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Title: Memorias Postumas de Braz Cubas
Author: Machado de Assis
Language: Portuguese
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MEMÓRIAS PÓSTHUMAS

DE

BRAZ CUBAS

POR

MACHADO DE ASSIS

RIO DE JANEIRO

TYPOGRAPHIA NACIONAL

1881



OBRAS DO AUTOR

    Memórias Pósthumas de Braz Cubas
    Helena, romance
    Yayá Garcia, romance
    Resurreição, romance
    A mão e a luva, romance
    Historias da meia noite
    Contos Fluminenses
    Americanas, poesias
    Phalenas, poesias
    Chrysalidas, poesias
    Tu só, tu, puro amor, comédia
    Os deuses de casaca, comédia
    Desencantos, comédia
    Theatro



AO LEITOR


Que, no alto do principal de seus livros, confessasse Stendhal havel-o
escripto para cem leitores, cousa é que admira e consterna. O que não
admira, nem provavelmente consternará é se este outro livro não tiver
os cem leitores de Stendhal, nem cincoenta, nem vinte, e quando muito,
dez. Dez? Talvez cinco. Trata-se, na verdade, de uma obra diffusa,
na qual eu, Braz Cubas, se adoptei a fórma livre de um Sterne, de
um Lamb, ou de um de Maistre, não sei se lhe metti algumas rabugens
de pessimismo. Póde ser. Obra de finado. Escrevi-a com a penna da
galhofa e a tinta da melancholia; e não é difficil antever o que poderá
sair desse connubio. Accresce que a gente grave achará no livro umas
apparencias de puro romance, ao passo que a gente frivola não achará
nelle o seu romance usual; e eil-o ahi fica privado da estima dos
graves e do amor dos frivolos, que são as duas columnas maximas da
opinião.

Mas eu ainda espero angariar as sympatias da opinião, e o meio efficaz
para isso é fugir a um prologo explicito e longo. O melhor prologo
é o que contém menos cousas, ou o que as diz de um geito obscuro e
truncado. Conseguintemente, evito contar o processo extraordinario que
empreguei na composição destas _Memórias_, trabalhadas cá no outro
seculo. Seria curioso, mas nimiamente extenso, e aliás desnecessario ao
entendimento da obra. A obra em si mesma é tudo: se te agradar, fino
leitor, pago-me da tarefa; se te não agradar, pago-te com um piparote,
e adeus.

BRAZ CUBAS.



                               AO VERME

                                  QUE

                     PRIMEIRO ROEU AS FRIAS CARNES

                            DO MEU CADAVER

                                DEDICO

                        COMO SAUDOSA LEMBRANÇA

                                 ESTAS

                          MEMÓRIAS PÓSTHUMAS



CAPITULO I


Obito do autor


Algum tempo hesitei se devia abrir estas memorias pelo principio ou
pelo fim, isto é, se poria em primeiro logar o meu nascimento ou a
minha morte. Supposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas
considerações me levaram a adoptar differente methodo: a primeira é que
eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor, para
quem a campa foi outro berço; a segunda é que o escripto ficaria assim
mais galante e mais novo. Moysés, que tambem contou a sua morte, não a
poz no introito, mas no cabo: differença radical entre este livro e o
Pentateuco.

Dito isto, expirei ás duas horas da tarde de uma sexta feira do mez de
agosto de 1869, na minha bella chacara de Catumby. Tinha uns sessenta
e quatro annos, rijos e prosperos, era solteiro, possuia cerca de
tresentos contos e fui acompanhado ao cemiterio por onze amigos.
Onze amigos! Verdade é que não houve cartas nem annuncios. Accresce
que chovia--peneirava--uma chuvinha miuda, triste e constante, tão
constante e tão triste, que levou um daquelles fieis da ultima hora
a intercalar esta engenhosa idéa no discurso que proferiu á beira de
minha cova:--«Vós, que o conhecestes, meus senhores, vós podeis dizer
commigo que a natureza parece estar chorando a perda irreparavel de
um dos mais bellos caracteres que tem honrado a humanidade. Este ar
sombrio, estas gotas do ceu, aquellas nuvens escuras que cobrem o
azul como um crepe funereo, tudo isso é a dor crua e má que lhe róe á
natureza as mais intimas entranhas; tudo isso é um sublime louvor ao
nosso illustre finado.»

Bom e fiel amigo! Não, não me arrependo das vinte apolices que lhe
deixei. E foi assim que cheguei á clausula dos meus dias; foi assim que
me encaminhei para o _undiscovered country_ de Hamlet, sem as ancias
nem as duvidas do moço principe, mas pausado e tropego, como quem se
retira tarde do expectaculo. Tarde e aborrecido. Viram-me ir umas nove
ou dez pessoas, entre ellas tres senhoras,--minha irmã Sabina, casada
com o Cotrim,--a filha, um lyrio do valle,--e... Tenham paciência!
daqui a pouco lhes direi quem era a terceira senhora. Contentem-se de
saber que essa anonyma, ainda que não parenta, padeceu mais do que as
parentas. É verdade, padeceu mais. Não digo que se carpisse, não digo
que se deixasse rolar pelo chão, epileptica. Nem o meu óbito era cousa
altamente dramatica... Um solteirão que expira aos sessenta e quatro
annos, não parece que reuna em si todos os elementos de uma tragedia. E
dado que sim, o que menos convinha a essa anonyma era apparental-o. De
pé, á cabeceira da cama, com os olhos estúpidos, a boca entreaberta, a
triste senhora mal podia crêr na minha extincção.

--Morto! morto! dizia comsigo.

E a imaginação della, como as cegonhas que um illustre viajante viu
desferirem o vôo desde o Illysso ás ribas africanas, sem embargo das
ruinas e dos tempos,--a imaginação dessa senhora tambem voou por
sobre os destroços presentes até ás ribas de uma Africa juvenil...
Deixal-a ir; lá iremos mais tarde; lá iremos quando eu me restituir aos
primeiros annos. Agora, quero morrer tranquillamente, methodicamente,
ouvindo os soluços das damas, as fallas baixas dos homens, a chuva que
tamborila nas folhas de tinhorão da chacara, e o som estridulo de uma
navalha que um amolador está afiando lá fóra, á porta de um correeiro.
Juro-lhes que essa orchestra da morte foi muito menos triste do que
podia parecer; e de certo ponto em deante chegou a ser deliciosa.
A vida estrebuchava-me no peito, com uns impetos de vaga marinha,
esvaia-se-me a consciencia, eu descia á immobilidade physica e moral,
e o corpo fazia-se-me planta, e pedra, e lodo, e cousa nenhuma.

Morri de uma pneumonia; mas se lhe disser que foi menos a pneumonia, do
que uma idéa grandiosa e util, a causa da minha morte, é possivel que o
leitor me não creia, e todavia é verdade. Vou expor-lhe summariamente o
caso. Julgue-o por si mesmo.



CAPITULO II


O emplasto


Com effeito, um dia de manhã, estando a passear na chacara,
pendurou-se-me uma idéa no trapezio que eu tinha no cerebro. Uma vez
pendurada, entrou a bracejar, a pernear, a fazer as mais arrojadas
cabriolas de volantim, que é possivel crer. Eu deixei-me estar a
contemplal-a. Subito, deu um grande salto, estendeu os braços e as
pernas, até tomar a fórma de um X: decifra-me ou devoro-te.

Essa idéa era nada menos que a invenção de um medicamento sublime, um
emplasto anti-hypocondriaco, destinado a alliviar a nossa melancholica
humanidade. Na petição de privilegio que então redigi, chamei a
attenção do governo para esse resultado, verdadeiramente christão.
Todavia, não neguei aos amigos as vantagens pecuniarias que deviam
resultar da distribuição de um producto de tamanhos e tão profundos
effeitos, Agora, porém, que estou cá do outro lado da vida, posso
confessar tudo: o que me influiu principalmente foi o gosto de ver
impressas nos jornaes, mostradores, folhetos, esquinas, e emfim nas
caixinhas do remedio, estas tres palavras: _emplasto Braz Cubas._ Para
que negal-o? Eu tinha a paixão do arruido, do cartaz, do foguete de
lagrimas. Talvez os modestos me arguam esse defeito; fio porém que esse
talento me hão de reconhecer os habeis; e eu era habil. Assim, a minha
idéa trazia duas faces, como as medalhas, uma virada para o publico,
outra para mim. De um lado, philanthropia e lucro; de outro lado, sêde
de nomeada. Digamos:--amor da gloria.

Um tio meu, conego de prebenda inteira, costumava dizer que o amor da
gloria temporal era a perdição das almas, que só devem cobiçar a gloria
eterna. Ao que retorquia outro tio, official de um dos antigos terços
de infantaria, que o amor da gloria era a cousa mais verdadeiramente
humana que ha no homem, e, conseguintemente, a sua mais genuina feição.

Decida o leitor entre o militar e o conego; eu volto ao emplasto.



CAPITULO III


Genealogia


Mas, já que fallei nos meus dous tios, deixem-me fazer aqui um curto
esboço genealogico.

O fundador da minha familia foi um certo Damião Cubas, que floreceu
na primeira metade do seculo XVIII. Era tanoeiro de officio, natural
do Rio de Janeiro, onde teria morrido na penuria e na obscuridade,
se sómente exercesse a tanoaria. Mas não; fez-se lavrador, plantou,
colheu, permutou o seu producto por boas e honradas patacas, até que
morreu, deixando grosso cabedal a um filho, o licenciado Luiz Cubas.
Neste rapaz é que verdadeiramente começa a serie de meus avós--dos
avós que a minha familia sempre confessou--, porque o Damião Cubas era
afinal de contas um tanoeiro, e talvez mau tanoeiro, ao passo que o
Luiz Cubas estudou em Coimbra, primou no Estado, e foi um dos amigos
particulares do vice-rei conde da Cunha.

Como este appellido de Cubas lhe cheirasse excessivamente a tanoaria,
allegava meu pae, bisneto do Damião, que o dito appellido fôra dado a
um cavalleiro, heroe nas jornadas da Africa, em premio da façanha que
praticou, arrebatando tresentas cubas aos mouros. Meu pae era homem de
imaginação; escapou á tanoaria nas azas de um _calembour._ Era um bom
caracter meu pae, varão digno e leal como poucos. Tinha, é verdade, uns
fumos de pacholice; mas quem não é um pouco pachola nesse mundo? Releva
notar que elle não recorreu á inventiva, senão depois de experimentar
a falsificação; primeiramente, entroncou-se na familia daquelle meu
famoso homonymo, o capitão-mór Braz Cubas, que fundou a villa de S.
Vicente, onde morreu em 1592, e por esse motivo é que me deu o nome de
Braz. Oppoz-se-lhe porém a familia do capitão-mór; e foi então que elle
imaginou as tresentas cubas mouriscas.

Vivem ainda alguns membros de minha familia, minha sobrinha Venancia,
por exemplo, o lyrio do valle, que é a flor das damas do seu tempo;
vive o pae, o Cotrim, um sujeito que... Mas não anticipemos os
successos; acabemos de uma vez com o nosso emplasto.



CAPITULO IV


A idéa fixa


A minha idéa, depois de tantas cabriolas, constituira-se idéa fixa.
Deus te livre, leitor, de uma idéa fixa; antes um argueiro, antes uma
trave no olho. Vê o Cavour; foi a idéa fixa da unidade italiana que o
matou. Verdade é que o Bismark não morreu; mas, cumpre advertir que
a natureza é uma grande caprichosa e a historia uma eterna loureira.
Por exemplo, o Suetonio deu-nos um Claudio, que era um verdadeiro
banana,--ou «uma abobora» como lhe chamou Seneca, e um Tito, que
mereceu ser as delicias de Roma. Veiu modernamente um professor e achou
meio de demonstrar que ambos esses conceitos eram erroneos e abstrusos,
e que dos dous cesares, o delicioso, o verdadeiramente delicioso, foi
o «abobora» de Seneca. E tu, madama Lucrecia, flor dos Borgias, se um
poeta te pintou como a Messalina catholica, appareceu um Gregorovius
incredulo que te apagou muito essa qualidade, e, se não vieste a
lyrio, tambem não ficaste pantano. Eu deixo-me estar entre o poeta e o
sabio.

Viva pois a historia, a voluvel historia que dá para tudo; e, tornando
á idéa fixa, direi que é ella a que faz os varões fortes e os doudos;
a idéa mobil, vaga ou furta-cor é a que faz os Claudios,--formula
Suetonio.

Era fixa a minha idéa, fixa como... Não me occorre nada que seja assaz
fixo nesse mundo: talvez a lua, talvez as pyramides do Egypto, talvez
a finada dieta germanica. Veja o leitor a comparação que melhor lhe
quadrar, veja-a e não esteja dahi a torcer-me o nariz, só porque ainda
não chegámos á parte narrativa destas memorias. Lá iremos. Creio que
prefere a anecdota á reflexão, como os outros leitores, seus confrades,
e acho que faz muito bem. Pois lá iremos. Todavia, importa dizer que
este livro é escripto com pachorra, com a pachorra de um homem já
desaffrontado da brevidade do seculo, obra supinamente philosophica, de
uma philosophia desegual, agora austera, logo brincalhona, cousa que
não edifica nem destróe, não inflamma nem regéla, e é todavia mais do
que passatempo e menos do que apostolado.

Vamos lá; rectifique o seu nariz, e tornemos ao emplasto. Deixemos a
historia com os seus caprichos de dama elegante. Nenhum de nós pelejou
a batalha de Salamina, nenhum escreveu a confissão do Augsburgo; pela
minha parte, se alguma vez me lembro de Cromwell, é só pela idéa de que
Sua Alteza, com a mesma mão que trancara o parlamento, teria imposto
aos inglezes o emplasto Braz Cubas. Não se riam dessa victoria commum
da pharmacia e do puritanismo. Quem não sabe que ao pé de cada bandeira
grande, publica, ostensiva, ha muitas vezes varias outras bandeiras
modestamente particulares, que se hasteam e fluctuam á sombra daquella,
com ella cahem, e não poucas vezes lhe sobrelevam? Mal comparando, é
como a arraia-miuda, que se acolhia á sombra do castello-feudal; cahiu
este e a arraia ficou. Verdade é que se fez graúda e castellã... Não, a
comparação não presta.



CAPITULO V


Em que apparece a orelha de uma senhora


Vae se não quando, estando eu occupado em preparar e apurar a minha
invenção, recebi em cheio um golpe de ar; adoeci logo, e não me
tratei. Tinha o emplasto no cerebro; trazia commigo a idéa fixa dos
doudos e dos fortes. Via-me, ao longe, ascender do chão das turbas, e
remontar ao ceu, como uma aguia immortal; e não é deante de tão excelso
expectaculo que um homem pode sentir a dor que o punge. No outro dia
estava peor; tratei-me emfim, mas incompletamente, sem methodo, nem
cuidado, nem persistencia; tal foi a origem do mal que me trouxe á
eternidade. Sabem ja que morri n'uma sexta feira, dia aziago, e creio
haver provado que foi a minha invenção que me matou. Ha demonstrações
menos lúcidas e não menos triumphantes.

Não era impossivel, entretanto, que eu chegasse a galgar o cimo de um
seculo, e a figurar nas folhas publicas, entre macrobios. Tinha saude
e robustez. Supponha-se que, em vez de estar lançando os alicerces de
uma invenção pharmaceutica, tratava de colligir os elementos de uma
instituição politica, ou de uma reforma religiosa. Vinha a corrente
do ar, que vence, em efficacia, o calculo humano, e lá se ia tudo. Um
sopro de ar foi portanto o meu grão de arêa de Cromwell. Assim corre a
sorte dos homens.

Com esta reflexão me despedi eu da mulher, não direi mais discreta, mas
com certeza mais formosa entre as contemporaneas suas, a anonyma do
primeiro capitulo, a tal, cuja imaginação á semelhança das cegonhas do
Illysso... Tinha então 54 annos, era uma ruina, uma imponente ruina.
Imagine o leitor que nos amámos, ella e eu, muitos annos antes, e que
um dia, já enfermo, vejo-a assomar á porta da alcova...



CAPITULO VI


Chimène, qui l'eut dit?--Rodrigue, qui l'eut cru?


Vejo-a assomar á porta da alcova, pallida, commovida, trajada de preto,
e alli ficar durante uns dez segundos, sem animo de entrar, ou detida
pela presença de um homem que estava commigo. Da cama, onde jazia,
contemplei-a durante esse tempo, esquecido de lhe dizer nada ou de
fazer nenhum gesto. Havia já dous annos que nos não viamos; e eu via-a
agora não qual era, mas qual fora**, quaes foramos ambos, porque um
Ezechias mysterioso fizera recuar o sol até os dias juvenis. Recuou
o sol, sacudi todas as miserias; e este punhado de pó, que a morte
ia espalhar na eternidade do nada, pôde mais do que tempo, que é o
ministro da morte. Nenhuma agua de Juventa egualaria alli a simples
saudade.

Cream-me, o menos mau é recordar; ninguem se fie da felicidade
presente; ha nella uma gota da baba de Caim. Corrido o tempo e cessado
o espasmo, então sim, então talvez se póde gozar deveras, porque entre
uma e outra dessas duas illusões, melhor é a que se gosta, sem doer.

Não durou muito a evocação; a realidade dominou logo; o presente
expelliu o passado. Talvez eu exponha ao leitor, em algum canto deste
livro, a minha theoria das edições humanas. O que por agora importa
saber é que Virgilia--chamava-se Virgilia--entrou na alcova, firme,
com a gravidade que lhe davam as roupas e os annos, e veiu até o meu
leito. O extranho levantou-se e sahiu. Era um sujeito, que me visitava
todos os dias para fallar do cambio, da colonisação e da necessidade de
desenvolver a viação ferrea; nada mais interessante para um moribundo.
Saiu; Virgilia deixou-se estar de pé; durante algum tempo ficamos a
olhar um para o outro, sem articular palavra. Quem diria? De dous
grandes namorados, de duas paixões sem freio, nada mais havia alli,
vinte annos depois; havia apenas dous corações murchos, devastados pela
vida e saciados della, não sei se em egual dóse, mas emfim saciados.
Virgilia tinha agora a belleza da velhice, um ar austero e maternal;
estava menos magra do que quando a vi, pela ultima vez, n'uma festa
de S. João, na Tijuca; e porque era das que resistem muito, só agora
começavam os cabellos escuros a intercalar-se de alguns fios de prata.

--Anda visitando os defuntos? disse-lhe eu.--Ora, defuntos! respondeu
Virgilia com um muxoxo. E depois de me apertar as mãos:--Ando a ver se
ponho os vadios para a rua.

Não tinha a caricia lacrymosa de outro tempo; mas a voz era amiga e
doce. Sentou-se. Eu estava só, em casa, com um simples enfermeiro;
podiamos fallar um ao outro, sem perigo. Virgilia deu-me longas
noticias de fóra, narrando-as com graça, com um certo travo de má
lingua, que era o sal da palestra; eu, prestes a deixar o mundo, sentia
um prazer satanico em mofar delle, em persuadir-me que não deixava nada.

--Que idéas essas! interrompeu-me Virgilia um tanto zangada. Olhe que
eu não volto mais. Morrer! Todos nós havemos de morrer; basta estarmos
vivos.

E vendo o relogio:

--Jesus! são tres horas. Vou-me embora.

--Já?

--Já; virei amanhã ou depois.

--Não sei se faz bem, retorqui; o doente é um solteirão e a casa não
tem senhoras...

--Sua mana?

--Ha de vir cá passar uns dias, mas não póde ser antes de sabbado.

Virgilia reflectiu um instante, levantou os hombros e disse com
gravidade:

--Estou velha! Ninguem mais repara em mim. Mas, para cortar duvidas,
virei com o Nhonhô.

Nhonhô era um bacharel, unico filho de seu casamento, que, na edade
de cinco annos, fôra complice inconsciente de nossos amores. Vieram
juntos, dous dias depois; e confesso que, ao vel-os alli, na minha
alcova, fui tomado de um acanhamento que nem me permittiu corresponder
logo ás palavras affaveis do rapaz. Virgilia adivinhou-mo e disse ao
filho:

--Nhonhô, não repares nosso grande manhoso que ahi está; não quer
fallar para fazer crer que está á morte.

Sorriu o filho; eu creio quo tambem sorri; e tudo acabou em pura
galhofa. Virgilia estava serena e risonha, tinha o aspecto das
vidas immaculadas. Nenhum olhar suspeito, nenhum gesto que pudesse
denunciar nada; uma egualdade de palavra e de espirito, uma dominação
sobre si mesma, que pareciam e talvez fossem raras. Como tocassemos,
casualmente, n'uns amores illegitimos, meio secretos, meio divulgados,
vi-a fallar com desdem e um pouco de indignação da mulher de que se
tratava, aliás sua amiga; e o filho sentia-se satisfeito, ouvindo
aquella palavra digna e forte, e eu perguntava a mim mesmo o que diriam
de nós os gaviões, se Buffon tivesse nascido gavião...

Era o meu delirio que começava.



CAPITULO VII


O delirio


Que me conste, ainda ninguem relatou o seu proprio delirio; faço-o eu,
e a sciencia m'o agradecerá. Se o leitor não é dado á contemplação
destes phenomenos mentaes, póde saltar o capitulo; vá direito á
narração. Mas, por menos curioso que seja, sempre lhe digo que é
interessante saber o que se passou na minha cabeça durante uns vinte a
trinta minutos.

Primeiramente, tomei a figura de um barbeiro chinez, bojudo, destro,
escanhoando um mandarim, que me pagava o trabalho com beliscões e
confeitos: caprichos de mandarim.

Logo depois, senti-me transformado na _Summa Theologica_ de S. Thomaz,
impressa n'um volume, e encadernada em marroquim, com fechos de prata e
estampas; idéa esta que me deu ao corpo a mais completa immobilidade;
e ainda agora me lembra que, sendo as minhas mãos os fechos do livro,
e cruzando-as eu sobre o ventre, alguem as descruzava (Virgilia de
certo), porque a attitude lhe dava a imagem de um defunto.

Ultimamente, restituido á fórma humana, vi chegar um hippopotamo, que
me arrebatou. Deixei-me ir, calado, não sei se por medo ou confiança,
mas, dentro em pouco, a carreira de tal modo se tornou vertiginosa, que
me atrevi a interrogal-o, e com alguma arte lhe disse que a viagem me
parecia sem destino.

--Engana-se, replicou o animal, nós vamos á origem dos seculos.

Insinuei que deveria ser muitissimo longe; mas o hippopotamo não me
entendeu ou não me ouviu, se é que não fingiu uma dessas cousas; e,
perguntando-lhe, visto que elle fallava, se era descendente do cavallo
de Achilles ou da asna de Balaão, retorquiu-me com um gesto peculiar a
estes dous quadrupedes: abanou as orelhas. Pela minha parte fechei os
olhos e deixei-me ir á ventura. Já agora não se me dá de confessar que
sentia umas taes ou quaes cocegas de curiosidade, por saber onde ficava
a origem dos seculos, se era tão mysteriosa como a origem do Nilo, e
sobretudo se valia alguma cousa mais ou menos do que a consummação dos
mesmos seculos; tudo isto reflexões de um cerebro enfermo. Como ia de
olhos fechados, não via o caminho; lembra-me só que a sensação de frio
augmentava com a jornada, e que chegou uma occasião em que me pareceu
entrar na região dos gelos eternos. Com effeito, abri os olhos e vi que
o meu animal galopava n'uma planicie branca de neve, com uma ou outra
montanha de neve, vegetação de neve, e varios animaes grandes e de
neve. Tudo neve; chegava a gelar-nos um sol de neve. Tentei fallar, mas
apenas pude grunhir esta pergunta anciosa:

--Onde estamos?

--Já passámos o Eden.

--Bem; paremos na tenda de Abrahão.

--Mas se nós caminhamos para traz! redarguiu motejando a minha
cavalgadura.

Fiquei vexado e aturdido. A jornada entrou a parecer-me enfadonha e
extravagante, o frio incommodo, a conducção violenta, e o resultado
impalpavel. E depois--cogitações de enfermo--dado que chegassemos ao
fim indicado, não era impossivel que os seculos, irritados com lhes
devassarem a origem, me esmagassem entre as unhas, que deviam ser tão
seculares como elles. Em quanto assim pensava, iamos devorando caminho,
e a planicie voava debaixo dos nossos pés, até que o animal estacou, e
pude olhar mais tranquillamente em torno de mim. Olhar sómente; nada
vi, além da immensa brancura da neve, que desta vez invadira o proprio
ceu*, até alli azul. Talvez, a espaços, me apparecia uma ou outra
planta, enorme, brutesca, meneando ao vento as suas largas folhas. O
silencio daquella região era egual ao do sepulchro: dissera-se que a
vida das cousas ficára estupida deante do homem.

Cahiu do ar? destacou-se da terra? não sei; sei que um vulto immenso,
uma figura de mulher me appareceu então, fitando-me uns olhos
rutilantes como o sol. Tudo nessa figura tinha a vastidão das fórmas
selvaticas, e tudo escapava á comprehensão do olhar humano, porque os
contornos perdiam-se no ambiente, e o que parecia espesso era muita voz
diaphano. Estupefacto, não disse nada, não cheguei sequer a soltar um
grito; mas, ao cabo de algum tempo, que foi breve, perguntei quem era e
como se chamava; curiosidade de delirio.

--Chama-me Natureza ou Pandora; sou tua mãe e tua inimiga.

Ao ouvir esta ultima palavra, recuei um pouco, tomado de susto. A
figura soltou uma gargalhada, que produziu em torno de nós o effeito de
um tufão; as plantas torceram-se e um longo gemido quebrou a mudez das
cousas externas.

--Não te assustes, disse ella, minha inimizade não mata; é sobretudo
pela vida que se affirma. Vives: não quero outro flagello.

--Vivo? perguntei eu, enterrando as unhas nas mãos, como para
certificar-me da existencia.

--Sim, verme, tu vives. Não receies perder esse andrajo que é teu
orgulho; provarás ainda, por algumas horas, o pão da dôr e o vinho
da miseria. Vives: agora mesmo que ensandeceste, vives; e se a tua
consciência rehouver um instante de sagacidade, tu dirás que queres
viver.

Dizendo isto, a visão estendeu o braço, segurou-me pelos cabellos e
levantou-me ao ar, como se fôra uma simples pluma. Só então pude
ver-lhe de perto o rosto, que era enorme. Nada mais quieto; nenhuma
contorsão violenta, nenhuma expressão de odio ou ferocidade; a feição
unica, geral, completa, era a da impassibilidade egoista, a da eterna
surdez, a da vontade immovel. Raivas, se as tinha, ficavam encerradas
no coração. Ao mesmo tempo, nesse rosto de expressão glacial, havia um
ar de juventude, mescla de força e viço, diante do qual me sentia eu o
mais debil e descrepito dos seres.

--Entendeste-me? disse ella, no fim de algum tempo de mutua
contemplação.

--Não, respondi; nem quero entender-te; tu és absurda, tu és uma
fabula. Estou sonhando, de certo, ou, se é verdade que enlouqueci, tu
não passas de uma concepção de alienado, isto é, uma cousa vã, que a
razão ausente não póde reger nem palpar. Natureza, tu? a Natureza que
eu conheço é só mãe e não inimiga; não faz da vida um flagello, nem,
como tu, traz esse rosto indifferente, como o sepulchro. E porque
Pandora?

--Porque levo na minha bolsa os bens e os males, e o maior de todos, a
esperança, consolação dos homens. Tremes?

--Sim; o teu olhar fascina-me.

--Creio; eu não sou somente a vida; sou tambem a morte, e tu estás
prestes a devolver-me o que te emprestei. Grande lascivo, espera-te a
voluptuosidade do nada.

Quando esta palavra echoou, como um trovão, naquelle immenso valle,
afigurou-se-me que era o ultimo som que chegava a meus ouvidos;
pareceu-me sentir a decomposição subita de mim mesmo. Então, encarei-a
com olhos supplices, e pedi mais alguns annos.

--Pobre minuto! exclamou. Para que queres tu mais alguns instantes
de vida? Para devorar e seres devorado depois? Não estás farto do
expectaculo e da luta? Conheces de sobejo tudo o que eu te deparei
menos torpe ou menos afflictivo: o alvor do dia, a melancholia da
tarde, a quietação da noite, os aspectos da terra, o somno, emfim, o
maior beneficio das minhas mãos. Que mais queres tu, sublime idiota?

--Viver somente, não te peço mais nada. Quem me poz no coração este
amor da vida, se não tu? e, se eu amo a vida, porque te has de golpear
a ti mesma, matando-me?

--Porque já não preciso de ti. Não importa ao tempo o minuto que passa,
mas o minuto que vem. O minuto que vem é forte, jocundo, suppõe trazer
em si a eternidade, e traz a morte, e perece como o outro, mas o
tempo subsiste. Egoismo, dizes tu? Sim, egoismo, não tenho outra lei.
Egoismo, conservação. A onça mata o novilho porque o raciocinio da
onça é que ella deve viver, e se o novilho é tenro tanto melhor: eis o
estatuto universal. Sobe e olha.

Isto dizendo, arrebatou-me ao alto de uma montanha. Inclinei os olhos
a uma das vertentes, e contemplei, durante um tempo largo, ao longe,
atravez de um nevoeiro, uma cousa unica. Imagina tu, leitor, uma
reducção dos seculos, e um desfilar de todos elles, as raças todas,
todas as paixões, o tumulto dos imperios, a guerra dos appetites e
dos odios, a destruição reciproca dos seres e das cousas. Tal era
o expectaculo, acerbo e curioso expectaculo. A historia do homem
e da terra tinha assim uma intensidade que lhe não podiam dar nem
a imaginação nem a sciencia, porque a sciencia é mais lenta e a
imaginação mais vaga, emquanto que o que eu alli via era a condensação
viva de todos os tempos. Para descrevel-a seria preciso fixar o
relampago. Os seculos desfilavam n'um turbilhão, e, não obstante,
porque os olhos do delirio são outros, eu via tudo o que passava diante
de mim,--flagellos e delicias,--desde essa cousa que se chama gloria
até essa outra que se chama miseria, e via o amor multiplicando a
miseria, e via a miseria aggravando a debilidade. Ahi vinham a cobiça
que devora, a colera que inflamma, a inveja que baba, e a enxada e a
penna, humidas de suor, e a ambição, a fome, a vaidade, a melancholia,
a riqueza, o amor, e todos agitavam o homem, como um chocalho, até
destruil-o, como um farrapo. Eram as formas varias de um mal, que ora
mordia a viscera, ora mordia o pensamento, e passeiava eternamente as
suas vestes de arlequim, em derredor da especie humana. A dor cedia
alguma vez, mas cedia á indifferença, que era um somno sem sonhos,
ou ao prazer, que era uma dor bastarda. Então o homem, flagellado e
rebelde, corria diante da fatalidade das cousas, atraz de uma figura
nebulosa e esquiva, feita de retalhos, um retalho de impalpavel, outro
de improvavel, outro de invisivel, cosidos todos a ponto precario,
com a agulha da imaginação; e essa figura,--nada menos que a chimera
da felicidade,--ou lhe fugia perpetuamente, ou deixava-se apanhar
pela fralda, e o homem a cingia ao peito, e então ella ria, como um
escarneo, e sumia-se, como uma illusão.

Ao contemplar tanta calamidade, não pude reter um grito de angustia,
que Natureza ou Pandora escutou sem protestar nem rir; e não sei por
que lei de transtorno cerebral, fui eu que me puz a rir,--de um riso
descompassado e idiota.

--Tens razão, disse eu, a cousa é divertida e vale a pena,--talvez
monotona--mas vale a pena. Quando Job amaldiçoava o dia em que fôra
concebido, é porque lhe davam ganas de ver cá de cima o espectáculo.
Vamos lá, Pandora, abre o ventre, e digere-me; a cousa é divertida, mas
digere-me.

A resposta foi compellir-me fortemente a olhar para baixo, e a ver os
seculos que continuavam a passar, velozes e turbulentos, as gerações
que se superpunham ás gerações, umas tristes, como os Hebreus do
captiveiro, outras alegres, como os devassos de Commodo, e todas
ellas pontuaes na sepultura. Quiz fugir, mas uma força mysteriosa me
retinha os pés; então disse commigo:--«Bem, os seculos vão passando,
chegará o meu, e passará tambem, até o ultimo, que me dará a decifração
da eternidade.» E fixei os olhos, e continuei a ver as edades, que
vinham chegando e passando, já então tranquillo e resoluto, não sei
até se alegre. Talvez alegre. Cada seculo trazia a sua porção de
sombra e de luz, de apathia e de combate, de verdade e de erro, e o
seu cortejo de systemas, de idéas novas, de novas illusões; em cada
um delles rebentavam as verduras de uma primavera, e amarelleciam
depois, para remoçar mais tarde. Ao passo que a vida tinha assim uma
regularidade de calendario, fazia-se a historia e a civilisação, e o
homem, nu e desarmado, armava-se e vestia-se, construia o tugurio e
o palacio, a rude aldêa e Thebas de cem portas, creava a sciencia,
que perscruta, e a arte que enleva, fazia-se orador, mecanico,
philosopho, corria a face do globo, descia ao ventre da terra, subia
á esphera das nuvens, collaborando assim na obra mysteriosa, com que
entretinha a necessidade da vida e a melancholia do desamparo. Meu
olhar, enfarado e distrahido*, viu emfim chegar o seculo presente, e
atraz delle os futuros. Aquelle vinha agil, destro, vibrante, cheio
de si, um pouco diffuso, audaz, sabedor, mas ao cabo tão miseravel
como os primeiros, e assim passou e assim passaram os outros, com a
mesma rapidez e egual monotonia. Redobrei de attenção; fitei a vista;
ia emfim ver o ultimo,--o ultimo!; mas então já a rapidez da marcha
era tal, que escapava a toda a comprehensão; ao pé della o relampago
seria um seculo. Talvez por isso entraram os objectos a trocarem-se;
uns cresceram, outros minguaram, outros perderam-se no ambiente; um
nevoeiro cobriu tudo,--menos o hippopotamo que alli me trouxera, e que
aliás começou a diminuir, a diminuir, a diminuir, até ficar do tamanho
de um gato. Era effectivamente um gato. Encarei-o bem; era o meu gato
_Sultão_, que brincava á porta da alcova, com uma bola de papel...



CAPITULO VIII


Razão contra Sandice


Já o leitor comprehendeu que era a Razão que voltava á casa, e
convidava a Sandice a sair, clamando, e com melhor jus, as palavras de
Tartufo:

     La maison est á moi, c'est á vous d'en sortir.

Mas é sestro antigo da Sandice criar amor ás casas alheias, de modo
que, apenas senhora de uma, difficilmente lh'a farão despejar. É
sestro; não se tira dahi; ha muito que lhe callejou a vergonha. Agora,
se advertirmos no immenso numero de casas que occupa, umas de vez,
outras durante as suas estações calmosas, concluiremos que esta amavel
peregrina é o terror dos proprietarios. No nosso caso, houve quasi
um disturbio á porta do meu cerebro, porque a adventicia não queria
entregar a casa, e a dona não cedia da intenção de tomar o que era seu.
Afinal, já a Sandice se contentava com um cantinho no sotão.

--Não, senhora, replicou a Razão, estou cançada de lhe ceder sotãos,
cançada e experimentada, o que você quer é passar mansamente do sotão á
sala de jantar, dahi á de visitas e ao resto.

--Está bem, deixe-me ficar algum tempo mais, estou na pista de um
mysterio.

--Que mysterio?

--De dous, emendou a Sandice; o da vida e o da morte; peço-lhe só uns
dez minutos.

A Razão poz-se a rir.

--Has de ser sempre a mesma cousa... sempre a mesma cousa... sempre a
mesma cousa...

E, dizendo isto, travou-lhe dos pulsos e arrastou-a para fóra; depois
entrou e fechou-se. A Sandice ainda gemeu algumas supplicas; ainda
grunhiu algumas zangas; mas desenganou-se depressa, deitou a lingua de
fóra, em ar de surriada, e foi andando... foi andando... Provavelmente
andará até á consummação dos seculos.



CAPITULO IX


Transição


E vejam agora com que destreza, com que fina arte faço eu a maior
transição deste livro. Vejam: o meu delirio começou em presença
de Virgilia; Virgilia foi o meu grão peccado da juventude; não ha
juventude sem meninice; meninice suppõe nascimento; e eis aqui como
chegamos nós, sem esforço, ao dia 20 de outubro de 1805, em que nasci.
Viram? Nenhuma juntura apparente, nada que divirta a attenção pausada
do leitor; nada. De modo que o livro fica assim com todas as vantagens
do methodo, sem a rigidez do methodo. Na verdade, era tempo. Que isto
de methodo, sendo, como é, uma cousa indispensavel, todavia é melhor
tel-o sem gravata nem suspensorios, mas um pouco á fresca e á solta,
como quem não se lhe dá da visinha fronteira, nem do inspector de
quarteirão. É como a eloquencia, que ha uma genuina e vibrante, de uma
arte natural e feiticeira, e outra tesa, engommada e chocha. Vamos ao
dia 20 de Outubro.



CAPITULO X


Naquelle dia...


Naquelle dia, a arvore dos Cubas brotou uma graciosa flor. Nasci;
recebeu-me nos braços a Pascoela, insigne parteira minhota, que
se gabava de ter aberto a porta do mundo a uma geração inteira de
fidalgos. Não é impossivel que meu pae lhe ouvisse tal declaração;
creio, todavia, que o sentimento paterno é que o induziu a gratifical-a
com duas meias dobras. Lavado e enfaixado, fui desde logo o heroe da
nossa casa. Cada qual prognosticava a meu respeito o que mais lhe
quadrava ao sabor. Meu tio João, o antigo official de infantaria,
achava-me um certo olhar de Bonaparte, cousa que meu pae não pôde ouvir
sem nauseas; meu tio Ildefonso, então simples padre, farejava-me conego.

--Conego é o que elle ha de ser, e não digo mais por não parecer
orgulho; mas não me admiraria nada se Deus o destinasse á um bispado...
É verdade, um bispado; não é cousa impossivel. Que diz você, mano
Bento?

Meu pae respondia a todos que eu seria o que Deus quizesse; e alçava-me
ao ar, como se intentasse mostrar-me á cidade e ao mundo; perguntava a
todos se eu me parecia com elle, se era intelligente, bonito...

Digo essas cousas por alto, segundo as ouvi narrar annos depois; ignoro
a mór parte dos pormenores daquelle famoso dia. Sei que a visinhança
veiu ou mandou comprimentar o recem-nascido, e que durante as primeiras
semanas muitas foram as visitas em nossa casa. Não houve cadeirinha
que não trabalhasse; aventou-se muita casaca e muito calção; e se hão
conto os mimos, os beijos, as admirações, as bençãos, é porque, se os
contasse, não acabaria mais o capitulo, e é preciso acabal-o.

Item, não posso dizer nada do meu baptizado, porque nada me referiram
a tal respeito, a não ser que foi uma das mais galhardas festas do
anuo seguinte, 1806; baptizei-me na egreja de S. Domingos, uma terça
feira de março, dia claro, luminoso e puro, sendo padrinhos o coronel
Rodrigues de Mattos e sua senhora. Um e outro descendiam de velhas
familias do norte e honravam devéras o sangue que lhes corria nas
veias, outr'ora derramado na guerra contra Hollanda. Cuido que os nomes
de ambos foram das primeiras cousas que aprendi; e certamente os dizia
com muita graça, ou revelava algum talento precoce, porque não havia
pessoa extranha diante de quem me não obrigassem a recital-os.

--Nhonhô, diga a estes senhores como é que se chama seu padrinho.

--Meu padrinho? é o coronel Paulo Vaz Lobo Cezar de Andrade e Souza
Rodrigues de Mattos; minha madrinha é a Excellentissima Senhora D.
Maria Luiza de Macedo Rezende e Souza Rodrigues de Mattos.

--É muito esperto o seu menino, commentavam os ouvintes.

--Muito esperto, concordava meu pae; e os olhos babavam-se-lhe de
orgulho, e elle espalmava a mão sobre a minha cabeça, fitava-me longo
tempo, namorado, cheio de si.

Item, comecei a andar, não sei bem quando, mas antes do tempo. Talvez
por apressar a natureza, obrigavam-me cedo a agarrar ás cadeiras,
pegavam-me da fralda, davam-me carrinhos de páu.--Só só, nhonhô, só só,
dizia-me a mucama. E eu, attrahido pelo chocalho de lata, que minha mãe
agitava diante de mim, lá ia para a frente, cahe aqui, cahe acolá; e
andava, provavelmente mal, mas andava, e fiquei andando.



CAPITULO XI


O menino é pai do homen.


Cresci; e nisso é que a familia não interveiu; cresci naturalmente,
como crescem as magnolias e os gatos. Talvez os gatos são menos
matreiros, e, com certeza, as magnolias são menos inquietas do que eu
era na minha infancia. Um poeta dizia que o menino é pae do homem. Se
isto é verdade, vejamos alguns lineamentos do menino.

Desde os cinco annos merecera eu a alcunha de «menino diabo»; e
verdadeiramente não era outra cousa; fui dos mais malignos do meu
tempo, arguto, indiscreto, traquinas e voluntarioso. Por exemplo, um
dia quebrei a cabeça de uma escrava, porque me negára uma colhér do
doce de coco que estava fazendo, e, não contente com o maleficio,
deitei um punhado de cinza ao tacho, e, não satisfeito da travessura,
fui dizer a minha mãe que a escrava é que estragára o doce «por
pirraça»; e eu tinha apenas seis annos. Prudencio, um moleque de casa,
era o meu cavallo de todos os dias; punha as mãos no chão, recebia um
cordel nos queixos, á guisa de freio, eu trepava-lhe ao dorso, com uma
varinha na mão, fustigava-o, dava mil voltas a um e outro lado, e elle
obedecia,--algumas vezes gemendo,--mas obedecia sem dizer palavra,
ou, quando muito, um--«ai, nhonhô!»--ao que eu retorquia:--«Cala a
boca, besta!»--Esconder os chapéos das visitas, deitar rabos de papel
a pessoas graves, puxar pelo rabicho das cabelleiras, dar beliscões
nos braços das matronas, e outras muitas façanhas deste jaez, eram
mostras de um genio indocil, mas devo crer que eram tambem expressões
de um espirito robusto, porque meu pae tinha-me em grande admiração;
e se ás vezes me reprehendia, á vista de gente, fazia-o por simples
formalidade: em particular dava-me beijos.

Não se conclua daqui que eu levasse todo o resto da minha vida a
quebrar a cabeça dos outros nem a esconder-lhes os chapéos; mas
opiniatico, egoista e algo contemptor dos homens, isso fui; se não
passei o tempo a esconder-lhes os chapéos, alguma vez lhes puxei pelo
rabicho das cabelleiras.

Outrosim, affeiçoei-me á contemplação da injustiça humana, inclinei-me
a attenual-a, a explical-a, a classifical-a por partes, a entendel-a,
não segundo um padrão rigido, mas ao sabor das circumstancias e
logares. Minha mãe doutrinava-me a seu modo, fazia-me decorar alguns
preceitos e orações; mas eu sentia que, mais do que as orações, me
governavam os nervos e o sangue, e a boa regra perdia o espirito, que
a faz viver, para se tornar uma vã formula. De manhã, antes do mingáu,
e de noite, antes da cama, pedia a Deus que me perdoasse, assim como
eu perdoava aos meus devedores; mas entre a manhã e a noite fazia uma
grande maldade, e meu pae, passado o alvoroço, dava-me pancadinhas na
cara, e exclamava a rir: Ah! bregeiro! ah! bregeiro!

Sim, meu pae adorava-me, tinha-me esse amor sem merito, que é um
simples e forte impulso da carne; amor que a razão não contrasta
nem rége. Minha mãe era uma senhora fraca, de pouco cerebro e muito
coração, assaz credula, sinceramente piedosa,--caseira, apezar de
bonita, e modesta, apezar de abastada; temente ás trovoadas e ao
marido. O marido era na terra o seu deus. Da collaboração dessas duas
creaturas nasceu a minha educação, que, se tinha alguma cousa boa, era
no geral viciosa, incompleta, e, em partes, negativa. Meu tio conego
fazia ás vezes alguns reparos ao irmão; dizia-lhe que elle me dava
mais liberdade do que ensino, e mais affeição do que emenda; mas meu
pae respondia que applicava na minha educação um systema inteiramente
superior ao systema usado; e por este modo, sem confundir o irmão,
illudia-se a si proprio.

Havia em minha mãe uma sombra de melancholia, que eu herdei, como
herdei de meu pae a fatuidade. Os aspectos da vida accrescentaram-lhe a
natural tendencia. Tinha coração de mais, uma sensibilidade melindrosa,
exigente, doentia.

De envolta com a transmissão e a educação, houve ainda o exemplo
extranho, o meio domestico. Vimos os paes; vejamos os tios. Um delles,
o João, era um homem de lingua solta, vida galante, conversa picaresca.
Desde os onze annos entrou a admittir-me ás anecdotas, reaes ou não,
eivadas todas de obscenidade ou immundicie. Não me respeitava a
adolescencia, como não respeitava a batina do irmão; com a differença
que este fugia logo que elle enveredava por assumpto escabroso. Eu não;
deixava-me estar, sem entender nada, a principio, depois entendendo, e
emfim achando-lhe graça. No fim de certo tempo, quem o procurava era
eu; e elle gostava muito de mim, dava-me doces, levava-me a passeio. Em
casa, quando lá ia passar alguns dias, não poucas vezes me aconteceu
achal-o, no fundo da chacara, no lavadouro, a palestrar com as escravas
que batiam roupa; e ahi é que era um desfiar de anecdotas, de ditos,
de perguntas, e um estalar de risadas, que ninguem podia ouvir, porque
o lavadouro ficava muito longe de casa. As pretas, com uma tanga
no ventre, a arregaçar-lhes um palmo dos vestidos, umas dentro do
tanque, outras fóra, inclinadas sobre as peças de roupa, a batel-as, a
ensaboal-as, a torcel-as, iam ouvindo e redarguindo ás pilherias do tio
João, e a commental-as de quando em quando com esta palavra:

--Cruz, diabo!... Este sinhô João é o diabo!

Bem differente era o tio conego. Esse tinha muita austeridade e
pureza; taes dotes, comtudo, não realçavam um espirito superior,
apenas compensavam um espirito mediocre. Não era homem que visse a
parte substancial da egreja; via o lado externo, a hierarchia, as
preeminencias, as sobrepelizes, as circumflexões. Vinha antes da
sacristia que do altar. Uma lacuna no ritual excitava-o mais do que
uma infracção dos mandamentos. Agora, a tantos annos de distancia,
não estou certo se elle poderia atinar facilmente com um trecho de
Tertuliano, ou expor, sem titubear, a historia do symbolo de Nicéa;
mas ninguem, nas festas cantadas, sabia melhor o numero e caso das
cortezias que se deviam ao officiante. Conego foi a unica ambição de
sua vida; e dizia de coração que era a maior dignidade a que podia
aspirar. Piedoso, severo nos costumes, minucioso na observancia das
regras, frouxo, acanhado, subalterno, possuia algumas virtudes, em que
era exemplar, mas carecia absolutamente da força de as incutir, de as
impôr aos outros.

Não digo nada de minha tia materna, D. Emerenciana, e aliás era a
pessoa que mais autoridade tinha sobre mim; essa differençava-se
grandemente dos outros; mas viveu pouco tempo em nossa companhia,
uns dous annos. Outros parentes e alguns intimos não merecem a pena
de ser citados; não tivemos uma vida commum, mas intermittente, com
grandes claros de separação. O que importa é a expressão geral do meio
domestico, e essa ahi fica indicada,--vulgaridade de caracteres, amor
das apparencias rutilantes, do arruido, frouxidão da vontade, dominio
do capricho, e o mais. Dessa terra e desse estrume é que nasceu esta
flôr.



CAPITULO XII


Um episodio de 1814


Mas eu não quero passar adeante, sem contar summariamente um galante
episodio de 1814; tinha nove annos.

Napoleão, quando eu nasci, estava já em todo o explendor da gloria
e do poder; era imperador e grangeára inteiramente a admiração dos
homens. Meu pae, que á força de persuadir os outros da nossa nobreza,
acabara persuadindo-se a si proprio, nutria contra elle um odio
puramente mental. Era isso motivo de renhidas contendas em nossa casa,
porque meu tio João, não sei se por espirito de classe e sympathia de
officio, perdoava no despota o que admirava no general, meu tio padre
era inflexivel contra o corso, os outros parentes dividiam-se; dahi as
controversias e as rusgas.

Chegando ao Rio de Janeiro a noticia da primeira quéda de Napoleão,
houve naturalmente grande abalo em nossa casa, mas nenhum chasco ou
remoque. Os vencidos, testemunhas do regozijo publico, julgaram mais
decoroso o silencio; alguns foram além e bateram palmas. A população,
cordialmente alegre, não regateou demonstrações de affecto á real
familia; houve illuminações, salvas, _Te-Deum_, cortejo e acclamações.
Figurei nesses dias com um espadim novo, que meu padrinho me dera no
dia de Santo Antonio; e, francamente, interessava-me mais o espadim
do que a quéda de Bonaparte. Nunca me esqueceu esse phenomeno. Nunca
mais deixei de pensar commigo que o nosso espadim é sempre maior do que
a espada de Napoleão. E notem que eu ouvi muito discurso, quando era
vivo, li muita pagina rumorosa de grandes idéas e maiores palavras, mas
não sei porque, no fundo dos applausos que me arrancavam da boca, lá
echoava alguma vez este conceito de experimentado:

--Vae-te embora, tu só cuidas do espadim.

Não se contentou a minha familia em ter um quinhão anonymo no regozijo
publico; entendeu opportuno e indispensavel celebrar a destituição
do imperador com um jantar, e tal jantar que o ruido das acclamações
chegasse aos ouvidos de Sua Alteza, ou, quando menos, de seus
ministros. Dito e feito. Veiu abaixo toda a velha prataria, herdada do
meu avô Luiz Cubas; vieram as toalhas de Flandres, as grandes jarras
da India; matou-se um capado; encommendaram-se ás madres da Ajuda as
compotas e marmeladas; lavaram-se, arearam-se, poliram-se as salas,
escadas, castiçaes, arandellas, as vastas mangas de vidro, todos os
apparelhos do luxo classico.

Dada a hora, achou*-se reunida uma sociedade selecta, o juiz de fóra,
tres ou quatro officiaes militares, alguns commerciantes e lettrados,
varios funccionarios da administração, uns com suas mulheres e filhas,
outros sem ellas, mas todos commungando no desejo de atolar a memoria
de Bonaparte no papo de um perú. Não era um jantar, mas um _Te-Deum_;
foi o que pouco mais ou menos disse um dos lettrados presentes, o
Dr. Villaça, glosador insigne, que accrescentou aos pratos de casa o
acepipe das musas. Lembra-me, como se fosse hontem, lembra-me de o ver
erguer-se, com a sua longa cabelleira de rabicho, casaca de seda, uma
esmeralda no dedo, pedir a meu tio padre que lhe repetisse o mote,
e, repetido o mote, cravar os olhos na testa de uma senhora, depois
tossir, alçar a mão direita, toda fechada, menos o dedo indice, que
apontava para o tecto; e, assim posto e composto, devolver o mote
glosado. Não fez uma glosa, mas tres; depois jurou aos seus deuses não
acabar mais. Pedia um mote, davam-lh'o, elle glosava-o promptamente,
e logo pedia outro e mais outro; a tal ponto que uma das senhoras
presentes não pôde calar a sua grande admiração.

--A senhora diz isso, retorquia modestamente o Villaça, porque nunca
ouviu o Bocage, como eu ouvi, no fim do século, em Lisboa. Aquillo sim!
que facilidade! e que versos! Tivemos lutas de uma e duas horas, no
botequim do Nicola, a glosarmos, no meio de palmas e bravos. Immenso
talento o do Bocage! Era o que me dizia, ha dias, a Sra. duqueza de
Cadaval...

E estas tres palavras ultimas, expressas com muita emphasis, produziram
em toda a assembléa um fremito de admiração e pasmo. Pois esse homem
tão dado, tão simples, além de pleitear com poetas, discreteava com
duquezas! Um Bocage e uma Cadaval! Ao contacto de tal homem, as
damas sentiam-se superfinas; os varões olhavam-n'o com respeito,
alguns com inveja, não raros com incredulidade. Elle, entretanto,
ia caminho, a accummular adjectivo sobre adjectivo, adverbio sobre
adverbio, a desfiar todas as rimas de _tyranno_ e de _usurpador._ Era
á sobremeza; ninguem já pensava em comer. No intervallo das glosas,
corria um borborinho alegre, um palavrear de estomagos satisfeitos;
os olhos, molles e humidos, ou vivos e calidos, espreguiçavam-se ou
saltitavam de uma ponta a outra da meza, atulhada de doces e fructas,
aqui o ananaz em fatias, alli o melão em talhadas, as compoteiras de
crystal deixando ver o doce de coco, finamente ralado, amarello como
uma gemma,--ou então o melado escuro e grosso, não longe do queijo
e do cará. De quando em quando um riso jovial, amplo, desabotoado,
um riso de familia, vinha quebrar a gravidade politica do banquete.
No meio do interesse grande e commum, agitavam-se tambem os pequenos
e particulares. As moças fallavam das modinhas que haviam de cantar
ao cravo, e do minuete e do solo inglez; nem faltava matrona que
promettesse bailar um oitavado de compasso, só para mostrar como
folgára nos seus bons tempos de criança. Um sujeito, ao pé de mim, dava
a outro noticia recente dos negros novos, que estavam a vir, segundo
cartas que recebera de Loanda, uma carta em que o sobrinho lhe dizia
ter já negociado cerca de quarenta cabeças, e outra-carta em que...
Trazia-as justamente na algibeira, mas não as podia ler naquella
occasião. O que afiançava é que podiamos contar, só nessa viagem, uns
cento e vinte negros, pelo menos.

--Trás...trás...trás...fazia o Villaça batendo com as mãos uma na
outra. O rumor cessava de subito, como um estacado de orchestra,
e todos os olhos se voltavam para o glosador. Quem ficava longe
aconcheava a mão atraz da orelha para não perder palavra; a mór parte,
antes mesmo da glosa, tinha já um meio riso de applauso, trivial e
candido.

Quanto a mim, lá estava, solitario e deslembrado, a namorar uma
certa compota da minha feição. No fim de cada glosa ficava muito
contente, esperando que fosse a ultima; mas não era, e a sobremeza
continuava intacta. Ninguem se lembrava de dar a primeira voz. Meu
pae, á cabeceira, saboreava a goles extensos, a alegria dos convivas,
mirava-se todo nos carões alegres, nos pratos, nas flores, deliciava-se
com a familiaridade travada entre os mais distantes espiritos, influxo
de um bom jantar. Eu via isso, porque arrastava os olhos da compota
para elle e delle para a compota, como a pedir-lhe que m'a servisse;
mas fazia-o em vão. Elle não via nada; via-se a si mesmo. E as glosas
succediam-se, como bategas d'agua, obrigando-me a recolher o desejo e
o pedido. Pacientei quanto pude; e não pude muito. Pedi em voz baixa o
doce; emfim, bradei, berrei, bati com os pés. Meu pae, que seria capaz
de me dar o sol, se eu lh*'o exigisse, chamou um escravo para me servir
o doce; mas era tarde. A tia Emerenciana arrancára-me da cadeira e
entregára-me a uma escrava, não obstante os meus gritos e repellões.

Não foi outro o delicto do glosador: retardára a compota e dera causa
á minha exclusão. Tanto bastou para que eu cogitasse uma vingança,
qualquer que fosse, mas grande e exemplar, cousa que de alguma maneira
o tornasse ridiculo. Que elle era um homem grave o Dr. Villaça, medido
e lento, quarenta e sete annos, casado e pae. Não me contentava o
rabo de papel nem o rabicho da cabelleira; havia de ser cousa peor.
Entrei a espreital-o, durante o resto da tarde, a seguil-o, na chacara,
aonde todos desceram a passear. Vi-o conversar com D. Eusebia, irmã do
sargento-mór Domingues, uma robusta donzellona, que se não era bonita,
tambem não era feia.

--Estou muito zangada com o senhor, dizia ella.

--Porque?

--Porque ... não sei porque ... porque é a minha sina ... creio ás
vezes que é melhor morrer...

Tinham penetrado n'uma pequena moita; era lusco-fusco; eu segui-os. O
Villaça levava nos olhos umas chispas de vinho e de volupia.

--Deixe-me, disse ella.

--Ninguem nos vê. Morrer, meu anjo? Que idéas são essas! Você sabe que
eu morrerei tambem ... que digo?... morro todos os dias, de paixão, de
saudades...

D. Eusebia levou o lenço aos olhos. O glosador vasculhava na memoria
algum pedaço litterario, e achou este, que mais tarde verifiquei ser de
uma das operas do Judeu:

--Não chores, meu bem; não queiras que o dia amanheça com duas auroras.

Disse isto; puxou-a para si; ella resistiu um pouco, mas deixou-se ir;
uniram os rostos, e eu ouvi estalar, muito ao de leve, um beijo, o mais
medroso dos beijos.

--O Dr. Villaça deu um beijo em D. Eusebia! bradei eu correndo pela
chacara.

Foi um estouro esta minha palavra; a estupefacção immobilisou a todos;
os olhos espraiavam-se a uma e outra banda; trocavam-se sorrisos,
segredos, á socapa, as mães arrastavam as filhas, pretextando o sereno.
Meu pae puxou-me as orelhas, disfarçadamente, irritado devéras com
a indiscrição; mas no dia seguinte, ao almoço, lembrando o caso,
sacudiu-me o nariz, a rir:--Ah! brejeiro! ah! brejeiro!



CAPITULO XIII


Um salto


Unamos agora os pés e demos um salto por cima da eschola, a enfadonha
eschola, onde aprendi a ler, escrever, contar, dar cacholetas,
apanhal-as, e ir fazer diabruras, ora nos morros, ora nas praias, onde
quer que fosse propicio a ociosos.

Tinha amarguras esse tempo; tinha os ralhos, os castigos, as lições
arduas e longas, e pouco mais, mui pouco e mui leve. Só era pesada a
palmatoria, e ainda assim... Ó palmatoria, terror dos meus dias pueris,
tu que foste o _compelle intrare_ com que um velho mestre, ossudo e
calvo, me incutiu no cerebro o alphabeto, a prosodia, a syntaxe, e o
mais que elle sabia, benta palmatoria, tão praguejada dos modernos,
quem me dera ter ficado sob o teu jugo, com a minha alma imberbe, as
minhas ignorancias, e o meu espadim, aquelle espadim de 1814, tão
superior á espada de Napoleão! Que querias tu, afinal, meu velho mestre
de primeiras lettras? Lição de cór e compostura na aula; nada mais,
nada menos do que quer a vida, que é a mestra das ultimas lettras;
com a differenca que tu, se me mettias medo, nunca me metteste zanga.
Vejo-te ainda agora entrar na sala, com as tuas chinellas de couro
branco, capote, lenço na mão, calva á mostra, barba rapada; vejo-te
sentar, bufar, grunhir, absorver uma pitada inicial, e chamar-nos
depois á lição. E fizeste isto durante vinte e tres annos, calado,
obscuro, pontual, mettido n'uma casinha da rua do Piolho, sem enfadar
o mundo com a tua mediocridade, até que um dia déste o grande mergulho
nas trevas, e ninguem te chorou, salvo um preto velho,--ninguem, nem
eu, que te devo os rudimentos da escripta.

Chamava-se Ludgero o mestre; quero escrever-lhe o nome todo nesta
pagina: Ludgero Barata,--um nome funesto, que servia aos meninos de
eterno mote a chufas. Um de nós, o Quincas Borba, esse então era cruel
com o pobre homem. Duas, tres vezes por semana, havia de lhe deixar na
algibeira das calças,--umas largas calças de enfiar--, ou na gaveta
da mesa, ou ao pé do tinteiro, uma barata morta. Se elle a encontrava
ainda nas horas da aula, dava um pulo, circulava os olhos chammejantes,
dizia-nos os ultimos nomes; eramos sevandijas, capadocios, mal criados,
moleques.--Uns tremiam, outros rosnavam; o Quincas Borba, porém,
deixava-se estar quieto, com os olhos espetados no ar.

Uma flôr, o Quincas Borba. Nunca em minha infancia, nunca em toda a
minha vida, achei um menino mais gracioso, inventivo e travesso. Era
a flôr, e não já da eschola, senão de toda a cidade. A mãe, viuva,
com alguma cousa de seu, adorava o filho e trazia-o amimado, aceiado,
enfeitado, com um vistoso pagem atraz, um pagem que nos deixava gazear
a eschola, ir caçar ninhos de passaros, ou perseguir lagartixas no
morro do Livramento e da Conceição, ou simplesmente arruar, á toa,
como dous peraltas sem emprego. E de imperador! Era um gosto ver o
Quincas Borba fazer de imperador nas festas do Espirito Santo. De
resto, nos nossos jogos pueris, elle escolhia sempre um papel de rei,
ministro, general, uma supremacia, qualquer que fosse. Tinha garbo o
traquinas, e gravidade, certa magnificencia nas attitudes, nos meneios.
Quem diria que... Suspendamos a penna; não adeantemos os successos.
Fujamos sobretudo desse passado tão remoto, tão coberto, ai de mim! de
cruzes funebres. Vamos do um salto a 1822, data da nossa independencia
politica, e do meu primeiro captiveiro pessoal.



CAPITULO XIV


O primeiro beijo


Tinha dezesete annos; pungia-me um buçosinho que eu forcejava por
trazer a bigode. Os olhos, vivos e resolutos, eram a minha feição
verdadeiramente mascula. Como ostentasse certa arrogancia, não se
distinguia bem se era uma criança com fumos de homem, se um homem
com ares de menino. Ao cabo, era um lindo garção, lindo e audaz, que
entrava na vida de botas e esporas, chicote na mão e sangue nas veias,
cavalgando um corsel nervoso, rijo, veloz, como o corsel das antigas
balladas, que o romantismo foi buscar ao castello medieval, para dar
com elle nas ruas do nosso seculo. O peor é que o estafaram a tal
ponto, que foi preciso deital-o á margem, onde o realismo o veiu achar,
comido de lazeira e vermes, e, por compaixão, o transportou para os
seus livros.

Sim, eu era esse garção bonito, airoso, abastado; e facilmente
se imagina que mais de uma dama inclinou deante de mim a fronte
pensativa, ou levantou para mim os olhos cobiçosos. De todas porém a
que me captivou logo foi um ... uma ... não sei se diga; este livro é
casto, ao menos na intenção; na intenção é castissimo. Mas vá lá; ou se
ha de dizer tudo ou nada. A que me captivou foi uma dama hespanhola,
Marcella, a «linda Marcella», como lhe chamavam os rapazes do tempo.
E tinham razão os rapazes. Era filha de um hortelão das Asturias;
disse-m'o ella mesma, n'um dia de sinceridade, porque a opinião aceita
é que nascera de um lettrado de Madrid, victima da invasão franceza,
ferido, encarcerado, espingardeado, quando ella tinha apenas doze
annos. _Cosas de España._ Quem quer que fosse, porém, o pae, lettrado
ou hortelão, a verdade é que Marcella não possuia a innocencia rustica,
e mal chegava a entender a moral do codigo. Era boa moça, lepida,
sem escrupulos, um pouco tolhida pela austeridade do tempo, que lhe
não permittia arrastar pelas ruas os seus estouvamentos e berlindas;
luxuosa, impaciente, amiga de dinheiro e de rapazes. Naquelle anno,
morria ella de amores por um certo Xavier, sujeito abastado e
tisico,--uma perola.

Vi-a, pela primeira vez, no Rocio Grande, na noite das luminarias, logo
que constou a declaração da independencia, uma festa de primavera, um
amanhecer da alma publica. Eramos dous rapazes, o povo e eu; vinhamos
da infancia, com todos os arrebatamentos da juventude. Vi-a sahir
de uma cadeirinha, airosa e vistosa, um corpo esbelto, ondulante,
um desgarre, alguma cousa que nunca achara nas mulheres puras.
--Segue-me, disse ella ao pagem. E eu segui-a, tão pagem como o outro,
como se a ordem me fosse dada, deixei-me ir namorado, vibrante, cheio
das primeiras auroras. A meio caminho, chamaram-lhe «linda Marcella»,
lembrou-me que ouvira tal nome a meu tio João, e fiquei, confesso que
fiquei tonto.

Tres dias depois perguntou-me meu tio, em segredo, se queria ir a uma
ceia de moças, nos Cajueiros. Fomos; era em casa de Marcella. O Xavier,
com todos os seus tuberculos, presidia ao banquete nocturno, em que
eu pouco ou nada comi, porque só tinha olhos para a dona da casa.
Que gentil que ella estava a hespanhola! Havia mais uma meia duzia
de mulheres,--todas de partido--, e bonitas, cheias de graça, mas a
hespanhola... O enthusiasmo, alguns goles de vinho, o genio imperioso,
estouvado, tudo isso me levou a fazer uma cousa unica; á sahida, á
porta da rua, disse a meu tio que esperasse um instante, e tornei a
subir as escadas.

--Esqueceu alguma cousa? perguntou Marcella de pé, no patamar.

--O lenço.

Ella ia abrir-me caminho para tornar á sala; eu segurei-lhe nas mãos,
puxei-a para mim, e dei-lhe um beijo. Não sei se ella disse alguma
cousa, se gritou, se chamou alguem; não sei nada; sei que desci outra
vez as escadas, veloz como um tufão, e incerto como um ebrio.



CAPITULO XV


Marcella


Gastei trinta dias para ir do Rocio Grande ao coração de Marcella,
não já cavalgando o corsel do cégo desejo, mas o asno da paciência,
a um tempo manhoso e teimoso. Que, na verdade, ha dous meios de
grangear a vontade das mulheres: o violento, como o touro de Europa,
e o insinuativo, como o cysne de Leda e a chuva de ouro de Danae,
tres inventos do padre Zeus, que, por estarem fóra da moda, ahi ficam
trocados no cavallo e no asno. Não direi as traças que urdi, nem
as pitas, nem as alternativas de confiança e temor, nem as esperas
baldadas, nem nenhuma outra dessas cousas preliminares. Affirmo-lhes
que o asno foi digno do corsel,--um asno de Sancho, deveras philosopho,
que me levou á casa della, no fim do citado periodo; apeei-me, bati-lhe
na anca e mandei-o pastar.

Primeira commoção da minha juventude, que doce que me foste! Tal devia
ser, na creação biblica, o effeito do primeiro sol. Imagina tu esse
effeito do primeiro sol, a bater de chapa na face de um mundo em flor.
Pois foi a mesma cousa, leitor amigo, e se alguma vez contaste dezoito
annos, deves lembrar-te que foi assim mesmo.

Teve duas phases a nossa paixão, ou ligação, ou qualquer outro nome,
que eu de nomes não curo; teve a phase consular e a phase imperial.
Na primeira, que foi curta, regemos o Xavier e eu, sem que elle
jamais acreditasse dividir commigo o governo de Roma; mas, quando a
credulidade não pôde resistir á evidencia, o Xavier depoz as insignias,
e eu concentrei todos os poderes na minha mão; foi a phase cesariana.
Era meu o universo; mas, ai triste! não o era de graça. Foi-me preciso
colligir dinheiro, multiplical-o, invental-o. Primeiro explorei as
larguezas de meu pae; elle dava-me tudo o que eu lhe pedia, sem
reprehensão, sem demora, sem frieza; dizia a todos que eu era rapaz
e que elle o fora tambem. Mas a tal extremo chegou o abuso, que elle
restringiu um pouco as franquezas, depois mais, depois mais. Então
recorri a minha mãe, e induzi-a a desviar alguma cousa, que me dava ás
escondidas. Era pouco; lancei mão de um recurso ultimo: entrei a saccar
sobre a herança de meu pae, a assignar obrigações, que devia resgatar
um dia com usura.

--Na verdade, dizia-me Marcella, quando eu lhe levava alguma seda,
alguma joia; na verdade, você quer brigar commigo... Pois isto é cousa
que se faça... um presente tão caro...

E, se era joia, dizia isto a contemplal-a entre os dedos, a procurar
melhor luz, a ensaial-a em si, e a rir, e a beijar-me com uma
reincidencia impetuosa e sincera; mas, protestando, derramava-se-lhe
a felicidade dos olhos, e eu sentia-me feliz com vêl-a assim. Gostava
muito das nossas antigas dobras de ouro, e eu levava-lhe quantas podia
obter; Marcella juntava-as todas dentro de uma caixinha de ferro,
cuja chave ninguem nunca jámais soube onde ficava; escondia-a por
medo dos escravos. A casa em que morava, nos Cajueiros, era propria.
Eram solidos e bons os moveis, de jacarandá lavrado, e todas as
demais alfaias, espelhos, jarras, baixella,--uma linda baixella da
India, que lhe doára um desembargador. Baixella do diabo, deste-me
grandes repellões aos nervos. Disse-o muita vez á própria dona;
não lhe dissimulava o tedio que me faziam esses e outros despojos
dos seus amores de antanho. Ella ouvia-me e ria, com uma expressão
candida,--candida e outra cousa, que eu nesse tempo não entendia bem;
mas agora, relembrando o caso, penso que era um riso mixto, como devia
ter a creatura que nascesse, por exemplo, de uma bruxa de Shakespeare
com um seraphim de Klopstock. Não sei se me explico. E porque tinha
noticia dos meus zelos tardios, parece que gostava de os açular mais.
Assim foi que um dia, como eu lhe não pudesse dar certo collar, que
ella vira n'um joalheiro, retorquiu-me que era um simples gracejo, que
o nosso amor não precisava de tão vulgar estimulo.

--Não lhe perdôo, se você fizer de mim essa triste idéa, concluiu
ameaçando-me com o dedo.

E logo, subita como um passarinho, espalmou as mãos, cingiu-me com
ellas o rosto, puxou-me a si e fez um tregeito gracioso, um momo de
criança. Depois, reclinada na marqueza, continuou a fallar daquillo,
com simplicidade e franqueza. Jámais consentiria que lhe comprassem os
affectos. Vendera muita vez as apparencias, mas a realidade, guardava-a
para poucos. O Duarte, por exemplo, o alferes Duarte, que ella amára
devéras, dous annos antes, só a custo conseguia dar-lhe alguma cousa de
valor, como me acontecia a mim; ella só lhe aceitava sem reluctancia os
mimos de escasso preço, como a cruz de ouro, que lhe deu, uma vez, de
festas.

--Esta cruz...

Dizia isto, mettendo a mão no seio e tirando uma cruz fina, de ouro,
presa a uma fita azul e pendurada ao collo.

--Mas essa cruz, observei eu, não me disseste que era teu pae que...

Marcella abanou a cabeça com um ar de lastima:

--Não percebeste* que era mentira, que eu dizia isso para te não
molestar? Vem cá, _chiquito_, não sejas assim desconfiado commigo...
Amei a outro; que importa, se acabou? Um dia, quando nos separarmos...

--Não digas isso! bradei eu.

--Tudo cessa! Um dia...

Não pôde acabar; um soluço estrangulou-lhe a voz; estendeu as mãos,
tomou das minhas, conchegou-me ao seio, e sussurrou-me baixo ao
ouvido:--Nunca, nunca, meu amor! Eu agradeci-lh'o com os olhos
humidos. No dia seguinte levei-lhe o collar que havia recusado.

--Para te lembrares de mim, quando nos separarmos, disse eu.

Marcella teve primeiro um silencio indignado; depois fez um gesto
magnifico: tentou atirar o collar á rua. Eu retive-lhe o braço;
pedi-lhe muito que não me fizesse tal desfeita, que ficasse com a joia.
Sorriu e ficou.

Entretanto, pagava-me á farta os sacrifícios; espreitava os meus mais
reconditos pensamentos; não havia desejo a que não acudisse com alma,
sem esforço, por uma especie de lei da consciencia e necessidade
do coração. Nunca o desejo era razoavel, mas um capricho puro, uma
criancice, vel-a trajar de certo modo, com taes e taes enfeites, este
vestido e não aquelle, ir a passeio ou outra cousa assim, e ella cedia
a tudo, risonha e palreira.

--Você é das Arabias, dizia-me.

E ia pôr o vestido, a renda, os brincos, com uma obediencia de
encantar.



CAPITULO XVI


Uma reflexão immoral


Occorre-me uma reflexão immoral, que é ao mesmo tempo uma correcção de
estylo. Cuido haver dito, no cap. XIII, que Marcella morria de amores
pelo Xavier. Não morria, vivia. Viver não é a mesma cousa que morrer
assim o affirmam todos os joalheiros desse mundo, gente muito vista
na grammatica. Bons joalheiros, que seria do amor se não fossem os
vossos dixes e fiados? Um terço ou um quinto do universal commercio
dos corações. Esta é a reflexão immoral que eu pretendia fazer, a qual
é ainda mais obscura do que immoral, porque não se entende bem o que
eu quero dizer. O que eu quero dizer é que a mais bella testa do mundo
não fica menos bella, se a cingir um diadema de pedras finas; nem menos
bella, nem menos amada. Marcella, por exemplo, que era bem bonita,
Marcella amou-me...



CAPITULO XVII


Do trapezio e outras cousas


... Marcella amou-me durante quinze mezes e onze contos de réis; nada
menos. Meu pae, logo que teve aragem dos onze contos, sobresaltou-se
devéras; achou que o caso excedia as raias de um capricho juvenil.

--Desta vez, disse elle, vaes para a Europa; vaes cursar uma
Universidade, provavelmente Coimbra; quero-te para homem serio e não
para arruador e gatuno. E como eu fizesse um gesto de espanto:--Gatuno,
sim, senhor; não é outra cousa um filho que me faz isto...

Saccou da algibeira os meus titulos de divida, já resgatados por elle,
e sacudiu-m'os na cara;--Vês, peralta? é assim que um moço deve zelar o
nome dos seus? Pensas que eu e meus avós ganhámos o dinheiro em* casas
de jogo ou a vadiar pelas ruas? Pelintra! Desta vez ou tomas juizo, ou
ficas sem cousa nenhuma.

Estava furioso; mas de um furor temperado e curto. Eu ouvi-o calado, e
nada oppuz á ordem da viagem, como de outras vezes fizera; ruminava, a
idéa de levar Marcella commigo. Fui ter com ella; expuz-lhe a crise e
fiz-lhe a proposta. Marcella ouviu-me com os olhos no ar, sem responder
logo; como insistisse, disse-me que ficava, que não podia ir para a
Europa.

--Porque não?

--Não posso, disse ella com ar dolente; não posso ir respirar aquelles
ares, emquanto me lembrar de meu pobre pae, morto por Napoleão...

--Qual delles: o hortelão ou o advogado?

Marcella franziu a testa, cantarolou uma seguidilha, entre dentes;
depois queixou-se do calor, e mandou vir um copo de aluá. Trouxe-lh'o
a mucama, n'uma salva de prata, que fazia parte dos meus onze contos.
Marcella offereceu-me polidamente o refresco; minha resposta foi dar
com a mão no copo e na salva; entornou-se-lhe o liquido no regaço, a
preta deu um grito, eu bradei-lhe que se fosse embora. Ficando a sós,
derramei todo o desespero de meu coração; disse-lhe que ella era um
monstro, que jámais me tivera amor, que me deixara descer a tudo, sem
ter ao menos a desculpa da sinceridade; chamei-lhe muitos nomes feios,
fazendo muitos gestos descompostos. Marcella deixára-se estar sentada,
a estalar as unhas nos dentes, fria como um pedaço de marmore. Tive
impetos de a estrangular, de a humiliar ao menos, subjugando-a a meus
pés. Ia talvez fazel-o; mas a acção trocou-se n'outra; fui eu que me
atirei aos pés della, contricto e supplice; beijei-lh'os, recordei
aquelles mezes da nossa felicidade solitaria, repeti-lhe os nomes
queridos de outro tempo, sentado no chão, com a cabeça entre os joelhos
della, apertando-lhe muito as mãos; offegante, desvairado, pedi-lhe com
lagrymas que me não desamparasse... Marcella esteve alguns instantes a
olhar para mim, calados ambos, até que brandamente me desviou e, com um
ar enfastiado:

--Não me aborreça, disse.

Levantou-se, sacudiu o vestido, ainda molhado, e caminhou para a
alcova.--Não! bradei eu; não has de entrar... não quero... Ia a
lançar-lhe as mãos: era tarde; ella entrára e fechara-se.

Sahi desatinado; gastei duas mortaes horas a vaguear pelos bairros mais
excentricos e desertos, onde fosse difficil dar commigo. Ia mastigando
o meu desespero, com uma especie de gula morbida; evocava os dias, as
horas, os instantes de delirio, e ora me comprazia em crer que elles
eram eternos, que tudo aquillo era um pesadelo, ora, enganando-me a mim
mesmo, tentava rejeital-os de mim, como um fardo inutil. Então resolvia
embarcar immediatamente para cortar a minha vida em duas metades, e
deleitava-me com a idéa de que Marcella, sabendo da partida, ficaria
ralada de saudades e remorsos. Que ella amara-me a tonta, devia de
sentir alguma cousa, uma lembrança qualquer, como do alferes Duarte...
Nisto, o dente do ciume enterrava-se-me no coração; e toda a natureza
me bradava que era preciso levar Marcella commigo.

--Por força... por força... dizia eu ferindo o ar com uma punhada.

Emfim, tive uma idéa salvadora... Ah! trapezio dos meus peccados,
trapezio das concepções abstrusas! A idéa salvadora trabalhou nelle,
como a do emplasto (cap. II.). Era nada menos que fascinal-a,
fascinal-a muito, deslumbral-a, arrastal-a; lembrou-me pedir-lhe por
um meio mais concreto do que a supplica. Não medi as consequencias;
recorri a um derradeiro emprestimo; fui á rua dos Ourives, comprei a
melhor joia da cidade, tres diamantes grandes, encastoados n'um pente
de marfim; corri á casa de Marcella.

Marcella estava reclinada n'uma rede, o gesto molle e cançado, uma das
pernas pendentes, a ver-se-lhe o pésinho calçado de meia de seda, os
cabellos soltos, derramados, o olhar quieto e somnolento.

--Vem commigo, disse eu, arranjei recursos...temos muito dinheiro,
terás tudo o que quizeres...Olha, toma.

E mostrei-lhe o ponte com os diamantes, Marcella teve um leve
sobresalto; a pupilla rutilou como a de um gavião faminto; ella ergueu
metade do corpo, e, apoiada n'um cotovello, olhou para o pente durante
alguns instantes curtos; depois retirou os olhos; tinha se dominado.
Então, eu lancei-lhe as mãos aos cabellos, colligi-os, enlacei-os á
pressa, improvisei um toucado, sem nenhum alinho, e rematei-o com o
pente de diamantes; recuei, tornei a aproximar-me, corrigi-lhe as
madeixas, abaixei-as do um lado, busquei alguma symetria naquella
desordem, tudo com unia minuciosidade e um carinho de mãe.

--Prompto, disse eu.

--Doudo! foi a sua primeira resposta.

A segunda foi puxar-me para si, e pagar-me o sacrificio com um beijo, o
mais ardente de todos. Depois tirou o pente, admirou muito a materia e
o lavor, olhando a espaços para mim, e abanando a cabeça, com um ar de
reprehensão:

--Ora você! dizia.

--Vens commigo?

Marcella reflectiu um instante. Não gostei da expressão com que
passeava os olhos de mim para a parede, e da parede para a joia;
mas toda a má impressão se desvaneceu, quando ella me respondeu
resolutamente:

--Vou. Quando embarcas?

--Daqui a dous ou tres dias.

--Vou.

Agradeci-lh'o de joelhos. Tinha achado a minha Marcella dos primeiros
dias, e disse-lh'o; ella sorriu, e foi guardar a joia, emquanto eu
descia a escada.



CAPITULO XVIII


Visão do corredor


No fim da escada, ao fundo do corredor escuro, parei alguns instantes
para respirar, apalpar-me, convocar as idéas dispersas, rehaver-me
emfim no meio de tantas sensações profundas e contrarias. Achava-me
feliz. Certo é que os diamantes corrompiam-me um pouco a felicidade;
mas não é menos certo que uma dama bonita pode muito bem amar os gregos
e os seus presentes. E depois eu confiava na minha boa Marcella; podia
ter defeitos, mas amava-me...

--Um anjo! murmurei eu olhando para o tecto do corredor.

E ahi, como um escarneo, vi o olhar de Marcella, aquelle olhar que
pouco antes me dera uma sombra de desconfiança, o qual chispava de
cima de um nariz, que era ao mesmo tempo o nariz de Bakbarah e o meu.
Pobre namorado das _Mil e uma noites!_ Vi-te alli mesmo correr atraz da
mulher do vizir, ao longo da galeria, ella a acenar-te com a posse,
e tu a correr, a correr, a correr, até a alameda comprida, donde
sahiste á rua, onde todos os correeiros te apuparam e desancaram. Então
pareceu-me que o corredor de Marcella era a alameda, e que a rua era a
de Bagdad. Com effeito, olhando para a porta, vi na calçada, tres dos
correeiros, um de batina, outro de libré, outro á paisana, os quaes
todos tres entraram no corredor, tomaram-me pelos braços, metteram-me
n'uma sege, meu pae á direita, meu tio conego á esquerda, o da libré
na boléa, e lá me levaram á casa do intendente de policia, donde fui
transportado a uma galera que devia seguir para Lisboa. Imaginem se
resisti; mas toda a resistencia era inutil.

Tres dias depois segui barra fóra, abatido e mudo. Não chorava sequer;
tinha uma idéa fixa... Malditas idéas fixas! A dessa occasião era dar
um mergulho no oceano, repetindo o nome de Marcella.



CAPITULO XIX


A bordo


Eramos onze passageiros, um homem doudo, acompanhado pela mulher, dous
rapazes que iam a passeio, quatro commerciantes e dous criados. Meu
pae recommendou-me a todos, começando pelo capitão do navio, que aliás
tinha muito que cuidar de si, porque, além do mais, levava a mulher
tisica em ultimo gráu.

Não sei se o capitão suspeitou alguma cousa do meu funebre projecto, ou
se meu pae o poz de sobreaviso; sei que não me tirava os olhos de cima;
chamava-me para toda a parte. Quando não podia estar commigo, levava-me
para a mulher. A mulher ia quasi sempre n'uma camilha raza, a tossir
muito, e a afiançar que me havia de mostrar os arredores de Lisboa.
Não estava magra, estava transparente; era impossivel que não morresse
de uma hora para outra. O capitão fingia não crer na morte proxima,
talvez por enganar-se a si mesmo. Eu não sabia nem pensava nada. Que
me importava a mim o destino de uma mulher tisica, no meio do oceano? O
mundo para mim era Marcella.

Uma noite, logo no fim do uma semana, achei ensejo propicio para
morrer. Subi cauteloso, mas encontrei o capitão, que junto á amurada,
tinha os olhos fitos no horizonte.

--Algum temporal? disse eu.

--Não, respondeu elle estremecendo; não; admiro o explendor da noite.
Veja; está celestial!

O estylo desmentia da pessoa, assaz rude e apparentemente alheia a
locuções rebuscadas. Fitei-o; elle pareceu saborear o meu espanto.
No fim de alguns segundos, pegou-me na mão e apontou para a lua,
perguntando-me porque não fazia uma ode á noite; respondi-lhe que não
era poeta. O capitão rosnou alguma cousa, deu dous passos, metteu a
mão no bolso, saccou um pedaço de papel, muito amarrotado; depois, á
luz de uma lanterna, leu uma ode horaciana sobre a liberdade da* vida
maritima. Eram versos delle.

--Que tal?

Não me lembra o que lhe disse; lembra-me que elle me apertou a mão
com muita força e muitos agradecimentos; logo depois recitou-me dous
sonetos; ia recitar-me outro, quando o vieram chamar da parte da
mulher.--Lá vou, disse elle; e recitou-me o terceiro soneto, com pausa,
com amor.

Fiquei só; mas a musa do capitão varrera-me do espirito os pensamentos
máus; preferi dormir, que é modo interino de morrer. No dia seguinte,
acordamos debaixo de um temporal, que metteu medo a toda a gente,
menos ao doudo; esse entrou a dar pulos, a dizer que a filha o mandava
buscar, n'uma berlinda; a morte de uma filha fôra a causa da loucura.
Não, nunca me ha de esquecer a figura hedionda do pobre homem, no
meio do tumulto das gentes e dos uivos do furacão, a cantarolar e a
bailar, com os olhos a saltarem-lhe da cara, pallido, a coma hirsuta,
descomposta. Ás* vezes parava, erguia ao ar as mãos ossudas, fazia
umas cruzes com os dedos, depois um xadrez, depois umas argolas, e ria
muito, desesperadamente. A mulher não podia já cuidar delle; entregue
ao terror da morte, rezava por si mesma a todos os santos do céu.*
Emfim, a tempestade amainou depois de longas horas; e confesso que foi
uma diversão excellente á tempestade do meu coração. Eu, que meditava
ir ter com a morte, não ousei fital-a quando ella veiu ter commigo.

Amainou o temporal, o capitão veiu perguntar-me se tivera medo, se
estivera em risco, se não achára sublime o expectaculo; tudo isso com
um interesse de amigo. Naturalmente a conversa versou sobre a vida do
mar; o capitão perguntou-me se não gostava de idyllios piscatorios; eu
respondi-lhe ingenuamente que não sabia o que era.

--Vae ver, respondeu elle.

E recitou-me um poemasinho, depois outro,--uma egloga,--e emfim cinco
sonetos, com os quaes rematou nesse dia a confidencia litteraria. No
dia seguinte, antes de me recitar nada, explicou-me o capitão que só
por motivos graves abraçara a profissão maritima, porque a avó queria
que elle fosse padre, e com effeito possuia algumas lettras latinas;
não chegou a ser padre, mas não deixou de ser poeta, que era a sua
vocação natural; e em prova de que tal era a sua vocação, recitou-me
logo, de corpo presente, uma centena de versos. Notei um phenomeno: os
ademanes que elle usava eram taes, que uma vez me fizeram rir; mas o
capitão, quando recitava, de tal sorte olhava para dentro de si mesmo,
que não viu nem ouviu nada.

Os dias passavam, e as aguas, e os versos, e com elles ia tambem
passando a vida da mulher. Estava por pouco. Um dia, logo depois do
almoço, disse-me o capitão que a enferma talvez não chegasse ao fim da
semana.

--Já! exclamei.

--Passou muito mal a noite.

Fui vel-a; achei-a, na verdade, quasi moribunda, mas fallando ainda de
descançar em Lisboa alguns dias, antes de ir commigo a Coimbra, porque
era seu proposito levar-me á Universidade. Deixei-a consternado; fui
achar o marido a olhar para as vagas, que vinham morrer na costado
do navio, e tratei de o consolar; elle agradeceu-me, relatou-me a
historia dos seus amores, elogiou a fidelidade e a dedicação da
mulher, relembrou os versos que lhe fez, e recitou-m'os. Neste ponto
vieram buscal-o da parte della; corremos ambos; era uma crise. Esse
e o dia seguinte foram crueis; o terceiro foi o da morte; eu fugi
ao expectaculo, tinha-lhe repugnancia. Meia hora depois encontrei o
capitão, sentado n'um mólho de cabos, com a cabeça nas mãos; disse-lhe
alguma cousa de conforto.

--Morreu como uma santa, respondeu elle; e, para que estas palavras
não pudessem ser levadas á conta de fraqueza, ergueu-se logo, sacudiu
a cabeça, e fitou o horizonte, com um gesto longo e profundo.--Vamos,
continuou, entreguemol-a á cova que nunca mais se abre.

Effectivamente, poucas horas depois, era o cadaver lançado ao mar,
com as ceremonias do costume. A tristeza murchára todos os rostos;
o do viuvo trazia a expressão de um cabeço rijamente lascado pelo
raio. Grande silencio. A vaga abriu o ventre, acolheu o despojo,
fechou-se,--uma leve ruga,--e a galera foi andando. Eu deixei-me estar
alguns minutos, á popa, com os olhos naquelle ponto incerto do mar em
que ficava um de nós... Fui dalli ter com o capitão, para distrahil-o.

--Obrigado, disse-me elle comprehendendo a intenção; creia que nunca me
esquecerei dos seus bons serviços. Deus é que lh'os ha de pagar. Pobre
Leocadia! tu te lembrarás de nós no ceu.

Enxugou com a manga uma lagrima importuna; eu busquei um derivativo na
poesia, que era a paixão delle. Fallei-lhe dos versos, que me lera,
e offereci-me para imprimil-os. Os olhos do capitão animaram-se um
pouco.--Talvez aceite, disse elle; mas não sei... são bem frouxos
versos. Jurei-lhe que não; pedi que os reunisse e me désse antes do
desembarque.

--Pobre Leocadia! murmurou elle sem responder ao pedido. Um cadaver...
o mar... o ceu... o navio...

No dia seguinte veiu ler-me um epicedio composto de fresco, em que
estavam memoradas as circumstancias da morte e da sepultura da
mulher; leu-m'o com a voz commovida devéras, e a mão tremula; no fim
perguntou-me se os versos eram dignos do thesouro que perdera.

--São, disse eu.

--Não haverá estro, ponderou elle, no fim de um instante, mas ninguem
me negará sentimento, se não é que o proprio sentimento prejudicou a
perfeição....

--Não me parece; acho os versos perfeitos.

--Sim, eu creio que... Versos de marujo.

--De marujo poeta.

Elle levantou os hombros, olhou para o papel, e tornou a recitar
a composição, mas já então sem tremuras, accentuando as intenções
litterarias, dando relevo ás imagens e melodia aos versos. No fim,
confessou-me que era a sua obra mais acabada, eu disse-lhe que sim;
elle apertou-me muito a mão e predisse-me um grande futuro.



CAPITULO XX


Bacharelo-me


Um grande futuro! Em quanto esta palavra me batia no ouvido, devolvia
eu os olhos, ao longe, no horizonte mysterioso e vago. Uma idéa
expellia outra, a ambição desmontava Marcella. Um grande futuro?
Talvez naturalista, litterato, archeologo, banqueiro, politico, ou até
bispo,--bispo que fosse,--uma vez que fosse um cargo, uma preeminencia,
uma grande reputação, uma posição superior. A ambição, dado que fosse
aguia, quebrou nessa occasião o ovo, e desvendou a pupilla fulva e
penetrante. Adeus, amores; adeus, Marcella; dias de delirio, joias
sem preço, vida sem regimen, adeus. Cá me vou ás fadigas e á gloria;
deixo-vos com as calcinhas da primeira edade.

E foi assim que desembarquei em Lisboa e segui para Coimbra. A
Universidade esperava-me com as suas materias arduas, e não sei
se profundas; estudei-as muito mediocremente, e nem por isso perdi
o gráu de bacharel; deram-m'o com a solemnidade do estylo, após
os annos da lei; uma bella festa que me encheu de orgulho e de
saudades,--principalmente de saudades. Tinha eu conquistado em Coimbra
uma grande nomeada de folião; era um academico estroina, superficial,
tumultuario e petulante, dado ás aventuras, fazendo romantismo pratico
e liberalismo theorico, vivendo na pura fé dos olhos pretos e das
constituições escriptas. No dia em que a Universidade me attestou, em
pergaminho, uma sciencia que eu estava longe de trazer arraigada no
cerebro, confesso que me achei de de algum modo logrado, ainda que
orgulhoso. Explico-me: o diploma era uma carta de alforria; se me dava
a liberdade, dava-me a responsabilidade. Guardei-o, deixei as margens
do Mondego, e vim por alli fóra assaz desconsolado, mas sentindo já
uns impetos, uma curiosidade, um desejo de acotovellar os outros, de
influir, de gozar, de viver,--de prolongar a Universidade pela vida
adeante...



CAPITULO XXI


O almocreve


Vae então, empacou o jumento em que eu vinha montado; fustiguei-o, elle
deu dous corcovos, depois mais tres, emfim mais um, que me sacudiu
fóra da sella, e com tal desastre, que o pé esquerdo me ficou preso no
estribo; tento agarrar-me ao ventre do animal, mas já então, espantado,
disparou pela estrada fóra. Digo mal: tentou disparar, e effectivamente
deu dous saltos, mas um almocreve, que alli estava, acudiu atempo de
lhe pegar na redea e detel-o, não sem esforço nem perigo. Dominado o
bruto, desvencilhei-me do estribo e puz-me de pé.

--Olhe do que vosmecê escapou, disse o almocreve.

E era verdade; se o jumento corre por alli fóra, contundia-me
devéras, e não sei se a morte não estaria no fim do desastre; cabeça
partida, uma congestão, qualquer transtorno cá dentro; e lá se me
ia a bacharelice em flor. O almocreve salvara-me talvez a vida;
era positivo; eu sentia-o no sangue que me agitava o coração. Bom
almocreve! emquanto eu tornava á consciencia de mim mesmo, elle cuidava
de concertar os arreios do jumento, com muito zelo e arte. Resolvi
dar-lho tres moedas de ouro das cinco que trazia commigo; não porque
tal fosse o preço da minha vida,--essa era inestimavel; mas por que era
uma recompensa digna da dedicação com que elle me salvou. Está dito,
dou-lhe as tres moedas.

--Prompto, disse elle apresentando-me a redea da cavalgadura.

--Daqui a nada, respondi; deixa-me, que ainda não estou em mim...

--Ora qual!

--Pois não é certo que ia morrendo?

--Se o jumento corre por ahi fóra, é possivel; mas, com a ajuda do
Senhor, viu vosmecê que não aconteceu nada.

Fui aos alforges, tirei um collete velho, em cujo bolso trazia as cinco
moedas de ouro, e durante esse tempo cogitei se não era excessiva a
gratificação, se não bastavam duas moedas. Talvez uma. Com effeito, uma
moeda era bastante para lhe dar estremeções de alegria. Examinei-lhe
a roupa; era um pobre diabo, que nunca jamais vira uma moeda de ouro.
Portanto, uma moeda. Tirei-a, vi-a reluzir á luz do sol; não a viu o
almocreve, por que eu tinha-lhe voltado as costas; mas suspeitou-o
talvez, entrou a fallar ao jumento de um modo significativo; dava-lhe
conselhos, dizia-lhe que tomasse juizo, que o «senhor doutor» podia
castigal-o; um monologo paternal. Valha-me Deus! até ouvi estalar um
beijo: era o almocreve que lhe beijava a testa.

--Olé! exclamei.

--Queira vosmecê perdoar, mas o diabo do bicho está a olhar para a
gente com tanta graça...

Ri-me, hesitei, metti-lhe na mão um cruzado em prata, cavalguei o
jumento, e segui a trote largo, um pouco vexado, melhor direi um pouco
incerto do effeito da pratinha. Mas a algumas braças de distancia,
olhei para traz, o almocreve fazia-me grandes cortezias, com evidentes
mostras de contentamento. Adverti que devia ser assim mesmo; eu
pagara-lhe bem, pagara-lhe talvez de mais. Metti os dedos no bolso
do collete que trazia no corpo e senti umas moedas de cobre; eram os
vintens que eu devera ter dado ao almocreve, em logar do cruzado em
prata. Porque, emfim, elle não levou em mira nenhuma recompensa ou
virtude, cedeu a um impulso natural, ao temperamento, aos habitos do
officio; accresce que a circumstancia de estar, não mais adeante nem
mais atraz, mas justamente no ponto do desastre, parecia constituil-o
simples instrumento de Providencia; e de um ou de outro modo, o
merito do acto era positivamente nenhum. Fiquei desconsolado com esta
reflexão, chamei-me prodigo, lancei o cruzado á conta das minhas
dissipações antigas; tive (porque não direi tudo?) tive remorsos.



CAPITULO XXII


Volta ao Rio


Jumento de uma figa, cortaste-me o fio ás reflexões. Já agora não digo
o que pensei dalli até Lisboa, nem o que fiz em Lisboa, na peninsula e
em outros logares da Europa, da velha Europa, que nesse tempo parecia
remoçar. Não, não direi que assisti ás alvoradas do romantismo, que
tambem eu fui fazer poesia effectiva no regaço da Italia; não direi
cousa nenhuma. Teria de escrever um diario de viagem e não umas
memorias, como estas são, nas quaes só entra a substancia da vida.

Ao cabo de alguns annos de peregrinação attendi ás supplicas de meu
pae:--«Vem, dizia elle na ultima carta; se não vieres depressa, acharás
tua mãe morta!» Esta ultima palavra foi para mim um golpe. Eu amava
minha mãe; tinha ainda deante dos olhos as circumstancias da ultima
benção que ella me dera, a bordo do navio. «Meu triste filho, nunca
mais te verei», soluçava a pobre senhora apertando-me ao peito. E
essas palavras resoavam-me agora, como uma prophecia realizada.

Note-se que eu estava em Veneza, ainda rescendente aos versos de lord
Byron; lá estava, mergulhado em pleno sonho, revivendo o preterito,
crendo-me na Serenissima Republica. É verdade; uma vez aconteceu-me
perguntar ao locandeiro se o doge ia a passeio nesse dia.--Que doge,
_signor mio?_ Cahi em mim, mas não confessei a illusão; disse-lhe que
a minha pergunta era um genero de charada americana; elle mostrou
comprehender, e accrescentou que gostava muito das charadas americanas.
Era um locandeiro. Pois deixei tudo isso, o locandeiro, o doge, a ponte
dos Suspiros, a gondola, os versos do lord, as damas do Rialto, deixei
tudo, e disparei como uma bala na direcção do Rio de Janeiro.

Vim... Mas não; não alonguemos este capitulo. Ás vezes, esqueço-me a
escrever, e a penna vae comendo papel, com grave prejuizo meu, que
sou autor. Capitulos compridos quadram melhor a leitores pesadões; e
nós não somos um publico _in-folio_, mas _in_-12, pouco texto, larga
margem, typo elegante, corte dourado e vinhetas... principalmente
vinhetas... Não, não alonguemos o capitulo.



CAPITULO XXIII


Triste, mas curto


Vim; e não nego que, ao avistar a cidade natal, tive uma sensação nova.
Não era effeito da minha patria politica; era-o do logar da infancia,
a rua, a torre, o chafariz da esquina, a mulher de mantilha, o preto
do ganho, as cousas e scenas da meninice, buriladas na memoria. Nada
menos que uma renascença. O espirito, como um passaro, não se lhe deu
da corrente dos annos, arrepiou o vôo na direcção da fonte original, e
foi beber da agua fresca e pura, ainda não mesclada do enxurro da vida.

Reparando bem, ha ahi um logar-commum. Outro logar-commum, tristemente
commum, foi a consternação da familia. Meu pae abraçou-me com
lagrimas.--Tua mãe não póde viver, disse-me elle. Com effeito, não era
já o rheumatismo que a matava, era um cancro no estomago. A infeliz
padecia de um modo crú, porque o cancro é indifferente ás virtudes do
sujeito; quando róe, róe; roer é o seu officio. Minha irmã Sabina, já
então casada com o Cotrim, andava a cair de fadiga. Pobre moça! dormia
tres horas por noite, nada mais. O proprio tio João estava abatido e
triste. D. Eusebia e algumas outras senhoras lá estavam tambem, não
menos tristes e não menos dedicadas.

--Meu filho!

A dor suspendeu por um pouco as tenazes; um sorriso allumiou o rosto da
enferma, sobre o qual a morte batia a aza eterna. Era menos um rosto do
que uma caveira; a belleza passára, como um dia brilhante; restavam os
ossos, que não emmagrecem nunca. Mal poderia conhecel-a; havia oito ou
nove annos que nos não viamos. Ajoelhado, ao pé da cama, com as mãos
della entre as minhas, fiquei mudo e quieto, sem ousar fallar, porque
cada palavra seria um soluço, e nós temiamos avisal-a do fim. Vão
temor! Ella sabia que estava prestes a acabar; disse-m'o; verificamol-o
na seguinte manhã.

Longa foi a agonia, longa e cruel, de uma crueldade minuciosa, fria,
repisada, que me encheu de dor e estupefacção. Era a primeira vez
que eu via morrer alguem. Conhecia a morte de outiva; quando muito,
tinha-a visto já petrificada no rosto de algum cadaver, que acompanhei
ao cemiterio, ou trazia-lhe a idéa embrulhada nas amplificações de
rhetorica dos professores de cousas antigas,--a morte aleivosa de
Cesar, a austera de Socrates, a orgulhosa de Catão. Mas esse duello do
ser e do não ser, a morte em acção, dolorida, contrahida, convulsa,
sem apparelho politico ou philosophico, a morte de uma pessoa amada,
essa foi a primeira vez que a pude encarar. Não chorei; lembra-me
que não chorei durante o expectaculo; tinha os olhos estupidos, a
garganta presa, a consciência boquiaberta. Que? uma creatura tão
docil, tão meiga, tão santa, que nunca jamais fizera verter uma
lagrima de desgosto, mãe carinhosa, esposa immaculada, era força que
morresse assim, trateada, mordida pelo dente tenaz de uma doença
sem misericordia? Confesso que tudo aquillo me pareceu obscuro,
incongruente, insano...

Triste capitulo; passemos a outro mais alegre.



CAPITULO XXIV


Curto, mas alegro


Fiquei prostrado. E comtudo era eu, nesse tempo, um fiel compendio de
trivialidade e presumpção. Jamais o problema da vida e da morte me
opprimira o cerebro; nunca até esse dia me debruçara sobre o abysmo do
Inexplicavel; faltava-me o essencial, que é o estimulo, a vertigem...

Para lhes dizer a verdade toda, eu reflectia as opiniões de um
cabelleireiro, que achei em Modena, o qual se distinguia por não as
ter absolutamente. Era a flor dois cabelleireiros; por mais demorada
que fosse a operação do toucado, não enfadava nunca; elle intercalava
as penteadelas com muitos motes e pulhas, cheios de um pico, de
um sabor... E não tinha outra philosophia. Nem eu. Não digo que a
Universidade me não tivesse ensinado alguma; mas eu decorei-lhe só
as formulas, o vocabulario, o esqueleto. Tratei-a, como tratei o
latim: embolsei tres versos de Virgilio, dous de Horacio, uma duzia
de locuções moraes e politicas, para as despezas da conversação.
Tratei-os como tratei a historia e a jurisprudencia. Colhi de todas as
cousas a phraseologia, a casca, a ornamentação, que eram para o meu
espirito, vaidoso e nu, o mesmo que, para o peito do selvagem, são as
conchas do mar e os dentes de pessoa morta.

Talvez espante ao leitor a franqueza com que lhe exponho e realço a
minha mediocridade; advirta que a franqueza é a primeira virtude de um
defunto. Na vida, o olhar da opinião, o contraste dos interesses, a
luta das cobiças obrigam a gente a calar os trapos velhos, a disfarçar
os rasgões e os remendos, a não estender ao mundo as revelações que
faz á consciência; e o melhor da obrigação é quando, á força de
embaçar os outros, embaça-se um homem a si mesmo, porque em tal caso
poupa-se o vexame, que é uma sensação penosa, e a hypocrisia, que é
um vicio hediondo. Mas, na morte, que differença! que desabafo! que
liberdade! Como a gente póde sacudir fóra a capa, deitar ao fosso as
lentejoulas, despregar-se, despintar-se, desaffeitar-se, confessar
lisamente o que foi e o que deixou de ser! Porque, em summa, já não ha
visinhos, nem amigos, nem inimigos, nem conhecidos, nem extranhos; não
ha platéa. O olhar da opinião, esse olhar agudo e judicial, perde a
virtude, logo que pisamos o territorio da morte; não digo que elle se
não estenda para cá, e nos não examine e julgue; mas a nós é que não
se nos dá do exame nem do julgamento. Senhores vivos, não ha nada tão
incommensuravel como o desdem dos finados.



CAPITULO XXV


Na Tijuca


Ui! lá me ia a penna a escorregar para o emphatico. Sejamos simples,
como era simples a vida que levei na Tijuca, durante as primeiras
semanas depois da morte de minha mãe.

No setimo dia, acabada a missa funebre, travei de uma espingarda,
alguns livros, roupa, charutos, um moleque,--o Prudencio da capitulo
XI,--e fui metter-me n'uma velha, casa de nossa propriedade. Meu
pae forcejou por me torcer a resolução, mas eu é que não podia nem
queria obedecer-lhe. Sabina desejava que eu fosse morar com ella algum
tempo,--duas semanas, ao menos; meu cunhado esteve a ponto de me levar
á fina força. Era um bom rapaz este Cotrim; passára de estroina a
circumspecto. Agora commerciava em generos de estiva, labutava de manhã
até á noite, com ardor, com perseverança. De noite, sentado á janella,
a encaracolar as suiças, não pensava em outra cousa. Amava a mulher e
um filho, que então tinha, e que lhe morreu alguns annos depois. Diziam
que era avaro.

Renunciei tudo; tinha o espirito attonito. Creio que por então é
que começou a desabotoar em mim a hypocondria, essa flor amarella,
solitaria e morbida, de um cheiro inebriante e subtil.--«Que bom
que é estar triste e não dizer cousa nenhuma!»--Quando esta palavra
de Shakespeare me chamou a attenção, confesso que senti em mim um
echo, um echo delicioso. Lembra-me que estava sentado, debaixo de um
tamarineiro, com o livro do poeta aberto nas mãos, e o espirito ainda
mais cabisbaixo do que a figura,--ou jururú, como dizemos das gallinhas
tristes. Apertava ao peito a minha dor taciturna, com uma sensação
unica, uma cousa a que poderia chamar volupia do aborrecimento. Volupia
do aborrecimento: decora esta expressão, leitor; guarda-a, examina-a,
e se não chegares a entendel-a, podes concluir que ignoras uma das
sensações mais subtis desse mundo e daquelle tempo.

Ás vezes caçava, outras dormia, outras lia,--lia muito,--outras emfim
não fazia nada; deixava-me atoar de idéa em idéa, de imaginação em
imaginação, como uma borboleta vadia ou faminta; e as horas iam
pingando uma a uma, o sol cahia, as sombras da noite velavam a montanha
e a cidade. Ninguem me visitava; recommendei expressamente que me
deixassem só. Um dia, dous dias, tres dias, uma semana inteira passada
assim, sem dizer palavra, era bastante para sacudir-me da Tijuca fóra
e restituir-me ao bulicio. Com effeito, ao cabo de sete dias, estava
farto da solidão; a dor applacára; o espirito já se não contentava com
o uso da espingarda e dos livros, nem com a vista do arvoredo e do ceu.
Reagia a mocidade, era preciso viver. Metti no bahú o problema da vida
e da morte, os hypocondriacos do poeta, as camisas, as meditações, as
gravatas, e ia fechal-o, quando o moleque Prudencio me disse que uma
pessoa do meu conhecimento se mudára na vespera para uma casa roxa,
situada a duzentos passos da nossa.

--Quem?

--Nhonhô talvez não se lembre mais de D. Eusebia...

--Lembra-me... É ella?

--Ella e a filha. Vieram hontem de manhã.

Occorreu-me logo o episodio de 1814, e senti-me vexado; mas adverti que
os acontecimentos tinham-me dado razão. Na verdade, fôra impossivel
evitar as relações intimas do Villaça com a irmã do sargento-mór; antes
mesmo do meu embarque, já se boquejava mysteriosamente no nascimento
de uma menina. Meu tio João mandou-me dizer depois que o Villaça, ao
morrer, deixara um bom legado a D. Eusebia, cousa que deu muito que
fallar em todo o bairro. O proprio tio João, guloso de escandalos, não
tratou de outro assumpto na carta, aliás de muitas folhas. Tinham-me
dado razão os acontecimentos. Ainda porém que m'a não dessem, 1814 lá
ia longe, e, com elle, a travessura, e o Villaça, e o beijo da moita;
finalmente, nenhumas relações estreitas existiam entre mim e ella. Fiz
commigo essa reflexão e acabei de fechar o bahú.

--Nhonhô não vae visitar sinhá D. Eusebia? perguntou-me o Prudencio.
Foi ella quem vestiu o corpo da minha defunta senhora.

Lembrei-me que a vira, entre outras senhoras, por occasião da morte e
do enterro; ignorava porém que ella houvesse prestado a minha mãe esse
derradeiro obsequio. A ponderação do moleque era razoavel; eu devia-lhe
uma visita; determinei fazel-a immediatamente, e descer.



CAPITULO XXVI


O autor hesita


Súbito ouço uma voz:--Olá, meu rapaz, isto não é vida! Era meu pae, que
chegava com duas propostas na algibeira. Sentei-me no bahú e recebi-o
sem alvoroço. Elle esteve alguns instantes de pé, a olhar para mim;
depois estendeu-me a mão com um gesto commovido:

--Meu filho, conforma-te com a vontade de Deus.

--Já me conformei, foi a minha resposta, e beijei-lhe a mão.

Não tinha almoçado; almoçámos juntos. Nenhum de nós alludiu ao triste
motivo da minha reclusão. Uma só vez fallámos nisso, de passagem,
quando meu pae fez recahir a conversa na Regencia; foi então que
alludiu á carta de pezames que um dos Regentes lhe mandara. Trazia a
carta comsigo, já bastante amarrotada, talvez por havel-a lido a muitas
outras pessoas. Creio haver dito que era de um dos Regentes. Leu-m'a
duas vezes.

--Já lhe fui agradecer este signal de consideração, concluiu meu pae, e
acho que deves ir tambem...

--Eu?

--Tu; é um homem notavel, faz hoje as vezes de Imperador. Demais trago
commigo uma idéa, um projecto, ou... sim, digo-te tudo; trago dous
projectos, um logar de deputado e um casamento.

Meu pae disse isto com pausa, e não no mesmo tom, mas dando ás palavras
um geito e disposição, cujo fim era caval-as mais profundamente no
meu espirito. A proposta, porém, desdizia tanto das minhas sensações
ultimas, que eu cheguei a não entendel-a bem. Meu pae não fraqueou e
repetiu-a; encareceu o logar e a noiva.

--Aceitas?

--Não entendo de politica, disse eu depois de um instante; quanto á
noiva... deixe-me viver como um urso, que sou.

--Mas os ursos casam-se, replicou elle.

--Pois traga-me uma ursa. Olhe, a Ursa-Maior.

Riu-se meu pae, e depois de rir, tornou a fallar serio. Era-me
necessaria a carreira politica, dizia elle, por vinte e tantas razões,
que deduziu com singular volubilidade, illustrando-as com exemplos
de pessoas do nosso conhecimento. Quanto á noiva, bastava que eu a
visse; se a visse, iria logo pedil-a ao pae, logo, sem demora de um
dia. Experimentou assim a fascinação, depois a persuasão, depois a
intimação; eu não dava resposta, afiava a ponta de um palito ou fazia
bolas de miolo de pão, a sorrir ou a reflectir; e, para tudo dizer, nem
docil nem rebelde á proposta. Sentia-me aturdido. Uma parte de mim
mesmo dizia que sim, que uma esposa formosa e uma posição politica eram
bens dignos de apreço; outra dizia que não; e a morte de minha mãe me
apparecia como um exemplo da fragilidade das cousas, das affeições, da
familia...

--Não vou daqui sem uma resposta definitiva, disse meu pae.
De-fi-ni-ti-va! repetiu, batendo as syllabas com o dedo.

Bebeu o ultimo gole de café; repotreou-se, e entrou a fallar de tudo,
do senado, da camara, da Regencia, da restauração, do Evaristo, de um
coche que pretendia comprar, da nossa casa de Matta-cavallos... Eu
deixava-me estar ao canto da mesa, a escrever desvairadamente n'um
pedaço de papel, com uma ponta de lapis; traçava uma palavra, uma
phrase, um verso, um nariz, um triangulo, e repetia-os muitas vezes,
sem ordem, ao acaso, assim:

                         arma virumque cano
     A
     Arma virumque cano
               arma virumque cano
          arma virumque
                         arma virumque cano
               virumque

Machinalmente tudo isto; e, não obstante, havia certa lógica, certa
deducção; por exemplo, foi o _virumque_ que me fez chegar ao nome
do proprio poeta, por causa da primeira syllaba; ia a escrever
_virumque_--e sae-me _Virgilio_, então continuei:

     Vir                         Virgilio
          Virgilio       Virgilio
                 Virgilio
                                 Virgilio

Meu pae, um pouco despeitado com aquella indifferença, ergueu-se, veiu
a mim, lançou os olhos ao papel...

--Virgilio! exclamou. És tu, meu rapaz; a tua noiva chama-se justamente
Virgilia.



CAPITULO XXVII


Virgilia?


Virgilia? Mas então era a mesma senhora que alguns annos depois...? A
mesma; era justamente a senhora, que em 1869 devia assistir aos meus
ultimos dias, e que antes, muito antes, teve larga parte nas minhas
mais intimas sensações. Naquelle tempo contava apenas uns quinze ou
dezeseis annos, e era talvez a mais atrevida creatura da nossa raça,
e, com certeza, a mais voluntariosa. Não digo que já lhe coubesse
a primazia da belleza, entre as mocinhas do tempo, porque isto não
é romance, em que o autor sobredoura a realidade e fecha os olhos
ás sardas e espinhas; mas tambem não digo que lhe maculasse o rosto
nenhuma sarda ou espinha; não. Era bonita, fresca, sahia das mãos da
natureza, cheia daquelle feitiço, precario e eterno, que o individuo
passa a outro individuo, para os fins secretos da creação. Era isto
Virgilia, e era clara, muito clara, faceira, ignorante, pueril, cheia
de uns impetos mysteriosos; muita preguiça e alguma devoção,--devoção,
ou talvez medo; creio que medo.

Ahi tem o leitor, em poucas linhas, o retrato physico e moral da pessoa
que devia influir mais tarde na minha vida; era aquillo com dezeseis
annos. Tu que me lês, se ainda fores viva, quando estas paginas vierem
á luz,--tu que me lês, Virgilia amada, não reparas na differença entre
a linguagem de hoje e a que primeiro empreguei quando te vi? Crê que
era tão sincero então como agora; a morte não me tornou rabujento, nem
injusto.

--Mas, dirás tu, se você não guardou na retina da memoria a imagem do
que fui, como é que póde assim discernir a verdade daquelle tempo, e
exprimil-a depois de tantos annos?

Ah! indiscreta! ah! ignorantona! Mas é isso mesmo que nos faz
senhores da terra, é esse poder de restaurar o passado, para tocar a
instabilidade das nossas impressões e a vaidade dos nossos affectos.
Deixa lá dizer o Pascal que o homem é um caniço pensante. Não; é
uma errata pensante, isso sim. Cada estação da vida é uma edição,
que corrige a anterior, e que será corrigida tambem, até a edição
definitiva, que o editor dá de graça aos vermes.



CAPITULO XXVIII


Contanto que...


--Virgilia? interrompi eu.

--Sim, senhor; é o nome da noiva. Um anjo, meu pateta, um anjo sem
azas. Imagina uma moça assim, desta altura, viva como um azougue, e uns
olhos... filha do Dutra...

--Que Dutra?

--O Conselheiro Dutra; não conheces; uma influencia politica. Vamos lá;
aceitas?

Não respondi logo; fitei por alguns segundos a ponta do botim; declarei
depois que estava disposto a examinar as duas cousas, a candidatura e o
casamento, comtanto que...

--Comtanto que?

--Comtanto que não fique obrigado a aceitar as duas; creio que posso
ser separadamente homem casado ou homem publico...

--Todo o homem publico deve ser casado, interrompeu sentenciosamente
meu pae. Mas seja como queres; estou por tudo; fico certo de que a
vista fará fé. Demais, a noiva e o casamento são a mesma cousa... isto
é, não... saberás depois... Vá; aceito a dilação, comtanto que...

--Comtanto que?.. interrompi eu imitando-lhe a voz.

--Ah! brejeiro! Comtanto que não te deixes ficar ahi inutil, obscuro,
e triste; não gastei dinheiro, cuidados, empenhos, para te não ver
brilhar, como deves, e te convem, e a todos nós; é preciso continuar
o nosso nome, continual-o e illustral-o ainda mais. Olha, estou com
sessenta annos, mas se fosse necessário começar vida nova, começava-a
sem hesitar um só minuto. Teme a obscuridade, Braz; foge do que é
infimo. Olha que os homens valem por differentes modos, e que o mais
seguro de todos é valer pela opinião dos outros homens. Não estragues
as vantagens da tua posição, os teus meios...

E foi por deante o magico, a agitar deante de mim um chocalho, como me
faziam, em pequeno, para eu andar depressa, e a flor da hypocondria
recolheu-se ao botão para deixar a outra flor menos amarella, e nada
morbida,--o amor da nomeada, o emplasto Braz Cubas.



CAPITULO XXIX


A visita


Vencera meu pae; dispuz-me a aceitar o diploma e o casamento, Virgilia
e a camara dos deputados.--As duas Virgilias, disse elle n'um assomo
de ternura politica. Aceitei-os; meu pae deu-me dous fortes abraços.
Era o seu proprio sangue que elle, emfim, reconhecia. Rigorosamente,
o filho delle acabava de desembarcar naquelle instante, de rodaque de
linho e mãos nos bolsos. Havia então nos olhos de meu pae alguma cousa
do velho Cid; era a alma que colligira n'uma só flamma todas as ultimas
scentelhas.

--Desces commigo?

--Desço amanhã. Vou fazer primeiramente uma visita a D. Eusebia...

Meu pae torceu o nariz, mas não disse nada; despediu-se e desceu. Eu,
na tarde desse mesmo dia, fui visitar D. Eusebia. Achei-a a reprehender
um preto jardineiro, mas deixou tudo para vir fallar-me, com um
alvoroço, um prazer tão sincero, que me desacanhou logo. Creio que
chegou a cingir-me com o seu par de braços robustos. Fez-me sentar ao
pé de si, na varanda, entre muitas exclamações de contentamento.

--Ora, o Brázinho! Um homem! Quem diria, ha annos... Um homemzarrão! E
bonito! Qual! Você não se lembra bem de mim...

Disse-lhe que sim, que não era possivel esquecer uma amiga tão
familiar de nossa casa. D. Eusebia começou a fallar de minha mãe, com
muitas saudades, com tantas saudades, que me captivou logo, posto
me entristecesse. Ella percebeu-o nos meus olhos, e torceu a rédea
á conversação; pediu-me que lhe contasse a viagem, os estudos, os
namoros... Sim, os namoros tambem; confessou-me que era uma velha
patusca. Nisto recordei-me do episodio de 1814, ella, o Villaça, a
moita, o beijo, o meu grito; e estando a recordal-o, ouço um ranger de
porta, um farfalhar de saias e esta palavra:

--Mamãe... mamãe...



CAPITULO XXX


A flor da moita


A voz e as saias pertenciam a uma mocinha morena, que se deteve á
porta, alguns instantes, ao ver gente extranha. Silencio curto e
constrangido. D. Eusebia quebrou-o, enfim, com resolução e franqueza:

--Vem cá, Eugenia, disse ella, comprimenta o Dr. Braz Cubas, filho do
Sr. Cubas; veiu da Europa.

E voltando-se para mim:

--Minha filha Eugenia.

Eugenia, a flor da moita, mal respondeu ao gesto de cortezia que lhe
fiz; olhou-me admirada e acanhada, e lentamente se aproximou da cadeira
da mãe. A mãe arranjou-lhe uma das tranças do cabello, cuja ponta se
desmanchara.--Ah! travessa! dizia. Não imagina, doutor, o que isto
é... E beijou-a com tão expansiva ternura que me commoveu um pouco;
lembrou-me minha mãe, e,--direi tudo,--tive umas cocegas de ser pae.

--Travêssa? disse eu. Pois já não está em edade propria, ao que parece.

--Quantos lhe dá?

--Dezesete.

--Menos um.

--Dezeseis. Pois então! é uma moça.

Não pôde Eugenia encobrir a satisfação que sentia com esta minha
palavra, mas emendou-se logo, e ficou como d'antes, erecta, fria e
muda. Na verdade, ella parecia ainda mais mulher do que era; seria
criança nos seus folgares de moça; mas assim quieta, impassivel,
tinha a compostura da mulher casada. Talvez essa circumstancia lhe
diminuia um pouco da graça virginal. Depressa nos familiarisámos; a mãe
fazia-lhe grandes elogios, eu escutava-os de boa sombra; e ella sorria,
com os olhos fulgidos, como se lá dentro do cerebro lhe estivesse a
voar uma borboletinha de azas de ouro e olhos de diamante...

Digo lá dentro, porque cá fóra o que esvoaçou foi uma borboleta preta,
que subitamente penetrou na varanda, e começou a bater as azas em
derredor de D. Eusebia. D. Eusebia deu um grito, levantou-se, praguejou
umas palavras soltas:--T'esconjuro!... sáe, diabo!... Virgem Nossa
Senhora!...

--Não tenha medo, disse eu; e, tirando o lenço, expelli a borboleta. D.
Eusebia sentou-se outra vez, offegante, um pouco envergonhada; a filha,
pode ser que pallida de medo, dissimulava a impressão com muita força
de vontade. Apertei-lhes a mão e saí, a rir commigo da superstição
das duas mulheres, um rir philosophico, desinteressado, superior.
De tarde, vi passar a cavallo afilha de D. Eusebia, seguida de um
pagem; fez-me um comprimento com a ponta do chicote; e confesso que me
lisongeei com a idéa de que, alguns passos adeante, ella voltaria a
cabeça para traz; mas não voltou.



CAPITULO XXXI


A borboleta preta


No dia seguinte, como eu estivesse a preparar-me para descer, entrou
no meu quarto uma borboleta, tão negra como a outra, e muito maior do
que ella. Lembrou-me o caso da vespera, e ri-me; entrei logo a pensar
na filha de D. Eusebia, no susto que tivera, e na dignidade que, apezar
delle, soube conservar. A borboleta, depois de esvoaçar muito em torno
de mim, pousou-me na testa. Sacudi-a, ella foi pousar na vidraça; e,
porque eu a sacudisse de novo, saíu* dalli e veiu parar em cima de um
velho retrato de meu pae. Era negra como a noite; e o gesto brando
com que, uma vez posta, começou a mover as azas, tinha um certo ar
escarninho, uma especie de ironia mephistophelica, que me aborreceu
muito. Dei de hombros, saí do quarto; mas tornando lá, minutos depois,
e achando-a ainda no mesmo logar, senti um repellão dos nervos, lancei
mão de uma toalha, bati-lhe e ella caíu.

Não caíu morta; ainda torcia o corpo e movia as farpinhas da cabeça.
Apiedei-me; tomei-a na palma da mão e fui depol-a no peitoril da
janella. Era tarde; a infeliz expirou dentro de alguns segundos. Fiquei
um pouco aborrecido, incommodado.

--Tambem porque diabo não era ella azul? disse eu commigo.

E esta reflexão,--uma das mais profundas que se tem feito, desde a
invenção das borboletas,--me consolou do maleficio, e me reconciliou
commigo mesmo. Deixei-me estar a contemplar o cadaver, com alguma
sympathia, confesso. Imaginei que ella saíra do mato, almoçada e feliz.
A manhã era linda. Veiu por alli fóra, modesta e negra, espairecendo
as suas borboletices sob a vasta cupula de um céo azul, que é sempre
azul, para todas as azas. Passa pela minha janella, entra e dá commigo.
Supponho que nunca teria visto um homem; não-sabia, portanto, o que era
o homem; descreveu infinitas voltas em torno do meu corpo, e viu que
me movia, que tinha olhos, braços, pernas, um ar divino, uma estatura
collossal. Então disse comsigo: «Este é provavelmente o inventor das
borboletas.» A idéa subjugou-a, aterrou-a; mas o medo, que é tambem
suggestivo, insinuou-lhe que o melhor modo de agradar ao seu creador
era beijal-o na testa; e ella beijou-me na testa. Quando enxotada por
mim, foi pousar na vidraça, viu dalli o retrato de meu pae, e não é
impossivel que descobrisse meia verdade, a saber, que estava alli o pae
do inventor das borboletas, e voou a pedir-lhe misericordia.

Pois um golpe de toalha rematou a aventura. Não lhe valeu a immensidade
azul, nem a alegria das flores, nem a pompa das folhas verdes, contra
uma toalha de rosto, dous palmos de linho crú. Vejam como é bom ser
superior ás borboletas! Porque, é* justo dizel-o, se ella fosse azul,
ou côr de laranja, não teria mais segura a vida; não era impossivel
que eu a atravessasse com um alfinete, para recreio dos olhos. Não
era. Esta ultima idéa restituiu-me a consolação, uni o dedo grande ao
polegar, despedi um piparote e o cadaver caiu no jardim. Era tempo; ahi
vinham já as providas formigas... Não, volto á primeira idéa; creio que
para ella era melhor ter nascido azul.



CAPITULO XXXII


Coxa de nascença


Fui dalli acabar os preparativos da viagem. Já agora não me demoro
mais. Desço immediatamente; desço ainda que algum leitor circumspecto
me detenha para perguntar se o capitulo passado é apenas uma sensaboria
ou se chega a empulhação... Ai de mim! Não contava com D. Eusebia.
Estava prompto, quando me entrou por casa. Vinha convidar-me para
transferir a descida, e ir lá jantar nesse dia. Cheguei a recusar; mas
instou tanto, tanto, tanto, que não pude deixar de aceitar; demais,
era-lhe devida aquella compensação; fui.

Eugenia desataviou-se nesse dia por minha causa. Creio que foi por
minha causa,--se é que não andava muita vez assim. Nem as bichas de
ouro, que trazia na vespera, lhe pendiam agora das orelhas, duas
orelhas finamente recortadas n'uma cabeça de nympha. Um simples vestido
branco, de cassa, sem enfeites, tendo ao collo, em vez de broche, um
botão de madreperola, e outro botão nos punhos, fechando as mangas, e
nem sombra de pulseira.

Era isso no corpo; não era outra cousa no espirito. Idéas claras,
maneiras chãs, certa graça natural, um ar de senhora, e não sei se
alguma outra cousa; sim, a boca, exactamente a boca da mãe, a qual me
lembrava o episodio de 1814, e então dava-me impetos de glosar o mesmo
mote á filha...

--Agora vou mostrar-lhe a chacara, disse a mãe, logo que exgotámos o
ultimo gole de café.

Saímos á varanda, dalli á chacara; e foi então que notei uma
circumstancia. Eugenia coxeava um pouco, tão pouco, que eu cheguei a
perguntar-lhe se machucara o pé. A mãe calou-se; a filha respondeu sem
titubear:

--Não, senhor, sou coxa de nascença.

Mandei-me a todos os diabos; chamei-me desastrado, grosseirão. Com
effeito, a simples possibilidade de ser coxa era bastante para lhe
não perguntar nada. Então lembrou-me que da primeira vez que a vi na
vespera--a moça chegára-se lentamente á cadeira da mãe, e que naquelle
dia já a achei á mesa de jantar. Talvez fosse para encobrir o defeito;
mas por que razão o confessava agora? Olhei para ella e reparei que ia
triste.

Tratei de apagar os vestigios de meu desaso;--não me foi difficil, por
que a mãe era, segundo confessara, uma velha patusca, e promptamente
travou de conversa commigo. Vimos toda a chacara, arvores, flores,
tanque de patos, tanque de lavar, uma infinidade de cousas, que ella me
ia mostrando, e commentando, ao passo que eu, de soslaio, perscrutava
os olhos de Eugenia...

Palavra que o olhar de Eugenia não era coxo, mas direito, perfeitamente
são; vinha de uns olhos pretos e tranquillos. Creio que duas ou tres
vezes baixaram elles a terra, um pouco turvados; mas duas ou tres
vezes sómente; em geral, fitavam-me com franqueza, sem temeridade, nem
biocos.



CAPITULO XXXIII


Bemaventurados os que não descem


O peor é que era coxa. Uns olhos tão lúcidos, uma boca tão fresca, uma
compostura tão senhoril; e coxa! Esse contraste faria suspeitar que a
natureza é ás vezes um immenso escarneo. Porque bonita, se coxa? porque
coxa, se bonita? Tal era a pergunta que eu vinha fazendo a mim mesmo
ao voltar para casa, de noite; e não atinava com a solução do enigma.
O melhor que ha, quando se não resolve um enigma, é sacudil-o pela
janella fóra; foi o que eu fiz; lancei mão de uma toalha e enxotei essa
outra borboleta preta, que me adejava no cerebro. Fiquei alliviado e
fui dormir. Mas o sonho, que é uma fresta do espirito, deixou novamente
entrar o bichinho, e ahi fiquei eu a noite toda a cavar o mysterio, sem
explical-o.

Amanheceu chovendo, transferi a descida; mas no outro dia, a manhã
era limpida e azul, e apezar disso deixei-me ficar, não menos que
no terceiro dia, e no quarto, até o fim da semana. Manhãs bonitas,
frescas, convidativas; lá em baixo a familia a chamar-me, e a noiva, e
o parlamento, e eu sem acudir a cousa nenhuma, enlevado ao pé da minha
Venus Manca. Enlevado é uma maneira de realçar o estylo; não havia
enlevo, mas gosto, uma certa satisfação physica e moral. Queria-lhe,
é verdade; ao pé dessa creatura tão singela, filha espuria e coxa,
feita de amor e desprezo, ao pé della sentia-me bem, e ella creio que
ainda se sentia melhor ao pé de mim. E isto na Tijuca. Uma simples
egloga. D. Eusebia vigiava-nos, mas pouco; temperava a necessidade
com a conveniencia; e a filha, nessa primeira explosão da natureza,
entregava-me a alma em flôr.

--O senhor desce amanhã? disse-me ella no sabbado.

--Pretendo.

--Não desça.

Não desci; e accrescentei um versiculo ao Evangelho:--Bemaventurados
os que não descem, porque delles é o primeiro beijo das damas. Com
effeito, foi no domingo esse primeiro beijo de Eugenia,--o primeiro que
nenhum outro varão jamais lhe tomára, e não furtado ou arrebatado, mas
candidamente entregue, como um devedor honesto paga uma divida. Pobre
Eugenia! Se tu soubesses que idéas me vagavam pela mente fóra n'aquella
occasião! Tu, tremula de commoção, com os braços nos meus hombros, a
contemplar em mim o teu bemvindo esposo, e eu com os olhos em 1814, na
moita, no Villaça, e a suspeitar que não podias mentir ao teu sangue, á
tua origem...

D. Eusebia entrou inesperadamente, mas não tão subita, que nos
apanhasse ao pé um do outro. Eu fui até á janella: Eugenia sentou-se a
concertar uma das tranças. Que dissimulação graciosa! que arte infinita
e delicada! que tartufice profunda! e tudo isso natural vivo, não
estudado, natural como o appetite, natural como o somno. Tanto melhor!
D. Eusebia não suspeitou nada.



CAPITULO XXXIV


A uma alma sensivel


Ha ahi, entre as cinco ou dez pessoas que me leem, ha ahi uma alma
sensivel, que está de certo um pouquito agastada com o capitulo
anterior, começa a tremer pela sorte de Eugenia, e talvez... sim,
talvez, lá no fundo de si mesma, me chame cynico. Eu cynico, alma
sensivel? Pela coxa de Diana! esta injuria merecia ser lavada com
sangue, se o sangue lavasse alguma cousa nesse mundo. Não, alma
sensivel, eu não sou cynico, eu fui homem; meu cerebro foi um tablado
em que se deram peças de todo o genero, o drama sacro, o austero, o
piegas, a comedia louçã, a desgrenhada farça, os autos, as bufonerias,
um pandemonium, alma sensível, uma barafunda de cousas e pessoas,
em que podias ver tudo, desde a rosa de Smyrna até a arruda do teu
quintal, desde o magnifico leito de Cleopatra até o recanto da praia
em que o mendigo tirita o seu somno. Cruzavam-se nelle pensamentos
de varia casta e feição. Não havia alli a atmosphera sómente da aguia
e do beija-flor, havia tambem a da lesma e do sapo. Retira, pois, a
expressão, alma sensivel, castiga os nervos, limpa os oculos,--que isso
ás vezes é dos oculos,--e acabemos de uma vez com esta flor da moita.



CAPITULO XXXV


O caminho de damasco


Ora aconteceu, que, oito dias depois, como eu estivesse no caminho
de Damasco, ouvi uma voz misteriosa, que me sussurrou as palavras da
Escriptura (_Act._, IX, 7): «Levanta-te, e entra na cidade.» Essa voz
saia de mim mesmo, e tinha duas origens: a piedade, que me desarmava
ante a candura da pequena, e o terror de vir a amar devéras, e
desposal-a. Uma mulher coxa! Quanto a este motivo da minha descida, não
ha duvidar que ella o achou e m'o disse. Foi na varanda, na tarde de
uma segunda-feira, ao annunciar-lhe que na seguinte manhã viria para
baixo.--Adeus, suspirou ella estendendo-me a mão com simplicidade; faz
bem.--E como eu nada dissesse, continuou:--Faz bem em fugir ao ridículo
de casar commigo. Ia dizer-lhe que não; ella retirou-se lentamente,
engolindo as lagrimas. Alcancei-a a poucos passos, e jurei-lhe por
todos os santos do ceu que eu era obrigado a descer, mas que não
deixava de lhe querer e muito; tudo hyperboles frias, que ella escutou
sem dizer nada.

--Acredita-me? perguntei eu no fim.

--Não; e digo-lhe que faz bem.

Quiz retel-a, mas o olhar que me lançou não foi já de supplica, senão
de imperio. Eu desci da Tijuca, na manhã seguinte, um pouco amargurado,
outro pouco satisfeito; e vinha dizendo a mim mesmo que era justo
obedecer a meu pae, que era conveniente abraçar a carreira politica...
que a constituição... que a minha noiva... que o meu cavallo...



CAPITULO XXXVI


A proposito de botas


Meu pae, que me não esperava, abraçou-me cheio de ternura e
agradecimento.--Agora é devéras? disse elle. Posso emfim....?

Deixei-o nessa reticencia, e fui descalçar as botas, que estavam
apertadas. Uma vez alliviado, respirei á larga, e deitei-me a fio
comprido, emquanto os pés, e todo eu atraz delles, entravamos n'uma
relativa bem-aventurança. Então considerei que as botas apertadas
são uma das maiores venturas da terra, porque, fazendo doer os pés,
dão azo ao prazer de as descalçar. Mortifica os pés, desgraçado,
desmortifica-os depois, e ahi tens a felicidade barata, ao sabor dos
sapateiros e de Epicuro. Emquanto esta idéa me trabalhava no famoso
trapezio, lançava eu os olhos para a Tijuca, e via a aleijadinha
perder-se no horizonte do preterito, e sentia que o meu coração não
tardaria tambem a descalçar as suas botas. E descalçou-as o lascivo.
Quatro ou cinco dias depois, saboreava esse rapido, ineffavel e
incoercivel momento de gozo, que succede a uma dôr pungente, a uma
preoccupação, a um incommodo... Daqui inferi eu que a vida é o mais
engenhoso dos phenomenos, porque só aguça a fome, com o fim de deparar
a occasião de comer, e não inventou os callos, senão porque elles
aperfeiçoam a felicidade terrestre. Em verdade vos digo que toda a
sabedoria humana não vale um par de botas curtas.

Tu, minha Eugenia, é que não as descalçaste nunca; foste ahi pela
estrada da vida, manquejando da perna e do amor, triste como os
enterros pobres, solitaria, calada, laboriosa, até que vieste tambem
para esta outra margem... O que eu não sei é se a tua existência era
muito necessaria ao século. Quem sabe? Talvez um comparsa de menos
fizesse patear a tragedia humana.



CAPITULO XXXVII


Emfim


Emfim! eis aqui Virgilia. Antes de ir á casa do Conselheiro Dutra,
perguntei a meu pae se havia algum ajuste prévio de casamento.

--Nenhum ajuste. Ha tempos, conversando com elle a teu respeito,
confessei-lhe o desejo que tinha de te ver deputado; e de tal modo
fallei, que elle prometteu fazer alguma cousa, e creio que o fará.
Quanto á noiva, é o nome que dou a uma creaturinha, que é uma joia, uma
flôr, uma estrella, uma cousa rara... é a filha delle; imaginei que, se
casasses com ella, mais depressa serias deputado.

--Só isto?

--Só isto.

Fomos dalli á casa do Dutra. Era uma perola esse homem, risonho,
jovial, patriota, um pouco irritado com os males publicos, mas não
desesperando de os curar depressa. Achou que a minha candidatura era
legitima; convinha, porém, esperar alguns mezes. E logo me apresentou á
mulher,--uma estimavel senhora,--e á filha, que não desmentiu em nada
o panegyrico de meu pae. Juro-vos que em nada. Relêde o Cap. XXVIII.
Eu, que levava idéas a respeito da pequena, fitei-a de certo modo;
ella, que não sei se as tinha, não me fitou de modo differente; e o
nosso olhar primeiro foi pura e simplesmente conjugal. No fim de um mez
estavamos intimos.



CAPITULO XXXVIII


A quarta edição


--Venha cá jantar amanhã, disse-me o Dutra uma noite.

Aceitei o convite. No dia seguinte, mandei que a sege me esperasse no
largo de S. Francisco de Paula, e fui dar varias voltas. Lembra-vos
ainda a minha theoria das edições humanas? Pois sabei que, naquelle
tempo, estava eu na quarta edição, revista e emendada, mas ainda
inçada de descuidos e barbarismos; defeito que, aliás, achava alguma
compensação no typo, que era elegante, e na encadernação, que era
luxuosa. Dadas as voltas, ao passar pela rua dos Ourives, consulto o
relogio e cáe-me o vidro na calçada. Entro na primeira loja que tinha á
mão; era um cubiculo,--pouco mais,--empoeirado e escuro.

Ao fundo, por traz do balcão, estava sentada uma mulher, cujo rosto
amarello e bexiguento não se destacava logo, á primeira vista; mas logo
que se destacava era um expectaculo curioso. Não podia ter sido feia;
ao contrario, via-se que fora bonita, e não pouco bonita; mas a doença
e uma velhice precoce, destruiram-lhe a flor das graças. As bexigas
tinham sido terriveis; os signaes, grandes e muitos, faziam saliencias
e encarnas, declives e acclives; e davam uma sensação de lixa grossa,
enormemente grossa. Eram os olhos a melhor parte do vulto, e aliás
tinham uma expressão singular e repugnante, que mudou, entretanto, logo
que eu comecei a fallar. Quanto ao cabello, penteado ao desdem, estava
ruço e quasi tão poento como os portaes do loja. N'um dos dedos da mão
esquerda fulgia-lhe um diamante. Crel-o-heis, posteros? essa mulher era
Marcella.

Não a conheci logo; era difficil; ella porém conheceu-me apenas lhe
dirigi a palavra. Os olhos chisparam e trocaram a expressão usual
por outra, meia doce e meia triste. Vi-lhe um movimento como para
esconder-se ou fugir; era o instincto da vaidade, que não durou mais de
um instante. Marcella accommodou-se e sorriu.

--Quer comprar alguma cousa? disse ella estendendo-me a mão.

Não respondi nada; Marcella comprehendeu a causa do meu silencio (não
era difficil), e só hesitou, creio eu, em decidir o que dominava
mais, se o assombro do presente, se a memoria do passado. Deu-me uma
cadeira, e, com o balcão permeio, fallou-me longamente de si, da vida
que levára, das lagrimas que eu lhe fizera verter, das saudades, dos
desastres, emfim das bexigas, que lhe escalavraram o rosto, e do
tempo, que ajudou a molestia, adiantando-lhe a decadencia. Verdade é
que tinha a alma decrepita. Vendera tudo, quasi tudo; um homem, que a
amára outr'ora, e lhe morreu nos braços, deixara-lhe aquella loja de
ourivesaria, mas, para que a desgraça fosse completa, era agora pouco
buscada a loja--talvez pela singularidade de a dirigir uma mulher. Em
seguida pediu-me que lhe contasse a minha vida. Gastei pouco tempo em
dizer-ll'a; não era longa, nem interessante.

--Casou? disse Marcella no fim de minha narração.

--Ainda não, respondi seccamente.

Marcella lançou os olhos para a rua, com a atonia de quem reflecte ou
relembra; eu deixei-me ir então ao passado, e, no meio das recordações
e saudades, perguntei a mim mesmo por que motivo fizera tanto desatino.
Não era esta certamente a Marcella de 1822; mas a belleza de outro
tempo valia uma terça parte dos meus sacrificios? Era o que eu buscava
saber, interrogando o rosto de Marcella. O rosto dizia-me que não; ao
mesmo tempo os olhos me contavam que, já outr'ora, como hoje, ardia
nelles a flamma da cobiça. Os meus é que não souberam ver-lh'a; eram
olhos da primeira edição.

--Mas por que entrou aqui? viu-me da rua? porguntou ella, saindo
daquella especie de torpor.

--Não, suppunha entrar n'uma casa de relojoeiro; queria comprar um
vidro para este relogio; vou a outra parte; desculpe-me; tenho pressa.

Marcella suspirou com tristeza. A verdade é que eu me sentia pungido
e aborrecido, ao mesmo tempo, e anciava por me ver fóra daquella casa.
Marcella, entretanto, chamou um moleque, deu-lhe o relogio, e, apezar
da minha opposição, mandou-o, a uma loja na visinhança, comprar o
vidro. Não havia remedio; sentei-me outra vez. Disse ella então que
desejava ter a protecção dos conhecidos de outro tempo; ponderou que
mais tarde ou mais cedo era natural que me casasse, e afiançou que me
daria finas joias por preços baratos. Não disse _preços baratos_, mas
usou uma metaphora delicada e transparente. Entrei a desconfiar que
não padecera nenhum desastre (salvo a molestia), que tinha o dinheiro
a bom recado, e que negociava com o unico fim de acudir á paixão do
lucro, que era o verme roedor daquella existencia; foi isso mesmo que
me disseram depois.



CAPITULO XXXIX


O visinho


Emquanto eu fazia commigo mesmo aquella reflexão, entrou na loja um
sujeito baixo, sem chapeu, trazendo pela mão uma menina de quatro annos.

--Como passou de hoje de manhã? disse elle a Marcella.

--Assim, assim. Vem cá, Maricota.

O sujeito levantou a criança pelos braços e passou-a para dentro do
balcão.

--Anda, disse elle; pergunta a D. Marcella como passou a noite. Estava
anciosa por vir cá, mas a mãe não tinha podido vestil-a... Então,
Maricota? Toma a benção. .. Olha a vara de marmelo! Assim... Não
imagina o que ella é lá em casa; falla na senhora a todos os instantes,
e aqui parece uma pamonha. Ainda hontem... Digo, Maricota?

--Não, diga, não, papae.

--Então foi alguma cousa feia? perguntou Marcella batendo na cara da
menina.

--Eu lhe digo; a mãe ensina-lhe a rezar todas as noites um padre-nosso
e uma ave-maria, offerecidos a Nossa Senhora; mas a pequena hontem
veiu pedir-me com voz muito humilde... imagine o que?... que queria
offerecel-os a Santa Marcella.

--Coitadinha! disse Marcella beijando-a.

--É um namoro, uma paixão, como a senhora não imagina ... A mãe diz que
é feitiço...

Contou mais algumas cousas o sujeito, todas mui agradaveis, até que
saiu levando a menina, não sem deitar-me um olhar interrogativo ou
suspeitoso. Perguntei a Marcella quem era elle.

--É um relojoeiro de visinhança, um bom homem; a mulher tambem; e a
filha é galante, não? Parecem gostar muito de mim... é boa gente.

Ao proferir estas palavras havia um tremor de alegria na voz de
Marcella; e no rosto como que se lhe espraiou uma onda de ventura...



CAPITULO XL


Na sege


Nisto entrou o moleque trazendo o relogio com o vidro novo. Era tempo;
já me custava estar alli; dei uma moedinha de prata ao moleque; disse
a Marcella que voltaria n'outra occasião, e saí a passo largo. Para
dizer tudo, devo confessar que o coração me batia um pouco; mas era
uma especie de dobre de finados. O espirito ia travado de impressões
oppostas. Notem que aquelle dia amanhecera alegre para mim. Meu pae, ao
almoço, repetiu-me, por anticipação, o primeiro discurso que eu tinha
de proferir na camara dos deputados; rimo-nos muito, e o sol tambem,
que estava brilhante, como nos mais bellos dias do mundo; do mesmo modo
que Virgilia devia rir, quando eu lhe contasse as nossas fantasias do
almoço. Vae se não quando, cáe-me o vidro do relogio; entro na primeira
loja que me fica á mão; e eis me surge o passado, eil-o que me lacera
e beija; eil-o que me interroga, com um rosto cortado de saudades e
bexigas...

Lá o deixei; metti-me ás pressas na sege, que me esperava no largo
do S. Francisco de Paula, e ordenei ao boleeiro que rodasse pelas
ruas fóra. O boleeiro atiçou as bestas, a sege entrou a sacolejar-me,
as molas gemiam, as rodas sulcavam rapidamente a lama que deixara a
chuva recente, e tudo isso me parecia estar parado. Não ha, ás vezes,
um certo vento, morno que não bochorno, não forte nem aspero, mas
abafadiço, que nos não leva o chapéo da cabeça, nem rodomoinha nas
saias das mulheres, e todavia é ou parece ser peior do que se fizesse
uma e outra cousa, porque abate, afrouxa, e como que dissolve os
espiritos? Pois eu tinha esse vento commigo; e, certo de que elle me
soprava por achar-me naquella especie de garganta entre o passado e o
presente, almejava por sair á planicie do futuro. O peior é que a sege
não andava.

--João, bradei eu ao boleeiro. Esta sege anda ou não anda?

--Uê! nhonhô! Já estamos parados na porta de sinhô Conselheiro.



CAPITULO XLI


A allucinação


E era verdade. Entrei apressado; achei Virgilia anciosa, mau humor,
fronte nublada. A mãe, que era surda, estava na sala com ella. No fim
dos comprimentos disse-me a moça com sequidão:

--Esperavamos que viesse mais cedo.

Defendi-me do melhor modo; fallei do cavallo que empacara, e de um
amigo, que me detivera. De repente morre-me a voz nos labios, fico
tolhido de assombro. Virgilia... seria Virgilia aquella moça? Fitei-a
muito; e a sensação foi tão penosa, que recuei um passo e desviei a
vista. Tornei a olhal-a. As bexigas tinham-lhe comido o rosto; a pelle,
ainda na vespera tão fina, rosada e pura, apparecia-me agora amarella,
stigmada pelo mesmo flagello, que devastara o rosto da hespanhola. Os
olhos, que eram travessos, fizeram-se murchos; tinha o labio triste
e a attitude cançada. Olhei-a bem; peguei-lhe na mão, e chamei-a
brandamente a mim. Não me enganava; eram as bexigas. Creio que fiz um
gesto de repulsa.

Virgilia afastou-se, e foi sentar-se no sophá. Eu fiquei algum tempo
a olhar para os meus proprios pés. Devia, sair ou ficar? Rejeitei o
primeiro alvitre, que era simplesmente absurdo, e encaminhei-me para
Virgilia, que lá estava sentada e calada. Ceus! Era outra vez a fresca,
a juvenil, a florida Virgilia. Em vão procurei no rosto delia algum
vestigio da doença; nenhum havia; era a pelle fina e branca do costume.

--Nunca me viu? perguntou Virgilia, vendo que a encarava com insistência.

--Tão bonita, nunca.

Sentei-me, emquanto Virgilia, calada, fazia estalar as unhas.
Seguiram-se alguns segundos de pausa. Fallei-lhe de cousas extranhas ao
incidente; ella porém não me respondia nada, nem olhava para mim. Menos
o estalido, era a estatua do Silencio. Uma só vez me deitou os olhos,
mas muito de cima, soerguendo a pontinha esquerda do labio, contrahindo
as sobrancelhas, ao ponto de as unir; e todo esse conjuncto de cousas
dava-lhe ao rosto uma expressão media, entre comica e tragica.

Havia alguma affectação naquelle desdem; era um arrebique do gesto.
Lá dentro, ella padecia, e não pouco,--ou fosse magua pura, ou só
despeito; e porque a dor que se dissimula dóe mais, é mui provável que
Virgilia padecesse em dobro do que realmente devia padecer. Creio que
isto é metaphysica.



CAPITULO XLII


Que escapou a Aristoteles


Outra cousa que tambem me parece metaphysica é isto:--Dá-se movimento a
uma bola, por exemplo; róla esta, encontra outra bola, transmitte-lhe
o impulso, e eis a segunda bola a rolar como a primeira rolou.
Supponhamos que a primeira bola se chama... Marcella,--é uma simples
supposição; a segunda, Braz Cubas;--a terceira, Virgilia. Temos que
Marcella, recebendo um piparote do passado rolou até tocar em Braz
Cubas,--o qual, cedendo á força impulsiva, entrou a rolar tambem até
esbarrar em Virgilia, que não tinha nada com a primeira bola; e eis
ahi como, pela simples transmissão de uma força, se tocam os extremos
sociaes, e se estabelece uma cousa que poderemos chamar--solidariedade
do aborrecimento humano. Como é que este capitulo escapou a
Aristoteles?



CAPITULO XLIII


Marqueza, porque eu serei marquez


Positivamente, era um diabrete Virgilia, um diabrete angelico, se
querem, mas era-o, e então...

E então appareceu o Lobo Neves, um homem que não era mais esbelto
do que eu, nem mais elegante, nem mais lido, nem mais sympathico, e
todavia foi quem me arrebatou Virgilia e a candidatura, dentro de
poucas semanas, com um impeto verdadeiramente cesariano. Não precedeu
nenhum despeito; não houve a menor violencia de familia. O Dutra veiu
dizer-me, um dia, que esperasse outra aragem, porque a candidatura
de Lobo Neves era apoiada por grandes influencias. Cedi; e tal foi o
começo da minha derrota. Uma semana depois, Virgilia perguntou ao Lobo
Neves, a sorrir, quando seria elle ministro.

--Pela minha vontade, já; pela dos outros, daqui a um anno.

Virgilia replicou:

--Promette que algum dia me fará baroneza?

--Marqueza, porque eu serei marquez.

Desde então fiquei perdido. Virgilia comparou a aguia e o pavão, e
elegeu a aguia, deixando o pavão com o seu espanto, o seu despeito, e
tres ou quatro beijos que lhe dera. Talvez cinco beijos; mas dez que
fossem não queria dizer cousa nenhuma. O labio do homem não é como
a pata do cavallo de Attila que esterilisava o solo em que batia; é
justamente o contrario.



CAPITULO XLIV


Um Cubas!


Meu pae ficou attonito com o desenlace, e quer-me parecer que não
morreu de outra cousa. Eram tantos os castellos que engenhára, tantos
e tantissimos os sonhos, que não podia vel-os assim esboroados, sem
padecer um forte abalo no organismo. A principio não quiz crel-o. Um
Cubas! um galho da arvore illustre dos Cubas! E dizia isto com tal
convicção, que eu, já então informado da nossa tanoaria, esqueci um
instante a voluvel dama, para só contemplar aquelle phenomeno, não
raro, mas curioso: uma imaginação graduada em consciência.

--Um Cubas! repetia-me elle na seguinte manhã, ao almoço.

Não foi alegre o almoço; eu proprio estava a caír de somno. Tinha
velado uma parte da noite. De amor? Era impossivel; não se ama duas
vezes a mesma mulher, e eu, que tinha de amar aquella, tempos depois,
não lhe estava agora preso por nenhum outro vinculo, além de uma
phantasia passageira, alguma obediencia e muita fatuidade. E isto
basta a explicar a vigilia; era despeito, um despeitosinho agudo como
ponta de alfinete, o qual se desfez, com charutos, murros, leituras
truncadas, até romper a aurora, a mais tranquilla das auroras.

Mas eu era moço, tinha o remedio em mim mesmo. Meu pae é que não pôde
supportar facilmente a pancada. Pensando bem, pode ser que não morresse
precisamente do desastre; mas que o desastre lhe complicou as ultimas
dores, é positivo. Morreu dahi a quatro mezes,--acabrunhado, triste,
com uma preoccupação intensa e continua, á semelhança de remorso, um
desencanto mortal, que lhe substituiu os rheumatismos e tosses. Teve
ainda uma meia hora de alegria; foi quando um dos ministros o visitou.
Vi-lhe,--lembra-me bem,--vi-lhe o grato sorriso de outro tempo, e nos
olhos uma concentração de luz, que era, por assim dizer, o ultimo
lampejo da alma expirante. Mas a tristeza tornou logo, a tristeza de
morrer sem me ver posto em algum logar alto, como aliás me cabia.

--Um Cubas!

Morreu alguns dias depois da visita do ministro, uma manhã de maio,
entre os dois filhos, Sabina e eu, e mais o tio Ildefonso e meu
cunhado. Morreu sem lhe poder valer a sciencia dos medicos, nem o nosso
amor, nem os cuidados, que foram muitos, nem cousa nenhuma; tinha de
morrer, morreu.

--Um Cubas!



CAPITULO XLV


Notas


Soluços, lagrimas, casa armada, velludo preto nos portaes, um homem
que veiu vestir o cadaver, outro que tomou a medida do caixão, caixão,
eça, tocheiros, convites, convidados que entravam, lentamente, a passo
surdo, e apertavam a mão á familia, alguns tristes, todos serios e
calados, padre e sacristão, rezas, aspersões d'agua benta, o fechar
do caixão, a prego e martello, seis pessoas que o tomam da eça, e o
levantam, e o descem a custo pela escada, não obstante os gritos,
soluços e novas lagrimas da familia, e vão até o coche funebre, e o
collocam em cima, e traspassam e apertam as corrêas, o rodar do coche,
o rodar dos carros, um a um... Isto que parece um simples inventario,
eram notas que eu havia tomado para um capitulo extremamente
succulento, em que provava que a terra deve continuar a girar em volta
do sol; porquanto:--_a_) a natureza não inventou a morte, senão
com o fim de dar vida a algumas industrias,--armadores, segeiros,
emprezas funerarias, typographias, e outras que ella sagazmente
previu;--_b_) mortas essas industrias, pela ausencia da morte humana,
não é improvavel que viessem a morrer os respectivos industriaes; o que
dava na mesma. Mas tudo isto são apenas notas de um capitulo, que não
escrevo.



CAPITULO XLVI


A herança


Veja-nos agora o leitor, oito dias depois da morte de meu pae,--minha
irmã sentada n'um sophá,--pouco adiante, o Cotrim, de pé, encostado a
um consolo, com os braços cruzados e a morder o bigode,--eu a passeiar
de um lado para outro, com os olhos no chão. Luto pezado. Profundo
silencio.

--Mas afinal, disse o Cotrim; esta casa pouco mais póde valer de trinta
contos; demos que valha trinta e cinco...

--Vale cincoenta, ponderei; a Sabina sabe que custou cincoenta e oito...

--Podia custar até sessenta, tornou o Cotrim; mas não se segue que
os valesse, e menos ainda que os valha hoje. Você sabe que as casas,
aqui ha annos, baixaram muito. Olhe, se esta vale os cincoenta contos,
quantos não vale a que você deseja para si, a do Campo?

--Não fale nisso! Uma casa velha.

--Velha! exclamou Sabina, levantando as mãos ao tecto.

--Parece-lhe nova, aposto?

--Ora, mano, deixe-se dessas cousas, disse Sabina, erguendo-se do
sophá; podemos arranjar tudo em boa amizade, e com lisura. Por exemplo,
o Cotrim não aceita os pretos, quer só o boleeiro de papae e o Paulo...

--O boleeiro não, acudi eu; fico com a sege e não hei de ir comprar
outro.

--Bem; fico com o Paulo e o Prudencio.

--O Prudencio está livre.

--Livre?

--Ha dois annos.

--Livre? Como seu pae arranjava estas cousas cá por casa, sem dar parte
a ninguem! Está direito. Quanto á prata... creio que não libertou a
prata?

Tinhamos falado na prata, a velha prataria do tempo de D. José I, a
porção mais grave da herança, já pelo lavor, já pela vetustez, já pela
origem da propriedade; dizia meu pae que o conde da Cunha, quando
vice-rei do Brazil, a dera de presente a meu bisavô Luiz Cubas.

--Quanto á prata, continuou o Cotrim, eu não faria questão nenhuma,
se não fosse o desejo que sua irmã tem de ficar com ella; e acho-lhe
razão. Sabina é casada, e precisa de uma copa digna, apresentavel. Você
é solteiro, não recebe, não...

--Mas posso casar.

--Para que? interrompeu Sabina.

Era tão sublime esta pergunta, que por alguns instantes me fez esquecer
os interesses. Sorri; peguei na mão de Sabina, bati-lhe levemente na
palma, tudo isso com tão boa sombra, que o Cotrim interpretou o gesto
como de acquiescencia, e agradeceu-m'o.

--Que é lá? redargui; não cedi cousa nenhuma, nem cedo.

--Nem cede?

Abanei a cabeça.

--Deixa, Cotrim, disse minha irmã ao marido; vê se elle quer ficar
tambem com a nossa roupa do corpo; é só o que falta.

--Não falta mais nada. Quer a sege, quer o boleeiro, quer a prata,
quer tudo. Olhe, é muito mais summario citar-nos a juizo e provar com
testemunhas que Sabina não é sua irmã, que eu não sou seu cunhado, e
que Deus não é Deus. Faça isto, e não perde nada, nem uma colherinha.
Ora, meu amigo, outro officio!

Estava tão agastado, e eu não menos, que entendi offerecer um meio de
conciliação; dividir a prata. Riu-se e perguntou-me a quem caberia
o bule e a quem o assucareiro; e depois desta pergunta, declarou
que teriamos tempo de liquidar a pretenção, quando menos em juizo.
Entretanto, Sabina fôra até á janella que dava para a chacara,--e
depois de um instante, voltou, e propoz ceder o Paulo e outro preto,
com a condição de ficar com a prata; eu ia dizer que não me convinha,
mas o Cotrim adiantou-se e disse a mesma cousa.

--Isso nunca! não faço esmolas! disse elle.

Jantámos tristes. Meu tio conego appareceu á sobremeza, e ainda
presenciou uma pequena altercação.

--Meus filhos, disse elle, lembrem-se que meu irmão deixou um pão bem
grande para ser repartido por todos.

Mas o Cotrim:

--Creio, creio. A questão, porem, não é de pão, é de manteiga. Pão
secco é que eu não engulo.

Fizeram-se finalmente as partilhas, mas nós estavamos brigados. E
digo-lhes que, ainda assim, custou-me muito a brigar com Sabina. Eramos
tão amigos! Jogos pueris, furias de criança, risos e tristezas da
edade adulta, dividimos muita vez esse pão da alegria e da miseria,
irmãmente, como bons irmãos que eramos. Mas estavamos brigados. Tal
qual a belleza de Marcella, que se esvaiu com as bexigas.



CAPITULO XLVII


O recluso


Marcella, Sabina, Virgilia... ahi estou eu a fundir todos os
contrastes, como se esses nomes e pessoas não fossem mais do que modos
de ser da minha affeição interior. Penna de máus costumes, ata uma
gravata ao teu estylo, veste-lhe um collete menos sordido; e depois
sim, depois vem commigo, entra nessa casa, estira-te nessa rede que me
embalou a melhor parte dos annos que decorreram desde o inventario de
meu pae até 1842. Vem; se te cheirar a algum aroma de toucador, não
cuides que o mandei derramar para meu regalo; é um vestígio da N. ou
da Z. ou da U.--que todas essas lettras maiusculas embalaram ahi a sua
elegante abjecção. Mas, se além do aroma, quizeres outra cousa, fica-te
com o desejo, porque eu não guardei retratos, nem cartas, nem memorias;
a mesma commoção esvaiu-se, e só me ficaram as lettras iniciaes.

Vivi meio recluso, indo de longe em longe a algum baile, ou theatro,
ou palestra, mas a mór parte do tempo passei-a commigo mesmo. Vivia;
deixava-me ir ao curso e recurso dos successos e dos dias, ora
boliçoso, ora apathico, entre a ambição e o desanimo. Escrevia politica
e fazia litteratura. Mandava artigos e versos para as folhas publicas,
e cheguei a alcançar certa reputação de polemista e de poeta. Quando
me lembrava do Lobo Neves, que era já deputado, e de Virgilia, futura
marqueza, perguntava a mim mesmo porque não seria melhor deputado e
melhor marquez do que o Lobo Neves,--eu, que valia mais, muito mais do
que elle,--e dizia isto a olhar para a ponta do nariz...



CAPITULO XLVIII


Um primo de Virgilia


--Sabe quem chegou hontem de S. Paulo? perguntou-me uma noite o Luiz
Dutra.

O Luiz Dutra era um primo de Virgilia, que tambem privava com as
musas. Os versos delle agradavam e valiam mais do que os meus; mas
elle tinha necessidade da sancção de alguns, que lhe confirmasse o
applauso dos outros. Como fosse acanhado, não interrogava a ninguem;
mas deleitava-se com ouvir alguma palavra de apreço; então criava novas
forças e arremettia juvenilmente ao trabalho.

Pobre Luiz Dutra! Apenas publicava alguma cousa corria á minha casa,
e entrava a girar em volta de mim, á espreita de um juizo, de uma
palavra, de um gesto, que lhe approvasse a recente producção, e eu
falava-lhe de mil cousas differentes,--do ultimo baile do Cattete, da
discussão das camaras, de berlindas e cavallos,--de tudo, menos dos
seus versos ou prosas. Elle respondia-me, a principio com animação,
depois mais frouxo, torcia a redea da conversa para o seu assumpto
delle, abria um livro, perguntava-me se tinha algum trabalho novo, e eu
dizia-lhe que sim ou que não, mas torcia a redea para o outro lado, e
lá ia elle atraz de mim, até que empacava de todo e saía triste. Minha
intenção era fazel-o duvidar de si mesmo, desanimal-o, eliminal-o. E
tudo isto a olhar para a ponta do nariz...



CAPITULO XLIX


A ponta do nariz


Nariz, consciencia sem remorsos, tu me valeste muito na vida... Já
meditaste alguma vez no destino do nariz, amado leitor? A explicação
do doutor Pangloss é que o nariz foi creado para uso dos oculos,--e
tal explicação confesso que até certo tempo me pareceu definitiva; mas
veiu um dia, em que, estando a ruminar esse e outros pontos obscuros de
philosophia, atinei com a unica, verdadeira e definitiva explicação.

Com effeito, bastou-me attentar no costume do fakir. Sabe o leitor
que o fakir gasta longas horas a olhar para a ponta do nariz, com
o fim unico de ver a luz celeste. Quando elle finca os olhos na
ponta do nariz, perde o sentimento das cousas externas, embelleza-se
no invisivel, apprehende o impalpavel, desvincula-se da terra,
dissolve-se, etherisa-se. Essa sublimação do ser pela ponta do nariz
é o phenomeno mais excelso do espirito; e a faculdade de a obter não
pertence ao fakir sómente; é universal. Cada homem tem necessidade
e poder de contemplar o seu proprio nariz, para o fim de ver a luz
celeste; e tal contemplação, cujo effeito é a subordinação do universo
a um nariz sómente, constitue o equilibrio das sociedades. Se os
narizes se contemplassem exclusivamente uns aos outros, o genero humano
não chegaria a durar dois séculos: extinguia-se com as primeiras tribos.

Ouço daqui uma objecção do leitor:--Como pode ser assim, diz elle,
se nunca jamais ninguem não viu estarem os homens a contemplar o seu
proprio nariz?

Leitor obtuso, isso prova que nunca entraste no cerebro de um
chapeleiro. Um chapeleiro passa por uma loja de chapeus; é a loja de
um rival, que a abriu ha dois annos; tinha então duas portas, hoje tem
quatro; promette ter seis e oito. Nas vidraças ostentam-se os chapeus
do rival; pelas portas entram os freguezes do rival; e o chapeleiro
compara aquella loja com a sua, que é mais antiga e tem só duas portas,
e aquelles chapeus com os seus, menos buscados, ainda que de egual
preço. Mortifica-se naturalmente; mas vae andando, concentrado, com os
olhos para baixo ou para a frente, a indagar as causas da prosperidade
do outro e do seu proprio atrazo, quando elle chapeleiro é muito melhor
chapeleiro do que o outro chapeleiro... Nesse instante é que os olhos
se fixam na ponta do nariz.

A conclusão, portanto, é que ha duas forças capitaes: o amor, que
multiplica a especie, e o nariz, que a subordina ao individuo.
Procreação, equilibrio.



CAPITULO L


Virgilia casada


--Quem chegou de S. Paulo foi minha prima Virgilia, casada com o Lobo
Neves, continuou o Luiz Dutra.

--Ah!

--E só hoje é que eu soube uma cousa, seu maganão...

--Que foi?

--Que você quiz casar com ella.

--Idéas de meu pae. Quem lhe disse isso?

--Ella mesma. Falei-lhe muito em você, e ella então contou-me tudo.

No dia seguinte, estando na rua do Ouvidor, á porta da typographia do
Plancher, vi assomar, a distancia, uma mulher esplendida. Era ella; só
a reconheci a poucos passos, tão outra estava, a tal ponto a natureza
e a arte lhe haviam dado o ultimo apuro. Cortejámo-nos; ella seguiu;
entrou com o marido na carruagem, que os esperava um pouco acima; eu
fiquei attonito.

Oito dias depois, encontrei-a num baile; creio que chegámos a trocar
duas ou tres palavras. Mas n'outro baile, dado dahi a um mez, em
casa de uma senhora, que ornara os salões do primeiro reinado, e não
desornava então os do segundo, a aproximação foi maior e mais longa,
porque conversámos e valsámos. A valsa é uma deliciosa cousa. Valsámos;
e não nego que, ao conchegar ao meu corpo aquelle corpo flexivel e
magnifico, tive uma singular sensação, uma sensação de homem roubado.

--Está muito calor, disse ella, logo que acabámos. Vamos ao terraço?

--Não; pode constipar-se. Vamos a outra sala.

Na outra sala estava o Lobo Neves, que me fez muitos comprimentos,
ácerca dos meus escriptos politicos, accrescentando que nada dizia
dos litterarios, por não entender delles; mas os politicos eram
excellentes, bem pensados e bem escriptos. Respondi-lhe com eguaes
esmeros de cortezia, e separámos-nos contentes um do outro.

Cerca de tres semanas depois recebi um convite delle para uma reunião
intima. Fui; Virgilia recebeu-me com esta graciosa palavra:--O senhor
hoje ha de valsar commigo.--Na verdade, eu tinha fama e era valsista
emerito; não admira que ella me preferisse. Valsámos uma vez, e mais
outra vez. Um livro perdeu Francesca; cá foi a valsa que nos perdeu.
Creio que nessa noite apertei-lhe a mão com muita força, e ella
deixou-a ficar, como esquecida, e eu a abraçal-a, e todos com os olhos
em nós, e nos outros que tambem se abraçavam e giravam...Um delirio.



CAPITULO LI


É minha!


--É minha! disse eu commigo, logo que a passei a outro cavalheiro; e
confesso que durante o resto da noite, foi-se-me a idéa entranhando
no espirito, não á força de martello, mas de verruma, que é mais
insinuativa.

--É minha! dizia eu ao chegar á porta de casa.

Mas ahi, como se o destino ou o acaso, ou o que quer que fosse, se
lembrasse de dar algum pasto aos meus arroubos possessorios, luziu-me
no chão uma cousa redonda e amarella. Abaixei-me; era uma moeda de
ouro, uma meia-dobra.

--É minha! repeti eu a rir-me; e metti-a no bolso.

Nessa noite não pensei mais na moeda; mas no dia seguinte, recordando o
caso, senti uns repellões da consciencia, e uma voz que me perguntava
porque diabo seria minha uma moeda que eu não herdara nem ganhara, mas
sómente achara na rua. Evidentemente não era minha; era de outro,
daquelle que a perdera, rico ou pobre, e talvez fosse pobre, algum
operario que não teria com que dar de comer á mulher e aos filhos; mas
se fosse rico, o meu dever ficava o mesmo. Cumpria restituir a moeda, e
o melhor meio, o unico meio, era fazel-o por intermedio de um annuncio
ou da policia. Enviei uma carta ao chefe de policia, remettendo-lhe
o achado, e rogando-lhe que, pelos meios a seu alcance, fizesse
devolvel-o ás mãos do verdadeiro dono.

Mandei a carta e almocei tranquillo, posso até dizer que jubiloso.
Minha consciencia valsára tanto na vespera, que chegou a ficar
suffocada, sem respiração; mas a restituição da meia dobra foi uma
janella que se abriu para o outro lado da moral; entrou uma onda de
ar puro, e a pobre dama respirou á larga. Ventilae as consciências!
não vos digo mais nada. Todavia, despido de quaesquer outras
circumstancias, o meu acto era bonito, porque exprimia um justo
escrupulo, um sentimento de alma delicada. Era o que me dizia a minha
dama interior, com um modo austero e meigo a um tempo; é o que ella me
dizia, reclinada ao peitoril da janella aberta.

--Fizeste bem, Cubas; andaste perfeitamente. Este ar não é só puro, é
balsamico, e uma transpiração dos eternos jardins. Queres ver o que
fizeste, Cubas?

E a boa dama sacou um espelho e abriu-m'o deante dos olhos. Vi,
claramente vista, a meia dobra da vespera, redonda, brilhante, nitida,
multiplicando-se por si mesma,--ser dez--depois trinta--depois
quinhentas,--exprimindo assim o beneficio que me daria na vida e
na morte o simples acto da restituição. E eu espraiava todo o meu
ser na contemplação daquelle acto, revia-me nelle, achava-me bom,
talvez grande. Uma simples moeda, hem? Vejam o que é ter valsado um
poucochinho mais.

Assim, eu, Braz Cubas, descobri uma lei sublime, a lei da equivalencia
das janellas, e estabeleci que o modo de compensar uma janella fechada
é abrir outra, afim de que a moral possa arejar continuamente a
consciencia. Talvez não entendas o que ahi fica; talvez queiras uma
cousa mais concreta, um embrulho, por exemplo, um embrulho mysterioso.
Pois toma lá o embrulho mysterioso.



CAPITULO LII


O embrulho mysterioso


Foi o caso que, alguns dias depois, indo eu a Botafogo tropecei n'um
embrulho, que estava na praia. Não digo bem; houve menos tropeção que
pontapé. Vendo um embrulho, não grande, mas limpo e correctamente
feito, atado com um barbante rijo, uma cousa que parecia alguma cousa,
lembrou-me bater-lhe com o pé, assim por experiencia, e bati, e o
embrulho resistiu. Relanceei os olhos em volta de mim; a praia estava
deserta; ao longe uns meninos brincavam,--um pescador curava as redes
ainda mais longe,--ninguem que pudesse ver a minha acção; inclinei-me,
apanhei o embrulho e segui.

Segui, mas não sem receio. Podia ser uma pulha de rapazes. Tive idéa de
devolver o achado á praia, mas apalpei-o e rejeitei a idea. Um pouco
adeante, desandei o caminho e guiei para casa.

--Vejamos, disse eu ao entrar no gabinete.

E hesitei um instante, creio que por vergonha; assaltou-me outra vez o
receio da pulha. É certo que não havia alli nenhuma testemunha externa;
mas eu tinha dentro de mim mesmo um garoto, que havia de assoviar,
guinchar, grunhir, patear, apupar, cacarejar, fazer o diabo, se me
visse abrir o embrulho e achar dentro uma duzia de lenços velhos ou
duas duzias de goiabas verdes. Mas era tarde; a curiosidade estava
aguçada, como deve estar a do leitor; desfiz o embrulho, e vi...
achei... contei... recontei nada menos de cinco contos de reis. Nada
menos. Talvez um dez mil reis mais. Cinco contos em boas notas e
dobras, tudo aceiadinho e arranjadinho, um achado raro. Embrulhei-as
de novo. Ao jantar pareceu-me que um dos moleques falara a outro com
os olhos. Ter-me-iam espreitado? Interroguei-os discretamente, e
conclui que não. Sobre o jantar, fui outra vez ao gabinete, examinei
o dinheiro, e ri-me dos meus cuidados maternaes a respeito de cinco
contos,--eu, que era abastado.

Para não pensar mais naquillo fui de noite á casa do Lobo Neves,
que instára muito commigo não deixasse de frequentar as recepções
da mulher. Lá encontrei o chefe de policia; fui-lhe apresentado;
elle lembrou-se logo da carta e da meia dobra que eu lhe remettera
alguns dias antes. Aventou o caso; Virgilia pareceu saborear o meu
procedimento, e cada um dos presentes acertou de contar uma anecdota
analoga, que eu ouvi com impaciencias de mulher hysterica.

De noite, no dia seguinte, em toda aquella semana pensei o menos que
pude nos cinco contos, e até confesso que os deixei muito quietinhos
na gaveta da secretaria. Gostava de falar de todas as cousas, menos de
dinheiro, e principalmente de dinheiro achado; e todavia não era crime
achar dinheiro, era uma felicidade, um bom acaso, era talvez um lance
da Providencia. Não podia ser outra cousa. Não se perdem cinco contos,
como se perde um lenço de tabaco. Cinco contos levam-se com trinta mil
sentidos, apalpam-se a miudo, não se lhes tiram os olhos de cima, nem
as mãos, nem o pensamento, e para se perderem assim tolamente, n'uma
praia, é necessário que... Crime é que não podia ser o achado; nem
crime, nem deshonra, nem nada que embaciasse o caracter de um homem.
Era um achado, um acerto feliz, como a sorte grande, como as apostas
de cavallo, como os ganhos de um jogo honesto; e até direi que a minha
felicidade era merecida, porque eu não me sentia máu, nem indigno dos
beneficios da Providencia.

--Estes cinco contos, dizia eu com migo, tres semanas depois, hei de
empregal-os em alguma acção bôa, talvez um dote a alguma menina pobre,
ou outra cousa assim... hei de ver...

Nesse mesmo dia levei-os ao Banco do Brazil. Lá me receberam com
muitas e delicadas allusões ao caso de meia dobra, cuja noticia andava
já espalhada entre as pessoas do meu conhecimento; respondi enfadado
que a cousa não valia a pena de tamanho estrondo; louvaram-me então
a modestia,--e porque eu me encolerisasse, replicaram-me que era
simplesmente grande.



CAPITULO LIII


..........

Virgilia é que já se não lembrava da meia dobra; toda ella
estava concentrada em mim, nos meus olhos, na minha vida, no meu
pensamento;--era o que dizia, e era verdade.

Ha umas plantas que nascem e crescem depressa; outras são tardias
e pecas. O nosso amor era daquellas; brotou com tal impeto e tanta
seiva, que, dentro em pouco, era a mais vasta, folhuda e exuberante
creatura dos bosques. Não lhes poderei dizer, ao certo, os dias
que durou esse crescimento. Lembra-me, sim, que, em certa noite,
abotoou-se a flor, ou o beijo, se assim lhe quizerem chamar, um beijo
que ella me deu, tremula,--coitadinha,--tremula de medo, porque era
ao portão da chacara, á vista das estrellas,--das castas estrellas de
Othello,--_you chaste stars!_ Uniu-nos esse beijo unico,--breve como
a occasião, ardente como o amor, prologo de uma vida de delicias, de
terrores, de remorsos, de prazeres que rematavam em dor, de afflicções
que desabrochavam em alegria,--uma hypocrisia paciente e systematica,
unico freio de uma paixão sem freio,--vida de agitações, de coleras,
de desesperos e de ciumes, que uma hora pagava á farta e de sobra;
mas outra hora vinha e engolia aquella, como tudo mais, para deixar á
tona as agitações e o resto, e o resto do resto, que é o fastio e a
saciedade: tal foi o livro daquelle prologo.



CAPITULO LIV


A pendula


Saí dalli a saborear o beijo. Não pude dormir; estirei-me na cama,
é certo, mas foi o mesmo que nada. Ouvi as horas todas da noite.
Usualmente, quando eu perdia o somno, o bater da pendula fazia-me muito
mal; esse _tic-tac_ soturno, vagaroso e secco parecia dizer a cada
golpe que eu ia ter um instante menos de vida. Imaginava então um velho
diabo, sentado entre dous saccos, o da vida e da morte, a tirar as
moedas da vida para dal-as á morte, e a contal-as assim:

--Outra de menos...

--Outra de menos...

--Outra de menos...

--Outra de menos...

O mais singular é que, se o relogio parava, eu dava-lhe corda, para
que elle não deixasse de bater nunca, e eu pudesse contar todos os
meus instantes perdidos. Invenções ha, que se transformam ou acabam;
as mesmas instituições morrem; o relogio é definitivo e perpetuo. O
derradeiro homem, ao despedir-se do sol frio e gasto, hade ter um
relogio na algibeira, para saber a hora exacta em que morre.

Naquella noite não padeci essa triste sensação de enfado, mas outra, e
deleitosa. As phantasias tumultuavam-me cá dentro, vinham umas sobre
outras, á semelhança de devotas que se abalroam para ver o anjo-cantor
das procissões. Não ouvia os instantes perdidos, mas os minutos
ganhados; e de certo tempo em diante não ouvi cousa nenhuma, porque o
meu pensamento, ardiloso e traquinas, saltou pela janella fóra e bateu
as azas na direcção da casa de Virgilia. Ahi achou ao peitoril de uma
janella o pensamento de Virgilia, saudaram-se e ficaram de palestra.
Nós a rolarmos na cama, talvez com frio, necessitados de repouso, e os
dous vadios alli postos, a repetirem o velho dialogo de Adão e Eva.



CAPITULO LV


O velho dialogo de Adão e Eva


BRAZ CUBAS

   .   .   .   . ?

VIRGILIA

.   .

BRAZ CUBAS

           .      .      .   .   .   .      .      .   .

    .         .       .


VIRGILIA

    .       .  . !

BRAZ CUBAS

    .         .

VIRGILIA

.   .   .     .            .       .       .   .   .
.   .   .  .  .         ?  .   .       .   .   .
.   .   .  .  .            .   .   .   .   .   .   .

BRAZ CUBAS

.   .   .   .     .   .


VIRGILIA

.   .   .   .

BRAZ CUBAS

.   .   .   .   .   .   .   .   .   .         .   .   .

.   .   .   .   .   .       .   .   .   .     .   .   .

.   .   .   .   .       .   .   .   .         !   .   .

.   .   !   .       .   .   .   .   .             .   .

.   .   .   .   .   .   .       .   .      .   .      !

VIRGILIA

.   .   .   .   .   .   .   .   .   .   .      .   .?

BRAZ CUBAS

.   .   .   .   .!

VIRGILIA

.   .   .   .   .!



CAPITULO LVI


O momento opportuno


Mas, com a breca! quem me explicará a razão desta differença? Um dia
vimo-nos, tratámos o casamento, desfizemol-o e separamo-nos, a frio,
sem dor, porque não houvera paixão nenhuma; mordeu-me apenas algum
despeito e nada mais. Correm annos, torno a vel-a, damos tres ou quatro
giros de valsa, e eis-nos a amar um ao outro com delirio. A belleza
de Virgilia chegára, é certo, a um alto gráu de apuro, mas nós eramos
substancialmente os mesmos, e eu, á minha parte, não me tornára mais
bonito nem mais elegante. Quem me explicará a razão dessa differença?

A razão não podia ser outra senão o momento opportuno. Não era
opportuno o primeiro momento, porque, se nenhum de nós estava verde
para o amor, ambos o estavamos para o _nosso_ amor: distincção
fundamental. Não ha amor possivel sem a opportunidade dos sujeitos.
Esta explicação achei-a eu mesmo, dous annos depois do beijo, um
dia em que Virgilia se me queixava de um pintalegrete que lá ia e
tenazmente a galanteava.

--Que importuno! dizia ella fazendo uma careta de raiva.

Estremeci, fitei-a, vi que a indignação era sincera; então occorreu-me
que talvez eu tivesse provocado alguma vez aquella mesma careta, e
comprehendi logo toda a grandeza da minha evolução. Tinha vindo de
importuno a opportuno.



CAPITULO LVII


Destino


Sim, senhor, amavamos. Agora, que todas as leis sociaes nol-o impediam,
agora é que nos amavamos devéras. Achavamo-nos jungi-los um ao outro,
como as duas almas que o poeta encontrou no Purgatorio:

    Di pari, come buoi, che vanno a giogo;

e digo mal, comparando-nos a bois, porque nós eramos outra especie de
animal menos tardo, mais velhaco e lascivo. Eis-nos a caminhar sem
saber até onde, nem porque estradas escusas; problema que me assustou,
durante algumas semanas, mas cuja solução entreguei ao destino. Pobre
Destino! Onde andarás agora, grande procurador dos negocios humanos?
Talvez estejas a criar pelle nova, outra cara, outras maneiras, outro
nome, e não é impossivel que... Já me não lembra onde estava... Ah!
nas estradas escusas. Disse eu commigo que já agora seria o que
Deus quisesse. Era a nossa sorte amar-nos; se assim não fora, como
explicariamos a valsa e o resto? Virgilia pensava a mesma cousa. Um
dia, depois de me confessar que tinha momentos de remorsos, como eu lhe
dissesse que, se tinha remorsos, é porque me não tinha amor, Virgilia
cingiu-me com os seus magnificos braços, murmurando:

--Amo-te, é a vontade do ceu.

E esta palavra não vinha á toa; Virgilia era um pouco religiosa. Não
ouvia missa aos domingos, é verdade, e creio até que só ia ás igrejas
em dia de festa, e quando havia logar vago em alguma tribuna. Mas
rezava todas as noites, com fervor, ou, pelo menos, com somno. Tinha
medo ás trovoadas; nessas occasiões, tapava os ouvidos, e resmoneava
todas as orações do catecismo. Na alcova della havia um oratoriosinho
de jacarandá, obra de talha, de tres palmos de altura, com tres imagens
dentro; mas não falava delle ás amigas; ao contrario, taxava de beatas
as que eram só religiosas. Algum tempo desconfiei que havia nella certo
vexame de crer, e que a sua religião era uma especie de camisa de
flanella, preservativa e clandestina; mas evidentemente era engano meu.



CAPITULO LVIII


Confidencia


O Lobo Neves, a principio, mettia-me grandes sustos. Pura illusão!
Como adorasse a mulher, não se vexava de m'o dizer muitas vezes;
achava que Virgilia era a perfeição mesma, um conjunto de qualidades
solidas e finas, amoravel, elegante, austera, um modelo. E a confiança
não parava ahi. De fresta que era, chegou a porta escancarada. Um dia
confessou-me que trazia uma triste carcoma na existencia; faltava-lhe
a gloria publica. Animei-o; disse-lhe muitas cousas bonitas, que elle
ouviu com aquella uncção religiosa de um desejo que não quer acabar de
morrer; então comprehendi que a ambição delle andava cançada de bater
as azas, sem poder abrir o vôo. Dias depois disse-me todos os seus
tedios e desfallecimentos, as amarguras engolidas, as raivas sopitadas;
contou-me que a vida politica era um tecido de invejas, despeitos,
intrigas, perfidias, interesses, vaidades. Evidentemente havia ahi uma
crise de melancolia; tratei de combatel-a.

--Sei o que lhe digo, replicou-me com tristeza. Não póde imaginar o
que tenho passado. Entrei na politica por gosto, por familia, por
ambição, e um pouco por vaidade. Já vê que reuni em mim só todos os
motivos que levam o homem á vida publica; faltou-me só o interesse de
outra natureza. Vira o theatro pelo lado da platéa; e, palavra, que era
bonito! Soberbo scenario, vida, movimento e graça na representação.
Escripturei-me; deram-me um papel que... Mas para que o estou a fatigar
com isto? Deixe-me ficar com as minhas amofinações. Creia que tenho
passado horas e dias... Não ha constância de sentimentos, não ha
gratidão, não ha nada... nada... nada...

Calou-se, profundamente abatido, com os olhos no ar, parecendo não
ouvir cousa nenhuma, a não ser o echo de seus proprios pensamentos.
Após alguns instantes, ergueu-se e estendeu-me a mão:--O senhor ha de
rir-se de mim, disse elle; mas desculpe aquelle desabafo; tinha um
negocio, que me mordia o espirito. E ria, de um geito sombrio e triste;
depois pediu-me que não referisse a ninguem o que se passara entre nós;
ponderei-lhe que a rigor não se passara nada. Entraram dous deputados
e um chefe politico da parochia. O Lobo Neves recebeu-os com alegria,
a principio um tanto postiça, mas logo depois natural. No fim de meia
hora, ninguem diria que elle não era o mais afortunado dos homens;
conversava, chasqueava, e ria, e riam todos.



CAPITULO LIX


Um encontro


Deve ser um vinho hem energico a politica, dizia eu commigo, ao sair
da casa de Lobo Neves; e fui andando, fui andando, até que na rua dos
Barbonos vi uma sege, e dentro um dos ministros, meu antigo companheiro
de collegio. Cortejámo-nos affectuosamente, a sege seguiu, e eu fui
andando... andando... andando....

--Porque não serei eu ministro?

Esta idéa, rútila e grande,--trajada ao bizarro, como diria o padre
Bernardes,--esta idéa começou uma vertigem de cabriolas e eu deixei-me
estar com os olhos nella, a achar-lhe graça. E não pensei mais na
tristeza de Lobo Neves; senti a attracção do abysmo. Recordei aquelle
companheiro de collegio, as correrias nos morros, as alegrias e
travessuras, e comparei o menino com o homem, o perguntei a mim mesmo
porque não seria eu como elle. Entrava então no Passeio Publico;
e tudo me parecia dizer a mesma cousa.--Porque não serás ministro,
Cubas?--Cubas, porque não serás ministro de Estado? Ao ouvil-o, uma
deliciosa sensação me refrescava todo o systema. Entrei, fui sentar-me
n'um banco, a cavar commigo aquella idéa. E Virgilia que havia de
gostar! Alguns minutos depois vejo encaminhar-se para mim uma cara, que
me não pareceu desconhecida. Conhecia-a, fosse d'onde fosse.

Imaginem um homem de trinta e oito a quarenta annos, alto, magro e
pallido. As roupas, salvo o feitio, pareciam ter escapado ao captiveiro
de Babylonia; o chapéu era contemporaneo do de Gessler. Imaginem
agora uma sobrecasaca, mais larga do que pediam as carnes,--ou,
litteralmente, os ossos da pessoa; a côr preta ia cedendo o passo a
um amarello sem brilho; o pello desapparecia aos poucos; dos oito
primitivos botões restavam tres. As calças, de brim pardo, tinham duas
fortes joelheiras, em quanto as bainhas eram roidas pelo tacão de um
botim sem misericordia nem graxa. Ao pescoço fluctuavam as pontas de
uma gravata de duas cores, ambas desmaiadas, apertando um collarinho de
oito dias. Creio que trazia tambem collete, um collete de seda escura,
roto a espaços, e desabotoado.

--Aposto que me não conhece, Sr. Dr. Cubas? disse elle.

--Não me lembra...

--Sou o Borba, o Quincas Borba.

Recuei espantado... Quem me dera agora o verbo solemne de um Bossuet
ou de Vieira, para contar tamanha desolação! Era o Quincas Borba, o
gracioso menino de outro tempo, o meu companheiro de collegio, tão
intelligente e abastado. O Quincas Borba! Não, impossível; não pode
ser. Não podia acabar de crer que essa figura esqualida, essa barba
pintada de branco, esse maltrapilho avelhentado, que toda essa ruina
fosse o Quincas Borba. E era. Os olhos tinham um resto da expressão de
outro tempo; e o sorriso não perdera certo ar escarninho, que lhe era
peculiar. Entretanto, elle supportava com firmeza o meu espanto. No fim
de algum tempo arredei os olhos; se a figura repellia, a comparação
acabrunhava.

--Não é preciso contar-lhe nada, disse elle emfim; o senhor adivinha
tudo. Uma vida de miserias, de attribulações e de lutas. Lembra-se
das nossas festas, em que eu figurava de rei? Que trambolhão! Acabo
mendigo...

E alçando a mão direita e os hombros, com um ar de indifferença,
parecia resignado aos golpes da fortuna, e não sei até se contente.
Talvez contente. Com certeza, impassivel. Não havia nelle a resignação
christã, nem a conformidade philosophica. Parece que a miseria lhe
callejára a alma, a ponto de lhe tirar a sensação da lama. Arrastava os
andrajos, como outr'ora a purpura: com certa graça indolente.

--Procure-me, disse eu, poderei arranjar-lhe alguma cousa.

Um sorriso magnifico lhe abriu os lábios.--Não é o primeiro que me
promette alguma cousa, replicou; e não sei se será o ultimo que não
me fará nada. E para que? Eu nada peço, a não ser dinheiro; dinheiro
sim, porque é necessario comer, e as casas de pasto não fiam. Nem as
quitandeiras. Uma cousa de nada, uns dous vinténs de angú, nem isso
fiam as malditas quitandeiras.... Um inferno, meu... ia dizer meu
amigo.... Um inferno! o diabo! todos os diabos! Olhe, ainda hoje não
almocei.

--Não?

--Não; saí muito cedo de casa. Sabe onde moro? No terceiro degráu das
escadas de S. Francisco, á esquerda de quem sobe; não precisa bater na
porta. Casa fresca, extremamente fresca. Pois saí cedo, e ainda não
comi...

Tirei a carteira, escolhi uma nota de cinco mil réis,--a menos
limpa,--e dei-lh'a. Elle recebeu-m'a com os olhos scintillantes de
cobiça. Levantou a nota ao ar, e agitou-a enthusiasmado.

--_In hoc signo vinces!_ bradou.

E depois beijou-a, com muitos ademanes de ternura, e tão ruidosa
expansão, que me produziu um sentimento mixto de nôjo e lastima. Elle,
que era arguto, entendeu-me; ficou serio, grotescamente serio, e
pediu-me desculpa da alegria, dizendo que era alegria de pobre que não
via, desde muitos annos, uma nota de cinco mil réis.

--Pois está em suas mãos ver outras muitas, disse eu.

--Sim? acudiu elle, dando um bote para mim.

--Trabalhando, conclui eu.

Fez um gesto de desdem; calou-se alguns instantes; depois disse-me
positivamente que não queria trabalhar. Eu estava enjoado dessa
abjecção tão comica e tão triste, e preparei-me para sair.

--Não vá sem eu lhe ensinar a minha philosophia da miseria, disse elle,
escarranchando-se diante de mim.



CAPITULO LX


O abraço


Cuidei que o pobre diabo estivesse doudo, e ia afastar-me, quando
elle me pegou no pulso, e olhou alguns instantes para o brilhante que
eu trazia no dedo. Senti-lhe na mão uns estremeções de cobiça, uns
pruridos de posse.

--Magnifico! disse elle.

Depois começou a andar á roda de mim e a examinar-me muito.

--O senhor trata-se, disse elle. Joias, roupa fina, elegante e...
Compare esses sapatos aos meus; que differença! Podera não! Digo-lhe
que se trata. E moças? Como vão ellas? Está casado?

--Não...

--Nem eu.

--Móro na rua...

--Não quero saber onde mora, atalhou o Quincas Borba. Se alguma vez nos
virmos, dê-me outra nota de cinco mil réis; mas permitta-me que não a
vá buscar a sua casa. É uma especie de orgulho.... Agora, adeus; vejo
que está impaciente.

--Adeus!

--E obrigado. Deixa-me agradecer-lhe de mais perto?

E dizendo isto abraçou-me com tal impeto, que eu não pude evital-o.
Separamo-nos finalmente, eu a passo largo, com a camisa amarrotada do
abraço, enfadado e triste. Já não dominava em mim a parte sympathica da
sensação, mas a outra. Quizera ver-lhe a miseria digna. Comtudo, não
pude deixar de comparar outra vez o homem de agora com o de outr'ora,
entristecer-me, e encarar o abysmo que separa as esperanças de um tempo
da realidade de outro tempo...

--Ora adeus! Vamos jantar, disse commigo.

Metto a mão no collete e não acho o relogio. Ultima desillusão! o Borba
furtára-m'o no abraço.



CAPITULO LXI


Um projecto


Jantei triste. Não era a falta do relogio que me pungia, era a
imagem do autor do furto, e as reminiscencias de criança, e outra
vez a comparação, e a conclusão... Desde a sopa, começou a abrir em
mim a flor amarella e morbida do cap. XXV, e então jantei depressa,
para correr á casa de Virgilia. Virgilia era o presente; eu queria
refugiar-me nelle, para escapar ás oppressões do passado, porque o
encontro do Quincas Borba tornara-me aos olhos o passado, não qual fora
devéras, mas um passado roto, abjecto, mendigo e gatuno.

Saí de casa, mas era cedo; iria achal-os á mesa. Outra vez pensei no
Quincas Borba, e tive então um desejo de tornar ao Passeio Publico,
a ver se o achava; a idéa de o regenerar surgiu-me como uma forte
necessidade. Fui; mas já não o achei. Indaguei do guarda; disse-me que
effectivamente «esse sujeito» ia por alli ás vezes.

--A que horas?

--Não tem hora certa.

Não era impossivel encontral-o n'outra occasião; prometti a mim mesmo
lá voltar. A necessidade de o regenerar, de o trazer ao trabalho e ao
respeito de sua pessôa enchia-me o coração; eu começava a sentir um
bem-estar, uma elevação, uma admiração de mim proprio... Nisto caía a
noite; fui ter com Virgilia.



CAPITULO LXII


O travesseiro


Fui ter com Virgilia; bem depressa esqueci o Quincas Borba. Virgilia
era o travesseiro do meu espirito, um travesseiro molle, tepido,
aromatico, enfronhado em cambraia e bruxellas. Era alli que elle
costumava repousar de todas as sensações más, simplesmente enfadonhas,
ou até dolorosas. E, bem pesadas as cousas, não era outra a razão da
existencia de Virgilia; não podia ser. Cinco minutos bastaram para
olvidar inteiramente o Quincas Borba; cinco minutos de uma contemplação
mutua, com as mãos presas umas nas outras; cinco minutos e um beijo. E
lá se foi a lembrança do Quincas Borba... Escrofula da vida, andrajo do
passado, que me importa que existas, que molestes os olhos dos outros,
se eu tenho dous palmos de um travesseiro divino, para fechar os olhos
e dormir?



CAPITULO LXIII


Fujamos!


Ai! nem sempre dormir. Tres semanas depois, indo á casa de
Virgilia,--eram quatro horas da tarde,--achei-a triste e abatida. Não
me quiz dizer o que era; mas, como eu instasse muito:

--Creio que o Damião desconfia alguma cousa. Noto agora umas
exquisitices nelle... Não sei... Trata-me bem, não ha duvida; mas o
olhar parece que não é o mesmo. Durmo, mal; ainda esta noite acordei,
aterrada; estava sonhando que elle me ia matar. Talvez seja illusão,
mas eu penso que elle desconfia...

Tranquillisei-a como pude; disse que podiam ser cuidados politicos.
Virgilia concordou que seriam, mas ficou ainda muito excitada e
nervosa. Estavamos na sala de visitas, que dava justamente para a
chacara, onde trocáramos o beijo inicial. Uma janella aberta deixava
entrar o vento, que sacudia frouxamente as cortinas; e eu fiquei
a olhar para as cortinas, sem as ver. Empunhára o binoculo da
imaginação; lobrigava, ao longe, uma casa nossa, uma vida nossa, um
mundo nosso, em que não havia Lobo Neves, nem casamento, nem moral, nem
nenhum outro liame, que nos tolhesse a expansão da vontade. Esta idéa
embriagou-me; eliminados assim o mundo, a moral e o marido, não haveria
mais do que penetrar naquella habitação dos anjos.

--Virgilia, disse eu, proponho-te uma cousa.

--Que é?

--Amas-me?

--Oh! suspirou ella, cingindo-me os braços ao pescoço.

Virgilia amava-me com furia; aquella resposta era a verdade patente.
Com os braços ao meu pescoço, calada, respirando muito, deixou-se
ficar a olhar para mim, com os seus grandes e bellos olhos, que davam
uma sensação singular de luz humida; e eu deixei-me estar a vel-os, a
namorar-lhe a boca, fresca como a madrugada, e insaciavel como a morte.
A belleza de Virgilia tinha agora um tom grandioso, que não possuira
antes de casar. Era dessas figuras talhadas em pentelico, de um lavor
nobre, rasgado e puro, tranquillamente bella, como as estatuas, mas não
apathica nem fria. Ao contrario, tinha o aspecto das naturezas calidas,
e podia-se dizer, que, na realidade, resumia todo o amor. Resumia-o
sobretudo naquella occasião, em que exprimia mudamente tudo quanto
póde dizer a pupilla humana. Mas o tempo urgia; deslacei-lhe as mãos,
peguei-lhe nos pulsos, e, fito nella, perguntei-lhe se tinha coragem.

--De que?

--De fugir. Iremos para onde nos fôr mais commodo, uma casa grande ou
pequena, á tua vontade, na roça ou na cidade, ou na Europa, onde te
parecer, onde ninguem nos aborreça, e não haja perigos pára ti, onde
vivamos um para o outro... Sim? fujamos. Tarde ou cedo, elle póde
descobrir alguma cousa, e estarás perdida... ouves? perdida... morta...
e elle tambem, porque eu o matarei, juro-te.

Interrompi-me; Virgilia empallidecêra muito, deixou cair os braços
e sentou-se no canapé. Esteve assim alguns instantes, sem me dizer
palavra, não sei se vacillante na escolha, se aterrada com a idéa da
descoberta e da morte. Fui-me a ella, insisti na proposta, disse-lhe
todas as vantagens de uma vida a sós, sem zelos, nem terrores, nem
afflicções. Virgilia ouvia-me calada; depois disse:

--Não escapariamos talvez; elle iria ter commigo e matava-me do mesmo
modo.

Mostrei-lhe que não. O mundo era assás vasto, e eu tinha os meios de
viver onde quer que houvesse ar puro e muito sol; elle não chegaria até
lá; só as grandes paixões são capazes de grandes acções, e elle não a
amava tanto que pudesse ir buscal-a, se ella estivesse longe. Virgilia
fez um gesto de espanto e quasi indignação; murmurou que o marido
gostava muito della.

--Póde ser, respondi eu; póde ser que sim...

E fui até a janella, e comecei a assobiar e a rufar com os dedos no
peitoril, Virgilia chamou-me; eu deixei-me estar, a remoer os meus
zelos, a desejar estrangular o marido, se o tivesse alli á mão...
Justamente, nesse instante, entrou na chacara o Lobo Neves. Não tremas
assim, leitora pallida; descança, que não hei de rubricar esta lauda
com um pingo de sangue. Logo que o Lobo Neves entrou na chacara,
fiz-lhe um gesto amigo, acompanhado de uma palavra graciosa; Virgilia
retirou-se apressadamente da sala, e elle entrou dahi a tres minutos.

--Está cá ha muito tempo? disse-me elle.

--Não.

Entrára serio, pesado, derramando os olhos de um modo distrahido,
costume seu, que trocou logo por uma verdadeira expansão de
jovialidade, quando viu, chegar o filho, o nhonhô, o futuro bacharel do
cap. VIII; tomou-o nos braços, levantou-o ao ar, beijou-o muitas vezes.
Eu, que tinha odio ao menino, afastei-me de ambos. Virgilia tornou á
sala.

--Ah! respirou o Lobo Neves, sentando-se preguiçosamente no sophá.

--Cançado? perguntei eu.

--Muito; aturei duas massadas de primeira ordem, uma na camara e outra
na rua. E ainda temos terceira, accrescentou, olhando para a mulher..

--Que é? perguntou Virgilia.

--Um... Adivinha!

Virgilia sentara-se ao lado delle, pegou-lhe n'uma das mãos, compoz-lhe
a gravata, e tornou a perguntar o que era.

--Nada menos que um camarote.

--Para a Candiani?

--Para a Candiani.

Virgilia bateu palmas, levantou-se, deu um beijo no filho, com um ar
de alegria pueril, que destoava muito da figura; depois perguntou se o
camarote era de boca ou do centro, consultou o marido, em voz baixa,
acerca da _toilette_ que faria, da opera que se cantava, e de não sei
que outras cousas.

--Você janta comnosco, doutor, disse-me o Lobo Neves.

--Veiu para isso mesmo, confirmou a mulher; diz que você possue o
melhor vinho do Rio de Janeiro.

--Nem por isso bebe muito.

Ao jantar, desmenti-o; bebi mais do que costumava; ainda assim, menos
do que era preciso para perder a razão. Já estava excitado, fiquei urn
pouco mais. Era a primeira grande colera que eu sentia contra Virgilia.
Não olhei uma só vez para ella durante o jantar; falei de politica, da
imprensa, do ministerio, creio que falaria de theologia, se a soubesse,
ou se me lembrasse. O Lobo Neves acompanhava-me com muita placidez e
dignidade, e até com certa benevolencia superior; e tudo aquillo me
irritava tambem, e me tornava mais amargo e longo o jantar. Despedi-me
apenas nos levantámos da mesa.

--Até logo, não? perguntou o Lobo Neves.

--Póde ser.

E sai.



CAPITULO LXIV


A transacção


Vaguei pelas ruas e recolhi-me ás nove horas. Não podendo dormir,
atirei-me a ler e escrever. Ás onze horas estava arrependido de não
ter ido ao theatro, consultei o relogio, quiz vestir-me, e saír.
Julguei, porém, que chegaria tarde; demais, era dar prova de fraqueza.
Evidentemente, Virgilia começava a aborrecer-se de mim, pensava eu.
E esta idéa fez-me successivamente desesperado e frio, disposto a
esquecel-a e a matal-a. Via-a d'alli mesmo, reclinada no camarote,
com os seus magnificos braços nús,--os braços que eram meus, só
meus,--fascinando os olhos de todos, com o vestido soberbo que havia
de ter, o collo de leite, os cabellos postos em bandós, á maneira do
tempo, e os brilhantes, menos luzidios que os olhos della... Via-a
assim, e doía-me que a vissem outros. Depois, começava a despil-a,
a pôr de lado as joias e sedas, a despenteal-a com as minhas mãos
sofregas e lascivas, a tornal-a,--não sei se mais bella, se mais
natural,--a tornal-a minha, sómente minha, unicamente minha.

No dia seguinte, não me pude ter; fui cedo á casa de Virgilia; achei-a
com os olhos vermelhos de chorar.

--Que houve? perguntei.

--Você não me ama, foi a sua resposta; nunca me teve a menor somma de
amor. Tratou-me hontem como se me tivesse odio. Se eu ao menos soubesse
o que é que fiz! Mas não sei. Não me dirá o que foi?

--Que foi o que? Creio que não houve nada.

--Nada? Tratou-me como não se trata um cachorro...

A esta palavra, peguei-lhe nas mãos, beijei-as, e duas lagrimas
rebentaram-lhe dos olhos.

--Acabou, acabou, disse eu.

Não tive animo de arguir, e, aliás, arguil-a de que? Não era culpa
della se o marido a amava. Disse-lhe que não me fizera cousa nenhuma,
que eu tinha necessariamente ciumes do outro, que nem sempre o podia
supportar de cara alegre; accrescentei que talvez houvesse nelle muito
de dissimulação, e que o melhor meio de fechar a porta aos sustos e ás
dissensões era aceitar a minha idéa da vespera.

--Pensei nisso, acudiu Virgilia; uma casinha só nossa, solitaria,
mettida n'um jardim, em alguma rua escondida, não é? Acho a idéa boa;
mas para que fugir?

Disse isto com o tom ingenuo e preguiçoso de quem não cuida em mal, e o
sorriso que lhe derreava os cantos da boca trazia a mesma expressão de
candidez. Então, afastando-me, respondi:

--Você é que nunca me teve amor.

--Eu?

--Sim, é uma egoista! prefere ver-me padecer todos os dias... é uma
egoista sem nome!

Virgilia desatou a chorar, e para não attrahir gente, mettia o lenço na
boca, recalcava os soluços; explosão que me desconcertou. Se alguem a
ouvisse, perdia-se tudo. Inclinei-me para ella, travei-lhe dos pulsos,
susurrei-lhe os nomes mais doces da nossa intimidade; mostrei-lhe o
perigo; o terror apaziguou-a.

--Não posso, disse ella dahi a alguns instantes; não deixo meu filho;
se o levar, estou certa de que elle me irá buscar ao fim do mundo. Não
posso; mate-me você, se o quizer, ou deixe-me morrer... Ah! meu Deus!
meu Deus!

--Socegue; olhe que podem ouvil-a.

--Que ouçam! Não me importa.

Estava ainda excitada; pedi-lhe que esquecesse tudo, que me perdoasse,
que eu era um doudo, mas que a minha insania provinha della e com ella
acabaria. Virgilia enxugou os olhos e estendeu-me a mão. Sorrimos
ambos; minutos depois, tornávamos ao assumpto da casinha solitaria, em
alguma rua escusa...



CAPITULO LXV


Olheiros e escutas


Interrompeu-nos o rumor de um carro na chacara. Veiu um escravo dizer
que era a baroneza X. Virgilia consultou-me com os olhos.

--Se a senhora está assim com dor de cabeça, disse eu, parece que o
melhor é não receber.

--Já se apeou? perguntou Virgilia ao escravo.

--Já se apeou; diz que precisa muito de falar com sinhá!

--Que entre!

A baroneza entrou dahi a pouco. Não sei se contava commigo na sala; mas
era impossivel mostrar maior alvoroço.

--Bons olhos o vejam! explodiu ella. Onde se mette o senhor que não
apparece em parte nenhuma? Pois olhe, hontem admirou-me não o ver no
theatro. A Candiani esteve deliciosa. Que mulher! Gosta da Candiani?
É natural. Os senhores são todos os mesmos. O barão dizia hontem, no
camarote, que uma só italiana vale por cinco brazileiras. Que desaforo!
e desaforo de velho, que é peor. Mas porque é que o senhor não foi
hontem ao theatro?

--Uma enxaqueca.

--Qual! Algum namoro; não acha, Virgilia? Pois, meu amigo, apresse-se,
porque o senhor deve estar com quarenta annos... ou perto disso... Não
tem quarenta annos?

--Não lhe posso dizer com certeza, respondi eu; mas se me dá licença,
vou consultar a certidão de baptismo.

--Vá, vá... E estendendo-me a mão:--Até quando? Sabbado ficamos em
casa; o barão está com umas saudades suas...

Chegando á rua, arrependi-me de ter saído. A baroneza era uma das
pessoas que mais desconfiavam de nós. Cincoenta e cinco annos, que
pareciam quarenta, macia, risonha, vestigios de belleza, porte elegante
e maneiras finas. Não falava muito nem sempre; possuia a grande arte
de escutar os outros, espiando-os; reclinava-se então na cadeira,
desembainhava um olhar afiado e comprido, e deixava-se estar. Os
outros, não sabendo o que era, falavam, olhavam, gesticulavam, ao tempo
que ella olhava só, ora fixa, ora mobil, levando a astucia ao ponto de
olhar ás vezes para dentro de si, porque deixava cair as palpebras;
mas, como as pestanas eram rotulas, o olhar continuava o seu officio,
remexendo a alma e a vida dos outros.

A segunda pessoa era um parente de Virgilia, o Viegas, um cangalho de
setenta invernos, chupado e amarellado, que padecia de um rheumatismo
teimoso, de uma asthma não menos teimosa e de uma lesão do coração: era
um hospital concentrado. Os olhos porém luziam de muita vida e saúde.
Virgilia, nas primeiras semanas, não lhe tinha medo nenhum; dizia-me
que, quando o Viegas parecia espreitar, com o olhar fixo, estava
simplesmente contando dinheiro. Com effeito, era um grande avaro.

Havia ainda o primo de Virgilia, o Luiz Dutra, que eu, entretanto,
desarmava á força de lhe falar nos versos e prosas, e de o apresentar
aos conhecidos. Quando estes, ligando o nome á pessoa, se mostravam
contentes da apresentação, não ha duvida que o Luiz Dutra exultava de
felicidade; mas eu curava-me da felicidade com a esperança de que elle
nos não denunciasse nunca. Havia, emfim, umas duas ou tres senhoras,
vários gamenhos, e os famulos, que naturalmente se desforravam assim
da condição servil, e tudo isso constituia uma verdadeira floresta
de olheiros e escutas, por entre os quaes tinhamos de resvalar com a
tactica e maciez das cobras.



CAPITULO LXVI


As pernas


Ora, emquanto eu pensava naquella gente, iam-me as pernas levando,
ruas abaixo, de modo que insensivelmente me achei á porta do hotel
Pharoux. De costume jantava ahi; mas, não tendo deliberadamente andado,
nenhum merecimento da acção me cabe, e sim ás pernas, que a fizeram.
Abençoadas pernas! E ha quem vos trate com desdem ou indifferença.
Eu mesmo, até então, tinha-vos em má conta, zangava-me quando vos
fatigaveis, quando não podieis ir além de certo ponto, e me deixaveis
com o desejo a avoaçar, á semelhança de gallinha atada pelos pés.

Aquelle caso, porém, foi um raio de luz. Sim, pernas amigas, vós
deixastes á minha cabeça o trabalho de pensarem Virgilia, e dissestes
uma á outra:--Elle precisa comer, são horas de jantar, vamos levai-o ao
Pharoux; dividamos a consciencia delle, uma parte fique lá com a dama,
tomemos nós a outra, para que elle vá direito, não abalroe as gentes e
as carroças, tire o chapeu aos conhecidos, e finalmente chegue são e
salvo ao hotel. E cumpristes á risca o vosso proposito, amaveis pernas,
o que me obriga a immortalisar-vos nesta pagina.



CAPITULO LXVII


A casinha


Jantei e fui á casa. Lá achei uma caixa de charutos, que me mandára o
Lobo Neves, embrulhada em papel de seda, e ornada de fitinhas côr de
rosa. Entendi, abri-a, e tirei este bilhete:

    «Meu B...

    «Desconfiam de nós; tudo está perdido; esqueça-me para
    sempre. Não nos veremos mais. Adeus; esqueça-se da infeliz

    «V...a»

Foi um golpe esta carta; não obstante, apenas fechou a noite, corri á
casa de Virgilia. Era tempo; estava arrependida. Ao vão de uma janella,
contou-me o que se passára com a baroneza. A baroneza disse-lhe
francamente que se falára muito, no theatro, na noite anterior,
a proposito da minha ausencia do camarote de Lobo Neves; tinham
commentado as minhas relações na casa; em suma, eramos objecto da
suspeita publica. Conclui dizendo que não sabia o que fazer.

--O melhor é fugirmos, insinuei.

--Nunca, respondeu ella abanando a cabeça.

Vi que era impossivel separar duas cousas que no espirito della estavam
inteiramente ligadas: o nosso amor e a consideração publica. Virgilia
era capaz de eguaes e grandes sacrificios para conservar ambas as
vantagens; e a fuga só lhe deixava uma. Talvez senti alguma cousa
semelhante a despeito; mas as comoções daquelles dous dias eram já
muitas, e o despeito morreu depressa. Vá lá; arranjemos a casinha.

Com effeito, achei-a, dias depois, expressamente feita, em um
recanto da Gamboa. Um brinco! Nova, caiada de fresco, com quatro
janellas na frente e duas de cada lado,--todas com venezianas côr de
tijolo,--trepadeira nos cantos, jardim na frente; mysterio e solidão.
Um brinco!

Convencionámos que iria morar alli uma mulher, conhecida de Virgilia,
em cuja casa fora costureira e aggregada. Virgilia exercia sobre ella
verdadeira fascinação. Não se lhe diria tudo; ella aceitaria facilmente
o resto.

Para mim era aquillo uma situação nova do nosso amor, uma apparencia
do posse exclusiva, de dominio absoluto, alguma cousa que me faria
adormecer a consciencia o resguardar o decoro. Já estava cançado das
cortinas do outro, das cadeiras, do tapete, do canapé, de todas essas
cousas, que me traziam aos olhos constantemente a nossa duplicidade.
Agora podia evitar os jantares frequentes, o chá de todas as noites,
emfim a presença do filho delles, meu complice e meu inimigo. A casa
resgatava-me tudo; o mundo vulgar terminaria á porta;--dalli para
dentro era o infinito, um mundo eterno, superior, excepcional, nosso,
somente nosso, sem leis, sem instituições, sem baronezas, sem olheiros,
sem escutas,--um só mundo, um só casal, uma só vida, uma só vontade,
uma só affeição,--a unidade moral de todas as cousas pela exclusão das
que me eram contrarias.



CAPITULO LXVIII


O vergalho


Taes eram as reflexões que eu vinha fazendo, por aquelle Valongo fóra,
logo depois de ver e ajustar a casa. Interrompeu-m'as um ajuntamento;
era um preto que vergalhava outro na praça. O outro não se atrevia a
fugir; gemia somente estas unicas palavras:

--«Não, perdão, meu senhor; meu senhor, perdão!» Mas o primeiro não
fazia caso, e, a cada supplica, respondia com uma vergalhada nova.

--Toma, diabo! dizia elle; toma mais perdão, bebado!

--Meu senhor! gemia o outro.

--Cala a boca, besta! replicava o vergalho.

Parei, olhei... Justos ceus! Quem havia de ser o do vergalho? Nada
menos que o meu moleque Prudencio,--o que meu pae libertára alguns
annos antes. Cheguei-me; elle deteve-se logo e pediu-me a benção;
perguntei-lhe se aquelle preto era escravo delle.

--E, sim, nhonhô.

--Fez-te alguma cousa?

--É um vadio e um bebado muito grande. Ainda hoje deixei elle na
quitanda, em quanto eu ia lá embaixo na cidade, e elle deixou a
quitanda para ir na venda beber.

--Está bom, perdoa-lhe, disse eu.

--Pois não, nhonhô. Nhonhô manda, não pede. Entra para casa, bebado!

Saí do grupo, que me olhava espantado e cochichava as suas conjecturas.
Segui caminho, a cavar cá dentro uma infinidade de reflexões, que sinto
haver inteiramente perdido; aliás, seria materia para um bom capitulo,
e talvez alegre. Eu gósto dos capitulos alegres; é o meu fraco.
Exteriormente, era torvo o episodio do Valongo; mas só exteriormente.
Logo que metti mais dentro a faca do raciocinio achei-lhe um miolo
gaiato, fino, e até profundo. Era um modo que o Prudencio tinha de
se desfazer das pancadas recebidas,--transmittindo-as a outro. Eu,
em criança, montava-o, punha-lhe um freio na boca, e desancava-o sem
compaixão; elle gemia e soffria. Agora, porém, que era livre, dispunha
de si mesmo, dos braços, das pernas, podia, trabalhar, folgar, dormir,
desagrilhoado da antiga condição, agora é que elle se desbancava:
comprou um escravo, e ia-lhe pagando, com alto juro, as quantias que de
mim recebera. Vejam as subtilezas do maroto!



CAPITULO LXIX


Um grão de sandice


Este caso faz-me lembrar um doudo que conheci. Chamava-se Romualdo e
dizia ser Tamerlão. Era a sua grande e unica mania, e tinha uma curiosa
maneira de a explicar.

--Eu sou o illustre Tamerlão, dizia elle. Outr'ora fui Romualdo, mas
adoeci, e tomei tanto tartaro, tanto tartaro, tanto tartaro, que fiquei
Tartaro, e até rei dos Tartaros. O tartaro tem a virtude de fazer
Tartaros.

Pobre Romualdo! A gente ria da resposta, mas é provavel que o leitor
não se ria, e com razão; eu não lhe acho graça nenhuma. Ouvida, tinha
algum chiste; mas assim contada, no papel, e a proposito de um vergalho
recebido e transferido, força é confessar que é muito melhor voltar á
casinha da Gamboa; deixemos os Romualdos e Prudencios.



CAPITULO LXX


D. Placida


Voltemos á casinha. Não serias capaz de lá entrar hoje, curioso leitor;
envelheceu, ennegreceu, apodreceu, e o proprietario deitou-a abaixo
para substituil-a por outra, tres vezes maior, mas juro-te que muito
menor que a primeira. O mundo era estreito para Alexandre; um desvão de
telhado é o infinito para as andorinhas.

E vejam agora a neutralidade deste globo, que nos leva, atravez dos
espaços, como uma lancha de naufragos, que vae dar á costa: dorme hoje
um casal de virtudes no mesmo espaço de chão que soffreu um casal de
peccados. Amanhã pode lá dormir um ecclesiastico, depois um assassino,
depois um ferreiro, depois um poeta, e todos abençoarão esse canto de
terra, que lhes deu algumas illusões.

Virgilia fez daquillo um brinco; designou as alfaias mais idoneas, e
dispol-as com a intuição esthetica da mulher elegante; eu levei para
lá alguns livros; e tudo ficou sob a guarda de D. Placida, supposta, e,
a certos respeitos, verdadeira dona da casa.

Custou-lhe muito a aceitar a casa; farejára a intenção, e doia-lhe o
officio; mas afinal cedeu. Creio que chorava, a principio: tinha nojo
de si mesma. Ao menos, é certo que não levantou os olhos para mim
durante os primeiros dous mezes; falava-me com elles baixos, séria,
carrancuda, ás vezes triste. Eu queria angarial-a, e não me dava por
offendido, tratava-a com carinho e respeito; forcejava por obter-lhe a
benevolencia, depois a confiança. Quando obtive a confiança, imaginei
uma historia pathetica dos meus amores com Virgilia, um caso anterior
ao casamento, a resistencia do pae, a dureza do marido, e não sei que
outros toques de novella. D. Placida não rejeitou uma só pagina da
novella; aceitou-as todas. Era uma necessidade da consciencia. Ao cabo
de seis mezes quem nos visse a todos tres juntos diria que D. Placida
era minha sogra.

Não fui ingrato; fiz-lhe um peculio de cinco contos,--os cinco
contos achados em Botafogo,--como um pão para a velhice. D. Placida
agradeceu-me com lagrimas nos olhos; e nunca mais deixou de rezar por
mim, todas as noites, deante de uma imagem da Virgem, que tinha no
quarto. Foi assim que lhe acabou o nojo.



CAPITULO LXXI


O senão do livro


Começo a arrepender-me deste livro. Não que elle me cance; eu não tenho
que fazer; e, realmente, expedir alguns magros capitulos para esse
mundo sempre é tarefa que distráe um pouco da eternidade. Mas o livro
é enfadonho, cheira a sepulchro, traz certa contracção cadaverica;
vicio grave, e aliás infimo, porque o maior defeito deste livro és tu,
leitor. Tu tens pressa de envelhecer, e o livro anda devagar; tu amas a
narração direita e nutrida, o estylo regular e fluente, e este livro e
o meu estylo são como os ebrios, guinam á direita e á esquerda, andam e
param, resmungam, urram, gargalham, ameaçam o ceu, escorregam e cáem...

E cáem!--Folhas miserrimas do meu cypreste, heis de cair, como
quaesquer outras bellas e vistosas; e, se eu tivesse olhos, dar-vos-hia
uma lagrima de saudade. Esta é a grande vantagem da morte, que se
não deixa boca para rir, tambem não deixa olhos para chorar... Heis
de cair. Turvo é o ar que respiraes, amadas folhas. O sol que vos
allumia, com ser de toda a gente, é um sol opaco e reles, de cemiterio
e carnaval.



CAPITULO LXXII


O bibliomano


Talvez supprima o capitulo anterior; entre outros motivos, ha* ahi, nas
ultimas linhas, uma phrase muito parecida com desproposito, e eu não
quero dar pasto á critica do futuro.

Olhae: daqui a setenta annos, um sugeito magro, amarello, grisalho, que
não ama nenhuma outra cousa além dos livros, inclina-se sobre a pagina
anterior, a ver se lhe descobre o desproposito; lê, relê, treslê,
desengonça as palavras, sacca uma syllaba, depois outra, mais outra,
e as restantes, examina-as por dentro e por fóra, por todos os lados,
contra a luz, espaneja-as, esfrega-as no joelho, lava-as, e nada. Fica
sempre o mesmo desproposito.

É um bibliomano. Não conhece o autor; este nome de Braz Cubas não vem
nos seus diccionarios biographicos. Achou o volume, por acaso, no
pardieiro de um alfarrabista. Comprou-o por duzentos réis. Indagou,
pesquizou, esgaravatou, e veiu a descobrir que era um exemplar,
unico... Unico! Vós, que não só amaes os livros, senão que padeceis a
mania delles, vós sabeis mui bem o valor desta palavra, e adivinhaes,
portanto, as delicias de meu bibliomano. Elle regeitaria a corôa das
Indias, o papado, todos os muzeus da Italia e da Hollanda, se os
houvesse de trocar por esse unico exemplar; e não porque seja o das
minhas _Memorias_; faria a mesma cousa com o _Almanak_ de Laemmert, uma
vez que fosse unico.

O peor é o desproposito. Lá continúa o homem inclinado sobre a pagina,
com uma lente no olho direito, todo entregue á nobre e aspera funcção
de decifrar o desproposito. Já prometteu a si mesmo escrever uma
breve memoria, na qual relate o achado do livro e a descoberta da
sublimidade, se a houver por baixo daquella phrase obscura. Ao cabo,
não descobre nada e contenta-se com a posse. Fecha o livro, mira-o,
remira-o, chega-se á janella e mostra-o ao sol. Um exemplar unico!
Nesse momento passa-lhe por baixo da janella um Cesar ou um Cromwell,
a caminho do poder. Elle dá de hombros, fecha a janella, estira-se
na rede e folhea o livro devagar, com amor, aos goles... Um exemplar
unico!



CAPITULO LXXIII


O lunch


O desproposito fez-me perder outro capitulo. Que melhor não era dizer
as cousas lisamente, sem todos estes solavancos! Já comparei o meu
estylo ao andar dos ebrios. Se a idéa vos parece indecorosa, direi
que elle é o que eram as minhas refeições com Virgilia, na casinha da
Gamboa, onde ás vezes faziamos a nossa patuscada, o nosso _lunch._
Vinho, fructas, compotas. Comiamos, é verdade, mas era um comer
virgulado de palavrinhas doces, de olhares ternos, de criancices,
uma infinidade desses apartes do coração, aliás o verdadeiro, o
ininterrupto discurso do amor. Ás vezes vinha o arrufo temperar o
nimio adocicado da situação. Ella deixava-me, refugiava-se n'um canto
do canapé, ou ia para o interior ouvir as denguices de D. Placida.
Cinco ou dez minutos depois, reatavamos a palestra, como eu reato a
narração, para desatal-a outra vez. Note-se que, longe de termos horror
ao methodo, era nosso costume convidal-o, na pessoa de D. Placida, a
sentar-se comnosco á meza; mas D. Placida não aceitava nunca.

--Você parece que não gosta mais de mim, disse-lhe um dia Virgilia.

--Virgem Nossa Senhora! exclamou a boa dama alçando as mãos para o
tecto. Não gosto de Yayá! Mas então de quem é que eu gostaria neste
mundo?

E, pegando-lhe nas mãos, olhou-a fixamente, fixamente, fixamente, até
molharem-se-lhe os olhos, de tão fixo que era. Virgilia acariciou-a
muito; eu deixei-lhe uma pratinha na algibeira do vestido.



CAPITULO LXXIV


Historia de D. Placida


Não te arrependas de ser generoso; a pratinha rendeu-me uma confidencia
de D. Placida, e conseguintemente este capitulo. Dias depois, como eu
a achasse só em casa, travámos palestra, e ella contou-me em breves
termos a sua historia. Era filha natural de um sacristão da Sé e de
uma mulher que fazia doces para fóra. Perdeu o pae aos dez annos. Já
então ralava côco e fazia não sei que outros misteres de doceira,
compativeis com a edade. Aos quinze ou dezeseis casou com um alfaiate,
que morreu tisico algum tempo depois, deixando-lhe uma filha. Viuva,
com pouco mais de vinte annos, ficaram a seu cargo a filha, com dous, e
a mãe, cançada de trabalhar. Tinha de sustentar a tres pessoas. Fazia
doces, que era o seu officio, mas cosia tambem, de dia e de noite, com
affinco, para tres ou quatro lojas, e ensinava algumas crianças do
bairro, a dez tostões por mez. Com isto iam-se passando os annos, não
a belleza, porque não a tivera nunca. Appareceram-lhe alguns namoros,
propostas, seducções, a que resistia.

--Se eu pudesse encontrar outro marido, disse-me ella, creia que me
teria casado; mas ninguem queria casar commigo.

Um dos pretendentes conseguiu fazer-se aceito; não sendo, porém, mais
delicado que os outros, D. Placida despediu-o do mesmo modo, e depois
de o despedir chorou muito. Continuou a coser para fóra e a escumar
os tachos. A mãe tinha a rabugem do temperamento, dos annos e da
necessidade; mortificava a filha para que tomasse um dos maridos de
emprestimo e de occasião, que lh'a pediam. E bradava:

--Queres ser melhor do eu? Não sei donde te vem essas fiducias de
pessoa rica. Minha camarada, a vida não se arranja á toa; não se
come vento. Ora esta! Moços tão bons como o Polycarpo da venda,
coitado...Esperas algum fidalgo, não é?

D. Placida jurou-me que não esperava fidalgo nenhum. Era genio. Queria
ser casada. Sabia muito bem que a mãe o não fôra, e conhecia algumas
que tinham só o seu moço dellas; mas era genio e queria ser casada.
Não queria tambem que a filha fosse outra cousa. E trabalhava muito,
queimando os dedos ao fogão, e os olhos ao candieiro, para comer e não
cair. Emmagreceu, adoeceu, perdeu a mãe, enterrou-a por subscripção,
e continuou a trabalhar. A filha estava com quatorze annos; mas era
muito fraquinha, e não fazia nada, a não ser namorar os capadocios
que lhe rondavam a rotula. D. Placida vivia com immensos cuidados,
levando-a comsigo, quando tinha de ir entregar costuras; e a gente das
lojas arregalava e piscava os olhos, convencida de que ella a levava
para colher marido ou outra cousa. Alguns diziam graçolas, faziam
comprimentos; a mãe chegou a receber propostas de dinheiro...

Interrompeu-se um instante, e continuou logo:

--Minha filha fugiu-me; foi com um sujeito, nem quero saber...
Deixou-me só, mas tão triste, tão triste, que pensei morrer. Não tinha
ninguem mais no mundo e estava quasi velha e doente. Foi por esse tempo
que conheci a familia de Yayá; boa gente, que me deu que fazer, e até
chegou a me dar casa. Estive lá muitos mezes, um anno, mais de um anno,
aggregada, costurando. Saí quando Yayá casou. Depois vivi como Deus
foi servido. Olhe os meus dedos, olhe estas mãos... E mostrou-me as
mãos grossas e gretadas, as pontas dos dedos picadas da agulha.--Não
se cria isto á toa, meu senhor; Deus sabe como é que isto se cria...
Felizmente, Yayá me protegeu, e o senhor doutor tambem... Eu tinha um
medo de acabar na rua, pedindo esmola...

Ao soltar a ultima phrase, D. Placida teve um calafrio. Depois, como se
tornasse a si, pareceu attentar na inconveniência daquella confissão
ao amante de uma mulher casada, e começou a rir, a desdizer-se, a
chamar-se tola, «cheia de fiducias», como lhe dizia a mãe; enfim,
cançada do meu silencio, retirou-se da sala. Eu fiquei a olhar para a
ponta do botim.



CAPITULO LXXV


Commigo


Podendo acontecer que algum dos meus leitores tenha pulado o capitulo
anterior, observo que é preciso lel-o para entender o que eu disse
commigo, logo depois que D. Placida saiu da sala. O que eu disse foi
isto:

--Assim, pois, o sacristão da Sé, um dia, ajudando a missa, viu entrar
a dama, que devia ser sua collaboradora na vida de D. Placida. Viu-a
outros dias, durante semanas inteiras, gostou, disse-lhe alguma graça,
pisou-lhe o pé, ao acender os altares, nos dias de festa. Ella gostou
delle, acercaram-se, amaram-se. Dessa conjuncção de luxurias vadias
brotou D. Placida. É de crer que D. Placida não falasse ainda quando
nasceu, mas se falasse podia dizer aos autores de seus dias:--Aqui
estou. Para que me chamastes? E o sacristão e a sacristã naturalmente
lhe respondi riam:--Chamamos-te para queimar os dedos nos tachos,
os olhos na costura, comer mal, ou não comer, andar de um lado para
outro, na faina, adoecendo e sarando, com o fim de tornar a adoecer e
sarar outra vez, triste agora, logo desesperada, amanhã resignada, mas
sempre com as mãos no tacho e os olhos na costura, até acabar um dia
na lama ou no hospital; foi para isso que te chamamos, n'um momento de
sympathia.



CAPITULO LXXVI


O estrume


Subito deu-me a consciência um repellão; accusou-me de ter feito
capitular a probidade de D. Placida, obrigando-a a um papel torpe,
depois de uma longa vida de trabalho e privações. Medianeira não era,
melhor que concubina; e eu tinha-a baixado a esse officio, á custa
de obsequios e dinheiros. Foi o que me disse a consciencia; e eu
fiquei uns dez minutos sem saber que lhe replicasse. Ella accrescentou
que eu me aproveitára da fascinação exercida por Virgilia sobre a
ex-costureira, da gratidão desta, emfim da necessidade. Notou a
resistência de D. Placida, as lagrimas dos primeiros dias, as caras
feias, os silencios, os olhos baixos, e a minha arte em supportar
tudo isso, até vencel-a. E repuxou-me outra vez de um modo irritado e
nervoso.

Concordei que assim era, mas alleguei que a velhice de D. Placida
estava agora ao abrigo da mendicidade; era uma compensação. E
raciocinei então que, se não fossem os meus amores, provavelmente
D. Placida acabaria como tantas outras creaturas humanas; donde se
poderia deduzir que o vicio é muitas vezes o estrume da virtude. O que
não impede que a virtude, seja uma flor cheirosa e sã. A consciência
concordou, e eu fui abrir a porta a Virgilia.



CAPITULO LXXVII


Entrevista


Virgilia entrou risonha e socegada. Os tempos tinham levado os
sustos e vexames. Que doce que era vel-a chegar, nos primeiros dias,
envergonhada e tremula! Ia de sege, velado o rosto, envolvida n'uma
especie de manteu, que lhe disfarçava as ondulações do talhe. Da
primeira vez deixou-se cair no canapé, offegante, escarlate, com os
olhos no chão; e, palavra! em nenhuma outra occasião a achei tão bella,
talvez porque nunca me senti mais lisonjeado.

Agora, porém, como eu dizia, tinham acabado os sustos e vexames; as
entrevistas entravam no periodo chronometrico. A intensidade de amor
era a mesma; a differença é que a chamma perdera o tresloucado dos
primeiros dias para constituir-se um simples feixe de raios, tranquillo
e constante, como nos casamentos.

--Estou muito zangada com você, disse ella sentando-se.

--Porque?

--Porque não foi lá hontem, como me tinha dito. O Damião perguntou
muitas vezes se você não iria, ao menos, tomar chá. Porque é que não
foi?

Com effeito, eu havia faltado á palavra que dera, e a culpa era toda de
Virgilia, Questão de ciúmes. Essa mulher esplendida sabia que o era, e
gostava de o ouvir dizer, fosse em voz alta ou baixa. Na antevespera,
em casa da baroneza, valsara duas vezes com o mesmo peralta, depois
de lhe escutar as cortezanices, ao canto de uma janella. Estava tão
alegre! tão derramada! tão cheia de si! Quando descobriu, entre as
minhas sobrancelhas, a ruga interrogativa e ameaçadora, não teve nenhum
sobresalto, nem ficou subitamente séria; mas deitou ao mar o peralta
e as cortezanices. Veiu depois a mim, tomou-me o braço, e levou-me
até outra sala, menos povoada, onde se me queixou de cançaço, e disse
muitas outras cousas, com o ar pueril que costumava ter, em certas
occasiões, e eu ouvi-a quasi sem responder nada.

Agora mesmo, custava-me responder alguma cousa, mas emfim contei-lhe
o motivo da minha ausencia... Não, eternas estrellas, nunca vi olhos
mais pasmados. A boca semi-aberta, as sobrancelhas arqueadas, uma
estupefacção visivel, tangivel, que senão podia negar, tal foi a
primeira replica de Virgilia; abanou a cabeça com um sorriso de piedade
e ternura, que inteiramente me confundiu.

--Ora você!

E foi tirar o chapéo, lepida, jovial, como a menina que torna do
collegio; depois veiu a mim, que estava sentado, deu-me pancadinhas na
testa, com um só dedo, a repetir;--Isto, isto;--e eu não tive remedio
senão rir tambem, e tudo acabou em galhofa. Era claro que me enganára.



CAPITULO LXXVIII


A presidencia


Certo dia, mezes depois, entrou o Lobo Neves em casa, dizendo que iria
talvez occupar uma presidencia de provincia. Olhei para Virgilia, que
empallideceu; elle, que a viu empallidecer, perguntou-lhe:

--A modo que não gostaste, Virgilia?

Virgilia abanou a cabeça.

--Não me agrada muito, foi a sua resposta.

Não se disse mais nada; mas de noite o Lobo Neves insistiu no projecto,
um pouco mais resolutamente do que de tarde; e dous dias depois
declarou á mulher que a presidencia era cousa definitiva. Virgilia não
pôde dissimular a repugnancia que isto lhe causava. O marido respondia
a tudo com as necessidades politicas. E accrescentava:

--Não posso recusar o que me pedem; é até conveniencia nossa, do
nosso futuro, dos teus brazões, meu amor, porque eu prometti que
serias marqueza, e nem baroneza estás. Dirás que sou ambicioso? Sou-o
devéras, mas é preciso que me não ponhas um peso nas azas da ambição.

Virgilia ficou desorientada. No dia seguinte achei-a triste, na casa
da Gamboa, á minha espera; tinha dito tudo a D. Placida, que buscava
consolal-a, como podia. Não fiquei menos abatido.

--Você hade ir comnosco, disse-me Virgilia.

--Está douda? Seria uma insensatez.

--Mas então...?

--Então, é preciso desfazer o projecto.

--É impossível.

--Já aceitou?

--Parece que sim.

Levantei-me, atirei o chapeu a uma cadeira, e entrei a passeiar de um
lado para outro, sem saber o que faria. Cogitei largamente, e não achei
nada. Emfim, cheguei-me a Virgilia, que estava sentada, e travei-lhe da
mão; D. Placida foi á janella.

--Nesta pequenina mão está toda a minha existencia, disse eu; voce é
responsavel por ella; faça o que lhe parecer.

Virgilia teve um gesto afflictivo; eu fui encostar-me ao consolo
fronteiro. Decorreram alguns instantes do silencio; ouviamos sómente
o latir de um cão, e não sei se o rumor da agua, que morria na praia.
Vendo que não falava, olhei para ella. Virgilia tinha os olhos no
chão, parados, sem luz, as mãos deixadas sobre os joelhos, com os
dedos cruzados, na attitude da suprema desesperança. N'outra occasião,
por differente motivo, é certo que eu me lançaria aos pés della,
e a ampararia com a minha razão e a minha ternura; agora, porém,
era preciso compellil-a ao esforço de si mesma, ao sacrificio, á
responsabilidade da nossa vida commun, e conseguintemente desamparal-a,
deixal-a, e saír; foi o que fiz.

--Repito, a minha felicidade está nas tuas mãos, disse eu.

Virgilia quiz agarrar-me, mas eu já estava fóra da porta. Cheguei a
ouvir um proromper de lagrimas, e digo-lhes que estive a ponto de
voltar, para as enxugar com um beijo; mas subjuguei-me e sai.



CAPITULO LXXIX


Compromisso de gato


Não acabaria se houvesse de contar pelo miudo o que padeci nas
primeiras horas. Vacillava entre um querer e um não querer,
entre a piedade que me empuxava á casa de Virgilia e outro
sentimento,--egoismo, supponhamos,--que me dizia:--Fica; deixa-a a
sós com o problema, deixa-a que ella o resolverá no sentido do amor.
Creio que essas duas forças tinham egual intensidade, investiam e
resistiam ao mesmo tempo, com ardor, com tenacidade, e nenhuma cedia
definitivamente. Ás rezes sentia um dentesinho de remorso; parecia-me
que abusava da fraqueza de uma mulher amante e culpada, sem nada
sacrificar nem arriscar de mim proprio; e, quando ia a capitular,
vinha outra vez o amor, e me repetia o conselho egoista, e eu ficava
irresoluto e inquieto, desejoso do a ver, e receioso de que a vista me
levasse a compartir a responsabilidade da solução.

Por fim interveiu um compromisso entre o egoismo e a piedade; eu iria
vel-a em casa, e só em casa, em presença do marido, para lhe não dizer
nada, á espera do effeito da minha intimação. Deste modo, poderia
conciliar as duas forças. Agora, que isto escrevo, quer-me parecer que
o compromisso era uma burla, que essa piedade era ainda um fórma de
egoismo, e que a resolução de ir consolar Virgilia não passava de uma
suggestão de meu proprio padecimento. Occorre-me a este proposito um
naturalista,--não me lembra qual,--mas era um naturalista,--em quem li
esta observação curiosa: «O gato não nos affaga, affaga-se em nós.»
Vejo que eu fazia um compromisso de gato.



CAPITULO LXXX


Do secretario


Na noite seguinte fui effectivamente á casa do Lobo Neves; estavam
ambos, Virgilia muito triste, elle muito jovial. Juro que ella sentiu
certo allivio, quando os nossos olhos se encontraram, cheios de
curiosidade e ternura; e não direi o que senti, porque isso já ficou
expresso no capitulo anterior, _in fine._ O Lobo Neves contou-me os
planos que levava para a presidencia, as difficuldades locaes, as
esperanças, as resoluções; estava tão contente! tão esperançado!
Virgilia, ao pé da meza, fingia ler um livro, mas por cima da pagina
olhava-me de quando em quando, interrogativa e ansiosa.

--O peor, disse-me de repente o Lobo Neves, é que ainda não achei
secretario.

--Não?

--Não, e tenho uma idéia.

--Ah!

--Uma idéa... Quer você dar um passeio ao norte? Não sei o que lhe
disse.

--Você é rico, continuou elle, não precisa de um magro ordenado; mas se
quizesse obsequiar-me, ia de secretario commigo.

Meu espirito deu um salto para traz, como se descobrisse uma serpente
deante de si. Encarei o Lobo Neves, fixamente, imperiosamente, a ver
se lhe apanhava algum pensamento occulto... Nem sombra disso; o olhar
vinha direito e franco, a placidez do rosto era natural, não violenta,
uma placidez salpicada de alegria. Respirei, e não tive animo de
olhar para Virgilia; senti por cima da pagina o olhar della, que me
pedia tambem a mesma cousa, e disse que sim, que iria. Na verdade, um
presidente, uma presidenta, um secretario, era resolver as cousas de um
modo administrativo.



CAPITULO LXXXI


A reconciliação


E comtudo, ao sair de lá, tive umas sombras de duvida; cogitei se não
ia expor insanamente a reputação de Virgilia, se não haveria outro
meio razoavel de combinar o Estado e a Gamboa. Não achei nada. No dia
seguinte, ao levantar-mo da cama, trazia o espirito feito e resoluto a
aceitar a nomeação. Ao meio dia, veiu o creado dizer-me que estava na
sala uma senhora, coberta com um véo. Corro; era minha irmã Sabina.

--Isto não pode continuar assim, disse ella; é preciso que, de uma vez
por todas, façamos as pazes. Nossa familia está acabando; não havemos
de ficar como dous inimigos.

--Mas se eu não te peço outra cousa, mana! bradei eu estendendo-lhe os
braços.

E sentei-a ao pé de mim, e falei-lhe do marido, da filha, dos negocios,
de tudo. Tudo ia bem; a filha estava linda como os amores. O marido
viria mostrar-m'a, se eu consentissse.

--Ora essa! irei eu mesmo vel-a.

--Sim?

--Palavra.

--Tanto melhor! respirou Sabina. É tempo de acabar com isto.

Achei-a mais gorda, e talvez mais moça. Parecia ter vinte annos,
e contava mais de trinta. Graciosa, affavel, nenhum acanhamento,
nenhum resentimento. Olhavamos um para o outro, com as mãos seguras,
falando de tudo e de nada, como dous namorados. Era a minha infancia
que resurgia, fresca, travessa e loura; os annos iam caindo, como as
fileiras de cartas de jogar encurvadas, com que eu brincava em pequeno,
e deixavam-me ver a nossa casa, a nossa familia, as nossas festas.
Supportei a recordação com algum esforço; mas um barbeiro da visinhança
lembrou-se de zangarrear na classica rabeca, e essa voz,--porque até
então a recordação era muda,--essa voz do passado, fanhosa e saudosa, a
tal ponto me commoveu, que...

Os olhos della estavam seccos. Sabina não herdára a flor amarella e
mórbida. Que importa? Era minha irmã, meu sangue, um pedaço de minha
mãe, e eu disse-lh'o com ternura, com sinceridade... Subito, ouço bater
á porta da sala; vou abrir; era um anjinho de cinco annos.

--Entra, Sára, disse Sabina.

Era minha sobrinha. Apanhei-a do chão, beijei-a muitas vezes; a
pequena, espantada, empurrava-me o hombro com a mãosinha, quebrando
o corpo para descer... Nisto, apparece-me á porta um chapéu, e logo
um homem, o Cotrim, nada menos que o Cotrim. Eu estava tão commovido,
que deixei a filha e lancei-me aos braços do pae. Talvez essa effusão
o desconcertou um pouco; é certo que me pareceu acanhado. Simples
prologo. Dahi a pouco falavamos como bons amigos velhos. Nenhuma
allusão ao passado, muitos planos de futuro, promessa de jantarmos em
casa um do outro; e não deixei de dizer que essa troca de jantares
podia ser que tivesse uma curta interrupção, por que eu andava com
idéas de uma viagem ao norte. Sabina olhou para o Cotrim, o Cotrim para
Sabina; ambos concordaram que essas idéas não tinham senso commum.
Que diacho podia eu achar no norte? Pois não era na côrte, em plena
côrte, que devia continuar a luzir, a metter n'um chinello os rapazes
do tempo? Que, na verdade, nenhum havia que se me comparasse; elle,
Cotrim, acompanhava-me de longe, e, não obstante uma briga ridicula,
teve sempre interesse, orgulho, vaidade nos meus triumphos. Ouvia o
que se dizia a meu respeito, nas ruas e nas salas; era um concerto de
louvores e admirações. E deixa-se isso para ir passar alguns mezes na
provincia, sem necessidade, sem motivo serio? A menos que não fosse
politica...

--Justamente política, disse eu.

--Nem assim, replicou elle dahi a um instante--E depois de outro
silencio:--Seja como for, venha jantar hoje comnosco.

--Certamente que vou; mas, amanhã ou depois, hão de vir jantar commigo.

--Não sei, não sei, objectou Sabina; casa de homem solteiro... Você
precisa casar, mano. Tambem eu quero uma sobrinha, ouviu?

O Cotrim reprimiu-a com um gesto, que não entendi bem. Não importa; a
reconciliação de uma familia vale bem um gesto enigmatico.



CAPITULO LXXXII


Questão de botanica


Digam o que quizerem dizer os hypocondriacos: a vida é uma cousa
doce. Foi o que eu pensei commigo, ao ver Sabina, o marido e a filha
descerem de tropel as escadas, dizendo muitas palavras affectuosas
para cima, onde eu ficava--no patamar,--a dizer-lhes outras tantas
para baixo. E continuei a pensar que, na verdade, era feliz. Amava-me
uma mulher, tinha a confiança do marido, ia por secretario de ambos, e
reconciliava-me com os meus. Que podia desejar mais, em vinte e quatro
horas?

Nesse mesmo dia, tratando de apparelhar os animos, comecei a espalhar
que talvez fosse para o norte, como secretario de provincia, afim de
realizar certos designios politicos, que me eram pessoaes. Disse-o na
rua do Ouvidor, repeti-o no dia seguinte, no Pharoux e no theatro.
Alguns, ligando a minha nomeação á do Lobo Neves, que já andava em
boatos, sorriam maliciosamente, outros batiam-me no hombro. No theatro
disse-me uma senhora que era levar muito longe o amor da esculptura.
Referia-se ás bellas fórmas de Virgilia.

Mas a allusão mais rasgada que me fizeram foi em casa de Sabina, tres
dias depois. Fel-a um certo Garcez, velho cirurgião, pequenino, trivial
e grulha, que podia chegar aos setenta, aos oitenta, aos noventa annos,
sem adquirir jamais aquella compostura austera, que é a gentileza do
ancião. A velhice ridicula é, porventura, a mais triste e derradeira
sorpresa da natureza humana.

--Já sei, desta vez vae ler Cicero, disse-me elle, ao saber da viagem.

--Cicero! exclamou Sabina.

--Pois então? Seu mano é um grande latinista. Traduz Virgilio de
relance. Olhe que é Virgilio, e não Virgilia... não confunda...

E ria, de um riso grosso, rasteiro e frivolo. Sabina empallideceu e
olhou para mim, receiosa de alguma replica; mas sorriu, quando me viu
sorrir, e voltou o rosto para disfarçal-o. As outras pessoas olhavam-me
com um ar de curiosidade, indulgencia e sympathia; era transparente que
não acabavam de ouvir nenhuma novidade. O caso dos meus amores andava
mais publico do que eu podia suppor. E entretanto sorri, um sorriso
curto, fugitivo e guloso,--palreiro como as pegas de Cintra. Virgilia
era um bello erro, e é tão facil confessar um bello erro! Costumava
ficar carrancudo, a principio, quando ouvia alguma allusão aos nossos
amores; mas, palavra de honra! sentia cá dentro uma impressão suave e
linsongeira. Uma vez, porém, aconteceu-me sorrir, e continuei a fazel-o
das outras vezes. Não sei se ha ahi algum Hobbes ou Spinoza, que
explique o phenomeno. Eu explico-o assim: a principio, o contentamento,
sendo interior, era por assim dizer o mesmo sorriso, mas abotoado;
andando o tempo, desabotou-se em flor, e appareceu aos olhos do
proximo. Simples questão de botanica.



CAPITULO LXXXIII


13


O Cotrim tirou-me daquelle gozo, levando-me á janella.--Você quer que
lhe diga uma cousa? perguntou elle;--não faça essa viagem; é insensata,
é perigosa.

--Porque?

--Você bem sabe porque, tornou elle: é, sobretudo, perigosa, muito
perigosa. Aqui na côrte, um caso desses perde-se na multidão da gente
e dos interesses; mas na provincia muda de figura; e tratando-se de
personagens politicos, é realmente insensatez. As gazetas de opposição,
logo que farejarem o negocio, passam a imprimil-o com todas as lettras,
e ahi virão as chufas, os remoques, as alcunhas...

--Mas não entendo...

--Entende, entende; e, na verdade, seria bem pouco amigo nosso, se me
negasse o que toda a gente sabe. Eu sei disso ha longos mezes. Repito,
não faça semelhante viagem; supporte a ausencia, que é melhor, e evite
algum grande escandalo e maior desgosto...

Disse isto, e foi para dentro. Eu deixei-me estar com os olhos no
lampião da esquina,--um antigo lampião de azeite,--triste, obscuro e
recurvado, como um ponto de interrogação. Que me cumpria fazer? Era o
caso de Hamlet: ou dobrar-me á fortuna, ou lutar com ella e subjugal-a.
Por outros termos: embarcar ou não embarcar. Esta era a questão. O
lampião não me dizia nada. As palavras do Cotrim resoavam-me aos
ouvidos da memoria, de um modo bem diverso do das palavras do Garcez.
Talvez o Cotrim tivesse razão: mas podia eu separar-me de Virgilia?

Sabina veiu ter commigo, e perguntou-me em que estava pensando.
Respondi que em cousa nenhuma, que tinha somno e ia para casa. Sabina
esteve um instante calada.--O que você precisa, sei eu; é uma noiva.
Deixe, que eu ainda arranjo uma noiva para você. Saí de lá oppresso,
desorientado. Tudo prompto para embarcar,--espirito e coração,--e eis
ahi me surge esse porteiro das conveniencias, que me pede o cartão de
ingresso. Dei ao diabo as conveniências, e com ellas a constituição, o
corpo legislativo, o ministerio, tudo.

No dia seguinte, abro uma folha politica e leio a noticia de que, por
decretos de 13, tínhamos sido nomeados presidente e secretario da
provincia de *** o Lobo Neves e eu. Escrevi immediatamente a Virgilia,
e segui duas horas depois para a Gamboa. Coitada de D. Placida! Estava
cada vez mais afflicta; perguntou-me se esqueceriamos a nossa velha, se
a ausencia era grande e se a provincia ficava longe. Consolei-a; mas
eu proprio precisava de consolações; a objecção do Cotrim affligia-me
profundamente. Virgilia chegou dahi a pouco, lepida como uma andorinha;
mas, ao ver-me triste, ficou muito seria.

--Que aconteceu?

--Vacillo, disse eu; não sei se devo aceitar...

Virgilia deixou-se cair, no canapé, a rir.--Porque? disse ella.

--Não é conveniente, dá muito na vista...

--Mas nós já não vamos.

--Como assim?

Contou-me que o marido ia recusar a nomeação, e por motivo que só disse
a ella, pedindo-lhe o maior segredo; não podia confessal-o a ninguem
mais.--É pueril, observou elle, é ridiculo; mas em summa, é um motivo
poderoso para mim. E referiu-lhe que o decreto trazia a data de 13, e
que esse numero significava para elle uma recordação funebre. O pae
morreu n'um dia 13, treze dias depois de um jantar, em que havia treze
pessoas. A casa em que morrera a mãe tinha o n. 13. Et cætera. Era um
algarismo fatidico. Não podia allegar semelhante cousa ao ministro;
dir-lhe-hia que tinha razões particulares para não aceitar. Eu fiquei
como ha de estar o leitor,--um pouco assombrado com esse sacrifício a
um numero; mas, sendo elle ambicioso, o sacrificio devia ser sincero...
E ficavamos. Para alguma cousa ha de servir a superstição dos homens.



CAPITULO LXXXIV


O conflicto


Numero fatidico, lembras-te que te abençoei muitas vezes? Assim tambem
as virgens ruivas de Thebas deviam abençoar a egua, de ruiva crina,
que as substituiu no sacrificio de Pelopidas,--uma donosa egua, que
lá morreu, coberta de flores, sem que ninguem lhe désse nunca uma
palavra de saudade. Pois dou-t'a eu, egua piedosa, não só pela morte
havida, como porque, entre as donzellas escapas, não é impossivel
que figurasse uma avó dos Cubas... Numero fatidico, tu foste a nossa
salvação. Não me confessou o marido a causa da recusa; disse-me tambem
que eram negocios particulares, e o rosto serio, convencido, com que
eu o escutei, fez honra á dissimulação humana. Elle é que mal podia
encobrir a tristeza profunda que o minava; falava pouco, absorvia-se,
mettia-se em casa, a ler. Outras vezes recebia, e então conversava e
ria muito, com estrepito e affectação. Opprimiam-n'o duas cousas,--a
ambição, que um escrupulo desazára, e logo depois a duvida, e talvez
o arrependimento,--mas um arrependimento, que viria outra vez, si se
repetisse a hypothese, porque o fundo supersticioso existia. Duvidava
da superstição, sem chegar a rejeital-a. Essa persistencia de um
sentimento, que repugna ao mesmo individuo, era um phenomeno digno de
alguma attenção. Mas eu preferia a pura ingenuidade de D. Placida,
quando confessava não poder ver um sapato voltado para o ar.

--Que tem isso? perguntava-lhe eu.

--Faz mal, era a sua resposta.

Isto somente, esta unica resposta, que valia para ella o livro dos sete
sellos. Faz mal. Disseram-lhe isso em criança, sem outra explicação;
e ella contentava-se com a certeza do mal. Já não acontecia a mesma
cousa quando se falava de apontar uma estrella com o dedo; ahi sabia
perfeitamente que era caso de crear uma verruga.

Ou verruga ou outra cousa, que valia isso, para quem não perde uma
presidencia de provincia? Tolera-se uma superstição gratuita ou barata;
é insupportavel a que leva uma parte da vida. Este era o caso do Lobo
Neves; com o accrescimo da duvida e do terror de haver sido ridiculo.
E mais este outro accrescimo, que o ministro não acreditou nos motivos
particulares; attribuiu a recusa do Lobo Neves a manejos politicos,
illusão complicada de algumas apparencias; tratou-o mal, communicou a
desconfiança aos collegas; sobrevieram incidentes; emfim, com o tempo,
o presidente resignatario foi para a opposição.



CAPITULO LXXXV


O cimo da montanha


Quem escapa a um perigo ama a vida com outra intensidade; eu entrei
a amar Virgilia com muito mais ardor, depois que estive a pique de a
perder, e a mesma cousa lhe aconteceu a ella. Assim, a presidencia não
fez mais do que avivar a affeição primitiva; foi a droga de Malabar,
com que tornámos mais saboroso o nosso amor, e mais prezado tambem. Nos
primeiros dias, depois daquelle incidente, folgavamos de imaginar a
dôr da separação, se houvesse separação, a tristeza de um e de outro,
á proporção que o mar, como uma toalha elastica, se fosse dilatando
entre nós; e, semelhantes ás crianças, que se achegam ao regaço das
mães, para fugir a uma simples careta, fugiamos do supposto perigo,
apertando-nos com abraços.

--Minha boa Virgilia!

--Meu amor!

--Tu és minha, não?

--Tua, tua...

E assim reatámos o fio da aventura, como a sultana Scheherazade o dos
seus contos. Esse foi, cuido eu, o ponto maximo do nosso amor, o cimo
da montanha, donde por algum tempo divisámos os valles de leste e de
oeste, e por cima de nós o ceu tranquillo e azul. Repousado esse tempo,
começámos a descer a encosta, com as mãos presas ou soltas, mas a
descer, a descer...



CAPITULO LXXXVI


O mysterio


Serra abaixo, como eu a visse um pouco differente, não sei se abatida
ou outra cousa, perguntei-lhe o que tinha; calou-se, fez um gesto de
enfado, de máu estar, de fadiga; ateimei, ella disse-me que... Um
fluido subtil percorreu todo o meu corpo: sensação forte; rapida,
singular, que eu não chegarei jamais a fixar no papel. Travei-lhe das
mãos, puxei-a levemente a mim, e beijei-a na testa, com uma delicadeza
de zephyro e uma gravidade de Abrahão. Ella estremeceu, colheu-me a
cabeça entre as palmas, fitou-me os olhos, depois affagou-me com um
gesto maternal...Eis ahi um mysterio; deixemos ao leitor o tempo de
decifrar este mysterio.



CAPITULO LXXXVII


Geologia


Succedeu por esse tempo um desastre: a morte do Viegas. O Viegas passou
ahi de relance, n'um capitulo, com os seus setenta annos, abafados
de asthma, desconjuntados de rheumatismo, e uma lesão de coração por
quebra. Foi um dos finos espreitadores da nossa aventura. Virgilia
nutria grandes esperanças em que esse velho parente, avaro como um
sepulchro, lhe amparasse o futuro do filho, com algum legado; e, se
o marido tinha eguaes pensamentos, encobria-os ou estrangulava-os.
Tudo se deve dizer: havia no Lobo Neves certa dignidade fundamental,
uma camada de rocha, que resistia ao commercio dos homens. As outras,
as camadas de cima, terra solta e arêa, levou-lh'as a vida, que é
um enxurro perpetuo. Se o leitor ainda se lembra do cap. XXXIII,
observará que é agora a segunda vez que eu comparo a vida a um
enxurro; mas tambem ha de reparar que desta vez accrescento-lhe
um adjectivo--perpetuo. E Deus sabe a força de um adjectivo,
principalmente em paizes novos e cálidos.

O que é novo neste livro é a geologia moral do Lobo Neves, e
provavelmente a do cavalheiro, que me está lendo. Sim, essas camadas
de caracter, que a vida altera, conserva ou dissolve, conforme a
resistencia dellas, essas camadas mereceriam um capitulo, que eu não
escrevo, por não alongar a narração. Digo apenas que o homem mais
probo que conheci em minha vida foi um certo Jacob Medeiros ou Jacob
Valladares, não me recorda bem o nome. Talvez fosse Jacob Rodrigues;
em summa, Jacob. Era a probidade mesma; podia ser rico, violentando um
pequenino escapulo, e não quiz; deixou ir pelas mãos fóra nada menos de
uns quatrocentos contos; tinha a probidade tão exemplar, que chegava
a ser miuda e cançativa. Um dia, como nos achassemos, a sós, em casa
delle, em boa palestra, vieram dizer que o procurava o Dr. B., um
sujeito enfadonho. O Jacob mandou dizer que não estava em casa.

--Não péga, bradou uma voz do corredor; cá estou de dentro.

E, com effeito, era o Dr. B., que appareceu logo á porta da sala. O
Jacob foi recebel-o, affirmando que cuidava ser outra pessoa, e não
elle, e accrescentando que tinha muito prazer com a visita, o que nos
rendeu hora e meia de enfado mortal, e isto mesmo, porque o Jacob tirou
o relogio; o Dr. B. pergutou-lhe então se ia sair.

--Com minha mulher, disse o Jacob.

Retirou-se o Dr. B. e respiramos. Uma vez respirados, disse eu ao
Jacob que elle acabava de mentir quatro vezes, em menos de duas horas:
a primeira, negando-se; a segunda, alegrando-se com a presença do
importuno; a terceira, dizendo que ia sair; a quarta, accrescentando
que com a mulher. O Jacob reflectiu um instante, depois confessou a
justeza da minha observação, mas desculpou-se dizendo que a veracidade
absoluta era incompativel com um estado social adiantado, e que a paz
das cidades só se podia obter á custa de embaçadellas reciprocas... Ah!
lembra-me agora: chamava-se Jacob Tavares.



CAPITULO LXXXVIII


O enfermo


Não é preciso dizer que refutei tão perniciosa doutrina, com os mais
elementares argumentos; mas elle estava tão vexado do meu reparo,
que resistiu até o fim, mostrando certo calor ficticio, talvez para
atordoar a consciencia.

O caso de Virgilia tinha alguma gravidade mais. Ella era menos
escrupulosa que o marido; manifestava claramente as esperanças que
trazia no legado, cumulava o parente de todas as cortezias, attenções
e affagos que poderiam render, pelo menos, um codicillo. Propriamente,
adulava-o; mas eu observei que a adulação das mulheres não é a mesma
cousa que a dos homens. Esta orça pela servilidade; a outra confunde-se
com a affeição. As formas graciosamente curvas, a palavra doce, a mesma
fraqueza physica dão á acção lisonjeira da mulher uma côr local, um
aspecto legitimo. Não importa a edade do adulado; a mulher ha de ter
sempre para elle uns ares de mãe ou de irmã,--ou ainda de enfermeira,
outro officio feminil, em que o mais habil dos homens carecerá sempre
de um _quid_, um fluido, alguma cousa.

Era o que eu pensava commigo, quando Virgilia se desfazia toda em
affagos ao velho parente. Ella ia recebel-o á porta, falando e rindo,
tirava-lhe o chapeu e a bengala, dava-lhe o braço e levava-o até uma
cadeira, ou até á cadeira, porque havia lá em casa a «cadeira do
Viegas», obra especial, conchegada, feita para gente enferma ou anciã.
Ia fechar a janella proxima, se havia alguma brisa, ou abril-a, se
estava calor, mas com cuidado, combinando de modo que lhe não désse um
golpe de ar.

--Então? hoje está mais fortesinho...

--Qual! Passei mal a noite; o diabo da asthma não me deixa.

E bufava o homem, repousando a pouco e pouco do cançaço da entrada e
da subida, não do caminho, porque ia sempre de sege. Ao lado, um pouco
mais para a frente, sentava-se Virgilia, n'uma banquinha, com as mãos
nos joelhos do enfermo. Entretanto, o nhonhô chegava á sala, sem os
pulos do costume, mas discreto, meigo, serio. O Viegas gostava muito
delle.

--Vem cá, nhonhô, dizia-lhe; e a custo introduzia a mão na ampla
algibeira, tirava uma caixinha de pastilhas, mettia uma na boca o dava
outra ao pequeno. Pastilhas anti-asthmaticas. O pequeno dizia que eram
muito boas.

Repetia-se isto, com variantes. Como o Viegas gostasse de jogar damas,
Virgilia cumpria-lhe o desejo, aturando-o por largo tempo, a mover as
pedras com a mão frouxa e tarda. Outras vezes, desciam a passear na
chacara, dando-lhe ella o braço, que elle nem sempre aceitava, por
dizer-se rijo e capaz de andar uma legua. Iam, sentavam-se, tornavam
a ir, a falar de cousas varias, ora de um negocio de familia, ora de
uma bisbilhotice de alcova, ora emfim de uma casa que elle meditava
construir, para residencia propria, casa de feitio moderno, porque a
delle era das antigas, contemporânea de el-rei D. João VI, á maneira
de algumas que ainda hoje (creio eu) se podem ver no bairro de S.
Christovão, com as suas grossas columnas na frente. Parecia-lhe que o
casarão em que morava podia ser substituido, e já tinha encommendado
o risco a um pedreiro de fama. Ah! então sim, então é que Virgilia
chegaria a ver o que era um velho de gosto.

Falava, como se póde suppôr, lentamente e a custo, intervallado de uma
arfagem incommoda para elle e para os outros. De quando em quando,
vinha um accesso de tosse; curvo, gemendo, levava o lenço á boca, e
investigava-o; passado o accesso, tornava ao plano da casa, que devia
ter taes e taes quartos, um terraço, cocheira, um primor.



CAPITULO LXXXIX


In extremis


--Amanhã vou passar o dia em casa do Viegas, disse-me ella uma vez.
Coitado! não tem ninguem...

O Viegas caíra na cama, definitivamente; a filha, casada, adoecera
justamente agora, e não podia fazer-lhe companhia. Virgilia ia lá
de quando em quando. Eu aproveitei a circumstancia para passar todo
aquelle dia ao pé della. Eram duas horas da tarde quando cheguei. O
Viegas tossia com tal força que me fazia arder o peito; no intervallo
dos accessos debatia o preço de uma casa, com um sujeito magro. O
sujeito offerecia trinta contos, o Viegas exigia quarenta. O comprador
instava como quem receia perder o trem da estrada de ferro, mas o
Viegas não cedia; recusou primeiramente os trinta contos, depois
mais dous, depois mais tres, emfim teve um forte accesso, que lhe
tolheu a fala durante quinze minutos. O comprador acarinhou-o muito,
arranjou-lhe os travesseiros, offereceu-lhe trinta e seis contos.

--Nunca! gemeu o enfermo.

E mandou buscar um maço de papeis á escrivaninha; não tendo forças
para tirar a fita de borracha que prendia os papeis, pediu-me que os
deslaçasse: fil-o. Eram as contas das despezas com a construcção da
casa: contas de pedreiro, de carpinteiro, de pintor; contas do papel da
sala de visitas, da sala de jantar, das alcovas, dos gabinetes; contas
das ferragens; custo do terreno. Elle abria-as, uma por uma, com a mão
tremula, e pedia-me que as lesse, e eu lia-as.

--Veja; mil e duzentos, papel de mil e duzentos a peça. Dobradiças
francezas... Veja, é de graça, concluiu elle depois de lida a ultima
conta.

--Pois bem... mas...

--Quarenta contos; não lhe dou por menos. Só os juros... faça a conta
dos juros...

Vinham tossidas estas palavras, ás golfadas, ás syllabas, como se
fossem migalhas de um pulmão desfeito. Nas orbitas fundas rolavam os
olhos lampejantes, que me faziam lembrar a lamparina da madrugada. Sob
o lençol desenhava-se a estructura ossea do corpo, pontudo em dous
lugares, nos joelhos e nos pés; a pelle amarellada, bamba, rugosa,
revestia apenas a caveira de um rosto sem expressão; uma carapuça de
algodão branco cobria-lhe o craneo rapado pelo tempo.

--Então? disse o sujeito magro.

Fiz-lhe signal para que não insistisse, e elle calou-se por alguns
instantes. O doente ficou a olhar para o tecto, calado, a arfar muito;
Virgilia empallideceu, levantou-se, foi até á janella. Suspeitara a
morte e tinha medo. Eu procurei falar de outras cousas. O sujeito magro
contou uma anecdota, e tornou a tratar da casa, alteando a proposta.

--Trinta e oito contos, disse elle.

--Am?... gemeu o enfermo.

O sujeito magro aproximou-se da cama, pegou-lhe na mão, e sentiu-a
fria. Eu acheguei-me ao doente, perguntei-lhe se sentia alguma cousa,
se queria tomar um calice de vinho.

--Não... não... quar... quaren... quar... quar...

Teve um accesso de tosse, e foi o ultimo; dahi a pouco expirava elle,
com grande consternação do sujeito magro, que me confessou depois a
disposição em que estava de offerecer os quarenta contos; mas era
tarde.



CAPITULO XC


O velho colloquio de Adão e Caim


E nada. Nenhuma lembrança testamentaria, uma pastilha que fosse, com
que do todo em todo não parecesse ingrato ou esquecido. Nada. Virgilia
tragou raivosa esse mallogro, e disse-m'o com certa cautela, não pela
cousa em si, senão porque entendia com o filho, de quem sabia que eu
não gostava muito, nem pouco. Insinuei-lhe que não devia pensar mais em
semelhante negocio. O melhor de tudo era esquecer o defunto, um lorpa,
um cainho sem nome, e tratar de cousas alegres; o nosso filho, por
exemplo.

Lá me escapou a decifração do mysterio, esse doce mysterio de algumas
semanas antes, quando Virgilia me pareceu um pouco differente do que
era. Um filho! Um ser tirado do meu ser! Esta era a minha preoccupação
exclusiva daquelle tempo. Olhos do mundo, zelos do marido, morte do
Viegas, nada me interessava por então, nem conflictos politicos,
nem revoluções, nem terremotos, nem nada. En só pensava naquelle
embryão anonymo, de obscura paternidade, e uma voz secreta me dizia:
é teu filho. Meu filho! E repetia estas duas palavras, com certa
voluptuosidade indefinivel, e não sei que assomos de orgulho. Sentia-me
homem.

O melhor é que conversávamos os dous, o embryão e eu, falavamos
de cousas presentes e futuras. O maroto amava-me, era um pelintra
gracioso, dava-me pancadinhas na cara com as mãosinhas gordas, ou
então traçava a beca de bacharel, porque elle havia de ser bacharel,
e fazia um discurso na camara dos deputados. E o pae a ouvil-o de uma
tribuna, com os olhos rasos de lagrimas. De bacharel passava outra vez
á escola, pequenino, lousa e livros debaixo do braço, ou então caía no
berço para tornar a erguer-se homem. Em vão buscava fixar no espirito
uma edade, uma attitude; esse embryão tinha a meus olhos todos os
tamanhos e gestos: elle mamava, elle escrevia, elle valsava, elle era
o interminável nos limites de um quarto de hora,--_baby_ e deputado,
collegial e pintalegrete. Ás vezes, ao pé de Virgilia, esquecia-me
della e de tudo; Virgilia sacudia-me, reprochava-me o silencio, dizia
que eu já lhe não queria nada. A verdade é que estava em dialogo com
o embryão; era o velho colloquio de Adão e Caim, uma conversa sem
palavras entre a vida e a vida, o mysterio e o mysterio.



CAPITULO XCI


Uma carta extraordinaria


Por esse tempo recebi uma carta extraordinaria, acompanhada de um
objecto não menos extraordinario. Eis o que a carta dizia:

    «Meu caro Braz Cubas.

    «Ha tempos, no Passeio Publico, tomei-lhe de emprestimo
    um relogio. Tenho a satisfação de restituir-lh'o com esta
    carta. A differença é que não é o mesmo, porém outro, não
    digo superior, mas egual ao primeiro. _Que voulez-vous,
    monseigneur_,--como dizia Figaro,--_c'est la misère._ Muitas
    cousas se deram depois do nosso encontro; irei contal-as
    pelo miudo, se me não fechar a porta. Saiba que já não trago
    aquellas botas caducas, nem envergo uma famosa sobrecasaca
    cujas abas se perdiam na noite dos tempos. Cedi o meu degrau
    da escada de S. Francisco; finalmente, almóço.

    «Dito isto, peço licença para ir um dia destes expor-lhe
    um trabalho, fructo de longo estudo, um novo systema de
    philosophia, que não só explica e descreve a origem e a
    consummação das cousas, como faz dar um grande passo adeante
    de Zenon e Seneca, cujo stoicismo era um verdadeiro brinco
    de crianças ao pé da minha receita moral. É singularmente
    espantoso este meu systema; rectifica o espirito humano,
    supprime a dor, assegura a felicidade, e enche de immensa
    gloria o nosso paiz. Chamo-lhe humanitismo, de _Humanitas_,
    principio das cousas. Minha primeira idéa revelava uma grande
    enfatuação; era chamar-lhe borbismo, de Borba; denominação
    vaidosa, além de rude e molesta. E com certeza exprimia
    menos. Verá, meu caro Braz Cubas, verá que é devéras um
    monumento; e se alguma cousa ha que possa fazer-me esquecer
    as amarguras da vida, é o gosto de haver emfim apanhado
    a verdade e a felicidade. Eil-as na minha mão essas
    duas esquivas; após tantos seculos de lutas, pesquizas,
    descobertas, systemas e quédas, eil-as nas mãos do homem. Até
    breve, meu caro Braz Cubas. Saudades do

    Velho amigo Joaquim Borba dos Santos.»

Li esta carta sem entendel-a. Vinha com ella uma boceta contendo
um bonito relogio com as minhas iniciaes gravadas, e esta phrase:
_Lembrança do velho Quincas._ Voltei á carta, reli-a com pausa, com
attenção. A restituição do relogio excluia toda a idéa de burla;
a lucidez, a serenidade, a convicção,--um pouco jactanciosa, é
certo,--pareciam excluir a suspeita de insensatez. Naturalmente
o Quincas Borba herdara de algum dos seus parentes de Minas, e a
abastança devolvera-lhe a primitiva dignidade. Não digo tanto; ha
cousas que se não podem rehaver integralmente; mas emfim a regeneração
não era impossivel. Guardei a carta e o relogio, e esperei a
philosophia.



CAPITULO XCII


Um homem extraordinario


Já agora acabo com as cousas extraordinarias. Vinha de guardar a
carta e o relogio, quando me procurou um homem magro e meão, com um
bilhete do Cotrim, convidando-me para jantar. O portador era casado
com uma irmã do Cotrim, chegára poucos dias antes do norte, chamava-se
Damasceno, e fizera a revolução de 1831. Foi elle mesmo que me disse
isto, no espaço de cinco minutos. Saíra do Rio de Janeiro, por
desaccordo com o Regente, que era um asno, pouco menos asno do que os
ministros que serviram com elle. De resto, a revolução estava outra
vez ás portas. Neste ponto, comquanto trouxesse as idéas politicas
um pouco baralhadas, consegui organisar e formular o governo de suas
preferencias: era um despotismo temperado,--não por cantigas, como
dizem alhures,--mas por pennachos da guarda nacional. Só não pude
alcançar se elle queria o despotismo de um, de tres, de trinta ou de
tresentos. Opinava por varias cousas, entre outras, o desenvolvimento
do trafico dos africanos e a expulsão dos inglezes. Gostava muito
de theatro; logo que chegou foi ao theatro de S. Pedro, onde viu um
drama soberbo, a _Maria Joanna_, e uma comedia muito interessante,
_Kettly, ou a volta á Suissa._ Tambem gostara muito da Deperini, na
_Sapho_, ou na _Anna Bolena_, não se lembrava bem. Mas a Candiani!
sim, senhor, era papa-fina. Agora queria ouvir o _Ernani_, que a filha
delle cantava em casa, ao piano: _Ernani, Ernani, involami..._--E dizia
isto levantando-se e cantarolando a meia voz.--No norte essas cousas
chegavam como um echo. A filha morria por ouvir todas as operas. Tinha
uma voz muito mimosa a filha. E gosto, muito gosto. Ah! elle estava
ancioso por voltar ao Rio de Janeiro. Já havia corrido a cidade toda,
com umas saudades... Palavra! em alguns logares teve vontade de chorar.
Mas não embarcaria mais. Enjoára muito a bordo, como todos os outros
passageiros, excepto um inglez... Que os levasse o diabo os inglezes!
Isto não ficava direito sem irem todos elles barra fóra. Que é que a
Inglaterra podia fazer-nos? Se elle encontrasse algumas pessoas de
boa vontade, era obra de uma noite a expulsão dos taes _godemes_...
Graças a Deus, tinha patriotismo,--e batia no peito,--o que não
admirava porque era de familia; descendia de um antigo capitão-mór
muito patriota. Sim, não era nenhum pé-rapado. Viesse a occasião, e
elle havia de mostrar de que pau era a canoa... Mas fazia-se tarde,
ia dizer que eu não faltaria ao jantar, e lá me esperava para
maior palestra.--Levei-o até á porta da sala; elle parou dizendo
que sympathisava muito commigo. Quando casára, estava eu na Europa.
Conheceu meu pae, um homem ás direitas, com quem dansára n'um celebre
baile da Praia Grande... Coisas! coisas! Falaria depois, fazia-se
tarde, tinha de ir levar a resposta ao Cotrim. Saiu; fechei-lhe a
porta... Uf!



CAPITULO XCIII


O jantar


Que supplicio que foi o jantar! Felizmente, Sabina fez-me sentar ao pé
da filha do Damasceno, uma D. Eulalia, ou mais familiarmente Nhã-lóló,
moça bem graciosa, um tanto acanhada a principio, mas só a principio.
Faltava-lhe elegancia, mas compensava-a com os olhos, que eram
soberbos e só tinham o defeito de se não arrancarem de mim, excepto
quando desciam ao prato; mas Nhã-lóló comia tão pouco, que quasi não
olhava para o prato. De noite cantou; a voz era como dizia o pae,
«muito mimosa». Não obstante, esquivei-me. Sabina veiu até á porta, e
perguntou-me que tal achára a filha do Damasceno.

--Assim, assim.

--Muito sympathica, não é? acudiu ella; falta-lhe um pouco mais de
corte. Mas que coração! é uma perola. Bem boa noiva para você.

--Não gosto de perolas.

--Casmurro! Para quando é que você se guarda? para quando estiver a
cair de maduro, já sei. Pois, meu rico, quer você queira quer não, ha
de casar com Nhã-lóló.

E dizia isto a bater-me na face com os dedos, meiga como uma pomba, e
ao mesmo tempo intimativa e resoluta. Santo Deus! seria esse o motivo
da reconciliação? Fiquei um pouco desconsolado com a idéa, mas uma voz
mysteriosa chamava-me á casa do Lobo Neves, disse adeus a Sabina e ás
suas ameaças.



CAPITULO XCIV


A causa secreta


--Como está a minha querida mamãe?

A esta palavra, Virgilia amuou-se, como sempre. Estava ao canto de uma
janella, sosinha, a olhar para a lua, e recebeu-me alegremente; mas
quando lhe falei no nosso filho amuou-se. Não gostava de semelhante
allusão, aborreciam-lhe as minhas anticipadas caricias paternaes.
E eu, para quem ella era já uma pessoa sagrada, uma ambula divina,
deixava-a estar quieta. Suppuz a principio que o embryão, esse perfil
do incognito, projectando-se na nossa aventura, lhe restituira a
consciência do mal. E enganava-me. Nunca Virgilia me parecera mais
expansiva, mais sem reservas, menos preoccupada dos outros e do marido.
Não eram remorsos. Imaginei tambem que a concepção seria um puro
invento, um modo de prender-me a ella, recurso sem longa efficacia, que
talvez começava de opprimil-a. Não era absurda esta hypothese; a minha
doce Virgilia mentia ás vezes, com tanta graça!

Naquella noite descobri a causa verdadeira. Era medo do parto e
vexame da gravidez. Padecera muito quando lhe nasceu o primeiro
filho; e essa hora, feita de minutos de vida e minutos de morte,
dava-lhe já imaginariamente os calefrios do patibulo. Quanto ao
vexame, complicava-se ainda da forçada privação de certos habitos
da vida elegante. Com certeza, era isso mesmo; dei-lh'o a entender,
reprehendendo-a, um pouco em nome dos meus direitos de pae. Virgilia
fitou-me; em seguida desviou os olhos e sorriu de um geito incredulo.



CAPITULO XCV


Flores de antanho


Onde estão ellas as flores de antanho? Uma tarde, apoz algumas semanas
de gestação, esboroou-se todo o edificio das minhas chimeras paternaes.
Foi-se o embryão, naquelle ponto em que se não distingue Laplace de
uma tartaruga. Tive a noticia por boca do Lobo Neves, que me deixou na
sala, e acompanhou o medico á alcova da frustrada mãe. Eu encostei-me
á janella, a olhar para a chacara, onde verdejavam as laranjeiras sem
flores. Onde iam ellas as flores de antanho?



CAPITULO XCVI


A carta anonyma


Senti tocar-me no hombro; era o Lobo Neves. Encaramo-nos alguns
instantes, mudos, inconsolaveis. Indaguei de Virgilia, depois ficamos
a conversar uma meia hora. No fim desse tempo, vieram trazer-lhe uma
carta; elle leu-a, empallideceu muito, e fechou-a com a mão tremula.
Creio que lhe vi fazer um gesto, como se quizesse atirar-se sobre mim;
mas não me lembra bem. O que me lembra claramente é que durante os dias
seguintes recebeu-me frio e taciturno. Emfim, Virgilia contou-me tudo,
dahi a dias na Gamboa.

O marido mostrou-lhe a carta, logo que ella se restabeleceu. Era
anonyma e denunciava-nos. Não dizia tudo; não falava, por exemplo, das
nossas entrevistas externas; limitava-se a precavel-o contra a minha
intimidade, e accrescentava que a suspeita era publica. Virgilia leu a
carta e disse com indignação que era uma calumnia infame.

--Calumnia? perguntou o Lobo Neves.

--Infame.

O marido respirou; mas, tornando á carta, parece que cada palavra della
lhe fazia com o dedo um signal negativo, cada lettra bradava contra a
indignação da mulher. Esse homem, aliás intrepido, era agora a mais
fragil das creaturas. Talvez a imaginação lhe mostrou, ao longe, o
famoso olho da opinião, a fital-o sarcasticamente, com um ar de pulha;
talvez uma boca invisivel lhe repetiu ao ouvido as chufas que elle
escutara ou dissera outr'ora. Instou com a mulher que lhe confessasse
tudo, porque tudo lhe perdoaria. Virgilia comprehendeu que estava
salva; mostrou-se irritada com a insistencia, jurou que da minha parte
só ouvira palavras de gracejo e cortezia. A carta havia de ser de algum
namorado sem ventura. E citou alguns,--um que a galanteára francamente,
durante algumas semanas, outro que lhe escrevera uma carta, e ainda
outros e outros. Citava-os pelo nome, com circumstancias, estudando
os olhos do marido, e concluiu dizendo que, para não dar margem á
calumnia, tratar-me-hia de maneira que eu não voltaria lá.

Ouvi tudo isto um pouco turbado, não pelo accrescimo de dissimulação
que era preciso empregar de ora em diante, até afastar-me inteiramente
da casa do Lobo Neves, mas pela tranquillidade moral de Virgilia, pela
falta de commoção, de susto, de saudades, e até de remorsos. Virgilia
notou a minha preoccupação, levantou-me a cabeça, porque eu olhava
então para o soalho, e disse-me com certa amargura:

--Você não merece os sacrifícios que lhe faço.

Não lhe disse nada; era ocioso ponderar-lhe que um pouco de desespero
e terror daria á nossa situação o sabor caustico dos primeiros dias;
mas se lh'o dissesse, não é impossivel que ella chegasse lenta e
artificiosamente até esse pouco de desespero e terror. Não lhe disse
nada. Ella batia nervosamente com a ponta do pé no chão; aproximei-me e
beijei-a na testa. Virgilia recuou, como se fosse um beijo de defuncto.



CAPITULO XCVII


Entre a boca e a testa


Sinto que o leitor estremeceu,--ou devia estremecer. Naturalmente
a ultima palavra suggeriu-lhe tres ou quatro reflexões. Veja bem o
quadro: n'uma casinha da Gambôa*, duas pessoas que se amam ha muito
tempo, uma inclinada para a outra, a dar-lhe um beijo na testa, e a
outra a recuar, como se sentisse o contacto de uma boca de cadaver.
Ha ahi, no breve intervallo, entre a boca e a testa, antes do beijo e
depois do beijo, ha ahi largo espaço para muita cousa,--a contracção de
um resentimento,--a ruga da desconfiança,--ou emfim o nariz pallido e
somnolento da saciedade..



CAPITULO XCVIII


Supprimido


Separamo-nos alegremente. Jantei reconciliado com a situação. A carta
anonyma restituia á nossa aventura o sal do mysterio e a pimenta do
perigo; e afinal foi bem bom que Virgilia não perdesse naquella crise a
posse de si mesma. De noite fui ao theatro de S. Pedro; representava-se
uma grande peça, em que a Estella arrancava lagrimas. Entro; corro
os olhos pelos camarotes; vejo em um delles o Damasceno e a familia.
Trajava a filha com outra elegancia e certo apuro, cousa difficil de
explicar, porque o pae ganhava apenas o necessario para endividar-se; e
dahi, talvez fosse por isso mesmo.

No intervallo fui visital-os. O Damasceno recebeu-me com muitas
palavras, a mulher com muitos sorrisos. Quanto a Nhã-lóló, não tirou
mais os olhos de mim; e realmente parecia-me agora mais bonita que
no dia do jantar. Achei-lhe certa suavidade etherea casada ao polido
das fórmas terrenas:--expressão vaga, e condigna de um capitulo em
que tudo ha de ser vago. Realmente, não sei como lhes diga que não me
senti mal, ao pé da moça, trajando garridamente um vestido fino, um
vestido que me dava cocegas de Tartuffo. Ao contemplal-o, cobrindo
casta e redondamente o joelho, foi que eu fiz uma descoberta subtil, a
saber, que a natureza previu a vestidura humana, condição necessaria
ao desenvolvimento da nossa especie. A nudez habitual, dada a
multiplicação das obras e dos cuidados do individuo, tenderia a embotar
os sentidos e a retardar os sexos, ao passo que o vestuario, negaceando
a natureza, aguça e attráe as vontades, activa-as, reprodul-as, e
conseguintemente faz andar a civilisação. Abençoado uso que nos deu
_Othello_ e os paquetes transatlânticos!

Estou com vontade de supprimir este capitulo. O declive é perigoso.
Mas emfim eu escrevo as minhas memorias e não as tuas, leitor pacato.
Ao pé da graciosa donzella, parecia-me tomado de uma sensação dupla
e indefinivel. Ella exprimia inteiramente a dualidade de Pascal,
_l'ange et la bête_, com a differença que o jansenista não admittia a
simultaneidade das duas naturezas, ao passo que ellas ahi estavam bem
juntinhas,--_l'ange_, que dizia algumas cousas do ceu,--e _la bête_,
que... Não; decididamente supprimo este capitulo.



CAPITULO XCIX


Na platéa


Na platéa achei o Lobo Neves, de conversa com alguns amigos; falámos
por alto, a frio, constrangidos um e outro. Mas no intervallo seguinte,
prestes a levantar o panno, encontramo-nos n'um dos corredores, em que
não havia ninguem. Elle veiu a mim, com muita affabilidade e riso,
puxou-me a um dos oculos do theatro, e falamos muito, principalmente
elle, que parecia o mais tranquillo dos homens. Cheguei a perguntar-lhe
pela mulher; respondeu que estava boa, mas torceu logo a conversação
para assumptos geraes, expansivo, quasi risonho. Adivinhe quem quizera
causa da differença; eu fujo ao Damasceno que me espreita alli da porta
do camarote.

Não ouvi nada do seguinte acto, nem as palavras dos actores, nem
as palmas do publico. Reclinado na cadeira, apanhava de memoria os
retalhos da conversação do Lobo Neves, refazia as maneiras delle, e
concluia que era muito melhor a nova situaçao. Bastava-nos a Gamboa. A
frequencia da outra casa aguçaria as invejas. E rigorosamente podiamos
dispensar-nos de falar todos os dias; era até melhor, mettia a saudade
de permeio nos amores. Ao demais, eu galgara os quarenta annos, e não
era nada, nem simples eleitor de parochia. Urgia fazer alguma cousa,
ainda por amor de Virgilia, que havia de ufanar-se quando visse luzir o
meu nome... Creio que nessa occasião houve grandes applausos, mas não
juro; eu pensava em outra cousa.

Multidão, cujo amor cobicei até á morte, era assim que eu me vingava ás
vezes de ti; deixava borborinhar em volta do meu corpo a gente humana,
sem a ouvir, como o Prometheu de Eschylo fazia aos seus verdugos.
Ah! tu cuidavas encadear-me ao rochedo da tua frivolidade, da tua
indifferença, ou da tua agitação? Frageis cadeias, amiga minha; eu
rompia-as de um gesto de Gulliver. Vulgar cousa é ir considerar no
ermo. O voluptuoso, o exquisito, é insular-se o homem no meio de um
mar de gestos e palavras, de nervos e paixões, decretar-se alheiado,
inaccessivel, ausente. O mais que podem dizer, quando elle torna a
si,--isto é, quando torna aos outros,--é que baixa do mundo da lua; mas
o mundo da lua, esse desvão luminoso e recatado do cerebro, que outra
cousa é senão a affirmação desdenhosa da nossa liberdade espiritual?
Vive Deus! eis um bom fecho de capitulo.



CAPITULO C


O caso provavel


Se esse mundo não fosse uma região de espiritos desattentos, era
escusado lembrar ao leitor que eu só affirmo certas leis, quando
as possuo deveras; em relação a outras restrinjo-me á admissão da
probabilidade. Um exemplo da segunda classe constitue o presente
capitulo, cuja leitura recommendo a todas as pessoas que amam o estudo
dos phenomenos sociaes. Segundo parece, e não é improvavel, existe
entre os factos da vida publica e os da vida particular uma certa acção
reciproca, regular, e talvez periodica,--ou, para usar de uma imagem,
ha alguma cousa semelhante ás marés da praia do Flamengo e de outras
egualmente marulhosas. Com effeito, quando a onda investe a praia,
alaga-a muitos palmos a dentro; mas essa mesma agua torna ao mar, com
variavel força, e vae engrossar a onda que ha de vir, e que terá de
tornar como a primeira. Esta é a imagem; vejamos a applicação.

Deixei dito n'outra pagina que o Lobo Neves, nomeado presidente de
provincia, recusou a nomeação por motivo da data do decreto, que era
13; acto grave, cuja consequência foi separar do ministerio o marido de
Virgilia. Assim, o facto particular da ogerisa de um numero produziu o
phenomeno da dissidencia politica. Resta ver como, tempos depois, um
acto politico determinou na vida particular uma cessação de movimento.
Não convindo ao methodo deste livro descrever immediatamente esse outro
phenomeno, limito-me a dizer por ora que o Lobo Neves, quatro mezes
depois de nosso encontro no theatro, reconciliou-se com o ministerio;
facto que o leitor não deve perder de vista, se quizer penetrar a
subtileza do meu pensamento.



CAPITULO CI


A revolução dalmata


Foi Virgilia quem me deu noticia da vira-volta politica do marido,
certa manhã de outubro, entre onze e meio dia; falou-me de reuniões, de
conversas, de um discurso...

--De maneira que desta vez fica você baroneza, interrompi eu.

Ella derreou os cantos da boca, e moveu a cabeça a um e outro lado;
mas esse gesto de indifferença era desmentido por alguma cousa menos
definivel, menos clara, uma expressão de gosto e de esperança. E não
sei por que imaginei que a carta imperial da nomeação podia attraíl-a á
virtude, não digo pela virtude em si mesma, mas por gratidão ao marido.
Que ella amava cordialmente a nobreza; e um dos maiores desgostos de
nossa vida foi o apparecimento de um certo pelintra de legação,--da
legação da Dalmacia, supponhamos,--o conde B. V., que a namorou durante
tres mezes.

Esse homem, vero fidalgo de raça, transtornara um pouco a cabeça
de Virgilia, que, além do mais, possuia a vocação diplomatica. Não
chego a alcançar o que seria de mim, se não rebentasse na Dalmacia
uma revolução, que derrocou o governo e purificou as embaixadas. Foi
sangrenta a revolução, dolorosa, formidavel; os jornaes, a cada navio
que chegava da Europa, transcreviam os horrores, mediam o sangue,
contavam as cabeças; toda a gente fremia de indignação e piedade...
Eu não; eu abençoava interiormente essa tragedia, que me tirára uma
pedrinha do sapato. E depois a Dalmacia era tão longe!



CAPITULO CII


De repouso


Mas este mesmo homem, que se alegrou com a partida do outro, praticou
dahi a tempos... Não, não hei de contal-o nesta pagina; fique esse
capitulo para repouso do meu vexame. Uma acção grosseira, baixa, sem
explicação possivel... Repito, não contarei o caso nesta pagina.



CAPITULO CIII


Distracção


--Não, senhor doutor, isto não se faz. Perdoe-me, isto não se faz.

Tinha razão D. Placida. Nenhum cavalheiro chega uma hora mais tarde
ao logar em que o espera a sua dama. Entrei esbaforido; Virgilia
tinha ido embora. D. Placida contou-me que ella esperára muito, que
se irritara, que chorara, que jurára* votar-me ao desprezo, e outras
mais cousas que a nossa caseira dizia com lagrimas na voz, pedindo-me
que não desamparasse Yayá, que era ser muito injusto com uma moça que
me sacrificara tudo. Expliquei-lhe então que um equivoco... E não era;
cuido que foi simples distração. Um dito, uma conversa, uma anecdota,
qualquer cousa; simples distracção.

Coitada de D. Placida! Estava afflicta deveras. Andava de um lado para
outro, abanando a cabeça, suspirando com estrepito, espiando pela
rotula. Coitada de D. Placida! Com que arte conchegava as roupas,
bafejava as faces, acalentava as manhas do nosso amor! que imaginação
fertil em tornar as horas mais apraziveis e breves! Flores, doces,--os
bons doces de outros dias,--e muito riso, muito affago, um riso e um
affago que cresciam com o tempo, como se ella quizesse fixar a nossa
aventura, ou restituir-lhe a primeira flor. Nada esquecia a nossa
confidente e caseira; nada, nem a mentira, porque a um e outro referia
suspiros e saudades que não presenciára; nada, nem a calumnia, porque
uma vez chegou a attribuir-me uma paixão nova.--Você sabe que não
posso gostar de outra mulher, foi a minha resposta, quando Virgilia me
falou em semelhante cousa. E esta só palavra, sem nenhum protesto ou
admoestação, dissipou o aleive-de D. Placida, que ficou triste.

--Está bem, disse-lhe eu, depois de um quarto de hora; Virgilia hade
reconhecer que não tive culpa nenhuma... Quer você levar-lhe uma carta
agora mesmo?

--Ella hade estar bem triste, coitadinha! Olhe, eu não desejo a morte
de ninguem; mas, se o senhor doutor algum dia chegar a casar com Yayá,
então sim, é que hade ver o anjo que ella é!

Lembra-me que desviei o rosto e baixei os olhos ao chão. Recommendo
este gesto ás pessoas que não tiverem uma palavra prompta para
responder, ou ainda ás que receiarem encarar a pupilla do outros olhos.
Em taes casos, alguns preferem recitar uma oitava dos _Lusíadas_,
outros adoptam o recurso de assobiar a _Norma_; eu atenho-me ao gesto
indicado; é mais simples, exige menos esforço.

Tres dias depois, estava tudo explicado. Supponho que Virgilia ficou
um pouco admirada, quando lhe pedi desculpa das lagrimas que derramára
naquella triste occasião; e não me lembra se interiormente as attribui
a D. Placida. Com effeito, podia acontecer que D. Placida chorasse, ao
vel-a desapontada, e, por um phenomeno da visão, as lagrimas que tinha
nos proprios olhos lhe parecessem cair dos olhos de Virgilia. Fosse
como fosse, tudo estava explicado, mas não perdoado, e menos ainda
esquecido. Virgilia dizia-me uma porção de cousas duras, ameaçava-me
com a separação, emfim louvava o marido. Esse sim, era um homem digno,
muito superior a mim, delicado, um primor de cortezia e affeição; é
o que ella dizia, emquanto eu, sentado, com os braços fincados nos
joelhos, olhava para o chão, onde uma mosca arrastava uma formiga que
lhe mordia o pé. Pobre mosca! pobre formiga!

--Mas você não diz nada, nada? perguntou Virgilia, parando deante de
mim.

--Que heide dizer? Já expliquei tudo; você teima em zangar-se; que
heide dizer? Sabe o que me parece? Parece-me que você está enfastiada,
que se aborrece, que quer acabar...

--Justamente!

Foi dali pôr o chapéu, com a mão tremula, raivosa...--Adeus, D.
Placida, bradou ella para dentro. Depois foi até á porta, correu o
fecho, ia sair; agarrei-a pela cintura.--Está bom, está bom, disse-lhe.
Virgilia ainda forcejou por sair. Eu retive-a, pedi-lhe que ficasse,
que esquecesse; ella afastou-se da porta e foi cair no canapé.
Sentei-me ao pé della, disse-lhe muitas cousas meigas, outras humildes,
outras graciosas. Não affirmo se os nossos labios chegaram á distancia
de um fio de cambraia ou ainda menos; é matéria controversa. Lembra-me,
sim, que na agitação caiu um brinco de Virgilia, que eu inclinei-me a
apanhal-o, e que a mosca de ha pouco trepou ao brinco, levando sempre a
formiga no pé. Então eu, com a delicadeza nativa de um homem do nosso
século, puz na palma da mão aquelle casal de mortificados; calculei
toda a distancia que ia da minha mão ao planeta Saturno, e perguntei
a mim mesmo que interesse podia haver n'um episodio tão mofino. Se
conclues dahi que eu era um barbaro, enganas-te, porque eu pedi um
grampo a Virgilia, afim de separar os dous insectos; mas a mosca
farejou a minha intenção, abriu as azas e foi-se embora. Pobre mosca!
pobre formiga! E Deus viu que isto era bom, como se diz na Escriptura.



CAPITULO CIV


Era elle!


Restitui o grampo a Virgilia, que o repregou nos cabellos, e
preparou-se para sair. Era tarde; tinham dado tres horas. Tudo estava
esquecido e perdoado. D. Placida, que espreitava a occasião idonea para
a saída, fecha subitamente a janella e exclama:

--Virgem Nossa Senhora! ahi vem o marido de Yayá!

O momento de terror foi curto, mas completo. Virgilia fez-se da côr*
das rendas do vestido, correu até a porta da alcova; D. Placida, que
fechára a rotula, queria fechar tambem a porta de dentro; eu dispuz-me
a esperar o Lobo Neves. Esse curto instante passou. Virgilia tornou
a si, empurrou-me para a alcova, disse a D. Placida que voltasse á
janella; a confidente obedeceu.

Era elle. D. Placida abriu-lhe a porta com muitas exclamações de
pasmo:--O senhor por aqui! honrando a casa de sua velha! Entre, faça
favor. Adivinhe quem está cá... Não tem que adivinhar: não veiu por
outra cousa... Appareça, Yayá.

Virgilia, que estava a um canto, atirou-se ao marido. Eu espreitava-os
pelo buraco da fechadura. O Lobo Neves entrou lentamente, pallido,
frio, quieto, sem explosão, sem arrebatamento, e circulou um olhar em
volta da sala.

--Que é isto? exclamou Virgilia. Você por aqui?

--Ia passando, vi D. Placida á janella, e vim comprimental-a.

--Muito obrigada, acudiu esta. E digam que as velhas não valem alguma
cousa... Olhae, gentes! Yayá parece estar com ciumes. E acariciando-a
muito:--Este anjinho é que nunca se esqueceu da velha Placida.
Coitadinha! é mesmo a cara da mãe... Sente-se, senhor doutor...

--Não me demoro.

--Você vae para casa? disse Virgilia. Vamos juntos.

--Vou.

--Dê cá o meu chapéu, D. Placida.

--Está aqui.

D. Placida foi buscar um espelho, abriu-o deante della. Virgilia punha
o chapéu, atava as fitas, arranjava os cabellos, falando ao marido,
que não respondia nada. A nossa boa velha tagarellava de mais; era um
modo de disfarçar as tremuras do corpo. Virgilia, dominado o primeiro
instante, tornára á posse de si mesma.

--Prompta! disse ella. Adeus, D. Placida; não se esqueça de apparecer,
ouviu? A outra prometteu que sim, e abriu-lhes a porta.



CAPITULO CV


Equivalencia das janellas


D. Placida fechou a porta e caiu n'uma cadeira. Eu deixei
immediatamente a alcova, e dei dous passos para sair á rua, com o fim
de arrancar Virgilia ao marido; foi o que disse, e em bem que o disse,
porque D. Placida deteve-me por um braço. Tempo houve em que eu cheguei
a suppor que não dissera aquillo senão para que ella me detivesse;
mas a simples reflexão basta para mostrar que, depois dos dez minutos
da alcova, o gesto mais genuino e cordial não podia ser senão esse. E
isto por aquella famosa lei da equivalencia das janellas, que eu tive
a satisfação de descobrir e formular, no cap. LI. Era preciso arejar
a consciencia. A alcova foi uma janella fechada; eu abri outra com o
gesto de sair, e respirei.



CAPITULO CVI


Jogo perigoso


Respirei e sentei-me. D. Placida atroava a sala com exclamações e
lastimas. Eu ouvia, sem lhe dizer cousa nenhuma; reflectia commigo se
não era melhor ter fechado Virgilia na alcova e ficado na sala; mas
adverti logo que seria peior; confirmaria a suspeita, e chegaria o
fogo á polvora e uma scena de sangue... Foi muito melhor assim. Mas
depois? que ia acontecer em casa de Virgilia? Matal-a-hia o marido?
espancal-a-hia? encerral-a-hia? expulsal-a-hia? Estas interrogações
percorriam lentamente o meu cerebro, como os pontinhos e virgulas
escuras percorrem o campo visual dos olhos enfermos ou cansados. Iam e
vinham, com o seu aspecto secco e tragico, e eu não podia agarrar um
dellos e dizer: és tu, tu e não outro.

De repente vejo um vulto negro; era D. Placida, que fôra dentro,
enfiára a mantilha, e vinha offerecer-se-me para ir á casa do Lobo
Neves. Ponderei-lhe que era arriscado, porque elle desconfiaria da
visita tão proxima.

--Socegue, interrompeu ella; eu saberei arranjar as cousas. Se elle
estiver em casa não entro.

Saiu; eu fiquei a ruminar o successo e as consequencias possiveis. Ao
cabo, parecia-me jogar um jogo perigoso, e perguntava a mim mesmo se
não era tempo de levantar e espairecer, como um parceiro do _whist._
E então senti-me tomado de uma saudade do casamento, de um desejo de
canalizar a vida. Porque não? Meu coração tinha ainda que explorar;
não me sentia incapaz de um amor casto, severo e puro. Na verdade,
as aventuras são a parte torrencial e vertiginosa da vida, isto é, a
excepção; eu estava enfarado dellas; não sei até se me pungia algum
remorso. Mal pensei naquillo, deixei-me ir atraz da imaginação; vi-me
logo casado, ao pé de uma mulher adoravel, deante de um _baby_, que
dormia no regaço da ama, todos nós no fundo do uma chacara sombria
e verde, a espiarmos atravez das arvores uma nesga do ceu azul,
extremamente azul...



CAPITULO CVII


Bilhete

    «Não houve nada, mas elle suspeita alguma cousa; está muito
    serio e não fala; agora saiu. Sorriu uma vez somente, para
    nhonhô, depois de o fitar muito tempo, carrancudo. Não me
    tratou mal nem bem. Não sei o que vae acontecer; Deus queira
    que isto passe. Muita cautela, por ora, muita cautela.»



CAPITULO CVIII


Que se não entende


Eis ahi o drama, eis ahi a ponta da orelha tragica de Shakespeare. Esse
retalhinho de papel, garatujado em partes, machucado das mãos, era um
documento de analyse, que eu não farei neste capitulo, nem no outro,
nem talvez em todo o resto do livro. Poderia eu tirar ao leitor o gosto
de notar por si mesmo a frieza, a perspicacia e o animo dessas poucas
linhas traçadas á pressa; e por traz dellas a tempestade de outro
cerebro, a raiva dissimulada, o desespero que se constrange e medita,
por que tem de resolver-se na lama, ou no sangue, ou nas lagrymas?

Quanto a mim, se vos disser que li o bilhete tres ou quatro vezes,
naquelle dia, accreditai-o, que é verdade; se vos disser mais que o
reli no dia seguinte, antes e depois do almoço, podeis crel-o, é a
realidade pura. Mas se vos disser a commoção que tive, duvidai um pouco
da asserção, e não a acceiteis sem provas. Nem então, nem ainda agora
cheguei a discernir o que experimentei. Era medo, e não era medo;
era dó e não era dó; era vaidade e não era vaidade; emfim, era amor
sem amor, isto é, sem delirio; e tudo isso dava uma combinação assás
complexa e vaga, uma cousa que não podereis entender, como eu não
entendi. Supponhamos que não disse nada.



CAPITULO CIX


O philosopho


Sabido que reli a carta, antes e depois do almoço, sabido fica que
almocei, e só resta dizer que essa refeição foi das mais parcas
da minha vida: um ovo, uma fatia de pão, uma chicara de chá. Não
me esqueceu esta circumstancia minima; no meio de tanta cousa
importante obliterada escapou esse almoço. A razão principal poderia
ser justamente o meu desastre; mas não foi; a principal razão foi
a reflexão que me fez o Quincas Borba, cuja visita recebi naquelle
dia. Disse-me elle que a frugalidade não era necessaria para entender
o Humanitismo, é menos ainda pratical-o; que esta philosophia
acommodava-se facilmente com os prazeres da vida, inclusive a mesa,
o espectaculo e os amores; e que, ao contrario, a frugalidade podia
indicar certa tendencia para o ascetismo, o qual era a expressão
acabada da tolice humana.

--Veja S. João, continuou elle; mantinha-se de gafanhotos, no deserto,
em vez de engordar tranquillamente na cidade, e fazer emmagrecer o
pharisaismo na synagoga.

Deus me livre de contar a historia do Quincas Borba, que aliás ouvi
toda naquella triste occasião, uma historia longa, complicada,
mas interessante. E se não conto a historia, dispenso-me outrosim
de descrever-lhe a figura, aliás mui diversa da que me appareceu
no Passeio Publico. Calo-me; digo somente que se o principal
característico do homem não são as feições, mas o vestuário, elle
não era o Quincas Borba; era um desembargador sem beca, um general
sem farda, um negociante sem _deficit._ Notei-lhe a perfeição da
sobrecasaca, a alvura da camisa, o aceio das botas. A mesma voz,
roufenha outr'ora, parecia restituida á primitiva sonoridade. Quanto
á gesticulação, sem que houvesse perdido a viveza de outro tempo, não
tinha já a desordem, sujeitava-se a um certo methodo. Mas eu não quero
descrevel-o. Se falasse, por exemplo, no botão de ouro que trazia ao
peito, e na qualidade do couro das botas, iniciaria uma descripção,
que omitto por brevidade. Contentem-se de saber que as botas eram de
verniz. Saibam mais que elle herdára alguns pares de contos de réis de
um velho tio de Barbacena.

Meu espirito, (permittam-me aqui uma comparação de criança!) meu
espirito era n'aquella occasião uma especie de peteca. A narração do
Quincas Borba dava-lhe uma palmada, elle subia; quando ia a cair,
o bilhete de Virgilia dava-lhe outra palmada, e elle era de novo
arremessado aos ares; descia, e o episodio do Passeio Publico recebia-o
com outra palmada, egualmente rija e efficaz. Cuido que não nasci
para situações complexas. Esse puxar e empuxar de cousas oppostas,
desequilibrava-me; tinha vontade de embrulhar o Quincas Borba, o Lobo
Neves e o bilhete de Virgilia na mesma philosophia, e mandal-os de
presente a Aristoteles. E, comtudo, era instructiva a narração do nosso
philosopho; admirava-lhe sobretudo o talento de observação com que
descrevia a gestação e o crescimento do vicio, as luctas interiores, as
capitulações vagarosas, o uso da lama.

--Olhe, observou elle; a primeira noite que passei, na escada de S.
Francisco, dormi-a inteira, como se fosse a mais fina pluma. Porque?
Porque fui gradualmente da cama de esteira ao catre de pau, do quarto
proprio ao corpo da guarda, do corpo da guarda ao xadrez, do xadrez á
rua...

Quiz expor-me finalmente a philosophia; eu pedi-lhe que não.--Estou
assaz preocupado hoje e não poderia attendel-o; venha depois; estou
sempre em casa. O Quincas Borba sorriu de um modo malicioso; talvez
soubesse da minha aventura, mas não accrescentou nada. Só me disse
estas ultimas palavras á porta:

--Venha para o Humanitismo; elle é o grande regaço dos espiritos, o
mar eterno em que mergulhei para arrancar de lá a verdade. Os gregos
faziam-na sair de um poço. Que concepção mesquinha! Um poço! Mas
é por isso mesmo que nunca atinaram com ella. Gregos, sub-gregos,
anti-gregos, toda a longa serie dos homens tem-se debruçado sobre
o poço, para ver sair a verdade, que não está la. Gastaram cordas e
caçambas; alguns mais afoutos desceram ao fundo e trouxeram um sapo. Eu
fui directamente ao mar. Venha para o Humanitismo.



CAPITULO CX


31


Uma semana depois, o Lobo Neves foi nomeado presidente de provincia.
Agarrei-me á esperança da recusa, se o decreto viesse outra vez datado
de 13; trouxe, porém, a data de 31; e esta simples transposição de
algarismos eliminou delles a substancia diabolica. Que profundas que
são as molas da vida!



CAPITULO CXI


O muro


Não sendo meu costume dissimular ou esconder nada, contarei nesta
pagina o caso do muro. Elles estavam prestes a embarcar. Entrando
em casa de D. Placida, vi um papelinho dobrado sobre a mesa; era um
bilhete de Virgilia; dizia que me esperava á noite, na chacara, sem
falta. E concluía: «O muro é baixo do lado do becco.»

Fiz um gesto de desagrado. A carta pareceu-me descommunalmente
audaciosa, mal pensada e até ridicula. Não era só convidar o escandalo,
era convidal-o de parceria com a risota. Imaginei-me a saltar o muro,
embora baixo e do lado do becco; e, quando ia a galgal-o, via-me
agarrado por um pedestre de policia, que me levava ao corpo da guarda.
O muro é baixo! E que tinha que fosse baixo? Naturalmente Virgilia não
soube o que fez; era possivel que já estivesse arrependida. Olhei para
o papel, um pedaço de papel amarrotado, mas inflexivel. Tive comichões
de o rasgar, em trinta mil pedaços, e atiral-os ao vento, como o ultimo
despojo da minha aventura; mas recuei a tempo; o amor-proprio, o vexame
da fuga, a idéa do medo... Não havia remedio senão ir.

--Diga-lhe que vou.

--Aonde? perguntou D. Placida.

--Onde ella disse que me espera.

--Não me disse nada.

--Neste papel.

D. Placida arregalou os olhos:--Mas esse papel, achei-o hoje de manhã,
nesta sua gaveta, e pensei que...

Tive uma sensação exquisita. Reli o papel, mirei-o, remirei-o; era, na
verdade, um antigo bilhete de Virgilia, recebido no começo dos nossos
amores, uma certa entrevista na chacara, que me levou effectivamente a
saltar o muro, um muro baixo e discreto. Guardei o papel e... Tive uma
sensação exquisita.



CAPITULO CXII


A opinião


Mas estava escripto que esse dia devia ser o dos lances dubios. Poucas
horas depois, encontrava-me eu com o Lobo Neves, na rua do Ouvidor,
e falavamos da presidencia e da politica. Elle aproveitou o primeiro
conhecido que nos passou á ilharga, e deixou-me, depois de muitos
comprimentos. Lembra-me que estava retraindo, mas de um retrahimento
que forcejava por dissimular. Pareceu-me então (e peço perdão á
critica, se este meu juizo fôr temerário!) pareceu-me que elle tinha
medo--não medo de mim, nem de si, nem do codigo, nem da consciencia;
tinha medo da opinião. Suppuz que esse tribunal anonymo e invisivel,
em que cada membro accusa e julga, era o limite posto á vontade do
Lobo Neves. Talvez que elle já não amasse a mulher; e, assim, póde ser
que o coração fosse estranho á indulgencia dos seus ultimos actos.
Cuido (e de novo insto pela boa vontade da critica!) cuido que elle
estaria prompto a separar-se da mulher, como o leitor se terá separado
de muitas relações pessoaes; mas a opinião, essa opinião que lhe
arrastaria a vida por todas as ruas, que abriria minucioso inquerito
ácerca do caso, que colligiria uma a uma todas as circumstancias,
antecedencias, inducções, provas, que as relataria na palestra das
chacaras desoccupadas, essa terrivel opinião, tão curiosa das alcovas,
obstou á dispersão da familia. Ao mesmo tempo tornou impossivel o
desforço, que seria a divulgação. Elle não podia mostrar-se resentido
commigo, sem egualmente buscar a separação conjugal; e teve então
de simular a mesma ignorancia de outr'ora, e, por deducção, eguaes
sentimentos.

Que lhe custasse creio; naquelles dias, principalmente, vi-o de modo
que devia custar-lhe muito. Mas o tempo (e é outro ponto em que eu
espero a indulgencia dos homens pensadores!), o tempo calleja a
sensibilidade, e oblitera a memoria das cousas; era de suppor que os
annos lhe despontassem os espinhos, que a distancia dos factos apagasse
os respectivos contornos, que uma sombra de duvida retrospectiva
cobrisse a nudez da realidade; emfim, que a opinião se occupasse um
pouco com outras aventuras. O filho, crescendo, buscaria satisfazer
as ambições do pae; seria o herdeiro de todos os seus affectos. Isso,
e a actividade externa, e o prestigio publico, e a velhice depois, a
doença, o declinio, a morte, um responso, uma noticia biographica, e
estava fechado o livro da vida, sem nenhuma pagina de sangue.



CAPITULO CXIII


A solda


A conclusão, se ha alguma no capitulo anterior, é que a opinião é
uma bôa solda das instituições domesticas. Não é impossivel que eu
desenvolva este pensamento, antes de acabar o livro; mas tambem não é
impossivel que o deixe como está. De um ou de outro modo, é uma bôa
solda a opinião, e tanto na ordem domestica, como na politica. Alguns
metaphysicos biliosos tem chegado ao extremo de a darem como simples
producto da gente chocha ou mediocre; mas é evidente que, ainda quando
um conceito tão extremado não trouxesse em si mesmo a resposta, bastava
considerar os effeitos salutares da opinião, para concluir que ella é a
obra superfina da flor dos homens, a saber, do maior numero.



CAPITULO CXIV


Fim de um dialogo

--Sim, é amanhã. Você vae a bordo?

--Está douda? É impossível.

--Então, adeus!

--Adeus!

--Não se esqueça de D. Placida. Vá vel-a algumas vezes. Coitada! Foi
hontem despedir-se de nós; chorou muito, disse que eu não a veria
mais... É uma boa creatura, não?

--Certamente.

--Se tivermos de escrever, ella receberá as cartas. Agora até daqui a...

--Talvez dous annos?

--Qual! elle diz que é só até fazer as eleições.

--Sim? então até breve. Olhe que estão olhando para nós.

--Quem?

--Alli do sophá. Separemo-nos.

--Custa-me muito.

--Mas é preciso; adeus, Virgilia!

--Até breve. Adeus!



CAPITULO CXV


O almoço


Não a vi partir; mas á hora marcada senti alguma cousa que não era dor
nem prazer, uma cousa mixta, allivio e saudade, tudo misturado, em
eguaes doses. Não se irrite o leitor com esta confissão. Eu bem sei
que, para titillar-lhe os nervos da fantasia, devia padecer um grande
desespero, derramar algumas lagrimas, e não almoçar. Seria romanesco;
mas não seria biographico. A realidade pura é que eu almocei, como nos
demais dias, acudindo ao coração com as lembranças da minha aventura, e
ao estomago com os acepipes de Mr. Pruddon...

...Velhos do meu tempo, lembrai-vos desse mestre cosinheiro do hotel
Pharoux, um sujeito que, segundo dizia o dono da casa, havia servido
nos famosos Véry e Véfour, de Paris, e mais nos palacios do conde
Molé e do duque de la Rochefoucauld? Era insigne. Entrou no Rio de
Janeiro com a polka... A polka, Mr. Pruddon, o Tivoli, o baile dos
estrangeiros, o Casino, eis algumas das melhores recordações daquelle
tempo; mas sobretudo os acepipes do mestre eram deliciosos.

Eram, e naquella manhã parece que o diabo do homem adivinhára a nossa
catastrophe. Jámais o engenho e a arte lhe foram tão propicios. Que
requinte de temperos! que tenrura de carnes! que rebuscado de fórmas!
Comia-se com a bocca, com os olhos, com o nariz. Não guardei a conta
desse dia; do contrario, é mui provavel que a deixasse nestas paginas.
Sei que foi cara. Ai dor! era-me preciso enterrar magnificamente os
meus amores. Elles la iam, mar em fóra, no espaço e no tempo, e eu
ficava-me alli n'uma ponta de mesa, com os meus quarenta e tantos
annos, tão vadios e tão vazios; ficava-me para os não ver nunca mais,
porque ella poderia tornar e tornou, mas o effluvio da manhã quem é que
o pediu ao crepúsculo da tarde?



CAPITULO CXVI


Philosophia das folhas velhas


Fiquei tão triste com o fim do ultimo capitulo que estava capaz de não
escrever este, descançar um pouco, purgar o espirito da melancolia que
o empacha, e continuar depois. Mas não, não quero perder tempo.

A partida de Virgilia deu-me uma amostra da viuvez. Nos primeiros
dias metti-me em casa, a fisgar moscas, como Domiciano, se não mente
o Suetonio, mas a fisgal-as de um modo particular: com os olhos.
Fisgava-as uma a uma, no fundo de uma sala grande, estirado na rede,
com um livro aberto entre as mãos. Era tudo: saudades, ambições, um
pouco de tedio, e muito devaneio solto. Meu tio conego morreu nesse
intervallo; item, dous primos; e eu não me dei por abalado; levei-os ao
cemiterio, como quem leva dinheiro a um banco. Que digo? como quem leva
cartas ao correio: sellei as cartas, metti-as na caixinha, e deixei ao
carteiro o cuidado de as entregar em mão propria. Foi tambem per esse
tempo que nasceu minha sobrinha Venancia, filha do Cotrim. Morriam uns,
nasciam outros: eu continuava ás moscas.

Outras vezes agitava-me. Ia ás gavetas, entornava as cartas antigas,
dos amigos, dos parentes, das namoradas, (até as de Marcella), e
abria-as todas, lia-as uma a uma, e recompunha o preterito... Leitor
ignaro, se não guardas as cartas da juventude, não conhecerás um dia
a philosophia das folhas velhas, não gostarás o prazer de ver-te, ao
longe, na penumbra, com um chapéu de tres bicos, botas de sete leguas
e longas barbas assyrias, a bailar ao som de uma gaita anacreontica.
Guarda as tuas cartas da juventude!

Ou, se te não apraz o chapéu de tres bicos, empregarei a locução de um
velho marujo, familiar da casa do Cotrim; direi que, se guardares as
cartas da juventude, acharás occasião de «cantar uma saudade.» Parece
que os nossos marujos dão este nome ás cantigas de terra, entoadas no
alto mar. Como expressão poetica, é o que se póde exigir mais triste.



CAPITULO CXVII


O Humanitismo


Duas forças, porém, além de uma terceira, compelliam-me a tornar á vida
agitada do costume: Sabina e o Quincas Borba. Minha irmã encaminhou a
candidatura conjugal de Nhã-loló de um modo verdadeiramente impetuoso.
Quando dei por mim estava com a moça quasi nos braços. Quanto ao
Quincas Borba, expoz-me emfim o Humanitismo, systema de philosophia
destinado a arruinar todos os demais systemas.

--Humanitas, dizia elle, o principio das cousas, não é outro senão o
mesmo homem repartido por todos os homens. Conta tres phases Humanitas;
a _statica_, anterior a toda a creação; a _expansiva_, começo das
cousas; a _dispersiva_, apparecimento do homem; e contará mais uma,
a _contractiva_, absorpção do homem e das cousas. A _expansão_,
iniciando o universo, suggeriu a Humanitas o desejo de o gozar, e dahi
a _dispersão_, que não é mais do que a multiplicação personificada da
substancia original.

Como me não apparecesse assaz clara esta exposição, o Quincas Borba
desenvolveu-a de um modo profundo, fazendo notar as grandes linhas
do systema. Explicou-me que, por um lado, o Humanitismo ligava-se ao
Brahmanismo, a saber, na distribuição dos homens pelas differentes
partes do corpo de Humanitas; mas aquillo que na religião indiana
tinha apenas uma estreita significação theologica e politica, era no
Humanitismo a grande lei do valor pessoal. Assim, descender do peito
ou dos rins de Humanitas, isto é, ser _um forte_, não era o mesmo que
descender dos cabellos ou da ponta do nariz. Dahi a necessidade de
cultivar e temperar o musculo. Hercules ou Herakles não foi senão um
symbolo antecipado do Humanitismo. Neste ponto o Quincas Borba ponderou
que o paganismo poderia ter chegado á verdade, se se não houvesse
amesquinhado com a parte galante dos seus mythos. Nada disso acontecerá
com o Humanitismo. Nesta egreja nova não ha aventuras faceis, nem
quedas, nem tristezas, nem alegrias pueris. O amor, por exemplo, é um
sacerdocio, a reproducção um ritual. Como a vida é o maior beneficio
do universo, e não ha mendigo que não prefira a miseria á morte (o
que é um delicioso influxo de Humanitas), segue-se que a transmissão
da vida, longe de ser uma occasião de galanteio, é a hora suprema da
missa espiritual. Porquanto, verdadeiramente ha só uma desgraça: é não
nascer.

--Imagina, por exemplo, que eu não tinha nascido, continuou o Quincas
Borba; é positivo que não teria agora o prazer de conversar comtigo,
comer esta batata, ir ao theatro, e para tudo dizer n'uma só palavra:
viver. Nota que eu não faço do homem um simples vehiculo de Humanitas;
não, elle é ao mesmo tempo vehiculo, cocheiro e passageiro; elle é
o proprio Humanitas reduzido; dahi a necessidade de adorar-se a si
proprio. Queres uma prova da superioridade do meu systema? Contempla
a inveja. Não ha moralista grego ou turco, christão ou mussulmano,
que não troveje contra o sentimento da inveja. O accordo é universal,
desde os campos da Iduméa até o alto da Tijuca. Ora bem; abre mão dos
velhos preconceitos, esquece as rhetoricas rafadas, e estuda a inveja,
esse sentimento tão subtil e tão nobre. Sendo cada homem uma reducção
de Humanitas, é claro que nenhum homem é fundamentalmente opposto a
outro homem, quaesquer que sejam as apparencias contrarias. Assim, por
exemplo, o algoz que executa o condemnado póde excitar o vão clamor
dos poetas; mas substancialmente é Humanitas que corrige em Humanitas
uma infracção da lei de Humanitas. O mesmo direi do individuo que
estripa a outro; é uma manifestação da força de Humanitas. Nada obsta
(e ha exemplos) que elle seja egualmente estripado. Si entendeste
bem, facilmente comprehenderás que a inveja não é senão uma admiração
que luta, e sendo a luta a grande funcção do genero humano, todos os
sentimentos bellicosos são os mais adequados á sua felicidade. Dahi vem
que a inveja é uma virtude.

Para que negal-o? eu estava estupefacto. A clareza da exposição, a
logica dos principios, o rigor das consequencias, tudo isso parecia
superiormente grande, e foi-me preciso suspender a conversa por alguns
minutos, em quanto digeria a philosophia nova. O Quincas Borba mal
podia encobrir a satisfação do triumpho. Tinha uma aza de frango no
prato, e trincava-a com philosophica serenidade. Eu fiz-lhe ainda
alguma objecções, mas tão frouxas, que elle não gastou muito tempo em
destruil-as.

--Para entender bem o meu systema, concluiu elle, importa não esquecer
nunca o principio universal, repartido e resumido em cada homem. Olha:
a guerra, que parece uma calamidade, é uma operação conveniente,
como se dissessemos o estalar dos dedos de Humanitas; a fome (e elle
chupava philosophicamente a aza do frango), a fome é uma prova a que
Humanitas submette a propria viscera. Mas eu não quero outro documento
da sublimidade do meu systema, senão este mesmo frango. Nutriu-se de
milho, que foi plantado por um africano, supponhamos, importado de
Angola. Nasceu esse africano, cresceu, foi vendido um navio o trouxe,
um navio construido de madeira cortada no matto por dez ou doze
homens, levado por velas, que oito ou dez homens teceram, sem contar
a cordoalha e outras partes do apparelho nautico. Assim, este frango,
que eu almocei agora mesmo, é o resultado de uma multidão de esforços e
lutas, executados com o unico fim de dar mate ao meu appetite.

Entre o queijo e o café, demonstrou-me o Quincas Borba que o seu
systema era a destruição da dôr. A dôr, segundo o Humanitismo, é uma
pura illusão. Quando a criança é ameaçada por um páu, antes mesmo de
ter sido espancada, fecha os olhos e treme; essa _predisposição_ é que
constitue a base da illusão humana, herdada e transmittida. Não basta
certamente a adopção do systema para acabar logo com a dôr; mas é
indispensavel; o resto é a natural evolução das cousas. Uma vez que o
homem se compenetre bem de que elle é o proprio Humanitas, não tem mais
do que remontar o pensamento á substancia original para obstar qualquer
sensação dolorosa. A evolução porém é tão profunda, que mal se lhe
podem assignar alguns milhares de annos.

O Quincas Borba leu-me dahi a dias a sua grande obra. Eram quatro
volumes manuscriptos, de cem paginas cada um, com letra miuda e
citações latinas. O ultimo volume compunha-se de um tratado politico,
fundado no Humanitismo; era talvez a parte mais enfadonha do systema,
posto que concebida com um formidavel rigor de logica. Reorganisada a
sociedade pelo methodo delle, nem por isso ficavam eliminadas a guerra,
a insurreição, o simples murro, a facada anonyma, a miseria, a fome, as
doenças; mas sendo esses suppostos flagellos verdadeiros equivocos do
entendimento, porque não passariam de movimentos externos da substancia
interior, destinados a não influir sobre o homem, senão como simples
quebra da monotonia universal, claro estava que a sua existencia não
impediria a felicidade humana. Mas ainda quando taes flagellos (o que
era radicalmente falso) correspondessem no futuro á concepção acanhada
de antigos tempos, nem por isso ficava destruido o systema, e por dous
motivos: 1.° porque sendo Humanitas a substancia creadora e absoluta,
cada individuo deveria achar a maior delicia do mundo em sacrificar-se
ao principio de que descende; 2.° porque, ainda assim, não diminuiria o
poder espiritual do homem sobre a terra, inventada unicamente para seu
recreio delle, como as estrellas, as brisas, as tamaras e o rhuibarbo.
Pangloss, dizia-me elle ao fechar o livro, não era tão tolo como o
pintou Voltaire.



CAPITULO CXVIII


A terceira força


A terceira força (Veja a primeira linha do capitulo passado) a
terceira força que me chamava ao bulicio era a impaciencia de luzir,
e, sobretudo, a incapacidade de viver só. A multidão attrahia-me, o
applauso namorava-me, a gala, o tumulto, o rufo, eram outros tantos
objectos de seducção. Se a idéa do emplasto me tem apparecido nesse
tempo, quem sabe? não teria morrido logo e estaria celebre. Mas o
emplasto não veiu. Veiu o desejo de agitar-me em alguma cousa, com
alguma cousa e por alguma cousa. _Tout notre mal vient de ne pouvoir
être seuls._ Esta maxima de la Bruyère sempre me pareceu um grande
disparate. Não ha duvida que a sociabilidade é a primeira virtude dos
homens, a segunda é a curiosidade, a terceira é a pontualidade dos
pagamentos, a quarta o valor militar, e assim por diante.



CAPITULO CXIX


Parenthesis


(Haverá uma critica tão perversa que possa attribuir a minha opinião
sobre la Bruyère á inveja das suas maximas? Eu aparo desde já esse
golpe, transcrevendo algumas das que compuz por aquelle tempo, e
rasguei logo depois, por não me parecerem dignas do prélo. Fil-as n'um
periodo em que a flor amarella do capitulo XXV tornára a abrir; eram
bocejos de enfado. E se não vejam:

    Supporta-se com paciência a colica do proximo.

    Matamos o tempo; o tempo nos enterra.

    Um cocheiro philosopho costumava dizer que o gosto da
    carruagem seria diminuto, se todos andassem de carruagem.

    Crê em ti; mas nem sempre duvides dos outros.

    Não se comprehende que um botocudo fure o beiço para
    enfeital-o com um pedaço de páu. Esta reflexão é de um
    joalheiro.

    Não te irrites se te pagarem mal um beneficio: antes cair das
    nuvens, que de um terceiro andar.)



CAPITULO CXX


Compelle intrare


--Não, senhor, agora quer você queira, quer não, ha de casar, disse-me
Sabina. Que bello futuro! Um solteirão sem filhos.

Sem filhos! Eis o dardo secreto. A idéa de ter filhos deu-me um
sobresalto; percorreu-me outra vez o fluido mysterioso. Sim, cumpria
ser pae. A vida celibata podia ter certas vantagens proprias, mas
seriam tenues, e compradas a troco da solidão. Sem filhos! Não;
impossivel. Dispuz-me a aceitar tudo, ainda mesmo a alliança do
Damasceno. Sem filhos! Como já então depositasse grande confiança no
Quincas Borba, fui ter com elle e expuz-lhe os movimentos internos da
minha paternidade. O philosopho ouviu-me com alvoroço; declarou-me que
Humanitas se agitava em meu seio; animou-me ao casamento; ponderou
que eram mais alguns convivas que batiam á porta, etc. _Compelle
intrare_, como dizia Jesus. E não me deixou sem provar que o apologo
evangelico não era mais do que um prenuncio do Humanitismo, erradamente
interpretado pelos padres.



CAPITULO CXXI


Morro abaixo


No fim de tres mezes, ia tudo á maravilha. O fluido, Sabina, os olhos
da moça, os desejos do pae, eram outros tantos impulsos que me levavam
ao matrimonio. A lembrança de Virgilia apparecia de quando em quando,
á porta; e com ella um diabo negro, que me mettia á cara um espelho,
no qual eu via ao longe Virgilia desfeita em lagrimas; mas outro diabo
vinha, côr de rosa, com outro espelho, em que se reflectia a figura de
Nhã-loló, terna, luminosa, angelica.

Não falo dos annos. Eu não os sentia; acrescentarei até que os deitára
fóra, certo domingo, em que fui á missa na capella do Livramento. Como
o Damasceno morava nos Cajueiros, eu acompanhava-os muitas vezes á
missa. O morro estava ainda nú de habitações, salvo o velho palacete do
alto, onde era a capella. Pois um domingo, ao descer com Nhã-loló pelo
braço, não sei que phenomeno se deu que fui deixando aqui dous annos,
alli quatro, logo adiante cinco, de maneira que, quando cheguei abaixo,
estava com vinte annos apenas, tão lépidos como elles tinham sido.

Agora, se querem saber em que circumstancias se deu o phenomeno,
basta-lhes ler este capitulo até o fim. Vinhamos da missa, ella, o pae
e eu. No meio do morro achámos um grupo de homens. O Damasceno, que
vinha ao pé de nós, percebeu o que era e adiantou-se alvoroçado; nós
fomos atraz delle. E vimos isto: homens de todas as edades, tamanhos e
côres, uns em mangas de camisa, outros de jaqueta, outros mettidos em
sobrecasacas esfrangalhadas; attitudes diversas, uns de cócaras, outros
com as mãos apoiadas nos joelhos, estes sentados em pedras, aquelles
encostados ao muro; e todos com os olhos fixos no centro, e as almas
debruçadas das pupillas.

--Que é? perguntou-me Nhã-loló.

Fiz-lhe signal que se calasse; abri subtilmente caminho, e todos
me foram cedendo espaço, sem que positivamente ninguem me visse. O
centro tinha-lhes atado os olhos. Era uma briga de gallos. Vi os dous
contendores, dous gallos de esporão agudo, olho de fogo e bico afiado.
Ambos agitavam as cristas em sangue; o peito de um e de outro estava
desplumado e rubro; invadia-os o cançasso. Mas lutavam ainda assim,
olhos fitos nos olhos, bico abaixo, bico acima, golpe deste, golpe
daquelle, vibrantes e raivosos. O Damasceno não sabia mais de nada; o
espectaculo eliminou para elle todo o universo. Em vão lhe disse que
era tempo de descer: elle não respondia, não ouvia, concentrara-se no
duello. A briga de gallos era uma de suas paixões.

Foi nessa occasião que Nhã-loló me puxou brandamente pelo braço,
dizendo que nos fossemos embora. Aceitei o conselho e vim com ella por
alli abaixo. Já disse que o morro era então deshabitado; disse-lhes
tambem que vinhamos da missa, e não lhes tendo dito que chovia, era
claro que fazia bom tempo, um sol delicioso. E forte. Tão forte que eu
abri logo o guarda-sol, segurei-o pelo centro do cabo, e inclinei-o por
modo que ajuntei uma pagina á philosophia do Quincas Borba: Humanitas
osculou Humanitas... Foi assim que os annos me vieram caindo pelo morro
abaixo.

Ao sopé detivemo-nos alguns minutos; á espera do Damasceno; elle
veiu dahi a pouco, rodeado dos apostadores, a commentar com elles a
briga. Um destes, thesoureiro das apostas, distribuia um velho maço
de notas de dez tostões, que os triumphadores recebiam duplamente
alegres. Quanto aos gallos vinham sobraçados pelo respectivo dono. Um
delles trazia a crista tão comida e ensanguentada, que vi logo nelle o
vencido; mas era engano,--o vencido era o outro, que não trazia crista
nenhuma. Ambos tinham o bico aberto, respirando a custo, esfalfados.
Os apostadores, ao contrario, vinham alegres, sem embargo das fortes
commoções da luta; biographavam os contendores, relembravam as proezas
de ambos. Eu fui andando, vexado; Nhã-loló, vexadissima.



CAPITULO CXXII


Uma intenção mui fina


O que vexava a Nhã-loló era o pae. A facilidade com que elle se mettêra
com os apostadores punha em relevo antigos costumes e affinidades
sociaes; e Nhã-loló chegára a temer que tal sogro me parecesse indigno.
Era notavel a differença que ella fazia de si mesma; estudava-se e
estudava-me. A vida elegante e polida attrahia-a, principalmente
porque lhe parecia o meio mais seguro de ajustar as nossas pessoas.
Nhã-loló observava, imitava, adivinhava; ao mesmo tempo dava-se ao
esforço de mascarar a inferioridade da familia. Naquelle dia, porém,
a manifestação do pae foi tamanha que a entristeceu grandemente. Eu
busquei então divertil-a do assumpto, dizendo-lhe muitas chanças e
motes de bom tom; vãos esforços, que não a alegravam mais. Era tão
profundo o abatimento, tão expressivo o desanimo, que eu cheguei a
attribuir a Nhã-loló a intenção positiva de separar, no meu espirito,
a sua causa da causa do pae. Este sentimento pareceu-me de grande
elevação; era uma affinidade mais entre nós.

--Não ha remedio, disse eu commigo, vou arrancar esta flor a este
pantano.



CAPITULO CXXIII


O verdadeiro Cotrim


Não obstante os meus quarenta e tantos annos, como eu amasse a harmonia
da familia, entendi não tratar o casamento sem primeiro falar ao
Cotrim. Elle ouviu-me e respondeu-me seriamente que não tinha opinião
em negocio de parentes seus. Podiam suppor-lhe algum interesse, se
acaso louvasse, as raras prendas de Nhã-loló; por isso calava-se. Mais:
estava certo de que a sobrinha nutria por mim verdadeira paixão, mas se
ella o consultasse, o seu conselho seria negativo. Não era levado por
nenhum odio; apreciava as minhas bôas qualidades,--não se fartava de
as elogiar, como era de justiça; e pelo que respeita a Nhã-loló, não
chegaria jámais a negar que era noiva excellente; mas dahi a aconselhar
o casamento ia um abysmo.

--Lavo inteiramente as mãos, concluiu elle.

--Mas você achava outro dia que eu devia casar quanto antes...

--Isso é outro negocio. Acho que é indispensavel casar, principalmente
tendo ambições politicas. Saiba que na politica o celibato é uma
rémora. Agora, quanto á noiva, não posso ter voto, não quero, não devo,
não é de minha honra. Parece-me que Sabina foi além, fazendo-lhe certas
confidencias, segundo me disse; mas em todo caso ella não é tia carnal
de Nhã-loló, como eu. Olhe... mas não... não digo...

--Diga.

--Não; não digo nada.

Talvez pareça excessivo o escrupulo do Cotrim, a quem não souber que
elle possuia um caracter ferozmente honrado. Eu mesmo fui injusto
com elle durante os annos que se seguiram ao inventario do meu pae.
Reconheço que era um modelo. Arguiam-n'o de avareza, e cuido que
tinham razão; mas a avareza é apenas a exageração de uma virtude,
e as virtudes devem ser como os orçamentos: melhor é o saldo que
o _deficit._ Como era muito secco de maneiras tinha inimigos, que
chegavam a accusal-o de barbaro. O unico facto allegado neste
particular era o de mandar com frequencia escravos ao calabouço, donde
elles desciam a escorrer sangue; mas, além de que elle só mandava os
perversos e os fujões, occorre que, tendo longamente contrabandeado em
escravos, habituara-se de certo modo ao trato um pouco mais duro que
esse genero de negocio requeria, e não se póde honestamente attribuir á
indole original de um homem o que é puro effeito de relações sociaes.
A prova de que o Cotrim tinha sentimentos pios encontrava-se no seu
amor aos filhos, e na dôr que padeceu quando lhe morreu Sára, dalli a
alguns mezes; prova irrefutavel, acho eu; e não unica. Era thesoureiro
de uma confraria, e irmão de varias irmandades, e até irmão remido de
uma destas, o que não se coaduna muito com a reputação da avareza;
verdade é que o beneficio não caíra no chão: a irmandade (de que elle
fôra juiz,) mandara-lhe tirar o retrato a oleo. Não era perfeito,
de certo; tinha, por exemplo, o sestro de mandar para os jornaes a
noticia de um ou outro beneficio que praticava,--sestro reprehensivel
ou não louvavel, concordo; mas elle desculpava-se dizendo que as bôas
acções eram contagiosas, quando publicas; razão a que se não pode negar
algum peso. Creio mesmo (e nisto faço o seu maior elogio) que elle
não praticava, de quando em quando, esses beneficios senão com o fim
de espertar a philantropia dos outros; e se tal era o intuito, força
é confessar que a publicidade tornava-se uma condição _sine qua non._
Em summa, poderia dever algumas attenções, mas não devia um real a
ninguem.



CAPIULO CXXIV


Vá de intermedio


Que ha entre a vida e a morte? Uma curta ponte. Não obstante, se eu
não compuzesse este capitulo, padeceria o leitor um forte abalo, assaz
damnoso ao effeito do livro. Saltar de um retrato a um epitaphio, póde
ser real e commum; o leitor, entretanto, não se refugia no livro, senão
para escapar á vida. Não digo que este pensamento seja meu; digo que
ha nelle uma dose de verdade, e que, ao menos, a fórma é pittoresca. E
repito: não é meu.

Vá de intermedio, e contemos a este proposito uma anecdota. Foi no
tempo da minha vida parlamentar; eramos cinco; falavamos de cousas e
lousas, e aconteceu tocar nos negocios do Rio da Prata. Então, disse
um:--O governo não deve esquecer que o dinheiro é o nervo da guerra. Ao
que eu redargui que não, que o nervo da guerra eram os bons soldados.
Um dos ouvintes coçou o nariz, outro consultou o relogio, o terceiro
tamborilou sobre o joelho, o quarto deu algumas pernadas pela sala,
o quinto era eu. Mas, continuando a falar, ponderei que essa idéa,
inteiramente justa, não era minha, e sim de Machiavelli; circumstancia
que levou o primeiro a não coçar o nariz, o segundo a não consultar o
relogio, o terceiro a não tamborilar sobre o joelho, e o quarto a não
dar pernadas; e todos me rodearam, e me pediram que repetisse o dito,
e repeti, e elles extasiavam-se, e batiam com a cabeça approvando,
saboreando, decorando. O que estimei, porque fui sempre amador de idéas
justas. Mas vamos ao epitaphio.



CAPITULO CXXV


Epitaphio


                      AQUI JAZ

            D. EULALIA DAMASCENA DE BRITO

                       MORTA

             AOS DEZENOVE ANNOS DE IDADE

                   ORAI POR ELLA!



CAPITULO CXXVI


Desconsolação


O epitaphio diz tudo. Vale mais do que se lhes narrasse a molestia de
Nhã-loló, a morte, o desespero da familia, o enterro. Ficam sabendo
que morreu; accrescentarei que foi por occasião da primeira entrada
da febre amarella. Não digo mais nada, a não ser que a acompanhei até
o ultimo jazigo, e me despedi triste, mas sem lagrimas. Conclui que
talvez não a amasse devéras.

Vejam agora a que excessos póde levar uma inadvertencia; doeu-me um
pouco a cegueira da epidemia que, matando á direita e á esquerda, levou
tambem uma jovem dama, que tinha de ser minha mulher; e não cheguei
a entender a necessidade da epidemia, e menos ainda daquella morte.
Creio até que esta me pareceu ainda mais absurda que todas as outras
mortes. O Quincas Borba, porém, explicou-me que as epidemias eram uteis
á especie, embora desastrosas para uma certa porção de indivíduos; e
fez-me notar que, por mais horrendo que fosse o espectaculo, havia
uma vantagem de muito peso: a sobrevivencia do maior numero. Chegou a
perguntar-me se, no meio do luto geral, não sentia eu algum secreto
encanto em ter escapado ás garras da peste; mas esta pergunta era tão
insensata, que ficou sem resposta.

Se não contei a morte, não conto igualmente a missa do setimo dia.
A tristeza do Damasceno era profunda; esse pobre homem parecia uma
ruina. Quinze dias depois estive com elle; continuava inconsolavel, e
dizia que a dor grande com que Deus o castigára fora ainda augmentada
com a que lhe infligiram os homens. Não me disse mais nada. Tres
semanas depois tornou ao assumpto, e então confessou-me que, no no
meio do desastre irreparavel, quizera ter a consolação da presença dos
amigos. Doze pessoas apenas, e tres quartas partes amigos do Cotrim,
acompanharam á cova o cadaver de sua querida filha. E elle fizera
expedir oitenta convites. Ponderei-lhe que as perdas eram tão geraes
que bem se podia desculpar essa desattenção apparente. O Damasceno
abanava a cabeça de um modo incrédulo e triste.

--Qual! gemia elle, desampararam-me.

O Cotrim, que estava presente:

--Vieram os que devéras se interessam por você é por nós. Os oitenta
viriam por formalidade, falariam da inercia do governo, das panacéas
dos boticarios, do preço das casas, ou uns dos outros...

O Damasceno ouviu calado, abanou outra vez a cabeça, e suspirou:

--Mas viessem!



CAPITULO CXXVII


Formalidade


Grande cousa é haver recebido do ceu uma particula da sabedoria, o dom
de achar as relações das cousas, a faculdade de as comparar e o talento
de concluir! Eu tive essa distincção psychica; eu a agradeço ainda
agora do fundo do meu sepulchro.

De facto, o homem vulgar que ouvisse a ultima palavra do Damasceno,
não se lembraria della, quando, tempos depois, houvesse de olhar para
uma gravura representando seis damas turcas. Pois eu lembrei-me. Eram
seis damas de Constantinopla,--modernas,--em trajos de rua, com a
cara tapada, não tapada á outra maneira, com um espesso panno que as
cobrisse devéras, mas com um veu tenuissimo, que simulava descobrir
somente os olhos, e na realidade descobria a cara inteira. E eu achei
graça a essa esperteza da faceirice musulmana, que assim esconde o
rosto,--e cumpre o uso,--mas não o esconde,--e divulga a belleza.
Apparentemente, nada ha entre as damas turcas e o Damasceno; mas se
tu és um espirito profundo e penetrante (e duvido muito que me negues
isso), comprehenderás que, tanto n'um como n'outro caso, surge ahi a
orelha de uma rigida e meiga companheira do homem social...

Amavel Formalidade, tu és, sim, o bordão da vida, o balsamo dos
corações, a medianeira entre os homens, o vinculo da terra e do ceu; tu
enxugas as lagrimas de um pae, tu captas a indulgencia de um Propheta;
e se a dôr adormece, e se a consciencia se accommoda, a quem, senão a
ti, deverão esse immenso beneficio? A estima que passa de chapeu na
cabeça não diz nada á alma; mas a indifferença que corteja deixa-lhe
uma deleitosa impressão. A razão é que, ao contrario de uma velha
formula absurda, não é a lettra que mata; a lettra dá vida; o espirito
é que é objecto de controversia, de duvida, de interpretação, e
conseguintemente de luta e de morte. Vive tu, amavel Formalidade, para
socego do Damasceno e gloria de Muhammed.



CAPITULO CXXVIII


Na camara

E notai bem que eu vi a gravura turca, dous annos depois das palavras
de Damasceno, e vi-a na camara dos deputados, em meio de grande
borborinho, emquanto um deputado discutia um parecer da commissão de
orçamento, sendo eu tambem deputado. Para quem ha lido este livro é
escusado encarecer a minha satisfação, e para os outros é igualmente
inutil. Era deputado, e vi a gravura turca, recostado na minha cadeira,
entre um collega, que contava uma anecdota, e outro, que tirava a
lapis, nas costas de uma sobrecarta, o perfil do orador. O orador era o
Lobo Neves. A onda da vida trouxe-nos á mesma praia, como duas botelhas
de naufragos, elle contendo o seu resentimento, eu devendo conter o meu
remorso; e emprégo esta fórma suspensiva, dubitativa ou condicional,
para o fim de dizer que effectivamente não continha nada, a não ser a
ambição de ser ministro.



CAPITULO CXXIX


Sem remorsos


Não tinha remorsos. Se possuisse os apparelhos proprios, incluia neste
livro uma pagina de chimica, porque havia de decompor o remorso até
os mais simples elementos, com o fim de saber, de um modo positivo e
concludente, por que razão Achilles passea á roda de Troya o cadaver
do adversario, e lady Macbeth passea á volta da sala a sua mancha de
sangue. Mas eu não tenho apparelhos chimicos, como não tinha remorsos;
tinha vontade de ser ministro de Estado. Comtudo, se hei de acabar este
capitulo, direi que não quizera ser Achilles nem lady Macbeth; e que a
ser alguma cousa, antes Achilles, antes passear ovante o cadaver do que
a mancha; ouvem-se no fim as supplicas de Priamo, e ganha-se uma bonita
reputação militar e litteraria. Eu não ouvia as supplicas de Priamo,
mas o discurso do Lobo Neves, e não tinha remorsos.



CAPITULO CXXX


Para intercalar no cap. CXXIX


A primeira vez que pude falar a Virgilia, depois da presidencia, foi
n'um baile em 1855. Trazia um soberbo vestido de gorgorão azul, e
ostentava ás luzes o mesmo par de hombros de outro tempo. Não era a
frescura da primeira edade; ao contrario; mas ainda estava formosa,
de uma formosura outoniça, realçada pela noite. Lembra-me que falamos
muito; e lembra-me que não alludimos a cousa nenhuma do passado.
Subentendia-se tudo. Um dito remoto, vago, ou então um olhar, e mais
cousa nenhuma. Pouco depois retirou-se; eu fui vel-a descer as escadas,
e não sei por que phenomeno de ventriloquismo cerebral (perdoem-me
os philologos essa phrase barbara), murmurei commigo esta palavra
profundamente retrospectiva:

--Magnifica!

Convém intercalar este capitulo entre a primeira oração e a segunda do
cap. CXXIX.



CAPITULO CXXXI


De uma calumnia


Como eu acabava de dizer aquillo, pelo processo ventriloco-cerebral,--o
que era simples opinião e não remorso,--senti que alguem me punha a mão
no hombro. Voltei-me; era um antigo companheiro, official de marinha,
jovial, um pouco despejado de maneiras. Elle sorriu maliciosamente, e
disse-me:

--Seu maganão! Recordações do passado, hein?

--Viva o passado!

--Você naturalmente foi reintegrado no emprego.

--Salta, pelintra! disse eu, ameaçando-o com o dedo.

Confesso que este dialogo era uma indiscrição,--principalmente a ultima
replica. E com tanto maior prazer o confesso, quanto que as mulheres é
que tem fama de indiscretas, e não quero acabar o livro sem rectificar
essa noção do espirito humano. Em pontos de aventura amorosa, achei
homens que sorriam, ou negavam a custo, de um modo frio, monosyllabico,
etc., ao passo que as parceiras não davam por si, e jurariam aos
Santos Evangelhos, que era tudo uma calumnia. A razão desta differença
é que a mulher (salva a hypothese do cap. CI e outras) entrega-se por
amor, ou seja o amor-paixão de Stendhal, ou o puramente physico de
algumas damas romanas, por exemplo, ou polynesias, laponias, cafres,
e póde ser que outras raças civilisadas; mas o homem,--falo do homem
de uma sociedade culta e elegante,--o homem conjuga a sua vaidade ao
outro sentimento. Alem disso (e refiro-me sempre aos casos defesos),
a mulher, quando ama outro homem, parece-lhe que mente a um dever, e
portanto tem de dissimular com arte maior, tem de refinar a aleivosia;
ao passo que o homem, sentindo-se causa da infracção e vencedor de
outro homem, fica legitimamente orgulhoso, e logo passa a outro
sentimento menos rispido e menos secreto,--essa meiga fatuidade, que é
a transpiração luminosa do merito.

Mas seja ou não verdadeira a minha explicação, basta-me deixar escripto
nesta pagina, para uso dos seculos, que a indiscrição das mulheres
é uma burla inventada pelos homens; em amor, pelo menos, elas são
um verdadeiro sepulchro. Perdem-se muita vez por desastradas, por
inquietas, por não saberem resistir aos gestos, aos olhares; e é por
isso que uma grande dama e fino espirito, a rainha de Navarra, empregou
algures esta metaphora para dizer, que toda a aventura amorosa vinha a
descobrir-se por força, mais tarde ou mais cedo: «não ha cachorrinho
tão adestrado, que alfim lhe não ouçamos o latir.»



CAPITULO CXXXII


Que não é serio


Citando o dito da rainha de Navarra, occorre-me que entre o nosso povo,
quando uma pessoa vê outra pessoa arrufada, costuma perguntar-lhe:
«Gentes, quem matou seus cachorrinhos?» como se dissesse:--«quem lhe
levou os amores, as aventuras secretas, etc.» Mas este capitulo não é
serio.



CAPITULO CXXXIII


O principio de Helvetius


Estavamos ao ponto era que o official de marinha me arrancou a
confissão dos amores de Virgilia; e aqui emendo eu o principio de
Helvetius,--ou, por outra, explico-o. O meu interesse era calar;
confirmar a suspeita de uma cousa antiga fôra provocar algum odio
supitado, dar origem a um escandalo, quando menos adquirir a reputação
de indiscreto. Era esse o interesse; e entendendo-se o principio
de Helvetius de um modo superficial, isso é o que devia ter feito.
Mas eu já dei o motivo da indiscrição masculina: antes daquelle
interesse de _segurança_, havia outro, o do _desvanecimento_, que é
mais intimo, mais immediato: o primeiro era reflexivo, suppunha um
syllogismo anterior; o segundo era espontaneo, instintivo, vinha das
entranhas do sugeito; finalmente, o primeiro tinha o effeito remoto,
o segundo proximo. Conclusão: o principio de Helvetius é verdadeiro
no meu caso;--a diferença é que não era o interesse apparente, mas o
recondito.



CAPITULO CXXXIV


Cincoenta annos


Não lhes disse ainda,--mas digo-o agora,--que quando Virgilia descia a
escada, e o official de marinha me tocava no hombro, tinha eu cincoenta
annos. Era portanto a minha vida que descia pela escada abaixo,--ou a
melhor parte, ao menos, uma parte cheia de prazeres, de agitações, de
sustos,--capeada de dissimulação e duplicidade,--mas emfim a melhor,
se devemos falar a linguagem usual. Si, porém, empregarmos outra mais
sublime, a melhor parte foi a restante, como eu terei a honra de lhes
dizer nas poucas paginas deste livro.

Cincoenta annos! Não era preciso confessal-o. Já se vae sentindo que o
meu estylo não é tão lesto como nos primeiros dias. Naquella occasião,
cessado o dialogo com o official de marinha, que enfiou a capa e saiu,
confesso que fiquei um pouco triste. Voltei á sala, lembrou-me dansar
uma polka, embriagar-me das luzes, das flores, dos crystaes, dos olhos
bonitos, e do borburinho surdo e ligeiro das conversas particulares.
E não me arrependo; remocei. Mas, meia hora depois, quando me retirei
do baile, ás quatro da manhã, o que é que fui achar no fundo do carro?
Os meus cincoenta annos. Lá estavam elles os teimosos, não tolhidos
de frio, nem rheumaticos,--mas cochillando a sua fadiga, um pouco
cobiçosos de cama e de repouso. Então,--e vejam até que ponto póde ir
a imaginação de um homem, com somno,--então pareceu-me ouvir de um
morcego encarapitado no tejadilho:--Sr. Braz Cubas, a rejuvenescencia
estava na sala, nos crystaes, nas luzes, nas sedas,--emfim, nos outros.



CAPITULO CXXXV


Oblivion


E agora sinto que, se alguma dama tem seguido estas paginas, fecha o
livro e não lê as restantes. Para ella extinguiu-se o interesse da
minha vida, que era o amor. Cincoenta annos! Não é ainda a invalidez,
mais já não é a frescura. Venham mais dez, e eu entenderei o que um
inglez dizia, entenderei que «cousa é não achar já quem se lembre de
meus paes, e de que modo me ha de encarar o proprio ESQUECIMENTO.»

Vae em versaletes esse nome. OBLIVION! Justo é que se dem todas as
honras a um personagem tão desprezado e tão digno, conviva da ultima
hora, mas certo. Sabe-o a dama que luziu na aurora do actual reinado; e
mais dolorosamente a que ostentou suas graças em flor sob o ministerio
Paraná, porque esta acha-se mais perto do triumpho, e sente já que
outras lhe tomaram o carro. Então, se é digna de si mesma, não teima em
espertar a lembrança morta ou expirante; não busca no olhar de hoje a
mesma saudação do olhar de hontem, quando eram outros os que encetavam
a marcha da vida, de alma alegre e pé veloz. _Tempora mutantur._ E
ella comprehenderá que este turbilhão é assim mesmo, leva as folhas do
mato e os farrapos do caminho, sem excepção nem piedade; e se tiver um
pouco de philosophia, não invejará, mas lastimará as que lhe tomaram o
carro, porque tambem ellas hão de ser apeadas pelo estribeiro OBLIVION.
Espectaculo, cujo fim é divertir o planeta Saturno, que anda muito
aborrecido.



CAPITULO CXXXVI


Inutilidade


Mas, ou muito me engano, ou acabo de escrever um capitulo inútil.



CAPITULO CXXXVII


A barretina


E dahi, não; elle resume as reflexões que fiz no dia seguinte ao
Quincas Borba, accrescentando que me sentia acabrunhado, e mil
outras cousas tristes. Mas esse philosopho, com o elevado tino de
que dispunha, bradou-me que eu ia escorregando na ladeira fatal da
melancolia.

--Meu caro Braz Cubas, não te deixes vencer desses vapores. Que diacho!
é preciso ser homem! ser forte! lutar! vencer! brilhar! influir!
dominar! Cincoenta annos é a edade da sciencia e do governo. Animo,
Braz Cubas; não me sejas palerma. Que tens tu com essa successão de
ruina a ruina ou de flor a flor? Trata de saborear a vida; e fica
sabendo que a peor philosophia é a do choramigas que se deita á
margem do rio para o fim de lastimar o curso incessante das aguas. O
officio dellas é não parar nunca; accommoda-te com a lei, e trata de
aproveital-a.

Ve-se nas menores cousas o que vale a autoridade de um grande
philosopho. As palavras do Quincas Borba tiveram o condão de sacudir
o torpor moral e mental em que andava. Vamos lá; façamo-nos governo.
Crel-o-eis, posteros? Eu não havia intervindo até então nos grandes
debates. Cortejava a pasta por meio de rapapés, chás, commissões e
votos; e a pasta não vinha. Urgia apoderar-me da tribuna.

Comecei de vagar. Tres dias depois, discutindo-se o orçamento da
justiça, aproveitei o ensejo para perguntar modestamente ao ministro
se não julgava util diminuir a barretina da guarda nacional. Não
tinha vasto alcance o objecto da pergunta; mas ainda assim demonstrei
que não era indigno das cogitações de um homem de Estado; e citei
Philopemen, que ordenou a substituição dos broqueis de suas tropas,
que eram pequenos, por outros maiores, e bem assim as lanças, que
eram demasiado leves; facto que a historia não achou que desmentisse
a gravidade de suas paginas. O tamanho das nossas barretinas estava
pedindo um córte profundo, não só por serem deselegantes, mas tambem
por serem anti-hygienicas. Nas paradas, ao sol, o excesso do calor
produzido por ellas podia ser fatal. Sendo certo que um dos preceitos
de Hippocrates era trazer a cabeça fresca, parecia cruel obrigar um
cidadão, por simples consideração de uniforme, a arriscar a saude e
a vida, e consequentemente o futuro da familia. A camara e o governo
deviam lembrar-se que a guarda nacional era o anteparo da liberdade
e da independencia, e que o cidadão, chamado a um serviço gratuito,
frequente e penoso, tinha direito a que se lhe diminuisse o onus,
decretando um uniforme leve e maneiro. Accrescia que a barretina,
por seu peso, abatia a cabeça dos cidadãos, e a patria precisava de
cidadãos cuja fronte pudesse levantar-se altiva e serena diante do
poder; e conclui com esta idéa: O chorão, que inclina os seus galhos
para a terra, é arvore de cemiterio; a palmeira, erecta e firme, é
arvore do deserto, das praças e dos jardins.

Vária foi a impressão deste discurso. Quanto á forma, ao rapto
eloquente, á parte litteraria e philosophica, a opinião foi só uma;
disseram-me todos que era completo, e que de uma barretina ninguem
ainda conseguira tirar tantas idéas. Mas a parte politica foi
considerada por muitos deploravel; alguns achavam o meu discurso um
desastre parlamentar; emfim, vieram dizer-me que outros me davam já
em opposição, entrando nesse numero os opposicionistas da camara,
que chegaram a insinuar a conveniencia de uma moção de desconfiança.
Repelli energicamente tal interpretação, que não era só erronea, mas
calumniosa, á vista da notoriedade com que eu sustentava o gabinete;
accrescentei que a necessidade de diminuir a barretina, não era
tamanha que não pudesse esperar alguns annos; e que, em todo caso,
eu transigiria na extensão do córte, contentando-me com tres quartos
de polegada ou menos; emfim, dado mesmo que a minha idéa não fosse
adoptada, bastava-me tel-a iniciado no parlamento.

O Quincas Borba, porém, não fez restricção alguma. Não sou homem
politico, disse-me elle ao jantar; não sei se andaste bem ou mal;
sei que fizeste um excellente discurso. E então notou as partes
mais salientes, as bellas imagens, os argumentos fortes, com esse
comedimento de louvor que tão bem fica a um grande philosopho; depois,
tomou o assumpto á sua conta, e impugnou a barretina com tal força,
com tamanha lucidez, que acabou convencendo-me effectivamente do seu
perigo.



CAPITULO CXXXVIII


A um Critico


    Meu caro critico,

    Algumas paginas atraz, dizendo eu que tinha cincoenta annos,
    accrescentei: «Já se vae sentindo que o meu estylo não é tão
    lesto como nos primeiros dias.» Talvez aches esta phrase
    incomprehensivel, sabendo-se o meu actual estado; mas eu
    chamo a tua attenção para a subtileza daquelle pensamento. O
    que eu quero dizer não é que esteja agora mais velho do que
    quando comecei o livro. A morte não envelhece. Quero dizer,
    sim, que em cada phase da narração da minha vida experimento
    a sensação correspondente. Valha-me Deus! é preciso explicar
    tudo.



CAPITULO CXXXIX


De como não fui ministro de estado

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CAPITULO CXL


Que explica o anterior


Ha cousas que melhor se dizem calando; tal é a materia do capitulo
anterior. Podem entendel-o os ambiciosos mallogrados. Se a paixão
do poder é a mais forte de todas, como alguns inculcam, imaginem o
desespero, a dôr, o abatimento do dia em que perdi a cadeira da camara
dos deputados. Iam-se-me as esperanças todas; terminava a carreira
politica. E notem que o Quincas Borba, por inducções philosophicas
que fez, achou que a minha ambição não era a paixão verdadeira do
poder, mas um capricho, um desejo de folgar. Na opinião delle, este
sentimento, não sendo mais profundo que o outro, amofina muito mais,
porque orça pelo amor que as mulheres tem ás rendas e toucados. Um
Cromwell ou um Bonaparte, acrescentava elle, por isso mesmo que os
queima a paixão do poder, lá chegam á fina força, ou pela escada da
direita, ou pela da esquerda. Não era assim o meu sentimento; este,
não tendo em si a mesma força, não tem a mesma certeza do resultado;
e dahi a maior afflicção, o maior desencanto, a maior tristeza. O meu
sentimento, segundo o Humanitismo...

--Vae para o diabo com o teu Humanitismo, interrompi-o; estou farto de
philosophias que me não levam a cousa nenhuma.

A dureza da interrupção, tratando-se de tamanho philosopho, equivalia a
um desacato; mas elle proprio desculpou a irritação com que lhe falei.
Trouxeram-nos café; era uma hora da tarde, estavamos na minha sala de
estudo, uma bella sala, que dava para o fundo da chacara, bons livros,
objectos d'arte, um Voltaire entre elles, um Voltaire de bronze, que
nessa occasião parecia accentuar o risinho de sarcasmo, com que me
olhava, o ladrão; cadeiras excellentes; fóra, o sol, um grande sol,
que o Quincas Borba, não sei se por chalaça ou poesia, chamou um dos
ministros da natureza; corria um vento fresco, o ceu estava nitidamente
azul. De cada janella,--eram trez--pendia uma gaiola com passaros,
que chilreavam as suas operas rusticas. Tudo tinha a apparencia de
uma conspiração das cousas contra o homem: e, comquanto eu estivesse
na _minha_ sala, olhando para a _minha_ chacara, sentado na _minha_
cadeira, ouvindo os _meus_ passaros, ao pé dos _meus_ livros, allumiado
pelo _meu_ sol, não chegava a curar-me das saudades daquella outra
cadeira, que não era minha.



CAPITULO CXLI


Os cães


--Mas, emfim, que pretendes fazer agora? perguntou-me o Quincas Borbas,
indo pôr a chicara vazia no parapeito de uma das janellas.

Não sei; vou metter-me na Tijuca; fugir aos homens. Estou envergonhado,
aborrecido. Tantos sonhos, meu caro Borba, tantos sonhos, e não sou
nada.

--Nada! interrompeu-me o Quincas Borba com um gesto de indignação.

Para distrair-me, convidou-me a sair; saimos para os lados do Engenho
Velho. Iamos a pé, philosophando as cousas. Nunca me hade esquecer o
beneficio desse passeio, que me restituiu o socego e a força. A palavra
daquelle grande homem era o cordial da sabedoria. Disse-me elle que eu
não podia fugir ao combate; se me fechavam a tribuna, cumpria-me abrir
um jornal. Chegou a usar uma expressão menos elevada, mostrando assim
que a lingua philosophica podia, uma ou outra vez, retemperar-se no
calão do povo. Funda um jornal, disse-me elle, e «desmancha toda esta
egrejinha.»

--Magnifica idéa! Vou fundar um jornal, vou escachal-os, vou...

--Lutar. Pódes escachal-os ou não; o essencial é que lutes. Vida é
luta. Vida sem luta é um mar morto no centro do organismo universal.

Dahi a pouco demos com uma briga de cães; facto que aos olhos de um
homem vulgar não teria valor. O Quincas Borba fez-me parar e observar
os cães. Eram dous. Notou que ao pé delles estava um osso, motivo da
guerra, e não deixou de chamar a minha attenção para a circumstancia
de que o osso não tinha carne. Um simples osso nú. Os cães mordiam-se,
rosnavam, com o furor nos olhos... O Quincas Borba metteu a bengala
debaixo do braço, encostou o queixo no castão, e parecia em extasis.

--Que bello que isto é! dizia elle de quando em quando.

Quiz arrancar-me dalli, mas não pude; elle estava arraigado ao chão,
e só continuou a andar, quando a briga cessou inteiramente, e um
dos cães, mordido e vencido, foi levar a sua fome a outra parte.
Notei que ficára sinceramente alegre, posto contivesse a alegria,
segundo convinha a um grande philosopho. Fez-me observar a belleza do
espectaculo, relembrou o objecto da luta, concluiu que os cães tinham
fome; mas a privação do alimento era nada para os effeitos geraes da
philosophia. Nem deixou de recordar que em algumas partes do globo
o espectaculo é mais grandioso: as creaturas humanas é que disputam
aos cães os ossos e outros manjares menos appeteciveis; luta que se
complica muito, porque entra em acção a intelligencia do homem, com
todo o accumulo de sagacidade que lhe deram os seculos, etc.



CAPITULO CXLII


O pedido secreto


Quanta cousa n'um minuete! como dizia o outro. Quanta cousa n'uma briga
de cães! Mas eu não era um discipulo servil ou medroso, que deixasse de
fazer uma ou outra objecção adequada. Andando, disse-lhe que tinha uma
duvida; não estava bem certo da vantagem de disputar a comida aos cães.
Elle respondeu-me com excepcional brandura:

--Disputai-a aos outros homens é mais logico, porque a condição dos
contendores é a mesma, e leva o osso o que fôr mais forte. Mas porque
não será um espectaculo grandioso disputal-o aos cães? Voluntariamente,
comem-se gafanhotos, como o Precursor, ou cousa peor, como Ezequiel;
logo, o ruim é comivel; resta saber se é mais digno do homem
disputal-o, por virtude de uma necessidade natural, ou preferil-o, para
obedecer a uma exaltação religiosa, isto é, modificavel, ao passo que a
fome é eterna, como a vida e como a morte.

Estavamos á porta de casa; deram-me uma carta, dizendo que vinha de uma
senhora. Entramos; e o Quincas Borba, com a discrição propria de um
philosopho, foi ler a lombada dos livros de uma estante, emquanto eu
lia a carta, que era de Virgilia:

    «Meu bom amigo,

    «D. Placida está muito mal. Peço-lhe o favor de fazer alguma
    cousa por ella; mora no becco das Escadinhas; veja se alcança
    metei-a na Misericórdia.

    Sua amiga sincera,

    [signature]

Não era a letra fina e correcta de Virgilia, mas grossa e desegual; o
V da assignatura não passava de um rabisco sem intenção alphabetica;
de maneira que, se a carta apparecesse, era mui difficil attribuir-lhe
a autoria. Virei e revirei o papel. Pobre D. Placida! Mas eu tinha-lhe
deixado os cinco contos da praia da Gambôa, enão podia comprehender
que...

--Vaes comprehender, disse o Quincas Borba, tirando um livro da estante.

--O que? perguntei espantado.

--Vaes comprehender que eu só te disse a verdade. Pascal é um dos meus
avós espirituaes; e, çomquanto a minha philosophia valha mais que a
delle, não posso negar que era um grande homem. Ora, que diz elle
nesta pagina?--E, chapéu na cabeça, bengala sobraçada, apontava o logar
com o dedo.--Que diz elle? Diz que o homem tem «uma grande vantagem
sobre o resto do universo: sabe que morre, ao passo que o universo
ignora-o absolutamente.» Vês? Logo, o homem que disputa o osso a um cão
tem sobre este a grande vantagem de saber que tem fome; e é isto que
torna grandiosa a luta, como eu dizia. «Sabe que morre» é uma expressão
profunda; creio todavia que é mais profunda a minha expressão: sabe
que tem fome. Porquanto, o facto da morte limita, por assim dizer, o
entendimento humano; a consciencia da extincção dura um breve instante
e acaba para nunca mais, ao passo que a fome tem a vantagem de voltar,
de prolongar o estado consciente. Parece-me (se não vae nisso alguma
immodestia), que a fórmula de Pascal é inferior á minha, sem todavia
deixar de ser um grande pensamento, e Pascal um grande homem.



CAPITULO CXLIII


Não vou


Emquanto elle restituia o livro á estante, relia eu o bilhete. Ao
jantar, vendo que eu falava pouco, mastigava sem acabar de engulir,
fitava o canto da sala, a ponta da meza, um prato, uma cadeira, uma
mosca invisivel, disse-me elle:--Tens alguma cousa; aposto que foi
aquella carta?--Foi. Realmente, sentia-me aborrecido, incommodado, com
o pedido de Virgilia. Tinha dado a D. Placida cinco contos de réis;
duvido muito que ninguem fosse mais generoso do que eu, nem tanto.
Cinco contos! E que fizera delles? Naturalmente botou-os fóra, comeu-os
em grandes festas, e agora toca para a Misericordia, e eu que a leve!
Morre-se em qualquer parte. Accresce que eu não sabia, ou não me
lembrava do tal becco das Escadinhas; mas, pelo nome, parecia-me algum
recanto estreito e escuro da cidade. Tinha de lá ir, chamar a attenção
dos visinhos, bater á porta, etc. Que massada! Não vou.



CAPITULO CXLIV


Utilidade relativa


Mas a noite, que é boa conselheira, ponderou que a cortezia mandava
obedecer aos desejos da minha antiga dama.

--Letras vencidas, urge pagal-as, disse eu ao levantar-me.

Depois do almoço fui á casa de D. Placida; achei um mólho de ossos,
envolto em molambos, estendido sobre um catre velho e nauseabundo;
dei-lhe algum dinheiro. No dia seguinte fil-a transportar para a
Misericordia, onde ella morreu uma semana depois. Minto: amanheceu
morta; saiu da vida ás escondidas, tal qual entrára. Outra vez
perguntei, a mim mesmo, como no cap. LXXV, se era para isto que o
sachristão da Sé e a doceira trouxeram D. Placida á luz, n'um momento
de sympathia especifica. Mas adverti logo que, se não fosse D. Placida,
talvez os meus amores com Virgilia tivessem sido interrompidos, ou
immediatamente quebrados, em plena effervescencia; tal foi, portanto, a
utilidade da vida de D. Placida. Utilidade relativa, convenho; mas que
diacho ha absoluto nesse mundo?



CAPITULO CXLV


Simples repetição


Quanto aos cinco contos, não vale a pena dizer que um canteiro da
visinhança fingiu-se enamorado de D. Placida, logrou espertar-lhe
os sentidos, ou a vaidade, e casou com ella; no fim de alguns mezes
inventou um negocio, vendeu as apolices e fugiu com o dinheiro. Não
vale a pena. É o caso dos cães do Quincas Borba. Simples repetição de
um capitulo.



CAPITULO CXLVI


O programma


Urgia fundar o jornal. Redigi o programma, que era uma applicação
politica do Humanitismo; somente, como o Quincas Borba não houvesse
ainda publicado o livro, (que aperfeiçoava de anno em anno) assentamos
de lhe não fazer nenhuma referencia. O Quincas Borba exigiu apenas uma
declaração, autographa e reservada, de que alguns principios novos
applicados á politica eram tirados do livro delle, ainda inedito.

Era a fina flôr dos programmas; promettia curar a sociedade, destruir
os abusos, defender os sãos principios de liberdade e conservação;
fazia um appello ao commercio e á lavoura; citava Guizot e Ledru-Rollin
e acabava com esta ameaça, que o Quincas Borba achou mesquinha e
local: «A nova doutrina que professamos ha de inevitavelmente derribar
o actual ministerio.» Confesso que, nas circumstancias politicas da
occasião, o programma pareceu-me uma obra-prima. A ameaça do fim, que
o Quincas Borba achou mesquinha, demonstrei-lhe que era saturada do
mais puro Humanitismo, e elle mesmo o confessou depois. Porquanto, o
Humanitismo não excluia nada; as guerras de Napoleão e uma contenda
de cabras eram, segundo a nossa doutrina, a mesma sublimidade, com a
differença que os soldados de Napoleão sabiam que morriam, cousa que
apparentemente não acontece ás cabras. Ora, eu não fazia mais do que
applicar ás circumstancias a nossa fórmula philosophica: Humanitas
queria substituir Humanitas para consolação de Humanitas.

--Tu és o meu discipulo amado, o meu califa, bradou o Quincas Borba,
com uma nota de ternura, que até então lhe não ouvira. Posso dizer
como o grande Muhammed: nem que venham agora contra mim o sol e a lua,
não recuarei das minhas idéas. Crê, meu caro Braz Cubas, que esta é a
verdade eterna, anterior aos mundos, posterior aos seculos.



CAPITULO CXLVII


O desatino


Mandei logo para a imprensa uma noticia discreta, dizendo que
provavelmente começaria a publicação de um jornal opposicionista, dahi
a algumas semanas, redigido pelo Dr. Braz Cubas. O Quincas Borba, a
quem li a noticia, pegou da penna, e acrescentou ao meu nome, com uma
fraternidade verdadeiramente humanistica, esta phrase: «um dos mais
gloriosos membros da passada camara.»

No dia seguinte entra-me em casa o Cotrim. Vinha um pouco transtornado,
mas dissimulava, affectando socego e até alegria. Vira a noticia
do jornal, e achou que devia, como amigo e parente, dissuadir-me
de semelhante idéa. Era um erro, um erro fatal. Mostrou que eu ia
collocar-me n'uma situação difficil, e de certa maneira trancar as
portas do parlamento. O ministerio, não só lhe parecia excellente,
o que aliás podia não ser a minha opinião, mas com certeza viveria
muito; e que podia eu ganhar com indispol-o contra mim? Sabia que
alguns dos ministros me eram affeiçoados; não era impossivel uma vaga,
e... Interrompi-o nesse ponto, para lhe dizer que meditára muito o
passo que ia dar, e não podia recuar uma linha. Cheguei a propôr-lhe a
leitura do programma, mas elle recusou energicamente, dizendo que não
queria ter a minima parte no meu desatino.

--É um verdadeiro desatino, repetiu elle; pense ainda alguns dias, e
verá que é* um desatino.

A mesma cousa disse Sabina, á noite, no theatro. Deixou a filha no
camarote, como Cotrim, e trouxe-me ao corredor.

--Mano Braz, que é que você vae fazer? perguntou-me afflicta. Que idéa
é essa de provocar o governo, sem necessidade, quando podia....

Expliquei-lhe que não me convinha mendigar uma cadeira no parlamento;
que a minha idéa era derrubar o ministerio, por não me parecer adequado
á situação--e a certa fórmula philosophica; afiancei que empregaria
sempre uma linguagem cortez, embora energica. A violencia não era
especiaria do meu paladar. Sabina bateu com o leque na ponta dos dedos,
abanou a cabeça, e tornou ao assumpto com um ar de supplica e ameaça,
alternadamente; eu disse-lhe que não, que não, e que não. Desenganada,
lançou-me em rosto preferir os conselhos de pessoas estranhas e
invejosas aos della e do marido.--Pois siga o que, lhe parecer,
concluiu; nós cumprimos a nossa obrigação. Deu-me as costas e voltou ao
camarote.



CAPITULO CXLVIII


O problema insoluvel


Publiquei o jornal. Vinte e quatro horas depois, apparecia em outros
uma declaração do Cotrim, dizendo, era substancia, que «posto não
militasse em nenhum dos partidos em que se dividia a patria, achava
conveniente deixar bem claro que não tinha influencia nem parte directa
ou indirecta na folha de seu cunhado, o Dr. Braz Cubas, cujas idéas
e procedimento politico inteiramente reprovava. O actual ministerio
(como aliás qualquer outro composto de eguaes capacidades) parecia-lhe
destinado a promover a felicidade publica.»

Não podia acabar de crer nos meus olhos. Esfreguei-os uma e duas
vezes, e reli a declaração inopportuna, insolita e enigmatica. Se
elle nada tinha com os partidos, que lhe importava um incidente tão
vulgar como a publicação de uma folha? Nem todos os cidadãos que acham
bom ou mau um ministerio fazem declarações taes pela imprensa, nem
são obrigados a fazel-as. Realmente, era um mysterio a intrusão do
Cotrim neste negocio, não menos que a sua aggressão pessoal. Nossas
relações até então tinham sido lhanas e benevolas; não me lembrava
nenhum dissentimento, nenhuma sombra, nada, depois da reconciliação.
Ao contrario, as recordações eram de verdadeiros obsequios; assim, por
exemplo, sendo eu deputado, pude obter-lhe uns fornecimentos para o
arsenal de marinha, fornecimentos que elle continuava a fazer com a
maior pontualidade, e dos quaes me dizia algumas semanas antes, que
no fim de mais trez annos, podiam dar-lhe uns duzentos contos. Pois
a lembrança de tamanho obsequio não teve força para obstar que elle
viesse a publico enxovalhar o cunhado? Devia ser mui poderoso o motivo
da declaração, que o fazia commetter ao mesmo tempo um destempero e uma
ingratidão; confesso que era um problema insoluvel...



CAPITULO CXLIX


Theoria do beneficio


... Tão insoluvel que o Quincas Borba não pôde dar com elle, apezar de
estudal-o longamente e com boa vontade.--Ora adeus! concluiu; nem todos
os problemas valem cinco minutos de attenção.

Quanto á censura de ingratidão, o Quincas Borba rejeitou-a
inteiramente, não como improvavel, mas como absurda, por não obedecer
ás conclusões de uma boa philosophia humanistica:

--Não me pódes negar um facto, disse elle; é que o prazer do
beneficiador é sempre maior que o do beneficiado. Que é o beneficio? é
um acto que faz cessar certa privação do beneficiado. Uma vez produzido
o effeito essencial, isto é, uma vez cessada a privação, torna o
organismo ao estado anterior, ao estado indifferente. Suppõe que tens
apertado em demasia o cós das calças; para fazer cessar o incommodo,
desabotôas o cós, respiras, saboreas um instante de gozo, o organismo
torna á indifferença, e não te lembras dos teus dedos que praticaram o
acto. Não havendo nada que perdure, é natural que a memoria se esvaeça,
porque ella não é uma planta aerea, precisa de chão. A esperança de
outros favores, é certo, conserva sempre no beneficiado a lembrança do
primeiro; mas este facto, aliás um dos mais sublimes que a philosophia
póde achar em seu caminho, explica-se pela memoria da privação, ou,
usando de outra fórmula, pela privação continuada na memoria, que
repercute a dor passada e aconselha a precaução do remedio opportuno.
Não digo que, ainda sem esta circumstancia, não aconteça, algumas
vezes, persistir a memoria do obsequio, acompanhada de certa affeição
mais ou menos intensa; mas são verdadeiras aberrações, sem nenhum valor
aos olhos de um philosopho.

--Mas, repliquei eu, se nenhuma razão ha para que perdure a memoria do
obsequio no obsequiado, menos ha de haver em relação ao obsequiador.
Quizera que me explicasses este ponto.

--Não se explica o que é de sua natureza evidente, retorquiu o Quincas
Borba; mas eu direi alguma cousa mais. A persistencia do beneficio na
memoria de quem o exerce explica-se pela natureza mesma do beneficio
e seus effeitos. Primeiramente, ha o sentimento de uma boa acção, e
deductivamente a consciencia de que somos capazes de boas acções; em
segundo logar, recebe-se uma convicção de superioridade sobre outra
creatura, superioridade no estado e nos meios; e esta é uma das
cousas mais legitimamente agradaveis, segundo as melhores opiniões,
ao organismo humano. Erasmo, que no seu _Elogio da Sandice_ escreveu
algumas cousas boas, chamou a attenção para a complacencia com que dois
burros se coçam um ao outro. Estou longe de rejeitar essa observação de
Erasmo; mas direi o que elle não disse, a saber, que se um dos burros
coçar melhor o outro, esse ha de ter nos olhos algum indicio especial
de satisfação. Porque é que uma mulher bonita olha muitas vezes para
o espelho, senão porque se acha bonita, e porque isso lhe dá certa
superioridade sobre uma multidão de outras mulheres menos bonitas
ou absolutamente feias? A consciencia é a mesma cousa; remira-se a
miudo, quando se acha bella. Nem o remorso é outra cousa mais do que o
trejeito de uma consciencia que se vê hedionda. Não esqueças que, sendo
tudo uma simples irradiação de Humanitas, o beneficio e seus effeitos,
são phenomenos perfeitamente admiráveis.



CAPITULO CL


Rotação e translação


Ha em cada empreza, affeição ou edade um cyclo inteiro da vida humana.
O primeiro numero do meu jornal encheu-me a alma de uma vasta aurora,
coroou-me de verduras, restituiu-me a lepidez da mocidade. Seis mezes
depois batia a hora da velhice, e dahi a duas semanas a da morte, que
foi clandestina, como a de D. Placida. No dia em que o jornal amanheceu
morto, respirei como um homem que vem de longo caminho. De modo que,
se eu disser que a vida humana nutre de si mesma outras vidas, mais
ou menos ephemeras, como o corpo alimenta os seus parasitas, creio
não dizer uma cousa inteiramente absurda. Mas, para não arriscar essa
figura menos nitida e adequada, prefiro uma imagem astronomica: o homem
executa á roda do grande mysterio um movimento duplo de rotação e
translação; tem os seus dias, deseguaes como os de Jupiter, e delles
compõe o seu anno mais ou menos longo.

No momento em que eu terminava o meu movimento de rotação, concluia o
Lobo Neves o seu movimento de translação. Morria com o pé na escada
ministerial. Correu ao menos, durante algumas semanas, que elle ia ser
ministro; e pois que o boato me encheu de muita irritação e inveja, não
é impossivel que a noticia da morte me deixasse alguma tranquillidade,
allivio, e um ou dous minutos de prazer. Prazer é muito, mas é verdade;
juro aos seculos que é a pura verdade.

Fui ao enterro. Na sala mortuaria achei Virgilia, ao pé do feretro, a
soluçar. Quando levantou a cabeça, vi que chorava deveras. Ao sair o
enterro, abraçou-se ao caixão, afflicta; vieram tiral-a e leval-a para
dentro. Digo-vos que as lagrimas eram verdadeiras. Eu fui ao cemiterio;
e, para dizer tudo, não tinha muita vontade de falar; levava uma pedra
na garganta ou na consciencia. No cemiterio, principalmente quando
deixei cair a pá de cal sobre o caixão, no fundo da cova, o baque surdo
da cal deu-me um estremecimento passageiro, é certo, mas desagradavel;
e depois a tarde tinha o peso e a côr do chumbo; o cemiterio, as roupas
pretas...



CAPITULO CLI


Philosophia dos epitaphios


Saí, afastando-me dos grupos, e fingindo ler os epitaphios. E, aliás,
gosto dos epitaphios; elles são, entre a gente civilisada, uma
expressão daquelle pio e secreto egoismo que induz o homem a arrancar
á morte um farrapo ao menos da sombra que passou. Dahi vem, talvez,
a tristeza inconsolavel dos que levam os seus mortos á valla commum;
parece-lhes que a podridão anonyma os alcança a elles mesmos.



CAPITULO CLII


A moeda do Vespasiano


Tinham ido todos; só o meu carro esperava pelo dono. Accendi um
charuto; afastei-me do cemiterio. Não podia sacudir dos olhos a
ceremonia do enterro, nem dos ouvidos os soluços de Virgilia. Os
soluços, principalmente, tinham o som vago e mysterioso de um problema.
Virgilia trahira o marido, com sinceridade; e agora chorava-o com
sinceridade. Eis uma combinação difficil que não pude fazer em todo
o trajecto; em casa, porém, apeando-me do carro, suspeitei que a
combinação era possivel, e até facil. Meiga Natura! A taxa da dor é
como a moeda de Vespasiano; não cheira á origem, e tanto se colhe do
mal como do bem. A moral reprehenderá, porventura, a minha complice;
é o que te não importa, implacavel amiga, uma vez que lhe recebeste
pontualmente as lagrimas. Meiga, tres vezes meiga Natura!



CAPÍTULO CLIII


O alienista


Começo a ficar pathetico; e prefiro dormir. Dormi, sonhei que era
nababo, e acordei com a idéa de ser nababo. Eu gostava, ás vezes,
de imaginar esses contrastes de região, estado e credo. Alguns dias
antes tinha pensado na hypothese de uma revolução social, religiosa e
politica, que transferisse o arcebispo de Cantuaria a simples collector
de Petropolis, e fiz longos calculos para saber se o collector
eliminaria o arcebispo, ou se o arcebispo rejeitaria o collector, ou
que porção de arcebispo póde jazer n'um collector, ou que somma de
collector póde combinar com um arcebispo, etc. Questões insoluveis,
apparentemente, mas na realidade perfeitamente soluveis, desde que se
attenda que póde haver n'um arcebispo dous arcebispos,--o da bulla e o
outro. Está dito, vou ser nababo.

Era um simples gracejo; disse-o, todavia, ao Quincas Borba, que
olhou para mim com certa cautella e pena, levando a sua bondade a
communicar-me que eu estava doudo. Ri-me a principio; mas a nobre
convicção do philosopho incutiu-me certo medo. A unica objecção contra
a palavra do Quincas Borba é que não me sentia doudo, mas não tendo
geralmente os doudos outro conceito de si mesmos, tal objecção ficava
sem valor. E vêde se ha algum fundamento na crença popular de que os
philosophos são homens alheios ás cousas minimas. No dia seguinte
mandou-me o Quincas Borba um alienista. Conhecia-o, fiquei aterrado.
Elle porém houve-se com a maior delicadeza e habilidade, despedindo-se
tão alegremente que me animou a perguntar-lhe se deveras me não achava
doudo.

--Não, disse elle sorrindo; raros homens terão tanto juizo como o
senhor.

--Então o Quincas Borba enganou-se?

--Redondamente. E depois:--Ao contrario, se é amigo delle... peço-lhe
que o distraia... que...

--Justos ceus! Parece-lhe?... Um homem de tamanho espirito! um
philosopho!

Não importa; a loucura entra em todas as casas. Imaginem a minha
afflicção. O alienista, vendo o effeito de suas palavras, reconheceu
que eu era amigo do Quincas Borba, e tratou de diminuir a gravidade da
advertencia. Observou que podia não ser nada, e accrescentou até que um
grãosinho de sandice, longe de fazer mal, dava certo pico á vida. Como
eu rejeitasse com horror esta opinião, o alienista sorriu e disse-me
uma cousa tão extraordinaria, tão extraordinaria, que não merece menos
de um capitulo.



CAPITULO CLIV


Os navios do Pireu


--Ha de lembrar-se, disse-me o alienista, daquelle famoso maniaco
atheniense, que suppunha que todos os navios entrados no Pireu eram
de sua propriedade. Não passava de um pobretão, que talvez não
tivesse, para dormir, a cuba de Diogenes; mas a posse imaginaria dos
navios valia por todas as drachmas da Hellade. Ora bem, ha em todos
nós um maniaco de Athenas; e quem jurar que não possuiu alguma vez,
mentalmente, dous ou tres patachos, pelo menos, póde crer que jura
falso.

--Tambem o senhor? perguntei-lhe.

--Tambem eu.

--Tambem eu?

--Tambem o senhor; e o seu criado, não menos, se é seu criado esse
homem que alli está sacudindo os tapetes á janella.

De facto, era um dos meus criados que batia os tapetes, emquanto
nós falavamos no jardim, ao lado. O alienista notou então que elle
escancarára as janellas todas, desde longo tempo, que alçára as
cortinas, que devassára o mais possivel a sala, ricamente alfaiada,
para que a vissem de fóra, e concluiu:--Este seu criado tem a mania do
atheniense: crê que os navios são delle; uma hora de illusão que lhe dá
a maior felicidade da terra.



CAPITULO CLV


Reflexão cordial


--Se o alienista tem razão, disse eu commigo, não haverá muito que
lastimar o Quincas Borba; e uma questão de mais ou de menos. Comtudo,
é justo cuidar delle, e evitar que lhe entrem no cerebro maniacos de
outras paragens.



CAPITULO CLVI


Orgulho tem servilidade


O Quincas Borba divergiu do alienista em relação ao meu
criado.--Póde-se, por imagem, disse elle, attribuir ao teu criado
a mania de atheniense; mas imagens não são idéas nem observações
tomadas á natureza. O que o teu criado tem é um sentimento nobre
e perfeitamente regido pelas leis do Humanitismo: é o orgulho
da servilidade. A intenção delle é mostrar que não é criado de
_qualquer._--Depois chamou a minha attenção para os cocheiros de casa
grande, mais impertigados que o amo, para os criados de hotel, cuja
solicitude obedece ás variações sociaes da freguezia, etc. E concluiu
que era tudo a expressão daquelle sentimento delicado e nobre,--prova
cabal de que muitas vezes o homem, ainda a engraxar botas, é sublime.



CAPITULO CLVII


Phase brilhante


--Sublime és tu, bradei eu, lançando-lhe os braços ao pescoço.

Com effeito, era impossível crer que um homem tão profundo pudesse
chegar á demencia; e foi o que lhe disse após o meu abraço,
denunciando-lhe a suspeita do alienista. Não posso descrever a
impressão que lhe fez a denuncia; lembra-me que elle estremeceu e ficou
muito pallido.

Foi por esse tempo que eu me reconciliei outra vez com o Cotrim, sem
chegar a saber a causa do dissentimento. Reconciliação opportuna,
porque a solidão pesava-me, como um remorso, e a vida era para mim
a peor das fadigas, que é a fadiga sem trabalho. Pouco depois fui
convidado por elle a filiar-me n'uma Ordem Terceira; o que eu não fiz
sem consultar o Quincas Borba:

--Vae se queres, disse-me este, mas temporariamente. Eu trato de
annexar á minha philosophia uma parte dogmatica e liturgica. O
Humanitismo ha de ser tambem uma religião, a do futuro, a unica
verdadeira. O christianismo é bom para as mulheres e os mendigos, e as
outras religiões não valem mais do que essa: orçam todas pela mesma
vulgaridade ou fraqueza. O paraiso christão é um digno emulo do paraiso
mussulmano; e quanto ao nirvana de Buddha não passa de uma concepção de
paralyticos. Verás o que é a religião humanistica. A absorpção final,
a phase _contractiva_, é a reconstituição da substancia, não o seu
anniquilamento, etc. Vae aonde te chamam; não esqueças, porém, que és o
meu califa.

E vede agora a minha, modestia; filiei-me na Ordem Terceira de ***,
exerci alli alguns cargos, foi essa a phase mais brilhante da minha
vida. Não obstante, calo-me, não digo nada, não conto os meus serviços,
o que fiz aos pobres e aos enfermos, nem as recompensas que recebi,
nada, não digo absolutamente nada.

Talvez a economia social pudesse ganhar alguma cousa, si eu mostrasse
como todo e qualquer premio estranho vale pouco ao lado do premio
subjectivo e immediato; mas seria romper o silencio que jurei guardar
neste ponto. Demais, os phenomenos da consciencia são de difficil
analyse; por outro lado, se contasse um, teria de contar todos os que
a elle se prendessem, e acabava fazendo um capitulo de psychologia.
Affirmo sómente que foi a phase mais brilhante da minha vida. Os
quadros eram tristes; tinham a monotonia da desgraça, que é tão
aborrecida como a do gozo, e talvez peor. Mas a alegria que se dá á
alma dos doentes e dos pobres, é recompensa de algum valor; e não me
digam que é negativa, por só recebel-a o obsequiado. Não; eu recebia-a
de um modo reflexo, e ainda assim grande, tão grande que me dava
excellente idéa de mim mesmo.



CAPITULO CLVIII


Dous encontros


No fim de alguns annos, tres ou quatro, estava enfarado do officio,
e deixei-o, não sem um donativo importante, que me deu direito ao
retrato na sacristia. Não acabarei, porém, o capitulo sem dizer que vi
morrer no hospital da Ordem, adivinhem quem?... a linda Marcella; e
vi-a morrer no mesmo dia em que, visitando um cortiço, para distribuir
esmolas, achei... Agora é que não são capazes de adivinhar... achei a
flôr da moita, Eugenia, a filha de D. Eusebia e do Villaça, tão coxa
como a deixara, e ainda mais triste.

Esta, ao reconhecer-me, ficou pallida, e baixou os olhos; mas foi obra
de um instante. Ergueu logo a cabeça, e fitou-me com muita dignidade.
Comprehendi que não receberia esmolas da minha algibeira, e estendi-lhe
a mão, como faria á esposa de um capitalista. Cortejou-me e fechou-se
no cubiculo. Nunca mais a vi; não soube nada da vida della, nem se a
mãe era morta, nem que desastre a trouxera a tamanha miseria. Sei que
continuava coxa e triste. Foi com esta impressão profunda que cheguei
ao hospital, onde Marcella entrara na vespera, e onde a vi expirar meia
hora depois, feia, magra, decrepita...



CAPITULO CLIX


A semi-demencia


Comprehendi que estava velho, e precisava de uma força; mas o Quincas
Borba partira seis mezes antes para Minas Geraes, e levou comsigo a
melhor das philosophias. Voltou quatro mezes depois, e entrou-me em
casa, certa manhã, quasi no estado em que eu o vira no Passeio Publico.
A differença é que o olhar era outro. Vinha demente. Contou-me que,
para o fim de aperfeiçoar o Humanitismo, queimára o manuscripto todo e
ia recomeçal-o. A parte dogmatica ficava completa, embora não escripta;
era a verdadeira religião do futuro.

--Juras por Humanitas? perguntou-me.

--Sabes que sim.

A voz mal podia sair-me do peito; e aliás não tinha descoberto toda
a cruel verdade. O Quincas Borba não só estava louco, mas sabia que
estava louco, e esse resto de consciencia, como uma frouxa lamparina
no meio das trevas, complicava muito o horror da situação. Sabia-o,
e não se irritava contra o mal; ao contrario, dizia-me que era ainda
uma prova de Humanitas, que assim brincava comsigo mesmo. Recitava-me
longos capitulos do livro, e antiphonas, e litanias espirituaes; chegou
até a reproduzir uma dansa sacra que inventara para as ceremonias do
Humanitismo. A graça lugubre com que elle levantava e sacudia as pernas
era singularmente fantastica. Outras vezes amuava-se a um canto, com os
olhos fitos no ar, uns olhos em que, de longe em longe, fulgurava um
raio persistente da razão, triste como uma lagrima...

Morreu pouco tempo depois, em minha casa, jurando e repetindo sempre
que a dor era uma illusão, e que Pangloss, o calumniado Pangloss, não
era tão tolo como o suppoz Voltaire.



CAPITULO CLX


Das negativas


Entre a morte do Quincas Borba e a minha, mediaram os successos
narrados na primeira parte do livro. O principal delles foi a invenção
do _emplasto Braz Cubas_, que morreu commigo, por causa da molestia
que apanhei. Divino emplasto, tu me darias o primeiro logar entre os
homens, acima da sciencia e da riqueza, porque eras a genuina e directa
inspiração do ceu. O acaso determinou o contrario; e ahi vos ficaes
eternamente hypocondriacos.

Este ultimo capitulo é todo de negativas. Não alcancei a celebridade do
emplasto, não fui ministro, não fui califa, não conheci o casamento.
Verdade é que, ao lado dessas faltas, coube-me a boa fortuna de não
comprar o pão com o suor do meu rosto. Mais: não padeci a morte de D.
Placida, nem a semi-demencia do Quincas Borba. Sommadas umas cousas e
outras, qualquer pessoa imaginará que não houve mingua nem sobra, e
conseguintemente que sai quite com a vida. E imaginará mal; porque ao
chegar a este outro lado do mysterio, achei-me com um pequeno saldo,
que é a derradeira negativa deste capitulo de negativas:--Não tive
filhos, não transmitti a nenhuma creatura o legado da nossa miseria.

FIM



ÍNDICE


Ao leitor v

Dedicatória vii

Capitulo


             I    Obito do auto
            II    O emplasto
           III    Genealogia
            IV    A idéa fixa
             V    Em que apparece a orelha de uma senhora
            VI    Chimène, qui l'eut dit? Rodrigue, qui l'eut cru?
           VII    O delirio
          VIII    Razão contra Sandice
            IX    Transição
             X    Naquelle dia
            XI    O menino é pae do homem
           XII    Um episodio de 1814
          XIII    Um salto
           XIV    O primeiro beijo
            XV    Marcella
           XVI    Uma reflexão immoral
          XVII    Do trapezio o outras cousas
         XVIII    Visão do corredor
           XIX    A bordo
            XX    Bacharelo-me
           XXI    O almocreve
          XXII    Volta ao Rio
         XXIII    Triste, mas curto
          XXIV    Curto, era alegre
           XXV    Na Tijuca
          XXVI    O autor hesita
         XXVII    Virgilia?
        XXVIII    Contanto que
          XXIX    A visita
           XXX    A flor da moita
          XXXI    A borboleta preta
         XXXII    Côxa de nascença
        XXXIII    Bem aventurados os que não descem
         XXXIV    A uma alma sensivel
          XXXV    O caminho de Damasco
         XXXVI    A proposito de botas
        XXXVII    Emfim!
       XXXVIII    A quarta edição
         XXXIX    O visinho
            XL    Na sege
           XLI    A allucinação
          XLII    Que escapou a Aristoteles
         XLIII    Marqueza, porque eu serei marquez
          XLIV    Um Cubas!
           XLV    Notas
          XLVI    A herança
         XLVII    O recluso
        XLVIII    Um primo de Virgilia
          XLIX    A ponta do nariz
             L    Virgilia casada
            LI    É minha!
           LII    O embrulho mysterioso
          LIII    . . . . . .
           LIV    A pendula
            LV    O velho dialogo de Adão e Eva
           LVI    O momento opportuno
          LVII    Destino
         LVIII    Confidencia
           LIX    Um encontro
            LX    O abraço
           LXI    Um projecto
          LXII    O travesseiro
         LXIII    Fujamos!
          LXIV    A transacção
           LXV    Olheiros e escutas
          LXVI    As pernas
         LXVII    A casinha
        LXVIII    O vergalho
          LXIX    Um grão de sandice
           LXX    D. Placida
          LXXI    O senão do livro
         LXXII    O bibliomano
        LXXIII    O _lunch_
         LXXIV    Historia de D. Placida
          LXXV    Commigo
         LXXVI    O estrume
        LXXVII    Entrevista
       LXXVIII    A presidencia
         LXXIX    Compromisso de gato
          LXXX    De secretario
         LXXXI    A reconciliação
        LXXXII    Questão de botanica
       LXXXIII    13
        LXXXIV    O conflicto
         LXXXV    O cimo da montanha
        LXXXVI    O mysterio
       LXXXVII    Geologia
      LXXXVIII    O enfermo
        LXXXIX    _In extremis_
            XC    O velho colloquio do Adão e Caim
           XCI    Uma carta extraordinaria
          XCII    Um homem extraordinario
         XCIII    O jantar
          XCIV    A causa secreta
           XCV    Flores de antanho
          XCVI    A carta anonyma
         XCVII    Entre a boca e a testa
        XCVIII    Supprimido
          XCIX    Na plateia
             C    O caso provavel
            CI    A revolução dalmata
           CII    De repouso
          CIII    Distracção
           CIV    Era elle!
            CV    Equivalencia das janellas
           CVI    Jogo perigoso
          CVII    Bilhete
         CVIII    Que se não entende
           CIX    O philosopho
            CX    31
           CXI    O muro
          CXII    A opinião
         CXIII    A solda
          CXIV    Fim do um dialogo
           CXV    O almoço
          CXVI    Philosophia das folhas velhas
         CXVII    O Humanitismo
        CXVIII    A terceira força
          CXIX    Parenthesis
           CXX    _Compelle intrare_
          CXXI    Morro abaixo
         CXXII    Uma intenção mui fina
        CXXIII    O verdadeiro Cotrim
         CXXIV    Vá de intermedio
          CXXV    Epitaphio
         CXXVI    Desconsolação
        CXXVII    Formalidade
       CXXVIII    Na camara
         CXXIX    Sem remorsos
          CXXX    Por intercallar no cap. CXXIX
         CXXXI    De uma calumnia
        CXXXII    Que não é serio
       CXXXIII    O principio de Helvetius
        CXXXIV    Cincoenta annos
         CXXXV    _Oblivion_
        CXXXVI    Inutilidade
       CXXXVII    A barretina
      CXXXVIII    A um critico
        CXXXIX    De como não fui ministro d'Estado
           CXL    Que explica o anterior
          CXLI    Os cães
         CXLII    O pedido secreto
        CXLIII    Não vou
         CXLIV    Utilidade relativa
          CXLV    Simples repetição
         CXLVI    O programma
        CXLVII    O desatino
       CXLVIII    O problema insoluvel
         CXLIX    Theoria do beneficio
            CL    Rotação e translação
           CLI    Philosophia dos epitaphios
          CLII    A moeda de Vespasiano
         CLIII    O alienista
          CLIV    Os navios do Pireu
           CLV    Reflexão cordial
          CLVI    Orgulho da servilidade
         CLVII    Phase brilhante
        CLVIII    Dous encontros
          CLIX    A semi-demencia
           CLX    Das negativas





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