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Title: Relatorio de uma viagem ás terras do Changamira Author: Paiva de Andrada, Joaquim Carlos, 1846-1928 Language: Portuguese As this book started as an ASCII text book there are no pictures available. *** Start of this LibraryBlog Digital Book "Relatorio de uma viagem ás terras do Changamira" *** Notas de transcrição: O texto aqui transcrito, é uma cópia integral do livro impresso em 1886. Foi mantida a grafia usada nessa edição, tendo sido corrigidos apenas pequenos erros tipográficos que não alteram a interpretação do texto, e que por isso não foram assinalados. No livro há algumas referências a um mapa, que acompanhava a edição original. Não foi possível localizar uma cópia desse mapa para acompanhar esta edição digital. RELATORIO DE UMA VIAGEM ÁS TERRAS DO CHANGAMIRA POR JOAQUIM CARLOS PAIVA DE ANDRADA CAPITÃO DE ARTILHERIA LISBOA IMPRENSA NACIONAL 1886 RELATORIO DE UMA VIAGEM ÁS TERRAS DO CHANGAMIRA POR JOAQUIM CARLOS PAIVA DE ANDRADA CAPITÃO DE ARTILHERIA LISBOA IMPRENSA NACIONAL 1886 RELATORIO Quando regressei a Gouveia, da viagem que fiz ás terras de Gungunhana, julguei conveniente não partir para Manica sem conferenciar com Manuel Antonio de Sousa que tinha ido a Moçambique, e que, demorado de semana para semana em Quelimane, só chegou a Gouveia no dia 17 de agosto. N'esse mesmo dia chegaram tambem ahi uns pretos vindos de Manica, dizendo que acabavam de apparecer em Macequece uns landins perguntando por fazendas minhas que deviam ali estar, e que só por se acharem bem guardadas e por ter a gente do paiz assegurado que taes fazendas não existiam, é que provavelmente os landins não roubaram algumas. Não vi n'esta noticia motivo que me impedisse a partida para Macequece, mas em attenção á opinião de Manuel Antonio e de um principe ou grande de Manica, meu antigo guia n'essa terra, que ha algum tempo esperava Manuel Antonio em Gouveia, resolvi não ir para Manica, sem ter conhecimento do resultado da missão que Gungunhana tinha enviado a Lisboa, e aproveitar o tempo da demora forçada para visitar um paiz a que me referi no relatorio da viagem ás terras dos landins, e onde de facto importava com mais urgencia chegar do que á antiga feira portugueza de Manica, objectivo principal da missão de que fui encarregado. ........................................................................ Por estes motivos, resolvi partir sem demora n'esta direcção. I Viagem de Gouveia a Changamira e regresso a Gouveia [Nota lateral: Fome no paiz.] Uma circumstancia tornava extremamente difficil a realisação d'esta viagem; a falta de chuvas tinha motivado a perda das colheitas de mantimento, milho, mapira, mechoeira e nachenin, e a fome era quasi geral em toda a Africa austral. Os homens na Gorongosa, no Barue, por toda a parte, andavam espalhados pelo mato a grandes distancias para apanhar fructos e raizes, que traziam ás povoações para matar a fome ás mulheres e ás creanças, o que muitas vezes não conseguiam, morrendo muita gente por falta de alimento. N'este relatorio só desejo tratar do que importa ser conhecido para basear trabalhos futuros; não fallarei portanto das miserias que fui presenceando, nem das extraordinarias difficuldades que encontrei em mover-me com umas oitenta cargas n'um paiz que se achava em tão desgraçadas condições. [Nota lateral: Relatorio e mapa de Mauch] De todos os nomes que me eram conhecidos pela leitura do relatorio de Mauch e do mappa que o acompanha, apenas o de Caterere me era tambem citado em Gouveia, e como ahi havia bastante gente que conhecia o paiz que eu queria visitar, logo suppuz que Mauch teria mal escripto os nomes que foi ouvindo, e esperei ir achando no progresso da viagem a equivalencia entre os nomes de Mauch e os que me indicavam em Gouveia. Foi portanto para as terras do regulo ou mambo Caterere que primeiro me dirigi. [Nota lateral: Viagem pelo Barue] Entre estas terras e Gouveia está apenas comprehendido o antigo reino do Barue. Como é já sabido, o rio Inhandue, que banha Gouveia, separa o Barue do praso Gorongosa, e como se vê no mappa junto, o rio Caurese, importante e caudaloso affluente do Aruenha, separa o Barue da terra de Caterere que se chama Guessa. O Barue, na parte exactamente comprehendida entre Gouveia e a povoação do Caterere, acha-se despovoado e não havia caminho aberto n'essa direcção; por isso, parti de Gouveia dirigindo-me mais para o norte até á aringa de Inhangona, e d'ahi voltando para sudoeste segui para a aringa de Tumbura indicada no mappa, quasi na fronteira do Barue e na latitude da povoação do Caterere. Tendo partido de Gouveia em 26 de agosto, só cheguei á aringa de Tumbura em 5 de setembro. Esta viagem por caminho que se abra directo, o que se obtem logo que tres ou quatro filas de carregadores ou cypaes por elle tenham passado, e em condições normaes, póde ser feita em tres dias. [Nota lateral: Do Tumbira á aringa do Bonga, capitão do Caterere.] Tinha combinado com Manuel Antonio que esperaria na aringa de Tumbura que um dos capitães d'elle Manuel Antonio fosse adiante com um presente da sua parte ao Caterere, avisando-o da minha visita de amisade, e que só depois da volta do emissario é que eu saíria do Barue para Guessa; mas como o mencionado capitão, que devia ter-se juntado a mim poucos dias depois da minha partida de Gouveia, não apparecesse; como por informações obtidas na localidade eu soubesse que podia passar do Barue directamente para a terra de Inhachiranga, atravessando o Aruenha a jusante da foz do Caurese, ponto onde termina a terra de Guessa, e me fosse assegurado por um homem de Inhachiranga que se achava em Tumbura, que a terra era curiosa de visitar pelas lavagens de oiro que ahi faziam e que encontraria n'ella o melhor acolhimento; como ainda mais eu quizesse quanto possivel evitar a perda de tempo, resolvi arranjar carregadores em Tumbura que me levassem a Inhachiranga, para ahi, aproveitando o tempo com o estudo do paiz, esperar o capitão de Manuel Antonio que devia ir ao Caterere annunciar a minha visita. Parti no dia 10 de setembro, mas os carregadores e guias, em logar de me levarem directamente ao Aruenha, ou, o que a isso teria equivalido, pelo caminho que trouxe na volta, indicado no mappa, o que apenas atravessa a ponta não habitada da terra de Guessa, comprehendida entre o Caurese e o Aruenha, talvez com a idea de encurtar duas ou tres horas de serviço, levaram-me por caminho um pouco mais ao sul, que me conduziu ao Caurese em altura tal que, ao atravessar o rio, me achei de surpreza junto á aringa de um capitão do Caterere chamado Bonga. [Nota lateral: Rio Caurese.] O Caurese tem aqui uns 50 metros de largo e excellente agua com approximadamente uma altura media de 1 metro em toda a largura do leito que é de areia. Tem porém de espaço a espaço grandes rochas, e o rio até á foz é absolutamento improprio para a navegação. Vi-o na estiagem e tendo havido grande secca. No tempo das chuvas engrossa muito, e mesmo em seguida a um só dia de grande chuva não dá passagem a vau. Foi no dia 11 de setembro que cheguei á aringa do Bonga. Os carregadores de Tumbura, a quem eu nada tinha que dar de comer, não podendo por preço algum comprar-lhes mantimento, voltaram para trás, ficando em um acampamento junto á aringa com os _motores_ (cargas) e os meus muleques. Como era de esperar, o chefe da aringa, logo que eu passei por ella, e não me achava em condições de seguir com os carregadores que trouxe do Barue, não me facilitou a marcha, para diante, apesar de eu lhe dizer que ia só até Inhachiranga para ahi esperar o capitão que devia preceder-me na visita que eu desejava fazer ao Caterere, o instou muito para que não saisse de Guessa sem primeiro ir visitar o mambo. Vi-me assim moralmente obrigado a ir á povoação do Caterere, para onde parti no dia 12, seguindo o caminho indicado no mappa. [Nota lateral: Visita ao Caterere.] Tendo, ao chegar proximo da povoação na tarde do dia 13, feito avisar o mambo da minha visita, cheguei na madrugada do dia 14 á aringa que se chama de Inharichinga. A primeira entrevista com o mambo Caterere ou Gutuqui, foi logo muito cordial. Dei-lhe alguns presentes de pouco volume e peso que commigo tinha levado, como colares de coral, espelhos, barretes, camisas, pannos ricos, explicando-lhe que só ali me achava para satisfazer aos desejos do seu capitão Bonga, pois desejava ter sido precedido por um capitão de Manuel Antonio, que trazia um bom presente de fazendas e um recado de amisade de seu amo. Por varias vezes Caterere me disse que Manuel Antonio lhe viria fazer guerra, e que o trataria como tratou ao Macombe, rei do Barue. Procurei fazer desapparecer esta idéa, repetindo-lhe que pelo contrario Manuel Antonio lhe mandava um presente de amisade, e explicando-lhe que o Rei de quem Manuel Antonio era subdito, não queria guerra, mas amisade, não só com Caterere, como com todos os regulos visinhos, e que para estreitar relações de amisade eu a todos tencionava visitar. Durante o dia fez-me Caterere repetidas visitas á palhota onde fiquei, e aconselhou-me a que, em logar de ir para Inhachiranga na margem esquerda do Aruenha, fosse para uma povoação de um Camunda, na margem direita e portanto ainda da terra de Caterere, podendo eu d'ahi ir ver os logares proximos onde gentes de Guessa e das terras vizinhas costumam lavar ouro. Levava commigo uma das armas _Winchester express_ pertencentes ao districto de Manica. O mambo quando a viu pediu-me para lh'a explicar, e como estas armas são muito certeiras e permittem um tiro muito rapido, fiz da porta da aringa, em seguida e em differentes direcções, fogo contra delgados troncos de arvores a grandes distancias, ficando o mambo muito admirado quando foi junto ás arvores ver o resultado dos tiros. Cito esta circumstancia para acrescentar que, apesar de eu ter ido só com tres muleques e estar morando na aringa, vieram pouco depois dizer ao mambo que a gente das proximas povoações tinha fugido ao ouvir os tiros, suppondo que era guerra! A aringa do Caterere é pequena, e muito fracamente construida; tem proximo uns montes de rochas que a commandam completamente. Com as repetidas perguntas que a varios fiz a respeito da passagem de Mauch por estas terras, ha uns vinte annos, convenci-me que ninguem tem idéa d'este viajante. A latitude de 17° 30' 30", que achei para esta aringa, concorda com a posição em que Mauch a poz na sua carta. Não parece que o paiz tenha sido visitado por estrangeiros, e não conhece esta gente senão Tete, Sena e sobretudo o nome de Gouveia. Empregam varias palavras portuguezas. Estranhei ouvir-lhes dizer quando fallavam commigo: _senhor_, pois que os nossos pretos nas cidades, e os proprios brancos fallando de outro branco com os pretos, fazem uso da palavra _mosungo_. Não vi entrar preto algum na minha palhota ou na do mambo sem que primeiro dissesse: _licença_, palavra que parece de uso commum, não só em Guessa, como nas outras terras onde depois estive. Recebi do Caterere muitas informações ácerca dos mambos e campos de oiro que me ficavam para a frente; soube tambem que da aringa a Manica são cinco dias de caminho, havendo apenas entre as duas terras a de Munhama, que se atravessa em dois dias. Não se passa pelo Aruangua, o que prova que este rio nasce a leste do caminho seguido. Não consentiu o mambo que eu partisse sem ser seu hospede durante uma noite. Na madrugada do dia 15 voltei ao meu acampamento no Caurese, onde cheguei na manhã seguinte; vindo com um grande do mambo, que me acompanhou para communicar as ordens do Caterere e facilitar o transporte das cargas para a margem do Aruenha. [Nota lateral: Partida do Caurese para o Aruenha ou antes Quenha.] No dia 17 parti de junto da aringa do Bonga para a margem do Aruenha, onde cheguei, com duas horas de passeio junto á aringa de Camunda, pequena povoação rodeada de fraca estacaria, fazendo o acampamento a jusante d'esta aringa. O rio tem aqui uns 100 metros de largura, mas a agua corre por varios braços serpenteando na areia, não cobrindo todo o leito. Informaram-me de que o rio, bastante ainda para jusante da foz do Caurese, tem varias rochas que lhe atravessam o leito; penso porém, que será navegavel vindo do Zambeze até pelo menos á affluencia do rio Mazoc. Rio Aruenha ou antes Luenha. Já nas minhas viagens pelo Zambeze para Tete, tinha notado que os pretos chamam Luenha ao rio que em as nossas cartas chamamos Aruenha, e que afflue no Zambeze em Massangano, onde está construida a celebre e vergonhosa aringa do Inhaúde ou do Bonga. No mappa do Levingstone tambem este rio tem o nome de Luenya. É tambem Luenha o unico nome que agora lhe ouvi dar, e parece-me preferivel adoptar esta designação, não só por ser a verdadeira, mas porque melhor se distingue de Aruangua; e são dois nomes que como rios ou commandos militares do districto de Manica muitas vezes haverá a citar reunidos. [Nota lateral: Ouro no Luenha.] Nos dias 18 e 19 fui com gente da povoação de Camunda, ver os logares onde costumam lavar oiro no rio. Os terrenos em que n'esta altura corre o Luenha não são auriferos, e o oiro só se encontra, renovado todos os annos depois das cheias, nas pequenas porções de areia que fica retida entre as grandes rochas que atravessam o rio. Os pretos e pretas, que lavam admiravelmente com a batea, podem com utilidade extrahir o oiro que cada anno é retido nos mesmos logares, e assim o fazem ha seculos, mas o lavar estas areias, por causa da sua pequena quantidade, embora sejam relativamente ricas, nunca poderia pagar a uma companhia europêa. É muito provavel que no proprio leito, atraz d'estas _barras_, onde ha profundidade de agua e onde os pretos nunca lavam, haja accumulado de ha seculos oiro mais grosso, e quando o paiz esteja frequentado pelos brancos, é provavel que venha a proceder-se a trabalhos n'estes logares com bons resultados, mas é claro que a pesquiza do oiro para os que primeiro cheguem será muito mais interessante nos proprios terrenos d'onde o oiro é annualmente arrancado e arrastado pelas aguas. [Nota lateral: Rio Mupa.] Na visita que fiz á _Massanga_, ou foz do Caurese vi que o rio Mupa não é um affluente do Caurese como está marcado na carta de Mauch mas, um pouco mais abaixo, directamente affluente do Luenha. [Nota lateral: Mambo Schomali de Mauch.] Descobri, emquanto estava n'este acampamento do Luenha, quem era o mambo Schomali, que Mauch cita como sendo o chefe das terras que constituem a parte mais rica dos Campos do Imperador Guilherme. É um pequeno mambo da terra de Macaha, chamado Machamare. Já de ha muito tinha conhecimento do nome da terra e de outros nomes do mambo, que tambem se chama Chibinda e Inhaúbinda. Serviu-me de confirmação á equivalencia entre o nome de Machamare e o de Schomali o encontrar nos dois rios Inhamussice e Munhoque, dois rios auriferos da terra de Macaha, os equivalentes aos rios Iantsitsi e Noke da carta de Mauch. Achei interessante que os pretos que lavavam n'um logar ou _barra_ do Luenha chamado Biriuide, me dissessem, que todo o oiro que até ali chegava era proveniente do rio Inhamussice, precisando a proveniencia do oiro, quando o Luenha no seu vasto curso drena um paiz muito extenso e recebe muitos outros affluentes. Por esta indicação é de suppôr que as areias do Luenha acima da affluencia do Inhamussice não tenham oiro algum, tornando evidente que é por este affluente que os _diggers_ devem subir nas suas pesquizas. Pouco depois de chegar a este acampamento do Luenha, vi que nada me aconselhava a que ahi me demorasse e procurei arranjar carregadores para continuar na viagem. [Nota lateral: Chegada do capitão Bastião e de Gurupira.] No dia 19 de setembro, com o capitão Bastião, de Manuel Antonio, encarregado dos presentes para o Caterere, chegou ao acampamento vindo de Gouveia, onde tinha ido visitar Manuel Antonio, o filho grande do mambo Motoco, chefe relativamente poderoso da terra da Builha, situada alem, a sudoeste, da região a que Mauch deu o nome do seu imperador. Como não via possibilidade de achar, no logar onde estava, carregadores, e me constasse que na terra de Motoco e terras proximas havia algum mantimento, pedi a este filho do Motoco, chamado Gurupira, que me mandasse os necessarios carregadores e que acompanhasse um dos meus muleques, a quem entreguei fazendas, na compra de mantimento que deveria ser mandado para a terra de Macaha. Gurupira disse-me que elle era justamente casado com uma filha do mambo Machamare, deu-me informações sobre a Macaha e indicou-me a povoação de Chibanda, filho do mambo, situada na ponta de terra entre o Inhamussice e o seu affluente Munhague, como bom logar para acampamento, e foi para ahi que combinamos eu partiria, e seria mandado o mantimento que fosse comprado. Na tarde do dia 22 apareceram-me no acampamento uns cem homens armados, seguidos por um pandoro ou leão. [Nota lateral: Pandoros.] Os pandoros, que eu já tinha visto nas terras do districto de Tete, que ha no Mazoe, que havia no reino do Barue e que ha nas terras de todos os pequenos mambos d'esta região, são uns homens, que se escondem de vez em quando dizendo que vão para o mato e se transformam em leões, que mesmo quando se acham na fórma de homens estão quasi sempre a rugir, e que vivem á custa dos mambos e dos povos impondo-se-lhes como entes sobrenaturaes. Os mambos nada fazem sem os consultar. A superstição com os pandoros em Tete communica-se aos musungos mulatos e mesmo á gente da India que n'elles chegam a acreditar. O Inhaúde e o Bonga das nossas desgraçadas guerras, apesar de homens muito intelligentes em outras cousas, nada faziam sem consultar os pandoros. Ás vezes os pandoros são mulheres. Ha n'uma terra da margem esquerda do Mazoe, em logar onde já estive partindo de Tete, uma celebre Clara, pandoro de grande fama e julgo que conselheiro muito attendido pelo Bonga. [Nota lateral: Extorsões pelo pandoro e grandes do Caterere.] Os grandes do Caterere que vieram com o pandoro, nenhum dos quaes eu tinha visto na aringa do mambo, disseram que eu era amigo de Gouveia, que vinha para os enganar e fazer-lhes guerra, que devia voltar para trás e não tornar a esta terra. Mostrei-lhes admiração de que tal dissessem quando eu tinha ido visitar o seu mambo como amigo e como amigo tinha por elle sido recebido; que elles já sabiam que o que eu queria era seguir para diante, que elles estavam fechando os caminhos, o que lhes trazia difficuldades no futuro, e que se a gente que ali estava me quizesse levar as cargas para Macaha eu lhes pagaria como a carregadores e daria ao pandoro e aos grandes alguns presentes. Foi provavelmente para receber estes _presentes_ que pandoro e grandes vieram, quando constou que desejava saír da terra d'elles. Acceitaram a proposta e começaram depois com successivos pedidos. Tendo eu dado alguma cousa ao pandoro, pediram para os grandes, depois para a outra gente, depois mais alguma cousa por eu ter feito barracas. Desejando eu sobretudo ir para diante e servir-me d'esta gente como carregadores, fui cedendo a todas as extorsões, cuja importancia total foi de facto insignificante, mas que pela maneira como foram feitas justificam a futura occupação da terra de Guerere. Toda a noite, uma esplendida noite de luar, tiveram batuque e adormeci ao som das cantigas, cujas phrases mais repetidas eram que haviam de cortar-me a cabeça, a de Manuel Antonio e a de um homem d'esta terra que tinha entrado ao meu serviço. [Nota lateral: Da povoação de Camunda ao Rupire.] Na madrugada do dia 23 paguei aos carregadores, dizendo-lhes que era para irem até á povoação de Chibanda na Macaha, mas pouco depois começaram a dizer que só iriam até ao Rupire, cousa commum de succeder em Africa com os carregadores, mesmo em outras circumstancias. Atravessei o Luenha e segui na direcção que mostra a carta pela terra de Inhachiranga sem passar por povoação alguma, até ao rio Inhamatoque, limite de Inhachiranga e do Rupire, onde os carregadores largaram as cargas, voltando logo para a sua terra. Logo que cheguei ao Inhamatoque mandei chamar gente do Rupire, mas só no dia 26 é que tive os necessarios carregadores e parti para junto da povoação do mambo d'esta terra. [Nota lateral: Mambo Chiquiso.] Ao mambo do Rupire, chamado Chiquiso, disse que só para o visitar e lhe dar alguns presentes é que eu tinha vindo á povoação d'elle, em logar de seguir ao longo do Luenha até á Macaha, mas que era para a povoação de Chibanda n'esta terra que eu me dirigia. Por varias formalidades com o mambo, e com os pandoros que no Rupire são tres, e para fazer excursões a alguns rios onde lavam oiro, demorei-me no Rupire, e comquanto o meu projecto fosse seguir para Macaha, como esta terra é talvez a mais pequena e menos povoada de todas as d'esta região, e como fui successivamente reconhecendo a importancia da posição do Rupire e quanto seria preferivel crear uma estação civilisadora portugueza n'esta terra, achei conveniente ceder aos pedidos que me faziam de não seguir para diante, até lançar bases de uma estação que mais tarde iria exercendo a sua acção sobre os mambos e povos das terras vizinhas. É no Rupire que antigamente acampavam negociantes brancos de Tete e mesmo de Quelimane, para compra de oiro e marfim que os pretos das terras vizinhas vinham trocar por fazendas, e effectivamente, durante os tempos que eu mesmo ali fiquei, todos os dias chegavam ao acampamento muitos pretos com canudos de pennas cheias de pó de oiro para trocar por fazendas. Tinha eu combinado com o mambo que seria junto á foz do Inhamussice que eu faria o meu acampamento e as primeiras construcções, base da futura estação civilisadora e commercial, mas as povoações do Rupire estão todas nas proximidades e em torno da aringa do mambo, e as margens do Inhamussice não estão actualmente habitadas. Vendo que muitos dos grandes se mostravam desconfiados por eu querer ir fazer o acampamento n'um sitio isolado, tive que abandonar a idéa de ir para o Inhamussice e que me decidir a escolher um terreno n'uma elevação nas proximidades da aringa do mambo. Pela prolongada falta de chuvas, a agua nos differentes riachos que cortam o paiz tinha deixado de correr, e a melhor que encontrei, extrahida de uma poça, era leitosa e de muito mau sabor. Foi o uso d'esta repugnante agua de certo a causa dos soffrimentos de baço que depois tive, mas a tudo me sujeitava para realisar a fundação da estação do Rupire, que, embora me propozesse fazer varias excursões na Macaha e outros paizes proximos, não mais tencionava abandonar senão quando de Portugal fosse mandado alguem para tomar conta d'esta estação. Paguei ao mambo e aos pandoros tudo o que elles quizeram pelo direito de chamar minha uma porção do terreno, e dei começo a algumas construcções. [Nota lateral: Desconfiança da gente do Rupire.] Apesar das boas relações que logo de principio fiquei tendo com o mambo, o enorme ciume que estes pequenos chefes têem uns dos outros, e sobretudo a desconfiança que no Rupire como em Guessa tinham das más inteuções de Manuel Antonio contra estas terras davam quasi diariamente motivo a alvoroço e á reunião em conselho dos pandoros e grandes na aringa. Se eu tivesse chegado ao Rupire vindo de Tete achariam muito natural a minha visita. Reconhecendo pela lição que tive no Caterere que as minhas relações com Manuel Antonio não eram uma recommendação para estes vizinhos do Barue, desejei quanto possivel occultar estas relações e que me considerassem como vindo de Quelimane, Senna e só de passagem pelas terras de Manuel Antonio, mas cada circumstancia que lhes mostrava a minha maior intimidade com este capitão mór era motivo de novas desconfianças. Assim a chegada de um correio, a chegada de dois muleques que eu tinha mandado a um ponto do Barue, onde me constou haver algum mantimento, o desejo de eu expedir o meu correlo, tudo foi motivo de desconfiança e de embaraços. Sujeitava-me com paciencia a todos estes aborrecimentos, pois suppunha que successivamente elles iriam diminuindo de intensidade mostrava bem ao mambo que se eu quizesse fazer guerra não estava com todas as minhas cargas a installar-me ao pé da aringa, e que a minha presença junto a elles era a melhor garantia que poderiam ter de que nenhum branco os atacaria. Pareciam convencer-se, mostravam a maior cordialidade, mas tornavam pouco depois a espantar-se pelos motivos mais futeis. [Nota lateral: Visita de Gurupira; mau tratamento que soffreu.] Disse que quando Gurupira, o filho grande do mambo Motoco, passou pelo meu acampamento do Luenha, lhe pedi que me mandasse carregadores para me levarem d'ahi para Macaha, e me comprasse mantimentos para tambem para lá mandar. Na tarde do dia 8 de outubro, quando eu estava a conversar amigavelmente com o mambo Chiquiso, sentado sobre um panno no chão junto á minha cadeira, appareceu Gurupira com outro homem e o meu muleque que eu tinha mandado com a fazenda para a compra de mantimentos. Quasi ao mesmo tempo um preto veiu dizer baixo ao mambo que, alem d'estes tres homens, havia outros escondidos no mato. Eram simplesmente os carregadores que eu tinha pedido, que o Gurupira trazia com elle da terra do pae, e que tinha deixado proximo dos limites da terra do Rupire para me vir perguntar se eu ainda precisava d'elles. O mambo correu rapidamente para a aringa, e momentos depois elle e uns sessenta homens armados de zagaias, machados, arcos e flechas ameaçavam os dois homens que por motivo tão natural e tão facil de explicar me vinham ver, não se lembrando aquelles cobardes que n'aquelle instante só pensavam que eram sessenta contra dois, de que um d'estes dois homens era filho de um chefe que facilmente poderia arrasar todo o Rupire. Corri a defender de morte certa os dois homens, cobrindo-os com o meu corpo, mas quando deixei Gurupira para attender ao companheiro que meia duzia de homens arrastavam pelo chão, levando-o pelas pernas, e emquanto eu rolava tambem pelo chão, por me ter o desgraçado lançado os braços ao grosso da perna, foi o filho do Motoco violentamente espancado. Consegui apaziguar tudo e foram os dois homens para a aringa com a promessa formal do mambo de que lhe não fariam mal algum. Effectivamente, no dia seguinte partiu Gurupira para a sua terra tendo, antes que o deixassem saír da aringa, mandado os pandoros pedir-me fazendas para lhe dar, a fim de que a gente do Motoco lhes não viesse fazer guerra. [Nota lateral: Partida do Rupire.] Desde então não tornei mais a ver o mambo até que no dia 11 me vieram dizer que toda a gente do Rupire se tinha reunido na aringa para pedir ao mambo e aos pandoros para me não deixar ficar na sua terra. Soube mais tarde que a maior parte da actual população do Rupire é constituida por gente do Barue, que de lá fugiu quando este reino foi tomado por Manuel Antonio, e penso que o pedido que acabo de mencionar seria motivado por ter Gurupira, em a noite que passou na aringa, fallado das estreitas relações que havia entre mim e o capitão mór de Manica. Em vista d'esta declaração e do que a gente do Rupire, a quem eu acabava de comprar terrenos, já me tinha dado noticias sufficientes para a occupação, pela força, da sua terra, onde não consentiam que estivesse como amigo, resolvi, em logar de continuar para Macaha e outras terras, apenas com alguns muleques, em condições tão desfavoraveis como as da epocha e circumstancias em que eu me achava, regressar para Gouveia para propor o necessario para transformação do Rupire em terra ou prazo da corôa; e mandei dizer ao mambo que mandasse reunir carregadores para a minha partida. Na manhã do dia 12 apresentaram-se os carregadores no acampamento e receberam todos pagamento para levarem as cargas até á povoação de Gossi, na terra de Sangano. Foi indicada esta povoação pela gente do Rupire, apesar de não se achar ella na direcção do Barue, por dizerem ser a mais proxima e aquella onde facilmente encontraria gente que quizesse ir até á aringa de Tumbura. Estes homens, quasi todos já meus conhecidos, pelo mal que se comportaram como carregadores desde o acampamento do Inhamatoque até ao do Rupire, e depois nos varios serviços, como construcção de palhotas, de que eu os encarreguei, levantaram as cargas e pozeram-se a caminho em tão boa ordem e assim foram seguindo, que eu suppuz que teriam recebido especiaes recommendações para irem convenientemente até ao seu destino. Tendo andado uma hora, atravessei o rio Inhamessansára, rio que eu já tinha visitado dias antes, em que os pretos lavam oiro e que nasce no mesmo centro, de onde, correndo em outra direcção, nasce o Inhamussice. O Inhamessansára é aqui limite do Rupire e de Massáoa, terra que tinha a atravessar n'uma parte que não é habitada, para chegar á terra de Sangano e povoação de Gossi, filho grande do mambo d'esta terra. Pouco depois de atravessar o rio, eu, que nunca tinha soffrido do baço, comecei a sentir do lado esquerdo uma pontada que, augmentando rapidamente, me impediu de continuar a andar e me fez entrar em machila. Momentos depois um dos machileiros de traz largou a canna da machila para apanhar o chapéu que lhe tinha caído, e o outro que era muito fraco deixou-me cair bruscamente no chão. O choque d'esta queda aggravou muito o mal que poucos instantes antes pela primeira vez se tinha manifestado, e fiquei por mais de uma hora debaixo de uma arvore revolvendo-me no chão com dores e afflicções horriveis, e suppondo por vezes que não mais me tornaria a levantar. Os carregadores passaram para diante, na mesma extraordinaria boa ordem a que me referi, sem que eu lhes dissesse o que me tinha succedido. Quando me foi possivel entrar na machila e pôr-me a caminho, estranhei encontrar pouco depois, descansando todos juntos os carregadores que suppunha muito adiante. Continuei no caminho avançando pouco porque os machileiros erão só os meus muleques, e nos esforços que fazia para me arrastar a pé quasi nada adiantava, quando um dos filhos do mambo chegou correndo para me avisar que os carregadores não queriam andar mais e pedir que mandasse algum muleque para tomar conta das cargas que elles queriam abandonar. Eu não estava em estado de voltar para traz e tambem suppuz preferivel não mandar para junto das cargas um só moleque, mas sim dizer que as cargas tinham sido entregues ao mambo do Rupire e á sua gente, que por ellas eram responsaveis até as pôrem na povoação de Gossi; propondo-me, porém, logo que chegasse a esta povoação, mandar buscar as cargas abandonadas, por modo analogo ao que já por vezes, até no Barue, tinha tido que fazer, mesmo por falta de forças dos esfomeados carregadores. Continuei, portanto, na minha vagarosa marcha até que, tendo anoitecido, me deitei na beira do caminho sem ter noticia da povoação de Gossi nem encontrado uma gota de agua com que matar a sêde, que mesmo aos pobres muleques devorava. Pondo-me a caminho antes de amanhecer, na madrugada seguinte cheguei a uma pequena povoação da terra de Sangano, de um preto chamado Chirombre; soube ali em que direcção ficava a povoação de Gossi e que na vespera tinha passado deixando á esquerda o caminho que lá me teria levado. Expedi immediatamente um homem da povoação de Chirombre para ir pedir a Gossi que me mandasse homens seus buscar as cargas que a gente do Rupire me tinha deixado no caminho. Pelas dez horas da manhã chegou á povoação de Chirombre um dos filhos do mambo do Rupire que tinha estado sempre ao meu serviço, dizendo que passára a noite ao pé das cargas, que o mambo tinha vindo da aringa e não tinha conseguido que os carregadores seguissem para diante, e que elle vinha pedir carregadores. Não havendo n'esta povoação um unico para lhe dar, voltou logo para traz com a promessa de que se poria a caminho com uns trinta homens que ainda estavam junto ás cargas. Até este momento, portanto, não tinha eu rasão para pensar que succederia differentemente do que por muitas vezes me tinha acontecido, principalmente nas minhas antigas viagens, partindo de Tete mesmo com o governador do districto, com o abandono das cargas e fuga dos carregadores. [Nota lateral: Roubo das cargas.] Na tarde, porém, d'este mesmo dia appareceu-me n'um misero estado o preto que de madrugada tinha mandado á povoação de Gossi, dizendo que tinha ali reunido alguns carregadores para ir buscar as cargas abandonadas, e que ao chegar proximo d'ellas tinha encontrado grande agrupamento de gentes do Rupire e de Massáoa; este ultimo é, como disse, o nome da terra onde as cargas estavam; que uns e outros se tinham apoderado das cargas, quebrando e rasgando os motores para distribuir entre si tudo o que elles continham; e que tanto elle como os homens de Gossi que o acompanhavam tinham sido espancados. Por peior opinião que forme do caracter da gente do Rupire não penso que este roubo fosse premeditado. Estou convencido que quando os carregadores levantaram do acampamento tinham recommendações para seguir em boa ordem até á povoação de Gossi; e que se o mambo veiu da aringa até ao logar em que os carregadores pararam é que alguem bem intencionado o foi avisar; e creio tambem que o mambo os exhortaria a que continuassem. Mas eu por vezes tive occasião de notar o pouco caso que em geral a gente do Rupire faz da auctoridade do mambo. Provavelmente estes carregadores, homens sem palavra e sem respeito pelos compromissos que tomavam em troca da fazenda que recebiam, pararam quando se sentiram cansados com as para elles, geralmente muito fracos, pesadas cargas, e só se teriam posto a caminho se eu me achasse junto a elles e se, analogamente ao que já com elles tinha succedido, os induzisse a continuar com algum novo pequeno pagamento. Penso que estavam hesitantes no que fariam, quando gentes das povoações de Massáoa, avisadas por qualquer modo do que se passava na sua terra, correram a ver o que podiam com isso aproveitar. Basta só poder explicar que nas discussões que entre uns e outros podessem ter tido logar um primeiro motor fosse aberto e o seu conteúdo espalhado, porque, em vista das fazendas soltas, excitados uns pelos outros, concebe-se que perdessem a idéa de toda a responsabilidade e, na febre de se apoderarem do que para elles eram tão grandes riquezas, não parassem sem terminar a sua repartição, destruindo tudo que para elles não tinha utilidade. De nada servia voltar atrás só com os meus muleques e como me achava apenas com o que tinha sobre o corpo e sem cousa alguma para comer, n'uma miseravel povoação de quatro ou cinco palhotas, onde nada havia, procurei dirigir-me logo para a povoação do mambo da terra em que me achava. É inutil fallar das privações que passei n'este e nos dias seguintes e, por infeliz coincidencia, quando me achava victima dos maiores soffrimentos que tinha tido em toda a vida. [Nota lateral: Da povoação de Chirombre á de Chideu.] No dia 14 parto da povoação Chirombre para a do mambo d'esta terra de Songano, chamado Chideu, ou tambem Inhamande. Chideu é extremamente velho e quasi cego. A terra de Sangano tem pouca gente, mas o velho mambo é pessoalmente de grande auctoridade pelo poder sobrenatural de ler no futuro que lhe attribuem. Recebeu-me muito bem, mas com um ceremonial de feiticeiro que em trabalho de outra natureza seria interessante descrever. [Nota lateral: Possibilidade de tomar posse do Rupire antes de regressar a Gouveia.] É, porém, importante notar que esta grande auctoridade na opinião do seu povo e na dos povos vizinhos, disse que o tratamento que eu tinha recebido, que o roubo que me tinha sido feito, quando ninguem, tinha a queixar-se do meu procedimento nem do da minha pouca gente quando eu tinha dado todos os presentes do costume ao mambo e aos pandoros, quando tinha comprado uma terra para construir casas e ter as minhas culturas, tudo justificava um severo castigo e que as terras do Rupire fossem tomadas pelos brancos; offerecendo-se o mambo a coadjuvar-me para esse fim com a sua gente. É facil comprehender quanto eu desejaria, em logar de me declarar n'este relatorio uma victima de um roubo no paiz que fui visitar, de o assignar como commandante provisorio do Rupire. Por tres modos poderia ter chegado a este resultado: 1.º Pelo emprego da gente de Motoco. Achava-me, porém, principalmente pelo meu estado de saude, em condições demasiadamente miseraveis para, em relação a um povo estranho poder por mim só representar a acção official portugueza, e não desejei correr o risco de que a conquista do Rupire, em logar de ser absolutamente a nosso favor, fosse quasi apenas em vantagem da relativamente poderosa gente do Motoco. 2.º Pelo emprego de gente de Tete. São conhecidos os relevantes serviços que ultimamente tem prestado ao paiz o governador d'este districto, e como a nossa occupação effectiva de vastos territorios ao sul do Zambeze entre Tete e Zumbo se tem realisado com o auxilio do capitão mór do Zumbo, Araujo Lobo e do capitão mór de Chicoa, o mosungo Ignacio. Este Ignacio tem com a sua gente ido occupando territorios para o sul de Tete até quasi á margem esquerda do Mazoe e vive de ordinario n'uma aringa que fica a menos de tres dias de caminho do Rupire. Recorrer ao governador de Tete e ao capitão mór de Chicoa era de certo resolver a questão com a maior brevidade. O proprio mambo Chideu me disse que bastava que a gente do Rupire soubesse que o mosungo Ignacio marchava para essa terra com os seus cypaes para que toda logo fugisse ou se submettesse. Em uma carta que duas ou tres semanas depois vim a receber em Gouveia do governador de Tete, informado embora com muitas alterações e exageros do que succedia, espontaneamente me pedia elle mais algumas informações a fim de immediatamente mandar avançar a necessaria gente de Tete para effectuar a posse do Rupire. Tinha porém eu partido de Gouveia com gente e conselhos do Manuel Antonio; o nome d'estes mambos vizinhos do Luenha, principalmente o do Caterere, está muito ligado no espirito de Manuel Antonio ao do Macombe, antigo rei do Barue, de quem elles eram como vassallos e suppuz que recorrendo eu ao capitão mór de Chicoa para a occupação do Rupire, não seria isso agradavel a Manuel Antonio; vindo mais tarde a reconhecer que, se assim tivesse procedido, o teria extraordinariamente offendido e talvez motivado acontecimentos desagradaveis. O terceiro alvitre, visto que eu suppunha Manuel Antonio muito distante, occupando-se da construcção das aringas do Pungue, consistia em recorrer á aringa de Tumbura, cujo capitão é o principal chefe de guerra de Manuel Antonio, e fazer com elle, juntamente com gente do seu districto e dos districtos proximos, que todos lhe obedecem, um agrupamento de uns trezentos ou quatrocentos homens, o que me parecia ser mais do que o necessario para realisar satisfactoriamente a occupação do Rupire e de Massáoa. Alguns caçadores matariam os bufalos e outra caça grossa, em quantidade necessaria para dois, tres ou quatro dias, e chegada a gente ao paiz, os recursos em cabras e em algum mantimento escondido, que eu sabia ali havia, serviriam por algum tempo. Um cypae de Tumbura, que me tinha trazido o correio e ainda se achava commigo, dizia-me ser facil, para cousa tão pouco importante, que o capitão Macarimgomba, chefe de Timbura, e reconhecido como capitão mór dos cypaes, reunisse a necessaria gente e fizesse a expedição, sem ordem de Manuel Antonio, e só por minha requisição. Foi este terceiro alvitre que sem ir adiante da povoação de Chideu, eu procurei realisar. Para isso mandei a Tumbura o citado cypae e muleques meus, e tambem para que de Tumbura me trouxessem algumas das fazendas que eu ahi tinha em deposito, pois os meus amigos da terra de Sangano, apesar da consideração e sympathia que me dispensavam e de estarem sempre em torno de mim, pouco me davam de presente, quasi nada queriam vender de fiado, e para eu e os muleques termos a pouca e miseravel comida, que nos ia permittindo viver, tinha sido necessario que elles fossem successivamente vendendo os seus pannos até ficarem completamente nús. Parece-me que o mais precioso presente que recebi do mambo Chideu foi uma véla de cebo, que eu já tinha visto entre o seu material de feiticeiro, e que provavelmente guardava ha muitos annos; veiu o velhinho, que muito lhe custava dar alguns passos, trazer-ma á minha palhota n'uma tarde em que n'ella me achava com bastantes dores e bastante fome. Infelizmente para a execução do meu projecto, um movimento que n'essa mesma occasião se tinha dado nas aringas fronteiras do Bonga e de Massangano e do Barue tinha obrigado a partir para lá com a gente da sua aringa o capitão Macaringomba, e os meus emissarios encontraram em Tumbura quasi que unicamente as mulheres e as creanças. [Nota lateral: Partida de Sangano para Tumbura.] Na impossibilidade de effectuar a occupação do Rupire antes de deixar estas terras, parti no dia 25 de outubro para Tumbura, seguindo da povoação de Chideu pelo itinerario marcado no mappa, com machileiros que Chideu mandou reunir, pagos com fazendas, que me tinham chegado de Tumbura. Um dos filhos do mambo, por ordem do pae, acompanhou-me até esta aringa. O filho mais velho, Gossi, de que tenho varias vezes citado o nome, veiu para a povoação do pae logo depois de eu ahi chegar, e ficou ahi até eu partir. Morto o velho mambo, este rapaz facilmente reconhecerá a soberania de Portugal, ou fará a entrega das suas terras. Como se vê na carta entre a terra de Sangano e o rio Luenha, está a terra de Inhachiranga que eu já disse ter atravessado na ida para o Rupire sem passar por povoação alguma. Na volta passei pela aringa de Cariua, filho do mambo da terra, e ahi tive occasião de ver que a opinião a respeito do Rupire era a mesma que em Sangano, e que ficam esperando que em breve passem pela sua terra, como amigos, cypaes de Gouveia, com destino ás terras que fizeram por ser castigadas, [Nota lateral: Partida de Tumbura para Gouveia.] No dia 26 de outubro, dia seguinte ao da minha partida da povoação de Chideu, cheguei a Tumbura. Ahi soube que Manuel Antonio não se achava no Pungue, mas tinha corrido de Gouveia para pôr fim ao movimento parcial, que contra desejos d'elle, se tinha dado na fronteira das terras do Bonga. Puz-me em communicação com elle; encontrámo-nos no dia 3 de novembro na aringa de Inhangona e d'ahi partimos juntos para Gouveia ao encontro do sr. governador geral da provincia, que n'esse mesmo dia ahi devia ter chegado. [Nota lateral: Ordem para a occupação do Rupire.] Exposta a situação ao sr. governador geral, resolveu elle que o districto de Manica e o capitulo mór de Manica e Quiteve dirigissem uma expedição ás terras de Rupire e de Massáoa. Devo acrescentar que antes da minha chegada a Gouveia, constando ahi vagamente o que tinha succedido, já o governador do districto de Manica tinha solicitado do general da provincia ordem para que fosse mandado pessoalmente ao Rupire. N'estas condições a minha presença de nada serviria para o bom resultado da expedição; como tambem parecesse melhor nada emprehender do lado de Manica até que fosse conhecido o resultado da missão do Gungunhana, junto do governo de Sua Magestade; achei conveniente, tanto por causa de minha saude, como por outros motivos, aproveitar o intervallo para vir á Europa, onde verbalmente ou em qualquer trabalho especial poderei fornecer importantes informações, em vista do desenvolvimento dos auspiciosos trabalhos encetados pela creação do districto de Manica. [Nota lateral: Despezas da expedição.] As despezas da expedição foram fazendas gastas com os carregadores e machileiros, com os presentes voluntarios ou espontaneos aos differentes mambos, com as exigencias de alguns d'estes mambos e dos seus pandoros, a compra de terras e de palhotas no Rupire, e as cargas roubadas pela gente do Rupire e de Massáoa, n'esta ultima terra, sendo parte d'ella artigos geralmente de acampamento, pertencentes ao districto de Manica, outra, fazendas da companhia de Ophir, que fez todos os adiantamentos para esta expedição, e finalmente motores de propriedade; pessoal, avalio em 1:500$000 réis a importancia das fazendas da companhia de Ophir, com que foram feitos todos os pagamentos e do resto d'estas fazendas roubado em Massáoa. [Nota lateral: Resultados da expedição.] Parece-me poder citar os seguintes: ter feito melhor conhecimento do que é o Barue, e das condições em que actualmente se acha este antigo reino; ter-me certificado que nos chamados Campos de Oiro do Imperador Guilherme ainda não havia vestigios de qualquer acção estrangeira, e que estavamos ainda bem a tempo de em toda esta região exercermos a nossa occupação ou protecção; ter, pelo que vi, e pelo oiro dos rios Inhamessansára, Muse, Inhamussice, Munhoque, e outros, que os pretos todos os dias traziam ao meu acampamento para trocarem por fazendas, e por saber que ha seculos elles lavam sempre nos mesmos logares, adquirido a convicção de que o centro, de pequena area, d'onde em todas as direcções partem estes differentes rios, deve ser um importante campo aurifero como Mauch o suppoz; ter obtido informar-nos ácerca de um outro centro a que adiante me referirei, ainda mais interessante pela maior quantidade de oiro que hoje d'elle extrahem, pela abundancia de agua corrente, pelas grandes manadas de bois, que n'elle ha, e pela sua salubridade; finalmente, não tendo conseguido fixar pacificamente no Rupire as bases de uma estação civilisadora e commercial portuguesa, ter recebido das gentes d'esta terra, de Guessa e de Massáoa pretextos, que na opinião dos mambos vizinhos nos justificam a tomar posse d'estas terras; e alcançado a nomeação de uma expedição official do districto de Manica para este fim, e para a fundação de um nucleo, que não póde deixar, por pouco que façâmos, de trazer ao dominio portuguez todos os vizinhos povos d'esta interessantissima região. II Algumas considerações relativas á politica interna dos districtos de Manica e de Tete Na primeira parte descrevi rapidamente a minha viagem a uma parte da região denominada por Mauch Campos de Oiro do Imperador Guilherme, e indiquei alguns dos resultados directos d'esta viagem. N'esta segunda parte reunirei algumas informações relativas aos paizes percorridos, e outros que devemos considerar em breve como parte integrante da provincia de Moçambique. [Nota lateral: Barue.] No relatorio da viagem de Mauch falla este explorador do successor de Musilicatze, do Musila e do Macombe, rei do Barue. Alem d'estes tres grandes potentados só encontrava entre o Limpopo e o Zambeze chefes minusculos dos quaes apenas cita o nome de Schomare (que já sabemos ser Machamare), a proposito da mais notavel riqueza dos seus terrenos auriferos. O grande reino de Barue, que já tinha atravessado ha annos, quando fui a Manica, e ha pouco quando fui ás terras dos landins, foi agora percorrido por mim em toda a sua extensão, de leste até ao seu limite oeste, formado pelo Caurese e depois mais para o norte pelo Luenha. Como é sabido, o rio Inhandue, que banha Gouveia, separa n'esta altura o Barue das terras da soberania portugueza. Este rio póde-se considerar como origem do rio Urema, affluente do Pungue. Entrando no Barue os rios principaes, pela extensão do percurso e largura do leito, que encontrei foram successivamente os seguintes: o largo rio Morose, affluente do Inhamapase, que desaguando no canal Mucua se póde considerar ou affluente do Pungue pelo Urema, ou do Zambeze pelo Sangue; o tortuoso Misangase que desemboca no Zambeze, logo abaixo do luane do Prazo Chemba, e cujo leito se atravessa ou segue quasi umas vinte vezes no caminho entre Chemba e Gouveia; o Pompue, affluente do Zambeze a meia altura da linha da praia do praso Chiramba, e o Muira, affluente do Zambeze, no Bandar, isto é, um pouco a jusante da entrada da Lupata. Poderei ainda citar o Mupa, affluente do Luenha, um pouco a jusante da foz do Caurese. Se estes rios ainda tivessem agua corrente em toda a epocha do anno, seria o Barue, no geral da sua area, um dos mais bellos campos que a provincia de Moçambique podesse offerecer á colonisação agricola europea. Infelizmente porém todos os vastos leitos arenosos d'estes grandes rios se acham seccos durante grande parte do anno, podendo-se apenas, e não em todos, obter d'elles agua para beber por meio de covas abertas no seu leito. Como meios de communicação ou como fontes de irrigação são absolutamente inuteis; encontrando-se, em toda a vasta area a que me refiro, mais facilmente agua em pequenos regatos ou affluentes de affluentes, indo ella sendo absorvida á proporção que se approxima dos largos leitos arenosos. Se o centro do Barue não é em geral cortado por abundantes cursos de agua, os seus limites são quasi todos determinados por caudalosos rios, cujas margens me parecem excellentes campos para colonisação. N'este caso estão as margens do Inhandue, principalmente as do Vunduse (do Barue), do Pungue ou Aruangua, e ainda apesar da mosca pépsé as do Caurese e Luenha. Não deve deixar de ser citado o Inhasonha, o importante affluente do Pungue, que esse não limita o Barue, mas corre todo dentro d'este reino, que tem excellente e abundantissima agua e margens adaptadissimas para colonisação branca. A ultima viagem através do Barue fez-me melhor apreciar a importancia dos serviços feitos por Manuel Antonio, causando-me cada vez mais admiração o ver como um unico homem, pela sua actividade e energia póde, não só resistir ao ataque que o poderoso e sanguinario Macombe fez á Gorongosa, mas depois perseguir este potentado, vencel-o e dictar absolutamente a lei em todo este vasto territorio. Tenho nota do nome e localidade approximada de mais de trinta aringas, algumas das quaes, como a de Pangara, me dizem ser vastissimas, construidas depois que Manuel Antonio se apoderou do Barue, tendo todos os seus capitães (de que tambem tenho o nome, e a maior parte dos quaes conheço pessoalmente), cypaes que n'ellas vivem ou n'ellas se agrupam e os necessarios elementos para a defeza. É muito interessante e para ser adoptado em territorios novamente apossados, o systema administrativo, ou antes policial, introduzido por Manuel Antonio no Barue. A gente que habitava este reino, ou foi morta durante a guerra, ou fugiu para outras terras ou ficou no Barue, submettendo-se a Manuel Antonio. Toda a que ficou foi nos differentes districtos dividida em grupos, sendo-lhes dada como Inhacuavas, chefes ou representantes para advogarem os seus interesses, homens escolhidos de entre os grandes do Barue, que mais confiança mereciam a Manuel Antonio. Alguns milhares de homens dos nossos prasos da Corôa ou Quitevistas, que tinham vindo para a Gorongosa foram introduzidos no Barue como cypaes, agrupados em ensacas, commandadas superiormente pelos capitães. Em quasi cada uma das talvez quarenta ou mais aringas do Barue ha para um lado da aringa o recinto reservado do capitão chefe da aringa e sua familia, e proximo as palhotas dos cypaes e suas familias, e para o outro lado o recinto reservado do Inhacuava e sua familia e proximo as palhotas de colonos do Barue. O capitão é sempre homem absolutamente dedicado a Manuel Antonio e o Inhacuava foi por elle escolhido. Vi sempre, nas differentes aringas onde estive, a melhor harmonia entre os inhacuavas e os capitães da aringa. Por accordo entre as duas auctoridades, os territorios em torno das aringas são divididos para as culturas ou _colimas_ das familias dos cypaes e dos colonos. Manuel Antonio ainda não começou a receber tributo ou mussôco no Barue, mas comprehende-se como é facil fazel-o logo que a isso se resolva. No Barue ha muita quantidade de cera; cypaes e colonos apanham esta cera que fica sua propriedade e que elles vendem nas aringas, onde Manuel Antonio tem fazendas em troca d'estas fazendas. ........................................................................ Como tenho dito, e como o mappa junto o mostra, o limite oeste do Barue é o rio Caurese que o separa da terra Guessa, e depois mais para o norte o rio Luenha que o separa do Inhachiranga, Inhabaco e Marembe. [Nota lateral: Terras do Changamira.] A terra Guessa do mambo Caterere fica comprehendida entre o Caurese e o Luenha, e vae estreitando até ao ponto de affluencia d'aquelle rio com o rio principal. A ponta norte d'esta terra é pouco accidentada, e quer no meu itinerario da volta, quer no da ida, ao sul d'aquelle, o caminho é facil e quasi horisontal. Para o sul, porém, da aringa do Bonga, em todo o terreno que percorri desde ahi até á aringa do Catarere, o terreno eleva-se successivamente e torna-se bastante accidentado. Comquanto não tenha podido reconhecer os montes a que Mauch chamou Bismack e Moltke, é de certo ás serras em Guessa que ficam ainda para o sul da aringa do Caterere que elle se referiu quando disse que as serras a leste dos campos de Oiro formavam uma barreira invencivel aos que a elles pretendessem chegar vindos d'esse lado. Talvez o dissesse para tirar a vontade aos exploradores portuguezes. Pela carta, porém, se vé o pouco que ha a tornear para ir da aringa de Taua ou da de Tumbura no Barue, até á terra de Macaha, centro dos campos de oiro de Mauch; e penso que ainda se poderá achar caminho mais directo, embora ligeiramente mais accidentado, de Tumbura para Macaha, cortando em altura conveniente o caminho que segue da aringa do Bonga á do Caterere. Quando me achava no acampamento do Rupire, vendo tão vizinhas as serras da margem direita do Mazoe, sabendo que este rio corre apenas uns dois ou tres dias ao sul da villa do Tete, notando que as relações commerciaes do Rupire e terras proximas teem quasi exclusivamente tido logar desde ha seculos com os negociantes d'esta villa, pareceu-me por algum tempo preferivel que as futuras relações officiaes com o Rupire tivessem logar pelo districto de Tete. O que depois se passou, e o que deve ter tido logar depois da minha partida para a Europa, leva-me a abandonar esta idéa para voltar á expressa no meu precedente relatorio, confirmando a proposta de que os limites dos dois districtos, Manica e Tete, sejam determinados pelo Luenha, desde a sua foz no Zambeze até á altura da confluencia do rio Mazoe, e depois pelo curso d'este rio; com a differença de que, o que então indicava como _limite da area de acção_ dos dois districtos, parece agora dever em breve transformar-se, graças ao que tem sido feito do lado de Tete, e á occupação do Rupire, em limite _do territorio effectivo_ dos mesmos districtos. Não posso resistir a fazer uma comparação que me occorre ao espirito sempre que penso no resultado do contacto das areas effectivamente occupadas de dois districtos em colonias nossas, contacto que julgo nunca teve logar, nem mesmo na provincia de Angola. Um inventor qualquer descobriu que dois bicos de gaz, collocados proximo um do outro, combinando as duas chammas, produzem luz mais intensa do que a da somma das mesmas chammas separadas; um pequeno apparelho movido por um machinismo de relogio, que se acha n'um mostrador de uma loja em Londres, apresenta primeiro as duas chammas separadas e parallelas, e depois, approximando um bico do outro, mostra o extraordinario augmento da intensidade da luz logo que as chammas chegam ao contacto, para voltar á simples intensidade das duas luzes simples logo que ellas se separam. É uma experiencia de gabinete mostrando a verdado da divisa do escudo belga. ........................................................................ No dia em que, tendo desapparecido a infamante aringa de Massangano, a acção directa do districto de Manica chegar á margem directa do Luenha e do Mazoe, e a do districto de Tete á margem esquerda dos dois rios, estou convencido que um phenomeno analogo ao que se dá com o contacto das duas chammas ha de ter logar com grande intensidade. O imposto do mussôco cobrado em tão vasta area dará em poucos annos um excesso de rendimento que poderá servir de garantia para levantar capitaes, que a seu turno empregados em melhoramentos reproductivos forçosamente farão entrar a Zambezia n'uma progressão de prosperidade para a qual ninguem se atreverá a dizer que lhe faltam as bases ou os recursos necessarios. Toda a margem esquerda do Luenha, que ficaria pertencendo ao districto de Tete, isto é, desde a foz do rio até á confluencia do Mazoe está hoje em poder das gentes do Bonga. Pela margem esquerda do Mazoe acima está o paiz occupado por pequenos mambos, mas tanto até ao Luenha como até ao Mazoe, pelo menos, por emquanto, até á latitude 17° ou 17°,30, muito facil será prolongar a acção directa do districto de Tete por meio de recursos de que o governador do districto e o capitão mór de Chicoa dispõem, sobretudo quando procederem de accordo com as auctoridades do districto de Manica. Logo na minha primeira intervista com Chiquiso, mambo do Rupire, fiquei surprehendido de lhe ouvir chamar Changamira, e suppuz que n'este paiz, agora dividido em tão pequenas terras, este mambo seria o herdeiro do antigo imperador; mas mais tarde soube que este nome era tambem como titulo honorifico dado a outros mambos. Toda a região de que me tenho occupado, e que comprehende os Campos de Oiro do Imperador Guilherme, corresponde approximadamente com a que no mappa do sr. marquez de Sá é denominada terras do Changamira, e era proprio que fosse dado a esta divisão do districto de Manica o nome de _Changamira_, limitando-a a E. pelo Caurese e Luenha com o Barue, e ao N. e O. pelo Mazoe com o districto de Tete, e ao S. talvez approximadamente na latitude de 17°,30' ou 17°,40' com outra futura divisão do districto de Manica, de que adiante vou fallar. Aos Campos de Oiro do Imperador Guilherme chamariamos de futuro: minas de Changamira. A divisão Changamira, limitada, como disse, comprehende a terra Guessa, do mambo Caterere, Inhachiranga do mambo Zinto, Inhabaco do mambo Mezumbauocra, Marembe do mambo Chitumbe, Sirge (do Mazoe) do mambo Cajue, Manáva do mambo Ziráve, Doro do mambo Inhacoare, Garue do mambo Rundo, Fungue do mambo Chissungue, Chissergue do mambo Inhaiuo, Macaha do mambo Machamare, Sangano do mambo Chideu, Rupire do mambo Chiquiso, e outros mais a oeste até ao Mazoe, de que eu não terei tido informação. Builha, terra do mambo Motoco, poderá ainda ser comprehendida na divisão de Changamira. [Nota lateral: Local da primeira povoação de brancos em Changamira.] A primeira parte d'este relatorio dá noticia de como, apesar das diligencias que fiz para ir entrando em amigaveis relações com as gentes d'estas terras, o procedimento das gentes de Guessa, Rupire e Massáua para commigo obrigará á deposição dos tres mambos, e á passagem das tres terras á administração directa da nação. Occupadas estas tres terras, que se acham em não interrompido seguimento com o Barue, occupado pelo districto de Tete todo o paiz até á margem esquerda do Mazoe, facil será por um ou outro modo vir em breve a exercer a nossa acção, tão pacificamente quanto possivel, sobre todas as terras de Changamira, que deixei mencionadas. A primeira estação ou povoação europêa a fazer em Changamira parece-me que deve ser situada no Rupire, junto á margem esquerda no rio Inhamussice em ponto a escolher desde a affluencia do rio Caruse no Inhamussice, até á affluencia d'este rio no Luenha. Este ponto ficaria apenas a dois dias da aringa de Tumbura, a um dia da actual aringa de Caterere, a dois ou tres do ponto em que o Luenha, vindo do Zambeze, deixará de ser navegavel, a dia e meio do ponto mais proximo do Mazoe, e a cinco dias de Tete. Fica muito perto do centro das minas de Changamira, e em excellente situação como testa de linha para a exploração do paiz dos mususuros de que já vou fallar. [Nota lateral: Administração do Changamira.] Para a policia e defeza das terras de Changamira, que agora forem occupadas, não vejo necessidade, em caso algum, de empregar uma força de europeus, ou qualquer destacamento de um corpo da provincia. O processo mais economico e efficaz é o empregado por Manuel Antonio no Barue. Construir ou aproveitar umas tres aringas, escolher para ellas bons capitães com as suas ensacas de cypaes, aos quaes se darão as terras necessarias para o sustento de suas familias, e nomear os inhacuavas de Guessa, do Rupire e de Massaua, escolhidos entre os grandes d'estas terras, que vivam nas aringas, respondam pelos colonos e lhes advoguem os interesses. A aringa do Rupire poderia ser a do actual mambo, mas seria preferivel arrasar esta e construir uma nova, em ponto escolhido nas proximidades da povoação branca. Para a administração superior e provisoria da Changamira apresentam-se-me dois modos de proceder. O primeiro consiste em nomear-se um commandante militar de Changamira, que tratará do arrolamento dos colonos nas terras occupadas, de cobrar o mussôco, que poderá todo ser pago com oiro em pó, e procurará ir occupando successivamente todo o Changamira, transformando em Inhacuavas os mambos ou parentes d'elles em que haja mais confiança. O commandante militar, nomeado como tal, não póde nem por conta do governo, nem por sua propria conta, comprar oiro aos indigenas, nem realisar com elles qualquer outra permutação mercantil. Como, porém, nada se póde fazer sem attender a estas operações, e é absolutamente necessario que ellas tenham logar no local escolhido para a povoação branca, para a ella chamar amigavelmente e pelo seu interesse, as gentes das terras vizinhas, torna-se essencial a installação de uma ou mais firmas commerciaes simultaneamente com a do commando militar. É evidente que um commandante militar isolado, sem meios de entrar em relações de troca com os indigenas, nada poderia fazer. O segundo modo de proceder consistiria, no caso de que á companhia de Ophir fosse dado um caracter semi-official, era fundar esta companhia uma estação civilisadora e commercial no Rupire, encarregada de vir a receber os impostos com os arrendatarios dos prazos da corôa, de effectuar as permutações com os indigenas e de com elles ir estreitando relações de confiança e amisade. Ao chefe superior d'esta estação civilisadora, que poderia ser um escolhido official do exercito de Portugal, poderiam ser dados durante este primeiro periodo de occupação os poderes e attributos de commandante militar ou de capitão mór. Qualquer que seja a solução adoptada, o que parece muito util é que o commando militar ou a estação civilisadora no Rupire seja constituida por fórma tal que possa destacar para a frente elementos de exploração tendo por fim a creação no mais breve tempo possivel de uma estação portugueza na região indicada no mappa do sr. marquez de Sá com o nome de mususuros, e que com este nome é effectivamente conhecida no paiz. [Nota lateral: Itinerarios para Changamira.] Por caminho directo, que hoje já se achará aberto, a viagem de Gouveia á aringa de Tumbura poderá fazer-se em dois dias, e portanto a viagem de Gouveia ao Rupire em quatro dias. Fazendo-se uso do magnifico porto do Bangue, e havendo faceis communicações do Pungue com Gouveia, a principal estrada da costa para Changamira poderá ser a do Bangue, Gouveia e Tumbura. Será esta sempre a mais rapida e a que deve ser seguida pelas malas e pelos passageiros. Mas para o transporte das fazendas de importação ordinaria e o da cera, lã, pelles, couros e outros productos relativamente pobres de exportação, são preferiveis aos meios de communicação rapida os meios de communicação economica, e para este fim a via do Zambeze e Luenha poderá com vantagem ser empregada quando n'estes rios haja carreiras a vapor. Os vapores poderão ir por este ultimo rio até a distancia de dois ou tres dias da estação de Rupire. Infelizmente o paiz aqui é extraordinariamente infestado pela mosca pepse, e não permitte por emquanto o uso dos carros de bois; mas facil será fazer uma boa estrada e ensaiar para esta curta viagem de dois dias o emprego de carros puxados por burros ou muares. Emquanto se não podér aproveitar uma parte do curso do Luenha, e emquanto se não crearem faceis communicações pelo porto do Bangue com Gouveia, como não convem ir do Zambeze a Gouveia, para de lá ir a Changamira, a estrada commercial para esta terra deverá seguir, ou de Chemba, como já disse em outro relatorio, ou antes, subindo embarcado mais um pouco o Zambeze, por um caminho, que se abra pelo valle do Muira em direcção á aringa de Inhacassengo e d'ahi, atravessando o Luenha, por Inhabaco e Inhachiranga até ao Rupire. [Nota lateral: Musururos.] Durante a minha estada no Rupire obtive muito interessantes informações ácerca do paiz dos mususuros, bususuros ou ainda susuros, que tem sobre o de Changamira a vantagem de não estar sujeito ao flagello da mosca pepse, e por isso a de ter abundantissimas manadas de bois, a de ser mais elevado e apparentemente mais salubre, e ainda a de ser retalhado com pequenos rios de excellente agua corrente. Fizeram-me do paiz dos mususuros a descripção que eu poderia fazer de Manica. Como paiz aurifero, pelo que ouvi e pelo oiro que effectivamente hoje de lá tiram, parece-me ser tambem superior a Changamira. A compra do oiro tem ahi ás vezes logar por um modo curioso. Todos os pretos dos mususuros desejam comer carne de vacca, mas nem se sabem agremiar para a distribuição nem desejam matar os seus bois para os comerem em familia. Os pretos mercadores, mesmo pretos do Rupire, que ali vão comprar oiro, começam por comprar um boi por um algodão pegado de 6 libras, que custa em Quelimane 1$600 réis, e depois vendem a retalho a carne em troca de oiro. A indole do povo parece ser boa; a todos os pretos que ahi chegam como compradores tratam _como se fossem mosungos_. O paiz tem, ou ao paiz vem ainda muito marfim. Builha, a terra do mambo Motoco, não é ainda considerada como mususuros, mas parece que o são já as terras que ao S. e SO. com ella confinam. Pelo leste confina Builha com Manica, havendo porém bastante distancia entre as povoações mais proximas das duas terras por haver n'esta direcção uma larga faxa não habitada. Da povoação do Motoco á do Mutaça, rei de Manica, são quatro dias de caminho; á do Macone, mambo que fica a O. de Manica, são tres dias. Manguende é o nome de um mambo dos mususuros, que fica a dois dias da povoação de Motoco e que tem muito marfim. A terra dos mususuros, considerada pelos pretos mais rica em oiro, é _Goa_, que tem por mambo a Mussanae; fica a tres dias de caminho da povoação de Motoco, atravessando-se pela terra Zumba do mambo Gaha, pela do Sotoco do mambo Chunni, e pela de Chiguagua, que tem o mambo com o mesmo nome. Chiguagua é terra considerada tambem como tendo muito oiro. Outra terra ainda citada como muito aurifera é a do mambo Massumbura, que ainda fica dois dias adiante de Goa. Todas estas terras parece que se acham na bacia hydrographica do Mazoe. _A priori_ parece que a melhor situação para fundar a estação civilisadora e commercial de mususuros seria pela latitude 18° junto ás cabeceiras do Mazoe e do Save. Esta estação ficaria quasi na latitude de Gouveia e poderia communicar directamente com a capital do districto, se se encontrasse bom caminho atrás do paiz montanhoso que ha a atravessar; achar-se-ia talvez a dois dias de caminho de Macequece e d'ahi poderia seguir pelo bom caminho que já sabemos haver para o Pungue, ou ainda poderia vir a communicar directamente com o porto de Bangue e povoações intermedias que venham a fundar-se, procurando logo a direcção do valle do Pungue, deixando Gouveia ao N. e Macequece ao S. Este paiz elevado onde nascem o Save e o Mazoe e outros afluentes do Zambeze, cuja occupação é da maior importancia politica, parece ser o mais adaptado para a colonisação europea na Africa austral. A pagina 285 dos _Proceedings of the Royal Geographical Society_, de maio 1884, vê-se que a respeito d'esta região mr. Selous, o celebre explorador e caçador africano, que tão bem conhece o Transvaal, diz: «As melhores partes do Transvaal não lhe podem ser comparadas». ........................................................................ III Considerações relativas á politica a seguir com alguns paizes que envolvem a provincia de Moçambique É desnecessario dizer o que era de facto ha pouco tempo a provincia de Moçambique ao S. do Zambeze. O que se passa ainda no proprio districto de Moçambique dá idéa de quanto se estendiam os nossos direitos effectivos em toda a provincia. Hoje, ou em breve, podemos dizer que os limites legaes da soberania portugueza ao sul do Zambeze são, começando do S., os que nos fixam a arbitragem do marechal de Mac-Mahon e o tratado de 1869 com o Transvaal até á altura da confluencia do Paphoris no Limpopo; depois a linha limite O. das terras do Gungunhana, que, partindo approximadamente da altura da foz do Paphoris segue até ao ponto em que o Save muda de direcção para O.; depois o curso d'este rio emquanto elle desde a sua origem corre de N. para o S.; finalmente, uma linha que vá das cabeceiras do Save, abrace os mususuros e Changamira, siga em parte o curso do Mazoe e depois inclinando mais para O., e abraçando os territorios da Chidima, que ultimamente têem sido conquistados pelo districto de Tete, se prolongue até ao Zambeze, não sei quanto, a montante da villa de Zumbo. A epocha dos soberanos indigenas independentes na Africa do S. está proxima a acabar, e é só aos ingleses, allemães e boers do Transvaal que teremos a attender como unicos elementos que se poderão oppor, pelos direitos que elles por sua parte adquiram, á expansão da area da provincia de Moçambique, ou a que a linha de limites que indiquei se afaste para O., abraçando novos territorios. ........................................................................ [Nota lateral: Estradas commerciaes.] O que é evidente é que estes territorios, abundantes em riquezas para explorar, existem onde estão; que ninguem os poderá deslocar da situação geographica em que elles se acham; e que esta situação os obriga a serem directa ou indirectamente nossos tributarios e a concorrerem para a prosperidade da provincia de Moçambique pelo uso que farão das suas estradas e dos seus portos. ........................................................................ As grandes estradas commerciaes do interior da parte central da provincia de Moçambique para a costa, serão as que vierem encontrar os rios que desembocam na bahia de Manzanzane ou conduzam ao porto do Bangue, e o Zambeze. A creação do districto e governo de Manica, a viagem que por este motivo fiz ás terras dos landins, e o ter sido um dos primeiros actos do novo governador geral da provincia o tomar em consideração as informações que no meu relatorio expuz relativamente ao rio Pungue, mandando a canhoneira _Quanza_ explorar a foz d'este rio, levaram á descoberta de um porto de mar superior aos de Quelimane e Inhambane, situado approximadamente a meio da distancia entre estes dois portos, e na embocadura de rios navegaveis por grande extensão. A não ser que o estado do paiz, que é desconhecido, revele alguma circumstancia muito desfavoravel, como a de não haver nos terrenos marginaes do porto local conveniente para a construcção d uma cidade, a descoberta d'este porto terá em breve uma extraordinaria influencia no desenvolvimento da mais valiosa porção da provincia de Moçambique. Basta citar as estradas que a este porto devem convergir. Disse em outro trabalho que o Quiteve, desde as costas da provincia até proximo da povoação de Gungunhana, era um paiz plano e horisontal. Em todo elle vivem bem os bois e podem ser empregados carros como os que percorrem toda a Africa austral, á excepção dos paizes onde ha a mosca ou aquelles em que ha só portuguezes. Uma estrada carreteira, partindo da povoação de Gungunhana, deve vir procurar o rio Busi em altura conveniente. Barcos fluviaes a vapor ligarão este porto ao ponto do Bangue. Á estrada de Gungunhana prolongada será a estrada de Duma e de toda a parte S. do paiz dos matebeles até Gubulavaio. Já tambem em outro relatorio disse que de um ponto da margem direita do Pungue, onde se possa chegar em embarcações adequadas partindo do porto do Bangue, até Manica ha já caminho de preto facil, que se póde percorrer a pé em quatro dias. É desnecessario lembrar que o sitio das minas de Inhaoxe, entre o Busi e o Pungue, fica a menos de um dia do ponto de desembarque em qualquer d'estes rios e portanto do mais facil accesso pelo porto do Bangue. N'este mesmo relatorio já disse que o valle de Pungue, para montante da foz do Vundusi, é um excellente campo para colonisação e que _a priori_ se poderia esperar que ao longo d'este valle se possa abrir uma estrada para servir directamente o paiz dos mususuros. É a que já seguiu o governador geral da provincia na sua visita á capital do districto. Já atrás notei como o prolongamento d'esta estrada para Changamira será a via de communicação mais rapida d'esta divisão do districto de Manica com a costa. O major Serpa Pinto, no seu livro, _Como atravessei a Africa_, mostra como, aproveitando o alto Zambeze, o Cafuque e o baixo Zambeze, se póde facilmente pôr em communicação mais de dois terços de largura do continente africano n'estas latitudes com o oceano indico. Antigamente as communicações entre Tete ou Senna e Quelimane tinham logar por embarcações que desciam o grande rio até ao sitio do Mazaro, entravam ahi no rio Muto, que seguiam com mais ou menos difficuldade de navegação, pela pouca agua que em certos pontos o rio tinha durante a estiagem, e depois pelo rio dos Bons Signaes ou de Quelimane até á villa d'este nome. Mais tarde a bôca do Muto ou Mazaro fechou-se completamente com areia e vegetação, e a navegação pelo rio Muto cessou de todo; começando-se a fazer uso do Barabuanda ou Quaqua, outro canal da communicação entre o Zambeze e o rio de Quelimane, com agua em parte fornecida por alguns pequenos rios que a elle vem dar. Durante alguns dias do anno, quando a cheia no Zambeze é muito grande, as embarcações que vem do Zambeze podem entrar no Quaqua, ou mesmo navegar pelos campos, fóra do leito do canal, e seguir sem interrupção até Quelimane; mas durante quasi a totalidade do anno a navegação não póde ser continua entre Quelimane e o Zambeze. Todas as mercadorias importadas por Quelimane com destino ao Zambeze, ao Chire, ao lago Nyassa, sobem o rio de Quelimane e o Quaqua em pequenas embarcações até onde a agua lhe permitte que cheguem, geralmente até proximo das construcções da companhia do opio onde, o Quaqua faz uma curva que mais do que em qualquer outro ponto, a não ser muito acima quando junto ao extremo do canal, se approxima do Zambeze. Tudo é descarregado ahi e transportado á cabeça dos carregadores até ao Zambeze, na altura da povoação do Vicente, que fica um pouco acima do Mazaro. Com relação ás embarcações, procede-se por dois modos: ou as embarcações que vieram de Quelimane ficam no Quaqua e as cargas são postas em novas embarcações no Zambeze, ou as proprias embarcações do Quaqua são passadas para o Zambeze. Os coxes e almandias feitos de um só tronco de arvore cavado, não têem perigo de se desconjuntarem e são arrastados sobre o solo desde um rio até ao outro; os escaleres são voltados de quilha para o ar e transportados sobre os hombros de trinta ou quarenta pretos. É por este modo que se têem feito nas ultimas dezenas de annos os transportes do commercio do Zambeze. Procedeu-se a estudos para projectar pelo canal do Quaqua, convenientemente rectificado e aprofundado, uma communicação permanente entre o Zambeze e o rio de Quelimane; tem-se tambem indicado como conveniente a construcção de uma linha ferrea partindo da villa de Quelimane ou de outro ponto da margem do rio de Quelimane para o Zambeze e mesmo para o Chire. Mas as aguas do Zambeze que, como acabo de dizer, só durante as grandes cheias passam pelo Quaqua, pelo Muto e por terrenos inundados para o rio Quelimane, continuam na maior parte do anno, correndo todas pelo grande leito do rio até que este se divide nos differentes braços que as levam ao oceano. Pensa-se hoje que de todas as bôcas do Zambeze, só uma, a do Inhamissengo, permitta a passagem de embarcações por cima da barra. Quando em 1879 pela primeira vez cheguei ao Zambeze, o porto de Inhamissengo, apesar de que ha seculos tinha sido considerado como podendo dar entrada aos mesmos navios que entram em Quelimane, apesar das viagens de Livingstone, dos trabalhos do sr. Augusto de Castilho e de ter sido o porto por onde os vapores _Senna_ e _Tete_ entraram no Zambeze, achava-se quasi de todo esquecido e inteiramente abandonado pelas nossas auctoridades. A casa hollandeza tinha estabelecido uma feitoria na ilha de Inhamissengo, collocado uma grande bandeira hollandeza na entrada do rio e considerava-se quasi em terreno tão seu como a casa hollandeza em Banana, e Porto da Lenha dizia estar nos seus territorios do Zaire. Algum tempo depois o governador do districto de Quilimane, o sr. José de Almeida de Avila, creou o commando militar do Inhamissengo e nomeou para esse cargo um official que em breve transformou a ilha, em que primeiro se achava só a casa hollandeza, n'uma pequena povoação constituida pela residencia do commandante, construcções do posto fiscal, feitorias das duas grandes casas francezas que negoceiam em toda a costa de Moçambique e algumas outras casas. A creação d'esta povoação não teve no desenvolvimento do commercio da Zambezia a influencia que á primeira vista parecia deveria ter, por tres motivos, sendo um d'elles a falta de communicações entre Inhamissengo e Quilimane, o segundo a falta de um rebocador para facilitar a entrada e a saída dos navios de véla que começavam a ir ao porto de Inhamissengo e o terceiro a situação da povoação. A povoação foi construida junto á primeira casa edificada na ilha, a casa ou feitoria hollandeza; a praia da povoação era tão proxima do mar que a agua muitas vezes estava quasi tão agitada como na costa e muitas das embarcações do Zambeze, que desceram até ao Inhamissengo, foram voltadas pelas ondas, perdendo-se tudo o que n'ellas vinha. Ora, o rio Inhamissengo tem com o de Quilimane por uma grande extensão agua mais profunda do que a altura da agua na barra, e todas as embarcações que podem passar sobre a barra podem com mais facilidade subir pelo rio acima. O sr. capitão Augusto de Castilho, antes de ser governador geral, já tinha feito esta observação e escolhido na terra firme da margem direita do Zambeze local para uma povoação até onde podessem chegar todos os navios que passassem sobre a barra do Inhamissengo e que se achasse em tão faceis condições de accesso para as pequenas embarcações que venham de Tete, Senna e do Chire, como está a povoação do Vicente, onde hoje se fazem todas as baldeações. Um dos primeiros actos do novo governador geral foi o determinar a formação da nova povoação, a que deu o nome de Conceição, e que deve vir a ter um desenvolvimento, como o sr. marquez de Sá, no seu livro o _Trabalho rural africano_, previa, para a povoação que elle dizia dever fundar-se um pouco mais acima, na Chupanga. A falta de rebocador especial para o porto de Inhamissengo deixa-se de fazer sentir logo que haja um bom rebocador em Quelimane, que por emquanto poderá servir para os dois portos, visto que o numero de barcos de véla que os frequentam é muito reduzido e hoje devem já os dois portos estar ligados por uma linha telegraphica que se achava em construcção quando parti de Quelimane. Quanto ás communicações regulares entre Inhamissengo e Quelimane por vapores, poderiam ellas em rigor ser effectuadas pelo rebocador do governo a que me acabo de referir, mas é de esperar que o sejam por modo mais conveniente, sendo executada a excellente idéa do sr. governador geral, que consiste em dispensar os paquetes da carreira subsidiada de tocar em Chiloane, fazendo-os logo seguir de Inhambane para Quelimane e vice-versa na viagem da volta, o que é vantajoso para o serviço dos portos importantes da provincia, e fazer com que a empreza de navegação com o pequeno vapor que ella tem obrigação de ter em serviço na costa, organise um serviço regular, em combinação com a passagem dos paquetes em Quelimane, d'este porto para o Inhamissengo até á povoação da Conceição, para o Bangue ou foz do Pungue, para Sofalla e para Chiloane. As condições em que assim ficará a povoação da Conceição já por si concorrerão muito para o desenvolvimento do commercio da Zambezia, pois que qualquer pequeno negociante ou agricultor das margens do Zambeze ou do Chire poderá desde já mandar com toda a facilidade uma ou mais almandias tripuladas por pretos de seu serviço portadores de um simples bilhete até Conceição para fazer entrega dos generos, ou ás grandes casas commerciaes de exportação, ou directamente á agencia que n'esta povoação deve ter a empreza de navegação, o que nunca poderia succeder com as complicadas baldeações do Zambeze para o rio de Quelimane. Mas o grande desenvolvimento do commercio do Zambeze só se manifestará quando aos melhoramentos que tenho indicado e que se podem considerar como realisados, se juntar o da creação de um serviço de navegação a vapor no Zambeze até Tete ou até ao pé das cataratas de Coruabassa, no Chire e no Luenha. Esta navegação não é isenta de difficuldades, mas com a pratica do serviço poderão ir sendo vencidas ou torneadas. O que é urgente é começar. Possuir o Zambeze e não procurar ter n'elle um serviço de navegação a vapor, é como se n'um paiz abundantissimo em productos que precisam ser economicamente transportados, houvesse construida uma extensa linha ferrea que se deixasse desaproveitada só para evitar a compra de uma locomotiva e de alguns wagons. Poucas despezas se poderão fazer na provincia de Moçambique que dêem resultados mais immediatamente remunerativos para a provincia; é incontestavel que com urgencia ao governo convem, ou adquirir algum material de navegação bem escolhido, e organisar por sua conta um serviço de correio de Conceição a Tete, tomando os vapores de escala cargas dos particulares, ou promover a formação de uma empreza, ou dar a qualquer empreza já creada o necessario auxilio para a organisação d'este serviço. A navegação do Zambeze acima do Tete é interrompida pelas cataratas de Caruabassa. Desde a altura do logar de Cachombe, a montante das cataratas até Zumbo, foz do Cafuque, e por este rio acima a navegação é mais facil do que em muitos pontos do rio abaixo de Tete. Nas publicações que fizerem os dois exploradores Capello e Ivens, que parecem ter vindo enthusiasmados com a regiao do Zumbo, não deixarão elles de confirmar a idéa do major Serpa Pinto e de pugnar pelo aproveitamento da magnifica estrada que a natureza poz ahi á nossa disposição; e eu penso que ao tratar-se da navegação do Zambeze deveria immediatamente fazer-se transportar até Tete o material de uma ou duas lanchas a vapor para serem armadas no Cachombe e ahi lançadas ao rio. Se porém é provavel que uma empreza particular podesse com mais vantagem de que o governo organisar um serviço a vapor desde Conceição até Tete e no Chire, não julgo que, salvo o caso da organisação de uma vasta companhia com um largo plano de trabalhos, o que não será facil por emquanto realisar, o serviço de Cafuque e do Zambeze acima de Cachombe, podesse com utilidade ser feito por uma empreza, e julgo que toda a vantagem n'este caso seria a do emprego de duas embarcações pertencentes ao governo. Sem entrar em desenvolvimentos, parece-me que a creação de um districto e governo do Cafuque seria hoje um utilissimo serviço prestado á provincia de Moçambique. Apesar das excellentes condições que se dão no actual governador do districto de Tete, não póde elle, como o padre que foi nomeado para Tete com a obrigação de ir dizer missa aos domingos no Zumbo, attender a todas as interessantes questões que agora ha a resolver para o lado do Mazoe, com o Bonga e na Macanga, e ao mesmo tempo occupar-se da expansão dos novos dominios na região do Zumbo e na exploração e occupação da estrada do Cafuque. O districto do Cafuque deveria começar junto ao rio Zambeze na altura do Cachombe, isto é, acima das cataratas da Caruabassa e prolongar-se por emquanto indefinidamente para O. O governador do Cafuque teria dois fins principaes em vista. O primeiro crear relações com os matebeles, se isso fosse julgado conveniente, ou pelo menos assegurar para a soberania portugueza uma facha de terrenos ao longo da margem direita do Zambeze desde o Zumbo até ás cataratas de Cariba ou talvez mesmo até ao rio Guai. O segundo occupar-se da estrada do Cafuque, de estudar bem as circumstancias locaes e propor a necessaria creação de estações portuguezas em pontos adequados. O governo do Cafuque só poderia ser dado a um official prudente e de toda a confiança. Se se encontrasse um official com desejos de cumprir esta missão, mas de patente ou posição tal que não estivesse em harmonia com a de um governador de districto, poderia executar essa missão com o caracter provisorio ou de organisação e com o titulo de commissario do governo, desligando-se em todo o caso do districto de Tete toda a area da sua acção. Para que tão util medida produza os resultados consideraveis que ella póde e deve produzir, é absolutamente necessario que todos se convençam de que é aos capitães móres de influencia pessoal, contra os quaes tantos fallam por ignorancia, que devemos quasi todos os territorios que possuimos na Zambezia, que a obra d'estes capitães móres foi o primeiro passo dado, e em que seria perigoso ficar; que devemos agradecer-lhes e recompensa-los, e trabalharmos de accordo com elles em ir transferindo a sua influencia pessoal para agentes mais regulares da Magestade, como agora dizem todos os pretos da Gorongosa, que já hoje bem comprehendem que a Magestade, e que o governador, mandado pela Magestade são auctoridades de ordem muito superior á de Manuel Antonio; e isto porque Manuel Antonio, na melhor harmonia com o governador de Manica, não faz senão repetir aos grandes e aos mais pretos que elle é escravo do Rei, e que todos devem absoluta obediencia ao governador que elle mandou para ali. Não conheço o capitão mór Araujo Lobo, mas sim os muitos serviços que elle tem prestado ao paiz, e estou convencido que se apparecer no Zumbo um governador do Cafuque, ou um commissario regio que proceda com tanto tacto, como na Gorongosa está procedendo o governador de Manica, teremos adquirido em breve e consolidado para a nação portuguesa, e poderemos muito desenvolver elementos, já hoje adquiridos por portuguezes benemeritos, mas elementos que nas condições que hoje se dão podem de um momento para o outro desconjuntar-se e inutilisar-se, quando não seja senão pela morte, possivel sempre, de um ou poucos individuos. A um negociante da Zambezia, muito pratico nas viagens para Tete e para o Zumbo, ouvi eu dizer que o capitão mór do Zumbo, Araujo Lobo, podia com os recursos de que dispõe assegurar communicações permanentes desde esta villa até ao Bihé. Não aproveitar meios de acção d'esta ordem seria falta para lastimar. Bordo do _Drumond Castle_, 23 de Janeiro de 1886.=_Joaquim Carlos Paiva de Andrada_, capitão de artilheria em commissão. *** End of this LibraryBlog Digital Book "Relatorio de uma viagem ás terras do Changamira" *** Copyright 2023 LibraryBlog. All rights reserved.