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Title: A philosophia da natureza dos naturalistas Author: Quental, Antero Tarquínio de, 1842-1891 Language: Portuguese As this book started as an ASCII text book there are no pictures available. *** Start of this LibraryBlog Digital Book "A philosophia da natureza dos naturalistas" *** produced from images generously made available by National Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).) A PHILOSOPHIA DA NATUREZA NATURALISTAS 1894 HOMENAGEM POSTHUMA A ANTHERO DE QUENTAL (MICHAELENSE) ANTHERO DE QUENTAL A PHILOSOPHIA DA NATUREZA DOS NATURALISTAS 1894 Typ. Editora do CAMPEÃO POPULAR S. Miguel--PONTA DELGADA--Açores EXPLICAÇÃO PREVIA Digam o que disserem, Anthero de Quental foi indubitavelmente, um dos mais fecundos escriptores do seu paiz e da sua epocha. Raros, muito raros, foram as theorias ou problemas da actualidade, ventilados com interesse nos dominios da Sciencia, da Politica ou da Arte que deixassem d'exercitar a penna sempre prestigiosa e sempre elegante do grande Mestre. Na sua obra em prosa cabe, porem, um logar proeminente aos copiosos artigos de critica ou de polemica, que, durante quasi trinta annos, appareceram estampados em diversos orgãos da imprensa periodica portugueza, tanto da capital como da provincia, e nos quaes, á semelhança de Littré e de Taine, elle connotou, como n'um diario intimo, não sómente as suas opiniões pessoaes sobre os homens e os successos contemporaneos, mas ainda as correntes de influencias estranhas que actuaram no seu espirito e as impressões que d'ahi resultaram. Como critico e polemista, Anthero de Quental não teve em Portugal competidor; foi unico na energia fogosa da polemica e nos processos technicos da analyse critica. Os seus escriptos de critica bibliographica são exemplares de methodo e de bom senso, de finura e de erudição, de escrupulosa imparcialidade e d'aquella serena comprehensão dos multiplices aspectos das cousas e dos homens que dá ao critico a maxima authoridade e valor. N'este particular, pertence-lhe a gloria de ter sido entre nós o verdadeiro creador d'um genero litterario descurado, para não dizermos falseado, na sua applicação. Até elle a critica, aberrando diametralmente do seu papel objectivo, fazia-se pela antipathia ou sympathia do critico para com o nome do author; o louvor ou a censura previam-se justamente, dadas as relações de sentimento d'um para com outro. Foi Anthero quem iniciou a critica impessoal, a critica objectiva, desapaixonada, fria, inspirada por um sentimento de equidade e de justiça--critica, em summa, que é uma lição; porque ensina, e que pode fazer do criticado um adversario, mas nunca um inimigo--e do critico um juiz, mas nunca um louvaminheiro nem um delator. Os artigos criticos do grande Mestre teem todos estes caracteres acentuadamente impressos: não são exclusivamente laudatorios nem exclusivamente aggressivos; são justos e por isso mesmo verdadeiros. Teem authoridade; porque fallam sinceramente uma linguagem que não é a do odio nem a dos affectos; mas que é a voz d'uma consciencia honrada para a qual os Homens são o menos e a Verdade o mais. Se alguns d'esses trabalhos perderam já aquelle cunho de novidade que os fez circular vertiginosamente d'um a outro canto do nosso paiz, e se por isso não movem ao interesse e enthusiasmo que suscitaram aos primitivos leitores, é certo, que ainda assim, constituem documentos de summa valia, quer sob o ponto de vista meramente litterario, quer como subsidio para quem no futuro pretenda historiar as differentes phases do movimento das idéas em Portugal, na ultima metade do seculo XIX. Taes elementos são, portanto, indispensaveis para o estudo de Anthero e da sua epocha. Sem elles mal se poderá comprehender a obra do grande Mestre na sua extensão, valor, influencia, e mal se poderá explicar tambem a filiação ou dependencia das diversas partes d'essa obra complexa e vastissima. Vê-se, pois, que quem quizer formar uma idéa cabal do irrivalisavel escriptor e da sua actividade productora, ou procurar comprehender a acção exercida sobre os seus contemporaneos, ha de necessariamente recorrer ás collecções das Revistas e Gazetas, que o contaram entre os seus collaboradores, onde elle deixou archivado pelo seu proprio punho aquillo que bem pode chamar-se a sua _autobiographia mental_. Infelizmente, porém, são numerosos e pouco accessiveis esses repositorios, muitos dos quaes teem desapparecido (como succede á maior parte das revistas academicas, publicadas em Coimbra) e outros tornam-se cada dia mais raros, dada a procura dos collecionadores. N'estas condições, dentro em breve, poucos serão os estudiosos que tenham a dita de ler e consultar os escriptos jornalisticos d'Anthero. Esperar-se-ha que um editor tome sobre si o encargo de recolher essas numerosas especies dispersas? E não será isso, por assim dizer, sacrificar a obra do grande Mestre, deixando de recolher muitos dos escriptos da maior raridade? A edição definitiva das obras completas d'Anthero só poderá levar-se a cabo, quando primeiro se publiquem as reproducções d'esses escriptos avulsos. Aos amigos e discipulos do immortal escriptor impende, pois, um grande dever de gratidão:--é o dever de cada um de per si ou associados, salvar do olvidio e da destruição os trabalhos do Mestre, colligindo-os systematicamente e por ordem chronologica, á semelhança do que fez o sr. Oliveira Martins para os Sonetos e restantes composições poeticas. É urgente começar. Talvez mais tarde não seja possivel reconstituir a serie d'aquelles trabalhos ou por terem desapparecido os jornaes em que foram originalmente publicados, ou por muitos d'elles serem anonymos e terem tambem desapparecido as pessoas que poderiam reconhecer a sua paternidade. II No diario portuense--_A Provincia_--inseriu Anthero de Quental, em 1886, uma serie de cinco artigos, a proposito da obra de Vianna de Lima, intitulada--_Exposição summaria das theorias transformistas_. A questão versada era e é ainda das mais importantes e das mais disputadas, tanto no terreno propriamente especulativo, como no terreno das sciencias naturaes. Anthero de Quental, methaphysico de profissão, não podia entrar no debate como naturalista, embora os seus estudos tivessem fundos alicerces nas Sciencias da natureza. Discutiu e argumentou como philosopho;--philosophou; porque na materia tinha opiniões originaes definidas e razões peculiarmente suas. D'ahi a importancia e renome dos artigos que o publico illustrado victoriou, como modelos acabados de analyse critica, collocando-os do mesmo passo a par das melhores paginas de prosa portugueza. Tinha razão. São com effeito obras primas no seu genero e em que não se sabe qual mais admirar, se a belleza incomparavel de forma, se a genial pujança e superioridade do pensamento que anima aquella solida construcção especulativa, communicando-lhe a maxima potencia de suggestão e de interesse. Mostremo-lo, embora de relance. Anthero de Quental, partindo do principio de que a _sciencia não póde ser para a philosophia mais que uma materia prima_, impugna a pretensão de fundar uma philosophia da natureza com a a simples generalisação dos dados d'um grupo de sciencias, e sem ter em conta o indispensavel criterio das ideias. É este o thema principal que elle se esforça para estabelecer fundamentalmente. Analysando as duas noções que formam a base da doutrina Haeckeliana--_o movimento e a evolução_--mostra que a primeira é insufficiente, e á segunda falta a generalidade scientifica; visto como não intervem, senão _onde o elemento historico representa um papel proeminente_. Por outro lado demonstra que ha contradicção flagrante entre a idéa da espontaneidade da materia, como a admitte a escola monista, e a theoria da conservação do movimento, que domina nas sciencias physicas e em grande parte nas sciencias da organisação. E sobre estas premissas logicas, conclue que a doutrina da evolução, formulada por Haeckel, longe de ser, como se pretende, uma doutrina positiva, baseada nas sciencias e fluindo d'ellas como sua consequencia natural, implica, pelo contrario uma _extensão abusiva da inducção scientifica e a illegitima generalisação d'uma hypothese, que, se é perfeitamente fundada no terreno de determinadas sciencias, só ahi e só n'esse ponto de vista tem authoridade scientifica_. A _idéa da finalidade_, combatida pela escola monista, é sustentada por Anthero d'um modo superior e original. _A evolução_, diz elle, _implicando a idéa d'um typo, que as formas evolvendo, tendem a realisar, implica por isso mesmo uma finalidade. Quem diz evolução, diz progresso. Ora progresso que não tende para cousa alguma que não tem um typo e um fim, não se comprehende._ Não é preciso mais para se ver a importancia e o valor do trabalho que se segue. Poderiamos fazer aqui algumas approximações entre as doutrinas d'Anthero e as doutrinas de Hartmann, Lang e Stallo--seus authores predilectos e mais compulsados. Poderiamos tambem mostrar que os bellos artigos sobre as tendencias da moderna philosophia, dados a lume na _Revista de Portugal_, são o desenvolvimento logico do pensamento dominante nas paginas adiante reproduzidas. Mas fallece-nos a authoridade e competencia para tanto, e demais, o trabalho d'Anthero não carece nem de criticas, nem de commentarios elucidativos:--impõe-se por si e tem em si a necessaria lucidez para convencer a uma simples leitura. Reproduzindo-o hoje temos apenas em vista render, no anniversario do seu passamento, uma derradeira homenagem de respeito e estima ao filho d'esta ilha que é uma das maiores glorias das letras patrias, e ao mesmo tempo facilitar aos estudiosos a leitura d'um dos trabalhos philosophicos d'elle em que mais claramente se patenteiam o seu subtil engenho dialectico, a originalidade das suas concepções especulativas e as maravilhosas qualidades didacticas da sua prosa expositiva e analytica. E d'est'arte fica explicada a presente publicação. Ponta Delgada, 11 Setembro de 1893. _Eugenio Vaz Pacheco do Canto e Castro_ PRIMEIRO ARTIGO[A] Um livro sobre as modernas theorias transformistas, publicado em Paris e em francez, e firmado por um nome portuguez, é facto tão extraordinario, que por si só bastaria para attrahir as attenções. Mas no livro do snr. Vianna de Lima, não é só a extranheza do facto que deve chamar a nossa attenção: é ainda o seu valor intrinseco. Esta _Exposição summaria das theorias transformistas_ é, como o titulo indica, uma especie de _summa_ das doutrinas professadas sobre a philosophia da natureza por uma escola consideravel, cuja cabeça, E. Haeckel, é um dos nomes mais illustres, e justamente illustres, da Allemanha intellectual, na segunda metade do nosso seculo: e a obra do adepto não é indigna, nem pela intelligencia nem pelo saber, da escola nem do mestre. Não sou naturalista e, tendo a consciencia da minha incompetencia, não me atreveria a escrever sobre a obra do sr. Vianna de Lima, se o seu livro fosse propriamente um livro de sciencias naturaes, e se os quatro estudos, de que se compõe, se conservassem escrupulosamente nos limites rigorosos do campo scientifico. O livro, porem, do snr. Vianna de Lima, apezar da modestia do titulo, aspira de facto a ser um livro de philosophia da natureza, e, n'esse terreno, creio poder, sem temeridade, emittir algumas opiniões fundamentadas. Prestarei, assim uma homenagem ao moço portuguez (portuguez pelo nome e pelo sangue: ouço que é brazileiro) que tão galhardamente nos representa no grande mundo da intelligencia, aproveitando ao mesmo tempo o ensejo para dizer alguma cousa sobre uma escola philosophica, cujos chefes respeito e cuja importancia não desconheço; mas cujas tendencias estão muito longe, em meu entender, de serem satisfactorias. Alexandre de Humboldt, o naturalista encyclopedico e quasi legendario do primeiro quartel d'este seculo, costumava dizer causticamente, referindo-se á philosophia da natureza puramente especulativa, que então deslumbrava com os clarões do genio de Schelling e Hegel, não só a Allemanha pensadora, mas ainda a Allemanha scientifica, _que achava singularissimos aquelles naturalistas que pretendiam fazer chimica sem molhar a ponta dos dedos_. Tinha razão. Hoje, nós outros metaphysicos, podemos com igual razão dizer que são singulares estes philosophos, que, com os dedos mais que ensopados em chimica, pretendem fazer philosophia sem nunca se terem dado ao trabalho de reflectir. Com effeito, a philosophia é, de sua natureza, especulativa, e a sciencia não póde ser para ella mais que uma materia prima. Um homem de sciencia, por encyclopedico que seja, se não tiver ao mesmo tempo reflectido muito e profundamente sobre as questões puramente racionaes, que a sciencia suscita e não póde por si resolver, reflectido sobre as ideas abstractas, que são, umas, postulados para as differentes sciencias, outras, principios ordenadores d'uma explicação geral das cousas, um tal homem de sciencia, apesar do seu encyclopedismo, não poderá nunca aspirar ao titulo de philosopho. Pode dizer que _sabe_, mas não que _entende_, porque o problema do universo, como problema total e concreto, será para a sua intelligencia, aliás opulenta de factos, tão obscuro, como é para a intelligencia d'um simples e ignorante. A philosophia não é o mero ajuntamento ou ainda o quadro empiricamente ordenado dos factos do universo: é a comprehensão e explicação racional e total d'esse grande quadro. Ora, uma tal explicação só é possivel no ponto de vista das ideias ultimas e fundamentaes da rasão (_substancia_, _causa_, _fim_) e essas ideias teem por isso de ser tomadas em si, pesadas e analysadas. Não faz outra cousa a metaphysica, e sem metaphysica não ha philosophia, porque não ha verdadeira comprehensão racional, nem verdadeira e total explicação. Metaphysica (ou especulação) e sciencia (ou observação) são duas series convergentes, que partem de pontos oppostos e com leis de desenvolvimento diversas; mas, como são convergentes, encontram-se: o ponto onde se encontram e, sem se fundirem, reciprocamente se penetram, é que é a philosophia. A philosophia tem pois por materia a sciencia, por forma a metaphysica; ou ainda, a philosophia é a observação (quero dizer, os seus resultados) considerada no ponto de vista absoluta da rasão. O desconhecimento d'estas verdades e o desdem pela metaphysica, filho em grande parte da reacção, aliás justissima, provocada pelos excessos e intoleravel dogmatismo da especulação, na Allemanha, e pela sua insignificancia e convencionalismo, em França; e, por cima d'isso ainda, o maravilhoso desenvolvimento das sciencias naturaes, durante os ultimos 40 annos, deram de si o apparecimento d'uma pseudo-philosophia da natureza que se pretende positiva e puramente filha das sciencias e que julga ingenuamente poder resolver os intrincados problemas das idéas, sem ter o incommodo de reflectir e só com grande somma de physica, chimica e physiologia. D'estes naturalistas philosophos o mais eminente, tanto pelo saber como pelo genio, é o apostolo de Darwin na Allemanha, o illustre autor da _Historia natural da Criação_, Ernesto Haeckel. É entre os discipulos de Haeckel que vem tomar logar, com o seu livro, o snr. V. de Lima. Profano, não me é dado conhecer e dizer até que ponto a rigorosa verdade e o rigoroso methodo scientificos tem sido violentados pelo sabio e engenhoso, mas não menos phantasioso e temerario professor de Munich[B], para se dobrarem e acommodarem ás suas doutrinas geraes. Sei só que outros mestres eminentes, como Virchow, Helmholtz, Huxley e Du Bois-Reymond estão longe de se darem por inteiramente satisfeitos com a orthodoxia scientifica de muitas das affirmações do padrinho do _monero batybio_. A mim só me é permittido occupar-me com as ideias e tendencias propriamente philosophicas da escola monista-evolucionista, cuja cabeça é Haeckel; e o livro do discipulo, que se propoz resumir a doutrina, ser-me-ha occasião para fazer sobresahir (embora só em dois pontos, mas capitaes ambos) a confusão e deficiencia na analyse das ideias, que impedem, a meu juizo, que a pretendida philosophia da natureza monista-evolucionista, apezar da imponente massa de sciencia sobre que assenta, attinja a verdadeira altura d'uma philosophia da natureza. Monismo e evolução são as duas noções que formam a base da doutrina Haekeliana. Comecemos por indagar que ideia precisa envolve esta palavra--_monismo_. Parece-me que a palavra é que é nova, não a ideia. Tanto valeria dizer pantheismo, ou ainda materialismo, pois não encontro no fundo d'aquella expressão nada mais do que n'estas duas outras; a saber: uma concepção unitaria da substancia. Esta concepção, porem, (na sua simplicidade e em quanto não fôr definida d'uma maneira particular) é propriedade commum de muitas escolas antigas e modernas e precisa sahir d'essa generalidade e indeterminação para poder caracterisar uma maneira especial de comprehender as cousas: assim o atomismo, assim o pantheismo de Spinoza, assim o idealismo realista de Hegel etc. Ora, é justamente essa falta de definição precisa, essa vaga de generalidade e indeterminação, que eu noto no _monismo_ de Haeckel. _Monismo_ parece-me apenas uma palavra nova (e muito dispensavel) e não a mais. Com effeito, affirmar abstractamente a unidade de substancia é, no terreno da philosophia da natureza, pouca cousa: o que importa é definil-a. Definil-a é apresental-a nas suas relações com a realidade, é caracterisal-a na sua maneira de ser positiva, é mostrar, não como a concebemos _em si_ (pertence isso á metaphysica), mas como a concebemos _realisavel_. Uma materia abstracta, una e simples, apenas vagamente susceptivel de se manifestar por omnimodas modalidades, é uma base insufficiente para a philosophia da natureza; porque é uma base insufficiente para a sciencia. O que a sciencia exige e o que é preciso á philosophia da natureza é determinar n'essa infinidade de moralidades, qual é a fundamental ou elementar, aquella a que se reduzem todas as outras. Ora é isso justamente o que as sciencias da natureza teem feito, reduzindo todas as modalidades da materia ao elemento primordial _movimento_. Os monistas, sempre que fallam como homens de sciencia, adoptam (e não podiam deixar d'adoptar) esta concepção. Mas, como philosophos, em vez de receberem das mãos da sciencia este resultado, para o elaborarem e desenvolverem, caem no vago e em inextrincaveis confusões. É assim que o nosso auctor começa por se declarar anti-materialista e pretende repellir o atomismo. affirmando que a materia não póde ser definida per esta ou aquella propriedade, mas que «para o monismo, a materia é o que é _in situ_.... é aquillo que se manifesta aos nossos sentidos e ao nosso entendimento por modos diversissimos, sob forma de phenomenos infinitamente variados.... pretender isolar (d'este conjuncto) certas propriedades, abstrahir certas qualidades, é grande erro.... para elle (o monista) qualidades, propriedades especificas ou funccionaes, funcções, etc. são inherentes á materia em que se manifestam e formam com ella um todo indissoluvel». Entretanto, meia pagina abaixo, dá a entender que todas as propriedades da materia são fórmas do movimento e se reduzem a movimentos elementares: «a força é a propriedade ou a maneira de ser mais geral da materia.... todas as forças são reductiveis a movimentos.... uma força não é mais do que materia em movimento». Mas, se isto é assim, a materia não é já «tudo o que é _in situ_» as suas propriedades não são já «inisolaveis e indissoluveis», nem é «grande erro abstrahir do conjuncto d'ellas certas propriedades», visto que, de facto, a materia é caracterisada por uma propriedade fundamental, o movimento, da qual todas as outras não são mais do que modalidades, ou, mais terminantemente, grupos e combinações de movimentos simples elementares. Seriamos assim levados ao dynamismo, concepção já mais precisa e mais pratica do que o vago e indeterminado monismo, e que, depois de Leibnitz, cada vez mais tem ido penetrando, ou antes, impondo-se á philosophia das sciencias. Já por aqui começamos a ver quanto a concepção monista da materia é confusa e mal definida e, por conseguinte, pouco philosophica. Mas não o é só por isto. A confusão primeira faz-se sentir em todos os aspectos da ideia de materia. É impossivel, com effeito, passar-se naturalmente da noção d'uma substancia una, simples e apenas virtualmente susceptivel d'omnimodas modalidades, para a rica e quasi infinita variedade dos seres e qualidades de que se compõe a universal realidade. Que importa que essa doutrina sibyllina nos diga que a sua substancia una e simples é virtualmente susceptivel de toda a variedade de formas e qualidades? A questão está justamente em se saber como é que, sendo una e simples, tal substancia póde effectivamente dar de si o movimento e a variedade. Sobre isto (e isto é justamente o nó vital da questão) é muda a doutrina. Como é que essa substancia una e simples se determina? como é que, sendo una e simples, se póde dar n'ella opposição, diversidade, movimento? A concepção monistia implica continuidade--e tudo no universo é descontinuo; implica simplicidade--e tudo no universo é complexo: implica inalterabilidade e indistincção--e tudo no universo é perpetua mudança, differenciação e instabilidade. O nosso auctor levanta se desdenhosamente contra o atomismo. Entretanto o seu monismo, ou é cousa nenhuma, ou tem de se resolver na ideia de atomo. Pois o que está no fundo da concepção atomista? A ideia da descontinuidade da materia. E tal ideia impõe-se: impõe-se como um facto á sensação; impõe-se como um postulado á sciencia, que, sem presuppor a descontinuidade, é incapaz d'avaliar e exprimir por numeros (e é esse o typo e a forma perfeita do conhecimento scientifico) seja o que fôr na successão dos phenomenos; impõe-se finalmente á especulação, que não póde conceber movimento onde não ha distincção, opposição e successão, e não póde pensar a distincção sem pensar _ipso facto_ a descontinuidade. Foi precisamente esta objecção que encontrou deante de si e contra a qual veio desmanchar-se a physica cartesiana com a sua ideia da materia-extensão. Como se concebe o movimento numa tal materia? perguntava-lhe o atomista Gassendi. E Boileau, com o seu solido bom senso, resumia a questão nos dois versos celebres: C'est en vain que Rohault sèche pour concevoir Comment, tout étant plein, tout a pu se mouvoir O snr. V. de Lima, levantando-se, com os seus mestres, contra o atomismo, e acceitando ao mesmo tempo, com as sciencias physicas, a reducção da ideia de materia á de movimento, mostra mais uma vez a inconsistencia do monismo no terreno das ideias geraes da natureza e a falta de analyse segura que patenteia a concepção fundamental sobre que assenta. Declamar contra o atomismo é facil: evitar com uma palavra vaga e ao mesmo tempo pomposa as difficuldades que envolve a concepção da materia, é mais facil ainda: mas não é isso o que se espera de verdadeiros philosophos; e uma tentativa de philosophia da natureza, só merecerá este nome, quando sobre a analyse das ideias de substancia, força e movimento se assente uma doutrina da materia que satisfaça ao mesmo tempo ás exigencias puramente racionaes da especulação e as mais praticas da indagação scientifica. Nada d'isto encontro no monismo de Haeckel e seus discipulos: o terreno sobre que pretendem construir está, quanto a mim, muito longe de ser solido. SEGUNDO ARTIGO[C] Falta-me ainda encarar, n'esta esphera da ideia de materia, a concepção monista, sob um outro ponto de vista. É o da espontaneidade da materia. O snr. Vianna de Lima affirma, por assim dizer, dogmaticamente, nas suas _Observações preliminares_, essa espontaneidade e protesta contra a physica da inercia: entretanto, todo o seu livro, toda a sua maneira de comprehender a evolução presupõe a inercia da materia. É que d'uma affirmação a uma theoria vae uma certa distancia, e não me consta que algum dos mestres do monismo tentasse ainda formular essa theoria. O assumpto envolve com effeito uma difficuldade, que me parece exceder a capacidade especulativa dos doutores monistas. A ideia da espontaneidade da materia (ideia puramente especulativa, em que peze ás pretensões do positivismo dos nossos naturalistas philosophos) parece estar em contradicção com a theoria da conservação do movimento, que domina nas sciencias physicas e já em grande parte nas sciencias da organisação. Não vejo que a doutrina monista resolva, como ella póde ser resolvida, n'uma esphera superior, esta contradicção. Pelo contrario, no livro do sr. V. de Lima, pela maneira por que o principio da conservação do movimento é applicado, sem a menor reserva ou explicação, desde a physica até á psychologia, e a evolução apresentada como o exclusivo resultado do puro mechanismo, a espontaneidade da materia, praticamente e apesar das affirmações preliminares, é constantemente desconhecida, ou antes, é negada implicitamente a cada instante. De facto, é como se o livro todo não tivesse outro fim senão destruir a these estabelecida nos prolegomenos--these que todavia é, philosophicamente, o seu fundamento. Com effeito, se havemos de entender que todo o movimento, seja de que ordem fôr, é não só condicionado por um movimento anterior, mas realmente e exclusivamente uma transformação d'esse movimento anterior, é claro que tal concepção do movimento exclue _in limine_ a ideia de espontaneidade. A condição passa a ser causa: o effeito, mera prolação da causa, é uma apparencia sem ser proprio, sem autonomia. Consideremos mais de perto a contradicção que d'aqui resulta. Se, por um lado, a materia em geral é dotada d'espontaneidade, isto é, se o movimento lhe é inherente; mas se, por outro lado, qualquer movimento particular e todo e qualquer movimento se reduz no fundo, a uma simples transformação das acções anteriores que o condicionam; pergunta-se: como se consegue então a espontaneidade geral e theorica da materia? Se o movimento *A* se reduz a uma simples transformação do movimento *B*, que o condiciona e não *é* por isso espontaneo, o movimento *B* está para com o movimento *C*, que por seu turno o condiciona, exactamente na mesma relação, assim como o movimento *C* para com o movimento D, o movimento *D* para com o movimento *E* e assim indefinidamente--de sorte que em parte alguma se encontra movimento espontaneo. O que significa, pois, a espontaneidade attribuida theoricamente á materia? E, sobre tudo, como se explica o proprio facto do movimento, que d'este modo está em toda a parte sem estar em parte alguma? que é por toda a parte effeito, sem ter causa em parte alguma? como se concebe esse modo de ser, que, não tendo autonomia em nenhum dos pontos onde se realisa e realisando-se universalmente, parece ser e não ser ao mesmo tempo? Ainda por este lado, se me não engano, a ideia da materia, segundo os monistas, está muito longe de apresentar a definição e consistencia necessarias. Ora essa idéa tem de ser a pedra mestra de toda a construcção philosophica na esphera da natureza. A final de contas bem apertada e espremida, a doutrina da materia, segundo a philosophia monista, reduz-se, como creio ter mostrado, ás noções correntes, nas sciencias physicas, de atomo e força. Não só não ha n'ella originalidade alguma, mas o que é peior, apresentam-se nos aquellas noções envolvidas nevoentamente n'uma concepção vaga, d'onde é necessario extrahil as e, no fim de tudo, em vez de esclarecidas e aprofundadas, obscurecidas por forma tal que nada ha de lucido e fecundo a tirar d'ellas para uma comprehensão superior e verdadeiramente philosophica dos phenomenos da natureza. Com as observações que acabo de fazer não pretendo de modo algum contestar o valor e a legitimidade, na esphera das sciencias physicas, das noções de materia, atomo, força e movimento, nos limites em que a sciencia emprega estas noções: ellas não são, com effeito, para a sciencia mais de que hypotheses, restrictas a um determinado campo e não tendo por fim senão a coordenação racional d'uma determinada ordem de phenomenos, d'um determinado aspecto da phenomenalidade. A sciencia, usando d'estas noções, não pretende impol-as fóra da sua esphera, nem dal-as em absoluto, como explicação ultima e irreductivel das cousas. A conservação do movimento, scientificamente, é um facto: um facto, que pela sua generalidade, envolvendo a explicação de innumeros outros factos, tem o valor d'uma theoria, mas d'uma theoria puramente scientifica. Se a conservação do movimento implica o determinismo, implica-o só nos limites e no ponto de vista do puro mechanismo, no ponto de vista da realidade como systema de movimentos--sem que a sciencia possa ou pretenda concluir d'ahi para um outro ponto de vista, que não é o seu, e em que o mechanismo já não apparece como o limite e termo ultimo do conhecimento. Sciencia e especulação (volto a repetil-o) são cousas muito diversas, embora dependentes uma da outra, e o que basta á sciencia não é sufficiente para a especulação. Ideias, que no terreno scientifico bastam e são por isso, n'esse terreno, muito legitimamente consideradas irreductiveis, não bastam já nas regiões da especulação, onde com effeito são reductiveis a categorias mais transcendentes. Se o conjunto das sciencias não póde, como todos os verdadeiros pensadores reconhecem, supprir a philosophia ou substituir-se a ella, é justamente porque o conjuncto das ideias geraes das sciencias, não inclue em si a totalidade dos elementos racionaes da comprehensão do universo, mas apenas o conjuncto d'esses elementos no ponto de vista da phenomenalidade. Ora o monismo, attribuindo ao ponto de vista das sciencias physicas um caracter absoluto, arvorando as ideias geraes d'um grupo de sciencias em ideias ultimas e irreductiveis, exorbitou da sciencia sem ao mesmo tempo fazer acto de philosophia. É o que talvez consiga mostrar ainda mais claramente, fazendo a critica da ideia de evolução segundo os monistas. TERCEIRO ARTIGO[D] A theoria geral da evolução, diz o snr. Vianna de Lima (e são estas as primeiras palavras do seu livro) não é _um systema_; é a synthese comparativa, a conclusão que sae do conjuncto de todos os factos positivos que o espirito humano tem podido até agora abraçar.... é a unica concepção racional e verdadeiramente scientifica do mundo». É necessario fazer aqui uma distincção importante. A evolução não é, com effeito, um systema no dominio circumscripto de cada uma d'aquellas sciencias onde esta ideia, por assim dizer, se impõe, onde mil factos a confirmam e onde fóra d'ella seria impossivel encontrar-se um principio geral de coordenação. Ahi, sem duvida, a evolução não é um systema, mas propriamente uma theoria scientifica. Mas estarão n'este caso todas as sciencias? De modo algum. A ideia de evolução não intervem senão onde o elemento historico representa um papel proeminente, isto é, acima de tudo, nas sciencias da organisação (incluindo n'este grupo a anthropologia e fazendo participar d'elle as sciencias sociaes, nos limites em que estas teem um caracter biologico) e depois ainda, mas d'uma maneira menos necessaria e menos definida, na astronomia, ou propriamente, astrogenia. É só ahi que a divisão do trabalho se exerce, differenciando gradualmente e como que analyticamente as formas contidas virtualmente e, por assim dizer, envolvidas n'um germen ou facto primeiro, que é o ponto da partida de toda a serie. A physica e a chimica, porem, estão completamente fóra dos dominios da ideia de evolução. A chimica parece reduzir-se toda á atomicidade, e a maior ou menor complexidade de composição não foi nunca considerada como um desenvolvimento, assim como a irredectubilidade dos corpos chamados simples, se não é um dogma, é certamente um facto que se impõe á sciencia e que, emquanto assim se impozer, obstará a toda a theoria geral evolucionista dos phenomenos chimicos. Por outro lado, entre as forças physicas, não ha hierarchia, mas parallelismo, e a reductibilidade d'umas ás outras implica unidade, mas não evolução, cousas bem distinctas. Onde está, pois, a generalidade scientifica da ideia de evolução? A verdade é que uma theoria positiva da evolução, como o sonham os monistas, _essa synthese comparativa que sae do conjuncto de todos os factos positivos_ só seria possivel se se dessem duas condições capitaes: 1.^o que a ideia de evolução se impozesse a toda a ordem de phenomenos, ou (o que para nós vale o mesmo) presidisse superiormente a todas as sciencias: 2.^o que alem de explicar, dentro do districto de cada sciencia, os factos n'elle comprehendidos, explica-se tambem a passagem evolutiva de cada uma d'essas ordens para a sua immediata, sem ter de recorrer a nenhuma ideia nova e superior. Ora, nenhuma d'estas condições se realisa. A ideia d'evolução (como já indiquei, e por isso não insisto n'este ponto) só impera em certas sciencias e, por conseguinte, n'uma esphera limitada da phenomenalidade. Em segundo logar, a passagem d'uma determinada ordem de phenomenos para outra não se póde explicar evolutivamente, no terreno rigorosamente scientifico, porque, n'esse terreno, o elemento commum d'essas varias ordens é só um elemento abstracto, o movimento, que pela sua mesma abstracção, não é capaz de dar razão do que ha de especial em cada uma d'ellas e a caracterisa, isto é, a forma ou funcção especial que representa. É assim, por exemplo, que embora os phenomenos vitaes se reduzam, em ultima analyse, ao movimento, isto é, a grupos e combinações complexas de movimentos elementares, nem por isso a vida pode ser satisfactoriamente definida como um modo de ser do movimento; porque uma tal definição, pela sua mesma abstracção, nada define; nem o quadro de todos esses movimentos póde ser dado como equivalente á ideia synthetica da vida; nem, finalmente, a concepção mechanica da vida representará outra cousa mais do que um aspecto da phenomenalidade da vida e nunca a concepção mesma da vida. Parece-me claro, em vista d'isto, que a doutrina de evolução formulada por Haeckel e seus discipulos não é de modo algum, como se pretende, uma doutrina positiva, fundada nas sciencias e sahindo d'ellas como a sua natural consequencia. Creio ter mostrado que essa doutrina implica uma extensão abusiva da inducção scientifica e a illegitima generalisação d'uma hypothese, que se é perfeitamente fundada no terreno de determinadas sciencias, só ahi e só n'esse ponto de vista tem authoridade scientifica. A doutrina monista tem, pois, em despeito das suas pretensões de positividade, um caracter especulativo e é propriamente _um systema_, uma construcção philosophica em que o _a priori_ representa um papel preeminente: n'uma palavra, apezar dos elementos scientificos que contem, não é uma doutrina scientifica, mas uma hypothese philosophica. Resta agora ver se, como hypothese philosophica, a ideia d'evolução, tal como a concebem os monistas, apresenta aquella definição e consistencia sem as quaes a mais ampla e brilhante hypothese é muito mais um producto da imaginação, do que da razão. Creio que não apresenta. Especulativos inconscientes, os monistas especulam mal. Tal como a concebem, a evolução, destituida de todos aquelles elementos de analyse racional, que só lhe poderiam dar um verdadeiro cunho philosophico, não é um principio: seria apenas (se as suas pretensões de positividade fossem fundadas) um facto; facto culminante e universal, mas simples facto e não principio. Ora os factos são apenas a materia prima da philosophia: são aquillo que se pretende explicar, em quanto que só os principios fornecem o criterio e o ponto de vista d'essa explicação; e a doutrina monista da evolução, que, como doutrina positiva, como generalisação scientifica dos factos da natureza, está muito longe de ser rigorosa e fundada, pecca por outro lado gravemente, como hypothese philosophica, como doutrina especulativa, pela falta d'analyse das ideias sobre que, para merecer o nome de philosophia da natureza, se deveria apoiar. Com effeito, se o universo evolve porque é que evolve? Se a sciencia nada tem que vêr com esta questão, a philosophia é que tem muito e tudo--e já mostrei que é sómente como tentativa philosophica de explicação que o evolucionismo monista deve ser considerado. Uma theoria geral philosophica do desenvolvimento das cousas implica, pois, uma theoria da razão de ser d'esse desenvolvimento. Sobre esta questão essencial o monismo é peior do que mudo; é absurdamente negativo. A ideia de evolução implica necessariamente a de finalidade; esta contem a explicação racional d'aquella, que, só por si, é inintelligivel e até contradictoria. Se o movimento, acto essencial da materia, é autonomo (e é esta a these monista fundamental) tal movimento não póde ser concebido senão como um impulso espontaneo, por conseguinte, como uma verdadeira determinação voluntaria: ora onde ha determinação voluntaria sem mobil, sem fim? Pois não é precisamente o fim que determina a vontade, e que explica o acto? Um movimento autonomo, que não tende a um fim, é perfeitamente inconcebivel: pois se não ha fim porque e para que o movimento? A ideia de finalidade é a pedra angular de toda a construcção philosophica no terreno da natureza. Assim o comprehendeu Leibnitz na sua Monadologia, assim o comprehenderam Schelling e Hegel, os verdadeiros paes da moderna philosophia da natureza. O horror pueril á metaphysica e a pretensão chimerica de fundar uma philosophia da natureza positiva e exclusivamente architectada no terreno da sciencia levou Haeckel (e muitos outros atraz d'elle e com elle) a desconhecerem a importancia capital da ideia de finalidade e a minarem aquillo que justamente lhes deveria servir de primeiro fundamento para o edificio que levantavam. É o que espero deixar suficientemente provado no meu proximo artigo. QUARTO ARTIGO[E] O Snr. Vianna de Lima consagra as ultimas 100 paginas do seu volume a combater a ideia de finalidade nos dominios da natureza e triumpha facilmente dos theologos ou simili-theologos, que, despojando a materia das suas propriedades espontaneas e da sua infinita virtualidade, veem em tudo os effeitos d'uma direcção exterior e se extasiam diante das harmonias intencionaes da Criação. Era facil o triumpho. Sómente, o snr. Vianna de Lima tomou a nuvem pela deusa, tomou a concepção infantil e anthropomorphica da finalidade pela propria ideia metaphysica de finalidade. Se o snr. Vianna de Lima se despojasse por algum tempo dos seus habitos de pensamento de puro naturalista e estudasse um pouco os tão abominaveis metaphysicos, não só Leibnitz e Hegel, mas ainda o representante nosso contemporaneo da alta especulação, Hartmann (que é, não menos do que foram aquelles dois, profundamente versado nas sciencias da natureza) veria que a ideia de finalidade não se reduz, como lhe parece, áquella concepção anthropomorphica, que com tão facil felicidade refuta no seu livro. Veria que a finalidade póde ainda ser concebida como immanente á materia e como aquelle segundo elemento que vem integrar, juntando-se ao movimento, a noção da realidade; que, n'este caso, longe de ser contradictoria com a espontaneidade do movimento, é justamente a explicação do movimento; que o que parece effeito, no ponto de vista do puro mechanismo, é causa no ponto de vista da finalidade, sem que uma cousa repugne á outra, porque são duas espheras do conhecimento, que ao mesmo tempo que se oppõem, reciprocamente se completam. Perceberia então uma cousa, e é que, não só o movimento em geral (o movimento em si, independentemente de qualquer ideia de desenvolvimento) é racionalmente inexplicavel e, por conseguinte, inconcebivel sem a ideia de finalidade ou de causa-final, mas que mais particularmente a evolução, isto é, o movimento como hierarchia ou desenvolvimento, implicando a ideia d'um typo, que as formas evolvendo, tendem a realisar, implíca por isso mesmo uma finalidade. O typo é realisado na serie, não é um producto d'ella: pois, se fosse um producto, como se explicaria a serie? Quem diz evolução diz progresso. Ora, progresso que não tende para cousa alguma, que não tem um typo e um fim, não se comprehende. Se não ha typo, não ha medida ou termo de comparação na serie, não ha, por conseguinte, hierarchia: ha variedade de formas parallelas e equivalentes; mas não desenvolvimento. No meio d'essa multidão de formas inexpressivas, tudo será igualmente perfeito ou imperfeito: haverá ainda transformismo; mas não haverá evolução progressiva. É assim que o ultimo capitulo do livro do snr. Vianna de Lima deita por terra a doutrina estabelecida laboriosamente nos que o precedem. É assim que metade da doutrina de Haeckel deita por terra a outra metade. É assim que uma philosophia da natureza que pertende não ser uma philosophia especulativa, acaba por não ser cousa alguma. Que concluiremos de toda esta critica? Concluiremos em primeiro logar, que os naturalistas, quando não são ao mesmo tempo philosophos, não podem construir uma philosophia da natureza que se sustenha de pé. Concluiremos, em segundo logar, que não póde haver, por muito que se apregoe, philosophia da natureza positiva (puramente scientifica), assim como em geral não póde haver philosophia positiva. O erro commum em que laboram os positivistas das differentes communhões (são varias, e todas egualmente positivas) é este: que o conhecimento scientifico é o typo do conhecimento, o conhecimento ultimo e perfeito; e que, por conseguinte, esgotando o ponto de vista scientifico a comprehensão da realidade, basta reunir em quadro as conclusões de todas as sciencias, ou generalisar as ideias fundamentaes communs a todas ellas para se obter a mais alta comprehensão das cousas, a que nos é dado aspirar. D'aqui a chimera d'uma philosophia positiva. Não seria chimera, se com effeito o conhecimento scientifico representasse o conhecimento supremo e definitivo, e não apenas uma determinada esphera do conhecimento. Nesse caso a generalisação dos dados scientificos corresponderia a uma verdadeira synthese e a abstracção suprema dos elementos da realidade tomaria o logar das ideias da razão. Infelizmente ou felizmente (que isso importa pouco) a razão subsiste e com ella o ponto de vista das ideias metaphysicas de _substancia_, _causa_ e finalidade_ ás quaes tem de ser referidas, em ultima instancia, as conclusões da sciencia. E porque? Porque essas conclusões, ainda nas suas mais vastas e deslumbrantes generalisações, não se explicam a si mesmas e, representando apenas as grandes linhas e como que a estructura abstracta do mundo phenomenal, precisam ellas mesmas de ser explicadas. Com o seu caracter abstracto são ainda factos, e os factos precisam do reflexo da razão para se tornarem intelligiveis. O conhecimento scientifico constitue apenas a região media do conhecimento, entre o senso commum, d'um lado, e o conhecimento metaphysico, do outro. É pois a rasão que tem, em ultima instancia, de se pronunciar sobre o valor e o logar, na comprehensão total do universo, dos dados quer do senso commum quer da sciencia. Essa comprehensão total é que é a philosophia: edificio sempre em construcção, sempre renovado nos seus materiaes (que o progresso dos conhecimentos positivos lhe vae fornecendo dia a dia) sempre instavel e ao mesmo tempo sempre de pé, e que sendo sempre incompleto nunca se pode dizer insufficiente, porque, tal como é, corresponde ás mais altas faculdades do espirito humano, abriga as mais sublimes aspirações, tormento e gloria ao mesmo tempo, d'este mysterioso animal racional chamado homem. E eis ahi porque uma philosophia positiva é uma chimera. Quem diz philosophia diz idealismo. Só o systema das ideias contem inteira a explicação do systema das cousas. O movimento não esgota o ser: o ser implica movimento e ideia. Os naturalistas, desprezando ou ignorando as ideias, ignoram metade das cousas e a sua philosophia é só meia philosophia, ou antes, é só um arremedo da philosophia. _Tudo quanto é, é racional_, disse Hegel. Pretender amputar a razão é pretender amputar a realidade. É dentro da razão, não fóra d'ella, que teem de ser marcados os limites do conhecimento. Só no ponto de vista total da razão se resolvem as contradicções que a realidade apresenta, como outras tantas esphinges á intelligencia indagadôra. Materia e espirito, determinismo e liberdade, evolução e finalidade, não são ideias contradictorias senão na apparencia: de facto, são só duas espheras differentes da comprehensão, these e antithese, cuja synthese é a razão. Assim, uma philosophia da natureza, tal como a concebo, uma philosophia da natureza á altura, não só do grande seculo das sciencias naturaes, mas do grande seculo de Kant e Hegel, não tem que regeitar o determinismo universal e a evolução como uma forma mechanica d'esse determinismo: mas o que não póde é ficar ahi. Determinismo e evolução serão apenas o seu ponto de partida, a forma universal da phenomenalidade, que a generalisação scientifica lhe fornece e que ella, a philosophia, terá d'analysar e interpretar á luz das ideias. Só assim terá satisfeito não só á rasão especulativa, mas ás exigencias não menos imperiosas da consciencia humana. Digo da consciencia humana; e é este um outro aspecto, e aspecto capital da questão que é necessario por em evidencia. Muitos dirão:--que tem que ver a philosophia com a consciencia humana? Responder-lhes-hei:--tem tudo. Por uma singular aberração, são justamente os que mais falam de positivismo e factos positivos os que parecem esquecer ou ignorar que a consciencia humana é um facto, que a sua actividade, expressa e objectivada em milhares de manifestações, desde os codigos até á poesia, e atravez de milhares d'annos, constitue uma ordem de factos tão positivos e tão irrecusaveis como os da physica ou da astronomia. E estes factos não são só positivos e evidentes: são ainda culminantes, pois os phenomenos sociaes e moraes, tendo atraz de si todas as outras ordens de phenomenos e apoiando-se n'ellas, constituem o ponto mais alto da serie evolutiva das cousas. Os factos da consciencia humana são, pois, não só factos positivos, mas os factos positivos culminantes. Ora que diriamos d'uma philosophia, que não podesse explicar, mais, que estivesse em contradicção com os factos da physica, por exemplo, ou de chimica? Diriamos ser uma philosophia não só incompleta, mas falsa. E que pensaremos então d'uma philosophia, que não só consegue explicar, mas está em flagrante contradicção com factos tão positivos como aquelles, e, alem de positivos, superiores e culminantes? A consciencia humana é, pois, verdadeiramente um criterio philosophico, n'este sentido que uma philosophia incapaz de explicar satisfactoriamente os phenomenos da consciencia, ou em contradicção com elles, é uma philosophia incompleta, ou errada, por deixar de fóra, ou contradizer, uma parte e justamente a parte mais importante da realidade. Este criterio bastaria só por si (alem de tudo que atraz fica dito) para condemnar toda a philosophia puramente materialista, sob qualquer forma em que se apresente:--mecanismo atomico, determinismo scientifico, monismo ou pantheismo naturalista. Sob qualquer destas formas, o materealismo envolve, o que é a sua essencia, a reducção de toda a ordem de phenomenos a forças elementares, sujeitas a uma determinação cega, mechanica e sem fim intelligivel: envolve a negação de todo o elemento racional nas cousas, reduzindo ao mesmo tempo as affirmações da consciencia a puras illusões subjectivas. A critica do materialismo, n'este ultimo ponto de vista, tem sido mil vezes feita e não preciso reproduzil-a aqui. O que quero é fazer sentir quanto o monismo evolucionista da escola de Haeckel (que não é mais do que uma forma do materialismo) cuja maior pretensão é ser uma philosophia positiva da natureza, ainda por este lado não é positivo, por não poder explicar uma ordem inteira e a mais importante dos factos do universo. Declarar que a liberdade e o sentimento moral são meras illusões subjectivas, e que os mais intimos e mais autonomos phenomenos da consciencia resultam apenas d'acções mechanicas e são a transformação d'essas acções--é facil. Agora o que não é facil, porque é simplesmente impossivel, é explicar e fazer comprehender (como ha poucos annos ainda Du Bois-Reymond perguntava a Haeckel) como é que o movimento, um grupo de movimentos por mais complexo que o supponhamos, pode produzir, não já os factos superiores da vida do pensamento, mas o mais elementar, a simples sensação? Deante d'esta simples pergunta desaba todo o edificio do monismo. A vida moral não é cousa que se decomponha em retortas, nem se descobrirá jámais o equivalente mechanico do genio ou da virtude: _There are more things in heaven and earth, Horatio, Than are dreamt off in your philosophie_ QUINTO ARTIGO[F] Pretenderei eu accaso com esta critica, contestar o valor dos trabalhos da escola monista, ou ainda a sua importancia philosophica? De modo algum. O que eu contesto é o valor do seu systema, como systema, o que eu censuro é a pretensão de fundar uma philosophia da natureza com a simples generalisação dos dados d'um grupo de sciencias, e sem ter em conta o indispensavel criterio das ideias. Mas abstrahindo d'estas pretensões, a tentativa de Haeckel, considerada em si, tem um alto valor. Tem-no, sobre tudo, como symptoma da tendencia, que cada vez mais se manifesta na esphera da sciencia para uma unidade de comprehensão, que assentando rigorosamente no terreno scientifico, saia ao mesmo tempo da analyse e abstracção inherententes á sciencia, procurando como formula, uma ideia de caracter synthetico, isto é, uma ideia propriamente philosophica. Esta tendencia é sem duvida alguma, o facto intellectual mais importante do seculo actual e um d'aquelles em que mais se traduz d'um lado, a influencia d'ora em deante cada vez mais predominante do criticismo de Kant, e do outro, a feição eminentemente positivista do espirito moderno. Se uma philosophia positiva é e será sempre, como já mostrei, uma chimera, a acção e authoridade directa da sciencia na philosophia será d'aqui em deante (quero dizer depois da _Critica da Rasão pura_) um facto que tem de se impor a todos os pensadores. Mas acção e auctoridade da sciencia na philosophia é uma cousa, e philosophia positiva, outra. As ideias syntheticas da philosophia não saem das sciencias, não são simples generalisações scientificas: são um producto da especulação e quando chegam a apparecer no terreno scientifico é infiltradas para ali das regiões da especulação, é porque a especulação as forneceu, sob forma de hypothese, á sciencia. Não cabe em escrito d'estas dimensões expor a theoria da hypothese. Bastará mostrar como a theoria geral da evolução, hoje com tanto vigor e brilho formulada por Haeckel e seus concorrentes ou discipulos, longe de ser, como vulgarmente se imagina, uma _descoberta_ das sciencias naturaes e um resultado directo da analyse scientifica, é, pelo contrario, uma verdadeira hypothese philosophica, que, producto da elaboração especulativa de perto de trez seculos, acabou por se manifestar no dominio das sciencias. Com effeito são mais fundas as suas raizes, mais longiqua a sua procedencia. Essa ideia não saiu das sciencias naturaes, mas penetrou n'ellas pela influencia (obscura, é certo e indirecta, mas muito real) das noções metaphysicas lentamente elaboradas, a partir da renascença, dentro da ideia fundamental de _natureza_. A maneira dynamica, autonomica, realista, de conceber a natureza é o que mais radicalmente distingue o pensamento moderno do antigo. A natureza para o pensamento antigo, e ainda para o mais genial dos seus intrepretes e o mais objectivo, Aristoteles, era concebida como abstracta, inerte, passiva: longe de parecer concreta e espontanea, era considerada apenas como um reflexo, acto ou emanação d'um ser ou seres transcendentes e perfeitos: as _ideias_ de Platão, a _intelligencia_ de Anaxagores, o _motor immovel_ e as _formas substanciaes_ de Aristoteles etc.) exteriores a ella e só verdadeiramente autonomos. Esta maneira de conceber manteve-se pela Escolastica e pela Theologia christã, até á Renascença. A partir dos ultimos tempos da Edade-media, com a dissolução da philosophia escolastica e as revoluções de toda a especie, intellectuaes, sociaes religiosas, que annunciam a aurora dos tempos modernos, dá-se nas regiões mais profundas da intelligencia humana uma fermentação extraordinaria, que se exprime, ainda com pouca consciencia do seu proprio alcance, nas creações da astronomia e da physica modernas (Kopernico, Keppler, Galileo, Torricelli) e nas reformas philosophicas de Bacon e Descartes; que se avigora com Leibnitz e Spinosa e com os primeiros trabalhos de physiologia, botanica e sciencias sociaes (Gesner, Harvey, Malpighi, Boerhaave, Hobbes, Grocio, Vico, Lessing, etc.) para acabar, plenamente consciente no seculo XIX, por se affirmar, não já n'esta ou n'aquella ordem de phenomenos, mas em todas as espheras da actividade humana, nas sciencias, na philosophia, na sociedade civil e politica e na propria arte e poesia contemporaneas. O naturalismo é para os tempos modernos o que foi o racionalismo para a Antiguidade:--a formula mais geral da sua actividade. A doutrina da evolução é apenas uma das determinações, a mais recente e porisso a mais intensa, e intima, do naturalismo moderno. E convirá notar que o seu apparecimento é simultaneo na astronomia, na geologia, na biologia, na linguistica e na historia: Lamarck, Laplace, Werner, Goethe, Geoffroy Sainte-Hilaire, Herder, Saint-Simon, Bopp, Adelung, são contemporaneos, ou proximamente contemporaneos. O evolucionismo dentro das sciencias da natureza não é mais do que a applicação a uma ordem de factos do principio fundamental do pensamento moderno, uma das suas determinações particulares. Mas esse principio é uma hypothese geral e, como todas ideas syntheticas, um resultado da especulação, não é um facto positivo. Se apparece no dominio das sciencias, é como hypothese philosophica, não como lei scientifica. Se as sciencias da natureza e da sociedade convergem hoje no sentido da evolução, convergem movidas pelo influxo intimo do estado mental-metaphysico que as envolve, não pela força exclusiva e independente do seu desenvolvimento proprio. Não ha, como se pretende, a eliminação do elemento metaphysico pelo elemento scientifico: ha uma mutua penetração; penetração da especulação na sciencia, pela hypothese que a vem fecundar; penetração da sciencia na especulação, pelo correctivo imposto, em nome da realidade, dos factos positivos, ao á-priorismo inherente ao pensamento especulativo. E é por isso que o concurso da sciencia e da especulação é indispensavel para a constituição definitiva da philosophia moderna (da qual todos os systemas, desde Bruno e Bacon até aos nossos dias são apenas esboços e prenuncios), para a organisação systematica do pensamento moderno em todas as suas determinações. Creio com Haeckel, assim como com Schelling, Hegel, Hartmann, Comte e Spencer, que é no terreno da evolução que essa grande synthese tem de ser construida, e que, depois do seculo XVIII e depois de Kant, já não é possivel uma philosophia que não seja essencialmente uma theoria geral do desenvolvimento, isto é, uma philosophia da evolução. Mas creio tambem que a organisação da ideia d'evolução n'essa theoria geral do desenvolvimento é problema que excede muito a capacidade especial das sciencias da natureza, quero dizer, a esphera theorica d'essas sciencias, porque excede os limites e alcance do puro espirito scientifico. A metaphysica do seculo XIX apezar do descredito em que momentaneamente parece ter caido, não disse ainda a sua ultima palavra, nem abdicou. Se a conclusão final das sciencias tem de ser, como creio, o mechanismo universal, a conclusão final do pensamento metaphysico tem por seu lado de ser o universal idealismo. Mas já hoje se começa a comprehender que entre estes dois termos não ha contradicção essencial e que esta _these_ e _antithese_ é reductivel a uma _synthese_, que satisfaça plenamente tanto a sciencia como a especulação. Essa synthese em que o idealismo apparecerá com complemento necessario do mechanismo já hoje se deixa entrever; e creio que nem a todos parecerá temeridade e paradoxo, concebel-a, como eu a concebo, nem idealista nem materialista no antigo e mais usual sentido das palavras, mas num sentido novo e mais profundo, como um _materíalismo idealista_. FIM ====================================================================== Tiragem de 200 exemplares numerados ====================================================================== TYPOGRAPHIA DO CAMPEÃO POPULAR Rua da Graça n.^o 15--Ponta Delgada *Estabelecimento fundado em 1889* *Notas:* [A] _A Provincia_--N.^o 48, II anno--Porto, 1 de março de 1886. [B] Aliás de Iena. (E. P.) [C] _A Provincia_--N.^o 49--II anno--Porto, 2 de Março de 1886. [D] _A Provincia_--N.^o 50--II anno--Porto, 3 de março de 1886. [E] _A Provincia_--N.^o 51--II anno--Porto, 4 de março de 1887. [F] _A Provincia_--N.^o 52--II anno--Porto, 5 de março de 1887. *** End of this LibraryBlog Digital Book "A philosophia da natureza dos naturalistas" *** Copyright 2023 LibraryBlog. All rights reserved.