle, e que o fizera, mais tarde, responder sempre com
soberba quando se julgava desrespeitado, mesmo por um superior
hierarquico...

Pobre tio! Com quanta saudade recordo hôje o seu bom sorriso quando,
longe da companheira, nos contava anedótas e aventuras que nos perdiam
de riso. Como teria sido adoravel, sem essa servidão dum casamento
abominavel, a que não soube nem poude fugir!...

Foi então que escrevi aos meus pais contando-lhe o longo martirio
daquelles quatro anos em que me tinham afastado do seu carinho.

Disse-lhes o meu desespero, o meu horror á tia e aos seus métodos
educativos, e recordei com pungente saudade a feliz infancia que me
tinham feito a contrastar com aquelle inferno de todos os dias e de
todas as horas.

E como os meus nervos sobreexcitados faziam a penna galopar pelo papel
desabaladamente, estou certa que nada deixei por contar.

A D. Emilia e a mãe do Chico cumpriram o que tinham prometido;
escreveram comigo para desmanchar qualquer má impressão que o meu
procedimento podesse despertar no espirito dos meus pais.

Que dôces dias de serena paz eu passei ali emquanto não veiu a resposta
á minha carta--que fôram os meus proprios pais que em pessôa me quizeram
vir buscar.

Uma tarde o Chico entrou--vinha despedir-se. Eu trabalhava junto da
janela, num bordado que a D. Emilia me dera para fazer, porque entendia
que sempre as mãos deviam estar ocupadas e o espirito prêso a qualquer
trabalho manual que, por insignificante que parecesse, era muito na
disciplina moral do nosso sêr. Era a esse constante labôr das suas
habilissimas mãos, que a bôa senhora atribuia o resistir ainda á sua dôr.

Estava só; a D. Emilia fôra dentro chamada pelo marido, quasi sempre de
cama desde que se dera o grande desastre para o seu coração de pai que
na unica filha poséra todo o seu aféto e esperança.

--«Que trabalhadeira estás!--disse-me o Chico, sorrindo, porque ao
entrar eu nem sequer erguera os olhos, que dantes o fitavam confiantes e
fraternais.

É que as palavras impudicas da estrangeira acudiam-me á memoria e tinham
maculado para sempre a inocencia do meu aféto por elle.

Sorri á sua graça, mas com um sorriso tão maguado, que o Chico, vibratil
e bondoso como é, logo percebeu que não estava bem. E, muito carinhoso,
quiz saber se estava doente, se me doía alguma coisa.--Não,
não,--respondi nervosa e sacudida--doença não tinha... mas lembrava-me o
que tinham dito de ambos, e isso incomodava-me fortemente.

E elle quiz saber o que me dissera a tia, o que dera causa á grande
cêna, de que ainda ria, só em pensar nella.

Cuidava que era ainda a pequena e ingenua Raquel que elle e a
Mariquinhas quasi amavam como filha, e que o meu áto revoltoso fôra
apenas um capricho de criança endemoninhada e voluntariosa. Mal supunha
que uma alma de mulher, de subito despertada, sofria e palpitava dentro
em mim.

Subitamente as lagrimas vieram-me aos olhos e começaram a correr, sem
que eu as podesse estancar no lenço encharcado, que mordia em
desespero.

Passara, sem transição, da insensibilidade quasi completa de quatro anos
á mais disparatada pieguice.

Por nada as lagrimas me vinham aos olhos e corriam sem cessar.
Desesperava-me contra mim mesma; queria vencer-me, e não podia!

O Chico, muito comovido, abraçava-me e beijava-me para me socegar, como
fazia sempre, com a simplicidade carinhosa dum irmão mais velho, sem
suspeitar a confusão em que eu me debatia.

Aproveitando um momento de mais calma para os meus nervos, disse-lhe
para mudar de conversa:

--«O Chico vai-se ámanhã embora e nunca mais se lembrará de mim; eu
tambem vou para tão longe!

--«Que tolice, nem que em Portugal haja longes!...--respondeu a rir,
emquanto eu me afastava um pouco, porque as suas caricias me
sobresaltavam e faziam mal.

--«Pois sim, Coimbra não é muito longe, mas os estudantes que lá andam
não pensam a sério em coisa nenhuma e tudo esquecem quando lá chegam.

--«Quem te disse tal?

--«As raparigas da minha aldeia, quando cantavam:

    «O amôr dum estudante
    «Não dura mais de uma hora
    «Tóca a cabra vão para a aula
    «Vêm as férias vão-se embora.

Quando isto é o amôr, o que fará a amizade!?

As lagrimas tinham-se transformado em riso--ria agora convulsamente.

--«Isso são cantigas! Não penses isso de mim, Raquel. Ha rapazes loucos,
mas tambem os ha sérios, como eu...

--«Não acredito! O Chico vai esquecer-se de mim, e quando fôr para a
aldeia nunca mais o verei nem saberei de si! Antes queria
morrer!...--tornava a chorar, visionando-me só, sem vontade nem gosto
para viver.

--«Ó Raquelsinha, não diga isso, não a esquecerei nunca,--que tolice! Os
amigos de infancia nunca se esquecem, creia. Nem tão pouco esquecerei a
Mariquinhas.

--«A essa,--solucei, num sentimento de magua mortificado com uma
pontinha de inconsciente ciume--a essa não a esquecerá o Chico, não!...

--«Mas porque menos a ella do que a si?

--«Então o Chico não era namorado da Mariquinhas?!--perguntei numa
ansiedade de dúvida que se deseja não vêr confirmar.

--«Ó Raquel, não diga isso! Quem lhe meteu na cabeça uma loucura
dessas?!--perguntou indignado.--Então não eramos como três irmãos, três
companheiros de brincadeira?!...

--«Ninguem me disse nada. Eu hôje é que pensei, depois do que ouvi lá em
casa, que podia sêr que o que se lembravam comigo fôsse com ella... Ás
vezes a Mariquinhas parecia que me tinha raiva, e porfim já não queria
que brincassemos juntos... lembra-se?

--«Sim, é verdade. Não tinha pensado nisso. Até pediu para a não visitar
quando estivesse a Raquel, porque a sua alegria a incomodava...

Pobre Mariquinhas! A sua figura esbelta e linda levantava-se a nosso
lado reclamando a sua parte de aféto, mas o seu rosto pacificado pela
morte já não exprimia o vago ciume com que tanto nos mortificara. A sua
recordação unia-nos numa afetuosidade e numa saudade igual.

--«Mas então--disse o Chico, surpreso--a Mariquinhas supunha que nós
eramos namorados?! Pobre amiga! Uma criança como a Raquel era...

--«Eu não percebi nada--respondi ingenua--nem supunha que era tão sua
amiga... Nem que esta amizade era diferente... Hontem é que compreendi
tudo!...

--«Mas hontem, porquê? Disseram-lhe mal de mim?!...--perguntou assomado,
numa daquellas fogosas cóleras que ensombram rapidamente o rosto do meu
amigo.

--«De si, não!... Foi de mim. A _estrangeira_... disse-me coisas,
coisas... que só pensar nellas me faz mal!

Córei e baixei os olhos numa confusão, vendo-o sorrir, já desanuviado.

Curvando-se para mim, perguntou-me baixinho, numa caricia que estava
toda na doçura da voz:

--«Disse-lhe que era minha namorada, não foi?...

Abaixei ainda mais a cabeça sobre o bordado, não querendo responder uma
afirmativa que me confundia.

--«E não o quer sêr, de verdade, Raquel?... Será a minha noiva emquanto
andar a estudar, e a minha mulher, a minha companheira, quando eu já
ganhar dinheiro para os dois...

Sorria embevecida, olhava-o cheia de desejo de lhe dizer que sim e
saltar-lhe ao pescoço, numa alegria louca; mas ficava-me calada,
perturbada, sem saber verdadeiramente distinguir até onde me seria
permitido mostrar o meu entusiasmo segundo as praxes que a _tia_, dizia,
eu ha muito tinha desprezado impudentemente.

O Chico compreendeu; e, não precisando ouvir mais, pegou-me dôcemente na
mão que conservou entre as suas emquanto conversavamos a meia voz,
sorrindo enlevados, contando coisas, recordando factos, que reconhecemos
nesse momento sêrem significativos daquelle desenlace.

Ha muito tempo que eu era a sua mulhersinha--recordou o Chico
sorrindo--nas brincadeiras em que a Mariquinhas, já mais consciente,
reservava para si sempre os papeis de rainha ou fada, que iam tão bem á
sua gentil figurinha de estatueta.


Foi nessa tarde deliciosa de fim de inverno, com o testemunho das
camelias brancas, que a Mariquinhas adorava, e na vespera delle ir para
Coimbra e eu recolher á velha casa paterna, que nós ligámos para sempre
as nossas existencias, que dissemos essas mil palavras banais que nada
dizem para os outros e são, num momento unico da vida humana, as
verdadeiras palavras sacramentais que ligam duas almas numa comum e
deliciosa aspiração.

Foi nessa tarde, que remiu para o meu coração anos de sofrimento, que
traçámos a azul e oiro o futuro ridente que hôje estamos desfrutando.


Com a vinda de meus pais, trocadas explicações e desculpas entre elles e
os tios, sem que eu fôsse obrigada a vêr mais a minha façanhuda inimiga,
a tranquilidade e a alegria voltaram de novo ao meu espirito, que em
breve se refez e normalisou na serenidade da vida aldeã.

O Miguel, que já então era um estudante muito cuidadoso, tornou-se em
breve o amigo inseparavel do Chico, que teve sempre meio de repartir as
férias entre a antiga familia, que o adorava, e a nova, onde não era
menos querido.

Até o Padre Zé discutia com elle pontos graves de historia romana e
ficava boquiaberto com a sabedoria dos rapazes de hôje... e da qual nos
riamos a valer, indo depois ás escondidas folhear o Larousse onde
procuravamos citações e factos para confundir o santo velho.

A Maria Augusta, essa só pedia a Deus que a deixasse viver até vêr na
capela da casa, abençoado por Deus e pelos homens, um par que era
tanto do seu agrado.

E agora, realisado esse ideal,--que reuniu á mesma mêsa duas familias
que ficaram sendo só uma, naquelle grande jantar de nupcias a que
assistiu toda a parentela dos arredores--ella espera ansiosa porque lhe
seja permitido apresentar ao Padre Zé, de capa de asperges e estola
rica, um menino que hade vir breve de Paris numa condessinha de flôres,
e para o enxoval do qual trabalhamos dia e noite com a mais rútila e
alvoroçada alegria.

--Com o vestido de antiga seda côr de rosa e grandes ramos prateados,
coberto com o véo de tule bordado, que a mamã guarda na grande arca dos
enxovais, eu verei como irá lindo!...--É o que me assegura a Maria
Augusta, que recorda outros batisados celebres na familia, e o meu
principalmente, que, crescidinha já, por doença do padrinho, me
desesperei iconoclastamente com o _sal da sapiencia_ e arranhei a cara
ao padre!

Não se esqueceu de recomendar ao Chico, uma vez que elle foi a Lisbôa,
que deixasse feita a encomenda dos bolos para a festa e de confeitos
para a rapaziada, que assim encherá de bençãos o batisado...

Isto emquanto a bôa mamã dá volta ao bragal, desmancha lençóes e finas
bretanhas, e manda ao sotão buscar o lindo bercinho em que nos criou a
todos, e que já espera, forrado e engomado de fresco, pelo pequenino
dôno...--ou dôna?!...

E, seja o que fôr, bem vindo será ao nosso lar e... já o jurámos: só nós
o educaremos e guiaremos nos seus estudos, porque, sahindo, como poderá
ser, á mãe, não será facil meter-lhe grandes sabedorias na cabeça.


Esquecia-me dizer que o meu pobre tio está emfim descansado, livre da
mulher que tão amarga lhe fez a existencia, bem encafuado num mausoleu
de marmore, onde ella o vai vêr a miude, naturalmente para lhe dar
conselhos o reprimendas. Dizem-me que na sua opinião eu sou o mais
execravel dos animais ferozes, e ainda treme de raiva só em pensar na
minha negra ingratidão. A filha prepara-se para casar confecionando o
enxoval e aprendendo a sêr uma admiravel dôna de casa, capaz até de ser
professora numa escola de _ménagères_, mas os noivos é que, como sempre
assustados com o merecimento da mulher, já lhe vão tardando um pouco.

O pai da Mariquinhas morreu, e a D. Emilia resigna-se a viver para
chorar todas as lagrimas da sua bela alma pelo marido e pelos filhos,
sempre vivos na sua lembrança.

Sente por nós um dôce carinho, que nos enche de reconhecimento, e todos
nos juntamos na saudade da querida morta, a linda Mariquinhas, que tão
íntimos e indissoluveis tornou os nossos afétos.



IV

Sacrificada



SACRIFICADA


I

Quando Manoela entrou para o convento, todas as freiras e recolhidas
correram apressadas á grade do côro para conhecerem a nova companheira,
de que a superiora, Soror Gertrudes, ha muito anunciara a vinda.

Falavam a um tempo, riam satisfeitas com aquella diversão, que
desmonotonisava a vida fastienta de todos os dias, emquanto que ella,
nervosa e pálida, as olhava assustada, como quem entrevê, sem o
compreender, um mundo estranho.

Sentia-se abandonada no mundo, sem um aféto ou uma ilusão que lhe
devesse dar o desejo e a alegria de viver, mas, apesar disso, aos
seus dezeseis anos encantadores não sorria positivamente a ideia da prisão.

Era tão dôce o sorriso triste que lhe errava nos labios, e a sua voz,
ligeiramente cantada, com o sotaque provinciano, era tão fresca e
cariciosa, que as bôas freiras a consideraram desde logo um anjo do
Senhor, mandado para as consolar naquelle triste fim da sua casa religiosa.

Encheram-na de presentes: uma trazia-lhe uns bentinhos, outra uma lâmina
ingenua, salpicada de papelinhos doirados; rendas finas, outrora feitas
na casa; dôces, especialidade do convento; coisas insignificantes, que
eram no entanto toda a sua fortuna.

E ella sentiu-se assim prêsa pelo reconhecimento, integrando-se numa
vida que em breve seria tambem a sua.

A mãe perguntou-lhe: se queria entrar desde logo para o convento ou
ficar alguns dias fóra, para vêr a cidade.

--Não; se tinha que entrar ali, então que fôsse já. Vêr a cidade para
quê?! Que lhe importava a alegria, o movimento, a luz,--aquilo que era a
existencia da outra gente?

Não estava ella perdida, morta para o mundo, despedaçado tudo que tinha
feito o encanto da sua propria existencia, que era agora uma coisa
áparte, fóra da normalidade?!...

A mãe aprovou, contente com aquella resolução; ansiava por a vêr
entregue aos cuidados da bôa tia, Soror Gertrudes, que a recebeu
soluçando de contentamento e magua--alegria de têr a sobrinha junto de
si, fundo desgosto pela sua imensa desgraça.

Porque era uma historia um pouco triste, a dessa rapariga, que assim
vinha esconder a sua vida em flôr no silencio dos longos corredores
cheios de sombra, adormentar o espirito nessa vida que já pertencia ao
passado.

Manoela ficara, muito nova, sem pai, e por isso quasi inteiramente
abandonada a si mesma, visto que a mãe, duma devoção estreita e dum
caráter frio e áspero, entregava-se por completo á prática das suas
muitas rezas e orações e deixava os filhos em plena liberdade.

A pequena, que era uma natureza delicada e emotiva, assim foi crescendo
sem um carinho que lhe afagasse e dulcificasse a existencia,
retrahindo-se numa aparencia de frieza melancolica.

Os irmãos, três rapazes, viviam alegremente, sem cuidados nem canseiras,
caçando pelas serras, comendo e bebendo á tripa-fôrra com os
companheiros, jogando o pau pelas romarias e feiras--senhores
morgados de aldeia que todas as raparigas disputavam para seus pares, e
dos quais todos os homens tinham como honra a convivencia.

O mais velho, bom rapaz, bronco e ingenuo apesar da sua aparencia de
gosador, fôra para Coimbra por sua alta recreação, segundo o costume
tradicional dos morgados beirões, e por lá se ia formando aos
solavancos: _R R_ daqui, guitarradas dali, ceias e patuscadas com os
amigos, sempre alegre e satisfeito comsigo e com os outros.

Ora uma vez, a pretexto de caçadas que se faziam melhores que em parte
alguma pelos matagais cerrados das suas serranias, levou, para passar
umas férias na aldeia, o seu mais íntimo amigo e companheiro mais certo
das suas noitadas e _troupes_ em vesperas de feriado.

Cavalgando os possantes cavalos que os criados lhes levaram com tempo,
juntaram-se á caravana dos mais rapazes da região e seguiram, como era
costume, atravessando vilas e aldeias ao som marcial das cornetas, como
um verdadeiro batalhão, que ia diminuindo, não pela morte, mas pela
alegria dos que primeiro encontravam as suas casas e se despediam dos
companheiros até ao fim das férias.

Fôram elles os últimos a chegar ao vasto casarão de provincia, onde a
adega estava sempre aberta, as espingardas carregadas atraz da
porta, e a matilha impaciente tudo invadia, roubando na cosinha, sujando
as salas e quartos, batida pelas criadas em desespero, afagada pelos
amos que riam das suas partidas e se sentiam muito á vontade no meio
daquella desordem.

Manoela era um verdadeiro milagre de graça e pureza num meio tão vulgar
e rude.

O rapaz, ao vê-la assomar ao alpendre, mal sentira a tropeada dos
cavalos e descer correndo os degraus de pedra que davam acesso exterior
para o andar nobre da casa, para abraçar o irmão, ficara deveras
impressionado. Tanto mais que não contava encontrar, numa irmã do seu
herculeo companheiro de estúrdia, tanto mimo e graciosidade de linhas,
uma tal delicadeza e aristocracia nativa de porte.

Á primeira impressão de agradavel surpresa seguiu-se o desejo da posse e
o projéto da conquista.

Para que essa criança, ignorante e ingenua, se prendesse a um homem que
lhe falava a dulçorosa e enganadora linguagem de vulgar D. João, que
para ella representava a verdade, a honra, o ideal supremo porque tantas
outras têm, como ella, sofrido, não era preciso muito.

Um homem honesto ter-se-ia cautelosamente afastado, receoso de despertar
uma alma tão confiada e crente, na sua ignorancia infantil; mas elle,
conquistador sem escrupulos, de palidez sentimental e cabeleira
romantica, cantando ao luar fados chorosos que falam de amôres infelizes
com tremuras na voz e fundos ais arrastados, dedilhando a guitarra que
soluça baixinho caricias de beijos gritando alto paixões estridulas...
Elle, sem alma nem consciencia, viu apenas a flôr que se abria á vida e
que as suas mãos brutais podiam desfolhar e arremessar depois como coisa
inutil e sem importancia.

Representou, mais uma vez, a vulgarissima comedia do amôr-paixão, em que
ella, a pobresita, acreditou, exatamente porque era ingenua e pura,
deixando-se arrastar, sem que houvesse mão amiga que a fizesse parar a
tempo na descida perigosa.

Acabadas as férias, promessas feitas e juradas, elle partiu alegre e
triunfante, ella ficou abismada na mais desesperadora tristeza.

A saüdade, fustigando barbaramente a sua pobre alma mal preparada para o
sofrimento, punha-lhe nas faces a palidez da morte e nos olhos
arroxeamentos de incuravel doença.

Os dias fôram passando, os mêses decorreram lentos e monotonos, e o
desespero ia-lhe tomando o coração avassaladoramente, visto que
elle, o ingrato, nem uma unica palavra lhe enviara a encorajá-la e a
dar-lhe esperanças. Confiando da Ama-Rita o seu segredo, conseguiu da
pobre mulher--que a amava, mais do que aos proprios filhos, porque a
criara com o seu leite--a promessa de receber e mandar as cartas para o
namorado.

Enviou muitas, muitas, mas respostas nunca as recebeu, porque nunca elle
lhas mandou.

Sentindo-se abandonada, quando mais necessario se lhe tornava o auxilio
moral do homem que a enganara vilmente, e não podendo esconder por mais
tempo o seu estado, foi têr com a mãe implorando protéção e piedade.

Contou tudo, por entre soluços e lagrimas, nem tentando sequer atenuar
com uma desculpa a grandeza do delito, como se tivesse um prazer
estranho em se torturar e deprimir, num princípio de expiação.

Quando a mãe compreendeu o verdadeiro sentido das suas palavras,
possuiu-se dum desespero louco. Levantando os braços e os olhos ao céo,
tomava-o como testemunha da sua ignorancia e inocencia em tão grande
crime, como se o esperasse vêr cahir sobre a cabeça da pecadora que
soluçava a seus pés.

Mas como do céo não baixou nenhum sinal indicador da colera divina, ella
afastou-se brutalmente, prohibindo-a de sahir mais do quarto.

Escreveu então ao filho, contando-lhe em poucas palavras o que se
passava e encarregando-o de procurar o amigo, e--prometendo um bom dote
a Manoela--fazer com que casassem imediatamente.

Essa carta, mandada pela Ama-Rita para Manoela vêr, deixou-lhe no
coração um vislumbre de esperança, naquelle desejo que todos nós temos
de nos agarrar ao menor luzeiro que prediga felicidade.

Mas a resposta não podia sêr mais cruelmente aniquiladora:--o namorado
de Manoela tinha casado, pouco tempo antes, com uma prima muito rica, e
nunca mais pensara na criança que ia começar a expiação duma culpa que
era só delle.

Não havia pois maneira de legalisar ao pequenino ente que vivia já da
vida da infeliz mãe, a entrada no mundo e na familia.

Tratou-se então de esconder um facto--que seria a vergonha para todos.

Levaram-na para uma casa meio arruinada, numa propriedade distante; e
foi ali, entre rochedos desolados e na visinhança lugubre dos lobos que
uivavam a sua fome pelos matagais, que Manoela, entregue aos unicos
cuidados e carinhos da ama, teve uma filha.

Com que dulcido encanto, depois do martirio de algumas horas, em que as
velhas paredes repercutiram os seus gritos lancinantes, ella acalentou
nos braços o corpinho fragil, que era uma parte do seu proprio sêr, e
premia sob os seus labios febris a carnesinha arroxeada e setinea da
pequenina face!

Nos olhos, que mal se abriam á luz, queria ella lêr um infinito de
ternura; da boquinha, que ainda não sabia sorrir e já sabia chorar,
esperava talvez ouvir palavras de justiça e consolação...

E as lagrimas iam correndo serenamente pelas suas faces desbotadas,
lagrimas que eram ainda uma felicidade, que em breve deixaria de possuir.

A Ama-Rita chorava tambem, sem coragem para de pronto lhe arrancar a
criança, como lhe fôra ordenado, na impotencia de todas as bôas almas
para despedaçar uma ilusão alheia, principalmente quando toda uma
existencia está suspensa dum sorriso de criança.

Foi ainda a mãe que a veiu arrancar desse passageiro sonho,
anunciando-lhe como coisa decidida a sua entrada para o convento onde
Soror Gertrudes já a esperava.

Manoela revoltou-se:--o convento, a prisão para ella, que apenas fôra
uma vitima!?... Pois era tamanha a sua culpa, santo Deus!?...

--Era, sim, tão grande que já coisa alguma poderia lavar essa mancha do
seu nome, recahindo sobre toda a familia. Apenas o silencio e a ausencia
poderiam atenuar o mal fazendo-o ignorar do público!...

Soluçava baixinho, num grande aniquilamento de toda a vontade, escutando
as palavras que sahiam frias e ásperas da bôca da mãe.

--«Bem, irei!--disse por fim Manoela, resignada--mas ao menos quero
levar a certeza do seu perdão, minha mãe!...

--«O meu perdão?! Não, nunca poderei perdoar á senhora que assim desce
ao nivel de qualquer camponia sem principios...

Então, sentindo-se ferida, mais pelo tom do que pelas palavras, que
representavam apenas o seu orgulho de casta, a alma de Manoela
levantou-se tambem com altivez.

Uma revolta surda a tomava toda, partidos definitivamente os laços que a
prendiam a essa mãe que a repelia sem encontrar uma atenuante á sua
culpa, sem um lampejo de piedade pela sua existencia tão cêdo anulada.

Embora! Se não lhe perdoavam os outros, absolvia-se ella a si mesma. Não
conhecia o mundo; mas a sua consciencia presentia vagamente que não eram
justos acusando-a duma falta que se baseava apenas no preconceito
social, que entre dois cumplices escolhe, para imolar como vítima
expiatoria no altar da hipocrisia, aquelle que pela inocencia e
ignorancia menor responsabilidade apresenta.

Avaliando bem--agora que a vida se lhe antolhava tal qual é: cheia de
deveres e responsabilidades para os fracos, livre e tolerante para os
fortes e cinicos...--a perversidade moral do homem que amara, uma grande
repulsa, um grande desprezo lhe invadiu o espirito por tal criatura.

Vieram então novas cartas de Coimbra nas quais o irmão, numa furia
brava, contava como procurara o sedutor para o matar, como costumava
matar os lobos que lhe ameaçavam os rebanhos, e não o podera encontrar.

«Apenas lhe souberam dizer: que fôra com a mulher passar a lua de mel,
não lhe quizeram indicar para onde. Oh, mas havia de encontrá-lo, fôsse
onde fôsse, fôsse como fôsse. Quanto á irmã, que desaparecesse--não a
queria mais vêr!

Manoela sorriu, já conformada.

Tambem ella não tinha vontade de viver mais com uma familia que tão
levianamente a abandonara e era agora tão cruel na condenação.

--Sim, iria para o convento o mais depressa possivel.

Mas duas condições punha á sua completa submissão: saberia onde ficava a
filha, que não queria deixar entregue ao acaso, como sêr desprezivel que
não merece a esmola dum afago; e fariam prometer ao irmão que não
continuaria a perseguir o sedutor. Para quê?! Matá-lo era forçarem-na a
lamentá-lo, quando era apenas desprezo e asco o que sentia por tanta
abjéção.

Esquecessem-nos a ambos... Ella entraria desde já para o convento, sem
nenhuma relutancia.

O irmão cedeu, instado pela mãe, ansiosa por vêr o caso liquidado como
entendia sêr melhor, sem mais desasocegos e desgostos.

Os outros dois irmãos, não tendo entrado na confidencia, admiraram um
pouco a subita vocação de Manoela, mas como lhes não desagradava
inteiramente, pois ficavam assim mais á vontade,--visto que a mãe, afóra
as horas de comer, raro sahia do quarto, a não sêr para a
capela--aprovaram a resolução com toda a bôa vontade.


II

Desde que obteve a certeza de que as suas condições eram acatadas,
Manoela ficou apática e indiferente para tudo.

Deixava-se levar sem resistencia para onde a mãe queria que fôsse. No
seu espirito não havia senão ruinas e desmantelos.

Sempre melancolica, sem raiz que a prendesse á vida, parecia nem sequer
se preocupar com a filha que tanto a sobresaltara de princípio e deixava
especialmente entregue aos cuidados da ama.

--«Adeus Ama-Rita,--dizia-lhe na última hora--estima a minha filha como
me estimaste a mim, e que Deus a faça mais feliz do que a sua triste
mãe! Até... um dia--em que nos havemos de encontrar.

Mas quando esse dia?... Não sabia, não via nada claro no seu futuro.

Encostada á varanda do quarto onde tanto sonhara e tanto sofria agora,
passeava os olhos amortecidos por toda a montanha que limita o
horizonte, e naquella ocasião, em que a primavera tudo cobria com o seu
verde manto, se afofava em cambiantes de pelucia cara.

Ao seu lado, a pobre mulher abafava os soluços que a sufocavam e limpava
as lagrimas á ponta do avental.

Seguira-se a viagem, a cavalo, atravessando terras desconhecidas, onde
gente espantada as seguia com a vista pelos caminhos poeirentos e
pedregosos, deixando-lhe tal confusão no espirito que nunca saberia
dizer por onde passara nem o que vira.

Logo á chegada, a mãe conferenciou com Soror Gertrudes, tia do marido,
agora superiora do convento, que a pouco e pouco iria acabando pela
morte das últimas freiras, e onde Manoela foi recebida em festa por
todas essas tristonhas almas encarceradas precocemente envelhecidas.

A mãe partiu, socegada emfim, sem saüdades que a fôssem mortificar ou
distrahir dos seus austeros deveres de bôa católica.

Tambem a filha as não sofreu, porque nunca se tinham compreendido nem
estimado aquellas almas, que ninguem diria tão estreitos laços uniam,
tal a dessemelhança que involuntariamente as separava.

Manoela parece que vinha, inteiramente, do pai, de quem se lembrava
vagamente, fazendo-a saltar nos joelhos, rindo e chalaçando com todos,
enchendo a casa de vida e satisfação. E um dia, subitamente,
estando sentado á mêsa, do rompimento duma aneurisma morrera.

Quasi se não lembrava do facto em toda a sua nitidez, tão longinqua era
essa recordação, que ficara apenas na sua alma infantil como sensação
dolorosa, a primeira tristeza na sua vida tão cheia dellas.

Agora vinha encontrar, na tia, o mesmo caráter, essa amizade confiante
que lhe faltara, essa alegria que tão bem fazia á sua alma dolorida.

Sentia-se envolver naquella atmosfera de paz, que nunca tinha respirado,
e sentia-se bem naquelle esquecimento de tudo quanto a fizera padecer.

Os dias sucediam-se aos dias, de quando em vez cortados por noticias de
casa, que recebia indiferente; o tempo ia correndo sempre igual, com as
mesmas festas aos mesmos santos, as mesmas rezas, as mesmas infantis
preocupações de vestidos a bordar para o menino Jesus tal ou para a
Senhora de invocação diversa, o presepe no Natal, o dôce para a venda, a
mesma comida sempre ás mesmas e invariaveis horas.

Mas um dia Soror Gertrudes morreu.

Manoela tinha então vinte anos. Era uma criança pela simplicidade do
espirito, que ficara ingenuo e ignorante do mal, apesar de tudo,
mas era uma verdadeira mulher pela reflexão e pela dôr.

Os últimos quatro anos passados naquella casa conventual tinham
decorrido num meio sonho vago, que nem chegava a compreender bem.

Depois da catastrofe que lhe angustiara a existencia, a alma
tinha-se-lhe afundado num como branco nevoeiro, que a deixava viver
inconsciente e passiva essa vida comum sem que nella tomasse
verdadeiramente parte.

Dir-se-ia um meio estado sonâmbulo de que a morte da tia, a bôa Soror
Gertrudes, a vinha acordar dolorosamente.

Como ia sentir a falta dessa querida vélhinha, que lhe dera um aféto
todo maternal na solidão em que a austeridade da verdadeira mãe lhe
deixara o coração!

Logo ao entrar, passados os primeiros dias de surpresa, as palavras de
conforto da bôa vélhinha tinham sido um grande bem para o seu espirito.

--Aconselhava-a a têr esperança--o futuro traz surpresas que não podemos
prevêr.... E ella era tão nova, santo Deus, como desesperar?! Socegasse,
estava entre bôas criaturas que a amavam, e ella como tia a teria sempre
junto de si. Ainda que o não fôsse, estimá-la-ia na mesma, bastava
sêr uma criança que a desgraça lhe tinha tão tragicamente arremessado
aos braços...

Tinha razão Soror Gertrudes--Manoela era bem digna de piedade. Entrada
apenas na vida, era della expulsa com vergonha, e a sua mocidade, que
mal desabrochara, iria fenecer entre as paredes frias dum convento.
Quebrados todos os laços que a prendiam ao mundo exterior, o que ficava
dessa pobre rapariga tão admiravelmente feita para amar e sêr amada?

Sentia-se cahir pesadamente num abismo. Fechando os olhos, estendeu os
braços em busca dum apoio, e encontrou a mão trémula, o sorriso alegre
na sua bôca desdentada, e a face macerada da freira, que para ella teria
carinhos inegualaveis.

Bem sentia ella o cancro brutal, que a ia corroendo lentamente, mas nada
dizia para não afligir a sobrinha.

Sorria dolorosamente quando uma picada mais aguda a fazia levar a mão ao
seio esquerdo, num gesto mecânico, quasi involuntario.

Manoela sobresaltou-se quando as dôres começaram a sêr mais amiudadas,
lembrando-se da terrivel molestia que de quando em quando assaltava a
sua familia paterna.

A tia socegava-a:--era um _nascido_ que tinha havia muitos anos, não
seria coisa de morte...

Mas nos últimos três mêses a doença agravara-se caminhando rapidamente
para o fim.

O cancro rebentara, vermelho, luzidio, enorme, deformando horrivelmente
o pequenino seio esteril, branco como o marfim--esse seio que guardara
com tanto recato durante sessenta anos e se mostrava agora na sua
infermidade horrivel.

Quando Manoela o viu pela primeira vez, perdeu a côr, vacilou e só se
conteve por um esforço de vontade, que se manifestava nella com a
revolta natural contra mais esse golpe do destino.

Dahi para diante nunca mais abandonou a tia, assistindo-lhe a todo o
martirisante fim, sentindo, por assim dizer, na sua alma todas as dôres
que ella ia sofrendo no seu magro corpo esfacelado.

Foi-lhe infermeira solícita, disfarçando a repugnancia que lhe inspirava
a ferida, que se ia arroxeando, com laivos azuis, quasi negros, numa
aparencia ascorosa de podridão. Em volta a péle retesada do peito ia-se
abrindo e esfarelando.

Manoela tinha sempre diante dos olhos a ferida horrivel que tão
cuidadosamente tratava, e que era o fim--ella sabia-o--dessa
existencia tão querida.

Por fim Soror Gertrudes nem sequer se podia assentar na cama, e ella
assistiu-lhe á agonia, que durou dois longos dias,--lento quebrar de
cadeias que se tinham enferrujado mas não carcomido.

Quando a superiora declarou que chamassem Soror Angelica para a
substituir, porque já se não podia levantar e a morte não tardava, toda
a comunidade acudiu em pranto:--era pois certo que Soror Gertrudes as ia
deixar para todo o sempre?!

Foi-se prevenir o capelão, que a confessou rapidamente, tal era a
inocencia dessa alma imaculada, e quando voltou com a comunhão todas as
freiras e recolhidas ajoelhadas em volta do leito choravam
silenciosamente, com os véos negros cahidos sobre os seus rostos de cerusa.

Manoela encostara-se á cama, e a tremura do seu corpo fazia estremecer
esse leito onde a morte já se instalara triunfante.

A ceremonia prolongou-se com o perdão que a moribunda foi pedindo a uma
por uma das suas companheiras, numa voz que era já um éco de outra
existencia passada.

Quiz a sobrinha sempre ali, e consolava-a com a esperança dum futuro
melhor. Deixava-lhe o Menino Jesus do Milagre, que fôra o seu
companheiro de longos anos, desde que uma senhora freira do convento do
Paraizo ali morrera e lho deixara por lembrança. E deixava-lhe tudo mais
que propriamente possuia, e bem pouco era, naquella vida estreita de
renúncia.

Dirigindo-se a Soror Angelica entregou-lhe a sobrinha e pediu-lhe para
ella todo o seu amôr e carinhosa solicitude.

Custava-lhe muito deixá-la. Deus mandara-lhe ao fim da vida aquella
suprema provação, que fôra afinal a maior felicidade de toda a sua
existencia. Quando ella já se sentia cahir na cova, com tão egoista
alegria, vinha aquelle aféto imenso prendê-la á terra com laços tão
fortes que ao parti-los metade da alma lhe ficava cá.

Fechou os olhos: imaginaram-na morta e já os soluços se ouviam mais
altos. Mas não, era apenas um dormir de extenuamento que breve durou. Ao
acordar já a voz lhe estava prêsa no estertor, que causava calafrios a
todas as assistentes.

Fazia esforços para falar, queria talvez dizer coisas que a sua alma, já
quasi desprendida do mundo, via como nunca tinha visto emquanto a
materia a segurava á terra.

Os seus olhos, dum azul pálido, como desbotado pelos anos, voltavam-se
para a sobrinha numa ânsia derradeira.

Choravam todas por a vêr assim, implorando a morte que a viesse libertar
do incomportavel martirio.

Manoela escondia a cabeça na roupa, soluçando e gemendo apavorada; teria
fugido áquelle espétáculo superior ás suas forças, se a moribunda lhe
não tivesse agarrado desesperadamente as mãos como última ancora...

A situação prolongava-se pela noite fóra, e tão pungitiva que todas se
entreolhavam em pânico.

Era alta noite quando uma criada, vinda do campo havia pouco, se propôs
pôr termo áquelle martirio, voltando a senhora. E explicava, muito
sabida e vista nessas coisas:--que era o demonio que estava ali, não
deixando morrer a senhora, emquanto estivesse deitada sobre o lado
esquerdo. Vingava-se assim de não lhe poder levar a alma, que era de
Deus, pela muita bondade da Madre-Superiora.

Todas acreditaram piamente na explicação da rapariga; não estava o
_Livro da fundação_ cheio de factos que comprovavam as tentações e
maleficios do eterno inimigo das esposas do Senhor, especialmente
dirigidos contra as piedosas irmãs daquella santa casa tão rica em
milagres e indulgencias?!...

Aceite o alvitre, voltaram o corpo pesado, que a morte já quasi gelava
completamente, deixando-lhe apenas aquelle imenso sofrimento como
despedida duma existencia de que não conhecera senão as tristezas.

Mal lhe tocaram, despediu num suspiro o último lampejo de vida, tal como
aquelles cadaveres conservados intactos por anos e anos nos seus tumulos
socegados e logo que se lhes toca, trazendo-os ao ar, se desfazem em
pó.


III

Manoela sahiu do dormitorio logo que a tia deixara de existir.

Cambaleando, os olhos sêcos, a alma vazia, sem a sensação dolorosa da
pena, como se a tivessem magnetisado para a furtarem ao sofrimento,
apenas uma necessidade material a impulsionava.

Tinha sôno--havia tantas noites que não dormia!

Agora que tudo estava acabado, que não havia uma esperança a
sustentá-la, estonteada, inconsciente, deixava-se vencer por esse torpôr
que segue a excitação dolorosa de dias sobre dias de espétativa diante
da morte. A natureza retomava os seus direitos, e a reação era tanto
mais violenta quanto fôra maior o predominio do espirito sobre a materia.

Logo na pequena sala contigua ao dormitorio, que fazia de livraria,
deixou-se cahir numa cadeira sem força para ir mais longe.

No dormitorio ia um vai-vem silencioso que mais parecia mover de sombras
num pesadêlo. As freiras ciciavam ordens ás criadas, acendiam-se
luzes, rezavam baixinho, limpavam as lagrimas que teimavam em
enevoar-lhes os olhos, e levantavam com respeito a morta para a vestirem
como havia de ir para a cova, com o mesmo triste habito que trouxera em
vida e logo ao entrar para o convento, noviça ingenua e formosa, lhe
tinham dito que seria a sua mortalha.

E assim, eternamente amortalhada, passava da tristeza de viver ao unico
sôno consolador dos infelizes, porque é daquelle que se não acorda para
sofrer mais.

A sua face, serenada pela morte, reflétia a suprema felicidade de não
existir conscientemente num triste mundo tão cheio de desacertos e
injustiças. As freiras benziam-se e murmuravam baixinho, pondo as mãos
com devoção:--que o seu rosto de santa reflétia já todo o goso da
bemaventurança.

Manoela, abrindo os olhos no meio sôno em que ficara embebida, viu os
pés da morta calçados com as sandalias da ordem, magros e compridos,
atados com uma fita para não descahirem; e, mergulhando de novo em
letargo, sonhou que esses pés caminhavam por sobre o seu corpo desfeito
e lhe batiam com força no coração. E a sensação foi tão dolorosa e a dôr
tão forte, que acordou de vez, sentindo realmente uma pontada que lhe
suspendia quasi a respiração e a fez gritar levando as mãos ao
peito, sufocada.

Foi quando Soror Angelica veiu têr com ella e a condusiu para o segundo
dormitorio, fazendo-a deitar na sua propria cama, encarregando uma irmã
leiga de a vigiar e acompanhar. Então Manoela cahiu num sôno pesado e
mau, cheio de sonhos que a faziam chorar e gemer baixinho como quem se
sente estrangulado, sem poder gritar, e a que a irmã leiga punha termo
chamando-a carinhosamente e abanando-a de leve todas as vezes que a sentia.

Era já manhã quando a vieram chamar para assistir aos responsos que se
iam fazer no côro e para os quais toda a comunidade se preparava.

Levantou-se sobresaltada, sem nada perceber, como quem acorda dum
terrivel pesadêlo e reconhece com surpresa que ainda existe na vida tal
qual a deixara... Atiraram-lhe o véo para a cara, composeram-lhe o
vestido, e levaram-na pelo braço, sem que compreendesse intimamente de
que se tratava. Mas quando se encontrou no côro e viu a morta estendida
no chão sobre um pano preto, entre quatro grossos tocheiros, os padres
rezando os responsos, e toda a comunidade em volta com os véos cahidos e
segurando velas acêsas, compreendeu finalmente o que se passava, a
sua alma despertou para o sofrimento intenso da pavorosa realidade.

Já não havia dúvida possivel, e a noite, que se passara num atordoamento
de sonanbulismo, aparecia-lhe agora em toda a sua nua e horrivel
fatalidade.

Debaixo do véo que lhe cobria o rosto, as lagrimas corriam sem cessar
mas já sem explosão de soluços, tão amargas e lentas que cada uma
parecia vir arrastando um pedaço da sua alma esfacelada.

Procurava nessa face amada, coberta igualmente com o véo preto, o
sorriso bondoso, o olhar de carinho, que em quatro anos de reclusão a
tinham feito esquecer que a vida existia fóra daquellas paredes soturnas.

O véo era denso bastante para lhe velar a face, mas nada obstava a que
os seus olhos halucinados vissem, debaixo do grosseiro hábito, o peito
entumecido escancarando-se na repelencia da ferida.

Finda a encomendação, seguiu atraz das freiras, vélhinhas alquebradas e
esquecidas pelo mundo, que assim iriam rareando, uma por uma, na longa
fila que vinha do côro.

Era o último enterro a que assistia ali, porque a nova lei prohibia
enterrar fóra do cemiterio público e fôra não pequeno trabalho para
se conseguir das autoridades aquella excéção em favôr de Soror
Gertrudes, que era conhecida e estimada em toda a terra.

Manoela tremia de pavôr observando a serenidade extatica das freiras,
que não se distinguiam umas das outras, com os véos negros derrubados,
as velas a arder na mão direita, hirtas e silenciosas e graves como
espétros.

Lá dentro,--quem sabe?--talvez que as suas almas tremessem de frio a
cada sacudidela do vento da morte que ia levando uma a uma as
companheiras de muitos anos, e que nunca mais seriam substituidas.

Já no refeitorio iam faltando tantas que, ao meio dia, a hora
antigamente tão alegre de jantar,--quando sobre as toalhas de linho
alvejante os moringues de barro de Estremoz marcavam nas mêsas estreitas
e compridas, voltadas para o pulpito, o logar de cada uma--mais parecia
que a sineta chamava para um banquete de sombras.

Os padres iam compassando os responsos, rodeando a cova onde já
repousava o cadaver, e cada um ia deitando uma pá de terra, seguindo-se
na ceremonia toda a comunidade.

Ah, bem feliz era Soror Gertrudes que ainda encontrava um abrigo santo
junto das suas irmãs, vivendo com ellas no eterno sôno, sob o
abrigo das arcarias do claustro florido, acalentada pelo murmurio fresco
da fonte que transbordava na sua concha de marmore. As outras--pobres
dellas!--já não teriam na morte esse mesmo abrigo sagrado e seriam
relegadas a mãos estranhas e indiferentes, esquecidas nesse campo
desabrigado e devassado por todos os olhos profanos, que eram os novos
cemiterios.

As velas tremiam nas mãos enrugadas das pobres vélhinhas.

Das trinta e três freiras que o _Livro da fundação_ dava como limite
para a comunidade, homenagem piedosa aos anos de Christo, e que ao soar
a hora, que para muitos fôra de redenção e para ellas de mágua, se
preenchera á pressa, abreviando as profissões das noviças, já quinze
dormiam insubstituidas sob as lages do claustro.

Sentindo o lento caminhar das vivas, que eram como fantasmas errantes
nesse asilo guardado pela morte, sentiriam a dôce ilusão de assistirem
com ellas na vida comum.

Olhavam-se apavoradas, as velhas freiras, a cada nova escolhida que a
morte vinha tocar com o seu beijo gelado, e murmuravam entre si:--de
qual será agora a vez?--terrificadas com a ideia de sêrem a última.

Soror Claudea, com o seu olhar sombrio e desvairado, seguia a ceremonia
funebre com tremuras convulsivas no seu corpo magro de que a loucura
histerica fizera uma bôa prêsa.

Dantes tambem morriam, é certo, mas a cada cova que se fechava abria-se
a porta a uma noviça que tomava o véo preto, e no simbolico número se ia
conservando sempre a comunidade.

Manoela soluçava agora, vendo cahir a última pedra que a separava para
sempre da bôa tia, que era a sua unica grande afeição no mundo--tão
diluida tinha na memoria a lembrança do passado que a filha era apenas
uma vaga recordação, tão pouco pungitiva como a que lhe ficara do pai,
que mal conhecera.


Soror Angelica ficara superiora sem quasi se proceder á ceremonia da
eleição, tanto se impunha a todas a sua inteligencia, a sua energia, e a
sua cultura, rara entre as senhoras daquella casa de regra áspera e
humilde.

A nova superiora era uma bôa e valiosa amiga para Manoela, considerando
como um dever estimá-la tal qual o fizera Soror Gertrudes, que tão
solenemente lha entregara.

Mas Soror Angelica era um espirito mais varonil e energico, e, se dava
amizade segura e protéção incondicional, não tinha como a tia de Manoela
os carinhos e as delicadezas dum espirito que tinha ficado menineiro
apesar da esterilidade duma vida sem familia propria.

A nova superiora era respeitada por todas; a antiga tinha sido amada e
era chorada como uma bôa mãe.

Se Soror Angelica tivesse nascido anos atraz, seria uma dessas preladas
temidas e escutadas por todos, porque sabiam fazer valer a força do seu
direito e pesar a influencia das familias, da fortuna e do nome profano
de todas as suas governadas, em qualquer questão que as interessasse.

Se tivesse nascido alguns anos mais tarde, seria, em qualquer campo para
onde dirigisse os seus passos, uma criatura representativa, uma destas
influencias que todos procuram captar para o seu lado porque em toda a
parte entra com o valôr da inteligencia, da energia e da tenacidade,
qualidades sempre raras em todos os tempos.

Superiora sem importancia num convento desapossado de todos os seus
rendimentos e que existia apenas emquanto vivessem as últimas
freiras--como existe, sustentado pela hera que o reveste, o velho
muro em ruinas--Soror Angelica era um desacerto porque era uma força
inutilisada.

Desde que ficou naquelle quasi isolamento, o espirito de Manoela começou
a acordar, a debater-se para sahir do torpôr em que esses quatro anos
amimalhados lhe tinham adormentado a alma.

Essa loucura ardente da fé que despreza o presente pela vaga esperança
dum futuro cheio de delicias, já por vezes a compreendia, exaltada pela
devoção e pelas leituras misticas que a superiora lhe indicava. O
caminho que leva á sarça em fogo onde se consomem as pobres almas
doentes, que dão as Santas Terezas de Jesus, já por vezes se abria
diante da sua imaginação inátiva e do seu coração amoravel tão
implacavelmente impelido pelo destino para a solidão e o desamôr.

Naquelle meio de apertada devoção, no silencio dos grandes corredores
pontuados de capelinhas milagrosas, o seu espirito inclinava-se para um
misticismo apaixonado e obsessivo, como tudo seria naquella alma de
peninsular temperada e subtilisada pelo sofrimento, que vencera sem queixa.

Andava vagarosamente pelos claustros lageados, sentindo-se prêsa dum
respeito supersticioso por essas pedras que cobriam corpos
macerados de santas; tinha sorrisos silenciosos, gestos vagos de corpo
apenas vivo pela esperança de se consumir em breve e reviver só em
espirito purificado.

Á hora das orações rituais, assentava-se com as companheiras nos
cadeirões de pau santo, que se defrontavam em duas filas sobrepostas e
dantes eram só destinados ás professas, e pensava que a vela benta que
as separava era a alma de cada uma das freiras que ardia no amôr
apaixonado do Senhor seu Esposo e seu Deus.

O bruxoleamento da luz sobre as paginas do livro de oficios, que seguia
por dever, tinha para a sua mente enfebrecida a significação clara dum
suspirar de espirito aspirando á eterna bemaventurança.

Ali, naquelle côro grande como uma capela, revestido de azulejos
policrómos, cheio de santos e relicarios preciosos, que irradiavam na
meia obscuridade das suas doiraduras e pedrarias, numa luz quasi de
sonho, Manoela gastava os seus longos e inuteis dias.

O côro era, como tinha sido sempre desde que se fundara aquella casa, o
unico luxo, o cuidado e gosto de todas aquellas almas privadas doutras
delicadezas e distráções feminis. Privadas até de irem á igreja, que
Manoela contemplava extatica pelas grades estreitas, revivendo a
vaga recordação que lhe ficara do dia da entrada, quando os seus olhos
enevoados pelas lagrimas a tinham visto sem lhe poderem dar o verdadeiro
valôr.

O convento nem se via de fóra, construido em quadrado por traz da igreja
que o guardava, imperturbavel e austera como sentinela incorruptivel da fé.

A igreja era magnifica, nada dizendo com a humildade da regra nem com a
modestia do resto da casa: duma traça arrojada, em que as colunas em
marmore côr de rosa subiam em cordas espiraladas, até se juntarem na
cúpula alta e sonora.

As janelas, do nosso gotico rendilhado a que se chama _manoelino_,
conservavam ainda restos dos antigos vitrais, que deviam ter sido dum
brilho e colorido que encheriam de encanto as naves silenciosas.

Os paineis, que a rodeavam, sobresahiam das largas molduras doiradas e
entalhadas, pelo colorido um pouco frio e o desenho convencional e
rigido do estilo que se impunha no tempo em que uma grande dama da côrte
se lembrara, apaziguando talvez recordações importunas duma mocidade
cheia de dôces culpas, de fundar aquella santa casa onde,
propositadamente, só á igreja fôra dada a magnificencia e o fausto
devidos ao Senhor omnipotente, dispensador de todas as graças,
arbitro de todo o julgamento. Para as Esposas, as virgens oferecidas
como vítimas expiatorias do pecado deleitoso da fundadora, a humildade,
o desconforto, e a asperesa da regra.

Contemplando a igreja, Manoela sentia-se amar um Deus imenso e
magestoso, arrastando purpuras e fazendo refulgir as joias da sua corôa
imperial por catedrais goticas de naves resoantes, cheias de grandezas e
misterio. Prostrava-se ante o seu trôno de luz nessa côrte celestial tão
fantastica e deslumbrante, que lhe descreviam as almas crédulas e os
livros piedosos.

O Christo torturado, empalidecido e humanisado pela dôr, não o
compreendia ali, no luxo e na grandeza da arte, como o poderia
compreender na igreja humilde da sua modesta aldeia.

Ali era um Deus para camponezes e para as almas simples; aqui era um
Deus aristocratico e soberbo que se impunha aos grandes e aos poderosos.

Prêsa naquelle deslumbramento, que a fazia viver uma existencia á parte,
Manoela assim iria gastando a existencia se não viesse um banal
incidente chamá-la a si, chamando-a á vida com novos interesses e novos
deveres a cumprir.

Ama-Rita, a bôa mulher que nunca a esquecêra, escrevia-lhe uma longa
carta, de letra tortuosa, quasi ininteligivel, que ella decifrava a
custo. «Só passados sete anos lhe escrevia, porque a senhora lho tinha
prohibido e, não sabendo escrever, não confiava em ninguem da terra para
fazer uma coisa contra a sua ordem. Agora era a sobrinha, a Luisa da
Roda, que o fazia. A menina devia lembrar-se della, eram da mesma
criação, tinham brincado bastante em pequenitas... Viera de servir, mas
tão doente que o mais certo era não poder voltar. Podiam confiar nella e
emquanto vivesse não teria a menina falta de cartas».

Manoela tinha os olhos rasos de lagrimas ao pensar na pobre rapariga,
talvez tisica, que tinha sido sua companheira de infancia, dessa breve
infancia que lhe vinha, numa lufada sã, evocada por essa mal redigida
carta de camponia. Era um pedaço da sua rude terra, que a urze e o
rosmaninho incensavam.

Depois, as noticias alongavam-se:--este que tinha ido para o Brazil,
aquelle que voltara da tropa, casamentos, bátisados, mortes... e porfim,
numa linha só, como misteriosamente, a causa primaria de se ter escrito
aquella grande carta:--«A menina criava-se muito bem; a menina era muito
linda».

Mais nada... E, no entanto, que mundo novo de pensamentos e de paixões
essas poucas palavras desenrolavam diante dos olhos e do coração da
triste reclusa!

O seu espirito, adormentado numa crise de misticismo para que a
predispunha o meio ambiente, reagia agora com toda a energia, porque a
sua alma não era feita para vagas abstrações; antes fôra, era, e seria
sempre, uma mulher humana, nascida para viver e sentir humanamente a
vida, com todas as suas amarguras e alegrias compensadoras.

A filha!... Quasi a tinha esquecido, naquelle viver sem consciencia de
si propria, que fôra a sua existencia ali.

Como podera resignar-se durante tanto tempo só com a certeza de que esse
pequenino anjo, que era a carne da sua propria carne, vivia, nessa terra
longinqua e áspera, sob os cuidados da velha Ama-Rita? Sentia remorsos e
agradecia intimamente á bôa serviçal, que assim a chamava á vida
lembrando-lhe o cumprimento do seu dever.

Relendo aquella frase incolôr, sentia que dentro da sua alma se ia
levantando outro altar, criando uma nova religião, que mal sabia como
era dificil de harmonisar.

Encostada ás grades da janela do dormitorio, para onde viera na ânsia de
se encontrar a sós com a sua propria alma, olhava o campo que se
estendia num verde luminoso, com um castelo ao fundo, na imponencia de
cenografia espétaculosa.

Na cerca a nóra gemia e a agua cahia no tanque donde era tirada para as
regas.

Esse murmurar da agua corrente evocava-lhe o passado distante, a sua
terra, o fiosinho de agua transparente a deslisar por entre os choupos,
ao fundo da sua quinta, e aquella pequenina enseada onde se ia esconder,
num desejo calmo de solidão, a olhar a agua saltando de pedra em pedra
num grande esforço de quem vem exausto de longa caminhada.

Recordava, com tanta saüdade que chegava a sêr uma dôr material, essa
época tão afastada para o seu espirito que já parecia têr pertencido a
outra existencia, as horas que passara ali sósinha, idealisando um
futuro de poesia e de romance, como o idealisam sempre as mulheres que
uma educação racional não preparou para entrar na vida pela porta ampla
e sem mentidos encantos da realidade.

Recordando todo esse passado, para sempre morto, a sua alma tão
cruelmente torturada e tão profundamente humana acordava num alvoroço.

Chamavam-na para a vida, e ella vinha toda inteira, corpo palpitante,
coração sangrento pronto a entregar-se a um novo ideal.

Desde esse dia nunca mais deixou de pensar na filha, que se tornou a sua
obsessão; sentia-lhe a vózinha de choro chamando-a mãe; via-lhe o
pequenino rosto, que idealisava duma pureza de linhas que só igualariam
os anjos das pinturas rafaelescas; tremia com a ideia de que podia uma
doença cruel arrebatá-la sem que a tivesse uma vez sequer acalentado nos
braços.

Já não rezava como dantes, mas ainda passava no côro as melhores horas
da sua vida, ajoelhando-se de preferencia diante duma grande Virgem que
a lenda dos seus milagres tornava célebre em toda a cidade.

Dizia a crónica:--que essa imagem viera de Candia com destino a Espanha
e fôra por milagre trazida á cidade. Recebida entre musica e fogos de
artificio, foi levada em procissão e confiada ás freiras que tinham fama
de mais virtudes entre todos os conventos da terra. De tal maneira se
avigorou a fé nos milagres da formosa imagem que raro era o dia em que a
irmã rodeira não recebia, de pobres criaturas sofredoras, bilhetes e
cartas implorativas dirigidas á Virgem para sêrem colocadas sob a sua
guarda. A crença no milagre, o último refugio dos fracos que não
podem resistir á dôr, fizera da bela Senhora uma consoladora permanente
como dispensadora desse beneficio inestimavel para a maior parte dos
sêres humanos: a ilusão.

Tambem Manoela se afervorava na devoção pela milagrosa imagem; mas o
motivo que a arrastava até aos seus pés e a prostrava agora em extasis
era mais humano do que mistico. É que diante dessa Virgem, que era uma
mulher que a escultura traçara com toda a verdade, sustentando nos
braços um pequenino Jesus, filho humano e verdadeiro, que ella,
humanamente mãe, acariciava com a doçura do seu olhar veludoso e a
caricia dum sorriso angelical, sentia a sua alma pacificada, sentia-se
irmanada no mesmo sentimento.

Essa mulher, mãe dum Deus, não a perturbava, porque era bem mulher, bem
maternal, para compreender o sobresalto do seu coração, a saüdade que a
sufocava por esse pequenino corpo adoravel, leitoso e macio, que apenas
podera vêr e beijar á nascença. Aspirava pela caricia dos seus braços
roliços e da sua boquinha perfumada; morria de paixão por esse entesinho
dealbante, que lá longe ia crescendo e vivendo rudemente entre
camponêses, que mal a saberiam amar.


IV

Num inverno humido e triste em que o claustro, a igreja e o palratorio
chegaram a sofrer uma inundação que muito assustou a comunidade, Manoela
tremia arrepiada sob o mantéo curto das recolhidas, e pensava com horror
no frio que arroxearia as pequeninas mãos da filha que se aninharia ao
canto da lareira fumarenta da miseravel casa onde se criava, por essa
invernia inclemente que tudo abafava sob a nevada deslumbrante.

Sentia o pavôr da sua almasinha trémula, quando os lobos esfomeados
rondassem o povoado, acossados da montanha pela neve, e as ovelhitas
timidas se aconchegassem no curral balando tristemente.

Ah, ella não podia acostumar-se á ideia de que a filha, a sua querida
filha, viveria assim eternamente sem conforto nem os mimos que para ella
sonhava.

Já por vezes tinha tentado convencer a mãe, levá-la ao esquecimento e á
tolerancia pelas suas humildes súplicas, mas nada até ahi a tinha
demovido do seu proposito de conservar em misterio a existencia daquella
criança que a seu vêr não era do mesmo sangue que das suas veias
tinha passado ás da filha, e da filha á neta, na continuidade fatal da
natureza.

Manoela insistia, pedia ainda; mas a força instintiva do amôr maternal,
que a impulsionava agora, começava a fazê-la admitir a revolta contra
esse poder que a natureza naturalmente afrouxa, porque assim o acha
necessario para a conservação da especie, embora os homens o tenham
querido fortalecer com as suas leis e costumes antinaturais.

Soror Angelica, como superiora e como amiga, continha-a e aconselhava-a
a conformar-se com a vontade de Deus...

--«Depois,--dizia-lhe ella, um dia, aspirando deliciada a flôr perfumosa
duma angelica que se abria num vaso colocado na varanda da sua céla de
superiora, mimo gracioso duma das suas amigas da cidade--depois, Soror
Manoela, de que lhe serve ir contra a vontade de sua mãe?!... Não é ella
a senhora da casa?... Não é ella que tem só o poder do dinheiro?»

--«É a senhora, porque nós, os filhos, assim o queremos; mas não sabe,
Madre Angelica, que temos direito a puxar pela herança de meu pai e
exigirmos a nossa parte?... Por pouco que seja, dar-me-ha o
bastante para viver com a minha filha...

Por menos que Manoela soubesse das leis que governam os homens, sabia o
bastante, pelas relações mundanas entretidas entre o convento e a
sociedade, para conhecer o direito que a tornava senhora da sua pessôa e
da sua fortuna.

--«Revoltar-se, Soror Manoela, cuida que isso lhe daria felicidade?!...
Santo Deus! Os pais representam na terra a autoridade divina. Triste
daquelle que no pecado procura a coragem bastante para lhe fugir!...

--«No pecado?...--murmurou Manoela, limpando as lagrimas.--E não será
maior pecado o meu se deixar morrer ao abandôno a minha filha, esse
pobre anjo que não tem culpa nenhuma de têr sido chamada á vida?!...

--«Sim, é uma grande culpa que sua mãe levará ao tribunal supremo, mas
quanto maior não seria a sua, minha pobre filha, se levasse a de
rebeldia e de orgulho filial!... Não chore! Tenha resignação; se
soubesse quantas lagrimas têm chorado outros que... que... que por fim
se resignaram a não viver senão com a esperança na morte!...

E Soror Angelica desviou-se um pouco, abafando no lenço um soluço que
não poude vencer.

--«Madre Angelica?!...--interrogou ansiosa a recolhida.--Porque chora?
Tambem, como eu, sabe o que é sofrer o pêso duma vontade alheia, que
esmaga o coração?

--«Ah, minha filha, se sei!... Não queira, Soror Manoela, sofrer como eu
sofri... como nós sofremos... a tirania duma ordem, que despedaçou duas
existencias!...

A freira, que tinha sido uma das últimas professas, não era ainda muito
velha, mas o seu rosto, amargurado agora pela recordação, evocava um tal
passado de dôres e sacrificios, que Manoela, inconscientemente,
curvou-se para lhe beijar as mãos, que juntava num gesto de imploração
extrema, numa prece em que ia toda a sua alma de mistica e de sofredora.

Depois, mais socegada, sentando-se junto da mêsa de trabalho, convidou a
recolhida a sentar-se num pequeno escabelo e disse:

--«Soror Manoela, o que lhe vou dizer julgava-o para sempre sepultado no
fundo da alma, tão esquecido e longinquo como se o lêra duma outra
infeliz, num desses livros da nossa santa casa. Mas Deus Nosso Senhor
inspirou-me a ideia de lho contar para que nesse exemplo Soror Manoela
encontre força para resistir á tentação diabolica que a impele á revolta
contra a vontade de sua mãe. Soror Manoela, houve numa terra linda
do Alemtejo uma familia que juntava aos seus pergaminhos de fidalguia
uma grande fortuna em terras e dinheiro. Era pai e filho no tempo em
que... em que os conheci. O pai era o tipo acabado da nobreza altiva e
autoritaria; o filho a bondade, a inteligencia e a docilidade numa só
criatura humana reunidas. Em pequenino ficara orfão de mãe, entregue aos
cuidados duma velha parenta que o educara e cuidara como um perfeito
cavalheiro.

O seu gosto e a sua alegria estavam só nos livros que folheava sem
descanso e na penna com que se servia para versejar... ás escondidas. Só
uma pessôa sabia do seu _crime_, como elle lhe chamava, a rir...--e
Soror Angelica sorriu tristemente para esse fantasma saudoso da
mocidade.--Era uma pupila, do pai, orfã e morgada como elle. Oh, Soror
Manoela, se soubesse como se compreendiam e se amavam aquellas duas
almas que o destino parecia impelir uma para a outra!... Ambos novos,
ambos sem um coração de mãe que lhe tivesse sido refugio e consolação,
ambos ricos, ambos filhos unicos e ambos sentindo os mesmos prazeres, e
tendo os mesmos gostos simples e modestos. Oh! deixassem-nos lêr as
lindas historias de cavalaria que a velha prima alinhava com amôr
na bibliotéca do seu quarto; deixassem que elle lhe recitasse as
suas poesias emquanto ella matisava um bordado, sob a protéção carinhosa
da vélhinha, que lhes queria como a filhos gemios do seu coração... e
eram felizes. O que lhes faltava? Apenas a idade para que o pai
consentisse no casamento, que via tambem com olhos complacentes.

--«E casaram?...--perguntou Manoela, seguindo com vivo interesse a linda
historia de amôr que lhe rasava os olhos de lagrimas, a ella que do amôr
tivera apenas uma fugaz e mentida visão.

--«Não, não casaram--respondeu a freira, sorrindo, apesar da dolorosa
contráção da sua face marfinea.--Não lhe disse que o morgado era um
homem ainda novo e belo, apesar dos seus quarenta anos? Pois era... Ao
contrario do filho, montava com garbo um cavalo andaluz, que ninguem
domaria como elle, só com a pressão dos joelhos e a firmeza da sua mão
de rédea; sabia aprumar-se numa sala diante dos cavalheiros e curvar-se,
como ninguem, num requinte de gentileza, diante das senhoras; jogava
como um verdadeiro fidalgo, sem que ninguem podesse perceber-lhe no
rosto se perdia ou ganhava... emfim era querido e procurado por todos e
convidado com o maior empenho pelas familias aristocraticas da
provincia e da capital. A quantas formosas raparigas não teria sorrido a
ideia de o têrem por marido e quantos pais o não teriam desejado para
genro? Elle ria-se dessas pretensões e estava bem convencido de que o
seu destino estava traçado em vêr a felicidade do filho e receber os
netos para herdeiros e continuadores do seu nome. Mas, um dia, o morgado
viu uma senhora que se apoderou do seu coração, e desde logo deixou de
se pertencer. Era uma mulher formosissima e igualmente rica, mas dum
orgulho que nada havia que podesse igualar. Apaixonou-se tão loucamente
que desde a hora em que a viu até que a morte o levou nunca mais teve
vontade nem pensamento que não fôsse a della ou por ella inspirado.
Apresentou-se como pretendente á mão da orgulhosa fidalga, e, apesar da
sua idade e da concorrencia de muitos outros candidatos, foi aceite.

A ambiciosa calculava o valôr das fortunas reunidas e optara pela
pretensão do morgado, que lhe dava margem a viver na opulencia e
grandeza que sonhara. Mas... o morgado tinha um filho, o herdeiro da
casa, o futuro morgado e senhor, que mais tarde, morto o pai, a
esbulharia dos seus direitos de posse, nada deixando para os filhos que
podesse vir a têr.

--«O que fez então?

--«Oh, a desventurada sabia bem conciliar as coisas; só não soube
conciliar a felicidade propria com a dos outros!...

--«Casou com o filho?

--«Não, que horror! Pôs como condição para o casamento com o morgado que
o filho... se fizesse padre.

--«Oh, que sacrilegio! E o morgado aceitou?!

--«Assim foi. Em vão o filho e a pupila lhe pediram, de joelhos, que os
deixasse casar; em vão elle ofereceu a sua desistencia ao morgadio.
Ricos seriam os dois--com o seu trabalho e a fortuna de... da pupila do
pai. Tudo debalde! Elle foi implacavel, porque ella o foi tambem. A lei
só lhe garantia a posse do morgadio para os filhos se o verdadeiro
morgado fôsse frade ou padre...

--«Que desespero! Que mulher tão má! E depois, Madre Angelica?...

--«Depois... elle foi padre!

--«Oh!... E ella?

--«A noiva?

--«Sim, a noiva do rapaz.

--«Essa cuidou morrer de desgosto, mas deu-lhe o Senhor coragem para
resistir á doença do corpo e á da alma e... professou tambem.

--«Freira? Resignada, resignados ambos?... Que almas eleitas, meu Deus?
Mas... morreram?

--«Elle morreu. Dorme ha muito na paz de Deus. O seu corpo ficou, a seu
pedido, no claustro do convento que fundou quando ficou herdeiro da
fortuna...

--«Como?! Então sempre foi morgado?

--«Sim. A maior dôr foi essa!...

Soror Angelica encostou a cabeça á mão e as lagrimas escorregaram-lhe
por entre os dedos, uma a uma.

--«Mas porque não fugiram? Para que se sujeitaram a essa lei odiosa?!

--«Porque elle era o pai. E os filhos não podem ir contra as suas ordens
terminantes. Sugeitou-se, sacrificou-se, pela felicidade paterna. Mas...
pouco tempo depois a nova morgada, apesar de rica, autoritaria e feliz,
não poude resistir á fatalidade. Logo ao dar á luz o primeiro filho
morreu, cheia de pavôr do castigo, consolada e amparada pelo homem que
sacrificara ao seu orgulho e ambição. Mêses depois, o filhito que ficara
o herdeiro da fortuna morreu tambem deixando o pai consumido de
remorsos, envelhecido e triste, e herdeiro de toda a casa. E aqui tem
porque, sendo padre o filho mais velho, sempre este ficou o infeliz
herdeiro de toda essa fortuna maldita.

--«Então não acha, Madre Superiora, que foi absurda, que foi até um
crime essa obediencia que destruiu duas vidas?

--«Soror Manoela--e a voz da freira tinha uma entoação grave, que nunca
lhe conhecera, como se fôsse o éco apenas duma alma pairando muito
alto--esse absurdo não deixou remorsos nas almas que se irmanavam e se
amavam até ao infinito. Elle morreu sorrindo e perdoando; ella... vive
na esperança duma vida melhor, sem que--graças a Deus!--tivesse sentido
ainda a dôr amarga de ter causado o mal alheio.

--«Amarem-se dessa maneira, têrem diante de si a vida, e matarem por
suas proprias mãos toda a esperança de felicidade, Senhor! Como tiveram
coragem? Eram decerto duas almas santas--não se podem tomar como
exemplo... E não posso, não posso seguir o seu conselho, Madre
Superiora! Se os velhos são egoistas e impiedosos, os novos têm direito
a reclamar a sua parte de felicidade na terra.

--«Faça o que entender, minha filha. Mas fique certa que, volvidos
tantos anos e choradas tantas lagrimas, ainda não trocaria a paz da
consciencia e a dôce consolação da minha saüdade por uma alegria
construida sobre as ruinas doutra existencia...

--«Pois era a Madre Superiora?!...

--«Eu, sim, que não tive nenhum merito, porque _elle_ e só _elle_ foi o
inspirador da nossa conduta, _elle_ o filho heroico que sacrificou, sem
um protesto, a felicidade propria á felicidade de alguns anos de seu
pai!...

As duas calaram-se, entristecidas e como que suspensas, ouvindo uns
gritos lancinantes que vinham da outra extremidade do corredor.

--«Pobre Soror Claudea!...--lamentou Manoela--Anda agora tão louquinha!

--«Ahi tem, Soror Manoela, uma que se não poude resignar de bôamente...

--«O quê? Ella não foi sempre assim?

--«Oh, não! Era a mais alegre, a mais encantadora, a mais viva de
quantas têm vindo a esta casa procurar o repouso e a felicidade... que
nunca poude encontrar entre nós. Se a visse!... Soror Claudea nunca teve
vocação para freira e nunca pensou que o poderia sêr. Se entrou para o
Convento das Bernardas foi na ideia de que de lá seria facil fugir á
tirania do pai, que a queria fazer professa a todo o transe.

--«Meu Deus! Mas porquê?!

--«Porque a fortuna da casa era pequena e era preciso que ficasse toda
reunida nas mãos do filho mais velho, o representante da familia.

«As irmãs e irmãos de Madre Claudea espalharam-se, resignadamente, por
varios conventos e fôram homens e senhoras muito respeitados na
religião. Ella é que se revoltou sempre, porque, para seu castigo, desde
pequenina que queria, com um amôr profano e intenso, a um moço de
modestos recursos, filho segundo como ella, que se desesperava por a não
poder furtar ao poder despotico do pai.

«Começava nesse tempo a falar-se nos liberais que se juntavam no
desterro para conspirar, os quais, dizia-se, eram recebidos de braços
abertos pelo imperador, desde que mostrassem sêr homens de valia e de
coragem. Se a causa liberal triunfasse, dizia-se, esses ficariam ricos e
cheios de dignidades. Na esperança de por esse meio conquistar a fortuna
que lhe asseguraria a felicidade sonhada, o rapaz emigrou e voltou mais
tarde com as tropas liberais pondo em todos os átos de coragem da sua
brilhante carreira militar o unico fito de libertar a mulher que amava,
prêsa num convento e obrigada a professar, embora protestasse sempre e
chorasse sem descanso durante toda a ceremonia.

--«Assistiu a essa cêna, sem lagrimas, Madre Angelica?»

--«Felizmente não foi no nosso convento que a fizeram professar, mas,
embora as freiras chorassem e a lamentassem, o que lhe podiam ellas
fazer?... O sr. bispo era parente da familia, e o sr. bispo é que
aprovou a profissão.

--«Pobre mulher!...

--«E bem desditosa! Quando o namorado chegou a Portugal soube da sua
profissão violentada, mas não desanimou. Combinou as coisas de modo que
se poude corresponder com ella e... combinaram a fuga.

--«Soror Claudea fugiu?

--«Sim, chegou a sahir do convento, descendo por uma corda da altura dum
segundo andar. Quando chegou á rua onde elle a esperava tinha as mãos em
carne viva, tão feridas que ainda hôje conserva as cicatrizes e ficou
com as articulações prêsas...

--«Sim, já tinha reparado que mal pode trabalhar com desembaraço...

--«Fugiram... mas na guerra não ha felicidade possivel. A morte foi tão
cruel para o sacrílego como a familia o tinha sido para a desditosa...

--«Infeliz mulher! E depois?

--«Depois, abandonada de todos, aceitou este pobre refugio, apesar de
não sêr professa da nossa Ordem. É desde então que Madre Claudea sofre
as crises aflitivas que Soror Manoela conhece... Pobre Madre Claudea!
Não soube conformar-se, e não foi por isso mais feliz fugindo á
obediencia filial...

--«Oh, Madre Angelica, sempre o peor é ter nascido mulher! Terá sido
sempre assim? Será eternamente a mesma coisa?!...

--«Quem o sabe?!...

--«Que grande culpa a minha em têr dado vida a uma criatura que hade,
como nós, sêr uma sacrificada!...--E Manoela torcia as mãos chorando
numa crise de nervos, que a velha freira tentava aplacar.

--«Tenha esperança, minha filha; quem sabe o que será o futuro?!...
Houve sempre mulheres que escaparam ao destino comum e fôram felizes.


V

Manoela foi-se resignando a esperar, cedendo sempre, adiando de mês para
mês a realisação do projéto que acariciava no seu coração, e que
importava o áto público de rebeldia, que Madre Angelica tanto condenava.

Os anos fôram decorrendo e ella assistindo, com o espirito dolorido e a
vontade embotada, áquelle fim miserando de vidas que se iam extinguindo,
num bater de azas lugubres que enregelava.

O convento ia-se despovoando a pouco e pouco, como que tornando-se
maior, á medida que as vélhinhas, uma a uma, iam sahindo, para não mais
voltar, a tomar o seu modesto logar no cemiterio público.

Manoela era agora a cabeça que por todos pensava, a alma e a energia que
sustentava aquelle resto de vida conventual, dando-lhe uma aparencia de
cohesão, que não tinha.

Sentia-se apossada de todo esse vasto casarão, que parecia crescer a
cada nova baixa que a morte marcava, com a sua fatalidade cega de força
inconsciente, na comunidade já tão diminuida.

Era a herdeira natural e incontestada dos santos que lhe iam deixando as
pobres vélhinhas, como recordação, e na vaga esperança de que assim
viveriam mais na sua memoria, unico abrigo ás suas almas exauridas.

Das freiras que ao entrar a tinham enchido de blandicias e amimalhado
como mães carinhosas, já poucas existiam. Iam-se mirrando e fenecendo,
seguidamente umas atraz das outras, quasi sem doença e sem sofrimento,
num descahir e murchar de vontade que nenhum ideal sustenta.

Apenas três ou quatro vélhinhas entorpecidas pelos anos, Madre Angelica
ainda energica apesar da sua idade e da sua dolorida existencia, e Madre
Claudea cada vez mais dificil de aturar, fugindo endoidecida do convivio
dos outros, seguindo apenas automaticamente as devoções obrigatorias do
côro, que eram como que um farrapo de lucidez a alvejar no seu triste
espirito entenebrecido. Chorava dias inteiros, com gritos dilacerantes,
os pecados do mundo, que queria carregar sobre os seus miseraveis
hombros, mais do que os dos outros pecadores, sem esperança de perdão.
Tinha visões que assustavam as meninas do côro, e apavorava as criadas
narrando-lhes: como na igreja do convento fôra uma vez enterrado um
grande fidalgo da cidade cuja alma em pena o diabo veiu buscar com
medonho barulho. Ella não se lembrava, Soror Claudea não era desse
tempo; mas ouvira contar bastas vezes ás santas freirinhas que tinham
assistido a essa luta homerica do diabo, querendo levar uma alma
abrigada pelas paredes santas daquella virtuosa casa. O fidalgo durante
toda a vida não tivera uma palavra de justiça nem de piedade para
ninguem, nem se lembrava de minorar a miseria alheia, a não sêr por
orgulho e fama. Assim, logo que morreu e que o trouxeram com pompas
principescas ao carneiro de familia, feito na igreja por deferencia
especial a quem muito protegera a comunidade, um verdadeiro e espesso
nevoeiro se levantou logo do chão escurecendo a vista ás freiras, que
nem podiam distinguir o padre oficiando no altar. E, á noite, o ruido
era tanto pela nave magestosa, que as freiras atemorisadas deixaram de
abrir as grades do côro para as rezas noturnas. Era impossivel resistir
ao pânico que se apoderou daquelle rancho de mulheres, que viam e ouviam
tudo quanto diziam vêr e ouvir por um fenomeno vulgar de sugestão, que
tanto milagre tem feito no mundo.

Madre Claudea descrevia e pormenorisava, então, a festa do exorcismo que
fôra feita por santos monges arrabidos auxiliados por todas as
outras comunidades dos arredores, que de cruz alçada entraram na igreja.
Aberta a sepultura e aspergido o cadaver, uma nuvem negra sahiu da cova
espalhando-se pela igreja e sahindo pela porta entre-aberta com fragôr.
Depois tudo cahira no silencio, tudo se pacificara, ouvindo-se apenas as
orações dos frades prostrados de joelhos num santo respeito por tão
grande castigo.

E quando fôram vêr a cova... não continha mais do que um punhado de cinza!

Madre Claudea benzia-se murmurando exorcismos e orações, e as ouvintes
entre-olhavam-se sentindo pela espinha um arrepio de pavôr.

E não era só isto o que ella sabia. Uma ocasião--isso já fôra talvez ha
seculos, mas o _Livro da fundação_ lá o tinha escrito--aparecera um
rapazinho trazendo um feixe de varas resequidas que ofereceu á irmã
rodeira para plantar na cerca. Se ella as plantasse veria como dum
instante para o outro, por milagre do Senhor, cresceriam logo e se
tornariam em belas e frondosas arvores. A irmã rodeira ralhou com o
garoto e despediu-o; mas como nessa ocasião passasse uma noviça, criança
e amiga de brincar, disse-lhe com empenho:--deixe-me experimentar, irmã
rodeira; não faz mal nenhum e sempre a gente se rirá da lembrança do
rapazinho.

Assim foi. Pegou numa das varas e foi a correr enterrá-la na cerca,
seguida por outras noviças em recreio.

Imediatamente--Santo Deus, os maleficios que faz o mafarrico!--a vara
engrossou e cresceu desproporcionadamente e tornando-se numa arvore
magnifica encheu de assombro as pobres noviças, que viam, sobre ella,
uma multidão de macacos fazendo-lhes negaças. Foi o inferno na casa!
Todas as que olhavam a arvore maldita ficavam possuidas do espirito
imundo e faziam os maiores desacertos e gritarias. Como toda a
comunidade corria a vêr a causa de tal alvoroço, toda ella sofreu do
mesmo mal, e têr-se-iam perdido todas, certamente, se não fôsse a Madre
Superiora, que, antes de mais nada, mandara chamar pela moça de recados
os senhores capelães e confessores para pôr termo áquelle inferno com as
suas preces e esconjuros.

Madre Claudea sabia mais e mais, mas já se não lembrava bem e a sua
memoria fraquejava ao recordar tantas coisas idas... Apertava a cabeça
com as mãos e chorava, num chôro desfeito e infantil que enchia de
lagrimas todos os olhos.

Só Manoela podia apaziguá-la e por assim dizer chamá-la á realidade e,
com a sua voz persuasiva e grave, fazê-la socegar e adormecer
confiada como uma pobre inocente. E olhando-a esqualida e apenas com os
ossos cobertos por uma péle resequida e empergaminhada, Manoela pensava
com amargura na linda rapariga que ella fôra, segundo lhe contara Madre
Angelica, amada com paixão, amando com loucura, vítima de interesses e
preconceitos alheios, um dia rebelde e desvairada rompendo com todas as
peias, logo humilhada e cheia de remorsos, entrepondo-se voluntariamente
á vida que engeitara, num terror atavico de escravo que não sabe o que
hade fazer á liberdade, com sacrificios heroicos.

Tambem Manoela teve um dia, e quando menos a esperava, depois de tantos
anos de sujeição, a sua alforria, e tambem, como ella, a não soube usar,
porque a sua vontade longamente oprimida não se fortalecera e definira.

Ao princípio, quando chegou, a noticia da morte repentina da mãe, não se
compenetrou bem do que essa morte representava para a sua existencia e
apenas se sentiu surpreendida--não tendo a pretensão de querer sofrer,
por costume, o que de facto não sentia, por aféto.

Mas, relendo melhor as cartas do irmão e da Ama-Rita, compreendeu por
fim que era rica e senhora absoluta da sua pessôa. Isto não lhe
podia de pronto dar a sensação da liberdade que por vezes pensara
deveria sentir, porque o hábito lhe dera uma nova servidão, que os
timidos e os prisioneiros conhecem.

Mas, a pouco e pouco apossando-se de si mesma, resolveu fazer
prontamente o que havia tanto desejava com ânsia: mandar buscar a filha,
reconhecê-la como tal, e conservá-la junto do seu coração e até á morte,
triplicando em carinhos os anos de amargurada saüdade em que a tinham
conservado.

Foi têr com Madre Angelica, que era ainda a Superiora venerada e
querida, que anos antes a acolhera no seu coração maternal.

Parecia outra, galgando lestamente as escadarias e correndo pelos
corredores que levavam até á céla da Superiora, que já quasi nunca sahia
do seu cantinho cheio de sol. Com os seus trinta e quatro anos vividos
numa vida quasi vegetativa, os traços finos do seu rosto, que fôra duma
formosura discreta de morena, conservavam, apesar de tudo, a delicadeza
e a graça ingenua que fôram o grande encanto da sua mocidade, quando a
tinham trazido para ali.

Nos momentos--raros momentos que elles fôram!--de perfeita felicidade
para o seu coração, toda a sua pessôa irradiava uma alegria
confiante, que a tornavam singularmente encantadora.

Quando Madre Angelica levantou os olhos do livro de orações para dar a
licença que ella lhe pedia á porta, foi já com o assombro que causa uma
grande mudança numa pessôa querida, porque a propria voz da recolhida
era outra--um novo timbre de alegria a fazia desconhecivel.

--«O que é, Soror Manoela?!... Alguma novidade lá por baixo?

--«Não, Madre Angelica, a novidade é só minha... é uma coisa que eu
pensei e que lhe venho participar...

E Manoela explanou, diante da pobre freira sobresaltada, o projéto, que
tão simples se lhe afigurara.

--«A sua filha para aqui, Soror Manoela, pensou isso?!...--perguntou
apavorada.

--« Sim, para aqui, então não hade sêr para aqui?!

--«Oh, meu Deus, meu Deus! Para que estou eu guardada, santo
Deus?!--lamentava a Superiora.

--«Mas eu não compreendo o seu espanto, Madre Angelica! Então não sabia
o motivo porque estou aqui ha dezoito anos? Não foi a Madre Angelica que
me levou á obediencia a minha mãe adiando até agora a realisação do
meu desejo?!...

--«Sempre imaginei morrer antes de vêr esse escandalo!... Meu Deus, meu
Deus! Então a minha filha quer dar a essas meninas o público espétáculo
da sua antiga culpa?!... Quer sêr o riso e a fabula de toda a cidade?! O
que dirão de nós?! Com tanta má vontade contra as casas religiosas, com
tanta calúnia que se tem levantado, se Soror Manoela vai agora
apresentar publicamente a sua filha, o que não dirão?!...

--«E que me importa tudo isso?!--não sou eu livre porventura?!

--«Oh, livre, livre!... Ninguem é livre de alardear os seus
pecados--respondeu a freira, impacientada.

--«Não é isso o que nos diz a nossa religião, Madre Superiora. Esconder
um pecado ou culpa é uma prova de orgulho que Deus condena.

--«Mas não neste caso, em que a sua publicação trará descrédito e
vergonha para a nossa santa casa. O que dirão, sabe, Soror Angelica?...
Dirão que nesta casa a imoralidade chegou ao ponto de se apresentarem
publicamente as filhas das freiras!...

--«Dirão uma mentira, que eu propria desfarei contando a verdade. Bem
sabe, Madre Angelica, que se não fiz isto ha muitos anos foi por
seguir os seus conselhos, nos quais me mostrou que devia obediencia a
minha mãe. Por ella, por esse respeito de que me falou para com uma
pessôa que me afastou da casa de meu pai, que me expulsou como a uma
criminosa, sofri dezoito anos dum silencio que considero uma covardia
hôje... Ah, dezoito anos de saüdades por uma filha que se não conhece e
pela qual se morre de amôr!... Ah, Madre Angelica, como fôram crueis
comigo! A culpa, se a houve, se uma criança, como eu era, a pode têr por
se deixar iludir por um homem da sua casta, um amigo de seu irmão...
essa culpa bem a tenho lavado com lagrimas de um coração ansioso por
conhecer a sua propria filha. Ah, a Madre Superiora é cruel: foi-o
comigo, quando me fez recuar ante a minha justa vontade; é-o agora
ainda, porque não compreende este meu sentir!... Mas agora sou livre;
quero a minha filha--e heide tê-la!...

Manoela, sempre tão delicada no dizer e tão submissa, chegava nesse
momento á voluptuosidade das almas sacrificadas quando uma vez chegam á
consolação de poderem articular a verdade, que lhe sahia em palavras que
pareciam golfadas, num atropêlo de quem esteve encarcerado largos
anos e vê por acaso uma porta escancarada.

--«E seus irmãos, o que dirão elles desse áto?--arriscou a Superiora
tentando dissuadi-la.

--«Meus irmãos!?... Que lhes devo eu, Madre Superiora? Ha dezoito anos
que me viram partir de casa, um amaldiçoando-me, os outros nem
perguntando a causa dessa sahida, e só agora me escrevem porque apesar
de tudo a lei me confere o direito de partilhar com elles a herança de
nossos pais. Meus irmãos!? Quasi os não conheço... Nem lhes devo
amizade, nem respeito. Á minha filha, sim, a essa devo todo o meu amôr,
todos os momentos do resto da minha existencia.

--«Soror Manoela, pense bem. Será um escandalo! O que dirão essas
meninas do côro, as criadas, as senhoras que nos protegem e nos dão a
sua amizade?!... Para que estava eu guardada, Senhor!?--E a freira
levantava as mãos e os olhos ao céo, num gesto implorativo,
murmurando:--Ah, se Madre Gertrudes fôsse viva!...

--«Sim,--volveu a outra com vivacidade, tão pouco do seu costume--tem
razão! Se minha tia fôsse viva, ella seria a primeira a chamar a si essa
pobre criança que tem sido escorraçada de todos como um cão
tinhoso. E já que a não posso trazer para esta casa que me foi
abrigo nas horas tristes da vida, sahirei daqui. Irei viver com minha
filha livremente...

--«O que diz, Soror Manoela, deixar-nos!? Quer deixar-nos agora que
estamos com os pés para a cova, e é a unica pessôa que aqui temos para
nos ajudar a bem morrer, acabando em paz na nossa santa casa?!...

Os soluços sufocaram-na. Tambem ella sofria com a dôr da sua pupila;
tambem dos seus olhos, que já deveriam estar esgotados, por tanto terem
chorado, cahiram lagrimas que Manoela recolheu no coração angustiado.

Soror Angelica abriu-lhe os braços, e por largo tempo ficaram chorando
juntas o desespero dessa primeira desinteligencia em tantos anos de
confiada e dôce amizade. Foi a freira que quebrou o silencio:

--«Soror Manoela, mande vir a menina; mas, se lhe merecem alguma
consideração as suas velhas companheiras, não a reconheça desde já
publicamente. Deixe que a morte feche as portas do nosso convento, e
então será completamente livre para fazer a sua vontade.

--«Mas que nome dará á amizade por uma criança que tão empenhadamente
mando vir para junto de mim?

--«Não poderá sêr uma afilhada?...

--«Afilhada?!....--Manoela hesitava, pesando-lhe muito aquella fraqueza
como uma verdadeira covardia. Mas as velhas companheiras de toda a sua
existencia de expulsa mereciam alguma consideração... Cederia.

Tinha de sêr--mais uma vez sacrificando ao descanso dos outros os seus
sonhos, as suas revoltas, as suas alegrias, a sua vontade.


VI

Alguns dias depois chegava Christina, acompanhada pela Ama-Rita, que
chorava de comoção só com o pensamento de revêr a sua querida menina.

Manoela foi esperá-las á portaria, escondendo a custo a ansiedade da sua
alma que tumultuava em desejos loucos de tomar a filha nos braços e
gritar bem alto a sua paixão.

Toda ella tremia, sorrindo contrafeita ás conversas e perguntas das
outras senhoras, amparada pela Madre Superiora, que extraordinariamente
sahira do cantinho da sua céla para a fortalecer naquella suprema prova.

Veiu por fim a hora da chegada; abriu-se a portaria, e Manoela poude vêr
pela grade entreaberta a Ama-Rita, muito vélhita e trôpega, acompanhada
por uma mulher, uma verdadeira mulher forte e desempenada, que olhava
com visivel curiosidade essas paredes enegrecidas que iam sêr o seu novo
abrigo--sahida dum convento, onde a mãe pagara para a educarem, para
entrar naquelle como recolhida.

Manoela, á medida que a filha se ia aproximando, subindo a escada para
entrar no palratorio, ia recuando espavorida, sentindo um frio de
morte no coração, que a asfixiava. É que diante dos seus olhos estava,
não a filha que amava e chamara febrilmente durante anos de paixão
esteril em que se consumira, mas a imagem viva do homem que, na rétidão
do seu caráter, apenas podera desprezar como um sêr ignobil e ascoroso.

Christina não era nada, nada do que ella tinha idealisado. Não era a
_sua_ filha, era a filha _delle_, que a natureza, inconsciente na
fatalidade da sua força, lhe punha nos braços.

Vencendo a repugnancia instintiva que essa semelhança lhe inspirava, foi
sorrisonha e meiga que recebeu a afilhada, mas Christina não
correspondeu tambem a esse apêlo. Os seus olhos garços ficaram frios e
dominadores, como eram habitualmente; a sua bôca não se desdobrou álêm
do sorriso escarninho que lhe errava habitualmente nos labios.

Foi tristemente resignada que Manoela a acompanhou ao dormitorio cheio
de luz onde ella dormia, e onde, com amoroso cuidado, lhe arranjara a
cama velada com cortinados de inexcedivel brancura, fresca como um berço
de criança.

Ama-Rita seguiu-as falando muito, abraçando de quando em quando a sua
querida menina, que ainda era capaz de reconhecer entre muitas
apesar de tão mudada e tão triste.

Christina não despertou a simpatia viva que a mãe inspirara a toda a
comunidade logo ao entrar no convento.

Pagava com sorrisos contrafeitos os carinhos que lhe faziam, e mal
atentava nos mimos com que a mãe a rodeava. Aborrecia-se e
impacientava-se com as pobres vélhinhas, que procuravam nessa mocidade a
alegria que as aquecesse e lhes reflorisse as existencias a
extinguirem-se. Como á mãe, outrora, todas abriram o coração a esse
coração, mas este permaneceu fechado e frio, afastando-as descaroavelmente.

Tinha revoltas bruscas, respondia sêcamente, e queixava-se á Ama-Rita de
que a queriam sepultar entre quatro paredes e que a tinham tirado duma
prisão para a fecharem noutra peor. Manoela sofria com todas essas
pequenas coisas, que se iam avolumando, tornando-a odiada por todas as
outras companheiras; mas temia fazer-lhe qualquer observação receando o
seu genio, que presentia violento e áspero...

Até que um dia Christina, de combinação com uma menina do côro que levou
á rebelião, pôs uma verdadeira nota de escandalo no meio conventual,
subindo com ella ao telhado para vêr o que se passava no largo
apinhado de gente para a feira.

Manoela foi obrigada a proceder, advertida pela Madre Superiora, que a
acusava, com a sua voz dôce, de falta de energia para com a filha.

--«Christina--dizia-lhe meigamente--para que me obriga a admoestá-la?
Para que faz coisas... que não ficam bem a uma menina?...

--«Mas o que fiz eu, minha senhora? Foi algum crime subir ao telhado
para tomar um pouco de ar, para fugir um instante desta sensaboria?!

--«Mas a Christina não está bem, não gosta de estar no convento?

--«Não, minha senhora, não gosto de estar nesta prisão.

--«Mas oiça: hade sahir, tenha paciencia um pouco. Isto não pode durar
muito; são apenas duas as freiras que ainda existem, e quando ellas
morrerem sahiremos ambas. Continuará aqui a sua educação; a Christina
sabe tão pouco que mal se poderá apresentar no mundo, onde ha muita
exigencia para as senhoras da nossa classe.

--«Ah, sim!? Conselhos, conselhos tenho ouvido muitos. Eu já tenho
educação bastante, não preciso mais...

--«Christina!?

--«Minha senhora!?

--«Então não está bem ao pé de mim?...--E querendo-a convencer, com a
sua voz dum carinho maternal:--Não diga que não, que é sêr ingrata. Se
soubesse como sou sua amiga!...

--«Minha amiga?! Se o fôsse, não me prendia aqui como uma criminosa. Se
o fôsse, não me chamava afilhada--quando eu sei muito bem que tenho
outro nome...

Manoela interrompeu-a com um grito desvairado:

--«Christina, Christina, cala-te! Tu não sabes, tu não podes compreender
nada do tormento da minha vida!...

--«Ah, sim, um bom meio de me obrigar a calar, quando eu posso falar
porque sou sua filha--respondeu brutalmente.

Manoela empalideceu; aos seus ouvidos soou uma zoeira congestiva e o seu
coração quasi a sufocou na onda de sangue que lhe atirou á cara.

--«Sua mãe!? Está enganada, menina! Nem sequer é minha afilhada.
Mandei-a criar e educar por dó, e é por dó que a tenho comigo.

Conhecendo o orgulho da filha, pagava essa afronta com afronta maior.
Tambem ella se sentia ferida; tambem ella tinha necessidade de
revoltar-se contra a crueldade alheia. Tambem ella tinha um temperamento
violento, que a extrema sensibilidade e o prematuro infortunio tinham
enfraquecido mas não aniquilado.

--«Quer sahir?!--e o seu peito era sacudido por uma gargalhada nervosa,
que tornava ásperas as palavras--quer sahir?! Pois sáia! Que me
importa!? Recolhi-a por dó... não a obrigo a receber um beneficio que
não merece.

Mas Christina, como todos os egoistas, tinha a covardia das resoluções
rapidas. Diante da indignação da mãe, queria recuar, submetia-se,
desejava tudo conciliar...

--«Sahir, minha senhora?! Mas para onde?

--«Para onde estiver melhor, para onde quizer. Que me importa a sua
vida?! E é melhor fazê-lo já, já.

Manoela, com todos os nervos retesados numa crise dolorosa, tinha-se
tornado duma palidez esverdeada, os beiços trémulos e descoloridos, o
coração a afogá-la numa galopada infernal após uma como rapida suspensão
de movimento.

Ante aquella ordem e o gesto de repulsa que a acompanhava, Christina não
resistiu, dirigindo-se para a porta, de cabeça baixa, contrafeita,
unicamente arrependida de têr provocado uma cólera que a privava, dum
instante para outro, de todo o bem-estar material a que se afizera.

A mãe olhava-a tristemente:--era afinal aquella a filha que tanto amara
e tanto desejara!... Um resto de piedade venceu ainda a indignação e o
desgosto.

--«Oiça--disse-lhe quando estava quasi ao fundo do dormitorio, fazendo-a
voltar rapidamente a cabeça numa ânsia de esperançada.

--«Minha senhora, chamou?

--«Sim, venha cá.--E, sem a fitar, num repelão de magua que lhe causava
a atitude tão diferente da filha, agora de cabeça baixa e ar
hipocrita.--Custa-me abandoná-la para ahi, sem familia nem protéção...
Vou pedir a meu irmão para a receber em sua casa, como afilhada... Se
elle consentir, ficará contente?

--«Sim, minha senhora; seria uma felicidade para mim. Quanto lhe devo,
madrinha!

--«Não, não me deve nada. Vá á sua vida, e tenha paciencia alguns dias
mais.

--«Mas... eu queria pedir desculpa...

--«Não; não me ofendeu. Pode ir.

Tinha pressa de se encontrar só. Dizia bem: o seu coração não estava
ofendido; estava despedaçado, calcado aos pés, por aquella que
tinha sido o encanto da sua existencia antes de a conhecer e depois não
fôra senão motivo para desilusões e evocações pungentes.

O desespero da sua alma contrastava com a serenidade da lua, em
crescente, que se erguia manso e manso num céo translucido, ainda
tingido de oirenta púrpura no poente, e era como um alfange de oiro
pronto a vibrar-lhe o último golpe.

Soluçava; já não podia mais.

Pela janela gradeada, os olhos nublados de lagrimas mal distinguiam as
linhas dessa paisagem, revista em cada dia durante anos, e que umas
vezes lhe parecia grandiosa no seu aspéto cenografico, outras banal e
triste, conforme as impressões do seu espirito, tranquilo ou perturbado.

Sentia um agro prazer em chorar, e em soluçar como uma criança, numa
desconsolação de abandôno e de desespero. O que fôra o seu passado?
Apenas uma existencia sacrificada ao convencionalismo ou ao egoismo
alheio. O presente era essa amargura de se sentir desamparada das suas
proprias ilusões--as últimas companheiras dos que mais sofrem.

O futuro... Santo Deus! o que lhe traria o futuro se não lhe trouxesse o
hábito de viver para si mesma?!...

Madre Angelica, prevenida pela Ama-Rita que vigiava sempre a sua menina,
veiu têr com ella, arrastando-se vagarosamente ao longo do dormitorio,
como uma sombra que o luar fazia destacar.

--«Soror Manoela, o que tem, o que lhe fizeram para estar assim
agoniada?!...

--«Ai, Madre Angelica!... Estava ahi? Ainda bem, ainda bem que a tenho
junto de mim neste momento. Julguei-me olvidada de todos--até de Deus!...

--«Soror Manoela....--tornou a velha freira com severidade, adoçada pela
sua muita estima á reclusa--veja o que diz, minha filha. Deus é pai e um
pai não esquece nem aflige propositadamente os seus filhos. Elle ama os
mais amargurados--e serão esses os que mais perto estarão da sua eterna
gloria.

--«Ah, mas custa muito chegar até lá, pelo caminho da vida...

--«Tenha resignação, Soror Manoela; aprenda no exemplo dado pelo nosso
Salvador: olhe para a sua santa imagem, coberta de chagas e coroada de
espinhos! E tudo quanto sofreu, inocente e bom, foi para remir o mundo,
para salvar aquelles que o flagelavam.

--«Tem razão... terá razão--soluçou Manoela, humilhada. Mas logo, numa
revolta subitânea que toda a sua devoção não poude evitar--mas elle
era Deus, sofreu por sua vontade, e morreu logo!! O seu martirio não foi
uma longa vida arrastada na dôr e no suplício! Mas eu que vivo, eu que
tenho vivido anos e anos para sofrer em cada hora mais do que a morte...

--«Soror Manoela!...--reprimendou a freira.

--«Perdão, perdão! Meu Deus, se o sofrimento enlouquece!...

E de joelhos, aflita, soluçante, apavorada com a sua propria heresia,
foi-se arrastando até ao crucifixo que se destacava no fundo,
tremulamente alumiado por uma lampada de cobre, e ali ficou agarrada aos
pés chagados da grande imagem, num choro convulsivamente desfeito e
tragico.

Madre Angelica apiedou-se, ella que era o unico coração capaz de
compreender e estimar a misera criatura, e tentou levantá-la com as suas
poucas forças, e disse-lhe baixinho, numa voz que era uma consolação
para essa alma torturada e desgraçada:

--«Vamos, Soror Manoela, diga-me o que assim a faz sofrer. Conte-me a
sua magua--que verá como ella diminue...

--«Ai, Madre Angelica, morro de saüdades pela minha filha. Trocaram-ma.
Não é esta! Como fui castigada, Santo Deus!

E a freira, sinceramente surpreendida na sua credulidade ingenua:

--«O que me diz?! Então a Christina não é a sua filha?... Será
possivel?!...

--«Não é!--volveu Manoela, sobreexcitada, não reparando sequer na
dúvida da velha Madre.--Não é, não é a minha filha, que alimentei do
meu proprio sangue, que sahiu do meu corpo como a flôr sai da planta.
É uma estranha, é uma alma gelada, que não compreendo nem estimo.
Veja-a, veja-a bem, Madre Angelica; veja-lhe bem os olhos frios e
crueis, os seus olhos metalicos como os do _outro_! Veja-lhe o riso
escarninho, que é _delle_... Consulte-lhe a alma soberba e impiedosa,
como a da avó... Avalie a minha desgraça, Madre Angelica! Tenho uma
filha que não tem nada, que não é nada de mim!... E despreza-me, a
criaturinha!...--terminou num riso cascalhado, que era uma derivação do
choro histérico que a tomara.

--«Socegue, minha irmã. Então!?... Isso não é proprio de si...

--«Sim, tem razão! Eu não devo sofrer assim, mas que fazer?! Não posso,
não posso habituar-me a esta desolação; querer amar a minha filha tal
como é e não como a sonhei, e não poder, não poder!...

Falou longo tempo, num soluçar entrecortado que a esfrangalhava e
halucinava, e só muito tarde, conseguindo levá-la para a sua céla, onde
estavam mais á vontade, Madre Angelica lhe poude insuflar um pouco de
coragem e resignação para vencer aquella crise dolorosissima.


VII

O irmão de Manoela respondeu afirmativamente á carta muito digna que
ella lhe escrevera, consentindo em receber Christina como se fôsse uma
filha.

A morte da mãe deixara-lhe um vacuo imenso no grande casarão, onde só de
quando em quando os irmãos, já casados e cada um em sua terra, o
visitavam por ceremonia.

«Christina pode vir--dizia na sua carta á irmã--quando quizer, e na
certeza de que já a estimo como filha.

Sentia-se só, e estava na idade em que uma nova amizade é um pouco de
vida nova que se insufla na alma amortecida.

«Manoela, que fôsse tambem; dezenove anos de penitencia teriam por certo
depurado toda a mácula...»

Esquecia o passado; talvez um pouco de inconfessado remorso o estivesse
a maguar, agora que se sentia tão só e inclinado á vida serena duma
familia a refazer.

Mas a irmã não ia; agradecia-lhe muito, tanto a prontidão da resposta
como a aquiescencia ao seu pedido e o desejo de a revêr... Mas não
iria. Tinha ali uma triste missão a cumprir; não abandonaria, no fim da
vida, as companheiras de tantos anos de angustia.

Christina partiu alegre, numa ansiedade de prisioneira que reentra no
mundo por que tem suspirado durante longos dias inresignados.

Manoela ficava sem saüdades dessa filha que fôra durante anos a sua
razão de viver; antes sentia, ao despedir-se, uma vaga sensação de
alívio, não isenta de cavada amargura.

--«Adeus, Christina,--disse-lhe na hora da despedida--diga a meu irmão
que resolvi fazer o meu testamento deixando-a herdeira do que me
pertence. Elle que administre a casa nesse sentido, pois só quero dispôr
do usofruto por causa destas pobres criaturas que me rodeiam.

--«Deixe-me agradecer-lhe, madrinha...--e tentava beijar-lhe a mão.

--«Para quê?...--respondeu sorrindo com ironia e encolhendo os hombros á
sincera alegria de Christina.

Era com um profundo desdem que atirava essa fortuna, que lhe era
indiferente, para o poder da filha que não a soubera amar nem
reconhecera o presente inestimavel que lhe dera antes, tendo-lhe dado o
seu amôr.

Partiu, acompanhada de Ama-Rita, que apenas levava o encargo de a
entregar ao tio e voltar logo, pois essa é que, decididamente, não
abandonaria mais a sua menina.

Para ella a menina era Manoela, que nunca deixava de revêr como fôra: a
filha adótiva do seu coração, a estranha que tomara na sua alma o
verdadeiro logar da filha morta á nascença.

Mas bastante mudara nos últimos tempos, apesar della se não querer
convencer do que via: a mulher que pouco tempo antes ella encontrara,
senão a linda rapariga que vira partir, lavada em lagrimas, crucificada
de dôres, pelo menos uma mocidade ainda florescente, estendendo-se por
um outôno que se anunciava formosissimo.

Em poucos mêses Manoela fez uma diferença que saltava aos olhos e
afligia toda a comunidade, que só nella fundava as suas esperanças e as
suas alegrias. O cabelo embranquecia-lhe nas fontes; a péle amarelecida,
enrugava-se impercétivelmente a princípio, mas visivelmente nos últimos
dias em que umas olheiras inchadas lhe davam no rosto o aspéto desolador
da doença que lhe fizera do coração uma pobre maquina sem regulamento.

Podia dizer-se que ia morrendo aos poucos, das feridas incuraveis que
nelle sentira, durante toda essa existencia de eterna sacrificada,
em que a alma se lhe esfacelara pelos agudos e impiedosos espinhos
do egoismo alheio.

Com a doença de Manoela, entrou o desânimo em todas as almas e a morte
encontrou facil caminho entre aquelles organismos depauperados e sem
resistencia moral.

Todos os mêses havia mortes no convento: ora as freiras, ora as velhas
criadas e recolhidas, lá se iam, umas atraz das outras, em debandada
desoladora. E para ella, a morte que rodeava agora como companheira
inseparavel a velha casa conventual, tão suavemente serena e risonha,
era um aflar de azas sinistro que lhe deixava na alma o luto de toda
essa querida familia espiritual, a unica que verdadeiramente estimava
agora.

O convento acabava dia a dia, hora a hora,--sentia-se, numa halucinação
de presentimentos e presagios tetricos, avisos sobrenaturais e factos
estranhos que causavam a perturbação e o pânico de todas aquellas
criaturas enfraquecidas e mais ou menos doentes, senão do corpo pelo
menos da alma.

Assim, a sineta que no claustro de cima apenas era tocada quando alguem
na casa entrava na agonia, para que as almas se recolhessem com Deus e
na sua ânsia de bem merecer auxiliassem a que estava para partir, a
desligar-se, sem pena nem pecado, desta vida defeituosa e amarga,
começara uma tarde, á hora calma do Angelus, a tocar freneticamente
conclamando toda a comunidade, que se olhava espavorida e convicta do
tragico aviso.--Era certo: aquella sineta, que uma só vez tocara assim,
segundo constava, anunciando a morte de duas freiras em cheiro de
santidade, anunciava agora a morte, o fim da santa casa que fôra abrigo
de tanta pobre alma de mulher revoltada ou submissa, mas todas crentes
numa eternidade de venturas de que não tinham tido na terra a compensação.

E todas ellas, velhas e novas, míseras sombras duma outra idade ou
raparigas que a educação conservara afastadas do tempo em que vieram ao
mundo, todas curvaram a cabeça á convicção de que a campa as chamava, de
que era a morte que as libertaria em breve. Sim, ellas estavam prontas,
mas quanta tristeza nesse fim de existencias que já mal se arrastavam,
numa vida que não compreendiam já!...

Outro dia era um reboliço enorme nas casas deshabitadas, que as fazia
tremer de apavorante susto, pensando nas irmãs mortas ultimamente e em
tantas que descansavam sob as lages frias do claustro.

E eram vozes misteriosas vindas da terra, perfumes deliciosos e
estranhos que se espalhavam pelos casarões vasios, fantasmas
silenciosos de freiras mortas havia seculos e que deslisavam sorridentes
como que a animarem as pobres irmãs que assistiam ao fim da sua casa tão
amada!...

Manoela, apesar de todo o seu bom-senso, não resistia ao contágio e,
como as outras, vivia numa atmosfera de prodigios e de mêdos que mais
activava o progresso do mal que a consumia.

Mas não abandonava por esse motivo as velhas companheiras, que só nella
achavam conforto para bem morrerem.

Foi Soror Claudea a última a deixar a vida, que tão dolorida lhe fôra;
foi ella, a pobre louca, quem fechou, como um ponto final simbolico,
mais um periodo de historia feminina, tecida de sacrificios e servidões
e ilusões profundas, e sem um fecundo e nobre e belo ideal de vida!

Ali ou na familia, no claustro ou no mundo, a existencia feminina pouco
diferia; pouco mais era que esse decorrer estirado de anos partilhados
entre pequenos deveres, insignificantes trabalhos, apagadas alegrias e
supliciantes sacrificios a que ninguem prestava atenção, tão naturais
são aos servos e aos inferiores...

Morta Madre Claudea, e participado o caso ás autoridades, teve Manoela
que aceitar o depósito da casa para fazer a entrega legal.

Acabada a clausura e o convento, por assim dizer franqueado ao público,
começou um novo martirio para Manoela, que se não podia furtar á
indelicada e faminta curiosidade de toda a gente da cidade, que já
depois fazia da visita ao convento uma distráção a quebrar a monotonia
da vida provinciana.

A querida casa tão recatada e fechada a todos os olhares indiscretos,
foi uma coisa pública escancarada e esquadrinhada por todos os
indiferentes, uns sob a capa amavel da simpatia e da piedade, outros
rancorosos ou hostis, desrespeitando as suas crenças ingenuas ou
troçando com as suas alardeadas superioridades as infantis preocupações
daquelles sêres inuteis...

Manoela afétava uma serenidade que lhe custava anos de vida, não
querendo dar aos indiferentes o espétáculo duma dôr que era apenas sua e
das suas pobres companheiras, as recolhidas, as meninas do côro e as
criadas, que em breve seriam arremessadas para o mundo como folhas
inertes e sem vida, e dispersadas ao sabôr do acaso, que as levaria sabe
Deus a que dôres e a que miserias!--tão mal preparadas como estavam para
a luta de cá fóra, quasi todas pobres e sem amigos ou familia que
as tivesse como suas...

Já que não podia furtar a casa e as coisas á profanação dos olhos
estranhos, fechava a sua alma num silencio orgulhoso que a tornava
respeitada, e conservava uma certa distinção naquelle acabar de
comunidade que sem ella seria um levantar de feira sem grandeza nem
simpatia.

O inventario feito, a pilhagem executada por ordem superior, viu com
profunda amargura os preciosos _Grão-Vascos_ desprendidos das paredes
seguirem, com os azulejos hispano-arabes que foi possivel arrancar, a
pouca mobilia rica que havia, os livros e as tapeçarias de valôr,
encaixotados, segundo diziam, para os museus de Lisbôa... Eram livros
velhos aos cantos, pelos corredores, bahus e caixões devassados e
esvasiados...

E ainda lhe foi preciso assistir, sem que a desligassem do triste
encargo de testamenteira, á invasão dos operarios que vinham transformar
a casa, para novo destino mais em harmonia com a época.

Portas escancaradas, divisões deitadas abaixo, montes de caliça pelos
pateos e claustros, deslocadas as fontes murmurosas, mortas as plantas
que eram o seu encanto--aquilo afigurava-se-lhe uma ruina completa, um
desabar de todo um passado que morria sem têr criado raizes, como
morre sem seiva, inutilisada, a planta nascida em terreno pobre e rochoso.

Libertada, porfim, foi acabar de viver para uma pequena casa de campo
que a Ama-Rita descobriu escondida entre tufos de verdura tenra e uma
dôce paz idilica a rodeá-la.

Sentia-se de mal a peor, e sem esforço deixava-se morrer, desligada da
vida, sem afeições ou deveres que a prendessem.

Álêm do amôr humilde da simples camponeza que a criara e a cumulava de
carinhos e ternuras na morte, como a rodeara na infancia, nada lhe restava.

Christina, muito prática, muito á sua vontade, talhara para si um logar
amplo na vida. A última carta do irmão de Manoela pedia-lha em
casamento, e a della, que vinha junta, pedia, pró-forma, o consentimento
da madrinha.

Manoela sorriu: era a sua vingança, uma como rehabilitação do seu
sangue, da sua propria carne expulsa outróra como coisa imunda da casa e
da familia.

Era a vida omnipotente readquirindo os seus direitos, a natureza
triunfando dos preconceitos, que desprezava as convenções e entrava como
senhora donde fôra expulsa como réproba.

Christina, na sua cega e egoista caminhada para a vida, fôra a força
invencivel da razão e da justiça, fôra a suprema e triunfante palavra do
futuro.

A mãe, amoravel, generosa e submetida, dera a existencia aos pedaços
para satisfazer as outras.

A filha, egoista e revoltada, e sem exageros de sentimentalidade que só
provocam a dôr, recebia uma por uma transformadas em alegrias as
lagrimas da mãe.

Manoela sorria: era a sua rehabilitação, era, saboreada com infinito
gôsto--tão certo é que nenhum sacrificio se perde, aproveitando quasi
sempre a quem menos o merece.


VIII

Em toda a noite Manoela não pudera dormir, angustiada, sentindo sobre o
peito um pêso esmagador, sufocada e aflita.

Com a manhã, que rompera radiosa empoeirando de oiro todo o campo e
doirando as montanhas que se destacavam no fundo roseo do céo, serenava
um pouco.

Sentia-se mais aliviada e quiz arrastar-se até á janela aonde se sentou
na cadeira de braços, que era o seu poiso habitual. Olhava atenta a
bandada de pombas brancas que sahia do pombal em vôos estonteados e
incertos, embaraçando-se nos ramos das laranjeiras que floriam de branco
e perfumavam delicadamente a atmosfera.

--«Ah, como era linda a natureza, sempre renovada e sempre a mesma,--e
como era bom viver!...

E a pobre doente ouvia, num encanto de esperança, nunca extincta no
coração humano, as palavras de consolação que a bôa Ama-Rita lhe ia
dizendo.

--«Porque não iam passar uns tempos a casa do sr. Morgado?... Havia de
fazer bem á senhora...

--«Sim, iriam--concordava Manoela--mas não já, a primavera começara
apenas, e a Ama-Rita bem sabia como eram ainda invernosos e frios esses
mêses de primavera lá na terra.

Oh, se sabia! Quantas noites enregeladas passara acalentando nos braços
a sua menina; quantos dias fechada em casa porque a neve e o frio não
dava licença, até maio, de se sahir da lareira...

Manoela, sorrisonha ás recordações da bôa vélhota, prometia fazer essa
viagem--em vindo o bom tempo.

--«E o menino, quando nascerá?--perguntava a Ama.

--«Já tens pressa de o chamar teu, não é assim?...

E comparava, com um certo sorriso ironico a aflorar-lhe aos labios
descórados, a ansiosa espera em que se andava pela vinda do primeiro
filho de Christina e os transes porque ella passara para que a mãe
chegasse a este mundo, onde era agora uma triunfadora. Recordava... e
recordar era tornar a sofrer as horas de desânimo e desespero que por
milagre a não tinham atirado para um hospital de doidos ou para o
cemiterio.

Tornava a vêr a casa em ruinas, onde a criança nascera como um animal
bravio, que anda a monte, para não ofender com os seus gritos de
filho ilegal as consciencias socegadas...

Como isso já ia longe e como tudo tinha mudado! Quem lhe diria então que
Christina, a sua filha, essa vergonha viva, essa nodoa na familia
fidalga de que descendia, anos volvidos seria a senhora morgada a quem
todos adivinhavam os desejos e amaciavam o caminho para que désse sem
precalço o novo herdeiro da casa?!...

E tão desemelhante destino só porque uma tinha um pai que legalmente
reivindicava os seus direitos, emquanto a outra era filha dum homem, que
na sua inconsciencia de bruto apenas cuidara do prazer material e
passageiro, com tanta mais perfidia quanto era maior o seu conhecimento
da indulgencia da sociedade para com as leviandades do homem
transformadas em crimes para as mulheres.

E Manoela, meditando e revendo toda a sua existencia naquella hora de
passageiro repouso, que a doença lhe dera, pensava com amargurado
remorso no que chamava agora a sua covardia:

--«Sim, Christina, no impulso do seu egoismo e da sua ânsia de viver, é
quem estava na verdade!

«A transigencia, a covardia, a fraqueza, mesmo quando são filhas do
sentimento, acarretam consigo o triste premio da sua inferioridade. E
assim, pela covardia a que tinham dado o bonito nome de bondade, ella
ali estava sem familia, sem amigos, sem uma alegria que a prendesse á
vida que a ia abandonando como fardo inutil, que já não presta para nada.

«Não, não se deve transigir, não se deve esconder uma áção que em nossa
consciencia não é um crime, embora a sociedade na sua hipocrisia a
mostre, ferozmente, como tal!

«A sociedade acostuma-se a respeitar os fortes e só pede contas severas
aos fracos, aos que transigem, aos que a ella se não adaptam ou a não
dominam, as duas unicas fórmas de a vencer.

«Christina tivera razão: ella não fôra uma bôa mãe, não soubera
desempenhar o seu nobre papel, ferindo implacavel porque fôra ferida,
cobrindo com a sua revolta o destino da criança que chamara a uma vida
que lhe não pedira. Não tinha desculpa. Fôra necessario que a filha, no
seu bom-senso de bastarda, soubesse encontrar a desforra no sacrificio
do proprio corpo procurando nesse casamento sem amôr o nome que ella lhe
negara.

«E valia muito o amôr?... Ah, ella sorria, com dó de si mesma,
recordando como se entregara toda inteira a esse sentimento, o corpo
palpitante, a alma fremente, sem uma reserva, sem um pensamento
mesquinho de dúvida, com a pureza duma criança, cuja alma não fôra
maculada pela desconfiança--e o que lhe deram em troca?!...

«Pois bem, ia reparar a sua falta.

E, chamando a Ama, que dava uma certa ordem ao quarto, respeitando a sua
meditação, Manoela pediu a escrevaninha portatil que estava sobre a mêsa
de cabeceira, pegou num papel e ia a escrever...

Depois suspendeu-se, sorriu com amargura, e pôs a penna de parte. O que
ia fazer com essa declaração a juntar ao testamento?!

Christina já não precisava do seu nome, mais amplamente coberta com o do
marido que a tomara como filha de pais incognitos, e a sua declaração
extemporanea apenas lhe traria vergonha inutil e dissabores...

Não a fazia--era já tarde para isso.

Recostando-se ás almofadas que a Ama-Rita lhe ageitava na cadeira,
sentiu-se agoniada, pediu agua, depois fechou os olhos, franziu
frouxamente os labios descórados, e a cabeça tombou-lhe para o lado sem
vida.

--«Deixou de sofrer!--dizia a velha, soluçando alto, para a criada e
para a mulher do quinteiro que chamara aflita na primeira impressão de
inevitavel surpresa. E alisava-lhe os cabelos sobre a fronte,
juntava-lhe as mãos numa atitude de prece. Deixou de sofrer, coitadinha!
Toda, toda a vida--uma sacrificada!...



INDICE

                                    Pag.

    A Vinha                           7

    A Feiticeira                     37

    Diario duma criança              81

    Sacrificada                     181



OBRAS DA MESMA AUTORA



    AMBIÇÕES (romance)                                                700
    INFELIZES (historias vividas). Esgotado.
    A BEM DA PATRIA: Bibliotéca de propaganda educativa e
        distribuição gratuita:
            1.º _As mães devem amamentar seus filhos._
            2.º _A educação da criança pela mulher._
    BEM PRÉGA FREI THOMAZ (comedia)                                   300
    TEATRO INFANTIL: _A comedia da Lili_                              200
                     _Um sermão do Snr. Cura_                          60
    A GARRETT. No seu primeiro centenario.--De colaboração com
        Paulino de Oliveira                                           500
    GARRETT NO PANTHEON.--De colaboração com Paulino de Oliveira       50
    A NOSSA HOMENAGEM A BOCAGE 100 ÁS MULHERES PORTUGUÊSAS.--Livro
        feminista de critica e propaganda                             600
    A MINHA PATRIA.--Livro aprovado oficialmente para premios
        escolares. Encadernação de luxo, desenho de Roque Gameiro,    400
        paginas em magnifico papel e inumeras ilustrações           1$000
    PARA AS CRIANÇAS: Publicação mensal ilustrada fundada em 1897.
        Publicados 15 volumes com magnificas gravuras.
            _Contos tradicionaes portuguêses_, 10 volumes.
            _Contos de Grimm_, traduzidos do alemão. 1 volume.
            _Alma infantil_ }
            _Animais_       } originais de Anna de Castro Osorio
            _Boas crianças_ }
            _Historias escolhidas_ (tradução diréta do alemão).
                Cada volume desta publicação avulso.                  400
    INSTRUÇÃO E EDUCAÇÃO (Festas infantis).--Folheto de critica
        pedagogica                                                    100





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