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Title: Echos de Pariz
Author: Queirós, Eça de
Language: Portuguese
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generously made available by Hathi Trust.)



EÇA DE QUEIROZ

ECHOS DE PARIZ

QUARTA EDIÇÃO

PORTO

Livraria Chardron, de Lélo & Irmão, Limda, Editores

Rua das Carmelitas, 144

AILLAUD E BERTRAND-LISBOA-PARIS

1920



[Illustration 01: Eça de Queiroz]



INDICE

I. PARIZ E LONDRES--O ANNIVERSARIO DA COMMUNA--FLAUBERT.

II. OS DUELLOS--AMNISTIA--GAMBETTA-ROCHEFORT--OS JESUITAS.

II. O IMPERADOR GUILHERME.

IV. O GRAND-PRIX--A ESTATUOMANIA--OS COCHEIROS--VICTOR HUGO--O CAMPO
EM PARIZ.

V. O 14 DE JULHO--FESTAS OFFICIAES--O SIÃO.

VI. A FRANÇA E O SIÃO.

VII. A QUESTÃO BULOZ--A «REVISTA DOS DOUS MUNDOS»--PARIZ NO VERÃO.

VIII. AS ELEIÇÕES--A ITALIA E A FRANÇA.

IX. ALLIANÇA FRANCO-RUSSA.

X. AS FESTAS RUSSAS--A «TOILETTE» D'UM PRESIDENTE DE REPUBLICA--NOTICIAS
DO BRASIL.

XI. A HESPANHA--O HEROISMO HESPANHOL--A QUESTÃO DAS CAROLINAS--OS
ACONTECIMENTOS DE MARROCOS.

XII. O SNR. BARTHOU--A «ANTIGONE» DE SOPHOCLES--«LES ROIS» DE
JULES LEMAITRE.

XIII. OS ANARCHISTAS VAILLANT.

XIV. OUTRA BOMBA ANARCHISTA--O SNR. BRUNETIÈRE E A IMPRENSA.

XV. AS «INTERVIEWS»--O REI HUMBERTO E O «FIGARO»--A MONARCHIA ITALIANA--O
QUE PÓDE DIZER UM SOBERANO A UM JORNALISTA--A SINCERIDADE E O OPTIMISMO
OFFICIAL.

XVI. O «SALON».

XVII. CARNOT.

XVIII. A MORTE E O FUNERAL DE CARNOT.



I


PARIZ E LONDRES--O ANNIVERSARIO DA COMMUNA--FLAUBERT.


Eu não direi como Lord Beaconsfield que «no mundo só ha de
verdadeiramente interessante Pariz e Londres, e todo o resto é paizagem».
É realmente difficil considerar Roma como um ninho balouçando-se no ramo
de um ulmeiro, ou vêr apenas no movimento social da Allemanha um fresco
regato que vae cantando por entre as relvas altas.

Não se póde negar, porém, que a multidão contemporanea tende para esta
opinião do romanesco auctor de _Tancredo_ e da _Guerra do Afganistan_:
nada vê no Universo mais digno de ser estudado e gozado do que a
sociedade, essa cousa scintillante e vaga que póde comprehender desde as
creações da Arte até aos _menus_ dos restaurantes, desde o espirito das
gazetas até ao luxo das librés--e, muito racionalmente, corre a observar a
sociedade, a penetrar-se d'ella, onde ella é mais original, mais complexa,
mais rica, mais pittoresca, mais episodica,--em Pariz e em Londres: ao
resto da terra pede apenas scenarios de natureza, reliquias d'arte, trajos
e architecturas...

...Em Roma contempla os ornamentos do passado--o Colyseu e o Papa; em
Madrid interessam-n'o só os Velasquez e os touros; ninguem viaja na Suissa
para estudar a constituição federal ou a sociedade de Genebra, mas para
embasbacar deante dos Alpes. E assim para a turba humana, mais
impressionavel que critica, o mundo apparece como uma decoração armada em
torno de Pariz e Londres, uma curiosidade scenographica que se olha um
momento, fixando-se logo toda a attenção na tragi-comedia social que
palpita ao centro.

Isto é uma superstição. Mas se, realmente, o mundo fôsse apenas uma
paizagem accessoria--a devoção burgueza por Pariz e Londres, residencias
privilegiadas da humanidade creadora, seria justificavel: porque, na
verdade, o interesse do Universo está todo na vida e na sua lucta, na sua
paixão e no seu ceremonial, no seu ideal e no seu real. O sol, nascendo
por traz das Pyramides, sobre o fulvo deserto da Lybia, fórma um
prodigioso scenario; o Valle do Chaos, nos Pyreneos, é d'uma grandeza
exuberante;—-mas todos estes espectaculos hão-de ser sempre infinitamente
menos interessantes que uma simples comedia de ciumes, passada n'um quinto
andar. Que ha com effeito de commum entre mim e o Monte Branco? Emquanto
que as alegrias amorosas do meu visinho ou os prantos do seu luto são como
a consciencia visivel das minhas proprias sensações.

O grande Dickens, deante dos Alpes ou dos palacios de Veneza, punha-se
a pensar com saudade nas tristes ruas de Londres, n'um rumor de fim de
dia, e no prazer de surprehender as expressões de anciedade, triumpho ou
dôr, nas faces dos que passam, alumiados pelo gaz vivo das lojas. É que o
melhor espectaculo para o homem--será sempre o proprio homem.

Se sobre a terra só houvesse fachadas de cathedraes ou vulcões
flammejantes, a terra parecernos-ia tão insípida como a lua, ou (ainda
que isto seja talvez exagerado) como a propria Lisboa. Por mais cantantes
que sejam as aguas correndo, por mais fresco e umbroso que se alargue o
valle--a paizagem é intoleravel, se lhe falta a nota humana, fumo delgado
de chaminé ou parede rebrilhando ao sol, que revele a presença d'um peito,
d'um coração vivo.

Mas a verdade é que, fóra de Pariz e Londres, ha tambem humanidade. S.
Petersburgo não fórma só sobre a neve outra ondulação de neve; Berlim não
é uma floresta com uma população de seiscentos mil castanheiros; em Lisboa
mesmo se encontra, de vez em quando, um homem. Que importa! O mundo
persiste, em considerar essa humanidade de Berlim, de Lisboa ou S.
Petersburgo como um méro accessorio da decoração, como aquelle arabesinho
diminuto que os photographos collocam sempre á base das ruinas de Palmyra,
ou como esses pastores vestidos de um farrapo de purpura, que nos quadros
do seculo XVII ornam as paizagens ideaes.

O que essa humanidade de provincia faz, diz, soffre ou goza--é-lhe
indifferente. Não é a ella que vae vêr, se visita os logares que ella
habita: o que lá lhe move a curiosidade apressada, é algum monumento,
algum panorama--a paizagem, como diz Lord Beaconsfield. Para o
estrangeiro, Portugal é Cintra, a Allemanha é o Rheno: até mesmo na ideia
de Lord Byron, e de outros depois d'elle, o que estraga a belleza de
Lisboa é a presença do lisboeta--como a mim o que me estraga a Allemanha é
a presença do prussiano. Positivamente a multidão só reconhece uma
sociedade--a de Pariz e de Londres.

Mas, dentro em pouco, nem ruinas, nem monumentos haverá dignos de
viagem; cada cidade, cada nação, se está esforçando por aniquilar a sua
originalidade tradicional, e nas maneiras e nos edificios, desde os
regulamentos de policia até á _vitrine_ dos joalheiros, dar-se a linha
parisiense. No Cairo, cidade dos califas, ha copias do Mabille, e os
Ulemas esquecem as metaphoras gentis dos poetas persas, para repetir os
ditos do _Figaro_; o primeiro som que ouvi ao penetrar as muralhas de
Jerusalem foi o _can-can_ de _Bella Helena_, e sahiu da habitação de um
rabbi, de um doutor da lei santa; nas margens do Jordão, sobre a areia
dourada, que os pés de Jesus pisaram, achei dous velhos collarinhos de
papel, modelo Smith: bem sei que não pertenciam nem ao Salvador, nem ao
Precursor, mas lá estavam, e despoetisam sufficientemente aquella riba
sagrada.

O mundo vae-se tornando uma contrafacção universal do Boulevard e da
Regen-street. E o modelo das duas cidades é tão invasor que, quanto mais
uma raça se desoriginalisa, e se curva á moda francesa ou britannica, mais
se considera a si mesma civilisada e merecedora dos applausos do
_Times._ O japonez julga-se, na escala dos sêres, muito superior ao
chinez, porque em Yedo já o indigena se penteia como o tenor Capoul, e lê
Edmond About no original, emquanto que a China, obsoleta nas vetustas ruas
de Pekin, ainda vae no rabicho e em Confucio. E, ainda assim, nas margens
do Amor já ha fabricas de tecidos de algodão como em Manchester.

Positivamente, inclino tambem para a ideia de Lord Beaconsfield: a
originalidade viva do Universo está em Pariz e em Londres: tudo mais é má
imitação da provincia. Por isso a curiosidade publica é impellida para
lá--dando ao resto do mundo apenas aquelle olhar rapido que se tem para o
fundo dos retratos, onde verdejam vagos de paizagem ou se perfilam linhas
de um portico.

É por isso que ninguem que tenha o orgulho de se considerar sêr racional
prescinde de se informar diariamente de tudo que se passa em Pariz ou em
Londres, desde as revoluções até ás _toilettes_, desde os poemas até aos
escandalos.

O desejo mais natural do homem é saber o que vae no seu bairro e em
Pariz.

Que importa o que succede na Asia Central, onde os russos se batem, ou
na Australia onde ha crise ministerial? O que se quer saber é o que fez
hontem Gambetta, ou o que dirá amanhã o professor Tyndall.

E com razão: a Asia Central e a Australia não ensinam nada, e Pariz e
Londres ensinam tudo.

Tendo assim sacrificado sufficientemente á regra, que quer que todo o
escriptor da raça latina nunca enuncie a sua ideia ou conte o seu facto
sem se fazer preceder de phrases genéricas armadas em portico--creio que
devo começar esta chronica fallando hoje de Pariz, capital dos povos e
patria genuina de Mr. Prudhomme...


O acontecimento saliente e commentado d'estes ultimos dias é a
manifestação do dia 23 de maio. Lembram-se que ha nove annos, n'essa data,
na semana sanguinolenta da derrota da Communa, os regimentos de
Versailles, invadindo Pariz, n'uma demencia de represalias, fizeram uma
exterminação á antiga, fuzilando sem discernimento pelos pateos dos
quarteis, entre os tumulos dos cemiterios, sob o portico das egrejas, todo
o sêr vivo que era surprehendido com as mãos negras de polvora, e um calôr
de batalha na face.

_Trinta e cinco mil pessoas_ fôram aniquiladas n'esta S. Barthelemy
conservadora, n'esta hecatombe da plebe, offerecida em sacrificio á ordem
com o delirio com que o rei de Dahomey decapita tribus inteiras em honra
do idolo Gri-gri, ou os carthaginezes immolavam uma mocidade, toda uma
primavera sagrada, para applacar o mais cruel dos Baals, o negro e
flammejante Moloch.

Onde fôram sepultados tantos montões de cadaveres?... Apenas se sabe que
parte foi arremessada á valla commum de Père-Lachaise.

Os annos passaram, e os vencidos d'então são hoje cidadãos formidaveis,
armados não da espingarda revolucionaria, mas de um legal boletim de voto,
e que, em logar de erguer barricadas nas ruas, fazem deputados socialistas
nas eleições.

No dia 23 de maio, pois, anniversario do exterminio dos seus,
preparavam-se elles para ir atravez das ruas de Pariz, n'uma vasta
procissão funeraria, com coroas de perpetuas na mão, visitar essa lugubre
valla onde apodrecem os seus mortos.

O governo do snr. Grevy, porém, inquietou-se com este ceremonial, e, ou
promettendo concessões ao velho mundo _communard_ a troco da desistencia
d'esta pompa funebre (tão parecida com uma commemoração triumphal) ou
ameaçando mandar carregar 20.000 homens contra o prestito e fazer assim
recahir sobre os chefes da manifestação a responsabilidade de um conflicto
sangrento--conseguiu que n'esse dia a massa communista ficasse chorando os
seus mortos, no silencio das suas alcovas. Mas alguns exaltados,
desattendendo a disciplina do partido, persistiram na demonstração
luctuosa; e assim como de uma nuvem negra, que ameaça um diluvio, só vêm a
cahir aqui e além algumas gottas d'agua, assim de toda aquella população
que devia descer dos _faubourgs_ apenas se viram pelas ruas grupos de dez,
quinze pessoas, dirigindo-se ao Père-Lachaise com a sua blusa nova, e a
corôa de perpetuas na mão: sómente por amor do symbolo, as coroas eram
vermelhas.

Estes mesmos fragmentos de manifestação desagradaram ao governo e á
prefeitura, e viu-se então um espectaculo bem proprio a regosijar o
coração do homem livre: quando, ao Père-Lachaise, onde se apinhavam
batalhões de policias, um homem se approximava da valia a depôr a
sua corôa sobre a herva verde, um _sergent de ville_ precipitava-se,
verificava de sobr'olho duro que as perpetuas eram escarlates, e arrastava
o individuo ao carcere; e se o cidadão, ignorando que sob a republica é um
crime chorar os mortos e ornar-lhes a sepultura, protestava com
vehemencia, a policia demonstrava-lhe a pranchadas que a republica é um
governo forte e contundente...

Mas, o que iam elles fazer ao Père-Lachaise com as suas perpetuas
symbolicas, estes revoltados, estes exaltados, que em principio abominam
a religião e os seus ceremoniaes?

O mais illustre jornal do partido, o _Mot d'Ordre_, descrevia ha dias
uma festa no Sacré Cœur n'estes termos phantasticos: «Hontem havia no
Sacré Cœur uma reunião de individuos celebrando algumas ceremonias
barbaras em honra de um personagem exquisito e obscuro, vulgarmente
designado pelo nome extravagante de Deus». Ora, parece extraordinario que
individuos que possuem phrases tão avançadas, vão commemorar um
anniversario de morte--da morte que não deve ser para elles mais que uma
banal transformação da substancia, com as tradicionaes etiquetas do
catholicismo; e que procedam deante de um tumulo amigo, como se
acreditassem que o corpo jaz alli intacto e paciente, sob as flôres
agrestes, esperando o toque do clarim do juizo final, emquanto a alma
paira no ether mystico, misturando-se á vida terrestre e gosando a offerta
de symbolos saudosos...

Mas, mais estranho que tudo é a influencia do _vermelho_ no animo da
policia, como entre nós nos temperamentos dos touros.

Póde até certo ponto comprehender-se que uma bandeira vermelha, batendo
o ar desfraldada, lembrando arrogantemente a insurreição, possa irritar a
bilis de uma policia bem organisada; mas onde está o crime de uma pobre
corôa de perpetuas tingidas de vermelho?

Porque, como muito nitidamente o explicou o snr. Andrieus, prefeito
de policia, o que offendeu a Republica e a Ordem foi a imprudencia
d'aquelle escarlate! Se as perpetuas fôssem amarellas, a Republica teria
generosamente permittido a manifestação saudosa...

Logicamente, pois, uma rapariga que passe no _boulevard_ com duas rosas
vermelhas ao peito, deve ser arrastada deante de um conselho de guerra. A
papoila torna-se um delicto; e o rubor de uma face casta é offensa á
constituição.

Quando o snr. prefeito da policia corta o seu dedo augusto com o seu
canivete official, que deve fazer em presença do escandalo do seu sangue
vermelho? Algemar-se a si mesmo, e a si proprio arremessar-se á palha
humida das masmorras. Mas o verdadeiro culpado é o bom Deus que
prodigalisa o escarlate e as suas gradações nas flôres, nas nuvens, e, se
nos não mente a Biblia, até nas tunicas dos seus seraphins! Ao carcere o
bom Deus!

Esta extravagancia do chefe da policia é melancolica!

Na Inglaterra reunem-se em Hyde-Park, quinze, vinte mil pessoas em
_meeting_ com toda a sorte de emblemas, estandartes e charangas, todas as
côres que a Providencia fez e ainda todas as que a industria inventou;
declama-se, uivam-se cantos sagrados e impios, atira-se velha hortaliça á
face dos oradores, absorvem-se pipas de cerveja, e a formidavel policia
ingleza, de braços cruzados, sorri com bonhomia á orgia civica. É que
todas estas vociferações e todas essas côres deixam as instituições tão
intactas e tão firmes como os velhos robles d'Hyde-Park; e, finda a hora
do _meeting_, a grande massa dispersa com um socego de fim de missa. Em
França um grupo de homens vae em silencio depôr, sobre uma campa, flôres
de melancolia, e tudo treme, n'um receio que a forte republica do snr.
Gambetta cambaleie ferida no coração!

Realmente, Caligula e Carlos IX fazem ás vezes saudades...


Era Alfredo de Musset que dizia nas suas patheticas estancias á
Malibran que, em França, quinze dias fazem de uma morte recente uma antiga
novidade. Talvez, quando é a Malibran que morre: quer dizer, um gorgeio de
ave que se perde na noite. Mas, se o que desapparece se chama
Gustavo Flaubert e é o auctor da _Madame Bovary_ e da _Educação
Sentimental_--quinze dias ou quinze annos pódem passar sobre essa perda
sem que a dôr envelheça: sobretudo quando se pensa que esse poderoso
artista, um dos maiores d'este seculo, nos é estupidamente arrebatado no
espaço de uma hora, por uma apoplexia, em plena força creadora, na vespera
de terminar um livro supremo em que puzera dez annos de trabalho, o melhor
do seu genio, e a sabia experiencia de uma vida inteira.

Não é para esta chronica o estudar Gustavo Flaubert. Só direi que a sua
alta gloria consistira em ter sido um dos primeiros a dar á arte
contemporanea a sua verdadeira base, desprendendo-a das concepções
idealistas do romantismo, apoiando-a toda sobre a observação, a realidade
social e os conhecimentos humanos que a vida offerece. Ninguem jámais
penetrou com tanta sagacidade e precisão os motivos complexos e intimos da
acção humana, o subtil mechanismo das paixões, o jogo dos temperamentos no
meio social; e ninguem marcou tão vasta e penetrante analyse n'uma forma
mais viva, mais pura e mais forte.

As suas creações--Mme Bovary, Homais o pharmaceutico, Leão, Frederico,
Mme Arnoux, pelo poder de vitalidade que elle lhés imprimiu, participam de
uma existencia tão real, quasi tão tangivel como a nossa. Quando o seu
enterro em Rouen, passava junto ao Sena, defronte de uma das lindas ilhas
que alli verdejam, os que o acompanhavam paravam um momento a olhar, a
mostrar-se o sitio na fresca ilha em que Mme Bovary passeava com Leão,
como se estivessem vendo por entre a folhagem dos choupos a sua figura
nervosa e ligeira, e o vestido de merino claro que ella levava aos
_rendez-vous._

_Madame Bovary_ é hoje uma obra classica--e de certo o seu melhor livro.
Quem a não conhece e a não relê--essa historia profunda e dolorosa d'uma
pequena burgueza de provincia, tal qual as cria a educação moderna
desmoralisada pelos falsos idealismos e pela sentimentalidade morbida,
agitada de appetites de luxo e d'aspirações de prazer, debatendo-se na
estreiteza da sua classe como n'um carcere social, correndo a esgotar d'um
sorvo todas as sensações e voltando d'ellas mais triste como dos funeraes
da sua illusão, procurando alternadamente a felicidade na devoção e na
voluptuosidade, anciando sempre por _alguma cousa de melhor_, e arrastando
uma existencia minada d'esta enfermidade incuravel--o desiquilibrio do seu
sentimento e da razão, o conflicto do ideal e do real: até que uma mão
cheia de arsenico a liberta de si mesma!

Na _Educação Sentimental_, concebe esta ideia de genio: pintar n'uma
larga acção a fraqueza dos caracteres contemporaneos amollecidos pelo
romantismo, pelo vago dissolvente das concepções philosophicas, pela falta
d'um princípio seguro que penetrando a totalidade das consciencias, dirija
as acções; e explicar por esta effeminação das almas todas as
instabilidades da nossa vida social, a desorganisação do mundo moral, a
indifferença e o egoismo das naturezas, a decadencia das classes medias, a
difficuldade de governar a democracia...

_Salammbô_ é a prodigiosa reconstrucção de um povo, de uma religião
extincta, do violento e complicado mundo carthaginez: na _Tentação de
Santo Antão_, de uma forte intuição, de uma erudição tão larga, pinta-nos
tumultuosa a confusão mystica de um cerebro d'asceta, e attinge ahi talvez
a perfeição de uma fórma tão viva, tão quente, tão elastica, que só a
poderia comparar a uma carnação humana.

Particularmente era o melhor dos homens. Tinha a nobre e santa faculdade
de admirar sinceramente; era d'estes a quem um bello verso, uma figura
elevada fazem humedecer os olhos de ternura: só sentia indifferença pelo
pedantismo triumphante e a indignação só lhe vinha deante do egoismo
burguez.

Viajou longos annos, foi amado, foi illustre. Mas, como disse Zola, o
melhor das suas alegrias e das suas mágoas teve-as dentro da sua arte. Era
verdadeiramente um monge das lettras. Ellas permaneceram sempre o seu fim,
o seu centro, a sua regra. Vivia n'ellas como n'uma cella, alheio aos
rumores triviaes da vida. Foi um forte. A sua provincia vae erguer-lhe uma
estatua: e de certo nunca fronte mais digna, modelada em marmore, reluziu
á luz dos ceus.



II


OS DUELLOS--A AMNISTIA--GAMBETTA-ROCHEFORT--OS JESUITAS.


Estas ultimas semanas, em França, têm sido sanguinolentas. Os duellos
succedem-se tão regularmente como as madrugadas; e o primeiro espectaculo
que o sol, o velho e dourado Phebo, avista, ao assomar a rósea varanda do
Oriente, é um francez em mangas de camisa e de florete na mão, á beira de
um arroio ou nas hervas de um prado, procurando varar com arte as visceras
essenciaes de outro francez.

Parece que estamos sob o reinado do melancolico Luiz XIII, quando apezar
dos editos, mal tocava ás Avè-Marias, não havia recanto sombrio do velho
Pariz, onde não lampejassem duas espadas cruzadas, ou em tempos da
republica romantica de 1848, em que dois sujeitos que não concordavam
sobre a questão da Polonia, ou divergiam ácerca de Jesus Christo--um
considerando-o um immortal philosopho, outro apenas um pequeno Deus sem
importancia--corriam a retalhar-se ao sabre, nas sombras do bosque de
Bolonha.

Não póde agora um honesto melro gorgear pacificamente as suas reflexões
da alvorada, sem que o venha interromper uma velha caleche a trote d'onde
emergem, soturnos e de negro vestidos, sujeitos com um molho de espadões
debaixo do paletot.

Não ficam cadaveres pelos campos; mas a epiderme dos jornalistas e
_dandies_ é abundantemente deteriorada.

Duello de Rochefort com Kœchlin; duello de Laffite, do _Voltaire_, com
o conde de Dion; duello de Fronsac, do _Gil Blas_, com o principe de Santa
Severina; duello de Lajeune-Villars com Lepelletier, do _Mot d'Ordre_;
duello em Avignon, em Montpellier, em Rennes, em Lyon. Sem contar os
duellos do conde de Hauterive, que esta semana se tem batido quatro vezes,
ferindo todas as manhãs o seu homem, com o mesmo florete, entre o pulso e
o cotovello!

Este caso pitoresco faz-me lembrar os «combates do snr. Paulo».

Não conhecem os combates do snr. Paulo? É uma curiosa historia do Bairro
Latino, dos tempos em que ainda alvejava, entre as verduras do Luxemburgo,
o vestido de cassa de Mimi. O snr. Paulo era um discipulo ardente de
Proudhon, que costumava ir todas as noites tomar o seu grog a um café da
rua Jean Jacques Rousseau, e soltar, com voz rouca de propheta irritado,
as phrases celebres do mestre:--_Deus é o mal! A propriedade é o roubo!
Queremos a liquidação social!_

A sua apparencia era hoffmanica; duas longas pernas de cegonha triste,
olhos rutilantes n'uma face ascetica e uma gaforinha descommunal, crespa,
revolta e côr d'estopa. De resto, bravo e honesto. Uma noite, o snr. Paulo
installava-se deante do seu grog, quando avista sobre a meza um papelinho
perfido, contendo esta abominavel sextilha:


A loira e dôce Maria
Que a ninguem d'amores maltrata,
Foi avisada outro dia
Que Paulo a vem visitar,
E eil-a que rompe a gritar:
--Depressa! fechem a prata!


Só Homero que disse os furores d'Ajax, poderia pintar a cólera do snr.
Paulo e os seus repellões á guedelha... Logo ao outro dia tinha descoberto
que o deploravel poeta era um sujeito obeso, d'olho obliquo, exhalando um
cheiro adocicado de sachristia--que saboreava tambem os seus grogs no café
e dirigia um jornal jesuita, _A Palavra._ A sextilha tomava, assim, as
proporções sociaes de uma injuria arremessada pela egreja contra a
revolução. Era a graça calumniando a consciencia.

D'aqui um duello no bosque de Vincennes... Caminham um sobre o outro de
pistola alta. Fogo! A bala do homem da _Palavra_ vae cravar-se na anca de
um jumento que a distancia tosava pensativamente a herva; a do snr. Paulo,
essa vae varar o chapéu alto d'um dos padrinhos do devoto. Este sujeito
franziu consideravelmente o sobr'olho.

Á noite, um excellente rapaz, Jacques Morot, reaccionario tambem, abre a
porta do café da rua Rousseau e pergunta para dentro ávidamente:

--Então, o duello? Houve morte de homem?

--Não,--respondeu alguem d'uma mesa ao fundo.--Houve morte de jumento.

--O que! Morreu Paulo?

E o Paulo que, ao lado, sorvia galhardamente o seu grog, ergue-se, de
juba eriçada e a injuria no labio... E d'ahi outro duello á pistola
tambem.

Foi no bosque de Bolonha, esse, ao primeiro cantar da cotovia. A bala
reaccionaria de Jacques, perdeu-se por entre as folhagens, mas a do snr.
Paulo lá foi varar o chapéu alto do padrinho--do mesmo, precisamente o
mesmo que na vespera, ao lado do beato pançudo, tivera já o seu chapéu
atravessado e franzira tanto o sobr'olho.

--Comprehendo!--rosnou este individuo, livido. E á noite, no café,
dirige-se á mesa onde o snr. Paulo absorvia o seu grog, exhalando o
seu socialismo, e accusa-o, friamente, «de lhe querer tirar a vida de um
modo desleal e infame»!

--Pois atreve-se?...--ruge o snr. Paulo.

--Sei o que digo; infame e desleal!

--Insolente!

--Garoto!

Novo duello. Mas então os padrinhos assistiam de longe, estirados entre
as hervas altas, como lagartos assustados. Por precaução tinham-se
recoberto de colchões... E as duas balas, com effeito, perderam-se pela
amplidão dos ceus. De uma dizia-se no café que fôra parar a Pekin; da
outra corria que, por um funesto habito adquirido, andava ainda pelo
bosque de Bolonha, procurando entre os arvoredos o chapéu alto para se
alojar.

Taes fôram os combates do snr. Paulo, discipulo de Proudhon.

Os conflictos de honra que têm este final de _vaudeville_ são, por fim,
os mais acceitaveis.

Ha-de haver sempre duellos. É evidente que, emquanto os jornaes
publicarem em lettra gorda e glorificadora as actas do desafio: emquanto
os olhos das mulheres sorrirem ao ferido interessante que atravessa a sala
pallido e de braço ao peito, ou ao espadachim feliz que retorce o bigode;
emquanto na rua burguezes pararem pasmados, murmurando ao ouvido da
familia: _Lá vae elle! Foi aquelle que se bateu!_ nem o codigo, nem o bom
senso, nem melifluas maximas humanitarias impedirão jámais que o homem,
publicamente ridicularisado ou publicamente injuriado, salte sobre a sua
espada gritando á turba: «Cá vou defender a minha honra!»

Haverá sempre quem consinta em esvaír-se em sangue--tendo em redor as
acclamações d'um circo.

No mais grave dos homens ha uma fibra de histrião.

O que convém, pois, á sociedade e que, n'estes conflictos impostos pela
exigencia da vaidade e pelo despotismo do prejuizo, o sangue derramado se
limite ás tres ou quatro gottas que um lenço de cambraia estanca.

No fim, a moralidade dos duellos está toda n'um dito de Rochefort.

--Tem sido feliz em seus desafios?--perguntava-lhe alguem.

--Felicissimo. Tenho-me batido vinte e tantas vezes e volto sempre com
a consciencia serena e uma ferida séria...

Não se póde realmente vir almoçar com a «consciencia serena», quando se
deixou um homem a agonisar n'uma pôça de sangue; mas é triste tambem que
para se poder gosar, com a alma tranquilla, a _omellette_ do almoço, se
deva voltar do campo de ventre rasgado ou com a clavicula em pedaços.

De sorte que o sujeito, que quer defender a sua honra _a serio_ por
estes meios, tem deante de si duas perspectivas amaveis: ou a permanente
tortura de um remorso, ou a eterna paz de uma campa; e quando se é muito
feliz, como Rochefort, dois mezes de cama com uma viscera despedaçada.

Bem hajam, pois, os que nos seus duellos, como no caso do snr. Paulo,
atiram as balas para Pekin ou se arranham ligeiramente nos cotovelos!
Comprehendem a sabedoria: a sociedade, a vaidade, os jornaes, a opinião,
as mulheres pedem-lhes sangue? Bem! vão a um recanto do Bosque, e
extráem-se um ao outro, da ponta do dedo, a gotta reclamada pela honra. A
sociedade, a vaidade, etc., sorriem satisfeitas; e elles, serenos de
consciencia, curam-se, pondo uma dedeira. Salutar prudencia! E são
egualmente heroes nas gazetas!


Foi votada na camara a amnistia, e sel-o-ha certamente no senado.
Nenhum vestigio, pois, restará da insurreição da Communa em 1871. As casas
ardidas fôram reedificadas; ha longo tempo que seccaram as pôças de sangue
nas ruas; a hera disfarça poeticamente as ruinas das Tulherias; os
fuzilados d'então são hoje terra fertil onde a herva cresce, alta e vasta;
os degredados, os fugitivos reentram na vida legal; a _questão da
amnistia_, que se arrastava nas controversias dos jornaes como um farrapo
sinistro de guerra civil, é varrida para o lixo; e sobre aquella pavorosa
loucura cahe, emfim, solemnemente uma lapide d'esquecimento. Viva a
França!

Tudo isto é excellente: não haveria mesmo o direito de vencer, se não
houvesse o direito de perdoar.

O snr. Grevy, que restituirá a patria a centenares de communistas por
compaixão--não podia deixar outros centenares no degredo, por legalidade.
Não era logico que os que fuzilavam os dominicanos pudessem fumar o seu
cigarro no boulevard, emquanto Rochefort, que a Communa condemnou á morte,
soffria o melancolico exilio de Genebra, e Trinquet, rehabilitado
publicamente por Gambetta, fabricava tamancos nos presidios da Nova
Caledonia. Mas dá-se uma circumstancia singular: ha tres mezes o ministro
Freycinet declarava, entre as acclamações da maioria, que a França não
estava sufficientemente pacificada, nem a republica talvez bastante forte,
para deixar voltar a legião da Communa, e hontem, o mesmo snr. Freycinet,
aos applausos da maioria, affirmava que era tão solida a unidade da
republica, tão completa a quietação dos espiritos, que não se podia addiar
por mais um dia esta larga absolvição das barricadas de 1871.

Em março a amnistia era uma imprudencia, em junho é uma necessidade!
Noventa dias não são sufficientes para que mudassem assim tão radicalmente
a opinião da França e o interesse da Republica. Portanto, aqui, como se
dizia nas operas comicas da minha infancia, _ha um mysterio._ Qual é,
pois, esse mysterio? É a vontade do snr. Gambetta. Foi elle, esse todo
poderoso, esse Deus d'Israel, esse Luiz XIV da Republica, esse augusto
dono de França--que assim o decidiu. Elle via que a recusa da amnistia o
despopularisava já na forte maioria da democracia: percebia que ia sendo
ahi considerado como a encarnação mesma da Republica burgueza e o
continuador do doutrinarismo do sr. Thiers; sentia que os seus bairros
proletarios, Montmartre e Belleville, já lhe retiravam os votos e a
confiança para os darem a Clemenceau.

Gambetta conhece bem que, hoje, a burguesia já não é um terreno
sufficientemente solido para edificar nelle uma fortuna politica; é na
força do proletariado que se quer apoiar--e, portanto, resolveu, como um
Jehovah prudente, readquirir a devoção do seu povo, restituindo-lhe os
prophetas exilados. E ahi está como a amnistia não é um grande acto de
reconciliação publica, mas uma astuta manha do dictador, para não ser
perturbado na lenta jornada que o vae levando á presidencia da Republica,
se não a um Cesarismo jacobino. Para mudar a opinião do ministerio
Freycinet bastou-lhe ordenar; e para convencer a camara bastou-lhe
fallar.

No dia da discussão do projecto da amnistia deixa melodramaticamente a
sua cadeira de presidente, e de gravata branca, rubro como uma papoila,
com a sua cabelleira solta á maneira de uma juba, apparece na tribuna; e
não creio que desde os Gracchos, ou desde Mirabeau, jámais a palavra d'um
homem revolvesse tanto um paiz! Todos os jornaes, os mais hostis,
reconhecem que nunca Elle fôra tão poderoso.

Vae o E maisculo, porque parece que se trata verdadeiramente de um Deus.

Na rua vê-se gente de olho esgazeado, e arripiada de emoção murmurando:
_Gambetta fallou!_ Assim se devia dizer em Israel, quando corria voz pelas
tendas dispersas das tribus que Jehovah perorava d'entre a sua sarça
ardente. Eu não o ouvi. O seu discurso, lido aqui no jornal,
affigura-se-me uma prosa resoante e oca como um tambor, mais propria da
emphase castelhana que da lingua lúcida e disciplinada em que Voltaire
escreveu. Parece, porém, que a sua formidavel figura, os accentos
pungentes da sua voz captivante, soltando os grandes nomes de _França_ e
_Patria_ e _Republica_, os seus gestos de apostolo possuido do espirito; a
maioria de pé, n'uma acclamação, como nos dias patheticos da Convenção; a
direita muda e aterrada, as galerias n'um extasi vibrante--tudo isto
formou um quadro grandioso, quasi heroico.

Eu espero, para o admirar, que um mestre o immortalise na téla e o
popularise pela lythographia. Até lá, por Jupiter, sustento que esta
arenga não me parece do meu Gambetta, do antigo e forte Gambetta;
dir-se-ia antes ser do copioso Odilon Barrot. Não vejo aqui as ideias
que fundam, nem as palavras que ficam. O que abunda, sim, é o emprego
triumphante do pronome pessoal _eu._

«_Eu_ consultei o paiz! _Eu_ disse á Europa! _Eu_ quero!» E assim se
desfaz, emfim, o equivoco enorme; é elle realmente que governa, possue a
França: o snr. Grevy está alli como uma figura ornamental; o snr. de
Freycinet e o seu ministerio são o côro explicativo; a camara, um mero
serviço de votação. Só elle fica acima d'estas fracções, como a mesma alma
da Republica. E pela segunda vez, desde Mazzarino, com respeito o digo, um
italiano é o senhor das Gallias.

Não creio, porém, que esta amnistia, tão generosamente concedida pelo
snr. Gambetta, desarmará o socialismo, e o reconciliará com a Republica
conservadora. Espanto-me mesmo que haja velhos jornaes, cobertos de
experiencia e de cans, que o acreditem, com a ingenuidade de tenros
enthusiastas. E o mesmo Gambetta parece crêl-o quando exclama que,
eliminada esta questão irritante, haverá só uma Republica e uma só
França!

Rhetorica! _A questão da amnistia_ era, decerto, nas mãos da esquerda
intransigente uma arma util: «Vêde essa Republica de conservadores que
deixa nas galés os vossos irmãos, os vossos maridos!» Este grito ia
direito á indignação dos homens e á sensibilidade das mulheres.

Para resolver o operario era, sem duvida, um optimo grito: mantinha-o em
desconfiança e em hostilidade; e nas eleições proximas levaria de certo a
turba proletaria para os candidatos do socialismo. Mas, perdida esta arma
contra a republica do Justo-meio, esta Durindana brilhante do _Rappel_ e
do _Mot d'Ordre_, restam innumeraveis machinas de guerra no vasto arsenal
da questão social. Basta, por exemplo, pôr em posição a famosa catapulta
da separação da egreja e do estado, para abalar a fragil muralha do
Gambettismo.

Os conservadores, para se conservarem a si mesmos, terão de ceder: e de
concessão em concessão, como um sapo aos saltinhos successives, irão cahir
na guela escarlate da serpente socialista. Todas as medidas d'estes
ultimos dois annos, depuramento do funccionalismo, expulsão dos jesuitas
e volta dos communistas, têm sido exigencias da extrema esquerda, do mundo
do _Rappel_, da _Justice_ e do _Mot d'Ordre_.

E outras reclamações virão--todas necessariamente satisfeitas--e cada
uma tirando um cabello a Samsão e uma parcella da sua força á Republica...
A questão está collocada entre o _proletario_ e o _burgues._ É Clemenceau
contra Gambetta. E _isto_, que é o socialista Clemenceau, matará
fatalmente _aquillo_, que é o jacobino Gambetta: e isto, que é o sapateiro
Trinquet, eliminará mais tarde _aquillo_, que é o philosopho Clemenceau.

Mas, por estes dias ao menos, esta Republica moderada está solida. Tem
por si a burguezia: os burguezes de hoje são a antiga população das
Gallias--que já no tempo de Cesar amava sobretudo as palavras sonoras e as
espadas atrevidas. Por isso a burguezia se sente segura, apoiando-se na
oratoria de Gambetta e no sabre de Gallifet.

Para nós que não somos francezes, preparam-se-nos horas de jovialidade,
porque vêm ahi os exilados e á frente Rochefort. Se o grande pamphletario,
o _gaiato sublime_ como lhe chamou Michelet, o ardente sagitario, não
perdeu nas amarguras do desterro a sua verve prodigiosa, o ardor acerado,
as luminosas flechas que feriram de morte o Imperio--vae ser curioso vêl-o
erguer-se no boulevard, como nos dias inolvidaveis da _Lanterna_, com a
face pallida e a sua gaforina de Satanaz, heroico e agil diante do pesado
presidente Gambetta.

O jornal que vae fundar chama-se o _Intransigente._ Já é bom! E vem
azedado por dez annos de exilio injusto, porque (ninguem o ignora) foi a
_Lanterna_ e a sua lucta contra o Imperio que o levaram á Nova Caledonia
por sentença de um conselho de guerra, composto dos velhos generaes de
Cesar, e não a sua participação na Communa, que elle combateu
implacavelmente e que o condemnou á morte. Por isso elle permaneceu
querido de toda a França, esse homem que tem o espirito de Voltaire, a
temeridade heroica, a honradez de um Bayard; este marquez de Rochefort e
de Luçay, que as duquezas chamam o primo Rochefort, generoso paladino dos
humildes, que foi durante os ultimos annos de Napoleão a alegria viva da
França e uma das honras da liberdade. Os seus mesmos inimigos o admiram: e
foi por terror ao seu espirito que a republica conservadora o manteve no
exilio perpetuo, excluido de todos os perdões. E vem ahi! Positivamente,
vamos rir.


Os communistas entram e os jesuitas sáem. Nada me parece mais insensato
que esta expulsão.

Deus sabe que eu não amo os jesuitas: tudo n'elles me é antipathico--a
sua face descahida e olho obliquo, a roupeta lugubre, a sua moral, a sua
abominavel _summa theologica_, a sua sciencia secca e hieratica, o seu
frio estylo d'architectura, a sua maneira de enriquecer, com contabilidade
escripta em grego, a sua grosseira e equivoca idolatria pela Virgem Maria,
a sua organisação tenebrosa e conspiradora, que faz assemelhar a companhia
a um carbonarismo theocratico. Mas dispersal-os parece-me singularmente
impolitico, illogico e pueril; se se pretende destruir a sua funesta
influencia na sociedade franceza--então é necessario expulsar o clero
inteiro, pois ninguem ignora que a egreja hoje está totalmente penetrada
do espirito jesuitico. O catholismo é o jesuitismo.

Quem governa a egreja não é Leão XIII, o _Papa Branco_, é o _Papa
Negro_, o padre Beckx. E esta solidariedade com a companhia--o clero
regular acceita-a, reveste-se d'ella como d'uma insignia, e considera-se
ferido pelas leis dirigidas contra o instituto de Santo Ignacio. Se se
quer eliminar o ensino dos jesuitas fatal á alma das gerações novas,
recahimos na mesma necessidade logica de supprimir todo o ensino clerical,
semelhante, parallelo, ao que dimana dos jesuitas. De que serve fechar
tres ou quatro estabelecimentos da companhia--se fica todo um clero
compacto para os substituir como pedagogos, como conspiradores e como
inimigos da democracia?

Além d'isso, os jesuitas expulsos das suas grandes residencias irão
ensinar particularmente, dispersos pelas cidades e pelos campos; em
logar da roupeta, vestirão a quinzena--e nem por isso o seu ensino será
mais democratico. E se ainda lhe fôrem arrancados os livros da escola--lá
ficam os dominicanos, os maristas, os lazaristas, os franciscanos, os
irmãos christãos, e outros innumeraveis, para ensinarem o mesmo com a
exaltação de quem espalha uma ideia perseguida.

É pueril. Os republicanos que hoje governam, riam, quando o imperio
imaginava extinguir o socialismo dispersando a internacional; e recahem no
mesmo erro, pensando aniquilar o clericalismo com o encerramento de tres
conventos de jesuitas!

Será necessario eliminar as mães devotas e os paes catholicos, prohibir
que haja almas que, por debilidade ou religiosidade terra, se precipitem
para as lições da Mystica de S. Thomaz, como para o melhor alimento
terrestre. Se o ensino theologico é perigoso, opponha-se-lhe o ensino
scientifico. Esmaguem o padre com o philosopho. Mas não é rasgando uma
roupeta que se reprime um ideal.

E depois, para quem ama realmente a liberdade, é repugnante estar lendo
todos os dias nos jornaes que já os jesuitas e as outras congregações
ameaçadas começam a encaixotar os seus livros, a enfardelar tristemente os
seus trapos, a despregar um ou outro painel da sua cella, porque se
approxima o dia 29, em que dois gendarmes, de espadão á cinta, virão
arrancal-os aos conventos que são seus, edificados pela sua diligencia,
pagos com o seu metal e tantos annos habitados pela sua devoção.

Ha n'isto um sabor desagradavel á revogação do edito de Nantes, á
expulsão dos judeus, a missionarios apupados pela população chineza.

Ha dias vi um velho frade franciscano, assustado e melancolico,
comprando timidamente uma maleta; havia tanta amargura no olhar, que o
pobre mendicante dava áquelle sacco de couro que ia ser seu companheiro
d'exilio--que me veio uma colera, uma revolta contra o snr. Julio Ferry e
o seu nacionalismo prouddhomesco.

Ora nada mais impolitico que provocar este sentimento: o frade torna-se
assim mais interessante; e os fracos, os sentimentaes, os religiosos;
as mulheres são attrahidas para este exilado, este martyr errante, esta
victima dos Dioclecianos de chapéu alto, que se lhes afigura a encarnação
mesma do crucificado.

Eu não sou um devoto, mas parece-me impio exilar aquelles que não têm
as nossas opiniões. E uma republica que expulsa uma classe inteira de
cidadãos por acreditarem na graça, accenderem luzes á Virgem Maria e
considerarem o conde Chambord como um sêr providencial e um Messias
forte--mostra uma grande falta de senso politico, e pratica um vergonhoso
abuso da força.

Mas supponhamos que elles são grandes criminosos. Pois bem! estamos agora
n'um momento de clemencia publica, perdoou-se hontem áquelles que
consideram Deus um tyranno; perdõe-se hoje áquelles que consideram Luiz
XVI um santo. E aqui está o que eu humildemente proporia;--que a amnistia
dada aos communistas se estenda ás congregações religiosas!

Ainda n'esta carta, lhes não fallo da Inglaterra. A culpa é toda d'ella.
Caso extraordinario! ha já semanas que este grande e amado paiz não produz
um acontecimento, um escandalo, um livro, um systema philosophico, uma
religião, uma machina, um quadro, uma guerra ou um dito! Está n'esse
brando repouso a que se abandona sempre aos primeiros calores de junho.
Deixemol-a descançar sob a sombra da frondosa faia, n'estes ocios que lhe
faz a suprema liberdade na suprema força.



III


O IMPERADOR GUILHERME.


«_Lui, toujours lui!..._--Elle, sempre elle!...»--Assim, no tempo das
_Vozes interiores_, clamava Victor Hugo, cançado, quasi estafado de que
ao seu espirito de poeta, que tantos problemas divinos e humanos
solicitavam, se impuzesse ainda com imperiosa insistencia, monopolisando
os pensamentos melhores e os melhores alexandrinos, a imagem atravancadora
de Napoleão, o Grande. Nós hoje tambem podemos murmurar com impaciencia:
«_Lui, toujours lui!..._ Elle, sempre elle!»--perante esse outro
imperador que ainda não venceu a batalha de Marengo, nem a de Austerlitz,
e que todavia, em meio de todos os problemas sociaes, moraes, religiosos,
politicos e economicos que nos devoram, tão estranha e ruidosa expansão dá
á sua individualidade e tão confiadamente a arremessa atravez dos nossos
destinos, que elle proprio se tornou um Problema Europeu--e occupa tanto o
nosso pensamento como o socialismo, a evolução religiosa ou a crise
capitalista! Talvez mais--porque até o proprio snr. Renan, cuja alma, pelo
exercicio constante do scepticismo, ganhou a impermeabilidade e a dôce
indifferença de uma cortiça, para quem toda a vaga é embaladora e bôa,
declara, na sua derradeira epistola aos incredulos, que só lhe pesa morrer
(e pelas suas confissões bem sabemos quanto a vida lhe corre deliciosa e
perfeita!) por não poder assistir ao desenvolvimento final da
personalidade do imperador da Allemanha!

Com effeito, desde que subiu ao throno, Guilherme II, imperador e rei,
ainda não deixou de attrahir e reter sobre si a curiosidade do mundo, uma
curiosidade divertida e arregalada de publico que espera surpresas e
lances--como se esse throno da Allemanha fôsse na realidade um palco
vistosamente ornado, no centro da Europa. E esta é até agora a obra
pittoresca de Guilherme II--o ter convertido--o throno dos Hohenzollerns
n'um palco onde elle constantemente e soberbamente se exhibe, com
caracterisações inesperadas. Bem póde, pois, o sentimental heresiarcha da
_Vida de Jesus_ lamentar que a morte lhe não consinta assistir, no quinto
acto, á solução d'este imperador problematico! Pois que, por ora, n'este
primeiro acto de tres annos, desde que elle trilha o seu palco imperial,
Guilherme II, pela diversidade e multiplicidade das suas manifestações, só
tem revelado que existem n'elle, como outr'ora em Hamlet, os germens de
homens varios, sem que possamos preconceber qual d'elles prevalecerá, e se
esse, quando definitivamente desabrochado, nos espantará pela sua grandeza
ou pela sua vulgaridade. Realmente, n'este rei, quantas encarnações da
realeza!

Um dia é o Rei-Militar, rigidamente hirto sob o casco e a couraça,
occupado sómente de revistas e manobras, collocando um render-da-guarda
acima de todos os negocios de estado, considerando o sargento-instructor
como a unidade fundamental da nação, antepondo a disciplina do quartel a
toda a lei Moral ou da Natureza, e concentrando a gloria da Allemanha na
mechanica precisão com que marcham os seus galuchos. E subitamente despe a
farda, enverga a blusa, e é o Rei-Reformador, só attento ás questões do
capital e do salario, convocando com fervor congressos sociaes, reclamando
a direcção de todos os melhoramentos humanos, e decidindo penetrar na
historia abraçado a um operario como a um irmão que libertou. E logo a
seguir, bruscamente, é o Rei-de-Direito-Divino, á Carlos V ou á
Phillippe-Augusto, apoiando altivamente o seu sceptro gothico sobre o
dorso do seu povo, estabelecendo como norma de todo o governo o _sic
volo, sic jubeo_, reduzindo a Summa Lei á vontade do Rei e, certo da sua
infallibilidade, sacudindo desdenhosamente para além das fronteiras todos
os que n'ella não creem com devoção. O mundo pasma,--e, de repente, elle é
o Rei de Côrte, mundano e faustoso, attento meramente ao brilho e ordem
sumptuosa da Etiqueta, regulando as galas e as mascaradas, decretando a
fórma do penteado das damas, condecorando com a Ordem da Corôa os
officiaes que melhor valsam nos _cotillons_, e querendo volver Berlim n'um
Versailles d'onde emane o preceito supremo do cerimonial e do gosto. O
mundo sorri--e repentinamente é o Rei-Moderno, o Rei-Seculo-Dezenove,
tratando de _caturra_ o Passado, expulsando da educação as humanidades e
as lettras classicas, determinando crear pelo parlamentarismo a maior
somma de civilisação material e industrial, considerando a fabrica como o
mais alto dos templos, e sonhando uma Allemanha movida toda pela
electricidade...

Depois, por vezes, desce do seu palco--quero dizer, do seu throno--e
viaja, dá representações atravez das cortes estrangeiras. E ahi,
desembaraçado da magestade imperial, que em Berlim imprime a todas as suas
figurações um caracter imperial, apparece livremente sob as fórmas mais
interessantes que póde revestir nas sociedades o homem de imaginação. A
caminho de Constantinopla, singrando os Dardanellos, na sua frota, é o
artista que em telegramma ao chancelier do império (em que assigna
_Imperator Rex_) pinta, n'uma fórma carregada de romantismo e côr, o
azul dos céus orientaes, a doçura languida das costas da Asia. No Norte,
nos mares scandinavos, entre os austeros _fjords_ da Noruega, ao rumor das
aguas degeladas que rolam por entre a penumbra dos abetos, é o Mystico, e
prega sermões sobre o seu tombadilho, provando a inanidade das cousas
humanas, aconselhando ás almas, como unica realidade fecunda, a communhão
com o Eterno! Voltando da Russia é o alegre Estudante, como nos bons
tempos de Bonn, e da fronteira escreve para S. Petersburgo ao marechal do
Palacio uma carta em verso, fantasistamente rimada, a agradecer o kaviar e
os sandwichs de _foie-gras_, collocados no seu wagon como provido farnel
de jornada. Em Inglaterra está em um luxuoso centro de sociabilidade, e é
o Dandy, com os dedos faiscantes de anneis, um cravo enorme na sobrecasaca
clara, borboleteando e flirtando com a veia soberba de um D'Orsay!...--E
subitamente, em Berlim, por alta noite, as cornetas soltam asperos toques
de alarme, todos os fios da Agencia Havas estremecem, a Europa assustada
corre ás gazetas, e um rumor passa, temeroso, de que «haverá guerra na
primavra»! Que foi? _No es nada_, como se canta, no _Pan e Toros._ É
apenas Guilherme II que resubiu ao seu palco--quero dizer, ao seu throno.

O mundo perplexo murmura:--«Quem é este homem tão vario e multiplo? O
que haverá, o que germinará dentro d'aquella cabeça regulamentar de
official bem penteado?» E o snr. Renan geme por morrer talvez antes de
assistir, como philosopho, ao desenvolvimento completo d'esta ondeante
personalidade! Assim Guilherme II se tomou um problema contemporaneo,--e
ha sobre elle theorias, como sobre o magnetismo, a influenza ou o planeta
Marte. Uns dizem que elle é simplesmente um moço desesperadamente sedento
da fama que dão as gazetas (como Alexandre o Grande que, em risco de se
afogar, já suffocado, pensava no _que diriam os Athenienses_) e que,
mirando á publicidade, prepara as suas originalidades com o methodo, a
paciencia e a arte espectacular com que Sarah Bernhardt compõe as suas
_toilettes._ Outros sustentam que ha n'elle apenas um fantasista em
desequilibrio, arrebatado estonteadamente por todos os impulsos de uma
imaginação morbida, e que, por isso mesmo que é imperador quasi
omnipotente, exhibe soltamente, sem que uma resistencia vigilante lh'os
cohiba e lh'os limite, todos os desregramentos da fantasia. Outros, por
fim, pretendem que elle é apenas um Hohenzollern em que se sommaram e
conjunctamente affloraram com immenso apparato todas as qualidades de
cesarismo, mysticismo, sargentismo, bureaucratismo e voluntarismo, que
alternadamente caracterisavam os reis successivos d'esta felicissima raça
de fidalgotes do Brandeburgo...

Talvez cada uma d'estas theorias, como succede felizmente com todas as
theorias, contenha uma parcella de verdade. Mas eu antes penso que o
imperador Guilherme é simplesmente um _dilettante da acção_--quero dizer,
um homem que ama fortemente a acção, comprehende e sente com superior
intensidade os prazeres infinitos que ella offerece, e a deseja portanto
experimentar e gosar em todas as fórmas permissiveis da nossa civilisação.
Os _dillettante_ são-n'o geralmente de ideias ou de emoções--porque para
comprehender todas as ideias ou sentir todas as emoções basta exercer o
pensamento ou exercer o sentimento, e todos nós, mortaes, podemos, sem que
nenhum obstaculo nos coarcte, mover-nos liberrimamente nos illimitados
campos do raciocinio ou da sensibilidade. Eu posso ser um perfeito
_dillettante_ de ideias, modestamente fechado, com os meus livros, na
minha bibliotheca:--mas se tentasse ser um _dillettante_ da Acção, nas
suas expressões mais altas, commandar um exercito, reformar uma sociedade,
edificar cidades, teria de possuir, não uma livraria, mas um imperio
submisso. Guilherme II possue esse imperio; e hoje que se libertou da dura
superintendencia do velho Bismarck, póde abandonar-se ao seu insaciavel
_dilettantismo_ da Acção, com a licença «com que o corsel novo (como diz
a Biblia), galopa no deserto mudo». Quer elle o goso de commandar vastas
massas de soldados, ou de sulcar os mares n'uma frota de ferro? Tem só de
lançar um telegramma, fazer resoar um clarim. Quer elle a delicia de
transformar, nas suas mãos potentes, todo um organismo social? Tem só de
annunciar: «Esta é a minha ideia»--e lentamente a seus pés começará a
surgir um mundo novo.

Tudo póde, porque governa dous milhões de soldados, e um povo que só
zela a sua liberdade nos dominios da philosophia, da éthica ou da exegese,
e que quando o seu imperador lhe ordena que marche--emmudece e marcha.

E tudo póde ainda porque inabalavelmente acredita que Deus está com
elle, o inspira e sancciona o seu poder.


E é isto o que torna, para nós, prodigiosamente interessante o imperador
da Allemanha:--é que, com elle, nós temos hoje n'este philosophico seculo,
entre nós, um homem, um mortal, que mais que nenhum outro iniciado, ou
propheta, ou santo, se diz, e parece ser, o intimo e o alliado de Deus! O
mundo não tornára a presencear, desde Moysés no Sinai, uma tal intimidade
e uma tal alliança entre a Creatura e o Creador. Todo o reinado de
Guilherme II nos apparece, assim, como uma resurreição inesperada do
mosaïsmo do Pentatheuco. Elle é o dilecto de Deus, o eleito que
conferencia com Deus na sarça ardente do _Schloss_ de Berlim, e que por
instigação de Deus vae conduzindo o seu povo ás felicidades de Canaan. É
verdadeiramente Moysés II! Como Moysés, de resto, elle não se cança de
affirmar estridentemente, e cada dia, para que ninguem a ignore, e por
ignorancia a contrarie, esta sua ligação espiritual e temporal com Deus,
que o torna infallivel, e portanto irresistivel. Em cada assembleia, em
cada banquete em que discursa (e Guilherme é de todos os reis
contemporaneos o mais verboso) lá vem logo, á maneira de um mandamento,
esta affirmação pontificial de que Deus está junto d'elle, quasi visivel
na sua longa tunica azul dos tempos de Abrahão, para em tudo o ajudar e o
servir com a força d'esse tremendo braço que póde sacudir, atravez dos
espaços, os astros e os sóes, como um pó importuno. E a certeza, o habito
d'esta sobrenatural alliança vae n'elle crescendo tanto que de cada vez
allude a Deus em termos de maior igualdade--como alludiria a Francisco
d'Austria, ou a Humberto, rei de Italia. Outr'ora ainda o denominava, com
reverencia, o _Amo que está nos céus_, o _Muito alto que tudo manda._
Ultimamente porém, arengando com _champagne_ aos seus vassalos da Marca
Brandeburgo, já chama familiarmente a Deus--o _meu velho alliado!_ E aqui
temos Guilherme e Deus, como uma nova firma social, para administrar o
Universo. Pouco a pouco mesmo, talvez Deus desappareça da firma e da
taboleta, como socio subalterno que entrou apenas com o capital da luz, da
terra e dos homens, e que não trabalha, ocioso no seu infinito, deixando a
Guilherme a gerencia do vasto negocio terrestre:--e teremos então apenas
Guilherme e Cia. Guilherme, com supremos poderes, fará todas as operações
humanas. E «companhia» será a fórmula condescendente e vaga com que a
Alemanha de Guilherme II designará Aquelle para quem todavia, segundo
crêmos,--Guilherme II e a Allemanha toda são tanto, ou tão pouco, como o
pardal que n'este instante chalra no meu telhado!

Um magnifico e insaciavel desejo de gosar e experimentar todas as fórmas
da Acção, com a soberana segurança que Deus lhe garante e promove o exito
triumphal de cada emprehendimento--eis o que me parece explicar a conducta
d'este imperador mysterioso. Ora, se elle dirigisse um imperio situado nos
confins da Asia, ou se não possuisse na Torre Julia um thesouro de guerra
para manter e armar dous milhões de soldados, ou se estivesse cercado por
uma opinião publica tão activa e coercitiva como a da Inglaterra,
Guilherme II seria apenas um imperador, como tantos, na historia, curioso
pela mobilidade da sua fantasia, e pela illusão do seu messianismo. Mas,
infelizmente, plantado no centro da Europa trabalhadora, com centenares de
legiões disciplinadas, um povo de cidadãos disciplinados tambem e
submissos como soldados--Guilherme II é o mais perigoso dos reis, porque
falta ainda ao seu _dilettantismo_ experimentar a fórma da Acção mais
seductora para um rei--a guerra e as suas glorias. E bem póde succeder que
a Europa um dia acorde ao fragor de exercitos que se entrechocam--só
porque na alma do grande _dilettante_ o fogoso appetite de «conhecer a
guerra», de gosar a guerra sobrepujou a razão, os conselhos e a piedade da
patria. Ainda ha pouco, de resto, elle assim o promettia aos seus fieis
solarengos do Brandeburgo:--«Levar-vos-hei a bellos e gloriosos destinos».
Quaes? A varias batalhas de certo, onde triumpharão as Aguias germanicas...
Guilherme II não o duvida--pois que tem por alliado, além de alguns reis
menores, o Rei Supremo do Céu e da Terra, combatendo entre a _Landwehr_
allemã, como outr'ora Minerva Athenea, armada da sua lança, combatia
contra os barbaros em meio da phalange grega.

Esta certeza da alliança divina!... Nada póde dar mais força a um homem,
na verdade, que uma tal certeza, que quasi o divinisa. Mas, tambem, a que
riscos ella arrasta! Porque nada póde fazer tombar mais fundamente um
homem do que a evidencia, perante a crua contradição dos factos, de que
essa certeza era apenas a chimera d'uma desordenada fatuidade. Então
verdadeiramente se realisa a quéda biblica do alto dos céus. Houve um povo
que se proclamava ortr'ora o Eleito de Deus--mas apenas se provou que Deus
não o elegera, nem o preferia a outro, por isso que o abandonava
desdenhosamente--foi desmantelado com incomparavel furor, disperso e
apedrejado por todos os caminhos do mundo, e encurralado em Ghettos, onde
os reis lhe estampavam sobre a casa e sobre a campa uma marca como a que
se estampa sobre a moeda falsa.

Guilherme II corre este lugubre perigo de cahir nas Gemonias. Elle assume
hoje, temerariamente, responsabilidades que, em todas as nações, estão
repartidas pelos corpos de Estado--e só elle julga, só elle executa porque
é a elle, e não ao seu ministerio, ao seu conselho, ao seu parlamento, que
Deus, o Deus de Hohenzollern, communica a inspiração transcendente.

Tem, portanto, de ser infallivel e de ser invencivel. No primeiro
desastre, ou lhe seja infligido pela sua burguezia ou pela sua plebe nas
ruas de Berlim, ou lhe seja trazido por exercitos alheios n'uma planicie
da Europa, a Allemanha immediatamente concluirá que a sua tão annunciada
alliança com Deus era uma impostura de despota manhoso.

E não haverá, então, da Lorena á Pomerania, pedras bastantes para
lapidar o Moysés fraudulento! Guilherme II está na verdade jogando contra
o destino esses terriveis _dados de ferro_, a que alludia outr'ora o
esquecido Bismarck. Se ganha dentro e fóra da fronteira, poderá ter
altares como teve Augusto (e de facto tambem Tiberio). Se perde, é o
exilio, o tradicional exilio em Inglaterra, o cabisbaixo exilio, esse
exilio que elle hoje tão duramente intima áquelles que discrepam da sua
infallibilidade.

E não se mostraram já os prenuncios vagos do desastre? O grande
imperador, ha dias, recebeu apupos nas ruas de Berlim. As plebes
desconfiam de Guilherme e do seu Deus. E (signal temeroso) os pensadores e
os philosophos que foram sempre, na muito intellectual Allemanha, os
formidaveis esteios do despotismo militar dos Hohenzollerns, começam a
amuar com o throno, e a retroceder, pelos caminhos vagarosos do
liberalismo, para o povo e para a justiça social de que elle tem a
consciencia ainda tumultuosa, mas exacta. Onde estão os tempos em que
Hegel considerava a autocracia prussiana quasi como uma parte integrante
da sua philosophia e da ordem do Universo? Onde estão as admirações de
Herbat pelo «Estado concentrado no Soberano?» Onde estão esses altos
entendimentos ensinando nas universidades que a summa da sapiencia
politica na Prussia era--_Deus salve o Rei?_ Onde estão esses louvores ao
direito divino dos Hohenzollerns, cantados por Strauss, por Mommsen, por
Von Sypel? Tudo passou! A metaphysica rosna descontente. Das duas grossas
pedras angulares da monarchia prussiana, o philosopho e o soldado,
Guilherme II hoje só tem o soldado:--e o throno, sobrecarregado com o
imperador e o seu Deus, pende todo para um lado, que é talvez o do
abysmo...

Conseguirá o philosopho persuadir o soldado a sacudir, por seu turno,
o peso sob que geme, é mesmo sob que sangra, se são veridicas as
accusações do principe Jorge de Saxe? O soldado sáe do povo, e sabe lêr.
E se, como a Allemanha toda affirmou, foi o mestre-escola quem venceu em
Sadowa e em Sedan--é talvez elle ainda, com o seu novo livro e a sua nova
ferula, que vencerá em Berlim.

O snr. Renan tem, pois, razão, grandemente: e, nada mais attractivo,
n'este momento do seculo, do que assistir á solução final de Guilherme II.
Dentro em annos, com effeito (que Deus faça bem lentos e bem longos) este
moço ardente, imaginativo, sympathico, de coração sincero, e talvez
heroico, póde bem estar, com tranquilla magestade, no seu _Schloss_ de
Berlim gerindo os destinos da Europa, ou póde estar, melancolicamente, no
Hotel Metropole em Londres, desempacotando da maleta do exilio a dupla
corôa amolgada da Allemanha e da Prussia.



IV


O GRAND-PRIX--A ESTATUOMANIA--OS COCHEIROS--VICTOR HUGO--O CAMPO
EM PARIZ.


Na semana passada o _Grand Prix_--que é a solemnidade official do sport,
do jogo e das _toilettes._ Todos estes elementos estiveram magnificamente
representados na planicie de Longchamps, sob um sol mais severo que o de
Java. Os cavallos eram tão bons que o vencedor, um cavallo francez com o
nome de um heroe hungaro, venceu apenas por uma _quarta parte do
focinho._ As apostas elevaram-se a mais de seis milhões. E havia
_toilettes_ portentosas, entre as quaes unn vestido negro, todo ornado de
crysanthemos brancos.

A tribuna republicana do presidente estava salpicada de sangue real: a
rainha-mãe de Portugal, D. Maria Pia; a duqueza d'Aosta, cunhada do rei de
Italia, uma mulher esplendida, que parece uma Venus de Millo mettida
dentro de um vestido da Laferriere, e que seria realmente digna da Grecia
se não fosse um não sei que de japonez nos olhos obliquos; e depois um
principe indio, o Mararajah de Lhaore, infelizmente de sobrecasaca preta e
sem diamantes. (Que diriam a esta sobria sobrecasaca os seus rutilantes
avós, que já reinavam muitos seculos antes de Christo?)

O calor era horrifico. Á noite, no _Jardim de Paris_, houve, sob as
arvores e os bicos de gaz, a orgia tradicional. Toda a mocidade estava
brilhantemente borracha, _sicut licet._ A unica innovação foi a troca
geral de chapéos: os homens tinham coroada as cabeças, frisadas ou calvas,
com os floridos e emplumados chapéos das mulheres; e ellas, as dôces
creaturas, arvoraram todas chapéos altos. Este modesto delirio não deve
fazer suppôr que Pariz perdesse a seriedade.

Nunca existiu cidade mais grave do que Roma (a verdadeira, a romana).
Pois no dia das Saturnaes, que era uma especie de _Grand Prix_, os
cidadãos mais circumspectos, mesmo magistrados, bailavam nas praças, de
toga arregaçada:--e o austero Catão apparecia no senado com um grande
nariz postiço.


N'esta semana festiva não ha politica. Os ministros andam todos pelas
provindas, fazendo inaugurações e discursos. Um americano, muito
engenhoso, já affirmou que o que caracterisava a civilisação franceza era
ser uma civilisação completa, acabada, com todos os pontos sobre todos os
ii. O conceito é agudo e brilhante. Mas não parece verdadeiro; porque cada
semana, atravez da França, se inaugura alguma cousa que faltava--uma
estrada, um aqueducto, um porto, um pharol. Sobretudo, estatuas de grandes
homens. A França não acaba realmente de fundir em bronze todos os seus
benemeritos.

Desde 1875, o anno em que começou a estabilidade republicana, cada
mez,--que digo eu? cada semana!--se desvenda algures uma estatua d'alguem,
entre discursos, tambores e champagne. Já lá vão quasi vinte annos d'este
fervente trabalho, e ainda ha todavia genios que não têm estatua. Em
compensação, ha outros que têm duas, como um certo Guerin de quem fallava
recentemente Julio Simon. Digo um _certo_ Guerin, porque eu não lhe
conhecia a existencia antes d'essa allusão de Julio Simon, que foi o
inaugurador dos dois monumentos, um em Pontivy, outro em Nantes. De resto,
talvez Guerin seja amplamente merecedor de campear assim em duas praças,
sobre dois pedestaes de granito. Ha ahi alguem que saiba quem é Guerin?
Em França, para que um grande homem consiga estatua é essencial,
sobretudo, que tivesse deixado um filho com influencia na politica ou na
sociedade. Dumas, pae, arranjou o seu monumento da praça Malesherbes,
menos por causa de D'Artagnan que por causa de Dumas, filho. E Balzac,
como não deixou filho, ainda não tem estatua. Nem Chateaubriand. Nem
Victor Hugo. Quem tem já duas é Guerin.


Não sei se fallei já do calor. Está asphyxiante. E o que o torna mais
duro de atravessar é a _grève_ dos cocheiros. Pariz está sem tipoias--o
que é, sobretudo n'este momento, como o deserto sem camelos. Se n'esta
super-civilisada cidade o serviço dos omnibus ou dos bonds fôsse facil,
exacto e rapido, a falta de carruagens não causaria desgostos--e seria
mesmo uma salutar instigação á economia. Mas o omnibus e o bond, em Pariz,
são instituições rudimentares. É mais facil para um pariziense entrar no
céu do que n'um omnibus. Para obter o logar na bemaventurança basta,
segundo affirmam todos os santos padres, ter caridade e humildade. Para
obter o logar do omnibus estas duas grandes virtudes são inuteis e, mesmo,
contraproducentes. Antes o egoismo e a violencia. Depois de conquistar o
logar, a outra difficuldade insuperavel é sahir d'elle--por aquelle meio
natural e logico que consiste em chegar e apear. Nunca se chega--senão
quando já é desnecessario. Eu e um amigo partimos um dia da gare
d'Orleans, á mesma hora; eu no comboio para Portugal, elle no omnibus para
o _Arc de L'Étoile._ Quando eu cheguei a Madrid soube, por um telegramma,
que o meu amigo ia ainda na Praça da Concordia. Mas ia bem. O omnibus em
Pariz é o grande refugio e o local do namoro. Quanto mais comprida a
jornada, mais demorado portanto o encanto. O meu amigo encontrára no seu
omnibus a creatura dos seus sonhos. Era uma loura com sardas
promettedoras. Quando, emfim, chegaram ao Arco da Estrella estavam
noivos--ou peior. São estas pequenas commodidades da vida sentimental que
conservam a freguesia aos omnibus.

Uma das causas, ou antes a causa da _grève_ é que os cocheiros querem
ser funccionarios publicos. Nem mais, nem menos. A sua pretenção é que a
municipalidade de Pariz se torne proprietaria das tipoias de praça e que
elles passem, portanto, a ser empregados municipaes, com ordenado e
aposentação. Cada carruagem constituirá assim uma verdadeira repartição de
que o cocheiro será, a todos os respeitos, o director geral. Não sei o que
o publico lucraria em se ligarem todos os carros ao carro central do
Estado. O funccionario francez é um sujeito tremendamente impertigado. O
cocheiro de Pariz já é horrivelmente impertinente. O que será quando fizer
parte da administração? Accresce que a famosa administração franceza
envolve e embaraça todos os actos da vida do cidadão com formalidades
innumeraveis. É peior que a administração chineza--e menos pittoresca.
Basta lembrar que quem queira canalisar gaz para sua casa tem de implorar
licenças successivas a vinte auctoridades successivas--entre as quaes o
ministro do interior! É pois quasi certo que, quando os serviços dos trens
de praça passarem para o Estado, o cidadão que aspire a occupar um d'esses
trens publicos terá de metter préviamente requerimento, e em papel
sellado! O cocheiro, por outro lado, ha-de querer manter o seu direito de
deferir ou indeferir. Estou pois já vendo, n'um dia de dezembro, uma
familia á hora do theatro, com os pés na lama, apresentando humildemente a
um cocheiro a sua petição para occupar a tipoia--e o digno funccionario,
com as rédeas embrulhadas no braço, depois de percorrer o documento,
respondendo com superioridade: _Indeferido, por causa da distancia e do
mau tempo!_


Não sei porque, fallando de omnibus, me lembro de Victor Hugo. De certo
porque o divino poeta gostava de percorrer a seu Pariz, meditando e
compondo versos, no alto desses pachorrentos vehiculos.

Victor Hugo publicou este mez mais um volume--_Toute la Lyre._ Como o
Cid, que ainda vencia batalhas depois de morto, Hugo cada anno atira de
dentro do seu sepulchro um radiante e victorioso poema. A proposito
d'este, de novo se discutiu se estas publicações posthumas de versos, que
elle em vida atirava para o canto, augmentam realmente a gloria poetica de
Hugo. Discussão ociosa. De certo não augmentam a sua gloria. Essa já está
estabelecida e fixa, no seu maximo esplendor, com as _Contemplations_, a
_Légende des Siècles_ e os _Châtiments._ Mas augmentam o nosso
conhecimento do poeta, revelando novos pensamentos, novas emoções ou
fórmas differentes no exprimir as emoções e os pensamentos que lhe eram
habituaes. Victor Hugo era um grande espirito que sentia e pensava em
verso. Cada verso novo, que nos é desvendado, constitue pois um documento
novo sobre o poeta--sobre a sua visão espiritual ou sobre o seu verbo
lyrico. Ora quantos mais documentos se reunem sobre um homem de genio como
Hugo, mais completo se torna o trabalho critico sobre a sua
individualidade e sobre a sua obra. Para alargar e completar o
conhecimento dos grandes homens, publicam-se-lhe as cartas, todos os
papeis intimos--até as contas do alfaiate. Assim se tem feito para
Lamartine, para Balzac, etc.

Ainda ha pouco foi estabelecido, e provado com documentos, o numero, de
pares de meias de sêda que Napoleão usava cada anno. Eram 365. Ninguem se
queixou. Foi um detalhe historico, geralmente apreciado. Ora se, para
proveito da historia, se põem assim á mostra as piugas d'um grande homem
de guerra, que tem iguaes--é bem justificado que se publiquem os versos,
todos os versos, ainda os menos interessantes, d'um poeta que, sem
contestação, é o maior de todos, em todos os seculos.


A moda, ou antes aquelles que a fazem, acaba de tomar uma resolução
sapientissima. Pariz, d'ora em deante, fica sendo considerado, durante
os mezes de verão, para todos os effeitos sociaes, como campo e não como
cidade. É permittido, portanto, passear, fazer visitas, ir ao theatro,
etc., de chapéo de palha, jaquetão claro e botas brancas. Nada mais justo.
Era com effeito absurdo que Pariz nos servisse 30 graus á sombra--e que
os parizienses continuassem a soffrer a tyrannia da sobrecasaca apertada e
do duro chapéo alto. A moda, mesmo, deveria ir mais longe e permittir a
tanga. O vestuario foi inventado por causa da temperatura, e deve,
portanto, variar com ella harmonicamente. A neve pede pelles, pelles
supplementares, arrancadas a animaes. O sol do Senegal ou de Pariz em
julho, só pede a propria pelle--sem mais nada, além de uma folha de vinha.
Esta seria a logica das cousas. A moda não ousou ser tão radical--e foi só
até á palha e á alpaca.

Mas é um primeiro passo no bom senso. Para o anno, talvez nos seja
permittido o ir á Opera, como deveriamos, em mangas de camisa. Ahi no Rio,
segundo me affirmam, mesmo no verão, se anda de sobrecasaca de panno. É um
lamentavel excesso de decoro social. Ainda se comprehendia no tempo do
imperio, quando a constante sobrecasaca preta do imperador dominava nas
instituições, e portanto determinava os costumes. Hoje a republica devia
apagar esse verdadeiro vestigio do velho regimen, e derrubar a tyrannia do
panno e do chapéo alto. Estou convencido mesmo que essa grande reforma
influiria vantajosamente no estado dos espiritos. Um povo que, com 40
graus de calor, anda entalado em casimiras sombrias e sobrecarregado com
um chapéo alto de ceremonia, é necessariamente um povo constrangido, cheio
de vago mal-estar, propenso á melancolia e ao descontentamento politico.
Que a esse povo seja permittido pôr na cabeça um fresco chapéo de palha e
refrigerar o corpo com cheviotes claros, alegres e leves--e elle respirará
consolado, e tudo desde logo lhe parecerá aprazivel na vida e no Estado.



V


O 14 DE JULHO--FESTAS OFFICIAES--O SIÃO.


Pariz está amuado com a Republica. E, para mostrar bem visivelmente
o seu despeito, não embandeirou, não illuminou, não dançou e não
berrou, na festa nacional de 14 de julho. Nunca tivemos, com effeito,
um 14 de julho mais silencioso, mais apagado, mais vazio, mais
descontente:--accrescendo que o sol tambem amuou e o horisonte todo
appareceu colgado de longas e fuscas nuvens de crépe. Nas ruas, desertas,
com a sua poeira imperturbada, só aqui e além alguma bandeira tricolor
pendia, esmorecida, da varanda das repartições ou dos cafés. Nenhuma guela
enthusiasmada rouquejava a _Marselheza._ As filas de _fiacres_ dormiam
pelas esquinas. E o prestito do snr. Carnot e da revista de Longchamps
pelos Campos Elysios, entre esquadrões de couraceiros, trazia a lentidão e
a gravidade enfastiada de um enterro civico.

Nem um _Vive Carnot!_ Nem uma palma ao velho Saussier, governador
militar de Pariz, e ao seu muito emplumado estado-maior! E quando Pariz
não applaude os pennachos--é que Pariz está realmente macambuzio.

Uma tal taciturnidade, uma tal apathia não provém só dos parizienses
estarem despeitados, porque a policia republicana e o governo republicano
os acutilaram consideravelmente. É certo que em cada bairro se formou uma
commissão para _desorganisar_ a festa e promover uma melancolia de
protesto:--mas essas commissões só impediram luminarias que já estavam
decididas a não illuminar, e só fecharam nas gavetas bandeiras que
realmente nunca tinham tencionado tremular. A verdade é que Pariz e a
França cada vez se desinteressam mais da festa de 14 de julho. Ella nunca
foi essencialmente popular. Se o povo dançava, é porque o Estado lhe
estabelecia uma orchestra nas praças, entre lanternas chinezas:--e onde
quer que haja uma flauta e uma rebeca, com luzes entre verdura,
immediatamente raparigas e rapazes se enlaçarão para uma polka. Mas
espontaneamente, se o Estado não fornecer a orchestra (como succede desde
os ultimos annos) não ha povo que a alugue e que dance só porque em certo
dia, ha cem annos, se derrubou uma certa fortaleza. Em que póde a tomada
da Bastilha enthusiasmar o povo? Querem dizer que ella era a summa e o
symbolo do despotismo monarchico e do direito divino. Mas esse despotismo,
na Bastilha, só se exercia sobre os fidalgos. A plebe não gosava a honra
de ser encarcerada na Bastilha. Se a sua destruição deve regosijar uma
classe, será a classe nobre, a aristocracia do bairro Saint Germain. A
essa competia alugar a orchestra e polkar no dia 14 de julho. Em vez
d'isso, a aristocracia, n'essa data illustre, volta a face com tedio,
cerra as vidraças, foge para o campo, a esconder-se nos parques. Lamenta
portanto a perda da Bastilha. Quereria ainda, no meio de Pariz, as quatro
grossas torres onde pudesse ser sepultada _pro vita_ ao bel-prazer
d'El-rei. Ora, se a aristocracia, que é a interessada, não se regosija com
o dia que a libertou--porque se ha-de regosijar o povo de Pariz?


Além d'isso, festas decretadas, impostas por lei, nunca se tornam
populares, nem duram, porque são horrivelmente ficticias. É o que succede
com os anniversarios de Constituições. Nos primeiros tempos, quando ainda
vivem os homens que fizeram a Constituição, lá se vão pondo pelas janellas
alguns molhos de bandeiras, e lá se accendem algumas centenas de
lanternas, que fazem sahir á noite para a rua as famílias, a «gosar a
illuminação». Depois os annos passam, pouco a pouco se vae esquecendo o
facto mesmo de que existe uma Constituição, a municipalidade diminue as
lamparinas, já ninguem sáe á rua, e a data gloriosa só fica interessando
os estudantes que têm feriado. Em Lisboa, a festa da proclamação da Carta
Constitucional está reduzida a quatro lampeões muito baços e muito
tristes, que se penduram no alto do Castello de S. Jorge. Já ninguem sabe
mesmo que ha uma festa. Na verdade, já ninguem sabe que ha uma Carta
Constitucional.

Festas nacionaes, festas para celebrar uma ideia ou um facto historico,
nunca causarão no povo enthusiasmo, nem o tornarão festivo, porque o povo
não se importa, nem com ideias, nem com a historia, é por natureza
_simplista_, só se move por sentimentos simples e individuaes, e assim
como só se afeiçoa a individuos, só comprehende festas celebradas em honra
de individuos. Por isso, as unicas festas que profundamente animam o povo,
são as religiosas, as dos santos. Para o povo, os santos, os santos
populares e democratas, como S. João, S. Pedro, Santo Antonio, são
individuos que elle conhece, com quem conversa nas orações, com quem
convive, que tem dentro de casa sobre o altarinho domestico e de quem
recebe constantemente serviços e patrocinio. A vida d'esses santos, as
suas façanhas, a sua face barbada ou rapada, as suas vestes, os seus
attributos, tudo lhe é familiar--e elles são como verdadeiras pessoas de
familia, ligadas a toda a histoira domestica, e por isso profundamente
amadas. Quando chega o dia da sua festa, os «seus annos», é com genuino
fervor que se arranjam ramos de flores, e se cozinha um prato de dôce, e
se accendem á noite luminarias, e se dança no terreiro, e se atiram
alegres foguetes. A folgança de cada lar faz o festival de toda a
cidade;--e é o doce amigo, o padroeiro que está no céu, que se celebra com
carinho, na certeza que elle vê a festa, e se mistura a ella do alto das
nuvens, e sorri de reconhecimento e ternura aos seus amigos da terra. Mas
se, em vez de S. João ou de S. Pedro, fôsse imposto ao povo o dever de
celebrar um grande acontecimento da Egreja, como a conversão de
Constantino ou os artigos do concilio de Nicéa, não haveria nem uma
luminaria, nem um foguete. E o povo diria com razão:--«S. João é um amigo
meu, muito intimo, cuja imagem eu tenho á cabeceira, a quem devo favores e
que festejo com immenso prazer; mas essa Nicéa que eu não sei onde é, e
esse Constantino com quem nunca travei relações, não valem para mim o
preço de uma lamparina.»

É o que succede com as festas nacionaes por acontecimentos publicos.
Pertencem muito ao dominio dos principios e aos movimentos sociaes para
que o povo, que é todo individualista, sinta por elles a menor migalha de
enthusiasmo ou carinho. Para que a Republica pudesse ter uma grande festa,
devia organisal-a em favor de um grande republicano. Mas ahi é que está a
difficuldade. Qual grande republicano? Nenhum reune a admiração unanime.

Se se decretasse a festa de Robespierre, todos os liberaes-girondinos
protestariam com furor e haveria sangue.

Se se decretasse a festa de Danton, todos os jacobinos auctoritarios
desceriam á rua com cacetes. Em verdade vos digo, só o céu nos envolve
a todos, e só S. João póde ser festejado sem descontentar a ninguem.

Ha, ao que parece, uma grave, muito grave novidade internacional.

A França e a Inglaterra estão arrufadas. Mais: estão franzindo
terrivelmente, uma para a outra, o sobr'olho e fallando com azedume de
_casus belli._ Este latim, que significava outr'ora _caso de guerra_, quer
apenas dizer hoje, na moderna linguagem internacional, que dous amigos
se zangam, se tratam de _pulhas_ e _malcreados_, se mostram mutuamente o
punho, e mutuamente se voltam as costas.

Este rompimento de relações entre a França e a Inglaterra, tem por
motivo o Sião. O Sião é um reino do Extremo Oriente, muito rico, e
portanto muito appetecivel. Tem um rei bastante curioso, segundo se
deprehende da sua photographia, porque da cinta para cima anda vestido á
chineza, e da cinta para baixo á Luiz XV! E todo o reino, ao que dizem,
participa assim da Asia e da Europa. As suas fortalezas offerecem uma
architectura phantasista de magica--e estão armadas de canhões Krupp. Além
do seu rei, Sião possue toda a sorte de riquezas naturaes, em plantações
e em minas. É portanto um delicioso e proveitoso paiz para possuir. Se eu
tivesse meios de me apoderar de Sião, já esse reino seria meu, e eu
exerceria lá os meus direitos de conquistador com doçura e magnanimidade.
Mas não tenho meios de me apoderar de Sião. A França tem. A Inglaterra
tambem. E ambas, muito naturalmente, se encontram ha annos n'esses confins
do Oriente, lado a lado, com o olho guloso cravado sobre Sião. E não as
censuro. Eu proprio, como disse, se possuisse exercitos e frotas, teria já
empolgado Sião. O animal inconsciente foi posto sobre a terra para nutrir
o animal pensante--e por isso com bois se fazem bifes. Os paizes orientaes
são feitas para enriquecer os paizes occidentaes--e por isso com os
Egyptos, os Tunis, os Tonkins, as Cochinchinas, os Siãos (ou Siões?) se
fazem para a Inglaterra e para a França boas e pingues colonias. Eu sou
civilisado, tu és barbaro--logo, dá cá primeiramente o teu curo, e depois
trabalha para mim. A questão toda está em definir bem o que é ser
civilisado. Antigamente, pensava-se que era conceber de um modo superior
uma arte, uma philosophia e uma religião. Mas, como os povos orientaes têm
uma religião, uma philosophia e uma arte, melhores ou tão boas como as dos
occidentaes, nós alteramos a definição e dizemos agora que ser civilisado
é possuir muitos navios couraçados e muitos canhões Krupp. Tu não tens
canhões, nem couraçados, logo és barbaro, estás maduro para vassalo e eu
vou sobre ti! E este, meu Deus, tem sido na realidade o verdadeiro direita
internacional, desde Ramézes e o velho Egypto! Que digo eu? Desde Cain e
Abel.

Em virtude, porém, d'um respeito innato pelas exterioridades (que data
da folha de vinha) os homens crearam ao lado d'este descarado direito
internacional um outro, o direito ceremonial, todo cheio de fórmulas e de
mesuras, e segundo o qual não é permittido a qualquer nação apoderar-se
d'outra com a simplicidade com que n'uma estrada uma creança colhe um
fructo. Hoje está estabelecido, entre os povos civilisados, que para que o
forte ataque e roube o fraco, é necessario ter um pretexto. Tal é o grande
progresso adquirido.

Ora a França acaba de achar, com jubilo immenso, o pretexto para cahir
sobre Sião. O pretexto é multiplo e complicado: ha uma vaga questão de
fronteira n'uma região chamada Mekongo; ha uma canhoneira que ia subindo
um rio e que apanhou um tiro siamez; ha um marinheiro que foi preso, ou
que cahiu á agua; e ha uns siamezes que berraram _hu! hu!_ Tudo isto é
gravissimo. Parece tambem (e isso infelizmente é doloroso) que houve em
tempos um negociante francez assassinado. E sobretudo succedeu que uns
officiaes siamezes arvoraram a bandeira de Sião por cima da bandeira da
França. Se não foram elles--foram seus paes, como disse o lobo ao
cordeiro. Emfim, o que é certo é que o povo francez necessita, para sua
honra, vingar a affronta feita ao pavilhão tricolor. E não ha duvida que
os dias de Sião acabaram. A França tem o seu pretexto. Adeus meu bom rei
de Sião, vestido da cintura para cima á chineza e da cintura para baixo á
Luiz XV!


Calculem, pois, o furor da Inglaterra! Havia longos tempos que ella se
installára ao pé de Sião, á espera de um pretexto para devorar aquelle
bello bocado do Oriente--e é a França, a nação entre todas rival, que
apanha o pretexto! É contra a França, não contra ella, que os siamezes
berraram _hu! hu!_ É sobre a bandeira da França, não sobre a d'ella, que
os officiaes siamezes hastearam imprudentemente a bandeira de Sião! É a
França emfim que está na deliciosa posse d'estas affrontas, que saboreia a
preciosa felicidade de ser insultada--e que portanto tem o rendoso direito
de se vingar! Tanta fortuna não deve ser tolerada--e a Inglaterra não a
tolera. E já o declarou, através dos seus jornaes, através do seu
parlamento:--«Uma vez que n'esta occasião Sião não pôde ser para mim,
tambem não será para ti! Que a França faça o que julgar necessario á sua
honra, mas que não toque, nem com uma flôr, na independencia de Sião! A
autonomia de Sião é cousa sagrada. O mundo, para permanecer em equilibrio,
precisa que Sião seja livre. Sião só para Sião (desde que não póde ser
para a Inglaterra). E se a França attentar contra a independencia de Sião,
ás armas!» Eis o que diz, n'um dizer mais diplomatico e solemne, aquelle
excellente John Bull.

E aqui está como, de repente, por causa de um pedaço de terra e de um
pouco de minerio, duas grandes nações, guardas fieis da civilisação
e da paz, se assanham, ladram, investem, como dous simples cães vadios
deante de um velho osso.

O que mais uma vez prova a suprema unidade do Universo, pois que nações,
homens e cães, todos têm o mesmo instincto, o mesmo peccado de gula, e,
deante do osso, o mesmo esquecimento de toda a justiça.



VI


A FRANÇA E O SIÃO.


A França começou emfim a devorar Sião. Este ingenuo, amavel e polido
povo recebeu, ha quatro ou cinco dias, um _ultimatum_ em que era intimado
a entregar, sem demora, á França uma immensa porção do seu territorio e
uma não pequena porção do seu dinheiro. Segundo a prudente maneira dos
orientaes, o Sião nem consentiu, nem recusou. Com aquella mansidão e
humildade, que tão propria é de buddhistas e de fatalistas, replicou que
não comprehendia bem as exigencias da França, que appetecia a paz, e que
por amor d'ella estava disposto a dar algum dinheiro, mas não tanto, e a
abandonar algum territorio, mas não tão vasto. Outr'ora, quando os
costumes internacionaes eram mais dôces e complacentes, e os povos
orientaes gosavam ainda (por menos conhecidos) d'uma feliz reputação de
lealdade, esta discreta resposta teria dado motivo a novas negociações,
novos telegrammas, infindaveis cavaqueiras de embaixadores.

Hoje, as maneiras internacionaes são mais bruscas e rudes; os paizes do
Oriente têm uma deploravel fama de duplicidade e falsidade; e a França sem
se deter em mais explicações com o infeliz Sião, bloqueou-lhe as costas, e
fez marchar sobre as provincias do interior as suas tropas coloniaes da
Cochinchina.

Perante estes actos, tão decididos, o furor dos inglezes tem sido
medonho. Mas é um furor unicamente de politicos, de jornalistas e de
commerciantes que tinham grandes negocios com o Sião. O povo, a massa do
povo, permanece indifferente. Não tem sentimento nenhum pelo Sião, não
acredita que elle seja indispensavel á felicidade da Inglaterra, não
percebe porque a Inglaterra cubice ainda mais terras no Oriente, e vê a
França cahir sobre o Sião sem que isso lhe irrite o patriotismo ou lhe
tome amarga a cerveja. Ora, em Inglaterra, que é uma verdadeira democracia,
quando o povo se desinteressa d'uma questão, os politicos e os jornalistas
têm tambem de a abandonar, porque ahi não se criam artificialmente
correntes de opinião; e o governo que provocasse um conflicto europeu, sem
se apoiar n'um forte enthusiasmo popular, não duraria mais que as rosas de
Malherbe, que, como todos sabem, duram apenas o espaço d'uma manhã.

Não! não ha hoje já possibilidade que duas nações européas se batam por
causa de terras coloniaes. Os europeus só se movem por interesses ou
sentimentos europeus, e só por elles arrancam da espada.

Para as questões de colonias lá estão os congressos e os tribunaes de
arbitragem. E uma senhora que ultimamente, n'um salão, considerava como a
cousa mais pueril e mais grotesca que duas nações tão elegantes como a
França e Inglaterra se batessem por causa de _bichos tão feios como os
siameses_--estabelecia, sem o saber, a verdadeira doutrina do seculo.
Quando a França, e a Inglaterra não vieram ás mãos por causa do Egypto,
que é a joia do mundo, a terra entre todas preciosa, pela qual se têm
dilacerado todos os povos desde o diluvio--não ha receio que jámais duas
nações da Europa quebrem a doce paz por causa de interesses orientaes.

De sorte que todas as declamações dos jornaes sobre guerra são um mero
desabafo de rhetorica heroica. E como não ha o menor perigo (e elles
perfeitamente o sabem) de se chegar á boa cutilada, não é desagradavel,
n'estes ociosos dias de verão, roncar d'alto, com o sobr'olho franzido,
e a mão nos copos do sabre. Assim se vae gastando, com arreganho, alguma
tinta--sem medo que se venha a gastar sangue.


Em todo o caso, n'estas rivalidades coloniaes entre a França e a
Inglaterra, eu penso que a Inglaterra tem, em principio, mais direitos.
Quando ella se apodera d'um d'esses desgraçados reinos d'Oriente (como a
Birmania, ha pouco) sabe ao menos como ha-de utilisar e valorisar a sua
conquista.

Em primeiro logar, tem logo um numero illimitado de homens, energicos e
emprehendedores, que, ou sós, ou com as familias, embarcarão para ir
povoar, colonisar, cultivar, industrialisar, e por todos os modos explorar
a nova terra ingleza. Depois tem uma prodigiosa quantidade de productos
fabris para exportar para lá, e lá vender, sem concorrencia. Depois tem
uma collossal frota mercantil, para fazer com a nova possessão um
commercio activo e contínuo. E emfim tem uma formidavel frota de guerra
para defender a sua acquisição. A França, essa, não tem nada d'isto--nem
frota, nem productos, nem homens. Não tem sobretudo homens, porque a
população da França não chega mesmo para a França. Quando ella se apossa
violentamente de Tunis ou do Tonkin, o unico acto colonial que depois
pratica é remetter para a recente colonia alguns soldados e muitos
empregados publicos. A França faz conquistas para exportar amanuenses.
No Tonkin, por exemplo, ella possue, no solo, occultas riquezas
maravilhosas; mas não tem colonos que as vão explorar. A expansão colonial
da França não dá assim lucro nenhum, ou alargamento á civilisação geral.
Apenas promove, através dos mares, uma deslocação de amanuenses
aborrecidos e enjoados. Ao contrario, cada palmo de chão, que a Inglaterra
occupa, entra no movimento universal da industria e do commercio.

A Inglaterra tem virilidade colonial e a França só impotencia. Quando
um homem novo, robusto, activo, penetra numa aldeia e rouba uma linda
rapariga, commette de certo um acto escandaloso, e que todos devem
condemnar com severidade. Mas esse valente homem tem uma justificação,
um motivo que se comprehende (e com que mesmo se sympathisa): e se, d'esse
enlace, lamentavelmente illegitimo, nascerem filhos sãos, fortes, activos,
ha alli um positivo lucro para a humanidade e para a civilisação. Quando,
porém, é um velho de oitenta annos, regelado, cachetico e a babar-se, que
penetra na aldeia e rouba a linda moça, estamos então deante de um
escandalo que não tem justificação possivel. É um escandalo
ignominiosamente esteril. Nada lucra com elle a humanidade, nem o velho. E
só podemos cruzar os braços com espanto e indignação, e exclamar: «Para
que quer aquelle velho aquella moça?»

E é o que exclamamos agora, tambem, cruzando os braços: «Para que quer
esta França este Sião?»


Eu tenho um amigo que esteve n'esse pobre Sião, hospedado pelo rei, no
palacio, e conta detalhes bem pittorescos.

Todo o reino de Sião pertence ao rei, tão completamente como ahi uma
fazenda de café pertence ao fazendeiro. O rei é o dono do solo, dos
edificios, dos habitantes e da riqueza dos habitantes. Póde, querendo,
doar, hypothecar, trocar ou vender o reino com tudo o que está dentro das
fronteiras.

É uma posse agradavel. O povo, por seu lado, considera o rei não só como
seu dono, mas como seu deus. E a formula religiosa (como se dissessemos
o artigo da Constituição) que define as relações e deveres entre povo e
rei é esta: «_Do rei o povo recebe a vida, o movimento e o sêr_».

O rei tem um nome immenso, chama-se Prabat-Tomedetch-Pra-Parammdir,
etc., etc., etc. Todo elle não caberia em cincoenta linhas. E de cada vez
que se falla ao rei (só os nobres gosam esse privilegio) é da etiqueta
invocal-o com o nome todo.

Uma conversa com Sua Magestade dura, assim, longas e longas horas, por
causa do nome. De facto a mais laboriosa e pesada occupação da
corte é pronunciar o nome d'el-rei.

Pessoalmente, o rei é um homem excellente, cultivado, affavel,
gracejador, bondoso. É mesmo bonito, para siamez.

E as suas maneiras têm nobreza. O que a estraga é o seu illimitado
poder, a sua posição de divindade, e a prodigiosa, inverosimil adulação
que o cerca. Assim é uma regra (e cumprida com fervor) que todo o siamez
que tem uma filha bonita a dê de presente ao rei. As suas concubinas
officiaes excedem em numero as de Salomão. São aos milhares. E o rei,
apesar de novo, de não contar ainda quarenta annos, já tem cento e oitenta
e tantos filhos! Tudo isto, esposas e filhos, vive no palacio, que
offerece as proporções de uma vasta cidade. Ha ruas inteiras de esposas!
Ha bairros inteiros de filhos! Toda esta immensa familia vive com um luxo
immenso, e o rei, apesar de dispôr de todas as riquezas do Sião como suas,
está horrivelmente endividado em Londres. Ás vezes, porém, elle proprio
procura fazer economias: e foi assim que, no momento em que o meu amigo
estava no Sião, el-rei deu ordens para que, por economia, se não ferrassem
mais os cavallos da cavallaria. Havia cem cavalleiros, eram cem ferraduras
poupadas. Eis aqui um traço bem siamez!

O rei nunca sáe do palacio, não conhece o seu reino, mal conhece a sua
capital, que é Bangkok. Quando por acaso dá um passeio, é uma grande
festa, uma grande gala. As ruas são aplainadas e areadas; pintam-se as
casas de fresco; os canaes (porque Bangkok assemelha-se a Veneza) levam
uma rapida limpeza; toda a população se lava, se alinda, se cobre de
joias; e para que não chova celebram-se preces nos templos. Depois o rei
recolhe, e por muitos e muitos mezes, Bangkok recahe no usual desleixo e
porcaria. Só no palacio ha aceio. De resto, o palacio é que é a nação.


Mas basta de Sião! A culpa é de Pariz que não se quer occupar senão
d'este remoto reino, cuja existencia elle, ainda ha oito dias, ignorava.
Porque o francez, e sobretudo o pariziense, continua a ser aquelle que
Goethe descreveu--«um individuo de muitos cumprimentos, que não sabe
geographia.» É talvez mesmo para ensinar geographia ao povo francez que o
seu governo emprehende conquistas. Para que, fóra da Europa, elle conheça
uma nação, o governo préviamente faz d'ella uma colonia.

Assim se irá alargando a instrucção geographica em França. E, com as
acquisições coloniaes feitas n'este seculo, já o francez, quando se lhe
perguntar quantas são as partes do mundo, poderá (o que outr'ora não
podia) responder com um saber exacto e forte:

--Cinco: A Europa, a Algeria, Tunis, o Tonkin, o Sião!



VII


A QUESTÃO BULOZ--A «REVISTA DOS DOUS MUNDOS»--PARIZ NO VERÃO.


Por fim o Sião cedeu:--e, muito avisadamente, para evitar a immensa
maçada de se bater (o que é extremamente penoso, no verão, para um
oriental d'habitos dôces e languidos), para evitar tambem a horrivel
séca de ser vencido, e talvez desthronado, o rei de Sião entregou á
França, incondicionalmente, todos os milhões e todas as provincias que
ella reclamava para «vingar a sua honra.»

Póde pois esse excellente e ameno monarcha continuar placidamente a
educar nas ideias da civilisação occidental (de que elle acaba de ter uma
tão directa experiencia) os seus cento e oitenta filhos. E o Sião
desapparece das preoccupações do mundo. Era tempo: havia semanas que se
desleixavam os grandes assumptos, os que verdadeiramente interessam a
humanidade, como o caso do snr. Buloz.

Não sei se conhecem ahi a questão Buloz. Pois é uma questão tremenda.
Basta ver como diariamente os jornaes a retomam, a sondam em todos os seus
escaninhos, lhe annunciam a evolução, lhe prophetisam soluções, fazem
depender d'ella os destinos das boas lettras francezas. Não ha ninguem que
não conheça Buloz. Pelo menos ninguem deve ignorar o seu nome n'esses
_dous mundos_ que elle, todos os quinze dias, esclarece, educa e entretem,
por meio da sua illustre e famosa _Revista._ Porque é d'elle que se trata,
de Buloz, do unico Buloz, de Buloz director da _Revista dos Dous
Mundos!_

Que memorias este nome de Buloz nos traz da nossa mocidade! Nenhum havia
então que nós pronunciassemos com mais alegre horror--porque elle
representava, para o nosso grupo revolucionario e enthusiasta das fórmas
novas e audazes, tudo quanto na litteratura havia de mais conservador e
burguez. Toda aquella sua séria e ponderosa _Revista dos Dous Mundos_
nos parecia então exhalar um cheiro horrendo a bafio e a lettras mortas.

E escrever na _Revista_, pertencer á _Revista_ era para nós uma maneira
especial de ser fossil.

Quantas alcunhas pittorescas postas a essa magestosa _Revista!_ Quantas
phantasias edificadas sobre a sua faculdade de adormecer e de embrutecer!
Um amigo nosso compuzera um conto em que o heroe, trahido n'um amor
sincero, e appetecendo a morte, escolhia, em vez d'um frasco de laudano,
um numero da _Revista dos Dous Mundos_:--e ao chegar ás ultimas paginas, á
«Chronica da Politica Estrangeira», mergulhava com effeito no somno
eterno. Ainda me lembro d'uma definição da _Revista_, dada por um de
nós:--«Uma publicação côr de tijolo, que tem dous leitores no Havre!»

Tudo isto era excessivo e injusto. A _Revista_, de facto, tinha leitores
por todo o mundo:--e, como se sabe, e já tem sido dito, _Todo-o-Mundo_
é um sujeito que tem muito mais espirito que Voltaire. Com os seus trinta
annos de valente existencia, ella era já então uma larga e fecunda
remexedora de ideias e de factos:--e não houvera de resto nenhum grande
francez, desde Alfred de Musset, que não tivesse commettido esse acto,
para nós tão vergonhoso: «escrever na _Revista_». Todos tinham
escripto--mesmo Murger, o bohemio. Nós, porém, só começámos a desarmar do
nosso rancor, quando ella publicou versos dos dous grandes idolos d'essa
geração--Lecomte de Lisle e Beaudelaire. É verdade que os versos de
Beaudelaire, tirados das _Flores do Mal_, apresentou-os ao publico, por
assim dizer, na ponta de tenazes, e com immensas precauções sanitarias.
Havia por baixo dos versos uma nota da direcção, toda enojada, em que ella
repellia qualquer solidariedade com semelhante infecção, e jurava que só a
exhibia como uma lição moral, para mostrar a que excessos e a que
desordens póde rolar a litteratura, quando sacode audazmente a salutar
disciplina e as boas regras de Boileau. Mas, emfim, publicava Beaudelaire
(mesmo alguns dos versos mais temerarios)--e esta concessão, este começo
de homenagem prestada ao Satanismo (o Satanismo era então uma escola, e
todos nós nos consideravamos Satanicos) adoçou um pouco as nossas relações
intellectuaes com a _Revista._ Modificámos mesmo a definição irrespeitosa.
Era então uma «publicação côr de salmão, que tinha já dous leitores no
inferno!»

Tão persistentes são as impressões da mocidade, que ainda hoje eu não
vejo a _Revista dos Dous Mundos_ sem um sentimento vago e inexplicavel
de tédio. Sei perfeitamente que ella é cheia de bom senso e de saber
especial, possue uma lingua sobria e pura, tem muita elegancia e finura
academica, e por vezes se lhe encontra, aqui e além, um sopro de forte
originalidade. Mas quê! A sua presença é para mim como a de uma grave
matrona, pesada, rica, bem collocada no mundo, cujos labios descorados,
faltos de sangue vivo, só deixam cahir, com uma arte discreta, o que está
absolutamente dentro do decoro e da tradição. Não duvido que a convivencia
com essa matrona seja salutar, proveitosa, e conducente a boas vantagens
sociaes; mas prefiro ainda assim uma musa alegre do _Quarter Latin._ É
talvez para fingir a mim proprio que ainda sou moço.


Foi por isso com certa alegria maliciosa que eu li nas gazetas que o
snr. Buloz e, com elle, a pudibunda _Revista dos Dous Mundos_ se achavam
envolvidos n'um escandalo de amores e de intrigas. O quê! Ella, a
_Revista_, que com tão austera altivez denunciara durante tantos annos
Zola á execração publica, eil-a agora atolada, e até ao pescoço, n'uma
aventura escabrosa! Como assim? Buloz, o proprio Buloz, que fazia uma tão
severa policia dentro da sua _Revista_, que esquadrinhava todos os
romances com terror de que lá estalasse n'algum canto algum beijo mais
voraz, que perseguia rancorosamente, com a ferula da honestidade, e em
nome do «pudor domestico», toda a litteratura de observação, sincera e
livre, eil-o agora por terra, enrodilhado em saias ligeiras e
illegitimas!! Como assim? E tudo isto, pelo contraste eterno entre o que
frei Thomaz prega e o que frei Thomaz faz, me parecia divertido.

Depois, mais informado, lamentei sinceramente o excellente Buloz e a
excellente _Revista._ Porque não havia aqui realmente um romance d'esses
que o proprio Buloz condemnava sombriamente como «infectos»--mas um roubo,
um longo e abjecto roubo, organisado contra Buloz, e portanto contra a
_Revista_ de que elle é a encarnação viva--por dous d'esses horriveis
personagens a que Balzac chamava impropriamente os _tubarões de Pariz._
Tubarões, sim, no sentido de nadarem anciosamente no oceano pariziense á
cata da presa. Mas isso mesmo fazem todos os peixes, no mar e em Pariz.

Os tubarões, porém, e é essa a sua feição caracteristica, engolem
indifferentemente e com egual appetite uma velha garrafa vazia, ou uma
gorda e succulenta pescada; e estes tubarões de Pariz, de que falla
Balzac, escolhem com cuidado a presa, e só arremettem contra ella,
quando ella é tão succulenta e gorda como Buloz.

O caso, tal como transparece, atravez de tantas versões e mesmo de
tantas ficções, é lamentavel. Buloz ha annos, no meio do caminho da sua
vida (como diz o Dante, que tinha um modo incomparavelmente magnifico de
contar estes casos) encontrou uma rapariga. Não era uma Beatriz, mas uma
fulana qualquer, que nem ao menos tinha belleza justificativa. Mas, quando
se tem vivido, durante vinte annos, dentro da _Revista dos Dous Mundos_,
toda a face moça, com um pouco de lume no olho, parece uma visão de alto
esplendor. Buloz, apesar de director de revista, era homem e sensivel.
Teve n'uma hora nefasta (talvez entre dous artigos de Charles de Mazade!)
uma d'aquellas tentações que, a acreditarmos Santo Agostinho, nenhuma
alma, nem mesmo robustecida na constante convivencia dos Broglie e dos
Remusat, evita ou vence.

Buloz cedeu--ou, antes, a rapariga cedeu. (E o ingrato Buloz agora
pretende, em confidencias que fez a um reporter do _Gaulois_, que «foi
uma semsaboria».) Semsaboria ou delicia, desde esse momento supremo elle
passou a ser o homem mais explorado de toda a christandade e mesmo de toda
a mourama. Pagou, naturalissimamente, as _toilettes_ da menina e da
familia da menina; mobilou para a menina casa no campo e casa na cidade;
e para a tornar mais respeitavel, e robustecer a sua posição na sociedade,
deu um dote e um marido á menina.

Educado no idealismo incorrigivel dos romances da _Revista_, imaginava
Buloz que, tendo fornecido o dote e o marido, liquidara para sempre
o erro sentimental da sua vida. Buloz ignorava a realidade humana, e
sobretudo pariziense. Desde esse instante, ao contrario, a menina e o
marido tomaram posse definitiva de Buloz. Ameaçando o desventuroso homem
de revelarem a sua «infamia de seductor» a Mme Buloz e á _Revista dos
Dous Mundos_, o horrendo casal passou a saquear Buloz, como se saqueia
uma cidade conquistada.

Ao principio com methodo, com ordem, mensalmente. No primeiro do mez,
os dous bandidos apresentavam a conta do seu silencio--e Buloz pagava
pontualmente o silencio dos dous bandidos. Depois as exigencias foram mais
urgentes e tumultuosas. É o comer que faz a fome. O abominavel par queria
reunir rapidamente uma fortuna--e cada dia, agora, ás vezes mesmo duas
vezes por dia, Buloz recebia a reclamação de novas sommas a pagar. E
pagava--para manter intacta no mundo, com a sua posição domestica, a sua
situação social de director grave de uma revista grave. Estava quasi
arruinado--e a menina e o marido não estavam saciados. Ao contrario,
fartos das pequenas sommas «que não luzem», queriam a grossa somma--e,
com ameaças mais ferozes, forçaram o infeliz homem a assignar uma lettra
promissoria de perto de _setecentos mil francos._

Buloz, todavia, já tinha dado mais de um milhão!

Segundo elle affirma, Buloz queixou-se á policia. Mas, ao que parece,
os dous bandidos, por isso mesmo que estavam ricos, tinham já adquirido
respeitabilidade e amigos. Havia grossas influencias que os protegiam
contra as queixas de Buloz--influencias pagas talvez com o dinheiro
sacado a Buloz. Alliança de «tubarões»--como diria Balzac. O facto é que
a policia se conservou n'uma magistral indifferença. Então, estonteado,
desesperado, Buloz, um dia, foi contar tudo á sua mulher e á sua
_Revista._ Immediatamente, implacavelmente, Mme Buloz se separou do seu
marido, e a _Revista dos Dous Mundos_ se separou do seu director. E o
grosso escandalo domestico e litterario estalou sobre Pariz.

Que fará em definitiva Mme Buloz? Sobretudo, que fará em definitiva a
_Revista dos Dous Mundos?_ Era esta, durante semanas, a interrogação
anciosa de Pariz, que, mais que nenhuma outra cidade da Europa, se compõe
de comadres mexeriqueiras. A solução não tardou--e cruel.

Uma sentença do tribunal dos divorcios pronunciou seccamente o divorcio
entre Buloz e Mme Buloz. E uma assembléa dos accionistas da _Revista_
pronunciou egualmente divorcio entre a casta _Revista dos Dous Mundos_
e o seu galante director Buloz. Assim Buloz, ao fim da vida, perde a sua
mulher e a sua revista. E porquê? Por ter sido abjectamente roubado,
durante annos, por dous odiosos bandidos. Esses é que não perderam nada,
os bandidos, nem mesmo a consideração do seu bairro, porque durante todo
o escandalo os seus nomes não foram sequer pronunciados, á maneira de
nomes sagrados. Tal é Pariz.

Sobre a resolução de Mme Buloz não é permissivel fazer commentarios.
Mas a resolução dos accionistas da _Revista_ parece-me excessivamente
austera e illogica.

Durante esta sua amarga aventura, Buloz não fez senão adquirir noções
exactas sobre as realidades da vida--e o seu peculio de conhecimentos
sobre o homem e a mulher deve-se ter singularmente enriquecido. Está pois,
mais que nunca, nas condições experimentaes de dirigir uma revista,
sobretudo aquella secção de revista de que elle com mais particular amor
se occupava, a do romance. Agora realmente é que a opinião de Buloz sobre
enredos, caracteres tortuosos de heroinas e miserias finaes de todo o
sentimento teria valor e auctoridade. E agora justamente é que o afastam
d'essa cadeira directorial de alta critica, para a qual as suas
desventuras o tinham, emfim, tornado idoneo! Ha aqui evidentemente um erro
de criterio, além de uma falta de misericordia.

Em todo o caso, assim acaba na _Revista dos Dous Mundos_ a grande
dynastia dos Buloz. Este, se não me engano, era Buloz III. Que diria Buloz
I, o fundador, se soubesse que a sua raça fôra desthronada da _Revista_
por um escandalo de coração? Tal é a ironia das cousas! A mais austera,
solemne, pudica, de todas as publicações européas, tendo chegado aos
sessenta annos, sem que nunca uma realidade ardente das cousas d'amor
houvesse maculado as suas paginas, tem de repente de se separar do seu
director, do homem que a symbolisava, por motivos de patuscada em alcovas
illegitimas! _Habent sua fata Revistœ._

Pariz fugiu de Pariz. Com este calor de phenomeno, (40 graus á sombra)
em que se póde torrar o café dentro das casas só com estendel-o
simplesmente sobre o chão, a população abandonou a cidade, n'um verdadeiro
exodo, e maior que o de Moysés, porque esse foi só de quarenta mil
hebreus, e d'aqui, segundo affirmam os jornaes, abalaram hontem, em
centenas de comboios, cerca de cento e trinta mil pessoas.

Só ficaram os empregados publicos. E ainda assim, havia ha dias uma
administração de bairro, em que todos os empregados, desde o chefe ao
contínuo, se achavam no campo ou no mar.

Era um visinho da repartição, um logista, que fazia o serviço, por
dedicação civica.

Em todos os Campos Elysios, só raramente se avista alguma carruagem
arquejante. Toda a folhagem das arvores seccou.

Aqui e além, nas ruas desertas, passa por vezes, fugindo á pressa, um
guarda-sol: é um dos derradeiras parizienses, que corre do café onde se
attestou de cerveja para outro café onde se vae innundar de limonada. Os
cavallos das carroças trazem chapéo; e a acreditar os jornaes já se pensa
em lhes fazer usar, por causa da grande reverberação da luz, lunetas
defumadas.

Todavia Londres está mais ardente. Ahi o calor produz quasi uma crise
nos costumes. Hontem os membros do parlamento celebraram a sessão, na
Camara dos Communs, em mangas de camisa.



VIII


AS ELEIÇÕES--A ITALIA E A FRANÇA.


As eleições em França, celebradas no ultimo domingo, foram talvez o mais
solido e completo triumpho que a democracia tem obtido n'estes vinte
annos: pelo menos foram a sua mais franca, mais positiva e mais corajosa
affirmação.

N'essa abrazada manhã de missa, com effeito, o suffragio universal
consultado (esse suffragio universal que ainda ha pouco, em departamentos
remotos, os homens de campo consideravam como um personagem vivo, vestido,
condecorado, cheio de poder, de quem particularmente dependiam as leis do
imposto e do serviço militar) começou por eliminar da Representação
Nacional todos aquelles que, nos derradeiros tempos, se tinham erigido
como paladinos da moralidade publica e limpadores valentes de cavallariças
de Augias:--e assim os que, durante a legislatura passada, se ergueram, na
tribuna e no jornal, contra a corrupção parlamentar e financeira, como
Drumont, Andrieux, Delahaye, etc., foram derrotados em todos os circulos,
com um enthusiasmo esmagador e jovial.

Feita esta primeira eliminação, o suffragio universal passou a riscar
cuidadosamente do parlamento todos os politicos profissionaes e
militantes, que, na direita ou na esquerda, faziam essa politica negativa,
só diluidora e desmanchadora, occupada apaixonadamente, e com uma arte
subtil, a embaraçar ministros e desorganisar ministerios.

E assim homens como Clemenceau e Cassagnac, que entravam na camara com
unanimidades triumphaes, estão, senão já derrotados, pelo menos
humilhantemente empatados, e prestes no proximo domingo a voltar áquella
occupação tão justamente louvada pela sapiencia antiga, e que consiste em
cada um plantar as suas couves dentro do seu quintal.

Terminada esta segunda limpeza, o suffragio universal passou a expulsar
da representação nacional todos os ideologos, todos aquelles que procuram
fazer a remodelação das fórmas sociaes por meio de uma revolução nas
ideias moraes. E assim um nobre homem como o conde de Mun, o cavalleiro
andante do socialismo christão, é vencido na Bretanha, sua patria
espiritual, por um pequeno advogado bretão que, em vez de annunciar aos
eleitores o proximo advento do céu sobre a terra, lhes promette, muito
comesinhamente, uma reforma do imposto rural.

Realisada esta terceira expurgação, o suffragio universal passou a banir
das camaras, enojado, os artistas, os cinzeladores da palavra, os mestres
inspiradores da oratoria. _Basta de lyra!_ gritavam em 1848 os operarios
famintos a Lamartine, uma tarde em que elle, na cadeira do Hotel de Ville,
estava arengando e sendo sublime. Toda a França industrial e agricola
repete agora o mesmo grito positivo. Basta de lyra! Abaixo a eloquencia!
Fóra a rethorica e a sua rijada ardente!

E assim todos os grandes oradores contemporaneos da tribuna franceza
ficam de repente sem tribuna e sem profissão, porque (caso unico na
historia) a democracia rejeita definitivamente a eloquencia como factor
do seu progresso.

Tendo realisado estas successivas depurações, e repellido para longe,
para os seus elementos naturaes, os Catões, os obstructores, os ideologos
e os artistas, o suffragio universal passou a eleger com cuidado e amor
uma camara bem mediana, bem ordeira, bem pratica, bem positiva, toda
experiente em cifras, superiormente conhecedora dos interesses regionaes,
capaz de trabalhar quatorze horas nas commissões, e feita á imagem e para
o util serviço d'esta França nova, que é simultaneamente um banco, um
armazem e uma fazenda. Depois o suffragio universal descançou--e viu que a
sua obra era boa.

Com effeito é uma boa obra de democracia. Em primeiro logar, todas as
superioridades que podiam desmanchar e desnivelar a egualdade intellectual
da camara (e a egualdade deve ser o cuidado summo de toda a democracia)
foram eliminadas com aquella decidida franqueza com que o bom Tarquinio
outr'ora cortava, no seu horto, as cabeças purpureas e brilhantes das
papoulas mais altas.

Na camara não haverá senão espiritos medios e planos--e toda ella será
realmente como uma longa planicie, productiva e chata, sem uma eminencia,
uma linha que se eleve para as alturas, moinho torneando ao vento ou torre
airosa d'onde vôem aves.

Depois todos os moralistas de moralidade rigida, e quasi abstracta,
foram supprimidos como incompativeis com a realidade social, com os
costumes financeiros d'uma democracia industrial, com o regular e fecundo
funccionamento dos negocios. O suffragio universal entendeu que, para
bem da democracia, de que elle é o motor inicial, o logar d'estes homens,
desarranjadores estereis de todos os arranjos uteis, era não nos bancos de
um parlamento, mas nas cellas de um mosteiro, ou no deserto entre os
santos que, como S. João, lá pregam por gosto e profissão.

Depois todos os ideologos, os philosophos, os homens de altos systemas
sociaes, que constantemente tentam introduzir nas cousas publicas Deus,
a alma, o infinito, a bondade progressiva e outras entidades que lhes são
inteiramente estranhas e prejudiciaes, foram escorraçados como
perturbadores impertinentes da boa ordem democratica, onde as massas
disciplinadas, com os olhos praticamente postos em terra e na ferramenta,
se devem occupar unicamente de produzir bem e de vender bem.

E finalmente os oradores, os artistas, os poetas foram, por este
suffragio universal e segundo o prudente preceito de Platão,
ignominiosamente expulsos da Republica.

Estas eleições, pois, foram incontestavelmente uma boa obra de
democracia. E por isso os jornaes affirmam que a França purificada emfim,
e livre dos elementos morbidos que a agitavam e debilitavam, vae entrar
n'um periodo ditoso de estabilidade e de força fecunda. _Amen._

Emquanto o suffragio universal estava assim tonificando a Republica, um
conflicto entre operarios francezes e italianos, n'um departamento do sul
(em Aiguesmortes) veio avivar e exacerbar esta inimizade, mais politica
que nacional, que ha annos vem crescendo entre a Italia e a França.

Foi a antiga historia dos salarios. O italiano emigra para a França,
como emigra para a America, a buscar o trabalho cada vez mais difficil na
Italia que, aparte um bocado succulento da Sicilia, e um pingue bocado da
Lombardia, é toda ossos e montanhas. Ou por ser d'uma raça mais sobria, ou
d'uma raça mais indigente, o italiano acceita salarios muito inferiores
aos do operario francez. Como ao mesmo tempo tem muita intelligencia e
muita destreza, é naturalmente preferido pelos patrões,--porque o capital
é cosmopolita. D'aqui despeito, rancor do operario francez, ameaçado no
seu pão--e constantes rixas, em que o italiano, naturalmente, puxa a faca,
essa faca meridional que enche de horror e de asco os povos do norte.

Foi o que aconteceu em Aiguesmortes, com a aggravante lamentavel de que
um bando de italianos que, depois de uma tremenda baralha, se tinham
refugiado n'uma malta, foram ahi perseguidos pelos francezes, monteados
como lobos, e dizimados a tiro, um a um.

Indignação immensa em toda a Italia. Manifestações em Roma, em Genova,
em Napoles. Assaltos aos consulados de França, ultrajes á bandeira da
França. E, como nas Vesperas Sicilianas, o velho grito de _Morra o
francez!_ acompanhado agora, para maior offensa, do grito novo de _Viva
a Allemanha!_

Os francezes ainda podem tolerar magnanimamente que a Italia, que elles
consideram como obra sua, feita pelas suas armas e com o cimento do seu
sangue, berre: _Abaixo a França!_ Ha ahi apenas, para elles, esquecimento
e ingratidão. Mas não podem supportar que a Italia grite: _Viva a
Allemanha!_ Ahi já ha um desafio, e como que uma affronta á dignidade da
nação. De sorte que se os italianos assassinados em França indignaram a
Italia--a indignação da Italia, sob esta fórma obliqua e quasi ironica de
enthusiasmo pela Allemanha, indignou muito mais profundamente a França. E
as duas nações estavam já assim, ha duas semanas, em face uma da outra,
quietas, mas penetradas de mutua hostilidade, tanto maior da parte da
França quanto tem de ser, por prudencia, silenciosa. Mas eis que agora,
n'estes ultimos dias, a Italia praticou, para com o sentimento francez, um
outro e supremo ultraje.

O imperador da Allemanha vem este anno dirigir as grandes manobras
militares nas provincias francezas conquistadas, Alsacia e Lorena. E quem
acompanha o imperador da Allemanha, como seu hospede e alliado? O principe
real de Italia. Ora, para os francezes, esta presença do principe italiano
na terra alsaciana é uma offensa monstruosa. E é realmente uma offensa?

Ha aqui uma susceptibilidade muito delicada, que é difficil criticar. Em
boa verdade, hoje a Alsacia e a Lorena são, geographicamente e
administrativamente, provincias allemãs como a Pomerania ou o Brandeburgo:
e não parece que, no facto do principe da Italia ir a Strasburgo, haja
maior injuria do que ir a Berlim ou a Leipzig. Além d'isso, a sua presença
não vae consagrar a conquista que é um facto consummado ha mais de vinte
annos, e não precisa consagração. Accresce ainda que o imperador da
Allemanha não vem á Alsacia e Lorena com intenções arrogantes de desafio:
e o principe de Italia não está, portanto, collaborando tacitamente n'uma
provocação allemã. Depois elle foi solemnemente convidado a assistir ás
manobras allemãs, que se realisam por acaso nas provincias annexadas: e se
o _acceitar_ um convite para essa região é offender a França, o _recusar_
o convite seria, pelos mesmos motivos, insultar a Allemanha. Tudo isto é
indiscutivel. Mas o patriotismo, como o amor, não se raciocina, quando
ferido. Para os francezes, a Alsacia e a Lorena são duas terras francezas
que gemem sob a oppressão. E o facto do principe de Italia vir caracolar
sobre esse solo vencido e dorido, ao lado do oppressor, é, para os
francezes, uma affronta incomparavel. De sorte que uma reconciliação entre
a França e a Italia é hoje quasi impossivel, tanto mais que ás questões de
politica se juntam questões de dinheiro (sempre irritantes) e a estas
ainda uma outra questão sentimental de gratidão, mais irritante que a de
pecunia.

Com effeito, a França pretende que a Italia esteja para com ella n'um
perpetuo e enternecido estado de gratidão. E esta exigencia da França
tem o condão de enervar a Italia--de a enervar até ao desespero. É um
facto psychologico bem conhecido (e Labiche superiormente o pintou n'uma
das suas comedias geniaes) que o libertado sente sempre um secreto tedio
pelo libertador. Mas quando o libertador constantemente e garrulamente
cita, lembra e celebra o beneficio da libertação--não é tedio então, é
intenso e vivo odio que o libertado começa a nutrir pelo heroe que o
libertou. É bem natural--porque o fraco não póde esquecer que o apoio
trazido pelo forte foi uma demonstração publica e apparatosa da sua
fraqueza. Todos aquelles que Hercules outr'ora veiu salvar, com grande
alarido e grande farofia, ficaram detestando Hercules.

Ora a Italia realmente tem sido libertada de mais pela França, desde
Carlos VII! E todas estas intervenções libertadoras lhe foram
horrendamente caras, além de algumas d'ellas lhe serem desoladoramente
inuteis.

A de Nápoles I quasi a arruinou, além de a anarchisar. E Napoleão III,
que concorreu effectivamente para fazer o reino de Italia, voltou de lá
bem pago em boas terras, com Nice e com a Saboia. Mas além d'isso a França
tomou o habito arrogante e humilhador de affirmar que ella e só ella creou
o reino da Italia, pela força das suas armas e do seu dinheiro: quando
realmente a Italia pretende, e com razão, que ella sobretudo concorreu
grandemente para esse resultado magnifico com o seu dinheiro, as suas
armas, o seu patriotismo e a habilidade suprema dos seus homens de estado.
N'estas condições, é facil comprehender a irritação dos italianos quando
os francezes os accusam de ingratidão, e lhes lembram altivamente que se a
Italia hoje é uma nação é porque assim o quiz a França na sua
magnanimidade.


Tudo isto vae levando a uma guerra. E é uma dôr que duas nações como a
Italia e a França se venham a dilacerar. Ha ahi o que quer que seja de
semelhante a um parricidio. A Italia, é certo, nos seus velhos dias, tem
sido ajudada:--mas foi ella, na sua soberba mocidade, que nos fez a nós
todos, povos da Europa Occidental, e nos civilisou e nos modelou á sua
imagem. Ella é e permanecerá a _Italia-mater_, a mãe veneravel das
nações. Todos nós somos ainda religiosamente, e juridicamente, e
intellectualmente, provincias de Roma. Quando a sua tutella politica
findou, nós ficámos ainda, e para nossa grandeza, sob a sua tutella
espiritual. Ainda não ha duzentos annos que, como derradeiro presente,
ella nos deu a musica.



IX


ALLIANÇA FRANCO-RUSSA.


N'este momento o Brazil só muito justamente se interessa pelo
Brazil:--e, se pudesse dar ainda aos echos da Europa uma attenção
apressada, seria de certo áquelles que lhe levassem a impressão da Europa
ou pelo menos de Pariz, que é um resumo da Europa, sobre a lucta que a
elle tão tumultuosamente o perturba.

Mas Pariz, apesar de alardear sempre a sua generosidade messianica e o
seu amor dos povos, é uma cidade burguezmente egoista, que só se commove
com o que se passa dentro da linha dos boulevards--quando muito, dentro do
recinto das fortificações.

Além d'isso, as noticias do Brazil chegam tão truncadas, tão vagas, tão
discordantes, que nem sabemos ainda se são simplesmente pessoas, se
verdadeiramente principios que ahi se combatem: e esta incerteza esbate,
se não impede totalmente a emoção.

Depois ainda, as nações, á maneira que aperfeiçoam as suas formas de
civilisação, requintam no sentimento de neutralidade, que é a suprema
polidez das nações. De sorte que, n'esta duvida e n'esta reserva, tudo
quanto a Europa agora póde sentir pelo Brazil é o desejo forte de que o
patriotismo ahi alumie as almas e que Deus torne bem viva essa luz.


De resto, a Europa não está tambem estendida sobre rosas festivas. Pelo
contrario: cada pobre nação soffre dolorosamente da sua chaga ou da sua
febre. O velho mundo é um verdadeiro hospicio, onde o ar viciado pelas
theorias se tornou mortifero. Paizes que ainda não têm trinta annos, como
a Italia, que todos nós vimos nascer e baptisar, estão invalidos. Mesmo
os mais ricos e os mais fortes padecem por motivo da sua propria riqueza,
que é uma origem constante de revoluções sociaes, e por motivo ainda da
sua força, que faz pesar sobre elles a perenne e arruinadora ameaça da
guerra. Por toda a parte _gréves_, e sangrentas; por toda a parte ruinas
causadas pelos appetites materiaes ou pelos idealismos politicos. Em
Hespanha não se passa um dia sem uma revolta regional ou municipal. Até a
Hollanda, tão tradicionalmente pachorrenta, alimentada a queijo e leite,
envolta em nevoas emollientes, se tornou uma fornalha de anarchismo. E a
unica nação que realmente mostra equilibrio e saude é a Suissa, não por
ser uma republica (não parece haver salubridade segura n'esse regimen)
mas talvez por se ter desinteressado de todas as theorias e de todos os
ideaes, e ter adaptado, no alto dos seus montes, a occupação entre todas
pacata e hygienica de dona de hospedaria.

Apesar desde estado morbido, a Europa todavia ainda se diverte:--e aqui
temos a França ha um mez, organisando ardentemente, quasi convulsamente,
uma festa suprema e sumptuosa. A Russia, ou antes o Czar (porque o Czar é
que é verdadeiramente a Russia, e todos os jornaes de Pariz, mesmo os mais
revolucionarios e os que mais zelam a soberania popular, aconselham que
se grite, não Viva a Russia! mas Viva o Czar!) manda este mez a sua
esquadra do Mediterraneo a Toulon a pagar aquella respeitosa visita que ha
um anno a esquadra franceza fez á Russia, quero dizer ao Czar. E a França
toda, desde Pariz até ás minusculas aldeias que quasi não têm nome,
procura realisar uma demonstração de amizade pela Russia, tão ardente e
estridente que fique historica e que marque mesmo o começo d'uma nova éra
historica.

Com effeito, esses quatro ou cinco couraçados russos, que vêm ancorar no
porto de Toulon, criam quasi uma transformação na politica da Europa.
Desde 1870, e ainda até ha um ou dous annos, a França estava n'uma d'essas
situações que, pelo contraste violento do merito e da sorte, são tão
particularmente penosas a uma nação altiva.

Fidalga entre todas, com pergaminhos historicos de incomparavel nobreza
(outr'ora Deus, quando queria realisar no mundo um grande feito,
encarregava d'elle os francos--_gesta Dei per Francos_), a França estava,
na Europa, entre as velhas monarchias aristocraticas, com o ar embaraçado
de uma mercieira entre duquezas! Guerreira entre todas, poderosamente
armada, com tres milhões de soldados facilmente mobilisaveis, a França
estava entre as grandes potencias militares com o ar inquieto e timorato
de um fraco entre valentões! Situação absurda mas logica, porque era
republicana e fôra vencida. As antigas casas reinantes viam o seu
republicanismo com desconfiança, senão com desdem. E a sua derrota, e o
isolamento que ella lhe trouxera, auctorisavam os chefes de guerra a terem
por vezes para com esta nação forte, e apesar da sua força, ares
fanfarrões e provocantes que a enervavam. A França realmente estava sempre
na possibilidade de ser desdenhada ou brutalisada. Com todos os seus
pergaminhos, que datam de Clovis, com os seus tres milhões de soldados,
politicamente, na Europa, ella estava de fóra, á porta. E só se desforrava
d'esta humilhação por aquella sua outra influencia, que é inobscurecivel
e invencivel, a da litteratura e da arte.

Para que tal situação mudasse era necessario que uma grande nação amiga,
uma potencia militar e aristocratica a viesse buscar á porta, a levasse
pela mão para dentro do concilio das nações, a proclamasse, apesar de
republicana, como sua semelhante e sua irmã, e, pondo fim á sua solidão
politica, a salvaguardasse para sempre de ameaças e provocações bruscas.
E esta nação fraternal foi a Russia. O Czar não veiu pessoalmente a Pariz,
como viria, talvez, se a França tivesse um rei. Mas vem moralmente,
mandando uma frota, que é como uma embaixada de alliança. Durante dez ou
doze dias, a França e a Russia, a grande Republica e a grande Autocracia,
vão juntar deante da Europa as suas bandeiras, e, pelo impulso sentimental
de todas as multidões, as suas almas. E desde esse momento não só a
França, como Republica, recebe o reconhecimento supremo, o ultimo que lhe
faltava, o de uma alliança monarchica tão real e natural como se Mr.
Carnot fôsse um Rei de Direito Divino--mas ao mesmo tempo a França, como
França, recebe ao lado da sua propria força o addicionamento de uma força
irmã que a torna invencivel. De sorte que a visita do almirante Avelane
abre realmente um novo e interessante capitulo de Historia.

Ha aqui, em resumo, o quer que seja de parecido (salvas, meu Deus, as
proporções!) com o caso do corretor de Hamburgo e do velho Rothschild.
Não sei se conhecem a anecdota, que é classica. Um certo corretor de
Hamburgo, apesar da sua honestidade, da sua intelligencia e mesmo de um
começo de fortuna, não conseguia vencer na Bolsa uma vaga hostilidade que
o envolvia, misturada de desdem; e não lograva portanto arredondar o seu
milhão. Parece que o homem casára deploravelmente com uma lavadeira e,
ainda em relação com esse erro sentimental, recebera bengaladas em um caes
de Hamburgo. D'ahi a sua situação de pestifero. Um dia, porém, este
corretor, feliz ou habil, appareceu na Bolsa de braço dado com o velho
Rothschild, o primitivo chefe da casa immensa. E durante uma hora, a de
maior affluencia e publicidade, o corretor desprezado e o banqueiro
venerado passearam por entre os grupos, conversando, com as mangas das
casacas bem colladas e bem intimas. Para quem conhece os homens é inutil
accrescentar que, desde essa manhã, o corretor foi cercado de uma
consideração ardente, viu a sua dôce lavadeira convidada para as festas
civicas e arredondou obesamente o seu milhão. Era o amigo de Rothschild!
E quem é visto na intimidade de um poderoso, possue desde logo no mundo
uma parte do poder.

A differença aqui está em que o corretor de Hamburgo não experimentava
nenhum prazer real e material era sentir a sua manga roçar carinhosamente
a manga (de certo gasta e sebacea) do velho Rothschild. Todo o seu prazer,
como todo o seu interesse, estava em que os outros corretores e os
negociantes espalhados pelo peristylo da Bolsa vissem, durante toda uma
manhã, as duas mangas bem juntas e bem casadas.

A França pelo contrario sente um prazer intrinseco e genuino em abraçar
triumphalmente o honesto, e bom, e forte Czar. De certo lhe é grandemente
grato que toda a Europa, e sobretudo a Allemanha, veja a estreiteza e a
vehemencia do abraço:--e por isso o quer bem demorado, alumiado por todos
os lados a fogos de Bengala, e destacando ricamente n'um fulgor de
apotheose!

Mas a França é uma franceza--com todas as suas graças de sensibilidade
e de sociabilidade, e com o coração sempre prompto a bater perante uma
homenagem que seja simultaneamente fina e natural. O acolhimento solene e
carinhoso que o Czar fez no anno passado, com grande surpreza da Europa, á
esquadra franceza do Norte, enterneceu a França, de todo a conquistou, e a
França, que é uma franceza, está hoje namorada de Alexandre III.

Quando os jornaes de Pariz o proclamam agora um justo, quasi um santo,
escrevem, não com o seu interesse, mas candidamente e com a sua emoção.
Elle é o guerreiro forte que inesperadamente abriu os braços fortes á
França abandonada, e lhe disse a dôce palavra que ella ha muito não
ouvira: «Sê minha irmã e minha egual». Como não amar o homem magnanimo,
o Theseu salvador? Tudo n'elle parece bello, a sua estatura, a formidavel
rijeza dos seus musculos, a sua larga e tocante paternidade, a quietação
grave da sua vida familiar. E estou certo que, na alta burguezia
conservadora, já muito bom francez pensou secretamente quanto ganharia a
França em ter um rei do typo moral e physico do Czar. Por isso estas
festas vão ter não sei que de nupcial.

O Czar esposa a França. Não faltarão talvez mesmo as bênçãos da igreja.
E ou me engano, ou esta França racionalista e radical, que riscou Deus dos
compendios e exilou os crucifixos, vae celebrar _Te-Deums_ louvando o
Senhor por esta alliança cheia de incomparaveis promessas.

Alliança feita particularmente pelo povo francez e pelo Czar. Os
politicos profissionaes, os homens de estado, os governos successivos da
Republica desde 70, não a promoveram nem a previram. Pelo contrario:
liberaes e parlamentares, as suas sympathias foram sempre pela Inglaterra
parlamentar e liberal. O Czar, autocrata e absoluto, só inspirava aos
estadistas radicaes do typo de Ferry, Spuller, Goblet, etc., uma
antipathia que nenhum interesse politico podia dominar. E aquella parte de
influencia que ainda pertencia á França, mesmo vencida e isolada, foi
sempre posta por elles ao serviço da Inglaterra, e portanto contra a
Russia. No Congresso famoso de Berlim foi a França que mais concorreu para
arrancar á Russia as vantagens e os territorios que ella conquistára á
Turquia, depois de um longa e penosa guerra. E a desconfiança do grande
«despota do Norte», o horror dos democratas a qualquer immisção d'elle,
mesmo remota, nos negocios republicanos da França, subiu a tal ponto que
quando o general Appert, embaixador de França na Russia, se começou a
tornar muito intimo e familiar do Czar e a tomar chá no Palacio de Inverno
mais vezes do que as exigidas pelo protocollo, o general Appert foi
brutalmente demittido!

Por baixo, porém, dos politicos estava a multidão, (que não tem em
França grande compatibilidade de espirito com o pessoal que a governa)
e estavam patriotas como Deroulède e outros, mais intimamente em communhão
com os desejos e as esperanças da multidão. Foram estes que semearam, ás
mãos cheias, a boa semente. Na Russia, porém, nenhuma semente fructifica
sem o consentimento do Czar. Ora o Czar não só admittiu esta semente, mas
até a regou. Começaram então essas repetidas visitas dos gran-duques a
Pariz, que eram como as andorinhas do Norte annunciando a esperança do
renascimento. Pouco mais faziam estes gran-duques do que almoçar pela
manhã no Woisin, e jantar á noite no Paillard. Pelo menos os jornaes não
lhes narravam outros fastos. Mas já, de restaurante a restaurante, ou por
onde quer que fossem, os acompanhava um sulco largo de sympathia popular.
E nenhum gran-duque chegava, ou nenhum gran-duque partia, sem que as
_gares_ estivessem todas floridas e resoassem já os primeiros e timidos
clamores de _Viva o Czar!_

Depois, alguns homens de lettras, sobretudo Mr. de Vogüé, (que já fizera
particularmente a «alliança», casando com uma senhora russa) começaram
a popularisar a litteratura russa. Tolstoï foi revelado á França. O seu
neo-evangelismo, nascido do pavoroso espectaculo da miseria rural no
centro da Russia, enthusiasmou aquelles que an Pariz tambem se voltavam
para o idealismo, por fadiga e fartura das velhas e seccas formulas
positivistas. Mas Tosltoï e os outros romancistas russos foram, sobretudo,
acclamados pelos mesmos motivos porque o eram os gran-duques. A clara e
bem equilibrada intelligencia critica do francez, no fundo, não
comprehende nem póde amar a dolorosa e tenebrosa litteratura russa. A
natureza do espirito dos dous povos é tão differente como os seus dous
estados sociaes. Não só já nas suas fórmas de pensar, mas mesmo nas suas
fórmas de sentir, o francez e o russo divergem;--e quasi se póde dizer que
um e outro amam e odeiam de modos que são totalmente diversos na sua
essencia e na sua expressão. Em tudo o que mais fundamente constitue a
civilisação, em materia de religião, de familia, de trabalho, de estado,
as duas nações discordam--porque uma é ainda primitiva, governada por
crenças primitivas, organisada por instituições primitivas, emquanto que a
outra é uma nação trabalhada violentamente, no fundo da alma e em toda a
sua ordem social, por quatro seculos de philosophia e um temeroso seculo
de revoluções.

Mas esta mesma popularisação da litteratura russa concorreu para a
confraternisação. A França, repito, é uma franceza--e, como tal,
extremamente sensivel ao brilho das lettras e da cultura.

Não creio que fôsse jámais popular em França a alliança com um povo
estupido e sem livros. Todo o sêr de alta civilisação espiritual gosta
que os amigos, com quem se mostra perante o mundo, pertençam á mesma alta
_élite._

Assim, lentamente, se fez esta fraternidade das duas nações, que marcará
talvez na historia. Os francezes agora pretendem que ella realmente
existiu sempre (é agradavel prender tudo a uma velha tradição)--e vão
buscar mesmo a sua origem ao fundo do seculo XVIII (antes d'isso tambem
quasi não existia a Russia) ao Czar Pedro, o Grande, que foi
esplendidamente festejado em Pariz, na côrte jovial do Regente, onde a
sua força colossal, os seus bigodões, a sua brutalidade encantavam _les
petites dames._ Mas vão sobretudo filiar esta fraternidade na guerra da
Criméa em 1855, onde officiaes francezes e russos confraternisavam nas
trincheiras, entre dous combates, bebendo champagne. Boa novidade! Já
outr'ora, durante as velhas guerras dos Cem Annos, os cavalleiros inglezes
e francezes, depois das duras brigas, ou no repouso dos assedios, se
juntavam, deslaçavam os morriões de ferro, para basofiar d'armas e
d'amores, tragando por grossos picheis a zurrapa do Rossilhão. Em todos
os tempos, nos exercitos aristocraticamente organisados, os officiaes
fidalgos, quando se não batiam, bebiam, segundo as circumstancias, zurrapa
ou _champagne._

Não! A alliança franco-russa, se se realisar, é obra especial, pelo lado
da França, d'esta nova geração que succedeu á guerra, e, pela parte da
Russia, do Czar. Na Russia não foi o povo que ja fez, porque o povo não
tem opinião e, portanto, politicamente não existe. E em França não foi
o governo que a fez, porque os homens que o constituem são ainda dos que
gritavam, ha vinte annos: «Viva a Polonia! Abaixo o Czar!»

É esta a sua originalidade, de resto consequente com os estados sociaes
das duas nações. Uma grande democracia trata directamente e particularmente
com um grande autocrata. E um homem e uma multidão assignam, sem papel e
sem tinta, um tratado formidavel e pittoresco.



X


AS FESTAS RUSSAS--A «TOILETTE» D'UM PRESIDENTE DE REPUBLICA--NOTICIAS
DO BRAZIL.


Estamos, emfim, no redemoinho e brilho e estridor das festas. O almirante
Avelane e os officiaes da fróta russa desceram sobre Pariz. Digo
_desceram_, como se se tratasse de sêres chegados das brancas espheras
celestes, porque o proprio almirante classificou esta visita de
_sobrenatural_, e o snr. Hervé, director do _Soleil_, um academico,
um moderado, um sceptico, não hesitou em lhe attribuir um caracter
_miraculoso._ Deve haver aqui, pois, o quer que seja de transcendente.
E Pariz está em delirio;--mas um delirio cheio de bonhomia, e mesmo cheio
de diplomacia.

Louvemos sem reserva este povo eminentemente racional. Todos os seus
amigos estavam receando (e todos os seus inimigos esperando) que Pariz, na
alegria do seu grande sonho emfim realisado, e no orgulho da sua nova
força, se exaltasse desmedidamente, deixasse escapar, em tumulto e sem
escolha, todos os sentimentos que o agitam, e no meio das acclamações aos
seus amigos lançasse, aqui e além, alguma grossa injuria aos seus velhos
inimigos. Receios infundados, esperanças indiscretas! Pariz está mostrando
a prudencia de um diplomata encanecido na carreira--e os proprios garotos
se comportam como Metternichs.

Nunca de certo, como hoje, Pariz pensou tanto na Allemanha; e no fundo,
todas estas bandeiras se desfraldam, e todas estas luminarias se accendem,
e todo este _champagne_ estala, tanto pela Russia como contra a
Allemanha. Mas esse pensamento fica cautelosamente aferrolhado nos mais
fundos recantos d'alma--e o que transborda é apenas o clamor do
enthusiasmo e da fraternidade. É como se não existisse Allemanha, nem a
ingrata Italia, nem Triplices Allianças. Ha só dous povos, o francez e o
russo--e, como elles se abraçam, o mundo todo se converte n'um amavel
santuario de paz.

Oito dias são passados desde que os russos estonteiam Pariz. A cidade
toda está na rua. O tempo vae quente e abafadiço. Por toda a parte
a cerveja e o vinho transbordam, como n'umas colossaes bodas de Gamacho.
E todavia, em nenhum bairro, mesmo nos mais ruidosos e excitaveis, houve
ainda um grito, uma pilheria n'um café, uma allusão, que desmanchasse a
harmonia pacifica do soberbo festival.

Isto prova, uma vez mais, que Pariz não é como se pensa a cidade que
entre todas se embriaga e se dementa. E prova ainda que nenhuma outra ha
em que a intelligencia geral seja tão aberta, accessivel e prompta--isto
é, em que uma ideia, considerada justa ou necessaria, penetre tão
claramente e tão unanimemente nas multidões. Em Londres é facil,
extremamente facil, fazer sentir ás classes cultas, mesmo á pequena
burguezia, a belleza ou a vantagem de tomar e conservar, n'um grande
momento publico, uma certa attitude, mesmo contraria a sentimentos
legitimos;--mas como fazel-a sentir áquella turba obtusa e rude, que os
inglezes chamam os _roughs_, os «asperos»? Para esses não ha interesse
publico que lhes refreie ou modifique o instincto ou a paixão. E não
seriam elles, se Londres tivesse sido durante seis mezes cercado e
brutalisado pelos allemães, que se privariam, n'uma festa egual, de
desabafar o velho rancor e de lançar por entre o muito alto grito de
_viva a Russia!_ brados ainda mais altos de _morra a Allemanha!_ Ainda
ha pouco o provaram (por occasião do curto resentimento entre a França e a
Inglaterra, a proposito do Sião) quando uma platéa de rapazes de
commercio, no theatro da Alhambra, ao apparecer, não sei em que bailado, a
bandeira franceza, rompeu em urros de furor, e se arremessou sobre o palco
para despedaçar e espesinhar a tricolor. Foi apenas um momento, uma brusca
ebulição do forte sangue saxonio. O bailado continuou--e cada um recomeçou
serenamente a rir e a emborcar _bocks._

No fundo, é tudo talvez uma questão de polidez e doçura. Matthew Arnold,
o mais fino critico que tem tido a Inglaterra, sustentou sempre que estas
duas inapreciaveis qualidades faltam inteiramente ao inglez. Era de certo
uma generalisação excessiva, que provinha d'esse delicado espirito se ter
nutrido e enlevado demasiadamente na litteratura franceza do seculo XVIII.
Mas é certo que, pelo menos, a polidez e a doçura, em Inglaterra, faltam á
populaça. Em França, nem a essa faltam.


N'estas festas russas, com effeito, a cousa para mim mais interessante
e tocante tem sido a multidão. Ha dias que dous milhões de parizienses
vivem em permanencia apinhados em tres ruas: o boulevard dos Italianos, a
Avenida da Opera e a rua da Paz. A classica sardinha na sua classica lata,
um maço de cigarros densamente apertado, grãos de café dentro do sacco
pançudo que quasi estoura--são frouxas imagens materiaes para exprimir
esta massa compacta de creaturas de Deus, que se move com a espessura e
lentidão d'um metal mal fundido. É a innumeravel multidão do tempo de
Boulanger, o derradeiro creador de multidões. Mas não ha agora a
vivacidade, a vibração petulante e batalhadora d'esses dias de cesarismo.
Esta multidão é enternecida e grave. É sobretudo doce. Não ha uma
brutalidade, uma impaciencia, um empurrão. As mulheres vieram
confiadamente trazendo filhinhos ao collo. Tanto é o decoro e o
recolhimento, que lembra uma turba devota dentro dos muros d'um templo.

Toda esta parte de Pariz, com effeito, em redor do Club Militar onde se
hospedaram os russos, se tornou como um vago templo de fraternidade e de
paz.

Esse espirito pacifico e fraternal que aqui erra, esparsamente, até se
communica aos animaes.

Na Avenida da Opera um grande _mail-coach_, tirado por quatro puros
cavallos, fica encravado, atolado na densa massa viva. No tempo de
Boulanger seria um escandalo de berros e couces, porque, para homens e
bichos, os tempos eram aggressivos. Agora, o cocheiro lá no alto, puxou
risonhamente a charuteira e accendeu um paciente charuto. Os cavallos não
se moveram, discretos e cortezes. A gente que se achava collada a elles,
terminou por se encostar, familiarmente, descançando, ás garupas
fumegantes. Os animaes, por seu turno, tambem derreados, descançavam os
focinhos sobre o hombro do cidadão. Por cima, as janellas embandeiradas
estão cheias de mulheres, que atiram flores, atiram mesmo beijos, por
entre as pregas amarellas do pavilhão do Czar. O proprio céu se enfeita--e
toma agora sempre, ao fim da tarde, um tom d'ouro e apotheose.

Por vezes, entre couraceiros que cercam um _landeau_, alvejam ao longe
os bonnets brancos dos officiaes russos. Uma acclamação rompe logo de
_viva o Czar, viva a Russia!_ Toda a massiça multidão arremette n'uma
anciosa ondulação; os chapéos tremulam freneticamente entre o esvoaçar
dos lenços. É uma curta explosão d'amor. De novo o decoro, a compostura
risonha se estabelecem, mais largos. Nem sequer se levantou um pó
importuno. Ninguem sua. Toda esta turba cheira agradavelmente a agua de
colonia e a violetas do outomno. Até o ar se avelludou. As vidraças dos
predios dardejam lampejos de alegria. Os cidadãos trocam o lume dos
charutos com um sorriso de gratidão e concordia. Tudo é harmonico, suave,
polido, amavel e fino. No fundo toda este ordem é simplesmente o resultado
precioso de uma muito velha civilisação. E é em dias d'estes, no meio de
dous milhões de populares apinhados pelo enthusiasmo em tres ruas
estreitas, que se apreciam os beneficios de uma antiga cultura, que
através dos tempos tem afinado o animal humano. Eu, por mim, durante toda
uma hora que levei a atravessar a praça da Opera, sem que ninguem me
empurrasse, me pisasse, me empecesse, me contrariasse--não cessei de
louvar Julio Cesar, por ter, tão cedo, e tão antes do meu tempo, feito a
conquista das Gallias.

Emquanto ás festas propriamente, creio que foram mediocres--sobretudo
as festas exteriores e de rua. O francez nunca teve o genio
decorativo--nem soube a arte sumptuosa de organisar uma gala. Esse dom
pertence ao italiano. O francez só é habil em ornamentar um salão--ainda
que ultimamente o classicismo, que é um dos feitios da sua intelligencia,
o tenha immobilisado em dous generos que repete monotonamente,
infinitamente: o _Luis XV_ e _Henrique II._ Em todo o caso, possue
grandemente a sciencia das luzes e das flores. E todas estas festas
realisadas em salão, os banquetes, os bailes, a gala da Opera (que é um
salão) tiveram muito requinte e muito brilho. Nas ruas o esforço inventivo
não passou de algumas bandeiras tricolores, fixadas nas varandas, ao lado
do pavilhão amarello com a aguia negra de duas cabeças.

A rua da Paz offerecia uma decoração de mastros de navios, com vergas,
o velame apanhido, e flammulas no topo, que a assemelhava a uma linda doca
de opera comica. A rua Quatro de Setembro, com o seu lango toldo de
lanternas chinezas, lembrava uma rua de Cantão, em noite de devoção
buddhista.

As festas, além d'isso, foram muito accumuladas. Todas as instituições,
corporações, associações, clubs, armazens, queriam anciosemente honrar os
russos;--e houve tal dia pavoroso em que o almirante Avelane e os seus
officiaes foram forçados a partilhar de tres almoços, quatro _lunchs_,
dous jantares e cinco ceias! Apenas acabavam aqui de engulir o café,
tinham de saltar á pressa para dentro das carruagens para ir além
recomeçar a sopa. É grave pensar que estes homens innocentes tiveram de
comer oito e dez vezes, por dia, salmão á russa ou codorniz trufada. E
como n'estas agapes de alliança o acto importante eram os _toasts_, as
saudações de confraternidade e de reverencia pelo Czar, não é menos grave
considerar que a cada um d'esses marinheiros fortes, coube, durante o seu
dia, esgotar de setenta a oitenta copos de champagne.

Emfim, se já no tempo de Henrique IV Pariz _valia_ uma missa, não ha
duvida que agora, com todos os progressos de tres seculos, vale bem uma
dyspepsia.

Mas as festas foram talvez menos deslumbrantes, por causa das casacas
pretas do governo. O Estado em França, como republicano que é, não, tem
uniforme, e nas grandes festas officiaes é obrigado a apparecer de casaca
e gravata branca como os escudeiros que servem o _punch._ Este
inconveniente, tão consideravel n'um paiz habituado ha oito seculos ao
esplendor sumptuario da monarchia, nunca resaltou tanto, nem se tornou
tão patente, como agora n'estas festas, que eram sobretudo militares. Em
meio das fardas, dos penachos, dos bordados, das couraças, dos ouros,
das amas ricas--alguns sujeitos circulavam, encafuacos, mesmo de dia, sob
o esplendor do sol, em sinistras casacas negras. Quem eram? Os ministros,
o governo, o Estado, a França. Ahi está a que chegára a sêda branca
recamada a pérolas dos Valois, o velludo bordado, e os laços floridos, e
os diamantes, e os altos empoados dos Bourbons, e as fardas faiscantes dos
Napoleões: a uma casaca de panno preto, quasi sempre mal feita, como a de
um creado de copa ou de um servente de enterro!

Todo Pariz sentiu e soffreu a humilhação d'esta pelintrice official. E
jornaes serios, em artigos serios, lembram a necessidade de que se
estabeleça para os presidentes das camaras, para os ministros (os tres
poderes do Estado) um uniforme, nobre e severo, que lhes dê
prestigio--esse prestigio material e exterior, que para um povo amigo da
arte e da belleza das fórmas, é talvez o mais persuasivo e duravel. Isto é
extremamente sensato. É necessario que o poder inspire sempre o summo
respeito. Ora, entre dous chefes de Estado--um revestido de uma couraça
rutilante, com um capacete emplumado, o outro mettido dentro de um paletot
negro, com um chapéo côco--o respeito instinctivo da multidão
impressionavel vae para o guerreiro da bella couraça, e não para o sujeito
do côco triste. Pelo menos para elle vão os olhares das mulheres--e logo
portanto atraz, por uma lei natural, a consideraçãodos homens. Os
philosophos, está claro não regulam a força moral e o valor por estas
exterioridades. A pompa toda de Alexandre não conseguiu impressionar
Diogenes. Mas a turba não se compõe de philosophos--e para ella
perpetuamente a magnificencia solemne será a prova real do poder.

Mas que uniforme se deverá impôr ao snr. Carnot? Não sei. Evidentemente
não deverá ser o fato de Luiz XV, de setim branco, e o manto de papo de
tucano, que o imperador do Brazil por vezes revestia--e de que elle
proprio se ria tão alegremente. Mas é bom que não continue a ser essa
lamentavel casaca civil, envergada logo de manhã á luz ironica do sol, de
que o imperador tanto gostava e que tanto o prejudicou.


E já que, atravez de fardas e casacas, vim a recordar o Brazil, como
não alludir discretamente ao grande silencio que subitamente se fez em
França sobre a revolta que o agita? Apesar de atulhados com as narrações
das festas, e com a Russia (que é volumosa), os jornaes de Pariz ainda
assim reservam sempre algumas linhas, vinte ou trinta, aos casos curiosos
do mundo.

Debalde, porém, se procura agora uma noticia, mesmo falsa, sobre o
Brazil. Nada! É como se o almirante Mello e os seus couraçados se tivessem
sumido para sempre nas brumas atlanticas. Que digo? É como se o Brazil
tivesse desapparecido--ou antes tivesse entrado n'aquella era de
felicidade, classicamente conhecida, em que os povos deixam de ter
historia. E assim parece ser, pois que o unico rastro do Brazil se
encontra n'algum boletim financeiro, onde se dizem os saccos de café
vendido, e a indicação dos cambios. E até este mesmo cambio, outr'ora tão
agitado, nos apparece agora cheio de quietação e repouso...

_Un silence parfait régne dans cette histoire_--como diz Musset. É de
bom prenuncio este silencio, é de mau prenuncio? Em todo caso, é unico
na historia das revoluções. Havia tiros, sangue, colera, tumulto. De
repente tudo se cala, tudo se some--e aqui ficamos na Europa boquiabertos,
deante de uma forte revolta que se esvaiu no ar, como uma visão de magica.
Onde estão os couraçados? onde estão os fortes? onde estão os regimentos?
Não ha nada--não se entrevê um vulto, não se escuta um rumor.

De certo ahi, no Rio, se estimaria saber a impressão que se tem aqui em
Pariz d'essa lucta desoladora. Pois a impressão é esta, não outra, ha uma
longa, vagarosa semana. O pasmo deante de uma cousa real e terrivel, que
troava e flammejava, e que de repente desapparece, se funde na mudez e na
sombra. E aqui estamos espantados, arregalando os olhos para o
Brazil--tendo apenas a vaga consciencia de que lá se continúa
pacificamente a vender café.



XI


A HESPANHA--O HEROISMO HESPANHOL--A QUESTÃO DAS CAROLINAS--OS
ACONTECIMENTOS DE MARROCOS.


O «Theatro clos Acontecimentos» (como outr'ora se dizia) que é de certo
um theatro ambulante, atravessou os Pyreneus--e é agora de Hespanha que
nos chegam esses echos com que se faz historia. Isto desde logo garante
que elles devem ser interessantes--porque de Hespanha nada póde vir que
seja mesquinho ou banal, a não ser por vezes versos e discursos.

A Hespanha é hoje, na Europa, a ultima nação heroica;--pelo menos é a
ultima onde os homens, publicamente, e nas cousas publicas, se comportam
com aquella arrogancia, e bravura estridente, e magnifica imprudencia, e
soberba indifferença pela vida, e desdem idealista de todos os interesses,
e promptidão no sacrificio, que constituem, ou nos parecem constituir, o
typo heroico (porque nem os diccionarios nem as psychologias estão bem
d'accordo sobre o que é um heroe).

Assim, eu não creio, por exemplo, que haja nada mais hespanhol, e que
se nos afigure mais heroico, do que o attentado contra o marechal
Martinez Campos. O velho general está passando uma revista n'uma praça de
Barcelona, cercado de officiaes e de populares, que em Hespanha se
misturam sempre familiarmente aos estados-maiores. De repente um rapazola
de vinte annos, um anarchista, atravessa o grupo, desata tranquillamente,
e de cigarro na bocca, as pontas de uma pequena trouxa, e atira sobre o
marechal uma bomba de dynamite. Ha uma horrenda explosão, uma nuvem de pó
e de estilhas, gritos, todo a tropel e tumulto de uma catastrophe. Mas
uma grande voz resôa, uma voz de commando, serena e quasi risonha. É
Martinez Campos, de pé, coberto de sangue, que brada com a mão no
ar:--_No és nada, no és nada!!_ O seu cavallo jazia despedaçado n'uma poça
de sangue. Em torno, no chão escavado pela bomba, estão cahidos uns poucos
de officiaes e de populares, mortos ou terrivelmente feridos e gemendo.
O marechal tem a farda em farrapos, de onde pinga sangue. E, todavia,
indignado que se erga tanto alarido por causa de uma bomba, continua a
encolher os hombros, a gritar:--_Pero si no és nada, hombre, si no
és nada!_

Mais adeante sôa outro grito ainda mais alto. É o do rapazola, do
anarchista, que agita o bonnet, berra em triumpho:--_Fui eu! Fui eu!_
Tem vinte annos, acaba de commetter um crime que o levará á forca, e está
ancioso por que todos saibam que _foi elle, só elle!_ Não vá outro ser
preso, roubar-lhe alli deante do povo, deante de todas aquellas mulheres,
a gloria do seu feito anarchista! Atravez do terror, da confusão, podia
fugir. Mas quê! perder todo o prestigio que lhe cabe pela sua façanha?
Não! Por isso bate no peito, chama os gendarmes, brada: _Fui eu! Fui
eu!_ E quando o prendem, vae pelas ruas, já de mãos amarradas, clamando
ainda com orgulho para as janellas cheias de gente que _fôra elle,
só elle!_

Ao mesmo tempo, por outra rua, vae o velho marechal, em braços, meio
desmaiado, continuando a sorrir e a affirmar que _no és nada, que no
és nada!_

O quadro é admiravelmente hespanhol--e só póde ser hespanhol.


O hespanhol é heroicamente bravo; mas outras raças, o inglez, o russo,
o francez, possuem esse heroismo especial que consiste em soltar um
grito, florear a espada, e correr soberbamente para a morte. Onde o
hespanhol se mostra unico, é no desprendimento com que sacrifica todos os
interesses, desde que se trate da honra da Hespanha, ou do que elle pensa
momentaneamente ser a honra da Hespanha. Ahi invariavelmente reapparece
o sublime D. Quixote.

E tanto mais heroicamente que ao hespanhol não faltam o raciocinio, e a
prudencia, e o claro sentimento da realidade, e o amor dos bens
accumulados, e mesmo um certo egoismo pachorrento--como superiormente o
prova Sancho Pança. Mas conhecendo e pesando bem o que vae perder--marcha
jovialmente e tudo perde com enthusiasmo, porque se trata da sua patria.

Não ha na alma hespanhola sentimento mais poderoso que este de patria.
Os cafés de Madrid, ou de Sevilha, estão atulhados todas as noites de
descontentes, que maldizem da cousa publica, e berram, emborcando largos
copos d'agua e aniz, que em Hespanha tudo vae mal e que a Hespanha está
perdida! Mas que alguem de fóra passe e atire uma pedra á terra de
Hespanha, ou finja simplesmente que atira a pedra--e todo esse povaréo se
ergue, e ruge, e quer matar, e quer morrer, para vingar não só a pedrada,
mas o gesto.

O hespanhol, com effeito, apesar de que tanto resmunga nos botequins,
tem uma ideia immensa da sua terra. Basta testemunhar a maneira ardente
e ovante como elle pronuncia _mi terra!_ Para elle a Hespanha é a maior
das nações--pela força e pelo genio.

Ha aqui certamente um orgulho tradicional, hereditario, vindo dos
seculos de dominação e de verdadeira superioridade. Muito bom hespanhol
vive ainda, por uma illusão magnifica, na Hespanha do passado, e não se
compenetrou da decadencia, e ainda pensa que os regimentos de Madrid são
os velhos e temerosos terços de Carlos V, e que qualquer piloto do Ferrol
ou de Carthagena poderia redescobrir as Indias, e que cada novo romancista
continua Cervantes, e cada pintor sevilhano ressuscita Murillo. Mas além
d'este habito de se sentir grande, natural de resto n'uma raça que chegou
a dominar o mundo e que deu a humanidade algumas das suas almas mais
fortes e dos seus genios mais profundos, ha ainda no hespanhol um amor
prodigioso pela terra de Hespanha, pelo torrão que os seus pés calcam
pelo monte e pela planicie, pelas cidades ou pelas aldeias que ahi se
erguem, por cada tufo de cardo que brota entre cada rocha. O inglez,
outro grande patriota, ama ardentemente e exclusivamente a civilisação que
creou na sua ilha, e as suas instituições, e os seus costumes:--mas não
tem nenhum enthusiasmo pela ilha, ella propria, que abandona mesmo com
facilidade e prazer. E comtanto que leve para a Italia, ou para outro
clima doce, a sua cosinha, os seus _sports_, os seus jornaes, as suas
distincções sociaes e o seu club, prefere sempre a suavidade d'um ar
luminoso aos asperos nevoeiros do seu sombrio Norte. Por isso emigra, e
vae fundando em solos mais amenos que o seu uma correnteza infinita de
pequenas Inglaterras. Para o inglez a patria é uma entidade social e
moral. Para o hespanhol a patria é o bocado de terra que os seus olhos
abrangem, e que elle ama como se ama uma mulher, com um amor ciumento e
carnal. Esse amor cria n'elle naturalmente a illusão:--e o manchego e o
navarro, que habitam duas das mais feias e tristes regiões da terra, não
as trocariam pelo Paraizo, porque nada lhes parece realmente tão formoso e
radiante como a Mancha ou a Navarra. Eu já vi um homem, e muito
intelligente, que era de Merida (um dos mais lugubres buracos do mundo),
declarar, muito sériamente e convicto, que Pariz, como monumentos, e
interesse, e brilho, _no valia Merida!_ De resto, quem não tem ouvido
hespanhoes, muito cultos, muito viajados, preferirem candidamente qualquer
Merida sua a Roma ou a Londres, e considerar tal politiquete da sua
provincia maior que Gladstone e Bismarck, e achar em certo folhetim
publicado n'um jornal de Andaluzia mais genio que em toda a obra de Hugo?
A isto se chama ordinariamente a exageração hespanhola. Não! É apenas a
candida illusão de um patriotismo transcendente.

Considerando assim a sua patria, tão formosa, tão grande, tão forte, tão
genial, e prestando-lhe um culto como á verdadeira e unica divindade,
como não ha-de o hespanhol exaltar-se até ao tresloucamento, quando a
suppõe ultrajada? Para elle uma offensa á Hespanha é um sacrilegio, e
tem então o santo furor de um devoto que visse alguem cuspir n'um
crucifixo. Para castigar a profanação abominavel, fará com enthusiasmo
todos os sacrificios, e logo immediatamente o da vida.

Todos se lembram ainda da famosa «questão das Carolinas». Uma manhã,
Madrid sabe que, muito longe, em mares remotos, um official allemão
plantára n'umas certas ilhas vagamente hespanholas, e chamadas Carolinas,
a bandeira allemã. Ninguem em Madrid conhecia a existencia das Carolinas,
nem a geographia das Carolinas. Mas os jornaes contavam que a Hespanha
fôra offendida:--e Madrid inteiro, todas as classes e todas as edades,
fidalgos, carreteiros, toureiros, padres, magistrados, velhos, creanças
de escola, senhoras e servas, tudo correu para praticar o acto mais
immediato e mais urgente: ultrajar a bandeira allemã, matar o embaixador
allemão, arrasar o edificio da embaixada da Allemanha. E depois a guerra!
Uma guerra implacavel, toda a Hespanha em armas, cahindo sobre a
Allemanha! Não havia tropas? cada homem seria um soldado! Não havia armas?
cada um tomaria o seu cajado ou a sua navalha! Não havia dinheiro? as
mulheres empenhariam até a cruz do pescoço. E atravez d'este delirio,
ninguem ainda percebia onde eram as Carolinas. Tambem, na primeira
Cruzada, quando as multidões, povos inteiros, partiam a vingar a offensa
feita pelo turco ao sepulchro do Senhor, ninguem sabia onde era
Jerusalem...

Foram dous dias sublimes, esses de Madrid. O velho Bismarck, attonito
e aturdido, recuou, mandou retirar a bandeira allemã das Carolinas,
appellou para o papa... A Allemanha realmente, perante aquella explosão
magnifica da velha alma castelhana, empallidecera. E a Hespanha sahiu
da aventura mais engrandecida, mais consciente da sua grandeza, e cercada
das admirações do mundo. É que nada se impõe aos homens como a affirmação
heroica de um sentimento justo.


Pois agora vae talvez succeder uma egual aventura. A Hespanha foi ferida
no seu patriotismo e no seu orgulho. A offensa não veiu de europeus, mas
de africanos. É, porém, indifferente para a Hespanha que o sacrilego seja
forte ou fraco, civilisado ou barbaro. Houve o sacrilegio, isto é, houve
um ultraje á bandeira da Hespanha, e, portanto, ás armas e guerra
implacavel!

A Hespanha possue no norte da Africa, além de Tetuan, de Ceuta e de
outros pontos fortificados, uma pequena cidade pouco maior que uma
cidadella, que se chama Melilla. Em torno ha, como em todas as outras
possessões, uma zona de cultura, defendida por trincheiras e fortes. E
para além são serranias povoadas por tribus mouriscas, a que se dá o nome
generico de mouros do Riff, ou Riffenhos.

Os mouros naturalmente odeiam os hespanhoes, seus inimigos hereditarios,
com o odio de raça e com o odio de religião:--e os hespanhoes estão alli
portanto n'um permanente estado de defeza. Ultimamente, depois de vagas
questões que tinham surgido entre hespanhoes e mouros na feira visinha de
Frejana, as tribus riffenhas mostraram uma agitação tão visivelmente
hostil, que o governador de Melilla, general Margallo, mandou reforçar as
obras de defeza em torno da zona cultivada, e construir, n'um certo ponto
mais aberto, um forte.

Ora, justamente n'esse sitio, existia um antigo cemiterio mourisco.
Nada ha mais sagrado para o mussulmano do que um cemiterio, porque não só
ahi repousam os mortos, mas ahi vêm orar e meditar, estudar e celebrar
assembleias, e mesmo celebrar festas, os vivos. O cemiterio, no mundo
mahometano, constitue o verdadeiro centro de piedade e de convivencia.

Os mouros do Riff representaram pois ao general Margallo que aquelle
forte, n'aquelle sitio, vinha dominar e devassar o seu cemiterio--e
constituia portanto uma invasão material e moral do seu territorio. Foi
por um motivo identico, por causa da famosa torre Antonia, que sobrepujava
e devassava o templo de Jerusalem, que os judeus tantas vezes se
sublevaram sob a dominação romana. O general hespanhol respondeu, (como
costumava responder o proconsul romano) que, dentro da sua zona, elle
tinha o absoluto direito de erguer todos os fortes que julgasse
necessarios á sua segurança. E mandou construir a obra. Os mouros de noite
desceram das alturas e destruiram a obra. Com a costumada teima
hespanhola, em logar de conciliar, de escutar razoes que eram attendiveis,
porque nasciam de um sentimento religioso, o general Margallo ordenou a
reconstrucção do forte. Os riffenhos desceram mais numerosos e
redestruiram o forte. Diabo! não se podia continuar assim, em plena
mourama, esta teia de Penelope tecida ao sol, desmanchada ao luar. O
general Margallo recomeçou as obras e collocou-as sob a protecção de um
destacamento de sessenta soldados. Os mouros immediatamente soaram o
alarme atravez dos aduares, baixaram e desmantelaram as obras e atacaram
o destacamento. Tinha corrido sangue: era a guerra.

O que depois occorreu, não está ainda bem aclarado. O general Margallo,
sem esperar reforços, fez, com a sua pequena guarnição de recrutas, para
castigar as tribus, uma sortida temeraria--que resultou numa tremenda
derrota dos hespanhoes (apesar da bravura esplendida com que se bateram)
e na morte do proprio general Margallo, varado, logo no começo da acção,
por tres balas. Entre os officiaes gravemente feridos havia um infante de
Bourbon. Os mouros tinham capturado dous canhões e uma bandeira--que os
hespanhoes retomaram.

Quando o desastre se soube em Madrid, foi outro «dia das Carolinas».
Madrid inteiro correu ao palacio, aos ministerios, gritando por vingança
e guerra. Todo o homem valido se quiz alistar como voluntario. Para que
não faltasse dinheiro (e o governo não o tem), o banco de Hespanha
offereceu oitenta milhões, as grandes casas fidalgas prometteram largos
donativos, as proprias egrejas desejavam dar as suas alfaias. A Hespanha
toda rompeu n'uma outra das suas sublimes explosões de patriotismo. O
reisinho, que tem sete annos, cercado no passeio do Prado por uma immensa
multidão que o acclamava, ergueu-se de pé, no assento da carruagem, largou
a gritar: _Vamos todos a matar los moros!_ Foi um delirio. E a Hespanha,
enthusiasmada, lá vae para a guerra!

E em que momento ella vem! Quando a Hespanha, muito pacientemente, com
um esforço em que tambem havia heroismo, estava reconstruindo, dia a dia,
migalha a migalha, as suas finanças arrasadas. A guerra é a ruina--porque
as tribus do Riff podem pôr em armas sessenta mil homens aguerridos, de
incomparavel bravura, com espingardas Remington, e tendo por couto as suas
serranias inaccessiveis. Para vencer esta formidavel guerrilha--é
necessario uma expedição pelo menos de trinta mil homens, que têm de ser
alimentados de Hespanha, porque no Riff só ha areaes. São as finanças
hespanholas desorganisadas por infinitos annos. É ainda o perigo de
complicações europêas, porque a Hespanha será forçada a penetrar no
territorio de Marrocos (os mouros do Riff são subditos do sultão de
Marrocos), e ahi encontra a opposição da Inglaterra, da França, da Italia,
que têm todas tres pretensões, por motivos de fronteiras coloniaes, ou
por motivos de dominação estrategica no Mediterraneo, a esse vasto e rico
sultanato. A questão de Marrocos substituiu hoje na Europa, pelos seus
perigos, a antiga e classica questão do Oriente.

Lord Salisbury affirmava ainda ha pouco que, se a paz do mundo viesse a
ser quebrada, seria de certo por causa d'esse terrivel Marrocos. E a
Inglaterra já tem em Gibraltar, deante das costas da Africa, á cautela,
uma grossa esquadra de couraçados. Assim a Hespanha arrasa as suas
finanças, e arrisca uma medonha guerra europêa. Mas que lhe importa?
Foram mortos officiaes hespanhoes, foi ultrajada a bandeira de Hespanha--e
ella vende as alfaias dos seus templos, e marcha sublimemente.

Eu pelo menos acho sublime este patriotismo vehemente, todo este nobre
arranque. Heroica Hespanha! Deus lhe dê ventura! Ainda que os mouros do
Riff, com o seu piedoso amor pelo seu velho cemiterio, não deixam de ser
interessantes...

E assim, em pleno seculo XIX, temos de novo, como no Romancero, a Cruz
contra o Crescente, e a Hespanha na sua antiga e laboriosa occupação
de _matar los moros._



XII


O SNR. BARTHOU--A «ANTIGONE» DE
SOPHOCLES—-«LES ROIS» DE JULES LEMAITRE.


Houve em França subitamente uma queda, ou antes um desconjunctamento de
ministerio. Os ministros, que eram uns de substancia radical e outros de
substancia conservadora, estavam mal grudados. O calor das primeiras
discussões, na camara nova, descollou estes pedaços heterogeneos de poder
executivo. Immediatamente porém se manufacturou outro governo. E a unica
feição d'esta crise, digna de ficar nas chronicas, foi o ter apparecido de
repente, e por motivo d'ella, um homem de Plutarcho.

Este homem é o snr. Barthou.

É necessario reter este nome--Barthou--porque elle representa um justo.
A Biblia diria «vaso de eleição»; mas esta imagem é arriscada e dá logar a
equivocos lamentaveis, quando se trata de homens e de cousas
parlamentares.

Quem é o snr. Barthou?

Um politico, e portanto um ambicioso. Além d'isso um intelligente e um
ardente.

E que fez o snr. Barthou?

O snr. Barthou realisou um feito sem precedentes na historia
constitucional:--convidado, n'esta nova organisação de ministerio, para
secretario de Estado das colonias, recusou.

E recusou por um motivo que o eleva justamente a essas alturas moraes
em que Plutarcho se começa a enthusiasmar. O snr. Barthou recusou, porque
(segundo disse) «não estava habilitado, nem pelos seus estudos anteriores,
nem pela experiencia, a tomar conta d'essas funcções». Conhecem alguma
resolução mais heroica? Eu não conheço. Um politico de profissão, um
ambicioso que se nega a entrar n'um ministerio por não se considerar
competente, nem theorica, nem experimentalmente, para gerir um certo ramo
da administração--é verdadeiramente prodigioso! E nós todos os que
nascemos sob o regimen das cartas constitucionaes, não podiamos realmente
suppôr que existisse algures, n'esta Europa politica e parlamentar, um
bacharel que sinceramente se julgasse inapto para governar, do fundo do
seu gabinete, fumando a _cigarette_ do poder, as colonias do seu paiz!

No antigo regimen de direito divino, frequentemente se viu ser chamado
um cabelleireiro para salvar as finanças do reino. Mas, n'esses tempos
deliciosos, tudo dependia do bel-prazer de El-Rei. Ás vezes o
cabelleireiro, mostrando os seus pentes, confessava aterrado a sua
incompetencia. El-Rei porém mandava--e o cabelleireiro, com as mãos ainda
gordurentas das pomadas, tomava conta do thesouro real. Quando Filippe II
de Hespanha deu ao duque de Medina-Sidonia o commando da _Grande
Armada_, que partia a conquistar a Inglaterra--o pobre duque escreveu ao
seu rei e senhor uma carta desolada, em que lhe dizia que estava velho e
cheio de achaques, que enjoava horrivelmente no mar, e que não sabia
commandar uma frota!... Filippe II franziu o sobr'olho e ordenou ao duque
que embarcasse. O desgraçado lá embarcou, já enjoado--e todos sabem a boa
conta que elle deu da _Grande Armada._ Para evitar esta deploravel
confusão das profissões--se fez a revolução de 89. E d'ella surgiu então
essa classe de politicos, possuidores de aptidões universaes e de sciencia
universal. Todo aquelle que, por gosto ou necessidade, se incorporava
n'essa classe, parecia receber logo do Espirito Santo o dom de tudo
conhecer e de tudo poder. O medico largava as suas lancetas e ia,
absolutamente seguro da propria capacidade, confeccionar codigos. O
folhetinista arrojava a penna, empolgava a espada, e lá partia, com uma
soberba confiança, para o ministério da guerra a reorganisar os exercitos.
Nenhum jámais hesitára. E tal que duvidaria, por causa da sua
inexperiencia, acceitar a administração de uma horta de couves--estava
prompto, soberbamente prompto, a dirigir um ministerio da agricultura e
commercio.

Esta confiança dos politicos em si proprios terminava por se communicar
ao publico. E todos nós, desde que Fulano era eleito deputado, ficavamos
certos de que, tocado de uma luz divina, da _lingua de fogo_, como os
apostolos, elle poderia, senão fallar todos os idiomas, pelo menos dirigir,
sob todas as fórmas, os grandes serviços publicos da sua terra, e
indifferentemente, segundo as circumstancias, salvar as finanças ou
commandar frotas.

A estranha confissão do snr. Barthou vem desmanchar esta confortavel
confiança. O quê! Ha pois politicos que não conhecem, nem por estudos
anteriores, nem por experiencia adquirida, os negocios coloniaes? Diabo!
como tem sido então o mundo, até agora, governado? Será possivel que
tenhamos tido por ministros e governantes outros Barthous, que, ao
contrario d'este, cuidadosamente esconderam a sua incompetencia?

Não sei. Mas certamente a declaração do snr. Barthou, singularmente
honrosa para elle, é altamente nociva para a sua classe. Cria uma larga
suspeita entre nós outros, os governados.

Se ha um politico a quem o Espirito Santo não concedeu o dom do
universal saber--é bem possivel que outros muitos tenham encontrado da
parte do Espirito Santo a mesma resistencia em lhes outorgar o dom divino.
E já não podemos ver um bacharel subindo de cabeça alta e luneta faiscante
os classicos degráos do poder, sem murmurar dentro de nós mesmos, olhando
de revez o galhardo moço na sua ascenção:--«Diabo! será este maganão um
Barthou--que se calou?»


Desinteressante pelo lado da politica, Pariz está, ao que párece,
interessante pelo lado dos theatros. Para começar, temos Sophocles no
Theatro Francez, com a sua velha Antigone. Invejavel destino o d'este
Sophocles! Ha já mais de dous mil e trezentos annos que elle gosou o
seu primeiro «successo», em Athenas, no dia em que Cimon derrotava os
Persas nas margens do Eurymedon:--e ahi o temos ainda, depois d'estes
vinte e tres seculos, fazendo derramar em Pariz as mesmas lagrimas que
fazia correr pelos bellos olhos das athenienses, quando Antigone, cobrindo
a face com o véo, marchava para a morte. Quantos imperios, quantas raças,
quantas civilisações têm passado? Ouando elle em Colona, em casa de seu
pae, que era um simples fabricante d'armas, desenrolava verso a verso,
nas taboinhas enceradas, á sombra d'alguma oliveira, os queixumes d'Œdipo,
Pariz não era mais que uma escura floresta, onde de noite uivavam os
lobos, vindo beber ás lagôas. E no sitio d'essa vetusta matta, convertida
ella, por seu turno, n'uma Athenas infinitamente mais complicada, todas as
noites milhares de vozes tremulas de emoção continuam a gritar: _Bravo,
Sophocles!_ e de certo devotos do seu genio iriam, como os soldados de
Lysandro, coroar de flôres o seu tumulo, se ainda fôsse possivel saber
onde se encontra o seu tumulo. Dizem que era na Dacelia--e que quando já
não existia lá o tumulo, nem mesmo já havia Dacelia, ainda os pastores
notavam que constantemente alli zumbiam abelhas em grandes enxames
dourados. E que as abelhas, desde seculos, eram attrahidas para aquella
collina pela doçura e pelo aroma que exhalavam os restos de Sophocles.

Esta _Antigone_, que agora se representa no Theatro Francez, foi para
Sophocles a peça mais rendosa--porque valeu ao poeta ser nomeado general
ou _stratege_, como os gregos diziam, n'uma expedição a Samos. Singulares
_direitos d'auctor!_ E singular povo que recompensava a belleza de uma
tragedia com o commando de uma esquadra! Mas servir a cidade, ganhar a
Athenas uma batalha, era, n'esses tempos de civismo heroico, a mais
esplendida, a mais nobre das tarefas humanas;--e não se podia dar melhor
recompensa a um grande porta do que fornecer-lhe a possibilidade de se
tornar um grande cidadão. De resto Sophocles era soldado: já se batera em
Salamina, onde tambem combatera o velho Eschylo.

Assim os dous tragicos concorreram pela «penna e pela espada» a
assegurar o predominio da civilisação hellenica, e da civilisação
occidental.

E não foi só como combatente que Sophocles cooperou em Salamina--mas
como poeta: porque, pela sua belleza e pelo seu genio lyrico foi escolhido
para corypheu dos coros de mancebos, que, com cantos e danças, celebraram
durante tres dias essa magnifica Victoria, que nos salvou a todos nós,
homens de raça aryana, de sermos ainda hoje orientaes, e talvez persas!

Pois a _Antigone_ continua a ser rendosa. Nem Sophocles, nem os seus
herdeiros, aproveitam dos cinco ou seis mil francos que ella lança todas
as noites ao cofre do Theatro Francez. Mas não é menos rendoso para a sua
gloria immortal, que, ao fim de vinte e tres seculos, este dramaturgo de
Athenas continue a enriquecer os outros.

Deixemos porém a _Antigone_ e Sophocles--porque, das peças representadas
em Pariz, a que mais interessará de certo no Brazil é _Os Reis_ (Les
Rois) de Jules Lamaitre.

Este drama, tão esperado, tão louvado, começa com effeito por uma
historia da revolução do Brazil. Exactamente como lhes conto! Por uma
historia da revolução do Brazil--da outra, da antiga, da que derrubou o
Imperio.

Quando o panno se levanta, vêmos deante de nós a sala do throno do
palacio real da Alfania. A Alfania é um grande reino, uma monarchia
absoluta, com 38 milhões de vassalos:--mas esta sala não apresenta mais
luxo ou magestade que a da camara municipal de uma villa democratica. A
primeira impressão é que, na Alfania, as artes decorativas e sumptuarias
estão em deploravel decadencia:--mas dentro em breve se descobre que as
colgaduras de sêda e brocado, que deviam revestir esta sala real, foram
arrancadas das paredes para se fazerem com ellas as _toilettes_ de Mme
Sarah Bernhardt, que é a princeza real da Alfania.

Pela porta nobre d'esta sala desguarnecida entram dous senhores, de
casaca e calção de côrte, com gran-cruzes que me pareceram ser da Ordem
da Conceição. Um, o mais gordo, é o bibliothecario do rei de Alfania,
Christiano XVI. O outro, um moço louro e alegre, é o ministro dos Estados
Unidos do Brazil. Exactamente como lhes conto! ministro do Brazil,--que
aqui na peça e na Alfania tem o nome de _Republica das Cordilheiras. O
ministro, esse, dá pelo nome cavalheiresco e hespanholesco de Alvarez!
Muito jovialmente e não sem malicia, este ministro Alvarez começa a contar
ao bibliothecario (de quem foi condiscipulo no collegio Stanislas em
Pariz) as suas attribulações diplomaticas.

Ha dous mezes que elle foi nomeado ministro para Alfania, ha dous mezes
que reside na côrte da Alfania, e ainda não conseguiu que o velho rei
Christiano reconhecesse a Republica do Brazil! Bem comprehensivel, de
resto, esta resistencia de Christiano XVI, que tem oitenta annos, é um
autocrata de direito divino, vive no santo horror de todo o liberalismo e
de toda a democracia, e não póde comprehender que o povo da _Cordilheira_
expulsasse um velho imperador tão magnanimo e tão paternal.

E todavia (como Alvarez explica, parte para o bibliothecario e parte
para o publico) nunca houvera no mundo uma revolução republicana
mais repassada de bons sentimentos monarchicos!

O povo da _Cordilheira_ não detestava, antes amava o seu imperador. Mas
quê! Esse imperador nunca residia no seu imperio--e constantemente
percorria a Europa, cercado de eruditos, robustecendo a sua sciencia das
linguas mortas e lendo manuscriptos no seio das academias. Ora um povo que
não se occupa de philologia não gosta de ser governado por um philologo.
Sobretudo por um philologo, que parece preferir ao seu throno o seu banco
do Instituto de França O throno estava sempre vazio, a cobrir-se de pó--e
o imperador sempre em França, no Instituto a esmiuçar raizes hebraicas.
Além d'isso, aquelle imperio da _Cordilheira_ desmanchava a harmonia
republicana da America do Sul. O quê! todos os paizes em redor usufruindo
as venturas da republica--e só a _Cordilheira_ sobrecarregada com
uma monarchia e uma côrte! Era discordante.

De sorte que o povo decidiu despedir o seu imperador. Mas este acto de
bom senso politico fôra feito com toda a delicadeza, todo o respeito,
toda a bonhomia. A Republica surgiu uma madrugada serenamente, e
naturalmente, como o sol. O Governo Provisorio fretou logo um vapor
(um vapor muito confortavel, accrescenta Alvarez), metteu dentro o seu
velho imperador com todas as cautelas, saudou e mandou largar para a
Europa. Nem uma palavra, nem um gesto que revelassem azedume ou colera
n'esta separação.

Pelo contrario! O povo tinha os olhos ennevoados de lagrimas--o
imperador tambem. E durante muito tempo um na praia, outro no convez
do vapor confortavel se acenaram em um longo, eterno adeus, ambos cheios
de sympathia e cheios de saudade. E realmente não havia motivo para que
o velho Christiano XVI se recusasse a reconhecer uma republica tão cortez,
tão amavel--e no fundo tão monarchica!

Assim narra o ministro Alvarez, no primeiro acto dos _Reis_, esta
risonha revolução que o fez ministro. E com que ironia a conta! Não dou
muito pela felicidade d'este funccionario. Mas apenas elle terminara a
historia da tão bella aventura em que se lançara o seu paiz--entra
toda a côrte de Alfania.

É que estamos n'um consideravel momento historico. O velho rei d'Alfania
vae abdicar. Não é só por velhice, por doença, por fadiga d'aquella
corôa secular. É que já não comprehende o seu povo--e receia que o seu
povo já não comprehenda o seu rei. Até ahi elle fôra simplesmente
o pastor muito solicito d'um rebanho muito manso. Agora, porém, sob o
seu cajado, via, não carneiros, mas homens. E esta nova sciencia de
governar homens, e não carneiros, elle, rei d'outras eras, não a possuia.
Por isso passa o cajado a seu filho, o principe Hermann. Esse não só é
novo pelos annos--mas é novo pelas ideias. Principe de direito divino,
foi todavia educado n'outros tempos, por outros livros--e conhece os
direitos humanos. Todas essas liberdades estranhas que o povo da Alfania
reclama (liberdade de voto, de imprensa, de associação, de reunião, etc.)
e que ao velho Christiano parecem horrendos attentados contra a sua
auctoridade real, são para este bom principe Hermann aspirações legitimas,
que deverão ser satisfeitas com uma generosidade prudente. De sorte que,
com este novo povo da Alfania, tão differente do velho rebanho gothico,
e já hoje cheio de theorias, e meio revolucionado, melhor se entenderá o
principe novo do que o rei velho. E Christiano XVI abdica.

Lá está elle na sua poltrona real, todo vestido de verde, com a sua
branca cabeça pendida ao peso dos presentimentos tristes--emquanto o
chanceller do reino lê o rescripto que entrega a regencia do reino da
Alfania ao democratico e humanitario Hermann. Este pobre principe tambem
não parece feliz, tomado já pelo terror das suas responsabilidades. Quem
resplandece é a princeza, Mme Sarah Bernhardt, uma archi-duqueza do secco
e puro typo feudal, sôfrega de magestade e poder. Mas, emfim, eis Hermann
regente da Alfania, recebendo as homenagens dos grandes dignitarios.
E sabem qual é o seu primeira acto de regente? O reconhecimento da
Republica do Brazil! Exactamente como lhes conto. Quando o ministro do
Brazil, por seu turno, o vae saudar e render-lhe preito, o principe
Hermann diz com ar grave e decidido de quem faz a sua primeira affirmação
democratica:

--Snr. Alvarez, apresente-me ámanhã as suas credenciaes!

Nem mais, nem menos. Está reconhecido o novo Brazil pelo novo rei
d'Alfania. O pobre Christiano suspira--e Alvarez parece bem contente.

Obtido este esplendido resultado, nada mais nos resta senão sahir do
theatro e da Alfania, esfregando as mãos. Mas não! Devemos ficar
para vêr no segundo acto uma situação verdadeiramente bella, de um
pathetico novo, e mais coramovente e profundo que os que resultam dos
conflictos da paixão. É aqui uma verdadeira tragedia intellectual.

O pobre principe Hermann, mais que democrata, realmente socialista, já
deu ao seu povo todas as liberdades politicas, e até um parlamento
e uma carta constitucional.

O velho reino da Alfania está todo transformado e arranjado á moderna,
no melhor estylo Luiz Filippe. O primeiro ministro é um jacobino
que como elle mesmo confessa, passou a sua mocidade a fazer revoltas
contra o antigo Christiano, e a ser preso como cabecilha irreconciliavel.
Mas o povo todavia permanece descontente. Ha uma crise industrial em toda
a Alfania, uma intensa miseria trazida pelas gréves, e os operarios da
capital, obedecendo á velha illusão de que o exercicio de mais direitos
politicos lhes trará mais salarios, preparam uma tremenda manifestação
nas ruas para reclamar o suffragio universal. O principe Hermann permitte
alegremente a manifestação--porque (como elle diz) se o suffragio
universal não cura os males do proletariado, ao menos serve-lhe de
consolação, põe-lhe na alma uma esperança; e o proletario soffre tanto, e
está sob o peso de tão fataes injustiças, que por todos os modos deve ser
consolado e attendido nas suas exigencias reaes ou ficticias. O que o bom
Hermann quereria (como elle tambem declara) era distribuir pelos pobres o
superfluo dos ricos:--mas como essa liquidação social não é possivel
immediatamente, e como se não póde dar ao proletario todo o pão que elle
necessita, dê-se-lhe ao menos todo o voto que elle reclame. E a
manifestação aos vinte mil operarios já vem na rua, immensa e clamorosa.

No palacio reina o terror.

Esses milhares de operarios, soltos na capital, permanecerão ordeiros
e disciplinados? Os proprios ministros, antigos jacobinos, duvidam--tanto
mais quanto a manifestação é capitaneada por anarchistas que estavam
presos, e a quem Hermann, apenas regente, logo amnistiou com enthusiasmo.
E com effeito não tardam as más noticias. Os manifestantes arvoraram a
bandeira negra. Já aqui e além houve conflictos--e as tropas foram
apedrejadas. E eis que agora a enorme massa popular avança sobre o
palacio! Mas Hermann sorri tranquillamente. Que póde receiar, elle, que
ama tão ardentemente os pobres, e que é na verdade o rei dos pobres? O
povo avança sobre o palacio? Pois que se escancarem, bem largas, todas as
grades dos jardins, que o povo entre, porque o seu rei alli está que lhe
estende com amor os braços. E elle mesmo abre as janellas--por onde
penetra um longo, sombrio e suspeito tumulto de brados.

Mas eis um ajudante de campo annunciando que a turba está em plena
revolta, assalta os postos da guarda, e começa a saquear as lojas. Que
espanto para o pobre Hermann! O quê! Pois o povo não comprehende que elle
o ama, e que trabalha para a sua felicidade, e que vae elle proprio,
socialista coroado, fazer lentamente e de alto, a revolução social?

Não, o povo não parece comprehender, porque rompeu justamente a
apedrejar as janellas do palacio. Já uma pedra ia matando o principesinho
real, uma pobre creança doente, nos braços da sua governante. Hermann
afflicto corre a uma varanda, para gritar ao povo toda a verdade. Cae
sobre elle uma saraivada de calhaus. E não são já sómente calhaus--são
tiros. Outro ajudante, esgazeado, corre a contar que a guarda real está
sendo desarmada pelo povo. É a revolução! Que fazer? Madame Sarah
Bernhardt (que é aqui magnifica) arrasta-se aos pés de Hermann,
supplicando-lhe que salve a corôa, que salve o reino! Ainda é tempo! As
tropas, absolutamente fieis, estão nas ruas, só esperam uma ordem para
carregar, varrer a populaça!... Mas Hermann hesita, livido, n'uma agonia,
gritando sómente:--«Oh! os brutos, os brutos, que não comprehendem!»

Outro ajudante. A revolução triumpha! Vae acabar o reino secular da
Alfania! Já o povo quebra as portas do palacio. Em pouco aquella rica
cidade será saqueada por uma plebe feroz. E o general governador manda
intimar o rei a que lhe diga claramente o que deve fazer, como general!
Hermann, n'uma voz de moribundo, murmura:

--O seu dever de soldado!

E cae n'uma cadeira, aniquilado. Fóra ha um lento rufar de tambores. É o
primeiro e lugubre aviso para que a multidão disperse, antes que sobre
ella rompa o fogo. Hermann ainda se precipita á janella, grita:--«Não!
Não!»--É tarde. Uma descarga, outra descarga... E logo após o horrendo
clamor dos gritos. São os que morrem!

Um silencio sinistro. Está salva a ordem, com ella a corôa. Um official
apparece, todo pallido, com o uniforme em desalinho. A princeza, que
cahiu debruços para cima de uma mesa, ergue lentamente a face, pergunta
por entre lagrimas:

--Mulheres mortas?

O official murmura:

--Muitas.

Creancinhas?

--Tambem...

Hermann, esse ficou como petrificado, sem voz, sem vida, com os olhos
cravados no tapete. É que está vendo n'elle, cobertos de sangue, os
pedaços do seu bello sonho humanitsrio, que se despedaçou. Elle é o
primeiro rei democrata da Alfania; e eis que, por muito amar o povo e
o encher de grandes esperanças e o lançar largamente no caminho de todas
as satisfações sociaes, se vê forçado pela logica terrivel das cousas a
erguer-se deante do seu povo como um repressor violento, e a metralhar o
seu povo--o que nunca succedera na velha Alfania, quando o povo era um
rebanho pastando mansamente a sua ração de herva, sob o cajado dos seus
velhos reis. O seu socialismo naufragara em sangue.

A scena é verdadeiramente bella--e pela apparição da Fatalidade, esse
grande factor de toda a tragedia, mas uma Fatalidade nova, tirada das
leis sociaes, dá uma tão forte emoção como a podem dar Eschylo ou
Sophocles. Depois o drama acaba mediocremente n'um desastre d'amor, que
é ao mesmo tempo vulgar e complicado, e cheio de ironia. E não tornamos a
ver Alvarez.

Ligeiro e jovial, como me pareceu, estou receiando que elle se dedicasse
a galantear com as damas gentis da corte de Alfania em logar de compor e
mandar ao seu governo um relatorio instructivo mostrando, pelo exemplo
Alfanico, o perigo que se corre em destruir, por amor das theorias, um
regimen cheio de paz, de ordem, de prosperidade e de credito, para lançar
a nação n'um caminho incerto e escuro onde ella vae cambaleando atravez do
descredito, da desordem, da ruina e da guerra.

Mas Alvarez não é homem para comprehender as lições da historia.



XIII

OS ANARCHISTAS VAILLANT.


Desde que nos não vimos, caros collegas e amigos, este velho mundo foi
de novo abalado por uma bomba anarchista, a bomba de Vaillant.

Esta, porém, não causou os estragos, em pedra e cal, da bomba já classica
e quasi symbolica de Ravachol; nem fez tambem a devastação mortal da bomba
hespanhola do theatro de Barcelona.

A bomba de Vaillant apenas deteriorou alguns velludos de poltronas e
pedaços de estuque dourado; e o unico ferimento perigoso que causou (e
hoje curado) foi o de um primo intellectual do anarchismo, d'um socialista
neo-christão, o doce abbade Lemire. Mas espalhou um terror mais intenso
que as de Ravachol ou a dos hespanhoes, porque, pela primeira vez, a
sociedade sentiu a temerosa dynamite arremessada contra um dos seus
grandes orgãos vitaes, contra o centro regulador das suas funcções, contra
o parlamento! As outras bombas só pretenderam destruir predios ricos, como
sendo as fórmas mais materialmente palpaveis do capitalismo; ou então
burguezes abastados, no acto de gosarem um luxo que offende especialmente
a miseria--o da Opera. A bomba de Vaillant porém estoura com imprevista
audacia sobre o «seio augusto da Representação Nacional». N'uma republica
parlamentar, o parlamento é o rei. Portanto Vaillant verdadeiramente
commetteu um regicidio. E não ha crime que impressione mais do que o
regicidio, porque n'uma sociedade onde se não eliminou inteiramente a
ideia de que o chefe é pae, elle participa da natureza do parricidio.

De certo sabem, pelo telegrapho, pelos jornaes, a historia do feito.
No Palais-Bourbon, estando a camara em sessão e um deputado na tribuna,
Vaillant atira a sua bomba, composta de pregos e polvora verde, dentro de
uma caixa de lata, que bale n'uma columna, estala no ar antes de cahir.
Densa fumarada, gritos, terror, tumulto--e immediamente, tambem, entre os
deputados, aquella serenidade corajosa, ainda que um pouco affectada, que
é uma tradição das assembleias francesas, acostumadas desde 1789 a ser
invadidas, assaltadas e mesmo espingardeadas pelas plebes em revolta.
Todas as portas do Palais-Bourbon se fecham--e as salas das commissões
são convertidas em ambulancias, onde, sobre colchões trazidos á pressa de
um quartel, os feridos recebem curativos summarios. Entre esses feridos ha
um, com pregos espetados nas pernas, que hesita ao dar o seu nome e o seu
endereço, e que desperta portanto o faro embotado da policia. É conduzido
ao hospital por dous agentes que se estabelecem ao lado da cama, e
começam com elle, amigavelmente, uma conversa habil sobre anarchistas e
fabricação de bombas. O ferido, por um d'esses impulsos de vaidade bem
franceza, bem humana (e que Balzac se deleitaria em notar) alardeia logo
o seu conhecimento intimo com os chefes do anarchismo e com os processos
empregados na composição das bombas. Os outros encolhem os hombros, negam
a sua competencia. E o homem irritado com a contradição termina por
gritar:

--Pois bem, fui eu! Fui eu que deitei a bomba! Viva a anarchia! E agora
não me massem mais, que quero dormir.

Era Vaillant. E sabem, de certo, tambem que foi condemnado á morte--por
um jury que se mostrou feroz, para que em Pariz, e sobretudo no seu
bairro, não o suppuzessem medroso. O que é ainda bem francez e bem
humano.


A bomba de Vaillant e a sentença que condemna Vaillant á morte, sendo
dous actos no fundo identicos, porque ambos procuram aniquilar um
principio pela violencia--são tambem dous actos absolutamente inuteis.

N'um crime como o de Vaillant entram, em resumo, tres impulsos ou
motivos determinantes. Primeiramente ha um desejo de vingança, todo
pessoal, por miserias longamente padecidas na obscuridade e na indigencia.
Ha depois o appetite morbido da celebridade--como o prova o facto de
Vaillant, nas vesperas de lançar a bomba, se ter photographado, n'uma
attitude arrogante, voltado para a posteridade. E emfim ha o proposito de
applicar a doutrina da seita, que, tendo condemnado a sociedade burgueza e
capitalista, como unico impedimento á definitiva felicidade dos
proletarios, decretou a destruição d'essa sociedade. Só este lado sectario
do crime particularmente nos interessa quanto á sua inutilidade. (Porque,
pelos outros dous lados, o acto não foi inutil, visto ter Vaillant
realisado a sua vingança e alcançado a sua celebridade).

Aqui temos pois Vaillant, como anarchista, com a sua bomba na mão,
preparado a demolir, para vantagem do proletariado opprimido, um bocado da
sociedade que o opprime, alguns dos seus membros mais activos e potentes,
e portanto, para elle, mais oppressores. Lança a sua bomba--e supponhamos
que, causando um maximo inverosimil de destruição, ella mata os seis
ministros, aniquila os quinhentos deputados, e arrasa o edificio do
parlamento! Que succederia? Que vantagens traria este feito estupendo ao
proletariado escravisado, e que prejuizos causaria á sociedade
escravisadora? Primeiramente espalhar-se-ia por toda a Europa um terror,
uma commoção maiores (porque hoje somos mais sensiveis, e o telegrapho e
a reportagem dão um alimento mais prompto e mais abundante a essa
sensibilidade) que a commoção e o terror causados pelo terramoto de Lisboa
em 1755. Depois, immediatamente, o poder executivo, que não fôra demolido,
nomearia um ministerio em substituição do ministerio assassinado; e esse
novo ministerio, mesmo assumindo provisoriamente a dictadura, fixaria uma
data para que a nação elegesse uma camara nova em substituição da camara
desbaratada. Em seguida a França faria aos mortos funeraes magnificos.
Vaillant seria guilhotinado, visto não existir, mesmo para crime tão
prodigioso, pena mais completa que a guilhotina.

O governo decretaria terriveis leis de repressão e, com o apoio
enthusiasta do paiz todo, os anarchistas seriam perseguidos, em montarias,
como lobos. O Estado reedificaria o edificio do parlamento em condições
mais seguras, e com linhas de certo mais bellas. E finalmente de novo
a camara se reuniria no seu novo edificio, e o tempo, que é um grande
apagador, iria apagando a impressão pungente da catastrophe, e os pobres
soffreriam as mesmas necessidades, e Rothschild gozaria os mesmos milhões,
e a sociedade burgueza e capitalista continuaria o seu movimento sem ter
perdido um atomo do seu capital e do seu burguezismo. Do feito horrendo,
só restariam, pelos cemiterios do Père-Lachaise ou de Montmartre, algumas
viuvas chorando. E o proletariado anarchista que teria conseguido? O odio
insaciavel dos egoistas, a desconfiança dos proprios humanitarios. E teria
ainda logrado crear, para sua confusão e maior humilhação, ao lado da
classe já desagradavel dos _martyres da liberdade_, a classe, ainda mais
desagradavel, dos _martyres da auctoridade._ De sorte que estas bombas
arremessadas contra a sociedade, mesmo quando tivessem meios destructivos
que são hoje ainda inconseguiveis com a nossa limitada sciencia, nunca
passariam, relativamente á força e estabilidade d'essa sociedade, de actos
impotentes e tão inuteis como bolhas de sabão lançadas contra uma
muralha.

A isto replicam os anarchistas:--«Assim é, mas nós não pretendemos
destruir, desejamos só aterrar!» Raciocinio vão. O que significa, n'este
caso, _aterrar?_ Significa provar, pela experiencia d'uma pequena
destruição, a possibilidade de uma destruição immensa? Significa inspirar
á burguezia, demolindo-lhe um predio e matando-lhe tres membros, o temor
de que lhe possa ser arrasado um bairro e desfeitos em estilhas tres mil
dos seus representantes? Mas está comprovado que, por maiores que sejam
essas devastações pela dynamite, mesmo quando subitamente por uma d'ellas
pudesse desapparecer todo o poder executivo e todo o poder legislativo,
os milhões de burguezes que governam e que conservariam intactos o seu
exercito, o seu ouro, todas as suas forças, não consentiriam em abdicar
de direitos que elles consideram como quasi divinos e os unicos capazes
de manter ordem e segurança nos agrupamentos humanos. É a eterna
inutilidade do regicidio, que, matando o homem, não mata o systema.

O nihilismo russo experimentou essa inanidade da violencia: um czar era
assassinado, logo outro era coroado, que do proprio crime commettido sobre
o pae parecia tirar um accrescimo de força e como uma nova sancção. Por
isso Proudhon, que o anarchismo venera como um de seus santos-padres,
prégou constantemente contra o tyrannicidio, contra as tendencias
tyrannicidas dos jacobinos do segundo imperio (hoje homens de poder e
auctoritarios) como prégaria, se vivesse, contra a bomba dos anarchistas,
por constituir uma outra fórma de tyrannia, e ser sobretudo um tão
lamentavel desperdicio de energia heroica.

Mas, por outro lado, se a bomba de Vaillant e de muitos Vaillants, é
impotente para arrasar, ou mesmo aterrar efficazmente a sociedade
burgueza--a sentença que condemna á morte os Vaillants é impotente para
supprimir ou sequer assustar o anarchismo. Com estas sentenças, inspiradas
por um dever e por uma esperança, o dever fica de certo cumprido porque o
criminoso fica castigado; mas a esperança não se realisa, porque nem os
anarchistas diminuem, nem se tornam mais raros ou mais timidos os seus
assaltos contra a sociedade. Pelo contrario! Está demonstrado, e pela
propria policia, que, desde as primeiras bombas e portanto desde as
primeiras repressões, o numero dos anarchistas tem crescido na proporção
formidavel de _um_ para _mil_; e emquanto que a primeira bomba foi lançada
contra um simples predio, a ultima é já arremessada contra o proprio
parlamento em sessão, exercendo soberania. O que era um bando está
organisado em seita.

E odios dispersos, operando sem methodo e sem dogma, fundiram-se n'uma
religião (ou, se quizerem, n'uma heresia) em que o odio de certo é ainda
um factor, mas em que é um factor maior o amor, o amor dos miseraveis e
dos opprimidos, e que portanto por este lado tem uma grande força de
propaganda e uma segura condição de vitalidade. Sobre esta seita, a que
bem podemos chamar religiosa (ou, se querem, heretica) as sentenças de
morte não têm acção, porque não fazem mais que vibrar um golpe unicamente
material sobre o que é immaterial, a crença, e assemelham-se portanto a
cutiladas atiradas ao vento. A guilhotina decepa uma cabeça, mas não
attinge a ideia que dentro residia. Durante um momento, é certo, á força
de buscas, de prisões, que são acompanhamento usual da sentença, a seita
fica desorganisada, desconjuntada:--mas para immediatamente se reorganisar
além, mais numerosa, mais fanatisada, por isso que vem de padecer uma
perseguição. Taes sentenças não têm senão o effeito desastroso de crear
martyres. Ora não ha semente mais fecunda que uma gotta de sangue de
martyr, sobretudo quando cahe n'um solo tão preparado para que ella
fructifique, como é a alma especial dos humanitarios que chegaram á
exacerbação do humanitarismo, não por theoria, mas atravez de realidades
dolorosas e de uma experiencia constante das miserias servis. Pense-se o
que será (quando um Vaillant é guilhotinado) uma reunião secreta de
anarchistas, dos verdadeiros, os puros, d'esses milhares de operarios de
coração generoso e exaltado, para quem o anarchismo é a verdadeira
redempção da humanidade, e que admiram no homem que se sacrificou por essa
ideia santa um martyr do amor dos homens! O jury só viu o bruto que quiz
matar: elles só veem o justo que quiz libertar. N'uma tal reunião, onde
cada um traz a sua colera e a sua maldição, é inevitavel que alguma alma
mais violenta se inflamme, appeteça tambem o martyrio, e corra d'alli a
fabricar a nova bomba, que na sua illusão quasi mystica concorrerá a remir
o proletariado. Aquelles que não podem morrer pela causa querem ao menos
soffrer de algum modo por ella, e pela sua justiça. Entre os anarchistas
presos recentemente havia um que se fizera gerente responsavel de um
jornal anarchista, só para ter gloria, o prazer espiritual de soffrer os
mezes de prisão em que os redactores incorressem pela violencia das suas
imprecações. Por isso o anarchismo, como a primitiva seita christã, tem
já os seus «Actos dos Martyres». A vida e supplicio de Ravachol andam
escriptos, e são meditados como mais puro exemplo da fé e da confissão
anarchista. Todos os objectos que pertenceram a Ravachol ganharam o
caracter augusto de reliquias. Ha um cantico a Ravachol--a _Ravachole._
E cada coração anarchista lhe é um altar.

As perseguições, as execuções, em logar de diminuirem a seita, só lhe
communicam uma vehemencia mais devota e portanto mais perigosa. E quando
a sociedade mata os anarchistas--é a sociedade que fabrica as bombas.

A violencia não cura--e o anarchismo é uma doença. O anarchismo é uma
exacerbação morbida do socialismo.

O germen e os desenvolvimentos d'esta doença não são difficeis de
precisar. No antigo regimen, o proletariado, mantido em servidão dentro
de uma organisação social muito forte, collocara sua esperança de
felicidade, não já n'esta vida e elle via irremediavelmente votada á pena,
mas a outra vida, para além da campa, como lh'o recommendava a Egreja, sua
mãe e sua educadora, dando-lhe como garantia a promessa de Jesus que
reservava para os pobres o reino do céo.

N'este nosso seculo porém o proletario, doutrinado pela classe media
que se tornara desde 1789, em substituição á Egreja, a sua nova educadora,
começou a acreditar que, sendo homem, e tendo portanto todos os direitos
do homem, poderia realisar a sua felicidade ainda em vida, n'este mundo, e
sob a garantia de leis. Para isso, segundo lhe affirmava a classe media,
bastava que ele demolisse o velho edificio social, a monarchia e as
instituições monarchicas, que constituiam o unico obstaculo á «felicidade
das massas». O proletario, convencido, sahiu em tamancos dos seus vehos
covis, e começou a destruir. Fez tres revoluções, ergueu barricadas
innumeraveis, exilou reis, incendiou castellos, aboliu privilegios--e
expeliu em gritos, e com as armas na mão, todas as formas e liberdades
politicas que a classe media lhe indicava ao ouvido e que deveriam realisar
essa felicidade terrestre tão largamente annunciada. Emfim, ao cabo de
setenta annos de luctas, o povo, tendo arrasado o velho edificio da
monarchia, construiu o novo edificio da republica, cheio dos confortos e
invenções novas da civilisação politica, a liberdade de reunião, de
associação, de imprensa, e todas as outras, entre as quaes, bem agasalhado
e bem provido, senhor seu, elle começaria emfim a conhecer a ventura de
viver. Assim soberbamente installado, esperou. Os annos passaram. A
felicidade annunciada não veio. Apesar de todos aquelles confortos
politicos (liberdade d'isto, liberdade d'aquillo) continuava, como no
antigo edificio feudal, a ter fome e a ter frio. Quando chegava a neve, o
direito de voto não o aquecia--e á hora de jantar, a liberdade de imprensa
não lhe punha carne na panella vazia. Pelo contrario, reconheceu que,
apesar do nome de «soberano» que lhe tinham dado, continuava na realidade
a ser servo--e que o seu novo amo, o burguez capitalista, era muito mais
exigente e duro que o antigo amo que elle guilhotinara, o fidalgo
perdulario. Todas as suas barricadas, pois, e todas as suas revoluções
tinham sido feitas em proveito da classe-media, que lhe mettera as armas
na mão, o impellira ao assalto do velho regimen! O seu sangrento esforço
só servira para entregar o poder á classe média, que se aproveitava d'esse
poder, não para dar ao proletario dentro do novo regimen a sua legitima
parte de bem estar, mas para lhe explorar o trabalho como lhe explorava a
colera, e fazel-o esfalfar para o seu enriquecimento material, como o
fizera combater para o seu engrandecimento politico!

A decepção foi tremenda--e tremendos o odio e desejo de vingança contra
o traiçoeiro burguez. A parte mais intelligente, mais pacifica, ou mais
legal do proletariado concebeu logo a necessidade de fazer uma outra e
derradeira revolução, não contra a estructura politica da sociedade nova,
mas contra a sua organisação economica, porque não era agora, por causa do
regimen politico que o proletariado soffria, mas por causa do regimen
economico, nascido das invenções mecanicas, das descobertas chimicas, dos
excessos de producção, da concorrencia de todos os progressos do seculo,
realisadas só em beneficio da classe media, e cada vez mais tendentes a
separar as duas velhas «nações» de Aristoteles, os pobres e os ricos,
attribuindo a uma todos os proveitos, e impondo á outra todas as fadigas.
Desde esse momento nascera, ou apparecera, organisado na Republica, o
socialismo.

Uma outra parte, porém, do proletariado, a mais inculta ou a mais
violenta, ou simplesmente a mais naturalista, concebeu uma outra ideia, e
estranha. Para essa, a revolução economica prégada pelo socialismo e
concebida ainda dentro de um funesto espirito juridico é inefficaz, quasi
pueril, porque não attinge o mal! Associações, _trade unions_,
barateamento do capital, seguros de velhice, reclamação para o dominio
social dos serviços collectivos, regularisação da concorrencia, etc.,
etc., todas essas reformas revolucionarias, tentadas pelo socialismo, são
tigellas d'agua morna, deitadas sobre uma gangrena. São ainda subterfugios
traiçoeiros do horrendo burguez. O mal, o verdadeiro mal, que é necessario
extirpar, é a propria ideia de direito, de lei, de auctoridade, de
Estado.

O homem nasceu livre como nasceu bom e proprio para ser feliz: e todavia
por toda a parte está escravisado, e pena sob essa escravidão. Mas
quem o escravisa, quem o faz penar? A sociedade com toda a sorte de peias,
de estorvos, que se oppõem á livre expansão da natureza humana, que é
fundamentalmente e innatamente boa, e que não poderia nunca ser senão um
radiante progresso do homem no sentido do bem. Esses impecilhos odiosos
são as leis, a auctoridade, o Estado. A propria moral é, como o direito,
ficticia, e um outro jugo imposto ao homem. Tudo isso, pois, tem de ser
destruido, para que a nova humanidade realise, na absoluta liberdade, a
absoluta felicidade. Mas como a sociedade está irremmediavelmente
impregnada d'esses funestos conceitos, que são a sua alma, e o seu
principio de cohesão, é inutil fazer revoluções para a transformar ou
melhorar; porque, qualquer que seja fórma que se dá á sociedade, ella
conterá sempre em si o virus horrivel:--o principio do direito, do Estado,
da auctoridade!

A unica solução portanto é arrasar completamente a sociedade, matando
e sepultando para sempre sob os seus destroços esses principios fataes
que até agora a têm governado, e depois recomeçar de novo a historia desde
Adão. E a sociedadetem de ser destruida, em bloco, toda ella, sem se
empurrarem para um lado os culpados, e sem se resguardarem para outro lado
os innocentes. No mundo actual não ha innocentes. De certo existe uma
classe mais especial e odiosamente criminosa--a classe dos ricos, que foi
quem concebeu, para seu proveito e contra os pobres, esses estorvos moraes
e sociaes, que se chamam direito, auctoridade, Estado, e que são a causa
de todo o mal humano. Mas a sociedade inteira é solidaria e responsavel
do mal. Todo aquelle que pacificamente se aproveita da protecção das leis
é tão culpado como o monstro que inventou as leis. E uma costureira que se
priva de apanhar uma flôr n'um jardim publico é já uma cumplice da
sociedade, porque, pelo seu consentimento tacito, ella concorre para que
se perpetue o despotismo do regulamento. É pois necessario destruir
tudo,--e atirar indiscriminadamente a bomba redemptora contra as classes
exploradoras, contra as classes voluntariamente exploradas, contra
a cidade onde se realisa a exploração, contra as proprias creanças que
nascem, porque ellas já trazem em si o virus da submissão exploravel.

Tal é em resumo, muito em resumo, a theoria do anarchismo.

Basta que ella seja enunciada para que se lhe reconheçam logo todos
os symptomas d'uma allucinação morbida. Não ha n'ella proposição que não
seja chimerica. Uma só é exacta: aquella pela qual o anarchismo se prende
ao socialismo, e que estabelece, com razão, que a presente organisação
social, em que uma classe possue todos os gozos e outra soffre todas as
miserias, é iniqua.

Partindo do facto d'esta grande e atroz injustiça, o anarchista começa,
logo que d'elle se afasta, para lhe procurar a causa e a cura, a delirar.
Delira quando, ao procurar a causa do mal, a encontra no principio do
direito: e delira ainda mais quando, ao procurar a cura do mal, a entrevê
ou, antes, claramente a vê, na destruição da humanidade pela dynamite. O
anarchista é pois, no fundo, um socialista que caminhou seguramente, por
um caminho racional, emquanto foi, como socialista, accusando a
organisação da sociedade--mas que depois, ou impaciente d'esse lento
caminho juridico, ou cedendo aos impulsos d'uma natureza desequilibrada,
deu um grande salto para fóra da realidade, rolou no absurdo, e
cabriolando através d'uma metaphysica insensata, veiu cahir miseravelmente
em praticas d'uma ferocidade selvagem.

Ha pois razão para dizer que o anarchismo é uma doença, uma exacerbação
morbida do socialismo.

Mas como é que esta seita de doentes tão disparatada na sua doutrina, e
tão impotente nos seus meios de acção (o que obsta sempre á efficacia
de qualquer propaganda), se mantém e alastra na proporção de um para mil?
O anarchismo decerto se desenvolve, como todas as epidemias, por ter
achado em torno uma atmosphera propicia e mesmo sympathica. A verdade é
que toda a sociedade que elles desejam arrasar, é tacitamente cumplice dos
anarchistas.

Esta cumplicidade, que mal percebemos, mas que é real e activa, tem
dous motivos:--um extremamente nobre e honroso, que é a nossa
philantropia, a nossa crescente piedade pelos que soffrem, e outro,
extremamente baixo e vergonhoso, que é o nosso doentio enthusiasmo por
tudo quanto é extravagante, monstruoso, hysterico, fóra da calma razão e
do equilibro da vida. No anarchista nós vemos dous homens, com quem
secretamente e sinceramente sympathisamos:--um é o desgraçado, que
padeceu frio e fome; outro é o allucinado que se ergue da sombra, com a
sua bomba na mão, para fazer de todo este mundo, de todas as suas glorias
e de todas as suas riquezas, um montão de negros destroços sem fórma e sem
nome! E tão pervertidos estamos, que eu não sei realmente por qual d'estes
dous homens nos interessamos mais--se por aquelle que sensibilisa o nosso
coração, se por aquelle que excita a nossa imaginação. Francamente, qual
nos emociona mais--o infeliz ou o monstro? Desconfio que é o monstro.

Em todo caso, nós estamos tacitamente, pelo coração e pela imaginação,
em sympathia com o archista. E quasi se póde dizer que, exceptuando
a porção mais egoista e espessa da burguezia, alguns homens de estado a
quem por profissão são vedadas a sensibilidade e a phantasia, todas as
classes mundanas, intellectuaes, artisticas, ociosas, se estão abandonando
com voluptuosidade ás emoções novas do anarchismo. Desde já existe, muito
contagioso, o dillettantismo anarchista. Duquezas moças, cobertas de
diamantes, condemnam a má organisação da sociedade, comendo codornizes
truffadas em pratos de Sèvres. Nos cenaculos decadistas e symbolistas, a
destruição das instituições pela dynamite apparece como uma catastrophe
cheia de grandeza, de uma poesia aspera e rara, e quasi necessaria para
que o seculo finde com originalidade. E nada caracterisa mais estes
estados d'espirito, onde alguma sinceridade se mistura a muita affectação,
do que a phrase já historica do poeta Tailhade. Ao saber, em uma
cervejaria litteraria, que Vaillant acabava de atirar a sua bomba na
camara dos deputados, este symbolista exclama languidamente e quasi era
em extase:

--Já vae pois desabando o velho mundo!... O gesto de Vaillant é bello!

«O gesto é bello!». Todo Pariz repetiu, com mal escondida admiração,
esta phrase que revelava aos profanos a belleza esthetica do crime
anarchista. «O gesto é bello!». E muito honesto moço, incapaz de pisar
voluntariamente o pé do seu semelhante, reconheceu, sentiu a belleza do
gesto de Vaillant--a belleza d'aquelle braço magro que se ergue
lentamente, solemnemente, e deixa cahir a morte sobre um mundo condemnado.
Os anarchistas, elles proprios, já fallam na belleza do seu gesto. N'uma
sociedade tão culta como a nossa, e tão saturada d'arte, uma revolta
social deveria necessariamente ter, além da justiça, a elegancia plastica,
a graça magestosa mesmo, no seu furor. O anarchismo já se sentia justo. Os
poetas mais entendidos em harmonia e rythmo acabam de lhe assegurar que
elle é tambem estheticamente bello.

Mas é sobretudo na imprensa que o anarchismo encontra um mais vivo
estimulo ao seu desenvolvimento. Todos os jornaes de Pariz, quer sejam
ferozmente hostis aos anarchistas, quer nutram por elles uma mal
disfarçada benevolencia, são unanimes n'um ponto:--em os cercar da
mais prodiga e resoante celebridade. Um general victorioso, um grande
homem de estado, um poeta como Hugo, um sabio como Pasteur, nunca tiveram
na imprensa de Pariz um reclamo tão minucioso como tem qualquer aprendiz
de anarchista, que atire contra um velho muro uma bombasinha timida.

Se é anarchista, se lançou a bomba--é d'elle a fama universal, que nem
sempre conseguem os santos e os genios.

Mal se póde imaginar a que excessos se abandonou a reportagem de Pariz
a respeito de Vaillant. Os menores actos da sua vida, a góla de
astrakan do seu casaco, o seu modo de enrolar o cigarro, o que comeu, o
que disse, o sobr'olho que franziu--tudo foi miudamente e clamorosamente
contado ao mundo com um calor em que a propria indignação tinha não sei
que de laudativa. De sorte que hoje em Pariz para se ter uma verdadeira
celebridade, é melhor atirar uma bomba a qualquer corpo do Estado, do que
escrever a _Lenda dos Seculos._

Assim fanaticamente convencido da justiça superior da sua ideia e tomado
mais fanaticamente desesperado pelas brutaes leis de excepção que
contra elle decreta o Estado; cercado das sympathias dos humanitarios;
declarado estheticamente bello pelos poetas; apreciado como uma novidade
picante pelo dilettantismo mundano e magnificamente popularisado pela
imprensa--como não ha-de o anarchismo alastrar n'essa proporção temerosa
de um para mil?

Para que não crescesse, como planta bem regada, e ao contrario se
estiolasse, seria necessario que elle proprio se persuadisse, se não já da
falsidade da sua ideia, ao menos da inutilidade das suas praticas; que o
Estado não suscitasse contra elle leis de excepção, odiosas e intoleraveis
ao espirito de equidade; que os humanitarios o reprovassem pela sua
indiscriminada condemnação de innocentes e culpados; que os poetas e os
artistas descobrissem que o gesto é meramente bestial; que o dilettantismo
se desinteressasse d'elle como de um banal partido politico; e que a
imprensa o envolvesse em um silencio regelador.

Então sim! Talvez eliminadas estas condições que a favorecem, a febre
que produz o anarchismo se calmasse, e o anarchista, restituido á saude
intellectual, reentrasse no largo e fecundo partido socialista, de que
elle se separa em um momento de delirio.

Assim possa ser! As guerras servis (e o anarchismo é uma guerra servil)
nunca conseguiram senão desenvolver nas classes oppressoras os instinctos
de tyrannia, e retardar funestamente a emancipação dos servos. Cada bomba
anarchista, com effeito, só addia, e por muitos annos, a emancipação
definitiva do trabalhador. Além d'isso os anarchistas que até agora têm
lançado a bomba, não são puros; têm todos no seu passado um crime, e um
crime feio, de malfeitor. De sorte que não se sabe bem se a bomba é
n'elles um primeiro acto de justiça, se um derradeiro acto de
perversidade. Para que a bomba pudesse ter uma alta significação social,
seria necessario que fôsse lançada por um justo, ou por um santo. Até que
surja esse santo para santificar o anarchismo, o melhor que se póde dizer
d'elle, quando se não seja um capitalista apavorado e enfurecido pelo
pavor--é que o anarchismo é uma epidemia moral e intellectual.

Ora o dever da sociedade, perante uma epidemia, é circumscrevel-a,
isolal-a--não crear em torno d'ella, por curiosidade depravada d'um mal
original e raro, uma vaga atmosphera de sympathia, d'admiração litteraria,
de piedades estheticas, e de delicioso terror que goza a novidade do
seu arrepio.

Toda esta larga aragem de favor é um crime--porque animando
indirectamente a obra abominavel do anarchismo, retarda directamente a
obra util do socialismo, e concorre para que se prolongue, mais revigorada
pela reacção, esta ordem social, que é tão cheia de desordem.

Mas demais fallámos de bombas! Bem vos basta, caros collegas e amigos,
as que ahi vos cahem em casa (e que de certo tambem não comprehendeis bem)
sem terdes ainda de vos preoccupar, por dever critico, d'aquellas que aqui
estouram sobre o nosso velho mundo. Todas estas bombas, com effeito, são
bem difficeis de explicar, de deslindar... Rebentam, matam, ha mulheres
que choram, e a desordem social cresce. Todavia ellas são arremessadas com
convicção e por um amor ardente do bem publico. Emfim, o que podemos
affirmar sinceramente é que--cá e lá más bombas ha.



XIV


OUTRA BOMBA ANARCHISTA--O SNR. BRUNETIÈRE E A IMPRENSA.


As bombas anarchistas (porque tivemos outra, a bomba de Henry, lançada
no café _Terminus_ e que feriu trinta pessoas) vão entrando lentamente
na classe dos accidentes naturaes, onde tomam um modesto logar, logo
depois das inundações e dos incendios. Evidentemente o primeiro rio que
alagou os primeiros campos cultivados, ou o primeiro fogo que rebentou na
primeira cidade edificada, encheu os homens de um terror tanto mais
desordenado quanto por traz d'essa rebellião de elementos elles viam a
colera de um Deus offendido. Cada varzea inundada, cada cabana queimada,
dava assim motivo a longas ceremonias expiatorias, á invenção de novas
formulas liturgicas, a um desenvolvimento excessivo da auctoridade
sacerdotal, e mesmo a especulações lyrico-metaphysicas dos vates, que eram
então os philosophos que tudo explicavam. Depois, quando se observou que
estas violencias da agua e do lume occorriam tão regularmente como as
estações, e que cada inverno os valles se submergiam, e cada verão ardiam
as choças de madeira e colmo, não houve mais coração que palpitasse de
pavor mystico. Mesmo acreditando sempre que, através de taes desastres, se
manifestava o descontentamento, divino, foi á auctoridade civil e não já á
casta sacerdotal que se pediram medidas preventivas ou salvadoras. E nem
se lhe conferiram poderes novos e excepcionaes, na certeza que, para
conter a agua e apagar o fogo, bastaria apenas alguma vigilancia e saber
technico da administração urbana e rural.

Com effeito ha já alguns milhares de annos que os rios devastam searas
e o lume devora predios, sem que por isso a Egreja ou o Estado se
commova ou trema pela sua estabilidade.

É exactamente o que vae succedendo com os anarchistas. Ás primeiras
bombas houve um tumultuoso terror, como perante uma estranha e demoniaca
demencia que ameaçava a velha estructura social. Cada explosão foi motivo
para que se promulgassem leis de excepção, para que se reforçasse
temerosamente o braço penal dos governos, para que os philosophos
formulassem complicadas receitas sociologicas, e mesmo para que certos
espiritos mais impressionaveis suspirassem pela intervenção divina de um
Messias como unico capaz de pacificar os homens. Depois, quando se ouviu
cada semana estalar uma bomba, e sem destruir mais propriedades ou vidas
do que certos desabamentos de terrenos ou descarrilamentos de comboios, o
medo phantasmagorico d'uma catastrophe social immediatamente findou: o
habito embotara a emoção, e estas explosões revolucionarias começaram a
ser equiparadas ás que fatalmente e inevitavelmente se produzem dentro
d'uma civilisação industrial e mecanica: as do gaz, das caldeiras de
vapor, das peças a bordo dos couraçados, e do _grisou_ no fundo das
minas. Contra ellas já não parece necessario improvisar codigos mais
repressivos, nem invocar a interferencia messiânica. E a opinião
tranquillisada só reclama, para domar a bomba, essas medidas preventivas
que na industria se esperam da prudencia technica dos contra-mestres,
e na ordem civil da vigilancia profissional dos commissarios de policia.

É n'este espirito que a policia em Pariz está procedendo á prisão
systematica de todos os anarchistas.

Cada madrugada se faz através da cidade uma colheita de sectarios.
Hontem quinze, hoje vinte... Os jornaes apenas publicam, sem commentarios,
a lista secca dos nomes. Alguns d'estes homens têm mulher, têm filhos, a
quem o pão vae faltar. Mas d'esses detalhes minimos, n'este momento de
sensação publica, não cura o pretor. A cousa essencial é que não reste,
livre nas ruas de Pariz, um proletario capaz de misturar um pouco de
glycerina a um pouco de acido nitrico. Nem é mesmo necessario que o
anarchista seja militante. Os simples theoricos, que professam e
methodisam o anarchismo no livro ou no jornal, são egualmente levados na
vasta montaria policial. De resto, o que o governo pretende, com esta
encarceração geral de anarchistas, é conhecel-os, photographal-os,
estudal-os, surprehender as suas ligações e afiliações, e formar assim um
registro muito minucioso e muito documentado de toda a seita.

Findo este vasto inquerito pratico, todos serão soltos, como se soltam
as manadas dos bois nas lezirias, depois de bem numerados e bem marcados.
Indubitavelmente é uma dura lei;--mas vem de uma dura necessidade. Era
realmente intoleravel que, n'uma cidade do seculo XIX, um pacifico homem
não pudesse entrar n'um café, ou n'um theatro, com a mulher e o filho, sem
correr o risco de voltarem de lá, elle e os seus, crivados de pontas de
pregos, em nome de uma heresia digna do seculo III. Porque o anarchista é
com effeito um socialista que se tornou heretico. Este nosso anarchismo
está para o socialismo, como estavam para o christianismo nascente os
montanistas, e os valentinistas, e os carpocratios que prégavam o amor
livre, e os circoncellios que prégavam a destruição universal, e tantos
outros, extravagantes e terriveis. Todos esses hereticos, tortulhos
venenosos da arvore evangelica, não fizeram senão deturpar e desacreditar
a pureza da doutrina, retardar-lhe a obra regeneradora, e attrahir-lhe
perseguições sangrentas. Eram por isso ainda mais odiados pelos bispos
christãos, que pelos pontifices pagãos. E quando sobre elles cahia a lei
do imperio, com ferocidade, como sobre inimigos do genero humano, havia
tanto regosijo do lado de Jesus, como do lado de Jupiter.

Egual regosijo acompanha esta perseguição, que nada tem, louvado seja
o nosso tempo, da crueldade da de Decio ou de Diocleciano. Mesmo os que
lamentam que ella espalhe tanta miseria entre mulheres e creanças
abandonadas, desejam vehementemente que a seita seja, senão esmagada,
ao menos inutilisada. A obra do Estado seria pois perfeita se, inspirada
simultaneamente pelo sentimento de ordem e de humanidade, elle, pelo
lado da policia, prendesse os anarchistas, e pelo lado da assistencia
publica lhes soccorresse as familias que ficam sem o pão do salario
perdido.

Mas infelizmente, entre tantos orgãos de que está provido o Estado,
não ha nenhum que tenha a fórma, mesmo vaga, de um coração humano.


Não sei se conhecem o snr. Brunetière. O snr. Brunetière é hoje nas
lettras francezas um grande personagem--quasi devia dizer, dada a
qualidade do seu espirito e das suas funcções, um grande mandarim. Quando
o velho Buloz foi exilado da _Revista dos Dous Mundos_, por ter amado
fóra da _Revista_, e com uma especie de amor que a _Revista_ não
permitte, a assembléa de accionistas d'essa veneravel publicação nomeou
para o cargo de director o snr. Brunetière. Além d'isso, o snr.
Brunetière era já o director, senão espiritual, ao menos intellectual,
das damas lettradas do Faubourg St. Germain, tendo portanto a gloriosa
missão de ensinar o que, em materia de litteratura, uma duqueza deve
acceitar ou deve rejeitar para conseguir um logar no reino dos bons
espiritos. Como consequencia d'estes dous nobres empregos, o de director
da _Revista_ e confessor litterario das almas aristocraticas, o snr.
Brunetière foi por influencia das senhoras (e entre as senhoras incluo a
_Revista_) eleito membro da Academia Franceza. E finalmente, para
consagrar a sua reputação, a mocidade das escolas apupou furiosamente o
snr. Brunetière, e, assim como a democracia revoltada outr'ora queimava o
throno dos tyrannos (não sei se ahi no Rio, na revolução de novembro, se
omittiu esta formalidade classica), quebrou a poltrona professoral, onde
elle, na Sorbonne, pregava a boa doutrina, desmantelava o naturalismo, e
explicava ás suas devotas a maneira mais delicada de saborear Bossuet. Eu
conto estes guinchos e furores da mocidade como um dos elementos da sua
gloria, senão já do seu valor, porque desde que as ideias geraes
recomeçaram a apaixonar os espiritos moços e que nos pateos das
Universidades se trocam outra vez bengaladas por causa de theorias, um
professor só poderá ser considerado sufficientemente original, vivo,
forte, fecundo, quando o seu ensino tenha provocado rancores ou
enthusiasmos.

Os antigos portuguezes tinham, da nossa historia tragico-maritima,
tirado este proverbio: «Só a grande náo, grande tormenta». E por isto
significavam implicitamente um certo desdem por toda a barcaça chata e
núa, que passava desapercebida do vento e da vaga. O Bairro Latino está
creando um proverbio parallelo--«Só a grande professor, grande berreiro».
Quando o professor é chato ou oco, em torno d'elle ou do seu ensino ha
indifferença e calmaria. O escandalo, ao contrario, prova um mestre.

Ora, d'um homem por tantos motivos importante como o snr. Brunetière,
todas as palavras são importantes. Por isso, a feroz verrina que elle, no
seu discurso de recepção na Academia Franceza, lançou contra os jornaes e
os jornalistas, mereceu mais attenção do que geralmente merecem estas
grandes e usuaes imprecações contra a imprensa, as mulheres, o vinho e
outros males.

Eu conheço imperfeitamente o snr. Brunetière, que é um critico de
profissão. Se n'esta nossa edade de colossal e quasi abusiva producção (só
a França publica por anno 12.000 volumes!) já não ha tempo para lêr os
auctores--quanto menos os commentadores! O snr. Brunetière ensina agora na
Sorbonne a comprehender e amar Bossuet. Mas quem teve o vagar ditoso de
lêr primeiramente Bossuet, se é que o não leu no começo da sua educação
classica? Eu, na minha mocidade, folheei os _Sermões_ e as _Orações
Funebres_; mas não cheguei a penetrar, como devia, no _Discurso sobre a
Historia Universal._ E desde então, desgraçadamente, não logrei ainda um
momento para absorver a theoria do grande bispo sobre a serie dos tempos,
das religiões e dos imperios. Quando muito conheço a pagina classica, tão
magestosa e rica, em que elle pinta a omnipotencia de Augusto e a belleza
e recolhimento da paz romana, nas vesperas de nascer Jesus. É pouco. Mas
se tão pouco conheço Bossuet, não me deve ser censurado o ignorar quasi
inteiramente o seu apologista.

Pelo que tenho ouvido, porém, parece-me que o snr. Brunetière está para
as lettras como um botanico está para as flôres. Percorrendo os canteiros
de um jardim, o botanico conhece cada flôr, e o seu nome latino, e o
numero das suas petalas, e todas as suas variedades, e o largo genero em
que se filia, e a zona e o terreno que melhor convém ao seu
desenvolvimento, etc., etc... Ha só na flôr uma cousa sobre que o juizo
do velho botanico sempre claudica, ou porque a desdenhe ou porque a não
sinta--e é a belleza especial da flôr, que está talvez na côr, nas dobras
das folhas, na maneira porque se mantém na haste, em mil particularidades
indefinidas, n'esse _não sei que_ que lhe habita as fórmas e que faz com
que deante d'ella paremos, e a contemplemos, e a appeteçamos, e a
colhamos. O snr. Brunetière é este sapiente botanico entre flôres. Que lhe
dêem um poeta, e elle immediatamente o classificará, lhe collocará um
rotulo nas costas, mostrará o genero que cultivou, desfiará as qualidades
que revelou n'esse genero, exporá as influencias de raça, e de meio, e de
momento historico que concorreram para o desenvolvimento d'essas
qualidades, etc., etc. Será superiormente erudito--e só lhe faltará o
sentir, pelo gosto, esse _não sei que_ de intimo que constitue a belleza
ou a grandeza do poeta. O snr. Brunetière é um botanico das lettras. E de
resto esta comparação não lhe poderia desagradar, porque elle é um dos que
recentemente, ao que parece, mais se têm applicado a introduzir nas
sciencias moraes o methodo das sciencias naturaes, e a considerar as obras
humanas, e sobretudo as obras de litteratura e de arte, como productos de
que a critica e a esthetica só têm a verificar os caracteres e a esmiuçar
as causas. Isto desde logo o torna para mim um critico extremamente
respeitavel e pouco sympathico. Ignorante como sou, eu gosto de um critico
que me possa explicar as causas e os caracteres da obra de Musset, mas que
sinta palpitar o coração quando lê as _Noites_ e a _Carta a Lamartine_,
ou porque se lhe communicou a emoção do ardente lyrico, ou porque se
enlevou na contemplação da belleza realisada. Sem a faculdade emotiva e o
gosto, o critico pertence áquella especie de esmiuçadores de causas e
arrumadores de generos, que Carlisle chamava os _resequidos._

Além d'isso, segundo ouço, o snr. Brunetière é um rispido, um inflexivel,
todo elle dogmatismo e intolerancia, sem uma gotta, para o amollecer
e lubrificar, d'aquelle _leite da humana bondade_ de que falla outro
inglez, o muito adoravel Dickens. E esta outra qualidade do snr.
Brunetière augmenta a minha antipathia, toda de instincto, para com este
homem de talento e de bem. Não posso por isso ser considerado suspeito, ao
approvar, como approvo, todas as accusações que, no seu discurso de
recepção na Academia, elle desenrolou contra os jornaes, contra os
jornalistas, e, portanto, contra mim, que sou, a meu modo, e d'um modo
bem imperfeito, uma especie de jornalista.


O snr. Brunetière censura á imprensa a sua superficialidade, a sua
bisbilhotice e escandaloso abuso de reportagem, e o seu sectarismo. Ser
superficial, bisbilhoteiro e sectario, é ter realmente uma respeitavel
somma de defeitos.

Um só basta para desacreditar em materia intellectual ou social. Todos
juntos pedem as gemonias. E todavia a imprensa, que os possue todos,
está n'um throno e resplandece. Mas Nero e Vitellio governaram o
mundo--e a sua triumphal auctoridade não lhes tira a indecente
monstruosidade!

A imprensa, que tambem ho je governa o mundo, não é, Deus louvado,
nem indecente, nem monstruosa. Todos esses vicios, porém, que lhe
attribue o snr. Brunetière, é certo que ella os pratica, em proporções
diversas, segundo o seu temperamento de raça e as suas condições
funccionaes. O _Times_ e outros jornaes inglezes, riquissimos e possuindo
toda uma cohorte de especialistas, prompta a tratar todas as materias,
desde as de metaphysica, apresentam geralmente, sobre as questões
occorrentes, estudos solidos em que está resumido muito saber e muita
experiencia. Por outro lado, na Allemanha, paiz das ideias geraes, e que
só se interessa por ideias geraes, e em Portugal e na Hespanha, onde todos
herdamos dos nossos avós, godos e arabes, o respeito quasi sacrosanto da
vida intima,--os jornaes não são bisbilhoteiros, nem abusam
indiscretamente da reportagem miuda.

Em média, porém, affoutamente se póde affirmar que na Europa e na
America a imprensa é superficial, linguareira e sectaria. Ora, estes
defeitos não são, a meu vêr, sómente perniciosos por enfraquecerem, como
pretende o snr. Brunetière, a auctoridade da imprensa e fazer lamentar os
tempos solidos d'Armand Carrel, em que se punha na composição de um artigo
mais cuidado do que hoje se põe na preparação de uma Encyclopedia. Taes
defeitos são sobretudo nocivos, porque a imprensa os communica ao publico,
com quem está em permanente communhão, e assim, em logar de educadora, se
tem lentamente tornado uma viciadora do espirito e dos costumes.

Incontestavelmente foi a imprensa, com a sua maneira superficial e
leviana de tudo julgar e decidir, que mais concorreu para dar ao nosso
tempo o funesto e já radicado habito dos juizos ligeiros. Em todos os
seculos se improvisaram estouvadamente opiniões: em nenhum, porém, como
no nosso, essa improvisação impudente se tornou a operação corrente e
natural do entendimento. Com excepção de alguns philosophos mais
methodicos, ou d'alguns devotos mais escrupulosos, todos nós hoje nos
deshabituamos, ou antes nos desembaraçamos alegremente do penoso trabalho
de reflectir. É com impressões que formamos as nossas conclusões. Para
louvar ou condemnar em politica o facto mais complexo, e onde entrem
factores multiplos que mais necessitem analyse, nós largamente nos
contentamos com um boato escutado a uma esquina. Para apreciar em
litteratura o livro mais profundo, apenas nos basta folhear aqui e além
uma pagina, através do fumo ondeante do charuto. O methodo do velho
Cuvier, de julgar o mastodonte pelo osso, é o que adaptamos, com magnifica
inconsciencia, para decidir sobre os homens e sobre as obras.
Principalmente para condemnar--a nossa ligeireza é fulminante. Com que
esplendida facilidade declaramos, ou se trate d'um estadista, ou se trate
d'um artista: «É uma besta! É um maroto!» Para exclamar: «É um genio!» ou:
«É um santo!» offerecemos naturalmente mais resistencia. Mas ainda assim,
quando uma boa digestão e um figado livre nos inclinam á benevolencia
risonha, tambem concedemos promptamente, e só com lançar um olhar
distrahido sobre o eleito, a coroa de louros ou a aureola de luz.

N'estes tempos de borbulhante publicidade, em que não ladra um cão em
Constantinopla sem que nós o sintamos, e em que todo o homem tem o seu
momento de evidencia, nós passamos o nosso bemdito dia a promulgar
sentenças e a lavrar diplomas. Não ha facto, acção individual ou
collectiva, personalidade ou obra humana, sobre que não estejamos
promptos, apenas ellas nos sejam apresentadas, a formular muito d'alto
uma opinião cathedratica.

E a opinião tem sempre e apenas por base aquelle pequenino lado do
facto, da acção, do homem, da obra, que apparece, n'um relance, ante os
nossos olhos fugidios e apressados. Por um gesto julgamos um caracter, por
um caracter avaliamos um povo. A antiga anecdota d'aquelle inglez
funambulesco que, desembarcando em Calais de madrugada, e avistando um
coxo no caes, escreve no seu livro de notas: «A França é habitada por
homens côxos»--illustra e symbolisa ainda hoje a formação das nossas
opiniões.

E quem nos tem enraizado estes habitos levianos? O jornal, que offerece
cada manhã, desde a chronica até aos annuncios, uma massa espumante de
juizos ligeiros, improvisados na vespera, das onze á meia noite, entre
o silvar do gaz e o fervilhar das chalaças, por excellentes rapazes que
entram á pressa na redacção, agarram uma tira de papel, e, sem tirar mesmo
o chapéo, decidem com dous rabiscos de penna, indifferentemente sobre uma
crise do Estado, ou sobre o merito de um _vaudeville._ Como exemplo
picante, eu poderia citar o modo por que a imprensa de Pariz tem
commentado a revolta do Brazil e julgado o povo do Brazil, sobre vagos
bocados de telegrammas truncados--senão receiasse entrar em um caminho
escorregadio, onde me arriscaria a esbarrar com os nossos queridos
collegas do _Paiz_ e do _Tempo_, armados da sua ferula.

Lembrarei apenas que, ainda não ha uma semana, o articulista encarregado
no _Figaro_ de criticar cada dia os acontecimentos politicos da Europa,
e que, portanto, deve conhecer a Europa, estudando a situação economica
de Portugal, affirmava, e com uma soberba certeza, que «em Lisboa os
filhos das mais illustres familias da aristocracia se empregavam como
carregadores de alfandega, e ao fim de cada mez mandavam receber as
soldadas _pelos seus lacaios!_» Estes herdeiros das grandes casas de
Portugal, carregando pipas de azeite e fardos de café no caes da
alfandega, e conservando todavia creados de farda para lhes ir receber
o salario--fórmam um quadro simplesmente portentoso. Pois quem o traça
é o _Figaro_, um dos mais considerados jornaes de Pariz, e um dos que têm
um pessoal mais largo e mais remunerado. E Lisboa todavia está a dois
dias e meio de Pariz! Mas Londres dista apenas sete horas e meia de
Pariz--e constantemente os jornaes francezes escrevem sobre a Inglaterra,
e as cousas inglezas, com a mesma segura sciencia com que o _Figaro_
descrevia as occupações da nobreza de Portugal.

Ora, dizia não sei que sentencioso critico hespanhol que, quando se lê
constantemente Seneca, ganham-se os habitos de espirito de Seneca. E
quando se tem como usual alimento do espirito o _Figaro_ e consortes (e
é d'estas magras viandas que hoje se nutre a maioria dos civilisados)
facilmente se toma o habito de ir espalhando estouvadamente, sobre os
homens e sobre os factos, juizos ephemeros e ocos. E eu proprio, por
humildade, para não estender uma orgulhosa abstenção do peccado commum,
comecei por dar aqui, sobre o snr. Brunetière--um juizo ligeiro, nascido
de impressões fugidias.


A outra accusação feita á imprensa pelo douto académico é a da
bisbilhotice, de indiscreta e desordenada reportagem.

Ha aqui alguma ingratidão da parte do snr. Brunetière. Para a critica,
sobretudo como elle a comprehende e exerce, a reportagem é a grande
abastecedora de documentos. Quanto mais detalhes a indiscrição dos
reporters revelar sobre a pessoa do snr. Zola, e os seus habitos, e o seu
regimen culinario, e a sua roupa branca, tantos mais elementos positivos
terão os Brunetière do futuro para reconstruir com segurança a
personalidade do auctor de _Germinal_, e, através d'ella, explicar a obra.
Não é indifferente saber como era feito o nariz de Cleopatra, pois que do
feitio d'esse nariz dependeram, durante um momento, como muito bem diz
Pascal, os destinos do Universo. Mas, como a reportagem ainda se exerce,
não só sobre os que influem nos negocios do mundo ou nas direcções do
pensamento, mas sobre toda a «sorte e condições de gente», desde as
_cocottes_ até aos _jockeys_, e desde os _dandies_ até aos assassinos,
succede que esta indiscriminada publicidade, sem concorrer em nada para a
documentação da historia, concorre, e prodigiosamente, para o
desenvolvimento da vaidade.

O jornal é hoje, com effeito, o grande assoprador da vaidade humana.
Em todos os tempos houve vaidosos--e não querem de certo que eu
estafadamente cite o estafado Alcibiades cortando o rabo do seu estafado
cão, para que se falle d'elle nas praças de Athenas. A vaidade é mesmo
muito anterior a Alcibiades: já apparece a paginas 3 da Biblia, e a
folha de vinha, bem collocada, é o seu primeiro acto mundano.
Incontestavelmente, porém, em nenhum tempo a vaidade foi, como no nosso,
o grande, o principal motor das acções e da conducta. N'estes estados de
alta civilisação, que produzem cidades do typo de Pariz e de Londres, tudo
se faz por vaidade, e com um fim de vaidade.

E d'essa fórma nova e especial da vaidade só o jornal é culpado, porque
foi elle que a creou. Essa forma consiste na notoriedade que se obtém
através do jornal.

«Vir no jornal», ter o seu nome impresso, citado no jornal--eis hoje,
para uma forte maioria dos mortaes que vivem em sociedade, a aspiração
e recompensa supremas.

Nos regimens aristocraticos, o grande esforço era obter, senão já o
favor, ao menos o sorriso do principe. Nas nossas democracias é alcançar
o louvor do jornal. Para conquistarem essas dez ou doze linhas bemditas,
os homens praticam todas as acções--mesmo as boas. Não é mesmo necessario
que essas linhas contenham um panegyrico: basta que ponham o nome, a
personalidade em evidencia, n'uma tinta bem negra, que hoje tem um brilho
mais desejado que o antigo nimbo d'ouro. E não ha classe que não esteja
devorada por esse appetite morbido do reclamo. Elle é tão vivo no mundano,
no homem de prazer, na mulher de luxo, como n'aquelles que parecem
preferir na vida a obscuridade e o silencio. Parque vêm agora, n'estas
semanas, esses frades dominicanos, do fundo dos seus claustros, pregar
nos pulpitos de Pariz sermões de Quaresma grandemente theatraes e
creadores de escandalo? Para terem uma celebridade no genero Coquelin,
e _interviews_ nos jornaes de litteratura elegante, e o seu retrato, com
o habito do grande S. Domingos, exposto entre _jockeys_ illustres e as
cancanistas do _Moulin-Rouge._ É esta esperança do «artigo do jornal»,
que, como outr'ora a esperança do céu, governa a conducta e as ideias--e
para «vir no jornal» é que os homens se arruinam, e as mulheres se
deshonram, e os politicos desmancham a boa ordem do Estado, e os artistas
se lançam na extravagancia esthetica, e os sabios alardeiam theorias
mirabolantes, e de todos os cantos, em todos os generos, surge a horda
sofrega dos charlatães. Cada um se empurra, se arremessa para a frente,
quer fazer estalar, bem alto no ar, o seu fogo de artificio, para que o
jornal o commente, e a multidão se apinhe e murmure boquiaberta:--_Ah!_

Mas, por Deus! agora reparo que estou aqui compondo uma pagina de
moralista amargo, o que é faltar ao bom gosto do nosso tempo, e sobretudo
aos santos preceitos da ironia. Immediatamente me calo--e estou mesmo
prompto a concordar que o jornal tambem incita á virtude... Com effeito,
tal magnifico banqueiro judeu dá, pelo Natal, cem mil francos aos pobres,
para que a sua caridade venha no jornal! Bemdito seja o jornal!

Nem mesmo, com receio de tomar o desagradavel tom de um censor dos
costumes, quero insistir na outra accusação formulada pelo snr. Brunetière
contra a imprensa--a de partidarismo e de sectarismo. De resto, é por pura
humildade christã que eu, que me considero a meu modo um jornalista,
confessei, fallando do jornalismo, estes peccados em que collaboro
impenitentemente.

Estamos na Semana Santa, e é de bom exemplo que cada um rosne o seu
_mea culpa_ e cubra a cabeça de uma pouca de cinza. Além d'isso,
queridos amigos e confrades no peccado, esta carta, em que contrictamente
apontei alguns dos vicios mais dissolventes dos jornaes, a sua
superficialidade, a sua bisbilhotice, o seu partidarismo, vicios que os
tornam tão pouco proprios para serem lidos pelo homem justo, já vae
copiosamente larga--e eu tenho pressa de a findar, para ir lêr os meus
jornaes com delicia.



XV


AS «INTERVIEWS»—-O REI HUMBERTO E O «FIGARO»--A MONARCHIA ITALIANA--O
QUE PÓDE DIZER UM SOBERANO A UM JORNALISTA--A SINCERIDADE E O OPTIMISMO
OFFICIAL.


Apesar d'esta democracia crescente que tudo vulgarisa, ou antes (sejamos
prudentes) que tudo egualisa, nem cada dia um jornalista consegue
_interviewar_ um rei.

(Este vocabulo _interviewar_ é horrendo, e tem uma physionomia tão
grosseira, e tão intrusivamente yankee, como o deselegante abuso que
exprime. O verbo _entrevistar_, forjado com o nosso substantivo
_entrevista_, seria mais toleravel, d'um tom mais suave e polido.
_Entrevista_, de resto, é um antigo termo portuguez, um termo technico
de alfaiate, que significa aquelle bocado de estofo mais vistoso,
ordinariamente escarlate ou amarello, que surdia por entre os abertos nos
velhos gibões golpeados dos seculos XVI e XVII. Termo excellente,
portanto, para designar um acto em que as opiniões tufam, rebentam para
fóra, por entre as fendas da natural reserva, em cores effusivas e
berrantes. Mas _entrevistar_ tem um não sei que de surrateiro que
desagrada--e só alguem com muita auctoridade e muita audacia o poderia
impôr. _Interviewar_, ao menos, é bruto mas franco. Temos pois de empregar
resignadamente este feio americanismo--já que os nossos idiomas
neo-latinos não estão preparados, na sua nobre pobreza, a acompanhar todas
as ruidosas invenções do engenho anglo-saxonio. Vós ahi no Brazil, amigos,
possuis a arte subtil de cunhar vocabulos que são por vezes geniaes.
Fabricae um que substitua o _interviewar_ e sereis bemditos).

E no entretanto iremos dizendo que, apesar da nossa egualisação
democratica, nem todos os dias um jornalista interviewa um rei. Não
parece de resto haver proveito na tentativa. Se os reis são de direito
divino, as suas intenções devem permanecer tão impenetraveis como as de
Deus, de quem emanam, e que os inspira. Quando alguém ousasse interrogar o
imperador da Russia sobre os seus planos, elle, muito logicamente,
apontaria silenciosamente para o céu. Os reis d'esse transcendente typo
são agentes submissos, quasi inconscientes, da Providencia. Antes trepar
ás nuvens e formular um interrogatorio directo á Providencia. Se os reis,
porém, são constitucionaes, então os seus desejos, como os seus actos,
só têm valor quando confirmados pelo ministerio, pelo parlamento, por
todas as instituições tutelares de que os cercou, com que os peiou, a
Constituição. Mais util, rapido, e de melhor cortezia será interviewar o
ministro ou o chefe de maioria. É por estes motivos certamente que os
_reporters_, que, com a imprudencia dos pardaes, se abatera e piam sobre
as cousas mais veneraveis, nunca assaltam os thronos.

O caso, porém, é differente com o rei de Italia. Humberto é um rei
constitucional que diz sempre--«o _meu_ povo... o _meu_ exercito... a
_minha_ armada». Estas expressões, indicando um senhorio directo da nação,
sanccionado pelo direito divino, só o Czar, hoje, (além do Sultão) as póde
empregar legitimamente. Por toda a parte, fóra da Russia, da Turquia, (e
d'algumas republicas da America Central) os povos pertencem a si proprios,
ou pelo menos conservam essa illusão, que lhes é preciosa; e os exercitos
pertencem ao Estado, que deixou de ser identico com o rei desde que Luiz
XIV teve a fistula. Estas expressões, porém, de «_meu_ povo», de «_meu_
exercito», que considerariamos singularmente improprias na bocca
constitucional do rei dos Belgas, não destoam quando usadas pelo rei da
Italia. Na realeza de Humberto, chefe da casa de Saboya, ha um não sei que
de pessoal e absoluto, que se nos afigura legitimo. Para os italianos, em
quem possa sobreviver o espirito municipal das velhas democracias, talvez
elle seja apenas o primeiro magistrado da Italia:--para nós elle
apparece, até certo ponto, como o senhor da Italia, porque na sua
qualidade de segundo rei de Italia elle é ainda a razão e a força da
unidade italiana.

Em todos os tempos foi a ambição dos reis que fez a unidade dos Estados.
Esta ideia mesmo de unidade, e o amor da unidade, só nasce no povo desde
que a vê realisada, e sente experimentalmente a sua grandeza material, ou
a sua belleza historica. A concepção abstracta de uma patria una nunca
póde surgir espontaneamente no povo, que só comprehende e ama a sua aldeia
ou a sua cidade, e não pensa na cidade proxima e na aldeia visinha senão
para as desdenhar ou para as invejar. De certo a lingua, o parentesco
da raça, a identidade do caracter constituem fortes tendencias para a
unidade: mas de nada servem, se não houver conjunctamente um rei ambicioso
que as aproveite para sobre ellas construir a união nacional. Sem esse
principe ambicioso, ladeado por um ministro do genero de Bismarck ou
Cavour, e instigado por tres ou quatro patriotas idealistas, as cidades
continuavam a fallar a mesma lingua, a nutrir-se intellectualmente n'uma
litteratura commum, a prestarem um culto irmão aos mesmos grandes homens,
mas não sahiriam nunca do seu municipalismo ou do seu provincialismo
historico.

Esta lei, que se póde observar em todos os Estados, é manifesta na
historia da Italia. Tendo mantido sempre a unidade da sua civilisação,
tão solida que se impoz a todas as raças que a conquistaram; tendo
construido na Europa, pelo Papado, a unidade espiritual--a Italia todavia
nunca realisou a sua unidade politica, e desde a meia edade permanece
fragmentada em municipios e republicas, cuja existência, tempestuosamente
agitada entre a anarchia e a tyrannia, é uma serie lacrimosa de
martyrologios.

O caracter social da Italia é então a divisão levada até á ultima
molecula social. As cidades vivem isoladas, n'um violento ciume mutuo,
travando constantemente guerras e trahindo-se com uma perfidia que ficou
proverbial. Dentro das cidades, os cidadãos vivem tão divididos como
ellas, armando todos os dias brigas de rua a rua, e de cada casa fazendo a
cidadella de uma facção. E dentro das casas as familias estão ainda
sombriamente divididas, e paes, e filhos, e irmãos não se reunem na mesma
sala sem trazerem cautelosamente debaixo dos gibões o seu punhal
escondido. Todavia, todo este mundo mutuamente hostil se injuria na mesma
lingua, lê o mesmo Ariosto, reza á mesma Madona, celebra as mesmas festas
civicas, e sente o orgulho commum da grandeza passada. Mas o longo habito
da vida local, do governo communal, lançara raizes profundissimas, creára
no italiano como um modo especial de pensar e de sentir, que o abandonava
indefeso ás violencias da demagogia, ao abuso da força e da intriga dos
pequenos tyrannetes, á ferocidade de todos os invasores. Accrescia que
estes velhos instinctos municipaes eram explorados machiavellicamente
pelos papas, que se serviam d'elles para esmagar em qualquer dos Estados
a menor tendencia á hegemonia, e através d'ella á formação de uma Italia
unida. Soberano espiritual, o papa não podia soffrer ao seu lado um
soberano temporal;--e para manter a sua independencia fomentava a
desunião. A pobre Italia ia assim ficando repartida em republicasinhas
anemicas e despotismosinhos sangrentos, amollecendo-se em todas as suas
qualidades, depravando-se em todos os seus costumes, sob o patrocinio da
Tiara, que a impedia de se unir, sem ter a força de a proteger. A
consequencia é que a Italia foi assaltada, saqueada, espesinhada,
retalhada, vendida ou doada, como um despojo de guerra. Cahiu em
decadencia, cahiu em servidão... Peior ainda, cahiu em ridiculo! E a terra
fecunda dos Genios e dos Santos não appareceu mais na Historia senão
como um povo piolhento e somnolento, governado por côrtes minusculas, que
não passavam de uma collecção buffa de caturras, cortezãos, parasitas,
jograes, monsenhores, sacristães, sigisbeos, tenores, castrados e
bailarinas. E porque? Porque lhe faltára até ahi o rei ambicioso e
patriota, que, para ser rei da Italia, quebrasse as velhas tradições do
municipalismo latino, e no meio das grandes monarchias militares désse á
Italia um governo central, leis uniformes, um exercito permanente, as
condições todas que a ella lhe consolidariam a unidade, e a elle a
soberania. Este rei salvador surgiu finalmente em Turim. Todos nós fomos
ainda seus contemporaneos, e o celebrámos como _ré galantuomo._ Victor
Manuel foi o instrumento essencial da ressurreição da Italia. Á sua voz
é que a grande Lazara, ligada e estendida no sepulchro bourbonico,
ergueu-se e marchou. Outros de certo trabalharam habilmente e heroicamente
na grande obra; mas foi elle que a assignou; e, para os olhos da multidão
que nunca aprofunda, só elle ficou com a sua força representativa e a
garantia da sua duração. Por maiores limitações que a Constituição
impuzesse á sua auctoridade, ella não podia deixar de ser, através das
formulas parlamentares, suprema como a de todo o creador. Humberto, seu
filho, continuador e consolidador da obra, herda ainda d'esta prerogativa
de chefe paternal. Nunca elle poderá ser um rei do puro typo
constitucional, como Leopoldo da Belgica, que, segundo a formula belga,
não é senão o «primeiro dos seus administrados». Os futuros reis da Italia
(se os houver) poderão ser reduzidos a esta subalternidade de funccionario
irresponsavel. Humberto não--e, para elle, _reinar_ ainda ha-de ser
_governar._ E quando elle falle do _seu_ povo, do _seu_ exercito, a
Europa não lhe contestará a legitimidade d'essas expressões autocraticas.

Além d'isso, Humberto foi coroado em Roma. Ora, Roma é essencialmente
cesariana, e communica, imprime caracter cesariano áquelles que a
governam. Ella mesma foi sempre cidade-soberana, ou no temporal ou no
espiritual. Só ha cem annos é que deixou de vir de lá d'entre as sete
collinas, ou sob a forma de encyclica papal, a ordem suprema que se
impunha a reis e povos, e regia os nossos bens ou as nossas almas. E o
senhor da cidade de Romulo sempre partilhará d'esta supremacia que lhe é
inherente. Mas este ponto de vista é talvez mais esthetico do que
politico.

Em todo o caso, por todos os motivos, Humberto é dos poucos reis
interviewaveis. É um rei que quer e que póde. E não é todavia bastante
de direito divino, para se considerar um emissario da Providencia, e, como
ella, esconder os seus designios, que só por ella pódem ser comprehendidos
ou julgados. Ao rei Humberto é permittido dizer: «Eu farei isto, as minhas
intenções são estas...» A sua auctoridade na nação comporta estas
affirmações pessoaes e soberanas. Qualquer outro rei, strictamente
constitucional, quando atacado por um reporter, só poderá encolher os
hombros e murmurar: «Não sei, veremos o que faz o ministerio...»

Ha, pois, apparentemente, utilidade para um reporter de alta reportagem,
em sondar e puxar para fóra o pensamento intimo do rei Humberto. A
difficuldade unica estaria na operação da sondagem--porque, apesar de se
ter supprimido a hirta e encarceradora etiqueta do tempo de Carlos V, os
reis ainda não são accessiveis a qualquer sujeito de chapéo côco que se
apresente com uma carteira e um lapis, a «fazer perguntas». Mas o
_Figaro_, barbeiro astuto, acostumado desde a sua mocidade a deslisar
subtilmente pelas portas escusas e a penetrar no segreda dos Bartholos,
realisou esta bella façanha--e interviewou o rei Humberto. E quando elle
annunciou, rufando ufanamente o seu grosso tambor, que ia publicar as
declarações do rei de Italia, a Europa, excitada, aguçou vorazmente as
suas longas orelhas. Com effeito, que maravilhosa occasião de conhecer
emfim o segredo da Triplice Alliança! E occasião unica! Porque dous dos
alliados, o imperador da Allemanha e o imperador da Áustria, sendo
mandatarios da Providencia, têm de permanecer impenetraveis. O rei de
Italia, porém, é apenas o mandatario d'um povo, e d'um povo illustre nos
fastos da loquacidade. E o rei da Italia ia fallar... Fallou. O _Figaro_,
barbeiro ditoso, imprimiu com alarido as suas palavras. E desde então
ainda não cessaram, em tomo d'ellas, controversias que me espantam, e
devem espantar todos os simples pela sua ingenuidade.

Parece haver, com effeito, immensa ingenuidade em esperar com
inquietação, e depois discutir com paixão as declarações publicas,
officiaes, de governos ou de governantes. Por pouco que ellas annunciem
conducta, e constituam programma, taes declarações têm necessariamente de
ser generalidades optimistas e virtuosas. Que póde, por exemplo, um
governo novo prometter aos cidadãos, senão que todos os seus esforços
tenderão energicamente a manter a _ordem_, favorecer a _moralidade_, e
promover a _economia?_ Não ha possibilidade de que um governo se apresente
gravemente ante o paiz, e pondo a mão leal sobre o coração sincero declare
que vae fomentar a _desordem_, animar o _desperdicio_, e proteger a
_immoralidade!_ Os cidadãos não acreditariam:--e esse governo, talvez
veridico, seria escandalosamente expulso como farçante.

Ha nos programmas politicos uma convencionalidade, mutuamente
consentida, que é commum a todas as manifestações publicas, e que
corresponde á necessidade climaterica e moral, hoje tornada instincto,
de cobrirmos a nossa nudez. É uma méra questão de decencia, de respeito
social, quasi de etiqueta. O chefe de Estado, quando falla á nação, tem
de exibir uma decorosa virtude nos seus intentos, pelos mesmos motivos
porque tem de vestir a sua farda, e trazer o seu sequito, nos grandes
ceremoniaes. «Todas as minhas forças, caros concidadãos, serão votadas
a alargar a prosperidade! etc., etc...» todas estas patrioticas, integras
phrases devem ondular em tons claros, como os pennachos de gala. Os
experientes sorriem, mas murmuram--«muito bem, muito bem!» E não
tolerariam que o chefe de Estado, com honrosa sinceridade, declarasse que
se preparava a fazer escandalos e prepotencias--como não permittiriam que
elle n'essa ceremonia, onde viera lançar o seu programma, se apresentasse
nú ou simplesmente em ceroulas. É uma questão de decoro. Esta necessidade
de pudor publico, perfeitamente a comprehendo. O que sempre me pareceu
incomprehensivel foi o ingenuo que arregala os olhos, sorve com delicias
cada promessa do programma, como se ellas cahissem do alto do Sinai, e vae
exclamando, radiante:--«Emfim, temos um governo, temos um homem que quer
implantar a _moralidade_, garantir a _ordem_, promover a _economia_,
etc., etc., etc,» E ainda comprehendo menos talvez os que se lançam sobre
o programma e o analysam, o dissecam, tiram d'elle, por entre as linhas,
esperanças ou receios, e discutem apaixonadamente cada uma das suas
palavras sacramentaes como se fossem realidades vivas.

Que poderia dizer jámais o rei da Italia a um reporter que o interroga
sobre as intenções da Italia? Que poderia dizer, justos céus! senão que
elle e o seu povo amam todos os seus visinhos como irmãos, e só querem,
só appetecem a paz? E foi justamente o que affirmou Humberto. Nem era
humanamente verosimil que elle franzisse o sobr'olho, e exhalasse, em
vocabularios troantes, o seu odio á França, a sua sêde de guerra...
Qualquer declaração sua, destinada a um jornal, tinha de ser
inevitavelmente fraternal, pacifica, optimista. Os scepticos podem sorrir,
mas têm de murmurar: «muito bem, muito bem». O rei da Italia com effeito
teve a attitude que pedia a decencia. Recebendo um jornalista francez,
vinha vestido, e affiançou a paz. Tão estranho seria que annunciasse a
guerra,--como que apparecesse em mangas de camisa.

E todavia estas declarações previstas, obrigatorias e que não tem mais
significação que a farda ou a sobrecasaca que o rei vestia, estão sendo
escrutinadas, pesadas, filtradas, estudadas pelos analystas politicos,
com ardor, como se contivessem no fundo das suas syllabas os segredos do
Destino. Uns, d'aquem Rheno, gritam: «O rei Humberto não é sincero. Que dê
provas!...» Outros, d'além Rheno, clamam: «Haverá n'estas palavras
de Humberto intenções de desdenhar as allianças juradas?...» E o _Times_,
ha tres dias, em pesadas columnas está perguntando aos olhos leaes do
monarchismo, se é licito duvidar da affirmação de um rei!...

A um innocente, como eu, tudo isto parece funambulesco. Oh boas almas,
ainda uma vez mais, que esperaveis vós que dissesse o rei da Italia? Que
póde responder o director de um banco a quem lhe pergunte se elle é pela
probidade ou se tende para a trapaça e roubo aos accionistas? Que póde
responder um chefe de Estado a quem lhe pergunte se elle é pela paz--ou
se pende para a guerra e mortandade dos povos?


De resto é innata no homem, esta tendencia a fazer perguntas, tão
inuteis quão nescias, e a que elle sabe de antemão as respostas
necessarias e coherentes. Não ha ninguem que, entrando n'uma mercearia
a comprar um kilo de queijo, não tivesse já papalvamente perguntado ao
mercieiro: «É bom o seu queijo?» Como se jámais, desde que ha homens e
queijos, um mercieiro tivesse respondido, com asco: «Não senhor, não
presta!» E se elle désse esta resposta, por espirito sublime de veracidade
intransigente, então é que nós começariamos a desconfiar do lojista, como
de um ser anormal, extravagante e perigoso. Um amigo meu, viajando em
Inglaterra, parou n'um hotel, e depois de installado e barbeado, desceu a
almoçar. O dia era de junho, elle appeteceu um vinho fresco e leve,
percorreu pensativamente a lista dos vinhos, e perguntou ao creado, com
tradicional e humana ingenuidade:

--É bom este Chablis?

O criado, um velho de suissas brancas, grave e um pouco triste como um
embaixador em disponibilidade, abanou a cabeça, e respondeu seccamente:

--É uma peste.

O meu amigo considerou com espanto, e um espanto desagradavel, aquelle
homem veridico. Depois repercorreu a lista.

--Bem, traga-me então d'este Medoc... É bom, o Medoc?

O criado, muito serio, replicou:

--É horrivel.

Perturbado, o meu amigo murmurou timidamente, n'uma desconfiança vaga
e escura que o invadia:

--Bem, beberei cerveja... Que tal é a cerveja?

O criado volveu, convencido e digno:

--Droga muito mediocre... Extremamente mediocre!

O meu amigo tremia já, n'um positivo terror. Mas ainda balbuciou:

--Que hei-de eu então beber?

--Beba agua, ou beba chá... Ainda que o chá, que agora temos, é realmente
detestsvel.

Então o meu amigo repelliu violentamente guardanapo e talher, galgou as
escadas do seu quarto, reafivelou as correias da sua maleta, saltou para
uma tipoia e fugiu.

Porque? Nem elle sabia. Tudo quanto me poude explicar é que, perante
tanta sinceridade, perante tanta veracidade, elle sentiu em torno de
si, n'aquelle hotel, alguma cousa de anormal, de extravagante, de
perigoso. E o acto do meu amigo, dado o nosso secular habito da mentira,
da ficção, da convenção--é bem humano.



XVI


O «SALON».


O mez de maio, em Pariz, é dedicado á Esthetica.

Então se abre com uma certa solemnidade, em que collabora mesmo o chefe
do Estado, a exposição de Bellas-Artes, a que os francezes chamam o
_Salão_, sem duvida por causa da graça, da polidez e da sociabilidade da
sua arte. Todas as classes de Pariz (com excepção dos operarios, que só se
apaixonam pela politica) tomam um interesse, senão intellectual pelo menos
social, n'esta abertura do _Salão_, mesmo aquellas que no resto do anno
vivem tão indifferentes e separadas das cousas d'arte como das cousas da
theologia Hindú. Ha assim, em todas as cidades, um dia tradicionalmente
consagrado, ou ao Espirito, ou ao Sport, ou á Devoção, que tem o dom de
reunir no mesmo enthusiasmo, ou pelo menos na mesma disposição festiva,
todos os cidadãos. Em Londres, milhares de pessoas que nunca pegaram n'um
remo, nem comprehendem que honra ou proveito se tire de remar com pericia,
mostram, e realmente experimentam, a mais excitada sympathia pela regata
classica entre as universidades de Oxford e de Cambridge. E em Lisboa,
mesmo os impios, pelo ar de festa que tomam, concorrem, no devoto 13 de
junho, a festejar Santo Antonio. As almas dos homens, andando hoje tão
dispersas, necessitam fundir-se, ao menos uma vez por anno, n'um
sentimento commum.

Accresce que o Salão, no dia ceremonioso da sua abertura, offerece dous
grandes attractivos além dos quadros e das estatuas. N'esse dia os
artistas expõem, não só as suas obras, mas as suas pessoas:--e contemplar
um artista, o córte da barba e a fórma do chapéo do artista, é um precioso
regalo para o pariziense, como já era para o grego, que vinha da
Grande-Grecia e das Ilhas a Athenas, não para escutar Platão, mas para
vêr Platão. No _Salão_, tal que apenas lança um olhar indolente ás telas
de Bonnat, segue através das salas, durante uma hora, o proprio Bonnat,
repastando-se com delicias na admiração do homem cuja obra lhe foi
indifferente. É que para esses, a quem o bom Flaubert chamava com tão
truculento rancor «os burguezes», todo o artista é um sêr excepcional,
vivendo uma vida excepcional, feita de invejaveis aventuras, de estranhas
festas e de voluptuosidades magnificas. Um tão grande privilegiado excita
uma insaciavel curiosidade--como tudo o que, no bem ou no mal, pelo brilho
ou pela força, se ergue acima do cinzento e mediocre nivel humano. E mal
sabem os «burguezes» que o artista quasi sempre (a começar pelo proprio
Flaubert) é tambem um burguez pacifico, sobrio, cordato e estreito.

Mas no _Salão_ ha ainda, no dia da sua abertura, uma outra vistosa
attracção que por certos lados se prende ás Bellas-Artes--a das
_toilettes._ Com effeito, está na antiga tradição pariziense que as
mulheres de luxo, aquellas para quem o luxo é um instrumento de profissão,
e aquellas para quem a luxo é um habito natural, que lhes vem da riqueza,
da posição, ou do gosto innato, arvorem então as modas novas de primavera,
as creações mais delicadas e mais artisticas das grandes costureiras
d'arte. São outros tantos quadros que circulam apparatosamente pelas
salas, e que a multidão olha e admira, com muito mais curiosidade do que
os outros, pregados em redor nas paredes, dentro dos seus caixilhos. E ao
lado das elegantes enxameam as proprias costureiras, que vêm, exactamente
como os artistas, observar com anciedade o «effeito» produzido pela
composição, pelo colorido, pelo vigor ou pela finura das suas obras.

D'estas obras especiaes apenas entrevi duas com alguma fantasia e
audacia. Em ambas a figura das senhoras, a sua «plastica» concorria a dar
um relêvo picante e divertido á _toilette_ e aos accessorios da
ornamentação. Uma, muito delgada, bem lançada, com uma gracilidade
serpentina, trazia uma saia curta, de sêda murmurosa e lustrosa,
recoberta de falbalás Pompadour: os cabellos fulvos, pintados com o louro
do Ticiano, cahiam em cascatas e ondas ricas sobre collo e hombros, como
uma juba superiormente frisada e bem empomadada por Lentheric (o mais
illustre cabelleireiro do seculo); as abas do seu chapéo eram tão vastas
que sob ellas se poderia abrigar do sol ou da chuva um grupo de viajantes,
com os seus cavallos e com as suas bagagens, e estavam ainda encimadas por
uma triumphal montanha, fôfa e tremente, de plumas multicores: a sua mão,
calçada de luva negra, bordada a ouro, e que subia amarrotada até o
hombro, apoiava-se no castão de onyx de uma bengala de marfim, mais alta
que um baculo ou que uma lança: a cada passo que dava, as sêdas crepitavam
e lampejavam, a massa alterosa de plumas tremia e fluctuava, o conto do
bengalão resoava magestosamente, e um sorriso fugia dos labios da dama,
tão vermelhos que pareciam uma ferida em carne viva e sangrenta. Assim ia
entre a multidão--e eu não a commento. Arredae-vos, amigos, e deixae-a
passar.

A outra senhora, ainda mais pittoresca, era enorme, transbordante,
construida de rôlos e bolas, com uma pelle escabrosa, a que, mesmo sob o
pó d'arroz applicado sem economia, se sentia a côr de açafrão. As suas
tremendas massas de carne bamboleante vinham apenas envoltas n'uma
tunica diaphana, d'um amarello ardente e brilhante, como as florinhas do
campo de Portugal chamadas _botões de ouro_, e feita certamente d'aquelle
antigo tecido que se fabricava na ilha de Cós, e que pela sua
transparencia e leveza aerea os poetas da Grecia diziam ser feito de luz
e vento.

Como chapéo tinha apenas alguns amores perfeitos, em grinalda, tambem
amarellos. Era uma nympha, e assim montanhosa, sobrancelhuda, beiçuda,
de venta larga, com um saracoteio que lhe collava a tunica e lh'a
enrodilhava nos vastos membros de elephante ameno, fendia soberbamente
a turba, meneando um immenso leque, ainda amarello, furiosamente amarello.
Taes eram estas duas parizienses, as duas obras vivas do parizianismo que
mais me impressionaram n'estas festas de Santa Esthetica. Dizem que Pariz
continua a impôr ao mundo a regra do gosto e do bem-vestir, e que, tendo
perdido todo o predominio em materia de philosophia e de sciencia
positiva, exerce ainda uma influencia intensa através das suas
costureiras. Por isso traslado fielmente, para uso das raças menos
inventivas, estes dous figurinos que se me affiguram consideraveis.


Emquanto ás outras obras expostas no _Salão_, os quadros e as estatuas,
a primeira lição que lhes tirei foi meramente sociologica; e por via
d'ellas (_mirabile dicta!_) mais uma vez reconheci quanto é facil
governar as Democracias. O grande obstaculo, que os theoricos de
temperamento timido têm antevisto á estabilidade dos agrupamentos
democraticos, é a independencia da razão individual e o seu livre
exercicio, garantidos por leis, tornados mesmo alicerces primordiaes da
estructura publica.

Desde que não exista uma regra, como a velha regra catholico-monarchica,
que obrigue todos os espiritos a ter a mesma opinião e a regularem por
ella a sua conducta, não parece possivel (affirmam esses pallidos
theoricos) manter em harmonia alguns milhões de cidadãos, todos elles
possuidores de uma ideia original e propria, e determinados, por interesse
ou por convicção, a que só ella prevaleça.

A servidão intellectual, entendida á boa e rija maneira dos Jesuitas,
apparece assim como a condição suprema de toda a harmonia social.

Mas como a Democracia, de collaboração com a philosophia, tem justamente
por fim abolir esta servidão, dar uma illimitada alforria aos
entendimentos, ella cria desde logo e sem remedio esse estado, previsto
tão melancolicamente pelo nosso velho proverbio, em que «cada cabeça dá
a sua sentença». E (concluem emfim os theoricos) como não ha melhor goso
para uma cabeça humana do que conceber e impôr uma sentença, resulta que,
apenas se quebra o jugo salutar da Regra, todas as cabeças se sacodem
desafogadamente, atiram para o ar com impeto a sua sentença e fazem uma
d'essas horripilantes desafinações sociaes só comparaveis ás d'uma
orchestra, sem regente e sem batuta, em que cada instrumento geme, silva,
tilinta, ou rebumba uma musica diversa e contraria. Tudo isto é um
erro--e os theoricos que a sustentam nunca foram, como eu, ao _Salão_,
no dia da sua abertura, quando em materia d'Arte cada cabeça, depois de
ter pago a entrada, póde liberrimamente proclamar a sua sentença. Se
tivessem feito essa peregrinação instructiva, verificariam que o
servilismo intellectual é no homem um vicio irreductivel, e que por mais
que se lhe facilite o largo e livre exercicio da razão, e que se lhe
ensine a sacudir o despotismo dos Oraculos, sempre elle por instincto,
por covardia, por indolencia, por desconfiança de si proprio, abdicará o
direito de pensar originalmente e se submetterá com prazer, com allivio,
a toda a Auctoridade, que, á maneira de um pastor entre um rebanho, se
erga, toque a buzina e lhe aponte um caminho com o cajado. Realmente a
humanidade é gado--e o primeiro movimento de toda a cabeça livre é pender
para o sulco aberto, enfiar para debaixo da canga.

Estas reflexões, de resto pouco novas, (miraculoso seria que ao fim de
tantos seculos ainda se pudessem desenterrar novidades do fundo da
indole humana) as fiz eu, com alguma tristeza misturada de muita
alacridade, notando para que quadros e para que estatuas se dirigiam,
no _Salão_, a curiosidade e a admiração do publico.

Como uma fila submissa, de bons carneiros, todos estes milhares de
seres pensantes, e unicos donos do seu pensamento, marchavam
arrebanhadamente para aquellas obras que, na vespera, o Estudo Critico,
ou antes o Guia Critico, do _Salão_, publicado pelo Jornal, lhes
indicava, ou melhor lhes impuzera, como as unicas deante das quaes
deviam parar, e fazer _ah!_ e sentir uma emoção e depôr um louvor. Não só
o jornal previdentemente lhes apontava a obra, mas lhes ensinara mesmo a
emoção que deviam experimentar, e até lhes redigira a formula laudatoria
que deviam balbuciar. E os milhares de seres pensantes (muitos com o
jornal na mão) lá se apinhavam, em densos magotes, deante da tela,
recebendo obedientemente a emoção ensinada, recitando, sem omittir um
adjectivo, a formula do louvor decretado. Um padre da Companhia de Jesus
teria saboreado deliciosamente este salutar espectaculo de disciplina
mental.

Todavia este povo fez, com intensa paixão, tres revoluções sangrentas
para alcançar o direito de livre-exame e de livre-juizo. Essa conquista,
symbolisada sempre na classica tomada da classica Bastilha, é com razão
um dos seus altos orgulhos e foi ella que o auctorisou a revestir-se
entre as nações do caracter messianico, e a intitular-se «redemptor dos
Povos», o que tanto fazia rir o amargo Carlyle. Com effeito, a liberdade
de ter uma opinião, não só em materia politica, mas mesmo em materia
philosophica e esthetica, nem sempre foi garantida aos parizienses,
e houve tempos (talvez ditosos) em que elle, tal qual como o habitante de
Damasco ou de Bagdad, não podia, sem perigo do carcere e da tortura,
divergir das opiniões dogmaticas dos seus doutores.

Quando a Faculdade de Pariz (que, segundo diz Voltaire, tão poucas
faculdades possuia) lançou um decreto negando a existencia das «ideias
innatas», todos os espiritos foram obrigados a repellir com nojo a
abominavel noção das «ideias innatas»; e quando, annos depois, fazendo
uma pirueta metaphysica, a mesma Faculdade atirou outro decreto affirmando
a existencia das «ideias innatas», todos os mesmos espiritos, piruetando
tambem, tiveram de proclamar com reverencia a certeza das «ideias
innatas». A memoria d'essa affrontosa escravidão intellectual ainda hoje
amargura o francez que em principio, theoricamente, considera a vida sem
valor, logo que ella não seja acompanhada e ennobrecida pela liberdade do
pensamento.

É essa liberdade, alcançada emfim tão penosamente, que constitue a sua
melhor superioridade sobre o pobre homem de Bagdad ou de Ispahan,
a quem ainda não é permittido raciocinar d'um modo differente do que
raciocina o Cadi ou o Ulema. Elle, francez, graças ás suas tres
revoluções, póde pensar como lhe aprouver sobre todas as cousas da terra
e do céu. É o seu mais augusto direito. E esta certeza de o haver
conquistado lhe basta largamente. Porque, de resto, para ter uma opinião,
espera sempre que o seu Cadi ou o seu Ulema, dogmatisando no jornal, lhe
indique a opinião que elle deve adoptar e a maneira porque a deve
exprimir, ou se trate de um ministerio e o Cadi seja Magnard, do
_Figaro_, ou se trate d'um _vaudeville_ e o Ulema seja Sarcey,
do _Temps._

D'onde se poderia concluir, alargando o conceito, que o homem
verdadeiramente não appetece ser livre e apenas deseja que lhe não
chamem escravo. Comtanto que a sua liberdade esteja consignada em lettra
redonda, algures, n'uma Constituição ou nas paredes dos edificios, elle
está contente e não exige que essa liberdade se traduza realmente em
factos. O distico lhe basta. Qualquer Republica se póde converter no mais
rigido despotismo, comtanto que se continue a denominar «Republica». Nero,
intoleravel sob o nome de Imperador, é popularmente consentido sob o nome
de presidente. Em materia social é o rotulo impresso na garrafa que
determina a qualidade e o sabor do vinho. O governo das sociedades
parece, portanto, ser essencialmente uma questão de lexico. O melhor meio
de dirigir os homens será talvez gritar-lhes com enthusiasmo: «Vós sois
livres!»--e depois com um tremendo azorrague, á maneira de Xerxes,
obrigal-os a marchar. E marcham contentes, sob o estalido do açoite, sem
pensar mais e sem mais querer, porque a _palavra_ essencial foi dita,
elles são livres, e lá está Xerxes, no seu carro de ouro, para querer
e para pensar por elles.


De resto, talvez toda esta gente ande bem avisadamente em admirar, sem
iniciativa propria, as obras de arte, que os criticos lhe mandam admirar.
Ha aqui uma reserva e economia de força pensante, que bem póde ser
louvavel. N'esta nossa atulhada civilisação, em que tão continuos esforços
são exigidos de cada homem para que lhe possa caber a sua fatia de pão no
famoso «banquete da vida», parece realmente excessivo que elle se
sobrecarregue ainda com o trabalho de conceber e formular opiniões
estheticas. Um amanuense das finanças, que nascera com espirito, dizia
outr'ora a Voltaire:--«É para mim uma grande infelicidade, mas nunca me
sobrou tempo para ter bom gosto!» Palavra triste e profunda:--e que, se já
era verdadeira no seculo XVIII, quanto mais exacta é no seculo XIX! Para
ter um gosto proprio e julgar com alguma finura das cousas d'arte, é
necessaria uma preparação, uma cultura adequada. E onde tem o homem de
trabalho, no nosso tempo, vagares para essa complicada educação, que exige
viagens, mil leituras e longa frequentação dos museus, todo um afinamento
particular do espirito? Os proprios ociosos não têm tempo--porque, como se
sabe, não ha profissão mais absorvente do que a vadiagem. Os interesses,
os negocios, a loja, a repartição, a familia, a profissão liberal, os
prazeres não deixam um momento para as exigencias de uma iniciação
artistica:--e n'uma cidade de dous milhões de almas, como Pariz, ha por
fim apenas meia duzia de almas, que possam sentir com verdade e
profundidade a belleza ou a grandeza de uma obra, e que, deante d'um
quadro de Velasquez e d'um quadro de Bonguereau, saibam qual pertence á
Arte e qual pertence ao Artificio. Por isso a oleographia triumpha, e
Ohmet e outros tiram a cem mil exemplares, e as comedias mais
desprezivelmente idiotas congregam as multidões. E não é culpa da
multidão. Ella póde dizer como o amanuense a Voltaire; «Não me sobra
tempo para ter bom gosto!»

Por outro lado, porém, hoje, todo o homem civilisado, ou que vive
n'um meio civilisado, está sob o dever de se interessar ou de parecer que
se interessa pelas grandes expressões da civilisação. Sem essa
manifestação de cultura, elle é considerado pelos seus visinhos como um
selvagem. O desdem, ou simples indifferença pela litteratura ou pela arte,
já não é permittido ao habitante d'uma capital: e os tempos vão longe em
que os senhores feudaes se gabavam com orgulho de não saber lêr. Hoje, em
todas as classes que estão para cima do lavrador e do carrejão, é tão
indispensavel mostrar um certo gosto pelas cousas do espirito, como usar,
pelo menos ao domingo, camisa engommada. É um preceito de decencia e
respeitabilidade. Por mais bacalhoeiro que se seja, e enfronhado no
bacalhau, e indifferente a tudo, fóra o arratel e o meio arratel, não se
ousa desprezar publicamente (ainda que se desprezem em particular) as
lettras e as artes, como não se ousa ir ao passeio em chinelos e sem
gravata. Tudo n'este nosso seculo é _toilette_, dizia o velho Carlyle.

O apreço exterior pela arte é a sobrecasaca da intelligencia. Quem se
quererá apresentar deante dos seus amigos com uma intelligencia núa?

N'uma cidade como Pariz, e perante um acontecimento tão artistico como
é todos os annos a abertura do _Salão_, cada bom burguez (para usar
o termo querido de Flaubert) se vê forçado pelo decôro a ter sobre tres
ou quatro quadros uma opinião, uma phrase, para trocar com as suas
relações no café. Mas construir essa opinião, redigir essa phrase é um
trabalho que pede reflexão, tempo, um diccionario. E para quem passa
o seu cançado dia no escriptorio, no armazem, na repartição, no bilhar
ou na atarefada ociosidade mundana, isto desde logo se torna uma
sobrecarga impraticavel. O expediente natural, portanto, é recorrer
áquelles que têm por profissão e especialidade fornecer, sobre cousas
d'arte, opiniões e phrases. Estes são os criticos e têm a sua loja de
retalho no jornal. Nada mais commodo, mais rapido, pois, do que comprar
ao critico, pela toleravel somma de dez réis, tres ou quatro opiniões,
como se compram no luveiro tres ou quatro pares de luvas, escuras ou
claras. Enverga-se a opinião como se calça a luva, e desde logo se fica
apto a apparecer na sociedade com o ar e a elegancia moral de um sêr
culto. Esta é a grande vantagem de viver nas cidades, onde tudo se fabrica
e tudo se retalha. Um qualquer póde estar de manhã completamente nú, de
corpo e de espirito, sem um trapo e sem uma ideia. D'ahi a um momento,
dispondo de algum dinheiro, e graças ao armazem de fato feito, e ao
armazem de ideias feitas (que se chama o jornal), póde estar todo e
dignamente vestido, por dentro e por fóra, e sahir á rua, e ser um
senhor.

Esta gente, pois, que aqui anda, com o seu jornal na mão, consultando
n'elle as obras que ha-de admirar e as phrases em que ha-de moldar a sua
admiração, não é talvez o rebanho humilde que marcha sob a ferula da
auctoridade. É antes uma turba de amanuenses, que, como o outro do tempo
de Voltaire, não tiveram vagares para adquirir bom gosto. Quando Voltaire
escreveu, não havia quasi jornaes, o unico critico d'arte era Diderot e
ainda se andava compilando a Encydopedia. Aquelle amanuense estava
realmente muito desajudado. Hoje, com tantos e tão baratos jornaes e uma
tal legião de grandes e verbosos criticos, não ha desculpa para que um
amanuense, mesmo sem ter relações com Voltaire, se não forneça de dous
ou tres kilos de bom gosto. E fornece, porque sabe as vantagens de ter
alguma esthetica e alguma poetica, quando se vae á noite tomar chá com
senhoras. Ahi os vejo todos, trazendo o jornal cheio de opiniões, como
um cartucho--e, deante da estatua de Dubois ou do quadro de Bonnat,
dizendo com segurança, depois de metter a mão no cartucho, o que este
anno se deve decentemente dizer sobre Bonnat ou Dubois.

E aqui está como, divagando com o costumado vicio latino, através d'um
portico de considerações geraes, eu vos retive, amigos, todo este tempo,
á entrada do _Salão_, sem vos mostrar sequer um bocado de côr sobre um
bocado de tela. Mas quando eu vos tivesse contado do _Cavalleiro das
Flores_, de Rochegrosse, ou do _Papa e o Imperador_, de Laurens, ou da
_Brunehilde_, de Luminais, vós apenas ganharieis algumas linhas de
prosa desbotada e fugaz.

Estes quadros estão em França, vós estaes no Brazil, e de permeio ha
tres mil leguas de longo e sonoro mar. É difficil sentir uma obra d'arte
a tres mil leguas, através d'um mero fio de rhetorica. A pintura é,
segundo todos os fortes definidores, uma imitação da Natureza. Portanto
eu só vos poderia offerecer a descripção d'uma imitação da Natureza. Mas
como eu proprio só conheço quasi todos estes quadros, que são tres mil,
pelo que d'elles li n'uma revista, realmente, de boa fé, só vos poderia
fornecer uma reproducção de uma descripção de uma imitação da Natureza. E
como desconfio, além d'isso, que o estudo d'esta revista era já compilado
sobre as notas de jornaes, eu, na verdade e sinceramente, só vos dava
a transcripção de uma reproducção de uma descripção de uma imitação da
Natureza. O que seria petulante.



XVII


CARNOT.


O presidente Carnot foi assassinado em Lyão. Para desde logo
caracterisar este contrasenso sangrento, eu deveria dizer que o presidente
Carnot foi inverosimilmente assassinado em Lyão.

Com effeito! Que rara inverosimilhança!

O mais innocente, o mais legal, o mais irresponsavel, o mais impessoal
dos chefes de Estado, morrendo de uma punhalada, como Cesar, como
Henrique IV ou como Marat!

Carnot sahia, ás 9 horas da noite, do banquete que lhe offerecera a
municipalidade de Lyão para assistir, no _Grand-Theâtre_, a uma
representação de gala.

O seu _landeau_, aberto e desprotegido, rolava vagarosamente por entre
uma multidão que o acclamava no fulgor das ruas illuminadas. Um homem,
trazendo n'uma das mãos um ramo de flôres e na outra um papel enrolado á
maneira d'um requerimento, saltou bruscamente, e como um gato, sobre o
rebordo do _landeau_, tocou no peito do presidente com as flôres ou com
o papel. O _maire_ de Lyão, sentado em frente de Carnot, ainda atirou, com
o punho, uma pancada á cabeça do homem, que fugira, e que alguem na turba
immediatamente filara, por instincto, como um ladrão. Tanto o _maire_ de
Lyão como aquelles mais proximos, que tinham entrevisto n'um relance o
salto mudo e felino, pensaram que o homem se arremessava sobre o
presidente _para lhe arrancar e lhe roubar a placa de diamantes da Legião
de Honra!_ E esta ideia, a primeira, como a mais natural, que a todos
acudiu, perfeitamente define o presidente da Republica. Carnot era d'esses
homens que se não suppõe que possam ser accommettidos--senão para serem
roubados.

Elle não tinha inimigos. Não tinha mesmo adversarios--porque não
representava um partido e muito menos um principio. A Constituição
reduzira a sua auctoridade a uma sombra incerta e tenue; e essa mesma
parcella de auctoridade elle a exerceu sempre com uma reserva, que a
muitos parecia indifferença, e a outros nullidade. Carnot passou a sua
presidencia constantemente torturado e peiado pelos escrupulos pungentes
da Legalidade. De certo tinha os seus gostos e as suas preferencias--mas
eram preferencias de homens por homens, e nunca por ideias. Estas mesmas
preferencias por estadistas do seu typo, discreto e neutro, como Mr.
Loubet, Tirard e outros, tantas vezes lhe foram censuradas pelas
opposições extremas, que elle terminou por immolar dentro em si esta
derradeira e modesta expressão da sua força pensante. Foi então que ganhou
a reputação phantasista _de ser de pau._ A sua vontade immovel ou
immobilisada traduzia-se na rigidez hirta da sua attitude. Quasi não
ousava mover um braço com receio de magoar um artigo da Constituição.
Quando muito saudava e sorria. Assim pelo menos o pintavam os
caricaturistas e os cancionistas. E se a historia da sua presidencia fôsse
mais tarde estudada n'estas obras ligeiras do humorismo pariziense, ellas
dariam ideia de um chefe de Estado cujos unicos actos historicos fôram
saudar e sorrir. Carnot não era mais que a imagem ornamental e symbolica
da Republica, como essa estatua de ouro da Victoria, que protegia o
Imperio Romano. E o partido politico, que com um fim politico assassinasse
este chefe, seria tão insensato como uma tripulação revolta que, querendo
apoderar-se de um navio para lhe dar um rumo novo, decepasse expressamente
e furiosamente a figura de pau esculpida na prôa.

Por isso o crime de Lyão foi logo, e sem outro exame, attribuido ao
anarchismo;--porque só os anarchistas, hoje, n'esta nossa civilisação
raciocinadora, utilitaria, conservam, como os selvagens, a ferocidade
pueril de commetter crimes inuteis. São elles que, para destruir todo o
capital oppressor, arrasam um predio qualquer de tres andares, e para
demolir a burguezia auctoritaria matam a estilhas de bomba alguns
empregados do commercio sentados n'um café a beber _bocks._ Os seus
crimes nem sómente são inuteis--são ainda contraproducentes, porque vão
formidavelmente fortalecer tudo quanto elles querem destruir, e
indefinidamente retardam todos os progressos que elles pretendem com
ancia precipitar. Esta seita, que tem por principio a suppressão de
toda a auctoridade, tornou-se assim uma estupida e inconsciente fautora do
abuso da auctoridade. E chegou a um ponto, que o anarchismo parece ser
secretamente assalariado pelo despotismo.

O assassino de Carnot ainda se não confessou anarchista; de facto ainda
não descerrou os labios senão para rosnar algumas indicações de
naturalidade e residencia, n'uma rude algaravia incomprehensivel, que não
é francez, nem italiano, e que se não sabe mesmo se é natural, se fingida.
Mas desde logo a conclusão geral foi que havia alli um anarchista--porque
só um anarchista, com aquelle obtuso fanatismo que dementa a seita,
poderia esquecer quanto o assassinato de um chefe de Estado, tão legal e
irresponsavel como Carnot, iria, pela natural irrupção de colera e dôr,
pela unanimidade de sympathias accumuladas em torno da França e do seu
governo, pelo sentimento do perigo despertado em todos os outros chefes
de Estado, exacerbar por toda a parte a reacção e a perseguição, não só
contra o anarchismo, mas contra os partidos avançados e de ideias justas
de que elle é o filho bastardo e scelerado. Mais que nunca, d'este vez o
anarchismo trabalhava furiosamente contra essa liberdade de que pretende
ser a expressão suprema e perfeita;--e a sua arma não era mais do que uma
nova e ensanguentada ferramenta posta, por elle, de noite, nas mãos da
burguezia capitalista.

Anarchista ou não, porém, esse rapaz mysterioso, que permanece mudo
n'um carcere de Lyão, fez, senão uma d'aquellas «victimas de eleição»
de que fallam os Evangelhos, uma victima que todos os homens de bem podem
lamentar com magoa pura e sem mescla d'outro sentimento. Carnot foi por
excellencia o magistrado integro.

Sem nenhuma das qualidades brilhantes de espirito que captivam os lados
imaginativos da raça franceza, elle foi todavia popular, e, apesar dos
leves sorrisos que provocava o seu feitio exageradamente empertigado, o
mais popular talvez de todos os chefes d'Estado n'stes ultimos cincoenta
annos em França. E a razão é que elle encarnava admiravelmente todos os
outros lados do temperamento francez, os do bom senso positivo, da
prudente moderação, do trabalho zeloso, da probidade e da veneração pela
Lei. Todos estes traços de caracter se encontram em França, principalmente
na burguezia provincial; por isso Carnot era sobretudo querido nas
provincias, e se podia considerar como um presidente não pariziense, mas
provinciano, o que constitue, para quem conhece Pariz, um dos seus
meritos, senão o seu merito maior. De certo para a sua popularidade
concorreram tres grandes factos que elle pessoalmente não creou, mas a que
soube presidir com perfeita dignidade e tacto:--a suppressão do
boulangismo, ultimo fermento do espirito cesarista; a exposição universal
de 1889; e a alliança ou festas alliadas da Russia e França. Todos estes
acontecimentos, de resto, se prendiam com aquella ordem de preoccupações
que n'elle eram mais vivas, da grandeza material da França e do seu
predominio social na Europa. Peiado, travado pelos seus escrupulos de
legalidade, em tudo o que se relacionava com a politica interna (ao
contrario de Grévy que só se interessava pelo parlamentarismo pelos seus
episodios) era para as relações exteriores da França, para a sua situação
e gloria na Europa, que Carnot dirigia, senão uma franca iniciativa, ao
menos aquella porção de iniciativa secreta de que se considerava ainda
legalmente senhor. E ahi os seus serviços fôram reaes e eminentes, porque,
se não teve em politica externa d'essas ideias seguidas, novas ou fortes,
que outr'ora quando havia reis se chamavam «as grandes ideias do reinado»,
mostrou na sua conducta de chefe d'Estado, exposto á observação das
chancellarias européas, tanta correcção e prudencia pacifica, e sentimento
da grandeza nacional, que fez acreditar á Europa n'uma França tão digna,
tão prudente, tão pacifica e tão forte na consciencia da sua grandeza,
como se mostrava o chefe que ella escolhera. Por esse lado, Carnot foi
um valioso cooperador da confiança da França em si mesma e da paz em toda
a Europa.

Particularmente, era o mais excellente dos homens--affavel, caritativo,
leal, clemente, cultivado.

A multidão que o via sempre tão teso, mettido n'uma casaca que parecia
de ferro, com a barba muito negra e dura, a barra vermelha da Legião de
Honra destacando sem um vinco no peitilho rigido, tendia a pensar que
tudo, no homem interior, era tambem secco, rigido, duro.

A multidão enganava-se redondamente. Carnot era um brando, quasi um
sentimental.

Ha assim d'estas figuras de madeira, que vivem por dentro de uma vida
ignorada, que é cheia de sensibilidade e de calor affectivo.

Um jornal que sempre incondicionalmente o honrou, e que costuma pôr
nas suas palavras uma sisudez ponderosa, e mesmo solemne, o _Temps_,
resume o elogio funebre de Carnot affirmando que elle era _un brave
homme._ A expressão assim, isolada, póde parecer familiar, talvez
rasteira, mesmo laivada de vago desdem. Mas, quando junta a todas as
outras que definem o seu caracter publico, logo se sente que esta as
completa, as embelleza, e espalha sobre ellas como um indefinido
perfume de bondade e doçura, sem as quaes nunca ha verdadeira
superioridade moral. E Carnot, elle proprio, na lista extensa das suas
virtudes intimas e civicas, apreciaria, mais que todas, esta, que
tem um feitio tão simples, de _brave homme._ Na sua vida, na sua alta
magistratura, foi sempre um _brave homme._

E isto, no chefe eleito de uma democracia, é talvez a melhor
condição--porque dos grandes genios vêm por vezes grandes males, e nunca
vem senão bem de uma bondade honesta e grave.



XVIII


A MORTE E O FUNERAL DE CARNOT.


Pariz, sentado nos terraços dos cafés, bebendo aos goles, devagar,
limonada ou xarope de grozelha e soda, enxuga a testa e repousa das
emoções por que passou n'esta semana, sob 35 graus calor (á sombra). Que
emoções, com effeito, tão atropelladas, tão desencontradas, desde essa
manhã de segunda-feira em que cada um de nós foi accordado quasi
violentamente pelo seu criado, que, sem abrir as vidraças, espalhando logo
na penumbra da alcova um pouco do assombro e do horror que invadira a
cidade, exclamava ou balbuciava:--«O snr. Carnot foi assassinado em
Lyão!» Depois d'isto não era possivel, nem readormecer, nem preguiçar.
Pariz inteiro, sem banho, quasi sem almoço, desceu á rua, como Athenas
nos grandes dias civicos, e ficou na rua durante uma semana, fallando
alto e comprando vorazmente jornaes. Tantos jornaes arrebatava e logo
arremessava, que á noute macadam e asphalto desappareciam sob uma camada
de lixo impresso, o mais triste de todos os lixos.

Esta multidão tão sobreexcitada interiormente, conservava todavia uma
compostura calma, semelhante á de um publico n'um theatro, que, enquanto
os heroes agonisam no tablado, se sente perfeitamente seguro, e seguras,
em torno d'elle a vida e a ordem da cidade. É que a morte Carnot só
affectou realmente a imaginação de Pariz. Era como uma tragedia,
improvisada um forte genio tragico, representada inesperadamente uma noite
em Lyão, e de que os jornaes viessem contando os lances de sangue e
luto.

O punhal do italiano, escandido entre flôres, á boa maneira italiana
da Renascença, não ferira, ferindo Carnot, nenhum d'esses interesses que
são para o homem, individualmente, como pedaços da sua propria carne, ou
para a sociedade como o cimento de onde depende a sua estabilidade. O
bem estar mais intimo do cidadão, hoje, não se altera com as catastrophes
soffridas por aquelles que os governam: e o Estado não soffre uma
arranhadura, quando o seu chefe morre d'uma punhalada. Outr'ora, a
suppressão violenta do chefe causava um abalo universal, uma tumultuosa
deslocação de interesses, quasi uma transformação de costumes. Quando
Henrique IV é assassinado na rua _de la Ferronnerie_, como Carnot, toda
a França, horas depois, segundo a viva expressão de Michelet, ficou
revirada de dentro para fóra como uma luva. A laboriosa obra do reinado
desaba bruscamente: o thesouro amontoado por Sully é esbanjado ao vento;
todas as construcções, por falta de dinheiro, se interrompem; todas as
grandes manufacturas se fecham, e os operarios vagueiam famintos; a trama
das allianças, tao habilmente urdida, n'um instante está desfeita--e ahi
temos em breve a guerra dos Trinta Annos! Aquelle rei morto levava comsigo
para o tumulo o pão, a paz, a posição, as vaidades de milhares de
vasallos. Por isso em Pariz foi terrivel a desolação. Como diz ainda
Michelet, cada cidadão se considerou pessoalmente perdido: e nas casas,
como uma desgraça domestica, as mulheres gritavam arrepellando os
cabellos!

Com a perda do snr. Carnot, assassinado como Henrique IV, nenhum cidadão
(superfluo é lembrar) se considera perdido: e as mulheres, em vez de
arrepellar o cabello, põem mais cuidado em o pentear, para assistirem,
com uma curiosidade ligeira, á festa dos funeraes.

Não ha obras interrompidas, nem operarios despedidos. Pelo contrario!
O trabalho cresce. Os jardineiros, os floristas, os fabricantes de corôas,
embolsam mais de tres milhões de francos. O assassinato do chefe do Estado
anima o commercio. De facto, não ha nada mudado em França--apenas um bom
francez de menos.

Isto não prova a fraqueza das instituições monarchicas, porque depois
de Henrique IV morto houve logo Luiz XIII posto, e o throno de França,
com as mesmas flôres de liz, ainda durou triumphalmente dous seculos.
Mostra apenas que hoje Estado já não está todo contido dentro do chefe--e
que o chefe é apenas o remate decorativo do Estado, podendo ser
bruscamente derrubado por uma rajada de crime, sem que o edificio que elle
rematava, se abale, e nem por um momento diminua, ou se modifique, ou
sequer se interrompa, a vida intensa que circula dentro do edificio e que
o torna vivo. O regicidio deixou assim de ser uma tragedia politica--para
se tornar simplesmente uma tragedia domestica, que no povo não póde
interessar mais que a imaginação.

O que Pariz durante esta semana sentiu (além de uma compaixão natural
pelo bom homem morto e pela admiravel viuva), foi uma curiosidade
feroz do detalhe tragico. Os jornaes concorreram para exaltar esta
curiosidade, menos pelas cousas dolorosas que vinham contando, como pela
maneira terrifica com que as annunciaram, em typo disforme, lettras de
tres pollegadas, de um negrume sinistro, enchendo toda uma folha, e na sua
mudez mais estridentes que gritos! São estas letras de descomedido
espalhafato, imitadas da America e exageradas como toda a imitação
interesseira, que exacerbam a sensibilidade moderna. As pestes, as
guerras, as quedas de imperios, eram outr'ora narradas pelos jornaes no
seu typo miudo e ordinario e a noticia das catastrophes entrava no nosso
espirito de um modo manso e discreto, sem produzir n'elle alvorotos
violentos. Agora, estas lettras espaventosas invadem com pavor o nosso
pobre cerebro; e á maneira de touros que se precipitam dentro d'um templo,
põem a quieta assembléa das nossas ideias em confusão e terror. Uma tarde
d'esta semana, nos boulevards, um jornal astuto e videiro, a _Cocarde_,
appareceu ostentando na sua primeira pagina, larga como uma pagina da
_Gazeta_, estas duas linhas unicas, n'um typo despropositado, sem
precedentes, que se avistava a uma milha:--«O embaixador de França foi
assassinado em Roma!»--Vi mulheres, ao receberem nos olhos desprevenidos
este tremendo berro typographico, quasi desmaiarem: e por onde passavam
os vendedores, agitando o cartaz pavoroso, a multidão redemoinhava, como
sob um grande vento de medo e colera!

Assim, durante a longa semana, andou vehementemente sacudida a nossa
imaginação.

De resto a tragedia de Lyão era bem propria a agitar as imaginações
mais ronceiras e dormentes. Raramente o destino ou o acaso (se é que o
destino se conservou indifferente) envolveu um regicidio em scenario mais
commovente, de contrastes mais patheticos, accumulando n'elle uma tal
profusão de detalhes horriveis na sua trivialidade, e quasi medonhamente
grotescos através do seu horror. Essa noite parece composta por
Shakespeare e retocada aqui e além, depois, por Hoffmann. Quem jámais a
saberá e a contará em toda a sua miuda realidade? E que contraste intenso
já, em que o mais doce e ordeiro dos homens assim findasse na mais cruenta
e atabalhoada das tragedias! Carnot morre com um requinte dramatico que
faltou a Cesar! Vêde logo o scenario! Não é a sala grave do senado, onde
os punhaes se erguem com a serenidade raciocinada de uma votação--mas a
rua illuminada de uma cidade em festas, n'uma noite de gala. Todas essas
flammulas, e bandeiras, e rutilantes arcos de gaz, e festões multicores de
lanternas chinezas, e fogos esparsos de Bengala, e escudos de luz, e
palanques, e orchestras são para celebrar o homem que passa no seu
_landeau_, e saúda, e sorri. Uma multidão sincera, de uma boa sinceridade
provinciana, para quem esse homem, com a placa e gran-cruz da Legião de
Honra, cercado de couraceiros, encarna realmente a magestade da França,
grita--«Viva Carnot! Viva Carnot!» E de repente a magestade da França cáe
para cima das almofadas do coche, com a face descomposta, livida! Foi um
qualquer, surdindo das profundidades da plebe, com os sapatos rotos, uma
velha jaqueta de panno côr de mel, que, n'um relance, lhe enterrou um
punhal no ventre. Punhalada quasi impessoal, em que o braço não é mais do
que a prolongação inconsciente da lamina de ferro, e que vem debaixo, de
longe, de muito longe, das camadas escuras do proletariado esfaimado... E
o _landeau_ lá vae, lá foge a galope, entre o ancioso tropear da escolta,
levando o chefe de Estado que se escoa em sangue. O Estado, recentemente
para o proteger, gastára mais um milhão de francos em reforçar a
policia!

Oh! esta sinistra fuga para o palacio da prefeitura, do _landeau_ da
côrte tornado bruscamente carro d'hospital! Já para dentro saltára um
cirurgião, que, de mangas arregaçadas, tendo desabotoado as calças do
presidente, palpava a ferida, vedava o sangue com os lenços emprestados
pelos lacaios. E assim galopa um quarto d'hora furiosamente, sob as
bandeiras, os arcos de luxo e as grinaldas de luzes. Um mero cidadão
seria logo transportado, e em braços, ao pateo d'uma casa, ao balcão d'uma
botica. Mas o presidente tem de recolher ao palacio, ainda que se esvaia
em sangue, porque, mesmo n'uma Republica, é severa a regra do Protocollo!
Nas ruas, a multidão, que nada sabe da punhalada e vê passar entre os
couraceiros o _landeau_ d'Estado, onde vagamente se agitam e brilham
plumas e dragonas de generaes, bate as palmas festivas, acclama Carnot!
Mas em cima, nas janellas, a gente que as enche tem uma visão estranha,
terrivel, quasi burlesca--o chefe do Estado estendido, com a gran-cruz,
a placa de diamantes da Legião de Honra e o ventre nú, a fralda da camisa
fluctuando, já tingida de sangue! Visão espantosa que passa entre
ovações--ao clarão dos fogos de Bengala, sob o estalar dos foguetes.
Passa, desapparece, n'um galope de cavalleiros, deixando apenas o sulco
arrepiador d'aquella fralda branca e sangrenta!

Á porta do palacio da Prefeitura a confusão é tão grande que dous
_reporters_, sofregos de se envolverem n'um acontecimento historico, se
apoderam do corpo do presidente e o arrancam do _landeau_, um agarrando
uma perna, outro um braço. Começa o penoso, hesitante transporte através
das escadarias e passagens da prefeitura, um palacio novo, mal conhecida
ainda, estreiado n'esses dias de gala.

Logo no primeiro patamar ha um embaraço angustioso... O presidente só
devia recolher tarde, depois da representação de gala no _Grand
Theâtre_; toda a criadagem, com tres horas livres, abalara para as
festas, para os fogos da Exposição:--e as luzes estavam apagadas, todos
os corredores em trevas! E ninguem tinha um phosphoro! O ferido,
desmaiado, arrefece, perde o sangue. E a anciedade toda é por um
phosphoro. Emfim, lá dardeja ao fundo um bico de gaz. O corpo do
presidente é pousado sobre a colcha de seda do seu leito de ceremonia.

Mas, através das portas escancaradas da prefeitura, penetrara uma
immensa turba, que atulhava os corredores, invadia o quarto, estorvava
os serviços dos cirurgiões. Foi necessario que acudisse policia e tropa
para rechassar, através do palacio, aquella multidão, tomada de uma
curiosidade furiosa, e onde auctoridades, magistrados, ministros se
debatiam, berravam, repellidos no longo rôlo. Um magote mais tenaz, em
que havia senhoras, permaneceu fincado deante da porta do quarto
lamentavel. Não ha nada, já notou Victor Hugo, que mais aguce a
curiosidade do que um muro, uma porta fechada, por traz da qual se está
passando alguma cousa de irreparavel.

Quando essa desejada porta se abria, dando passagem a algum general com
bacias ou pannos ensanguentados, todos, homens e senhoras, se empurravam,
se esticavam para contemplar o chefe do Estado no seu leito, ainda de
casaca, ainda de gran-cruz, com o ventre nú, as pernas núas...

Assim morria, n'esta desordem, o mais decoroso dos chefes de Estado.

Cesar, ao cahir, deu um grande movimento á toga para se tapar todo,
n'uma suprema decencia:--e em torno d'elle não havia senão os brancos
marmores do senado deserto, e ao fundo um personagem consular, muito
velho, muito gordo, que adormecera, nada percebera do feito supremo e
continuava resonando, com o labio pendente, emquanto esfriava o corpo
gasto do vencedor das Gallias e se mudava a ordem do mundo.

Emfim o presidente está morto, lavado, vestido, com a sua casaca, as
suas insignias--e apertando na mão já hirta um par novo de luvas brancas.
Defunto, Carnot parece manter aquella correcção official que fôra o seu
cuidado durante a vida. Para comparecer na presença de Deus, como chefe de
Estado, elle tem a sua placa de diamantes, a sua gran-cruz, e na mão as
suas luvas novas. Estas luvas d'além da campa, muita gente as acha
estranhas! Ellas são todavia do velho ceremonial funerario de França. Os
reis de França eram enterrados com luvas. O grande cavalleiro Roldão, ao
morrer em Roncesvalles, tira, no derradeiro arranco, o seu guante de
escamas de ferro e entrega-o ao archanjo S. Miguel, que ao lado esperava
para conduzir ao Senhor o alto paladino da christandade. Era da etiqueta
feudal, nos tempos Carlovingios, que o vassallo, ao penetrar no solar do
seu suzerano, despisse o guante da mão direita e o abandonasse a um
pagem.

Roldão não esquece este acto de vassalagem. Ao transpor as portas do
céu, que é o solar de Deus, suzerano absoluto, elle tira o guante e
gravemente o entrega ao archanjo, como a um pagem celeste.

Todos sabem, porque bons livros o contam, como Deus acolheu o cavalleiro
perfeito e lhe chamou, sorrindo, _seu filho._ Assim, através das edades,
a tradição liga Carnot a Roldão.

Considerae tambem como é dramatico o modo escondido e calado com que
regressou a Pariz o corpo de Carnot. Na gare não havia uma auctoridade,
um ministro, ninguem do grande pessoal do Estado, quando o comboio que
trazia o cadaver, appareceu, sem um signal, sem um apito, sem um rumor,
deslisando funebre e mudamente, como um fantasma de comboio, vago e
coberto de crepes. D'uma portinhola sahiu, no mesmo silencio, Mme Carnot,
vestida como na vespera, quando correra a Lyon, com um chapéo enfeitado
de flôres vermelhas. Mettem o caixão á pressa n'um carro sem solemnidade
civil e religiosa; e á pressa, n'um trote fugidio, através das ruas mais
desertas, onde clareava a madrugada, levam-n'o para o Elyseu. O morto como
que é recolhido ás occultas ao seu palacio, para se installar
methodicamente na sua capella ardente, e depois, quando não faltasse uma
colgadura nem um tocheiro, abertas as portas, e com a sumptuosidade que
lhe competia, receber as supremas honras funeraes. Atraz d'elle, pelas
ruas desertas, (segundo contam) só o acompanhou um _fiacre_, com vadios
e mulheres nocturnas, fumando cigarros, de perna estendida. Estranho
remate de uma noitada estroina--seguir n'um _fiacre_ o cadaver d'um
chefe de Estado!

Ao outro dia, porém, com a luz, começaram a pompa e o luto publico. Mas
então cessam tambem os lances inesperados e melodramaticos. Tudo se torna
regular, fixo e pautado pelo protocollo. Hoje Pariz desfila, com
curiosidade e emoção, ante o ataúde do presidente, posto em capella, no
devido luxo de flôres e de luzes, coberto com a tricolor. Amanhã Pariz,
n'uma curiosidade crescente, mas já dimiunida a emoção, fará densas alas
ao presidente que passa para o Pantheon.

Funeraes magnificos, de certo--mas de uma magnificencia muito cerceada
pela sobriedade do gosto francez e pela simplicidade official da
democracia. A democracia officialmente, usa casaca de panno preto:--e o
severo gosto, em França, não permitte n'estas pompas outro luxo, além do
luxo das flôres. Tudo o que outr'ora na antiguidade, e depois na
Renascença, fazia o esplendor das ceremonias funebres--a sumptuosidade dos
trajes, as sêdas negras cahindo dos balcões, os incensadores fumegando, os
coros dolentes, os corceis ricamente ajaezados, as insignias symbolicas,
os trophéos, os andores, os estandartes, os carros de deslumbrante
architectura, a riqueza patricia, as criadagens agaloadas, e o
incomparavel fausto da Egreja com os seus baculos, as suas mitras, as suas
purpuras, as suas casulas de ouro--toda essa magnificencia esthetica aqui
falta. Um pobre carpinteiro de Florença ou Roma, da Florença dos Medicis
ou da Roma de Leão X, nunca acreditaria, contemplando esta procissão
funeral, que uma opulenta e artistica nação estava fazendo a apotheose do
seu chefe assassinado. Todavia a França, dentro das restricções impostas
pela sobriedade do seu gosto e pela simplicidade da sua democracia,
prestou a Carnot, largamente, todas as homenagens e preitos symbolicos.
As flores que lhe offertou, foram incontsveis, custaram mais de tres
milhões de francos, e durante todo um dia perfumaram o vasto ar de Pariz.
E toda a França organisada, desde os corpos d'estado até aos clubs
gymnasticos, acompanhou o seu feretro ao Pantheon, que a patria
reconhecida reserva aos Grandes Homens.

Mas essas flôres uniformemente arranjadas em corôas, e accumuladas sobre
carros, ou conduzidas isoladamente em andores, algumas enormes, de dous
metros de diametro, e semelhando bolas pintadas de côres vistosas, não
podiam formar, na sua uniformidade dogmatica, um quadro de belleza: só
impressionavam pela abundancia, pela ideia mercantil dos milhões gastos,
e em breve murchos.

E a França toda atraz, era apenas uma infinita e cerrada fila de casacas
pretas. Interminavelmente passavam na irradiação do sol de julho as
casacas negras. Aqui, além, por vezes, um grupo de embaixadores, as fardas
d'um estado-maior, os juizes com as suas bécas escarlates destacavam,
n'uma mancha fugitiva de brilho e côr. Mas logo se prolongavam, se
eternisavam as calças pretas, as casacas pretas, marchando em cadencia.
Nos olhos pesados, no espirito meio entorpecido, não restava por fim senão
á impressão dormente d'um mudo e lutuoso perpassar de fato preto.

E aos olhos cançados, ao espirito adormentado, voltava, para embotar
mais a emoção artistica d'esta pompa, a memoria de outras pompas, a de
Thiers, a de Gambetta, a de Victor Hugo, em que tambem assim marchavam, em
longas milhas, calças pretas, casacas pretas.

Uma novidade, porém, e singular, impressionava n'estes funeraes de
Carnot:--e era que, atraz do feretro, coberto com a bandeira tricolor,
se entreviam n'um carro batinas e sobrepellizes de padres. Depois, á
frente dos embaixadores, marchava o nuncio do papa, nas suas grandes
vestes rôxas. E por todo o prestito, mesmo misturadas aos uniformes,
appareciam, aqui, além, sotainas de padres. Novidade consideravel! E então
se attentava mais em que esta tragedia do presidente assassinado fôra
realmente, toda ella, em todos os seus actos, seguida e ministrada pela
Egreja. Carnot moribundo recebeu os santos oleos das mãos do arcebispo de
Lyão.

Na capella ardente, entre os generaes que o guardam, rezam padres, e
freiras desfiam os seus grossos rosarios. Ao pé do caixão ha um hyssope,
n'uma caldeira com que Pariz, ao desfilar, asperge as pregas da bandeira
que cobre o corpo, de modo que ao fim do dia a tricolor está toda
orvalhada de agua benta. É o cura da Magdalena, de cruz alçada, com o seu
clero, que vem ao pateo do Elyseu fazer a entrega do corpo, segundo o
velho ritual de Pariz. Agora aqui vão padres atraz do carro funerario.
Toda esta pompa marcha para Notre-Dame. Ás portas da antiga çathedral, o
arcebispo de Pariz reza os responsos finaes, e do pulpito, como nos tempos
de Bossuet, faz a oração funebre do presidente da Republica. Os radicaes,
livres-pensadores, entraram na sombria nave, e de joelhos, por decencia,
abalados por vagas memorias, baixaram a cabeça ao levantar da hostia. E
depois outros padres irão ao Pantheon, desconsagrado pela Republica, para
rebenzer o jazigo do presidente, que é ao lado do jazigo de Voltaire!

Estranhas vicissitudes! Carnot morto, leva atraz de si pelas ruas de
Pariz o radicalismo compungido--e é para os altares que o vae levando.

Conheço uma velha gravura allegorica do seculo XVI, em que, atraz d'um
cortejo, e tambem funerario, se vê um personagem de cornos, de pés de
bode, que, todo torcido, com o rabo vexadamente mettido entre as pernas
pelludas, vem rosnando e roendo as unhas, n'uma evidente mostra de
humilhação e rancor. É o diabo. Pois tambem n'este cortejo derradeiro de
Carnot, me pareceu avistar, lá ao longe, o nosso velho amigo, o
jacobinismo, de barrete phrygio, com a face, o ar pelintra, roendo as
unhas, horrendamente humilhado.

Toda esta semana, com effeito, tem sido para elle de humilhações. Mas o
desventurado já as não conta! Desdenhado pela sciencia, mais desdenhado
ainda pela philosophia, rechassado pelas lettras, abominado pela arte,
espancado pela mocidade no pateo das escolas, troçado pelos
caricaturistas, apupado pela plebe, esse pobre jacobinismo, tornado um
objecto de escandalo e tedio, anda ahi mais escorraçado n'este fim do
seculo XIX, do que o diabo, nos fins do seculo XVIII, nas vesperas da sua
morte. A sua maior humilhação, porém, vem de que a França, a França que o
produziu, e que ainda hoje, de certo modo, o produz, n'este mesmo dia dos
funeraes, e pela voz d'um dos seus melhores espiritos, o declarou, com
aviltante desdem--um producto de exportação!

Oh! empertigados manes de Robespierre! O jacobinismo declarado em
Pariz--producto de exportação! Tal é a fragilidade das seitas. _Sic
transit gloria diaboli._





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