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Title: Talitha - evangelho em tres actos Author: Pinto da Rocha, -1930 Language: Portuguese As this book started as an ASCII text book there are no pictures available. *** Start of this LibraryBlog Digital Book "Talitha - evangelho em tres actos" *** Pinto da Rocha TALITHA EVANGELHO EM TRES ACTOS Segunda Edição LIVRARIA CHARDRON DE LELLO & IRMÃO Carmelitas, 144-Porto 1909 TALITHA Pinto da Rocha TALITHA EVANGELHO EM TRES ACTOS Segunda Edição LIVRARIA CHARDRON DE LELLO & IRMÃO Carmelitas, 144-Porto 1909 O _accordo_ assignado no Rio de Janeiro, em 9 de Setembro de 1889, entre o Brazil e Portugal, assegurou o direito de propriedade literaria e artistica em ambos os paizes. A presente edição está devidamente registada nas _Bibliothecas Nacionaes_, de Lisboa e Rio de Janeiro. Imprensa Moderna, de Manoel Lello R. da Rainha D. Amelia, 61--PORTO Grande premio na Exposição do Rio de Janeiro de 1908 PERSONAGENS TALITHA, céga 18 annos JOÃO FULGENCIO, cura da aldeia 80 " DR. RUY DE ORNELLAS, medico 25 " JOAQUINA, irmã do cura 65 " MARQUEZA DE RILMA 50 " Um escudeiro--Camponezas--Lavradores A acção passa-se em uma aldeia da Provincia de Traz-os-Montes, Portugal ACTUALIDADE INTERPRETAÇÃO NO RIO DE JANEIRO EM 1906 Talitha Maria Falcão Joaquina Jesuina Saraiva Marqueza de Rilma Barbara Wolckart João Fulgencio Chaby Pinheiro Ruy de Ornellas Henrique Alves NO RIO GRANDE DO SUL EM 1907 Talitha Maria Falcão Joaquina Maria Pinheiro Marqueza de Rilma Olivia de Almeida João Fulgencio Chaby Pinheiro Ruy de Ornellas João Lopes A _Talitha_ subiu á scena, pela primeira vez, no Theatro Apollo, do Rio de Janeiro, em Agosto de 1906, na festa artistica da eximia actriz Maria Falcão. E tomando a mão da menina disse-lhe: --Talitha cumi:--Filhinha levanta-te. _Novo Testamento._ S. Marcos, V. 41. PRIMEIRO ACTO Jardim, na residencia do Cura.--Á direita, um banco de pedra junto a um poço: á esquerda, frontaria da casa. Grade ao fundo, com portão.--Vista de estrada e campo. SCENA I Joaquina e Ruy Joaquina Louvado seja Deus! Como está bello e forte! Ruy É verdade, Joaquina, o clima aqui da terra encheu-me novamente o coração de alento. Posso dizer que entrei neste bondoso lar vigiado, sem dó, pelos olhos da morte. E agora, a luz do Sol, os perfumes da serra, as aguas desta fonte, o sadio alimento, o seu cuidado santo, amigo e tutelar, fizeram-me robusto. Joaquina E Deus não lhe fez nada? Ruy Foi elle quem salvou a minha mocidade, porque a divina mão que fez os céos e os montes, que deu flores á terra e deu frescura ás fontes, que faz vibrar a luz e a voz da passarada, que impelle a nuvem branca em plena immensidade, um dia vos creou as almas caridosas que vivem nesta casa, humildes e serenas, felizes com o Bem, suaves como as rosas, mais simples do que o trigo, a neve e as açucenas! Joaquina Então, menino, crê tambem que Deus existe?! Ruy De certo, minha amiga. Joaquina E não é um hereje, dessa raça maldita e negra que desmente as obras do Senhor? Ruy Ingenua creatura! É tão alegre a crença e não crêr é tão triste, que mesmo sem querer o coração da gente acredita num Deus que todo o mundo rege, num Pae que assim te deu alma simples e pura! Faz tanto bem, Joaquina, acreditar em Deus e adormecer á noite abrindo a consciencia aos beijos do luar, sorrir de madrugada á frescura que vem do azul ethereo e vasto, que o nosso olhar ascende ás amplidões dos céos sem esforço nenhum, como a espiral da essencia que se evola da flôr, se a abelha delicada lhe poisa na corolla o vôo leve e casto! Joaquina Bemdito seja Deus! Não póde imaginar como eu fico contente ouvindo assim fallar!... Ruy Mas que idéa fazia então de mim? Julgava talvez que eu fosse atheu? Joaquina, _benzendo-se_ Deus me perdôe... pensava! Ruy Como poude a sua alma angelica e tão boa fazer-me, sem motivo, essa enorme injustiça? Joaquina Ah! mas não foi por mal, nem o pensei á tôa: eu nunca o vi rezar, eu nunca o vi na missa... E a gente vê só cara e não vê corações... Ruy E se o visse, Joaquina!... Joaquina E que é que me servia o ver-lhe o coração? Ruy Nada, é certo. Entretanto conheceria bem as minhas intenções, a esperança que faz brotar, em cada dia que passa, um pensamento alegre, puro e santo... Joaquina, _interrompendo_ É, mas diz o rifão que está o inferno cheio de boas intenções!... Ruy Tem razão; mas não minto se lhe disser tambem, lealmente, o que sinto: ás vezes mais parece um verdadeiro inferno este peito infeliz... Joaquina, _benzendo-se_ Abrenuncio, menino!... Mas que blasphemia a sua e que peccado feio!... Um homem que acredita em Deus, bondoso e eterno, em Deus Nosso Senhor, não diz tal desatino!... Virgem Maria! Credo! Ruy Alma boa de santa!... A tua vida inteira adormeceu. A aurora já para ti não tem aquelle brilho vivo que a primavera, em luz, alastra pelos campos... Tudo se transformou em outra vida; agora a fonte já soluça, a brisa já não canta; aos teus olhos a lua é d'um fulgor esquivo, o sol não tem calor, o céo já não é glastro, as estrellas febris parecem pirilampos; trazes o teu olhar constantemente a rastro; sómente a fé te anima; é por isso que extranhas o inferno abrasador que muita vez domina a minha mocidade. Joaquina, _com sorriso_ Isso me bacoreja algum amor perdido ahi por essas eiras... Ruy É possivel, quem sabe? Os ares das montanhas tem caprichos assim, póde bem ser, Joaquina! Joaquina, _cariciosa_ E diga-me, que olhar é esse que negreja a sua vida alegre? Ha tantas feiticeiras!... Ruy, _enleiado_ Que olhar? Joaquina, _interrompendo_ Mas é segredo? Ruy É, por ora é segredo... Joaquina Ah! não confia em mim?! bem sei, bem sei, tem medo que eu descubra o mysterio, a princeza encantada que assim lhe traz a vida em tantas amarguras... Ruy Não é mysterio, não. É... cousa complicada!... Joaquina Faz muito bem zelar a flôr dos seus amores; não os conte a ninguem; se acaso as desventuras lhe roubarem o somno agarre-se com Deus... _tomando-lhe a mão e fallando-lhe ao ouvido_ Reze constantemente á Senhora das Dôres. Acceite este rosario e tenha-o por bordão. É bemaventurado aquelle que padece, porque é delle, menino, o reino azul dos céos... E Deus a quem promette estende sempre o pão; reze e será feliz... Essa alma bem merece... Ruy Santa velhinha, santa... Joaquina, _tapando-lhe a bocca_ E nem um ai, silencio... Olhe quem vem ali... Ruy, _voltando-se_ O Padre João Fulgencio e Talitha; meu Deus!... Pobre, infeliz Talitha!... Joaquina, _a Ruy_ Parece que ficou um tanto atrapalhado... Ruy, _encobrindo a verdade_ Sempre que a vejo, assim tão cheia de bondade e céga... Joaquina Então, que sente?... Ruy Uma dôr inaudita, que reveste de luto as minhas alegrias: Ha tanta luz espalhada na concha astral dos espaços! E os olhos della tão baços! E a fronte tão macerada! SCENA II Os mesmos, Padre João e Talitha _Talitha vem apoiada ao braço de padre João_ Padre Pois Deus Nosso Senhor nos dê muitos bons dias. _assenta Talitha: a Ruy, apertando-lhe a mão_ Como passou a noute? Ruy Assim; mais descançado... Sonhando... E o Senhor Cura?... Padre Eu? Ah! na minha idade já se não dorme; eu passo a noute toda em claro, de rosario na mão, pedindo a Deus por nós! E quando surge o dia e mal o Sol desponta, dando o braço a Talitha, encaminho-me á Egreja. Talitha Diz a missa que ou ouço... Padre E é raro, muito raro, voltarmos ella e eu, da Egreja a casa, sós. Ás vezes vem comnosco esse infeliz sargento que arrasta por ahi o longo soffrimento, velho e cego tambem, e eu, mortiça candeia, a conduzir os dois pelas ruas da aldeia! Talitha Mas o senhor doutor, por mim nunca dei conta, nem uma vez, sequer, nos acompanhou! Veja! No emtanto está comnosco ha sete mezes, não? Joaquina Isso mesmo eu já disse... Ruy Eu dei a explicação... Talitha E poder-se-á saber? Não é curiosidade? Padre Talvez seja, talvez... Ruy Não é! Talitha Então ouçamos!... Ruy Eu rezo no silencio o santo sacrificio, no fundo de minh'alma elevo o meu altar, sob o docel azul das minhas esperanças!... Padre E eu sem conhecer mais essa novidade!... Talitha Qual? Padre Esta que o Doutor nos deu, mas aprendamos... Ruy Padre não é sómente aquelle que a rezar esgota uma existencia ao peso do cilicio e vae pelas manhans, feliz como as creanças, curvar humildemente a fronte e a consciencia, na sombra da capella, aos pés do Redemptor... Talitha Mas ha d'outros, então? Padre Eu não conheço, filha! Ruy Sacerdote é tambem aquelle que tem culto ao qual offereceu toda a sua existencia. Padre, quem se dedica um dia com fervor a amar alguem na terra a cujos pés se humilha, tambem é sacerdote... Padre E eu, sacerdote, exulto ouvindo do seu labio esta expressão severa. Joaquina, _que tem guardado silencio, enlevada pelas palavras de Ruy_ Bemdito seja Deus! menino, quem me dera conhecer a mulher que tem um filho assim... Talitha Só eu não posso vêl-o!... Ruy, _entre alegre e enleado_ Obrigado, Talitha! Talitha Não tem que agradecer, disse-o sinceramente! Que póde desejar mais uma céga, diga?... Padre Mas conforma-te, filha, espera que o Senhor, ouvindo-me a oração, tenha pena de mim e acuda com remedio ao mal dessa desdita! Ruy Como eu fôra feliz... Joaquina E eu seria contente!... Ruy Se pudesse voltar, ó minha boa amiga, aos seus olhos de céga o perdido fulgor!... Talitha Nunca mais, nunca mais... Padre Porque é que te condemnas se toda a nossa vida é uma esperança apenas?... Talitha Se é toda de esperanças esta vida, já me fugiu aquella que voava bem junto do meu seio e que roçava sobre a minh'alma a aza foragida. Nem sei onde ella vae, talvez perdida nao volte a mim por não morrer escrava na escuridão da noite immensa e cava dos meus olhos sem luz e sem guarida... Nunca mais fulgirás, dôce promessa, na minha treva densa e prematura, como o branco luar em noite espessa. Se vive, o olhar dos cégos não fulgura, dorme na sombra e de sonhar não cessa na tristeza sem fim da noite escura! Ruy Não descreia, Talitha, as suas illusões não fugiram, por ora, esparsas na lufada! Quem foi que lhe roubou a ultima esperança, que braços sem caricia, ou duras privações lhe puderam vibrar tão rude punhalada? Pois bem, toda a minh'alma alegre se abalança a dizer-lhe, Talitha:--o seu formoso olhar tão cheio de fulgor, um dia ha de voltar... Joaquina Só milagre de Deus! Padre E Deus póde fazel-o: é Pae de todos nós! Talitha, _com desanimo_ Tenho rezado tanto! Ruy Implore mais ainda, espere, tenha crença! Talitha Tenho pedido muito e tanto me flagello que banho as orações nas bagas do meu pranto e aqueço-as ao calor da minha dôr immensa. A mesma escuridão tremenda me apavora, nem um raio do luz, nem um vago lampejo; nunca mais hei de vêr o campo que se inflora nem do luar terei um luminoso beijo... Padre A tua redempção ainda não surgiu... Joaquina, _pondo as mãos_ Eu tenho tanta fé! Ruy O meu presentimento não sei o que me diz... Talitha Que o coração sentiu, que a sua alma pensou nessa dôce ventura, eu creio porque sei quanto é nobre e bondoso. Mas eu creio tambem que o meu cruel tormento sómente acabará no chão da sepultura, onde tudo tem fim, embora tenebroso!... Padre, _olhando o céo_ Perdôa-lhe, Senhor, ella ignora o que diz... Se tem soffrido tanto esta pobre infeliz!... Talitha Eu sei bem o que disse; a minha crença é essa. Ha muito que eu imploro ao céo a protecção e rezo com fervor á dôce Conceição, pedindo-lhe, a chorar de dôr, que não esqueça a minha noite escura e tristemente agreste como a sombra que faz a copa de um cypreste. Aos pés do seu altar curvei-me como escrava e emquanto pela igreja o incenso espiralava, e as simples orações subiam na espiral, fechei-me na mudez do meu fervor mental e fiz uma promessa... Ruy, _com interesse_ E então qual foi, Talitha? Talitha Votar a minha vida ao divino serviço, se um dia terminasse o meu padecimento; nem peço mais a Deus, é tudo o que cubiço. Ruy E se tornar a ver? Talitha Entrarei num convento a vestir o burel de freira Carmelita. Padre, _crente, pondo as mãos_ Se Deus te ouvisse, filha! Joaquina, _com uncção religiosa_ E o Bom Jesus quizesse!... Ruy, _com amargura_ Se tivera valor a minha humilde prece!... Talitha, _curiosa_ Se tivera valor, que lhe faria, Ruy? Ruy Não pediria a Deus esse milagre extremo... Talitha Porque? Ruy Porque seria arrancal-a da treva e lançal-a de novo em mais cruel negrura. Juntando toda a fé que de minh'alma flúe eu iria pedir, como um favor supremo, que as almas alevanta e os corações eleva, que me guiasse a mão na lucida aventura de devolver-lhe um dia ao seu olhar perdido aquelle brilho antigo e aquelle ardor de outr'ora que faziam inveja ao proprio olhar de Flóra! Padre E seria capaz? Joaquina Credo! _Sae_ SCENA III Padre João, Ruy e Talitha Ruy E tão convencido estou de que o Senhor a mão me guiaria nesse instante feliz, que não hesitaria um momento sequer... A simples catarata é facil de operar e em dez dias exactos Talitha voltaria á luz que o céo desata e que dá vida á terra, aos fructos e aos regatos!... Pense, Talitha, pense e permitta que eu faça esse dôce milagre. Talitha E eu tornarei a vêr o presbyterio, a fonte, a madrugada, as aves, as abelhas sugando o mel dos jasmineiros? Ruy Os seus olhos verão a luz da eterna graça no sorriso gracil da alvorada, ao nascer nas bandas do oriente em nuvens tão suaves, como um rebanho astral de timidos cordeiros! Talitha E que mais hei de vêr? Ruy Que mais? Verá tambem um velhinho a sorrir com lagrimas na face, e uma velhinha branca e trémula a chorar, e ao pé delles, alegre, o olhar de mais alguem, numa dôce oração tão leve e tão feliz, como se a propria brisa aqui se demorasse um momentinho só tambem para rezar! Talitha, _alegre_ E eu voltarei de novo aos encantos da luz? E hei de vêr tambem o jardim do mosteiro onde floresce a fé que a nossa vida arrima, as rosas enfeitando a Virgem que as anima, o corpo de Jesus exanime e trigueiro, entre cirios a arder, deitado sobre a cruz?... E então assim feliz... Ruy, _interrompendo_ E então, Talitha, e então? Talitha Rezarei pelo Ruy, tão bom, tão generoso, que trouxe ao meu olhar escuro e tormentoso a esmola angelical d'um lucido clarão! SCENA IV Os mesmos e Joaquina Joaquina, _entrando_ Padre Cura, uma carta. Padre Uma carta? Mas donde? _recebe-a e examina_ Hum! e de quem será? Talitha Joaquina, dê-me o braço... _Joaquina dá-lhe o braço. A Ruy_ Dr. Ruy, até já. _ao cura_ Até já, meu Padrinho... Ruy, _que se tem conservado triste_ Talitha!... Talitha, _voltando-se_ Meu Senhor!... Ruy, _indo a ella_ Perdão, Talitha... nada! Talitha Arrependeu-se, não? E tambem não responde... Desconfia de mim?... Outro tanto eu não faço Doutor, a seu respeito; eu bem sei, adivinho... Ruy, _com interesse_ Que foi que adivinhou? Talitha, _com malicia_ Uma coisa adorada... que só tres corações conhecem bem: o seu, o della, e o Senhor que tudo vê do céo... Ruy, _admirado_ Della, Talitha, quem? Joaquina, _com intenção_ Daquella princesinha d'olhos da côr do céo, vestida de andorinha... Talitha Ouviu, Doutor, ouviu? Ruy Juro... Talitha, _interrompendo_ Não jure falso!... _a Joaquina_ Vamos, Madrinha, embora: é tempo de almoçar. _sahem_ SCENA V Padre João e Ruy _Desde que recebe a carta, Padre João lê com a maior attenção. Pela sua face corre toda a expressão de espanto que vae recebendo. Quando sahem Joaquina e Talitha, o Padre conclue a leitura e fica a meditar. Ao approximar-se Ruy, suspende-se._ Padre Esta agora é que foi! Ruy E que foi, Senhor Cura? Padre Quem sabe? Póde ser um pequeno precalço, mas póde ser tambem que venha de mistura alguma dôr maior. E não posso evitar!... Ruy O que essa carta diz deixou sua alma afflicta: um segredo talvez que vive no seu seio?!... Padre Foi, sim, mas ja não é. Agora só receio que m'a levem daqui... Ruy Que a levem? quem? Padre Talitha... Ruy E quem a levará deste remanso augusto? O convento, a promessa?... Padre Oh! não... Ruy Não tenha susto! E quem mais poderá, nesse caso, arrancal-a do lar em que nasceu? Padre A Mãe... Ruy, _surprehendido_ Ah! mas... então... Padre, _baixinho_ Então... já percebeu?! Ella foi engeitada... Eis aqui o segredo em que esta vida abraço. _baixa a cabeça, scismando_ Ruy, _depois de uma pausa_ Oh! meiga creatura! Padre E não poder salval-a!... Ruy Engeitada!... Padre Sim, sim. Ao romper da alvorada. Ha muito tempo já. Inda no céo brilhava a estrella da manhã; vieram procurar-me; bateram ao portal com desusado alarme... Ergui-me e fui abrir; a neve branqueava os campos e eu pensei que um pobre moribundo, no momento supremo em que deixava o mundo, quizesse receber da minha propria mão o balsamo final da santa extrema-uncção, e abri desta choupana a porta sempre franca. Parecia o jardim uma toalha branca. Era um frio cruel, cortava como fôsse o gume de uma faca e o fio de uma fouce... Sahi, olhei em roda e já não vi ninguem. No céo luzia só a estrella de Bethlem! Não sei porque a fitei nesse feliz momento. Um silencio profundo amordaçava o vento; dormia a natureza um somno indefinido, vibrou então no espaço um timido vagido... Estremeci de horror... Ruy, _com anciedade_ Era a pobre Talitha?! Padre Approximei-me e vi, aqui junto do banco um cestinho de verga envolto em panno branco. Banhou-me o coração uma dôr infinita. Na tragica mudez da alvorada deserta tomei nas mãos, tremendo, a delicada offerta e agasalhei-a ao peito, assim, para aquecel-a como quem agasalha o corpo de uma estrella que tombasse do céo... Ruy, _com mais anciedade_ E esse penhor amigo?!... Padre A meu lado cresceu e formou-se o thesoiro, alma rica de luz, feita de amor e d'oiro. Parece que ao romper daquella madrugada tão fria, tão cruel, mas tão abençoada, que eu lembro com saudade e que inda hoje bemdigo, teve o banho castalio, o baptismo de luz da mesma estrella exul que baptisou Jesus. Por isso é que minh'alma agora não sopita a magua de perdel-a... Ruy E quem terá coragem energica e viril de arrebatar Talitha ao seu amor leal e bom, dôce miragem, no deserto feliz desta velhice austera? Padre A mãe que a vem buscar... Ruy A mãe não tem direito... A mãe que engeita a filha é peior que uma fera! Padre Mas é mãe!... Ruy Sim, será, sem coração no peito. Padre Engana-se, doutor, a mãe que hoje a reclama, depois de tanto tempo, é que lhe tem amor... Ruy Como a engeitou, então? Padre A fera tambem ama... Quem sabe o que terá soffrido essa mulher? Sabe-o sómente o céo, calcule-o quem puder. E diz-me o coração que vou perdel-a em breve. _Erguendo as mãos ao céo_ Não me tires, meu Deus, esse gentil penhor! Repara que já tenho os cabellos de neve, tão tremulas as mãos, e os labios descorados, como sonhos que vão batidos e levados num extremo soluço... O que eu tenho no mundo, pouco mais é que um ai e o golpe agora é fundo! _Enxuga os olhos e sáe_ SCENA VI Ruy e Talitha _Ruy vê sahir o Padre e fica pensativo, fitando os olhos no chão, sentado no banco de pedra. Depois de uma pausa, Talitha desce, tacteando, até junto delle._ Talitha Padrinho, então não vem? Ruy, _sobresaltado_ Ah! Talitha... Talitha Perdão! Pensei que estava aqui... Ruy Já se foi... Talitha Obrigada... _Vae retirar-se_ Ruy Talitha! Talitha Senhor Ruy! Ruy O seu bom coração inda não lhe contou, baixo, muito baixinho, quasi a tremer de medo e susto, um segredinho, diga, não lhe contou? Talitha, _com muita simplicidade_ Que pergunta engraçada! Ruy E vive então sereno? Talitha Ah! Sim, tenho certeza! Ruy É bem feliz, Talitha, a sua singeleza! Outro tanto, porém, ao meu já não succede que o sinto palpitar acceleradamente, como quem vae fallar e o soffrimento impede. Talitha Eu bem lh'o disse ha pouco... Ruy Entretanto eu lhe juro... Talitha, _interrompendo_ Não jure que é peccado a jura de quem sente que não diz a verdade. É mais bello e mais puro não negar. Ruy Tem razão, mas eu não disse, ainda qual era o juramento... Talitha, _ingenua_ E qualquer que elle seja... Ruy Diga, diga o que sente... Talitha Ha de ser... Ruy, _curioso_ Ha de ser? Talitha Não digo... Ruy Diga, sim, a sua voz bemvinda ha de me dar a esmola honesta e bemfazeja que a minh'alma sem luz precisa de viver. E do seu labio casto apenas um sorriso vale mais que uma estrella e rasga um paraiso. Talitha Assim o quer, direi; jamais o seu protesto póde ser verdadeiro... Ruy E porque não, Talitha?... Talitha Não sei, não sei porque. A jura é como o gesto que abala fortemente, a nossa vida agita, mas passa e foge... Ruy Ah! sim, quando falla sómente o labio, sem fallar tambem o coração... Ah! de certo que assim o labio sempre mente. Mas quando o sangue estúa e faz tremer a mão de quem jura, Talitha, ou quando a fronte em braza, apenas num momento, empallidece e tomba, bem como se a roçára a ponta fria da aza feita de gelo e dôr de alguma extranha pomba, quando um homem que sempre olhou de frente o sol tem medo de encarar o olhar de um rouxinol, e treme até de ouvir-lhe a voz encantadora, quem sempre ouviu sorrindo a furia rugidora do vento e dos trovões... Talitha, _interrompendo_ Então?... Ruy Assim revela que é grande, generoso e casto o sentimento que apenas se traduz e que tão mal se vela na gaze pueril d'um simples juramento! Talitha, _ingenua_ Quem foi que o ensinou a fallar assim? Ruy, _timido_ Digo?... Talitha, _ingenua_ E porque não? Quem foi?... Ruy, _timido_ Nem mesmo eu sei, Talitha! Talitha, _insistido_ Nem sabe onde aprendeu? Ruy, _sorrindo_ Quer aprender commigo? Talitha, _ingenua e triste_ Não me quer responder, nem confessa, nem nega... Se eu pudesse aprender, de que valera á céga saber fallar assim? Ruy, _triste_ Á céga? Talitha, _simples_ E á Carmelita?... Ruy, _ancioso_ Á Carmelita!... e quem lhe disse que os seus olhos recuperando a luz, como duas estrellas, irão illuminar as fragas e os escolhos das montanhas da Syria, entre as monjas Carmellas? Quer sepultar-se em vida? Talitha E não é cemiterio maior a escuridão deste pavor funereo, sem vêr o sol que doira as nuvens do poente, sem vêr a lua assim como um berço dolente embalando no azul um sonho que não morre, não vêr duma colmeia o mel que filtra e corre como um rio de luz nascendo num enxame, sentir e adivinhar a suprema belleza da madrugada em flôr, das noites constelladas, dos mares e do céo, de toda a natureza, ter olhos e não vêr, inda haverá quem chame vida a tal vida? Não! Mais negras, mais cerradas do que esta noite immensa e triste, sem estrellas, não póde ser, de certo, a solidão das cellas, e o sol que tudo aquece, aquecerá de leve a macerada fronte á monja que não teve nem um seio de mãe que um dia a amamentasse, nem a luz d'um olhar na pallidez da face, e nem um coração... Ruy Talitha! Talitha, _ingenua_ Meu doutor! Ruy, _com intenção_ Um coração? Talitha, _ingenua_ Qual foi? Ruy, _tomando-lhe a mão_ O meu... Talitha, _comprehendendo, envergonhada_ O seu? _Retira a mão_ Ruy, _enleiado_ Perdoe. _Pausa prolongada_ Talitha, _implorando_ Que mal lhe fiz? Ruy Rasgou-me o coração, Talitha; e pensará, talvez, que não me fere a dôr de vêl-o assim rasgar? Talitha, _humilde, implorando_ Mas creia, Ruy, que foi sem que eu desse por isso. E se o mal está feito seja agora gentil e não me rasgue o peito. Esqueça a minha falta, esqueça esta maldita, não se lembre da céga e deixe-a definhar na torva escuridão desta noite polar... Ruy E se eu não conseguir tirar do pensamento o seu casto perfil, celeste e macilento, se a minh'alma quizer viver escravisada unindo o meu destino á corrente doirada que me prende, sorrindo, ao seu cruel martyrio, se o meu olhar prefere esse apagado cirio dos seus olhos de céga á lucida manhan do amor sentimental de alguma castellan, como esquecel-a então? _Joaquina apparece ao fundo_ Talitha, _triste_ Não creio... Ruy Mas porque? Já tão cedo a sua alma angelica descrê da minha que, arrastada á fimbria azul da sua, por toda a parte a segue e a seu lado fluctua? Não recorda, Talitha, o dia amargurado em que eu entrei aqui perdido e quasi morto? Não se lembra da noite em que eu fui condemnado? Não se lembra talvez das horas de conforto que os seus olhos sem luz e a sua bocca em flôr me trouxeram a rir, como um remedio santo da minha vida enferma á cruciante dôr? Não recorda talvez que esse supremo encanto, essa graça divina, aligera e bemdita a vida me salvou? Talitha Não creio... Ruy, _curioso_ É tão cruel! Porque razão não crê, a minha alma fiel simplesmente traduz o que a sua entendeu? Talitha, _com intenção_ Só porque a sua mão na minha não tremeu. Ruy Entretanto, Talitha, eu amo-a... Talitha, _tremula_ Ruy!... Ruy, _apertando-lhe a cintura_ Talitha! _Beija-lhe docemente a mão_ Talitha Ah! E eu sem poder vêr o labio que me beija!... Que destino fatal, que desgraçada eu sou! Ruy Não foi a minha bocca ardente que a beijou. Foi o dôce rumor da abelha que voeja sugando á sua mão de branca flôr de liz o magico licôr, o aroma delicado, que vem do rosicler florido e perfumado, no sangue que palpita em vibrações subtis!! Talitha Mas, Ruy, o seu amor não ve como eu sou pobre!! Ruy, _interrompendo_ Pobre sou eu que peço a esmola angelical desse affecto gentil que a vida transfigura. Talitha Tão pobre que não tenho um Pae que me conforte, nem caricias de mãe que veja esta tortura... Ruy A sua alma divina essa tortura encobre... Talitha Tão pobre que este olhar perdido é glacial como um floco de neve, e a desfazer fluctúa... Ruy Os seus olhos sem luz tem mais fulgor que a lua. Talitha Engeitada ao nascer vivo esperando a morte... Ruy Alma branca de luz que illuminaste a ventura das minhas esperanças, bemdito seja o véo de negras tranças que sobre a minha vida desnastraste! Bemdito seja nesse dôce engaste das palpebras subtis brancas e mansas o mesto olhar que cobre de bonanças a vida deste amor que tu salvaste! És para mim a linha do horisonte, curva do céo, á noite, constellada, agua lustral de uma sagrada fonte, toda a ambição dest'alma allucinada, e a nuvem que circumda a minha fronte como um disco de treva avelludada... Talitha, _de mãos postas_ Meu Deus, e nunca mais, nunca mais hei de vêl-o!... Ruy Sim, Talitha, verá; o meu maior desvelo ha de ser o fulgor do seu formoso olhar. SCENA VII Os mesmos e Joaquina Joaquina, _que tem ouvido tudo, feliz e contente, vem descendo com lentidão e junto de ambos exclama:_ Caia a benção de Deus neste formoso par... _Ruy e Talitha, surprehendidos, afastam-se_ Ruy, _recuperando a serenidade_ Talitha assim o quiz! Talitha, _perturbada_ A culpa não foi minha... Joaquina, _sorrindo e acariciando-a_ A culpada fui eu que te deixei sósinha! CAE O PANNO SEGUNDO ACTO Sala de visitas em casa do Cura; tudo muito simples. Janellas e portas. Um oratorio com lampada. Um pequeno orgam. SCENA I Joaquina e Padre João _Conversando alegremente_ Joaquina Graças a Deus, chegou por fim o grande dia... Padre É verdade, é verdade! irmã, quem nos diria que a linda pequenita... Joaquina A formosa engeitada... Padre Que Deus nos enviou naquella madrugada inclemente de inverno... Joaquina, _interrompendo_ E parece-me ainda vêr a neve a cahir num pó macio e branco no cestinho de vime, ali, ao pé do banco... Padre E eu tenho aqui no ouvido aquella prece linda que rezaste ao Senhor quando ella adormeceu depois de ter mamado... Joaquina E, lembras-te, que fina! Tão branquinha, tão loira, a rir, tão pequenina! Padre Se me recordo, irmã!?... Pois então, se fui eu quem primeiro velou, durante o dia inteiro, o somno encantador da candida innocente!... Se me recordo, então?!... Joaquina, _sorrindo_ Mansa como um cordeiro!... Mas uma coisa eu sei que esqueceste... Padre, _curioso_ Qual é? Joaquina Não te digo, adivinha... _Pausa prolongada_ É do primeiro dente... Padre, _alegre_ Ó Joaquina! É verdade! O que se fez!... Até parece que a alegria andava á tentação; e nós a rir, a rir, a rir perdidamente... Sempre ha coisas, meu Deus!... Joaquina A vida é uma illusão, ligeira como o vento, ás vezes nem se sente, não é verdade? _Pausa_ Falla?... Padre É, de certo, Joaquina. Joaquina Pois então que mal faz que a gente esteja agora a rir do que lá vae por essa vida fóra?!... Pois agora é que é rir, que passou a desgraça, quando a gente é feliz té na morte acha graça. Padre Por causa desse dente esteve a pequenina tres dias por um triz... Joaquina, _triste_ Bem ás portas da morte... Padre Valeu-lhe a vela benta... Joaquina Inda foi uma sorte eu ter guardado aquella... Padre, _rapidamente alegre, interrompendo_ Ó! mana, e o baptisado?... Que festa! E que jantar! Aquelle frango assado, com rodellas de paio; inda me estão lembrando aquelle arroz de forno e aquelle vinho brando... Recordas? Joaquina, _com malicia_ Bem me lembro, até nesse jantar o vinho começou a subir e a trepar... Padre, _interrompendo, com gravidade_ Ó mana... Joaquina, _saudosa_ E já lá vão uns bons dezeseis annos... Padre, _pensativo_ Mas como corre o tempo! Joaquina, _nostalgica_ E como a gente muda!... Padre A vida não é nada! A magua, os desenganos, a enfermidade e a dôr fazem a gente velha; e não ha santo algum no céo que nos acuda! Joaquina Pois sim, sim, mas depois os filhos vão crescendo e os paes a cada instante, a rir, vão-se revendo na luz do seu olhar em que tambem se espelha o tempo que passou... Padre, _interrompendo_ Como o tempo é cruel! E aquelle immenso mal que um dia nos feriu?... Recordas? Que manhã! Mais amarga que o fel! Joaquina, _olhando o céo_ Se me lembro, Senhor, quando ella ficou céga, que só podia andar guiada por alguem!... Não hei de recordar? Recordo muito bem! Quanta vez, coitadinha, a chorar me pediu que lhe fôsse comprar dois olhinhos melhores para trocar os della... Padre, _limpando os olhos_ Até se me despega o coração de dôr!... Joaquina E nenhum dos doutores atinou de a curar, nem sequer as promessas deram com ella a vêr... Padre Quantas vezes subi os tres degráos do altar e rezando pedi ferventemente a Deus, por amor de Jesus, que lhe tornasse a dar aos seus olhos sem luz a visão que perdera... Joaquina E agora tu confessas que a sorte a perseguiu sem dó nem piedade, apezar de ella ser um mimo de bondade? Padre Confesso. Até que Deus mandou a desventura da sua juventude a alvorada feliz desse primeiro amor... Joaquina E se Elle assim o quiz!... Padre Que seja feita a sua energica vontade, nos céos como na terra e que um dia a tortura tenha fim! Joaquina Pois não teve, afinal?... Padre Eu não sei... Dizem vocês que teve e a operação deixou o melhor resultado... Joaquina Elle diz que a curou! O que elle fez não sei, nem mesmo perguntei mas que ella torne a vêr... Padre É isso o que deseja a minh'alma sincera, é vêl-a venturosa! Entretanto, meu Deus, por que Talitha o seja é preciso, talvez, que a vara da desgraça me toque o coração e a fonte caprichosa das lagrimas estale. A dôr que me ameaça enche-me de pavor. Tenho um presentimento que me não abandona um dia, um só momento! Joaquina Isso não vale nada... Padre Entretanto eu medito naquelle casamento. Joaquina, _interrompendo_ O casamento?... Padre Sim; o casamento, sim, que vae arrebatal-a á nossa pobre vida... Está, porém, escripto, e Deus que o destinou ha de por fim leval-a e nunca mais trazel-a aqui, junto de mim. Joaquina E quem nos diz a nós que essa desconfiança não seja apenas medo? Padre O coração, irmã!... Joaquina Ah! Sim o coração... o coração tambem cança! Já não regula o teu, nem serve de evangelho, é coração de padre e padre muito velho... Padre Pois bem, não servirá, mas inda esta manhã, por occasião da missa, as lagrimas vertidas tombaram-me da face ao calix consagrado, ao recordar, então, que um dia, angustiado, hei de vêl-a partir! Como fôram sentidas essas bagas leaes que, em silencio, chorei e que juntas ao vinho eu mesmo consagrei! Eu creio em Deus e espero o golpe do destino como um favor do céo purissimo e divino! Joaquina Descança, meu irmão! O Ruy é bom rapaz, tem muito amor á gente, ha de ficar, verás! Parece alma de santo e só pensa no bem. Padre Póde ser, póde ser, mas recorda tambem a promessa que fez a nossa pequenita e, se ella conseguir outra vez a visão, lá se nos vae embora a meiga Carmelita... Joaquina Ah! disso eu não receio; então crês que o convento tenha força capaz de virar-lhe a razão o fazel-a esquecer, assim, o casamento? Padre Mas se não a levar o voto de noviça ha de a levar o amor que quanto vê cobiça. De certo a chamará, talvez para bem longe, a palavra inspirada e convicta do monge que nos fez o milagre e deu olhos á céga... É por isso, meu Deus, que est'alma não socega! SCENA II Os mesmos e Ruy Ruy, _entrando_ Bons dias, Senhor Cura. _A Joaquina_ E a mãe Joaquina, então, como passou a noute? Aposto que sonharam muito commigo, sim? Padre Foi tal qual!... Joaquina Pois eu, não; tive mais que fazer, dormi regaladinha durante a noite inteira... Ruy E bem conchegadinha? Joaquina Nem mais!... Ruy E claro então que nem, sequer, cuidaram de Talitha... Joaquina Cuidei, sim senhor... Ruy, _prazenteiro_ Não entendo... se dormiu toda a noite... Padre, _a rir_ É, eu não comprehendo tambem como se possa, a um tempo só, dormir e velar!... É bem certo o rifão: mais depressa se agarra um mentiroso... Ruy, concluindo Exacto; do que um coxo... _Ambos riem muito_ Joaquina Mas eu é que não sei que tanto tem que rir! _A Ruy_ Nem é da sua conta _ao Padre_ e nem da sua! Peça a Deus Nosso Senhor que dê mais tento aos dois: _batendo com um dedo na testa_ talvez haja por lá um parafuso frouxo... Padre, _com gravidade comica_ Ó mana, isso é demais... Ruy, _abraçando-a_ Não vá subir á serra; deixemos essa historia a resolver depois e vamos conversar da luz que se descerra e que hoje ha de fazer toda a nossa alegria... Padre Fallava eu nisso mesmo antes da sua entrada. Joaquina E quer saber, menino, o que elle me dizia?... Ruy Pois diga, francamente, e não esqueça nada... Padre Não havia segredo, era tão natural e tão simples, meu Deus, o que eu dizia ha pouco... Joaquina Deixe-o fallar, menino, anda que é mesmo um louco; não diz coisa com coisa, a tudo julga mal e já pelo peior! _Contando pelos dedos_ Primeiro, que a pequena breve nos deixará, que o Ruy vae desposal-a, e depois, o convento: ora veja se cabe uma cantiga assim na cabeça d'alguem? Se ella ha de preferir aquella quarentena á casa dum marido!... A mim já não abala essa ideia!... _Ao Padre_ Você nunca soube, nem sabe um marido bonito os encantos que tem... _A Ruy_ Finalmente, receia... Padre, _interrompendo_ Eis onde pega o carro!... E sabe Deus, Doutor, que se não fôsse a crença!!... Ruy Pois bem, Joaquina, diga, em que é que o Cura pensa? Joaquina Que depois de casada... Padre, _interrompendo_ Ouça-me então, eu narro: Receio, é natural, que ella siga o marido, e venha a solidão morar nesta choupana onde eu mesmo não sei como tenho vivido! E que será de mim e que será da mana, diga-me, Ruy, tambem o que será de nós, dois velhos, nesta casa, enfermos e tão sós?... vendo, a cada momento, a lucta nos escolhos da saudade e da dôr, sem ter no dia extremo aquella mão leal que feche os nossos olhos?!... Fique sabendo, Ruy, porque motivo eu tremo... Ruy Sim, mas não tem razão, pensemos na ventura, nessa immensa ventura... Joaquina, _interrompendo_ É mesmo assim que eu penso... Ruy Que vae sentir Talitha ao vêr a luz do sol, tantos annos depois de longa noite escura, envolto o dôce olhar num véo pesado o denso! Vamos fallar de nós, deste novo arrebol que nos ha de banhar o coração e a alma, como um luar de outomno, uma alvorada calma, quando ella abrir á luz a languida pupilla dos olhos ideaes, tão doces e tão flavos, que são como um casal de abelhas que assimilla, nas flôres dos jardins, o loiro mel dos favos. Pensemos na expressão que o seu olhar vae ter quando ella vir ao sol tão brancos os cabellos do Senhor Cura... Padre Assim como a neve a descer sobre a minha cabeça, em flócos e novellos... Joaquina, _saudosa_ E nós dois a curvar ao peso da nevada, o corpo já pendido, a procurar a estrada que váe á eternidade... Ruy, _interrompendo alegremente_ E já pensou, Joaquina, no famoso jantar? Joaquina Não, depois se combina. Como faltam ainda uns dias ao Natal vamos tratar primeiro... Padre, _atalhando_ Isso! do nosso almoço, porque eu já estou sentindo um enorme alvoroço cá por dentro. _A Ruy_ Que diz? Ruy Tudo quanto fizer a mãe Joaquina, está bem feito. Joaquina, _ironica_ Agradecida! Eu já volto. _Sae_ SCENA III Padre e Ruy Padre Então, Ruy, pensou no resultado que vae ter para nós a sua operação? Ruy Tenho pensado muito e só me felicito: parece que se abriu um vasto rosicler, enchendo de perfume o lar da minha vida; descanta-me no peito o coração alado tão viva, tão alegre e limpida canção, que me parece ouvir palpitar o infinito e a dôce voz de Deus abençoar-me o nome... Padre Pois bem, Ruy, entretanto a duvida consome os meus dias; medito e tenho muito medo de uma lucta que vae ser travada, em segredo, no seio de Talitha... Ruy E então que lucta é essa? Padre O encontro, á luz do Sol, do amor e da promessa. Conheço-a muito bem. Alma branca de pérola, possue alguma coisa assim divina e cérula. Foi creada por mim, na dôce região em que repoisa a crença á sombra da oração... e sei que a pobresinha, um dia, prometteu professar e vestir o burel carmelita, se a Virgem lhe voltasse o seu perdido olhar. A Mãe de Deus ouviu a prece, mas agora que um novo dia aponta a curva azul do céo, mostrando-lhe o porvir numa formosa aurora de amor e de ventura, a angelica Talitha verá, na sua frente, erguer-se e fluctuar, constante, pertinaz, energica e severa, a promessa que fez, a consciencia austera a exigir-lhe que a cumpra e o seu primeiro amor a sorrir e a tental-a... Ruy Esse mesmo receio tambem me preoccupa. Eu já presinto a dôr que vae, como um espinho, amargurar-lhe o seio. Assim a Providencia ás vezes desconhece o proprio mal que faz e como que se esquece da victima innocente e nessa lucta enorme a desgraça feroz que não cança, nem dorme, de certo vencerá, se nós que a divisamos ao longe, no horisonte, a deixarmos crescer tão alto, que domine aquelle pobre ser. E preciso pensar e vêr bem se afastamos da sua intelligencia a ideia do convento, como se afasta a flôr dos impetos do vento. Padre E quem terá prestigio e força de arrancar áquella consciencia, a dôce, a delicada, a candida expressão da promessa sagrada que ella espontaneamente ergueu junto ao altar? Ruy Nao desejo arrancar essa illusão formosa á crença da sua alma... A raiz dessa rosa não é muito profunda, apenas esbraceja á flôr do coração, por isso não viceja ainda como o seio altivo e perfumado de uma corola aberta!... Um botão delicado agora principia a despertar á luz... Dessa casta missão, que moverá Jesus, sómente, Senhor Cura, a sua phrase austera se póde encarregar; o prestigio da idade, a alvura de luar das cans alabastrinas, a palavra de amor, piedosa e severa, do seu conselho bom, tão cheio de amizade, a sua consciencia e as affeições divinas que avizinham do céo o seu viver de santo, a fé que o seu olhar inspira a quem o fita, hão de estancar, por certo, a dôr, fonte do pranto, nos olhos virginaes da mimosa Talitha. Padre Sacerdote de Deus que o serve, ha tantos annos, nas duras provações, na dôr, nos desenganos, sem nunca haver mentido uma só vez na vida, tenho medo que a voz de commoção me trema, que me fuja o valor á hora assim blasphema de entregar á mentira esta fiel guarida... Ruy Caridosa mentira, ó culpa dôce e casta que salva uma esperança e mais um anjo afasta á amargura cruel de um grande sacrificio! Responda, Senhor Cura, em sua consciencia, acredita que Deus condemne uma existencia purissima de flôr, a tamanho supplicio? Que peccados terá Talitha a redimir que precise descer em vida á sepultura, agora que brilhou a estrella do porvir aos seus olhos, sem luz, na densa noite escura? Não mente, Senhor Cura, o labio quando salva: é aspera a mentira e tem a côr terrena, ao passo que a sua alma é branca, de açucena, e a sua phrase é sã, é redemptora, é alva! Em vez de sacerdote, a confessar a freira, seja Pae que dirige o coração da filha! Aquelle olhar sem luz, durante a vida inteira, desviou-lhe a razão para diversa trilha. Estenda-lhe o seu braço, ampare-a no caminho, traga de novo a rola ao palpitar do ninho! Padre E pensa, Ruy, que um Pae, se tiver consciencia, deva pedir que a filha afaste da lembrança a promessa que fez, com tanta segurança, quando implorava a Deus piedade e clemencia?... Ruy Meu amigo, nao vê que esse immenso fervor nascia do tropel da magua e do pavor? Que, assim feita, a promessa, além de não ser santa, as almas enlanguece e os corações quebranta? Não vê que faltou luz áquella intelligencia? Que aquella alma vergou á estolida exigencia do desespero intenso e bárbaro, que a ancia de revêr inda o sol da sua alegre infancia envolver-lhe a cabeça em nimbos de ventura a levaram, talvez, nessa hora de tortura, á extrema tentação de dar a mocidade por um dia feliz de viva claridade? Levita, cuja mão diariamente eleva ao throno do Senhor a hostia consagrada, levanta esse sacrario á curva constellada, a flôr que pede sol não viverá na treva!... Padre, _depois de uma pausa_ Pois seja assim, meu Deus! e tu que o vês perdôa, porque ha no meu peccado uma intenção tão boa, tão pura e tão leal, que eu sinto adormecido o velho coração por nunca haver mentido... SCENA IV Os mesmos e Joaquina Joaquina, _entrando_ Que grandes trapalhões, aqui a badalar numa palrice enorme e toda a gente á espera que o doutor mais o cura acabem de fallar... Ruy Por que ha de ser assim tão má e tão severa? Padre Rabugice de velha!... Joaquina É só meu o proveito... Ruy, _abraçando-a_ Deixe-o fallar, Joaquina, aquillo é tudo inveja... da sua mocidade!... _Riem ambos_ Joaquina, _entre risonha e severa_ Ai, ai! o malcreado! Esquece a obrigação e falta-me ao respeito! E a culpada sou eu! Ora não ha! Pois veja que emquanto está gastando o seu palavreado, seria bem melhor que cuidasse da enferma, que vive ali no escuro abandonada e erma. Padre E você que fazia? Joaquina Eu fui tratar do almoço; não andei de conversa á espera que o maná nos cahisse do céo. Ruy Por isso falla grosso! Joaquina Não é da sua conta, ouviu? Ruy, _com a maior gravidade_ Ouvi... Joaquina Pois vá tratar do seu dever porque não faz favor... Padre Então que succedeu? Joaquina, _amenisando a voz_ É que a pobre pequena já cançou de esperar e quer vêr se o doutor lhe permitte que venha até aqui á sala. Padre Que diz, Senhor Doutor? Ruy Que se Talitha ordena... Padre Pois faça-se a vontade... Joaquina Então, eu vou buscal-a... _Joaquina sae.--O Padre, ancioso, passeia ao longo da sala; Ruy, encostado á meza, olha para a porta por onde sahiu Joaquina.--Pausa cheia de anciedade._ SCENA V O mesmos, Joaquina e Talitha _Talitha entra de olhos vendados, pelo braço de Joaquina. Ruy e Padre vão ao seu encontro e tomam-lhe as mãos para conduzil-a a uma cadeira. Joaquina, deixando-a, vae cerrar as janellas e portas. Senta-se Talitha e conversam um pouco._ Padre Como te sentes, filha? Talitha Afflicta, muito afflicta por ver a luz do dia... Ruy, _tomando-lhe a mão_ A mesma curiosa de sempre!... Talitha Se parece á sua intelligencia que não tenho razão!... Ha tantos annos céga!... Joaquina Deixa-o fallar, Talitha, isto é mais tagarella do que as creanças, vês? Ruy Pois não creia, Talitha!... Padre, _tomando Ruy á parte_ Prepare o coração e veja que anciosa aquella vida está... tenha a maior prudencia! Ruy É muito natural; só emquanto não chega o instante de tirar a venda que lhe vela o dulcissimo olhar... _A Talitha_ Diga, Talitha, ainda sente alguma dôr? Talitha Não! apenas a impressão do lenço que me causa a maior afflicção, a vontade feliz, viva, crescente, infinda de vêr de novo a luz... Ruy E não ha quinze dias que lhe descubro a vista? Talitha Ha, sim, mas lá no escuro, onde eu não vejo nada... Padre Assim é que convem... Depois de tanto tempo, então, já pretendias vêr livremente o sol? Seria prematuro... Joaquina É muito perigoso!... Ruy E sentia-se bem? Chegou a distinguir, alguma vez, o aspecto ou a forma geral de qualquer um objecto? Talitha Muitas vezes, pois não; primeiro vagamente, depois com nitidez. Padre, _alegre_ Mas então a doente Recuperou a vista!? Joaquina Abençoada a hora em que o menino entrou nesta pobre choupana!... Ruy Agradeçam a Deus! Talitha Doutor, porque demora esta venda cruel que o meu olhar empana? Ruy Pois diga-me primeiro o que pensa de mim. Talitha Que é muito feio e máo... Joaquina Bem feito! Ruy E da Joaquina?... Talitha Penso della que é santa e que tem de setim côr da neve o cabello, a pelle muito fina, como eu creio que são as santas da capella. Ruy E o nosso Padre-cura? Talitha Um velhinho bondoso, que vive para o bem e sobre os pobres vela! Supponho que elle tenha a cabeça bem branca, o olhar muito suave e d'expressão tão franca, que appareça na face enrugada e senil a dôce candidez da sua alma infantil... E, cogitando assim, parece-me que vejo, dos altos de uma torre, a uma enorme distancia, como um jardim florido, a minha dôce infancia vicejando a sorrir, a sombra do seu braço, e o seu olhar de Pae enchendo todo o espaço de luz, de muita luz, tão dôce e tão leal, como o luar banhando as ondas de um trigal numa noite estreitada, e o sangue me palpita no seio, e o coração ardentemente agita na immensa anciedade afflicta e pressurosa de poder innundar a sua mão rugosa de lagrimas febris e de beijos sem fim. Ruy Tantas coisas ao Cura e nada para mim!... Talitha Exactamente, Ruy; a saudade de vêl-o augmenta a cada instante o meu triste flagello, porque nos braços delle um dia adormeci e não despertei mais... e ao Ruy... _baixando a voz_ eu nunca vi... Ruy, _com caricia_ Pois vae tornar a vêr a boa da Joaquina que a trouxe ao collo, a rir, quando era pequenina. _Aproxima-se de Talitha para tirar-lhe a venda_ Vae vêr o Padre-cura e matar os desejos de lhe cobrir a face e as mãos de muitos beijos... E vae me conhecer... _Tira-lhe a venda_ _Silencio. Commoção geral. Talitha, acostumada á treva, não supporta a luz; tapa os olhos com as mãos; depois habitua a vista, levanta-se, olha, procura anciosamente. Antes de Talitha distinguir cada uma das pessoas, encanta-se com a luz e com os objectos._ Talitha, _á luz, correndo á janella_ Céos! Vejo novamente a luz que me faltou durante a meninice! Ó Sol da minha infancia, a sorrir de contente torno a vêr-te de novo. Azul do céo, meiguice que ha muito não beijava o meu perdido olhar, como deves ser lindo ao dôce despontar da madrugada clara! _Ao oratorio_ Oratorio velhinho, junto ao qual, em pequena, eu tanto vez rezei, como sinto vontade, agora que revejo o teu branco Jesus, do amor e do carinho com que pela manhã e á noite eu te beijei, e hoje, meu velho amigo, a estremecer te beijo! _Passa as mãos nos olhos, como para certificar-se que vê bem_ Mas parece-me um sonho! _Pausa. De novo esfrega os olhos_ Eu já não sou a céga... _Pausa_ Eu vejo tudo... _Estaca; olha as paredes_ Sim, sim tudo... _Olha para o tecto, baixa os olhos ao chão, volta-se para os lados, palpa as cadeiras, palpa a meza, corre á commoda_ Eu não me engano. Eu vejo a minha mão! _Olha para as mãos_ Mais branca do que o panno _pega o avental e examina_ do meu lindo avental! _Põe a mão sobre o peito, como que desmaiada_ Ah! coração, socega... _Neste momento Joaquina, receiando que Talitha caia, corre para amparal-a, dizendo_ Joaquina Credo! Jesus, Senhor! Talitha, _como que acordando aos gritos de Joaquina, ao vêl-a tem uma commoção e exclama_ Joaquina! ó boa e santa velhinha, dôce mãe que tanta dôr e tanta lagrima derramaste, aos pés do meu bercinho!... _Vendo o Cura, lança-se a elle, soluçando; abraça-o, beija-o, vê-o, chora, ri, torna a abraçal-o, doida de alegria_ Mas como eu sou feliz, meu Pae, meu Avôsinho! _Deixa afinal o Cura e corre para Ruy_ E Ruy que me salvou... _Vae para abraçal-o, estaca: o pudor impede-a; baixa os olhos, em silencio_ Ah!... Ruy... eu nunca o vi!... Padre, _soluçando e enxugando as lagrimas, aproxima-se della, toma-lhe a mão e leva-a junto de Ruy_ Beija-o, Talitha; beija, elle é digno de ti, emquanto eu vou render a Jesus Christo, filha, graças por essa luz que nos teus olhos brilha. _Sae, enxugando os olhos_ Joaquina, _a Ruy_ Á Virgem prometti uma lampada accêsa durante uma semana, e por sua intenção, se Ella daqui levasse as dôres e a tristeza, fazendo este milagre. Hei de accender o azeite e rezar a seus pés, com toda a devoção, pedindo á Virgem Mãe que este meu voto acceite. Louvado seja Deus! O Céo vos abençôe! _Sae_ SCENA VI Talitha e Ruy _Depois de uma pausa prolongada_ Talitha, _sempre pudica_ Porque me encara assim? Offendi-o? Perdôe. Ruy, _caminhando para ella_ Fitei-a porque sinto o brilho desse olhar, como um rio de luz suavissima, innundar a minha mocidade inhospita e sombria, num banho redemptor de dôce calmaria. E parece-me vêr a sombra avelludada da sua fronte branca, e pura, e macerada, fugir espavorida á luz desse clarão... Talitha Que eu devo tão sómente á sua compaixão... Ruy Esqueça que fui eu... Talitha, _interrompendo_ Não sei como se esquece... Ruy Então recordará, por toda a sua vida, o nosso amor feliz? Talitha A sua alma duvida? Ruy Eu não duvido, eu peço, e vae na minha prece quanto minh'alma tem de puro sentimento... Talitha, _curiosa_ Na sua prece? Ruy Sim, tão cheia de fervor como a casta oração que a sua crença augusta soluça de manhã, mais triste que um lamento, que vae, azul em fóra, ao throno do Senhor, no murmurio subtil dessa bocca venusta. Talitha Eu nunca olvidarei a dulcida ventura daquella noite densa, atormentada, escura, em cujo manto negro a sua mão bondosa rasgou a dôce aurora alegre e luminosa... O caridoso amor, que os seus labios deixaram gravado nesta mão que tanta vez beijaram, foi um sonho feliz numa noite polar, sonho de primavera em noite sem luar: nunca mais sahirá d'entre as minhas lembranças. Como um beijo de mãe na face das creanças, a primeira affeição nunca se desvanece, é como a flôr da lenda: a todo o instante cresce! Se eu a esquecesse, Ruy, como seria ingrata! Ruy Talitha, minha vida, a densa cataracta não poude escurecer a lucidez suprema da sua alma christã, que vale um diadema de rainha e de santa, a cujos pés se inclina a minha alma que vae sobre a esteira argentina que o seu vestido traça ao longo da jornada, como no azul do mar as velas da jangada... Talitha E se a vela, batida ao vento da desdita, levar á sombra eterna essa infeliz Talitha que a sua mão salvou da mesma sombra eterna? Ruy Irei onde ella vá. Se a aragem fôr galerna e o nosso amor levar a gondola encantada, sobre o dorso da vaga em branca espumarada, eu seguirei, sonhando, á prôa, na epopêa que o seu divino olhar de candida sereia ha de inspirar, sorrindo, a quem o illuminou. Se o vento arremessar a vela que enfunou á rude penedia e sossobrar a barca, hei de salvar, então, a pequenina arca, onde vive encerrada a pomba da alliança, que faz do nosso amor uma alegre esperança! Talitha Apenas esperança, e nada mais! A vida é um sonho que passa e foge; perseguida, occulta-se a esperança á sombra de um asylo, tão occulto tambem que, para descobril-o, desfaz-se muita vez ou rasga-se em pedaços a nossa fé mais pura e a crença, em estilhaços, desapparece e vae, por esse mundo fóra, como nuvens no céo ao despontar da aurora... Ruy Porque razão, Talitha, os nossos pobres sonhos não poderão florir, alegres e risonhos, á plena luz do Sol? Talitha Sonhos são illusões que a madrugada esbate em limpidos clarões, e nada mais... Talvez as suas, sim!... As minhas irão fazer o ninho á sombra... As andorinhas tem que mudar de clima ao começar o inverno, levando para longe o seu amor materno... A minha acostumou-se á sombra da cegueira: se na sombra passou quasi uma vida inteira! Na sombra adormeceu, na sombra soluçou e na sombra sorriu... A sua mão rasgou este sulco de luz no meu perdido olhar, e a triste, acostumada á sombra tumular, fugiu espavorida ao lucido lampejo e tão distante foi, que nem sequer a vejo... Ruy É o receio infantil que vem da escuridão! A esperança, Talitha, ainda um só instante não sahiu do calor que faz do coração o ninho aconchegado, o berço palpitante e o sacrario fiel do nosso casto amor! Na sombra nasce, e cresce, e vive tanta flôr sem perder o perfume!... E a esperança, Talitha, é o perfume do amor, a essencia que dormita serena e só desperta ao carinhoso afago dum beijo a murmurar em sonho dôce e vago... Talitha Mas antes que o murmurio a despertasse, a luz do sol lhe recordou que aos olhos de Jesus e aos pés de sua Mãe ella havia ajoelhado no fervor da oração, em dia torturado, prendendo a vida inteira ao brilho de um olhar. Entre nós dois agora eleva-se um altar, e eu vejo-me prostrada e envolta no burel, sorrindo para o céo, por ter sido fiel á promessa que fiz... Ruy E o nosso amor, Talitha, não foi uma promessa? Talitha Ah! foi, mas a desdita lançou-lhe a maldição no dia em que nasceu e o nosso puro amor agora feneceu. Ruy E a tua mão divina, angelico florão de algum ciborio astral, a tua mão de rosa e jaspe é que me vem ferir esta affeição que banhava em frescor a vida bonançosa deste meu sonho azul!... Mas quando, em nostalgia, á sombra do mosteiro, a tua phantasia volver para o passado esse formoso olhar tão cheio de candura e te fizer sonhar; quando a espiral do incenso á curva do docel subir da tua mão occulta no burel, como a dôce expressão duma saudade immensa; quando á noite o luar, vencendo a treva densa, entrar na tua cella e fôr beijar-te a face, como se por ventura envolta nelle entrasse a minh'alma saudosa a visitar a tua: quando esse olhar divino, em cuja luz fluctua a pureza vestal da tua castidade, sorrindo, remontar á dôce claridade das estrellas no céo, minha gentil Talitha, recorda o nosso amor, formosa cenobita, e pensa na tortura intermina e profunda desta vaga de fel que a minha vida innunda, medita nesta noite atroz, que me apavora, e tu me dás em paga a fulgurante aurora que o meu amor te deu, sorrindo de ventura... Bemdita seja a treva, a noite de amargura, bemdita seja a dôr, para sempre bemdita, que vem da tua mão, angelica Talitha! _Talitha, em lagrimas, soluça. Ruy vae para sahir e encontra o Padre que entra. Pausa, durante a qual o Padre, mudo de dôr, fita os olhos, ora em Talitha, ora em Ruy._ SCENA VII Os mesmos e Padre Padre, _junto de Talitha_ Porque choras, creança? _Ruy, cabisbaixo, medita. Pausa, durante a qual se ouve o soluçar de Talitha._ O teu silencio abala toda a minh'alma, filha; abre os teus labios, falla... _Silencio. A Ruy_ A sua commoção... Ruy! Mas que succedeu? Ruy Foi mais uma illusão que se desfez... morreu! _Sae_ SCENA VIII Padre e Talitha Padre, _abraçando Talitha_ Não te apoquentes, filha! A dôr que te devora eu já previra ha muito. A noite tambem chora no calice da flôr, e o céo que tem a luz das estrellas sem fim, chorou, quando Jesus abriu por sobre a terra a sombra dos seus braços, abençoando a dôr que vaga nos espaços... Mas os teus olhos, ha pouco illuminados, não devem, por emquanto, andar annuviados que se pódem cegar de novo, sem remedio... Talitha, _rapidamente, entre alegre e chorosa_ Então se eu lhe pedisse... Padre O quer que seja, pede-o... Pede, Talitha, pede, e poupa o teu olhar... Talitha, _lacrimosa_ Pois bem, eu pedirei, que deixe-me chorar! Padre Não te apavora a noite immensa e tenebrosa?! Talitha Não me amedronta mais! A lua carinhosa vive na escuridão. Fui tão feliz na treva que chego a ter saudade e o coração me leva a pedir que me deixe ind'outra vez banhar na sombra eterna e mésta a luz do meu olhar... Padre Que blasphemia, Talitha! Talitha O meu labio não erra, e o que elle disse, Padre, o meu fervor encerra. Padre Medita, minha filha, e Deus Nosso Senhor envolva a tua crença em seu divino amor! Talitha Pois ouça-me um instante a confissão singela da incomparavel dôr que a minha vida gela: _Padre senta-se e Talitha ajoelha-se ao lado_ Tinha soffrido muito; o immenso desespero de um dia de tortura, afflictivo e severo, me fez allucinar e, erguendo para os céos as mãos de quem supplica, eu implorei a Deus clemencia a tanta dôr. A noite de flagicio, que dava á minha vida o aspecto de um supplicio, parecia sem fim, sem luz e sem aurora. E, como a flôr que á noite exhala, espaço a fóra, o aroma delicado e puro do seu seio, vencendo o meu temor e o natural anceio, eu dei, como penhor da luz que supplicava, a minha mocidade e o porvir que eu sonhava; e prometti á santa e casta Samarita votar-me para sempre ao burel carmelita... Mas presenti, depois, que dentro de minh'alma despontava, sorrindo, uma esperança calma que innundava de luz o coração da céga, e commigo pensei:--Deus, de certo, não nega que veja agora a luz quem sempre foi escrava: e nesse pensamento a vida concentrava. Foi quando Ruy me fez a esmola caridosa de uma dôce affeição que tem a côr da rosa; e, sem pensar, jámais, em vêr de novo o mundo, o meu amor cresceu e fez-se tão profundo que para desprender-lhe as tumidas raizes eu rasgarei, talvez, mais largas cicatrizes... Depois a mão de Ruy abriu para os meus olhos o véo da madrugada e eu vi sobre os escolhos, toda em pedaços feita, a minha pobre herança, perdida para sempre a querida esperança que eu havia sonhado em dias de cegueira... Se sacrifico o amor pelo burel de freira eu desço á sepultura em plena mocidade; se não cumpro a promessa e minto á santidade do voto que levei á pedra de um altar, não devo conservar a luz do meu olhar e rogo novamente a Deus que m'a desfaça e á Virgem que conceda a pequenina graça de receber de novo esse penhor tão puro, deixando-me, outra vez, o mesmo olhar escuro! Padre Escuta, minha filha.--A Providencia, ás vezes, se manda aos corações as dôres e os revezes não é que se compraza em opprimir as almas para lhes dar mais tarde as viridentes palmas do martyrio, não! Não, minha ingenua Talitha. Eras ainda tu mimosa e pequenita quando ficaste céga. Abrira para o mundo, apenas, a tua alma e o teu olhar jocundo sorria para a luz. Assim, innocentinha, tu ias de manhã commigo á capellinha e, emquanto eu murmurava as orações da missa, tu rezavas, sorrindo, angelica e submissa, á Virgem que te ouvia, a Salvé Magestosa, bem como se a rezara o labio de uma rosa... Desse labio subia um fervor tão intenso como a espiral azul e timida do incenso... Depois... faltou-te a luz, mas tu nunca faltaste á mesma hora de sempre, á missa. E que contraste; tu, pequenita e céga e o Sol com tanta luz! Muitos annos pediste á Madre de Jesus que te restituisse um dia o teu olhar, como se a Virgem fôsse autora da desdita que te ferira assim, minha meiga Talitha... Pois creança, tu crês que a Mãe que soffreu tanto no dia em que perdeu o filho casto e santo te pudesse roubar dos olhos transparentes a luz que illuminava as pupillas ardentes? Pois ella que te viu de rastros, a rezar, em todas as manhãs, aos pés do seu altar, levando-lhe, a sorrir, tantos ramos de flôres, podia assim voltar a crueldade e as dôres sobre a tua cabeça ingenua e piedosa, Ella que foi a Mãe mais dôce e generosa!? Escuta, minha filha:--o livro do Senhor descreve que, uma feita, andava na Judéa o divino Jesus prégando a sua idéa... Acercou-se do Mestre uma infeliz proscripta a quem a dôr matara a filha pequenita, e, em lagrimas, pediu que lhe voltasse á vida o cadaver da filha extremosa e querida. Abençoando a mãe que aquella dôr humilha disse Jesus então: «a tua pobre filha estava adormecida e agora está acordada; volta que a encontrarás a rir, já levantada». E a pobre mãe, que vira a pequenina morta, depois, ao regressar, foi encontral-a á porta, sorrindo alegremente, entre as demais creanças, como um bando gazil de cordeirinhas mansas! Pois bem, minha Talitha, o teu olhar dormiu sómente, não morreu. Quando a céga pediu, á Virgem Mãe de Deus, que um dia t'o salvasse, o seu divino olhar fitava a tua face e despertou do somno o teu formoso olhar que nunca fôra cégo e, apenas a sonhar, adormecera. E agora, agora que acordou póde fitar a mão de quem lhe descerrou, em nome de Jesus, a noite que o toldava, que te fazia triste e lacrimosa, escrava... Talitha E a Virgem que me ouviu quando eu lhe prometti votar-me ao seu burel, por tanto que soffri, quererá perdoar a minha negra falta? Padre Escuta-me, Talitha: _Ruy surge ao fundo e escuta_ O coração exalta, pergunta-lhe o que sente, o que deseja; pensa muito, muito, em silencio, indaga a tua crença e faze o que disser a tua consciencia, mas não esqueças, filha, a dôce confidencia de Ruy que illuminou o teu escuro olhar, e lembra-te, depois, que, só por muito amar, o Christo perdoou á pobre Magdalena. E agora, que a tua alma está bem mais serena, attende-me!--Rezando adormeci. A aurora despertou-me, sorrindo, e entrevi, áquella hora, um sonho que fugia, em busca de outros lares! Subia docemente, ao claro azul dos ares, o vulto da Senhora, abrindo pelo Céo o palio virginal do seu materno véo, desnastrado o cabello, um manto de rainha recamado de sóes; a nuvem que a sustinha, toda cheia de luz, deixava atraz de si um rastro de fulgor. E eu lembrei-me de ti... Curvaram-se a tremer as pernas fatigadas, ao peso esmagador das longas invernadas; e assim, postas as mãos, olhando para o vulto da Virgem que eu adoro em fervoroso culto, pedi-lhe que mandasse um raio de luar ás lagrimas de fel da tua dôr sem par... _Talitha começa a sorrir_ E a Virgem, a sorrir, do seio do infinito, baixou por sobre o meu um dôce olhar bemdito e eu vi rolar no azul da immensa vastidão, no fulgor de uma estrella, o beijo do perdão... Talitha, _correndo para a porta_ Ruy! _Encontra-se com Ruy e pára, pudibunda, de olhar no chão_ Padre, _só, á frente da scena, mãos postas, a olhar para o céo_ Perdôa, Senhor, se lhe menti, perdôa; o meu labio peccou, mas a intenção foi boa! CAE O PANNO TERCEIRO ACTO Modesta sala de jantar em casa do Cura. Á direita, um oratorio sobre uma commoda antiga; á esquerda, entre portas, um orgam. SCENA I Joaquina, só _Joaquina procede aos arranjos da casa para uma noite de festa; cuida do oratorio, accende-lhe as velas, começa a pôr a meza para a ceia; tudo em silencio. Depois de alguns momentos entra Ruy._ SCENA II Joaquina e Ruy Ruy, _entrando_ Boas noites, Joaquina! Joaquina As mesmas Deus lhe dê! Inda bem que chegou; pensei que não voltasse aqui á nossa casa! Ruy Essa agora... e porque? Joaquina É boa! Inda pergunta? Esteve lá por fóra durante todo o dia e sem que se lembrasse que neste pobre asylo ainda vive e mora gente boa e christã... Ruy, _interrompendo_ E quem lhe disse tanto? Vão vêr que foi intriga ou treta de algum santo!... Joaquina Hereje! brinque, brinque assim com Jesus Christo e ha de vêr se é feliz! Não sabe que o Natal é a noite sagrada? Ruy É, sei! Não foi por mal que faltei. Pela vez primeira não assisto á missa desta noite. Ha bem vinte e seis annos que falleceu meu Pae: rompia a madrugada. Começaram-me assim os tristes desenganos e a lucta da existencia abriu-se amargurada. Desde então, minha Mãe, boa e santa velhinha, recorda tristemente, apenas se avizinha a noite do Natal, a dôr daquella aurora, e emquanto tudo ri, ella soluça e chora... Joaquina Sem mesmo a conhecer eu tenho pena della. Ruy E hoje que eu sou feliz a pobresinha vela. Creio que neste instante os seus labios de crente envolvem numa prece encantadora e mesta, num templo illuminado, ao celebrar da festa, o esposo que morreu e o proprio filho ausente. Joaquina Devera ser então mais um grande motivo de não faltar á missa. Ruy E creia que é bem vivo o meu pezar. Entanto a razão dessa falta foi sagrada e vae vêr como ella tanto exalta a minha consciencia. Joaquina, _ironica_ Eu imagino bem! Ruy Não posso vêr soffrer o coração de alguem... Attenda-me, Joaquina, e diga se eu podia negar-me, sem peccar, ao dever que exigia de acudir pressuroso ao leito d'um enfermo ardendo em alta febre e bem proximo ao termo duma longa existencia asperrima e deserta, onde apenas a dôr tinha uma entrada aberta. Conhece aquelle atalho escuro e retirado que vae dar á capella? Joaquina, _benzendo-se_ Onde foi enforcado O marido da Emilia? Ruy Exactamente, ahi. Mesmo nesse logar em que ficou a cruz existe uma choupana á qual me recolhi para fugir á chuva. O caminho conduz, pela esquerda, á Capella; a direita, ao moinho do velho reformado! Entrou-me na choupana a neta do sargento a dizer que o avosinho quasi estava a expirar. Fôra maldade insana deixar morrer o velho á mingoa de cuidados. Fui. Mas antes não fôsse. Em nada lhe valeu a visita que fiz, o velho falleceu... Como devem morrer os bravos e os soldados assim elle expirou, fitando bem a morte, firme como um leão e simples como um forte. Uma miseria extrema; os netos quasi nús, com fome e sem comida ha dois dias! Joaquina, _benzendo-se_ Jesus! E aqui tanta fartura! Ruy A Patria é bem madrasta! Esse velho, que a morte aos netos hoje afasta, tem no peito e na face algumas cicatrizes das lanças do inimigo. Joaquina Ah! são bem mais felizes os soldados que vão á guerra e que lá morrem no campo da batalha. Ruy Exacto. Os outros correm o perigo maior de morrer desprezados, como esse pobre velho. Joaquina E estão abandonados os netos, Sr. Ruy? Ruy Não estão; felizmente fallei ao regedor e tudo se arranjou; demais a mais tambem, segundo me informou, têm direito á pensão que o velho Avô doente não poude receber. Joaquina E quem receberá essa triste pensão, se o velho que serviu não poude recebel-a e nem sequer a viu? Ruy Tambem já pensei nisso e tudo se fará, minha boa Joaquina. Assim, o moribundo me obrigou a faltar á missa do Natal. Se um pobre que estivesse a deixar este mundo lhe pedisse um amparo, a sua alma leal negaria essa esmola? Joaquina Ainda m'o pergunta? Ruy Á sombra desse olhar tudo se abriga e junta e eu leio na pupilla esmaecida e pura, num misto de mudez, de pranto e de ternura, que o seu bom coração tambem acudiria. E por isso faltei; tenho, porém, certeza que Talitha por mim, ao menos, rezaria. E quando assim se tem tão lucida pureza a interceder por nós aos pés da Divindade, parece que a nossa alma, em dôce alacridade, mergulha no baptismo, em aguas de um Jordão todo feito de amor, de beijos e perdão! Joaquina Ah! quando eu penso em tudo o que se tem passado depois que aqui chegou!... Como isto está mudado! Ruy Tudo é tão natural que não nos vale a pena gastar tempo a pensar em cousa tão pequena. Joaquina Então é cousa pouca uma pobre engeitada, ha tanto tempo céga, e sem mãe, desprezada, encontrar quem lhe dê de novo o seu olhar, e quem lhe tenha amor e a queira desposar!? Ruy Engeitada, que importa? O coração não pensa, ama sómente e assim não indaga a nascença da mulher que o inspirou. Mas não é desprezada a formosa Talitha; esta mansão amada serviu de lar paterno á sua dôce infancia e, se aqui respirou a magica fragrancia de uma alma aberta, em flôr, se a sua mão, Joaquina, materna, a acompanhou desde assim pequenina, pouco importa que a mãe a tivesse engeitado; amei-a, e nesse amor eu tenho baptisado o sonho do porvir... Joaquina Diga, e quando casar vae leval-a d'aqui? Ruy Seria derrancar o santo coração do velho Padre-Cura; nem tanto necessita a completa ventura das minhas illusões, nem teria coragem para tamanho mal; seria mais selvagem que a propria malvadez _abraçando-a_ tirar ao seu amor o prazer de aspirar o aroma dessa flôr, que ao seu lado cresceu, tão branca e tão fagueira, como um lyrio do valle ao pé de uma roseira! Joaquina Sim; isso diz agora e depois de casado ha de pensar, de certo, em sua mãe saudosa, e para que ella veja, alegre e carinhosa, o filho salvo e bom, tão robusto e córado, o Ruy tem de levar comsigo a pequenita que nos serve de filha e que nos faz felizes!... Ruy Descance, boa amiga; este amor tem raizes que eu nunca poderei arrancar de Talitha, nem penso em perturbar a paz do vosso azylo que a propria mão de Deus formou assim tranquillo. Joaquina Se Deus que nos dôou a innocentinha, agora mandasse a Mãe aqui para leval-a embora, onde quer que ella fosse havia eu d'ir tambem, porque a trouxe no collo e quero tanto bem que passo a minha vida olhando o azul dos céos, para vêr se descubro a Santa Mãe de Deus e pedir-lhe que deixe á tremula velhice dos meus dias sem luz, ao menos, a meiguice, daquelle coração que eu vi desabrochar... Ruy E o céo que lhe responde? Joaquina O céo?... Nada! A rezar tenho passado a vida e, nesta idade, a gente já não póde chorar, as lagrimas seccaram e por isto se soffre, a dôr é mais pungente quando se quer chorar e os olhos já cançaram. _Ouve-se a voz de Talitha, fóra_ Taitha Ó Joaquina! Ruy, Ruy... Joaquina Ahi vem a traquina; E ha de chamar por tudo a pobre da Joaquina... Ruy, _corre á porta_ Mas como vem alegre... _Entra Talitha_ SCENA III Os mesmos e Talitha Talitha, _ao entrar, vendo Ruy, estaca: fica silenciosa e em seguida:_ Eu bem disse ao padrinho... Ruy, _tomando-lhe a mão_ Que foi que tu disseste, alma da côr do linho? Talitha Que ninguem póde crêr na jura... Ruy, _interrompendo com meiguice_ Das mulheres?... Talitha, _ralhando com carinho e retirando a mão_ Dos homens... atrevido, ainda tens coragem de rir?... Ruy, _alegremente_ Ou de chorar, se tu assim preferes... Talitha Mas a tua promessa? Esqueceste a homenagem da noite de Natal? Ruy Pois pergunta á Joaquina... Joaquina, _intervindo_ A mim? não sei de nada... Ruy, _a Talitha_ Ella está gracejando; sabe tudo tão bem como eu, mas imagina que tu és ciumenta e então, de vez em quando, a recordar o tempo em que era rapariga, faz pirraças á gente, armando alguma intriga... Talitha A verdade, porém, é que faltaste e eu não. Ruy Pois bem, faltei; mas tive uma forte razão: o velho reformado estava agonisante e mandou-me chamar; eu fui no mesmo instante assistir-lhe á agonia. Expirou-me nos braços: ia o sol a fugir na curva dos espaços, á hora em que soluça o sino das trindades o Angelus sagrado envolto nas saudades que a terra balbucia, agradecendo ao céo a luz que lhe mandou na flacidez do véo crepuscular e dôce, oiro tecido em gaze, sem brilho de offuscar e sem calor que abraze. Talitha E nunca mais o vi, nem o verei jamais!... Foi cégo como eu fui. Nas manhãs estivaes muita vez o encontrei, cançado dos trabalhos, pedindo esmola ahi por todos os atalhos. Elle ia pela mão da neta, uma creança! Era um velho senil á sombra da esperança! Eu ía recostada ao braço do padrinho e, ao sentir-me, dizia: «ampare-me esse anginho --amigo Padre-Cura, eu quero que elle veja --como um velho soldado, a mendigar, rasteja --neste mundo de Christo»--. E ficava a pensar naquelle desgraçado. O meu perdido olhar novamente voltou, quando o delle se apaga na escuridão mortal que tudo cobre e alaga... Se eu pudesse amparar as pobres creancinhas! Ruy Não faltará calor ás meigas andorinhas. Joaquina E quem lhes ha de dar? Ruy Quem? Talitha Deus, Jesus e nós! Ruy, _com ingenuidade_ Nós seremos os paes: _a Joaquina_ tu e o Cura, os avós... Joaquina Valha-te Deus, tontinha! Ruy, _a Talitha_ Encantadora e casta; ó Virgem Conceição, flôr, ingenua madrasta, bemdito seja o dia em que te amei, formosa, sonho feito mulher, sorriso feito em rosa... Talitha, _admirada_ Que tem isso de mal? Tambem elle era cégo, não podia cuidar da neta que o guiava e agora, felizmente, eu tenho no aconchego da minha mocidade a luz que me faltava e posso olhar por ella. A minha desventura não teve neste asylo o amor do Padre-Cura? Depois não tive ainda?!... _Olha para Ruy, baixa os olhos e cala-se_ Joaquina, _beijando-a_ Ah! minha tagarella!... Ruy Depois tiveste ainda o teu formoso olhar que andava lá no céo illuminando a estrella d'alva. E agora tambem tens muito que narrar do que viste na igreja... Talitha Ah! na missa do gallo? Eu vinha exactamente aqui para contal-o... O que eu vi, Ruy, na igreja, emquanto o Padre-Cura dizia aquella missa!... Inda agora fulgura, sobre a minha retina, a vivida impressão do seu olhar tão dôce e manso, de perdão... Inda agora o sorriso, angelico e furtivo, do seu labio de rosa, orvalhado e festivo, innunda de frescor a minha vida inteira, como o rócio da noite á flôr da amendoeira. Ruy Quem foi que te sorriu com tamanha affeição, que fez vibrar tu'alma em tanta commoção? Talitha Um milagre de Deus! Se tens fé, acredita no que te vou dizer. Ruy Dize, minha Talitha! Joaquina, _approximando-se_ Conta, conta o que foi. Talitha Pois nesse caso, ouvi: Quando eu entrei no templo um borborinho enorme encheu toda a capella; então foi que eu senti como é triste ser cégo e ter olhar que dorme tantos annos de vida, em funda lethargia, sem a benção gentil de vêr a luz do dia! Toda a gente fallava, olhando para mim, e eu muito satisfeita a caminhar assim... _Imita o andar magestoso_ Ruy Como tu és vaidosa! Joaquina, _sorrindo e pondo as mãos_ E como ella é catita... Talitha, _a Ruy, ingenua_ Mas se eu fôsse a teu lado, inda era mais bonita!... Deram-me tanto abraço e beijaram-me tanto! A capellinha estava alegre, era um encanto. Á entrada muita flôr, o altar com muita luz, e num bercinho branco o menino Jesus, tão lindo, tão mimoso e tão engraçadinho, que parecia mesmo um rouxinol no ninho. Uma velha fitou-me e disse: que princeza! Um velho lavrador olhou-me com surpreza e bem alto fallou: «Que Deus Nosso Senhor te dê um bom marido»... Ruy E que disseste, amor? Talitha Nem uma palavrinha! Eu ía bem calada, entre muito contente e muito envergonhada. Joaquina E depois? Talitha E depois... fui então ajoelhar, sósinha, nos degráos que sóbem ao altar, á espera que viesse, a meia noite, a missa. Rezando ali, a sós, com fervor de noviça, lembrei-me da promessa e as lagrimas rolaram, subindo-me do seio aos olhos que as choraram. Eu sentia uma dôr immensa, por fugir ao voto que fizera e, em vão, quiz resistir, á minh'alma affluia um extranho remorso e embora eu despendesse o mais sincero esforço, para conter o pranto, o coração vergava e, numa agitação convulsa, palpitava acabrunhado e triste... _Ouve-se o repicar dos sinos_ Joaquina, _interrompendo_ Ai! que acabou a festa e a ceia por fazer, mas que cabeça é esta!... _Sae e entra constantemente, nos arranjos da casa_ Ruy Mas não te lembras já que, em nome do Senhor, o Cura abençôou o nosso casto amor? Não te lembras tambem da lucida visão que te trouxe do céo a estrella do perdão? Talitha De tudo me lembrei; não sei que força extranha pesava sobre mim, como immensa montanha, e não deixava erguer o meu olhar medroso para encarar de frente o vulto magestoso da Virgem Mãe de Deus! Mas quando o Cura entrou parece que a minha alma _torna o sino a repicar_ alegre despertou... Senti uma esperança illuminar-me o seio e dissipar-se então esse cruel receio! Rezei muito, rezei com tanta commoção, pedi com tanto ardor, com tanta devoção, que a minh'alma subiu, tão leve e tão submissa, aos pés da Mãe de Deus, durante aquella missa, como se fôsse presa a hostia consagrada que o Cura levantava á cruz abençoada... Com ella o meu olhar de supplica subiu. E fitando, sem medo, a face alabastrina da candida judia, eu vi que Ella sorriu com tão dôce expressão de placidez divina que me banhou de luz amortecida e calma a minha santa crença e fez vibrar minh'alma! Senti que era o perdão que vinha, n'um sorriso, abrir á minha vida um novo paraiso... Ergui-me docemente, approximei-me d'Ella e, beijando-lhe a mão que sobre o mundo vela, ouvi, como um soluço, a sua voz tão pura, dizendo-me em segredo, em intima ternura: Que lindos olhos, Talitha, os olhos que o Ruy te deu: tem uma luz infinita, parecem feitos no céo... _Joaquina, que tem parado o trabalho, attrahida pela narrarão de Talitha, enlevada, abraça-a, lacrimosa, beija-a..._ Ruy, _emquanto Joaquina abraça Talitha_ Mas tu ouviste bem, tens a certeza plena? Talitha, _desprendendo-se de Joaquina_ Ouvi perfeitamente; a voz era serena, tão serena e subtil que a mim se affigurava ser o proprio silencio assim que me fallava. _Ouve-se o repicar dos sinos e começa-se a ouvir as primeiras vozes dos córos distantes._ Estremeci de alegre e acreditei então que surgira, afinal, o dia do perdão; _Approximam-se as vozes_ desci do altar, corri, deixei a missa e vim, como se o coração cantasse dentro de mim, para dizer-te, Ruy, que a minha vida é tua. _Corre para elle, mas detem-se e, olhando para Joaquina, baixa os olhos timida, brincando com o avental: pausa e silencio._ Joaquina, _percebendo_ Filhos, não serei eu quem assim vos destrua as santas illusões... _ouve-se o côro muito perto_ Se Deus as abençôa!... _Sae_ Talitha, _vendo-a sahir_ Ruy! _Corre para elle_ Ruy, _recebendo-a nos braços_ Ah! minha Talitha! Talitha, _abraçada, beija-o_ Oh! meu amor! Ruy, _beijando-a_ Perdôa! _As vózes elevam-se distinctamente com a musica das violas e gaitas de fóles; pausa, emquanto os dois, enleiados, nada ouvem._ SCENA IV Os mesmos, Padre, raparigas e rapazes _O Padre, entrando com as raparigas e rapazes, surprehende ainda os dois que se beijam e Joaquina que está estupefacta, junto á porta._ Padre, _fingindo que não vê e fallando alto_ Raparigas, entrai, a noite é de alegria... Talitha, _surprehendidos ambos, desprende-se de Ruy e diz_ Tem razão, meu padrinho, nossa phantasia deve expandir-se agora... Padre, _com caricia, baixo a Talitha_ Assim, aos beijos, não... Talitha Quem poderá conter o nosso coração? _Ás raparigas_ Raparigas, cantae! A céga já tem vista; que a Virgem Mãe de Deus a todas vós assista; a freira, que devia entrar para o convento, teve hoje a redempção do seu cruel tormento! Um rapaz Viva a céguinha! O grupo Viva! Outro rapaz E mais o Padre Cura! Viva! Uma rapariga Viva quem fez este milagre! O grupo Viva! Um rapaz E a mãe Joaquina, então, que é mesmo uma ternura?! Todos Viva! Joaquina Muito obrigada! Ruy Olha como é altiva! Padre Raparigas, dançae! Ruy, _a uma rapariga_ Pois cante a cotovia, e vibre essa garganta até romper o dia... _As raparigas formam roda, os rapazes afinam as violas e o grupo, com Talitha e Ruy á frente, dançam a Ciranda. O Cura, sentado em uma cadeira, observa alegremente a scena._ Uma rapariga Quem deu espinho ás roseiras não teve muita razão, antes désse ao coração, como deu ás Tarangeiras. Deus que creou tantas flôres fez as estrellas aos centos: não dorme quem tem amores, que os amores são tormentos. Segunda rapariga Toda tu pareces feita com a cêra das abelhas, quando alguem d'aqui t'espreita ficam-te as faces vermelhas. Primeira rapariga Quem ao pé do Sol caminha anda sempre com calor, Quem á lua se avizinha póde até crear bolôr. As tuas tranças são pretas, pareces de cêra mol, não te abeires muito ao sol, olha lá não te derretas... _O Cura, satisfeito e alegre, ri a cada descante das raparigas e acompanha-as com um olhar de caricia. Enthusiasmado, levanta-se e encaminha-se para o grupo:_ Padre Tambem eu quero entrar na dança, raparigas, e ser como a papoila em meio das espigas! Primeira rapariga Viva, viva o Sr. Cura, que é o paesinho desta aldeia, que tem a alminha mais pura, mais alva que a lua cheia. _Neste momento ouve-se bater á porta violentamente, ao mesmo tempo que cessam os guizos denunciativos de um carro que parou á porta. Quando ouve bater, o Padre Cura soffre uma visivel transformação de physionomia que todos os circumstantes percebem._ Padre Um carro, Santo Deus! _Cessa toda a alegria e acercam-se do Padre que, repentinamente, põe as mãos em oração._ Ruy, _acudindo_ Senhor Cura, que tem? _Ouve-se bater de novo_ Padre, _pensativo_ Ha tantos annos já! _Batem novamente. O Cura, sem dar uma palavra, benze-se, vae á porta e abre-a. Entra uma senhora de lucto, acompanhada de um velho creado, com malas e agazalhos. Todos emmudecem e olham-n'a curiosamente._ SCENA V Os mesmos, Marqueza e Escudeiro Padre Perdão! Procura alguem? Marqueza O Cura João Fulgencio! É Vossa Senhoria? Padre Sou eu mesmo, Senhora! Marqueza Inda bem, obrigada! Eu já tinha certeza, o céo me conduzia. Não quero perturbar a alegria da noite: Viajante, sósinha, e quasi desviada pela neve que tomba, eu peço onde me acoite. Talitha Sois bem vinda, Senhora; aqui sob este tecto encontrareis conchego e o mais sereno affecto. Marqueza, _olhando-a_ Obrigada, creança! Talitha A Noite é de Natal e o nosso coração não sabe fazer mal... Padre Deveis estar cançada, o inverno vae tão duro! Marqueza Pensei que não chegava á sua residencia. A nevada é cruel, o caminho coberto, o frio é de cortar, o céo está escuro, nem um astro se vê, perde-se a consciencia da nossa propria vida, a estrada é um deserto... Nem sei como cheguei... Talitha Jesus a protegeu... Marqueza Eu creio bem que sim e dou graças ao céo! Padre E não quer repousar? Marqueza Antes, porém, quizera, Senhor Cura, dizer o que me traz aqui... Padre Assim seja, Senhora, e ao bom Jesus prouvera que eu pudesse remir a dôr que presenti... _a Talitha e Ruy, fingindo alegria_ Ide com Deus, cantae! _O grupo retira-se em silencio, curiosamente_ Talitha, _a Ruy_ Quem é? Quem te parece? Ruy Não sei, mas esta voz a minh'alma conhece. _sahem_ SCENA VI Marqueza e Padre Padre Senhora, estamos sós! Vossa Excellencia ordene! Marqueza Ouça-me, Senhor Cura! ouça e não me condemne! Padre E condemnar por que? Se tem algum peccado, o coração de Deus não estará fechado! Marqueza Pensei chegar mais cedo: hontem, pelo sol posto, estaria acabado este immenso desgosto que me tortura a vida; a asperrima inverneira embaraçou-me o passo e augmentou-me a canceira. Padre E vem de muito longe? Marqueza Ah! sim, de bem distante, anciosa, esperando este feliz instante. Ha muito tempo, um dia, ao romper da alvorada, alguem que veiu aqui lhe trouxe uma engeitada... Padre É verdade, Senhora! Marqueza Uma carta pedia ao Cura desta aldêa a esmola caridosa de guardar a creança, até que a mãe chorosa, depois, a procurasse. Afinal esse dia felizmente chegou e a mãe que a dôr humilha, Senhor Cura, a seus pés, vem procurar a filha... Padre E como poderei saber se esta senhora que se confessa mãe, embora peccadora, é realmente a mãe da creança engeitada ha tantos annos já, naquella madrugada tristissima d'inverno? Marqueza A carta igual áquella que o Senhor Cura achou no berço, junto della... Padre, _tomando a carta_ Mas falta alguma cousa... Marqueza A pérola? está aqui... _Dá-lhe a pérola_ Pois desde aquella noite eu jámais a perdi de vista e a conservei com cuidadoso afan, como alguem que resguarda um rico talisman. Padre Seija feita de Deus a sagrada vontade, embora se me parta o coração de dôr... Marqueza Essa dôr, Senhor Cura, ha de fugir vencida! Eu não quero quebrar tão dôce piedade que fez de minha filha o seu risonho amor, nem desejo apagar a luz da sua vida num soluço de magua. Padre Então não vem buscal-a? Marqueza Não, não, meu bom amigo, eu venho acompanhal-a. A minha desventura, emfim, se condoeu dest'alma cruciada e triste que viveu reclusa na saudade, apenas na esperança de vêr um dia ainda essa gentil creança... Se nunca procurei saber dessa existencia não é que se apagasse em minha consciencia, como um sonho infeliz, a lembrança dorida dessa flôr do peccado em anjo convertida. Como eu pensava nella, ah! sabe-o Deus sómente! Que lagrimas chorei por conserval-a ausente, e quanto passei eu por causa desta filha dil-o, com eloquencia, a dôr que me polvilha a cabeça de cans. Amal-a com ardor e ter de estrangular todo esse immenso amor!... Vêl-a crescer ao longe, e calcular-lhe o encanto, mas sem poder beijal-a, adivinhar que o pranto as faces lhe banhava e não poder sorvel-o, que tormento cruel, que duro pesadello... Soffri, meu bom amigo, e soffri a sorrir, que até para soffrer é preciso mentir! Não me pergunte, Padre, a origem desse amor ninguem perguntaria ao seio de uma flôr como foi que nasceu o aroma que elle exhala. Bastará que lhe diga: a dôr que me avassalla é a amiga fiel que me segue ha vinte annos, que nunca me deixou; que os tristes desenganos dessas horas sem luz foram os companheiros da minha mocidade e os filhos feiticeiros que encheram o meu lar de pranto e de amargores, como um dia sem sol, como um jardim sem flôres. Um dia, Sr. Cura, em confissão, no templo, diante do seu olhar que eu agora contemplo humilde e agradecida, hei de contar-lhe a historia da minha desventura e desta dôr ingloria, mas não exija, Padre, agora, que eu recorde o passado infeliz, que o coração acorde do somno em que repousa, e desvende o segredo que a vida me cobriu de sombras e de medo. Padre Nem quero desvendar, Senhora, essas torturas; mas a minha velhice acostumou-se a vêr em tão meiga creança uma filha extremosa junto de mim crescer, florir como uma rosa ao pé dum castanheiro, e fazer-se mulher. Aos dez annos cegou... Marqueza, _interrompendo, afflicta_ É céga a minha filha? Padre Foi: ha dias, porém, a luz de novo brilha no seu formoso olhar. Emquanto a escuridão durou, eu sempre a trouxe unida ao coração, apoiada ao meu braço. Marqueza E quem foi que a curou? Padre Alguem que a soube amar. Um dia despontou na sua alma de flôr um novo sentimento e a pobre céga amou e foi tambem amada. Queria dedicar-se á vida enclausurada na casta região da cela de um convento, mas, sonhadora e boa, o amor venceu em breve o vago mysticismo e a Virgem que a fadou, condoendo-se della, o seu amor salvou... De modo que, feliz, dentro de pouco, deve desposar um rapaz, formoso coração... Marqueza, _interrompendo_ Ruy de Ornellas, talvez? Padre, _admirado_ Mas como adivinhou? Marqueza, _depois de uma pausa_ Não importa saber; prosiga, Senhor Cura, eu contarei mais tarde essa alegre aventura, tão simples e feliz. Padre, _proseguindo_ A mim, pobre ancião, uma alegria basta: a de morrer contente por haver feito bem á candida innocente. Do mundo nada espero, esta gentil creança era a minha formosa e unica esperança: arrancam-m'a daqui e eu sinto que a corola dessa flôr, que me dava a encantadora esmola do seu perfume agreste, arrasta a minha vida á derradeira estancia, á ultima guarida... Marqueza E quem lhe disse, Padre, as minhas intenções? Padre Ninguem. Mas adivinho. Eu sei que os corações carinhosos das mães não querem a partilha das caricias, do amor, dos beijos de uma filha. Talitha vae partir; que o Senhor a conduza e que uma boa estrella ao seu porvir reluza. Marqueza Attenda, Sr. Cura! A mãe que ora lhe falla tambem sabe que a dôr o coração estala e não lhe vem roubar a luz dessa velhice tão cheia de bondade e simples de meiguice. A dôr me fatigou e eu quero repousar de tantas afflicções, e venho procurar, nesta aldeia tranquilla e sem perversidade, a paz que não frui na minha mocidade. Sou rica, felizmente, e quero ter um nicho onde acaba a existencia: é, talvez, um capricho... Mas quero aqui viver ao lado desta filha que a sua alma de santo, alvissima, perfilha e nunca mais sahir deste sereno azylo tão suave e tão bom, tão feliz e tranquillo, onde mora a virtude. A filha que eu procuro tambem é muito rica e tem porvir seguro. Se a desventura um dia a separou de mim a minha vida agora ha de chegar ao fim, aqui onde ella teve um lar sagrado e nobre. E o dôce olhar de Deus que o mundo inteiro cobre, abrindo sobre nós o pallio da ventura, ha de envolver na sombra o coração do Cura que fez de minha filha a filha da sua alma, extremosa e leal. E Deus que tudo acalma ha de extinguir a dôr de todo esse passado que eu vejo, felizmente, agora terminado... Padre, _alegremente_ Obrigado, Senhora. O coração que sente a alheia desventura e lança boamente o seu conforto amigo a quem já nada espera, tem, nas bençãos do céo, eterna primavera... E agora que sabeis que a vossa filha é viva, attendei-me, Senhora, á santa rogativa: Talitha esteve céga. O homem que salvou o seu formoso olhar o amor lhe conquistou. Ella, uma encantadora e formosa creança, concentra nesse amor toda a sua esperança: tiral-a será dar-lhe o mais cruel supplicio. Marqueza Não preciso pedir tão duro sacrificio ao seu bom coração. Eu quero-a vêr feliz, se quem serviu de Pae o consentiu e quiz. Procurava uma filha, encontrei um casal: para mim, que sou mãe, jámais este Natal feliz esquecerei. E agora que conhece a Mãe da sua filha, attenda á minha prece e mostre-me Talitha, anceio por beijal-a. Padre Louvado seja Deus, Senhora, eu vou chamal-a. _Entra e volta com Talitha pela mão_ SCENA VII Os mesmos e Talitha Padre, _entrando, a Talitha_ Recordas que uma vez, em lagrimas banhada, disseste que a tu'alma andava amargurada a pensar que jámais a tua mãe verias? Recordas a palavra alegre, de conforto, que te disse a sorrir quando tu me pedias a luz do teu olhar que tu suppunhas morto? Talitha Nem eu posso esquecer. Padre Pois, filha, a Providencia abriu á tua vida a sua immensa graça. Talitha, _curiosa_ E então? Padre Então responde: em tua consciencia que mais desejas tu que o Santo Deus te faça? Talitha Que eu possa vêr um dia a minha Mãe querida! Marqueza, _correndo para ella e abraçando-a_ Talitha, minha filha! Amor da minha vida! Talitha, _surprehendida_ Minha Mãe! Minha Mãe! _Abraçam-se em pranto_ Padre Obrigado, Senhor; abençoado seja este Natal de amor! Marqueza, _desprendendo-se de Talitha_ Mas como eu sou feliz! Como tu és bonita! Que lindo nome o teu! Quem te chamou Talitha? _Beija, abraça-a, encara-a sorrindo e soluçando. Senta-a nos joelhos_ Quero ver bem de perto o teu formoso olhar. _Fita-lhe os olhos_ Talitha E já sabes, mamã, que de tanto chorar com saudades de ti, um dia fiquei céga? Marqueza Com saudades de mim? Talitha, _agitada_ Não crês, mamã? Marqueza Socega; eu acredito em tudo, a tua alma não mente... Talitha Mamã, como eu te quero! _Abraça-a_ Olha-me bem de frente! Tanto tempo sem vêr a imagem dos meus sonhos, agora que te encontro, eu desejo risonhos os teus olhos de Mãe que nunca vi mais bellos; quero beijar, sorrindo, os teus alvos cabellos e sentir palpitar o seio teu, amigo, e o meu seio de filha, a palpitar comtigo. _O Cura, que se tem enlevado a contemplar a scena, sae pé ante-pé, olhando o grupo e chama para dentro. Entram Joaquina e Ruy._ SCENA VIII Os mesmos, Joaquina e Ruy Marqueza Dize-me, filha, e tu sonhavas muitas vezes com tua mãe? Talitha Sonhava! Marqueza E o sonho que dizia? Talitha Tanta coisa, mamã! Quando os nossos revezes nos vinham perturbar, desde o romper do dia até o anoitecer, pensava em ti, mamã, e, sem dormir, sonhava até pela manhã. Marqueza Mas revezes de quem? Talitha Desta immensa tristeza que vinha atormentar a vida de pobreza _baixo, quasi em segredo_ do nosso Padre Cura... Marqueza E o Padre Cura é pobre? Talitha Muito, muito, mamã, mas tão bom e tão nobre que nunca pude ouvir um lamento, sequer! Marqueza D'hoje em diante, porém, não faltará mais nada: será de todos nós aquillo que eu tiver. Tu és rica, Talitha, e d'alma bem formada, por certo acudirás de todo o coração por que não faltem mais nem ventura, nem pão a quem te fez gentil, tão boa e generosa... Talitha Muito rica, mamã? Marqueza Que te serve saber? Talitha É que o velho sargento acaba de morrer deixando na miseria immensa e dolorosa os netinhos com fome. O velho era céguinho! muita vez o encontrei mendigando, sósinho, para matar a fome e, se eu hoje sou rica, só este pensamento a dôr me purifica e, se tu dás licença, o Ruy vae procural-os. Marqueza Pois sim, minha Talitha, irás tambem buscal-os; que sejam teus irmãos já que assim o quizeste. Mas dize, o Ruy quem é? Inda não m'o disseste... _Durante este dialogo as duas não poderão vêr as demais pessoas, enlevadas como estão. Ha sorrisos em todos._ Talitha, _perturbada_ O Ruy?... _Baixa os olhos, sorri e cala-se_ Marqueza Sim, sim o Ruy... Talitha, _enleada_ O Ruy é um doutor... Quando eu estive céga... Eu era tão céguinha!... Elle tratou de mim e fez a operação... Marqueza Só?! Talitha O resto não conto... Marqueza E porquê? Talitha Adivinha! Marqueza E não furtou tambem o teu primeiro amor? Talitha Furtou!... E que mal fez? Deu luz ao meu olhar, eu dei-lhe o coração... Marqueza Mas depois de casar deixarás tu sósinho o velho Padre Cura? Talitha Nem eu quero pensar em tamanha loucura. Viveremos aqui juntinhos da Joaquina que sempre me guiou, do tempo de menina. Marqueza Pois vae dizer ao Ruy que tua mãe quer vêl-o. Talitha, _soltando-se do pescoço da mãe, sorrindo alegremente._ Tu vais ver que rapaz... intelligente e bello... Ruy! Ruy! _Voltando-se encontra Ruy, Joaquina e Padre. Fica embaraçada e cobre o rosto com as mãos._ Meu Deus, que susto! Padre Ouvimos tudo, tudo!... Marqueza, _voltando-se_ Desculpe, Senhor Cura... em favor della acudo... A culpada fui eu... Ruy, _surprehendido_ Ah! Senhora Marqueza! Marqueza Sim. Ruy, eu mesma, aqui. Nem me causa extranheza o vêl-o nesta casa. Eu fui quem o mandou em busca deste céo tão puro que o salvou. Previ toda esta scena e quando aconselhei que viesse até cá, senti que palpitava o meu seio de mãe. Já vê que adivinhei e o meu presentimento o bem me segredava... Talitha, _admirada_ Mamã, tu és Marqueza? _Silencio prolongado_ Marqueza A Marqueza morreu... Agora sou a mãe da mimosa Talitha que vem pedir perdão a quem assim soffreu dessa magua sem par, dessa dôr infinita, que tanto fez chorar a tua mocidade, as lagrimas febris e negras da saudade. Agora sou a Mãe que um dia te engeitou e que uma vida inteira a dôr acabrunhou, que vem pedir perdão ao velho Padre-Cura do quanto padeceu para te dar ventura, que vem agradecer á santa da Joaquina, os beijos que te deu quando eras tamanina, que vem pedir a Ruy o supremo favor de dar á sua filha o seu primeiro amor... Ruy Marqueza, o meu amor recebe a grande esmola do casto coração da candida Talitha, como um beijo de luz que conforta e consola a dôr da minha vida. O peito me palpita na suprema alegria e eu penso na alvorada desta noite feliz, de lucido natal, bemdizendo, Senhora, a dôce madrugada que vae surgir em breve. Talitha Ao despontar o dia vamos todos buscar os netos do sargento... Tu concordas, mamã? _Ao Cura_ Acha que faço mal? Padre Para ti, minha filha, a madrugada é fria. O Ruy irá commigo e apenas num momento as creanças virão: descança, pequenita. Marqueza, _a Joaquina_ Repare bem, Joaquina: este casal catita como envelhece a gente! Joaquina E Deus Nosso Senhor lhe dê por toda a vida o seu sagrado amor! Padre Já toca á missa d'Alva... Ruy, _a Talitha_ Estrella d'Alva, pura, immaculada estrella, o céo desta ventura estende sobre nós a cupula sagrada e eu vejo nesse olhar a luz ambicionada que faz de ti, creança, a dôce Conceição do meu culto feliz, purissimo e christão. _A Joaquina_ Um dia, bem me lembro, a sua mão amiga mais trémula e subtil do que uma branca estriga ás aragens d'outomno, abrindo-me o sacrario da sua alma de santa, entregou-me um rosario. Recorda-se? Pois bem! nas horas de afflicção esse rosario amigo encheu-me o coração duma frescura immensa e assim se dissipou essa nuvem cruel que sobre nós passou... Quero beijar a mão da santa que me deu nesse rosario astral uma visão do céo: a flôr que se banhou na sua fé divina, bondosa creatura, alvissima Joaquina! _Beija-lhe a mão. Joaquina, em silencio, enxuga os olhos com o avental._ Padre O dia vae surgir, o sino da capella convida-nos á missa. Ali pela janella já vem a madrugada entrando alegremente num baptismo de luz que brota do nascente. Talitha Meu Deus, como é feliz a minha mocidade! Rasgou a mão de Ruy a dôce claridade ao meu perdido olhar, depois a mãe de Deus envia-me o perdão do fundo azul dos céos: e, dando luz á céga e vida á condemnada, entrega-me, a sorrir, no fim da madrugada do Natal de Jesus, a minha Mãe distante. Meu Deus, como é feliz neste sereno instante _a Ruy_ a nossa mocidade ao pé desta velhice tão boa e tão leal! Antes que alguem cobice esta aurora de amor que ao céo nos avizinha eu vou rezar por nós uma Salvé-Rainha: _Ouve-se o repicar dos sinos. Talitha approxima-se do oratorio; ajoelham-se todos, excepto o Padre que fica de pé._ Talitha Salvé, Rainha Mãe, céu de misericordia, vida e doçura, amor, luz da nossa esperança, lançae por sobre nós o manto da concordia. Salvé, Rainha, Mãe serena de bonança! A vós, os filhos d'Eva, em lagrimas, bradamos, por vós que estaes no céo, gemendo, suspiramos, neste valle de magua e dôr. Eia, Senhora! Sêde a divina Mãe, a dôce protectora da nossa vida inteira e para nós volvei esse olhar piedoso e tão cheio de luz! Sobre o nosso destino a vossa mão pendei, rasgae a nossa dôr, mostrae-nos a Jesus, fructo do vosso ventre, ó sagrada e clemente, ó Virgem dôce e casta, ó candida innocente! ó Santa Mãe de Deus, ouvi a nossa voz tão simples e fiel, rogue no céu por nós, por que sejamos bons e dignos da promessa do moreno Jesus. Que a nossa vida aqueça o materno calor da estrella de Bethlem, á luz do vosso olhar, por todo o sempre. Padre Amen! CAE O PANNO RESPOSTA Á CRITICA INDIGENA _Toute l'operation critique se borne ainsi a constater un fait, depuis la cause qui l'a produit jusqu'aux conséquences qu'il produira. Sans doute, un pareil travail contient une leçon, et à se voir dans un miroir aussi fidèle, un écrivain peut refléchir, connâitre ses infirmités, tâcher de les marquer le plus possible. Seulement, la leçon vient de haut, sort de la verité même du portrait el n'est plus l'enseignement gourmê d'un professeur. La critique expose, elle n'enseigne pas. Elle a compris elle-même que son influence sur le niveau litteraire était à peu prés nulle, car les tempéraments restent indociles; et elle a préféré jouer le beau rôle d'ecrire l'histoire litteraire contemporaine, expliquée et commentée._ E. Zola. _Documents litteraires_, pag. 334. _Est critique, à notre jugement, celui qui fait effort pour comprendre et qui juge avec sympathie._ Nolet. _La vie et l'oeuvre de Chateaubriand_, pag. 673. _...si nous possedons quelques talents, nous nous empressons de les déprécier. Après les avoir élevés au pinacle, nous les roulons dans la bosse; puis nous y revennons, puis nous les méprisons de nouveau. Nous ne pouvons souffrir de reputation; il nous semble qu'on nous vole ce qu'on admire: nos vanités prennent ombrage du moindre succès, et s'il dure un peu, elles sont au supplice._ Chateaubriand. _Essai sur la litterature anglaise_. pag. 171. _Que la scène soit triste ou gaie, nous retrouvons toujours la même distinction entre l'émotion réelle et l'émotion esthétique. Il faut de toute necessité, pour que cette dernière soit possible, que l'autre disparaisse; il faut que l'auditeur ou le spectateur ne puisse jamais oublier qu'il y a entre le fait et lui un intermediaire dont l'impression constitue la poesie de l'oeuvre; c'est surtout au théâtre que cette distinction entre le réel et le fait poetique est essentielle. L'illusion complète, loin d'être le suprême degré de l'art, comme on l'a dit, en serait simplement la négation._ Eug. Veron, _L'Estetique_, pag. 407 e 408. RESPOSTA Á CRITICA INDIGENA A _Talitha_ é uma reminiscencia da mocidade, piedosamente recolhida pelo coração á mudez da alma, que a minha intelligencia modesta crystallizou em versos froixos, que o meu sentimento fixou em drama e que a cegueira das paixões pretendeu ferir. Devo, quero e vou defendel-a. * * * * * Zola, o genio, o mestre, o justo, escreveu: «Lorsqu'on a l'honneur de tenir une plume, on se consulte avant d'ecrire, et quand on a écrit une page, on l'affirme, on la défend.» _La critique contemporaine_, pag. 356. A critica censurou-me porque, brazileiro e rio-grandense, fui procurar em terras de Portugal o assumpto do meu obscuro trabalho. A _Talitha_ não é uma obra nacional: nem portugueza porque o seu autor não nasceu em Portugal, nem brazileira porque a acção se passa em terra estrangeira, entre personagens de uma aldeia lusitana perdida nas serranias da provincia de Traz-os-montes. * * * * * A censura é futil. A critica esquece que Portugal é a patria da nossa patria; que o nosso idioma nacional ainda não sahiu do periodo primitivo e selvagem; que a lingua de Camões foi a lingua de Gonçalves Dias e ainda hoje é a lingua de Olavo Bilac e de Coelho Netto; que os sentimentos de José de Alencar vibraram nas mesmas palavras em que vibrou a alma de Camillo Castello Branco o através das quaes se impoz á grandeza do seculo que passou a individualidade singular e forte de Eça de Queiroz, ao mesmo tempo que se impunha, em outro hemispherio, a personalidade singular e forte de Machado de Assis. Ingenua, ignorante ou perfida, a critica esqueceu o preceito de Taine: «Les productions de l'esprit humain, comme celles de la nature vivante, ne s'expliquent que par leur mllieu.» H. Taine--_Philosophie de l'Art_. vol. I, pag. 11. O homem é um producto do meio, este inflúe poderosamente na formação de seu espirito; mais que poderosamente--decisivamente. A mocidade é mais docil em receber essa influencia natural e espontanea do ambiente--do clima, das tradições, dos costumes, da religião, da arte. É na infancia e na adolescencia, como observa Moreau, de Tours, no seu estudo--_La Folie chez les Enfants_--que os erros e os preconceitos se apoderam do espirito e por tal forma criam raizes que difficilmente se arrancam. Spencer, na Educação moral, intellectual e physica, affirma que a influencia do meio sobre a mocidade decide do futuro inteiro. A minha adolescencia e a minha mocidade fluiram em Portugal, nas escolas, nas aldeias, no seio patriarchal da familia paterna. Com os portuguezes, moços como eu, senti os pezares d'aquelle grande povo, sorri nas alegrias d'aquella boa gente. Á sombra fresca e generosa das suas arvores adormeci e sonhei: ao calor daquelle sol aqueci as minhas esperanças; no gelo daquellas neves murcharam-me as mais perfumadas illusões; ao luar opalescente daquellas noites ouvi a musica das primeiras serenatas: ao fulgor daquellas estrellas peneirou no meu coração a voz dolentissima dos rouxinóes; com a poesia popular daquella alma lyrica de onze seculos aprendi a versejar quando a minh'alma de dezeseis annos abria para o mundo as flôres das suas aspirações incipientes; com a lithania religiosa dos orgãos ruraes nas capellas das aldeias aprendi a amar a Deus, a crer na sua olympica magestade, ao mesmo tempo que filtrava docemente no meu espirito a ternura sagrada daquelle mysticismo que reza na voz das aragens, no perfume das flôres, no marulhar das fontes, no gorgeio das aves e até no merencorio soluçar das vagas, rolando eternamente nas areias das praias. Dezoito annos correram para a minha vida feliz e descuidosa, naquella terra santa que é a patria da saudade, e, quando o meu coração começou a sentir as amarguras do exilio, quando a minha intelligencia poude comprehender toda a magua da ausencia, foi na saudade portugueza «o delicioso pungir de acerbo espinho,» que eu aprendi a sentir a saudade do lar que aqui deixára, do berço que me embalára as horas da infancia, da voz materna que me acalentára a puericia, do céo que dera luz ao meu olhar e calor ao meu sangue, sangue em cujas ondas correm leucocytos de sangue lusitano. «d'este sangue abençoado», fortemente oxygenado, que me dá energia para as luctas e ampara a tranquilidade transparente da minha consciencia, limpida e superior, as investidas da injustiça e da critica. E como poderia eu, por que estranho processo de cirurgia, arrancar ao meu organismo essa metade portugueza que constitue um nobre orgulho da minha vida? E como poderia eu, por que estranho processo de psychologia, arrancar á minh'alma esse conjuncto essencial de elementos que durante dezoito annos se vincularam ao meu espirito, á minha intelligencia, á minha vontade, á minha sensibilidade, com a mesma delicadeza, com a mesma subtil insistencia com que a luz do sol penetra no seio da terra para fazer germinar as sementes, com que a palavra das mães penetra na alma dos filhos para transfigural-a, como o luar que transforma em espelho de prata a agua dos lagos e dos rios? * * * * * A _Talitha_ é uma reminiscencia da mocidade passada na aldeia traz-montana, na suave e consoladora almosphera da familia paterna; _Talitha_ não é uma creação da minha phantasia, é a copia do modelo vivo que eu conheci, que acompanhei na cegueira cruel e, depois, na luminosa redempção do seu primeiro amor. _Ruy de Ornellas_ foi meu irmão de lettras, foi meu amigo, meu companheiro de escola, meu consocio na bohemia alegre e feliz da vida academica, nem o nome lhe occultei. O velho cura _João Fulgencio_ foi uma realidade soberba de caridosa affeição evangelica: era um sacerdote de alma pura, um ancião de oitenta invernos consumidos em espalhar o bem emquanto muitos moços de alma nova mas precocemente corrompida ao contacto das descrenças enervadoras e fataes, na convivencia intima da politicagem, dos bordeis e dos cafés, vivem para fazer o mal, no gozo requintado de espalhar desventuras, quando é mais facil, mais dôce, mais humano, mais confortante, mais nobre, semear carinhos e affectos para fazer a colheita das sympathias e das dedicações. A velhinha _Joaquina_, a irmã desse honrado e justo sacerdote, é o retrato fiel, copiado á intimidade da minha propria familia, em cujo seio fui buscar o modelo daquella virtude christan, na figura venerada de uma santa creatura que acalentara, ha sessenta annos, a puericia de meu Pae. A _Marqueza de Rilma_ não é um personagem ficticio, viveu, foi a mãe de Talitha, não com o titulo de tão elevada condição aristocratica, mas de nobre linhagem, victima innocente das luctas civis de 1846 que accenderam a fogueira horrivel dos odios entre os partidos politicos. Revelar-lhe o verdadeiro nome seria uma iniquidade, além de absolutamente desnecessario ao desenvolvimento da acção dramatica: a mais rudimentar educação, a mais vulgar delicadeza de sentimentos mandavam occultar essa circumstancia, inutil á fidelidade da observação e perfeitamente dispensavel ao estudo da psychologia do personagem. Que representa, pois a _Talitha_? O intimo e nobre desabrochar de uma consciencia que não esqueceu o passado, que transformou um incidente da vida em pretexto para resgatar uma divida de gratidão, para abrir no seio um longo e profundo sulco de reconhecimento á terra sagrada em que dormem seus avós o somno ultimo e perpétuo, onde ficaram os primeiros dias de existencia do ancião que me deu o sêr, onde eu deixei as gerações irmans que me acompanharam na peregrinação astral das illusões academicas. A perversidade incuravel dos zoilos, porém, occultou, de proposito deliberado, que o obscuro autor da _Talitha_, agora alvejado por haver esquecido ingratamente a sua patria, preferindo assumptos, personagens e céos estranhos, já estudara em um drama, em tres actos, intitulado _A Farça_, a sociedade da sua terra e um facto que se desenrolara no meio em que vive. E esse drama foi levado á scena tres vezes, no Theatro S. Pedro, por uma sociedade de amadores; mereceu a critica da imprensa local e foi largamente estudado por dois homens conhecidos nas lettras: Alarico Ribeiro e dr. Sebastião Leão. Se não teve esse modesto trabalho a ventura de ser interpretado por artistas, não pode caber ao autor a culpa de faltar entre nós uma companhia dramatica nacional constituida de profissionaes. A critica indigena devia ter conhecimento d'esse facto; se sabe d'elle é perversa occultando-o propositalmente para ferir a _Talitha_; se não sabe, é ignorante, e uma critica _soi-disant_ competente, que desconhece o autor escolhido para a censura e os trabalhos por elle produzidos, não póde exigir consideração nem respeito do meio litterario em que pretende pontificar. «Il y a même, au fond de la grande majorité des critiques, un producteur manqué, qui se regisne à parler des oeuvres d'autrui, quand il voit que personne ne parle des siennes.» Zola, oeuvre cit., pag. 349. A critica, ou ignorante, ou perfida, ou ingenua, esqueceu que Taine, o mestre supremo, havia pontificado: «La méthode moderne que je tâche de suivre, et qui commence à s'introduire dans toutes les sciences morales, consiste a considerer les oeuvres humaines, et en particulier les oeuvres d'art, comme des faits et des produits dont il faut marquer les caractères et chercher les causes; rien de plus. Ainsi comprise, la science ne proscrit ni ne pardonne: elle constate et explique.» H. Taine--oeuvre cit, vol. I, pag. 14. Mas a critica levantou-se contra as leis proclamadas pelo proprio mestre invocado: condemnou, não explicou. Sem investigar as origens do drama, sem conhecer a sua significação, sem sondar a alma que o creára, fulminou a obra e insultou o espirito que a produzira. Para maldizer bastaram-lhe dois elementos: o assumpto que é portuguez e o estylo que não é brazileiro... E a critica, sempre ingenua, ou ignorante, ou perfida, esqueceu que Shakespeare fôra buscar á nevoenta Dinamarca a figura culminante de Hamlet, á sorridente Italia dos laranjaes em flôr, as suaves imagens de Romeu e Julieta, e o vulto soberbamente tragico do tremendo Othelo. Sempre com a mesma perfidia, a critica, depois de citar os nomes de Racine e Corneille, occultou que esses grandes espiritos da França foram pedir á Grecia e à Roma antigas, á Hespanha medieva e aos Barbaros a quasi totalidade dos seus heróes e das suas heroinas, deixando na obscuridade a immensa galeria de personagens illustres da propria patria: o genio desses dois sublimes cerebros andou a resuscitar, a illuminar, a galvanizar no tablado do theatro francez a grandeza épica de vultos estranhos e deixou no tumulo o vulto leonino dos immortaes filhos da França e as imagens delicadas e formosas das mulheres gaulezas. De Corneille, _Medéa_ é uma simples imitação de Lucio Seneca, romano, que a seu turno pedira inspiração ao theatro grego; _Cid_, que é uma obra-prima, além de ser puramente hespanhola a sua acção de altissima tragedia, foi inspirada pela obra do poeta castelhano Guilhen de Castro, que o genio de Corneille deixou na sombra; _Horace_ é um assumpto romano que o poeta francez pediu a Tilo-Livio; romanos são _Polyeucte_, _Cinna_ e _Pompée_, este inspirado por Lucano; _Mentor_ é o velho personagem da legenda grega de Ithaca, já reproduzido no theatro hespanhol pelo poeta Alarcon, ao qual Corneille foi pedir o modelo; _oedipe_ e _Sertorius_, que são lampejos da constellação de decadencia de um genio, pertencem, a primeira ao cyclo da heroicidade thebana que Sophocles já havia immortalisado na scena grega, a segunda é pura historia da Iberia em que o vulto admiravel do general romano fulge num derradeiro vestigio de genio, ao lado de Viriato, o grandioso pastor dos Herminios e fundador da nacionalidade lusitana. Nem mesmo no periodo da sua decadencia, vencido na queda da _Pertharite_ e no confronto do seu _Attila_ com a _Andromaque_ de Racine, outro genio que subia rapidamente ao zenith, nem mesmo na desventura, a alma de Corneille vibrou pela patria, o seu talento não procurou conforto na historia assombrosa da França: o seu coração voltou-se ainda para o oriente, foi á Judea estudar a grandeza sublime do Rabbino da Samaria e deixou na _Imitação de Christo_ a ultima expressão do seu genio, como o raio extremo do sol ao entrar na sepultura do occaso. De Racine, póde-se affirmar que escreveu as suas tragedias inspirando-se, ora no theatro grego, ora na Biblia. Assim o ensina um sabio mestre brazileiro: «deixando respeitosamente de parte Eschylo e Sophocles, impossiveis de imitar, modelou-se por Eurypedes, menos perfeito na generalidade da concepção, porém mais tocante na pintura dos accessorios e que maior conformidade offerecia com o seu talento.» São d'esse genero a _Andromaque_, _Mithridates_, _Phèdre_, _Iphigénie_. São inspiradas na Biblia, a _Thébaïde_, _Esther_ e _Athalie_. Pertencem ao genero historico: _Alexandre_, _Berenice_, _Britannicus_. E ainda mesmo quando Racine, resolvendo esmagar os seus zoilos, escreveu a comedia _Les Plaideurs_, que é uma _charge_ temivel de espirito e de genio, foi pedir ás _Vespas_ de Aristophanes, não só a inspiração, mas o exemplo, o paradigma. Todas essas tragedias ficaram na litteratura franceza, pertencem ao Theatro da França que não as repudiou, que as ama, que as admira, cultuando a memoria dos genialissimos poetas, não obstante o haverem elles esquecido a seara magnifica da patria pelos encantos das estranhas figuras orientaes. Victor Hugo foi pedir a Inglaterra o vulto espantoso do dictador para escrever a maravilha dramatica de _Cromwell_, deixando no esquecimento a soberba grandeza de Danton! Para dar á Escola romantica a sua data inicial no Theatro francez, o grande poeta das _Folhas de Outono_ foi buscar á Hespanha a inspiração dos versos maravilhosos do _Hernani_ e deixou á litteratura dramatica da França as figuras esculpturaes de _Dona Sol_, do bandido celebre, do Rei D. Carlos e do velho aristocrata Ruy Gomez. Mas onde o genio do grande filho de Besançon attingiu a altitude suprema a que não chegaram Corneille no _Cid_ nem Racine na _Phèdre_, foi no _Torquemada_, a epopéa dramatica do fanatismo: e Torquemada foi o inquisidor da Hespanha. Nenhum poeta da peninsula havia arrancado á historia a figura sinistra do sacerdote; Hugo levanta-a do tumulo, illumina-a com as fulgurações do seu genio, como se em torno da cariatide monstruosa da Inquisição ardessem as fogueiras dos autos-da-fé, e liga á litteratura dramamatica da França a figura barbara, apocalyplica do carrasco da Igreja. No emtanto, na historia da França havia a linha cruel de Luiz XI, algoz do duque de Alençon, que podia ter inspirado o genio do poeta sublime. Alfred de Vigny, contemporaneo de Victor Hugo, na sua primeira phase litteraria foi quasi totalmente oriental e biblico: _Eloah_, _Symeta_, _Dryade_, _Fille de Jephté_, _Femme adultère_, _Dolorida_, _Deluge_. Na segunda phase produziu, em verso, o seu drama notavel Chatterton, cujo heróe é o grande e infortunado poeta inglez que, aos 22 annos, procurou no suicidio a solução para a vida das amarguras e tristezas que arrastava o seu genio incomprehendido. E Alfred de Vigny, tão admirador de André-Chénier que n'este procurou inspiração para a sua _Dryade_, deixou no esquecimento a figura soberba e tragica do poeta da revolução, cuja cabeça rolou no cadafalso como uma cabeça vulgar, não obstante: «avoir quelque chose là dedans» E a França não engeitou a obra immortal de Alfred de Vigny, e a _Comedie-Française_ em 1881 fazia a sua _reprise_, com alto successo, não obstante a opinião do Zola que a reputa: «la negation du théatre.» A critica, severa para mim, devêra ter vergastado primeiramente a memoria de Lord Byron que cantou na sua lyra de poeta e serviu com a sua espada de guerreiro a obra politica da emancipação da Grecia; devêra anathematisar Sienkiewicz, o polaco genial que estudou no romance a reconstituição da vida romana á época da decadencia cesarista de Nero; devêra ter condemnado á morte M.^me Judith Gauthier, a filha gentil e talentosa de Theophile, que, deixando de parte a herança paterna, preciosa e brilhante, foi procurar o assumpto das suas obras notaveis nas terras e nos costumes do extremo oriente, com especialidade no Japão e na China; devêra ter amaldiçoado e reduzido a pó o sublime poeta contemporaneo da França--Edmond Rostand--que engastou nos tres actos phantasticos da _Princesse-Lointaine_ um assumpto oriental e na _Samaritaine_, a sua obra prima, a vida, a figura, a alma encantadora da filha da Judéa, deixando no esquecimento a belleza mystica de Joanna d'Arc; devêra ter queimado a estatua de Castellar, porque o espantoso rival de Cicero escreveu os extraordinarios volumes dos _Recuerdos d'Italia_, sem ter jámais escripto uma pagina de viagem pela propria Hespanha, sua patria; devêra ter castigado os despojos funebres de Milton, porque o grande poeta inglez, cuja inspiração hombrea com as de Tasso e Ariosto, cuja grandeza genial é, depois de Shakespeare, a creação mais opulenta da poesia britanica, teve o arrojo de esquecer a sua verde Erin e foi ao pincaro do Himalaya, ao berço da tradição adamita, procurar o assumpto do seu _Paradise Lost_. E a critica para ser sincera, ou, pelo menos, logica, severa como foi para o obscuro autor da desventurada _Talitha_, devêra censurar amargamente a falta de patriotismo de Araujo Porto Alegre que, em versos de um sabor arcadico e em metro solto, celebrou o almirante genovez Colombo, deixando ingratamente no olvido a figura épica do riograndense Tamandaré, lobo dos mares como o piloto de Palos, além de guerreiro como Patterson. E a censura devêra estender-se tambem a Gonçalves de Magalhães que, em vez de cantar o heróe dos Guararapes ou a figura brilhante de Garibaldi que vive na tradição da liberdade sulina, preferiu celebrar na sua lyra a aguia de Wagram, na queda monstruosa de Waterloo, tanto mais que ao nascer do theatro brazileiro, quando fulgia o talento artistico de João Caetano, deixou no esquecimento a figura negra de Calabar e foi á historia de Milão pedir o assumpto e os personagens da sua tragedia _Olgiate_, em cuja acção se estuda a tyrannia licenciosa de Galeazzo Visconti e o assassinato do tyranno. E a critica, tão rispida com o autor da _Talitha_, chegando mesmo a citar a sentença do divino Almeida Garrett para aquelles que se abalançam ao estudo de estranhos assumptos esquecendo a patria, devêra começar pela censura ao proprio autor do _Frei Luiz de Souza_, que iniciou a sua vida litteraria no theatro escrevendo _Xerxes_, _Lucrecia_, _Sophonisba_, _Atala_, _Meroppe_ e _Catão_, antes de se lembrar que _D. Filippa de Vilhena_ fôra uma das heroinas de sua terra. * * * * * Mas a critica, severa com o autor da _Talitha_, não tem sinceridade nos seus conceitos. Um formosissimo talento de artista, alma de raro quilate, aberta ás emoções do Bello, filho d'esta terra, Araujo Vianna, musicista de apurado engenho, escreveu a sua brilhante partitura da _Carmella_, um encanto, uma joia. A acção do libreto passa-se na Italia, a musica inspira-se claramente na escola de Massenet, sóbe á scena no Rio de Janeiro interpretada por artistas italianos, sóbe á scena em Porto Alegre interpretada por artistas italianos, a critica applaudiu em delirio, extasiou-se, e ninguem viu, ninguem sentiu, que a _Carmella_ é italiana pelo libreto e franceza pela musica; o patriotismo riograndense não se julgou melindrado porque o intelligente _maestro_ patricio deixou na obscuridade a nossa paisagem, o nosso clima, as nossas mulheres, os nossos costumes, a nossa poesia, a nossa musica popular e caracteristica, preferindo a lenda, o lyrismo, a impetuosidade, o céo, a aventura da gloriosa e divina Italia da arte... A critica emmudeceu. Entretanto Araujo Vianna apenas visitou a Italia: o seu sangue é genuinamente brazileiro, formou-se o seu espirito na propria patria, nem a natureza nem a sociedade italiana influiram no seu desenvolvimento intellectual e moral... A critica tinha de tudo isso conhecimento exacto e perfeito mas... _passons là dessus_. «Dès lors, les impuissants et les hypocrites peuvent injurier l'oeuvre et l'auteur, les couvrir de boue, les nier...» Zola--_Documents litteraires_, pag. 418. * * * * * Sempre ingenua, ou ignorante, ou perfida, a critica censura a _Talitha_, condemnando-a porque os seus personagens fallam uma linguagem elevada, superior á modestia das suas condições de aldeãos. A critica é futil e não sabe o que diz. _Talitha_ falla nos seus dialogos a linguagem do mysticismo que durante dezesete annos ouviu e aprendeu com o seu velho padrinho: o cura. A sua linguagem é simples, ingenua e lyrica. Mas simples, ingenua e lyrica é a linguagem do povo portuguez, desde a sua infancia até hoje. As imagens que o autor lhe põe nos labios são as mesmas que borbulham na phantasia do povo lusitano, ha mais de nove seculos de nacionalidade, affirmada num _folke-lore_ riquissimo e inexgottavel, desde Guesto Ansures até Antonio Fogaça. Pois a uma creança de dezoito annos, alma pura e boa, natureza casta, intelligente e fina, delicada e vibratil, torturada pela desventura, póde ser negada a phantasia creadora, poetica e imaginosa que caracterisa o povo em cujo meio ella vive, principalmente na aldeia, na atmosphera idylica e bucolica, simplesmente porque a cataracta a cegou aos oito annos? Mas Antonio Feliciano de Castilho foi o bardo cégo que escreveu a _Noite do Castello_, as _Cartas de Echo a Narciso_, os _Ciumes do Bardo_, a _Primavera_, o _Outono_ e cégo é o anonymato popular que produz ha oito seculos esse rosario encantador e sublime das trovas e cantigas que andam na tradição oral, na garganta de todas as mulheres, na voz de todos os cantores, nos labios de todos os estudantes, desde o _Cancioneiro de Garcia de Rezende_ e de _El-Rei D. Diniz_ até o _Romanceiro_ de Garrett e os _Cancioneiros_ de Theophilo Braga e Gualdino de Campos. São da poesia popular, são do povo em cujo seio _Talitha_ nasceu, cresceu, amou, sonhou e foi noiva, as formosas quadras que correm de labio em labio, sem autor conhecido e que Junqueiro, Eugenio de Castro, Antonio Nobre e Correia de Oliveira gostosamente assignariam. I Nessas tuas mãos pequenas como não vi em ninguem não sei como as minhas penas couberam nellas tão bem. II Perdes mais em me perder do que eu perco em te deixar: perco quem sabe offender, tu perdes quem sabe amar. III Dizes que deixo saudades, não me posso conformar: pois se eu as levo commigo, como t'as posso deixar? IV Acostumei tanto os meus olhos a namorarem os teus que de tanto confundil-os nem já sei quaes são os meus. V Se os meus olhos te incommodam quando estão na tua frente hei de arrancal-os um dia para te amar cegamente. VI Se eu soubesse que voando alcançava o que desejo mandava fazer as azas que as penas são de sobejo. VII Eu jurei que não tornava a dar adeus a ninguem: quem parte saudades leva quem fica saudades tem. VIII Essas tuas sobrancelhas como nunca vi mais bellas são laços de fita preta unindo duas estrellas. IX Não sei que quer a desgraça que atraz de mim corre tanto, hei de parar e mostrar-lhe que de vêl-a não me espanto. X Vae alta a noite, vae alta, mais alto vae o luar, mais alta vae a ventura que Deus tem para me dar. XI É tua bocca ideal um palacio com jardim: as portas são de coral os degráos são de marfim. XII Aguas passadas não tornam; deixae fallar o dictado: ó saudade, és um moinho móes com aguas do passado. XIII Pára tu, meu coração! onde estou eu, onde vim? triste caminho de lagrimas tem começo e não tem fim. XIV Ouço cousas que não ouço, vejo cousas que não vejo: olhos da minha saudade, ouvidos do meu desejo! * * * * * E a um povo que assim traduz tão lyricamente, com tanta philosophia, com tanto sentimento, todas as impressões da sua alma dôce, que assim vibra essa poesia celeste nas cantigas das eiras ao luar, nas espadelladas, nas desgarradas, nos desafios, na Paschoa, no Natal, nas romarias, a um povo que tem alma poetica, mais suave que um paraiso, mais simples e mais colorida que um poente de outono e uma alvorada de primavera, póde-se, com justiça, arrancar essa linguagem que é caracteristica? O escriptor que o fizesse, a pretexto de ser verdadeiro com os seus personagens, para que estes não pareçam superiores ao seu meio, mentiria á propria consciencia, adulteraria a natureza, roubaria ao povo que quizesse estudar o mais bello reflexo da sua individualidade litteraria. A um velho cégo que mendigava pelas estradas, entre Villa-Pouca de Aguiar e Pedras Salgadas, na Provincia de Traz-os-Montes, muitas vezes ouvi cantar com a sua voz roufenha, na tristissima toada, monotona como a sua desventura, as quadras que aqui reproduzo fielmente. Andava elle pelas feiras, pelos caminhos, pelas romarias, levando a sua desgraça, como Ashaverus, durante sessenta annos, a toda a parte onde a tradição religiosa celebrava as festas dos seus oragos, onde a alegria popular estuava nas danças e folguedos; o rapazio espantado escutava-o com profundo respeito, as raparigas ouviam-n'o em silencio, porque na amargura das suas cantilenas, na monotonia das suas queixas, na tristeza das suas lamentações havia verdade de conceitos e a revolta justissima de uma alma ferida contra a dureza da sorte e a iniquidade da natureza. Quem lh'o ensinou, quem escreveu esses versos, onde os aprendeu elle, que poeta mysterioso, simultaneamente artista e philosopho, traduziu na simplicidade mystica d'aquellas quadras toda a immensidade da sua irremediavel desventura? A alma popular, suave e lyrica, de uma raça, filtrada na arêa branca e pura de uma tradição de oito seculos. Diz toda a gente e eu não nego que Deus é pae de bondade, mas se isso é pura verdade como foi que eu nasci cégo? Lá que Deus tirasse a luz a quem rouba ou assassina, era a justiça da sina que todo o mundo conduz. Mas a mim, não foi clemente porque eu não tinha nascido; é que Deus tinha o sentido de cegar um innocente. Aos lobos que andam na serra matando ovelhas e anhos, dizendo mal aos rebanhos Deus não castiga na terra. Não ha lobo que não veja, todos são filhos de Deus, só nos tristes olhos meus a eterna noite negreja. Não tocaria viola se eu fosse fera damnada, mas não andava na estrada soffrendo e pedindo esmola. * * * * * Milton, collocando nos labios de Eva os seus primorosos versos, não curou de saber se no Paraiso a Mãe dos homens fôra educada pela serpente nos mysterios da poesia, da arte, da phantasia, da linguagem alcandorada, nem cogitou de saber se já naquelle tempo, no pincaro da cordilheira industanica, se fallava o inglez. A Samaritana era uma mulher vulgar e desprezivel; Rostand colloca-lhe nos labios a linguagem sublime dos seus alexandrinos formosos, sem indagar se, ao tempo de Christo, na Samaria, junto ao poço de Jacob, já se fallava francez, em verso, de metrica impeccavel e de rima opulenta, brilhante, artisticamente disposta sob a fórma severa que Boileau, Corneille e Racine haviam de prescrever 1600 annos depois. A critica, porém, mais céga que a minha desventurosa _Talitha_, mais ingenua que a alma primitiva, mais ignorante que a Samaritana e mais perfida que a Serpente, a sogra feroz de Adão, occultou o preceito de Taine: «Par cet excès de l'imitation litterale, l'artiste arrive a produire, non pas le plaisir, mais la répugnance, souvent le dêgôut, et quelque fois l'horreur. «Il en est de même dans la litterature. «La meilleure moitié de la poesie dramatique, tout le théatre classique grec et français, la plus grande partie des drames espagnols et anglais, loin de copier exactemente la conversation ordinaire, altèrent la parole humaine de propos deliberé. Chacun de ces poètes dramatiques fait parler ses personnages en vers, impose a leurs discours le rythme et souvent la rime. Cette falsification est elle nuisible a l'oeuvre? «En aucune façon. L'experience en a été faite de la maniere la plus frappante dans une des grandes oeuvres de ce temps, l'_Iphigénie_ de Goethe, ecrite d'abord en prose et ensuit en vers. Elle est belle en prose, mais, en vers, quelle diference! Ici, visiblement, c'est l'alteration du langage ordinaire, c'est l'introduction du rythme et du mètre qui communique à l'oeuvre son accent incomparable, cette sublimité sereine, ce large chant tragique et soutenu, au son duquel l'esprit s'élève au-dessus des vulgarités de la vie ordinaire et voi reparaitre devant ses yeux les herós des anciens jours, la race oubliée des âmes primitives, et, parmi elles, la vierge auguste, interprète des dieux, gardienne des lois, bienfaitrice des hommes, en qui toutes les bontés et toutes les noblesses de la nature humaine se concentrent pour glorifier notre espèce et pour relever notre coeur.» H. Taine--op. cit., vol. I, pag. 28 et 29. E a critica indigena censura ao obscuro autor da modesta _Talitha_ a ousadia de ter observado o preceito que Taine, o grande mestre da França e do mundo, ordena que se faça, exactamente o que fez Goethe para dar maior valor e mais gloriosa belleza á sua _Iphigenia_; exactamente o que fez Rostand para poder impôr á civilisação parisiense, na compleição nevrotica de Sarah Bernhardt, a inferioridade da mulher da Biblia, a hetaïra da Samaria condemnada ao supplicio da lapidação pelos heliastas da Judéa. * * * * * Diante da bondade e em face das virtudes caracteristicas dos personagens que se movimentam nos tres actos da _Talitha_, a critica sentiu arrepios de indignação e abespinhou-se: á intelligencia dos censores é inconcebivel a coincidencia de um encontro simultaneo de cinco almas igualmente boas, simples, generosas, quasi santas; a sociedade repelle essa pureza, os factos demonstram o contrario: o autor da _Talitha_ não observou, phantasiou; o seu drama é um trabalho de gabinete, no ambiente do mundo real essa hypothese não existe. A critica pontificou _ex-cathedra_, infallivel como o successor de S. Pedro, Vigario de Christo na terra. Taine escreveu: «Après avoir examine devant vous la nature de l'oeuvre d'art, il reste à etudier la loi de sa production. Cette loi peut, au premier regard, s'exprimer ainsi: _L'oeuvre d'art est determinée par un ensemble qui est l'état général de l'esprit et des oeuvres environnentes.»_ H. Taine.--op. cit., vol. I, pag. 55. É a influencia do meio na producção artistica: consequentemente, para apreciar a obra d'arte, quando é sincera, a critica necessita de conhecer o meio em que ella foi produzida, o estado geral dos espiritos e dos costumes em cujo seio o pintor, o esculptor ou o escriptor, pintou o quadro, esculpiu a estatua, ou escreveu o poema. E dos criticos indigenas que se lançaram á _Talitha_, como San Thiago aos moiros, apenas um viveu temporariamente em Portugal, mas nunca se perdeu em terras trasmontanas, gastou o tempo nas ruas das cidades populosas: a aldeia lusitana, se a viu não a estudou, se a estudou ou não a comprehendeu ou... tresleu. De sorte que a critica, severa e exigente, desconhece por completo o meio que influiu na producção da _Talitha_, não tem noção, sequer, do estado geral do espirito e dos costumes em cuja atmosphera o obscuro autor do drama foi buscar os seus personagens: a critica, portanto, é ignorante e, como todo os ignorantes, é pretenciosa, balofa e petulantissima. Ha doze annos ficou terminado o terceiro acto d'esse modestissimo evangelho; ha doze annos appareceu pela primeira vez, no Brazil, a sublime pastoral--_Os Velhos_--de D. João da Camara, cuja acção se passa em uma aldeia do Alemtejo. Quando a critica indigena, do Rio Grande do Sul, assistiu á representação dessa obra prima, extasiou-se e não viu que na formosa comedia do mallogrado escriptor portuguez se movimentam, não cinco, mas nove personagens, nove almas igualmente puras, virtuosas, que em toda a acção da bellissima pastoral ha um ambiente de consoladora bondade. Applaudiu incondicionalmente, sem conhecer o meio em que D. João da Camara estudou os seus personagens, nem sentiu necessidade de saber qual era o estado geral dos espiritos e dos costumes que o brilhante escriptor portuguez reproduziu no palco, para verificar se aquelles personagens, aquella acção, aquelle ambiente correspondiam á realidade objectiva da vida aldean no Alemtejo, ou se o dramaturgo phantasiara; se seria possivel encontrar no fim do seculo XIX, em plena civilisação occidental europea, reunidas na mesma terra, nove almas puras, virtuosas, preoccupadas apenas com a pratica do Bem, sem um pensamento máo, sem uma palavra rude, sem uma acção menos digna. Ha nos dois primeiros actos da _Talitha_ uma profunda tristeza, a amargura soluça em todas as gargantas e no terceiro acto ha uma explosão de alegria: esse contraste parece exquisito, inverosimil, sem exemplo na realidade da existencia; todo o drama tem um excessivo perfume religioso que vae ao exaggero, diz a critica. A critica ignora o que sejam na aldeia portugueza o sentimento religioso, o culto catholico, a tradição christan, porque nunca viveu na intimidade daquelles lares; o que lobrigou, através da obra suspeita e viciada de escriptores trabalhados pelo meio social corrompido dos grandes centros, envenenou-lhe a alma já preparada para receber a semente do mal e a critica, enfunada de leitura superficial, para maldizer, deixou-se ficar na commodidade das biliothecas e dos gabinetes, acceitou as indicações da alma perversa de algum mentor sem sinceridade, explorador da inexperiencia de creanças talentosas e esqueceu a lição de Taine: «Pour plus de clarté, nous prendrons un cas très simple, simplifié exprés, celui d'un état d'esprit dans lequel la tristesse est predominante. .................................................................. «Il faut d'abord remarquer que les malheurs qui attristent le public attristent aussi l'artiste. «Comme il est une tête dans le troupeau, il subit les chances du troupeau. .................................................................. «Sous cette pluie continue de misères personelles, il deviendra moins joyeux, s'il est joyeux, et plus triste s'il est triste. Voilá--un premier effet du milieu. .................................................................. «Car, ce qui le fait artiste, c'est l'habitude de degager dans les objets le caractère essentiel et les traits saillants: les autres hommes ne volent que des portions, il saisit l'ensemble et l'esprit. Et comme ici le caractère saillant est la tristesse, c'est la tristesse qu'il aperçoil dans les choses.» H. Taine--Op. cit., pag. 68 e seguintes. Pertencem ao Sr. Adherbal de Carvalho as seguintes palavras: «O que deu nascimento, entre elles, á noção de fatalidade é uma concepção que se refere, não ao futuro, mas unicamente ao passado; o que é, é, e nenhum poder no mundo poderia fazer que um facto concluido não existisse.» _A poesia e a arte no ponto de vista philosophico._--Cap. II, pag. 50. O modesto autor da _Talitha_ não podia fugir á acção do meio em que se encontrou com os seus personagens, como doutrina Taine, nem se podia oppôr á verdade: _o que é, é, e um facto concluido, poder algum o annulla_. Se o autor transformasse á medida do seu desejo, pensando em ser agradavel á critica, mentiria á sua consciencia, deturparia as leis da arte: os zoilos pódem maldizer, á vontade, o autor fica tranquillo e contente com a fiel observancia das lições de Taine e do escriptor brazileiro, inspirado na doutrina de Guyau. O facto é verdadeiro, era sufficiente que fôsse verosimil: o autor da _Talitha_ dramatisou-o, traduziu nos seus versos modestos as desventuras e a redempção dos seus personagens pelo amor, «l'amor che muove il sole e l'altre stelle.» O seu drama obscuro impressionou e commoveu, tanto basta: a agitação da critica apenas conseguiu encrespar a vaidosa pleiade de coripheus do elogio mutuo e a paixão, a animosidade e malquerença politicas. Zola pontificou: «Il n'est poin't de jeune homme arrivant de sa province qui ne rève de distribuer des coups de férule. «Ces pauvres jeunes gens n'ont souvent pas deux idées nettes dans la tête. L'experience leur manque. Ils tapent en aveugles. De lá les jugements extraordinaires qui font resembler notre critique a une veritables Babel, ou on parlerait toutes les langues, sauf la langue de verité et de justice qu'il faudrait y parler. «Je ne nommerai personne parmi ces jeunes gens. «Le vent qui les apporte, les emporte.» _Documents litteraires; la critique contemporaine._--pags. 346, 347. * * * * * O assumpto da _Talitha_ é portuguez, portuguezes são os seus personagens, portuguez o meio em que a acção se desenvolve, portugueza foi a atmosphera em que o autor viveu a sua adolescencia e a sua mocidade: o drama não podia deixar de reflectir «l'état général de l'esprit et des moeurs environnantes.» De profundas amarguras, de lacerantes provações para o povo portuguez foi a época dolorosa em que o modesto autor da _Talitha_ aprehendeu em flagrante o desenrolar da acção dramatica do seu poema lyrico: e essa éra prolongou-se em uma crise tremenda que acaba de chegar ao seu auge, a sua maxima intensidade. Portugal acabava de receber o _ultimatum inglez_ na questão pungentissima das possessões africanas, a natureza fôra de uma dureza extrema: ás innundações dos invernos succedeu a crise agricola que esmagou a producção vinicola pela invasão phyloxerica, as agitações politicas ganhavam terreno e a ideia republicana fazia proselytos ameaçando as instituições monarchico-religiosas de sete seculos e, em meio dessas provações a Providencia, esquecida da immensa piedade d'aquelle povo sublime, ininterruptamente demonstrada em uma historia em que não soffre solução de continuidade o culto da divindade catholica, fulmina-lhe os homens notaveis e successivamente desapparecem no tumulo: Fontes Pereira de Mello, Anselmo Braamcamp, Pinheiro Chagas, Guilherme de Azevedo, Lopo Vaz, Antonio Rodrigues Sampaio, Luciano Cordeiro, Antonio Ennes, Marianno de Carvalho, Oliveira Martins, Carlos Lobo d'Avila, Eça de Queiroz, Alexandre da Conceição, Raphael Bordallo Pinheiro, Gervasio Lobato, Souza Martins, Camillo Castello Branco e Anthero de Quental imitam o exemplo de Chatterton e atravessam a luminosa região dos seus cerebros geniaes com a inferioridade crudellissima de uma bala. Da nova geração, Antonio Fogaça, Luiz Ozorio, Antonio Nobre, Moniz Barreto seguiram a estrada da morte. A crise economica era pavorosa, a emigração clandestina assustava os espiritos mais fleugmaticos, á questão ingleza, seguiu-se a revolta de 31 de Janeiro e a situação geral era tão delicada e complexa que nem o genio de José Dias Ferreira, nem as combinações politicas de homens como Hintze Ribeiro e Fuschini conseguiram solver. Ao desequilibrio financeiro succederam a questão monetaria e o augmento da divida publica, fortemente aggravadas as condições do credito publico pela questão internacional do emprestimo de D. Miguel. E Teixeira Bastos escreve: «Diante do desconsolador espectaculo que apresenta a sociedade portugueza estrebuchando no esphacêlo, ha quem tenha perdido de todo a esperança de regeneração; ha quem se persuada que estão chegados os ultimos dias de Portugal. Com effeito, a agudeza da crise, que talvez ainda esteja longo de seu termo, justifica em grande parte este excesso de pessimismo. «Portugal, como todas as nações contemporaneas, em maior ou menor gráo, lucta com uma crise terrivel, que se revela sob aspectos variadissimos. É uma crise politica, financeira, economica, mas sobre tudo social e moral.» Teixeira Bastos--A Crise, pag. 435. Esse estado geral do espirito e dos costumes portuguezes influiu poderosamente na producção artistica e litteraria d'aquelle tempo e na que se seguia. Na esculptura destaca-se a estatua de _Hermengarda_ em que o talento de Moreira Rato evoca para o marmore a alma dilacerada da heroina de Herculano, o pessimista glorioso, o desilludido sublime de Val de Lobos. Na architectura não surge cousa alguma que atteste a sublimidade do caracter nacional e o que havia de notavel, legado e herança do passado, soffre a influencia do desanimo, da indefferença, da tristeza geral que domina. É de Ramalho Ortigão o que se vae lêr: «Levaria muito tempo e seria excessivamente triste ennumerar todos os attentados de que teem sido e continuam a ser objecto, perante a mais desastrosa indifferença dos poderes constituidos, os monumentos architectonicos da nação... «Dos desacatos de lesa-magestade nacional, a que tenho a dôr e a vergonha de me referir, uns teem caracter anonymo, outros affectam directamente a cumplicidade official. Os primeiros são uma consequencia do desdem: os segundos são um resultado de incapacidade.» Ramalho Ortigão.--_O culto da Arte em Portugal_, pags., 19 e seguintes. Quanto á vida e a producção litteraria, o autor da _Talitha_ invoca o depoimento do grande critico portuguez; é elle quem affirma: «Dissolvido o culto artistico pela negligencia ou pela inepcia de abastardadas classes dirigentes, os fieis debandam por não haver egreja que os reuna, e é já evidente esta enorme catastrophe: que na arte de portugal faltam corações portuguezes. «Fere-nos já esse phenomeno consternador em todos os aspectos da vida intellectual. .................................................................. «A juventude litteraria, dotada de uma consideravel força de applicação e de talento, traz-nos uma poetica exotica, de climas nevoentos, anti-meridional, e vem fallando uma lingua secreta, cabalistica, interessantemente engenhosa, incomprehensivel para o povo e para os que não estiverem iniciados na morphologia espiritica das novas seitas. «Em toda a historiographia contemporanea se nota uma glacial frieza de critica, uma anemica pallidez de expressão, um geral entono de apagada tristeza, em que bem se demonstra que não circula o sangue vermelho da raça, nem se retrata o genio do nosso povo, meigo, docil, de apparencia branda, mas ainda hoje eminentemente sociavel, amando a grande alegria estridente das feiras, das tardes de touros, das romarias dos seus santos populares, conservando nas intimas camadas sociaes um residuo trovadoresco, de palladino e de menestrel, susceptivel ainda das paixões mais profundas, todo de imposição e repentismo, capaz das coisas mais imprevistamente grandes, poetico, aventureiro e destemido. «Na poesia, assim como na pintura e na musica, não ha uma escola portugueza, porque, na falta de laço social que congregue os nossos artistas, sem elementos coordenados de estudo, sem modelos patentes, sem lição commum, não ha entre elles mutuamente, nem entre elles e o povo de que derivam, communhão alguma de ideal ou de sentimentos.» Ram. Ortigão.--op. cit., pag. 110 e seguintes. * * * * * Embora modesta a _Talitha_, embora sem merecimento o seu autor obscuro, como poderiam ambos--drama e escriptor--fugir a esse estado geral do espirito e dos costumes, de que falla Taine? Necessariamente deveriam obedecer á lei, e por isso apparece nos dois primeiros actos do drama essa dolorida tristeza que é o reflexo da situação geral da sociedade e que a desventura daquella familia, pela desventura da pequena Talitha, aggrava e apura com intensidade. «D'autre part, l'artiste a été élevé parmi des contemporains mélancoliques; partant, les idées qu'il a reçu et celles qu'il reçoit encore tous les jours sont mélancholiques. «La religion regnante, qui s'est accommodée au lugubre train des choses, lui dit que la terre est un exil, le monde un cachot, la vie un mal, et que toute notre affaire est de meriter d'en sortir» H. Taine--op. cit., vol. I. pag. 65. Aliás é profundamente melancolica toda a obra litteraria portugueza desse tempo, muito principalmente na poesia. É um soluço de magua--o _Espirito Gentil_--de Luiz Ozorio; formam um rosario de amarguras--as _Orações do Amor_ de Antonio Fogaça; é um gemido crudellissimo o _Só_ de Antonio Nobre; é como um echo de Necropole--_Nada_--de Julio Dantas. No theatro, Marcellino de Mesquita lança a _Noite do Calvario_, reproducção profundamente dolorosa e triste de um acontecimento real da vida de um lar que o dramaturgo generalisa ás condições da vida social, aliás já cruelmente desvendada nos _Castros_. Para fugir á influencia da actualidade Julio Dantas recorre ao passado, á chronica, a historia e não consegue eximir-se á impressão da desventura: _O que morreu de amor_ é uma resurreição esmagadora de magua; a _Severa_ é um manto de crepe encobrindo um cenotaphio; _O serão nas larangeiras_ é uma ironia finissima, um esfusiar de espirito que occulta, mascára, e pinta um immenso abatimento moral. Gervasio Lobato passa nesse meio espalhando gargalhadas, ridiculo e _troça_ sobre a sociedade carcomida pela crise e acabrunha de pilherias a burguezia e a classe media no _Commissario de Policia_, no _Solar dos Barrigas_ e na _Lisboa em Camisa_, passando do palco ao romance. A _Velhice do Padre Eterno_ é uma _charge_ monumental sobre o ultramontanismo da sociedade religiosa: a _Patria_ é uma objurgatoria tremenda, um raio de colera olympica; os _Simples_, constituem um colar de lagrimas de uma jeremiada genial e as _Orações ao Pão e á Luz_ são as aspirações tantalicas do genio ao seio da excelsa divinisação da arte, como refugio extremo de uma alma que foge ás revoltas da terra para não cahir na lama das decomposições sociaes. A _Rosa engeitada_, de D. João da Camara, é a dôr vivendo e esmagando as almas; os _Velhos_, apezar do seu encanto bucolico e purissimo, é um crepusculo de sombras dôces. A _Cruz da Esmola_, de Eduardo Schwalbach, é a photographia nitida da tortura e do desespero... E tudo isso é a reproducção conscienciosa de um estado de pathologia social... a menos que a critica não attribua tudo isso á phantasia dos artistas pelo gozo requintado de esmagar a propria patria ao peso de calumnias... Mas neste caso como comprehender o collossal successo das obras extraordinarias de Ramalho Ortigão na critica, de Eça do Queiroz ao romance e de Raphael Bordallo na caricatura, profligando esse estado geral de espirito e de costumes como Alphonse Karr, Gavarni e Flaubert na alta cultura genial da França, em plena floração artistica e litteraria? O terceiro acto da _Talitha_ não destôa dos anteriores, a unidade não se quebra, transmitte-se, completa-se: a mesma suave melancolia dos primeiros conserva-se na narrativa da morte do sargento que _Ruy_ communica a _Joaquina_ e no _raconto_ que das suas desventuras, faz a _Marqueza de Rilma_ ao velho cura João Fulgencio. A mesma serenidade christan dos primeiros actos paira no terceiro através da descripção em que _Talitha_, ao som dos sinos distantes da missa do gallo, conta a _Ruy_ e a _Joaquina_ a sua allucinação passageira e termina com a _Salve-Rainha_ rezada ao soluçar do orgam e ao repique da alvorada annunciando a missa d'alva. A alegria que vibra n'este acto é mais intensa, realmente, mas n'elle se encontram trez factos culminantes: a confirmação do noivado de Talitha pelo perdão da Virgem na visão da missa; a cura radical e milagrosa da sua cegueira e o apparecimento da mãe tanto tempo perdida. Mas a alegria não surge alli de surpresa, repentinamente: no primeiro acto ella vibra na scena final de amor em que as duas almas que se comprehendem recebem a benção da velha Joaquina surprehendendo-as na ventura do seu idyllio, e no segundo acto a primeira scena succede naturalmente a essa e os dois velhos ligam, plas recordações, a passada alegria de outros tempos, a que se vae em breve descerrar quando _Ruy_ levantar definitivamente a venda aos olhos da redimida. Ahi a alegria vae á intensidade das lagrimas, é a tristeza que nasce das extremas emoções da felicidade que não é triste e, se momentaneamente desapparece quando _Talitha_ se deixa vencer pela fé religiosa e rompe o juramento de amor para cumprir o juramento do voto de clausura, de novo se reata e estala em um sorriso de supremo arrebatamento, quando a piedosa e santa mentira do _Cura_, depois da confissão, lhe relata o sonho da madrugada anterior em que elle viu rolar no espaço no fulgor de uma estrella o beijo do perdão. * * * * * A virtude daquellas almas!... E porque razão de alta monta o autor da _Talitha_ devia quebrar a verdade do facto observado, a unidade d'aquelle conjuncto que elle não phantasiou e que, felizmente, encontrou num dia da sua mocidade, em meio da crise social moral que caracterizava aquella época dolorosa de provações populares? Introduzir um personagem que não tivesse as mesmas qualidades de caracter seria deturpar os factos para obedecer ao _métier_, a carpintaria de theatro vencendo a moral na arte: um cumulo de estupidez. Além de tudo, inutil: a emoção dramatica, o effeito theatral são completos e seguros com a simplicidade daquellas cinco figuras, porque o Bem, a Virtude e a Harmonia encantam e commovem sempre, em todas as zonas e latitudes da terra. Pertencem ao Sr. Adherbal de Carvalho as seguintes palavras: «O artista que emprega suas faculdades ao serviço de uma idéa generosa não é menos artista por isso, se bem que não seja por isso que elle é artista. O amor e a intelligencia do bem suppõem uma concepção superior das condições da vida individual e social que é preciso desejar a todos os artistas como a todos os homens...» .................................................................. «Entretanto ha uma observação a fazer neste ponto, é que parece mais facil pintar o vicio do que a virtude. Balsac, que se sahiu admiravelmente na pintura dos monstros, encalhava quasl sempre quando era atacado pelos homens pudicos. «Tão verdadeiros e vivos são os seus libertinos da alta o baixa sociedade, como os outros, na maior parte do tempo, são ternos e mal acanhados.» Op. cit. pag. 32. Ainda mesmo quando o autor da _Talitha_ houvesse faltado á verdade dos factos que observou, teria tentado o problema, na opinião do estheta brazileiro, mais difficil de resolver: o estudo e a interpretação da Virtude o do Bem, na psychologia dos cinco personagens que jogam em scena a acção do seu obscuro poema lyrico. A critica indigena, ignorante ou perversa, petulante ou futil, feriu-se com as proprias armas. * * * * * Que o autor da _Talitha_, sem prestigio para fazel-o, permittiu-se a liberdade de escrever um drama em verso, fórma litteraria que está totalmente banida do theatro moderno, supplantada pela prosa. É outra censura da critica indigena; espera-a a mesma sorte das anteriores: a critica é vesga e não sabe o que diz. Do theatro moderno ainda não foi banida a fórma alta e pura do verso: semelhante vandalismo seria uma violencia feita á arte, á belleza, ao bom gosto, á suprema lei do rythmo, para cujo excelso dominio tendem naturalmente todas as manifestações da vida e a linguagem da poesia do metro e da rima, a altissima elegancia. Moderno é Victor Hugo, gigante de oiro do theatro francez e escreveu em verso: _Esmeralda_, _Burgraves_, _Ruy Blas_, _Cromwell_, _Torquemada_, _Grandmère_, _L'Épée_, _Mangerontils?_, _Sur la lisière d'un bois_, _Les gueux_, _Étre aimé_, _La Forêt-mouillée_. Modernos são Paul Delair e Lomon e escreveram em verso os seus dramas _Garin_, _Jean Dacier_ e _Marquis de Kenilis_ que Zola critica asperamente na sua obra--_Naturalisme au Théâtre_. Moderno é Banville e produziu _Hymnis_, _Riquet à la houpe_ e _Socrates et sa femme_, tres comedias em verso. Moderno é Alphonse Daudet e entre as suas obras figura _Char_, comedia em verso, em um acto. Moderno é Alfred Musset e legou ao theatro da sua patria: _Les marrons du feu_, comedia; _A quoi rêvent les jeunes filles_, comedia; e _La coupe et les lèvres_, drama, todos em verso. Moderno é Ed. Pailleron e no seu theatro figuram _Narcotique_, comedia em um acto, e _Hélène_, drama em quatro actos, ambos em verso. Moderno é Ludovic Halévy, collaborador de Meilhac, e produziu, em verso, a _Phryné_ e _Nina, la Tueuse_. Modernissimo é Emile Augier, o grande mestre da litteratura dramatica e da carpintaria theatral e escreveu em verso a maior parte das suas peças. São em verso: _Cigüe_, _Paul Forestier_, _Homme de bien_, _Aventurière_, _Gabrielle_, _Joueur de flúte_, _Philiberte_ e _Jeunesse_. Moderno é Catulle Mendés e em 1872 dotou o theatro com a sua comedia em verso, _La Part du Roi_, em um acto; em 1888 fez representar a sua formosa phantasia, tambem em verso--_Isoline_, em tres actos; e em 1889 produziu, ainda em verso, o drama em 6 actos--_Fiammete_; em 1906, punha em scena no Odéon, o seu drama _Glatigny_, tambem em verso. Modernissimo é Jean Richepin e, em 1905, fazia representar na Comédie Française o seu _D. Quichote_, em verso. Modernissimo é tambem André Arnymede, que em 1906 assombrava a critica parisiense com a representação triumphal de _La Courtisane_, em cinco actos e em verso. Modernissimo é Francis de Croisset e escreveu em verso os tres actos sensacionaes do Paon que subiu á scena na Comédie Française. Modernissimo é Emile Veyrin que viu os seus formosos versos dos quatro actos de _Embarquement Pour Cythère_, no palco do Theatro des Bouffes Parisienne. Modernissimo é Jacques Richepin e, em Abril de 1907, viu na ribalta da _Porte St. Martin_, os soberbos alexandrinos da _Majorlaine_, em cinco actos, depois de haver debutado com os versos admiraveis da _Reine de Tyr_, no theatro Sarah Bernhardt. Moderno é François Coppée, e em 1878, em collaboração com Armand d'Artois, produziu o drama em cinco actos _Guerre des Cent ans_; em 1879, _Le Trésor_, comedia em um acto; em 1881, _Madame Maintenon_, drama em cinco actos e um prologo: em 1883, _Severo Torelli_, drama em cinco actos; em 1885, _Les Jacobites_, drama em cinco actos; em 1880, _Le Passant_, em um acto; e em 1888, _La Grève des Forgerons_, em um acto, e em 1905, _Scarron_, em cinco actos: e todos esses trabalhos são em verso. Rostand escreveu todos os seus dramas em verso: _Princesse Lointaine_, _Romanesques_, _Cyranno de Bergerac_, _Samaritaine_, _Ayglon_ e ultimamente os tres primeiros actos do _Chant-clair_... Miguel Zamacoix acaba de escrever e fazer representar em Paris pelo genio de Sarah Bernhardt, _Les Boufons_, em verso alexandrino, obra prima que a critica europea colloca, senão acima, ao lado do _Cyrano_. E ainda recentemente, em Outubro de 1906, a imprensa franceza se occupou de uma outra obra prima do talento de Catulle Mendés, em soberbos alexandrinos, de um mysticisco celeste, que se intitula _Sainte Thérèse_. Na Inglaterra, Robert Browning escreveu a tragedia historica _Strafford_ e os dramas _Mancha no Brazão_ e _Regresso dos Deuses_, todos em verso. Na Italia, Gabriel d'Annunzio escreveu em verso os tres actos da _Filha de Jorio_, e fez representar por Eleonora Duse o seu grandioso monumento _Francesca da Rimini_, em verso, como em verso havia escripto pouco antes o seu extraordinario _Nerone_, o genio brilhante de Boito, e Cavalloti o seu formosissimo idylio _Cantico dei cantici_, em 1882. Na Hespanha, deixando de parte o _D. Juan Tenorio_, de Zorrilla: o _Trovador_, de Gutierres; a _Roda de la Fortuna_, de Thomaz Rubi, todos de 1850: Hartzemburch produziu mais recentemente _Los Amantes de Terruel_; _Alfonso, el Casto_ e _La Madre de Pelagio_, e Echegaray o seu conhecidissimo _Gran Galeoto_. E todos esses dramas são escriptos em verso. Em Portugal, João de Deus, o lyrico sublime, escreveu _Horacio e Lidia_; Eugenio de Castro, o revolucionario de genio, o extraordinario autor da _Belkiss_ e de _Constança_, acaba de publicar o _Annel de Polycrates_; Henrique Lopes de Mendonça, o _Duque de Vizeu_ e a _Noiva_: Fernando Caldeira, a _Mantilha de Renda_ e a _Madrugada_; Marcellino de Mesquita, a _Leonor Telles_; Julio Dantas, a _Ceia dos Cardeaes_; Francisco Palha, a _Fabia_; Luiz de Magalhães, o _D. Quixote_, os dois ultimos para o Theatro Academico, de Coimbra, todos em verso; sómente para citar os escriptores da actualidade, deixando de parte _O Catão_ e a _Merope_ de Almeida Garrett e o _Camões_, de Antonio Feliciano de Castilho. Finalmente: em verso tambem escreveram no Brazil: Gonçalves de Magalhães, o _Olgiato_; Arthur Azevedo, o _Badejo_; Zeferino Brasil, o _Outro_ e Coelho Netto, _As estações_. A critica, portanto, ou é ignorante ou mentiu propositalmente. * * * * * Mas a critica adiantou-se ainda: abriu dogmaticamente uma excepção: o verso em theatro só se admitte para as tragedias historicas. Outra cincada. Em Portugal, Fernando Caldeira deixou no theatro duas joias preciosas: a _Mantilha de Renda_ e a _Madrugada_ que nem são tragedias, nem tem filiação alguma historica. Na Italia, Cavallotti legou á lilteratura dramatica um primor de lyrismo: o _Cantico dei cantici_ que não é tragico, nem historico. Em França, Catulle Mendès escreveu, em verso, os tres actos de _Isoline_ e os seis do _Fiammette_ que nada tem a vêr com a historia, nem com a tragedia. François Coppée produziu _Le Trésor_, _Le Passant_, _La Grève des Forgerons_, todos em um acto e que não tem a minima relação com a tragedia, nem o menor vestigio de historia. No Brasil, o _Badejo_, de Arthur Azevedo, é uma comedia, o _Outro_, de Zeferino Brasil, um drama; _As estações_, de Coelho Netto, uma phantasia, todos em verso, sem relação alguma com a historia ou com a tragedia. A critica indigena «appartient à ce monde de paresseux qui font chaque soir une grande oeuvre, en buvant une chope; seulement, le lendemain, ils ont sommeil et ne trouvent pas le temps d'ècrire la grande oeuvre. «La vie se passe, l'âge arrive, ils restent des debutants.» Zola, _La critique Contemporaine_, pag. 351. Entretanto, René Doumic, um mestre da critica, escreve na _Revue des Deux Mondes_: «Je voudrais seulement que les poètes qui se sentent une vocation d'auteurs dramatiques ne s'imaginent point que le succès ne peut être obtenu par eux, à la scène, qu'en nous narrant des histoires romantiques ou des féeries.» E Gaston Sorbets conclúe: «M. René Doumic á assurément raison: la poesie dramatique est faite anssi pour exprimer les mouvements les plus profonds de notre coeur ou les aspirations les plus hautes de notre âme. Il suffit de voiler de poesie la Verité nue pour faire de cette divinité une muse nouvelle.» Deixemos vociferar os maldizentes: nós ficamos com os criticos que sabem sentir e... lêr. * * * * * Os zoilos que se lançaram á modestissima _Talitha_, censuraram ao seu autor o atrevimento inaudito de não observar a regra do Theatro francez de Corneille e Racine, que manda emparelhar systematicamente os graves e agudos na symetria inalteravel prescripta por aquellas duas autoridades. Mas a critica, absolutamente não tem competencia para impôr aos escriptores brazileiros, por muito modestos e insignificantes que sejam, as leis e as regras da arte poetica franceza. Se a obra d'arte é portugueza ou brazileira, o auctor não se submette ás leis da poetica franceza: observa os modelos nacionaes e portuguezes. E, sem receio de ser contestado por quem quer que seja, o autor da _Talitha_ affirma: não ha poeta algum na lingua de Camões, quer no theatro, quer fóra delle, que obedeça ás exigencias das prescripções francezas, que, aliás, o proprio Corneille, invocado pela critica, não seguiu nem adoptou na _Imitation de Christ_: «Le desir de savoir est naturel aux hommes: il nait dans leur berceau sans mourir qu'avec eux mais, ô Dieu, dont la main nous fait ce que nous sommes, que peut-il sans ta crainte avoir de fructueux? Liv. I, Chap. II. «Vanité d'entasser richesses sur richesses, Vanité de languir dans la soif des honneurs, Vanité de choisir pour souverains bonheurs de la chair et des sens les damnables caresses. Liv. I, Chap. I. «Vraiment grand est celui qui dans soi se ravale qui rentre en son néant pour s'y connaitre bien, qui de tous les honneurs que l'univers étale craint la pompe fatale, et ne l'estime en rien. Liv. I, Chap. III. Victor Hugo, o mestre supremo, tambem não obedeceu invariavelmente a esta regra que a critica pretende impôr dogmaticamente, como immutavel. Vejamos na _Esmeralda_, acto I: «Nous irons au clair de lune danser avec les esprits... Vive Clopin, roi de Thune! Vivent les gueux de Paris! «Au milieu de la ronde infame qu'importe le soupir d'une ame? Je souffre! oh! jamais plus de flamme au sein d'un volcan ne gronda. Em _La Forêt mouillée_, Scene II: «Les moutons promis aux fourchettes Passent là-bas; j'entends leurs voix Sonnez, clochettes, au fond des bois. Le beau Narcisse est en manchettes; Silène a mis toutes ses croix. Rostand, o impeccavel, na _Samaritaine_, tambem não se subordinou absolutamente a essa regra, como se vê logo na primeira scena: «Poussé par la brise des nuits, et vagabond jusqu'à l'aurore, je viens pour des fins que j'ignore, comme un fantôme que je suis. D'une sandale sonore je viens, je glisse et je m'enfuis... Mais, ô Jehovah que j'adore! quelle est cette grande ombre encore qui se tient debout près du puits? e assim prosegue o genial poeta em toda essa scena que se compõe de cento e nove versos. E para que não diga a critica perversa que n'esses exemplos não ha alexandrinos, aqui ficam estes alexandrinos, ainda do I acto, scena V, em que Photina declama: «Mon bien aimé--je t'ai cherché--depuis l'aurore, Sans te trouver,--et je te trouve,--et c'est le soir; Mais quel bonheur!--il ne fait pas--tout a fait-noir: mes yeux encore pourrent te voir. e assim por toda a _fala_ de Photina, gue se compõe de mais de vinte nove versos. Na lingua portugueza, porém, não ha um poeta sequer que obedeça á regra da metrica franceza, nem no drama, nem no poema. Junqueiro, na _Morte de D. João_, na _Musa em ferias_, na _Velhice do Padre Eterno_, na _Patria_, ou nos _Simples_ usa indistinctamente as rimas agudas, graves, e esdruxulas, emparelhadas, ou alternadas. «O pensamento humano mergulhou como um Deus nas grutas do oceano, embebeu-se no azul, andou pelo infinito, interrogou a historia, os ventos, o granito, todas as creações, todas as creaturas, vermes, religiões, abysmos, sepulturas, e disse-nos: Jesus, Socrates, Platão fallaram a verdade. Existe uma rasão, uma ideia, uma lei, mysteriosa, etherea, que rege o movimento e as formas da materia... _Morte de D. João._--Introducção, pag. 31. * * * * * «Hediondo! assassinar um homem que assassina! Collocar o direito ao pé da guilhotina. Resolver a questão do crime--um cemiterio! Sanccionar Papavoine e decretar Tiberio! Um carrasco de guarda á nossa segurança! O pelotão--juiz e o tribunal--vingança! E é uma coisa que indigna, um facto que comove, que quasi ao terminar o seculo dezenove pensem como Marat, pensem como Cain as leis no velho mundo e o tigre em Bombaim! _Musa em férias_; Idilios e Satiras, pag. 137. Julio Dantas, o brilhante poeta da _Ceia dos Cardeaes_ tambem não adoptou a regra que a critica indigena pretende nacionalizar. Xerez. «Roma! Roma que viu, pela primeira vez, Beneditto XIV, um papa,--a receber Conselhos de Inglaterra e cartas de Voltaire! ............................................ «As cartas de Voltaire, honram! ... É natural fala como francez. ... Fala como cardeal! ............................................ «Mas perdão... Não será politica de mais para uma ceia alegre? Emfim trez cardeaes não salvam Roma... Como se vê, Julio Dantas, empregou successivamente dez agudos. E esse arrojo do eminente poeta portuguez não impediu que a _Ceia dos Cardeaes_ tivesse oito traducções em allemão, francez, italiano, hespanhol e no dialeto catalão, nem evitou que fôsse representada mais de quatrocentas vezes. Entre os poetas brasileiros bastará citar dois nomes de primeira grandeza: Alberto de Oliveira e Goulart de Andrada; nenhum se submette á exigencia franceza da critica indigena. A _Cruz da montanha_ do primeiro é um poemeto de 126 alexandrinos. Em toda essa obra prima não ha dois versos agudos e apenas se encontra uma parelha de esdruxulos. Observa-se o mesmo phenomeno em varias outras composições como--_A Enchente_, com 76 alexandrinos; a _Lagarta_, com 124 versos de vario metro, onde apenas ha 14 rimas agudas: _Atmo_, com 88 alexandrinos, entre os quaes apenas dois esdruxulos e nem um agudo. * * * * * _Ascenção perigosa_, de Goulart, é uma poesia composta de 44 alexandrinos, dos quaes apenas quatro são esdruxulos e nem um agudo. _Apocalypse_ é formado de 158 alexandrinos: nem um agudo, sómente dois esdruxulos. * * * * * E a razão é simples, é natural, é formidavel: o idioma francez é abundantissimo de agudos e o portuguez é, relativamente, pauperrimo. Para observar inalteravelmente a regra franceza que a critica pedante e fátua pretende impôr vaidosamente, depressa ficariam exgottadas as rimas agudas e o poeta incidiria na repetição das consoantes, o que constitúe o defeito da pobreza de rimas, acremente censurado pela critica. Além disso, os francezes não conhecem as palavras esdruxulas, ao passo que a lingua vernacula é riquissima d'esses vocabulos e, a ser observada na poesia dramatica portugueza e brazileira a lei da arte de Corneille e Racine, os poetas lusitanos e patricios vêr-se-iam obrigados a escrever alternadamente os seus versos em parelhas systematicas de esdruxulas, graves e agudas, o que seria, além de fatigante e exhaustivo, de um rebuscamento torturado, monotono, somnolento. O obscuro autor da _Talitha_ preferiu deixar expandir-se naturalmente o pensamento proprio, de accordo com a alma dos personagens: o verso e a rima já de si são condições impostas pela exigencia artistica, apurar essa exigencia com o requinte de uma symetria dispensavel, equivaleria a torturar os sentimentos das figuras que se movem na acção dramatica. O facto de ser uma regra de Corneille e de Racine tambem geralmente seguida por outros poetas modernos--o emprego alternado de dois agudos e dois graves, não evita a monotonia, principalmente quando se traduz o pensamento de um personagem ou se reproduz um vulto historico: na vida real ninguem se exprime por essa fórma. Entretanto, admittidos geralmente o verso e a rima, o poeta deve quanto possivel, para evitar a monotonia, variar o rythmo, o metro e o encadeamento da rima: as difficuldades artisticas e technicas não são excluidas por esse criterio, conservam-se; a monotonia desapparece e o pensamento, exprimindo-se com mais liberdade, permitte melhor estudo da psychologia dos personagens, e mais vigor descriptivo. O proprio autor da _Talitha_ verificou praticamente o que acaba de affirmar quando escreveu a _Visão de Colombo_, em um acto, obedecendo systematicamente á regra da poetica franceza e emparelhando os alexandrinos por ordem de rimas agudas, graves e esdruxulas em toda a extensão do poema dramatico, formado de quatro centos e poucos versos, sem repetição de rimas. Ramalho Ortigão ensina: «não são as academias que pautam as proposições e os limites da creação artistica. Tudo o que se pode formular em preceito cessa de ter valor em arte. A obra de arte não é um producto de escola: é a livre expressão individual de uma alma, convertida em realidade objectiva e communicando aos homens uma vibração nova de sentimento. «A superioridade ou a inferioridade de um artista, a sua cathegoria, deduz-se da maior ou menor quantidade de ideias que a sua obra suggere e dos sentimentos cuja percussão ella determina.» Op. cit., pag. 145. Adherbal de Carvalho doutrina: «É no sentido da liberdade que em geral se faz todo o progresso; é neste sentido que tambem se deve fazer todo o progresso do verso. «A liberdade do rythmo era muito insufficiente entre os romanticos. Vimos que a consequencia é a pobreza, a esterilidade do proprio pensamento; porque a forma do verso reage sobre o cerebro do poeta. O remedio seria a auzencia de estorvo sem fim, a suppressão de regras não racionadas: liberdade é fecundidade.» Op. cit., pag. 282. E depois d'essas duas sentenças, atreve-se o autor da _Talitha_ a perguntar á critica indigena como será possivel arvorar em preceito obrigatorio de arte poetica da nossa lingua, a regra de Racine e Corneille, quando a tendencia moderna é para supressão da rima e para a cultura extremada do rythmo no verso branco? A falla de _Cacambo_ e o episodio da morte de _Lindoya_ no _Uruguay_ de Basilio Gama nada perderam em valor artistico pela falta de rima: o _Colombo_ de Araujo Porto Alegre encerra verdadeiras maravilhas em verso branco; Alexandre Herculano, que foi um cinzelador do verso, na _Harpa do Crente_ deixou primorosos lavores em verso solto. Anthero Quental, cujas _Odes modernas_ arrancaram a Michelet uma soberba explosão de espanto «Se em Portugal ainda houver quatro ou cinco homens como o poeta das _Odes modernas_, Portugal continuará a ser um grande paiz vivo.» Anthero legou nessa obra monumental pequenos monumentos em verso branco. E para não fallar na _D. Branca_ de Garrett, todo escripto em versos soltos, bastará citar os livros admiraveis de Correia de Oliveira: _Ara_ e _Raiz_, demonstração brilhante de que a obrigatoriedade da rima tende a desapparecer cedendo á liberdade do pensamento. O velho mestre Antonio Feliciano de Castilho, na sua Arte poetica, escreveu: «Os versos agudos, pelo seu modo secco estalado de acabar, sem elasticidade, sem vibração, se assim o podemos dizer, teem o que quer que seja de ingrato ao ouvido; seriam insoffriveis, se alguem se lembrasse de nol-os dar enfiados aos centos e aos milheiros, como os graves nos apparecem, sem nos cançarem: demais por isso mesmo que os vocabulos agudos são menos frequentes, d'ahi tiram os versos agudos um quid de exhibição e exquisitice que não parece frisar senão com as idéas extravagantes, comicas, brutescas ou satyricas. «Do expendido por boa razão se infere: l.º que em toda e qualquer especie de metro são os versos graves que devem, predominar.» A critica pretenciosa e petulante indicadora de regras de arte rebella-se contra a autoridade incontestavel e consagrada de Antonio Feliciano de Castilho e quer que em versos portuguezes o autor da _Talitha_ adopte a regra franceza, que equipare agudos e graves e os manda empregar em numero igual, symetrica e systematicamente dispostos em parelhas alternadas. O autor da _Talitha_ não adoptou a regra de Castilho mas tem ao seu lado, para apoiarem o seu procedimento, as autoridades dos rebeldes Junqueiro, Feijó, Luiz de Magalhães, Lopes de Mendonça, Julio Dantas, Eugenio de Castro, Antonio Nobre, Gonçalves Crespo, Marcellino de Mesquita, Fernando Caldeira que não a observaram, nem se submetteram á lei de Corneille e Racine, e, o que é tudo, do proprio Antonio Feliciano de Castilho que não adoptou a regra franceza na composição dos alexandrinos emparelhados. Isso em Portugal, porque no Brasil o autor da _Talitha_ encontra apoio para o seu procedimento em Alberto de Oliveira, Olavo Bilac, Goulart de Andrada, Martins Fontes, Guimarães Passos, Luiz Murat, Machado de Assis, Valentim Magalhães, Lucio Mendonça, Oscar Lopes, Pereira da Silva, Emilio Menezes, Frota Pessoa, Flexa Ribeiro, Zeferino Brasil e Coelho Netto que não consideram a technica franceza como adaptavel ao verso portuguez, se bem que discretamente observem a opinião de Castilho, relativamente á proporção das rimas agudas e graves. Ora, a critica indigena, ainda rescendendo aos aromas equivocos da primeira infancia, ha de permittir que o autor da _Talitha_ prefira as autoridades artisticas de dois hemispherios, acima citadas, ao impertinente pedantismo da incompetencia de quem, em materia de autoridade litteraria, não chegou ainda se quer á categoria de trintanario do _Pegaso_, na estrebaria de Augias. * * * * * A critica indigena censura a pobreza de rima da _Talitha_: não tem razão. A _Ceia dos Cardeaes_ é uma obra prima: assim o prégou a critica, assim a considera a opinião. Pois bem; essa joia tem 338 versos; o primeiro acto da _Talitha_ compõe-se de 492. A _Ceia dos Cardeaes_ tem apenas 66 rimas diversas; o primeiro acto da _Talitha_ dispõe de 127 rimas differentes: a proporção naquella é de 5%, nesta é de 25%. Na _Ceia dos Cardeaes_ ha apenas 31 rimas que não foram repetidas; no 1.° acto da Talitha ha 80. Na primeira, a obra prima, essa proporção é de 9%, na _Talitha_, a condemnada, a proporção é de 17%. A critica indigena tem cabellos na lingua e fel no coração. A _Samaritana_ é a obra prima de Rostand, assim a julgou a critica europea, assim a julga o proprio poeta. O primeiro acto d'essa joia magestosa tem 808 versos. Pois bem: entre esses ha 322 repetições, apenas em 17 rimas. Poder-se-ia fazer o confronto dos tres actos: basta esse que ahi fica para demonstrar que a critica nem soube o que disse, nem sabe o que é pobreza ou riqueza de rima. A opulencia de rima póde ser exigida em composições poeticas esparsas, que não tenham grande extensão, mas em um poema dramatico essa exigencia da critica é despotica, é absurda, principalmente quando os personagens que o movimentam são da especie daquelles que figuram no entrecho da _Talitha_. Collocar nos labios de _Joaquina_ versos de rima escolhida, apurada, sem repetições de termos que andam constantemente na conversa commum, substituindo estes por palavras rebuscadas nos diccionarios de rimas, sómente para que a critica se extasie deante de uma riqueza phantastica, equivaleria a falsear a natureza intima do personagem e fazer de uma santa e simples mulher vulgar da aldeia, uma pretenciosa ridicula; a espontaneidade do escriptor desappareceria para dar logar ao rebuscamento, o artista seria supplantado pelo artifice, o poeta pelo rimador, o sentimento pela paciencia. A opulencia da rima importaria necessariamente na elevação da linguagem e a critica deixa de ser logica exigindo por essa fórma o que já condemnára, considerando alcandorada em demasia para personagens de aldeia a linguagem que o autor da _Talitha_ confiou a cada um d'elles. Nos acontecimentos vulgares da vida de aldeia as palavras são simples, corriqueiras; o vocabulario dos aldeãos é pouco extenso e tradicionalmente consagrado: ha phrases peculiares, ha para cada facto da vida, póde-se dizer, um termo que não se substitue, um conceito consagrado pelo uso immemorial; o mesmo sentimento, traduzido por outros termos, em phrase diversa, não é comprehendido. O eminentissimo critico e brilhante espirito de estheta brasileiro o notavel mestre da lingua vernacula, Snr. José Verissimo, doutrina superiormente: «O grande escriptor em todas as linguas é o que escreve e consegue todos os effeitos da sua arte com o vocabulario corrente, não só do povo--que é realmente pobre--mas da litteratura do seu tempo.» Citação de Elysio de Carvalho no livro--_As modernas correntes estheticas_, pag. 27. Em taes condições, se o dialogo, apezar de ser em verso, deve reflectir, quanto possivel, as condições normaes da vida e do personagem, attribuir a este a expressão dos seus affectos, das suas dôres, das suas alegrias, dos seus desejos ou das suas esperanças, por meio de palavras em rima opulenta, será desnaturar o personagem, será mentir á realidade, será phantasiar um typo que a natureza local reproduzida no theatro, não creou na vida real. Comprehende-se essa exigencia na alta tragedia historica ou sacra, ou ainda nas phantasias mythologicas: alli, sim, a linguagem póde e deve ser alcandorada sem inverosimilhança, os personagens vem distinguidos pelo prestigio da historia, da Biblia, do sobrenatural, que substituem toda a realidade objectiva. A admiração, a fé e a idolatria pódem crear os maiores absurdos: Esopo, Phedro, Lafontaine fizeram falar os animaes em verso sublime, limado, terso, brilhante, sonóro, de rima opulentissima. Zola escreveu: «C'est, je le répète, le seul cadre ou j'admets, au theatre, le dedain du vrai. On est là en pleine convention, en pleine fantaisie, et le charme est d'y mentir, d'y échapper a toutes les realités de ce bas monde. .................................................................. «Jamais les auteurs ne se trouvent acculés par la vraisemblance et la logique: ils peuvent aller dans tous les sens, aussi loin qu'ils veulent, certains de ne se heurter contre aucune muraille. .................................................................. «La comédie et le drame, au contraire, sont tenus à être vraisemblables.» Zola. _Le Naturalisme au théâtre_, pag. 357, 358. Mas João de Deus, que foi em Portugal «a mais completa encarnação do lyrico apaixonado, sem entraves positivos, sem preoccupações estylisticas visando á erudição», que foi «sentimento singelo, o amor, esse amor portuguezissimo, em palavras singelas, versos de medida simples e estylo simples», João de Deus que cantou a simpleza rural da sua terra, a alma dôce do povo e dos campos, esse «que é o lyrico mais portuguez» como considera Fidelino Figueiredo, «um grande scismador e um grande artista, que não tem artificios na sua poesia, singela como todos os grandes sentimentos, harmoniosa e virginal como um sorriso de creança, suave e consoladora como uma parábola de Christo, serena e luminosa como um dialogo de Platão», no dizer profundo de Alexandre da Conceição, João de Deus não se preoccupou com a opulencia da rima, nem mesmo quando escreveu para o theatro aquella encantadora phantasia em um acto _Horacio e Lydia_, romana pelo assumpto, grega pela technica. Ora, a _Talitha_ é composta de 1873 versos de varios metros, predominando o alexandrino. Para demonstrar opulencia de rima, o obscuro autor da _Talitha_ reservou as suas modestas poesias esparsas, entre as quaes figura a _Ode ás Arvores_, dedicada a Coelho Netto, ode essa que se compõe de 312 alexandrinos, e não tem sequer uma rima repetida, além da grande abundancia de vocabulos cuja difficuldade de rima é conhecida. Um dos zoilos da Talitha, com o intuito de provar que os tres actos d'esse evangelho são indigentes de rima, nota que no 2.° acto a palavra enferma rima com erma e no 3.° acto tambem enfermo rima com ermo. E o zoilo exclama: «Para _Enfermo_ o poeta encontrou apenas a rima _ermo_, uma rima pobrissima.» Mais pobre de espirito é o critico. A _Talitha_ compõe-se de 1873 versos; quatro vezes apenas o maldizente encontrou a rima em _erma_, ainda assim uma vez no masculino e outra no feminino, e fulmina a censura: «o poeta só encontrou a rima _ermo_ para _enfermo_, rima pobrissima.» Ignorante, perverso, futil, ou lorpa. Pois bem, o autor da _Talitha_ consultou os diccionarios de rima de Castilho e de Alencar, duas autoridades na materia, e para _enfermo_ apenas encontrou _ermo_, _termo_ e _estafermo_. As duas primeiras foram applicadas, uma no segundo, outra no terceiro acto. Quanto á terceira--_estafermo_--o poeta da _Talitha_ só a poderia utilizar se fizesse referencia ao critico. Para agradar á sua opinião e corresponder á sua exigencia, o zoilo pretende que o autor da _Talitha_ deveria forgicar palavras, neologismos, sómente com o fim de não repetir a rima! Mas se essa rima é pobrissima, que culpa tem o autor da _Talitha_, se a lingua apenas lhe faculta, além dessa, mais duas, uma das quaes pertencente ao calão? Entretanto o critico mentiu: no segundo acto a rima de _enferma_ é _erma_; no terceiro acto á palavra _enfermo_ foi dada a rima--_termo_. 2.º acto, pag. 64: «seria bem melhor que cuidasse da enferma, que vive ali no escuro abandonada e erma» 3.º acto, pag. 89: «de acudir pressuroso ao leito dum enfermo ardendo em alta febre e bem proximo ao termo d'uma longa existencia...» Eis ahi ao que se reduz a censura do zoilo: á mentira. * * * * * Por ultimo a critica indigena censura o autor da _Talitha_ por ter escripto o drama em tres actos afim de apresentar, desnecessariamente, no terceiro, a _marqueza_, mãe da heroina. E a critica, em ar de pilheria, pede um quarto acto para que appareça tambem o Pae de _Talitha_. O autor não teria duvida em satisfazer o desejo da critica, escrevendo mais dois actos para apresentação da sogra de _Talitha_, se tambem a critica de outra tempera, a critica elevada e honesta, não houvesse solicitado a redacção dos tres actos simplesmente aos dois primeiros para que esse obscuro trabalho «seja legado pelo autor ao seu paiz, como um thesouro, refundindo-a, cortando as scenas a mais, deixando-a nos dois actos primeiros mais o milagre e a oração; assim _Talitha_ será um primor litterario...» Critica da _Tribuna do Rio_. «O drama é magnifico. E porque não dizer o melhor drama que se tem escripto no Brazil?» Critica da _Gazeta de Noticias_, do Rio. «Os tres actos do Sr. Pinto da Rocha dão a quem os ouviu a satisfação rara e salutar que só produzem as obras de arte, erguidas severamente com a segurança de que só é capaz a sinceridade.» Critica do _Paiz_, do Rio. «...mas os bons versos, as rimas felizes e inesperadas abundam na peça, que fica sendo um dos mais bellos poemas da nossa litteratura. «... pois nao ha muito disso por toda essa America afóra.» Arthur Azevedo--Critica da _Noticia_, do Rio. Á critica indigena, rasteiramente inspirada pelo odio e pela paixão politica, o autor da _Talitha_ contrapõe a critica da imprensa do Rio. Será vaidosa a citação d'essas opiniões, mas o obscuro autor da _Talitha_ tem orgulho do seu trabalho e esse orgulho é como a soberbia das mães que beijam os filhinhos aleijados e loucos, tendo-os no coração como as imagens incomparaveis da suprema formosura. A _Talitha_ não será brasileira porque o assumpto e os personagens são portuguezes; não será portugueza porque o seu autor não teve a felicidade de nascer em Portugal, mas... Mas a _Talitha_ é mais que portugueza, mais que brazileira, é humana. Mas a _Talitha_ é minha... É o producto do meu espirito, do meu trabalho, é filha da minha mocidade... É modesta, é pauperrima, e futil, mas é minha. E a critica indigena dos zoilos que produziu? Nada, absolutamente nada; póde viver noventa annos, como Sárah, não haverá Abrahão na terra que lhe arranque um Isaac das entranhas... Os zoilos são admiraveis, sabem tudo e não fazem cousa alguma. Conhecem perfeitamente a patria, sob todos os aspectos, desde a fecundidade uberrima da terra aos esplendores astraes do céo; desde a constituição intima da familia á grandeza fulgurante da historia. Os primores da paysagem, a belleza e a simplicidade dos costumes, os encantos da musica popular e da poesia anonyma, a bravura dos homens com o typo legendario do gaúcho, a formosura das mulheres inspirando os altos feitos heroicos, o mysterio das florestas que dá o aspecto profundo á alma do povo, a vastidão das campinas que modela a franqueza limpida das consciencias, o desdobrar ondulante das cochilhas que imprime ao typo riograndense a epopeia da nossa historia, os vultos homericos dos nossos guerreiros, a envergadura dos nossos estadistas, a intelligencia dos nossos escriptores, a obra dos nossos politicos, tudo isso a critica dos zoilos conhece... _à merveille_. Sabe ella que o verso está banido do theatro moderno e só é admittido nos assumptos historicos ou nas phantasias caprichosas dos sonhos e devaneios litterarios; sabe ella que os alexandrinos devem ser emparelhados á maneira de Corneille e Racine, alternando-se agudos e graves, na symetria impeccavel de parallelas geometricamente exactas; sabe ella que o rythmo do verso não deve ser apenas o junqueireano para evitar a monotonia: sabe ella que a rima deve ser opulenta: sabe que no theatro moderno a prosa supplanta o verso, porque se presta melhor ás exigencias do estudo da psychologia dos personagens; que a escola romantica foi batida pelo naturalismo; que hoje os exemplos a seguir não são os d'Ennery, os Augier, os Scribe, os Labiche, os Dumas, os Meilhac: que os modelos acceitaveis são Suderman, Ibsen, Hauptmann Bjornsen; tudo isso a critica dos zoilos sabe perfeitamente. Além disso a critica tem talento, tem erudição, tem admiradores, tem bibliothecas, tem a vida garantida e facil pela munificencia do thesouro publico, tem o apoio da sociedade, não sabe o que seja a amargura da lucta pela existencia... Entretanto as horas passam, os dias correm, os mezes flúem, os annos se succedem e a critica deixa em abandono todo esse material soberbo e magestoso, esquece todos esses elementos de incomparavel riqueza, e não produz absolutamente nada. Atravessa a existencia, como um janota futil que vive preoccupado com a coloração garrida das gravatas, com o brilho frio dos collarinhos, com o figurino do fato, empanturrando-se da leitura _à la diable_, maldizendo do tudo e de todos e vivendo de um usofructo que a sociedade constituiu pelo trabalho accumulado exactamente d'aquelles que a critica dos zoilos alveja, fere, offende e babuja. Vive para gozar e maldizer. A critica indigena dos zoilos é como o Sahára: esterilidade completa, beduinos e camellos. Á caravana dos zoilos, o deserto e a receita de Ezequiel. Pinto da Rocha Livraria Chardron De LELLO & IRMÃO RUA DAS CARMELITAS, 144--PORTO GARCIA REDONDO Salada de fructas, 500 Atravez da Europa, 500 Cara alegre, no prélo A mulher--manias e cacoetas, no prélo MANOEL ARÃO Transfiguração, 1 vol., 1$000 COELHO NETTO Esphynge, 600 Sertão, 600 Agua de Juventa, 700 A Bico de penna, 700 Romanceiro, 500 Theatro, 400 Jardim das Oliveiras, 500 Quebranto (theatro), 1 vol, 800 Fabulario, 500 Miragem, romance, 1 vol., 600 Apologos, no prélo Fé, no prélo Theatro, 1.º vol., no prélo Mysterios do Natal, no prélo JOÃO GRAVE Os famintos, 500 A eterna mentira, 600 O ultimo fauno, 500 O Passado, no prélo SHAKESPEARE Sonho d'uma noite de S. 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