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Title: Julio Diniz - Esboço Biographico
Author: Pimentel, Alberto, 1849-1925
Language: Portuguese
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                           ESBOÇO BIOGRAPHICO



                              JULIO DINIZ

                    (JOAQUIM GUILHERME GOMES COELHO)

                           ESBOÇO BIOGRAPHICO

                                  POR

                            ALBERTO PIMENTEL



                                 PORTO
                    TYPOGRAPHIA DO JORNAL DO PORTO
                       RUA FERREIRA BORGES, 31

                                  1872



ESBOÇO BIOGRAPHICO

DE

JULIO DINIZ


I

Ao cómoro do athleta, que cahiu fulminado pela morte, não deixarão d'ir,
em piedosa romagem, com as flores da saudade, os que mais d'uma vez lhe
viram lampejar as armas impollutas ao sol da gloria litteraria. É um
dever e um desafogo esta visita ao tumulo d'uma realeza que se extinguiu
para os homens do seu tempo, mas que deixou após si um rasto luminoso no
qual ha de reviver atravez das idades futuras. E tanto maior dever é, e
tanto maior desafogo se afigura, quanto é certo que a litteratura
portugueza, que parecia preparada para longa vida depois da fecunda
revolução do romantismo, está vendo rarear dia a dia as suas fileiras,
já porque a morte lh'as dizima, e já porque a politica lhe vem roubar
com mão sacrilega os mais denodados legionarios para lh'os amollentar na
vida regalada dos encargos parlamentares e diplomaticos.

Cada vez se vão multiplicando as perdas e as deserções, e todavia não se
enxerga ainda no oriente o primeiro alvor d'uma aurora de redempção, que
prometta trazer novos apostolos e novos soldados, novos elementos de
vida, n'uma palavra, para o futuro das lettras patrias. Vejamos se é
isto verdade ou se não passa d'uma asserção gratuita.

Percorramos, ainda que com o coração cheio de magua e os olhos marejados
de lagrimas, os fastos da litteratura moderna. A cada passo, ao
folhearmos tão triste necrologio, encontraremos uma pagina tarjada de
lucto a recordar um talento que se apagou. Para logo se nos deparam os
nomes illustres de Lopes de Mendonça, de Soares de Passos, de Coelho
Lousada, de Faustino Xavier de Novaes, de José Freire de Serpa, de
Arnaldo Gama, de Rebello da Silva, de Gomes Coelho, e de quantos outros
que nos não lembram agora! As deserções são por igual numerosas, mas,
visto que escrevemos no Porto, contemol-as apenas _intra muros_ e
recordemos alguns litteratos que se secularisaram, José Gomes Monteiro,
Augusto Luso, Alexandre Braga, e muitos outros que se dariam já por
affrontados se rememorassemos a sua velha familiaridade com as musas. O
mesmo aconteceu com o snr. Alexandre Herculano que, segundo parece,
trocou definitivamente as lettras pela agricultura.

Este mesmo pensamento já o snr. visconde de Castilho o deixou apontado
na _Conversação preambular_ que abre o _D. Jayme_: «Dos nossos poetas,
diz elle, que tantos e tão viçosos pullularam sempre ao bafo
benignissimo d'estes ares, quantos apontamos hoje em dia? Morreram uns;
envelheceram outros, que é peior maneira de morrer; outros
secularisaram-se para os negocios; outros desertaram para a politica;
não poucos succumbiram á epidemia da inercia, e jazem, sobreviventes a
si mesmos, sobre os seus proprios nomes, como estatuas sobre tumulos,
armadas mas inertes.» Raros são pois os que, infatigaveis, se conservam
ainda abroquelados para os mais galhardos torneios do pensamento, como
que zombando da idade, que é enfermiça e cobarde o mais das vezes.

O author das linhas que deixamos citadas, o snr. visconde de Castilho,
todo se enleva ainda no doce poetar da sua lyra, vasando no suavissimo
rhythmo da lingua portugueza as mais formosas obras primas da
litteratura extrangeira. Não ha de certo em paiz nenhum mais abundante e
prestimosa velhice.

O snr. Castilho é mais do que um traductor;--é um nacionalisador.
Rir-se-hão da sua gloria os meticulosos, dizendo que é crime de
lesa-magestade o pôr mão reformadora nos monumentos artisticos. Será.
Mas o que é, em verdade, muito para louvar e agradecer, é que um
litterato portuguez esteja dando á sua patria um Anachreonte que ella
não tinha, um Moliére que lhe faltava, e um Goethe que lhe não dera Deus.

Camillo Castello Branco é realmente um escriptor incansavel, que tem
enfermado na faina das lettras, e que n'ella espera morrer, como
aquelles guerreiros legendarios, de que falla a historia nacional, que
só largavam da mão a espada, quando a morte lhes desnervava o braço.

Julio Cesar Machado sustenta, ha longos annos, as boas tradições do
folhetim portuguez com uma graça e uma delicadeza que fazem ainda suppôr
que elle não completou siquer vinte e cinco annos.

O snr. D. Antonio da Costa tem sido, é, e será sempre o apostolo
convicto da suada obra do bem, o propagador nunca esmorecido d'essa
grande verdade chamada instrucção nacional, que aos espiritos mais
levianos de Portugal se afigura ainda, e Deus sabe por que tempo se
afigurará, infelizmente, uma formosa utopia de ministro poeta.

Pinheiro Chagas é d'estes combatentes válidos e corajosos, que nunca
desanimam nem fraquejam nas campanhas litterarias, posto que seja muito
para receiar que a politica, que já lhe franqueou as portas de S. Bento,
venha um dia a adormecel-o na indolencia dos seus braços perfidamente
voluptuosos.

Poderá causar reparo que não citemos o nome do snr. Mendes Leal; mas s.
exc.ª, envolvido em negocios diplomaticos presentemente, só de longe a
longe apparece na imprensa ou desobrigando-se de encargos academicos ou
modulando um carme fugitivo que mais saudades nos deixa da sua lyra
poderosa.

O snr. Manoel Roussado, hoje barão d'este nome, e que era aliás um
folhetinista de muito espirito, sahiu de Portugal para exercer no
extrangeiro um consulado, quando o visconde Ponson du Terraiil lhe
começou a disputar tenazmente o _rez de chaussée_ do _Diario
Popular_. São portanto tres ou quatro os lidadores que estão em campo, e
que ahi recolhem os louros do triumpho, sempre que sahem a provar a fina
tempera de suas armas. Outros ha, como João de Deus, Anthero de Quental,
Pereira da Cunha, visconde de Benalcanfor (Ricardo Guimarães), Teixeira
de Vasconcellos, que, talvez enojados d'esta alluvião de versões a
tostão o volume e de questiunculas de fanatismo religioso e politica
bichosa, raro dão mostras de vitalidade litteraria.

Intencionalmente deixamos para o ultimo logar o snr. Theophilo Braga,
por se nos afigurar que, escrevendo a _Historia da Litteratura
Portugueza_, está traçando o epitaphio das lettras patrias cuja nova
historia só uma outra renascença, proxima ou remota, poderá reatar.
Procurando as causas etyologicas d'esta crise litteraria, não seremos
dos que só attribuem o mal aos romances abstrusos de Ponson du Terraill,
á influencia nociva da sua eschola _realista_, e ás operetas
d'Offenbach, mas sim dos que lançam a culpa a esta epocha revolucionaria
e anormal que está collocando a Europa toda sobre a cratéra d'um vulcão
que tem já vomitado as primeiras lavas.

Não queremos ser prophetas da historia e aventar em que periodo e sobre
que zona geographica rebentará primeiro a medonha erupção. Ha de vir,
infelizmente acreditamos que ha de vir, mas não sabemos quando. O que é
porém certo é que esta ebullição politica europea tem affectado
sobremodo as litteraturas. A França, que d'ha muito ia sempre na
vanguarda das sciencias e das artes, vae fluctuando como póde sobre o
sangue derramado pela guerra com o extrangeiro e pela communa, e Deus
sabe quando os seus negocios terão um caracter definitivo e seguro. O
theatro francez está tão abatido como o theatro portuguez, onde se dão
hoje as comedias hispanholas entrajadas á portugueza, por não haver
realmente d'onde se importar melhor litteratura dramatica. A novissima
geração, que poderia ser garantia de rehabilitação, resente-se d'esta
incerteza geral e espaneja-se de genero em genero mais por se desfadigar
de tristeza e tedio do que para amontoar peculio para o futuro, que
será de certo a revolução, e que portanto lhe havia de queimar as obras
antes de lh'as lêr.

N'estas circumstancias especiaes e gravissimas é sobremodo para lamentar
o que em qualquer tempo é sempre para sentir,--a perda d'um athleta que
denodadamente luctava contra a indifferença geral, fazendo-lhe rosto e
obrigando-a, apezar de sua pertinacia, a dobrar-lhe o joelho em sincera
adoração. Joaquim Guilherme Gomes Coelho era um d'estes raros e
poderosos luminares das lettras patrias, que, por não serem já muitos,
se tornam indispensaveis. São estes homens os que devem ter uma
biographia, porque a dos que nasceram para não deixar vestigios da sua
passagem na terra resume-se apenas nas poucas palavras inscriptas na
lousa que lhes demarca os sete palmos de terra.


II

Joaquim Guilherme Gomes Coelho, filho de D. Anna Gomes Coelho e de José
Joaquim Gomes Coelho, nasceu no Porto aos 14 de novembro de 1839.

É dever nosso dizermos, remontando-nos á sua infancia, que frequentou
primeiras lettras com Antonio Ventura Lopes, em Miragaya, sendo que
n'estes inexperientes adejos de ave implume, que, saudosa do ninho
paterno, receia defrontar-se com a figura mais ou menos severa d'um
homem desconhecido, o professor, lhe serviu de estimulo e conforto a voz
carinhosa e authorisada de seu irmão, José Joaquim Gomes Coelho. E pois
que veio de geito escrever-se este nome, digamos de relance que era o de
um profundo e notavel talento, que ainda hoje é motivo de justissimo
orgulho para os fastos gloriosos da Academia Polytechnica do Porto, onde
José Joaquim Gomes Coelho frequentara distinctamente o curso
mathematico.

O snr. J. J. Rodrigues de Freitas Junior, no seu discurso pronunciado na
abertura das aulas da mesma Academia em 1 de outubro de 1867, alludindo
aos mais distinctos estudantes dos cursos preteritos, fez menção honrosa
do irmão de _Julio Diniz_ e, não contente com isso, consagrou-lhe em uma
nota explicativa estas saudosas palavras:


    Gomes Coelho nasceu a 7 de novembro de 1834 e morreu a 30 de
    dezembro de 1855, tendo completado, havia dous mezes, o curso de
    engenheria civil. Foi premiado em diversas aulas; e sel-o-ia
    n'outras, se não houvesse perdão de acto em dous annos da sua
    frequencia,

    O grande poeta Soares de Passos escreveu o seguinte epitaphio para a
    campa do infeliz e sympathico mancebo:

        Vinte annos? Ai! bem cedo arrebatado
        O guardaste no seio, ó campa fria!
        Flor passageira, succumbiu ao fado,
        E seus perfumes exhalou n'um dia!

        Quanta illusão desfeita em seu transporte!
        Sonhou glorias, talvez! sonhou amores!
        Tudo, tudo aqui jaz! Carpi-lhe a sorte;
        Derramai-lhe na tumba algumas flores!


Era norma inalteravel das melhores educações d'aquelles tempos
desenvencilhar a meada das declinações latinas, depois de estudada a
grammatica nacional, theorica e praticamente. Gomes Coelho, como era de
rigor, tomou assento entre a numerosa fila dos discipulos do padre José
Henriques d'Oliveira Martins, conhecido latinista do Porto, já
fallecido, e então muito em voga como professor particular. Como se não
affrontasse demasiadamente o seu lucido espirito com o estudo da
litteratura romana, começou, ao mesmo tempo, a iniciar-se na lingua
franceza, ensinada pelo irmão com sensiveis progressos do discipulo e
verdadeiro orgulho do professor. Familiarisado com os idiomas que eram
então exigidos como preparatorios para um curso superior, matriculou-se
em logica nas aulas da Graça, denominação que n'esse tempo se dava ás
aulas publicas do Lyceu e da Academia, reunidas no mesmo edificio e
principiou simultaneamente a estudar inglez com o snr. Narciso José
de Moraes Junior, professor particular.

As difficuldades que ordinariamente embaraçam a traducção dos classicos
inglezes, não lhe foram obstaculo a que sobremodo os ficasse estimando,
senão de preferencia, ao menos a par dos poetas latinos e francezes que
a esse tempo já versava. É para notar que, sendo Gomes Coelho incorrecto
na pronuncia do inglez, a ponto de desafinar os tranquillos nervos
britanicos que por ventura o surprehendessem em peccado de lesaprosodia
(como me diz pessoa de suas intimas relações e muito entendida no
assumpto) vencesse por uma notavel intuição as mais intrincadas
subtilezas que, não só a esse tempo, mas em todo o decurso de sua vida,
lhe podia offerecer a leitura de Shakspeare, Milton e Byron, chegando
muitas vezes, especialmente em Shakspeare, a sobrepujar a traducção
franceza de Guizot.

Entre os quatorze e quinze annos, idade que então contava, matriculou-se
na Academia Polytechnica nas aulas de chimica e primeiro anno de
mathematica, regida pelo lente Antonio Luiz Soares.

Data d'essa epocha a sua intimidade com o notabilissimo poeta portuense
Antonio Augusto Soares de Passos, e como o espirito de Gomes Coelho era
d'estes que nascem com o privilegio de assimilarem toda a casta de
conhecimentos, por mais heterogeneos que sejam, começou a manifestar
certo enthusiasmo pela litteratura, enthusiasmo que a convivencia com o
cantor do _Firmamento_ foi desenvolvendo, dia a dia, insensivelmente. A
poesia sorria-lhe já no intimo da alma uns doces sorrisos de visão
feiticeira, mas tão egoista se sentia elle de tamanha felicidade, que
não ousava metrificar os seus secretos colloquios com a fada da
inspiração. Egoismo ou modestia,--ambas as coisas talvez. O certo é que
o poeta não se tinha revelado ainda pelos versos, mas se adivinhava já
pelos arrôbos.


III

De 1854 a 1855 frequentou Gomes Coelho as aulas de segundo anno de
mathematica e physica na Academia Polytechnica. Devemos notar que em
todas as disciplinas que cursara obtivera classificações honrosas e
_accessits_, não recebendo premio um anno por ter sido tirado á sorte, o
que não exclue a distincção.

Fique d'uma vez para sempre esta advertencia.

No anno lectivo seguinte, em que frequentava botanica e zoologia,
succumbiram a dolorosos soffrimentos pulmonares, molestia hereditaria,
porque a mãe de Gomes Coelho era tuberculosa, os seus dois irmãos José e
Guilherme. Alanceado com este duplo golpe o seu affectivo coração,
parece que só encontrara balsamo para tão profundas feridas n'umas
tristezas poeticas curtidas na solidão luctuosa do lar, tristezas que
são tambem suaves, porque nascem da saudade, ao mesmo tempo espinho que
fere e flôr que embriaga.

Em 1856 entrou Joaquim Guilherme Gomes Coelho na Eschola
Medico-Cirurgica, desempenhando-se das suas obrigações academicas,
durante todo o curso, com notavel distincção.

Tenho sobre a minha banca a dissertação inaugural que defendeu em 1861,
perante o corpo cathedratico da mesma Eschola. Intitula-se: da
_Importancia dos estudos meteorologicos para a medicina e especialmente
de suas applicações ao ramo operatorio_. Como trabalho litterario, que
só assim, ainda que mal, o podemos avaliar, afigura-se-nos digno de
confrontar-se com os escriptos posteriores de Gomes Coelho. Sobre o
merecimento scientifico pronunciou o tribunal academico o seu
_veredictum_ sobremodo honroso para o alumno que exemplarmente encerrava
o curso escholar.

Não foi isenta de soffrimentos physicos a sua vida d'estudante; de
enfermidades moraes já vimos que tambem não foi.

No segundo anno do curso medico teve uma hemoptyse ligeira, bolçando
sangue em pequena quantidade. Apezar d'este triste prenuncio, e da morte
recente de seus dous irmãos, não esmoreceu na assiduidade com que
desvelava as noites abancado diante dos compendios sobre os quaes mais
d'uma vez se espanejaria, borboleta inquieta, o genio invisivel da poesia.

Em 1860 appareceram versos seus, com o pseudonymo de _Julio Diniz_, na
_Grinalda_.

D'elles nos occuparemos mais adiante.

Graduado em medicina, restava-lhe exercer a clinica. Não lh'o consentia
porém uma certa repugnancia natural, um certo pudor, digamos assim, que
purpureava a consciencia do medico, quando de si para si tinha de
accusar de impotente a sciencia que professava, á cabeceira d'um
moribundo, ao lado d'umas creancinhas loiras que iam ser orphãs ou d'uma
mulher lacrimosa que ia ficar viuva.

E depois o seu genio avesso a quaesquer expansões, a sua natural
melancolia, suave mas meditativa, oppunham-se diametralmente aos
predicados que se lhe afiguravam indispensaveis ao medico clinico, visto
o que elle escrevia do João Semana, nas _Pupillas do senhor reitor_:
«Esta bossa anedoctica é sempre de grande valor para o facultativo que
aspira á vida clinica. Uma historia contada a tempo, e com graça, vale
bem tres recipes, pelo menos.»

Foi de 1861 a 1862 que, já livre dos trabalhos escholares, escrevera o
romance _Uma familia de inglezes_ durante os tranquillos ocios do seu
gabinete, d'onde poucas vezes sahia, com a repugnancia que deixamos
mencionada, para visitar um ou outro doente.

Em abril de 1863 poz-se a concurso o logar de demonstrador da secção
medica na Eschola do Porto. Gomes Coelho apresentou-se candidato, não
tanto por se julgar habilitado á concorrencia, em razão da extrema
desconfiança que tinha da sua mesma proficiencia, como para
renunciar d'uma vez para sempre á vida clinica com que não podia
transigir. No meio dos assiduos estudos que então fizera veio assaltal-o
a doença, e Gomes Coelho, poucas horas depois de ter tirado ponto teve
de abandonar o concurso diante do caracter assustador com que se
apresentou a pneumo-hemorrhagia.

Então, a instancias de seu pae, foi passar algum tempo, tres ou quatro
mezes, a Ovar, onde tinha parentes.

Depois de escrever o romance _Uma familia de inglezes_,--a sua estreia
litteraria,--compoz o formoso romancezinho _As apprehensões d'uma mãe_,
em 1862, o _O espolio do senhor Cypriano_.

_As Apprehensões d'uma mãe_ começaram a sahir em folhetim a 11 de março
d'esse anno, no _Jornal do Porto_. A redacção d'este periodico agradeceu
o mimoso presente, que de mão desconhecida recebia, com estas amaveis
palavras:


    Damos hoje principio á publicação do mimoso romance--_As
    apprehensões d'uma mãe_--que delicadamente nos foi offertado pelo
    cavalheiro que se embuça com o pseudonymo de Julio Diniz.

    Sobrio de phrases e palavras retumbantes e arrevezadas, despido
    mesmo de atavios e damices de linguagem,--_As apprehensões d'uma
    mãe_--é, na singeleza do seu dizer, o daguerreotypo dos singelos
    costumes da provincia do Minho, da melhor perola do nosso Portugal.

    Calamos elogios ao merecimento do romance, para que se não infira
    que vai n'elles a paga da offerta.

    O nosso silencio poupa a modestia do author; e a publicação do
    romance, apenas encetada, prova o apreço em que o temos.

    Se estas palavras são elogios, que traduzem agradecimentos,
    receba-os o snr. Julio Diniz, em boa hora, para que nos abram a
    porta da desculpa, que pedimos, por havermos, contra vontade,
    demorado a publicação das--_Apprehensões d'uma mãe._


A 4 de novembro do mesmo anno sahiu, no _Jornal do Porto_, o primeiro
folhetim do _Espolio do senhor Cypriano_, com o pseudonymo de _Julio
Diniz_.

Cabe, pois, ao _Jornal do Porto_ a honra de ter sido a lente que
reflectiu os primeiros alvores do seu talento. N'aquelle acreditado
orgão da imprensa portugueza muitas aguias, como em ninho querido, teem
ensaiado forças para voar depois ás regiões do poder e ás eminencias
litterarias. Basta que citemos como exemplos, ao correr da penna, os
nomes de José Luciano de Castro, Barjona de Freitas, Ramalho Ortigão,
Augusto Soromenho, D. José d'Almada, Teixeira de Vasconcellos e _Julio
Diniz_. Um grande escriptor, porém, alli começou a manifestar o seu
gentilissimo espirito, sem se namorar dos triumphos em que outros
pozeram mira, e a que chegaram pelos seus proprios merecimentos, que o
_Jornal do Porto_, diga-se de passagem, tem sempre combatido pelos
direitos publicos na vanguarda do periodismo portuguez, sem hypothecar a
sua opinião a influencias pessoaes ou compadrios politicos. Permitta-se
ao mais obscuro redactor d'aquella folha este sincero preito de
consideração pelo nobre caracter do seu proprietario.

O escriptor a que nos referimos chamava-se Francisco de Paula Mendes, e
outra individualidade não conhecemos que mais relações de similhança
tivesse com o romancista, cujo esboço biographico estamos traçando.

Ambos herdaram de suas mães os germens da molestia a que succumbiram; em
ambos era igual a modestia; ambos honraram as columnas do _Jornal do
Porto_; ambos foram procurar á ilha da Madeira a saude que já não podiam
encontrar; e ambos, finalmente, deixaram lacunas quasi irremediaveis no
jornalismo e na litteratura.


IV

De 1862 a 1863 escreveu Gomes Coelho o romancezinho--_Novellos da tia
Philomella_, que principiou a ser publicado no _Jornal do Porto_ em 22
de janeiro d'este ultimo anno.

Foi em Ovar, onde o deixamos em patriarchal tranquillidade, que planisou
e traçou os primeiros capitulos das _Pupillas do senhor reitor_. O seu
espirito, refocillado nos ocios d'uma convalescença despreoccupada,
comprazia-se nas variadas scenas com que a imaginação poderosa do poeta
anima um mundo phantastico que para si creou. Assim se explica a
espontaneidade com que não só encetou o romance _Pupillas do senhor
reitor_, mas com que tambem foi trabalhando simultaneamente n'esse
formoso esboceto--_Uma flor d'entre o gelo_--, cuja publicação começou
no _Jornal do Porto_ em 21 de novembro de 1864, apparecendo pela
primeira vez o seu nome--Gomes Coelho.

Em maio de 1864 sahiram no mesmo jornal dois folhetins, creio eu, com o
titulo de _Cartas ao redactor do Jornal do Porto ácerca de varias
coisas_, rubricadas com o pseudonymo de _Dianna de Avelleda_. Facil foi
reconhecer-se então sob aquelle véo transparente a individualidade
litteraria de Gomes Coelho. Entrelembro-me que a maior parte de um
d'esses folhetins era consagrada á memoria de Rodrigo Paganino, talento
que, pela sua extrema delicadeza e o seu amor aos assumptos campesinos,
tinha estreita affinidade com o de _Julio Diniz_. Em agosto d'esse anno
publicou com o mesmo pseudonymo, e no mesmo jornal, alguns folhetins,
poucos foram, sob a epigraphe--_Impressões do campo, a Cecilia._

Em 1867 appareceram ainda com igual pseudonymo, no jornal litterario
_Mocidade_, umas _Cartas á vontade, a Cecilia_, devidas á penna sempre
modesta de Gomes Coelho.

As _Pupillas do senhor reitor_ não vieram completas, quando o author
regressou ao Porto, e a causa de só começarem a ser publicadas no
_Jornal do Porto_ em maio de 1866 foi de certo o ter de se preparar para
concorrer pela segunda vez em janeiro de 1864 ao logar de demonstrador
da secção medica da Eschola.

No anno seguinte, apresentou-se pela terceira vez candidato ao mesmo
logar, e n'esse mesmo anno foi despachado.

Já que estamos fallando da sua carreira cathedratica, diremos que por
decreto de 27 de julho de 1867 fôra promovido a lente substituto da
mesma secção, e que por decreto de 27 d'agosto do mesmo anno
recebera a nomeação de secretario e bibliothecario da mesma Eschola.

Em maio de 1866, como já dissemos, principiaram a sahir em folhetins as
_Pupillas do senhor reitor_, que em outubro do anno seguinte se
publicaram em livro. D'este romance, o primeiro volume que se brochou
offereceu-o _Julio Diniz_ a seu primo e amigo, o snr. José Joaquim Pinto
Coelho, como brinde natalicio, sendo esta uma das mais intimas festas de
familia a que não costumava faltar.

O romance _Pupillas do senhor reitor_ conta já tres edições successivas.

No _Jornal do Porto_, de 7 de fevereiro d'este anno (1872) appareceu a
seguinte noticia:


    JULIO DINIZ.--O rasto luminoso que o talento de Julio Diniz deixou
    na liiteratura portugueza não se apagará jámais.

    O dito d'Horacio não é,--ainda bem!--uma palavra vã--_Non omnis
    moriar_. Julio Diniz começa a reviver na posteridade, e o _Diario de
    Noticias_ do dia 5 mais nos entalha na alma esta profunda convicção
    com a seguinte noticia:

    «Lord Stanley of Alderley está preparando a versão para inglez do
    lindo romance--_As Pupillas do senhor reitor_, de Julio Diniz.

    Dá-nos esta interessante noticia o _The Athenaeum_, jornal de
    litteratura que se publica em Londres, e do qual é correspondente em
    Lisboa o snr. Soromenho.»


A 2 de maio de 1867, afoitado pelo successo d'este romance, encetou a
publicação da sua estreia litteraria--_Uma familia de inglezes_,--que no
anno seguinte sahiu á luz em volume com o titulo de _Uma familia
ingleza, Scenas da vida do Porto_.

Este livro já teve duas edições.

A _Morgadinha dos canaviaes_ foi escripta com extrema rapidez e começou
a publicar-se no _Jornal do Porto_ a 14 d'abril de 1868, sendo
reimpressa em volume logo depois.

Em março d'esse anno subiu á scena em Lisboa o drama que o snr. Ernesto
Biester extrahiu do romance _Pupillas do senhor reitor_. Gomes Coelho
foi a Lisboa, acompanhado pelo seu amigo o snr. José Augusto da
Silva, no proposito de assistir como simples e obscuro espectador á
estreia do drama. Estava elle no theatro da Trindade, pensando de certo
em gozar a modesta tranquillidade do incognito, quando o snr. Henrique
Nunes, distincto photographo portuguez, que o conhecia do Porto, o
denunciou como author das _Pupillas_. A noticia circulou com a rapidez
da electricidade, e para logo proromperam as plateias em enthusiastica
ovação, sendo Gomes Coelho victoriado pelo publico e cumprimentado por
alguns litteratos distinctos que estavam presentes.

O _Diario Popular_, de 24 de março de 1868, escreveu mais
circumstanciadamente do assumpto, quando pela terceira vez se
representaram no theatro da Trindade as _Pupillas do senhor reitor_:


    O exito d'esta peça correspondeu ao muito que esperavam d'ella os
    que prezam as boas lettras e se occupam com interesse de novidades
    theatraes. E na realidade é tão raro vêr sobre a scena portugueza
    dramas puramente nacionaes, que não podemos deixar de applaudir a
    apparição de uma comedia que pelo desenho dos costumes, pela
    contextura, e pela linguagem honra o magro repertorio dramatico do
    nosso paiz. Dividida em sete quadros, resume a comedia todas as
    principaes scenas e peripecias, que dão vida ao romance com que o
    snr. Gomes Coelho enriqueceu a litteratura moderna, e cuja primeira
    edição foi esgotada em menos de um mez.

    Como os leitores sabem já, as _Pupillas do senhor reitor_ foram
    representadas no sabbado em beneficio da actriz Delfina. A mais
    escolhida sociedade occupava os camarotes, balcões e plateias.

    El-rei D. Luiz, não querendo deixar de honrar com a sua presença a
    festa da distincta actriz, foi primeiro do que a nenhuma outra
    parte, provar a Delfina o muito apreço que liga ao seu talento.

    Desde o final do primeiro acto até que o pano baixou terminando o
    espectaculo, os applausos repetidos e enthusiasticos testemunharam o
    prazer com que era recebida a producção, que o snr. Biester com
    tanta habilidade desentranhou d'aquella chronica d'aldeia, que n'um
    só dia deu nome ao que a havia escripto. Na primeira representação o
    publico chamou no fim do terceiro quadro o snr. Biester, que veio á
    scena agradecer. Quando novamente foi chamado no fim do sexto
    quadro, sabendo já que o celebre author do romance, o snr.
    Gomes Coelho (Julio Diniz) se achava na plateia, veio ao palco o
    snr. Biester, pediu silencio, e disse pouco mais ou menos as
    seguintes palavras:

    «Aquelle que realmente merece os vossos applausos está entre nós. Eu
    não fiz mais que apresentar debaixo da fórma dramatica um dos mais
    notaveis livros que se tem publicado n'este paiz. A esse escriptor
    já coroado dos applausos publicos peço eu agora a honra de
    permittir-me que o apresente n'este logar ao publico que o deseja
    vêr.»

    A plateia levantou-se para applaudir o snr. Biester e o snr. Gomes
    Coelho, que se recusou a subir ao palco. Veio buscal-o á plateia o
    snr. Biester, e, mal appareceram ambos no palco, o enthusiasmo do
    publico chegou ao delirio. A todos commovia a modestia dos dois
    escriptores; um escondendo-se na plateia e furtando-se aos
    applausos, outro pretendendo que toda a gloria coubesse ao snr.
    Gomes Coelho.

    Os actores que ainda estavam em scena abraçaram o snr. Gomes Coelho
    que profundamente commovido mal podia proferir uma palavra.


O correspondente de Lisboa dizia na sua carta para o _Jornal do Porto_
no mesmo dia e mez de março de 1868:


    O Porto teve dois triumphos em Lisboa nos ultimos dias--o da opera
    _Arco de Sanct'Anna_, do snr. Noronha, e o das _Pupillas do senhor
    reitor_, do snr. Gomes Coelho (romance transformado em drama pelo
    snr. Biester.)

    Ambos estes filhos do Porto foram victoriados delirantemente, o
    primeiro no theatro de S. Carlos, e o segundo na Trindade.

    O drama agradou, e o desempenho foi bom por parte dos actores
    Taborda, Izidoro, Queiroz, Emilia Adelaide e Rosa: pelos outros
    apenas supportavel.


Quanto ao merecimento do drama, consignemos de passagem que não satisfez
a critica litteraria senão por ser um reflexo, ainda que pallido, do
romance de _Julio Diniz_.

Pinheiro Chagas revelava-o em folhetim do _Jornal do Commercio_, poucos
dias depois da primeira representação:


    A luz do proscenio,--escrevia elle--digamol-o emfim, é uma luz
    mentirosa; a perspectiva do theatro tem condições especiaes. Ponham
    os frescos de Raphael recortados nos bastidores, e eu lhes juro que
    não produzem metade do effeito de quatro borrões espraiados na lona
    pelo snr. Procopio.


Em 6 de julho do mesmo anno, estando no Porto a companhia do theatro da
Trindade, pôz em scena o drama _Pupillas do senhor reitor_. Copiemos
ainda do _Jornal do Porto_ o que no dia seguinte escrevia a tal
respeito:


    É muito difficil adaptar bem á scena o entrecho d'um romance. Para
    que qualquer obra litteraria se considere absolutamente boa é
    preciso que os factos que n'ella se expressam, debaixo de nenhuma
    outra fórma se manifestem melhor. Um bom drama feito com o mesmo
    assumpto que inspirou um romance, seria a condemnação d'este, e
    equivaleria a dizer o dramaturgo ao romancista: «As tuas trabalhadas
    descripções e a esmerada pintura dos teus typos estavam de mais nas
    trezentas e sessenta paginas do teu livro: aqui tens os mesmos
    effeitos n'um só dialogo em tres actos.»

    A razão de não ser mais perfeito o drama que vimos hontem consiste
    em ser muito bom o romance que lemos ha poucos mezes. A unica culpa
    de Ernesto Biester é Julio Diniz.


E mais abaixo:


    A sala estava inteiramente cheia. Pela manhã já não apparecia um
    bilhete de plateia inferior. De tarde pedia-se libra e meia por um
    camarote de terceira ordem.


V

Já seria occasião de estudarmos a _maneira_ do romancista. Todavia,
attendendo a que _Julio Diniz_ primeiro se revelou ao publico poeta que
romancista, corre-nos obrigação, por amor da chronologia, de primeiro o
avaliarmos, consoante nossa opinião, nos seus versos, que nas suas
novellas.

A pagina 40 do terceiro volume (1860) da _Grinalda_ apparece pela
primeira vez o pseudonymo _Julio Diniz_ rubricando uma poesia que se
intitula _A J..._ Quem fosse _Julio Diniz_ não se sabia então; não o
sabia o mesmo redactor da _Grinalda_, Nogueira Lima, que recebera os
versos pelo correio.

Gomes Coelho, apesar de o conhecer pessoalmente, porque Nogueira Lima
era tambem amigo dos seus mais intimos amigos, os snrs. A. A. Soares de
Passos, Custodio José de Passos, Augusto Luso, José Augusto da Silva e
outros, não ousara, por excesso da sua peculiar modestia, impôr-se
delicadamente como collaborador da _Grinalda_, procurando o redactor e
proprietario, e entregando-lhe os seus versos. Não fizera assim.
Enviara-lh'os cautelosamente e, por mais d'uma vez, escutara em silencio
Nogueira Lima sobre o merecimento d'uma ou outra composição poetica á
medida que pelo correio as ia recebendo com a rubrica _Julio Diniz_.

A inicial que serve de epigraphe á poesia publicada em 1860 na
_Grinalda_ envolve de certo um segredo intimo do poeta, e por
conseguinte insondavel. Gomes Coelho morreu celibatario, viveu sempre na
solidão amiga dos seus livros e, não obstante, em todos os seus versos,
em todos os seus romances, modelava o typo da mulher por um formoso
ideal de perfeições quasi divinas.

O que é certo é que na sua alma havia a tristeza temperada dos poetas
que, como Lamartine, nascem para cantar e soffrer. As paixões revoltas
de Byron e Espronceda não as conhecia elle. Era portanto o poeta da
solidão, que vivia do seu ideal, longe do bulicio da sociedade, onde
outros iam afinando a lyra pela excitação febril dos sentidos.

É justo que transcrevamos na sua integra os versos de que vimos
fallando, não só por este destino mysterioso que elle lhes dava, como
por serem os primeiros que sahiram publicados com o seu habitual
pseudonymo:

                  A J...

    Acredita que os anjos tambem soffrem
        N'esta mansão de dores,
    E não olhes o mundo lacrimoso,
    Quando o vires despido de fulgores.

    Mal sabe a rosa, ao vecejar lasciva
        Em plena primavera,
    Que é passageira a quadra, que apoz ella,
    Se despovoa o prado e a morte a espera.

    O terreno, que pizas n'esta vida,
        Occulta um precipicio;
    O caminho, onde ao fim vemos a gloria,
    Quantas vezes termina no supplicio!

    Eu já vi, junto a um tumulo isolado,
        Um grupo de crianças,
    Dando as mãos e travando em chão de morte,
    Com risos infantis, alegres danças.

    Vi-os tambem sorrirem descuidados
        Se piedoso viandante
    Parava pensativo e, murmurando
    Uma humilde oração, passava adiante.

    Assim tambem sorris, se melancolico
        Eu penso no porvir,
    Quando uma sombra vem turbar-me a fronte,
    Tu, como elles, contemplas-me a sorrir.

    Mas olha, quer's saber a historia triste
        D'esses tres innocentes,
    Que, sobre as cinzas frias d'uma campa,
    Se entregavam a jogos complacentes?

    Á noite a mãe, beijando-os, estranhou-lhes
        Da face a pallidez,
    E um presagio sentiu ao alvor do dia...
    Eram frios cadaver's todos tres.

    É que os ares do tumulo dão morte
        Em afago homicida,
    N'esse ar infecto em que se extingue a chamma
    Tambem arqueja e expira a luz da vida.

    Teme pois tambem tu, candida virgem,
        O ar que aqui respiras,
    E não perguntes mais ao viandante,
    Que pensamentos d'amargor lhe inspiras.

Transparece d'estes versos,--senão os primeiros, uns dos primeiros de
_Julio Diniz_,--a luz pallida d'uma alma triste. Em todas as composições
posteriores, que litterariamente valem muito mais, especialmente as
ultimas, prevalecem as cadencias melancolicas, que fazem lembrar o
_Cahir das folhas_ de Millevoie e as _Azas brancas_ de Garrett.

No quinto numero do mesmo volume veem novas estrophes suas, que teem
estreita relação com as que acima deixamos transcriptas. Intitulam-se
_Apparencias_. _Julio Diniz_ extranha o teimoso sorriso nos labios da
pessoa a quem se dirige:

    Sempre o riso em teus labios! N'essa fronte
        Nem uma sombra apenas!
    Nem uma nuvem só, lá no horizonte
    A ameaçar-te com futuras penas?!

Presente-se uma alma de poeta em completo antagonismo com outra alma,
que ou nasceu fadada para estranhas alegrias ou, menos sincera, sabia
concentrar em si mesma o segredo das suas maguas.

    Quem sabe! Quantas vezes é mentida
        Dos labios a alegria?
    Quantas vezes no peito comprimida
    Nos devora latente uma agonia!

Ainda na collecção do mesmo anno vem uma terceira poesia de _Julio
Diniz_, cujo assumpto é estranho ao das duas precedentes. Todavia o
poeta, sempre delicado, compraz-se em cantar os primeiros
estremecimentos d'um coração de mulher, e intitula o seu canto--_O
despertar da virgem_.

No quarto volume (1862) da _Grinalda_ sahiram duas poesias de _Julio
Diniz_. Intitula-se a primeira--_A noiva_. É ainda o coração da mulher o
assumpto,--da mulher que está sentindo alternadamente os jubilos e os
sobresaltos do noivado. É, podemos dizel-o, um estudo psychologico
escondido n'uma tradição da idade-media. A noiva está prompta, toucada,
anciosa...

    A noite passára em vela.
    E que noiva a dormiria?
    E, ao desmaiar das estrellas,
    Alvoroçada se erguia
    E a alva flôr da larangeira
    Ao véo de neve prendia.

Estas alegrias nupciaes não podiam deixar de ser anuveadas pela
inspiração melancolica do poeta. Passam-se as horas, e o noivo não
chega. Em compensação, vem a noticia de ter sido morto em combate. A
noiva succumbe

    E a alva flôr da larangeira
    Com ella á campa descia.

A segunda poesia denomina-se _Thereza_, e na ideia tem alguma coisa
d'aquella suavidade dolorida dos versos de Soares de Passos. O ninho
querido onde o poeta modula os sens carmes é o coração da mulher.
_Thereza_ é a historia d'uma creança pallida e triste, d'aquella
tristeza scismadora das almas fadadas para o soffrimento, que só tem
sorrisos nos labios no dia em que presente a morte...

    Era uma criança loira
    Quando a vi na sepultura;
    Da açucena tinha a alvura,
    Teve o seu curto durar.

    ...............................

Folheando o quinto volume da _Grinalda_ encontramos tres poesias de
_Julio Diniz_. A primeira é uma versão de Henri Heine, que de certo
Gomes Coelho escolheu pela delicadeza peculiar das legendas allemãs, que
a caracterisa. A segunda,--_No altar da patria_--é uma formosa
composição realmente, em que o coração da mulher lucta entre duas forças
igualmente poderosas,--o amor da patria e o amor de mãe.

    --«Ó mãe, da-me uma espada.
    Ouço da patria a voz»
    --«Eil-a! É immaculada.
    Era a de teus avós.»

    --Pura a trarei, voltando...
    Se não morrer alli.»
    --«Vai», disse a mãe, chorando,
    «Eu rezarei por ti.»

E trava-se o combate, e sibila a metralha, mas o soldado não volta.
É ainda,--e sempre,--a ideia da morte que inspira o poeta. A terceira
poesia, que tem por titulo--_A despedida da ama_--e é offerecida ao snr.
José Joaquim Pinto Coelho, é igualmente inspirada pelo coração feminino
em lucta com as praxes sociaes, com o despotismo da superioridade. São
lagrimas d'uma mulher que se deixou amar como se fôra mãe uma criança
que não era seu filho.

    Puz, á volta do teu berço,
    Todo o amor, que um seio tem,
    E arrancam-te dos meus braços
    Porque eu não sou tua mãe?

De anno para anno são sensiveis os progressos do poeta. A fórma
desenvolve-se, torna-se flexivel á inspiração, e o colorido vai ganhando
em mimo o que jámais á ideia faltou em sentimento.

_Os paes da noiva_, poesia publicada no sexto volume da _Grinalda_,
valem muito não só pela correcção metrica, que é irreprehensivel, como
pelo thema, que é terno, mavioso, commovente. Tudo é festa em derredor
da noiva. Só duas pessoas, os paes, teem lagrimas nos olhos. Quando a
rapariga parte sob uma chuva de flores, recolhem-se os dous velhos para
chorarem em segredo a sua profunda saudade. Está de lucto o lar; a
velhice saudosa é peior do que a morte. Seis dias volvidos é tristemente
verdadeiro o lucto. Os paes da noiva não poderam com o fardo de tamanhas
tristezas. Succumbiram ambos.

Do mesmo volume quizera poder transcrever na sua integra a poesia--_A
esmola da pobre_--que é uma delicadissima composição, em que duas
creanças, uma rica e outra pobre, soccorrem uma velha mendiga, a rica
dando-lhe esmola, a pobre beijando-lhe a mão...

No primeiro dos folhetins que em 1864 publicara no _Jornal do Porto_ sob
o titulo de _Impressões do campo_ veem estes formosos versos que são, a
meu vêr, um modelo de naturalidade e singeleza:

      O BOM REITOR

    Sabem a historia triste
       Do bom reitor?
    Misero! toda a vida
       Levou com dor.

    Fez quanto bem podia...
       Mas... a final
    Morre e na pobre campa
       Nem um signal.

    Nem uma cruz ao menos
       Se ergue do chão!
    Geme-lhe só no tumulo
       A viração.

    Vedes, alem... na relva...
       Junto ao rosal
    Flores que ha desfolhado
       O vendaval?

    Cobrem-lhe a lousa humilde;
       A creação
    Paga-lhe assim a divida
       De compaixão.

    Pobres, que amava tanto,
       Nunca, ao passar,
    Choram, curvando a fronte
       Para rezar.

    Nunca, ao romper do dia,
       O lavrador
    Pára e lamenta a sorte
       Do bom reitor.

    As criancinhas nuas,
       Que estremeceu,
    Já nem sequer se lembram
       Do nome seu.

    No salgueiral visinho,
       Ao pôr do sol,
    Vai-lhe carpir saudades
       O rouxinol.

    Lagrimas... pobre campa!
       Ai, não as tem.
    Só da manhã o orvalho
       Rocial-a vem.

    Da solitaria lua
       A triste luz
    Grava-lhe em vagas sombras
       Estranha cruz.

    E elle repousa, dorme...
       Vive no céo;
    Dorme, esquecido e humilde
       Como viveu.

    Ha n'esta vida amarga
       Sortes assim.
    Vive-se n'um martyrio,
       Morre-se emfim...

    Sem que memoria fique
       Para dizer
    Ás gerações que passam
       Nosso viver.

    Quem me escutar, se um dia
       Ao prado for,
    Ore pelo descanso
       Do bom reitor.

Quem sabe se a inspiração d'estes versos, que se nos afiguram escriptos
muito antes de serem publicados, foi ainda o germen de que desabrochou,
recendente ao perfume das serras e colorido com as tintas mimosas das
flores do campo, o romance _Pupillas do senhor reitor_? Cremos que sim.
O grão que o semeador deixa cahir na leiva é na primavera flor, no
outomno fructo, e no inverno riqueza.

Assim tambem a ideia, que o espirito recebeu um dia, póde florir ámanhã,
fructificar depois, e opulentar para todo o sempre os celleiros onde se
apascenta a intelligencia humana. Toda a primavera foi botão, e o mesmo
sol, que ao meio-dia deslumbra, primeiro se mostrou dilucúlo...

No _Almanach das senhoras para 1871_ appareceu uma poesia de _Julio
Diniz_ epigraphada--_A folha solta do ulmeiro_--uma formosa
allegoria em que o coração da mulher, sedento de liberdade, é comparado
á folha do ulmeiro que, anciosa de desprender-se do tronco, voa um dia,
após as borboletas, impellida pelo ar, até que, depositando-se na terra,
fica perdida no monturo...

    Virgens, gravae na memoria
    Este conto verdadeiro;
    Que póde ser vossa a historia
    Da folha solta do ulmeiro.

Outros versos escreveria _Julio Diniz_ de que não obtivemos noticia; e
alguns deixou elle ainda por corrigir, motivo por que não podem e não
devem ser publicados.

Além d'estes, outros se encontram disseminados pelos seus romances, como
a lenda da _Cabreira_ e a _Trigueira_, nas _Pupillas do senhor reitor_;
o _Tabaco_ na _Familia ingleza_; e especialmente aquellas formosas
quadras da _Flor d'entre o gelo_, uma das quaes, em que o poeta
apostropha ás andorinhas,

    Só eu, que vos sigo com vistas saudosas
    Ao vosso desterro, dos mares além,
    Já quando ao prado brotarem as rosas,
    Talvez não reviva co'as rosas tambem,

parecia encerrar uma prophecia que infelizmente já se converteu em
realidade.


VI

Os padecimentos de Gomes Coelho aggravaram-se sobremodo desde 1868,
especialmente depois de escripto um pouco afadigosamente o romance
_Morgadinha dos canaviaes_.

Nem a ida a Lisboa, nem as distracções e passeios que os seus amigos
lhe proporcionavam, poderam suster o curso progressivo da doença,
accidentada no mez de setembro d'esse anno por uma dor nevralgica. A 20
d'outubro, dia em que se celebrava intimamente a festa natalicia do snr.
J. J. Pinto Coelho, assistiu, como tinha de costume, ao jantar de
familia, se bem que visivelmente incommodado. Os dias que se seguiram
foram para Gomes Coelho de verdadeira reclusão. No mez de novembro
augmentaram os padecimentos, e a pneumo-hemorrhagia foi mais violenta do
que precedentemente havia sido.

Em janeiro do anno seguinte (1869) resolveu-se a ir passar uma temporada
a Lisboa, hospedando-se n'uma casa da rua Direita da Graça, á Cruz dos
quatro caminhos, onde se conservou cerca d'um mez.

A vida de Gomes Coelho na capital foi triste e concentrada, chegando a
passar dias inteiros sem fallar com outras pessoas além das que estavam
de portas a dentro. Aconselhado pela medicina, cremos que pelo doutor
May Figueira, tomou a rapida resolução de partir para a Madeira. Tirou
passagem no vapor d'Africa e sahiu o Tejo no dia 5 de fevereiro. A cento
e sessenta leguas do continente, n'essa pyramide de terreno vulcanico
que se estende de leste a oeste sobre o oceano occidental,--a
Madeira--como disse o desventuroso Arnaldo Gama,[1] devia de
encontrar Gomes Coelho a pittoresca realidade d'esse formoso quadro que
traçara na _Flor d'entre o gelo_, «d'essa collina elevando-se graciosa
do meio de uma amplissima e vicejante bacia», onde uma constante chusma
de invalidos ia pedir allivio á piedade da milagrosa _Senhora da Saude_
e á profunda sciencia do doutor Jacob Granada.


    A maior parte d'estas casas (as que alvejavam por entre a verdura da
    encosta)--dizia elle--era habitada por uma população fluctuante de
    valetudinarios ou convalescentes que procuravam vigorar forças,
    respirando a pleno seio o ar purificado e livre das montanhas e dos
    bosques.

    Pela manhã, quando as névoas principiavam a dissipar-se e, por entre
    a folhagem das arvores, o sol penetrava mais fomentador de vida e ia
    evaporar o orvalho que ainda rociava as hervas dos caminhos, viam-se
    subir a collina, a passos vagarosos e com frequentes pausas, esses
    pallidos doentes, que pareciam renascer só ao receberem aquellas
    auras embalsamadas pelos perfumes das flores, e suavisadas pelos
    primeiros calores da manhã.

    Era o velho quebrantado e tremulo, parando a meio caminho da ladeira
    que subia, a fitar o céo, como se d'antemão procurasse decifrar o
    problema que em breve teria de resolver; o mancebo, inquieto e
    pensativo, de aspirações ardentes e subidas e em tão alto gráo que
    no empenho de as realisar lhe falleceram as forças e no forte da
    lucta sentia-se succumbir; a virgem, meiga e melancolica, como uma
    das mais ideaes creações ossianicas, errante por entre as arvores
    seculares ou pendida á borda das correntes, escondendo uma lagrima
    ou simulando um sorriso, manifestações diversas na apparencia e
    ambas denunciadoras tantas vezes d'uma grande tristeza interior; a
    mãe joven e doente, em torno á qual brincava um bando de creanças
    alegres e cheias de vida, ignorando, os innocentes, que todo o seu
    destino, que as suas alegrias ou as suas dores no futuro dependiam
    agora d'aquellas arvores, onde se balanceavam risonhas, d'aquellas
    virações que lhes açoutavam os cabellos soltos e annelados.

    Assim pois o luctar da vida e da morte era o que por toda a parte se
    via. Contrastes de esperança e de desalento, antitheses de sorrisos
    e de lagrimas formavam a feição mais caracteristica do quadro.»


Esta devia de ser a realidade do seu poetico ideal, ideal dizemos, se
bem que as almas privilegiadas pelo talento possuam a excepcional
intuição de lerem atravez do futuro os caracteres do seu mesmo destino...

Em maio d'esse anno, regressou Gomes Coelho da ilha da Madeira, posto
que bastante enfermo, relativamente muito melhor. Conservou-se no Porto,
tomando parte nos trabalhos escholares, e nos principios d'outubro
partiu para Lisboa, sahindo para a ilha no dia 15 do mesmo mez.
Regressou em maio do anno seguinte (1870) e nos primeiros dias d'outubro
tornou a embarcar para a Madeira, voltando á patria em maio de 1871.

Cumpre notar que em 1870 sahiram em volume, editados pela casa
Moré, e sob o titulo de _Serões da provincia_, os quatro
romancezinhos--_Apprehensões de uma mãe_,--_O espolio do senhor
Cypriano_,--_Os novellos da tia Philomella_, e--_Uma flor d'entre o
gelo_.

Durante as tres epochas que demorou na ilha foi que _Julio Diniz_
escreveu o seu ultimo romance--_Os fidalgos da casa mourisca_,--posto
que das duas ultimas alternasse os trabalhos de redacção com estudos de
economia politica. Em maio, como já dissemos, regressou ao Porto,
gravemente doente, atacado, além dos seus padecimentos chronicos e
fataes, d'uma dor sciatica.

Então devia já ter-se feito noite n'aquelle grande espirito, e a ideia
da morte havia de interpor-se, cada vez mais intensa e melancolica,
entre o presente e o futuro.

Declinava o sol; o occaso estava proximo.

Que dolorosos pungimentos de saudade lhe não havia de dar a cada momento
a memoria,--aquella vivaz e fiel memoria dos phtysicos,--ao recordar-se
dos tranquillos dias da sua mocidade, das suas excursões a Aveiro, a
Felgueiras, a Leiria, sempre rodeado d'amigos, sempre querido d'elles,
agora que, por uma barreira invencivel, se via, e para sempre,
distanciado d'um amigo que sinceramente o estimava,--o publico!


VII

Em Gomes Coelho tão identificados andavam o homem e o litterato, que não
havia surprehendel-os na menor contradicção. O mesmo é lêr os seus
versos, os seus romances sobretudo, e descortinar para logo a limpidez,
a tranquillidade, a nobreza d'aquella alma. Os quadros que devemos á sua
penna são placidos, azues e luminosos, e estes serenos esplendores que
lhes davam animação partiam directamente, sem jámais atravessarem um
meio viciado, do foco intimo e puro,--do seu grande e nobilissimo espirito.

Eu folgo muitas vezes de, seguindo o rumo da critica moderna, estudar o
_eu_ subjectivo no homem material e nas suas mil relações com a
sociedade. É um trabalho duplamente interessante, e tão curioso estudo
em ninguem mais dará tão promptos e satisfactorios resultados como
em Gomes Coelho.

Julio Cesar Machado, escrevendo ha pouco tempo ainda do popularissimo
doutor Thomaz de Carvalho, perguntava singela e intencionalmente:


    Conhecem o quarto? Gabinete de estudo, e museu de amador, tanto mais
    interessante que reflecte por alguma maneira o caracter, habitos,
    genero de predilecções de quem o constituiu com o gosto e cuidado
    inseparaveis de sua indole. Ha alli muito da sua individualidade; é
    tudo d'elle e por elle alli; uma especie de transfiguração de sua
    pessoa; como que o sobretudo d'aquelle espirito multiplice e
    fecundo. Ao mesmo tempo, quarto modesto e reservado--como convem
    para o estudo, não tendo sequer a indiscrição de olhar para as ruas.


Ora eu lembro-me de ter em 1868 visitado Gomes Coelho na casa em que
então morava no largo de S. João Novo. Entrei para o seu quarto,
modestamente mobilado, e pela elegante singeleza que reinava alli, pela
regularidade systematica, e pela graciosa disposição dos seus papeis e
dos seus livros recordava-se a gente subitamente dos romances de _Julio
Diniz_.

Devia de ser traiçoeiro aquelle quarto para os que não soubessem que o
mesmo homem absorvia as duas individualidades...

Coração d'ouro, affectuoso, impressionavel, caracter honesto, justo,
incapaz d'uma ligeira offensa, a si mesmo se daguerreotypa
involuntariamente nos seus romances, nos seus personagens admiraveis de
candura e pureza, porque em todos elles havia alguma coisa da sua alma.
«Eu encarno-me nos meus personagens--dizia elle a alguem da sua
familia--antes de os desenhar. Supponho-me elles, faço-os pensar o que a
mim me parece que pensaria em tal caso, obrigo-os a dizer o que eu diria
por ventura em identidade de circumstancias.»

Outros escriptores terão colorido mais vivo, mais pittoresco até; poucos
lograrão vencel-o na observação escrupulosa, na moralidade dos quadros,
na doçura dos assumptos, e finalmente no desenvolvimento dramatico da
acção, circumstancia importantissima, porque o romance é
simultaneamente narração e drama, dialogo e descripção, como observou
Pelletan.

Realista, porque elle o era em litteratura, jamais se occupou em
reproduzir os quadros negros da sociedade, as paixões revoltas e baixas,
as enormidades do crime, os typos ridiculos ou hediondos.

Suppondo mesmo que o não sabiamos, facilmente conheceriamos que o
espirito de Gomes Coelho fôra educado na leitura do romance inglez. Os
seus personagens, pelo menos em alguns dos seus livros, se não são tão
humildes, se não professam officios mechanicos, como os de George
Elliot, são typos escolhidos na galeria rustica do campo.

As suas novellas são chronicas d'aldeia, como elle mesmo as denominava.
Nos _Fidalgos da casa mourisca_ está completamente photographada a
indole do romance moderno que os inglezes adjectivam de sociologico.
Qual é o fim d'este romance? Que problema se propõe resolver? O
professor Buchner, da faculdade de lettras de Caen, escolheu ha pouco
tempo para assumpto d'uma conferencia interessantissima a nova direcção
que a litteratura britanica tem dado ao romance depois de Dickens e
Thackeray, «os heroes da satyra e do bom humor», como elle mesmo lhes
chama. Não bastavam as zombarias humoristicas d'estes dois romancistas,
as suas verberações violentas á burguezia e á nobreza para implantarem a
nova reforma social. Era preciso mais alguma cousa do que censurar o
mal;--era preciso apontal-o, sondal-o, e cauterisal-o. D'esta missão
humanitaria e prestimosa se encarregou o romance sociologico,
occupando-se primeiro que tudo da educação nacional, como fez Bulwer no
_Pelham_, e passando da familia, onde as creanças lhe merecem sérias
attenções, a combater na sociedade os velhos preconceitos, os monopolios
escandalosos, as tradições classicas, antigas inimigas da verdadeira
liberdade. Tudo isso se presente nos primeiros romances de _Julio
Diniz_, nas _Pupillas do senhor reitor_, por exemplo, onde a medicina
moderna, representada em Daniel, tem de fazer rosto á velha sciencia
hyppocratica de João Semana, e tudo isso se manifesta claramente nos
_Fidalgos da casa mourisca_, onde a aristocracia, ciosa dos seus
pergaminhos, lucta e porfia com a nobreza do trabalho, onde a
civilisação antiga digladia com a sociedade moderna, n'um combate
proficuo á humanidade.

Os romances de _Julio Diniz_ resentem-se portanto da sua educação
litteraria e, a meu vêr, compartilham das virtudes e dos defeitos do
romance sociologico inglez. Reflectidamente accusa o professor Buchner
os modernos romancistas da Inglaterra de descurarem um pouco a fórma por
attenderem demasiadamente á materia; finalmente de uma exuberancia
extrema de pormenores, e até de personagens, exuberancia esta que por
mais d'uma vez abafa o centro de gravidade, o verdadeiro heroe do romance.

De resto não ha ahi litteratura mais doce, mais consoladora, mais
orvalhada de lagrimas refrigerantes para os que na lucta ficam vencidos,
e mais cheia de serenas alegrias para os que, vencedores, recolhem os
louros do triumpho.

Na esphera do _realismo_, visto esta palavra andar hoje em voga, Gomes
Coelho está no polo opposto ao dos irmãos Goncourts, Zola, Gaboriau,
Feydeau, e muitos outros. Nós, «entendendo _realismo_ do unico modo por
que póde admittil-o a consciencia e confessal-o a razão, julguemol-o só
observador consciencioso, reproductor discreto» para nos servirmos das
palavras de Mendes Leal, e veneremos em Gomes Coelho, no _amavel
moralista_, como lhe chama o mesmo escriptor, essas qualidades que elle
possuia em grau eminentissimo.

Não é nosso intento, nem o comportam as exiguas dimensões d'um esboço
biographico, fazermos uma critica especial sobre cada livro de _Julio
Diniz_. Propozemo-nos simplesmente estudar-lhe a _maneira_, fazer sentir
a sua individualidade exclusivista, e com isso nos contentamos.

Céo limpido, atmosphera pura, montanhas vagamente esbatidas no
horizonte, campinas cobertas de flores e esmaltadas por aguas
scintillantes e suspirosas, a amenidade da aldeia n'uma palavra, a
natureza rude mas casta,--n'isto se resumia a _mise-en-scene_ dos
seus dramas. Os seus personagens não eram os pastores anachronicos de
Gessner ou Virgilio, os pegureiros ignorantes das alturas de Barroso.
Eram, como já deixamos vêr, os corações formosamente singelos, como as
flores d'entre as serras, o reitor, o herbanario, o camponez abastado, o
cirurgião, o fidalgo, e as mulheres cujos corações desabrochavam para
florir na primavera perpetua do bem. A mulher! oh! essa nobilitava-a
elle sempre, modelando-a pelo seu ideal de formosura e bondade,
pondo-lhe no coração balsamos para todas as chagas, conforto e
ensinamento para todos os obcecados pela paixão infrene. Destacam-se
sobre um horizonte azul, como a vela branca na amplidão das aguas
dormentes, os seus incomparaveis typos de mulher, ou estudemos a
Margarida das _Pupillas do senhor reitor_, ou a Jenny da _Familia
ingleza_, a Magdalena da _Morgadinha dos canaviaes_ e a Bertha dos
_Fidalgos da casa mourisca_. Sempre a mesma doçura, a mesma bondade
intelligente, a mesma elevação, a mesma pureza de ideias e sentimentos!

Notaremos de passagem uma circumstancia muito para significar até onde
ia a magnanimidade de Gomes Coelho.

Aproveitando o typo do velho cirurgião, mais experiente do que
instruido, com maior peculio de anecdotas do que de conhecimentos
scientificos, dando-nos aquelle interessante e completo João Semana das
_Pupillas do senhor reitor_, não foi para fazer d'elle a caricatura do
proto-medicato, um personagem grotesco e risivel, senão para nos obrigar
a estimarmol-o e a respeitarmos a sciencia antiga apresentada n'um homem
de nobilissimo coração. O mesmo não aconteceu a Silva Gaio, escriptor
eminente é certo, mas critico incisivo e quasi sempre apaixonado,
mormente em assumptos historicos, que fez do João Marques, do _Mario_, a
caricatura cruelmente verdadeira do charlatanismo medico.

Os romances de _Julio Diniz_ foram profusamente apreciados pela
imprensa. Além do seu valor real offereciam certa novidade para o
publico portuguez,--nacionalisavam o moderno romance britanico,
desconhecido em Portugal. Na vanguarda dos admiradores de Gomes Coelho
collocou-se espontaneamente o snr. Alexandre Herculano e, após elle,
muitos talentos distinctos da nossa terra sahiram a festejar o modesto
romancista portuense, para quem a justa gloria que lhe outorgavam era
mais um gravame pesado de que um galardão para a consciencia.

Obriga-nos a nossa qualidade de chronista a consignar um senão apontado
pela critica mais illustrada, sempre respeitosa e enthusiasta,
especialmente pelo snr. J. M. de Andrade Ferreira, na _Gazeta litteraria
do Porto_--era que _Julio Diniz_ falseava a cada passo a linguagem dos
seus personagens, recrutados na população dos campos, quando esta
linguagem devia ser singela, chan e rude para soar verdadeira e natural
aos ouvidos menos exigentes.

Pouco é o que do romancista temos dito, mas n'esta rapida apreciação,
assim exigida pela natureza d'um esboço biographico, concentramos as
nossas opiniões, que por menos contrahidas, não se alterariam n'um
estudo de mais latas dimensões.


VIII

Em junho de 1871 annuiu Gomes Coelho a retirar-se com a familia de seu
primo, o snr. José Joaquim Pinto Coelho, para a rua do Costa Cabral, na
enganadora esperança, que alimentavam os seus, de que a proximidade
benefica dos campos seria obstaculo à marcha, cada vez mais accelerada
da molestia.

Levou comsigo alguns livros, especialmente inglezes, a cuja leitura se
entregava com interesse. Não obstante os extremos carinhos da familia
que o rodeava, e a solicita assistencia dos seus intimos amigos, o
primeiro mez foi de continuo definhar, sendo-lhe já motivo
d'aborrecimento, muitas vezes, o rever as provas dos _Fidalgos da casa
mourisca_, que se estava imprimindo, apesar de auxiliado n'este trabalho
por seu primo, e podemos dizer enfermeiro, o snr. Pinto Coelho.

Assim foi declinando a vida de Gomes Coelho, até que á uma hora da
madrugada do dia 12 de setembro, tendo passado a noite com seu primo, e
o seu intimo amigo o snr. Custodio José de Passos, sem denunciar tão
proximo desenlace, exhalou o derradeiro alento, depois d'uma longa
agonia de tres quartos d'hora.

O _Jornal do Porto_, que fôra o primeiro a festejal-o, foi tambem a
primeira folha do paiz que divulgou a triste noticia do seu passamento,
n'estas sentidas palavras escriptas pelo meu amigo Sousa Viterbo, então
colaborador effectivo do mesmo jornal:


    Aproximam-se as tristezas do outomno e ás tristezas da natureza
    ajuntam-se as melancholias do coração.

    O paiz e as boas lettras acabam de perder um dos seus mais
    estimaveis talentos. Joaquim Guilherme Gomes Coelho expirou esta
    madrugada á uma hora.

    Mais que a nenhum outro jornal do paiz, ao _Jornal do Porto_
    cabe-lhe o dever de derramar uma lagrima de saudade sobre o tumulo
    do grande romancista. Foi nas columnas do nosso diario que o author
    das _Pupillas do senhor reitor_ principiou a sua brilhante carreira
    litteraria.

    Era com a maior avidez que os nossos leitores seguiam os folhetins
    do _Jornal do Porto_, quando esses folhetins publicavam as perolas
    da nossa litteratura, que se denominam--as _Pupillas do senhor
    reitor_, _Uma familia ingleza_, e a _Morgadinha dos canaviaes_.

    A Providencia não quiz conceder a Gomes Coelho mais um momento de
    vida para rever as ultimas provas do seu derradeiro romance--_Os
    fidalgos da casa mourisca_. Que saudades que não levaria elle do seu
    livro!

    Gomes Coelho não era sómente romancista: era tambem um homem de
    sciencia. Tres vezes concorreu ás cadeiras da Eschola-Medica e de
    tres vezes o seu talento robusto deixou um rasto fulgurante. Todos o
    reconheciam como uma das primeiras capacidades d'aquelle
    estabelecimento scientifico.

    Como Soares de Passos, de quem foi amigo, Gomes Coelho deixa uma
    lacuna difficil de preencher na nossa litteratura. A sua carreira
    litteraria estava por completar ainda. A sua imaginação estava ainda
    fresca como um dia de primavera. Que de flores que se não perderam;
    que de fructos esmagados sob a lousa d'um tumulo!

    Gomes Coelho deixou retratado o seu espirito nas paginas suaves,
    doces, innocentes dos seus romances. Era uma alma singela como as
    scenas que tão delicadamente nos descrevia. Observador profundo,
    enamorava-se do que havia de bello na alma popular e deixava no
    escuro as miserias que ennegrecem a vida. Comprehendia que a
    litteratura tinha uma sacrosanta missão e nunca manchou a sua penna
    nas torpezas da comedia humana.

    Gomes Coelho ha muito que se debatia com as agonias da doença. O seu
    espirito de gigante debalde luctava com a debilidade do corpo. Os
    seus profundos estudos, a sua assiduidade no trabalho deviam-lhe
    minar forçosamente a existencia. Debalde procurou na ilha da Madeira
    allivio aos seus padecimentos. Os amigos que o viram partir da
    ultima vez ficaram nutrindo a esperança de que os ares purificados
    da perola do oceano lhe dariam novo alento. A esperança foi
    illudida.

    Durante a sua estada na ilha da Madeira, Gomes Coelho conviveu com
    um talento privilegiado, a quem o _Jornal do Porto_ deveu tambem os
    thesouros opulentos da sua penna. Mais feliz que Francisco de Paula
    Mendes, Gomes Coelho veio morrer ao solo natal, entre os amigos que
    o queriam e a familia que tanto o estremecia.

    Entre os membros d'essa familia conta-se um confrade nosso (era o
    snr. J. J. Pinto Coelho, então nosso redactor) que a estas horas
    verga ao pêso d'uma dor excruciante. Enviamos ao confrade amigo e
    aos seus o testimunho da nossa profunda magua.


Na typographia estava-se compondo o segundo volume do seu romance,
quando a noticia da morte de Gomes Coelho corria de bocca em bocca,
despertando geral commoção. Mezes depois, em janeiro de 1872 sahiam a
lume os _Fidalgos da casa mourisca_. E todavia, áquella hora em que a
triste nova circulava de praça em praça, de casa em casa, restava apenas
do grande talento de Gomes Coelho um cadaver preparado para o sepulchro,
ao sopé d'um Christo alumiado pela luz arquejante dos cirios.

O _Jornal do Porto_, fazendo-se cargo de acompanhar á ultima morada os
despojos mortaes do escriptor cuja gloria primeiro prophetisara,
escrevia no dia seguinte:


    Baixou hontem á terra o cadaver do chorado e talentoso escriptor,
    cuja morte prematura noticiamos na nossa folha de terça-feira.

    Os responsos de sepultura foram rezados na velha Igreja de
    Cedofeita. Era grande o numero das pessoas que assistiram a este
    acto funebre: entre ellas o corpo docente da Eschola-Medica, de que
    o finado fazia parte, e alguns professores de outras corporações
    scientificas e litterarias.

    Pegaram ás azas do caixão seis dos antigos condiscipulos do snr.
    Gomes Coelho, a quem elle tinha na conta de seus mais caros amigos.
    Foram os snrs.: Ernesto Pinto d'Almeida, Augusto Luso da Silva,
    Eduardo Augusto Falcão, José Augusto da Silva, Miguel Teixeira Pinto
    e José de Macedo Araujo Junior.

    A chave do caixão foi depositada nas mãos d'um dos mais intimos do
    fallecido, o irmão do grande poeta que escreveu a _Visão do
    Resgate_. No rosto do snr. Custodio de Passos desenhava-se a dor do
    triste sacrificio que lhe impunha a amizade.

    Entrou no seio da natureza o corpo d'aquelle que tão bem a tinha
    sabido representar nos seus quadros de poesia campestre. O seu
    espirito, porém, ficou encarnado nos seus livros e viverá entre nós
    emquanto se souber prezar a belleza das grandes obras d'arte.

    O nome de Gomes Coelho não é d'estes nomes ephemeros que se gravam
    em lettras douradas no marmore d'um tumulo luxuoso.


Eu, profundamente impressionado pela morte de Gomes Coelho e obrigado
a sahir do Porto, por motivos extranhos á minha vontade, no dia
do seu enterro, fui dos primeiros a depôr uma flôr de saudade no
tumulo havia pouco cerrado, porque era realmente um dos seus mais
sinceros admiradores. Nas ultimas paginas do livro--_Esboços e
episodios_--escrevia eu emboscado n'umas paragens sombrias do concelho
de Sinfães:


    D'esta vez já cá não encontrei as andorinhas. Sahi do Porto dias
    depois d'ellas partirem, e mais uma vez averiguei que sempre com
    ellas emigra para mais lucidas espheras a alma d'um poeta que
    succumbe á melancolia do outomno. Este anno as andorinhas e a alma
    de _Julio Diniz_ partiram ao mesmo tempo. Estava a natureza de
    lucto, e a litteratura tambem.

    Era um dia triste, pesado, chuvoso.

    As andorinhas poisaram em bando nas cornijas musgosas da igreja de
    Cedofeita. Estavam a discutir provavelmente a necessidade de
    emigrar, a combinar talvez a hora da partida.

    Michelet no seu formoso livro denominado--_L'Oiseau_--cita um
    exemplo eloquente d'estas discussões animadas das andorinhas
    momentos antes da partida. As pobrezinhas sacudíam, tremendo, os
    pingos d'agua que lhes emperlavam as pennas. Estavam amedrontadas da
    neblina. Deviam partir. De repente reboam os echos do campanario com
    uma toada lugubre. Era a voz do sino que annunciava o passamento de
    Gomes Coelho. Não pensaram mais um momento, não reflectiram
    siquer.[2]

    Partiram em direcção ao mar, atravessando os campos.


Pobre scismador, que sentia dentro do craneo a chamma dos predestinados
para a gloria e no peito a urna embalsamada d'um coração sem macula, com
que inexplicavel melancolia, e porque longas horas de dilacerante
angustia, não veria elle destacarem-se, nos campos visinhos, sobre o céo
pardacento do outomno, os troncos das arvores cada vez mais despidos e
solitarios! Era aquelle um sentir-se resvalar para o tumulo, dia a dia,
um despedir-se lentamente das suas affeições, dos seus romances que
resumiam horas de enlevo e melancolia, e do seu ultimo livro,
especialmente do seu ultimo livro, folha, que, ao voar do recinto da
familia para a officina typographica, fôra talvez rociada pelas lagrimas
furtivas d'um presentimento pungente.

Era que tinha de ser a ultima d'uma primavera que, em pleno esplendor de
suas galas, via enovelar-se ao longe, avançando sempre, a nuvem negra do
simoun que levaria após si folhas e flores para abysmar umas e outras
nos despenhadeiros do sepulchro.

E a nuvem aproximou-se, e o simoun passou, e tudo o que estava ainda
enthesourado nos cofres opulentos da primavera perdeu-se, mas a folha
verde dos intimos vergeis tinha já voado, nas brisas suavissimas da
gloria, a enastrar-se n'uma corôa entretecida por outras, suas irmãs,
porque da mesma seiva se nutriram, e que pairava a uma altura superior
ás impetuosas correntes que impellem o homem desde a vida inconsciente
do berço até aos abysmos insondaveis da eternidade.

De Gomes Coelho só morrera o homem; o escriptor ficara.


FIM


    [1] _A Caldeira de Pero Botelho_, romance, pag. 200.

    [2] N'esta ruim profissão das lettras, tão escassa de rendosos
    benesses, é licito orgulhar-se a gente de certos galardões
    espontaneos que lhe dão á alma um momento de conforto. Por tal razão
    se transcrevem as palavras que nos enviava o snr. D. Antonio da
    Costa com relação ao artigo transcripto:

    «Mando-lhe um abraço pelo sentido artigo biographico que escreveu a
    respeito do pobre _Juio Diniz_. Li-o, e muito gostei d'elle.»





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