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Title: Chronicas de Viagem
Author: Pimentel, Alberto, 1849-1925
Language: Portuguese
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ALBERTO PIMENTEL

CHRONICAS DE VIAGEM

PORTO

OFF. DE MOTTA RIBEIRO

215, RUA DE S. LAZARO, 215



CHRONICAS DE VIAGEM



ALBERTO PIMENTEL

CHRONICAS

DE

VIAGEM



PORTO
TYP. E LYT. A VAPOR DE EDUARDO DA MOTTA RIBEIRO
215--RUA DE S. LAZARO--215

1888



                   Ao conselheiro

            Antonio Maria Pereira Carrilho

              MEU ANTIGO E DEDICADO AMIGO

        COMO RECORDAÇÃO DAS AGRADAVEIS EXCURSÕES

                  QUE JUNTOS FIZEMOS

                   NO VERÃO DE 1888



                                    Offereço.

                                _Alberto Pimentel._



CHRONICAS DE VIAGEM

I

Nas Caldas da Rainha


Na quarta feira de manhã, o comboio em que eu vim para as Caldas da
Rainha regorgitava de viajantes.

E desde quarta feira não tenho visto senão chegar ás Caldas gente,
gente, gente!

Os hespanhoes vão mandando os seus primeiros contingentes, e d'aqui a
poucos dias chegará o grosso do exercito.

Principia a ouvir-se já esse infatigavel chalrar das hespanholas, que ao
longo da alameda vão agitando a ventarola e... os quadris, passando como
um bando de cigarras palreiras, seguidas de grande numero de cigarrinhas
não menos garrulas do que as suas mamãs de olhos pretos e os seus papás
de _patillas_.

Muitas caras de Lisboa: pessoas da alta finança... com dyspepsia; e da
grande roda... com rheumatismo.

Algumas pessoas da provincia, com ar de principes que viajam sob incognito.

Toda esta humanidade, mais ou menos espectaculosa, que passeia no Olympo
da alameda, de tridente na mão, desce do alto da sua importancia ao razo
da fragilidade do barro commum, logo que entra as portas da Copa.

Ahi, perante as aguas, são todos eguaes.

Portuguezas de chapeus de palha, hespanholas de mantilha, janotas do
Chiado, anciãos venerandos, sentados em torno da casa das pulverisações,
voltados contra a parede, de bocca escancarada, n'uma immobilidade
paciente, deixam penetrar na garganta, em pequenissimas gottas de agua
do tamanho de missangas, a aspersão d'esse hyssope therapeutico, que os
ha de benzer... para o inverno.

Vêl-os alli e imaginal-os devotos romeiros que estão collando os seus
labios a uma nascente milagrosa de agua de Lourdes, é tudo uma e a mesma
coisa. Reverentes deante da torneira, de _bibe_ de borracha em volta do
pescoço e toalha de algodão sobre os joelhos, parece entoarem
mentalmente um hymno védico em honra e louvor da agua das Caldas:
«Gloria a ti nas torneiras, ó milagrosa agua, que borrifas a minha
garganta, desces pelo meu esophago, penetras no meu corpo! Abençoada
sejas tu e mais os sagrados Pintos Coelhos da medicina, que mandam que a
gente te sorva em pequenas doses, tal qual como em Lisboa!»

Mas, feita esta oração naturalistica, as damas, os janotas, os anciãos
arremessam com desdem o seu _bibe_ de borracha, sacodem a toalha de
algodão, e readquirem, á sahida da Copa, o seu bello ar mundano,
parecendo dizer aos platanos da Alameda: «No reino animal, a que temos a
honra de pertencer, não somos nada inferiores a vós outros, senhores
ornamentos do reino vegetal!»

E as andorinhas, que nas Caldas são em numero prodigioso, esvoaçando de
platano para platano parece dizerem lá de cima: «Como v. ex.ª está
fresco com as aguas! Viva v. ex.ª, e não falte cá para o anno!»

Deante do Sebastião, que ministra os copinhos de agua das Caldas com a
mesma gravidade com que Ganimedes devia servir Jupiter á mesa dos
deuses, toda a gente tem um vago estremecimento do espirito, seja porque
o Sebastião represente a saude ou a diplomacia, pois que realmente a
saude é a diplomacia com que a gente quer tratar o corpo, e a diplomacia
é a saude com que as nações pretendem curar as suas mazellas.

É talvez por esta dupla representação que o Sebastião da Copa tem um
certo ar solemne, ao mesmo tempo de medico e de diplomata, não sendo
elle nada d'isso.

Sebastião, antes de pegar no copo, do o lavar e de o encher, relanceia a
sua pupilla verde, n'uma observação rapida mas profunda, pela pessoa que
está deante de si.

Estuda-a n'esse relance de olhos e, silenciosamente, como um soberano
que dispensa mercês, dispensa elle copos d'agua, servindo-se do seu
gesto grave como se fosse um decreto.

Sim! a gente, tambem n'um relance, parece lêr isto nos seus olhinhos
verdes: «Eu Sebastião, copeiro por graça de Deus, sou servido servir
este copinho d'agua a este cavalheiro que o requer, com a circumstancia
tacita de o julgar tolo, porque principia por tomar cincoenta grammas
quando devia limitar-se a tomar apenas trinta. Mas eu, Sebastião,
copeiro por graça de Deus, que estou sempre ao pé da agua, lavo d'ahi as
minhas mãos,--silenciosamente.--Dada de bico callado aos tantos de tal,
nas Caldas da Rainha e de copo na mão».

A gente lê este decreto, toma o seu copinho, e sáe a porta. Respira-se
então melhor,--como quando se sáe da Ajuda. Até ir repetir a dose
ninguem pensa mais no Sebastião, porque é tambem esse um ruim sestro da
natureza humana: depois de recebida a graça, ninguem pensa mais em quem
lh'a concedeu.

E os que receberam a agua no copo procedem similhantemente aos que
receberam a agua em pulverisação, isto é, desoppremidos,
_dessebastianados_, espanejam-se ao longo da Alameda rindo, conversando,
como se gosassem a melhor das saudes e não tivessem tomado remedio algum
ha muitos annos.

A saude, que todos de manhã julgam perdida, reapparece á noite,
florescente e agil, na valsa e mesmo no chá, entregando-se resolutamente
aos compassos de Strauss e ás bolachas do Club.

Ora este Club das Caldas,--pois que fallei n'elle,--parece-se um pouco
com as praças de guerra: é dos primeiros que o occupam. Isto seria
inteiramente justo, por direito de conquista, se os primeiros que chegam
se limitassem a occupal-o,--mas fazem mais alguma coisa:
entrincheiram-se em grupos.

O grupo A arvóra bandeira, fortifica-se, e resiste.

O grupo B hasteia egualmente a sua bandeira, fortifica-se, e... resiste.

Os outros grupos fazem a mesma coisa.

É um entrincheiramento geral.

O melhor que ha a fazer, para tomar posse do Club das Caldas, é vir para
cá no S. João.

De resto é preciso escalar, fazer de Affonso Henriques deante de
Santarem, trepar de gatas pela muralha, pendurar-se das ameias. A alguns
pobres rapazes de dezoito annos, que ultimamente chegaram, temos visto
realisar prodigios de acrobatismo caldense para treparem á muralha e
arrancarem uma valsa.

E, porque n'essa edade tudo esquece facilmente, depois de tão trabalhosa
escalada sentem-se felizes girando em torno do salão, levando presa pela
cintura uma dama que lhes custou tanto a conquistar como a formosa
Rachel a seu primo Jacob.

N'este caso, e sobretudo n'esta metaphora biblica, o tio Labão é
representado pelo entrincheiramento dos grupos entre si.

Ás vezes os Jacobs do Club não dançam precisamente com a prima Rachel,
isto é, com aquella dama que elles prefeririam, porque essa tem-n'a o
tio Labão fechada a sete chaves n'um grupo. Mas, para não perderem de
todo o tempo, vão dançando com a Lia que por muito favor lhes concederam.

A Matta é este anno um pouco abandonada. Não resiste á concorrencia que
lhe fazem o Ceu do Vidro e a Alameda, onde agora mesmo, tres horas da
tarde de domingo, ha numerosos grupos, conversando, jogando, observando.
O amor, como um macaco na floresta, vae saltando de arvore em arvore, e,
escondido entre as ramarias, despede settas certeiras, ficando a rir e a
baloiçar-se nos ramos...

Com a sua ligeireza simiana ora aponta a um seio turgido, afofado entre
cambraias; ora, como que por ironia, dispara contra um peito já
sabiamente abroquelado para estes combates.

No primeiro caso, a setta crava-se no alvo, que fica ferido, gottejando
sangue ardente.

No segundo caso, resvala no broquel de aço e a dama, vendo cahir no chão
a setta, fica dizendo mentalmente: «Para cá vens tu de carrinho!...»

Em duas horas observa-se toda a vida das Caldas; por isso, inteirado da
situação, tenho feito pequenas excursões fóra do mundo galante da
Alameda.

Fui á Lagôa de Obidos, que eu só conhecia nominalmente dos compendios de
chorographia.

Passeio delicioso, por uma bella estrada marginalmente povoada de
pinheiros.

Cheguei á Foz do Arelho ao cahir da tarde. A lagôa principiava a
esbater-se na penumbra, n'uma doce tranquillidade. Os pescadores
recolhiam nas bateiras, que singravam mansamente. Mulheres e creanças
esperavam-n'os sentados na areia, mas as creanças, logo que viram
aproximar-se um trem, fizeram-lhe um verdadeiro assalto, chegando a
engalfinhar-se nas portinholas.

E na grande paz da lagôa a primeira treva da noite ia cahindo como um
véo de crepe, lentamente.

Hontem fui de corrida á Nazareth.

Ah! meu Deus! que desillusão!

Caldas da Rainha, 5 de agosto de 1888.



CHRONICAS DE VIAGEM

II

A Nazareth


Acabam de contar os jornaes que ha poucos dias, em Cautterets, os
cavallos que puxavam o _break_ de Sarah Bernhardt, assustando-se, na
ponte de Renquez, com o estrondo da agua, estiveram empinados sobre o
abysmo, prestes a despenharem-se na corrente.

É pouco mais ou menos a historia do conhecido milagre de Nossa Senhora
da Nazareth.

E digo pouco mais ou menos porque, sobre o rochedo da Nazareth, foi
miraculosamente suspenso á beira do abysmo um cavalleiro, que se chamava
Fuas Roupinho, e não um _break_, que conduzisse Sarah Bernhardt.

A razão é simples: No tempo de Fuas Roupinho não havia ainda nem _break_
nem Sarah Bernhardt. O leitor deve ficar convencido da verdade
d'esta asseveração historica.

Ora, no milagre da Nazareth, se o cavallo ficou empinado sobre o
rochedo, foi porque Nossa Senhora appareceu a soccorrer o cavalleiro,
que a invocára.

No caso de Sarah Bernhardt, quem acudiu á portentosa actriz não foi
Nossa Senhora da Nazareth, mas a propria Sarah Bernhardt.

No momento do perigo, Sarah, que guiava o _break_, saltou da almofada,
poz-se á frente dos cavallos, segurou-os pelos freios, e... suspendeu-os
no azul, sobre a torrente...

É tragico!

Póde muita gente lançar este caso á conta das numerosas _blagues_ que o
noticiario francez borda todos os dias phantasiosamente em torno do nome
de Sarah Bernhardt.

Mas, por muito grande que seja a incredulidade d'essa gente, o caso da
ponte de Renquez não me quer parecer menos verosimil do que se me
affigurou outro dia a historia do milagre da Nazareth.

Eu, como toda a gente, fui educado a ouvir fallar do milagre da
Nazareth, e a vel-o memorado em estampas coloridas, embora grosseiras,
que figuram D. Fuas Roupinho, de capinha de tenor e bonnet de penna de
gallo, montando um cavallo branco, que, de mãos no ar, se empinava
sobre um rochedo imminente ao oceano, o qual oceano fremia em vagalhões,
hyante e profundo.

Um veado, de larga armação ramosa, saltava pelo ar, prestes a
afundar-se, o qual veado era nem mais nem menos que o diabo.

Nossa Senhora da Nazareth, envolta em resplendores celestes, apparecia
no espaço, acudindo solicita á invocação do cavalleiro, o qual
cavalleiro era, como já dissemos, D. Fuas Roupinho.

Pessoas que leram os _Quadros historicos_ de Castilho, e n'elle o
rimance da Nazareth, sabiam, além d'aquillo, que este caso milagroso
occorrera n'uma fresca manhã de setembro, e que o rochedo do milagre
estava pendurado sobre o oceano na altura de duzentas braças.

    Rompeu-se com o sol a nevoa,
    E ao resplendor que luziu,
    Sobre penha, que duzentas
    Braças pende ao mar se viu

    Co'as mãos em vão sobre o abysmo,
    Trepidar e descair,
    Ennovelar-se erriçado.
    Pular atraz, refugir

    Um cavallo! e o bom Dom Fuas,
    Que o remessára até ali,
    Saltar por terra, clamando:
    --«Por ti, Senhora, é por ti!»

O milagre da Nazareth fôra posto em oratoria no theatro.

Um rochedo de papelão, suspenso sobre uma torrente de lona azul,
apparecia recortando-se ao longe sobre o panno do fundo, que
representava a vastidão infinita do ceu.

Um cavalleiro, tambem de papelão, galopava sobre um cavallo da mesma
materia prima, em perseguição de um veado que não era mais consistente.

Cavallo e cavalleiro ficavam suspensos sobre o abysmo, e o veado
despenhava-se no mar com grande applauso dos espectadores, que jubilavam
catholicamente por vêr assim justamente castigado o diabo.

Quando outro dia fui das Caldas da Rainha á Nazareth, evoquei na minha
memoria, que ainda não é das peiores, todo o apparato sobrenatural
d'essa tradição piedosa, com que na infancia tantas vezes fui acalentado
pela velha criada Joanna.

Não sabia eu então onde ficava a Nazareth do milagre, nem me era preciso
sabel-o para o crêr.

O que eu a preceito sabia, e não precisava saber mais nada, era que o
milagre acontecera, e que lá estava ainda, onde quer que fosse, o
rochedo pendente ao mar; e o vestigio sempre vivo de uma pata do cavallo.

Mais tarde a poesia de Castilho revestiu de prestigio, na minha
imaginação, a tradição do milagre, e, finalmente, mais de um livro de
Julio Cesar Machado, fallando das grandes festas dos cyrios da Nazareth,
aguçara-me o apetite de ir um dia, quando podesse ser, ao local do milagre.

Fui. Não era pelo tempo dos cyrios, não havia portanto nem festas, nem
romeiros, nem lôas, nem offerendas. Nada d'isso. Mas o que eu esperava
que houvesse, n'aquelle dia de agosto em que fui á Nazareth, era o
rochedo em cima e o mar em baixo. Isso me bastaria para que eu,
encontrando todos os pormenores da tradição em inteira conformidade com
as minhas recordações, continuasse a acreditar no milagre com o mesmo
prestigio e com a mesma fé.

Fui, com estimaveis companheiros de viagem, que n'esse dia eram tres.

E, não devo occultal-o por vergonha, á medida que da estação do Vallado
avançava para a Nazareth, o meu coração não trotava menos do que as
miseras pilecas que iam arrastando o _char-á-bancs_.

Não desgostei de vêr de perto a Pederneira, que eu ha annos escolhera
para localisar ahi um pequeno conto que, se me não engano, anda
impresso no livro _Homens e datas_.

Alexandre Dumas pae diz algures que não podia descrever os logares sem
que primeiro os visse. Creio que é n'um dos volumes das _Causeries_. Eu,
para em nada me parecer, infelizmente, com Alexandre Dumas, affoutava-me
a escolher logares de que algumas pessoas me haviam fallado com certo
agrado, motivo por que me não ficavam desagradando tambem a mim.

Ora um d'esses logares fôra a Pederneira.

E a Pederneira lá estava com a sua egreja e com as suas casas, um pouco
conforme ao que eu havia imaginado a seu respeito.

Mas já então se via no horisonte o planalto da Nazareth, a que chamam o
_Sitio_, e nenhum rochedo avultava tanto, que eu pudesse desde logo
gritar aos meus companheiros de viagem: «É aquelle!»

Havia effectivamente alguns rochedos alcandorados á borda do planalto,
mas nenhum d'elles destacava por imminente ao mar, como nas estampas
coloridas, que tantas vezes eu tinha, quando pequeno, contemplado em
credula camaradagem com a velha criada Joanna, a minha velha e querida
Joanna.

O que havia em baixo, mesmo por baixo dos rochedos, era a praia,--areia
e casas.

Póde a praia ser muito boa para banhos, mas não é para isso que eu
quero as praias. Mais uma vez declararei que o meu ideal balnear não vae
além da tina e da esponja. Gosto simplesmente das praias para vêr o mar;
mas quero vel-o d'alto, que é a unica maneira que a gente tem de
contemplar o oceano sem tamanho vexame para a pequenez humana...

É certo que na Nazareth poderia, para vêr o mar a meu modo, subir ao
planalto, ao _Sitio_, como lá se diz.

Mas custa tanto subir na Nazareth da praia para o _Sitio_, emquanto o
ascensor mechanico não estiver prompto, que é esse um prazer que mal se
póde ter todos os dias, pelo incommodo que importa.

Assim, os banhistas da Nazareth teem que contentar-se de vêr o oceano
como naufragos que estivessem mettidos dentro d'elle. Parece, pelo
menos, que está a gente tomando banho dentro de uma tina, e que dentro
d'essa tina está o mar. Não gosto. É um capricho, uma idyosincrasia, mas
não gosto. Prefiro a Ericeira á Nazareth, porque na Ericeira a gente vê
sempre o mar do alto das _ribas_ ou das _arribas_, como diz a gente da
terra, e assim, visto do alto, o mar parece que não deprime, que não
esmaga tanto a pequenez do homem.

Mas na Nazareth é possivel que o solo tenha passado por alguma grande
commoção, que alguma revoluçcão geologica haja feito recuar o oceano
para além da perpendicular do rochedo.

O scenario do milagre póde ter mudado muito desde os tempos da fundação
da monarchia até hoje.

Como porém já não encontrei o mar vagalhando debaixo do rochedo, e como
o rochedo, visto de longe, não me deu a impressão do milagre, peguei a
descrer do milagre por causa do rochedo, Deus me perdôe!

Bem sei que era muito audaz a minha exigencia de querer encontrar tudo
como no tempo de D. Fuas Roupinho e na hora do prodigio. Mas assim mesmo
é que eu queria ter encontrado ainda as coisas... E quer-me bem parecer
que só me haveria contentado inteiramente toda a _mise-en-scene_ do
milagre: o cavallo empinado sobre o rochedo, o veado descrevendo na
queda uma larga curva, e o mar em baixo, espumoso e vasto. Tal qual como
nas estampas.

Fui acima, ao _Sitio_, em trem, para vêr se podia reconstruir, deixem-me
dizer assim, o meu ideal da Nazareth mais do seu caso milagroso.

O _Sitio_ é, fóra do tempo dos cyrios, de uma tristeza morta, de uma
solidão sepulchral.

Que mau senso teve o diabo! Comprehendia-se que tivesse querido attrahir
D. Fuas Roupinho a um sitio deleitoso, infernalmente bello e
convidativo. Mas áquelle logar! áquella solidão! Ali não ia ninguem,
ali ninguem cahiria na tolice de se deixar attrahir pelo diabo, de mais
a mais disfarçado em veado! Ainda se fosse em mulher!...

Eu conheço varias partidas do diabo, que mostram que elle não tem tão
mau senso como isso! O diabo é sempre artista nos logros que arma, tão
bem armados que os proprios logrados costumam dizer: «Esta só pelo diabo!»

Isto é: só armada por elle.

Desconfiado, parti logo do principio de que Fuas Roupinho se não tinha
deixado engodar tão tolamente pelo diabo, n'aquelle sitio, como a lenda
dizia.

O rochedo, visto de cima como visto de baixo, continuou a não me dar a
impressão do milagre. Vi um signal na pedra, e um rapazito disse-me que
era o vestigio de uma das patas do cavallo.

Confesso que me fizera maior impressão,--muito maior!--a cruz de pedra
que Santo Antonio, tambem segundo a lenda, riscára com a unha na sé de
Lisboa, quando era menino do côro, e o diabo lhe appareceu feito mulher.

--Sim--disse eu quando vi a cruz na sé--devia ser isso... para um santo
que quizesse resistir!

Mas na Nazareth, espreitando para o rochedo por cima de um muro que me
dava pelos hombros, nenhuma voz disse dentro em mim:

--Sim... é o signal da pata do cavallo. Devia ser assim para um
cavallo... que não quizesse cahir!

E a historia do milagre galopava no meu espirito para o abysmo da
incredulidade, como o cavallo de D. Fuas Roupinho, na lenda, para o
abysmo do oceano.

Mas entrei na egreja, doirada de bella obra de talha, vi a imagem de
Nossa Senhora no throno, fixei por alguns momentos a sua rude
esculptura, e pareceu-me que bem podia ter sido tudo como a lenda
contava...

Quando o homem está de joelhos, sente-se sempre menos propenso á
duvida...

Quando voltei ás Caldas, disse a Julio Cesar Machado, que estava lá:

--Olha que tu, com os teus livros, tiveste muita culpa n'esta passeiata
que eu fiz hoje á Nazareth. Não gostei...

E elle respondeu-me:

--Aquillo é muito bom quando é pelo tempo dos cyrios e pelo tempo... dos
dezoito annos, que foi quando eu vi bem os cyrios...



CHRONICAS DE VIAGEM

III

Alcobaça


Quando eu escrevi a _Porta do Paraiso_, que tão boa fortuna alcançou,
como prova o facto de estar hoje em terceira edição, foi na villa de
Alcobaça, á sombra do vetusto mosteiro cisterciense, que localisei o
principio da novella, a qual depois se desdobra em Lisboa.

Clarinha era d'ali, d'Alcobaça, de cujos vergeis floridos eu fallei sem
os ter visto. Foi em Alcobaça que lhe desabrochou no coração o primeiro
amor, primeiro e unico de toda a sua vida, o que já então era raro e
hoje é rarissimo. Eu não tinha visto os coutos pittorescos de Alcobaça,
abundantes de fructas e aguas, de sombras e frescura, mas conhecia-os
pela _Alcobaça illustrada_ de Frei Manuel dos Anjos e pela
descripção oral, muitas vezes repetida, sempre calorosamente, de um
rapaz que era d'ali natural e estava desempenhando no Porto o cargo de
guarda-livros da Companhia Viação, a Entre-Paredes.

Ha quinze annos eu conhecia pouco o paiz: um bocado do Minho, outro
bocado do Douro, e mais nada. O scenario de que podia dispôr era, pois,
muito resumido, acanhado. Depois d'isso é que me pude dar o prazer de
_touriste_, e hoje, com excepção do Algarve, conheço menos mal o paiz. A
paizagem agreste do Douro abundava já nos meus primeiros livros, de modo
que, posto curasse por informações, foi por amor da variedade que eu
desferi vôo para Alcobaça a fim de pendurar nos seus arvoredos a minha
novella, como um ninho de tristezas brandas, que a minha imaginação,
timida andorinha, se propunha fabricar...

Quando se abre o livro, está-se em Alcobaça; assiste-se a um serão de
Clarinha: o tio a um lado, a outro lado o primo revolvendo livros.

Não me demorei em pormenores de paizagem; descrevi-a em dois traços, de
fugida, porque o que eu queria era achar um sitio de eleição, que fosse
ameno e formoso, e cujo nome bastasse ser indicado para que se
comprehendesse que n'esse meio geographico não podiam gerar-se
caracteres abominaveis.

Eu sempre detestei... o abominavel, então e agora.

Rodaram annos, estive de passagem n'outras localidades, bem menos
agradaveis por certo, e sempre me ficava no fundo da alma, como uma
violeta antiga, perdida entre as paginas d'um livro, o desejo saudoso
(deixem-me dizer saudoso...) d'essa villa opulentamente fradesca, onde
eu só mentalmente havia estado alguns dias, com Clarinha, com seu tio e
com seu primo, assistindo em espirito a esses doces serões de provincia.

Foi só agora que pude apagar a saudade d'esse desejo.

Quando nas Caldas o revelei ao meu velho amigo Carrilho, elle, que tinha
estado poucos dias antes em Alcobaça, disse-me com a sua habitual energia:

--Homem, amanhã, no comboio do meio dia, partimos ambos para Alcobaça.

--Mas lá perdemos nós uma tarde de aguas, e foi para tomar as aguas que
eu vim ás Caldas.

Elle replicou:

--Tomaremos as aguas de manhã; de tarde tomaremos Alcobaça. Á noite
estaremos a jantar nas Caldas, de regresso. Um passeio que se faz por
gosto, vale por um bom remedio.

Fomos. Já tinhamos ido á Nazareth, o que quer dizer que já conheciamos a
linha da Figueira até á estação do Vallado. A surpreza, para mim,
começava d'ahi por deante.

A planicie verdejante do Vallado, essa immensa campina plana como a
palma da mão,--propriedade do snr. Manuel Iglesias,--era para mim o
bello prologo da viagem a Alcobaça pela linha da Figueira.

O Vallado é realmente um sitio delicioso, vasto, lavado de um puro ar
saudavelmente temperado com o oxygenio dos campos e o iodo do mar, que
não fica longe. Principia ahi o grande pinhal de Leiria; uma guarda
avançada de bastos pinheiros faz sentinella ao _chalet_ encarnado onde
reside um fiscal da matta. Ao longe, dominando a estrada da Nazareth, o
morro de S. Bartholomeu, phantasiosamente recortado, com a sua ermidinha
entalada entre rochedos, parece olhar desdenhosamente para a planicie
infinita que se lhe desenrola aos pés, timidamente, longamente...

Do Vallado para Alcobaça ha diligencias, a tostão por pessoa. É preciso
deixar passar o comboio para podermos atravessar a linha. Esperam-se
cinco minutos, o comboio parte, e a diligencia do Gallinha parte logo
depois do comboio.

A estrada é graciosa, alegre como um sorriso luminoso da natureza, feito
de claridade e de verdura. A breve trecho estamos na Fervença, cujo nome
provém das suas aguas sulphurosas, e onde um velho portico de propriedade
nobre me enleiaria o olhar, se não tivesse de voltar-me logo para vêr o
edificio da fabrica de fiação e tecidos, estabelecida alli em 1874.

Sombras, frescura, agua, a flux,--uma estrada que mais parece uma
avenida de recreio cortada atravez de uma floresta banhada por nascentes
abundantes.

Avista-se Maiorga, avistam-se casaes alvejantes, frescos e claros,
brilhando na palpitação suave da verdura, levemente batida por uma
pontinha de ar refrigerante. A agua corre nos campos, em ondas de
abundancia, entornando diamantes ao saltar de pedra em pedra, como uma
princeza louca, que vae estragando thesouros. E o arvoredo põe no solo
branco e crú grandes manchas de sombra, que parecem ligar-se
caprichosamente pelos seus contornos irregulares, phantasticos.

Surge-nos á margem da estrada outra fabrica, de louça, dando-nos a
conhecer que vamos entrando n'um concelho vitalisado pela industria,
laborioso e rico. Depois as primeiras casas da povoação, brancas e
baixas, enfileiram-se em linha, correndo a par da diligencia, e um
palacio, dominador e vasto, abre á luz sobre a estrada as suas janellas
em longas series parallelamente dispostas.

Vejo, de relance, sobre um cunhal de muro o letreiro que diz: _Rua
de Frei Fortunato_. E penso n'este nome. Emquanto a diligencia roda,
lembro-me que aquella rua memorará frei Fortunato de S. Boaventura,
alcobacense, miguelista acerrimo, polygrapho fecundo, author da
_Historia chronologica e critica da real abbadia de Alcobaça_. E d'ahi
talvez não seja; mas aposto que será esse mesmo, o de S. Boaventura.

A diligencia entra n'um triumpho de estrondo e poeira--egual a todos os
outros triumphos--no Rocio de Alcobaça, e á nossa esquerda, como um
leviathan de pedra, ferido pelo arpéo do vandalismo, o mosteiro avulta
na sua vastidão enorme, fria e dura, remendado, propinado, cuspido na
face vetusta pela antiguidade e pelo progresso.

A egreja, encravada no mosteiro, exhibe n'uma confusão chaotica os seus
numerosos estylos architetonicos, especie de _bric-á-brac_ de todas as
grandezas de um passado extincto, e por entre as pedras e as imagens que
negrejam como carvões contrastam remendos de cartão branco, farrapos de
pedra nova, fazendo lembrar uma capa de pedinte pendurada do alto das
torres, e aberta ao sol.

Imaginem que visitando um dia a feira da ladra se recordaram subitamente
de D. Affonso Henriques ao vêr um capacete de armadura posto sobre uma
farda de soldado da guarda municipal.

Foi o que me aconteceu.

D. Affonso Henriques passou por ali, e plantou um mosteiro. Mas veio
depois a invasão de Miramolim, e derrubou-o. Poz-se uma estaca á arvore
partida, e a arvore renasceu. Vieram ainda depois os caprichos
realengos, os accrescentos anachronicos, os terremotos, os raios, e D.
Affonso Henriques, se voltasse a este mundo, não conheceria a sua bella
arvore de pedra, plantada em honra de Nossa Senhora, por memoria do
feito de Santarem.

Aberta a porta do templo, talhada em arcos ogivaes, as suas vastas tres
naves alongam-se n'uma fria extensão silenciosa, e ao fundo a capella
mór, em semi-circulo como todas as charolas das grandes basilicas,
esfuma-se n'um como nevoeiro, que duvidosamente deixa entrever columnas
e imagens.

Á esquerda, uma porta abre sobre a chamada _casa dos reis_, que se nos
patentêa com os seus altos azulejos allegoricos, o seu caldeirão bojudo
de Aljubarrota e as suas estatuas grotescas, de reis antigos, presididas
por Affonso Henriques, recebendo a corôa, curvado aos pés de S.
Bernardo, essa _montanha de santidade_, como lhe chamou frei Luiz de Souza.

Á ilharga de Affonso Henriques, n'uma prateleira, um pequeno busto, em
gesso, de D. Pedro V, põe n'essa galeria de antigas estatuas de reis,
modeladas ao natural, uma nota acre do contraste moderno, mostrando
como os reis teem ido perdendo na grandeza da sua exhibição...

Tudo o que em Alcobaça é moderno, é atroz: especialmente o vandalismo.

É verdade que os francezes roubaram todas as alfaias valiosas do
mosteiro; que abriram sacrilegamente os tumulos de D. Pedro e de D.
Ignez, para arrancar aos cadaveres as suas ricas vestes reaes; mas, em
nome da liberdade, os indigenas foram depois roubando, a exemplo dos
francezes, as reliquias e as pedras, indifferentemente, os santos e as
cantarias; a verdade é que os governos do fim do seculo não são menos
vandalos do que os francezes do principio d'elle, porque não tardará
muito, talvez, que toda a abobada do templo, já fendida, desabe.

Aquelles dois tumulos que, entre outros, se encontram n'uma capella do
cruzeiro, estão immensamente divulgados pela photographia, pela gravura,
pela poesia, mas hão de ser eternamente o assombro de quem visitar
Alcobaça, porque tudo n'elles é grandioso e sublime, desde o mais subtil
pormenor dos arabescos até ao doce perfume de amor que parece exhalar-se
desses dois sarcophagos, como do calix de dois lyrios brancos sempre
frescos...



CHRONICAS DE VIAGEM

IV

Os tumulos de Ignez de Castro e D. Pedro


Aqui temos pois deante de nós, como dois lyrios brancos de marmore, os
sarcophagos de que parece exhalar-se, como um perfume fugitivo, a lenda
medieval d'essa grande catastrophe amorosa.

Da historia d'esses tragicos amores pouco se sabe ao certo, mas a lenda
embala a nossa imaginação desde os primeiros annos da infancia; todos a
conhecemos, e todos a acreditamos.

Sabemos o que nos disse Camões, que copiou a tradição legada por Garcia
de Rezende, servindo-se ás vezes das mesmas phrases. E, verdade verdade,
n'este moribundo seculo de reconstrucções historicas, nenhum documento
que fizesse luz e que fizesse fé veio a lume para esclarecer a
tradição dos amores de Ignez de Castro.

Camillo Castello Branco tem na sua pasta, recolhidos e colleccionados,
materiaes importantes, que farão revelações de alto valor sobre esta
nublosa questão historica; mas, infelizmente, não poude ainda dispôl-os,
ligal-os, conglobal-os n'um livro, que deverá causar sensação quando
apparecer.

Todos temos caminhado até hoje ao capricho das incertezas da lenda, que
ora faz de Ignez de Castro um caracter perfido, ora um caracter
angelico, segundo a lenda é recolhida n'esta ou n'aquella provincia.

Nem a propria individualidade de Ignez de Castro está fixada ainda
historicamente; e os pormenores dos seus amores com o infante D. Pedro,
depois rei de Portugal, envolvem-se n'uma especie de via-láctea
romantica, de veu poetico atravez do qual não foi possivel ainda
descortinar com segurança a verdade.

Mas seja qual for a historia d'esses pormenores, qualquer que venha a
ser a liquidação definitiva d'esse acontecimento historico, o que não
póde pôr-se em duvida, deante dos dois sarcophagos de Alcobaça, é que
houve n'esses amores todo um idyllio de sublime poesia do coração, todo
um drama vibrante de sentimento, poetico e grandioso.

Seria preciso que no animo duro de um tal homem como D. Pedro I
houvessem cantado e raivado todas as doçuras e todos os desesperos do
amor para que elle phantasiasse a fabrica delicadissima d'esses dois
tumulos tão similhantes nos traços geraes da sua tonalidade artistica, e
tão irmãos na homogeneidade da expressão sentimental que a pedra
conserva ainda atravez dos tempos.

Foi elle que planeou a construcção d'esses dois sarcophagos, diz a
tradição, e que para um d'elles ordenou fosse removido desde Coimbra o
cadaver de Ignez, ficando o outro vazio, á espera que soasse a hora de o
ir povoar na solidão eterna da morte...

Assim devia ter sido; assim foi decerto. Dil-o a pedra dos sarcophagos
mais eloquentemente do que as chronicas. Só o amor poderia ter inspirado
a concepção d'esses dois tumulos monumentaes; só um fino amante, como se
diz fôra D. Pedro, poderia ter mandado fabricar esses dois leitos de
marmore para um noivado infinito, insaciavel.

Houve no espirito de D. Pedro uma preoccupação dominante, que elle fez
comprehender ao esculptor: que a posteridade visse bem n'essa figura de
mulher, lavrada a vulto sobre o sarcophago, uma rainha posthuma, e um
anjo torturado. A corôa, o manto, as armas reaes de Portugal testemunham
claramente que jaz ali uma princeza em toda a pompa funebre da magestade
real. Os anjos, ronflando as azas, de joelhos, e sustentando as
almofadas de marmore sobre as quaes a cabeça de Ignez repousa, deixam
comprehender que essas duas creanças aladas estão alli acarinhando uma
irmã que passou pelo mundo soffrendo, e que partiu sorrindo...

Aos pés de Ignez, enroscado n'uma indolencia amortecida, um lebreu,
symbolo da lealdade, representa como que a firmeza d'esse amor
inconsolavel, a constancia d'essa dedicação heroica, parecendo chorar em
silencio, na tristeza de uma grande dôr, como se fosse o proprio coração
de D. Pedro.

Nenhum outro symbolo teria ali logar mais proprio nem mais exacta
representação. O que esse pensativo lebreu exprime não o poderia dizer
nenhum poema, nenhum epitaphio. É por isso que o symbolo se repete no
tumulo de D. Pedro: bellamente esculpturado, um grande cão de marmore
vigia atravez da eternidade aos pés do rei amante, como para significar
que o seu amor sobreviveria ao aniquilamento do coração, quando o
cadaver do rei baixasse a descançar n'aquelle seu ultimo leito.

A luz triste, coada atravez da verdura das arvores, que entra na
capella, põe uma nota de doce e delicada melancholia no ar silencioso; e
em torno dos dois sarcophagos alguns tumulos de reis e infantes
affiguram-se nos mesquinhos, e como que perdidos na irradiação
absorvente d'aquelle poema de amor, feito de dois blocos de marmore, que
o espaço separa, mas que o pensamento une.

Depois da visita aos tumulos de Ignez de Castro e D. Pedro sente a gente
que nenhuma outra commoção poderá brotar dentro das paredes do templo ou
do mosteiro. A casa das reliquias, que aliás brilham pela sua ausencia,
o claustro, a farrapagem hybrida de remendos architectonicos que no
edificio se atropellam e baralham, a vastidão glacial dos pavimentos e
das paredes, o latim barbaro dos epitaphios, as largas fendas que por
toda a parte ameaçam ruina imminente, todo esse espectaculo ao mesmo
passo apparatoso e maltrapido de um monumento que se desconjunta, não
consegue apagar no nosso espirito a impressão dolente que nos deixaram
os dois tumulos de Ignez de Castro e D. Pedro e que continúa soluçando
no nosso coração como o murmurio de uma fonte ou o rythmo de uma elegia.

O que está em volta de nós é já uma coisa muito differente, é a
devastação do antigo pela invasão do moderno, é o mosteiro convertido em
quartel, em tribunal, em escola, em habitação particular, é o vaso
de barro, aqui fendido, ali modernisado, mas todo elle profanado, que
contém ainda dentro em si dois lyrios brancos de marmore, que guardam
nos seus calices rendilhados o aroma subtil de uma grande paixão antiga.

Tirassem de Alcobaça esses dois sarcophagos, e não valeria a pena lá ir.

O que falta n'esse colosso de pedra que se chama o convento de Mafra,
para de algum modo o vitalisar na sua inutilidade monumental, para lhe
dar uma pulsação, um toque de vida, uma scentelha de espiritualidade, é
um poema de amor como aquelle que se perpetua sob as abobadas rôtas do
templo de Alcobaça, salvando-o do esquecimento.

Nenhuma brisa refrigerante de sentimento, de poesia, de nobreza
immaterial passa por aquella aridez pesada de Mafra para suavisal-a um
pouco. Tudo ali é frio como o coração de D. João V, resistente como a
sua voluptuosidade nunca farta, dispendioso como a enormidade dos seus
caprichos egoistas, pessoaes...

A Alcobaça aconteceria a mesma coisa, porque o edificio é no tom geral
da sua architetura tão carregado e monótono como o de Mafra, se não
tivesse a espiritualizal-o esse romance cavalheiresco que se encerra nos
dois tumulos da capella de S. Vicente, e que atravessa o nosso
espirito como uma onda de éther, elevando-se para as alturas.

Do mais que eu vi em Alcobaça, na egreja e no mosteiro, não vale a pena
fallar.

Ha muita gente que se encanta vendo a cozinha, onde bois inteiros podiam
ser assados, sem que os cozinheiros corressem o risco de acotovellar-se,
e onde a agua corria de numerosas torneiras cahindo sobre bellos tanques
de marmore n'uma abundancia torrencial, diluviosa.

Francamente, só de alongar os olhos pela cosinha de Alcobaça me senti
enjoado, indigesto, como se estivesse a olhar para uma grande escudella
de orelheira com feijão branco.

Todas as materialidades fradescas do mosteiro passaram sem relevo pelo
meu espirito, perdendo-se na vulgar noção de egoismo e opulencia que
caracterisavam por toda a parte certas ordens monasticas.

Sahindo do mosteiro, onde o cheiro a bolôr é acre e irritante, banhei os
pulmões com delicia na frescura oxigenada que se exhala do arvoredo dos
antigos coutos, onde a agua canta pagãmente o velho poema mythologico da
Mãe-Terra, _Alma-Mater_, fonte perenne de abundancia, rasgando
eternamente o seio fecundo para alimentar os filhos ephemeros.

E uma hora depois, dentro da diligencia do Gallinha, que rodava para a
estação do Vallado, vinha eu dizendo ao meu bom amigo Carrilho:

--Mas que diabo de auctoridade temos nós para queixarmo-nos do
vandalismo dos francezes, se ainda somos mais vandalos do que elles?!...



CHRONICAS DE VIAGEM

V

Em Obidos


Ha muitos annos que eu conhecia de nomeada o Padre Antonio das Caldas.

Ouvia dizer que, sem menospresar os seus deveres sacerdotaes, era um
homem de sociedade, amavel e jovial, intelligente e insinuante.

As senhoras que voltavam das Caldas da Rainha vinham contar
agradabilissimas impressões d'esse homem estimadissimo, cujo talento se
repartia por multiplices aptidões:

Padre Antonio orador sagrado;

Padre Antonio valsista;

Padre Antonio cantor;

Padre Antonio poeta.

Eu fui este anno para as Caldas com um grande desejo de conhecer
este bom Padre Protheu, que se fazia estimar de toda a gente pelas
variadas modalidades do seu talento.

Quarenta e oito horas depois de eu ter chegado ás Caldas da Rainha, um
amigo meu, acompanhado por outro cavalheiro, ia a balbuciar algumas
palavras de apresentação, quando esse outro cavalheiro, para mim
desconhecido, o interrompeu dizendo:

--Nós somos amigos desde creanças: Eu sou o Padre Antonio das Caldas.
Teriamos nós dez para onze annos quando nos encontrámos pela primeira
vez, na Foz do Douro, em casa de Joaquim Corrêa de Oliveira, de S. Pedro
do Sul. Lembra-se? Nunca mais me esqueceu a sua physionomia. Vi-o uma
vez em Lisboa, em S. Bento, e você acabava de sahir justamente no
momento em que eu o ia procurar. Dê cá os seus ossos.

Encantado com a surpreza, dei-lhe os meus ossos, e a minha amisade. Uma
hora depois, estávamos de pedra e cal,--para a vida e para a morte.

Padre Antonio, com ser das Caldas, vive em Obidos, onde tem capellania.

Sabendo isto, fallei-lhe logo de Obidos e dos quadros da celebre Josepha
de Ayalla, que eu desejaria vêr.

Padre Antonio respondeu:

--Isso arranja-se. Você vae almoçar comigo um dia d'estes, e eu
mostro-lhe Obidos de _fond en comble_.

E como eu hesitasse, acrescentou:

--Sim, snr. Você vae almoçar comigo e eu dar-lhe-hei para almoçar a
vacca e riso de frei Bartholomeu dos Martyres. Serve-lhe?

--Serve-me que apenas me mande servir a supradita vacca e o sobredito
riso do sobredito arcebispo. N'essas condições, acceito.

--Está tratado.

Padre Antonio quiz dar-me para esse almoço um excellente companheiro: o
meu velho amigo Pereira Carrilho, com quem em menos de quinze dias fiz
uma larga serie de passeios: á Nazareth, a Alcobaça, á Figueira, á Foz
do Arelho e a Obidos.

E, note-se, não perdemos um dia de aguas. Digo isto aqui para que o meu
medico, e tambem velho amigo, dr. Ferrer Farol, não ralhe comigo na
volta a Lisboa. Não, snr. Eu tomei sempre a minha agua, eu tomei sempre
o meu banho, e não perdi occasião de passeiar,--para de algum modo
coroar a obra therapeutica do dr. Farol.

Se fosse n'outro tempo, ter-me-ia custado ter que abandonar á noite o
club das Caldas, onde a valsa era adorada com idolatria.

Mas com trinta e oito annos ás costas--o peso de uma cruz!--a valsa
seria para mim um _tour de force_ incomportavel, um calix de agonia.

Nada d'isso. Nas Caldas da Rainha não provei d'esse calix, nem do chá do
club. Não ingeri lá outros liquidos além da agua da Copa e do vinho das
Gaeiras.

Quanto a solidos, já não posso dizer outro tanto, pois que prestei, como
devia, gastronomica homenagem ás cavacas das Caldas.

E, ao comel-as, reconheci que ainda vale muito, n'este mundo, ter uma
lenda.

É que as cavacas das Caldas teem mais lenda do que assucar.

Nós, os dois convidados para o almoço de Obidos, recebemos da mão do
_honorable_ Sebastião da Copa o nosso copinho de agua das Caldas, e,
entrando para um trem, partimos caminho d'Obidos.

A manhã estava serena, como se dizia nos romances antigos. A neblina
matinal levantava vôo do alto dos montes, como se fosse um bando de aves
transparentes, de grandes azas abertas. E dos campos vinha esse cheiro
sadio a ervas verdes e viçosas, que faz a delicia dos pulmões. A estrada
é excellente, se bem que nem sempre plana. Obidos fica muito elevada,
dentro das ruinas do seu famoso castello: a estrada sóbe colleando como
uma serpente.

Avistava-se já a muralha do castello, que era enorme, rota em muitos
lanços, alguns dos quaes escancaravam para o azul da manhã a sua hyante
goella de pedra.

Horisontalmente, desenhavam-se, ao longe, os arcos do extenso aqueducto
de Obidos, atravez dos quaes a luz passava como n'uma vista de
scenographia.

E em baixo, á beira da estrada que iamos seguindo, cada vez se
avisinhava mais de nós a egreja do Senhor da Pedra, denunciando logo na
sua construcção a mão dadivosa de D. João V.

E o nosso apetite, espicaçado pela agua das Caldas, ia cantando gloria
antecipada em honra do almoço de Padre Antonio.

Não era assim, Carrilho?

Entrámos a velha porta do castello, que conserva o seu feitio antigo.

E logo o estrondo do trem attrahiu ás janellas dos predios, arrimados
contra a muralha ou encravados n'ella, caras curiosas, petrificadas de
surpreza, justificada surpresa n'aquella solidão montanhosa, que raros
_touristes_ visitam, áquella hora, especialmente.

O nosso trem parou um pouco ao acaso. E nós dissemos ás caras das
janellas e ás caras das portas que iamos alli sobrescriptados para o
snr. Padre Antonio.

Então uma voz, cahindo do alto de uma janella, disse:

--O snr. Padre Antonio foi caçar perdizes para os senhores almoçarem.

A minha consciencia bradou mentalmente:

--Maroto! O que elle nos tinha promettido era a vacca e riso de frei
Bartholomeu dos Martyres; nunca as perdizes de Padre Antonio d'Almeida!

E o meu apetite, que tem bom ouvido, replicou do lado:

--Deixa lá! Não ha, para almoçar, como uma perdizinha fresca. O Padre
sabe disto...

Apeiámo-nos, e entramos na primeira egreja que se nos deparou aberta. Em
Obidos ha, principalmente, egrejas e ruinas. Além d'isto, ha tambem
bellas perdizes, que Padre Antonio caça. Mas isso fica para logo...

Ora n'essa egreja havia muitos e grandes quadros.

--Cá estão elles, dissemos nós, os quadros da Josepha!

E eram. Estavamos, sem o saber, na egreja de Santa Maria Maior.

Assumptos sacros, que foram os que mereceram a predilecção de Josepha
d'Ayalla. As suas duas _maneiras_, antes e depois da viagem a Italia,
estão bem accentuadas n'esses quadros. A segunda _maneira_,--depois
da viagem,--accusa um sensivel progresso pela imitação dos pintores
italianos da Renascença. Pelo menos, pareceu-nos isto.

Josepha de Obidos tem decerto defeitos como artista. Mas as cabeças das
figuras dos seus quadros estão, por via de regra, excellentemente
tratadas. Era uma habil retratista, que sabia tocar as physionomias com
grande verdade e expressão.

Áquella hora, a luz não nos ajudava muito; a melhor hora, disse-nos
depois Padre Antonio, seria o meio dia. Ainda assim, estudamos os
quadros durante longo tempo.

Uma mulher que estava rezando, levantou-se para dizer-nos:

--Quem sabe explicar tudo isto é o snr. Padre Antonio, mas elle foi
caçar perdizes para uns hospedes, que talvez sejam os senhores.

Que sim, que eramos nós; e que as perdizes e Padre Antonio já iam
tardando... todos.

--E aquelle tumulo? De quem será aquelle bello tumulo, de tão primorosos
ornatos, que alli está mettido na parede?

A beata:

--Que o snr. Padre Antonio, quando viesse com as perdizes, explicaria
tudo cabalmente.

E então, n'um reccanto do templo, dentro de um caixãosinho de madeira,
deposto sobre um banco, vi o cadaver de uma creança, os braços magrinhos
encruzados, um lenço branco sobre o rosto, flores aos pés e no vestido.

O cadaver do uma creança! Pois póde haver nada mais triste do que o
espectaculo d'uma creança morta?! Que se morra cançado da vida, vá. Mas
fazer palpitar tres corações, os dos paes e o do filho, para ferir todos
tres de um só golpe, chegaria a ser cruel, se Deus não fosse
infinitamente bom!...

N'isto sentimos passos; voltámos-nos. Era Padre Antonio que chegava, em
fato de caçador, com dois cães que o farejavam.

--Que as perdizes já estavam a cosinhar-se, tenras e gordas. Era o
melhor almoço que um caçador podia dar. Tinha promettido, confessava, a
vacca e o riso do frei Bartholomeu dos Martyres. Da vacca tinha mandado
fazer _beefs_. O riso trazia-o alli, nos labios, e era patriarchal de
hospitalidade sincera, como no Oriente... Mas as perdizes quizera-as ir
caçar n'aquella manhã o seu amigo caçador Antonio de Almeida, para
mandal-as ao Padre, que esperava hospedes para o almoço. Elle não tinha
culpa de que o seu amigo caçador, apesar de lhe estar dentro da propria
pelle, se lembrasse de lhe fazer um presente de perdizes para o
almoço e como Padre Antonio, que fôra quem as recebera, tinha gente de
fóra para almoçar, pedia licença para mandal-as pôr na mesa com molho de
_villão_. E que depois lambessem os beiços... Estava certo d'isso.

Padre Antonio explicou tudo: os quadros, o tumulo, a historia d'aquella
egreja, tudo.

E a mulher:

--Que ella bem nos tinha dito que não havia para explicar Obidos inteira
como o snr. Padre Antonio!

E Padre Antonio:

--Que ficasse com Deus, que nós iamos ao castello.

Fomos ao castello, subimos á torre de menagem.

Padre Antonio explicava todas as ruinas, a lettra de todas as
inscripções apagadas, a historia de todas as pedras cahidas.

E, no alto da torre de menagem, estendendo o braço direito no ar:

--Aquelle logar chama-se assim; aquelle monte chama-se assado. Acolá era
a Quinta das Flores, para regalo das rainhas. Aqui, n'este mesmo sitio,
esteve a Senhora D. Maria Pia de Saboya. Eu vinha da caça tambem com o
meu fato de caçador, ainda a pensar nas perdizes. E chamaram-me cá de
cima: era o Pindella. Que sua magestade queria fallar-me. Tudo menos
isso: estou em fato do caçador. Que assim mesmo havia de ser. E foi...
Olhe lá: Vê aquelle azul, além? É a lagôa. Você já foi á Foz do Arelho?
Pois eu vou ámanhã para lá. Morro por aquillo; gosto de estar só na Foz.
Faço-me pescador, e gosto! Nem já me lembro das Caldas. A Foz é melhor,
por que eu na Foz sou selvagem: vivo na natureza. Ora, com a breca! as
perdizes já devem estar promptas... Vamos lá almoçar... Ó Pimentel, tome
cuidado; veja que não caia. A rainha subiu e desceu intrepidamente; não
cahiu... Com molho de _villão_ as perdizes não devem estar más.. Vão
sendo horas. Até já os cães querem almoçar!...

Padre Antonio vive na unica hospedaria que ha em Obidos, e foi ahi que
nos offereceu, não o promettido almoço de frei Bartholomeu dos Martyres,
mas um banquete de Lucullo.

A cada prato que ia chegando, eu e Carrilho protestavamos. O medico da
villa, que tambem estava á mesa, ria-se. Padre Antonio procurava
atabafar os nossos protestos fallando insistentemente de coisas d'Obidos:

--Na Misericordia, aonde logo havemos de ir, tambem ha quadros da
Josepha... Que o Malhão, o grande prégador, era d'alli. Na familia
Malhão havia, além do pregador, outro homem de letras.

E levantou-se, foi buscar um livro: _Vida e feitos de Francisco Manuel
Gomes da Silveira Malhão, Lisboa, 1794_.

Serviam-nos n'esse momento magnificos linguados fritos.

--Se eu sabia a lenda romantica da capellinha da Porta de Nossa Senhora
da Graça? Historia de uns amores infelizes.

Serviam-nos vitella de fricassé.

--Que no dia seguinte tinha que prégar nas Caldas...

E o medico:

--Você tambem vae cantar ámanhã á _mátinée_ promovida pela marqueza de
Monfalim?

--É verdade, tambem vou cantar. Mas de tarde metto-me na Foz, no seio da
natureza, como um selvagem primitivo...

Chegámos ás duas horas da tarde ás Caldas.

--Porque se demoraram tanto? O que estiveram os snrs. a fazer tanto
tempo em Obidos?!



CHRONICAS DE VIAGEM

VI

Uma festa de charidade


Organisara-se nas Caldas da Rainha uma festa de charidade, no Salão da
Convalescença, em beneficio da Associação Promotora do Ensino dos Cegos.

Luiz Gama, este endiabrado rapaz que toda Lisboa conhece e estima, rapaz
que parece um velho quando joga o _whist_, posto andasse muito azoinado
com os _callixtos_ que lhe rodeiavam a mesa do jogo, fosse em plena
Alameda, nas horas de calma, ou sob o Ceu de Vidro, nos intervallos da
valsa, que elle raras vezes perdia, não poude resistir ao convite que
lhe fizeram algumas senhoras para tomar parte na _matinée_.

Comprometteu-se, e comprometteu-me pedindo-me com instancia que lhe
escrevesse uns versos, consentaneos ao seu genio alegre, para dizer
no Salão da Convalescença. Eu não chegava então para os largos passeios
que todas as semanas fazia com o meu amigo Carrilho. Luiz Gama insistia,
porém, e não tive outro remedio senão procurar um assumpto entre um copo
d'agua das Caldas e a partida d'um comboio.

Não estava Luiz Gama sendo, segundo elle mesmo caramunhava, uma victima
dos _callixtos_? Toda a gente o sabia. Pois bem. Lembrei-me de
proporcionar á victima uma excellente occasião para vingar-se
publicamente dos seus algozes, e mandei-lhe isto, que elle teve a
paciencia de decorar e dizer:

          OS CALIXTOS

    Se os ha?! Que os ha, é de fé.
    Até suppõe muita gente
    Que Adão e Eva tiveram
    N'um joguinho que fizeram
    Por callixto uma serpente.

    Eva perdeu... quanto tinha.
    O proprio Adão foi no _prégo_
    Pôr a caixa do rapé!
    Só os não vê quem fôr cego...
    Se os ha?! Que os ha, é de fé.

    Ha-os de varios feitios.
    Um, gallinha nunca farta,
    Cobrindo co'a aza o filho,
    Vai vendo carta por carta
    Como a comer grãos de milho.

    Um outro a penca intromette
    Entre as cartas e o sujeito,
    Como se fosse um petiz
    Que a gente tivesse ao peito,
    Sendo a ama d'um nariz.

    Até se diz que um parceiro
    Do _mirone_ a penca assuou
    No Ceu de Vidro, domingo,
    Porque em boa fé pensou
    Que era o seu que tinha pingo.

    Já encontrei um callixto
    Gordo, obeso, uma balêa,
    Que me poz o barrigaço
    --Façam vossencias ideia!--
    Em peso sobre este braço!

    O general é medonho!
    Não ha callixto peior
    Entre os maus que tenho visto.
    Vejam lá! é meu callixto
    Desde que elle era major!

    No Gremio um desconhecido
    Foi-se sentar a meu lado:
    Perdi a trena e o leme,
    Apanhei logo um xeleme
    E outro d'abi a bocado.

    Perguntei-lhe: Em seu juizo
    Qual animal é maior?
    Hesitou. D'ahi a um instante
    Disse que era o elephante.
    --«Pois então faça favor

    «D'ouvir isto que lhe digo,
    (Repliquei, de mim já fóra,
    Ameaçador, fulminante)
    «Olhe, snr. elephante,
    «Não posso mais!... vá-se embora.»

    Em sendo calvo o callixto,
    Tremo logo só de vel-o.
    É tão callixto o diabo,
    Que até do proprio cabello
    Por callixtice deu cabo!

    Ha outros que têm madeixas
    Como cachos de banana,
    E que escorrem sobre a gente
    Algum óleo impertinente
    Ou agua circassiana.

    Tambem os ha femininos,
    Que põem o pé na cadeira,
    Mostrando a botina... Eu acho
    Que, sendo d'esta maneira,
    Só encallixtam por baixo...

    Mas a peior das callixtas...
    Não me lembra agora isto!
    A coisa... não vae ao fim!
    Pois se um senhor que é callixto
    Está d'além a olhar p'ra mim!

Cahiu em boa Luiz Gama! No dia seguinte os _callixtos_ resolveram
vingar-se d'elle por sua vez: apanhou uma grande sova ao _whist_.



CHRONICAS DE VIAGEM

VII

Figueira da Foz


Desde S. Martinho do Porto até á Marinha Grande a linha ferrea da
Figueira é a mesma que fazia antigamente o serviço especial entre a
fabrica da Marinha Grande e o porto de S. Martinho.

O pinhal abunda no trajecto d'esta linha, logo que se passa a estação de
Vallado: o famoso pinhal de Leiria, filho querido d'el-rei D. Diniz.

Em toda esta região, que vamos atravessando, houve outr'ora porém um
senhor ainda mais poderoso do que D. Diniz: era o mar.

Alfeizerão, que deixamos ha muito, terra dentro, fôra até ao seculo XVI
um bello porto de mar, que podia abrigar mais de oitenta embarcações.

D. Diniz, que tinha em Monte Real a sua habitação predilecta, quiz fazer
na villa de Paredes um porto de mar. Sobre as ruinas de Paredes assenta
a actual Pederneira.

Fez-se effectivamente o porto, porque, como diz o proverbio, _El-rei
Diniz fez quanto quiz_, mas grandes alluviões de areia foram obstruindo
o porto. D. Diniz pretendeu pôr um obstaculo a essas enormes alluviões
mandando semear o pinhal de Leiria e adoptando outras providencias
conducentes ao mesmo fim.

Uma d'essas providencias consistiu em ordenar aos foreiros da casa da
Nazareth que lançassem, contra o mar, um certo numero de carradas de
areia, que o vento fosse accumulando no largo da egreja e nas ruas do
Sitio.

Da povoação de Paredes, que devia ser importante, graças ao movimento do
seu porto, existe apenas... a Pederneira.

O mar espraiou-se pois por toda esta região, que vamos atravessando, até
que as alluviões de areia lhe disputaram o dominio.

E hoje a locomotiva assobia o hymno do progresso atravez do pinhal de D.
Diniz, deixando ao largo o mar, que perdemos de vista para só tornar a
enxergal-o nas proximidades da Figueira da Foz.

A estação que se segue á da Marinha Grande é a de Leiria.

No alto do monte escarpado, o castello de Leiria, com a sua torre de
menagem menos mal conservada, desenha-se no azul, immovel e sereno.

Ha muitos annos que eu não tinha visto este vetusto castello, que me
deixára uma impressão desagradavel quando então passei em Leiria caminho
da Batalha. Nas ruas de Leiria o castello, esmagando-me com o peso dos
seus muros e da sua torre, parecia seguir-me por toda a parte, como um
fardo que me dobrava os hombros. Era asphyxiante, visto da cidade,
aquelle castello. Mas, visto de longe, como agora, affigurou-se-me um
dos mais bonitos castellos que sobrevivem ainda, gostei de vêl-o altivo
na sua decadencia, magestoso ainda na sua inutilidade, esperando
impassivel a hora em que a tempestade derrube os seus muros com um feixe
de raios...

Passado o apeadeiro dos Milagres, é Monte-Real, o sitio predilecto de D.
Diniz, a primeira estação que se encontra.

Apezar da ardencia d'esse dia, extremamente calmoso, apezar de ser
oppressiva a temperatura, abafadiço o ar, passou pelo meu espirito um
relampago de historia patria, vi de relance D. Diniz, trovador
aventuroso, rei galante, envolvido nas suas proezas tunantescas de
Leiria, frequentando de noite, enamorado de uma camponeza, a aldeia de
Amor...

    El-rei Diniz
    Fez quanto quiz,
    Até no amor...
    Graças ao sceptro,
    Graças ao plectro,
    Rei-trovador.

Depois, quiz-me parecer tolice de marca maior estar a remexer no
rescaldo da historia amorosa de D. Diniz em dia de tão intensa calma,
fechei de subito o livro da memoria, forcejei por lembrar-me de que eu
tinha escolhido aquelle dia precisamente para não pensar em nada que me
desse cuidado, e puz-me a olhar para a paizagem que ia apparecendo e
fugindo como no fundo de um kaleidoscopo.

A Amieira, que é o ponto de bifurcação do ramal de Alfarellos, possue,
como se sabe, uma nascente de aguas medicinaes, que está sendo explorada
com bons creditos.

Ahi, encostadas á grade da estação, vimos as primeiras camponezas do
valle do Mondego, com o seu trajo caracteristico,--bellos exemplares de
opulencia plastica, e saudamos n'essas tres camponezas, sadias e
robustas, a mulher do norte.

E as tres camponezas, ouvindo ou não ouvindo as nossas saudações
enthusiasticas, comiam maçãs, rilhando-as um pouco suinamente, ó
prosa da realidade, terrivel prosa!

Não se póde já ser um pouco artista, nem mesmo em viagem!

O valle do Mondego principiou a desenrolar-se deante dos nossos olhos,
com os seus esteiros, a sua linha recta coberta de verdura e
scintillante de agua.

Entre a Amieira e a Figueira medeiam apenas dois apeadeiros, o de Lares
e o de Santo Aleixo: as primeiras casas da Figueira não tardaram a
apparecer-nos como guarda avançada d'essa bonita cidade maritima, já
então tão concorrida de banhistas.

Na estação da Figueira entramos no _americano_ porque o meu amigo
Carrilho propoz, e eu approvei, que fossemos antes de jantar a Buarcos.

O _americano_ deslisa ao longo da praia. Deslisa é um modo de dizer,
porque, justamente quando passavamos em frente do Bairro Novo, o
_americano_ emperrou pela primeira vez, saltou fóra das calhas, um muar
cahiu estatelado. Quando isto aconteceu pela segunda vez, no meio das
pragas de varios hespanhoes que enchiam o carro, o meu amigo Carrilho
propoz que fizéssemos a pé o passeio de Buarcos.

E assim mesmo é que foi: largamos a andar por alli fóra intrepidamente.

Buarcos é uma especie de retiro de banhistas pacatos, que fogem do
bulicio da Figueira. Bom ar, bom mar, mas pouca gente. Pacato de mais.
Quasi ao mesmo tempo que chegavamos a Buarcos, tendo feito o caminho a
pé, chegava o _americano_, com os muares escalavrados das successivas
quedas que tinham dado.

O conductor perguntou-nos se queriamos ir vêr a mina do Cabo Mondego ou
se faziamos tenção de ir vêr a fabrica. Dissemos-lhe que faziamos apenas
tenção de ir jantar á Figueira. Então o conductor disse-nos que, visto
termos ido a pé, tendo pago os nossos logares, queria de algum modo
indemnisar-nos, fazendo-nos transportar immediatamente á Figueira.

Pasmamos d'aquillo, d'aquelle original _americano_, tão caprichoso no
seu serviço irregular!

O carro partiu, e foi-se enchendo pelo caminho. Só então reconhecemos
que tinhamos feito um grande passeio a pé, quasi sem dar por isso.

Anoitecia. O céu e o mar estavam serenos. Um vaporzinho rebocava um
navio, porque a barra da Figueira, apesar dos melhoramentos que se lhe
têm feito, é simplesmente detestavel. No alto, o Bairro Novo alvejava
com as suas construcções recentes, elegantes, e, ao trote dos muares,
entramos de novo na Figueira, parando era frente do _Hotel Universal_.

Esperámos, á janella do hotel, que nos servissem o jantar, e pudemos
surprehender d'ahi a physionomia um pouco hybrida mas pittoresca da
Figueira: o mar batia contra a muralha, o navio entrava rebocado, uns
pescadores passavam altercando, e dois homens de chapeu alto e
sobrecasaca passeiavam, conversando. Bastava effectivamente isto para
caracterisar a Figueira com todo o seu ar pretencioso de cidade e o seu
aspecto de praia de banhos, sendo que os da terra andam de chapéu alto,
no grave exercicio das suas funcções judiciaes, administrativas,
commerciaes, e os de fóra, os banhistas, em plena praia, exhibem fato de
flanella branca e chapeu de côco.

No _Hotel Universal_ jantaram apenas comnosco á mesa mais dois hospedes,
ambos brazileiros, que estiraram desde a sopa até ao café uma conversa
merencoria como elles, que ambos estavam doentes.

Um dos dois, o mais sorumbatico de ambos, fallou da morte,--assumpto
divertidissimo! Disse-nos que todas as noites, a bordo do paquete,
quando se fazia silencio, a idéa da morte, passando pelo seu espirito, o
atormentava.

Eu perguntei ao meu amigo Carrilho o que tinhamos nós com aquillo?

Concordámos em que não tinhamos nada, absolutamente nada, com os pavores
phantasticos do brazileiro. Levantámo-nos da mesa; vimos um predio
illuminado, ouvimos musica.

Perguntamos ao criado que predio era aquelle.

--É o theatro do Principe D. Carlos, e ha hoje espectaculo.

Muito bem. Iriamos dar um passeio pela cidade, e cahiriamos depois no
theatro.

Todo o aspecto commercial da cidade estava então em evidencia: as lojas
illuminadas, bellas lojas, devendo citar-se uma ourivesaria, que fazia
lembrar um estabelecimento do Chiado.

Na Praça Nova a colonia balnear, composta principalmente de hespanhoes,
espanejava-se garrulamente, e em torno da praça as lojas de negocio,
havendo ás portas grupos de homens, uns a pé, outros sentados,
denunciavam o movimento commercial da cidade.

Na Praça Nova encontrámos o deputado Pereira dos Santos e o visconde de
Miranda do Corvo, que tiveram a amabilidade do nos ir mostrar os
magnificos clubs da Figueira e de nos acompanhar ao theatro.

No theatro havia pouca gente. Um prestidigitador, cujo nome me esqueceu,
fazia umas _sortes_ sediças, com pouca limpeza. Mas o theatro fôra para
nós um salvaterio, porque nos permittiu esperarmos ahi pela hora da
partida do comboio, meia noite e vinte.

E, n'um dos intervallos, entre muitos episodios da chronica balnear da
Figueira, ouvi contar um, que me divertiu hilariantemente, e que no
capitulo seguinte tentarei reproduzir.

Á meia noite, quando sahimos do theatro, havia ainda luz nos clubs e nos
cafés. As janellas das roletas e das batotas brilhavam com o clarão
interior dos candieiros de petroleo, porque a cidade da Figueira só
agora vae ser illuminada a gaz.

Despedindo-nos dos nossos amigos visconde de Miranda do Corvo e Pereira
dos Santos, dirigimo-nos para a estação do caminho de ferro, atravez de
uma escuridade profunda, sem saber onde punhamos os pés, tropeçando a
cada passo.

Que reles economia a da Companhia, que fazendo um comboio depois da meia
noite, não manda illuminar o caminho da estação!

Ás tres horas e 46 minutos da manhã chegavamos ás Caldas da Rainha,
frescos, apesar da caminhada a Buarcos, da estopada funebre do
brazileiro, de duas horas de prestidigitação no theatro do Principe D.
Carlos e dos trambolhões que démos em caminho da estação,--sem vermos um
palmo adeante do nariz.



CHRONICAS DE VIAGEM

VIII

Uma victima da dança


Durante oito annos consecutivos, a D. Serafina Barros, da Mealhada, foi
com o marido tomar banhos do mar em Espinho.

Aquillo era já sabido: no dia 15 de agosto partiam; a 15 de outubro
recolhiam á Mealhada.

D. Serafina pensava durante o resto do anno n'esse gaudio balnear,
esperava-o com uma certa anciedade, porque a Mealhada era, a respeito de
_salsifrés_, uma terra morta, e D. Serafina tinha pela dança uma paixão
feroz.

Agora, que já orçava pelos quarenta e dois annos, era preciso que D.
Serafina fosse procurar a dança aonde quer que a houvesse, visto que
espontaneamente a dança já não vinha procural-a a ella. E, para
encontrar parceiro na assembléa de Espinho, tornava-se ainda assim
indispensavel uzar de uma tal ou qual diplomacia, fazer com que o Barros
dissesse aos sujeitos, por elle apresentados á mulher, que ella gostava
muito de dançar, forçando ás vezes a situação a ponto de dizer: «Como
prova do agrado com que recebeste a apresentação d'este cavalheiro,
deves dançar a primeira quadrilha com sua ex.ª»

O cavalheiro, fulminado por esta perfidia amavel, inclinava a cabeça ao
sacrificio, offerecia o braço a D. Serafina, e ia dançar com ella.

O Barros ficava contentissimo com o bom resultado da sua diplomacia,
porque não podia aturar a mulher quando ella não conseguia dançar.

Se o cavalheiro respondia que _já estava compromettido_, como então se
dizia, para as tres primeiras quadrilhas, se nenhum pequeno de treze
annos havia convidado D. Serafina para dançar, o Barros, tendo lido um
jornal ou dado uma volta pela sala da roleta, vinha espreitar da porta a
mulher dizendo com os seus botões:

--Está como uma _bicha_!

E estava. Em casa elle o pagaria ouvindo-a sarrasinar n'uma cegarrega de
lamurias, accusando-o de não ter a consideração social de que dispunha o
Lemos de Formoselha e o Barradas de Esmoriz, cujas mulheres, não
sendo mais novas nem mais bonitas do que ella, estavam sempre no meio da
casa.

O Barros desculpava-se: que o Lemos era um trunfo politico, por ter em
Lisboa um genro que fôra ministro tres vezes, e que se lhe dançavam com
a mulher era para fazer a bôca doce a elle e a ella, por causa do genro;
quanto á mulher do Barradas, «bem sabes tu, Fininha, o motivo porque
ella dança sempre... á custa da reputação do marido.»

D. Serafina não se dava por convencida. Influencia politica tambem o
Barros tinha na Mealhada: que se lembrasse elle das cartas que o bispo
de Vizeu lhe escrevia sempre que havia eleições, tratando-o mano a mano
quando lhe pedia votos: meu Barros lá, meu Barros cá. Fosse o Barros
mais esperto e soubesse explorar em proveito da mulher a sua importancia
politica. Mas era um asno. O snr. D. Antonio ia todos os annos tomar
banhos para Espinho; sempre que o Barros chegava, o snr. D. Antonio ia-o
visitar de varapau na mão. Ora dissesse-lhe o Barros que só lhe tornaria
a dar os votos se lhe arranjasse par para a mulher dançar na assembléa,
e o snr. D. Antonio faria com que todo o partido reformista, que
estivesse em Espinho, fosse dançar com ella.

--Ó mulher! replicava o Barros. Isso póde lá fazer-se! Isso é lá
coisa que se faça! Tu não sabes o que estás a dizer!

--Sei muito bem o que digo; sempre soube. Isto de eleições é um negocio
para aquelles que não são tolos como tu. Tanto faz pedir uma commenda
como uma quadrilha. Acaso será maior vergonha pedir para arranjar um par
do que um emprego? Só elle, um pedaço d'asno, dava os seus votos de
graça! Nem commendador era ainda!

O Barros procurava acalmal-a:

--Que o snr. D. Antonio não era homem a quem se pedissem commendas.
Ria-se d'isso.

Mas Serafina não se calava nunca por falta de argumentos:

--Ah! o snr. D. Antonio ria-se d'isso! mas elle proprio quizera ser
bispo, que era uma especie de commendador da egreja ou mais ainda!

N'estas discussões domesticas sobre a eterna questão da dança, era
sempre Serafina que ficava victoriosa. O Barros reconhecia n'ella
superioridade de raciocinio, força de logica. Cada pessoa, pensava elle,
tem pelo menos um defeito. Ora as mulheres, quando são espertas, ainda
que tenham o seu defeito, sabem sempre desculpal-o. O homem tem a força
do pulso; a mulher tem a força do argumento. O homem póde bater na
mulher, mas acaba por ser batido por ella,--logicamente. E o defeito
da Fininha, o seu gosto pela dança, não era d'aquelles defeitos que
compromettem a honra dos maridos. A mulher do Barradas d'Esmoriz, essa
sim, servia-se da dança para chegar a certos fins illegitimos. Mas a
Fininha gostava da dança pela dança,--sem segundas vistas.

E a Fininha, a respeito da mulher do Barradas, dizia-lhe muitas vezes:

--O que eu vejo é que as que se portam peior não ficam nunca sentadas!

--Por isso mesmo... respondia o Barros.

--Por isso mesmo!? Então na sociedade todas as distincções devem ser
para quem menos as merece!? Que premio destinam então os homens ás
mulheres honestas?!

O Barros embuchava.

--Lá está o raio da logica!... pensava elle.

--Sim, que visse, que reparasse, continuava Serafina. Ao passo que ella
passava noites inteiras sem dançar, tendo a consciencia de ser uma
esposa virtuosa, a Barradas andava sempre n'uma roda viva, e a filha do
Saraiva de Mogofores, que fugira com um quintanista de direito para o
Bussaco, e estivera lá dois dias com elle, não chegava para as
encommendas na assembléa de Espinho. Elle Barros bem sabia que a sua
Fina, quando casou, tanto podia ir para o ceu como para o leito conjugal,
porque não se podia ser mais donzella; e depois que casou, nunca ninguem
se atrevera com ella, nem mesmo o escrivão de fazenda, que era baboso
por mulheres.

E isto era exacto. A honradez de Serafina tinha duas muralhas que a
defendiam: a virtude e a fealdade. Trigueira, ossuda, com as
sobrancelhas espêssas e um buço de adolescente, fazia lembrar uma
cigana. Como as ciganas, gostava das côres vivas, _tapageuses_.
Dançando, saracoteava os quadris, rebolia-se, peneirando sobre o
pavimento uns passinhos curtos, miudos e travados. As outras riam-se
d'aquella quarentona amulatada, toda perliquiteta, que na dança tirava a
vez ás meninas solteiras. O proprio Barros algumas vezes ouvia estes
remoques, e em casa, timidamente, com um grande medo da Serafina e da
logica, dizia-lh'o.

Ella replicava:

--Deixa-as rir: é inveja. Muitas vezes me disse o papá que eu, se não
fosse tão alta, era tal e qual a snr.ª D. Carlota Joaquina.

--Salvo seja!... acudia o Barros.

--Nas feições, homem de Deus. E no meio da casa não me troco por nenhuma
d'essas lambisgoias de vinte annos, que não foram ainda capazes de
aprender as marcas dos _Lanceiros_!

Mas um anno, em Espinho, fez-se uma terrivel conspiração contra D.
Serafina: meninas e meninos de vinte annos combinaram entre si empregar
esforços para que a cigana da Mealhada não tornasse a dançar; um rapaz
do Porto, a quem ella disse uma vez--_Sempre mostra que é
tripeiro!_--foi o chefe da conspiração.

A coisa chegou a ponto de que n'uma noite de menor concorrencia, n'uma
quadrilha franceza, dançaram com _perna de pau_, indo o par marcante
fazer _coté_, tendo Serafina ficado sentada e estando disponivel um
caloiro de Coimbra.

Serafina jurou aos seus deuses não voltar mais a Espinho; e no anno
seguinte o Barros levou-a á Figueira da Foz.

Mas na Figueira havia grande numero de hespanholas e de portuguezas
novas, que dançavam sempre. Serafina estava fula, e um dia fez com que o
marido se entendesse com um dos directores do Club, o Peres, de Leiria.

--V. ex.ª, disse-lhe o Barros, na sua qualidade do director deve zelar
igualmente os direitos de todos os socios. Ora a verdade é que minha
mulher, que gosta de dançar, não tem dançado nunca, ao passo que outras
senhoras, que pagaram quota igual, andam n'um sarilho continuo. Peço, em
nome da justiça, providencias a v. ex.ª

O Peres era reformista, sabia que o Barros pesava na eleição da
Mealhada; não o quiz desgostar.

--Que sim. Que elle não dançava, mas que havia de fallar aos rapazes, e
de os apresentar á snr.ª D. Serafina.

Mas o Peres nada poude conseguir dos rapazes: que não, que lá esse
sacrificio não faziam elles. Que a D. Serafina era um monstro indançavel.

Muito entalado, o Peres já estava resolvido a perpetrar rheumaticamente
uma quadrilha, quando passou na Figueira um destacamento, cujo capitão
fôra antigo condiscipulo do Peres.

O capitão Lamprêa, de botas empoeiradas e barretina no braço, disse ao
Peres que ia _reinar_ um bocado, porque tinha bebido bem ao jantar; que
o apresentasse a uma dama.

O Peres teve um pensamento machiavelico: impingir-lhe D. Serafina.

Estava-se já organisando uma quadrilha. De pé, alguns pares esperavam.
Um amador de _salsifrés_, Justino Soares, por vocação, andarilhava,
combinando _vis-á-vis_. O Peres, poisando o braço direito sobre os
hombros do capitão Lamprêa, avançou na sala, e aproximando-se de
Serafina solicitou para o seu velho amigo e condiscipulo a honra de uma
quadrilha.

O capitão Lamprêa recuou instinctivamente. Mas o Peres, ao ouvido,
dizia-lhe com um sorriso de malicia.

--O que?! Um militar portuguez não recua nunca!

Serafina acceitára com muito gosto: que sim, que tinha muita honra.

O Peres disse ao capitão Lamprêa que lhe ia arranjar _vis-á-vis_.

Mas n'isto ouviu-se tocar uma corneta, e o capitão Lamprêa, voltando-se
rapidamente para D. Serafina:

--Ora esta! exclamou. Chama-me o dever. Já não tenho tempo de dançar!
Que contrariedade! Mas á volta, minha senhora, terei a honra e o prazer
de dançar com v. ex.ª

Fôra providencial aquella corneta tocando a recolher.

E D. Serafina, durante quinze dias, perguntava com um sorriso de
agradecimento ao Peres de Leiria:

--Quando volta o seu amigo capitão?



CHRONICAS DE VIAGEM

IX

Na Ericeira


N'esta bella Ericeira, á beira mar plantada, faltam principalmente duas
cousas... além de outras muitas: não ha flores nem passeios.

Um namorado, se tem imaginação botanica, não encontrará facilmente, para
offerecer á sua dama, nada melhor do que uma _perninha de manjarico_,
como dizem os saloios.

Quanto aos passeios, são pouquissimos: a estrada de Cintra, incompleta;
a de Mafra que, á sahida da Ericeira, é muito ingreme. Restam S.
Sebastião e as Furnas, que são o pão nosso de cada dia, pela simples
razão de não haver por onde variar.

Acontece que, sendo poucos os passeios, toda a gente se encontra
marchando sobre o mesmo terreno,--como se estivesse fazendo sentinella.

Por isso, a cada momento esbarramos com os mesmos adultos e com as
mesmas creanças, sempre muitas creanças,--principalmente este anno.

Tenho, é certo, uma natural affeição pelas creanças, mas não posso
deixar de dizer que ellas chegam ás vezes, quando são tão numerosas como
aqui, a embaraçar a marcha governativa das praias.

As creanças são sempre opposição, sophysmam e conspiram.

Havia outr'ora uma arma para vencel-as: a dictadura paterna. Mas as
dictaduras são sempre violentas, ainda mesmo quando exercidas
paternalmente. De modo que, graças á brandura dos nossos costumes, como
se diz em S. Bento, se as creanças de agora teimam, o governo cede sem
querer sahir da constituição, e a opposição triumpha sem que a Carta
seja desacatada... mais uma vez.

Ora a civilisação tem evolucionado profundamente a maneira de pensar das
creanças.

Quasi se póde affirmar que já não ha creanças, pois que essas pequeninas
creaturas, que eu por ahi vejo a toda a hora em tão grande numero, são
antes espiritos adultos que povôam os corpos de verdadeiros cidadãos de
Lilliput.

Na minha infancia, havia ainda creanças, moralmente fallando, e eu
tambem o fui.

Até aos doze annos, divertia-se a gente em casa fazendo theatros e
egrejas. Eu fui actor e sachristão em minha casa; ou antes, eu só, no
_meu theatro_, valia por uma companhia inteira, desde o emprezario até
ao contra-regra, e, na _minha egreja_, cheguei ás vezes a ser uma
collegiada inteira, incluindo o Dom Prior.

Muitas pessoas da familia imaginaram que eu teria vocação ecclesiastica,
tal era o meu enthusiasmo pelos officios divinos e pela vida de sachristia.

Completa illusão!

Aquillo não era de mim; era do tempo. Todas as creanças foram então assim.

Quando uma vez por outra nos era concedido ir passar o serão n'uma casa
amiga, o que nós faziamos, as creanças d'esse tempo, era entretermo-nos
em adivinhações e joguinhos de prendas, a um canto do salão ou em
qualquer outra sala onde os adultos não estavam.

As pessoas crescidas, como nós lhes chamavamos, dançavam, jogavam o
_whist_, o voltarete ou conversavam simplesmente.

Os homens fallavam de politica: fallava-se muito n'aquelle tempo do
marechal Saldanha, o heroe da Regeneração; principiava a fallar-se de
Fontes Pereira de Mello, o ministro novo,--o ministro janota.

As senhoras fallavam de criadas e modas, como agora, como sempre.

Não foram os adultos que mudaram moralmente, porque o thema de suas
conversações continua a ser o mesmo,--para os homens a politica, para as
senhoras as modas e as criadas: quem mudou foram as creanças.

Lembro-me muito bem de algumas adivinhações que então nos entretinham,
pela maior parte difficilimas,--exemplo:

    Serra na cabeça,
    Foucinha no rabo.
    Adivinha, tolo,
    Que é gallo.

E esta, egualmente difficil:

    Uma velhinha,
    Muito encorrilhadinha,
    Encostadinha
    A uma tranquilha.
    Passa, asno,
    Passa é.
    Adivinha o que isto é.

E ainda outras mais, todas do mesmo theor.

Que grande surriada quando qualquer de nós, pesar as palavras da
adivinhação, mas attendendo apenas ao seu conjuncto, bem merecia os
epithetos de _tolo_ e _asno_, não atinando com o conceito do enygma!

Então, os paes e as mães, interrompendo a sua conversação, recommendavam
menos barulho.

E os pequenos obedeciam, porque, n'aquelle tempo, não eram ainda
opposição, como agora.

Apesar da revolução ter derrubado os Cabraes, o regimen paterno
pautava-se ainda pela tradição cabralina, que era por sua vez uma
revivescencia do regimen miguelista: o pau decidia todas as questões em
ultima instancia; era a suprema razão.

Perante o pau, o pau que era palmatoria ou bengala, o que para o effeito
valia o mesmo, as creanças cediam, os paes triumphavam.

Os pequenos de hoje em dia já se não divertem do mesmo modo, mas, em
desproporção com a sua altura, divertem-se um pouco... á grande.

São os adultos que lhes fornecem pretexto para divertir-se; mas são as
creanças que realmente se divertem.

Lembra-me a este respeito uma anecdota authentica.

Na Ericeira ha dois cemiterios: um que está cheio, e por isso
condemnado; o outro, de construcção recente.

Como seja preciso pagar a despeza feita com o novo cemiterio, a
contribuição parochial augmentou este anno.

Ha dias, uma mulher, indo pagar a sua contribuição, queixou-se, achou
que era muito pesada.

Explicaram-lhe o caso: que era preciso pagar a construcção do cemiterio.

E vae ella respondeu;

--Uns são que pagam, e os outros que gosam.

Authentico, repito.

Póde applicar-se esta anecdota ás creanças da colonia balnear da Ericeira.

Quem paga para se divertir são os adultos; mas são realmente as creanças
que se divertem.

No Club, os primeiros a tirar par e a collocarem-se no meio da casa, são
os pequenos.

Mas como os pequenos sejam muitos, a direcção do Club viu-se forçada a
recorrer a uma medida severa, e mandou affixar na porta do salão o
seguinte aviso:

«As creanças que concorrerem ás _soirées_ do Club apenas poderão dançar
na sala de entrada, a fim de não prejudicarem a boa ordem das danças no
salão».

Os pequenos leram o aviso, e não gostaram. Houve amuos, piadas,
protestos. A direcção, severa como Catão o Censor, manteve a sua
resolução. Tudo foi pelo melhor durante duas ou tres noites, mas as
creanças lá tinham a sua fisgada,--sem que se soubesse o que, na sua
qualidade de opposição, haviam resolvido.

Aconteceu que um valsista foi escolher para parceira de valsa uma menina
de treze ou quatorze annos.

Os pequenos, reunidos em grupo, cochicharam entre si.

Conspiravam; não havia duvida. Mas qual seria o seu plano? Mysterio!

Pouco depois toca-se uma quadrilha, e os chefes da opposição conseguem
que algumas senhoras vão dançar com elles.

Então os supracitados chefes argumentam do seguinte modo, revolucionaria
e logicamente:

--Se um socio do Club póde dançar com uma pequena, uma socia do mesmo
Club póde dançar com um pequeno. O direito e a quota são eguaes perante
os sexos.

A quadrilha dançou-se, os pequenos dançaram, e a revolta triumphou.

Foi uma especie de _janeirinha_, de revolução pacifica, feita sem
sangue, apenas com as portas fechadas.

Os directores de sala pensaram gravemente na sua embaraçosa situação.

Entregar o poder? Mas, segundo a logica das indicações constitucionaes,
deveriam entregal-o aos vencedores. Teriamos pois um ministerio, quero
dizer uma direcção de creanças.

Fugir á vergonha que os cobria? Mas os directores precisavam tomar
banhos de mar, e não tinham ainda a sua conta.

Ficar, permanecer? Sim... talvez. Houve quem lembrasse que governar era
transigir.

Para ganhar tempo, transigiu-se.

Um dos directores tomou para si o papel de duque de Avilla:

--Fiquemos, e conversaremos depois.

Entretanto, a revolta victoriosa campeava em pleno salão. Passavam
rapidamente, nas voltas da valsa, por deante dos dois arcos da porta,
meninas de dez annos bailando com meninos de doze. E os pares adultos
passaram a ser n'essa noite verdadeiros pares de _galão branco_, tendo
apenas as honras de valsistas, porque na realidade não pudéram dançar.

O boato da victoria dos pequenos correu rapidamente por todas as casas.

Creanças de dois annos fizeram perrice, choramigaram, gritaram que as
levassem ao Club,--para valsar.

--Pelo amor de Deus! supplicavam os directores. Que não venham mais
creançcas! Isto é uma inundação de pequenos!

A sala da entrada do Club, que havia sido destinada ás creanças, estava
deserta. E os revoltosos, embriagados com a victoria, continuavam a
valsar no salão.

A direcção, como todos os vencidos, azoinava. Queria dar uma satisfação
publica á sociedade, e a si mesma. Exercer represalias para com as
creanças seria uma cobardia revoltante. Em todo caso, á sombra dos
pequenos, já os grandes começavam a rir-se.

Era preciso uma idéa salvadora, uma sahida qualquer.

O pianista, sempre por ordem dos pequenos, principiava a tocar uma
quadrilha. Então, por uma d'estas lembranças que passam rapidamente pelo
espirito, illuminando como os meteoros, resolveu-se organisar uma
quadrilha só composta dos paes, que foram dançar na sala de entrada, ao
mesmo tempo que os filhos dançavam no salão, que era destinado aos paes.
Esta inversão do papeis produziu geral hilaridade; salvara-se a situação
com um epigramma, que é o unico desforço possivel nas situações perdidas...

Mas os heroesinhos vencedores tomaram gosto a essa especie de junta
revolucionaria que haviam constituido e, não contentes com a posse do
salão, principiaram a inventar divertimentos por sua conta e risco.

Imaginaram uma toirada... platonica, isto é, uma toirada sem toiros, mas
em tudo o mais a caracter.

_Monteras_, jalecas, capas, bandarilhas, tudo segundo o rigor tauromachico.

Mas, quanto aos toiros, esses, por intervenção de pessoas prudentes,
foram substituidos por alguns garotos da beiramar, que se constituiram
em curro para ir ganhar 100 réis por cabeça.

Eu encontrei na Praça do Jogo da Bola, conversando um com o outro, um
toiro e um toireiro.

Andavam combinando as sortes a que um se prestaria e que o outro
aproveitaria.

--Mas olhe lá, menino--dizia o toiro--olhe que se me chegar á pelle, eu
marro-lhe a valer.

E o toireiro, fallando muito á mão, dizia ao toiro:

--Não tenhas medo, que eu só te ponho os ferros no fato.

Como se vê, são as creanças que estão dando as cartas e as toiradas,
este anno, na Ericeira.

Decididamente, indubitavelmente: já não ha creança!



CHRONICAS DE VIAGEM

X

Um pic-nic


Ha oito dias, um grupo de familias, a banhos na Ericeira, realisou na
Foz um _pic-nic_.

Fallou-se muito da festa nos dias que medeiaram entre o projectal-a e o
realisal-a. Pendo hoje a crêr que o que principalmente diverte em todas
as festas é o antegostal-as. Fazer projectos... fóra de S. Bento,
torna-se sempre agradavel. Só acho comparavel ao prazer de
antegostal-as, o de recordal-as... annos depois.

Como n'este mundo não haja felicidade sem o contrapeso de
contrariedades, acontece que a melhor maneira da gente gosar consiste em
imaginar o goso que vae ter e que ás vezes, na realidade das coisas, sáe
muito inferior ao que se esperava. Ás vezes ou... sempre;--sempre é que
é. Passados annos, se a gente se lembra de uma festa em que esteve, de
uma hora de alegria que passou, dá apenas importancia ao que ella teve
de bom, e já não deita conta ao que ella teve de menos agradavel.

A saudade é uma feição predominante do meu espirito: por isso eu
saboreio as minhas recordações com prazer muito mais doce do que aquelle
que as realidades me déram...

Um _pic-nic_ é, certamente, uma festa muito convidativa... no programma,
quando se trata de fazer a distribuição dos encargos que tocam a cada
um: as aves a este, as fructas áquelle, os vinhos a aquell'outro.

Entre pessoas que se estimam, e que vivem na melhor intimidade, todas
essas combinações culinarias servem de pretexto para matar o tempo
agradavelmente.

A espectativa de um dia bem passado, em plena natureza, seja no campo ou
á beira mar, é o ante-gosto de uma diversão nos nossos habitos de todos
os dias, um córte excepcional, e como tal attrahente, no ramerrão da
nossa vida ordinaria.

--Nem sempre rainha nem sempre gallinha... dizia um rei portuguez.

Pois bem! um _pic-nic_ é uma variante á gallinha do nosso espirito, é
uma especie de sardinha salgada que nos vae saber muito bem... como
distracção.

Surgem, na discussão do projecto, idéas extravagantes, caprichos
exoticos: ha tal que não dispensa nunca os foguetes n'um _pic-nic_ e que
portanto faz questão ministerial dos foguetes...

--Ó homem de Deus! mas se você não ha de comer os foguetes, porque é que
os não dispensa?

--É porque eu, em Lisboa, não janto nunca com foguetes e, como se trata
de uma diversão aos nossos habitos, quero que até nos foguetes seja
completa a diversão.

--Muito bem. Haverá pois foguetes. Ó thesoureiro, escreva ahi, por baixo
da verba das uvas, a verba dos foguetes. Ponha lá duas duzias.

--Pouco! Pouquissimo! Duas duzias de foguetes não é coisa que se oiça
bem. Você sabe que D. Pedro I, quando tinha insomnias, sahia a bailar
pelas ruas com grande arruido? Pois eu pareço-me um pouco com elle...
Quando espero divertir-me, desejo que todos fiquem sabendo que eu me
estou divertindo á larga.

--N'esse caso, thesoureiro, seis duzias de foguetes.

Depois, um outro lembra que é preciso escrever a verba dos palitos,
porque o palito como que prolonga a impressão de um bom jantar, e, como
espera comer bem, quer prolongar esse prazer pelo maior tempo possivel.

--Pois sim! Thesoureiro, seis massos de palitos...

Isto é alegre, divertido, desopilante.

Chega porém o dia do _pic-nic_ e as contrariedades levantam-se debaixo
dos pés.

Madame *** amanheceu com a sua enxaqueca,--a terrivel enxaqueca que a
persegue desde o seu ultimo parto.

O snr. Fulano espera a cada momento um telegramma importante de Lisboa e
vae subresaltado.

Finalmente, o menino Arthur, ao subir para o _char-à-bancs_, entalou um
dedo, e a mãe quasi que perdeu os sentidos com a dôr do filho...

Confessem francamente se isto não costuma ser assim? Ora aqui está
porque eu disse ha pouco que todas as festas trazem o seu cortejo de
contrariedades.

D'esta vez, na Ericeira, todos os adultos se comprometteram a não ter
enxaquecas nem telegrammas. E todas as creanças prestaram juramento
solemne de não entalar os dedos na portinhola do _char-à-bancs_.

Partimos alegremente, cerca de quarenta pessoas, para o _pic-nic_, para
a Foz, que fica a pequena distancia da Ericeira, e que se chama assim
porque alli entra no mar, depois de haver descripto varios torcicollos,
a ribeira de Porto.

O sitio todos nos o conheciamos.

Pittoresco, em verdade. O rio contorce-se dentro do areal e
interna-se pela terra passando por entre margens onde a vinha parece
sorrir verduras ao abrigo das fragas.

Alli a dois passos, o mar, o mar franjado de espumas rebentando na areia.

Sitio delicioso! De mais a mais, nada nos havia esquecido. Fôra n'um
carro de bois o barco em que deviamos deitar as redes; foram as redes;
foram os bellos pitéos que cada um se encarregou de levar. Não havia
esquecido nada; n'uma palavra, nada!

Mas, chegámos lá, e vimos que faltava uma coisa, que aliás a ninguem
havia lembrado! E essa coisa era realmente indispensavel,
imprescindivel. Essa coisa era... a sombra!

Sim! Havia o barco, as redes, o jantar, boa disposição, mas faltava
unicamente a sombra.

Então, sobre a praia batida pelo sol, principiamos a procurar
impacientemente, avidamente aquillo que nos faltava e de que todos se
haviam esquecido: a sombra!

Dispersámo-nos em grupos, em pequenas caravanas: procura d'aqui, procura
d'alli; todos procuravam sombra.

De repente ouviu-se um grito...

O que foi?! Appareceu a sombra?

Era o snr. Fulano que tinha escorregado de uma lage, e estava estatelado
na areia.

Outro grito, d'ahi a nada...

Agora sim! é a sombra?

Qual sombra nem qual diabo?! Foi o menino Arnaldo que se deixou morder
por uma vespa.

O sujeito dos foguetes estava contrariadissimo.

--Não ha foguetes completos n'este mundo! dizia elle. A gente, ao sol,
nem póde vêr bem a direcção que um foguete toma no ar! Esta só a mim
acontece!

O dos palitos exclamava:

--Com uma torreira d'estas nem dá gosto jantar,--quanto mais palitar os
dentes! Acreditem os snrs. que para palitar os dentes é preciso estar
sentado á sombra, serenamente, sem que as moscas nos persigam. Eu não
tenho geito nenhum de palitar os dentes com um raio de sol...

E os grupos dispersos continuavam procurando a sombra por toda a parte,
no rio e na areia.

Mas a sombra, com ser uma coisa tão vulgar, não apparecia!

Um trocista affiançou que esperassemos pela noite para jantar, porque ao
menos á noite haveria sombra.

Esta idéa sorriu ao sujeito dos foguetes, porque é justamente á noite
que os foguetes podem fazer melhor vista.

Mas o dos palitos protestou, por que de noite não lhe seria facil
verificar a qualidade dos palitos.

Finalmente, depois de muitos trabalhos, uma estreita faixa de sombra
appareceu, projectada por um rochedo.

--Isso não é sombra que chegue para todos, disseram alguns.

Mas não havia melhor: resolvemos portanto anichar-nos dentro da unica
sombra que a praia nos offerecia.

E, sobre a sombra, as pernas encruzadas á oriental, o prato na areia,
jantámos.

Chegava o farnel para o dobro da gente, e assim, para evitarmos uma
grande bagagem de retorno, resolvemos comer o que poderia ter chegado á
farta para nós e... outros tantos.

Emquanto jantavamos, uma machina photographica reproduziu o grupo
pittoresco. D'este modo ficaremos por largos annos saboreando o nosso
_pic-nic_ da Foz, ainda muito mais agradavelmente do que no momento em
que o fizemos, porque ao menos na photographia não nos falta sombra.

Vejam se eu tenho ou não razão para gostar do passado!

Depois do jantar dançou-se, ao som de uma caixa de musica, no areial.

Se as caixas de musica servem para alguma coisa é para se dançar n'um
_pic-nic_, porque, á volta, confundem-se com a outra bagagem, e
ninguem se torna a lembrar mais d'ellas.

E é preciso que seja assim, porque eu não conheço nada tão ridiculo como
lembrar-se uma pessoa de que já se divertiu ao som de uma caixa de musica!

Mas, no regresso, as carruagens e os cavallos esperavam em cima na
estrada, e o areial era immenso.

Lembramo-nos então que nos tinhamos esquecido dos burros!

Como tudo n'este mundo tem compensações, houve quem dissesse que, a
haver burros, os foguetes tel-os-hiam espantado.

Que sim; que seria um incommodo para... os burros.

E o sujeito dos foguetes, satisfeito por não ter que contrariar ninguem,
nem mesmo os burros, pois que tinham esquecido, mandou para o ar o seu
ultimo foguete.

E o outro, o dos palitos, muito bem sentado no _char-à-bancs_, affirmava
que palitar os dentes era o mesmo que tornar a comer... em sêcco.

Mas, sobre tudo, quando este _pic-nic_ ha de ser bom, é daqui a vinte
annos... quando o recordarmos saudosamente.



CHRONICAS DE VIAGEM

XI

Aventuras de um aeronauta portuguez


Está aqui a banhos, na Ericeira, um estimabilissimo rapaz, de fino trato
social, excellente cavaqueador, sympathico, gentil e de mais a mais...
lendario.

Não ha duvida nenhuma: lendario!

Na Europa, na Africa, na America tem uma lenda, a lenda de um homem que
vôa, um filho do ar, que ás vezes, ao descer para a terra, como que
recebe da terra mostras de justo resentimento pelo muito que parece
desdenhal-a.

Ainda ultimamente, em S. Luiz, nos Estados-Unidos, esteve, ao descer do
ar, para ser victima de uma grande catastrophe, que o telegrapho
noticiou, e que causou dolorosa impressão em toda Lisboa.

Refiro-me a Antonio Infante, aeronauta portuguez... unico!

Foi em 1883 que elle fez em Lisboa, na explanada do antigo Colyseu, a
sua primeira ascensão, com o Beudet, lembram-se?

Toda a gente ficou admirada de que um rapaz bem nascido, que apenas
conhecia a região do Chiado, se affoutasse a ir devassar os mysterios da
região do éther, porque nós os portuguezes, como sempre nos tem
acontecido em tudo, lançamos ao ar o primeiro balão, ensinamos os outros
a serem aeronautas e nunca mais o quizemos ser.

Parece que no ar, como na terra, tudo está em dar o primeiro passo...
perdão, o primeiro vôo.

Antonio Infante fez em Lisboa segunda ascensão, e depois, como o socio
do Beudet se desligasse da empreza, Antonio Infante continuou a
sociedade e foi-se para Hespanha com o antigo socio do Beudet.

Em Madrid realisou uma ascensão tendo por companheiro um homem
conhecido, Ducascal, actualmente deputado e, passando a Italia, subiu em
Napoles com o director do Observatorio á altura do seis mil e quinhentos
metros, por tal signal que o sabio do Observatorio, tendo lá em cima a
vertigem do infinito, encolheu-se no fundo da barquinha, e mandou ao
diabo a sciencia e as observações.

Eu faria o mesmo, se tivesse perpetrado uma tal aventura.

Mas em Napoles esteve Antonio Infante para representar involuntariamente
n'uma tragedia aerea, porque elle não conhece outras.

Procurou-o um desconhecido e propoz-lhe que, a troco d'uma certa
quantia, o levasse no balão. O aeronauta acceitou, e, no dia aprasado,
estava já o balão quasi cheio de gaz, quando a policia appareceu e
prendeu o desconhecido.

Seria um salteador--os salteadores são tão vulgares em Napoles!--que
recorresse a esse meio de escapula?

Nada d'isso.

Era apenas um suicida, que já por mais vezes havia attentado contra a
existencia, e que d'aquella vez sonhára despenhar-se no infinito...

Se a policia não acode tanto a tempo, Infante teria tido que luctar com
o homem dentro da barquinha ou, se elle houvesse podido suicidar-se,
teria que livrar-se da suspeita de um crime.

Da Italia passou a Constantinopla, onde o governo do sultão lhe não
consentiu que fizesse ascensão alguma. Todos os esforços que empregou,
durante muito tempo, foram baldados. Não podendo elle proprio fazer um
espectaculo, contentou-se com vêr em Constantinopla os espectaculos
dos outros. Assistiu, no pateo do palacio imperial, a uma representação
dada por arabes. O sultão estava na tribuna com seus filhos, e no andar
superior, atravez dos crivos das janellas, os olhares das odaliscas
espreitavam avidamente...

Eu já disse que Antonio Infante é um rapaz elegante, bem posto...

Passou ao Cairo, a Alexandria, e foi dar comsigo a Marrocos, onde o
sultão o recebeu de boa sombra.

Os marroquinos, incluindo o proprio sultão, viram n'elle um feiticeiro,
um homem sobrenatural e, quando o encontravam na rua, diziam uns para os
outros supersticiosamente:

--_Ua!_ (Elle!)

Por muito tempo imaginaram que os mystificava, e que, mandando o balão
para o ar, não ia dentro d'elle. Mas os mais crentes philosophavam:

--Se o passaro voa, o homem, querendo Deus, póde voar.

Chamavam-lhe _Serani kai-tir_, o _christão que vôa_, e ao balão,
_Quesana kai-tir_, com quem diz, _barraca aerea_.

Considerando-o feiticeiro, procuravam-n'o para tudo,--até para compôr
desavenças domesticas, tempestades de ciumes, amúos de namorados.

Os marroquinos alimentavam a superstição de que ninguem seria capaz de
matal-o com bala de chumbo.

--É como o _homem do cavallo branco_, diziam elles. Só com bala de
prata...

O _homem do cavallo branco_ era o general Prim, que pelos seus actos de
bravura ficára tido no norte de Africa como invulneravel ás balas de
chumbo.

Foi ás quatro horas da manhã que Antonio Infante fez uma ascensão para o
sultão de Marrocos vêr, e a guarda do sultão seguiu o aeróstato, em
marcha forçada, até que desceu, para sua magestade se desenganar de que
o aeronauta subia tambem no balão.

Da Africa septemtrional traz Antonio Infante muitas recordações
agradaveis. Ahi vae uma, que elle conta com orgulho patriotico. Nas
portas da Arzilla conservam-se ainda as armas reaes portuguezas, e,
sempre que um _cicerone_ explica em Arzilla a historia de algumas
ruinas, diz aos viajantes:

--Isto é do tempo do portuguez...

De Marrocos passou a Gibraltar, onde o governador da praça lhe prohibiu
que realisasse qualquer ascensão, mas subiu em La Linea, que fica apenas
separada de Gibraltar por uma pequena lingua de terra. O balão caiu no
mar, em aguas hespanholas, e os carabineiros apprehenderam-lh'o como
tomadia.

Mez e meio gastou Infante para rehavel-o. A final foi a legação
portugueza de Madrid que resolveu o negocio.

Nas Canarias caiu tambem no mar, a uma milha de Teneriffe. Duas horas
esteve dentro d'agua á espera que um barco de pescadores o fosse buscar.
E em Las Palmas, ao subir, feriu-se de tal modo, que perdeu os sentidos
dentro da barquinha.

Foi principalmente na America que a odyssea aerea de Antonio Infante
principiou a ter mais vivo interesse.

Em Montevideo, ao descer, deslocou o pé direito, e na Havana caiu na
bahia, que os tubarões frequentam.

Seria ignominioso para um filho do ar morrer na, guela de um filho do
mar, ainda que esse filho do mar fosse um monstro tão respeitavel como o
tubarão. Emquanto esperava por socorro, esta ideia atormentava-o. Nadou
sempre, porque o tubarão, para atacar, precisa voltar-se e, nadando, não
lhe daria tempo para isso. Além de que, ia vestido de preto, porque o
tubarão não ataca o preto. Mas, por cautella, Antonio Infante ia nadando
sempre. Finalmente, chegou um escaler de guerra que o levou, e o filho
do ar zombou dos tubarões.

No Panamá partiu a perna direita, para que a perna não tivesse que
rir-se do pé, o qual já tinha sido deslocado em Montevideu.

Em New-York Antonio Infante foi escripturado pelo celebre empresario
Barnum, que já gastou este anno em annuncios cicoenta mil dollars.
Barnum dava-lhe 500$000 réis por semana, pagando-lhe os _hoteis_ e as
viagens. Queria-o apenas como reclame, para fazer uma ascensão á porta
do seu gigande circo de lona, que comporta vinte e cinco mil
espectadores, e que Barnum vae armando e desarmando de terra em terra,
acompanhado de uma grande comitiva de vendedores, que lhe pagam para que
os deixe seguil-o. Os _pikpockets_ dão cem e duzentos dollars a Barnum
para que lhes permitta venderem bilhetes á porta do circo, tal é a
ganancia que elles pódem auferir das suas escamoteações.

Em S. Luiz trabalhou tambem como _reclame_ á porta do theatro onde se
representava a colossal magica _Os ultimos dias de Pompeia_, que mettia
quinhentos comparsas e duzentos musicos. A erupção do Vezuvio era um
prodigio de pyrotechnia, realisado pelo celebre fogueteiro Pain, que
esteve em Lisboa por occasião da visita do principe de Galles.

Uma vez, em Virginia, onde se debatiam eleitoralmente dois candidatos,
um republicano, outro democrata, o republicano contratou com Infante uma
ascensão para attrair gente ao local do comicio.

O candidato faria o seu discurso e, ao dar meio dia, Infante deveria
subir. Reconhecendo que estava no paiz da pontualidade, ao meio dia em
ponto, Infante subiu. Mas, ao descer, o candidato só quiz pagar metade
da quantia ajustada.

--Porque? perguntou o aeronauta.

--Porque quando o snr. subiu, estava eu em meio do meu discurso, e o
povo, logo que viu o balão cheio, já não quiz ouvir o resto, que era o
melhor...

Foi ainda nos Estados-Unidos, em S. Luiz, que Antonio Infante esteve
para ser victima da grande catastrophe, que o telegrapho noticiára.

O balão, ao subir, bateu de encontro a um dos postes da luz electrica,
rasgou-se no ar, e abriu-se de alto a baixo no momento em que descia
rapidamente.

Póde imaginar-se o que seria esse vertiginoso despenhar-se de um homem
no espaço, atravez da escuridão da noite, indo dentro de um balão que
phantasticamente se illuminava de fogos de artificio!

Um enorme prego, cravado no fundo da barquinha, segurava exteriormente
uma peça de fogo, e, quando a barquinha chofrou com grande estampido no
solo, como se fôra uma pedra, foi esse prego que feriu de um modo
calamitoso o infeliz aeronauta.

O serviço das ambulancias medicas está organisado maravilhosamente nos
Estados-Unidos. Ha communicação telephonica entre todos os postos
de policia, de modo que a ambulancia, com o respectivo medico, acode de
prompto para fazer-se o primeiro curativo, e os carros d'este serviço,
que se annunciam por um forte timbre sempre em vibração, tomam a
deanteira a todos os outros vehiculos.

Ligeiramente pensado no proprio logar do sinistro, Antonio Infante foi
conduzido ao hospital, onde o medico assistente, examinando a gravidade
dos ferimentos, o avisou de que a sua vida corria imminente perigo e de
que não tinha tempo a perder para o caso de, na sua qualidade de
estrangeiro, querer fazer qualquer recommendação.

--Em Portugal, diz Antonio Infante, eu teria sido um homem morto. Nem a
minha familia consentiria que eu fosse para um hospital, nem o medico
haveria decerto empregado as ultimas violencias da sciencia como _in
anima vili_. Foi isso o que me salvou...

Ora além da dilaceração dos tecidos, Infante havia deslocado o pé
direito--sempre o pé direito, que parece ser ainda mais esquerdo do que
o outro!--e fôra atacado de uma pneumonia.

Quatro mezes esteve no catre do hospital, sendo visitado por todos os
professores e por todos os estudantes de medicina que pasmavam da cura.
O medico assistente fez grandes _reclames_, á americana, e durante
o mez, que a convalescença durou, uma verdadeira procissão de curiosos
correu ao hospital a visitar o aeronauta resuscitado.

Salvo finalmente, Infante deu-se pressa em vir tranquillisar os cuidados
da sua familia, e embarcou em New-York por Bordeos para Lisboa.

Agora está na Ericeira, um pouco nostalgico das regiões ethereas, como
um passaro na gaiola.

Nas ultimas noites de luar, vi-o sempre sentado n'algum banco do Jogo da
Bola a olhar saudoso para o ceu azul, como se estivesse dizendo
mentalmente:

--Aquillo, lá em cima, é meu... e de Deus.



CHRONICAS DE VIAGEM

XII

O Varatojo


No dia 23 de setembro, ás cinco horas da manhã em ponto, estava eu no
Jogo da Bola, da Ericeira, á espera dos meus companheiros de viagem.

A lua cheia principiava a empallidecer no ceu, e o sol dormia ainda o
ultimo somno na sua camara celeste.

Naturalmente o criado de quarto havia-o chamado já mais de uma vez, se é
que o sol não usa despertador á cabeceira da cama, a fim de poder
exercer, com a pontualidade que lhe é habitual, as suas funcções de
astro rei.

Mas n'esse dia parece que o loiro principe sol estava tão tonto de somno
como aquelle sujeito da anecdota, que acordando ao estrondo do
despertador, o atirou pela janella fóra muito zangado, tornando a ir
deitar-se.

Eu proprio, para que tudo fosse excepcional n'aquella madrugada, fiz de
guarda-nocturno e andei a bater á porta de um e outro.

--Que eram horas. Que já o _char-à-bancs_ estava á nossa espera na Praça.

E todos elles, uns e outros:

--Já lá vou. Estou a lavar a cara. Estou a vestir o casaco.

Pois o sol tambem n'aquella manhã levou muito tempo a lavar a cara e a
vestir o casaco.

Reuniu-se a _troupe_,--dez ou doze amigos--, subia o _char-à-bancs_ a
passo a Calçada Real, e ainda o sol não se tinha dignado apparecer.

Em dez minutos apenas, foram-se encastellando grossas nuvens, carregadas
de electricidade, ao longe, sobre as montanhas de Cintra, e trovões
distantes ribombavam surdamente.

--Mau! Temos um dia estragado!

O calor começava a ser asphyxiante.

--Que fossem acreditar em poetas! Pois não disséra Castilho que as
manhãs de setembro eram frescas?!

Sahi em defeza do querido mestre Castilho.

--Que aquella manhã de setembro tinha, por causa da trovoada, um feitio
excepcional. Mas que eu me compromettia a dar-lhes no dia seguinte,
caso não houvesse trovoada, uma fresca manhã de Castilho.

Então, o sol, com cara de ter passado mal a noite, o que era uma
justificação, espreitou atravez de uma nuvem menos espessa.

O _char-à-bancs_, tendo sahido da estrada de Mafra, principiava a descer
para o Gradil, torneando a Tapada, onde, passado o Celebredo, pacatos
veados appareciam aqui e alli pastando tranquillamente.

Os caçadores ralavam-se de pena:

--Não poder a gente matal-os! Aqui na tapada a caça brava é
abundantissima. No primeiro dia de caçada, os veados quasi vem comer á
mão. No segundo dia, já um pouco assustados, mostram-se hesitantes. Só
no terceiro dia, comprehendendo a cousa, é que tratam de se alapardar.

--Lá está outro!

Estavam, sim, muitos, á boa vida, porque, como se sabe, na Tapada de
Mafra só caça a familia real, e essa vae alli poucas vezes.

Apenas o marquez de Oldoini obtivera ha annos auctorização para poder
caçar na Tapada.

Não se sita outra excepção.

Durante longo tempo o _char-à-bancs_ foi torneando a Tapada, que é
vastissima, e quando o Gradil nos appareceu lá em baixo, com as suas
chaminés fumegantes e os seus predios caiados, já estavamos
anciosos de avistal-o.

Então as vinhas atacadas de phylloxera principiaram a mostrar-se-nos com
grandes nodoas amarellas, indicando uma devastação terrivel na primeira
cultura de Portugal.

Quanto mais avançavamos na região de Torres Vedras, mais a devastação
alastrava. Videiras doentes, dessoradas, pendiam languidamente com meia
duzia de cachos. E ás vezes, no meio de largas manchas amarellas, um
pequeno jardim de vinhas, não contaminadas ainda, verdejava sádiamente.

Acontece que, em certos sitios, de um lado da estrada as vinhas estão
indemnes, e do outro lado inteiramente perdidas.

No Gradil, como fosse domingo, havia um grupo de homens á porta da
taverna. Iam ou vinham da missa, isso é indifferente, mas tinham bebido
já. Alguns limpavam ainda a bocca com o dorso da mão.

Estrada fóra, avistamos a povoação do Livramento, depois o Turcifal.

--Aquella casa é de fulano. Aquella outra é de sicrano.

As nuvens negras tinham-se dissipado, o sol, completamente
restabelecido, resplandecia, e um calor surdo, abafadiço, cahia
obliquamente.

Todos mais ou menos iamos fallando do almoço, como da Terra Promettida.

Ora, n'aquelle dia, a Terra Promettida era para nós a casa de Antonio
Batalha Reis, a sua quinta do Carvalhal.

Batalha Reis, sendo um grande amador de culinaria, faz petiscos
excellentes, unicos.

Já durante uns dias que estivera na Ericeira nos havia offerecido um
delicioso bacalhau preparado por elle. Mas, n'aquelle dia, sabiamol-o na
cosinha, de barrete branco, caprichoso em offerecer-nos um almoço
principesco.

Ao cabo de tres horas e meia de jornada, chegamos ao Carvalhal. Meia
hora depois, o almoço estava na mesa, e cada um dos convivas tinha
deante de si um prato de sopa de cebola, composição de Batalha Reis. Era
a chave de prata que ia abrir esse bello soneto gastronomico. Batalha
Reis disse-nos que a chave de ouro a reservava para o jantar,--ás cinco
horas da tarde. Mas um coelho guisado, que nos deu ao almoço, valia
ouro. Estava divino.

Quando nos levantamos da mesa, todo eu era pressa de partir para o
Varatojo, por causa... por causa de um livro: ora ahi está o grande
segredo![1] Mas como tivessemos levado uma machina photographica, fez-se
primeiro um grupo, uma scena de duellistas, que crusavam floretes,
sabres e lanças.

A machina reproduziu instantaneamente toda esta batalha incruenta, que
sahiu bem boa.

Depois, finalmente, partimos para o Varatojo, e Antonio Batalha Reis,
que tinha sido um dos duellistas, poz o barrete branco e foi para a
cosinha do Carvalhal fazer o jantar.

Atravessamos, de caminho, a villa de Torres Vedras, que se engrandece
ainda de uns restos da sua antiga prosperidade vinicula. Boas casas,
grandes adegas, homens rolando pelas ruas cascos de pipa. Uma praça com
coreto: o rocio elegante. Um magnifico chafariz gothico, denominado dos
_Canos_. Uma egreja com uma bella porta de lavores. Sobre o outeiro, as
ruinas do famoso castello. O Passeio da Varzea com o seu sombrio
arvoredo de choupos e faias.

Mas nós passamos por tudo isso a correr, rodando para o Varatojo.

Finalmente, á esquerda, na encosta, surgiu um grupo de casas e logo ao
pé o telhado do convento e a matta.

Apoiamo-nos no principio da encosta, porque não havia caminho para trem.

E, subindo, chegamos ao largo do convento, de humilde apparencia,
enterrado ao fundo de alguns lanços de escada.

Uma cruz de pedra e um velho cypreste dão ao sitio essa phisionomia de
tristeza que caracterisa os eremiterios pobres.

Descemos os poucos degraus que dão ingresso para o convento, e entramos
no atrio.

Á esquerda uma capella com o Senhor dos Passos. Em frente, o postigo da
roda, em cujo bordo havia tres escudellas vasias com colheres de páu;
sobre o postigo esta legenda: _De paupertate nostra frangamus Jesu
esurienti panem._ Á direita uma porta em ogiva com esta simples palavra
no topo: _Silencio._

Pedimos licença para entrar, e foi-nos concedida. Recebeu-nos o
sacristão em habito de franciscano. Mostrou-nos a egreja, em cujo
altar-mór ha a notar a obra de talha, o retabulo, os quadros, os
azulejos. No corpo da egreja torna-se digno de menção o altar de
marmore, excellentemente trabalhado, de uma capella lateral. É obra
recente, executada por um conventual.

Como houvessemos mandado entregar uma carta de apresentação, veio
acompanhar-nos um padre franciscano, de habito com capuz, cordão,
rosario e sandalias.

Boa physionomia, alegre e rosada. Fallava sem biôcos. Quando nos
tornou a mostrar o altar de marmore, disse para mim:

--Isto é obra feita no convento. Cá trabalha-se.

Foi depois mostrar-nos o presepio, e chamou a nossa attenção para a
figura que representava um cégo tocador de gaita de folles, com borracha
de vinho a tiracollo, fazendo-nos notar a circumstancia de que o moço do
cégo estava bebendo subrepticiamente o vinho da borracha.

Levou-nos depois á casa dos retratos, onde, eu precisava vêr um, e á
casa do capitulo, onde copiei a inscripção de uma sepultura.

Offereceu-nos na casa dos retratos vinho doce, e bolos. Quizemos deixar
uma esmola para o convento: recusou-a. Perguntamos-lhe se vendiam
bentinhos, porque os desejavamos adquirir como recordação. Sorriu-se.

--Que os bentinhos que tinham, eram os que pessoas de fóra davam aos
frades.

Na cêrca offereceu-nos flores, e conduziu-nos até á entrada da matta.

De caminho respondia com boa sombra ás perguntas que lhe faziamos.

Disse-nos que havia uma escóla para o sexo masculino, annexa ao
convento, mas com entrada independente.

Disse-nos mais que, actualmente, eram uns vinte os frades, e que o resto
do pessoal orçava por quinze homens. Que no convento não entravam
mulheres, mas que na povoação havia um recolhimento de irmãs
hospitaleiras de S. José com escóla para meninas. Accrescentou que
viviam pobremente, mas que do seu pouco repartiam com os pobres.

Mostrou-nos a sachristia, em cujos azulejos, que revestem as paredes, se
lêem disticos metreficados em castelhano. Por exemplo:

    Mi coraçon como cera
    Se derrite en dulce ardor
    Con tu fuego, ay Dios d'Amor
    Si hasta aqui de marmol era.

Estes disticos devem ser composição de Frei Antonio das Chagas, que
versejou gongoricamente em lingua hespanhola, e que no seculo XVII
reformou o instituto do Varatojo, depois de ter vivido uma vida mundana
de militar aventuroso.

N'aquella simples quadra, que de industria preferimos, está todo o drama
da conversão de Frei Antonio das Chagas.

Na egreja, no claustro e cêrca encontramos alguns camponezes,
uns imberbes, outros velhos, orando como em extasi ou lendo
livros mysticos. Um d'esses livros; cujo titulo podemos lêr,
denominava-se--_Devoção das Chagas de Christo._

E ao cabo de uma visita de hora e meia sahimos do convento do Varatojo
com a estranha impressão com que o poderiamos fazer ha duzentos annos.

Parecia que o tempo se havia immobilisado no passado!...

    [1] O livro, que já entrou no prelo, intitula-se _Vida mundana d'um
    frade virtuoso._



CHRONICAS DE VIAGEM

XIII

O regresso


Com as chuvas dos primeiros dias da semana, começaram as praias a
despovoar-se um pouco tumultuariamente.

Ás portas da cidade, segundo me informa um visinho meu que é guarda
barreira, chegavam a toda a hora carros e carretas com pessoas e malas.

Toda a familia, segundo me observou philosophicamente o supracitado
guarda fiscal, tem a sua praia.

Uns atiram-se ao bulicio da Figueira, outros á aristocracia de Cascaes;
estes preferem a Nazareth, talvez por causa dos cyrios, que dão muitos
dias de festa; aquell'outros, mais pacatos, isolam-se em S. Martinho do
Porto, e contentam-se com ir de vez em quando, no caminho de ferro,
vêr gente ás Caldas da Rainha, etc.

Eu reflecti maduramente na phrase philosophica do guarda-fiical.
Effectivamente, cada familia tem a sua praia.

Uma vez, certa dama _vieille roche_, recebendo á sua mesa dois primos e
um companheiro dos primos, lembrou-se de corrigir a falta que elles
haviam perpetrado não lhe explicando genealogicamente a procedencia do
companheiro. Á sobremesa, a grande dama, que se tinha desfeito em
attenções com o desconhecido, fez estalar o quinau.

--V. ex.ª, disse ella dirigindo-se ao desconhecido, ainda não teve a
bondade de nos dizer de que casa era!

O amigo dos primos estava descascando tranquillamente uma pêra. Ouviu a
pergunta, levantou a cabeça, fitou por momentos a grande dama, e respondeu:

--Eu, minha senhora, sou da casa... da Supplicação.

Arranjou a ter uma casa, a primeira que lhe lembrou, mas livrou-se do
apuro, que era a grande questão.

A respeito de praias, o que é preciso, em chegando o verão, é ter uma,
seja qual fôr, boa ou má, alegre ou triste.

Ter uma praia! eis o problema. E cada familia trata de partir, ás vezes
um pouco mesmo ao acaso, porque, entrando o mez de agosto, presume-se
que só ficam em Lisboa os corpos da guarnição e o D. José do Terreiro do
Paço.

Tudo o mais abala.

Se eu fosse guarda barreira, havia de aproveitar a occasião do regresso
dos banhistas para completar os meus estudos sobre os diversos typos da
galeria das praias.

Em Lisboa todas as pessoas parecem vestir e pensar do mesmo modo. A
sobrecasaca e o chapeu alto uniformisam a _toilette_ e o espirito de
cada um. Mas, nas praias, em plena liberdade de acção, cada banhista
veste a _toilette_ que quer, e exhibe com certa semceremonia as suas
predilecções, as suas manias, as suas excentricidades de caracter.

Este revela-se jogador. Atira-se á roleta, á batota ou ao _baccarat_.
Senta-se á mesa verde de lapis em punho, faz calculos mathematicos para
saber quando o _rei_ deve tornar a sahir ou quando o 36 deve voltar.

Aquelle é pescador de anzol. Passa o dia de canna na mão, sentado nas
fragas por horas esquecidas, esperando, com uma paciencia que ninguem
lhe suppunha, que o peixe venha picar na isca.

Est'outro, tão pachorrento e pouseiro, como todos o conheciamos no
Chiado, joga na praia o _croquet_ todo o dia e dança a Valsa toda a
noite no club.

Aquell'outro, que em Lisboa faz parte da sociedade protectora dos
animaes, manifesta-se um caçador acerrimo, enthusiasta pelas perdizes,
doido pelos coelhos, e loquaz chronista de anecdotas cynegeticas.

Conta historias dos seus cães, cousa que ninguem cá lhe conhecia,--nem
mesmo os credores.

De todos estes typos da collecção balnear o mais tagarella e o mais
imaginoso é por certo o caçador.

Elle tem sempre uma cousa extraordinaria, que lhe aconteceu, para contar.

E no cenaculo da praia, seja n'um estanco, n'uma botica ou n'uma loja de
capella, é elle o _habitué_ que tem corda para mais tempo, o caso é
dar-lhe a gente a cheirar á imaginação môlho de perdiz ou deixar-lhe vêr
por um oculo, n'uma referencia fugitiva, um coelho que elle logo fila
para nos impingir a sua illyada venatoria.

Então, enthusiasmado, o chapeu atirado para a nuca, os olhos brilhantes,
um riso de satisfação nos labios, elle falla de si, dos seus cães, da
sua espingarda, das suas caçadas maravilhosas.

Ou parte logo da mentira para fazer romance ou chega lá a breve trecho.
O caçador entra facilmente no paiz da fabula, o caso é haver quem ao de
leve o empurre para os intermundios de Diana.

--Eu tinha um cão, principia elle.

Até aqui póde ser verdade, posto que ninguem lh'o conhecesse, porque
nada ha tão natural como ter a gente um cão... ou mesmo dois.

Mas, por via de regra, o caçador, que tem sempre a imaginação prompta,
não se demora muito no prologo.

--Eu tinha um cão, continúa elle, que era... um assombro!

Aqui é que principia o maravilhoso do conto.

--Cão mais intelligente não n'o podia haver. Nem mais dedicado ao dono e
á sua familia. Pobre Epaminondas!

Ao soltar esta exclamação, o caçador faz beicinho para chorar. Uma
explosão de ternura envinagra os seus olhos, até ahi brilhantes e,
fingindo pensar no seu Epaminondas, demora-se algum tempo soluçante,
convulso.

--Mas que diabo de mania, pergunta do lado um dos ouvintes, foi essa que
você teve de chamar Epaminondas ao seu cão?

O caçador, querendo dominar a sua commoção:

--O que?! Que diabo de mania foi essa?! É facil de explicar. O cão era
superiormente intelligente; era, no seu genero, um heroe, uma
celebridade, direi mesmo uma gloria. De modo que eu quiz dar-lhe um
nome glorioso, que elle bem merecia. E não fiz nada de mais. Meu
pobre... meu rico Epaminondas! Senti mais a sua morte do que a de meu
avô, que eu nunca conheci, por ter vivido sempre no Brazil. Os senhores
vão dar-me rasão, vocês vão concordar comigo em lhes eu contando o que
aquelle cão era!

A fim de recobrar toda a sua tranquilidade, o caçador faz um intervallo,
accende o charuto que tinha deixado apagar, e continúa:

--Vocês sabem que meu pae, tendo recolhido a Portugal, viveu sempre
comigo...

Neste momento entra no estanco, se o cenaculo é um estanco, um garoto a
comprar dez réis de cigarros fortes.

O caçador interrompe-se, mostrando-se contrariado de que um intruso
venha esfriar o interesse que a sua narração estava produzindo no
auditorio.

O rapaz recebe os cigarros, e demora-se accendendo um.

Sempre suspenso, o orador espera que o garoto sahia.

Finalmente, continúa:

--Casei, e meu pae ficou vivendo sempre comigo. Tambem era o que valia,
para fazer companhia a minha mulher, porque eu, volta e meia, dizia-lhe
adeus e ia para a caça com o Epaminondas.

--Santa Justa, fracos, diz um freguez conhecido entrando no estanco.

O orador torna a interromper-se. Apertos de mão; as perguntas banaes do
estylo. O freguez de Santa Justa demora-se cerca de cinco minutos.

Quando elle sahe com os cigarros da sua devoção, o caçador, tomando uma
attitude erecta:

--Mas onde é que eu fiquei?

Do lado ha sempre um apontador espirituoso:

--Sahia você para a caça com Epaminondas quando o homem entrou.

--É verdade! Volta e meia, eu dizia adeus a meu pae e a minha mulher e
ia para a caça com o Epaminondas. Pelo caminho, parecia que iamos
conversando, porque o diabo do cão fallava.

--Fallava?!

--É um modo de dizer, tão bem se entendia tudo o que elle pensava!

--Homem! diz do lado o espirituoso, isso faz-me lembrar o caso da
_pateada tacita_!

--Vocês não acreditam--prosegue o caçador fingindo-se um pouco
indignado--mas eu garanto com a minha palavra de honra a exactidão de
tudo quanto digo a respeito do meu Epaminondas. Pelo caminho iamo-nos
entendendo como dois bons amigos. «Que te parece hoje o dia?» perguntava
eu. E o Epaminondas respondia: «Boa caçada; o dia está magnifico
para as perdizes.» Ou então torcia o nariz, como a dizer: «Isto hoje não
dá nada que se veja.» E depois parecia accrescentar: «Mas em todo o caso
eu hei-de fazer-lhe a diligencia.» Se o cão tinha concordado comigo em
que era dia de boa caçada, acontecia assim, por força. D'alli a nada não
tardavam a apparecer bandos de perdizes, ás vezes até a pequena
distancia de casa.

N'este comenos assoma ao limiar do estanco o boletineiro do telegrapho.

--Os snrs. não saberão dizer-me quem é o snr. Antonio do Espirito Santo
Soares?

Que não: que não é conhecido.

O boletineiro vae-se embora, e o caçador prosegue:

--Se alguma das perdizes era mais gorda, eu aproveitava a occasião para
fazer uma galanteria a meu pae ou a minha mulher, e mandava o cão a casa
com a perdiz.

--Olha lá, dizia-lhe eu entregando-lh'a, tu vaes n'um instante a casa
levar esta perdiz a meu pae. Mas toma cuidado, Epaminondas, olha que
esta é para meu pae. Nada de tolices, Epaminondas!

O cão partia por alli fóra como um relampago, com a perdiz nos dentes.

Chegava a casa mais depressa do que eu o estou dizendo, e ás vezes
a primeira pessoa que encontrava não era meu pae mas minha mulher.

Como era natural, minha mulher, até para experimentar a intelligencia do
cão, queria tirar-lhe a perdiz.

E o Epaminondas, como se não fosse realmente um cão, mas uma pessoa,
dizia-lhe:

--Nada, não. Esta mandou-a o senhor para o pae. Logo virá outra para a
senhora.

--O que?! Pois o cão dizia isso?!

--Está claro que não dizia como a gente o diz. Mas fazia-se entender de
tal modo, que minha mulher deixava-o passar, e era meu pae que recebia a
perdiz. Depois o Epaminondas voltava logo.

--E dizia alguma cousa?

--Dizia, sim; pelo menos eu entendia-o. «Seu pae diz que muito obrigado;
mas a senhora tambem quer.» «Está bem, Epaminondas, respondia eu; logo
irá para a senhora.» Ora acontecia que eu algumas vezes me esquecia do
compromisso que havia tomado; mas quem não se esquecia era o cão. Em
cahindo alguma perdiz mais geitosa, o Epaminondas estava-me logo a
dizer: «E a perdiz da senhora?» «Pois bem, leva lá a perdiz, e não te
demores.»

--Mas qual era o processo de eloquencia a que o Epaminondas recorria
para se fazer comprehender tão explicitamente?

--Eu sei lá! Era tudo: os olhos, o focinho, o rabo. Era tudo!

--Diga antes você que estava tão habituado com o cão, que já o entendia,
como a gente, á força de habito, chega a entender um surdo-mudo...

--Qual historia! De uma vez morreu a mulher do regedor de Loures, que
morava a dois passos da quinta em que eu estava. O cão ouviu, e percebeu
o que o criado tinha contado. E, sem que lhe tivessemos dito nada, sahe
por alli fóra, e vae a casa do regedor dar-lhe os pesames!

Quando a imaginação do caçador tem aquecido até á temperatura do
maravilhoso, já não ha ninguem que seja capaz de detel-o. É como um
_rapido_ que passa. Parece ás vezes, o que é phenomenal, que chega a
acreditar o que diz, e que adquire a convicção de que os outros o estão
acreditando.

Pois em cada praia ha sempre um caçador... pelo menos!

O guarda fiscal confirmou plenamente esta minha observação.

--Sim, senhor, disse-me elle. Eu conheço-os: ás vezes, fico até admirado
de que não tragam espingarda na bagagem!


    Lisboa, 8 de outubro de 1888.



300 RS.





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