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Title: Portugal perante a revolução de Hespanha - Considerações sobre o futuro da politica portugueza no - ponto de vista da democracia iberica Author: Quental, Antero Tarquínio de, 1842-1891 Language: Portuguese As this book started as an ASCII text book there are no pictures available. *** Start of this LibraryBlog Digital Book "Portugal perante a revolução de Hespanha - Considerações sobre o futuro da politica portugueza no - ponto de vista da democracia iberica" *** of public domain material from Google Book Search) PORTUGAL PERANTE A REVOLUÇÃO DE HESPANHA CONSIDERAÇÕES SOBRE O FUTURO DA POLITICA PORTUGUEZA NO PONTO DE VISTA DA DEMOCRACIA IBERICA POR ANTHERO DE QUENTAL Alea jacta est LISBOA TYPOGRAPHIA PORTUGUEZA 25, Travessa da Queimada, 35 1868 PORTUGAL PERANTE A REVOLUÇÃO DE HESPANHA CONSIDERAÇÕES SOBRE O FUTURO DA POLITICA PORTUGUEZA NO PONTO DE VISTA DA DEMOCRACIA IBERICA POR ANTHERO DE QUENTAL Alea jacta est LISBOA TYPOGRAPHIA PORTUGUEZA 25, Travessa da Queimada, 35 1868 I Ha dois mezes que admiramos a revolução de Hespanha: será tempo talvez de tratarmos de a entender. O enthusiasmo é bom, porque eleva o espirito; mas a critica é melhor ainda, porque o esclarece. As revoluções, sem por isso desdenharem a commoção e o applauso, não pedem ao mundo senão uma coisa: serem comprehendidas. Dramaticas, épicas, phantasticas, as revoluções não são todavia nem dramas, nem epopeias, nem contos de Hoffman: sob as apparencias ardentes e brilhantes da paixão e da poesia são simplesmente, friamente _problemas_. O olhar impassivel d'essas esphinges não diz aos povos-edipos, que as encontram no seu caminho secular, _ama-me_ ou _odeia-me_: dizem apenas _explica-me_. Sómente o abysmo que se abre ao lado, lá está commentando, com a sua bocca tenebrosa, aquella serena palavra... Reduzido aos seus termos mais simples, o problema que a nação hespanhola acaba de escrever nas paginas da historia do seculo XIX, póde formular-se d'este modo: «menos um throno em Hespanha; mais uma mulher em França; mais um povo livre no mundo.» A incognita do problema vem envolvida n'esta ultima proposição: mais um povo livre. Traduzindo-a para a sua verdadeira fórma, que é a interrogativa, fica-nos isto: o que vae a Hespanha fazer da sua liberdade?... O destino de 18 milhões d'homens depende da palavra que se escrever adiante d'aquella interrogação. E depende irremediavelmente, fatalmente. Irremediavelmente, porque n'este caminho d'uma nação que abandona uma fórma social condemnada, como a familia de Loth a condemnada Sodoma, não ha retroceder, não ha mesmo volver atraz um olhar saudoso ou simplesmente curioso: fatalmente, porque todos os interesses, todas as questões, todas as paixões, crescidas, accumuladas, em fermentação no seio da sociedade hespanhola desde 1812, acabam de ser por ella jogadas, n'uma hora só e sobre uma só carta, no jogo sangrento das revoluções... _Alea jacta est._ II Entretanto essa resposta, essa palavra, é o mysterio do destino. Ámanhã póde radiar brilhante como a consciencia visivel d'uma grande raça. Hoje é ainda obscura como uma inerte possibilidade. O que a Hespanha fará da sua liberdade é o seu segredo d'ella. É um problema que agitado no mundo dos factos, só os factos têem de resolver. Mas, para a philosophia politica, que vive de idéas, é no ponto de vista das idéas que o problema tem de ser formulado. Não perguntaremos pois _o que vae_, mas sim _o que deve_ a Hespanha fazer de sua nova liberdade... Isto só nos interessa. Os factos sociaes, sem as idéas que os virificam, são inertes e incomprehensiveis, são corpos sem alma. Ora a alma, no mundo da politica, chama-se logica. A revolução de Hespanha, consequente, é uma coisa viva, cheia de luz, de espirito, de palavra fecundissima. Inconsequente, é uma massa desorganisada, sombria, informe, tediosa para si mesmo, e para o resto do mundo despresivel e vã... A philosophia politica, hoje, e já ámanhã a philosophia da historia, passarão por ella sem a verem, ou, se a virem por acaso, um sorriso de desdem com estas palavras _não fostes logica_, senão o epitaphio miserando das vidas, do sangue, das paixões, que uma manhã se ergueram ardentes ao bello sol da liberdade, para cairem á tarde extenuadas, descrentes, exsangues, só por isto, porque não foram logicas. Sim, Hespanhoes! a magnanimidade da vossa revolução, a fraternidade, o heroismo, tantos rasgos admiraveis, tantas veneraveis dedicações, tudo isso será vão e esteril no momento em que não for consequente, assim como o melhor grão, caído no chão mais fecundo, não germina, apodrece, morre, se lhe falta o calor e a luz eterna do sol... O sol da seara das revoluções é a coragem dos principios. III Mas o que é a logica para um povo em revolução? Facil resposta: ser revolucionario. Ser revolucionario! grande palavra, e coisa maior ainda! mas coisa tão terrivel quanto grande! momento solemne, mas fatal, e cheio d'uma responsabilidade tamanha, que não é raro encontrarem-se na historia dez seculos votados á miseria e ás luctas, e vinte gerações condemnadas á oppressão e á dôr, só pelos erros ou pelas traições commettidas n'um d'estes momentos rapidos e sinistramente decisivos... Se apenas se tratasse, com effeito, de exalar no ar ardente das praças publicas a alma enthusiasta e fraternal que ainda os mais frios e os mais timidos sentem agitar-se-lhes dentro n'estes momentos de fermentação universal; se apenas se tratasse de nobres sentimentos, de inspirações formosas, de palavras de fé--nenhuma missão tão bella como a do revolucionario e nenhuma tão facil... Se se tratasse ainda de concentrar todas as forças da revolução, as boas como as más, as violentas com preferencia ás outras todas, n'um momento de lucta supprema, louca, feroz; se se tratasse de _metter medo_ como Mario em Roma e Danton em Paris--a missão do revolucionario seria formidavel, tremenda, mas era, ainda assim, facil... Mas essa missão é, pelo contrario, de paz, de reflexão, quasi de sciencia. N'isto está a sua superioridade, mas n'isto tambem a sua difficuldade suprema. Não se trata de palavras, mas de obras; de proclamações sonoras, mas de estabelecimentos duraveis; de sentimentos, mas de instituições. Uma das muitas traducções livres da palavra revolução é esta: _revelação_. No momento da crise apaixonada, as forças mais intimas, os elementos mais profundos da sociedade revolvida nos seus abysmos, agitando-se por chegar á claridade, sobem até á superficie e mostram-se á luz do dia com uma energia, uma verdade irresistiveis. É uma revelação: vê-se o que ha, e vê-se com que tem de se contar, em bem e em mal, durante o longo periodo que se segue sempre áquelles momentos de impulso decisivo. Por vinte, por quarenta annos, por um seculo ás vezes, a vida nacional não é mais do que o desenvolvimento, a combinação ou a lucta d'aquelles elementos revelados na hora prophetica da revolução. A França do seculo XIX viu-se toda, sem lhe faltar um traço, como reflectida n'um espelho concentrador, nos dez annos terriveis mas gigantescos de 89 a 99. E Roma, a Roma imperial e plebeia, que tinha de durar quinhentos annos, revelou-se inteira no dia em que Julio, Cesar apoiando-se no hombro rude dos seus legionarios, atravessou o Rubicon para inaugurar sobre as ruinas da legalidade aristocratica a egualdade despotica dos Cesares. N'estes momentos de crise, parece que cada um dos elementos da nova sociedade, cada uma das classes, cada um dos interesses que se repartem o chão e o sol da patria, levanta a mão diante da estatua velada do futuro, com esta exclamação: _contae commigo!_ Tomar nota de cada um d'estes gritos supremos, dar o seu logar, na constituição futura, a cada uma d'estas forças, pôr em harmonia, como diz Proudhon, a _politica_ com a _economia_, crear uma _fórma_ á imagem da _substancia_ social revelada, um governo, emfim, que seja a expressão completa da vida intima da nação--eis a alta, a verdadeira missão do revolucionario, ou antes, a missão das gerações revolucionarias. Uma grande epoca historica, ou um miseravel aborto, podem sair (e irremediavelmente) das mãos d'aquelles que recebem nos seus braços o recemnascido das revoluções, o futuro, conforme--intelligentes ou inhabeis, generosos ou perfidos--o envolvem em veste que, acalentando-o, o deixe mover-se á vontade, crescer e desenvolver-se, ou o apertam em faichas estreitas e duras aonde se atrophia, estrebucha e morre. Ai da nação, que no dia seguinte ao do seu renascimento revolucionario, só encontrou nas fontes do baptismo politico, traidores ou imbecis por padrinhos! Os maiores heroismos tornam-se então infecundos. Um sophisma gangrena todos os centros da vida nacional. Os protestos e as revoltas estereis, as repressões e as tyrannias absurdas succedem-se, redobram-se, tão inuteis uns como os outros, porque o mal é intimo e indestructivel. A politica não corresponde á economia, o governo é uma coisa e outra coisa a sociedade, os interesses são de uma naturesa e a direcção dos interesses obedece a principios de naturesa opposta, povo e administração, governados e governantes, como duas raças hostis, sentindo e pensando de modos desvairados, fallando diversas linguas, adorando deuses diversos, não fazem em cada dia senão cavar o abysmo aonde se affundem a liberdade, a honra, a moral, a riqueza, a intelligencia e, a final, o corpo todo da nação. Este é o segredo das grandes decadencias que têem affligido e escandalisado a humanidade. Por aqui se têem arruinado as mais florescentes civilisações, porque nenhum organismo, por mais robusto que seja, resiste a esta dilaceração intima de cada dia e de cada hora, em cada membro e em cada parte de cada membro... É n'este abysmo que não quizeramos ver despenhar-se a nobre, a heroica, a inspirada Hespanha. Para isso só temos a dar-lhe um conselho: é o da philosofia politica d'este seculo: o conselho que lhe dá Victor Hugo, Girardin, Cremieux; que lhe dariam Tocqueville e Proudhon, ou antes, que lhe dão através do tumulo, e mais alto e mais eloquente ainda, porque o espirito d'estes nobres apostolos vive e cresce, á maneira que se desenvolvem e frutificam as verdades descobertas por elles, e por elles depositadas no seio da sciencia, entre todas humana e entre todas divina, a sciencia da Justiça social. Eis aqui o que ella diz, a sciencia, e o que elles repetem, os seus prophetas. «Não atraiçoeis com fórmas timidas e mentirosas a originalidade e a franqueza da vossa revolução. Hespanhoes, não encarcereis nas vestes estreitas da Hespanha velha e rachitica, a Hespanha rejuvenecida e engrandecida. O moço coração d'esta, que quer bater em liberdade, estalaria comprimido pelo duro espartilho de que aquella, impotente e senil, precisava para se suster direita. Não comeceis por baptisar a nova sociedade com um nome de contradicção e de guerra. Olhai para ella na sublime nudez d'este momento unico, e tal como a virdes, o que virdes que ella é, seja esse o seu nome de baptismo, embora estranho e incomprehensivel para uns, inaudito e terrivel para outros, com tanto que seja o seu nome verdadeiro. O governo é para a nação, não a nação para o governo. A nação é o navio, o governo a vella. E dareis vós á nau alterosa, para a levar pelos mares aparcelados da historia, a vella esguia e estreita do humilde barco costeiro? E essas construcções simples, geometricas, rigorosas da arte nautica do seculo XIX, sobrecarrega-las-heis vós com a armação pesada, grosseira e complicada dos galeões do seculo XVI? Cada momento da historia dos povos tem a sua fórma, o seu governo, assim como a cada edade correspondem as suas aptidões, os seus sentimentos, os seus modos particulares. Chegastes á virilidade? fallai como homens! andai, obrai como homens feitos! Não imiteis a Europa illudida ou timorata: espantae-a. Não lhe aceiteis os conselhos de prudencia senil: não sejaes discipulos, sêde mestres. Admira-vos já na coragem, na generosidade, na força serena: pois bem! que vos tome agora por exemplo n'uma coisa tão bella como essas, e maior ainda que qualquer d'ellas: na _logica_.» IV Mas essa sociedade hespanhola, de cuja intima essencia deve saír a fórma do novo governo, e de cujo pensamento elle deve ser apenas a palavra (sob pena de uma disformidade tão monstruosa, na ordem dos organismos politicos, como na ordem dos organismos naturaes, seria um animal com membros e entranhas de uma especie e cabeça de uma especie diversa), essa sociedade hespanhola o que é ella então, e como acaba a Revolução de 1868 de nol-a revelar? «La démocratie est comme le soleil: aveugle qui ne la voit pas.» O facto mais decisivo da historia da peninsula, tão irresistivel como a cavallaria do Cid, tão caracteristico como a Inquisição, tão dominador como a unidade de Filippe II, o _suffragio universal_, acaba de collocar a Hespanha n'uma das situações mais francas, mais logicas, mais decididas, entre os actores do grande drama democratico da Europa occidental. Facto sobre tudo indestructivel. A soberania popular tornada agora instrumento ou condicção de tudo em Hespanha, todas as eventualidades são possiveis, menos a queda d'essa soberania, fóra da qual não se concebe já um movimento, uma vontade, uma ideia sequer. A philosophia politica, ainda mesmo que o considere extemporaneo, tem de o aceitar como se aceita uma coisa superior á razão, que a domina, ainda quando ella a condemne, com a omnipotencia dos acontecimentos, contra que não ha revolta nem protesto e com que não póde deixar de contar nos seus calculos, sob pena de se tornar incompleta, parcial, estreita, isto é, de não ser já _a razão_. Se fosse possivel á Hespanha feudal de Fernando, _o santo_ e Affonso, _o sabio_, ou á Hespanha absolutista e theocratica de Filippe II, achar-se, de um para o outro dia, nivelada e senhora de si, pela intervenção milagrosa do _suffragio universal_, caído uma noite do céu, como chuva de oiro, desde o castello do fronteiro e dos paços conventuaes do abbade, até á loja do burguez e á choça do pastor, se esta coisa sobrenatural fosse possivel, por mais violenta e mais absurda que tal revolução nos parecesse, tinhamos ainda assim de a aceitar, de contar com ella, de a proclamar á face do mundo, porque era _irrevogavel_. Tecto por tecto, homem por homem, cada qual se tinha magicamente tornado, na sua pessoa, bens, ideias, senhor da sua inteira e absoluta personalidade. N'esse momento, feudalismo, absolutismo ou theocracia, sumia-se por encanto no abysmo mysterioso e a Hespanha ficava sendo, e sem remedio, uma democracia. Mas não é esse o caso da democracia inaugurada pela Revolução de 1868. Aqui, a proclamação da soberania popular não é um phenomeno phantastico e imprevisto: é, pelo contrario, o termo ultimo e naturalissimo de uma serie de movimentos accidentados mas progressivos, que durante meio seculo constituem a historia social da Hespanha no seculo XIX. Com uma rigida disciplina (que só espanta a quem não conhecer as leis irresistiveis que se encobrem sob a apparencia dos factos inconsistentes), homens e instituições, revoltas e reacções, interesses e ideias, tudo se encaminhava surdamente para aquelle grande desfecho. O que hoje se vê póde dizer-se afoitamente que foi o sonho, vago e inconsciente, mas constante, da sociedade espanhola durante meio seculo. 1812 é o ponto de partida. Quem dissesse então aos bispos, generaes, altos dignatarios, e grandes possuidores do solo, reunidos na ilha de Leon, que o edificio conservador da sua constituição não era mais do que o alicerce de uma futura construcção democratica e radical, quem tal dissesse faria por certo surrir com grave desdem os solemnes e prudentissimos revolucionarios de 1812. Mas tal é a lei da historia. A liberdade dos homens serve-lhe apenas de instrumento para as suas combinações inexoraveis. A constituição de Cadiz era o primeiro passo na senda escorregadia da revolução democratica. Que se dizia ali, com effeito? «Soberania da nação: liberdade de imprensa: abolição dos privilegios em materia de imposto.» E o que é isto senão um programma democratico--sómente um programma democratico redigido por um conservador? Da _soberania da nação_ á _soberania popular_ que distancia vai? Em ideias, nenhuma: questão de tempo, apenas. E da _liberdade de imprensa_ á _liberdade de cultos_, da abolição dos _privilegios fiscaes_ á abolição de todos os _privilegios civis_, que outra distancia ha mais do que a que medeia entre as premissas e a conclusão? Foram precisos cincoenta annos para que a conclusão apparecesse. Cem ou mil que se gastassem, pouco importa: tudo está em que havia de apparecer, por que lá se continha, nos principios. E esses principios faz gosto ver como a Hespanha, no meio da sua apparente anarchia, ao som da fuzilada das barricadas e por entre a vozeria dos partidos delirantes, os desenvolve dia a dia com uma tenacidade tão extraordinaria que bem se deixa ver que não é a ephemera liberdade dos individuos, mas a fatalidade lucida das leis sociaes, quem desenrola uns após outros os termos d'aquella deducção soberana. De 1812 a 1820, para quem considerar apenas a superficie da politica, tudo parece retrocesso e reacção. Mas o trabalho da renovação social proseguiu-se surdamente, superior ao despotismo, ajudando-se d'elle até muitas vezes, e a constituição de 1820, pela expulsão dos Jesuitas, pela extincção do Santo Officio, cujos bens são secularisados, tornados propriedade da nação e vendidos, dá um passo adiante dos constituintes da ilha de Leon e prova ao mundo que a revolução democratica, na sua corrente profunda, é superior aos diques artificiaes de uma politica de interesses relativos e de influencias pessoaes. Mas a constituição de 1820 cáe por terra com o mesmo golpe que decepa a cabeça inspirada de Riego. A Hespanha parece desandar violentamente: tudo são trevas e oppressão--. Entretanto em 1834 apparece o _Estatuto Real_, dado (note-se), concedido pela realeza. Que diz elle? Seguramente, depois de quinze annos de reacção, proclama os principios da monarchia dos Filippes e a politica theologica do cardeal Ximenes? Admirae a força irresistivel das leis economicas! O estatuto real fixa definitivamente em Hespanha o principio e a pratica da representação nacional, estabelece d'um modo quasi inabalavel as classes medias no governo, e abaixando consideravelmente o censo eleitoral, dá entrada na vida politica á pequena propriedade e á pequena burguezia. O estatuto real, apesar de doctrinario e moderado, marca uma notavel acceleração na carreira da revolução democratica. De 1834 em diante o chão parece fugir debaixo dos pés a tudo quanto em Hespanha tenta recuar ou apenas parar um momento. A vertigem apodera-se da velha sociedade, que levada em dança phantastica, vae semeando ao acaso os pedaços d'aquellas insignias que marcavam outr'ora a sua dignidade, os seus privilegios ou os seus abusos. Em 1837 extincção dos conventos; em 1838, constituição nova, mais niveladora; extincção dos dizimos ecclesiasticos; os bens do clero considerados bens nacionaes: em 1855, finalmente, os bens do clero definitivamente secularisados; abolição dos morgados; a tolerancia religiosa proclamada... Que quadro este! e como todas estas cores se combinam, se dispõem de fórma a exigirem aquelle toque final e decisivo, que, assim preparado, tem por seu lado tambem de dar ao todo a sua expressão, enchendo a tella de luz e vida--o _suffragio universal!_ Assim pois, pelo facto e pela ideia, pela revolução e tradição, é a Hespanha (e não póde já ser outra coisa) uma _democracia_, uma vasta democracia de 18 milhões de homens. São 18 milhões de homens, livres e em face uns dos outros armados de direitos iguaes. Todas as velhas cathegorias, degraus, grupos particulares, tudo isso desappareceu, fundiu-se na uniformidade d'um vasto pantheismo social. Grande situação, por certo, mas cheia de perigo; porque, para este mundo novo, é necessaria uma nova fórma; porque para fechar esta abobada de tão diversa construcção, não podem já servir as pedras talhadas pelos moldes antigos; porque finalmente não se encontram nos livros canonicos da velha politica as formulas do exorcismo com que se faça curvar á obediencia aquelles 18 milhões de cabeças erguidas... É que são, com effeito, 18 milhões de cabeças livres. Agora só a liberdade poderá arrogar-se o direito de as guiar. Por outras palavras: trata-se de dar á democracia hespanhola um governo democratico. V N'este ponto ha uma palavra que sae de todas as boccas: a Republica. No centro dos encruzilhados caminhos do mundo politico, levanta-se esta grande figura, como a estatua colossal do deus Termo, conciliação para tantas discordias, luz para tantas trevas, erecta na sua base inabalavel e visivel dos quatro pontos do horisonte. Ella tambem é como o sol «aveugle qui ne la voit pas». Quem diz _democracia_ diz naturalmente _republica_. Se a democracia é uma ideia, a republica é a sua palavra; se é uma vontade, a republica é a sua acção; se é um sentimento, a republica é o seu poema. Dos longinquos caminhos do desterro é para ella que se levantam os olhos de todos quantos na terra padecem fome e sêde de justiça. Sem a conhecerem, prophetisaram-na herois, philosofos e poetas. E se á rectidão do seu codigo, copiado do direito absoluto, ajuntarmos a fé dos seus crentes e a santidade dos seus martyres, a republica deixa de ser um governo para se tornar uma religião. Mas como se organisa a republica? Aqui, á claridade de um sentimento divino, succede-se o nevoeiro dos systemas humanos. E o systema, o espirito systematico matou a republica. Rousseau, e atraz d'elle Robespierre, _o bastardo de Rousseau_, como disse Michelet, os Jacobinos, Danton e a Convenção, na energia do seu plebeismo, conceberam a republica como uma dictadura permanente, executada em nome da multidão pelos chefes da sua escolha. Foi assim que, julgando consolidar a egualdade, fundavam apenas o peior dos despotismos, o despotismo da plebe. A razão scientifica é facil de colher-se. Pela _delegação_ aglomeravam todos os poderes, todas as forças collectivas no centro poderoso da _republica una e indivisivel_. Esse centro, e só elle, legislava, administrava, julgava, absorvendo no seu immenso pulmão o ar e a vida que devera animar o corpo inteiro da sociedade. Mas não se julga, legisla, administra sem força; e força tanto maior quanto mais concentrado está o poder, quanto mais tem que governar, que impor, por conseguinte, a vontade omnipotente com que o armou a nação. Mas impor a quem? á mesma nação! Contradicção estranha! a _delegação_ tornou-se _tyrannia_: o suffragio universal converteu-se n'uma arma de dois gumes com que o povo, brandindo-a, se fere, e tanto mais se fere quanto mais valente é o braço com que a brande. O divorcio entre o governo e a nação succede-se rapido. Elle, armado com o seu direito, a _delegação_, quer ser obedecido e faz-se em todo o caso temido: ella, armada com a sua _liberdade_, accusa o governo de traição e tyrannia, revolta-se e a republica cae estrebuchando n'um lago de sangue. Qual dos dois tem rasão? nenhum d'elles ou ambos. Mas quem, com certeza, não tem rasão é o systema, o rude e estreito systema da unidade e da concentração. Tem razão Robespierre e têem-na tambem os _thermidorianos_ que o guilhotinam: quem não a tem, em todo o caso, é Rousseau dando no _Contracto social_ as formulas da _Republica una e indivisivel_. Ah! grande mas desvairado philosopho! a tua liberdade é a selvageria e a tua igualdade o despotismo! É do teu doce mas louco coração que saiu a peçonha, que envenenou as fontes vivas sebentadas, em hora de bençãos, da nobre, da heroica, da eterna Revolução Franceza!... O mundo, entretanto, seguiu Rousseau. Ninguem viu que a _unidade_ matava a _liberdade_, a _delegação_ a _iniciativa_, a _organisação republicana_ a _republica democratica_. Ninguem viu que era esta contradicção, e só ella, que explicava o phenomeno extraordinario da decadencia rapida das instituições republicanas, criadas para serem eternas pelo enthusiasmo das multidões, e abandonadas em poucos annos pelas mesmas multidões, scepticas e desmoralisadas. Tudo serviu de explicação, as paixões dos homens, a cegueira das massas, a ambição dos chefes, tudo, menos a unica explicação simples--que não era aquillo republica, mas uma tyrannia plebeia, e nada mais. Armand Carrel e a geração revolucionaria da primeira metade d'este seculo seguiram cegamente o mesmo ideal: para elles a republica é sempre a Convenção, dispondo da pessoa e dos bens do povo em nome do povo, _salus populi suprema lex_: para elles o chefe republicano é sempre Robespierre, concentrando n'uma mão todos os poderes politicos e estendendo já a outra para a auctoridade religiosa. Esse ideal viu-se um momento realisado em 1848. Cruel, cruelissimo desengano! A bella, a poetica, a inspirada Republica de fevereiro afunde-se no meio de um rio de sangue, condemnada pela sombra de Rousseau, que ainda de longe a cobria, porque não houve um só dos chefes do povo que em 1851 preferisse a _liberdade_ á _unidade_, porque não houve um só que não temesse mais a descentralisação absoluta, o provincialismo e o desmembramento da França, do que o espectro sinistro do cezarismo que se approximava! Salvou-se ainda uma vez a centralisação! a liberdade, essa ficou sendo o mitho, a visão apenas da politica franceza.... Cruel, amarga experiencia foi aquella, mas salutar. E como aproveitou com ella a robusta geração revolucionaria saída d'essa terrivel provação de quatro annos de sangue e desespero! Proudhon, Vacherot, Simon, Frederico Morin, Tocqueville, Renan, não são já, como os poetas do governo provisorio, os amantes platonicos de uma republica ideal, ajuntamento hybrido de bellos sentimentos e de pessimas instituições, aonde a selvagem _razão d'estado_ se mascarava com as flores candidas da corôa da fraternidade... Estes vêem os phenomenos sociaes na sua dura realidade: conhecem que o mal não está tanto em ser este ou aquelle _quem nos governe_, como no facto de _sermos governados_. Que importa que o poder saia do seio da nação, se é sempre _poder_? e a tyrannia, porque somos nós que a criamos, deixa de pesar menos por isso, de ferir, de rebaixar a nossa dignidade de homens livres? Não é pois na substituição da dictadura de Sylla á de Mario, da de Napoleão á de Robespierre, da de Espartero á de Isabel II, que está o segredo das revoluções, mas na extincção total da dictadura, fosse ella a de um santo, da tyrannia, fosse ella a de um deus. Ora tyrannia e dictadura é a unidade politica, a centralisação dos poderes; tyrannia e dictadura da peior especie, porque são systematicas, legaes, organisadas, destruindo a ordem natural com o pretexto da ordem politica, esmagando toda a iniciativa, toda a individualidade, toda a nobreza, e reduzindo uma nação ao estado de um rebanho paciente e uniforme a que, por unica consolação, se deixasse o direito de eleger o pastor que o guia, e o cão que ás dentadas o faz entrar na fórma. Será isto um ideal humano? Na uniformidade, na homogeneidade de composição das sociedades democraticas é que está o perigo todo. Como já não ha grupos, classes, variedade de interesses e de individualidades, que equilibrem o poder central e lhe opponham resistencia, a pressão do governo não encontra obstaculos, communica-se, estende-se, com rapidez e força incalculaveis, n'aquella massa homogenea. Uma aristocracia, um clero livre e organisado, uma burguezia com seus privilegios, cidades com seus fóros, tudo isto eram barreiras formidaveis que a auctoridade central, durante a idade media, encontrou erguidas contra si cada vez que tentou alargar-se e absorver a actividade da nação. Mas aquellas barreiras, salutares no ponto de vista da liberdade, eram, no ponto de vista da igualdade, abusos e vexames, porque eram outros tantos privilegios. A questão hoje, para a philosophia politica, reduz-se a isto: criar na sociedade esses diversos grupos, por onde se reparta a auctoridade e se equilibre a força expansiva do centro, sem que por isso se altere a simplicidade intima do meio social, a igualdade absoluta de direitos, filha da revolução democratica do seculo XIX. N'outros termos: trata-se de conciliar a _igualdade_ e a _liberdade_, cujo divorcio tem causado a ruina das mais heroicas republicas, o abatimento das mais florescentes democracias. Para isso o que é preciso? criar tantos centros de auctoridade local quantos forem os centros naturaes da vida nacional. Somente esses grupos devem estar uns para com os outros na mesma razão juridica, possuir os mesmos direitos, ser semelhantes ainda que independentes, e formando outras tantas individualidades, devem essas individualidades ser uniformes e iguaes. Por outras palavras: trata-se de criar a _diversidade_ (garantia unica da liberdade) na massa da nação, fundando-a d'esta vez, não sobre o privilegio odioso e alem d'isso instavel, mas sobre a base mais solida e mais natural, a igualdade. Dito isto, o nome da coisa sáe de todas as boccas: chama-se _federação_. Conciliação para todos os interesses, garantia para todas as liberdades, campo aberto para todas as actividades, equilibrio para todas as forças, templo para todos os cultos, a federação é a unica fórma de governo digna de homens verdadeiramente iguaes, porque é a unica fórma de governo verdadeiramente livre. Ella extingue os velhos odios, supprime os velhos partidos, não destruindo-os violentamente, mas, ao contrario, fazendo-os viver em commum, conciliando-os, mostrando que podem coexistir no seu vasto seio, no seu espirito comprehensivo e amplissimo. Estas palavras _federação democratica_ resumem hoje o credo revolucionario, como ha oitenta annos as de _republica indivisivel_ resumiam as aspirações da geração heroica, mas pouco experiente, que criou na historia a grande data de 1793. Quem hoje percorrer com a vista as legiões do grande exercito revolucionario europeu, raro topará com uma bandeira em que se não leia a magica legenda _republica democratica federativa_. Estes pendões são hasteados por mãos que têem feito, já no mundo dos factos, já no mundo das ideias, um trabalho formidavel. São homens que se chamam Proudhon, Shultz-Delitz, Gladstone, Vacherot, Morin, Simon, Littré, Bright, Langlois, e que são para o drama final a que se encaminha o seculo XIX o mesmo que Rousseau, Sieyès, Condorcet, Volney, foram para a tragedia dos ultimos annos do seculo XVIII. O sonho unitario dissipou-se. Uma amarga experiencia lhes mostrou que a existencia d'essa entidade puramente geographica de uma grande nacionalidade compacta não compensa a falta d'aquella outra entidade realissima, necessaria, vital, o _cidadão livre_. O _homem_, o homem no goso pleno das suas liberdades, das suas forças variadissimas, industriaes, scientificas, politicas, religiosas, esse homem não o criam as unidades artificiaes e violentas organisadas segundo o principio das grandes nações centralisadas. Era escusada, para chegarmos a isto, a experiencia custosa da França de Napoleão III. Bastava a historia, que não nos offerece o exemplo de uma unica republica democratica centralisada que chegue a durar a vida de uma geração. Fluctuam entre a anarchia e a tyrannia, até acabarem pela morte da nacionalidade, ou pela abdicação nas mãos de um chefe absoluto, pelo cezarismo. No dia em que a republica aristocratica de Roma se transforma em democracia unitaria, a sociedade romana, perdido o equilibrio, passa violentamente de tyrannia para tyrannia, até que os Cezares a acolhem á sombra mortal do seu despotismo nivelador. Florença abdica nas mãos dos Medecis: e a França, em menos de cem annos, abdica tres vezes nas mãos dos seus chefes populares e republicanos; em 1793, Robespierre; em 1804, Buonaparte; em 1851, Luiz Napoleão. Eis como vivem e quanto duram as republicas unitarias! As unicas republicas democraticas, cuja vida serena absorve já a vida de muitas gerações, são duas republicas federativas: a Confederação Suissa, na Europa; na America, os Estados-Unidos. Ricas, pacificas, intelligentes, não é ainda assim a riqueza, nem a sciencia, nem a paz quem as mantem: é a liberdade; a liberdade que sabem conservar na igualdade. Typos ainda incompletos em relação ao ideal que abstractamente formamos das sociedades humanas, são todavia, para as informes agglomerações de homens, a que no resto do mundo se chama nações, verdadeiros ideaes, modelos admiraveis e quasi columnas de fogo no deserto das miserias politicas. É para ali, Hespanhoes, que deveis virar os olhos! E essa federação que é para o resto do mundo uma aspiração, um sonho apenas, é para vós uma realidade secular, uma tradição do vosso solo, um caminho por muito tempo aberto e trilhado na vossa historia, desde o Cid até Padilha, até aos heroicos _communeros_, até á grande revolta dos Catalães, até Palafox, até á revolução actual, que partindo das extremidades e arrastando o centro no seu movimento, tem um caracter eminentemente senão exclusivamente federal... Assim pois, a philosophia e a tradicção secular combinam-se no conselho que vos dão. É o espirito novo abraçando-se com a antiga virtude. É o seculo XIX que, para vós, póde sem esforço ser quasi uma deducção dos seculos XI e XVI. Duas edades em tudo mais hostis, o passado feudal e o presente democratico, n'esta só coisa poderam concordar, apontando-vos como o caminho da justiça, da paz, da força, da liberdade, do progresso, um unico caminho: a Federação. VI Mas Portugal, membro amputado desnecessariamente, ainda que sem violencia, do grande corpo da peninsula iberica, vivendo desde então uma vida particular, estreita talvez mas sua e original, e tão apartado do movimento dos outros povos hespanhoes como se fosse a fronteira, que d'elles, o separa um insondavel oceano, que tem que ver Portugal com a revolução que acaba de trazer á superficie da sociedade hespanhola, como em tumultuosa fermentação, os maiores problemas da politica moderna, e com as resoluções que a philosofia e a necessidade, os principios e os acontecimentos, impõem aos chefes em cujas mãos vão caír as redeas agitadas d'essa revolução? É sobre tudo para este ponto que eu invoco a attenção de todos os homens que, vendo na historia leis fixas e não acontecimentos fortuitos, sabem comprehender que a politica é uma questão de ideias e não de paixões, de necessidade e não de sentimento. Por uma coincidencia, a que chamariamos providencial se houvesse para as nações outra providencia alem da força inexoravel das coisas, coincidencia unica em toda a historia de Portugal e da Hespanha, as duas sociedades, ainda que postas em face de problemas differentes, acham-se hoje obrigadas a uma mesma solução, exactamente como dois doentes que, padecendo males diversos, encontrassem a salvação n'um mesmo e unico remedio. O ideal da Hespanha em revolução confunde-se com o ideal de Portugal que precisa ser revolucionado. A politica, morta entre nós ha tantos annos para os principios e para a justiça, renasce, tem outra vez alma e palavra, e essa palavra affirma o mesmo que alem da fronteira sáe dos corações que melhor sentem, das intelligencias que melhor comprehendem os verdadeiros destinos da peninsula. Para portuguezes como para hespanhoes não ha hoje senão um ideal politico: democracia e federalismo. A differença está só em que para a Hespanha metade do programma é já um facto inabalavel e a outra uma necessidade fatalmente imperiosa; em quanto que para nós, portuguezes, o programma todo, ainda que igualmente imperioso e fatal, não passa por ora de uma indicação da pura logica, é simplesmente uma aspiraçao. Portugal é uma nação enferma, e do peior genero de enfermidade, o languor, o enfraquecimento gradual que, sem febre, sem delirio, consome tanto mais seguramente quanto se não vê orgão especialmente atacado, nem se atina com o nome da mysteriosa doença. A doença existe, todavia. O mundo portuguez agonisa, affectado de _atonia_, tanto na constituição intima da sociedade, como no movimento, na circulação da vida politica. Na sociedade, a estagnação de todas as classes, incapazes do menor desenvolvimento, pelo predominio de uma classe gasta e impotente, mas que tem monopolisado, desde 1834, a direcção dos negocios, a _burguezia_, dá-nos essa paz e liberdade apparentes que não são no fundo outra coisa mais do que a immobilidade e a indifferença, symptomas de morte proxima, não harmonias de uma existencia cheia e ordenada. No mundo politico a _atonia_ manifesta-se pelo abatimento de todos os centros locaes, pelo desapparecimento de qualquer iniciativa, independente da direcção official, pela substituição de um mecanismo artificial e mesquinho á bella e rica manifestação espontanea das forças livres e originaes, pelo arrefecimento, pelo empobrecimento da vida nacional em proveito de uma coisa falsa, artificiosa e esteril, a _centralização_. A _centralisação_ como meio, os _interesses burguezes_ como fim, eis o miseravel resumo da nossa actividade social ha perto de quarenta annos. Hoje a burguezia está rica; a centralisação, constituida; mas o paiz, esse, está pobre, fraco, indifferente, vulgar, e mais miseravel e triste, na sua paz e liberdade convencionaes, do que muitos outros no meio das luctas e das tempestades da guerra civil e da tyrannia. É n'esta hora de abatimento profundo que uma revolução, para nós quasi providencial, faz rebentar a democracia do solo ardente da Hespanha, e encaminha fatalmente essa democracia para a sua unica fórma, a federação. Maravilhoso acaso, que a ponto nos deixa caír no regaço o remedio que exigem os nossos males, e une finalmente os dois povos da peninsula, por uma mesma necessidade, n'uma mesma aspiração, n'um mesmo ideal. A democracia e a federação vão resolver em Portugal a crise que chocavamos ha quarenta annos, porque a _democracia_ é a queda do reinado burguez, e a _federação_, o renascimento da vida local e a ruina da unidade centralisadora. VII A burguezia europea tinha uma bella missão no seculo XIX. O edificio feudal fôra derrocado, mas o povo continuava no miseravel estado de indifferença e incapacidade politica a que o tinham reduzido, em acção combinada, a monarchia absoluta e a exploração aristocratica. Tornada assim a igualdade um direito popular e ao mesmo tempo um perigo para a civilisação, incumbia á burguezia, assumindo uma especie de dictadura philosophica, aproveitar-se d'este interregno para guiar a multidão ao encontro do seu direito, para estabelecer sem grande abalo a passagem da antiga incapacidade para a nova soberania, encaminhando, illustrando, moralisando, fazendo-se, emfim, não classe dominadora, mas simplesmente classe iniciadora. Mas esta casta avida e egoista, incapaz de comprehender uma tão alta missão, preferiu exercer a dictadura, que o acaso lhe offerecia, em proveito exclusivo dos seus interesses e das suas paixões, considerando como uma conquista eterna o que era apenas uma concessão momentanea da força das coisas. Achou mais simples, em vez de iniciar e illustrar, explorar e desmoralisar. Estabelecido assim o divorcio entre os interesses burguezes e os populares, a ruptura das vontades era facil de prever. Assim succedeu. A revolução franceza de 1848 deu o signal; e desde então para cá a burguezia, caída em França, no resto da Europa vacilla desequilibrada, sustendo-se apenas pela inercia ou pela incapacidade popular. A burguezia portugueza tem sido talvez uma das mais ineptas, o seu dominio certamente um dos mais estereis. Pelo lado economico, fugindo systematicamente a todo o trabalho oneroso, a toda a exploração que peça intelligencia e actividade, estabeleceu-se commodamente no funccionalismo, a que tem dado um desenvolvimento fatal, e na divida publica, que absorve d'este modo os capitaes destinados a fecundar a industria e a producção nacionaes. É assim que se creou no paiz uma massa formidavel de consumidores absolutamente estereis, e se estabeleceu esse desequilibrio entre a producção e o consumo, causa principal da nossa pobreza, origem da divida que nos corroe, e da estagnação assustadora do movimento industrial. Não ha capitaes para tantas explorações necessarias, por que um Estado famelico premeia os seus credores com juros fabulosos, cuja concorrencia nenhuma empreza particular póde sustentar. Não ha homens para essas explorações, por que um Estado governado em familia, considerado padrinho universal dos filhos d'uma classe sedentaria e inactiva, abre na _meza do orçamento _um logar commodo para quem, sobre tudo, evita pensar, calcular e agitar-se. Este é o lado economico: quanto ao lado moral, a decadencia é mais profunda ainda. Quem dirá jámais a pobreza e o abaixamento a que o proprietario avaro e o empregado oppressor têem reduzido o povo dos campos? E o povo das cidades, quantas miserias não deve elle á dura avidez do capitalista, quantas indignidades ao orgulho do funccionario, quantas corrupções ao exemplo dos vicios d'um e do outro? Assim é que elles educam e iniciam. A instrucção é esta: por que a burguezia portugueza póde, por ostentação, levantar uma estatua a Luiz de Camões; mas o povo portuguez, esse, não sabe soletrar o titulo do poema que o poeta consagrou ás suas glorias... Resumindo: o privilegio, sem se atrever a negar em face o direito, estabelecendo-se de facto e enchertando-se surdamente na grande arvore da igualdade social: o luxo e riqueza improvisada d'um pequeno numero mascarando a pobreza universal: os capitaes, desviados do seu verdadeiro curso, deixando que se esterilisem, em vez de as fecundarem, as industrias nacionaes: todas as grandes emprezas, navegação, exploração de minas, nas mãos de companhias estrangeiras, verdadeira abdicação economica do povo portuguez: o desequilibrio crescente entre o consumo e a producção, pelo desenvolvimento extremo de duas classes, os empregados e os credores do Estado, que, sem entrarem com um só elemento para a riqueza publica, absorvem inexoravelmente a melhor parte d'ella: a agiotagem substituida ao commercio e a intriga ao trabalho: o abatimento economico prestando o paiz, no meio da agitação febril de meia duzia de especuladores: o abatimento moral, pela indifferença, pela inercia, gastando os caracteres, amolecendo as vontades, tornando impossivel toda a iniciativa e toda a originalidade: o povo sceptico e desmoralisado: a ociosidade tornada o ideal d'aquelles mesmos que trabalham: a ignorancia real mascarada pela illustração ficticia dos programmas officiaes: muito sophisma: muita illusão: muita miseria: eis aonde nos achamos depois de 40 annos de tutela burgueza, eis o saldo de contas da gerencia d'estes nossos curadores officiosos... Para esta obra de decadencia houve um instrumento digno d'ella, por que é um instrumento de compressão, a centralisação. A dictadura das classes _soi-disant_ superiores torna-se impossivel sem essa apertada rede administrativa, que por todos os lados envolve o corpo da nação, e no centro da qual uma minoria compacta e audaciosa, uma vez estabelecida, póde á vontade dirigir, governar e explorar. N'este ponto de vista, a historia do periodo constitucional entre nós póde definir-se uma administração centralisada, explorando o paiz no sentido dos interesses d'um pequeno numero de monopolistas politicos. A primeira consequencia d'este estado de coisas é a extenção progressiva, incalculavel, verdadeiramente phenomenal do funccionalismo. Ha uns annos que a consciencia e o interesse populares reagem contra esta monstruosidade, este aleijão da nossa sociedade. Depois do movimento de janeiro, sobre tudo, o clamor tornou-se universal. Mas pedem-se reducções, e n'isto é que está o engano. O funccionalismo não é uma anomalia, um facto exclusivamente portuguez. É um dos elementos essenciaes dos governos centralisados. Foi elle quem devorou o mundo romano, nos ultimos dois seculos do imperio. É elle que abate a França debaixo d'um montão de parasitas officiaes, que lhe não deixam completar a sua reorganisação economica. É elle, emfim, que nos tem assim exsangues e pallidos á beira do nosso sepulchro entreaberto. Mas quem acceitar a unidade e a centralisação não póde logicamente recusar o que é o elemento essencial da sua acção, o instrumento das suas concepções, o organismo com que vive, respira e se move. Com effeito, desde que se admitte _governo_, um centro que se encarrega de todas as funcções sociaes, as innumeras forças, que a liberdade individual, abdicando, concentra n'aquella individualidade absoluta, tendem a encarnar-se em symbolos visiveis, que lhes deem acção e vida, e a ajuntarem outros tantos membros ao ser prodigioso aonde se resume a existencia de muitos milhões de homens. A cada um dos elementos da actividade individual vem a corresponder no estado, que os absorve, outras tantas funcções. O que o cidadão deixa de fazer por si, fal-o o estado por meio d'um organismo novo, por que a sua força e complexidade estão na razão inversa da força e do desenvolvimento da esphera de acção de cada cidadão. Ora a força do estado não póde existir senão organisada; isto é, não existe sem repartições e sem empregados, repartições tanto mais complicadas quanto mais perfeita é a organisação, empregados tanto mais remunerados quanto são mais importantes os negocios de que se occupam. O funccionalismo é pois o triumpho da centralisação, a sua expressão mais completa, e póde sem ironia dizer-se que uma nação centralisada não chega á sua plenitude, não é, por conseguinte, perfeita, em quanto uma metade dos cidadãos não estiver constantemente occupada em vigiar, governar e corrigir a outra metade... Mas toda essa gente vive: vive, absorve... e não produz. A ruina das nações centralisadas começa por aqui. Não ha relação entre o que sáe do trabalho e o que exige o consumo. Para accudir ás necessidades do dia é necessario hypothecar o futuro. Mas o futuro ha uma hora em que chega a ser presente, e n'essa hora apparece por tal fórma enfraquecido e sobrecarregado, que já para viver precisa pedir a um outro futuro mais longinquo o dobro e o triplo do que lhe tinham pedido a elle. Eis a progressão terrivel da divida publica! _Progressivamente_, não proporcionalmente, crescem as exigencias do estado: e _progressivamente_, não proporcionalmente, diminuem os recursos do paiz, onerado, compromettido n'uma razão mathematicamente assustadora. É n'este momento que o fisco, até ali simples organismo como os outros, se desmascara e deixa ver o monstro cruel, tyrannico e disforme que é realmente. N'esse momento de brutal franqueza, toda a politica se resume n'uma unica palavra: _dinheiro!_ todo o programma de governo se resume n'uma unica phrase: _é necessario que o povo pague!_ O estado transforma-se n'uma horrivel machina de triturar fortunas, homens, vontades, com tanto que d'esses restos sangrentos possa extrair um pouco de ouro. Mas para isso é necessario ser forte: e o estado fatalmente se concentra, toma a feição d'um exercito sempre em armas no meio d'um povo mal submettido, até assumir a sua verdadeira fórma, a _tyrannia_ uma tyrannia administrativa e fiscal, como a de Diocleciano em Roma, como a de Luiz XIV em França, como a que talvez vejamos dentro em poucos annos em Portugal. Mas a tyrannia do governo dá origem irremediavelmente á sua antithese, a anarchia na sociedade. Como o centro vê tudo, póde tudo, é tudo, como é a unica cabeça, o unico pulmão, o unico braço, todos os grupos de interesses, todos os partidos, privados de qualquer acção fóra da esphera governamental, empenham os maiores esforços em se apoderarem da formidavel machina, e não têem outro fito senão serem um dia _poder_. Conspiram, intrigam, combatem, até lançarem mão das chaves fataes com que se abrem todas as portas e todas as consciencias. O governo, sempre forte, sempre concentrado, passa assim rapidamente de tyrannia em tyrannia, representando de hora para hora os interesses diversos de classes e de partidos, que, succedendo-se vertiginosamente, apenas têem tempo para as represalias e para a oppressão... Será isto um quadro de phantasia? não: leia-se a historia dos ultimos dois seculos do imperio romano: leia-se, sobre tudo, a historia da decadencia byzantina, e ver-se-ha que ainda encobrimos mais de metade das miserias, das desordens, das corrupções, a que arrasta fatalmente as nações o funesto principio do estado centralisado. E Portugal, quem ha ahi que não lhe veja já distinctamente nas faces a pallidez sinistra d'uma inexoravel decadencia? Quem não presente, pelas sombras do horizonte, que vamos entrando no passo temivel da tyrannia fiscal e da anarchia dos interesses hostis? A centralisação dá os seus fructos: e, á sombra d'essa arvore de morte, quantos não nos sentimos já enfraquecidos e cheios d'uma tristeza e d'um desalento mortaes?... Não é com reformas, com _economias_, que se sáe d'uma tal situação. A arvore peçonhenta só cortada pela raiz deixará de cobrir a terra da patria com a sua sombra funesta. O mal é intimo e profundo. Só um revulsivo energico poderá chamar á vida o sangue que se gela nas veias d'este corpo, mais intorpecido ainda do que envelhecido. Por outras palavras: a philosophia politica não indica uma _reforma_, mas uma _revolução_, para a situação desesperada em que nos achamos. E como os dois elementos de morte, que temos em nós, são a _burguezia_ e a _centralisação_, appellando para dois principios de vida, a _democracia_ e a _federação_, não faremos senão seguir as indicações mais claras da sciencia, e as leis mais evidentes do mundo economico e politico. Tanto pelos principios como pelos acontecimentos um caminho está traçado para a politica portugueza, de que não ha desviar-se. Quebrando, por meio do _suffragio universal_, os diques estreitos entre os quaes a vida publica tem até hoje corrido apertada; profundando-lhe o leito, e fazendo entrar na sua corrente, com as multidões triumphantes, esses elementos de força e de vida que ainda possa conter o mundo portuguez; a democracia abate ao mesmo tempo a oligarchia burgueza, e realisa entre nós o unico progresso que nos póde pôr á altura da Hespanha rejuvenecida pela sua revolução. Mas a democracia com a centralisação não é mais do que a igualdade sob uma mesma tyrannia. A descentralisação, quebrando nas mãos da _razão de Estado_ a temivel arma da unidade, restituindo á provincia e á iniciativa local todas as funcções de que tinha sido cavilosamente despojada, ou de que cegamente abdicára, appellando fortemente para a energia individual, é quem só póde acabar por uma vez com o parasitismo do funccionario, chamar os capitaes e as vontades para o trabalho, restabelecer o equilibrio economico alterado, e revestindo Portugal da luz serena e immaculada da republica democratica, fazel-o brilhar, gravitando, entre os astros da constellação iberica. A republica sáe assim naturalmente da democracia; e, da republica, a federação. VIII Chegados a estas conclusões, vemos o ideal revolucionario de Portugal tocar-se, confundir-se com o ideal da revolução hespanhola. Para toda a peninsula não ha hoje senão uma unica politica possivel: a da federação-republicana-democratica. E, em face d'esta formidavel unidade de interesses, de ideas, de vontades, e de aspirações, que podem as _barreiras da nacionalidade_ significar mais do que uma tradição, um symbolo poetico, cujo sentido se perde de dia para dia, até se tornar de todo incomprehensivel, até desapparecer? Moralmente essas barreiras cairam já. Para as consciencias mais rectas, para as intelligencias mais seguras dos dois povos, unidas nos mesmos desejos e n'um pensamento commum, a nacionalidade não passa d'um obstaculo desgraçado, resto das hostilidades fataes de seculos barbaros, e que só por um lamentavel accordo dos interesses da minoria dominante e dos prejuizos da multidão inintelligente se tem podido sustentar. Mas esse accordo desfez-se. O irresistivel movimento democratico da nossa sociedade vai tornar inevitavel a queda da nacionalidade, nas opiniões, a principio, e mais tarde nos factos, no grande dia do abraço fraternal das populações da peninsula iberica. A revolução social é identica para os dois povos: identica, para os dois povos, deve ser a revolução politica. E o successo ou insuccesso da actual revolução hespanhola, o seu desfecho feliz ou infeliz, em nada altera este ponto de vista puramente ideal da politica iberica. Organisado o federalismo democratico em Hespanha, é um facto, um facto visivel e soberano, que se torna o alvo das nossas aspirações, o nosso exemplo, o programma do unico partido com vida e significação em Portugal. Nem, em tal caso, é só um partido, mas a nação toda, que levada por um impulso irresistivel gravita para o centro de attracção da constellação federal--Mas, perturbado o desenvolvimento logico da revolução pela ignorancia, a pusilanimidade, ou a intriga, como nenhum governo estavel, alem da federação, se póde estabelecer em Hespanha, a violenta anarchia, que se seguir, será ao mesmo tempo uma prova irrefutavel, ainda que indirecta, da verdade do programma que traçámos á revolução, e um signal para todos os homens intelligentes, sinceros, e corajosos se unirem, sem distincção de nacionalidade, em volta da bandeira da republica democratica e federal. Em qualquer dos dois casos, a politica, para nós portuguezes, é sempre a mesma: o nosso caminho está traçado, invariavel e superior ainda ás oscilações e tremores do terreno por onde a força inexoravel das coisas o obriga a passar. Em qualquer dos dois casos, a nacionalidade, esta estreita nacionalidade dentro da qual nos está comprimindo a monarchia burgueza, tem de ser sacrificada, quer no facto d'uma revolução, quer no programma d'um partido revolucionario, a uma forma mais larga, mais livre, e mais fraternal. Em qualquer dos dois casos, para todos os elementos moços, intelligentes, activos da sociedade portugueza, não ha outra saida aberta senão esta: a democracia iberica; nem outra politica, politica capaz de idéas, de futuro e de grandeza, possivel em Portugal, senão esta: a politica do iberismo. IX E agora, por despedida, duas palavras sinceras aos patriotas portuguezes. O patriotismo póde symbolisar-se hoje n'uma ideia falsa e estreitissima: mas nem por isso deixa de ser um sentimento respeitavel. Certamente que, para os Fuas Roupinhos e os Espadeiros do jornalismo a tanto por linha, o patriotismo não passa de uma palavra sonora, o enthusiasmo nacional de uma boa especulação. Assim tambem não é com elles que fallo. Dirijo-me aos espiritos candidos e rectos, mas cheios de illusões e pouco esclarecidos sobre a natureza dos movimentos sociaes, ás vontades energicas, mas falsamente encaminhadas, aos homens verdadeiramente bons e dedicados das nossas provincias, que, obedecendo a um dos mais bellos sentimentos humanos, o amor da patria, tomam a _nacionalidade_ pelo symbolo unico, pela fórma mais perfeita d'esse sentimento. Sem faltar ao respeito devido a tão honestas convicções, atrever-me-hei a ponderar-lhes que o amor da patria não coincide rigorosamente com o facto da nacionalidade: são duas coisas distinctas, ainda que ligadas estreitamente e servindo uma de manifestação á outra, como serve a palavra de manifestação ao pensamento. Mas são distinctas: e assim como a palavra falta mais de uma vez ao pensamento, e o atraiçôa, póde uma nacionalidade gasta ou acanhada faltar ao amor da patria com as condicções do seu inteiro desenvolvimento, atraiçoando as suas mais formosas aspirações, os seus mais intimos impulsos. A patria, com effeito, não é o chão, o ar, o sol, os rios e os montes nataes: patria assim tem-na igualmente as arvores d'esses campos e os musgos d'essas rochas: o patriotismo, n'esse caso, deixava de ser um sentimento exclusivamente humano, para se confundir com as simples leis do mundo organico. É no homem, na sua natureza moral, que se devem procurar as razões intimas d'este facto universal e até hoje indestructivel. Ao ceu dos campos e dos montes patrios, á sombra das suas igrejas e dos seus castellos, á lingua dos seus habitantes, aos costumes, ás tradicções, não nos prende um instincto cego, uma fatalidade de especie, ou uma attracção poetica da phantasia. Tudo isso, se é bello para nós, é só por que nos representa, em symbolo harmonioso, o pensamento intimo do nosso ser, e parece traduzir-nos o segredo mysterioso da nossa consciencia. N'esse conjuncto de coisas, ideias, e sentimentos, vemos as condicções do desenvolvimento mais perfeito da nossa natureza moral, o instrumento da exaltação da nossa personalidade, na sua mais rica complexidade, como homens perante os homens, criaturas perante a criação, espiritos perante o nosso proprio espirito. Por isso, e só por isso, amamos a patria. Ella não é somente o berço das nossas affeições instinctivas: é mais: é o ninho aonde crescem e vigoram os filhos mais queridos da nossa alma, as energias da nossa livre actividade. A patria não é um accidente da natureza material, mas um facto da consciencia humana. A nacionalidade, essa, é apenas a fórma passageira e artificial de tudo isto. É um facto do mundo politico e, como elle, transitorio e alteravel. No momento em que muitos interesses se reconhecem semelhantes, muitos _patriotismos_ irmãos, tendo em commum o mesmo ideal e as mesmas condicções de o realisar, agrupam-se, fundem-se, levados pela attracção irresistivel entre naturezas homogeneas, e pela necessidade de se deffenderem e affirmarem em face do mundo. Eis uma nacionalidade, obra de momento, sugeita á dupla acção do tempo e do movimento humano, e por isso instavel e transitoria como o correr dos annos e o transformar-se dos interesses e das ideias sociaes. Concebe-se facilmente que esses interesses deixem de ser homogeneos, que essas ideias se possam contradizer: concebe-se que a fórma nacional, em vez de realisar o ideal de pleno desenvolvimento material e moral symbolisado no amor patrio, lhe suffoque os impulsos mais generosos, e atraiçoe as suas mais legitimas aspirações. A nacionalidade deixa então de ser o pavilhão luminoso, que sob os seus tectos doirados cobria muitas cabeças irmans, para se transformar n'uma abobada escura e fria de ergastulo, aonde gemem muitos miseraveis escravos... Será este o caso de Portugal? Atrevo-me a dizer que é. As forças mais vivas, as energias mais moças e intelligentes, os elementos mais generosos da nossa sociedade, estão comprimidos, asphixiados por esta fórma estreita da velha nacionalidade. Entre uma coisa e outra é necessario escolher. Ora eu sustento que, entre as realidades eternas da natureza humana, de um lado, e, do outro, a criação artificiosa e antiquada da politica, não ha que hesitar. Se não é possivel sermos justos, fortes, nobres, intelligentes, senão deixando caír nos abysmos da historia essa coisa a que já se chamou _nação portugueza_, cáia a nação, mas sejamos aquillo para que nos criou a natureza, sejamos intelligentes, nobres, fortes, justos, sejamos homens, muito embora deixemos de ser portuguezes. Uma nação moribunda é uma coisa poetica: infelizmente a melhor poesia, em politica, não passa de uma politica mediocre. Chorar, recordar-se, ou ameaçar em sonoros versos, póde ser extremamente sentimental: mas não adianta uma polegada os nossos negocios... Eu, por mim, pondo de parte toda a poesia e toda a sentimentalidade, contentar-me-hei de affirmar aos patriotas portuguezes esta verdade de simples bom senso: que, nas nossas actuaes circumstancias, o unico acto possivel e logico de verdadeiro patriotismo consiste em _renegar a nacionalidade_. 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