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Title: Memorandum ácerca das expedições realizadas na Zambesia septentrional durante os annos de 1885 a 1891
Author: Wiese, Carl
Language: Portuguese
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MEMORANDUM

ÁCERCA DAS EXPEDIÇÕES REALISADAS

NA

ZAMBESIA SEPTENTRIONAL

DURANTE OS

ANNOS DE 1885 A 1891

POR

CARL WIESE

LISBOA
IMPRENSA NACIONAL
1891



MEMORANDUM

ÁCERCA DAS EXPEDIÇÕES REALISADAS

NA

ZAMBESIA SEPTENTRIONAL

DURANTE OS

ANNOS DE 1885 A 1891

POR

CARL WIESE

LISBOA
IMPRENSA NACIONAL
1891



MEMORANDUM

O negocio do marfim corria bastante mal, em Tete, durante o anno de
1885; as caravanas do sertão não affluiam, e as transacções estavam
quasi paralysadas; por isso resolvi partir para o interior, a fim de
adquirir aquella mercadoria tão perto quanto me fosse possivel do seu
logar de producção.

Em principios de março organisei uma expedição composta de 300
indigenas, caçadores de elephantes, e parti em direcção de Cachombe,
transpuz o Zambeze em Chabonga, e, depois de dezoito dias de marcha,
cheguei á aldeia de Chirupe, na terra dos Sengas, a um dia de distancia
de Aroangoa Grande, onde me estabeleci e fortifiquei no intuito de
enviar d'ali os meus caçadores em procura do marfim, ficando ao abrigo
de quaesquer ataques dos indigenas.

Andava eu pouco satisfeito com os resultados da caça, quando os meus
caçadores encontraram no mato uma expedição guerreira do grande regulo
Mpesene, o que me offereceu favoravel ensejo para eu enviar a este
potentado um pequeno presente, pedindo-lhe licença para caçar nos seus
territorios, onde n'esse tempo ainda havia uma grande quantidade de
elephantes.

Dois mezes depois via satisfeito o meu desejo, pois recebia a visita de
uma grande embaixada do Mpesene, tendo á sua frente o ministro da guerra
Cassamba Moropa, e um dos filhos do potentado por nome Madzi Mauvi, que
vinham convidar-me para me ir estabelecer definitivamente nos seus estados.

Deixei o estabelecimento de Chirupe a cargo de um dos meus capitães,
e segui para as terras do Mpesene, apenas acompanhado por alguns caçadores.

Fui admiravelmente recebido, contribuindo poderosamente para isso uma
circumstancia fortuita que me conquistou inesperadamente a estima do
soberano e do seu povo. Á minha chegada, em meiados de dezembro, reinava
entre os landins de Mpesene grande desgosto e excitação por causa da
falta das chuvas; em balde eram sacrificadas, nas aras das divindades
indigenas, numerosas cabeças de gado; a secca prolongava-se
extraordinariamente, e com ella cresciam as ameaças de fome. Por
milagrosa fortuna da expedição a minha entrada na principal povoação do
Mpesene, Matengulene, coincidiu com um copiosissimo aguaceiro; e os
indigenas, crentes de que eu lhes trouxera a desejada chuva,
receberam-me com as mais enthusiasticas demonstrações de alegria.

Facil foi por isso obter licença para constituir ali um estabelecimento
permanente. Alcançada a permissão, parti para ir buscar a parte da minha
expedição, que eu deixára junto ao Aroangoa, offerecendo-me o chefe, já
por essa occasião, um valioso presente de marfim.

Volvi a Matengulene em principios de 1886, e ali me demorei mais de dois
annos, dirigindo as excursões dos meus caçadores e recolhendo o marfim,
que trouxe para Tete quando regressei, em principios de julho de 1888.

Em novembro do mesmo anno, achando-se o governador geral da provincia,
conselheiro Augusto de Castilho, em visita á villa de Tete, tive ensejo
de contar a s. exa. o modo por que fôra recebido nas terras do Mpesene,
e o respeito com que elle e os seus acatavam os brancos, considerando-os
representantes do _Geral_, titulo com que designavam o governador de
Tete, a maior auctoridade que elles conheciam, ainda assim, por antiga
tradição.

Encareci a s. exa. quanto seria vantajoso para o governo portuguez
estreitar relações com aquelle poderosissimo chefe, e avançar
consideravelmente para o norte, onde os portuguezes são ainda o unico
povo europeu conhecido, e cuja influencia não póde ser contestada.

No 1.º de dezembro de 1888 dirigia-me o sr. conselheiro Castilho um
officio, em que me pedia, em nome do governo portuguez e no interesse
da dilatação do seu dominio, que na minha proxima viagem aos sertões de
Mpesene, usasse da já poderosa influencia que eu adquirira, para
convencer o regulo de que devia acceitar a soberania de Portugal.

Recommendava-me o sr. Castilho que estendesse quanto possivel para o
norte o prestigio e influencia dos portuguezes, e, para dar um caracter
perfeitamente official á expedição que eu era encarregado de dirigir,
collocava ao meu lado, como representante da auctoridade do governo e
encarregado de redigir quaesquer autos ou tratados, o sr. tenente
Mesquita e Solla, secretario do governo de Tete, que ficaria residindo
junto ao regulo quando eu, em virtude de negocios meus particulares,
tivesse de ausentar-me.

Só em 6 de março me foi possivel partir para Cachombe, acompanhado pelo
sr. tenente Mesquita e Solla, e munido das necessarias instrucções que
opportunamente recebera.

Correu sem novidade a viagem de dez dias até Cachombe, porém aqui
tivemos de nos demorar quatro mezes, por causa das intrigas que urdira
contra nós o capitão mór da localidade, Luiz Firmino, que por todos os
meios procurava impedir a visita de uma expedição áquelles ricos e
vastissimos territorios.

Avisára elle o Mpesene de que nós lhe íamos fazer guerra e que devia
desconfiar de nós; e o chefe landim começava a acreditar no que o
capitão mór insinuava e ía reunindo contra nós grandes forças, cuja
noticia nos chegava pelos maraves d'alem Zambeze.

N'estas condições julguei menos conveniente arriscar o exito da
expedição e deliberei enviar ao regulo uma pequena embaixada composta de
homens de confiança, conhecidos do Mpesene e habituados a tratar com elle.

Voltou a embaixada depois de ter aplanado todas as difficuldades, e
acompanhada por uma outra que o Mpesene mandava encontrar-se comnosco
para nos conduzir ás suas terras.

O resultado futuro da expedição afigurava-se-nos de novo auspicioso, mas
eram já irremediaveis as despezas occasionadas pela demora de quatro
mezes, consumidos n'uma esteril inacção, e as perdas que provinham para
mim da sustentação durante esse tempo dos meus caçadores, que
representavam o principal capital do meu negocio.

Atravessámos finalmente o Zambeze, junto á povoação de Chacanga, a dois
dias de viagem para montante das cataractas de Caborabassa.

Para não descurar os intuitos politicos da minha missão, procurei logo
avistar-me com o poderoso Chanquaniquire, regulo da Maravia de oeste,
territorio onde abundam as minas de oiro, de prata e de estanho, banhado
pelo Zambeze, entre os rios Boosi e Luya que o limitam a oeste e leste,
estendendo-se para o norte até aos montes Mefingue. Em 10 de junho de
1888 firmava-se o tratado que restabelecia a soberania portugueza na
parte meridional da Maravia, de que os antigos escriptores tanto se
occuparam e cuja interessantissima descripção se póde ler no livro de
Gamito e Monteiro, _O Muata Cazembe_.

Aproveitámos tambem a occasião para visitar o chefe Chincoco, feudatario
do Chanquaniquire, avisal-o da submissão do seu suzerano, e obter a sua
annuencia e promessa de inteira obediencia e lealdade para com o governo
portuguez. Esta submissão pessoal do Chincoco tinha para nós maior
importancia por ser este vassallo do Chanquaniquire indigitado como
successor do regulo do Unde, isto é, futuro soberano da Maravia oriental.

Firmadas as nossas excellentes relações com o Chincoco, partimos para o
norte em direcção á aringa do Catumba, tributario já do Mpesene,
comquanto as suas terras façam parte da Maravia oriental, e paguem
tambem imposto a Unde.

D'elle alcançámos que promettesse deixar caçar nos seus territorios os
subditos portuguezes, sem lhes pôr impedimento nem mesmo lhes exigir o
_dente da terra_; obrigando-se mais o potentado a proteger e auxiliar,
quanto fosse necessario, os nossos correios que atravessassem os seus
dominios no transito entre Tete e os estados do Mpesene.

Catumba tem a sua capital no cume de uma elevada e quasi inaccessivel
montanha, Chingilisia, que domina toda a vasta e fertil planicie
circumvizinha; é ponto de superior importancia estrategica, e certamente
um dos primeiros a occupar para quem pretenda ter segura posse dos
valiosos territorios que se estendem até aos confins dos estados de
Mpesene.

Em 14 de julho de 1888 entravamos em Matengulene, capital do Mpesene, e
faziamos fluctuar ali, pela primeira vez desde que a dominam zulus, a
bandeira de um paiz civilisado, a bandeira portugueza.

Esperava-nos excellente recepção por parte do poderoso rei e dos seus
indunas, principalmente do meu velho amigo Cassamba-Moropa, que ainda
encontrámos no exercicio do seu cargo.

Mpesene acceitou com reconhecimento a bandeira portugueza, que logo fez
arvorar, e firmou comnosco um tratado de vassallagem datado de 20 de
julho, em que o chefe zulu se obriga a manter abertos os caminhos para o
Zambeze, e a cessar as suas continuadas correrias, que assolavam o paiz
marave, com grande prejuizo do commercio.

Em diversos e successivos documentos confirmaram os filhos de Mpesene a
obediencia do pae á corôa portugueza; por vezes se repetiram, com
intervallo de muitos mezes, as solemnes declarações do potentado
indigena, que até mais de uma vez aproveitou a presença de um viajante
estrangeiro, o subdito britannico Alfred Sharpe, para assignalar bem a
estreiteza das suas relações com as auctoridades que a expedição de meu
commando representava.

Numerosos documentos attestam e confirmam, pela presença de varias
testemunhas, a fidelidade do Mpesene, dos seus filhos e dos seus grandes.

Para deixar perduravel impressão no animo do chefe zulu, e tomar posse,
por assim dizer, das concessões que elle fazia, não bastava uma simples
visita e a conclusão de um tratado; por isso a expedição resolveu
permanecer ali durante bastantes mezes, e construir um estabelecimento
com um caracter permanente, que serviria de quartel general, verdadeira
base de operações de onde deviam irradiar as explorações que em diversos
sentidos se foram emprehendendo, e que nos permittiria vigiar de perto
quaesquer tentativas que podessem fazer-se para subtrahir aquelles
territorios á influencia portugueza.

Construimos por isso uma vasta casa de habitação para os europeus, um
quartel para 200 caçadores indigenas, e numerosas casas tanto para os
capitães como para os brancos que por ali passassem; completavam a nossa
installação uma boa cozinha, e um vasto jardim, onde cultivavamos os
legumes europeus: couves, alfaces, ervilhas, batatas, nabos, varias
qualidades de feijão, etc.

Enormes rebanhos de gado, vastos milharaes de excellentes qualidades,
abundantissimo leite e optima manteiga, asseguravam á expedição uma
facil e variada alimentação, que raras vezes será possivel igualar em
terras africanas muito mais civilisadas.

Um clima admiravel, vastissimas planicies limitadas por elevadas
montanhas, aguas abundantes, frescas e purissimas, pastagens que
dispensam toda a cultura, e que asseguram a faculdade de alimentar
innumeros rebanhos, tudo contribue para tornar o paiz do Mpesene
extremamente apto para a colonisação europea, que desde logo encontraria
nos indigenas o auxilio indispensavel e uma intelligente collaboração.

A raça zulu, pura aqui de toda a mescla, é certamente a mais elevada e
nobre das que se encontram na Africa meridional; selvagem, é ella de
certo, cruel por vezes, como todas as raças guerreiras; mas nobre tambem
como todas as raças que têem a consciencia da propria superioridade.

É certamente com os grandes centros de população que offerecem os zulus
de Mpesene, e com os recursos que elles crearam, com os seus gados e
variadas provisões, que deveremos contar para repovoar e explorar os
vastos territorios que se estendem para o sul quasi até ao Zambeze; o
antigo paiz Marave, cuja riqueza foi tão celebrada outr'ora hoje
devastado pelas incursões dos zulus a que a civilisação europêa não
tentára nunca por um dique, e cuja energia, prejudicial quando
abandonados ás impulsões dos seus instinctos selvagens, péde ser tão
util desde que os dirija superiormente a influencia europêa que elles
acceitam e acolhem com tão favoraveis disposições.

Em fins de outubro de 1889 partia a expedição do meu commando para
explorar as terras do Missale, tão celebradas pelas suas antigas minas,
e que desde tanto tempo não haviam sido visitadas pelos portuguezes.

É certo que o sr. coronel Paiva de Andrada tentára visital-as ha alguns
annos, porém não o conseguira por causa da opposição que encontrou nos
landins do Mpesene, os mesmos que agora nos acompanhavam e auxiliavam.

A primeira difficuldade que se me apresentava era a incerteza do logar
occupado pelas antigas minas, por isso que as povoações, arrasadas
pelos zulus, tinham desapparecido, e crescêra sobre ellas uma densa mata.

Alguns dos meus caçadores, porém, guiados por indicação que eu alcançára
dos landins, ácerca da existencia de poços e de ali ter havido brancos,
lograram descubrir signaes indiscutiveis da lavra das minas, encontrando
mesmo fragmentos de varias ferramentas e vestigios de grandes e
importantes povoações.

O terreno está completamente abandonado, não existe lá nenhuma especie
de cultura, nem gados, nem outros quaesquer meios de subsistencia, além
dos que nos offerecia a caça; por isso apenas nos demorámos tres dias,
para reconhecer a situação das antigas minas, e verificar a existencia
do oiro, que obtivemos sempre, mesmo com os nossos grosseirissimos
processos de lavagem.

Verificámos serem muito boas as condições locaes, pois o clima é
sensivelmente o mesmo de Matengulene; não haverá, portanto,
difficuldades para a colonisação europêa, que em breve poderá
desenvolver variadas culturas.

Os landins indicaram-nos ainda muitos outros logares onde havia oiro, e
entre elles uma serra, Chifumbazi, ao sul do Missale e no caminho do
Mano, onde o precioso metal se encontra no pincaro de uma elevada
montanha; mas a falta de mantimentos obrigou-nos a retroceder sem a
visitar.

Pensando na futura exploração d'aquelles territorios procurára eu um
caminho de facil percurso por onde se abrisse communicação para as
minas, quando vim a saber pelos landins que o rio Bua era navegavel no
tempo das chuvas, indo por elle as almandias até ao Nyassa; julguei
portanto conveniente verificar a exactidão d'aquella noticia, e parti na
direcção do rio.

Percorridos cerca de 30 kilometros, chegámos á margem do Bua, perto da
serra Mechinge, isto é, perto da sua origem, e seguimos rio abaixo ao
longo da margem esquerda, mandando fazer repetidas sondagens, que nos
davam sempre altura de agua superior á de um homem, durante dia e meio
de viagem, até chegar á aldeia do Mambo de Chôoco, tributario de
Mpesene. Do proprio Mambo soubemos que o rio era facilmente navegavel, o
que eu mesmo tive occasião de verificar mais uma vez atravessando-o uns
80 kilometros a jusante.

No regresso a Mpesene aproveitámos ainda a occasião para visitar a
residencia de Mocanda, antigo senhor de todas aquellas terras, que fôra
desapossado d'ellas pelos zulus, e hoje se encontra sob a protecção do
Muassa.

Julgando conveniente conhecer exactamente os cursos dos rios Lutembue,
Lucusi e Sandire, por estarem erradamente traçados nas diversas cartas
que eu possuia, parti em principio de fevereiro de 1890 para os ir
explorar, aproveitando o ensejo para entrar em relações com o chefe
marave Mpanda, tributario de Mpesene. Consegui fixar exactamente o curso
d'aquelles rios, verificando ser o Lutembue affluente do Sandire, e este
do Aroangoa, bem como o Lucusi (Lukushi das cartas inglezas).

Perfeitamente acolhido por Mpanda, deixei-lhe, a seu pedido, alguns
caçadores, obtendo a promessa de que para o futuro não exigiria o «dente
da terra».

Já ao tempo da nossa viagem ao Missale, escasseavam os recursos da
expedição, e mal tinhamos com que alimentar-nos; ao regressar, porém, de
Mpanda, a situação tornava-se insustentavel, e era preciso angariar
novos fornecimentos com que podessemos comprar mantimentos. Por vezes
tinhamos instado para que nos soccorressem, mas o auxilio pedido era-nos
constantemente recusado, com o fundamento de não haver auctorisação do
governo geral para nol-o enviar; por isso vi-me obrigado a partir para
Tete.

Ao despedir-me de Mpesene, resolveu o regulo enviar uma embaixada ao
governador de Tete para o comprimentar. Não foi esta a unica prova de
consideração que recebemos; os quatro filhos de Mpesene mandaram-me cada
um d'elles um boi para o caminho, e de outros amigos poderosos recebi
presentes de cabras e ovelhas.

Chegado a Tete em 11 de março de 1890, tive o desgosto de me serem
recusados, pelo governador do districto, todos os recursos, que eu pedia
para a continuação dos trabalhos da expedição; escrevi logo ao
governador geral, então o sr. conselheiro Neves Ferreira, mas, sem
esperar a resposta de s. exa., resolvi partir novamente para o Mpesene,
levando para o reabastecimento da expedição uma factura de mercadorias
comprada á minha custa.

Depois de dez dias de demora no meu acampamento do Matengulene, tendo
ouvido que os inglezes faziam activas diligencias para attrahir a si o
poderoso regulo Muassa, tão importante como o proprio Mpesene, resolvi
saír para as suas terras em 20 de junho.

A chegada do viajante inglez A. Sharpe, quando eu me dispunha a partir,
causou-me alguma demora, por isso que se queixava de ter sido atacado
nas terras de Mpesene pelos landins, e me pedia para lhe alcançar a
restituição das fazendas; julguei conveniente attender á reclamação e
fiz-lhe devolver o que os landins lhe tinham tirado, accedendo tambem ao
pedido que me fez para ir na minha companhia ás terras do Muassa.
Afigurava-se-me ser este um excellente meio de lhe provar qual era ali o
prestigio e influencia da expedição do meu commando.

Partimos juntos; chegados, porém, ao territorio do Muassa, o sr. Sharpe
separou-se de nós no intuito de subtrahir á influencia portugueza o
poderoso chefe marave. Não conseguiu, porém, o seu intento, pois foi
obrigado a saír sem demora d'aquellas terras, e deveu á intervenção
directa do proprio regulo o saír com vida. Seria demasiadamente extensa
a narração circumstanciada dos factos que então se deram, tanto menos
necessaria que se encontram minuciosamente expostos no relatorio da
expedição.

Bem recebidos pelo Muassa, demorámo-nos ali alguns dias, obtendo do
chefe a promessa de que faria comnosco um tratado quando regressassemos
de Chipeta, que eu tambem queria visitar, no intuito de cruzar o Bua
ainda mais perto da sua embocadura, e examinar melhor as condições de
navigabilidade do rio, e tambem para ver se podia alcançar as terras de
Chuere, importante chefe landim que reside nas margens do Lintipe.

Escolhi para primeira estação um posto fortificado que os meus caçadores
haviam construido seis annos antes e ainda occupavam, proximo da
povoação do chefe de Chipeta, Zoôle. Infelizmente encontrámos os
caçadores e a importante colonia portugueza que os acompanhava em muito
más relações com o chefe, correndo mesmo grande risco de ser por elle
atacada. Alguns caçadores tinham perecido recentemente, victimas de
ataques traiçoeiros que lhes tinham dirigido; chegavamos pois a tempo
para salvar os restantes e attender ao seu desejo de que os fizessemos
passar-para o territorio de Muassa.

Como não tinha consideraveis forças á minha disposição, julguei
arriscado intentar uma guerra, cujo resultado seria mais que
problematico, e regressei a Muassa, levando commigo toda a colonia
portugueza, umas 150 pessoas, contando mulheres e creanças.

Foi por occasião d'esta minha segunda visita que ultimei com aquelle
chefe o tratado de 10 de junho, em que o Muassa, na presença de todos os
seus grandes e parentes, reconhece o protectorado portuguez e arvora a
bandeira portugueza, resolvendo tambem mandar uma embaixada a Tete, a
fim de cenfirmar ali, perante as auctoridades locaes, a sua obediencia e
fidelidade.

No intuito de acompanhar esta embaixada, e uma grande remessa de marfim
que o Muassa envia para ser vendido em Tete, dispuz-me a partir para o
Mpesene com 400 subditos do Muassa.

Surgiram, porém, graves difficuldades por parte do Mpesene, que não
queria deixar passar a gente do Muassa; vencida, porém, a reluctancia
d'aquelle, parti no fim do mez de julho para Tete, onde aproveitei a
occasião para fazer ratificar o tratado com o Muassa.

Ainda antes de chegar á capital do districto recebêra eu uma carta do
governador geral Neves Ferreira, na qual s. exa. se mostrava muito
satisfeito com o resultado da expedição, e me avisava de ter dado ordem
para que fossem postos os necessarios recursos á minha disposição.

Foi por esta occasião da minha estada em Tete que me encontrei com os
srs. Rankins e Bowler, agentes da _British Central Africa Co._, que me
propozeram entrar ao serviço d'aquella sociedade, e offereceram
comprar-me as concessões que Mpesene havia feito.

Comquanto eu recusasse aquelles offerecimentos, serviram-me elles para
eu ter conhecimento das formulas de concessões que os agentes da
companhia andavam procurando alcançar dos regulos indigenas, e poder
assim contrapor aos documentos que elles invocassem outros de igual teor.

Resolvido a voltar para os territorios da Maravia e Mpesene,
procurei antes d'isso reconhecer a navigabilidade do Zambeze para
montante de Tete, conseguindo chegar a Massanangoe, logar que fica entre
o ponto mais alto a que chegou o vapor _Marave_ e o que foi alcançado
pelo _Mac-Robert_, de Livingstone. Continuei depois a viagem pela margem
direita do Zambeze até uns 15 kilometros a montante da embocadura de
Luya, onde atravessei o Zambeze, dirigindo-me para a residencia do chefe
Unde, na serra Baaze.

Foi no dia da passagem que recebi do governador de Tete a communicação
de que estava assignado o tratado de 20 de agosto, e portanto que se
devia considerar perdido para Portugal todo o territorio cuja posse a
expedição do meu commando alcançára.

Não desanimei comtudo, esperando que algum resultado se podesse ainda
tirar das concessões de caracter particular ou commercial que tinhamos
podido obter anteriormente, tendo sempre o cuidado de resalvar a
possibilidade de que a soberania portugueza ali se restabelecesse.

Foi n'este intuito que eu alcancei de Unde, soberano da Maravia
oriental, a concessão, que me assegura o direito exclusivo de exercer a
industria mineira, a agricultura e o commercio nas suas terras,
obrigando-se tambem a reconhecer o protectorado da nação europea que eu
lhe designar.

Esta concessão foi formulada nos termos em que eu sabia costumarem ser
redigidas as concessões similhantes para a companhia ingleza da Africa
central.

De volta ás terras do Mpesene obtive tambem d'elle um similhante
contrato de concessão; mas restava-me ainda fazer confirmar pelos chefes
das margens do Aroangoa as concessões verbaes que me haviam feito por
occasião da minha primeira viagem em que travára relações com elles,
relações extremamente amigaveis que nunca se tinham interrompido, porque
os meus caçadores continuavam a visital-os amiudadas vezes.

Firmaram-se, pois, convenções successivas com os chefes da Senga,
Ocunda, Uiza e Vambomgumia, isto é, com os chefes Sandué, Marrama,
Chipore, Pandica, Iumba, Cucumbe, Saïd-Niendua, Chamboméla, Lundo,
Chirupe, Satsherima, Massengo, Sôpa, sendo nós recebidos por toda a
parte com grande enthusiasmo, tanto mais lisonjeiro quanto a
expedição ingleza dirigida por Thomson, por conta da companhia _South
Africa_, tivera de retirar sem ter obtido em todos aquelles territorios
uma só concessão, pois o unico documento que obteve foi firmado por um
chefe local, que, vassallo de Chipore, não tinha auctoridade para fazer
concessões sem auctorisação de seu suzerano. Por toda a parte nos
declararam unanimemente os chefes, os grandes e os povos, que sempre
tinham sido portuguezes e não reconheciam outra auctoridade que não
fosse a do governo portuguez.

Nos documentos annexos ao relatorio da expedição se póde ver o teor dos
convenios que obtive.

Quiz tambem verificar a navigabilidade do Aroangoa Grande, para o que
desci o seu curso desde a aringa de Chipore até á povoação de
Chamboméla, n'uma extensão de 70 kilometros, achando sempre uma
profundidade de agua de 2 a 4 metros; mas soube que era navegavel muito
mais para montante, pois encontrei duas embarcações de caçadores do
Zumbo, que desciam da embocadura do Locusi. Podemos pois contar com a
completa navigabilidade do grande rio, para lanchas de pouco calado de
agua, até ao Locusi, por isso que os rapidos que ficam perto da
embocadura do Lussemfoa têem sido já transpostos, mesmo na estação secca.

Estavam terminados os trabalhos que eu podia realisar nas condições em
que o tratado de 20 de agosto collocára a expedição; resolvi pois voltar
ao Mpesene para me despedir d'aquelle chefe, assegurando-o do meu futuro
regresso ás suas terras, e retirei para Tete acompanhado pelo sr.
tenente Solla.

Deixei, porém, os meus caçadores nas terras do chefe zulo, sob o
commando de um dos seus capitães; e o estabelecimento ficou sem
alteração, confiado á guarda do regulo, que durante tantos annos me tem
dado constantes provas da sua inalteravel fidelidade.

Procurarei agora resumir em breves palavras a enumeração dos resultados
praticos alcançados, tanto por mim, antes de me ser confiada a missão
official com que o governador geral de Moçambique me honrou, como pela
propria expedição de que eu fui chefe.

1.º Tornaram-se conhecidos vastissimos terrenos que eram completamente
ignorados e nem mesmo se achavam representados nas cartas mais modernas;
taes são os que marginam o Aroangoa entre a embocadura do Lucusi (por
12°,40' de latitude sul) e as proximidades da foz do Lussemfoa (perto de
15° de latitude sul), e para alem a noroeste até aos montes Muchinga.

Áquem do Aroangoa estenderam-se as explorações para norte e nordeste até
ao monte Casengo, terras do Muassa, por 13° latitude sul, e já na
vertente do Nyassa.

Póde dizer-se que nos terrenos limitados pelo Aroangoa, o parallelo de
12°,30', e a linha divisoria que separa as aguas do Nyassa e Chire das
do Zambeze, apenas a expedição deixou de visitar a Macanga e alguns dos
terrenos marginaes d'este ultimo rio, que, por serem prazos da corôa
demasiadamente conhecidos, não exigiam nova exploração.

2.º N'esta vastissima extensão de territorio reconheceram e acceitaram a
influencia portugueza todos os grandes chefes; quer sejam zulus, como
Mpesene; maraves, como Muassa, Chanquaniquire e Undi; sengas, como
Chirupe, Lundo, Sopa e Massengo; ocundas, como Sandué e Marrama; uizas,
como Chipore, Pandica, Iumba e Cacumbe; e vambomgumias, como
Saïd-Niendûa e Chamboméla. Numerosos documentos, tratados de soberania,
ou simples contratos de concessão, attestam a natureza das relações
estabelecidas; d'elles foram em tempo opportuno enviadas copias ao
governador de Moçambique e de certo tambem ao ministerio da marinha e
ultramar.

3.º Nem só esses documentos attestam a influencia e prestigio que o nome
portuguez adquiriu recentemente na Zambezia septentrional; podem
servir-lhe de contraprova numerosas cartas que recebi e conservo em meu
poder, com valiosos offerecimentos, para o caso em que eu quizesse usar
da influencia adquirida sobre os regulos em beneficio, quer da _African
Lakes Company_, hoje absorvida pela _South Africa_, quer de uma empreza
rival, embora da mesma nacionalidade, a _Central African Company_.

4.º Lograram os trabalhos da expedição evitar que diversas expedições
inglezas, dirigidas por Alfred Sharpe e Thomson, conseguissem attrahir
aos seus interesses tanto o chefe zulu Mpesene, como o marave
Muassa; pois tanto um como o outro provaram reconhecer o dominio
portuguez, fazendo tratados e enviando embaixadas a Tete. O mesmo
succedeu nas margens do Aroangoa.

Era tão evidente o prestigio portuguez n'aquellas regiões que os mais
insuspeitos testemunhos o attestam, do que tenho em meu poder documentos
inequivocos.

5.º Talvez ainda não fosse impossivel alcançar do governo britannico uma
rectificação de fronteiras ao norte do Zambeze, de modo que ficassem
para Portugal os territorios onde esta nação exerce tanta influencia, e
onde só com gravissimas difficuldades poderá estabelecer-se a companhia
cujos interesses a Inglaterra protege. Seria este mais um resultado
altamente proficuo da expedição que dirigi, e não duvido de que elle
podesse alcançar-se agora, que já se conhecem na Europa as
circumstancias em que se encontra a Zambezia septentrional.

6.º Não deixou tambem a expedição de ter consequencias politicas
immediatas, pois conseguiu que o Mpesene cessasse as suas incursões
continuadas no paiz Marave, e alcançou d'aquelle, como dos outros
chefes, a formal promessa de que protegeriam os subditos portuguezes,
que, só nas terras do Mpesene, attingem um numero superior a 2:000.

7.º No terreno commercial obteve a expedição que algumas caravanas
arabes viessem vender o seu marfim a Tete (talvez no valor de 18:000$000
réis até á minha partida), em vez de atravessarem o lago Nyassa e o irem
levar a Zanzibar; e não será difficil continuar a dirigil-as por aquelle
novo caminho, se for possivel conserval-o aberto, e sobretudo se se
melhorarem as communicações, como se prova pelo facto de ter já vindo
uma caravana, sem ser acompanhada, depois que eu deixei o Mpesene.

8.º Foram novamente descobertas e visitadas as antigas minas de oiro do
Missale; obtiveram-se tambem noticias das do Mano, e conseguiu-se por
este modo verificar quanto são ainda valiosos os terrenos, que foram tão
largamente explorados n'outras eras. Perto do Chincoco encontrou a
expedição outras minas de oiro, como tambem teve noticias das de
Chindundo, ao sul do Mano. D'entre estas registei nove no governo de
Tete, em meu nome, ha mais de um anno porém, não me consta que
fossem até hoje estabelecidos os campos de lavra respectivos. De outros
metaes, de que trago amostras, tambem a expedição reconheceu existirem
abundantes minas, taes são: estanho e zinco, perto do Zambeze; rubis, na
terra dos sengas; e prata, tambem junto ao Zambeze; e finalmente mais
uma vez viu confirmada a existencia do carvão em larguissimos tractos do
terreno percorrido.

9.º Pelo que respeita aos resultados scientificos da expedição que
dirigi, mencionarei em primeiro logar a carta dos territorios
explorados, cujos elementos colligi e apenas esperam ordem do governo
para serem aproveitados.

Sobre a historia, a lingua e os costumes dos differentes povos com quem
a expedição esteve em contacto, encontram-se no seu diario
numerosissimas informações, que eu procurarei reunir n'uma publicação
especial logo que tiver para isso a necessaria auctorisação.

Terminarei esta curta memoria transcrevendo para aqui as palavras com
que fechei a decima quinta e ultima parte do meu relatorio official;
assim confirmo hoje, tendo regressado á Europa, o que escrevia ao chegar
a Tete, na volta da minha ultima visita ao Mpesene:

«Ao terminar o honroso serviço que foi commettido a esta expedição, eu
creio que ella, no limitado campo que lhe permittiam as suas forças,
cumpriu o seu dever, esforçando-se sempre em tornar respeitada a nação
que representava, e em fazer desejar as suas boas relações e o seu
protectorado.

«Posso asseverar, em minha consciencia, que entre o grande Aroangoa e o
Luya, uma parte do Zambeze e o parallelo de 12° latitude sul tinhamos,
ao retirar, deixado a influencia portugueza estabelecida de uma tal
maneira, que, se uma outra qualquer nação a quizer supplantar e
estabelecer a sua, só tardiamente o conseguirá e á custa de enormes
sacrificios de todo o genero.

«A expedição, porém, attingiu o seu fim não obstante os entraves, as
difficuldades e a opposição que, partindo já de particulares, já mesmo
de auctoridades, pareciam a cada momento embargar-lhe o passo. A minha
propria qualidade de estrangeiro assustava a muitos, e vibravam
esses sobre mim todos os ataques que se lhes suggeriam.

«Perdôo-lhes, porque, se lhes não faltasse instrucção, e os mais
rudimentares conhecimentos da historia patria, teriam encontrado
exemplos nos tempos mais gloriosos de Portugal em que estrangeiros se
achavam ao seu serviço, e eram altamente considerados. Citarei antes de
todos um allemão como eu Martim Behaim, o companheiro de Diogo Cão...

«No proprio exercito não é desconhecido o nome do conde de Schomberg,
que se batia nas suas fileiras pela liberdade de Portugal. E, se me
quizesse entregar agora a mais investigações, estou certo de que poderia
mencionar nomes de outros compatriotas meus que exerceram elevados
cargos nas colonias portuguezas ao tempo da sua maior florescencia.

«É com a maior magua que eu vejo perdidos todos os trabalhos, todo o
zêlo e dedicacão com que esta expedição se houve para assegurar a
Portugal a posse de uma tão rica e vasta região. Mas talvez ainda, se as
indicações urgentes que tenho feito ultimamente e que me devem ter
precedido, chegarem a tempo de em Portugal se poder insistir pela posse
d'essas terras, a Inglaterra esteja hoje mais disposta a cedêl-as em
vista das lições praticas que tem tido ensejo de ir ali aprender.

«No caso de Portugal conseguir tão favoravel desenlace para as suas
pretensões justissimas, ha ainda a vencer o mais importante--a falta do
capital.

«Exhausta de dinheiro como hoje se acha a nação pelos enormes
sacrificios a que tem sido forçada, ver-se-ha de futuro na
impossibilidade de dar ás colonias o impulso exigido pelo rapido
caminhar da civilisação. A sua posição será difficil, vendo-as ameaçadas
de ficar estacionarias, ao passo que as colonias vizinhas progridem, e
expostas assim a novos perigos.

«Na minha humilissima opinião, só vejo um meio de conjurar o perigo. É
fazer o que fazem os inglezes hoje em Africa e o que têem feito n'outras
partes em identicas circumstancias: crear o capital preciso, sem onerar
os cofres do estado, por intermedio de poderosas companhias á similhança
da _East Indian Company_. É só d'essa fórma que Portugal poderá dar á
provincia de Moçambique o colossal impulso de que ella agora carece,
para caminhar na vanguarda do progreso colonial. A nação libertar-se-ha
assim das muitas despezas com que lucta, e terá encontrado até uma
importante fonte de receita.

«Póde ser que eu me engane, mas creio que só d'esta fórma se poderá
luctar com vantagem.

«Oxalá que eu veja ainda dias mais prosperos para a provincia de
Moçambique, e em especial para esta parte da Africa portugueza onde
sempre fui bem acolhido e que, como se fosse uma segunda patria, eu
tanto amo.»

Eis o que eu escrevia em Tete em 21 de maio de 1891, hoje só me resta
fazer votos por que se estenda á Zambezia septentrional a rasgada e
intelligente iniciativa graças á qual se concedeu a outras companhias o
direito de explorar os territorios ao sul do Zambeze, que de certo não
são nem mais ferteis, nem mais ricos, nem mais colonisaveis do que os
percorridos pela expedição que eu tive a honra de dirigir.

Lisboa, 15 de setembro de 1891.





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