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Title: Os netos de Camillo
Author: Pimentel, Alberto, 1849-1925
Language: Portuguese
As this book started as an ASCII text book there are no pictures available.


*** Start of this LibraryBlog Digital Book "Os netos de Camillo" ***


    Notas de transcrição:

    O texto aqui transcrito, é uma cópia integral do livro impresso
    em 1901.

    Foi mantida a grafia usada na edição original de 1901, tendo
    sido corrigidos apenas pequenos erros tipográficos que não
    alteram a leitura do texto, e que por isso não foram assinalados.



                          _ALBERTO  PIMENTEL_


                         _Os Netos de Camillo_

                               LISBOA
                    EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
                          Sociedade editora
                          LIVRARIA  MODERNA
                          _R. Augusta,  91_
                            TYPOGRAPHIA
                         _35, R. Ivens, 37_
                              MDCCCCI



                          OS NETOS DE CAMILLO



    [Ilustração: CAMILLO CASTELLO BRANCO

    _(Copia de um retrato a crayon que pertence aos netos do grande
    escriptor)_]



                          _ALBERTO  PIMENTEL_


                         _Os Netos de Camillo_


                                        Das flôres surgirão pomos?...
                                        Se Deus regar os arbustos!

                                            TOMAZ RIBEIRO.

                               LISBOA
                    EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
                          Sociedade editora
                          LIVRARIA  MODERNA
                          _R. Augusta,  91_
                            TYPOGRAPHIA
                         _35, R. Ivens, 37_
                              MDCCCCI



    [Ilustração: D. ANNA ROSA CORREIA]



OS NETOS DE CAMILLO


Fui hontem, 20 de agosto, a S. Miguel de Seide fazer uma romagem de
saudade.

Quando Camillo era vivo, sempre que eu vim a Santo Thyrso não deixei
nunca de visitar o grande romancista na sua melancolica Thebaida.

Agora que elle é morto e repousa longe, no cemiterio da Lapa, fui em
peregrinação devota contemplar o tumulo em que viveu e agonisou: a casa
solitaria de Seide, onde cada pedra parece ser um epitaphio que chora
resignadamente por elle no silencio e na mudez de uma aldea minhôta.

Esta casa, a que o proprio Camillo chamou «o albergue arruinado de S.
Miguel de Seide», é uma reliquia historica, um monumento nacional, como
a casa de Shakspeare em Stratford-sur-Avon ou como a casa de Goethe em
Francfort.

É ou deve ser.

Para mim tem o que quer que seja de venerando, como um castello
desmantelado, onde a nossa gente tivesse ganho outr'ora cem victorias
gloriosas, de que eu proprio houvesse sido testemunha...

Sahi de Santo Thyrso ao amanhecer e almocei em Landim.

Devo ao sr. Adriano Trêpa, meu presado amigo, a honra de acompanhar-me.

Vi de passagem a cêrca do antigo mosteiro de Landim, hoje propriedade da
familia Leal e Sousa.

Um filho do dono da casa, o sr. Manuel Vicente Leal, que ia a sahir
n'esse momento, retrocedeu de bom grado para nos servir amavelmente de
cicerone.

Eu, quando viajo, não gosto de fazer prevenções, nem aos outros, nem a
mim proprio. Sou o viajante mais despreoccupado que pode haver;
entrego-me inteiramente ao acaso, e sempre me tenho dado bem com isso.

A cêrca do mosteiro está transformada; poucos vestigios restam ainda do
tempo dos frades. Ha trechos de buxo em algumas ruas, e «o jogo da
bola», que era vulgar nos conventos do sexo masculino, subsiste menos
mal conservado.

As freiras, se cultivavam este jogo, era no plural...

Já posteriores á extincção das ordens religiosas, vi carvalheiras
enormes, medindo de circumferencia mais de quarenta palmos. Uma d'ellas
fôra lascada por um raio, de alto a baixo. Vi tambem, digna de menção,
uma rua de australias, arvores cujo cerne imita o pau preto e é, por
isso, madeira apreciada.

Conversando com o sr. Manuel Vicente, perguntei-lhe se Camillo teria
phantasiado muito a respeito do _Cego de Landim_.

--Nada, absolutamente. Camillo ainda não disse tudo. O «cego» era um
perverso homem.

--E onde morava aqui?

--N'uma casa por detraz d'aquella capella.

Indicou-me a capella de S. Braz, onde todos os annos se realiza uma
pomposa festa, com arraial e feira.

Tambem o sr. Manuel Vicente me indicou o antigo collegio de Landim, em
que foram educados muitos rapazes do Minho, que hoje são honra e brilho
da sua provincia.

O sr. Trêpa e eu fomos almoçar á estalagem do Rodrigues, n'uma varanda
envidraçada, que dava sobre campos emplumados de basto arvoredo.

Notei que Landim é uma terra abundante de alfaiates. Só á porta de uma
casa, vi sete trabalhando ao ar livre; fizeram-me lembrar a historia dos
sete alfaiates lendarios, que foram precisos para matar uma aranha.

Mal acabamos de almoçar, partimos para Seide, onde chegamos perto das
dez horas da manhã. O sol tinha já descoberto; a nevoa, que havia sido
intensa, dissipara-se completamente.

      *      *      *      *      *

Os meus olhos esperavam avidamente o momento de avistar a casa que fôra
de Camillo.

Tomados de um instinctivo respeito, iamos ambos calados, o sr. Trêpa e eu.

De repente, surgiu-nos o portão ensombrado por duas grandes acácias, que
pendem sobre elle.

--É ali! disse eu.

--É ali! repetiu o sr. Adriano Trêpa.

E, passando respeitosamente por deante do portão, que dá para o largo da
egreja parochial, dirigimo-nos á casa onde actualmente residem os netos
de Camillo, a dois passos de distancia.

Toda a gente se lembra ainda da deploravel questão que, a meu pezar,
sustentei com o visconde de S. Miguel de Seide, segundo-genito de
Camillo, sobre a existencia de uma filha natural do grande romancista,
casada no Porto.

Tive receio de que a recordação d'essa acerba polemica estivesse ainda
muito viva no espirito da sr.ª D. Anna Rosa Corrêa.

Adoptei por isso a precaução de apresentar-me sob o nome que primeiro me
lembrou, ao solicitar o obsequio de ser recebido como admirador
fervoroso de Camillo.

Acolheu-me gentilmente a dona da casa, que immediatamente chamou alguns
de seus filhos, não todos, porque dois d'elles, Camillo e Manuel, tinham
sahido pela manhã.

Notei que por vezes a sr.ª D. Anna Corrêa, mãe d'aquellas creanças
herdeiras de um nome glorioso e de pouco mais, me observava com certa
curiosidade.

Soube comtudo manter-se n'uma discreta reserva, não arriscando duvida
alguma sobre a minha identidade.

Fingiu acreditar que eu era «um Araujo» admirador de Camillo, desejoso
de conhecer os netos do grande romancista e de visitar a casa onde elle
morreu.

Apresentou-me Flora, sua filha mais velha, quinze annos de idade, alta e
elegante como um pinheiro novo, de uma simplicidade de maneiras ao mesmo
passo graciosa e senhoril; e Rachel, quatro annos mais nova, cujo vago
olhar revela morbidez e melancolia.

--Esta menina, disse-me a sr.ª D. Anna Corrêa, era a predilecta da avó.

--Aventuro-me a conjecturar, respondi eu, que o nome de Rachel foi
escolhido por Camillo.

--Isso mesmo... confirmou a minha amavel interlocutora esboçando um
sorriso. Nós queriamos que se chamasse Anna, como a sr.ª viscondessa,
mas o sr. visconde (Camillo) oppoz-se, dizendo que esse nome era infeliz
na familia. Referia-se á sr.ª viscondessa e a mim...

--Rachel, observei eu, exprimia na vida de Camillo a saudade do passado.
Com esse nome foi designada a sr.ª D. Anna Placido em muitos dos versos
amorosos que ella lhe inspirou.

--Exactamente. É verdade.

Apresentou-me depois os restantes filhos que estavam em casa: Nuno e
Simão, em cujas physionomias, doces e intelligentes, prevalece um
accentuado typo de familia.

--Simão, observei eu, tambem foi um nome intencionalmente escolhido.

A sr.ª D. Anna confirmou com um gesto.

--É o do protogonista do _Amôr de perdição_, acrescentei. Oxalá que este
menino seja mais feliz.

      *      *      *      *      *

Como eu tivesse insistido no desejo de vêr o pequeno Camillo, por saber
que era o neto querido do avô, foram procural-o emquanto conversavamos a
respeito de seus irmãos.

E iamos já a sahir em visita á casa onde o grande Camillo morreu, quando
appareceu o joven Camillo, denunciando um certo ar de extranheza no
olhar suavemente penetrante e perspicaz.

--Este menino, disse-me a sr.ª D. Anna, nasceu a 16 de maio de 1888, no
mesmo dia em que o avô fazia annos. Nos _Amores de Camillo_ vem esta
observação, que é exacta.

Procurei mostrar-me indifferente á citação do meu livro, comquanto me
fosse agradavel a certeza de que a sr.ª D. Anna Corrêa o conhecia e
indicava como fonte auctorisada em minudencias biographicas.

A physionomia do pequeno Camillo é, em verdade, a mais expressiva entre
todos os netos do grande romancista.

Essa creança revela uma luminosa precocidade de intelligencia. Não sendo
robusto, como nenhum dos seus irmãos o é tambem, parece mais debil e
menos expansivo que elles. Tem o que quer que seja de gravidade
prematura quando escuta enconchando a mão sobre a orelha direita, porque
padece de dureza de ouvido, como seu irmão Nuno. Tudo faz esperar que
elle seja o continuador da gloria literaria do avô. Esta convicção
parece estar arreigada no espirito de toda a familia, que a recebeu do
grande romancista, o qual dizia muitas vezes ao pequeno Camillo:

--Se eu tornar a vêr, vou comtigo para Coimbra.

Apezar dos escassos recursos de que a sr.ª D. Anna Corrêa dispõe, julgou
seu dever não se poupar aos maiores sacrificios para iniciar
convenientemente a educação d'este filho.

O pequeno Camillo estuda em Braga, onde vae cursar agora o terceiro anno
do curso geral dos lyceus.

      *      *      *      *      *

As terras de Seide não podem abastar ao sustento e educação de tão
numerosa prole. Dariam regular passadio para uma ou duas pessoas,
apenas. Mas para educar tantas creanças não chegam. De mais a mais estão
oneradas com um pezado fôro de setenta razas de milho alvo e centeio,
pago annualmente ao abbade, e com os juros de uma hypotheca á
Misericórdia de Villa Nova de Famalicão. São terras sêccas e por isso
pouco fecundas: apenas alli tem maior valor a casa de habitação, que foi
mandada construir pelo visconde de S. Miguel de Seide, e que é muito
superior em capacidade e aspecto áquella em que o grande romancista
viveu e morreu.

A hypotheca abrange tambem este ultimo predio.

A pensão que foi votada pelo parlamento a Camillo Castello Branco,
cessou com a morte de seu filho Jorge.

Portanto os descendentes de Camillo, se lhes não acudir o Estado, como
deve, terão de luctar com as maiores difficuldades para receber educação
condigna do nome illustre que representam.

--Ver-me-hei na necessidade, dizia-me a sr.ª D. Anna, de mandar este
menino (Camillo) para o commercio no Porto ou em Braga, bem como os outros.

E o seu rosto, macerado pelos desgostos e trabalhos da vida, que a
envelheceram prematuramente, cobria-se de uma espessa nuvem de
melancolicas apprehensões.

    [Ilustração: FLORA]

--Tenho feito quanto tenho podido, continuou a sr.ª D. Anna, a bem
d'estes meninos, mas não poderei aguentar por muito mais tempo tão
difficil esforço. Flora fez exame de instrucção primaria. Nenhum dos
outros irmãos é analphabeto. Manuel, que não lhe posso apresentar, está
em Landim a dar lição; só recolhe á noite. Nenhum dos meus filhos tem
repugnancia pela instrucção, nem é preciso chamal-os para irem á escola,
sendo Camillo o mais madrugador e estudioso de todos. Triste de mim, se
tiver de lhes dar um destino que não seja o das letras. Mas não posso...
não posso.

Não foi como consolação banal que lhe respondi:

--Não desespere, minha senhora. Portugal é prodigo em conceder pensões,
e este acho eu que será o menor defeito de toda a nossa administração
publica, porque mais vale evitar que alguns portuguezes morram á fome,
do que dar um triste exemplo de ingratidão nacional. Todos nós sabemos
que esta ou aquella pensão é, entre muitas outras, mais explicavel pela
generosidade do que pela justiça. Mas a que se conceder á memoria de
Camillo, na pessoa de seus netos, pelo menos até á maioridade d'elles,
alem de poder ser a mais parcimoniosa de todas, será a mais justa entre
as que a si mesmas se justificam plenamente. Camillo é um d'estes
escriptores que representam uma nacionalidade: a sua obra é a alma de um
povo.

A sr.ª D. Anna enxugou uma lagrima nos seus olhos de um azul muito
claro, tão quebrados pelo soffrimento como o poderiam ser por uma longa
vigilia.

Quantas noites, em verdade, não desvelará esta boa creatura a pensar no
incerto futuro de seis filhos, entregues ao seu heroismo maternal, unica
força que parece vitalisar-lhe o corpo depauperado pela anemia e
envelhecido prematuramente por uma vasta serie de inconfessaveis desgostos!

Depositária de um nome illustre, e de uma das mais solidas glorias
literarias do nosso tempo, que deverá restituir intacta a seus filhos
depois de os ter preparado de modo a saberem continual-a dignamente, a
sua missão é espinhosa e agra, sobretudo se a patria a desamparar, o que
seria um crime affrontoso, e uma ingratidão odiosa.

Os netos de Camillo, vivendo n'um affastado rincão do Minho, entre dois
campos hypothecados, não téem a espreital-os a _reportagem_ dos jornaes,
a vigilancia dos Argus de botequim, nem a attenção dos centros
literarios e aristocraticos. Os montes que os rodeiam, não deixam vel-os
de longe; especialmente de Lisboa. É preciso lembral-os, pol-os deante
dos olhos da patria, e esse é o unico intuito que inspirou a publicação
d'este opusculo.

Dilemma inilludivel: Deixar ao abandono seis creanças, que hão de
perpetuar uma geração illustre, ou protegel-as com uma exigua mealha,
que abastará ás modestas necessidades de pessoas educadas na vida aldeã,
no trato simples de camponezes, e sobriamente habituadas ao caldo verde
do Minho.

Quem deixará sossobrar em tão fragil batel seis creanças desprotegidas,
podendo facilmente salval-as, e com ellas uma das mais authenticas e
genuinas glorias nacionaes?

Ninguem. A consciencia publica é o ultimo alento que morre nos povos que
se deixaram enfermar de leviandades e desacertos continuados. Nós somos
um povo doente d'essa pécha. Mas a consciencia ainda reage por vezes,
brada, impõe-se, faz-se ouvir e attender.

Entreguemos, pois, esta demanda á consciencia publica.

O unico dos netos de Camillo que eu não pude vêr em S. Miguel de Seide,
foi Manuel, o mais novo, nascido em 1893.

O seu nome tambem obedeceu a uma propositada escolha: era o do pae do
grande romancista.

A julgar pelo retrato, parece ser o mais alegre de todos elles,
privilegio que a sua edade, aliás, explica.

      *      *      *      *      *

Acompanhados pela sr.ª D. Anna Corrêa, dirigimo-nos, o sr. Adriano Trêpa
e eu, para a casa onde morreu Camillo, a qual está actualmente
deshabitada, com excepção do pavimento terreo, que é residencia do caseiro.

Aberto o portão, entramos na sombra de uma latada de alvaroco, cujos
cachos brancos pendiam vagamente doirados por tenues raios de sol, que
as folhas verdes coavam.

Olhei logo para um recanto, á esquerda, onde eu sabia existir o
monumento commemorativo da visita de Castilho, «o principe da lyra
portugueza», a S. Miguel de Seide, em julho de 1866.

Castilho, que partira de Lisboa acompanhado por seu filho Eugenio, tinha
alli, n'aquelle torrão do Minho, uma côrte de letrados, verdadeira
_côrte n'aldeia_, a render-lhe homenagem: compunham-n'a Camillo, Anna
Placido, Thomaz Ribeiro e Vieira de Castro.

A inscripção está quasi apagada, como já se apagou tambem a vida das
pessoas a quem ella se referia. Cresceram hervagens e ramos que
sombriamente afogaram o monumentosinho. Parece um tumulo esquecido na
solidão de um cemiterio.

Recordei então a dedicatoria da _Maria Moysés_ a Thomaz Ribeiro.

Quando eu estava olhando para aquella pedra triste, visinha silenciosa
de uma casa não menos triste, assomou ao portão um individuo, que
desconheci, um velho rijo, de physionomia agradavel, cujo trajo me
denunciou logo o camponez polido.

A sr.ª D. Anna Corrêa apresentou-m'o, pois que o sr. Trêpa já o
conhecia: era o sr. Francisco Corrêa de Carvalho, dedicado amigo de
Camillo, quasi familiar na casa de Seide, e proximo visinho.

Como notasse que eu estava olhando para o monumento, o sr. Carvalho,
muito expansivo, contou logo que um dia, nos ultimos annos da vida de
Camillo, parára um trem ao portão, o que deu rebate de uma visita
inesperada, facto que de longe a longe acontecia.

Camillo preparou-se para receber algum amigo; mas não apparecia ninguem.
Sahiram varias pessoas, entre ellas o sr. Carvalho, a averiguar o
extraordinario caso da carruagem, que parecia ter vindo vasia e parado
ali sem destino.

Então descobriram o vulto de um homem junto ao monumento, e voltado para
elle. Aproximando-se cautelosamente, pé ante pé, reconheceram n'esse
extranho visitante, Thomaz Ribeiro, que chorava, abraçando-se com a pedra.

Chorava memorias do passado, memorias de si mesmo, da sua mocidade
longinqua, de Castilho morto, de Vieira de Castro duas vezes morto,
primeiro no tribunal, depois no tumulo; do filho de Castilho, apodrecido
n'um leito, e de Camillo, ali tão proximo, crucificado no Calvario de
todas as dores reaes e imaginarias que lhe attribularam incessantemente
a existencia.

Fiz reparo em que o sr. Carvalho, chamando de parte o sr. Trêpa, trocára
com elle algumas palavras.

Tive depois a explicação d'este incidente; e o leitor tel-a-ha tambem, a
seu tempo.

Mas, rapidamente, o sr. Carvalho voltou a falar comigo ácerca do
monumento, e do facto que elle memorava: a visita de Castilho a Seide.

--Fez-se aqui, dizia-me o sr. Carvalho, uma linda illuminação. Vieram
cantadores, entre os quaes se distinguiram o _Gallego_ e a _Rosa
Cantadeira_. Castilho mostrou-se admirado com os improvisos do
_Gallego_, sempre espontâneos e, por via de regra, muito maliciosos.
«Quero, dizia Castilho, que me descrevam a cara d'este homem; que pena
tenho de o não vêr! Mas calculo que a sua physionomia ha de ter tanta
expressão como a de um actor comico. Por força!» Nunca mais, concluia o
sr. Carvalho, poderei esquecer essa noite de festa, que foi talvez a
unica noite feliz n'esta casa.

Emquanto o sr. Carvalho discursava com a verbosidade ardente de um
rapaz, poisei os olhos sobre a _acacia do Jorge_, de cujas amplas
frondes cahia uma sombra profunda e saudosa.

E fui repetindo, irreflectidamente, os versos de Camillo:

    Quando a acacia do Jorge ainda outra vez inflore,
    Chamai-me, que eu de abril nas auras voltarei.

A sr.ª D. Anna Corrêa, encostada n'esse momento ao mainel da escada, que
iamos subir, disse com maviosa expressão de tristeza:

--Tantas vezes tem já florido, depois que elle morreu!

Eu completei mentalmente o seu pensamento: «E ainda não voltou...»

Noticiei á sr.ª D. Anna que um poeta da moderna geração, dos melhores,
se não o melhor, havia recentemente cantado _A acacia do Jorge_ em
quadras maviosas, de que brotavam lagrimas em fio, melancolicamente,
como gotas d'agua cahindo tristes de uma fonte solitaria.

Posso agora completar essa informação, reproduzindo integralmente a
poesia de Affonso Lopes Vieira:

        A ACACIA DO JORGE

    Camillo! como acreditar, como hei de
    Entender estes versos que deixaste?
    Floriu a Acacia em S. Miguel de Seide,
    Cada anno te espera,--e não voltaste!

    Já tantas vezes deu a sombra amiga,
    Que tu gostavas tanto de gozar...
    Florida, tem um ar de festa antiga
    Na esperança de te vêr voltar!

    Voltar? A velha arvore que cance!...
    Por fim ha de ruir, n'uma amargura.
    Prepáras lá um ultimo romance?
    Suprema indiscreção! Genio e loucura!

    Dolorosa novella desmanchada,
    E que nos deixe pallidos e absortos,
    Onde nos digas, grande camarada,
    O gordo amor de brazileiros mortos!

    Os Amorosos, que se vão chorando
    Á porta do convento, e amortalhar-se...
    Com habitos de terra aconchegando
    Os esqueletos de ossos a chocar-se...

    Um romance da cova, com morgados
    Que o além desbastou; com almas finas
    De mysticas de Amor, lindas Meninas
    Em mosteiros chorando, abandonados!

    E a descomposta, lugubre risada
    De romantica bocca, que era a tua,
    N'esses reinos da Morte gargalhada
    Sobre defuntos namorando á lua!

    E toda a vã e toda a derradeira
    Esperança do cabo da viagem;
    Com descriptivos, á tua maneira,
    D'esse Minho da Morte da paisagem...

    Ó Acacia! é já tempo: desesperas?
    Não te ponhas florida, põe-te aos ais!...
    Nunca mais voltará esse que esperas,
    Ouves bem este horror? Jámais! Jámais!

    E os versos d'elle, onde a saudade existe,
    Que á despedida te gritou tambem,
    Ah! não são mais que uma mentira triste:
    Como tudo, a final, que nos faz bem.

    Poetas! perguntae ao pensamento
    Que mais chimeras e desgraças forge?
    Antes te séque um raio, ou parta o vento!
    Ó Acacia do Jorge...

      *      *      *      *      *

Fomos subindo vagarosamente os degraus da escada de pedra, sobre a qual
pende, chorosa, a farta ramagem da acacia. O caseiro tinha aberto as
portas. Entrámos. Todos nós, os homens, nos descobrimos a um tempo,
respeitosamente.

A lembrança do que eu vira ali ha dezeseis annos aclarava-se no meu
espirito com uma grande nitidez de saudade rediviva.

Eu ia dizendo:

--Era aqui a casa de jantar.

    [Ilustração: CAMILLO]

A sr.ª D. Anna Corrêa confirmava.

Passámos depois á sala em que estivera o bilhar e onde Camillo costumava
receber as suas visitas de maior cerimonia.

A sr.ª D. Anna disse, indicando o vão de uma janella:

--Foi aqui que se matou, sentado na cadeira de baloiço.

E, longamente, a sr.ª D. Anna reconstituiu todo esse rapido drama de
desespero atroz.

--O sr. visconde (Camillo) estava vivendo comnosco, no outro predio,
onde habitava o melhor quarto do segundo andar. Mas sempre que tinha
visitas, vinha aqui recebel-as. Foi o que aconteceu n'esse dia, quando
chegou de Aveiro o medico Edmundo Machado, que já tambem falleceu. O sr.
visconde parecia tranquillo antes do medico chegar.

O sr. Carvalho interrompeu, dizendo:

--Na vespera tinha andado a passeiar pelo meu braço ali no largo, em
frente da egreja. Como começasse a soprar uma aragem fresca, o sr.
visconde disse-me: «Vamos embora, que tenho medo de uma pneumonia.»
Ainda na vespera do suicidio temia tanto a morte!

--É verdade! confirmou a sr.ª D. Anna Corrêa. Perguntou o sr. visconde
ao medico se quereria encarregar-se de o tratar da cegueira em Aveiro. O
doutor respondeu que seria melhor ir primeiro tomar as aguas do Gerez. O
sr. visconde viu certamente n'estas palavras o artificio de uma dilação
para evitar um desengano. Momentos depois o medico despediu-se, e a sr.ª
viscondessa e o sr. Carvalho acompanharam-n'o até á escada. Ouviu-se
então a detonação de um tiro. Retrocederam todos. O sr. visconde estava
prostrado na cadeira, arquejando. Não se lhe viu, no primeiro momento,
ferimento algum. Foi só algum tempo depois que uma gotinha de sangue
aflorou no sitio onde a bala entrára, sobre a tempora.

--O sr. visconde, perguntei eu, trazia sempre comsigo o rewolver?

--Sempre; já o levára a Lisboa, onde um dia o experimentou, disparando
para o tecto. Mas o filho (Nuno) tinha substituido as balas por uns
projecteis inoffensivos, não sei de quê. O sr. visconde percebeu isto.
Todavia não largára mais o rewolver, nem consentia que lh'o tirassem.

--De tanto o apalpar, observou o sr. Carvalho, já tinha a coronha poída.

A sr.ª D. Anna Corrêa concluiu a sua dolorosa narrativa dizendo:

--Estavamos longe de imaginar que tivesse adquirido balas verdadeiras.
Todos suppunhamos o rewolver vasio. Foi uma surpreza terrivel.

E todos nós, depois d'esta rapida reconstituição do drama de Seide, nos
demorámos ali, concentrados e silenciosos, por alguns momentos, como se
vissemos ainda Camillo, prostrado e arquejante, na sua cadeira de
baloiço, morrendo.

      *      *      *      *      *

Subimos depois ao segundo andar.

Eram ahi o escriptorio do romancista e os quartos de cama.

No escriptorio, por onde agora a luz golphava livremente, restavam do
antigo mobiliario duas cadeiras de estofo, escanceladas e poentas.

A nudez da sala, que o auctor de cem romances aquecera outr'ora com a
irradiação vulcanica do proprio cerebro, gelou-me de tristeza. Dava a
impressão de uma forja apagada. O tempo havia esfriado o rescaldo do
ultimo livro. A officina parecia dormir tambem o somno da morte, que
prostrára o valoroso artifice.

Os aposentos de Camillo, alcova e saleta, estavam igualmente desnudados
de mobilia; apenas na parede havia pendentes alguns _croquis_ do Jorge,
e dois quadrinhos de que eu me lembrava ainda perfeitamente.

Tenho em Lisboa uma pasta cheia de desenhos, que o Jorge me deu ha
dezeseis annos. Por isso, mais do que aos seus _croquis_, prestei
attenção aos dois modestos quadrinhos, que durante longo tempo deram os
bons dias e as boas noites a Camillo, velando a seu lado, como
companheiros fieis e amigos intimos.

São duas lithographias, que ninguem compraria n'um leilão, se ignorasse
que ellas tinham pertencido a Camillo e ornado o seu quarto de cama.

Uma é o retrato de Theophile Gautier, que foi o chefe do estado-maior no
exercito do general Victor Hugo, durante as campanhas incruentas do
romantismo.

A sua _toilette_ caracterisa nitidamente essa época literaria, em que os
neóphytos revolucionarios procuravam desafiar a opinião publica e
_épater le bourgeois_ exhibindo fatos alarmantes pelo exagero da côr e
do córte.

Primeiro que tudo, falemos da cabelleira romantica, essa floresta de
cabellos cahidos sobre os hombros, que denunciava á primeira vista os
literatos e os pintores.

Agora, em nossos dias, muitos pintores e alguns poetas téem querido
resuscital-a por amor da celebridade; mas, ai d'elles! fazem lembrar os
mascarados que no carnaval moderno se vestem de pagens de Luiz XIV ou de
cortezãos de Luiz XV.

Deslocados do seu meio e do seu tempo, apenas conseguem dar uma falsa
noção historica: são parcellas que sobrevivem a uma addição que se apagou.

A cabelleira, como ornato capillar, efemina ridiculamente os homens de
hoje.

Como caracteristica d'uma época, passou com essa época: é uma recordação
archeologica, que assenta melhor no muzeu do Carmo do que n'uma cabeça
humana.

Theophile Gautier, que era então um rapaz, a quem o bigode pennujava
ainda, veste casaco de alamares--esse casaco-broquel, que defendia os
corações romanticos.

O romantismo foi uma seita aguerrida, propensa a brigas e reptos. Por
isso, talvez, adoptou o casaco de alamares, que tinha o que quer que
fosse de aspecto militar, de lamina protegendo o peito de um couraceiro.

No pescoço, um lenço de seda preta, alto como o gorjal de um cavalleiro
antigo.

Honrado lenço de seda, que durante tanto tempo adornaste o pescoço de
nossos pais! tu tinhas uma eloquencia clamante e solemne. Davas ao
pescoço humano uma attitude erecta e firme, como a de um busto de
marmore ou de um granadeiro em formatura.

Dir-se-ia que os pescoços, grossos e aprumados, tinham então musculos de
aço, a envergadura de uma aguia ou de um cysne. Precisavam uma
encadernação condigna, forte e austera.

Depois vieram as gravatas multicores e multiformes, dando a impressão de
fitas garridas para adorno de damas.

E a Academia Real das Sciencias decidirá, porque é muito capaz d'isso,
se foram os pescoços que adelgaçaram por amor das gravatas, se foram as
gravatas que adelgaçaram por amor dos pescoços.

O outro retrato é de Alphonse Karr, tambem então em plena mocidade. Tem
buço e «mosca», levemente esboçados; e usa apenas meia cabelleira. Mas o
effeito da _toileite_ compensa, como excentricidade de _pose_, a
deficiencia da cabelladura.

Karr veste camisa de trabalho, desafogada no pescoço, e sobre ella um
amplo gabinardo, que tanto poderia servir a um pescador ou um
jardineiro, como a um escriptor em actividade--porque tudo isso foi o
auctor das _Guépes_, sendo elle proprio uma obra em trez volumes.

Tambem não sei se a Academia Real das Sciencias quererá dar parecer
sobre o facto, em que fiz reparo, de Theophile Gautier ter sobrancelhas
desenhadas em arco e Alphonse Karr sobrancelhas colleadas em til.

Pode ser que das ponderações da Academia a este respeito venha a
fazer-se nova e difinitiva luz sobre a apreciação critica de Gautier e
Karr.

Ha muito a esperar da Academia, tanto mais que ella ainda não fez nada.

      *      *      *      *      *

Da saleta de Camillo passámos ao quarto de cama da viscondessa de
Correia Botelho, igualmente desmobilado.

Foi ali que essa linda mulher, de fórmas esculpturaes, envelheceu e
expirou.

D. Anna Augusta Placido falleceu repentinamente da ruptura de um
aneurysma, no dia 20 de setembro de 1895 pela manhã.

Tinha accordado bem disposta e, a breve trecho, veio a morte
surprehendel-a.

Após algumas golphadas de sangue, cahiu exanime na almofada do leito.

Morreu corajosamente, rodeada pelos netos.

Ella, que teve uns olhos cheios de brilho e de magia, estava quasi cega
quando morreu.

Já não podia lêr, nem escrever.

Eu ignorava esta circumstancia, que me foi agora communicada em Seide.

Extranho destino o d'essas duas almas, Anna Placido e Camillo, que o
amor reuniu, que a convivencia torturou, e que a desgraça da cegueira
feriu implacavelmente na velhice, para que ambos exgotassem até ás fezes
o mesmo calix de amargura.

Aqui terminou a nossa visita á casa deshabitada de Seide, rodeada de
«pinheiraes gementes», mais triste agora do que nunca.

Por vezes o sr. Carvalho aligeirou a melancolia que nos acabrunhava ali,
evocando alguma recordação anecdotica da vida de Camillo.

Quando sahiamos o portão da quinta, dizia-nos o sr. Carvalho:

--Um dia, Camillo, vindo do Porto, preveniu o chefe da estação de Villa
Nova de que esperava brevemente a visita de um «bacharel» e pediu-lhe
que o guiasse para S. Miguel de Seide. Sempre que chegava um comboio, o
chefe da estação perguntava: «Vem ahi algum sr. doutor, que deseje ir
para Seide?» Ninguem respondia. Até que finalmente appareceu o
«bacharel» annunciado: era um burro que Camillo Castello Branco tinha
comprado no Porto.

      *      *      *      *      *

Como voltassemos á casa do Nuno, para nos despedirmos dos netos do
grande romancista, pois que só o pequeno Camillo nos tinha acompanhado,
aproveitei o caminho para fazer algumas perguntas á sr.ª D. Anna.

--O sr. visconde de Corrêa Botelho não reservou para si alguns livros e
manuscriptos, quando vendeu a bibliotheca?

Obtive esta resposta:

--Sim, senhor. Mas a sr.ª viscondessa recommendou-me muitas vezes que os
não mostrasse a ninguem antes de entregal-os aos netos.

Fiquei, confesso, um pouco contrariado, mas não tinha que replicar.

Perguntei á sr.ª D. Anna por um antigo criado de Camillo, que eu
conhecêra na Povoa de Varzim e do qual o grande romancista me disse
n'aquella praia: «Manoel Canniço é a unica pessoa que manda na minha
casa. Assumiu a dictadura e não sabe governar d'outro modo: dava um bom
ministro... constitucional.»

Poucas horas depois sahiamos, Camillo e eu, para ir dar um passeio.

O Manoel Canniço appareceu-nos na escada e interpellou seu amo dizendo-lhe:

--V. Ex.ª vai sem paletot?

Camillo respondeu passivamente:

    [Ilustração: NUNO]

--A tarde está quente, e nós demoramo-nos pouco.

Manoel Canniço, em plena dictadura, replicou:

--V. Ex.ª vai vestir o paletot; queira esperar, que vou buscal-o.

Camillo encolheu os hombros, sorrindo. E ambos esperámos que o paletot
chegasse.

Andámos visitando os cafés e as roletas. Quando recolhiamos a casa,
passámos por uma taberna onde estavam zangarreando viola. Camillo parou,
olhou para dentro da tasca, e disse-me: «Quem toca é o Manoel Canniço.
Por isso é que eu o soffro.»

Segundo me contou a sr.ª D. Anna Correia, Manoel Canniço fôra para o
Brazil, onde se demorára alguns annos; regressou outro dia, mais pobre
do que tinha ido.

Voltando á casa do Nuno, tornei a falar na necessidade de, com o auxilio
do Estado, serem convenientemente educados os netos de Camillo.

E de repente ataquei um assumpto novo:

--Estes meninos téem uma tia no Porto, bem casada, supponho eu.

A sr.ª D. Anna respondeu promptamente:

--Téem, é certo, mas as nossas relações estão cortadas.

Não pude então reprimir uma expansão que me desafogou o animo:

--V. Ex.ª está pois convencida de que estes meninos téem uma tia no Porto?

--Estou, sim, senhor.

--Tambem eu, minha senhora.

O sr. Carvalho interveio na conversação, pondo-se a pé e dizendo com
grande hombridade:

--Negal-o foi uma loucura.

Achei que era chegado então o momento opportuno de arrancar a mascara
que me constrangia.

--Pois bem, minha senhora, disse eu, desde que não corro o risco de ter
que contrariar a opinião de V. Ex.ª em sua propria casa, devo
declarar-lhe o meu verdadeiro nome: eu sou Alberto Pimentel. E agora
peço mil perdões a V. Ex.ª por ter usado de um disfarce, que me foi
imposto pelo respeito e consideração que devia a V. Ex.ª Eu não podia,
na sua presença, ter uma opinião que, sobre tão melindroso negocio de
familia, lhe causasse desgosto.

O sr. Carvalho sorria triumphalmente. A sr.ª D. Anna respondeu com
indulgente cortezia, dizendo:

--Eu tinha-o suspeitado desde que V. entrou. Em 1892 o Nuno, estando nós
na Povoa, mostrou-me V. no _Café Chinez_; no dia seguinte tornámos a
vêl-o de tarde, no Passeio Alegre. E o Nuno dizia-me então: «Não haver
aqui um homem, amigo de ambos, que pudesse reconciliar-nos!» O que é
certo é que eu tinha fixado a physionomia de V. e mal podia acreditar
n'uma tão completa similhança entre a pessoa que eu vira na Povoa e a
pessoa que hoje me visitava com nome differente.

O sr. Carvalho, de pé, no meio da sala, continuava a sorrir
triumphalmente, esperando a occasião de dizer:

--A mim tambem não me enganou V. Logo que o vi, perguntei ao sr. Trêpa:
«Este não é o Alberto Pimentel?»

E o sr. Adriano Trêpa confirmou:

--Foi o que elle me disse ao ouvido, agarrando-me pelo braço.

--O que lhe respondi eu? insistiu o sr. Carvalho.

--Que tinha a certeza de que não era outra pessoa.

O sr. Carvalho explicou que me conhecia de S. Miguel de Seide, e que, na
Povoa de Varzim, viera esperar-me á estação com o Nuno no anno em que eu
ali fôra visitar Camillo.

A sr.ª D. Anna Corrêa disse então como se quizesse apresentar-me
officialmente o sr. Carvalho:

--É um nosso velho amigo, que o sr. visconde (Camillo) estimava muito.

E, sorrindo, acrescentou:

--É o «José Fistula» do _Eusebio Macario_...

O sr. Carvalho atalhou jovialmente:

--Com a differença de que não sei tocar guitarra, nem cantar o _Fado_.
Camillo brincava comigo; mas era meu amigo a valer, e eu adorava-o.

      *      *      *      *      *

É certo que o genial romancista, na vida aldeã de Seide, se entretinha
familiarmente com a gente do campo. Não me refiro ao sr. Carvalho, que é
um camponez relativamente illustrado. Mas ainda outro dia vi em Santo
Thyrso um velho jornaleiro que anda hoje pedindo esmola, e que recita
perlengas mythologicas e polyglottas leccionadas por Camillo. Chama-se
João de Seide e deve ter perto de setenta annos. Repete
inconscientemente, como um phonographo, o que lhe ensinára o grande
romancista em horas de bom humor. Por exemplo:


Jupiter era um deus omnipotente no Olympo. Venus era sua filha e mãe de
Cupido, deus do amor. Um dia Jupiter escamou-se com Vulcano, deu-lhe um
pontapé no trazeiro, e deixou-lh'o ao lado.

    ----

Em francez, _bonne nuit_ é boa noite; e _bon soir_, boa tarde.

Em inglez, _good night_ é boa noite.

    ----

O verbo ser conjuga-se assim em francez

    Je suis
    Tu es
    Il est
    Nous sommes
    Vous êtes
    Ils sont

    ----

A China tem mais habitantes do que a Russia, mas a Russia é maior em
territorio.

    ----

Em Villa Nova de Famalicão, onde uma das novas ruas tem o nome de
Camillo, ha um botequim conhecido pelo _Café do Gato_.

«Gato» é o appellido do seu proprietario, um velho rijo e são, ainda com
filhos pequenos.

Era o botequim habitual de Camillo quando passava em Famalicão.

Ali se entretinha o grande escriptor chalaçando com o velho Gato, cuja
rusticidade de trato eu pude aferir pelo dialogo que se travou, na minha
presença, entre elle e um cavalheiro de Famalicão, ao entrarmos
ultimamente n'aquelle botequim com outros cavalheiros de Santo Thyrso.

--Ó Gato, venha vêr o que estes srs. querem tomar.

Resposta d'elle:

--Não é preciso. Peça de lá, que eu sirvo de cá.

É de notar que esta resposta agreste, no trato da gente rustica do
Minho, não exclue bondade de caracter. Não vá suppôr-se que o
proprietario do café de Famalicão seja um «gato bravo» da bocca para
dentro.

Mas o caso vem a proposito para mostrar que n'estas e outras
rusticidades se recreava Camillo emquanto a cegueira o não isolou em
Seide na treva e no desespero.

O grande escriptor tinha um vocabulario pittorescamente ironico para
exprimir os ridiculos e desleixos da vida campestre.

Assim era que, segundo vejo n'um jornal minhôto, designava pelo nome
bucolico de _boninas_ as stratificações fecaes que matizam e embalsamam
os caminhos nas villas e aldeias do Minho.

Tem verdadeira graça pastoril: boninas!

      *      *      *      *      *

Reatemos a narrativa no ponto em que a deixámos: o motivo do meu disfarce.

A sr.ª D. Anna asseverou mais uma vez que Nuno Castello Branco tinha
desgosto de haver provocado a questão a que me constrangeu logo depois
da morte de seu pae; mas que fôra arrastado a isso por despeitos de
familia, em consequencia de sua irmã ter mandado depôr uma corôa, com
palavras de filial saudade, sobre o féretro de Camillo.

O sr. Carvalho, por sua vez, acrescentou:

--Quando o Nuno foi levar ao Porto o manuscripto do _Protesto_,
disse-lhe eu: «Não faças isso, Nuno, que é uma loucura. Vaes contradizer
a verdade. E olha que chega para todos vós a gloria de teu pae.»

--Mas o Nuno, insistiu a sr.ª D. Anna, estava arrependido e não tinha
odio nenhum a V. E a sr.ª viscondessa sempre, n'outras occasiões, se lhe
mostrou muito affeiçoada, falando de V. com especial estima.

Certifiquei a sr.ª D. Anna de que eu procurei, quanto pude, evitar essa
deploravel questão e poupar pessoalmente o meu adversario. Houve apenas
uma insinuação que me feriu: a de que eu, por um vil interesse, o
dinheiro, defendia a causa da filha de Camillo, quando é certo que eu
nunca tivera intelligencias com o marido d'esta illustre senhora, e que
até o não conheço. Mas essa mesma insinuação ficava esquecida, como se
nunca houvesse existido, desde o momento em que eu tinha a certeza de
que Nuno Castello Branco se arrependêra de a ter escripto.

No decurso da conversação vi-me rodeado pelos netos de Camillo, como se
eu fosse já um familiar d'aquella casa. Principiei a sentir-me estimado
ali, o que me recompensou largamente de quantos desgostos a questão do
_Protesto_ me causou.

Considero esse dia como um dos mais felizes da minha vida.

O pequeno Camillo viera sentar-se no sophá, a meu lado, interessando-se
muito, com a mão enconchada sobre a orelha direita, pela nossa conversação.

A sr.ª D. Anna Corrêa tivera a encantadora bondade de dizer-me:

--Apesar da recommendação da sr.ª viscondessa quanto aos livros do sr.
visconde, eu quero mostral-os a V.: é a maior prova de estima que posso
dar-lhe. Tenho a certeza que se a sr.ª viscondessa fosse viva,
procederia do mesmo modo. Tambem ella faria esta excepção.

      *      *      *      *      *

D'ali a pouco subimos ao segundo andar para vêr o que resta da
bibliotheca de Camillo: uns duzentos volumes talvez, repartidos por duas
estantes envidraçadas. Algumas obras manuscriptas, poucas: lembro-me de
ter visto uma genealogia em varios tomos. Entre os livros encontrei dois
meus: _A Jornada dos Seculos_ e a _Flor de myosótis_.

Depois entramos no quarto em que Camillo dormia quando alli se demorava
temporadas.

É um amplo compartimento, cheio de luz, com largas janellas que deixam
espraiar-se o olhar por cima dos pinheiraes até alcançar o cume de
montes longinquos.

Quando Camillo habitava aquelle quarto, já estava cego. Mas se não podia
contemplar o panorama, cheio da placidez e melancolia que caracteriza os
bastos pinheiraes tranquillos, devia sentir o calor do sol que invadia o
aposento.

A alma de Camillo teria certamente n'essas horas bem menos placidez que
a floresta dormente.

Abundam n'esse quarto os retratos de familia, muitas recordações de um
passado a que o amor deu momentos de felicidade e seculos de amargura.

Havia ali, em todo aquelle segundo andar, um bello nucleo de muzeu
camilliano.

    [Ilustração: RACHEL]

Foi n'esse mesmo andar que Jorge Castello Branco, o infeliz primogenito
de Camillo, passou os ultimos tempos da sua curta existencia.

Contou a sr.ª D. Anna Corrêa que elle tinha horror a vêr os criados da
casa. Postas as refeições sobre a mesa, os criados sahiam; e o Jorge
entrava depois. Algumas noites prestava-se a tocar piano--esse piano que
era de sua mãe e que ella havia levado para a Cadea da Relação do
Porto--mas exigia que ninguem estivesse presente. A musica foi uma das
muitas aptidões artisticas do Jorge. Eu já disse algures que elle, em
noites de luar, se empoleirava nas arvores de Seide a tocar flauta.

Queria viver isolado no seio da propria familia. Não consentia que lhe
fizessem limpeza no quarto. Se alguem se quizesse aproximar, cuspia-lhe.

No dia 2 de setembro de 1900, o Jorge não se levantou para ir almoçar. A
porta do seu quarto estava fechada por dentro, como era costume.

A sr.ª D. Anna Corrêa chamou-o:

--Sr. Jorge, são horas do almoço.

Elle respondeu:

--Já vou.

Mas passou tempo sem que se levantasse.

Tornaram a chamal-o.

--Já vou, repetiu elle.

Mas, como não apparecesse, a sr.ª D. Anna resolveu entrar no quarto pela
janella, o que foi empreza difficil.

Achou o Jorge doente, apathico, n'um estado gastrico que, n'esse
momento, lhe pareceu não offerecer maior gravidade.

      *      *      *      *      *

D'aqui por deante, a narrativa da sr.ª D. Anna Corrêa conforma-se
inteiramente com a versão que o sr. José de Azevedo e Menezes, da
illustre casa do Vinhal, em Famalicão, me communicou n'uma carta, por
mim já publicada.

Vou reproduzil-a, para que não fique perdida na volumosa collecção de
uma folha diaria:


«Em resposta á estimada carta de v.    , tenho a dizer-lhe que o infeliz
Jorge de Castello Branco falleceu em casa de D. Anna Corrêa, a
companheira do Nuno, no dia 10 do corrente mez, ás 6 horas da tarde, e
enterrou-se no dia 12, assistindo alguns visinhos.

«Tratou-o nos ultimos quinze dias de vida o medico Dias de Sá, de
Landim, que logo previu o desenlace fatal.

«No dia 2 d'este mez o Jorge sentiu-se mal do estomago, talvez por ter
debicado as primeiras uvas e pêras do quintal da casa. Um ligeiro
laxante deu-lhe melhoras, que infelizmente se não mantiveram, cahindo
com desmaios e não podendo conciliar o somno.

«A final veiu a paralysia cerebral que o matou sem agonia. De vez em
quando gemia e invocava a Deus! Durante um desmaio na manhã do dia em
que morreu, foi ungido.

«Não se lhe notou á hora da morte o intervallo lucido, que ás vezes
apparece nas doenças mentaes.

«Tinha, porém, amor á vida, esperando obter melhoras dos remedios, que
só tomava nos caldos e leite pela mão da sua desvelada enfermeira D.
Anna Corrêa, que foi para o infeliz louco uma carinhosa mãe.

«Fui visitar essa bondosa mulher, e fiquei agradavelmente impressionado
da sua apresentação e do bom senso, que mostrou em alguns pontos da
nossa conversa. A rudeza da sua origem poliu-se no trabalho e
soffrimento, que lhe deram os desgraçados com quem viveu. A mulher só se
engrandece pela bondade, que é a sua belleza moral.

«O grande desejo de D. Anna é educar bem os seus filhos, mas como poderá
desempenhar-se d'esta nobre tarefa sem recursos? É urgente abrir uma
campanha a favor d'ella, para que lhe acuda o governo ou as almas
bemfazejas. Inicie v. na imprensa periodica esta nobilissima missão. Os
dois filhos mais velhos são intelligentes, principalmente o Camillo, que
eu fixei com attenção e descobri-lhe traços physionomicos do glorioso
avô. O rapaz é triste e concentrado e quer ser Padre... Até n'isto se
parece com o grande escriptor, que no verdor dos annos pensou em se
prender á Egreja. A sua ultima assignatura foi no assento do baptismo
d'este seu neto e afilhado, feita em casa de Nuno e sobre um piano, por
lhe ficar mais a geito.

«Ao sahir da casa de D. Anna Corrêa olhei para a outra proxima, aonde
viveu e morreu o incomparavel prosador portuguez. Está agora mal pintada
de amarello e triste como a tragedia que a fechou. N'aquelle gabinete de
Camillo apagaram-se os ultimos lampejos da sua conversa encantadora,
esmaltada sempre de ironias, cortantes como o nordeste.

«Que tristeza e que lição para todos nós! Creia-me sempre

                                            De V. etc.

                                    _José de Azevedo e Meneses._

S/C do Vinhal, 16-9-900.»

      *      *      *      *      *

Os jornaes do norte do paiz, noticiando a morte de Jorge Castello
Branco, logo fizeram sentir que, tendo cessado com a sua vida a pensão,
os netos de Camillo ficavam quasi reduzidos á miseria.

Dizia o correspondente de Famalicão para _O Commercio do Porto_:



«FAMALICÃO, 12.--Em S. Miguel de Seide sepultou-se hoje Jorge Castello
Branco, ultimo filho do finado romancista Camillo Castello Branco.

«De ha muito que o seu viver era o de um verdadeiro louco, temendo todos
e passando os dias n'um aposento sem o convivio de pessoa alguma. O seu
fallecimenio foi um verdadeiro desastre para seis netos do grande
romancista, pois que a pensão que o governo dava ao finado custeava
tambem a educação das creanças, que agora ficam ao desamparo.--(_M. G._)»


Escrevia o _Lusitano_, de Famalicão, no mesmo dia 12:


«Acaba de fallecer em Seide o filho mais velho de Camillo Castello
Branco, o pobre louco tão amado pelo immortal auctor do _Amor de
Perdição_ e tantas outras joias que hão de fulgurar seculos em fóra, na
litteratura nacional.

«Ha muito que o Jorge, doido, doido desde tenra idade, fugia
completamente do convivio social.

«Vimol-o ha semanas, pela ultima vez que veio á villa, causando immensa
pena a precocidade da sua velhice e, mais nos commovemos ao attentarmos
no seu perfil, que muito se parecia com o de seu pae.

«Como é sabido, o filho mais novo de Camillo deixou bastantes filhos na
miseria, servindo-lhes de amparo a pensão que o governo dava ao Jorge.

«Morto este, ficam os netos de Camillo sem recursos de qualidade alguma.

«Pois quando mais não seja se não para honrar a memoria de Camillo, deve
o governo continuar a dar a seus netos a pequena quantia que deu ao
Jorge durante alguns annos.

«O pequeno Camillo Castello Branco e seus irmãos não devem ficar ao
desamparo.

«Quem sabe até se, educados os netos do genial _Solitario de Seide_,
algum d'elles não será ainda muito util ás letras patrias, continuando a
honral-as como honradas foram mais de meio seculo por seu avô o querido
Mestre?»

      *      *      *      *      *

A pensão ao primogenito de Camillo havia sido concedida por um decreto
depois sanccionado pelo parlamento nos seguintes termos:


«Artigo 1.º É approvado o decreto de 23 de maio de 1889, pelo qual, em
reconhecimento publico dos relevantissimos serviços prestados ás letras
patrias pelo visconde de Correia Botelho (Camillo Castello Branco), é
concedida a seu filho Jorge Camillo Castello Branco a pensão annual e
vitalicia de 1:000$000 réis.

«§ unico. A pensão de que trata esta lei é isenta do pagamento de
quaesquer impostos, e será abonada desde a data do decreto que a
concedeu, ao visconde de Correia Botelho, em quanto vivo fôr.

Art. 2.º Fica revogada a legislação contraria a esta.»


Os filhos do visconde de S. Miguel de Seide, netos de Camillo, aos quaes
faltou o amparo da pensão que o tio recebia, são, pela ordem
chronologica do nascimento:

Flora, nascida a 11 de janeiro de 1886.

Camillo, nascido a 16 de março de 1888, no mesmo dia e mez em que nasceu
o avô, que era seu padrinho.

Nuno Placido, nascido a 4 de março de 1889.

Rachel, nascida a 21 de fevereiro de 1890.

Simão, nascido a 6 de julho de 1891.

Manuel, nascido a 23 de abril de 1893.

Um motivo especial, que logo referirei, leva-me a fazer duas
transcripções do jornal de Famalicão, _O Lusitano_, apezar de em
qualquer d'ellas se encontrar o meu nome acompanhado de adjectivos que
eu considero apenas um amavel cumprimento de quem os escreveu.

Agradeço-os, mas declino-os por immerecidos.

Não me assiste, porém, o direito de mutilar as transcripções.

Dizia _O Lusitano_ no seu numero de 29 de agosto do corrente anno:


«Noticiámos, ligeiramente, a semana passada, a estada, em S. Miguel de
Seide, de visita aos netos de Camillo, do illustre escriptor sr. Alberto
Pimentel.

«Não conhecemos as impressões, que a sua ex.ª resultaram da volta,
passados tantos annos, á casa do grande escriptor seu amigo. Mas não nos
seria desagradavel saber se o nosso estimado confrade do _Popular_
tomou, ou não, a resolução de contar no jornal, que redige, como é justo
que o governo tome a iniciativa de proteger, de algum modo, os
malaventurados netos do grandioso estylista.

«Tem-nos contado pessoas, que privam com a familia de Seide, que ha,
entre aquellas seis creanças, uma--o Camillo--possuidora de
intelligencia rara.

«Se assim é, não faz pena que a falta de recursos constitua embaraço ao
aproveitamento d'aquelle rapaz?

«Não ha duas opiniões divergentes sobre a justiça de continuar, em favor
dos descendentes do eminente romancista, o subsidio, que este primeiro
aproveitou e que se extinguiu pela morte do Jorge. Vão os rendimentos do
Estado, dia a dia, para applicações muito menos comprehensiveis.

«O sr. Alberto Pimentel, que foi á casa de Seide, decerto viu o que
aquillo é, comparativamente com outros tempos.

«Ponha, por conseguinte, s. ex.ª todo o enorme merecimento da sua penna
e das suas relações ao serviço d'esta causa. É o maior testemunho de
amizade que póde prestar á memoria do extraordinario escriptor. E evita
que se reedite aquella tão conhecida e fustigante phrase de Garrett, que
constitue, com motivo, um castigo severissimo á contumaz ingratidão do
nosso meio.»

    [Ilustração: SIMÃO]

Eu tinha necessidade de commentar esta transcripção para explicar o meu
procedimento.

Se, immediatamente á minha visita á familia de Seide, não publiquei no
_Popular_ as impressões que ali recebêra ao observar de perto a vida dos
netos de Camillo e, portanto, a justiça da sua causa, foi porque logo
fiz tenção de me occupar do assumpto com maior desenvolvimento do que
aquelle que poderia dar-lhe n'um ou dois artigos de jornal.

Desobrigo-me agora do compromisso que tomei comigo mesmo.

      *      *      *      *      *

Poucos dias depois de ter lido a noticia do _Lusitano_, acima
transcripta, recebi do sr. Rodrigo Terroso, jornalista distincto e
escrivão-notario na comarca de Famalicão, uma carta relativa ás
impressões que eu teria trazido de Seide e ao que eu estaria disposto a
fazer em favor da pensão.

Respondi na volta do correio, e o teor da minha resposta resalta da
seguinte noticia que _O Lusitano_ publicou no dia 3 de setembro:


«Ao director politico d'esta folha que acompanhou, particularmente,
perante o sr. Alberto Pimentel o pedido feito aqui ha oito dias em favor
dos netos de Camillo, respondeu, de prompto, o apreciavel escriptor e
jornalista com uma carta, que é a promessa solemne de intervir no
sentido rogado.

«... fui expressamente a Seide para me orientar na questão da pensão aos
netos de Camillo.

«Na proxima legislatura trabalharei por conseguil-o, no que espero ter o
auxilio de Antonio e José de Azevedo.

«Não farei parte do parlamento, mas envidarei os maiores esforços
possiveis junto do parlamento e do governo.»

«É solemnissima a promessa. Fiamos de que será cumprida. Sobre dar-se
com o sr. Alberto Pimentel a circumstancia de haver sido dos amigos mais
sisudos de Camillo, accresce que o distincto escriptor lisbonense
conhece, ao presente, em pessoa, a justiça da causa, que tanto tem
merecido as nossas sympathias. E dizemos assim porque ainda ninguem a
advogou com tão fervente empenho como nós, que fomos, até, o primeiro a
patrocinal-a. Consta isso de correspondencias que o _Primeiro de
Janeiro_ publicou logo a seguir á morte do Jorge, sem falar no pedido
directo que, immediatamente, apresentamos ao sr. conselheiro Antonio de
Azevedo, sobrinho de Camillo, muito apreciado por este. E que o notavel
homem publico trabalhou n'esse sentido, mais seu irmão sr. conselheiro
José de Azevedo, disse-o, poucos dias decorridos, um telegramma para o
_Diario da Tarde_, confirmado, simultaneamente, por algumas gazetas de
Lisboa.

«O sr. Alberto Pimentel affiança-nos a intervenção d'estes dois
auxilios. Pois é caso para nos julgarmos felizes com a felicidade certa
dos netos de Camillo.

_P. S._--_O Regenerador_ refere-se, sobre o mesmo motivo, a uma carta
antiga do sr. José de Menezes ao sr. Alberto Pimentel. Era o sr. Menezes
um dos amigos de Camillo. Não sabiamos que tinha intervindo. Fel-o e
procedeu cavalheirosamente. Está na reconhecida correcção de s. ex.ª».

Trabalhemos todos--todos os que veneramos a memoria de Camillo--sem
excepção de ninguem, no empenho de vencer esta causa santa, que a
Justiça inspira e que o Patriotismo recommenda.

É uma divida nacional, que tem de ser paga. Somos todos devedores;
honremo-nos pagando.

      *      *      *      *      *

A Sr.ª D. Anna Corrêa cumulou-me de amaveis deferencias logo que o meu
disfarce cahiu. Uma d'ellas, a que mais encantado me deixou, foi a
gentileza de me obzequiar com os dois quadrinhos, os retratos de Gautier
e Karr, que estavam na saleta contigua á alcova de Camillo.

Se bem que um pouco damnificados pela acção do tempo, como se póde vêr
na reproducção, elles representam para mim um valor inestimavel.

Fil-os authenticar com a seguinte declaração, que mandei imprimir e
collar no tampo da moldura:

            «ESTE QUADRO ESTAVA NO QUARTO DE»
            «CAMA DE CAMILLO CASTELLO BRANCO EM»
            «S. MIGUEL DE SEIDE. FOI-ME DADO ALI PELOS»
            «SEUS HERDEIROS, A 20 DE AGOSTO DE 1901,»
            «NA PRESENÇA DO SR. ADRIANO DE SOUZA»
            «TREPA, DE SANTO THYRSO, E FRANCISCO»
            «CORRÊA DE CARVALHO, DE SEIDE.--ALBER-»
            «TO PIMENTEL.»

Foi o sr. Carvalho que, trepado a um banco, os despendurou da parede,
fronteira ás janellas.

Mais nua ficou ainda desde essa hora a casa solitaria de S. Miguel de
Seide.

Aqui tenho eu, deante dos olhos, esses dois velhos companheiros de
Camillo, seus camaradas e seus hospedes, Gautier e Karr, com os quaes
conversarei longamente sobre a vida e a morte d'esse que foi nosso
commum amigo e que elles tão de perto viram soffrer e sonhar--por tantos
dias e tantas noites.

Da parede onde estavam enthronisados só podiam avistar todo um horisonte
de pinheiros a esbater-se, ao longe, na vertente de uma vasta corda de
montes.

Coitados! a principio devia custar-lhes muito terem que trocar Pariz
pelo Minho, o bulicio pelo silencio, os _boulevards_ pelos pinheiraes, a
capital do mundo pela aldeia erma e profunda.

Mas o campo, como o oceano, é uma solidão apenas repulsiva nos primeiros
tempos de uma iniciação forçada; depois identifica-se tanto com a nossa
alma, penetra-a de uma tão saudavel tranquilidade e doçura, que se torna
quasi uma religião: não ha meio de arrancar o camponez ao seu tugurio e
o marinheiro ao seu beliche.

Agora, saudosos da Thebaida de Seide e do grande espirito que a povoava,
virão constrangidos, Gautier e Karr, defrontar-se, através da minha
janella, com as trapeiras d'esta revôlta casaria de Lisboa, cahotica e
asymetrica, que apenas deixa ver escassos retalhos de céu azul na
claridade limpida do ar.

Sou eu o primeiro a lamental-os, mas nem por isso os guardarei com menor
vigilancia; altas personagens de que me constituiram carcereiro, saberei
amal-as, mas saberei tambem garantir a sua posse--como a de dois
inestimaveis valores que vieram enriquecer o meu thesouro camilliano.

Devo ainda á sr.ª D. Anna Corrêa a gentil prodigalidade de outra
offerta: o retrato de Manoel Pinheiro Alves, primeiro marido da
viscondessa de Corrêa Botelho.

Quando publiquei _Os amores de Camillo_, muito desejei eu obter este
retrato; mas n'essa occasião faltava-me a certeza de que o meu pedido
não seria uma inconveniencia irritante.

Confessei-o agora á sr.ª D. Anna Corrêa, que espontaneamente me
offereceu um exemplar em photographia. No album de Seide havia dois,
tirados em Pariz, no tempo de Napoleão III, casa Mayer & Pierson,
boulevard des Capucines, 3.

Incluirei esse retrato n'uma segunda edição d'_Os amores de Camillo_, se
algum dia a fizer. Aqui não é o seu logar proprio. Mas quero dar uma
rapida impressão da pessoa de Manuel Pinheiro Alves: alto, magro, face
glabra, olhos pequenos e fundos, escasso cabello penteado sobre a orelha
direita; vestindo correctamente de preto, sobrecasaca comprida, gravata
em laço. _Toilette_ de velho, harmonisando com a physionomia; mas de
velho que, por amor de uma mulher, quer apurar o vestir.

Tem o aspecto grave de ser o pai de D. Anna Placido, não o marido.

Tambem agora fiquei sabendo que Manuel Pinheiro Alves nascêra perto de
S. Miguel de Seide.

      *      *      *      *      *

Quando voltámos á casa de Camillo, para eu receber os dois quadrinhos,
parei um momento, ao sahir, no topo da escada de pedra.

Corri os olhos pelo vasto pinheiral circumjacente, que fecha o horisonte
n'uma faxa verde-negra. Tive n'esse momento a nitida comprehensão do que
seriam ali as longas noites de inverno, ouvindo gemer os pinheiros na
solidão profunda de uma aldêa minhota.

--Pobre Camillo! disse eu, como se estivesse pensando alto. As suas
noites aqui deviam ser horriveis!

O sr. Francisco Corrêa de Carvalho replicou:

--As tardes, as tardes de Camillo é que eram ainda mais agitadas e
tormentosas do que as noites. Depois de jantar, soffria muito;
excitava-se, tinha desesperos, frenesis, que nos amarguravam tambem a nós.

É facil a explicação d'este phenomeno pathologico.

As crises visceraes, dolorosas, são vulgares nos tabeticos. Ou vem com
as _dores fulgurantes_ (Camillo teve-as) ou independentemente d'ellas.
Chegam a ser de violencia extrema, por vezes. E, entre essas crises
visceraes, a gastralgia é frequente.

O trabalho da digestão provocaria as torturas gastralgicas.

Após elle, quando em socego o estomago, a crise desapparecia, dando
treguas ao pobre Camillo.

Eis aqui, pois, mais um pormenor do ingente drama de amargura que matou
o grande romancista.

Voltei agora a Seide, depois de dezeseis annos de ausencia.

Estive ali no mez de agosto de 1885.

O opusculo _Uma visita ao primeiro romancista portuguez em S. Miguel de
Seide_ recorda esse facto.

Em agosto de 1901, repetida a jornada, já não encontrei nenhuma das
pessoas que em 1885 povoavam a casa de Seide: Camillo, D. Anna Placido,
Jorge e Nuno Castello Branco.

Dir-se-ia que um desastre enorme victimára de um só golpe uma familia
inteira.

É que a fatalidade de certos destinos iguala-os na vida e na morte,
regulando as suas horas por uma unica ampulheta.

Os desgraçados que nasceram sob a mesma sina chamam uns pelos outros.

Fui achar uma segunda geração, uma ninhada de creanças intelligentes e
meigas, que se encontram, desprotegidas, á beira de um abysmo insondavel.

O seu dia de amanhã não é mais seguro do que a salvação incerta do
naufrago que, em pleno oceano, espera, sobre uma tabua fluctuante, um
acaso providencial, a passagem de um navio que o possa descobrir entre
montões de espuma.

Uma debil creatura, precocemente envelhecida, e já cansada de soffrer, é
hoje a garantia unica do futuro d'essas creanças, que não téem mais
ninguem no mundo além de sua mãe, nem melhor patrimonio que alguns
palmos de terra sêcca e hypothecada.

Seu avô honrou a patria de um modo excepcionalmente grande, com a
fulguração de um talento literario, que póde fazer inveja aos extrangeiros.

Honre-se a patria a si mesma adoptando-lhe os netos, perfilhando-os
amoravelmente, salvando-os da miseria e do abandono, premiando n'elles a
gloria do avô immortal.

    [Ilustração: MANUEL]

Cada dia, cada mez, cada anno que passa, complica, por sacrificios
exhaustivos, a situação da familia de Seide. Os netos de Camillo téem já
visto florescer muitas vezes a acacia do Jorge e chamado em vão pela
alma do avô, que não voltou ainda com as auras de abril. Tornemos
realidade o que parece haver sido prophecia do grande espirito de
Camillo: que todas essas creanças invoquem de novo o nome do que
prometteu voltar. E elle voltará para acudir-lhes. Quando a acacia
«outra vez inflore», o paiz terá feito justiça, e Camillo terá voltado
para junto dos netos, assistindo-lhes em espirito, agasalhando-os com a
gloria do seu nome.

Corações justos, corações bons, auxiliai esta santa cruzada: a de
despertar a patria adormecida.

Leitores de cem romances, que uma só penna escreveu, agradecei aos netos
as lagrimas e os sorrisos com que o avô tem preenchido deleitosamente
muitas horas da vossa vida, desde o _Anathema_, uma estreia, até aos
_Vulcões de lama_, a ultima novella, raio de sol poente que não tardou a
apagar-se.

Se quizerdes fazer isso, estará feito tudo.


Santo Thyrso--Lisboa.
Agosto a setembro de 1901.



NOTAS



PAGINA 6

«... a cêrca do antigo mosteiro de Landim.»

Este mosteiro era de conegos regrantes de Santo Agostinho. Dizem-n'o
fundado por Dom Gonçalo Rodrigues Palmeiro, senhor do couto da Palmeira.

Na inquirição que o Cardeal D. Henrique mandou fazer sobre mosteiros de
Entre-Douro-e-Minho, o de _Landim_ é designado como sendo a de Nossa
Senhora de _Namdim_.

O conde D. Pedro, em seu _Nobiliario_, tambem diz _Namdim_.


PAG. 15

«o monumento commemorativo da visita de Castilho, «principe da lyra
portugueza», a S. Miguel de Seide, em julho de 1866.»

As relações de amizade entre Camillo e Castilho começaram em 1854, no
Porto. Foi nesse anno e n'aquella cidade que pela primeira vez se
encontraram os dois em casa do Sr. Antonio Bernardo Ferreira, que então
morava na rua da Boavista (casa da familia Garrett) e que organisou em
honra de Castilho um sarau literario. Camillo recitou versos de _Um Livro_.

N'uma carta particular, enviada para Lisboa, dizia Castilho, relatando o
que se passára naquelle sarau: «Camillo Castello-Branco, poeta e
prosador de elevado merito, etc.»

Julio de Castilho, publicando trechos d'esta carta, commenta a
referencia a Camillo dizendo que _essa amizade_, então começada no
Porto, ficou cimentada para sempre. (_O Instituto_, de Coimbra, n.º 9,
vol. 48.º)

Foi Camillo, guia dos meus primeiros passos na vida literaria, quem me
ensinou a amar Castilho.

Costumavam outr'ora as criadas velhas contar ás creanças da casa lindas
historias de reis e principes encantados.

Camillo, que foi de algum modo o meu _niñero_ espiritual, falava-me
muitas vezes de um grande principe das letras, rei das canções lhe
chamou Herculano, protector de poetas, amador da natureza, acariciador
das creanças e propugnador da felicidade do povo pela instrucção e pela
agricultura.

Era Castilho, rei das canções, principe das letras, cego como Œdipo,
o famoso rei de Thebas.

E assim como Œdipo encontrava o braço de sua filha Antigone para
guial-o carinhosamente na cegueira, Castilho tinha nos braços de seus
filhos outros tantos bordões amorosos que o ajudavam a firmar os passos
incertos e vacillantes.

Recebi, pois, de Camillo o amor a Castilho, e de quanto elle o amava dá
eterno testemunho esta encantadora dedicatoria do romance _Agulha em
palheiro_:


        _Ao poeta das creanças, das flores, do amor,
             da melancholia e dos desgraçados,
         ao illustrissimo e excellentissimo senhor
              Antonio Feliciano de Castilho,
                    honra da patria
          honra dos que o prezam, e amam a patria
                                 offerece
      o amigo, o respeitador, o discipulo mais devedor
                 Camillo Castello Branco_


Em outro livro, _No Bom Jesus do Monte_, cita Castilho a par de
Lamartine e Victor Hugo, como sendo um nome que dá «á humanidade orgulho
de o proferir».

Durante a _Questão Coimbrã_, nas _Vaidades irritadas e irritantes_ vem á
estacada quebrar lanças pela gloria de Castilho, e escreve: «... o mais
enthusiasta admirador de Castilho, se algum houve que mais que eu lhe
devesse e o amasse...»

Foi assim que Camillo amou Castilho; foi assim que eu aprendi com
Camillo a amar Castilho.


PAG. 16

«a dedicatoria da _Maria Moysés_ a Thomaz Ribeiro.»

Diz o texto d'essa dedicatoria:

    A

    THOMAZ RIBEIRO

    «São passados dez annos depois que vieste aqui. Foi hontem; e a
    pedra onde gravei o teu nome está denegrida como a dos tumulos
    antigos. Debaixo d'ella estão dez annos da nossa vida. Jazem ali os
    homens que então eramos. Estou vendo Castilho encostado ao frizo da
    columna tosca; estou ouvindo os teus versos recitados em nome de
    meus filhos... Ah! é verdade... tu não os recitaste porque tinhas
    lagrimas na voz e no rosto. Que faria de ti a politica, meu querido,
    meu poeta da patria e da alma:

    «S. Miguel de Seide, novembro de 1876.»


PAG. 16

«A inscripção está quasi apagada, como já se apagou tambem a vida das
pessoas a quem ella se referia.»

O modesto monumento, de que fiz mais larga menção no opusculo _Uma
visita ao primeiro romancista portuguez em S. Miguel de Seide_, Porto,
1885, falla-me saudosamente de seis pessoas, cuja memoria conservo muito
viva entre as mais gratas lembranças do passado.

D'essas seis pessoas, as ultimas a morrer foram Eugenio de Castilho,
fallecido a 8 de janeiro de 1900, e Thomaz Ribeiro, a 6 de fevereiro de
1901.

Embora tenha de fazer uma annotaçao talvez demasiadamente longa--o que
não sei se é proprio do teor das annotações--não posso ter mão em mim
que não complete, para o meu espirito, a historia do monumento de Seide
com as recordações que me são suggeridas pelos nomes de Eugenio de
Castilho e Thomaz Ribeiro.

      *      *      *      *      *

Uma coisa vos confessarei eu, sr. Dom Leonardo...

Lembram-se? Vem nos _Logares selectos_, do padre Cardoso: é um excerpto
da _Côrte na aldeia_, de Rodrigues Lobo--dois livros bons, cada qual no
seu genero; bons como se faziam d'antes.

Pois, já que a phrase me lembrou, adopto-a, mas cito ao menos a origem,
o que nem sempre se faz agora.

Os tempos são outros; d'isso é que me queixo.

Uma coisa vos confessarei eu, srs. Dons Leonardos de hoje em dia, e é
que me vou ralando de saudades pelos homens que conheci outr'ora, com os
quaes convivi e troquei impressões, que os não ha melhores, nem tão
bons, como foram esses.

    [Ilustração: A ACACIA DO JORGE]

Não quero dizer que todos agora sejam portuguezes de ruim panno; ha
excepções, mas tão raras, que pode a gente gritar quando as encontra--Lá
vem um!

Digo e redigo, porque d'isso estou convencido até á medula dos ossos,
que os homens que eu tratei na mocidade me parecem semideuses se os
comparo com os de hoje.

Doia-se quem doer, que me importam pouco essas coisas: até faz bem á
gente sentir morder-lhe uma pontinha de malquerença--é como o frio de
janeiro, que arripia, mas provoca a necessidade de reagir contra elle.

Eu venho de um tempo em que se dizia haver «elogio mutuo». Não era
elogio, mas justiça. As cotações, especialmente no mercado das letras,
andavam menos falsificadas. Ninguém chegava ao pé de um homem, de punhal
na mão, com o intuito de assassinal-o, para o glorificar depois de morto.

Garrett estava no tumulo. Herculano fizera-se solitario em Val-de-Lobos.
Castilho vivia em Lisboa e abria as suas portas a todos quantos
mostravam paixão pelas letras. D'aqui veio o dizer-se que tinha Castilho
uma côrte. Não a procurava elle; procuravam-n'o, sim, todos, velhos e
novos, que desejavam encontrar uma atmosphera literaria em que podessem
respirar á vontade.

Mas a differença do tempo estava principalmente n'isto, que não era
pouco: ninguem, em casa de Castilho, nem dos seus, nem dos extranhos, se
julgava maior que elle.

Por isso o respeitavam, medindo-lhe a grandeza, que fazia lembrar a das
estatuas, porque sendo vista de perto tomava ainda maior vulto.

Era deliciosa essa casa de Castilho, onde a boa conversação literaria
teve um templo, como não ha, nem póde haver outro. Não decorria ali uma
hora sem que se tivesse lucrado alguma coisa: aprendia-se sempre. Eram
tantos e tão bons os de casa e os de fóra, que nunca se apagava o lume
para as refeições do espirito. Mesa posta para os _gourmets_ da
intellectualidade; porta aberta para todos os que chegavam, fossem
gregos ou troyanos.

Conheci Castilho na rua do Sol ao Rato, onde recebia na sua enorme
bibliotheca, uma vasta sala, que os melhores auctores de todos os paizes
e de todos os seculos povoavam de alto a baixo. Fazia respeito aquillo:
era uma cidade, um emporio de celebridades consagradas.

Castilho, coroado de cans, dava a impressão de ser um patriarcha das
letras. Cego como Homero, via tudo o que queria vêr; jámais houve um
cego que visse tanto. Até lia mentalmente os titulos dos livros que o
rodeiavam. Aqui está o meu Bernardes, dizia elle: ia á estante, punha o
dedo indicador n'um livro, e tirava a obra de Bernardes que desejava
citar. Parecia ter os olhos fechados para, concentrado, reforçar por um
momento a visão, que depois se tornava mais aguda e perspicaz.

Os seus olhos faziam lembrar os de D. João I: raça de escol, que já
vinha apurada de longe.

Julio foi sempre o braço direito do pai, a sua luneta, o seu bordão, o
seu _alter ego_. O pai adorava-o; elle adorava o pai. Não podiam viver
um sem o outro; eram como dois gemeos, duas existencias que se fundiam
n'uma só.

Augusto, official de marinha, andava quasi sempre embarcado por
longinquos mares. Raro apparecia em Lisboa; mas Castilho lembrava-o
muitas vezes n'um impeto de saudade paternal, que é a mais funda, a mais
incisiva, a mais cruel de todas as saudades.

Ida de Castilho, com os seus bellos olhos pretos que pareciam estrellas,
era a gracilidade da mulher franzina a sorrir por entre clarões de
intelligencia vivacissima.

Eugenio, o filho mais novo de Castilho, era, em razão da sua idade, o
que tinha menos auctoridade literaria na familia, mas nascera poeta ali,
n'aquella familia de escolhidos, como se nasce escocez na Escocia.

Foi este rapaz velho, porque a doença o envelheceu precocemente, que
morreu outro dia, em Sete Rios, mais longe do mundo que de Lisboa.

Poucos se lembravam d'elle já: tinha esquecido, tinha passado, era um
morto que vivia longe dos vivos.

O seu periodo de maior actividade foi de 1868 a 1869. Conheci-o então,
como conheci Antonio Feliciano e Julio de Castilho: por cartas que o
correio trazia e levava, do norte para o sul, do sul para o norte. Só
alguns annos depois nos avistámos, os Castilhos e eu, na rua do Sol ao
Rato. Mas eramos já amigos velhos, todos nós, quando nos encontrámos
frente a frente.

Aqui tenho eu uma prova d'isso, n'esta meia duzia de paginas publicadas
em 1868 por Eugenio de Castilho, e intituladas _Patria, contra a
Iberia_, poema em bons alexandrinos, que eram os da casa, a melhor
officina de alexandrinos que tem havido até hoje em Portugal.

Na dedicatoria, do punho do auctor, escreveu elle: «Ao seu
amicissimo...» Nunca nos tinhamos visto então, mas eramos já tão casados
na amisade, que nenhum de nós estranhou o superlativo.

Eugenio tinha n'esse tempo 21 annos, e desabrochavam n'elle os talentos
literarios, que são morgado de Castilhos. Eram flores que conheciam o
terreno e o clima em que nasciam: medravam á vontade.

Quanto á factura artistica, o poema _Patria_ trazia a marca da fabrica:
Castilho & Filhos. Não havia firma mais acreditada nem então, nem agora.

Passo hoje pela vista, devorado de saudades, aquelle poema de 1868, e
transplanto para aqui alguns casaes de alexandrinos, que me parecem
ainda casaes de rouxinoes a namorarem-se nos bosques umbrosos de Portugal:

    Vês além um telhado ao pé d'aquelle olmeiro?
    alli nasceu meu pae; alli amou primeiro.

    Quando eu era pequeno, ia, ás vezes, sósinho
    aos loireiros do val á busca de algum ninho.

    Sob este parreiral tão verde e tão fragrante
    beijei apaixonado a minha terna amante.

    Costumava ir de tarde ao moinho da serra
    vêr como o sol transpunha as montanhas da terra.

    Quanta vez, ao voltar da caça, eu me sentava
    ao pé d'essa cascata a ver-lhe a espuma brava.

    Os troncos da azinhaga, as silvas e as paschoinhas
    ouviram-me cantar ás vezes trovas minhas.

    Era-me gosto á noite o rouxinol saudoso
    dizendo á beira d'agua o seu canto amoroso.

    Sentado n'uma penha occulto entre o salgueiro
    poetava a ouvir do rio o murmurar palreiro.

    Ao canto do quintal da casa onde eu morava
    uma anágua plantara, e flores que eu regava.

    Conheço a minha terra; e cada pedra ou planta
    me saúda ao passar. Toda a Patria me encanta.

Não são, de certo, estes os soberbos alexandrinos do pae Castilho, tão
cheios, tão sonoros, tão variados na riqueza das vogaes, como elle,
legislador maximo em versificação, praticava e recommendava; mas téem o
ar de familia, o cunho da officina, que nos entremostram o artifice mais
novo da casa posto a trabalhar, por desenfado, com a ferramenta do mestre.

Junte-se a tudo isto, que é já sobeja valia, o perfume ingenuo e nobre
da mocidade, o pulsar de um coração candido e fidalgo, que se educava
entre lyras de poetas e brazões de aristocracia literaria.

Tudo então fazia suppor que teria uma larga carreira esse moço tão bem
estreado, e tanto se sumiu elle depois nas trevas que as contrariedades
da vida adensaram--a doença principalmente.

Foi tambem por 1868 que Eugenio de Castilho tentou a publicação da
_Folha dos curiosos_, um dos quaes curiosos fui eu.

N'essa tentativa ia ainda um exemplo paterno, porque não deve esquecer a
ninguem que Antonio Feliciano de Castilho redigiu por algum tempo, com
inexcedivel brilho, a _Revista universal lisbonense_.

Digo inexcedivel brilho, e fico pesaroso de não encontrar melhor
locução. Não me satisfaz esta, que é deficiente. Tudo quanto Castilho
ali deixou, é primoroso--até o noticiario.

Se vingar algum dia a ideia de fundar uma escola de jornalistas, o
professor, sabendo do seu officio, tem que ensinar a fazer noticiario
pelo teor de Castilho.

Que adoraveis locaes, que gentileza e graça no dizer, que malicia, que
ironia e que pureza castiça de linguagem!

Os senhores conhecem Castilho poeta, prosador, traductor e pedagogo?
Pois não conhecem Castilho todo, acreditem. Falta-lhes ainda conhecer
Castilho jornalista a brincar com a penna sobre assumptos de reportagem,
a enramilhetar locaes que parecem _bouquets_; Castilho a sorrir de si
mesmo por ter descido áquella futilidade e a tornal-a grandiosa para não
ter que envergonhar-se de vêr n'um espelho o pretor a curar de coisas
minimas.

Pois, srs. Dons Leonardos, em verdade vos digo que foram grandes homens
esses que eu conheci n'outro tempo, que conheci e amei, e que vós sois
muito mais pequenos que elles.

Este mesmo Eugenio de Castilho, fallecido ha quasi um anno, não chegou a
ser grande, porque lhe faltou apenas a validez; o talento, não.

Mas, no breve momento em que se demorou nas letras, honrou, como
vergontea, a arvore gloriosa dos Castilhos, florindo como poeta, que
promettia futuro.

Hoje dorme o somno eterno na terra da _Patria_, que elle amava tanto, e
se os mortos pensassem, julgar-se-ia certamente feliz por ter encontrado
descanso aos seus tormentos na mesma terra em que o pae nasceu e amou
primeiro.

      *      *      *      *      *

Tinha eu treze annos, quando um quintanista de direito, Manuel do
Nascimento de Azevedo Coutinho, natural de Sinfães, passando pelo Porto,
recitou em casa de meu pai trechos de um poema que, segundo a sua
propria informação, estava causando o maior enthusiasmo em Coimbra.

Os estudantes sabiam-n'o de cór, e até o doutor Férrer, dando descanço
ás Ordenações e ao Digesto, repetia estrophes aos rapazes quando os
encontrava á tarde no Penedo da Saudade.

Era o cumulo do enthusiasmo coimbrão.

O quintanista Nascimento, um duriense de olhos pretos, vendo-se
comprehendido por um grupo de senhoras que o escutavam, ia procurando na
memoria excerptos do poema e recitava-os contente de espalhar em torno
de si, como um perfume de rosas, a inspiração delicada do poeta que toda
a academia já tinha sagrado em Coimbra com a agua lustral do Mondego.

Esse poema era o _D. Jayme_, de Thomaz Ribeiro.

A cada novo trecho cresciam os applausos; a impressão tornava-se geral
no auditorio.

E o quintanista Nascimento, com a vivaz reminiscencia de todos os moços,
saltava de um canto a outro do poema recordando estrophes:

    Um dia... quando, não sei;
    fui vêr as gastas ruinas
    d'um velhissimo castello
    que ao desamparo encontrei,
    mas que, apesar de esquecido
    na solidão, era bello.

    Achei-o todo vestido
    de tenaz era viçosa;
    e ornado de verde brilho,
    lembrou-me um velho casquilho
    que espera noiva formosa.

De vez em quando, os parceiros do voltarete de meu pai poisavam as
cartas, e escutavam attentos:

    Que triste vida na choça,
    que funda melancolia,
    que rostos tão macerados,
    que suspiros abafados
    cada noite e cada dia!

    noites de eterna vigilia,
    dias curtos para a lida,
    recordações da opulencia,
    amarguras da indigencia...
    que vida, Jesus! que vida!

Eu recolhia todos os trechos n'um enlevo d'alma, que foi o primeiro goso
literario da minha vida e, quando n'essa noite me deitei, reconstituia
mentalmente versos, estrophes inteiras, ancioso de poder lêr todo o
poema, para decoral-o todo.

No dia seguinte, meu pae, recolhendo de ver os seus doentes, trazia
debaxo do braço um livro de capa amarella.

Tinha comprado o poema, suggestionado pela recitação da vespera.

Então, como um faminto que se lança vorazmente sobre um manjar
inesperado, eu, quando os outros acabavam de lêr, devorava pagina a
pagina, canto a canto, lendo e decorando, com a mesma facilidade com que
hoje vou esquecendo...

Annos depois--não foram muitos--quando Castilho protegeu as minhas
estreas literarias com o prestigio do seu nome, Thomaz Ribeiro
escreveu-me algumas cartas que religiosamente conservo entre montões de
outras suas escriptas de toda a parte.

Depois, em Lisboa, muitas vezes Thomaz Ribeiro me disse que possuia um
retrato meu aos dezeseis annos.

Certamente lh'o offereci, mas não me lembro quando, e não conservo hoje
nenhum exemplar d'essa photographia.

Quando foi que eu vi pela primeira vez o auctor do _D. Jayme_? D'isso me
lembro muito bem. Foi no Porto, no escriptorio do _Primeiro de Janeiro_,
cuja redacção permanente era então apenas constituida por duas pessoas,
Francisco Gomes Moniz e eu.

Nós dois faziamos tudo, menos o artigo de fundo, que ia de Lisboa, e era
escripto por Latino Coelho.

Thomaz Ribeiro, tendo chegado ao Porto e entrado na casa Moré, disse ao
gerente da casa, o illustre José Gomes Monteiro, que me queria visitar.

Monteiro, que me estremecia, ficou contentissimo, poz logo o seu chapeu
e subiu, apesar de velho e doente, a rua de Santo Antonio, depois a
ingreme escada da redacção, para me levar Thomaz Ribeiro.

Foi um dos dias felizes da minha vida literaria.

Desde então mantive com Thomaz Ribeiro as mais cordeaes relações de
mutua estima.

As amizades velhas são como o cimento solidificado: não quebram facilmente.

    [Ilustração: Retrato de THEOPHILE GAUTIER que pertenceu a Camillo]

Quando elle partiu para o Brasil, a _Mala da Europa_ quiz dar um numero
commemorativo, que chegasse ao Rio de Janeiro no mesmo paquete que o
auctor do _D. Jayme_. Por doença de um dos seus redactores effectivos, o
proprietario do periodico, Delfim Monteiro Guimarães, já hoje fallecido,
precisava de quem lhe fizesse rapidissimamente a maior parte d'esse
numero. Procurou-me, e pediu-me que me encarregasse eu d'essa ardua
tarefa--ardua pela estreiteza do tempo.

Como se tratava de Thomaz Ribeiro, não tive animo de recusar e, durante
quarenta e oito horas, trabalhei afanosamente, tomando café para
espertar-me, conseguindo não faltar ao encargo que acceitei e á palavra
que tinha dado.

Eu sou a pessoa menos competente para escrever um artigo de critica
literaria a respeito da obra de Thomaz Ribeiro.

Vejo-o sempre, apaixonadamente, através de agradaveis recordações da
minha mocidade.

Não sei, não posso vel-o de outro modo.

Dou-me, portanto, como suspeito.

Mas creio que, para a apreciação de um escriptor ou de um artista, os
criticos téem menos auctoridade do que o publico.

Se esse escriptor ou esse artista conquistou a opinião geral, se recebeu
uma consagração nacional, a sua reputação é inabalavel, a despeito do
voto adverso dos criticos.

Ora Thomaz Ribeiro, cujos poemas foram discutidos, tornou-se o mais
popular poeta do seu tempo. Teve a opinião publica fechada na mão;
dominou-a completamente. E, ainda ultimamente, os que queriam ser-lhe
desagradaveis repetindo versos seus, justificavam, sem querer, a sua
popularidade e, sem querer, a propagavam.

Portugal ficará sendo eternamente o--jardim da Europa á beira mar
plantado--verso que tem servido para todos e para tudo que, em bem e
mal, se escreve a respeito do nosso paiz.

A «Conversação preambular» do _D. Jayme_, escripta por Castilho, foi
tida como exageradamente encomiastica para o auctor do poema, e é
realmente discutivel em algumas das suas affirmações.

Mas o enthusiasmo que alvoroçou o espirito reflectido de Castilho adduz
mais uma prova da enorme sensação causada pelo _D. Jayme_, até nos
julgadores de maior competencia profissional.

Apparecia um poema verdadeiramente nacional, portuguez pelo assumpto,
pelos affectos, pela paisagem, pela dicção, pondo de mais a mais em
evidencia a riqueza de metros, de harmonia, de malleabilidade e de côr
que possuia a lingua portugueza.

Sahia inteiramente dos moldes dos poemas antigos, fugindo á oitava-rima,
e dos moldes da revolução romantica, fugindo ao verso branco.

Era o poema lyrico moderno, o romance metrificado, escripto ao sabor
portuguez sobre a vida portugueza, com matiz popular de tradições e
costumes nossos, com vocabulos colhidos no diccionario da
provincia--_fogaça, campeiro, velleiro_--com toda a alma de um povo a
cantar á flôr dos versos e o caracter nacional sobresaindo em alto
relevo no caracter do protogonista:

    Entrei, raivando vinganças,
    Sahi, jurando perdão.

Comprehende-se que este poema causasse enthusiasmo em todas as regiões
do mundo onde palpitava o sangue e o sentimento portuguez: assim
aconteceu, não só em Portugal, mas tambem no Brazil e na India.

Do _D. Jayme_ nasceram logo outros poemas: Em Lisboa, _Roberto ou a
dominação dos agiotas_, por Manuel Roussado, uma parodia; no Brazil,
_Leonor_, imitação flagrante.

Trinta annos depois, quando Thomaz Ribeiro foi ao Brazil como ministro
de Portugal, ainda lá encontrou o rescaldo do antigo enthusiasmo; e a
sua escolha foi julgada a mais opportuna para reatar as relações que um
ligeiro conflicto tinha interrompido entre os dois paizes irmãos.

Na India portugueza, onde anteriormente estivera como secreterio geral
do governo da provincia, Thomaz Ribeiro foi encontrar admiradores por
toda a parte.

Tenho deante de mim um romance indiano, _Beatriz ou os mysterios da
ultima revolta em Goa_, escripto por Fernando de Goa (certamente
pseudonymo) e publicado em Lisboa no anno de 1885.

No 2.º volume, encontro, entre outras referencias a Thomaz Ribeiro, este
periodo:


«O secretario, aproveitando este ensejo, affastou-se d'ali, metteu-se na
machila e fez-se transportar a Caranzalem, a fim de fazer as suas
visitas ás familias das suas relações que ali se achavam a banhos, e
entreter parte da noite n'uma ou n'outra casa, onde suspiravam pela sua
chegada, para terem o prazer de ouvir uma conversação animada, cheia de
atticismo, de poesia, e ao mesmo tempo recamada das mais brilhantes e
conceituosas phrases.»


A praia de Caranzalem, proxima do Mandovi, n'uma linda enseada a quatro
kilometros da capital, é o balneario aristocratico da India portugueza,
é Cascaes do Oriente.

Em todo o reino de Portugal, na India, no Brazil, em toda a parte onde
se falla a lingua portugueza, Thomaz Ribeiro, por ser o auctor do _D.
Jayme_, encontrava um fervoroso culto de enthusiasmo e adoração.

Era uma justa retribuição da consciencia publica aos sentimentos
patrioticos do poeta, que dedicadamente amou o seu paiz, cantando-lhe as
bellezas e as glorias, no Occidente e no Oriente, e que, no territorio
portuguez, se algum rincão distinguiu com especial affecto, foi o seu
districto natal, Vizeu, e em Vizeu a aldeia garrida onde nascêra, Parada
de Gonta:

    Que fresca aldeia formosa
    Nas margens do meu Pavia!

Morreu na terra da patria, e n'isso lhe fez Deus a vontade:

    meu vergado pomar d'um rico outomno,
    sê meu berço final no ultimo somno.

O romantismo, vocabulo que eu apenas acceito convencionalmente como
expressão chronologica para designar determinada época literaria, e não
como caracterisação psychologica d'um estado d'alma, que é commum a
todas as gerações, e, portanto, eterno; o «periodo romantico», ia
dizendo, teve ao menos de grande e nobre o seu amor ao paiz, affirmado
solemnemente na celebração das glorias e das tradições portuguezas,
desde Alexandre Herculano até Thomaz Ribeiro.

Hoje é moda rir de tudo, em prosa e verso, especialmente do paiz.

Literariamente, ainda falta encarar o auctor do _D. Jayme_ sob outro
ponto de vista: como recitador.

Trez homens conheci eu incomparaveis no primor com que sabiam dizer
versos: Castilho, Thomaz Ribeiro e Gonçalves Crespo.

Quanto a Thomaz Ribeiro, sempre me ha de lembrar o que se passou uma
vez, sendo elle ministro do reino, na commissão de instrucção secundaria
da camara dos deputados.

Discutia-se um projecto de reforma do respectivo ensino.

Apenas dois membros da commissão se oppunham tenazmente á resurreiçao do
exame de madureza: eram o sr. José Borges de Faria e eu.

N'essa reunião nocturna, que se effectuou no edificio do governo civil
para maior commodidade de todos, a discussão corrêra violenta e azeda.

Nada se tinha resolvido ainda, quando foi servido o chá, que veiu da
casa Ferrari.

Então, durante essa pausa obrigada, não sei quem se lembrou de pedir a
Thomaz Ribeiro que recitasse _O tear da rainha_.

Elle annuiu promptamente, e tanta impressão causou em todos nós, que
fomos pedindo mais versos.

Assim acabou n'uma doce calma aquella reunião, que tinha corrido agitada.

O projecto chegou a ir ao parlamento, fazendo os dois dissidentes
declaração de voto, mas a reforma não teve execução.

Tambem a titulo de simples recordação lembrarei que sendo Thomaz Ribeiro
ministro da marinha--primeira pasta que geriu--fui eu que, a seu pedido,
entabolei negociações com a livraria Chardron, do Porto, para a
acquisição da propriedade das suas obras.

Quando se escreve de um amigo não ha meio de coordenar as memorias
agradaveis que elle nos deixou; os factos acodem em tropel amontoando-se
numa agglomeração confusa, que exigeria longo tempo e grande esforço de
serenidade para ser dominada.

Não é, poucos mezes depois da morte d'esse amigo, que semelhante
tentativa pode fazer-se para conseguir restabelecer a ordem onde tudo é
ainda desordem da saudade.

Por isso não o consegui eu, nem sequer o tentei.


PAG. 18

«... esquecer essa noite de festa, que foi talvez a unica noite feliz
n'esta casa.»

D. Anna Placido escrevendo, embora sob um pseudonymo masculino, a
respeito da morte de Vieira de Castro em Africa, recordava a noite de 15
de julho de 1866, quando dizia:


«Era noite de festa. Na pequena aldea de *** ouviam-se cantos festivos;
e a voz das aldeãs competia com as rabecas e os clarinetes.

«Passava-se isto em uma casa de campo. As seis janellas da frontaria
jorravam luz, e a porta da entrada por onde se subia por larga escadaria
de pedra, estava afestoada de rosas e hortensias».


Era o sarau campestre, o serão minhoto, em honra de Castilho, na quinta
de Seide.


PAG. 26

«Foi ali que essa linda mulher, de formas esculpturaes...»

A proposito de D. Anna Placido, referirei um pormenor que me foi contado
recentemente.

O seu casamento com o grande escriptor esteve para realizar-se em Santo
Thyrso, aonde ambos chegaram a ir para esse fim. Ali se demoraram dois
dias, á espera que o conego Alves Mendes viesse do Porto com os
documentos que eram necessarios. Só o abbade de Santo Thyrso, reverendo
Joaquim Augusto da Fonseca Pedrosa, estava na posse d'este segredo;
ninguem mais, n'aquella villa, o sabia. Mas houve demora na camara
ecclesiastica do Porto, e o conego Alves Mendes não pôde obter os papeis
tão depressa como desejava. Por este motivo, Camillo e D. Anna Placido
retiraram de Santo Thyrso. O casamento veio a celebrar-se no Porto, como
já tem sido dito.


PAG. 30

«Em 1892 o Nuno, estando nós na Povoa, mostrou-me V. no _Café Chinez_.»

Foi n'esse anno, e na Povoa, que eu vi o visconde de S. Miguel de Seide
pela ultima vez, quando já a questão do _Protesto_ nos tinha inimistado.

N'essa occasião eu não pensava ali senão em vencer, como candidato, uma
das mais renhidas e ruidosas eleições que tem havido n'este paiz. Deu
brado aquella briga eleitoral da Povoa de Varzim em 1892! Se não fossem
as minhas canceiras e preoccupações politicas, dada a boa disposição do
visconde de S. Miguel de Seide como agora sei, certamente nos haveriamos
reconciliado ali n'aquella época. Mas eu andava em correrias, em
comicios, em conferencias, em combinações eleitoraes: não chegava para
as encommendas. Forte cegueira! Até me parece agora impossivel que eu
fosse então o mesmo homem que hoje sou!

O que é certo é que venci com o povo--a grande classe dos
pescadores--coisa que raras vezes terá acontecido em Portugal. Quem
vence, por via de regra, são os influentes, os galopins, o carneiro e as
batatas. D'aquella vez venceu o povo, que me quiz fazer deputado, e fez.
Assim o povo pensasse sempre em tudo o mais, e outro gallo lhe cantaria.

Eu andei então muito descomposto nas gazetas, mas tambem andei muito
cantado nas ruas.

Os pescadores e as pescadeiras improvisaram então um cancioneiro
eleitoral em meu favor. Ahi vão amostras do panno, que elles
espontaneamente souberam tecer com toda a ingenua rudeza dos seus
processos poeticos:

       Boa vai ella!
    Ora viva o Pimentella.
    Que dá o seu coração
    P'ra vencer a eleição.

       Boa vai ella!
    Ora viva a _piscaria_.
    Vai toda votar em barda
    Pela nossa melhoria.

       Boa vai ella!
    Ora viva o Albertinho,
    Que vai como deputado
    Cá pelo nosso povinho.

Eram tão carinhosos para mim os pescadores, que até me tratavam pelo
diminutivo, meiguice que eu já não estava costumado a receber ha muito
tempo. O povo ama ainda pelo systema antigo, e eu era o seu candidato
contra a vontade de muitas influencias poderosas e colligadas.

N'esta roda-viva de uma eleição disputadissima, renhidissima, eu pensava
menos no visconde de S. Miguel de Seide do que na urna e nos votos.

Se não estivesse tão preoccupado e ralado, se tivesse tempo para me
demorar nos botequins, certamente se teria ageitado alguma occasião de
me congraçar com o visconde de S. Miguel de Seide, pois que elle o
desejava, e eu não o recusaria.

    [Ilustração: Retrato de ALPHONSE KARR que pertenceu a Camillo]


PAG. 37

«... Jorge Castello Branco, o infeliz primogenito de Camillo.»

Apezar de ser o primogenito, foi baptisado, quando já tinha quasi dois
annos de idade, no mesmo dia que seu irmão Nuno, a 6 de janeiro de 1865.

Se o leitor folheou alguma vez _Os amores de Camillo_, lá deve ter
encontrado, a pag. 344, a noticia d'este duplo baptisado que se
effectuou no Porto.

Mas Antonio de Azevedo contou-me ultimamente um pormenor, que é
interessante.

Ao jantar d'esse dia, em casa de Camillo na rua do Almada, assistiram as
mesmas pessoas que tinham ido á egreja; Custodio José Vieira, notavel
jurisconsulto; o Bastos, do _Nacional_; Antonio de Azevedo; e um
procurador portuense, cujo nome não lembra.

Durante o jantar apenas se bebeu champagne e cognac.

Seguiu-se um serão alegre, cheio de engraçados episodios e imprevistos
sainetes.

D. Anna Placido tocou piano.

Camillo tocava trombone no canno de uma bota.

E o Bastos do _Nacional_, que era um homem alto, forte e rosado, dançava
com Custodio José Vieira, que era muito pequeno e muito feio.

O procurador, conscio da sua desigualdade de cotação intellectual,
conservou-se mero espectador.

Não parece que se está ouvindo um trecho das _Alegres comadres de
Windsor_, que Nicolai compoz sobre a peça de Shakspeare, ou aquella
scena de Puccini, em que os socios da bohemia folgam em commum n'uma
chorea improvisada?

Quem poderia vêr então em Camillo o futuro solitario e suicida de S.
Miguel de Seide!


PAG. 53

«Leitores de cem romances, que uma só penna escreveu».

Todo o trabalho literario de Camillo pesou unicamente sobre elle. Não
temos em Portugal o systema de um escriptor tomar como auxiliares outros
escriptores menos reputados. Usa-se isso em França; entre nós, não.

Apenas, em duas obras de theatro, trabalhou Camillo com um collaborador,
que foi Ernesto Biester.

Fizeram em commum o drama _Vingança_ (Veja _Esboços de apreciações
literarias_, pag. 85 e _Revista contemporanea de Portugal e Brazil_,
vol. IV, pag. 313); e o drama _Penitencia_, em 6 actos e um prologo
(Veja _Dic. Bib._ de Innocencio, vol. IX, pag. 176).

Vi representar este ultimo drama no theatro de S. João, do Porto, pela
companhia do antigo Theatro Normal.


NOTA FINAL

O retrato de Camillo, que publicamos agora, é copia photographica de um
a _crayon_ que vimos na casa dos netos do grande romancista em S. Miguel
de Seide.

Na sala de entrada ha trez retratos de Camillo. Só este desconheciamos,
e fez-nos impressão, porque, a distancia, suppozemos que fosse de
Guilherme Braga.

A sr.ª D. Anna Corrêa desfez o nosso equivoco.

O retrato a _crayon_ é de 1876 e está assignado, mas deve por sua vez
ser copia de outro retrato, tirado aproximadamente em 1857, quando
Camillo usava ainda o cabello levantado sobre a fronte.

Comtudo não é o mesmo retrato de 1857 que foi publicado ultimamente, com
outros de differentes epocas, no n.º 8-9 da _Illustração moderna_, do
Porto.

Tambem não é o de 1850, que ainda recentemente foi mais uma vez
reprodusido na revista portuense _Sombra e luz_ (n.º 2).



Preço 400 réis





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