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Title: Lendas e Narrativas (Tomo I)
Author: Herculano, Alexandre, 1810-1877
Language: Portuguese
As this book started as an ASCII text book there are no pictures available.


*** Start of this LibraryBlog Digital Book "Lendas e Narrativas (Tomo I)" ***


Digital Library project from the National Library of
Portugal.



This e-text is transcribed from the 1858 2nd edition of Lendas e
Narrativas (Tomo I).



LENDAS E NARRATIVAS (Tomo I)



ADVERTENCIA


A Advertência que precedia a anterior edição, e que adiante vae
repetida, explica sobejamente porque as primeiras tentativas de um
género de escriptos, que só muito tarde foi cultivado em Portugal,
se publicaram em volumes, quando talvez não devessem sair das
columnas dos jornaes, onde viram a luz publica. Considerámo-los
então, e considerâmo-los agora apenas como balisas no campo da
nossa historia litteraria, balisas que nos parecem ainda mais
toscas actualmente; porque ao passo que a reflexão e o tempo
nos amaduram o espirito, os defeitos de composição e de estylo
cada vez se vão avolumando mais aos olhos da nossa consciência
retrospectiva. Reputando-os, todavia, hoje como ha oito annos,
simples marcos milliarios, a presente edição absolve-se pelos
mesmos títulos porque devia ser absolvida a edição anterior.

Esperávamos, e dissemo-lo sinceramente, que estas desadornadas
tentativas esqueceriam em breve offuscadas pelas brilhantes
composições que começavam a avultar no caminho que havíamos aberto.
O publico enleodeu de outro modo. Sem deixar de apreciar o melhor,
não esqueceu estes mal delineados esboços, que ficaram na sua
memória como nos ficam para a saudade os dias do nosso balbuciar
infantil.

Quinze a vinte annos são decorridos desde que se deu um passo,
bem que débil, decisivo, para quebrar as tradições do Alivio
de Tristo e do Feliz Independente, tyrannos que reinavam sem
émulos e sem conspirações na provincia do romance português.
Nestes quinze ou vinte annos creou-se uma litteratura e póde
dizer-se que não ha anno que não lhe traga um progresso. Desde
as Lendas e Narrativas até o livro Onde está a Felicidade? que
vasto espaço transposto! E todavia, apesar do immenso talento
que se revela nas mais recentes composições, quem sabe se entre
os nomes que despontam apenas nos horisontes litterarios, não
virá em breve algum que offusque os que nos deixaram para nós
somente um bem modesto logar?

Oxalá que assim seja. Os que nos venceram n'esta lucta gloriosa
saberão resignar-se como nós nos resignámos.

Ajuda, maio de 1858.



ADVERTENCIA DA PRIMEIRA EDIÇÃO


Os breves romances e narrativas contidos neste volume foram
impressos, em epochas mais ou menos remotas, nas duas publicações
periodicas o Panorama e a Illustração, bem como o foram nestes
ou em outros jornaes os que tem de formar o segundo volume das
Lendas e Narrativas, colleccão que, se trabalhos mais arduos o
consentirem, será continuada com alguns outros, apenas esboçados
ou ineditos no todo ou em parte, que ainda restam entre os
manuscriptos do auctor. Corrigindo-os e publicando-os de novo,
para se ajunctarem a composições mais extensas e menos imperfeitas,
que já viram a luz publica em volumes separados, elle quiz apenas
preservar do esquecimento, a que por via de regra são condemnados
mais cedo ou mais tarde os escriptos inseridos nas columnas das
publicações periodicas, as primeiras tentativas do romance historico
que se fizeram na lingua portuguesa. Monumentos dos esforços
do auctor para introduzir na litteratura nacional um genero
amplamente cultivado, nestes nossos tempos, em todos os paizes
da Europa, é este o principal, ou talvez o unico merecimento
delles; o titulo de que podem valer-se para não serem entregues
de todo ao esquecimento. À singeleza da invenção, a pouca firmeza
nos contornos de alguns caractéres, o menos bem travado do dialogo,
imperfeições que nem sempre foi possivel remediar nesta nova
edição, revelam a mão inexperiente. Na historia dos progressos
litterarios de Portugal, desde que a liberdade politica trouxe
a liberdade do pensamento, e que o engenho pôde apparecer á luz
do dia sem os anginhos de uma censura tão absurda na sua indole,
como estupida na sua applicação e esterilisadora nos seus effeitos;
nessa historia, dizemos, esta nova edição deve ser julgada
principalmente com attenção ao seu motivo, á prioridade das
composições nella insertas, e á precisão em que, ao escreve-las,
o auctor se via de crear a substancia e a fórma; porque para o
seu trabalho faltavam absolutamente os modelos domesticos.

A critica para ser justa não ha-de, porém, attender só a essas
circumstancias: ha-de considerar também os resultados destas
tentativas, que, a principio, é licito suppôr inspiraram outras
analogas, como por exemplo os "Irmãos Carvajales" e "O que foram
Portuguezes" do Sr. Mendes Leal, e gradualmente incitaram a maioria
dos grandes talentos da nossa litteratura a emprehenderem composições
analogas de mais largas dimensões, e melhor delineadas e vestidas.
Todos conhecem o "Arco de Sanct'Anna", cujo ultimo volume acaba
de imprimir o primeiro poeta português deste seculo, o "Um ano na
Côrte" do Sr. Corvo, cuja publicação se aproxima do seu termo, e
o "Odio Velho Não Cansa" do Sr. Rebello da Silva, ensaio que, se
as eloquencias parvoas e semsabores dos dicursos academicos não
tivessem tornado indecentes as allusões mythologicas, se poderia
comparar ao combate com o leão de Citheron, que revelou á Grecia
no moço Hercules o futuro semideus; porque no Odio Velho começa
a manifestar-se o auctor da "Mocidade de D. João V", romance de
que já se imprimiram algumas paginas admiraveis, mas que na parte
inedita, que é quasi tudo, nos promete um emulo de Walter-Scott.
Emfim o "Conde de Castella" do Sr. Oliveira Marreca, vasta concepção,
posto que ainda incompleta, foi porventura inspirado pelo exemplo
destas fracas tentativas, e das que, em dimensões maiores, o
auctor emprehendeu no Eurico e no Monge de Cister. Caracter grave
e austero, dignos dos tempos antigos, e que a providencia collocou
em meio de uma sociedade gasta e definhada por muitos generos
de corrupções, como uma condemnação muda; homem sobre tudo de
sciencia e consciencia, o Sr. Marreca trouxe estes seus dotes
eminentes para o campo do romance historico, onde ninguem, talvez,
como elle poderia fazer a Portugal o serviço que DuMonteil fez
á França, isto é, popularisar o estudo daquela parte da vida
publica e privada dos seculos semi-barbaros, que não cabe no
quadro da historia social e politica.

Taes foram, entre outros, os mais importantes resultados da
introduccão do genero. No meio deste amplo desenvolvimento de uma
literatura nova no paiz, o auctor das seguintes paginas merecerá
talvez desculpa de recordar que estes ensaios, inferiores ás
publicações que se lhe seguiram, foram a sementinha d'onde proveio
a floresta. Seja-lhe pois licito consolar-se na sua inferioridade
com haver precedido na ordem dos tempos aquelles que, na affeição
do publico, devem provavelmente faze-lo esquecer. Persuadido de
ter por isso direito á indulgencia, resolveu-se a transportar
para o livro aquillo que, considerado em si, não mereceria talvez
sair nunca das columnas do fugitivo jornal, salvando assim, não
escriptos cuja apreciação exija largas paginas na historia
litteraria, mas um marco humilde e tosco, que, nesta especie de
litteratura, indique o ponto d'onde se partiu.



O ALCAIDE DE SANTARÉM (950--961)



I


O guadamellato é uma ribeira que, descendo das solidões mais
agras da Serra Morena, vem através de um territorio montanhoso
e selvatico desaguar no Guadalquivir pela margem direita, pouco
acima de Cordova. Houve tempo em que nestes desvios habitou uma
população numerosa: foi nas eras do dominio sarraceno em Hespanha.
Desde o governo do amir Abul-Khatar o districto de Cordova fôra
distribuido ás tribus árabes do Yemen e da Syria, as mais nobres
e mais numerosas entre todas as raças da Africa e da Asia, que
tinham vindo residir na Peninsula por occasião da conquista ou
depois della. As familias que se estabeleceram naquellas encoslas
meridionaes das longas serranias chamadas pelos antigos Montes
Marianos, conservaram por mais tempo os hábitos erradios dos
povos pastores. Assim no meiado decimo seculo, posto que esse
districto fosse assás povoado, o seu aspecto assemelhava-se ao
de um deserto; porque nem se descortinavam por aquelles cabeços e
valles vestigios alguns de cultura, nem alvejava um unico edificio
no meio das collinas rasgadas irregularmente pelos algares das
torrentes, ou cubertas de selvas bravias e escuras. Apenas um
ou outro dia se enxergava na extrema de algum almargem virente a
tenda branca do pegureiro, que no dia seguinte não se encontraria
alli, se porventura se buscasse.

Havia, comtudo, povoações fixas naquelles ermos; havia habitações
humanas, porém não de vivos. Os arabes collocavam os cemiterios
nos logares mais saudosos dessas solidões, nos pendores meridionaes
dos outeiros, onde o sol, ao pôr-se, estirasse de soslaio os seus
ultimos raios pelas lagens lisas das campas, por entre os raminhos
floridos das sarças açoutadas do vento. Era alli que, depois
do vaguear incessante de muitos annos, elles vinham deitar-se
mansamente uns ao pé dos outros, para dormirem o longo somno
sacudido sobre as suas palpebras das asas do anjo Azrael.

A raça arabe, inquieta, vagabunda e livre, como nenhuma outra
familia humana, gostava de espalhar na terra aquelles padrões,
mais ou menos sumptuosos, do captiveiro e immobilidade da morte,
talvez para avivar mais o sentimento da sua independencia illimitada
durante a vida.

No recosto de um teso, elevado no extremo de extensa gandra que
subia das margens do Guadamellato para o nordeste, estava assentado
um desses cemiterios pertencente á tribu Yemenita dos Beni-Homair.
Subindo pelo riu, viam-se alvejar ao longe as pedras das sepulturas
como um vasto estendal, e tres unicas palmeiras, plantadas na corôa
do outeiro, lhe tinham feito dar o nome de cemiterio de al-tamarah.
Transpondo o cabeço para o lado oriental, encontrava-se um desses
brincos da natureza, que nem sempre a sciencia sabe explicar:
era um cubo de granito de desconforme dimensão, que parecia ter
sido posto alli pelos esforços de centenares d'homens, porque
nada o prendia ao solo. Do cimo desta especie de atalaia natural
descortinavam-se para todos os lados vastos horisontes.

Era um dia á tarde: o sol descia rapidamente, e já as sombras
principiavam do lado de léste a empastar a paisagem ao longe em
negrumes confusos. Assentado na borda do rochedo quadrangular
um arabe dos Beni-Homair, armado da sua comprida lança, volvia
olhos attentos, ora para o lado do norte, ora para o de oeste:
depois sacudia a cabeça com um signal negativo, inclinando-se
para o lado opposto da grande pedra. Quatro sarracenos estavam
alli tambem assentados em diversas posturas e em silencio, o
qual só era interrompido por algumas palavras rapidas, dirigidas
ao da lança, e a que elle respondia sempre do mesmo modo com o
seu menear de cabeça.

"Al-barr,"--disse por fim um dos sarracenos cujo trajo e gestos
indicavam uma grande superioridade sobre os outros--"parece que
o kaid de Chantoryu[1] esqueceu a sua injuria como o wali de
Zarkosta[2] a sua ambição d'independencia; e até os partidários
de Hafsun, esses guerreiros tenazes, tantas vezes vencidos por
meu pae, não podem acreditar que Abdallah realise as promessas
que me induziste a fazer-lhes."

"Amir-al-melek[3],"--replicou Al-barr--"ainda não é tarde: os
mensageiros podem ter sido retidos por algum successo imprevisto.
Não creias que a ambição e a vingança adormeçam tão facilmente
no coração humano. Dize, Al-athar, não te juraram elles pela
sancta Kaaba[4] que os enviados com a noticia da sua revolta e
da entrada dos christãos chegariam hoje a este logar aprazado,
antes do anoitocer?"

"Juraram--respondeu Al-athar--; mas que fé merecem homens que
não duvidam de quebrar as promessas solemnes feitas ao kalifa,
e além d'isso de abrir o caminho aos infiéis para derramarem o
sangue dos crentes? Amir, nestas negras tramas tenho-te servido
lealmente; porque a ti devo quanto sou; mas oxalá que falhassem
as esperanças que pões nos tens occultos alliados. Oxalá não
tivesse de tingir o sangue as ruas de Korthoba, e não houvera
de ser o suppedaneo do throno que ambicionas o tumulo de teu
irmão!"

Al-athar cobriu a cara com as mãos, como se quizesse esconder a
sua amargura. Abdallah parecia commovido por duas paixões oppostas.
Depois de se conservar algum tempo em silencio, exclamou:

"Se os mensageiros dos revoltosos não chegarem até o anoitecer,
não falemos mais n'isso. Meu irmão Al-hakem acaba de ser reconhecido
successor do kalifado: eu próprio o acceitei por futuro senhor
poucas horas antes de vir ter comvosco. Se o destino assim o
quer, faça-se a vontade de Deus! Al-barr, imagina que os teus
sonhos ambiciosos e os meus foram uma kassidéh[5] que não soubeste
acabar, como aquella que debalde tentaste repetir na presença
dos embaixadores do Frandjat[6], e que foi causa de cahires no
desagrado de meu pae e de Al-hakem, e de conceberes esse odio
que alimentas contra elles, o mais terrível odio deste mundo,
o do amor próprio offendido."

Ahmed Al-athar e o outro arabe sorriram ao ouvirem estas palavras
de Abdallah. Os olhos, porém, de Al-barr faiscaram de colera.

"Pagas mal, Abdallah,--disse elle com a voz presa garganta--os
riscos que tenho corrido para te obter a herança do mais bello
e poderoso império do Islam. Pagas com allusões affrontosas aos
que jogam a cabeça com o algoz para te pôr na tua uma corôa. És
filho de teu pae! ... Não importa. Só te direi que é já tarde
para o arrependimento. Pensas acaso que uma conspiração sabida
de tantos ficará occulta? No ponto a que chegaste, retrocedendo
é que has-de encontrar o abysmo!"

No rosto de Abdallah pintava-se o descontentamento e a incerteza.
Ahmed ia a falar, talvez para ver de novo se divertia o príncipe
da arriscada empresa de disputar a coroa a seu irmão Al-hakem. Um
grito, porém, de atalaia o interrompeu. Ligeiro como relampago
um vulto saíra do cemitério, galgára o cabeço, e se aproximára
sem ser sentido: vinha involto n'um albornoz escuro, cujo capuz
quasi lhe encobria as feições, vendo-se-lhe apenas a barba negra
e revolta. Os quatro sarracenos puseram-se em pé de um pulo, e
arrancaram as espadas.

Ao ver aquelle movimento, o que chegára não fez mais do que estender
para elles a mão direita e com a esquerda recuar o capuz do albornoz:
então as espadas abaixaram-se como se uma corrente electrica
tivesse adormecido os braços dos quairo sarracenos. Al-barr
exclamára:--"Muulin[7] o propheta! Muulin o sancto!..."

"Muulin o peccador:--interrompeu o novo personagem--Muulin, o
pobre fakih[8] penitente e quasi cego de chorar as proprias culpas
e as culpas dos homens, mas a quem Deus por isso illumina ás
vezes os olhos da alma para antever o futuro ou ler no fundo
dos corações. Li no vosso, homens de sangue, homens de ambição!
Sereis satisfeitos! O senhor pesou na balança dos destinos a ti,
Abdallah, e a teu irmão Al-hakem. Elle foi achado mais leve. A
ti o throno; a elle o sepulchro. Está escripto. Vae; não pares
na carreira, que não te é dado parar! Volta a Kortheba. Entra no
teu palacio Merwan; é o palacio dos kalifas da tua dynastia. Não
foi sem mysterio que teu pae t'o deu por morada. Sobe ao sotam[9]
da torre. Ahi acharás cartas do kaid de Chantarya, e dellas verás
que nem elle, nem o wali de Zarkosta, nem os Beni-Hafsun faltam
ao que te juraram!"

"Sancto fakih--replicou Abdallab, crédulo como todos os musulmanos
daquelles tempos de fé viva, e visivelmente perturbado--creio o
que dizes, porque nada para ti é occulto. O passado, o presente,
o futuro domina-los com a tua intelligencia sublime. Asseguras-me
o triumpho; mas o perdão do crime podes tu assegura-lo?"

"Verme, que te crês livre!--atalhou com voz solemne o fakih.--Verme,
cujos passos, cuja vontade mesma, não são mais do que frageis
instrumentos nas mãos do destino, e que te crês auctor de um
crime! Quando a frecha despedida do arco fere mortalmente o
guerreiro, pede ella acaso a Deus perdão do seu peccado? Atomo
varrido pela colera de cima contra outro atomo, que vaes aniquilar,
pergunta antes se nos thesouros do Misericordioso ha perdão para
o orgulho insensato!"

Fez então uma pausa. A noite descia rapida. Ao lusco-fusco ainda
se viu sair da manga do albornoz um braço felpudo e mirrado, que
apontava para as bandas de Cordova. Nesta postura a figura do
fakih fascinava. Coando pelos lábios as syllabas, elle repeliu
tres vezes:

"Para Merwan!"

Abdallah abaixou a cabeça, e partiu vagarosamente, sem olhar
para traz. Os outros sarracenos seguiram-no. El-Muulin ficou só.

Mas quem era este homem? Todos o conheciam em Cordova; se vivesseis,
porém, naquella epocha e o perguntasseis nessa cidade de mais
de um milhão de habitantes, ninguem vo-lo saberia dizer. Era
um mysterio a sua patria, a sua raça, donde viera. Passava a
vida pelos cemiterios ou nas mesquitas. Para elle o ardor da
canicula, a neve ou as chuvas do inverno eram como se não existissem.
Raras vezes se via que não fosse lavado em lagrymas. Fugia das
mulheres como de um objecto de horror. O que, porém, o tornava
geralmente respeitado, ou antes temido, era o dom de prophecia, o
qual ninguem lhe disputava. Mas era um propheta terrivel, porque
as suas predicções recahiam unicamente sobre futuros males. No
mesmo dia em que nas fronteiras do imperio os christãos faziam
alguma correria, ou destruiam alguma povoação, elle annunciava
publicamente o successo nas praças de Cordova: qualquer membro
da familia numerosa dos Beni-Umeyyas cahia debaixo do punhal de
um assassino desconhecido, na mais remota provincia do imperio,
ainda das do Moghreb ou Mauritania, na mesma hora, no mesmo instante
ás vezes, elle o pranteava redobrando os seus choros habituaes.
O terror que inspirava era tal, que no meio do maior tumulto
popular a sua presença bastava para tudo caír em mortal silencio.
A imaginação exaltada do povo tinha feito delle um sancto, sancto
como o islamismo os concebia; isto é, um homem cujas palavras
e aspecto gelavam de terror.

Ao passar por elle, Al-barr apertou-lhe a mão, dizendo-lhe em
voz quasi imperceptivel:

"Salvaste-me!"

O fakih deixou-o affastar, e fazendo um gesto de profundo despreso,
murmurou:

"Eu?! Eu teu cumplice, miseravel?!"

Depois, alevantando ambas as mãos abertas para o ar, começou
a agitar os dedos rapidamente, e rindo com um rir sem vontade,
exclamou:

"Pobres titeres!"

Quando se fartou de representar com os dedos a idéa de escarneo
que lhe sorria lá dentro, dirigiu-se, ao longo do cemiterio,
tambem para as bandas de Cordova, mas por diverso atalho.

[1] Santarem.

[2] Governador do Districto de Saragoça.

[3] Principe real.

[4] O famoso templo de Mekka.

[5] Poema de trinta versos, muito usado entre os arabes,
e que correspondia de certo muilo ás nossas odes.

[6] Os reinos christãos além dos Pyreneus.

[7] Muulin significa o triste.

[8] Fakih ou faquir, especie de frade mendicante entre
os musulmanos.

[9] Sotuko--o andar mais alto. Os nossos escriptores
tomavam esta palavra n'um sentido evidentemente errado, servindo-se
delia para indicar o aposento inferior ou térreo.



II


Nos paços de Azzahrat, o magnifico alcaçar dos kalifas de Cordova,
ha muitas horas que cessou o estrepito de uma grande festa. O
luar de noite serena d'abril bate pelos jardins que se dilatam
desde o alcaçar até o Guad-al-kébir, e alveja tremulo pelas fitas
cinzentas dos caminbos tortuosos, em que parecem enredados os
bosquesinhos de arbustos, os macissos de arvores silvestres, as
veigas de flores, os vergeis embalsamados, onde a larangeira, o
limoeiro, e as demais arvores fructiferas, trazidas da Persia, da
Syria e do Cathay, espalham os aromas variados das suas flores.
Lá ao longe Cordova, a capital da Hespanha mussulmana, repousa
da lida diurna, porque sabe que Abdu-r-rahman III, o illustre
kalifa, véla pela segurança do imperio. A vasta cidade repousa
profundamente; e o ruído mal distincto que parece revoar por
cima della, é apenas o respiro lento dos seus largos pulmões,
o bater regular das suas robustas arterias. Das almadenas de
seiscentas mesquitas não soa uma unica voz de almuhaden, e os
sinos das igrejas mosarabes guardam tambem silencio. As ruas,
as praças, os azokes, ou mercados, estão desertos. Sómente o
murmurio das novecentas fontes ou banhos publicos, destinados
ás abluções dos crentes, ajuda o zumbido nocturno da sumptuosa
rival de Bagdad.

Que festa fôra essa que expirára algumas horas antes de nascer
a lua, e de tingir com a brancura pallida de sua luz aquelles
dois vultos enormes de Azzahrat e de Cordova, que olhavam um
para o outro, a cinco milhas de distancia, como dois phantasmas
gigantes involtos em largos sudarios? Na manhan do dia que findára,
Al-hakem, o filho mais velho de Abdu-r-rahman, fôra associado ao
throno. Os walis, wasires e khatehs da monarchia dos Beni-Umeyyas
tinham vindo reconhece-lo Wali-al-ahdi; isto é, futuro kalifa
do Andalús e do Moghreb. Era uma idéa affagada longamente pelo
velho principe dos crentes que se realisára, e o jubilo de
Abdu-r-rahman se havia espraiado n'uma dessas festas, por assim
dizer fabulosas, que só sabia dar no seculo decimo a côrte mais
polida da Europa, e talvez do mundo, a do soberano sarraceno
de Hespanha.

O palacio Merwan, juncto dos muros de Cordova, distingue-se á
claridade duvidosa da noite pelas suas fórmas macissas e
rectangulares, e a sua côr tisnada, bafo dos seculos que entristece
e sanctifica os monumentos, contrasta com a das cupulas aereas e
douradas dos edificios, com a das almadenas esguias e leves das
mesquitas, e com a dos campanarios christãos, cuja tez docemente
pallida suavisa ainda mais o brando raio de luar que se quebra
naquelles estreitos pannos de pedra branca, d'onde não se reflecte,
mas cabe na terra preguiçoso e dormente. Como Azzahrat e como
Cordova, calado e apparentemente tranquillo, o palacio Merwan,
a antiga morada dos primeiros kalifas, suscita idéas sinistras,
emquanto o aspecto da cidade e da villa imperial unicamente inspiram
um sentimento de quietação e paz. Não é só a negridão das suas vastas
muralhas a que produz essa apertura do coração que experimenta
quem o considera assim solitario e carrancudo; é tambem o clarão
avermelhado que resumbra da mais alta das raras frestas abertas
na face exterior da sua torre albarran, a maior de todas as que
o cercam, a que atalaia a campanha. Aquella luz, no ponto mais
elevado do grande e escuro vulto da torre, é como um olho de
demonio, que contempla colerico a paz profunda do imperio, e que
espera ancioso o dia em que renasçam as luctas e as devastações
de que por mais de dois seculos fôra theatro o solo ensanguentado
de Hespanha.

Alguem véla, talvez, no paço de Merwan. No de Azzahrat, posto que
nenhuma luz bruxulêe nos centenares de varandas, de miradouros,
de porticos, de balcões, que lhe arrendam o immenso circuito,
alguem véla por certo.

A sala denominada do Kalifa, a mais espaçosa entre tantos aposentos
quantos encerra aquelle rei dos edificios, devêra a estas horas
mortas estar deserta, e não o está. Dois lampadarios de muitos
lumes pendem dos artesões primorosamente lavrados, que, cruzando-se
em angulos rectos, servem de moldura ao almofadado de azul e
ouro, que reveste as paredes e o tecto. A agua de fonte perenne
murmura cahindo n'um tanque de marmore construido no centro do
aposento, e no topo da sala ergue-se o throno de Abdu-r-rahman,
alcatifado dos mais ricos tapetes do paiz de Fars. Abdu-r-rahman
está ahi sósinho. O kalifa passeia de um para outro lado, com
olhar inquieto, e de instante a instante pára e escuta, como
se esperasse ouvir um ruído longinquo. No seu gesto e meneios
pinta-se a mais viva anciedade; porque o unico ruído que lhe
fere os ouvidos é o dos proprios passos sobre o xadrez variegado,
que fórma o pavimento da immensa quadra. Passado algum tempo,
uma porta, escondida entre os brocados que forram os lados do
throno, abre-se lentamente, e um novo personagem apparece. No rosto
de Abdu-r-rahman, que o vê aproximar, pinta-se uma inquietação
ainda mais viva.

O recem-chegado offerecia notavel contraste no seu gesto e vestiduras
com as pompas do logar em que se introduzia, e com o aspecto
magestoso de Abdu-r-rahman, ainda bello apesar dos annos e das
cans que começavam a misturar-se-lhe na longa e espessa barba
negra. Os pés do que entrára apenas faziam um rumor sumido no
chão de marmore. Vinha descalço. A sua aljarabia ou tunica era
de lan grosseiramente tecida, o cincto uma corda de esparto.
Divisava-se-lhe, porém, no despejo do andar e na firmeza dos
movimentos que nenhum espanto produzia nelle aquella magnificencia.
Não era velho; e todavia a sua tez tostada pelas injurias do tempo
estava sulcada de rugas, e uma orla vermelha circulava-lhe os
olhos, negros, encovados e reluzentes. Chegando ao pé do kalifa,
que ficára immovel, cruzou os braços e poz-se a contempla-lo
calado. Abdu-r-rahman foi o primeiro em romper o silencio:

"Tardaste muito, e foste menos pontual do que costumas, quando
annuncias a tua vinda a hora fixa, Al-muulin! Uma visita tua
é sempre triste como o teu nome. Nunca entraste a occultas em
Azzahrat senão para me saciares de amargura; mas apesar disso eu
não deixarei de abençoar a tua presença, porque Algafir--dizem-no
todos e eu o creio--é um homem de Deus. Que vens annunciar-me,
ou que pretendes de mim?"

"Amir-al-muminin[1], que póde pretender de ti um homem cujos
dias se passam á sombra dos tumulos pelos cemiterios, e a cujas
noites de oração basta por abrigo o portico de um templo; cujos
olhos tem queimado o chôro, e que não esquece um instante que tudo
neste desterro, a dôr e o goso, a morte e a vida, está escripto
lá em cima? Que venho annunciar-te?!... O mal; porque só mal ha
na terra para o homem, que vive como tu, como eu, como todos,
entre o appetite e o rancor; entre o mundo e Eblis; isto é, entre
os seus eternos e implacaveis inimigos!"

"Vens, pois, annunciar-me uma desventura?!... Cumpra-se a vontade
de Deus. Tenho reinado perto de quarenta annos, sempre poderoso,
vencedor e respeitado; todas as minhas ambições tem sido satisfeitas,
todos os meus desejos preenchidos; e todavia nesta longa carreira
de gloria e prosperidade só fui inteiramente feliz quatorze dias
da minha vida[2]. Pensava que este fosse o decimo quinto. Devo
acaso apaga-lo do registo em que conservo a memoria delles, e
em que já o tinha escripto?"

"Pódes apaga-lo:--replicou o rude fakih--pódes, até, rasgar
todas as folhas brancas que restam no livro. Kalifa! vês estas
faces sulcadas pelas lagrymas? vês estas palpebras requeimadas
por ellas? Duro é o teu coração, mais que o meu, se em breve as
tuas palpebras e as tuas faces não estão semelhantes ás minhas."

O sangue tingiu o rosto alvo e suavemente pallido de Abdu-r-rahman:
os seus olhos serenos como o ceu, que imitavam na côr, tomaram a
terrivel expressão que elle costumava dar-lhes no revolver dos
combates, olhar esse que só por si fazia recuar os inimigos. O
fakih não se moveu, e poz-se a olhar também para elle fito.

"Al-muulin, o herdeiro dos Beni-Umeyyas póde chorar arrependido
de seus erros diante de Deus; mas quem disser que ha neste mundo
desventura capaz de lhe arrancar uma lagryma, diz-lhe elle que
mentiu!"

Os cantos da bôca de Al-gafir encresparam-se com um quasi
imperceptivel sorriso. Houve um largo espaço de silencio.
Abdu-r-rahman não o interrompeu: o fakih proseguiu:

"Amir-al-muminin, qual de teus dous filhos amas tu mais? Al-hakem,
o successor do throno, o bom e generoso Al-hakem, ou Abdallah,
o sabio e guerreiro Abdallah, o idolo do povo de Korthoba?"

"Oh,--replicou o kalifa sorrindo--já sei o que me queres dizer.
Devias prever que a nova viria tarde, e que eu havia de sabe-lo...
Os christãos passaram a um tempo as fronteiras do norte e do
oriente. Meu velho tio Al-mod-dhafer já depoz a espada victoriosa,
e crês necessario expôr a vida de um delles aos golpes dos infiéis.
Vens prophetisar-me a morte do que partir. Não é isto? Fakih,
creio em ti, que és acceito ao Senhor; mas ainda creio mais na
estrella dos Beni-Umeyyas. Se eu amasse um mais do que outro
não hesitaria na escolha: fôra esse que eu mandára, não á morte,
mas ao triumpho. Se, porém, essas são as tuas previsões, e ellas
tem de realisar-se, Deus é grande! Que melhor leito de morte
posso eu desejar a meus filhos do que um campo de batalha em
al-djihed[3] contra os infiéis?"

Al-gafir escutou Abdu-r-rahman sem o menor signal d'impaciencia.
Quando elle acabou de falar repetiu tranquillamente a pergunta:

"Kalifa, qual amas tu mais dos teus dous filhos?"

"Quando a imagem pura e sancta do meu bom Al-hakem se me representa
no espirito, amo mais Al-hakem: quando com os olhos da alma vejo
o nobre e altivo gesto, a fronte vasta e intelligente do meu
Abdallah, amo-o mais a elle. Como te posso eu, pois, responder,
fakih?"

"E todavia é necessário que escolhas, hoje mesmo, neste momento,
entre um e outro. Um delles deve morrer na próxima noite,
obscuramente, nestes paços, aqui mesmo talvez, sem gloria, debaixo
do cutello do algoz, ou do punhal do assassino."

Abdu-r-rahman recuára ao ouvir estas palavras: o suor começou
a descer-lhe em bagas da fronte. Bem que tivesse mostrado uma
firmeza fingida, sentíra apertar-se-lhe o coração desde que o
fakih começára a falar. A reputação d'illuminado de que gosava
Al-muulin, o caracter supersticioso do kalifa, e mais que tudo o
haverem-se verificado todas as negras prophecias que n'um longo
decurso de annos elle lhe fizera, tudo contribuia para atterrar
o principe dos crentes. Com voz trémula replicou:

"Deus é grande e justo. Que lhe fiz eu para me condemnar no fim
da vida a perpetua afflicção, a ver correr o sangue de meus filhos
queridos ás mãos da deshonra ou da perfidia?"

"Deus é grande e justo,--interrompeu o fakih.--Acaso nunca fizeste
correr injustamente o sangue? Nunca por odio brutal despedaçaste
de dôr nenhum coração de pae, de irmão, de amigo?"

Al-muulin tinha carregado na palavra irmão com um accento singular.
Abdu-r-rahman, possuido de mal refreiado susto, não attentou por
isso.

"Posso eu acreditar uma tão estranha, direi antes tão incrivel
prophecía--exclamou elle por fim--sem que me expliques o modo
por que se deve realisar esse terrivel successo; e como ha-de o
ferro do assassino ou do algoz vir dentro dos muros de Azzahrat
verter o sangue de um dos filhos do kalifa de Korthoba, cujo nome,
seja-me licito dize-lo, é o terror dos christãos, e a gloria do
islamismo?"

Al-muulin tomou um ar imperioso e solemne, estendeu a mão para
o throno, e disse:

"Assenta-te, kalifa, no teu throno, e escuta-me, porque em nome
da futura sorte do Andalus, da paz e da prosperidade do imperio,
e das vidas e do repouso dos mussulmanos eu venho denunciar-te um
grande crime. Que punas, que perdoes, esse crime tem de custar-te
um filho. Successor do propheta, iman[4] da divina religião do
Koran, escuta-me, porque é obrigação tua ouvir-me."

O tom inspirado com que Al-muulin falava, a hora de alta noite, o
negro mysterio que encerravam as palavras do fakih tinham subjugado
a alma profundamente religiosa de Abdu-r-rahman. Machinalmenlte
subiu ao throno, encruzou-se em cima da pilha de coxins em que
elle rematava, e encostando ao punho o rosto demudado, disse
com voz presa:--"Pódes falar, Suleyman-ibn-Abd-al-gafir!"

Tomando então uma postura humilde, e cruzando os braços sobre
o peito, Al-gafir o triste começou da seguinte maneira a sua
narrativa.

[1] Principe dos crentes, titulo correspondente ao de
kalifa.

[2] Historico

[3] Guerra-sancta

[4] Pontifice. Os kalifas reuniam em si o summo imperio,
e o summo pontificado.



III


"Kalifa!--começou Al-muulin--tu és grande; tu és poderoso. Não
sabes o que é a affronta ou a injustiça cruel que esmaga o coração
nobre e energico, se este não póde repelli-la, e sem demora, com
o mal ou com a affronta, vinga-la á luz do sol! Tu não sabes o
que então se passa na alma desse homem, que por todo o desaggravo
deixa fugir alguma lagryma furtiva, e até, ás vezes, é obrigado
a beijar a mão que o feriu nos seus mais sanctos affectos. Não
sabes o que isto é; porque todos os teus inimigos tem cahido
diante do alfange do almogaure, ou deixado tombar a cabeça de
cima do cêpo do algoz. Ignoras por isso o que é o odio; o que
são essas solidões tenebrosas, por onde o resentimento, que não
póde vir ao gesto, se dilata e vive á espera do dia da vingança.
Dir-to-hei eu. Nessa noite immensa, em que se involve o coração
chagado, ha uma luz sanguinolenta que vem do inferno, e que allumia
o espirito vagabundo. Ha ahi terriveis sonhos, em que o mais
rude e ignorante descobre sempre um meio de desaggravo. Imagina
como será facil aos altos entendimentos o encontra-lo! É por
isso que a vingança, que parecia morta e esquecida, apparece ás
vezes inesperada, tremenda, irresistivel, e morde-nos surgindo
debaixo dos pés como a vibora, ou despedaça-nos como o leão pulando
d'entre os juncaes. Que lhe importa a ella a magestade do throno,
a sanctidade do templo, a paz domestica, o ouro do rico, o ferro
do guerreiro? Mediu as distancias, calculou as difficuldades,
meditou no silencio, e riu-se de tudo isso!"

E Al-gafir o triste desatou a rir ferozmente, Abdu-r-rahman olhava
para elle espantado.

"Mas--proseguiu o fakih--ás vezes Deus suscita um dos seus servos,
um dos seus servos de animo tenaz e forte, possuido tambem de
alguma idéa occulta e profunda, que se alevante, e rompa a trama
urdida nas trévas. Este homem no caso presente sou eu. Para bem?
Para mal?--Não sei; mas sou! Sou eu que, venho revelar-te como se
prepara a ruina do teu throno, e a destruição da tua dynastia."

"A ruina do meu throno?--gritou Abdur-r-rahman pondo-se em pé e
levando a mão ao punho da espada.--Quem, a não ser algum louco,
imagina que o throno dos Beni-Umeyyas póde, não digo desconjunctar-se,
mas apenas vacilar debaixo dos pés de Abdu-r-rahman? Quando, porém,
falarás enfim claro, Al-muulin?"

E a colera e o despeito faiscavam-lhe nos olhos. Com a sua habitual
impassibilidade o fakih proseguiu:

"Esqueces-te, kalifa, da tua reputação de prudencia e longanimidade.
Pelo propheta! Deixa divagar um velho tonto como eu ... Não!...
Tens razão ... Basta! O raio que fulmina o cedro desce rapido do
céu. Quero ser como elle ... Amanhan a estas horas o teu filho
Abdallah ter-te-ha já privado da corôa para a cingir na propria
fronte, e o teu successor Al-hakem terá perecido sob um punhal
d'assassino. Ainda te encolerisas? Foi acaso demasiado extensa
a minha narrativa?"

"Infame!--exclamou Abdu-r-rahman--Hypocrita, que me tens enganado!
Tu ousas calumniar o meu Abdallah? Sangue! Sangue ha-de correr,
mas é o teu. Crias que com essas visagens d'inspirado, com esses
trajos de penitencia, com essa linguagem dos sanctos poderias
quebrar a affeição mais pura, a de um pae? Enganas-te, Al-gafir!
A minha reputação de prudente, verás que era bem merecida."

Dizendo isto o kalifa ergueu as mãos como quem ia a bater as
palmas. Al-muulin interrompeu-o rapidamente, mas sem mostrar o
menor indicio de perturbação ou terror.

"Não chames ainda os eunuchos; porque assim é que dás provas
de que não a merecias. Conheces que me seria impossivel fugir.
Para matar ou morrer sempre é tempo. Escuta, pois, o infame, o
hypocrita até o fim. Acreditarias tu na palavra do teu nobre e
altivo Abdallah? Bem sabes que elle é incapaz de mentir a seu
amado pae, a quem deseja longa vida e todas as prosperidades
possiveis."

O fakih desatára de novo n'um rir trémulo e hediondo. Metteu
a mão no peitilho da aljarabia e tirou uma a uma muitas tiras
de pergaminho: pô-las sobre a cabeça e entregou-as ao kalifa,
que começou a lêr com avidez. A pouco e pouco Abdu-r-rahman foi
empallidecendo, as pernas vergaram-lhe, e por fim deixou-se cahir
sobre os coxins do throno, e cobrindo a cara com as mãos,
murmurou:--"Meu Deus! porque te mereci isto!"

Al-muulin fitára nelle um olhar de girifalte, e nos labios
vagueava-lhe um riso sardonico e quasi imperceptivel.

Os pergaminhos eram varias cartas dirigidas por Abdallah aos
rebeldes das fronteiras do oriente, os Beni-Hafsun, e a diversos
cheiks berebéres, dos que se haviam domiciliado na Hespanha,
conhecidos pelo seu pouco affecto aos Beni-Umeyyas. O mais
importante, porém, de tudo era uma extensa correspondencia com
Umeyya-ibn-Ishak, guerreiro celebre e antigo alcaide de Santarem,
que por graves offensas passára ao serviço dos christãos de Oviedo
e Asturias com muitos cavalleiros illustres da sua clientela.
Esta correspondencia era completa de parte a parte. Por ella se
via que Abdallah contava não só com os recursos dos mussulmanos
seus parciaes, mas tambem com importantes soccorros dos infiéis
por intervenção de Umeyya. A revolução devia rebentar em Cordova
pela morte de Al-hakem e pela deposição de Abdu-r-rahman. Uma parte
da guarda do alcaçar de Azzahrat estava comprada. Al-barr, que
figurava muito nestas cartas, seria o hadjeb ou primeiro ministro
do novo kalifa. Alli se liam, emfim, os nomes dos principaes
personagens implicados na revolta, e todas as circumstancias
desta eram explicadas ao antigo alcaide de Santarém com aquella
individuação que nas suas cartas elle constantemente exigia.
Al-muulin falára verdade: Abdu-r-rahman via despregar diante de
si a longa teia da conspiração, escripta com letras de sangue
pela mão de seu proprio filho.

Durante algum tempo o kalifa conservou-se como a estatua da dôr
na postura que tomára. O fakih olhava fito para elle com uma
especie de cruel complacencia. Al-muulin foi o primeiro que rompeu
o silencio: o principe Beni-Umeyya, esse parecia ter perdido o
sentimento da vida.

"É tarde:--disse o fakih.--Chegará em breve a manhan. Chama os
eunuchos. Ao romper do sol a minha cabeça pregada nas portas
de Azzahrat deve dar testemunho da promptidão da tua justiça.
Elevei ao throno de Deus a ultima oração, e estou apparelhado
para morrer, eu o hypocrita, eu o infame, que pretendia lançar
sementes de odio entre ti e teu virtuoso filho. Kalifa, quando
a justiça espera não são boas horas para meditar ou dormir."

Al-gafir retomava a sua habitual linguagem sempre ironica e
insolente, e ao redor dos labios vagueava-lhe de novo o riso mal
reprimido.

A voz do fakih despertou Abdu-r-rahman das suas tenebrosas
cogitações. Poz-se em pé. As lagrymas haviam corrido por aquellas
faces, mas estavam enxutas. A procella de paixões encontradas
tumultuava lá dentro; mas o gesto do principe dos crentes recobrára
apparente serenidade. Descendo do throno pegou na mão mirrada
de Al-muulin, e apertando-a entre as suas, disse:

"Homem que guias teus passos pelo caminho do céu; homem acceito
ao propheta, perdoa as injurias de um insensato! Cria ser superior
á fraqueza humana. Enganava-me! Foi um momento que passou. Possas
tu esquece-lo! Agora estou tranquillo ... bem tranquillo ...
Abdallah, o traidor que era meu filho, não concebeu tão atroz
designio. Alguém lh'o inspirou: alguem verteu naquelle animo
soberbo as vans e criminosas esperanças de subir ao throno por
cima do meu cadaver e do de Al-hakem. Não desejo sabe-lo para
o absolver; porque elle já não póde evitar o destino fatal que
o aguarda. Morrerá; que antes de ser pae fui kalifa, e Deus
confiou-me no Andalus a espada da suprema justiça. Morrerá; mas
hão-de acompanha-lo todos os que o precipitaram no abysmo."

"Ainda ha pouco te disse--replicou Al-gafir--o que pôde inventar o
ódio que é obrigado a esconder-se debaixo do manto da indifferença,
e até da submissão. Al-barr, o orgulhoso Al-barr, que tu offendeste
no seu amor proprio de poeta, e que expulsaste de Azzahrat como um
homem sem engenho nem saber, quiz provar-te que ao menos possuia o
talento de conspirador. Foi elle que preparou este terrivel successo.
Has-de confessar que se houve com destreza. Só n'uma cousa não:
em pretender associar-me aos seus designios. Associar-me? ...
não digo bem ... fazer-me seu instrumento ... A mim! ... Queria
que eu te apontasse ao povo como um impio pelas tuas allianças
com os amires infiéis do Frandjat. Fingi estar por tudo; e chegou
a confiar plenamente na minha lealdade. Tomei a meu cargo as
mensagens aos rebeldes do oriente e a Umeyya-ibn-Ishak, o alliado
dos christãos, o antigo kaid de Chantaryin. Foi assim que pude
colligir estas provas de conspiração. Loucos! as suas esperanças
eram a miragem do deserto... Dos seus alliados apenas os de Zarkosta
e das montanhas de Al-kibla não foram um sonho. As cartas de
Umeyya, as promessas do amir nazareno de Djalikia[1], tudo era
feito por mim. Como eu enganei Al-barr, que bem conhece a letra
de Umeyya, esse é um segredo que depois de tantas revelações, tu
deixarás, kalifa, que eu guarde para mim ... Oh, os insensatos!
os insensatos!"

E desatou a rir.

A noite tinha-se aproximado do seu fim. A revolução, que ameaçava
trazer á Hespanha mussulmana todos os horrores da guerra civil,
devia rebentar dentro de poucas horas, talvez. Era necessário
afoga-la em sangue. O longo habito de reinar, juncto ao caracter
energico de Abdu-r-rahman, fazia com que nestas crises elle
desenvolvesse de um modo admiravel todos os recursos que o genio
amestrado pela experiencia lhe suggeria. Recalcando no fundo do
coração a cruel lembrança de que era um filho que ia sacrificar
á paz e á segurança do império, o kalifa despediu Al-muulin, e
mandando immediatamente reunir o divan deu largas instrucções
ao chefe da guarda dos slavos. Ao romper da manhan todos os
conspiradores que residiam em Cordova estavam presos, e muitos
mensageiros tinham partido levando as ordens de Ahdu-r-rahman
aos walis das provincias e aos generaes das fronteiras. Apesar
das lagrymas e rogos do generoso Al-hakem, que luctou tenazmente
por salvar a vida de seu irmão, o kalifa mostrou-se inflexivel.
A cabeça de Abdallah cahiu aos pés do algoz na propria camara do
principe no palacio Merwan. Al-barr, suicidando-se na masmorra
em que o tinham lançado, evitou assim o supplicio.

O dia immediato á noite em que se passou a scena entre Abdu-r-rahman
e Al-gafir, que tentamos descrever, foi um dia de sangue para
Cordova, e de lucto para muitas das mais illustres famílias.

[1] Os árabes designavam os reis de Oviedo e Leão pelo
titulo de reis de Galliza.



IV


Era pelo fim da tarde. N'uma alcova do palacio de Azzahrat via-se
reclinado um velho sobre as almofadas persas de um vasto almatrah,
ou camilha. Os seus ricos trajos, orlados de pelles alvissimas,
faziam sobre-saír as feições enrugadas, a pallidez do rosto, o
encovado dos olhos, que lhe davam ao gesto todas as características
do de um cadaver. Pela immobilidade dir-se-hia que era uma destas
mumias que se encontram pelas catacumbas do Egypto, apertadas
entre as cem voltas das suas faixas mortuarias, e inteiriçadas
dentro dos sarcophagos de pedra. Um unico signal revelava a vida
néssa grande ruina de um homem grande; era o movimento da barba
longa e ponteaguda que se lhe estendia como um cone de neve tombado
sobre o peitilho da tunica de precioso tiraz. Abdu-r-rahman, o
illustre kalifa dos mussulmanos do occidente, jazia ahi e falava
com outro velho, que, em pé defronte delle, o escutava attentamente;
mas a sua voz saia tão fraca e lenta, que, apesar do silencio
que reinava no aposento, só na curta distancia a que estava o
outro velho se poderiam perceber as palavras do kalifa.

O seu interlocutor é uma personagem que o leitor conhecerá apenas
reparar no modo por que está trajado. A sua vestidura é uma aljarabia
de burel cingida de uma corda de esparto. Ha muitos annos que
nisto cifrou todos os commodos que acceita á civilisação. Está
descalço, e a grenha hirsuta e já grisalha cahe-lhe sobre os
hombros em madeixas revoltas e emmaranhadas. A sua tez não é
pallida, os seus olhos não perderam o brilho, como a tez e como
os olhos de Abdu-r-rahman. Naquella, coriacea e crestada, domina
a côr mixta de verdenegro e amarello do ventre de um crocodilo;
nestes, cada vez que os volve, fulgura a centelha de paixões
ardentes, que lhe sussurram dentro d'alma como a lava prestes a
jorrar do volcão que ainda parece dormir. É Al-muulin, o sancto
fakih, que vimos salvar, onze annos antes, o kalifa e o imperio
da intentada revolução de Abdallah.

Tinham de feito passado onze annos desde os terriveis successos
acontecidos naquella noite em que Al-muulin descobríra a conspiração
que se urdia, e desde então nunca mais se víra Abdu-r-rahman
sorrir. O sangue de tantos mussulmanos vertido pelo ferro do
algoz, e sobretudo o sangue de seu proprio filho descêra como
a maldicção do propheta sobre a cabeça do principe dos crentes.
Entregue a melancholia profunda, nem as novas de victorias, nem
a certeza do estado florescente imperio o podiam distrahir della
senão momentaneamente. Encerrado durante os ultimos tempos da
vida no palacio de Azzahrat, a maravilha d'Hespanha, abandonára
os cuidados do governo ao seu successor Al-hakem. Os gracejos da
escrava Nuirat-eddia, a conversação instructiva da bella Ayecha,
e as poesias de Mozna e de Sofyia eram o unico allivio que adoçava
a existencia aborrida do velho leão do islamismo. Mas apenas
Al-gafir o triste se apresentava perante o kalifa, elle fazia
retirar todos, e ficava encerrado horas e horas com este homem,
tão temido quanto venerado do povo pela austeridade das suas
doutrinas, prégadas com a palavra, mas ainda mais com o exemplo.
Abdu-r-rahman parecia inteiramente dominado pelo rude fakih, e,
ao vê-lo, qualquer poderia ler no gesto do velho principe os
sentimentos oppostos do terror e do affecto, como se metade da
sua alma o arrastasse irresistivelmente para aquelle homem, e a
outra metade o repellisse com repugnancia invencivel. O mysterio
que havia entre ambos ninguem o podia entender.

E todavia a explicação era bem simples: estava no caracter
extremamente religioso do kalifa, na sua velhice e no seu passado
de principe absoluto, situação em que são faceis grandes virtudes
e grandes crimes. Habituado á lisonja, a linguagem aspera e
altivamente sincera de Al-muulin tivera a principio o attractivo de
ser para elle inaudita; depois a reputação de virtude de Al-gafir,
a crença de que era um propheta, a maneira por que, para o salvar
e ao imperio, arrostára com a sua colera, e provára desprezar
completamente a vida, tudo isto fizera com que Abdu-r-rahman
visse nelle, como o mais credulo dos seus subditos, um bomem
predestinado, um verdadeiro sancto. Sentindo avizinhar a morte,
Abdu-r-rahman tinha sempre diante dos olhos que esse fakih era
como o anjo que devia conduzi-lo pelos caminhos da salvação até o
throno de Deus. Cifrava-se nelle a esperança de um futuro incerto,
que não podia tardar, e assim o espirito do monarcha, enfraquecido
pelos annos, estudava anciosamente a minima palavra, o menor gesto
de Al-muulin; prendia-se ao monge mussulmano como a hera antiga ao
carvalho, em cujo tronco se alimenta, se ampara, e vae trepando
para o ceu. Mas, ás vezes, Al-gafir repugnava-lhe. No meio das
expansões mais sinceras, dos mais ardentes vôos de uma piedade
profunda, de uma confiança inteira na misericordia divina, o Fakih
fitava de repente nelle os olhos scintilantes, e com sorriso
diabolico vibrava uma phrase ironica, insolente e desanimadora,
que ía gelar no coração do kalifa as consolações da piedade, e
despertar remorsos e terrores, ou completa desesperação. Era um
jogo terrivel em que se deleitava Al-muulin, como o tigre com o
palpitar dos membros da rez que se lhe agita moribunda entre as
garras sanguentas. Nessa lucta infernal em que lhe trazia a alma
estava o segredo da attracçâo e repugnancia, que ao mesmo tempo o
velho monarcha mostrava para com o fakih, cujo apparecimento em
Azzahrat cada vez se tornava mais frequente, e agora se renovava
todos os dias.

A noite descia triste: as nuvens corriam rapidamente do lado do
oeste, e deixavam de quando em quando passar um raio afogueado
do sol que se punha. O vento tepido, humido e violento fazia
ramalhar as arvores dos jardins que circumdavam os aposentos de
Abdu-r-rahman. As folhas, retinctas já de um verde amarellado
e mortal, desprendiam-se das tranças das romeiras, dos sarmentos
das videiras e dos ramos dos choupos em que estas se enredavam,
e, remoinhando nas correntes da ventania, íam, íam, até rastejar
pelo chão e empeçar na grama sêcca dos prados. O kalifa, exhausto,
sentia aquelle ciclo da vegetação moribunda chama-lo tambem para
a terra, e a melancholia da morte pesava-lhe sobre o espirito.
Al-muulin durante a conversação daquella tarde havia-se mostrado,
contra o seu costume, severamente grave, e nas suas palavras
havia o que quer que era accorde com a tristeza que o rodeava.

"Conheço que se aproxima a hora fatal:--dizia o kalifa.--Nestas
veias em breve se gelará o sangue; mas, sancto fakih, não me será
licito confiar na misericordia de Deus? Derramei o bem entre
os mussulmanos, o mal entre os infiéis: fiz emmudecer o livro
de Jesus perante o de Mohammed; e deixo a meu filho um throno
firmado no amor dos subditos e na veneração e temor dos inimigos
da dynastia dos Beni-Umeyyas. Fiz quanto a um homem era dado fazer
pela gloria do Islam. Que mais pretendes?--Porque não tens nos
labios para o pobre moribundo senão palavras de terror?--Porque ha
tantos annos me fazes beber gole a gole a taça da desesperação?"

Os olhos do fakih, ao ouvir estas perguntas, brilharam com desusado
fulgor, e um daquelles sorrisos diabolicos, com que costumava
fazer gelar todas as ardentes idéas mysticas do principe, lhe
assomou ao rosto enrugado e carrancudo. Contemplou por um momento
o do velho monarcha, onde de feito já vagueavam as sombras da
morte: depois dirigiu-se á porta da camara, assegurou-se bem
de que não era possivel abrirem-na exteriormente, e voltando
para ao pé do almatrah, tirou do peitilho um rôlo de pergaminho,
e começou a ler em tom de indizivel escarneo:

"Resposta de Al-gafir o triste ás ultimas perguntas do poderoso
Abdu-r-rahman, oitavo kalifa de Cordova, o sempre vencedor,
justiceiro e bemaventurado entre todos os principes da raça dos
Beni-Umeyyas. Capitulo avulso da sua historia."

Um rir prolongado seguiu a leitura do titulo do manuscripto.
Al-muulin continuou:

"No tempo deste celebre, virtuoso, illustrado e justiceiro monarcha
havia no seu diwan um wasir, homem sincero, zeloso da lei do
propheta, e que não sabia torcer por humanos respeitos a voz
da sua consciencia. Chamava-se Mohammed-Ibn-Ishak, e era irmão
de Umeyya-Ibn-Ishak, kaid de Chantaryn, um dos guerreiros mais
illustres do Islam, segundo diziam."

"Ora esse wasir cahiu no desagrado do Abdu-r-rahman, porque lhe
falava verdade, e rebatia as adulações dos seus lisongeiros.
Como o kalifa era generoso, o desagrado para com Mohammed
converteu-se em odio; e como era justo, o odio breve se traduziu
n'uma sentença de morte. A cabeça do ministro cahiu no cadafalso,
e a sua memoria passou á posteridade manchada pela calumnia.
Todavia o principe dos fiéis sabia bem que tinha assassinado um
innocente."

As feições transtornadas de Abdu-r-rahman tomaram uma expressão
horrivel de angustia: quiz falar, mas apenas pôde fazer um signal
como que pedindo ao fakih que se calasse. Este proseguiu:

"Parece-me que o ouvir a leitura dos annaes do teu illustre reinado
te allivia e revoca á vida. Continuarei. Podesse eu prolongar
assim os teus dias, clementissimo kalifa!"

"Umeyya, quando soube da morte ignominiosa de seu querido irmão,
ficou como insensato. Á saudade ajunctava-se o horror do ferrete
posto sobre o nome, sempre immaculado, da sua familia. Dirigiu
as supplicas mais vehementes ao príncipe dos fiéis para que ao
menos rehabilitasse a memoria da pobre victima; mas soube-se
que ao ler a sua carta o virtuoso principe desatara a rir...!
Era, conforme lhe relatou o mensageiro, deste modo que elle ria."

E Al-muulin aproximou-se de Abdu-r-rahman, e soltou uma gargalhada.
O moribundo arrancou um gemido.

"Estás um pouco melhor ... não é verdade, invencivel kalifa?
Prosigamos. Umeyya quando tal soube, calou-se. O mesmo mensageiro
que chegara de Korthoba partiu para Oviedo. O rei cristão de
Al-djuf não se riu da sua mensagem. Dahi o pouco Radmiro tinha
passado o Douro, e as fortalezas e cidades mussulmanas até o
Tejo haviam aberto as portas ao rei franco, por ordem do kaid
de Chantaryn. Com um numeroso esquadrão de amigos leaes este
ajudou a devastar o territorio mussulmano do Gharb até Merida.
Foi uma esplendida festa; um sacrifício digno da memoria de seu
irmão. Seguiram-se muitas batalhas, em que o sangue humano correu
em torrentes."

"Pouco a pouco Umeyya começou a rellectir. Era Abdu-r-rahman quem
o offendêra. Para que tanto sangue vertido? A sua vingança fôra
a de uma besta-féra; fôra estúpida e van. Ao kalifa, quasi sempre
victorioso, que importavam os que por elle pereciam? O kaid de
Chantaryn mudou então de systema. A guerra publica e inutil
converteu-a em perseguição occulta e efficaz: á forca oppoz a
destreza. Fingiu abandonar os seus alliados e sumiu-se nas trevas.
Esqueceram-se delle. Quando tornou a apparecer á luz do dia ninguém
o conheceu. Era outro. Vestia um burel grosseiro; cingia uma corda
de esparto; os cabellos cahiam-lhe desordenados sobre os hombros
e velavam-lhe metade do rosto: as faces tinha-lh'as tisnado o
sol dos desertos. Corrêra o Andaluz e o Moghreb; espalhara por
toda a parte os thesouros da sua família e os próprios thesouros
até o ultimo dirhem, e em toda a parte deixara agentes e amigos
fiéis. Depois veio viver nos cemiterios de Korthoba, juncto dos
porticos soberbos do seu inimigo mortal; espiar todos os momentos
em que podesse offerecer-lhe a amargura, as angustias em troca
do sangue de Mohammed-Ibn-Isbak. O guerreiro chamou-se desde
esse tempo Al-gafir, e o povo denominava-o Al-muulin, o sancto
fakih..."

Como sacudido por uma corrente electrica, Abdu-r-rahman dera
um pulo no almatrah ao ouvir estas ultimas palavras, e ficára
sentado, hirto e com as mãos estendidas. Queria bradar, mas o
sangue escumou-lhe nos labios, e só pôde murmurar já quasi
inintelligivelmente:

"Maldicto!"

"Boa cousa é a historia,--proseguiu o seu algoz sem mudar de
postura--quando nos recordâmos do nosso passado, e não achâmos lá
para colher um único espinho de remorso! É o teu caso, virtuoso
principe! Mas sigamos ávante. O sancto fakih Al-muulin foi quem
instigou Al-barr a conspirar contra Abdu-r-rahman; quem perdeu
Abdallah; quem delatou a conspiração; quem se apoderou do teu
animo credulo; quem te puniu com os terrores de tantos annos;
quem te acompanha no trance derradeiro, para te lembrar juncto ás
portas do inferno que se foste o assassino de seu irmão, tambem
o foste do proprio filho; para te dizer que se cobriste o seu
nome de ignominia, tambem ao teu se ajunctará o de tyranno. Ouve
pela ultima vez o rir que responde ao teu riso de ha dez annos.
Ouve, ouve, kalifa!"

Al-gafir, ou antes Umeyya, levantára gradualmente a voz, e estendia
os punhos cerrados para Abdu-r-rahman, cravando nelle os olhos
reluzentes e desvairados. O velho monarcha tinha os seus abertos,
e parecia tambem olhar para elle, mas perfeitamente tranquillo.
A quem houvesse presenciado aquella tremenda scena não seria
facil dizer qual dos dous tinha mais horrendo gesto.

Era um cadaver o que estava diante de Umeyya: o que estava diante
do cadaver era a expressão mais energica da atrocidade de coração
vingativo.

"Oh, se não ouviria as minhas derradeiras palavras!..."--murmurou
o fakih depois de ter conhecido que o kalifa estava morto. Poz-se
depois a scismar largo espaço: as lagrymas rolavam-lhe a quatro
e quatro pelas faces rugosas.--"Um anno mais de tormentos, e
ficava satisfeito!--exclamou por fim.--Podéra eu dilatar-lhe a
vida!"

Dirigiu-se então para a porta, abriu-a de par em par e bateu as
palmas. Os eunuchos, as mulheres, e o proprio Al-hakem, inquieto
pelo estado de seu pae, precipitaram-se no aposento. Al-muulin
parou no limiar da porta, voltou-se para traz, e com voz lenta
e grave disse:

"Orae ao propheta pelo repouso do kalifa."

Houve quem o visse saír, quem á luz baça do crepusculo o visse
tomar para o lado de Cordova com passos vagarosos, apesar das
lufadas violentas do oeste, que annunciavam uma noite procellosa.
Mas nem em Cordova, nem em Azzahrat, ninguém mais o viu desde
aquelle dia.



ARRHAS POR FORO D'HESPANHA (1371-2)



A Arraya-Miuda


O sino das ave-marias, ou da oração, tinha dado na torre da sé
a ultima badalada, e pelas frestas e portas dessa multidão de
casas, que apinhadas á roda do castello, e como enfeixadas e
comprimidas pela apertada cincta das muralhas primitivas de Lisboa,
pareciam mal caberem nellas, viam-se fulgurar aqui e acolá as
luzes interiores, emquanto as ruas, tortuosas e immundas, jaziam
como baralhadas e confusas sob o manto das trevas. Era chegada a
hora dos terrores; porque durante a noite, naquelles bons tempos,
a estreita senda de bosque deserto não era mais triste, temerosa
e arriscada que a propria rua-nova, a mais opulenta e formosa da
capital. O que, porém, havia ahi desacostumado e estranho era o
completo silencio e a escuridão profunda em que jazia sepultado o
paço d'apar S. Martinho, onde então residia elrei D. Fernando, ao
mesmo tempo que pelos becos e encruzilhadas soava um tropear de
passadas, um sussurro de vozes vagas, que indicavam terem sido
agitadas as ondas populares pelo vento de Deus, e que ainda esse
mar revolto não tinha inteiramente cahido na calma e somnolencia
que vem após a procella.

E assim era, com effeito, como o leitor poderá averiguar por
seus proprios olhos e ouvidos, se, manso, manso e disfarçado,
quizer entrar comnosco na mui affamada e antiga taberna do velho
Folco Taca, que nos fica bem perto, logo ao sair da sé, na rua
que sobe para os paços da alcaçova, sete ou oito portas acima
dos paços do concelho.

A taberna de micer Folco Taca, genovez, que viera a Portugal
ainda impubere, como pagem d'armas do famoso almirante Lançarote
Peçanha, e que havia annos abandonára o serviço maritimo para se
dar á mercancia, era a mais celebre entre todas as de Lisboa,
não só pelo luxo do seu adereço, e bondade dos liquidos encerrados
nas cubas monumentaes que a pejavam, mas tambem porque em um
aposento mais retirado e interior uma vasta banca de pinho e
muitos assentos rasos, ou escabellos, offereciam todo o commodo
aos tavolageiros de profissão, para perderem ou ganharem ahi,
em noites de jogo infrene, os bellos alfonsins e maravedis de
ouro, ou as estimadas dobras de D. Pedro I, que, ao contrario
dos seus antecessores e successores, julgára ser mais rico e
poderoso fazendo cunhar moeda de bom toque e peso, do que
roubando-lhe o valor intrinseco, e augmentando-lhe o nominal,
segundo o costume de todos os reis no começo de seu reinar.

Micer Folco soubera estender grossas nevoas sobre os olhos do
corregedor da côrte e de todos os saiões, algozes e mais familia
da nobre raça dos alguazis sobre a illegalidade de semelhante
estabelecimento industrial. O elixir que elle empregára para
produzir essa maravilhosa cegueira não sabemos nós qual fosse;
mas é certo que não se perdeu com a alchimia, porque se vê que
elle existe em mãos abençoadas, produzindo ainda hoje repetidos
milagres em tudo analogos a este.

Era, pois, na taberna-tavolagem da porta do ferro, conhecida
vulgarmente por tal nome em consequencia da vizinhança desta porta
da antiga cêrca, onde os ruídos vagos e incertos, que sussurravam
pelas ruas da cidade, soavam mais alta e distinctamente, como
em sorvedouro marinho as ondas, remoinhando e precipitando-se,
estrepitam no centro da voragem com mais soturno e retumbante
fragor. A vasta quadra da taberna estava apinhada de gente, que
trasbordava até o breve terreirinho da sé, falando todos a um
tempo, accesos, ao que parecia, em violentas disputas, que ás
vezem eram interrompidas pelo mais alto brado das pragas e
blasphemias, indicio evidente de que o successo que motivava
aquella assuada ou tumulto era negocio que excitava vivamente
a colera popular.

Já no fim do seculo decimo-quarto era o povo, assim como boje,
colerico. Então coleras da puericia; hoje aborrimentos de velhice.

Se na rua o borborinho era tempestuoso e confuso, dentro da casa
de micer Folco a bulha podia chamar-se infernal. Para um dos
lados, no meio de uma espessa mó de populares, ouviam-se palavras
ameaçadoras, sem que fosse possivel perceber contra qual ou quaes
individuos se accumulava tanta sanha. Para outra parte, d'entre o
vozear de uma cerrada pinha de mulheres, cuja vida de perdição se
revelava nos seus coromens de panno d'Arrás, nos cinctos escuros,
nas camisas e véus desadornados e lisos, rompiam risadas discordes
e esganiçadas, em que se sentia profundamente impresso o descaro
e insolencia daquellas desgraçadas. Em cima dos bofetes viam-se
picheis e taças vazias, e debaixo de alguns delles corpos estirados,
que simulariam cadaveres, se os assovios e roncos que ás vezes
sobresaíam através do ruído daquelle respeitavel congresso, não
provassem que esses honrados cidadãos, suavemente embalados pelos
vapores do vinho e do enthusiasmo, tinham adormecido na paz d'uma
boa consciencia. Emfim, a composta e illustre taberna do antigo
companheiro de gloria de micer Lançarote estava visivelmente
prostituida e livelada com as mais immundas e vis baiúcas de
Lisboa. O gigante popular tinha ahi assentado a sua curia feroz, e
pela primeira vez o vicio e a corrupção tinham transposto aquelles
umbraes sem a sua mascara de modestia e gravidade. Sobre os farrapos
do povo não têem cabida os adornos de ouropel. É a unica differença
moral que ha entre elle e as classes superiores, que se crêem
melhores, porque no gymnasio da civilisação aprendem desde a
infancia as destrezas e os momos de compostura hypocrita.

O astro que parecia alumiar com sua luz, aquecer com seu calor
aquelle turbilhão de planetas; o centro moral, á roda do qual
giravam todos aquelles espiritos, era um homem que dava mostras
de ter bem quarenta annos, alto, magro, trigueiro, olhos encovados
e scintilantes, cabello negro e revolto, barba grisalha e espessa.
Encostado a um dos muitos bofetes que adornavam o amplo aposento,
e rodeado de uma vasta pinha de populares de ambos os sexos, que
o escutavam em respeitoso silencio, a sua voz grossa e sonora
sobresaía no ruído, e só se confundia com alguma jura blasphema
que se disparava do meio das outras pinhas de povo, ou com as
modulações das risadas, que vibravam naquelle ambiente denso e
abafado, de certo modo semelhantes a clarão affogueado que sulcasse
rapidamente as trevas humidas e profundas da crypta subterranea
de alguma igreja do sexto seculo.

De repente dous cavalleiros, cuja graduação se conhecia pelos
barretes de veludo preto adornados de pluma ao lado, pelas calças
de seda golpeadas, e pelos cinctos de pelle de gamo lavrados
de prata, entraram na taberna, e, rompendo por entre o povo,
que lhes alargava a passagem, chegaram ao pé do homem alto e
trigueiro. Traziam os capeirotes puxados para a cara, de modo
que nenhum dos circumstantes pôde conhecer quem eram. Bastantes
desejos passaram por muitos daquelles cerebros vinolentos de o
indagar; mas uma identica reflexão atou todas as mãos. Ao longo
da côxa esquerda dos embuçados via-se reluzir a espada, e no lado
direito, apertado no cincto, que a ponta erguida do capeirote
deixava apparecer, descortinava-se o punhal. O passaporte para
virem assim aforrados era digno de todo o respeito, e ainda que
entre a turba se achassem alguns homens d'armas, principalmente
bésteiros, quasi todos estavam desarmados. Tinha seus riscos,
portanto, o pôr-lhes o visto popular.

Os dous desconhecidos falaram em segredo por alguns minutos ao
homem alto e magro, que de quando em quando meneava a cabeça
fazendo um gesto de assentimento: depois romperam por entre a
turba, que os examinava com uma especie de receio misturado de
respeito, e foram assentar-se em dous dos escabellos enfileirados
ao correr da parede. Encostando os cotovelos em um bofete, com
as cabeças apertadas entre os punbos, ficaram imoveis e como
alheios ao sussurro que começava a alevantar-se de novo á roda
delles.

Este durou breves instantes; um psiuh do homem alto e magro fez
voltar todos os olhos para aquella banda. Subindo a um escabello,
elle deu signal com a mão de que pretendia falar.

"Ouvide! Ouvide!"--bradaram alguns que pareciam os maioraes daquella
multidão desordenada.

Todos os pescoços se alongaram a um tempo, e viram-se muitas
mãos callosas erguerem-se encurvadas, e formarem em volta das
orelhas de seus donos uma especie de annel acustico. O orador
principiou:

"Arraya-miuda[1]! tendes vós já elegido, entre vós outros, cidadãos
bem falantes e avisados para propôr vossos embargos e razoados
contra este maldicto e descommunal casamento d'el-rei com a mulher
de João Lourenço da Cunha?"

"Todos á uma entendemos que deveis ser vós, mestre Fernão Vasques:
--respondeu um velho, cuja calva polida reverberava os raios
d'uma das lampadas pendentes do tecto, e que parecia ser homem de
conta entre os populares.--Quem ha ahi entre a arraya-miuda mais
discreto e aposto para taes autos que vós? Quem com mais urgentes
razões proporia nosso aggravo e a deshonra e vilta d'elrei, do
que vós o fizestes hoje na mostra que démos ao paço esta tarde?"

"Alcacer, alcacer! por nosso capitão Fernão Vasques:--bradou unisona
a chusma.

"Fico-vos obrigado, mestre Bartholomeu Chambão!--replicou Fernão
Vasques, socegado o tumulto.--Pelo razoado de hoje terei em paga
a forca, se a adultera chega a ser rainha: pelo do ámanhan terei
as mãos decepadas em vida, se elrei com suas palavras mansas e
enganosas souber apaziguar o povo. E tendes vós por averiguado,
mestre Bartholomeu, que o carrasco sabe apertar melhor o nó da
corda na garganta, que eu o ponto em peitilho de saio, ou em
costura de redondel ou pelote, e que o cutelo do algoz entra mais
rijo no gasnate de um christão que a vossa enchó n'uma aduela
de pipa?"

"Nanja emquanto na minha aljava houver almazem, e a garrucha
da bésta, me não estourar:--exclamou um bésteiro de conto,
cambaleando e erguendo-se debaixo d'um bofete, para onde o haviam
derribado certas perturbações d'enthusiasmo politico.

"Amendico Vobis!--gritou um beguino, cujas faces vermelhas e
voz de Stentor brigavam com o habito de grosseiro burel e com
as desconformes camandulas que lhe pendiam da cincta.

"Olé, Fr. Roy Zambrana, fala linguagem christenga, se queres
vir nesse bordo por nossa esteira:--bradou um petintal d'Alfama,
que, segundo parecia, capitaneava um grande troço de pescadores,
barqueiros e galeotes daquelle bairro, então quasi exclusivamente
povoado de semelhante gente.

"Digo por linguagem"--acudiu o beguino--"que ninguém como mestre
Fernão Vasques é homem de cordura e sages para ámanhan falar a
elrei aguisadamente sobre o feito do casamento de Leonor Telles,
do mesmo modo que ninguem leva vantagem ao petintal Ayras Gil
em ousadia para fugir ás galés de Castella e doestar os bons
servos da igreja."

Era allusão pessoal. Uma risada ruidosa e longa correspondeu
á mordente desforra de Fr. Roy, que abaixou os olhos com certo
modo hypocritamente contrito, semelhante ao gato, que, depois de
dar a unhada, vem roçar-se mansamente pela mão que ensanguentou.

Fr. Roy era tambem, como Ayras Gil, um idolo popular, e a má
vontade que parecia haver entre o beguino e o petintal nascêra da
emulação; de uma duvida cruel sobre a altura relativa do throno
de encruzilhada, do throno de lama e farrapos, em que cada um
delles se assentava.

Se, pois, aquella multidão não estivesse persuadida da superioridade
intellectual do alfaiate Fernão Vasques, a opinião desses dous
oraculos lhe não teria deixado a menor duvida sobre isso. Todavia,
nas palavras de ambos havia um pensamento escondido; pensamento
de odio que nascêra n'um dia, e n'um dia lançára profundas raizes
nos corações de ambos. O marinheiro e o eremita tinham pensado ao
mesmo tempo que, lisongeando esse homem mimoso do vulgo, tirariam
juntamente dous resultados, o de ganharem mais credito entre
este, e de aplanarem a estrada da forca ao novo rei das turbas,
erguido, havia poucas horas, sobre os broqueis populares.

Mas que auto era este de que o povo falava? Sabe-lo-hemos remontando
um pouco mais alto.

O amor cego d'el-rei D. Fernando pela mulher de João Lourenço
da Cunha, D. Leonor Telles, havia muito que era o pasto saboroso
da maledicencia do povo, dos calculos dos politicos e dos enredos
dos fidalgos. Ligada por parentesco com muitos dos principaes
cavalleiros de Portugal, D. Leonor, ambiciosa, dissimulada e
corrompida, tinha empregado todas as artes do seu engenho prompto
e agudo em formar entre a nobreza uma parcialidade que lhe fosse
favoravel. Quanto a elrei, a paixão violenta em que este ardia
lhe assegurava a ella o completo dominio no seu coração. Mas
as miras daquella mulher, cuja alma era um abysmo de cubiça,
de desenfreamento, de altivez e de ousadia, batiam mais alto do
que na triste vangloria de vêr a seus pés um rei bom, generoso
e gentil. Através do amor de D. Fernando ella só enxergava o
refulgir da corôa, e o homem sumia-se nesse esplendor. O nome de
rainha misturava-se em seus sonhos; era o significado de todas
as suas palavras de ternura, o resumo de todas as suas caricias,
a idéa primitiva de todas as suas idéas. Leonor Telles não amava
elrei, como o provou o tempo; mas D. Fernando cria no amor della;
e este principe, que seria um dos melhores monarchas portuguezes,
e que a muitos respeitos o foi, deixou na historia, quasi sempre
superficial, um nome deshonrado, por ter escripto esse nome na
horrivel chronica da nossa Lucrecia Borgia. Uma difficuldade,
quasi insuperavel para outra que não fosse D. Leonor, se interpunha
entre ella e seus ambiciosos designios. Era casada! Um processo
de divorcio por parentesco, julgado por juizes affectos a D.
Leonor, ou que sabiam até onde chegava a sua vingança, a livrou
desse tropeço. Seu marido, João Lourenço da Cunha, atterrado,
fugiu para Castella, e D. Fernando, casado, segundo se dizia,
a occultas com ella, muito antes da epocha em que começa esta
narrativa, viu emfim satisfeito o seu amor insensato.

Aquelles d'entre os nobres, que ainda conservavam puras as tradições
severas dos antigos tempos, indignavam-se pelo opprobrio da corôa e
pelas consequencias que devia ter o repudio da infante de Castella,
cujo casamento com elrei, ajustado e jurado, este desfizera com
a leveza que se nota como defeito principal no caracter de D.
Fernando. Entre os que altamente desapprovavam taes amores, o
infante D. Diniz, o mais moço dos filhos de D. Ignez de Castro,
e o velho Diogo Lopes Pacheco[2] eram, segundo parece, os cabeças
da parcialidade contraria a D. Leonor; aquelle pela altivez de
seu animo; este por gratidão a D. Henrique de Castella, em quem
achára amparo e abrigo no tempo dos seus infortunios, e que o
salvára da triste sorte de Alvaro Gonçalves Coutinho e de Pedro
Coelho, seus companheiros no patriotico crime da morte de D.
Ignez.

O casamento d'elrei, ou verdadeiro ou falso, era ainda um rumor
vago, uma suspeita. Os nobres, porém, que o desapprovavam souberam
transmittir ao povo os proprios temores; e a agitacão dos animos
crescia á medida que os amores d'elrei se tornavam mais publicos.
D. Fernando tinha já revelado aos seus conselheiros a resolução
que tomára, e estes, posto que a principio lhe falassem com a
liberdade que então se usava nos paços dos reis, vendo suas
diligencias baldadas, contentaram-se de condemnar com o silencio
essa malaventurada resolução. O povo, porém, não se contentou
com isso.

Conforme as idéas desse tempo, além das considerações politicas,
semelhante consorcio era monstruso aos olhos do vulgo, por um motivo
de religião, o qual ainda de maior peso seria hoje, e sê-lo-ha em
todos os tempos em que a moral social fòr mais respeitada do que
o era naquella epocha. Tal consorcio constituia um verdadeiro
adulterio, e os filhos que delle procedessem mal poderiam ser
considerados como infantes de Portugal, e por consequencia como
fiadores da successão da corôa.

A irritação dos animos, assoprada pela nobreza, tínha chegado
ao seu auge, e a colera popular rebentára violenta na tarde que
precedeu a noite em que começa esta historia.

Tres mil homens se tinham dirigido tumultuariamente ás portas do
paço, dando apenas tempo a que as cerrassem. A vozeria e estrepito
que fazia aquella multidão desordenada assustou elrei, que por
um seu privado mandou perguntar o que lhes prazia e para que
estavam assim reunidos. Então o alfaiate Fernão Vasques, capitão
e procurador por elles, como lhe chama Fernão Lopes, affeiou
em termos violentos as intenções d'elrei, liberalisando a D.
Leonor os titulos de má mulher e feiticeira, e asseverando que o
povo nunca havia de consentir em seu casamento adultero. A arenga
rude e vehemente do alfaiate orador, acompanhada e victoriada de
gritas insolentes e ameaçadoras do tropel que o seguia, moveu
elrei a responder com agradecimentos ás injurias, e a affirmar
que nem D. Leonor era sua mulher, nem o seria nunca, promettendo
ir na manhan seguinte aclarar com elles este negocio no mosteiro
de S. Domingos, para onde os emprasava. Com taes promessas pouco
a pouco se aquietou o motim, e ao cahir da noite o terreiro d'apar
S. Martinho estava em completo silencio. Como se, na solidão,
elrei quizesse consultar comsigo o que havia de dizer ao seu bom
e fiel povo de Lisboa, as vidraças córadas das esguias janellas
dos paços reaes, que vertiam quasi todas as noites o ruido e o
esplendor dos saráus, cerradas nesta hora e caladas como sepulchro,
contrastavam com o reluzir dos fachos, com o estrepito das ruas,
com o rir das mulheres perdidas e dos homens embriagados, com
o perpassar contínuo dos magotes e pinhas de gente que se
encontravam, uniam, separavam, retrocediam, vacillavam, ficavam
immoveis, agglomeravam-se para se desfazer, desfaziam-se para
se agglomerar de novo, sem vontade e sem constrangimento, sem
motivo e sem objecto, vulto inerte, movido ao acaso, como as
vagas do mar, tempestuoso e irreflectido como ellas. Feroz na
sua colera razoada, ferocissimo no seu rir insensato, o vulgo
passava, rei de um dia. Esse ruído, essa vertigem que o agitava
era o seu baile, a sua festa de triumpho: e as estrellas de serena
noite de agosto, semelhantes a lampadas pendentes de abobada
profunda, alumiavam o saráu popular, as salas do seu folguedo,
a praça e a encruzilhada. Era a um tempo truanesco e terrivel.

Na taberna de micer Folco (onde deixámos as personagens principaes
desta historia, para inserir, talvez fóra de logar, o prologo ou
introducção a ella) as acclamaçôes freneticas dos populares tinham
tornado indubitavel que o propoedor para o ajunctamento do dia
seguinte devia ser o mui avisado e sages mestre Fernão Vasques. Fr.
Roy era de todos os circumstantes o que mais parecia ter a peito
esta escolha, e o petintal Ayras Gil ajudava-o poderosamente com
o ruido dos amplos pulmões dos galeotes d'Alfama, contrabidos
como em voga arrancada, victoriando o seu capitão. O alfaiate
não pôde resistir, nem porventura tinha vontade d'isso, a tanta
popularidade, e em pé sobre o escabello, com a cabeça levemente
inclinada para o peito, n'uma postura entre de resignação e de
bemaventurança, tremulava-lhe nos labios semi-abertos um sorriso
que revelava uma parte dos mysterios do seu coração. Emfim, quando
a grita começou a asserenar, Fernão Vasques ergueu a cabeça, e
com aspecto grave deu signal de que pretendia falar ainda.

Fez-se de novo silencio.

"Seja, pois, como quereis:--disse o alfaiate--mas vede o grão risco
a que me ponho por vós outros. Falarei eu a elrei com liberdade
portuguesa: proporei vosso aggravo e a deshonra e feio peccado
de sua real senhoria, mas é necessario que vós todos quantos
ahi sois estejaes de alcateia e ao romper d'alva no alpendre
de S. Domingos. Dizem que a adultera é mulher de grande coração
e ousados pensamentos; em Lisboa estão muitos cavalleiros seus
parentes e parciaes. Bésteiros deste concelho, que não vos esqueçam
em casa vossas béstas e aljavas! Pioada de Lisboa, levae vossas
ascumas! Os trons e engenhos do castello--accrescentou o alfaiate
em voz mais baixa e hesitando--não vos apoquentarão, ainda que
elrei o quizesse, porque o alcaidemór João Lourenço Bubal não
é dos affeiçoados a D. Leonor Telles. Sancta Maria e Sanctiago
sejam comvosco! Alcacer, alcacer pela arraya-miuda! A repousar,
amigos!"

--"Alcacer, alcacer!--respondeu a turbamulta.

"Morra a comborça!"--gritou Ayras Gil com voz de trovão.--"Morra
a comborça!"--repetiram os galeotes e as virtuosas matronas dos
coromens d'arrás e cinctos pretos, que assistiam áquelle conclave.

"Olha, Ayras, que S. Martinho fica perto, e contam que D. Leonor
tem ouvido subtil:"--disse Fr. Roy ao petintal com um sorriso
diabólico.

"Dor de levadigas te consumam, ichacorvos!"--replicou o
petintal.--"Quando eu quero que me ouçam é que falo alto. Alcacer
por sua senhoria o bom rei D. Fernando! Deus o livre de Castella
e de feitiços!"

O petintal emendava a mão como podia. E entre morras e alcaceres;
entre risadas e pragas; entre ameaças vans e insultos inuteis,
aquella vaga de povo contida na taberna de micer Folco, espraiou-se
pelas ruas, derivou pelas quelhas, vielas e becos, e embebeu-se
pelas casinhas e choupanas, que nessa epocha jaziam muitas vezes
deitadas juncto ás raízes dos palacios na velha e opulenta Lisboa.

Com os braços cruzados o alfaiate contemplava aquella multidão, que
diminuia rapidamente, e cujo sussurro alongando-se era comparavel
ao gemido do tufão, que passa de noite pelas sarças da campina.
Ainda elle tinha os olhos fitos no portal por onde saíra o vulto
indelineavel chamado povo, e já ninguem ahi estava, salvo os
dous cavalleiros, que se tinham conservado immoveis na mesma
postura que haviam tomado, e Fr. Roy, que se estirára sobre um
dos bofetes, e já roncava e assobiava como em somno profundo.

Os dous cavalleiros ergueram-se e descobriram os rostos: a um
ainda a barba de homem não pungia nas faces: o outro, na alvura
das melenas brancas, que trazia cahidas sobre os hombros á moda
de Castella, e no rosto sulcado de rugas, certificava ser já
bem larga a historia da sua peregrinação na terra.

O mancebo olhou para Fernão Vasques, que parecia absorto, e depois
para o velho com um gesto de impaciencia. Este olhou tambem para
elle, e sorriu-se. Depois o ancião chamou o alfaiate em voz baixa,
mas perceptivel.

Este, como se cahisse em terra da altura dos seus pensamentos,
estremeceu, e, saltando do escabello, onde ainda se conservava
em pé, encaminhou-se rapidamente para os dous cavalleiros:

"Senhor infante, que vossa mercê me perdôe e o senhor Diogo Lopes
Pacheco! Á fé que, no meio d'este arruído, quasi me esquecêra
de que ereis aqui. Estaes desenganados por vossos olhos de que
posso responder pelo povo, e de que ámanhan não faltarão em S.
Domingos?"

"Na verdade--respondeu o mancebo--que tu governas mais nelle
que meu irmão com ser rei! Veremos se ámanhan te obedecem como
te obedeceram hoje."

"És um notavel capitão:--accrescentou Diogo Lopes, rindo e batendo
no hombro do alfaiate.--Se fosses capaz de reger assim em hoste
uma bandeira de homens d'armas merecerias a alcaidaria de um
castello."

"Que só entregaria, no alto e no baixo, irado e pagado, de noite
ou de dia, áquelle que de mim tivesse preito e menagem."

"Bem dicto!--interrompeu o velho Pacheco, no mesmo tom em que
começára.--Se t'a negarem não será por errares as palavras do
preito. Tem a certeza, de que has-de ir longe, Fernão Vasques;
muito longe! Assim eu a tivera, de que não me será preciso cozer
á ponta de punhal a bôca de quem ousar dizer que o infante D.
Diniz e Diogo Lopes Pacheco cruzaram esta noite a porta da taberna
do gonovez Folco Taca."

Quando estas ultimas palavras, proferidas lentamente, saíram
dos labios do que as proferia, os roncos e assobios do beguino
que dormia foram mais rapidos e tremulos.

"Quem é aquelle ichacorvos?--proseguiu Diogo Lopes, apontando
para Fr. Roy com um gesto de desconfiança.

"É um dos nossos:--respondeu o alfaiate--um dos que mais têem
encarniçado a arraya-miuda contra a feiticeira adultera. Na assuada
desta tarde foi dos que mais gritaram defronte dos paços d'el-rei.
Por este respondo eu. Não tereis, senhor Diogo Lopes, de lhe
cozer a bôca á ponta de vosso punhal."

"Responde por ti, honrado capitão da arraya-miuda--replicou o
velho cortezão.--Quem me responde por elle é o seu dormir profundo:
quem me responderia por elle, se acordando nos visse aqui, seria
este ferro que trago na cincta. Agora o que importa. Em quanto
ámanhan elrei se demorar em S. Domingos, um troço d'arraya-miuda
e bésteiros ha-de commetter o paço, e ou do terreiro, ou rompendo
pelos aposentos interiores, é necessario que uma pedra perdida,
um tiro de bésta disparado por engano, uma ascuma brandida em
algum corredor escuro, nos assegure que elrei não póde deixar
de attender ás supplicas dos seus leaes vassallos e dos cidadãos
de Lisboa."

"Morta!--exclamou o infante com um gesto de horror.--Não, não,
Diogo Lopes; não ensanguenteis os paços de meu irmão, como ..."

"Como ensanguentei os paços de Sancta Clara:--atalhou
Pacheco--dizei-o francamente; porque nem remorsos me ficaram cá
dentro. Senhor infante, vós esquecestes-vos d'isso, porque eu
posso e valho com elrei de Castella! Senhor infante, a ambição
tem que saltar muitas vezes por cima dos vestigios de sangue!
Vós passastes ávante, e não vistes os do sangue de vossa mãe!
Porque hesitareis ao galgar os do sangue de Leonor Telles? Senhor
infante, quem sobe por sendas ingremes e por despenhadeiros tem
a certeza de precipitar-se no fojo, se covardemente recúa."

D. Diniz tinha-se tornado pallido como cera. Não respondeu nada;
mas dos olhos rebentaram-lhe duas lagrymas.

Fernão Vasques escutou a prelecção politica do velho matador
de D. Ignez de Castro com religiosa attenção. E resolveu tambem
lá comsigo não se deixar cahir no fojo.

"Far-se-ha como apontaes:--disse elle falando com Diogo Lopes--mas
se os homens d'armas e bésteiros de João Lourenço Buval descerem
do castello..."

"Não te disse, ainda ha pouco, que João Lourenço ficaria quedo no
meio da revolta?--Podes estar socegado, que não te certifiquei
d'isso só para animares o povo. É a realidade. Agora tracta de
dispôr as cousas para que não seja um dia inutil o dia d'ámanhan."

Pegando então na mão do infante, o feroz Pacheco saíu da taberna,
e tomou com elle o caminho da Alcaçova. Fernão Vasques ficou
um pouco scismando: depois saíu, dirigindo-se para a porta do
ferro, e repetindo em voz baixa:--"Não me precipitarei no fojo!"

Passados alguns instantes de silencio Fr. Roy alevantou devagarinho
a cabeça, assentou-se no bofete e poz-se a escutar: depois saltou
para o chão, apagou a lampada que ardia no meio da casa, abandonada
por Folco Taca logo que o povo tumultuariamente a innundára,
chegou á porta, escutou de novo alguns momentos, manso e manso
encaminhou-se para a torre da sé da banda do norte, e como um
fantasma, desappareceu cozido com a negra e alta muralha da
cathedral.

[1] Fernão Lopes dá a entender (Chr. de D. João I. P.
1.ª c.44) que a denominação de arraya-miuda se começára a dar aos
populares no principio da revolta a favor do Mestre d'Aviz, para
os distinguir dos nobres, pela maior parte fautores de D. Leonor
e dos castelhanos; mas este titulo chocarreiro o havia tomado
para si o povo miudo já d'antes e com muita seriedade. Em um
documento de 1305 (Chancell. de D. Diniz L. 3º das Doações fol.
42 v.) se diz que outorgavam certas cousas os cavalleiros, juizes
e concelho de Bragança e toda a arraya-miuda.

[2] Fernão Lopes affirma que Pacheco não tornára ao
reino desde que fugíra por escapar á vingança de D. Pedro I por
causa da morte de D. Ignez, senão no anno de 72, em que viera
por embaixador d'elrei D. Henrique. Isto parece inexacto; Fr.
Manuel dos Santos affirma o contrario fundado na restituição
de todos os seus bens e titulos feita por D. Fernando no começo
do seu reinado. Não é isto que prova a assistencia de Pacheco
em Portugal no anno de 1371, não só porque depois de vir podia
voltar para Castella, mas tambem essa restituição podia ser feita
estando e conservando-se elle ausente, visto que a fruição d'um
titulo, ou de terras da corôa, por simples mercê, não obrigando
a serviço pessoal, ao menos até o tempo de D. João I, não tornava
necessaria a presença do donatario no reino. O que prova a verdade
da opinião de Santos é a doação feita a Diogo Lopes em 1371
(Chancell. D. Fern. f.84) da terra de Trancoso para pagamento
de sua quantia, o que supõe serviço pessoal; porque era pelas
quantias que os fidalgos estavam obrigados a faze-lo.



O Beguino.


Quem hoje passa pela cadeia da cidade de Lisboa, edificio immundo,
miseravel, insalubre, que por si só bastára a servir de castigo
a grandes crimes[1], ainda vê na extermidade delle umas ruinas,
uns entulhos amontoados, que separa da rua uma parede de pouca
altura, onde se abre uma janella gothica. Esta parede e esta
janella são tudo o que resta dos antigos paços d'apar S. Martinho,
igreja que tambem já desappareceu, sem deixar sequer por memoria
um panno de muro, uma fresta, de outro tempo. O Limoeiro é um dos
monumentos de Lisboa sobre que revoam mais tradições de remotas
eras. Nenhuns paços dos nossos reis da primeira e segunda dynastia
foram mais vezes habitados por elles. Conhecidos successivamente
pelos nomes de paços d'elrei, paços dos infantes, paços da moeda,
paços do limoeiro, a sua historia vae sumir-se nas trevas dos
tempos. Sâo da era mourisca? Fundaram-nos os primeiros reis
portugueses? Ignoramo-lo. E que muito, se a origem de Sancta
Maria Maior, da veneranda cathedral de Lisboa, é um mysterio! Se,
transfigurada pelos terremotos, pelos incendios e pelos conegos,
nem no seu archivo queimado, nem nas suas rugas caiadas e douradas
póde achar a certidão do seu nascimento e dos annos da sua vida!
Como as da igreja, as ruinas da monarchia dormem em silencio á
roda de nós, e, involto nos seus eternos farrapos, o povo vive
eterno em cima ou ao lado dellas, e nem sequer indaga porque
jazem ahi!

Na memoravel noite em que se passaram os successos narrados no
capítulo antecedente, essa janella dos paços d'elrei era a unica
aberta em todo o vasto edificio, mas calada e escura como todas
as outras. Só, de quando em quando, quem para lá olhasse attento
do meio do terreiro enxergaria o que quer que era alvacento, que
ora se chegava á janella, ora se retrahia. Mas o silencio que
reinava naquelles sitios não era interrompido pelo menor ruído.
De repente um vulto chegou debaixo da janella e bateu de vagarinho
as palmas: a figura alvacenta chegou á janella, debruçou-se,
disse algumas palavras em voz baixa, retirou-se, tornou a voltar
e pendurou uma escada de corda que segurou por dentro. O vulto
que chegára subiu rapidamente, e ambos desappareceram através
dos corredores e aposentos do paço.

Em um destes ultimos, alumiado por tochas seguras por longos
braços de ferro chumbados nas paredes, passeava um homem de meia
idade e gentil. Os seus passos eram rapidos e incertos, e o seu
aspecto carregado. De quando em quando parava e escutava a uma
porta, cujo reposteiro se meneava levemente; depois continuava a
passear, parando ás vezes com os braços cruzados e como entregue
a cogitações dolorosas.

Por fim o reposteiro ondeou d'alto a baixo e franziu-se no meio:
mão alva de mulher o segurava. Esta entrou, após ella um homem
alto e robusto, vestido de burel e cingido de cincto de esparto,
d'onde pendiam umas grossas camandulas. A dama atravessou
vagarosamente a sala e foi sentar-se em um estrado de altura
de palmo, que corria ao longo d'uma das paredes do aposento.
O homem que passeava assentou-se também no unico escabello que
alli havia. Fr. Roy, que o leitor já terá conhecido, ficou ao
pé da porta por onde entrara, com a cabeça baixa e em postura
abeatada.

"Aproxima-te, beguino!"--disse com voz trémula elrei; porque era
elrei D. Fernando o homem que se assentára.

Fr. Roy deu uns poucos de passos para diante.

"Que ha de novo?"--perguntou elrei.

"O povo cada vez está mais alvorotado, e jura falar rijamente
ámanhan a vossa senhoria. Mas essa não é a peior nova que eu
trago!"

"Fala, fala, beguino!--acudiu elrei, estendendo a mão convulsa
para o ichacorvos.

"É que ámanhan, em quanto vossa senhoria estiver em S. Domingos,
o paço será accommettido. Pretendem matar..."

"Mentes, beguino!--gritou a dama, erguendo-se do estrado de um
salto, semelhante a tigre descoberto pelos caçadores nos matagaes
da Ásia.--Mentes! Podem não me querer minha: mas assassinar-me!
Isso é impossivel. Amo muito o povo de Lisboa; tenho-lhe feito as
mercês que posso, para que elle haja de me odiar assim de morte.
Os fidalgos podem persuadi-lo a oppôr-se ao nosso casamento; mas
nunca a pôr mãos violentas na pobre Leonor Telles."

"Prouvera a Deus que eu mentisse hoje! Seria a primeira vez na
minha vida:--replicou o ichacorvos com ar contrito.--Mas ouvi
com meus ouvidos a ordem para o feito e a promessa da execução,
haverá tres credos, na taberna de Folco Taca."

"Miseraveis!--bradou erguendo-se tambem elrei, a quem o risco
da sua amante restituira por um momento a energia.--Miseraveis!
Querem sobre a cerviz o jugo de ferro de meu pae? Te-lo-hão.
Quem ousa ordenar tal cousa?"

"Diogo Lopes Pacheco, do vosso conselho, o disse ao alfaiate
Fernão Vasques, o coudel dos revoltosos, e vosso irmão D. Diniz
estava tambem com elles:"--respondeu Fr. Roy.

O beguino era o espia mais sincero e imperturbavel de todo o mundo.

"Velho assassino!--exclamou D. Fernando--cubriste de luto eterno
o coração do pae! Queres cubrir o do filho. E tu, Diniz, que eu
amei tanto, tambem entre os meus inimigos! Leonor, que faremos
para te salvar?! Aconselha-me tu, que eu quasi que enlouqueci!"

O pobre e irresoluto monarcha cobriu o rosto com as mãos, arquejando
violentamente. D. Leonor, cujos olhos centelhantes, cujos labios
esbranquiçados revelavam mais odio que terror, lançou-lhe um
olhar de desprezo, e em tom de mofa respondeu:

"Sim, senhor rei, na falta de vossos leaes conselheiros posso eu,
triste mulher, dar-vos um bom conselho. Acordae vossos pagens,
que vão pregar um poste à porta destes paços, e mandae-me amarrar
a elle para que o vosso bom povo de Lisboa possa despedaçar-me
tranquillamente ámanhan sem profanar os vossos aposentos reaes.
Será mais uma grande mercê que lhe fareis em recompensa do seu
amor á vossa pessoa, da sua obediencia aos vossos mandados."

"Leonor, Leonor, não me fales assim, que me matas!--gritou D.
Fernando, deitando-se aos pés de D. Leonor e abraçando-a pelos
joelhos, com um chôro convulso.--Que te fiz eu para me tractares
tão cruelmente?"

"D. Fernando, lembra-te bem do que te vou dizer! O povo ou se
rege com a espada do cavalleiro, ou elle vem collocar a ascuma
do peão sobre o throno real. Quem não sabe brandir o ferro, cede;
deixa-o reinar."

"Tens razão, Leonor!--disse D. Fernando, enxugando as lagrymas
e alçando a fronte nobre e formosa, onde se pintava a indignação.
--Serei filho de D. Pedro o cruel; serei successor de meu pae.
Eu mesmo vou ao alcaçar examinar os engenhos mais valentes que
cubram o terreiro de S. Martinho de pedras, de virotões e de
cadaveres: os montantes e as béstas dos homens d'armas e bésteiros
do meu alcaide-mór de Lisboa farão o resto. João Lourenço Bubal
será fiel a seu rei. Se necessario fôr com minhas proprias mãos
ajudarei a pôr fogo á cidade, para que nem um revoltoso escape.
Adeus, Leonor: conta que serás vingada."

D. Fernando voltou-se rapido para a porta do aposento. Fr. Roy
estava immovel diante delle.

"João Lourenço Bubal--disse o espia sem se alterar--é dos revoltosos.
Ouvi-o da bôca do proprio Diogo Lopes, que o certificou a Fernão
Vasques. Os trons do alcacer estão desapparelhados; e a maior parte
dos homens d'armas e bésteiros do alcaide-mór eram na taberna de
Folco Taca os mais furiosos contra a que elles chamam...."

"Cal-te, beguino!"--gritou elrei, empurrando-o com força e procurando
tapar-lhe a bôca.

O ichacorvos parou onde o impulso recebido o deixou parar, e
ficou outra vez immovel diante de D. Fernando, a quem este ultimo
golpe lançava de novo na sua habitual perplexidade.

"... A adultera:--proseguiu Fr. Roy acabando a phrase, porque
ainda a devia, e era escrupuloso e pontual do desempenho do seu
ministerio.

"Beguino!--atalhou D. Leonor com voz trémula de raiva--melhor
fôra que nunca essa palavra te houvesse passado pela bôca; porque
talvez um dia ella seja fatal para os que a tiverem proferido."

"Mas que faremos!?--murmurou elrei com gesto d'indizivel agonia.

"Havia ainda ha pouco tres expedientes,--respondeu D. Leonor,
recobrando apparente serenidade--combater, ceder, fugir. O primeiro
é já impossível; o segundo!... Porque não o acceitas, Fernando?
Prestes estou para tudo. Não me verás mais, ainda que, longe de
ti, por certo estalarei de dor. Cede á força: os teus vassallos
o querem; que-lo o teu povo. Esquece-te para sempre de mim!"

"Esquecer-me de ti? Não te vêr mais? Nunca! Obedecer á força?
Quem ha ahi que ouse dizer ao rei de Portugal:--rei de Portugal,
obedece á força?--Os peões de Lisboa?! Porque sou manso na paz,
não crêem que a minha espada no campo de batalha córte arnezes
como a do melhor cavalleiro? Bons escudeiros e homens d'armas da
minha hoste, por onde andaes derramados? Dormis por vossas honras
e solares? O povo vos acordará como me acordou a mim; bramirá como
os lobos da serra ao redor de vossas moradas; saltear-vos-ha no
meio de vossos banquetes, por entre o ruído de vossos folgares.
No ardor de vossos amores dir-vos-ha:--desamae!--Elle ousa já
dize-lo a seu rei e senhor... Oh desgraçado de mim, desgraçado
de mim!"

"Não queres, pois, deixar-me entregue á minha estrella?--disse
D. Leonor, com voz entre de chôro e de ternura, abraçando pelo
pescoço o pobre monarcha, e chegando a sua fronte suave e pallida
ás faces afogueadas de D. Fernando, que n'uma especie de delirio
olhava espantado para ella.

"Não, não! Viver comtigo, ou morrer comtigo. Cahirei do throno,
ou tu subirás a elle."

Um sorriso quasi imperceptivel se espraiou pelo rosto de Leonor
Telles, que, recuando e tomando uma postura resoluta e ao mesmo
tempo de resignação, proseguiu com voz lenta mas firme:

"Então resta o fugir."

"Fugir!"--exclamou elrei. E esta palavra só era mais expressiva
que narração bem extensa dos atrozes martyrios que o malaventurado
curtia no coração irresoluto mas generoso, com a idéa de um feito
vil e covarde em qualquer escudeiro, vilissimo e torpissimo n'um
rei de Portugal, em um neto de Affonso IV.

Elrei olhou para ella um momento. Era sereno o seu rosto angelico,
semelhante ao de uma dessas virgens que se encontram nas illuminuras
de antigos codices, o segredo de cujos toques, perdido no fim do
seculo quinze, a arte moderna a muito custo pôde fazer resurgir. O
mais experto physionomista difficultosamente adivinharia a negrura
d'alma que se escondia debaixo das puras e candidas feições de
D. Leonor, se não fossem duas rugas que lhe desciam da fronte
e se uniam entre os sobr'olhos, contrahindo-se e deslisando-se
rapidamente, como as vesiculas peçonhentas das fauces d'uma vibora.

"Seja, pois, assim! Fujamos:"--murmurou D. Fernando com o tom e
gesto com que o suppliciado daria no alto do patibulo o perdão
ao algoz.

D. Leonor tirou do largo cincto, com que apertava a airosa cinctura,
uma bolça de ouropel, e atirou com ella aos pés do beguino, que,
de mãos cruzadas sobre o peito e os olhos semi-abertos cravados na
abobada do aposento, parecia extatico e engolfado nos pensamentos
sublimes do ceu.

"Vinte dobras de D. Pedro por teu soldo, beguino: vinte pelo teu
silencio. O resto da recompensa te-lo-has um dia, se a adultera
atravessar triumphadora o portal por onde vae saír fugitiva."

O rir affavel de que estas palavras foram acompanhadas fizeram
correr um calafrio pela medulla espinal do ichacorvos, cujas
pernas vacillaram. Mas o contacto das quarenta dobras, que uniu
immediatamente ao peito debaixo do escapulario, lhe restituiram
o vigor natural.

Elrei havia-se assentado, quasi desfallecido, no escabello unico
do aposento, e o seu aspecto demudado infundia ao mesmo tempo
terror e compaixão. Quando o beguino alevantou a bolça, D. Fernando
fitou nelle os olhos e estendeu a mão para o reposteiro sem dizer
palavra.

Fr. Roy curvou a cabeça, cruzou de nova as mãos sobre o peito,
e, recuando até a porta, desappareceu no corredor escuro por
onde entrára.

Apenas os passos lentos e pesados do ichacorvos deixaram de soar,
D. Leonor encaminhou-se para uma janella que dava para um vasto
terrado, e affastou a cortina que servia durante o dia de mitigar
a excessiva luz do sol. A noite ía em meio do seu curso, como o
indicava o mortiço das tochas, que mal allumiavam o aposento, e
a lua, já no minguante, começava a subir na abobada do firmamento,
mergulhando no seu clarão sereno o brilho esplendido das estrellas.
A janella estava aberta, e o escabello d'elrei ficava proximo
e fronteiro: o luar batia de chapa no rosto bello e triste de
D. Fernando, que, embebido no seu amargurado scismar, parecia alheio
ao que passava á roda delle, e esquecido de que lhe restavam poucas
horas para poder levar a cabo a resolução que tomára. Leonor Telles,
encostada ao mainel da janella, poz-se a olhar attentamente. A
cidade dormia; e apenas o ladro de algum cão cortava aquella
especie de zumbido, que é como o respirar nocturno de uma grande
povoação que repousa. Lá em baixo uma faixa trémula, semelhante
a uma ponte de luz, cortava obliquamente o Téjo, d'onde mais
largo se encurva pela margem esquerda. Os mastros de milhares de
navios, emparelhados com a cidade desde Sacavem até o promontorio
onde campeava fóra dos arrabaldes de S. Francisco, formavam uma
especie de floresta lançada entre a cidade e a sua immensa bahia.
Desde o terrado, para o qual dava a janella, até o rio, o bairro
dos judeus, pendurado pela encosta ingreme e fechado com travezes
e cadeias nos topos das ruas, desenhava uma especie de triangulo,
cuja hase assentava sobre o lanço oriental da muralha mourisca, e
cujo vertice, voltado para o occidente, se coroava com a synagoga,
abrigada á sombra do vulto disforme da cathedral. Pouco distante
do terrado, entre o palacio e a judearia, a claridade da lua
batia de chapa em um terreiro irregular, rodeado de mesquinhas e
meio-arruinadas casas, que pela maior parte pareciam deshabitadas.
No meio delle o que quer que era se erguia semelhante ao arco de
um portul romano. Parecia ser uma ruina, um fragmento de edíficío
da antiga Olisipo, que esquecêra alli aos terremotos, ás guerras e
aos incendios, e ao qual finalmente chegára a sua hora de desabar,
porque uma alta escada de mão estava encostada á verga que assentava
sobre os dous pilares lateraes e os unia, como se alli a tivessem
posto para, em amanhecendo, os obreiros poderem subir acima e
derribarem-no em terra.

Era para esse vulto que D. Leonor se pozera a olhar attentamente.

Depois voltou o rosto para elrei, que, com a cabeça baixa, os
braços estendidos, e as mãos encurvadas sobre os joelhos, parecia
vergar sob o peso da sua amargura: contemplou-o com um gesto de
compaixão por alguns momentos, e, estendendo para elle os braços,
exclamou:

"Fernando!"

Havia no tom com que foi proferida esta unica palavra um mundo de
amor e voluptuosidade; mas no meio da brandura da voz de Leonor
Telles havia tambem uma corda aspera; a lguma cousa do rugir do
tigre.

Elrei deu um estremeção, como se pelos membros lhe houvera coado
uma faisca electrica; ergueu-se e atirou-se a chorar aos braços
de Leonor Telles.

"Ámanhan--disse elle com voz affogada,--o rei mais deshonrado
da christandade serei eu: o cavalleiro mais vil das Hespanhas
será D. Fernando de Portugal. Que me resta? Só o teu amor; mais
nada. Porque não me pedem antes a corôa real, que para mim tem
sido corôa de espinhos? Dera-a de boa vontade. Oh Leonor, Leonor!
serias a mulher mais perversa se um dia me atraiçoasses."

Um beijo da adultera cortou as lastimas d'elrei. A formosura desta
mulher tinha um toque divino á claridade da lua. D. Fernando,
embriagado d'amor, esqueceu-se de que poucas horas lhe restavam
para fugir do seu povo enganado e ludibriado por elle.

"Fernando!"--proseguiu D. Leonor--"jura-me ainda uma vez que serás
sempre meu, como eu serei sempre tua."

Dizendo isto, affastou-o brandamente de si.

"Juro-t'o uma e mil vezes pela fé de leal cavalleiro que até
hoje fui. Juro-t'o pelo ceu que nos cobre. Juro-t'o pelos ossos
de meu nobre e valente avo, que àlli dorme juncto ao altar-mór
da sé, debaixo das bandeiras infiéis que conquistou no Salado.
Juro-t'o por mais que tudo isso: juro-t'o pelo meu amor!"

"Bem está, rei de Portugal!--atalhou D. Leonor.--Agora só uma
cousa me resta para te pedir. Não é favor; é justiça."

"Não me peças Lisboa, que essa sabe Deus se tornará a ser minha,
rica, povoada e feliz como eu a tornei, ou se repousarei ainda a
cabeça nestes paços de meus antepassados, passando por cima das
ruinas dela! Não me peças Lisboa, que talvez ámanhan deixe de
me chamar seu rei: do resto de Portugal pede-me o que quizeres."

"Quero que me dês as minhas arrhas: quero o preço do meu corpo,
segundo foro de Hespanha."

"Villa-viçosa é alegre como um horto de flores, e Villa-viçosa
dar-t'a-hei eu. O casteilo d'Obidos é forte e roqueiro: são numerosos
e prestes para a defesa os seus engenhos, e o castello d'Obidos
será teu. Cintra pendura-se pela montanha entre lençoes d'aguas
vivas, e respira o cheiro das hervas e flores que crescem á sombra
das penedias: pódes ter por tua a Cintra. Alemquer é rica no
meio de suas vinhas e pomares, e Alemquer te chamará senhora."

"Guarda as tuas villas, D. Fernando, que eu não t'as peço em
dote: quero apenas uma promessa de cousa de bem pouca valia."

"De muita ou de pouca, não me importa! Dar-te-hei o que me pedires."

D. Leonor estendeu a mão para a especie de portada romana, que
se erguia solitaria no meio do terreiro deserto:

"É alli que tu me darás o preço do meu corpo, se um dia a cerviz
da orgulhosa Lisboa se curvar debaixo de teu jugo real."

Elrei lançou um rapido volver d'olhos para onde Leonor Telles
tinha o braço estendido, mas recuou horrorisado. O vulto que
negrejava no meio do terreiro, era o patibulo popular e peão:
era a forca, tétrica, temerosa, maldicta!

"Leonor, Leonor!--disse elrei com um som de voz cavo e debil--porque
vens tu misturar pensamentos de sangue com pensamentos d'amor?
Porque interpões um instrumento de morte e de affronta entre mim
e ti? Porque preferes o fructo do cadafalso ás villas e castellos
de que te faço senhora? Porque trocas a estola do clerigo que
ha-de unir-nos pelo baraço aspero do algoz?"

"Rei de Portugal!--respondeu a mulher de João Lourenço da Cunha
com um brado de furor--ainda me perguntas porque o faço? Tu nunca
serás digno do sceptro de teu pae! Queres saber porque ajuncto
pensamentos de sangue a pensamentos d'amor? É porque esses de
quem eu o peço pediram tambem o meu sangue. Queres saber porque
interponho entre mim e ti um instrumento de morte e d'affronta? É
porque o teu bom povo de Lisboa quiz também interpôr entre nós a
morte, e saciar-me de affrontas. Queres que te diga porque prefiro
o fructo do cadafalso ás villas e castellos que me offereces?
É porque para os animos generosos não ha vender vinganças por
ouro. Vingança, rei de Portugal, te pede em dote a tua noiva!
Jura-me que um dia os teus vassallos que me perseguem serão tambem
perseguidos, e que essa vil plebe, que cobre de injurias e pragas
o meu nome, porque te amo, o amaldiçoem, porque levo os seus
caudilhos ao patibulo. Este é o preço do meu corpo. Sem esse
preço a neta de D. Ordonho de Leão[2] nunca será mulher de D.
Fernando de Portugal."

E com um braço estendido para o logar sem nome[3] do supplicio,
e com o outro curvado como quem affastava de si elrei, esta mulher
vingativa era sublime de atrocidade.

"Tens razão, Leonor:--disse por fim D. Fernando, depois de largo
silencio, em que os affectos inconstantes do seu caracter voluvel
mudaram gradualmente.--Tens razão. A futura rainha de Portugal
terá o seu desaggravo: as linguas que te offenderam calar-se-hão
para sempre: os corações que te desejaram a morte deixarão de
bater. No meu throno, até aqui de mansidão e bondade, assentar-se-ha
a crueza. Com Judas o traidor seja eu sepultado no inferno se
faltar ao juramento que te faço de lavar em sangue a tua e a
minha injuria."

A estas palavras o aspecto severo de Leonor Telles mudou-se em
um sorrir de inexplicavel doçura.

"Oh, como te hei-de amar sempre!"--murmurou ella. E estas palavras
cahiam de seus labios meigos e suaves como o arrulhar de pomba
amorosa.

Um beijo ardente, que sussurrou levado nas asas da brisa fresca
da noite, assellou este pacto de odio e d'exterminio.

[1] Isto era escrípto em 1844.

[2] A familia de Leonor Telles suppunha-se descender
de D. Ordonho II, rei de Leão.

[3] Logar sem nome. Nós pelo menos não nos atrevemos a
pôr-lh'o. Sabemos só que em tempos remotos a forca esteve perto
da igreja de S. João da Praça, freguezia cuja existencia data
pelo menos do tempo de D. Affonso III. (Mem. para as Inquir.
Doc. 2.º) Talvez o terreiro ou praça em que ella estava désse o
cognome á parochia. Desconfiâmos, todavia, de que este terreiro
se estendesse para o lado oriental da sé, e que nesse caso o
nome fosse Aljami. D. João I fez mercê em 1392 ao bispo de Lisboa
D. Martinho (Chancel. de D. João I, L. 2.°) de uns pardieiros
no chão d'Aljami, que partem com os paços do dito bispo, para
fazer umas casas e torre. Os paços dos bispos ficavam para o
lado oriental da sé. Além d'isso Aljami parece derivar-se do
arabico aljamea, que significa o laço com que se amarram o pescoço
e as mãos.



Um bulhão e uma agulha d'alfaiate


O sol, que havia mais de meia hora subíra do oriente cingido
da sua aureola de vermelhidão, no meio da atmosphera turva e
cinzenta de um dia dos fins de agosto, dava de chapa no rocío ou
praça onde avultava o mosteiro de S. Domingos, rodeado de hortas
e pomares, que verdejavam pelo valle da Mouraria ao oriente, e
pelo de Valverde ao norte. Já muitos bésteiros e peões armados
de ascumas se derramavam ao longo da parede dos paços de Lançarote
Peçanha fronteiros ao mosteiro, descendo uns por entre as vinhas
d'Almafalla[1], outros do arrabalde da Pedreira, ou bairro do
almirante[2], outros da banda da alcaçova, outros, emfim,
desembocando das ruas estreitas e irregulares que íam dar á opulenta
e celebre rua-nova[3]. Homens e mulheres apinhavam-se aos dez e aos
doze no meio da praça e ás bocas das ruas; falavam, meneavam-se,
riam, cbamavam-se uns aos outros. Ás vezes aquella mó de gente,
cujo vulto engrossava de minuto para minuto, agitava-se como
a superficie de um pego passando o tufão. Incerta, vacillante,
informe, subitamente se configurava, alinhava-se, e semelhante
a triangulo enorme, a quadrella gigante desfechada de trom
monstruoso, vibrava-se contra a vasta alpendrada do mosteiro,
cujas portas ainda estavam fechadas. Ahi hesitava, ondeava e
retrahia-se, como resultaria a folha cortadora de uma acha d'armas
quando não podesse romper as portas chapeadas de forte castello.
Então aquella multidão tomava a fórma de meia lua, cujas pontas
se encurvavam pelos lados de Valverde e da Mouraria, e vinham
topar uma com outra por baixo do bairro ladeirento da Pedreira,
d'onde, confundindo-se e irradiando-se de novo, se espalhavam
pela vastidão do terreiro. O povo, que dorme ás vezes por seculos,
fòra accommettido d'uma das suas raras insomnias, e vivia essa
possante vida da praça publica, em que de ordinario é ridiculo
e feroz; mas em que não raro é sublime e terrivel.

Era a manhan immediata á noite em que occorreram os successos
narrados antecedentemente: o povo preparava-se para uma lucta
moral com o seu rei, mas não se descuidára de vir prestes para uma
lucta physica, se D. Fernando quizesse appellar para esse ultimo
argumento. Era a primeira vez neste reinado que a arraya-miuda dava
mostras da sua força e reivindicava o direito de dizer armada--não
quero!--O elemento democratico erguia-se para influir activamente
na monarchia; enxertava-se nella como principio politico a par da
aristocracia, que com a manopla de ferro arrojava a plebe contra
o throno, sem pensar que brevemente este, conhecendo assim a força
popular, se valeria della para esmagar aquelles que ora sopravam
os animos á revolta, e davam ao vulgo uma nova existencia.

A hora aprazada para a vinda d'elrei ainda não havia batido; mas
o povo, orgulhoso da importancia que subitamente se lhe dera,
embevecido na idéa de que obrigaria elrei a quebrar os laços
adulterinos que o uniam a Leonor Telles, não media o tempo pelo
curso do sol, mas pelo fervor da sua impaciencia. Duas vezes se
espalhára a voz de que D. Fernando chegára, e duas vezes o povo
corrêra para o alpendre do mosteiro. As portas da igreja estavam,
porém, fechadas, bem como a portaria e as estreitas e agudas
frestas do mosteiro gothico, que, formado apenas de um pavimento
terreo e humilde, contrastava com a magnificencia do templo, em
cujas portadas profundas, sobre os columnellos ponteagudos que
sustinham os fechos e chaves da abobada, os animaes monstruosos
e hybridos, os centauros, os satyros e os demonios, avultados
na pedra dos capiteis por entre as folhagens de carvalho e de
lodão, pareciam, com as visagens truanescas que nas faces mortas
lhes imprimíra o esculptor, escarnecerem da colera popular, que,
lenta como os éstos do oceano, começava a crescer e a trasbordar.
Apenas lá dentro se ouviam de vez em quando as harmonias saudosas
do orgão e do cantochão monotono dos frades, que offereciam a
Deus as preces matutinas. Era então que o povo escutava: e
retrahia-se arrastado pelas blasphemias e pragas que saíam de
mil bôcas, e que eram repellidas do sanctuario pelo sussurro
dos canticos que reboavam dentro da igreja, e que transsudavam
por todos os poros do gigante de pedra um murmurio de paz, de
resignação e de confiança em Deus.

O povo, porém, era como os homens robustos do Genesis: era impio,
porque era robusto.

O dia crescia, e crescia com elle a desconfiança. As noticias
corriam encontradas: ora se dizia que elrei cedêra aos desejos
dos seus vassallos e dos peões, e que viria annuncíar ao povo a
sua separação de Leonor Telles; ora pelo contrario se asseverava
que elle era firme em sustentar a resolução contraria. Havia até
quem asseverasse que na alcaçova e no terreiro de S. Martínho
se começavam a ajunctar homens d'armas e bésteiros. A colera
popular crescia, porque a atiçava já o temor.

No meio de uma pilha de galeotes, carniceiros, pescadores, moleiros,
lagareiros e alfagemes, dous homens altercavam violentamente:
eram Ayras Gil e Fr. Roy: objecto da disputa Fernão Vasques;
arguente o petintal; defendente o beguino.

"Que não vira, vos digo eu:--gritava Ayras Gil.--Disse-m'o
Garciodonez, o mercador de pannos, que mora ao cabo da rua-nova,
aos açougues, defronte das taracenas d'elrei."

"Mentiu pela gorja como um perro judeu:--replicou Fr. Roy--Não
era Fernão Vasques homem que faltasse a este auto, tendo-o a
arraya-miuda elegido por seu propoedor."

"Medo ou dobras do paço podem tapar a boca aos mais ousados, e
faze-los dormir até deshoras--retrucou o petintal.

"Que fazem falar as dobras do paço, sei eu:--tornou o beguino
com riso sardonico, lembrando-se do que nessa noite passára:--medo
sabeis vós que faz fugir: inveja sabemos nós todos que faz
imaginar..."

"Descaro e gargantoice que faz mendigar:--interrompeu Ayras
Gil, vermelho de colera, cerrando os punhos, e descahindo para
o ichacorvos, como galé que vae afferrar outra em combate naval.

"Excommunicabo vos"--murmurou Fr. Roy, fazendo-se prestes para
resistir ao abalroar do petintal.

E o vulgacho que estava de roda ria e batia as palmas.

N'isto os gritos de alcacer! alcacer! reboaram para outro lado
da praça: o povo correu para lá. Os dous campeadores voltaram-se:
era o alfaiate.

Sem dizer palavra, o beguino olhou com gesto de profundo despreso
para Ayras Gil; e tomando uma postura entre heroica e de inspirado,
estendeu o braço e o index para o logar onde passava Fernão Vasques.
Depois partiu com a turbamulta que o rodeava, em quanto o petintal
o seguia de longe, lento e cabisbaixo.

O alfaiate, cercado de outros cabeças da revolta da vespera,
encaminhou-se para a alpendrada de S. Domingos. Trazia vestida
uma sáia[4] de valencina reforçada, calças de bifa, çapatos de
pelle de gamo, chapeirão de ingres com fita de momperle, e cincta
de couro, tudo escuro ao modo popular. Com passos firmes subiu
os degraus do alpendre. D'alli, em pé, com os braços cruzados,
correu com os olhos a praça, onde entre o povo apinhado se fizera
repentino silencio. Depois, tirando o chapeirão, cortejou a
turbamulta para um e outro lado; os seus gestos e ademanes eram
já os de um tribuno.

"Alcacer, alcacer pela arraya-miuda! Alcacer por elrei D. Fernando
de Portugal, se desfizer nosso torto e sua vilta, senão!..."

Esta exclamação d'um alentado alfageme que estava pegado com a
balaustrada do alpendre, foi repetido em grìta confusa por milhares
de bôcas.

De repente da banda da rua de Gileanes sentiu-se um tropear de
cavalgaduras, que pareciam correr á redea solta: todos os olhos
se volveram para aquella banda: muitos rostos empallideceram.

Uma voz de terror girou pelo meio das turbas.--"São homens d'armas
d'elrei!"--Aquelle oceano de cabeças humanas redemoinhou a estas
palavras, e começou a dividir-se como o mar vermelho diante de
Moysés. N'um momento viu-se uma larga faixa esbranquiçada cortar
aquella superficie movel e escura: era ampla estrada que se abríra
desde a rua de Gileanes até S. Domingos. As paredes desta
adelgaçavam-se rapidamente. Para a banda da Mouraria e da Pedreira
os becos e encruzilhadas apinhavam-se de gente, e os reflexos dos
ferros das ascumas populares, que erguidas scintillavam ao sol,
começaram a descer e a sumir-se como as luzinhas das bruxas em
sitio brejoso aos primeiros assomos do alvorecer. Fernão Vasques
olhou em redor de si: estava só. Descórou; mas ficou immovel.

Entretanto o tropear aproximava-se cada vez com mais alto ruído:
os bésteiros do concelho, postados ao longo dos paços do almirante,
eram talvez os unicos em quem o terror não fizera profunda impressão:
alguns já haviam estendido sobre o braço da bésta os virotes
hervados, e revolvendo a polé faziam encurvar o arco para o tiro.
Os bésteiros de garrucha tinham já o dente desta embebido na
corda, promptos a desfechar ao primeiro refulgir dos montantes
nús dos cavalleiros e escudeiros reaes. Do resto do povo os ousados
eram os que recuavam; porque o maior numero voltava as costas e
internava-se pelas azinhagas dos hortos de Valverde e vinhas
d'Almafalla, ou trepava pelas ruas escuras e malgradadas do bairro
do almirante.

Mas no meio deste susto geral apparecêra um heroe. Era Fr. Roy.
Ou fosse imprudente confiança no cargo occulto que lhe dera D.
Leonor, ou fosse robustez d'animo, ou fosse finalmente a persuasão
de que o habito de beguino lhe serviria de broquel, longe de
recuar ou titubear, correu para a quina da rua d'onde rompía o
ruído, e mirando pela aresta do angulo um breve espaço, voltou-se
para o povo, e curvando-se com as mãos nas ilhargas, desatou em
estrondosas gargalhadas.

Tudo ficou pasmado; mas vendo e ouvindo o rir descompassado do
ichacorvos, o povo começou a refluir para a praça. Aquellas risadas
produziam mais animo e enthusiasmo que os quarenta seculos vos
contemplam de Napoleão, na batalha das Pyramides. Os amotinados
recobraram n'um instante toda a anterior energia.

Esta scena tinha sido rapidissima: todavia ainda grande parte dos
populares hesitava entre o ficar e o fugir, quando se conheceu
claramente a causa daquelle temor que apertára por algum tempo
todos os corações. Era a còrte que chegava.

Montados em mulas possantes, os officiaes da casa real, os
ricos-homens, conselheiros e juizes do desembargo vinham assistir
ao auto solemne, em que da bôca d'elrei a nação devia ouvir ou
uma resolução conforme com os desejos tanto da arraya-miuda como
dos senhores e cavalleiros, ou a confirmação de um casamento, mal
agourado por muitos nobres e por todos os burguezes, e condemnado
de um modo nada duvidoso por estes ultimos. No meio das variadas
côres dos trajos cortezãos negrejavam as garnachas dos letrados
e clerigos do paço, e entre o reluzir dos esplendidos arreios
das mulas alentadas e fogosas dos vassallos seculares, dos
alcaides-móres e senhores, viam-se rojar as gualdrapas dos mestres
em leis e degredos, dos sabedores e letrados, que constituiam o
supremo tribunal da monarchia, a curia ou desembargo d'elrei.

A numerosa cavalgada atravessou o terreiro por entre o povo apinhado,
e em todos os rostos transluzia o receio ácerca de qual seria
o desfecho deste drama terrivel e immenso, em que entravam
representantes de todas as classes sociaes.

Entre os membros daquella lustrosa companhia distinguia-se por
seu porte altivo o conde de Barcellos, D. João Affonso Tello,
tio de D. Leonor, a quem nos diplomas dessa epocha se dá por
excellencia o nome de fiel conselheiro. Quando os amores d'elrei
com sua sobrinha começaram, elle fizera, sincera ou simuladamente,
grandes diligencias para desviar o monarcha de levar ávante seus
intentos. D. Fernando persistíra, todavia, nelles, e então o
conde, junctamente com a infanta D. Beatriz[5] e com D. Maria
Telles, irman de D. Leonor, suscitára a idéa de a divorciar de
João Lourenço da Cunha. O povo sabia isto, e posto que houvesse
estendido a sua má vontade a todos os parentes de Leonor Telles,
odiava principalmente o conde como protector daquelles adulteros
amores. Foi, portanto, nelle que se cravaram os olhos dos populares,
que, tendo-se em poucas horas elevado até á altura do throno,
ousavam tambem dar testemunho publico do seu odio contra o mais
distincto membro da fidalguia[6].

"Velha raposa, em que te pese, não será a adultera rainha da
boa terra de Portugal!--gritava um carniceiro, voltando-se para
uma velha que estava ao pé delle, mas olhando de través para
o conde que passava.

"Leal conselheiro de barregnices, por quanto vendeste a honra
do compadre Lourenço?--perguntava um alfageme, fingindo falar
com um vizinho, mas lançando tambem os olhos para D. João Affonso
Tello.

"Que tendes vós com o lobo que empece ao lobo?--acudiu um lagareiro
calvo e acurvado debaixo do peso dos annos.--Deixae-os morder
uns aos outros, que é signal de Deus se amercear de nós."

"O que elles mereciam--interrompeu uma regaleira--era serem
alagantados[7]--com boas tiras de couro cru."

"E ella, tia Dordia?--accrescentou um ferreiro.--Conheceis vós
a comborça? As varas a quizera eu: uma do alcaide no chumaço;
outra do coitado nas costas della![8]"

"É costume, ergo direita a pena:"--notou um procurador, que gravemente
contemplava aquelle espectaculo, e que até alli guardára silencio.

Estas injurias, que, como o fogo de um pelotão, se disparavam
ao longo das extensas e fundas fileiras dos populares, iam ferir
os ouvidos do conde de Barcellos, que, fingindo não lhes dar
attenção, empallidecia e córava successivamente, e mordia os beiços
de colera.

De quando em quando o vociferar affrontoso da gentalha era affogado
no ruído de risadas descompostas, mais insolentes cem vezes que
as injurias; porque no rir do vulgo ha o que quer que seja tão
cruel e insultuoso, que faz dar em terra o maior coração e o
anímo mais robusto.

Entre os parciaes de D. Leonor que vinham naquella comitiva,
viam-se, porém, muitos fidalgos e letrados, que ou eram pessoalmente
seus inimigos, ou pelo menos desapprovavam alta e francamente a
sua união com elrei. Diogo Lopes Pacheco era o principal entre
elles, e o povo ao vê-lo passar saudou-o com um murmurio, que
foi como a recompensa do velho pelas desventuras da sua vida,
desventuras que devêra a um caso analogo, a morte de D. Ignez
de Castro.

Quando os fidalgos, cavalleiros e letrados da casa e conselho
d'elrei se apearam juncto aos degraus do alpendre do mosteiro, o
alfaiate, que viera misturar-se com o povo logo que desembocaram
na praça, subiu após elles, e esperou que se assentassem no extenso
banco de castanho que corria ao longo da alpendrada. Depois voltou-se
para a multidão apinhada ao redor:

"Se elrei ainda não é presente--disse em voz intelligivel e
firme--ahi tendes para ouvir vossos aggravamentos os senhores do
seu conselho: porventura que elles poderão dar-vos resposta em
nome de sua senhoria, e elle virá depois confirmar o seu dicto."

"Senhor Fernão Vasques, sois o nosso propoedor: a vós toca o
falar!"--replicou um do povo.

"Assim o queremos! assim o queremos!"--bradou a turbamulta.

O alfaiate voltou-se então para os cortezãos, conselheiros e letrados
do desembargo d'elrei, e disse:

"Senhores, a mim deram carrego estas gentes que aqui estão junctas,
de dizer algumas cousas a elrei nosso senhor, que entendem por
sua honra e serviço; e porque é direito escripto, que sendo as
partes principaes presentes, o officio de procurador deve de
cessar no que ellas bem souberem dizer, vós outros que sois
principaes partes neste feito, e a que isto mais tange que a
nós, devieis dizer isto, e eu não; porém, não embargando que
assim seja, eu direi aquillo de que me deram carrego, pois vós
outros em ello não quereis pôr mão, mostrando que vos doeis pouco
da honra e serviço d'elrei....[9]"

"Cal-te, villão!--bradou, erguendo-se, o conde de Barcellos com
voz affogada de cólera, que já não podia conter--se não queres
que seja eu quem te faça resfolgar sangue, em vez de injurias,
por essa bôca sandia."

O velho Pacheco pôz-se tambem em pé, exclamando: "Conde de Barcellos,
lembrae-vos de que os burguezes têem por costume antigo o direito
de dizerem aos reis seus aggravamentos, de se queixarem, e de
os reprehenderem. Nós somos menos que os reis."

Fernão Vasques tinha-se entretanto voltado para o povo apinhado
ao redor do alpendre, com o rosto enfiado, mas era de indignação,
e havia feito um signal com a cabeça. No mesmo instante o povo
abríra uma larga clareira, e quando os fidalgos e conselheiros,
attentos para o conde e para Diogo Lopes, voltaram os olhos para o
rocío ao tropear da multidão, um semi-circulo de mais de quinhentos
bésteiros e peões armados fazia uma grossa parede em frente dos
populares.

Fernão Vasques encaminhou-se então para D. João Affonso Tello, e
com a mão trémula de raiva, segurando-o por um braço, disse-lhe:

"Senhor conde, vós sois que doestaes os honrados burguezes desta
leal cidade em minha pessoa; porque eu nada fiz senão repetir
em voz alta o que cada um e todos me ordenaram repetisse. O que
propuz, não é meu. Eis seus auctores! Pelo que a mim toca, senhor
conde, nào receio vossas ameaças. Quando o nobre despe o gibão
de ferro para vestir o de tela, não sei eu se este é mais forte
que o do peão, e se também a sua bôca não póde golfar sangue
como a de um pobre villão."

D. João forcejava por desasir-se do alfaiate, procurando levar
a mão á cincta onde tinha o punhal; mas Fernão Vasques era mais
forçoso, e o conde já tinha entrado na idade em que costuma minguar
a robustez do homem. Não pôde chegar com a mão ao cincto.

"Conde de Barcellos:--proseguiu o alfaiate com um sorriso--não
recorraes a esse argumento; porque eu também estou habituado
a lidar com ferros azerados, ainda que mais delgados e curtos
que o vosso bulhão."

Estas ultimas palavras, dictas em tom de escarneo, mal foram
ouvidas: a grita na praça era já espantosa; as injurias, as pragas,
as ameaças, cruzando-se nos ares, produziam aquelle rouco e grande
brado da fúria popular, que só tem semelhança com o ruído de
tufão abysmando-se por cavernas immensas.

Os fidalgos e letrados tinham rodeado os dous contendores; os
parciaes de D. Leonor o conde; os outros, cujo numero era muito
maior, o alfaiate. E tanto estes como aquelles trabalhavam em
apazigua-los, posto que todos os animos estivessem quasi tão
irritados como os dos dous contendores.

Finalmente o conde cedeu. O aspecto da multidão, que se agitava
furiosa, contribuiu, porventura, mais para isso que todas as
razoes e rogativas dos fidalgos e cavalleiros, attonitos com o
espectaculo da ousadia popular; desta ousadia que, menoscabando
as ameaças do primeiro entre os nobres, era mais incrivel que
a da vespera, a qual apenas se atrevêra ao throno.

Que fazia, porém, o nosso beguino no meio destes preludios de
uma eminente assuada? É o que o leitor verá no seguinte capitulo.

[1] Hoje o monte da Graça.

[2] Hoje o bairro dentro da rua larga de São Roque, Chiado,
Rua do Ouro, Rocio e Calçada do Duque.

[3] Hoje Rua dos Capellistas

[4] Muitos dos trajos civis do seculo decimo-quarto eram
communs a ambos os sexos, ou pelo menos tinham nomes communs,
como se póde vêr da lei de D. Affonso IV ácerca dos trajos.

[5] D. Beatriz era irman dos infantes D. João e D. Diniz
e meia irman d'elrei.

[6] O titulo de conde era o de maior preeminencia entre
nós, e João Affonso Tello era então o unico que em Portugal tinha
semelhante titulo.

[7] Açoutados.

[8] Segundo varios quadernos legaes do nosso direito
consuctudinario e municipal, em certos casos applicava-se ás
mulheres casadas a pena de que resa o discurso do ferreiro. O
alcalde vinha a casa da criminosa punha no chão um travesseiro,
pegava d'uma vara e começava a bater em cima delle, fazendo-lhe
o compasso o marido da culpada nas costas desta: tal era o modo
por que as mulheres estavam ás varas, pena que com menos apparato
se applicava tambem aos homens por muitos e diversos crimes.

[9] Textual.--Veja-se Fernão Lopes, Chr. de D. Fernando,
cap. 61.



MIL DOBRAS PÉ-TERRA E TREZENTAS BARBUDAS


Mal Fernão Vasques travára do braço do conde de Barcellos, e a
grita popular começára a atroar a praça, Fr. Roy, escoando-se
ao longo da parede do mosteiro, dobrára a quina que voltava para
a Corredoura[1], e seguindo seu caminho por viellas torcidas
e desertas, chegára á porta do ferro, d'onde, atravessando o
contiguo e malassombrado terreirinho, em que os raios do sol
apenas rapidamente passavam, embargados ao nascer pelos agigantados
campanarios da cathedral, e ao declinar pelos pannos e torres
da muralha mourisca, chegára esbaforido a S. Martinho. A porta
do paço estava fechada; mas a da igreja estava aberta. Entrou.
Ao lado direito uma escada de caracol descia da tribuna real
para a capella-mór, e a tribuna communicava com o palacio por
um passadiço que atravessava a rua. O beguino olhou ao redor
de si, e escutou um momento: ninguém estava na igreja. Subindo
rapidamente a escada, Fr. Roy atravessou o passadiço e encaminhou-se,
sem hesitar no meio dos corredores e escadas interiores, para
uma passagem escura. No fim della havia uma porta fechada. O
monge vagabundo parou, e escutou de novo. Dentro altercavam tres
pessoas: Fr. Roy bateu devagarinho tres vezes, e pôz-se outra
vez a escutar.

Ouviram-se uns passos lentos que se aproximavam da porta; e uma
voz esganiçada e colerica perguntou;--Quem está ahi?"

"Eu:--respondeu o beguino.

"Quem é eu?--replicou a voz.

"Honrado D. Judas, é Fr. Roy Zambrana, indigno servo de Deus,
que pretende falar a elrei ou á mui excellente senhora D. Leonor,
para negocio de vulto."

"Abre, D. Judas, abre!"--disse outra voz, que pelo metal parecia
feminina, e que soou do lado opposto do aposento.

A porta rodou nos gonzos, e o ichacorvos entrou.

Era o logar em que Fr. Roy se achava uma quadra pequena, allumiada
escaçamente por uma fresta esguia e engradada de grossos varões
de ferro, a qual dava para uma especie de saguão, ainda mais
acanhado que o aposento. A abobada deste era de pedra; de pedra
as paredes e o pavimento: ao redor viam-se por unico adereço
muitas arcas chapeadas de ferro. O monge entrára na casa das
arcas da corôa--do recabedo do regno. As duas personagens que
ahi estavam, afóra a que abríra a porta, eram D. Fernando e D.
Leonor. Elrei, de pé, curvado sobre uma das arcas, com a fronte
firmada sobre o braço esquerdo, folheava um desconforme volume
de folhas de pergaminho, cujas guardas eram duas alentadas taboas
de castanho, forradas exteriormente de couro cru de boi, ainda
com pello[2].

D. Leonor, tambem em pé por detraz d'elrei, olhava attentamente
para as paginas do livro. O que abrira a porta era o thesoureiro-mór
D. Judas, grande affeiçoado de D. Leonor e valido d'elrei. O
judeu apenas voltára a ponderosa chave, sem volver sequer os
olhos para o recem-chegado, tornára immediatamente para ao pé
da arca a que elrei estava encostado, e proseguíra a vehemente
conversação, cujos ultimos ecchos Fr. Roy ouvíra ao aproximar-se...

"Mil dobras pé-terra e trezentas barbudas são todo o dinheiro
que o vosso fiel thesoureiro vos póde apurar neste momento,
respigando como a pobre Ruth no campo do vosso thesouro, ceifado,
e bem ceifado (aqui o judeu suspirou) por aquelles que talvez
menos leaes vos sejam. Jurar-vos-hei sobre a toura, se o quereis,
que não fica em meu poder uma pogeia."

Elrei não o escutava. Apenas Fr. Roy entrára, D. Leonor se havia
encaminhado para o ichacorvos, e, lançando-lhe um olhar escrutador,
lhe perguntára com visível anciedade:

"Beguino, a que voltaste aqui?"

"A cumprir com minha obrigação, apesar de vós me terdes dado
hontem por quite e livre. Vim a dizer-vos que a estas horas talvez
tenha já corrido sangue no rocío de Lisboa, e que é espantoso o
tumulto dos populares contra os do conselho, e contra os senhores
e fidalgos da casa e valia d'elrei."

Fôra á palavra sangue que D. Fernando havia cessado de attender
á voz esganiçada do thesoureiro-mór, que continuava em tom de
lamentação:

"Bem sabeis, senhor, que tenho empobrecido em vosso serviço, e
que hoje sou um dos mais mesquinhos e miseráveis entre os filhos
d'Israel. Aonde irei eu buscar dous mil maravedis velhos d'Alemdouro,
que são em moeda vossa trezentos e noventa mil soldos?[3]"

"Sangue, dizes tu, beguino?--exclamou elrei--Oh, que é muito!
A quem se atreveram assim esses populares maldictos?"

"Eu proprio vi o nobre conde de Barcellos travar-se com Fernão
Vasques; mui grande numero de bésteiros, e peões armados de ascumas
rodeavam já o alpendre de S. Domingos, e os clamores de morram
os traidores atroavam a praça."

"Que me dêem o meu arnez brunido, a minha capelina de camal, e o
meu estoque francez:--gritou D. Fernando escumando de colera.--Eu
irei a S. Domingos, e salvarei os ricos-homens de Portugal, ou
acabarei ao pé delles. Pagens! onde está o meu donzel d'armas?"

"O teu donzel d'armas, rei D. Fernando,--interrompeu com voz
pausada e firme D. Leonor--segue com os outros pagens caminho
de Santarem, montado no teu cavallo de batalha. Aqui só tens
a mula de teu corpo[4] para seguires jornada."

"Mas o conde de Barcellos! O meu leal conselheiro, deixa-lo-hei
despedaçar pelos peões desta cidade abominavel? Lembra-te de que
é teu tio; que foi o teu protector, quando o braço de D. Fernando
ainda se não erguêra para te coroar rainha."

"Rei de Portugal, és tu que deves lembrar-te delle, quando o
dia da vingança chegar. Então cumprirá que os traidores e vis
te vejam montado no teu ginete de guerra. Hoje não podes senão
deixar entregue á sua sorte o nobre D. João Affonso e os senhores
que são com elle; mas não te esqueça que se o seu sangue correr,
todo o sangue que derramares para o vingar será pouco, como serão
poucas todas as lagrymas que eu verterei sem consolação sobre
os seus veneraveis restos. Combateres? Ajudado por quem, n'uma
cidade revolta? Os homens d'armas do teu castello quebraram seu
preito, e tumultuam na praça: muitos de teus ricos homens estão
conjurados contra ti: teu proprio irmão o está. Partir! partir!
Ha quantas horas sabes tu que a ultima esperança está no partir
breve? Porque, depois de tantas hesitações, ainda hesitar uma
vez? Asseguremos ao menos a vingança, se não podermos salvar
aquelles que, leaes a seu senhor, se foram expôr á furia de homens
refeces e crús, para esconder nossa fuga... fuga; que é o seu
nome!"

O furor e o despeito revelavam-se nas faces e labios esbranquiçados
da adultera, e a afflicção e o temor comprimidos n'uma lagryma
que lhe rolou insensivelmente dos olhos. Era uma das rarissimas
que derramára na sua vida.

Elrei tinha escutado immovel. Desacostumado a ter vontade propria,
desde que (como dizia o povo) esta mulher o enfeitiçára, ainda
mais uma vez cedeu da sua resolução, se não de homem cordato,
ao menos de valoroso, e respondeu em voz sumida:

"Partamos. E seja feita a vontade de Deus!"

"Amen--murmurou o ichacorvos.

"Beguino,--interrompeu D. Leonor, voltando-se para Fr. Roy--corre
já ao rocío, e dize em voz bem alta aos populares amotinados, que
me viste partir com elrei caminho de Santarem. Talvez assim o conde
seja salvo, porque a furia desses vis sandeus se voltará contra
mim. Dize-o, que dirás a verdade: quando lá houveres chegado, o
meu palafrem terá já transposto as portas da cruz. Guardae-vos,
mesquinhos, que elle a torne a passar com sua dona. Ichacorvos! esse
dia será aquelle em que a adultera pague todas as suas dividas!"

Fr. Roy sentiu pela medula dorsal o mesmo calafrio que sentíra
na noite antecedente; porque o olhar que Leonor Telles cravou
nelle era diabolico, e a palavra--adultera--proferida por ella,
soava como um dobrar de campa, e vinha como involta n'um halito
de sepulchro: o beguino arrependeu-se desta vez mui seriamente
de ter sido tão miudo e exacto na parte official que apresentára
na vespera. Calou-se, todavia, e saíu com o seu ademan do costume,
cabeça baixa e mãos cruzadas no peito.

Os tres ficaram outra vez sós.

"D. Judas, meu bom D. Judas:--disse elrei com um gesto de
afflicção--eu não entendo estas embrulhadas letras mouriscas da
tua arithmetica. Estou certo de que não deves ao thesouro real
uma unica mealha, e de que nas arcas do haver não existe senão
o que tu dizes: mas de certo não queres que um rei de Portugal
caminhe por seu reino como um romeiro mendigo. Ao menos os dois
mil maravedis de ouro..."

"Ai!--suspirou o thesoureiro-mór--juro a vossa real senhoria
que me é impossivel achar agora outra quantia maior que a de mil
dobras pé-terra e trezentas barbudas."

"Fernando--atalhou Leonor Telles--ordena aos moços do monte que
ahi ficaram que enfreiem as mulas: devemos partir já. É tão meu
affeiçoado D. Judas, que com duas palavras eu obterei o que tu
não podeste obter com tantas rogativas."

Ella sorriu alternativamente com um sorriso angelico para elrei
e para o thesoureiro-mór. D. Fernando obedeceu, e, alevantando
o reposteiro que encobria uma porta fronteira áquella por onde
entrára o beguino, desappareceu. O thesoureiro ía a falar; mas
ficou com a bôca semi-aberta, o rosto pallido, e como petrificado,
vendo-se a sós com D. Leonor. Era que já a conhecia havia largos
tempos.

"D. Judas,--disse esta em tom mavioso--tu has-de fazer serviço
a elrei para esta jornada. Darás os dous mil maravedis velhos."

"Não posso!--respondeu D. Judas com voz trémula e afogada.

"Judeu!--replicou D. Leonor, apontando para um cofre pequeno,
que estava no canto mais escuro do aposento, coberto de tres
altos de pó--o que está naquella arca?"

O thesoureiro-mór hesitou um momento, e depois balbuciou estas
palavras:

"Nada ... ou para falar verdade... quasi nada. Bem sabeis que
d'antes eu alli guardava algumas mealhas que me sobejavam da minha
quantia, mas ha muito que nem essas poucas mealhas me restam."

"Vejamos, todavia:--tornou D. Leonor, cujo aspecto se carregava.

"Misericordia!--bradou D. Judas com indizivel agonia. Mas
reportando-se, por um destes arrojos que inspiram os grandes
perigos, procurou disfarçar o seu susto, continuando com um riso
contrafeito:

"Misericordia, digo; porque fôra mais facil achar entre os amotinados
do rocío um homem leal a seu rei, do que eu lembrar-me agora do
logar onde terei a chave de uma arca ha tanto tempo inutil e
vazia."

"Perro infiel! eu te vou recordar quem póde dizer onde as havemos
de achar."

"Estaes hoje, mui excellente senhora, merencoria e irosa:--replicou
o thesoureiro-mór, trabalhando por dar ás suas palavras o tom da
galantaria, mas visivelmente cada vez mais enfiado e trémulo,--Assim
chamaes perro infiel ao vosso leal servidor, por causa d'uma
chave inutil que se perdeu? Todavia, dizei quem sabe della, e
eu a irei procurar."

"Generoso e leal thesoureiro!--interrompeu D. Leonor, imitando
o tom das palavras do judeu, como quem gracejava--não te dês a
esse trabalho, por tua vida. Quem póde faze-la apparecer é um
velho cão descrido, que mora na communa de Santarem. Eu sei de
um remedio que lhe restituirá á lingua a presteza d'uma lingua
de mancebo de vinte annos. O seu nome e Issachar. Conhéce-lo?"

"Alta e poderosa senhora, vós falaes de meu pobre pae!--respondeu
o thesoureiro-mór, redobrando-lbe a pallidez.--Mas tractemos
agora do que importa. Com mil e quinhentas dobras pé-terra e
trezentas barbudas, que eu disse a meu senhor el-rei estarem
prestes..."

D. Leonor lançou para o judeu um olhar d'escarneo, e proseguiu:

"Do que importa é que eu tracto. Sabes tu, meu querido D. Judas,
que sejam as tuas dobras mil, ou mil e quinhentas, ámanhan a
estas horas eu D. Leonor Telles, a rainha de Portugal, estarei
em Santarem? Ouviste já dizer que, em não sei qual das torres
do alcacer, ha um excellente potro capaz de desconjuntar n'um
instante os membros do mais robusto villão? Veiu-me agora a idéa
que o velho Issachar amarrado a elle deve ser gracioso, porque
tendo vivido muito, constrangido a falar, ha-de contar cousas
incriveis, quanto mais dizer onde está uma chave, cujo paradouro
elle não póde ignorar. Não achas tu tambem que é folgança e desporto
digno de qualquer rainha o vêr como estouram os ossos carunchosos
de um perro de noventa annos?"

Um suor frio manou da fronte de D. Judas, cujas pernas vacillantes
se recusavam a suste-lo. Quando D. Leonor acabou de fazer as
suas atrozes perguntas, o judeu tinha cahido de joelhos aos pés
della.

"Por mercê, senhora,--exclamou elle n'um trance horroroso de
angustia--mandae-me açoutar como o mais vil servo mouro: mandae-me
rasgar as carnes com os mais atrozes tormentos; mas perdoae a
meu velho pae, que não tem culpa da pobreza de seu filho. Se
eu tivera ou podéra alcançar mais que as duas mil dobras e as
quinhentas barbudas que offereci a meu senhor elrei..."

"Judeu!--atalhou D. Leonor--tu deves saber tres cousas: a primeira
é que os tractos do potro são intoleraveis; a segunda é que eu
costumo cumprir as minhas promessas; a terceira é que se neste
momento de aperto eu te podesse applicar o remedio, não o guardaria
para a ossada bolorenta de um lebréu desdentado."

"Vendido cem vezes,--proseguiu o thesoureiro-mór lavado em lagrymas,
e procurando abraça-la pelos joelhos--eu não poderia apresentar
neste momento mais que a somma já dicta de duas mil e quinhentas
dobras, e quinhentas barbudas, ainda que vossa mercê me mandasse
assar vivo."

"És um louco, D. Judas!--interrompeu Leonor, affastando de si o
judeu com um gesto de brandura.--Por uma miseria de pouco mais
de quinhentas pé-terra consentirás que Issachar, que teu pae,
honrado velho! pragueje nas ancias do potro contra o Deus de
Abraham, de Jacob e de Moysés?"

O thesoureiro-mór conservou-se por alguns momentos calado, e na
postura em que estava. Depois, passando o braço de revés pelos
olhos, enxugou as lagrymas e ergueu-se. A resolução que tomára
era a de um desesperado que vae suicidar-se.

"Aqui estarão, senhora,--murmurou elle--os dous mil maravedis
quando os quizerdes. Procurarei obte-los; mas ficarei perdido.
Agora podeis dar ordem á vossa partida."

"Adeus, meu mui honrado D. Judas:--disse D. Leonor sorrindo.--Não
perderás nada em ter cedido aos meus rogos."

Dicto isto, saíu pela mesma porta por onde saíra elrei.

O judeu estendeu os braços com os punhos cerrados para o reposteiro
que ainda ondeava, levou-os depois á cabeça, d'onde trouxe uma
boa porção de melenas grisalhas. Feito isto, tirou da aljubeta
uma chave, abriu o cofre pequeno e pulverulento, sacou para fóra
um saquitel pesado, sellado e numerado, e os dous mil maravedis
rolaram sobre o grande livro, que ainda estava aberto sobre uma
das arcas. Contou-os quatro vezes, empilhou-os aos centos, e
como se as forças se lhe tivessem exhaurido no espantoso combate
que se passava na sua alma, atirou-se de bruços sobre a pequena
arca, e abraçado com ella desatou a chorar.

"Meu pobre thesouro, juncto com tanto trabalho!--exclamou por
fim entre soluços.--Guardei-te neste cofre com medo de te vêr
roubado, e os salteadores vim encontra-los aqui! Mas que se livrem
de eu tornar a receber os direitos reaes das mãos dos mordomos.
Meus ricos dous mil maravedis de bom ouro, não voltareis sósinhos
quando vos tornardes a ajunctar com os vossos abandonados
companheiros!"

Esta idéa pareceu consolar de algum modo D. Judas. Levantou-se,
tornou a contar os dois mil maravedis: desconfiou de que havia
engano, e que eram dois mil e um: tornou-os a contar, e quando
elrei entrou no aposento, já prestes para cavalgar, tinha o bom
do judeu obtido a certeza de que não dava uma pogeia de mais
da somma que lhe fôra requerida em nome do potro da torre de
Santarem[5].

"Oh,--exclamou elrei, lançando os olhos para cima do desalmado
folio, sobre cujas paginas amarelladas estava empilhado o dinheiro
--temos os dous mil maravedis?!"

"Saiba vossa real senhoria que felizmente tinha em meu poder
uma somma pertencente a Jeroboão Abarbanel, o mercador da porta
do mar, e de que não me lembrava: ao basculhar as arcas dei com
ella: a quantia está completa, e o honrado mercador não levará
por certo mais de cinco por cento ao mez, emquanto os ovençaes
de vossa senhoria não vierem entregar no thesouro o producto
dos direitos reaes vencidos. Então pagar-lhe-hei, até á ultima
mealha, a quantia e seus lucros, se vossa senhoria não ordena
o contrario."

"Faze o que entenderes, D. Judas:--respondeu elrei, que não o
ouvira, attento a metter n'uma ampla bolça de argempel, que trazia
pendente do cincto, os dous mil maravedis.--Tudo fio de ti,
honrado e Seal servidor."

E recolhidos os maravedis, saíu. O judeu ficou só.

"No inferno ardas tu com Dathan, Coré e Abiron, maldicto
nazareno!...--murmurou elle.--Porém não antes de eu haver colhido
os dous...quero dizer, os tres mil e duzentos maravedis, que me
tiraste com lanta consciencia quanta póde ter a alma tisnada
de um christão."

Feita esta jaculatoria ao Deus de Israel, D. Judas aferrolhou
interiormente a porta do reposteiro, atravessou o aposento, saíu
pela porta fronteira, que tambem aferrolhou, e a bulha de seus
passos, que se alongavam, soou através dos corredores por onde
passára Fr. Roy, até que por aquella parte do palacio tudo caíu
em completo silencio.


[1] A Corredoura era uma rua, que, passando ao sopé do
monte do Castello, e por detraz de S. Domingos, dava passagem do
centro da cidade para Valverde, (hoje passeio publico e Salitre).

[2] Para não enfadarmos os leitores com um sem numero de
notas declarâmos por uma vez que todos os costumes e objectos que
descrevemos são exactos e da epocha, porque para taes descripções
nos fundámos sempre em documentos ou monumentos.

[3] O maravedi velho de ouro ou de Alem Douro (chamado
assim para o distinguir do maravedi de 15 soldos, que era aquelle
pelo qual se regulavam as quantias dos que vingavam soldo ou
maravedis, a que se chamava da Estremadura) valia 27 soldos,
isto é, menos de libra e meia das antigas, cada uma das quaes
era igual a 20 soldos. A dobra de ouro conhecida pelo nome vulgar
de pé-terra, mandada lavrar por D. Fernando, tinha o valor legal
de 6 libras, e, portanto, era mui superior nominalmente ao antigo
maravedi, excedendo em preço mais de quatro vezes. Todavia, bem
pelo contrario, o valor real d'uma dobra pé-terra era inferior ao
maravedi velho na razão de 20 para 32 1/2. A alteração da moeda
feita por D. Fernando no principio do seu reinado confundiu e
transtornou completamente o antigo systema monetario: as barbudas,
das quaes havia 53 em cada marco da lei de 3 dinheiros, vinham
a ser iguaes ás libras novas deste rei, porque, produzindo até
ahi um marco da lei de 11 dinheiros 27 libras, ficou em a nova
moedagem produzindo 165, o que dada a differença do toque entre
o marco de lei e o marco das barbudas, tornava cada uma destas
a mesma cousa que a libra. Por outra parte, equivalendo cada
libra a 20 soldos, moeda sem valor intrinseco, vinha o marco
de lei a ser representado por 3.900 soldos, e assim o antigo
maravedi d'ouro correspondente á vigesima parte de um marco de
prata, correspondia realmente a 195 soldos, ao passo que cada
pé-terra, sendo o mesmo que 6 libras, não valia mais de 120 soldos,
isto é, ficava para aquella moeda na razão de 20 para 32 1/2.

[4] Os cavalleiros quando se punham a caminho costumavam
cavalgar em mulas, como animaes mais rijos e possantes que os
cavallos; nestes montava um pagem ou donzel. Veja-se principalmente
a lei de D. Afonso III sobre os que vão a cas de elrei.

[5] Aquelles que não conhecerem as opiniões, estado de
civilisação, e costumes da idade média, medirão o thesoureiro-mór
D. Judas por um ministro de fazenda moderno, como, se não nos
engana a memoria, lhe chama com uma ignorancia deliciosa o marquez
de Pombal em uma lei sobre os christãos-novos, e acharão inverosimil
a scena antecedente, posto que esteja bem longe d'isso. A falta de
christãos habilitados para tractarem materias de fazenda publica,
obrigou os reis portuguezes a despresarem a lei das côrtes de 1211,
que os inhibia de empregarem judeus no seu serviço. Mas esta
necessidade não podia destruir o profundo desprezo em que se tinha
esta raça, olhada como abominavel em consequencia das convicções
politicas e religiosas daquelles tempos, despreso que em grande parte
assentava em bons fundamentos. A idéa que se fazia de um judeu na
idade média acha-se expressa na lei 23.ª daquellas côrtes, e pinta
melhor o pensar dessas eras a similhante respeito do que tudo quanto
podessemos aqui escrever. "Os quaes judeus (diz o legislador) assy
como testemunho da morte de Jesu-Christo devem a seer defesus,
solamente porque som homeês." Juncte-se a isto o caracter cruel,
hypocrita e cubiçoso de D. Leonor Telles, tão excellentemente
pintado pelo grande poeta chronista Fernão Lopes, e poder-se-ha
então avaliar devidamente a verosimilhança desta scena de imaginação
no meio de outras scenas da vida real desses tempos.



MESTRE BARTHOLOMEU CHAMBÃO


Fr. Roy, saíndo da casa das arcas, atravessára os corredores
vizinhos; mas, em vez de seguir o que dava para o passadiço de
S. Martinho, tomára por uma escadinha escura aberta no topo da
estreita passagem anterior a elle. Esta escadinha descia para o
atrio do paço. O beguino, habituado pelo seu ministerio a entrar
na morada real ás horas mortas, e a saír nas menos frequentadas,
sabia por diuturna experiencia que a porta principal devia estar
aberta, mas ainda erma, ao mesmo tempo que a igreja, por onde
entrára, já começaria a povoar-se de fiéis, porque, como é facil
de suppôr, as igrejas eram naquella epocha mais frequenfadas que
hoje. Desceu, pois, com passo firme, resolvido a encaminhar-se
ao rocío, e a espalhar entre os amotinados a noticia da partida
d'elrei.

Mas uma difficuldade imprevista lhe embargou os passos. Ou fosse
que os acontecimentos da vespera obrigassem a maiores cautelas,
não havendo ainda então exercito permanente, nem guardas pagas
para defensão da pessoa real, cuja melhor protecção estava na
propria espada, ou fosse por qualquer outro motivo, a porta ainda
se não abríra! O beguino hesitou se devia retroceder para sair
pela igreja, se esperar. As considerações que o tinham movido
a seguir este caminho o obrigaram a ficar. Mettido no estreito
e escuro vão da escada, o ichacorvos assemelhava-se, involto
nas suas roupas de burel, e reluzindo-lhe os olhos á meia luz
que dava o pateo interior, a um moderno funccionario, que hoje,
nesses mesmos paços, e n'um desvão igual, talvez no mesmo sitio,
mostra aos que entram o rosto banhado na hediondez da sua alma,
esperando que a vindicta publica o convide a algum banquete de
carne humana, e no esperar atroz rodêa com as garras os ferros
do seu covil, como um tigre captivo. O espia era alli, por assim
dizer, uma preexistencia, uma harmonia pre-estabelecida do algoz.

Passára obra de meia hora, e o beguino começava a impacientar-se
mui seriamente quando sentiu pés de cavalgadura no pateo interior do
edificio. D'ahi a pouco um donzel, trazendo na mão uma desconforme
chave, e as rédeas de uma valente mula enfiadas no braço, chegou á
porta e começou a abri-la. Era um dos donzeis d'elrei. Costumado
a disfarçar a sua frequente entrada no paço sob a capa da
mendicidade, e habituado a estender a mão á espera de alguns
soldos que devotamente lhe atiravam senhores, cavalleiros e
escudeiros, ao que elle retribuia com a longa lenda das suas
orações em aleijado latim, Fr. Roy era acceito a quasi todos
os moradores da casa d'elrei, que respeitavam a sua apparente
sanctidade. Por isso, saindo do seu desvão, encaminhou-se para
a porta.

"A madre Sancta Maria vos guarde de máu olhado, de feitiços e
de ligamentos:--disse elle, chegando-se ao donzel, e fazendo
sobresair esta ultima palavra.

"Vós aqui, Fr. Roy. por estas horas?--replicou o donzel, voltando-se
admirado.

"Que quereis!--tornou o beguino.-Quando hontem os maldictos burguezes
accommetteram os paços reaes com sua grita e revolta, estava eu
aqui. Ai que medo tive! Escondi-me naquelle desvão, e quando
se fecharam as portas achei-me encurralado cá dentro como um
emparedado em seu nicho. A minha profissão de paz e de religião
não me consentia passar por meio de homens possuídos do espirito
de colera, e inspirados por Belzebuth, nem o susto me deixava
animo desaffogado para ir roçar o burel do meu santo habito pelos
trajos empestados dos filhos de Belial. Tambem a humildade e
mortificação christan se oppunham a que eu subisse a pedir gasalhado
a algum de vós outros os moradores da casa de nosso senhor elrei.
Assim, louvando a Deus por me conceder uma noite de padecimento,
alli me deixei ficar sohre as lageas humidas, sobre as duras e
agudas arestas dos degráus daquella escada. Agora, que a revolta
é finda, consolado com as dores que me traspassam os ossos, e
confiado na providencia de Jesu-Christo, vou-me ao meu gyro diario
para vêr se obtenho da caridade dos devotos a pitança usual com
que possa matar a fome de vinte e quatro horas, pela qual dou
mil louvores ao justo juiz, que reina eternalmente nos altos
céus."

O beguino revirou beatificamente os olhos, e fez uma visagem entre
afllicta e resignada, levando ao mesmo tempo a mão ao joelho,
como se alli sentisse uma dor agudissima.

"Veneravel Fr. Roy!--atalhou o donzel com as lagrymas nos olhos--se
tivesseis procurado o aposento dos donzeís, nós vos dariamos
ao menos um almadraque para repousar, e repartiriamos comvosco
da nossa cêa. Mas o mal esta feito, e o peior é que para hoje
não vos posso offerecer abrigo. Vós crêdes, sancto homem, que a
revolta é finda, e nunca ella esteve mais accesa. Sua senhoria
vae partir já da cidade ..."

"Sancta Maria val! Sancto nome de Jesus! Accorrei-nos, virgem
bemdicta!--interrompeu Fr. Roy.--Pois os populares teimam em
sua assuada, e elrei deixa-nos aos coitados de nós, humildes
religiosos e cidadãos pacificos, entregues ao furor dos peões?"

"E que remedio, bom Fr. Roy?!--replicou tristemente o donzel.--Sem
cavalleiros, escudeiros e bésteiros não se faz guerra, nem se
desfazem assuadas, e nada d'isto tem elrei. Agora vou eu ao rocío
avisar os senhores do conselho, os privados e fidalgos que lá
estão, que sigam caminho de Santarem, sob pena de incorrerem
em caso de traição se ficarem em Lisboa, por signal que elrei
me recommendou procurasse avisar primeiro que ninguém sua mercê
o infante D. Diniz."

"No rocío, dizeis vós?--tornou o beguino arregalando os
olhos.--Confesso que vos não entendo."

Durante este dialogo o donzel tinha acabado de destrancar a porta
do paço, cavalgado na mula que trazia de rédea, e saído ao terreiro
seguido de Fr. Roy, que coxeava, estorcia-se, e suspirava
dolorosamente de quando em quando. Passo a passo, e sofreando
a mula, caminho da sé, o pagem narrou ao beguino todas as
particularidades succedidas aquella manhan, as quaes Fr. Roy
sabia melhor do que elle. Chegados defronte dos paços do concelho,
o pagem tomou pelo sopé da alcaçova e Fr. Roy pela porta do ferro,
não sem terem primeiro saído da bolça do donzel para a manga
do beguino alguns pilartes[1], e da bôca deste para os ouvidos
daquelle alguns latinorios pios devidamente escorchados.

Apenas passára o largo da sé e transpozera a velha e soturna
porta do ferro, Fr. Roy se achára perfeitamente sarado do seu
tão agudo rheumatismo. Ligeiro como um galgo, desceu por entre
as antigas terecenas reaes, e em menos de tres credos estava no
pelourinho[2] Ahi viu cousa que o fez parar. Um homem vestido
de valencina, e coberta a cabeça com um grande feltro, arengava
a um troco de bésteiros e peões armados de lanças ou ascumas, de
almarcovas ou cutellos: tinha nas mos um desconforme montante, e
na cincta uma espada curta: a turba ora o escutava attentamente,
ora prorompia em gritos confusos e estrondosos. Fr. Roy chegou-se.
O homem do feltro amplo era o mestre tanoeiro Bartholomeu Chambão,
que enthusiasmado proseguia o seu vehemente discurso sem reparar
no beguino:

"Já vo-lo disse: d'aqui ninguém bóle pé antes d'elrei nosso senhor
saír para S. Domingos. Nada de bulha fóra de sazão, que lá estão
os esculcas. Daremos mostra ao paço quando ahi fôr só a adultera.
Se, como hontem, nos fecharem as portas, isso é outro caso. É
preciso que isto se desfaça. A cobra peçonhenta deve saír da
toca. Não digo que então não seja possivel esmagar-se-lhe a cabeça...
N'um brandir de ascuma... Mas cautela, não haja sangue!...
Pelo menos de innocentes... Leaes e esforçados cidadãos desta
mui leal cidá... Sáfa, bruto!"

Esta peroração inesperada com que mestre Bartholomeu interrompêra
o seu discurso, que se ía elevar ao ápice da eloquencia, procedêra
de lhe ter descido a grossa e espaçosa mão do ichacorvos sobre o
hombro, que lhe vergára como se houvessem descarregado em cima
delle uma aduella de cuba. A Fr. Roy occorrêra uma idéa abençoada,
a de communicar a mestre Bartholomeu a nova que D. Leonor lhe
recommendára espalhasse entre os amotinados; a nova da sua partida
de Lisboa com elrei. O mendicante sabía que o tanoeiro era homem de
bofes lavados, e que dentro de meia hora a noticia teria corrido
toda a cidade. Assim se esquivava não só a ser visto no rocío
pelo donzel, de quem naquelle instante se apartára, mas tambem
a achar-se involvido em qualquer desordem que semelhante noticia
poderia produzir, attenta a irritação dos animos. Além d'isto
a lembrança do arripio dorsal, que as ultimas palavras de D.
Leonor lhe tinham causado, lhe fazia quasi desejar que o tanoeiro,
encarregado (segundo percebêra do fim da sua arenga) da commissão,
que, na taberna de Folco Taca, Diogo Lopes incumbíra a Fernão
Vasques, podesse ainda desempenha-la, atalhando a fuga de D.
Leonor. Estas considerações que lhe haviam passado rapidamente
pelo espirito, e o vêr que mestre Bartholomeu não levava geito
de acabar, o moveram a falar ao tanoeiro, que só o sentíra quando
elle lhe descarregára sobre o hombro a ponderosa mas amigavel
palmada.

"Com mil e quinhentos satanazes!--exclamou mestre Bartholomeu,
voltando-se e vendo ao pé de si o beguino.--Sabia que a mão da
sancta madre igreja era pesada; mas não pensava que o fosse tanto!
Que me quereis, Fr. Roy?"

"Dizer-vos que podeis mandar saír vossos esculcas de sua atalaia;
porque poderiam chegar a curtir o inverno ahi antes de verem
elrei chegar e passar para S. Domingos."

"Fr. Roy,--replicou o tanoeiro, fazendo-se vermelho de colera--para
interromper-me com uma de vossas bufonerias não valia a pena de
me aleijardes este hombro!"

"Tomae como quizerdes as minhas palavras; chamae-me o que vos
aprouver, bufão ou mentiroso, mas a verdade é que não será hoje
que os populares falarão com elrei."

"Pois quê, morreu dos feitiços da adultera, ou lornou-o invisivel
algum encantador seu amigo?"

"Nem uma cousa nem outra: mas com estes olhos de grande peccador
(aqui o ichacorvos fez o gesto habitual de cruzar as mãos sobre
o peito) eu o vi sair para a banda da portada cruz..."

"Fr. Roy, olhae que estes honrados cidadãos vos escutam, e que
o auto é mui grave para gastar truanices."

"Já disse, mestre Bartholotmeu, que falo verdade. Pelo bento
cercilho do sancto-padre vos juro que hoje elrei não dormirá em
Lisboa, segundo o geito que lhe vejo. Elle cavalgava uma possante
mula de caminbo; n'outra ia uma dona coberta com um longo véu:
seguiam-no donzeis, falcoeiros e moços de monte. Ao passar ainda
lhe ouvi estas palavras:--olhae aquelles villãos traidores como
se junctavam: certamente prender-me quizeram, se lá fora[3]!--Não
pude perceber mais nada. Que mais, porém, é preciso? Deixastes
fugir a prêa: agora catae-lhe o rasto."

"Traidor é elle, que nos ha mentido como um pagão!--bradou o
tanoeiro sopesando o montante.--Mas que se guarde de outra vez
trazer a Lisboa a adultera! Rainha ou barregan, arrancar-lhe-hemos
os olhos. A arraya-miuda foi escarnida; mas não o será em vão.
Que dizeis vós outros, honrados burguezes?"

"Escarnidos, escarnidos!--respondeu com grande grila o tropel.--Mas
à fé que nunca a adultera será rainha de Portugal. Morra a comborça!"

E no meio da alarida, as pontas das lanças e os largos ferros
das almarcovas agitadas nos ares scintillavam aos raios do sol
oriental como um vasto brazido.

"Ao rocío! ao rocío!--gritou mestre Bartholomeu.--Vamos, rapazes:
já que não fazemos aqui nada, ao menos que o povo não seja por
mais tempo burlado!"

E pondo o montante ás costas, mestre Bartholoraeu tomou por uma
das ruas que davam para a banda de Valverde, seguido da turbamulta,
e sem fazer caso de Fr. Roy, que procurava rete-lo, ponderando que
ainda poderia alcançar elrei e fazê-lo retroceder. O tanoeiro, porém,
não tinha valor para affrontar-se face a face com D. Fernando, e
por isso fingiu não ouvir o beguino, que dentro de alguns minutos
se achou só no meio do terreiro calado e deserto.

Entretanto juncto a S. Domingos, se bem que a rixa começada entre
os nobres partidários de Leonor e Fernão Vasques se houvesse
desvanecido, a agitação dos populares, cujo numero crescia
continuamente, não tinha diminuido. Encostado a um dos pilares
do alpendre, o alfaiate ora lançava os olhos de revés para os
senhores da côrte e conselho, que, esperando por elrei, passeiavam
de um para outro lado, ora os espraiava por aquelle mar de vultos
humanos, que elle sabía poder agitar ou tornar immoveis com uma
palavra ou com um simples aceno. Semelhante á hora que precede
a procella, em que apenas se vêem correr na atmosphera abalada
os castellos encontrados de nuvens densas e negras, e se ouve o
estourar dos trovões roufenhos e prolongados, aquella hora que
então passava era espantosa e ameaçadora de estragos, sobretudo
quando, após um rugido terrivel do tigre popular, se fazia na
praça apinhada de gente um silencio ainda mais temeroso e tetrico.

Foi n'uma destas interrupções do motim que um pagem, saíndo ao
galope do lado da corredoura, veio apear-se juncto do alpendre,
e tirando da cincta um pergaminho aberto o entregou ao infante
D. Diniz.

Este fitou os olhos na escriptura, descórou subitamente, e entregou
o pergaminho a Diogo Lopes, dizendo-lhe ao mesmo tempo em voz
baixa:

"Estamos perdidos!"

Diogo Lopes leu o conteúdo naquelle escripto fatal, e no mesmo
tom respondeu ao infante:

"O caminho de salvação que nos resta é o de Santarem. Obediencia
e circumspecção!"

O pergaminho passou rapidamente de mão em mão: os fidalgos, letrados,
e cavalheiros fizeram um circulo no meio do alpendre: e, depois
de o haverem lido, fitaram uns nos outros olhos desassocegados.
Todos receiavam falar. O manhoso Pacheco foi o primeiro que se
atreveu a isso, aproveitando habilmente a hesitação dos outros
fidalgos e conselheiros.

"Vistes a ordem d'elrei. Como um dos mais velhos entre nós, direi
meu parecer. Embora o risco seja grande achando-nos cercados de
povo armado e furioso, o nosso dever é pôr a vida por obedecer
a nosso senhor elrei."

"Mas,"--atalhou o doutor Gil d'Ocem, que por mui letrado e prudente
era ouvido como oraculo pelos cortezãos--"o caso é grave: o povo
se nos vir retirar enviar-se-ha a nós: se lhes dizemos o motivo
da nossa partida é capaz de desconcertos maiores que os já
commettidos."

"Sua senhoria não devêra ter-nos emprasado para este auto, se a
sua intenção era não dar resposta aos populares."

Visivelmente o doutor em leis e degredos estava tomado de medo,
no que não levava vantagem á maior parte dos outros membros do
conselho real.

O conde de Barcellos guardava silencio. Não podia conceber como
D. Leonor o não avisára a tempo, e por isso preoccupava-o a
indignação, ignorando que a resolução da fuga fôra tomada mui
tarde. Na vespera elle aconselhara a elrei que cedesse a tudo
quanto o povo quizesse; porque dissolvido o tumulto, facil era
chamar á côrte os senhores e cavalleiros de mais confiança,
acompanhados de gente do guerra, com que seria sopitado qualquer
motim, se os populares ousassem oppôr-se de novo á vontade de
seu rei e senhor. D. Fernando aceitára o conselho, que, se não
era o mais leal, era ao menos o mais seguro; mas as revelações
do ichacorvos, que o conde ignorava, tinham mudado, como o leitor
viu, a situação do negocio.

A reflexão de Gil d'Ocem estava em todas as cabeças, e por isso
os cortezãos ficaram outra vez em silencio, como buscando um
expediente para sair daquelle difficultoso passo: a incerteza,
o despeito, o receio pintava-se nos rostos demudados de muitos.

E as vagas do oceano, que ameaçava traga-los, encapellavam-se
aos pés deites: o povo, vendo os fidalgos erguidos e mudos n'um
circulo, apinhava-se cada vez mais basto ao redor da alpendrada.
Isto fazia crescer o temor, e o temor perturbava demais os animos
para não poderem achar um expediente acertado.

Era por isso que esperava o astuto Pacheco.

"De um lado a colera do povo: do outro os mandados delrei--disse,
apertando com a mão a fronte, o velho conselheiro de Affonso
ÍV.--Resta-nos só um arbitrio."

"Dizei, dizei!--clamaram a um tempo todos, á excepcão do conde
de Barcellos, que fitou nelle os olhos desconfiados.

"É necessário que annunciemos a nova da partida d'elrei, e que
sejamos os primeiros a affeíar este procedimento: é necessário
que vamos adiante da indignação dos peòes. Depois dir-lhes-hemos
que, burlados como elles, nada fazemos aqui. Então apartar-nos-hemos
sem susto, e sairemos da cidade como podérmos, na certeza de que
não serei eu o ultimo, apesar de velho, que cruze as portas da
alcaçova de Santarem."

"Mas quem ha-de falar em nosso nome?--perguntou Gil d'Ocem.

"No vosso, mestre Gil das Leis!--interrompeu o conde de
Barcellos.--Nem o receio das affrontas do alguns milhares de
sandeus, nem o da propria morte me obrigaria a cuspir maldicções
sobre o nome daquelle a quem uma vez jurei preito e leal menagem."

"Viram impendere vero nemo tenetur"--replicou Gil d'Ocem--"ou,
como quem o dissesse por linguagem, ninguém é obrigado a deixar-se
matar por amor da verdade ou de seu preito. Vós fazei o que vos
aprouver."

Á auctoridade de um texto latino trazido assim a ponto por um tão
insigne doutor, não havia resistir. Os fidalgos e conselheiros
approvaram quasi unanimente o alvitre de Diogo Lopes.

"Mas quem ha-de falar ao povo?--insistiu o mestre em leis, que
não parecia excessivamente inclinado a incumbir-se dessa gloriosa
tarefa.

"Eu, se assim o quizerdes"--replicou immediatamente Diogo Lopes.

O manhoso cortesão vira claramente que a partida d'elrei transtornava
todos os seus desenhos: todavia calculára n'um momento como,
sem suscitar a indignação de Fernão Vasques, e por consequencia
alguma revelação perigosa, podia salvar-se e ao infante. Logo
que elrei se esquivára á influencia do povo, de cuja ousadia o
velho esperava tudo, o casamento de D. Leonor era inevitavel,
e ainda suppondo, o que não era de esperar, que o tumulto fosse
avante, que Lisboa se rebellasse claramente contra D. Fernando,
o resultado da guerra civil tinha muito maior probabilidade de
ser favoravel a elrei, senhor do resto de Portugal, que ao povo,
desprovido naquella conjunctura dos principaes meios com que
poderia sustentar uma lucta intestina. Assim, o alvitre que
offerecêra para a salvação dos cortezãos era só para se haver de
salvar a si, conservando ao mesmo tempo a affeição dos cabeças
da revolta, sem que o meio que para isso devia empregar o fizesse
decahir da graça de D. Fernando.

Para os calculos de Diogo Lopes faltáro, porém, um elemento:
era a delação do beguino; e era justamente, esta falta que os
destruia todos. Assim é a politica.

O sacrifício de Diogo Lopes foi geralmente recebido com approvação
e agradecimento. Então elle, saíndo do circulo, aproximou-se a
Fernão Vasques, que de quando em quando volvia os olhos inquietos
para a pinha dos fidalgos e cavalleiros.

"Falhou a traça:--disse o velho cortezão em voz sumida ao
alfaiate.--Elrei acaba de saír da cidade."

Fernão Vasques recuou, e poz-se a olhar espantado para Diogo Lopes,
como quem não acreditava o que ouvia.

"O que vos digo é a verdade,--continuou Pacheco.--Mas não affrouxar!
Elrei de Castella é por nós, e bom numero de fidalgos portuguezes
o são tambem. Mais; são por nós a maior parte dos que ora aqui
vêdes presentes. Conservae o bom animo do povo, e fiae o resto
de mim e ... de quem vós sabeis."

Ao pronunciar estas palavras, Diogo Lopes lançou de relance os
olhos para D. Diniz.

"Mas elrei tomará por mulher D. Leonor--acudiu o alfaiate
aterrado:--voltará a Lisboa com seus cavalleiros e homens d'armas,
e então coitados de nós!"

"Não temaes: o matrimonio adultero será condemnado pelo papa. Vós
já tereis ouvido contar o que succedeu a elrei D. Sancho: a D.
Fernando póde succeder o mesmo. Tambem os fidalgos de Portugal têem
homens d'armas. Podeis estar certo de que não vos abandonaremos.
Agora resta uma cousa. Coube-me a mim dar esta triste nova aos bons
e leaes burguezes, que tão ousadamente se oppozeram á deshonra
da sua terra e de seu rei, e eu devo ser ouvido por elles.
Mandae-lhes que façam silencio."

Fernão Vasques obedeceu: o ruído dos populares, que não descontinuára
durante esta scena, acalmou a um aceno do alfaiate.

Diogo Lopes fez então um largo discurso, com o qual não cansaremos
os leitores, que pouco mais ou menos terão previsto como seria.
Misturando amargas reprehensões contra D. Fernando com lisonjas aos
populares, procurou persuadi-los, posto que indirectamente, de que
toda a fidalguia estava cheia de indignação. Alludiu á resistencia
por armas que elrei podia encontrar entre os ricos-homens de
Portugal contra o seu casamento, e no caso de vir este a cabo,
a probabilidade de ser annullado pelas censuras da igreja. Emfim,
sem nunca lhes dizer claramente que insistissem na revolta, e
tractassem, se fosse preciso, de defender a cidade contra o poder
real, suscitou todas as idéas que podiam levar os populares a
este excesso. Faltava o ponto difficultoso; o da partida dos
fidalgos. Pacheco soube com a mesma ambiguidade dar esperanças
aos peões de que elles se encaminhavam para suas alcaidarias
e honras com o louvavel intento de se aperceberem em soccorro
dos burguezes de Lisboa, e com tal arte o fez, que os senhores
e cavalleiros que se achavam em S. Domingos, sem exceptuar o
proprio conde de Barcellos, não viram nas suas palavras senão
uma feliz inspiração para os salvar da colera da arraya-miuda.

Durante aquella larga arenga esta guardára silencio, interrompido
a espaços por um desses borborinhos, que são como os annuncios
das erupções do volcão popular. Pacheco, emfim, concluiu: mas
o espectaculo que tinha diante de si o fez ficar immovel por
alguns momentos; e estes foram terriveis. Aquelles centenares de
olhos avermelhados, scintillantes de furor, eravados nelle e nos
outros fidalgos; aquellas bôcas semi-abertas prestes a proromper
em brados de morte, eram como um pesadello diabolico, como uma
vertigem de loucura. Os populares pareciam ainda escuta-lo, e
não poderem acreditar a deslealdade de D. Fernando de Portugal.

Os fidalgos aproveitaram este instante de torpor moral que precedia
a procella. Desceram da alpendrada, e montando nas suas possantes
mulas, encaminharam-se vagarosamente para a banda da corredoura.
No meio da cavalgada, e rodeado dos cavalleiros mais bemquistos
do povo ía o conde de Barcellos, e Diogo Lopes com os seus pagens
fechava o sequito. Se houvessem atravessado a praça, o conde teria
corrido grande risco; porque, ao dobrar o angulo do mesteiro, ja
os doestos grosseiros e violentos voavam contra elle do meio
do povo apinhado, e até dois virotes de bésta pareceu sibilarem
por cima da sua cabeça. Mas apertando os acicates, os cavalleiros
seguiram ao longo da corredoura, em quanto Diogo Lopes, victoriado
pelas turbas, a quem com sorrisos retribuia aquellas mostras de
affécto, obstava a que as ondas populares rodeassem o diminuto
numero de cortezãos, alguns dos quaes tinham fundados motivos
para receiar a irritação desses animos ferozes, exaltados pela
fuga d'elrei.

A cavalgada linha desapparecido, quando um troço de bésteiros
e peões desembocou do lado da rua nova. Eram mestre Bartholomeu
e a sua gente, que vinham confirmar a nova dada por Diogo Lopes
Pacheco.

Mas as palavras que Fr. Roy dissera ter ouvido proferir a elrei,
lançadas entre os amotinados como um facho sobre montão de lenha
por onde lavra ha muito fogo occulto, levaram o tumulto a um ponto
medonho. As affrontas, que até ahi quasi só se encaminhavam contra
Leonor Telles e seus parciaes, voltaram-se contra D. Fernando. As
maldieçòes, as pragas, os nomes de traidor e covarde se ajunctavam
ás mais violentas ameaças. Uns juravam que nunca mais elle entraria
em Lisboa; outros propunham que se lançasse fogo aos paços reaes.
Debalde Fernão Vasques trabalhava por aquieta-los; nem já escutavam
o seu idolo. Furiosos espalhavam-se pelas ruas, que atroavam com
gritos, brandindo as armas; e por certo que se neste momento D.
Fernando lhes tivesse apparecido, não teriam talvez respeitado
a vida do filho do seu tão querido D. Pedro I, o mais popular
de todos os nossos reis, chamados da primeira dynastia.

Este motim sem objecto, sem resistencia, e sem resultado, acalmou
nesse mesmo dia. Ao anoitecer, a cidade tinha cahido no seu habitual
silencio, e pouco a pouco os fidalgos e cavalleiros, atravessando
as portas da cruz, seguiam caminho de Santarem. O systema militar
dos antigos parthos dera a victoria a elrei: elle vencêra fugindo!

O povo adormeceu: os cabeças da revolta estavam irremediavelmente
perdidos.

[1] Moeda de prata de cinco soldos.

[2] As terecenas ou taracenas reaes, isto é o deposito
dos aprestos das galés, de guerra, eram juncto ao sitio em que
hoje vemos a igreja da Magdalena: o pelourinho velho ou Açougues
era um terreiro que ficava pouco mais ou menos no fim da rua
da Praia.

[3] Nom quis alla hir e partiose da çidade com D. Lionor,
ho mais escusamente que pode, e hi a dizendo pello caminho; "Oulhaae,
&c."--Fernão Lopes, chr. de D. Fernando c. 61.



UMA BARREGAN RAINHA.


O Douro é bem carregado e triste! A sua corrente rapida, como que
angustiada pelos agudos e escarpados rochedos que a comprimem,
volve aguas turvas e mal assombradas. Nas suas ribas fragosas
raras vezes podeis saudar um sol puro ao romper da alvorada,
porque o rio cobre-se durante a noite com o seu manto de nevoas,
e através desse manto a atmosphera embaciada faz cahir sobre a
vossa cabeça os raios do sol semi-mortos, quasi como um frio
reflexo de lua, ou como a luz sem calor de uma tocha distante. É
depois de alto dia que esse ambiente, semelhante ao que rodeava
os guerreiros de Ossian, vos desopprime os pulmões, onde muitas
vezes tem depositado já os germens da morte. Então, se, trepando a
um pinaculo das ribas, espraiaes os olhos para a banda do sertão,
lá vêdes como uma serpente immensa e alvacenta, que se enrosca
por entre as montanhas, e cujo colo esta por baixo de vossos
pés: é o nevoeiro que se acama e dissolve sobre as aguas que
o geraram. O horisonte até ahi turvo, limitado, indistincto,
expande-se ao longe, contornêa-se dos cimos franjados das montanhas
engastadas na cortina azul do horisonte, e a terra, a perder
de vista, parece-nos um mar de verdura violentamente agitado;
porque em desenhar as paizagens do Douro a natureza empregou
um pincel semelhante ao de Miguel Angelo: foi robusta, solemne
e profunda.

Como sobre um circo convertido em naumachia, o Porto ergue-se
em amphitheatro sobre o esteiro do Douro, e reclina-se no seu
leito de granito. Guardador de tres provincias, e tendo nas mãos
as chaves dos haveres dellas, o seu aspecto é severo e altivo,
como o de mordomo de casa abastada. Mas não o julgueis antes
de o tractar familiarmente. Não façaes cabedal de certo modo
aspero e rude que lhe haveis de notar; trazei-o á prova, e
achar-lhe-heis um coração bom, generoso e leal. Rudeza e virtude
são muitas vezes companheiras; e entre nós, degenerados netos do
velho Portugal, talvez seja elle quem guarde ainda maior porção
da desbaratada herança do antigo caracter portuguez no que tinha
bom, que era muito, e no que tinha mau, que não passava de algumas
demasias de orgulho.

Nos fins do seculo decimo-quarto o Porto ía ainda longe da sorte
que o aguardava. O fermento da sua futura grandeza estava no
caracter dos seus filhos, na sua situação e nas mudanças politicas
e industriaes que depois sobrevieram em Portugal. Posto que nobre,
e lembrado como origem do nome desta linhagem portugueza, os seus
destinos eram humildes comparados com os da theocratica Braga,
com os da cavalleirosa Coimbra, com os de Santarem a cortezan, com
os de Evora a romana e monumental, com os de Lisboa, a mercadora,
guerreira e turbulenta. Quem o visse coroado da sua cathedral,
semi-arabe, semi-gothica, em voz de alcacer ameiado; soltoposta,
em vez de o ser á torre de menagem, aos dous campanarios lisos,
quadrangulares e macissos, tão differentes dos campanarios dos
outros povos christãos, talvez porque entre nós os architectos
arabes quieram deixar as almadenas das mesquitas estampadas como
um ferrete da antiga servidão na face do templo dos nazarenos;
quem assim visse o burgo episcopal do Porto, pendurado á roda
da igreja, e defendido antes por anathemas sacerdotaes, que por
engenhos de guerra, mal pensaria que desse burgo submisso nasceria
um emporio de commercio, onde dentro de cinco seculos, mais que
em nenhuma outra povoação do reino, a classe então fraca e não
definida, a que chamavam burguezia, teria a consciencia da sua
força e dos seus direitos, e daria a Portugal exemplos de um
amor tenaz d'independencia e de liberdade.

A populosa e vasta cidade do Porto, que hoje se estende por mais
de uma legua desde o Seminario até além de Miragaia, ou antes
até a Foz, pela margem direita do rio, entranhando-se amplamente
para o sertão, mostrava ainda nos fins do seculo decimo-quarto
os elementos distinctos de que se compoz. Ao oriente o burgo
do bispo, edificado pelo pendor do monte da sé, vinha morrer
nas hortas, que cobriam todo o valle onde hoje estão lançadas
a praça de D. Pedro e as ruas das Flores e de S. João, e que
o separavam dos mosteiros de S. Domingos e de S. Francisco. Do
poente a povoação de Miragaia, assentada ao redor da ermida de
S. Pedro, trepava já para o lado do Olival, e vinha entestar
pelo norte com o couto de Cedofeita, e pelo oriente com a villa
ou burgo episcopal. A igreja, o municipio, e a monarchia entre
esses limites pelejaram por seculos suas batalhas de predominio,
até que triumphou a corôa. Então a linha que dividia as tres
povoações desappareceu rapidamente debaixo dos fundamentos dos
templos e dos palacios. O Porto constituiu-se a exemplo da unidade
monarchica.

Era neste burgo ecclesiastico, nesta cidade nascente, que por
um formoso dia de janeiro da era de Cesar de 1410 (1372) se viam
varridas e cobertas de espadanas e flores as estreitas e tortuosas
ruas que pela encosta do monte guiavam ao burgo primitivo fundado ou
restaurado pelos gascões, se não mentem memorias remotas[1]. Na rua
do Souto, já assim chamada, talvez pela vizinhança de algum bosque
de castanheiros[2], como principal entrada da povoação, andavam
as danças judengas e folias mouriscas com musicas e trebelhos
ou jogos, por entre o povo vestido de festa, o que era indicio
evidente de que se esperava elrei, cuja vinda a qualquer povoação
era o unico motivo legal para fazer dançar e foliar judeus e
mouros, que de certo não folgavam com estes forçados e dispendiosos
signaes de contentamento publico.

Com effeito uma numerosa e esplendida cavalgada viha da banda
do bailiado de Leça, Elrei D. Fernando ajunctára em Santarem os
seus ricos-homens e conselheiros: amestrado por Leonor Telles na
arte de dissimular, recebêra com todas as mostras de boa-vontade
o infante D. Diniz e Diogo Lopes Pacheco, ao qual, para maior
disfarce, não escaceára mercês[3]. Depois em folgares e caçadas
vagueára pelo reino com D. Leonor, até que em Eixo fizera um como
manifesto da resolução que tomára de a receber por mulher, o que
neste dia cumpríra na antiga igreja daquella celebre commenda dos
Hospitalarios. Era, pois, para celebrar este matrimonio adultero,
agourado pelas maldicções populares, que o bispo D. Affonso, menos
escrupuloso que o povo de Lisboa ácerca de adulterios, vestia
de festa o seu mui canonico burgo[4].

A cavalgada, que se víra descer ao longo do valle, já atravessava
o rio da villa pela ponte do Souto[5] e encaminhava-se para uma
antiga porta da povoação primitiva, porta conhecida ainda hoje,
como então, pelo nome de Vandoma. Ao lado direito d'elrei ia D.
Leonor, a rainha de Portugal: elle montado em um cavallo de guerra;
ella em um palafrem branco, levado de redea desde a entrada da
ponte pelo infante D. João, que familiarmente falava e ria com a
formosa cavalleira. Da banda esquerda o bispo D. Affonso, curvado e
enfraquecido pela velhice, oscillava e fazia cortezias involuntarias
a cada passada da mansissima e veneranda mula episcopal. Juncto ao
velho prelado o infante D. Diniz caminhava em silencio, e no aspecto
melancholico do mancebo se divisava que uma profunda tristeza lhe
consumia o coração, vendo-se como atado ao carro triumphal da
mulher que pouco a pouco se convertêra em sua irreconciliavel
inimiga. Após estas principaes personagens via-se uma grande
multidão de cavalleiros, clerigos, cortezãos, conselheiros, juizes
da côrte, companhia esplendida, por entre a qual brilhava o ouro,
a prata, e as variadas côres dos trajos de festa, que sobresaiam
no chão negro das vestiduras roçagantes dos magistrados e clerigos.
Adiante d'elrei as danças dos mouros e judeus volteavam rapidas
ao som da viola ou alaude arabe, das trombetas e das soalhas.
Segundo o antigo uso seguiam-se ás danças córos de donzellas
burguezas, que celebravam cora seus cantos o amor e a ventura
dos noivos[6].

Mas esse canto tinha o que quer que era triste na toada. Triste
era tambem o aspecto dos populares, que sem um só grito de regosijo
se apinhava para vêr passar aquelle prestito real. Mil olhos se
cravavam no infante D. Diniz, cujo rosto melanclholico revelava
que os seus pensamentos eram accordes com os do povo, que por
toda a parte não via neste consorcio senão um crime e uma fonte
de desventuras. Os cortezãos, porém, fingiam não perceber o que
passava á roda delles, e pareciam transbordar de alegria. Muitos
eram daquelles que mais contrarios haviam sido aos amores d'elrei,
mas que vendo emfim D. Leonor rainha, voltavam-se para o sol que
nascia, e calculavam já quantas terras, e que somma de direitos
reaes lhes poderia render da parte de um rei prodigo a sua mudança
de opinião.

Entre elles não se via o tenaz e astuto Pacheco. Habituado ao
tracto da côrte por largos annos, experimentado em todos os enredos
dos paços, habil em traduzir sorrisos e gestos, palavras avulsas
e discursos fingidos, não tardára em perceber que as mercês e
agrados d'elrei e de D. Leonor encobriam intentos de irrevogavel
vingança. Conhecendo que a sedição popular fôra inutil, e que,
ainda renovada com mais furia, não poderia resistir ás armas de
D. Fernando, havia-se affastado da côrte, e posto que só nos
fins desse anno elle passasse a servir o seu antigo protector e
amigo D. Henrique de Castella, buscára entretanto esquivar-se
ao odio da nova rainha, conservando ao mesmo tempo a boa opinião
entre o vulgo.

Abandonado assim do seu guia, o infante D. Diniz soffrêra resignado
um successo que não podia embargar; mas, digno filho de D. Pedro,
conservára intacta a sua má vontade a D. Leonor. Abandonado dos
seus parciaes, vendo, se não trahida, ao menos quasi morta, e
inactiva a alliança de Pacheco, e, para maior desalento, seu
irmão mais velho o infante D. João ligado com essa mulher, da
qual este principe mal pensava então lhe viria a ultima ruina;
no meio de tanto desamparo, o infante, a principio timido e
irresoluto, sentira crescer a ousadia com os perigos; sentíra
girar-lhe nas veías o sangue paterno. Obrigado a seguir a corte,
nunca D. Leonor achára um sorriso nos seus labios; nunca o víra
conter diante della um só signal de despreso. Assim a colera d'elrei
contra seu irmão havia chegado ao maior auge, e os calculos de
fria e paciente vingança estavam resolvidos no animo de Leonor
Telles.

A cavalgada tinha subido a encosta, atravessado a porta de Vandoma,
que em parte ainda subsiste, e passado em frente da sé, juncto
da qual se dilatavam os paços episcopaes. Ahi as danças e folias
pararam e fizeram por um momento silencio: então o infante D.
João, tomando nos braços a formosa rainha, apeou-a do palafrem:
após ella elrei saltou ligeiro do seu fogoso e agigantado ginete.
Dentro em pouco toda a comitiva tinha desapparecido no profundo
portal dos paços, e os donzeís conduziam os elegantes cavallos,
as mulas inquietas e os mansos palafrens para as vastas e bem
providas cavallariças do mui devoto e poderoso prelado da antiga
Festabole[7].

O aposento principal dos paços, quadra vasta e grandiosa, estava
de antemão ornado para receber os hospedes reaes do velho bispo
D. Affonso. Um throno com dous assentos de espaldas indicava
que a elle ia subir tambem uma rainha. D. Leonor entrou seguida
das cuvilheiras e donzellas da sua camara; elrei de todos os
principaes cavalleiros. Viam-se entre estes o alferes-mór Ayras
Gomes da Silva, ancião veneravel, que fôra seu aio, o orgulhoso
mordomo-mór D. João Affonso Tello, Gil Vasques de Resende, aio do
infante D. Diniz, o prior do hospital Alvaro Gonçalves Pereira,
e muitos outros fidalgos que ou seguiam a còrte, ou tinham vindo
assistir ás bodas reaes.

Guiada por D. Fernando, Leonor Telles subiu com passo firme os
degraus do throno. Como o navegante, que, affrontando temporaes
desfeitos por mares incognitos e aparcellados, e chegando ao
porto longinquo, quasi que não crê pisar a terra de seus desejos,
assim esta mulher ambiciosa e audaz parecia duvidar da realidade
da sua elevação. A alma sorria-lhe a míl esperanças; a vida
trasbordava nella. A seu lado um rei, a seus pés um reino! Era
mais que embriaguez; era delirio. Ella sentia um novo affecto,
um como desejo de perdão aos seus inimigos! Tremeu de si mesma,
e convocando todas as forças do coração, salvou a sua ferocidade
hypocrita, que parecia querer abandona-la. Era severo o seu aspecto
quando esses pensamentos estranhos lhe passaram pelo espirito; mas
o sorriso tornou a espraiar-se-lhe no rosto, quando o instincto de
tigre pôde faze-la triumphar desse momento em que a generosidade
costuma accommetter com violencia as almas vingativas e ferozes, o
momento em que se realisa a summa ventura por largo tempo sonhada.

Do alto do throno e em pé, D. Fernando estendeu a mão: o tropel
de cortezâos e cavalleiros, de donas e donzellas formaram aos lados
da espaçosa sala fileiras esplendidas, immoveis e silenciosas:
elrei volveu olhos lentos para um e outro lado, e disse:

"Ricos-homens, infançôes, e cavalleiros de Portugal, um dos mais
nobres sacramentos que Deus neste mundo ordenou foi o matrimonio:
como para os outros homens, para os reis se instituiu elle; porque
por elle as corôas se perpetuam na linhagem real. É por isso que
eu desposei hoje a mui illustre D. Leonor, filha de D. Affonso
Tello, descendente dos antigos reis, e ligada com os mais nobres
d'entre vós pelo divido do sangue. Assim a rainha de Portugal
será mais um laço que vos una a mim como parentes, que de hoje
ávante sois meus. Leaes como tendes sido a vosso rei pelo preito
que lhe fizestes, muito mais o sereis por este novo titulo. Em
que pez a traidores, D. Leonor Telles é minha mulher! Fidalgos
portuguezes, beijae a mão á vossa rainha.[8]"

O velho alferes-mór Ayras Gomes aproximou-se então do throno á
voz do seu moço pupillo; ajoelhou e beijou a mão a D. Leonor;
mas o olhar que lançou para elrei era como o de pedagogo que de
mau humor se accommoda ao capricho infantil de um principe. Ao
volver d'olhos do ancião, D. Fernando córou e voltou o rosto.

O infante D. João, porém, dobrando o joelho aos pés da formosa
rainha, parecia trasbordar de alegria: contemplando-o Leonor
Telles deixou assomar aos labios um daquelles ambiguos e quasi
imperceptiveis sorrisos que, vindos della, sempre tinham uma
significação profunda. Por ventura que no infante D. João ella
já não via mais que o precursor da humilhação de D. Diniz, do
seu capital inimigo.

Após o infante os fidalgos vieram successivamente curvar-se ante
D. Leonor. Boa parte delles eram como os capitães vencidos seguindo
ao capitolio um triumphador romano. Podia-se com effeito dizer
que, mau-grado desses que se rojavam a seus pés, ella conquistára
o throno.

Toda a comprida fileira de nobres e officiaes da corôa tinha
passado e ajoelhado no estrado real. Faltava um; e era este, que,
menosprezando tantas frontes illustres por valor ou sciencia, por
fidalguia ou riqueza, inclinadas perante ella, a mulher orgulhosa
e implacavel esperava, cogitando no momento em que o mancebo ainda
impubere, sem renome, sem poderio, celebre só por seu berço e pelo
desgraçado drama da morte de D. Ignez, viesse tributar homenagem
á que representava um papel analogo ao daquella desventurada,
salvo na sinceridade do amor e na innocencia da vida.

Mas esse para quem D. Leonor mais de uma vez volvêra rapidamente
os olhos, considerava com os braços cruzados aquelle espectáculo em
perfeita immobilidade, de que unicamente saíra quando Gil Vasques
de Resende, que estava a seu lado, se affastára, caminhando para
os degraus do estrado. O mancebo apertára a mão do idoso aio,
trémula da idade, com a mão ainda mais trémula de colera. Na
conta de pae o tinha; venerava-o como filho, e a idéa de o vêr
prostituir os seus cabellos brancos aos pés de uma adultera o
levára a esse movimento involuntario; involuntario, porque elle,
naquella postura e naquella hora, não fazia mais que colligir
todas as forças da alma para salvar a honra do nome de seus avós,
do nome dos reis portugueses, esquecida por um de seus irmãos,
e talvez mercadejada por outro em troco de valimento infame. O
velho entendeu o que significava este convulso apertar de mão:
duas lagrymas lhe cahiram pelas faces; mas obedeceu a elrei.

Só faltava D. Diniz, que continuára a ficar immovel. Houve um
momento de silencio sepulchral na vasta sala, e este silencio
era para todos indefinido, mas terrivel.

D. Fernando poz-se a olhar fito para seu irmão, enleiado, ao que
parecia, em scismar profundo.

Pouco a pouco todos os fidalgos que povoavam aquella immensa
quadra se poderiam crer petrificados como as columnas gothicas,
que sustinham as voltas ponteagudas do tecto, se não fosse o
respirar anciado e rapido que lhes fazia ranger sobre os peitos
e hombros os seus ricos briaes[9].

Os labios d'elrei tremeram, como a superficie do mar encrespada
pela leve e repentina aragem que precede immediatamente o tufão.
Depois entreabrindo-os, com os dentes cerrados, murmurou:

"Infante D. Diniz, beijae a mão á vossa rainha!"

Foi um só o volver de todos os olhos para o moço infante: o sussurro
das respirações cessára.

D. Diniz não respondeu; encaminhou-se para o meio do aposento:
parou defronte do throno, e olhando em redor de si, perguntou
com sorriso de amargo escarneo:

"Onde está aqui a rainha de Portugal?"

"Infante D. Diniz!--disse elrei, cujo rosto o furor mal reprimido
demudára.--Soffredor e bom irmão tenho sido por largo tempo:
não queiraes que seja hoje só juiz inflexível do filho querido
daquelle que tambem me gerou! Infante D. Diniz! beijae a mão
da mui nobre e virtuosa D. Leonor Telles, como fez vosso irmão
mais velho, de quem devereis haver vergonha.[10]"

"Nunca um neto do D. Affonso do Salado--replicou o infante com
apparenle tranquillidade--beijará a mão da que elrei seu irmào
e senhor quer chamar rainha. Nunca D. Diniz de Portugal beijará
a mão da mulher de João Lourenço da Cunha. Primeiro ella descera
desse throno e virá ajoelhar a meus pés; que de reis venho eu,
não ella."

"De joelhos, dom traidor!--gritou D. Fernando, pondo-se em pé
e descendo dous degraus do estrado.--De joelhos, vil parceiro
de reveis sandeus! Se a taberna de Folco Taca vos ouviu fazer
preito infame aos peões de Lisboa, quebra-lo-heis diante de vosso
rei: quebra-lo-heis, que vo-lo digo eu!"

D. Diniz viu então que todos seus passos estavam descobertos:
achava-se por isso â borda de um abysmo. Hesitou um momento; mas
lembrou-se de que era neto do heroe do Salado, e precipitou-se
na voragem.

"Vil é a mulher barregan e adultera, e essa é ambas as cousas.
Traidor seria um rei de Portugal que assentasse o adulterio no
throno, e vós o fizestes, rei deshonrado e maldicto de vosso
Deus e do vosso povo! Quem neste logar é o vil e o traidor?"

O infante, acabando de proferir estas palavras, abaixou a cabeça
e deixou descahir os braços. Elle bem sabia que se seguia o morrer.

Apenas elrei se alevantára, D. Leonor, cujas faces se haviam
tingido da amarellidào da morte, tinha-se erguido tambem. Naquelle
rosto, semelhante ao de uma estatua de sepulchro, apenas se conhecia
o viver no profundar, cada vez maior, das duas rugas frontaes
que se lhe vinham junctar entre os sobr' olhos.

Ouvindo as derradeiras e fulminantes palavras de D. Diniz, elrei
soltára um destes rugidos de desesperação e colera humana, que nem
o rugido da mais brava fera póde igualar; grito de ventriloquo, que
é como o estridor de todas os fibras do coração que se despedaçam a
um tempo; gemido como o do rodado ao primeiro gyro do instrumento
do supplicio; rugido, grito, gemido, conglobados n'um só hiato,
fundidos n'um som unico pela raiva, pelo odio, pela angustia:
brado que só terá eccho pleno no bramido que ha-de soltar o reprobo
quando no derradeiro juízo o julgador dos mundos lhe disser:--para
ti as penas eternas.

O brado de D. Fernando fizera tremer os mais esforçados cavalleiros
que se achavam presentes: o movimento que o seguiu fez gelar o
sangue em todas as veias.

Como um relampago elle tinha arrancado da cincta o agudo bulhâo,
e com os olhos desvairados encaminhava-se para o meio da sala,
onde seu irmâo o esperara immovel, com a mâo sobre o peito, como
se dissesse: aqui!

Mas D. Fernando nâo pôde offerecer nas aras do adulterio um
fratricidio: uma barreira se tinha alevantado a seus pés. Era um
velho de fronte calva, e de longas melenas brancas e desbastadas
pelos annos: era aquelle que lhe fôra mais que pae, e que elle
respeitava mais que a memória deste: era o seu alferes-mór, o
venerável Ayras Gomes, que ajoelhado lhe clamava com vozes truncadas
de soluços e lagrimas:

"Senhor! que é vosso irmão!"

"É um covarde traidor, que deve morrer! Irmão!? Mentes, velho!
Elle já não o é!"

Á palavra--mentes!--um relampago de vermelhidão passou pelas
faces cavadas do antigo cavalleiro: abaixou os olhos, e correu-os
pela espada. Fôra esta a primeira vez que ella ficára na bainha
depois de tão funda affronta. Mas aquelle era o momento dos grandes
sacrificios. Ayras Gomes replicou, alimpando as lagrymas:

"Nunca vos menti, senhor, nem quando ereis na puericia, nem depois
que sois meu rei. Sabei-lo. Criminoso ou innocente, D. Diniz é
filho de meu bom senhor D. Pedro. A vosso pae servi com lealdade;
por vós já me andou arriscada a vida. Hoje tendes por defensores
todos os cavalleiros de Portugal: elle é que não tem um só. Senhor
rei, ficae certo de que para assassinar vosso irmão vos é mister
passar por cima do cadaver de vosso segundo pae."

Atalhado assim o primeiro impeto, o caracter do moço monarcha
revelou-se inteiro neste momento. Commoveu-o a postura do venerando
ancião, que pela primeira vez via a seus pés; e com a irresolução
pintada nos olhos fitou-os em Leonor Telles.

Por uma reflexão instantânea a hyena previra que o sangue derramado
pelo fratricida não cahiria sómente sobre a cabeça deste, mas
também sobre a della. Naquelle rosto, então semelhante ao de
uma estatua, D. Fernando não pôde ler a sentença do infante, bem
que lá no fundo do coração ella estivesse escripta com sangue.

Entretanto os cortezãos, que no furor rompente d'elrei haviam
ficado estupefactos e quedos, vendo-o vacillar, rodearam o infante.
O velho Gil Vasques de Resende, que ia interpor-se também entre
D. Diniz e elrei, quando este arrancára o punhal, parára ao ver
a heróica resolução do alferes-mór; mas ao hesitar de D. Fernando
corrêra a abraçar-se com o seu pupillo, que, no meio de tantos
animos agitados por paixões diversas, era quem unicamente parecia
tranquillo e alheio ao terror que se pintava em todos os semblantes.

Finalmente elrei metteu vagarosamente o punhal no cincto, e com
voz pausada, mas trémula e presa, disse:

"Que esse malaventurado sáia d'ante mim."

O tom com que estas poucas palavras foram proferidas fez vergar
o animo de D. Diniz, cujo coração antes d'isso parecêra de bronze.
Os olhos arrasaram-se-lhe de agua. Sentira que até então era
uma cólera cega, repentina, insensata, que o ameaçava: agora,
porém, no modo e na expressão de D. Fernando vira claramente
que era um amor de irmão que expirára.

Com a cabeça pendida em cima do hombro de Gil Vasques de Resende
saiu do aposento.

Era talvez o velho o unico amigo que lhe restava no mundo.

D. Leonor levou ambas as mãos ao rosto, e via-se-lhe arquejar
o collo formoso por mal contido suspiro.

"Coração compadecido e generoso!--pensou lá comsigo o alferes-mór,
que havia pouco a tractára pela primeira vez.

"Hora maldicta e negra, em que perdi metade de minha tão esperada
vingança!--pensava Leonor Telles, e o chôro rebentou-lhe com
violencia.

"Não te afllijas, Leonor:--disse D. Fernando, apertando-a ao
peito.--Que nunca mais eu o veja, e viva, se podér, em paz!"

Mas as lagrymas correram ainda com mais abundancia e amargura.

O resto daquelle dia foi triste: triste o banquete e o sarau.
A atmosphera em que respirava a nova rainha tinha o que quer
que era pesado e mortal, que resfriava todos os corações.

Á meia noite, por um claro luar de ceo limpo de inverno, uma
barca subia com difficuldade a corrente rapida do Douro: à pôpa
viam-se reluzir, nas toucas e mantos negros de dous cavalleiros
que ahi iam assentados, as orlas e bordaduras de ouro e prata:
um dos remeiros cantava ama cantiga melancholica, a que respondia
o companheiro, e dizia assim:

     Mortos me sào padre e madre:
     Eu tamanino fiquei.
     Irmãos meus mal me quizeram:
     Eu mal não lhes quererei.

     Vou-me correr esse mundo:
     Sabe Deus se o correrei!
     A alma deixo-a cá presa;
     O corpo só levarei.

     De meus avós nos solares
     Nasci: dous dias passei:
     Meus irmãos, nada vos tenho,
     Senão o nome que herdei.

Esta cantiga, cuja toada monotona repercutia nos rocbedos aprumados
das margens, foi interrompida por um doloroso suspiro. Um dos
cavalleiros o déra.

Os remeiros calaram-se: arrancaram da voga com mais ancia, e depois
continuaram:

     Se fui rico, ora sou pobre:
     Choro hoje, se já folguei:
     Villas troquei por desvios:
     Muito fui: nada serei.

     Sem padre, madre, ou irmãos,
     A quem me soccorrerei?
     A ti, meu Senhor Jesus:
     Senhor Jesus me accorrei!

Um gemido mnis angustiado, que saíu involto em soluços, cortou
de novo a cantiga: era do mesmo que já a interrompêra. O seu
companheiro bradou aos barqueiros com a voz trémula e cansada
de um ancião:

"Calae-vos ahi com vossas trovas maldictas!"

Os remeiros vogaram em silencio; mas pensaram lá comsigo que muito
damnadas deviam ser as almas de cavalleiros que assim maldiziam
tão devoto trovar.

Repararam, porém, que dos dous desconhecidos, o que suspirára e
gemêra lançára os braços ao pescoço do que falára, e que este,
affagando-o, lhe dizia:

"Quando todos, senhor, vos abandonarem não vos abandonarei eu;
que o devo ao amor com que vos creei, e á esclarecida e sancta
memoria de vosso virtuoso pae."

Então os barqueiros, bem que rudes, desconfiaram de que podia
muito bem ser que não fossem duas almas damnadas aquellas, mas
sim malaventuradas.

[1] Conde D. Pedro, tit. dos Viegas. Cunha, Cat. dos
Bispos do Porto, part. 1.ª pag. 15.

[2] E fezerom mui ápressa hua grande praça ante S. Domingos
e a rua do Souto, que era entom todo ortas. F. Lopes, Chr. de D.
João I, P. 2. c. 96.--Isto era poucos annos depois da epocha
de que vamos falando.


[3] A 25 de setembro de 1371, em Santarem, fez elrei
mercê a Diogo Lopes Pacheco da terra de Trancoso para que a haja
e tenha em pagamento da sua quantia. Chancell d'elrei D. Fernando
L. l. f. 84.

[4] Este bispo D. Affonso era ainda o mesmo a quem elrei
D. Pedro, dizem, quizera açoutar por sua própria mão em consequencia
de elle haver commettido adulterio com a mulher de um honrado
cidadão, historia miudamente narrada por Fernão Lopes chronica
daquelle rei, e que nós não sabemos dizer até que ponto seja
verdadeira. D. Rodrigo da Cunha, suppõe que o bispo, corrido
desta aventura, escandalosa não pelo delicto, trivialissimo no
clero daquelle tempo, mas pelo ameaçado castigo, cousa inaudita
antes e depois de D. Pedro, saíra do bispado e nunca mais voltára
ao Porto, posto que ainda vivesse pelo menos até maio de 1732,
como se vê do catalogo chronologico dos bispos portuguezes, por J.
P. Ribeiro. Esta opinião, que assenta n'um argumento negativo--a
falta de noticias desse prelado nos documentos consultados por D.
Rodrigo da Cunha, posteriores aos eminentes açoutes--é desmentida
pelo testemunho de Fernão Lopes, no cap. 49 da chronica de D.
Fernando, que fez presente D. Affonso á renovação das pazes
d'Alcoutim, juradas no Porto em 1371. É por isso que, apesar
de Cunha, nos pareceu natural fazer abençoar por um bispo, que
se pinta como manchado de adulterio, um casamento adultero.

[5] Sobre esta antiga topographia vejam-se as inquirições
dos annos de 1268 e 1348 nas Memorias das Inquirições pag. 45
nota 2, e Dissert. Chr. e Crit. tom. 5.º pag. 292 e segg.

[6] Ácerca de semelhante usança veja-se F. Lopes. Chr.
de D. João I, P. 2ª c. 96.

[7] Na supposta divisão dos bispados, attribuida ao rei
Godo Wamba, dá-se ao Porto o nome de Festabole.

[8] Em grande parte extrahido quasi textualmente da
Carta d'Arrhas de Leonor Telles, datada de Eixo aos 5 de Janeiro
de era de 1410 (1372).

[9] O brial era uma especie de camisola que os cavalleiros vestiam
sobre as armas, e por cima da qual apertaram o cincto da espada.
Tambem o vestiam sobre os pannos interiores quando andavam desarmados.
O seu uso durou por toda a idade media, e era ainda lembrado nos fins
do seculo decimo-sexto, em que o auctor, ou traductor, do Palmeirim
d'Inglaterra tantas vezes o menciona. Nas leis sumptuarias de
Alfonso IV não se tracta é verdade de tal vestido; mas a razão
d'isso é obvia: o brial era trajo militar, e aquellas leis versam
sobre o vestuario civil. Na ordenação affonsina L. 1.°, til. 63,
§ 21, se manda cingir a espada ao movel sobre o brial. O diccionario
de Moraes affirma que o brial era o manto dos cavalleiros: é um dos
bastos destemperos daquella babel da lingua portugueza. Eis o que
diz o auctor do poema do Cid, escripto no meiado do seculo
decimo-segundo, falando no brial. (Sanches Pocs. Cast. ant. al
siglo 15.° t. 1.° pag. 347.)

  Vistió camisu de ranzal tan blanca como el sol
  . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
  . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
  Sobre ella un brial primo de ciclaton

  . . . . . . . . . . . . . .
  Sobre esto una piel bermeia . . . . . . .
  . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
  . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
  . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
  De suso cubrió un manto que es de grant valor.

[10] Dizendo elrei sanhudamente coulra elle: "Que non
avia vergonça nenhuuma, beijarem a mão aa Rainha sua molher o
Infante Dom Joham, que era moor que elle, e isso mesmo seu irmaão,
e todollos outros lidallgos do reino, e el soomente dizer que lha
nom beijaria, mas que lha beijasse ella a elle." Fern. Lopes,
Chr. d'elrei D. Fern cap. 62.



JURAMENTO--PAGAMENTO.


Passára mais de um anno depois do casamento d'elrei. Este casamento,
que explicava o repudio da infanta de Castella, não bastára em
verdade para accender a guerra entre D. Henrique e D. Fernando,
estando já de algum modo previsto nos capitulos addicionaes do
tractado de Alcoutim. Mas, como se o desgosto que semelhante offensa
devia gerar no animo do rei castelhano não fosse assás forte para
servir de fermento a futuras guerras, D. Fernando suscitára novos
motivos de sérias desavenças, que não particularisaremos aqui,
por não virem a nosso intento. Baste saber que, depois de inuteis
mensagens e queixas, D. Henrique de Castella, entrando subitamente
em Portugal e tomando muitas terras fortificadas, atravessára
rapidamente a Beira, passára juncto aos muros de Coimbra, onde
se achava D. Leonor Telles, e vindo offerecer batalha a elrei
D. Fernando, que estava em Santarem, e que não acceitou o combate,
se encaminhára para Lisboa, cujos habitantes desapercebidos apenas
tiveram tempo de se acolherem aos antigos muros do tempo de Affonso
III, de cujas torres e adaves viram os castelhanos saquearem e
queimarem o bairro mais povoado e rico da cidade, o arrabalde,
sem lhes poderem pôr obstaculo. No meio deste apertado cêrco,
desamparados d'el-rei, que apenas lhes enviára alguns de seus
cavalleiros, os moradores de Lisboa não tinham desanimado. Com
varia fortuna haviam resistido aos commettimentos dos castelhanos,
e o que mais duro era de soffrer, á fome, á sede, e até ao receio
de traições de seus naturaes. Finalmente D. Fernando fizera uma
paz vergonhosa, depois de ter suscitado uma injusta guerra, e
Lisboa viu affastar dos seus muros o exercito d'elrei de Castella,
que a tivera sitiada durante quasi dous mezes.

Era nos fins de maio de 1373, pela volta da tarde de um formoso
dia de primavera. O ar eslava tepido e o céu limpo. Pelos campos e
valles via-se verdejar a relva; a madresilva, e as rosas bravias,
enredadas pelos vallados, embalsamavam a atmosphera. Mas estes eram
os unicos signaes que nos arredores de Lisboa revelavam aquella
estação suave no seu clima suavissimo. Tudo o mais contrastava
horrivelmente com elles. Os extensos e bastos olivedos, que nessas
eras a rodeavam, jaziam decepados em terra, como se por alli
tivesse passado fouce gigante meneada por braço de ferro. Pelos
outeirinhos, coroados pouco havia de vinhas frondosas, viam-se
espalhadas as videiras cobertas de folhas resecadas antes de tempo,
ou ennegrecidas pelo fogo, assimilhando-se a gandra coberta de
urzes, que foi desbravada por fins d'outono. As vastas hortas,
que se derramavam por Valverde, trilhadas pelos pés dos cavallos,
estavam incultas e abandonadas. Mas sobre este mal assombrado e
triste chão do painel, mais melancholica e afflictiva avultava
ainda a figura principal, a cidade.

O populoso bairro chamado o arrabalde, onde d'antes era contínuo
o ruído discorde de tracto immeriso, achava-se convertido em
um montão de ruinas. Para o lado do sul e poente não se viam
desde os antigos muros (cujo perimetro pouco mais cercava do
que o castello e o bairro a que hoje damos geralmente o nome
d'Alfama) senão edificios queimados, ruas entulhadas, praças
desfeitas, vestigios do sangue, peças de armadura aboladas ou
falsadas, hastilhas e ferros partidos de virotes, de lanças e de
espadas, e aqui e acolá cadáveres fétidos, não só de cavallos,
mas também de homens, cujas carnes, meias devoradas pelos cães
ou pelo tempo, lhes deixavam branquejar as ossadas. Sobre os
entulhos appareciam como phantasmas os servos mouros, revolvendo
as pedras derrocadas em busca de alguma preciosidade que tivesse
escapado ás chammas e ao inimigo; e juncto ás paredes negras da
sinagoga os mercadores judeus, olhando para o seu bairro assolado,
depennavam as barbas â roda dos rahbis, que recitavam em tom de
pranto os versiculos hebraicos dos Threnos.

Por meio deste vasto quadro de assolação rompia uma numerosa
companhia de cavalleiros e damas, de donas e escudeiros, de donzellas
e pagens, brilhante cavalgada que descia da banda de Santo Antão
para S. Domingos, e tomava pela corredoura para a porta do ferro.
A formosura e o luxo das mulheres, as figuras athleticas e os
rostos varonis dos cavalleiros, o brunido das armas, o loução
dos trajos, o rico dos arreios, tudo emfim dava clara mostra
de que naquella cavalgada vinha a mais nobre gente de Portugal.
Os risos das damas, os dictos galantes o agudos dos fidalgos, o
rinchar alegre dos corcéis briosos e dos delicados palafrens,
as doudices dos donzeis, que ora correndo á rédea solta, ora
soffreando os cavallos ao perpassar pelas mulas pacificas dos
cortezãos letrados, os faziam vacillar e debruçar sobre os arções,
o bater das asas dos nebris e girifaltes empoleirados nos punhos
dos falcoeiros, o latir dos galgos e allãos, que atrellados
forcejavam por se atirarem acima daquelles centenares de habitações
derrocadas, d'onde saía de vez em quando uma exhalacâo de carniça:
este rir, este folgar, este ruído do contentamento, este matiz
de reflexos metallicos, de côres variegadas, passando como um
turbilhão através daquelle silencio sepulchral, parecia rasgar
o veu de tristeza que cobria a vasta área da cidade destruida,
e revoca-la a uma nova existencia.

Mas o povo, apesar d'isso, continuava a estar triste.

A cavalgada chegou ao terreiro da sé. Um engenho de arremessar
pedras estava assentado no meio delle, e os grossos madeiros de
que era construído viam-se ainda manchados de rastos de sangue.
Uma dama, que vinha na frente da comitiva, parou: um cavalleiro
de boa idade e gentil-homem, que caminhava a seu lado, parou
tambem. A dama apontou para o engenho, disse algumas palavras
ao cavalleiro, e depois desatou a rir.

Era ella a mui nobre e virtuosa minha D. Leonor: elle o mui
excellente e esclarecido rei D. Fernando de Portugal.

D. Leonor Telles tinha razão para rir.

Durante o cêrco de Lisboa uma voz, verdadeira ou falsa, se espalhára
de que vários moradores da cidade estavam preitejados com elrei
de Castella para lhe abrirem uma das portas. Dava força a taes
suspeitas o acharem-se no campo castelhano Diogo Lopes Pacheco
e D. Diniz, que com elle se haviam ajunctado na sua entrada em
Portugal, e as desconfianças recahiam naturalmente sobre aquelles
que dous annos antes tinham seguido o partido contrario a D.
Leonor, de que o infante e o velho privado de D. Affonso IV eram
cabeças. Assim a popularidade dos parciaes de D. Diniz tinha
diminuido consideravelmente, porque o povo, em vez de attribuir
a sua ruina ás causas remotas, ás paixões insensatas de D. Leonor
e á imprudencia d'elrei, só nas suggestòes de Diogo Lopes e do
infante via agora a origem de todos os males presentes, e o odio
que contra os dous havia concebido se estendêra a todos os que
cria serem-lhes affeiçoados.

Apenas, portanto, se divulgou a noticia da intentada traição, o
povo furioso correu ás moradas daquelles, que, como fica dicto,
lhe eram mais suspeitos. Seguiu-se uma festa de cannibaes, festa
de vulgacho em qualquer tempo e logar que elle reine. Aquelles
que não poderam provar de modo innegavel a sua innocencia, foram
mettidos aos mais crueis tormentos, onde nenhum se confessou
culpado. Um desgraçado, contra o qual eram mais vehementes as
desconfianças, foi arrastado pelas ruas e feito depois em pedaços:
"outro--diz o chronísta[1]--tomarom e pozerom-no na fumda d'huum
engenho, que estava armado ante a porta da see; e quando desfechou
lançono em cima dessa egreja antre duas torres dos sinos que
hi ha, e quando cahio acharomno vivo; e tomaromno outra vez e
pozeromno na fumda do engenho, e deitouho contra o mar, omde
elles desejavom, e assi acabou sua vida."

Era por isso que D. Leonor olhára para o engenho, e se ríra. O
próprio povo tinha pagado uma parte das arrhas do seu casamento.

A noite descêra entretanto. A cavalgada parou no terreiro de
S. Martinho, e á luz de muitas tochas parte daquella multidão
escoou-se pouco a pouco por diversas ruas, emquanto outra parte
subia á sala principal, ou se derramava pelos aposentos dos paços,
cujo silencio de quasi dous annos, depois du fuga d'elrei com
D. Leonor Telles, era a primera vez interrompido pelo ruido de
uma côrte numerosa, mas bem differente da antiga. A rainha havia
quasi exclusivamente chamado a ella os seus parentes, ou aquelles
fidalgos que lhe tinham dado provas não equivocas de sincero
affeiçcão e substituíra á severidade antiga do paço todo brilho
de um luxo insensato, e o que mais era, a dissoluçao dos costumes,
que quasi sempre acompanha esse luxo. Depois de uma ceia esplendida,
como o devia ser nesta côrte voluptuaria, apenas ficára na camara
real D. Fernando e sua mulher, o conde de Barcellos D. Joâo, D.
Gonçalo Telles, irmão de D. Leonor e um donzel da rainha, filho
bastardo de outro bastardo, do prior do Hospital Alvaro Gonçalves
Pereira, e que ella mais que nenhum estimava. Estas personagens
achavam-se reunidas no mesmo aposento onde dous annos antes o
beguino Fr. Roy viera revelar á então amante de D. Fernando os
intentos de seus inimigos. Era deste aposento que ella saíra
fugitiva e amaldicçoada do povo. Mas era ahi também que ella
vinha depois de tantos sustos, de tantas difficuldades vencidas,
de tanto sangue derramado por sua causa, repousar triumphadora,
segura já na fronte a corôa real. Tudo estava do mesmo modo,
salvo as personagens, que em parte eram diversas e em diversa
situação.

Elrei, habitualmente alegre, se assentára triste na cadeira de
espaldas, unico movel do aposento, e encostára a cabeça sobre
o punho cerrado: D. Leonor, posto que naturalmente loquaz[2],
assentada no estrado defronte de D. Fernando, conservava-se tambem
em silencio: em pé, um pouco atraz da cadeira d'elrei, o donzel
querido de D. Leonor, com os olhos fitos nella, esperava attento
as determinações de sua senhora: ao longo da sala o conde de
Barcellos e D. Gonçalo Telles passeavam lentamente, conversando
em voz submissa e pausada.

Mas a taciturnidade de cada uma das duas personagens principaes
tinha bem differentes motivos.

A imagem da sua capital destruida havia-se embebido na alma d'elrei
como um remorso cruel. Pelas suggestões de seu tio adoptivo
consentíra que D. Henrique viesse livremente destruir a opulenta
Lisboa. Elle, neto de Affonso IV, rejeitára os soccorros de seus
valorosos vassallos, que de toda a parte haviam corrido, lança
em punho, para combaterem debaixo da signa real, ao esvoaçar
dos pendões inimigos: elle, cavalleiro, fôra vil instrumento
de vingança covarde: elle, rei de Portugal, fôra o destruidor
do seu povo; elle, portuguez, recebêra o nome de fraco de um
castelhano, sem que ousasse desmentir a affronta[3]! Estas idéas,
que o tinham assaltado ao atravessar as ruinas dos arrabaldes,
tomavam maior vulto e força na solidão e no silencio. O pobre
monarcha, bom, mas excessivamente brando e irresoluto, tinha
sobeja razão de estar triste. A lua, que começava a subir, dava
de chapa, através da janella oriental do aposento, no rosto de D.
Fernando, como dous annos antes, quasi a essa hora, lhe allumiára
tambem as faces demudadas de afflicção. Este logar, esta luz, e
esta hora eram para elle fataes!

Nesse momento passos mais rapidos e mais pesados que os dos dous
fidalgos começaram a soar na sala contigua: quem quer que era
passeava também.

Dos olhos de D. Fernando saíam dous tenues reflexos; eram os raios
da lua que se espelhavam em duas lagrymas.

A raínha, alevantando-se então, disse ao donzel:

"Nunalvares Pereira, vêde quem está nessa sala."

Nunalvares abriu a porta, e alongando a cabeça voltou-se
immediatamente, e disse:

"O corregedor da côrte."

Os dous fidalgos pararam na extremidade do aposento, calaram-se,
e conservaram-se immoveis.

A rainha fez signal com a mão a Nunalvares para que esperasse:
o donzel ficou á porta sem pestanejar.

D. Leonor encaminhou-se então para elrei, que, embebido no seu
profundo scismar, não víra nem ouvíra o que se fazia ou dizia.
Curvando-se, e firmando o cotovello no braço da cadeira d'elrei
encostou a cabeça sobre o hombro delle, com a face unida á sua.

"Que tens tu, Fernando?--perguntou ella com essa inflexão de
voz meiga, que só sabem labios de esposa que muito ama, mas com
que tambem soubera atinar esta mulher sublime de hypocrisia.

"Nada! oh ... nada!"--respondeu elrei, lançando-lhe o braço ao
redor do pescoço, e apertando a face incendiada aquelle rosto
de anjo, que dissimulava um coração de demonio.

Os dous tenues reflexos da lua tinham esmorecido nos olhos de
D. Fernando: o halito de Leonor Telles queimára as lagrymas da
compaixão e do remorso.

"Enganas-me, ou enganas-te a ti proprio, Fernando!--replicou
a rainha.--Tu és infeliz, e eu sei porque o és. Aborreces já a
pobre Leonor Telles."

O tom com que estas palavras foram proferidas era capaz de partir
um coração de marmore.

"Enlouqueceste, Leonor?--exclamou el-rei.--Aborrecer-te? Sem
ti este mundo fôra para mim um ermo, a corôa martyrio, a vida
maldicção de Deus. Como nos primeiros dias dos nossos amores,
no leito da morte amar-te-hei ainda. Gloria, riqueza, poderio,
tudo te sacrifiquei: não me pêsa. Mil vezes que tu o queiras
t'o sacrificarei de novo."

"Oh, prouvera a Deus que o teu amor fosse metade do que dizes:
fosse metade do meu!"

"Busca, inventa, aponta-me algum modo de te provar o que digo,
e verás se as minhas palavras são sinceras!"

"Ha um, rei de Portugal!"--replicou Leonor Telles, em cujos olhos
scintillava o contentamento.

Dizendo isto ella se affastára d'elrei. O seu aspecto tomou
subitamente a expressão grave e severa de uma rainha. A um gesto
que fez, Nunalvares ergueu o reposteiro, e o corregedor da côrte
entrou. Trazia na mão um pergaminho aberto. Chegou ao pé de Leonor
Telles, ajoelhou e entregou-lh'o.

A rainha pegou nelle, e apresentou-o a el-rei: o donzel trouxe
uma das tochas que estavam nos angulos do aposento, e collocou-se
á esquerda da cadeira de D. Fernando.

"A prova do que dissestes, rei de Portugal, está em estampardes
no fim desse pergaminho o vosso sello de puridade.[4]"

D. Fernando recebeu o pergaminho e começou a ler: a cada uma das
extensas linhas que o obrigavam a descrever um semi-circulo com
o raio visual, o tremor das suas mãos se tornava mais violento,
as contracções do seu rosto mais profundas. Antes de acabar de
ler atirou o pergaminho ao chão, e com voz terrível exclamou,
cravando os olhos reluzentes em Leonor Telles:

"Mulher, que me pedes tu?"

"Justiça, e as minhas arrhas."

Era a primeira vez que elrei ousava resistir á vontade de Leonor
Telles. Ella ainda não o cria. Habituada a ser obedecida pelo
pobre monarcha, estas ultimas palavras foram proferidas com a
insolencia de uma resolução incontrastavel.

"Justiça? Contra quem a pedes? Contra cadaveres e moribundos.
As tuas arrhas? Tiveste em dote as mais formosas villas de meus
senhorios: tiveste o que mais desejavas, as arrhas de sangue
e ruinas. Para te contentar, deixei Lisboa entregue ao furor
d'inimigos: para te contentar, fui vil e fraco: para te contentar,
dos patibulos já têm pendido sobejos cadaveres[5]. E ainda não
satisfeita, pretendes que antes de dormir uma unica noite na
minha capital assolada, confirme uma sentença de morte? Leonor!
tu eras digna de ser filha de meu implacavel pae!"

D. Leonor repellíra o olhar, entre colerico e timido, de Fernando,
que mal acreditava a própria audacia, com um olhar em que se
misturava a indignação e o despreso. Ella ouvira as suas palavras
sem mudar de aspecto, mas apenas elrei acabou, encaminhou-se para
a janella d'onde batia o luar, e estendeu a mão para o céu:

"Ha dous annos, senhor rei, que neste aposento, a estas mesmas
horas, um cavalleiro jurava a uma dama, de quem pretendia quanto
mulher póde ceder a desejos de homem, que a amaria sempre; jurava-o
pelo céu, pelos ossos de seus avós, pela sua fé de cavalleiro--e
o cavalleiro mentiu. As bôcas de homens vis vomitavam contra essa
mulher, e a essa mesma hora, os nomes de adultera, de barregan,
de prostituta, e pediam a sua morte. O cavalleiro sabia que taes
affrontas escrevem-se para sempre na fronte de quem as recebe,
se o sangue de quem as proferiu não as lava um dia. O cavalleiro
ofereceu a sua alma aos demonios se não as lavasse com sangue--e
esse cavalleiro blasphemou e mentiu. Senhor rei, diante do céu que
elle invocou, perto dos ossos de seus avós, pelos quaes jurou,
á luz da lua que o allumiava, dir-vos-hei: aquelle cavalleiro
foi perjuro, blasphemo, desleal e covarde, e eu a sua victima. É
contra elle que ora vos peço justiça. Rei do Portugal, justiça!"

Esta ultima palavra restrugiu horrivelmente pelo aposento. Elrei,
que durante o discurso de D. Leonor se erguêra pouco a pouco,
fascinado pelo seu gesto diabolico e pelo seu olhar fulminante,
cahiu outra vez, arquejando, sobre a cadeira. O desgraçado cobriu
a cara com ambas as mãos, e depois de um momento de silencio
murmurou:

"Mas como punir aquelles que talvez são cadaveres? A guerra e
a furia popular os puniram!"

D. Leonor trinmphára.

"Nem todos:--proseguíu a astuta e sanguinária panthera, accommettendo
o ultimo entrincheiramento, em que D. Fernando já debalde procurava
defender-se.--Os seus mais vis inimigos ainda respiram, e porventura,
ainda sonham vingança. Corregedor da côrte, lêde os nomes escriptos
em vossa sentença."

O corregedor da côrte levantou o pergaminho, affastando-o dos
olhos, e interpondo a mão aberta entre estes e a tocha que Nunalvares
segurava: tossiu duas vezes, inclinou para traz a cabeça, e com
o tom cheio e solemne de um mestre em degredos, leu:

"Item: Fernào Vaasques, peom, alfayate, cabeça e propoedor dos
ssusodictos rreveis."--Aqui abriu o peitilho da garnacha, tirou
a sua ementa particular, e leu a seguinte cota:

"Vivo; muy malferido dhuùa ffrechada com hera[6] no ffecto
do meirinho-moor, quando hos da cidade llevarom os castellãos
de vencida atá mêa rrua nova."

Lida esta observação, o corregedor continuou a ler successivamente
os nomes dos réus e as respectivas cotas.

"Item: Stevom Martins Bexigosso, mercador, pcom, capitão dhuù
corpo dos ssusodictos rreveis."--Dizia a ementa:--"Morto de ssua
door naturall.

"Item: Bertolameu Martijs, ourivez, peom, dizidor de pallavras
de desacatamento contra ssua rreal ssenhoria, e de grão ssamdice
e desavergonhamento."--Dizia a ementa:--"Morto dhuùa pedrada
dhuù emgenho dos imiguos."

"Item: Joham Lobeira, escudeiro, homem darmas, acostado do allcayde
moor que ffoy do caslello desta lyal cidade, capitão dos beesteiros
que fforom a Ssam domingos."--Dizia a cota:--"Foy cativo dhos
castellãos: dado em rrendiçom, e a boõrrequado na pryssom Dalcaçova."

"Item: Bertolameu Chambão, peom, tanoeiro, cabeça da beestaria
do concelho, deputado, pera ffazer vilto e affronta a ssua rreal
ssenhoria ha muy excellente e muy vertuosa de gramdes vertudes,
rrainha dona llyanor."--Resava a ementa:--"Morto dhuùa lamçada
aa porta dho fferro."

"Item: Ayras Gil, petintal, capitão dos rreveis, gualiotes, arraizes,
e pesquadores Dalfama."--Dizia a cota:--"Ffogido com os castellaõs."

"Item: Fr. Roy, dalcunha Zambrana, biguino, ffolliom, jograll de
sseu officio, bevedo, assoalhador de palavras e dictos devedados,
e scuita dhos reveis."--Notava a ementa:--"Enssandeçeu na pryssom
ao lleer da ssemtemça."

Pobre Fr. Roy! Vendo-se condemnado á morte, desesperado, revelára
o que tinha sido na revolta--um espia de Leonor Telles. A cota da
ementa fôra tudo o que tirára das suas revelações: o corregedor,
homem agudo como o melhor mestre em leis ou degredos, deduzira
das suas palavras que o beguino endoudecêra. Trocava as idéas.
Tinha sido espia, mas dos revoltosos.

Alevantado o cêrco da Lisboa, o corregedor da côrte fôra o primeiro
presente que a nova rainha enviára á cidade. Áquelle perspicaz
e diligente magistrado poucos dias haviam bastado para preparar
um sarau digno della, uma sentença de morte. A prova da sua
perspicacia e diligencia estava em ter já no caminho da forca os
desgraçados, cuja sentença vinha trazer confirmação real. N'uma
execução nocturna não havia a receiar tumultos populares, e a
brevidade que a rainha lhe recommendára neste negocio, lhe fazia
crer que não seria desagradavel a sua real senhoria a immediata
execução dos réus.

Quando acabou a leitura, elrei tirou da bolça que trazia ao cindo
o sêllo de camafeu, e sem dizer palavra entregou-o ao corregedor.
Este pegou na tocha de Nunalvares, deixou cahir alguns pingos de
cera no fundo do pergaminho, assentou-lhe em cima um fragmento
de papel que tirára da ementa, e cravou neste o sêllo. As armas
d'elrei ficaram ahi estampadas. O corregedor fizera isto com a
promptidào e aceio com que o mais habil algoz enforcaria o seu
proximo.

Depois o honesto magistrado entregou o sêllo a elrei, cujo tremor
nervoso se renovára durante a fatal ceremonia. Ao pegar-lhe, o
pobre monarcha deixou-o cahir no chão. O sêllo foi rolando e
parou aos pés de D. Leonor Telles. Ella empallideceu. Porquê?
Talvez se lhe figurou uma cabeça humana, que rolava diante delia.

O corregedor fez uma profunda venia, e perguntou em voz sumida
á rainha:

"Quando, senhora?"

No mesmo tom D. Leonor respondeu:

"Já."

O destro e activo corregedor tinha dado no vinte. O já da seria
mais já do que ella propria pensava.

O corregedor saíu.

A um aceno de D. Leonor, o donzel metteu a tocha no annel de
ferro embebido na parede, d'onde a tinha tirado, e encaminhou-se
para juncto da porta, onde ficou com os braços cruzados, olhos
no chão, e immovel como uma estatua. Desde este dia o formoso
donzel odiou do fundo da alma a sua mui nobre senhora, aquella
que lhe cingira a espada. O generoso Nunalvares conhecêra que
debaixo desse rosto suave se escondia um instincto de besta-fera.

Os dous fidalgos continuaram a passeiar de um para outro lado,
conversando em voz baixa e como alheios á scena que alli se passava.

Elrei tomára a primeira postura em que estava, com o cotovelo
firmado no braço da cadeira, e a cabeça encostada no punho; mas os
seus olhos, revolvendo-se-lhe nas orbitas, incertos e espantados,
exprimiam a dolorosa alienação daquella alma timida, atormentada
por mil affectos oppostos.

Ouvia-se apenas o cicío dos dous que conversavam. E por largo
espaço aquetle murmurio, e o respirar alto e convulso de D. Fernando
foram o unico ruído que interrompeu o silencio do vasto aposento.

Elrei, com a mão esquerda pendente sobre os joelhos, deixava-se
ir ao som das idéas tenebrosas que lhe offuscavam o espirito,
e que protrahidas o levariam bem proximo das raias de completa
loucura. A imagem de Leonor Telles apparecia-lhe como composto
monstruoso de vulto d'anjo e de olhar de demonio. Um amor infinito
arrastava-o para essa imagem; o horror affastava-o della. Via-a
como um simulachro das virgens, que, na infancia, imaginava ao
ouvir ler ao bom de seu aio Ayras Gomes as lendas das martyres;
mas logo cuidava ouvi-la dar risada, infernal passando por cima
das ruinas de cidade deserta. O patibulo e os delirios amorosos;
o cheiro do sangue e o halito dos banquetes misturavam-se-lhe no
senso intimo: e o pobre monarcha, nos seus desvarios, perdêra
a consciencia do logar, da hora e da situação em que se achava
naquelle terrivel momento.

Mas um beijo ardente, dado nessa mão que tinha estendida, e lagrymas
ainda mais ardentes que a regavam foram como faisca electrica
revocando-o á razão e á realidade da vida.

A commoçào indizivel e mysteriosa que sentira fez-lhe abaixar
os olhos: a rainha estava a seus pés: era ella quem lhe cobria
a mão de beijos e lh'a regava de lagrymas.

D. Fernando affastou-a suavemente de si: ella alevantou o rosto
celeste orvalhado de pranto; era de feito a imagem de uma das
martyres que elle via no seu imaginar da infância. D. Leonor
ergueu as mãos supplicantes com um gesto de profunda angustia:
então era mais formosa que ellas.

"Ah!"--murmurou elrei:--"porque é o teu coração implacavel, ou porque
te amei eu tanto?!"

"Desgraçada de mim!--acudiu D. Leonor entre soluços.--O teu amor
era como o iris do céu: era a minha paz, a minha alegria, a minha
esperança; mas desvaneceu-se e passou: a vida de Leonor Telles
desvanecer-se-ha e passará com elle!"

"É porque sabes que esse amor não póde perecer; que esse amor
como um fado escripto lá em cima--interrompeu D. Fernando--que
tu me fazes tingir as mãos de sangue, para satisfazer tuas crueis
vinganças: é porque sabes que eu esgóto sempre o calix das ignominias
quando as tuas mãos m'o apresentam, que tu me sacias de deshonra.
Terás acaso algum dia piedade daquelle que fizeste teu servo,
e que não póde esquivar-se a ser tua victima?"

"Oh quanto és injusto, Fernando, e quão mal me conheces!--exclamou
Leonor Telles limpando as lagrymas.--Foi a tua dignidade real, a
tua justiça, o teu nome que eu quiz salvar da tua propria brandura.
Aos mesquinhos que me offenderam perdoei de todo o coração; mas
tu, que eras rei e juiz, nào o podias fazer. Se o nome de teu
virtuoso pae ainda hoje lembra a todos com veneração e amor, é
porque teu pae foi implacavel contra os criminosos, e aquillo em
que pões a deshonra e a ignominia, é a coroa de gloria immortal
que cérca o seu nome. Se as minhas palavras te constrangeram a
escolher entre a confirmação dessa fatal sentença e a deslealdade
e blasphemia, que não cabem em coração e labios de cavalleiro,
foi por te salvar de ti mesmo. Se crês que nisto fui culpada,
dize-me só--Leonor, já não te amo!--e eu ficarei punida; porque
nessas palavras estará escripta a minha sentença de morte! Possas
tu depois perdoar-me, e proferir sobre a campa da pobre Leonor
uma expressão de piedade!"

As lagrymas e os soluços parecia não a deixarem proseguir. Reclinou
a cabeça sobre os joelhos d'elrei, apertando-lhe a mão entre as
suas com um movimento convulso.

Formosa, querida, humilhada a seus pés, como resistiria o pobre
monarcha? Unindo a face áquella fronte divina, só lhe disse:--oh
Leonor, Leonor!--e as suas lagrymas misturavam-se com as della.

Durante esta lucta da dor e da hypocrisia, em que, como sempre
acontece, a ultima triumphava, o conde de Barcellos e D. Gonçalo
Telles tinham-se encostado á janella fatal que dava para o rio,
e que tambem dominava grande porção do arrabalde occidental da
cidade. O espectaculo da noite era de melancholica magnificencia.

A lua caminhava nos céus limpos do nuvens, e pela face da terra
nem suspirava uma aragem. A claridade do luar refrangia-se nas
aguas, mas esmorecia batendo na povoação, na qual não achava,
além dos antigos muros, uma parede branqueada, uma pedra alva onde
espelhar-se, ou um sussurro do lesta acorde com as suas harmonias.
O incendio e o ferro tinham passado por lá, e Lisboa era um cahos
de ruinas, um cemiterio sem lapides. Apenas no extremo do seu,
d'antes, mais rico e povoado arrabalde amarelejava pulido pelo
tempo o gothico mosteiro de S. Francisco juncto de sua irman mais
velha a igreja dos Martyres. No valle que ficava em meio a luz
do cima embebia-se inutilmente na povoação que jazia extincta.
A bella lua de maio, tão fagueira para esta cidade querida,
assemelhava-se á leôa, que voltando ao antro acha o seu cachorrinho
morto. A pobre fera ameiga-o como se fosse vivo, e vendo-o quedo,
indifferente, e frio, não o crê, e vae, e volta muitas vezes
renovando seus inuteis affagos. Lisboa era um cadaver, e a lua
passava e sorria-lhe ainda!

Mas no meio daquelle; chão irregular, negro, callado, viam-se
aqui e acolá luzinhas que se meneavam de um para outro lado, ao
que parecia, sem rumo certo. Era que os frades de S. Francisco e
de S. Domingos faziam procurar por entre os entulhos as reliquias
dos mortos, para lhes darem sepultura christan. Neste piedoso
trabalho, que seguiam sem descontinuar havia muito tempo, eram
acompanhados por alguns do povo, que para se esforçarem cantavam
uma cantiga pia, cujas coplas, bem que interrompidas, vinham
com triste som bater de vez em quando nos ouvidos dos dous
cavalleiros. Resavam as coplas:

  D'amigos e imigos,
  Que ahi são deitados,
  Levemos os ossos
  Ao chão dos finados.
    Ave Maria!
    Sancta Maria!

  Madre gloriosa,
  Dess'alta ventura
  Demovei os olhos
  Á nossa tristura.
    Ave Maria!
    Sancta Maria!

  Ao bento Jesus,
  E ao padre eternal
  Pedi que perdoe
  A quem morreu mal.
    Ave Maria!
    Sancta Maria!

Esta longinqua toada perdeu-se no som de outra bem diversa, que
se alevantou mais perto dos dous cavalleiros. Uma voz esganiçada
dava o seguinte pregão:

"....Justiça que manda fazer elrei em Fernão Vasques, João Lobeira
e Fr. Roy: que morram na forca, sendo ao primeiro as mãos decepadas
em vida."

Os cavalleiros abaixaram os olhos para o logar d'onde subíra
a voz: era no terreiro proximo: os três padecentes e o algoz,
cercados de alguns bésteiros, aproximavam-se do cadafalso: varios
vultos negros fechavam o prestito: daquella pinha partira a voz
do pregoeiro.

Este pregão, dado a horas mortas e n'uma praça deserta, parecia
um escarneo. Mas o corregedor da côrte era affamado jurisconsulto
e nós temos ouvido a alguns que na execução das leis as fórmas
são tudo. Assim piamente o cremos.

Duas se tinham, porém, esquecido: os desgraçados morriam, como
aquelles que o salteador assassina na estrada, pela alta noite,
e sem um sacerdote que os consolasse na extrema agonia.

O algoz empurrou brutalmente um dos padecentes para uma especie
de marco escuro que estava ao pé do patibulo. D'ahi a nada os
cavalleiros viram reluzir duas vezes um ferro: ouviram successivamente
dois golpes dados como em vão, seguindo-se a cada um delles um
grito de terrivel angustia.

O conde de Barcellos quiz rir-se, mas a risada gelou-se-lhe na
garganta, e, como Gonçalo Telles, recuou involuntariamente.

O grilo que restrugira, chegára aos ouvidos d'elrei.

"Que bradar de homem que matam é este?--perguntou elle.

"A justiça de sua senhoria que se executa--respondeu o conde,
que neste momento retrocedia da janella.

"Oh desgraçados! tão breve!--disse elrei, passando a mão pela
fronte, d'onde manava o suor da afflicção e do terror. Olhando
então para Leonor Telles accrescentou:

"Até a derradeira mealha estão pagas vossas arrhas, rainha de
Portugal! Que mais pretendeis de mim?"

E deixou pender a cabeça sobre o peito.

D. Leonor não respondeu.

D. Gonçalo Telles aproximou-se então da cadeira de D. Fernando,
e curvou um joelho em terra.

Elrei alevantou os olhos e perguntou-lhe:--Que me quereis?"

"Senhor--respondeu o honrado e nobre cavalleiro--se vossa senhoria
consentisse neste momento em ouvir a supplica de um dos seus
mais leaes vassallos!..."

"Falae:--replicou D. Fernando.

"João de Lobeira acaba de receber o premio de sua traição:--proseguiu
D. Gonçalo.--O desleal escudeiro possuia avultados bens, que
ficam pertencendo á corôa real. Por vossa muita piedade podeis
fazer mercê delles a seu filho Vasco de Lobeira; mas o pobre
moço ensandeceu ha tempos! Tresleu com livros de cavallarias,
e tão varrido está que não fala em al, senão em um que anda
imaginando, e a que poz o nome Amadis. Para um mesquinho parvo
e sandeu pouco basta, e vossa real senhoria bem sabe que a minha
escassa quantia mal chega ..."

"Calae-vos, calae-vos; que isso é negro e vil;--bradou elrei,
redobrando-lbo o horror que tinha pintado no rosto.--Deixae ao
menos que a sua alma chegue perante o throno de Deus!"

"Apenas cincoenta maravedis!"--murmurou D. Gonçalo, erguendo-se,
e abaixando os olhos, afflicto com a lembrança de sua extremada
pobreza.

A seis de junho da era de Cesar de 1411 (1373) em um dos andares
da torre do castello, o veador da chancellaria, Alvaro Pires,
passeando de um para outro lado, dictava a um mancebo vestido
de garnacha preta, e que tinha diante de si tinteiro, pennas,
e folhas avulsas de pergaminho, a seguinte nota:

"Item. Pera se spreuer a fl'olhas cento e vinte-oyto do llivro
prymeyro da Chancelaria Delrrey noso senhor:--Doaçom dos bees de
rraiz e moviis de Joham Lobeira, confisquado e morto por treedor
contra ho serviço de ssua rreal senhoria, ao muy nobre D. Gonçaalo
Tellez, per ho muyito divedo que cõ elrrey ha, e polos muytos
sserviços que del teè rreçebido e ao deante espera de rreçeber.[7]"

E o povo?... Oh, este sim! Mostrava-se agradecido e bom, no meio
de tantas infamias e crimes.

Os populares, que, na manhan immediata áquella horrivel noite
dos fins de maio, passavam pello terreiro maldict, onde pendiam
da forca os tres cadaveres, meneavam a cabeça, e seguindo ávante
diziam:

"Boa e prestes foi a justiça d'elrei nos traidores. Alcacer por
sua senhoria!"



NOTA FINAL.

D. Fernando guardou até á primavera de 73 a vingança contra os
populares de Lisboa e d'outras terras, que no anno de 71 se tinham
amotinado por causa do seu casamento. Vê-se isto dos documentos
registados na sua chancellaria e citados por Fr. Manuel dos Sanctos.
Quem attentamente tiver estudado o caracter atroz e dissimulado de
Leonor Telles, tão bem pintado por Fernão Lopes, e os factos que
provam a sua influencia sem limites no animo daquelle principe,
não poderá esquivar-se a vehementes suspeitas sobre os motivps, que
n'um romance nós damos como reaes, porque ahi é licito faze-lo, da,
aliás inexplicavel, inacção com que D. Fernando não quiz oppor-se á
vinda d'elrei de Castella sobre Lisboa, vinda que reduziu os seus
moradores aos mais espantosos apuros, e que converteu a cidade,
por assim dizer, em um montão de ruinas. Daquelles documentos
resulta que, depois de tirada toda a força aos habitantes de
Lisboa pela guerra de Castella, em que se viram quasi sós e
abandonados, elrei viera, sobre as ruinas da maior e melhor parte
della, satisfazer os odios de D. Leonor; porque, levantado o
cerco em março de 73, achâmos elrei em Lisboa (aonde não voltára
desde a sua fuga em outono de 71) durante alguns dias de maio, e
em Santarem e outros logares nos mezes seguintes, fazendo mercês
dos bens de cidadãos mortos, decepados, ou fugidos, do que se
póde concluir que então foram executados ou banidos, não sendo
de crer que a cobiça cortezan tivesse esporado muitos dias sem
prear estes sanguinolentos despojos.

O casamento de Leonor Telles, e as consequencias delle são o
primeiro acto do drama terrivel, da Iliada scelerun da sua vida
politica. Foi este primeiro acto que nós procurámos dispor na tela
do romance historico. Todo o drama daria, nessa fórma da arte,
uma terrivel chronica. Desde esta conjunctura, até ser arrastada
em ferros para Castella por aquelles mesmos que chamára a assolar
o seu paiz, a Lucrecia Borgia portugueza é na historia daquella
epocha uma espécie de phantasma diabolico, que apparece onde quer
que haja um feito de traições, de sangue, ou d'atrocidade.

[1] Fernão Lopes, Chr. de D. Fern. cap. 75.

[2] A rainha... como era ousada e muito faladora: Fernão
Lopes, Chr. de D. Fern. cap. 126.

[3] Ibid. Cap. 72.

[4] O selo de puridade ou do camafeu era aquelle que
se estampava no proprio pergaminho, e que servia ordinariamente
para o rei expedir documentos de menos importancia, na falta do
chanceller-mór, que tinha o sêllo grande, curial, ou do cavallo.
Veja-se a Dissertação 3ª de J. P. Ribeiro.

[5] Os tumultos contra o casamento de D. Fernando não
se tinham limitado a Lisboa. Pelas doações dos bens dos treedores
mortos ou decepados se conhece que houve assoadas e depois vinganças
em Satarem, Leiria, Abrantes e outras partes.

[6] Neste século ainda barbaro o uso de hervarou envenenar
as armas de tiro ou arremesso era vulgarissímo nos combates.

[7] a nota é imaginaria, mas esta mercê acha-se com
effeito registada a f. 128 do L.º 1.º da chancellaria de D. Fernando;
cumpre todavia advertir que dessa chancellaria apenas existe
original o 3.º livro: o 1.º é dos reformados ou estragados por
Gomes Eannes de Azurara.



O CASTELLO DE FARIA (1373)



A breve distancia da villa do Barcellos, nas faldas do Franqueira,
alveja ao longo um convento de Franciscanos. Aprazivel é o sitio,
sombreado de velhas arvores. Sente-se alli o murmurar das aguas
e a bafagem suave do vento, harmonia da natureza, que quebra o
silencio daquella solidão, a qual, para nos servirmos de uma
expressão de Fr. Bernardo de Brito, com a saudade de seus horisontes
parece encaminha e chamar o espirito á contemplação das cousas
celestes.

O monte que se alevanta ao pé do humilde convento, é formoso, mas
aspero e severo como quasi todos os montes do Minho. Da sua corôa
descobre-se ao longe o mar, semelhante a mancha azul entornada na
face da terra. O espectador colloeado no cimo daquella eminencia
volta-se para um e outro lado, e as povoações e os rios, e os
prados e as fragas, e os soutos e os pinhaes apresentam-lhe o
panorama variadissimo que se descobre de qualquer ponto elevado
da província de Entre-Douro-e-Minho.

Este monte, ora ermo, silencioso e esquecido, já se viu regado
de sangue: já sobre elle se ouviram gritos de combatentes, ancias
de moribundos, estridor de habitações incendiadas, sibilar de
setas, e estrondo de machinas de guerra. Claros signaes de que
ahi viveram homens; porque é com estas balisas que elles costumam
deixar assignalados os sitios que escolheram para habitar na
terra.

O castello de Faria com suas torres e ameias, com sua barbacan
e fosso, com seus postigos e alçapões ferrados, campeou ahi como
dominador dos valles vizinhos. Castello real da meia idade, a
sua origem some-se nas trevas dos tempos que já lá vão ha muito:
mas a febre lenta que costuma devorar os gigantes de marmore e
de granito, o tempo, coou-lhe pelos membros, e o antigo alcacer
das eras dos reis de Leão desmoronou-se e cahiu. Ainda no seculo
dezesete parte da sua ossada estava dispersa por aquellas encostas:
no seculo seguinte já nenhuns vestigios delle restavam, segundo
o testemunho de um historiador nosso. Um eremiterio fundado pelo
celebre Egas Moniz era o unico eccho do passado que ahi restava.
Na ermida servia de altar uma pedra trazida de Ceuta pelo primeiro
duque de Bragança D. Affonso. Era esta lagea a mesa em que costumava
comer Salat-ibn-Salat, ultimo senhor de Ceuta. D. Affonso, que
seguíra seu pae D. João I na conquista daquella cidade, trouxe
esta pedra entre os despojos que lhe pertenceram, levando-a comsigo
para a villa de Barcellos, cujo conde era. De mesa de banquetes
mouriscos converteu-se essa pedra em ara do christianismo. Se
ainda existe, quem sabe qual será o seu futuro destino?

Serviram os fragmentos do castello de Faria para se construir
o convento edificado ao sopé do monte. Assim se converteram em
dormitorios as salas de armas, as ameias das torres em bordas de
sepulturas, os umbraes das balhesteiras e postigos em janellas
claustraes. O ruído dos combates calou no alto do monte, e nas
faldas delle alevantou-se a harmonia dos psalmos e o sussurro
das orações.

Este antigo castello tinha recordações de gloria. Os nossos maiores,
porém, curavam mais de practicar façanhas, do que de conservar
os monumentos dellas. Deixaram por isso, sem remorsos, sumir
nas paredes de um claustro pedras que foram testemunhas de um
dos mais heroicos feitos de corações portuguezes.

Reinava entre nós D. Fernando. Este principe, que tanto degenerára
de seus antepassados em valor e prudencia, fôra obrigado a fazer
paz com os castelhanos depois de uma guerra infeliz, intentada sem
justificados motivos, e em que esgotou inteiramente os thesouros
do estado. A condição principal, com que se poz termo a esta lucta
desastrosa, foi que D. Fernando casasse com a filha d'elrei de
Castella: mas brevemente a guerra se accendeu de novo; porque
D. Fernando, namorado de D. Leonor Telles, sem lhe importar o
contracto de que dependia o repouso dos seus vassallos, a recebeu
por mulher, com affronta da princesa castelhana. Resolveu-se o
pae a tomar vingança da injuria, ao que o aconselhavam ainda
outros motivos. Entrou em Portugal com um exercito, e recusando
D. Fernando acceitar-lhe batalha, veiu sobre Lisboa e cercou-a.
Não sendo o nosso proposito narrar os successos deste sitio,
volveremos o fio do discurso para o que succedeu no Minho.

O Adiantado de Galliza, Pedro Rodriguez Sarmento, entrou pela
provincia de Entre-Douro-e-Minho com um grosso corpo de gente de pé
e de cavallo, emquanto a maior parte do exercito portuguez trabalhava
ou por defender ou por descercar Lishoa. Prendendo, matando e
saqueando, veiu o Adiantado até as immediações de Barcellos sem
achar quem lhe atalhasse o passo; aqui, porém, saíu-lhe ao encontro
D. Henrique Manuel, conde de Cêa, e tio d'elrei D. Fernando, com
a gente que pôde ajunctar. Foi terrivel o conflicto; mas por
fim foram desbaratados os portuguezes, cahindo alguns nas mãos
dos castelhanos.

Entre os prisioneiros contava-se o alcaide-mór do castello de
Faria, Nuno Gonçalves. Saíra este com alguns soldados para soccorrer
o conde de Cêa, vindo assim a ser companheiro na commum desgraça.
Captivo, o valoroso alcaide pensava em como salvaria o castello
d'elrei seu senhor das mãos dos inimigos. Governava-o em sua
ausencia um seu filho; e era de crer que, vendo o pae em ferros,
de bom grado désse a fortaleza para o libertar, muito mais quando
os meios de defensão escaceavam. Estas considerações suggeriram
um ardil a Nuno Gonçalves. Pediu ao Adiantado que o mandasse
conduzir ao pé dos muros do castello; porque elle com suas
exhortações faria com que seu filho o entregasse sem derramamento
de sangue.

Um troço de bésteiros e de homens d'armas subia a encosta do
monte da Franqueira, levando no meio de si o bom alcaide Nuno
Gonçalves. O Adiantado de Galliza seguia atraz com o grosso da
hoste, e a costaneira ou ala direita, capitaneada por João Rodriguez
de Viedma, se estendia rodeando o castello pelo outro lado. O
exercito victorioso ía tomar posse do castello de Faria, que
lhe promettêra dar nas mãos o seu captivo alcaide.

De roda da barbacan alvejavam as casinhas da pequena povoação
de Faria: mas silenciosas e ermas. Os seus habitantes, apenas
enxergaram ao longe as bandeiras castelhanas, que esvoaçavam soltas
ao vento, e viram o refulgir scintillante das armas inimigas,
abandonando os seus lares, foram-se acolher no terreiro que se
estendia entre os muros negros do castello e a cerca exterior
ou barbacan.

Nas torres os atalaias vigiavam attentamente a campanha, e os
almocadens corriam com a rolda[1] pelas quadrellas do muro, e
subiam aos cubellos collocados nos angulos das muralhas. O terreiro
aonde se haviam acolhido os habitantes da povoação, estava cuberlo
de choupanas colmadas, nas quaes se abrigava a turba dos velhos,
das mulheres, e das creanças, que alli se julgavam seguros da
violencia de inimigos desapiedados.

Quando o troço dos homens d'armas, que levavam preso Nuno Gonçalves,
vinha já a pouca distancia da barbacan, os bésteiros que coroavam as
ameias encurvaram as béstas, os homens dos engenhos prepararam-se
para arrojar sobre os contrarios os seus quadrellos e virotões,
em quanto o clamor e o chôro se alevantava no terreiro, onde
o povo inerme estava apinhado.

Um arauto saíu do meio da gente da vanguarda inimiga e caminhou
para a barbacan: todas as béstas se inclinaram para o chão, e
o ranger das machinas converteu-se n'um silencio profundo.

"Moço alcaide, moco alcaide!--bradou o arauto--teu pae captivo
do mui nobre Pedro Rodriguez Sarmento, Adiantado de Galliza pelo
muito excellente e temido D. Henrique de Castella, deseja falar
comtigo de fóra de teu castello."

Gonçalo Nunes, o filho do velho alcaide, atravessou então o terreiro,
e chegando à barbacan, disse ao arauto:--"A Virgem proteja meu
pae: dizei-lhe que eu o espero."

O arauto voltou ao grosso de soldados que rodeavam Nuno Gonçalves,
e depois de breve demora o tropel aproximou-se da barbacan. Chegados
ao pé della, o velho guerreiro saíu d'entre os seus guardadores
e falou com o filho:

"Sabes tu, Gonçalo Nunes, de quem é esse castello, que, segundo o
regimento de guerra, entreguei á tua guarda quando vim em soccorro
e ajuda do esforçado conde de Cêa?"

"É--respondeu Gonçalo Nunes--de nosso rei e senhor D. Fernando
de Portugal, a quem por elle fizeste preito e menagem."

"Sabes tu, Gonçalo Nunes, que o dever de um leal alcaide é de
nunca entregar, por nenhum caso, o seu castello a inimigos, embora
fique enterrado debaixo das ruinas delle?"

"Sei, oh meu pae!--proseguiu Gonçalo Nunes em voz mais baixa, para
não ser ouvido dos castelhanos, que começavam a murmurar.--Mas
não vês que a tua morte é certa, se os inimigos percebem que me
aconselhaste a resistencia?"

Nuno Gonçalves, como se não tivera ouvido as reflexões do filho,
clamou então:--Pois se o sabes, cumpre o teu dever, alcaide do
castello de Faria! Maldicto por mim, sepultado sejas tu no inferno,
como Judas o traidor, na hora em que os que me cercam entrarem
nesse castello, sem tropeçarem no teu cadaver."

"Morra!--gritou o almocadem castelhano--morra o que nos
atraiçoou."--E Nuno Gonçalves cahiu no chão atravessado de muitas
espadas e lanças.

"Defende-te, alcaide!"--foram as ultimas palavras que elle murmurou.

Gonçalo Nunes corria como louco ao redor da barbacan, clamando
vingança. Uma nuvem de frechas partiu do alto dos muros: grande
porção dos assassinos de Nuno Gonçalves misturaram o próprio
sangue com o sangue do homem leal ao seu juramento.

Os castelhanos accommetteram o castello: no primeiro dia de combate
o terreiro da barbacan ficou alastrado de cadaveres tisnados, e de
colmos e ramos reduzidos a cinzas. Um soldado de Pedro Rodriguez
Sarmento tinha sacudido com a ponta da sua longa chuça um colmeiro
incendiado para dentro da cerca: o vento suão soprava nesse dia
com violencia; e dentro em pouco os habitantes da povoação, que
haviam buscado o amparo do castello, pereceram junctamente com
as suas frageis moradas.

Mas Gonçalo Nunes lembrava-se da maldicção de seu pae: lembrava-se
de que o vira moribundo no meio dos seus matadores, e ouvia a todos
os momentos o ultimo grito do bom Nuno Gonçalves:--"Defende-te,
alcaide!"

O orgulhoso Sarmento viu a sua soberba abatida diante dos torvos
muros do castello de Faria. O moço alcaide defendia-se como um
leão, e o exercito castelhano foi constrangido a levantar o cerco.

Gonçalo Nunes, acabada a guerra, era altamente louvado pelo seu
brioso procedimento, e pelas façanhas que obrára na defensão
da fortaleza, cuja guarda lhe fôra encommendada por seu pae no
ultimo trance da vida. Mas a lembrança do horrivel successo estava
sempre presente no espirito do moço alcaide; e, pedindo a elrei o
desonerasse do cargo, que tão bem desempenhára, foi depôr ao pé
dos altares a cervilheira e o saio de cavalleiro, para se cubrir
com as vestes pacificas do sacerdocio. Ministro do sanctuario,
era com lagrymas e preces que elle podia pagar a seu pae o ter
cuberto de perpetua gloria o nome dos alcaides de Faria.

Mas esta gloria, não ha hoje ahi uma unica pedra que a atteste.
As relações dos historiadores foram mais duradouras que o marmore.

[1] Roldas e sobreroldas eram os soldados e officiaes
encarragados de rondarem os postos e atalaias.



A ABOBADA (1401)



O CÉGO.


O dia 6 de Janeiro do anno da Redempção 1401 tinha amanhecido
puro e sem nuvens: os campos, cubertos aqui de relva, acolá de
searas, que cresciam a olhos vistos com o calor benefico do sol,
verdejavam ao longe, ricos de futuro para o pegureiro e para
o lavrador. Era um destes formosissimos dias de inverno, mais
gratos que os do estio, porque são de esperança, e a esperança
vale mais do que a realidade; destes dias, que Deus só concedeu
aos paizes do occidente, em que os raios do sol, que começa a
subir na eclíptica, estirando-se vividos e tremulos por cima da
terra, ennegrecida pela humidade, errando por entre os troncos
pardos dos arvoredos, despidos pelas geadas, se assemelham a um
bando de creanças no primeiro viço da vida a folgar e a rolar-se
por cima da campa, sobre a qual ha muito sussurrou o ultimo ai da
saudade, e que invadiram os musgos e abrolhos do esquecimento. Era
um destes dias antipathicos aos poetas ossianico-regelo-nevoentos,
que querem fazer-nos acceitar como cousa mui poetica

   Esses gêlos do norte, esses brilhantes
   Caramellos dos tópes das montanhas,

sem se lembrarem de que

   Do sol do meio-dia aos raios vividos,
   Parvos!--se lhes derretem: a brancura
   Perdem co'a nitidez, e se convertem
   De lucidos cristaes em agua chilre;

destes dias, emfim, em que a natureza sorri como a furto, rasgando
o denso véu da estação das tempestades.

No adro do mosteiro de Santa Maria da Victoria, vulgarmente chamado
da Batalha, fervia o povo entrando para a nova igreja, que de mui
pouco tempo servia para as solemnidades religiosas. Os frades
dominicanos, a quem elrei D. João I tinha doado esse magnifico
mosteiro, cantavam a missa do dia debaixo daquellas altas abobadas,
onde repercutiam os sons do orgam, e os ecchos das vozes do
celebrante, que entoava os kyries.

Mas não era por ouvir a missa conventual que o povo se escoava
pelo profundo portal do templo para dentro do recincto sonoro
daquella maravilhosa fabrica: era por assistir ao auto da adoração
dos reis, que com grande pompa se havia de celebrar nessa tarde
dentro da igreja, e diante do rico presepe que os frades tinham
alevantado juncto ao arco da capella do fundador então apenas
começada. A concorrencia era grande, porque os habitantes da
Canoeira, d'Aljubarrota, de Porto-de-Mós e dos mais logares vizinhos,
desejosos de ver tão curioso espectaculo, tinham deixado desertas
as povoações para vir povoar por algumas horas o ermo do mosteiro.
Aprazivel cousa era o ver, descendo dos outeiros para o valle por
sendas torcidas, aquellas multidões, vestidas de cores alegres,
e semelhantes no seu todo a serpentes immensas, que, transpondo
as assomadas, se rolassem pelas encostas abaixo, reflectindo ao
longe as cores variegadas da pelle luzidia e lubrica. Atravessando
a planicie, em que avultava o mosteiro, passava o rio Lena, cuja
corrente tinham tornado caudal as chuvas da primeira metade da
estação invernosa.

No campo contiguo ao edificio, aqui e acolá, alevantavam-se casarias
irregulares, algumas fechadas com suas portas, outras apenas cubertas
de madeira, e abertas para todos os lados, á maneira de simples
telheiros: as casas fechadas e reparadas contra as injurias do
tempo eram as moradas dos mestres e artifices que trabalhavam no
edificio: debaixo dos telheiros viam-se, n'uns pedras só desbastadas,
n'outros algumas onde se começavam a divisar lavores, n'outros,
emfim, pedaços de cantaria, em que os mais habeis esculptores e
entalhadores já tinham estampado os primores dos seus delicados
cinzeis. Mas o que punha espanto era a innumeravel porção de
pedras, lavradas, pulidas, e promptas para serem collocadas em
seus logares, que jaziam espalhadas pelo grandissimo terreiro,
que ao redor do edificio se alargava para todos os lados: maineis
rendados, peças dos fustes, capiteis gothicos, laçarias de bandeiras,
cordões de arcadas, ahi estavam tombados sobre grossas zorras, ou
ainda no chão endurecido pelo contínuo perpassar de trabalhadores,
officiaes, e mais obreiros desta maravilhosa machina. Quem de
longe olhasse para aquelle extenso campo, alastrado de tantos
primores de esculptura, julgára ver o assento de uma cidade
antiquissima, arrasada pela mão dos homens ou dos seculos, de
que só restára em pé um monumento, o mosteiro. E todavia, esses
que pareciam restos de uma antiga Balbek não eram senão algumas
pedras que faltavam para o acabamento d'um convento de frades
dominicanos, o convento de Sancta Maria da Victoria, vulgarmente
chamado a Batalha!

Um quadrante de pedra, assentado em um canto do adro, apontava
meio-dia. A igreja tinha sorvido dentro do seu seio desmesurado os
habitantes das proximas povoações, e de todo o ruido e algazarra
que poucas horas antes soava por aquelles contornos, apenas
traspassavam pelas frestas e portas do templo os sons do orgam,
soltando a espaços suas melodias, que sussurravam e morriam ao
longe, suaves como um pensamento do céu.

Não estava, porém, inteiramente ermo o terreiro da frontaria
do edificio. Assentado sobre um troço de fuste, com os pés ao
sol, e o resto do corpo resguardado de seus raios ardentes pela
sombra de um telheiro, a qual se começava a prolongar para o lado
do oriente, via-se um velho, veneravel de aspecto, que parecia
embebido em profundas meditações: pendia-lhe sobre o peito uma
comprida barba branca: tinha na cabeça uma touca foteada, um
gibão escuro vestido, e sobre elle uma capa curta ao modo antigo.
A luz dos olhos tinha-lha de todo apagado a velhice; mas as suas
feições revelavam que dentro daquelles membros tremulos e enrugados
morava um animo rico de alto imaginar: as faces do velho eram
fundas, as maçans do rosto elevadas, a fronte espaçosa e curva,
e o perfil do rosto quasi perpendicular. Tinha a testa enrugada
como quem vivêra vida de continuo pensar, e correndo com a mão
os lavores de pedra, sobre que estava assentado, ora carregando
o sobrolho, ora deslisando as rugas da fronte, reprehendia ou
approvava com eloquencia muda os primores ou as imperfeições
do artifice, que copiára á ponta de cinzel aquella pagina do
immenso livro de pedra, a que os espiritos vulgares chamam
simplesmente o mosteiro da Batalha.

Emquanto o velho scismava sósinho, e palpava o canto subtilmente
lavrado, sobre que repousava os membros entorpecidos, á portaria
do mosteiro, que perto d'alli ficava, outras figuras e outra
scena se viam. Dous frades estavam em pé no limiar da porta,
e altercavam em voz alta: de vez em quando, pondo-se nos bicos
dos pés, e estendendo os pescoços, parecia quererem descubrir no
horisonte, que as cumiadas dos montes fechavam, algum objecto:
depois de assim olharem um pedaço, encolhiam os pescoços, e
voltando-se um para o outro, travavam de novo renhida disputa,
que levava seus visos de não acabar.

"Oh homem!--dizia um dos dous frades, a quem a tez macilenta
e as barbas e cabellos grisalhos davam certo ar de auctoridade
sobre o outro, que mostrava nas faces coradas e cheias, e na côr
negra da barba povoada e revolta, mais vigor de mocidade.--Já
disse a vossa reverencia, que elrei me escreveu de seu proprio
punho que viria assistir ao auto da adoração dos reis, e de caminho
veria a casa do capitulo, a que hontem mestre Ouguet mandou tirar
os simples que sustentavam a abobada."

"E nego eu isso?--replicou o outro frade.--O que digo é que me
parece impossivel, que elrei venha de feito, conforme a vossa
paternidade prometteu em sua carta. Ha muito que lá vae o meio-dia;
daqui a pouco tocará a vesperas e ás duas por tres é noite. Não
vêdes, padre mestre, a que horas virá a acabar o auto? E este
povo, este devoto povo que ahi está, que ahi vem, ha-de ir com
o escuro por esses descampados e serras com mulheres, com
raparigas..."

"Tá, tá--interrompeu o prior.--Temos luar agora, e vão de consum.
O caso não é esse, padre procurador, o caso é se está tudo aviado
para agasalharmos elrei e os de sua companha."

"Oh lá, quanto a isso, nada falta. Desde hontem que tenho tido
tanto descanço como hoste ou cavalgada de castelhanos diante
das lanças do Condestavel: o peior é que, segundo me parece, e
dizei o que quizerdes, opus et oleum perdidi.[1]"

"Não falta quem tarda: elrei não quebrará a palavra ao seu antigo
confessor. O que quero é que todos os noviços e coristas, que tem
de fazer suas representações no auto, estejam a ponto e vestidos,
para elle começar logo que sua senhoria chegue."

"Nada receeis; que tudo está preparado: do que duvido é de que
comecemos, se por elrei houvermos de esperar."

O frade mais velho fez a estas palavras um signal de impaciencia,
e sem dar resposta ao seu pyrrhonico interlocutor, estendeu outra
vez o gasnate para a banda da estrada, fazendo com a extremidade
do habito uma especie de sobrecéu para resguardar os olhos dos
raios do sol, que, já muito inclinado para o occidente, batia
de chapa no portal onde os dous reverendos estavam altercando.

Porém, meio descoroçoado, o dominicano logo abaixou os olhos:
nem o minimo vulto se enxergava no horisonte; e neste abaixar
de olhos viu o cégo, que estava ainda assentado sobre o fuste
da columna.

Para escapar talvez ás reflexões do seu companheiro, o reverendo
bradou ao velho:

"Oh lá, mestre Affonso Domingues, bem aproveitaes o soalheiro!
Não vos quero eu mal por isso; que um bom sol de inverno vale,
na idade grave, mais que todos os remedios de longa vida, que
em seus alforges trazem por ahi os physicos."

Dizendo e fazendo, o reverendo desceu os degraus do portal, e
encaminhou-se para o cégo.

"Quem é que me fala?--perguntou este, alçando a cabeça.

"Fr. Lourenço Lamprêa, vosso amigo e servidor, honrado mestre
Affonso. Tão esquecida anda já minha voz em vossas orelhas, que
me não conheceis pela toada?"

"Perdoae-me, mui devoto padre prior:--atalhou o velho, tenteando
com os pés o chão para erguer-se, no momento em que Fr. Lourenço
Lamprêa chegava juncto delle seguido do seu confrade Fr. Joanne,
procurador do mosteiro:--perdoae-me! Foi-se o vêr, vae-se o
ouvir. Em distancia, já não acérto a distinguir as falas."

"Estae quedo; estae quedo, mestre Affonso:--disse Fr. Lourenço,
segurando o cégo pelo braço:--O indigno prior do mosteiro da
Victoria não consentirá que o mui sabedor architecto e imaginador
Affonso Domingues, o creador da oitava maravilha do mundo, o que
traçou este edificio doado pelo virtuoso de grandes virtudes
rei D. João á nossa ordem, se alevante para estar em pé diante
de pobre frade..."

"Mas esse religioso--interrompeu o cégo--é o mais abalisado
theologo de Portugal, o amigo do mui excellente doutor João das
Regras, e do grande Nunalvares, e privado e confessor d'elrei:
Affonso Domingues é apenas uma sombra de homem, um troço de capitel
partido e abandonado no pó das encruzilhadas, um velho tonto de
quem já ninguem faz caso. Se vossa caridade e humildosa condição
vos movem a doer-vos de mim e a lembrar-vos de que fui vivo, não
achareis n'isso muitos de vossa igualha."

"De merencorio humor estaes hoje:--disse o prior sorrindo.--Não
só eu vos amo e venero: elrei me fala sempre de vós em suas cartas.
Não sois cavalleiro de sua casa? E a avultada tença que vos concedeu
em paga da obra que traçastes, e dirigistes, em quanto Deus vos
concedeu vista, não prova que não foi ingrato?"

"Cavalleiro!?"--bradou o velho--"Com sangue comprei essa honra!
Comigo trago a escriptura."--Aqui mestre Affonso, puxando com
a mão tremula as atacas do gibão, abriu-o e mostrou duas largas
cicatrizes no peito.--"Em Aljubarrota foi escripto o documento
á ponta de lança por mão castelhana: a essa mão devo meu foro,
que não ao Mestre d'Aviz. Já lá vão quinze annos! Então ainda
estes olhos viam claro, e ainda para este braço a acha d'armas
era brinco. Elrei não foi ingrato, dizeis vós, veneravel prior,
porque me concedeu uma tença!?--Que a guarde em seu thesouro;
porque ainda ás portas dos mosteiros e dos castellos dos nobres
se reparte pão por cégos e por aleijados."

Proferindo estas palavras, o velho não pôde continuar: a voz
tinha-lhe ficado presa na garganta, e dos olhos embaciados cahiam-lhe
pelas faces encovadas duas lagrymas como punhos. A Fr. Lourenço
tambem se arrasaram os olhos d'agua, Frei Joanne, esse olhou fito
para o cégo durante algum tempo com o olhar vago de quem não
o comprehendia. Depois a idéa da tardança d'elrei e da tardança
do auto, que entrando pelas horas de ceiar e dormir iria fazer
uma brecha horrorosa na disciplina monastica, veio desperta-lo
como espinho pungente. Começou a bufar e a bater o pé, semelhante
ao corredor brioso do livro de Job e da Eneida. Entretanto o
architecto havia-se posto em pé: um pensamento profundamente
doloroso parecia reverberar-lhe pela fronte nobre e turbada,
e houve um momento de silencio. Por fim segurando com força a
manga do habito de Fr. Lourenço, disse-lhe:

"Sois letrado, reverendo padre: deveis ter visto algum traslado
da Divina Comedia do florentino Dante."

"Li já, e mais de uma vez:--respondeu o prior:--É obra prima
daquellas a que os gregos chamavam epos, id est, enarratio, et
actio segundo Aristoteles; e se não houvesse nessa escriptura
algumas ousadias contra o papa..."

"Pois sabei, reverendo padre,--proseguiu o architecto, atalhando
o impeto erudito do prior,--que este mosteiro, que se ergue diante
de nós, era a minha Divina Comedia, o cantico da minha alma:
concebi-o eu; viveu comigo largos annos, em sonhos e em vigilia:
cada columna, cada mainel, cada fresta, cada arco era uma pagina
de canção immensa; mas canção que cumpria se escrevesse em marmore,
porque só o marmore era digno della: os milhares de lavores que
tracei em meu desenho eram milhares de versos; e porque ceguei
arrancaram-me das mãos o livro, e nas paginas em branco mandaram
escrever um estrangeiro! Loucos! Se os olhos corporaes estavam
mortos, não o estavam os do espirito. O estranho a quem deram
meu cargo não me entendia, e ainda hoje estes dedos descobriram
nessa pedra que o meu alento não a bafejára. Que direito tinha
o Mestre d'Aviz para sulcar com um golpe do seu montante a face
de um archanjo que eu creára? Que direito tinha para me espremer
o coração debaixo dos seus çapatos de ferro? Dava-lh'o o ouro que
tem dispendido? O ouro! ... Não! OMeslred'Aviz sabe que o ouro
é vil; só nobre e puro o genio do homem. Enganaram-no: vassallos
houve em Portugal, que enganaram seu rei! Este edificio era meu;
porque o gerei; porque o alimentei com a substancia de minha
alma; porque eu necessitava de me converter todo nestas pedras
pouco a pouco, e de deixar, morrendo, o meu nome a sussurrar
perpetuamente por essas columnas, e por baixo dessas arcarias.
E roubaram-me o filho da minha imaginação, dando-me uma tença!...
Com uma tença paga-se a gloria e a immortalidade? Agradeço-vos,
senhor rei, a mercê!... sois em verdade generoso ... mas o nome
de mestre Ouguet enredar-se-ha no meu, ou talvez sumirá este
no brilho de sua fama mentida..."

O cégo tremia de todos os membros: a vehemencia com que falára
lhe exhaurira as forças: os joelhos vergaram-lhe, e assentou-se
outra vez em cima do fuste. Os dous frades estavam em pé diante
delle.

"Estaes mui perturbado pela paixão, mestre Affonso--disse Fr.
Lourenço depois de uma larga pausa--por isso menoscabaes mestre
Ouguet, que era talvez o unico homem que ahi havia capaz de vos
substituir. Quanto a vós, pensaram os do conselho d'elrei que
deviam propôr-lhe vos désse repouso e honrado sustentamento para
os cansados dias. Ninguem teve em mente offender o mais sabedor
e experto architecto de Portugal, cuja memoria será eterna, e
nunca offuscada."

"Obrigado--atalhou o velho--aos conselheiros d'elrei pelos bons
desejos que em meu prol têm. São politicos, almas de lodo, que
não comprehendem senão proveitos materiaes. Dão-me o repouso
do corpo, e assassinam-me o da alma! Ácêrca de mestre Ouguet,
não serei eu quem negue suas boas manhas e sciencia de edificar:
mas que ponha elle por obra suas traças, e deixem-me a mim dar
vulto ás minhas. E demais: para entender o pensamento do mosteiro
de Sancta Maria da Victoria cumpre ser portuguez; cumpre ter
vivido com a revolução, que poz no throno o Mestre d'Aviz; ter
tumultuado com o povo defronte dos paços da adultera[2]; ter
pelejado nos muros de Lisboa; ter vencido cm Aljubarrota. Não
é este edificio uma obra de reis, ainda que por um rei me fosse
encommendado seu desenho e edificação, mas nacional, mas popular,
mas da gente portugueza, que disse: não seremos servos do
estrangeiro, e que provou seu dicto. Mestre Ouguet, escholar na
sociedade dos irmãos obreiros[3], trabalhou nas sés de Inglaterra,
de França, e de Alemanha: ahi subiu ao gráu de mestre, mas a sua
alma não é aquecida á luz do amor de patria; nem, que o fosse,
é para elle patria esta terra portugueza. Por engenho e mãos
de portuguezes devia ser concebido e executado até seu final
remate o monumento da gloria dos nossos; e eis-ahi que elle chamou
do longes terras officiaes estranhos, e os naturaes lá foram
mandados adornar de primorosos lavores a igreja de Guimarães.
Sei que não seriam nem elles nem eu quem puzesse esse remate; mas
nós deixariamos successores, que conservassem puras as tradições
da arte. Perder-se-ha tudo; e, porventura, tempo virá em que,
nesta obra dos seculos, não haja mãos vigorosas que prosigam
os lavores que mãos cansadas não poderam levar a cabo. Então
o livro de pedra, o meu cantico de victoria, ficará truncado.
Mas Affonso Domingues tem uma pensão d'elrei!.."

Em uma das casas que ficavam mais proximas, e de que fizemos
menção no principio deste capitulo, ergueu-se a adufa de uma
janella no momento em que o cégo terminava estas palavras, e
uma velha, em cuja cabeça alvejava uma toalha mui branca, gritou
da janella:

"Mestre Affonso, quereis recolher-vos? Está prompta a cêa, e começa
a cahir a orvalhada, que a tarde vae nevoenta."

"Vamos lá, vamos lá, Anna Margarida; vinde guiar-me."

E Anna Margarida, ama de mestre Affonso Domingues, saiu da porta
com a roca ainda na cincta, e o fuso espetado entre o linho e o
ourêlo que o apertava. Chegando ao pé do velho, tocou-lhe com
o braço, em que elle se firmou, tornando a erguer-se.

"Boas tardes, padre prior:--disse a ama, fazendo sua mesura,
seguida de um lamber de dedos, e de dous puxões nas barbas da
estriga quasi fiada.

"Vá na graça do Senhor, filha:--respondeu Fr. Lourenço, e
accresccntou dírigindo-se ao cégo:

"Meu irmão, Deus acceita só ao homem, em desconto da grande divida,
a dor calada e soffrida. Resignae-vos na sua divina vontade."

"Na delle estou eu resignado ha muito: na dos homens é que nunca
me resignarei."

E Anna Margarida, que tinha a cêa ainda ao lume, foi puxando o
cégo para a porta de casa.

"Ai, Affonso Domingues, Affonso Domingues! vae-se-te após a vista
o siso. Aborrida cousa é a velhice. Não vos parece, Fr. Joanne?"

Isto dizia o prior, voltando-se para o outro frade, que suppunha
estaria atraz delle; mas Fr. Joanne tinha desapparecido d'alli
manso e manso. Alongando os olhos ao redor de si, Fr. Lourenço
viu-o em pé sobre uma pedra a alguma distancia.

O prior ia a perguntar-lhe o que fazia alli, quando o reverendo
procurador saltou a correr, bradando:

"Ganhastes, padre prior; ganhastes!... Eis elrei que chega."

E, com effeito, Fr. Lourenço, volvendo os olhos para o cimo de
um outeiro, viu uma lustrosa companhia de cavalleiros, que com
grande açodamento descia para o vallc do mosteiro.

[1] Perdi o azeite e o trabalho: expressão proverbial.

[2] D. Leonor Telles, mulher d'elrei D. Fernando.

[3] Architectos sarracenos se espalharam pela Grecia,
Sicilia, e outros paizes, durante certo tempo: um avultado numero
de artifices christãos, principalmente gregos, se ajunctaram com
elles, e formaram todos uma corporação, que tinha suas leis e
estatutos secretos, e cujos membros se reconheciam por signaes.
Esta foi a origem da Maçonaria. Conversation's Lexicon.



MESTRE OUGUET.


Uma das innumeraveis questões, que, em nosso entender, eternamente
ficarão por decidir, é a que versa sobre qual dos dous dictados--voz
do povo é voz de Deus--ou--voz do povo é voz do diabo--seja o
que exprima a verdade. É indubitavel que o povo tem uma especie
de presciencia innata, d'instincto divinatorio. Quantas vezes,
sem que se saiba como ou porque, corre voz entre o povo, que tal
navio saído do porto, tão rico de mercadorias como de esperanças,
se perdeu em tal dia e a tal hora em praias estranhas. Passa o
tempo, e a voz popular renlisa-se com exacção espantosa. Assim
de batalhas; assim de mil factos. Quem dá estas noticias? Quem as
trouxe? Como se derramaram? Mysterio é esse, que ainda ninguem
soube explicar. Foi um anjo? Foi um demonio? Foi algum feiticeiro?
Mysterio. Não ha, nem haverá, talvez, nunca, philosopho que o
explique; salvo se tal phenomeno é uma das maravilhas do magnetismo
animal. Esse meio inintelligivel de dar solução a tudo o que se
não entende, é acaso a unica via de resolver a dúvida. Se o é,
ahi damos mais um osso a roer aos physicos do magnetismo.

Foi o caso: quando a cavalgada, de que fizemos menção no fim
do antecedente capitulo, vinha descendo a encosta sobranceira á
planicie do mosteiro, entre o povo que estava dentro da igreja,
impaciente já pela demora do auto, começou-se a espalhar um sussurro,
que cada vez crescia mais: o motivo delle não era facil sabe-lo:
nenhuma novidade occorrêra; ninguem tinha entrado ou saido. De
repente toda aquella multidão se agitou, remoinhou pela igreja,
e principiou a borbulhar pelo portal fóra, como por bico de funil
o liquido deitado de alto. Tinham sabido que elrei chegava, e
todos queriam vê-lo descalvagar, porque D. João I, plebeu por
herança materna, nobre por ser filho do D. Pedro I, rei eleito
por uma revolução, e confirmado por cincoenta victorias, era o
mais popular, o mais amado, e o mais acatado de todos os reis
da Europa. Vinha montado em uma possante mula, e assim mesmo em
outras os fidalgos e cavalleiros de sua casa. Trazia vestida sobre
a cota uma jórnea de veludo carmesim, monteira preta, e nebri em
punho, em maneira de caçada. Chegando á porta do mosteiro, onde
o esperava já Fr. Lourenco com parte da communidade, apeou-se de
um salto, e com rosto risonho e a mão no barrete, agradeceu sua
cortezia e amor aos populares, que gritavam apinhados à roda delle:
--"viva D. João I de Portugal: morram os castelhanos!"--grito
absurdo, mas semelhante aos vivas de todos os tempos; porque o
povo, bem como o tigre, mistura sempre com o rugido de amor o
bramido que revela a sua indole sanguinaria.

Por baixo daquellas suberbas arcadas desappareceu brevemente
elrei da vista da multidão, que tornou a sumir-se no templo para
ver o auto, que não podia tardar.

"Mui receioso estava que vossa real senhoria nos não honrasse
nosso auto; porque o sol não tarda a sumir-se no poente:--dizia
Fr. Lourenço a elrei, a cujo lado ia para o guiar ao seu aposento.

"Bofé, mui devoto padre prior, que por pouco estive a ponto de
ter que levar a vossos pés mais uma mentira com os outros peccados,
que me não fallecem, se ámanhan me quizesse confessar ao meu
antigo confessor:--tornou-lhe elrei sorrindo-se.

"E certo estou de que entre todos os peccados de que terieis
de vos accusar, este não fôra o menos grave, e de que eu muito
a custo absolveria vossa mercê:--retrucou o prior, que tinha
aprendido ainda mais depressa as manhas cortezans no paço, do
que a theologia no noviciado da sua ordem.

"Mas para onde me guiaes, reverendissimo prior:--disse elrei,
parando antes de subir uma escada, para a qual Fr. Lourenço o
encaminhava.

"Ao vosso aposento, real senhor; por que tomeis alguma refeição,
e repouseis um pouco do trabalho do caminho."

"Não foi grande o feito, para tomar repouso:--acudiu elrei:--que
de Santarem aqui é uma corrida de cavallo; muito mais para quem,
em vez de cota de malha, arnez e braçaes, traz vestidos de seda.
Despi-los-hei bem depressa, já que elrei de Castella quer jogar
mais lançadas, e não vieram a conclusão de treguas o Mestre de
Sanctiago com o Condestavel. Mas vamos, meu doutissimo padre;
mostrae-me a casa do capitulo, a que mestre Ouguet acabou de
pôr seu fecho e remate. Onde está elle? Quero agradecer-lhe a
boa diligencia."

"Beijo-vos as mãos pela mercê:"--disse mestre Ouguet, que, sabendo
da chegada d'elrei, e certo de que elle desejaria vêr aquella
grande obra, tinha corrido ao mosteiro, e estava entre os da
comitiva:--"Se quereis vêr a casa do capitulo, vamos para a banda
da crasta."--Dizendo isto, sem ceremonia tomou a dianteira, e
encaminhou-se ao longo de um dos cubertos do claustro.

David Ouguet era um irlandez, homem mediano em quasi tudo; em
idade, em estatura, em capacidade, e em gordura, salvo na barriga,
cujos tegumentos tinham soffrido grande distensão, em consequencia
da dura vida que a tyrannia do filho d'Erin lhe fazia padecer
havia bem vinte annos. Desde muito moço que começára a produzir
grande impressão no seu espirito a invectiva do apostolo contra
os escravos do proprio ventre; e para evitar essa condemnavel
fraqueza resolvêra traze-lo sempre sopeado. Não lhe dava treguas;
se em Inglaterra o fizera muitos annos vergar sob o pêso de dez
atmospheras de cerveja, em Portugal submettia-o ao mais fadigoso
mister de cangirão permanente. Mortificava-o assim, para que não
lhe acudissem suberbas e velleidades de senhorio e dominação.
De resto David Ouguet era bom homem, excellente homem: não fazia
aos seus semelhantes senão o mal absolutamente indispensavel ao
proprio interesse: nunca matára ninguem, e pagava com pontualidade
exemplar ao alfaiate e ao merceeiro. Prudente, positivo, e practico
do mundo, não o havia mais: seria capaz de se empoleirar sobre
o cadaver de seu pae para tocar a méta de qualquer designio
ambicioso: com tres licções de phrases oucas dava panno para
se engenharem delle dous grandes homens d'estado. Tendo vindo a
Portugal como um dos cavalleiros do duque de Lancastre, procurou
obter e alcançou a protecção da rainha D. Philippa, que, havendo
Affonso Domingues cegado, o fez nomear mestre das obras do mosteiro
da Batalha, mostrando elle por documentos authenticos ter na
sua mocidade subido ao gráu de mestre na sociedade secreta dos
obreiros edificadores.

Esta é em breve resumo a historia de David Ouguet, tirada de
uma velha chronica, que, em tempos antigos, esteve em Alcobaça
enquadernada em um volume junctamente com os traslados authenticos
das Côrtes de Lamego, do Juramento de Affonso Henriques sobre a
apparição de Christo, da Carta de feudo a Claraval, das Historias
de Laimundo e Beroso, e de mais alguns papeis de igual veracidade
e importancia, que por pirraça ás nossas glorias provavelmente
os castelhanos nos levaram.

O lanço da crasta, fronteiro ao cuberto por onde ía elrei, estava
ainda por acabar. Apenas D. João I entrou naquelle magnifico
recincto, olhou para lá, e voltando-se para mestre Ouguet, disse:

"Parece-me que não vão tão aprimorados os lavores daquellas arcarias
como os destas. Que me dizeis, mestre Ouguet?"

"Seguiu-se á risca nesta parte--tornou o architecto--o desenho
geral do edificio, feito por mestre Affonso Domingues; porque
seria grave erro destruir a harmonia desta peça: mas se vossa
mercê m'o permitte, antes de entrardes no capitulo tenho alguma
cousa que vos dizer ácerca do que ides presenciar."

"Falae desassombradamente:--respondeu elrei--que eu vos escuto."

"Tomei a ousadia--proseguiu mestre Ouguet--de seguir outro desenho
no fechar da immensa abobada que cobre o capitulo: o que achei na
planta geral contrastava as regras da arte, que aprendi com os
melhores mestres de pedraria. Era até impossivel que se fizesse
uma abobada tão achatada, como na primitiva traça se delineou:
eu, pelo menos, assim o julgo."

"E consultastes o architecto Affonso Domingues, antes de fazer
essa mudança no que elle havia traçado?--interrompeu elrei.

"Por escusado o tive:--replicou David Ouguet.--Cégo, e por isso
inhabilitado para levar a cabo a edificação, teimaria que o seu
desenho se póde executar, visto que hoje ninguem o obriga a prova-lo
por obras. Sobra-lhe orgulho: orgulho de imaginador engenhoso.
Mas que vale isso sem a sciencia, como dizia o veneravel mestre
Vilhelmo de Wykeham? Menos engenho e mais estudo, eis do que
havemos mister."

"Dizendo isto o architecto, mettêra ambas as mãos no cincto,
estendêra a perna direita excessivamente empertigada, e com a
fronte erecta volveu os olhos solemne e lentamente para os
circumstantes.

"Mestre Ouguet--acudiu elrei com aspecto severo--lembrae-vos
de que Affonso Domingues é o maior architecto portuguez. Não
entendo de vossas distincções de sciencia e de engenho: sei só
que o desenho de Sancta Maria da Victoria causa assombro a vossos
proprios naturaes, que se gabam de ter no seu paiz os mais affamados
edificios do mundo: e esse mestre Affonso, de quem vós falaes com
pouco respeito, foi o primeiro architecto da obra que a vosso
cargo está hoje."

"Vossa mercê me perdoe:--tornou mestre Ouguet, adocicando o tom
orgulhoso com que falára.--Longe de mim menoscabar mestre Domingues:
ninguem o venera mais do que eu; mas queria dar a razão do que
fiz, seguindo as regras do mui excellente mestre Vilhelmo de
Wykeham, a quem devo o pouco que sei, e cuja obra da cathedral
de Winchestria tamanho ruido tem feito no mundo."

Com este dialogo chegou aquella comitiva ao portal, que dava
para a casa do capitulo: Fr. Lourenço Lamprea, como dono da casa,
correu o ferrolho com certo ar de auctoridade, e encostado ao
umbral cortejou a elrei no momento de entrar, e aos mais fidalgos
e cavalleiros que o acompanhavam. Mestre Ouguet, como pessoa
tambem principalissima naquelle logar, collocou-se juncto do
umbral fronteiro, repetindo, com aspecto sobranceiro-risonho,
as mesuras do mui devoto padre prior.

Quando elrei entrou dentro daquella espantosa casa, apenas através
da grande janella que a allumia entrava uma luz frouxa, porque
o sol estava no fim de sua carreira, e o tecto profundo mal se
divisava sem se affirmar muito a vista. Mestre Ouguet ficára
á porta, mas Fr. Lourenço tinha entrado.

"Reverendo prior--disse elrei voltando-se para Fr. Lourenço--vim
tarde para gosar desta maravilhosa vista: vamos ao auto da adoração,
e ámanhan voltaremos aqui a horas de sol."

E seguiu para a banda da sacristia, cuja porta lhe foi abrir o
prior.

Mestre Ouguet entrou na casa do capitulo, quando já os ultimos
cavalleiros do sequito real íam saindo pelo lado opposto, caminho
da igreja. Com as mãos mettidas no cincto de couro preto que
trazia, e a passo mesurado, o architecto caminhou até o meio
daquella desconforme quadra. O som dos passos dos cavalleiros
tinha-se desvanecido; e mestre Ouguet dizia comsigo, olhando
para a porta por onde elles haviam passado:

"Pobres ignorantes! que seria o vosso Portugal sem estrangeiros,
senão um paiz sáfaro e inculto? Sois vós, homens brigosos, capazes
dos primores das artes, ou sequer de entende-los?.. Lá vão, lá
vão os frades celebrar um auto! Não serei eu que assista a elle;
eu que vi os mysterios de Coventria e de Widkirk! Miseraveis
selvagens, antes de tentardes representar mysterios fôra melhor
que mandasseis vir alguns irmãos da sociedade dos escrivães de
parochia de Londres[1], que vos ensinassem os verdadeiros momos,
ademanes e tregeitos usados em semelhantes autos."

Mestre Ouguet estava embebido neste mudo soliloquio, em louvor da
nação que lhe dava de comer, e o que deveria pesar-lhe ainda mais
na consciencia, da nação que lhe dava de beber, quando erguendo
casualmente os olhos para a macissa abobada, que sobre elle se
arqueava, fez um gesto de indizivel horror, e como doudo correu
a bom correr pela crasta solitaria, apertando a cabeça entre
as mãos, e gritando a espaços:

"Oh, malaventurado de mim!"

[1] Pelas Chronicas de Stow se vê que no principio do
seculo 15.° os mysterios eram representados em Londres pelos
escrivães de parochia, incorporados em sociedade por Henrique
3.°, em 1409.



O AUTO.


Juncto a uma das columnas da igreja de Sancta Maria da Victoria
estava levantado um estrado, sobre o qual se via uma grande e
macissa cadeira de espaldas, feita de castanho, e lavrada de
curiosos bestiães e lavores: era este o logar onde elrei devia
assistir ao auto da adoração dos reis. No mesmo estrado havia
varios assentos rasos para nelles se assentarem os fidalgos e
cavalleiros que o acompanhavam. Defronte do estrado e collocado ao
pé do arco da capella do fundador corria para um e outro lado da
parede um devoto presepio[1], mui erguido do chão, e representando
serranias agrestes, ao sopé das quaes estava armada uma especie
de choça, onde sobre a tradicional manjadoura se via reclinado
o menino Jesus, e de joelhos juncto delle a Virgem e S. José,
acompanhados de varios anjos, em acto de adoração. Diante da
cabana corria, no mesmo nivel, um largo e grosseiro cadafalso
de muitas táboas, para o qual, por um dos lados, davam serventia
duas grossas e compridas pranchas de pinho, por onde deviam subir
as personagens do auto.

Tanto que elrei saíu da porta do cruzeiro que dá para a sacristia,
encaminhou-se pela igreja abaixo, e veio assentar-se na cadeira de
espaldas, conduzido por Fr. Lourenço, que com todos os modos de
homem cortezão offereceu os assentos rasos aos demais cavalleiros
e fidalgos.

Pela mesma porta da sacristia saíram logo as primeiras figuras
do auto, que, descendo ao longo da nave, subiram ao cadafalso
pelas pranchas de que fizemos menção.

Estas primeiras figuras eram seis, formando uma especie de prologo
ao auto. Tres que vinham adiante representavam a Fé, a Esperança,
e a Caridade: após ellas vinham a Idolatria, o Diabo, e a Suberba;
todas com suas insignias mui expressivas e a ponto; mas o que
enlevava os olhos da grande multidão dos espectadores era o Diabo,
vestido de pelles de cabra, e com um rabo que lhe arrastava pelo
tablado, e seu forcado na mão, mui vistoso e bem posto. Feitas
as venias a elrei, a Idolatria começou seu arrazoado contra a
Fé, queixando-se de que ella a pretendia esbulhar da antiga posse
em que estava de receber cultos de todo o genero-humano, ao que
a Fé acudia com dizer que ab initio estava apontado o dia em
que o imperio dos idolos devia acabar, e que ella Fé não era
culpada de ter chegado tão asinha esse dia. Então o Diabo vinha
lamentando-se de que a Esperança começasse de entrar nos corações
dos homens; que elle Diabo tinha jus antiquissimo de desesperar
toda a gente; que se dava ao démo por vêr as perrarias que a
Esperança lhe fazia; e com isto careteava com taes momos e tregeitos,
que o povo ria a rebentar, o mais devotamente que era possivel.
Ainda que o Diabo fizesse de truão da festa, nem por isso a sua
contendora, a Esperança, dava descargo de si com menos compostura
do que a tão honrada virtude cumpria, dizendo que ella obedecia
ao senhor de toda las cousas, e que este vendo e considerando
os grandes desvairos que pelo mundo íam, e como os homens se
arremessavam desacordadamente no inferno, a mandára para lhes
apontar o direito caminho do céu; e por aqui seguia com razões
mui devotas e discretas, que moveriam a devotissimas lagrymas
os ouvintes, se a devoto riso os não movesse o Diabo com seus
tregeitos e visagens, como, com bastante agudeza, reflecte o
auctor da antiga chronica, de que fielmente vamos transcrevendo
esta veridica historica. A Suberba, que estava impando, ouvidas
as razões da Esperança, travou della mui rijo, e com voz torvada e
rosto acceso, começou de bradar, que esta dona era sandía, porque
entendera enganar os homens com vaidades de incertos futuros,
e sustenta-los com fumo; que pretendia contra toda a ordem de
boa razão, que a gente vil houvesse igual quinhão no céu com os
senhores e cavalleiros, o que era descommunal ousadia, e fóra da
geral opinião e direito, indo por aqui discursando com remoques
mui orgulhosos, como a Suberba que era. Não soffreu, porém, o
animo da Caridade tão descomposto razoar da sua figadal inimiga,
e lh'o atalhou com tomar a mão naquelle ponto, e notar que os
filhos de Adão eram todos uns aos olhos do Todo-Poderoso; que a
Suberba inventára as vans distincções entre os homens, e que á vida
eternal mais amorosamente eram os pequenos e humildosos chamados,
do que os potentes, o que provou claramente á sua contraria com
bastos textos das sanctas escripturas, de que a Suberba ficou mui
corrida, por não ter contra tão grande auctoridade resposta cabal.
E acabado o dizer da Caridade, um anjo subiu ao cadafalso, para
dar sua sentença, que foi mandar recolher ao abysmo a Idolatria,
o Diabo e a Suberba, e annunciar ás tres virtudes que as ía elevar
ao céu, onde reinariam em gloria perduravel. Então o Diabo, fazendo
horribilissimos biocos, pegou pelas mãos ás duas companheiras,
e fugiu pela igreja fóra com grandes apupos e doestos dos
espectadores. Guiando as tres virtudes, o anjo (por uma daquellas
liberdades scenicas que ainda hoje se admittem, quando, nas vistas
de marinha, o actor, que vem embarcado, desce dois ou tres degráus
das ondas de papelão para a terra de soalho) em vez de subir ao
céu, como annunciára, desceu pelas pranchas, que davam para o
pavimento da igreja, e caminhando ao longo da nave se recolheu á
sacristia, acompanhado da Fé, Esperança e Caridade, tão victoriadas
pelos espectadores, como apupado fôra o Diabo e as suas infernaes
companheiras.

Ainda bem não eram recolhidas estas figuras, quando, pela mesma
porta do cruzeiro, saíram os tres reis magos, ricamente vestidos
ao antigo, com roupas talares de fina téla, mantos reaes, e corôas
na cabeça. Adiante vinha Balthasar, homem já velho, mas bem disposto
de sua pessoa, com aspecto grave e auctorisado, e com umas barbas,
posto que brancas, bem povoadas: logo após elle vinha o rei Belchior,
e a este seguia-se Gaspar: traziam todos suas bocetas, em que
eram guardados os preciosos dons, que ao recem-nascido vinham
de longes terras offertar. Subindo ao cadafalso, disseram como
uma estrella os guiára até Jerusalem, e como desta cidade, depois
de mui trabalhado e duvidoso caminho, tinham acertado em vir a
Bethlem, e com grande folgança encontravam ahi o presepe, para
fazer seu offertorio, o que em verdade era cousa mui piedosa
d'ouvir. O rei Balthasar, como mais velho e sisudo, foi o primeiro
que ajoelhou juncto do presepe, e com voz mui entoada, e depondo
ante o menino seus presentes, disse:

Sancto filho de David,
    Divinal
Salvador da triste raça
    Humanal,
Que descestes lá do assento
    Celestial;
Vós da gloria imperador
    Eternal,
Acceitae este offertorio
    Não real,
Pobre si. É quanto posso:
    Não hei al.
O que fôra compridoiro
    De auto tal
Bem o sei. Andei más vias,
    Por meu mal;
Que dez dias prantei tendas
    De arrayal
Nas soidões fundas d'Arabia,
    Mui fatal.
Meus camellos ha tisnado
    Sol mortal;
E um, de vento do deserto,
    Vendaval.
O presente, que ahi vêdes,
    Pouco vai;
É somente algum incenso
    Oriental;
Que o thesouro que eu trazia,
    Mui cabal,
Soterrou-mo a tempestade
    No areal.

E com isto o veneravel rei Balthasar, depois de fazer sua oração
em voz baixa, ergueu-se; e o rei Belchior, ajoelhando e depondo
a urna que trazia nas mãos ante o presepe, disse:

      Vindo sou Iá do Cataio
      A adorar-vos alto infante,
         Redemptor:
      Não me poz na alma desmaio
      Ser de lerra tào distante
         Rei, senhor!
      É bem torva a minha lace:
      Minhas mãos tingidas são
         De negrura;
      Mas na terra onde o sol nace
      Mais se cobre o coração
         De tristura;
      Porque o torpe Mafamede
      Sua crença mui sandia
         Mandou lá;
      E não ha quem della arrede
      Essa gente, que aperfia
         Em ser má.
      Real tronco de Jessé
      Mui fermoso, se eu podéra
         Vos levára;
      E comvosco á vossa fé
      Os incréus eu convertêra,
         E os salvára.
      Ora quero vêr se peito
      São José, que é vosso padre ....

Um sussurro, que começára no momento em que o rei preto ajoelhou,
e que mal deixára ouvir a precedente loa (obra mui prima de certo
leigo, affamado jogral daquelle tempo) cresceu neste momento a tal
ponto, que o corista, que fazia o papel de Belchior, não pôde,
continuar, com grande dissabor do poeta, que via murchar a corôa de
louros, que neste auto esperava obter. O povo agitava-se, e do meio
delle saíam gritos descompostos, que augmentavam o tumulto. Elrei
tinha-se erguido, e junctamente os demais cavalleiros e fidalgos:
todos indagavam a origem do motim; mas não havia acertar com
ella. Emfim, um homem rompendo por entre a multidão, sem touca
na cabeça, cabellos desgrenhados, bôca torcida e cuberto de escuma,
olhos esgazeados, saltou para dentro da têa, que fazia um claro
em roda do tablado. Apenas se viu dentro daquelle recincto, ficou
immovel, com os braços estendidos para o tecto, as palmas das
mãos voltadas para cima, e a cabeça encolhida entre os bombros,
como quem cheio de horror via sobre si desabar aquellas altissimas
e macissas arcarias.

"Mestre Ouguet!--exclamou elrei espantado.

"Mestre Ouguet!--gritou Fr. Lourenço, com todos os signaes de
assombro.

"Mestre Ouguet!--repetiram os cavalleiros e fidalgos, para tambem
dizerem alguma cousa.

"Quem fala aqui no meu nome?--rosnou David Ouguet, com uma voz
comprimida e sepulchral.--Malvados! Querem assassinar-me?! Querem
arrojar sobre mim esse montão de pedras, como se eu fôra um cão
judeu, que merecesse ser apedrejado?! Oh meu Deus, salvae a minha
alma!"--E depois de um breve silencio, em que pareceu tomar fôlego:--
"Não vos chegueis ahi!--bradou elle.--Não vedes essas fendas
profundas como o caminho do inferno? São escuras: mas atravez
dellas lá enxergo eu o luar! Vós não, porque vossos olhos estão
cegos ... porque o vosso bom nome não se escoa por lá!... Cégos?
Não vós!... mas elle!... Elle é que se ri e folga em sua orgulhosa
suberba! Vêde como escancára aquella bôca hedionda; como revolve,
debaixo das palpebras cubertas de vermelhidão, aquelles olhos
embaciados!... Maldicto velho, foge diante de mim!... Maldicto,
maldicto!... Curvada ja no centro ... sentia-a escaliçar e ranger...
Estavas tu assentado em cima della? Feiticeiro!... Anda, que eu
bem ouço as tuas gargalhadas!... Não ha um raio que te confunda?..
Não!"

Dizendo isto, mestre Ouguet cubriu a cara com as mãos, e ficou
outra vez immovel.

Elrei, os cavalleiros, os padres mais dignos, que estavam de
roda do estrado real, os reis magos, os populares, todos olhavam
pasmados para o architecto que assim interrompêra a solemnidade
do auto. Um silencio profundo succedêra ao ruído, que a apparicào
daquelle homem desvairado excitara. Milhares de olhos estavam
fitos nesse vulto, que semelhava uma larva de condemnado saída
das profundezas para turbar a festa religiosa. Por mais de um
cérebro passou este pensamento: em mais de uma cabeça os cabellos
se eriçaram de horror; mas dos que conheciam mestre Ouguet nenhum
duvidou de que fosse elle em corpo e alma. Que proveito tiraria
o demonio de tomar a figura do architecto para fazer uma das
suas irreverentes diabruras? Só uma supposição havia, que não
era inteiramente desarrazoada; David Ouguet podia estar possesso,
em consequência de algum grave peccado; peccado que talvez tivesse
escondido na ultima confissão, que fizera na vespera de Natal. Isto
era possivel, e até natural; que não vivia elle a mais justificada
vida. Suppôr que endoudecêra parecia grande desproposito; porque
nenhum motivo havia para tal lhe acontecer, quando merecêra os
gabos d'elrei e de todos, por ter levado a cabo a grandiosa obra
que lhe estava encommendada. Estes e outros raciocinios, hoje
ridículos, mas segundo as idéas daquella epocha hem fundados
e correntes, fazia o reverendo padre procurador Fr. Joanne, que
tinha vindo assistir ao auto, e estava em pé atraz do estrado,
e perto de Fr. Lourenço Lamprêa. Revolvendo taes pensamentos,
no meio daquelle silencio ancioso em que todos estavam, não pôde
ter-se que, pé ante pé, se não chegasse ao prior, e lh'os
communicasse em voz baixa, e ao ouvido.

"Não vou fóra disso:"--respondeu o prior, que, emquanto o outro frade
lhe falára, estivera dando á cabeça em signal de approvação.--"O
olhar espantado, o escumar, o estorcer os membros, o falar não
sei de que feiticeiro; tudo me induz o crer que o demonio se
chantou naquelle miseravel corpo, como vós aventaes. Se assim
é, pouco juizo mostrou desta vez o diabo em vir com seus esgares
e tropelias atalhar o mui devoto auto da adoração. Examinemos
se assim é, eu vo-lo darei bem castigado."

Dizendo isto, Fr. Lourenço chegou-se a el-rei, e disse-lhe o
que quer que foi. Elle escutou-o attentamente, e tanto que o
prior acabou, sentou-se outra vez na sua cadeira de espaldas, e
fez signal com a mão aos fidalgos e cavalleiros para que tambem
se assentassem.

Fr. Lourenço, acompanhado de mais alguns frades, subiu pela igreja
acima, e entrou na sacristia: todos ficaram esperando, silenciosos
e immoveis como mestre Ouguet, o desfecho desta scena, que se
encaixava no meio das scenas do auto.

Tinham passado obra de tres credos, quando, saindo outra vez
da porta da sacristia, Fr. Lourenço voltou pela igreja abaixo,
revestido com as vestes sacerdotaes, cbegou á têa, abriu-a, e
encaminhou-se para mestre Ouguet. Depois, olhando de roda, e
fazendo um aceno de aucloridade, disse:

"Ajoelhae, christãos, e orae ao Padre Eterno por este nosso irmão,
tomado do espirito immundo."

A estas palavras, rei, cavalleiros, frades, povo, tudo se poz de
joelhos. E ouvia-se ao longo das naves o sussurro das orações.

Só mestre Ouguet ficou sem se bulir com o rosto mettido entre
as mãos.

O prior lançou a estola á roda do pescoço do possesso, e queria
atar os tres nós do ritual; mas o paciente deu um estremeção,
e tirando as mãos da cara, fez um gesto de horror, e gritou:

"Frade abominável, tambem tu és conluiado com o cégo?"

"Não ha duvida!--disse por entre os dentes o prior:--mestre Ouguet
está endemoninhado."

Tirando então da manga um pergaminho, em que estavam escriptas
varias cousas de doutrina, o poz sobre a cabeça do mestre, fazendo
sobre elle tres vezes o signal da cruz.

David Ouguet soltou então uma destas risadas nervosas, que
horrorisam, e que tão frequentes são quando o padecimento moral
sobrepuja as forcas da natureza.

"Cão tinhoso--bradou Fr. Lourenço--espirito das trevas, enganador,
maldicto, luxurioso, insipiente, ebrio, serpe, vibora, vil e
refece demónio, emfim, castelhano[2]. Em nome do creador e senhor
de todas las cousas, te mando que repitas o credo, ou sáias deste
miseravel corpo."

Mestre Ouguet ficou immovel e calado.

"Não cedes?!"--proseguiu o prior--"Recorrerei ao septimo, ao mais
terrivel exorcismo. Veremos se poderás a teu salvo escarnecer
das creaturas feitas á imagem e semelhança de Deus."

Depois de varias ceremonias e orações, Fr. Lourenço chegou-se
ao pobre irlandez, e começou a repetir o conjuro, fazendo-lhe
uma cruz sobre a testa a cada uma das seguintes palavras, que
proferia lentamente:

"Hel--Heloym--Heloa--Sabaoth--Helyon--Esereheye--Adonay--Iehova--
Ya--Thetagrammaton--Saday--Messias--Hagios--Ischiros--Otheos--
Athanatos--Sother--Emanuel--Agla--......

"Jesus!"--bradou a uma voz toda a gente que estava na igreja.

"Diabo!"--gritou mestre Ouguet; e caíu no chão como morto.

E houve um momento de angustia e terror, em que todos os corações
deixaram de bater, e em que todos os olhos, braços e pernas ficaram
fixos como se fossem de bronze.

Um ruído semelhante ao de cem bombardas, que se houvessem disparado
dentro do mosteiro, e que soára da banda da sacristia, tinha
arrancado aquelle grito de mil bôcas, e tinha convertido em estatuas
essa multidão de povo.

Ha situações tão violentas, que se durassem, a morte se lhes
seguiria em breve; mas a providente natureza parece restaurar
com dobrada energia o vigor physico e espiritual do homem depois
destes abalos espantosos; e então, melhor que nunca, elle sente
em si que, posto que despenhado, não perdeu a sublimidade da sua
origem divina. A reacção segue a acção; e quanto mais timido
o individuo se mostrou, mais viva é a consciência da propria
força, que depois disso renasce com o destemor e ousadia.

Foi o que succedeu a D. João I, aos cavalleiros do seu sequito,
e ao povo que estava na igreja de Sancta Maria, passado aquelle
instante de sobrenatural pavor. A terribilidade da ceremonia
que Fr. Lourenço practicava; o ruído inesperado que rompêra o
exorcismo; o grito blasphemo do architecto, no momento de cahir
por terra; o logar; a hora, eram cousas que, reunidas, fariam
pedir confissão a uma grande manada de philosophos encyclopedistas,
e que por isso, não é de admirar fizessem uma impressão vivissima
em homens de um seculo, não só crente, mas tambem supersticioso.
Todavia o animo indomavel do Mestre d'Aviz brevemente fez cobrar
alento a todos os que ahi estavam.

"É, em verdade, descommunal maravilha o que temos visto e
ouvido--disse elle com voz firme, voltando-se para os que o
rodeavam;--mas cumpre indagar d'onde procede o ruído que veiu
interromper o mui devoto padre prior no exercicio de seu ministerio
tremendo. Soou esse medonho estampido da banda do claustro: vamos
examinar o que seja: se diabolico, estamos na casa de Deus, e
a cruz é nosso amparo: se natural, que haverá no mundo capaz
de pôr espanto em cavalleiros portuguezes?"

Dizendo isto, elrei desceu do estrado, e encaminhou-se para a
sacristia. Os cavalleiros da comitiva, os frades, os tres reis
magos (que ainda estavam em pé sobre o tablado) e uma grande
parte do povo tomaram o mesmo caminho.

Elrei ía adiante, e o prior era o que mais de perto o seguia.
Cruzaram o arco gothico, que dava communicação para a sacristia:
ahi tudo estava em silencio: uma lampada que pendia do tecto
dava uma luz frouxa e mortiça, e a esta luz incerta e baça
encaminharam-se para a porta do capitulo. Ao chegar a ella todos
recuaram de espanto, e um segundo grito soou, e veiu morrer
sussurrando pelas naves da igreja quasi deserta:

"Jesus!"

As portas haviam estourado nos seus grossissimos gonzos, e muito
cimento solto e pedras quebradas tinham rolado pelo portal fóra,
entulhando-lhe quasi um terço da altura. Olhando para o interior
daquella immensa quadra não se viam senão enormes fragmentos
de cantos lavrados, de laçarias, de cornijas, de voltas e de
relevos: a lua, que passava tranquilla nos céus, reflectia o
seu clarão pallido sobre este montão de ruinas semelhantes aos
monumentos irregulares de um cemiterio christão; e por cima daquelle
temoroso silencio passava o frio leste da noite, e vinha bater
nas faces turbadas dos que apinhados na sacristia contemplavam
este lastimoso espectaculo. Dos olhos d'elrei e de Fr. Lourenço
cahiram algumas lagrymas, que elles debalde tentavam reprimir.

A abobada do capitulo, acabada havia vinte e quatro boras, tinha
desabado em terra!

[1] Presepio, ou presepe, significa propriamente um
estabulo, ou estrebaria; mas a accepção vulgar desta palavra é a
de uma especie de embrechado, ou paizagem de vulto, representando
a choça de Belém, em que nasceu o Salvador.

[2] O inquisidor Sprenger, no livro intitulado Mallens
Maleficarum, recommenda aos exorcistas que antes de tudo descomponham
e injuriem quanto poderem os possessos, advertindo que não são
propriamente estes que recebem as affrontas, mas sim o diabo,
que tem no corpo. A conveniencia de taes doestos é que para o
demonio, pae da suberba, não póde haver maior pirraça do que
ser descomposto na sua cara, sem que elle se possa desaggravar.
Veja-se o livro citado, edição de Lyão de 1604--Tom. 3. pág.
83.



UM REI CAVALLEIRO.


Em uma quadra das que serviam de aposentos reaes no mosteiro
da Batalha, á roda de um bufete de carvalho de lavor antigo,
cujos pés, torneados em linha espiral, eram travados por uma
especie de escabéllo, que pelos topos se embebia nelles, estavam
assentadas varias personagens daquellas com quem o leitor já tractou
nos antecedentes capitulos. Eram estas D. João I, Fr. Lourenço
Lamprêa, e o procurador Fr. Joanne. Elrei estava á cabeceira
da mesa, e no topo fronteiro o prior, tendo á sua esquerda Fr.
Joanne. Além destes, outros individuos ahi estavam, que as pessoas
lidas nas chronicas deste reino tambem conhecerão: taes eram os
doutores João das Regras e Martim d'Ocem do conselho d'elrei,
cavalleiros mui graves e auctorisados, e afóra elles mais alguns
fidalgos, que D. João I particularmente estimava. Atraz da cadeira
d'elrei um pagem esperava, em pé, as ordens de seu real senhor.
O quadrante do terrado contiguo apontava meio-dia.

Em cima do bufete estava estendido um grande rolo de pergaminho,
no qual todos os olhos dos circumstantes se fitavam: era a traça
ou desenho do mosteiro, que delineára mestre Affonso Domingues,
onde, além dos prospectos geraes do edificio, illuminados
primorosamente, se viam todos os córtes e alçados de cada uma
das partes dessa complicada e maravilhosa fabrica. Elrei tinha
a mão estendida, e os dedos sobre o risco da casa capitular,
ao passo que falava com o prior:

"Parece impossivel isso; porque natural desejo é de todos os
homens alcançarem repouso e pão na velhice, e não vejo razão para
mestre Affonso se doer da mercê que lhe fiz."

"Pois a conversação que vos relatei, tive-a com elle ainda hontem,
pouco antes de vossa mercê chegar."

"E como vae David Ouguet?--perguntou elrei.

"Com grande melhoria:--respondeu o prior.--Dormiu bom espaço,
e acordou em seu juizo. Contou-me que, entrando hontem após nós
na casa do capitulo, e affirmando a vista na abobada, conhecêra
que tinha gemido, e estava a ponto de desabar; que sentíra
apertar-se-lhe o coração, e que com a sua afflicção corrêra pela
crasta fóra como doudo; que no céu se lhe affigurava um relampaguear
incessante e medonho; que via ... nem elle sabe o que via, o pobre
homem. Depois disso, diz que perdêra o tino, e de nada mais se
recorda."

"Nem dos exorcismos?--perguntou em meia voz Martim d'Ocem, com
um sorriso malicioso.

"Nem dos exorcismos:--retrucou Fr. Lourenço no mesmo tom, mas
subindo-lhe ao rosto a vermelhidão da colera.--A proposito, doutor.
Dizem-me que Annequim é morto[1], e que elrei proveu o cargo em
um dos de seu conselho. Seria verdadeira esta mercê singular?"

E o frade media o letrado de alto a baixo com os olhos irritados.
Este preparava-se para vibrar ao prior uma nova injuria indirecta,
naquelle jogo de allusões que era as delicias do tempo, quando
elrei acenou ao pagem, dizendo-lhe:

"Alvaro Vaz d'Almada, ide depressa á morada d'Affonso Domingues,
dizei-lhe que eu quero falar-lhe, e guiae-o para aqui. Fazei isso
com tento; e lembrae-vos de que elle é um antigo cavalleiro,
que militou com vosso mui esforçado pae."

O pagem saíu a cumprir o mandado d'elrei.

"Dizeis vós--proseguiu este, dirigindo-se a João das Regras e
a Martim d'Ocem--que talvez Affonso Domingues se enganasse em
suppôr que era possivel fazer uma abobada tão pouco erguida,
como é a que elle traçou para o capitulo. Não creio eu que tão
entendido architecto assim se enganasse: mais inclinado estou
a persuadir-me de que o lastimoso successo de hontem á noite
procedesse da grave falta commettida por mestre Ouguet nesta
edificação."

"E que falta foi essa, se a vossa mercê apraz dizer-m'o?--replicou
João das Regras.

"A de não seguir de todo ponto o desenho de mestre Affonso:--tornou
elrei.

"E se a execução de sua traça fosse impossivel?--acudiu o doutor.

"Impossivel!?"--atalhou elrei.--"E não contava elle com leva-la
a effeito, se Deus o não tolhesse dos olhos?"

"E é disso que mais se doe mestre Affonso,"--interrompeu o prior.--"A
sua grande canseira é que ninguem saberá continuar a edificação
do mosteiro, ou, como elle diz, proseguir a escriptura do seu
livro de pedra, porque ninguem é capaz de entender o pensamento
que o dirigiu na concepção delle."

"Roncarías e feros são esses proprios de quem foi homem d'armas
de Nunalvares:--disse o chanceller João das Regras.--Todos os
de sua bandeira são como elle. Porque sabem jogar boas lançadas,
teem-se em conta de principes dos discretos; e o cégo não se
esqueceu ainda de que comeu da caldeira do condestavel."

João das Regras, emulo de Nunalvares, não perdeu este ensejo
de lhe pôr pêcha; mas D. João I que conhecia serem esses dous
homens as pedras angulares de seu throno, escutava-os sempre
com respeito, salvo quando falavam um do outro; posto que o
condestavel, homem mais de obras que de palavras, raras vezes
menoscabava os meritos do chanceller, contentando-se com lançar
na balança, em que João das Regras mostrava o grande peso da sua
penna, o montante com que elle Nunalvares tinha em cem combates
salvado a patria do dominio estranho, e a cabeça do chanceller
das mãos do carrasco, de que não o livrariam nem os gráus de
doutor de Bolonha, nem os textos das leis romanas.

"Deixae lá o condestavel, que não vem ao intento;--disse elrei:--o
que me importa é ouvir mestre Affonso sobre este caso. Quizera
antes perder um recontro com castelhanos, do que cuidar que o
capitulo de Sancta Maria da Victoria ficará em ruinas. Mestre
Ouguet com sua arte deixou-lhe vir ao chão a abobada: se Affonso
Domingues fôr capaz de a tornar a erguer, e deixa-la firme,
concluirei d'ahi que vale mais o cégo que o limpo de vista; e
digo-vos que o restituirei ao antigo cargo, ainda que esteja,
além de cégo, çopo[2] e mouco."

Neste momento entrava o velho architecto, agarrado ao braço de
Alvaro Vaz d'Almada, que o veiu guiando para o topo da desmesurada
banca de carvalho, á roda da qual se travára o dialogo, que acima
transcrevemos.

"Dom donzel, onde é que está elrei?"--dizia Affonso Domingues ao
pagem, caminhando com passos incertos ao longo do vasto aposento.

D. João I, que ouvira a pergunta, respondeu em vez do pagem:

"Agora nenhum rei está aqui, mas sim o Mestre d'Aviz, o vosso
antigo capitão, nobre cavalleiro de Aljubarrota."

"Beijo-vos as mãos, senhor rei, por vos lembrardes ainda de um
velho homem de armas, que para nada presta hoje. Vêde o que de mim
mandaes; porque de vossa ordem aqui me trouxe este bom donzel."

"Queria vêr-vos e falar-vos; que de coração vos estimo, honrado
e sabedor architecto do mosteiro de Sancta Maria."

"Architecto do mosteiro de Sancta Maria, já o não sou; vossa
mercê me tirou esse encargo: sabedor, nunca o fui, pelo menos
muitos assim o creem, e alguns o dizem: dos titulos que me daes
só me cabe hoje o de honrado; que esse, mercê de Deus, é meu, e
fôra infamia rouba-lo a quem já não póde pegar em um montante
para defende-lo."

"Sei, meu bom cavalleiro, que estaes mui torvado comigo por dar
a outrem o cargo de mestre das obras do mosteiro: n'isso cria
eu fazer-vos assignalada mercê. Mas venhamos ao ponto: sabeis
que a abobada do capitulo desabou hontem á noite?"

"Sabia-o, senhor, antes do caso succeder."

"Como é isso possivel?!"

"Porque todos os dias perguntava a alguns desses poucos obreiros
portugueses que ahi restam, como ia a feitura da casa capitular:
no desenho della pozera eu todo o cabedal de meu fraco ingenho,
e este aposento era a obra prima de minha imaginação: por elles
soube que a traça primitiva fôra alterada, e que a junctura das
pedras era feita por modo diverso do que eu tinha apontado:
prophetisei-lhes então o que havia de acontecer. E--accrescentou
o velho com um sorriso amargo--muito fez já o meu successor em
por tal arte lhe pôr o remate, que não desabasse antes das vinte
e quatro horas."

"E tinheis vós por certo que se vossa traça se houvera seguido,
essa desmesurada abobada não viria a terra?"

"Se estes olhos não tivessem feito com que eu fosse posto de
banda como uma carta de testamento antiga, que se atira, por
inutil, para o fundo de uma arca, a pedra do fecho dessa abobada
não teria de vir esmigalhar-se no pavimento antes de sobre ella
pesarem muitos séculos; mas os de vosso conselho julgaram que
um cégo para nada podia prestar."

"Pois se ousaes levar a cabo vosso desenho, eu ordeno que o façaes,
e desde já vos nomeio de novo mestre das obras do mosteiro, e
David Ouguet vos obedecerá."

"Senhor rei--disse o cégo, erguendo a fronte, que até alli tivera
curvada:--vós tendes um sceptro e uma espada; tendes cavalleiros
e bésteiros; tendes ouro e poder: Portugal é vosso, e tudo quanto
elle contém, salvo a liberdade de vossos vassallos: nesta nada
mandaes. Não!... vos digo eu: não serei quem torne a erguer essa
derrocada abobada! Os vossos conselheiros julgaram-me incapaz
d'isso: agora elles que a alevantem."

As faces de D. João I tingiram-se do rubor do despeito.

"Lembrae-vos, cavalleiro,--disse elle--de que falaes com D. João
I."

"Cuja corôa--acudiu o cégo--lhe foi posta na cabeça por lanças,
entre as quaes reluzia o ferro da que eu brandia. D. João I é
assaz nobre e generoso, para não se esquecer de que nessas lanças
estava escripto:--os vassallos portuguezes são livres."

"Mas--tornou elrei--os vassallos que desobedecem aos mandados
daquelle em cuja casa tem acostamento[3], podem ser privados
de sua moradia..."

"Se dizeis isso pela que me déstes, tirae-m'a; que não vo-la pedi
eu. Não morrerei de fome; que um velho soldado de Aljubarrota
achará sempre quem lhe esmole uma mealha; e quando haja de morrer
á mingua de todo humano soccorro, bem pouco importa isso a quem vê
arrancarem-lhe, nas bordas da sepultura, aquillo por que trabalhou
toda a vida, um nome honrado e glorioso."

Dizendo isto, o velho levou a manga do gibão aos olhos baços,
e embebeu nella uma lagryma mal sustida. Elrei sentiu a piedade
coar-lhe no coração comprimido de despeito, e dilatar-lh'o
suavemente. Uma das dores d'alma, que em vez de a lacerar a consolam,
é sem duvida a compaixão.

"Vamos, bom cavalleiro,--disse elrei pondo-se em pé--não haja
entre nós doestos. O architecto do mosteiro do Sancta Maria vale
bem o seu fundador! Houve um dia em que nós ambos fomos pelejadores:
eu tornei celebre o meu nome, a consciencia m'o diz, entre os
principes do mundo, porque segui avante por campos de batalha;
ella vos dira também que a vossa fama será perpetua, havendo
trocado a espada pela penna, com que traçastes o desenho do grande
monumento da independencia e da gloria desta terra. Rei dos homens
do acceso imaginar, não desprezeis o rei dos melhores cavalleiros,
os cavalleiros portuguezes! Tambem vós fostes um delles; e
negar-vos-heis a proseguir na edificação desta memoria, desta
tradição de marmore, que ha-de recordar aos vindouros a historia
de nossos feitos? Mestre Affonso Domingues, escutae os ossos de
tantos valentes, que vos accusam de trahirdes a boa e antiga
amizade: vem de todos os valles e montanhas de Portugal o soído
desse queixume de mortos; porque, nas contendas da liberdade,
por toda a parte se verteu sangue e foram semeados cadaveres de
cavalleiros! Eia, pois: se não perdoaes a D. João I uma supposta
affronta, perdoae-a ao Mestre d'Aviz, ao vosso antigo capiião,
que em nome da gente portugueza vos cita para o tribunal da
posteridade, se refusaes consagrar outra vez á pátria vosso
maravilhoso ingenho, e que vos abraça como antigo irmão nos combates,
porque certo crê que não quereis perder na vossa velhice o nome
de bom e honrado portuguez."

Elrei parecia grandemente commovido, e talvez involuntariamente,
lançou um braço ao redor do pescoço do cégo, que soluçava e tremia
sem soltar uma só palavra.

Houve uma longa pausa: todos se tinham posto em pé quando elrei
se erguêra, e esperavam anciosos o que diria o velho. Finalmente
este rompeu o silencio:

"Vencestes, senhor rei, vencestes!... A abobada da casa capitular
não ficará por terra. Oh meu mosteiro da Batalha, sonho querido
de quinze annos de vida entregues a cogitações, a mais formosa
das tuas imagens será realisada, será duradoura como a pedra em
que vou estampa-la! Senhor rei, as nossas almas entendem-se:
as unicas palavras harmoniosas e inteiramente suaves, que tenho
ouvido ha muitos annos, são as que vos saíram da bôca: só D. João
I comprehende Affonso Domingues; porque só elle comprehende a valia
destas duas palavras formosissimas, palavras de anjos--patria e
gloria. A passada injuria a vossos conselheiros a attribui sempre,
que não a vós, posto que de vós, que ereis rei, me queixasse:
varre-la-hei da memoria, como o entalhador varre as lascas e a
pedra moída pelo cinzel de cima do vulto, que entalhou em fuste
de columna arrendada. Que me restituam os meus officiaes e obreiros
portuguezes; que portuguez sou eu, portugueza a minha obra! De hoje
a quatro mezes podeis voltar aqui, senhor rei, e ou eu morrerei,
ou a casa capitular da Batalha estará firme, como é firme a minha
crença na immortalidade e na gloria."

Elrei apertou então entre os braços o bom do cégo, que procurava
ajoelhar a seus pés. Era a attracção de duas almas sublimes,
que voavam uma para a outra. Por fim D. João I fez um signal ao
pagem, que se aproximou:

"Alvaro Vaz, acompanhae este nobre cavalleiro a sua pousada.
E vós, mestre mui sabedor, ide repousar: dentro de quinze dias
vossos antigos officiaes terão voltado de Guimarães para cumprirem
o que mandardes. Mui devoto padre prior,--continuou elrei,
voltando-se para Fr. Lourenço--entendei que d'ora avante Affonso
Domingues, cavalleiro de minha casa, torna a ser mestre das obras
do mosteiro de Sancta Maria da Victoria, em quanto assim lhe
aprouvér."

O prior fez uma profunda reverencia.

A alegria tinha tolhido a voz do architecto: diante de toda a
côrte elrei o havia desaffrontado, e já, sem desdouro, podia
acceitar o encargo de que o tinham despojado. Com passos incertos,
e seguro ao braço do pagem, saíu do aposento, feita venia a elrei.

Este deu immediatamente ordem para a partida; e quando todos
íam saindo, o prior chegou-se ao velho chanceller, e disse-lhe
em tom submisso:

"Doutor Johannes a Regulis, espero que narreis fielmente á rainha
o que succedeu, e a certifiqueis de quanto me custa ver tirada
a régua magistral a mestre Ouguet..."

"Foi--tornou o politico discipulo de Bartholo--mais uma façanha
de D. João I: começou por brigar com um louco, e acabou abraçando-o,
por lhe vêr derramar uma lagryma. Bem trabalho por fazer do Mestre
de Aviz um rei; mas sae-me sempre cavalleiro andante. Não lhe
succedêra isto se, em vez de passar a mocidade em pelejas, a
houvera passado a estudar em Bolonha. Tendo-lhe dicto mil vezes
que é preciso lisongear os inglezes, porque carecemos delles:
a tudo me responde com dizer que com Deus e o proprio montante
tem em nada Castella: todavia a gente ingleza ufanava-se de ser
David Ouguet o mestre desta edificação; e que importava que ella
fosse mais ou menos primorosa a troco de contentarmos os que
comnosco estão liados? Quanto a vós, reverendo prior, ficae
descançado: tudo fia a rainha de vossa prudencia, que é muita,
posto que não vistes Bolonha. Vamos, reverendissimo."

A côrte já tinha saído; e os dous velhos seguiram-na ao longo
daquellas arcadas, conversando um com o outro em voz baixa.

[1] Annequim era o bobo do paço em tempo de D. Fernando,
a quem sobreviveu.

[2] Coixo.--Fui vista ao cégo, e pée ao çôpo. Trad. do
livro de Job. Fragmento do seculo 14.º

[3] Acostamento, é o mesmo que moradia.



O VOTO FATAL.


Rica de galas, a primavera tinha vestido os campos da Estremadura
do viço de suas flores: a madresilva, a rosa agreste, o rosmaninho,
e toda a casta de boninas teciam um tapete odorifero e immenso por
charnecas, comoros, e sapaes, e pelo chão das matas e florestas,
que agitavam as frontes somnolentas com a brisa de manhan purissima,
mostrando aos olhos um balouçar de verdura compassado com o das
seáras rasteiras, que mais longe, pelas veigas e outeiros, ondeavam
suavemente. Eram sete de Maio da era de Cesar de 1439, ou, como
os letrados diziam, do anno da redempção, 1401. Quatro mezes
certos se contavam nesse dia, depois daquelle em que, n'uma das
quadras do aposento real no mosteiro da Batalha, se passára a
scena, que no antecedente capitulo narrámos, e que extrahimos
do famoso manuscripto mencionado no capitulo II, com aquella
pontualidade e verdade, com que o grande chronista F. Bernardo
de Brito citava só documentos innegaveis e auctores certissimos,
e com aquella imparcialidade e exacção, com que o philosopho de
Ferney referia e avaliava os factos em que podia interessar a
religião christan.

Assistiu o leitor á promessa que mestre Affonso Domingues fez a
D. João I de que dentro de quatro mezes lhe daria posto o remate
na abobada da casa capitular de Sancta Maria da Victoria, e lembrado
estará de como elrei lhe promettêra, tambem, mandar vir de Guimarães
todos os officiaes portuguezes, que, despedidos da Batalha por
mestre Ouguet como menos habilidosos que os estrangeiros, haviam
sido mandados para a obra, posto que grandiosa, menos importante de
Sancta Maria da Oliveira, hoje desaportuguesada e caiada e dourada
e mutilada pelo mais barbaro abuso da riqueza e da ignorancia
clerical. A palavra do Mestre d'Aviz não voltára atraz, não por
ser palavra de rei, mas por ser palavra de cavalleiro portuguez
daquelles tempos, em que tão nobres affectos e instinctos havia
nos corações de nossos avós, que de bom grado lhes devemos perdoar
a rudeza. Tendo partido de Alcobaça para Guimarães, onde nesse
anno se ajunctavam cortes, apenas ahi chegára tinha mandado partir
para Sancta Maria da Victoria os officiaes e obreiros mais
entendidos, que vieram apresentar-se a mestre Affonso.

Este, resolvido tambem a cumprir o promettido, mettêra mãos á
obra. O capitulo foi desentulhado: aproveitaram-se as pedras da
primeira edificação que era possivel aproveitar, lavraram-se outras
de novo, armaram-se os simples, e muito antes do dia aprazado o
fecho ou remate da abobada repousava no seu logar.

Durante estes quatro mezes os successos politicos tinham trazido
D. João I a Santarem, onde se fizera prestes com bom numero de
lanças, bésteiros, e peões para ir ajunctar-se com o Condestavel,
e entrarem ambos por Castella, cuja guerra tinha recomeçado, por
se haverem acabado as treguas. Para esta entrada se apparelhára
elrei com uma lustrosa companhia de seus cavalleiros, e caminhando
pela margem direita do Tejo, acampára juncto a Tancos, onde se
havia de construir uma ponte de barcas para passar o exercito,
e seguir ávante até o Crato, que era o logar aprazado com o
Condestavel, para junctos irem dar sobre Alcantara.

Em Val-de-Tancos estava assentado o arraial da hoste d'elrei: os
petintaes, que tinham vindo de Lisboa, trabalhavam na ponte de
barcas, que se deviam lançar sobre o Tejo; os bésteiros limpavam
suas béstas, e folgavam em luctas e jogos; os cavalleiros corriam
pontas, atiravam ao tavolado, monteavam, ou matavam o tempo em
banquetes e beberronias. Tinham chegado áquelle sitio a cinco
de Maio, e no seguinte dia elrei partíra afforradamente para
a Batalha, porque não se esquecêra de que os quatro mezes, que
pedira Affonso Domingues para alevantar a abobada, eram passados,
e fôra avisado por Fr. Lourenço de que a obra estava acabada, mas
que o architecto não quizera tirar os simples senão na presença
d'elrei.

Antes de partir de Lisboa, D. João mandára sair dos carceres, em
que jaziam, bom numero de criminosos e de captivos castelhanos,
que, com grande pasmo dos povos, e rodeados por uma grossa manga de
bésteiros, tomaram o caminho da Batalha, sem que ninguem aventasse
o motivo d'isto. Todavia elle era obvio: elrei pensou que, assim
como a abobada do capitulo desabára da primeira vez, passadas
vinte quatro horas depois de desamparada, podia agora derrocar-se
em cima dos obreiros no momento de lhe tirarem os prumos e travezes
sobre que fôra edificada. Sollicito pela vida de seus vassallos;
parente do povo por sua mãe, e crendo por isso que a morte de
um popular tambem tinha seu trance de agonia, e que lagrymas
de orphãos pobres eram tão amargas, ou porventura mais que as
de infantes e senhores, não quiz que se arriscassem senão vidas
condemnadas, ou pela guerra, ou pelos tribunaes, e que naquella
se tinham remido pela covardia, e nestes pela piedade ou antes
esquecimento dos juizes. E se da primeira vez lhe não occorrêra
esta idéa, fôra porque tambem na memoria de obreiros portuguezes
não havia lembrança de ter desabado uma abobada apenas construida.

Seguido só por dous pagens, D. João I atravessou a villa de Ourem
pelas horas mortas do quarto de modorra, e antes do meio-dia
apeou-se á portaria do mosteiro.

Os officiaes, que trabalhavam em varios lavores, pelos telheiros
e casas ao redor do edificio, viram passar aquelle cavalleiro e
os dous pagens, mas não o conheceram: D. João I vinha cuberto
de todas as peças, e ao galgar o ginete pelo outeiro abaixo,
tinha descido a viseira.

"Benedicite!--dizia elrei, batendo devagarinho á porta da cella
de Fr. Lourenço.

"Pax vobis, domine!--respondeu o prior que logo conheceu elrei,
e veio abrir a porta.

"Não vos incommodeis, reverendissimo--disse D. João, entrando
na cella, e sentando-se em um tamborete.--Deixae-me resfolegar
um pouco, e dae-me uma vez de vinho."

"Não vos esperava tão de salto;--tornou Fr. Lourenço: e abrindo
um armario, tirou delle uma borrácha e um cangirão de madeira,
que encheu de vinho, e pegando com a esquerda em uma escudela de
barro de Estremoz[1] cheia de uma especie de bolo feito de mel,
ovos, e flor de farinha, apresentou a elrei aquella collação.

"Excellente almoço:--dizia elrei, descalçando o guante ferrado,
e cravando a espaços os dedos dentro da escudela, d'onde tirava
bocados do bolo, que ajudava com alentados beijos dados no cangirão.
Depois que cessou de comer, limpando a mão ao forro do tonelete,
poz-se em pé, em quanto Fr. Lourenço guardava os despojos daquella
batalha:

"Bofé--disse D. João, rindo--que não ando a meu talante, senão
com o arnez ás costas! Cada vez que o visto, parece-me que torno á
mocidade, e que sou o Mestre d'Aviz, ou antes o simples cavalleiro,
que, confiado só em Deus, corria solto pelo mundo, monteando
edomas[2] inteiras, e tendo sobre a consciencia só os peccados
de homem, e não os escrupulos de rei."

"E então--atalhou o prior--o vosso confessor Fr. Lourenço era
um pobre frade, cujos unicos cuidados se encerravam em saber
as horas do côro, e em ler as sagradas escripturas, porém que
hoje tem de velar muitas noites, pensando no modo de não deixar
affrouxar a disciplina e boa governança de tão alteroso mosteiro.
Mas, segundo vosso recado, que hontem recebi, vindes para assistir
ao tirar dos simples da mui famosa abobada, o que mestre Domingues
aporfia em só fazer perante vós?"

"A isso vim, porém de espaço; que não será nestes cinco dias,
que esteja prompta a ponte de barcas, que mandei lançar no Téjo
para passar minha hoste. Durante elles, com vossos mui religiosos
frades me apparelharei para a guerra, enthesourando orações e
recebendo absolvição de meus erros."

"Os principes pios--acudiu o prior com ar de compuncção--são sempre
ajudados de Deus, principalmente contra herejes e scismaticos,
como os perros dos castelhanos, que a Virgem Maria da Victoria
confunda nos infernos."

"Amen!--respondeu devotamente elrei.

"Avisarei, pois, mestre Affonso de vossa vinda, para que mande
pôr tudo em ordenança de se tirarem os simples: elle me pediu
que o mandasse chamar apenas fosseis chegado."

Fr. Lourenço saíu, e d'ahi a pouco voltou acompanhado do architecto,
que um rapaz guiava pela mão.

"Guarde-vos Deus, mestre Affonso Domingues!--disse elrei, vendo
entrar o cégo--Aqui me tendes para vêr acabada a feitura da
mirifica abobada do capitulo de Sancta Maria, cujos simples não
quizestes tirar senão em minha presença."

"Beijo-vo-las, senhor rei, pela mercê: dous votos fiz se levasse
a cabo esta feitura; era esse um delles..."

"E o outro?--atalhou elrei.

"O outro, dir-vo-lo-hei em breve; mas por ora permitti que para
mim o guarde."

"São negocios de consciencia:--acudiu o prior.--Elrei não quer,
por certo, fazer-vos quebrar vosso segredo."

D. João I fez um signal de assentimento ao parecer do seu antigo
padre espiritual.

Elrei, o prior, e o architecto ainda se demoraram um pedaço falando
ácerca da obra, e do que cumpria fazer no proseguimento della;
mas o cégo dissera o que quer que fôra em voz baixa ao rapaz
que o acompanhava, o qual saíra immediatamente, e que só voltou
quando os tres acabavam a conversação.

"Fernão d'Evora--disse o cégo, sentindo-o outra vez ao pé de
si--fizeste o que te ordenei, e deste a teu tio Martim Vasques
o meu recado?"

"Senhor, si! Envia-vos elle a dizer que tudo está prestes."

"Então vamos a vêr se desta feita temos mais perduravel abobada."

Isto dizia elrei saindo da cella de Fr. Lourenço, e seguindo ao
longo do claustro. Já a este tempo se tinha espalhado no mosteiro
a nova da sua chegada, e os frades começavam de ajunctar-se para
o cortejarem. Do mosteiro rompêra a noticia, e se espalhára na
povoação, aonde concorrêra muita gente dos arredores, principalmente
de Aljubarrota, por ser dia de mercado: de modo que quando elrei
desceu á crasta já alli se achavam apinhados homens e mulheres,
que queriam vê-lo, e ainda mais saber se desta vez a abobada
vinha ao chão, para terem que contar aos vizinhos e vizinhas da
sua terra.

As portas da casa do capitulo estavam abertas: via-se dentro
della tal machina de prumos, travezes, andaimes, cabrestantes,
escadas, que bem se podéra comparar a composição daquelles simples
á fabrica do mais delicado relogio. Á porta, que dava para a
crasta, estava um homem em pé, que se desbarretou apenas viu
elrei, a cuja direita vinha o architecto, seguido por Fr. Lourenço
e por outros frades.

O pequeno Fernão d'Evora disse algumas palavras a Affonso Domingues,
o qual lhe respondeu em voz baixa. Então o rapaz acenou ao homem
desbarretado, que se chegou timidamente ao cégo. Era um mancebo,
que mostrava ter de idade, ao mais, vinte cinco annos; de rosto
comprido, tez queimada, nariz aquilino, olhos pequenos e vivos.
Chegando-se ao cégo, este o tomou pela mão, e voltando-se para
elrei, disse:

"Aqui tendes, senhor, a Martim Vasques, o melhor official de
pedraria que eu conheço; o homem que, com mais alguns annos de
esperiencia, será capaz de continuar dignamente a serie dos
architectos portuguezes."

"E debaixo de meu especial amparo estará Martim Vasques--respondeu
elrei--que por honrado me tenho com haver em meus senhorios homens
que vos imitem.[3]"

Ainda bem não eram acabadas estas palavras, sentiu-se um sussurro
entre o povo, que girava livremente pela crasta, e que se enfileirou
aos lados: chegava a gente que devia tirar os simples.

Entre duas alas de bésteiros vinha um bom numero de homens, magros,
pallidos, rotos e descalços: o porte de alguns era altivo, e
em seus farrapos se divisava a razão d'isso: eram bésteiros
castelhanos, que em diversos recontros e pelejas tinham cahido
nas mãos dos portuguezes. As guerras entre Portugal e Castella
assemelhavam-se ás guerras civis de hoje: para vencidos não havia
nem caridade, nem justiça, nem humanidade: ser mettido em ferros
era então uma ventura para o pobre prisioneiro; porque os mais
delles morriam assassinados pelo povo desenfreado, em vingança
dos máus tractos que em Castella padeciam os captivos portuguezes.
Com os castelhanos vinham d'envolta varios criminosos condemnados
á morte por suas malfeitorias.

"Misericordia!--bradou toda aquella multidão, ao passar por elrei:
e cahiram de bruços sobre as lageas do pavimento.

"Comvosco a tenho, mesquinha gente:--disse elrei commovido--Se
tirardes os simples, que vêdes acolá, a abobada não desabar sobre
vós, soltos e livres sereis. Erguei-vos, e confiae na sciencia do
grande architecto que fez essa mirifica obra. Mandar-vos comprar
vossa soltura a custo de tão leve risco, quasi que é o mesmo que
perdoar-vos."

Os presos ergueram-se; mas a tristeza lhes ficou embebida no
coração, e espalhada nas faces: o terror fazia-lhes crer que já
sentiam ranger e estalar as vigas dos simples, e que, ás primeiras
pancadas, as pedras desconformes da abobada, desatando-se da
immensa volta, os esmagariam, como o pé do quinteiro esmaga a
lagarta enroscada na planta viçosa do horto.

Neste momento quatro forçosos obreiros chegaram á porta do capitulo,
trazendo sobre uma pavióla uma grande pedra quadrada. Martim
Vasques, que já lá estava, gritou ao cégo architecto:

"Mui sabedor mestre Affonso, que quereis se faça do canto, que
para aqui mandastes trazer?"

"Assentae-o bem debaixo do fecho da abobada, no meio desse claro,
que deixam os prumos centraes dos simples."

Os obreiros fizeram o que o architecto mandara: este então voltou-se
para elrei, e disse:

"Senhor rei, é chegado o momento de vos declarar meu segundo
voto. Pelo corpo e sangue do Redemptor jurei que, assentado sobre
a dura pedra, debaixo do fecho da abobada, estaria sem comer nem
beber durante tres dias, desde o instante em que se tirassem
os simples. De cumprir meu voto ninguem poderá mover-me. Se essa
abobada desabar, sepultar-me-ha em suas ruinas: nem eu quizera
encetar, depois de velho, uma vida deshonrada e vergonhosa. Esta
é a minha firme resolução."

Dizendo isto, o cégo travou com força do braço de Fernão d'Evora,
e encaminhou-se para a porta do capitulo.

"Esperae, esperae!--bradou elrei.--Estaes louco, dom cavalleiro?
Quem, se vós morrerdes, continuará esta fabrica, tão formosa
filha de vosso engenho?"

"Mestre Ouguet:--tornou o cégo, parando.--Não sou tão vil que
negue seu saber e habilidade: se a abobada desabar segunda vez,
ninguem no mundo é capaz de a fechar com uma só volta, e para
a firmar sobre uma columna erguida no centro, mestre Ouguet o
fará. Quanto ao resto do edificio, fazei senhor rei que se prosiga
meu desenho: é o que ora vos peço tão sómente."

E o velho e o seu guia sumiram-se por entre as bastas vigas,
que sustinham as traves dos simples: elrei, Fr. Lourenço, e os
mais frades ficaram atonitos e calados.

"Que tão honrado mestre corra parelhas no risco com esses perros
castelhanos cousa é que se não póde soffrer: mas o voto é voto,
senão..."

Estas palavras partiam da bôca d'uma gorda velha, cuja tez
avermelhada dava indicios de compleição sanguinea e irritavel,
e que de mãos mettidas nas algibeiras, na frente de uma das alas
do povo presenceava o caso.

"Tendes razão, tia Brites d'Almeida; e por ser voto me calo
eu:--acudiu elrei, voltando-se para a velha.--Mas juro a Christo,
que estou espantado de só agora vos vêr! Porque me não viestes
falar?"

"Perdoe-me vossa mercê:--replicou a velha.--Eu vim trazer pão á
feira, e ahi souhe da chegada de vossa real senhoria. Corri ...
se eu correria para vos falar! Mas estes bôcas abertas não me
deixaram passar. Abrenuncio! Depois estive a olhar... Parecieis-me
carregado de semblante. Que é isso? Temos novas voltas com os
excommungados castelhanos? Se assim é, trosquiae-mos outra vez
por Aljubarrota, que a pá não se quebrou nos sete que mandei
de presente ao diabo, e ainda lá está para o que der e vier."

Soltando estas palavras, a velha tirou as mãos das algibeiras,
e cerrando os punhos, ergueu os braços ao ar, com os meneios
de quem já brandia a tremebunda e patriotica pá de forno, que
hoje é gloria e brasão da gothica villa de Aljubarrota.

"Podeis dormir descançada, tia Brites:--respondeu elrei,
sorrindo-se.--Bem sabeis que sou portuguez e cavalleiro, e a
gente de nossa terra é cortez: elrei de Castella veio visitar-nos
varias vezes: e agora eu ando na demanda de lhe pagar com usura
suas visitações."

Em quanto este dialogo se passava entre o heroe de Aljubarrota e
a sua poderosa alliada, Martim Vasques tinha posto tudo a ponto;
e dando as suas ordens da porta, as primeiras pancadas de martello,
batendo nos simples, resoaram pelo ambito da casa capitular.
Fez-se um grande silencio e todos os olhos se cravaram em Martim
Vasques.

Passada uma hora, aquelle montão de vigas, barrotes, taboas,
cambotas, cabrestantes, reguas e travessas tinha passado pela
crasta fóra em collos de homens: os presos tinham sido postos
em liberdade, com grande raiva da tia Brites ao vêr ir soltos
os bésteiros castelhanos; e só no centro da ampla quadra se via
uma pedra, sobre a qual, mudo e com a cabeça pendida para o peito,
estava assentado um velho.

A este velho rogava elrei, rogavam frades, rogava o povo, sem
todavia se atreverem a entrar, que saisse d'alli; mas elle não
lhes respondia nada. Desenganados, emfim, foram-se pouco a pouco
retirando da crasta, onde ao pôr do sol começou a bater o luar
de uma formosa noite de Maio.

Três dias se passaram assim. Mestre Affonso, assentado sobre a
pedra fria, nem se quer cedêra ás rogativas de Anna Margarida,
que, obrigada pela boa amizade que tinha a seu amo, se atrevêra
a cruzar os perigosos umbraes do capitulo, para vêr se o movia
a tomar alguma refeição: tudo recusou o cégo: a sua resoluçào
era inabalavel. Também a abobada estava firme, como se fôra de
bronze. No terceiro dia á tarde elrei, que tinha passado o tempo
em aparelhar-se para a guerra com actos de piedade, desceu á
crasta acompanhado de Fr. Lourenço e de outros frades, e chegando
á porta do capitulo viu Martim Vasques e Anna Margarida juncto á
pedra fria de Affonso Domingues, e este pallido e com as palpebras
cerradas encostado nos braços delles.

O mancebo e a velha choravam e soluçavam, sem dizerem palavra.

"Que temos de novo?--perguntou elrei, chegando á porta, e vendo
aquelles dous estafermos.--Completam-se ora os tres dias do
voto: ainda mestre Affonso teimará em estar aqui mais tempo?"

"Não senhor:--respondeu Martim Vasques, com palavras mal
articuladas:--não estará aqui mais tempo; porque seu corpo é herança
da terra; sua alma repousa com Deus."

"Morto!?"--bradaram a uma voz elrei e Fr. Lourenço; e correram
para o cadaver do architecto, olhando, todavia, primeiro para
a abobada com um gesto de receio.

"Nada temaes, senhores:--disse Martim Vasques--As ultimas palavras
do mestre foram estas: a abobada não cahiu ... a abobada não
cahirá!"

O architecto, já velho, não pôde resistir ao jejum absoluto a que
se condemnára. No momento em que, ajudado por Martim Vasques e
Anna Margarida, se quiz erguer cahiu moribundo nos braços delles,
e aquelle genio de luz mergulhou-se nas trévas do passado.

Elrei derramou algumas lagrymas sobre os restos do bom cavalleiro,
e Fr. Lourenço resou em voz baixa uma oração fervente pela alma
generosa, que até o ultimo arranco escrevêra sobre o marmore
o hymno dos valentes de Aljubarrota.

Na pedra, sobre a qual Mestre Affonso expirára, ordenou elrei se
tirasse, parecido quanto fosse possivel retratando-se um cadaver,
o vulto do honrado architecto, e que esta imagem fosse collocada
em um dos angulos da casa capitular, onde durante mais de quatro
seculos, como as sphynges monumentaes do Egypto, tem dado origem ás
mais desvairadas hypotheses e conjecturas. Á pobre Anna Margarida,
que ficava sem arrimo, doou D. João I, tambem, as casas em que
o mestre morava, fazendo-lhe, além disso, assignaladas mercês.

Mestre Ouguet, pelo que o cégo dissera a elrei ácerca da sua
capacidade para o substituir, e porque, emfim, era estrangeiro,
foi logo restituido ao cargo que occupára, e quando nos serões
do mosteiro alguem falava nos meritos de Affonso Domingues e na
sua desastrada morte, cortava o irlandez a conversação, dizendo
com um riso amarello:

"Olhem que foi forte perda!"

[1] A louça de Estremoz é antiquissima em o nosso paiz.
No tempo de Francisco I de França, mandavam-se buscar os pucaros
desta louça a Portugal, para beber a agua, que então, bem como
hoje, se tornava nelles excessivamente fria.

[2] Semanas.

[3] Martim Vasques foi o 3.º mestre das obras da Batalha
e Fernão d'Evora o 4.º--Veja-se a Memoria de D. Francisco de S.
Luiz no 10.º volume das da Academia.



FIM DO TOMO I.

       *       *       *       *       *

INDICE.

O ALCAIDE DE SANTAREM

(590--961)


I

II

III

IV


ARRHAS POR FORO D'HESPANHA

(1371--2)


I A Arraya-miuda

II O Beguino

III Um Bulhão e uma Agulha de Alfaiate

IV Mil Dobras Pé-terra e trezentas Barbudas

V Mestre Bartholomeu Chambão

VI Uma Barregan Rainha

VII Juramento--Pagamento


O CASTELLO DE FARIA

(1373)


A ABOBADA

(1401)


I O Cégo

II Mestre Ouguet

III O Auto

IV Um Rei Cavalleiro

V O Voto Fatal





*** End of this LibraryBlog Digital Book "Lendas e Narrativas (Tomo I)" ***

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