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Title: Humus Author: Brandâo, Raul Germano Language: Portuguese As this book started as an ASCII text book there are no pictures available. *** Start of this LibraryBlog Digital Book "Humus" *** *Nota de editor:* Devido à existência de erros tipográficos neste texto, foram tomadas várias decisões quanto à versão final. Em caso de dúvida, a grafia foi mantida de acordo com o original. No final deste livro encontrará a lista de erros corrigidos. Rita Farinha (Maio 2012) [Figura] Reservados todos os direitos de reproducção nos paizes que adheriram á Convenção de Berne; Brasil: Lei n.^o 2577 de 17 de Janeiro de 1912; Portugal: Decreto de 18 de Março de 1911. HUMUS DO AUTOR EDIÇÕES DA RENASCENÇA PORTUGUESA O Cerco do Porto, contado por uma testemunha, o Coronel Owen--Prefacio e notas (2.^a ed.). 1817--A Conspiração de Gomes Freire (3.^a ed.). El-Rei Junot (2.^a ed.). Memorias, 1.^o vol. (2.^a ed.). Humus (2.^a ed.). RAUL BRANDÃO Humus O que tu vês é bello; mais bello o que suspeitas; e o que ignoras muito mais bello ainda. D'um autor desconhecido. 2.^a EDIÇÃO [Figura] EDITORES Renascença Portuguesa--Porto ANNUARIO DO BRASIL--RIO DE JANEIRO AO MESTRE COLUMBANO A VILLA 13 de novembro Ouço sempre o mesmo ruido de morte que devagar roe e persiste... Uma villa encardida--ruas desertas--pateos de lages soerguidas pelo unico esforço da erva--o castelo--restos intactos de muralha que não teem serventia: uma escada encravada nos alveolos das paredes não conduz a nenhures. Só uma figueira brava conseguiu meter-se nos intersticios das pedras e d'ellas extrae succo e vida. A torre--a porta da Sé com os santos nos seus nichos--a praça com arvores rachiticas e um coreto de zinco. Sobre isto um tom denegrido e uniforme: a humidade entranhou-se na pedra, o sol entranhou-se na humidade. Nos corredores as aranhas tecem imutaveis teias de silencio e tedio e uma cinza invisivel, manias, regras, habitos, vae lentamente soterrando tudo. Vi não sei onde, n'um jardim abandonado--inverno e folhas seccas--entre buxos do tamanho d'arvores, estatuas de granito a que o tempo corroera as feições. Puira-as e a expressão não era grotesca mas dolorosa. Sentia-se um esforço enorme para se arrancarem á pedra. Na realidade isto é como Pompeia um vasto sepulchro: aqui se enterraram todos os nossos sonhos... Sob estas capas de vulgaridade ha talvez sonho e dôr que a ninharia e o habito não deixam vir á superficie. Afigura-se-me que estes sêres estão encerrados n'um involucro de pedra: talvez queiram falar, talvez não possam falar. Silencio. Ponho o ouvido á escuta e ouço sempre o trabalho persistente do caruncho que roe há seculos na madeira e nas almas. 15 de novembro As paixões dormem, o riso postiço creou cama, as mãos habituaram-se a fazer todos os dias os mesmos gestos. A mesma teia pegajosa envolve e neutralisa, e só um ruido sobreleva, o da morte, que tem deante de si o tempo ilimitado para roer. Há aqui odios que minam e contraminam, mas como o tempo chega para tudo, cada anno minam um palmo. A paciencia é infinita e mete espigões pela terra dentro: adquiriu a côr da pedra e todos os dias cresce uma polegada. A ambição não avança um pé sem ter o outro assente, a manha anda e desanda, e, por mais que se escute, não se lhe ouvem os passos. Na aparencia é a insignificancia a lei da vida; é a insignificancia que governa a villa. É a paciencia, que espera hoje, amanhã, com o mesmo sorriso humilde:--Tem paciencia--e os seus dedos ageis tecem uma teia de ferro. Não há obstaculo que a esmoreça.--Tem paciencia--e rodeia, volta atraz, espera anno atraz d'anno, e olha com os mesmos olhos sem expressão e o mesmo sorriso estampado. Paciencia... paciencia... Já a mentira é d'outra casta, faz-se de mil côres e toda a gente a acha agradavel.--Pois sim... pois sim... Não se passa nada, não se passa nada. Todos os dias dizemos as mesmas palavras, cumprimentamos com o mesmo sorriso e fazemos as mesmas mesuras. Petrificam-se os habitos lentamente acumulados. O tempo moe: moe a ambição e o fel e torna as figuras grotescas. Reparem, vê-se daqui a villa toda... Lá está a Adelia, o Pires e a Pires como figuras de cera. Ninguem mexe. N'um canto mais escuro a prima Angelica não levanta a cabeça de sobre a meia. Tanta inveja ruminou que desaprendeu de falar. Chega o chá, toma o chá, e apega-se logo á mesma meia, a que mãos caridosas todos os dias desfazem as malhas, para ella, mal se ergue, recomeçar a tarefa. Um dia--uma semana--um seculo--e só o pendulo invisivel vae e vem com a mesma regularidade implacavel--p'ra a morte! p'ra a morte! p'ra a morte! Passou um minuto ou um seculo? Sobre o granito salitroso assenta outra camada denegrida, e as horas caem sobre a villa como gôtas d'agua d'uma clepsydra. De tanto vêr as pedras já não reparo nas pedras. A morte roda na ponta dos pés e ninguem ouve seus passos. Todos os dias os leva, todos os dias toca a finados. O nada á espera e a D. Procopia a abrir a boca com somno, como se não tivesse deante de si a eternidade para dormir. Tudo isto se passa como se tudo isto não tivesse importancia nenhuma, tudo isto se passa como se tudo isto não fôsse um drama e todos os dramas, um minuto e todos os minutos... Não há annos, há seculos que dura esta bisca de tres--e os gestos são cada vez mais lentos. Desde que o mundo é mundo que as velhas se curvam sobre a mesma meza do jogo. O jogo banal é a bisca--o jogo é o da morte... O candieiro ilumina e a sombra roe as phisionomias, a magestosa Theodora, a Adelia, a Eleutheria das Eleutherias, o padre. Salienta-se do escuro uma boca que remoe, a da D. Bibliotheca. Os padres exaltam-na, a Egreja exalta a sua caridade, que rebusca a desgraça para lhe dar tres vintens. Só destingo, despegadas dos craneos, as orelhas do respeitavel Elias de Melo e do impoluto Melias de Melo, lividos como dois fantasmas. Ambos regulam a consciencia como quem dá corda a um relogio. Dividas são dividas. Tudo isto parece que fluctua debaixo d'agua, que esverdeia debaixo d'agua. A luz do candieiro ilumina as mãos da D. Leocadia, que põe acima de tudo o seu dever, e que leva para casa uma orfã a quem sustenta e que lhe entrapa as pernas: osseas e seccas enchem a sala toda, o mundo todo... Não sei bem se estou morto ou se estou vivo... Decorre um anno e outro anno ainda. O relento sabe bem, e o tempo passa, o tempo gasta-as como o salitre aos santos nos seus nichos. Se o desespero augmenta não se traduz em palavras. A D. Procopia odeia a D. Bibliotheca, mas nem ella sabe o que está por traz d'aquelle odio, contido pelo inferno. Toda a gente se habitua á vida. Matar matava-a eu, mas varias palavras me deteem. Detem-me tambem um nada... Chegamos todos ao ponto em que a vida se esclarece á luz do inferno. Mas ninguem arrisca um passo definitivo. As velhas com o tempo adquiriram a mesma expressão, com o tempo chegaram a temer um desenlace. Debruçadas sobre a meza as figuras não bolem. Não bolem outras figuras que se envolvem no escuro, e o que me interessa não são as palavras do padre--Jogo;--nem o que a Adelia diz baixinho á Eleutheria, para que a velha temerosa ouça:--A nossa Theodora está cada vez mais moça!...--o que me interessa são as figuras invisiveis: é a dôr d'essas figuras imoveis, e sobre ellas outra figura maior, curva e atenta, que ha seculos espera o desenlace. A villa petrifica-se, a villa abjecta cria o mesmo bolor. Mora aqui a insignificancia e até á insignificancia o tempo imprime caracter. Moram na viella ingreme e cascosa, que revê humidade em pleno verão, velhas a quem só restam palavras, presas, alimentadas, encarniçadas, como um doido sobre uma corôa de lata que lhes enche o mundo todo. Mora d'um lado o espanto, do outró o absurdo. E todos á uma afastam e repelem de si a vida. Mora aqui a Telles que passa a vida a limpar os moveis, só e fechada com os moveis reluzentes, talvez resto d'um sonho a que se apega com desespero, e velhas só mesuras, só baba, só rancor. Ter uma mania e pensar n'ella com obstinação! Creal-a. Ter uma mania e vêl-a crescer como um filho!... Mora aqui a D. Restituta, sempre a acenar que sim á vida, e a Ursula, cuja missão no mundo é fazer rir os outros. Cabem aqui sêres que fazem da vida um habito e que conseguem olhar o céo com indiferença e a vida sem sobresalto, e esta mixordia de ridiculo e de figuras somiticas. Mora aqui, paredes meias com a colegiada, o Santo, que de quando em quando sae do torpôr e clama:--O inferno! o inferno!--Moram as Telles, e as Telles odeiam as Souzas. Moram as Fonsecas, e as Fonsecas passam a vida, como bonecas desconjuntadas, a fazer cortezias. Moram as Albergarias, e as Albergarias só teem um fim na existencia: estrear todos os semestres um vestido no jardim. Moram os que moem, remoem e esmoem, os que se fecham á pressa e por dentro com uma mania, e os que se aborrecem um dia, uma semana, um anno, até chegar a hora pacata do solo ou a hora tremenda da morte. Mora aqui o egoismo que faz da vida um casulo, e a ambição que gasta os dentes por casa, o que enche a existencia de rancores e, atraz d'anno de chicana, consome outro anno de chicana. Cabem aqui dentro as velhas scismaticas, atraz de interesses, de paixões ou de simples ninharias, dissolvendo-se no ether, e logo substituidas por outras velhas, com as mesmas ou outras plumas nos penantes, com os mesmos ou outros ridiculos, fedorentas e maniacas; os homens a quem se foram apegando pela vida fóra dedadas de mentira, promptos para a cova--e o Gabiru e o seu sonho. Cabe aqui o ceu e as lambisgoias com as suas mesuras, a morte e a bisca de tres. E cabe aqui tambem uma velha creada, que se não tira deante dos meus olhos. Obsidia-me. Carrega. Obedece. Serve as outras velhas todas. A Joanna é uma velha estupida. Serviu primeiro na villa, serviu depois na cidade. Serviu um anthropologista exotico, que fundira cem contos a juntar caveiras, e de quem a Joanna dizia ao amollecer-lhe os edêmas dos pés:--Este senhor é um 2.^o Camões!--Serviu a D. Herminia e a D. Hermengarda. Serviu com uma saia rôta, as mãos sujas de lavar a louça, uma camisa, os usos e seis mil reis de soldada. Lavou, esfregou, cheira mal. Serviu o tropel, a miseria, o riso, que caminha para a morte com um vestido d'aparato e um chapeu de plumas na cabeça. Para contar fio a fio a sua historia bastava dizer como as mãos se lhe fôram deformando e creando ranhuras, nodosidades, codeas, como as mãos se foram parecendo com a casca d'uma arvore. O frio gretou-lh'as, a humidade entranhou-se, a lenha que rachou endureceu-lh'as. Sempre a comparei á macieira do quintal: é inocente e util e não ocupa logar. A vida gasta-a, corroem-na as lagrimas, e ella está aqui tal qual como quando entrou para casa da D. Hermengarda. Faz rir e faz chorar. Os meninos borraram-na--adorou os meninos. Os doentes que ninguem quer aturar, atura-os a Joanna. Já ninguem extranha--nem ella--que a Joanna aguente, e a manhã a encontre de pé, a rachar a lenha, a acender o lume, a aquecer a agua. Há sêres creados de proposito para os serviços grosseiros. Por dentro a Joanna é só ternura, por fóra a Joanna é denegrida. A mesma fealdade reveste as pedras. Reveste tambem as arvores. É uma velha alta e secca, com o peito raso. O habito de carregar á cabeça endireitou-a como um espeque, o habito das caminhadas espalmou-lhe os pés: a recoveira assenta sobre bases solidas. Parece um homem com as orelhas despegadas do craneo e olhos inocentes de bicho. É d'estas creaturas que dão aos outros em troca da soldada o melhor do seu sêr, que se apegam aos filhos alheios e choram sobre todas as desgraças. E ainda por cima dedicam-se, e quando as mandam embora, porque não teem serventia, põem-se a chorar nas escadas.--É preciso escodeal-a--asseverou a D. Hermengarda quando lhe foi em pequena para casa. Escodeia-a. Noite velha e já ella bate de cima com a tranca no soalho, a chamal-a.--E não te servindo a porta da rua é a serventia dos cães.--Mas ella apega-se. Nunca teve outra ama como aquella senhora. Venera-a. Annos depois diz das pancadas:--Merecia-as.--Já não é preciso chamal-a: a Joanna ergue-se n'um sobresalto, alta noite, noite negra, e dorme com um olho fechado e outro aberto. Velha, tonta, abre de quando em quando os olhos, põe o ouvido á escuta num movimento instinctivo, á espera de uma imaginaria ordem: ouve sempre a voz da D. Hermengarda a chamal-a. Mal se comprehende que depois d'uma vida inteira, esta mulher conserve intacta a inocencia d'uma creança e o pasmo dos olhos á flôr do rosto. Trambulhões, fome, o frio da pobreza--o peor--e, apezar de amolgada, com uma saia de estamenha, no pescoço pelles, as mãos gretadas de lavar a louça, uma coisa que se não exprime com palavras, um balbuciar, um riso... Misturou á vida ternura. Misturou a isto a sua propria vida. Aqueceu isto a bafo. Tem as mãos como cepos. 16 de novembro Debaixo d'estes tectos, entre cada quatro paredes, cada um procura reduzir a vida a uma insignificancia. Todo o trabalho insano é este: reduzir a vida a uma insignificancia, edificar um muro feito de pequenas coisas deante da vida. Tapal-a, escondel-a, esquecel-a. O sino toca a finados, já ninguem ouve o som a finados. A morte reduz-se a uma cerimonia, em que a gente se veste de luto e deixa cartões de visita. Se eu podesse restringia a vida a um tom neutro, a um só cheiro, o môfo, e a villa a côr de mataborrão. Seres e coisas criam o mesmo bolôr, como uma vegetação cryptogamica, nascida ao acaso n'um sitio humido. Teem o seu rei, as suas paixões e um cheirinho suspeito. Desaparecem, resurgem sem razão aparente d'um dia para o outro n'um palmo do universo que se lhes afigura o mundo todo. Absorvem os mesmos saes, exhalam os mesmos gazes, e supuram uma escorrencia phosphorecente, que corresponde talvez a sentimentos, a vicios ou a discussões sobre a imortalidade da alma. Sempre as mesmas coisas repetidas, as mesmas palavras, os mesmos habitos. Construimos ao lado da vida outra vida que acabou por nos dominar. Vamos até á cóva com palavras. Submetem-nos, subjugam-nos. Pesam toneladas, teem a espessura de montanhas. São as palavras que nos conteem, são as palavras que nos conduzem. Toda a gente forceja por crear uma atmosfera que a arranque á vida e á morte. O sonho e a dôr revestem-se de pedra, a vida consciente é grotesca, a outra está assolapada. Remoem hoje, amanhã, sempre as mesmas palavras vulgares, para não pronunciarem as palavras definitivas. Toda a gente fala no céo, mas quantos passaram no mundo sem ter olhado o céo na sua profunda, na sua temerosa realidade? O nome basta-nos para lidar com elle. Nenhum de nós repara no que está por traz de cada sylaba: afundamos as almas em restos, em palavras, em cinza. Construimos scenarios e convencionamos que a vida se passasse segundo certas regras. Isto é a consciencia--isto é o infinito... Está tudo catalogado. Na realidade jogamos a bisca entre a vida e a morte, baseados em palavras e sons. E, como a existencia é monotona, o tempo chega para tudo, o tempo dura seculos. Formam-se assim lentamente crostas: dentro de cada sêr, como dentro das casas de granito salitroso, as paixões tecem na escuridão e no silencio, teias de escuridão e de silencio. Na botica somnolenta ao pae succede o filho sobre o taboleiro de gamão. Quero resistir, afundo-me. Começo a perceber que o habito é que me fez suportar a vida. Ás vezes acordo com este grito:--A morte! a morte!--e debalde arredo o estupido aguilhão. Choro sobre mim mesmo como sobre um sepulchro vazio. Oh como a vida peza, como este unico minuto com a morte pela eternidade peza! Como a vida esplendida é aborrecida e inutil! Não se passa nada! não se passa nada e eu sinto aqui ao lado outra vida que me mete medo e que não quero vêr. Essa vida talvez seja a minha verdadeira vida. Mas o peor é que eu percebo que, se se apodera de mim, não posso mais viver. Agarro-me com desespero ao habito e ás palavras. Tu não existes! tu não existes! O que existe é isto com que lido todos os dias, as palavras que digo todos os dias, os sêres com quem falo todos os dias.--E tu rodeias-me, tu reclamas-me e queres viver comigo para todo o sempre. Não te posso vêr!... Se há momentos em que o caixão que um galego leva ás costas me chama á realidade, ao espanto, desvio logo o olhar e reentro á pressa na vida comesinha. Finjo que sorrio e esqueço. Mas sempre não posso! Anno atraz d'anno não posso! Não há mais nada! não há mais do que estas figuras paradas, e as horas verdes que de espaço a espaço caem como gôtas d'agua no fundo d'um subterraneo. Outro anno ainda! outro passo ainda para a morte! Sinto uma dôr sem gritos por traz da immobilidade. Cada hora é menos uma hora na minha vida. E o tempo foje, o tempo côr de mataborrão que ao granito salitroso junta camada denegrida, e ás almas sepultadas outra pazada de cinza... Há momentos em que as figuras teem tanta vida como os santos imoveis nos seus nichos--mas há momentos em que cada um redobra de proporções, há momentos em que a vida se me afigura iluminada por outra claridade. Há momentos em que cada um grita:--Eu não vivi! eu não vivi!--Há momentos em que deparamos com outra figura maior que nos mete medo. A vida é só isto? Por mais que queira não posso desfazer-me de pequenas acções, de pequenos ridiculos, não posso desfazer-me de imbecilidades nem d'este sêr esfarrapado que vae de pólo a pólo. Tenho de aturar ao mesmo tempo esta idéa e este gesto ridiculo. Tenho de ser grotesco ao lado da vida e da morte. Mesmo quando estou só o meu riso é idiota. E estou só e a noite. Por traz daquella parede fica o céo infinito. Para não morrer d'espanto, para poder com isto, para não ficar só e o doido, é que inventei a insignificancia, as palavras, a honra e o dever, a consciencia e o inferno. E ainda o que nos vale são as palavras, para termos a que nos agarrar. É então um mundo de formulas a que eu obedeço e tu obedeces? Sem elle não poderiamos existir. Se vissemos o que está por traz não podiamos existir. O nosso mundo não é real: vivemos n'um mundo como eu o comprehendo e o explico. Não temos outro. Estamos aqui como peixes n'um aquario. E sentindo que há outra vida ao nosso lado, vamos até á cóva sem dar por ella. E não só esta vida monstruosa e grotesca é a unica que podemos viver, como é a unica que defendemos com desespero.--Pois sim... pois sim...--Estamos aqui a representar. Estamos aqui todos ao lado da morte e do espanto a jogar a bisca de tres. Estamos aqui a matar o tempo. Este passo, que é unico e um só, damol-o como se fosse uma insignificancia. Mais fundo: não existem senão sons repercutidos. Decerto não passamos de echos. Submeto-me, subjugas-me. Já não reparo, já vejo turvo.--Jogo!--E de repente todo o meu sêr é sacudido pelo espanto que tacteia á minha roda. Raras vezes entramos em contacto, mas sinto-o aqui ao meu lado--sem nos chegarmos a entender. Nem quero! nem quero! Se me alheio um momento dou um grito de dôr. Escaldo-me. Na verdade o que eu não posso é vêr, o que eu não quero é vêr! A villa regula-se por habitos e regras seculares--mas há outra coisa enorme para lá do scenario de que me rodeio. Para não ter medo criei eu isto, para a não vêr criou o Santo o inferno. Há outra coisa esfarrapada e dorida.--Jogo!--Cada vez me sinto mais reles, cada vez as palavras me parecem mais gastas. Há outro sêr que vae de pólo a pólo... Esta figura grotesca não é a minha figura. O salitre roeu os santos nos seus nichos--roeu-os tambem o sonho... Curvado sobre a mesa repito os mesmos gestos inuteis para não desatar aos gritos.--Jogo!--Isto para fingir que é indiferente o que nos rodeia, que estamos habituados ao que nos rodeia, que sorrimos ao que nos rodeia! Está alli a morte--está aqui a vida--está aqui o espanto--e só a ninharia consegue deitar raizes profundas. 20 de novembro Fecho os olhos. A chuva desaba interminavelmente do céo, e na luz turva vejo sempre a villa, com as mesmas figuras de museu sentadas na mesma sala... Insignificancia, insignificancia, insignificancia. Portas chapeadas que rangem nos gonzos como portas de prisão, fachadas com os vidros partidos, e uma, duas, tres camadas de pó sobrepostas. Lojas terreas d'onde vem um bafo humido que trespassa... Como todas as almas, todas as janelas estão perras, e o tempo vae substituindo uma figura por outra figura, uma pedra por outra pedra. Ponho-as em fila deante de mim, com os seus penantes usados, grotescas e maniacas. Considero. Vejo vir os gestos, as cortezias, as acções do confim dos seculos. Isto é nada--é vulgar e quotidiano. É uma aparencia. A villa é um simulacro. Melhor: a vida é um simulacro. Atraz desta villa há outra villa maior. A lentidão, o gesto usado, a meia tinta mesmo em plena luz, toldam-me a visão. Sobre cada sêr cahiu uma camada de pó. A villa é isto--e a villa não é isto. Que me importa a Adelia, um dia d'inveja, um dia de aquíescencia, um sorriso, baba, mesura atraz de mesura? Outra velha mexe por traz desta velha mesquinha. As lettras assignadas, as lettras protestadas d'este sêr absorto, o exagero minusculo, teem outra significação. A realidade é a manha, a astucia que cada um põe em jogo. Não há velhas com cartas na mão; há orgulho, soberba, inveja paciente. Há intuitos, cautela de quem caminha na ponta dos pés. Há forças e experiencia, avareza e astucia. E mais fundo outro, outro sobterraneo... Todas as palavras que se empregam teem, além da significação banal, uma significação que cada um peza e calcula,--e outra significação superior. Há palavras que requerem uma pausa e silencio, e há palavras que é preciso afundar logo n'outras palavras. Há pelo menos dois sêres n'este homem que toda a gente conhece, pautado, regrado, methodico. Elle e o doido morto por fazer esgares. Elle e o doido que só consegue comprimir á força de pontualidade. Esta velha não é a velha com quem lidamos--é outra. Tem tido um trabalhão para fazer mal, nunca conseguiu fazel-o. Se se arrisca, há-de contar comsigo mesma para se contrariar. É uma discussão que não acaba, com a bocca amarga, arrependimento--e por fim não realisa uma catastrophe authentica, que a engrandeça. Curvada sobre o lar remexe sempre as mesmas cinzas frias... Todos se defendem. Por isso existe uma certa grandeza em repetir todos os dias a mesma coisa. O homem só vive de detalhes e as manias teem uma força enorme: são ellas que nos sustentam. Reparo melhor na vida secreta e na vida subterranea. Comprehendo como é dificil viver todos os dias e todas as horas, como atravez de tudo é forçoso seguir um fio invisivel--e ser reles e sorrir. Gasta-me uma força superior, e com todas as chagas e todos os vicios, com a vida mesquinha e a vida quotidiana, o nada, o penante usado, o fel e o vinagre, tenho de arcar com uma coisa immensa de que me separa apenas um tabique. Tudo o que faço é um arremedo. Está alli outra coisa quando falo, quando me calo, quando me rio. E falo mais alto porque a ouço mexer... Todos suportam o drama de todos os dias, o cinzento de todos os dias, as aflicções e a usura que tornam as figuras ridiculas e coçadas. Todos suportam os tratos que envelhecem e preparam para a cóva, os pequenos interesses, a inveja, a ambição, a dôr phisica. Todos os dias a Hermengarda amarga os brazões da Bibliotheca, a Bisborria todos os dias scisma na sua respeitabilidade, e aturam o azedo que pouco e pouco se deposita nas almas--e com isto uma coisa desconforme, que se levanta e deita comnosco, não se tira do nosso lado, em quem ninguem fala e com quem temos por força de cohabitar; deante de quem é forçoso ser vulgar e dissimulado, fazendo que a não vemos e com ella á cabeceira da cama... Atraz da insignificancia andam os céos, os mundos, os vagalhões doirados. Anda o desespero. Anda o instincto feroz. Atraz disto andam as enxurradas de soes e de pedras, e os mortos mais vivos do que quando estavam vivos. Atraz do tabique e das palavras anda a Vida e a Morte e outras figuras tremendas. Atraz das palavras com que te iludes, de que te sustentas, das palavras magicas, sinto uma coisa descabelada e phrenetica, o espanto, a mixordia, a dôr, as forças monstruosas e cegas. Em certas ocasiões, se as palavras e a insignificancia desaparecessem da vida, só ficava de pé o espanto. Só a insignificancia nos permite viver. Sem ella já o doido que em nós prega, tinha tomado conta do mundo. A insignificancia comprime uma força desabalada. Para não vêr, para não ouvir, é que nos curvamos sobre a mesa de jogo. Para te não ouvires a ti mesmo, para não vêres o que te gasta a todos os minutos e a todas as horas, usura immensa que não sentes e que te vae levar para o escantilhão sofrego, que te vae mergulhar no silencio profundo. Usura de todos os instantes. Gasta-nos, desgasta-nos. E todos os dias acordamos mais velhos, todos os dias acordamos mais inuteis. Todos os dias acordamos com mais fél. E todos os dias com mesuras, sem gritos de terror, nos curvamos sobre esta mesa de jogo, não vendo, fingindo que não existe, o espanto que está ao nosso lado, e o espanto peor que trazemos comnosco. Chama-se a isto o quotidiano. Isto não tem importancia nenhuma. Com isto enchemos a vida até chegar a morte. Esta mesa de jogo é a nossa existencia vulgar, a vida de todos os dias, com o galope da outra vida ao lado. Não se passa nada! Não se passa nada! No verão o calor sufoca, d'inverno a mesma nuvem impregna o granito, e apega-se, amollece, dissolve pilares das janellas, casebres e a oliveira da praça, só tronco e duas folhinhas cinzentas. Em volta um circulo de montanhas, descarnadas e atentas, espera a tragedia--e as montanhas não desistem. De quando em quando, na solidão que á noite redobra, cahem do alto da Sé as badaladas, uma a uma, pausa a pausa. O som tem um peso desconforme. Estamos aqui todos á espera da morte! estamos aqui todos á espera da morte! O SONHO 6 de dezembro Chove. Cada vez vejo mais turvo, cada vez tenho mais medo. Estamos enterrados em convenções até ao pescoço: usamos as mesmas palavras, fazemos os mesmos gestos. A poeira entranhada sufoca-nos. Pega-se. Adhere. Há dias em que não distingo estes sêres da minha propria alma; há dias em que atravez das mascaras vejo outras phisionomias, e, sob a impassibilidade, dôr; há dias em que o céo e o inferno esperam e desesperam. Presinto uma vida oculta, a questão é fazel-a vir á supuração. Esta manhã de chuva é um minuto no rodar infinito dos seculos, e os sêres que passam meras sombras. Tudo isto me pesa e pesa-me tambem não viver. Do fundo de mim mesmo protesto que a vida não é isto. A arvore cumpre, o bicho cumpre. Só eu me afundo soterrado em cinza. Terei por força de me habituar á aquiescencia e á regra? Crio cama e todos os dias sinto a usura da vida e os passos da morte mais fundo e mais perto. --É necessario abalar os tumulos e desenterrar os mortos. É o Gabiru que se põe a falar sem tom nem som. Um homem absurdo. Olhos magneticos de sapo. É uma parte do meu sêr que abomino, é a unica parte do meu sêr que me interessa. Ás vezes deita-me tinta nos nervos. Fala quando menos o espero. Chamo-o, não comparece. Se quero ser pratico, gesticula dentro do casaco arripiado:--A alma! a alma!--Singular philosopho! É capaz de desejar a morte para vêr o que há lá dentro; é capaz de achar vulgares até as coisas eternas. Ao lado da vida constroe outra vida. Sonha, e os seus sonhos são sempre irrealisaveis, transformam-se-lhe nas mãos em barro informe. Toda a gente se ri--já sonha outra vez... Para elle a vida consiste, encolhido e transido, em embeber-se em sonho, em desfazer-se em sonho, em atascar-se em sonho. Mezes inteiros ninguem lhe arranca palavra, dias inteiros ouço-o monologar no fundo de mim proprio. Ignora todas as realidades praticas. Na arvore vê a alma da arvore, na pedra a alma da pedra. Deforma tudo. Põe a mão e molha. Destinge sonho... --A alma--diz elle--ao contrario do que tu supões, a alma é exterior: envolve e impregna o corpo como um fluido envolve a materia. Em certos homens a alma chega a ser visivel, a athmosphera que os rodeia toma côr. Há sêres cuja alma é uma continua exhalação: arrastam-na como um cometa ao oiro esparralhado da cauda--immensa, dorida, phrenetica. Há-os cuja alma é d'uma sensibilidade extrema: sentem em si todo o universo. D'ahi tambem simpathias e antipathias subitas quando duas almas se tocam, mesmo antes da materia comunicar. O amor não é senão a impregnação d'esses fluidos, formando uma só alma, como o odio é a repulsão d'essa nevoa sensivel. Assim é que o homem faz parte da estrella e a estrella de Deus. Nos vegetaes, nas arvores, a alma é interior, pequenina emoção, pequenina alma ingenua e humilde, que se exteriorisa em ternura a cada primavera: tocada pelo grande fluido esparso, onde andam as nossas lagrimas, vem á tona em oiro e verde, em deslumbramento. Nos mineraes, na pedra concentrada e recalcada, que dôr inconsciente, que esforço cego e mudo por não poder abalar as paredes e comunicar com a alma do universo! A pedra espera ainda dar flôr. Para elle estas coisas ethereas são visiveis. Vê tão exactamente como eu te vejo a ti a paixão, o odio, o amor, os grandes fluidos desgrenhados d'oiro, de piedade e de genio. Há noites em que não resisto: fecho-me com elle a sete chaves. Tem-me estragado tudo. É o doido que em nós préga e nos deixa aturdidos. Ás vezes consigo afastal-o, mas succede que fico sempre com pena: se o ouvisse talvez fosse mais feliz e mais desgraçado... Desdenho-o, e sinto-lhe a falta quando o não tenho ao pé de mim. Deita-me a perder se me apanha desprevenido. Quasi sempre é elle quem manda em minha casa, e, mesmo quando falo como toda a gente fala, e quando rio como toda a gente ri, só a elle o ouço no mundo. Diz-me coisas que nunca ouvi, isola-me n'um valle apertado e scismatico, longe de toda a terra, arrasta-me, ou desespera-me. Desaparece como um cão vadio, e quando volta, com lama de todos os caminhos, folhas de todas as florestas, reflexos de todos os enxurros, vem exhausto, mudo e feliz. Vem feliz! É elle que me préga:--Toda a agitação é inutil. Não tenhas medo da desgraça!--E eu tenho medo da desgraça. Á força de habito cheguei a mantel-o no seu logar, mas nunca o pude suprimir, e quanto mais me aproximo da morte, mais saudades levo do Gabiru, que me estragou a vida toda. Mora n'um velho pardieiro encostado á muralha, abafado d'um lado pela muralha da villa, que á noite redobra de porporções. O granito enegreceu, poliu-o a chuva, e a escadaria de pedra dá calafrios a quem entra. --Essa alma, essa alma disforme, que vae de mundo a mundo, e que em cada sêr realiza uma primavera é que é tudo. O resto insignificancia. É ella que nos devora e faz da morte a vida e da vida a morte... D'um lado a muralha de dentes arreganhados para o céo, do outro o sordido pardieiro, no alto a noite de luar como uma camelia gelada. Dentro d'isto sonho. Ponho-me a olhar para elle--ponho-me a olhar para mim. Passou a vida n'aquella inutilidade, de que sae a revêr sonho, e com os côtos partidos a esvoaçar na noite dorida. Primeiro afundou-se em experiencias do laboratorio, á procura da pedra philosophal.--Ridiculo. Depois na aplicação da electricidade aos vegetaes, que se consomem de febre, que se desentranham em flôr, sem produzirem fructo.--Grotesco. Agora ninguem o arranca a infindaveis monologos cahoticos:--A morte! a morte! a morte!-- Incongruencia, obscuridade e dôr tambem; a dôr de quem vem da irrealidade, encolhido e transido; a figura estranha de quem se debate com o sonho e sae da lucta esfarrapado e doirado. Se o tiram do sonho titubia e não sabe onde põe os pés. Tem as azas partidas. Comprehende então a sua inutilidade e desespera-se até reentrar na nuvem que o envolve. Puxa a si o misterio, e, entre as arvores e os fios eletricos que correm todo o quintal e ligam todas as arvores, ouço a sua voz magnetica, que impregna de sonho o luar todo branco: --Isto é um fluido dôr, falta-me condensal-o. É uma nuvem que envolve tudo, que vem do turbilhão da Via Lactea, arrasta tudo comsigo, e ascende em espiral até Deus. Não, a sensibilidade não é individual, é universal. Basta ferir a sensibilidade, que vae dos nossos nervos até á Via Lactea, para transformar as noções do tempo, do espaço, da vida e da morte--basta deitar dentro d'um tanque uma gota de vermelho para tingir toda a agua. Deito-lhe sonho dentro... 7 de dezembro A villa é tumular e encardida, mas oculta dentro dos seus muros um sonho desconforme. Talvez desconexo, mas desconforme. O sonho é d'elle: a propria casa de granito revê sonho. O Gabiru mistura, revolve, extrahe sonho do sonho. Debalde o que é mesquinho lhe mostra os dentes: o Gabiru não ouve, não vê, não sente. O sonho isolou-o da propria mulher transida de frio, no casarão que deu á costa como uma nau do passado, com o cavername roido pelo mar das trevas. É um sêr quasi ethereo. Nem sei dizer se existiu, se a criei; sei que se sumiu n'um sôpro cada vez mais ephemera, com dois olhos verdes de espanto. Sei que me pegou sonho, e que fui levado, perdido, como uma coisa inerte... Morreu transida de frio. Uma mulher palida--o que vale um passaro. Ternura e dois olhos verdes de espanto. Hesita, mal pousa os pés no chão, chora baixinho, e vae talvez acordal-o, queixar-se... Não se atreve, e esboça um sorriso logo molhado de lagrimas. Morre de frio. Agosto--morre de frio. Até para lhe sorrir se esconde, e põe-se então a olhar o muro (vou-te dizer o sitio) a falar com o muro, a queixar-se á grande nodoa de humidade da parede. Dois olhos verdes de espanto, um vestido de seda, e as meias rotas nos calcanhares. Um nada de ternura tel-a-hia salvo--ninguem o arranca áquelle sonho informe. Morta... Ninguem. Depois que a perdeu tresvariou. Estende fios no chão entre as arvores, e as arvores, sob o fluido electrico, todo o inverno se desentranham em flôr. Pegou-lhes sonho tambem. É um desbarato, uma profusão que as devora. Absurdo. O quintalorio ao pé da muralha, que há seculos revê humidade, não é maior que um lenço; a primavera só chega aqui tarde e de mau modo, com pena das arvores de saguão. Arrepende-se logo. Já veem que o absurdo é maior ainda... Dezembro e primavera. O céo gelado, um brilho de estrellas em engastes novos, e, entre a carie das paredes, as macieiras baixinhas e humildes como exhalações de ternura. Mortas. Mortas, seccas de sonho. Mortas as arvores desfeitas em flôr. --Este efluvio é que é tudo: a torrente de ideias e a torrente de paixões. A minha athmosphera, a alma, penetra a tua athmosphera, e dissolve-a, domina-a, conquista-a. Recua, tacteia, hesita. Mas escusas de falar para que eu te entenda. A materia muitas vezes não me deixa comprehender, mas é raro que eu não saiba logo quem tu és, e, mesmo que seja a primeira vez que te fale, as vezes que te tenho encontrado no mundo.--E logo:--A vida perdi-a a sonhar. Depois de morta é que dei com ella. Mas que importa! Acabei com a morte, vou resuscital-a. Viveremos sempre, amar-nos-hemos sempre... A noite é d'aparato. A lua de coral sobe por traz da montanha em osso, e depois na chanfradura das ameias. Mais flôres--todos os galhos dão flôr. Sente-se, quasi se ouve, a dôr das arvores, dos sêres vegetativos, ao terem de apressar, de modificar a sua vida lenta, dispersos em ternura. --Perdi-a, perdi a vida! Esqueci-a como esqueci tudo. Perdi-a e mais dois dias e tinha suprimido a morte! Sob o fluido electrico o quintal tresnoita. Cae neve e abrem os primeiros botões. A arvore transforma-se n'um sêr dorido e esplendido--transforma-se em sonho--em sonho desfeito em flôr, em flores espezinhadas uma atraz das outras por camadas sucessivas. Os ramos espremidos escorrem dôr. Até as pedras deitam tinta. O quintal escorre sonho como a alma do Gabiru. Atrevem-se e acordam as coisas apodrecidas, e velhas pedras iludidas põem-se a cantar n'esse pio triste dos sapos, que sae da fealdade como uma inutil queixa de desventura. A noite concava e branca--gelada--cobre indiferentemente tudo isto. Que não cobre a noite? Quatro paredes negras, no fundo remexe o sonho. Perco tambem a noção da realidade. --Tanta flôr! --Para a sua cóva.--E pondo em mim os olhos atonitos:--O que é preciso é ir buscal-os ao fundo da mixordia, arrancal-os á obscuridade, juntar outra vez as boccas dispersas. Não morrer é nada: vou resuscital-os... Imagina o negrume d'um poço--imagina dentro o espanto, e não sei que luz viva, não sei que dôr recalcada, não sei que de humilde, que quer viver apesar de dorido. Vivo, e a pata enorme que espezinha e esmigalha. Escuridão e oiro--silencio e oiro--espanto e oiro. --Vê tu a arvore... Uma camada de flôr--um grito; outra camada de flôr--outro grito. Vê tu a arvore como se transforma n'um phantasma d'arvore, e depois em emoção!... Suprimir a morte! É uma coisa grotesca. O sonho transborda, o luar transborda--branco e dôr--branco e sonho. Depois o silencio, depois a sua voz magnetica--depois a sombra immensa que ameaça desabar sobre nós, no quintal do tamanho d'um lenço. Desato aos gritos quando todas as roseiras, fartas de dar rosas, seccam, quando da cathedral e do silencio caem uma, duas, tres badaladas, que me apertam uma, duas, tres vezes o coração. E o Gabiru com olhos de phrenesi insiste: --Não morrer é nada, suprimi a morte. O que é preciso é arrancar os outros ao silencio. É uma coisa simples, é uma questão de synthese. --A morte,--afirmo-lh'o--é o repouso eterno. --Repouso eterno, estupido! É exactamente o que está vivo, a morte. É o que está mais vivo. 10 de dezembro Na escuridade e no silencio o sonho deita braços desconformes. Pega-se-me. Debalde lucto contra o fluido que avança para mim como uma exhalação de phrenesi e de nervos. A teia invisivel rodeia lentamente a inutilidade, a teia dissolve as almas, e fios impalpaveis apoderam-se da villa quieta e absurda onde só elle se atreve e scisma... Isto é possivel ou isto não passa d'um sonho grotesco, de mais outro sonho grotesco? De que é feita a tibornea, o liquido viscoso, côr de sabão, com filamentos verdes, que o Gabiru com olhos de sapo revê no vidro, atravez da luz--a maior descoberta do seculo, o sôro que acaba de vez com a velhice e arreda a morte para confins ilimitados? Alguns saes, o sodium, o enxofre, o magnesio, o bromio, o carbone--e sonho. Dezasete elementos, entre os quaes a prata, o cobre, o oiro, o arsenico--e dôr. Materia, espirito e concentração. O misterio é este e mais nenhum: é exprimir como o que é espirito se transforma em materia, como a poeira se condensa, como a alma se faz corpo. Gritos, mais desespero. Contar o quê? As noites infinitas, as mãos que tentam arrancar farrapos ao manto em que o misterio se envolve e procuram retel-o quando elle se dissipa? Outra vez absorpção, outra vez o rebuscar em ti mesmo o inexplicavel, e os nervos que tendem e quebram o cerebro que doe, o lento acordar das vozes submersas, a discussão, o tumulto, e poder distinguir entre tantas boccas que falam, a unica que tem direito a falar. É d'esta obscuridade, d'esta discordancia, que emerge a ideia de suprimir a morte. Não te rias. Já t'o disse: é um sêr aparte com côtos em vez d'azas, que se agitam n'um desespero para voar. Não se contenta com esta vida nem dá por ella, mas fica sempre a meio caminho, e tão dorido que não é possivel tocar-lhe. Já t'o disse: é um sêr grotesco que põe em mim os olhos turvos e teima, insiste, repete: --Sobre a villa, repara, paira uma athmosphera cinzenta, composta de todas as athmospheras: é a alma da villa.--E afirma cheio de convicção:--Deito-lhe sonho dentro. Queira ou não queira faz-me scismar... Na realidade morrer é absurdo. Nunca me capacitei a serio que tivesse de morrer. Morrer é estupido. Não comprehendo a morte, e, por mais que desvie o olhar, prendo-me sempre a essa hora extrema, só essa hora me interessa... Um sêr grotesco, um unguento verde, e aquella voz aos meus ouvidos. É caricato e pega-me doirado. E o peor é que este sonho é afinal o meu sonho e o teu sonho. Ninguem o confessa senão a si proprio. O nosso sonho é não morrer. Quando a gente se esquece a vida tem já passado. E quando a vida tem já passado é que nos agarramos com mais saudades á vida. A resignação custa muitas horas doridas em que ficamos alheados e suspensos. A morte... A morte é inevitavel?--pergunto baixinho. E como a morte é inevitavel, como não lhe posso fugir, para não perder tudo, criei a outra vida. E afinal quem sabe se este sonho que a humanidade traz comsigo desde que pôz o pé no mundo não é o maior de todos os sonhos e o unico problema fundamental? A verdade é que teima. Não nos larga na vida e levamol-o escondido para a cóva. A verdade é que foi esta sempre a nossa maior aspiração, que há-de acabar talvez por se converter em realidade. Temos construido o universo assim, podemos construil-o de outro modo. Falta só um passo... A vida eterna admitimol-a, mas, no fundo, o que nós queremos é este sol, esta pobreza, esta dôr, estas ilusões moídas e remoídas. Deixem-nos a vida que acceitamos tudo. Aqui há, portanto, um erro primario. Protestas do fundo do teu sêr: a morte é absurda. É preciso cortar um nó que não existe. E passar do imperio do possivel para o imperio do impossivel é talvez uma questão de vontade. A vida é um acto de fé de todos os instantes. Acordo e grito:--Eu não vivi! eu não vivi!--E cada vez o meu protesto ascende mais alto. Quero tornar a viver a mesma vida aborrecida e inutil, quero recomeçar a desgraça. Ninguem pode com semelhante peso. Não há quem possa com elle. Na solidão, a primeira coisa que procuro é a ninharia para esquecer a morte. Um minuto sós a sós com o espanto, recamado de mundos, que caminha desabaladamente no silencio, dura um seculo e outro seculo ainda. Não posso, nem tu nem eu, viver sobre o fio d'uma espada e olhar para a voragem d'um e d'outro lado; não posso arcar todos os dias com esta usura que me gasta sem mergulhar na insignificancia. E agora até a insignificancia me é impossivel. O silencio... O peor de tudo é o silencio e o que se cria no silencio, o que eu sinto que remexe no silencio... Carrega em cima de nós tal peso que ninguem o suportava se désse por elle. É o peso do espanto. Juntem a isto a villa comesinha, e o negrume que levanta os côtos esfarrapados, como se fosse voar, quando o padre Thimotheo dá o seu passeio habitual no pateo da Misericordia, e, na meia duzia de metros quadrados com arvores ethicas do jardim, as Souzas arrastam os vestidos, ultima moda do Grandella. Juntem a isto a grande nodoa de humidade a que ella costumava queixar-se. Juntem a isto a Morte e aquela voz de desespero cada vez mais phrenetica, que não cessa de prégar, e que me põe em frente de mim mesmo, que é o que mais temo no mundo. --O que eu quero, é tornar a viver. A minha saudade é esta. O que eu quero é recomeçar a vida gota a gota, até nas mais pequenas coisas. Não reparei que vivia e agora é tarde. Sinto-me grotesco. Recomeçal-a nas tardes estonteadas da primavera e na alegria do instincto. Encontrei há pouco uma arvore carcomida: deixaram-na de pé, e um unico ramo ainda verde desentranhou-se em flôr... Podesse eu recomeçar a vida!--Cala-te!--Terei de confessar a mim proprio que nunca amei, que nunca fui arrastado até ao amago pelo desespero ou pela paixão e que de tal forma se me entranharam as palavras e as regras, que passei a vida a mascar palavras e regras? Terei de confessar a mim mesmo que vou para a cóva com a bocca a saber-me a vulgaridade e a pó? Antes me soubesse a fél--antes a dôr!...--Mas sonhaste, estupido!--Sonho. E o que me resta nas mãos inermes, nas mãos para que olho com espanto e terror, nas mãos de velho, senão grotesco, farrapos de grotesco, restos de grotesco, com alguma tinta em cima?... Não; viver é que é bom, viver com o instincto, como os ladrões e os bichos, os malfeitores e as féras, sem pensar, sem sonhar, sem palavras nem leis, até cahir a um canto, morto e feliz, de barriga para o ar. Isso sim! isso sim!...--Quantas conversas temos tido juntos! quantas discussões inuteis! quantos desesperos de que não há sahir, batendo com a cabeça na mesma parede! Ás vezes subjugo-o:--Cala-te! cala-te!--Ás vezes fala elle mais alto e domina-me. Rio-me de ti e impões-te-me. És ridiculo e só tu te atreves; só tu és feliz porque te atreves a dizer inconveniencias sem fé nem lei. Só tu não tens methodo, só tu te fechas a sete chaves á tua vontade, livre, feliz e despresado. No fundo invejo-te. Aquilo incha, trasborda, como um rio que alaga tudo. Pega-se-me e molha-me. Aturde-me. É só elle que fala no mundo, cada vez mais obsecado e mais alto, com interjeições e gestos desordenados pelo meio:--Estupido!--Hei-de falar! quero falar! hei-de por força falar!--E há aqui dôr e ridiculo. Há um esgrouviado a dizer vulgaridades, e uma coisa que vem da raiz da vida n'um fremito e que me mete medo. Um bafo, e logo mil vozes que aproveitam o momento e desatam a prégar sem tom nem som.--Toda a gente se ri de ti...--Deixal-o.--Toda a gente se ri! toda a gente se ri!--Quero por força tornar a viver! hei-de por força tornar a viver! Sinto que a minha vida não termina aqui. Este sonho hei-de leval-o a cabo. Debalde lhe aconselho calma, o Gabiru insiste: --Entrevejo na morte um sofrimento atroz. O inferno não é uma palavra vã. É um desespero sem consciencia nem gritos. A vida não é senão uma tregua--um ah--e logo um mergulho n'esse inferno de dôr. Na dôr estreme. Eis o que é a morte: a dôr estreme, a dôr emudecida. O terror instinctivo da morte é uma advertencia. Não quero morrer e vou resuscital-os!... Viver sempre! amar sempre! sonhar sempre!--que esplendido sonho! A vida é quasi nada. Tudo que custou tanto desespero, tudo sumido n'um buraco para sempre. Ouves? Para todo o sempre. De que serviram os gritos, as lagrimas, subir, trepar, chegar ao tôpo do calvario? Para todo o sempre! Bem sei: aquillo a que me apego é impalpavel: é a mulher que passou, assomando-lhe ao focinho uma expressão de ternura, e que nunca mais tornarás a encontrar; é aquella manhã de chuva em que nos molhamos juntos (e ainda me sinto molhado) e que se não repete, é o minuto que nos escorre das mãos como um fio d'agua, mas doira-o o sol, e é esse mesmo minuto translucido que quero tornar a viver, sem a sombra da morte a meu lado. É a essa mesma ninharia que é a vida a que deito as mãos com desespero. A vida é nada--é esta côr, esta tinta, esta desgraça. É saudade e ternura. É tudo. É os meus mortos e os meus vivos. Levo pena de tudo, até da fealdade. Agarro-me a tudo, tudo me prende, o sonho que não existe, as horas inuteis, o possivel e o impossivel. A floresta não faz parte do meu sêr, e eu tenho aqui a floresta, o som e o aroma da floresta, a vida da floresta; o céo não faz parte do meu sêr, e eu sou o céo profundo, o céo tragico e o céo esplendido. Dá-me a vida--dou-te tudo em troca... Agarro-me como um naufrago, agarro-me com uma saudade, que vem não só de mim, mas de muito mais longe, da base mesmo da vida. Para sempre! para todo o sempre!--E, com um suspiro mais fundo, repete:--Suprimi a morte, vou resuscital-os! Trago comigo um pó capaz de doirar a propria eternidade. Não sei d'onde me vem, nem porque nome lhe hei-de chamar. Todas as noites sufoco deante do negrume--elle reanima-me. Insiste deante das forças desabaladas e da imagem da morte. Quero a vida! quero-a! quero-a vulgar, tumultuaria e cega. Inerte não! inconsciente não! Tenho-lhe horror. Se com o nosso esforço colectivo forjamos o mundo, porque deixamos a morte de pé? Criei o universo. Destaquei da massa confusa o tempo--destaquei o sonho. Fui eu que dei valôres e perspectiva ao quadro. Fui eu que lhe entornei ilusão. Na verdade só existem côres como só existem gritos. Porque não hei-de acabal-o? É talvez uma questão de vontade. Se até para dar o primeiro passo precisamos de crêr, porque não havemos de dar o ultimo passo? Ilusão, mentira? Mas eu é que faço a verdade e a mentira. Dou-lhes o meu bafo. Deus cria-me a mim, eu crio Deus. Uma verdade pode não existir. Com uma mentira posso forjar outro mundo. Arredemos de vêz este suor frio. A noite vem, a noite avança. Sinto os mortos. Ainda vivo, já estou em seu poder: faço parte da legião. Noite immensa sem gritos. Peor que sofrer é não sofrer--para sempre. É nunca mais sentir. É ter as orbitas vazias voltadas para o céo e n'ellas não se reflectir a luz das estrellas. Mais um passo e é o silencio absoluto. Mais um passo e tapas-me para sempre a bocca. Não me importa ser feliz--não me importa ser desgraçado. O que me importa é o que há depois, é o que está por baixo da terra e o que está por cima da terra. Já não lucto. E elle insiste e cada vez préga mais alto: --Eu não vivi. Que importa, vaes morrer! Para sempre, para todo o sempre, o mesmo buraco d'onde não sae rumôr. Escuta isto: d'onde não sae rumôr. Repete isto: para todo o sempre. Nenhuma explicação te é licita, nenhuma transacção é possivel. A morte não espera nem atende. É estupida. Primeiro é estupida, depois é incomprehensivel. É tremenda porque contem em si mistificação ou belleza. Absurdo ou uma belleza com que não posso arcar. O nada ou uma coisa que a minha imaginação não atinge. Se é o misterio, e se desvenda d'um golpe, apavora-me. Se é o nada repugna-me. Apenas um minuto, e lá em cima as mesmas estrellas, e outros vagalhões de estrellas... Para ella tanto vale um segundo como um seculo, carrega um sêr inutil ou um sêr delicado com a mesma indiferença para o tumulo. Tens passado a vida a esperal-a. Que outra coisa fizeste na vida senão esperar a morte? É a tua maior preocupação. Debalde a arredamos: a vida não é senão uma constante absorpção na morte. Então para que nasci? Para vêr isto e nunca mais vêr isto? Para adivinhar um sonho maior e nunca mais sonhar? Para presentir o misterio e não desvendar o misterio? Levo dias, levo noites a habituar-me a esta ideia e não posso. Tenho-te aqui a meu lado. Nunca se cerra de todo a porta do sepulchro. Estou nas tuas mãos... Adeus sól que não te torno a vêr, e agua que te não torno a vêr. Arvores, adeus arvores que minha mãe dispôz; adeus pedra gasta pelos seus passos e que meus passos ajudaram a gastar. Para sempre! para todo o sempre! Tenho-te horror e odeio-te. Interrompes os meus calculos. És o maior dos absurdos. Vêr para não vêr, ouvir para não ouvir, viver para morrer!... E aqui te faço uma confissão: o que mais me custa a largar é, como á cobra a pelle, a vida comesinha. Se é a vida superior é tambem o meu lume. É o ruido monotono da chuva nas vidraças. Além da alma há outra alma que se apega ás pequenas coisas, á columna d'oiro perfumada que me entra de manhã pela janella--outra alma humilde e pequenina, que se acomoda com um fio d'agua, um cantinho de lume... É a alma da materia. Não, o fim logico da vida não é morrer, é viver sempre, é ascender sempre. Até onde? Até Deus. Vou resuscital-os! Vou resuscital-os! E em elles se pondo a caminho vaes vêr doirado. A vida toma novo impulso. Desaparecendo a morte é que tu abranges a vida. Vaes vêr a côr que toma o mundo, as tintas que o mundo escorre, e as flôres que as arvores criam... Vou resuscital-os! Vou resuscital-os!... A terra remexe. Sinto um esforço e revive o suor da desgraça; um arranco na profundidade, e todas as primaveras dispersas não tardam, uma atraz de outra, a reflorir. Há sepulchros até ao fundo do globo. De mais longe vem um impeto--são outros mortos ainda. Uma sombra desmedida, uma sombra que se despega da obscuridade, com todas as lagrimas que se choraram no mundo condensadas, vae desabar sobre nós. As suas palavras criam. O peor foi tocar-lhe! Neste debate entra agora o mundo todo. Entram as arvores e as pedras. Não há duvida para mim: quando sahir disto tenho renascido: o mundo não é o mesmo mundo, o céo o mesmo céo, a vida a mesma vida. O que existe é outra coisa doirada e immensa, esfarrapada e immensa. Põe-se a caminho outro panorama, como se todo o infinito de repente se aproximasse de nós, com os seus mundos, o seu misterio indecifrado. Põe-se a caminho a immensa floresta apodrecida, outras arvores como nunca vi arvores, e outros sêres desmedidos e phreneticos. Põe-se a caminho uma vida que há muito sentia aqui ao lado, sem me atrevêr a olhal-a. Tudo mudou de repente. Repara que o céo augmentou em profundidade. O que existe são gritos, o que existe é o espanto. O peor foi tocar-lhe... Um remexer de treva, que até agora podémos recalcar, soltou-se da escuridão e pôz-se a caminho. Já não há esforços que a contenham... Um borrão tragico avança--outro borrão informe prepara-se. Os mortos empurram os vivos--desde profundidades desconhecidas... Passa no mundo a estranha ventania: é a morte que custa a separar da vida. O rasto que fica atraz, a perspectiva que fica adiante foi cortada. A morte está aqui d'um lado, está do outro a vida. Tinha raizes enormes: arrancaram-lhas de vez. Agora atrevo-me a tudo. O turbilhão colerico abala o mundo, oiro e negro, esplendido e feroz. Desenraiza tudo. As almas acordam n'um sobresalto, e não há homem que se não ponha á escuta. Passa no mundo a doida ventania das nossas aspirações secretas, das nossas duvidas, dos nossos desesperos. É uma voz--são muitas vozes. É um grito--são muitos gritos.--É o grito contido há milhares d'annos, o grito dos mortos libertos. A VILLA E O SONHO 18 de dezembro Em logar do uso de palavras fazia isto melhor com o emprego de dois tons--cinzento e oiro: uma nodoa que se entranha noutra nodoa. O sonho turva a villa. A primavera toca n'este charco só lôdo e azul: tinge-o e revolve-o. Mas o habito de tal forma se entranhou na vida, que cohabitam com o espanto e continuam a ir á repartição. Horas na torre. Mais silencio. A morte roda aqui por perto, alguem fala:--Então como passou? passou bem?--O habito tem profundidades de legoa. A principio olham-se desconfiados, com medo uns dos outros. Sem duvida gostam de viver mais um seculo, mais dois seculos, mas não sabem ainda que emprego hão-de dar á existencia. Não se lhes dava mesmo de morrer com tanto que continuassem a jogar o gamão no infinito. O que lhes custa mais a perder não é a vida, são os habitos. Veem-se e não se reconhecem. Há almas embrionarias, velhos lojistas que olham para si proprios com terrôr. A maior parte da gente, nasce, morre sem ter olhado a vida cara a cara. Não se atrevem ou ignoram-na: a outra existencia falsa acabou por os dominar. Não há mascara que não custe a arrancar--há mentiras que teem raizes mais fundas que a verdade. Por isso, para uns não morrer é continuar a jogar o gamão pela eternidade, para outros é juntar uma moeda a outra moeda, um dia a outro dia inutil. Sempre... Já na botica dois idiotas recomeçaram com escrupulo uma partida que deve durar cem annos, e o bocal amarello, as moscas mortas estão alli com outro ar. Fixaram-se. Estão alli embirrentas e sordidas para toda a eternidade. Pouco e pouco o sonho dissolve, a nodoa d'oiro alastra. Vae mexer com o subterraneo, acorda os mortos, desenterra o sonho submerso há dois mil annos, sobresalta o instincto, bole com todas as almas sobrepostas até ao fundo da vida. Transforma, volta a existencia do avesso, deita o muro abaixo. Por ora é só uma idéa, mas sae-nos de cima o peso do mundo... Mexe em tudo, revolve todas as raizes que se apoderaram da villa. O sonho cae na regra, no charco de interesses, na hypocrisia que se não atreve, nos dentes afiados que se transformaram em sorrisos, na paciencia de quem espera uma herança com vagares de quem tece uma teia. Certas existencias são formidaveis, outras existencias são como alcovas onde nunca entrou a luz (cheiram a relento) e onde agora se agita e gesticula um sêr desconhecido. Certas existencias são feitas de odio minusculo, de inveja que sorri--porque nem a inveja se atreve. Certas existencias são crepusculares. Em certas existencias são os mortos que ordenam, muito mais vivos e imperiosos depois que estão no sepulchro. Quasi toda esta gente se desconhece. Nunca se atreveram e agora perguntam-se:--Sou eu? sou eu? Aqui estou eu que finjo que sorrio, e acabo por fingir toda vida. A minha vontade era anular-te--e finjo, e o sorriso acaba por ganhar cama, a bocca por se habituar á mentira, a ponto de já não saber discernir o meu sêr, do sêr artificial que criei peça a peça.--Pois sim... pois sim...--Mas atraz disto há outra coisa--há fél; E quando tiro a mascara? Mas eu já não posso tirar a mascara, mesmo quando me fecho a sete chaves: a mentira entranhou-se-me na carne. Este phantasma chegou a ter mais vida que a propria realidade. E aqui andam outros sêres. Eu não sei quem sou e até o meu metal de voz estranho. Eu não sou quem falo. A meu lado, atraz de mim, vem um cortejo de phantasmas, uma cauda disforme que me conduz e empurra, e adiante de mim há uma projecção de vida até aos confins dos seculos. Acaba a hypocrisia. Acaba principalmente a hypocrisia para comnosco, mais dificil de largar que a propria pelle. Eu minto mais a mim mesmo do que minto aos outros, finges tanto com a tua alma como com a minha. Primeiro é a hipocrisia que descasca. Acabou! acabou! E com espanto ouço e desconheço a minha propria voz. É que a morte regula a vida. Está sempre ao nosso lado, exerce uma influencia oculta em todas as nossas acções. Entranha-se de tal maneira na existencia, que é metade do nosso sêr. Incerteza, duvida, remorso... Nunca se cerra de todo a porta do sepulchro, sentimos-lhe sempre o frio. Agora não, a vida pertence-nos. A morte não existe, desapareceu a morte... Ali a um canto um sêr desata a rir, a rir, a rir como nunca ninguem se riu. E, atravez da pedra d'estas physionomias, transparecem já outras physionomias: as velhas, como uma roda de aranhas de penante na cabeça, apertam o circulo em volta da magestosa Theodora. São annos de paciencia, d'inveja e de fél--são annos de tragedia. Sobresaltam-se as futilidades que estavam para durar seculos, mas ninguem arrisca ainda um gesto que o comprometa. Teem-lhe obedecido de rastros. O tempo passa, e com o tempo esta lucta entre o inferno e o sonho revestiu-se de cimento e de grandeza. Obedece e sorri a Eleutheria. Moe, tem moido a vida inteira. Moe-se a si e aos outros.--E o tempo passa...--Obedece e sorri a Adelia, que esperou, tem esperado a vida inteira. A miseria conserva: tem os cabelos pretos. Seis, doze vintens desiquilibram-lhe o orçamento: perde-os todas as noites com um sorriso d'angustia. Obedece e sorri a Porphiria, que é a peor de todas; é feita de destroços e de restos. A aquiescencia tambem está presente com a D. Restituta, de guardachuva na mão, acenando sempre que sim á vida:--Pois sim... pois sim.--Faz-se um pouco surda para só ouvir o que lhe convem. Nunca diz mal dos outros, nunca repete n'uma casa o que ouviu cá fóra. Ás vezes, de noite, vira-se revira-se na cama, mas nem sósinha se explica: suspira. É na aparencia um pouco trôpega, um pouco adoentada e surda: tem uma saude de ferro e um filho escondido. E ao passo que a D. Restituta, tendo dito a tudo que sim, tendo dito a tudo e a todos que sim, já não pode dizer, com o mesmo esgare, senão que sim:--Pois sim... pois sim...--a Adelia é rispida: um vestido, um chale, um chapeu de plumas, e o desejo exasperado de toda a sua vida (tem sessenta annos) de ter uma sala de visitas com dois castiçaes de prata e um album. O album lá está, na sala que cheira a bafio, e há vinte e dois annos que dois paninhos redondos de crochet esperam os castiçaes de prata. Obedecem as figuras secundarias, atentas e imoveis sobre o jogo, dependentes umas das outras, ligadas pelo mesmo interesse. A alma d'esta velhas chegou assim a ser prodigiosa. Façam o favor de entrar... Algumas flôres murchas n'um cantinho com môfo. Depois paciencia, avareza, depois um vasto campo funerario, onde passa o vento da desolação como na retirada da Russia. E dominando a paisagem dois ou tres marcos geodesicos. Lá no fundo uma pégada de vida empoçada e que reflecte o céo: alli se miram e remiram na sua mocidade. Notem: nenhuma disse uma palavra mais alto. Tudo isto se fez pelo lado de dentro--tudo isto cresceu pelo lado de dentro, de tal forma que se fosse material não cabia no mundo, com colunatas, porticos, destroços e subterraneos, como uma cathedral gotica. Aqui nesta cripta está o relento, branco e molle, creado na escuridão e no silencio, branco e molle, branco e sem olhos. Varias sepulturas com estatuas jacentes e, mais adiante, sobre sarcophagos, a Tradição e a Formula, que durante os annos que durou a bisca, defenderam a magestosa Theodora d'um envenenamento. Aqui agora--cuidado!--a escuridão é viva, a escuridão é sonho, é sonho requentado, como um acrescento de todos os dias, sonho com que não podem mais ao lado da vida quotidiana. Como sempre as velhas deitam-se cedo, rezam o terço, e antes de dormir juntam um pormenor ao sonho inutil, uma figura aos nichos, um portico aos porticos, um terraço aos terraços--até que adormecem com um sorriso candido e um cheiro pela bocca que tresanda... Aqui com o tempo acrescentou-se um alto relevo esquecido; aqui as figuras são figuras de delirio; aqui a nave atinge alturas desconexas sustentada n'um unico pilar; aqui abre-se uma ogiva com vitrais, que esclarece a uma luz funerea um quadro indistincto, e que é talvez a recordação d'um amôr já morto--porque ellas tambem amaram--aqui o misterio envolve-se em sombras condensadas, onde agoniza um Christo exanime que mete medo. Adiante n'um friso incompleto com uma cidade phantastica, campeia o diabo; depois um remate enfumado, cachorros sustentando uma arcatura, onde se admira a delicadeza e a abundancia de ornamentação (é a paciencia); e, n'este canto, mais sonho, entre negrume acumulado, treva viva num buraco de treva, que a si propria se enovela num desespero, até que não cabe na cathedral, irrompe para o lado de fóra e chega n'um jacto ao céo... Isto não é a cathedral de Burgos--é a cathedral do fél e vinagre. Todas aceitavam, a morte e a vida quotidiana. Resignavam-se. Mas o que esta palavra representa de sonho desfeito em fumo, de coleras inuteis, de inveja inutil, de bolôr e de despeito, tradul-o a paciente D. Herminia por este grito feroz: --Estou farta senhor padre Ananias! Estou farta de o aturar a si, de aturar os outros, e de me aturar principalmente a mim mesma! Toda a gente dá a mesma ferocidade, odio e instincto. Espremidos deitam as mesmas paixões. Uns ignoravam-se. Outros usavam a vida em manias. Outros gastavam-na em grotesco. Outros habituavam-se. A paciencia era pegajosa. A paciencia tinha uma côr especial, verde desbotado, que mal feria a vista, e um filho, a cobiça, tal qual como a D. Restituta, que encrespa o pello e se põe de pé com o guarda-chuva em riste. Cada sêr me perturba como se contivesse em si o céo e o inferno. Bem sei que a formula não é inutil: ao contrario a mascara é indispensavel e é por ella que nos julgam. Mas, apezar de crearmos o mesmo bolôr e nos sepultarmos ao mesmo tempo com certa comodidade sob alguns palmos de terra, há qualquer coisa que remexe e que faz parte integrante da vida. Até o escuro se eriça--até a grande sombra se deforma.--Muita gente na vida só conta com a morte. A D. Desideria desata aos ais. E é com secreta satisfação que vejo esfarelar-se este edificio tão bem construido sobre bases, que pareciam inabalaveis, do interesse, da hipocrisia e das conveniencias... Impelidos por uma mola dão todos um passo em frente, e há tres dias que os padres se descompõem na colegiada sem se chegarem a entender:--Lá vae o inferno! lá vae o inferno!--E, efectivamente, d'um instante para o outro, lá vae o inferno que tanto custou a fazer, e outras sombras temerosas reduzidas a cisco. Lá vae o scenário admiravel e monstruoso, todas as regras, todos os papeis pintados, que atravancavam o mundo, e eram pelo menos metade da nossa existencia. O que tinha uma importancia extrema passou a não ter importancia nenhuma; o que parecia indispensavel á vida, e sem o que se não dava um passo na vida, reduziu-se n'um minuto a zero. E outras coisas insignificantes assumiram proporções enormes... Os padres clamam n'um côro desesperado:--Acabou o inferno acabou tudo!--Descompõem-se na sala da colegiada que deita para o passado--o claustro com um pé de oliveira, e dois tumulos encravados na parede, scenographia para o Hamlet,--sêr ou não sêr eis a questão... Cheiram a ourina e a ranço.--A religião sem inferno está perdida.--Mas lá por o homem ter suprimido a morte, não deixa de haver inferno--observa o estupido conego Fazenda.--Isso está claro que não deixa, obrigado pela observação, mas é um inferno tão distante que não mete medo a ninguem.--Protesto!--Lá vae o inferno! acabou o inferno! Lá vae tambem o céo, mas o céo não faz falta nenhuma. Já não há esforços que contenham o mundo subterraneo que se pôz a caminho. Aos mortos cheira-lhes a vida, a saque, a infamia. A poeira remexe. Por mais que queiram conter a vida dentro de certos limites, ella extravasa, e vem á supuração; por mais que a queiram comprimir estala por todas as costuras. É inutil. Alem da vida aparente, há outra vida de odio, de sonho, de interesses occultos. É a vida, é o que eu scismo de noite e me sustenta de dia. É o desejo de exterminio, é o sonho que arredo e que me pega fuligem: são os restos de sonho de toda a gente. Em todas as almas, como em todas as casas, além da fachada, há um interior escondido. Saem dos antros entontecidos e respiram, olham o céo e respiram. Saem dos buracos e põem-se a rir, ou falam só, o que é a primeira vez que succede na villa. Emergem da noite e vão deixando cahir os farrapos. Respiram com sofreguidão, os gadanhos afiam-se-lhes, e o mesmo desejo os domina: a vida! a vida! a vida! Só esta velha parou de remexer nas cinzas frias. Petrificou-se mais, petrificou-se mais ainda, e a figura curva exprime, na imobilidade tragica, sonho e desespero, dôr e desespero, noite e desespero... É um erro supôr que o homem ocupa um espaço limitado no universo: cada homem vae até ao interior da terra e até ao amago do céo. A parte de cima foi cortada, mas o que resta da alma é um poço sem fundo. Uma obscuridade. Por vezes fala a lei e o habito. Intrometem-se coisas abjectas a que não sei o nome. Agora é a vez de impulso--agora é a vez do interesse. A mania tambem tem os seus direitos. De mais baixo ascendem ordens que se não chegam a formular. Desço mais fundo no poço e encontro restos sordidos e candura. Por baixo sonho--por baixo fragmentos e gritos... As velhas, por exemplo, não são más, mas teem atraz de si seculos de ruina e de destroços. Há-as que acordam sempre com a bocca amarga. Já tiveram vinte annos, e cada uma d'ellas suporta uma cauda de desespero, de ilusões desfeitas, de ilusões intactas, de desejos irrealisados, que lhes peza como chumbo. Cada velha arrasta comsigo uma porção de cadaveres... De mais fundo vem outro impulso... Começo a ouvir vozes que supunha de todo extinctas. Acordam e de tal forma se impõem, que a D. Procopia desata a falar sem tom nem som. Nessa vaga, n'esse lôdo adormecido, jaziam sêres ignorados que veem á superficie: sente-se no silencio as mãos agarrando-se ás paredes. Um a um todos deitam raizes tremendas. E a nodoa immensa alastra, a nodoa desordenada, que satura d'oiro a insignificancia e o genio, a nuvem que envolve a D. Inocencia, encrespa os cabellos á D. Leocadia, fez esquecer a dispepsia ao D. Prior, arreganha os dentes a D. Restituta. Pega-se. Torna uns mais ridiculos, concentra outros. Vae remexer no que estava sepultado há dois mil annos, no bolôr e no bafio, nas paredes compactas da Sé, nos santos immoveis nos seus nichos, na inutilidade e no habito. E doira, doira, doira, doira o Telles e o Reles, doira a hipocrisia e o medo, o egoismo e o interesse. E ao mesmo tempo que os transforma, põe-nos frente a frente a uma coisa estranha que não admite subterfugios--á realidade. Desaparecendo a convenção e as palavras, que vae sahir d'aqui de temeroso e de ridiculo? Transformado o mundo, com que olhos vamos vêr o mundo? Tudo isto eram phrases e só existem instinctos? A honra era uma phrase, o dever uma phrase e a vida um scenário? Cada sêr é capaz de todas as perguntas e de todas as respostas. Escorre todas as tintas e possue todas as côres, e só por habito adquirido há seculos é que conseguimos olharmo-nos cara a cara, quanto mais alma a alma. Há dialogos na obscuridade em que se empregam palavras que nunca se usaram, e figuras que já não são as mesmas figuras. Todos nós somos disformes.--Deixem-me! deixem-me!--Agora quando falam já não é para dizer coisas convencionaes.--Estou á espera, tenho estado aqui á espera toda a minha vida.--Á espera de quê?--Á espera deste hora suprema, á tua espera...--Mas fala...--Não posso, só com gritos é que posso falar...--A outra coisa temerosa sacode-os...--Tu ouves?--Não te quero ouvir. Se consegues ficar comigo sós a sós, sinto que estou perdido. Tudo que me deu tanto trabalho a construir, alue-se n'um unico minuto. Teimo em me defender--teima em se fazer escutar...--Tu ouves? tu ouves?...--Mas tu não existes... Ou tu não existes ou só tu existes no mundo...--Estremecem até á base da vida, e, n'este cataclismo, ainda se lhes pégam coisas vulgares e coisas inuteis--o que se faz e o que se não faz, o que se usa e o que se não usa, as conveniencias e os habitos rançosos. Há dialogos formidaveis na obscuridade. Há almas extacticas, há-as reduzidas ao espanto.--Ouves?--tu ouves?--Não tenho a que me apegue, mal ouso pôr os pés. Até agora sabia quem era, ou fingia sabel-o, agora pergunto se sou a D. Leocadia, a D. Procopia e a D. Penaricia? Só posso viver ligado a certas palavras, a certos factos, a certas bases que julgava indestructiveis, e um nada destruiu tudo isto, transformou de todo a vida. O sonho tem outra côr, e a nodoa de oiro alastra, corroe, mistura-se a nodoas mais escuras e mais fundas, penetra, dissolve, produz logo manchas corrosivas como ulceras.--Phrases ainda elles as teem, mas o peor é que cada um sente com espanto que já não subverte a verdade. Pergunto a mim mesmo se a deixo morrer, ou se a deixo viver mais duzentos, mais trezentos, mais quatrocentos annos? Agora que a sua vida só depende de mim, pergunto a mim mesmo se a deixo viver--contra os meus interesses? Eram tremendas as questões de dinheiro que a morte resolvia. Quem as resolve agora? Debatem-se em cada consciencia problemas que só teem uma solução--a morte. Excusas de desviar o olhar: só teem uma solução--a morte. E de mais fundo ascendem outras vozes e falam cada vez com maior desespero.--Não desvies o olhar. Tu ouves?... Assim como esta clamam as vozes interiores, mais alto, sempre mais alto, imperiosas, as vozes da multidão que constitue a tua alma. Isto coincide com o grotesco dos homens de calva e ventre gorduroso, meios nus em plena praça, sem se atreverem a vestir-se ou a largar de vez os trapos convencionaes; isto coincide com uma primavera antecipada, em que as arvores, sentindo talvez que vão ser a nossos olhos apenas coisas utilitarias, se apressam a dar flôr, em que os céos nocturnos e sem macula parecem ter gelado em azul com fundos d'oiro revolvido... Alguns põem-se a caminho e marcham com olhos inquietos. Passa essa sombra tragica, a mulher do Anacleto. Estes dois que foram sempre pessoas consideradas, com assento na existencia, e que usam a cabeça como quem usa um resplendôr, o Elias de Mello e o Melias de Mello, sentem um baque que os amolga. Porquê? Elles teem tudo em dia, as contas, os livros, os escrupulos. A praça considera-os, Deus considera-os.--A nossa mãe morre...--E não tiram o lenço dos olhos.--Veneram-na. Mas o respeito pelos paes só resiste emquanto os paes respeitam o interesse dos filhos. Há decerto uma lei moral, mas há sempre por traz uma bocca a prégar. Uivos, gritos, exasperos. É a transformação do grotesco em ferocidade, é a camada de hipocrisia que custa a romper. Imaginem isto: imaginem o lojista em debate com a vida subterranea, o lojista deparando pela primeira vez com uma alma esplendida, e a D. Adelia, de chinó postiço, fechada n'uma gaiola com a verdade, e aos saltos uma á outra. Foi grotesco, começou por ser grotesco. Mas escuta-te: é um mundo que lá tens dentro, é uma multidão que se prepara para o assalto. Estava adormecida, acordou. Mete medo. E prégam, açulam-se, avançam direitos aos seus apetites, ao saque, á guerra, á luxuria. Continham-na arames enferrujados, o medo da morte, o habito de crêr em Deus (sabendo bem que Deus já não existia) phantasmas, cacos d'armadura que derruiram d'um dia para o outro. Descobrir que não há Deus que alegria! Põe a gente á vontade. Respira-se d'outra maneira. Descobrir que a morte não é inevitavel endurece. O mundo muda d'aspecto. Agora é que eu contemplo a vida--e me perco na vida. Começo a ter medo de mim mesmo e não me posso olhar sem terror. Que é isto, este sonho, esta dôr, esta insignificancia entre forças desabaladas? Onde hei-de pôr os pés? Eu sou a arvore e o céo, faço parte do espanto, vivo e morro ligado a isto. Sou temeroso e ridiculo. Não me desligo do turbilhão azul, sem nome, que me leva arrastado, estonteado, iludido, e ao mesmo tempo discuto, nego e afirmo. Sou ridiculo e construi o mundo. Sonho e acabo reduzido a pó. Sou capaz de tudo e um nada me abate. Sou sordido e futil e não tenho limites--vou de mundo a mundo e de espirito a espirito. Dei alma ás coisas inertes, significação ao universo, vida ao que não existe, luz ás estrellas--e no fim acabo grotesco. Sou nada entre o pelago e sem mim tudo se afunda no pelago. O que olhava com indiferença mete-me agora medo. Não posso com o mundo transformado, com outros sêres, e onde não me desligo d'uma força cada vez maior e mais desabalada. Preciso de olhar para mim, sou forçado a olhar para dentro de mim mesmo, a encarar comigo mesmo, e ou desato a rir ou fujo transido de pavôr. Não me posso comprehender no universo, não entendo esta luz insignificante no negrume gelado, nem esta discussão interminavel no silencio absoluto, nem este ridiculo, nem esta figura mesquinha que representa o mundo. Com que destino rio ou choro entre o enxurro de oiro e os impulsos tremendos que veem não sei d'onde e caminham desabaladamente para um fim que não distingo? Tenho medo de mim mesmo! tenho medo de mim mesmo! Nunca o acaso pariu nada tão monstruoso e tão grotesco como isto a que se chama a vida. Tenho medo de mim mesmo! Cada vez me sinto mais abjecto e mais transido--cada vez me sinto maior e mais capaz de tudo. Não me posso olhar nos olhos, com medo de vêr o que nunca vi, em todo o seu horror e em toda a sua nudez. Grito. Gritos--gritos--gritos ainda sufocados. Ouço-os na noite imperturbavel, na harmonia esplendida, na arvore e na pedra. Mais gritos no turbilhão dos mundos, e atraz desse turbilhão outro maior--e mais gritos ainda. A ternura sou eu que a presto ao absurdo e á dôr. O que fica na realidade são gritos. A harmonia parece immensa porque as coisas não teem bocca para prégar--ou não as sabemos ouvir. Tudo isto se reduz a dôr muda, a dôr intoleravel n'um escantilhão de desespero--de desespero sem significação--de desespero cada vez maior. E sempre outras boccas prégam mais alto na noite que não tem limites, outras boccas que nem sequer existem. Levanta-se a poeira tragica, a poeira que anda espalhada há milhares de annos, a poeira dos mortos e a poeira dos vivos. Mais poeira ainda, que vem dos confins, toda a poeira dispersa, que já foi ternura e desgraça, poeira desaparecida que foi sonho, poeira inutil que foi dôr. Os maiores dramas passam-se porém no silencio. 23 de dezembro «Se ella morresse...» Esta ideia ao menor obstaculo, esta ideia a que eu fujo e a que tu foges, e que ambos arredamos, mas que se obstina até a proposito dos que mais amamos--esta ideia transforma-se logo em acção:--Vou matal-a. Desapareceu a morte e eis-me aqui preso a esta creatura de olhos tristes fitos em mim. Para sempre! Até as coisas mais bellas se transformam em absurdo e me pesam como chumbo. Peza-me a tua amizade, peza-me o teu amôr--para sempre. A pobreza e a humildade não se toleram para sempre. A ninharia a poder d'annos e de persistencia impõe-me respeito. A ninharia um seculo, outro seculo, transforma-se em grandeza. Quanto menos sinto a morte necessaria para mim, mais a julgo necessaria para o outros. É um muro que é forçoso deitar abaixo. Para respirar é preciso deital-o abaixo. Muitas vozes, a d'este, a d'aquelle, a de tantos mortos, a imporem-me a sua lei... Agora só eu falo e com a minha propria voz. Agora só eu mando. A vida vou julgal-a com os meus proprios olhos. Vou tomar folego, vou tomar peso á vida. Sei-a de côr e salteado. Sei o que valem os preconceitos, as ilusões e as palavras--sei o que vale o dinheiro. Não torno a ser iludido. A vida é um combate, que só se vence pela bajulação, pela manha ou pela audacia--todos os meios são bons. Os escrupulos não servem para nada, a convenção tolhe-nos os braços. Meia duzia de regras afiadas bastam. Honestidade a precisa para que confiem em nós--piedade a bastante para que não nos assaltem os cofres. Fóra d'isto logro. Se tenho forças uso-as. A vida n'estas bases é talvez monstruosa, mas não posso modifical-as. Aproveito-as. Tiro da vida o que ella me pode dar. Com ilusões podia-se ser pobre--sem ilusões só se pode ser rico. 25 de dezembro O peor é que se passa no silencio. É a outra coisa que acorda, é a outra coisa desconhecida que começa a empurrar o tabique. Deitamos-lhe todos as mãos para o segurar, mas, no escuro e no silencio, a pressão redobra... Está outra coisa por traz do tabique, outra coisa que eu não quiz vêr, e que o sacode com desespero. Bem sei, bem sei que existes! Bem sei que estiveste sempre ao pé de mim. Nunca te deixei discutir comigo. Senti sempre que estava perdido se te deixasse abrir a bocca. Há tragedias de que desviava o olhar, fingindo não as vêr. Agora hei-de vel-as por força. Há misterios que não queria debater e agora se me impõem. Há vozes que não queria escutar e que falam mais alto que a minha voz. Há sêres que não queria conhecer e que discutem agora tu cá, tu lá comigo. Tenho de os aceitar. Romperam pelos sepulchros fóra--despedaçaram todas as tampas. E esta intrusão na vida modificou de todo a vida. Cada um vê doirado. Tem de pôr o problema alli na frente e de o resolver. Tem de ir até ao mais profundo do inferno e até á vacuidade do céo. Cada um tem de se olhar a si mesmo, nu e ridiculo, nu e esplendido. Cada um vê por uma fresta a força desabalada, e põe-se a scismar como Dante com a mão ferrada no queixo. Temos todos de resolver o problema. Debalde amontoamos inutilidades ou palavras, ahi está na nossa frente o mundo real, o mundo da verdade, o mundo sem subterfugios. Traz flôres como uma primavera, traz enxurro. Arrastou-se pelas folhas apodrecidas e pela lama. É doirado--é feroz. Tem todas as tintas e todas as côres, e sobre isto phrenesi. É humilde, leva comsigo no mesmo impeto ternura, dôr e desespero. Está dorido e vae tão fundo como a propria desgraça. Impele-nos. É a vida e o sonho, é a tragedia--não existe. Não tem nome. Chama-se a vida e a morte. É uma coisa absurda. Mete-me medo e extasia-me. As velhas já não dizem:--Jogo!--Houve uma coisa que se meteu de permeio. Os passos aproximam-se e o esforço augmenta. Sinto-lhe o bafo monstruoso, sinto-o mais perto de mim e encostado ao meu sêr. As velhas ouviram passos apressados dentro das proprias almas, o sonho veio á tona, e ficam absortas com as mãos agarradas aos queixos e as boccas espremidas a remoer em secco... O medo acabou, e o escrupulo, a hipocrisia da gente que vive á roda d'uma ideia sem atrever a encaral-a.--É preciso matal-a!--São annos e annos, são seculos de inveja paciente, que sobem á superficie: até as figuras de pedra ressumam dôr e desespero. Agora metem-me medo. As velhas somem-se, e ficam gritos, fica o espanto, ficam phantasmas. O que se passa em cada casa, dentro de cada sêr, no fundo de cada poço? Ouve-se as almas, como se fossem facas, afiarem no escuro. Estão promptas. Bem sei, falam ainda enteramelado, não dizem o que sentem, mas já caminham segundo o interesse, o odio e o sonho. As resmas de papeladas são inuteis, a lei todos os dias se reduz a zero. A nodoa alastra. E agora é que se vê bem o que cada um trazia dentro de si. Nesta primavera há duas primaveras. Agora é que eu comprehendo que as palavras que se pronunciavam eram rituaes, que os gestos, com seculos de existencia, eram necessarios e significativos. As phrases rançosas das velhas nos dias de enterro, as phrases banaes, eram as unicas capazes de amortecer a dôr; este habito ridiculo de jogar o gamão um opio, como esta historia que a Bacellar conta a si mesmo, com um ar idiota, um principio de sonho. Tanto vale uma tragedia. É preciso fugir á realidade. Comprehendo tudo. O que ellas odeiam no Gabiru é a sua immensa capacidade de sonho; o que a villa escarnece é o que a villa inveja. Bem se importa esta roda de velhas, em volta d'uma meza de jogo e o candieiro ao centro, com a bisca lambida: durante algumas horas esqueceram a mediocridade da vida--esqueceram tambem a morte. O chale velho a que a D. Leocadia se achega todas as tardes mesmo no pino do verão, pego n'elle e, quanto mais no fio, mais peso tem: está encharcado de sonho... PAPEIS DO GABIRU 26 de dezembro O que me impede de vêr a tragedia da vida, é a ninharia da vida. A alegria é a luz. A luz suprema é Deus. Se elle não existe--nós creamol-o. Cheguei a um ponto da vida em que nem os outros me interessam, nem eu interesso os outros. Não falamos a mesma lingua. Só entendo alguns desgraçados. Tudo na natureza são fórmas da minha alma. Minha alma passa como uma luz em frente da escuridão. Extincta só resta a treva. Se não fosse o habito uma arvore matava-me. Não posso olhar o céo sem terror, e tenho de fechar todas as portas para voltar á vida comesinha. Para o outro mundo é preciso uma iniciação. Sinto que cada passo que dou é irremediavel. Se me perguntassem o que queria ser--queria ser isto mesmo. Assim na eternidade te queria, minha alma, com o mesmo sonho, a mesma vida e os mesmos erros. Não te troco por outra alma. Não há belleza completa sem uma pontinha de saudade. A pobreza, a desgraça e a dôr metem-me medo. Mas que prestigio! Ser alimentado pela desgraça dá outra fibra, que só á desgraça pertence. Faz-se parte d'uma legião esplendida. Há uma porção melhor do nosso sêr, não há negal-o. Luz entre residuos, gritos e instinctos. Se não existe outra vida, pergunto para quê? Se fosse possivel suprimir a ilusão--morriamos todos á uma. Vivo entre quatro paredes, e entre quatro paredes analizo e commento e construo o universo. Fora d'esse casulo nada existe para mim. Succede, porém, que da parte de fóra é que está o resto... Se me perguntam o que é a vida--não sei o que é a vida. Sei que me devora--sei que tenho ao pé de mim a morte. Que faz de nós a vida? A vida gasta-nos, reduz-nos a linhas essenciaes. Habitua-nos a viver, e, quando estamos habituados a viver, suprime-nos. Sei que tudo são aparencias, com uma unica realidade, a morte. Para morrer não valia a pena viver, para me encher de saudade não valia a pena viver. Só para ser mistificado não valia a pena viver. A melhor parte da vida--é a saudade da vida. A que se reduz afinal a tua vida? Algumas ideias mesquinhas--e a uma coisa que não cabe cá dentro. Sim a vida tem minutos bellos, quando a gente a esquece. E acima de tudo o sonho. O sonho vale a vida. É nada e menos que nada. Impulso, desconcerto e logica, e no fundo do teu sêr uma ancia superior a tudo, que é a melhor parte do teu sêr. Melhor, que te faz desgraçado. Melhor que teima em querer um universo a seu modo, e que pouco e pouco, apezar de tudo, contra tudo, tem construido o mundo a seu modo. Foi ella que fez Jesus. É ella que te impele para cima, cada vez mais para cima. Ouço-me viver com terror--e caminho nas pontas dos pés para a morte. Se a vida futura é um absurdo, esta vida é um absurdo maior. É tudo uma questão de habito. Tanto sonhei comtigo que te construi. Sou aqui tão necessario como as estrellas do céo. Aqui estou, creatura mesquinha, com a dôr a meu lado, com sonho a meu lado. Hei-de acabar por te dominar. Não há morte que te valha! Isto é abjecto, ás vezes é grotesco--mas se isto desaparecesse, desaparecia Deus, e, com o maior dos sonhos, todos os outros sonhos. 30 de dezembro A vida é tecida como o linho: um fio de dôr, um fio de ternura. Eu intrometo-lhe sempre um fio de sonho. Foi o que me perdeu. Só dei por ella depois de morta. As horas mais bellas perdi-as a sonhar, quando a vida estava a meu lado. Eu não vivi! eu não vivi! Agora é que me lembro della, como d'uma tarde que viesse devagarinho na ponta dos pés, e se fixasse n'um minuto, no silencio, nas coisas suspensas na luz--nos botões quasi a abrir. Estraguei tudo, estraguei a minha vida e a sua vida. O dia d'hoje não existe para mim: só penso com sofreguidão no dia d'amanhã. Ora amanhã é a morte. E succede tambem que só dou pelas coisas bellas da vida, depois que passaram por mim, e que as não posso ressuscitar. Há na vida um unico momento. Um momento que sorri. Que concentra em si todos os momentos. Troquei-o pelo absurdo. Troquei a vida pela morte. Só agora seus olhos verdes d'espanto me chamam, seus olhos que exprimem o irreal e o mundo todo, seus olhos cheios de dôr represa e de sonho coado por lagrimas... Agora é que ella está viva! agora é que ella está viva! E tão viva que a confundo com a morte. ATRAZ DO MURO 10 de janeiro O tabique cahiu, e contemplo a vida. Mas entre mim e mim interpõe-se um muro. O drama não tem personagens nem gestos, nem regras, nem leis. Não tem acção. Passa-se no silencio, despercebido, entre mim e mim. É um debate perpetuo. Que duvidas? Pois se a minha vida é esta e não há outra vida; se o minuto é este e não há outro minuto, que força me póde deter para que eu não realise o meu destino contra ti e contra todos? Há um sêr que ocupa o meu sêr e me domina quer eu queira ou não queira. Quem há ahi capaz de dizer que a mesma ideia o não persegue?--Se ella morresse...--Arreda-a. Tambem eu. Mas saio d'isto aos gritos. Esfacelado. Tenho por força de o admitir na minha companhia. Subjuga-me. Peor: faz-me falta quando o não tenho ao pé de mim. Talvez eu seja um sêr complexo, talvez os outros sejam tão complexos como eu. Tudo me faz sofrer--mas metade do meu sofrimento é representado. Tenho é certo duvidas--mas metade das minhas duvidas são postiças. Hei de acabar por não crer em mim como não creio nos outros. Eterna contradição de todo o teu sêr. Não sabes o que queres nem como o queres. Não sabes no que crês nem no que não crês. És um impulso. Vaes até á cóva levado por todos os ventos, sempre a barafustar sem sentido. Explicas tudo, ignoras tudo, adivinhas tudo. És um mar d'inverno n'um dia de verão. Está tudo decidido--dizes--está tudo prompto. Só uma coisa me falta: pôr isto em acção. E essa coisa, que é um nada, tem o infinito de comprido. Desde que este phantasma se pôz a caminho nunca mais consegui detel-o. Começa por uma idéa que afugento. Começa por um pensamento tenue, por uma simples palavra que afasto. Insiste. Há ainda dias em que discuto. E por fim domina-me, tem mais vida que a minha vida, tem mais realidade, mais sonho e dôr, do que eu. Assisto á sua acção e não o posso conter. Acaba por acampar entre os destroços do meu sêr como um dominador. Mas eu não o criei! não fui eu que o criei! Não só o não tolero como lhe tenho horror. Mas para ser sincero devo dizer que há occasiões em que me submeto com alegria. Para ser sincero até ao amago, devo dizer que n'esta dôr, n'este desespero, é que me sinto inteiramente viver. Com elle é que eu grito. Decerto eu não sou isto--não quero ser isto. Tenho-te medo e pertenço-te. És a melhor e a peor parte do meu sêr. Felizmente não vemos senão detalhes. Se alguem podesse encarar uma alma até ás maiores profundidades, e vêr ao mesmo tempo de que ternura, de que ancia, de que desespero e de que tempestades essa alma é capaz, nunca mais podia desviar os olhos d'esse espectaculo. Fosse ella a minha alma ou a tua alma. Era o mundo todo, era o universo. Era Deus. Que posso eu contra a vida? E se me recuso, se lucto, que me espera? A renuncia? A estupida renuncia, e cada minuto que passa me aproxima do nada, me leva, queira ou não queira, para o nada? Na cóva, na podridão, desfeito em pó, arrastado por todos os ventos, d'aqui a um seculo, d'aqui a milhares de seculos, ainda todas as particulas do teu sêr, que não soubeste impregnar de vida e alimentaste de simulacros, te hão de prégar:--Estupido! estupido! Remorsos? Eu não tenho remorsos. Duvidas? Eu não tenho duvidas. Desde que te vi--vi o universo. Comprehendi tudo. Comprehendi que não tinha vivido, e que toda a minha existencia tinha sido ficticia--que mais valia um minuto na vida, que cem annos de vida. Que só há uma hora na existencia e que é preciso aproveital-a. Que tudo é simulacro e só tu és a verdade. E apercebi o universo como força e destino a tal profundidade, que n'esse rapido segundo passou por mim n'uma rajada todo o turbilhão da vida, com as suas vozes, os seus misterios e toda a sua grandeza feroz. Vi tudo. Senti tudo. Bastou vêr-te. Portanto não tenho duvidas nem remorsos. Ao contrario estou calmo, ao contrario estou decidido. Mas há uma coisa temerosa, uma coisa inexplicavel e immensa--um fio que não posso cortar. Tenho a sensação de que, cortando-o, aniquilaria a vida. Não a minha vida, que não importa--mas o que há de mais extraordinario e de mais tenue na vida. Se houvesse Deus, diria que aniquilaria Deus. Há uma atmosphera de mentira que ninguem deve ultrapassar--há uma atmosphera viva que todos nós respeitamos. Mergulho. Mergulho mais fundo ainda e não encontro nada. E no entanto tu existes. És muda e existes. Quando me imagino livre de ti, é que tu tens mais força. Procuro explicar-te por palavras, por convenções, por regras aprendidas, por habilidades... És muito maior do que eu. Ponho o ouvido á escuta d'encontro ao mundo, ouço-me para dentro, para surprehender as coisas fundamentaes que elle me ordena e são duas ou tres simples, d'instincto e ferocidade. E além d'isso outra coisa immensa--que não existe. Como te chamas tu? E tu, dôr, como te chamas? 11 de janeiro Ponho-me a olhar para ti consciencia, e exijo que me fites nos olhos e que me fales claro. Não entarameles a lingua. Em primeiro logar diz-me o que és e o que significas: medo, receio, uma vóz que se cala se a miseria aperta ou a luxuria levanta a cabeça. Um nada, uma voz tão timida e tão prompta a sumir-se... Incommodas-me é certo, mas não impedes nada. Falas quando devias estar calada, não sabes o teu papel e nunca entras a tempo. Herdei-te: és convenção e egoismo alheio entranhado no meu egoismo, synthetisado em duas ou tres regras para commodidade dos outros. Fazes de mim uma prêsa facil para quem a não tem. És escrupulo, e o escrupulo é, pelo menos, inutil. Estás em perpetua contradição. Inutilisas-me metade da vida e nunca me pude desfazer de ti. N'esta lucta de todos os dias, quando me julgo livre, é quando te sinto todo o pezo. Isto é decerto a vida. Mas a vida é tambem o instincto que me diz:--Aproveita, não deixes fugir o unico minuto. Se a vida é um momento entre o nada e o nada, o que vale a pena é aproveital-o. A questão suprema é esta e só esta: Deus existe ou Deus não existe. Se não há Deus, a vida, producto do acaso, é uma mistificação. Aproveitemol-a para satisfazer instinctos e paixões. Se Deus não existe, não há força que me detenha. Não há palavras, nem regras, nem leis. Tudo é permitido. Questão logica: pois eu hei-de ir para a cóva, para todo o sempre, para toda a eternidade, sem ter extrahido da vida tudo que ella me possa dar, preso a palavras ou a meras questões de forma? Oh! ponhamos a questão, consciencia: se Deus não existe tu não és senão um estôrvo, meia duzia de regras aprendidas ou herdadas. Ponhamos emfim a questão com toda a clareza, porque este é o unico problema que me importa e que te importa resolver. Escusas de encher a bocca com o dever. O dever não me interessa nada. A questão fundamental, a questão que eu debato com todo o meu sêr, e de que me não consigo desligar, é a da morte eterna e a da vida eterna. Se Deus existe eu sou um homem,--se Deus não existe eu sou outro homem completamente diferente. Não existindo tu consciencia, o que tu te intrometes na minha vida! E tanto faz analisar-te, discutir-te, negar-te, incomodas-me sempre. Estás morta--estás viva. Na cóva hei-de chorar inutilmente por te ter obedecido. Hei-de revolver-me com desespero, por teres conseguido amolgar-me e amesquinhar-me. Por mais que queira desfazer-me de ti, tu impões-te-me. Quando te julgo aniquilada, ahi começas a falar outra vez. Vens de muito fundo! Ás vezes protesto e imponho-me. Decido passar sem ti: humilhas-te. Humilhas-te para logo levantares a cabeça e revolveres o punhal na ferida. Pesas-me como chumbo. És de ferro. Bem tento explicar-te: são os escrupulos que me não deixam trahir, mentir, subir. O que é eficaz não é ter escrupulos, é fingir tel-os. É tudo o que os outros nos pedem.--Mas tu não transiges. Se te abaixas, é para te ergueres de novo, para de novo me atormentares. Não me largas. Acompanhas-me por toda a parte. Se me livrasse de ti! se me livrasse de ti! 18 de janeiro O que eu tinha era medo. Medo da morte, medo da sombra. Só isto existia? Quando tudo em mim me prégava que aproveitasse este momento, que deste unico momento extrahisse tudo que elle me podia dar--alguma coisa me detinha. Eras tu consciencia. E tu não existias! Fale a logica, fale a razão, fale tambem o instincto... A consciencia é sempre religiosa. Mal posso dar um passo no mundo sem tremer. O mundo é Deus, Deus rodeia-me. Tudo para mim é uma causa de espanto--e atravez d'este espanto presinto ainda um espanto maior. Sinto-me como balouçado n'um sonho immenso. Ando nas pontas dos pés. Mal ouso respirar no cantinho onde contemplo. E a minha consciencia era um reflexo deste universo. Mas se tudo isto se converte em forças, se arredo de vez a sombra temerosa, se tudo é acaso no acaso, se nada existe, se é indiferente o que eu penso e o que tu pensas, se só eu sou ao mesmo tempo o bem e o mal, a consciencia já não é a mesma consciencia e a sentimentos novos corresponde uma consciencia nova. Bem te procuro encontrar no fundo do meu sêr. Rebusco-te. Ás vezes, nos momentos tragicos, já não é comtigo que eu deparo--é com outro sêr que assiste sempre, como um espectador, a todos os meus exageros. Deitavas-te comigo, levantavas-te comigo, ferrada como um punhal--e não existias. Neguei-te. Expliquei-te. Reduzi-te ás tuas verdadeiras proporções--e tu não existias! Atormentaste-me e fizeste-me sofrer mesmo quando já comprehendera que não existias. E agora mesmo, quando o universo é outro universo, ainda te encarniças sobre mim como um phantasma. Escusas de te rir--tu não existes. Dependias da morte, e o que eu tinha na realidade era medo. Talvez medo para depois da morte--medo da minha alma em frente da minha alma, medo de aparecer nu e com pustulas diante do que é eterno. Carreguei-te como um fardo inutil. Põe-me a questão, põe-me todas as questões que quizeres. Tenho diante de mim este mundo e a voragem, este mundo e o nada. Não te metas de permeio, que já não tens razão de ser. Seria mistificação sobre mistificação. Não me atrever agora é absurdo. Porque, consciencia, o que importa é a parte interior--é a verdade sós a sós comigo, fechado a sete chaves, e essa é temerosa. Não tentes iludir-me. Não podes mentir a ti mesmo. Vê que passaste a vida a conter o mal--e o mal fez parte, queiras ou não queiras, da tua vida. O mal é pelo menos metade do teu sêr. Agora sim--agora estou livre e atrevo-me. Para sempre livre da morte e livre do tempo, calco-te aos pés. Nenhuma sujeição. Nenhum temor, nenhum phantasma. Sem escrupulos! sem escrupulos! Uma força entre forças e mais nada. O mundo pertence-me. Pertence-me e olho-o cara a cara sem desviar o olhar. Sou a unica força consciente, sem palavras que me diminuam, nem escrupulos que me contenham... Agora fala! Aproveita o minuto unico, a infamia, o enxurro, o sabor a fél e a lagrimas da vida, ou enfileira-te, se podes, no estupido rebanho, e reentra na vida quotidiana, feita de pequeninas regras e interesses. Vem-me um vomito: tenho vontade do fugir de mim e dos outros: só o que é selvatico me interessa e acorda em mim sonho, perfume e ferocidade... Quero saber o que me impede agora de matar, quero saber o que me impede de olhar nos olhos o inferno, de seguir o instincto e de obedecer ao impulso... O SONHO EM MARCHA 20 de janeiro Eu sou um desconhecido para mim mesmo. Ia para a cóva sem me têr encontrado um momento sós a sós comigo. E é com dôr, é com espanto e dôr, que me reconheço; é com olhos de pasmo e dôr... Tudo mudou. A sofreguidão que todos os dias da vida--sempre! sempre!--nos empurra e leva; o sentimento da vida ephemera e o horrôr da morte--mais perto! cada vez mais perto!--; esta coisa imponderavel que debalde tento deter--sem nome e a que se chama o tempo--que nos usa, a que não ouço os passos e que caminha inalteravel--tudo desapareceu de vêz. Respiro. E, modificada a ideia do tempo, todas as outras se alteraram profundamente. Os sentimentos não são os mesmos. A vida assenta n'outras bases, a vida fica amarga. Resta-nos a logica e a consciencia. Mas a consciencia admito-a, comtanto que não me embarace. A consciencia que quizeres, comtanto que não me amesquinhe, ou não me iluda. O unico juiz sou eu. O fim da minha vida não é dominar-me, é dominar-te. Todos temos de matar, todos temos de destruir, todos temos de deitar abaixo. A paciencia acabou, a resignação acabou--e acabou a morte. Suprimida esta ideia, suprimido tambem o tempo e o espaço, as velhas não existem; o que está vivo é a ferocidade, a paciencia e a mentira--e tudo espera a ocasião. Espera e desespera. A parte de dentro é que está viva e reclama de pé e de ferro a sua vêz. Notem: nenhuma arriscou um gesto mais brusco. Por mais fél que lhes venha á bocca estão habituadas a engulil-o. Nem com a cabeça tapada se atreveram a olhar a verdade. P'ra dentro! sempre p'ra dentro! E assim succede que não se construiu nunca cathedral com alicerces mais fundos. Está viva. Uma sustentou-se de côdeas, outra sustentou-se de fome. A inveja tambem sustenta, o fél tambem sustenta. Á Araujo só a paciencia e o calculo lhe permitiram viver. Ás vezes tem fome--nunca disse a ninguem que tinha fome. Sabe logo quando entra n'uma casa as palavras que agradam á velha rancorosa e á filha cheia de pretenções a quem ensina as escalas; de quem há-de dizer mal esta semana e bem para a que entra. Esperou como a aranha espera com o estomago vasio. Nunca pediu esmola. Melhor: conseguiu dar-se ao respeito. E calcula, calcula, cheia de fome, o tempo que a magestosa Theodora pode durar. A D. Penaricia é abjecta, mas só a abjecção lhe tem permitido viver. A mentira tem razão de ser--sem abjecção a sociedade repele-nos. Admitimos alguma abjecção, não completa e total, que repugna, mas a precisa para servir de realce e moldura ao nosso quadro. Acresce a isto que teve de viver com despreocupação, de sorrir com despreocupação, de mentir com despreocupação--com a miseria atraz de si. Com fél constróe-se uma vida--o fél dá certa solidez. O peor é meter logo para dentro toda a inveja que lhe vem á bocca. Peor ainda: na velhice misturou-se tristeza ao fél. Não só a D. Penaricia tem inveja, não só a D. Penaricia odeia, mas a D. Penaricia chega ao ponto em que percebe a inutilidade do fél. A Theodora pode aniquilal-a de um gesto. Fél e vinagre--mais fél e tristeza. É um vasto campo de destroços de que desvia o olhar. Foi-lhe então inutil o fél? Se não fosse o fél já tinha morrido. Quando passou fome, quando deu dinheiro ao homem para o jogo, quando perdeu na bisca para a Theodora ganhar e sorrir, o que a sustentou foi o fél. Quando vestiu a filha e a passeou no jardim, com trapos como os outros trapos, o que a sustentou foi o fél. Juntem a isto coisas inverosimeis que se lhes pegam e as reclamam, velhas coisas esquecidas, velhos sapatos d'ourelo, desaparecidos para sempre nas profundidades do nada; velhos habitos, costumes aferrados, miserias chronicas, adquiridas pela vida fóra e que erguem a voz, cabelos postiços, sentimentos postiços, gritos, e o exaspero de quem não pode berrar:--O que eu quero é gosar! o que eu quero é encher-me!--o que representa ainda mais fél e tristeza, mais fél e vinagre. Alli estão frente a frente, e pergunto se estas velhas que passaram a vida á espera d'uma herança não teem direitos. Pergunto se é possivel que a magestosa Theodora continue a viver mil annos e a impôr-se, a mandar, de quico na cabeça e com o cofre atraz de si, e as outras agarradas á meza do jogo e á espera da morte. Pergunto se ter inveja não é sofrer, se ter paciencia não é sofrer. Há que tempos que cada uma d'ellas só pensa em matal-a e arreda a ideia com medo ao inferno. A teia aperta-se. Mais um momento e a teia torna-se visivel. A magestosa Theodora não pode escapar. Todos os dias se tecem fios que a envolvem, todos os dias aquellas vontades actuam, todos os dias o sonho constróe. Sufoca. Formou-se um sêr que tem vida propria, uma atmosphera, uma alma commum, de que fazem parte todas aquellas almas. A magestosa Theodora pertence-lhes. Hoje a Adelia cravou de repente a agulha sobre a meza, e a magestosa Theodora desatou de subito, aos ais, aos ais, como se visse alli lavrada a sua sentença de morte. Todas as phisionomias mudaram alteradas e profundas, subindo á tona das profundidades do universo ou de poços mais profundos ainda. Agora o sonho não é um segundo, o sonho vae ser a vida. --Está certo o senhor? Está certo o senhor padre Ananias, que depois d'esta vida há ainda outra vida de que nos têem falado? Ou há só esta vida? só esta?! E isto é uma _comidela_? O que ellas estavam era sepultadas n'um vasto cemiterio do tamanho da villa. Sobre cada velha havia pó, sobre cada interesse pó, sobre cada phisionomia outra phisionomia. Efectivamente a Theodora é uma insignificancia. Só dá leis. O melhor é matal-a. E todos os olhos se cravam nos olhos do padre, todas as velhas mastigam em secco, todas as velhas dão de repente um salto brusco no vacuo. Ó paciencia que já não és paciencia e trazes veneno na algibeira, com que despeito olhas para traz, para o Hymalaia de inutilidades. Debalde a paciencia tenta dizer ao sonho:--Amanhã--; tenta iludil-o:--Espera...--e a mentira propor-lhe uma transação. O sonho toca na paciencia como quem toca n'um nervo, e quando a Restituta vae mais uma vez dizer-lhe á pressa:--Pois sim...--aperta-lhe o gasganete e pela primeira vez na vida a deixa desorientada... Comediante, vê se aproveitas o excesso da tua dôr para praticares uma nova infamia! 21 de janeiro A mesma interrogação se formula em todas as almas: quer então dizer que só vivi uma vida ficticia ao lado da vida e que perdi o melhor da existencia com aparencias? Quer então dizer que tudo para que vivi não existe? Ponhamos a questão! ponhamos a questão! A maior conquista do homem, Deus, desapareceu para sempre--desapareceu tambem a morte. Ponhamos a questão: façamos taboa raza. Está tudo em terra, o dever, a honra, as formulas e as regras. Ponhamos a questão por uma vêz, nitida, clara e sem subterfugios. Ponhamos a questão e todas as questões... Avançam e recuam logo. Do sonho grotesco ou explendido, ridiculo ou feroz, á realidade vae um passo desmedido. Interpõe-se um muro... Todos passamos os dias a resignarmo-nos. Muitos nem dão pela vida. Há sêres que tanto faz estarem vivos como mortos. Outros nunca repararam sequer na sua verdadeira phisionomia (porque até a nossa phisionomia é mais verdadeira que real). Em alguns o murmurio das vozes é tão afastado que não chegam a interpretal-o... Há-os que sahem da lucta esfarrapados, há-os cheios de reticencias e que mal visionam o mar morto indiscriptivel. O que os farrapos custam a largar! o que o muro custa a deitar abaixo! Pesa-lhas a vida anterior, o habito reclama-os. Adhere-lhes o infinito e as colicas, a usura e o fél. E sobre tudo isto há a contar tambem com a imbecilidade e a apagada, inepcia. Há a contar com a langonha que tambem tem o seu sonho. Há a contar com o que se arrasta no escuro, com olhos brancos, com olhos vagos para a lua e para o sonho. Há a contar com as velhas encardidas de habitos e de fistulas. Em sêres amorphos e aguados, quasi inertes, no fundo remexe ainda um resquicio de sonho, que se traduz no mesmo gesto pautado, na mesma mimica, e no olhar, onde, até na imbecilidade cerrada, se distingue não sei que de temeroso. Por isso a questão não é facil de resolver. Por isso o Anacleto ainda não a matou. Ainda não conseguiu deitar o muro abaixo. Não é o que se pode dizer na praça, porque a praça venera-o. Não é tambem que a ideia de a matar o assuste. A villa conhece o seu escrupulo e honra-o. Nunca deixou de pagar uma lettra. Mas há não sei quê que o contraria e se opõe. Tambem as velhas se deteem, tambem o Santo se detem. Mas a maré que ahi vem sobe sempre. Ao mesmo tempo entontece-os e ao mesmo tempo perturba-os.--Eu não quero vêr! eu não posso vêr!--e tenho de me olhar cara a cara, tenho por força de te admitir, tu que és o meu verdadeiro sêr, immenso e profundo, com raizes em toda a lama e braços que chegam ao céo.--Eu não sei d'onde vem isto, e isto aturde-me. Olha como sorrio para ti, como finjo que sorrio de mim e de ti que te pões a falar. O gesto que eu faço, não me pertence, perturba-me o som da minha voz. E a noite é cada vez mais cerrada...--Ninguem quer achar-se frente a frente com o seu proprio phantasma. Nem tu, nem eu. Fugimos-lhe sempre. E, se succede encontrarmo-nos, quedamo-nos com um sabor que nunca mais se esquece. Um passo está dado, falta dar outro passo. Custa...--Ao que quasi todos se apegam não é a grandes acções, é a simples peripecias. As existencias que se nos afiguram dramaticas são cheias de ninharias, de ideias fixas e de paciencia. O Torres engrandece a mania de copiar inutilidades: d'aqui a dois dias ou d'aqui a dois seculos, ainda o encontras curvado sobre o mesmo manuscripto, onde traslada o folhetim do _Seculo_. Á Araujo que dá lições de piano é desespero inteiriço. O honrado Elias de Mello vê o tratante Elias de Mello pôr-se a caminho e não o pode deter.--Ahi começas tu tambem a perceber que a tua vida foi um mero simulacro, que, a tua bondade for sempre um simulacro, que a tua felicidade não passou d'um simulacro...--A D. Fufia, que há muitos annos está morta por dizer mal, que nunca se atreveu a dizer mal, e que, quando ia a dizer mal, dizia logo bem de toda a gente, rompe agora a abocanhar todos os ridiculos, todos os orgulhos, todas as vaidades:--O que isto consola!...--Divagam, falam queiram ou não queiram com os proprios phantasmas, monologam, discutem, gritam. A cada passo uma interrogação exige resposta, a cada passo um abysmo aberto...--D. Leocadia, o meticuloso dever foi a tua vida e agora descobres que o dever não existe, descobres que tudo aquillo para que viveste não existe, e que existe outro dever maior e mais vivo. Descobres que as palavras não te servem de nada. Descobres que tens d'ir de encontro ás questões e não as podes desviar do caminho. Descobres que por tuas proprias mãos criaste uma creatura disforme, que alimentaste de mentira. E, a esta luz que te dá de chapa, descobres que a tua caridade e os teus escrupulos eram uma lucta de vaidade e de medo, de palavras e de instincto, onde não entrava uma unica verdade. Descobres que criaste um sêr falso que abominas e te abomina, e que não te podes separar d'esse horrôr. Descubro tambem que errei a vida, e não sei recomeçar a a vida, e que tudo que fiz não fui eu quem o fiz, mas o outro que me mete medo, e que tanto vale a minha vida que perdi a arcar com Deus, como a da Telles de Meirelles que a gastou com um trapo. Com um trapo e palavras, ambos subvertemos o mundo--um dia, uma semana, um seculo.--Examinando bem a questão, meticuloso Anacleto, uma palavra bastou para te deter... Examinando bem a questão reconheces que foram as conveniencias... Has-de arrepender-te até a consumação dos seculos. O mundo vesgo que em mim descubro no outro compartimento, é o mesmo que em ti descobres. Faz esgares como certos rictos indecisos que se formam á tona dos pantanos. Todos sentimos atraz de nós um mundo, outro mundo, outro mundo de ninharias, de palavras sem nexo, de coisas que perderam a expressão, de apetites que nunca se realisaram--todos cobrimos isto de aparencias. Passamos a vida a conter outro sêr--outra coisa--outro espanto. Há um fio invisivel que ninguem se atrevia a ultrapassar. Uma ordem que ninguem rompia. Até a colera e o desespero mantinham certo verniz. E agora descobrimos todos ao mesmo tempo, ó meticuloso Elias, ó impoluto Melias--com risca e vinco, com vinco e risca--que resolver matal-a é facil, mas para a matar temos de deitar abaixo legoas de espessura. Deixamol-a morrer ou não a deixamos morrer? E nem sequer podemos iludir a resposta. A mesma coisa desconforme entra pelo nariz e pela bocca do Santo. Entupe-o. Esvasia-o e endireita-o depois de amolgado. Outro sêr, n'um estonteamento, bate com a cabeça pelas paredes.--Mas então?... pergunta atonito.--Mas então posso, atrevo-me?... Tudo isto era uma mistificação? Mas então tudo é possivel e posso realisal-o ámanhã, hoje, logo? E estas teias de ferro eram teias d'aranha?... Mas então o medo, a morte, o inferno...--Aqui estou eu com esta mulher a meu lado, e sem querer pergunto a mim mesmo...--Mas então?...--Sim, resta-me certa pena e saudade, mas o interesse levanta a cabeça e deita as suas contas tão baixinho que mal lhe ouço fazel-as...--Teçamos, teçamos todos a nossa teia esplendida, vulgar ou grotesca..:--Mas então...--E encaro com um mundo novo, a que por ora nem eu, nem tu, nem nenhum de nós se afoita. Só as interrogações são cada vez maiores em todas as almas. Todos os bonecos arreganham os dentes e a Porphiria sua inveja. Efectivamente não se comprehende para que vivem certos sêres inuteis, que atravancam a nossa existencia e um pequeno incidente podia suprimir. Efectivamente não se explica que bastem alguns fios imateriaes para nos conterem, e que um vidro de vidraça seja suficiente para nos separar da vida. Até a D. Restituta que era um poço sem fundo, desata a repetir os segredos de toda a gente, fazendo gestos na obscuridade com o guardasol de panninho. --Acuso! acuso! acuso! Tocou-lhe tambem a vez. Usou-se a obedecer, a dizer a toda a gente que sim. Hoje uma gota de fél, ámanhã outro resto amargo. Já não sabe dizer senão que sim, já não consegue apagar as dedadas que lhe imprimiram. Coçada, coçada, coçada. Fez as vontades á D. Procopia, á D. Felizarda, á D. Herminia. Sujeitou-se ás vontades do conselheiro Pimenta, quando por desfastio lhe fez um filho. Orgulho? Ninguem tolera, ninguem concebe, que a Restituta tenha orgulho; ninguem tolera, ninguem concebe que a Restituta tenha vontade. Habituou-se, apelintrou-se. A Restituta é um reflexo. Diz-se tudo deante d'ella. Há familias separadas por odios seculares: só ella entra e sae n'essas casas quando precisam communicar. Naquella alma incutiu-se até profundidades desconhecidas o respeito ás pessoas ricas, a consideração ás pessoas importantes. Que tem a Restituta que desata aos gritos: --Acuso! acuso! acuso! Debalde lhe tapam a bocca. É um vomito, um chorrilho de palavras precipitadas--a vida de toda a gente--são os despejos entornados. Em vão dez, vinte mãos anciosas se lhe agarram ás guellas abertas: aquillo sae n'um jôrro impetuoso--tudo quanto estava recalcado, todos os segredos que ouviu, todas as miserias que lhe deitaram para dentro, e, se pára um momento, é para tresvariar n'um riso feito de todos os risos postiços, n'um esgare feito de todos os mil e um esgares que acumulou durante a vida:--Eu tambem tenho um filho! eu tambem tenho um filho como voces!--Impurram-na, escorraçam-na, e ella agarrada ao guarda-chuva ainda brada: --Acuso! A vida irrompe, o sonho irrompe como hastes de cactus, nascidas d'um dia para o outro, com escorrencias nas extremidades ridiculas e pueris. Arredei sempre isto--isto que estava ao lado da vida. Nunca quiz vêr isto, fingi sempre que isto não existia. Tambem tu o arredaste... E isto existe. E isto é enorme. O que ahi está fede. Tresanda. Sua viscosidades. Apega-se. É uma marcha furiosa e desordenada. É a Vida. São todas as ancias soterradas que se não chegaram a exprimir. É um inferno de gritos e de impulsos, sonhos impossiveis de sonhar, aquecidos a bafo e ternura, sem forma nem côr, ou admiraveis sonhos de tragedia. Mais um passo e tudo que estava recalcado, tudo que estava morto e sepultado, toda a podridão, todo o desejo encarniçado e oculto, toda a mistella que lucta ás cegas na escuridão para vir á superficie, desata a falar á tôa. Mais um passo e o sonho é realidade. Fala a infamia e o grotesco, fala a candura ao mesmo tempo. 23 de janeiro Ao Santo só lhe resta orgulho. O sonho descarna-o e deixa-lhe o orgulho intacto. Debalde préga, debalde lucta comsigo mesmo.--Eu já não creio no inferno.--E detem-se com espanto deante dos destroços, das formulas, da insignificancia, dos simulacros que foram a razão da sua vida. Tudo que lhe enchia o mundo não existe, tudo que não existia lhe parece maior:--Eu quero crêr! eu quero crêr e não posso crêr!--Debalde insiste comsigo mesmo:--Nossa vida aqui é nada, nossa vida eterna é tudo. Nosso destino é a morte. Só assim posso explicar o universo, só assim posso comprehender o universo.--Tudo o que se tinha apoderado do seu sêr até ás mais intimas raizes, tudo o despedaça até ás mais reconditas raizes. Dilacera-o.--Não me atrevo sequer a olhar a vida, a olhar para mim, a olhar o pelago desordenado. Eu quero vêr e não ouso! Eu quero crêr e sinto-me pequeno e grotesco ao lado d'isto! D'esta coisa monstruosa que não posso arredar. Não posso arredal-a.--Para ti tambem o problema é insoluvel, D. Leocadia, que resurges com o vestido coçado, mais secca e mais verde. Estaes ambos encalacrados.--Tu viveste sempre para Deus e para o inferno e nem sequer o inferno existe. E tu procedeste sempre segundo a tua consciencia, regulaste tudo conforme a tua consciencia--e tu e tu--e ahi estaes ambos atonitos e verdes, resequidos e verdes, desesperados e verdes, sós a sós em frente d'uma figura que vos não larga. --Trouxe-a para casa, sustentei-a, mas nunca a pude vêr, diz ella--Deste-lhe codeas mas não podeste amal-a. Sustentaste-a por caridade, sustentaste-a de restos para calares uma voz tremenda. Ella foi peor que uma creada, foi uma creada que se não pode despedir, presa pela gratidão--observa a outra D. Leocadia--Fala claro, fala alto. Atreve-te.--Atrevo-me. Toda a minha vida fiz o sacrificio de a manter, toda a minha vida por caridade a tive junto de mim, calada e subalterna, amachucada e sem vontade, para cumprir perante Deus o meu dever. E agora a consciencia exige de mim?...--Exige.--Exige de mim, porque o meu filho lhe fez um filho, que o case com a orphã, sustentada de esmolas, calada e viscosa?--Exige.--Por quem eu só sinto repulsão?--Exige, e o peor de tudo é que lhe deste restos, mas não podeste amal-a. Torce-te, torce-te mais ainda. A cada camada de verde pega-se-te logo outra camada de sonho. A D. Leocadia coçada e secca sacode em vão e arreda outra D. Leocadia inteiriça e coçada. Tambem o Santo está aqui, só e o pecado, só e Deus, só e o desespero: «Deus existe--ou Deus não existe. Se Deus existe, se tenho a certeza que Deus existe e se interessa pela minha dôr, esta vida transitoria é um unico minuto com a eternidade á minha espera. Tudo me parece facil. Que exige o meu Deus? Que me reduza a pó e despreze a aparencia? Tudo é vão deante da eternidade que me espera. O meu Deus enche o mundo. Só o meu Deus exista, e todo o resto no universo é tão pequeno e tão futil, que reclamo mais dôr, mais sofrimento, mais fome. Que a desgraça caia sobre mim com todo o peso da desgraça; que a dôr me descarne até á medula. Despreso a dôr. Exijo-a deante da eternidade. Sou capaz do andar de rastro com a bocca no pó, sou capaz de sofrer todos os tormentos, com a certeza de que me livro d'uma eternidade d'angustias para vêr Deus. Venham todos os escarneos, todos os gritos, todos os suores da agonia--venha meu Deus a cruz! Até á morte hei-de crêr no que creio. Sem crêr não sou nada--sem crêr não existo--sem crêr não comprehendo a vida. Preciso de caminhar para um destino. Crêr é uma necessidade absoluta, um sentimento primario, a propria vida, sua razão e seu fim. Tenho necessidade de Deus, como do ar que respiro. Sem elle a vida é desconexa e atroz; peor, é monstruosa. Creio porque creio. Se a vida se reduzisse só a isto, a vida seria abjecta. Dentro em mim tudo me fala n'uma lei, n'uma logica, n'uma razão de ser, n'um sentido. Eu vejo Deus, eu sinto Deus. Mas se Deus não existe--se Deus não existe que me fica no mundo? Sou nada no infinito. Fui tudo--e sou nada. Leva-me a força bruta. Sou o acaso na mistificação. Sou menos que nada no monstruoso impulso. Se Deus não existe tanto faz gritar como não gritar. Não tenho destino a cumprir: saio do nada para o nada. Nas mãos da força bruta que sou eu no mundo que grito, que discuto, que clamo?... Atraz deste infinito vivo, há outro infinito vivo. Atraz d'esta impenetrabilidade, há outra camada de impenetrabilidade, outra vida ainda, outro desespero sofrego. Não encontro aqui logar para Deus que me ouça, que me atenda, ou que saiba sequer que existo. Os gritos são inuteis, tu não me ouves. Estou só n'este absurdo que me impele e esmaga... Que não houvesse o céo, que existisse o inferno só o inferno! E nem o inferno existe!... Se Deus não existe... O peor de tudo é que eu digo e afirmo,--Deus não existe!--mas na realidade não sei se Deus existe ou não. Não há nada que o prove--ou que prove o contrario. O peor de tudo é que eu sinto uma sombra por traz de mim e não sei por que nome lhe hei-de chamar. O peor que podia acontecer no mundo foi alguem pôr esta idéa a caminho. Mas mesmo que Deus não exista, tenho medo de mim mesmo, tenho medo da minha alma, tenho medo de me encontrar sós a sós com a minha alma, que é nada, o fim e o principio da vida e a razão do meu sêr. Mesmo que Deus não exista e a consciencia seja uma palavra, há ainda outra coisa indefinida e immensa diante de mim, ao pé de mim, dentro de mim. Vem a noite e com a noite interrogo-me:--Existe?--O que existe é monstruoso. Não ouve os nossos gritos. O que existe é o espanto. O que existe reclama dôr. Sustenta-se de dôr e não dá por ella. O que existe então é isto--é um ulular de dôr na noite--no turbilhão, no escuro. O que existe são gritos, e eu sou levado, arrastado n'esta mistificação. Por traz de mim há uma coisa que me apavora, por traz de mim há uma coisa cada vêz mais sofrega, cada vêz mais phrenetica--e que de cada vêz exige mais dôr. Espera: a harmonia não existe--existe a dôr; a belleza não existe--existe a dôr; Deus não existe--existe a dôr. E há um momento apenas para realisar a vida. Nesse momento de paixão todas as forças se concentram e ponho o pé no mysterio. Tenho de aproveital-o. Tudo o que exista na noite immensa, na noite ignobil, é peor que Deus. Tudo o que existe me faz horrôr, tudo o que existe entre as forças desordenadas me causa espanto... E por mais que grite, por mais que proteste, estou aqui diante do incomprehensivel, vivo no nada, de pé na voragem. E para lá há uma coisa infinita, um negrume infinito, uma vida infinita. É immenso--é inutil. Sou menos que nada. Só deparo na minha frente com infinito sobre infinito, com o negrume sufocado, com o negrume impassivel, com o negrume vivo e immenso, desesperado e immenso. Só contei comtigo meu Deus--e agora quero crêr e não posso crêr. Estou aqui defronte do espanto e sinto-me perdido na vastidão infinita. Tudo o que disse--disse-o deante do vacuo, tudo o que sofri--sofri-o deante do vacuo. Todo o meu desespero, a minha dôr, a renuncia, os esforços, o calvario deante do vacuo!» O maior drama é o das consciencias. O maior drama é arredar todos os trapos da vida, para poder olhar a vida cara a cara. O maior drama é ficar só com o vacuo e em frente do espanto, É dizer: nada disto existe. Só dou no meio d'este assombro com uma coisa desconexa e abjecta, a discutir comigo mesmo, levada por impulsos. O maior drama é não encontrar razão para isto que vive de gritos e se sustenta de gritos--e ter de arcar com isto. Perceber a inutilidade de todos os esforços e fazer todos os dias o mesmo esforço. E isto não nos larga. Sacode-nos e abala-nos até á raiz, n'uma discussão que nunca cessa. Nem em mim, nem em ti, D. Leocadia. Essa figura tremenda insiste cada vez mais alto, cada vez mais sofrega, cada vez mais desesperada. Ouvel-a diante de ti, ao pé de ti, dentro de ti, mais coçada e mais verde, com outra camada de sonho e outra camada de verde? --O dever? que dever? Antes a deixasses morrer de fome. --Mantive-a para cumprir o meu dever. Aqui tens tu a minha consciencia, aqui tens tu a tua consciencia, e aqui está a consciencia da D. Penaricia. E tanto vale para o caso o genio em frente da consciencia, como o ridiculo em frente da consciencia.--Valeu a pena não matar?--pergunto--perguntas--perguntam. Aqui estou em frente d'isto, com um segundo e todo o seu esplendôr e todo o seu espanto e todo o seu desespero, e pergunto, perguntas, perguntam, se o que se chama a honra e o que se chama a consciencia e o que se chama o dever, teem forças para se me impôr. Oh palavras não! A pergunta não é como as outras para ser iludida com subterfugios. É a unica que carece de resposta imediata como um punhal que vae direito ao coração. Vê tu que, apezar de tremulo, estou calmo... O problema é capital. Pergunto se toda a lucta foi inutil, se todo o fogo do inferno que recalquei, foi inutil? Pergunto, perguntas, perguntam se as horas para nos contermos foram uma estupida mistificação. E as boccas remoem em secco no escuro, e as mãos sofregas palpam os vestidos de ceremonia. Estão decididas a tudo. Vem-lhes á supuração o antigo fél e vinagre, os pequenos desesperos, e os grandes desesperos. Tudo está vivo. Cada sêr formula uma interrogação. Segue-se que se os paes teimam em viver, transtornam todos os planos, todas as regras e todos os preconceitos estabelecidos. Segue-se que acima de teu direito está o meu direito. Segue-se que a construcção antiga desabou, e a um mundo novo correspondem creaturas novas. Segue-se que todos os problemas se reduzem a um só problema--o dos mortos. Segue-se que o muro é uma insignificancia. Tapa o céo e a terra, não existe montanha de tanta espessura--é uma teia d'aranha. Sôa a hora da outra coisa disforme o aluir para sempre. Por traz do muro é que está a paixão, o crime, o desespero e a vida esplendida e feroz. É preciso deital-o abaixo. Os tumulos estão gastos d'um lado pelos passos dos vivos e do outro pelo esforço dos mortos. FEVEREIRO 1 de fevereiro Chega fevereiro. Primavera. Dá logo rebate o tojo bravio. A aspereza é a primeira a sentil-a. O tempo está funebre. Ouço o ruido calamitoso das aguas. Só os botões dos salgueiros estalaram. Nos galhos despidos entreabrem-se flocos friorentos e pelludos. Corre um vento glacial e as arvores encolheram-se transidas. Mas n'esta frialdade sinto já ternura. O ar de fevereiro é outro: é morno. As rãs, de barriga no lôdo, coaxam de satisfação, pegajosas e molles como a herva verde e humida. E, d'um dia para o outro, crescem á tona da poça azul, encastoada na terra negra, fios d'herva a reluzir. Tinta entornada. O ar sabe bem: sabe a bravio. Ao longe o sol trespassa os montes. Manhã de nevoa e oiro gelado. Uma arvore nova cobre-se entontecida da primeira flôr. Apressou-se, enganou-se... É uma haste de pele luzidia, tres raminhos abertos no azul. E isto envolto em ternura, tanto faz que se trate d'uma arvore como d'uma rapariga. Sente-se n'esta atmosphera humida a seiva inchar os botões tumidos das arvores. Volta a chuva gelada: a primavera tenta, vem com hesitações. Muda o scenario. Acinzentam-se os montes por onde sobem arrasto pelas pedras rôlos de fumarada. Acastelam-se no céo as grandes nuvens esponjosas. Chove. A voz é outra. D'onde a onde descerra-se a cortina vaporosa e emergem os montes brutos e compactos. Nos abrunheiros bravos estalam os primeiros botões. E quanto mais bravos, mais flôr deitam. É uma prodigalidade. Noite. A escuridão, o silencio, o esplendido céo todo d'oiro sobre a massa negra dos montes. É isto e os gritos da moichela aos ais d'aflição. Eis torna o silencio, e a alma sufoca de espanto... O pio triste dos sapos irrompe de profundidades ignotas. E outra vez o silencio, a noite imutavel cheiinha de estrellas--e sempre o mesmo fio d'agua, misturando ternura a este espectaculo d'assombro. É só isto, e a muralha disforme ao fundo, ainda palida de luz. A primavera é um phenomeno electrico. Na primeira tentativa da flôr há fealdade e ao mesmo tempo candura; depois, da noite para o dia uma gôta de tinta como uma gôta de leite. Basta que á nevoa se mistura o sol, para entreabrir, ainda informe. Todos os sêres, antes de se vestir, são abôrtos: teem medo de nascer bellos. Ás vezes basta um dia. D'um instante para o outro, poeira azul, entontecimento, sonho... E isto não é só material. N'este mysterio há certa dôr, certa tontura, há até espanto. É um olhar que se abre para o mundo. Pela emoção a arvore comunica com o universo e manifesta uma vontade que triumpha sobre a dôr inconsciente. Entre a arvore, o céo e a terra há um compromisso de ternura. 5 de fevereiro O que isto custou na obscuridade do mundo cahotico!... Houve decerto uma primeira primavera, mas as flôres, que hoje são ternura eram então espanto--tentativas frustradas de sonho. Os gritos da floresta primitiva, não os ouço mas estão aqui contidos. E ainda hoje a terra se perturba, porque vae assistir ao mesmo drama. Todo o universo se concentrou para gerar a vida, todo o universo se concentra para a destruir. A villa estremece ao sentir a primavera estranha. Noiva. Noiva a D. Ursula, pergaminho e escrupulo, que fez da vida um pecado, e ao réz de cuja alma liquida se espalmam flôres venenosas. Não há sêr que fique indemne. Até que chegou a vêz á macieira anainha, que um bafo humido-lilaz turba e perturba. Há aqui um encolhido, que nunca sahiu do saguão, que nunca olhou para o céo nem sabe que o céo existe: sente tambem a primavera. Assim me succedeu com um tronco decepado que no inverno meti no fundo d'uma loja: na primavera seguinte tinham-lhe crescido ramos: sentiu-a atravez dos muros, e, com gritos represados, botou um simulacro de flôr. Fevereiro. Primeira noite de luar e de loucura. A primavera toca mais fundo, mais fundo ainda--esta primavera que revolve os vivos e os mortos. Todos deitam flôr. Acordam na profundidade dos sepulchros, com o sonho que levaram para a cóva, com todos os sonhos desfeitos em pó. Há-os que nunca se atreveram a declaral-o. Há-os que o sumiram com receio de sonhar. Há-os estonteados... Ouvel-os falar baixinho, surprehendidos, como se soltassem todos o mesmo ah--de espanto, e se puzessem a falar baixinho uns com os outros?... Fala a poeira, fala a sombra desconforme, fala o pó desaparecido. Na frente uma aparencia--a vida está na multidão que nos impele, a vida está nos mortos. Massa atráz de massa, os mortos empurram os vivos. Sente-se o esforço doloroso. Atraz d'estas mãos, outras mãos de desespero; atraz d'estes olhos sem orbitas outros se esforçam para a luz. O peor era o silencio. O esquecimento é que é a morte definitiva, e por isso o esforço augmenta. Formam uma cadeia infinita, a caminho para a vida e para a dôr; a todo o momento nos falam e nos guiam, e toda a sua ancia é viverem depois que estão no sepulchro. A velha que sahiu da existencia mirrada, continua a trazer o menino ao collo. Outros caminham tropegos, sacudindo a terra que se lhes pegou aos ossos. Eil-os dispostos a sofrer por uma nova ilusão. A vida foi um nada, impregnou-os para toda a eternidade: um instante de luz bastou para lhes dar gosto á dôr. O que elles tentam misturar as suas lagrimas ás nossas lagrimas! o que elles arfam para que o mesmo fluido que nos prende aos sepulchros--onde estremecem--se não desligue da vida que ainda se não tornou visivel! É que não só os mortos mandam nos vivos, tambem os vivos mandam nos mortos. E avançam, empurram-nos... Conservam no fundo do tumulo as manias da outra existencia. Esta velha aperta um trapo ao peito como um filho, com medo de o perder. A moça, mesmo na cóva, dá um geitinho tão lindo ao lençól! Este conserva na concha da mão uma moeda de cobre, e áquella, Maria Antonieta, René reconhece-a mais uma vez por a têr visto sorrir nas Tulherias... Estendem as mãos mirradas para se aquecerem ao nosso lume; guardam nos ouvidos pela eternidade os ruidos vulgares--os mais bellos--o das folhas cahindo uma a uma, o da fonte que corre e que nunca mais tornará a correr, o da voz que lhes falou na hora extrema; guardam nas mãos o ultimo contacto das mãos, e a restea doirada d'este sol doirado ainda lhes reluz nos buracos das orbitas... Deitam-se ao mesmo tempo a caminho do fundo dos fundos e de mais fundo ainda. Mesmo morto o que eu não quero é morrer... Primeiro rebate, da primavera doirada e phrenetica, primeiro impulso que estonteia e deslumbra... Os mortos é que estam vivos! os mortos é que estam vivos! A MULHER DA ESFREGA 7 de fevereiro Do sonho que revolve o mundo cabe tambem uma parte á mulher da esfrega. Arrasta tudo comsigo. Cae o inverno dentro da primavera. Engrandece-a, espalma-lhe os pés, esfarrapa-lhe os vestidos. Está aqui a figura--está aqui outra coisa. Muda de expressão, como se fosse possivel as lagrimas usarem por dentro as figuras humanas, como a chuva ou os passos gastam a pedra. Aquillo dura um momento, transparece um minuto, mas esse minuto chega. Logo á submissão e á humildade se mistura um nada de entontecimento. Quasi nada. Trouxe sempre comsigo debaixo do chale um resto de sonho amargo. Remoeu-o transida de frio pela vida fóra, quando fez recados, aqueceu a agua e rachou a lenha. É um nada e ampara-a. Atreve-se... Toda a gente precisa de qualquer estonteamento para suportar a vida. Sonho gasto que andou por todos os caminhos, com pés espalmados como a recoveira. Há sonhos humildes que ninguem quer sonhar: servem á Joanna que quando os usa os vira do avêsso. Velha quer dizer experiencia e seccura, e a Joanna não tem experiencia nenhuma da vida. Conserva a ternura intacta. Ninguem na ouve. Tem uma filha, nunca fala na filha. Ás vezes pousa em mim os olhos turvos: --O corpo pede-me terra. Ainda hoje não comeu senão uma côdea que lhe deram. Aproveita tudo. Anda sempre absurda a fazer contas como um avaro. Os trapos são sempre os mesmos: secca-os no corpo. O monologo é sempre o mesmo com que enche a vida toda. É sempre a mesma obstinação desconjunctada, como se as palavras gesticulassem para o lado de dentro, e a mesma ideia que a persegue o que debalde repele. Seja o que fôr, a Joanna esconde-o muito fundo. Ás vezes fica suspensa e alheada. Mal pode arrastar as pernas trôpegas. É pelle, meia duzia d'ossos, um cangalho, que sente uma absoluta necessidade de repouso, de terra para dormir. O frio é de morte. Entranha-se-lhe até aos ossos, e a velha lá segue com o saquitel de borôa e os olhos turvos de tanto ter chorado. Vê sempre não sei quê que a não larga. --A tua filha?...--E nunca fala da filha. N'aquelle desespero percebo uma palavra outra palavra. Sobre isto choro, sobre isto lagrimas em barda, como se nascesse uma fonte na escuridão. A Joanna chora sempre, chora por tudo e por nada, chora por si e pelos outros. Não se sabe onde vae buscar tantas lagrimas. A ternura é humida. Não comprehendo este sêr. Viro-o, reviro-o. É um nada com duas ou tres idéas no caco. Cheira mal, cheira a aziumado. Passou a vida a aturar os doentes e a vida repele-a. Apega-se e a vida acaba por fazer de Joanna de unhas roídas, pelles no pescoço e olhos turvos, uma figura disforme. Irrita-me e prende-me. Sei como a Joanna se encortiça d'um lado e se faz sensibilidade do outro. Posso dizer quasi dia a dia como as mãos se lhe deformam, como os olhos se lhe aguam, explicar como a mulher da esfrega se parece com o panno da esfrega. Não sei explicar o resto. Com este molho d'ossos e alguns farrapos no corpo, há um fiosinho d'oiro a reluzir, um fio que teima em aparecer á tona e em se misturar a agua de lavar a louça. Annos, velhice, desgraça--e teima. Teima até ao caixão. Reluz sempre. Tem o mundo contra si, a vastidão sofrega, o rodilhão do universo em perpetuo inferno. Resiste. Parece facil de suprimir n'um sôpro. Resiste a tudo, esse pó necessario como o polen á aza para voar. Um nada com a noite deante de si, com a voragem deante de si. Tudo se gasta e desgasta--não o usam. Tenho passado noites em debate com este sêr absurdo. Acabo pelo desespero. Enfurece-me e apega-me ternura. Uma bocca enorme que se fecha sem emitir palavras, os mesmos olhos inocentes de pasmo, e um ronco que lhe vem dos gorgomilos como do fundo dum fole. Mais nada. Sacudo-a--deita sempre a mesma agua. O mundo é uma voragem. Tanto faz. A vida é uma mistificação. Debalde. Responde-me com ternura. Responde-me com uma vida humilde de desgraça e lagrimas. E outra coisa exprime a figura: surprehendo atravez dos farrapos e do ridiculo, um nada immenso, uma força immensa que transmite outro nada: algumas lagrimas para chorar, outro ventre para parir. Um poder de se perpetuar--para gritos. Impelem-na--impele. Debalde a dôr sua, a Joanna caminha molhada e tropega, mas caminha. É inutil a desgraça agarrar-se-lhe. Mais funda porque é muda como a noite. Faz parte da velha. Envolve-a, cresce, enrodilha-se-lhe. Sua. Só geme:--Anh...--Resiste á desgraça, resiste á vida, resiste ao ridiculo. A velha consegue ser maior que a desgraça. Nem toda a agua de lavar a louça suprime este facto. O meu desespero termina aqui, deante d'esta creatura que não comprehendo, de mãos roidas e um chale velho sobre o corpo mirrado de ternura. Estraga-me a vida toda. Perturba-me a logica. Mete-me medo. Tanto faz que a Joanna viva ou morra, que grite ou se cale: as mesmas estrellas no céo, a mesma grandeza absurda, o mesmo mudo espanto. E no entanto n'esta confusão esplendida só a sua alma comunica com a minha alma. A sua dôr, a sua mentira é que importam á minha vida e á tua vida. Negrume e um arranco: exaspero para manter de pé um resto de ilusão. Mal se fecha abre os olhos atonitos. Não diz palavra. Por fim chora, as lagrimas correm-lhe pelos sulcos das lagrimas e mistura-as ao pó de sonho com que foi entretendo a vida, a pequeninas coisas gastas e poidas--ao sonho que ninguem quer, ao sonho que ninguem usa, o que em todo caso a sustenta e a enleva, como as bonecas das creanças pobres, de trapo e com dois olhos abertos a retroz, que se lhes afiguram rainhas. Há um misterio na vida de Joanna, e no entanto na sua alma lê-se como atravez d'um vidro. Tudo n'ella será falso excepto a dôr. Não sei, ninguem sabe o que tem. Sinto que se obstina como se fosse de pedra e dentro houvesse outra Joanna a dar com a cabeça pelas paredes. Não ouço o que diz, nem sei o que sofre--mas a desgraça sua n'aquelle monologo sem pés nem cabeça, a que não ligo sentido. Debalde o sonho se encarniça. O sonho, que não cabe no mundo, cabe entre as quatro paredes daquelle caco e revolve-a. Fecha a bocca como se tivesse medo de falar. Não quer vêr--e há-de por força vêr. Persiste em manter de pé o resto da ilusão em que passou a vida, obstina-se o ciclone vivo em pol-a frente a frente á desgraça. É sonho contra sonho. O que ella não quer é vêr, e só ella sabe o que não quer vêr. Não pode com o pezo desconforme que a torna grotesca, e de todo se assemelha agora á arvore do quintal: mais sonho--mais flôr. Abre uma bocca enorme, fecha-a sem emitir som. Mostra as mãos, aperta os gorgomilos e o sonho arranca-lhe farrapos. Há-de acabar por lhe extorquir a dôr... Sua vida é um monologo, que eu não sei traduzir. Nossa vida é sempre um monologo de interesse e de sonho. Sempre o mesmo monologo interior, de dia, de noite, quando acende o lume ou quando põe em mim os olhos turvos. Talvez os bichos monologuem assim, muito baixinho, p'ra dentro, só dôr, sem entenderem a vida nem explicarem a vida. A desgraça está alli ao pé, cada vez mais secca, e nem o sonho nem a desgraça conseguem arrancar-lhe aquillo de vez para fóra.--A minha filha...--Mas isso não basta! não chega! Mais dôr, mais sonho. Abre a bocca cada vez maior e não tira outro som dos gorgomilos: só emite um ronco. A desgraça e o doirado tingem e entranham-se na agua de lavar a louça. Há-de acabar por falar... Até agora por mais que faça sae-me das mãos ridicula. --E vae eu disse-lhe...--E estaca, esfarrapada e atonita. Sacode-a o sonho com desespero.--Anh...--E como n'aquelle caco espesso só há duas ou tres idéas como traves mestras, e ternura n'aquella alma obscurecida, não avança mais palavra. E a desgraça sua e tresua. Grotesco, grotesco, e desespero n'este grotesco, e dôr n'este manequim desconjunctado, com um chale a esvoaçar e a bocca espremida. Anda aqui um sêr immenso que lucta com um sêr humilde e o amolga até á caricatura. Não pode mais--e ainda aperta a bocca... O que tu lhe fizeste, sonho! o que tu lhe fizeste!... Tornaste-a disforme como a sombra d'um bonifrate projectada sobre um ecran.--Creou aquillo a bafo, trouxe-o sempre comsigo debaixo do chale, com olhos agudos e tal ar de aflição que parece tonta.--A minha filha...--e tu arrastas-lho com um trapo por todos os esgotos. Debalde se debate: tem de falar... --A minha filha casou rica, a minha filha tem uma sala de visitas (é o que a Joanna mais admira no mundo) como a das outras senhoras. A minha filha... não posso! não posso!... E para não avançar mais a Joanna ri-se de si propria. Quem a não soubesse capaz de exagerar, diria que exagera. Ajunta pormenores embaraçosos a essa historia que se parece com a mulher da esfrega pelos empurrões e pelos trapos. Repete-se, hesita, volta ao principio, sem termos para se exprimir. E atraz das palavras sem ligação sente-se cada vez mais dôr: o panno sujo da esfrega está embebido de lagrimas. --Tenho uma tristeza metida em mim... A narrativa desconjuncta-se: ganha em dôr e em grotesco. Enche a bocca, perde em naturalidade, adquire em imponencia. O tom carregado é de farça com residuos de lagrimas. A desgraça ri-se da desgraça. Augmenta as côres de exagero, carrega o traço, e a tinta engrossa: --A sala de vizitas! a sala de vizitas!...--Representa com ademanes e mesuras grotescas a sua entrada n'uma sala em passo medido de procissão. Avança um passo, recua um passo. E ahi surgem agora as vizitas da filha, umas atraz das outras com espalhafato. A Joanna prolonga demasiado a scena para as velhas se rirem--e tem os olhos arrasados de lagrimas. Insiste, para-lhe na bocca o riso desdentado como se tivesse um nó no gorgomilo. Teima, e desata a chorar.--E vae eu disse-lhe...--Reage e começa logo a rir. É um quadro extranho e sem realidade. No fundo, a tintas que resumam desespero, agitam-se figuras com penantes desconformes e sedas amarellas. Primeira dama, segunda dama--e os chapeus teem penachos doirados, os vestidos recortes de espanto. E as mesuras repetem-se n'um acesso. Terceira dama de cauda a rasto, outra dama, cumprimentando para a direita e para a esquerda, e já nos longes enfumados, sempre com exagero e grotesco, outras damas de espavento--da alta roda... E o sêr esfarrapado mexe o craneo, para cima e para baixo, com um sorriso á sobreposse. Postiço sobre postiço. Representa--e todas estas figuras parecem sufocadas, todas estas figuras que ella cria ridiculas, mal dão dois passos, estão mortas por desatar aos gritos--todas estas damas inverosimeis, de rôxo, de amarello e de verde, pariu-as o grotesco com dôr. A Joanna imita as contumelias, olha em roda, e recebe-as pé atraz pé adeante. E já o absurdo augmenta, a dôr augmenta e trasborda, quando outras damas de farça, outros manequins forjados pelo sonho, se agitam de cá para lá na sala de vizitas, engrandecida e transformada na sua bocca n'um salão doirado. É o ponto em que as velhas gosam, sentadas á roda da Joanna, em que a D. Felicidade exclama:--Ai que eu não posso mais! ai que eu até fico doente! Vem-me a sufeca.--Estão ali todas. Está a D. Herminia, e com a D. Herminia um mundo de inveja paciente; a D. Penaricia, e com a D. Penaricia uma alma onde repousam exhaustos, como n'um vasto dormitorio, todos os despeitos d'uma existencia inutil; a D. Fufia com os cabelos arripiados, e por traz da D. Fufia as ruinas devastadas de Carthago. Está a mulher tropega, amachucada, com olhos aguados de cão. E com isto ridiculo, e sobre esta tragedia ridiculo. Já a historia entra n'outra phase. Tantas vezes se lhe tem perguntado porque é que a filha a deixa andar na esfrega, que a velha acrescenta pormenores embaraçosos. A narrativa torna-se obscura, dolorosa, hesitante, como se fosse arrancada aos pedaços d'uma alma espesinhada.--E vae eu disse-lhe... --Hoje é que ella está que até parece o Taborda! Na realidade a Joanna é insuportavel. Repete sempre as mesmas coisas, depara-se por todos os cantos como um trambolho. De noite, quando se pilha na enxerga, cuido que moe ainda o mesmo sonho:--A esta hora lá está ella... a esta hora... A esta hora a minha filha...--E os olhos cerraram-se-lhe de extasi, de dôr ou de espanto no sordido buraco. Todas as noites a velha, quando sae da esfrega, dá uma grande volta no negrume, alta, ossuda, molhada até aos ossos. Ninguem sabe onde a conduzem os passos tropegos, a falar só, a remoer o sonho que a sustenta e ampara. Por vezes palpa um pilar de granito, por vezes debate com um sêr mysterioso, uma questão insoluvel. Sigo a sombra esgalgada, que gesticula e reza. Pára n'uma ruella, senta-se á porta d'um casebre. Bate, não lhe respondem. Espera, e outra vez timidamente se atreve a chamar...--De dentro sacodem-na palavras bruscas, e a velha torna por o mesmo caminho, encharcada até aos ossos... Esta casa não é como as outras casas, esta sala não é como as outras salas, nem esta rua como as outras ruas. 8 de fevereiro O sonho é um--a realidade é outra: a realidade é uma figura só dôr. Remoeu aquelle sonho quando seguiu a filha pelas viellas. As mãos seccas de desespero tentaram em vão arrancal-a á desgraça. A filha desceu mais fundo, a Joanna desceu mais fundo. Deu-lhe a vida e suportou o escarneo. Andou nas mãos dos ladrões e tem tal ar de aflição, que parece tonta. A desgraça pega-lhe pela mão e leva-a mais fundo ainda: aperta-a de encontro ao peito descarnado... Não faz idéa nitida da vida e da morte, nem d'aquella viella com mulheres. Atura a miseria e a desgraça. Suporta os vestidos encharcados no corpo. Foi d'isto que ella fez sonho--das noites de dôr e do riso dos ladrões.--A usura da vida e a dôr represa, engrandecem-na. Nunca se queixou. Escondeu de todos a sorte da filha. Guardou aquillo para si, noite a noite, toda a vida. Bronco e dôr, uma carcassa e farrapos, e nos olhos não sei que expressão que a faz mais baixinha:--Aqui estou para te servir.--Passou por tudo, e um resto d'ilusão bastou-lhe para poder viver. Sós a sós a figura tem uma expressão descarnada e reflectida. Nessa noite, á meia noite, nasce o menino entre ladrões. Vem morto ao mundo. A Joanna pega-lhe a tremer com as mãos da esfrega e deita-o no chale. Quatro cabeças se curvam á luz do candieiro de petroleo para verem o menino--tres cabeças de ladrões e a cabeça da velha. --O menino está vivo!--afirma a Joanna. --É preciso enterral-o de caminho--diz o ladrão mais velho, encolhendo os hombros. E juntam-se á porta falando baixo, enquanto a velha lhe aquece o corpo pegajoso com o bafo. Dentro a mãe geme. --Vamos. Os gritos cessaram de todo. --Venha d'ahi. E, tomando o braço de Joanna, que achega a si o menino embrulhado no chale, levam-na para a rua. Vão adiante o ladrão e a velha. Caminham até um terreno de construcção, lama calcada e recalcada: ao fundo o panno d'um muro e um resto d'arvore mutilada. Escolhem o sitio e o pae abre a cóva com o alvião. Nenhum diz palavra. Só a Joanna aperta mais o menino de encontro ao seio murcho, como se fosse possivel aquecel-o. Agazalha-o dando voltas ao chale roto, e vae depois no escuro palpar a terra encharcada. Tira-lho o pae para o meter na cóva, e ella ainda protesta: --O menino está vivo. Nenhum dos ladrões se ri. O que ella quer é outra vez crear. Está disposta a recomeçar a vida, a deitar mais ternura, a tiral-o á bocca para o dar aos outros. E insiste: --O menino está vivo. --Vamos embora. Sacodem as mãos: só a Joanna conserva nas mãos a terra da cóva. Rodeiam-na tres sombras enormes e ella sente-lhes no escuro o bafo monstruoso. A seu lado caminha o ladrão mais velho. Os outros adiantam-se. --O estafermo da velha rica está só. Tu podes abrir-nos a porta... --Roubar!... --Ouve o que te digo... Tu não sentes o frio e estás molhada até aos ossos, tu de tanta fome já não sentes a fome. --Ainda hoje comi uma tigela de caldo que me deram. --Nem dás pela desgraça. Tu não vês a tua filha n'uma viella e nas mãos dos ladrões? --As bagadas que eu tenho chorado, senhor ladrão!... --A desgraça tral-a escripta na cara. Ainda hontem lhe bateram. Nem a lama das ruas é mais baixa e mais calcada. Tu ouves?... E a Joanna mastiga: --N'aquella terra tão fria, chegado á terra... --Para não sofrer. Deixa lá os mortos. Os mortos podem mais que os vivos. Ouves o que te digo?... O menino matou-o ella ao parir... --Jesus! --Matava-o eu para não ser ladrão. Deixa lá o menino que está na terra. Excusa de ser ladrão... O estafermo da velha rica está só. Tu podes fazer-nos a entrega... --Senhor ladrão, vossa senhoria... Assim Deus me ajude... Como a terra está fria!... --Que me importa a terra! O que me importa é o dinheiro do estafermo. Ouve! ouve! ouve! Ella é rica, tu és pobre... --O Senhor fez os pobres para servirem os ricos, e os ricos para ajudarem os pobres... --A minha vontade era esganar-te... Por tua filha! Se não nos abres a porta elle estorcega-a. A tua filha é menos que nada nas mãos d'elle... --A minha filha... Vocemecê, senhor ladrão, tambem teve uma filha, que eu sei... --Cala-te! Esta noite é por força noite de desgraça. Tive uma filha e não lhe pude valer. Vi-a morrer com os olhos enxutos. Morreu tisica, morreu-me á fome e não lhe pude valer! Fiz-me depois ladrão. Deixemos os mortos... Uma madrugada fui de prego em prego. Tinha despido o casaco para o pôr no prego. Á porta d'um estava um cavallo á carroça, com a cabeça metida n'uma ceira, a comer. O que eu invejei aquelle cavallo! Morreu-me. Foi n'esse dia que me fiz ladrão. --A sua filha morreu-me nos braços... --Tu não te calarás! Esta noite já me não serve. É noite de desgraça. Vae-te p'r'o diabo! Repele-a, e ao por-lhe a mão no hombro, repara que só traz a camisa extreme sobre o corpo: --O chale? que é do chale? --O chale dei-o ao menino. --Fizestel-a bonita! Tal é a figura esfarrapada. Maior. Maior pela desgraça e pela mentira. A Joanna, quando faz rir as velhas de cuia postiça, mente. Tem duas existencias, uma vulgar, outra oculta. Lava as escadas, calada e submissa: á noite vive com os ladrões e as mulheres das viellas. E mente. Mentiu sempre. Mentiu emquanto pôde. Mentiu a si e aos outros. Fez da dôr mentira e da mentira sonho. Quanto mais desgraça, mais exagero e mais grotesca a sala de vizitas--maior a sala de vizitas--mais doirada a sala de vizitas. A Joanna não se atreve a sonhar a felicidade: contenta-se em sonhar a desgraça, e não lhe tira os olhos de cima, para não vêr outra desgraça maior. Ilude-se. E debate-se n'uma cogitação profunda como a noite. Toda a noite lhe parece negra. É como se pela primeira vêz désse com a vida. Deita as mãos, não encontra a que se apegue, e faz gestos para repelir o negrume. Remoe coisas que não percebe bem, que se lhe confundem na alma e que traduz em palavras descosidas e sem significação. De quando em quando pára, com os olhos fixos, e diz uma phrase fóra de propósito, a scismar com obstinação n'outra coisa: --Casa de mulheres, casa de ladras. Ou monologa parada a um canto: --O Senhor lá sabe porque a gente anda n'este mundo e para que se criam estas coisas... Estas coisas...--E abre os olhos espantados.--Tudo está escripto no livro do futuro... Sempre elle há gente muito boa n'este mundo! É o que vale á pobreza.--Depois um salto dentro d'ella:--Onze, não, doze vintens é que são. Quatro vintens, do bahu que levei á cabeça, seis vintens da esfrega...--E conta pelos dedos:--Seis, sete, nove vintens... Depois aquillo remexe, vae ao fundo do fundo:--A desgraça não nasceu comigo nem há-de morrer comigo.--Ou explue n'um grito de quem não pode mais:--Não posso com este peso, com esta desgraça, com esta desgraça sobre esta desgraça, e com isto!... A dôr que a gente cria aos seus peitos! E ainda por cima isto! Depois cala-se. É peor. Fica confundida e atonita, como um cavallo prostrado, que não sabe porque sofre e mantem os olhos abertos--ridicula deante da desgraça e deante do assombro. Cala-se e outro sêr immenso começa a falar dentro d'ella. É um debate ao mesmo tempo futil e cheio de grandeza, que não posso fixar, mesquinho pelas palavras que emprega e grande pelo sentimento que o reveste. É uma coisa triste, uma coisa dolorosa, uma coisa desconexa, feita de nadas, de gritos, de mudez. A Joanna fala com o Sonho tu cá tu lá e atira-se ao Sonho. E quando emfim o espanto se acumula sobre ella, a Joanna dispõe-se a arrancar-lhe farrapos. Misturem a isto a dôr, misturem a isto ridiculo, porque a Joanna revolve tudo, phrases, sentenças, palavras que lhe acodem e que não formam sentido--veem de muito longe...--lagrimas, sonho, e ranho. Assoa-se ao avental. --Eu não sei dizer! eu não sei dizer!... E sem falar á sombra que a não larga, a velha gesticula para o escuro: a desgraça tapou-lhe a bocca, meteu-lhe outra vez a bocca para dentro. Avança com as mãos abertas. A noite é immensa. Cabem na noite os mundos infinitos, mas só me interessa a alma de Joanna. Quer comprehender e não pode. Peor: o sonho humilde já lhe não é possivel. Parece perdida, tão inutil no mundo! A ternura não lhe serviu de nada. E há outra coisa em que é preciso insistir: não sabe porque sofre, não lhe cabem lá dentro a desgraça e a explicação da desgraça. Outra vez recorre á perlenga com que amortece a dôr:--A sala... a outra sala...--Mas na sala disforme vomitam-se injurias e as boccas transformam-se em bocarras monstruosas, que a Joanna não consegue tapar. Está só e a noite, só e o sonho. Fica dôr pelo lado de dentro, como a fuligem d'uma chaminé quando se incendeia e fica doirada pelo lado de dentro. O negrume é cada vez mais compacto e o esforço da velha cada vez maior. Quanto mais negra é a sala, mais a Joanna insiste. Augmenta-a, e agitam-se as vizitas em delirio: quem as recebe de pé a fazer cortezias de espalhafato é a propria desgraça vestida de amarello. As cadeiras tomam outra expressão, o doirado dos moveis apega-se á noite espessa. Estes cacos são expressões de dôr e é a desgraça quem os arruma. A noite irrita-me com a sua imobilidade imperturbavel, e ao lado este sêr que só tem uma forma grotesca de exprimir o que sofre. Esta sala com um gato bordado a retroz, interessa-me muito mais que a noite negra, a noite funda, a noite cahotica com esta vida e outra vida. A noite é inutil. PAPEIS DO GABIRU 10 de fevereiro Ella foi uma flôr que se aspira e se deita fóra--quasi sem reparar--scismando na imortalidade da alma. Se eu pudesse cinematographar a vida e a morte d'uma flôr, cinematographava a sua vida. Não sei dizer se existiu se a criei, e o que na realidade me interessa, é o que ella disse á grande nodoa de humidade da parede. Sei que chorou mas não a ouvi chorar. Ninguem a ouviu, ninguem deu por ella. Passou como uma sombra. Habituou-se. As lagrimas sumiu-as, meteu-as para dentro. A dôr aprendeu a contel-a. Habituou-se a queixar-se á grande nodoa de humidade da parede. Entre mim e ella interpoz-se o sonho. A ternura tambem cansa. Deixem-me! deixem-me sonhar! O principal para mim foi a queixa que ninguem ouviu no mundo; foi o que os seus olhos verdes d'espanto decifraram n'aquelle arabesco da parede. Podes por ventura conceber isto? Uma dôr que não deixa vestigio, um sonho ignorado que não deixa vestigio, que passa no mundo e não deixa vestigios--a dôr despercebida, as lagrimas contidas que se não chegam a chorar? Não valia nada o que vale um passaro, e em questões afectivas, em ternura, tinha a profundidade do mundo--a do silencio--a do sonho. Tanto se queixou baixinho que morreu de frio! Deito-me debalde aos encontrões á noite. Nem um grito. Os remorsos são inuteis. Um passo na vida é sempre irremediavel: não há forças humanas que o possam apagar. 11 de fevereiro A vida tem dois periodos: o do entontecimento, o da saudade. Não sei qual é melhor. Talvez aquelle em que se ouvem os passos da morte, mais perto! mais perto! O frio da morte dá á vida um encanto superior e um prestigio maior. Deixem-me! deixem-me! Deixem-me só com isto, deixem-me viver para isto. Deixem-me fechado a sete chaves com o sonho que me enche de ridiculo, que não existe e é a razão da minha vida. Deixem-me ir para a cóva agarrado a este nada immenso, que me doirou as mãos e me deixou atonito. Só no fundo da cóva é que estou bem, sós a sós, fechado com elle para sempre. Se o sentimento de belleza é a unica coisa humana que não nos engana--se só a isto ficamos reduzidos--como não prever outra belleza maior? De sobresalto em sobresalto, de assombro em assombro, de vulgaridade em vulgaridade e de contradição em contradição, assim vim até ao fim. Não consigo desprender-me de um, nem libertar-me do outro. Atraz d'este assombro há outro assombro--e depois outro assombro ainda. Qual é a minha experiencia da vida? Nenhuma. Qual é a lei que extraes da vida? Nenhuma. Só o espanto. Só uma coisa cada vez maior, sempre assumindo maiores proporções, que sinto desabar no silencio, mais doirada e phrenetica que o sonho. Tudo se reduz a coisas a que damos valor, e a coisas a que não damos valor. E entretanto ao nosso lado passa o tropel magico, desesperado e cahotico. Alli fóra desabam os seculos e a torrente misteriosa que leva comsigo estrellas em vez de calhaus. O jacto de portento vem do infinito e caminha para o infinito, levando comsigo a alma, o universo, o logico e o ilogico, o absurdo e Deus. Uma vida resume-se em duas linhas, synthetisa-se em dois ou tres factos. Se a vida fosse só isso não valia a pena vivel-a. A vida é muito maior pelo sonho do que pela realidade. Pelo que suspeitamos do que pelo que conhecemos. Se nos contentamos com a superficie, não há nada mais estupido--se nos quedamos a contemplal-a faz tonturas. É por isso que eu teimo que a Morte não tem só cinco lettras, mas o mais bello, o mais tremendo, o mais profundo dos misterios. Prepara-te. O problema capital da vida é o problema da morte. Elle resolve tudo. Não há factos isolados; não há acontecimento no universo que não gere outro acontecimento. O inconsciente não pode criar o consciente. É impossivel dar um passo a que não succeda outro passo. A vida gera a morte--a morte gera a vida. Mas que vida? Sou nada diante do universo. Mas teimo, mas discuto comigo e comtigo, ó espanto, mas defronto-me com o enigma, encarniço-me e saio d'aqui esfarrapado, despedaçado--mas teimo e hei-de vencer-te. Não quero morrer de vez. Não quero perder a consciencia do universo nem a sensibilidade do universo. Eu sou o nada, tu és o infinito--hei-de por força vencer-te! E no entanto sinto-me tocado de hesitação e de duvida. Do que tenho saudades é d'esta vida. Ao que eu aspiro é a esta vida. O gesto que o moribundo faz ao arrepanhar o lençol é um gesto de naufrago. D'um lado a materia, do outro o espirito. D'um lado consciencia, debate, lucta, do outro a impassibilidade, a fatalidade inexoravel. Nenhum grito a perturba. D'um lado a vida gasta n'um segundo, do outro a successão ininterrupta dos seculos, indiferente e eterna. Como acaso é atroz, a não ser que outra coisa nos espere. Se não nos detivessemos com palavras, se avançassemos todos ao mesmo tempo, esquecendo o que é inutil, para esta coisa que nos devora, subjugavamol-a. Conquistavamol-a por uma vez, por maior que ella fosse. Mas nenhum de nós se atreve e passamos a vida a fingir que não existe. E só ella existe. OUTRA VILLA 12 de fevereiro O tempo era limitado, a paciencia pegajosa, o gesto lento. Agora que a vida dura seculos ninguem espera um minuto. Tenho aqui a villa sufocada de espanto, e, n'este momento de silencio e mudez, todos encaram com desespero os proprios phantasmas. Está aqui o fel--e o fel está vivo. Está aqui a mentira--e a mentira está viva. Está aqui a D. Leocadia e o dever, a D. Bibliotheca e o postiço, o Anacleto e as conveniencias. Estão todos. Não falta ninguem á chamada. Está aqui tambem o espanto e a mania, e a mania tem os cabellos em pé. Custa-me a admitir-te na minha companhia, custa-me a arrancar-te de profundidades ignotas... Tudo o que fiz era um simulacro, reconheço-o. Passei a vida a arremedar a vida. Passei a vida com uma voz a prégar-me:--Não metas ahi o nariz.--E a minha vontade era meter alli o nariz.--Passei a vida a cumprir o meu dever e a amargar o meu dever. Passei a vida a arredar-te e agora tenho por força de viver comtigo. E tu?--e tu?--e tu?...--Gastei-me, gastei-a...--exclama a D. Leocadia. Cumpri sempre o meu dever. Cumpri-o com fel. Para cumprir o meu dever lhe repeti a toda a hora que os pobres teem um logar marcado na vida. Fil-o por dever. Não transijo nunca com o meu dever. Assim como devia tiral-a do asilo por ser do meu sangue, assim o meu dever era educal-a para pobre e reduzil-a a um sêr passivo e inerte. Vesti-a com um sacco e gastei-me um dia, gastei-a outro dia, a ponto de usarmos as feições e de não nos reconhecermos. Espiamo-nos ambas, uma em frente da outra, no silencio gelido da villa, onde se ouvia o trabalho lento das aranhas no fundo dos saguões.--Dei-te o sustento, tens de ser agradecida. Tirei-te do nada, livrei-te da fome, é preciso seres agradecida. Cumpre o teu dever. Eu cumpri sempre o meu dever. Cumpri-o contrariada, n'um perpetuo dize tu direi eu, n'uma eterna contradição, mas cumpri-o. Cheguei a tiral-o á bocca para a poder manter. Cumpri o meu dever e amarguei o meu dever. Usei assim a vida a arremedar a vida. E tenho-a aqui na minha frente, com a barriga á bocca, á espera que eu cumpra o meu dever até final. Qual é o meu dever? Reconheço que a odeio--odiei-a sempre. Mas qual é o meu dever? pergunto. Qual era afinal o meu dever? Se fazia o bem, amargava o bem; e tu não me largavas se tentava o mal. A minha vida tem sido um perpetuo inferno, contrariada e impelida, e sempre a cumprir o meu dever amargo, o meu dever estupido.--E os olhos não se lhe despegam do phantasma coçado e verde, de ferro e verde. Grita-lhe:--Cumpri sempre o meu dever! Se não cumprisse o meu dever ia parar a uma viella.--Queda-se estrangulada e surpreza, mais estrangulada e surpreza ainda, diante da voz que lhe diz não sei o quê de temeroso...--E tu?--pergunto--tiveste inveja?--Tive e recalquei-a. Arranquei tudo, destrui tudo, por ti que não existias.--Mas isto é infame, isto não sou eu!--És, és, mais do que nunca o foste.--Eu mesmo reconheço que sou outra casta de intrujão. Tenho outros preconceitos, falo outra lingua e julgo-me superior. Na realidade sou outra casta de intrujão. O que me falta é desplante. Prendo-me a inutilidades, e, para me engrandecer, admiro os meus escrupulos e dou importancia ás minhas teias de aranha. A minha vida é uma serie de transigencias secretas--e por cima medo...--Fala mais alto! fala mais alto!--A minha vida tão bem construida é uma aparencia, a minha serenidade, aparencia. Talvez um pouco de logica, um pouco de acaso e mais nada. No fundo de mim mesmo tudo isto me parece um sonho monstruoso e sem nexo, e ás vezes surprehendo-me a pensar:--Sou um doido? sou um doido?--É que me vem não sei d'onde, não sei de que confins ou de que recanto d'alma que tenho medo de explorar, um bafo que me entontece. Serei eu doido?--Cada velha se põe a recuar deante de si mesma; cada sêr procura afastar-se; cada um a si proprio se repele. Mas todos são enrodilhados no pé de vento, que os leva sufocados e atonitos, balouçados entre a vida e a morte, entre o assombro e o inferno. E é grotesco este encarar com o sonho, pé atraz pé adeante, esta hipocrisia que teima em ser hipocrisia, esta mentira que quer ser mentira até á ultima extremidade.--Tu não deste um passo na vida sem obedeceres ás conveniencias e sem consultar o teu codigo de meticulosidade. Tens um _Deve_ e _Haver_ do tamanho d'um predio. A praça considera-te, Deus considera-te. E tu torturaste-a segundo as conveniencias, habituaste-a a conter as lagrimas e a ser correcta com o mesmo grito recalcado ao fundo do coração. E esse drama correcto, torna-se mais correcto ainda, e, seculo atraz de seculo, há-de acabar por atingir a correcção suprema.--Não tenhas medo, avança um passo, outro passo ainda...--Que é isto? que é isto que se me pega, diz a Telles, diz a Reles--e que me não deixa pensar na mania?--E nos olhos de idiotia, a vida, camada atraz de camada, chega a vir á superficie.--Ah, a mania D. Telles, das Telles das Reles, a mania! Pensar n'este trapo um dia, e só pensar n'este trapo! Fazer de ti e de mim mania e só mania!--Dois castiçaes de prata foram a minha vida. Pensei n'elles com minucia. Um nada--ou Deus--bastou para me encher a vida. Acordei com elles, dormi com elles. Taparam-me o mundo. Isto foi o meu sonho e a razão do meu sêr. Criei-o. Dei-lhe o meu leite. Vivemos juntos; ia morrer com esta mania, levava-a para a cóva, sem ter pensado no resto, e agora encontro-me sós a sós comtigo, desprevenida e sósinha. Foste para mim um filho. Alimentei-te e alimentaste-me. Reservei-te sempre o melhor cantinho do meu sêr. Salvaste-me do desprezo de mim propria, peor que o desprezo alheio. Quando me sentia mais humilhada e mais pobre, recorria a ti, e encontrei-te nas horas em que a gente até de si duvida, quanto mais dos outros. Trouxe-te sempre comigo. Sorrias-me. Foste a carne da minha carne e o osso do meu osso. Um filho podia-me morrer; tu não me deste um desgosto. Escondeste-me a vida e a morte--e eras um trapo, uma corôa de lata, dois castiçaes de prata! Agora mesmo procuro agarrar-me--mas isto pega-se-me, deslumbra-me e ofusca-me... Há só uma coisa que eu queria ainda dizer, e não a sei dizer diante de isto que tenho ao pé de mim, dentro de mim e me não larga...--Ai! ai! ai!--Tambem tu, tambem tu, prima Angelica, que passaste a vida debruçada sobre a meia, tambem tu te ergues n'um arrebatamento, passa-te não sei que dôr na escuridão cerrada, e procuras, com a agulha afiada como um punhal, furar os olhos de todas as pessoas que te fizeram bem!... Mas tanta inveja ruminaste que sorris e te curvas submissa sobre a mesma meia eterna, a que mãos caridosas já não desfazem as malhas, e que tem tres metros de comprido...--A meza da bisca lambida cahiu por terra, e de tal maneira se olharam nos olhos, que não foi possivel tornar a juntal-as. Só a mesma voz persiste dentro de nós mesmos, no silencio e na mudez da noite infinita, tal qual a D. Leocadia:--Mas eu não posso! eu não posso! Tu obrigas-me a fazer o que não devo! Tenho aqui fel e hei-de, para cumprir o meu dever, fazer o contrario do que sinto: dominar-me todos os dias, moer-me todos os dias, prégar-me todos os dias:--A gente só vem a este mundo para cumprir o seu dever!...--O que há de peor no mundo é arrancar os desgraçados á desgraça! O que há de peor no mundo é não haver outra vida e passar esta vida a arremedal-a! 15 de fevereiro. Até agora a mentira fez-me suportar a vida, a insignificancia e as palavras tornaram-me a vida possivel, a vida onde á custa de palavras cheguei a ser Eleutheria da Fonseca, Balsamão, Elias de Mello ou Melias de Mello. Só á custa d'isto pude aturar a vida e o horrôr da vida. Só por não a vêr, pude encaral-a. Só emquanto fui feito de pequenas miserias e de palavras inuteis a pude suportar. Mas agora que me resta se tudo é vazio de significação? Custa muito a construir uma vida ficticia, a ser Telles ou a ser Santo, a crear um Deus ou uma mania. Custa a melhor parte do nosso sêr. É certo que metade d'isto--metade pelo menos--é representado. Se te confessasses dirias:--Eu sou um actor, eu sou um actor de mim mesmo: represento sempre até quando sou sincero; até quando digo o que sinto, é outro, e noutro tom de voz, que diz o que sinto... Cá estou a vel-o representar... Mais de metade, muito mais de metade dos meus sentimentos, são postiços. Todos estamos ligados por compromissos, aceitamos certas leis e vivemos de aparencias. Existe entre nós e dentro de nós um acordo tacito. No fundo bem sei que o que me dizes é mentira, mas sei tambem que tenho obrigação de ajudar a mantel-a. Respeitamos um compromisso vital. Mais alto! mais alto!... Para podermos viver só lidamos com uma parte convencional da vida. A outra não existe: se existisse seriamos bichos. Esta vida é uma mentira--a outra vida é monstruosa. Desabada a architectura aparente, ficamos ignobeis. Isto que ahi está por terra custou muito desespero, primeiro na inconsciencia e na obscuridade, atravez da inconsciencia e da obscuridade, e depois atravez de terrores e de indescriptiveis esforços. Custou aos vivos e aos mortos a dôr das dôres, poderem discernir dois ou tres factos essenciaes na treva condensada, na treva compacta d'uma noite que durou seculos. Esforço inconsciente de larva, com um destino a cumprir e legoas de granito a romper. Tiramos o mundo do nada. Levou seculos e seculos--mas tiramol-o do nada. No principio só fomos almas, creamos depois a casca. Tambem as arvores só a poder de tempo se revestiram d'um envolucro. Eramos todos phantasmas. Creamos tudo--e a mentira. Tudo--e o habito. Tudo--e a paciencia. O sonho não é senão uma reminiscencia. Todas as inutilidades não passam de adaptações á vida. Essas pequenas coisas são ao mesmo tempo temerosas e ridiculas. Bem encarada a ninharia é uma tragedia. D'estes sêres saem outros sêres grotescos e terriveis--terriveis e grotescos. No silencio a mania toma proporções chimericas, e não sei como hei-de juntar estas duas coisas--mania e desespero. Dentro de cada sêr resurgem os mortos. Crescem dentes ás velhas, afiam-se-lhes as unhas debaixo dos chales. Adquiriram outra expressão. Quasi toda a gente emagreceu. Aguçam-se ferros no escuro. Procuram-se. Qual é o teu verdadeiro ser? Eu mesmo não sei. Dá-me um trabalhão encontral-o e acho-me sempre em frente de cacos, a que não consigo dar unidade. Uma ninharia--um impulso--um habito. É isto que constitue o meu ser, ou é esta serie de imagens, já desaparecidas, que formam a minha e a tua vida? Não, o meu verdadeiro sêr sacode a poeira na colera, na paixão, no amor ou no odio,--porque aos sentimentos tambem é preciso desenterral-os--e actua n'um phrenesi. Acabaram as hesitações e as duvidas, porque já não sou eu quem mando, a minha razão ou a minha vontade: são os mortos. E é quando me sinto viver. E a insignificancia? Até a insignificancia. A insignificancia com orgulho, a insignificancia com desespero. 21 de fevereiro Aqui está a villa toda--mas as figuras mudaram. São disformes. O proprio Santo cheirou as velhas, sacudiu as velhas e atirou com as velhas á rua. Do alto dos montes vomita coleras sobre a villa passada de terrôr. O silencio redobra, a dôr redobra. E com isto uma alegria a que falta o resaibo de tristeza que se misturava a todos os nossos sentimentos. Falta-lhe equilibrio e harmonia. Tem a maior ferocidade. E produz o mesmo efeito que este scenario d'assombro, que o vento e a chuva esfarelam, e onde sobrenadam restos. E com isto a voz que não nos dá tregoas e que atinge o desespero:--Não grites, D. Leocadia, não grites. Reconheço que és feita d'uma peça só. Foste sempre inteiriça.--Tirei-o á bocca para a manter...--Tiraste-o. Tomaste a vida a serio. Entendeste sempre que pobres se educam como pobre, passaste a vida a azedar a vida, e o dever, que fizeste amargar aos outros, começou por te amargar a ti. E a esta luz intoleravel as coisas tomam a teus olhos aspectos ignorados...--Mas então não há dever nenhum e eu não sou a D. Leocadia, 29-3.^o-D.?--Outro passo, D. Leocadia, mais outro passo ainda...--Que exiges tu de mim então, que não comprehendo? Que exiges tu de mim contra a minha vontade? Que me aniquile? Que me dispa para te vestir?--Não grites...--Que exiges tu de mim de absurdo com que não posso arcar? Um esforço sobrehumano? Ou exiges apenas que eu faça o bem que posso, uma parte do bem? Ou é o mal que tu exiges de mim e o bem é um pecado? Melhor será deixar a cada um a sua parte de desgraça e de colera?... Eu posso talvez despir-me, posso cumprir o meu dever, mas que mais exiges tu de mim com que, ainda que queira, não posso! Que exiges tu de mim?!--Mas, D. Leocadia, eu não exijo nada de ti, cada um se aguenta conforme pode n'este balanço... --Mas então não há dever nenhum? não há bem nenhum? Que fiz eu d'este sêr apagado e inerte com um filho do meu filho na barriga?--Oh D. Leocadia como tu educada sempre com as mesmas palavras e no mesmo dever, um dia de dever, outro dia de dever, e erguendo, no silencio e no tedio, uma construcção de trapos e de palavras que chegou ao céo e substituiu o céo--como tu tapas os olhos com desespero para não vêr! Hás-de aguentar com este pezo, que não podemos suportar... Talvez fiquemos cegos, talvez saiamos d'aqui aos gritos, os maniacos sem a sua mania, os bons sem a sua bondade, e os pobres só fél e vinagre, mas temos de ver o que não nos estava destinado. Para largar a pelle, D. Leocadia, até a cobra adoece. Tanto importa que resolvas como que não resolvas o problema--todos temos de dar o passo. A villa é a mesma villa, as pedras as mesmas pedras. Nós mesmos não mudamos. A nova vida obriga-nos apenas a discutir o que estava ao nosso lado. Tudo existia no mundo, até este desespero; tudo estava vivo, até este grotesco. Nós é que estavamos mortos. Passou no mundo a extranha ventania, e a morte de tal maneira se entranhou na vida que custa a separal-as. Mas já lá vão as formulas, os alicerces e os usos... No alto, sobre este absurdo, entre o borralho remexido, com a cinza e as faulhas atiradas indiferentemente para a escuridão, só a Via Lactea mudou de côr e alastra de lez a lez na aboboda recurva uma nodoa viva de sangue. DEUS 25 de fevereiro Dormi n'um taboado, cingiu-me uma cadeia. Vesti-me com um sacco. Todos os dias arranquei de mim proprio um farrapo e um grito. Arredei tudo para ficar só comtigo no mundo. Sacrifiquei-te tudo. Fiquei nu e Deus, nu e a vida eterna. Tinha o horrôr da lepra, vivi com os leprosos. Calquei todas as afeições inuteis, e se uma andorinha me fizesse ninho na banca, como ao frade d'Assis, torcia-lhe o pescoço. Encheste-me a vida toda. E agora a morte não existe, Deus não existe, a vida eterna não existe. Uma luzinha e depois a escuridão! Tenho diante de mim esta força cega, este absurdo a escorrer ternura e lepra, como uma primavéra escorre morte, a irromper contra tudo e apezar de tudo, d'uma profundidade cada vez mais sofrega e cada vez maior. Não quero vêr e hei-de por força vêr! Este inferno, a que dei vida e a melhor parte do meu sêr, não existe! Tinha conseguido só te vêr a ti no mundo. Com uma palavra enchi o vacuo. E este Deus por quem sacrifiquei toda uma vida e a melhor parte da vida, não existe! Foi tudo inutil. Dilacerei-me. Dei-me a mim proprio em espectaculo. Assisti a esta tortura, e tu não existias! Vivi fóra de mim mesmo e de repente tive de me aceitar a mim mesmo. Toda a minha vida foi inutil! tudo o que fiz foi inutil! Foi grotesco e inutil! Sacrifiquei tudo a quê? Sacrifiquei o melhor da minha vida ao vacuo. Ofereci-lhe em espectaculo a minha dôr. Mas então que existe? Qual a directriz da minha vida? Qual a ilusão com que hei-de encher isto? E para que hei-de viver? Qual o sonho immenso capaz de substituir este sonho? Que é Deus agora? Deus é tudo e nada. É uma força. Deus é uma lei inexhoravel. Mas então tu que podes tudo--tu não podes nada. És uma lei--e hás-de cumprir essa lei. És um destino e não podes dar um passo fóra d'esse destino. Não vês, não ouves, não sentes. Eu sou uma insignificancia, e valho mais do que tu. Porque eu grito, eu sofro, eu atrevo-me. Amanhã quebro o meu destino. Tenho uma consciencia. Sou ilogico e absurdo. Debato-me. E tu, Deus, não passas d'uma força cega e estupida. Não me serves de nada. Preciso d'um Deus que me atenda, que me escute, que saiba que sofro e que me veja sofrer. Preciso d'um Deus que me salve ou que me condemne. Preciso d'um Deus que me ampare. Preciso d'uma inteligencia superior á minha e em comunicação com a minha. Um Deus-força, um Deus que não se comove com os meus gritos nem com as minhas suplicas, não me interessa. Um Deus que caminha para um fim que não atinjo, é um Deus absurdo. De que me serve este Deus? Não ouve os gritos--destróe; não sente a dôr--destróe. Destróe e caminha. É inalteravel. Ilude-nos. Deixa-nos um segundo deante d'este espectaculo, para nos mergulhar no nada. A nossa aspiração não cabe aqui: entrevêmos, sonhamos, e, a meio do caminho, talvez no inicio de sonho maior, destróe-nos. Peor: tem uma necessidade de sofrimento cada vez maior, de sofrimento inocente ou culpado. Revê-se na dôr. Deus é cego. Debalde grito--não há quem me ouça. Debalde sofro--ninguem o detem. Tanto faz viver como morrer. Deus, tu és monstruoso! Destróes--caminhas. Destróes e não sentes. Vens do infinito, e atraz de ti fica um infinito de dôres, uma massa de gritos e de sêres espesinhados. Segues e destróes. Constróes não sei o quê de portentoso com que não posso arcar. D'essa pata monstruosa escorre sempre ternura. Não é indiferente que calques e recalques. Quanto mais espesinhas, mais gritos, mais ternura nas arvores, mais estrellas nos céus. Parece que a dôr é inseparavel da ternura, como a morte é inseparavel da vida.--Até aqui eu tinha uma taboa a que deitar a mão. Até agora tinha um nome--agora não sei como me chamo. Agora tenho medo de mim mesmo, agora sinto-me isolado n'este cahos infinito, n'este repelão desabalado, que me leva sem sentido e sem fim. Eu e a noite--eu e o doido! Até agora supunha-me tudo, eu e Deus, eu e a mão enorme que me conduzia e amparava.--Sofras ou não sofras, vaes para a mesma cóva, para o mesmo nada, para o mesmo silencio. Antes o inferno! antes o inferno! Tu que foste desgraçado, ou tu que foste feliz, tu que te descarnaste até á medula e tu que passaste indiferente pela desgraça--vaes para a mesma cóva profunda, inutil, absurda e muda. Antes o inferno, antes a dôr pelos seculos dos seculos a vir, do que a mudez e o horrivel silencio atroz!--Tudo foi indiferente tudo é indiferente ao monstro que passa e esmaga, que não ouve e esmaga, que não vê e esmaga. Indiferentes os teus gritos e as tuas suplicas; indiferentes a tua renuncia, a tua dôr, as tuas lagrimas. Foi indiferente que fosses bom ou mau, que tentasses subir ao topo do calvario. Não existe na realidade nem vida nem morte--não há na realidade senão chimera e dôr--não há na realidade senão este monstro que passa e esmaga, que caminha e esmaga. Deus é cego! Deus é cego! Emquanto te importaste comigo no mundo, foste o meu unico pensamento e só tu me importavas no mundo. Agora não posso, agora não dou comtigo. Agora não te encontro. Agora sou mais pequeno, e maior. Agora meto-me mêdo. Que voz pode echoar e sobresaltar esta solidão infinita, este mundo infinito, onde os gritos se não ouvem a cem passos, e tudo que chamamos amargura, dôr, grandeza, se apaga logo e se reduz a zero? O meu dever já não é o mesmo dever, a minha consciencia já não é a mesma consciencia. Só os meus instinctos se conservam de pé. Acuso-te de teres comprometido a minha situação no universo. Acuso-te de não me deixares ser infame. Acuso-te de me dares o remorso. Acuso-te de impedires o instincto. Acuso-te de teres transformado a vida e criado a consciencia. Acuso-te de me deixares sósinho com este peso em cima, com a ideia da vida e com a ideia da morte. Acuso-te de me levares para um calvario como o teu, para me tornares grotesco, e de me colocares em frente de ideias com que não posso arcar. Acuso-te de não poder mais, e de me instigares a mais ainda. De me obrigares a olhar cara a cara o assombro que não existe; a morte que não existe; a consciencia que não existe. Subverteste o mundo. Forçaste-me a criar outro mundo, a olhar para cima e a clamar no vacuo. Acuso-te de não me deixares atascar á minha vontade em lôdo, de não me deixares mentir, matar, chafurdar. Acuso-te de me impelires para cima, quando a minha vontade era ir para o fundo. Acuso-te de não me deixares ser bicho. Estou prompto para tudo. Desde que não há Deus tudo são palavras. Desde que não há outra vida, só há esta vida. Só há este minuto, esta hora presente. Sinto-me capaz de tudo. Estive annos a rezar a uma comoda, a falar a uma comoda, a sofrer deante de uma comoda. Fui grotesco! fui grotesco e tu não vias! fui grotesco e tu não ouvias! fui grotesco e tu não existias! Doe-me tudo, doe-me principalmente sentir-me grotesco! sentir que perdi a vida e sou grotesco! sentir que me deti e fiquei descarnado, impotente e grotesco! Por uma palavra fui absurdo. Por uma palavra tenho atraz de mim uma architectura desconforme e destroços que enchem o mundo--por uma palavra e mais nada. Tu não existias! Mas então--pergunta esta voz colerica--todo o esforço é inutil? todo o sacrificio é inutil? Creaste estas ideias falsas de dôr, de renuncia--e não existes! Um santo viveu sobre uma columna: «Desde que se punha o sol até que amanhecia o dia seguinte, estava de pé na columna com as mãos levantadas ao céo». Oitenta annos de grotesco. Outro amaldiçoou-te: «Ai de ti cidade sensual onde os demonios fizeram sua habitação!»--Grotesco! grotesco! grotesco! Tu não existias! Que se levantem todos do sepulchro, uns atraz dos outros, que se erga o pó e te grite:--Tu não existias! Chamaram-te. Imploraram-te. Carregaram com a tua cruz. Andaram de rastros, reduziram-se a osso e a lepra. Foram indiferentes ao sofrimento e ao sarcasmo. Renunciaram á vida, deram-te o espectaculo da sua dôr, a ti que não existias! Das profundas do mundo vem sempre a mesma ancia, das profundas da dôr ergue-se sempre o mesmo grito. Isto tem alicerces como nunca se cavaram alicerces. Cimentaram-n'os os vivos e os mortos. E por mais esforços que empregue--tu na realidade não existes. Há outra coisa peor que está viva, outra coisa monstruosa que avança dentro de nós e direita a nós e que ninguem pode deter. Tu não existes e eu tenho de caminhar por força, não sei para que estupido destino. Tu não existes e obrigas-me a avançar para um fim grotesco--desmedido e grotesco--que não comprehendo nem abranjo. Tu não existes--e estou nas tuas mãos. Tu não existes e n'este mundo absurdo, onde não encontro quem me condemne e quem me salve, há ainda quem me empurre, quem me arraste e me faça sofrer, uma força cega que trago comigo, que me rodeia e me não larga!--Tens de existir por força. Tens de existir pelo que sofremos e pelo que creamos. És a unica luz n'esta escuridão cerrada, a unica razão como verdade ou como mentira. Existe aquillo que eu quero que exista, é verdade aquilo que eu quero que seja verdade, aquilo que eu e os meus mortos transformamos em verdade. A fé é maior que todas as forças desabaladas, mais viva que todas as vidas. Comprehendo a inutilidade de todos os esforços e faço pela mentira, o esforço que fazia pela verdade. Tenho de te manter á custa de desespero. Se não existes é forçoso que exista um dictador moral, que extirpe sem piedade o pecado da terra. Que não ouça os gritos e condemne, que realise o pensamento de Saint-Just e obrigue os ricos a trabalhar nas estradas, e cujo poder ignorado e oculto submeta a humanidade a uma lei de ferro, e a salve pela mentira, já que a não pôde salvar pela verdade. Cinja-me a mesma cadeia, durma no mesmo taboado, e empregue o mesmo esforço, por um sentimento de desespero contra ti que me iludiste. Por mim proprio, para fugir de mim e de ti que não existes! Resisto, teimo. Só vejo treva e teimo. Levo-me todos os dias ao mesmo espectaculo. Rasgo-me com gritos. Ó desgraçado, aquillo em que tu crês é mais negro que o negrume! A mesma força cega nos impele. Queira ou não queira sou levado para um fim que não comprehendo... Cahi nas suas mãos! Outra coisa me envolve a que não sei o nome, outra coisa que espera de mim uma acção que ignoro, outra coisa a quem eu me quero manifestar e que talvez se queira manifestar, sem nos chegarmos a entender. Rodeia-me. Sinto-a. Há occasiões em que me toca. Ouço-lhe os passos. Debato-me. Constrange-me. Há momentos em que me iludo, para fingir que estou sósinho. Há momentos em que me escarnece. Sufoca-me: vou ouvir-lhe os gritos--tenho medo que me fale! Só ella vive no mundo, só ella anda á tôa no mundo! Debalde apélo para mil manhas, debalde tento mil explicações. Estou nas suas mãos! estou nas suas mãos! Outra coisa inexplicavel e immensa, temerosa e immensa, anda por traz de mim, dentro de mim, outro abysmo maior, outra coisa que sua e me escalda até á medula. Procuro esquecer-me--ella aqui está ao pé de mim. Na vida e na morte estou nas suas mãos monstruosas. Sou a consciencia--tu és o impulso. Sou a razão--e não sou nada. Lucto até á morte, finjo até á morte, vou até ao fim dilacerado, escarnecido e iludido. Estou nas tuas mãos! estou nas tuas mãos! O DEVER 1 de março D. Leocadia o dever é um contrato. Um contrato com um ente superior ou um contrato com os outros. Há deveres para com Deus e deveres para com os homens. O contrato com Deus falhou, porque Deus não existe; o contrato com os homens não o cumpro, porque, se me sujeito a respeitar-lhe as clausulas sósinho, expoliam-me. Restam os deveres para comtigo, os deveres perante a tua propria consciencia. Oh D. Leocadia, eis o fundamento da questão!... Tu tens passado a vida com uma personagem importante, que te julga, te aplaude ou te condemna, e para ella, e só para ella, deste as tuas melhores representações. Para a enganares, enganaste-te, mentiste para lhe mentires. E reduzida a trapo, só desespero e orgulho, atiraste-te aos pés d'essa avantesma que não existe, D. Leocadia--que afinal não existe! Como se consegue edificar uma vida sobre um broche com um sujeito de suissas e uma redoma de vidro com a imagem d'um santo, e intercalar-lhe um drama baseado na ideia do devêr, até ao ponto de se apoderar de ti até ao amago, é que eu não comprehendo e admiro, ó sordida antrópopiteca com uma cuia de retroz! O devêr era frio e amargo e tu cumpriste-o; o devêr era coçado e hirto e tu cumpriste-o. Foi a razão da tua vida. Azedou-te e sustentou-te. Quando te vencias, vencias-te com orgulho. Deu realidade á tua existencia ephemera. Fôste ao mesmo tempo actor, tablado e publico. Sem esse dialogo entre ti e ti, entre uma D. Leocadia de cuia de retroz e outra D. Leocadia de cuia de retroz, desesperado e pertinaz, articulado ou mudo, que te fez de fél e vinagre, a tua vida não tinha tido directriz. Nas noites solitarias, em que não conseguias aquecer os pés com dois pares de coturnos, aqueceu-te. Deante do frio da pobreza teimaste:--Cumpri sempre o meu devêr.--Deante da sordida velhice, avançaste com autoridade:--Cumpri o meu devêr.--E até deante da imagem pavorosa da morte, exclamaste sem receio:--Cumpri sempre o meu devêr!--E só tu sabes o que é cumprir o devêr dos devêres, o que é tiral-o á bocca para o meter na bocca que se detesta, entre quatro paredes d'um terceiro andar (29-3.^o-D), desde o principio da vida até ao isolamento da cóva. Cumprir o devêr minucioso e exigir o devêr minucioso. Com elle dominaste-te e dominaste-a, gastaste-te e gastaste-a, esqueceste a vida e a ti propria te esqueceste. Com uma palavra e mais nada. Arreganha os dentes se queres ao teu proprio phantasma... Com uma palavra e mais nada. Subordinaste a tua vida ao devêr, e o devêr não existe: é um mundo d'orgulho e de escrupulos. Custa a entrar na cachimonia que a côdea que tiraste á bocca para a mantêres, o vestido que cortaste ao teu proprio vestido para a vestires, as noites de discussão interminavel, tu e o devêr--tudo fôsse irrisorio e inutil. Mas foi. O devêr não existe, o mundo construido com alicerces por _omnia seculo_ seculorum_ não existe D. Leocadia. Perdeste a vida e transtornaste a vida atraz d'uma sombra. Restam-te mil annos e um dia, para cumprires, se queres, o teu devêr inutil, o teu devêr atroz, para obedeceres a um phantasma absurdo, a quem dás o ultimo leite d'um peito exhausto. Repara bem, atende bem... Chegou o momento em que vaes aparecer deante do universo com as tuas ideias fundamentaes e sem o teu vestido de lemistre, e, se te obstinas, mesmo no fundo da cóva e com a bocca cheia de pó, hás-de gritar de desespero, quando te compenetrares de que o devêr postiço, o estupido devêr, fede que tresanda. Queiras ou não queiras chegou a ocasião de me rir de mim e de ti com dôr e lagrimas, e de te expôr tal qual és, nua e reles, nua e grotesca... Despe-te D. Leocadia! Mas a figura verde não cede: traça o chale como quem se fecha com os sete sêlos do Apocalipse e exclama do alto do seu pedestal:--Eu sou de muito bôa familia! (O peor foi d'ella, o peor foi d'esta figura secca e coçada, desagradavel e sêcca, que eu conheço desde que me conheço, sempre a prégar contrariada o seu devêr, sem um dia de descanço e na eterna duvida:--Cumpriria eu afinal o meu devêr?--Vai para a cóva farta de cumprir o seu devêr e ignorando se na realidade cumpriu o seu dever nem para que serve cumpril-o. Ninguem a pode aturar. Odeia o devêr que cumpre, e cumpre-o sem desviar um passo como quem cumpre um destino. Até te digo mais: o que lhe custa a abandonar na hora extrema não é a tua, mas a sua companhia. Olha-o com desvanecimento. Faz-lhe falta. Mais falta do que Deus, essa avantesma de cuia de retroz com quem passou os melhores dias d'uma existencia incerta. É talvez o seu verdadeiro Christo, que continua, mesmo sem existencia real, a reclamar que cumpra as clausulas d'um contrato já rôto. Tem de cumprir o seu devêr não acreditando no seu devêr. A D. Leocadia é uma figura secca e coçada, enorme e secca, vêrde e grotesca, que desvia o olhar da vida, para cumprir, seja como fôr, o devêr estupido, o devêr atroz. Tenho vontade de chorar)... Foi buscal-a ao asylo e trouxe-a para casa, com o cabelo cortado como um recruta. Deitou-lhe a mão e fechou-se com ella por dentro. As paredes tomadas de frio salitroso, transiram de frio sepulchral. Quando se atreveu a rir, cortou-lhe logo o riso cerce--para não se tornar a rir, ao primeiro assômo de vontade, cortou-lhe logo a vontade rente--para não tornar a ter vontade; e, quando cahiu de cama, postou-se dia e noite á sua cabeceira, hirta e solemne como o devêr. Um pobre não tem vontade, um pobre não tem orgulho. Nem pode tel-o; veio ao mundo para cumprir o seu devêr. Veio ao mundo para sêr obediente. Pobres educam-se como pobres e ricos educam-se como ricos. Só tu D. Leocadia te deste ao goso superior de têres uma alma á tua descripção. E isto sem gritos, com um ou outro soluço logo represado, noite e dia, dia e noite, e um olhar d'espanto, uma luz que se extingue até á impassibilidade, n'um terceiro andar de rua da Bitesga. Levou tempo a morrer essa ternura dorida, que teimou em vir á superficie, até que a D. Leocadia a conseguiu esmagar sob o calcanhar de ferro--para sempre, para todo o sempre. Por fim uma curvou a cabeça submissa, e a outra ergueu a cabeça triumphante.--Para a livrar da fome, para a subtrahir á desgraça. Se não fosse eu ia parar a uma viella. Cumpri o meu devêr.--Sim, e para a crear, para que não fosse parar a uma viella, o vestido que lhe durava uma eternidade, teve de lhe durar outra eternidade ainda; a côdea, que mal chegava para lhe matar a fome, repartiu-a com a orphã, guardando para si o bocado mais pequeno. Cumpriu o seu devêr de ferro, o devêr que pesa toneladas, e cumpriu-o sem desviar uma polegada da linha do devêr. Obrigou-a a levantar-se de noite, mas levantou-se primeiro do que ella. Pobres querem-se como pobres, sempre na regra e no devêr e sem levantarem a cabeça. Quando a orphã a olhou transida de dôr e a D. Leocadia lhe bradou:--Cumpre sempre o teu devêr!--já ella tinha cumprido o seu devêr até final. Passaram-se annos ou seculos, morreram as aranhas de velhice no fundo dos saguões deshabitados; nas paredes mestras de granito a camada de frio salitroso juntou-se camada de frio sepulchral, e a camada do frio sepulchral sobrepoz-se camada de frio deshumano. E sempre tu cumpriste o teu devêr e ella cumpriu o seu devêr d'hora a hora como um pendulo. Incutiste-lh-o tão fundo que ahi a tens na tua frente, palida e inerte, com um filho do teu filho na barriga... Não te queixes D. Leocadia, porque afinal foste buscal-a ao asylo para te sentires maior no teu orgulho. A desgraça dos outros não comove, a desgraça alheia consola. Mas tinhas de cumprir o teu devêr: ao magestoso edificio que architectavas, faltava-lhe ainda o remate. A côdea que tiraste á bocca manteve-te melhor que se a comesses, e o vestido que lhe deste, agasalhou-te melhor que se o vestisses. Engrandeceste. Amargaste e doiraste. É verdade que tambem resequiste. Espera, espera... Resequiste, mas como o mundo é extraordinario, como a vida é prodiga e teimosa e irrompe até das pedras, extrahiste não sei que ternura azêda do mais duro de todos os peitos--ó contraditoria D. Leocadia, 29-3.^o-D., que eu não chego a decifrar. Não podes com isto, não explicas isto, não aturas isto! Não comprehendes. Nem eu.--Tambem eu D. Leocadia! Lé com cré. Tambem eu, se me liberto d'isto que não tem significação, não encontro nada que tenha significação. Chegamos ambos ao ponto e estamos ambos estarrecidos. Moeste-te e moeste-me por uma palavra apenas... Olha bem para ti! olha bem para dentro de ti! Moras na rua da Bitesga, entre duas ou tres curiosidades seculares. Usas um vestido de lemistre, luvas d'algodão no fio e um broche pendurado ao pescoço. Não sei por que bamburrio se te encasquetou no toutiço a ideia de Deus e do devêr, e de que o infinito tem de dar importancia ao teu problema, aos teus flatos e ao teu broche, onde um retrato de suissas não tira de mim os olhos de peixe... Não mastigues. Bem sei que só nós, tu e eu, eu e tu, com o teu vestido de lemistre, é que somos capazes de contrahir noções, talvez erroneas mas profundas, do bem e do mal. Os outros bichos teem mais que fazer. Mas é por isso mesmo D. Leocadia que te cahiram os dentes postiços e que começas, n'esta nova situação, a comprehender que o bem e o mal é tudo a mesma coisa. Talvez a gente não possa fazer o bem senão a si mesmo...--Mas então--e crispa a mão sobre o broche--talvez o bem seja uma monstruosidade, talvez todos tenhamos de destruir. O mal é que eu sinto. Para o mal é que eu fui creada!--E sua d'aflição toda a tinta que lá tem dentro, quando outra D. Leocadia irrompe da carcassa da D. Leocadia:--Pergunto-te se o que tu não consegues é prolongar o mal. Pergunto-te se esse orgulho humano, se esse orgulho sobrehumano, não é um mal maior, e essa piedade que sentes não é por ti que a sentes.--E eu, e eu pergunto-te se a minha verdade falsa não me serviu melhor que a tua verdade amarga.--Pergunto-te a ti--e sacode-a--se não é isto que eu sinto cá de dentro, do fundo dos fundos. Pergunto-te de que te serve a mentira com que cohabitavas. Nunca conseguiste bem nenhum, nunca cumpriste o teu devêr. Logo que te puz a ti e a ella na mesma situação de egualdade já não pudeste cumprir o teu devêr. D. Leocadia, quem recebe o bem fica sempre humilhado. O bem constrange. O que tu chamas a piedade, e o bem põe quem o recebe na situação de te morder as mãos. E continuar a fazer o bem é elevar-te pelo bem que fazes e rebaixar-me pelo bem que recebo. Acabas por gastar o que em mim há de melhor. Oh D. Leocadia, se eu podesse--eu é que te fazia o bem, para tu veres o que é o bem recebido, o bem agradecido e o bem amargurado. Antes tu me fizesses mal, D. Leocadia, porque o mal põe-me ao teu nivel, e o bem acostuma o desgraçado a ser mais desgraçado ainda. Degrada-o. Põe-no na tua dependencia e na dependencia da desgraça. Cria uma superioridade, a tua, e um azedume, o meu. Classifica para todo o sempre. Estou perdido se não reajo em odio.--Mas então...--e a D. Leocadia atira-se com desespero á outra D. Leocadia, e interrompe-a, primeiro com mudez, depois com gritos:--Ia parar a uma viella!--Avança e repete mais alto:--Ir parar a uma viella é o que há de peor no mundo!--E a outra torna com escarneo e diz-lhe ao ouvido não sei que segredo temeroso--e a D. Leocadia torce-se com pavor mas sustenta:--É o que há de peor no mundo! é o que há de peor no mundo!--E com dôr, com angustia, com desespero, pergunta a si propria (a outra teima e não a larga):--É o que há de peor no mundo!?--Eu não sei se é o que há de peor no mundo, não sei se reduzir uma creatura, a trapo é o que há de peor no mundo. A tua piedade amesquinha-me. O que eu reclamo é o meu logar na vida e o meu quinhão de desgraça. Não m'o tires! Mas ella é d'aço. Não transige e protesta: --Matei-lhe a fome. --Mataste-lhe a fome mas não podeste amal-a. --Nem posso! nem posso! nem posso! E encara-se mais atonita e mais verde, mais resoluta e mais verde, sem desviar o olhar. A VELHA E OS LADRÕES 3 de março Sombras. Tres cabeças monstruosas projectadas n'um muro, que se aproximam e afastam depois de confundidas. A velha a um canto agacha-se aos pés da filha. E ao lado as tres sombras fundem-se n'uma unica sombra disforme. Duas, tres horas talvez... A sombra da velha reduz-se a nada, a menos que nada, á sombra da dôr. Por fim erguem-se, mergulham e dissolvem-se na caligem da noite, as tres sombras dos ladrões e as sombras das mulheres, a quem não distingo as feições... Eu já vi isto algures, em outro mundo onde me custa a entrar. Metem-me medo. E não é só medo, é dôr. Vivi com estas sombras n'um pesadelo, de que sahi atonito e exhausto, n'um sonho em que tudo isto fazia parte integrante da minha propria alma, e que sonhei lavado em lagrimas. As tres grandes sombras levam, não sei para que destino, as outras enrodilhadas. Duas, tres horas da madrugada talvez... Caminham sem se lhes ouvir os passos á beira do rio que corre para o mar desde o principio do mundo. E o silencio é cada vez maior. Só a agua fala nos buracos poidos das pedras, em dialogos que nunca cessam, n'um côro de vozes ininterruptas e indistintas--ameaças, suplicas e gemidos. A Joanna cala-se: só se lhe ouve um anh... anh... de cançasso, como se arrastasse na escuridão uma cruz do tamanho da escuridão. A seu lado o côro inutil da agua corre sempre para o mar, com gritos, risos, vaias e apupos. Uma voz, a do velho ladrão compadecido, diz-lhe baixinho: --A tua filha... Se teimas levantas a desgraça a teus pés. E lá deslisam no escuro, e o rio sempre a correr e a prégar o mesmo presagio de dôr no chape que chape onde se percebem échos de todas as desgraças que sucederam no mundo, levando para o mar todas as lagrimas que se choraram no mundo. Outra vóz no escuro: --Ou tens de sofrer mil mortes na tua filha, ou tens de me fazer a entrega. Agora escolhe. Uma ou outra. Agora ouve: ella é nada n'estas mãos.--E pergunta-lhe:--Tu és ou não uma coisa que me pertence? Posso matar-te?--Podes--E essa voz rouca, essa voz implacavel torna:--E ou... Tu ouves velha? A mim ninguem me engana... Tu riste? (Ella faz anh... anh...--cançasso ou dôr)--Aqui tens... Ouve mais... Tu ouves ou finges? Tu que dizes? A velha é rica tambem te cabe uma codea. Ninguem te pede mais nada. Eu cá é que executo. E lança a dois metros um jacto de saliva. A Joanna recua: avançam logo e não a largam as sombras que a envolvem. --Tu hás-de abrir-nos por força a porta! --Estafermo! estafermo! --Tu abres-nos a porta. Á velha deito-lhe a mão ao gasganete e não dá pio. Aperto no escuro--eeeh...--e sinto no escuro um estremeção e mais nada... --Jesus!... --Ó pandorca! És um trapo! és peor que um trapo!... --Deixem a velhota sósinha comigo, que nós dois entendemo-nos--intervem o ladrão mais velho. E leva-a suspensa pelo braço como quem leva uma pluma. Cobre-os o céo profundo, onde palpita uma vida intensa. Arqueia-se sobre a velha e o ladrão de lez a lez a abobada recurva. Ao longe seguem-n'os sempre as outras sombras temerosas. --Estupida! estupida! Passaste a vida a servil-os. Aproveitaram-te e deitam-te fóra. Só te deram restos e enchiam-se até aos gorgomilos. E tu apegaste e tu defendel-os!... Ouve tu abres-nos devagarinho a porta... --Jesus Christo veio ao mundo para nos salvar!... --Isso! Até me metes nojo! Isso! Até me fazes rir! Só tu, calhordas, eras capaz de me fazer rir n'esta hora aziaga. Pilhasse-te eu no meu tempo!...--E aperta-lhe o braço contra o peito, leva no ar aquelle molho de ossos e ri-se com escarneo.--Tu lavas, tu esfregas, tu comes os restos, tu até cheiras mal! Tu metes nojo. E hesitas... Que se te pede? Que nos abras a porta e mais nada. Só há uma ocasião na vida, toca a aproveital-a.... Se nos abres a porta, ficamos ricos.--Abraça-a. Vomita uma risada. Peor que matal-a, enlameia-a. Aquillo vem do fundo da terra, vem do boqueirão da noite e traz escarneo pegado. Sobre isto chove: parece que toda a lama fetida da rua subiu ao céo para tornar a cahir. A Joanna geme. Uma risada e um gemido que se amalgamam, gemido que se extingue para depois subir mais alto, para se confundir com a risada, sempre o mesmo gemido, sempre a mesma risada. E a noite é pó de desgraça, cada vez mais moído e mais negro. --Não te cabe n'esse caco que ninguem tem pena de ti. Escuta o que te digo. Rouba-a, estupida! rouba-a! Na cadeia tambem se come pão. Ao menos lá enches essa barriga. Abres-nos devagarinho a porta... --O que havia de dizer a minha senhora! --Ninguem no sabe. E ouve: se não nos abres a porta, a tua filha nunca mais a vês. O silencio e a noite com outras noites em cima, as sombras que caminham, e aquella sombra humilde cada vêz mais pequena, reduzida á sombra da sombra e do escarneo. E teima, e teima contra a desgraça, contra as injurias e as vozes do rio. Há milhares d'annos que o dialogo nas pedras dura, sempre nas mesmas ameaças, que vem do fundo da agua e a Joanna não ouve. Devagar palpa a algibeira e tira do bolso e entranha na pele um pedaço de ferro gasto e poido. Outra vóz na noite: --Mãe! A vida d'essa mão de rachar lenha, d'essa mão de arvore e dôr! Como ella se contrae, emquanto a Joanna caminha absorta. Talvez uma hesitação instantanea, e depois, sem que ninguem repare, a mão abre-se e deixa cahir a chave nas profundas da agua, que continua a correr e a prégar, a correr e a falar ás pedras e ás estrellas nas mesmas palavras inuteis, ao lado da vida sem destino. Chegam emfim á muralha do predio, e outra vêz as sombras se juntam n'uma unica sombra, outra vêz se ouve aquella vóz sahir da noite: --Mãe, olhe p'ra mim! olhe bem p'ra mim! E a velha sente na cara tres bafos monstruosos, ao mesmo tempo que as vozes roucas reclamam: --A porta... Depressa! depressa! --A chave perdia. Um repelão e um grito, um grito que se afasta e sae da noite, cada vez mais longe e cada vêz mais alto... Sobre este sêr humilde encarniça-se mais o sonho. Lá vae a mulher da esfrega empurrando o farrapo monstruoso que se agita na noite. A sombra e a mulher da esfrega, o espanto e a mulher da esfrega, o sonho doirado de grandes azas esfarrapadas no negrume e as mãos encortiçadas de lavar a louça, a vida phrenetica e a vida humilde. Uma bocca enorme d'um lado, a voz da Joanna do outro, sentimentos cahoticos impossiveis de traduzir em palavras, o que exprime a natureza impulsiva, o que responde uma creatura agarrada á ideia do sacrificio.--Anda para deante.--Estupida! estupida!--A bondade entranhou-se-lhe até ao amago. Tudo está nos seus logares: as coisas simples e as coisas eternas, e há outra coisa que ella não sabe exprimir, que a alma d'esta mulher não abrange: a intrusão do sonho na sua vida humilde. Bronco e sonho. Até agora só com a desgraça arca, agora o doirado tinge-a. Sacode-se como um cão molhado. Debalde tenta desfazer-se do sonho immenso que se lhe pega: irrompe em palavras baixinhas, hesitantes, que voltam atraz. Uma pausa e o monologo recomeça logo. Há não sei que de monstruoso no mundo, que bebe todas as lagrimas e leva todos os gritos. E não se farta. Há não sei quê que reclama dôr. Toda a noite se desespera. A desgraça sua, a desgraça trôpega e ridicula. A desgraça enche a noite de esgares. Depois o sonho desgrenha-se. Depois sacode-a uma rajada, e lá torna, sem uma palavra, sem um grito, a grande sombra que se envolve em si mesmo e a si mesmo se estorcega. A desgraça sua de aflição sem poder exprimir-se. E quando a dôr se concentra, quando a dôr se torce como quem torce um farrapo e a velha não pode--a velha irrompe n'uma toada estupida. Mais doirado, mais fundo... Caminha e depara com a D. Restituta, que atravessou a vida com o guarda-chuva incolume e que faz gestos desordenados no escuro: --Acuso! acuso! acuso! --Senhora D. Restituta... A senhora D. Restituta está cheia de lama. Tem a penna do quico partida: é uma figura feita com tres traços de tinta e algumas manchas de desespero. O sonho doira-a, esfarrapa-a tambem. A penna em frangalhos agita-se como um pendão de revolta, esgarçado e chamuscado. Todas as vontades a compeliram e a esmagaram--quer retomar a forma primitiva. Dir-se-hia que cresce na noite, e que a sua bocca é uma bocarra cada vez maior, para prégar, para açular, para vomitar injurias. Sómente não emite outro som senão este:--Acuso!--a velha gasta, a velha inutil, a D. Restituta da Piedade Sardinha. --Senhora D. Restituta... A outra não vê, não ouve, não mexe. --Minha senhora... --Acuso! --...para o que se vive n'este mundo não paga a pena ruindades. Debalde a Joanna lhe fala. Resta deante do sonho com a mandibula despegada e o velho guarda-chuva que conserva intacto desde a primeira virgindade--teve duas--metido debaixo do braço. Nem uma nem outra entendem aquillo. Uma empurra, afasta de si o sonho com as mãos de lavar a loiça, a outra com as mãos pacientes, as mãos diaphanas da mentira. Tem feito sempre todas as vontades, e se a figura um momento se engrandece, amarfanha-se logo, como um trapo suspenso que se deixa cahir ao chão. --Acuso! acuso! acuso! De repelão--mete para dentro! uma vergonha mete p'r'o sacco! desprezo, escrupulo, fome--mete tudo p'r'o sacco! Para um sacco sem fundo. Passei tudo, passei mortes para o poder crear e nunca pude dizer que tinha um filho. Para o crear, para o poder crear nunca pude vêr o meu filho. Meti tudo p'r'o sacco, sem poder abrir bico, senão matavam-me á fome... E nunca pude vêr o meu filho, senão matavam-me á fome. Criei-o longe para o poder crear, criei-o como pude, de vergonha, de restos, de codeas, de dizer a tudo que sim. E este filho! este filho que nunca pude vêr, vi-o agora! Este filho que criei de mentira, este filho que criei d'abjecção, sem nunca o poder vêr, vi-o agora! Este filho que tinha sonhado ás escondidas, com a bocca tapada para não gritar: Tenho um filho, tambem tenho um filho!--vi-o! vi-o! vi-o! Meti tudo p'r'o sacco! meti o diabo no sacco! Só a noite me ficava livre para sonhar com elle, para o vêr rico, para o vêr como os filhos das outras... Aqui está a Restituta que é idiota, aqui está a Restituta que é um poço sem fundo. Deante d'ella pode dizer-se tudo, a Restituta serve para tudo, a Restituta mete tudo para o saco. Cala-se que é o que lhe vale--mete a viola no saco. Só a Restituta sabe o que se passa, o que está no prégo e o que está no fundo das almas. Calei tudo, disse a tudo que sim para o poder crear. Mete p'r'o saco! mete tudo p'r'o saco! mete a viola no saco!--E n'um crescendo de desespero:--Acuso! acuso! acuso! Debate-se a Joanna n'uma cogitação a que não suporta o pezo. É como se pela primeira vez désse com a vida e quizesse atalhar a vida. Tudo para ella mudou de expressão: a desgraça muda de expressão, a filha muda de expressão. E o sonho envolve-a, deforma-a, besunta-a. Sente-se-lhe o ranger dos gorgomilos. A dôr descarna-a e redul-a ás linhas principaes, á secca realidade. Um ulular de tempestade, e tudo quieto. Nunca o concavo se concentrou em mais serenidade. Gritos, um desabar monstruoso, e este sêr abjecto, que, como uma coisa que andou a rasto por todos os sitios suspeitos, não tem fórma nem côr: tem cheiro, e dois olhos de tanto pasmo que fazem aflição. Desapareceu tudo: ficou a velha, ficou a desgraça aos tropeções pela vida fóra. É como se tivessem metido a dôr dentro de um saco e déssem com elle pelas paredes. Aqui está a mulher da esfrega e a desgraça que tem os seus direitos e não os perde nem transige. Não a larga tambem o sonho. Agora é que ella destinge todo o doirado e toda a agua de lavar a louça. Agora é que ella ouve uma bocca enorme falar no escuro, e queda-se atonita e confusa feita trapo e horrôr. --Para que é que vocemecê me creou? Um soluço, um ranger d'arvore que se deita abaixo, um estalido de cruz que não suporta o pezo. --Antes vocemecê me tivesse esganado ao parir. O que eu tenho chorado! --Anh!... --Olhe p'ra mim! olhe p'ra mim! É um sêr diferente, um sêr aparte, que a Joanna vê pela primeira vez. Como pôde creal-o aos seus peitos? Crear vida é crear um grito que não se extingue? que nunca mais se cala? Sempre o mesmo grito:--Para o que tu me creaste! para o que tu me creaste!--Juntem a isto o escarneo e todas as vózes que lhe prégam:--Estupida! estupida! Toda a gente se ri de ti!--Andou nas mãos dos ladrões.--Rouba! rouba!...--E sente ainda nas mãos um pedaço de ferro gasto e poido como o aço, que entranha na pelle. Um gemido lucta com uma risada e tenta subir mais alto, cada vez mais alto... Juntem a isto que a Joanna quer ser má e não pode, e misturem a isto humildade. Aqueceu a vida a bafo. Incutiram-lhe para sempre a subordinação, só lá tem dentro ternura. Faz o gesto de quem tenta abrir uma porta; quer levantar a cabeça, mas tanto tem obedecido que curva logo a cabeça. Ridiculo sobre ridiculo. Agora vejo a figura, vejo-a agora completa. Pouco e pouco tomou relevo, tornou-se humana. Sumiu-se a velha tonta, caldeou-a a desgraça. Á força de gritos represados obsidia-me. Engrandece-a a mentira e a dôr. E aquillo persegue-a, encarniça-se sobre a velha tropega, n'um espectaculo ao mesmo tempo desmedido e reles. A velha d'um lado, do outro a grande sombra tragica que subverteu o mundo; o escantilhão sôfrego, e o gesto que a mulher da esfrega faz para o afastar de si. Ao mesmo tempo a alma dorida, a ternura que a não larga, e o contacto feroz que não explica e a que sente o pezo.--Para o que tu me creaste! para o que tu me creaste!--Atormenta-a, sufoca-a, e como não pode mais, como não comprehende--não consegue--e como aquillo se encarniça, a Joanna mostra-lhe as mãos enormes, as mãos roídas, as mãos só dôr... Tem as mãos como cepos. DIALOGO DOS MORTOS 12 de março Há em mim varias figuras. Quando uma fala a outra está calada. Era suportavel. Mas agora não: agora põem-se a falar ao mesmo tempo. Sintiste-o avançar, pouco e pouco, no silencio? Sentiste o teu pensamento disforme avançar mais um passo no silencio? É porventura possivel que o que se passa no mais recondito do teu sêr, alguem o presinta e o ouça avançar no silencio? Perpetuo combate a que bem quero pôr termo e que só tem um termo--a cóva. Eu e o outro--eu e o outro... E o outro arrasta-me, leva-me, aturde-me. Perpetuo debate a que não consigo fugir, e de que sahimos ambos esfarrapados, á espera que recomece--agora, logo, d'aqui a bocado--porque só essa lucta me interessa até ao amago... Estou prompto! Todos nós pelo pensamento somos capazes de hecatombes. Detinha-nos a vida artificial, uma architectura mais temerosa que todas as cathedraes do globo postas umas em cima das outras. Se me esqueço o meu pensamento disforme deita-se logo a caminho... Vejo-o caminhar e não o posso deter. Por mais esforços que faça não o posso deter. É como se eu creasse figuras, que se puzessem logo a caminho. Todos os phantasmas se dissolviam á luz da madrugada. Agora estas figuras teem de cumprir um destino. E pergunto a mim mesmo baixinho se na verdade eu não desejo que avancem um passo--e outro passo ainda... Tinha medo de aparecer no outro mundo deformado e grotesco, e agora tanto faz entrar na morte repulsivo, como transfigurado e só dôr. Olhava este momento que ia desaparecer, com saudade--porque nunca mais se repetiria no mundo. Nunca mais outro segundo igual nem na luz, nem vibração, nem na ternura... O momento em que me sorriste, balouçado entre o nada e o nada, nunca mais se tornaria a repetir, identico e completo, em todos os seculos a vir! Estava alli a morte--está aqui a vida. Agora pergunto a mim mesmo se te deixo morrer; e a pergunta obsidia-me e exige resposta imediata. Sei tudo, tudo o que me podes dizer--já eu o disse a mim proprio. Até hoje falava a alguma coisa que me ouvia, hoje só interrogo a mudez, a mim mesmo me interrogo. Tu luctas contra esta figura que dentro de ti te impele;--tu queres fugir de ti proprio, queres separar-te de ti mesmo, e não podes. Só consegues, á custa de esforços desesperados, manteres-te dentro da formula ou da mascara que escolheste, e arredar o crime e a loucura, e fingir e sorrir; tu podeste iludir o phantasma, seguindo pelo caminho trilhado. Iludiste os outros e a ti proprio te iludiste. Agora não. Agora sentes-te capaz de tudo. As grandes sombras que te entravaram a vida, eil-as reduzidas a dois punhados de cinza. Valia a pena a lucta? O homem é sempre a mesma lama, os mesmos despeitos e os mesmos rancôres, com resquicios d'oiro á mistura. O que pode fazer é dominal-os. Mas sae sempre da lucta esfarrapado e perguntando a si mesmo baixinho:--Valeu a pena? valeu a pena?--Depois que se venceu que lhe resta? Elle e o vacuo, elle e a saudade da lama que fazia parte integrante do seu sêr. Ficou diminuido. A escuma tambem tem os seus direitos. Há entre as figuras que compõem o meu sêr, duas encarniçadas uma contra a outra. Há uma que crê, outra que não crê. Há uma capaz de todas as cobardias, outra capaz de todas as audacias. Há uma prompta para todos os rasgos e outra que a observa e comenta. Mas há entre as figuras que compõem o meu sêr, uma que está calada. É a peor. Olha para mim e basta olhar para mim para que eu estremeça.--Por muito que me accuses, já eu me tenho accusado muito mais! Olhas-me e eu estremeço. A sofreguidão dos teus olhos, a sofreguidão verde dos teus olhos, que me reclamam como um abysmo de dôr e de espanto onde encontro emfim a vida! Se te quizesse descrever, não te podia descrever. Sei que me pertences e que te pertenço. Talvez as almas fossem mal conduzidas, talvez já adivinhassemos o universo e depois o esquecessemos. Creio que se não complicassemos a vida e a dirigissemos n'outro sentido, presentiriamos tudo e resolveriamos tudo. Há em todas as existencias alguns segundos em que sentimos o contacto do mysterio--de que nos separam logo leguas de impenetrabilidade. Alguma coisa porem se interessa pela minha dôr. Todas as noites grito, todas as noites sufoco os gritos. Todas as noites me debato com o mesmo problema e a mesma angustia. E há uma coisa que assiste a este espectaculo e se interessa, que cada vez me mergulha mais fundo para que eu me despedace--e se interessa... 15 de março Com que saudades me aparto da mentira! Dos nadas, das pequenas coisas que dão sabôr á vida. Já reparaste que são as pequenas coisas da vida que nos fazem chegar as melhores lagrimas aos olhos? Na natureza os ultimos dias d'outomno que se despedem de nós com saudade, o oiro humido, o ultimo sol nas fôlhas molhadas; as noites cheias de estrellas, em que se adivinham outras estrellas ainda; a ternura que não tem existencia real, a sensação que passou por nós n'um segundo, sem deixar vestigios; e as horas que creamos, esquecidos e penetrados um do outro, ao pé do lume, já sumidas tambem na voragem. Nada--tudo. A tua expressão em certos momentos, em que uma figura transparece sob outra figura, como se me fôsse dado contemplar, n'um rapido instante, a tua alma limpida--todos os sentimentos que geramos de ilusão, de sonho e de tristeza. Tudo e nada. Agora a vida é amarga. Acabou a saudade e este sabôr amargo é o sabôr da vida nova que começa. Até hoje bastava uma palavra tua para me prender, ou a ternura que os teus olhos exprimiam. Um fio detinha o meu horrivel pensamento. Tu sorrias... Um sorriso e mais nada, ternura e mais nada. Uma forma transitoria, sonho e mais nada. Das estrellas a luz phosphorescente envolvia o mundo. A noite tinha é certo negrumes profundos e espaços tão negros, que n'elles só morava o vacuo, mas no silencio a vida das estrellas estava mais perto do meu coração. A impressão que me sufoca deante da eternidade sem limites e da duração da vida astral, misturava-se a ternura de teus olhos, que me faziam ascender do subterraneo para a luz, que me ensinavam a soletrar o _abc_ do céo, que antes de mim, na vida ephemera, outros tentaram decifrar, levando-o impresso na alma para o tumulo. Ilusoria irrisão. Tudo isto não existe, ou só existe como agitação e desespero frenetico. Tudo isto desaba há milhares d'annos n'uma queda infinita, n'um grito que nunca cessa nem echôa. Que desapareças amanhã e as mesmas estrellas indiferentes luzirão no céo, o mesmo impeto de vida galopará no espaço. Só os teus olhos não procurarão os meus cheios de sofreguidão e espanto... Arredo a tua figura, a figura palida que teima em me acompanhar sem palavra, a figura transida e palida de que desvio o olhar. Encontrei-te n'outra luz, n'outra vida, n'outro mundo talvez, e os teus olhos tristes enchem-me de inquietação e terrôr. Tu não existes! tu não existes! Escusas de soluçar. Não te tolero. Não sei quem és e conheço-te. Tens vivido na minha companhia, e és uma fórma transitoria e mais nada, um sorriso de ternura e mais nada. Espera... Quantas vezes me tens confessado, sufocada de lagrimas, que te vem, não sabes d'onde, uma vontade do fugir pelo mundo fóra para onde ninguem te conheça, deixando tudo, e abandonando tudo--fugindo a ti propria?... Para isso bastou aquella folha doirada, que o primeiro arripio de vento léva sem destino. É essa mesma sensação que todos experimentamos a certas horas em que o universo se nos afigura monstruoso e inutil, com uma unica certeza--a de caminharmos todos, atravez da incoherencia, para a morte. Felizmente essa impressão dura um segundo. Num segundo todos ouvimos os passos da morte. 20 de março Agora não contenho a multidão que constitue a minha alma. Nunca estou só e ouço-os que clamam cada vêz mais alto. Sinto phantasmas até á raiz da vida. Minha alma é um tablado onde todos os mortos se degladiam. Ouço-os! ouço-os! são impulsos, são sêres que actuam e falam como se eu não existisse. N'esses momentos sou apenas um espectador que os vejo a caminho sem me poder defender. Ouço-os! ouço-os! Se Deus não existe e a outra vida não existe--se disponho só d'esta vida, os deveres que tenho a cumprir são apenas os do instincto. Só tenho deveres emquanto não me pezam. Não te deixes iludir. Era sempre com secreta irritação que eu fazia o bem. O bem contraria. Fugi sempre a este problema... Era sempre n'um impulso de paixão--e com todo o meu sêr, que eu fazia o mal... O sacrificio, a piedade, a bondade só teem logar no mundo como culturas artificiaes. Repete isto: a bondade é um sentimento falso e o mais artificial de todos os sentimentos. Ah, a ironia... Há de te servir agora de muito a ironia! O dever acabou, o estupido dever, o dever que me dominava, a vida com um pezo de chumbo, o dever de fazer todos os dias as mesmas coisas inuteis. Respiro. Sim, a amizade... Falemos aqui baixinho um com o outro. Essa amizade era o meu interesse ou o teu interesse. Dominavas-me ou dominava-te. Passei annos sob esse jugo, e agora descubro com alegria que te detesto. Detestei-te sempre. Odeio-te porque vales mais do que eu; odeio-te porque podes mais do que eu. Assistir á ruina dos nossos amigos é talvez melhor do que assistir á ruina dos nossos inimigos. Eu sou a unica consciencia n'esta barafunda cega e sofrega. Temos de fabricar novas leis. Façamos leis para as classes superiores, e leis para as classes inferiores--leis para os pobres e leis para os ricos. As leis modificam-se com as consciencias, e as consciencias modificaram-se. Formemos classes--as de cima e as de baixo. O problema da educação é um problema capital. O amor é um unico minuto. Um minuto esplendido. O resto é habito, palavras, hesitações, trampolinice, livros de capa amarella... E o peor é que isto não são phrases, o peor é que isto existiu sempre e impôz-se-me sempre. O peor é que quando eu te falava e sorria, e tu me sorrias extenuada e palida, o meu pensamento era sempre o mesmo, e só a custo continha o tumulto dos mortos. O peor é que eu sei que desde que este phantasma se pôz a caminho, não o posso deter. O peor é que eu li hoje nos teus olhos ternura e espanto. O peor é o que os teus olhos exprimem--e eu não o posso deter... PRIMAVERA ETERNA 5 de abril Segunda noite de luar, segunda noite de espanto. As arvores são phantasmas--os homens são phantasmas. Á noite a velha cerejeira é uma aparição. A mesma febre devora no quintal friorento as macieiras anãs. O respeitavel Elias de Mello recusa reconhecer-se: assiste com uivos ao desmoronar da propria respeitabilidade. Chegou a primavéra. Deita flôr a D. Leocadia, a D. Herminia e a D. Penaricia. Todas as arvores do monte se consomem de sonho. Primavéra entontecida de gritos e rancôres, É a villa feita sonho; são aspirações ridiculas, restos trôpegos que procuram adaptar-se. Para resistir forjaram a mentira, forjaram a mania, forjaram a abjecção, e essas pequenas coisas sem existencia chegaram a ter um logar mais importante que muitas outras a que chamamos reaes. Phisionomias de dôr, phisionomias concentradas, phisionomias de desespero e paixão, vão aparecendo sob cada phisionomia, e todos deparam com sentimentos e palavras que nunca tinham encontrado.--Dez annos, vinte annos de galeras, deixa-me, vae-te, some-te!--O homem roe dentro do homem: criam-se olhos que veem na obscuridade. Começam a distinguir na massa confusa, no cahos, nas duvidas, e descem a profundidades que não lhe estavam destinadas. Não é só o homem d'um momento, é uma série de figuras ainda por crear: é o homem do futuro. Mais braços na monstruosa arvore de sonho, mais braços que atingem o céo, mais tinta forjada de desespero. A propria noite escorre pus doirado... Na pequena villa já havia, como em todas as almas, um Robespierre, um cadafalso, um Shylock interior, odios, ganancia e uma serigaita a cantar. O quinhão é igual para todos--o que pode é estar sepultado. A questão era de proporções: os valores já não estão na mesma escala. Desapareceu o ridiculo. Pensem n'isto: desapareceu o ridiculo. Num minuto acordou toda a peste, sobresaltou-se toda a peste, todo o ferro velho, toda a mania resignada á força, comprimida á força, levada á força para a velhice e para a morte. Todas as velhas se ergueram, impelidas pela mesma mola. Todo o scenario era scenario, toda a regra regra, todas as cerimonias que nos ensinam, se conservavam ainda de pé, quando o mesmo furacão revolveu, arrastou tudo e levou tudo adiante de si. Tudo se varreu no mesmo instante, todos largamos a scena no mesmo instante. Todos, com velha baba a escorrer, com velhos tumores abertos, com velhas dentaduras postiças, o mistiforio e a obscuridade, o pó inutil que largaste pelo caminho até chegar á velhice, a vida consciente e a velha Eulalia, cuja existencia é um subterraneo e que mal sabe falar, todos ficámos estonteados... A villa entrou em plena primavéra. Eis a D. Procopia, eis a mulher da esfrega. Aqui estão alimentadas a mentira, tendo passado a vida no testamento, na cortezia e na colica; aqui está o topete, a filha para casar e as faltas de dinheiro--aqui estão todas enrodilhadas de pavor, mas cheias de decisão deante do céo e do inferno. Já abrem aquellas ventas. Aquillo cheira-lhes a coisas prohibidas, que passaram a vida a desejar e a temer. Aquillo cheira-lhe ao suspeito e ao reles. Aquillo cheira-lhes bem. De pupilas dilatadas embebem-se no sonho. Até as pennas velhas se encrespam, até nos restos de chales sem pello, o pello se põe de pé. Todos nós somos arvores. Há que tempos que deitamos flôr pelo lado de dentro. Fomos sempre construcções vivas, arvores estranhas que bracejavam para o interior do tronco, ramos e tinta, mais ramos desmedidos e tinta, revestidos de casca pelo lado de fóra. Foi por dentro que crescemos, e só por dentro nos era licito crescer, cada vêz mais alto até a morte intervir. Até as arvores estranhas, até as arvores só tronco, que metiam os ramos e a tinta para o interior, bracejam á custa de gritos ramos e tinta, ramos desmedidos e tinta para o lado de fóra. Este é nosso sonho, esta é nossa vida oculta, nossa vida de desespero, nosso sonho desgrenhado e immenso, doirado e immenso, amargo e immenso. Bem sei que isto doe. Bem sei que isto me custa a encontrar e a reconhecer n'esta noite de luar e espanto. Bem sei que isto de sêr homem é d'uma grande responsabilidade. Tem prós e contras terriveis. Tambem sei que o que nos separa dos bichos não é a inteligencia: a inteligencia é o menos. O que nos separa dos bichos é o esforço dos vivos e dos mortos, o compromisso de aceitarmos a mentira como se fôsse verdade. O que nos mantem n'este inferno é a architectura artificial, é o facto de não nos vermos tal qual somos, baseados n'uma convenção que julgamos indestructivel. De não nos vermos a nós e de não os vermos a elles. Porque o homem por dentro é desconforme. É elle e todos os mortos. É uma sombra desmedida. Encerra em si a vastidão do universo. Agora somos phantasmas, somos afinal só phantasmas, e o que construimos não cabe entre as quatro paredes de materia. Ouvel-os? ouvel-os? Passaram seculos e seculos no fundo da terra. Levaram seculos a comprehender que foram iludidos. Redobraram seculos de desespero no interior das cóvas, até se compenetrarem de que todo o sacrificio foi inutil, de que toda a dôr foi inutil. Ouvel-os com dôr e desespero?... Queira ou não queira tenho de dar o passo, tenho de me desentranhar em amargura e sonho. Bem vês, a insignificancia vae durar mil annos, a vulgaridade e a ternura teem seculos deante de si, de forma que tanto me peza uma como a outra. Abafo. Tenho de durar mil annos, tenho de durar dois mil annos, com estas coisas deante de mim, hoje, amanhã, sempre. É escusado luctar. Emquanto era a razão que me guiava, andava ás apalpadelas: agora é o inconsciente e cessaram de todo as duvidas. Tudo se ilumina a outra claridade. Tudo me é permitido. Respiro d'outra maneira, olho d'outra maneira o que me atravanca o caminho. Toda a pergunta obtem logo resposta imediata. Todos os sonhos estão de pé para mil annos e um dia.--Ouvel-os? ouves o grito dos mortos?...--A outra coisa não nos dá treguas. Vira-nos e revira-nos. Mete-se como piolho em costura. Põe-nos a contas com a questão das questões, com a questão insoluvel. Tudo que estava n'um plano secundario passou para um plano principal. O meu interesse, o teu interesse, ó D. Penaricia, é matal-a sem que se venha a saber. Escusas de arreganhar os dentes descarnados pela gengivite expulsiva, esse passo tens de o dar contra o que se chama a tua consciencia. Ergue a cabeça D. Lambisgoia e recorda-te que já foste féra. Podêmos suprimil-a sem remorsos. Matar é uma palavra e mais nada. Por causa d'uma palavra nos arriscamos, é certo, a ir para a cóva inuteis e grotescos, com sonhos remoidos durante noites e noites gelatinosas como velhas mestras de piano que tocam sempre as mesmas escalas. Mas hoje tudo se reduz a metêl-a n'um jazigo selado e chumbado, com a chave entregue ao juiz de direito. Põe em mim teus olhos turvos, ó D. Desideria e reconhece-te e reconhece-me. O que estava por baixo está agora por cima. Á roda da meza do jogo nunca pensamos senão em anulal-a. O remorso não existe, o crime não existe, a formula não existe. O passo nem tu o deste nem eu o dei presos a algumas palavras convencionaes. Agora estamos fartos. Sim, sim, podes matal-a á tua vontade. És um producto fetido do acaso. Não duvides. Se Elle existe, nem suspeita sequer que existimos. Com que direito a esta luz que nos ilumina de chapa, queres que eu me subordine e submeta? Ou não existindo ainda exiges que proceda como se existisses?... Não duvides. Nada. Só algumas palavras formaram a tua consciencia. Duas palavras e o habito, duas palavras e a regra. Posso tudo o que quero. Pezo tudo, calculo tudo sobre esta base: o que me convem e o que não me convem. Eu sou eu. O egoismo é a suprema lei da vida. A honra não é essencial. Ao contrario o meu interesse é mentir, o meu interesse é trahir-te. É indiscutivel que tenho devêres para comigo, mas não é indiscutivel que tenha devêres para comtigo. Primeiro eu, depois eu. Todos os crimes me são permitidos com tanto que se não venham a saber. Serves-me ou não me serves? És meu escravo ou meu senhor? Serás tu meu inimigo?... Que riso que nunca vi (é a cóva que se ri)! que bocca que nunca vi e que me cheira a defunto! Um passo ainda, outro passo, velhas lambisgoias, D. Insolencia e D. Ninharia. Chegou a primavéra. Vamos entrar n'outra vida sem Deus e sem regras, n'outro mistiforio que o instincto nos impõe, ó D. Telles das Reles de Meireles, e talvez seja essa a tranquibernia suprema porque suspiramos sempre. Vamos vêr que proporções atinge a langonha e a D. Herminia, o fél e a D. Penaricia. Acabaram os escrupulos e a lucta constante que nos deixava esfarrapados. Tenho-vos aqui na minha frente com as boccas murchas de mentir, a suar grotesco e a gritar de desespero; tenho-vos aqui só bichos em frente da necessidade fatal, da verdade iniludivel, nus uns ao lado dos outros, nus e reles, com o esplendor cada vez maior, cada vez mais sôfrego deante de nós. Estamos promptos. Estamos fartos. O que resta é o sonho de pé, só sonho e doirado, fétido e doirado, cahotico e doirado. Está rôto o contracto. A primavéra atingiu o auge nos vivos e nos mortos. Tinta sobre tinta, dôr sobre dôr. Resuscitam todas as primavéras, as primavéras successivas, as primeiras primavéras em que a ternura se confunde com a fealdade e a fealdade é já ternura, outras primavéras, e outras oiro e verde, em que a tinta escorre do negrume. O que custou á arvore a transformar-se em sonho, á arvore dorida com a flôr recalcada, até se desentranhar em emoção!... Mais outras primavéras phreneticas, mais outras timidas e delicadas, mais outras que não chegaram a abrir cobrem os vivos e os mortos... Mais braços na monstruosa arvore do sonho, mais braços que atingem o céo. E ahi estão todas as flôres e todos os gritos, a tentativa ridicula da flôr e a flôr esbraseada das noites sobre noites de concentração. Todos anciamos por este dia. Nós e os outros do fundo da sepultura contamos sempre com a primavéra eterna--nós e a cohorte muda cujo esforço senti sempre, muda e desesperada, cega e desesperada. Gritos que vem de longe, expressões mutiladas que tentam impor-se. Este sonho não era só meu. Arredei-o e pegou-me fuligem. Trouxe-o n'um cantinho do meu sêr como uma coisa prohibida. Nunca me atrevi a olhal-o frente a frente, até que surgiu das profundas, cahotico e doirado, de dôr e de restos, coçado e doirado. Pertence-me e pertence-te. Vem do céo e do inferno. É nosso e dos mortos. É o patrimonio da vida, e do tumulo. E os mortos estão arrependidos! os mortos estão arrependidos! 20 de abril As velhas encarniçadas são outras, são velhas em sonho vivo.--Mata! mata! mata!--Aqui de rastros, anno atraz d'anno, para ser comida!--Aqui a levar pontapés n'este sitio, aqui a crear rugas e fél!--Pois eu não fui eu, e agora estou deante d'isto, d'este assombro e d'este desespero!--Gritam porque se não podem vêr. Gritam porque a realidade e o sonho tomaram proporções que lhes não cabem nas almas. Gritam porque não lhe entrevêem o fundo. A D. Penaricia tirou a cuia postiça, e atirou com a cuia ao chão. Depois fitou os olhos na cuia enrodilhada, e absorveu-se na cuia de retroz, como se tivesse alli em frente o symbolo do universo:--Não posso desfazer-me d'isto! não posso desfazer-me d'isto! Toma! Eu não sou isto, e hei-de estar aqui sufocada a aturar-te para não morrer á fome. Hei-de ver-me e ver-te e hei-de dizer:--Jógo!--Hei-de fazer-te as vontades e ver-me tal qual sou, tal qual era e tal qual hei-de ser?--Á espera de quê, se nem da morte podemos esperar?--Então este esforço para ter uma alma não se conta? Este esforço para não andar de rastros como a cobra? Para viver com isto e com isto? Com esta amargura, o fél, o que é mesquinho e com Deus? Eu não posso com o que não comprehendo, com o que está por traz de mim, com o que está a meu lado e com o que tenho de fazer todos os dias...--Falo!--Falo eu agora!--A tragedia é que eu iludia-me, mentia a mim mesmo e agora não posso mentir. Não há gritos que te valham e a ninharia desapareceu do universo. A insignificancia acabou.--O peor drama--exclama outra--é que eu vejo o que fiz de mim propria. --A inveja que eu te tenho! a inveja que eu te tive sempre! E tenho que sorrir para ti, de dizer a tudo que sim! --Jogue! --Então eu passei a minha vida a ter paciencia, á espera, passei-a a mentir e obedecer, e tu a mandares, e agora hei-de continuar a ser abjecta quinhentos annos, seiscentos annos? --E eu! o pão que me deste amarguei-o sempre. Cada dia que passava mais me sabia a zinavre. Não te matei porque não pude! --Corte! --Tu não és mais do que eu! --Ai! Tambem eu, tambem eu tenho a dizer uma coisa. É que eu sabia bem tudo isto, há que tempos que o sabia!... Mas não sei que era que me obrigava a fingir. Corto! Avante! avante! Um cordão de velhas, como um cordão de sentinelas, não desampara o quarto onde a magestosa Theodora agonisa. Chove. Entre estas paredes forradas de papel doirado já não se moem as palavras de uso. Alumia-as o candieiro a escorrer petroleo, e a luz fixa as arestas das figuras de cerimonia, todas vestidas de preto, a calva d'um homem gordo, a quem só se veem as mãos esponjosas, os bicos das velhas retesas, cujas boccas remoem no escuro, a Adelia mais safada e mais sofrega, e o padre no meio da sala dominando-os a todos. Onde vae o ridiculo da D. Penaricia, as mesuras da D. Andreza, o riso idiota da D. Idalina, a langonha da D. Herminia? Parecem forjadas de novo. Até as prégas dos vestidos cahem como prégas de estatuas. Cada velha resolve que a colica da Theodora seja a sua ultima colica; em cada velha cresce, augmenta, trasborda, n'um tumulto, o inferno. Ao saque! ao saque!--É para mim. Eu é que sou a prima mais chegada.--Eu é que lhe tenho aturado tudo, é a mim que ella deixa os trezentos contos, os quatrocentos contos, ninguem sabe o que ella tem.--Nenhuma admite que a magestosa Theodora escape. Veem de muito longe estas figuras--veem das profundas... Nos olhos da D. Penaricia há claridades do inferno. Ganharam todas em fixidez e audacia. O sarcasmo não me chega á bocca, passou-me a vontade de rir. Desapareceram seculos de paciencia e astucia, surgiram figuras novas. Para as comprehender pergunto a mim mesmo o que é isto embrulhado n'um chale, e não me atrevo a contemplal-o. Ridiculo e ferocidade? Uma coisa sem nome, producto do acaso, ou uma coisa abjecta? Uma alma ou um resultado de formulas? Está aqui a D. Penaricia e a D. Eulalia ou Deus e o Diabo? Um mundo novo e um mundo atroz? Estão aqui perguntas vivas e respostas vivas:--Abra lá essa porta para traz!--Essa porta deita para a parte prohibida da vida. O mal, suspeitam-no, talvez seja a melhor parte da vida.--Abram lá essa porta para traz!--Não lhes parece que esperam há annos, parece-lhes que esperam há seculos, e tem alli deante de si estateladas, as cortezias que fizeram á velha,--o pois sim que disseram á velha--os sorrisos com que sorriram á velha--as vontades que fizeram á velha. São tragedias. Veem de muito longe, d'uma vida sem limites. Em cada uma se representa um drama atroz, o drama do interesse e do calculo, o drama da vida. Nuas, as velhas que estão na minha frente, são infinitas de grotesco e dôr. Duram há seculos. Há seculos que teem paciencia para viver e para sofrer. A D. Penaricia mente desde os confins do mundo: representa gritos, mais gritos represados. É um poço donde só saem ais e mais ais. O dificil é a gente habituar-se a viver esta vida e a outra vida: carregar com este pezo desde o infinito e lidar e falar e viver.--Oh morte que tão bem cheiras!...--Bem sei, os seculos imprimiram-lhes dedadas, os seculos deformaram-nas... Mas agora estão aqui desesperos em frente de desesperos, e desatam a berrar umas ás outras: --Tem paciencia, tem sempre paciencia. Doe-te? tem paciencia; amargas? tem paciencia... --Todos os dias da vida, todos os dias da minha vida á espera da morte. Estou farta! estou farta de despejar bacios, de dizer que sim, de dizer a tudo que sim, de ser a sombra de mim mesma. Agora está aqui a vida. Esta vida e todas as vidas. É preciso que ella morra, e se não morre é preciso matal-a. Ouve senhor padre Ananias, senhor padre unguento, senhor padre e as suas _comidelas_, senhor padre e o seu inferno?... Mentira! mentira! Eu propria era uma mentira. E só me aterra a ideia de acordar tarde, de acordar na morte, com a certeza de que era tudo mentira e só mentira... Abrem as boccas desmedidas, fecham logo as boccas desmedidas. --Bem vê que não posso mais. Eu que mentia não posso mais mentir. Como hei-de viver? --Tem paciencia, tem mais paciencia, tem paciencia por todos os seculos a vir... Estão alli dispostas a morrer e a matar. Está alli um cordão de velhas como um cordão de sentinelas á porta do quarto da magestosa Theodora. Duas, ambas de quico, ambas de mitenes, ambas impenetraveis, trazem na algibeira o lenço com que hão-de amarrar-lhe os queixos. Todas esperam que ella se decida a _expedir_. Nenhuma abre o bico, mas apalpam os vestidos como se trouxessem um punhal escondido. D'um lado as gulas exasperadas, a hora extrema--chamem o tabelião! chamem o tabelião!--o testamento, a sorte grande--emfim! emfim!--os chapeus de plumas, o oiro mexido e remexido, as gavetas arrombadas, as salas do tapete, o vicio e o goso--do outro a vida nova, o todas as abjecções inutilizadas. Ó morte que tão bem cheiras, aqui me tens para te servir. Como esta casa cheira bem! como cheira bem aqui dentro!--Ó morte que tão bem cheiras, tu dilues o travor de fél e acalmas a acidez da inveja. Resolves tudo, realisas tudo, os mais ignobeis pensamentos, as mais secretas aspirações, que nem a Deus se confiam, ó morte que tão bem cheiras!--E calcando a alma que se atreve, dizem compungidas, por habito secular:--Coitadinha já tem panella!... Agora aguenta-te, magestosa Theodora! N'alguns minutos esse craneo obtuso com uma cuia em cima, tem de luctar com o crêr ou não crêr, com a vida antiga e a vida que antevê; tem de desfazer a unhadas um edificio mais vasto que o Colyseu e de deitar abaixo pedra a pedra todas as pedras que cimentou durante a existencia; tem de se entregar ao sonho sem capacidade para o sonho; e tem, ainda por cima, de esquecer as inscripções e as decimas. Para escapar com vida, arrosta com a vida passada e com a vida futura. Tudo n'ella era imperativo. Decidia por uma vez: um passo, e é o inferno pela eternidade, o inferno com o sitio imovel, com o tormento da vista, com o tormento dos ouvidos. Escapar á morte é fugir á lei de Deus.--E d'um dado puxa por ella a vida, do outro puxa por ella o inferno--e as velhas lá fóra esperam e desesperam. Sente as labaredas do sitio imovel por a eternidade das eternidades; envolve-a, toca-a, engrandece-a tambem o sonho, e o inferno não cessa de reclamal-a, o inferno que foi o unico deus que temeu n'este valle de lagrimas. E esse debate esplendido n'uma alma estupida, deixa vestigios profundos: aquellas raizes não se arrancam sem produzirem buracos. E as velhas lá fóra esperam, emquanto a magestosa Theodora desata aos gritos, balouçada--e com a cuia a desfazer-se-lhe--entre a realidade e o sonho, entre o inferno e a vida nova que começa. Mas como a estupida vida de caldo e pão que levou antes de enriquecer, lhe deu fibra e caracter e não sei que de solido e amargo, a velha póde salvar-se, com um resto de chale e a cuia amolgada. A velha resiste, e ao abrir a porta exclama para o cordão das outras estupefactas: --Atravessei viva o inferno. Agora nem do diabo tenho medo! 25 de abril E o doirado não cessa. Doira o luar e a inepcia, doira a tragedia e o ridiculo... Teçamos, teçamos todos a nossa teia... A minha prendo-a ás arvores, ao céo e ás coisas eternas. Todos os sonhos se põem a caminho. É uma coisa equivoca. É uma coisa desgrenhada e fétida. É o sonho lastimoso das velhas, o sonho que não chega a ser sonho, onde boiam mortos informes, com laivos verdes, com tentaculos esbranquiçados que se prolongam no escuro. Toda a gente fala só. E o luar intoleravel, o luar indiferente, derrete-se sobre as ameias, sobre a cathedral, sobre os santos imoveis nos seus nichos. Dão horas, mas as horas acabaram. Coisa singular: esta gente só fala comsigo mesma, em monologos roucos, desesperados, infindaveis. Os olhos da D. Fufia ganham em fixidez e concentração; a D. Herminia começa uma tragedia, que dura uma noite inteira com a mesma palavra obscena. A alma sordida, o fluido que envolvia a villa, a atmosphera parda, feita de pequenos odios, de pequenos interesses e d'habitos concentrados, encrespa-se e cresce em vagalhões magneticos. Modifica todos os sêres e abala as paredes mestras. Embebe-se no salitre e roe os santos nos seus nichos: até na imobilidade entranha desespero. Quedam-se estonteados e transidos, como se a vida fosse uma mera creação do luar e da loucura... A alma da villa é sacudida por uma tempestade de espanto. A botica está deserta, com o bocal, o passaro empalhado, as moscas mortas. Um momento angustioso não se ouve rumor, depois um tumulto, um clamor, um ah! A villa toda grita:--Eil-o! aqui está o meu sonho, aqui está como o trouxe toda a vida, escondido, dorido, fruste, immenso ou humilde; aqui está a minha verdadeira figura--a figura do Melias e a figura do Melambes; a velha n'um debate perpetuo, a velha e as suas manias, o desespero e a Ursula, o grotesco e o pó doirado que não sei d'onde se me pegou; aquillo de que te rias e eu me ria, e que todos nós escondiamos, cada vez mais oculto, cada vez mais para dentro, como somiticos... Lá vae a Adelia, com o chapeu ás tres pancadas, lá vae um logista que parece Napoleão Bonaparte, e as Souzas armadas de ponto em branco--lá vae o inferno de luxuria e de egoismo. O muro não existe--derrubaram o muro. Nesse momento pezado de angustia todas as mãos se agitam no ar diante da outra coisa que no silencio e na noite estende os farrapos das azas cada vez mais disformes. Está sofrega. Cresce, grita, avança direita para nós. O que se pôz em marcha não vem de fóra, mas de dentro de ti mesmo, da mais cerrada das noites. Há muitas camadas de mortos. Há-as a legoas de profundidade e até de lá sobem os gritos. O homem é o mais profundo, o mais vasto de todos os sepulchros. Põe este homem vestido em frente d'este homem nu, a fama o credito, a praça, ao pé desta coisa desordenada que se encarniça e não nos larga, ó Elias, ó Melias, ó Melambes! A consideração não existe! a praça não existe! aqui estamos todos bichos em frente de bichos, os que pagam as lettras e os que teem as lettras protestadas, nós e nós, nós e os ladrões das estradas, nós vestidos e grotescos, nós nus e tragicos--nós e o universo monstruoso! Nós correctos e nós disformes, nós e o céo profundo na sua temerosa realidade. Salta laré, perirone, perirote! Mas salta com desespero, salta com as tuas eternas explicações, o subterfugio e o grotesco. Agora não nos servem de nada os relatorios, nem as razões dispostas como formulas algebricas--agora estamos aqui nós e o problema desalinhado e feroz, que nos impõe uma solução imediata. Salta laré, perirone, perirote! Se ella vive mais quinhentos annos lá se vae o dinheiro por agua abaixo. Peor: se ella remoça lá se vae o nosso credito na praça. Mas--pergunto--posso porventura deixal-a morrer quando está nas minhas mãos salval-a? Não sou eu por acaso um homem de bem? Tu és um homem de bem, eu sou um homem de bem, nós somos todos homens de bem--depende das circunstancias. Os paes são paes, mas deixam de ser paes se nos dão cabo de tudo--e da firma. Por outro lado há a contar com o credito. Pensem n'isto, no credito. O credito pode perder-se de um dia para o outro, e sem credito um homem não vale nada na praça. Meditem e atendam. Acima de tudo está o credito. Está talvez acima de Deus, ainda que a minha consciencia seja religiosa. Sem Deus ainda posso viver, sem credito não dou um passo na vida. --Além da firma que nos resta na vida? Fóra da praça não existimos. Pense que logo, amanhã, hoje mesmo, a nossa mãe remoçada deixa de sêr a nossa mãe. Que quer o mano fazer? que pode o mano fazer? Destruir por suas proprias mãos o nosso credito na praça? Um defronte do outro abanam as respeitaveis cabeças, com calva e risca, com risca e calva, aquella distinção de porte e de vinco, aquella ponderação de estilo, aquella correcção de maneiras, aquella seriedade das seriedades, que a praça honra, que as firmas honram, que a Egreja honra, e de que até o proprio Deus do céo já está á espera com o palio meio aberto. A firma Elias & Melias tão correcta, com livros, ripolin nos caixilhos e nas almas, vê-se descascada até á medula e treme nos seus fundamentos. Está encalacrada. E o peor é que não são só elles que estão encalacrados, estamos todos encalacrados. Na verdade o que importa não é o que tu me dizes: é o que eu digo a mim mesmo... Ó Rinhe como tu rinhes com dôr, com desespero, n'uma forma pastosa, a que se misturam já palavras vivas, em logar das phrases dos relatorios e dos bancos! Decerto te sentes bem no pegajoso, mas por traz não te dá tregoas o impulso. Neste conflicto delicado só tu vinhas a tempo, ó morte que tão bem cheiras, e, cumpridas as formalidades do estilo, entregavas-me, com o testamento, a chave do cofre. Agora esta coisa encarniçada e feroz, sofrega e imunda, leva-nos a mim e a ti, com desespero e gritos, com as formulas e o vinco, com a praça e o credito!... Agora não, D. Bibliotheca das Bibliothecas, já preparada com todos os requesitos e unguentos para o horror do nada! Agora não! Já tentaram desligar-te da vida com as palavras unctuosas do ritho e promessas de outra vida melhor. Que te resta? A vida eterna. Pôço p'ra a vida eterna! O que tu queres é esta vida, esta insignificancia e estes restos--e está aqui a morte inexhoravel. Tanta saudade! tanto apêgo! Tudo te doe e do fundo d'essa miseria e d'essa pelle engelhada vem um gemido baixinho diante da figura tremenda que não sae de ao pé de ti... Ó carne putrefacta, como tu te apegas a um resquicio d'esperança, a um só que seja! O que te custa a largar o brazão na fralda da camisa, o postiço de toda a tua existencia inutil, o alto da lista de subscriptores--tres tostões, seis tostões, um quartinho! ó carne fedorenta, ó carne já preparada para o mausoléo, com a gaveta aberta, latim e agua benta, dois involucros, um de mogno, outro de chumbo, e o picheleiro á espera! E ahi os tens sem piedade, inexhoraveis como o destino. Agora não Elias & Melias, agora não D. Bibliotheca das Bibliothecas, estaes frente a frente com a realidade e a morte. Salta laré, perirone, perirote! --Não quero morrer! não me deixem morrer! Chamem os meus filhos, chamem toda a gente. Não me deixem morrer! Todos os apetites, todas as sensações que pareciam extinctas, assobiam como viboras. Horas antes de morrer ainda essa mulher está tão intacta por dentro como aos vinte annos. Ninguem a pode conter. Quer saltar pela cama fóra. --Chamem os meus filhos! chamem os meus filhos! --Chamem o procurador! Mas o que ella exprime por palavras, pelo olhar, pelos gestos, é a ancia de viver. -- Não, não. Tirem-me para lá esse homem. O que eu quero é viver. Vê no ultimo desespero a face estupida do procurador dizer-lhe coisas grotescas: --Ó minha senhora cheguemo-nos á razão. Seja razoavel. --Quero viver. --Temos em primeiro logar a Egreja. Apelo para os seus sentimentos religiosos, que os teve sempre, e deante dos quaes me curvo respeitosamente. Apelo... --Dêm-me o remedio! Quero viver! --Segundo lembro a V. Ex. que tem sido até agora mãe extremosa dos seus filhos. Se volta aos vinte annos, pergunto respeitosamente a V. Ex.^a, Ex.^{ma} senhora, que é que V. Ex.^a é aos seus filhos? --Quero viver! --Perdão minha senhora! Esta fortuna tão bem administrada pelo casal de que tenho sido bastante procurador a que mãos irá emfim parar? Peço-lhe que reflicta. Peço-lhe que se submeta. Lembro-lhe que estão alli fóra seus respeitaveis filhos subjugados pela dôr, lembro-lhe a sociedade, e atrevo-me a lembrar-lhe que não tarda ahi o D. Prior. Um fio, falta só um fio, e ainda aquella figura grotesca se debruça para lhe dezer:--V. Ex.^a... --Fechem as portas! fechem as janelas! fechem tudo!--exclama o honrado Elias de Mello, com a calva arripiada. --Não quero morrer! Tem forças para saltar da cama, para se arrastar até á porta, e toda a noite no casarão echoam gritos. Não quero morrer! Um minuto e mais nada. Um minuto e, contido n'esse minuto, o universo desabalado, a morte, o desespero e o procurador com o sêlo da lei e a saliva da lei. Tu d'um lado decrepita--e do outro a sofreguidão cahotica para mastigares com o unico dente que te resta na bocca. Um minuto e contido n'esse minuto os vivos e os mortos, o teu phantasma e todos os phantasmas, a realidade e o sonho,--tu ungida e tingida, nós e nós--nós correctos e grotescos--nós Melias e doirado, nós Melambes e phrenetico! 30 de abril Donde emerge esta figura encharcada de lama, menos a sombrinha, que, apezar da dôr, conseguiu atravessar incolume todos os solavancos? A que se atreve depois de ver o filho? Cheguei a ter a visão nitida da montanha de pó acumulada sobre ella, e do desespero immenso para a romper. Sabe tudo, vae dizer tudo. Tem alli as cautellas do prego e a malinha de mão onde levava escondidos, a enterrar, os fetos da D. Engracia; só ella pode desvendar os vicios occultos e o sitio onde a D. Bibliotheca tinha a sua fistula. Conhece as miserias e os segredos das familias correctas. Vae emfim dizer tudo, quando lhe surge o filho que não via há annos. Eil-o creado de orgulho e de codeas. Submete-se logo, mais coçada e mais gasta, diante d'aquella obra prima real e tangivel.--Pois sim, pois sim...--Ahi tens tu o teu sonho alimentado de codeas e transformado em realidade. Ahi está patente o sonho que sonhaste com inveja, o sonho que sonhaste com fél, aos ais, com a bocca tapada, o sonho feito de farrapos, que ocultaste de toda a gente para poder viver. Ahi está patente, á luz do sol, como os sonhos dos outros, de ambição e de imperio, o sonho que ninguem viu sonhar, e que sustentaste á custa da tua propria alma--ó Restituta da Piedade Sardinha! ...--Sejamos logicos mãe--diz elle--na vida é preciso ser logico. A mãe creou-me escondido, eu, por meu lado, disse sempre que não tinha mãe. Não hei-de agora que vou casar apresental-a:--«Aqui está a minha mãe que me creou de esmolas, que me creou escondido». --Tens razão, filho. --O que é preciso é que a mãe desapareça. O que é preciso é que a mãe, que tem sido logica deixando-me fazer carreira, não estrague agora tudo. Quem soube sacrificar-se para me engrandecer, deve continuar a sacrificar-se. Não lhe peço mais nada: desapareça. --Desapareço. Ella propria tem por aquella obra monumental de egoismo, o respeito que teve sempre por as pessoas consideraveis. Está alli na sua frente de chapeu lustroso e luvas esticadas. Acrescentem a isto amor. Levou annos a creal-o escondido, e revê-se embevecida nos cartões em que elle assigna Monfalcão dos Monfalcões (Sardinha). De resto não lhe custa nada desaparecer. Não lhe custa mesmo nada. É mais uma ordem a cumprir. Obedece. Obedece, como obedeceu sempre a D. Hermengarda, á D. Theodora, á D. Herminia, como obedeceu a todas as pessoas ricas e de consideração, como obedeceu á vida que fez d'ella um trapo. Apenas um minuto e esse minuto chega. Um minuto e mais nada. Nesse minuto a figura contrahida reconhece a figura de trapos e de restos. Nesse unico minuto de duvida a D. Restituta vive mil annos e um dia e concentra-se em horror e desespero. É o minuto supremo em que a velha Pois Sim se sente arrastada ao céo e ao inferno, ouve vozes que falam ao mesmo tempo, e ella mesmo pronuncia palavras que nunca ousou pronunciar, nem no recanto mais obscuro da sua alma.--Vi-o! vi-o! vi-o! Que é isto? que é isto que se me péga e se me entranhou na obediencia e na mentira? O que é isto que não comprehendo e que me doe? Desespero e pois sim, sofreguidão e pois sim, doirado e pois sim! Eu não posso com isto amargo e doirado! Eu só posso mentir, só posso obedecer, só posso com restos, com os restos dos restos. Tenho vivido desde o principio do mundo a escorrer fél e pois sim. Tenho sido sempre Pois Sim, só Pois Sim, e agora sou Pois Sim e desespero! Desespero, e n'este desespero uma primavéra de restos, uma primavéra abortada, que só chega a deitar uma flôr miudinha como a flôr do escalheiro.--Mente! mente! mentir não custa nada!--Mas a D. Restituta já não pode mentir ainda que queira. Quer dizer que não, e com ella todos os mortos, todos os mortos que não se atreveram a sonhar, que não abranjeram o sonho, dizem á uma que sim, dizem com desespero que sim. Sonho e pois sim não cabem no mesmo sacco. Não cabem no mesmo sacco primavéra e pois sim. A sofreguidão atingiu o auge e tu viste-o! viste-o!... Salta laré, perirone perirote!... A sacudidela de revolta extingue-se, sae da lucta exhausta, com todo o pezo da montanha em cima, diminuida, reduzida outra vez a pois sim... Esses minutos que passou só e contemplando a ruina de toda a sua vida foram amargos como fél.--Mete o diabo no sacco!--Tão cansada e tão gasta que nem as feições lhe reconheço; tão amarga e tão ridicula, tão pois sim, que da D. Restituta só resta uma expressão de dôr, de dôr mutilada a dizer que sim, sempre que sim--a dizer a tudo que sim. --Mete tudo no sacco, mete-o com lagrimas requentadas e o fél da submissão. Mete a tua alma e a minha alma, gastas de dizerem a tudo que sim. Mete o diabo no sacco! mete tudo p'ra o sacco, desespero e doirado, sofreguidão e pois sim! Balouça ao vento, a uma restea de luar, pendurado n'uma corda, o cadaver da D. Restituta, que parece dizer pela ultima vez que sim--para que o filho possa casar com a filha do conselheiro Barata. Balouça ao vento n'um sexto andar--esquerdo. Morre ignorada e desconhecida quem toda a vida viveu de codeas, para lhe assegurar o futuro e a assignatura com brazão e elmo, Monfalcão dos Monfalcões (Sardinha). Da mão crispada ninguem lhe arranca a photographia de quando elle era pequeno, com o fardamento da _Escola Academica_, como um guarda-portão em miniatura. A sombrinha lá está aberta ao lado da cama, por causa da humidade, e pela janela, aberta sobre o luar, veem-se os montes onde o Santo colerico não cessa de latir injurias sobre a villa agachada de terror. 6 de maio Chegou. Abriu a mais bella, a mais fecunda, a mais doirada de todas as primavéras--a primavéra eterna. Revolveu a terra e cobriu os sêres e as coisas de flôres, por camadas ininterruptas e successivas, com todas as côres e todos os entontecimentos, todas as infamias e todas as tintas--com todos os desesperos. Está aqui tambem presente a floresta apodrecida... As arvores não se veem, mas estão tambem aqui... Está aqui a floresta apodrecida, e com ella as fórmas de sonho e as fórmas de dôr mutilada que vagueiam na profundidade das profundidades, os contactos viscosos, as mãos geladas ainda em esboço, os sêres cegos e com gritos, porque não sabem ainda viver, as fórmas hesitantes do pezadelo... É aqui que corre e escorre o verde, o roxo e o lilaz--os tons violentos e os tons apagados. Até as arvores são sonhos. Atravessaram o inverno com sonho contido, com o sonho humilde com que carregam há seculos. E até esses sonhos se transformaram em realidade. Realisou-se emfim o milagre: as arvores chegam ao céo. DEUS 10 de maio O que eu sinto é o desespero de não haver dôr eterna. A dôr pela eternidade das eternidades era ainda viver. Sofrêr sempre, com a consciencia do sofrimento, é viver sempre. Antes o inferno! antes o inferno! o inferno em logar do nada. O inferno era ainda o céo. Alguma coisa nos conduz e nos leva até á morte. Rodeia-nos. Impele-nos. Não a vêmos e está ao nosso lado. Só ella existe no mundo. Estou nas suas mãos com desespero. Extasia-nos. Aturde-nos. Escarnece-nos. Tu não existes! tu não existes! E não há mãos mais crueis que as tuas. És abjecta. És cega e phrenetica. Levas-nos enrodilhados e envolvidos. E queira ou não queira estou nas tuas mãos. Só tu existes no mundo. Nem a vida nem a morte, nem o tempo nem Deus. A unica realidade és tu--fétida e immensa, sofrega e horrivel. Gritas? hás-de gritar pela eternidade das eternidades. Fazes parte para todo o sempre d'esta força que vem do principio da vida e se projecta nos confins da vida, com bocca ou sem bocca, capaz de todo o sonho e de toda a belleza--para nada! para nada!... Na minha alma reflecte-se o dialogo do universo como a claridade na agua para me entontecer. Cheguei ao ponto em que tenho medo. Fecho as janellas, fecho tudo. Outra vêz a primavéra! outra vêz o escarneo! O que tu queres é iludir-me. A um dia de nevoa sucede um dia doirado. E extasias-me. Se abro a porta, a noite está cheia de estrellas e de vozes. No fim da tarde, quando a agua tem um som mais lindo, a neblina dá encanto á minha vida e aos grandes montes compactos. Alheias-me, fazes-me sonhar, levas-me escarnecido até á morte. Atraz de ti só há dôr e o desconhecido. Mascaras-te para me iludires. Mais uma vez tentas inebriar-me com o teu arôma; mais uma vez os pinheiros sacodem no ar o seu polen sulfuroso... Não quero vêr! não posso vêr! Não te posso vêr! A vida é amarga, a primavéra é secca e inutil. Fecho tudo para não te vêr. Fecho tudo para não vêr a primavéra e sinto-a atravez dos muros. Oh o grande oceano, a torrente impetuosa--sempre! sempre--o mar de mãos fluidas que me envolvem--o mar do silencio, o grande mar inexgotavel que deslisa no silencio--como tudo isto me mete medo! Reconheço-te força, mas não me importas nada. Este deus faz o que elle quer e não o que eu quero. Este deus desordenado e imenso, não é feito á minha imagem e semilhança. Não me ouve nem me atende. Não o posso desviar da sua marcha á custa de suplicas e de gritos. Não se apieda. Não sei se tem o sentimento da justiça. Talvez tenha outro sentimento de justiça--outro maior--outro que não abranjo. Este deus não me é nada. Para elle é vão tudo o que se grita no mundo, tudo o que se sofre no mundo é vão. Todos os santos são grotescos. Todos, os que te chamaram e suplicaram, todos os que te ofereceram a renuncia e a dôr, o fizeram no vacuo. Pai, tu não existias! E não existindo impeles-me, entonteces-me e esmagas-me. Estou nas tuas mãos e não as vejo. Crias-me e não existes. Eu sei, eu sinto que estás ahi desconforme, vivo, e obstinado--mas não és o meu deus. Tanto faz esfacelar-me contra este muro compacto, como conservar-me quieto, indiferente e calado. Tu estás ahi patente, vivo como a vida, mas não me conheces nem eu te conheço a ti. Não nos chegamos a entender. Não tens nome. E estou nas tuas mãos. Estou nas tuas mãos e não me interessas. O que me interessava eras tu. Tu, que não existes, entranhaste-te-me na carne e no osso, de tal forma que não me livro de ti. Não existes e dominas-me. Não existes e torturas-me. Não existes e só tu és a razão da minha vida, dos meus actos, e do meu sêr. Não existes e só tu existes. Tenho mil annos e um dia para prégar deante do vacuo que não existes. Para te chamar sabendo que não ouves. Disponho de mil annos e um dia de desespero, de mil annos e um dia deante da mudez, a clamar, a prégar, a mentir. O resto são phrases e mais nada. Só a vida futura, só a vida presente sob o teu olhar tinha finalidade e razão de sêr. O resto são phrases com que me procuras iludir e com que te procuro iludir. Porque se um dia, sós a sós com a tua alma, te detiveste deante d'estas palavras--a vida eterna e a morte eterna, não como palavras mas como realidades, nunca mais podeste desviar o olhar. O que me interessava eras tu porque para, que tu existas é preciso que eu exista tambem. Eu não posso passar sem ti, mas tu não podes passar sem mim. Se tu não existes, estou nas mãos da força obstinada e cega. O que me interessava era o espectaculo da minha propria alma, o dialogo dos dias e das noites entre mim e ti, a immensidade temerosa mas viva, de que eu fazia parte. E agora, reconheço-o, toda a dôr resulta de eu criar um universo que não existe. De tu me creares a mim e de eu te crear a ti. O resto do universo ignora a vida e a morte. Toda a dôr resulta d'este esforço para a mentira. De eu não não me submeter á força desabalada e cega. De eu têr inventado um Mundo maior que o teu e diferente do teu, para o sobrepor ao mundo cahotico, ao mundo atroz. De mentirmos com obstinação até á cova, ao céo e ás estrellas. D'estas duas creações antagonicas resulta a maior dôr humana. Se eu não tivesse criado outra vida imaginaria, tu passavas e calcavas-me, tu passavas e esmagavas-me, mas não me cabia em lote a morte e a consciencia da morte, a vida e a consciencia da vida. Mas creando a mentira tragica sou maior do que tu. Resta-me o bem. Mas fazer o bem para quê se tudo acaba alli, se não ha outra vida consciente, se não tenho de responder perante ti pelos meus actos? E mesmo diante do escantilhão sofrego, o que é o bem e o mal? A que eu tenho de obedecer é ao instincto e mais nada. Se não estás ahi para me julgar e para me ouvir, que importa fazer isto ou fazer exactamente o contrario? Só uma coisa resta: iludir os desgraçados, leval-os para uma mentira cada vez maior, para que possam suportar a vida. Não se trata do bem ou do mal, do justo ou do injusto--trata-se de mentir, de mentir sempre--de mentir cada vez mais. Estou nas tuas mãos... Esta noite limpida como um diamante polido não existe. O que existe é atroz... Nem a primavéra existe, e tudo se entreabre em entontecimento azul. Nem esta harmonia dos mundos, que eu criei, existe. O que existe é atroz. Nem este sonho em que ando envolvido e iludido. Só tu existes no mundo e me trazes estonteado no mundo. Fecho-me para te não vêr e estou nas tuas mãos. Se eu pudesse ouvir-te, ouvia todos os gritos que se soltaram no mundo, se eu pudesse encarar-te em toda a tua plenitude--via o negrume monstruoso e cahotico avançando para mim, o repelão doirado levando tudo diante de si, no desespero, na vida e na morte, esmagando sempre e renovando sempre, para crear mais dôr. Não te fartas. Isto é desconhecido, é absurdo, é eterno--mas a belleza tragica da vida ephemera consiste em te resistir, todo o nosso afan em crear uma mentira para opor a tua verdade--de que resulte dôr. Tu podes tudo como verdade. Estou nas tuas mãos. Eu posso tudo como mentira, e só assim saio das tuas mãos. A verdade é a dissolução e a morte, és tu; a mentira é a vida. Resisto-te para poder viver; para poder viver crio a mentira tragica. Se cedo ao teu impulso, se escuto as tuas vozes, levas-me para uma vida inferior; se te oponho a mentira, caminho por uma via dolorosa: engrandeço-me. Estou nas tuas mãos--e nego-te. E o homem é tanto maior quanto mais alto afirma que existes. Crispa-se-lhe a bocca, dilacera-se até ás ultimas fibras, lucta, grita e sae em farrapos das tuas mãos. Todos os heróes são martyres, todos os santos foram iludidos até á morte. CÉO E INFERNO 20 de maio Toda a villa, a villa toda, a que a luz artificial dava relevo, desata a gritar como se lhe arrancassem a pelle. Gritam as velhas, grita o Santo em frente da sombra que se lhe introduziu na vida. Grita a paciencia e a mentira, grita a hipocrisia. Desapareceram as figuras e só ficam gritos na noite. Outro passo--outro grito. É a custo que me separo d'este sêr com quem cohabitei sempre. O escarneo está aqui; está aqui o escarneo e o rancor. Gritam no mundo subvertido. Mais gritos. Que dever? O dever de te matar? O dever de te cuspir? Matal-a, mas matal-a é até um caso de consciencia, para que a minha vida seja a minha vida.--E os gritos augmentam--gritos de dôr, gritos d'espanto, gritos sufocados de colera, mais gritos de sêres que se não querem separar da antiga carcassa. Tudo isto caminhava para um fim, tudo foi desviado ao mesmo tempo d'esse fim; tudo isto se alimentava de certas regras, tudo avança desesperado, aos gritos, ancioso e doloroso:--Pois és tu! és tu! E o interesse és tu! e o amor és tu!--O desespero augmenta, os gritos redobram. As creaturas com que deparo são temerosas. Uns desatam a rir com rancor e sarcasmos sobre sarcasmos. Há-os que se reduzem a baba e a pó.--O quê, tudo isto era tão pequeno! Pois passei metade da existencia, annos atraz do annos, ao lado d'esta coisa feroz e esplendida, absorto em ninharia! E nunca dei pelo assombro, pela vertigem! Atrevo-me a matar, atrevo-me a odiar, atrevo-me a escarnecer-te...--Mas então--pergunto--eu fui o homem escrupuloso, eu fui o homem honesto que luctei toda a vida com os maus instinctos, n'um combate perpetuo--para isto? Pergunto--para isto? Alli aquella desata aos berros e sêres caminham transfigurados; sêres que nunca sonharam, materia impenetravel, deparam pela primeira vez com o sonho, o que os deixa atonitos. Ninguem pode encarar-se até ao fundo. A tua meticulosidade é de ferro, está de tal maneira entranhada no teu sêr que sem ella não existes. Pois até a tua meticulosidade se há-de dissolver. E tu sem o habito não existes, nem tu sem o dever, nem tu sem a consciencia. A D. Ursula que passou a vida a esfregar, a polir, a limpar os moveis reluzentes, deita-os todos a esmo do terceiro andar á rua.--Adoro-a mas não posso separar o interesse do amôr--não posso separal-os. Está dito e redito. No fundo do meu pensamento, bem no fundo de meu horrivel pensamento, uma outra ideia lucta, avança e não a posso arredar. Estraga-me a vida toda.--O mundo moral está com escriptos e reduz-se a uma loja escura, com teias de aranha no tecto. Vemo-nos! vemo-nos que é o peor! Porque na verdade eu nunca me tinha visto n'esta horrivel nudez sem arrepanhar á pressa os vestidos. Eu metia-me medo. E agora vemo-nos! vemo-nos! Todos os sêres são temerosos. Mesmo grotescos são tragicos. Há n'este trapo que creaste, n'esta corôa de lata que foi a tua vida, não sei o quê que sua espanto. E dôr! e dôr na tua duvida ridicula, no vislumbre, no minuto de sonho que entrevi nos teus olhos. Este momento tragico, esta pausa, este horror em que cada um se vê na sua essencia, em que cada sêr se encontra sós a sós com a sua propria alma, reduzido sem artificios á sua propria alma, só tem outro a que se compare, aquelle em que cada um vê a alma dos outros. Porque, por melhor ou peor que tenhamos julgado os outros, vimol-os sempre atravez de nós mesmos. O que ahi está é temeroso, sêres estranhos; sêres que, se dão mais um passo, nem eu nem tu podemos encarar com elles. Andam aqui interesses--e outra coisa. Com mil palavras diversas e ignobeis, mil boccas que te empurram para a infamia--outra coisa. Tens de confessal-o. Não é a consciencia--não é o remorso--não é o medo. É uma coisa inexplicavel e immensa, profunda e immensa, que assiste a este espectaculo sem dizer palavra--e espera... És immundo, és a vida. Não te sei definir, não te comprehendo. Se te levo até ao ultimo extremo perco o pé... Não sei até onde vae o meu horrivel pensamento. Até aqui tinha limites, agora nem o meu pensamento nem o teu encontram limites. Matar ou deixar de matar é tudo a mesma coisa. É tudo inutil. Agora não! agora não me quero ver nem te quero ver! Estamos no céo; e no inferno, D. Idalina e a langonha. Estamos no céo e no inferno, Anacleto, e tu ainda te enroscas na tua inalteravel correcção. Não te desmanches! Estamos emfim todos no céo e no inferno, e todos á uma percebemos que a vida foi inutil. É com gritos que a D. Leocadia reconhece que o escrupulo não existe; é com espanto que ella percebe que o bem que fez foi inutil; é com horror que a D. Leocadia comprehende que só lhe resta o vacuo. A inteiriça D. Leocadia berra no infinito, depois de se desfazer de todos os sentimentos falsos:--Mas eu cumpri sempre o meu dever!--Há-de-te servir de muito!--E aqui te encontras diante desta coisa que não foi feita para ti, aqui estás tu atirada de repente para uma acção sem limites, com os cabelos em pé,--tu D. Leocadia e o infinito; tu D. Leocadia que moravas entre quatro paredes a rever salitre, e agora tens de morar no céo e no inferno. O drama é tu, D. Leocadia, não te poderes desfazer da outra D. Leocadia; o drama supremo é tu seres ao mesmo tempo, D. Leocadia 29-3.^o-D e D. Leocadia Infinito.--Reduzi-me a isto e reduzi-a a isto! Cheguei ao ponto! cheguei ao ponto! Cheguei ao ponto em que te vejo cara a cara e percebo que tudo é absurdo e inutil! Talvez o meu dever fosse fazer o mal. Atraz de mim, atraz de ti, andavam duas figuras, que, por mais esforços que fizessem, nunca se chegaram a entender!--A tua vida, a minha vida, foi um perpetuo inferno. Tiveste um filho e apegaste-te mais ao teu dever que ao teu filho. Dedicaste-lhe as tuas economias. Por o dever esqueceste interesses e paixões, e na tua alma solitaria só coube o exaspero e o dever. Mais nada. E á medida que a vida te inutilisou as ambições e te gastou os sonhos, mais te apegaste a essa palavra, que foi a unica razão da tua existencia. Tambem eu! tambem eu! Fechaste-te com ella no silencio gelido da villa, onde, nas noites sem fim, se chegava a ouvir o contacto das aranhas devorando-se com volupia no fundo dos saguões. Todos os dias pezaste o pão que lhe déste, mas déste-lho. E, tendo perdido tudo, só o dever te restou no mundo--e a orfã, a quem já não consegues reconhecer as feições. A mesma coisa nos dilacerou a ambos, a mesma coisa dolorosa nos encheu de colera, á medida que caminhavamos para a velhice e para a morte. E aqui chegaste, aqui cheguei, ambos ridiculos e amargos, sahindo d'uma lucta desesperada com outra coisa que nunca quizemos vêr. Ambos grotescos e de pé, tu e eu, eu e tu, com o teu broche, onde o mesmo sujeito de suissas--lembrança do primeiro matrimonio!--não tira de mim os olhos aguados de peixe. Ambos tendo atravessado n'uma taboa o mais tragico de todos os mares, e no fundo a mesma dôr, no fundo o mesmo fél, no fundo o mesmo esforço para sustentarmos sobre a cabeça esta abobada que não existe. O que não queriamos vêr era a noite...--Vontade tinha eu de fazer o mal, o que me não atrevia era a fazel-o.--Oh D. Leocadia dá um passo, outro passo ainda e mergulhas na beatitude como quem cumpre um destino.--Cessou o debate.--Não fales mais, D. Leocadia. Está tudo dito... A figura que ahi vem mastiga em secco, com uma camada de verde e outra camada de sonho. A figura que ahi vem, d'um egoismo concentrado, e a que adherem ainda os mil e um nadas da sua existencia anterior de molusco, avança hirta para mim, inteiriça como uma barra de ferro. Ainda cheira a môfo, mas os olhos entranham-se-lhe n'um vasto panorama inexplorado. Vê para dentro, cada vez mais sofrega e o seu sonho não tem limites. O mal não tem limites. Tem diante de si mil annos e um dia para essa absorpção dolorosa e tragica. Abarca o mundo. Ó D. Leocadia agora é que tu chegaste ao amago! É um conflicto entre ti e os outros mortos, uma lucta num tablado que abrange o universo. D'ahi o seu prestigio--d'ahi o immenso scenario que se desdobra deante da D. Leocadia absorta n'esse panorama sem limites... Só há no céo e no inferno outro espectro peor. É este sêr sem nome, pedra e desespero, noite e desespero, que se imobilisa na inutilidade de todos os esforços. Todos gritam de desespero no céo e no inferno. Confundem-se mil boccas, as coisas mais altas e as coisas mais reles. Aqui está a villa toda, virada do avesso, os ridiculos sem vergonha do ridiculo e os infames lambendo a infamia. Aqui está a ilusão--e aqui está em pello a D. Possidonia, que ainda conserva na cabeça o chapeu de plumas. Aqui está a ordem e aqui está a desordem, as palavras inuteis e a inutil burandanga, toda a formula, todo o calvario da vida para subir até a morte--e aqui nos vemos uns aos outros tal qual somos, admiraveis, obscenos, reles, todos da mesma lama e com as mesmas chagas.--Eras tu força estupida e cega que me enchias de ilusão para poder suportar a vida? Eras tu o interesse, eras tu o amôr?... Aqui estão d'uma banda as formulas (e só agora comprehendo a sua necessidade) aqui está do outro lado a vida; aqui está o que se chamava a honra, e o que se chamava o dever. Ó amigos eis aqui todo o nosso grotesco, todas as nossas ambições, todas as nossas vaidades--e com ellas o absurdo e a logica. E eis aqui o meu drama e o teu drama. Os grandes desmoronamentos, a colera duns e o terror dos outros. Eis aqui o céo e o inferno, o maximo de ilusões e a ausencia completa de ilusões. Aqui as vaias, o sarcasmo, os apupos, os grandes insultos e a suprema mixordia. Desmoronou-se tudo, todas as fachadas e todos os artificios. Gritos, mais gritos, mais sarcasmos e insultos.--Como eu te reconheço! e a ti! e a ti!--E a ti que és a figura silenciosa que há tanto tempo me persegues, calada e triste, o que eras a peor. Tu que curvas a cabeça, sem nunca te pronunciares, tu que sofres quando eu sofro, que te envolves em silencio quando persisto n'este caminho doloroso--como te reconheço!--Dá gritos! podes gritar á tua vontade! Agora estou nu e toda a mentira me é impossivel; agora estou nu e todas as palavras são inuteis; agora estou nu deante da immensidade e não posso ao mesmo tempo com o céo e o inferno. Agora é peor, agora tanto faz resistir um dia como um seculo. Agora é peor: não nos podemos ver. Como dois amigos que se encontram passados muitos annos, perdemos todos os pontos de contacto. Estamos aqui a representar: a verdade é que não nos podemos ver. Eis-nos bichos em frente de bichos. 25 de maio Eis emfim a villa sonho, a villa phantasma. Reparem nas pedras e no que ellas exprimem, na alvenaria e castanho assentes com outro destino... Ruas lageadas, recantos onde nunca entrou o sol. Paredes mestras. Silencio e humidade até á medula, gestos lentos, habitos regrados. Uma rua desce até á egreja de cantaria lavrada. Um predio enorme avança sobre a ruella onde os passos echoam. Cresce aqui uma vegetação especial de sepulchro, e a sombra absorvida pelas muralhas da Sé exhala-se em bafo passado um seculo. Os alicerces são temerosos, as traves d'uma casa davam para a construcção d'um bairro. E tudo isto se entranhou de salitre, de interesse e de odio. Em tudo isto há uma mescla de inutilidade, de fé e de sonho. Tudo isto está cimentado para seculos. Cada barrote foi pregado com um destino, cada bloco metido na terra para se lhe erguer em cima não uma parede, mas uma ideia, uma vida, uma alma--tudo isto tem uma camada de bolor e se impregnou de desespero. Até os sepulchros foram construidos para a eternidade. A pedra depois de talhada, é uma expressão. Entro na cathedral. Silencio e um cheirinho a floresta apodrecida. As lages estão gastas d'um lado pelos passos dos vivos, do outro pelo contacto dos mortos. Tudo aqui gira em torno da mesma ideia... A pedra esboroa-se, mas eu contemplo-a viva, com um povo de estatuas em cima, com um povo de mortos em baixo. Nos alicerces uma geração, outra geração, todos apodrecendo juntos na mesma terra misturada e revolvida. A parte exterior é maravilhosa, a parte subterranea é mais maravilhosa ainda. É a unica raiz que se conserva intacta. Aqui não andam só os vivos--andam tambem os mortos. A villa é povoada pelos que se agitam n'uma existencia transitoria e baça, e pelos outros que se impõem como se estivessem vivos. Tudo está ligado e confundido. Sobre as casas há outra edificação, e uma trave ideal que o caruncho roe une todas as construcções vulgares. Sob um grito outro grito, sob uma pedra outra pedra. Debalde todos os dias repelimos os mortos--todos os dias os mortos se misturam á nossa vida. E não nos largam. Eis a villa abjecta, a villa banal onde se praticam todos os dias as mesmas acções e se repetem todos os dias os mesmos gestos... Aqui só há um pensamento fundamental: fugir á morte, protestar contra a morte, que é a mais viva de de todas as realidades, que é talvez a unica realidade. Protestar, contra as forças desabaladas, pelo sonho, em espirito ou em pedra, que se erga deante do Destino e desafie o Destino. Atravez da paciencia e da mentira, todo o esforço do homem tende para outro homem, para o homem ideal, para a figura de sonho, que há-de sêr um dia a creação dos vivos e dos mortos--o sonho realisado--o universo realisado. A vida ideal, a vida artificial, como a do granito, representa a mesma tentativa da mentira contra a verdade e a obstinação sobrehumana dos mortos para suprimirem a morte. A vida em si é o mais profundo de todos os horrores, é o esforço inconsciente da larva repetindo as mesmas acções instinctivas, que o destino nos impõe. Tudo que nos rodeia é monstruoso; o que nos rodeia de negrume vae desabar sobre nós, reclamando dôr, reclamando gritos e sustentando-se de gritos. Separa-nos um fio. Só com a condição de não vermos a realidade é que podemos viver. Para a esconder erguemos a cathedral immensa, reconstruimos o universo todos os dias pelo esforço dos vivos e das gerações passadas. E toda esta mentira tragica a levantamos até ao céo a poder de palavras e com a força magnetica das palavras. Não só os sentimentos criam palavras, tambem as palavras criam sentimentos. As palavras formam uma architectura de ferro. São a vida e quasi toda a nossa vida--a razão e a essencia d'esta barafunda. É com palavras que construimos o mundo. É com palavras que os mortos se nos impõem. É com palavras, que são apenas sons, que tudo edificamos na vida. Mas agora que os valores mudaram, de que nos servem estas palavras? É preciso crear outras, empregar outras, obscuras, terriveis, em carne viva, que traduzam a colera, o instincto e o espanto. Mas se tudo são palavras e de palavras nos sustentamos, o que nos resta afinal? Gritos em frente de gritos, instinctos em frente de instinctos. Fica a morte á solta e o instincto á solta. Ficam os mortos de pé--a cohorte que não queriamos vêr, erguida, como o vento ergue a poeira, até aos confins da vida. A D. Adelia não existe, o que aqui está vem de muito longe. Está aqui a paciencia com um chale, a mentira com uma cuia de retroz--estão aqui espectros. O que aqui está, com o infinito em cima e o infinito em baixo, são phantasmas. Todos praticam as mesmas acções banaes entre a vida e a morte, mas eu vejo o riso sem boca e ouço o grito de dôr, emquanto as mascaras se transformam e a materia se decompõe. Eu vejo o que ha dentro deste sêr, que não tem limites, o que ha dentro deste sêr de real e verdadeiro. Cada um assume proporções temerosas. Cahem lá dentro palavras, sentimentos, sonho--é um poço sem fundo, que vae até á raiz da vida. Á superficie todos nós nos conhecemos. Depois ha outra camada, outra depois. Depois um bafo. Ninguem sabe do que é capaz, ninguem se conhece a si proprio, quanto mais aos outros, e só á superficie ou lá para muito fundo, é que nos tocamos todos, como as arvores duma floresta--no céo e no interior da terra. Do mais baixo ainda veem terrores, ancias, desespero... Agora o homem existe em toda a sua plenitude. Anda hoje no universo como andou sempre no universo. Para elle não há passado nem futuro porque elle é o passado e o futuro. A villa tomou outras proporções e sente-se n'outras mãos. Quem lhe dera ser insignificante e grotesca! quem lhe dera não vêr! Para não te aturar vida sôfrega e doirada, tive de me revestir de casca como as arvores, porque no principio todos fomos phantasmas. E agora não sou eu quem falo--são elles que falam! O que as figuras representam vem do fundo dos fundos--o que ellas teem de transitorio e o que ellas teem de temeroso, desde o homem que não bole junto das fazendas petrificadas, até á impenetravel D. Ursula, que remoe entre dentes o pavôr. O que me parecia gelatinoso é uma fôrça immensa, este habito ridiculo um principio de sonho. A paciencia e a mentira são aspectos da dôr, e a bisca joga-se entre o pelago e o pelago. Os penantes usados, as ceremonias grotescas, passam-se entre phantasmas e phantasmas, n'um ciclone de desespero e gritos. Cada boca fala por outras bocas, e a D. Penaricia, columna de Israel do fel e vinagre, é uma figura tremenda. Todos os dramas teem a mesma assignatura--Shakespeare. As acções veem dos confins dos seculos e o proprio mal não é um acto individual. O crime é sempre a acção impulsiva ou premeditada dos mortos. Para praticar um crime é preciso revolver camadas de phantasmas. Desperta echos adormecidos até não sei que profundidades. Põe em debate este mundo e o outro mundo, e d'ahi a fascinação que exerce em todas as almas. A vasa não na jogam só figuras somiticas: de cada sêr paciente e sordido arranca-se outro sêr ilimitado. Vejo no escuro as outras figuras atentas sobre o jogo... Estão aqui as velhas amarradas por quinhentos annos á mesma mesa da bisca. Está a inveja, e a inveja esverdeada torce-se sob o olhar da magestosa Theodora. Está a paciencia, e a paciencia sorri deante da magestosa Theodora. Está aqui a mesa de jogo projectada no infinito, com sêres que se não podem vêr, e que hão-de cohabitar acorrentados por quinhentos annos. Ha ocasiões em que vomitam as peores injurias; ás vezes torcem-se e soltam ais sobre ais represos.--Jogo!--E a bisca segue pela eternidade fora.--Corto!--Tambem eu atravessei o inferno e tenho saudades do inferno!--E a magestosa Theodora parece calcinada pelo fogo do inferno. É o momento decisivo, quando, de pé, em roda da mesa, onde fôram insignificantes, se vêem umas ás outras. Peor momento é quando a si proprias se vêem, quando se chocam como ferros, e seus olhos adquirem tal percepção que não são só ellas que olham, quando ao espanto se junta espanto e não são só ellas que falam, mas muitas outras vozes, e não só as suas figuras gesticulam mas muitas outras figuras. Um momento, um seculo, e eil-as até aos confins. Todas as bôccas prégam de cada vez mais fundo... Cada bocca se abre no escuro como se fosse o abismo; as boccas falam por muitas boccas que não tem nada de humanas e que moem e remoem com escarneo e baba; por boccas franzidas só pelle e espuma; por boccas sem dentes; por boccas ascorosas que tentam ser boccas e que escorrem veneno; por boccas que se desesperam de ser boccas, para se fazerem ouvir. E o candieiro escorre o mesmo petroleo sobre ellas e sobre as figuras invisiveis que arfam de desespero até á raiz da vida... N'esse instante vêmos todos os sêres extraordinarios que não tinham entrada no mundo; n'esse instante toda a villa está de pé, a villa tragica, com os vivos e os mortos e o drama profundo das almas que toca no céo e no inferno. Eis a villa como não torna a aparecer outra na terra, e que dura um minuto e um seculo. Cada figura escorre dôr, não só a dôr propria, mas a do tumulo, cada figura é um sêr d'espanto. Até tu, no relampago antes de te curvares sobre a meia que já tem vinte metros de comprido, ó prima Angelica, ó figura tremenda de inepcia, que tambem achaste sabôr á vida e logo te fechaste com elle na escuridão cerrada da idiotia--até tu, pela maneira como apertaste a mandibula, pelo olhar que se fitou no meu olhar e veio da espessura dos seculos, descobriste não sei que mar nunca d'antes navegado, não sei que dôr transida e doirada, não sei que mysterio que não fala, que não pode falar, mas que está, real e patente, aqui ao lado e na nossa companhia... Há--sentimol-o! vêmol-o!--forças que tacteiam para lá e augmentam o nosso desespero. É talvez Deus que nos quer falar e que não pode, ou que fala e não o entendemos. Não são só os grandes fluidos que se entrechocam sobre a villa, há outra coisa que a todos os momentos nos reclama... E é um milagre que toda esta architectura--que não existe! que não existe!--se sustente de pé e no vacuo, baseada em palavras e sons, e que joguemos a bisca de tres na encrusilhada da vida e da morte. Mais: é um milagre muito maior ainda que consigamos cerrar os ouvidos á força que bate estonteada á nossa volta e que faz esforços desesperados para communicar comnosco. Não tem bocca para falar, mas tenta, n'uma dôr muda, fazer-nos comprehender algumas noções que transformariam o universo. Ás vezes estamos por um fio...--perdemo-nos logo n'uma escuridão que tem leguas de distancia. Bom é cerrarmos os ouvidos. Se chegassemos a entendel-a tudo isto desaparecia no ar... Chegamos ao ponto! chegamos ao ponto em que não nos distinguimos na floresta apodrecida! A vila é immensa, as figuras são immensas, só dôr e sonho--jacto que vae de polo a polo e onde não existe nem vida nem morte. Na floresta putrefacta o tempo e o espaço desapareceram: só existem sêres estranhos e arvores estranhas. O que nós viamos eram sombras projectadas n'um muro. Mais um passo e todos sahimos doirados d'este mergulho no sonho--outro passo ainda e só existe uma fôrça frenetica e immensa, desesperada e immensa... Agora é que ella anda á solta! agora é que ella anda á solta! A ARVORE 15 de setembro Preciso aqui duma arvore... Uma arvore que dê sombra e ternura--uma velha arvore carcomida. Nunca pude passar sem essa sombra inocente. Meio morto de cansaço e de mentira deito-me ao pé d'ella e renasço. Todos a aproveitam--para o lume--para traves--para o caixão. É filha de cavadores e neta de pedreiros: obstina-se e por fim afaz-se. A dôr afeiçoa-a. Aceita tudo: a vida e a morte com a mesma resignação. E depois desta vida acceita ainda outra com o purgatorio e o inferno. Pouco e pouco a ternura torna á supuração. A filha desapareceu. Sabe que a D. Hermengarda, pobre e cachetica, pára n'um hospicio, e vae lá buscal-a. Caso extraordinario: vê mais naturalmente a desgraça da filha do que a pobreza da D. Hermengarda. É a sua senhora. Limpa-lhe a baba e cata-lhe o piolho; bezunta-a de pomada, e nos seus olhos de cão há uma inexprimivel serenidade. A D. Hermengarda ainda tem exigencias. Manda e a Joanna obedece. Melhor: trabalha para lhe dar de comer. Está afeita. Faz mais: a Joanna agora rouba. Ella, que sacrificou a filha, rouba seis vintens, doze vintens... De dia carrega bahus, á noite o quadro é este: a veneravel D. Hermengarda n'uma cadeira de rodas, com um resto de quico na cabeça, e a Joanna extactica a satisfazer-lhe as impertinencias. Não ouve, creio mesmo que não pensa. Os seus gestos são conduzidos por outras mãos, atraz d'ella há outras figuras até á raiz da vida, que embalaram berços, choraram sobre a desgraça e tomaram para si o quinhão mais pesado. Até já nem é Joanna que fala, mesmo para contar a sua historia. Ou só, ou quando encontra alguem, a Joanna divaga: --E vae eu disse-lhe... Fui ter com a filha e vae eu disse-lhe:--Deita-me ahi pão quente n'uma malga com meio quartilho de vinho.--E vae ella disse-me:--Tenho ahi pão velho, não enxerto o outro.--E vae eu disse-lhe:--As bagadas que tenho chorado caiam sobre ti. Não sabe mais que dizer. Aquella fastidiosa perlenga ouviu-a a outras velhas e vem do principio do mundo: aplica-a para exprimir a sua dôr. Se lhe falam dos ladrões finge que não entende. Se insistem, a Joanna responde com olhos de pasmo: --Os ladrões davam-me uma tigela de caldo. Não soube nada na vida, não foi nada na vida, não percebeu nada da vida. Oh vida denegrida, monotona e sem sabor, de louça para lavar, de carretos para fazer, afundaste-a, esfarrapaste-a, amarfanhaste-a, engrandeceste-a!... Deante do universo é menos que um caco, é um pobre coração usado pela dôr. O ultimo gesto que a Joanna faz, é o seu primeiro gesto, mas esboçado apenas, como quem segue um fio já muito tenue de sonho que não tem força para levar até ao fim, o de aconchegar uma creança ao peito--gesto que vem de seculos em seculos, desde o inicio do mundo, repetido pelas successivas imagens de mulheres já desfeitas em pó, repetido no futuro por milhares de sêres incriados. O trabalho da vida é persistente e occulto. Gasta, desgasta, como uma pedra sobre outra pedra Não é só por fóra que creamos rugas: por dentro a usura é immensa. Só a Joanna conserva a ternura intacta. O que havia a dizer era como se formou esta alma e eu não sei dizel-o. Por fóra farrapos, por dentro vida. O tojo mais bravio deita mais flôr. Um fio d'agua que reluz prende-me horas e transforma as pedras. A ternura da Joanna modifica-lhe a fealdade, pega-se-lhe ás mãos e aos trapos que a vestem. O que eu não dou é a expressão, o que eu não dou é a luz. Afundo-a, amolgo-a. E no entanto a figura impõe-se-me pela expressão maxima da dôr. A Joanna debruça-se sobre uma grandeza com que não posso arcar. Resiste, lucta e atreve-se. Augmenta. E tambem só ella no mundo não se importa de morrer. Talvez a morte seja para ella a vida. Esta luzinha viaja há muitos milhares d'annos. É como a faúlha d'uma estrella, perdida na immensidão, que lhe custa a chegar á terra. E caminha sempre, humilde e obstinada, atravez do infinito--sempre. Por isso ella teimava:--O menino está vivo!...--Por vezes parece que se apaga. Reaparece atravez da obscuridade espessa acumulada há seculos. Talvez toda a grandeza d'esta mulher esteja n'isto: é que ella é conduzida por uma mão enorme. A sua ternura é instinctiva, a sua humildade é instinctiva... Pare. Pare a desgraça. Cria. É a velha que tira a codea á bocca para a dar aos netos. É a velha que encontraste há bocado no caminho, do olhos aguados. Cada vez maior; traz este carreto á cabeça desde o principio do mundo, e ainda o não poude pousar. Embala os berços. Pega nas creanças ao collo. Desde o principio do mundo que estas mãos asperas amparam. Não é uma figura--é uma serie de figuras... 16 de setembro O desabar da chuva lá fóra dil-o-hieis não exterior, mas ligado ao teu proprio sêr: são lagrimas que tenho ainda para chorar. Da escuridão opaca resurgem e rodeiam-me os mortos: o montante que rachou a alvenaria, e os cavadores que lavraram a mesma terra e curtiram a mesma dôr. Este cheiro a pobre, estes traços corroídos pelas lagrimas, estes typos amolgados pela desgraça, povoam-me a noite toda e dizem bem com o desabar ininterrupto de lagrimas lá fóra. Outra coisa exprimem as figuras denegridas que vão aparecendo por traz da figura da Joanna... Some-se a mulher da esfrega, e primeiro vem um velho que móe e remóe obstinado uma codea de pão. O pae de Joanna tinha oitenta annos quando morreu. Deram com elle cahido sobre o lar, levaram-n'o em braços para a enxerga. Quatro paredes, duas caixas de castanho, e junto ao catre, junto ao peito, a pedra secca, o granito. Uma mulher desata aos gritos debruçada sobre o catre: --Vocemecê conhece-me? vocemecê conhece-me? Os olhos não se lhe despegam da arca. Ao fim da vida tem de seu o alvião, a enxada e a manta no fio. A cabeça branca mirrou, a pelle é como a crosta que calcamos. Tem não sei quê de raiz, tem não sei quê de tronco, afóra os cabellos brancos que o tornam humano. O tempo revestiu-o da mesma côr dos montes. Deshabituou-se de falar, e pela grandeza e pelo silencio só o comparo á pedra. Tudo isto foi pedra. Elle e os seus, a poder d'annos, moeram-n'a. Sua vida está ligada á vida da terra. Creou-a. Á terra só falta comel-o. Terra, terra negra e ingrata, terra de detrictos de rocha e mortos, poeira d'arvores, suor de pobres, terra que tudo gastas e consomes, há muito que o fizeste teu egual. Nem sei distinguir-vos, mãos como pedras, pelle como a tua pelle. A terra come e desgasta. A terra apega-se e encarde. Deforma-o. De revolver a terra criou cascão e um olhar profundo. Só o comparo a Christo, a um Christo que tivesse vindo até á velhice, de desilusão em desilusão e de desamparo em desamparo. Na noite negra desfilam outras figuras. Um chega e diz:--O corpo pede-me terra:--A pobre, com um sacco de estopa ás costas, espera a esmola e reza. Agora este... Este resequiu como os morros de pedra, como a lage compacta. A pedra pega pedra. As mãos tem terra nas rugas desde que lidaram com terra. Curtiu annos de fome e de terra entranhada na pelle, entranhada na alma. O casebre é de pedra, é de pedra o lar, e arrima-se d'um lado ao coração do monte. Por tecto uma trave e colmo, por chão terra batida. A casa tambem entra aqui. Pedras, ternura, aflição, tudo no mundo deita as mesmas raizes. Uma casa não é só alvenaria: é dôr e vida e morte. A arvore tambem aqui entra: a arvore é uma construcção viva. A mãe ficou prenhe. Eram tão pobres que, para o que havia de nascer, só amanharam um panninho, duas camisas e um lenço. Vieram as dôres e nasceram dois gemeos. Repartiu as camisas, rasgou o lenço e o panno ao meio, e, no casebre perdido, entre a natureza bruta, a mulher poz-se a chorar dando um seio a cada um. Mais outras figuras se destacam ainda da noite. São de terra e pedra, são figuras deshumanas. Remóem o pão devagar, e o fumo sobe pela parede e enegrece-a, camada atraz de camada. Aquecem-se ao lar. A pedra é um calháo arrumado á parede, uma lasca negra e resequida. E agora, noite funda, todos os mortos estão alli presentes e atendem... A pedra tosca do lar, a pedra salitrosa á volta da qual se juntam, é muito mais que um calháo. A pedra é sagrada. Está alli o montante que acometeu a pedra do monte dura como aço, e dias após dias curvou-se sobre a fraga e meteu-lhe o ferro até á raiz. Um delles cavou e escavou o sobrado e dorme com a cabeça encostada ao granito. A terra desgasta-o, a terra imprime-lhe relevo e caracter. Cerra-se-lhe a bocca, greta-se-lhe a pelle. Elle e o monte suportam a mesma dôr, que não sabem exprimir. A côr é a côr da fome, o frio o da pobreza. Gasta-o e desgasta-o o uso da vida e a terra entranhada. É o cavador... Tudo que era exterior puiu-o no cavador a terra, na mulher as lagrimas. Ficou só a expressão descarnada, como nos montes, como na propria casa onde as coisas são simples e eternas. Pariu-lhe alli a mulher, entrou-lhe lá dentro a morte. E as palavras reduziram-se tambem a esqueleto e teem o mesmo emprego sobrio: nem o cavador nem a femea teem que dizer um ao outro. Só o môrro consegue deitar um fio d'agua, que lima alguns palmos d'herva. Concentrou-se em muda aflição para produzir essas gotas geladas e um lameiro verde. O escuro gera uma serie infinita de mulheres... Há em todas um momento de ternura antes da terra se lhes entranhar. Aos trinta annos a femea encardida está velha. Está velha de fome. Está velha de trabalho. Ella carrega. Ella levanta-se de noite para coser a fornada ou para ir á villa. Ella quando tem um dia de folga vae ganhar seis vintens de jornal. Ella pesa o pão e reparte-o, ficando com o quinhão mais pequeno. Com isto gasta-se. Nasceu com a pobreza, dormiu com a desgraça, e com os annos uma figura se foi sobrepondo a outra figura. Apagam-se linhas, salientam-se traços, e a mesma côr humilde reveste a mulher e a alvenaria. Ella e a pobreza, ella e o dia d'hoje, o dia d'hontem e o dia d'amanhã; ella e os filhos para crear, os carretos para fazer; ella e a vida, todos os dias se vão amalgamando, luctando, empurrando com desespero, até se crear esta figura e se apagar a outra, gasta pelo uso da dôr e pelo uso das lagrimas. Sósinhas luctam, sorriem, amparam. Velhas e exhaustas espalham ainda ternura. Curvam-se sobre os berços, vão pedir pelos homens. E sobre isto ignoram-se. --Mãe--pergunta a filha mais moça--mãe que coisa é casar? E ella responde como sua mãe lhe respondera: --Filha, é fiar, parir e chorar. A vida é uma coisa seria e por isso emudecem. Guardam para si o bocado mais amargo, a tarefa peor de fazer. Se choram, choram baixinho para que as não ouçam chorar, alli nas quatro paredes de alvenaria, alli onde as trouxeram pela mão, entre as coisas familiares, o fôrno, o lar, os potes, a enxerga... Na enxerga onde morreu a mãe, nasceram tambem os filhos. Há seculos que a mesma serie de figuras repete os mesmos gestos. Há seculos que a mesma mulher esfarrapada pare e o mesmo cavador revolve a terra. Há seculos que comem o mesmo pão e a mesma usura os leva até á cova. Há seculos que choram as mesmas lagrimas e o monte deita a mesma agua. As mulheres trazem os pequenos ao collo e falam-lhes como lhes falaram a ellas. O que se gasta, o que a dôr e a vida consomem, é a parte externa: as lagrimas renovam-se sempre. As leiras dão sempre o mesmo pão escasso, no monte não se estanca o fio d'agua, que, como o fio de ternura reproduz a vida e remoça sempre quatro palmos d'herva. A mulher, esta ou outra, chora, debruçada sobre a maceira, pare com dôr no mesmo catre, morre com dôr na mesma enxerga. E no fim de todas, apagada e sumida, surge outra, a serva. Do escuro saem gemidos. A casa desapareceu: só correm lagrimas. Sinto uma mão que procura a minha mão, e uma voz que me diz ao ouvido: --Escuita! escuita! É a creada que serve o cavador desde pequena, a pobre que só tem de seu a saia que traz vestida, que mistura lagrimas ás minhas lagrimas. --Escuita! escuita! E aquece-me as mãos com bafo. E se remexo o brazeiro--vejo outras figuras, outras ainda, até ao inicio da vida. Estão alli o avô, os avós, os jornaleiros. A um, tão entranhado de terra, mal o descortino. E atraz d'estes, ainda outros, mudos e disformes--outros como terra--outros como arvores decepadas--outros como fome e que mal sabem exprimir-se--outros a quem só se vêem as mãos nodosas--e a serie sumida de mulheres, bronco e dôr, que a vida consumiu, e que procuram debruçar-se para ouvir... Tão longe! tão longe!... Mal descortino já a luz tão pequenina e humilde, mal distingo a vida na treva condensada--uma luzinha de candeia, que há seculos vem de mão de mulher em mão de mulher... Tudo volta á cinza. Diante de mim está sosinha a Joanna, que me mostra as mãos roídas, as mãos enormes, as mãos só dôr... O mundo é feito de dôr--a vida é feita de ternura. PAPEIS DO GABIRU 20 de novembro Chove um dia, outro dia, sempre... Amanhece um dia nublado, outro dia alvoroce negro e aspero. O vento abala a pedra sobre que é construido o casebre. O inverno tem a sua voz propria, a sua côr, o seu vestido em farrapos com que agasalha os montes deixando-lhe os ossos de fóra. Mas o inverno é sonho. Só agora o comprehendo. É sonho concentrado: sob esta casca resequida está uma primavéra intacta. Esta voz clamorosa é a voz dos mortos. Uma pausa, a prostração da tempestade, e depois redobra o clamor... Andam aqui as suas lagrimas... Na sufocação reconheço esta voz que me chama. E depois a tempestade, novos gritos, a escuridão profunda... Lá andaremos todos não tarda! lá andaremos todos não tarda! E ouço sempre a mesma voz: «Que frio o outro mundo! Que impassibilidade a do outro mundo! Saudade, saudade de tudo, até do fél, saudade de te não sentir ao pé de mim. Tenho saudade da vida. Só poder aquecer-me ao lume, só sentir o lume n'este inverno sem limites, n'este frio de morte--sem outra primavéra! O que a vulgaridade sabe bem! o que a materia sabe bem! Não vejo. Ceguei. Disperso-me, e por mais esforços que faça, sinto-me desagregar: perco pouco e pouco a consciencia de mim mesma. Sou ainda ternura e pouco mais. Já não tenho lagrimas. Quem me dera a desgraça! E uma pena da vida! uma saudade da vida! uma tristeza de não poder misturar-me á vida! A vida--e um cantinho do lume, a vida banal, a vida comesinha... Tenho saudades do muro a que costumava queixar-me. Vive devagarinho. Aquece-te á restea do sol como quem nunca mais tornará a aquecer-se; perde todas as horas a trespassar-te da vida. Deixa que sobre ti caia o pó d'oiro. Vive-a. Tu és a nuvem, tu és a arvore. Enche a consciencia de todas estas coisas, porque não tardarás a perdel-a. Vive--não tornas a viver. Põe d'acordo a tua alma com a pedra, extrahe encanto do céo e da miseria. Pudesse eu gritar! pudesse eu ter fome! Só agora dou pelo sabor das lagrimas. Sorri, esquece, dorme, sonha...» 21 de novembro Não me comprehendo nem comprehendo os outros. Não sei quem sou e vou morrer. Tudo me parece inutil, e agarro-me com desespero a um fio de vida, como um naufrago a um pedaço de taboa. Nem sei o que é a vida. Chamo vida ao espanto. Chamo vida a esta saudade, a esta dôr; chamo vida e morte a este cataclismo. É a immensidade e um nada que me absorve; é uma queda immensa e infinita, onde disponho d'um unico momento. Talvez o mundo não exista, talvez tudo no mundo sejam expressões da minha propria alma. Faço parte duma coisa dolorosa, que totalmente desconheço, e que tem nervos ligados aos meus nervos, dôr ligada á minha dôr, consciencia ligada a minha consciencia. Estou até convencido que nenhum d'estes sêres existe. Este fél é o meu fél, este sonho grotesco o meu sonho. Estou convencido que tudo isto são apenas expressões de dôr--e mais nada. Nós não vemos a vida--vemos um instante da vida. Atraz de nós a vida é infinita, adiante de nós a vida é infinita. A primavéra está aqui, mas atraz d'este ramo em flôr houve camadas de primavéras d'oiro, immensas primavéras extasiadas, e flôres desmedidas por traz d'esta flôr minuscula. O tempo não existe. O que eu chamo a vida é um elo, e o que ahi vem um tropel, um sonho desmedido que ha-de realizar-se. E nenhum grito é inutil, para que o sonho vivo ande pelo seu pé. A alma que vae desesperada á procura de Deus, que erra no universo, ensanguentada e dorida, a cada grito se aproxima de Deus. Lá vamos todos a Deus, os vivos e os mortos. O mundo é um grito. Onde encontrar a harmonia e a calma n'este turbilhão infinito e perpetuo, n'este movimento atroz? O mundo é um sonho sem um segundo de paz. A dôr gera dôr n'um desespero sem limites. Eu não sou nada. Sou um minuto e a eternidade. Sou os mortos. Não me desligo disto--nem do crime, nem da pedra, nem da voragem. Sou o espanto aos gritos. Cada vez fujo mais de olhar para dentro de mim mesmo. Sinto-me nas mãos d'uma coisa desconforme. Sinto-me nas mãos d'uma coisa embravecida pela eternidade das eternidades. Sinto-me nas mãos d'uma coisa immensa e cega--d'uma tempestade viva. Toda a vida está por esplorar: só conhecemos da vida uma pequena parte--a mais insignificante. E o erro provem de que reduzimos a vida espiritual ao minimo, e a vida material ao maximo. O homem é um S. F. ligado a todo o universo. Deus é eterno com a mascara sempre renovada. A alma há-de acabar por se exprimir, Deus, que olha pelos nossos olhos e fala pela nossa bocca, há-de acabar por falar claro. Está tudo errado. Só há um momento em que o comprehendemos. Mas n'esse momento já não podemos voltar para traz. É quando, fazendo ainda parte dos vivos, fazemos já parte dos mortos. Não só a sensibilidade é universal--a inteligencia é exterior e universal. O universo é uma vibração. A vida é uma vibração na vibração. A materia tambem existe em estado de nublosa--isto é um estado de dôr. Toda a theoria mechanica do universo é absurda. D'ahi a alguns annos todos os systemas serão ridiculos--até o systema planetario. O sonho completo é o universo realizado. 23 de novembro Há dias em que me sinto envolvido pela morte e nas mãos da morte. Há dias em que não distingo a vida da morte, e agarro-me como um naufrago a este sonho... ...Cheguei ao ponto, Morte. Cheguei onde queria. Tu és o meu sonho phrenetico. Não há outro maior. Cheguei ao ponto em que te não distingo da vida. Tu és a vida maior. Por vezes vejo o grande mar, onde a lua deixa o seu rasto, caminhar direito a mim. Vagueia a floresta adormecida e avança desenraizada para mim... Cheguei ao ponto, Morte, em que não me metes medo. Acceito-te. De ti me vem a vida. Absorve-me. Só tu agora me prendes os olhos e de ti não posso arrancal-os. És o unico misterio que me interessa. Confio em ti. Cheguei ao ponto, Morte, eu que só de ti espero. Só tu resolves e explicas. Só tu acalmas. Acceito-te mas intimo-te. Toma a forma que quizeres, mais negra, mais tragica, mais torpe--bem funda é a noite e está cheia de luzeiros:--recebo-te, mas como um passo a mais para outra iniciação, para outro assombro, e até para outra dôr se quizeres, porque da dôr extraio mais belleza, mais vida e mais sonho. ...E contudo esta resignação é ficticia... Não, nunca acordei sem espanto nem me deitei sem terror. Ainda bem que o digo! Siga a vida seu curso esplendido. Sabe a sonho e a ferro. É ternura, desgraça o desespero. Leva-nos, arrasta-nos, impele-nos, enche-nos de ilusão, dispersa-nos pelos quatro cantos do globo. Amolga-nos. Levanta-nos. Aturde-nos. Ampara-nos. Encharca-nos no mesmo turbilhão do lodo. Mata-nos. Mas, um momento só que seja, obriga-nos a olhar para o alto, e até ao fim ficamos com os olhos estonteados. Eu creio em Deus. TERCEIRA NOITE DE LUAR 25 de novembro Ha no mundo uma falha. Os poentes são labaredas rôxas com resquicios de escarlate e dois, tres grandes jactos violetas que se estendem pelo céo--uma maravilha chimerica. A outra primavéra prolonga-se: superabundancia de flôres nas arvores, espiritualidade na materia, como se as arvores antes de morrer se exgotassem em sonho. Mais flôres, mais poentes onde o oiro e o rôxo predominam, mais gritos no mundo, mais vulcões de côres, que presagiam catastrophes, e um ruido apagado, esquisito, insuportavel dentro de nós proprios, que comparo ao som d'uma borboleta esvoaçando contra as paredes d'um vaso. É a morte que faz falta á vida. Paira sobre o mundo uma alma monstruosa, um fluido magnetico, onde se misturam todas as coleras, todos os interesses e todas as paixões, e essa alma envolve, penetra e reclama dôr. Formam-se tempestades e terrores electricos. Anda ávida, desencadeia catastrophes, desaba desgrenhada, com uivos nocturnos de desespero. Cala-se--é peor: ninguem lhe suporta o peso. Produz jactos d'oiro, auroras boreaes, grandes incendios no céo, como se o globo ardesse. Despenha-se em montanhas de côr, em abismos rôxos, paira em campos ethereos de uma serenidade elysea. São talvez os mortos que reclamam mortos. É talvez a vida universal perturbada. São outras gerações esquecidas, camadas informes de que ninguem suspeita o nome, legiões sobro legiões incognitas--é a vida embrionaria que reclama a sua entrada na vida. E, no fundo, sob este subterraneo, ha outro subterraneo: ouço passos e vozes de mais outros ainda que sobem para a superficie. Todos os mortos se misturam aos vivos. Arrombaram de vez os sepulchros. Tu que não viveste queres agora por força viver; tu que não mataste queres agora por força matar. Mais mortos desde o inicio--maior mixordia. Todo o esforço era para virem á supuração. Atraz d'uma camada havia outra camada. Ha seculos que carregamos nas tampas dos sepulchros para os não deixarmos sahir. Na realidade nunca se jogou o gamão, nem se disseram palavras vulgares. Atraz d'essa aparencia estava intacta uma coisa desconforme, e ás vezes por uma fresta irrompia a claridade do inferno... Agora a terra desfaz-se em mortos, como uma acha se desfaz em fumo. O que era vida irreal, é agora realidade, o que era vergonha, ninharia e ridiculo, é a vida agora. O que toma pé são os sonhos, o que se agita são as paixões desregradas. Não ha limites nem peias. Vêem-nos como eu te vejo a ti. Tenho deante de mim este espectaculo, como se fosse possivel aos homens desdobrarem-se, e tomarem corpo ideias e paixões. Elles são aquillo que ocultamente desejavam ser, são o que não se atreviam a ser. Sob um mundo de verdade ha outro mundo de verdade. É esse mundo invisivel e profundo que passa a ser o mundo visivel. É esse. Todo o homem é uma serie de phantasmas e passa a vida a arredal-os. Chegou a vez dos phantasmas. As nossas ideias e paixões é que formam as figuras que actuam na vida. Terceira noite de luar. O perfume estonteia. Terceira noite de luar branco, indiferente, coalhado, terceira noite de espanto. Redemoinhos de figuras e d'acção até aos confins dos seculos. Outr'ora, n'uma vida monotona e incerta, só se realisavam duas ou tres horas de exaltação. A vida agora é uma exaltação perpetua. Tudo mudou: a arvore não existe como a pedra não existe. O unico mundo real é o mundo irreal. Todos nós andamos a crear um mundo que é o unico verdadeiro--os vivos e os mortos. Todos trabalhamos com o mesmo afan para o mesmo fim. Já a materia se adelgaçava... O mundo ideal é o mundo da dôr, do sonho, e o universo reconstruido, é o maior dos dramas--com a vida oculta ao lado--e cada dia tem o peso d'um seculo. As creanças e os passaros emudeceram, o que produz na terra um silencio atroz. Os olhos encheram-se-lhes d'uma tristeza irreflectida, inocencia e extracto de vida, sentimentos que se não coadunam. Tenho vontade de fugir para onde não ouça o silencio... Avança direita a mim a floresta apodrecida. Mais perto! mais perto! Ri-te agora se podes da D. Leocadia, que rumina como lady Machebeth as peores ruinas. Esta vida é feita de todos os nossos esforços e dos esforços do fundo. Somos apenas um reflexo dos mortos, e agora que tu queres falar com a tua voz, é que as ordens são mais cathegoricas e o conflicto monstruoso. Terceira noite de luar, branco, estranho, inefavel. Toda a noite o rouxinol cantou. Duas, tres horas, e canta ainda apaixonado e phrenetico... Debalde quero libertar-me dos phantasmas, debalde quero viver da minha propria vida!... É que a vida não és tu nem eu, a vida é uma massa confusa e heterogenea, um pesadelo, uma nuvem negra ou uma nuvem d'oiro, uma tempestade electrica, com boccas abertas para risos e boccas abertas para gritos. Não é um detalhe--é um panorama. É um immenso farrapo dorido. Anda aqui a alma de Joanna e a seccura das velhas mesquinhas. É tão necessaria a este fluido a dôr muda do cavador como o sonho desconexo do Gabiru. Anda aqui a primavéra, as lagrimas que tenho chorado e as que tenho ainda para chorar. Anda aqui a tragedia, a pedra, a arvore, a tua inocencia e a minha desventura. Tudo isto se congrega, e esta alma não vive sem a tua alma, este grotesco sem o teu genio, esta vida sem a tua morte. Andam aqui os mortos e os vivos, a arvore que há-de ser arvore e o tronco que se desfez em luz. É um sêr immenso a que não vejo senão partes. Anda aqui a luz e a sombra, e a luz não se distingue da sombra nem a vida da morte. A vida está tão feita adeante de nós como atraz de nós. Está tão feita no passado como no futuro. Se o futuro ainda não existe, o passado já não existe. E tudo isto se congrega. A vida absorve-me e ponho-a em acção. Impregna-me e faço-a caminhar. Pertence-me e pertenço-lhe. É o passado e o futuro--Jesus Christo vivo, Jesus Christo morto, e Jesus Christo resuscitado. 26 de novembro Estamos á superficie d'esse oceano embravecido, e o impulso vem das camadas mais profundas, das camadas informes. São todos. São até os que nunca tiveram olhos para vêr, os sêres esboçados, com mãos rudimentares, aparencias d'arvores e de figuras mutiladas. É a terra viva. É só sonho, é sonho estreme e dôr estreme. Cada um assiste á projecção da sua propria figura monstruosa no passado e no futuro, cada figura tem emfim as dimensões de dôr, que as palavras, as regras e os habitos lhe não deixavam ter. Cada alma é desmedida e tragica e vem desde os confins da vida até ao infinito da vida. Cada um na floresta entontecida representa o maximo de sonho e o maximo de ternura. Cada sêr é emfim um sêr completo e doirado, atinge a belleza e Deus. As florestas já mortas, a luz das estrellas desaparecidas no cahos--tudo aqui está presente. O esforço dos mortos, o sonho dos mortos, o desespero dos mortos sobre mortos, o reflexo de ternura, a mão que amparou, a bocca que sorriu, levadas pelo vento que soprou há dez mil annos, aqui estão vivos. Aqui está vivo o sonho que sonhamos todos, o primitivo sonho humilde e o sonho repercutido de seculo em seculo, assim como a tua voz compadecida. O sonho sepultado nas profundidades da terra, o primeiro resquicido, o nada e o sonho phrenetico, tudo aqui está na floresta embravecida. E, com ou sem bocca, com ou sem consciencia, nunca mais deixarei de andar n'isto, disperso, amalgamado, confundido, de fazer parte d'este drama, queira ou não queira, proteste ou não proteste. Tudo é inutil, todo o esforço inutil, todas as palavras inuteis. Reconheço-o. Mas não me canso de prégar, não posso deixar de prégar, até cahir vencido e exhausto dominado e deslumbrado. Na floresta embravecida, em que todos participam do mesmo sêr, até a mulher da esfrega encontra emfim Jesus: --Será vocemecê o José do Telhado que o tira aos pobres para o dar aos ricos? --Sou um pobre de pedir. --Será vocemecê Nosso Senhor Jesus Christo que veio ao mundo para nos salvar? 30 de novembro Chega o momento em que me perco, em que tenho medo de mim mesmo, em que me atemorisa o som da minha propria voz. Quem sou eu? Os outros? Sou os outros? São elles que falam, que ordenam, que me impelem? Eu sou os mortos! eu sou os mortos! Eu sou uma serie de phantasmas, que se açulam entre mim e mim. Reconheço-os. O gesto esboçado há milhares d'annos, e perdido, consumido, consegue hoje realisar-se, o grito que a morte calou n'uma bocca ignorada, faz écho no mundo. Todos os sonhos são realidades, os mais altos, os mais humildes, os mais bellos e os mais grotescos. Só os sonhos são realidade n'esta noite quieta e caiada, com uma mancha vermelha de polo a polo. Aqui está agora isto a que se chama noite de luar, branca, inerte, passiva, com a lua espargindo luz sobre o doirado. Aqui está a arvore, e era a isto que se chamava a arvore! Aqui está a pedra e era a isto que se chamava a pedra! Aqui está o céo e era a isto que se chamava o céo! Reconheço-vos. A morte encontra-se só--cortaram a arvore pelo meio. Anda pelo céo como um cometa que desatasse aos tombos e aos gritos--de desvario em desvario. A cada grito empallidece, esbrazeia, muda de côr, abre a cauda de oiro, de trambulhão em trambulhão... A morte faz estremecer o mundo até á raiz. A morte já não tem a mesma significação. A morte é agora inutil e anda á solta no infinito, desgrenhada, dorida e doirada. Desespera-se. Tenho medo de lhe tocar. O drama que se passa em cima é maior que o que se passa em baixo. É peor este tumulto de inferno, este clamor de que me não chegam as vozes, esta força incoherente de pé--todas as forças de pé--posta a caminho para o desconhecido. É peor. E a cada grito em baixo corresponde um grito em cima. Reconheço o grito que sae da noite. São os vivos e os mortos... Mas então que significação tem isto no universo, a dizer palavras inuteis no meio d'esta balburdia, d'esta escuridão cerrada, d'este doirado feroz, d'este redemoinho sem nome? Para que é que eu existo e tu existes? Para que é que eu grito e tu gritas? Isto não és tu! isto não sou eu! Isto é a vida temerosa, de que não representas senão uma insignificante particula. Tu não és nada, a vida é tudo. O combate é incessante entre os vivos e os mortos, entre os mortos e os vivos. Todos gritam ao mesmo tempo, todos caminham ao mesmo tempo para o mesmo fim esplendido.--Oh eu quero crêr!--Porque é que gritas?--Fecha os olhos! fecha os olhos!--Agora sou eu quem falo! Agora são elles que falam!... Oh minha alma pois eras tu! Agora te reconheço! Capaz de tudo, capaz de baixezas e capaz de sacrificios. Tão pequena! tão tranzida! Não vales nada e pudeste tanto! Oh minha alma, pois eras tu, eras tu! Pudeste arcar com o universo, olhar Deus, construir Deus. Devo-te tudo: a ilusão, a tinta do céo, o sonho erratico das vastas florestas. Eras tu! eras tu!... Tem-me custado a dar comtigo, tão mesquinha e capaz de povoares o céo de estrellas e o mundo de sonho. Atreveste-te a tudo. Afirmaste. Negaste. Eras tu, sempre dorida, sempre anciosa, nunca satisfeita, e coubeste dentro de quatro paredes. Tornaste-me a vida amarga. Encheste-me de ridiculo. Atiraste-me aos encontrões contra a massa cega e compacta, levaste-me como restos de folhas n'esta procella de sonho. Fôste a melhor e a peor parte do meu sêr. Eras tu! E pude com esta enxurrada de côres, de tintas, de impulsos, a instigar-me e a deslumbrar-me! E pude ao mesmo tempo com a dôr! Fiz parte da dôr. A desgraça viveu comigo e o sonho viveu comigo. E pude com a vida! Atravessei este mar monstruoso, servindo-me de meia duzia de palavras. Que importa ser ridiculo? Que importa ser a D. Idalina ou a D. Ingracia? Suportei a vida--suportei tudo. Que importa a tua mentira, se atravessaste a labareda e ainda conservas o chale tisnado? Para onde vamos aos gritos? para onde vamos aos gritos? E cada grito em baixo corresponde um grito em cima, a cada grito um estremeção no mundo, que se repercute de universo em universo. Um grito que acorda mais sonho e gera novo desespero. Outro grito, outro mundo doirado, outra forma dorida que se deita a caminho. O pezo da vida e o pezo dos mortos sente-se cada vez mais. Todos clamam ao mesmo tempo de pé para essa coisa immensa e doirada, n'um deslumbramento. Os mortos que nos pareciam mortos, camada sobre camada, estão aqui de pé ao nosso lado. E o pezo é cada vez maior. Até agora viviamos com elles, respiravamos com elles, mas não sentiamos o pezo d'essa poeira viva que é a sombra e a luz. Agora não podemos com elles... E o lamento, o uivo sobe cada vez mais alto. Debalde tapamos os ouvidos: o uivo penetra nas almas. E a um grito em baixo corresponde logo um grito em cima. E as mulheres das viellas põem-se a chorar, os ladrões das estradas desatam a chorar... O uivo não cessa. Irrita. Enche o mundo todo. Quem grita? Nós proprios? O homem que range por não poder suportar a vida? O grito domina tudo, trespassa o globo e echôa no mundo. E outra coisa monstruosa tomou o lugar da morte, outra sombra se entranhou de salto na vida, outro turbilhão arrasta os homens. Modificaram-se as estrellas com os sentimentos. A outra coisa no infinito reflecte-se na vida dos astros que mudam de côr, na dôr que tomba desgrenhada de quéda em quéda. Todo o mundo se transforma a nossos olhos. Cada sêr augmenta como se encerrasse em si a vida até aos confins dos seculos. O passado não existe, o futuro redobra de proporções. Perdeu-se a noção da desgraça e a noção do tempo, e a nodoa de sangue da Via-Lactea, onde se concentra toda a sensibilidade do mundo, alastra entre os astros, de lez a lez, na profundidade do céo. Ouves o grito? ouvel-o mais alto, sempre mais alto e cada vez mais fundo?...--É preciso matar segunda vez os mortos. INDICE Pags. A villa 9 O sonho 25 A villa e o sonho 43 Papeis do Gabiru 63 Atraz do muro 67 O sonho em marcha 77 Fevereiro 95 A mulher da esfrega 101 Papeis do Gabiru 117 Outra villa 123 Deus 133 O dever 141 A velha e os ladrões 149 Dialogo dos mortos 159 Primavera eterna 167 Deus 191 Céo e Inferno 197 A arvore 211 Papeis do Gabiru 221 Terceira noite de luar 227 ACABOU DE SE IMPRIMIR ESTA 2.^a EDIÇÃO NA TYPOGRAPHIA DO ANNUARIO DO BRASIL, (ALMANAK LAEMMERT) R. D. MANOEL, 62--RIO DE JANEIRO AOS 5 DE JANEIRO DE 1921 ANTHOLOGIA UNIVERSAL VOLUMES PUBLICADOS 1--Manuel Bernardes--Historias varias. 2--Soror Marianna--Cartas de Amor, nova restituição e esboço critico de Jaime Cortesão. 3--José de Alencar--Iracema, edição prefaciada por Mario de Alencar. 4--Almeida Garrett--Frei Luiz de Sousa. 5--Gonzaga--Lyricas (Da Marilia de Dirceu), prefacio e notas de Alberto de Faria. 6--Fernão Mendes Pinto--Em busca do Corsario. 7--Carlos Dickens--Canto do Natal, traducção de D. Virginia de Castro e Almeida. Lista de erros corrigidos Aqui encontram-se listados todos os erros encontrados e corrigidos: +-----------+-------------------------+---------------------------+ | | Original | Correcção | +-----------+-------------------------+---------------------------+ | #pág. 10 | insigniifcancia | insignificancia | | #pág. 18 | aborecida | aborrecida | | #pág. 19 | Éstamos | Estamos | | #pág. 21 | põeem | põe em | | #pág. 23 | intincto | instincto | | #pág. 43 | infintio | infinito | | #pág. 49 | bolôr e e nos | bolôr e nos | | #pág. 55 | a luxuria | á luxuria | | #pág. 57 | chumpo | chumbo | | #pág. 59 | Dabalde | Debalde | | #pág. 60 | gente de vive | gente que vive | | #pág. 61 | pino do varão | pino do verão | | #pág. 74 | Escutas | Escusas | | #pág. 78 | qeu | que | | #pág. 107 | oubtras | outras | | #pág. 119 | entretento | entretanto | | #pág. 136 | conscienia | consciencia | | #pág. 143 | phantesma | phantasma | | #pág. 147 | superioridaed | superioridade | | #pág. 153 | perdia | perdi-a | | #pág. 155 | Meti-tudo | Meti tudo | | #pág. 155 | ronhar | sonhar | | #pág. 156 | mair | mais | | #pág. 162 | conduizdas | conduzidas | | #pág. 162 | paquenas | pequenas | | #pág. 165 | faiza | fazia | | #pág. 170 | de de todo | de todo | | #pág. 175 | papel doirada | papel doirado | | #pág. 180 | transitos | transidos | | #pág. 180 | tempertade | tempestade | | #pág. 182 | nos somos | nós somos | | #pág. 188 | dizeram | dizerem | | #pág. 201 | auterior | anterior | | #pág. 206 | infniito | infinito | | #pág. 209 | desesdero | desespero | | #pág. 222 | conssiencia | consciencia | | #pág. 234 | povoares e céo | povoares o céo | +-----------+-------------------------+---------------------------+ Nesta obra surgem variações de palavras, como por exemplo, "sobterraneo" e "subterraneo". Mantivemos as variações como as encontrámos no original. Na página 38 encontramos linhas repetidas. No original lia-se "(...) a meu lado. É a essa ninharia que é a vida que deito as mãos com sem a sombra da morte a meu lado. É a essa(...)". Após verificação de diversas versões, removemos a frase a negrito, por considerarmos que se tratou de um erro na impressão. Na página 149 encontramos linhas repetidas. No original lia-se "(...) enrodilhadas. Duas, tres horas da madrugada talvez, dilhadas. Duas, tres horas da madrugada talvez... (...)". Após verificação de diversas versões, removemos a frase a negrito, por considerarmos que se tratou de um erro na impressão. Em situações pontuais substituímos vírgulas por pontos e vice-versa, para respeitar a capitalização presente no original. Adicionámos o capítulo «Atraz do muro» uma vez que este não figurava no índice. *** End of this LibraryBlog Digital Book "Humus" *** Copyright 2023 LibraryBlog. All rights reserved.