Home
  By Author [ A  B  C  D  E  F  G  H  I  J  K  L  M  N  O  P  Q  R  S  T  U  V  W  X  Y  Z |  Other Symbols ]
  By Title [ A  B  C  D  E  F  G  H  I  J  K  L  M  N  O  P  Q  R  S  T  U  V  W  X  Y  Z |  Other Symbols ]
  By Language
all Classics books content using ISYS

Download this book: [ ASCII ]

Look for this book on Amazon


We have new books nearly every day.
If you would like a news letter once a week or once a month
fill out this form and we will give you a summary of the books for that week or month by email.

Title: Papeis Avulsos
Author: Machado de Assis
Language: Portuguese
As this book started as an ASCII text book there are no pictures available.


*** Start of this LibraryBlog Digital Book "Papeis Avulsos" ***


Literature (Images generously made available by the
Bibliotheca Brasiliana Cuita e José Mindlin, Acervo Digital)



MACHADO DE ASSIS

PAPEIS AVULSOS


O ALIENISTA--THEORIA DO MEDALHÃO
A CHINELA TURCA
NA ARCA--D. BENEDICTA--O SEGREDO DO BONZO
O ANNEL DE POLYCRATES
O EMPRESTIMO--A SERENISSA REPUBLICA
O ESPELHO
UMA VISITA DE ALCIBIADES--VERBA TESTAMENTARIA

RIO DE JANEIRO

Typographia e Lithographia a vapor, Encadernação e Livraria

LOMBAERTS & C.

7--_Rua dos Ourives_--7

1882



    OBRAS DO AUTOR


    Memorias Posthumas de Braz Cubas
    Papeis Avulsos
    Helena
    Yayá Garcia
    Ressurreição
    A mão e a luva
    Historias da meia noite
    Contos Fluminenses
    Americanas
    Phalenas
    Chrysalidas
    Tu só, tu, puro amor



ADVERTENCIA


Este titulo de _Papeis avulsos_ parece negar ao livro uma certa
unidade; faz crer que o autor colligiu varios escriptos de ordem
diversa para o fim de os não perder. A verdade é essa, sem ser bem
essa. Avulsos são elles, mas não vieram para aqui como passageiros, que
acertam de entrar na mesma hospedaria. São pessoas de uma só família,
que a obrigação do pae fez sentar á mesma mesa.

Quanto ao genero delles, não sei que diga que não seja inutil. O
livro está nas mãos do leitor. Direi sómente, que se ha aqui paginas
que parecem meros contos, e outras que o não são, defendo-me das
segundas com dizer que os leitores das outros podem achar nellas
algum interesse, e das primeiras defendo-me com S. João e Diderot. O
evangelista, descrevendo a famosa besta apocalyptica, accrescentava
(XVII, 9): "E aqui ha sentido, que tem sabedoria." Menos a sabedoria,
cubro-me com aquella palavra. Quanto a Diderot, ninguem ignora que
elle, não só escrevia contos, e alguns deliciosos, mas até aconselhava
a um amigo que os escrevesse tambem. E eis a razão do encyclopedista: é
que quando se faz um conto, o espirito fica alegre, o tempo escoa-se, e
o conto da vida acaba sem a gente dar por isso.

Deste modo, venha donde vier o reproche[1], espero que dahia mesmo virá
a absolvição.

Machado de Assis

Outubro de 1882.


[1]Cerca de dous annos para cá, recebi duas cartas anonymas, escriptas
por pessôa intelligente e sympathica, em que me foi notado o uso
do vocabulo _reproche._ Não sabendo como responda ao meu estimavel
correspondente, aproveito esta occasião.

_Reproche_ não é gallicismo. Nem _reproche_ nem _reprochar._ Moraes
cita, para o verbo, este trecho dos _Ined._ II fl. 259: "hum non tinha
que _reprochar_ ao outro;" e aponta os logares de Fernando de Lucena,
Nunes de Leão e D. Francisco Manoel de Mello, em que se encontra o
substantivo _reproche._ Os hespanhoes tambem os possuem.

Resta a questão de euphonia. _Reproche_ não parece mal soante. Tem
contra si o desuso. Em todo caso, o vocabulo que lhe está mais proximo
no sentido, _exprobração_, acho que é insupportavel. Dahi a minha
insistencia em preferir o outro, devendo notar-se que não o vou buscar
para dar ao estylo um verniz de extranheza, mas quando a ideia o traz
comsigo.



O ALIENISTA


I

DE COMO ITAGUAHY GANHOU UMA CASA DE ORATES


As chronicas da villa de ltaguahy dizem que em tempos remotos vivera
alli um certo medico, o Dr. Simão Bacamarte, filho da nobreza da terra
e o maior dos medicos do Brazil, de Portugal e das Hespanhas. Estudara
em Coimbra e Padua. Aos trinta e quatro annos regressou ao Brazil,
não podendo el-rei alcançar delle que ficasse em Coimbra, regendo a
universidade, ou era Lisboa, expedindo os negocios da monarchia.

--A sciencia, disse elle a Sua Magestade, é o meu emprego unico;
ltaguahy é o meu universo.

Dito isto, metteu-se em ltaguahy, e entregou-se de corpo e alma ao
estudo da sciencia, alternando as curas com as leituras, e demonstrando
os theoremas com cataplasmas. Aos quarenta annos casou com D. Evarista
da Costa e Mascarenhas, senhora de vinte e cinco annos, viuva de
um juiz de fóra, e não bonita nem sympathica. Um dos tios delle,
caçador de pacas perante o Eterno, e não menos franco, admirou-se de
semelhante escolha e disse-lh'o. Simão Bacamarte explicou-lhe que
D. Evarista reunia condições physiologicas e anatomicas de primeira
ordem, digeria com facilidade, dormia regularmente, tinha bom pulso,
e excellente vista; estava assim apta para dar-lhe filhos robustos,
sãos e intelligentes. Se além dessas prendas,--unicas dignas da
preoecupação de um sabio, D. Evarista era mal composta de feições,
longe de lastimal-o, agradecia-o a Deus, porquanto não corria o risco
de preterir os interesses da sciencia na contemplação exclusiva, miuda
e vulgar da consorte.

D. Evarista mentiu ás esperanças do Dr. Bacamarte, não lhe deu filhos
robustos nem mofinos. A indole natural da sciencia é a longanimidade;
o nosso medico esperou tres annos, depois quatro, depois cinco. Ao
cabo desse tempo fez um estudo profundo da materia, releu todos os
escriptores arabes e outros, que trouxera para Itaguahy, enviou
consultas ás universidades italianas e allemãs, e acabou por aconselhar
á mulher um regimen alimenticio especial. A illustre dama, nutrida
exclusivamente com a bella carne de porco de Itaguahy, não attendeu
ás admoestações do esposo; e á sua resistencia,--explicavel, mas
inqualificavel,--devemos a total extincção da dynastia dos Bacamartes.

Mas a sciencia tem o ineffavel dom de curar todas as magoas; o nosso
medico mergulhou inteiramente no estudo e na pratica da medicina. Foi
então que um dos recantos desta lhe chamou especialmente a attenção,--o
recanto psychico, o exame da pathologia cerebral. Não havia na
colonia, e ainda no reino, uma só autoridade em semelhante materia,
mal explorada, ou quasi inexplorada. Simão Bacamarte comprehendeu que
a sciencia lusitana, e particularmente a brazileira, podia cobrir-se
de «louros immarcessiveis,»--expressão usada por elle mesmo, mas em um
arroubo de intimidade domestica; exteriormente era modesto, segundo
convém aos sabedores.

--A saude da alma, bradou elle, é a occupação mais digna do medico.

--Do verdadeiro medico, emendou Crispim Soares, boticario da villa, e
um dos seus amigos e comensaes.

A vereança de Itaguahy, entre outros peccados de que é arguida pelos
chronistas, tinha o de não fazer caso dos dementes. Assim é que cada
louco furioso era trancado em uma alcova, na propria casa, e, não
curado, mas descurado, até que a morte o vinha defraudar do beneficio
da vida; os mansos andavam á solta pela rua. Simão Bacamarte entendeu
desde logo reformar tão ruim costume; pediu licença á camara para
agasalhar e tratar no edificio que ia construir todos os loucos de
Itaguahy e das demais villas e cidades, mediante um estipendio, que
a camara lhe daria quando a familia do enfermo o não podesse fazer.
A proposta excitou a curiosidade de toda a villa, e encontrou grande
resistencia, tão certo é que difficilmente se desarraigam habitos
absurdos, ou ainda máus. A idéa de metter os loucos na mesma casa,
vivendo em commum, pareceu em si mesma um symptoma de demencia, e não
faltou quem o insinuasse á propria mulher do medico.

--Olhe, D. Evarista, disse-lhe o padre Lopes, vigario do logar, veja
se seu marido dá um passeio ao Rio de Janeiro. Isso de estudar sempre,
sempre, não é bom, vira o juizo.

D. Evarista ficou aterrada, foi ter com o marido, disse-lhe «que estava
com desejos», um principalmente, o de vir ao Rio de Janeiro e comer
tudo o que a elle lhe parecesse adequado a certo fim. Mas aquelle
grande homem, com a rara sagacidade que o distinguia, penetrou a
intenção da esposa e redarguiu-lhe sorrindo que não tivesse medo. Dalli
foi á camara, onde os vereadores debatiam a proposta, e defendeu-a com
tanta eloquencia, que a maioria resolveu autorisal-o ao que pedira,
votando ao mesmo tempo um imposto destinado a subsidiar o tratamento,
alojamento e mantimento dos doudos pobres. A materia do imposto não
foi facil achal-a, tudo estava tributado em Itaguahy. Depois de
longos estudos, assentou-se em permittir o uso de dous pennachos nos
cavallos dos enterros. Quem quizesse emplumar os cavallos de um coche
mortuario pagaria dois tostões á camara, repetindo-se tantas vezes esta
quantia quantas fossem as horas decorridas entre a do fallecimento e
a da ultima benção na sepultura. O escrivão perdeu-se nos calculos
arithmeticos do rendimento possivel da nova taxa: e um dos vereadores,
que não acreditava na empreza do medico, pediu que se relevasse o
escrivão de um trabalho inutil.

--Os calculos não são precisos, disse elle, porque o Dr. Bacamarte não
arranja nada. Quem é que viu agora metter todos os doudos dentro da
mesma casa?

Enganava-se o digno magistrado; o medico arranjou tudo. Uma vez
empossado da licença começou logo a construir a casa. Era na rua Nova,
a mais bella rua de Itaguahy naquelle tempo, tinha cincoenta janellas
por lado, um pateo no centro, e numerosos cubiculos para os hospedes.
Como fosse grande arabista, achou no Koran que Mahomet declara
veneraveis os doudos, pela consideração de que Allah lhes tira o juizo
para que não pequem. A idéa pareceu-lbe bonita e profunda, e elle a fez
gravar no frontespicio da casa; mas, como tinha medo ao vigario, e por
tabella ao bispo, attribuiu o pensamento a Benedicto VIII, merecendo
com essa fraude, aliás pia, que o padre Lopes lhe contasse, ao almoço,
a vida daquelle pontifice eminente.

A Casa Verde foi o nome dado ao asylo, por allusão á côr das janellas,
que pela primeira vez appareciam verdes em Itaguahy. Inaugurou-se com
immensa pompa; de todas as villas e povoações proximas, e até remotas,
e da propria cidade do Rio de Janeito, correu gente para assistir
ás ceremonias, que duraram sete dias. Muitos dementes já estavam
recolhidos; e os parentes tiveram occasião de ver o carinho paternal
e a caridade christã com que elles iam ser tratados. D. Evarista,
contentissima com a gloria do marido, vestira-se luxuosamente,
cobriu-se de joias, flôres e sedas. Ella foi uma verdadeira rainha
naquelles dias memoraveis; ninguem deixou de ir visital-a duas e trez
vezes, apezar dos costumes caseiros e recatados do seculo, e não só a
cortejavam como a louvavam; porquanto,--e este facto é um documento
altamente honroso para a sociedade do tempo,--porquanto viam nella
a feliz esposa de um alto espirito, de um varão illustre, e, se lhe
tinham inveja, era a santa e nobre inveja dos admiradores.

Ao cabo de sete dias expiraram as festas publicas; Itaguahy tinha
finalmente uma casa de Orates.


II

TORRENTE DE LOUCOS


Tres dias depois, n'uma expansão intima com o boticario Crispim Soares,
desvendou o alienista o mysterio do seu coração.

--A caridade, Sr. Soares, entra de certo no meu procedimento, mas entra
como tempero, como o sal das cousas, que é assim que interpreto o dito
de S. Paulo aos Corinthios: «Se eu conhecer quanto se pode saber, e
não tiver caridade, não sou nada.» O principal nesta minha obra da
Casa Verde é estudar profundamente a loucura, os seus diversos grãos,
classificar-lbe os casos, descobrir emfim a causa do phenomeno e o
remedio universal. Este é o mysterio do meu coração. Creio que com isto
presto um bom serviço á humanidade.

--Um excellente serviço, corrigiu o boticario.

--Sem este asylo, continuou o alienista, pouco poderia fazer; elle
dá-me, porém, muito maior campo aos meus estudos.

--Muito maior, accrescentou o outro.

E tinham razão. De todas as villas e arraiaes visinhos affluiam loucos
á Casa Verde. Eram furiosos, eram mansos, eram monomaniacos, era toda
a familia dos desherdados do espirito. Ao cabo de quatro mezes, a Casa
Verde era uma povoação. Não bastaram os primeiros cubiculos: mandou-se
annexar uma galeria de mais trinte e sete. O padre Lopes confessou que
não imaginara a existencia de tantos doudos no mundo, e menos ainda
o inexplicavel de alguns casos. Um, por exemplo, um rapaz bronco e
villão, que todos os dias, depois do almoço, fazia regularmente, um
discurso academico, ornado de tropos, de antitheses, de apostrophes,
com seus recamos de grego e latim, e suas borlas de Cicero, Apuleo e
Tertuliano. O vigario não queria acabar do crer. Que! um rapaz que elle
vira, tres mezes antes, jogando peteca na rua!

--Não digo que não, respondia-lhe o alienista; mas a verdade é o que
Vossa Reverendissima está vendo. Isto é todos os dias.

--Quanto a mim, tornou o vigario, só se póde explicar pela confusão
das linguas na torre de Babel, segundo nos conta a Escriptura;
provavelmente, confundidas antigamente as linguas, é facil trocal-as
agora, desde que a razão não trabalhe...

--Essa póde ser, com effeito, a explicação divina do phenomeno,
concordou o alienista, depois de reflectir um instante, mas não
é impossivel que haja tambem alguma razão humana, e puramente
scientifica, e disso trato...

--Vá que seja, e fico ancioso. Realmente!

Os loucos por amor eram tres ou quatro, mas só dous espantavam pelo
curioso do delirio. O primeiro, um Falcão, rapaz de vinte e cinco
annos, suppunha-se estrella d’alva, abria os braços e alargava as
pernas, para dar-lhes certa feição de raios, e ficava assim horas
esquecidas a perguntar se o sol já tinha sahido para elle recolher-se.
O outro andava sempre, sempre, sempre, á roda das salas ou do pateo, ao
longo dos corredores, á procura do fim do mundo. Era um desgraçado, a
quem a mulher deixou por seguir um peralvilho. Mal descobrira a fuga,
armou-se de uma garrucha, e sahiu-lhes no encalço; achou-os duas horas
depois, ao pé de uma lagoa, matou-os a ambos com os maiores requintes
de crueldade. O ciume satisfez-se, mas o vingado estava louco. E então
começou aquella ancia de ir ao fim do mundo á cata dos fugitivos.

A mania das grandezas tinha exemplares notaveis. O mais notavel era um
pobre diabo, filho de um algibebe, que narrava ás paredes (porque não
olhava nunca para nenhuma pessoa) toda a sua genealogia, que era esta:

--Deus engendrou um ovo, o ovo engendrou a espada, a espada engendrou
David, David engendrou a purpura, a purpura engendrou o duque, o duque
engendrou o marquez, o marquez engendrou o conde, que sou eu.

Dava uma pancada na testa, um estalo com os dedos, e repetia cinco,
seis vezes seguidas:

--Deus engendrou um ovo, o ovo, etc.

Outro da mesma especie era um escrivão, que se vendia por mordomo
do rei; outro era um boiadeiro de Minas, cuja mania era distribuir
boiadas a toda a gente, dava trezentas cabeças a um, seiscentas a
outro, mil e duzentas a outro, e não acabava mais. Não fallo dos casos
de monomania religiosa; apenas citarei um sujeito que, chamando-se
João de Deus, dizia agora ser o deus João, e promettia o reino dos
céos a quem o adorasse, e as penas do inferno aos outros; e depois
desse, o licenciado Garcia, que não dizia nada, porque imaginava que no
dia em que chegasse a proferir uma só palavra, todas as estrellas se
despegariam do céu e abrasariam a terra; tal era o poder que recebera
de Deus. Assim o escrevia elle no papel que o alienista lhe mandava
dar, menos por caridade do que por interesse scientifico.

Que, na verdade, a paciencia do alienista era ainda mais extraordinaria
do que todas as manias hospedadas na Casa Verde; nada menos que
assombrosa. Simão Bacamarte começou por organisar um pessoal de
administração; e, aceitando essa idéa ao boticario Crispim Soares,
aceitou-lhe tambem dous sobrinhos, a quem incumbiu da execução de
um regimento que lhes deu, approvado pela camara, da distribuição
da comida e da roupa, e assim tambem da escripta, etc. Era o melhor
que podia fazer, para sómente cuidar do seu officio.--A Casa Verde,
disse elle ao vigario, é agora uma especie de mundo, em que ha o
governo temporal e o governo _espiritual._ E o padre Lopes ria deste
pio trocado,--e accrescentava,--com o unico fim de dizer tambem uma
chalaça:--Deixe estar, deixe estar, que hei de mandal-o denunciar ao
papa.

Uma vez desonerado da administração, o alienista procedeu a uma
vasta classificação dos seus enfermos. Dividiu-os primeiramente em
duas classes principaes: os furiosos e os mansos; dahi passou ás
sub-classes, monomanias, delirios, allucinações diversas. Isto feito,
começou um estudo aturado e continuo; analysava os habitos de cada
louco, as horas do accesso, as aversões, as sympathias, as palavras,
os gestos, as tendencias; inquiria da vida dos enfermos, profissão,
costumes, circumstancias da revelação morbida, accidentes da infancia
e da mocidade, doenças de outra especie, antecedentes na familia,
uma devassa, emfim, como a não faria o mais atilado corregedor. E
cada dia notava uma observação nova, uma descoberta interessante, um
phenomeno extraordinario. Ao mesmo tempo estudava o melhor regimen, as
substancias medicamentosas, os meios curativos e os meios palliativos,
não só os que vinham nos seus amados arabes, como os que elle mesmo
descobria, á força de sagacidade e paciencia. Ora, todo esse trabalho
levava-lhe o melhor e o mais do tempo. Mal dormia e mal comia; e, ainda
comendo, era como se trabalhasse, porque ora interrogava um texto
antigo, ora ruminava uma questão, e ia muitas vezes de um cabo a outro
do jantar sem dizer uma só palavra a D. Evarista.


III

DEUS SABE O QUE FAZ!


A illustre dama, no fim de dous mezes, achou-se a mais desgraçada
das mulheres; cahiu em profunda melancholia, ficou amarella, magra,
comia pouco e suspirava a cada canto. Não ousava fazer-lhe nenhuma
queixa ou reproche, porque respeitava nelle o seu marido e senhor, mas
padecia calada, e definhava a olhos vistos. Um dia, ao jantar, como lhe
perguntasse o marido o que é que tinha, respondeu tristemente que nada;
depois atreveu-se um pouco, e foi ao ponto de dizer que se considerava
tão viuva como dantes. E accrescentou:

--Quem diria nunca que meia duzia de lunaticos...

Não acabou a phrase; ou antes, acabou-a levantando os olhos ao
tecto,--os olhos, que eram a sua feição mais insinuante,--negros,
grandes, lavados de uma luz humida, como os da aurora. Quanto ao
gesto, era o mesmo que empregara no dia em que Simão Bacamarte a pediu
era casamento. Não dizem as chronicas se D. Evarista brandiu aquella
arma com o perverso intuito de degolar de uma vez a sciencia, out pelo
menos, decepar-lhe as mãos; mas a conjectura é verosimil. Em todo caso,
o alienista, não lhe attribuiu outra intenção. E não se irritou o
grande homem, não ficou sequer consternado. O metal de seus olhos não
deixou de ser o mesmo metal, duro, liso, eterno, nem a menor prega veiu
quebrar a superficie da fronte quieta como a agua de Botafogo. Talvez
um sorriso lhe descerrou os labios, por entre os quaes filtrou esta
palavra macia como o oleo do _Cantico_:

--Consinto que vás dar um passeio ao Rio de Janeiro.

D. Evarista sentiu faltar-lhe o chão debaixo dos pés. Nunca dos nuncas
vira o Rio de Janeiro, que posto não fosse sequer uma pallida sombra
do que hoje é, todavia era alguma cousa mais do que Itaguahy. Ver
o Rio de Janeiro, para ella, equivalia ao sonho do hebreu captivo.
Agora, principalmente, que o marido assentára de vez naquella povoação
interior, agora é que ella perdera as ultimas esperanças de respirar
os ares da nossa boa cidade; e justamente agora é que elle a convidava
a realisar os seus desejos de menina e moça. D. Evarista não pôde
dissimular o gosto de semelhante proposta. Simão Bacamarte pegou-lhe
na mão e sorriu,--um sorriso tanto ou quanto philosophico, além de
conjugal, em que parecia traduzir-se este pensamento:--«Não ha remedio
certo para as dôres da alma; esta senhora definha, porque lhe parece
que a não amo; dou-lhe o Rio de Janeiro, e consola-se.» E porque era
homem estudioso tomou nota da observação.

Mas um dardo atravessou o coração de D. Evarista. Conteve-se,
entretanto; limitou-se a dizer ao marido, que, se elle não ia, ella não
iria tambem, porque não havia de metter-se sózinha pelas estradas.

--Irá com sua tia, redarguiu o alienista.

Note-se que D. Evarista tinha pensado nisso mesmo; mas não quizera
pedil-o nem insinual-o, em primeiro logar porque seria impôr grandes
despezas ao marido, em segundo logar porque era melhor, mais methodico
e racional que a proposta viesse delle.

--Oh! mas o dinheiro que será preciso gastar! suspirou D. Evarista sem
convicção.

--Que importa? Temos ganho muito, disse o marido. Ainda hontem o
escripturario prestou-me contas. Queres ver?

E levou-a aos livros. D. Evarista ficou deslumbrada. Era uma via-lactea
de algarismos. E depois levou-a ás arcas, onde estava o dinheiro. Deus!
eram montes de ouro, eram mil cruzados sobre mil cruzados, dobrões
sobre dobrões; era a opulencia. Emquanto ella comia o ouro com os seus
olhos negros, o alienista fitava-a, e dizia-lhe ao ouvido com a mais
perfida das allusões.

--Quem diria que meia duzia de lunaticos...

D. Evarista comprehendeu, sorriu e respondeu com muita resignação:

--Deus sabe o que faz!

Tres mezes depois effectuava-se a jornada. D. Evarista, a tia, a mulher
do boticario, um sobrinho deste, um padre que o alienista conhecera em
Lisboa, e que de aventura achava-se em Itaguahy, cinco ou seis pagens,
quatro mucamas, tal foi a comitiva que a população viu dalli sahir em
certa manhã do mez de maio. As despedidas foram tristes para todos,
menos para o alienista. Comquanto as lagrimas de D. Evarista fossem
abundantes e sinceras, não chegaram a abalal-o. Homem de sciencia, e só
de sciencia, nada o consternava fóra da sciencia; e se alguma cousa o
preoccupava naquella occasião, se elle deixava correr pela multidão um
olhar inquieto e policial, não era outra cousa mais do que a idéa de
que algum demente podia achar-se alli misturado com a gente de juizo.

--Adeus! soluçaram emfim as damas e o boticario.

E partiu a comitiva. Crispim Soares, ao tornar a casa, trazia os olhos
entre as duas orelhas da besta ruana em que vinha montado; Simão
Bacamarte alongava os seus pelo horisonte adiante, deixando ao cavallo
a responsabilidade do regresso. Imagem vivaz do genio e do vulgo! Um
fita o presente, com todas as suas lagrimas e saudades, outro devassa o
futuro com todas as suas auroras.


IV

UMA THEORIA NOVA


Ao passo que D. Evarista, em lagrimas, vinha buscando o Rio de Janeiro,
Simão Bacamarte estudava por todos os lados uma certa idéa arrojada e
nova, propria a alargar as bases da psychologia. Todo o tempo que lhe
sobrava dos cuidados da Casa Verde, era pouco para andar na rua, ou
de casa em casa, conversando as gentes, sobre trinta mil assumptos, e
virgulando as fallas de um olhar que mettia medo aos mais heroicos.

Um dia de manhã,--eram passadas tres semanas,--estando Crispim Soares
occupado em temperar um medicamento, vieram dizer-lhe que o alienista o
mandava chamar.

--Trata-se de negocio importante, segundo elle me disse, aecrescentou o
portador.

Crispim empallideceu. Que negocio importante podia ser, se não alguma
triste noticia da comitiva, e especialmente da mulher? Porque este
topico deve ficar claramente definido, visto insistirem nelle os
chronistas: Crispim amava a mulher, e, desde trinta annos, nunca
estiveram separados um só dia. Assim se explicam os monologos que
elle fazia agora, e que os famulos lhe ouviam muita vez:--«Anda, bem
feito, quem te mandou consentir na viagem de Cesaria? Bajulador, torpe
bajulador! Só para adular ao Dr. Bacamarte. Pois agora aguenta-te;
anda, aguenta-te, alma de lacaio, fracalhão, vil, miseravel. Dizes
_amen_ a tudo, não é? ahi tens o lucro, biltre!--E muitos outros nomes
feios, que um homem não deve dizer aos outros, quanto mais a si mesmo.
Daqui a imaginar o effeito do recado é um nada. Tão depressa elle o
recebeu como abriu mão das drogas e voou á Casa Verde.

Simão Bacamarte recebeu-o com a alegria propria de um sabio, uma
alegria abotoada de circumspecção até o pescoço.

--Estou muito contente, disse elle.

--Noticias do nosso povo? perguntou o boticario com a voz tremula.

O alienista fez um gesto magnifico, e respondeu:

--Trata-se de cousa mais alta, trata-se de uma experiencia scientifica.
Digo experiencia, porque não me atrevo a assegurar desde já a minha
idéa; nem a sciencia é outra cousa, Sr. Soares, se não uma investigação
constante. Trata-se, pois, de uma experiencia, mas uma experiencia que
vai mudar a face da terra. A loucura, objecto dos meus estudos, era até
agora uma ilha perdida no oceano da razão; começo a suspeitar que é um
continente.

Disse isto, e calou-se, para ruminar o pasmo do boticario. Depois
explicou compridamente a sua idéa. No conceito delle a insania abrangia
uma vasta superficie de cerebros; e desenvolveu isto com grande cópia
de raciocinios, de textos, de exemplos. Os exemplos achou-os na
historia e em ltaguahy; mas, como um raro espirito que era, reconheceu
o perigo de citar todos os casos de Itaguahy, e refugiou-se na
historia. Assim, apontou com especialidade alguns personagens celebres,
Socrates, que tinha um demonio familiar, Pascal, que via um abysmo á
esquerda, Mahomet, Caracalla, Domiciano, Caligula, etc., uma enfiada
de casos e pessoas, em que de mistura vinham entidades odiosas, e
entidades ridiculas. E porque o boticario se admirasse de uma tal
promiscuidade, o alienista disse-lhe que era tudo a mesma cousa, e até
accrescentou sentenciosamcnte:

--A ferocidade, Sr. Soares, é o grotesco a serio.

--Gracioso, muito gracioso! exclamou Crispim Soares lovantando as mãos
ao céu.

Quanto á ideia de ampliar o territorio da loucura, achou-a o boticario
extravagante; mas a modestia, principal adorno de seu espirito, não lhe
sofreu confessar outra cousa além de um nobre enthusiasmo; declarou-a
sublime e verdadeira, e acerescentou que era «caso de matraca.» Esta
expressão não tem equivalente no estylo moderno. Naquelle tempo,
Itaguahy, que como as demais villas, arraiaes e povoações da colonia,
não dispunha de imprensa, tinha dous modos de divulgar uma noticia:
ou por meio de cartazes manuscriptos e pregados na porta da camara e
da matriz;--ou por meio de matraca. Eis em que consistia este segundo
uso. Contractava-se um homem, por um ou mais dias, para andar as ruas
do povoado, com uma matraca na mão. De quando em quando tocava a
matraca, reunia-se gente, e elle annunciava o que lhe incumbiam,--um
remedio para sezões, umas terras lavradias, um soneto, um donativo
eeclesiastico, a melhor thesoura da villa, o mais bello discurso do
anno, etc. O systema tinha inconvenientes para a paz publica; mas
era conservado pela grande energia de divulgação que possuia. Por
exemplo, um dos vereadores,--aquelle justamente que mais se oppuzera á
creação da Casa Verde,--desfructava a reputação de perfeito educador
de cobras e macacos, e aliás nunca domesticára um só desses bichos;
mas, tinha o cuidado de fazer trabalhar a matraca todos os mezes. E
dizem as chronicas que algumas pessoas affirmavam ter visto cascaveis
dansando no peito do vereador; affirmação perfeitamente falsa, mas só
devida á absoluta confiança no systema. Verdade, verdade; nem todas as
instituições do antigo regimen, mereciam o desprezo do nosso seculo.

--Ha melhor do que annunciar a minha ideia, é pratical-a, respondeu o
alienista á insinuação do boticario.

E o boticario, não divergindo sensivelmente deste modo de ver,
disse-lhe que sim, que era melhor começar pela execução.

--Sempre haverá tempo de a dar á matraca, concluiu elle.

Simão Bacamarte reflectiu ainda um instante, e disse:

--Suppondo o espirito humano uma vasta concha, o meu fim, Sr. Soares,
é ver se posso extrahir a perola, que é a razão; por outros termos,
demarquemos definitivamente os limites da razão e da loucura. A razão
é o perfeito equilibrio de todas as faculdades; fora dahi insania,
insania, e só insania.

O vigario Lopes, a quem elle confiou a nova theoria, declarou lisamente
que não chegava a entendel-a, que era uma obra absurda, e, se não
era absurda, era de tal modo collossal que não merecia principio de
execução.

--Com a definição actual, que é a de todos os tempos, accrescentou, a
loucura e a razão estão perperfeitamente delimitadas. Sabe-se onde uma
acaba e onde a outra começa. Para que transpor a cerca?

Sobre o labio fino e discreto do alienista roçou a vaga sombra de
uma intenção de riso, em que o desdem vinha casado á commiseração;
mas nenhuma palavra sahiu de suas egregias entranhas. A sciencia
contentou-se em estender a mão á theologia,--com tal segurança, que a
theologia não soube emfim se devia crêr em si ou na outra. Itaguahy e o
universo ficavam á beira de uma revolução.


V

O TERROR


Quatro dias depois, a população do Itaguahy ouviu consternada, a
noticia de que um certo Costa fôra recolhido á Casa Verde.

--Impossivel!

--Qual impossivel! foi recolhido hoje de manhã.

--Mas, na verdade, elle não merecia... Ainda em cima! depois de tanto
que elle fez...

Costa era um dos cidadãos mais estimados de Itaguahy. Herdára
quatrocentos mil cruzados em boa moeda de el-rei D. João V, dinheiro
cuja renda bastava, segundo lhe declarou o tio no testamento, para
viver «até o fim do mundo.» Tão depressa recolheu a herança, como
entrou a dividil-a em emprestimos, sem usura, mil cruzados a um, dous
mil a outro, trezentos a este, oitocentos áquelle, a tal ponto que, no
fim de cinco annos, estava sem nada, Se a miseria viesse de chofre, o
pasmo de Itaguahy seria enorme; mas veiu de vagar; elle foi passando da
opulencia á abastança, da abastança á mediania, da mediania á pobreza,
da pobreza á miseria, gradualmente. Ao cabo daquelles cinco annos,
pessoas que levavam o chapeu ao chão, logo que elle assomava no fim da
rua, agora batiam-lhe no hombro, com intimidade, davam-lhe piparotes no
nariz, diziam-lhe pulhas. E o Costa sempre lhano, risonho. Nem se lhe
dava de ver que os menos cortezes eram justamente os que tinham ainda
a divida em aberto; ao contrario, parece que os agazalhava com maior
prazer, e mais sublime resignação. Um dia, como um desses incuraveis
devedores lhe atirasse uma chalaça grossa, e elle se risse della,
observou um desaffeiçoado, com certa perfidia:--«Você supporta esse
sujeito para ver se elle lhe paga.» Costa não se deteve um minuto, foi
ao devedor e perdoou-lhe a divida.--«Não admira, retorquiu o outro; o
Costa abriu mão de uma estrella, que está no céu.» Costa era perspicaz,
entendeu que elle negava todo o merecimento ao acto, attribuindo-lhe
a intenção de rejeitar o que não vinham metter-lhe na algibeira. Era
tambem pundonoroso e inventivo; duas horas depois achou um meio de
provar que lhe não cabia um tal labéo: pegou de algumas dobras, e
mandou-as de emprestimo ao devedor.

--Agora espero que...--pensou elle sem concluir a phrase.

Esse ultimo rasgo do Costa persuadiu a credulos e incredulos; ninguem
mais pôz em duvida os sentimentos cavalheirescos daquelle digno
cidadão. As necessidades mais acanhadas sahiram á rua, vieram bater-lhe
á porta, com os seus chinellos velhos, com as suas capas remendadas. Um
verme, entretanto, roia a alma do Costa: era o conceito do desaffecto.
Mas isso mesmo acabou; trez mezes depois veiu este pedir-lhe uns cento
e vinte cruzados com promessa de restituir-lh'os dahi a dous dias; era
o residuo da grande herança, mas era tambem uma nobre desforra: Costa
emprestou o dinheiro logo, logo, e sem juros. Infelizmente não teve
tempo de ser pago; cinco mezes depois era recolhido á Casa Verde.

Imagina-se a consternação de Itaguahy, quando soube do caso. Não se
fallou em outra cousa, dizia-se que o Costa ensandecera, ao almoço,
outros que de madrugada; e contavam-se os accessos, que eram furiosos,
sombrios, terriveis,--ou mansos, e até engraçados, conforme as versões.
Muita gente correu á Casa Verde, e achou o pobre Costa, tranquillo,
um pouco espantado, faltando com muita clareza, e perguntando porque
motivo o tinham levado para alli. Alguns foram ter com o alienista.
Bacamarte approvava esses sentimentos de estima e compaixão, mas
accrescentava que a sciencia era a sciencia, e que elle não podia
deixar na rua um mentecapto. A ultima pessoa que intercedeu por elle
(porque depois do que vou contar ninguem mais se atreveu a procurar o
terrivel medico) foi uma pobre senhora, prima do Costa. O alienista
disse-lhe confidencialmente que esse digno homem não estava no perfeito
equilibrio das faculdades mentaes, á vista do modo como dissipára os
cabedaes que...

--Isso, não! isso não! interrompeu a boa senhora com energia. Se elle
gastou tão depressa o que recebeu, a culpa não é delle.

--Não?

--Não, senhor. Eu lhe digo como o negocio se passou. O defuncto meu tio
não era máu homem; mas quando estava furioso era capaz de nem tirar
o chapéo ao Santissimo. Ora, um dia, pouco tempo antes de morrer,
descobriu que um escravo lhe roubára um boi; imagine como ficou. A
cara era um pimentão; todo elle tremia, a boca escumava; lembra-me
como se fosse hoje. Então um homem feio, cabelludo, em mangas de
camiza, chegou-se a elle e pediu agua. Meu tio (Deus lhe falle n'alma!)
respondeu que fosse beber ao rio ou ao inferno. O homem olhou para
elle, abriu a mão em ar de ameaça, e rogou esta praga:--«Todo o seu
dinheiro não hade durar mais de sete annos e um dia, tão certo como
isto ser o _sino salamão!_» E mostrou o sino salamão impresso no braço.
Foi isto, meu senhor; foi esta praga daquelle maldito.

Bacamarte espetára na pobre senhora um par de olhos agudos como
punhaes. Quando ella acabou, estendeu-lhe a mão polidamente, como se
o fizesse á propria esposa do vice-rei, e convidou-a a ir fallar ao
primo. A misera acreditou; elle levou-a á Casa Verde e encerrou-a na
galeria dos allucinados.

A noticia desta aleivosia do illustre Bacamarte lançou o terror á
alma da população. Ninguem queria acabar de crer, que, sem motivo,
sem inimizade, o alienista trancasse na Casa Verde uma senhora
perfeitamente ajuizada, que não tinha outro crime senão o de interceder
por um infeliz. Commentava-se o caso nas esquinas, nos barbeiros;
edificou-se um romance, umas finezas namoradas que o alienista outr'ora
dirigira á prima do Costa, a indignação do Costa e o desprezo da prima.
E dahi a vingança. Era claro. Mas a austeridade do alienista, a vida
de estudos que elle levava, pareciam desmentir uma tal hypotbese.
Historias! Tudo isso era naturalmente a capa do velhaco. E um dos mais
credulos chegou a murmurar que sabia de outras cousas, não as dizia,
por não ter certeza plena, mas sabia, quasi que podia jurar.

--Você, que é intimo delle, não nos podia dizer o que ha, o que houve,
que motivo...

Crispim Soares derretia-se todo. Esse interrogar da gente inquieta e
curiosa, dos amigos attonitos, era para elle uma consagração publica.
Não havia duvidar; toda a povoação sabia emfim que o privado do
alienista era elle, Crispim, o boticario, o collaborador do grande
homem e das grandes cousas; dahi a corrida á botica. Tudo isso dizia
o carão jocundo e o riso discreto do boticario, o riso e o silencio,
porque elle não respondia nada; um, dous, trez monosyllabos, quando
muito, soltos, seccos, encapados no fiel sorriso, constante e miudo,
cheio de mysterios scientificos, que elle não podia, sem desdouro nem
perigo, desvendar a nenhuma pessoa humana.

--Ha cousa, pensavam os mais desconfiados.

Um desses limitou-se a, pensal-o, deu de hombros e foi embora. Tinha
negocios pessoaes. Acabava de construir uma casa sumptuosa. Só a casa
bastava para deter e chamar toda a gente; mas havia mais,--a mobilia,
que elle mandara vir da Hungria e da Hollanda, segundo contava, e que
se podia ver do lado de fóra, porque as janellas viviam abertas,--e
o jardim, que era uma obra-prima de arte e de gosto. Esse homem, que
enriquecera no fabrico de albardas, tinha tido sempre o sonho de uma
casa magnifica, jardim pomposo, mobilia rara. Não deixou o negocio das
albardas, mas repousava delle na contemplação da casa nova, a primeira
de Itaguahy, mais grandiosa do que a Casa Verde, mais nobre do que a
da camara. Entre a gente illustre da povoação havia choro e ranger
de dentes, quando se pensava, ou se fallava, ou se louvava a casa do
albardeiro,--um simples albardeiro, Deus do céu!

--Lá está elle embasbacado, diziam os transeuntes, de manhã.

De manhã, com effeito, era costume do Matheus estatelar-se, no meio do
jardim, com os olhos na casa, namorado, durante uma longa hora, até que
vinham chamal-o para almoçar. Os visinhos, embora o comprimentassem
com certo respeito, riam-se por traz delle, que era um gosto. Um
desses chegou a dizer que o Matheus seria muito mais economico, e
estaria riquissimo, se fabricasse as albardas para si mesmo; epigramma
inintelligivel, mas que fazia rir ás bandeiras despregadas.

--Agora lá está o Matheus a ser contemplado, diziam á tarde.

A razão deste outro dito era que, de tarde, quando as familias sahiam
a passeio (jantavam cedo) usava o Matheus postar-se á janella, bem no
centro, vistoso, sobre um fundo escuro, trajado de branco, attitude
senhoril, e assim ficava duas e tres horas até que anoitecia de todo.
Pode crer-se que a intenção do Matheus era ser admirado e invejado,
posto que elle não a confessasse a nenhuma pessoa, nem ao boticario,
nem ao padre Lopes, seus grandes amigos. E entretanto não foi outra a
allegação do boticario, quando o alienista lhe disse que o albardeiro
talvez padecesse do amor das pedras, mania que elle Bacamarte
descubrira e estudava desde algum tempo. Aquillo de contemplar a casa...

--Não, senhor, acudiu vivamente Crispim Soares.

--Não?

--Hade perdoar-me, mas talvez não saiba que elle de manhã examina a
obra, não a admira; de tarde, são os outros que o admirara a elle e á
obra.--E contou o uso do albardeiro, todas as tardes, desde cedo até o
cahir da noite.

Uma volupia scientifica alumiou os olhos de Simão Bacamarte. Ou elle
não conhecia todos os costumes do albardeiro, ou nada mais quiz,
interrogando o Crispim, do que confirmar alguma noticia incerta ou
suspeita vaga. A explicação satisfel-o; mas como tinha as alegrias
proprias de um sabio, concentradas, nada viu o boticario que fizesse
suspeitar uma intenção sinistra. Ao contrario, era de tarde, e o
alienista pediu-lhe o braço para irem a passeio. Deus! era a primeira
vez que Simão Bacamarte dava ao seu privado tamanha honra; Crispim
ficou tremulo, atarantado, disse que sim, que estava prompto. Chegaram
duas ou tres pessoas de fóra, Crispim mandou-as mentalmente a todos os
diabos; não só atrazavam o passeio, como podia acontecer que Bacamarte
elegesse alguma dellas, para acompanhal-o, e o dispensasse a elle. Que
impaciencia! que afflicção! Emfim, sahiram. O alienista guiou para os
lados da casa do albaideiro, viu-o á janella, passou cinco, seis vezes
por diante, devagar, parando, examinando as attitudes, a expressão do
rosto. O pobre Matheus, apenas notou que era objecto da curiosidade
ou admiração do primeiro vulto de ltaguahy, redobrou de expressão,
deu outro relevo ás attitudes... Triste! triste! não fez mais do que
condemnar-se; no dia seguinte, foi recolhido á Casa Verde.

--A Casa Verde é um carcere privado, disse um medico sem clinica.

Nunca uma opinião pegou e grassou tão rapidamente. Carcere
privado: eis o que se repetia de norte a sul e de leste a oéste de
ltaguahy,--a medo, é verdade, porque durante a semana que se seguiu
á captura do pobre Matheus, vinte e tantas pessoas,--duas ou tres
de consideração,--foram recolhidas á Casa Verde. O alienista dizia
que só eram admittidos os casos pathologicos, mas pouca gente lhe
dava credito. Succediam-se as versões populares. Vingança, cobiça de
dinheiro, castigo de Deus, monomania do proprio medico, plano secreto
do Rio de Janeiro com o fim de destruir em Itaguahy qualquer germen
de prosperidade que viesse a brotar, arvorecer, florir, com desdouro
e mingua daquella cidade, mil outras explicações, que não explicavam
nada, tal era o producto diario da imaginação publica.

Nisto chegou do Rio de Janeiro a esposa do alienista, a tia, a mulher
do Crispim Soares, e toda a mais comitiva,--ou quasi toda,--que algumas
semanas antes partira de Itaguahy. O alienista foi recebel-a, com o
boticario, o padre Lopes, os vereadores, e varios outros magistrados.
O momento em que D. Evarista poz os olhos na pessoa do marido é
considerado pelos chronistas de tempo como um dos mais sublimes da
historia moral dos homens, e isto pelo contraste das duas naturezas,
ambas extremas, ambas egregias. D. Evarista soltou um grito, balbuciou
uma palavra, e atirou-se ao consorte, de um gesto que não se pode
melhor definir do que comparando-o a uma mistura de onça e rola. Não
assim o illustre Bacamarte; frio como um diagnostico, sem desengonçar
por um instante a rigidez scientifica, estendeu os braços á dona, que
caiu nelles, e desmaiou. Curto incidente; ao cabo de dons minutos, D.
Evarista recebia os comprimentos dos amigos, e o prestito punha-se em
marcha.

D. Evarista era a esperança de Itaguahy; contava-se com ella para
minorar o flagello da Casa Verde. Dahi as acclamações publicas, a
immensa gente que atulhava as ruas, as flammulas, as flores e damascos
ás janellas. Com o braço apoiado no do padre Lopes,--porque o eminente
Bacamarte confiára a mulher ao vigario, e acompanhava-os a passo
meditativo,--D. Evarista voltava a cabeça a um lado e outro, curiosa,
inquieta, petulante. O vigario indagava do Rio de Janeiro, que elle
não vira desde o vice-veinado anterior; o D. Evarista respondia,
enthusiasmada, que era a cousa mais bella que podia haver no mundo.
O Passeio Publico estava acabado, um paraiso, onde ella fôra muitas
vezes, o a rua das Bellas Noites, o chafariz das Marrecas... Ah!
o chafariz das Marrecas! Eram mesmo marrecas,--feitas de metal e
despejando agua pela bocca fóra. Uma cousa galantissima. O vigario
dizia que sim, que o Ro de Janeiro devia estar agora muito mais bonito.
Se já o era neutro tempo! Não admira, maior do que Itaguahy, e de mais
a mais séde do governo... Mas não se pode dizer que Itaguahy fosse
feio; tinha bellas casas, a casa do Matheus, a Casa Verde....

--A proposito de Casa Verde, disso o padre Lopes escorregando
habilmente para o assumpto da occasião, a senhora vem achal-a muito
cheia de gente.

--Sim?

--É verdade. Lá está o Matheus...

--O albardeiro?

--O albardeiro; está o Costa, a prima do Costa, e Fulano, e Sicrano,
e...

--Tudo isso doudo?

--Ou quasi doudo, obtemperou o padre.

--Mas então?

O vigario derreou os cantos da boca, á maneira de quem não sabe nada,
ou não quer dizer tudo; resposta vaga, que se não póde repetir a outra
pessoa, por falta de texto. D. Evarista achou realmente extraordinario
que toda aquella gente ensandecesse; um ou outro, vá; mas todos?
Entretanto, custava-lhe duvidar; o marido era um sabio, não recolheria
ninguem á Casa Verde sem prova evidente de loucura.

--Sem duvida... sem duvida... ia pontuando o vigario.

Tres horas depois, cerca de cincoenta convivas sentavam-se em volta
da mesa de Simão Bacamarte; era o jantar das boas-vindas. D. Evarista
foi o assumpto obrigado dos brindes, discursos, versos de toda a
casta, metaphoras, amplificações, apologos. Ella era a esposa do novo
Hippocrates, a musa da sciencia, anjo, divina, aurora, caridade, vida,
consolação; trazia nos olhos duas estrellas, segundo a versão modesta
de Crispim Soares, e dous sóes, no conceito de um vereador. O alienista
ouvia essas cousas um tanto enfastiado, mas sem visivel impaciencia.
Quando muito dizia ao ouvido da mulher, que a rhetorica permittia taes
arrojos sem significação. D. Evarista fazia esforços para adherir a
esta opinião do marido; mas, ainda descontando tres quartas partes das
louvaminhas, ficava muito com que enfunar-lhe a alma. Um dos oradores,
por exemplo, Martim Brito, rapaz de vinte e cinco annos, pintalegrete
acabado, curtido de namoros e aventuras, declamou um discurso em que o
nascimento de D. Evarista era explicado polo mais singular dos reptos.
«Deus, disse elle, depois de dar ao universo o homem e a mulher,
esse diamante e essa perola da corôa divina (e o orador arrastava
triumphalmente esta phrase de uma ponta a outra da mesa) Deus quiz
vencer a Deus, e creou D. Evarista.»

D. Evarista baixou os olhos com exemplar modestia. Duas senhoras,
achando a cortezanice excessiva e audaciosa, interrogaram os olhos do
dono da casa; e, na verdade, o gesto do alienista pareceu-lhes nublado
de suspeitas, de ameaças, e, provavelmente, de sangue. O atrevimento
foi grande, pensaram as duas damas. E uma e outra pediam a Deus que
removesse qualquer episodio tragico,--ou que o adiasse, ao menos,
para o dia seguinte. Sim, que o adiasse. Uma dellas, a mais piedosa,
chegou a admittir, comsigo mesma, que D. Evarisla não merecia nenhuma
desconfiança, tão longe estava de ser attrahente ou bonita. Uma
simples agua-morna. Verdade é que, se todos os gostos fossem eguaes,
o que seria do amarello? E esta ideia fel-a tremer outra vez, embora
menos; menos, porque o alienista sorria agora para o Martim Brito, e,
levantados todos, foi ter com elle e fallou-lhe do discurso. Não lhe
negou que era era improviso brilhante, cheio de rasgos magnificos.
Seria delle mesmo a ideia relativa ao nascimento de D. Evarista, ou
tel-a-hia encontrado em algum autor que...? Não, senhor; era delle
mesmo; achou-a naquella occasião e parecera-lhe adequada a um arroubo
oratorio. De resto, suas ideias eram antes arrojadas do que ternas
ou jocosas. Dava para o épico. Uma vez, por exemplo, compôz uma ode
á queda do marquez de Pombal, em que dizia que esse ministro era o
«dragão asperrimo do Nada,» esmagado pelas «garras vingadoras do Todo»;
e assim outras, mais ou menos fóra do commum; gostava das ideias
sublimes e raras, das imagens grandes e nobres...

--Pobre moço! pensou o alienista. E continuou comsigo:--Trata-se de um
caso do lesão cerebral; phenomeno sem gravidade, mas digno de estudo...

D. Evarista ficou estupefacta quando soube, tres dias depois, que o
Martim Brito fôra alojado na Casa Verde. Um moço que tinha idéas tão
bonitas! As duas senhoras attribuiram o acto a ciumes do alienista. Não
podia ser outra cousa; realmente a declaração do moço fôra audaciosa de
mais.

Ciumes? Mas como explicar que, logo em seguida, fossem recolhidos
José Borges do Couto Leme, pessoa estimavel, o Chico das Cambraias,
folgazão emerito, o escrivão Fabricio, e ainda outros? O terror
accentuou-se. Não se sabia já quem estava são, nem quem estava doudo.
As mulheres, quando os maridos saiam, mandavam accender uma lamparina
a Nossa Senhora; e nem todos os maridos eram valorosos, alguns não
andavam fóra sem um ou dous capangas. Positivamente o terror. Quem
podia, emigrava. Um desses fugitivos, chegou a ser preso a duzentos
passos da villa. Era um rapaz de trinta annos, amavel, conversado,
polido, tão polido que não cumprimentava alguem sem levar o chapéu ao
chão; na rua, acontecia-lhe correr uma distancia de dez a vinte braças
para ir apertar a mão a um homem grave, a uma senhora, ás vezes a um
menino, como acontecera ao filho do juiz de fóra. Tinha a vocação
das cortezias. De resto, devia as boas relações da sociedade, não só
aos dotes pessoaes, que eram raros, como á nobre tenacidade com que
nunca desanimava deante de uma, duas, quatro, seis recusas, caras
feias, etc. O que acontecia era que, uma vez entrado n'uma casa, não
a deixava mais, nem os da casa o deixavam a elle, tão gracioso era o
Gil Bernardes. Pois o Gil Bernardes, apezar de se saber estimado, teve
medo quando lhe disseram um dia, que o alienista o trazia de olho; na
madrugada seguinte fugiu da villa, mas foi logo apanhado e couduzido á
Casa Verde.

--Devemos acabar com isto!

--Não pode continuar!

--Abaixo a tyrania!

--Despota! violento! Golias!

Não eram gritos na rua, eram suspiros em casa mas não tardava a
hora dos gritos. O terror crescia: avisinhava-se a rebellião. A
idéa de uma petição ao governo para que Simão Bacamarte fosse
capturado e deportado, andou por algumas cabeças, antes que o
barbeiro Porfirio a expendesse na loja, com grandes gestos de
indignação. Note-se,--e essa é uma das laudas mais puras desta sombria
historia,--note-se que o Porfirio, desde que a Casa Verde começára
a povoar-se tão extraordinariamente, viu crescerem-lhe os lucros
pela applicação assidua de sanguesugas que dalli lhe pediam: mas o
interesse particular, dizia elle, deve ceder ao interesse publico. E
accrescentava:--é preciso derrubar o tyranno! Note-se mais que elle
soltou esse grito justamente no dia em Simão Bacamarte fizera recolher
á Casa Verde um homem que trazia com elle uma demanda, o Coelho.

--Não me dirão em que é que o Coelho é doudo? bradou o Porfirio.

E ninguem lhe respondia; todos repetiam qne era um homem perfeitamente
ajuizado. A mesma demanda que elle trazia com o barbeiro, ácerca de uns
chãos da villa, era filha da obscuridade de um alvará, e não da cobiça
ou odio. Um excellente caracter o Coelho. Os unicos desafeiçoados que
tinha eram alguns sujeitos que, dizendo-se taciturnos, ou allegando
andar com pressa, mal o viam de longe dobravam as esquinas, entravam
nas lojas, etc. Na verdade, elle amava a boa palestra, a palestra
comprida, gostada a sorvos largos, e assim é que nunca estava só,
preferindo os que sabiam dizer duas palavras, mas não desdenhando os
outros. O padre Lopes, que cultivava o Dante, e era inimigo do Coelho,
nunca o via desligar-se de uma pessoa que não declamasse e emendasse
este trecho:

    La bocca solevò dal fero pasto
    Quel _seccatore..._

mas uns sabiam do odio do padre, e outros pensavam que isto era uma
oração em latim.


VI

A REBELIÃO


Cerca de trinta pessoas ligaram-se ao barbeiro, redigiram e levaram uma
representação á camara. A camara recusou aceital-a, declarando que a
Casa Verde era uma instituição publica, e que a sciencia não podia ser
emendada por votação administrativa, menos ainda por movimentos de rua.

--Voltai ao trabalho, concluiu o presidente, é o conselho que vos damos.

A irritação dos agitadores foi enorme. O barbeiro declarou que iam
d'alli levantar a bandeira da rebellião, e destruir a Casa Verde;
que ltaguahy não podia continuar a servir de cadaver aos estudos e
experiencias de um despota; que muitas pessoas estimaveis, algumas
distinctas, outras humildes mas dignas de apreço, jaziam nos cubiculos
da Casa Verde; que o despotismo scientifico do alienista complicava-se
do espirito de ganancia, visto que os loucos, ou suppostos taes, não
eram tratados de graça: as familias, e em falta dellas a camara, pagavam
ao alienista...

--É falso, interrompeu o presidente.

--Falso?

--Ha cerca de duas semanas recebemos um officio do illustre medico,
em que nos declara que, tratando de fazer experiencias de alto valor
psychologico, desiste do estipendio votado pela camara, bem como nada
receberá das familias dos enfermos.

A noticia deste acto tão nobre, tão puro, suspendeu um pouco a alma
dos rebeldes. Seguramente o alienista podia estar em erro, mas nenhum
interesse alheio á sciencia o instigava; e para demonstrar o erro era
preciso alguma cousa mais do que arruaças e clamores, isto disse o
presidente, com applauso de toda a camara. O barbeiro, depois de alguns
instantes de concentração, declarou que estava investido de um mandato
publico, e não restituiria a paz a Itaguahy antes de vêr por terra a
Casa Verde,--«essa Bastilha da razão humana»,--expressão que ouvira a
um poeta local, e que elle repetiu com muita emphasis. Disse, e a um
signal todos sairam com elle.

Imagine-se a situação dos vereadores; urgia obstar ao ajuntamento,
á rebellião, á luta, ao sangue. Para accrescentar ao mal, um dos
vereadores, que apoiara o presidente, ouvindo agora a denominação
dada pelo barbeiro á Casa Verde--«Bastilha da razão humana»,--achou-a
tão elegante, que mudou de parecer. Disse que entendia de bom aviso
decretar alguma medida que reduzisse a Casa Verde; e porque o
presidente, indignado, manifestasse em temos energicos o seu pasmo, o
vereador fez esta reflexão:

--Nada tenho que ver com a sciencia; mas se tantos homens em quem
suppomos juizo são reclusos por dementes, quem nos aflirma que o
alienado não é o alienista?

Sebastião Freitas, o vereador dissidente, tinha o dom da palavra,
e fallou ainda por algum tempo com prudencia, mas com firmesa. Os
collegas estavam attonitos; o presidente pediu-lhe que, ao menos,
désse o exemplo da ordem e do respeito á lei, não aventasse as suas
idéas na rua, para não dar corpo e alma á rebellião, que era por ora
um turbilhão de atomos dispersos. Esta figura corrigiu um pouco a
effeito da outra: Sebastião Freitas prometteu suspender qualquer acção,
reservando-se o direito de pedir pelos meios legaes a reducção da Casa
Verde. E repetia com sigo, namorado:--Bastilha da razão humana!

Entretanto, a arruaça crescia. Já não eram trinta, mas trezentas
pessoas que acompanhavam o barbeiro, cuja alcunha familiar deve
ser mencionada, porque ella deu o nome á revolta; chamavam-lhe o
Cangica,--e o movimento ficou celebre com o nome de revolta dos
Cangicas. A acção podia ser restricta,--visto que muita gente, ou por
medo, ou por habitos de educação, não descia á rua; mas o sentimento
era unanime, ou quasi unanime, e os trezentos que caminhavam para
a Casa Verde,--dada a diferença de Paris a Itaguahy,--podiam ser
comparados aos que tomaram a Bastilha.

D. Evarista teve noticia da rebellião antes que ella chegasse; veiu
dar-lh'a uma de suas crias. Ella provava nessa occasião um vestido do
seda,--um dos trinta e sete que trouxera do Rio de Janeiro,--e não quiz
crer.

--Hade ser alguma patuscada, dizia ella mudando a posição de um
alfinete. Benedicta, vê se a barra está boa.

--Está, sinhá, respondia a mucama de cocaras no chão, está boa. Sinhá
vira um bocadinho. Assim, Está muito boa.

--Não é patuscada, não, senhora; elles estão gritando:--Morra o Dr.
Bacamarte! o tyranno! dizia o moleque assustado.

--Cala a hoca, tolo! Benedicta, olha ahi do lado esquerdo; não parece
qne a costura está um pouco enviezada? A risca azul não segue até
abaixo; está muito feio assim; é preciso descozer para ficar egualzinho
e...

--Morra o Dr. Bacamarte! morra o tyranno! uivaram fóra trezentas vozes.
Era a rebellião que desembocava na rua Nova.

D. Evarista ficou sem pinga de sangue. No primeiro instante não deu
um passo, não fez um gesto; o terror petrificou-a. A mucama correu
instinctivamente para a porta do fundo. Quanto ao moleque, a quem D.
Evarista, não dera credito, teve um instante de triumpho, um certo
movimento subito, imperceptivel, entranhado, de satisfação moral, ao
ver que a realidade vinha jurar por elle.

--Morra o alienista! bradavam as vozes mais perto.

D. Evarista, se não resistia facilmente ás commoções de prazer, sabia
entestar com os momentos de perigo. Não desmaiou; correu á sala
interior onde o marido estudava. Quando ella alli entrou, precipitada,
o illustre medico escrutava um texto de Averróes, os olhos delle,
empanados pela cogitação, subiam do livro ao tecto e baixavam do tecto
ao livro, cégos para a realidade exterior, videntes para os profundos
trabalhos mentaes. D. Evarista chamou pelo marido duas vezes, sem que
elle lhe désse attenção; á terceira, ouviu e perguntou-lhe o que tinha,
se estava doente.

--Você não ouve estes gritos? perguntou a digna esposa em lagrimas.

O alienista attendeu então; os gritos approximavam-se, terriveis,
ameaçadores; elle comprehendeu tudo. Levantou-se da cadeira de espaldar
em que estava sentado, fechou o livro, e, a passo firme e tranquillo,
foi deposital-o na estante. Como a introducção do volume desconcertasse
um pouco a linha dos dous tomos contiguos, Simão Bacamarte cuidou de
corrigir esse defeito minimo, e, aliás, interessante. Depois disse á
mulher que se recolhesse, que não fizesse nada.

--Não, não, implorava a digna senhora, quero morrer ao lado de você...

Simão Bacamarte teimou que não, que não era caso de morte; e ainda
que o fosse, intimava-lhe em nome da vida que ficasse. A infeliz dama
curvou a cabeça, obediente e chorosa.

--Abaixo a Casa Verde! bradavam os Cangicas.

O alienista caminhou para a varanda da frente, e chegou alli no
momento em que a rebellião tambem chegava e parava, defronte, com
as suas trezentas cabeças rutilantes de civismo e sombrias de
desespero.--Morra! morra! bradaram de todos os lados, apenas o vulto
do alienista assomou na varanda. Simão Bacamarte fez um signal pedindo
para fallar; os revoltosos cobriram-lhe a voz com brados de indignação.
Então, o barbeiro agitando o chapéo, afim de impôr silencio á turba,
conseguiu aquietar os amigos, e declarou ao alienista que podia fallar,
mas accrescentou que não abusasse da paciencia, do povo como fizera até
então.

--Direi pouco, ou até não direi nada, se fôr preciso. Desejo saber
primeiro o que pedis.

--Não pedimos nada, replicou fremente o barbeiro; ordenamos que a Casa
Verde seja demolida ou pelo menos despojada dos infelizes que lá estão.

--Não entendo.

--Entendeis bem, tyranno; queremos dar liberdade ás victimas do vosso
odio, capricho, ganancia...

O alienista sorriu, mas o sorriso desse grande homem não era cousa
visivel aos olhos da multidão; era uma contracção leve de dous ou tres
musculos, nada mais. Sorriu e respondeu:

--Meus senhores, a sciencia é cousa seria, e merece ser tratada com
seriedade. Não dou razão dos meus actos de alienista a ninguem, salvo
aos mestres e a Deus. Se quereis emendar a administração da Casa Verde,
estou prompto a ouvir-vos; mas se exigis que me negue a mim mesmo,
não ganhareis nada. Poderia convidar alguns de vós, em commissão dos
outros, a vir ver commigo os loucos reclusos; mas não o faço, porque
seria dar-vos mão do meu systema, o que não farei a leigos, nem a
rebeldes.

Disse isto o alienista, e a multidão ficou attonita; era claro que não
esperava tanta energia e menos ainda tamanha serenidade. Mas o assombro
cresceu de ponto quando o alienista, cortejando a multidão com muita
gravidade, deu-lhe as costas e retirou-se lentamente para dentro. O
barbeiro tornou logo a si, e, agitando o chapéo, convidou os amigos á
demolição da Casa Verde; poucas vozes e frouxas lhe responderam. Foi
nesse momento decisivo que o barbeiro sentiu despontar em si a ambição
do governo; pareceu-lhe então que, demolindo a Casa Verde, e derrocando
a influencia do alienista, chegaria a apoderar-se da camara, dominar
as demais autoridades e constituir-se senhor de Itaguahy. Desde alguns
annos que elle forcejava por ver o seu nome incluido nos pellouros para
o sorteio dos vereadores, mas era recusado por não ter uma posição
compativel com tão grande cargo. A occasião era agora ou nunca. Demais
fôra tão longe na arruaça, que a derrota seria a prisão, ou talvez a
forca, ou o degredo. Infelizmente, a resposta do alienista diminuira o
furor dos sequazes. O barbeiro, logo que o percebeu, sentiu um impulso
de indignação, e quiz bradar-lhes:--Canalha! covardes!--mas conteve-se,
e rompeu deste modo:

--Meus amigos, lutemos até o fim! A salvação de ltaguahy está nas
vossas mãos dignas e heroicas. Destruamos o carcere de vossos filhos
e paes, de vossas mães e irmãs, de vossos parentes e amigos, e de
vós mesmos. Ou morrereis a pão e agua, talvez a chicote, ua masmorra
daquelle indigno.

A multidão agitou-se, murmurou, bradou, ameaçou, congregou-se toda em
derredor do barbeiro. Era a revolta que tomava a si da ligeira syncope,
e ameaçava arrazar a Casa Verde.

--Vamos! bradou Porfirio agitando o chapéo.

--Vamos! repetiram todos.

Deteve-os um incidente: era um corpo de dragões que, a marche-marche,
entrava na rua Nova.


VII

O INESPERADO


Chegados os dragões em frente aos Cangicas, houve um instante de
estupefacção; os Cangicas não queriam crer que a força publica fosse
mandada contra elles; mas o barbeiro comprehendeu tudo e esperou. Os
dragões pararam, o capitão intimou á multidão que se dispersasse; mas,
comquanto uma parte della estivesse inclinada a isso, a outra parte
apoiou fortemente o barbeiro, cuja resposta consistiu nestes termos
alevantados:

--Não nos dispersaremos. Se quereis os nossos cadaveres, podeis
tomal-os; mas só os cadaveres; não levareis a nossa honra, o nosso
credito, os nossos direitos, e com elles a salvação da Itaguahy.

Nada mais imprudente do que essa resposta do barbeiro; e nada mais
natural. Era a vertigem das grandes crises. Talvez fosse tambem um
excesso de confiança na abstenção das armas por parte dos dragões;
confiança que o capitão dissipou logo, mandando carregar sobre os
Cangicas. O momento foi indescriptivel. A multidão urrou furiosa;
alguns, trepando ás janellas das casas, ou correndo pela rua fóra,
conseguiram escapar; mas a maioria ficou, bufando de colera, indignada,
animada pela exhortação do barbeiro. A derrota dos Cangicas estava
imininente, quando um terço dos dragões,--qualquer que fosse o motivo,
as chronicas não o declaram,--passou subitamente para o lado da
rebellião. Este inesperado reforço deu alma aos Cangicas, ao mesmo
tempo que lançou o desanimo ás fileiras da legalidade. Os soldados
fieis não tiveram coragem de atacar os seus proprios camaradas, e, um a
um, foram passando para elles, de modo que ao cabo de alguns minutos, o
aspecto das cousas era totalmente outro. O capitão estava de um lado,
com alguma gente, contra uma massa compacta que o ameaçava de morte.
Não teve remedio, declarou-se vencido e entregou a espada ao barbeiro.

A revolução triumphante não perdeu um só minuto; recolheu os feridos
ás casas proximas, e guiou para a camara. Povo e tropa fraternisavam,
davam vivas a el-rei, ao vice-rei, a Itaguahy, ao «illustre Porfirio.»
Este ia na frento, empunhando tão destramente a espada, como se ella
fosse apenas uma navalha um pouco mais comprida. A victoria cingia-lhe
a fronte de um nimbo mysterioso. A dignidade de governo começava a
enrijar-lhe os quadris.

Os vereadores, ás janellas, vendo a multidão e a tropa, cuidaram que a
tropa capturára a multidão, e sem mais exame, entraram e votaram uma
petição ao vice-rei para que mandasse dar um mez de soldo aos dragões,
«cujo denodo salvou Itaguahy do abysmo a que o tinha lançado uma
cáfila de rebeldes.» Esta phrase foi proposta por Sebastião Freitas, o
vereador dissidente, cuja defeza dos Cangicas tanto escandalisára os
collegas. Mas bem depressa a illusão se desfez. Os vivas ao barbeiro,
os morras aos vereadores e ao alienista vieram dar-lhes noticia da
triste realidade. O presidente não desanimou:--Qualquer que seja a
nossa sorte, disse elle, lembremo-nos que estamos ao serviço de Sua
Magestade e do povo.--Sebastião Freitas insinuou que melhor se poderia
servir á corôa e á villa sahindo pelos fundos e indo conferenciar com o
juiz de fóra, mas toda a camara rejeitou esse alvitre.

D'ahi a nada o barbeiro, acompanhado de alguns de seus tenentes,
entrava na sala da vereança, e intimava á camara a sua queda. A
camara não resistiu, entregou-se, e foi dalli para a cadeia. Então os
amigos do barbeiro propozeram-lhe que assumisse o governo da villa,
em nome de Sua Magestade. Porfirio aceitou o encargo, embora não
desconhecesse (accrescentou) os espinhos que trazia; disse mais que
não podia dispensar o concurso dos amigos presentes; ao que elles
promptamente annuiram. O barbeiro veiu á janella, e communicou ao povo
essas resoluções, quo o povo ratificou, acclamando o barbeiro. Este
tomou a denominação de--«Protector da villa em nome de Sua Magestade e
do povo.»--Expediram-se logo varias ordens importantes, communicações
officiaes do novo governo, uma exposição minuciosa ao vice-rei, com
muitos protestos de obediencia ás ordens de Sua Magestade; finalmente,
uma proclamação ao povo, curta, mas energica:

«Itaguahyenses!

Uma camara corrupta e violenta conspirava contra os interesses de Sua
Magestade e do povo. A opinião publica tinha-a condemnado; um punhado
de cidadãos, fortemente apoiados pelos bravos dragões de Sua Magestade,
acaba de a dissolver ignominiosamente, e por unanime consenso da villa,
foi-me confiado o mando supremo, até que Sua Magestade se sirva ordenar
o que parecer melhor ao seu real serviço. Itaguahyenses! não vos peço
se não que me rodeeis de confiança, que me auxilieis em restaurar a
paz e a fazenda publica, tão desbaratada pela camara que ora findou ás
vossas mãos. Contai com o meu sacrificio, e ficai certos de que a coroa
será por nós.

O Protector da villa em nome de Sua Magestade e do povo

Porfirio Caetano das Neves.»

Toda a gente advertiu no absoluto silencio desta proclamação ácerca
da Casa Verde; e, segundo uns, não podia haver mais vivo indicio dos
projectos tenebrosos do barbeiro. O perigo era tanto maior quanto
que, no meio mesmo desses graves successos, o alienista mettera na
Casa Verde umas sete ou oito pessoas, entre ellas duas senhoras,
sendo um dos homens aparentado com o Protector. Não era um repto, um
acto intencional; mas todos o interpretaram dessa maneira, e a villa
respirou com a esperança de que o alienista dentro de vinte e quatro
horas estaria a ferros, e destruido o terrivel carcere.

O dia acabou alegremente. Emquanto o arauto da matraca ia recitando
de esquina em esquina a proclamação, o povo espalhava-se nas ruas e
jurava morrer em defeza do illustre Porfirio. Poucos gritos contra a
Casa Verde, prova de confiança na acção do governo. O barbeiro fez
expedir um acto declarando feriado aquelle dia, e entabolou negociações
com o vigario para a celebração de um _Te-Deum_, tão conveniente era
aos olhos delle a conjuncção do poder temporal com o espiritual; mas o
padre Lopes recusou abertamente o seu concurso.

--Em todo caso, Vossa Reverendissima não se alistará entre os inimigos
do governo? disse-lhe o barbeiro dando á physionomia um aspecto
tenebroso.

Ao que o padre Lopes respondeu, sem responder:

--Como alistar-me, se o novo governo não tem inimigos?

O barbeiro sorriu; era a pura verdade. Salvo o capitão, os vereadores e
os principaes da villa, toda a gente o acclamava. Os mesmos principaes,
se o não acclamavam, não tinham saido contra elle. Nenhum dos almotacés
deixou de vir receber as suas ordens. No geral, as familias abençoavam
o nome daquelle que ia emfim libertar Itaguahy da Casa Verde e do
terrivel Simão Bacamarte.


VIII

AS ANGUSTIAS DO BOTICARIO


Vinte e quatro horas depois dos successos narrados no capitulo
anterior, o barbeiro saiu do palacio do governo--foi a denominação
dada á casa da camara--, com dous ajudantes de ordens, e dirigiu-se á
residencia de Simão Bacamarte. Não ignorava elle que era mais decoroso
ao governo mandal-o chamar; o receio, porém, de que o alienista não
obedecesse, obrigou-o a parecer tolerante e moderado.

Não descrevo o terror do boticario ao ouvir dizer que o barbeiro ia á
casa do alienista.--Vae prendel-o, pensou elle. E redobraram-lhe as
angustias. Com effeito, a tortura moral do boticario naquelles dias
de revolução excede a toda a descripção possivel. Nunca um homem se
achou em mais apertado lance:**--a privança do alienista chamava-o
ao lado deste, a victoria do barbeiro attrahia-o ao barbeiro. Já a
simples noticia da sublevação tinha-lhe sacudido fortemente a alma,
porque elle sabia a unanimidade do odio ao alienista; mas a victoria
final foi tambem o golpe final. A esposa, senhora mascula, amiga
particular de D. Evarista, dizia que o lugar delle era ao lado de Simão
Bacamarte; ao passo que o coração lhe bradava que não, que a causa do
alienista estava perdida, e que ninguem, por acto proprio, se amarra a
um cadaver. Fel-o Catão, é verdade, _sed victa Catoni_, pensava elle,
relembrando algumas palestras habituaes do padre Lopes; mas Catão não
se atou a uma causa vencida, elle era a propria causa vencida, a causa
da republica; o seu acto, portanto, foi de egoista, de um miseravel
egoista; minha situação é outra. Insistindo, porém, a mulher, não achou
Crispim Soares outra sahida em tal crise senão adoecer; declarou-se
doente, e metteu-se na cama.

--Lá vai o Porfirio á casa do Dr. Bacamarte, disse-lhe a mulher no dia
seguinte á cabeceira da cama; vai acompanhado de gente.

--Vai prendel-o, pensou o boticario.

Uma idéa traz outra; o boticario imaginou que, uma vez preso o
alienista, viriam tambem buscal-o a elle, na qualidade de complice.
Esta idéa foi o melhor dos visicatorios. Crispim Soares ergueu-se,
disse que estava bom, que ia sahir; e apesar de todos os esforços
e protestos da consorte, vestiu-se e sahiu. Os velhos chronistas
são unanimes em dizer que a certeza de que o marido ia collocar-se
nobremente ao lado do alienista consolou grandemente a esposa do
boticario; e notam, com muita perspicacia, o immenso poder moral de uma
illusão; porquanto, o boticario caminhou resolutamente ao palacio do
governo, não á casa do alienista. Alli chegando, mostrou-se admirado de
não ver o barbeiro, a quem ia apresentar os seus protestos de adhesão,
não o tendo feito desde a vespera por enfermo. E tossia com algum
custo. Os altos funccionarios que lhe ouviam esta declaração, sabedores
da intimidade do boticario com o alienista, comprehenderam toda a
importancia da adhesão nova, e trataram a Crispim Soares com apurado
carinho; affirmaram-lhe que o barbeiro não tardava; Sua Senhoria tinha
ido á Casa Verde, a negocio importante, mas não tardava. Deram-lhe
cadeira, refrescos, elogios; disseram-lhe que a causa do illustre
Porfirio era a de todos os patriotas; ao que o boticario ia repetindo
que sim, que nunca pensára outra cousa, que isso mesmo mandaria
declarar Sua Magestade.


IX

DOUS LINDOS CASOS


Não se demorou o alienista em receber o barbeiro; declarou-lhe que
não tinha meios de resistir, e portanto estava prestes a obedecer. Só
uma cousa pedia, é que o não constrangesse a assistir pessoalmente á
destruição da Casa Verde.

--Engana-se Vossa Senhoria, disse o barbeiro depois de alguma pausa,
engana-se em attribuir ao governo intenções vandalicas. Com razão ou
sem ella, a opinião crê que a maior parte dos doudos alli mettidos
estão era seu perfeito juizo, mas o governo reconhece que a questão
é puramente scientifica, e não cogita em resolver com posturas as
questões scientificas. Demais, a Casa Verde é uma instituição publica;
tal a aceitamos das mãos da camara dissolvida. Ha, entretanto,--por
força que ha de haver um alvitre intermedio que restitua o socego ao
espirito publico.

O alienista mal podia dissimular o assombro; confessou que esperava
outra cousa, o arrazamento do hospicio, a prisão delle, o desterro,
tudo, menos...

--O pasmo de Vossa Senhoria, atalhou gravemente o barbeiro, vem de não
attender á grave responsabilidade do governo. O povo, tomado de uma
céga piedade, que lhe dá em tal caso legitima indignação, póde exigir
do governo certa ordem de actos; mas este, com a responsabilidade que
lhe incumbe, não os deve praticar, ao menos integralmente, e tal é a
nossa situação. A generosa revolução que hontem derrubou uma camara
villipendiada e corrupta, pediu em altos brados o arrazamento da
Casa Verde; mas pode entrar no animo do governo eliminar a loucura?
Não. E se o governo não a pode eliminar, está ao menos apto para
discriminal-a, reconhecel-a? Tambem não; é materia de sciencia.
Logo, em assumpto tão melindroso, o governo não póde, não deve, não
quer dispensar o concurso de Vossa Senhoria. O que lhe pede é que de
certa maneira demos alguma satisfação ao povo. Unamo-nos, e o povo
saberá obedecer. Um dos alvitres aceitaveis, se Vossa Senhoria não
indicar outro, seria fazer retinir da Casa Verde aquelles enfermos
que estiverem quasi curados, e bem assim os maniacos de pouca monta,
etc. Desse modo, sem grande perigo, mostraremos alguma tolerancia e
benignidade.

--Quantos mortos e feridos houve hontem no conflicto? perguntou Simão
Bacamarte, depois de uns tres minutos.

O barbeiro ficou espantado da pergunta, mas respondeu logo que onze
mortos e vinte e cinco feridos.

--Onze mortos e vinte e cinco feridos! repetiu duas ou trez vezes o
alienista.

E em seguida declarou que o alvitre lhe não parecia bom, mas que
elle ia catar algum outro, e dentro de poucos dias lhe daria
resposta. E fez-lhe varias perguntas ácerca dos successos da vespera,
ataque, defeza, adhesão dos dragões, resistencia da camara, etc.,
ao que o barbeiro ia respondendo com grande abundancia, insistindo
principalmente no descredito em que a camara cahira. O barbeiro
confessou que o novo governo não tinha ainda por si a confiança dos
principaes da villa, mas o alienista podia fazer muito nesse ponto.
O govemo, concluiu o barbeiro, folgaria se pudesse contar, não já
com a sympathia, senão com a benevolencia do mais alto espirito de
Itaguahy, e seguramente do reino. Mas nada disso alterava a nobre
e austera physionomia daquelle grande homem, que ouvia calado, sem
desvanecimento, nem modestia, mas impassivel como um deus de pedra.

--Onze mortos e vinte e cinco feridos, repetiu o alienista, depois de
acompanhar o barbeiro ate á porta. Eis ahi dous lindos casos de doença
cerebral. Os symptomas de duplicidade e descaramento deste barbeiro são
positivos. Quanto á toleima dos que o acclamaram não é preciso outra
prova além dos onze mortos e vinte e cinco feridos.--Dous lindos casos!

--Viva o illustre Porfirio! bradaram umas trinta pessoas que aguardavam
o barbeiro á porta.

O alienista espiou pela janella, e ainda ouviu este resto de uma
pequena falla do barbeiro ás trinta pessoas que o acclamavam.

--... porque eu vélo, podeis estar certos disso, eu vélo pela execução
das vontades do povo. Confiai em mim; e tudo se fará pela melhor
maneira. Só vos recommendo ordem. A ordem, meus amigos, é a base do
governo...

--Viva o illustre Porfirio! bradaram as trinta vozes, agitando os
chapéos.

--Dous lindos casos! murmurou o alienista.


X

A RESTAURAÇÃO


Dentro de cinco dias, o alienista metteu na Casa Verde cerca de
cincoenta acclamadores do novo governo. O povo indignou-se. O governo,
atarantado, não sabia reagir. João Pina, outro barbeiro, dizia
abertamente nas ruas, que o Porfirio estava «vendido ao ouro de Simão
Bacamarte,» phrase que congregou em torno de João Pina a gente mais
resoluta da villa. Porfirio, vendo o antigo rival da navalha á testa
da insurreição, comprehendeu que a sua perda era irremediavel, se
não désse um grande golpe; expediu dous decretos, um abolindo a Casa
Verde, outro desterrando o alienista. João Pina mostrou claramente, com
grandes phrases, que o acto de Porfirio era um simples apparato, um
engodo, em que o povo não devia crer. Duas horas depois cahia Porfirio
ignominiosamente, e João Pina assumia a difficil tarefa do governo.
Como achasse nas gavetas as minutas da proclamação, da exposição ao
vice-rei e de outros actos inauguraes do governo anterior, deu-se
pressa em os fazer copiar e expedir; accrescentam os chronistas, e
aliás sub entende-se, que elle lhes mudou os nomes, e onde o outro
barbeiro fallára de uma camara corrupta, fallou este de «um intruso
eivado das más doutrinas francesas, e contrario aos sacrosantos
interesses de Sua Magestade, etc.»

Nisto entrou na villa uma força mandada pelo vice-rei, e restabeleceu
a ordem. O alienista exigiu desde logo a entrega do barbeiro Porfirio,
e bem assim a de uns cincoenta e tantos individuos, que declarou
mentecaptos; e não só lhe deram esses, como afiançaram entregar-lhe
mais desenove sequazes do barbeiro, que convaleciam das feridas
apanhadas na primeira rebellião.

Este ponto da crise de Itaguahy marca tambem o grau maximo da
influencia de Simão Bacamarte. Tudo quanto quiz, deu-se-lhe; e uma das
mais vivas provas do poder do illustre medico achamol-a na promptidão
com que os vereadores, restituidos a seus logares, consentiram
em que Sebastião Freitas tambem fosse recolhido ao hospicio. O
alienista, sabendo da extraordinaria inconsistencia das opiniões desse
vereador, entendeu que era um caso pathologico, e pediu-o. A mesma
cousa aconteceu ao boticario. O alienista, desde que lhe fallaram
da momentanea adhesão de Crispim Soares á rebellião dos Cangicas,
comparou-a á approvação que sempre recebera delle, ainda na vespera,
e mandou captural-o. Crispim Soares não negou o facto, mas explicou-o
dizendo que cedera a um movimento de terror, ao ver a rebellião
triumphante, e deu como prova a ausencia de nenhum outro acto seu,
accrescentando que voltára logo á cama, doente. Simão Bacamarte não
o contrariou; disse, porém, aos circumstantes que o terror tambem é
pae da loucura, e que o caso de Crispim Soares lhe parecia dos mais
caracterisados.

Mas a prova mais evidente da influencia de Simão Bacamarte foi a
docilidade com que a camara lhe entregou o proprio presidente.
Este digno magistrado tinha declarado em plena sessão, que não se
contentava, para laval-o da affronta dos Cangicas, com menos de trinta
almudes de sangue; palavra que chegou aos ouvidos do alienista por
boca do secretario da camara, enthusiasmado de tamanha energia. Simão
Bacamarte começou por metter o secretario na Casa Verde, e foi d'alli á
camara, á qual declarou que o presidente estava padecendo da «demencia
dos touros», um genero que elle pretendia estudar, com grande vantagem
para os povos. A camara a principio hesitou, mas acabou cedendo.

Dahi em diante foi uma collecta desenfreada. Um homem não podia dar
nascença ou curso á mais simples mentira do mundo, ainda daquellas que
aproveitam ao inventor ou divulgador, que não fosse logo mettido na
Casa Verde. Tudo era loucura. Os cultores de enigmas, os fabricantes de
charadas, de anagrammas, os maldizentes, os curiosos da vida alheia,
os que põem todo o seu cuidado na tafularia, um ou outro almotacé
enfunado, ninguem escapava aos emissarios do alienista. Elle respeitava
as namoradas e não poupava as namoradeiras, dizendo que as primeiras
cediam a um impulso natural, e as segundas a um vicio. Se um homem era
avaro ou prodigo ia do mesmo modo para a Casa Verde; dahi a allegação
de que não havia regra para a completa sanidade mental. Alguns
chronistas crêem que Simão Bacamarte, nem sempre procedia com lisura, e
citam em abono da affirmação (que não sei se póde ser aceita) o facto
de ter alcançado da camara uma postura autorisando o uso de um anel
de prata no dedo pollegar da mão esquerda, a toda a pessoa que, sem
outra prova documental ou tradiccional, declarasse ter nas veias duas
ou tres onças de sangue godo. Dizem esses chronistas que o fim secreto
da insinuação á camara foi enriquecer um ourives, amigo e compadre
delle; mas, comquanto seja certo que o ourives viu prosperar o negocio
depois da nova ordenação municipal, não o é menos que essa postura deu
á Casa Verde uma multidão de inquilinos; pelo que, não se póde definir,
sem temeridade, o verdadeiro fim do illustre medico. Quanto á razão
determinativa da captura e aposentação na Casa Verde de todos quantos
usaram do annel, é um dos pontos mais obscuros da historia de Itaguahy;
a opinião mais verosimil é que elles foram recolhidos por andarem a
gesticular, á tôa, nas ruas, em casa, na egreja. Ninguem ignora que
os doudos gesticulam muito. Em todo caso é uma simples conjectura; de
positivo nada ha.

--Onde é que este homem vae parar? diziam os principaes da terra. Ah!
se nós tivessemos apoiado os Cangicas...

Um dia de manhã,--dia em que a camara devia dar um grande baile,--a
villa inteira ficou abalada com a noticia de que a propria esposa do
alienista fôra mettida na Casa Verde. Ninguem acreditou; devia ser
invenção de algum gaiato. E não era: era a verdade pura. D. Evarista
fôra recolhida ás duas horas da noite. O padre Lopes correu ao
alienista e interrogou-o discretamente ácerca do facto.

--Já ha algum tempo que eu desconfiava, disse gravemente o marido.
A modestia com que ella vivera em ambos os matrimonios não podia
conciliar-se com o furor das sedas, velludos, rendas e pedras preciosas
que manifestou, logo que voltou do Rio de Janeiro. Desde então comecei
a observal-a. Suas conversas eram todas sobre esses objectos; se eu
lhe fallava das antigas côrtes, inquiria logo da fórma dos vestidos
das damas; se uma senhora a visitava, na minha ausencia, antes de
me dizer o objecto da visita, descrevia-me o trajo, approvando umas
cousas e censurando outras. Um dia, creio que Vossa Reverendissima hade
lembrar-se, propôz-se a fazer annualmente um vestido para a imagem de
Nossa Senhora da matriz. Tudo isto eram symptomas graves; esta noite,
porém, declarou-se a total demencia. Tinha escolhido, preparado,
enfeitado o vestuario que levaria ao baile da camara municipal; só
hesitava entre um collar de granada e outro de saphyra. Ante-hontem
perguntou-me qual delles levaria; respondi-lhe que um ou outro lhe
ficava bem. Hontem repetiu a pergunta, ao almoço; pouco depois de
jantar fui achal-a calada e pensativa.--Que tem? perguntei-lhe.--Queria
levar o collar de granada, mas acho o de saphyra tão bonito!--Pois
leve o de saphyra.--Ah! mas onde fica o de granada?--Emfim, passou a
tarde sem novidade. Ceamos, e deitamo-nos. Alta noite, seria hora e
meia, accordo e não a vejo; levanto-me, vou ao quarto de vestir, acho-a
diante dos dous collares, ensaiando-os ao espelho, ora um, ora outro.
Era evidente a demencia; recolhi-a logo.

O padre Lopes não se satisfez com a resposta, mas não objectou nada. O
alienista, porém, percebeu e explicou-lhe que o caso de D. Evarista era
de «mania sumptuaria,» não incuravel, e em todo caso digno de estudo.

--Conto pôl-a boa dentro de seis semanas, concluiu elle.

A abnegação do illustre medico deu-lhe grande realce. Conjecturas,
invenções, desconfianças, tudo cahiu por terra, desde que elle não
duvidou recolher á Casa Verde a propria mulher, a quem amava com todas
as forças da alma. Ninguem mais tinha o direito de resistir-lhe,--menos
ainda o de attribuir-lhe intuitos alheios á sciencia. Era um grande
homem austero, Hippocrates forrado de Catão.


XI

O ASSOMBRO DE ITAGUAHY


E agora prepare-se o leitor para o mesmo assombro em que ficou a villa,
ao saber um dia que os loucos da Casa Verde iam todos ser póstos na rua.

--Todos?

--Todos.

--É impossivel; alguns, sim, mas todos...

--Todos. Assim o disse elle no officio que mandou hoje de manhã á
camara.

De facto, o alienista officiára á camara expondo:--1°, que verificára
das estatisticas da villa e da Casa Verde, que quatro quintos da
população estavam aposentados naquelle estabelecimento; 2°, que esta
deslocação de população levára-o a examinar os fundamentos da sua
theoria das molestias cerebraes, theoria que excluia do dominio da
razão todos os casos em que o equilibrio das faculdades, não fosse
perfeito e absoluto; 3°, que desse exame e do facto estatistico
resultára para elle a convicção de que a verdadeira doutrina não era
aquella, mas a opposta, e portanto que se devia admittir como normal e
exemplar o desequilibrio das faculdades, e como hypotheses pathologicas
todos os casos em que aquelle equilibrio fosse ininterrupto; 4°, que á
vista disso, declarava á camara que ia dar liberdade aos reclusos da
Casa Verde e agazalhar nella as pessoas que se achassem nas condições
agora expostas; 5°, que tratando de descobrir a verdade scientifica,
não se pouparia a esforços de toda a natureza, esperando da camara
egual dedicação; 6°, que restituia á camara e aos particulares a somma
do estipendio recebido para alojamento dos suppostos loucos, descontada
a parte effectivamente gasta com a alimentação, roupa, etc.; o que a
camara mandaria verificar nos livros e arcas da Casa Verde.

O assombro de Itaguahy for grande; não foi menor a alegria dos parentes
e amigos dos reclusos. Jantares, dansas, luminarias, musicas, tudo
houve para celebrar tão fausto acontecimento. Não descrevo as festas
por não interessarem ao nosso proposito; mas foram esplendidas,
tocantes e prolongadas.

E vão assim as cousas humanas! No meio do regosijo produzido pelo
officio de Simão Bacamarte, ninguem advertia na phrase final do § 4°,
uma phrase cheia de experiencias futuras.


XII

O FINAL DO** § 4°


Apagaram-se as luminarias, reconstituiram-se as familias, tudo parecia
reposto uos antigos eixos. Reinava a ordem, a camara exercia outra
vez o governo, sem nenhuma pressão externa; o proprio presidente e
o vereador Freitas tornaram aos seus logares. O barbeiro Porfirio,
ensinado pelos acontecimentos, tendo «provado tudo,» como o poeta disse
de Napoleão, e mais alguma cousa, porque Napoleão não provou a Casa
Verde, o barbeiro achou preferivel a gloria obscura da navalha e da
tesoura ás calamidades brilhantes do poder; foi, é certo, processado;
mas a população da villa implorou a clemencia de Sua Magestade; dahi
o perdão. João Pina foi absolvido, attendendo-se a que elle derrocára
um rebelde. Os chronistas pensam que deste facto é que nasceu o nosso
adagio:--ladrão que furta a ladrão, tem cem annos de perdão;--adagio
immoral, é verdade, mas grandemente util.

Não só findaram as queixas contra o alienista, mas até nenhum
resentimento ficou dos actos que elle praticára; accrescendo que
os reclusos da Casa Verde, desde que elle os declarara plenamente
ajuizados, sentiram-se tomados de profundo reconhecimento e férvido
enthusiasmo. Muitos entenderam que o alienista merecia uma especial
manifestação, e deram-lhe um baile, ao qual se seguiram outros bailes e
jantares. Dizem as chronicas que D. Evarista a principio tivera ideia
de separar-se do consorte, mas a dôr de perder a companhia de tão
grande homem venceu qualquer resentimento de amor-proprio, e o casal
veiu a ser ainda mais feliz do que antes.

Não menos intima ficou a amizade do alienista e do boticario. Este
concluiu do officio de Simão Bacamarte que a prudencia e a primeira
das virtudes em tempos de revolução, e apreciou muito a magnanimidade
do alienista que, ao dar-lhe a liberdade, ostendeu-lhe a mão de amigo
velho.

--É um grande homem, disse elle á mulher, referindo aquella
circumstancia.

Não é preciso fallar do albardeiro, do Costa, do Coelho, do Martim
Brito e outros, especialmente nomeados neste escripto; basta dizer
que puderam exercer livremente os seus habitos anteriores. O proprio
Martim Brito, recluso por um discurso em que louvára emphaticamente D.
Evarista, fez agora outro em honra do insigne medico--«cujo altissimo
genio, elevando as azas muito acima do sol, deixou abaixo de si todos
os demais espiritos da terra.»

--Agradeço as suas palavras, retorquiu-lhe o alienista, e ainda me não
arrependo de o haver restituido á liberdade.

Entretanto, a camara, que respondera ao officio de Simão Bacamarte, com
a resalva de que opportunamente estatuiria em relação ao final do §
4°, tratou emfim de legislar sobre elle. Foi adoptada, sem debate, uma
postura autorisando o alienista a agazalhar na Casa Verde as pessoas
qne se achassem no gozo do perfeito equilibrio das faculdades mentaes.
E porque a experiencia da camara tivesse sido dolorosa, estabeleceu
ella a clausula, de que a autorisação era provisoria, limitada a um
anno, para o fim de ser experimentada a nova theoria psychologica,
podendo a camara, antes mesmo daquelle prazo, mandar fechar a Casa
Verde, se a isso fosse aconselhada por motivos de ordem publica. O
vereador Freitas propôz tambem a declaração de que em nenhum caso
fossem os vereadores recolhidos ao asylo dos alienados: clausula que
foi aceita, votada o incluida na postura, apezar das reclamações do
vereador Galvão. O argumento principal deste magistrado é que a camara,
legislando sobre uma experiencia scientifica, não podia excluir as
pessoas dos seus membros das consequencias da lei; a excepção era
odiosa e ridicula. Mal proferira estas duras palavras, romperam os
vereadores em altos brados contra a audacia e insensatez do collega;
este, porém, ouviu-os e limitou-se a dizer que votava contra a excepção.

--A vereança, concluiu elle, não nos dá nenhum poder especial nem nos
elimina do espirito humano.

Simão Bacamarte aceitou a postura com todas as restricções. Quanto
á exclusão dos vereadores, declarou que teria profundo sentimento
se fosse compellido a recolhel-os á Casa Verde; a clausula, porém,
era a melhor prova de que elles não padeciam do perfeito equilibrio
das faculdades mentaes. Não acontecia o mesmo ao vereador Galvão,
cujo acerto na objecção feita, e cuja moderação na resposta dada
ás invectivas dos collegas mostravam da parte delle um cerebro bem
organisado; pelo que, rogava á camara que lh'o entregasse. A camara,
sentindo-se ainda aggravada pelo proceder do vereador Galvão, estimou o
pedido do alienista, e votou unanimamente a entrega.

Comprehende-se que, pela theoria nova, não bastava um facto ou um dito,
para recolher alguem á Casa Verde; era preciso um longo exame, um vasto
inquerito do passado e do presente. O padre Lopes, por exemplo, só foi
capturado trinta dias depois da postura, a mulher do boticario quarenta
dias. A reclusão desta senhora encheu o consorte de indignação.
Crispim Soares sahiu de casa espumando de colera, e declarando ás
pessoas a quem encontrava que ia arrancar as orelhas ao tyranno.
Um sujeito, adversario do alienista, ouvindo na rua essa noticia,
esqueceu os motivos de dissidencia, e correu á casa de Simão Bacamarte
a participar-lhe o perigo que corria. Simão Bacamarte mostrou-se grato
ao procedimento do adversario, e poucos minutos lhe bastaram para
conhecer a rectidão dos seus sentimentos, a boa fé, o respeito humano,
a generosidade; apertou-lhe muito as mãos, e recolheu-o á Casa Verde.

--Um caso destes é raro, disse elle á mulher pasmada. Agora esperemos o
nosso Crispim.

Crispim Soares entrou. A dôr vencera a raiva, o boticario não arrancou
as orelhas ao alienista. Este consolou o seu privado, assegurando-lhe
que não era caso perdido; talvez a mulher tivesse alguma lesão
cerebral; ia examinal-a com muita attenção; mas antes disso não podia
deixal-a na rua. E parecendo-lhe vantajoso reunil-os, porque a astucia
e velhacaria do marido poderiam de certo modo curar a belleza moral que
elle descobrira na esposa, disse Simão Bacamarte:

--O senhor trabalhará durante o dia na botica, mas almoçará e jantará,
com sua mulher, e cá passará as noites, e os domingos e dias santos.

A proposta collocou o pobre boticario na situação do asno de Buridan.
Queria viver com a mulher, mas temia voltar á Casa Verde; e nessa
luta esteve algum tempo, até que D. Evarista o tirou da difficuldade,
promettendo que se incumbiria de vêr a amiga e transmittir os recados
de um para outro. Crispim Soares beijou-lhe as mãos agradecido. Este
ultimo rasgo do egoismo pusillanime pareceu sublime ao alienista.

Ao cabo de cinco mezes estavam alojadas umas dezoito pessoas; mas
Simão Bacamarte não afrouxava; ia de rua em rua, de casa em casa,
espreitando, interrogando, estudando; e quando colhia um enfermo,
levava-o com a mesma alegria com que ontrora os arrebanhava ás duzias.
Essa mesma desproporção confirmava a theoria nova; achára-se enfim a
verdadeira pathologia cerebral. Um dia, conseguiu metter na Casa Verde
o juiz de fóra; mas procedia com tanto escrupulo, que o não fez senão
depois de estudar minuciosamente todos os seus actos, e interrogar os
principaes da villa. Mais de uma vez esteve prestes a recolher pessoas
perfeitamente desequilibradas; foi o que se deu com um advogado, em
quem reconheceu um tal conjuncto de qualidades moraes e mentaes,
que era perigoso deixal-o na rua. Mandou prendel-o; mas o agente,
desconfiado, pediu-lhe para fazer uma experiencia; foi ter com um
compadre, demandado por um testamento falso, e deu-lhe de conselho que
tomasse por advogado o Salustiano; era o nome da pessoa em questão.

--Então, parece-lhe...?

--Sem duvida: vá, confesse tudo, a verdade inteira, seja qual fôr, e
confie-lhe a causa.

O homem foi ter com o advogado, confessou ter falsificado o testamento,
e acabou pedindo que lhe tomasse a causa. Não se negou o advogado,
estudou os papeis, arrazoou longamente, e provou a todas as luzes
que o testamento era mais que verdadeiro. A innocencia do réu foi
solemnemente proclamada pelo juiz, e a herança passou-lhe ás mãos.
O distincto jurisconsulto deveu a esta experiencia a liberdade. Mas
nada escapa a um espirito original e penetrante. Sirnão Bacamarte, que
desde algum tempo notava o zelo, a sagacidade, a paciencia, a moderação
daquelle agente, reconheceu a habilidade e o tino com que elle levára
a cabo uma experiencia tão melindrosa e complicada, e determinou
recolhel-o immediatamente á Casa Verde; deu-lhe, todavia, um dos
melhores cubiculos.

Os alienados foram alojados por classes. Fez-se uma galeria de
modestos, isto é, os loucos em quem predominava esta perfeição moral;
outra de tolerantes, outra de veridicos, outra de simplices, outra de
leaes, outra de magnanimos, outra de sagazes, outra de sinceros, etc.
Naturalmente, as familias e os amigos dos reclusos bradavam contra
a theoria; e alguns tentaram compellir a camara a cassar a licença.
A camara, porem, não esquecera a linguagem do vereador Galvão, e se
cassasse a licença, vel-o-hia na rua, e restituido ao logar; pelo que,
recusou. Simão Bacamarte officiou aos vereadores, não agradecendo, mas
felicitando-os por esse acto de vingança pessoal.

Desenganados da legalidade, alguns principaes da villa recorreram
secretamente ao barbeiro Porfirio e afiançaram-lhe todo o apoio
de gente, dinheiro e influencia na côrte, se elle se puzesse á
testa de outro movimento contra a camara e o alienista. O barbeiro
respondeu-lhes que não; que a ambição o levara da primeira vez a
transgredir as leis, mas que elle se emendára, reconhecendo o erro
proprio e a pouca consistencia da opinião dos seus mesmos sequazes; que
a camara entendera autorisar a nova experiencia do alienista, por um
anno: cumpria, ou esperar o fim do praso, ou requerer ao vice-rei, caso
a mesma camara rejeitasse o pedido. Jámais aconselharia o emprego de um
recurso que elle viu falhar em suas mãos, e isso a troco de mortes e
ferimentos que seriam o seu eterno remorso.

--O que é que me está dizendo? perguntou o alienista quando um agente
secreto lhe contou a conversação do barbeiro com os principaes da villa.

Dous dias depois o barbeiro era recolhido á Casa Verde.--Preso por ter
cão, preso por não ter cão! exclamou o infeliz.

Chegou o fim do praso, a camara autorisou um praso supplementar de seis
mezes para ensaio dos meios therapeuticos. O desfecho deste episodio da
chronica itaguahyense, é de tal ordem, e tão inesperado, que merecia
nada menos de dez capitulos de exposição; mas contento-me com um, que
será o remate da narrativa, e um dos mais bellos exemplos de convicção
scientifica e abnegação humana.


XIII

PLUS ULTRA!


Era a vez da therapeutica. Simão Bacamarte, activo e sagaz em descobrir
enfermos, excedeu-se ainda na diligencia e penetração com que
principiou a tratal-os. N'este ponto todos os chronistas estão de pleno
accordo: o illustre alienista fez curas pasmosas, que excitaram a mais
viva admiração em Itaguahy.

Com effeito, era difficil imaginar mais racional systema therapeutico.
Estando os loucos divididos por classes, segundo a perfeição moral que
em cada um d'elles excedia ás outras, Simão Bacamarte cuidou em attacar
de frente a qualidade predominante. Supponhamos um modesto. Elle
applicava a medicação que pudesse incutir-lhe o sentimento opposto; e
não ia logo ás dóses maximas,--graduava-as, conforme o estado, a edade,
o temperamento, a posição social do enfermo. Ás vezes bastava uma
casaca, uma fita, uma cabelleira, uma bengala, para restituir a razão
ao alienado: em outros casos a molestia era mais rebelde; recorria
então aos aneis de brilhantes, ás distincções honorificas, etc. Houve
um doente, poeta, que resistiu a tudo. Simão Bacamarte começava a
desesperar da cura, quando teve ideia de mandar correr matraca, para o
fim de o apregoar como um rival de Garção e de Pindaro.

--Foi um santo remedio, contava a mãe do infeliz a uma comadre; foi um
santo remedio.

Outro doente, tambem modesto, oppoz a mesma rebeldia á medicação; mas
não sendo escriptor, (mal sabia assignar o nome) não se lhe podia
applicar o remedio da matraca. Simão Bacamarte lembrou-se de pedir para
elle o lugar de secretario de Academia dos Encobertos estabelecida
em Itaguahy. Os logares de presidente e secretarios eram de nomeação
regia, por especial graça do finado rei D. João V, e implicavam o
tratamento de Excellencia e o uso de uma placa de ouro no chapéu. O
governo de Lisboa recusou o diploma; mas representando o alienista que
o não pedia como premio honorifico ou distincção legitima, e sómente
como um meio therapeutico para um caso difficil, o governo cedeu
excepcionalmente á supplica; e ainda assim não o fez sem extraordinario
esforço do ministro de marinha e ultramar, que vinha a ser primo do
alienado. Foi outro santo remedio.

--Realmente, é admiravel! dizia-se nas ruas, ao ver a expressão sadia e
enfunada dos dois ex-dementes.

Tal era o systema. Imagina-se o resto. Cada belleza moral ou mental
era atacada no ponto em que a perfeição parecia mais solida; e o
effeito era certo. Nem sempre era certo. Casos houve em que a qualidade
predominante resistia a tudo; então, o alienista atacava outra parte,
applicando á therapeutica o methodo da estrategia militar, que toma uma
fortaleza por um ponto, se por outro o não póde conseguir.

No fim de cinco mezes e meio estava vazia a Casa Verde; todos curados!
O vereador Galvão tão cruelmente affligido de moderação e equidade,
teve a felicidade de perder um tio; digo felicidade, porque o tio
deixou um testamento ambiguo, e elle obteve uma boa interpretação,
corrompendo os juizes, e embaçando os outros herdeiros. A sinceridade
do alienista manifestou-se nesse lance; confessou ingenuamente que
não teve parte na cura: foi a simples _vis medicatrix_ da natureza.
Não aconteceu o mesmo com o padre Lopes. Sabendo o alienista que elle
ignorava perfeitamente o hebraico e o grego, incumbiu-o de fazer uma
analyse critica da versão dos Setenta; o padre aceitou a incumbencia,
e em boa hora o fez; ao cabo de dous mezes possuia um livro e a
liberdade. Quanto á senhora do boticario, não ficou muito tempo na
cellula que lhe coube, e onde aliás lhe não faltaram carinhos.

--Porque é que o Crispim não vem visitar-me? dizia ella todos os dias.

Respondiam-lhe** ora uma cousa, ora outra; afinal disseram-lhe a
verdade inteira. A digna matrona, não pôde conter a indignação e a
vergonha. Nas explosões da colera escaparam-lhe** expressões soltas e
vagas, como estas:

--Tratante!... velhaco!... ingrato!... Um patife que tem feito casas á
custa de unguentos falsificados e pôdres... Ah! tratante!...

Simão Bacamarte advertiu que, ainda quando não fosse verdadeira a
accusação contida nestas palavras, bastavam ellas para mostrar que a
excellente senhora estava emfim restituida ao perfeito desequilibrio
das faculdades; e promptamente lhe deu alta.

Agora, se imaginaes que o alienista ficou radiante ao ver sair o ultimo
hospede da Casa Verde, mostraes com isso que ainda não conheceis o
nosso homem. _Plus ultra!_ era a sua divisa. Não lhe bastava ter
descoberto a theoria verdadeira da loucura; não o contentava ter
estabelecido em Itaguahy o reinado da razão. _Plus ultra!_ Não ficou
alegre, ficou preoccupado, cogitativo; alguma cousa lhe dizia que a
theoria nova tinha, em si mesma, outra e novissima theoria.

--Vejamos, pensava elle; vejamos se chego enfim á ultima verdade.

Dizia isto, passeando ao longo da vasta sala, onde fulgurava a mais
rica bibliotheca dos dominios ultramarinos de Sua Magestade. Um amplo
chambre de damasco, preso á cintura por um cordão de seda, com borlas
de ouro (presente de uma Universidade) envolvia o corpo magestoso e
austero do illustre alienista. A cabelleira cobria-lhe uma extensa e
nobre calva adquirida nas cogitações quotidianas da sciencia. Os pés,
não delgados e femininos, não graudos e mariolas, mas proporcionados
ao vulto, eram resguardados por um par de sapatos cujas fivelas não
passavam de simples e modesto latão. Vede a differença:--só se lhe
notava luxo naquillo que era de origem scientifica; o que propriamente
vinha delle trazia a côr da moderação e da singelleza, virtudes tão
ajustadas á pessôa de um sabio.

Era assim que elle ia, o grande alienista, de um cabo a outro da vasta
bibliotheca, mettido em si mesmo, estranho a todas as cousas que não
fosse o tenebroso problema da pathologia cerebral. Subito, parou. Em
pé, deante de uma janella, com o cotovello esquerdo apoiado na mão
direita, aberta, e o queixo na mão esquerda, fechada, perguntou elle a
si:

--Mas deveras estariam elles doudos, e foram curados por mim,--ou
o que pareceu cura, não foi mais do que a descoberta do perfeito
desequilibrio do cerebro?

E cavando por ahi abaixo, eis o resultado a que chegou: os cerebros
bem organisados que elle acabava de curar, eram tão desequilibrados
como os outros. Sim, dizia elle comsigo, eu não posso ter a pretenção
de haver-lhes incutido um sentimento ou uma faculdade nova;uma e outra
cousa existiam no estado latente, mas existiam.

Chegado a esta conclusão, o illustre alienista teve duas sensações
contrarias, uma de gozo, outra de abatimento. A de gozo foi por
vêr que, ao cabo de longas e pacientes investigações, constantes
trabalhos, lucta ingente com o povo, podia affirmar esta verdade:--não
havia loucos em Itaguahy; Itaguahy não possuia um só mentecapto.
Mas tão depressa esta idéa lhe refrescara a alma, outra appareceu
que neutralisou o primeiro effeito; foi a idéa da duvida. Pois que!
Itaguahy não possuiria um unico cerebro concertado? Esta conclusão tão
absoluta, não seria por isso mesmo erronea, e não vinha, portanto,
destruir o largo e magestoso edificio da nova doutrina psychologica?

A afflicção do egregio Simão Bacamarte é definida pelos chronistas
itaguahyenses como uma das mais medonhas tempestades moraes que tem
desabado sobre o homem. Mas as tempestades só atterram os fracos; os
fortes enrijam-se contra ellas e fitam o trovão. Vinte minutos depois
allumiou-se a physionomia do alienista de uma suave claridade.

--Sim, ha de ser isso, pensou elle.

Isso é isto. Simão Bacamarte achou em si os caracteristicos do perfeito
equilibrio mental e moral; pareceu-lhe que possuia a sagacidade, a
paciencia, a perseverança, a tolerancia, a veracidade, o vigor moral,
a lealdade, todas as qualidades emfim que pódem formar um acabado
mentecapto. Duvidou logo, é certo, e chegou mesmo a concluir que era
illusão; mas sendo homem prudente, resolveu convocar um conselho de
amigos, a quem interrogou com franqueza. A opinião foi affirmativa.

--Nenhum defeito?

--Nenhum, disse em côro a assembléa.

--Nenhum vicio?

--Nada.

--Tudo perfeito?

--Tudo.

--Não, impossivel, bradou o alienista. Digo que não sinto em mim essa
superioridade que acabo de ver definir com tanta magnificencia. A
sympathia é que vos faz fallar. Estudo-me e nada acho que justifique os
excessos da vossa bondade.

A assembléa insistiu; o alienista resistiu; finalmente o padre Lopes
explicou tudo com este conceito digno de um observador.

--Sabe a razão porque não vê as suas elevadas qualidades, que aliás
todos nós admiramos? É porque tem ainda uma qualidade que realça as
outras:--a modestia.

Era decisivo. Simão Bacamarte curvou a cabeça, juntamente alegre e
triste, e ainda mais alegre do que triste. Acto continuo, recolheu-se á
Casa Verde. Em vão a mulher e os amigos lhe disseram que ficasse, que
estava perfeitamente são e equilibrado: nem rogos nem suggestões nem
lagrimas o detiveram um só instante. A questão é scientifica, dizia
elle; trata-se de uma doutrina nova, cujo primeiro exemplo sou eu.
Reuno em mim mesmo a theoria e a pratica.

--Simão! Simão! meu amor! dizia-lhe a esposa com o rosto lavado em
lagrimas.

Mas o illustre medico, com os olhos accesos da convicção scientifica,
trancou os ouvidos á saudade da mulher, e brandamente a repelliu.
Fechada a porta da Casa Verde, entregou-se ao estudo e á cura de si
mesmo. Dizem os chronistas que elle morreu dalli a dezesete mezes,
no mesmo estado em que entrou, sem ter podido alcançar nada. Alguns
chegam ao ponto de conjecturar que nunca houve outro louco, além delle,
em ltaguahy; mas esta opinião, fundada em um boato que correu desde
que o alienista expirou, não tem outra prova, senão o boato; e boato
duvidoso, pois é attribuido ao padre Lopes, que com tanto fogo realçara
as qualidades do grande homem. Seja como fôr, effectuou-se o enterro
com muita pompa e rara solemnidade.



THEORIA DO MEDALHÃO

DIALOGO


--Estás com somno?

--Não, senhor.

--Nem eu; conversemos um pouco. Abre a janella. Que horas são?

--Onze.

--Sahiu o ultimo conviva do nosso modesto jantar. Com que, meu peralta,
chegaste aos teus vinte e um annos. Ha vinte e um annos, no dia 5 de
agosto de 1854, vinhas tu á luz, um pirralho de nada, e estás homem,
longos bigodes, alguns namoros...

--Papai...

--Não te ponhas com denguices, e fallemos como dous amigos sérios.
Fecha aquella porta; vou dizer-te cousas importantes. Senta-te e
conversemos. Vinte e um annos, algumas apolices, urn diploma, pódes
entrar no parlamento, na magistratura, na imprensa, na lavoura, na
industria, no commercio, nas lettras ou nas artes. Ha infinitas
carreiras diante de ti, Vinte e um annos, meu rapaz, formam apenas a
primeira syllaba do nosso destino. Os mesmos Pitt e Napoleão, apezar
de precoces, não foram tudo aos vinte e um annos. Mas, qualquer que
seja a profissão da tua escolha, o meu desejo é que te faças grande e
illustre, ou pelo menos notavel, que te levantes acima da obscuridade
commum. A vida, Janjão, é uma enorme loteria; os premios são poucos,
os mallogrados innumeros, e com os suspiros de uma geração é que
se amassam as esperanças de outra. Isto é a vida; não ha planger,
nem imprecar, mas aceitar as cousas integralmente, com seus onus e
precalços, glorias e desdouros, e ir por diante.

--Sim, senhor.

--Entretanto, assim como é de boa economia guardar um pão para
a velhice, assim tambem é de boa pratica social acautellar um
officio para a hypothese de que os outros falhem, on não indemnisem
sufificientemente o esforço da nossa ambição. É isto o que te aconselho
hoje, dia da tua maioridade.

--Creia que lhe agradeço; mas que officio, não me dirá?

--Nenhum me parece mais util e cabido que o de medalhão. Ser medalhão
foi o sonho da minha mocidade; faltaram-me, porém as instrucções de
um pai, e acabo como vês, sem outra consolação e relevo moral, alem
das esperanças que deposito em ti. Ouve-me bem, meu querido filho,
ouve-me e entende. És moço, tens naturalmente o ardor, a exhuberancia,
os improvisos da idade; não os rejeites, mas modera-os de modo que
aos quarenta e cinco annos possas entrar francamente no regimen do
aprumo e do compasso. O sabio que disse: «a gravidade é um mysterio do
corpo», definiu a compostura do medalhão. Não confundas essa gravidade
com aquella outra que, embora resida no aspecto, é um puro reflexo ou
emanação do espirito; essa é do corpo, tão sómente do corpo, um signal
da natureza ou uin geito da vida. Quanto á edade de quarenta e cinco
annos...

--É verdade, porque quarenta e cinco annos?

--Não é, como podes suppôr, ura limite arbitrario, filho do puro
capricho; é a data normal do phenomeno. Geralmente, o verdadeiro
medalhão começa a manifestar-se entre os quarenta o cinco e cincoenta
annos, comquanto alguns exemplos se dêm eutre os cincoenta e cinco e
os sessenta; mas estes são raros. Ha-os tambem de quarenta annos, e
outros mais precoces, de trinta e cinco e de trinta; não são, todavia,
vulgares. Não fallo dos de vinte e cinco annos: esse madrugar é
privilegio do genio.

--Entendo.

--Venhamos ao principal. Uma vez entrado na carreira, deves pôr todo
o cuidado nas idéas que houveres de nutrir para uso alheio e proprio.
O melhor será não as ter absolutamente; cousa que entenderás bem,
imaginando, por exemplo, um actor defraudado do uso de um braço. Elle
pode, por um milagre de artificio, dissimular o defeito aos olhos da
platéa; mas era muito melhor dispor dos dous. O mesmo se dá com as
idéas; póde-se, com violencia, abafal-as, escondel-as até á morte; mas
nem essa habilidade é commum, nem tão constante esforço conviria ao
exercicio da vida.

--Mas quem lhe diz que eu....

--Tu, meu filho, se me não engano, pareces dotado da perfeita inopia
mental, conveniente ao uso deste nobre officio. Não me refiro tanto á
fidelidade com que repetes numa sala as opiniões ouvidas n'uma esquina,
e vice-versa, porque esse facto, posto indique certa carencia de idéas,
ainda assim póde não passar de uma traição da memoria. Não; refiro-me
ao gesto correcto e perfilado com que usas expender francamente as tuas
sympathias ou antipathias ácerca do córte de um collete, das dimensões
de um chapéu, do ranger ou calar das botas novas. Eis ahi um symptoma
eloquente, eis ahi uma esperança. No entanto, podendo acontecer
que, com a edade, venhas a ser affligido de algumas idéas proprias,
urge apparelhar fortemente o espirito. As idéas são de sua natureza
expontaneas e subitas; por mais que as sofremos, ellas irrompem e
precipitam-se. Dahi a certeza com que o vulgo, cujo faro é extremamente
delicado, distingue o medalhão completo do medalhão incompleto.

--Creio que assim seja; mas um tal obstaculo é invencivel.

--Não é; ha um meio; é lançar mão de um regimen debilitante, ler
compendios de rhetorica, ouvir certos discursos, etc. O voltarete,
o dominó e o whist são remedios approvados. O whist tem até a rara
vantagem de acostumar ao silencio, que é a fórma mais accentuada
da circumpecção. Não digo o mesmo da natação, da equitação e da
gymnastica, embora ellas façam repousar o cerebro; mas por isso mesmo
que o fazem repousar, restituem-lhe as forças e a actividade perdidas.
O bilhar é excellente.

--Como assim, se tambem é um exercicio corporal?

--Não digo que não, mas ha cousas em que a observação desmente a
theoria. Se te aconselho excepcionalmente o bilhar é porque as
estatisticas mais escrupulosas mostram que tres quartas partes dos
habituados do taco partilham as opiniões do mesmo taco. O passeio nas
ruas, mormente nas de recreio e parada é utilissimo, com a condição de
não andares desacompanhado, porque a solidão é officina de idéas, e o
espirito deixado a si mesmo, embora no meio da multidão, póde adquirir
uma tal ou qual actividade.

--Mas se eu não tiver á mão um amigo apto e disposto a ir commigo?

--Não faz mal; tens o valente recurso de mesclar-te aos pasmatorios,
em que toda a poeira da solidão se dissipa. As livrarias, ou por causa
da atmosphera do logar, ou por qualquer outra razão que me escapa, não
são propicias ao nosso fim; e, não obstante, ha grande conveniencia
em entrar por ellas, de quando em quando, não digo ás occultas, mas
ás escancaras. Pódes resolver a difficuldade de um modo simples: vai
alli fallar do boato do dia, da anecdota da semana, de um contrabando,
de uma calumnia, de um cometa, de qualquer cousa, quando não prefiras
interrogar directamente os leitores habituaes das bellas chronicas
de Mazade: 75 por cento desses estimaveis cavalheiros repetir-te-hão
as mesmas opiniões, e uma tal monotonia é grandemente saudavel. Com
este regimen, durante oito, dez, dezoito mezes--supponhamos dous
annos,--reduzes o intellecto, por mais prodigo que seja, á sobriedade,
á disciplina, ao equilibrio commum. Não trato do vocabulario, porque
elle está sub-entendido no uso das idéas; ha de ser naturalmente
simples, tibio, apoucado, sem notas vermelhas, sem cores de clarim...

--Isto é o diabo! Não poder adornar o estylo, de quando em quando....

--Podes; podes empregar umas quantas figuras expressivas, a hydra
de Lerna, por exemplo, a cabeça de Meduza, o tonel das Danaides,
as azas de Icaro, e outras, que romanticos, classicos e realistas
empregam sem desar, quando precisam d'ellas. Sentenças latinas, ditos
historicos, versos celebres, brocardos juridicos, maximas, é de bom
aviso trazel-os comtigo para os discursos de sobremesa, do felicitação,
ou de agradecimento. _Caveant, consules_ é um excellente fecho de
artigo politico; o mesmo direi do _Si vis pacem para bellum._ Alguns
costumam renovar o sabor de uma citação intercalando-a n'uma phrase
nova, original e bella, mas não te aconselho esse artificio: seria
desnaturar-lhe as graças vetustas. Melhor do que tudo isso, porem, que
afinal não passa de mero adorno, são as phrases feitas, as locuções
convencionaes, as formulas consagradas pelos annos, incrustadas na
memoria individual e publica. Essas formulas têm a vantagem de não
obrigar os outros a um esforço inutil. Não as relaciono agora, mas
fal-o-hei por escripto. De resto, o mesmo officio te irá ensinando os
elementos d'essa arte difficil de pensar o pensado. Quanto á utilidade
de um tal systema, basta figurar uma hypothese. Faz-se uma lei,
executa-se, não produz effeito, subsiste o mal. Eis ahi uma questão
que póde aguçar as curiosidades vadias, dar ensejo a um inqurrito
pedantesco, a uma collecta fastidiosa de documentos e observações,
analyse das causas provaveis, causas certas, causas possiveis, um
estudo infinito das aptidões do sujeito reformado, da natureza do mal,
da manipulação do remedio, das circumstancias da applicação; materia,
enfim, para todo nm andaime de palavras, conceitos, e desvarios.
Tu poupas aos teus semelhantes todo esse immenso aranzel, tu dizes
simplesmente: Antes das leis, reformemos os costumes!--E esta phrase
synthetica, transparente, limpida, tirada ao peculio commum, resolve
mais depressa o problema, entra pelos espiritos como um jorro subito de
sol.

--Vejo por ahi que vosmecê condemna toda e qualquer applicação de
processos modernos.

--Entendamo-nos. Condemno a applicação, louvo a denominação. O mesmo
direi de toda a recente terminologia scientifica; deves decoral-a.
Com quanto o rasgo peculiar do medalhão seja uma certa attitude de
deus Termino, e as sciencias sejam obra do movimento humano, como
tens de ser medalhão mais tarde, convém tomar as armas do teu tempo.
E de duas uma:--ou ellas estarão usadas e divulgadas d'aqui a trinta
annos, ou conservar-se-hão novas: no primeiro caso, pertencem-te de
fôro proprio; no segundo, podes ter a coquetice de as trazer, para
mostrar que tambem és pintor. De outiva, com o tempo, irás sabendo a
que leis, casos e phenomenos responde toda essa terminologia; porque o
methodo de interrogar os proprios mestres e officiaes da sciencia, nos
seus livros, estudos e memorias, além de tedioso e cançativo, traz o
perigo de inocular ideas novas, e é radicalmente falso. Accresce que
no dia em que viesses a assenhoriar-te do espirito d'aquellas leis e
formulas, serias provavelmente levado a empregal-as com um tal ou qual
comedimento, como a costureira--esperta e afreguezada,--que, segundo um
poeta, classico,

   Quanto mais panno tem, mais poupa o córte,
   Menos monte alardea de retalhos;

e este phenomeno, tratando-se de um medalhão, é que não seria
scientifico.

--Upa, que a profissão é difficil.

--E ainda não chegamos ao cabo.

--Vamos a elle.

--Não te fallei ainda dos beneficios da publicidade. A publicidade
é uma dona loureira e senhoril, que tu deves requestar á força, de
pequenos mimos, confeitos, almofadinhas, cousas miudas, que antes
exprimem a constancia do affecto do que o atrevimento e a ambição.
Que D. Quixote solicite os favores della mediante acções heroicas ou
custosas, é um sestro proprio d'esse illustre lunatico. O verdadeiro
medalhão tem outra politica. Longe de inventar um _Tratado scientifico
da creação dos carneiros_, compra um carneiro e dá-o aos amigos sob a
fórma de um jantar, cuja noticia não pode ser indifferente aos seus
concidadãos. Uma noticia traz outra; cinco, dez, vinte vezes põe o teu
nome ante os olhos do mundo. Commissões ou deputações para felicitar um
agraciado, um benemerito, um forasteiro, tem singulares merecimentos,
e assim as irmandades e associações diversas, sejam mythologicas,
cynegeticas ou coreographicas. Os successos de certa ordem, embora de
pouca monta, podem ser trazidas a lume, comtanto que ponham em relevo
a tua pessoa. Explico-me. Se caires de um carro, sem outro damno, além
do susto, é util mandal-o dizer aos quatro ventos, não pelo facto em
si, que é insignificante, mas pelo effeito de recordar um nome caro ás
affeições geraes. Percebeste?

--Percebi.

--Essa é publicidade constante, barata, facil, de todos os dias; mas ha
outra. Qualquer que seja a theoria das artes, é fora de duvida que o
sentimento da familia, a amisade pessoal e a estima publica instigam á
reproducção das feições de um homem amado ou benemerito. Nada obsta a
que sejas objecto de uma tal distincção, principalmente se a sagacidade
dos amigos não achar em ti repugnancia. Em semelhante caso, não só as
regras da mais vulgar polidez mandam aceitar o retrato ou o busto, como
seria desasado impedir que os amigos o expuzessem em qualquer casa
publica. Dessa maneira o nome fica ligado á pessoa; os que houverem
lido o teu recente discurso (supponhamos) na sessão inaugural da União
dos Cabellereiros, reconhecerão na compostura das feições o autor dessa
obra grave, em que a «alavanca do progresso» e o «suor do trabalho»,
vencem as «fauces hiantes» da miseria. No caso de que uma commissão te
leve á casa o retrato, deves agradecer-lhe o obsequio com um discurso
cheio de gratidão e um copo d'agua: é uso antigo, razoavel e honesto.
Convidarás então os melhores amigos, os parentes, e, se fôr possível,
uma ou duas pessoas de representação. Mais. Se esse dia é um dia de
gloria ou regosijo, não vejo que possas, decentemente, recusar um lugar
á mesa aos _reporters_ dos jornaes. Em todo o caso, se as obrigações
desses cidadãos os retiverem n'outra parte, podes ajudal-os de certa
maneira, redigindo tu mesmo a noticia da festa; e, dado que por um tal
ou qual escrupulo, aliás desculpavel, não queiras com a propria mão
annexar ao teu nome os qualificativos dignos delle, incumbe a noticia a
algum amigo ou parente.

--Digo-lhe que o que vosmecê me ensina não é nada facil.

--Nem eu te digo outra cousa. É difficil, como tempo, muito tempo, leva
annos, paciencia, trabalho, e felizes os que chegam a entrar na terra
promettida! Os que lá não penetram, engole-os a obscuridade. Mas os que
triumpham! E tu triumpharás, crê-me. Verás cahir as muralhas de Jerichó
ao som das trompas sagradas. Só então poderás dizer que estás fixado.
Começa nesse dia a tua phase de ornamento indispensavel, de figura
obrigada, de rotulo. Acabou-se a necessidade de farejar occasiões,
commissões, irmandades; ellas virão ter contigo, com o seu ar pesadão
e crú de substantivos desadjectivados, e tu serás o adjectivo dessas
orações opacas, o _odorifero_ das flores, o _anilado_ dos _céus_, o
_prestimoso_ dos cidadãos, o _noticioso_ e _succulento_ dos relatorios.
E ser isso é o principal, porque o adjectivo é a alma do idioma, a sua
porção idealista e metaphysica. O substantivo é a realidade nua e crua,
é o naturalismo do vocabulario.

--E parece-lhe que todo esse officio é apenas um sobresalente para os
_deficits_ da vida?

--De certo; não fica excluida nenhuma outra actividade.

--Nem politica?

--Nem politica. Toda a questão é não infringir as regras e obrigações
capitaes. Podes pertencer a qualquer partido, liberal ou conservador,
republicano ou ultramontano, com a clausula unica de não ligar nenhuma
idéa especial a esses vocábulos, e reconhecer-lhe sómente a utilidade
do _scibboleth_ biblico.

--Se for ao parlamento, posso occupar a tribuna?

--Podes e deves; é um modo de convocar a attenção publica. Quanto á
materia dos discursos, tens á escolha:--ou os negocios miudos, ou a
metaphysica politica, mas prefere a metaphysica. Os negocios miudos,
força é confessal-o, não desdizem d'aquella chateza de bom tom, propria
de um medalhão acabado; mas, se poderes, adopta a metaphysica;--é mais
facil e mais attrahente. Suppõe que desejas saber porque motivo a 7a
companhia de infantaria foi transferida de Uruguayana para Cangussú;
serás ouvido tão sómente pelo ministro da guerra, que te explicará
em dez minutos as razões d'esse acto. Não assim a metaphysica. Um
discurso de metaphysica politica apaixona naturalmente os partidos
e o publico, chama os apartes e as respostas. E depois não obriga a
pensar e descobrir. N'esse ramo dos conhecimentos humanos tudo está
achado, formulado, rotulado, encaixotado; é só prover os alforges da
memoria. Em todo caso, não transcedas nunca os limites de uma invejavel
vulgaridade.

--Farei o que puder. Nenhuma imaginação?

--Nenhuma; antes faze correr o boato de que um tal dom é infimo.

--Nenhuma philosophia?

--Entendamo-nos: no papel e na lingua alguma, na realidade nada.
«Philosophia da historia,» por exemplo, é uma locução que deves
empregar com frequencia, mas prohibo-te que chegues a outras conclusões
que não sejam as já achadas por outros. Foge a tudo que possa cheirar a
reflexão, originalidade, etc., etc.

--Também ao riso?

--Como ao riso?

--Ficar serio, muito serio...

--Conforme. Tens um um genio folgasão, prasenteiro, não has de
sofreal-o nem eliminal-o; pódes brincar e rir alguma vez. Medalhão não
quer dizer melancolico. Um grave póde ter seus momentos de expansão
alegre. Sómente,--e este ponto é melindroso...

--Diga. [added part of sentence]--**Somente não deves empregar a
ironia, esse movimento ao canto da boca cheio do mysterios, inventado
por algum grego da decadencia, contrahido** por Luciano, transmittido
a Swift e Voltaire, feição propria dos scepticos e desabusados. Não.
Usa antes a chalaça, a nossa boa chalaça amiga, gorducha, redonda,
franca, sem biocos, nem véus, que se mette pela cara dos outros, estala
com uma palmada, faz pular o sangue nas veias, e arrebentar de riso os
suspensorios. Usa a chalaça. Que é isto?

--Meia noite.

--Meia noite? Entras nos teus vinte e dois annos, meu peralta; estás
definitivamente maior. Vamos dormir, que é tarde. Rumina bem o que te
disse, meu filho. Guardadas as proporções, a conversa d'esta noite vale
o_ Principe_ de Machiavelli. Vamos dormir.


FIM DA THEORIA DO MEDALHÃO



A CHINELA TURCA[1]


Vede o bacharel Duarte. Acaba de compor o mais teso e correcto laço de
gravata que appareceu naquelle anno de 1850, e annunciam-lhe a visita
do major Lopo Alves. Notai que é de noite, e passa de nove horas.
Duarte estremeceu e tinha duas razões para isso. A primeira era ser o
major, em qualquer occasião, um dos mais enfadonhos sujeitos do tempo.
A segunda é que elle preparava-se justamente para ir ver, em um baile,
os mais finos cabellos louros e os mais pensativos olhos azues, que
este nosso clima, tão avaro delles, produzira. Datava de uma semana
aquelle namoro. Seu coração, deixando-se prender entre duas valsas,
confiou aos olhos, que eram castanhos, uma declaração em regra, que
elles pontualmente transmittiram á moça, dez minutos antes da ceia,
recebendo favoravel resposta logo depois do chocolate. Tres dias
depois, estava a caminho a primeira carta, e pelo geito que levavam as
cousas não era de admirar que, antes do fim do anno, estivessem ambos
a caminho da egreja. Nestas circumstancias, a chegada de Lopo Alves
era uma verdadeira calamidade. Velho amigo da familia, companheiro de
seu finado pae no exercito, tinha jus o major a todos os respeitos.
Impossivel despedil-o ou tratal-o com frieza. Havia felizmente uma
circumstancia attenuante; o major era aparentado com Cecilia, a moça
dos olhos azues; em caso de necessidade, era um voto seguro.

Duarte enfiou um chambre e dirigiu-se para a sala, onde Lopo Alves, com
um rolo debaixo do braço e os olhos fitos no ar, parecia totalmente
alheio á chegada do bacharel.

--Que bom vento o trouxe a Catumby a semelhante hora? perguntou Duarte,
dando á voz uma expressão de prazer, aconselhada não menos pelo
interesse que pelo bom tom.

--Não** sei se o vento que me trouxe é bom ou mau, respondeu o major
sorrindo por baixo do espesso bigode grisalho; sei que foi um vento
rijo. Vai sahir?

--Vou ao Rio Comprido.

--Já sei; vae á casa da viuva Menezes. Minha mulher e as pequenas já lá
devem estar: eu irei mais tarde, se puder. Creio que é cedo, não?

Lopo Alves tirou o relogio e viu que eram nove horas e meia. Passou
a mão pelo bigode, levantou-se, deu alguns passos na sala, tornou a
sentar-se e disse:

--Dou-lhe uma noticia, que certamente não espera. Saiba que fiz... fiz
um drama.

--Um drama! exclamou o bacharel.

--Que quer? Desde creança padeci destes achaques litterarios. O serviço
militar não foi remedio que me curasse, foi um palliativo. A doença
regressou com a força dos primeiros tempos. Já agora não ha remedio se
não deixal-a, e ir simplesmente ajudando a natureza.

Duarte recordou-se de que effectivamente o major fallava n'outro tempo
de alguns discursos inauguraes, duas ou tres nenias e boa somma de
artigos que escrevera ácerca das campanhas do Rio da Prata. Havia
porém muitos annos que Lopo Alves deixára em paz os generaes platinos
e os defuntos; nada fazia suppôr que a molestia volvesse, sobre tudo
caracterisada por um drama. Esta circumstancia explical-a-hia o
bacharel, se soubesse que Lopo Alves algumas semanas antes, assistira
á representação de uma peça do genero ultra-romantico, obra que lhe
agradou muito e lhe suggeriu a idéa de affrontar as luzes do tablado.
Não entrou o major nestas minuciosidades necessarias, e o bacharel
ficou sem conhecer o motivo da explosão dramatica do militar. Nem
o soube, nem curou disso. Encareceu muito as faculdades mentaes do
major, manifestou calorosamente a ambição que nutria de o ver sahir
triumpliante naquella estréa, prometteu que o recommendaria a alguns
amigos que tinha no _Correio Mercantil_, e só estacou e empallideceu
quando viu o major, tremulo de bem-aventurança, abrir o rolo que trazia
comsigo.

--Agradeço-lhe as suas boas intenções, disse Lopo Alves, e acceito o
obsequio que me promette; antes delle, porém, desejo outro. Sei que
é intelligente e lido; ha de me dizer francamente o que pensa deste
trabalho. Não lhe peço elogios, exijo franqueza e franqueza rude. Se
achar que não é bom, diga-o sem rebuço.

Duarte procurou desviar aquelle calix de amargura; mas era difficil
pedil-o, e impossivel alcançal-o. Consultou melancholicamente o
relogio, que marcava nove horas e cincoenta e cinco minutos, emquanto o
major folheava paternalmente as cento e oitenta folhas do manuscripto.

--Isto vai depressa, disse Lopo Alves; eu sei o que são rapazes e o
que são bailes. Descanse que ainda hoje dansará duas ou tres valsas
com _ella_, se a tem, ou com ellas. Não acha melhor irmos para o seu
gabinete?

Era indifferente, para o bacharel, o lugar do supplicio; accedeu ao
desejo do hospede. Este, com a liberdade que lhe davam as relações,
disse ao moleque que não deixasse entrar ninguem. O algoz não queria
testemunhas. A porta do gabinete fechou-se; Lopo Alves tomou logar
ao pé da mesa, tendo em frente o bacharel, que mergulhou o corpo e
o desespero n'uma vasta poltrona de marroquim, resoluto a não dizer
palavra para ir mais depressa ao termo.

O drama dividia-se em sete quadros. Esta indicação produziu um calafrio
no ouvinte. Nada havia de novo naquellas cento e oitenta paginas, senão
a lettra do autor. O mais eram os lances, os caracteres, as _ficelles_
e até o estylo dos mais acabados typos do romantismo desgrenhado. Lopo
Alves cuidava pôr por obra uma invenção, quando não fazia mais do que
alinhavar as suas reminiscencias. N'outra occasião, a obra seria um
bom passatempo. Havia logo no primeiro quadro, especie de prologo, uma
creança roubada á familia, um envenenamento, dous embuçados, a ponta de
um punhal e quantidade de adjectivos não menos afiados que o punhal. No
segundo, quadro dava-se conta da morte de um dos embuçados, que devia
ressuscitar no terceiro, para ser preso no quinto, e matar o tyranno do
septimo. Além da morte apparente do embuçado, havia no segundo quadro
o rapto da menina, já então moça de desesete annos, um monologo que
parecia durar igual praso, e o roubo de um testamento.

Eram quasi onze horas quando acabou a leitura deste segundo quadro.
Duarte mal podia conter a colera; era já impossivel ir ao Rio Comprido.
Não é fóra de proposito conjecturar que, se o major expirasse naquelle
momento, Duarte agradecia a morte como um beneficio da Providencia.
Os sentimentos do bacharel não faziam crer tamanha ferocidade; mas
a leitura de um máu livro é capaz de produzir phenomenos ainda mais
espantosos. Accresce que, emquanto aos olhos carnaes do bacharel
apparecia em toda a sua espessura a grenha de Lopo Alves, fulgiam-lhe
ao espirito os fios de ouro que ornavam a formosa cabeça de Cecilia;
via-a com os olhos azues, a tez branca e rosada, o gesto delicado e
gracioso, dominando todas as demais damas que deviam estar no salão da
viuva Menezes. Via aquillo, e ouvia mentalmente a musica, a palestra,
o sôar dos passos, e o ruge-ruge das sedas; emquanto a voz rouquenha e
sensaborona de Lopo Alves ia desfiando os quadros e os dialogos, com a
impassibilidade de uma grande convicção.

Voava o tempo, e o ouvinte já não sabia a conta dos quadros. Meia noite
soára desde muito; o baile estava perdido. De repente, viu Duarte que
o major enrolava outra vez o manuscripto, erguia-se, impertigava-se,
cravava nelle uns olhos odientos e máus, e saia arrebatadamente do
gabinete. Duarte quiz chamal-o, mas o pasmo tolhera-lhe a voz e os
movimentos. Quando pôde dominar-se, ouviu o bater do tacão rijo e
colerico do dramaturgo na pedra da calçada. Foi á janella; nada viu nem
ouviu; autor e drama tinham desapparecido.

--Porque não fez elle isso ha mais tempo? disse o rapaz suspirando.

O suspiro mal teve tempo de abrir as azas e sair pela janella fóra,
em demanda do Rio Comprido, quando o moleque do bacharel veiu
annunciar-lhe a visita de um homem baixo e gordo.

--A esta hora! exclamou Duarte.

--A esta hora, repetiu o homem baixo e gordo, entrando na sala. A esta
ou a qualquer hora, póde a policia entrar na casa do cidadão, uma vez
que se trata de um delicto grave.

--Um delicto!

--Creio que me conhece...

--Não tenho essa honra.

--Sou empregado na policia.

--Mas que tenho eu com o senhor? de que delicto se trata?

--Pouca cousa: um furto. O senhor é accusado de haver subtrahido
uma chinela turca. Apparentemente não vale nada ou vale pouco a tal
chinela. Mas ha chinela e chinela. Tudo depende das circumstancias.

O homem disse isto com um riso sarcastico, e cravando no bacharel
uns olhos de inquisidor. Duarte não sabia sequer da existencia do
objecto roubado. Concluiu que havia equivoco de nome, e não se
zangou com a injuria irrogada á sua pessoa, e de algum modo á sua
classe, attribuindo-se-lhe a ratonice. Isto mesmo disse ao empregado
da policia, accrescentando que não era motivo, em todo caso, para
incommodal-o a semelhante hora.

--Hade perdoar-me, disse o representante da autoridade. A chinela
de que se trata vale algumas dezenas de contos de réis; é ornada de
finissimos diamantes, que a tornam singularmente preciosa. Não é
turca só pela forma, mas tambem pela origem. A dona, que é uma de
nossas patricias mais viajeiras, esteve, ha cerca de tres annos no
Egypto, onde a comprou a um judeu. A historia, que este alumno de
Moysés referiu ácerca daquelle producto da industria musulmana, é
verdadeiramente miraculosa, e, no meu sentir, perfeitamente mentirosa.
Mas não vem ao caso dizel-a. O que importa saber é que ella foi roubada
e que a policia tem denuncia contra o senhor.

Neste ponto do discurso, chegára-se o homem á janella; Duarte suspeitou
que fosse um doudo ou um ladrão. Não teve tempo de examinar a suspeita,
porque dentro de alguns segundos, viu entrar cinco homens armados, que
lhe lançaram as mãos e o levaram, escada abaixo, sem embargo dos gritos
que soltava e dos movimentos desesperados que fazia. Na rua havia um
carro, onde o metteram á força. Já lá estava o homem baixo e gordo, e
mais um sujeito alto e magro, que o receberam e fizeram sentar no fundo
do carro. Ouviu-se estalar o chicote do cocheiro e o carro partiu á
desfilada.

--Ah! ah! disse o homem gordo. Com que então pensava que podia
impunemente furtar chinelas turcas, namorar moças louras, casar talvez
com ellas... e rir ainda por cima do genero humano.

Ouvindo aquella allusão á dama dos seus pensamentos, Duarte teve um
calafrio. Tratava-se, ao que parecia, de algum desforço de rival
supplantado. Ou a allusao seria casual e extranha á aventura? Duarte
perdeu-se n'um cipoal de conjecturas, em quanto o carro ia sempre
andando a todo galope. No fim de algum tempo, arriscou uma observação.

--Quaesquer que sejam os meus crimes, supponho que a policia...

--Nós não somos da policia, interrompeu friamente o homem magro.

--Ah!

--Este cavalheiro e eu fazemos um par. Elle, o senhor e eu faremos um
terno. Ora, terno não é melhor que par; não é, não póde ser. Um casal é
o ideal. Provavelmente não me entendeu?

--Não, senhor.

--Ha de entender logo mais.

Duarte resignou-se á espera, enfronhou-se no silencio, derreou o corpo,
e deixou correr o carro e a aventura. Obra de cinco minutos depois
estacavam os cavallos.

--Chegámos, disse o homem gordo.

Dizendo isto, tirou um lenço da algibeira e offereceu-o ao bacharel
para que tapasse os olhos. Duarte recusou, mas o homem magro
observou-lhe que era mais prudente obedecer que resistir. Não resistiu
o bacharel; atou o lenço e apeou-se. Ouviu, d'ahi a pouco, ranger
uma porta; duas pessoas,--provavelmente as mesmas que o acompanharam
no carro,--seguraram-lhe as mãos e o conduziram por uma infinidade
de corredores e escadas. Andando, ouvia o bacharel algumas vozes
desconhecidas, palavras soltas, phrases truncadas. Afinal pararam;
disseram-lhe que se sentasse e destapasse os olhos. Duarte obedeceu;
mas ao desvendar-se, não viu ninguem mais.

Era uma sala vasta, assaz illuminada, trastejada com elegancia e
opulencia. Era talvez sobre posse a variedade dos adornos; comtudo, a
pessoa que os escolhera devia ter gosto apurado. Os bronzes, charões,
tapetes, espelhos,--a copia infinita de objectos que enchiam a sala,
era tudo da melhor fabrica. A vista daquillo restituiu a serenidade de
animo ao bacharel; não era provavel que alli morassem ladrões.

Reclinou-se o moço indolentemente na ottomana... Na ottomana! esta
circumstancia trouxe á memoria do rapaz o principio da aventura e o
roubo da chinela. Alguns minutos de reflexão bastaram para ver que a
tal chinela era já agora mais que problematica. Cavando mais fundo
no terreno das conjecturas, pareceu-lhe achar uma explicação nova
e definitiva. A chinela vinha a ser pura metaphora; tratava-se do
coração de Cecilia, que elle roubára, delicto de que o queria punir o
já imaginado rival. A isto deviam ligar-se naturalmente as palavras
mysteriosas do homem magro: o par é melhor que o terno; um casal é o
ideal.

--Ha de ser isso, concluiu Duarte; mas quem será esse pretendente
derrotado?

Neste momento abriu-se uma porta do fundo da sala e negrejou a batina
de um padre alvo e calvo. Duarte levantou-se, como por effeito de
uma mola. O padre atravessou lentamente a sala, ao passar por elle
deitou-lhe a benção, e foi sair por outra porta rasgada na parede
fronteira. O bacharel ficou sem movimento, a olhar para a porta, a
olhar sem ver, estupido de todos os sentidos. O inesperado daquella
apparição baralhou totalmente as ideias anteriores a respeito
da aventura. Não teve tempo, entretanto, de cogitar alguma nova
explicação, porque a primeira porta foi de novo aberta e entrou por
ella outra figura, desta vez o homem magro, que foi direito a elle
e o convidou a seguil-o. Duarte não oppoz resistencia. Sairam por
uma terceira porta, e, atravessados alguns corredores mais ou menos
alumiados, foram dar a outra sala, que só o era por duas velas postas
em castiçaes de prata. Os castiçaes estavam sobre uma meza larga. Na
cabeceira desta havia um homem velho que representava ter cincoenta e
cinco annos; era uma figura athletica, farta de cabellos na cabeça e na
cara.

--Conhece-me? perguntou o velho, logo que Duarte entrou na sala.

--Não, senhor.

--Nem é preciso. O que vamos fazer exclue absolutamente a necessidade
de qualquer apresentação. Saberá em primeiro logar que o roubo da
chinela foi um simples pretexto...

--Oh! de certo! interrompeu Duarte.

--Um simples pretexto, continuou o velho, para trazel-o a esta nossa
casa. A chinela não foi roubada; nunca sahiu das mãos da dona. João
Rufino, vá buscar a chinella.

O homem magro saiu, e o velho declarou ao bacharel que a famosa chinela
não tinha nenhum diamante, nem fôra comprada a nenhum judeu do Egypto;
era, porém, turca, segundo se lhe disse, e um milagre de pequenhez.
Duarte ouviu as explicações, e, reunindo todas as forças, perguntou
resolutamente:

--Mas, senhor, não me dirá de uma vez o que querem de mim e o que estou
fazendo nesta casa?

--Vae sabel-o, respondeu tranquillamente o velho.

A porta abriu-se e appareceu o homem magro com a chinela na mão.
Duarte, convidado a approximar-se da luz, teve occasião de verificar
que a pequenez era realmente miraculosa. A chinela era de marroquim
finissimo; no assento do pé, estufado e forrado de seda cor azul,
rutilavam duas lettras bordadas a ouro.

--Chinela de creança, não lhe parece? disse o velho.

--Supponho que sim.

--Pois suppõe mal; é chinela de moça.

--Será; nada tenho com isso.

--Perdão! tem muito, porque vae casar com a dona.

--Casar! exclamou Duarte.

--Nada menos. João Rufino, vá buscar a dona da chinela.

Saiu o homem magro, e voltou logo depois. Assomando á porta, levantou
o reposteiro e deu entrada a uma mulher, que caminhou para o centro
da sala. Não era mulher, era uma sylphide, uma visão de poeta, uma
creatura divina. Era loura; tinha os olhos azues, como os de Cecilia,
extaticos, uns olhos que buscavam o céu ou pareciam viver delle. Os
cabellos, deleixadamente penteados, faziam-lhe em volta da cabeça, um
como resplendor de santa; santa sómente, não martyr, porque o sorriso
que lhe desabrochava os labios, era um sorriso de bem-aventurança, como
raras vezes hade ter tido a terra. Um vestido branco, de finissima
cambraia, envolvia-lhe castamente o corpo, cujas fórmas aliás
desenhava, pouco para os olhos, mais muito para a imaginação.

Um rapaz, como o bacharel, não perde o sentimento da elegancia, ainda
em lances daquelles. Duarte, ao ver a moça, compoz o chambre, apalpou
a gravata e fez uma ceremoniosa cortezia, a que ella correspondeu com
tamanha gentileza e graça, que a aventura começou a parecer muito menos
atterradora.

--Meu caro doutor, esta é a noiva.

A moça abaixou os olhos; Duarte respondeu que não tinha vontade de
casar.

--Tres cousas vae o senhor fazer agora mesmo, continuou impassivelmente
o velho: a primeira, é casar; a segunda, escrever o seu testamento; a
terceira engolir certa droga do Levante...

--Veneno! interrompeu Duarte.

--Vulgarmente é esse o nome; eu dou-lhe outro: passaporte do céu.

Duarte estava pallido e frio. Quiz fallar, não pôde; um gemido, sequer,
não lhe saiu do peito. Rolaria ao chão, se não houvesse alli perto uma
cadeira em que se deixou cair.

--O senhor, continuou o velho, tem uma fortunasinha de cento e
cincoenta contos. Esta perola será a sua herdeira universal. João
Rufino, vá buscar o padre.

O padre entrou, o mesmo padre calvo que abençoara o bacharel pouco
antes; entrou e foi direito ao moço, ingrolando somnolentamente um
trecho de Nehemias ou qualquer outro proplieta menor; travou-lhe da mão
e disse:

--Levante-se!

--Não! não quero! não me casarei!

--E isto? disse da meza o velho apontando-lhe uma pistola.

--Mas então é um assassinato?

--É; a differença está no genero de morte: ou violenta com isto, ou
suave com a droga. Escolha!

Duarte suava e tremia. Quiz levantar-se e não pôde. Os joelhos batiam
um contra o outro. O padre chegou-se-lhe ao ouvido, e disse baixinho:

--Quer fugir?

--Oh! sim! exclamou, não com os labios, que podia ser ouvido, mas com
os olhos em que poz toda a vida que lhe restava.

--Vê aquella janella? Está aberta; embaixo fica um jardim. Atire-se
d'alli sem medo.

--Oh! padre! disse baixinho o bacharel.

--Não sou padre, sou tenente do exercito. Não diga nada.

A janella estava apenas cerrada; via-se pela fresta uma nesga do céu,
já meio claro. Duarte não hesitou, colligiu todas as forças, deu um
pulo do logar onde estava e atirou-se a Deus misericordia por alli
abaixo. Não era grande altura, a quéda foi pequena; ergueu-se o moço
rapidamente, mas o homem gordo, que estava no jardim, tomou-lhe o passo.

--Que é isso? perguntou elle rindo.

Duarte não respondeu, fechou os punhos, bateu com elles violentamente
nos peitos do homem e deitou a correr pela jardim fóra. O homem não
caiu; sentiu apenas um grande abalo; e, uma vez passada a impressão,
seguiu no encalço do fugitivo. Começou então uma carreira vertiginosa.
Duarte ia saltando cercas e muros, calcando canteiros, esbarrando
arvores, que uma ou outra vez se lhe erguiam na frente. Escorria-lhe o
suor em bica, alteava-se-lhe o peito, as forças iam a perder-se pouco
a pouco; tinha uma das mãos ferida, a camisa salpicada do orvalho
das folhas, duas vezes esteve a ponto de ser apanhado, o chambre
pegara-se-lhe em uma cerca de espinhos. Emfim, cançado, ferido,
offegante, caiu nos degraos de pedra de uma casa, que havia no meio
do ultimo jardim que atravessára. Olhou para traz; não viu ninguem; o
perseguidor não o acompanhara até alli. Podia vir, entretanto; Duarte
ergueu-se a custo, subiu os quatro degráos que lhe faltavam, e entrou
na casa, cuja porta, aberta, dava para uma sala pequena e baixa.

Um homem que alli estava, lendo um numero do _Jornal do Commercio_,
pareceu não o ter visto entrar. Duarte cahiu n'uma cadeira. Fitou
os olhos no homem. Era o major Lopo Alves. O major, empunhando a
folha, cujas dimensões iam-se tornando extremamente exiguas, exclamou
repentinamente:

--Anjo do ceu, estás vingado! Fim do ultimo quadro.

Duarte olhou para elle, para a mesa, para as paredes, esfregou os
olhos, respirou á larga.

--Então! Que tal lhe pareceu?

--Ah! excellente! respondeu o bacharel, levantando-se.

--Paixões fortes, não?

--Fortissimas. Que horas são?

--Deram duas agora mesmo.

Duarte acompanhou o major até a porta, respirou que muitas vezes,
apalpou-se, foi até á janella. Ignora-se o que pensou durante os
primeiros minutos; mas, ao cabo de um quarto de hora, eis o que elle
dizia consigo:--Nympha, doce amiga, fantasia inquieta e fertil, tu me
salvaste de uma ruim peça com um sonho original, substituiste-me o
tedio por um pesadelo: foi um bom negocio. Um bom negocio e uma grave
licção: provaste-me que muitas vezes o melhor drama está no espectador
e não no palco.


[1]Este conto foi publicado, pela primeira vez, na _Epocha_, n. 1,
de 14 de Novembro de 1875. Trazia o pseudonymo de _Manassés_, com
que assignei outros artigos daquella folha ephemera. O redactor
principal era um espirito eminente, que a politica veiu tomar ás
lettras: Joaquim Nabuco. Posso dizel-o sem indiscrição. Eramos poucos
e amigos. O programma era não ter programma, como declarou o artigo
inicial, ficando a cada redactor plena liberdade de opinião, pela qual
respondia exclusivamente. O tom (feita a natural reserva da parte de um
collaborador) era elegante, litterario, attico. A folha durou quatro
numeros.


FIM DA CHINELA TURCA



NA ARCA

TRES CAPITULOS INEDITOS DO GENESIS


CAPITULO A


1.--Então Noé disse a seus filhos Japhet, Sem e Cham:--«Vamos sair da
arca, segundo a vontade do Senhor, nós, e nossas mulheres, e todos os
animaes. A arca tem de parar no cabeço de uma montanha; desceremos a
ella.

2.--«Porque o Senhor cumpriu a sua promessa, quando me disse: Resolvi
dar cabo de toda a carne; o mal domina a terra, quero fazer perecer os
homens. Faze uma arca de madeira; entra nella tu, tua mulher e teus
filhos.

3.--«E as mulheres de teus filhos, e um casal de todos os animaes.

4.--«Agora, pois, se cumpriu a promessa do Senhor, e todos os homens
pereceram, e fecharam-se as cataractas do céu; tornaremos a descer á
terra, e a viver no seio da paz e da concordia.»

5.--Isto disse Noé, e os filhos de Noé muito se alegraram de ouvir
as palavras de seu pae; e Noé os deixou sós, retirando-se a uma das
camaras da arca.

6.--Então Japhet levantou a voz e disse:--«Aprazivel vida vai ser a
nossa. A figueira nos dará o fructo, a ovelha a lan, a vacca o leite, o
sol a cladade e a noite a tenda.

7.--«Porquanto seremos unicos na terra, e toda a terra será nossa, e
ninguem perturbará a paz de uma familia, poupada do castigo que feriu a
todos os homens.

8.--«Para todo o sempre.» Então Sem, ouvindo falar o irmão,
disse:--«Tenho uma ideia.» Ao que Japhet e Cham responderam:--«Vejamos
a tua ideia, Sem.»

9.--E Sem falou a voz de seu coração, dizendo:--«Meu pae tem a sua
familia; cada um de nós tem a sua familia; a terra é de sobra; podiamos
viver em tendas separadas. Cada um de nós fará o que lhe parecer
melhor: e plantará, caçará, ou lavrará a madeira, ou fiará o linho.»

10.--E respondeu Japhet:--«Acho bem lembrada a idea de Sem; podemos
viver em tendas separadas. A arca vai descer ao cabeço de uma montanha;
meu pae e Chain descerão para o lado do nascente: eu e Sem para o lado
do poente. Sem occupará duzentos covados de terra, eu outros duzentos.»

11.--Mas dizendo Sem:--«Acho pouco duzentos covados»--, retorquiu
Japhet: «Pois sejam quinhentos cada um. Entre a minha terra e a
tua haverá um rio, que as divida no meio, para se não confundir a
propriedade. Eu fico na margem esquerda e tu na margem direita;

12.--«Ea minha terra se chamará a terra de Japhet, e a tua se chamará
a terra de Sem; e iremos ás tendas um do outro, e partiremos o pão da
alegria e da concordia.»

13.--E tendo Sem approvado a divisão, perguntou a Japhet: «Mas o rio? a
quem pertencerá a agua do rio, a corrente?

14.--«Porque nós possuimos as margens, e não estatuimos nada a respeito
da corrente.» E respondeu Japhet, que podiam pescar de um e outro lado;
mas, divergindo o irmão, propôz dividir o rio em duas partes, fincando
um pau no meio. Japhet, porem, disse que a corrente levaria o pau.

15.--E tendo Japhet respondido asssim, acudiu o irmão:--«Pois que te
não serve o pau, fico eu com o rio, e as duas margens; e para que não
haja conflicto, podes levantar um muro, dez ou doze covados, para lá da
tua margem antiga.

16.--«E se com isto perdes alguma cousa, nem é grande a differença, nem
deixa de ser acertado, para que nunca jamais se turbe a concordia entre
nós, segundo é a vontade do Senhor.»

17.--Japhet porém replicou:--«Vae bugiar! Com que direito me tiras a
margem, que é minha, e me roubas um pedaço de terra? Por ventura és
melhor do que eu.

18.--«Ou mais bello, ou mais querido de meu pae? que direito tens de
violar assim tão escandalosamente a propriedade alheia?

19.--«Pois agora te digo que o rio ficará do meu lado, com ambas as
margens, e que se te atreveres a entrar na minha terra, matar-te-hei
como Caim matou a seu irmão.»

20.--Ouvindo isto, Cham atemorisou-se muito, e começou a aquietar os
dous irmãos,

21.--Os quaes tinham os olhos do tamanho de figos e cor de braza, e
olhavam-se cheios de colera e desprezo.

22.--A arca, porém, boiava sobre as aguas do abysmo.


CAPITULO B


1.--Ora, Japhet, tendo curtido a colera, começou a espumar pela boca, e
Okam fallou-lhe palavras de brandura,

2.--Dizendo:--«Vejamos um meio de conciliar tudo; vou chamar tua mulher
e a mulher de Sem.»

3.--Um e outro, porém, recusaram dizendo, que o caso era de direito e
não de persuasão.

4.--E Sem propoz a Japhet que compensasse os dez covados perdidos,
medindo outros tantos nos fundos da terra delle. Mas Japhet respondeu:

5.--«Por que me não mandas logo para os confins do mundo? Já te não
contentas com quinhentos covados; queres quinhentos e dez, e eu que
fique com quatrocentos e noventa.

6.--«Tu não tens sentimentos moraes? não sabes o que é justiça? não ves
que me esbulhas descaradamente? e não percebes que eu saberei defender
o que é meu, ainda com risco de vida?

7.--«E que, se é preciso correr sangue, o sangue hade correr já e já,

8.--«Para te castigar a soberba e lavar a tua iniquidade?»

9.--Então Sem avançou para Japhet; mas Cham interpoz-se, pondo uma das
mãos no peito de cada um;

10.--Emquanto o lobo e o cordeiro, que durante os dias do diluvio,
tinham vivido na mais doce concordia, ouvindo o rumor das vozes, vieram
espreitar a briga dos dous irmãos, e começaram a vigiar-se um ao outro.

11.--E disse Cham:--«Ora, pois, tenho uma ideia maravilhosa, que ha de
accommodar tudo;

12.--«A qual me é inspirada pelo amor, que tenho a meus irmãos.
Sacrificarei pois a terra que me couber ao lado de meu pae, e ficarei
com o rio e as duas margens, dando-me vós uns vinte covados cada um.»

13.--E Sem e Japhet riram com desprezo e sarcasmo, dizendo:--«Vae
plantar tamaras! Guarda a tua ideia para os dias da velhice.» E puxaram
as orelhas e o nariz de Cham; e Japhet, mettendo dous dedos na boca,
imitou o silvo da serpente, em ar de surriada.

14.--Ora, Cham envergonhado e irritado, espalmou a mão dizendo:--«Deixa
estar!» e foi d'alli ter com o pae e as mulheres dos dous irmãos.

15.--Japhet porém disse a Sem:--«Agora que estamos sós, vamos decidir
este grave caso, ou seja de lingua ou de punho. Ou tu me cedes as duas
margens, ou eu te quebro uma costella.»

16.--Dizendo isto, Japhet ameaçou a Sem com os punhos fechados,
emquanto Sem, derreando o corpo, disse com voz irada: «Não te cedo
nada, gatuno!»

17.--Ao que Japhet retorquiu irado: «gatuno és tu!»

18.--Isto dito, avançaram um para o outro e atracaram-se. Japhet tinha
o braço rijo e adestrado; Sem era forte na resistencia. Então Japhet,
segurando o irmão pela cinta, apertou-o fortemente, bradando: «De quem
é o rio?»

19.--E respondendo Sem:--«É meu!» Japhet fez um gesto para derrubal-o;
mas Sem, que era forte, sacudiu o corpo e atirou o irmão para longe,
Japhet, porém, espumando de colera, tornou a apertar o irmão, e os dous
luctaram braço a braço,

20.--Suando e bufando como touros.

21.--Na lucta, cairam e rolaram, esmurrando-se um ao outro; o sangue
saía dos narizes, dos beiços, das faces; ora vencia Japhet,

22.--Ora vencia Sem; porque a raiva animava-os egualmente, e elles
luctavam com as mãos, os pés, os dentes e as unhas; e a arca estremecia
como se de novo se houvessem aberto as cataratas do céu.

23.--Então as vozes e brados chegaram aos ouvidos de Noé, ao mesmo
tempo que seu filho Cham, que lhe appareceu clamando: «Meu pae, meu
pae, se de Caim se tomará vingança sete vezes, e de Lamech setenta
vezes sete, o que será de Japhet e Sem?»

24.--E pedindo Noé que explicasse o dito, Cham referiu a discordia dos
dous irmãos, e a ira que os animava, e disse:--«Correi a aquietal-os.»
Noé disse:--«Vamos.»

25.--A arca, porém, boiava sobre as aguas do abysmo.


CAPITULO C


1.--Eis aqui chegou Noé ao logar onde luctavam os dous filhos,

2.--E achou-os ainda agarrados um ao outro, e Sem debaixo do joelho de
Japhet, que com o punho cerrado lhe batia na cara, a qual estava roxa e
sangrenta.

3.--Entretanto, Sem, alçando as mãos, conseguiu apertar o pescoço do
irmão, e este começou a bradar: «Larga-me, larga-me.»

4.--Ouvindo os brados, as mulheres de Japhet e Sem acudiram tambem ao
logar da lucta, e, vendo-os assim, entraram a soluçar e a dizer: «O que
será de nós? A maldição cahiu sobre nós e nossos maridos.»

5.--Noé, porém, lhes disse: «Calai-vos, mulheres de meus filhos, eu
verei de que se trata, e ordenarei o que fôr justo .» E caminhando para
os dous combatentes,

6.--Bradou: «Cessae a briga. Eu, Noé, vosso pae, o ordeno e mando.» E
ouvindo os dous irmãos o pae, detiveram-se subitamente, e ficaram longo
tempo atalhados e mudos, não se levantando nenhum d'elles.

7.--Noé continuou: «Erguei-vos, homens indignos da salvação e
merecedores do castigo que feriu os outros homens.»

8.--Japhet e Sem ergueram-se. Ambos tinham feridos o rosto, o pescoço
e as mãos, e as roupas salpicadas de sangue, porque tinham luctado com
unhas e dentes, instigados de odio mortal.

9.--O chão tambem estava alagado de sangue, e as sandalias de um e
outro, e os cabellos de um e outro,

10.--Como se o peccado os quizera marcar com o sello da iniquidade.

11.--As duas mulheres, porém, chegaram-se a elles, chorando e
acariciando-os, e via-se-lhes a dor do coração. Japhet e Sem não
attendiam a nada, e estavam com os olhos no chão, medrosos de encarar
seu pae.

12.--O qual disse: «Ora, pois, quero saber o motivo da briga.»

13.--Esta palavra accendeu o odio no coração de ambos. Japhet, porém,
foi o primeiro que falou e disse:

14.--«Sem invadiu a minha terra, a terra que eu havia escolhido para
levantar a minha tenda, quando as aguas houverem desapparecido e a arca
descer, segundo a promessa do Senhor;

15.--«E eu, que não tolero o esbulho, disse a meu irmão: «Não te
contentas com quinhentos covados e queres mais dez? «E elle me
respondeu: «Quero mais dez e as duas margens do rio que ha de dividir a
minha terra da tua terra.»

16.--Noé, ouvindo o filho, tinha os olhos em Sem; e acabando Japhet,
perguntou ao irmão: «Que respondes?»

17.--E Sem disse: «--Japhet mente, porque eu só lhe tomei os dez
covados de terra, depois que elle recusou dividir o rio em duas partes;
e propondo-lhe ficar com as duas margens, ainda consenti que elle
medisse outros dez covados nos fundos das terras delle,

18.--«Para compensar o que perdia; mas a iniquidade de Caim fallou
nelle, e elle me feriu a cabeça, a cara e as mãos.»

19.--E Japhet interrompeu-o dizendo: «Porventura não me feriste tambem?
Não estou ensanguentado como tu? Olha a minha cara e o meu pescoço;
olha as minhas faces, que rasgaste com as tuas unhas de tigre.»

20.--Indo Noé fallar, notou que os dous filhos de novo pareciam
desafiar-se com os olhos. Então disse: «Ouvi!» Mas os dous irmãos,
cegos de raiva, outra vez se engalfinharam, bradando:--«De quem é o
rio?»--«O rio é meu.»

21.--E só a muito custo puderam Noé, Cham e as mulheres de Sem e
Japhet, conter os dous combatentes, cujo sangue entrou a jorrar em
grande copia.

22.--Noé, porém, alçando a voz, bradou:--Maldito seja o que me não
obedecer. Elle será maldito, não sete vezes, não setenta vezes sete,
mas setecentas vezes setenta.

23.--«Ora, pois, vos digo que, antes de descer a arca, não quero nenhum
ajuste a respeito do logar em que levantareis as tendas.»

24.--Depois ficou meditabundo.

25.--E alçando os olhos ao céu, porque a portinhola do tecto estava
levantada, bradou com tristeza:

26.--«Elles ainda não possuem a terra e já estão brigando por causa dos
limites. O que será quando vierem a Turquia e a Russia?»

27.--E nenhum dos filhos de Noé pôde entender esta palavra de seu pae.

28.--A arca, porém, continuava a boiar sobre as aguas do abysmo.



D. BENEDICTA

UM RETRATO

I


A cousa mais ardua do mundo, depois do officio de governar, seria dizer
a edade exacta de D. Benedicta. Uns davam-lhe quarenta annos, outros
quarenta e cinco, alguns trinta e seis. Um corretor de fundos descia
aos vinte e nove; mas esta opinião, eivada de intenções occultas,
carecia daquelle cunho de sinceridade que todos gostamos de achar
nos conceitos humanos. Nem eu a cito, senão para dizer, desde logo,
que D. Benedicta foi sempre um padrão de bons costumes. A astucia do
corretor não fez mais do que indignal-a, embora momentaneamente; digo
momentaneamente. Quanto ás outras conjecturas, oscillando entre os
trinta e seis e os quarenta e cinco, não desdiziam das feições de D.
Benedicta, que eram maduramente graves e juvenilmente graciosas. Mas,
se alguma cousa admira é que houvesse supposições neste negocio, quando
bastava interrogal-a para saber a verdade verdadeira.

D. Benedicta fez quarenta e dous annos no domingo desenove de setembro
de 1869. São seis horas da tarde; a meza da familia está ladeada de
parentes e amigos, em numero de vinte ou vinte e cinco pessoas. Muitas
dessas estiveram no jantar de 1868, no de 1867 e no de 1866, e ouviram
sempre alludir francamente á edade da dona da casa. Além disso, vêem-se
alli, á meza, uma moça e um rapaz, seus filhos; este é, de certo, no
tamanho e nas maneiras, um tanto menino; mas a moça, Eulalia, contando
dezoito annos, parece ter vinte e um, tal é a severidade dos modos e
das feições.

A alegria dos convivas, a excellencia do jantar, certas negociações
matrimoniaes incumbidas ao conego Roxo, aqui presente, e das quaes se
fallará mais abaixo, as boas qualidades da dona da casa, tudo isso dá
á festa um caracter intimo e feliz. O conego levanta-se para trinchar
o perú. D. Benedicta acatava esse uso nacional das casas modestas de
confiar o perú a um dos convivas, em vez de o fazer retalhar fóra da
meza por mãos servis, e o conego era o pianista daquellas occasiões
solemnes. Ninguem conhecia melhor a anatomia do animal, nem sabia
operar com mais presteza. Talvez,--e este phenomeno fica para os
entendidos,--talvez a circumstancia do canonicato augmentasse ao
trinchante, no espirito dos convivas, uma certa somma de prestigio,
que elle não teria, por exemplo, se fosse um simples estudante de
mathematicas, ou um amanuense de secretaria. Mas, por outro lado, um
estudante ou um amanuense, sem a lição do longo uso, poderia dispor da
arte consummada do conego? É outra questão importante.

Venhamos, porém, aos demais convivas, que estão parados, conversando;
reina o borborinho proprio dos estomagos meio regalados, o riso da
natureza que caminha para a repleção; é um instante de repouso.

D. Benedicta falla, como as suas visitas, mas não falla para todas,
senão para uma, que está sentada ao pé della. Essa é uma senhora gorda,
sympathica, muito risonha, mãe de um bacharel de vinte e dous annos,
o Leandrinho, que está sentado defronte dellas. D. Benedicta não se
contenta de fallar á senhora gorda, tem uma das mãos desta entre as
suas; e não se contenta de lhe ter presa a mão, fita-lhe uns olhos
namorados, vivamente namorados. Não os fita, note-se bem, de um modo
persistente e longo, mas inquieto, miudo, repetido, instantaneo. Em
todo caso, ha muita ternura naquelle gesto; e, dado que não a houvesse,
não se perderia nada, porque D. Benedicta repete com a boca a D. Maria
dos Anjos tudo o que com os olhos lhe tem dito:--que está encantada,
que considera uma fortuna conhecel-a, que é muito sympathica, muito
digna, que traz o coração nos olhos, etc., etc., etc. Uma de suas
amigas diz-lhe, rindo, que está com ciumes.

--Que arrebente! responde ella, rindo tambem.

E voltando-se para a outra:

--Não acha? ninguém deve metter-se com a nossa vida.

E ahi tornavam as finezas, os encarecimentos, os risos, as offertas,
mais isto, mais aquillo,--um projecto do passeio, outro de theatro, e
promessas de muitas visitas, tudo com tamanha expansão e calor, que a
outra palpitava de alegria e reconhecimento.

O perú está comido. D. Maria dos Anjos faz um signal ao filho; este
levanta-se e pede que o acompanhem em um brinde:

--Meus senhores, é preciso desmentir esta maxima dos francezes:--_les
absents on tort._Bebamos a alguem que está longe, muito longe,
no espaço, mas perto, muito perto, no coração de sua digna
esposa:--bebamos ao illustre desembargador Proença.

A assembléa não correspondeu vivamente ao brinde; e para comprehendel-o
basta ver o rosto triste da dona da casa. Os parentes e os mais intimos
disseram baixinho entre si que o Leandrinho fora estouvado; emfim,
bebeu-se, mas sem estrepito; ao que parece, para não avivar a dor de D.
Benedicta. Vã precaução! D. Benedicta, não podendo conter-se, deixou
rebentarem-lhe as lagrimas, levantou-se da meza, retirou-se da sala.
D. Maria dos Anjos acompanhou-a. Succedeu um silencio mortal entre os
convivas. Eulalia pediu a todos que continuassem, que a mãe voltava já.

--Mamãe é muito sensivel, disse ella, e a ideia de que papae está longe
de nós...

O Leandrinho, consternado, pediu desculpa a Eulalia. Um sujeito, ao
lado delle, explicou-lhe que D. Benedicta não podia ouvir fallar
do marido sem receber um golpe no coração--e chorar logo; ao que o
Leandrinho acudiu dizendo que sabia da tristeza della, mas estava longe
de suppor que o seu brinde tivesse tão mau effeito.

--Pois era a cousa mais natural, explicou o sujeito, porque ella morre
pelo marido.

--O conego, acudiu Leandrinho, disse-me que elle foi para o Pará ha uns
dous annos...

--Dous annos e meio; foi nomeado desembargador pelo ministerio
Zacharias. Elle queria a relação de S. Paulo, ou da Bahia; mas não pôde
ser e aceitou a do Pará.

--Não voltou mais?

--Não voltou.

--D. Benedicta naturalmente tem medo de embarcar...

--Creio que não. Já foi uma vez á Europa. Se bem me lembro, ella ficou
para arranjar alguns negocios de familia; mas foi ficando, ficando, e
agora...

--Mas era muito melhor ter ido em vez de padecer assim... Conhece o
marido?

--Conheço; um homem muito distincto, e ainda moço, forte; não terá
mais de quarenta e cinco annos. Alto, barbado, bonito. Aqui ha tempos
disse-se que elle não teimava com a mulher, porque estava lá de amores
com uma viuva.

--Ah!

--E houve até quem viesse contal-o a ella mesma. Imagine como a pobre
senhora ficou! Chorou uma uma noute inteira, no dia seguinte não quiz
almoçar, e deu todas as ordens para seguir no primeiro vapor.

--Mas não foi?

--Não foi; desfez a viagem d'ahi a tres dias.

D. Benedicta voltou nesse momento, pelo braço de D. Maria dos Anjos.
Trazia um sorriso envergonhado; pediu desculpa da interrupção, e
sentou-se com a recente amiga ao lado, agradecendo os cuidados que lhe
deu, pegando-lhe outra vez na mão.

--Vejo que me quer bem, disse ella.

--A senhora merece, disse D. Maria dos Anjos.

--Mereço? inquiriu ella entre desvanecida e modesta.

E declarou que não, que a outra é que era boa, um anjo, um verdadeiro
anjo; palavra que ella sublinhou com o mesmo olhar namorado, não
persistente e longo, mas inquieto e repetido. O conego, pela sua parte,
com o fim de apagar a lembrança do incidente, procurou generalisar a
conversa, dando-lhe por assumpto a eleição do melhor doce. Os pareceres
divergiram muito. Uns acharam que era o de coco, outros o de cajú,
alguns o de laranja, etc. Um dos convivas, o Leandrinho, autor do
brinde, dizia com os olhos,--não com a boca,--e dizia-o de um modo
astucioso, que o melhor doce eram as faces de Eulalia, um doce moreno,
corado; dito que a mãe delle interiormente approvava, e que a mãe della
não podia ver, tão entregue estava á contemplação da recente amiga. Um
anjo, um verdadeiro anjo!


II


D. Benedicta levantou-se, no dia seguinte, com a ideia de escrever
uma carta ao marido, uma longa carta em que lhe narrasse a festa da
vespera, nomeasse os convivas e os pratos, descrevesse a recepção
nocturna, e, principalmente, désse noticia das novas relações com
D. Maria dos Anjos. A mala fechava-se ás duas horas da tarde, D.
Benedicta accordára ás nove, e, não morando longe (morava no Campo
da Acclamação), um escravo levaria a carta ao correio muito a tempo.
Demais, chovia; D. Benedicta arredou a cortina da janella, deu com os
vidros molhados; era uma chuvinha teimosa, o céu estava todo brochado
de uma côr pardo-escura, malhada do grossas nuvens negras. Ao longe,
viu fluctuar e voar o panno que cobria o balaio que uma preta levava á
cabeça: concluiu que ventava. Magnifico dia para não sair, e, portanto,
escrever uma carta, duas cartas, todas as cartas de uma esposa ao
marido ausente. Ninguem viria tental-a.

Emquanto ella compõe os babadinhos e rendas do roupão branco, um
roupão de cambraia que o desembargador lhe dera em 1862, no mesmo
dia anniversario, 19 de Setembro, convido a leitora a observar-lhe
as feições. Vê que não lhe dou Venus; tambem não lhe dou Meduza. Ao
contrario de Meduza, nota-se-lhe o alisado simples do cabello, preso
sobre a nuca. Os olhos são vulgares, mas tem uma expressão bonachã. A
bocca é daquellas que, ainda não sorrindo, são risonhas, e tem esta
outra particularidade, que é uma bocca sem remorsos nem saudades: podia
dizer sem desejos, mas eu só digo o que quero, e só quero fallar das
saudades e dos remorsos. Toda essa cabeça, que não enthusiasma, nem
repelle, assenta sobre um corpo antes alto do que baixo, e não magro
nem gordo, mas fornido na proporção da estatura. Para que fallar-lhe
das mãos? Ha de admiral-as logo, ao travar da penna e do papel, com os
dedos afilados e vadios, dous delles ornados de cinco ou seis anneis.

Creio que é bastante ver o modo porque ella compõe as rendas e os
babadinhos do roupão para comprehender que é uma senhora pichosa, amiga
do arranjo das cousas e de si mesma. Noto que rasgou agora o babadinho
do punho esquerdo, mas é porque, sendo tambem impaciente, não podia
mais «com a vida deste diabo.» Essa foi a sua expressão, acompanhada
logo de um «Deus me perdôe!» que inteiramente lhe extrahiu o veneno.
Não digo que ella bateu com o pé, mas adivinha-se, por ser um gesto
natural de algumas senhoras irritadas. Em todo caso, a colera durou
pouco mais de meio minuto. D. Benedicta foi á caixinha de costura para
dar um ponto no rasgão, e contentou-se com um alfinete. O alfinete caiu
no chão, ella abaixou-se a apanhal-o. Tinha outros, é verdade, muitos
outros, mas não achava prudente deixar alfinetes no chão. Abaixando-se,
aconteceu-lhe ver a ponta da chinela, na qual pareceu-lhe descobrir um
signal branco; sentou-se na cadeira que tinha perto, tirou a chinela, e
viu o que era: era um roidinho de barata. Outra raiva de D. Benedicta,
porque a chinela era muito galante, e fora-lhe dada por uma amiga do
anno passado. Um anjo, um verdadeiro anjo! D. Benedicta fitou os olhos
irritados no signal branco; felizmente a expressão bonachã delles não
era tão bonachã que se deixasse eliminar de todo por outras expressões
menos passivas, e retomou o seu logar. D. Benedicta entrou a virar e
revirar a chinela, e a passal-a de uma para outra mão, a principio com
amor, logo depois machinalmente, até que as mãos pararam de todo, a
chinela caiu no regaço, e D. Benedicta ficou a olhar para o ar, parada,
fixa. Nisto o relogio da sala de jantar, começou a bater horas, D.
Benedicta logo ás primeiras duas, estremeceu:

--Jesus! Dez horas!

E, rapida, calçou a chinela, concertou depressa o punho do roupão,
e dirigisse á escrevaninha, para começar a carta. Escreveu, com
effeito, a data, e um:--«Meu ingrato marido»; emfim, mal traçára estas
linhas:--Você lembrou-se hontem de mim? Eu...» quando Eulalia lhe bateu
á porta, bradando:

--Mamãe, mamãe, são horas de almoçar.

D. Benedicta abriu a porta, Eulalia beijou-lhe a mão, depois levantou
as suas ao céu:

--Meu Deus! que dorminhoca!

--O almoço está prompto?

--Ha que seculos!

--Mas eu tinha dito que hoje o almoço era mais tarde... Estava
escrevendo a teu pae.

Olhou alguns instantes para a filha, como desejosa de lhe dizer alguma
cousa grave, ao menos difficil, tal era a expressão indecisa e séria
dos olhos. Mas não chegou a dizer nada; a filha repetiu que a almoço
estava na mesa, pegou-lhe do braço e levou-a.

Deixemol-as almoçar á vontade; descancemos nessa outra sala, a de
visitas, sem aliás inventariar os moveis della, como o não fizemos
em nenhuma outra sala ou quarto. Não é que elles não prestem, ou
sejam de máu gosto; ao contrario, são bons. Mas a impressão geral que
se recebe é exquisita, como se ao trastejar daquella casa houvesse
presidido um plano truncado, ou uma successão de planos truncados.
Mãe, filha e filho almoçaram. Deixemos o filho, que nos não importa,
um pirralho de doze annos, que parece ter oito, tão mofino é elle.
Eulalia interessa-nos, não só pelo que vimos de relance no capitulo
passado, como porque, ouvindo a mãe fallar em D. Maria dos Anjos
e no Leandrinho, ficou muito séria e, talvez, um pouco amuada. D.
Benedicta percebeu que o assumpto não era aprazivel á filha, e recuou
da conversa, como alguem que desanda uma rua para evitar um importuno;
recuou e ergueu-se; a filha veiu com ella para a sala de visitas.

Eram onze horas menos um quarto. D. Benedicta conversou com a filha até
depois de meio dia, para ter tempo de descançar o almoço e escrever a
carta. Sabem que a mala fecha ás duas horas. De facto, alguns minutos,
poucos, depois do meio dia, D. Benedicta disse á filha que fosse
estudar piano, porque ella ia acabar a carta. Saiu da sala; Eulalia foi
á janella, relanceou a vista pelo Campo, e, se lhes disser que com uma
pontasinha de tristeza nos olhos, podem crer que é a pura verdade. Não
era todavia, a tristeza dos debeis ou dos indecisos; era a tristeza dos
resolutos, a quem dóe de antemão um acto pela mortificação que hade
trazer a outros, e que, não obstante, juram a si mesmos pratical-o,
e praticam. Convenho que nem todas essas particularidades podiam
estar nos olhos de Eulalia, mas por isso mesmo é que as historias são
contadas por alguem, que se incumbe de preencher as lacunas e divulgar
o escondido. Que era uma tristeza mascula, era;--e que dahi a pouco os
olhos sorriam de um signal de esperança, tambem não é mentira.

--Isto acaba, murmurou ella, vindo para dentro.

Justamente nessa occasião parava um carro á porta, apeava-se uma
senhora, ouvia-se a campainha da escada, descia um moleque a abrir a
cancella, e subia es escadas D. Maria dos Anjos. D. Benedicta, quando
lhe disseram quem era, largou a penna, alvoroçada; vestiu-se á pressa,
calçou-se, e foi á sala.

--Com este tempo! exclamou. Ah! isto é que é querer bem á gente!

--Vim sem esperar pela sua visita, só para mostrar que não gosto de
cerimonias, e que entre nós deve haver a maior liberdade.

Vieram os comprimentos de estylo, as palavrinhas doces, os afagos da
vespera. D. Benedicta não se fartava de dizer que a visita naquelle
dia era uma grande fineza, uma prova de verdadeira amisade; mas queria
outra, accrescentou dahi a um instante, que D. Maria dos Anjos ficasse
para jantar. Esta desculpou-se allegando que tinha de ir a outras
partes; demais, essa era a prova que lhe pedia,--a de ir jantar á casa
della primeiro. D. Benedicta não hesitou, prometteu que sim, naquella
mesma semana.

--Estava agora mesmo escrevendo o seu nome, continuou.

--Sim?

--Estou escrevendo a meu marido, e fallo da senhora. Não lhe repito
o que escrevi, mas imagine que fallei muito mal da senhora, que era
antipathica, insupportavel, massante, aborrecida... Imagine!

--Imagino, imagino. Pode accrescentar que, apezar de ser tudo isso, e
mais alguma cousa, apresento-lhe os meus respeitos.

--Como ella tem graça para dizer as cousas! commentou D. Benedicta
olhando para a filha.

Eulalia sorriu sem convicção. Sentada na cadeira fronteira á mãe, ao
pé da outra ponta do sophá em que estava D. Maria dos Anjos,--Eulalia
dava á conversação das duas a somma de attenção que a cortezia lhe
impunha, e nada mais, Chegava a parecer aborrecida; cada sorriso que
lhe abria a bocca era de um amarello pallido, um sorriso de favor. Uma
das tranças,--era de manhã, trazia o cabello em duas tranças caidas
pelas costas abaixo,--uma dellas servia-lhe de pretexto a alheiar-se de
quando em quando, porque puxava-a para a frente e contava-lhe os fios
do cabello,--ou parecia contal-os. Assim o creu D. Maria dos Anjos,
quando lhe lançou uma ou duas vezes os olhos, curiosa, desconfiada.
D. Benedicta é que não via nada; via a amiga, a feiticeira, como lhe
chamou duas ou tres vezes,--«feiticeira como ella só.»

--Já!

D. Maria dos Anjos explicou que tinha de ir a outras visitas; mas
foi obrigada a ficar ainda alguns minutos, a pedido da amiga. Como
trouxesse um mantelete de renda preta, muito elegante, D. Benedicta
disse que tinha um egual, e mandou buscal-o. Tudo demoras. Mas a mãe
do Leandrinho estava tão contente! D. Benedicta enchia-lhe o coração;
achava nella todas as qualidades que melhor se ajustavam á sua alma
e aos seus costumes, ternura, confiança, enthusiasmo, simplicidade,
uma familiaridade cordial e prompta. Veiu o mantelete; vieram
offerecimentos de alguma cousa, um doce, um licor, um refresco; D.
Maria dos Anjos não aceitou nada mais do que um beijo e a promessa de
que iriam jantar com ella naquella semana.

--Quinta-feira, disse D. Benedicta.

--Palavra?

--Palavra.

--Que quer que lhe faça se não fôr? Hade ser um castigo bem forte.

--Bem forte? Não me falle mais.

D. Maria dos Anjos beijou com muita ternura a amiga; depois
abraçou e beijou tambem a Eulalia, mas a effusão era muito menor
de parte a parte. Uma e outra mediam-se, estudavam-se, começavam a
comprehender-se. D. Benedicta levou a amiga até o patamar da escada,
depois foi á janella para vel-a entrar no carro; a amiga, depois de
entrar no carro, poz a cabeça de fóra, olhou para cima, e disse-lhe
adeus, com a mão.

--Não falte, ouviu?

--Quinta-feira.

Eulalia já não estava na sala; D. Benedicta correu a acabar a carta.
Era tarde: não relatára o jantar da vespera, nem já agora podia
fazel-o. Resumiu tudo; encareceu muito as novas relações; emfim,
escreveu estas palavras:

«O conego Roxo fallou-me em casar Eulalia com o filho de D. Maria dos
Anjos; é um moço formado em direito este anno; é conservador, e espera
uma promotoria, agora, se o Itaborahy não deixar o ministerio. Eu
acho que o casamento é o melhor possivel. O Dr. Leandrinho (é o nome
delle) é muito bem educado; fez um brinde a você, cheio de palavras tão
bonitas, que eu chorei. Eu não sei se Eulalia quererá ou não; desconfio
de outro sujeito que outro dia esteve comnosco nas Larangeiras. Mas
você que pensa? Devo limitar-me a aconselhal-a, ou impor-lhe a nossa
vontade? Eu acho que devo usar um pouco da minha autoridade; mas não
quero fazer nada sem que você me diga, O melhor seria se você viesse
cá.»

Acabou e fechou a carta; Eulalia entrou nessa occasião, ella deu-lh'a
para mandar, sem demora, ao correio; e a filha saiu com a carta sem
saber que tratava della e do seu futuro, D. Benedicta deixou-se cair
no sophá, cançada, exhausta. A carta era muito comprida apezar de não
dizer tudo; e era-lhe tão enfadonho escrever cartas compridas!


III


Era-lhe tão enfadonho escrever cartas compridas! Esta palavra, fecho do
capitulo passado, explica a longa prostração de D. Benedicta. Meia hora
depois de cair no sophá, ergueu-se um pouco, e percorreu o gabinete com
os olhos, como procurando alguma cousa. Essa cousa era um livro. Achou
o livro, e podia dizer achou os livros, pois nada menos de tres estavam
alli, dous abertos, um marcado em certa pagina, todos em cadeiras. Eram
tres romances que D. Benedicta lia ao mesmo tempo. Um delles, note-se,
custou-lhe não pouco trabalho. Deram-lhe noticia na rua, perto de casa,
com muitos elogios; chegara da Europa na vespera. D. Benedicta ficou
tão enthusiasmada, que apezar de ser longe e tarde, arrepiou caminho e
foi ella mesmo compral-o, correndo nada menos de tres livrarias. Voltou
anciosa, namorada do livro, tão namorada que abriu as folhas, jantando,
e leu os cinco primeiros capitulos naquella mesma noute. Sendo preciso
dormir, dormiu; no dia seguinte não pôde continuar, depois esqueceu-o.
Agora, porém, passados oito dias, querendo lêr alguma cousa,
aconteceu-lhe justamente achal-o á mão.

--Ah!

E eil-a que torna ao sophá, que abre o livro com amor, que mergulha
o espirito, os olhos e o coração na leitura tão desastradamente
interrompida. D. Benedicta ama os romances, é natural; e adora os
romances bonitos, é naturalissimo. Não admira que esqueça tudo para
lêr este; tudo, até a licção de piano da filha, cujo professor chegou
e saiu, sem que ella fosse á sala. Eulalia despediu-se do professor;
depois foi ao gabinete, abriu a porta, caminhou pé ante pé até o sophá,
e acordou a mãe com um beijo.

--Dorminhoca!

--Ainda chove?

--Não, senhora; agora parou.

--A carta foi?

--Foi; mandei o José a toda a pressa. Aposto que mamãe esqueceu-se de
dar lembranças a papae? Pois olhe, eu não me esqueço nunca.

D. Benedicta bocejou. Já não pensava na carta; pensava no collete que
encommendára á Charavel, um collete de barbatanas mais molles do que o
ultimo. Não gostava de barbatanas duras; tinha o corpo mui sensivel.
Eulalia fallou ainda algum tempo do pae, mas calou-se logo, e vendo no
chão o livro aberto, o famoso romance, apanhou-o, fechou-o, pol-o em
cima da mesa. Nesse momento vieram trazer uma carta a D. Benedicta; era
do conego Roxo, que mandava perguntar se estavam em casa naquelle dia,
porque iria ao enterro dos ossos.

--Pois não! bradou D. Benedicta; estamos em casa, venha, póde vir.

Eulalia escreveu o bilhetinho de resposta. D'ahi a tres quartos de
hora fazia o conego a sua entrada na sala de D. Benedicta. Era um bom
homem o conego, velho amigo daquella casa, na qual, além de trinchar
o perú nos dias solemnes, como vimos, exercia o papel de conselheiro,
e exercia-o com lealdade e amor. Eulalia, principalmente, merecia-lhe
muito; vira-a pequena, galante, travessa, amiga delle, e criou-lhe uma
affeição paternal, tão paternal que tomára** a peito casal-a bem, e
nenhum noivo melhor do que o Leandrinho, pensava o conego, Naquelle
dia, a idéa de ir jantar com ellas era antes um pretexto; o conego
queria tratar o negocio directamente com a filha do desembargador.
Eulalia, ou porque adivinhasse isso mesmo, ou porque a pessoa do conego
lhe lembrasse o Leandrinho, ficou logo preoccupada, aborrecida.

Mas, preoccupada ou aborrecida, não quer dizer triste ou desconsolada.
Era resoluta, tinha têmpera, podia resistir, e resistiu, declarando
ao conego, quando elle naquella noute lhe fallou do Leandrinho, que
absolutamente não queria casar.

--Palavra de moça bonita?

--Palavra de moça feia.

--Mas, porque?

--Porque não quero.

--E se mamãe quizer?

--Não quero eu.

--Máu! isso não é bonito, Eulalia.

Eulalia deixou-se estar. O conego ainda tornou ao assumpto, louvou
as qualidades do candidato as esperanças da familia, as vantagens do
casamento; ella ouvia tudo, sem contestar nada. Mas quando o conego
formulava de um modo directo a questão, a resposta invariavel era esta:

--Já disse tudo.

--Não quer?

--Não.

O desconsolo do bom conego era profundo e sincero. Queria casal-a bem,
e não achava melhor noivo. Chegou a interrogal-a discretamente, sobre
se tinha alguma preferencia em outra parte. Mas Eulalia, não menos
discretamente, respondia que não, que não tinha nada; não queria nada;
não queria casar. Elle creu que era assim, mas receiou tambem que não
fosse assim; faltava-lhe o trato sufficiente das mulheres para lêr
atravez de uma negativa. Quando referiu tudo a D. Benedicta, esta ficou
assombrada com os termos da recusa; mas tornou logo a si, e declarou ao
padre que a filha não tinha vontade, faria o que ella quizesse, e ella
queria o casamento.

--Já agora nem espero resposta do pae, concluiu; declaro-lhe que
ella ha de casar. Quinta-feira vou jantar com D. Maria dos Anjos, e
combinaremos as cousas.

--Devo dizer-lhe, ponderou o conego, que D. Maria dos Anjos não deseja
que se faça nada á força.

--Qual força! Não é preciso força.

O conego reflectiu um instante:--Em todo caso, não violentaremos
qualquer outra affeição que ella possa ter, disse elle.

D. Benedicta não respondeu nada; mas comsigo, no mais fundo de
si mesma, jurou que, houvesse o que houvesse, acontecesse o que
acontecesse, a filha seria nora de D. Maria dos Anjos. E ainda comsigo,
depois de sair o conego:--Tinha que ver! um tico de gente, com fumaças
de governar a casa!

A quinta-feira raiou. Eulalia,--o tico de gente, levantou-se fresca,
lepida, loquaz, com todas as janellas da alma abertas ao sopro azul da
manhã. A mãe acordou ouvindo um trecho italiano, cheio de melodia; era
ella que cantava, alegre, sem affectação, com a indifferença das aves
que cantam para si ou para os seus, e não para o poeta, que as ouve e
traduz na lingua immortal dos homens. D. Benedicta afagara muito a idéa
de a vêr abatida, carrancuda, e gastára uma certa somma de imaginação
em compôr os seus modos, delinear os seus actos, ostentar energia e
força. E nada! Em vez de uma filha rebelde, uma creatura gárrula e
submissa. Era começar mal o dia; era sair apparelhada para destruir uma
fortaleza, e dar com uma cidade aberta, pacifica, hospedeira, que lhe
pedia o favor de entrar e partir o pão da alegria e da concordia. Era
começar o dia muito mal.

A segunda causa do tedio de D. Benedicta foi um ameaço de enxaqueca,
ás tres horas da tarde; um ameaço, ou uma suspeita de possibilidade de
ameaço. Chegou a transferir a visita, mas a filha ponderou que talvez a
visita lhe fizesse bem, e em todo caso, era tarde para deixar de ir. D.
Benedicta não teve remedio, aceitou o reparo. Ao espelho, penteando-se,
esteve quasi a dizer que definitivamente ficava; chegou a insinual-o á
filha.

--Mamãe veja que D. Maria dos Anjos conta com a senhora, disse-lhe
Eulalia.

--Pois sim, redarguiu a mão, mas não prometti ir doente.

Emfim, vestiu-se, calçou as luvas, deu as ultimas ordens; e devia
doer-lhe muito a cabeça, porque os modos eram arrebitados, uns modos
de pessoa constrangida ao que não quer. A filha animava-a muito,
lembrava-lhe o vidrinho dos saes, instava que saissem, descrevia a
anciedade de D. Maria dos Anjos, consultava de dous em dous minutos
o pequenino relogio, que trazia na cintura, etc. Uma amofinação,
realmente.

--O que tu estás é me amofinando, disse-lhe a mãe.

E saiu, saiu exasperada, com uma grande vontade de esganar a filha,
dizendo comsigo que a peior cousa do mundo era ter filhas. Os filhos
ainda vá: criam-se, fazem carreira por si; mas as filhas!

Felizmente, o jantar de D. Maria dos Anjos aquietou-a; e não digo
que a enchesse de grande satisfação, porque não foi assim. Os modos
de D. Benedicta não eram os do costume; eram frios, seccos, ou quasi
seccos; ella, porém, explicou de si mesma a differença, noticiando o
ameaço da enxaqueca, noticia mais triste do que alegre, e que, aliás,
alegrou a alma de D. Maria dos Anjos, por esta razão fina e profunda:
antes a frieza da amiga fosse originada na doença do que na quebra do
affecto. Demais, a doença não era grave. E que fosse grave! Não houve
naquelle dia mãos presas, olhos nos olhos, manjares comidos entre
caricias mutuas; não houve nada do jantar de domingo. Um jantar apenas
conversado; não alegre, conversado; foi o mais que alcançou o conego.
Amavel conego! As disposições de Eulalia, naquelle dia, cumularam-n'o
de esperanças; o riso que brincava nella, a maneira expansiva da
conversa, a docilidade com que se prestava a tudo, a tocar, a cantar,
e o rosto affavel, meigo, com que ouvia e fallava ao Leandrinlio, tudo
isso foi para a alma do conego uma renovação de esperanças. Logo hoje é
que D. Benedicta estava doente! Realmente, era caiporismo.

D. Benedicta reanimou-se um pouco, á noite, depois do jantar. Conversou
mais, discutiu um projecto de passeio ao Jardim Botanico, chegou mesmo
a propor que fosse logo no dia seguinte; mas Eulalia advertiu que era
prudente esperar um ou dous dias até que os effeitos da enxaqueca
desapparecessem de todo: e o olhar que mereceu á mãe, em trocado
conselho, tinha a ponta aguda de um punhal. Mas a filha não tinha
medo dos olhos maternos. De noite, ao despentear-se, recapitulando o
dia, Eulalia repetiu consigo a palavra que lhe ouvimos, dias antes, á
janella:

--Isto acaba.

E, satisfeita de si, antes de dormir, puxou uma certa gaveta, tirou
uma caixinha, abriu-a, aventou um cartão de alguns centimetros de
altura,--um retrato. Não era retrato de mulher, não só por ter bigodes,
como por estar fardado; era, quando muito, um official de marinha.
Se bonito ou feio, é materia de opinião. Eulalia achava-o bonito; a
prova é que o beijou, não digo uma vez, mas tres. Depois mirou-o, com
saudade, tornou a fechal-o e guardal-o.

Que fazias tu, mãe cautellosa e rispida, que não vinhas arrancar ás
mãos e á boca da filha um veneno tão subtil e mortal? D. Benedicta, á
janella, olhava a noite, entre as estrellas e os lampeões de gaz, com
a imaginação vagabunda, inquieta, roida de saudades e desejos. O dia
tinha-lhe saido mal, desde manhã. D. Benedicta confessava, naquella
doce intimidade da alma consigo mesma, que o jantar de D. Maria
dos Anjos não prestára para nada, e que a propria amiga não estava
provavelmente nos seus dias de costume. Tinha saudades, não sabia bem
de que, e desejos, que ignorava. De quando em quando, bocejava ao modo
preguiçoso e arrastado dos que caem de somno; mas se alguma cousa
tinha era fastio,--fastio, impaciencia, curiosidade. D. Benedicta
cogitou seriamente em ir ter com o marido; e tão depressa a idéa do
marido lhe penetrou no cerebro, como se lhe apertou o coração de
saudades e remorsos, e o sangue pulou-lhe n'um tal impeto de ir ver o
desembargador que, se o paquete do Norte estivesse na esquina da rua e
as malas promptas, ella embarcaria logo e logo. Não importa; o paquete
devia estar prestes a sair, oito ou dez dias; era o tempo de arranjar
as malas. Iria por tres mezes sómente, não era preciso levar muita
cousa. Eil-a que se consola da grande cidade fluminense, da similitude
dos dias, da escassez das cousas, da persistencia das caras, da mesma
fixidez das modas, que era um dos seus arduos problemas:--porque é que
as modas hão de durar mais de quinze dias?

--Vou, não ha que ver, vou ao Pará, disse ella a meia voz.

Com effeito, no dia seguinte, logo de manhã, communicou a resolução á
filha, que a recebeu sem abalo. Mandou ver as malas que tinha, achou
que era preciso mais uma, calculou o tamanho, e determinou compral-a.
Eulalia, por uma inspiração subita:

--Mas, mamãe, nós não vamos por tres mezes?

--Tres... ou dous.

--Pois, então, não vale a pena. As duas malas chegam.

--Não chegam.

--Bem; se não chegarem, pode-se comprar na vespera. E mamãe mesmo
escolhe; é melhor do que mandar esta gente que não sabe nada.

D. Benedicta achou a reflexão judiciosa, e guardou o dinheiro. A filha
sorriu para dentro. Talvez repetisse comsigo a famosa palavra da
janella:--Isto acaba. A mãe foi cuidar dos arranjos, escolha de roupa,
lista das cousas que precisava comprar, um presente para o marido, etc.
Ah! que alegria que elle ia ter! Depois do meio dia sairam para fazer
encommendas, visitas, comprar as passagens, quatro passagens; levavam
uma escrava comsigo. Eulalia ainda tentou arredal-a da idéa, propondo
a transferencia da viajem; mas D. Benedicta declarou peremptoriamente
que não. No escriptorio da Companhia de Paquetes disseram-lhe que o
do Norte saia na sexta-feira da outra semana. Ella pediu as quatro
passagens; abriu a carteirinha, tirou uma nota, depois duas, reflectiu
um instante.

--Basta vir na vespera, não?

--Basta, mas pode não achar mais.

--Bem; o senhor guarde os bilhetes: eu mando buscar.

--O seu nome?

--O nome? O melhor é não tomar o nome; nós viremos tres dias antes de
sair o vapor. Naturalmente ainda haverá bilhetes.

--Pode ser.

--Hade haver.

Na rua, Eulalia observou que era melhor ter comprado logo os bilhetes;
e, sabendo-se que ella não desejava ir para o Norte nem para o Sul,
salvo na fragata em que embarcasse o original do retrato da vespera,
hade suppor-se que a reflexão da moça era profundamente machiavelica.
Não digo que não. D. Benedicta, entretanto, noticiou a viagem aos
amigos e conhecidos, nenhum dos quaes a ouviu espantado. Um chegou a
perguntar-lhe se, enfim, daquella vez era certo. D. Maria dos Anjos,
que sabia da viagem pelo conego, se alguma cousa a assombrou, quando a
amiga se despediu della, foram as attitudes geladas, o olhar fixo no
chão, o silencio, a indifferença. Uma visita de dez minutos apenas,
durante os quaes D. Benedicta disse quatro palavras no principio: Vamos
para o Norte. E duas no fim:--Passe bem. E os beijos? Dous tristes
beijos de pessoa morta.


IV


A viagem não se fez por um motivo supersticioso. D. Benedicta, no
domingo á noute, advertiu que o paquete seguia na sexta-feira, e achou
que o dia era máu. Iriam no outro paquete. Não foram no outro; mas
desta vez os motivos escapam inteiramente ao alcance do olhar humano,
e o melhor alvitre em taes casos é não teimar com o impenetravel. A
verdade é que D. Benedicta não foi, mas iria no terceiro paquete, a não
ser um incidente que lhe trocou os planos.

Tinha a filha inventado uma festa e uma amizade nova. A nova amizade
era uma familia do Andarahy; a festa não se sabe a que proposito foi,
mas deve ter sido explendida, porque D. Benedicta ainda fallava della
tres dias depois. Tres dias! Realmente, era demais. Quanto á familia,
era impossivel ser mais amavel; ao menos, a impressão que deixou na
alma de D. Benedicta foi intensissima. Uso este superlativo, porque
ella mesma o empregou: é um documento humano.

--Aquella gente? Oh! deixou-me uma impressão intensissima.

E toca a andar para Andarahy, namorada de D. Petronilha, esposa do
conselheiro Beltrão, e de uma irmã della, D. Maricota, que ia casar
com um official de marinha, irmão de outro oflicial de marinha, cujos
bigodes, olhos, cara, porte, cabellos, são os mesmos do retrato qu e o
leitor entreviu ha tempos na gavetinha de Eulalia. A irmã casada tinha
trinta e dous annos, e uma seriedade, umas maneiras tão bonitas, que
deixaram encantada a esposa do desembargador. Quanto á irmã solteira
era uma flor, uma flor de cera, outra expressão de D. Benedicta, que
não altero com receio de entibiar a verdade.

Um dos pontos mais obscuros desta curiosa historia é a pressa com
que as relações se travaram, e os acontecimentos se succederam. Por
exemplo, uma das pessoas que estiveram em Andarahy, com D. Benedicta,
foi o official de marinha retratado no cartão particular de Eulalia,
1o tenente Mascarenhas, que o conselheiro Beltrão proclamou futuro
almirante. Vede, porém, a perfídia do official: vinha fardado; e D.
Benedicta, que amava os expectaculos novos, achou-o tão distincto, tão
bonito, entre os outros moços á paisana, que o preferiu a todos, e lh'o
disse. O official agradeceu commovido. Ella offereceu-lhe a casa; elle
pediu-lhe licença para fazer uma visita.

--Uma visita? Vá jantar comnosco.

Mascarenhas fez uma cortezia de acquiescencia.

--Olhe, disse D. Benedicta, vá amanhã.

Mascarenhas foi, e foi mais cedo. D. Benedicta fallou-lhe da vida do
mar; elle pediu-lhe a filha em casamento. D. Benedicta ficou sem voz,
pasmada. Lembrou-se, é verdade, que desconfiára delle, um dia,** nas
Larangeiras; mas a suspeita acabara. Agora não os vira conversar nem
olhar uma só vez. Em casamento! Mas seria mesmo em casamento? Não podia
ser outra cousa; a attitude séria, respeitosa, implorativa do rapaz
dizia bem que se tratava de um casamento. Que sonho! Convidar um amigo,
e abrir a porta a um genro: era o cumulo do inesperado. Mas o sonho era
bonito; o official de marinha era um galhardo rapaz, forte, elegante,
sympathico, mettia toda a gente no coração, e principalmente parecia
adoral-a, a ella, D. Benedicta. Que magnifico sonho! D. Benedicta,
voltou do pasmo, e respondeu que sim, que Eulalia era sua. Mascarenhas
pegou-lhe na mão e beijou-a filialmente.

--Mas o desembargador? disse elle.

--O desembargador concordará commigo.

Tudo andou assim depressa. Certidões passadas, banhos corridos,
marcou-se o dia do casamento; seria vinte e quatro horas depois de
recebida a resposta do desembargador. Que alegria a da boa mãe! que
actividade no preparo do enxoval, no plano e nas encommendas da
festa, na escolha dos convidados, etc.! Ella ia de um lado para outro,
ora a pé, ora de carro, fizesse chuva ou sol. Não se detinha no mesmo
objecto muito tempo; a semana do enxoval não era a do preparo da
festa, nem a das visitas; alternava as cousas, voltava atraz, com
certa confusão, é verdade. Mas ahi estava a filha para supprir as
faltas, corrigir os defeitos, cercear as demazias, tudo com a sua
habilidade natural. Ao contrario de todos os noivos, este não as
importunava; não jantava todos os dias com ellas, segundo lhe pedia a
dona da casa; jantava aos domingos, e visitava-as uma vez por semana.
Matava as saudades por meio de cartas, que eram continuas, longas e
secretas, como no tempo do namoro. D. Benedicta não podia explicar uma
tal esquivança, quando ella morria por elle; e então vingava-se da
exquisitice, morrendo ainda mais, e dizendo delle por toda a parte as
mais bellas cousas do mundo.

--Uma perola! uma perola!

--E um bonito rapaz, accrescentavam.

--Não é? De truz.

A mesma cousa repetia ao marido nas cartas que lhe mandava, antes
e depois de receber a resposta da primeira. A resposta veiu; o
desembargador deu o seu consentimento, accrescentando que lhe doia
muito não poder vir assistir ás bodas, por achar-se um tanto adoentado;
mas abençoava de longe os filhos, e pedia o retrato do genro.

Cumpriu-se o accordo á risca. Vinte e quatro horas depois de recebida a
resposta do Pará effectuou-se o casamento, que foi uma festa admiravel,
esplendida, no dizer de D. Benedicta, quando a contou a algumas amigas.
Officiou o conego Roxo, e claro é que D. Maria dos Anjos não esteve
presente, e menos ainda o filho. Ella esperou, note-se, até á ultima
hora um billhete de participação, um convite, uma visita, embora se
abstivesse de comparecer; mas não recebeu nada. Estava attonita,
revolvia a memoria a ver se descobria alguma inadvertencia sua que
podesse explicar a frieza das relações; não achando nada, suppoz alguma
intriga. E suppoz mal, pois foi um simples esquecimento. D. Benedicta,
no dia do consorcio, de manhã, teve ideia de que D. Maria dos Anjos não
recebera participação.

--Eulalia, parece que não mandamos participação a D. Maria dos Anjos?
disse ella á filha, almoçando.

--Não sei; mamãe é quem se incumbiu dos convites.

--Parece que não, confirmou D. Benedicta. João, dá cá mais assucar.

O copeiro deu-lhe o assucar; ella, mexendo o chá, lembrou-se do carro
que iria buscar o conego, e reiterou uma ordem da vespera.

Mas a fortuna é caprichosa. Quinze dias depois do casamento, chegou a
noticia do obito do desembargador. Não descrevo a dôr de D. Benedicta;
foi dilacerante e sincera. Os noivos, que devaneavam na Tijuca, vieram
ter com ella; D. Benedicta chorou todas as lagrymas de uma esposa
austera e fidelissima. Depois da missa do setimo dia, consultou a filha
e o genro ácerca da ideia de ir ao Pará, erigir um tumulo ao marido, e
beijar a terra em que elle repousava. Mascarenhas trocou um olhar com
a mulher; depois disse á sogra que era melhor irem juntos, porque elle
devia seguir para o Norte dahi a tres mezes em commissão do governo. D.
Benedicta recalcitrou um pouco, mas aceitou o prazo, dando desde logo
todas as ordens necessarias á construcção do tumulo. O tumulo fez-se;
mas a commissão não veiu, e D. Benedicta não pôde ir.

Cinco mezes depois, deu-se um pequeno incidente na familia. D.
Benedicta mandara construir uma casa no caminho da Tijuca, e o genro,
com o pretexto de uma interrupção na obra, propoz acabal-a. D.
Benedicta consentiu, e o acto era tanto mais honroso para ella, quanto
que o genro começava a parecer-lhe insupportavel com a sua excessiva
disciplina, com as suas teimas, impertinencias, etc. Verdadeiramente,
não havia teimas: nesse particular, o genro de D. Benedicta contava
tanto com a sinceridade da sogra que nunca teimava; deixava que ella
propria se desmentisse dias depois. Mas pode ser que isto mesmo a
mortificasse. Felizmente, o governo lembrou-se de o mandar ao Sul;
Eulalia, gravida, ficou com a mãe.

Foi por esse tempo que um negociante, viuvo, teve ideia de cortejar
D. Benedicta. O primeiro anno da viuvez estava passado D. Benedicta
acolheu a ideia com muita sympathia, embora sem alvoroço. Defendia-se
comsigo; allegava a edade e os estudos do filho, que em breve estaria a
caminho de S. Paulo, deixando-a só, sosinha no mundo. O casamento seria
uma consolação, uma companhia. E comsigo, na rua ou em casa, nas horas
disponiveis, aprimorava o plano com todos os floreios da imaginação
vivaz e subita; era uma vida nova, pois desde muito, antes mesmo da
morte do marido, pode-se dizer que era viuva. O negociante gozava do
melhor conceito: a escolha era excellente.

Não casou. O genro tornou do Sul, a filha deu á luz um menino robusto
e lindo, que foi a paixão da avó durante os primeiros mezes. Depois,
o genro, a filha e o neto foram para o Norte. D. Benedicta achou-se
só e triste; o filho não bastava aos seus affectos. A ideia de viajar
tornou a rutilar-lhe na mente, mas como um phosphoro, que se apaga
logo. Viajar sosinha era cansar e aborrecer-se ao mesmo tempo; achou
melhor ficar. Uma companhia lyrica, adventicia, sacudiu-lhe o torpor, e
restituiu-a á sociedade. A sociedade incutiu-lhe outra vez a ideia do
casamento, e apontou-lhe logo um pretendente, desta vez um advogado,
tambem viuvo.

--Casarei? não casarei?

Uma noite, volvendo D. Benedicta este problema, á janella da casa de
Botafogo, para onde se mudara desde alguns mezes, viu um singular
expectaculo. Primeiramente uma claridade opaca, especie de luz coada
por um vidro fosco, vestia o espaço da enseada, fronteiro á janella.
Nesse quadro appareceu-lhe uma figura vaga e transparente, trajada de
nevoas, toucada de reflexos, sem contornos definidos, porque morriam
todos no ar. A figura veiu até ao peitoril da janella de D. Benedicta;
e de um gesto somnolento, com uma voz de criança, disse-lhe estas
palavras sem sentido:

--Casa... não casarás... se casas... casarás... não casarás... e
casas... casando...

D. Benedicta ficou atterrada, sem poder mexer-se; mas ainda teve a
força de perguntar á figura quem era. A figura achou um principio de
riso, mas perdeu-o logo; depois respondeu que era a fada que presidira
ao nascimento de D. Benedicta: Meu nome é Velleidade, concluiu; e, como
um suspiro, dispersou-se na noite e no silencio.



FIM DE D. BENEDICTA



O SEGREDO DO BONZO[1]

CAPITULO INEDITO DE FERNÃO MENDES PINTO


Atraz deixei narrado o que se passou n'esta cidade Fucheo, capital do
reino de Bungo, com o padre mestre Francisco, e de como el-rey se houve
com o Fucarandono e outros bonzos, que tiveram por acertado disputar ao
padre as primazias da nossa santa religião. Agora direi de uma doutrina
não menos curiosa que saudavel ao espirito, e digna de ser divulgada a
todas as republicas da christandade.

Um dia, andando a passeio com Diogo Meirelles, n'esta mesma cidade
Fucheo, n'aquelle anno de 1552, succedeu deparar-se-nos um ajuntamento
de povo, á esquina de uma rua, em torno a um homem da terra, que
discorria com grande abundancia de gestos e vozes. O povo, segundo
o esmo mais baixo, seria passante de cem pessoas, varões sómente, e
todos embasbacados. Diogo Meirelles, que melhor conhecia a lingua da
terra, pois alli estivera muitos mezes, quando andou com bandeira de
veniaga (agora occupava-se no exercicio da medicina, que estudara
convenientemente, e em que era eximio) ia-me repetindo pelo nosso
idioma o que ouvia ao orador, e que em resumo, era o seguinte:--Que
elle não queria outra cousa mais do que affirmar a origem dos grillos,
os quaes procediam do ar e das folhas de coqueiro, na conjuncção da lua
nova; que este descobrimento, impossivel a quem não fosse, como elle,
mathematico, physico e philosopho, era fructo de dilatados annos de
applicação, experiencia e estudo, trabalhos e até perigos de vida; mas
emfim, estava feito, e todo redundava em gloria do reino de Bungo, e
especialmente da cidade Fucheo, cuja filho era; e, se por ter aventado
tão sublime verdade, fosse necessario aceitar a morte, elle a aceitaria
alli mesmo, tão certo era que a sciencia valia mais do que a vida e
seus deleites.

A multidão, tanto que elle acabou, levantou um tumulto de acclamações,
que esteve a ponto de ensurdecer-nos, e alçou nos braços o homem,
bradando: Patimau, Patimau, viva Patimau que descobriu a origem dos
grillos. E todos se foram com elle ao alpendre de um mercador, onde lhe
deram refrescos e lhe fizeram muitas saudações e reverencias, á maneira
d'este gentio, que é em extremo obsequioso e cortezão.

Desandando o caminho, vinhamos nós, Diogo Meirelles e eu, fallando
do singular achado da origem dos grillos, quando, a pouca distancia
d'aquelle alpendre, obra de seis credos, não mais, achámos outra
multidão de gente, em outra esquina, escutando a outro homem. Ficámos
espantados com a semelhança do caso, e Diogo Meirelles, visto que
tambem este fallava apressado, repetiu-me da mesma maneira o teor da
oração. E dizia este outro, com grande admiração e applauso da gente
que o cercava, que emfim descobrira o principio da vida futura, quando
a terra houvesse de ser inteiramente destruida, e era nada menos
que uma certa gota de sangue de vacca; d'ahi provinha a excellencia
da vacca para habitação das almas humanas, e o ardor com que esse
distincto animal era procurado por muitos homens á hora de morrer;
descobrimento que elle podia affirmar com fé e verdade, por ser obra
de experiencias repetidas e profunda cogitação, não desejando nem
pedindo outro galardão mais que dar gloria ao reino de Bungo e receber
d'elle a estimação que os bons filhos merecem. O povo, que escutára
esta falla com muita veneração, fez o mesmo alarido e levou o homem
ao dito alpendre, com a differença que o trepou a uma charola; alli
chegando, foi regalado com obsequios eguaes aos que faziam a Patimau,
não havendo nenhuma distincçao entre elles, nem outra competencia nos
banqueteadores, que não fosse a de dar graças a ambos os banqueteados.

Ficámos sem saber nada d'aquillo, porque nem nos parecia casual
a semelhança exacta dos dous encontros, nem racional ou crivel a
origem dos grillos, dada por Patimau, ou o principio da vida futura,
descoberto por Langurú, que assim se chamava o outro. Succedeu, porém,
costearmos a casa de um certo Titané, alparqueiro, o qual correu a
fallar a Diogo Meirelles, de quem era amigo. E, feitos os cumprimentos,
em que o alparqueiro chamou as mais galantes cousas a Diogo Meirelles,
taes como--ouro da verdade e sol do pensamento,--contou-lhe este o
que viramos e ouviramos pouco antes. Ao que Titané acudiu com grande
alvoroço:--Póde ser que elles andem cumprindo uma nova doutrina, dizem
que inventada por um bonzo de muito saber, morador em umas casas
pegadas ao monte Coral. E porque ficassemos cubiçosos de ter alguma
noticia da doutrina, consentiu Titané em ir comnosco no dia seguinte ás
casas do bonzo, e accrescentou:--Dizem que elle não a confia a nenhuma
pessoa, se não ás que de coração se quizerem filiar a ella; e, sendo
assim, podemos simular que o queremos unicamente com o fim de a ouvir;
e se fôr boa, chegaremos a pratical-a á nossa vontade.

No dia seguinte, ao modo concertado, fomos ás casas do dito bonzo,
por nome Pomada, um ancião de cento e oito annos, muito lido e sabido
nas letras divinas e humanas, e grandemente aceito a toda aquella
gentilidade, e por isso mesmo mal visto de outros bonzos, que se
finavam de puro ciume. E tendo ouvido o dito bonzo a Titané quem
eramos e o que queriamos, iniciou-nos primeiro com varias ceremonias e
bugiarias necessarias á recepção da doutrina, e só depois d'ella é que
alçou a voz para confial-a e explical-a.

Haveis de entender, começou elle, que a virtude e o saber, tem duas
existencias parallelas, uma no sugeito que as possue, outra no espirito
dos que o ouvem ou contemplam. Se puzerdes as mais sublimes virtudes
e os mais profundos conhecimentos em um sujeito solitario, remoto de
todo contacto com outros homens, é como se elles não existissem. Os
fructos de uma larangeira, se ninguem os gostar, valem tanto como as
urzes e plantas bravias, e, se ninguem os vir, não valem nada; ou, por
outras palavras mais energicas, não ha expectaculo sem expectador. Um
dia, estando a cuidar n'estas cousas, considerei que, para o fim de
allumiar um pouco o entendimento, tinha consumido os meus longos annos,
e, aliás, nada chegaria a valer sem a existencia de outros homens que
me vissem e honrassem; então cogitei se não haveria um modo de obter o
mesmo effeito, poupando taes trabalhos, e esse dia posso agora dizer
que foi o da regeneração dos homens, pois me deu a doutrina salvadora.

N'este ponto, afiámos os ouvidos e ficámos pendurados da boca do bonzo,
o qual, como lhe dissesse Diogo Meirelles que a lingua da terra me não
era familiar, ia fallando com grande pausa, porque eu nada perdesse.
E continuou dizendo:--Mal podeis adivinhar o que me deu idéa da nova
doutrina; foi nada menos que a pedra da lua, essa insigne pedra tão
luminosa que, posta no cabeço de uma montanha ou no pincaro de uma
torre, dá claridade a uma campina inteira, ainda a mais dilatada. Uma
tal pedra, com taes quilates de luz, não existiu nunca, e ninguem
jámais a viu; mas muita gente crê que existe e mais de um dirá que
a viu com os seus proprios olhos. Considerei o caso, e entendi que,
se uma cousa póde existir na opinião, sem existir na realidade, e
existir na realidade, sem existir na opinião, a conclusão é que das
duas existencias parallelas a única necessaria é a da opinião, não a
da realidade, que é apenas conveniente. Tão depressa fiz este achado
especulativo, como dei graças a Deus do favor especial, e determinei-me
a verifical-o por experiencias; o que alcancei, em mais de um caso, que
não relato, por vos não tomar o tempo. Para comprehender a efficacia
do meu systema, basta advertir que os grillos não podem nascer do ar e
das folhas de coqueiro, na conjuncção da lua nova, e por outro lado,
o principio da vida futura não está em uma certa gotta de sangue de
vacca; mas Patimáu e Langurú, varões astutos, com tal arte souberam
metter estas duas idéas no animo da multidão, que hoje desfructam a
nomeada de grande physicos e maiores philosophos, e tem comsigo pessoas
capazes de dar a vida por elles.

Não sabiamos em que maneira déssemos ao bonzo as mostras do nosso vivo
contentamento e admiração. Elle interrogou-nos ainda algum tempo,
compridamente, ácerca da doutrina e dos fundamentos d'ella, e depois de
reconhecer que a entendiamos, incitou-nos a pratical-a, a divulgal-a
cautelosamente, não porque houvesse nada contrario ás leis divinas ou
humanas, mas porque a má comprehensão d'ella podia damnal-a e perdel-a
em seus primeiros passos; emfim, despediu-se de nós com a certeza
(são palavras suas) de que abalavamos d'alli com a verdadeira alma de
pomadistas; denominação esta que, por se derivar do nome d'elle, lhe
era em extremo agradavel.

Com effeito, antes de cair a tarde, tinhamos os tres combinado em pôr
por obra uma idéa tão judiciosa quão lucrativa, pois não é só lucro
o que se póde haver em moeda, senão tambem o que traz consideração e
louvor, que é outra e melhor especie de moeda, comquanto não dê para
comprar damascos ou chaparias de ouro. Combinamos, pois, á guisa de
experiencia, metter cada um de nós, no animo da cidade Fucheo, uma
certa convicção, mediante a qual houvessemos os mesmos beneficios
que desfructavam Patimau e Langurú; mas, tão certo é que o homem não
olvida o seu interesse, entendeu Titané que lhe cumpria lucrar de duas
maneiras, cobrando da experiencia ambas as moedas, isto é, vendendo
tambem as suas alparcas: ao que nos não oppuzemos, por nos parecer que
nada tinha isso com o essencial da doutrina.

Consistiu a experiencia de Titané em uma cousa que não sei como diga
para que a entendam. Usam n'este reino de Bungo, e em outros d'estas
remotas partes, um papel feito de casca de canella moida e gomma,
obra mui prima, que elles talham depois em pedaços de dois palmos de
comprimento, e meio de largura, nos quaes desenham com vivas e variadas
côres, e pela lingua do paiz, as noticias da semana, politicas,
religiosas, mercantis e outras, as novas leis do reino, os nomes das
fustas, lancharas, balões e toda a casta de barcos que navegam estes
mares, ou em guerra, que a ha frequente, ou de veniaga. E digo as
noticias da semana, porque as ditas folhas são feitas de oito em oito
dias, em grande copia, e distribuidas ao gentio da terra, a troco
de uma esportula, que cada um dá de bom grado para ter as noticias
primeiro que os demais moradores. Ora, o nosso Titané não quiz melhor
esquina que este papel, chamado pela nossa lingua _Vida e claridade
das cousas mundanas e celestes_, titulo expressivo, ainda que um tanto
derramado. E, pois, fez inserir no dito papel que acabavam de chegar
noticias frescas de toda a costa de Malabar e da China, conforme as
quaes não havia outro cuidado que não fossem as famosas alparcas
d'elle Titané; que estas alparcas eram chamadas as primeiras do mundo,
por serem mui solidas e graciosas; que nada menos de vinte e dous
mandarins iam requerer ao imperador para que, em vista do explendor
das famosas alparcas de Titané, as primeiras do universo, fosse creado
o titulo honorifico de «alparca do Estado», para recompensa dos que
se distinguissem em qualquer disciplina do entendimento; que eram
grossissimas as encommendas feitas de todas as partes, ás quaes elle
Titané ia acudir, menos por amor ao lucro do que pela gloria que d'alli
provinha á nação; não recuando, todavia, do proposito em que estava e
ficava de dar de graça aos pobres do reino umas cincoenta corjas das
ditas alparcas, conforme já fizera declarar a el-rey e o repetia agora;
emfim, que apezar da primazia no fabrico das alparcas assim reconhecida
em toda a terra, elle sabia os deveres da moderação, e nunca se
julgaria mais do que um obreiro diligente e amigo da gloria do reino de
Bungo.

A leitura d'esta noticia commoveu naturalmente a toda a cidade Fucheo,
não se fallando em outra cousa durante toda aquella semana. As alparcas
de Titané, apenas estimadas, começaram de ser buscadas com muita
curiosidade e ardor, e ainda mais nas semanas seguintes, pois não
deixou elle de entreter a cidade, durante algum tempo, com muitas e
extraordinarias anedoctas ácerca da sua mercadoria. E dizia-nos com
muita graça:--Vêde que obedeço ao principal da nossa doutrina, pois não
estou persuadido da superioridade das taes alparcas, antes as tenho
por obra vulgar, mas fil-o crer ao povo, que as vem comprar agora,
pelo preço que lhes taxo. Não me parece, atalhei, que tenhaes cumprido
a doutrina em seu rigor e substancia, pois não nos cabe inculcar aos
outros uma opinião que não temos, e sim a opinião de uma qualidade que
não possuimos; este é, ao certo, o essencial d'ella.

Dito isto, assentaram os dous que era a minha vez de tentar a
experiencia, o que immediatamente fiz; mas deixo de a relatar em todas
as suas partes, por não demorar a narração da experiencia de Diogo
Meirelles, qne foi a mais decisiva das tres, e a melhor prova d'esta
deliciosa invenção do bonzo. Direi somente que, por algumas luzes que
tinha de musica e charamella, em que aliás era mediano, lembrou-me
congregar os principaes de Fucheo para que me ouvissem tanger o
instrumento; os quaes vieram, escutaram e foram-se repetindo que nunca
antes tinham ouvido cousa tão extraordinaria. E confesso que alcancei
um tal resultado com o só recurso dos ademanes, da graça em arquear os
braços para tomar a charamella, que me foi trazida em uma bandeja de
prata, da rigidez do busto, da uncção com que alcei os olhos ao ar, e
do desdem e ufania com que os baixei á mesma assembléa, a qual neste
ponto rompeu em um tal concerto de vozes e exclamações de enthusiasmo,
que quasi me persuadiu do meu merecimento.

Mas, como digo, a mais engenhosa de todas as nossas experiencias, foi
a de Diogo Meirelles. Lavrava então na cidade uma singular doença,
que consistia em fazer inchar os narizes, tanto e tanto, que tomavam
metade e mais da cara ao paciente, e não só a punham horrenda, senão
que era molesto carregar tamanho peso. Comquanto os physicos da terra
propuzessem extrahir os narizes inchados, para allivio e melhoria
dos enfermos, nenhum d'estes consentia em prestar-se ao curativo,
preferindo o excesso á lacuna, e tendo por mais aborrecivel que nenhuma
outra cousa a ausencia daquelle orgão. N'este apertado lance mais de
um recorria á morte voluntaria, como um remedio, e a tristeza era
muita em toda a cidade Fucheo. Diogo Meirelles, que desde algum tempo
praticava a medicina, segundo ficou dito atraz, estudou a molestia
e reconheceu que não havia perigo em desnarigar os doentes, antes
era vantajoso por lhes levar o mal, sem trazer fealdade, pois tanto
valia um nariz disforme e pesado como nenhum; não alcançou, todavia,
persuadir os infelizes ao sacrificio. Então occorreu-lhe uma graciosa
invenção. Assim foi que, reunindo muitos physicos, philosophos, bonzos,
autoridades e povo, communicou-lhes que tinha um segredo para eliminar
o orgão; e esse segredo era nada menos que substituir o nariz achacado
por um nariz são, mas de pura natureza metaphysica, isto é, inacessivel
aos sentidos humanos, e comtudo tão verdadeiro ou ainda mais do que o
cortado; cura esta praticada por elle em varias partes, e muito aceita
aos physicos de Malabar. O assombro da assembléa foi immenso, e não
menor a incredulidade de alguns, não digo de todos, sendo que a maioria
não sabia que acreditasse, pois se lhe repugnava a metaphysica do
nariz, cedia entretanto á energia das palavras de Diogo Meirelles, ao
tom alto e convencido com que elle expoz e definiu o sem remedio. Foi
então que alguns philosophos, alli presentes, um tanto envergonhados do
saber de Diogo Meirelles, não quizeram ficar-lhe atraz, e declararam
que havia bons fundamentos para uma tal invenção, visto não ser o homem
todo outra cousa mais do que um producto da idealidade transcendental;
donde resultava que podia trazer, com toda a verosimilhança, um nariz
metaphysico, e juravam ao povo que o effeito era o mesmo.

A assembléa acclamou a Diogo Meirelles; e os doentes começaram de
buscal-o, em tanta copia, que elle não tinha mãos a medir. Diogo
Meirelles desnarigava-os com muitissima arte; depois estendia
delicadamente os dedos a uma caixa, onde fingia ter os narizes
substitutos, colhia um e applicava-o ao logar vasio. Os enfermos, assim
curados e suppridos, olhavam uns para os outros, e não viam nada no
lugar do orgão cortado; mas, certos e certissimos de que alli estava o
orgão substituto, e que este era inacessivel aos sentidos humanos, não
se davam por defraudados, e tornavam aos seus officios. Nenhuma outra
prova quero da efficacia da doutrina e do fructo d'esse experiencia,
senão o facto de que todos os desnarigados de Diogo Meirelles
continuaram a prover-se dos mesmos lenços de assoar. O que tudo deixo
relatado para gloria do bonzo e beneficio do mundo.


[1]Como se terá visto, não ha aqui um simples _pastiche_, nem esta
imitação foi feita com o fim de provar forças, trabalho que, se fosse
só isso, teria bem pouco valor. Era-me preciso, para dar a possivel
realidade á invenção, collocal-a a distancia grande, no espaço e no
tempo; e para tornar a narração sincera, nada me pareceu melhor do que
attribuil-a ao viajante escriptor que tantas maravilhas disse. Para os
curiosos accrescentarei que as palavras: _Atraz deixei narrado o que
se passou nesta cidade Fucheo,_--foram escriptas com o fim de suppor o
capitulo intercalado nas _Peregrinações_, entre os caps. CCXIII e CCXIV.

O bonzo do meu escripto chama-se Pomada, e pomadistas os seus
sectarios. _Pomada e pomadista_ são locuções familiares da nossa terra:
é o nome local do charlatão e do charlatanismo.


FIM DO SEGREDO DO BONZO



O ANNEL DE POLYCRATES


A

Lá vai o Xavier.

Z

Conhece o Xavier?

A

Ha que annos! Era um nababo, rico, podre de rico, mas prodigo...

Z

Que rico? que prodigo?

A

Rico e prodigo, digo-lhe eu. Bebia perolas diluidas em nectar. Comia
linguas de rouxinol. Nunca usou papel mata-borrão, por achal-o vulgar
e mercantil; empregava areia nas cartas, mas uma certa areia feita
de pó de diamante. E mulheres! Nem toda a pompa de Salomão póde dar
idéa do que éra o Xavier nesse particular. Tinha um serralho: a linha
grega, a tez romana, a exhuberancia turca, todas as perfeições de uma
raça, todas as prendas de um clima, tudo era admittido no harem do
Xavier. Um dia enamorou-se loucamente de uma senhora de alto cothurno,
e enviou-lhe de mimo tres estrellas do Cruzeiro, que então contava
sete, e não pense que o portador foi ahi qualquer pé rapado. Não,
senhor. O portador foi um dos archanjos de Milton, que o Xavier chamou
na occasião em que elle cortava o azul para levar a admiração dos
homens ao seu velho pai inglez. Era assim o Xavier. Capeava os cigarros
com um papel de crystal, obra finissima, e, para accendel-os, trazia
comsigo uma caixinha de raios do sol. As colxas da cama eram nuvens
purpureas, e assim tambem a esteira que forrava o sophá de repouso, a
poltrona da secretaria e a rede. Sabe quem lhe fazia o café, de manhã?
A Aurora, com aquelles mesmos dedos côr de rosa, que Homero lhe poz.
Pobre Xavier! Tudo o que o capricho e a riqueza pódem dar, o raro, o
exquisito, o maravilhoso, o indescriptivel, o inimaginavel, tudo teve e
devia ter, porque era um galhardo rapaz, e um bom coração. Ah! fortuna,
fortuna! Onde estão agora as perolas, os diamantes, as estrellas, as
nuvens purpureas? Tudo perdeu, tudo deixou ir por agua abaixo; o nectar
virou zurrapa, os cochins são a pedra dura da rua, não manda estrellas
ás senhoras, nem tem archanjos ás suas ordens...

Z

Você está enganado. O Xavier? Esse Xavier, ha de ser outro. O Xavier
nababo! Mas o Xavier que alli vai nunca teve mais de duzentos mil réis
mensaes; é um homem poupado, sobrio, deita-se com as gallinhas, accorda
com os gallos, e não escreve cartas a namoradas, porque não as tem.
Se alguma expede aos amigos é pelo carreio. Não é mendigo, nunca foi
nababo.

A

Creio; esse é o Xavier exterior. Mas nem só de pão vive o homem. Você
falla de Martha, eu fallo-lhe de Maria; fallo do Xavier especulativo...

Z

Ah!--Mas ainda assim, não acho explicação; não me consta nada d'elle.
Que livro, que poema, que quadro...

A

Desde quando o conhece?

Z

Ha uns quinze annos.

A

Upa! Conheço-o ha muito mais tempo, desde que elle estreou na rua do
Ouvidor, em pleno marquez de Paraná. Era um endiabrado, um derramado,
planeava todas as cousas possiveis, e até contrarias, um livro,
um discurso, um medicamento, um jornal, um poema, um romance, uma
historia, um libello politico, uma viagem á Europa, outra ao sertão
de Minas, outra á lua, em certo balão que inventara, uma candidatura
politica, e archeologia, e philosophia, e theatro, etc., etc., etc. Era
um sacco de espantos[1]. Quem conversava com elle sentia vertigens.
Imagine uma cachoeira de idéas e imagens, qual mais original, qual mais
bella, ás vezes extravagante, ás vezes sublime. Note que elle tinha a
convicção dos seus mesmos inventos. Um dia, por exemplo, acordou com
o plano de arrazar o morro do Castello, a troco das riquezas que os
jesuitas alli deixaram, segundo o povo crê. Calculou-as logo em mil
contos, inventariou-as com muito cuidado, separou o que era moeda, mil
contos, do que eram obras de arte e pedrarias; descreveu minuciosamente
os objectos, deu-me dous tocheiros de ouro.

Z

Realmente...

A

Ah! impagavel. Quer saber de outra? Tinha lido as cartas do conego
Benigno, e resolveu ir logo ao sertão da Bahia, procurar a cidade
mysteriosa. Expoz-me o plano, descreveu-me a architectura provavel da
cidade, os templos, os palacios, genero etrusco, os ritos, os vasos, as
roupas, os costumes...

Z

Era então doudo?

A

Originalão apenas. Odeio os carneiros de Panurgio, dizia elle, citando
Rabelais: _Comme vous sçaves estre du mouton le naturel, tousjours
suivre le premier, quelque part qu'il aille._ Comparava a trivialidade
a uma mesa redonda de hospedaria, e jurava que antes comer um máu bife
em mesa separada.

Z

Entretanto, gostava da sociedade.

A

Gostava da sociedade, mas não amava os socios. Um amigo nosso, o
Pires, fez-lhe um dia esse reparo; e sabe o que é que elle respondeu?
Respondeu com um apologo, em que cada socio figurava ser uma cuia
d'agua, e a sociedade uma banheira.--Ora, eu não posso lavar-me em
cuias d'agua, foi a sua conclusão.

Z

Nada modesto. Que lhe disse o Pires?

A

O Pires achou o apologo tão bonito que o metteu n'uma comedia, d'ahi
a tempos. Engraçado é que o Xavier ouviu o apologo no theatro, e
applaudiu-o muito, com enthusiasmo; esquecera-se da paternidade; mas a
voz do sangue... Isto leva-me á explicação da actual miseria do Xavier.

Z

É verdade, não sei como se possa explicar que um nababo...

A

Explica-se facilmente. Elle espalhava idéas á direita e á esquerda,
como o céu chove, por uma necessidade physica, e ainda por duas razões.
A primeira é que era impaciente, não soffria a gestação indispensavel
á obra escripta. A segunda é que varria com os olhos uma linha tão
vasta de cousas, que mal poderia fixar-se em qualquer dellas. Se não
tivesse o verbo fluente, morreria de congestão mental; a palavra era
um derivativo. As paginas que então fallava, os capitulos que lhe
borbotavam da bocca, só precisavam de uma arte de os imprimir no
ar, e depois no papel, para serem paginas e capitulos excellentes,
alguns admiraveis. Nem tudo era limpido; mas a porção limpida superava
a porção turva, como a vigilia de Homero paga os seus cochillos.
Espalhava tudo, ao acaso, ás mãos cheias, sem ver onde as sementes iam
cahir; algumas pegavam logo...

Z

Como a das cuias.

A

Como a das cuias. Mas, o semeador tinha a paixão das cousas bellas, e,
uma vez que a arvore fosse pomposa e verde, não lhe perguntava nunca
pela semente sua mãe. Viveu assim longos annos, despendendo á tôa, sem
calculo, sem fructo, de noite e de dia, na rua e em casa, um verdadeiro
prodigo. Com tal regimen, que era a ausencia de regimen, não admira que
ficasse pobre e miseravel. Meu amigo, a imaginação e o espirito têm
limites; a não ser a famosa botelha dos saltimbancos e a credulidade
dos homens, nada conheço inexgotavel debaixo do sol, O Xavier não
só perdeu as idéas que tinha, mas até exhauriu a faculdade de as
crear; ficou o que sabemos. Que moeda rara se lhe vê hoje nas mãos?
que sestercio de Horacio? que drachma de Pericles? Nada. Gasta o seu
logar-commum, rafado das mãos dos outros, come á mesa redonda, fez-se
trival, chôcho...

Z

Cuia, emfim.

A

Justamente: cuia.

Z

Pois muito me conta. Não sabia nada disso. Fico inteirado; adeus.

A

Vai a negocio?

Z

Vou a um negocio.

A

Dá-me dez minutos?

Z

Dou-lhe quinze.

V

Quero referir-lhe a passagem mais interessante da vida do Xavier.
Aceite o meu braço, e vamos andando. Vai para a Praça? Vamos juntos.
Um caso interessantissimo. Foi alli por 1869 ou 70, não me recordo;
elle mesmo é que me contou. Tinha perdido tudo; trazia o cerebro
gasto, chupado, esteril, sem a sombra de um conceito, de uma imagem,
nada. Basta dizer que um dia chamou rosa a uma senhora,--«uma bonita
rosa»; fallava do luar saudoso, do sacerdocio da imprensa, dos jantares
opiparos, sem accrescentar ao menos um relevo qualquer a toda essa
chaparia de algibebe. Começára a ficar hypocondriaco; e, um dia,
estando á janella, triste, desabusado das cousas, vendo-se chegado a
nada, aconteceu passar na rua um taful a cavallo. De repente, o cavallo
corcoveou, e o taful veiu quasi ao chão; mas sustentou-se, e metteu
as esporas e o chicote no animal; este empina-se, elle teima; muita
gente parada na rua e nas portas; no fim de dez minutos de luta, o
cavallo cedeu e continuou a marcha. Os espectadores não se fartaram de
admirar o garbo, a coragem, o sangue-frio, a arte do cavalleiro. Então
o Xavier, consigo, imaginou que talvez o cavalleiro não tivesse animo
nenhum; não quiz cahir diante de gente, e isso lhe deu a força de domar
o cavallo. E d'ahi veiu uma idéa: comparou a vida a um cavallo chucro
ou manhoso; e accrescentou sentenciosamente: Quem não fôr cavalleiro,
que o pareça. Realmente, não era uma idéa extraordinaria; mas a penuria
do Xavier tocara a tal extremo, que esse crystal pareceu-lhe um
diamante. Elle repetiu-a dez ou doze vezes, formulou-a de varios modos,
ora na ordem natural, pondo primeiro a definição, depois o complemento;
ora dando-lhe a marcha inversa, trocando palavras, medindo-as, etc.;
e tão alegre, tão alegre como casa de pobre em dia de perú. De noite,
sonhou que effectivamente montava um cavallo manhoso, que este
pinoteava com elle e o sacudia a um brejo. Accordou triste; a manhã,
que era de domingo e chuvosa, ainda mais o entristeceu; metteu-se a lêr
e a scismar. Então lembrou-se... Conhece o caso do annel de Polycrates?

Z

Francamente, não.

A

Nem eu; mas aqui vai o que me disse o Xavier. Potycrates governava
a ilha de Samos. Era o rei mais feliz da terra; tão feliz, que
começou a receiar alguma viravolta da Fortuna, e, para applacal-a
antecipadamente, determinou fazer um grande sacrificio: deitar ao mar
o annel precioso que, segundo alguns, lhe servia de sinete. Assim
fez; mas a Fortuna andava tão apostada em cumulal-o de obsequios, que
o annel foi engulido por um peixe, o peixe pescado e mandado para a
cozinha do rei, que assim voltou á posse do annel. Não affirmo nada
a respeito d'esta anedocta; foi elle quem me contou, citando Plinio,
citando...

Z

Não ponha mais na carta. O Xavier naturalmente comparou a vida, não a
um cavallo, mas...

A

Nada d'isso. Não é capaz de adivinhar o plano estrambotico do pobre
diabo. Experimentemos a fortuna, disse elle; vejamos se a minha idéa,
lançada ao mar, póde tornar ao meu poder, como o annel de Polycrates,
no bucho de algum peixe, ou se o meu caiporismo será tal, que nunca
mais lhe ponha a mão.

Z

Ora essa!

A

Não é estrambotico? Polycrates experimentára a felicidade; o Xavier
quiz tentar o caiporismo; intenções diversas, acção indentica. Saiu de
casa, encontrou um amigo, travou conversa, escolheu assumpto, e acabou
dizendo o que era a vida, um cavallo chucro ou manhoso, e quem não fôr
cavalleiro que o pareça. Dita assim, esta phrase era talvez fria; por
isso o Xavier teve o cuidado de descrever primeiro a sua tristeza, o
desconsolo dos annos, o mallogro dos esforços, ou antes os effeitos da
imprevidencia, e quando o peixe ficou de bocca aberta, digo, quando
a commoção do amigo chegou ao cume, foi que elle lhe atirou o annel,
e fugiu a metter-se em casa. Isto que lhe conto é natural, crê-se,
não é impossivel; mas agora começa a juntar-se á realidade uma alta
dóse de imaginação. Seja o que fôr, repito o que elle me disse. Cerca
de tres semanas depois, o Xavier jantava pacificamente no _Leão de
Ouro_ ou no _Globo_, não me lembro bem, e ouviu de outra mesa a mesma
phrase sua, talvez com a troca de um adjectivo. «Meu pobre annel, disse
elle, eis-te emfim no peixe de Polycrates.» Mas a idéa bateu as azas
e voou, sem que elle pudesse guardal-a na memoria. Resignou-se. Dias
depois, foi convidado a um baile: era um antigo companheiro dos tempos
de rapaz, que celebrava a sua recente distincção nobiliaria. O Xavier
aceitou o convite, e foi ao baile, e ainda bem que foi, porque entre o
sorvete e o chá ouviu de um grupo de pessoas que louvavam a carreira de
barão, a sua vida prospera, rigida, modelo, ouviu comparar o barão a
um cavalleiro emerito. Pasmo dos ouvintes, porque o barão não montava
a cavallo. Mas o panegyrista explicou que a vida não é mais do que um
cavallo chucro ou manhoso, sobre o qual ou se ha de ser cavalleiro ou
parecel-o, e o barão era-o excellente. «--Entra, meu querido annel,
disse o Xavier, entra no dedo de Polycrates.» Mas de novo a idéa bateu
as azas, sem querer ouvil-o. Dias depois...

Z

Adivinho o resto: uma serie de encontros e fugas do mesmo genero.

A

Justo.

Z

Mas, emfim, apanhou-o um dia.

A

Um dia só, e foi então que me contou o caso digno de memoria. Tão
contente que elle estava n'esse dia! Jurou-me que ia escrever, a
proposito d'isto, um conto fantastico, á maneira de Edgard Poe, uma
pagina fulgurante, pontuada de mysterios,--são as suas proprias
expressões;--e pediu-me que o fosse ver no dia seguinte. Fui; o annel
fugira-lhe outra vez. «Meu caro A, disse-me elle, com um sorriso fino
e sarcastico; tens em mim o Polycrates do caiporismo; nomeio-te meu
ministro honorario e gratuito.» D'ahi em diante foi sempre mesma coisa.
Quando elle suppunha pôr a mão em cima da idéa, ella batia as azas,
plas, plas, plas, e perdia-se no ar, como as figuras de um sonho. Outro
peixe a engolia e trazia, e sempre o mesmo desenlace. Mas dos casos que
elle me contou n'aquelle dia, quero dizer-lhe tres...

Z

Não posso; lá se vão os quinze minutos.

A

Conto-lhe só tres. Um dia, o Xavier chegou a crer que podia emfim
agarrar a fugitiva, e fincal-a perpetuamente no cerebro. Abriu um
jornal de opposição, e leu estupefacto estas palavras: «O ministerio
parece ignorar que a politica é, como a vida, um cavallo chucro ou
manhoso, e, não podendo ser bom cavalleiro, porque nunca o foi, devia
ao menos parecer que o é.» Ah! emfim! exclamou o Xavier, cá estás
engastado no bucho do peixe; já me não podes fugir.» Mas, em vão! a
idéa fugia-lhe, sem deixar outro vestigio mais do que uma confusa
reminiscencia. Sombrio, desesperado, começou a andar, a andar, até que
a noite caiu; passando por um theatro, entrou; muita gente, muitas
luzes, muita alegria; o coração aquietou-se-lhe. Cumulo de beneficios:
era uma comedia do Pires, uma comedia nova. Sentou-se ao pé do autor,
applaudiu a obra com enthusiasmo, com sincero amor de artista e de
irmão. No segundo acto, scena VIII, estremeceu. «D. Eugenia, diz o
galan a uma senhora, o cavallo póde ser comparado á vida, que é também
um cavallo chucro ou manhoso; quem não for bom cavalleiro, deve cuidar
de parecer que o é.» O autor, com o olhar timido, espiava no rosto do
Xavier o effeito d'aquella reflexão, emquanto o Xavier repetia a mesma
supplica das outras vezes;--«Meu querido annel...

Z

_Et nunc et semper..._ Venha o ultimo encontro, que são horas.

A

O ultimo foi primeiro. Já lhe disse que o Xavier transmittira a idéa
a um amigo. Uma semana depois da comedia cae o amigo doente, com tal
gravidade que em quatro dias estava á morte. O Xavier corre a vel-o;
e o infeliz ainda o pôde conhecer, estender-lhe a mão fria e tremula,
cravar-lhe um longo olhar baço da ultima hora, e, com a voz sumida,
echo do sepulchro, soluçar-lhe: «Cá voou, meu caro Xavier, o cavallo
chucro ou manhoso da vida deitou-me ao chão: se fui mau cavalleiro,
não sei; mas forcejei por parecel-o bom.» Não se ria; elle contou-me
isto com lagrimas. Contou-me tambem que a idéa ainda esvoaçou alguns
minutos sobre o cadaver, faiscando as bellas azas de christal, que
elle cria ser diamante; depois estalou um risinho de escarneo, ingrato
e parricida, e fugiu como das outras vezes, mettendo-se no cerebro de
alguns sujeitos, amigos da casa, que alli estavam, tranzidos de dor, e
recolheram com saudade esse pio legado do defuncto. Adeus.


[1]Em algumas linhas escriptas para dar o ultimo adeus a Arthur de
Oliveira, meu triste amigo, disse que era elle o original deste
personagem. Menos a vaidade, que não tinha, e salvo alguns rasgos mais
accentuados, este Xavier era o Arthur. Para completal-o darei aqui
mesmo aquellas linhas impressas na _Estação_ de 31 de Agosto ultimo:

"Quem não tratou de perto este rapaz, morto a 21 do mez corrente, mal
poderá entender a admiração e saudade que elle deixou.

"Conheci-o desde que chegou do Rio Grande do Sul, com dezesete
ou dezoito annos de edade; e podem crer que era então o que foi
aos trinta. Aos trinta lera muito, vivera muito; mas toda aquella
pujança de espirito, todo esse raro temperamento litterario que lhe
admiravamos, veiu com a flor da adolescencia; desabrochara com os
primeiros dias. Era a mesma torrente de ideias, a mesma fulguração
de imagens. Ha algumas semanas, em escripto que viu a luz na _Gazeta
de Noticias_, defini a alma de um personagem com esta especie de
hebraismo:--chamei-lhe um sacco de espantos. Esse personagem (posso
agora dizel-o) era, em algumas partes, o nosso mesmo Arthur, com a sua
poderosa loquella e extraordinaria fantazia. Um sacco de espantos. Mas,
se o da minha invenção morreu exhausto de espirito, não aconteceu o
mesmo a Arthur de Oliveira, que pôde alguma vez ficar prostrado, mas
não exhauriu nunca a força genial que possuia.

"Um organismo daquelles era naturalmente irrequieto. Minas o viu,
pouco depois, no collegio dos padres do Caráça, começando os estudos,
que interrompeu logo, para continual-os na Europa. Na Europa travou
relações litterarias de muito peso; Theophilo Gauthier, entre outros,
queria-lhe muito, apreciava-lhe a alta comprehensao artistica, a
natureza impetuosa e luminosa, os deslumbramentos subitos de raio.
_Venez, père de la foudre!_ dizia-lhe elle, mal o Arthur assomava á
porta. E o Arthur, assim definido familiarmente pelo grande artista,
entrava no templo, palpitante da divindade, admirativo como tinha de
ser até á morte. Sim, até á morte. Gauthier foi uma das religiões que
o consolaram. Sete dias antes de o perdermos, isto é, a 14 deste mez,
prostrado na cama, roido pelo dente cruel da tisica, escrevia-me elle
a proposito de um prato do jantar. "O verde das couves espanejava-se
em uma onda de pirão, cor de ouro. A palheta de Ruysdael, pelo
incendido do ouro, não hesitaria um só instante, em assignar esse pirão
_mirabolante_, como diria o grande e divino Theo..." Grande e divino!
Vêde bem que esta admiração é de um moribundo, refere-se a um morto,
e falla na intimidade da correspondencia particular. Onde outra mais
sincera?

"Não escrevo uma biographia. A vida delle não é das que se escrevem; é
das que são vividas, sentidas, amadas, sem jamais poderem converter-se
á narração; tal qual os romances psychologicos, em que a urdidura dos
factos é breve ou nenhuma. Ultimamente, exercia o professorado no
Collegio de Pedro II; mas a doença tomou-o entre as suas tenazes, para
não o deixar mais.

"Não o deixou mais: comeu-lhe a seiva toda; desfibrou-o com a paciencia
dos grandes operarios. Elle, como vimos, prestes a tropeçar na cova,
regalava-se ainda das reminiscencias litterarias, evocava a palheta
de Ruysdael, olhando para a vida que lhe ia sobreviver, a vida da
arte que elle amou com fé religiosa, sem proveito para si, sem
calculo, sem odios, sem invejas, sem desfallecimento. A doença fel-o
padecer muito; teve instantes de dôr cruel, não raro de desespero e
de lagrimas; mas, em podendo, reagia. Encararia alguma vez o enigma
da morte? Poucas horas antes de morrer (perdôem-me esta recordação
pessoal; é necessaria), poucas horas antes de morrer, lia um livro meu,
o das _Memorias Posthumas de Braz Cubas_, e dizia-me que interpretava
agora melhor algumas de suas passagens. Talvez as que entendiam com
a occasião... E dizia-me aquillo serenamente, com uma força de animo
rara, uma resignação de granito. Foi ao sair de uma dessas visitas, que
escrevi estes versos, recordando os arrojos d'elle comparados com o
actual estado. Não lh'os mostrei; e dou-os aqui para os seus amigos:

"Sabes tu de um poeta enorme,
   Que andar não usa
No chão, e cuja extranha musa,
   Que nunca dorme,

"Calça o pé melindroso e leve,
   Como uma pluma,
De folha e flôr, de sol e neve,
   Cristal e espuma;

"E mergulha, como Leandro,
   A fórma rara
No Pó, no Sena, em Guanabara,
   E no Scamandro;

"Ouve a Tupan e escuta a Momo,
   Sem controversia,
E tanto adoro o estudo, como
   Adora a inercia;

"Ora do fuste, ora da ogiva
   Sair parece;
Ora o Deus do occidente esquece
   Pelo deus Siva;

"Gosta do estrepito infinito,
   Gosta das longas
Solidões em que se ouve o grito
   Das arapongas;

"E se ama o rapido besouro,
   Que zumbe, zumbe,
E a mariposa que succumbe
   Na flamma de ouro,

"Vagalumes e borboletas
   Da côr da chamma,
Roxas, brancas, rajadas, pretas,
   Não menos ama

"Os hippopotamos tranquillos,
   E os elephantes,
E mais os bufalos nadantes,
   E os crocodillos,

"Como as girafas e as pantheras,
   Onças, condores,
Toda a casta de bestas feras
   E voadores.

"Se não sabes quem elle seja,
   Trepa de um salto,
Azul acima, onde mais alto
   A aguia negreja;

"Onde morre o clamor iniquo
   Dos violentos;
Onde não chega o riso obliquo
   Dos fraudulentos.

"Então olha, de cima posto,
   Para o oceano;
Verás n'um longo rosto humano
   Teu mesmo rosto;

"E has de rir, não do riso antigo,
   Potente e largo,
Riso de eterno moço amigo;
   Mas de outro amargo,

"Como o riso de um deus enfermo,
   Que se aborrece
Da divindade, e que apetece
   Tambem um termo...


"Os amigos delle apreciarão o sentido desses versos. O publico, em
geral, nada tem com um homem que passou pela terra sem o convidar para
cousa nenhuma, um forte engenho que apenas soube amar a arte, como
tantos christãos obscuros amaram a Egreja, e amar tambem aos seus
amigos, porque era meigo, generoso e bom."


FIM DO ANNEL DE POLYCRATES



O EMPRESTIMO


Vou divulgar uma anecdota, mas uma anecdota no genuino sentido do
vocabulo, que o vulgo ampliou ás historietas de pura invenção. Esta é
verdadeira; podia citar algumas pessoas que a sabem tão bem como eu.
Nem ella andou recondita, senão por falta de um espirito repousado, que
lhe achasse a philosophia. Como deveis saber, ha em todas as cousas
um sentido philosophico. Carlyle descobriu o dos colletes, ou, mais
propriamente, o do vestuario; e ninguem ignora que os numeros, muito
antes da loteria do Ypiranga, formavam o systema de Pythagoras. Pela
minha parte creio ter decifrado este caso de emprestimo; ides ver se me
engano.

E, para começar, emendemos Seneca. Cada dia, ao parecer d'aquelle
moralista, é, em si mesmo, uma vida singular; por outros termos, uma
vida dentro da vida. Não digo que não; mas porque não accrescentou
elle, que muitas vezes uma só hora é a representação de uma vida
inteira? Vede este rapaz: entra no mundo com uma grande ambição, uma
pasta de ministro, um Banco, uma corôa de visconde, um baculo pastoral.
Aos cincoenta annos, vamos achal-o simples apontador de alfandega, ou
sacristão da roça. Tudo isso que se passou em trinta annos, póde algum
Balzac mette-lo em trezentas paginas; porque não hade a vida, que foi a
mestra de Balzac, apertal-o em trinta ou sessenta minutos?

Tinham batido quatro horas no cartorio do tabellião Vaz Nunes, á rua
do Rosario. Os escreventes deram ainda as ultimas pennadas: depois
limparam as pennas de ganço na ponta de seda preta que pendia da gaveta
ao lado; fecharam as gavetas, concertaram os papeis, arrumaram os autos
e os livros, lavaram as mãos; alguns que mudavam de paletot á entrada,
despiram o do trabalho e enfiaram o da rua; todos sahiram. Vaz Nunes
ficou só.

Este honesto tabellião era um dos homens mais perspicazes do seculo.
Está morto: podemos elogial-o á vontade. Tinha um olhar de lanceta,
cortante e agudo. Elle adivinhava o caracter das pessoas que o
buscavam para escripturar os seus accordos e resoluções; conhecia
a alma de um testador muito antes de acabar o testamento; farejava
as manhas secretas e os pensamentos reservados. Usava oculos, como
todos os tabelliães de theatro; mas, não sendo myope, olhava por cima
d'elles, quando queria ver, e através d'elles, se pretendia não ser
visto. Finorio como elle só, diziam os escreventes. Em todo o caso,
circumspecto. Tinha cincoenta annos, era viuvo, sem filhos, e, para
fallar como alguns outros serventuarios, roia muito caladinho os seus
duzentos contos de reis.

--Quem é? perguntou elle de repente, olhando para a porta da rua.

Estava á porta, parado na soleira, um homem que elle não conheceu
logo, e mal póde reconhecer dahi a pouco. Vaz Nunes pediu-lhe o favor
de entrar; elle obedeceu, comprimentou-o, estendeu-lhe a mão, e
sentou-se na cadeira ao pé da mesa. Não trazia o acanho natural a um
pedinte; ao contrario, parecia, que não vinha alli senão para dar ao
tabellião alguma cousa preciosissima e rara. E, não obstante, Vaz Nunes
estremeceu e esperou.

--Não se lembra de mim?

--Não me lembro...

--Estivemos juntos uma noite, ha alguns mezes, na Tijuca... Não se
lembra? Em casa do Theodorico, aquella grande ceia de Natal; por signal
que lhe fiz uma saude... Veja se se lembra do Custodio.

--Ah!

Custodio endireitou o busto, que até então inclinara um pouco. Era um
homem de quarenta annos. Vestia pobremente, mas escorado, apertado,
correcto. Usara unhas longas, curadas com esmero, e tinha as mãos
muito bem talhadas, macias, ao contrario da pelle do rosto, que era
agreste. Noticias minimas, e aliás necessarias ao complemento de um
certo ar duplo que distinguia este homem, um ar de pedinte e general.
Na rua, andando, sem almoço e sem vintem, parecia levar após si um
exercito. A causa não era outra mais do que o contraste entre a
natureza e a situação, entre a alma e a vida. Esse Custodio nascera com
a vocação da riqueza, sem a vocação do trabalho. Tinha o instincto das
elegancias, o amor do superfluo, da boa chira, das bellas damas, dos
tapetes finos, dos moveis raros, um voluptuoso, e, até certo ponto,
um artista, capaz de reger a villa Torloni ou a galeria Hamilton. Mas
não tinha dinheiro; nem dinheiro, nem aptidão ou pachorra de o ganhar;
por outro lado, precisara viver. _Il faut bien que je vive_, dizia um
pretendente ao ministro Talleyrand. _Je n'en vois pas la necessité_,
redarguiu friamente o ministro. Ninguem dava essa resposta ao Custodio;
davam-lhe dinheiro, um dez, outro cinco, outro vinte mil reis, e de
taes esportulas é que elle principalmente tirava o albergue e a comida.

Digo que principalmente vivia d'ellas, porque o Custodio não recusava
metter-se em alguns negocios, com a condição de os escolher, e escolhia
sempre os que não prestavam para nada. Tinha o faro das catastrophes.
Entre vinte emprezas, adivinhava logo a insensata, e mettia hombros
a ella, com resolução. O caiporismo, que o perseguia, fazia com que
as dezenove prosperassem, e a vigesima lhe estourasse nas mãos. Não
importa; apparelhava-se para outra.

Agora, por exemplo, leu um annuncio de alguem que pedia um socio, com
cinco contos de reis, para entrar em certo negocio, que promettia dar,
nos primeiros seis mezes, oitenta a cem contos de lucro, Custodio foi
ter com o annunciante. Era uma grande idéa, uma fabrica de agulhas,
industria nova, de immenso futuro. E os planos, os desenhos da fabrica
os relatorios de Birmingham, os mappas de importação, as respostas dos
alfaiates, dos donos de armarinho, etc., todos os documentos de um
longo inquerito passavam diante dos olhos de Custodio, estrellados de
algarismos, que elle não entendia, e que por isso mesmo lhe pareciam
dogmaticos. Vinte e quatro horas; não pedia mais de vinte e quatro
horas para trazer os cinco contos. E saiu d'alli, cortejado, amimado
pelo annunciante, que, ainda á porta, o afogou n'uma torrente de
saldos. Mas os cinco contos, menos doceis ou menos vagabundos que os
cinco mil reis, saccudiam incredulamente a cabeça, e deixavam-se estar
nas arcas, tolhidos de medo e de somno. Nada. Oito ou dez amigos, a
quem fallou, disseram-lhe que nem dispunham agora da somma pedida, nem
acreditavam na fabrica. Tinha perdido as esperanças, quando aconteceu
subir a rua do Rozario e ler no portal de um cartorio o nome de Vaz
Nunes. Estremeceu de alegria; recordou a Tijuca, as maneiras do
tabellião, as phrases com que elle lhe respondeu ao brinde, e disse
comsigo, que este era o salvador da situação.

--Venho pedir-lhe uma escriptura...

Vaz Nunes, armado para outro começo, não respondeu: espiou por cima dos
oculos e esperou.

--Uma escriptura de gratidão, explicou o Custodio; venho pedir-lhe um
grande favor, um favor indispensavel, e conto que o meu amigo...

--Se estiver nas minhas mãos...

--O negocio é excellente, note-se bem; um negocio magnifico. Nem eu
me mettia a incommodar os outros sem certeza do resultado. A cousa
está prompta; foram já encommendas para a Inglaterra; e é provavel que
dentro de dois mezes esteja tudo montado, é uma industria nova. Somos
tres socios; a minha parte são cinco contos. Venho pedir-lhe esta
quantia, a seis mezes,--ou a tres, com juro modico...

--Cinco contos?

--Sim, senhor.

--Mas, Sr. Custodio, não posso, não disponho de tão grande quantia. Os
negocios andam mal; e ainda que andassem muito hem, não poderia dispôr
de tanto. Quem é que póde esperar cinco contos de um modesto tabellião
de notas?

--Ora, se o senhor quizesse...

--Quero, de certo; digo-lhe que se se tratasse de uma quantia pequena,
accommodada aos meus recursos, não teria duvida em adiantal-a, Mas
cinco contos! Creia que é impossivel.

A alma do Custodio cahiu de bruços. Subira pela escada de Jacob até
o céu; mas em vez de descer como os anjos no sonho biblico, rolou
abaixo e cahiu de bruços. Era a ultima esperança; e justamente por ter
sido inesperada, é que elle suppoz que fosse certa, pois, como todos
os corações que se entregam ao regimen do eventual, o do Custodio
era supersticioso. O pobre diabo sentiu enterrarem-se-lhe no corpo
os milhões de agulhas que a fabrica teria de produzir no primeiro
semestre. Calado, com os olhos no chão, esperou que o tabellião
continuasse, que se compadecesse, que lhe désse alguma aberta; mas
o tabellião, que lia isso mesmo na alma do Custodio, estava tambem
calado, girando entre os dedos a boceta de rapé, respirando grosso,
com um certo chiado nazal e implicante. Custodio ensaiou todas as
attitudes; ora pedinte, ora general. O tabellião não se mexia. Custodio
ergueu-se.

--Bem,disse elle, com uma pontasinha de despeito, ha de perdoar o
incomodo...

--Não ha que perdoar; eu é que lhe peço desculpa de não poder servil-o,
como desejava. Repito: se fosse alguma quantia menos avultada, muito
menos, não teria duvida; mas...

Estendeu a mão ao Custodio, que com a esquerda pegara machinalmente
no chapéu. O olhar empanado do Custodio exprimia a absorpção da
alma d'elle, apenas convalecida da quéda, que lhe tirára as ultimas
energias. Nenhuma escada mysteriosa, nenhum céu; tudo voara a um
piparote do tabellião. Adeus, agulhas! A realidade veio tomal-o outra
vez com as suas unhas de bronze. Tinha de voltar ao precario, ao
adventicio, ás velhas contas, com os grandes zeros arregalados e os
cifrões retorcidos á laia de orelhas, que continuariam a fital-o e
a ouvil-o, a ouvil-o e a fital-o, alongando para elle os algarismos
implacaveis de fome. Que quéda! e que abysmo! Desenganado, olhou para o
tabelião com um gesto de despedida; mas, uma idéa subita clareou-lhe a
noute do cerebro. Se a quantia fosse menor, Vaz Nunes poderia servil-o,
e com prazer; porque não seria uma quantia menor? Já agora abria mão
da empreza; mas não podia fazer o mesmo a uns alugueis atrazados, a
dous ou tres credores, etc., e uma somma razoavel, quinhentos mil
réis, por exemplo, uma vez que o tabellião tinha a boa vontade de
emprestar-lh'os, vinham a ponto. A alma do Custodio impertigou-se;
vivia do presente, nada queria saber do passado, nem saudades, nem
temores, nem remorsos. O presente era tudo. O presente eram os
quinhentos mil réis, que elle ia ver surdir da algibeira do tabellião,
como um alvará de liberdade.

--Pois bem, disse elle, veja o que me póde dar, e eu irei ter com
outros amigos... Quanto?

--Não posso dizer nada a este respeito, porque realmente só uma cousa
muito modesta.

--Quinhentos mil réis?

--Não; não posso.

--Nem quinhentos mil réis?

--Nem isso, replicou firme o tabellião. De que se admira? Não lhe nego
que tenho algumas propriedades; mas, meu amigo, não ando com ellas no
bolso; e tenho certas obrigações particulares... Diga-me, não está
empregado?

--Não, senhor.

--Olhe; dou-lhe cousa melhor do que quinhentos mil réis; fallarei ao
ministro da justiça, tenho relações com elle, e...

Custodio interrompeu-o, batendo uma palmada no joelho. Se foi um
movimento natural, ou uma diversão astuciosa para não conversar do
emprego, é o que totalmente ignoro; nem parece que seja essencial
ao caso. O essencial é que elle teimou na supplica. Não podia dar
quinhentos mil réis? Aceitava duzentos; bastavam-lhe duzentos, não
para a empreza, pois adoptava o conselho dos amigos: ia recusal-a. Os
duzentos mil réis, visto que o tabellião estava disposto a ajudal-o,
eram para uma necessidade urgente,--«tapar um buraco.» E então relatou
tudo, respondeu á franqueza com franqueza: era a regra da sua vida.
Confessou que, ao tratar da grande empreza, tivera em mente acudir
tambem a um credor pertinaz, um diabo, um judeu, que rigorosamente
ainda lhe devia, mas tivera a aleivosia de trocar de posição. Eram
duzentos e poucos mil réis; e dez, parece; mas aceitava duzentos...

--Realmente, custa-me repetir-lhe o que disse; mas, emfim, nem os
duzentos mil réis posso dar. Cem mesmo, se o senhor os pedisse, estão
acima das minhas forças n'esta occasião. N'outra póde ser, e não tenho
duvida, mas agora...

--Não imagina os apuros em que estou!

--Nem cem, repito. Tenho tido muitas difficuldades n'estes ultimos
tempos. Sociedades, subscripções, maçonaria... Custa-lhe crêr, não é?
Naturalmente: um proprietario. Mas, meu amigo, é muito bom ter casas:
o senhor é que não conta os estragos, os concertos, as pennas d'agua,
as decimas, o seguro, os calotes, etc. São os buracos do pote, por onde
vai a maior parte da agua...

--Tivesse eu um pote! suspirou Custodio.

--Não digo que não. O que digo é que não basta ter casas para não ter
cuidados, despezas, e até credores... Creia o senhor que tambem eu
tenho credores.

--Nem cem mil réis!

--Nem cem mil réis, peza-me dizel-o, mas é a verdade. Nem cem mil réis.
Que horas são?

Levantou-se, e veiu ao meio da sala. Custodio veiu tambem, arrastado,
desesperado. Não podia acabar de crer que o tabellião não tivesse
ao menos cem mil réis. Quem é que não tem cem mil réis consigo?
Cogitou uma scena pathetica, mas o cartorio abria para a rua; seria
ridiculo. Olhou para fóra. Na loja fronteira, um sujeito apreçava
uma sobrecasaca, á porta, porque entardecia depressa, e o interior
era escuro. O caixeiro segurava a obra no ar; o freguez examinava o
panno com a vista e com os dedos, depois as costuras, o forro... Este
incidente rasgou-lhe um horizonte novo, embora modesto; era tempo de
aposentar o paletó que trazia. Mas nem cincoenta mil réis podia dar-lhe
o tabellião. Custodio sorriu;--não de desdem, não de raiva, mas de
amargura e duvida; era impossivel que elle não tivesse cincoenta mil
réis. Vinte, ao menos? Nem vinte. Nem vinte! Não; falso tudo; tudo
mentira.

Custodio tirou o lenço, alisou a chapéu devagarinho; depois guardou o
lenço, concertou a gravata, com um ar mixto de esperança e despeito.
Viera cerceando as azas á ambição, pluma a pluma; restava ainda uma
pennugem curta e fina, que lhe mettia umas velleidades de voar. Mas o
outro, nada. Vaz Nunes cotejava o relogio da parede com o do bolso,
chegava este ao ouvido, limpava o mostrador, calado, transpirando por
todos os poros impaciencia e fastio. Estavam a pingar as cinco; deram,
emfim, e o tabellião, que as esperava, desengatilhou a despedida. Era
tarde; morava longe. Dizendo isto, despiu o paletó de alpaca, e vestiu
o de casimira, mudou de um para outro a boceta de rapé, o lenço, a
carteira... Oh! a carteira! Custodio viu esse utensilio problematico,
apalpou-o com os olhos, invejou a alpaca, invejou a casimira, quiz ser
algibeira, quiz ser o couro, a materia mesma do precioso receptaculo.
Lá vae ella; mergulhou de todo no bolso do peito esquerdo; o tabellião
abotoou-se. Nem vinte mil réis! Era impossivel que não levasse alli
vinte mil réis, pensava elle; não diria duzentos, mas vinte, dez que
fossem...

--Prompto! disse-lhe Vaz Nunes, com o chapéu na cabeça.

Era o fatal instante. Nenhuma palavra do tabellião, um convite ao
menos, para jantar; nada; findára tudo. Mas os momentos supremos pedem
energias supremas. Custodio sentiu toda força d'este logar-commum, e,
subito, como um tiro, perguntou ao tabellião se não lhe podia dar ao
menos dez mil réis.

--Quer ver?

E o tabellião desabotoou o paletó, tirou a carteira, abriu-a, e
mostrou-lhe duas notas de cinco mil réis.

--Não tenho mais, disse elle; o que posso fazer é repartil-os com o
senhor; dou-lhe uma de cinco, e fico com a outra; serve-lhe?

Custodio aceitou os cinco mil réis, não triste, ou de má cara, mas
risonho, palpitante, como se viesse de conquistar a Asia Menor. Era
o jantar certo. Estendeu a mão ao outro, agradeceu-lhe o obsequio,
despediu-se até breve,--um _até breve_ cheio de affirmações implicitas.
Depois sahiu; o pedinte esvaiu-se á porta do cartorio; o general é que
foi por alli abaixo, pisando rijo, encarando fraternalmente os inglezes
do commercio que subiam a rua para se transportarem aos arrabaldes.
Nunca o céu lhe pareceu tão azul, nem a tarde tão limpida; todos os
homens traziam na retina a alma da hospitalidade. Com a mão esquerda no
bolso das calças, elle apertava amorosamente os cinco mil réis, residuo
de uma grande ambição, que ainda ha pouco sahira contra o sol, n'um
impeto de aguia, e ora habita modestamente as azas de frango rasteiro.


FIM DO EMPRESTIMO



A SERENISSIMA REPUBLICA[1]

(CONFERENCIA DO CONEGO VARGAS)


Meus senhores,

Antes de communicar-vos uma descoberta, que reputo de algum lustre para
o nosso paiz, deixai que vos agradeça a promptidão com que acudistes
ao meu chamado. Sei que um interesse superior vos trouxe aqui; mas não
ignoro tambem,--e fora ingratidão ignoral-o,--que um pouco de sympathia
pessoal se mistura á vossa legitima curiosidade scientifica. Oxalá
possa eu corresponder a ambas.

Minha descoberta não é recente; data do fim do anno de 1876. Não a
divulguei então,--e, a não ser o _Globo_, interessante diario d'esta
capital, não a divulgaria ainda agora,--por uma razão que achará facil
entrada no vosso espirito. Esta obra de que venho fallar-vos, carece de
retoques ultimos, de verificações e experiencias complementares. Mas
o _Globo_ noticiou que um sabio inglez descobriu a linguagem phonica
dos insectos, e cita o estudo feito com as moscas. Escrevi logo para
a Europa e aguardo as respostas com anciedade. Sendo certo, porém,
que pela navegação aerea, invento do padre Bartholomeo, é glorificado
o nome estrangeiro, emquanto o do nosso patricio mal se póde dizer
lembrado dos seus naturaes, determinei evitar a sorte do insigne
Voador, vindo a esta tribuna, proclamar alto e bom som, á face do
universo, que muito antes d'quelle sabio, o fóra das ilhas britannicas,
um modesto naturalista descobriu cousa identica, e fez com ella obra
superior.

Senhores, vou assombrar-vos, como teria assombrado a Aristoteles,
se lhe perguntasse: Credes que se possa dar um regimen social ás
aranhas? Aristoteles responderia negativamente, com vós todos, porque
é impossivel crer que jámais se chegasse a organisar socialmente
esse articulado arisco, solitario, apenas disposto ao trabalho, e
difficilmente ao amor. Pois bem, esse impossivel fil-o eu.

Ouço um riso, no meio do sussuro de curiosidade. Senhores, cumpre
vencer os preconceitos. A aranha parece-vos inferior, justamente
porque não a conheceis. Amais o cão, prezaes o gato e a gallinha,
e não advertis que a aranha não pula nem ladra como o cão, não mia
como o gato, não cacareja como a gallinha, não zune nem morde como o
mosquito, não nos leva o sangue e o somno como a pulga. Todos esses
bichos são o modelo acabado da vadiação e do parasitismo. A mesma
formiga, tão gabada por certas qualidades boas, dá no nosso assucar e
nas nossas plantações, e funda a sua propriedade roubando a alheia.
A aranha, senhores, não nos afflige nem defrauda; apanha as moscas,
nossas inimigas, fia, tece, trabalha e morre. Que melhor exemplo de
paciencia, de ordem, de previsão, de respeito e de humanidade? Quanto
aos seus talentos, não ha duas opiniões. Desde Plinio até Darwin, os
naturalistas do mundo inteiro formam um só côro de admiração em torno
d'esse bichinho, cuja maravilhosa teia a vassoura inconsciente do
vosso creado destroe em menos de um minuto. Eu repetiria agora esses
juizos, se me sobrasse tempo; a materia, porém, excede o prazo, sou
constrangido a abrevial-a. Tenho-os aqui, não todos, mas quasi todos;
tenho, entre elles, esta excellente monographia de Buchner, que com
tanta subtileza estudou a vida psychica dos animaes. Citando Darwin
e Buchner, é claro que me restrinjo á homenagem cabida a dois sabios
de primeira ordem, sem de nenhum modo absolver (e as minhas vestes o
proclamam) as theorias gratuitas e erroneas do materialismo.

Sim, senhores, descobri uma especie araneida que dispõe do uso
da falla; colligi alguns, depois muitos dos novos articulados, e
organisei-os socialmente. O primeiro exemplar d'essa aranha maravilhosa
appareceu-me no dia 15 de dezembro de 1876. Era tão vasta, tão
colorida, dorso rubro, com listras azues, transversaes, tão rapida nos
movimentos, e ás vezes tão alegre, que de todo me captivou a attenção.
No dia seguinte vieram mais tres, e as quatro tomaram posse de um
recanto de minha chacara. Estudei-as longamente; achei-as admiraveis.
Nada, porém, se póde comparar ao pasmo que me causou a descoberta do
idioma araneida, uma lingua, senhores, nada menos que uma lingua rica e
variada, com a sua estructura syntaxica, os seus verbos, conjugações,
declinações, casos latinos e fórmas onomatopaicas, uma lingua que estou
grammaticando para uso das academias, como o fiz summariamente para
meu proprio uso. E fil-o, notai bem, vencendo difficuldades asperrimas
com uma paciencia extraordinaria. Vinte vezes desanimei; mas o amor
da sciencia dava-me forças para arremetter a um trabalho, que hoje
declaro, não chegaria a ser feito duas vezes na vida do mesmo homem.

Guardo para outro recinto a descripção technica do meu arachnide, e a
analyse da lingua. O objecto d'esta conferencia é, como disse, resalvar
os direitos da sciencia brazileira, por meio de um protesto em tempo;
e, isto feito, dizer-vos a parte em que reputo a minha obra superior á
do sabio de Inglaterra. Devo demonstral-o, e para este ponto chamo a
vossa attenção.

Dentro de um mez tinha commigo vinte aranhas; no mez seguinte cincoenta
e cinco; em Março de 1877 contava quatrocentas e noventa. Duas forças
serviram principalmente á empreza de as congregar:--o emprego da lingua
d'ellas, desde que pude discernil-a um pouco, e o sentimento de terror
que lhes infundi. A minha estatura, as vestes talares, o uso do mesmo
idioma, fizeram-lhes crer que era eu o deus das aranhas, e desde então
adoraram-me. E vede o beneficio d'esta illusão. Como as acompanhasse
com muita attenção e miudeza, lançando em um livro as observações
que fazia, cuidaram que o livro era o registro dos seus peccados, e
fortaleceram-se ainda mais na pratica das virtudes. A flauta tambem foi
um grande auxiliar. Como sabeis, ou deveis saber, ellas são doudas por
musica.

Não bastava associal-as; era preciso dar-lhes um governo idoneo.
Hesitei na escolha; muitos dos actuaes pareciam-me bons, alguns
excellentes, mas todos tinham contra si o existirem. Explico-me. Uma
fórma vigente de governo ficava exposta a comparações que poderiam
amesquinhal-a. Era-me preciso, ou achar uma fórma nova, ou restaurar
alguma outra abandonada. Naturalmente adoptei o segundo alvitre, e nada
me pareceu mais acertado do que uma republica, á maneira de Veneza, o
mesmo molde, e até o mesmo epitheto. Obsoleto, sem nenhuma analogia, em
suas feições geraes, com qualquer outro governo vivo, cabia-lhe ainda
a vantagem de um mecanismo complicado,--o que era metter á prova as
aptidões politicas da joven sociedade.

Outro motivo determinou a minha escolha. Entre os differentes modos
eleitoraes da antiga Veneza, figurava o do sacco e bolas, iniciação
dos filhos da nobreza no serviço do Estado. Mettiam-se as bolas com
os nomes dos candidatos no sacco, e extrahia-se annualmente um certo
numero, ficando os eleitos desde logo aptos para as carreiras publicas.
Este systema fará rir aos doutores do suffragio; a mim não. Elle exclue
os desvarios da paixão, os desazos da inepcia, o congresso da corrupção
e da cobiça. Mas não foi só por isso que o aceitei; tratando-se de um
povo tão eximio na fiação de suas teias, o uso do sacco eleitoral era
de facil adaptação, quasi uma planta indigena.

A proposta foi acceita. Serenissima Republica pareceu-lhes um titulo
magnifico, roçagante, expansivo, proprio a engrandecer a obra popular.

Não direi, senhores, que a obra chegou á perfeição, nem que lá chegue
tão cedo. Os meus pupillos não são os solarios de Campanella ou os
utopistas de Morus; formam um povo recente, que não póde trepar de um
salto ao cume das nações seculares. Nem o tempo é operario que ceda a
outro a lima ou o alvião; elle fará mais e melhor do que as theorias do
papel, validas no papel e mancas na pratica. O que posso affirmar-vos
é que, não obstante as incertezas da idade, elles caminham, dispondo
de algumas virtudes, que presumo essenciaes á duração de um Estado.
Uma d'ellas, como já disse, é a perseverança, uma longa paciencia de
Penelope, segundo vou mostrar vos.

Com effeito, desde que comprehenderam que no acto eleitoral estava a
base da vida publica, trataram de o exercer com a maior attenção. O
fabrico do sacco foi uma obra nacional. Era um sacco de cinco polegadas
de altura e tres de largura, tecido com os melhores fios, obra solida
e espessa. Para compol-o foram acclamadas dez damas principaes, que
receberam o titulo de mães da republica, além de outros privilegios
e fóros. Uma obra-prima, podeis crel-o. O processo eleitoral é
simples. As bolas recebem os nomes dos candidatos, que provarem
certas condições, e são escriptas por um official publico, denominado
«das inscripções». No dia da eleição, as bolas são mettidas no sacco
e tiradas pelo official das extracções, até perfazer o numero dos
elegendos. Isto que era um simples processo inicial na antiga Veneza,
serve aqui ao provimento de todos os cargos.

A eleição fez-se a principio com muita regularidade; mas, logo depois,
um dos legisladores declarou que ella fora viciada, por terem entrado
no sacco duas bolas com o nome do mesmo candidato. A assembléa
verificou a exactidão da denuncia, e decretou que o sacco, até alli
de tres pollegadas de largura, tivesse agora duas; limitando-se a
capacidade do sacco, restringia-se o espaço á fraude, era o mesmo que
supprimil-a. Aconteceu, porém, que na eleição seguinte, um candidato
deixou de ser inscripto na competente bola, não se sabe se por descuido
ou intenção do official publico. Este declarou que não se lembrava
de ter visto o illustre candidato, mas aecrescentou nobremente que
não era impossivel que elle lhe tivesse dado o nome; neste caso não
houve exclusão, mas distracção. A assembléa, diante de um phenomeno
psychologico ineluctavel, como é a distracção, não pôde castigar
o official; mas, considerando que a estreiteza do sacco podia dar
logar a exclusões odiosas, revogou a lei anterior e restaurou as tres
pollegadas.

N'esse interim, senhores, falleceu o primeiro magistrado, e tres
cidadãos apresentaram-se candidatos ao posto, mas so dous importantes,
Hazeroth e Magog, os proprios chefes do partido rectilineo e do partido
curvilineo. Devo explicar-vos estas denominações. Como elles são
principalmente geometras, é a geometria que os divide em politica.
Uns entendem que a aranha deve fazer as teias com fios rectos, é
o partido rectilineo;--outros pensam, ao contrario, que as teias
devem ser trabalhadas com fios curvos,--é o partido curvilineo. Ha
ainda um terceiro partido, mixto e central, com este postulado:--as
teias devem ser urdidas de fios rectos e fios curvos; é o partido
recto-curvilineo; e finalmente, uma quarta divisão politica, o partido
anti-recto-curvilineo, que fez taboa rasa de todos os principios
litigantes, e propõe o uso de umas teias urdidas de ar, obra
transparente e leve, em que não ha linhas de especie alguma. Como
a geometria apenas puderia dividil-os, sem chegar a apaixonal-os,
adoptaram uma symbolica. Para uns, a linha recta exprime os bons
sentimentos, a justiça, a probidade, a inteireza, a constancia, etc.,
ao passo que os sentimentos ruins ou inferiores, como a bajulação,
a fraude, a deslealdade, a perfidia, são perfeitamente curvos. Os
adversarios respondem que não, que a linha curva é a da virtude
e do saber, porque é a expressão da modestia e da humildade; ao
contrario, a ignorancia, a presumpção, a toleima, a parlapatice, são
rectas, duramente rectas. O terceiro partido, menos anguloso, menos
exclusivista, desbastou a exageração de uns e outros, combinou os
contrastes, e proclamou a simultaneidade das linhas como a exacta copia
do mundo pliysico e moral. O quarto limita-se a negar tudo.

Nem Hazeroth nem Magog foram eleitos. As suas bolas sahiram do sacco,
é verdade, mas foram inutilisadas, a do primeiro por faltar a primeira
lettra do nome, a do segundo por lhe faltar a ultima. O nome restante
e triumphante era o de um argentario ambicioso, politico obscuro,
que subiu logo á poltrona ducal, com espanto geral da republica.
Mas os vencidos não se contentaram de dormir sobre os louros do
vencedor; requereram uma devassa. A devassa mostrou que o official das
inscripções intencionalmente viciara a orthographia de seus nomes. O
official confessou o defeito e a intenção; mas explicou-os dizendo
que se tratava de uma simples ellipse; delicto, se o era, puramente
litterario. Não sendo possivel perseguir ninguem por defeitos de
ortographia ou figuras de rhetorica, pareceu acertado rever a lei.
Nesse mesmo dia ficou decretado que o sacco seria feito de um tecido de
malhas, atravez das quaes as bolas pudessem ser lidas pelo, publico,
e, _ipso facto_, pelos mesmos candidatos, que assim teriam tempo de
corrigir as inscripções.

Infelizmente, senhores, o commentario da lei é a eterna malicia. A
mesma porta aberta á lealdade serviu á astucia de um certo Nabiga, que
se conchavou com o official das extracções, para haver um logar na
assembléa. A vaga era uma, os candidatos tres; o official extrahiu as
bojas com os olhos no complice, que só deixou, de abanar negativamente
a cabeça, quando a bola pegada foi a sua. Não era preciso mais para
condemnar a idéa das malhas. A assembléa, com exemplar paciencia,
restaurou o tecido espesso do regimen anterior; mas, para evitar outras
ellipses, decretou a vallidação das bolas cuja inscripção estivesse
incorrecta, uma vez que cinco pessoas jurassem ser o nome inscripto o
proprio nome do candidato.

Este novo estatuto deu logar a um caso novo e imprevisto, como ides
ver. Tratou-se de eleger um collector de esportulas, funccionario
encarregado de cobrar as rendas publicas, sob a fórma de esportulas
voluntarias. Eram candidatos, entre outros, um certo Caneca e um
certo Nebraska. A bola extrahida foi a de Nebraska. Estava errada, é
certo, por lhe faltar a ultima letra; mas, cinco testemunhas juraram,
nos termos da iei, que o eleito era o proprio e unico Nebraska da
republica. Tudo parecia findo, quando o candidato Caneca requereu
provar que a bola extrahida não trazia o nome de Nebraska, mas o
delle. O juiz de paz deferiu ao peticionario. Veiu então um grande
philologo,--talvez o primeiro da republica, além de bom metaphysico, e
não vulgar mathemathico,--o qual provou a cousa nestes termos:

--Em primeiro logar, disse elle; deveis notar que não é fortuita a
ausencia da ultima lettra do nome Nebraska. Porque motivo foi elle
escripto incompletamente? Não se póde dizer que por fadiga ou amor da
brevidade, pois só falta a ultima lettra, um simples _a._ Carencia de
espaço? Tambem não; vede; ha ainda espaço para duas ou tres syllabas.
Logo, a falta é intencional, e a intenção não póde ser outra senão
chamar a attenção do leitor para a lettra _k_, ultima escripta,
desamparada, solteira, sem sentido. Ora, por um effeito mental, que
nenhuma lei destruiu, a lettra reproduz-se no cerebro de dois modos,
a fórma graphica, e a fórma sonica: _k_ e _ca._ O defeito, pois, no
nome escripto, chamando os olhos para a lettra final, incrusta desde
logo no cerebro esta primeira syllaba: _Ca._ Isto posto, o movimento
natural do espirito é ler o nome todo; volta-se ao principio, á inicial
_ne_, do nome _Nebrask._--_Cané._--Resta a syllaba do meio, _bras_,
cuja reducção a esta outra syllaba _ca_, ultima do nome Caneca, é a
cousa mais demonstravel do mundo. E, todavia, não a demonstrarei,
visto faltar-vos o preparo necessario ao entendimento da significação
espiritual ou philosophica da syllaba, suas origens e effeitos,
phases, modificações, consequencias logicas e syntaxicas, deductivas
ou inductivas, symbolicas e outras. Mas, supposta a demonstração, ahi
fica a ultima prova, evidente clara, da minha affirmação primeira pela
annexação da syllaba _ca_ ás duas _Cane_, dando este nome Caneca.

A lei emendou-se, senhores, ficando abolida a faculdade da prova
testemunhal e interpretativa dos textos, e introduzindo-se uma
innovação, o córte simultaneo de meia pollegada na altura e outra
meia na largura do sacco. Esta emenda não evitou um pequeno abuso na
eleição dos alcaides, e o sacco foi restituido ás dimensões primitivas,
dando-se-lhe, todavia, a fórma triangular. Comprehendeis que esta fórma
trazia consigo uma consequencia: ficavam muitas bolas no fundo. D'ahi a
mudança para a fórma cylindrica; mais tarde deu-se-lhe o aspecto de uma
ampulheta, cujo inconveniente se reconheceu ser igual ao triangulo, e
então adoptou-se a fórma de um crescente, etc. Muitos abusos, descuidos
e lacunas tendem a desapparecer, e o restante terá egual destino, não
inteiramente, de certo, pois a perfeição não é d'este mundo, mas na
medida e nos termos do conselho de um dos mais circumspectos cidadãos
da minha republica, Erasmus, cujo ultimo discurso sinto não poder
dar-vos integralmente. Encarregado de notificar a ultima resolução
legislativa ás dez damas, incumbidas de urdir o sacco eleitoral,
Erasmus contou-lhes a fabula de Penelope, que fazia e desfazia a famosa
teia, á espera do esposo Ulysses.

--Vós sois a Penelope da nossa republica, disse elle ao terminar;
tendes a mesma castidade, paciencia e talentos. Refazei o sacco, amigas
minhas, refazei o sacco, até que Ulysses, cançado de dar ás pernas,
venha tomar entre nós o logar que lhe cabe. Ulysses é a Sapiencia.

[1]Este escripto, publicado primeiro na _Gazeta de Noticias_, como
outros do livro, é o unico em que ha um sentido restricto:--as nossas
alternativas eleitoraes. Creio que terão entendido isso mesmo, atravez
da fórma allegorica.


FIM DA SERENISSIMA REPUBLICA



O ESPELHO

ESBOÇO DE UMA NOVA THEORIA DA ALMA HUMANA


Quatro ou cinco cavalheiros debatiam, uma noite, varias questões de
alta transcendencia, sem que a disparidade dos votos trouxesse a menor
alteração aos espiritos. A casa ficava no morro de Santa Thereza, a
sala era pequena, alumiada a velas, cuja luz fundia-se mysteriosamente
com o luar que vinha de fóra. Entre a cidade, com as suas agitações
e aventuras, e o céu, em que as estrellas pestanejavam, atravez de
uma atmosphera limpida e socegada, estavam os nossos quatro ou cinco
investigadores de cousas metaphysicas, resolvendo amigavelmente os mais
arduos problemas do universo.

Porque quatro ou cinco? Rigorosamente eram quatro os que fallavam; mas,
além d'elles, havia na sala um quinto personagem, calado, pensando,
cochilando, cuja esportula no debate não passava de um o outro resmungo
de approvação. Esse homem tinha a mesma edade dos companheiros, entre
quarenta e cincoenta annos, era provinciano, capitalista, intelligente,
não sem instrucção, e, ao que parece, astuto e caustico. Não discutia
nunca; e defendia-se da abstenção com um paradoxo, dizendo que a
discussão era a fórma polida do instincto batalhador,. que jaz no
homem, como uma herança bestial; e acerescentava que os seraphins e os
cherubins não controvertiam nada, e, aliás, eram a perfeição espiritual
e eterna. Como désse esta mesma resposta maquella noite, contestou-lh'a
um dos presentes, e desafiou-o a demonstrar o que dizia, se era capaz.
Jacobina (assim se chamava elle) reflectiu um instante, e respondeu:

--Pensando bem, talvez o senhor tenha razão.

Vai senão quando, no meio da noite, succedeu que este casmurro usou
da palavra, e não dous ou tres minutos, mas trinta ou quarenta. A
conversa, em seus meandros, veiu a cair na natureza da alma, ponto que
dividiu radicalmente os quatro amigos. Cada cabeça, cada sentença;
não só o accordo, mas a mesma discussão, tornou-se difficil, senão
impossivel, pela multiplicidade de questões que se deduziram do tronco
principal, e um pouco, talvez, pela inconsistencia dos pareceres. Um
dos argumentadores pediu ao Jacobina alguma opinião,--uma conjectura,
ao menos.

--Nem conjectura, nem opinião, redarguiu elle; uma ou outra póde dar
logar a dissentimento, e, como sabem, eu não discuto. Mas, se querem
ouvir-me calados, posso contar-lhes um caso de minha vida, em que
resalta a mais clara demonstração acerca da materia de que se trata. Em
primeiro logar, não ha uma só alma, ha duas...

--Duas?

--Nada menos de duas almas. Cada creatura humana traz duas almas
comsigo: uma que olha de dentro para fóra, outra que olha de fóra para
dentro... Espantem-se á vontade; pódem ficar de bocca aberta, dar de
hombros, tudo; não admitto replica. Se me replicarem, acabo o charuto
e vou dormir. A alma exterior póde ser um espirito, um fluido, um
homem, muitos homens, um objecto, uma operação. Ha casos, por exemplo,
em que um simples botão de camisa é a alma exterior de uma pessoa;--e
assim tambem a polka, o voltarete, um livro, uma machina, um par de
botas, uma cavatina, um tambor, etc. Está claro que o officio dessa
segunda alma é transmittir a vida, como a primeira; as duas completam
o homem, que é, metaphysicamente fallando, uma laranja. Quem perde uma
das metades, perde naturalmente metade da existencia; e casos ha, não
raros, em que a perda da alma exterior implica a da existencia inteira.
Shylock, por exemplo. A alma exterior daquelle judeu eram os seus
ducados; perdel-os equivalia a morrer, «Nunca mais verei o meu ouro,
diz elle a Tubal; _é um punhal que me enterras no coração_». Vejam bem
esta phrase; a perda dos ducados, alma exterior, era a morte para elle.
Agora, é preciso saber que a alma exterior não é sempre a mesma...

--Não?

--Não, senhor; muda de natureza e de estado. Não alludo a certas almas
absorventes, como a patria, com a qual disse o Camões que morria, e
o poder, que foi a alma exterior de Cesar e de Cromwell. São almas
energicas e exclusivas; mas ha outras, embora energicas, de natureza
mudavel. Ha cavalheiros, por exemplo, cuja alma exterior, nos primeiros
annos, foi um chocalho ou um cavallinho de páu, e mais tarde uma
provedoria de irmandade, supponhamos. Pela minha parte, conheço uma
senhora,--na verdade, gentilissima,--que muda de alma exterior cinco,
seis vezes por anno. Durante a estação lyrica é a opera; cessando a
estação, a alma exterior substitue-se por outra: um concerto, um baile
do Cassino, a rua do Ouvidor, Petropolis...

--Perdão; essa senhora quem é?

--Essa senhora é parenta do diabo, e tem o mesmo nome: chama-se
Legião... E assim outros muitos casos. Eu mesmo tenho experimentado
d'essas trocas. Não as relato, porque iria longe; restrinjo-me ao
episodio de que lhes fallei. Um episodio dos meus vinte e cinco annos...

Os quatro companheiros, anciosos de ouvir o caso promettido, esqueceram
a controversia. Santa curiosidade! tu não és só a ama da civilisação,
és tambem o pomo da concordia, fructa divina, de outro sabor que não
aquelle pomo da mythologia. A sala, até ha pouco ruidosa de physica e
metaphysica, é agora um mar morto; todos os olhos estão no Jacobina,
que concerta a ponta do charuto, recolhendo as memorias. Eis aqui como
elle começou a narração:

--Tinha vinte e cinco annos, era pobre, e acabava de ser nomeado
alferes da guarda nacional. Não imaginam o acontecimento que isto foi
em nossa casa. Minha mãe ficou tão orgulhosa! tão contente! Chamava-me
o seu alferes. Primos e tios, foi tudo uma alegria sincera e pura. Na
villa, note-se bem, houve alguns despeitados; chôro e ranger de dentes,
como na Escriptura; e o motivo não foi outro senão que o posto tinha
muitos candidatos e que estes perderam. Supponho tambem que uma parte
do desgosto foi inteiramente gratuita: nasceu da simples distincção.
Lembra-me de alguns rapazes, que se davam commigo, e passaram a
olhar-me de revez, durante algum tempo. Em compensação, tive muitas
pessoas que ficaram satisfeitas com a nomeação; e a prova é que todo
o fardamento me foi dado por amigos... Vai então uma das minhas tias,
D. Marcolina, viuva do capitão Peçanha, que morava a muitas leguas da
villa, n'um sitio escuso e solitario, desejou ver-me, e pediu que fosse
ter com ella e levasse a farda. Fui, acompanhado de um pagem, que d'ahi
á dias tornou á villa, porque a tia Marcolina, apenas me pilhou no
sitio, escreveu a minha mãe dizendo que não me soltava antes de um mez,
pelo menos. E abraçava-me! Chamava-me tambem o seu alferes. Achava-me
um rapagão bonito. Como era um tanto patusca, chegou a confessar que
tinha inveja da moça que houvesse de ser minha mulher. Jurava que em
toda a provincia não havia outro que me puzesse o pé adiante. E sempre
alferes; era alferes para cá alferes para lá, alferes a toda a hora.
Eu pedia-lhe que me chamasse Joãosinho, como d'antes; e ella abanava
a cabeça, bradando que não, que era o «senhor alferes». Um cunhado
d'ella, irmão do finado Peçanha, que alli morava, não me chamava de
outra maneira. Era o «senhor alferes», não por gracejo, mas a serio,
e á vista dos escravos, que naturalmente foram pelo mesmo caminho. Na
mesa tinha eu o melhor logar, e era o primeiro servido. Não imaginam.
Se lhes disser que o enthusiasmo da tia Marcolina chegou ao ponto de
mandar pôr no meu quarto um grande espelho, obra rica e magnifica, que
destoava do resto da casa, cuja mobilia era modesta e simples... Era
um espelho que lhe dera a madrinha, e que esta herdára da mãe, que
o comprára a uma das fidalgas vindas em 1808 com a corte de D. João
VI. Não sei o que havia n'isso de verdade; era a tradicção. O espelho
estava naturalmente muito velho; mas via-se-lhe ainda o ouro, comido
em parte pelo tempo, uns delfins esculpidos nos angulos superiores da
moldura, uns enfeites de madreperola e outros caprichos do artista.
Tudo velho, mas bom...

--Espelho, grande?

--Grande. E foi, como digo, uma enorme fineza, porque o espelho
estava na sala; era a melhor peça da casa. Mas não houve forças que
a demovessem do proposito; respondia que não fazia falta, que era só
por algumas semanas, e finalmente que o «senhor alferes» merecia muito
mais. O certo é que todas essas cousas, carinhos, attenções, obsequios,
fizeram em mim uma transformação, que o natural sentimento da mocidade
ajudou e completou. Imaginam, creio eu?

--Não.

--O alferes eliminou o homem. Durante alguns dias as duas naturezas
equilibraram-se; mas não tardou que a primitiva cedesse á outra;
ficou-me uma parte minima de humanidade. Aconteceu então que a alma
exterior, que era d'antes o sol, o ar, o campo, os olhos das moças,
mudou de natureza, e passou a ser a cortezia e os rapapés da casa,
tudo o que me fallava do posto, nada do que me fallava do homem. A
unica parte do cidadão que ficou commigo foi aquella que entendia
com o exercicio da patente; a outra dispersou-se no ar e no passado.
Custa-lhes acreditar, não?

--Custa-me até entender, respondeu um dos ouvintes.

--Vai entender. Os factos explicarão melhor os sentimentos; os factos
são tudo. A melhor definição do amor não vale um beijo de moça
namorada; e, se bem me lembro, um philosopho antigo demonstrou o
movimento andando. Vamos aos factos. Vamos ver como, ao tempo em que
a consciencia do homem se obliterava, a do alferes tornava-se viva e
intensa. As dôres humanas, as alegrias humanas se eram só isso, mal
obtinham de mim uma compaixão apathica ou um sorriso de favor. No
fim de tres semanas, era outro, totalmente outro. Era exclusivamente
alferes. Ora, um dia recebeu a tia Marcolina uma noticia grave; uma
de suas filhas, casada com um lavrador residente d'alli a cinco
leguas, estava mal e á morte. Adeus, sobrinho! adeus, alferes! Era
mãe extremosa, armou logo uma viagem, pediu ao cunhado que fosse
com ella, e a mim que tomasse conta do sitio. Creio que, se não
fosse a afflicção, disporia o contrario; deixaria o cunhado, e iria
commigo. Mas o certo é que fiquei só, com os poucos escravos da casa.
Confesso-lhes que desde logo senti uma grande oppressão, alguma cousa
semelhante ao effeito de quatro paredes de um carcere, subitamente
levantadas em torno de mim. Era a alma exterior que se reduzia; estava
agora limitada a alguns espiritos boçaes. O alferes continuava a
dominar em mim, embora a vida fosse menos intensa, e a consciencia mais
debil. Os escravos punham uma nota de humildade nas suas cortezias,
que de certa maneira compensava a affeição dos parentes e a intimidade
domestica interrompida. Notei mesmo, n'aquella noite, que elles
redobravam de respeito, de alegria, de protestos. Nhô alferes de minuto
a minuto. Nhô alferes é muito bonito; nhô alferes ha de ser coronel;
nhô alferes ha de casar com moça bonita, filha de general; um concerto
de louvores e prophecias, que me deixou extatico. Ah! perfidos! mal
podia eu suspeitar a intenção secreta dos malvados.

--Matal-o?

--Antes assim fosse.

--Cousa peior?

--Ouçam-me. Na manhã seguinte achei-me só. Os velhacos, seduzidos por
outros, ou de movimento proprio, tinham resolvido fugir durante a
noite; e assim fizeram. Achei-me só, sem mais ninguem, entre quatro
paredes, diante do terreiro deserto e da roça abandonada. Nenhum
folego humano. Corri a casa toda, a senzala, tudo, nada, ninguem, um
molequinho que fosse. Gallos e gallinhas tão sómente, um par de mulas,
que philosophavam a vida, sacudindo as moscas, e tres bois. Os mesmos
cães foram levados pelos escravos. Nenhum ente humano. Parece-lhes que
isto era melhor do que ter morrido? era peior. Não por medo; juro-lhes
que não tinha medo; era um pouco atrevidinho, tanto que não senti nada,
durante as primeiras horas. Fiquei triste por causa do damno causado á
tia Marcolina; fiquei tambem um pouco perplexo, não sabendo se devia ir
ter com ella, para lhe dar a triste noticia, ou ficar tomando conta da
casa. Adoptei o segundo alvitre, para não desamparar a casa, e porque,
se a minha prima enferma estava mal, eu ia sómente augmentar a dor da
mãe, sem remedio nenhum; finalmente, esperei que o irmão do tio Peçanha
voltasse n'aquelle dia ou no outro, visto que tinham sahido havia já
trinta e seis horas. Mas a manhã passou sem vestigio d'elle; e á tarde
comecei a sentir uma sensação como de pessoa que houvesse perdido
toda a acção nervosa, e não tivesse consciencia da acção muscular. O
irmão do tio Peçanha não voltou nesse dia, nem no outro, nem em toda
aquella semana. Minha solidão tomou proporções enormes. Nunca os dias
foram mais compridos, nunca o sol abrasou a terra com uma obstinação
mais cansativa. As horas batiam de seculo a seculo, no velho relogio
da sala, cuja pendula, _tic-tac, tic-tac_, feria-me a alma interior,
como um piparote continuo do eternidade. Quando, muitos annos depois,
li uma poesia americana, creio que de Longfellow, e topei com este
famoso estribilho: _Never, for ever!--For ever, never!_ confesso-lhes
que tive um calafrio: recordei-me d'aquelles dias medonhos. Era
justamente assim que fazia o relogio da tia Marcolina:--_Never, for
ever!--For ever, never!_ Não eram golpes de pendula, era um dialogo do
abysmo, um cochicho do nada. E então de noite! Não que a noite fosse
mais silenciosa. O silencio era o mesmo que de dia. Mas a noite era
a sombra, era a solidão ainda mais estreita ou mais larga. _Tic-tac,
tic-tac._ Ninguem nas salas, na varanda, nos corredores, no terreiro,
ninguem em parte nenhuma... Riem-se?

--Sim, parece que tinha um pouco de medo.

--Oh! fôra bom se eu podesse ter medo! Viveria. Mas o caracteristico
d'aquella situação é que eu nem sequer podia ter medo, isto é, o medo
vulgarmente entendido. Tinha uma sensação inexplicavel. Era como um
defuncto andando, um somnambulo, um boneco mecanico. Dormindo, era
outra cousa. O somno dava-me allivio, não pela razão commum de ser
irmão da morte, mas por outra. Acho que posso explicar assim esse
phenomeno:--o somno, eliminando a necessidade de uma alma exterior,
deixava actuar a alma interior. Nos sonhos, fardava-me, orgulhosamente,
no meio da familia e dos amigos, que me elogiavam o garbo, que me
chamavam alferes; vinha um amigo de nossa casa, e promettia-me o
posto de tenente, outro o de capitão ou major; e tudo isso fazia-me
viver. Mas quando accordava, dia claro, esvaia-se com o somno, a
consciencia do meu ser novo e unico,--porque a alma interior perdia
a acção exclusiva, e ficava dependente da outra, que teimava em não
tornar... Não tornava. Eu sahia fóra, a um lado e outro, a ver se
descobria algum signal de regresso. _Sœur Anne, sœur Anne, ne vois-tu
rien venir?_ Nada, cousa nenhuma; tal qual como na lenda franceza. Nada
mais do que a poeira da estrada e o capinzal dos morros. Voltava para
casa, nervoso, desesperado, estirava-me no canapé da sala. _Tic-tac,
tic-tac._ Levantava-me, passeava, tamborilava nos vidros das janellas,
assobiava. Em certa occasião lembrei-me de escrever alguma cousa, um
artigo politico, um romance, uma ode; não escolhi nada definitivamente;
sentei-me e tracei no papel algumas palavras e phrases soltas, para
intercalar no estylo. Mas o estylo, como a tia Marcolina, deixava-se
estar. _Sœur Anne, sœur Anne..._ Cousa nenhuma. Quando muito via
negrejar a tinta e alvejar o papel.

--Mas não comia?

--Comia mal, fructas, farinha, conservas, algumas raizes tostadas ao
fogo, mas supportaria tudo alegremente, se não fora a terrivel situação
moral em que me achava. Recitava versos, discursos, trechos latinos,
lyras de Gonzaga, oitavas de Camões, decimas, uma anthologia em trinta
volumes. Ás vezes fazia gymnastica; outras dava beliscões nas pernas;
mas o effeito era só uma sensação physica de dôr ou de cançaço, e
mais nada. Tudo silencio, um silencio vasto, enorme, infinito, apenas
sublinhado pelo eterno _tic-tac_ da pendula. _Tic-tac, tic-tac..._

--Na verdade, era de enlouquecer.

--Vão ouvir cousa peior. Convém dizer-lhes que, desde que ficara só,
não olhára uma só vez para o espelho. Não era abstenção deliberada, não
tinha motivo; era um impulso inconsciente, um receio de achar-me um e
dois, ao mesmo tempo, n'aquella casa solitaria; e se tal explicação é
verdadeira, nada prova melhor a contradicção humana, porque no fim de
oito dias, deu-me na veneta olhar para o espelho com o fim justamente
de achar-me dois. Olhei e recuei. O proprio vidro parecia conjurado
com o resto do universo; não me estampou a figura nitida e inteira,
mas vaga, esfumada, diffusa, sombra de sombra. A realidade das leis
physicas não permitte negar que o espelho reproduziu-me textualmente,
com os mesmos contornos e feições; assim devia ter sido. Mas tal não
foi a minha sensação. Então tive medo; attribui o phenomeno á excitação
nervosa em que andava; receiei ficar mais tempo, e enlouquecer.--Vou-me
embora, disse commigo. E levantei o braço com gesto de mau humor, e ao
mesmo tempo de decisão, olhando para o vidro; o gesto lá estava, mas
disperso, esgaçado, mutilado... Entrei a vestir-me, murmurando commigo,
tossindo sem tosse, sacudindo a roupa com estrepito, affligindo-me
a frio com os botões, para dizer alguma cousa. De quando em quando,
olhava furtivamente para o espelho; a imagem era a mesma diffusão de
linhas, a mesma decomposição de contornos... Continuei a vestir-me.
Subitamente por uma inspiração inexplicavel, por um impulso sem
calculo, lembrou-me... Se forem capazes de adivinhar qual foi a minha
idéa...

--Diga.

--Estava a olhar para o vidro, com uma persistencia de desesperado,
contemplando as proprias feições derramadas e inacabadas, uma nuvem
de linhas soltas, informes, quando tive o pensamento... Não, não são
capazes de adivinhar.

--Mas, diga, diga.

--Lembrou-me vestir a farda de alferes. Vesti-a, apromptei-me de todo;
e, como estava defronte do espelho, levantei os olhos, e... não lhes
digo nada; o vidro reproduziu então a figura integral; nenhuma linha de
menos, nenhum contorno diverso; era eu mesmo, o alferes, que achava,
emfim, a alma exterior. Essa alma ausente com a dona do sitio, dispersa
e fugida com os escravos, eil-a recolhida no espelho. Imaginai um
homem que, pouco a pouco emerge de um lethargo, abre os olhos sem ver,
depois começa a ver, distingue as pessoas dos objectos, mas não conhece
individualmente uns nem outros; emfim, sabe que este é Fulano, aquelle
é Sicrano; aqui está uma cadeira, alli um sofá. Tudo volta ao que era
antes do somno. Assim foi commigo. Olhava para o espelho, ia de um lado
para outro, recuava, gesticulava, sorria, e o vidro exprimia tudo. Não
era mais um automato, era um ente animado. D'ahi em diante, fui outro.
Cada dia, a uma certa hora, vestia-me de alferes, e sentava-me diante
do espelho, lendo, olhando, meditando; no fim de duas, tres horas,
despia-me outra vez. Com este regimen pude atravessar mais seis dias de
solidão, sem os sentir...

Quando os outros voltaram a si, o narrador tinha descido as escadas.


FIM DO ESPELHO



UMA VISITA DE ALCIBIADES[1]

CARTA DO DESEMBARGADOR X... AO CHEFE DE POLICIA DA CORTE

_Corte, 20 de setembro de 1875._

Desculpe V. Ex. o tremido da lettra e o desgrenhado do estylo;
entendel-os-ha d'aqui a pouco.

Hoje, á tardinha, acabado o jantar, em quanto esperava a hora do
Cassino, estirei-me no sofá e abri um tomo de Plutarcho. V. Ex., que
foi meu companheiro de estudos, ha de lembrar-se que eu, desde rapaz,
padeci esta devoção do grego; devoção ou mania, que era o nome que
V. Ex. lhe dava, e tão intensa que me ia fazendo reprovar em outras
disciplinas. Abri o tomo, e succedeu o que sempre se dá commigo
quando leio alguma cousa antiga: transporto-me ao tempo e ao meio
da acção ou da obra. Depois de jantar é excellente. Dentro de pouco
acha-se a gente n'uma via romana, ao pé de um portico grego ou na
loja de um grammatico. Desapparecem os tempos modernos, a insurreição
da Herzegovina, a guerra dos carlistas, a rua do Ouvidor, o circo
Chiarini. Quinze ou vinte minutos de vida antiga, e de graça. Uma
verdadeira digestão litteraria.

Foi o que se deu hoje. A pagina aberta acertou de ser a vida de
Alcibiades. Deixei-me ir ao sabor da loquella attica; d'ahi a nada
entrava nos jogos olympicos, admirava o mais guapo dos athenienses,
guiando magnificamente o carro, com a mesma firmeza e donaire com que
sabia reger as batalhas, os cidadãos e os proprios sentidos. Imagine V.
Ex. se vivi! Mas, o moleque entrou e accendeu o gaz; não foi preciso
mais para fazer voar toda a archeologia da minha imaginação. Athenas
volveu á historia, em quanto os olhos me cabiam das nuvens, isto é, nas
calças de brim branco, no paletó de alpaca e nos sapatos de cordovão. E
então reflecti commigo:

--Que impressão daria ao illustre atheniense o nosso vestuario moderno?

Sou espiritista desde alguns mezes. Convencido de que todos os systemas
são puras nihilidades, resolvi adoptar o mais recreativo d'elles. Tempo
virá em que este não seja só recreativo, mas tambem util á solução dos
problemas historicos; é mais summario evocar o espirito dos mortos,
do que gastar as forças criticas, e gastal-as em pura perda, porque
não ha raciocinio nem documento que nos explique melhor a intenção de
um acto do que o proprio autor do acto. E tal era o meu caso d'esta
noite. Conjecturar qual fosse a impressão de Alcibiades era despender
o tempo, sem outra vantagem, além do gosto de admirar a minha propria
habilidade. Determinei portanto, evocar o atheniense; pedi-lhe que
comparecesse em minha casa, logo, sem demora.

E aqui começa o extraordinario da aventura. Não se demorou Alcibiades
em acudir ao chamado; dous minutos depois estava alli, na minha sala,
perto da parede; mas não era a sombra impalpavel que eu cuidára ter
evocado pelos methodos da nossa escola; era o proprio Alcibiades, carne
e osso, vero homem, grego authentico, trajado á antiga, cheio d'quella
gentileza e desgarre com que usava arengar ás grandes assembléas de
Athenas, e tambem, um pouco, aos seus patáus. V. Ex., tão sabedor da
historia, não ignora que tambem houve patáus em Athenas; sim, Athenas
tambem os possuiu, e esse precedente é uma desculpa. Juro a V. Ex. que
não acreditei; por mais fiel que fosse o testemunho dos sentidos, não
podia acabar de crer que tivesse alli, em minha casa, não a sombra de
Alcibiades, mas o proprio Alcibiades redivivo. Nutri ainda a esperança
de que tudo aquillo não fosse mais do que o effeito de uma digestão mal
rematada, um simples effluvio do chylo, através da luneta de Plutarcho;
e então esfreguei os olhos, fitei-os, e...

--Que me queres? perguntou elle.

Ao ouvir isto, arrepiaram-se-me as carnes. O vulto fallava e fallava
grego, o mais puro attico. Era elle, não havia duvidar que era elle
mesmo, um morto de vinte seculos, restituido á vida, tão cabalmente
como se viesse de cortar agora mesmo a famosa cauda do cão. Era claro
que, sem o pensar, acabava eu de dar um grande passo na carreira do
espiritismo; mas, ai de mim! não o entendi logo, e deixei-me ficar
assombrado. Elle repetiu a pergunta, olhou em volta de si e sentou-se
n'uma poltrona. Como eu estivesse frio e tremulo (ainda o estou agora)
elle que o percebeu, fallou-me com muito carinho, e tratou de rir
e gracejar para o fim de devolver-me o socego e a confiança. Habil
como outr'ora! Que mais direi a V. Ex.? No fim de poucos minutos
conversavamos os dous, em grego antigo, elle repotreado e natural,
eu pedindo a todos as santos do céu a presença de um criado, de uma
visita, de uma patrulha, ou, se tanto fosse necessario,--de um incendio.

Escusado é dizer a V. Ex. que abri mão da idéa de o consultar ácerca
do vestuario moderno; pedira um espectro, não um homem «de verdade»,
como dizem as crianças. Limitei-me a responder ao que elle queria;
pediu-me noticias de Athenas, dei-lh'as; disse-lhe que ella era
emfim a cabeça de uma só Grecia, narrei-lhe a dominação musulmana, a
independencia, Botzaris, lord Byron. O grande homem tinha os olhos
pendurados da minha bocca; e, mostrando-me admirado de que os mortos
lhe não houvessem contado nada, explicou-me que á porta, do outro mundo
afrouxavam muito os interesses d'este. Não vira Botzaris nem lord
Byron,--em primeiro logar, porque é tanta e tantissima a multidão de
espiritos, que estes se fazem naturalmente desencontrados; em segundo
logar, porque elles lá congregam-se, não por nacionalidades ou outra
ordem, senão por categorias de indole, costume e profissão: assim é que
elle Alcibiades, anda no grupo dos politicos elegantes e namorados,
com o duque de Buckingham, o Garrett, o nosso Maciel Monteiro, etc. Em
seguida pediu-me noticias actuaes; relatei-lhe o que sabia, em resumo;
fallei-lhe do parlamento hellenico e do methodo alternativo com que
Bulgaris e Comondouros, estadistas seus patricios, imitam Disraeli e
Gladstone, revesando-se no poder, e, assim como estes, a golpes de
discurso. Elle, que foi um magnifico orador, interrompeu-me:

--Bravo, athenienses!

Se entro n'estas minucias é para o fim de nada omittir do que possa
dar a V. Ex. o conhecimento exacto do extraordinario caso que lhe
vou narrando. Já disse que Alcibiades escutava-me com avidez;
accrescentarei que era esperto e arguto; entendia as cousas sem largo
dispendio de palavras. Era tambem sarcastico; ao menos assim me pareceu
em um ou dois pontos da nossa conversação; mas no geral d'ella,
mostrava-se simples, attento, correcto, sensivel e digno. E gamenho,
note V. Ex., tão gamenho como outr'ora; olhava de soslaio para o
espelho, como fazem as nossas e outras damas d'este seculo, mirava os
borzeguins, compunha o manto, não saia de certas attitudes esculpturaes.

--Vá, continúa, dizia-me elle, quando eu parava de lhe dar noticias.

Mas eu não podia mais. Entrado no inextricavel, no maravilhoso, achava
tudo possivel, não atinava porque razão, assim, como elle vinha ter
commigo ao tempo, não iria eu ter com elle á eternidade. Esta idéa
gelou-me. Para um homem que acabou de digerir o jantar e aguarda a
hora do Cassino, a morte é o ultimo dos sarcasmos. Se pudesse fugir...
Animei-me: disse-lhe que ia a um baile.

--Um baile? Que cousa é um baile?

Expliquei-lh'o.

--Ah! ver dansar a pyrrhica!

--Não, emendei eu, a pyrrhica já lá vai. Cada seculo, meu caro
Alcibiades, muda de dansas como muda de ideias. Nos já não dansamos as
mesmas cousas do seculo passado; provavelmente o seculo XX não dansará
as d'este. A pyrrhica, foi-se, com os homens de Plutarcho e os numes de
Hesiodo.

--Com os numes?

Repeti-lhe que sim, que o paganismo acabára, que as academias do seculo
passado ainda lhe deram abrigo, mas sem-convicção, nem alma, que as
mesmas bebedeiras arcadicas,

               Evohé! padre Bassareu!
               Evohé! etc.

honesto passatempo de alguns desembargadores pacatos, essas mesmas
estavam curadas, radicalmente curadas. De longe em longe, accrescentei,
um ou outro poeta, um o outro prosador allude aos restos da theogonia
pagã, mas só o faz por gala ou brinco, ao passo que a sciencia reduziu
todo o Olympo a uma symbolica. Morto, tudo morto.

--Morto Zeus?

--Morto.

--Dyonisos, Aphrodita?...

--Tudo morto.

O homem de Plutarcho levantou-se, andou um pouco, contendo a
indignação, como se dissesse comsigo, imitando o outro:--Ah! se lá
estou com os meus athenienses!--Zeus, Dyonisos, Aphrodita... murmurava
de quando em quando. Lembrou-me então que elle fôra uma vez accusado
de desacato aos deuses e perguntei a mim mesmo d'onde vinha aquella
indignação posthuma, e naturalmente postiça. Esquecia-me,--um devoto
do grego!--esquecia-me que elle era tambem um refinado hypocrita, um
illustre dissimulado. E quasi não tive tempo de fazer esse reparo,
porque Alcibiades, detendo-se repentinamente declarou-me que iria ao
baile commigo.

--Ao baile? repeti attonito.

--Ao baile, vamos ao baile.

Fiquei atterrado, disse-lhe que não, que não era possivel, que não o
admittiriam, com aquelle trajo; pareceria doudo; salvo se elle queria
ir lá representar alguma comedia de Aristophanes, accrescentei rindo,
para disfarçar o medo. O que eu queria era deixal-o, entregar-lhe
a casa, e uma vez na rua, não iria ao Cassino, iria ter com V. Ex.
Mas o diabo do homem não se movia; escutava-me com os olhos no chão,
pensativo, deliberante. Calei-me; cheguei a cuidar que o pesadelo ia
acabar, que o vulto ia desfazer-se, e que eu ficava alli com as minhas
calças, os meus sapatos e o meu seculo.

--Quero ir ao baile, repetiu elle. Já agora não vou sem comparar as
dansas.

--Meu caro Alcibiades, não acho prudente um tal desejo. Eu teria
certamente a maior honra, um grande desvanecimento em fazer entrar
no Cassino, o mais gentil, o mais feiticeiro dos athenienses; mas os
outros homens de hoje, os rapazes, as moças, os velhos... é impossivel.

--Porque?

--Já disse; imaginarão que és um doudo ou um comediante, porque essa
roupa...

--Que tem? A roupa muda-se. Irei á maneira do seculo. Não tens alguma
roupa que me emprestes?

Ia a dizer que não; mas occorreu-me logo que o mais urgente era sair,
e que uma vez na rua, sobravam-me recursos para escapar-lhe, e então
disse-lhe que sim.

--Pois bem, tornou elle levantando-se, irei á maneira do seculo. Só
peço que te vistas primeiro, para eu aprender e imitar-te depois.

Levantei-me tambem, e pedi-lhe que me acompanhasse. Não se moveu logo;
estava assombrado. Vi que só então reparara nas minhas calças brancas;
olhava para ellas com os olhos arregalados, a bocca aberta; emfim,
perguntou por que motivo trazia aquelles canudos de panno. Respondi que
por maior commodidade; accrescentei que o nosso seculo, mais recatado
e util do que artista, determinára trajar de um modo compativel com o
seu decóro e gravidade. Demais nem todos seriam Alcibiades. Creio que o
lisongeei com isto; elle sorriu e deu de hombros.

--Emfim!

Seguimos para o meu quarto de vestir, e comecei a mudar de roupa, ás
pressas. Alcibiades sentou-se mollemente n'um divan, não sem elogial-o,
não sem elogiar o espelho, a palhinha, os quadros.--Eu vestia-me, como
digo, ás pressas, ancioso por sahir á rua, por metter-me no primeiro
tilbury que passasse...

--Canudos pretos! exclamou elle.

Eram as calças pretas que eu acabava de vestir. Exclamou e riu, um
risinho em que o espanto vinha mesclado de escarneo, o que offendeu
grandemente o meu melindre de homem moderno. Porque, note V. Ex., ainda
que o nosso tempo nos pareça digno de critica, e até de execração,
não gostamos de que um antigo venha mofar d'elle ás nossas barbas.
Não respondi ao atheniense; franzi um pouco o sobr'olho e continuei a
abotoar os suspensorios. Elle perguntou-me então por que motivo usava
uma cor tão feia...

--Feia, mas séria, disse-lhe. Olha, entretanto, a graça do córte, vê
como cai sobre o sapato, que é de verniz, embora preto, e trabalhado
com muita perfeição.

E vendo que elle abanava a cabeça:

--Meu caro, disse-lhe, tu pódes certamente exigir que o Jupiter
Olympico seja o emblema eterno da majestade: é o dominio da arte
ideal, desinteressada, superior aos tempos que passam e aos homens que
os acompanham. Mas a arte de vestir é outra cousa. Isto que parece
absurdo ou desgracioso é perfeitamente racional e bello,--bello á nossa
maneira, que não andamos a ouvir na rua os rhapsodas recitando os seus
versos, nem os oradores os seus discursos, nem os philosophos as suas
philophias. Tu mesmo, se te acostumares a ver-nos, acabarás por gostar
de nós, porque...

--Desgraçado! bradou elle atirando-se a mim.

Antes de entender a causa do grito e do gesto, fiquei sem pinga de
sangue. A causa era uma illusão. Como eu passasse a gravata á volta do
pescoço e tratasse de dar o laço. Alcibiades suppoz que ia enforcar-me,
segundo confessou depois. E, na verdade, estava pallido, tremulo, em
suores frios. Agora quem se riu fui eu. Ri-me, e expliquei-lhe o uso
da gravata, e notei que era branca, não preta, posto usassemos tambem
gravatas pretas. Só depois de tudo isso explicado é que elle consentiu
em restituir-m'a. Atei-a emfim, depois vesti o collete.

--Por Aphrodita! exclamou elle. És a cousa mais singular que jamais
vi na vida e na morte. Estás todo cor da noite--uma noite com tres
estrellas apenas--continuou apontando para os botões do peito. O mundo
deve andar immesamente melancholico, se escolheu para uso uma cor tão
morta e tão triste. Nós eramos mais alegres; viviamos...

Não pode concluir a phrase; eu acabava de enfiar a casaca, e a
consternação do atheniense foi indescriptivel. Cahiram-lhe os braços,
ficou suffocado, não podia articular nada, tinha os olhos cravados em
mim, grandes, abertos. Creia V. Ex. que fiquei com medo, e tratei de
apressar ainda mais a sabida.

--Estás completo? perguntou-me elle.

--Não: falta o chapéu.

--Oh! venha alguma cousa que possa corrigir o resto! tornou Alcibiades
com voz supplicante. Venha, venha. Assim pois, toda a elegancia que
vos legamos está reduzida a um par de canudos fechados e outra par de
canudos abertos (e dizia isto levantando-me as abas da casaca), e tudo
d'essa cor enfadonha e negativa? Não não posso crel-o! Venha alguma
cousa que corrija isso. O que é que falta, dizes tu?

--O chapéo.

--Põe o que te falta, meu caro, põe o que te falta.

Obedeci; fui d'alli ao cabide, despendurei o chapéu, e pul-o na
cabeça. Alcibiades olhou para mim, cambaleou e caiu. Corri ao illustre
atheniense, para levantal-o, mas (com dor o digo) era tarde; estava
morto, morto pela segunda vez. Rogo a V. Ex. se digne de expedir suas
respeitaveis ordens para que o cadaver seja transportado ao necroterio,
e se proceda ao corpo de delicto, relevando-me de não ir pessoalmente á
casa de V. Ex. agora mesmo (dez da noite) em attenção ao profundo abalo
por que acabo de passar, o que aliás farei amanhã de manhã, antes das
oito.

[1]Este escripto teve um primeiro texto, que reformei totalmente mais
tarde, não aproveitando mais do que a ideia. O primeiro foi dado com um
pseudonymo e passou despercebido.


FIM DE UMA VISITA DE ALCIBIADES



VERBA TESTAMENTARIA


«... Item, é minha ultima vontade que o caixão em que o meu corpo
houver de ser enterrado, seja fabricado em casa de Joaquim Soares, á
rua da Alfandega. Desejo que elle tenha conhecimento d'esta disposição,
que tambem será publica. Joaquim Soares não me conhece; mas é digno da
distincção, por ser dos nossos melhores artistas, e um dos homens mais
honrados da nossa terra...»

Cumpriu-se á risca esta verba testamentaria. Joaquim Soares fez o
caixão em que foi mettido o corpo do pobre Nicoláu B. de C.; fabricou-o
elle mesmo, _con amore_; e, no fim, por um movimento cordial,
pediu licença para não receber nenhuma renumeração. Estava pago;
o favor do defunto era em si mesmo um premio insigne. Só desejava
uma cousa: a copia authentica da verba. Deram lh'a; elle mandou-a
encaixilhar e pendurar de um prego, na loja. Os outros fabricantes
de caixões, passado o assombro, chamaram que o testamento era um
desproposito. Felizmente,--e esta é uma das vantatagens do estado
social,--felizmente, todas as demais classes adiaram que aquella
mão, saindo do abysmo para abençoar a obra de um operario modesto,
praticára** uma acção rara e magnanima. Era em 1855; a população estava
mais conchegada; não se fallou de outra cousa. O nome do Nicoláu reboou
por muitos dias na imprensada corte, d'onde passou á das provincias.
Mas a vida universal é tão variada, os successos accumulam-se em tanta
multidão, e com tal presteza, e, finalmente, a memoria dos homens é tão
fragil, que um dia chegou em que a acção de Nicoláu mergulhou de todo
no olvido.

Não venha restaural-a. Esquecer é uma necessidade. A vida é uma
lousa, em que o destino, para escrever um novo caso, precisa apagar o
caso escripto. Obra de lapis e esponja. Não, não venho restaural-a.
Ha milhares de acções tão bonitas, ou ainda mais bonitas do quo
a do Nicoláu, e comidas do esquecimento. Venho dizer que a verba
testamentaria não é um effeito sem causa; venho mostrar uma das maiores
curiosidades morbidas d'este seculo.

Sim, leitor amado, vamos entrar em plena pathologia. Esse menino que
ahi vês, nos fins do seculo passado (em 1855, quando morreu, tinha o
Nicoláu sessenta e oito annos), esse menino não é um producto são, não
é um organismo perfeito.--Ao contrario, desde os mais tenros annos,
manifestou por actos reiterados que ha n'elle algum vicio interior,
alguma falha organica. Não se póde explicar de outro modo a obstinação
com que elle corre a destruir os brinquedos dos outros meninos, não
digo os que são eguaes aos d'elle, ou ainda inferiores, mas os que
são melhores ou mais ricos. Menos ainda se comprehende que, nos casos
em que o brinquedo é unico, ou somente raro, o joven Nicoláu console
a victima com dons ou tres pontapés; nunca menos de um. Tudo isso é
obscuro. Culpa do pae não póde ser. O pae era um honrado negociante
ou commissario (a maior parte das pessoas a que aqui se dá o nome do
commerciantes, dizia o marquez de Lavradio, nada são que uns simples
commissarios), que viveu com certo luzimento, no ultimo quartel do
seculo, homem rispido, austero, que admoestava o filho, e, sendo
necessario, castigava-o. Mas nem admoestações, nem castigos, valiam
nada. O impulso interior do Nicoláu era mais efficaz do que todos os
bastões paternos; e, uma ou duas vezes por semana, o pequeno reincidia
no mesmo delicto. Os desgostos da familia eram profundos. Deu-se mesmo
um caso, que, por suas gravissimas consequencias, merece ser contado.

O vice-rei, que era então o conde de Rezende, andava preoccupado com a
necessidade de construir um caes na praia de D. Manuel. Isto, que seria
hoje um simples episodio municipal, era n'aquelle tempo, attentas as
proporções escassas da cidade, uma empreza importante. Mas o vice-rei
não tinha recursos; o cofre publico mal podia acudir ás urgencias
ordinarias. Homem de estado, e provavelmente philosopho, engendrou
um expediente não menos suave que proficuo: distribuir, a troco de
donativos pecuniarios, postos de capitão, tenente e alferes. Divulgada
a resolução, entendeu o pae do Nicoláu que era occasião de figurar,
sem perigo, na galeria militar do seculo, ao mesmo tempo que desmentia
uma doutrina brahmanica. Com effeito, está nas leis de Manú, que dos
braços de Brahma nasceram os guerreiros, e do ventre os agricultores
e commerciantes; o pae do Nicoláu, adquirindo o despacho de capitão,
corrigia esse ponto da anatomia gentilica. Outro commerciante, que com
elle competia em tudo, embora familiares e amigos, apenas teve noticia
do despacho, foi tambem levar a sua pedra ao caes. Desgraçadamenteu o
despeito de ter ficado atraz alguns dias, suggeriu-llie um arbitrio
de máu gosto e, no nosso caso, funesto; foi assim que elle pediu ao
vice-rei outro posto de official do caes (tal era o nome dado aos
agraciados por aquelle motivo) para um filho de sete annos. O vice-rei
hesitou; mas o pretendente, além de duplicar o donativo, metteu
grandes empenhos, e o menino saiu nomeado alferes. Tudo correu em
segredo; o pae de Nicoláu só teve noticia do caso no domingo proximo,
na egreja do Carmo, ao ver os dous, pae e filho, vindo o menino com
uma fardinha, que, por galanteria, lhe metteram no corpo. Nicoláu,
que tambem alli estava, fez-se livido; depois, n'um impeto, atirou-se
sobre o joven alferes e rasgou-lhe a farda, antes que os paes pudessem
acudir. Um escandalo. O reboliço do povo, a indignação dos devotos, as
queixas do aggredido, interromperam por alguns instantes as ceremonias
ecclesiasticas. Os paes trocaram algumas palavras acerbas, fóra, no
adro, e ficaram brigados para todo o sempre.

--Este rapaz ha de ser a nossa desgraça! bradava o pae de Nicoláu, em
casa, depois do episodio.

Nicoláu apanhou então muita pancada, curtiu muita dor, chorou, soluçou;
mas de emenda cousa nenhuma. Os brinquedos dos outros meninos não
ficaram menos expostos. O mesmo passou a acontecer ás roupas. Os
meninos mais ricos do bairro não sabiam fora senão com as mais modestas
vestimentas caseiras, unico modo de escapar ás unhas de Nicoláu. Com
o andar do tempo, estendeu elle a aversão ás proprias caras, quando
eram bonitas, ou tidas como taes. A rua em que elle residia, contava
um sem numero de caras quebradas, arranhadas, conspurcadas. As cousas
chegaram a tal ponto, que o pae resolveu trancal-o em casa durante
uns tres ou quatro mezes. Foi um palliativo, e, como tal, excellente.
Emquanto durou a reclusão, Nicoláu mostrou-se nada menos que angelico;
fóra d'aquelle séstro morbido, era meigo, docil, obediente, amigo da
familia, pontual nas rezas. No fim dos quatro mezes, o pae soltou-o;
era tempo de o metter com um professor de leitura e grammatica.

--Deixe-o commigo, disse o professor; deixe-o commigo, e com esta
(apontava para a palmatoria)... Com esta, é duvidoso que elle tenha
vontade de maltratar os companheiros.

Frivolo! tres vezes frivolo professor! Sim, não ha duvida, que elle
conseguiu poupar os meninos bonitos e as roupas vistosas, castigando
as primeiras investidas do pobre Nicoláu; mas em que é que este sarou
da molestia? Ao contrario, obrigado a conter-se, a engolir o impulso,
padecia dobrado, fazia-se mais livido, com reflexos de verde bronze; em
certos casos, era compellido a voltar os olhos ou fechal-os, para não
arrebentar, dizia elle. Por outro lado, se deixou de perseguir os mais
graciosos ou melhor adornados, não perdoou aos que se mostravam mais
adiantados no estudo; espancava-os, tirava-lhes os livros, e lançava-os
fóra, nas praias ou no mangue. Rixas, sangue, odios, taes eram os
fructos da vida, para elle, além das dores crueis que padecia, e que a
familia teimava em não entender. Se accrescentarmos que elle não pôde
estudar nada seguidamente, mas a troncos, e mal, como os vagabundos
comem, nada fixo, nada methodico, teremos visto algumas das dolorosas
consequencias do facto morbido, occulto e desconhecido. O pae, que
sonhava para o filho a Universidade, vendo-se obrigado a estrangular
mais essa illusão, esteve prestes a amaldiçoal-o; foi a mãe que o
salvou.

Saiu um seculo, entrou outro, sem desapparecer a lesão do Nicoláu.
Morreu-lhe o pae em 1807 e a mãe em 1809; a irmã casou com um medico
hollandez, treze mezes depois. Nicoláu passou a viver só. Tinha vinte e
tres annos; era um dos petimetres da cidade, mas um singular petimetre,
que não podia encarar nenhum outro, ou fosse mais gentil de feições, ou
portador de algum collete especial, sem padecer uma dor violenta, tão
violenta, que o obrigava ás vezes a trincar o beiço até deitar sangue.
Tinha occasiões de cambalear; outras de escorrer-lhe pelo canto da boca
um fio quasi imperceptivel de espuma. E o resto não era menos cruel.
Nicoláu ficava então rispido; em casa achava tudo máu, tudo incommodo,
tudo nauseabundo; feria a cabeça aos escravos com os pratos, que iam
partir-se tambem, e perseguia os cães, a pontapés; não socegava dez
minutos, não comia, ou comia mal. Emfim dormia; e ainda bem que dormia.
O somno reparava tudo. Acordava lhano e meigo, alma de patriarcha,
beijando os cães entre as orelhas, deixando-se lamber por elles,
dando-lhes do melhor que tinha, chamando aos escravos as cousas mais
familiares e ternas. E tudo, cães e escravos, esqueciam as pancadas da
vespera, e acudiam ás vozes d'elle obedientes, namorados, como se este
fosse o verdadeiro senhor, e não o outro.

Um dia, estando elle em casa da irmã, perguntou-lhe esta por que motivo
não adoptava uma carreira qualquer, alguma cousa em que se oecupasse,
e...

--Tens razão, vou ver, disse elle.

Interveiu o cunhado e opinou por um emprego na diplomacia. O cunhado
principiava a desconfiar de alguma doença e suppunha que a mudança
de clima bastava a restabelecel-o. Nicoláu arranjou uma carta de
apresentação, e foi ter com o ministro de estrangeiros. Achou-o
rodeado de alguns officiaes da secretaria, prestes a ir ao paço, levar
a noticia da segunda quéda de Napoleão, noticia que chegára alguns
minutos antes. A figura do ministro, as circumstancias do momento,
as reverencias dos officiaes, tudo isso deu um tal rebate ao coração
do Nicoláu, que elle não pôde encarar o ministro. Teimou, seis ou
oito vezes, em levantar os olhos, e da unica em que o conseguiu,
fizeram-se-lhe tão vesgos, que não via ninguem, ou só uma sombra, um
vulto, que lhe doia nas pupilas, ao mesmo tempo que a face ia ficando
verde. Nicoláu recuou, estendeu a mão tremula ao reposteiro, e fugiu.

--Não quero ser nada! disse elle á irmã, chegando á casa; fico com
vocês e os meus amigos.

Os amigos eram os rapazes mais antipathicos da cidade, vulgares e
infimos. Nicoláu escolhera-os de proposito. Viver segregado dos
principaes era para elle um grande sacrificio; mas, como teria de
padecer muito mais vivendo com elles, tragava a situação. Isto prova
que elle tinha um certo conhecimento empirico do mal e do palliativo.
A verdade é que, com esses companheiros, desappareciam todas as
perturbações physiologicas do Nicoláu. Elle fitava-os sem lividez,
sem olhos vesgos, sem cambalear, sem nada. Além d'isso, não só elles
lhe poupavam a natural irritabilidade, como porfiavam em tornar-lhe a
vida, senão deliciosa, tranquilla; e para isso, diziam-lhe as maiores
finezas do mundo, em attitudes captivas, ou com uma certa familiaridade
inferior. Nicoláu amava em geral as naturezas subalternas, como os
doentes amam a droga que lhes restituo a saúde; acariciva-as paternal
mente, dava-lhes o louvor abundante e cordial, emprestava-lhes
dinheiro, distribuia-lhes mimos, abria-lhes a alma...

Veiu o grito do Ypiranga; Nicoláu metteu-se na politica. Em 1823
vamos achal-o na Constituinte. Não ha que dizer ao modo por que elle
cumpriu os deveres do cargo. Integro, desinteressado, patriota,
não exercia de graça essas virtudes publicas, mas á custa de muita
tempestade moral. Póde-se dizer, methaphoricamente, que a frequencia da
camara custava-lhe sangue precioso. Não era só porque os debates lhe
pareciam insupportaveis, mas tambem porque lhe era difficil encarar
certos homens, especialmente em certos dias. Montezuma, por exemplo,
parecia-lhe balofo, Vergueiro, massudo, os Andradas, execraveis. Cada
discurso, não só dos principaes oradores, mas dos secundarios, era
para o Nicoláu verdadeiro supplicio. E, não obstante, firme, pontual.
Nunca a votação o achou ausente; nunca o nome delle soou sem echo pela
augusta sala. Qualquer que fosse o seu desespero, sabia conter-se e
pôr a idéa da patria acima do allivio proprio. Talvez applaudisse _in
petto_ o decreto da dissolução. Não affirmo; mas ha bons fundamentos
para crer que o Nicoláu, apezar das mostras exteriores, gostou de ver
dissolvida a assembléa. E se essa conjectura é verdadeira, não menos o
será esta outra;--que a deportação de alguns dos chefes constituintes,
declarados inimigos publicos, veiu aguar-lhe aquelle prazer. Nicoláu,
que padecera com os discursos delles, não menos padeceu com o exilio,
posto lhes désse um certo relevo. Se elle também fosse exilado!

--Você podia casar, mano, disse-lhe a irmã.

--Não tenho noiva.

--Arranjo-lhe uma. Valeu?

Era um plano do marido. Na opinião d'este, a molestia do Nicoláu estava
descoberta; era um verme do baço, que se nutria da dor do paciente,
isto é, de uma secreção especial, produzida pela vista de alguns
factos, situações ou pessoas. A questão era matar o verme; mas, não
conhecendo nenhuma substancia chimica propria a destruil-o, restava
o recurso de obstar á secreção, cuja ausencia daria egual resultado.
Portanto, urgia casar o Nicoláu, com alguma moça bonita e prendada,
separal-o do povoado, mettel-o em alguma fazenda, para onde levaria a
melhor baixella, os melhores trastes, os mais reles amigos, etc.

--Todas as manhãs, continuou elle, receberá o Nicoláu um jornal que vou
mandar imprimir com o unico fim de lhe dizer as cousas mais agradaveis
do mundo, e dizel-as nominalmente, recordando os seus modestos,
mas proficuos trabalhos da Constituinte, e attribuindo-lhe, muitas
aventuras namoradas, agudezas de espirito, rasgos de coragem. Já fallei
ao almirante hollandez para consentir que, de quando em quando, vá
ter com o Nicoláu algum dos nossos officiaes dizer-lhe que não podia
voltar para a Haya sem a honra de contemplar um cidadão tão eminente
e sympathico, em quem se reunem qualidades raras, e, de ordinario,
dispersas. Você, se puder alcançar de alguma modista, a Gudin, por
exemplo, que ponha o nome de Nicoláu em um chapeu ou mantelete, ajudará
nmito a cura de seu mano. Cartas amorosas anonymas, enviadas pelo
correio, são um recurso efficaz... Mas comecemos pelo principio, que é
casal-o.

Nunca um plano foi mais conscienciosamente executado. A noiva
escolhida era a mais esbelta, ou uma das mais esbeltas da capital.
Casou-os o proprio bispo. Recolhido á fazenda, foram com elle sómente
alguns de seus mais triviaes amigos; fez-se o jornal, mandaram-se
as cartas, peitaram-se as vistas. Durante tres mezes tudo caminhou
ás mil maravilhas. Mas a natureza, apostada era lograr o homem,
mostrou ainda desta vez que ella possue segredos inopinaveis. Um dos
meios de agradar ao Nicoláu era elogiar a belleza, a elegancia e as
virtudes da mulher; mas a molestia caminhara, e o que parecia remedio
excellente foi simples aggravação do mal. Nicoláu, ao fim de certo
tempo, achava ociosos e excessivos tantos elogios á mulher, e bastava
isto a impaciental-o, e a impaciencia a produzir-lhe a fatal secreção.
Parece masmo que chegou ao ponto de não poder encaral-a muito tempo, e
a encaral-a mal; vieram algumas rixas, que seriam o principio de uma
separação, se ella não morresse d'ahi a pouco. A dor do Nicoláu foi
profunda e verdadeira; mas a cura interrompeu-se logo, porque elle
desceu ao Rio de Janeiro, onde o vamos achar, tempos depois, entre os
revolucionarios de 1831.

Comquanto pareça temerario dizer as causas que levaram o Nicoláu para
o campo da Acclamação, na noite de 6 para 7 de abril, penso que não
estará longe da verdade quem suppuzer que--foi o raciocinio de um
atheniense celebre e anonymo. Tanto os que diziam bem, como os que
diziam mal do imperador, tinham enchido as medidas ao Nicoláu. Esse
homem, que inspirava enthusiasmos e odios, cujo nome era repetido onde
quer que o Nicoláu estivesse, na rua, no theatro, nas casas alheias,
tornou-se uma verdadeira perseguição morbida, d'ahi o fervor com
elle metteu a mão no movimento de 1831. A abdicação foi um allivio.
Verdade é que a Regencia o achou dentro de pouco tempo ontre os seus
adversarios; e ha quem affirme que elle se filiou ao partido caramurú
ou restaurador, posto não ficasse prova do acto. O que é certo é que a
vida publica do Nicoláu cessou com a Maioridade.

A doença apoderara-se definitivamente do organismo. Nicoláu ia, a
pouco e pouco, recuando na solidão. Não podia fazer certas visitas,
frequentar certas casas. O theatro mal chegava a distrahil-o. Era
tão melindroso o estado dos seus orgãos auditicos, que o ruido dos
applausos causava-lhe dores atrozes. O enthusiasmo da população
fluminense para com a famosa Candiani e a Meréa, mas a Candiani
principalmente, cujo carro puxaram alguns braços humanos, obsequio
tanto mais insigne quanto que o não fariam ao proprio Platão, esse
enthusiasmo foi uma das maiores mortificações do Nicoláu. Elle chegou
ao ponto de não ir mais ao theatro, de achar a Candiani insupportavel,
e preferir a _Norma_ dos realejos á da prima-donna. Não era por
exageração de patriota que elle gostava de ouvir o João Caetano, nos
primeiros tempos; mas afinal deixou-o tambem, e quasi que inteiramente
os theatros.

--Está perdido! pensou o cunhado. Se pudessemos dar-lhe um baço novo...

Como pensar em semelhante absurdo? Estava naturalmente perdido. Já
não bastavam os recreios domesticos. As tarefas litterarias a que se
deu, versos de familia, glosas a premio e odes politicas, não duraram
muito tempo, e póde ser até que lhe dobrassem o mal. De facto, um dia,
pareceu-lhe que essa occupação era a cousa mais ridicula do mundo,
e os applausos ao Gonçalves Dias, por exemplo, deram-lhe idéa de um
Povo trivial e de máu gosto. Esse sentimento litterario, fructo de
uma lesão organica, reagiu sobre a mesma lesão, ao ponto de produzir
graves crises, que o tiveram algum tempo na cama. O cunhado aproveitou
o momento para-desterrar-lhe da casa todos os livros de certo porte.

Explica-se menos o desalinho com que d'ahi a mezes começou a vestir-se.
Educado com habitos de elegancia, era antigo freguez de um dos
principaes alfaiates da côrte, o Plum, não passando um só dia em que
não fosse pentear-se ao Desmarais e Gérard, _coiffeurs de la cour_,
á rua do Ouvidor. Parece que achou infatuada esta denominação de
cabelleireiros do paço, e castigou-os indo pentear-se a um barbeiro
infimo. Quanto ao motivo que o levou a trocar de traje, repito que é
inteiramente obscuro, e a não haver suggestão da edade, é inexplicavel.
A despedida do cosinheiro é outro enigma. Nicoláu, por insinuação do
cunhado, que o queria distrahir, dava dois jantares por semana; e os
convivas eram unanimes em achar que o cozinheiro d'elle primava sobre
todos os do capital. Realmente os pratos eram bons, alguns optimos, mas
o elogio era um tanto emphatico, excessivo, para o fim justamente de
ser agradavel ao Nicoláu, e assim aconteceu algum tempo. Como entender,
porém, que um domingo, acabado o jantar, que fora magnifico, despedisse
elle um varão tão insigne, causa indirecta de alguns dos seus mais
deleitosos momentos na terra? Mysterio impenetravel.

--Era um ladrão! foi a resposta que elle deu ao cunhado.

Nem os esforços d'este nem os da irmã e dos amigos, nem os bens,
nada melhorou o nosso triste Nicoláu. A secreção do braço tornou-se
perenne, e o verme reproduziu-se aos milhões, theoria que não sei
se é verdadeira, mas emfim era a do cunhado. Os ultimos annos foram
crudelissimos. Quasi se póde jurar que elle viveu então continuamente
verde, irritado, olhos vesgos, padecendo comsigo ainda muito mais do
que fazia padecer aos outros. A menor ou maior cousa triturava-lhe os
nervos: um bom discurso, um artista habil, uma sege, uma gravata, um
soneto, um dito, um sonho interessante, tudo dava de si uma crise.

Quiz elle deixar-se morrer? Assim se poderia suppor, ao ver a
impassibilidade com que rejeitou os remedios dos principaes medicos
da côrte; foi necessario recorrer á simulação, e dal-os, emfim, como
receitados por um ignorantão do tempo. Mas era tarde. A morte levou-o,
ao cabo de duas semanas.

--Joaquim Soares? bradou attonito o cunhado, ao saber da verba
testamentaria do defunto, ordenando que o caixão fosse fabricado por
aquelle industrial. Mas os caixões d'esse sujeito não prestam para
nada, e...

--Paciencia! interrompeu a mulher; a vontade do mano ha de comprir-se.


FIM DA VERBA TESTAMENTARIA



    INDICE


    ADVERTENCIA
    O ALIENISTA
    THEORIA DO MEDALHÃO
    A CHINELLA TURCA
    NA ARCA
    D. BENEDICTA
    O SEGREDO DO BONZO
    O ANNEL DE POLYCRATES
    O EMPRESTIMO
    A SERENISSIMA REPUBLICA
    O ESPELHO
    UMA VISITA DE ALCIBIADES
    VERBA TESTAMENTARIA





*** End of this LibraryBlog Digital Book "Papeis Avulsos" ***

Copyright 2023 LibraryBlog. All rights reserved.



Home