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Title: Talitha - evangelho em tres actos
Author: Pinto da Rocha, -1930
Language: Portuguese
As this book started as an ASCII text book there are no pictures available.


*** Start of this LibraryBlog Digital Book "Talitha - evangelho em tres actos" ***


                              Pinto da Rocha

                                  TALITHA

                           EVANGELHO EM TRES ACTOS

                               Segunda Edição



                            LIVRARIA CHARDRON
                             DE LELLO & IRMÃO
                          Carmelitas, 144-Porto
                                   1909



                                  TALITHA



                              Pinto da Rocha

                                  TALITHA

                           EVANGELHO EM TRES ACTOS

                               Segunda Edição



                            LIVRARIA CHARDRON
                             DE LELLO & IRMÃO
                          Carmelitas, 144-Porto
                                   1909



O _accordo_ assignado no Rio de Janeiro, em 9 de Setembro de 1889, entre
o Brazil e Portugal, assegurou o direito de propriedade literaria e
artistica em ambos os paizes.


A presente edição está devidamente registada nas _Bibliothecas
Nacionaes_, de Lisboa e Rio de Janeiro.

Imprensa Moderna, de Manoel Lello
R. da Rainha D. Amelia, 61--PORTO
Grande premio na Exposição do Rio de Janeiro de 1908



PERSONAGENS

    TALITHA, céga                       18 annos
    JOÃO FULGENCIO, cura da aldeia      80 "
    DR. RUY DE ORNELLAS, medico         25 "
    JOAQUINA, irmã do cura              65 "
    MARQUEZA DE RILMA                   50 "
    Um escudeiro--Camponezas--Lavradores

A acção passa-se em uma aldeia da Provincia de Traz-os-Montes, Portugal

ACTUALIDADE



INTERPRETAÇÃO

NO RIO DE JANEIRO EM 1906

    Talitha               Maria Falcão
    Joaquina              Jesuina Saraiva
    Marqueza de Rilma     Barbara Wolckart
    João Fulgencio        Chaby Pinheiro
    Ruy de Ornellas       Henrique Alves

NO RIO GRANDE DO SUL EM 1907

    Talitha               Maria Falcão
    Joaquina              Maria Pinheiro
    Marqueza de Rilma     Olivia de Almeida
    João Fulgencio        Chaby Pinheiro
    Ruy de Ornellas       João Lopes

A _Talitha_ subiu á scena, pela primeira vez, no Theatro Apollo, do Rio
de Janeiro, em Agosto de 1906, na festa artistica da eximia actriz Maria
Falcão.



                    E tomando a mão da menina disse-lhe:
                    --Talitha cumi:--Filhinha levanta-te.

                    _Novo Testamento._ S. Marcos, V. 41.



PRIMEIRO ACTO

Jardim, na residencia do Cura.--Á direita, um banco de pedra junto a um
poço: á esquerda, frontaria da casa. Grade ao fundo, com portão.--Vista
de estrada e campo.


SCENA I

Joaquina e Ruy

Joaquina

    Louvado seja Deus! Como está bello e forte!

Ruy

    É verdade, Joaquina, o clima aqui da terra
    encheu-me novamente o coração de alento.
    Posso dizer que entrei neste bondoso lar
    vigiado, sem dó, pelos olhos da morte.
    E agora, a luz do Sol, os perfumes da serra,
    as aguas desta fonte, o sadio alimento,
    o seu cuidado santo, amigo e tutelar,
    fizeram-me robusto.

Joaquina

                       E Deus não lhe fez nada?

Ruy

    Foi elle quem salvou a minha mocidade,
    porque a divina mão que fez os céos e os montes,
    que deu flores á terra e deu frescura ás fontes,
    que faz vibrar a luz e a voz da passarada,
    que impelle a nuvem branca em plena immensidade,
    um dia vos creou as almas caridosas
    que vivem nesta casa, humildes e serenas,
    felizes com o Bem, suaves como as rosas,
    mais simples do que o trigo, a neve e as açucenas!

Joaquina

    Então, menino, crê tambem que Deus existe?!

Ruy

    De certo, minha amiga.

Joaquina

                           E não é um hereje,
    dessa raça maldita e negra que desmente
    as obras do Senhor?

Ruy

                        Ingenua creatura!
    É tão alegre a crença e não crêr é tão triste,
    que mesmo sem querer o coração da gente
    acredita num Deus que todo o mundo rege,
    num Pae que assim te deu alma simples e pura!
    Faz tanto bem, Joaquina, acreditar em Deus
    e adormecer á noite abrindo a consciencia
    aos beijos do luar, sorrir de madrugada
    á frescura que vem do azul ethereo e vasto,
    que o nosso olhar ascende ás amplidões dos céos
    sem esforço nenhum, como a espiral da essencia
    que se evola da flôr, se a abelha delicada
    lhe poisa na corolla o vôo leve e casto!

Joaquina

    Bemdito seja Deus! Não póde imaginar
    como eu fico contente ouvindo assim fallar!...

Ruy

    Mas que idéa fazia então de mim? Julgava
    talvez que eu fosse atheu?

Joaquina, _benzendo-se_

                               Deus me perdôe... pensava!

Ruy

    Como poude a sua alma angelica e tão boa
    fazer-me, sem motivo, essa enorme injustiça?

Joaquina

    Ah! mas não foi por mal, nem o pensei á tôa:
    eu nunca o vi rezar, eu nunca o vi na missa...
    E a gente vê só cara e não vê corações...

Ruy

    E se o visse, Joaquina!...

Joaquina

                              E que é que me servia
    o ver-lhe o coração?

Ruy

                         Nada, é certo. Entretanto
    conheceria bem as minhas intenções,
    a esperança que faz brotar, em cada dia
    que passa, um pensamento alegre, puro e santo...

Joaquina, _interrompendo_

    É, mas diz o rifão que está o inferno cheio
    de boas intenções!...

Ruy

                           Tem razão; mas não minto
    se lhe disser tambem, lealmente, o que sinto:
    ás vezes mais parece um verdadeiro inferno
    este peito infeliz...

Joaquina, _benzendo-se_

                          Abrenuncio, menino!...
    Mas que blasphemia a sua e que peccado feio!...
    Um homem que acredita em Deus, bondoso e eterno,
    em Deus Nosso Senhor, não diz tal desatino!...
    Virgem Maria! Credo!

Ruy

                         Alma boa de santa!...
    A tua vida inteira adormeceu. A aurora
    já para ti não tem aquelle brilho vivo
    que a primavera, em luz, alastra pelos campos...
    Tudo se transformou em outra vida; agora
    a fonte já soluça, a brisa já não canta;
    aos teus olhos a lua é d'um fulgor esquivo,
    o sol não tem calor, o céo já não é glastro,
    as estrellas febris parecem pirilampos;
    trazes o teu olhar constantemente a rastro;
    sómente a fé te anima; é por isso que extranhas
    o inferno abrasador que muita vez domina
    a minha mocidade.

Joaquina, _com sorriso_

                      Isso me bacoreja
    algum amor perdido ahi por essas eiras...

Ruy

    É possivel, quem sabe? Os ares das montanhas
    tem caprichos assim, póde bem ser, Joaquina!

Joaquina, _cariciosa_

    E diga-me, que olhar é esse que negreja
    a sua vida alegre? Ha tantas feiticeiras!...

Ruy, _enleiado_

    Que olhar?

Joaquina, _interrompendo_

               Mas é segredo?

Ruy

                              É, por ora é segredo...

Joaquina

    Ah! não confia em mim?! bem sei, bem sei, tem medo
    que eu descubra o mysterio, a princeza encantada
    que assim lhe traz a vida em tantas amarguras...

Ruy

    Não é mysterio, não. É... cousa complicada!...

Joaquina

    Faz muito bem zelar a flôr dos seus amores;
    não os conte a ninguem; se acaso as desventuras
    lhe roubarem o somno agarre-se com Deus...

_tomando-lhe a mão e fallando-lhe ao ouvido_

    Reze constantemente á Senhora das Dôres.
    Acceite este rosario e tenha-o por bordão.
    É bemaventurado aquelle que padece,
    porque é delle, menino, o reino azul dos céos...
    E Deus a quem promette estende sempre o pão;
    reze e será feliz... Essa alma bem merece...

Ruy

    Santa velhinha, santa...

Joaquina, _tapando-lhe a bocca_

                             E nem um ai, silencio...
    Olhe quem vem ali...

Ruy, _voltando-se_

                         O Padre João Fulgencio
    e Talitha; meu Deus!... Pobre, infeliz Talitha!...

Joaquina, _a Ruy_

    Parece que ficou um tanto atrapalhado...

Ruy, _encobrindo a verdade_

    Sempre que a vejo, assim tão cheia de bondade e
    céga...

Joaquina

            Então, que sente?...

Ruy

                                 Uma dôr inaudita,
    que reveste de luto as minhas alegrias:

               Ha tanta luz espalhada
               na concha astral dos espaços!
               E os olhos della tão baços!
               E a fronte tão macerada!


SCENA II

Os mesmos, Padre João e Talitha

_Talitha vem apoiada ao braço de padre João_

Padre

    Pois Deus Nosso Senhor nos dê muitos bons dias.

_assenta Talitha: a Ruy, apertando-lhe a mão_

    Como passou a noute?

Ruy

                         Assim; mais descançado...
    Sonhando... E o Senhor Cura?...

Padre

                                    Eu? Ah! na minha idade
    já se não dorme; eu passo a noute toda em claro,
    de rosario na mão, pedindo a Deus por nós!
    E quando surge o dia e mal o Sol desponta,
    dando o braço a Talitha, encaminho-me á Egreja.

Talitha

    Diz a missa que ou ouço...

Padre

                               E é raro, muito raro,
    voltarmos ella e eu, da Egreja a casa, sós.
    Ás vezes vem comnosco esse infeliz sargento
    que arrasta por ahi o longo soffrimento,
    velho e cego tambem, e eu, mortiça candeia,
    a conduzir os dois pelas ruas da aldeia!

Talitha

    Mas o senhor doutor, por mim nunca dei conta,
    nem uma vez, sequer, nos acompanhou! Veja!
    No emtanto está comnosco ha sete mezes, não?

Joaquina

    Isso mesmo eu já disse...

Ruy

                              Eu dei a explicação...

Talitha

    E poder-se-á saber? Não é curiosidade?

Padre

    Talvez seja, talvez...

Ruy

                           Não é!

Talitha

                                  Então ouçamos!...

Ruy

    Eu rezo no silencio o santo sacrificio,
    no fundo de minh'alma elevo o meu altar,
    sob o docel azul das minhas esperanças!...

Padre

    E eu sem conhecer mais essa novidade!...

Talitha

    Qual?

Padre

          Esta que o Doutor nos deu, mas aprendamos...

Ruy

    Padre não é sómente aquelle que a rezar
    esgota uma existencia ao peso do cilicio
    e vae pelas manhans, feliz como as creanças,
    curvar humildemente a fronte e a consciencia,
    na sombra da capella, aos pés do Redemptor...

Talitha

    Mas ha d'outros, então?

Padre

                            Eu não conheço, filha!

Ruy

    Sacerdote é tambem aquelle que tem culto
    ao qual offereceu toda a sua existencia.
    Padre, quem se dedica um dia com fervor
    a amar alguem na terra a cujos pés se humilha,
    tambem é sacerdote...

Padre

                          E eu, sacerdote, exulto
    ouvindo do seu labio esta expressão severa.

Joaquina, _que tem guardado silencio, enlevada pelas palavras de Ruy_

    Bemdito seja Deus! menino, quem me dera
    conhecer a mulher que tem um filho assim...

Talitha

    Só eu não posso vêl-o!...

Ruy, _entre alegre e enleado_

                              Obrigado, Talitha!

Talitha

    Não tem que agradecer, disse-o sinceramente!
    Que póde desejar mais uma céga, diga?...

Padre

    Mas conforma-te, filha, espera que o Senhor,
    ouvindo-me a oração, tenha pena de mim
    e acuda com remedio ao mal dessa desdita!

Ruy

    Como eu fôra feliz...

Joaquina

                          E eu seria contente!...

Ruy

    Se pudesse voltar, ó minha boa amiga,
    aos seus olhos de céga o perdido fulgor!...

Talitha

    Nunca mais, nunca mais...

Padre

                              Porque é que te condemnas
    se toda a nossa vida é uma esperança apenas?...

Talitha

          Se é toda de esperanças esta vida,
          já me fugiu aquella que voava
          bem junto do meu seio e que roçava
          sobre a minh'alma a aza foragida.

          Nem sei onde ella vae, talvez perdida
          nao volte a mim por não morrer escrava
          na escuridão da noite immensa e cava
          dos meus olhos sem luz e sem guarida...

          Nunca mais fulgirás, dôce promessa,
          na minha treva densa e prematura,
          como o branco luar em noite espessa.

          Se vive, o olhar dos cégos não fulgura,
          dorme na sombra e de sonhar não cessa
          na tristeza sem fim da noite escura!

Ruy

    Não descreia, Talitha, as suas illusões
    não fugiram, por ora, esparsas na lufada!
    Quem foi que lhe roubou a ultima esperança,
    que braços sem caricia, ou duras privações
    lhe puderam vibrar tão rude punhalada?
    Pois bem, toda a minh'alma alegre se abalança
    a dizer-lhe, Talitha:--o seu formoso olhar
    tão cheio de fulgor, um dia ha de voltar...

Joaquina

    Só milagre de Deus!

Padre

                        E Deus póde fazel-o:
    é Pae de todos nós!

Talitha, _com desanimo_

                        Tenho rezado tanto!

Ruy

    Implore mais ainda, espere, tenha crença!

Talitha

    Tenho pedido muito e tanto me flagello
    que banho as orações nas bagas do meu pranto
    e aqueço-as ao calor da minha dôr immensa.
    A mesma escuridão tremenda me apavora,
    nem um raio do luz, nem um vago lampejo;
    nunca mais hei de vêr o campo que se inflora
    nem do luar terei um luminoso beijo...

Padre

    A tua redempção ainda não surgiu...

Joaquina, _pondo as mãos_

    Eu tenho tanta fé!

Ruy

                       O meu presentimento
    não sei o que me diz...

Talitha

                            Que o coração sentiu,
    que a sua alma pensou nessa dôce ventura,
    eu creio porque sei quanto é nobre e bondoso.
    Mas eu creio tambem que o meu cruel tormento
    sómente acabará no chão da sepultura,
    onde tudo tem fim, embora tenebroso!...

Padre, _olhando o céo_

    Perdôa-lhe, Senhor, ella ignora o que diz...
    Se tem soffrido tanto esta pobre infeliz!...

Talitha

    Eu sei bem o que disse; a minha crença é essa.
    Ha muito que eu imploro ao céo a protecção
    e rezo com fervor á dôce Conceição,
    pedindo-lhe, a chorar de dôr, que não esqueça
    a minha noite escura e tristemente agreste
    como a sombra que faz a copa de um cypreste.
    Aos pés do seu altar curvei-me como escrava
    e emquanto pela igreja o incenso espiralava,
    e as simples orações subiam na espiral,
    fechei-me na mudez do meu fervor mental
    e fiz uma promessa...

Ruy, _com interesse_

                          E então qual foi, Talitha?

Talitha

    Votar a minha vida ao divino serviço,
    se um dia terminasse o meu padecimento;
    nem peço mais a Deus, é tudo o que cubiço.

Ruy

    E se tornar a ver?

Talitha

                       Entrarei num convento
    a vestir o burel de freira Carmelita.

Padre, _crente, pondo as mãos_

    Se Deus te ouvisse, filha!

Joaquina, _com uncção religiosa_

                               E o Bom Jesus quizesse!...

Ruy, _com amargura_

    Se tivera valor a minha humilde prece!...

Talitha, _curiosa_

    Se tivera valor, que lhe faria, Ruy?

Ruy

    Não pediria a Deus esse milagre extremo...

Talitha

    Porque?

Ruy

            Porque seria arrancal-a da treva
    e lançal-a de novo em mais cruel negrura.
    Juntando toda a fé que de minh'alma flúe
    eu iria pedir, como um favor supremo,
    que as almas alevanta e os corações eleva,
    que me guiasse a mão na lucida aventura
    de devolver-lhe um dia ao seu olhar perdido
    aquelle brilho antigo e aquelle ardor de outr'ora
    que faziam inveja ao proprio olhar de Flóra!

Padre

    E seria capaz?

Joaquina

                   Credo!

_Sae_


SCENA III

Padre João, Ruy e Talitha

Ruy

                          E tão convencido
    estou de que o Senhor a mão me guiaria
    nesse instante feliz, que não hesitaria
    um momento sequer... A simples catarata
    é facil de operar e em dez dias exactos
    Talitha voltaria á luz que o céo desata
    e que dá vida á terra, aos fructos e aos regatos!...
    Pense, Talitha, pense e permitta que eu faça
    esse dôce milagre.

Talitha

                       E eu tornarei a vêr
    o presbyterio, a fonte, a madrugada, as aves,
    as abelhas sugando o mel dos jasmineiros?

Ruy

    Os seus olhos verão a luz da eterna graça
    no sorriso gracil da alvorada, ao nascer
    nas bandas do oriente em nuvens tão suaves,
    como um rebanho astral de timidos cordeiros!

Talitha

    E que mais hei de vêr?

Ruy

                            Que mais? Verá tambem
    um velhinho a sorrir com lagrimas na face,
    e uma velhinha branca e trémula a chorar,
    e ao pé delles, alegre, o olhar de mais alguem,
    numa dôce oração tão leve e tão feliz,
    como se a propria brisa aqui se demorasse
    um momentinho só tambem para rezar!

Talitha, _alegre_

    E eu voltarei de novo aos encantos da luz?
    E hei de vêr tambem o jardim do mosteiro
    onde floresce a fé que a nossa vida arrima,
    as rosas enfeitando a Virgem que as anima,
    o corpo de Jesus exanime e trigueiro,
    entre cirios a arder, deitado sobre a cruz?...
    E então assim feliz...

Ruy, _interrompendo_

                           E então, Talitha, e então?

Talitha

    Rezarei pelo Ruy, tão bom, tão generoso,
    que trouxe ao meu olhar escuro e tormentoso
    a esmola angelical d'um lucido clarão!


SCENA IV

Os mesmos e Joaquina

Joaquina, _entrando_

    Padre Cura, uma carta.

Padre

                           Uma carta? Mas donde?

_recebe-a e examina_

    Hum! e de quem será?

Talitha

                         Joaquina, dê-me o braço...

_Joaquina dá-lhe o braço. A Ruy_

    Dr. Ruy, até já.

_ao cura_

                     Até já, meu Padrinho...

Ruy, _que se tem conservado triste_

    Talitha!...

Talitha, _voltando-se_

                Meu Senhor!...

Ruy, _indo a ella_

                               Perdão, Talitha... nada!

Talitha

    Arrependeu-se, não? E tambem não responde...
    Desconfia de mim?... Outro tanto eu não faço
    Doutor, a seu respeito; eu bem sei, adivinho...

Ruy, _com interesse_

    Que foi que adivinhou?

Talitha, _com malicia_

                           Uma coisa adorada...
    que só tres corações conhecem bem: o seu,
    o della, e o Senhor que tudo vê do céo...

Ruy, _admirado_

    Della, Talitha, quem?

Joaquina, _com intenção_

                          Daquella princesinha
    d'olhos da côr do céo, vestida de andorinha...

Talitha

    Ouviu, Doutor, ouviu?

Ruy

                          Juro...

Talitha, _interrompendo_

                                  Não jure falso!...

_a Joaquina_

    Vamos, Madrinha, embora: é tempo de almoçar.

_sahem_


SCENA V

Padre João e Ruy

_Desde que recebe a carta, Padre João lê com a maior attenção. Pela sua
face corre toda a expressão de espanto que vae recebendo. Quando sahem
Joaquina e Talitha, o Padre conclue a leitura e fica a meditar. Ao
approximar-se Ruy, suspende-se._

Padre

    Esta agora é que foi!

Ruy

                          E que foi, Senhor Cura?

Padre

    Quem sabe? Póde ser um pequeno precalço,
    mas póde ser tambem que venha de mistura
    alguma dôr maior. E não posso evitar!...

Ruy

    O que essa carta diz deixou sua alma afflicta:
    um segredo talvez que vive no seu seio?!...

Padre

    Foi, sim, mas ja não é. Agora só receio
    que m'a levem daqui...

Ruy

                           Que a levem? quem?

Padre

                                              Talitha...

Ruy

    E quem a levará deste remanso augusto?
    O convento, a promessa?...

Padre

                               Oh! não...

Ruy

                                          Não tenha susto!
    E quem mais poderá, nesse caso, arrancal-a
    do lar em que nasceu?

Padre

                     A Mãe...

Ruy, _surprehendido_

                              Ah! mas... então...

Padre, _baixinho_

    Então... já percebeu?! Ella foi engeitada...
    Eis aqui o segredo em que esta vida abraço.

_baixa a cabeça, scismando_

Ruy, _depois de uma pausa_

    Oh! meiga creatura!

Padre

                        E não poder salval-a!...

Ruy

    Engeitada!...

Padre

                  Sim, sim. Ao romper da alvorada.
    Ha muito tempo já. Inda no céo brilhava
    a estrella da manhã; vieram procurar-me;
    bateram ao portal com desusado alarme...
    Ergui-me e fui abrir; a neve branqueava
    os campos e eu pensei que um pobre moribundo,
    no momento supremo em que deixava o mundo,
    quizesse receber da minha propria mão
    o balsamo final da santa extrema-uncção,
    e abri desta choupana a porta sempre franca.
    Parecia o jardim uma toalha branca.
    Era um frio cruel, cortava como fôsse
    o gume de uma faca e o fio de uma fouce...
    Sahi, olhei em roda e já não vi ninguem.
    No céo luzia só a estrella de Bethlem!
    Não sei porque a fitei nesse feliz momento.
    Um silencio profundo amordaçava o vento;
    dormia a natureza um somno indefinido,
    vibrou então no espaço um timido vagido...
    Estremeci de horror...

Ruy, _com anciedade_

                           Era a pobre Talitha?!

Padre

    Approximei-me e vi, aqui junto do banco
    um cestinho de verga envolto em panno branco.
    Banhou-me o coração uma dôr infinita.
    Na tragica mudez da alvorada deserta
    tomei nas mãos, tremendo, a delicada offerta
    e agasalhei-a ao peito, assim, para aquecel-a
    como quem agasalha o corpo de uma estrella
    que tombasse do céo...

Ruy, _com mais anciedade_

                           E esse penhor amigo?!...

Padre

    A meu lado cresceu e formou-se o thesoiro,
    alma rica de luz, feita de amor e d'oiro.
    Parece que ao romper daquella madrugada
    tão fria, tão cruel, mas tão abençoada,
    que eu lembro com saudade e que inda hoje bemdigo,
    teve o banho castalio, o baptismo de luz
    da mesma estrella exul que baptisou Jesus.
    Por isso é que minh'alma agora não sopita
    a magua de perdel-a...

Ruy

                           E quem terá coragem
    energica e viril de arrebatar Talitha
    ao seu amor leal e bom, dôce miragem,
    no deserto feliz desta velhice austera?

Padre

    A mãe que a vem buscar...

Ruy

                              A mãe não tem direito...
    A mãe que engeita a filha é peior que uma fera!

Padre

    Mas é mãe!...

Ruy

                  Sim, será, sem coração no peito.

Padre

    Engana-se, doutor, a mãe que hoje a reclama,
    depois de tanto tempo, é que lhe tem amor...

Ruy

    Como a engeitou, então?

Padre

                            A fera tambem ama...
    Quem sabe o que terá soffrido essa mulher?
    Sabe-o sómente o céo, calcule-o quem puder.
    E diz-me o coração que vou perdel-a em breve.

_Erguendo as mãos ao céo_

    Não me tires, meu Deus, esse gentil penhor!
    Repara que já tenho os cabellos de neve,
    tão tremulas as mãos, e os labios descorados,
    como sonhos que vão batidos e levados
    num extremo soluço... O que eu tenho no mundo,
    pouco mais é que um ai e o golpe agora é fundo!

_Enxuga os olhos e sáe_


SCENA VI

Ruy e Talitha

_Ruy vê sahir o Padre e fica pensativo, fitando os olhos no chão,
sentado no banco de pedra. Depois de uma pausa, Talitha desce,
tacteando, até junto delle._

Talitha

    Padrinho, então não vem?

Ruy, _sobresaltado_

                             Ah! Talitha...

Talitha

                                            Perdão!
    Pensei que estava aqui...

Ruy

                         Já se foi...

Talitha

                                      Obrigada...

_Vae retirar-se_

Ruy

    Talitha!

Talitha

             Senhor Ruy!

Ruy

                         O seu bom coração
    inda não lhe contou, baixo, muito baixinho,
    quasi a tremer de medo e susto, um segredinho,
    diga, não lhe contou?

Talitha, _com muita simplicidade_

                     Que pergunta engraçada!

Ruy

    E vive então sereno?

Talitha

                         Ah! Sim, tenho certeza!

Ruy

    É bem feliz, Talitha, a sua singeleza!
    Outro tanto, porém, ao meu já não succede
    que o sinto palpitar acceleradamente,
    como quem vae fallar e o soffrimento impede.

Talitha

    Eu bem lh'o disse ha pouco...

Ruy

                                  Entretanto eu lhe juro...

Talitha, _interrompendo_

    Não jure que é peccado a jura de quem sente
    que não diz a verdade. É mais bello e mais puro
    não negar.

Ruy

               Tem razão, mas eu não disse, ainda
    qual era o juramento...

Talitha, _ingenua_

                       E qualquer que elle seja...

Ruy

    Diga, diga o que sente...

Talitha

                              Ha de ser...

Ruy, _curioso_

                                           Ha de ser?

Talitha

    Não digo...

Ruy

                Diga, sim, a sua voz bemvinda
    ha de me dar a esmola honesta e bemfazeja
    que a minh'alma sem luz precisa de viver.
    E do seu labio casto apenas um sorriso
    vale mais que uma estrella e rasga um paraiso.

Talitha

    Assim o quer, direi; jamais o seu protesto
    póde ser verdadeiro...

Ruy

                           E porque não, Talitha?...

Talitha

    Não sei, não sei porque. A jura é como o gesto
    que abala fortemente, a nossa vida agita,
    mas passa e foge...

Ruy

                     Ah! sim, quando falla sómente
    o labio, sem fallar tambem o coração...
    Ah! de certo que assim o labio sempre mente.
    Mas quando o sangue estúa e faz tremer a mão
    de quem jura, Talitha, ou quando a fronte em braza,
    apenas num momento, empallidece e tomba,
    bem como se a roçára a ponta fria da aza
    feita de gelo e dôr de alguma extranha pomba,
    quando um homem que sempre olhou de frente o sol
    tem medo de encarar o olhar de um rouxinol,
    e treme até de ouvir-lhe a voz encantadora,
    quem sempre ouviu sorrindo a furia rugidora
    do vento e dos trovões...

Talitha, _interrompendo_

                              Então?...

Ruy

                                        Assim revela
    que é grande, generoso e casto o sentimento
    que apenas se traduz e que tão mal se vela
    na gaze pueril d'um simples juramento!

Talitha, _ingenua_

    Quem foi que o ensinou a fallar assim?

Ruy, _timido_

                                           Digo?...

Talitha, _ingenua_

    E porque não? Quem foi?...

Ruy, _timido_

                               Nem mesmo eu sei, Talitha!

Talitha, _insistido_

    Nem sabe onde aprendeu?

Ruy, _sorrindo_

                            Quer aprender commigo?

Talitha, _ingenua e triste_

    Não me quer responder, nem confessa, nem nega...
    Se eu pudesse aprender, de que valera á céga
    saber fallar assim?

Ruy, _triste_

                        Á céga?

Talitha, _simples_

                                E á Carmelita?...

Ruy, _ancioso_

    Á Carmelita!... e quem lhe disse que os seus olhos
    recuperando a luz, como duas estrellas,
    irão illuminar as fragas e os escolhos
    das montanhas da  Syria, entre as monjas Carmellas?
    Quer sepultar-se em vida?

Talitha

                              E não é cemiterio
    maior a escuridão deste pavor funereo,
    sem vêr o sol que doira as nuvens do poente,
    sem vêr a lua assim como um berço dolente
    embalando no azul um sonho que não morre,
    não vêr duma colmeia o mel que filtra e corre
    como um rio de luz nascendo num enxame,
    sentir e adivinhar a suprema belleza
    da madrugada em flôr, das noites constelladas,
    dos mares e do céo, de toda a natureza,
    ter olhos e não vêr, inda haverá quem chame
    vida a tal vida? Não! Mais negras, mais cerradas
    do que esta noite immensa e triste, sem estrellas,
    não póde ser, de certo, a solidão das cellas,
    e o sol que tudo aquece, aquecerá de leve
    a macerada fronte á monja que não teve
    nem um seio de mãe que um dia a amamentasse,
    nem a luz d'um olhar na pallidez da face,
    e nem um coração...

Ruy

                        Talitha!

Talitha, _ingenua_

                                 Meu doutor!

Ruy, _com intenção_

    Um coração?

Talitha, _ingenua_

                Qual foi?

Ruy, _tomando-lhe a mão_

                          O meu...

Talitha, _comprehendendo, envergonhada_

                                   O seu?

_Retira a mão_

Ruy, _enleiado_

                                          Perdoe.

_Pausa prolongada_

Talitha, _implorando_

    Que mal lhe fiz?

Ruy

                     Rasgou-me o coração, Talitha;
    e pensará, talvez, que não me fere a dôr
    de vêl-o assim rasgar?

Talitha, _humilde, implorando_

                           Mas creia, Ruy, que foi
    sem que eu desse por isso. E se o mal está feito
    seja agora gentil e não me rasgue o peito.
    Esqueça a minha falta, esqueça esta maldita,
    não se lembre da céga e deixe-a definhar
    na torva escuridão desta noite polar...

Ruy

    E se eu não conseguir tirar do pensamento
    o seu casto perfil, celeste e macilento,
    se a minh'alma quizer viver escravisada
    unindo o meu destino á corrente doirada
    que me prende, sorrindo, ao seu cruel martyrio,
    se o meu olhar prefere esse apagado cirio
    dos seus olhos de céga á lucida manhan
    do amor sentimental de alguma castellan,
    como esquecel-a então?

_Joaquina apparece ao fundo_

Talitha, _triste_

                           Não creio...

Ruy

                                        Mas porque?
    Já tão cedo a sua alma angelica descrê
    da minha que, arrastada á fimbria azul da sua,
    por toda a parte a segue e a seu lado fluctua?
    Não recorda, Talitha, o dia amargurado
    em que eu entrei aqui perdido e quasi morto?
    Não se lembra da noite em que eu fui condemnado?
    Não se lembra talvez das horas de conforto
    que os seus olhos sem luz e a sua bocca em flôr
    me trouxeram a rir, como um remedio santo
    da minha vida enferma á cruciante dôr?
    Não recorda talvez que esse supremo encanto,
    essa graça divina, aligera e bemdita
    a vida me salvou?

Talitha

                      Não creio...

Ruy, _curioso_

                                   É tão cruel!
    Porque razão não crê, a minha alma fiel
    simplesmente traduz o que a sua entendeu?

Talitha, _com intenção_

    Só porque a sua mão na minha não tremeu.

Ruy

    Entretanto, Talitha, eu amo-a...

Talitha, _tremula_

                                     Ruy!...

Ruy, _apertando-lhe a cintura_

                                             Talitha!

    _Beija-lhe docemente a mão_

Talitha

    Ah! E eu sem poder vêr o labio que me beija!...
    Que destino fatal, que desgraçada eu sou!

Ruy

    Não foi a minha bocca ardente que a beijou.
    Foi o dôce rumor da abelha que voeja
    sugando á sua mão de branca flôr de liz
    o magico licôr, o aroma delicado,
    que vem do rosicler florido e perfumado,
    no sangue que palpita em vibrações subtis!!

Talitha

    Mas, Ruy, o seu amor não ve como eu sou pobre!!

Ruy, _interrompendo_

    Pobre sou eu que peço a esmola angelical
    desse affecto gentil que a vida transfigura.

Talitha

    Tão pobre que não tenho um Pae que me conforte,
    nem caricias de mãe que veja esta tortura...

Ruy

    A sua alma divina essa tortura encobre...

Talitha

    Tão pobre que este olhar perdido é glacial
    como um floco de neve, e a desfazer fluctúa...

Ruy

    Os seus olhos sem luz tem mais fulgor que a lua.

Talitha

    Engeitada ao nascer vivo esperando a morte...

Ruy

          Alma branca de luz que illuminaste
          a ventura das minhas esperanças,
          bemdito seja o véo de negras tranças
          que sobre a minha vida desnastraste!

          Bemdito seja nesse dôce engaste
          das palpebras subtis brancas e mansas
          o mesto olhar que cobre de bonanças
          a vida deste amor que tu salvaste!

          És para mim a linha do horisonte,
          curva do céo, á noite, constellada,
          agua lustral de uma sagrada fonte,

          toda a ambição dest'alma allucinada,
          e a nuvem que circumda a minha fronte
          como um disco de treva avelludada...

Talitha, _de mãos postas_

    Meu Deus, e nunca mais, nunca mais hei de vêl-o!...

Ruy

    Sim, Talitha, verá; o meu maior desvelo
    ha de ser o fulgor do seu formoso olhar.


SCENA VII

Os mesmos e Joaquina

Joaquina, _que tem ouvido tudo, feliz e contente, vem descendo com
lentidão e junto de ambos exclama:_

    Caia a benção de Deus neste formoso par...

_Ruy e Talitha, surprehendidos, afastam-se_

Ruy, _recuperando a serenidade_

    Talitha assim o quiz!

Talitha, _perturbada_

                         A culpa não foi minha...

Joaquina, _sorrindo e acariciando-a_

    A culpada fui eu que te deixei sósinha!

CAE O PANNO



SEGUNDO ACTO

Sala de visitas em casa do Cura; tudo muito simples. Janellas e portas.
Um oratorio com lampada. Um pequeno orgam.


SCENA I

Joaquina e Padre João

_Conversando alegremente_

Joaquina

    Graças a Deus, chegou por fim o grande dia...

Padre

    É verdade, é verdade! irmã, quem nos diria
    que a linda pequenita...

Joaquina

                             A formosa engeitada...

Padre

    Que Deus nos enviou naquella madrugada
    inclemente de inverno...

Joaquina, _interrompendo_

                             E parece-me ainda
    vêr a neve a cahir num pó macio e branco
    no cestinho de vime, ali, ao pé do banco...

Padre

    E eu tenho aqui no ouvido aquella prece linda
    que rezaste ao Senhor quando ella adormeceu
    depois de ter mamado...

Joaquina

                            E, lembras-te, que fina!
    Tão branquinha, tão loira, a rir, tão pequenina!

Padre

    Se me recordo, irmã!?... Pois então, se fui eu
    quem primeiro velou, durante o dia inteiro,
    o somno encantador da candida innocente!...
    Se me recordo, então?!...

Joaquina, _sorrindo_

                              Mansa como um cordeiro!...
    Mas uma coisa eu sei que esqueceste...

Padre, _curioso_

                                           Qual é?

Joaquina

    Não te digo, adivinha...

_Pausa prolongada_

                             É do primeiro dente...

Padre, _alegre_

    Ó Joaquina! É verdade! O que se fez!... Até
    parece que a alegria andava á tentação;
    e nós a rir, a rir, a rir perdidamente...
    Sempre ha coisas, meu Deus!...

Joaquina

                                   A vida é uma illusão,
    ligeira como o vento, ás vezes nem se sente,
    não é verdade?

_Pausa_

                   Falla?...

Padre

                             É, de certo, Joaquina.

Joaquina

    Pois então que mal faz que a gente esteja agora
    a rir do que lá vae por essa vida fóra?!...
    Pois agora é que é rir, que passou a desgraça,
    quando a gente é feliz té na morte acha graça.

Padre

    Por causa desse dente esteve a pequenina
    tres dias por um triz...

Joaquina, _triste_

                             Bem ás portas da morte...

Padre

    Valeu-lhe a vela benta...

Joaquina

                              Inda foi uma sorte
    eu ter guardado aquella...

Padre, _rapidamente alegre, interrompendo_

                               Ó! mana, e o baptisado?...
    Que festa! E que jantar! Aquelle frango assado,
    com rodellas de paio; inda me estão lembrando
    aquelle arroz de forno e aquelle vinho brando...
    Recordas?

Joaquina, _com malicia_

              Bem me lembro, até nesse jantar
    o vinho começou a subir e a trepar...

Padre, _interrompendo, com gravidade_

    Ó mana...

Joaquina, _saudosa_

              E já lá vão uns bons dezeseis annos...

Padre, _pensativo_

    Mas como corre o tempo!

Joaquina, _nostalgica_

                            E como a gente muda!...

Padre

    A vida não é nada! A magua, os desenganos,
    a enfermidade e a dôr fazem a gente velha;
    e não ha santo algum no céo que nos acuda!

Joaquina

    Pois sim, sim, mas depois os filhos vão crescendo
    e os paes a cada instante, a rir, vão-se revendo
    na luz do seu olhar em que tambem se espelha
    o tempo que passou...

Padre, _interrompendo_

                          Como o tempo é cruel!
    E aquelle immenso mal que um dia nos feriu?...
    Recordas? Que manhã! Mais amarga que o fel!

Joaquina, _olhando o céo_

    Se me lembro, Senhor, quando ella ficou céga,
    que só podia andar guiada por alguem!...
    Não hei de recordar? Recordo muito bem!
    Quanta vez, coitadinha, a chorar me pediu
    que lhe fôsse comprar dois olhinhos melhores
    para trocar os della...

Padre, _limpando os olhos_

                            Até se me despega
    o coração de dôr!...

Joaquina

                         E nenhum dos doutores
    atinou de a curar, nem sequer as promessas
    deram com ella a vêr...

Padre

                            Quantas vezes subi
    os tres degráos do altar e rezando pedi
    ferventemente a Deus, por amor de Jesus,
    que lhe tornasse a dar aos seus olhos sem luz
    a visão que perdera...

Joaquina

                           E agora tu confessas
    que a sorte a perseguiu sem dó nem piedade,
    apezar de ella ser um mimo de bondade?

Padre

    Confesso. Até que Deus mandou a desventura
    da sua juventude a alvorada feliz
    desse primeiro amor...

Joaquina

                           E se Elle assim o quiz!...

Padre

    Que seja feita a sua energica vontade,
    nos céos como na terra e que um dia a tortura
    tenha fim!

Joaquina

               Pois não teve, afinal?...

Padre

                                         Eu não sei...
    Dizem vocês que teve e a operação deixou
    o melhor resultado...

Joaquina

                          Elle diz que a curou!
    O que elle fez não sei, nem mesmo perguntei
    mas que ella torne a vêr...

Padre

                                É isso o que deseja
    a minh'alma sincera, é vêl-a venturosa!
    Entretanto, meu Deus, por que Talitha o seja
    é preciso, talvez, que a vara da desgraça
    me toque o coração e a fonte caprichosa
    das lagrimas estale. A dôr que me ameaça
    enche-me de pavor. Tenho um presentimento
    que me não abandona um dia, um só momento!

Joaquina

    Isso não vale nada...

Padre

                          Entretanto eu medito
    naquelle casamento.

Joaquina, _interrompendo_

                        O casamento?...

Padre

                                    Sim;
    o casamento, sim, que vae arrebatal-a
    á nossa pobre vida... Está, porém, escripto,
    e Deus que o destinou ha de por fim leval-a
    e nunca mais trazel-a aqui, junto de mim.

Joaquina

    E quem nos diz a nós que essa desconfiança
    não seja apenas medo?

Padre

                          O coração, irmã!...

Joaquina

    Ah! Sim o coração... o coração tambem cança!
    Já não regula o teu, nem serve de evangelho,
    é coração de padre e padre muito velho...

Padre

    Pois bem, não servirá, mas inda esta manhã,
    por occasião da missa, as lagrimas vertidas
    tombaram-me da face ao calix consagrado,
    ao recordar, então, que um dia, angustiado,
    hei de vêl-a partir! Como fôram sentidas
    essas bagas leaes que, em silencio, chorei
    e que juntas ao vinho eu mesmo consagrei!
    Eu creio em Deus e espero o golpe do destino
    como um favor do céo purissimo e divino!

Joaquina

    Descança, meu irmão! O Ruy é bom rapaz,
    tem muito amor á gente, ha de ficar, verás!
    Parece alma de santo e só pensa no bem.

Padre

    Póde ser, póde ser, mas recorda tambem
    a promessa que fez a nossa pequenita
    e, se ella conseguir outra vez a visão,
    lá se nos vae embora a meiga Carmelita...

Joaquina

    Ah! disso eu não receio; então crês que o convento
    tenha força capaz de virar-lhe a razão
    o fazel-a esquecer, assim, o casamento?

Padre

    Mas se não a levar o voto de noviça
    ha de a levar o amor que quanto vê cobiça.
    De certo a chamará, talvez para bem longe,
    a palavra inspirada e convicta do monge
    que nos fez o milagre e deu olhos á céga...
    É por isso, meu Deus, que est'alma não socega!


SCENA II

Os mesmos e Ruy

Ruy, _entrando_

    Bons dias, Senhor Cura.

_A Joaquina_

                            E a mãe Joaquina, então,
    como passou a noute? Aposto que sonharam
    muito commigo, sim?

Padre

                        Foi tal qual!...

Joaquina

                                         Pois eu, não;
    tive mais que fazer, dormi regaladinha
    durante a noite inteira...

Ruy

                               E bem conchegadinha?

Joaquina

    Nem mais!...

Ruy

                 E claro então que nem, sequer, cuidaram
    de Talitha...

Joaquina

                  Cuidei, sim senhor...

Ruy, _prazenteiro_

                                        Não entendo...
    se dormiu toda a noite...

Padre, _a rir_

                         É, eu não comprehendo
    tambem como se possa, a um tempo só, dormir
    e velar!... É bem certo o rifão: mais depressa
    se agarra um mentiroso...

Ruy, concluindo

                              Exacto; do que um coxo...

_Ambos riem muito_

Joaquina

    Mas eu é que não sei que tanto tem que rir!

_A Ruy_

    Nem é da sua conta

_ao Padre_

                       e nem da sua! Peça
    a Deus Nosso Senhor que dê mais tento aos dois:

_batendo com um dedo na testa_

    talvez haja por lá um parafuso frouxo...

Padre, _com gravidade comica_

    Ó mana, isso é demais...

Ruy, _abraçando-a_

                             Não vá subir á serra;
    deixemos essa historia a resolver depois
    e vamos conversar da luz que se descerra
    e que hoje ha de fazer toda a nossa alegria...

Padre

    Fallava eu nisso mesmo antes da sua entrada.

Joaquina

    E quer saber, menino, o que elle me dizia?...

Ruy

    Pois diga, francamente, e não esqueça nada...

Padre

    Não havia segredo, era tão natural
    e tão simples, meu Deus, o que eu dizia ha pouco...

Joaquina

    Deixe-o fallar, menino, anda que é mesmo um louco;
    não diz coisa com coisa, a tudo julga mal
    e já pelo peior!

_Contando pelos dedos_

                     Primeiro, que a pequena
    breve nos deixará, que o Ruy vae desposal-a,
    e depois, o convento: ora veja se cabe
    uma cantiga assim na cabeça d'alguem?
    Se ella ha de preferir aquella quarentena
    á casa dum marido!... A mim já não abala
    essa ideia!...

_Ao Padre_

                   Você nunca soube, nem sabe
    um marido bonito os encantos que tem...

_A Ruy_

    Finalmente, receia...

Padre, _interrompendo_

                          Eis onde pega o carro!...
    E sabe Deus, Doutor, que se não fôsse a crença!!...

Ruy

    Pois bem, Joaquina, diga, em que é que o Cura pensa?

Joaquina

    Que depois de casada...

Padre, _interrompendo_

                            Ouça-me então, eu narro:
    Receio, é natural, que ella siga o marido,
    e venha a solidão morar nesta choupana
    onde eu mesmo não sei como tenho vivido!
    E que será de mim e que será da mana,
    diga-me, Ruy, tambem o que será de nós,
    dois velhos, nesta casa, enfermos e tão sós?...
    vendo, a cada momento, a lucta nos escolhos
    da saudade e da dôr, sem ter no dia extremo
    aquella mão leal que feche os nossos olhos?!...
    Fique sabendo, Ruy, porque motivo eu tremo...

Ruy

    Sim, mas não tem razão, pensemos na ventura,
    nessa immensa ventura...

Joaquina, _interrompendo_

                             É mesmo assim que eu penso...

Ruy

    Que vae sentir Talitha ao vêr a luz do sol,
    tantos annos depois de longa noite escura,
    envolto o dôce olhar num véo pesado o denso!
    Vamos fallar de nós, deste novo arrebol
    que nos ha de banhar o coração e a alma,
    como um luar de outomno, uma alvorada calma,
    quando ella abrir á luz a languida pupilla
    dos olhos ideaes, tão doces e tão flavos,
    que são como um casal de abelhas que assimilla,
    nas flôres dos jardins, o loiro mel dos favos.
    Pensemos na expressão que o seu olhar vae ter
    quando ella vir ao sol tão brancos os cabellos
    do Senhor Cura...

Padre

                      Assim como a neve a descer
    sobre a minha cabeça, em flócos e novellos...

Joaquina, _saudosa_

    E nós dois a curvar ao peso da nevada,
    o corpo já pendido, a procurar a estrada
    que váe á eternidade...

Ruy, _interrompendo alegremente_

                            E já pensou, Joaquina,
    no famoso jantar?

Joaquina

                      Não, depois se combina.
    Como faltam ainda uns dias ao Natal
    vamos tratar primeiro...

Padre, _atalhando_

                             Isso! do nosso almoço,
    porque eu já estou sentindo um enorme alvoroço
    cá por dentro.

_A Ruy_

                   Que diz?

Ruy

                            Tudo quanto fizer
    a mãe Joaquina, está bem feito.

Joaquina, _ironica_

                                    Agradecida!
    Eu já volto.

_Sae_


SCENA III

Padre e Ruy

Padre

                 Então, Ruy, pensou no resultado
    que vae ter para nós a sua operação?

Ruy

    Tenho pensado muito e só me felicito:
    parece que se abriu um vasto rosicler,
    enchendo de perfume o lar da minha vida;
    descanta-me no peito o coração alado
    tão viva, tão alegre e limpida canção,
    que me parece ouvir palpitar o infinito
    e a dôce voz de Deus abençoar-me o nome...

Padre

    Pois bem, Ruy, entretanto a duvida consome
    os meus dias; medito e tenho muito medo
    de uma lucta que vae ser travada, em segredo,
    no seio de Talitha...

Ruy

                          E então que lucta é essa?

Padre

    O encontro, á luz do Sol, do amor e da promessa.
    Conheço-a muito bem. Alma branca de pérola,
    possue alguma coisa assim divina e cérula.
    Foi creada por mim, na dôce região
    em que repoisa a crença á sombra da oração...
    e sei que a pobresinha, um dia, prometteu
    professar e vestir o burel carmelita,
    se a Virgem lhe voltasse o seu perdido olhar.
    A Mãe de Deus ouviu a prece, mas agora
    que um novo dia aponta a curva azul do céo,
    mostrando-lhe o porvir numa formosa aurora
    de amor e de ventura, a angelica Talitha
    verá, na sua frente, erguer-se e fluctuar,
    constante, pertinaz, energica e severa,
    a promessa que fez, a consciencia austera
    a exigir-lhe que a cumpra e o seu primeiro amor
    a sorrir e a tental-a...

Ruy

                             Esse mesmo receio
    tambem me preoccupa. Eu já presinto a dôr
    que vae, como um espinho, amargurar-lhe o seio.
    Assim a Providencia ás vezes desconhece
    o proprio mal que faz e como que se esquece
    da victima innocente e nessa lucta enorme
    a desgraça feroz que não cança, nem dorme,
    de certo vencerá, se nós que a divisamos
    ao longe, no horisonte, a deixarmos crescer
    tão alto, que domine aquelle pobre ser.
    E preciso pensar e vêr bem se afastamos
    da sua intelligencia a ideia do convento,
    como se afasta a flôr dos impetos do vento.

Padre

    E quem terá prestigio e força de arrancar
    áquella consciencia, a dôce, a delicada,
    a candida expressão da promessa sagrada
    que ella espontaneamente ergueu junto ao altar?

Ruy

    Nao desejo arrancar essa illusão formosa
    á crença da sua alma... A raiz dessa rosa
    não é muito profunda, apenas esbraceja
    á flôr do coração, por isso não viceja
    ainda como o seio altivo e perfumado
    de uma corola aberta!... Um botão delicado
    agora principia a despertar á luz...
    Dessa casta missão, que moverá Jesus,
    sómente, Senhor Cura, a sua phrase austera
    se póde encarregar; o prestigio da idade,
    a alvura de luar das cans alabastrinas,
    a palavra de amor, piedosa e severa,
    do seu conselho bom, tão cheio de amizade,
    a sua consciencia e as affeições divinas
    que avizinham do céo o seu viver de santo,
    a fé que o seu olhar inspira a quem o fita,
    hão de estancar, por certo, a dôr, fonte do pranto,
    nos olhos virginaes da mimosa Talitha.

Padre

    Sacerdote de Deus que o serve, ha tantos annos,
    nas duras provações, na dôr, nos desenganos,
    sem nunca haver mentido uma só vez na vida,
    tenho medo que a voz de commoção me trema,
    que me fuja o valor á hora assim blasphema
    de entregar á mentira esta fiel guarida...

Ruy

    Caridosa mentira, ó culpa dôce e casta
    que salva uma esperança e mais um anjo afasta
    á amargura cruel de um grande sacrificio!
    Responda, Senhor Cura, em sua consciencia,
    acredita que Deus condemne uma existencia
    purissima de flôr, a tamanho supplicio?
    Que peccados terá Talitha a redimir
    que precise descer em vida á sepultura,
    agora que brilhou a estrella do porvir
    aos seus olhos, sem luz, na densa noite escura?
    Não mente, Senhor Cura, o labio quando salva:
    é aspera a mentira e tem a côr terrena,
    ao passo que a sua alma é branca, de açucena,
    e a sua phrase é sã, é redemptora, é alva!
    Em vez de sacerdote, a confessar a freira,
    seja Pae que dirige o coração da filha!
    Aquelle olhar sem luz, durante a vida inteira,
    desviou-lhe a razão para diversa trilha.
    Estenda-lhe o seu braço, ampare-a no caminho,
    traga de novo a rola ao palpitar do ninho!

Padre

    E pensa, Ruy, que um Pae, se tiver consciencia,
    deva pedir que a filha afaste da lembrança
    a promessa que fez, com tanta segurança,
    quando implorava a Deus piedade e clemencia?...

Ruy

    Meu amigo, nao vê que esse immenso fervor
    nascia do tropel da magua e do pavor?
    Que, assim feita, a promessa, além de não ser santa,
    as almas enlanguece e os corações quebranta?
    Não vê que faltou luz áquella intelligencia?
    Que aquella alma vergou á estolida exigencia
    do desespero intenso e bárbaro, que a ancia
    de revêr inda o sol da sua alegre infancia
    envolver-lhe a cabeça em nimbos de ventura
    a levaram, talvez, nessa hora de tortura,
    á extrema tentação de dar a mocidade
    por um dia feliz de viva claridade?
    Levita, cuja mão diariamente eleva
    ao throno do Senhor a hostia consagrada,
    levanta esse sacrario á curva constellada,
    a flôr que pede sol não viverá na treva!...

Padre, _depois de uma pausa_

    Pois seja assim, meu Deus! e tu que o vês perdôa,
    porque ha no meu peccado uma intenção tão boa,
    tão pura e tão leal, que eu sinto adormecido
    o velho coração por nunca haver mentido...


SCENA IV

Os mesmos e Joaquina

Joaquina, _entrando_

    Que grandes trapalhões, aqui a badalar
    numa palrice enorme e toda a gente á espera
    que o doutor mais o cura acabem de fallar...

Ruy

    Por que ha de ser assim tão má e tão severa?

Padre

    Rabugice de velha!...

Joaquina

                         É só meu o proveito...

Ruy, _abraçando-a_

    Deixe-o fallar, Joaquina, aquillo é tudo inveja...
    da sua mocidade!...

_Riem ambos_

Joaquina, _entre risonha e severa_

                        Ai, ai! o malcreado!
    Esquece a obrigação e falta-me ao respeito!
    E a culpada sou eu! Ora não ha! Pois veja
    que emquanto está gastando o seu palavreado,
    seria bem melhor que cuidasse da enferma,
    que vive ali no escuro abandonada e erma.

Padre

    E você que fazia?

Joaquina

                      Eu fui tratar do almoço;
    não andei de conversa á espera que o maná
    nos cahisse do céo.

Ruy

                        Por isso falla grosso!

Joaquina

    Não é da sua conta, ouviu?

Ruy, _com a maior gravidade_

                               Ouvi...

Joaquina

                                       Pois vá
    tratar do seu dever porque não faz favor...

Padre

    Então que succedeu?

Joaquina, _amenisando a voz_

                        É que a pobre pequena
    já cançou de esperar e quer vêr se o doutor
    lhe permitte que venha até aqui á sala.

Padre

    Que diz, Senhor Doutor?

Ruy

                            Que se Talitha ordena...

Padre

    Pois faça-se a vontade...

Joaquina

                              Então, eu vou buscal-a...

_Joaquina sae.--O Padre, ancioso, passeia ao longo da sala; Ruy,
encostado á meza, olha para a porta por onde sahiu Joaquina.--Pausa
cheia de anciedade._


SCENA V

O mesmos, Joaquina e Talitha

_Talitha entra de olhos vendados, pelo braço de Joaquina. Ruy e Padre
vão ao seu encontro e tomam-lhe as mãos para conduzil-a a uma cadeira.
Joaquina, deixando-a, vae cerrar as janellas e portas. Senta-se Talitha
e conversam um pouco._

Padre

    Como te sentes, filha?

Talitha

                           Afflicta, muito afflicta
    por ver a luz do dia...

Ruy, _tomando-lhe a mão_

                            A mesma curiosa
    de sempre!...

Talitha

                  Se parece á sua intelligencia
    que não tenho razão!... Ha tantos annos céga!...

Joaquina

    Deixa-o fallar, Talitha, isto é mais tagarella
    do que as creanças, vês?

Ruy

                             Pois não creia, Talitha!...

Padre, _tomando Ruy á parte_

    Prepare o coração e veja que anciosa
    aquella vida está... tenha a maior prudencia!

Ruy

    É muito natural; só emquanto não chega
    o instante de tirar a venda que lhe vela
    o dulcissimo olhar...

_A Talitha_

                          Diga, Talitha, ainda
    sente alguma dôr?

Talitha

                      Não! apenas a impressão
    do lenço que me causa a maior afflicção,
    a vontade feliz, viva, crescente, infinda
    de vêr de novo a luz...

Ruy

                            E não ha quinze dias
    que lhe descubro a vista?

Talitha

                             Ha, sim, mas lá no escuro,
    onde eu não vejo nada...

Padre

                             Assim é que convem...
    Depois de tanto tempo, então, já pretendias
    vêr livremente o sol? Seria prematuro...

Joaquina

    É muito perigoso!...

Ruy

                         E sentia-se bem?
    Chegou a distinguir, alguma vez, o aspecto
    ou a forma geral de qualquer um objecto?

Talitha

    Muitas vezes, pois não; primeiro vagamente,
    depois com nitidez.

Padre, _alegre_

                        Mas então a doente
    Recuperou a vista!?

Joaquina

                        Abençoada a hora
    em que o menino entrou nesta pobre choupana!...

Ruy

    Agradeçam a Deus!

Talitha

                      Doutor, porque demora
    esta venda cruel que o meu olhar empana?

Ruy

    Pois diga-me primeiro o que pensa de mim.

Talitha

    Que é muito feio e máo...

Joaquina

                              Bem feito!

Ruy

    E da Joaquina?...

Talitha

    Penso della que é santa e que tem de setim
    côr da neve o cabello, a pelle muito fina,
    como eu creio que são as santas da capella.

Ruy

    E o nosso Padre-cura?

Talitha

                          Um velhinho bondoso,
    que vive para o bem e sobre os pobres vela!
    Supponho que elle tenha a cabeça bem branca,
    o olhar muito suave e d'expressão tão franca,
    que appareça na face enrugada e senil
    a dôce candidez da sua alma infantil...
    E, cogitando assim, parece-me que vejo,
    dos altos de uma torre, a uma enorme distancia,
    como um jardim florido, a minha dôce infancia
    vicejando a sorrir, a sombra do seu braço,
    e o seu olhar de Pae enchendo todo o espaço
    de luz, de muita luz, tão dôce e tão leal,
    como o luar banhando as ondas de um trigal
    numa noite estreitada, e o sangue me palpita
    no seio, e o coração ardentemente agita
    na immensa anciedade afflicta e pressurosa
    de poder innundar a sua mão rugosa
    de lagrimas febris e de beijos sem fim.

Ruy

    Tantas coisas ao Cura e nada para mim!...

Talitha

    Exactamente, Ruy; a saudade de vêl-o
    augmenta a cada instante o meu triste flagello,
    porque nos braços delle um dia adormeci
    e não despertei mais... e ao Ruy...

_baixando a voz_

    eu nunca vi...

Ruy, _com caricia_

    Pois vae tornar a vêr a boa da Joaquina
    que a trouxe ao collo, a rir, quando era pequenina.

_Aproxima-se de Talitha para tirar-lhe a venda_

    Vae vêr o Padre-cura e matar os desejos
    de lhe cobrir a face e as mãos de muitos beijos...
    E vae me conhecer...

_Tira-lhe a venda_

_Silencio. Commoção geral. Talitha, acostumada á treva, não supporta a
luz; tapa os olhos com as mãos; depois habitua a vista, levanta-se,
olha, procura anciosamente. Antes de Talitha distinguir cada uma das
pessoas, encanta-se com a luz e com os objectos._

Talitha, _á luz, correndo á janella_

                          Céos! Vejo novamente
    a luz que me faltou durante a meninice!
    Ó Sol da minha infancia, a sorrir de contente
    torno a vêr-te de novo. Azul do céo, meiguice
    que ha muito não beijava o meu perdido olhar,
    como deves ser lindo ao dôce despontar
    da madrugada clara!

_Ao oratorio_

                        Oratorio velhinho,
    junto ao qual, em pequena, eu tanto vez rezei,
    como sinto vontade, agora que revejo
    o teu branco Jesus, do amor e do carinho
    com que pela manhã e á noite eu te beijei,
    e hoje, meu velho amigo, a estremecer te beijo!

_Passa as mãos nos olhos, como para certificar-se que vê bem_

    Mas parece-me um sonho!

_Pausa. De novo esfrega os olhos_

                            Eu já não sou a céga...

_Pausa_

    Eu vejo tudo...

_Estaca; olha as paredes_

                    Sim, sim tudo...

_Olha para o tecto, baixa os olhos ao chão, volta-se para os lados,
palpa as cadeiras, palpa a meza, corre á commoda_

                                     Eu não me engano.
    Eu vejo a minha mão!

_Olha para as mãos_

                         Mais branca do que o panno

_pega o avental e examina_

    do meu lindo avental!

_Põe a mão sobre o peito, como que desmaiada_

                          Ah! coração, socega...

_Neste momento Joaquina, receiando que Talitha caia, corre para
amparal-a, dizendo_

Joaquina

    Credo! Jesus, Senhor!

Talitha, _como que acordando aos gritos de Joaquina, ao vêl-a tem uma
commoção e exclama_

                          Joaquina! ó boa e santa
    velhinha, dôce mãe que tanta dôr e tanta
    lagrima derramaste, aos pés do meu bercinho!...

_Vendo o Cura, lança-se a elle, soluçando; abraça-o, beija-o, vê-o,
chora, ri, torna a abraçal-o, doida de alegria_

    Mas como eu sou feliz, meu Pae, meu Avôsinho!

_Deixa afinal o Cura e corre para Ruy_

    E Ruy que me salvou...

_Vae para abraçal-o, estaca: o pudor impede-a; baixa os olhos, em silencio_

                           Ah!... Ruy... eu nunca o vi!...

Padre, _soluçando e enxugando as lagrimas, aproxima-se della, toma-lhe a
mão e leva-a junto de Ruy_

    Beija-o, Talitha; beija, elle é digno de ti,
    emquanto eu vou render a Jesus Christo, filha,
    graças por essa luz que nos teus olhos brilha.

_Sae, enxugando os olhos_

Joaquina, _a Ruy_

    Á Virgem prometti uma lampada accêsa
    durante uma semana, e por sua intenção,
    se Ella daqui levasse as dôres e a tristeza,
    fazendo este milagre. Hei de accender o azeite
    e rezar a seus pés, com toda a devoção,
    pedindo á Virgem Mãe que este meu voto acceite.
    Louvado seja Deus! O Céo vos abençôe!

_Sae_


SCENA VI

Talitha e Ruy

_Depois de uma pausa prolongada_

Talitha, _sempre pudica_

    Porque me encara assim? Offendi-o? Perdôe.

Ruy, _caminhando para ella_

    Fitei-a porque sinto o brilho desse olhar,
    como um rio de luz suavissima, innundar
    a minha mocidade inhospita e sombria,
    num banho redemptor de dôce calmaria.
    E parece-me vêr a sombra avelludada
    da sua fronte branca, e pura, e macerada,
    fugir espavorida á luz desse clarão...

Talitha

    Que eu devo tão sómente á sua compaixão...

Ruy

    Esqueça que fui eu...

Talitha, _interrompendo_

                          Não sei como se esquece...

Ruy

    Então recordará, por toda a sua vida,
    o nosso amor feliz?

Talitha

                        A sua alma duvida?

Ruy

    Eu não duvido, eu peço, e vae na minha prece
    quanto minh'alma tem de puro sentimento...

Talitha, _curiosa_

    Na sua prece?

Ruy

                  Sim, tão cheia de fervor
    como a casta oração que a sua crença augusta
    soluça de manhã, mais triste que um lamento,
    que vae, azul em fóra, ao throno do Senhor,
    no murmurio subtil dessa bocca venusta.

Talitha

    Eu nunca olvidarei a dulcida ventura
    daquella noite densa, atormentada, escura,
    em cujo manto negro a sua mão bondosa
    rasgou a dôce aurora alegre e luminosa...
    O caridoso amor, que os seus labios deixaram
    gravado nesta mão que tanta vez beijaram,
    foi um sonho feliz numa noite polar,
    sonho de primavera em noite sem luar:
    nunca mais sahirá d'entre as minhas lembranças.
    Como um beijo de mãe na face das creanças,
    a primeira affeição nunca se desvanece,
    é como a flôr da lenda: a todo o instante cresce!
    Se eu a esquecesse, Ruy, como seria ingrata!

Ruy

    Talitha, minha vida, a densa cataracta
    não poude escurecer a lucidez suprema
    da sua alma christã, que vale um diadema
    de rainha e de santa, a cujos pés se inclina
    a minha alma que vae sobre a esteira argentina
    que o seu vestido traça ao longo da jornada,
    como no azul do mar as velas da jangada...

Talitha

    E se a vela, batida ao vento da desdita,
    levar á sombra eterna essa infeliz Talitha
    que a sua mão salvou da mesma sombra eterna?

Ruy

    Irei onde ella vá. Se a aragem fôr galerna
    e o nosso amor levar a gondola encantada,
    sobre o dorso da vaga em branca espumarada,
    eu seguirei, sonhando, á prôa, na epopêa
    que o seu divino olhar de candida sereia
    ha de inspirar, sorrindo, a quem o illuminou.
    Se o vento arremessar a vela que enfunou
    á rude penedia e sossobrar a barca,
    hei de salvar, então, a pequenina arca,
    onde vive encerrada a pomba da alliança,
    que faz do nosso amor uma alegre esperança!

Talitha

    Apenas esperança, e nada mais! A vida
    é um sonho que passa e foge; perseguida,
    occulta-se a esperança á sombra de um asylo,
    tão occulto tambem que, para descobril-o,
    desfaz-se muita vez ou rasga-se em pedaços
    a nossa fé mais pura e a crença, em estilhaços,
    desapparece e vae, por esse mundo fóra,
    como nuvens no céo ao despontar da aurora...

Ruy

    Porque razão, Talitha, os nossos pobres sonhos
    não poderão florir, alegres e risonhos,
    á plena luz do Sol?

Talitha

                        Sonhos são illusões
    que a madrugada esbate em limpidos clarões,
    e nada mais... Talvez as suas, sim!... As minhas
    irão fazer o ninho á sombra... As andorinhas
    tem que mudar de clima ao começar o inverno,
    levando para longe o seu amor materno...
    A minha acostumou-se á sombra da cegueira:
    se na sombra passou quasi uma vida inteira!
    Na sombra adormeceu, na sombra soluçou
    e na sombra sorriu... A sua mão rasgou
    este sulco de luz no meu perdido olhar,
    e a triste, acostumada á sombra tumular,
    fugiu espavorida ao lucido lampejo
    e tão distante foi, que nem sequer a vejo...

Ruy

    É o receio infantil que vem da escuridão!
    A esperança, Talitha, ainda um só instante
    não sahiu do calor que faz do coração
    o ninho aconchegado, o berço palpitante
    e o sacrario fiel do nosso casto amor!
    Na sombra nasce, e cresce, e vive tanta flôr
    sem perder o perfume!... E a esperança, Talitha,
    é o perfume do amor, a essencia que dormita
    serena e só desperta ao carinhoso afago
    dum beijo a murmurar em sonho dôce e vago...

Talitha

    Mas antes que o murmurio a despertasse, a luz
    do sol lhe recordou que aos olhos de Jesus
    e aos pés de sua Mãe ella havia ajoelhado
    no fervor da oração, em dia torturado,
    prendendo a vida inteira ao brilho de um olhar.
    Entre nós dois agora eleva-se um altar,
    e eu vejo-me prostrada e envolta no burel,
    sorrindo para o céo, por ter sido fiel
    á promessa que fiz...

Ruy

                          E o nosso amor, Talitha,
    não foi uma promessa?

Talitha

                          Ah! foi, mas a desdita
    lançou-lhe a maldição no dia em que nasceu
    e o nosso puro amor agora feneceu.

Ruy

    E a tua mão divina, angelico florão
    de algum ciborio astral, a tua mão de rosa
    e jaspe é que me vem ferir esta affeição
    que banhava em frescor a vida bonançosa
    deste meu sonho azul!... Mas quando, em nostalgia,
    á sombra do mosteiro, a tua phantasia
    volver para o passado esse formoso olhar
    tão cheio de candura e te fizer sonhar;
    quando a espiral do incenso á curva do docel
    subir da tua mão occulta no burel,
    como a dôce expressão duma saudade immensa;
    quando á noite o luar, vencendo a treva densa,
    entrar na tua cella e fôr beijar-te a face,
    como se por ventura envolta nelle entrasse
    a minh'alma saudosa a visitar a tua:
    quando esse olhar divino, em cuja luz fluctua
    a pureza vestal da tua castidade,
    sorrindo, remontar á dôce claridade
    das estrellas no céo, minha gentil Talitha,
    recorda o nosso amor, formosa cenobita,
    e pensa na tortura intermina e profunda
    desta vaga de fel que a minha vida innunda,
    medita nesta noite atroz, que me apavora,
    e tu me dás em paga a fulgurante aurora
    que o meu amor te deu, sorrindo de ventura...
    Bemdita seja a treva, a noite de amargura,
    bemdita seja a dôr, para sempre bemdita,
    que vem da tua mão, angelica Talitha!

_Talitha, em lagrimas, soluça. Ruy vae para sahir e encontra o Padre que
entra. Pausa, durante a qual o Padre, mudo de dôr, fita os olhos, ora em
Talitha, ora em Ruy._


SCENA VII

Os mesmos e Padre

Padre, _junto de Talitha_

    Porque choras, creança?

_Ruy, cabisbaixo, medita. Pausa, durante a qual se ouve o soluçar de
Talitha._

                            O teu silencio abala
    toda a minh'alma, filha; abre os teus labios, falla...

_Silencio. A Ruy_

    A sua commoção... Ruy! Mas que succedeu?

Ruy

    Foi mais uma illusão que se desfez... morreu!

_Sae_


SCENA VIII

Padre e Talitha

Padre, _abraçando Talitha_

    Não te apoquentes, filha! A dôr que te devora
    eu já previra ha muito. A noite tambem chora
    no calice da flôr, e o céo que tem a luz
    das estrellas sem fim, chorou, quando Jesus
    abriu por sobre a terra a sombra dos seus braços,
    abençoando a dôr que vaga nos espaços...
    Mas os teus olhos, ha pouco illuminados,
    não devem, por emquanto, andar annuviados
    que se pódem cegar de novo, sem remedio...

Talitha, _rapidamente, entre alegre e chorosa_

    Então se eu lhe pedisse...

Padre

                               O quer que seja, pede-o...
    Pede, Talitha, pede, e poupa o teu olhar...

Talitha, _lacrimosa_

    Pois bem, eu pedirei, que deixe-me chorar!

Padre

    Não te apavora a noite immensa e tenebrosa?!

Talitha

    Não me amedronta mais! A lua carinhosa
    vive na escuridão. Fui tão feliz na treva
    que chego a ter saudade e o coração me leva
    a pedir que me deixe ind'outra vez banhar
    na sombra eterna e mésta a luz do meu olhar...

Padre

    Que blasphemia, Talitha!

Talitha

                             O meu labio não erra,
    e o que elle disse, Padre, o meu fervor encerra.

Padre

    Medita, minha filha, e Deus Nosso Senhor
    envolva a tua crença em seu divino amor!

Talitha

    Pois ouça-me um instante a confissão singela
    da incomparavel dôr que a minha vida gela:

_Padre senta-se e Talitha ajoelha-se ao lado_

    Tinha soffrido muito; o immenso desespero
    de um dia de tortura, afflictivo e severo,
    me fez allucinar e, erguendo para os céos
    as mãos de quem supplica, eu implorei a Deus
    clemencia a tanta dôr. A noite de flagicio,
    que dava á minha vida o aspecto de um supplicio,
    parecia sem fim, sem luz e sem aurora.
    E, como a flôr que á noite exhala, espaço a fóra,
    o aroma delicado e puro do seu seio,
    vencendo o meu temor e o natural anceio,
    eu dei, como penhor da luz que supplicava,
    a minha mocidade e o porvir que eu sonhava;
    e prometti á santa e casta Samarita
    votar-me para sempre ao burel carmelita...
    Mas presenti, depois, que dentro de minh'alma
    despontava, sorrindo, uma esperança calma
    que innundava de luz o coração da céga,
    e commigo pensei:--Deus, de certo, não nega
    que veja agora a luz quem sempre foi escrava:
    e nesse pensamento a vida concentrava.
    Foi quando Ruy me fez a esmola caridosa
    de uma dôce affeição que tem a côr da rosa;
    e, sem pensar, jámais, em vêr de novo o mundo,
    o meu amor cresceu e fez-se tão profundo
    que para desprender-lhe as tumidas raizes
    eu rasgarei, talvez, mais largas cicatrizes...
    Depois a mão de Ruy abriu para os meus olhos
    o véo da madrugada e eu vi sobre os escolhos,
    toda em pedaços feita, a minha pobre herança,
    perdida para sempre a querida esperança
    que eu havia sonhado em dias de cegueira...
    Se sacrifico o amor pelo burel de freira
    eu desço á sepultura em plena mocidade;
    se não cumpro a promessa e minto á santidade
    do voto que levei á pedra de um altar,
    não devo conservar a luz do meu olhar
    e rogo novamente a Deus que m'a desfaça
    e á Virgem que conceda a pequenina graça
    de receber de novo esse penhor tão puro,
    deixando-me, outra vez, o mesmo olhar escuro!

Padre

    Escuta, minha filha.--A Providencia, ás vezes,
    se manda aos corações as dôres e os revezes
    não é que se compraza em opprimir as almas
    para lhes dar mais tarde as viridentes palmas
    do martyrio, não! Não, minha ingenua Talitha.
    Eras ainda tu mimosa e pequenita
    quando ficaste céga. Abrira para o mundo,
    apenas, a tua alma e o teu olhar jocundo
    sorria para a luz. Assim, innocentinha,
    tu ias de manhã commigo á capellinha
    e, emquanto eu murmurava as orações da missa,
    tu rezavas, sorrindo, angelica e submissa,
    á Virgem que te ouvia, a Salvé Magestosa,
    bem como se a rezara o labio de uma rosa...
    Desse labio subia um fervor tão intenso
    como a espiral azul e timida do incenso...
    Depois... faltou-te a luz, mas tu nunca faltaste
    á mesma hora de sempre, á missa. E que contraste;
    tu, pequenita e céga e o Sol com tanta luz!
    Muitos annos pediste á Madre de Jesus
    que te restituisse um dia o teu olhar,
    como se a Virgem fôsse autora da desdita
    que te ferira assim, minha meiga Talitha...
    Pois creança, tu crês que a Mãe que soffreu tanto
    no dia em que perdeu o filho casto e santo
    te pudesse roubar dos olhos transparentes
    a luz que illuminava as pupillas ardentes?
    Pois ella que te viu de rastros, a rezar,
    em todas as manhãs, aos pés do seu altar,
    levando-lhe, a sorrir, tantos ramos de flôres,
    podia assim voltar a crueldade e as dôres
    sobre a tua cabeça ingenua e piedosa,
    Ella que foi a Mãe mais dôce e generosa!?
    Escuta, minha filha:--o livro do Senhor
    descreve que, uma feita, andava na Judéa
    o divino Jesus prégando a sua idéa...
    Acercou-se do Mestre uma infeliz proscripta
    a quem a dôr matara a filha pequenita,
    e, em lagrimas, pediu que lhe voltasse á vida
    o cadaver da filha extremosa e querida.
    Abençoando a mãe que aquella dôr humilha
    disse Jesus então: «a tua pobre filha
    estava adormecida e agora está acordada;
    volta que a encontrarás a rir, já levantada».
    E a pobre mãe, que vira a pequenina morta,
    depois, ao regressar, foi encontral-a á porta,
    sorrindo alegremente, entre as demais creanças,
    como um bando gazil de cordeirinhas mansas!
    Pois bem, minha Talitha, o teu olhar dormiu
    sómente, não morreu. Quando a céga pediu,
    á Virgem Mãe de Deus, que um dia t'o salvasse,
    o seu divino olhar fitava a tua face
    e despertou do somno o teu formoso olhar
    que nunca fôra cégo e, apenas a sonhar,
    adormecera. E agora, agora que acordou
    póde fitar a mão de quem lhe descerrou,
    em nome de Jesus, a noite que o toldava,
    que te fazia triste e lacrimosa, escrava...

Talitha

    E a Virgem que me ouviu quando eu lhe prometti
    votar-me ao seu burel, por tanto que soffri,
    quererá perdoar a minha negra falta?

Padre

    Escuta-me, Talitha:

_Ruy surge ao fundo e escuta_

                        O coração exalta,
    pergunta-lhe o que sente, o que deseja; pensa
    muito, muito, em silencio, indaga a tua crença
    e faze o que disser a tua consciencia,
    mas não esqueças, filha, a dôce confidencia
    de Ruy que illuminou o teu escuro olhar,
    e lembra-te, depois, que, só por muito amar,
    o Christo perdoou á pobre Magdalena.
    E agora, que a tua alma está bem mais serena,
    attende-me!--Rezando adormeci. A aurora
    despertou-me, sorrindo, e entrevi, áquella hora,
    um sonho que fugia, em busca de outros lares!
    Subia docemente, ao claro azul dos ares,
    o vulto da Senhora, abrindo pelo Céo
    o palio virginal do seu materno véo,
    desnastrado o cabello, um manto de rainha
    recamado de sóes; a nuvem que a sustinha,
    toda cheia de luz, deixava atraz de si
    um rastro de fulgor. E eu lembrei-me de ti...
    Curvaram-se a tremer as pernas fatigadas,
    ao peso esmagador das longas invernadas;
    e assim, postas as mãos, olhando para o vulto
    da Virgem que eu adoro em fervoroso culto,
    pedi-lhe que mandasse um raio de luar
    ás lagrimas de fel da tua dôr sem par...

_Talitha começa a sorrir_

    E a Virgem, a sorrir, do seio do infinito,
    baixou por sobre o meu um dôce olhar bemdito
    e eu vi rolar no azul da immensa vastidão,
    no fulgor de uma estrella, o beijo do perdão...

Talitha, _correndo para a porta_

    Ruy!

_Encontra-se com Ruy e pára, pudibunda, de olhar no chão_

Padre, _só, á frente da scena, mãos postas, a olhar para o céo_

          Perdôa, Senhor, se lhe menti, perdôa;
    o meu labio peccou, mas a intenção foi boa!

CAE O PANNO



TERCEIRO ACTO


Modesta sala de jantar em casa do Cura. Á direita, um oratorio sobre uma
commoda antiga; á esquerda, entre portas, um orgam.


SCENA I

Joaquina, só

_Joaquina procede aos arranjos da casa para uma noite de festa; cuida do
oratorio, accende-lhe as velas, começa a pôr a meza para a ceia; tudo em
silencio. Depois de alguns momentos entra Ruy._


SCENA II

Joaquina e Ruy

Ruy, _entrando_

    Boas noites, Joaquina!

Joaquina

                           As mesmas Deus lhe dê!
    Inda bem que chegou; pensei que não voltasse
    aqui á nossa casa!

Ruy

                       Essa agora... e porque?

Joaquina

    É boa! Inda pergunta? Esteve lá por fóra
    durante todo o dia e sem que se lembrasse
    que neste pobre asylo ainda vive e mora
    gente boa e christã...

Ruy, _interrompendo_

                           E quem lhe disse tanto?
    Vão vêr que foi intriga ou treta de algum santo!...

Joaquina

    Hereje! brinque, brinque assim com Jesus Christo
    e ha de vêr se é feliz! Não sabe que o Natal
    é a noite sagrada?

Ruy

                       É, sei! Não foi por mal
    que faltei. Pela vez primeira não assisto
    á missa desta noite. Ha bem vinte e seis annos
    que falleceu meu Pae: rompia a madrugada.
    Começaram-me assim os tristes desenganos
    e a lucta da existencia abriu-se amargurada.
    Desde então, minha Mãe, boa e santa velhinha,
    recorda tristemente, apenas se avizinha
    a noite do Natal, a dôr daquella aurora,
    e emquanto tudo ri, ella soluça e chora...

Joaquina

    Sem mesmo a conhecer eu tenho pena della.

Ruy

    E hoje que eu sou feliz a pobresinha vela.
    Creio que neste instante os seus labios de crente
    envolvem numa prece encantadora e mesta,
    num templo illuminado, ao celebrar da festa,
    o esposo que morreu e o proprio filho ausente.

Joaquina

    Devera ser então mais um grande motivo
    de não faltar á missa.

Ruy

                           E creia que é bem vivo
    o meu pezar. Entanto a razão dessa falta
    foi sagrada e vae vêr como ella tanto exalta
    a minha consciencia.

Joaquina, _ironica_

                         Eu imagino bem!

Ruy

    Não posso vêr soffrer o coração de alguem...
    Attenda-me, Joaquina, e diga se eu podia
    negar-me, sem peccar, ao dever que exigia
    de acudir pressuroso ao leito d'um enfermo
    ardendo em alta febre e bem proximo ao termo
    duma longa existencia asperrima e deserta,
    onde apenas a dôr tinha uma entrada aberta.
    Conhece aquelle atalho escuro e retirado
    que vae dar á capella?

Joaquina, _benzendo-se_

                           Onde foi enforcado
    O marido da Emilia?

Ruy

                        Exactamente, ahi.
    Mesmo nesse logar em que ficou a cruz
    existe uma choupana á qual me recolhi
    para fugir á chuva. O caminho conduz,
    pela esquerda, á Capella; a direita, ao moinho
    do velho reformado! Entrou-me na choupana
    a neta do sargento a dizer que o avosinho
    quasi estava a expirar. Fôra maldade insana
    deixar morrer o velho á mingoa de cuidados.
    Fui. Mas antes não fôsse. Em nada lhe valeu
    a visita que fiz, o velho falleceu...
    Como devem morrer os bravos e os soldados
    assim elle expirou, fitando bem a morte,
    firme como um leão e simples como um forte.
    Uma miseria extrema; os netos quasi nús,
    com fome e sem comida ha dois dias!

Joaquina, _benzendo-se_

                                        Jesus!
    E aqui tanta fartura!

Ruy

                          A Patria é bem madrasta!
    Esse velho, que a morte aos netos hoje afasta,
    tem no peito e na face algumas cicatrizes
    das lanças do inimigo.

Joaquina

                           Ah! são bem mais felizes
    os soldados que vão á guerra e que lá morrem
    no campo da batalha.

Ruy

                        Exacto. Os outros correm
    o perigo maior de morrer desprezados, como
    esse pobre velho.

Joaquina

                      E estão abandonados
    os netos, Sr. Ruy?

Ruy

                       Não estão; felizmente
    fallei ao regedor e tudo se arranjou;
    demais a mais tambem, segundo me informou,
    têm direito á pensão que o velho Avô doente
    não poude receber.

Joaquina

                       E quem receberá
    essa triste pensão, se o velho que serviu
    não poude recebel-a e nem sequer a viu?

Ruy

    Tambem já pensei nisso e tudo se fará,
    minha boa Joaquina. Assim, o moribundo
    me obrigou a faltar á missa do Natal.
    Se um pobre que estivesse a deixar este mundo
    lhe pedisse um amparo, a sua alma leal
    negaria essa esmola?

Joaquina

                         Ainda m'o pergunta?

Ruy

    Á sombra desse olhar tudo se abriga e junta
    e eu leio na pupilla esmaecida e pura,
    num misto de mudez, de pranto e de ternura,
    que o seu bom coração tambem acudiria.
    E por isso faltei; tenho, porém, certeza
    que Talitha por mim, ao menos, rezaria.
    E quando assim se tem tão lucida pureza
    a interceder por nós aos pés da Divindade,
    parece que a nossa alma, em dôce alacridade,
    mergulha no baptismo, em aguas de um Jordão
    todo feito de amor, de beijos e perdão!

Joaquina

    Ah! quando eu penso em tudo o que se tem passado
    depois que aqui chegou!... Como isto está mudado!

Ruy

    Tudo é tão natural que não nos vale a pena
    gastar tempo a pensar em cousa tão pequena.

Joaquina

    Então é cousa pouca uma pobre engeitada,
    ha tanto tempo céga, e sem mãe, desprezada,
    encontrar quem lhe dê de novo o seu olhar,
    e quem lhe tenha amor e a queira desposar!?

Ruy

    Engeitada, que importa? O coração não pensa,
    ama sómente e assim não indaga a nascença
    da mulher que o inspirou. Mas não é desprezada
    a formosa Talitha; esta mansão amada
    serviu de lar paterno á sua dôce infancia
    e, se aqui respirou a magica fragrancia
    de uma alma aberta, em flôr, se a sua mão, Joaquina,
    materna, a acompanhou desde assim pequenina,
    pouco importa que a mãe a tivesse engeitado;
    amei-a, e nesse amor eu tenho baptisado
    o sonho do porvir...

Joaquina

                         Diga, e quando casar
    vae leval-a d'aqui?

Ruy

                        Seria derrancar
    o santo coração do velho Padre-Cura;
    nem tanto necessita a completa ventura
    das minhas illusões, nem teria coragem
    para tamanho mal; seria mais selvagem
    que a propria malvadez

_abraçando-a_

                           tirar ao seu amor
    o prazer de aspirar o aroma dessa flôr,
    que ao seu lado cresceu, tão branca e tão fagueira,
    como um lyrio do valle ao pé de uma roseira!

Joaquina

    Sim; isso diz agora e depois de casado
    ha de pensar, de certo, em sua mãe saudosa,
    e para que ella veja, alegre e carinhosa,
    o filho salvo e bom, tão robusto e córado,
    o Ruy tem de levar comsigo a pequenita
    que nos serve de filha e que nos faz felizes!...

Ruy

    Descance, boa amiga; este amor tem raizes
    que eu nunca poderei arrancar de Talitha,
    nem penso em perturbar a paz do vosso azylo
    que a propria mão de Deus formou assim tranquillo.

Joaquina

    Se Deus que nos dôou a innocentinha, agora
    mandasse a Mãe aqui para leval-a embora,
    onde quer que ella fosse havia eu d'ir tambem,
    porque a trouxe no collo e quero tanto bem
    que passo a minha vida olhando o azul dos céos,
    para vêr se descubro a Santa Mãe de Deus
    e pedir-lhe que deixe á tremula velhice
    dos meus dias sem luz, ao menos, a meiguice,
    daquelle coração que eu vi desabrochar...

Ruy

    E o céo que lhe responde?

Joaquina

                              O céo?... Nada! A rezar
    tenho passado a vida e, nesta idade, a gente
    já não póde chorar, as lagrimas seccaram
    e por isto se soffre, a dôr é mais pungente
    quando se quer chorar e os olhos já cançaram.

_Ouve-se a voz de Talitha, fóra_

Taitha

    Ó Joaquina! Ruy, Ruy...

Joaquina

                            Ahi vem a traquina;
    E ha de chamar por tudo a pobre da Joaquina...

Ruy, _corre á porta_

    Mas como vem alegre...

_Entra Talitha_


SCENA III

Os mesmos e Talitha

Talitha, _ao entrar, vendo Ruy, estaca: fica silenciosa e em seguida:_

                          Eu bem disse ao padrinho...

Ruy, _tomando-lhe a mão_

    Que foi que tu disseste, alma da côr do linho?

Talitha

    Que ninguem póde crêr na jura...

Ruy, _interrompendo com meiguice_

                                     Das mulheres?...

Talitha, _ralhando com carinho e retirando a mão_

    Dos homens... atrevido, ainda tens coragem
    de rir?...

Ruy, _alegremente_

               Ou de chorar, se tu assim preferes...

Talitha

    Mas a tua promessa? Esqueceste a homenagem
    da noite de Natal?

Ruy

                       Pois pergunta á Joaquina...

Joaquina, _intervindo_

    A mim? não sei de nada...

Ruy, _a Talitha_

                              Ella está gracejando;
    sabe tudo tão bem como eu, mas imagina
    que tu és ciumenta e então, de vez em quando,
    a recordar o tempo em que era rapariga,
    faz pirraças á gente, armando alguma intriga...

Talitha

    A verdade, porém, é que faltaste e eu não.

Ruy

    Pois bem, faltei; mas tive uma forte razão:
    o velho reformado estava agonisante
    e mandou-me chamar; eu fui no mesmo instante
    assistir-lhe á agonia. Expirou-me nos braços:
    ia o sol a fugir na curva dos espaços,
    á hora em que soluça o sino das trindades
    o Angelus sagrado envolto nas saudades
    que a terra balbucia, agradecendo ao céo
    a luz que lhe mandou na flacidez do véo
    crepuscular e dôce, oiro tecido em gaze,
    sem brilho de offuscar e sem calor que abraze.

Talitha

    E nunca mais o vi, nem o verei jamais!...
    Foi cégo como eu fui. Nas manhãs estivaes
    muita vez o encontrei, cançado dos trabalhos,
    pedindo esmola ahi por todos os atalhos.
    Elle ia pela mão da neta, uma creança!
    Era um velho senil á sombra da esperança!
    Eu ía recostada ao braço do padrinho
    e, ao sentir-me, dizia: «ampare-me esse anginho
    --amigo Padre-Cura, eu quero que elle veja
    --como um velho soldado, a mendigar, rasteja
    --neste mundo de Christo»--. E ficava a pensar
    naquelle desgraçado. O meu perdido olhar
    novamente voltou, quando o delle se apaga
    na escuridão mortal que tudo cobre e alaga...
    Se eu pudesse amparar as pobres creancinhas!

Ruy

    Não faltará calor ás meigas andorinhas.

Joaquina

    E quem lhes ha de dar?

Ruy

                           Quem?

Talitha

                                 Deus, Jesus e nós!

Ruy, _com ingenuidade_

    Nós seremos os paes:

_a Joaquina_

                         tu e o Cura, os avós...

Joaquina

    Valha-te Deus, tontinha!

Ruy, _a Talitha_

                             Encantadora e casta;
    ó Virgem Conceição, flôr, ingenua madrasta,
    bemdito seja o dia em que te amei, formosa,
    sonho feito mulher, sorriso feito em rosa...

Talitha, _admirada_

    Que tem isso de mal? Tambem elle era cégo,
    não podia cuidar da neta que o guiava
    e agora, felizmente, eu tenho no aconchego
    da minha mocidade a luz que me faltava
    e posso olhar por ella. A minha desventura
    não teve neste asylo o amor do Padre-Cura?
    Depois não tive ainda?!...

_Olha para Ruy, baixa os olhos e cala-se_

Joaquina, _beijando-a_

                               Ah! minha tagarella!...

Ruy

    Depois tiveste ainda o teu formoso olhar
    que andava lá no céo illuminando a estrella
    d'alva. E agora tambem tens muito que narrar
    do que viste na igreja...

Talitha

                              Ah! na missa do gallo?
    Eu vinha exactamente aqui para contal-o...
    O que eu vi, Ruy, na igreja, emquanto o Padre-Cura
    dizia aquella missa!... Inda agora fulgura,
    sobre a minha retina, a vivida impressão
    do seu olhar tão dôce e manso, de perdão...
    Inda agora o sorriso, angelico e furtivo,
    do seu labio de rosa, orvalhado e festivo,
    innunda de frescor a minha vida inteira,
    como o rócio da noite á flôr da amendoeira.

Ruy

    Quem foi que te sorriu com tamanha affeição,
    que fez vibrar tu'alma em tanta commoção?

Talitha

    Um milagre de Deus! Se tens fé, acredita
    no que te vou dizer.

Ruy

                         Dize, minha Talitha!

Joaquina, _approximando-se_

    Conta, conta o que foi.

Talitha

                            Pois nesse caso, ouvi:
    Quando eu entrei no templo um borborinho enorme
    encheu toda a capella; então foi que eu senti
    como é triste ser cégo e ter olhar que dorme
    tantos annos de vida, em funda lethargia,
    sem a benção gentil de vêr a luz do dia!
    Toda a gente fallava, olhando para mim,
    e eu muito satisfeita a caminhar assim...

_Imita o andar magestoso_

Ruy

    Como tu és vaidosa!

Joaquina, _sorrindo e pondo as mãos_

                        E como ella é catita...

Talitha, _a Ruy, ingenua_

    Mas se eu fôsse a teu lado, inda era mais bonita!...
    Deram-me tanto abraço e beijaram-me tanto!
    A capellinha estava alegre, era um encanto.
    Á entrada muita flôr, o altar com muita luz,
    e num bercinho branco o menino Jesus,
    tão lindo, tão mimoso e tão engraçadinho,
    que parecia mesmo um rouxinol no ninho.
    Uma velha fitou-me e disse: que princeza!
    Um velho lavrador olhou-me com surpreza
    e bem alto fallou: «Que Deus Nosso Senhor
    te dê um bom marido»...

Ruy

                            E que disseste, amor?

Talitha

    Nem uma palavrinha! Eu ía bem calada,
    entre muito contente e muito envergonhada.

Joaquina

    E depois?

Talitha

              E depois... fui então ajoelhar,
    sósinha, nos degráos que sóbem ao altar,
    á espera que viesse, a meia noite, a missa.
    Rezando ali, a sós, com fervor de noviça,
    lembrei-me da promessa e as lagrimas rolaram,
    subindo-me do seio aos olhos que as choraram.
    Eu sentia uma dôr immensa, por fugir
    ao voto que fizera e, em vão, quiz resistir,
    á minh'alma affluia um extranho remorso
    e embora eu despendesse o mais sincero esforço,
    para conter o pranto, o coração vergava
    e, numa agitação convulsa, palpitava
    acabrunhado e triste...

_Ouve-se o repicar dos sinos_

Joaquina, _interrompendo_

                            Ai! que acabou a festa
    e a ceia por fazer, mas que cabeça é esta!...

_Sae e entra constantemente, nos arranjos da casa_

Ruy

    Mas não te lembras já que, em nome do Senhor,
    o Cura abençôou o nosso casto amor?
    Não te lembras tambem da lucida visão
    que te trouxe do céo a estrella do perdão?

Talitha

    De tudo me lembrei; não sei que força extranha
    pesava sobre mim, como immensa montanha,
    e não deixava erguer o meu olhar medroso
    para encarar de frente o vulto magestoso
    da Virgem Mãe de Deus! Mas quando o Cura entrou
    parece que a minha alma

_torna o sino a repicar_

                            alegre despertou...
    Senti uma esperança illuminar-me o seio
    e dissipar-se então esse cruel receio!
    Rezei muito, rezei com tanta commoção,
    pedi com tanto ardor, com tanta devoção,
    que a minh'alma subiu, tão leve e tão submissa,
    aos pés da Mãe de Deus, durante aquella missa,
    como se fôsse presa a hostia consagrada
    que o Cura levantava á cruz abençoada...
    Com ella o meu olhar de supplica subiu.
    E fitando, sem medo, a face alabastrina
    da candida judia, eu vi que Ella sorriu
    com tão dôce expressão de placidez divina
    que me banhou de luz amortecida e calma
    a minha santa crença e fez vibrar minh'alma!
    Senti que era o perdão que vinha, n'um sorriso,
    abrir á minha vida um novo paraiso...
    Ergui-me docemente, approximei-me d'Ella
    e, beijando-lhe a mão que sobre o mundo vela,
    ouvi, como um soluço, a sua voz tão pura,
    dizendo-me em segredo, em intima ternura:

                Que lindos olhos, Talitha,
                os olhos que o Ruy te deu:
                tem uma luz infinita,
                parecem feitos no céo...

_Joaquina, que tem parado o trabalho, attrahida pela narrarão de
Talitha, enlevada, abraça-a, lacrimosa, beija-a..._

Ruy, _emquanto Joaquina abraça Talitha_

    Mas tu ouviste bem, tens a certeza plena?

Talitha, _desprendendo-se de Joaquina_

    Ouvi perfeitamente; a voz era serena,
    tão serena e subtil que a mim se affigurava
    ser o proprio silencio assim que me fallava.

_Ouve-se o repicar dos sinos e começa-se a ouvir as primeiras vozes dos
córos distantes._

    Estremeci de alegre e acreditei então
    que surgira, afinal, o dia do perdão;

_Approximam-se as vozes_

    desci do altar, corri, deixei a missa e vim,
    como se o coração cantasse dentro de mim,
    para dizer-te, Ruy, que a minha vida é tua.

_Corre para elle, mas detem-se e, olhando para Joaquina, baixa os olhos
timida, brincando com o avental: pausa e silencio._

Joaquina, _percebendo_

    Filhos, não serei eu quem assim vos destrua
    as santas illusões...

_ouve-se o côro muito perto_

                          Se Deus as abençôa!...

_Sae_

Talitha, _vendo-a sahir_

    Ruy!

_Corre para elle_

Ruy, _recebendo-a nos braços_

         Ah! minha Talitha!

Talitha, _abraçada, beija-o_

                            Oh! meu amor!

Ruy, _beijando-a_

                                          Perdôa!

_As vózes elevam-se distinctamente com a musica das violas e gaitas de
fóles; pausa, emquanto os dois, enleiados, nada ouvem._


SCENA IV

Os mesmos, Padre, raparigas e rapazes

_O Padre, entrando com as raparigas e rapazes, surprehende ainda os dois
que se beijam e Joaquina que está estupefacta, junto á porta._

Padre, _fingindo que não vê e fallando alto_

    Raparigas, entrai, a noite é de alegria...

Talitha, _surprehendidos ambos, desprende-se de Ruy e diz_

    Tem razão, meu padrinho, nossa phantasia
    deve expandir-se agora...

Padre, _com caricia, baixo a Talitha_

                              Assim, aos beijos, não...

Talitha

    Quem poderá conter o nosso coração?

_Ás raparigas_

    Raparigas, cantae! A céga já tem vista;
    que a Virgem Mãe de Deus a todas vós assista;
    a freira, que devia entrar para o convento,
    teve hoje a redempção do seu cruel tormento!

Um rapaz

    Viva a céguinha!

O grupo

                     Viva!

Outro rapaz

                           E mais o Padre Cura!
    Viva!

Uma rapariga

          Viva quem fez este milagre!

O grupo

                                      Viva!

Um rapaz

    E a mãe Joaquina, então, que é mesmo uma ternura?!

Todos

    Viva!

Joaquina

          Muito obrigada!

Ruy

                          Olha como é altiva!

Padre

    Raparigas, dançae!

Ruy, _a uma rapariga_

                       Pois cante a cotovia,
    e vibre essa garganta até romper o dia...

_As raparigas formam roda, os rapazes afinam as violas e o grupo, com
Talitha e Ruy á frente, dançam a Ciranda. O Cura, sentado em uma
cadeira, observa alegremente a scena._

Uma rapariga

            Quem deu espinho ás roseiras
            não teve muita razão,
            antes désse ao coração,
            como deu ás Tarangeiras.

            Deus que creou tantas flôres
            fez as estrellas aos centos:
            não dorme quem tem amores,
            que os amores são tormentos.

Segunda rapariga

            Toda tu pareces feita
            com a cêra das abelhas,
            quando alguem d'aqui t'espreita
            ficam-te as faces vermelhas.

Primeira rapariga

            Quem ao pé do Sol caminha
            anda sempre com calor,
            Quem á lua se avizinha
            póde até crear bolôr.

            As tuas tranças são pretas,
            pareces de cêra mol,
            não te abeires muito ao sol,
            olha lá não te derretas...

_O Cura, satisfeito e alegre, ri a cada descante das raparigas e
acompanha-as com um olhar de caricia. Enthusiasmado, levanta-se e
encaminha-se para o grupo:_

Padre

    Tambem eu quero entrar na dança, raparigas,
    e ser como a papoila em meio das espigas!

Primeira rapariga

            Viva, viva o Sr. Cura,
            que é o paesinho desta aldeia,
            que tem a alminha mais pura,
            mais alva que a lua cheia.

_Neste momento ouve-se bater á porta violentamente, ao mesmo tempo que
cessam os guizos denunciativos de um carro que parou á porta.
Quando ouve bater, o Padre Cura soffre uma visivel transformação de
physionomia que todos os circumstantes percebem._

Padre

    Um carro, Santo Deus!

_Cessa toda a alegria e acercam-se do Padre que, repentinamente, põe as
mãos em oração._

Ruy, _acudindo_

                          Senhor Cura, que tem?

_Ouve-se bater de novo_

Padre, _pensativo_

    Ha tantos annos já!

_Batem novamente. O Cura, sem dar uma palavra, benze-se, vae á porta e
abre-a. Entra uma senhora de lucto, acompanhada de um velho creado, com
malas e agazalhos. Todos emmudecem e olham-n'a curiosamente._


SCENA V

Os mesmos, Marqueza e Escudeiro

Padre

                         Perdão! Procura alguem?

Marqueza

    O Cura João Fulgencio! É Vossa Senhoria?

Padre

    Sou eu mesmo, Senhora!

Marqueza

                           Inda bem, obrigada!
    Eu já tinha certeza, o céo me conduzia.
    Não quero perturbar a alegria da noite:
    Viajante, sósinha, e quasi desviada
    pela neve que tomba, eu peço onde me acoite.

Talitha

    Sois bem vinda, Senhora; aqui sob este tecto
    encontrareis conchego e o mais sereno affecto.

Marqueza, _olhando-a_

    Obrigada, creança!

Talitha

                       A Noite é de Natal
    e o nosso coração não sabe fazer mal...

Padre

    Deveis estar cançada, o inverno vae tão duro!

Marqueza

    Pensei que não chegava á sua residencia.
    A nevada é cruel, o caminho coberto,
    o frio é de cortar, o céo está escuro,
    nem um astro se vê, perde-se a consciencia
    da nossa propria vida, a estrada é um deserto...
    Nem sei como cheguei...

Talitha

                            Jesus a protegeu...

Marqueza

    Eu creio bem que sim e dou graças ao céo!

Padre

    E não quer repousar?

Marqueza

                         Antes, porém, quizera,
    Senhor Cura, dizer o que me traz aqui...

Padre

    Assim seja, Senhora, e ao bom Jesus prouvera
    que eu pudesse remir a dôr que presenti...

_a Talitha e Ruy, fingindo alegria_

    Ide com Deus, cantae!

_O grupo retira-se em silencio, curiosamente_

Talitha, _a Ruy_

                          Quem é? Quem te parece?

Ruy

    Não sei, mas esta voz a minh'alma conhece.

_sahem_


SCENA VI

Marqueza e Padre

Padre

    Senhora, estamos sós! Vossa Excellencia ordene!

Marqueza

    Ouça-me, Senhor Cura! ouça e não me condemne!

Padre

    E condemnar por que? Se tem algum peccado,
    o coração de Deus não estará fechado!

Marqueza

    Pensei chegar mais cedo: hontem, pelo sol posto,
    estaria acabado este immenso desgosto
    que me tortura a vida; a asperrima inverneira
    embaraçou-me o passo e augmentou-me a canceira.

Padre

    E vem de muito longe?

Marqueza

                          Ah! sim, de bem distante,
    anciosa, esperando este feliz instante.
    Ha muito tempo, um dia, ao romper da alvorada,
    alguem que veiu aqui lhe trouxe uma engeitada...

Padre

    É verdade, Senhora!

Marqueza

                        Uma carta pedia
    ao Cura desta aldêa a esmola caridosa
    de guardar a creança, até que a mãe chorosa,
    depois, a procurasse. Afinal esse dia
    felizmente chegou e a mãe que a dôr humilha,
    Senhor Cura, a seus pés, vem procurar a filha...

Padre

    E como poderei saber se esta senhora
    que se confessa mãe, embora peccadora,
    é realmente a mãe da creança engeitada
    ha tantos annos já, naquella madrugada
    tristissima d'inverno?

Marqueza

                           A carta igual áquella
    que o Senhor Cura achou no berço, junto della...

Padre, _tomando a carta_

    Mas falta alguma cousa...

Marqueza

                              A pérola? está aqui...

_Dá-lhe a pérola_

    Pois desde aquella noite eu jámais a perdi
    de vista e a conservei com cuidadoso afan,
    como alguem que resguarda um rico talisman.

Padre

    Seija feita de Deus a sagrada vontade,
    embora se me parta o coração de dôr...

Marqueza

    Essa dôr, Senhor Cura, ha de fugir vencida!
    Eu não quero quebrar tão dôce piedade
    que fez de minha filha o seu risonho amor,
    nem desejo apagar a luz da sua vida
    num soluço de magua.

Padre

                         Então não vem buscal-a?

Marqueza

    Não, não, meu bom amigo, eu venho acompanhal-a.
    A minha desventura, emfim, se condoeu
    dest'alma cruciada e triste que viveu
    reclusa na saudade, apenas na esperança
    de vêr um dia ainda essa gentil creança...
    Se nunca procurei saber dessa existencia
    não é que se apagasse em minha consciencia,
    como um sonho infeliz, a lembrança dorida
    dessa flôr do peccado em anjo convertida.
    Como eu pensava nella, ah! sabe-o Deus sómente!
    Que lagrimas chorei por conserval-a ausente,
    e quanto passei eu por causa desta filha
    dil-o, com eloquencia, a dôr que me polvilha
    a cabeça de cans. Amal-a com ardor
    e ter de estrangular todo esse immenso amor!...
    Vêl-a crescer ao longe, e calcular-lhe o encanto,
    mas sem poder beijal-a, adivinhar que o pranto
    as faces lhe banhava e não poder sorvel-o,
    que tormento cruel, que duro pesadello...
    Soffri, meu bom amigo, e soffri a sorrir,
    que até para soffrer é preciso mentir!
    Não me pergunte, Padre, a origem desse amor
    ninguem perguntaria ao seio de uma flôr
    como foi que nasceu o aroma que elle exhala.
    Bastará que lhe diga: a dôr que me avassalla
    é a amiga fiel que me segue ha vinte annos,
    que nunca me deixou; que os tristes desenganos
    dessas horas sem luz foram os companheiros
    da minha mocidade e os filhos feiticeiros
    que encheram o meu lar de pranto e de amargores,
    como um dia sem sol, como um jardim sem flôres.
    Um dia, Sr. Cura, em confissão, no templo,
    diante do seu olhar que eu agora contemplo
    humilde e agradecida, hei de contar-lhe a historia
    da minha desventura e desta dôr ingloria,
    mas não exija, Padre, agora, que eu recorde
    o passado infeliz, que o coração acorde
    do somno em que repousa, e desvende o segredo
    que a vida me cobriu de sombras e de medo.

Padre

    Nem quero desvendar, Senhora, essas torturas;
    mas a minha velhice acostumou-se a vêr
    em tão meiga creança uma filha extremosa
    junto de mim crescer, florir como uma rosa
    ao pé dum castanheiro, e fazer-se mulher.
    Aos dez annos cegou...

Marqueza, _interrompendo, afflicta_

                           É céga a minha filha?

Padre

    Foi: ha dias, porém, a luz de novo brilha
    no seu formoso olhar. Emquanto a escuridão
    durou, eu sempre a trouxe unida ao coração,
    apoiada ao meu braço.

Marqueza

                          E quem foi que a curou?

Padre

    Alguem que a soube amar. Um dia despontou
    na sua alma de flôr um novo sentimento
    e a pobre céga amou e foi tambem amada.
    Queria dedicar-se á vida enclausurada
    na casta região da cela de um convento,
    mas, sonhadora e boa, o amor venceu em breve
    o vago mysticismo e a Virgem que a fadou,
    condoendo-se della, o seu amor salvou...
    De modo que, feliz, dentro de pouco, deve
    desposar um rapaz, formoso coração...

Marqueza, _interrompendo_

    Ruy de Ornellas, talvez?

Padre, _admirado_

                             Mas como adivinhou?

Marqueza, _depois de uma pausa_

    Não importa saber; prosiga, Senhor Cura,
    eu contarei mais tarde essa alegre aventura,
    tão simples e feliz.

Padre, _proseguindo_

                         A mim, pobre ancião,
    uma alegria basta: a de morrer contente
    por haver feito bem á candida innocente.
    Do mundo nada espero, esta gentil creança
    era a minha formosa e unica esperança:
    arrancam-m'a daqui e eu sinto que a corola
    dessa flôr, que me dava a encantadora esmola
    do seu perfume agreste, arrasta a minha vida
    á derradeira estancia, á ultima guarida...

Marqueza

    E quem lhe disse, Padre, as minhas intenções?

Padre

    Ninguem. Mas adivinho. Eu sei que os corações
    carinhosos das mães não querem a partilha
    das caricias, do amor, dos beijos de uma filha.
    Talitha vae partir; que o Senhor a conduza
    e que uma boa estrella ao seu porvir reluza.

Marqueza

    Attenda, Sr. Cura! A mãe que ora lhe falla
    tambem sabe que a dôr o coração estala
    e não lhe vem roubar a luz dessa velhice
    tão cheia de bondade e simples de meiguice.
    A dôr me fatigou e eu quero repousar
    de tantas afflicções, e venho procurar,
    nesta aldeia tranquilla e sem perversidade,
    a paz que não frui na minha mocidade.
    Sou rica, felizmente, e quero ter um nicho
    onde acaba a existencia: é, talvez, um capricho...
    Mas quero aqui viver ao lado desta filha
    que a sua alma de santo, alvissima, perfilha
    e nunca mais sahir deste sereno azylo
    tão suave e tão bom, tão feliz e tranquillo,
    onde mora a virtude. A filha que eu procuro
    tambem é muito rica e tem porvir seguro.
    Se a desventura um dia a separou de mim
    a minha vida agora ha de chegar ao fim,
    aqui onde ella teve um lar sagrado e nobre.
    E o dôce olhar de Deus que o mundo inteiro cobre,
    abrindo sobre nós o pallio da ventura,
    ha de envolver na sombra o coração do Cura
    que fez de minha filha a filha da sua alma,
    extremosa e leal. E Deus que tudo acalma
    ha de extinguir a dôr de todo esse passado
    que eu vejo, felizmente, agora terminado...

Padre, _alegremente_

    Obrigado, Senhora. O coração que sente
    a alheia desventura e lança boamente
    o seu conforto amigo a quem já nada espera,
    tem, nas bençãos do céo, eterna primavera...
    E agora que sabeis que a vossa filha é viva,
    attendei-me, Senhora, á santa rogativa:
    Talitha esteve céga. O homem que salvou
    o seu formoso olhar o amor lhe conquistou.
    Ella, uma encantadora e formosa creança,
    concentra nesse amor toda a sua esperança:
    tiral-a será dar-lhe o mais cruel supplicio.

Marqueza

    Não preciso pedir tão duro sacrificio
    ao seu bom coração. Eu quero-a vêr feliz,
    se quem serviu de Pae o consentiu e quiz.
    Procurava uma filha, encontrei um casal:
    para mim, que sou mãe, jámais este Natal
    feliz esquecerei. E agora que conhece
    a Mãe da sua filha, attenda á minha prece
    e mostre-me Talitha, anceio por beijal-a.

Padre

    Louvado seja Deus, Senhora, eu vou chamal-a.

_Entra e volta com Talitha pela mão_


SCENA VII

Os mesmos e Talitha

Padre, _entrando, a Talitha_

    Recordas que uma vez, em lagrimas banhada,
    disseste que a tu'alma andava amargurada
    a pensar que jámais a tua mãe verias?
    Recordas a palavra alegre, de conforto,
    que te disse a sorrir quando tu me pedias
    a luz do teu olhar que tu suppunhas morto?

Talitha

    Nem eu posso esquecer.

Padre

                           Pois, filha, a Providencia
    abriu á tua vida a sua immensa graça.

Talitha, _curiosa_

    E então?

Padre

             Então responde: em tua consciencia
    que mais desejas tu que o Santo Deus te faça?

Talitha

    Que eu possa vêr um dia a minha Mãe querida!

Marqueza, _correndo para ella e abraçando-a_

    Talitha, minha filha! Amor da minha vida!

Talitha, _surprehendida_

    Minha Mãe! Minha Mãe!

_Abraçam-se em pranto_

Padre

                          Obrigado, Senhor;
    abençoado seja este Natal de amor!

Marqueza, _desprendendo-se de Talitha_

    Mas como eu sou feliz! Como tu és bonita!
    Que lindo nome o teu! Quem te chamou Talitha?

_Beija, abraça-a, encara-a sorrindo e soluçando. Senta-a nos joelhos_

    Quero ver bem de perto o teu formoso olhar.

_Fita-lhe os olhos_

Talitha

    E já sabes, mamã, que de tanto chorar
    com saudades de ti, um dia fiquei céga?

Marqueza

    Com saudades de mim?

Talitha, _agitada_

                         Não crês, mamã?

Marqueza

                                         Socega;
    eu acredito em tudo, a tua alma não mente...

Talitha

    Mamã, como eu te quero!

_Abraça-a_

                            Olha-me bem de frente!
    Tanto tempo sem vêr a imagem dos meus sonhos,
    agora que te encontro, eu desejo risonhos
    os teus olhos de Mãe que nunca vi mais bellos;
    quero beijar, sorrindo, os teus alvos cabellos
    e sentir palpitar o seio teu, amigo,
    e o meu seio de filha, a palpitar comtigo.

_O Cura, que se tem enlevado a contemplar a scena, sae pé ante-pé,
olhando o grupo e chama para dentro. Entram Joaquina e Ruy._


SCENA VIII

Os mesmos, Joaquina e Ruy

Marqueza

    Dize-me, filha, e tu sonhavas muitas vezes
    com tua mãe?

Talitha

                 Sonhava!

Marqueza

                          E o sonho que dizia?

Talitha

    Tanta coisa, mamã! Quando os nossos revezes
    nos vinham perturbar, desde o romper do dia
    até o anoitecer, pensava em ti, mamã,
    e, sem dormir, sonhava até pela manhã.

Marqueza

    Mas revezes de quem?

Talitha

                         Desta immensa tristeza
    que vinha atormentar a vida de pobreza

_baixo, quasi em segredo_

    do nosso Padre Cura...

Marqueza

                           E o Padre Cura é pobre?

Talitha

    Muito, muito, mamã, mas tão bom e tão nobre
    que nunca pude ouvir um lamento, sequer!

Marqueza

    D'hoje em diante, porém, não faltará mais nada:
    será de todos nós aquillo que eu tiver.
    Tu és rica, Talitha, e d'alma bem formada,
    por certo acudirás de todo o coração
    por que não faltem mais nem ventura, nem pão
    a quem te fez gentil, tão boa e generosa...

Talitha

    Muito rica, mamã?

Marqueza

                      Que te serve saber?

Talitha

    É que o velho sargento acaba de morrer
    deixando na miseria immensa e dolorosa
    os netinhos com fome. O velho era céguinho!
    muita vez o encontrei mendigando, sósinho,
    para matar a fome e, se eu hoje sou rica,
    só este pensamento a dôr me purifica
    e, se tu dás licença, o Ruy vae procural-os.

Marqueza

    Pois sim, minha Talitha, irás tambem buscal-os;
    que sejam teus irmãos já que assim o quizeste.
    Mas dize, o Ruy quem é? Inda não m'o disseste...

_Durante este dialogo as duas não poderão vêr as demais pessoas,
enlevadas como estão. Ha sorrisos em todos._

Talitha, _perturbada_

    O Ruy?...

_Baixa os olhos, sorri e cala-se_

Marqueza

              Sim, sim o Ruy...

Talitha, _enleada_

                                O Ruy é um doutor...
    Quando eu estive céga... Eu era tão céguinha!...
    Elle tratou de mim e fez a operação...

Marqueza

    Só?!

Talitha

         O resto não conto...

Marqueza

                              E porquê?

Talitha

                                        Adivinha!

Marqueza

    E não furtou tambem o teu primeiro amor?

Talitha

    Furtou!... E que mal fez? Deu luz ao meu olhar,
    eu dei-lhe o coração...

Marqueza

                            Mas depois de casar
    deixarás tu sósinho o velho Padre Cura?

Talitha

    Nem eu quero pensar em tamanha loucura.
    Viveremos aqui juntinhos da Joaquina
    que sempre me guiou, do tempo de menina.

Marqueza

    Pois vae dizer ao Ruy que tua mãe quer vêl-o.

Talitha, _soltando-se do pescoço da mãe, sorrindo alegremente._

    Tu vais ver que rapaz... intelligente e bello...
    Ruy! Ruy!

_Voltando-se encontra Ruy, Joaquina e Padre. Fica embaraçada e cobre o
rosto com as mãos._

              Meu Deus, que susto!

Padre

                                   Ouvimos tudo, tudo!...

Marqueza, _voltando-se_

    Desculpe, Senhor Cura... em favor della acudo...
    A culpada fui eu...

Ruy, _surprehendido_

                        Ah! Senhora Marqueza!

Marqueza

    Sim. Ruy, eu mesma, aqui. Nem me causa extranheza
    o vêl-o nesta casa. Eu fui quem o mandou
    em busca deste céo tão puro que o salvou.
    Previ toda esta scena e quando aconselhei
    que viesse até cá, senti que palpitava
    o meu seio de mãe. Já vê que adivinhei
    e o meu presentimento o bem me segredava...

Talitha, _admirada_

    Mamã, tu és Marqueza?

_Silencio prolongado_

Marqueza

                          A Marqueza morreu...
    Agora sou a mãe da mimosa Talitha
    que vem pedir perdão a quem assim soffreu
    dessa magua sem par, dessa dôr infinita,
    que tanto fez chorar a tua mocidade,
    as lagrimas febris e negras da saudade.
    Agora sou a Mãe que um dia te engeitou
    e que uma vida inteira a dôr acabrunhou,
    que vem pedir perdão ao velho Padre-Cura
    do quanto padeceu para te dar ventura,
    que vem agradecer á santa da Joaquina,
    os beijos que te deu quando eras tamanina,
    que vem pedir a Ruy o supremo favor
    de dar á sua filha o seu primeiro amor...

Ruy

    Marqueza, o meu amor recebe a grande esmola
    do casto coração da candida Talitha,
    como um beijo de luz que conforta e consola
    a dôr da minha vida. O peito me palpita
    na suprema alegria e eu penso na alvorada
    desta noite feliz, de lucido natal,
    bemdizendo, Senhora, a dôce madrugada
    que vae surgir em breve.

Talitha

                             Ao despontar o dia
    vamos todos buscar os netos do sargento...
    Tu concordas, mamã?

_Ao Cura_

                        Acha que faço mal?

Padre

    Para ti, minha filha, a madrugada é fria.
    O Ruy irá commigo e apenas num momento
    as creanças virão: descança, pequenita.

Marqueza, _a Joaquina_

    Repare bem, Joaquina: este casal catita
    como envelhece a gente!

Joaquina

                            E Deus Nosso Senhor
    lhe dê por toda a vida o seu sagrado amor!

Padre

    Já toca á missa d'Alva...

Ruy, _a Talitha_

                             Estrella d'Alva, pura,
    immaculada estrella, o céo desta ventura
    estende sobre nós a cupula sagrada
    e eu vejo nesse olhar a luz ambicionada
    que faz de ti, creança, a dôce Conceição
    do meu culto feliz, purissimo e christão.

_A Joaquina_

    Um dia, bem me lembro, a sua mão amiga
    mais trémula e subtil do que uma branca estriga
    ás aragens d'outomno, abrindo-me o sacrario
    da sua alma de santa, entregou-me um rosario.
    Recorda-se? Pois bem! nas horas de afflicção
    esse rosario amigo encheu-me o coração
    duma frescura immensa e assim se dissipou
    essa nuvem cruel que sobre nós passou...
    Quero beijar a mão da santa que me deu
    nesse rosario astral uma visão do céo:
    a flôr que se banhou na sua fé divina,
    bondosa creatura, alvissima Joaquina!

_Beija-lhe a mão. Joaquina, em silencio, enxuga os olhos com o avental._

Padre

    O dia vae surgir, o sino da capella
    convida-nos á missa. Ali pela janella
    já vem a madrugada entrando alegremente
    num baptismo de luz que brota do nascente.

Talitha

    Meu Deus, como é feliz a minha mocidade!
    Rasgou a mão de Ruy a dôce claridade
    ao meu perdido olhar, depois a mãe de Deus
    envia-me o perdão do fundo azul dos céos:
    e, dando luz á céga e vida á condemnada,
    entrega-me, a sorrir, no fim da madrugada
    do Natal de Jesus, a minha Mãe distante.
    Meu Deus, como é feliz neste sereno instante

_a Ruy_

    a nossa mocidade ao pé desta velhice
    tão boa e tão leal! Antes que alguem cobice
    esta aurora de amor que ao céo nos avizinha
    eu vou rezar por nós uma Salvé-Rainha:

_Ouve-se o repicar dos sinos. Talitha approxima-se do oratorio;
ajoelham-se todos, excepto o Padre que fica de pé._

Talitha

    Salvé, Rainha Mãe, céu de misericordia,
    vida e doçura, amor, luz da nossa esperança,
    lançae por sobre nós o manto da concordia.
    Salvé, Rainha, Mãe serena de bonança!
    A vós, os filhos d'Eva, em lagrimas, bradamos,
    por vós que estaes no céo, gemendo, suspiramos,
    neste valle de magua e dôr. Eia, Senhora!
    Sêde a divina Mãe, a dôce protectora
    da nossa vida inteira e para nós volvei
    esse olhar piedoso e tão cheio de luz!
    Sobre o nosso destino a vossa mão pendei,
    rasgae a nossa dôr, mostrae-nos a Jesus,
    fructo do vosso ventre, ó sagrada e clemente,
    ó Virgem dôce e casta, ó candida innocente!
    ó Santa Mãe de Deus, ouvi a nossa voz
    tão simples e fiel, rogue no céu por nós,
    por que sejamos bons e dignos da promessa
    do moreno Jesus. Que a nossa vida aqueça
    o materno calor da estrella de Bethlem,
    á luz do vosso olhar, por todo o sempre.

Padre

    Amen!

CAE O PANNO



RESPOSTA Á CRITICA INDIGENA

    _Toute l'operation critique se borne ainsi a constater un fait,
    depuis la cause qui l'a produit jusqu'aux conséquences qu'il
    produira. Sans doute, un pareil travail contient une leçon, et à se
    voir dans un miroir aussi fidèle, un écrivain peut refléchir,
    connâitre ses infirmités, tâcher de les marquer le plus possible.
    Seulement, la leçon vient de haut, sort de la verité même du
    portrait el n'est plus l'enseignement gourmê d'un professeur. La
    critique expose, elle n'enseigne pas. Elle a compris elle-même que
    son influence sur le niveau litteraire était à peu prés nulle, car
    les tempéraments restent indociles; et elle a préféré jouer le beau
    rôle d'ecrire l'histoire litteraire contemporaine, expliquée et
    commentée._

    E. Zola. _Documents litteraires_, pag. 334.


    _Est critique, à notre jugement, celui qui fait effort pour
    comprendre et qui juge avec sympathie._

    Nolet. _La vie et l'oeuvre de Chateaubriand_, pag. 673.


    _...si nous possedons quelques talents, nous nous empressons de les
    déprécier. Après les avoir élevés au pinacle, nous les roulons dans
    la bosse; puis nous y revennons, puis nous les méprisons de nouveau.
    Nous ne pouvons souffrir de reputation; il nous semble qu'on nous
    vole ce qu'on admire: nos vanités prennent ombrage du moindre
    succès, et s'il dure un peu, elles sont au supplice._

    Chateaubriand. _Essai sur la litterature anglaise_. pag. 171.


    _Que la scène soit triste ou gaie, nous retrouvons toujours la même
    distinction entre l'émotion réelle et l'émotion esthétique. Il faut
    de toute necessité, pour que cette dernière soit possible, que
    l'autre disparaisse; il faut que l'auditeur ou le spectateur ne
    puisse jamais oublier qu'il y a entre le fait et lui un
    intermediaire dont l'impression constitue la poesie de l'oeuvre;
    c'est surtout au théâtre que cette distinction entre le réel et le
    fait poetique est essentielle. L'illusion complète, loin d'être le
    suprême degré de l'art, comme on l'a dit, en serait simplement la
    négation._

    Eug. Veron, _L'Estetique_, pag. 407 e 408.


RESPOSTA Á CRITICA INDIGENA

A _Talitha_ é uma reminiscencia da mocidade, piedosamente recolhida pelo
coração á mudez da alma, que a minha intelligencia modesta crystallizou
em versos froixos, que o meu sentimento fixou em drama e que a cegueira
das paixões pretendeu ferir.

Devo, quero e vou defendel-a.

      *      *      *      *      *

Zola, o genio, o mestre, o justo, escreveu:

    «Lorsqu'on a l'honneur de tenir une plume, on se consulte avant
    d'ecrire, et quand on a écrit une page, on l'affirme, on la défend.»

    _La critique contemporaine_, pag. 356.

A critica censurou-me porque, brazileiro e rio-grandense, fui procurar
em terras de Portugal o assumpto do meu obscuro trabalho. A _Talitha_
não é uma obra nacional: nem portugueza porque o seu autor não nasceu em
Portugal, nem brazileira porque a acção se passa em terra estrangeira,
entre personagens de uma aldeia lusitana perdida nas serranias da
provincia de Traz-os-montes.

      *      *      *      *      *

A censura é futil.

A critica esquece que Portugal é a patria da nossa patria; que o nosso
idioma nacional ainda não sahiu do periodo primitivo e selvagem; que a
lingua de Camões foi a lingua de Gonçalves Dias e ainda hoje é a lingua
de Olavo Bilac e de Coelho Netto; que os sentimentos de José de Alencar
vibraram nas mesmas palavras em que vibrou a alma de Camillo Castello
Branco o através das quaes se impoz á grandeza do seculo que passou a
individualidade singular e forte de Eça de Queiroz, ao mesmo tempo que
se impunha, em outro hemispherio, a personalidade singular e forte de
Machado de Assis.

Ingenua, ignorante ou perfida, a critica esqueceu o preceito de Taine:

    «Les productions de l'esprit humain, comme celles de la nature
    vivante, ne s'expliquent que par leur mllieu.»

    H. Taine--_Philosophie de l'Art_. vol. I, pag. 11.

O homem é um producto do meio, este inflúe poderosamente na formação de
seu espirito; mais que poderosamente--decisivamente.

A mocidade é mais docil em receber essa influencia natural e espontanea
do ambiente--do clima, das tradições, dos costumes, da religião, da arte.

É na infancia e na adolescencia, como observa Moreau, de Tours, no seu
estudo--_La Folie chez les Enfants_--que os erros e os preconceitos se
apoderam do espirito e por tal forma criam raizes que difficilmente se
arrancam.

Spencer, na Educação moral, intellectual e physica, affirma que a
influencia do meio sobre a mocidade decide do futuro inteiro.

A minha adolescencia e a minha mocidade fluiram em Portugal, nas
escolas, nas aldeias, no seio patriarchal da familia paterna.

Com os portuguezes, moços como eu, senti os pezares d'aquelle grande
povo, sorri nas alegrias d'aquella boa gente.

Á sombra fresca e generosa das suas arvores adormeci e sonhei: ao calor
daquelle sol aqueci as minhas esperanças; no gelo daquellas neves
murcharam-me as mais perfumadas illusões; ao luar opalescente daquellas
noites ouvi a musica das primeiras serenatas: ao fulgor daquellas
estrellas peneirou no meu coração a voz dolentissima dos rouxinóes; com
a poesia popular daquella alma lyrica de onze seculos aprendi a versejar
quando a minh'alma de dezeseis annos abria para o mundo as flôres das
suas aspirações incipientes; com a lithania religiosa dos orgãos ruraes
nas capellas das aldeias aprendi a amar a Deus, a crer na sua olympica
magestade, ao mesmo tempo que filtrava docemente no meu espirito a
ternura sagrada daquelle mysticismo que reza na voz das aragens, no
perfume das flôres, no marulhar das fontes, no gorgeio das aves e até no
merencorio soluçar das vagas, rolando eternamente nas areias das praias.

Dezoito annos correram para a minha vida feliz e descuidosa, naquella
terra santa que é a patria da saudade, e, quando o meu coração começou a
sentir as amarguras do exilio, quando a minha intelligencia poude
comprehender toda a magua da ausencia, foi na saudade portugueza

«o delicioso pungir de acerbo espinho,»

que eu aprendi a sentir a saudade do lar que aqui deixára, do berço que
me embalára as horas da infancia, da voz materna que me acalentára a
puericia, do céo que dera luz ao meu olhar e calor ao meu sangue,
sangue em cujas ondas correm leucocytos de sangue lusitano. «d'este
sangue abençoado», fortemente oxygenado, que me dá energia para as
luctas e ampara a tranquilidade transparente da minha consciencia,
limpida e superior, as investidas da injustiça e da critica.

E como poderia eu, por que estranho processo de cirurgia, arrancar ao
meu organismo essa metade portugueza que constitue um nobre orgulho da
minha vida?

E como poderia eu, por que estranho processo de psychologia, arrancar á
minh'alma esse conjuncto essencial de elementos que durante dezoito
annos se vincularam ao meu espirito, á minha intelligencia, á minha
vontade, á minha sensibilidade, com a mesma delicadeza, com a mesma
subtil insistencia com que a luz do sol penetra no seio da terra para
fazer germinar as sementes, com que a palavra das mães penetra na alma
dos filhos para transfigural-a, como o luar que transforma em espelho de
prata a agua dos lagos e dos rios?

      *      *      *      *      *

A _Talitha_ é uma reminiscencia da mocidade passada na aldeia
traz-montana, na suave e consoladora almosphera da familia paterna;
_Talitha_ não é uma creação da minha phantasia, é a copia do modelo vivo
que eu conheci, que acompanhei na cegueira cruel e, depois, na luminosa
redempção do seu primeiro amor.

_Ruy de Ornellas_ foi meu irmão de lettras, foi meu amigo, meu
companheiro de escola, meu consocio na bohemia alegre e feliz da vida
academica, nem o nome lhe occultei.

O velho cura _João Fulgencio_ foi uma realidade soberba de caridosa
affeição evangelica: era um sacerdote de alma pura, um ancião de oitenta
invernos consumidos em espalhar o bem emquanto muitos moços de alma nova
mas precocemente corrompida ao contacto das descrenças enervadoras e
fataes, na convivencia intima da politicagem, dos bordeis e dos cafés,
vivem para fazer o mal, no gozo requintado de espalhar desventuras,
quando é mais facil, mais dôce, mais humano, mais confortante, mais
nobre, semear carinhos e affectos para fazer a colheita das sympathias e
das dedicações.

A velhinha _Joaquina_, a irmã desse honrado e justo sacerdote, é o
retrato fiel, copiado á intimidade da minha propria familia, em cujo
seio fui buscar o modelo daquella virtude christan, na figura venerada
de uma santa creatura que acalentara, ha sessenta annos, a puericia de
meu Pae.

A _Marqueza de Rilma_ não é um personagem ficticio, viveu, foi a mãe de
Talitha, não com o titulo de tão elevada condição aristocratica, mas de
nobre linhagem, victima innocente das luctas civis de 1846 que
accenderam a fogueira horrivel dos odios entre os partidos politicos.
Revelar-lhe o verdadeiro nome seria uma iniquidade, além de
absolutamente desnecessario ao desenvolvimento da acção dramatica: a
mais rudimentar educação, a mais vulgar delicadeza de sentimentos
mandavam occultar essa circumstancia, inutil á fidelidade da observação
e perfeitamente dispensavel ao estudo da psychologia do personagem.

Que representa, pois a _Talitha_?

O intimo e nobre desabrochar de uma consciencia que não esqueceu o
passado, que transformou um incidente da vida em pretexto para resgatar
uma divida de gratidão, para abrir no seio um longo e profundo sulco de
reconhecimento á terra sagrada em que dormem seus avós o somno
ultimo e perpétuo, onde ficaram os primeiros dias de existencia do
ancião que me deu o sêr, onde eu deixei as gerações irmans que me
acompanharam na peregrinação astral das illusões academicas.

A perversidade incuravel dos zoilos, porém, occultou, de proposito
deliberado, que o obscuro autor da _Talitha_, agora alvejado por haver
esquecido ingratamente a sua patria, preferindo assumptos, personagens e
céos estranhos, já estudara em um drama, em tres actos, intitulado _A
Farça_, a sociedade da sua terra e um facto que se desenrolara no meio
em que vive.

E esse drama foi levado á scena tres vezes, no Theatro S. Pedro, por uma
sociedade de amadores; mereceu a critica da imprensa local e foi
largamente estudado por dois homens conhecidos nas lettras: Alarico
Ribeiro e dr. Sebastião Leão.

Se não teve esse modesto trabalho a ventura de ser interpretado por
artistas, não pode caber ao autor a culpa de faltar entre nós uma
companhia dramatica nacional constituida de profissionaes.

A critica indigena devia ter conhecimento d'esse facto; se sabe d'elle é
perversa occultando-o propositalmente para ferir a _Talitha_; se não
sabe, é ignorante, e uma critica _soi-disant_ competente, que desconhece
o autor escolhido para a censura e os trabalhos por elle produzidos, não
póde exigir consideração nem respeito do meio litterario em que pretende
pontificar.

    «Il y a même, au fond de la grande majorité des critiques, un
    producteur manqué, qui se regisne à parler des oeuvres d'autrui,
    quand il voit que personne ne parle des siennes.»

    Zola, oeuvre cit., pag. 349.

A critica, ou ignorante, ou perfida, ou ingenua, esqueceu que
Taine, o mestre supremo, havia pontificado:

    «La méthode moderne que je tâche de suivre, et qui commence à
    s'introduire dans toutes les sciences morales, consiste a considerer
    les oeuvres humaines, et en particulier les oeuvres d'art, comme des
    faits et des produits dont il faut marquer les caractères et
    chercher les causes; rien de plus. Ainsi comprise, la science ne
    proscrit ni ne pardonne: elle constate et explique.»

    H. Taine--oeuvre cit, vol. I, pag. 14.

Mas a critica levantou-se contra as leis proclamadas pelo proprio mestre
invocado: condemnou, não explicou.

Sem investigar as origens do drama, sem conhecer a sua significação, sem
sondar a alma que o creára, fulminou a obra e insultou o espirito que a
produzira.

Para maldizer bastaram-lhe dois elementos: o assumpto que é portuguez e
o estylo que não é brazileiro...

E a critica, sempre ingenua, ou ignorante, ou perfida, esqueceu que
Shakespeare fôra buscar á nevoenta Dinamarca a figura culminante de
Hamlet, á sorridente Italia dos laranjaes em flôr, as suaves imagens de
Romeu e Julieta, e o vulto soberbamente tragico do tremendo Othelo.

Sempre com a mesma perfidia, a critica, depois de citar os nomes de
Racine e Corneille, occultou que esses grandes espiritos da França foram
pedir á Grecia e à Roma antigas, á Hespanha medieva e aos Barbaros a
quasi totalidade dos seus heróes e das suas heroinas, deixando na
obscuridade a immensa galeria de personagens illustres da propria
patria: o genio desses dois sublimes cerebros andou a resuscitar, a
illuminar, a galvanizar no tablado do theatro francez a grandeza épica
de vultos estranhos e deixou no tumulo o vulto leonino dos
immortaes filhos da França e as imagens delicadas e formosas das
mulheres gaulezas.

De Corneille, _Medéa_ é uma simples imitação de Lucio Seneca, romano,
que a seu turno pedira inspiração ao theatro grego; _Cid_, que é uma
obra-prima, além de ser puramente hespanhola a sua acção de altissima
tragedia, foi inspirada pela obra do poeta castelhano Guilhen de Castro,
que o genio de Corneille deixou na sombra; _Horace_ é um assumpto romano
que o poeta francez pediu a Tilo-Livio; romanos são _Polyeucte_, _Cinna_
e _Pompée_, este inspirado por Lucano; _Mentor_ é o velho personagem da
legenda grega de Ithaca, já reproduzido no theatro hespanhol pelo poeta
Alarcon, ao qual Corneille foi pedir o modelo; _oedipe_ e _Sertorius_,
que são lampejos da constellação de decadencia de um genio, pertencem, a
primeira ao cyclo da heroicidade thebana que Sophocles já havia
immortalisado na scena grega, a segunda é pura historia da Iberia em que
o vulto admiravel do general romano fulge num derradeiro vestigio de
genio, ao lado de Viriato, o grandioso pastor dos Herminios e fundador
da nacionalidade lusitana.

Nem mesmo no periodo da sua decadencia, vencido na queda da _Pertharite_
e no confronto do seu _Attila_ com a _Andromaque_ de Racine, outro genio
que subia rapidamente ao zenith, nem mesmo na desventura, a alma de
Corneille vibrou pela patria, o seu talento não procurou conforto na
historia assombrosa da França: o seu coração voltou-se ainda para o
oriente, foi á Judea estudar a grandeza sublime do Rabbino da Samaria e
deixou na _Imitação de Christo_ a ultima expressão do seu genio, como o
raio extremo do sol ao entrar na sepultura do occaso.

De Racine, póde-se affirmar que escreveu as suas tragedias
inspirando-se, ora no theatro grego, ora na Biblia.

Assim o ensina um sabio mestre brazileiro:

    «deixando respeitosamente de parte Eschylo e Sophocles, impossiveis
    de imitar, modelou-se por Eurypedes, menos perfeito na generalidade
    da concepção, porém mais tocante na pintura dos accessorios e que
    maior conformidade offerecia com o seu talento.»

São d'esse genero a _Andromaque_, _Mithridates_, _Phèdre_, _Iphigénie_.

São inspiradas na Biblia, a _Thébaïde_, _Esther_ e _Athalie_.

Pertencem ao genero historico: _Alexandre_, _Berenice_, _Britannicus_. E
ainda mesmo quando Racine, resolvendo esmagar os seus zoilos, escreveu a
comedia _Les Plaideurs_, que é uma _charge_ temivel de espirito e de
genio, foi pedir ás _Vespas_ de Aristophanes, não só a inspiração, mas o
exemplo, o paradigma.

Todas essas tragedias ficaram na litteratura franceza, pertencem ao
Theatro da França que não as repudiou, que as ama, que as admira,
cultuando a memoria dos genialissimos poetas, não obstante o haverem
elles esquecido a seara magnifica da patria pelos encantos das estranhas
figuras orientaes.

Victor Hugo foi pedir a Inglaterra o vulto espantoso do dictador para
escrever a maravilha dramatica de _Cromwell_, deixando no esquecimento a
soberba grandeza de Danton! Para dar á Escola romantica a sua data
inicial no Theatro francez, o grande poeta das _Folhas de Outono_ foi
buscar á Hespanha a inspiração dos versos maravilhosos do _Hernani_ e
deixou á litteratura dramatica da França as figuras esculpturaes de
_Dona Sol_, do bandido celebre, do Rei D. Carlos e do velho aristocrata
Ruy Gomez.

Mas onde o genio do grande filho de Besançon attingiu a altitude suprema
a que não chegaram Corneille no _Cid_ nem Racine na _Phèdre_, foi
no _Torquemada_, a epopéa dramatica do fanatismo: e Torquemada foi o
inquisidor da Hespanha. Nenhum poeta da peninsula havia arrancado á
historia a figura sinistra do sacerdote; Hugo levanta-a do tumulo,
illumina-a com as fulgurações do seu genio, como se em torno da
cariatide monstruosa da Inquisição ardessem as fogueiras dos
autos-da-fé, e liga á litteratura dramamatica da França a figura
barbara, apocalyplica do carrasco da Igreja.

No emtanto, na historia da França havia a linha cruel de Luiz XI, algoz
do duque de Alençon, que podia ter inspirado o genio do poeta sublime.

Alfred de Vigny, contemporaneo de Victor Hugo, na sua primeira phase
litteraria foi quasi totalmente oriental e biblico: _Eloah_, _Symeta_,
_Dryade_, _Fille de Jephté_, _Femme adultère_, _Dolorida_, _Deluge_.

Na segunda phase produziu, em verso, o seu drama notavel Chatterton,
cujo heróe é o grande e infortunado poeta inglez que, aos 22 annos,
procurou no suicidio a solução para a vida das amarguras e tristezas que
arrastava o seu genio incomprehendido.

E Alfred de Vigny, tão admirador de André-Chénier que n'este procurou
inspiração para a sua _Dryade_, deixou no esquecimento a figura soberba
e tragica do poeta da revolução, cuja cabeça rolou no cadafalso como uma
cabeça vulgar, não obstante:

    «avoir quelque chose là dedans»

E a França não engeitou a obra immortal de Alfred de Vigny, e a
_Comedie-Française_ em 1881 fazia a sua _reprise_, com alto successo,
não obstante a opinião do Zola que a reputa:

    «la negation du théatre.»

A critica, severa para mim, devêra ter vergastado primeiramente a
memoria de Lord Byron que cantou na sua lyra de poeta e serviu com a sua
espada de guerreiro a obra politica da emancipação da Grecia; devêra
anathematisar Sienkiewicz, o polaco genial que estudou no romance a
reconstituição da vida romana á época da decadencia cesarista de Nero;
devêra ter condemnado á morte M.^me Judith Gauthier, a filha gentil e
talentosa de Theophile, que, deixando de parte a herança paterna,
preciosa e brilhante, foi procurar o assumpto das suas obras notaveis
nas terras e nos costumes do extremo oriente, com especialidade no Japão
e na China; devêra ter amaldiçoado e reduzido a pó o sublime poeta
contemporaneo da França--Edmond Rostand--que engastou nos tres actos
phantasticos da _Princesse-Lointaine_ um assumpto oriental e na
_Samaritaine_, a sua obra prima, a vida, a figura, a alma encantadora da
filha da Judéa, deixando no esquecimento a belleza mystica de Joanna
d'Arc; devêra ter queimado a estatua de Castellar, porque o espantoso
rival de Cicero escreveu os extraordinarios volumes dos _Recuerdos
d'Italia_, sem ter jámais escripto uma pagina de viagem pela propria
Hespanha, sua patria; devêra ter castigado os despojos funebres de
Milton, porque o grande poeta inglez, cuja inspiração hombrea com as de
Tasso e Ariosto, cuja grandeza genial é, depois de Shakespeare, a
creação mais opulenta da poesia britanica, teve o arrojo de esquecer a
sua verde Erin e foi ao pincaro do Himalaya, ao berço da tradição
adamita, procurar o assumpto do seu _Paradise Lost_.

E a critica para ser sincera, ou, pelo menos, logica, severa como foi
para o obscuro autor da desventurada _Talitha_, devêra censurar
amargamente a falta de patriotismo de Araujo Porto Alegre que, em versos
de um sabor arcadico e em metro solto, celebrou o almirante genovez
Colombo, deixando ingratamente no olvido a figura épica do riograndense
Tamandaré, lobo dos mares como o piloto de Palos, além de guerreiro como
Patterson.

E a censura devêra estender-se tambem a Gonçalves de Magalhães que, em
vez de cantar o heróe dos Guararapes ou a figura brilhante de Garibaldi
que vive na tradição da liberdade sulina, preferiu celebrar na sua lyra
a aguia de Wagram, na queda monstruosa de Waterloo, tanto mais que ao
nascer do theatro brazileiro, quando fulgia o talento artistico de João
Caetano, deixou no esquecimento a figura negra de Calabar e foi á
historia de Milão pedir o assumpto e os personagens da sua tragedia
_Olgiate_, em cuja acção se estuda a tyrannia licenciosa de Galeazzo
Visconti e o assassinato do tyranno.

E a critica, tão rispida com o autor da _Talitha_, chegando mesmo a
citar a sentença do divino Almeida Garrett para aquelles que se
abalançam ao estudo de estranhos assumptos esquecendo a patria, devêra
começar pela censura ao proprio autor do _Frei Luiz de Souza_, que
iniciou a sua vida litteraria no theatro escrevendo _Xerxes_,
_Lucrecia_, _Sophonisba_, _Atala_, _Meroppe_ e _Catão_, antes de se
lembrar que _D. Filippa de Vilhena_ fôra uma das heroinas de sua terra.

      *      *      *      *      *

Mas a critica, severa com o autor da _Talitha_, não tem sinceridade nos
seus conceitos.

Um formosissimo talento de artista, alma de raro quilate, aberta ás
emoções do Bello, filho d'esta terra, Araujo Vianna, musicista de
apurado engenho, escreveu a sua brilhante partitura da _Carmella_, um
encanto, uma joia.

A acção do libreto passa-se na Italia, a musica inspira-se
claramente na escola de Massenet, sóbe á scena no Rio de Janeiro
interpretada por artistas italianos, sóbe á scena em Porto Alegre
interpretada por artistas italianos, a critica applaudiu em delirio,
extasiou-se, e ninguem viu, ninguem sentiu, que a _Carmella_ é italiana
pelo libreto e franceza pela musica; o patriotismo riograndense não se
julgou melindrado porque o intelligente _maestro_ patricio deixou na
obscuridade a nossa paisagem, o nosso clima, as nossas mulheres, os
nossos costumes, a nossa poesia, a nossa musica popular e
caracteristica, preferindo a lenda, o lyrismo, a impetuosidade, o céo, a
aventura da gloriosa e divina Italia da arte...

A critica emmudeceu.

Entretanto Araujo Vianna apenas visitou a Italia: o seu sangue é
genuinamente brazileiro, formou-se o seu espirito na propria patria, nem
a natureza nem a sociedade italiana influiram no seu desenvolvimento
intellectual e moral...

A critica tinha de tudo isso conhecimento exacto e perfeito mas...
_passons là dessus_.

    «Dès lors, les impuissants et les hypocrites peuvent injurier
    l'oeuvre et l'auteur, les couvrir de boue, les nier...»

    Zola--_Documents litteraires_, pag. 418.

      *      *      *      *      *

Sempre ingenua, ou ignorante, ou perfida, a critica censura a _Talitha_,
condemnando-a porque os seus personagens fallam uma linguagem elevada,
superior á modestia das suas condições de aldeãos.

A critica é futil e não sabe o que diz.

_Talitha_ falla nos seus dialogos a linguagem do mysticismo que durante
dezesete annos ouviu e aprendeu com o seu velho padrinho: o cura.

A sua linguagem é simples, ingenua e lyrica.

Mas simples, ingenua e lyrica é a linguagem do povo portuguez, desde a
sua infancia até hoje.

As imagens que o autor lhe põe nos labios são as mesmas que borbulham na
phantasia do povo lusitano, ha mais de nove seculos de nacionalidade,
affirmada num _folke-lore_ riquissimo e inexgottavel, desde Guesto
Ansures até Antonio Fogaça.

Pois a uma creança de dezoito annos, alma pura e boa, natureza casta,
intelligente e fina, delicada e vibratil, torturada pela desventura,
póde ser negada a phantasia creadora, poetica e imaginosa que
caracterisa o povo em cujo meio ella vive, principalmente na aldeia, na
atmosphera idylica e bucolica, simplesmente porque a cataracta a cegou
aos oito annos?

Mas Antonio Feliciano de Castilho foi o bardo cégo que escreveu a _Noite
do Castello_, as _Cartas de Echo a Narciso_, os _Ciumes do Bardo_, a
_Primavera_, o _Outono_ e cégo é o anonymato popular que produz ha oito
seculos esse rosario encantador e sublime das trovas e cantigas que
andam na tradição oral, na garganta de todas as mulheres, na voz de
todos os cantores, nos labios de todos os estudantes, desde o
_Cancioneiro de Garcia de Rezende_ e de _El-Rei D. Diniz_ até o
_Romanceiro_ de Garrett e os _Cancioneiros_ de Theophilo Braga e
Gualdino de Campos.

São da poesia popular, são do povo em cujo seio _Talitha_ nasceu,
cresceu, amou, sonhou e foi noiva, as formosas quadras que correm de
labio em labio, sem autor conhecido e que Junqueiro, Eugenio de Castro,
Antonio Nobre e Correia de Oliveira gostosamente assignariam.

       I Nessas tuas mãos pequenas
         como não vi em ninguem
         não sei como as minhas penas
         couberam nellas tão bem.

                           II Perdes mais em me perder
                              do que eu perco em te deixar:
                              perco quem sabe offender,
                              tu perdes quem sabe amar.

     III Dizes que deixo saudades,
         não me posso conformar:
         pois se eu as levo commigo,
         como t'as posso deixar?

                           IV Acostumei tanto os meus olhos
                              a namorarem os teus
                              que de tanto confundil-os
                              nem já sei quaes são os meus.

       V Se os meus olhos te incommodam
         quando estão na tua frente
         hei de arrancal-os um dia
         para te amar cegamente.

                           VI Se eu soubesse que voando
                              alcançava o que desejo
                              mandava fazer as azas
                              que as penas são de sobejo.

     VII Eu jurei que não tornava
         a dar adeus a ninguem:
         quem parte saudades leva
         quem fica saudades tem.

                         VIII Essas tuas sobrancelhas
                              como nunca vi mais bellas
                              são laços de fita preta
                              unindo duas estrellas.

      IX Não sei que quer a desgraça
         que atraz de mim corre tanto,
         hei de parar e mostrar-lhe
         que de vêl-a não me espanto.

                            X Vae alta a noite, vae alta,
                              mais alto vae o luar,
                              mais alta vae a ventura
                              que Deus tem para me dar.

      XI É tua bocca ideal
         um palacio com jardim:
         as portas são de coral
         os degráos são de marfim.

                          XII Aguas passadas não tornam;
                              deixae fallar o dictado:
                              ó saudade, és um moinho
                              móes com aguas do passado.

    XIII Pára tu, meu coração!
         onde estou eu, onde vim?
         triste caminho de lagrimas
         tem começo e não tem fim.

                          XIV Ouço cousas que não ouço,
                              vejo cousas que não vejo:
                              olhos da minha saudade,
                              ouvidos do meu desejo!

      *      *      *      *      *

E a um povo que assim traduz tão lyricamente, com tanta philosophia, com
tanto sentimento, todas as impressões da sua alma dôce, que assim vibra
essa poesia celeste nas cantigas das eiras ao luar, nas espadelladas,
nas desgarradas, nos desafios, na Paschoa, no Natal, nas romarias, a um
povo que tem alma poetica, mais suave que um paraiso, mais simples e
mais colorida que um poente de outono e uma alvorada de primavera,
póde-se, com justiça, arrancar essa linguagem que é caracteristica?

O escriptor que o fizesse, a pretexto de ser verdadeiro com os seus
personagens, para que estes não pareçam superiores ao seu meio, mentiria
á propria consciencia, adulteraria a natureza, roubaria ao povo que
quizesse estudar o mais bello reflexo da sua individualidade litteraria.

A um velho cégo que mendigava pelas estradas, entre Villa-Pouca de
Aguiar e Pedras Salgadas, na Provincia de Traz-os-Montes, muitas vezes
ouvi cantar com a sua voz roufenha, na tristissima toada, monotona
como a sua desventura, as quadras que aqui reproduzo fielmente. Andava
elle pelas feiras, pelos caminhos, pelas romarias, levando a sua
desgraça, como Ashaverus, durante sessenta annos, a toda a parte onde a
tradição religiosa celebrava as festas dos seus oragos, onde a alegria
popular estuava nas danças e folguedos; o rapazio espantado escutava-o
com profundo respeito, as raparigas ouviam-n'o em silencio, porque na
amargura das suas cantilenas, na monotonia das suas queixas, na tristeza
das suas lamentações havia verdade de conceitos e a revolta justissima
de uma alma ferida contra a dureza da sorte e a iniquidade da natureza.

Quem lh'o ensinou, quem escreveu esses versos, onde os aprendeu elle,
que poeta mysterioso, simultaneamente artista e philosopho, traduziu na
simplicidade mystica d'aquellas quadras toda a immensidade da sua
irremediavel desventura? A alma popular, suave e lyrica, de uma raça,
filtrada na arêa branca e pura de uma tradição de oito seculos.

    Diz toda a gente e eu não nego
    que Deus é pae de bondade,
    mas se isso é pura verdade
    como foi que eu nasci cégo?

                            Lá que Deus tirasse a luz
                            a quem rouba ou assassina,
                            era a justiça da sina
                            que todo o mundo conduz.

    Mas a mim, não foi clemente
    porque eu não tinha nascido;
    é que Deus tinha o sentido
    de cegar um innocente.

                            Aos lobos que andam na serra
                            matando ovelhas e anhos,
                            dizendo mal aos rebanhos
                            Deus não castiga na terra.

    Não ha lobo que não veja,
    todos são filhos de Deus,
    só nos tristes olhos meus
    a eterna noite negreja.

                            Não tocaria viola
                            se eu fosse fera damnada,
                            mas não andava na estrada
                            soffrendo e pedindo esmola.

      *      *      *      *      *

Milton, collocando nos labios de Eva os seus primorosos versos, não
curou de saber se no Paraiso a Mãe dos homens fôra educada pela serpente
nos mysterios da poesia, da arte, da phantasia, da linguagem
alcandorada, nem cogitou de saber se já naquelle tempo, no pincaro da
cordilheira industanica, se fallava o inglez.

A Samaritana era uma mulher vulgar e desprezivel; Rostand colloca-lhe
nos labios a linguagem sublime dos seus alexandrinos formosos, sem
indagar se, ao tempo de Christo, na Samaria, junto ao poço de Jacob, já
se fallava francez, em verso, de metrica impeccavel e de rima opulenta,
brilhante, artisticamente disposta sob a fórma severa que Boileau,
Corneille e Racine haviam de prescrever 1600 annos depois.

A critica, porém, mais céga que a minha desventurosa _Talitha_, mais
ingenua que a alma primitiva, mais ignorante que a Samaritana e mais
perfida que a Serpente, a sogra feroz de Adão, occultou o preceito de
Taine:

    «Par cet excès de l'imitation litterale, l'artiste arrive a
    produire, non pas le plaisir, mais la répugnance, souvent le dêgôut,
    et quelque fois l'horreur.

    «Il en est de même dans la litterature.

    «La meilleure moitié de la poesie dramatique, tout le théatre
    classique grec et français, la plus grande partie des drames
    espagnols et anglais, loin de copier exactemente la conversation
    ordinaire, altèrent la parole humaine de propos deliberé. Chacun de
    ces poètes dramatiques fait parler ses personnages en vers, impose a
    leurs discours le rythme et souvent la rime. Cette falsification est
    elle nuisible a l'oeuvre?

    «En aucune façon. L'experience en a été faite de la maniere la plus
    frappante dans une des grandes oeuvres de ce temps, l'_Iphigénie_ de
    Goethe, ecrite d'abord en prose et ensuit en vers. Elle est belle en
    prose, mais, en vers, quelle diference! Ici, visiblement, c'est
    l'alteration du langage ordinaire, c'est l'introduction du rythme et
    du mètre qui communique à l'oeuvre son accent incomparable, cette
    sublimité sereine, ce large chant tragique et soutenu, au son duquel
    l'esprit s'élève au-dessus des vulgarités de la vie ordinaire et voi
    reparaitre devant ses yeux les herós des anciens jours, la race
    oubliée des âmes primitives, et, parmi elles, la vierge auguste,
    interprète des dieux, gardienne des lois, bienfaitrice des hommes,
    en qui toutes les bontés et toutes les noblesses de la nature
    humaine se concentrent pour glorifier notre espèce et pour relever
    notre coeur.»

    H. Taine--op. cit., vol. I, pag. 28 et 29.

E a critica indigena censura ao obscuro autor da modesta _Talitha_ a
ousadia de ter observado o preceito que Taine, o grande mestre da França
e do mundo, ordena que se faça, exactamente o que fez Goethe para dar
maior valor e mais gloriosa belleza á sua _Iphigenia_; exactamente o que
fez Rostand para poder impôr á civilisação parisiense, na compleição
nevrotica de Sarah Bernhardt, a inferioridade da mulher da Biblia, a
hetaïra da Samaria condemnada ao supplicio da lapidação pelos heliastas
da Judéa.

      *      *      *      *      *

Diante da bondade e em face das virtudes caracteristicas dos personagens
que se movimentam nos tres actos da _Talitha_, a critica sentiu arrepios
de indignação e abespinhou-se: á intelligencia dos censores é
inconcebivel a coincidencia de um encontro simultaneo de cinco almas
igualmente boas, simples, generosas, quasi santas; a sociedade repelle
essa pureza, os factos demonstram o contrario: o autor da _Talitha_ não
observou, phantasiou; o seu drama é um trabalho de gabinete, no ambiente
do mundo real essa hypothese não existe.

A critica pontificou _ex-cathedra_, infallivel como o successor de S.
Pedro, Vigario de Christo na terra.

Taine escreveu:

    «Après avoir examine devant vous la nature de l'oeuvre d'art, il
    reste à etudier la loi de sa production. Cette loi peut, au premier
    regard, s'exprimer ainsi: _L'oeuvre d'art est determinée par un
    ensemble qui est l'état général de l'esprit et des oeuvres
    environnentes.»_

    H. Taine.--op. cit., vol. I, pag. 55.

É a influencia do meio na producção artistica: consequentemente, para
apreciar a obra d'arte, quando é sincera, a critica necessita de
conhecer o meio em que ella foi produzida, o estado geral dos espiritos
e dos costumes em cujo seio o pintor, o esculptor ou o escriptor, pintou
o quadro, esculpiu a estatua, ou escreveu o poema.

E dos criticos indigenas que se lançaram á _Talitha_, como San Thiago
aos moiros, apenas um viveu temporariamente em Portugal, mas nunca se
perdeu em terras trasmontanas, gastou o tempo nas ruas das cidades
populosas: a aldeia lusitana, se a viu não  a estudou, se a estudou
ou não a comprehendeu ou... tresleu.

De sorte que a critica, severa e exigente, desconhece por completo o
meio que influiu na producção da _Talitha_, não tem noção, sequer, do
estado geral do espirito e dos costumes em cuja atmosphera o obscuro
autor do drama foi buscar os seus personagens: a critica, portanto, é
ignorante e, como todo os ignorantes, é pretenciosa, balofa e
petulantissima.

Ha doze annos ficou terminado o terceiro acto d'esse modestissimo
evangelho; ha doze annos appareceu pela primeira vez, no Brazil, a
sublime pastoral--_Os Velhos_--de D. João da Camara, cuja acção se passa
em uma aldeia do Alemtejo.

Quando a critica indigena, do Rio Grande do Sul, assistiu á
representação dessa obra prima, extasiou-se e não viu que na formosa
comedia do mallogrado escriptor portuguez se movimentam, não cinco, mas
nove personagens, nove almas igualmente puras, virtuosas, que em toda a
acção da bellissima pastoral ha um ambiente de consoladora bondade.

Applaudiu incondicionalmente, sem conhecer o meio em que D. João da
Camara estudou os seus personagens, nem sentiu necessidade de saber qual
era o estado geral dos espiritos e dos costumes que o brilhante
escriptor portuguez reproduziu no palco, para verificar se aquelles
personagens, aquella acção, aquelle ambiente correspondiam á realidade
objectiva da vida aldean no Alemtejo, ou se o dramaturgo phantasiara; se
seria possivel encontrar no fim do seculo XIX, em plena civilisação
occidental europea, reunidas na mesma terra, nove almas puras,
virtuosas, preoccupadas apenas com a pratica do Bem, sem um pensamento
máo, sem uma palavra rude, sem uma acção menos digna.

Ha nos dois primeiros actos da _Talitha_ uma profunda tristeza, a
amargura soluça em todas as gargantas e no terceiro acto ha uma explosão
de alegria: esse contraste parece exquisito, inverosimil, sem exemplo na
realidade da existencia; todo o drama tem um excessivo perfume religioso
que vae ao exaggero, diz a critica.

A critica ignora o que sejam na aldeia portugueza o sentimento
religioso, o culto catholico, a tradição christan, porque nunca viveu na
intimidade daquelles lares; o que lobrigou, através da obra suspeita e
viciada de escriptores trabalhados pelo meio social corrompido dos
grandes centros, envenenou-lhe a alma já preparada para receber a
semente do mal e a critica, enfunada de leitura superficial, para
maldizer, deixou-se ficar na commodidade das biliothecas e dos
gabinetes, acceitou as indicações da alma perversa de algum mentor sem
sinceridade, explorador da inexperiencia de creanças talentosas e
esqueceu a lição de Taine:

    «Pour plus de clarté, nous prendrons un cas très simple, simplifié
    exprés, celui d'un état d'esprit dans lequel la tristesse est
    predominante.

    ..................................................................

    «Il faut d'abord remarquer que les malheurs qui attristent le public
    attristent aussi l'artiste.

    «Comme il est une tête dans le troupeau, il subit les chances du
    troupeau.

    ..................................................................

    «Sous cette pluie continue de misères personelles, il deviendra
    moins joyeux, s'il est joyeux, et plus triste s'il est triste.
    Voilá--un premier effet du milieu.

    ..................................................................

    «Car, ce qui le fait artiste, c'est l'habitude de degager dans les
    objets le caractère essentiel et les traits saillants: les autres
    hommes ne volent que des portions, il saisit l'ensemble et l'esprit.
    Et comme ici le caractère saillant est la tristesse, c'est la
    tristesse qu'il aperçoil dans les choses.»

    H. Taine--Op. cit., pag. 68 e seguintes.

Pertencem ao Sr. Adherbal de Carvalho as seguintes palavras:

    «O que deu nascimento, entre elles, á noção de fatalidade é uma
    concepção que se refere, não ao futuro, mas unicamente ao passado; o
    que é, é, e nenhum poder no mundo poderia fazer que um facto
    concluido não existisse.»

    _A poesia e a arte no ponto de vista philosophico._--Cap. II, pag. 50.

O modesto autor da _Talitha_ não podia fugir á acção do meio em que se
encontrou com os seus personagens, como doutrina Taine, nem se podia
oppôr á verdade: _o que é, é, e um facto concluido, poder algum o annulla_.

Se o autor transformasse á medida do seu desejo, pensando em ser
agradavel á critica, mentiria á sua consciencia, deturparia as leis da
arte: os zoilos pódem maldizer, á vontade, o autor fica tranquillo e
contente com a fiel observancia das lições de Taine e do escriptor
brazileiro, inspirado na doutrina de Guyau.

O facto é verdadeiro, era sufficiente que fôsse verosimil: o autor da
_Talitha_ dramatisou-o, traduziu nos seus versos modestos as desventuras
e a redempção dos seus personagens pelo amor,

    «l'amor che muove il sole e l'altre stelle.»

O seu drama obscuro impressionou e commoveu, tanto basta: a agitação da
critica apenas conseguiu encrespar a vaidosa pleiade de coripheus do
elogio mutuo e a paixão, a animosidade e malquerença politicas.

Zola pontificou:

    «Il n'est poin't de jeune homme arrivant de sa province qui ne rève
    de distribuer des coups de férule.

    «Ces pauvres jeunes gens n'ont souvent pas deux idées nettes dans la
    tête. L'experience leur manque. Ils tapent en aveugles. De lá les
    jugements extraordinaires qui font resembler notre critique a une
    veritables Babel, ou on parlerait toutes les langues, sauf la langue
    de verité et de justice qu'il faudrait y parler.

    «Je ne nommerai personne parmi ces jeunes gens.

    «Le vent qui les apporte, les emporte.»

    _Documents litteraires; la critique contemporaine._--pags. 346, 347.

      *      *      *      *      *

O assumpto da _Talitha_ é portuguez, portuguezes são os seus
personagens, portuguez o meio em que a acção se desenvolve, portugueza
foi a atmosphera em que o autor viveu a sua adolescencia e a sua
mocidade: o drama não podia deixar de reflectir

    «l'état général de l'esprit et des moeurs environnantes.»

De profundas amarguras, de lacerantes provações para o povo portuguez
foi a época dolorosa em que o modesto autor da _Talitha_ aprehendeu em
flagrante o desenrolar da acção dramatica do seu poema lyrico: e essa
éra prolongou-se em uma crise tremenda que acaba de chegar ao seu auge,
a sua maxima intensidade.

Portugal acabava de receber o _ultimatum inglez_ na questão
pungentissima das possessões africanas, a natureza fôra de uma dureza
extrema: ás innundações dos invernos succedeu a crise agricola que
esmagou a producção vinicola pela invasão phyloxerica, as agitações
politicas ganhavam terreno e a ideia republicana fazia proselytos
ameaçando as instituições monarchico-religiosas de sete seculos e,
em meio dessas provações a Providencia, esquecida da immensa piedade
d'aquelle povo sublime, ininterruptamente demonstrada em uma historia em
que não soffre solução de continuidade o culto da divindade catholica,
fulmina-lhe os homens notaveis e successivamente desapparecem no tumulo:
Fontes Pereira de Mello, Anselmo Braamcamp, Pinheiro Chagas, Guilherme
de Azevedo, Lopo Vaz, Antonio Rodrigues Sampaio, Luciano Cordeiro,
Antonio Ennes, Marianno de Carvalho, Oliveira Martins, Carlos Lobo
d'Avila, Eça de Queiroz, Alexandre da Conceição, Raphael Bordallo
Pinheiro, Gervasio Lobato, Souza Martins, Camillo Castello Branco e
Anthero de Quental imitam o exemplo de Chatterton e atravessam a
luminosa região dos seus cerebros geniaes com a inferioridade
crudellissima de uma bala.

Da nova geração, Antonio Fogaça, Luiz Ozorio, Antonio Nobre, Moniz
Barreto seguiram a estrada da morte.

A crise economica era pavorosa, a emigração clandestina assustava os
espiritos mais fleugmaticos, á questão ingleza, seguiu-se a revolta de
31 de Janeiro e a situação geral era tão delicada e complexa que nem o
genio de José Dias Ferreira, nem as combinações politicas de homens como
Hintze Ribeiro e Fuschini conseguiram solver.

Ao desequilibrio financeiro succederam a questão monetaria e o augmento
da divida publica, fortemente aggravadas as condições do credito publico
pela questão internacional do emprestimo de D. Miguel. E Teixeira Bastos
escreve:

    «Diante do desconsolador espectaculo que apresenta a sociedade
    portugueza estrebuchando no esphacêlo, ha quem tenha perdido de todo
    a esperança de regeneração; ha quem se persuada que estão
    chegados os ultimos dias de Portugal. Com effeito, a agudeza da
    crise, que talvez ainda esteja longo de seu termo, justifica em
    grande parte este excesso de pessimismo.

    «Portugal, como todas as nações contemporaneas, em maior ou menor
    gráo, lucta com uma crise terrivel, que se revela sob aspectos
    variadissimos. É uma crise politica, financeira, economica, mas
    sobre tudo social e moral.»

    Teixeira Bastos--A Crise, pag. 435.

Esse estado geral do espirito e dos costumes portuguezes influiu
poderosamente na producção artistica e litteraria d'aquelle tempo e na
que se seguia.

Na esculptura destaca-se a estatua de _Hermengarda_ em que o talento de
Moreira Rato evoca para o marmore a alma dilacerada da heroina de
Herculano, o pessimista glorioso, o desilludido sublime de Val de Lobos.

Na architectura não surge cousa alguma que atteste a sublimidade do
caracter nacional e o que havia de notavel, legado e herança do passado,
soffre a influencia do desanimo, da indefferença, da tristeza geral que
domina.

É de Ramalho Ortigão o que se vae lêr:

    «Levaria muito tempo e seria excessivamente triste ennumerar todos
    os attentados de que teem sido e continuam a ser objecto, perante a
    mais desastrosa indifferença dos poderes constituidos, os monumentos
    architectonicos da nação...

    «Dos desacatos de lesa-magestade nacional, a que tenho a dôr e a
    vergonha de me referir, uns teem caracter anonymo, outros affectam
    directamente a cumplicidade official. Os primeiros são uma
    consequencia do desdem: os segundos são um resultado de incapacidade.»

    Ramalho Ortigão.--_O culto da Arte em Portugal_, pags., 19 e
    seguintes.

Quanto á vida e a producção litteraria, o autor da _Talitha_ invoca o
depoimento do grande critico portuguez; é elle quem affirma:

    «Dissolvido o culto artistico pela negligencia ou pela inepcia de
    abastardadas classes dirigentes, os fieis debandam por não haver
    egreja que os reuna, e é já evidente esta enorme catastrophe: que na
    arte de portugal faltam corações portuguezes.

    «Fere-nos já esse phenomeno consternador em todos os aspectos da
    vida intellectual.

    ..................................................................

    «A juventude litteraria, dotada de uma consideravel força de
    applicação e de talento, traz-nos uma poetica exotica, de climas
    nevoentos, anti-meridional, e vem fallando uma lingua secreta,
    cabalistica, interessantemente engenhosa, incomprehensivel para o
    povo e para os que não estiverem iniciados na morphologia espiritica
    das novas seitas.

    «Em toda a historiographia contemporanea se nota uma glacial frieza
    de critica, uma anemica pallidez de expressão, um geral entono de
    apagada tristeza, em que bem se demonstra que não circula o sangue
    vermelho da raça, nem se retrata o genio do nosso povo, meigo,
    docil, de apparencia branda, mas ainda hoje eminentemente sociavel,
    amando a grande alegria estridente das feiras, das tardes de touros,
    das romarias dos seus santos populares, conservando nas intimas
    camadas sociaes um residuo trovadoresco, de palladino e de
    menestrel, susceptivel ainda das paixões mais profundas, todo de
    imposição e repentismo, capaz das coisas mais imprevistamente
    grandes, poetico, aventureiro e destemido.

    «Na poesia, assim como na pintura e na musica, não ha uma escola
    portugueza, porque, na falta de laço social que congregue os nossos
    artistas, sem elementos coordenados de estudo, sem modelos patentes,
    sem lição commum, não ha entre elles mutuamente, nem entre elles e o
    povo de que derivam, communhão alguma de ideal ou de sentimentos.»

    Ram. Ortigão.--op. cit., pag. 110 e seguintes.

      *      *      *      *      *

Embora modesta a _Talitha_, embora sem merecimento o seu autor obscuro,
como poderiam ambos--drama e escriptor--fugir a esse estado geral do
espirito e dos costumes, de que falla Taine?

Necessariamente deveriam obedecer á lei, e por isso apparece nos dois
primeiros actos do drama essa dolorida tristeza que é o reflexo da
situação geral da sociedade e que a desventura daquella familia, pela
desventura da pequena Talitha, aggrava e apura com intensidade.

    «D'autre part, l'artiste a été élevé parmi des contemporains
    mélancoliques; partant, les idées qu'il a reçu et celles qu'il
    reçoit encore tous les jours sont mélancholiques.

    «La religion regnante, qui s'est accommodée au lugubre train des
    choses, lui dit que la terre est un exil, le monde un cachot, la vie
    un mal, et que toute notre affaire est de meriter d'en sortir»

    H. Taine--op. cit., vol. I. pag. 65.

Aliás é profundamente melancolica toda a obra litteraria portugueza
desse tempo, muito principalmente na poesia.

É um soluço de magua--o _Espirito Gentil_--de Luiz Ozorio; formam um
rosario de amarguras--as _Orações do Amor_ de Antonio Fogaça; é um
gemido crudellissimo o _Só_ de Antonio Nobre; é como um echo de
Necropole--_Nada_--de Julio Dantas.

No theatro, Marcellino de Mesquita lança a _Noite do Calvario_,
reproducção profundamente dolorosa e triste de um acontecimento real da
vida de um lar que o dramaturgo generalisa ás condições da vida social,
aliás já cruelmente desvendada nos _Castros_.

Para fugir á influencia da actualidade Julio Dantas recorre ao passado,
á chronica, a historia e não consegue eximir-se á impressão da
desventura: _O que morreu de amor_ é uma resurreição esmagadora de
magua; a _Severa_ é um manto de crepe encobrindo um cenotaphio; _O serão
nas larangeiras_ é uma ironia finissima, um esfusiar de espirito que
occulta, mascára, e pinta um immenso abatimento moral.

Gervasio Lobato passa nesse meio espalhando gargalhadas, ridiculo e
_troça_ sobre a sociedade carcomida pela crise e acabrunha de pilherias
a burguezia e a classe media no _Commissario de Policia_, no _Solar dos
Barrigas_ e na _Lisboa em Camisa_, passando do palco ao romance.

A _Velhice do Padre Eterno_ é uma _charge_ monumental sobre o
ultramontanismo da sociedade religiosa: a _Patria_ é uma objurgatoria
tremenda, um raio de colera olympica; os _Simples_, constituem um colar
de lagrimas de uma jeremiada genial e as _Orações ao Pão e á Luz_ são as
aspirações tantalicas do genio ao seio da excelsa divinisação da arte,
como refugio extremo de uma alma que foge ás revoltas da terra para não
cahir na lama das decomposições sociaes.

A _Rosa engeitada_, de D. João da Camara, é a dôr vivendo e esmagando as
almas; os _Velhos_, apezar do seu encanto bucolico e purissimo, é um
crepusculo de sombras dôces.

A _Cruz da Esmola_, de Eduardo Schwalbach, é a photographia nitida da
tortura e do desespero...

E tudo isso é a reproducção conscienciosa de um estado de pathologia
social... a menos que a critica não attribua tudo isso á phantasia dos
artistas pelo gozo requintado de esmagar a propria patria ao peso de
calumnias...

Mas neste caso como comprehender o collossal successo das obras
extraordinarias de Ramalho Ortigão na critica, de Eça do Queiroz ao
romance e de Raphael Bordallo na caricatura, profligando esse estado
geral de espirito e de costumes como Alphonse Karr, Gavarni e Flaubert
na alta cultura genial da França, em plena floração artistica e litteraria?

O terceiro acto da _Talitha_ não destôa dos anteriores, a unidade não se
quebra, transmitte-se, completa-se: a mesma suave melancolia dos
primeiros conserva-se na narrativa da morte do sargento que _Ruy_
communica a _Joaquina_ e no _raconto_ que das suas desventuras, faz a
_Marqueza de Rilma_ ao velho cura João Fulgencio.

A mesma serenidade christan dos primeiros actos paira no terceiro
através da descripção em que _Talitha_, ao som dos sinos distantes da
missa do gallo, conta a _Ruy_ e a _Joaquina_ a sua allucinação
passageira e termina com a _Salve-Rainha_ rezada ao soluçar do orgam e
ao repique da alvorada annunciando a missa d'alva.

A alegria que vibra n'este acto é mais intensa, realmente, mas n'elle se
encontram trez factos culminantes: a confirmação do noivado de Talitha
pelo perdão da Virgem na visão da missa; a cura radical e milagrosa da
sua cegueira e o apparecimento da mãe tanto tempo perdida.

Mas a alegria não surge alli de surpresa, repentinamente: no primeiro
acto ella vibra na scena final de amor em que as duas almas que se
comprehendem recebem a benção da velha Joaquina surprehendendo-as na
ventura do seu idyllio, e no segundo acto a primeira scena succede
naturalmente a essa e os dois velhos ligam, plas recordações, a passada
alegria de outros tempos, a que se vae em breve descerrar quando _Ruy_
levantar definitivamente a venda aos olhos da redimida.

Ahi a alegria vae á intensidade das lagrimas, é a tristeza que
nasce das extremas emoções da felicidade que não é triste e, se
momentaneamente desapparece quando _Talitha_ se deixa vencer pela fé
religiosa e rompe o juramento de amor para cumprir o juramento do voto
de clausura, de novo se reata e estala em um sorriso de supremo
arrebatamento, quando a piedosa e santa mentira do _Cura_, depois da
confissão, lhe relata o sonho da madrugada anterior em que elle viu
rolar no espaço

	no fulgor de uma estrella o beijo do perdão.

      *      *      *      *      *

A virtude daquellas almas!...

E porque razão de alta monta o autor da _Talitha_ devia quebrar a
verdade do facto observado, a unidade d'aquelle conjuncto que elle não
phantasiou e que, felizmente, encontrou num dia da sua mocidade, em meio
da crise social moral que caracterizava aquella época dolorosa de
provações populares?

Introduzir um personagem que não tivesse as mesmas qualidades de
caracter seria deturpar os factos para obedecer ao _métier_, a
carpintaria de theatro vencendo a moral na arte: um cumulo de estupidez.

Além de tudo, inutil: a emoção dramatica, o effeito theatral são
completos e seguros com a simplicidade daquellas cinco figuras, porque o
Bem, a Virtude e a Harmonia encantam e commovem sempre, em todas as
zonas e latitudes da terra.

Pertencem ao Sr. Adherbal de Carvalho as seguintes palavras:

    «O artista que emprega suas faculdades ao serviço de uma idéa
    generosa não é menos artista por isso, se bem que não seja por isso
    que elle é artista. O amor e a intelligencia do bem suppõem uma
    concepção superior das condições da vida individual e social que é
    preciso desejar a todos os artistas como a todos os homens...»

    ..................................................................

    «Entretanto ha uma observação a fazer neste ponto, é que parece mais
    facil pintar o vicio do que a virtude. Balsac, que se sahiu
    admiravelmente na pintura dos monstros, encalhava quasl sempre
    quando era atacado pelos homens pudicos.

    «Tão verdadeiros e vivos são os seus libertinos da alta o baixa
    sociedade, como os outros, na maior parte do tempo, são ternos e mal
    acanhados.»

    Op. cit. pag. 32.

Ainda mesmo quando o autor da _Talitha_ houvesse faltado á verdade dos
factos que observou, teria tentado o problema, na opinião do estheta
brazileiro, mais difficil de resolver: o estudo e a interpretação da
Virtude o do Bem, na psychologia dos cinco personagens que jogam em
scena a acção do seu obscuro poema lyrico.

A critica indigena, ignorante ou perversa, petulante ou futil, feriu-se
com as proprias armas.

      *      *      *      *      *

Que o autor da _Talitha_, sem prestigio para fazel-o, permittiu-se a
liberdade de escrever um drama em verso, fórma litteraria que está
totalmente banida do theatro moderno, supplantada pela prosa.


É outra censura da critica indigena; espera-a a mesma sorte das
anteriores: a critica é vesga e não sabe o que diz.

Do theatro moderno ainda não foi banida a fórma alta e pura do verso:
semelhante vandalismo seria uma violencia feita á arte, á belleza, ao
bom gosto, á suprema lei do rythmo, para cujo excelso dominio tendem
naturalmente todas as manifestações da vida e a linguagem da poesia do
metro e da rima, a altissima elegancia.

Moderno é Victor Hugo, gigante de oiro do theatro francez e escreveu em
verso: _Esmeralda_, _Burgraves_, _Ruy Blas_, _Cromwell_, _Torquemada_,
_Grandmère_, _L'Épée_, _Mangerontils?_, _Sur la lisière d'un bois_, _Les
gueux_, _Étre aimé_, _La Forêt-mouillée_.

Modernos são Paul Delair e Lomon e escreveram em verso os seus dramas
_Garin_, _Jean Dacier_ e _Marquis de Kenilis_ que Zola critica
asperamente na sua obra--_Naturalisme au Théâtre_.

Moderno é Banville e produziu _Hymnis_, _Riquet à la houpe_ e _Socrates
et sa femme_, tres comedias em verso.

Moderno é Alphonse Daudet e entre as suas obras figura _Char_, comedia
em verso, em um acto.

Moderno é Alfred Musset e legou ao theatro da sua patria: _Les marrons
du feu_, comedia; _A quoi rêvent les jeunes filles_, comedia; e _La
coupe et les lèvres_, drama, todos em verso.

Moderno é Ed. Pailleron e no seu theatro figuram _Narcotique_, comedia
em um acto, e _Hélène_, drama em quatro actos, ambos em verso.

Moderno é Ludovic Halévy, collaborador de Meilhac, e produziu, em verso,
a _Phryné_ e _Nina, la Tueuse_.

Modernissimo é Emile Augier, o grande mestre da litteratura dramatica e
da carpintaria theatral e escreveu em verso a maior parte das suas
peças. São em verso: _Cigüe_, _Paul Forestier_, _Homme de bien_,
_Aventurière_, _Gabrielle_, _Joueur de flúte_, _Philiberte_ e
_Jeunesse_.

Moderno é Catulle Mendés e em 1872 dotou o theatro com a sua comedia em
verso, _La Part du Roi_, em um acto; em 1888 fez representar a sua
formosa phantasia, tambem em verso--_Isoline_, em tres actos; e em 1889
produziu, ainda em verso, o drama em 6 actos--_Fiammete_; em 1906, punha
em scena no Odéon, o seu drama _Glatigny_, tambem em verso.

Modernissimo é Jean Richepin e, em 1905, fazia representar na Comédie
Française o seu _D. Quichote_, em verso.

Modernissimo é tambem André Arnymede, que em 1906 assombrava a critica
parisiense com a representação triumphal de _La Courtisane_, em cinco
actos e em verso.

Modernissimo é Francis de Croisset e escreveu em verso os tres actos
sensacionaes do Paon que subiu á scena na Comédie Française.

Modernissimo é Emile Veyrin que viu os seus formosos versos dos quatro
actos de _Embarquement Pour Cythère_, no palco do Theatro des Bouffes
Parisienne.

Modernissimo é Jacques Richepin e, em Abril de 1907, viu na ribalta da
_Porte St. Martin_, os soberbos alexandrinos da _Majorlaine_, em cinco
actos, depois de haver debutado com os versos admiraveis da _Reine de
Tyr_, no theatro Sarah Bernhardt.

Moderno é François Coppée, e em 1878, em collaboração com Armand
d'Artois, produziu o drama em cinco actos _Guerre des Cent ans_; em
1879, _Le Trésor_, comedia em um acto; em 1881, _Madame Maintenon_,
drama em cinco actos e um prologo: em 1883, _Severo Torelli_, drama em
cinco actos; em 1885, _Les Jacobites_, drama em cinco actos; em 1880,
_Le Passant_, em um acto; e em 1888, _La Grève des Forgerons_, em um
acto, e em 1905, _Scarron_, em cinco actos: e todos esses trabalhos são
em verso.

Rostand escreveu todos os seus dramas em verso: _Princesse Lointaine_,
_Romanesques_, _Cyranno de Bergerac_, _Samaritaine_, _Ayglon_ e
ultimamente os tres primeiros actos do _Chant-clair_...

Miguel Zamacoix acaba de escrever e fazer representar em Paris pelo
genio de Sarah Bernhardt, _Les Boufons_, em verso alexandrino, obra
prima que a critica europea colloca, senão acima, ao lado do _Cyrano_.

E ainda recentemente, em Outubro de 1906, a imprensa franceza se occupou
de uma outra obra prima do talento de Catulle Mendés, em soberbos
alexandrinos, de um mysticisco celeste, que se intitula _Sainte Thérèse_.

Na Inglaterra, Robert Browning escreveu a tragedia historica _Strafford_
e os dramas _Mancha no Brazão_ e _Regresso dos Deuses_, todos em verso.

Na Italia, Gabriel d'Annunzio escreveu em verso os tres actos da _Filha
de Jorio_, e fez representar por Eleonora Duse o seu grandioso monumento
_Francesca da Rimini_, em verso, como em verso havia escripto pouco
antes o seu extraordinario _Nerone_, o genio brilhante de Boito, e
Cavalloti o seu formosissimo idylio _Cantico dei cantici_, em 1882.

Na Hespanha, deixando de parte o _D. Juan Tenorio_, de Zorrilla: o
_Trovador_, de Gutierres; a _Roda de la Fortuna_, de Thomaz Rubi, todos
de 1850: Hartzemburch produziu mais recentemente _Los Amantes de
Terruel_; _Alfonso, el Casto_ e _La Madre de Pelagio_, e Echegaray o seu
conhecidissimo _Gran Galeoto_.

E todos esses dramas são escriptos em verso.

Em Portugal, João de Deus, o lyrico sublime, escreveu _Horacio e Lidia_;
Eugenio de Castro, o revolucionario de genio, o extraordinario autor da
_Belkiss_ e de _Constança_, acaba de publicar o _Annel de Polycrates_;
Henrique Lopes de Mendonça, o _Duque de Vizeu_ e a _Noiva_:
Fernando Caldeira, a _Mantilha de Renda_ e a _Madrugada_; Marcellino de
Mesquita, a _Leonor Telles_; Julio Dantas, a _Ceia dos Cardeaes_;
Francisco Palha, a _Fabia_; Luiz de Magalhães, o _D. Quixote_, os dois
ultimos para o Theatro Academico, de Coimbra, todos em verso; sómente
para citar os escriptores da actualidade, deixando de parte _O Catão_ e
a _Merope_ de Almeida Garrett e o _Camões_, de Antonio Feliciano de
Castilho.

Finalmente: em verso tambem escreveram no Brazil: Gonçalves de
Magalhães, o _Olgiato_; Arthur Azevedo, o _Badejo_; Zeferino Brasil, o
_Outro_ e Coelho Netto, _As estações_.

A critica, portanto, ou é ignorante ou mentiu propositalmente.

      *      *      *      *      *

Mas a critica adiantou-se ainda: abriu dogmaticamente uma excepção: o
verso em theatro só se admitte para as tragedias historicas.

Outra cincada.

Em Portugal, Fernando Caldeira deixou no theatro duas joias preciosas: a
_Mantilha de Renda_ e a _Madrugada_ que nem são tragedias, nem tem
filiação alguma historica.

Na Italia, Cavallotti legou á lilteratura dramatica um primor de
lyrismo: o _Cantico dei cantici_ que não é tragico, nem historico.

Em França, Catulle Mendès escreveu, em verso, os tres actos de _Isoline_
e os seis do _Fiammette_ que nada tem a vêr com a historia, nem com a
tragedia.

François Coppée produziu _Le Trésor_, _Le Passant_, _La Grève des
Forgerons_, todos em um acto e que não tem a minima relação com a
tragedia, nem o menor vestigio de historia.

No Brasil, o _Badejo_, de Arthur Azevedo, é uma comedia, o _Outro_, de
Zeferino Brasil, um drama; _As estações_, de Coelho Netto, uma
phantasia, todos em verso, sem relação alguma com a historia ou com a
tragedia.

A critica indigena

    «appartient à ce monde de paresseux qui font chaque soir une grande
    oeuvre, en buvant une chope; seulement, le lendemain, ils ont sommeil
    et ne trouvent pas le temps d'ècrire la grande oeuvre. «La vie se
    passe, l'âge arrive, ils restent des debutants.»

    Zola, _La critique Contemporaine_, pag. 351.

Entretanto, René Doumic, um mestre da critica, escreve na _Revue des
Deux Mondes_:

    «Je voudrais seulement que les poètes qui se sentent une vocation
    d'auteurs dramatiques ne s'imaginent point que le succès ne peut
    être obtenu par eux, à la scène, qu'en nous narrant des histoires
    romantiques ou des féeries.»

E Gaston Sorbets conclúe:

    «M. René Doumic á assurément raison: la poesie dramatique est faite
    anssi pour exprimer les mouvements les plus profonds de notre coeur
    ou les aspirations les plus hautes de notre âme. Il suffit de voiler
    de poesie la Verité nue pour faire de cette divinité une muse
    nouvelle.»

Deixemos vociferar os maldizentes: nós ficamos com os criticos que sabem
sentir e... lêr.

      *      *      *      *      *

Os zoilos que se lançaram á modestissima _Talitha_, censuraram ao seu
autor o atrevimento inaudito de não observar a regra do Theatro francez
de Corneille e Racine, que manda emparelhar systematicamente os graves e
agudos na symetria inalteravel prescripta por aquellas duas autoridades.

Mas a critica, absolutamente não tem competencia para impôr aos
escriptores brazileiros, por muito modestos e insignificantes que sejam,
as leis e as regras da arte poetica franceza.

Se a obra d'arte é portugueza ou brazileira, o auctor não se submette ás
leis da poetica franceza: observa os modelos nacionaes e portuguezes.

E, sem receio de ser contestado por quem quer que seja, o autor da
_Talitha_ affirma: não ha poeta algum na lingua de Camões, quer no
theatro, quer fóra delle, que obedeça ás exigencias das prescripções
francezas, que, aliás, o proprio Corneille, invocado pela critica, não
seguiu nem adoptou na _Imitation de Christ_:

    «Le desir de savoir est naturel aux hommes:
    il nait dans leur berceau sans mourir qu'avec eux
    mais, ô Dieu, dont la main nous fait ce que nous sommes,
    que peut-il sans ta crainte avoir de fructueux?

    Liv. I, Chap. II.

    «Vanité d'entasser richesses sur richesses,
    Vanité de languir dans la soif des honneurs,
    Vanité de choisir pour souverains bonheurs
    de la chair et des sens les damnables caresses.

    Liv. I, Chap. I.

    «Vraiment grand est celui qui dans soi se ravale
    qui rentre en son néant pour s'y connaitre bien,
    qui de tous les honneurs que l'univers étale
            craint la pompe fatale,
            et ne l'estime en rien.

    Liv. I, Chap. III.

Victor Hugo, o mestre supremo, tambem não obedeceu invariavelmente a
esta regra que a critica pretende impôr dogmaticamente, como immutavel.

Vejamos na _Esmeralda_, acto I:

        «Nous irons au clair de lune
        danser avec les esprits...
        Vive Clopin, roi de Thune!
        Vivent les gueux de Paris!

    «Au milieu de la ronde infame
    qu'importe le soupir d'une ame?
    Je souffre! oh! jamais plus de flamme
    au sein d'un volcan ne gronda.

Em _La Forêt mouillée_, Scene II:

    «Les moutons promis aux fourchettes
    Passent là-bas; j'entends leurs voix
        Sonnez, clochettes,
        au fond des bois.
    Le beau Narcisse est en manchettes;
    Silène a mis toutes ses croix.

Rostand, o impeccavel, na _Samaritaine_, tambem não se subordinou
absolutamente a essa regra, como se vê logo na primeira scena:

    «Poussé par la brise des nuits,
    et vagabond jusqu'à l'aurore,
    je viens pour des fins que j'ignore,
    comme un fantôme que je suis.
    D'une sandale sonore
    je viens, je glisse et je m'enfuis...
    Mais, ô Jehovah que j'adore!
    quelle est cette grande ombre encore
    qui se tient debout près du puits?

e assim prosegue o genial poeta em toda essa scena que se compõe de
cento e nove versos.

E para que não diga a critica perversa que n'esses exemplos não ha
alexandrinos, aqui ficam estes alexandrinos, ainda do I acto, scena V,
em que Photina declama:

    «Mon bien aimé--je t'ai cherché--depuis l'aurore,
    Sans te trouver,--et je te trouve,--et c'est le soir;
    Mais quel bonheur!--il ne fait pas--tout a fait-noir:
                mes yeux encore
                pourrent te voir.

e assim por toda a _fala_ de Photina, gue se compõe de mais de vinte
nove versos.

Na lingua portugueza, porém, não ha um poeta sequer que obedeça á regra
da metrica franceza, nem no drama, nem no poema.

Junqueiro, na _Morte de D. João_, na _Musa em ferias_, na _Velhice do
Padre Eterno_, na _Patria_, ou nos _Simples_ usa indistinctamente as
rimas agudas, graves, e esdruxulas, emparelhadas, ou alternadas.

                         «O pensamento humano
    mergulhou como um Deus nas grutas do oceano,
    embebeu-se no azul, andou pelo infinito,
    interrogou a historia, os ventos, o granito,
    todas as creações, todas as creaturas,
    vermes, religiões, abysmos, sepulturas,
    e disse-nos: Jesus, Socrates, Platão
    fallaram a verdade. Existe uma rasão,
    uma ideia, uma lei, mysteriosa, etherea,
    que rege o movimento e as formas da materia...

    _Morte de D. João._--Introducção, pag. 31.

      *      *      *      *      *

    «Hediondo! assassinar um homem que assassina!
    Collocar o direito ao pé da guilhotina.
    Resolver a questão do crime--um cemiterio!
    Sanccionar Papavoine e decretar Tiberio!
    Um carrasco de guarda á nossa segurança!
    O pelotão--juiz e o tribunal--vingança!
    E é uma coisa que indigna, um facto que comove,
    que quasi ao terminar o seculo dezenove
    pensem como Marat, pensem como Cain
    as leis no velho mundo e o tigre em Bombaim!

    _Musa em férias_; Idilios e Satiras, pag. 137.

Julio Dantas, o brilhante poeta da _Ceia dos Cardeaes_ tambem não
adoptou a regra que a critica indigena pretende nacionalizar.

                             Xerez.
    «Roma! Roma que viu, pela primeira vez,
    Beneditto XIV, um papa,--a receber
    Conselhos de Inglaterra e cartas de Voltaire!
    ............................................

    «As cartas de Voltaire, honram!
                            ... É natural
    fala como francez.
                  ... Fala como cardeal!
    ............................................

    «Mas perdão... Não será politica de mais
    para uma ceia alegre? Emfim trez cardeaes
    não salvam Roma...

Como se vê, Julio Dantas, empregou successivamente dez agudos.

E esse arrojo do eminente poeta portuguez não impediu que a _Ceia dos
Cardeaes_ tivesse oito traducções em allemão, francez, italiano,
hespanhol e no dialeto catalão, nem evitou que fôsse representada mais
de quatrocentas vezes.

Entre os poetas brasileiros bastará citar dois nomes de primeira
grandeza: Alberto de Oliveira e Goulart de Andrada; nenhum se submette á
exigencia franceza da critica indigena.

A _Cruz da montanha_ do primeiro é um poemeto de 126 alexandrinos. Em
toda essa obra prima não ha dois versos agudos e apenas se encontra uma
parelha de esdruxulos.

Observa-se o mesmo phenomeno em varias outras composições como--_A
Enchente_, com 76 alexandrinos; a _Lagarta_, com 124 versos de vario
metro, onde apenas ha 14 rimas agudas: _Atmo_, com 88 alexandrinos,
entre os quaes apenas dois esdruxulos e nem um agudo.

      *      *      *      *      *

_Ascenção perigosa_, de Goulart, é uma poesia composta de 44
alexandrinos, dos quaes apenas quatro são esdruxulos e nem um agudo.

_Apocalypse_ é formado de 158 alexandrinos: nem um agudo, sómente dois
esdruxulos.

      *      *      *      *      *

E a razão é simples, é natural, é formidavel: o idioma francez é
abundantissimo de agudos e o portuguez é, relativamente, pauperrimo.

Para observar inalteravelmente a regra franceza que a critica pedante e
fátua pretende impôr vaidosamente, depressa ficariam exgottadas as rimas
agudas e o poeta incidiria na repetição das consoantes, o que constitúe
o defeito da pobreza de rimas, acremente censurado pela critica.

Além disso, os francezes não conhecem as palavras esdruxulas, ao passo
que a lingua vernacula é riquissima d'esses vocabulos e, a ser observada
na poesia dramatica portugueza e brazileira a lei da arte de Corneille e
Racine, os poetas lusitanos e patricios vêr-se-iam obrigados a escrever
alternadamente os seus versos em parelhas systematicas de esdruxulas,
graves e agudas, o que seria, além de fatigante e exhaustivo, de um
rebuscamento torturado, monotono, somnolento.

O obscuro autor da _Talitha_ preferiu deixar expandir-se naturalmente o
pensamento proprio, de accordo com a alma dos personagens: o verso e a
rima já de si são condições impostas pela exigencia artistica,
apurar essa exigencia com o requinte de uma symetria dispensavel,
equivaleria a torturar os sentimentos das figuras que se movem na acção
dramatica.

O facto de ser uma regra de Corneille e de Racine tambem geralmente
seguida por outros poetas modernos--o emprego alternado de dois agudos e
dois graves, não evita a monotonia, principalmente quando se traduz o
pensamento de um personagem ou se reproduz um vulto historico: na vida
real ninguem se exprime por essa fórma.

Entretanto, admittidos geralmente o verso e a rima, o poeta deve quanto
possivel, para evitar a monotonia, variar o rythmo, o metro e o
encadeamento da rima: as difficuldades artisticas e technicas não são
excluidas por esse criterio, conservam-se; a monotonia desapparece e o
pensamento, exprimindo-se com mais liberdade, permitte melhor estudo da
psychologia dos personagens, e mais vigor descriptivo.

O proprio autor da _Talitha_ verificou praticamente o que acaba de
affirmar quando escreveu a _Visão de Colombo_, em um acto, obedecendo
systematicamente á regra da poetica franceza e emparelhando os
alexandrinos por ordem de rimas agudas, graves e esdruxulas em toda a
extensão do poema dramatico, formado de quatro centos e poucos versos,
sem repetição de rimas.


Ramalho Ortigão ensina:

    «não são as academias que pautam as proposições e os limites da
    creação artistica. Tudo o que se pode formular em preceito cessa de
    ter valor em arte. A obra de arte não é um producto de escola: é a
    livre expressão individual de uma alma, convertida em realidade
    objectiva e communicando aos homens uma vibração nova de
    sentimento.

    «A superioridade ou a inferioridade de um artista, a sua cathegoria,
    deduz-se da maior ou menor quantidade de ideias que a sua obra
    suggere e dos sentimentos cuja percussão ella determina.»

    Op. cit., pag. 145.

Adherbal de Carvalho doutrina:

    «É no sentido da liberdade que em geral se faz todo o progresso; é
    neste sentido que tambem se deve fazer todo o progresso do verso.

    «A liberdade do rythmo era muito insufficiente entre os romanticos.
    Vimos que a consequencia é a pobreza, a esterilidade do proprio
    pensamento; porque a forma do verso reage sobre o cerebro do poeta.
    O remedio seria a auzencia de estorvo sem fim, a suppressão de
    regras não racionadas: liberdade é fecundidade.»

    Op. cit., pag. 282.

E depois d'essas duas sentenças, atreve-se o autor da _Talitha_ a
perguntar á critica indigena como será possivel arvorar em preceito
obrigatorio de arte poetica da nossa lingua, a regra de Racine e
Corneille, quando a tendencia moderna é para supressão da rima e para a
cultura extremada do rythmo no verso branco?

A falla de _Cacambo_ e o episodio da morte de _Lindoya_ no _Uruguay_ de
Basilio Gama nada perderam em valor artistico pela falta de rima: o
_Colombo_ de Araujo Porto Alegre encerra verdadeiras maravilhas em verso
branco; Alexandre Herculano, que foi um cinzelador do verso, na _Harpa
do Crente_ deixou primorosos lavores em verso solto.

Anthero Quental, cujas _Odes modernas_ arrancaram a Michelet uma soberba
explosão de espanto

    «Se em Portugal ainda houver quatro ou cinco homens como o poeta das
    _Odes modernas_, Portugal continuará a ser um grande paiz vivo.»

Anthero legou nessa obra monumental pequenos monumentos em verso branco.

E para não fallar na _D. Branca_ de Garrett, todo escripto em versos
soltos, bastará citar os livros admiraveis de Correia de Oliveira: _Ara_
e _Raiz_, demonstração brilhante de que a obrigatoriedade da rima tende
a desapparecer cedendo á liberdade do pensamento.

O velho mestre Antonio Feliciano de Castilho, na sua Arte poetica,
escreveu:

    «Os versos agudos, pelo seu modo secco estalado de acabar, sem
    elasticidade, sem vibração, se assim o podemos dizer, teem o que
    quer que seja de ingrato ao ouvido; seriam insoffriveis, se alguem
    se lembrasse de nol-os dar enfiados aos centos e aos milheiros, como
    os graves nos apparecem, sem nos cançarem: demais por isso mesmo que
    os vocabulos agudos são menos frequentes, d'ahi tiram os versos
    agudos um quid de exhibição e exquisitice que não parece frisar
    senão com as idéas extravagantes, comicas, brutescas ou satyricas.

    «Do expendido por boa razão se infere: l.º que em toda e qualquer
    especie de metro são os versos graves que devem, predominar.»

A critica pretenciosa e petulante indicadora de regras de arte
rebella-se contra a autoridade incontestavel e consagrada de Antonio
Feliciano de Castilho e quer que em versos portuguezes o autor da
_Talitha_ adopte a regra franceza, que equipare agudos e graves e os
manda empregar em numero igual, symetrica e systematicamente dispostos
em parelhas alternadas.

O autor da _Talitha_ não adoptou a regra de Castilho mas tem ao seu
lado, para apoiarem o seu procedimento, as autoridades dos rebeldes
Junqueiro, Feijó, Luiz de Magalhães, Lopes de Mendonça, Julio Dantas,
Eugenio de Castro, Antonio Nobre, Gonçalves Crespo, Marcellino de
Mesquita, Fernando Caldeira que não a observaram, nem se
submetteram á lei de Corneille e Racine, e, o que é tudo, do proprio
Antonio Feliciano de Castilho que não adoptou a regra franceza na
composição dos alexandrinos emparelhados.

Isso em Portugal, porque no Brasil o autor da _Talitha_ encontra apoio
para o seu procedimento em Alberto de Oliveira, Olavo Bilac, Goulart de
Andrada, Martins Fontes, Guimarães Passos, Luiz Murat, Machado de Assis,
Valentim Magalhães, Lucio Mendonça, Oscar Lopes, Pereira da Silva,
Emilio Menezes, Frota Pessoa, Flexa Ribeiro, Zeferino Brasil e Coelho
Netto que não consideram a technica franceza como adaptavel ao verso
portuguez, se bem que discretamente observem a opinião de Castilho,
relativamente á proporção das rimas agudas e graves.

Ora, a critica indigena, ainda rescendendo aos aromas equivocos da
primeira infancia, ha de permittir que o autor da _Talitha_ prefira as
autoridades artisticas de dois hemispherios, acima citadas, ao
impertinente pedantismo da incompetencia de quem, em materia de
autoridade litteraria, não chegou ainda se quer á categoria de
trintanario do _Pegaso_, na estrebaria de Augias.

      *      *      *      *      *

A critica indigena censura a pobreza de rima da _Talitha_: não tem razão.

A _Ceia dos Cardeaes_ é uma obra prima: assim o prégou a critica, assim
a considera a opinião.

Pois bem; essa joia tem 338 versos; o primeiro acto da _Talitha_
compõe-se de 492.

A _Ceia dos Cardeaes_ tem apenas 66 rimas diversas; o primeiro acto da
_Talitha_ dispõe de 127 rimas differentes: a proporção naquella é de 5%,
nesta é de 25%.

Na _Ceia dos Cardeaes_ ha apenas 31 rimas que não foram repetidas; no
1.° acto da Talitha ha 80.

Na primeira, a obra prima, essa proporção é de 9%, na _Talitha_, a
condemnada, a proporção é de 17%. A critica indigena tem cabellos na
lingua e fel no coração.

A _Samaritana_ é a obra prima de Rostand, assim a julgou a critica
europea, assim a julga o proprio poeta.

O primeiro acto d'essa joia magestosa tem 808 versos.

Pois bem: entre esses ha 322 repetições, apenas em 17 rimas.

Poder-se-ia fazer o confronto dos tres actos: basta esse que ahi fica
para demonstrar que a critica nem soube o que disse, nem sabe o que é
pobreza ou riqueza de rima.

A opulencia de rima póde ser exigida em composições poeticas esparsas,
que não tenham grande extensão, mas em um poema dramatico essa exigencia
da critica é despotica, é absurda, principalmente quando os personagens
que o movimentam são da especie daquelles que figuram no entrecho da
_Talitha_.

Collocar nos labios de _Joaquina_ versos de rima escolhida, apurada, sem
repetições de termos que andam constantemente na conversa commum,
substituindo estes por palavras rebuscadas nos diccionarios de rimas,
sómente para que a critica se extasie deante de uma riqueza phantastica,
equivaleria a falsear a natureza intima do personagem e fazer de uma
santa e simples mulher vulgar da aldeia, uma pretenciosa ridicula; a
espontaneidade do escriptor desappareceria para dar logar ao
rebuscamento, o artista seria supplantado pelo artifice, o poeta pelo
rimador, o sentimento pela paciencia.

A opulencia da rima importaria necessariamente na elevação da
linguagem e a critica deixa de ser logica exigindo por essa fórma o que
já condemnára, considerando alcandorada em demasia para personagens de
aldeia a linguagem que o autor da _Talitha_ confiou a cada um d'elles.

Nos acontecimentos vulgares da vida de aldeia as palavras são simples,
corriqueiras; o vocabulario dos aldeãos é pouco extenso e
tradicionalmente consagrado: ha phrases peculiares, ha para cada facto
da vida, póde-se dizer, um termo que não se substitue, um conceito
consagrado pelo uso immemorial; o mesmo sentimento, traduzido por outros
termos, em phrase diversa, não é comprehendido.

O eminentissimo critico e brilhante espirito de estheta brasileiro o
notavel mestre da lingua vernacula, Snr. José Verissimo, doutrina
superiormente:

    «O grande escriptor em todas as linguas é o que escreve e consegue
    todos os effeitos da sua arte com o vocabulario corrente, não só do
    povo--que é realmente pobre--mas da litteratura do seu tempo.»

    Citação de Elysio de Carvalho no livro--_As modernas correntes
    estheticas_, pag. 27.

Em taes condições, se o dialogo, apezar de ser em verso, deve reflectir,
quanto possivel, as condições normaes da vida e do personagem, attribuir
a este a expressão dos seus affectos, das suas dôres, das suas alegrias,
dos seus desejos ou das suas esperanças, por meio de palavras em rima
opulenta, será desnaturar o personagem, será mentir á realidade, será
phantasiar um typo que a natureza local reproduzida no theatro, não
creou na vida real.

Comprehende-se essa exigencia na alta tragedia historica ou sacra, ou
ainda nas phantasias mythologicas: alli, sim, a linguagem póde e deve
ser alcandorada sem inverosimilhança, os personagens vem
distinguidos pelo prestigio da historia, da Biblia, do sobrenatural, que
substituem toda a realidade objectiva.

A admiração, a fé e a idolatria pódem crear os maiores absurdos: Esopo,
Phedro, Lafontaine fizeram falar os animaes em verso sublime, limado,
terso, brilhante, sonóro, de rima opulentissima.

Zola escreveu:

    «C'est, je le répète, le seul cadre ou j'admets, au theatre, le
    dedain du vrai. On est là en pleine convention, en pleine fantaisie,
    et le charme est d'y mentir, d'y échapper a toutes les realités de
    ce bas monde.

    ..................................................................

    «Jamais les auteurs ne se trouvent acculés par la vraisemblance et
    la logique: ils peuvent aller dans tous les sens, aussi loin qu'ils
    veulent, certains de ne se heurter contre aucune muraille.

    ..................................................................

    «La comédie et le drame, au contraire, sont tenus à être
    vraisemblables.»

    Zola. _Le Naturalisme au théâtre_, pag. 357, 358.

Mas João de Deus, que foi em Portugal «a mais completa encarnação do
lyrico apaixonado, sem entraves positivos, sem preoccupações
estylisticas visando á erudição», que foi «sentimento singelo, o amor,
esse amor portuguezissimo, em palavras singelas, versos de medida
simples e estylo simples», João de Deus que cantou a simpleza rural da
sua terra, a alma dôce do povo e dos campos, esse «que é o lyrico mais
portuguez» como considera Fidelino Figueiredo, «um grande scismador e um
grande artista, que não tem artificios na sua poesia, singela como todos
os grandes sentimentos, harmoniosa e virginal como um sorriso de
creança, suave e consoladora como uma parábola de Christo, serena e
luminosa como um dialogo de Platão», no dizer profundo de Alexandre da
Conceição, João de Deus não se preoccupou com a opulencia da rima, nem
mesmo quando escreveu para o theatro aquella encantadora phantasia em um
acto _Horacio e Lydia_, romana pelo assumpto, grega pela technica.

Ora, a _Talitha_ é composta de 1873 versos de varios metros,
predominando o alexandrino.

Para demonstrar opulencia de rima, o obscuro autor da _Talitha_ reservou
as suas modestas poesias esparsas, entre as quaes figura a _Ode ás
Arvores_, dedicada a Coelho Netto, ode essa que se compõe de 312
alexandrinos, e não tem sequer uma rima repetida, além da grande
abundancia de vocabulos cuja difficuldade de rima é conhecida.

Um dos zoilos da Talitha, com o intuito de provar que os tres actos
d'esse evangelho são indigentes de rima, nota que no 2.° acto a palavra
enferma rima com erma e no 3.° acto tambem enfermo rima com ermo.

E o zoilo exclama:

    «Para _Enfermo_ o poeta encontrou apenas a rima _ermo_, uma rima
    pobrissima.»

Mais pobre de espirito é o critico.

A _Talitha_ compõe-se de 1873 versos; quatro vezes apenas o maldizente
encontrou a rima em _erma_, ainda assim uma vez no masculino e outra no
feminino, e fulmina a censura:

    «o poeta só encontrou a rima _ermo_ para _enfermo_, rima pobrissima.»

Ignorante, perverso, futil, ou lorpa.

Pois bem, o autor da _Talitha_ consultou os diccionarios de rima de
Castilho e de Alencar, duas autoridades na materia, e para _enfermo_
apenas encontrou _ermo_, _termo_ e _estafermo_. As duas primeiras foram
applicadas, uma no segundo, outra no terceiro acto.

Quanto á terceira--_estafermo_--o poeta da _Talitha_ só a poderia
utilizar se fizesse referencia ao critico.

Para agradar á sua opinião e corresponder á sua exigencia, o zoilo
pretende que o autor da _Talitha_ deveria forgicar palavras,
neologismos, sómente com o fim de não repetir a rima!

Mas se essa rima é pobrissima, que culpa tem o autor da _Talitha_, se a
lingua apenas lhe faculta, além dessa, mais duas, uma das quaes
pertencente ao calão?

Entretanto o critico mentiu: no segundo acto a rima de _enferma_ é
_erma_; no terceiro acto á palavra _enfermo_ foi dada a rima--_termo_.

2.º acto, pag. 64:

    «seria bem melhor que cuidasse da enferma,
    que vive ali no escuro abandonada e erma»

3.º acto, pag. 89:

    «de acudir pressuroso ao leito dum enfermo
    ardendo em alta febre e bem proximo ao termo
    d'uma longa existencia...»

Eis ahi ao que se reduz a censura do zoilo: á mentira.

      *      *      *      *      *

Por ultimo a critica indigena censura o autor da _Talitha_ por ter
escripto o drama em tres actos afim de apresentar, desnecessariamente,
no terceiro, a _marqueza_, mãe da heroina.

E a critica, em ar de pilheria, pede um quarto acto para que appareça
tambem o Pae de _Talitha_.

O autor não teria duvida em satisfazer o desejo da critica, escrevendo
mais dois actos para apresentação da sogra de _Talitha_, se tambem a
critica de outra tempera, a critica elevada e honesta, não houvesse
solicitado a redacção dos tres actos simplesmente aos dois primeiros
para que esse obscuro trabalho

    «seja legado pelo autor ao seu paiz, como um thesouro, refundindo-a,
    cortando as scenas a mais, deixando-a nos dois actos primeiros mais
    o milagre e a oração; assim _Talitha_ será um primor litterario...»

    Critica da _Tribuna do Rio_.


    «O drama é magnifico. E porque não dizer o melhor drama que se tem
    escripto no Brazil?»

    Critica da _Gazeta de Noticias_, do Rio.


    «Os tres actos do Sr. Pinto da Rocha dão a quem os ouviu a
    satisfação rara e salutar que só produzem as obras de arte, erguidas
    severamente com a segurança de que só é capaz a sinceridade.»

    Critica do _Paiz_, do Rio.


    «...mas os bons versos, as rimas felizes e inesperadas abundam na
    peça, que fica sendo um dos mais bellos poemas da nossa litteratura.

    «... pois nao ha muito disso por toda essa America afóra.»

    Arthur Azevedo--Critica da _Noticia_, do Rio.

Á critica indigena, rasteiramente inspirada pelo odio e pela paixão
politica, o autor da _Talitha_ contrapõe a critica da imprensa do Rio.

Será vaidosa a citação d'essas opiniões, mas o obscuro autor da
_Talitha_ tem orgulho do seu trabalho e esse orgulho é como a
soberbia das mães que beijam os filhinhos aleijados e loucos, tendo-os
no coração como as imagens incomparaveis da suprema formosura.

A _Talitha_ não será brasileira porque o assumpto e os personagens são
portuguezes; não será portugueza porque o seu autor não teve a
felicidade de nascer em Portugal, mas...

Mas a _Talitha_ é mais que portugueza, mais que brazileira, é humana.

Mas a _Talitha_ é minha... É o producto do meu espirito, do meu
trabalho, é filha da minha mocidade...

É modesta, é pauperrima, e futil, mas é minha.

E a critica indigena dos zoilos que produziu? Nada, absolutamente nada;
póde viver noventa annos, como Sárah, não haverá Abrahão na terra que
lhe arranque um Isaac das entranhas...

Os zoilos são admiraveis, sabem tudo e não fazem cousa alguma.

Conhecem perfeitamente a patria, sob todos os aspectos, desde a
fecundidade uberrima da terra aos esplendores astraes do céo; desde a
constituição intima da familia á grandeza fulgurante da historia.

Os primores da paysagem, a belleza e a simplicidade dos costumes, os
encantos da musica popular e da poesia anonyma, a bravura dos homens com
o typo legendario do gaúcho, a formosura das mulheres inspirando os
altos feitos heroicos, o mysterio das florestas que dá o aspecto
profundo á alma do povo, a vastidão das campinas que modela a franqueza
limpida das consciencias, o desdobrar ondulante das cochilhas que
imprime ao typo riograndense a epopeia da nossa historia, os vultos
homericos dos nossos guerreiros, a envergadura dos nossos estadistas, a
intelligencia dos nossos escriptores, a obra dos nossos politicos, tudo
isso a critica dos zoilos conhece... _à merveille_.

Sabe ella que o verso está banido do theatro moderno e só é admittido
nos assumptos historicos ou nas phantasias caprichosas dos sonhos e
devaneios litterarios; sabe ella que os alexandrinos devem ser
emparelhados á maneira de Corneille e Racine, alternando-se agudos e
graves, na symetria impeccavel de parallelas geometricamente exactas;
sabe ella que o rythmo do verso não deve ser apenas o junqueireano para
evitar a monotonia: sabe ella que a rima deve ser opulenta: sabe que no
theatro moderno a prosa supplanta o verso, porque se presta melhor ás
exigencias do estudo da psychologia dos personagens; que a escola
romantica foi batida pelo naturalismo; que hoje os exemplos a seguir não
são os d'Ennery, os Augier, os Scribe, os Labiche, os Dumas, os Meilhac:
que os modelos acceitaveis são Suderman, Ibsen, Hauptmann Bjornsen; tudo
isso a critica dos zoilos sabe perfeitamente.

Além disso a critica tem talento, tem erudição, tem admiradores, tem
bibliothecas, tem a vida garantida e facil pela munificencia do thesouro
publico, tem o apoio da sociedade, não sabe o que seja a amargura da
lucta pela existencia...

Entretanto as horas passam, os dias correm, os mezes flúem, os annos se
succedem e a critica deixa em abandono todo esse material soberbo e
magestoso, esquece todos esses elementos de incomparavel riqueza, e não
produz absolutamente nada.

Atravessa a existencia, como um janota futil que vive preoccupado com a
coloração garrida das gravatas, com o brilho frio dos collarinhos, com o
figurino do fato, empanturrando-se da leitura _à la diable_, maldizendo
do tudo e de todos e vivendo de um usofructo que a sociedade constituiu
pelo trabalho accumulado exactamente d'aquelles que a critica dos zoilos
alveja, fere, offende e babuja.

Vive para gozar e maldizer.

A critica indigena dos zoilos é como o Sahára: esterilidade completa,
beduinos e camellos.

Á caravana dos zoilos, o deserto e a receita de Ezequiel.

                                                       Pinto da Rocha



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