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Title: A Reforma
Author: Lindsay, Thomas M. (Thomas Martin)
Language: Portuguese
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*** Start of this LibraryBlog Digital Book "A Reforma" ***


A REFORMA



                                A REFORMA

                                   POR
                              T. M. LINDSAY
               DOUTOR EM THEOLOGIA E PROFESSOR DE HISTORIA
                              ECLESIASTICA

                        TRADUCÇÃO DE J. S. CANUTO
                              (AUCTORISADA)

                              [Illustration]

                           LIVRARIA EVANGELICA
                       RUA DAS JANELLAS VERDES, 32
                                 LISBOA

                                 LISBOA
                           TYP. ROSA, LIMITADA
                        29, Rua da Magdalena, 31



PREFACIO


As primeiras tres partes d’este livrinho são simplesmente uma compilação
das melhores e mais accessiveis historias da Reforma, e de modo algum são
apresentadas como uma dissertação original sobre o vasto e complicado
movimento religioso que descrevem. Sou da opinião do dr. Merle d’Aubigné:
a Reforma foi uma revivificação da religião, e não pode ser descripta com
bom exito se não tivermos sempre deante de nós, e bem distinctamente,
este seu caracter essencial. Os reformadores foram homens que, sob o
impulso de um grande movimento religioso que se levantou n’uma occasião
em que eram bem particulares as circumstancias intellectuaes, sociaes e
politicas, se sentiram animados pelo desejo de que lhes fosse permittido
dar culto a Deus segundo as direcções da Escriptura e os dictames da
razão e da consciencia. Mas este desejo, apparentemente simples, envolvia
uma tal mudança nas condições sociaes e politicas, não sómente em cada
provincia e em cada nação, mas em toda a Europa, tomada no seu conjuncto,
que não se pode escrever a historia da revivificação religiosa sem
apresentar uma grande parte da historia politica e social de aquella
epoca.

O dr. Leopoldo von Ranke tratou com tanta proficiencia da historia
politica do periodo em questão, que o auctor até do mais humilde dos
manuaes deve collocar-se quasi exclusivamente debaixo da sua direcção.
Foi o que eu fiz, e em quasi todas as paginas me aproveito, com
reconhecimento, das suas magistraes descripções do movimento politico e
social.

Escusado seria mencionar toda a longa lista de auctores consultados na
preparação d’este pequeno livrinho; como, porém, não se faz referencia
alguma ás auctoridades citadas, cumpre-me dizer que, além de d’Aubigné
e de Ranke, as pessoas que teem conhecimento do assumpto hão de notar
um continuo uso das _Historias da Egreja_ de Hagenbach e Henke, do
_Periodo da Reforma_ de Haüsser, dos _Huguenotes_ de Baird, de dois
volumes das _Epocas da Historia Moderna_ de Longman, da _Era da Revolução
Protestante_ de Seebohm, e do _Seculo de Isabel_ de Creighton. Refiro-me
frequentemente á _Historia dos Credos do Christianismo_ ao tratar das
Confissões, e á inapreciavel collecção de _Livros de Disciplina_, de
Richter, ao tratar da organização ecclesiastica das varias egrejas
reformadas.

A quarta parte, que se occupa summariamente dos principios fundamentaes
do movimento da Reforma, deveria talvez ter ido em primeiro logar,
servindo de introducção, mas preferi collocal-a no fim; em parte, porque
similhante introducção poderia assustar os leitores jovens, e em parte
porque os principios do movimento podem ser mais bem apreciados depois do
leitor ter algum conhecimento da sua historia. A quarta parte é a unica
porção d’este pequeno manual que se pode dizer com verdade que pertence
exclusivamente ao auctor, e que apresenta opiniões sobre o assumpto de
que só elle é responsavel.

O summario chronologico foi extraido quasi inteiramente das admiraveis
tabellas de Weingarten.

                                                           T. M. LINDSAY.



INDICE


                                 PARTE I

  A REFORMA ALLEMÃ, QUE DEU ORIGEM ÁS EGREJAS LUTHERANAS          PAG. 1-53

                               CAPITULO I

  A REFORMA NA ALLEMANHA                                          PAG. 1-48

  O principio da Reforma, pag. 3.—As indulgencias, e as theses
  que Luthero escreveu contra as mesmas, pag. 5.—As theses
  de Luthero não atacavam sómente as indulgencias, pag. 6.—A
  historia de Luthero, desde o principio, pag. 7.—Partidarios
  e adversarios de Luthero, pag. 9.—A disputa de Leipzig, pag.
  10.—A bulla do papa, e a queima da mesma, pag. 12.—O Imperador
  e a Reforma, pag. 14.—O estado politico da Allemanha, pag.
  15.—Luthero e a dieta de Worms, pag. 16.—Luthero em Wartburgo,
  pag. 18.—Regresso de Luthero a Wittenberg, pag. 19.—A dieta de
  Nürnberg, pag. 20.—A revolta dos nobres, pag. 21.—A revolta
  dos camponezes, pag. 23.—As Dietas de Spira, em 1526 e 1529,
  pag. 28.—O imperador pretende subjugar a Reforma, pag.
  32.—A Conferencia de Marburgo, pag. 33.—Divergencia entre
  Luthero e os suissos, pag. 33.—A Dieta de Augsburgo, pag.
  36.—_A Confissão de Augsburgo_, pag. 38.—A Liga Protestante
  de Schmalkald, pag. 39.—A morte de Luthero, e a guerra
  de Schmalkald, pag. 42.—O imperador e o Concilio Geral,
  pag. 43.—Loyola e os jesuitas, pag. 45.—A paz religiosa de
  Augsburgo, pag. 47.

                               CAPITULO II

  A REFORMA LUTHERANA FÓRA DA ALLEMANHA                          PAG. 49-53

  O lutheranismo fóra da Allemanha, pag. 49.—Na Dinamarca, pag.
  50.—Na Suecia, pag. 51.

                                PARTE II

  A REFORMA SUISSA, QUE DEU ORIGEM ÁS EGREJAS REFORMADAS        PAG. 55-154

                               CAPITULO I

  A REFORMA SUISSA SOB ZWINGLIO                                  PAG. 57-66

  As reformas suissa e allemã, pag. 57.—A situação politica
  da Suissa, pag. 58.—Ulrico Zwinglio, pag. 60.—As theses de
  Zwinglio, pag. 62.—A Reforma em Zurich, pag. 63.—Basiléa,
  pag. 64.—Berne, pag. 64.—Os cantões florestaes, pag.
  64.—Caracteristicos da Reforma de Zwinglio, pag. 65.

                               CAPITULO II

  A REFORMA EM GENEBRA SOB CALVINO                               PAG. 67-85

  Genebra antes da Reforma, pag. 67.—Farel em Genebra, pag. 68.—A
  mocidade de Calvino, pag. 69.—_Institutos da Religião Christã_,
  pag. 71.—Calvino em Genebra, pag. 73.—A sua expulsão, pag.
  75.—Genebra não pode passar sem elle, pag. 76.—_As Ordenanças
  Eclesiasticas_, pag. 77.—Como differem dos _Institutos_,
  pag. 79.—O seu effeito sobre uma reforma de costumes, pag.
  81.—A morte de Calvino, pag. 82.—Succede-lhe Beza, pag. 83.—A
  influencia de Calvino sobre a theologia da Reforma, pag. 83.—_A
  Confissão de Zurich_, pag. 84.

                              CAPITULO III

  A REFORMA EM FRANÇA                                           PAG. 87-111

  Os principios da Reforma em França, pag. 87.—Francisco I, pag.
  89.—A _Concordata_ de 1516, e a feição que ella deu á Reforma,
  pag. 89.—«Uma egreja debaixo da cruz», pag. 90.—O anno dos
  placards, pag. 92.—O Vaudois de Durance, pag. 92.—Henrique II
  e os Guises, pag. 93.—Organização da egreja reformada, pag.
  95.—Os huguenotes: Coligny e os irmãos Bourbon, pag. 96.—O
  primeiro _Synodo Nacional_, pag. 97.—Anne de Bourg, pag.
  98.—A carnificina de Amboise, pag. 99.—Coligny na Assembléa
  dos Notaveis, pag. 100.—Catharina de Medicis, pag. 100.—A
  Conferencia de Poissy, pag. 102.—O massacre de Vassy, e outros,
  pag. 103.—A guerra civil, os iconoclastas, pag. 103.—Coligny e
  Carlos IX, pag. 106.—O massacre de S. Bartholomeu, pag. 107.—A
  Santa Liga, pag. 109.—Henrique de Navarra, pag. 110.—O edicto
  de Nantes, pag. 110.

                               CAPITULO IV

  A REFORMA NOS PAIZES BAIXOS                                  PAG. 113-116

  Os Paizes Baixos, pag. 113.—A politica de Carlos V, pag.
  114.—Os principios da Reforma, pag. 115.—Filippe II e os
  Paizes Baixos, pag. 115.—A inquisição, pag. 117.—Os novos
  bispados, pag. 118.—Tornar-se-ha hespanhol o paiz? pag. 119.—Os
  _mendicantes_, pag. 120.—Prégações ruraes, pag. 120.—O duque de
  Alba nos Paizes Baixos, pag. 121.—A prisão do conde Egmont e
  do conde Horn, pag. 122.—A guerra civil. O principe de Orange,
  pag. 124.—Os mendigos do mar, pag. 124.—A tomada de Brill, pag.
  126.—Requescens y Zuniga, pag. 128.—O cerco de Leyden, pag.
  129. Negociações entre as provincias do sul e as do norte, pag.
  130.—D. João de Austria, pag. 131.—Alexandre de Parma, pag.
  132.—O tratado de Utrecht, pag. 132.—A Egreja hollandeza, sua
  organização e confissão, pag. 133.—O _Confessio Belgica_, pag.
  134.—A constituição da Egreja hollandeza, pag. 134.—A força da
  Egreja na Hollanda, pag. 136.

                               CAPITULO V

  A REFORMA NA ESCOCIA                                         PAG. 137-154

  Preparação para a Reforma, pag. 137.—A antiga Egreja celtica e
  a Educação, pag. 137.—A Escocia e o lollardismo, pag. 138.—A
  Escocia e Huss, pag. 138.—A Egreja romana na Escocia e a
  situação politica, pag. 139.—João Knox, pag. 141.—A Congregação
  e a Primeira Convenção, pag. 142.—A _Confissão escoceza_,
  pag. 144.—A rainha Maria e a Reforma, pag. 145.— O _Livro de
  Disciplina e a Primeira Assembléa Geral_, pag. 147.—A educação,
  pag. 148.—A morte de Knox, pag. 149.—Os bispos tulchanos, pag.
  150.—André Melville, pag. 152.—O Segundo Livro de Disciplina,
  pag. 152.

                                PARTE III

  A REFORMA ANGLICANA                                          PAG. 155-201

                               CAPITULO I

  A EGREJA DE INGLATERRA DURANTE O REINADO DE HENRIQUE VIII    PAG. 137-174

  O caracter excepcional do principio da Reforma ingleza, pag.
  157.—Antecipações da Reforma em Inglaterra, pag. 158.—O
  estado ecclesiastico de Inglaterra no principio da Reforma,
  pag. 159.—As relações de Inglaterra com o pontificado, pag.
  160.—As antigas relações de Henrique VIII com o pontificado,
  pag. 161.—Henrique muda de opinião, pag. 163.—Henrique VIII,
  Francisco I, Carlos V, e a rivalidade que havia entre elles,
  pag. 164.—A submissão do clero, pag. 165.—O progresso da
  separação de Roma, pag. 166.—Separação de Roma e Reforma: duas
  coisas differentes, pag. 168.—Execução de sir Thomas More, pag.
  169.—Suppressão dos conventos e confiscação das propriedades
  da Egreja, pag. 170.—_Os dez Artigos_, pag. 171.—_O Estatuto
  Sanguinario_, pag. 173.—A Egreja de Inglaterra em 1547, pag.
  173.

                               CAPITULO II

  A REFORMA NO TEMPO DE EDUARDO VI, E A REACÇÃO NO TEMPO DE
    MARIA                                                      PAG. 175-188

  Será adoptada a Reforma? pag. 175.—A visita real, o _Livro de
  Homilias_ e o _Livro de Oração Commum_, pag. 176.—A alliança
  com o protestantismo continental, pag. 178.—Os _Quarenta e
  Dois Artigos_, pag. 178.—Os principios do puritanismo, pag.
  179.—A morte de Eduardo VI, pag. 181.—O estado da Inglaterra
  por occasião da acclamação de Maria, pag. 182.—A Hespanha
  necessitava do auxilio da Inglaterra, pag. 183.—Como Maria se
  firmou no throno, pag. 183.—A alliança hespanhola, pag. 184.—A
  reconciliação com Roma, pag. 184.—Porque não foi bem succedida
  a reacção papal? pag. 185.—As perseguições durante o reinado
  de Maria, pag. 186.—A questão dos bens de raiz da Egreja, pag.
  186.—Os fructos do ensino no reinado de Eduardo, pag. 187.—A
  morte de Maria, pag. 187.

                              CAPITULO III

  A REFORMA NO TEMPO DE ISABEL                                 PAG. 189-201

  A successão de Isabel, pag. 189.—Como se liquidou a questão
  religiosa, pag. 190.—_Os trinta e nove artigos_, pag.
  192.—O puritanismo e as vestimentas ministeriaes, pag.
  192.—A Inglaterra e o protestantismo de fóra do reino, pag.
  194.—A lucta interna com o catholicismo romano, pag. 195.—A
  Armada hespanhola, pag. 196.—As prophecias, pag. 197.—_Os
  conventiculos_, pag. 198.—_Os pamphletos anti-prelaticios_,
  pag. 198.—A Reforma ingleza, pag. 198.

                                PARTE IV

  OS PRINCIPIOS DA REFORMA                                     PAG. 203-236

                               CAPITULO I

  A REFORMA FOI UMA REVIVIFICAÇÃO RELIGIOSA                    PAG. 205-214

  A Reforma foi uma revivificação da religião no meio de
  particulares condições sociaes, pag. 205.—Uma revivificação
  da religião e uma approximação de Deus, pag. 206.—Como a
  Egreja medieval chegara a impedir o caminho para Deus, pag.
  208.—Revoltas medievaes em favor de uma religião espiritual,
  pag. 209.—A imitação de Christo, pag. 209.—Francisco de Assis,
  pag. 210.—Os mysticos da Edade Media, pag. 211.—A significação
  do perdão, segundo a Reforma, pag. 212.—Previsões de uma
  revivificação religiosa operada pela Reforma, pag. 213.

                               CAPITULO II

  COMO A REFORMA SE POZ EM CONTACTO COM A POLITICA             PAG. 215-219

  O velho systema ecclesiastico estava profundamente arraigado
  na vida social da epoca, pag. 215.—A Reforma desfez a noção
  medieval de uma sociedade politica, pag. 216.—Revolta contra
  o mediavelismo, anteriormente á Reforma, pag. 217.—O _De
  Monarchia de Dante_ e o _Defensor Pacis_ de Marcello de Padua,
  pag. 218.

                              CAPITULO III

  A CATHOLICIDADE DOS REFORMADORES                             PAG. 221-224

  Os Reformadores não tinham em mente crear uma nova Egreja,
  pag. 221.—Reivindicaram a sua posição por meio de um apello á
  Constituição do Imperio medieval, pag. 221.—A catholicidade da
  Reforma, segundo Luthero e Calvino, pag. 222.—A sua posição
  reivindicada pelo Credo dos Apostolos, pag. 223.

                               CAPITULO IV

  OS PRINCIPIOS DOUTRINARIOS DA REFORMA                        PAG. 225-236

  Os principios _formaes e materiaes_ da Reforma, pag. 225.—O
  sacerdocio de todos os crentes: o grande principio da Reforma,
  pag. 226.—Explica a _Doutrina da Escriptura_, pag. 227, e da
  _Justificação pela Fé_, pag. 228.—A _Doutrina da Escriptura_
  da Reforma em contraste com a medieval, pag. 228.—A Doutrina
  medieval da Escriptura, pag. 229.—O quadruplo sentido da
  Escriptura, pag. 229.—A definição medieval de _fé salvadora_.
  Interpretação infallivel, pag. 230.—Os reformadores e a Biblia,
  pag. 231.—A doutrina da _justificação pela fé_ da Reforma em
  contraste com a medieval, pag. 232.—A absolvição clerical
  e justificação pela fé, pag. 233.—Justificação pela fé e
  justificação pelas obras, pag. 234.—Conclusão, pag. 235.

  SUMMARIO CHRONOLOGICO                                        PAG. 237-255

  INDICE DE PERSONAGENS, LOCALIDADES, ETC                      PAG. 257-261



I PARTE

A REFORMA NA ALLEMANHA, QUE DEU ORIGEM ÁS EGREJAS LUTHERANAS

CAPITULOS:

      I—A REFORMA NA ALLEMANHA.

     II—A REFORMA LUTHERANA FÓRA DA ALLEMANHA.



CAPITULO I

A REFORMA NA ALLEMANHA

    O principio da Reforma, pag. 3.—As Indulgencias, e as Theses
    que Luthero escreveu contra as mesmas, pag. 5.—As Theses
    de Luthero não atacavam sómente as Indulgencias, pag. 6.—A
    historia de Luthero, desde o principio, pag. 7.—Partidarios
    e adversarios de Luthero, pag. 9.—A disputa de Leipzig, pag.
    10.—A bulla do papa, e a queima da mesma, pag. 12.—O imperador
    e a Reforma, pag. 14.—O estado politico da Allemanha, pag.
    15.—Luthero e a dieta de Worms, pag. 16.—Luthero em Wartburgo,
    pag. 18.—Regresso de Luthero a Wittenberg, pag. 19.—A dieta de
    Nürnberg, pag. 20.—A revolta dos nobres, pag. 21.—A revolta
    dos camponezes, pag. 23.—As Dietas de Spira, em 1526 e 1529,
    pag. 28.—O imperador pretende subjugar a Reforma, pag.
    32.—A Conferencia de Marburgo, pag. 33.—Divergencia entre
    Luthero e os suissos, pag. 33.—A Dieta de Augsburgo, pag.
    36.—_A Confissão de Augsburgo_, pag. 38.—A Liga Protestante
    de Schmalkald, pag. 39.—A morte de Luthero, e a guerra
    de Schmalkald, pag. 42.—O imperador e o Concilio Geral,
    pag. 43.—Loyola e os jesuitas, pag. 45.—A paz religiosa de
    Augsburgo, pag. 47.


=O principio da Reforma.=—A reforma principiou, se é que similhante
movimento, cujos estimulos vieram de uma epoca remotissima, teve
realmente um principio, quando Martinho Luthero pregou as noventa e
nove theses contra as indulgencias na porta da egreja da pequena cidade
de Wittenberg, na Saxonia. João Tetzel, frade dominicano, havia sido
enviado á Allemanha pelo papa Leão X com o fim de colher dinheiro para
o serviço da egreja; para ajudar a pagar as despezas da guerra com os
turcos, dizia-se, mas o verdadeiro intuito era angariar fundos para serem
dispendidos pelo papa em quadros e outras obras de arte para a sumptuosa
egreja de S. Pedro, em Roma. O dinheiro obtinha-se em troca de uma
especie de recibos, em que se declarava que o comprador havia recebido
perdão da perpetração dos peccados que mencionara e pago a respectiva
importancia.

O vendedor de indulgencias viajava sob a protecção do arcebispo de
Mayença, um dos sete eleitores da Allemanha. Atravessou durante o outomno
de 1517 o centro da Allemanha, e chegou em outubro a Leipzig, na Saxonia.
A sua presença não tinha sido bem acolhida, nem pelos principes, nem
pelos clerigos mais zelosos dos seus deveres, nem pelas pessoas do povo
mais bem intencionadas. Os principes não gostavam d’elle pelo facto de
extrair do povo tanta somma de dinheiro e mandal-o todo para o papa;
estava empobrecendo o paiz; e alguns d’elles não lhe deram licença para
entrar nos seus territorios senão depois d’elle prometter que lhes dava
uma parte do que adquirisse.

A classe mais escolhida do clero paroquial não gostava d’elle pelo facto
de, por onde quer que elle passasse, o povo se tornar peior; vendia por
sete ducados o direito de assassinar um inimigo; aquelles que desejavam
roubar uma egreja eram perdoados se pagassem nove ducados; e o assassinio
de pae, mãe, irmão ou irmã custava apenas quatro ducados. Os homens e
mulheres que compravam estas indulgencias queriam, como é natural, tirar
algum lucro de aquillo que lhes custara o seu dinheiro, e por isso o
crime abundava onde quer que o vendedor do perdão apparecesse.

As pessoas amigas do socego tambem lhe eram adversas, pelo facto do
tumulto e dos escandalos a que a sua presença dava origem. Enviava
adeante de si homens extravagantemente vestidos, que fixavam annuncios
pelas paredes, e que apregoavam pelas ruas e pelas estradas a sua proxima
chegada, encarecendo a excellencia das cedulas de perdão que elle trazia
á venda. Eis algumas d’estas proclamações: «O perdão torna aquelles que
o comprarem mais limpos do que o baptismo, mais puros do que Adão no
seu estado de innocencia no paraiso»; «Assim que o dinheiro tilintar no
fundo do cofre, o comprador fica perdoado, e livre de todos os peccados».
Em seguida a estes charlatães, apparecia o vendedor do perdão e o seu
ajudante, n’uma pesada carroça, que era conduzida para o meio da praça
do mercado. Tetzel, tendo de um lado uma gaiola de ferro de cujas grades
pendiam os celebres papelinhos, e do outro um cofre em que o dinheiro era
lançado, offerecia ao publico a sua mercadoria, á maneira dos vendedores
de elixires que costumam apparecer pelas feiras.

Luthero não o perdia de vista desde havia muito tempo, e a sua alma justa
sentia-se indignada com o facto dos bispos, apezar de todas as suas
cartas e protestos, permittirem que elle andasse de diocese em diocese.
Não obstante haver prégado contra Tetzel e contra as indulgencias, o
traficante do perdão ia-se approximando. Tetzel chegou, por fim, a
Jüterbogk, perto de Wittenberg, e Luthero, que já se havia tornado famoso
como prégador e como professor da universidade, não poude conter-se por
mais tempo. Escreveu noventa e nove theses contra as indulgencias, e
pregou-as na porta da egreja: declarava elle, n’essas suas proposições,
que, se havia na Egreja logar para Tetzel e para os seus bilhetes de
perdão, não o haveria para elle, Luthero, nem para as idéas que elle
tinha relativamente ao peccado e ao modo como Deus concede o perdão.
Roma e as indulgencias estavam produzindo uma forte indignação em toda a
Allemanha. Bastaria uma faulha para ateiar o incendio; foram as theses
que o ateiaram, dando principio á Reforma.

=As indulgencias, e as theses que Luthero escreveu contra ellas.=—As
indulgencias que Luthero denunciou não constituiam uma coisa nova na
Egreja, e, posto que Luthero não o imaginasse, formavam um elemento
tão preponderante da vida exterior da Egreja n’aquella epoca que seria
dificil censural-as sem ir de encontro a muitas outras coisas. A Egreja
da Edade Media preoccupava-se muito com a representação visivel dos
factos e forças espirituaes, e tornou-se um caso vulgarissimo dar tanta
importancia a essa manifestação externa que se chegava a perder de vista
o verdadeiro sentido espiritual, e d’esta fórma muitas e excellentes
verdades evangelicas se acharam envolvidas por uma espessa camada
de formulas estereis que não permittiam que se desenvolvesse a vida
espiritual.

É uma verdade evangelica que quando um homem se sente triste por causa
dos seus peccados ha de mostrar a sua tristeza d’este ou d’aquelle modo;
o verdadeiro arrependimento torna-se sempre manifesto. A Egreja da Edade
Media pegou n’este axioma e incrustou-lhe a idéa de que o arrependimento
deve manifestar-se sempre em certos e determinados modos prescriptos pela
Egreja; e esses meios exteriores de mostrar arrependimento, taes como, o
dizer um grande numero de rezas, o jejuar em certos dias, ou o praticar
outras penitencias mais ou menos dolorosas, vieram a ser consideradas
como o verdadeiro arrependimento e a serem chamados por esse nome.

No decurso do tempo, quando a Egreja se tornou mais corrupta, ficou
estabelecido que o pagamento de umas determinadas sommas de dinheiro
dispensasse os signaes exteriores do arrependimento, comtanto que o
peccador penitente se sentisse compungido no seu coração por haver
peccado. Quando a Egreja attingiu um estado ainda peior, decidiu-se,
como coisa assente, que o desembolso do dinheiro alcançaria o perdão—o
perdão de Deus—tanto dos peccados commettidos, como de aquelles que
se commettessem depois. Foi de ahi que proveiu o indigno trafico das
indulgencias. Os papas e os seus dependentes acharam esta doutrina muito
lucrativa, e, como foi abertamente proclamado, diligenciaram extrair
todo o dinheiro que lhes fosse possivel «dos peccados dos allemães». A
indulgencia contra a qual Luthero protestou era a quinta das que nos
ultimos dezesete annos tinham sido publicadas.

As noventa e nove theses de Luthero constituem um discurso encadeado
contra a doutrina e pratica das indulgencias. E torna evidentes estas
tres coisas: (1) É, de algum modo, digna de approvação a indulgencia
quando significa simplesmente um dos muitos meios de proclamar o perdão
do peccado, _concedido por Deus_; mas uma tal proclamação deve ser sempre
gratuita. (2) Os signaes exteriores do arrependimento não equivalem
á dôr intima que se sente por haver peccado, isto é, ao verdadeiro
arrependimento, e a auctorisação para deixar de os pôr em pratica não
pode, de maneira alguma, garantir que Deus tenha realmente perdoado.
(3) Qualquer cristão que se sinta verdadeiramente arrependido recebe um
pleno perdão, e é participante de todas as riquezas de Christo, por um
dom directo de Deus, sem ser necessaria uma carta de indulgencia ou outra
intervenção humana. E, n’um sermão que publicou para explicar melhor
as suas theses, declara que o arrependimento consiste na contricção,
na confissão e na absolvição, e que a mais importante das tres coisas
é a contricção. Se a dôr, ou contricção, fôr verdadeira, sincera,
seguir-se-lhe-hão naturalmente a confissão e a absolvição. Assim, para
Luthero, a coisa essencial é o facto intimo, espiritual, da dôr produzida
pelo sentimento do peccado; a manifestação do pezar é uma coisa boa,
mas para o que Deus olha é para o estado espiritual, e não para a
exteriorisação d’esse estado.

=As theses de Luthero não atacavam sómente as indulgencias.=—Luthero, nas
suas theses e no seu sermão, declarou que os factos intimos, espirituaes,
experimentados pelo homem, eram de um infinito valor, comparados com a
expressão d’esses factos mediante formulas esteriotypadas que a Egreja
reconhecia; e tornou, outrosim, bem claro que no tocante a um tão solemne
assumpto como é o perdão dos peccados o homem podia ir ter directamente
com Deus, sem qualquer mediação humana. Dizendo isto, fez muito mais do
que atacar as indulgencias; protestou contra as mais enraizadas noções da
Egreja medieval.

A sua opinião tem sido partilhada por muitos christãos desde o dia
de Pentecoste, e atravez de todas as epocas de superstição homens e
mulheres, cheios de confiança em Christo, se teem dirigido humildemente
a Deus, rogando-lhe o perdão. Foi-lhes concedido esse perdão que
solicitavam, e a sua simples experiencia christã foi cantada nos
grandiosos e velhos hymnos da egreja medieval; encontrou expressão nas
orações da Egreja; constituiu a alma da prégação evangelica da Egreja,
e agitou as multidões nos muitos despertamentos da Edade Media. Como
quer que fosse, porém, esses piedosos prégadores e auctores de hymnos
não viram quão inteiramente essa sua preciosa experiencia era opposta ao
maquinismo ecclesiastico do seu tempo. A Egreja accumulava de tal fórma
as coisas exteriores, que a vida espiritual ficou sepultada debaixo
d’ellas, e na linguagem corrente da epoca havia-se mudado a verdadeira
significação dos termos «espiritual» e «santo». Dizia-se que um homem
era «espiritual» quando havia sido ordenado para officiar na egreja; o
dinheiro tornava-se «espiritual» quando era dado á egreja; a um dominio,
com as suas estradas, bosques e campos, chamava-se «espiritual», ou
«santo» se pertencia a um bispo ou a um abbade.

E depois a egreja, que, com as suas idéas, com os seus actos, com a
sua linguagem, tanto tinha aviltado as coisas espirituaes, e tão cega
tinha sido para ellas, interpozera-se entre Deus e o homem, proclamando
que ninguem se podia chegar a Deus senão por meio d’ella, e que Deus
não poderia jámais fallar ao coração do homem senão egualmente por seu
intermedio. A confissão dos peccados tinha de ser feita ao padre, e o
perdão era concedido mediante a absolvição. Luthero havia fallado contra
tudo isto n’aquellas suas theses, mas elle proprio quasi que o não
sabia. A sua devota natureza havia-se revoltado perante a profanidade de
se suppôr e se dizer que se podia obter de Deus o perdão dos peccados
comprando um papel, e que o peccado e a ira de Deus eram coisas que
desappareciam mediante o desembolso de uma certa quantia. Ao dar saida á
sua indignação, referia-se apenas ao sacrilegio que via deante de si; e,
comtudo, atacou, não simplesmente a peior parte de um systema mau, mas o
systema todo. A Reforma tinha começado.

=A historia de Luthero, desde o principio.=—O homem que se oppoz a Tetzel
tinha, apoz um longo e encarniçado combate, chegado ao conhecimento do
que o perdão dos peccados significa realmente. Recorrera a todos os meios
que a Egreja poz ao dispôr dos espiritos attribulados, mas nenhum d’elles
lhe proporcionara conforto: por fim, dirigiu-se elle proprio a Deus, e
achou a paz que procurava. Sabia por experiencia propria que o perdão
de Deus não se alcança mediante a compra de um bilhete estampado com as
armas pontificias, e lavrou o seu protesto em nome de todos aquelles que,
em todos os seculos da egreja, sentindo-se vergados ao peso do peccado,
tinham encontrado em Deus a paz e o perdão. A historia espiritual d’elle
torna isto bem evidente, como vamos ver.

Luthero nasceu em Eisleben, em 10 de Novembro de 1483. «Sou camponez,
e filho de camponez», costumava elle dizer. O pae era mineiro, e a mãe
uma camponeza com fama de muita austeridade. Teve uma infancia muito
pouco risonha, e, apezar do modo prazenteiro que constituia um dos seus
caracteristicos, notava-se-lhe de quando em quando um certo ar triste
que elle proprio attribuia ao que tinha soffrido nos primeiros annos
da sua vida. O pae tinha resolvido fazer d’elle um homem. Como todos
os homens de trabalho, tinha em desprezo os indolentes frades, e toda
a sua idéa era que o filho fosse advogado; queria que elle se formasse
em direito, conhecesse todas as engrenagens da lei, d’esse terrivel
tyranno do camponez allemão, que o tratava como a um servo, quasi como
a um proscripto. Luthero frequentou, pois, as escolas de Mansfeld,
de Magdeburgo, de Eisenach. A vida do estudante pobre era, n’aquelle
tempo, bem custosa. Passou fome, levou pancadas, não houve mal que não
experimentasse. Para ter um bocado de pão era-lhe, muitas vezes, forçoso
cantar pelas ruas. Foi em Eisenach que o attingiu o primeiro lampejo da
caridade humana, quando Frau Cotta, attraida pela triste solidão em que
elle vivia e pela sua melodiosa voz, o introduziu em sua casa e lhe fez
todo o bem que poude. De Eisenach foi para Erfurt, para a Universidade,
onde não tardou a fazer rapidos progressos. Aprendeu muita coisa, além
da jurisprudencia. Leu Cicero, Platão, Terencio e Tito Livio. Leu as
grandes obras theologicas da egreja medieval; e, acima de tudo, leu e
tornou a ler, até os saber de cór, os escriptos do bravo franciscano
inglez Guilherme de Occam, que resistiu denodadamente aos papas no seculo
quatorze, e que ensinou Wycliffe e Huss a fazerem o mesmo. Luthero
chamava-lhe com todo o carinho: «Occam, o meu querido mestre». Em 1503
recebeu o grau de bacharel, e em 1505 o de doutor. Tornou-se notado
pela sua viva intelligencia e pela sua pasmosa eloquencia. Estava,
pois, no caminho da posição em que o pae desejava vêl-o: a de um grande
jurisconsulto.

Durante todo esse tempo, comtudo, a sua consciencia não tinha estado
ociosa; os seus peccados atormentavam-n’o; a ira de Deus tinha caido
pesadamente sobre elle. O amor de Deus era uma coisa que para elle não
existia. O pae terrestre tinha-o tratado sempre com severidade, com
dureza, e no Pae celestial via apenas um senhor que exigia d’elle esta e
aquella coisa. No dia 17 de Julho de 1505, tendo elle 21 annos, os seus
sentimentos religiosos poderam mais do que elle; entrou para o convento
dos agostinhos de Erfurt, fugindo á sociedade de parentes e amigos, e
desprezando todas as honrarias humanas. O seu Platão e o seu Virgilio, de
que se fez acompanhar, ficaram sendo as unicas recordações da sua vida
passada.

No convento poz-se a trabalhar para achar o caminho da salvação.
Leu obras theologicas, jejuou, orou, submetteu-se a toda a sorte de
privações, mas nunca logrou encontrar a paz. Não tardou em adquirir
uma Biblia _completa_, coisa para elle inteiramente nova, e poz-se a
estudal-a com todo o afan; o terror do peccado estava, porém, sobre
elle, e não lhe deixava ver o Evangelho. Foi ter com o vigario geral da
ordem, Staupitz, que era um homem muito fervoroso, e este encaminhou-o
para Agostinho e para os mysticos allemães, em que encontrou um grande
auxilio. Aquelle mostrou-lhe o que era o peccado, e o que era a graça
soberana; e estes convenceram-n’o de que a verdadeira religião era a
religião do coração. No emtanto continuava a faltar-lhe a paz.

No meio d’este conflicto, foi-lhe confiado um encargo especial. Frederico
o magnanimo, eleitor da Saxonia, e o mais eminente dos principes
allemães, fundou uma nova universidade em Wittenberg, e pediu a Staupitz
que indicasse os respectivos lentes. Luthero foi então nomeado professor
de philosophia, e começou logo a fazer prelecções. Em 1512 doutorou-se
em theologia biblica, versando as suas conferencias sobre os Psalmos e
as Epistolas de S. Paulo aos Romanos e aos Galatas. Como estudo, leu os
Mysticos, os _Sermões_ de Teulez, e aquelle pequeno mas importante livro,
_A Theologia Allemã_. Chegou, porém, a crise da sua vida. Em 1511 foi
enviado a Roma para tratar de negocios. Á ida era um theologo medieval; á
volta era um protestante; á ida cria na justificação pelas obras, á volta
cria na justificação pela fé.

Roma era, havia muitos seculos, um amontoado de corrupção moral, e
Luthero descobriu isso immediatamente. Entrou n’aquella cidade como um
judeu entraria em Jerusalem. Elle proprio nos conta que ao avistal-a caiu
de joelhos e exclamou: «Eu te saudo, cidade santa, tres vezes santificada
pelo sangue dos martyres que se tem derramado em ti». Viu que os monges
e padres eram homens maus, que faziam zombaria dos serviços religiosos
em que tomavam parte. Viu que havia no povo muita deslealdade e cubiça,
e que até o papa pouco melhor era do que um pagão. Luthero havia-se
dirigido a Roma com a idéa de achar na cidade santa, como elle lhe
chamava lá na Allemanha, algum meio seguro de promover a sua salvação, e,
caso estranho, foi o proprio Christo que elle achou. Foi em Roma, no meio
da corrupção e da blasphemia, que de subito se compenetrou de que não
havia outro meio de salvação senão procurar Christo e entregar tudo ao
cuidado d’Elle; de que o perdão é gratuitamente concedido por Deus e dá
principio á vida christã, em vez de ser penosamente ganho no fim della.

Ao regressar a Wittenberg, era outro homem. Era já afamado como prégador;
mas depois da sua visita a Roma prégava como nenhum outro poderia
prégar. Tornou-se a primeira figura da universidade, e tinha como amigos
Staupitz, o seu geral, e Frederico, o seu principe. Foi então que
appareceram as famosas indulgencias.

=Partidarios e adversarios de Luthero.=—Ao principio parecia que toda a
Allemanha estava ao lado de Luthero. O trafico das indulgencias tinha
sido tão escandaloso que as pessoas de bons sentimentos e todos os
patriotas allemães se sentiam indignados. O golpe, porém, que Luthero
vibrara ás indulgencias havia attingido outros pontos, e não tardaram a
levantar-se antagonistas. Conrado Wimpina em Frankfort, Hogstraten em
Colonia, Silvestre Prierias em Roma, e, acima de todos, João Eck, um seu
antigo condiscipulo, em Ingolstadt, todos elles atacaram as theses, e
descobriram heresias nas mesmas.

Resultou de ahi que Luthero foi citado a comparecer, em Roma, na
presença do papa; mas o eleitor da Saxonia conseguiu uma modificação,
recebendo, por fim, Luthero ordem para partir para Augsburgo, a fim de
ser interrogado pelo cardeal Caetano, legado do papa na dieta allemã.
O papa queria evitar uma desintelligencia com o eleitor da Saxonia, e
recommendou a Caetano que se mostrasse conciliativo. Luthero foi, mas a
entrevista não teve bom exito. O cardeal começou por reprehender Luthero,
mas acabou por se sentir dominado por um certo mêdo d’elle. «Não posso
discutir mais com este animal», disse elle; «tem um olhar maligno, e
povoam-lhe o cerebro uns pensamentos estupendos». Luthero, por seu
lado, dizia abertamente que o legado era tão competente para julgar de
assumptos espirituaes como um burro para tocar harpa.

Ao deixar Augsburgo, levava sobre si a condemnação, mas havia appellado
para o proprio papa, rogando-lhe que se informasse melhor do seu caso.
O papa não queria indispôr-se com a Allemanha, porque a parte mais
importante da nação parecia estar a favor de Luthero, e enviou o cardeal
Miltitz a promover a paz. Este não chamou o moço frade á sua presença,
mas teve com elle uma conversação amigavel em casa de Spalatin, o
capellão do eleitor. Antes d’esta entrevista Luthero havia appellado para
um concilio geral. O cardeal Miltitz declarou estar em desaccordo com
Tetzel, reprovou as indulgencias, e concordou com muitas das asserções de
Luthero; mas lembrou-lhe que não tinha sido bastante respeitoso para com
o papa, e que estava enfraquecendo o poder e a auctoridade da egreja. O
seu argumento era, em summa, o seguinte: «O senhor pode ter razão; mas
para que ha de ser rude? Escreva ao papa, e peça-lhe desculpa». Luthero
prometteu fazel-o, e entre elle e Miltitz ficou estabelecido um convenio,
que, como elle depois referiu ao eleitor, continha duas clausulas:

    1. Ambas as partes cessariam de prégar ou escrever sobre as
    materias em controversia.

    2. Miltitz informaria o papa do exacto estado dos negocios, e o
    papa nomearia para as necessarias investigações uma commissão
    de theologos illustrados.

No entretanto, Luthero escreveu ao papa, confessando espontaneamente que
a auctoridade da egreja era superior a tudo, e que a coisa alguma, quer
na terra quer no céu, se devia dar a prioridade, com excepção de Jesus
Christo, que tudo governa. Isto foi em Março de 1519.

=A disputa de Leipzig.=—Luthero tinha promettido conservar-se quieto
se os seus adversarios se conservassem quietos—era este o seu ajuste
com o cardeal Miltitz; os seus inimigos, porém, não se conservaram
quietos, e Luthero considerou-se livre para os atacar. O indiscreto
amigo da egreja era João Eck. Desafiou Carlstadt, amigo de Luthero,
para uma discussão publica, e no entretanto publicou treze theses que
atacavam as noventa e cinco de Luthero. Luthero replicou promptamente,
e a polemica publica entre Carlstadt e Eck foi seguida de uma outra
entre Eck e Luthero. N’esta disputa de Leipzig a controversia attingiu
um grau mais elevado. Não foi já uma discussão theologica, mas, sim, a
opposição de duas series de principios em conflicto, affectando todo o
circulo da vida ecclesiastica. Aqui, pela primeira vez, a christandade
allemã desprendeu-se da christandade romana, insistindo no sacerdocio de
todos os crentes e no direito de cada christão julgar em todas as coisas
segundo a sua consciencia, esclarecido pela palavra de Deus e pelo Seu
Santo Espirito.

Luthero e Eck começaram com as indulgencias e com as penitencias, mas o
debate em breve mudou para a auctoridade da Egreja romana e do papa. Eck
mantinha a suprema auctoridade do bispo de Roma, como successor de S.
Pedro e Vigario geral de Christo. Luthero negou a superioridade da egreja
romana sobre as outras egrejas, e baseou a sua negativa no testemunho
da historia de onze seculos, no dos decretos de Nicéa, no dos mais
santos concilios, e no da Escriptura Sagrada. Isto originou uma grande
contestação. «Sem papa não ha egreja», exclamou Eck. «A egreja grega tem
existido sem papa, e vós sois o primeiro a negar-lhe o nome de Egreja»
respondeu Luthero. «Athanasio, Basilio e os dois Gregorios estavam fóra
da egreja? O papa tem mais necessidade da egreja do que a egreja do
papa». «Sois tão mau como Wycliffe e Huss», disse Eck, «e elles foram
condemnados em Constança». «Nem todas as opiniões de Huss eram erroneas»
disse Luthero. «Se recusaes apoiar as decisões dos concilios, eu recuso
discutir comvosco», disse Eck, e por aqui se ficou. Immediatamente
depois, porém, Luthero completou e publicou a sua argumentação. Declara,
pela primeira vez, o que pensa da egreja. Não nega a primazia do papa,
mas o que não admitte é que o papa volte as costas á egreja. Se o papa se
mantiver no seu logar de servo da egreja, de «servo dos servos de Deus»,
elle, Luthero, dar-lhe-ha toda a honra. Mas a egreja é a communhão dos
fieis—é constituida pelos verdadeiros crentes, pelos eleitos. Á egreja
nunca falta o Espirito Santo, e aos papas e concilios falta muitas vezes.
Esta egreja, que tem sempre o Espirito Santo, é invisivel; e, portanto,
um leigo que possua as Escripturas e se guie por ellas é mais digno de
credito do que um papa ou um concilio que o não faça.

Esta disputa de Leipzig produziu importantissimos resultados. De um
lado, Eck e os demais adversarios eram de opinião que Luthero devia ser
violentamente posto fóra de combate, e insistiram n’uma bulla papal que o
condemnasse; e do outro, Luthero viu, pela primeira vez, até onde tinha
chegado com a sua opposição ás indulgencias. Viu que a sua theologia
agostiniana, com o conhecimento que ella proporcionava da odiosidade
moral do peccado, e da necessidade da soberana graça de Deus, feria, em
todas as suas peripecias, a vida ceremonial da edade media: mostrava
que era impossivel a qualquer homem o ter uma vida perfeitamente pura e
santa, e, por consequencia, não podia haver santos, e o culto dado aos
santos era um absurdo; tornava inuteis as reliquias e as peregrinações,
assim como a vida monastica, com as suas vigilias, jejuns e flagellações.
Todas estas coisas eram, em vez de auxilios, obstaculos á verdadeira vida
religiosa. Seguia-se tambem que, não podendo haver mediador entre Deus e
os homens, com excepção de Jesus Christo, a mediação do papa para nada
servia.

A disputa de Leipzig convenceu Luthero de que se havia separado de Roma,
e a Allemanha convenceu-se tambem d’isso, chegando o seu enthusiasmo a
um ponto extremo. O povo das cidades manifestou a sua sympathia pelo
arrojado frade. Ulrico von Hutten e os outros homens de letras viram
n’elle, desde então, o seu guia. Francisco von Sickingen e os outros
cavalleiros livres viram n’elle, desde então, um poderoso alliado. Os
pobres e sobrecarregados camponezes alimentavam a esperança de que elle
os libertasse das miserrimas circumstancias em que se encontravam.
Luthero tornou-se, por assim dizer, o chefe do povo allemão. Isto teve
logar em 1519.

=A bulla do papa e a queima da mesma.=—Eck e os demais adversarios
de Luthero reconheciam que alguma coisa se devia pôr em pratica para
reduzir ao silencio o audacioso monge, e instaram com o papa para que
publicasse uma bulla condemnando as suas opiniões. Luthero, por seu lado,
não estava ocioso. Sabia que se tinha desligado de Roma, e, com a sua
habitual actividade e coragem, tornou esse facto conhecido, e pediu ao
povo allemão que o ajudasse. A Allemanha era um paiz pobre, e, comtudo,
mandava todos os annos uma consideravel quantia de dinheiro para Roma.

N’aquelles dias a egreja era um grande imperio ecclesiastico, tendo
Roma como capital. Toda a Europa estava dividida em bispados, e o clero
era muito rico. Possuia extensos dominios, que arrendava; tinha tambem
direito aos dizimos (a decima parte) de todas as outras propriedades;
além d’isso, fazia dinheiro com os baptismos, com os casamentos, com as
absolvições, com a assistencia espiritual aos enfermos, com os enterros,
e com as missas. As varias ordens de frades tinham-se tambem tornado
muito opulentas, sendo a sua maior riqueza constituida por terras que
lhes haviam sido doadas ou legadas em testamento por pessoas devotas.
Em quasi todos os paizes da Europa se haviam promulgado leis com o fim
de impedir ou limitar estas doações, mas essas leis tinham sido tão
inefficazes que ao tempo da Reforma as ordens religiosas eram senhoras
de quasi um terço do territorio europeu. E, apezar de ricas, andavam
continuamente esmolando. Parte dos seus bens ia todos os annos para
Roma. Quando um bispado vagava, as receitas eram recolhidas pelo papa,
que demorava sempre a nomeação de outro bispo. O papa diligenciava
frequentemente que os bispos ou abbades fossem italianos, pois que estes
ficavam residindo em Roma, e o dinheiro era-lhes remettido para lá.
Quando um novo bispo era nomeado, tinha de mandar ao papa o rendimento
do primeiro anno (_os annatas_). Todo este dinheiro que era exportado
para Roma fazia falta nos paizes de onde sahia; e no tempo de Luthero
ainda estava extorquindo mais, por meio das indulgencias. Luthero, no
seu opusculo _Á nobreza da nação allemã_ tornava tudo isto saliente, e
perguntava por quanto tempo se estaria disposto a tolerar similhante
coisa. Referia aos nobres que a doutrina romanista dos dois estados
distinctos, um espiritual, incluindo o papa, os bispos, os padres, os
frades e as freiras, e o outro temporal, constituido por todas as outras
individualidades, era um muro levantado pelos romanistas para defenderem
as oppressões da egreja. Dizia-lhes, outrosim, que _todos_ os christãos
são espirituaes, e que todos deviam ser obedientes ao poder secular. E
perguntava, finalmente, como é que os allemães consentiam que do seu
depauperado paiz fossem enviados annualmente para Roma 300.000 florins.

Escreveu tambem outro tratado, _O captiveiro babylonico da egreja de
Christo_, para mostrar que elle não desejava destruir mas purificar a
verdadeira egreja de Christo. O titulo é bem explicito. Luthero opinava
que o papa e os romanistas tinham conduzido a egreja a um captiveiro,
muito comparavel ao dos judeus em Babylonia. E dá exemplos d’isso. O
Senhor disse por occasião da ultima ceia, quando deu o calix aos Seus
discipulos, «Bebei d’elle todos», mas os romanistas dizem «Não bebaes
d’elle se não fordes padres». E parecia-lhe que todos os verdadeiros
christãos tinham o dever de libertar a egreja da sua escravidão. E
concluia de um modo caracteristico. «Consta-me que estão sendo preparadas
bullas e outras coisas papistas, em que me é exigida uma retractação, sob
pena de ser proclamado hereje. Se é verdade, desejo que este livrinho
fique constituindo uma parte da minha futura retractação».

Foram enviados milhares d’estes livros para todos os pontos da Allemanha,
e o povo ficou á espera da bulla. Esta veiu, por fim, em 15 de Julho de
1520. Accusava Luthero de sustentar as opiniões de Huss, e condemnava-o.
Eck levou-a para Leipzig em Outubro. Foi affixada em varias cidades
allemãs, e em geral os cidadãos e os estudantes arrancavam-n’a. Chegou,
por fim, ás mãos de Luthero. Respondeu ás suas accusações n’um pamphleto,
em que lhe chamava a execravel bulla do anti-christo, e por fim annunciou
em Wittenberg que ia queimal-a. No dia 10 de Dezembro, á frente de um
cortejo de professores e estudantes, Luthero saiu da universidade e
dirigiu-se para o mercado. Um dos lentes accendeu a fogueira, e Luthero
lançou a bulla ás chammas. Estava consummada a affronta. Foi tambem
queimado um exemplar da lei canonica, pois que a Allemanha ia de ali
em deante ser governada pelas leis do paiz, e não pelas leis de Roma.
A noticia espalhou-se por toda a Allemanha, dando logar a um enorme
regozijo. Roma tinha arremessado o seu ultimo dardo; só o imperador é que
tinha poder agora para reprimir Luthero.

=O imperador e a Reforma.=—O imperador era, por esse tempo, Carlos V.
Havia sido eleito em 1519, e ainda não tinha estado na Allemanha, nem
era tão poderoso como o seu titulo indicava. N’aquelles dias ainda
predominavam as idéas medievaes de governo, e Carlos V tinha resolvido
restabelecer o velho poder imperial com todos os seus attributos.

No principio da edade media os homens colhiam as suas idéas de governo
do velho imperio romano—não do imperio pagão de Augusto Cesar e dos seus
successores, mas do imperio christão de Constantino e de aquelles que
vieram apoz elle. Posto que aquelle velho imperio tivesse sido destruido
pelas invasões das selvaticas tribus teutonicas, depois da epoca das
conquistas ter passado os novos povos que habitavam a Europa adoptaram o
governo e as leis da nação que haviam derrubado.

Segundo os pensadores medievaes, o governo civil e a ordem social eram
coisas impossiveis quando todo o poder não estivesse concentrado n’um
foco e identificado n’uma só pessoa—o monarca universal; e quando todo
o governo ecclesiastico e communhão religiosa não obedecessem, da mesma
fórma, ao arbitrio de uma unica pessoa—o sacerdote universal. O monarca
universal era o imperador, que dominava _circa civilia_ como vigario, ou
representante, de Deus; e o sacerdote universal era o papa, que dominava
_circa sacra_, como vigario, ou representante, de Deus. Um dominava nos
corpos, o outro dominava nas almas, dos homens; e o dominio de ambos era
universal. Um tinha o poderio da espada, e o outro tinha o poderio das
chaves. Este sonho medieval ainda não se havia tornado em realidade,
até então; mas o sonho continuava, e a Europa, no alvorecer da Reforma,
estava sob o olhar cubiçoso de duas entidades: o imperador e o papa.

No fim do seculo quinze, Fernando, o Prudente, rei de Aragão, concebeu
o plano de, mediante um elaborado systema de enlaces matrimoniaes,
restituir ao imperio a sua primitiva grandeza. Tinha tres filhas. A mais
velha casou com o rei de Portugal, o que daria logar a que este paiz e
Hespanha ficassem constituindo um só reino. A segunda casou com Filippe
de Austria, chefe da casa de Hapsburgo, e por direito materno senhor
da Borgonha e dos Paizes Baixos. A terceira desposou Henrique VIII
de Inglaterra. Do primeiro d’estes consorcios nasceu Isabel, herdeira
do throno de Hespanha. Do segundo Carlos de Austria e de Borgonha. Do
terceiro Maria, rainha de Inglaterra. Carlos casou com sua prima Isabel,
e ficou, portanto, reinando em Hespanha, Austria, Borgonha e Paizes
Baixos. E mais tarde foi tambem imperador e rei de Italia.

Carlos V foi, pois, um imperador poderosissimo, como não tinha havido
outro durante muitos seculos; e a sua ambição era ver-se investido
da mesma auctoridade que tinham tido Carlos Magno e Otto I. Tinha os
olhos constantemente fitos no passado; e lá no seu intimo arquitectava
a maneira de restabelecer na Europa aquella unidade politica que
desapparecera quando começaram a organizar-se as nações modernas. Esta
velha unidade, porém, exigia, não sómente um imperio unido, como tambem
uma egreja intacta, e esse sonho de Carlos tornava-o intolerante para
com qualquer perturbador da paz da egreja, como Luthero era por elle
considerado. Posto que tivesse sido acclamado imperador, o seu imperio
não estava muito firme. Era poderoso, não por ser imperador, mas por
ter sob o seu dominio a Hespanha, a Borgonha, e a Austria; as luctas
intestinas de que a Allemanha era theatro, e as muitas questões que
surgiam, a que era necessario dar uma prompta solução, enfraqueciam-lhe
algum tanto o poder.

=O estado politico da Allemanha.=—A Allemanha, no tempo da Reforma, não
tinha uma unidade politica. Estava nominalmente unida sob o imperio, e
era governada pela Dieta; mas o poder, tanto do imperador como da Dieta,
era, praticamente, fraquissimo. O imperio era electivo, e desde o anno de
1356 a eleição havia estado nas mãos de sete principes-eleitores, tres
na região do Elba, e quatro na do Rheno. Na região do Elba eram o rei da
Bohemia, o Eleitor da Saxonia e o Eleitor de Brandenburgo; na do Rheno
eram o Conde Palatino do Rheno, e os arcebispos de Mayença, Trier e Köln.
As successivas concessões que os principes obtinham á custa das eleições
iam diminuindo o poder imperial.

Entre o imperador e o povo estava a Dieta, que era o grande conselho do
imperio, e se compunha de tres camaras, ou collegios: I Seis principes
eleitoraes, tres dos quaes leigos, e tres clerigos (não entrava o rei da
Bohemia); II Os principes, ou gran-barões, seculares e ecclesiasticos;
III Os representantes das cidades livres, que eram as que gozavam de
privilegios concedidos directamente pelo imperador. Como havia quasi
tantos principes clericaes como seculares, o poder que a egreja tinha
na Dieta era muito forte, e facilmente poderia ser empregado como
instrumento para abafar qualquer reforma religiosa. A Dieta, comtudo,
tinha pouca força no paiz. A Allemanha estava tão dividida que cada um
dos principes independentes podia fazer o que muito bem quizesse. As
cidades, formando ligas entre si, podiam offerecer uma certa resistencia
á tyrannia dos principes; mas os aldeãos, incapazes de similhante
combinação, eram acossados de todos os lados pela egreja, pelos principes
e pelos barões.

A situação dos camponezes allemães era, na verdade, pouco de invejar.
Houve tempo em que viveram desafogadamente, cultivando as suas terras,
mas os senhores feudaes foram, pouco a pouco, cerceando-lhes direitos,
chegando ao ponto de lhes prohibirem a entrada nos baldios, de não lhes
permitir que se abastecessem de lenha, que pescassem nos rios, etc.
Não tinham a quem pedir protecção, e não podiam contar com as leis. A
sua unica esperança estava na revolução, e sentiam um desejo ardente
de imitar os suissos, isto é, de se libertarem, de acabarem com o
feudalismo, de se tornarem proprietarios.

O joven imperador, quando pela primeira vez foi á Allemanha, deparou com
muitas questões graves que estavam á espera de solução; o povo estava
ancioso por um governo central, as cidades queriam que se pozesse termo
ás constantes contendas que havia entre os barões, os poderes, civil
e ecclesiastico, accusavam-se mutuamente, e, por ultimo, a questão de
Luthero continuava agitando os espiritos.

=Luthero e a dieta de Worms.=—A Dieta foi aberta por Carlos V em Janeiro
de 1521, e o nuncio do papa tratou logo de instar com os principes
reunidos em assembléa para que pozessem termo ás heresias de Luthero, não
sendo, na sua opinião, necessario que este fosse ouvido. Os principes,
porém, que tambem tinham as suas razões de queixa de Roma, declararam que
era uma injustiça, um acto indigno, condemnar um homem sem o ouvir e sem
elle estar presente. Por fim o imperador intimou Luthero a apresentar-se,
e forneceu-lhe um salvo-conducto. Um arauto foi, pois, procural-o da
parte do seu imperial amo, e em abril Luthero partiu para Worms. Ia
resolvido a não se retractar, posto que o animasse a convicção de não
voltar com vida. A Spalatin escreveu elle o seguinte: «Não tenho intenção
de fugir, nem de crear embaraços á Palavra; emquanto a graça de Christo
me sustiver, hei de confessar a verdade, não recuando mesmo deante da
morte». E a Melanchthon: «Se eu não voltar, se os meus inimigos me
assassinarem, continúa tu, de todo o coração te imploro, a ensinar e a
dar testemunho da verdade». Antes de deixar Wittenberg, havia preparado,
de collaboração com Lucas Cranach, «um bom livro para o povo», e que se
compunha de uma serie de gravuras em madeira representando contrastes
entre Christo e o papa, e tendo debaixo de cada uma a respectiva
explicação, n’um grande vigor de linguagem; n’uma pagina apparecia
Christo lavando os pés aos discipulos, n’outra o papa estendendo o pé
para que lh’o beijassem; a Christo levando a cruz contrapunha-se o papa
levado em procissão pelas ruas de Roma, aos hombros dos homens; a Christo
expulsando os vendilhões do templo, o papa vendendo indulgencias, e tendo
junto de si um monte de dinheiro.

Os amigos de Luthero consideravam-n’o perdido. Quando lhe chegou aos
ouvidos o boato de que o duque Jorge da Saxonia lhe preparava uma
emboscada, a resposta que deu foi: «Não deixaria de me pôr a caminho,
ainda mesmo que houvesse uma chuva de duques da Saxonia». E quando lhe
disseram que o diabo se havia de apoderar d’elle por qualquer fórma,
replicou: «Não deixaria de comparecer em Worms, ainda mesmo que lá
houvesse tantos demonios como telhas nos telhados». A sua jornada teve
o aspecto de uma marcha triumphal; o povo vinha, em grandes multidões,
ao seu encontro, soltando enthusiasticos vivas. Chegou, por fim a Worms,
e logo no dia immediato foi apresentado á Dieta. O imperador tinha a
seu lado o arquiduque de Austria, seu irmão, e a assembléa compunha-se
de seis eleitores, vinte e oito duques, trinta prelados, e um grande
numero de outras personagens de menor cathegoria, ao todo uns duzentos
principes. Era deante de toda aquella gente que Luthero tinha de
confessar a sua fé em Christo. Pouco depois d’elle entrar, foi collocada
na sua frente uma grande rima de livros, e perguntaram-lhe se os havia
escripto, e se estava disposto a retractar-se. Pediu algum tempo para
reflectir, e, sendo-lhe concedido o prazo de vinte e quatro horas, foi
reconduzido á casa onde se hospedára.

Quando, no dia seguinte, se dirigiu de novo á Dieta, teve de abrir
caminho atravez de uma grande multidão de gente, que o animava e lhe
recommendava firmeza; e, ao entrar na sala, o velho general Frunsberg
bateu-lhe no hombro e disse-lhe: «Nada receies, fradinho!» Na vespera
havia-se mostrado um tanto confuso, havia denotado uma certa timidez,
mas n’aquelle segundo dia estava de posse da sua coragem habitual. O
chanceller do arcebispo de Trier começou a interrogal-o em nome do
imperador. «Reconheceis estes livros como vossos, e estaes disposto a
retirar o que escrevestes?» Luthero respondeu que n’alguns dos seus
livros se encontravam coisas que haviam merecido a approvação até dos
proprios adversarios, e que não se podia esperar d’elle uma retractação
no tocante a essas coisas; havia tambem protestado contra manifestos
abusos, e seria, decerto, um hypocrita e um cobarde se n’aquella occasião
affirmasse ser falso o que elle e todos os homens de bem sabiam que era
verdadeiro; n’uma parte, finalmente, do que havia escripto, alvejava
os seus antagonistas, e, como o fizera um pouco precipitadamente, era
possivel que n’alguns pontos não tivesse razão, estando, portanto,
prompto a desdizer qualquer asseveração cuja injustiça lhe fosse provada.
«Esse vosso arrazoado é inopportuno», replicou Eck; «o que o imperador
quer é uma resposta definitiva. Estaes prompto a retirar o que dissestes
contra a Egreja, e especialmente o que disseste contra o concilio de
Constança?» «Quereis uma resposta definitiva?» disse Luthero. «Vou
dar-vol-a, pois. (_Vou dar uma resposta sem pontas nem dentes, diz o
original_). Não me retracto de coisa alguma, a não ser que me convençam
pela Escriptura ou por meio de argumentos irrefutaveis. É claro como a
luz do dia que tanto papas como concilios teem algumas vezes errado. A
minha consciencia tem de submetter-se á Palavra de Deus; proceder contra
a consciencia é impio e perigoso; e, portanto, não posso nem quero
retractar-me. Assim Deus me ajude. Amen.» O representante da lei chegou a
crer que os seus ouvidos o tivessem enganado. «Affirmaes, realmente, que
um concilio é susceptivel de errar?», perguntou elle, por fim. «Affirmo»,
retorquiu Luthero, «e affirmal-o-hei sempre. Assim Deus me ajude. Amen».
Aquella sua firmeza tornou furiosos os hespanhoes e os italianos; queriam
que o imperador lhe cassasse o salvo-conducto e o condemnasse á morte,
sem mais preambulos. Os allemães, reconhecendo que elle, ao mesmo tempo
que combatia pela consciencia, combatia tambem pela Allemanha, pozeram-se
do seu lado. Conseguiram que o imperador addiasse a sentença, e instaram
depois com Luthero para que se retractasse, sendo, porém, baldados todos
os seus esforços.

Por fim o imperador tomou uma resolução. Não querendo tomar o partido
de Luthero e da Allemanha, para não quebrar relações com o papa, não
desejava, comtudo, annullar o salvo-conducto, faltando assim á sua
palavra. Ordenou, pois, a Luthero que se retirasse, mas fez publicar um
edicto, condemnando os livros do Reformador e collocando-o a elle proprio
sob o anathema do imperio. Ora, ser collocado sob o anathema do imperio
era ser collocado n’uma gravissima situação. De ali em deante ninguem
podia dar de comer ou de beber a Luthero, nem recebel-o em sua casa:
quem quer que o encontrasse era obrigado a deitar-lhe a mão e entregal-o
aos guardas do imperador, que ficavam com plenos poderes para o matarem.
Tudo isto, porém, só podia ter logar depois de expirado o prazo que o
salvo-conducto mencionava.

=Luthero em Wartburgo.=—Os amigos de Luthero foram de parecer que, depois
do edicto de Worms, a vida d’elle corria perigo, até mesmo em Wittenberg;
e o eleitor da Saxonia encarregou uns tantos soldados de o irem esperar
ao caminho, apoderarem-se d’elle, e levarem-n’o para o castello de
Wartburgo, que ficava perto de Eisenach, e onde elle poderia esconder-se,
sem lhe succeder mal algum. Nenhum dos seus amigos sabia, ao principio,
onde elle se encontrava. Emquanto esteve em Wartburgo, submetteu-se a
uma vida de isolamento, e para maior precaução deixou crescer a barba,
vestiu-se de cavalleiro, e adoptou o nome de Junker Jorge. Permaneceu dez
mezes n’aquelle seu esconderijo.

Foi lá que começou a mais importante das suas obras, a traducção da
Biblia, dos textos originaes grego e hebraico. Conseguiu tornar conhecido
dos amigos o seu paradeiro, e Melanchthon mandava-lhe de Wittenberg todos
os livros de que elle necessitava. Começou com o Novo Testamento, e
traduziu-o quasi todo sem auxilio alheio. A ajudal-o no Velho Testamento
teve o que um dos seus biographos chama «um synhedrio privado, composto
de homens eruditos». Estes homens reuniam-se uma vez por semana em
casa de Luthero, para confronto de notas e mutuo auxilio nas passagens
difficeis.

Luthero estava empenhado em fazer da sua traducção da Biblia um livro
para o povo allemão. Não quiz introduzir n’ella phrases finas, phrases
palacianas; desejava tornal-a um livro que fosse comprehendido por todos,
homens, mulheres e creanças, e dedicou a esse trabalho todo o seu talento
e actividade. Ainda se conservam alguns dos seus manuscriptos, em que
se vê o grande numero de emendas por que muitas das orações passaram,
chegando algumas a serem emendadas quinze vezes. «Estamos trabalhando com
todas as nossas forças», escreveu elle em certa occasião, «para que os
prophetas fallem na nossa lingua. Que grande e difficil tarefa é esta,
de fazer com que os escriptores hebreus se exprimam em allemão! Elles
offerecem uma enorme resistencia. Não querem trocar o seu hebreu por uma
lingua barbara».

A tarefa tornava-se ainda mais difficultosa pela razão de quasi se poder
dizer que não existia a lingua allemã. O allemão antes do tempo de
Luthero, assim como o inglez antes do tempo de Chaucer, era um aggregado
de dialectos; e, de facto, a Biblia de Luthero é que fez a lingua allemã,
pois que tem servido desde então como que de modelo, e o seu estylo tem
sido imitado por todos os auctores allemães; a prosa foi, portanto,
tornando-se gradualmente uniforme, os dialectos foram ficando para traz,
e a linguagem adquiriu uma unidade que resistiu áquella onda de separação
que passou depois por toda a Allemanha.

=Regresso de Luthero a Wittenberg.=—Emquanto Luthero esteve em Wartburgo,
andaram os seus amigos prégando o Evangelho por toda a Allemanha, sem
soffrerem o minimo incommodo, e os seus livros eram lidos por toda a
parte. Dir-se-hia que toda a Allemanha se tornava protestante, a despeito
do edicto do imperador. Havia de todos os lados um grande movimento a
favor das doutrinas evangelicas, e contra a superstição e a idolatria.
Acontece muitas vezes, em epocas como aquella, de despertamento
religioso, que algumas pessoas perdem, por assim dizer, a cabeça e querem
que as coisas caminhem muitissimo depressa ou vão até demasiadamente
longe; foi o que succedeu na Allemanha.

Ha na fronteira bohemio-saxonia, no meio da cordilheira de Erzgebirge,
ou Montanhas de Ferro, uma pequena cidade chamada Zwickau. Os habitantes
d’essa cidade acceitaram a Reforma. Entre elles havia um tecelão, Claus
Storch, homem excitavel, que a abraçou com mais zelo do que sensatez, e
que reuniu em volta de si um certo numero de partidarios, creaturas de
muito pouco juizo tambem. Na sua opinião, não lhes eram precisos padres
nem ministros evangelicos, pois que Deus os instruia directamente; a
Biblia era inutil, pois que todos elles eram inspirados. Metteram-se
a limpar a sua terra de todos os indicios da antiga religião—as
ornamentações das egrejas, os altares, as cruzes, o clero, etc.—e deram
logar a alguns tumultos, levantando-se, por fim, contra elles os seus
conterraneos, que os pozeram fóra.

Expulsos de Zwickau, foram para Wittenberg, e expozeram as suas idéas
ao impetuoso Carlstadt e ao condescendente Melanchthon, que eram ali os
dirigentes espirituaes na ausencia de Luthero. Carlstadt adoptou por
completo o seu modo de pensar, Melanchthon deixou-se persuadir até a um
certo ponto, e a agitação começou a lavrar entre as massas populares. As
imagens foram derrubadas dos logares que occupavam nas egrejas; Carlstadt
prégou contra a instrucção, contra o estudo, contra as universidades; a
Reforma correu o perigo de uma rapida destruição.

Luthero teve conhecimento do que se passava na sua solidão de Wartburgo,
e resolveu sair de aquella especie de sequestração em que se encontrava.
Correu a Wittenberg, e o povo tornou a ouvir a sua voz, com que tanto se
familiarisara, trovejando do pulpito contra a violencia, o fanatismo e a
falta de caridade. Luctou contra os fanaticos durante oito dias, e por
fim triumphou. A auctoridade da Escriptura ficou de novo estabelecida, e
o movimento lutherano mostrou que nada tinha de commum com os excessos de
Storch, e do seu companheiro Münzer.

Do curto reinado dos fanaticos em Wittenberg resultou uma coisa
boa. Produziu uma reforma de culto. Desappareceram as ceremonias do
catholicismo romano, que foram substituidas por um serviço religioso mais
em conformidade com as Escripturas.

=A Dieta de Nürnberg.=—O anathema do imperio ainda estava sobre Luthero,
pois que não havia sido revogado; mas ninguem pensava em o pôr em
execução. Luthero prégava, escrevia, e editava os seus trabalhos, sem que
pessoa alguma na Allemanha o tivesse na conta de um proscripto. Ainda
mais, alguns dos principes allemães eram de parecer que o edicto de
Worms devia ser annullado. O imperador tinha-se retirado para Hespanha,
deixando em seu logar um Conselho Regente, cujos membros conheciam bem o
estado da Allemanha e os sentimentos do povo, e não se sentiam inclinados
a desposar a causa do papa.

Foi assim que, quando a Dieta se reuniu em Nürnberg, em 1522 e 1524,
o nuncio do papa viu que os principes allemães não eram de modo algum
favoraveis á sua proposta para que Luthero soffresse a pena de morte.
Em vez de discutirem esse ponto, apresentaram differentes reclamações,
insistindo muito com o nuncio para que chamasse para ellas a attenção do
papa; e muitas d’essas reclamações eram relativas a assumptos sobre os
quaes se baseou a condemnação de Luthero.

Por fim, depois de uma prolongada controversia entre os principes
allemães e o nuncio do papa, a Dieta declarou que era necessario nomear
uma Junta Geral da Egreja, afim de que certos abusos fossem abolidos e
se esclarecessem certos pontos duvidosos de doutrina que tinham surgido,
annunciando, ao mesmo tempo, que toda essa questão de differenças
religiosas havia de ser liquidada n’um outro concilio que ia reunir-se
em Spira. Toda a Allemanha, em summa, parecia estar do lado de Luthero;
e alguns estados—como, por exemplo, o de Brandenburgo—, proclamavam
abertamente quaes as reformas por que a religião devia passar. Pediam a
abolição dos cinco falsos sacramentos, da missa, do culto dos santos e
da supremacia pontificia. A Reforma havia-se espalhado tambem para além
da Allemanha, e já em 1524 havia discipulos de Luthero em França, na
Dinamarca e nos Paizes Baixos.

=A revolta dos nobres= foi o primeiro dos grandes revezes que o movimento
da Reforma soffreu. Até 1524, as doutrinas de Luthero tinham-se espalhado
sem obstaculo de maior pela Allemanha e pelo estrangeiro. De toda a parte
se protestava contra os cinco pretensos sacramentos, as indulgencias, a
confissão auricular, o culto dos santos e das reliquias, o celibato do
clero, a negação do calix aos leigos, o sacrificio da missa, a usurpação
episcopal e a supremacia do papa. O que todos ambicionavam era uma fórma
de culto mais simples e mais concorde com as Escripturas, e uma fórma
de governo que tornasse manifesto o sacerdocio espiritual de todos os
crentes. A Dieta tinha repetidamente, na sua lista de aggravos, chamado
a attenção do papa para os abusos que se observavam na egreja, e propoz,
por fim, que se convocasse um concilio geral para tratar das necessarias
reformas.

Mas não era só ecclesiasticamente que a Allemanha precisava de ser
reorganizada. A posição dos cavalleiros imperiaes era cada vez
mais insustentavel; os principes, mais poderosos do que elles,
supplantavam-n’os e opprimiam-n’os. Os camponezes viviam, pela maior
parte, cruelmente escravisados, e preparavam-se em segredo para uma
revolução. Tanto de um lado como do outro contava-se com a Reforma
como com um poderoso auxiliar. Os tempos corriam mal; tinha-se visto
a inutilidade dos velhos systemas, e todos proclamavam abertamente a
necessidade de uma mudança radical; não deveriam aproveitar-se d’este
estado geral de descontentamento? As duas classes desgostosas assim o
entenderam, e, porque assim o entendessem, entraram no caminho da revolta.

A revolta dos nobres foi logo reprimida; nunca teve, mesmo,
probabilidades de bom exito. Os homens que se envolveram n’ella estavam,
realmente, luctando contra a orientação da epoca e contra a corrente
da historia. Viam todo o territorio allemão caindo nas mãos de meia
duzia de familias principescas, e todo o povo das cidades enriquecendo
por meio do commercio e pondo-se ao abrigo de qualquer ataque. Previam
que a Allemanha não tardaria a estar dividida pelos principes, a quem
elles odiavam, e pelos cidadãos, a quem desprezavam, e queriam voltar
aos velhos tempos, em que os nobres germanicos não reconheciam outra
auctoridade que não fosse a do imperador. Tinham por cabecilha Francisco
von Sickingen, homem muito notavel, de grande valor militar, e a quem
se não podia negar um certo patriotismo. A revolta mallogrou-se, e os
principes aproveitaram a opportunidade para reduzirem ainda mais o poder
dos nobres e compellirem-n’os a reconhecer a sua auctoridade.

O movimento revolucionario não tinha ligação alguma com a Reforma, mas
muita gente julgava que sim, e começou a antipathizar com a Reforma por
causa do seu odio aos nobres revoltados. Sickingen tinha de muitos modos
tentado fazer com que parecesse que a causa que defendia era a causa da
liberdade religiosa. Quando a vida de Luthero corria perigo em Worms,
Sickingen reuniu algumas tropas e ameaçou atacar a cidade e a dieta.
Quando alguns dos secretarios de Luthero foram ameaçados de perseguição
depois da dieta de Worms, Sickingen prometteu proteger todos aquelles que
se acolhessem a elle; e, ao levantar o estandarte da revolta contra os
principes, declarou que o seu fim era combater pela Reforma e estabelecer
as novas doutrinas. E assim, quando elle ficou vencido, alguns dos
principes apressaram-se em accusar Luthero e os prégadores de terem
ajudado e instigado esta guerra civil.

De todos estes acontecimentos proveiu a chamada Convenção de Ratisbonna,
ou Regensburgo, que era uma confederação, ou liga, dos principes
catholicos romanos contra a Reforma; e assim a Allemanha, que até ali
se tinha mantido n’uma união propicia ás reformas, dividiu-se em duas
partes, o que tornou o trabalho muito mais difficil. Os confederados de
Regensburgo diligenciaram chegar a accordo com o partido papista de Roma.
O papa prometteu que não tornaria a haver indulgencias, que cessaria
aquella grande drenagem de dinheiro da Allemanha para Roma, e que seriam
escolhidos homens melhores para bispos e abbades; e os confederados
comprometteram-se a contrariar todas as tentativas de reforma, oppondo-se
tenazmente a qualquer modificação de culto ou de doutrina. A Baviera, a
Austria e as grandes provincias ecclesiasticas do sul da Allemanha iam
pôr-se ao lado de Roma na lucta que estava imminente. A Convenção de
Regensburgo veiu, pois, dividir a Allemanha, e fez prever os episodios
horrorosos da Guerra dos Trinta Annos.

=A revolta dos camponezes= teve consequencias mais serias. Não fez
sómente tremer os principes com a idéa de uma proxima reformação;
deu motivo a que Luthero hesitasse, e mudasse, por fim, de opinião a
muitos respeitos. O movimento rural não tinha por objecto a Reforma;
a sua origem foi a miseria profunda em que a gente do campo vivia. O
soffrimento d’essa gente não podia ser maior, e havia chegado a tal ponto
que a morte não lhes mettia medo algum. Desde o meiado do seculo quinze
que de quando em quando se levantava uma sedição de camponezes n’um ou
n’outro ponto da Europa, e todas essas revoltas haviam sido suffocadas,
sem que fossem concedidas as almejadas reformas, de modo que as causas
da rebellião continuavam ainda inalteraveis. Os camponezes viviam do que
as terras que traziam arrendadas produziam, e as rendas que pagavam eram
as mais das vezes exhorbitantes, isto é, não estavam em harmonia com o
valor do terreno. Além das rendas, eram tambem obrigados a prestar aos
proprietarios certos serviços de que não recebiam remuneração alguma;
esses serviços variavam segundo as localidades, mas em todas ellas o
senhorio tinha garantido o arroteamento dos seus campos sem lhe ser
preciso metter a mão á bolsa.

A tornar-lhes ainda mais duras as condições da vida, era-lhes prohibido,
sob pena de um severo castigo, o entregarem-se ao exercicio da caça
ou da pesca. Não podiam cortar lenha nos bosques, era-lhes vedada uma
grande parte dos baldios, e de todos os modos se viam embaraçados no seu
trabalho e na sua actividade. Quando um rendeiro fallecia, o dono da
propriedade tinha o direito de arrebatar do poder da viuva e dos orphãos
qualquer coisa que lhe agradasse, como por exemplo, uma vacca, uma
ovelha, ou até a propria cama.

A egreja tambem tinha as suas imposições. Reivindicava os dizimos: uma
decima parte da colheita, que era chamada o grande dizimo; e uma decima
parte do producto dos animaes, que era chamada o pequeno dizimo. Tinham
de ser pagos depois de se haver satisfeito ao senhorio; e depois de se
ter pago a renda e o salario dos serviçaes, e de se ter dado á egreja a
decima parte do trigo, das ovelhas, dos porcos e dos ovos, pouco ficava
para o pobre camponez e sua familia.

Mas ainda havia mais. Pode-se viver nas peiores circumstancias, pode-se
supportar as maiores agruras da vida, quando ha a certeza de que se não
corre o risco de peiorar, e de que justiça será feita quando aquelles
que occupam posições superiores quizerem tirar partido da pobreza e
fraqueza dos seus similhantes. O camponez allemão, porém, não tinha
essa certeza. O velho codigo romano havia substituido gradualmente a
legislação allemã, e nós sabemos que no imperio de Roma os camponezes não
eram homens livres. Os proprietarios tinham escravos, ou servos, para
amanhar as suas terras, para trabalhar nos seus dominios, e quando as
leis romanas começaram a ser applicadas na Allemanha viu-se logo que o
camponez ficava, pouco mais ou menos, na condição de escravo.

Os pobres, compenetrados de que a lei lhes era adversa, não ousavam
recorrer aos tribunaes. Eram castigados quando o seu amo entendia que
deviam sêl-o. A lei não lhes conferia direito algum; o proprietario podia
tornar-lhes mais pesados os trabalhos, augmentar-lhes a renda, podia, em
summa, exigir d’elles o que quizesse.

N’uma epoca pouco anterior á da Reforma tinham sido transportadas para
a Europa enormes riquezas. A America, a terra da prata e do oiro, tinha
sido descoberta, e o commercio augmentara consideravelmente. Estas
riquezas tinham sido ganhas por mercadores e negociantes aventureiros, e
a classe commercial havia começado, por esse motivo, a viver desafogada e
luxuosamente.

Ora os possuidores de terras não queriam fazer má figura ao pé dos
negociantes, mas faltava-lhes dinheiro para sustentarem o mesmo fausto,
e só poderiam conseguil-o á custa dos pobres camponezes, cujo viver era
cada vez mais miseravel, ao passo que a gente das cidades se rodeiava
de commodidades que n’outro tempo desconhecia. O resultado foi serem
augmentados os trabalhos, augmentadas as rendas, aggravados todos os
impostos.

Estas oppresões deram logar a bastantes tumultos muito antes do tempo
de Luthero. Nos Paizes Baixos, na Franconia, no Main e no Rheno os
camponezes levantaram-se contra os seus tyrannos, e as associações
secretas organizadas durante essas insurreições continuaram permanecendo
até muito depois d’ellas haverem sido reprimidas. A mais poderosa d’essas
associações era a de Bundschuh, isto é, a _do sapato atado_. A liga de
Bundschuh havia-se formado em 1423, e nunca fôra possivel extinguil-a de
todo; e durante a agitação produzida pela estada de Luthero em Worms,
quando todos os allemães receiavam pela vida do seu reformador, a
sinistra palavra Bundschuh appareceu escripta a giz pelas paredes.

A revolta dos camponezes em 1524 foi uma legitima successora das
anteriores, foi mais um fructo das sociedades secretas, e podemos
affirmar que os seus promotores contavam com que o Evangelho prégado por
Luthero lhes proporcionasse um bom exito. Thomaz Münzer, o discipulo de
Claus Storch, que havia sido expulso tanto de Wittenberg como de Zwickau,
mettera-se a prégar aos aldeãos da Thuringia e da Saxonia, e a sua
inflammada eloquencia havia-os animado para uma nova lucta. A Bundschuh
reapparecera em Würtemberg, devido á cruel oppressão do duque Ulrico. Em
1524 os camponios do Rheno ergueram o estandarte da revolta, e a chamma
propagou-se em todas as direcções.

Estas insurreições não foram, ao principio, effectuadas por meio das
armas. Se os camponezes tivessem começado por uma acção violenta, teriam,
talvez, sido mais bem succedidos. A sua idéa era convocar grandes
comicios onde fossem expostas as suas reclamações, pois julgavam que por
esse meio viriam a conseguir tudo. Teem-se conservado até hoje algumas
das listas de reformas que elles reputavam indispensaveis. A mais
importante é a dos Doze Artigos. Os camponezes começaram por dizer que só
pediam aquillo que os principios do Evangelho os auctorizavam a pedir, e
que não desejavam entrar em lucta, porque o Evangelho os mandava viver em
paz e amor. Pediam a todos os christãos que lessem os seguintes artigos,
e vissem se havia n’elles alguma coisa que estivesse em desaccordo com o
ensino da Palavra de Deus:

1. A congregação deve ter poder para eleger o seu ministro, e para o
demittir no caso do seu procedimento ser censuravel; e o ministro deve
prégar o Evangelho puro, sem lhe accrescentar mais nada.

2. Promettem pagar o dizimo do trigo para a sustentação dos ministros,
comtanto que o que ficar, depois de pagos os respectivos estipendios,
seja applicado no soccorro dos pobres; mas recusam pagar o pequeno
dizimo, isto é, o dos porcos, dos ovos, etc., porque, dizem elles, Deus
creou os animaes para uso do homem.

3. A servidão deve ser abolida. A Escriptura declara que os homens são
livres.

4 Deve haver inteira liberdade para caçar e para pescar, pois que Deus
creou as aves e os peixes para uso de todos.

5. As florestas que não pertençam a alguem por direito de compra devem
ser restituidas á communa, ou municipio; e todos os habitantes devem ter
liberdade para cortar madeira de que necessitarem para combustivel ou
para trabalhos de carpinteria, devendo haver guardas, pagos pela communa,
que impeçam qualquer acto de vandalismo.

6. Os serviços obrigatorios devem ficar restrictos ao que era permittido
pelos antigos costumes.

7. Tudo o mais que se fizer deve ser condignamente pago.

8. As rendas estão muito elevadas; as terras devem ser avaliadas de novo,
e pagar-se pelo seu aluguer uma quantia razoavel.

9. A lei deve determinar as penas que correspondem aos diversos crimes,
ficando defezo a quem quer que seja a applicação de um castigo arbitrario.

10. Os campos de pastagem e outros baldios de que os proprietarios se
teem apoderado devem ser restituidos ao logradouro publico.

11. Deve ser abolido o direito de morte (A faculdade que tem o senhorio
de levar qualquer objecto da casa do rendeiro fallecido).

12. Todas estas proposições devem passar pelo cadinho da Escriptura, e
serão retiradas as que fôrem susceptiveis de refutação.

Estes artigos eram, quasi todos elles, assaz equitativos, e estão agora
incluidos na legislação allemã. Se as reivindicações dos camponezes
fossem recebidas como elles esperavam, e como tinham direito a esperar,
ter-se-hia chegado a um accordo. Os seus adversarios fingiram que se
interessavam por ellas, para ganharem tempo; e os camponezes, por fim,
vendo-se atraiçoados, pegaram em armas.

Recorreram a Luthero. Elle era filho de camponez; tinha conhecido
a necessidade. E Luthero, respondendo ao appello que lhe fizeram,
intercedeu por elles, dirigindo-se d’este modo aos proprietarios: «Posso
agora fazer causa commum com os camponezes, porque vós attribuis esta
insurreição ao Evangelho e ao meu ensino, quando a verdade é que nunca
cessei de intimar obediencia á auctoridade, mesmo quando ella seja tão
tyrannica e tão intoleravel como a vossa. Não quero, porém, envenenar
a ferida; e, portanto, meus senhores, quer me sejaes benevolos quer me
sejaes hostis, não desprezeis os conselhos de um pobre homem como eu, e
não tenhaes em pouca conta esta sedição; não quero dizer com isto que
temaes os insurgentes, mas que temaes a Deus, que está irritado contra
vós. Elle póde punir-vos, e converter todas as pedras em camponezas, sem
que nem as vossas couraças nem todo o poder de que dispondes vos possam
livrar. Ponde, pois, limites ás vossas exacções, deixae de exercer uma
deshumana tyrannia, e passae a tratar essa gente com bondade, para que
Deus não incendeie toda a Allemanha com um fogo que ninguem será capaz
de extinguir. O que n’esta occasião, porventura, perderdes, ser-vos-ha
centuplicado mediante a paz futura.

«Ha tanta equidade n’alguns dos doze artigos dos camponezes, que
constituem uma deshonra para vós deante de Deus e do mundo; cobrem os
principes de vergonha, como diz o Psalmo 108. Tinha outras coisas ainda
mais graves a dizer-vos, com respeito ao governo da Allemanha, e já me
referi a vós no meu livro dedicado á nobreza allemã. Não vos importastes,
porém, com as minhas palavras, e agora chovem sobre vós todas estas
reclamações. Não deveis desattender o seu pedido de auctorização para
escolherem pastores que lhes preguem o Evangelho; compete sómente ao
governo o obstar a que sejam prégadas a insurreição e a rebellião; mas
deve haver perfeita liberdade para prégar tanto o verdadeiro como o
falso Evangelho. Os restantes artigos, que tratam do estado social do
camponez, são egualmente justos. Os governos não se estabelecem para seu
proprio interesse, nem para tornarem o povo subserviente aos caprichos e
ás más paixões, mas para zelarem o interesse do povo. As vossas exacções
são intoleraveis; arrancaes ao camponez o fructo do seu trabalho para
poderdes sustentar o vosso luxo e os vossos prazeres. E é tudo quanto vos
tinha a dizer.

«Agora, com respeito a vós, meus queridos amigos camponezes. Quereis que
vos seja garantida a livre prégação do Evangelho. Deus ha de defender a
vossa causa, se procederdes sempre com justiça e rectidão. Se o fizerdes,
haveis de triumphar por fim. Aquelles de entre vós que succumbirem na
lucta serão salvos. Se, porém, o vosso modo de proceder fôr outro, não
podereis salvar nem a alma nem o corpo, ainda mesmo que sejaes bem
succedidos e derroteis os principes e os senhores. Não acrediteis nos
falsos prophetas que se teem introduzido no meio de vós, ainda mesmo
que elles invoquem o santo nome do Evangelho. Pode ser que elles me
chamem hypocrita, mas isso pouco se me dá. O que eu quero é salvar os
que entre vós fôrem fieis e honrados. Temo a Deus e a ninguem mais.
Temei-o vós tambem, e não useis o Seu nome em vão, para que Elle vos não
castigue. Não diz a Palavra de Deus: «Aquelle que lançar mão da espada
á espada morrerá,» e «Todos se submettam aos poderes superiores?» Não
deveis fazer justiça por vossas proprias mãos; seria isso obedecer a um
outro dictame da lei natural. Não vêdes que vos fica mal a rebellião? O
governo tira-vos parte do que vos pertence, mas destruindo os principios
estabelecidos tiraes aos outros tudo o que lhes pertence. Christo, no
Gethsemane, reprehendeu S. Pedro por se ter servido da espada, ainda que
em defeza do seu Mestre; e quando já estava pregado na cruz orou pelos
Seus perseguidores. E o Seu reino não tem triumphado? Porque é que o Papa
e o imperador me não teem feito calar? Porque é que o Evangelho progride
á proporção que elles se esforçam para lhe pôrem obstaculos e para o
destruir? Porque eu nunca recorri á fôrça, prégando, antes, a obediencia,
até mesmo áquelles que me perseguem, fazendo depender exclusivamente de
Deus a minha defeza. Façaes o que fizerdes, nunca tenteis cobrir a vossa
empreza com o manto do Evangelho e o nome de Christo. Será uma guerra de
pagãos, a que, porventura, vier a ter logar, porque os christãos fazem
uso de outras armas: o seu General soffreu a cruz, e o triumpho d’elles
é a humildade. Supplico-vos, queridos amigos, que vos detenhaes, e que
considereis antes de dardes outro passo. O que citastes da Biblia não é
applicavel ao vosso caso».

E conclue assim: «Como vêdes, estaes procedendo mal, tanto de um lado
como do outro, e estaes attrahindo o castigo divino sobre vós e sobre
a Allemanha, vossa patria commum. O meu conselho é que se escolham
arbitros, sendo alguns nomeados pela nobreza e outros pelas cidades. É
preciso que ambos os adversarios transijam n’alguma coisa: o negocio tem
de ser equitativamente liquidado por um tribunal.»

O seu alvitre não foi acatado.

Os camponezes romperam hostilidades, tornando impossivel qualquer
mediação. O proprio Luthero, logo que as coisas tomaram este caminho,
deixou de se interessar pelos revoltosos.

Os principes ligaram-se entre si, e fizeram sobre os camponezes uma
verdadeira chacina. Calcula-se que chegasse a cincoenta mil o numero dos
massacrados.

Esta espantosa catastrophe prejudicou immenso a Reforma.

Alguns dos nobres attribuiram a Luthero tudo quanto tinha acontecido,
e moveram-lhe uma feroz opposição. A Reforma perdeu a influencia que
tinha sobre as classes pobres, que se deixaram dominar pela idéa de que
Luthero as havia abandonado; e entregaram-se com facilidade aos excessos
anabaptistas, que tanto damno causaram á religião n’aquelles tempos. O
proprio Luthero perdeu algum tanto da sua firmeza e da sua coragem, e
repudiou algumas das suas antigas opiniões. Todas estas coisas foram um
atrazo para a Reforma. Ha quem tenha, mesmo, pensado que a revolta dos
camponezes e a falta de coragem que Luthero mostrou n’essa occasião e
depois d’ella tiveram por effeito o ser a obra evangelica tirada das mãos
de Luthero e da Allemanha e confiada ás de Zwinglio e da Suissa.

Luthero perdeu, durante a revolução, o seu protector e a Allemanha o
maior dos seus principes. Frederico o magnanimo, eleitor da Saxonia,
havia morrido.

Havia pedido ao irmão, que era o seu successor, e que havia partido para
a guerra, que usasse de benevolencia com os camponezes; e os seus ultimos
pensamentos foram para os maltratados servos. «Nós, os principes, fazemos
muitas coisas aos pobres que não deviamos fazer.» exclamou elle, e pouco
depois, tendo sido sacramentado, falleceu.

=As Dietas de Spira, em 1526 e 1529.=—O imperador ainda não havia voltado
á Allemanha desde que se ausentara d’ella depois da Dieta de Worms.
Estava em Hespanha, constantemente occupado com a sua idéa de abater
o poder da França. Em 1525 esteve quasi a ver os seus planos coroados
de bom exito. Deu-se a batalha de Pavia, e Francisco I de França,
desbaratado o seu exercito, caiu prisioneiro nas mãos do imperador seu
rival. A Confederação de Madrid, que se seguiu a isto, punha Francisco
na obrigação de auxiliar Carlos a reprimir a revolta que contra a Egreja
se havia excitado na Allemanha; e os termos em que essa obrigação estava
formulada mostravam o quão attentamente havia observado os progressos
da Reforma e o quão empenhado estava em subjugal-a. Deu ordem para
que fossem postas em pratica as disposições da Dieta de Worms, dando
assim claramente a entender que não consentia que dentro do imperio se
propagassem as doutrinas de Luthero, e para reforçar essa sua intimativa
propoz que ella fosse perfilhada por uma Dieta que se reuniria em Spira.

As intrigas politicas mais uma vez o impediram de voltar á Allemanha. O
papa que dominava em Roma era Clemente VII, da familia dos Medicis, e em
toda esta questão zelou mais os interesses do seu principado italiano
do que os da egreja de que era chefe. O papa não queria que Francisco
e Carlos se reconciliassem. Receiava que os pequenos estados italianos
ficassem prejudicados com a approximação dos dois grandes monarcas, e por
esse motivo acariciava o plano de uma outra guerra europea. O imperador
ainda não tinha conseguido o descanço de que necessitava para poder ir em
seguida liquidar pessoalmente os negocios da Allemanha. E assim o proprio
papa estava n’aquella occasião favorecendo a Reforma.

Quando os principes allemães se reuniram em Spira, tornou-se logo bem
manifesto que um grande numero d’elles não desejava que Luthero e
as suas doutrinas fossem banidos da Allemanha; e a Dieta, de que se
esperava a aniquilação da Reforma, promulgou um decreto tolerando-a. Este
famoso edicto, que foi n’aquelle tempo considerado como uma garantia
de tolerancia quanto á religião evangelica, declarava que em materia
de religião todos os estados se deviam comportar por tal fórma que
estivessem promptos a responder por si deante de Deus e de sua Magestade
Imperial. Assim ficou cada um dos estados auctorizado a declarar que
religião se professaria dentro dos seus limites, e aquelle edicto foi
como que uma predicção da paz de Augsburgo, que determinou praticamente a
religião official da Allemanha, essa religião que ella ainda hoje mantem.
Os estados que abraçaram as doutrinas evangelicas ficaram, segundo a lei
imperial allemã, com a liberdade de reorganizar a egreja dentro dos seus
dominios, e levar a effeito as necessarias reformas.

O edicto auctorizava cada um dos estados a tomar as decisões que
entendesse, e d’esse modo tornou-se impossivel qualquer tentativa de
introduzir nas provincias evangelicas um systema uniforme de governo da
egreja e do culto; cada uma d’ellas estabeleceu os seus regulamentos. O
primeiro a estabelecel-os, em conformidade com os verdadeiros principios
da Reforma, foi Filippe, Landgrave de Hesse. Pediu a Martinho Lambert que
lhe redigisse os artigos de uma constituição ecclesiastica para uso nos
seus dominios. E estes artigos são interessantes, porque reconhecem, até
certo ponto, a auctoridade do povo christão dentro da egreja; e confiam
tambem a disciplina das congregações a homens de seriedade, cujos deveres
são parecidos com os dos anciãos presbyteriannos.

Luthero, n’outro tempo, teria recebido com enthusiasmo todas estas
indicações do reconhecimento dos direitos do povo christão, e do
sacerdocio espiritual de todos os crentes, mas a Guerra dos Camponezes
tinha-o predisposto contra a auctoridade do povo. Era de opinião que o
povo não tinha competencia para governar a egreja, e escreveu a Filippe,
mostrando-lhe os inconvenientes de similhante plano de organização
ecclesiastica.

Luthero preferia entregar o governo da egreja nas mãos do poder
secular—dos principes quando se tratasse de principados, e das camaras
municipaes nas cidades livres. Esta sua idéa deu logar ao que se chama o
systema _Consistorial_ do governo da Egreja—systema peculiar da Egreja
Lutherana, e de que, não obstante só mais tarde ter sido posto em
pratica, cabe fazer aqui uma descripção resumida.

Em todas as egrejas christãs tem sido considerado da mais alta
importancia o guardar-se a chamada _disciplina_ da egreja. Deus quer
que todos os seus filhos tenham uma vida honesta, uma vida decente, e
é do dever da Egreja cuidar que todos os seus membros procedam de uma
maneira condigna com a sua profissão de fé. Quando qualquer membro sae do
bom caminho deve ser reprehendido, e, se persiste no mal, deve soffrer
os castigos que a egreja tem decretado, consistindo um d’elles em ser
excluido da communhão dos irmãos. Na Allemanha eram, na edade media, os
bispos responsaveis pela conducta dos membros das egrejas que constituiam
as suas respectivas dioceses; e, como estas dioceses eram geralmente
grandes, e os bispos não podiam estar ao facto de tudo quanto acontecia,
encarregavam d’isso umas especies de comités, compostos de clerigos e
jurisconsultos. Estas commissões de vigilancia chamavam-se consistorios,
e, além de zelarem a disciplina das dioceses, eram tambem encarregadas da
execução de testamentos e doações, e julgavam certos casos de calumnia
e de maledicencia que os tribunaes ordinarios lhes enviavam. Quando os
bispos, nos estados evangelicos, foram expulsos, esses consistorios
continuaram gerindo os negocios da Egreja. Luthero, que só alterava o que
era indispensavel alterar, propoz ao eleitor da Saxonia a conservação
dos comités episcopaes, e essa sua proposta foi acceite. Passaram a
chamar-se consistorios lutheranos, e a sua nomeação ficou dependendo da
suprema auctoridade civil, em cujo nome governavam. Com o tempo foram
introduzidas algumas mudanças, cuja necessidade se reconheceu; mas ainda
assim pode-se dizer que o governo da egreja lutherana actual em nada
differe do da egreja allemã medieval, a não ser que a auctoridade civil
substituiu os bispos. Estas mudanças tiveram logar em toda a Allemanha
depois da Dieta de 1526, nos estados que abraçaram a Reforma.

Luthero escreveu alguns hymnos, e publicou uma serie d’elles para serem
cantados nas egrejas; escreveu um catecismo para uso da infancia; e
assim em toda a Allemanha, onde quer que as doutrinas evangelicas
prevalecessem, eram organizadas egrejas, onde se rendia a Deus um culto
simples mas sincero, e tratava-se de instruir e catequizar a juventude.
Ainda não havia uma confissão de fé, ou credo commum, mas o povo sabia
perfeitamente no que devia crer, devido aos opusculos de Luthero,
Melanchthon e outros, opusculos estes que andavam de mão em mão.

Emquanto estas coisas se passavam na Allemanha, tinha logar uma coisa
que bastante contrariou o imperador: uma alliança entre a França e os
Estados Pontificios. Não esperava que o papa o abandonasse, e menos
esperava ainda que elle o abandonasse na propria occasião em que elle se
preparava para submetter a Allemanha ao seu dominio (do papa), e resolveu
punil-o d’essa traição. Formou-se um numeroso exercito, reforçado por um
grande numero de soldados allemães lutheranos, sob o commando de aquelle
general Frundsberg que em Worms animou Luthero, e, levando á frente o
condestavel de Bourbon, esse exercito penetrou na Italia, devastando tudo
por onde quer que passasse. Em 6 de maio de 1527 o general conduziu as
suas tropas até junto da cidade de Roma. Esta foi tomada de assalto. O
papa e os cardeaes fugiram para a fortaleza de St.º Angelo, e a cidade
foi horrivelmente posta a saque. Os habitantes foram maltratados e
mortos, as egrejas foram despojadas das suas riquezas, e os rudes e
mofadores allemães proclamaram papa a Luthero. Os francezes não poderam
prestar grande auxilio aos seus alliados, e em 1529 fez-se a paz entre o
imperador e o papa, ficando Carlos novamente livre, segundo elle pensava,
para esmagar a heresia na Allemanha.

Na Allemanha parecia que as coisas iam caminhando mal para a Reforma. O
edicto de Spira havia concedido tolerancia aos lutheranos, mas tambem
tornou evidente, de uma maneira até então desconhecida, a separação entre
os dois partidos. Isto viu-se bem quando a Dieta se reuniu de novo em
Spira em 1529. O imperador não estava presente, mas o seu commissario
disse aos principes que o amo se recusava a reconhecer o decreto de 1526,
e que sustentava que o decreto de Worms estava ainda em vigor e se lhe
devia dar força. Pela primeira vez pareceu que a maioria da Dieta estava
disposta a obedecer á ordem do imperador e a dar força ao edicto contra
Luthero. O decreto final intimava quem quer que tivesse posto o edicto em
execução a continuar a fazel-o, e que nos districtos onde não se tivesse
executado não se fizessem ulteriores innovações e ninguem fosse impedido
de celebrar missa.

Por mais brando que isto parecesse, significava que o edicto de Spira
estava posto de parte, e a minoria evangelica resolveu protestar contra a
decisão. Fizeram-n’o sobre o fundamento de que as questões religiosas só
podiam ser decididas pela consciencia, e que não deviam ser submettidas
á Dieta para ficarem sob a decisão de uma maioria. «Em questões que
dizem respeito á gloria de Deus e á salvação da alma de cada um de nós, é
nosso imperioso dever, segundo o preceito divino, e por causa das nossas
proprias consciencias, respeitar, antes de tudo, ao Senhor nosso Deus.»
«Em questões que se relacionam com a gloria de Deus e com a salvação das
nossas almas, devemos pôr-nos deante de Deus e dar-lhe contas de nós
mesmos». O protesto, em que se punha como coisa inadiavel a liberdade de
consciencia, era assignado por João da Saxonia, Jorge de Brandenburgo,
Ernesto de Lüneburgo, Filippe de Hesse, Wolfgang de Anhalt, e pelos
representantes das cidades imperiaes de Nürnberg, Ulm, Constancia,
Lindau, Memmingen, Kempten, Nordlingen, Heilbronn, Reutlingen, Isny, St.
Gall, Weissenburgo e Windsheim.

Foi d’este protesto que se originou o termo _protestantes_.

=O imperador pretende subjugar a Reforma.=—Este protesto tornou ainda
mais saliente, mais definida, a linha de separação entre os principes
reformados e os seus visinhos. Ficavam como que marcados por ella
aquelles a quem o imperador, para restabelecer o imperio medieval, tinha
de subjugar; e parecia agora ter chegado uma occasião propicia para
elle o fazer. Na verdade, entre elle e a realização dos seus planos
só existia aquelle punhado de principes. Tinha humilhado por completo
a França, obrigára o papa a submetter-se-lhe, e os turcos haviam sido
derrotados; unicamente a Reforma se oppunha ao restabelecimento de um
imperio medieval. Os principes protestantes reconheceram a gravidade da
sua situação. Deveriam resistir ao imperador, e, no caso affirmativo,
conservar-se-hiam firmemente unidos? Luthero, que tinha até então
dirigido o movimento, servia agora de obstaculo a uma acção collectiva.
Elle, ao principio, era contrario a toda e qualquer resistencia.
Reprovava, mesmo, a alliança dos principes. Chegou a dissuadir o eleitor
da Saxonia de mandar delegados á assembléa de Schmalkald, e, quando esses
delegados voltaram e deram noticia de que não se tinha chegado a decidir
coisa alguma, mostrou-se excessivamente satisfeito. Se Filippe de Hesse
não tivesse trabalhado incessantemente para uma união e para um esforço
collectivo, a Reforma teria soffrido muito.

A que se deve attribuir este procedimento de Luthero? Repugnava-lhe a
rebellião, fosse qual fosse a natureza d’esta, e não acreditava que as
batalhas do reino dos céus se podessem vencer com as armas carnaes.
Depois, tambem, havia n’elle uma grande somma de quietismo, ou, por
outra, de fatalismo, em parte hereditario, e em parte devido á sua
adhesão ás idéas de Tauler e ás dos mysticos allemães. Filippe de Hesse
tinha, porém, sem duvida razão ao attribuir uma grande parte d’esta
obstinação de Luthero a uma polemica theologica. Tinha sido proposto
reunir todos os protestantes n’uma liga offensiva e defensiva, e havia
protestantes que não reconheciam em Luthero o seu chefe religioso.
Assim como havia uma reforma allemã, havia tambem uma reforma suissa,
com o seu particular typo de doutrina—typo de que Luthero não gostava,
e que, com immenso desagrado da sua parte, se estava propagando pelo
sul da Allemanha. Filippe notou esse facto, e, com aquella decisão que
o caracterizava, tentou extrair a difficuldade pela raiz. Propoz uma
conferencia. Tinha a convicção de que, se pozesse na presença uns dos
outros aquelles cujas idéas divergiam, elles haviam de comprehender-se
melhor, e acabariam, por consequencia, todas as differenças. Com esse
intuito, pois, promoveu em Marburgo, em 1529, uma conferencia entre os
primeiros theologos da Allemanha e da Suissa.

=A Conferencia de Marburgo.=—Pode-se imaginar o que seria aquella
reunião, em que ia tratar-se de um assumpto tão palpitante. Zwinglio e
Œcolampadius tinham vindo, com risco das suas vidas, da Suissa; Bucer
tinha vindo de Strasburgo; e Luthero e Melanchthon tinham vindo de
Wittenberg. Consultaram-se sobre os grandes artigos da fé christã, e os
allemães ficaram convencidos de que os suissos tinham idéas perfeitamente
evangelicas. Foram redigidos quatorze artigos em que se encerravam todos
os principaes pontos da verdade evangelica, sem que alguem discordasse
d’elles, e em seguida os theologos passaram a tratar do quinquagessimo e
ultimo, que se occupava da doutrina da Ceia do Senhor. Era esse o artigo
ácerca do qual os que desejavam uma união de todos os protestantes se
mostravam mais inquietos.

Anteriormente, antes da revolta dos camponezes o ter inclinado a evitar
mudanças, é muito possivel que Luthero apresentasse qualquer asserção
sobre pontos de doutrina que fosse acceite pelos suissos; e muitos teem
supposto, com bom fundamento, que, se Calvino estivesse presente, e
tivesse fallado antes de Luthero, poder-se-hia ter chegado a uma união.
Luthero, porém, não tinha confiança nos suissos; tinha-os na conta de
irreflectidos e irreverentes theologos, e, a despeito das anciedades dos
principes allemães, tinha ido á conferencia resolvido a não ceder em
coisa alguma.

=A controversia entre Luthero e os suissos.=—O thema do debate era este.
Todos os reformadores, tanto allemães como suissos, haviam rejeitado a
doutrina catholica romana do sacramento da Ceia do Senhor.

Os theologos catholicos romanos dividem este sacramento em duas partes
distinctas: a Eucaristia e a missa. A missa é mais um sacrificio do
que um sacramento. É a prolongação, atravez do tempo, do sacrificio de
Christo na cruz; o pão e o vinho são, diz-se, os verdadeiros corpo e
sangue de Christo, e quando estes são saboreados pelo padre, no acto
de comer e beber, Christo soffre com esse acto aquillo que soffreu na
cruz. D’esta maneira os catholicos romanos ensinam que os christãos vêem
Christo realmente no seu meio—vêem-n’o supportando os tormentos por sua
causa, na sua propria presença. Assim, segundo esta theoria, não ha a
distancia de longos seculos entre o crente e os soffrimentos de Christo
por sua causa. Christo soffrendo e o crente prestando culto estão em face
um do outro durante um momento, mediante a missa.

Os protestantes de todas as denominações rejeitaram a doutrina da missa
por a considerarem idolatra e supersticiosa, e ensinaram os christãos a
retrocederem, pela fé, até ao verdadeiro sacrificio de Christo na cruz
do Calvario por sua causa e para resgate dos seus peccados. O debate
entre os protestantes é exclusivamente sobre aquillo a que os catholicos
romanos chamam a Eucaristia, ou sacramento do altar.

A doutrina catholica romana da missa e a sua doutrina da Eucaristia teem
um ponto em commum; ambas affirmam que o verdadeiro corpo e o verdadeiro
sangue de Christo estão presentes no pão e no vinho, de modo que estes
elementos já não são o que parecem ser, mas sim o verdadeiro corpo e o
verdadeiro sangue de Christo. Ensinam que o padre, porque é padre, e
porque foi ordenado por um bispo, pode, mediante a oração e a ceremonia,
operar o milagre de transformar o pão e o vinho no verdadeiro corpo e
sangue de Christo, com a Sua alma racional e a Sua natureza divina; e
que pode, outrosim, operar o milagre de O trazer do céu e de O mostrar
ao povo, a fim de ser adorado e partilhado por todos. Ensinam, ainda,
posto que esta parte do seu ensino não seja sempre muito clara, que os
beneficios de Christo são communicados ao Seu povo quando este come o
pão, que já não é pão, mas Christo. A graça, dizem elles, é concedida a
todos aquelles que participam, quer tenham quer não tenham fé.

Todos os protestantes, tanto suissos como lutheranos, recusaram acceitar
pelo menos dois, e os dois principaes, pontos d’esta doutrina catholica
romana. Não quizeram crer que um padre podesse operar o milagre que os
catholicos romanos asseveram que é operado; e foram tambem todos de
opinião de que é necessaria mais alguma coisa do que a participação para
que o sacramento tenha efficacia. Ao descreverem a connexão entre o
sacramento e o que o administra, negaram que tenha logar a operação de um
milagre; e, ao descreverem o effeito nos participantes, asseveraram que a
fé era indispensavel.

Tiraram o milagre d’uma parte da descripção do sacramento e do seu
effeito e inseriram a fé na outra. N’isto todos elles concordaram. Todos
elles sustentaram que, ainda que Christo esteja presente no sacramento,
não foi trazido para ali mediante um milagre operado por um padre, e
que, ainda que Christo soccorresse o Seu povo, o fazia n’um sentido
espiritual, mediante a fé, e não pela simples participação do sacramento.

Posto, porém que Zwinglio e Luthero abundassem nas mesmas idéas com
respeito a estes dois importantes pontos, e assim podessem escrever
a primeira parte do artigo quinze de tal maneira que podessem ambos
acceitar cabalmente a asserção, differiam no modo em que descreviam a
entrada de Christo no sacramento, e a maneira em que o crente sentia a
Sua presença e tirava o beneficio inherente.

Zwinglio dizia que Christo não estava realmente no sacramento sob uma
fórma corporea. O pão e o vinho, affirmava elle, eram apenas signaes da
Sua presença, quasi da mesma maneira como uma carta é o signal da pessoa
ausente que a escreveu, e, quando os christãos participam do sacramento,
colhem um beneficio, porque os signaes, pão e vinho, lhes reavivam a
memoria e os fazem pensar em Christo e em tudo quanto Elle fez e soffreu
sobre a cruz.

Luthero entendia que no sacramento havia mais alguma coisa. Elle
tinha, anteriormente, ensinado que o pão e o vinho eram promessas, ou
sellos, assim como signaes, e essa idéa podia têl-o levado, como mais
tarde aconteceu a Calvino, a encarar a questão com maior clareza e
simplicidade. No seu modo de vêr, o pão e o vinho eram, de uma maneira
real, o genuino corpo e sangue de Christo, e isto porque o Senhor disse
ácerca do pão «Isto é o meu corpo», e ácerca do vinho «Isto é o meu
sangue». E, como não gostava de fazer alterações em pontos doutrinaes,
fez reviver uma velha theoria sustentada na Edade Media.

Os philosophos medievaes, que eram muito amigos de fazer distincções
muito delicadas e muito subtis entre os sentidos de umas e outras
palavras, ensinaram que a palavra _presença_ significava duas coisas
differentes; um corpo estava presente n’uma certa porção de espaço quando
occupava essa porção de espaço de tal fórma que nenhum outro corpo
podesse estar lá ao mesmo tempo, e um corpo podia tambem estar presente
quando occupasse o mesmo espaço juntamente com outra qualquer coisa.
A alma do homem estava, diziam elles, no mesmo espaço em que o corpo
estava, e ao mesmo tempo. Um d’estes escolasticos, como eram chamados,
empregava esta segunda especie de presença para descrever a presença do
corpo de Christo nos elementos. Estava presente no mesmo logar e ao mesmo
tempo. O pão não era transformado no corpo de Christo; as duas coisas,
o pão e o corpo de Christo, podiam estar, e estavam, ao mesmo tempo
no mesmo espaço, ou, para usar a phrase corrente, o corpo de Christo
estava, na Ceia do Senhor, no pão, com o pão e sob a fórma de pão. Isto,
porém, não explicava a presença do corpo de Christo, nem como elle era
transportado da dextra de Deus para os elementos.

Para o explicar, Luthero serviu-se de uma outra idéa dos theologos
medievaes. Diziam elles que pelo facto de Christo ser Deus e homem, duas
naturezas n’uma pessoa, todos os attributos da natureza divina de Christo
se tornavam tambem propriedades da Sua natureza humana. Um dos attributos
de Deus é a omnipresença. A natureza humana de Christo adquiriu da
natureza divina este attributo, e pode estar tambem em toda a parte. Se
o corpo de Christo está em toda a parte, deve estar nos elementos, sobre
a mesa do Senhor, sem que ocorra milagre algum. Luthero serviu-se d’esta
ubiquidade do corpo de Christo para explicar como, sem a intervenção do
milagre, elle podia estar em, com e sob os elementos do pão e do vinho.

Quando lhe perguntaram porque é que havia uma virtude especial n’este
caso da presença de Christo—a Sua presença no Sacramento—estando Elle,
segundo a sua theoria, presente em toda a parte, replicou que Deus tinha
promettido, na Biblia, abençoar o Seu povo mediante a presença do corpo e
sangue de Christo nos elementos do sacramento.

E assim Luthero tecia uma complicadissima doutrina da presença de Christo
no pão e no vinho; desembaraçava-se, certamente, da transubstanciação e
do milagre sacerdotal, mas introduzia, em seu logar, inverosimeis idéas
escolasticas. Podia, comtudo, d’esta fórma, dizer que o corpo de Christo
estava realmente presente, em figura corporea, no pão e no vinho, e isso
dava-lhe grande satisfação. Quando, pois, se encontrou com Zwinglio para
discutirem a doutrina da Ceia do Senhor, diz-se que pegou n’um pedaço de
giz e escreveu em cima da mesa que estava no meio da sala as palavras HOC
EST CORPUS MEUM (Isto é o meu corpo).

Não acceitava explicação alguma d’estas palavras que affirmasse que o
corpo e o sangue de nosso Senhor não estavam corporalmente presentes
nos elementos, e accusava os seus antagonistas de interpretarem mal a
Escriptura quando se referiam a metaphoras e a symbolos. Foi debalde que
Zwinglio contestou que a palavra «é» nem sempre significa identidade de
substancia; que quando nosso Senhor disse «Eu sou a videira verdadeira»,
«Eu sou a porta», não queria dizer que fosse uma vinha ou uma porta no
sentido litteral da palavra. Luthero não se demoveu, e a conferencia
terminou sem aquella unidade de coração e de proposito que o pio e
affectuoso Landgrave esperava que resultasse d’ella.

=A Dieta de Augsburgo.=—O imperador tinha sido victorioso em toda a
parte fóra da Allemanha, e estava prestes a vir subjugar a Reforma, isto
emquanto os protestantes, devido á obstinação de Luthero, se encontravam
divididos e desalentados. O Landgrave Filippe fez tudo quanto estava ao
seu alcance para conservar unido o partido evangelico, e alguma coisa
conseguiu n’esse sentido.

O imperador entrou em Augsburgo com grande apparato, e ao principio
recebeu muito cordealmente os principes protestantes. Luthero achava-se
ausente da cidade. Considerou-se que a sua presença daria logar a uma
desnecessaria irritação, e permaneceu, portanto, em Coburgo, onde
facilmente poderia ser consultado. Melanchthon ficou a substituil-o como
conselheiro theologico.

Os chefes dos protestantes eram—João, eleitor da Saxonia, denominado
João o constante, em razão da sua fidelidade aos principios evangelicos;
Filippe o magnanimo, Landgrave de Hesse; e o edoso Margrave de
Brandenburgo, antepassado do ultimo imperador da Allemanha. Estes
principes foram recebidos pelo imperador com muita affabilidade.
Deprehender-se-hia de tudo isto que se tinha iniciado na Allemanha uma
era de paz e concordia.

Por detraz dos bastidores, porém, estava Fernando da Austria, irmão
do imperador, e cabeça do fanatico partido romanista, com os seus
conselheiros theologicos, protestando contra o incitamento á herezia.
Afim de o socegar, o imperador escreveu-lhe o seguinte: «Entrarei em
negocios, sem chegar a qualquer conclusão: mas, ainda que isso aconteça,
não ha motivo para receios da tua parte: nunca te faltarão pretextos para
castigar os rebeldes, e has de sempre deparar com quem, com muito gosto,
se preste a servir de instrumento á tua vingança.» As suas verdadeiras
intenções depressa se tornaram manifestas.

Os capellães dos principes protestantes celebravam o culto publico
segundo o rito evangelico: e o imperador deu ordem para que tal se não
continuasse a fazer. O Eleitor declarou: «Assim que tiver a certeza de
que o imperador tenciona suspender a prégação do Evangelho, retiro-me
para minha casa.» Quando Carlos, n’uma conferencia particular, pediu aos
principes que impozessem silencio aos seus capellães, o velho Margrave
de Brandenburgo avançou alguns passos, levou as mãos ao pescoço, e,
inclinando-se, disse: «Era mais facil a minha cabeça rolar aos pés de
Vossa Magestade do que eu privar-me da Palavra de Deus e negar o meu
Senhor». Carlos mostrou-se surprehendido. «Ninguem pensa em cortar
cabeças, meu caro Margrave», replicou elle. Comprehendia tão mal os
seus subditos protestantes que se encheu de ira quando elles recusaram
incorporar-se na procissão que teve logar por occasião da festa de
_Corpus Christi_. Seria condescender com a idolatria, seria prestar
adoração a uma particula de massa que a Egreja de Roma dizia ter-se
transformado na Divindade mediante um milagre operado por um padre, e
isso não podiam elles fazer. «Porque não hão de agradar ao imperador?
Porque não hão de mostrar respeito ao cardeal?» exclamou Fernando. «Não
podemos nem queremos adorar senão a Deus» declararam elles. E assim foram
passando os dias.

Entretanto os prégadores protestantes dirigiam todos os dias a palavra
a grandes concursos de gente na egreja dos franciscanos, e expunham
eloquentemente as doutrinas do Evangelho. Carlos resolveu pôr um termo
a este estado de coisas, e fêl-o por meio de um accordo cujas vantagens
ficaram todas do lado dos catholicos romanos. Melanchthon, sempre timido
e amigo da paz, insistiu para que se fizessem algumas concessões. Os
prégadores protestantes sairam angustiados da cidade, e Luthero, que
observava de longe os acontecimentos, convenceu-se de que Melanchthon,
apezar das suas boas intenções, estava traindo a causa.

Quando se abriu a Dieta, o imperador quiz que os protestantes expozessem
as suas opiniões. Essa exigencia era esperada, e assim Melanchthon
tinha, com a collaboração de Luthero, redigido uma Confissão de Fé, em
que estavam mencionados, com grande clareza de linguagem, os principaes
artigos da sua fé. Era esta a famosa _Confissão de Augsburgo_ (_Confessio
Augustana_), o credo que tem sido acceite por todos os lutheranos, embora
entre elles tenha havido divergencias n’outros pontos. Carlos queria
que elle fosse lido em latim. «Não», respondeu a isto João o Constante,
«nós somos allemães, e estamos em territorio allemão. Espero que vossa
magestade nos permittirá que fallemos na nossa lingua». E a Confissão
foi lida em allemão, não por um theologo, mas por uma outra pessoa que
recebeu dos principes esse encargo.

=A Confissão de Augsburgo.=—A primeira parte d’esta nobre confissão
expõe, um por um, todos os principios evangelicos da Reforma, e em
particular os grandes principios da justificação pela fé. Diz-se que,
quando o chanceller do Eleitor, Christiano Beyer, leu estas palavras «a
fé, que não é o mero conhecimento de um facto historico, mas aquillo que
crê, não sómente na historia, mas no effeito que essa historia produz
sobre o espirito», toda a assembléa se mostrou commovida. «Christo» disse
Justo Jonas, «está aqui na Dieta, e não Se conserva silencioso: a Palavra
de Deus não está presa».

Passou-se depois á segunda parte da Confissão, que denunciava os abusos
da Egreja de Roma. Começava assim: «Visto as egrejas que ha entre nós não
discordarem em artigo algum de fé das Sagradas Escripturas ou da Egreja
Catholica, e omittirem apenas uns certos abusos, umas certas innovações,
que em parte se teem insinuado, e em parte teem sido violentamente
introduzidas, sendo todas ellas contrarias ao sentido dos canones,
rogamos a Vossa Magestade Imperial se digne prestar ouvidos clementes ás
razões que o povo apresenta para que não deva ser forçado, contra as suas
consciencias, a observar estes abusos». Declara em seguida que o negar o
calix aos leigos é uma pratica que se oppõe, não só á Escriptura como
aos antigos canones e ao exemplo da Egreja: que o celibato dos clerigos
é uma transgressão do mandamento de Deus: que a missa é «uma profanação
do sacramento da Ceia do Senhor»: que a distincção das comidas e as
tradições «obscurecem as doutrinas da graça, e induzem o povo a crêr que
o christianismo é tão sómente uma observancia de determinadas festas,
ritos, jejuns e vestuarios»: que a vida e votos monasticos são altamente
perniciosos, e servem para desencaminhar homens e mulheres, pois que «se
deve servir a Deus segundo os preceitos que Elle promulgou, e não segundo
os que os homens inventam»: que o poder ecclesiastico não é senhoril, mas
ministerial.

A confissão continha tambem um pequeno artigo em que vinha exposta a
opinião lutherana ácerca da doutrina da Ceia do Senhor, e isso compelliu
os theologos suissos e os do sul da Allemanha a apresentarem confissões
separadas: mas a leitura da confissão de Augsburgo, pelos principes,
na Dieta produziu um maravilhoso effeito em toda a Allemanha, e os
protestantes adquiriram a animadora convicção de que estavam todos unidos.

O imperador viu que só por meio de uma guerra poderia destruir a Reforma,
e não se achava preparado para esse recurso. Lembrou-se então de
promover umas conferencias que fossem criando uma certa confusão entre
os protestantes. Era bem conhecido o caracter submisso de Melanchthon,
que n’essas conferencias propunha que, a bem da paz, se fosse cedendo em
todos os pontos. Luthero ficou indignadissimo quando, em Coburgo, soube
do caso. E escreveu: «A mestre Filippe Kleinmuth (Coração pequeno):
Segundo me parece, estaes fazendo uma obra prodigiosa, qual a de
reconciliar Luthero com o papa.... Advirto-vos, porém, de que, se é vossa
intenção metter n’um sacco essa aguia gloriosa que se chama o Evangelho,
Luthero, tão certo como Christo viver, ha-de, fazendo appello a todas
as suas forças, ir libertal-o.» Os principes e o povo ficaram tambem
pessimamente impressionados com a conducta de Melanchthon. «Antes morrer
com Jesus Christo», exclamavam, «do que alcançar, sem Elle, as boas
graças do mundo inteiro». Os catholicos romanos pediam, por fim, mais do
que Melanchthon podia conceder, e, com grande regozijo dos protestantes,
as conferencias cessaram.

=A liga protestante de Schmalkald.=—Os principes sabiam que o imperador
queria esmagal-os. Elle tornou o papa sciente da sua resolução, e
pediu-lhe que excitasse todos os principes catholicos a coadjuvarem-n’o
n’aquella obra. Formou-se uma liga catholica. A resposta dos protestantes
foi recusarem todos os subsidios emquanto os negocios da Allemanha
permanecessem por liquidar.

Os principes reuniram-se em Schmalkald, e formaram uma liga protestante,
de que Filippe de Hesse foi o membro mais activo. Os estados catholicos
romanos não desejavam entrar n’uma guerra civil com os seus visinhos
protestantes, e o imperador, atacado pelos francezes e pelos turcos,
viu-se na impossibilidade de suffocar a revolta.

O ultimo decreto da Dieta havia estabelecido um prazo, que se estendia
até á proxima primavera, durante o qual os protestantes podiam fazer
a sua submissão voluntaria, e accrescentava que aquelles que não se
submetessem durante esse prazo seriam exterminados. Ao chegar, porém,
a primavera, reconheceu-se impotente para exterminar os protestantes.
A Liga de Schmalkald havia-se tornado a mais poderosa aggremiação da
Allemanha. Assim, em 1532, apoz prolongadas negociações, firmou-se
um tratado de paz entre Carlos e os principes protestantes. A Paz de
Nürnberg, como ficou sendo chamada, permittia aos adherentes á Confissão
de Augsburgo o persistirem nas suas doutrinas, e concedia-lhes outros
privilegios. Em troca, os principes protestantes, e entre elles Filippe
de Hesse, offereceram-se, muito cordialmente, para auxiliar o imperador
nas suas campanhas contra os francezes, os turcos e os piratas da
Barbaria.

A Liga de Schmalkald continuou de pé, e outros estados, taes como o de
Würtemberg, deram-lhe a sua adhesão. O imperador não podia dissolvel-a,
e, comtudo, ardia em desejos de restabelecer na Allemanha a uniformidade
religiosa. O exame da sua correspondencia particular revelou a
perplexidade em que elle se encontrava. Tinha umas vezes a idéa da
exterminação, e outras a da conciliação. Um dos seus planos consistia em
promover na Allemanha um Concilio Geral da Egreja, sem consultar nem o
papa nem o rei de França.

Em 1538, Held, o seu vice-chanceller, formou em Nürnberg uma Liga
Catholica, com o expresso designio de acabar com o protestantismo pela
força das armas. Em 1540-41, o imperador diligenciou, por meio de
conferencias que se realisaram em Hagenau Worms, e Regensburgo, chegar
a um certo entendimento com os protestantes em materia de religião, e
chegou a ser proposta em Roma a reforma da Egreja. Foi, finalmente,
publicado, em 1541, um decreto da Dieta, estabelecendo que não se podia
prohibir, a quem quer que fosse, o adoptar a religião protestante.

D’estas victorias da Liga de Schmalkald resultou uma rapida propagação do
protestantismo. O Würtemberg, a Pomerania, o Anhalt, o Mecklemburgo, e
muitissimas cidades, tornaram-se protestantes; os bispados de Magdeburgo,
Halberstadt e Naumberg deixaram de reconhecer a supremacia de Roma;
e duas provincias eleitoraes, o Brandenburgo e a Saxonia Albertina,
uniram-se á Liga. Os unicos estados que se conservaram na opposição
foram a Austria, a Baviera, o Palatinado e as provincias ecclesiasticas
do Rheno. Mas mesmo estas regiões começavam a ser influenciadas. Na
Austria a religião evangelica ia ganhando terreno entre os proprietarios,
os camponezes e os habitantes das cidades. Os bavaros iam-se deixando
invadir rapidamente pelas novas idéas. Quanto ao Palatinado, a sua
aggregação á Liga de Schmalkald parecia ser apenas uma questão de tempo.

O imperador não podia ver com indifferença este rapido progresso do
protestantismo; contrariava-o immenso que os seus dominios nos Paizes
Baixos ficassem separados d’elle por uma faixa de paizes protestantes;
não queria ouvir fallar na possibilidade de uma maioria protestante
no Collegio Eleitoral, e de um sucessor do imperio protestante. O
procedimento do arcebispo-eleitor de Colonia mostrou-lhe que não havia
tempo a perder. Hermann von Wied estava havia muito convencido da
necessidade de reformas na Egreja, e depois da paz de Nürnberg, incitado
por um grande numero de clerigos, e correspondendo ao evidente desejo de
muitas outras pessoas, animou o ensino protestante na sua vasta diocese,
e mostrou-se disposto a converter aquella provincia arqui-episcopal n’um
estado secular protestante.

A posição dos arcebispos e bispos da Allemanha era, nos dias da Reforma,
um tanto singular. Não eram simplesmente bispos, mas tambem barões, e,
como todos os outros grandes barões sujeitos ao imperador na Allemanha,
eram principes soberanos. Os arcebispos de Kõln, Trier e Metz tinham
sobre alguns territorios um governo egual ao que João, o Constante, tinha
sobre a Saxonia eleitoral, e Filippe, o Magnanimo, sobre Hesse. Eram as
supremas auctoridades civicas, com os seus tribunaes, os seus exercitos,
os seus cobradores de impostos. O decreto de 1526 era-lhes tão applicavel
como aos principes seculares. Podiam fazer-se protestantes, dominar nos
seus territorios, como principes seculares, e declarar «que tomavam ante
Deus e sua magestade imperial a responsabilidade do seu modo de viver, do
seu systema de governo e das suas crenças».

Alguns bispos do norte da Allemanha tinham-n’o feito já: a opportunidade
era de tentar: podiam, aproveitando-se d’este decreto, libertar-se da
obediencia a Roma, casar, e legar a seus filhos o que possuiam. Carlos
viu tambem o alcance de aquella opportunidade, mas durante muito tempo
foi-lhe impossivel intervir. Todas as vezes que tentou pôr em pratica os
seus planos via-se contrariado, ou pelo papa, ou pelo rei de França, ou
pelos turcos. Quando lhe constou que parecia estar proxima a conversão
de Hermann von Wied, reconheceu-se impotente para luctar com a Liga
de Schmalkald. Por fim, em 1544, conseguiu derrotar os francezes, com
os quaes tratou, depois, da paz em condições vantajosas para elles,
impondo-lhes, porém, a clausula de uma união dos dois exercitos
para combater os protestantes. Na Dieta de Spira, que se reuniu no
mesmo anno, mostrou-se contemporizador, propondo que se suspendessem
hostilidades até á convocação do Concilio Geral; isto ao passo que por
outro lado trabalhava para desviar da liga protestante o maior numero de
principes que lhe fosse possivel.

=A morte de Luthero, e a guerra de Schmalkald.=—No entretanto Luthero,
que soffria havia bastante tempo de uma doença do coração, morria
em Eisleben, em 18 de fevereiro de 1546, perecendo com elle aquella
forte reluctancia dos protestantes em tentarem a sorte das armas. Não
estavam, porém, tão bem preparados para a guerra como n’outro tempo. O
bom exito que a liga tivera ao principio fez com que elles confiassem
demasiadamente n’ella; além d’isso, surgiram rivalidades entre os estados
e as cidades, e entre os principes. Filippe de Hesse era o unico chefe
competente, mas tinha o defeito de ser um principe de pouco elevada
estirpe. Tinham ficado tambem muito prejudicados com o facto de Mauricio
ter succedido ao duque Jorge da Saxonia, o grande inimigo de Luthero e
da Reforma. Mauricio era sobrinho do duque Jorge, havia sido educado
no lutheranismo, e desposou a primeira filha de Filippe de Hesse.
Por occasião de elle assumir a chefia, a Saxonia Albertina, como era
chamada, confirmou o seu lutheranismo, que durante a vida do duque Jorge
se havia propagado clandestinamente, e que se havia tornado a religião
reconhecida do paiz quando o duque Henrique, pae de Mauricio, succedeu a
seu irmão. Todas estas coisas faziam com que os principes protestantes
não podessem prescindir do concurso de Mauricio, apezar do joven não lhes
inspirar muita confiança. De facto, Mauricio foi o primeiro de aquelles
principes allemães protestantes para quem a Reforma era simplesmente
uma arma politica de que lançassem mão quando lhes fosse vantajosa.
Mais tarde, durante a guerra dos Trinta Annos, o seu numero augmentou
consideravelmente, graças ás interminaveis disputas dos theologos, que,
interessados apenas em que as suas insignificantes doutrinas ácerca da
_ubiquidade_ e da _presença real_ fossem correctamente definidas, se
mostravam quasi indifferentes perante a grande quantidade de sangue
derramado e o grande numero de lares desgraçados. Nos primeiros tempos
da Reforma, porém, os principes protestantes eram homens sinceramente
christãos e que não obedeciam a fins interesseiros, não obstante a sua
forçada camaradagem com Mauricio.

O imperador quiz aproveitar a opportunidade, e com esse intuito fez
algumas propostas a Mauricio. Este começou por abandonar a liga. Era um
bom protestante, disse elle, e estava prompto a defender a religião,
mas não queria ajuntar-se com aquelles que se oppunham ao seu soberano.
O imperador, cobrando animo com esta declaração, deu os ultimos toques
aos seus preparativos. Antes, porém, de entrar em acção, proclamou que
a sua idéa não era combater a religião, mas, sim, castigar aquelles que
conspiravam contra a integridade do imperio.

Não vamos agora narrar pormenorisadamente o que teve logar em seguida.
Devido á traição de Mauricio, á hesitação dos outros, e á falta de mutua
confiança entre os caudilhos da liga, o imperador alcançou uma facil
e, apparentemente, decisiva victoria. A batalha de Mühlberg teve logar
a 24 de abril de 1547, e João Frederico, eleitor da Saxonia, ficou
ferido e foi feito prisioneiro, não tardando que Filippe de Hesse caisse
egualmente em poder dos inimigos.

Toda a Allemanha se prostrou deante do imperador, que declarou logo a sua
intenção de restabelecer a unidade religiosa. Ia redigir um documento
denominado o _Interim de Augsburgo_, especie de confissão de fé que os
allemães seriam obrigados a acceitar. Eram por meio d’elle reintegrados a
hierarquia e o culto catholicos romanos, com todas as suas festividades,
jejuns e ceremonias, sendo apenas tolerado o casamento dos clerigos e a
faculdade do povo commungar nas duas especies.

O Interim era, por assim dizer, um plano de reformação, e estava n’elle
incluido, segundo a opinião de Carlos, tudo quanto se devia conceder
aos protestantes. Em parte alguma o acceitaram de boa vontade. O
imperador não o remetteu aos districtos catholicos romanos, e em todos
os protestantes encontrou uma resistencia passiva. O proprio Mauricio
hesitou em o proclamar na Saxonia, publicando, em logar d’elle, o
_Interim de Leipzig_, que tendia a uma conciliação das ceremonias
papistas com as doutrinas protestantes.

Em breve se tornou evidente que o codigo religioso do imperador só
encontrava submissão da parte do povo nos pontos onde a presença
das tropas hespanholas obrigava a essa submissão. O imperador havia
triumphado, o seu exercito saira victorioso, parecia ter adquirido um
dominio na Allemanha como não succedera a nenhum outro soberano durante
muitos seculos, e, comtudo, lá no seu intimo, sentia-se derrotado, pois
não conseguira o fim principal que tinha em vista. A invisivel força da
consciencia, esse adversario com que elle não contara, estava erguida
contra elle, e havia de, por fim, inutilisar todos os seus bem elaborados
planos politicos.

=O imperador e o Concilio Geral.=—Emquanto o imperador estivera formando
e pondo em pratica os seus projectos para a conquista da Allemanha
protestante, a côrte pontificia vira-se forçada a convocar um Concilio
Geral. Este concilio reuniu-se em Trent, no Tyrol, e, emquanto o
imperador andou mettido na tarefa de subjugar os protestantes, esteve
tomando deliberações relativas á Egreja.

Nos primeiros periodos da controversia a que a Reforma deu origem, os
reformadores appellavam constantemente para um concilio livre, e os
concilios foram sempre os instrumentos favoritos do imperador para a
liquidação das contendas. Os papas, porém, procuravam, antes, evital-os.
No seculo quinze, os concilios geraes de Basiléa, Pisa e Constancia
foram os meios de que os ecclesiasticos e principes se serviram para
investir contra o poder da côrte de Roma. Um concilio geral era um ponto
de reunião para todos aquelles que eram adversos ao christianismo papal;
e a um politico como Carlos V affigurava-se ser um excellente meio de
engrandecer o imperador e humilhar o papa. Anteriormente á Reforma, os
concilios geraes eram olhados com muito respeito. Cria-se que o Espirito
Santo fallava mediante esses concilios, e muitos theologos medievaes, que
negavam a infallibilidade do papa, sustentavam que um concilio não era
susceptivel de errar.

Nos primeiros seculos da Egreja christã, um concilio geral, ou ecumenico,
significava simplesmente uma assembléa que se podia com justiça dizer
que representava a Egreja no seu conjuncto, de modo que as suas decisões
podiam ser chamadas as opiniões de todos os christãos. N’esses remotos
tempos os bispos eram eleitos pelo clero e pelo povo, e eram, portanto,
representantes das regiões de onde tinham vindo, e assim um concilio em
que todos os bispos christãos estivessem presentes achava-se realmente
no caso de fallar em nome de todo o povo christão. Mesmo nas epocas mais
puras da egreja primitiva, concilio algum se realisou a que concorressem
todos os bispos, e que fosse, por conseguinte, realmente ecumenico e
representativo de todos os christãos. No decurso da Edade Media a Egreja
perdeu inteiramente o seu antigo caracter popular, ou democratico, e os
bispos não podiam ser chamados, n’um sentido rigoroso, os representantes
do povo; eram, muitas vezes, apenas os delegados do papa, e iam aos
concilios para votar o que elle houvesse dictado.

Estas e outras considerações tinham feito com que os protestantes
respeitassem menos os concilios, e mostraram ao imperador que um
concilio, para ser util, devia estar quanto possivel fóra da influencia
do papa. Os allemães tinham pedido que se convocasse um concilio livre na
Allemanha, e o imperador tinha tambem ultimamente pedido o mesmo; o papa,
por outro lado, queria que o concilio se realisasse em Italia, onde elle
poderia mais facilmente ter mão nas suas deliberações e decisões. Depois
de muitas negociações entre o papa e o imperador, resolveu-se afinal que
o concilio se reunisse, não em Italia, onde o papa poderia ter demasiado
poder sobre elle, nem na Allemanha, onde o imperador e os principes
poderiam impôr a sua auctoridade, mas em Trent, no Tyrol, n’um ponto
equidistante da Allemanha e da Italia.

O imperador esperava grandes coisas d’este concilio. Sabia que havia
na egreja romana muitos homens competentes que se tinham preparado para
grandes reformas, que ao proprio papa, Paulo III, não eram indifferentes;
não tinha, porém, contado com a influencia de uma nova e poderosa
organisação que estava destinada a alcançar a sua primeira e grande
victoria n’esse mesmo concilio para cuja convocação elle havia trabalhado.

=Loyola e os jesuitas.=—Ignacio Loyola, joven fidalgo hespanhol, educado
no meio da cavallaria de Hespanha, onde as prolongadas guerras com
os moiros tinham tornado a dedicação ao papado um grande elemento de
patriotismo, ficou com uma perna esmigalhada no cerco de Pamplona. Duas
dolorosas operações tinham-n’o convencido, por fim, de que a sua carreira
militar tinha findado, e os seus pensamentos voltaram-se na direcção de
um novo mister. Votou que havia de ser um soldado da Egreja.

Nos accessos da febre produzidos pelo ferimento, tinha phantasticas
visões da Virgem; e, ao restabelecer-se, dedicou a sua vida, com todo o
ceremonial da cavallaria da Edade Media, a Deus, á Virgem e á Egreja.
Elle vivia alheiado da moderna erudição. Não sabia nada de theologia. A
sua religião era medieval, e o seu sonho era ser, no seculo dezeseis, um
novo Francisco de Assis.

É singular que este enthusiastico fidalgo hespanhol fosse excitado pela
mesma idéa que ditou a fria politica de Carlos V. Ambos queriam renovar
seculos que tinham desapparecido para sempre; e, emquanto um estava
planeando a restauração do Imperio do primeiro periodo da Edade Media,
o outro estava regalando a mente com uma nova ordem de frades, cujos
feitos missionarios haviam de rivalisar com os dos antigos franciscanos.
O imperador foi mal recebido; o solitario fidalgo teve um exito que
excedeu quasi os seus sonhos. Apoz alguns annos de estudo, de decepções,
de demoras, obteve permissão do papa para fundar a Companhia de Jesus.

A nova ordem tinha apenas cinco annos de existencia quando teve logar,
em 1545, o concilio de Trento, mas já se havia tornado famosa. Os
seus sucessos como sociedade missionaria, a sua devoção por Francisco
Xavier, e o enthusiasmo de seus membros, tudo contribuiu para a tornar
formidavel. Lainez, um dos primeiros discipulos de Loyola, e seu
successor como cabeça da companhia, cujo criterio deu á ordem o caracter
que lhe estava destinado, representou os seus companheiros no concilio de
Trento.

A maxima da Sociedade era uma inexoravel suppressão da heresia, e o
seu unico principio era a obediencia á Ordem e ao papa; e, n’essa
conformidade, Lainez tratou activamente de evitar que o concilio fizesse
quaesquer concessões aos protestantes. O seu modo de discursar, a sua
subtileza e a sua tenacidade deram-lhe grande influencia. Poude logo ao
principio levar de vencida os cardeaes Contarini e Pole, esses grandes
catholicos romanos liberaes, e conseguir que o concilio não auctorizasse
reformas doutrinaes.

As victorias de Carlos na Allemanha ajudaram os jesuitas. O papa não
podia jámais pensar ou obrar simplesmente como chefe da Egreja. Elle era
uma potencia politica, e as razões de estado influiram nas suas acções.
N’esta conjunctura, os interesses do principe italiano oppunham-se á
existencia de uma christandade una. O rei de França, Henrique II, chamou
a attenção para o facto de Carlos se tornar poderoso em demasia e de ser
provavel que assim continuasse se as concessões religiosas estabelecessem
a união na Allemanha. Quando Carlos venceu a Liga protestante, e procurou
obter de Roma concessões que satisfizessem os subditos que havia
submettido ao seu dominio, o papa recusou auxilial-o, afastou de Trento
o concilio, e installou-o em Bolonha, na Italia, de modo que os planos
do imperador foram novamente contrariados pelo cabeça da egreja que elle
se empenhava por conservar catholica. Na sua ira, virou-se para o papa e
compelliu-o a dissolver o concilio. Este dispersou para só se tornar a
reunir quando toda e qualquer esperança de reconciliar os protestantes
tinha desapparecido, e d’esta vez poude, sem a peia do protestantismo,
consolidar a organização externa de um dominio exclusivamente papal.

O imperador não foi mais bem succedido na Allemanha. As crueldades de que
os principes que tinha feito prisioneiros foram victimas, a infidelidade
de que deu prova na perseguição dos protestantes, a despeito de tudo
quanto tinha feito proclamar, e as extorsões commettidas pelas tropas
hespanholas—tudo isto contribuiu para tornar a Allemanha hostil, e
não faltavam indicios de que o paiz não supportaria por muito tempo a
tyrannia de Carlos. E a revolta teria rebentado mais cedo, se Mauricio, o
traidor, não fosse tão odiado, ou se tivessem confiança n’elle.

O imperador parecia não ter olhos para ver o que se estava passando.
Estava convencido de que Mauricio, a quem havia nomeado eleitor, estava
nas suas mãos, e de que sem elle, Mauricio, a Allemanha não podia
fazer coisa alguma. Entretanto, os principes procuravam reunir-se de
novo. Offereceram á França uma parte do territorio allemão em troca do
seu auxilio, e por fim organisou-se uma confederação, em que entrava
Mauricio, e os principes trataram de guarnecer as fronteiras do Tyrol,
para que estas não fossem transpostas pelas tropas imperiaes. Mauricio
avançou impetuosamente e tomou de assalto a fortaleza de Ehrenherg, que
era a chave do Tyrol; e o imperador para escapar teve de recorrer a
uma fuga subita, e achou-se em Steiermark, sem exercito, e expulso da
Allemanha. Foi a um tumulto que se levantou entre as tropas confederadas
que elle deveu não ser apanhado, pois que Mauricio fez todo o possivel
por agarrar «a velha raposa no covil», segundo a phrase d’elle.

=A paz religiosa de Augsburgo.=—Carlos V nunca se resarciu d’este
desastre. A Reforma tinha-o, por fim, vencido, e elle reconhecia esse
facto, sem, comtudo, o comprehender. Elle não quiz entrar directamente
em negociações com os principes victoriosos, encarregando d’isso o seu
irmão Fernando. Filippe de Hesse e João Frederico da Saxonia foram postos
em liberdade. Filippe reentrou na posse dos seus dominios; a João foram
tambem restituidas algumas das suas propriedades, mas Mauricio continuou
no logar de eleitor. Os preliminares de uma paz permanente foram vasados
nos velhos moldes de Nürnberg, pelo tratado de Passau, em 1552.

Por fim, apoz longas negociações, saiu da Dieta de Augsburgo, em
1555, uma paz religiosa, «a qual» dizia o decreto, «tem de ser
permanente, absoluta, e incondicional, e tem de durar para sempre».
Foi reconhecido aquelle principio que se estabeleceu em 1526, isto é,
que a suprema auctoridade civil de cada estado tinha liberdade para
escolher o respectivo credo, lutherano ou catholico romano. Esta paz,
por conseguinte, reconhecia o direito das egrejas com separadas crenças
existirem ao lado umas das outras na Allemanha, tornando assim legal a
existencia da Reforma.

O principio a que obedecia este regulamento, _cujus regio ejus religio_,
acarretava difficuldades que não podem ser aqui descriptas, e foi, na
verdade, uma das causas da guerra dos Trinta Annos, que tão calamitosa
foi para a Allemanha. Não concedia liberdade de consciencia; não fazia
provisão para qualquer outra fórma de protestantismo além da lutherana; e
todos aquelles que não tinham adherido á confissão de Augsburgo estavam
ainda fóra da lei, juridicamente fallando.

Aquelles que fizeram uso d’ella na Dieta tinham de modifical-a de um ou
de outro modo. Os protestantes viram que ella auctorizava os principes
catholicos romanos a perseguirem os subditos que o não fossem; e os
catholicos viram que ella permittia aos principes ecclesiasticos
secularizarem os seus estados. Assim os protestantes obtiveram a
inserção de uma clausula que declarava que os subditos protestantes de
principes ecclesiasticos, que de ha muito tivessem adoptado a confissão
de Augsburgo, não seriam obrigados a abandonar as suas idéas religiosas;
e os catholicos obtiveram a inserção do que se ficou chamando «a reserva
ecclesiastica», que preceituava que, se algum estado catholico romano se
separasse de Roma, fosse destituido de todas as prerogativas que as suas
dioceses disfructavam.

Com a paz de Augsburgo terminaram as luctas para o reconhecimento da
Reforma lutherana. A egreja protestante da Allemanha, que adheriu á
confissão de Augsburgo, tinha ainda que sustentar um grande combate para
se defender da contrareforma catholica romana, das intrigas jesuiticas,
e da força das armas durante a guerra dos Trinta Annos. Conservou a sua
integridade, mas foi só o que fez. A paz de Augsburgo foi a maré cheia da
egreja lutherana.

Na lucta que teve logar depois, foi a mais moderna e mais perseverante
fórma do protestantismo que arrostou com os impetos do ataque, e que se
tornou digna de receber os despojos da conquista. O lutheranismo reteve
a sua integridade, consolidou as suas organizações ecclesiasticas, e
aperfeiçoou a sua theologia; mas, como vigoroso movimento reformador, a
sua historia terminou com a paz de Augsburgo.



CAPITULO II

A REFORMA LUTHERANA FÓRA DA ALLEMANHA

    O lutheranismo fóra da Allemanha, pag. 49.—Na Dinamarca, pag.
    50.—Na Suecia, pag. 51.


=O lutheranismo fóra da Allemanha.=—Durante os primeiros annos da
Reforma, a influencia de Luthero transpoz os limites da Allemanha. A
Universidade de Wittenberg attrahiu muitos estudantes estrangeiros,
os quaes, voltando para as suas terras, propagaram, clandestina ou
abertamente, as novas doutrinas.

Aconteceu d’esse modo que os preliminares da Reforma n’esses paizes, que
depois se separaram de Roma e formaram egrejas protestantes nacionaes,
foram quasi inteiramente lutheranos. Os primeiros reformadores e
martyres dos Paizes Baixos eram lutheranos, e os dogmas doutrinaes e
ecclesiasticos de Luthero foram durante muito tempo acatados na Hollanda.

Os movimentos reformadores na Hungria, na Polonia, na Bohemia e na
Escocia foram iniciados por homens que se apresentavam como discipulos de
Luthero, e mesmo na Inglaterra os principios lutheranos progrediram algum
tanto. Em todos esses paizes, porém, foi ganhando, por fim, terreno um
outro typo de doutrina protestante, o Calvinismo, e a Reforma lutherana
eclipsou-se.

Unicamente dois paizes, a Dinamarca e a Suecia, com as suas dependencias,
adoptaram de um modo permanente a confissão de Augsburgo e os principios
lutheranos do governo da egreja.

A Reforma estava n’estes paizes, mais do que em qualquer outra parte,
identificada com a revolução politica, e foi executada por governantes
que se haviam compenetrado de que não era possivel melhorar o estado das
coisas emquanto não fosse abatido o poder de que o clero romano dispunha.
A historia da Reforma n’esses paizes é a historia de uma revolução, e a
moderna vida politica da Dinamarca e da Suecia principia com a reforma
das suas egrejas.

No principio do seculo dezeseis, a Dinamarca, a Suecia e a Noruega
estavam sob a soberania de um rei que tinha a sua residencia no primeiro
d’estes paizes, e que tinha sobre os outros dois um poder apenas nominal.
Estes paizes estavam quasi n’um estado de anarquia. Duas grandes
aristocracias, a da nobreza e a da egreja, dividiam entre si a riqueza e
o poderio, sendo cada um dos barões e cada um dos bispos um verdadeiro
despota para com aquelles que estavam debaixo da sua auctoridade. A união
das tres nações, effectuada no fim do seculo quatorze, era puramente
dynastica, e vista com muito maus olhos pelo povo.

Em 1513 subiu ao throno Christiano II, cruel, voluvel e nescio monarca,
que grangeara em ambos os paizes a antipathia de todas as classes.
Um massacre de fidalgos suecos, que teve logar em Stockolmo, em
circumstancias as mais revoltantes, exgotou a paciencia do povo, e a
Dinamarca e a Suecia levantaram-se contra o tyranno. A revolução foi
bem succedida; Christianno II foi derrubado do throno, e as duas nações
ficaram de ahi em deante independentes uma da outra.

=Na Dinamarca.=—Os dinamarquezes offereceram a corôa a Frederico I,
duque de Schleswig-Holstein, que era um ardente lutherano, e chefe
d’um estado que já tinha acceite a Reforma. Acceitou-a, e por occasião
da sua coroação o clero obrigou-o a declarar por escripto que não
introduziria á força a religião reformada, nem atacaria a egreja de
Roma, nos seus novos dominios. Frederico cumpriu essa obrigação segundo
a letra, mas não segundo o espirito, da mesma. Favoreceu e protegeu
prégadores e evangelistas lutheranos, e em particular a João Jansen,
frade dinamarquez, que tinha estado em Wittenberg; e a nova fé fez
taes progressos que dentro em pouco quasi todos os nobres da Jütlandia
a tinham abraçado, e nas ilhas o numero de adeptos era consideravel.
Em fins de 1527 reuniu-se em Odensee uma Dieta, expressamente para
ser tratada a questão religiosa, e ficou assente a tolerancia do
lutheranismo. Durante os annos que immediatamente se seguiram, as novas
doutrinas espalharam-se com rapidez por entre o povo. Os catholicos
romanos intentaram readquirir o seu poder por occasião do fallecimento
de Frederico, em 1533, mas não o conseguiram, e a auctoridade dos
bispos foi desapparecendo a pouco e pouco, até se extinguir de todo. Os
nobres haviam cooperado com o rei na sua obra de demolir a aristocracia
ecclesiastica, e as terras que eram da egreja ficaram, na sua maioria,
pertencendo ao rei.

A Dinamarca ficou sendo, desde então, um paiz protestante. O seu credo
é a confissão de Augsburgo, porque os lutheranos nunca adoptaram, na
Dinamarca, a formula da concordata; o seu catecismo é o de Luthero;
e sua fórma de governo de egreja, posto que admitta um episcopado, é
consistorial. A constituição vem exposta no _Ordinatio ecclesiastica
regnorum Danicæ et Norwegeæ_, de Bugenhagen. O rei possuia o _jus
episcopale_, e era a suprema dignidade ecclesiastica; os nobres eram os
patronos; e a Egreja era governada por sete superintendentes com o titulo
de bispos. Na grande lucta entre o protestantismo e o catholicismo romano
no seculo dezessete, a chamada guerra dos Trinta Annos, a Dinamarca
enviou aos protestantes da Allemanha todo o auxilio de que o paiz podia
dispôr.

=Na Suecia.=—Depois do massacre de Stockholmo, Gustavo Vasa, joven
fidalgo sueco, que havia perdido quasi todos os parentes n’aquella
carnificina, organisou a rebellião contra Christianno II, e trabalhou
muito para que ella tivesse bom exito. Em 1521 foi declarado regente
do reino, e em 1523 foi, pela voz do povo, chamado ao throno. Achou-se
em presença de difficuldades quasi invenciveis. Não tinha havido,
praticamente, um governo estabelecido na Suecia durante mais de um
seculo, e cada dono de terras era quasi um soberano independente. Dois
terços das terras pertenciam á Egreja: e o terço restante pertencia quasi
inteiramente á nobreza; os camponezes eram em toda a parte opprimidos;
o commercio estava nas mãos da Dinamarca ou da Liga Hanseatica; e não
havia classe media. Os nobres e os ecclesiasticos exigiam isenção de
contribuições, e os camponezes não podiam supportar novos encargos.

N’estas circumstancias Gustavo Vasa voltou os olhos para as terras da
egreja, e planeou a demolição da aristocracia ecclesiastica com o auxilio
da Reforma lutherana.

Parece não haver razão para crer que o rei não fosse um homem religioso,
perfeitamente compenetrado da verdade e do poder das doutrinas
evangelicas; mas o seu zelo pela Reforma obedecia tambem a outros
motivos. Precisava de dinheiro para as despezas publicas, queria
proporcionar aos camponezes uma situação mais desafogada, e ambicionava,
acima de tudo, demolir a poderosa aristocracia ecclesiastica, que se
arrogava direitos que só a elle pertenciam como rei. Teve de proceder
cautelosamente. A gente do campo não conhecia as doutrinas lutheranas,
nem queria mudar de religião; os nobres opinavam que o rei estava
atacando os direitos da propriedade, e que lhes chegaria a vez a elles,
se consentissem que os bens da egreja fossem arrebatados; e, quanto á
aristocracia ecclesiastica, essa dispunha de muita força.

É necessario tambem lembrar que, quando Gustavo se poz á frente do
movimento que tinha por fim derrubar a tyrannia da Dinamarca, essa
tyrannia foi abençoada pelo papa e recebeu o apoio dos bispos suecos.
Elle era um homem excommungado, um homem a quem a egreja havia
proscripto. Essa circumstancia pôl-o em contacto com os prégadores
lutheranos, que já andavam pela Suecia.

Dois irmãos, Olaf e Lourenço Petersen, que tinham estudado em
Wittenberg, e que no seu regresso á Suecia tinham prégado contra um
certo vendilhão de indulgencias que havia penetrado no seu paiz, foram
perseguidos pelos bispos e fugiram para Lubeck, onde Gustavo travou
conhecimento com elles. Elles e um outro lutherano sueco, Lourenço
Andersen, arcediago de Strengnäs, eram abertamente protegidos pelo rei,
e começaram a prégar contra o culto dos santos, contra as peregrinações,
contra a vida monastica e contra a confissão auricular. Olaf Petersen,
sobretudo, andava por uma parte e por outra prégando o Evangelho puro,
«que Ansgar, o apostolo do norte, annunciara na Suecia setecentos annos
antes.».

Os bispos protestaram contra as suas predicas, e em resposta o reformador
desafiou-os para uma polemica, que elles não acceitaram. O resultado
d’isso foi uma rapida propagação das doutrinas evangelicas. Gustavo
poz Olaf Petersen como prégador em Stockholmo, Lourenço Petersen foi
leccionar para Upsala, e Lourenço Andersen foi nomeado chanceller do
reino. Promoveram-se polemicas publicas, segundo o costume allemão, em
diversos pontos do reino; e por fim, em 1524, Olaf Petersen e o dr. Galle
de Upsala discutiram publicamente as doutrinas da justificação pela
fé, das indulgencias, da missa, do Purgatorio, do celibato e do poder
temporal do papa, o que foi assaz vantajoso para a causa da Reforma.

Em 1526 Andersen concluiu a traducção do Novo Testamento em sueco, e o
povo, em cujas mãos o livro foi entregue, poude então comparar o ensino
dos prégadores e dos bispos com o da palavra de Deus.

A falta de dinheiro para occorrer ás despezas publicas fazia-se sentir de
uma fórma assustadora, e em 1526 foram impostas, por duas Dietas, pesadas
contribuições sobre as propriedades da Egreja. O partido ecclesiastico,
com os bispos á frente, promoveu uma revolta, que foi suffocada, e
Gustavo conheceu que havia chegado a occasião de pôr em pratica os seus
planos. Na Dieta de Westeräs expoz a situação financeira do reino, e
propoz que uma parte da enorme riqueza da Egreja fosse applicada ao
pagamento da divida nacional, revertendo de ahi em deante as receitas
em favor do cofre da nação. Os nobres rejeitaram este alvitre; os
clerigos declararam que só á força cederiam. Vendo isto, Gustavo, apoz
um eloquente discurso, abdicou. Os diversos estados pozeram-se então
em contenda uns com os outros, e, depois de uma anarquia de alguns
dias, assentiu-se na proposta de Gustavo, a qual foi convertida em lei
e publicada n’um decreto da Dieta, que marca realmente o inicio da
historia moderna da Suecia. Ficou estabelecido, entre outras coisas,
que o rei tinha o direito de se apoderar dos castellos e cidadellas dos
bispos, e tomar posse de todos os bens ecclesiasticos; e ficou egualmente
reconhecida a existencia legal da egreja lutherana.

D’essa epoca em deante a obra da reformação progrediu rapidamente, e
dentro em pouco o lutheranismo tornou-se a religião official do paiz.
Os bens da Egreja foram confiscados para o Estado, deixando-se, porém,
ficar o sufficiente para a sustentação do culto. Conservou-se a fórma de
governo episcopal, mas ficou rigorosamente estabelecida a supremacia do
rei, como na egreja lutherana. Retiveram-se muitas ceremonias e costumes
papistas, taes como o uso da agua benta, dos retabulos e das velas, mas
tudo protestantemente interpretado. Lourenço Petersen foi o primeiro
arcebispo protestante de Upsala, cargo que começou a exercer em 1531.
Dez annos depois, isto é, em 1541, ficou completa uma nova traducção da
Biblia, feita pelos irmãos Petersen. Quando Gustavo morreu, todo o paiz
estava inteiramente consorciado com a egreja lutherana, e a sua affeição
ao severo lutheranismo demonstrou-a elle adoptando, em 1664, a Formula da
Concordata.



II PARTE

A REFORMA SUISSA, QUE DEU ORIGEM ÁS EGREJAS REFORMADAS

CAPITULOS:

      I—A REFORMA SUISSA SOB ZWINGLIO.

     II—A REFORMA EM GENEBRA, SOB CALVINO.

    III—A REFORMA EM FRANÇA.

     IV—A REFORMA NOS PAIZES BAIXOS.

      V—A REFORMA NA ESCOCIA.



CAPITULO I

A REFORMA SUISSA SOB ZWINGLIO

    As reformas suissa e allemã, pag. 57.—A situação politica
    da Suissa, pag. 58.—Ulrico Zwinglio, pag. 60.—As theses de
    Zwinglio, pag. 62.—A Reforma em Zurich, pag. 63.—Basiléa,
    pag. 64.—Berne, pag. 64.—Os Cantões Florestaes, pag.
    64.—Caracteristicos da Reforma de Zwinglio, pag. 65.


=As reformas suissa e allemã.=—A Reforma na Allemanha tem geralmente
chamado mais a attenção do que a revolta contra Roma na Suissa. O
conflicto com o imperador, que ella provocou, o seu rapido alastramento,
o numero de estados e reinos que adheriram a ella, a parte que as
universidades, onde estavam matriculados muitos estudantes estrangeiros,
tomaram no movimento, tudo isso contribuiu para que Luthero e a Allemanha
adquirissem mais conspicuidade do que Zwinglio e a Suissa; mas, se
devemos julgar uma Reforma mais pelas suas consequencias do que pelos
seus principios, o movimento começado na Suissa foi ainda mais importante
do que o que teve Wittenberg por centro. Com o decorrer do tempo, foi-se
reconhecendo que as idéas dos reformadores suissos, tanto pelo que lhes
dizia respeito como pelo que dizia respeito á organização da egreja,
podiam ser facilmente transplantadas para outros paizes, e de ahi veiu
que as egrejas de França, da Escocia, da Hungria e uma grande parte das
da Allemanha receberam melhor as tradições de Zwinglio e de Calvino do
que as de Luthero e de Melanchthon.

Isto é talvez devido ao facto de que os grandes theologos da Reforma no
sul da Europa eram menos inclinados a submetter-se ás tradições, tanto
doutrinaes como de qualquer outro genero, da egreja medieval, mesmo em
assumptos que para algumas pessoas pareciam ser de pouca importancia, sob
o ponto de vista da fé, e insistiram logo desde o principio em que se
devia seguir as claras instrucções da Escriptura, tanto as que se referem
aos pequenos casos como aos de muita importancia. Nem Zwinglio nem
Calvino queriam adoptar a doutrina da _presença real_ pela razão de a
egreja medieval a ter adoptado, e não experimentaram aquella dificuldade
que Luthero teve sempre em fazer uma coisa de um modo differente de
aquella em que os seus antepassados a faziam.

É provavel, comtudo, que houvesse uma outra razão que tivesse a mesma
força, e que essa razão se deva procurar nas idéas politicas e na
educação do povo suisso. Na egreja medieval os direitos dos christãos
tinham desaparecido inteiramente. Quando alguem fallava em egreja,
referia-se ao papa, aos bispos, aos abbades, aos frades, ás freiras e aos
padres; não se referia á grande corporação dos christãos piedosos, que
constituiam, realmente, a egreja de Deus.

Na Reforma de Luthero, posto que elle e os outros reformadores soubessem
perfeitamente que a verdadeira egreja visivel era constituida pelo povo
piedoso que professava a fé em Jesus Christo, não tinham podido dar
uma expressão pratica a esse sentimento, e o systema consistorial dos
lutheranos collocava os principes e as outras auctoridades civis no logar
que os bispos e as suas côrtes tinham occupado. Poderiam dizer que o
povo christão era a egreja; mas nunca diligenciaram dar a essa egreja
uma fórma tal que ella podesse pensar e agir por si propria, como os
christãos dos tempos apostolicos e postapostolicos tinham feito. Pode-se
quasi dizer que não trataram de incutir na vida da egreja reformada as
maximas de auto-governo que inspiraram a communidade christã do Novo
Testamento. Tinham a noção medieval de que a egreja tinha de ser dirigida
de fóra, que não podia dirigir-se a si mesma.

Na Suissa, logo desde o principio se tornou bem evidente que a egreja e o
povo christão eram uma e a mesma coisa, e os projectos de auto-governo,
que, se não foram sempre bem succedidos, eram, pelo menos, feitos
com boa intenção, faziam parte da Reforma proposta. Isto proveiu,
indubitavelmente, de um cuidadoso estudo do Novo Testamento; mas a
vida popular dos suissos, uma vida livre, ajudava-os a comprehender o
sentido do Novo Testamento, e assim poderam, logo de começo, enveredar
pelo bom caminho. Uma Reforma iniciada no amago da livre e democratica
vida suissa estava mais no caso de comprehender a democracia espiritual
do christianismo do Novo Testamento do que aquella que principiou nas
universidades e nas côrtes dos principes allemães.

=A situação politica da Suissa.=—A Suissa era, n’aquelle tempo, um paiz
como não havia outro na Europa. Estava tão dividido como a Italia ou a
Allemanha, e, comtudo, apresentava uma união que ellas não apresentavam.
Era uma confederação de estados, ou cantões, cada um dos quaes era
independente de aquelles com que confinava, mantendo, porém, com elles
uma perfeita alliança. Era uma confederação de republicas independentes,
ou, antes, «uma pequena republica de communas e cidades do primitivo typo
teutonico, em que o poder civil era exercido pela communidade», cada uma
d’ellas com um systema governativo differente.

Os camponezes suissos tinham-se revoltado contra os proprietarios no
principio do seculo quatorze; a batalha de Morgarten, onde 1.300 suissos
derrotaram 10.000 austriacos, teve logar em 1315. Cerca de dois seculos
mais tarde, os cantões florestaes formaram uma liga para defeza mutua, a
que pouco depois se aggregaram outras pequenas communidades de cidadãos
livres. A sua bandeira era vermelha com uma cruz branca ao centro, e
tinha a seguinte inscripção: «Um por todos, e todos por um.»

Os cantões florestaes eram communas independentes, e os seus habitantes,
todos elles proprietarios rusticos, residiam em valles quasi
inaccessiveis. Zurich pertencia a uma cidade que se havia formado em
redor de uma colonia ecclesiastica; Berne a um antigo logarejo que se
aninhava junto á base de um castello senhorial; e assim por deante. Os
cantões florestaes tinham um governo simples, patriarcal; em Zurich os
nobres tinham a mesma consideração que os commerciantes e artistas, e
a constituição era perfeitamente democratica; Berne era uma republica
aristocratica; e assim successivamente; mas em todas ellas o governo
estava nas mãos do povo, e todos os homens eram livres.

Uma outra coisa digna de nota é que na Suissa não houve, durante
umas poucas de gerações, nada que se parecesse com uma administração
episcopal. As suas communicações com o pontificado eram effectuadas por
meio de delegados, ou emissarios, e obedeciam apenas a motivos politicos.
O territorio estava sob a jurisdicção dos arcebispos de Mayença e de
Besançon; mas nem elles nem os prelados visinhos tinham em tempo algum
exercido qualquer pressão sobre o clero paroquial dos cantões suissos, e
d’este modo não havia tanta difficuldade em introduzir reformas na egreja.

No principio do seculo dezeseis a civilisação estrangeira e a convivencia
com os paizes adjacentes foram mudando os velhos e simples costumes
do povo suisso. Na Edade Media era crença geral que a força principal
de um exercito estava na sua cavallaria; mas as victorias que os
suissos alcançaram sobre as tropas austriacas e borgonhezas mostraram
a superioridade de uma boa infanteria, convenientemente adestrada.
As tropas suissas tinham fama de serem as melhores do mundo, sendo
muitas vezes solicitado o seu auxilio pelos estados visinhos quando
tinham de entrar em campanha, e entre os suissos havia-se desenvolvido
gradualmente o mau habito de alugar os seus soldados a quem maior somma
de dinheiro offerecesse. Era costume, quando um regimento suisso partia
para a guerra por conta de qualquer nação estrangeira, levar comsigo,
na qualidade de capellão, o paroco da localidade a que o dito regimento
pertencia; e alguns d’esses capellães, verificando que este serviço
mercenario tendia a desmoralizar o exercito, faziam todo o possivel, no
seu regresso á patria, para que esta perniciosa pratica fosse abolida.

=Ulrico Zwinglio.=—Um dos mais famosos d’estes patriotas foi Ulrico
Zwinglio, paroco de Glarus, e que mais tarde veiu a ser o Reformador da
Suissa.

Zwinglio nasceu em 1 de Janeiro de 1484, em Wildhaus, no Toggenburgo,
pequena região montanhosa, cuja altitude era tal que não produzia arvores
de fructo, sendo tambem impossivel cortal-a de estradas. O pae d’elle
era o chefe, ou magistrado, da communa, e um dos seus tios era o deão de
Wesen.

O pae resolvera destinal-o á carreira ecclesiastica, e como, em vista da
sua desafogada situação, estava no caso de proporcionar ao filho uma boa
educação, mandou-o estudar em Basiléa e em Berne, de onde passou para
a grande universidade de Vienna. Ahi seguiu elle com grande brilho os
estudos classicos, enchendo-se de enthusiasmo pela nova instrucção que
a Italia estava ministrando á Allemanha e á França, e sentindo orgulho
em pertencer á classe dos humanistas. De Vienna voltou para Basiléa,
e estudou theologia com Thomaz Wyttenbach, um de aquelles theologos
liberaes que reprovavam abertamente as indulgencias, sobre o fundamento
de que Christo resgatou, com a Sua morte, os peccados de todos os homens.

Foi pensando no seu velho professor que Zwinglio disse, muitos annos
depois: «Devemos ter consideração por Martinho Luthero; mas o que é certo
é que aquillo que temos em commum com elle já o conheciamos muito antes
de ouvir fallar no seu nome».

Recebeu o seu grau de Mestre de Artes em 1506, e em seguida foi nomeado
cura da pequena paroquia de Glarus. Viveu ahi dez annos, lendo e
estudando os auctores classicos latinos, e em especial Cicero, Seneca
e Horacio; começou tambem a aprender grego com muito afan, e a esse
respeito escreveu a um dos seus amigos: «Só se assim fôr da vontade de
Deus é que eu deixarei de me iniciar no grego; não o faço para adquirir
fama, mas para ter mais profundo conhecimento das Escripturas Sagradas.»
Os seus livros favoritos do Novo Testamento eram, diz-se, as Epistolas de
S. Paulo. Copiou-as com as suas proprias mãos de mais de um manuscripto,
e sabia-as, por fim, de cór. Os seus estudos biblicos impelliram-n’o a
declarar que o unico meio de chegar ás verdadeiras doutrinas era prestar
ouvidos á exposição que a Biblia fazia de si propria, e que o papado
havia feito com que a egreja se corrompesse. Era este o seu modo de
pensar em Glarus, quando Luthero era ainda um dedicado filho da egreja
medieval, torturando-se com jejuns e flagellações.

Em 1516 foi transferido para a paroquia de Einsiedeln, onde havia uma
abbadia que era, e ainda é, o santuario de uma celebre imagem da Virgem,
a que se attribuiam muitos milagres. As multidões vinham em peregrinação
a esta localidade, e Zwinglio sentia crescer a sua indignação perante
a idolatria e superstição de aquella gente, e perante o embuste e
sacrilegio do abbade e dos padres que estavam sob as suas ordens. Começou
a fazer prégações aos peregrinos, mostrando-lhes a loucura e o peccado
de dar culto ás imagens e aos santos. N’um dos seus sermões proferiu
o seguinte: «Na hora da vossa morte clamae só por Jesus Christo, que
vos comprou com o Seu sangue, e que é o unico Mediador entre Deus e
os homens.» Estas suas predicas produziram uma enorme excitação, e,
tendo constado em Roma, foi dada ordem ao legado do papa para reduzir
o prégador ao silencio, offerecendo-lhe uma promoção na egreja. Elle
recusou todos os offerecimentos de melhoria de situação que o dito legado
lhe fez, mas quando o conselho dos cidadãos de Zurich lhe pediu, em 1519,
para ir para lá como pastor, acceitou muito gostosamente, e não tardou em
ter uma grande influencia n’aquella importante cidade e capital de cantão.

Pouco depois de elle se installar em Zurich, um vendedor ambulante de
indulgencias, Bernardo Samson, appareceu a offerecer ao povo o artigo do
seu commercio. Zwinglio protestou contra o seu procedimento, e conseguiu
que as auctoridades o pozessem fóra. Começou tambem a fazer uma serie de
conferencias sobre o Novo Testamento, em que expoz as doutrinas da graça
e da justificação pela fé sómente. Estas conferencias eram feitas na
presença de centenares de pessoas, que ouviam o Evangelho com agrado.

A Suissa tinha, em virtude de antigos tratados, provido de infanteria o
papa nas suas guerras com o imperador; a influencia de Zwinglio, porém,
era tão grande que em 1521 o cantão de Zurich recusou alugar os seus
soldados, como até ali tinha feito. Esta patriotica resistencia a um
infame trafico de sangue levantou maior opposição do que todos os sermões
prégados por Zwinglio, e os clerigos papistas do cantão, assim como os
bispos das visinhas dioceses, empregaram todas as diligencias para que
a sua voz deixasse de ser ouvida. No anno anterior o legado do papa
tinha pedido á Dieta suissa que procurasse e destruisse todos os livros
lutheranos que haviam penetrado no paiz, e a Dieta passou ordens n’esse
sentido.

A junta da cidade de Zurich, influenciada por Zwinglio, posto que
obedecesse apparentemente á Dieta, intimou todos os curas, pastores
e prégadores a «prégarem os Santos Evangelhos e as Epistolas em
conformidade com o Espirito de Deus e com as Sagradas Escripturas do
Antigo e Novo Testamento.» Esta intimação deu um impulso ao movimento
evangelico, que já havia principiado. Zwinglio publicou o seu tratado
sobre o jejum em 1522, e muitos habitantes de Zurich começaram logo,
durante a quaresma, a fazer uso das comidas prohibidas pela egreja.
Prégou contra o celibato clerical, e o povo applaudiu-o. O papa, Adriano
II, queria a todo o transe evitar uma questão com os suissos, cujas
tropas lhe eram tão uteis, e tentou dissuadir Zwinglio por boas maneiras,
nada conseguindo, porém. Emquanto os legados percorriam leguas e leguas
para lhe transmittirem os lisongeiros recados de que eram portadores,
escrevia Zwinglio o seu _Apologeticus_, vigoroso ataque ás corrupções da
egreja.

O bispo de Constancia pediu aos habitantes de Zurich que impozessem
silencio ao reformador; Zwinglio solicitou d’elles licença para uma
discussão publica, e comprometteu-se a provar, na presença de todos, que
as suas opiniões se fundamentavam na Biblia. A junta accedeu, e fixou,
para essa discussão, o dia 23 de Janeiro de 1523.

=As theses de Zwinglio.=—A fim de separar convenientemente os assumptos
a discutir, Zwinglio compoz uma lista de sessenta theses, inscrevendo
por sua ordem os pontos em que a sua doutrinação differia da dos seus
accusadores, constituindo o conjuncto um bem elaborado resumo de
theologia protestante. As theses affirmavam, em poucas palavras, o
seguinte:—Jesus Christo, e só Elle, é o verdadeiro objecto do culto,
e é só Elle a quem se deve glorificar; e a unica coisa necessaria é
abraçal-O e abraçar o Seu Evangelho. Tudo quanto Roma apresenta para
intervir entre Christo e o Seu povo, ou para accrescentar ou tirar alguma
coisa do Evangelho, não passa, por consequencia, de meras pretensões,
com que insulta a Jesus Christo, nosso unico Summo Sacerdote. Christo
morreu na cruz, resgatando, de uma vez para sempre, os peccados do
Seu povo, e portanto a missa, que se assevera continuar, ou repetir,
esse sacrificio, constitue uma falsidade, e a eucaristia é apenas uma
ceremonia commemorativa. Jesus Christo é o unico Mediador entre Deus e o
homem, e, assim, o culto dos santos é uma idolatria. A Escriptura Sagrada
não contém uma palavra ácerca do purgatorio, e é coisa que não existe.
Nada desagrada mais a Deus do que a hypocrisia; segue-se, portanto, que
tudo quanto assume santidade aos olhos dos homens é loucura; e isto é uma
condemnação dos capuzes, dos symbolos, dos habitos e das tonsuras.—Por
similhante fórma, Zwinglio condemnou a ordenação, a confissão auricular,
a absolvição, o celibato clerical e todas as ordenanças exclusivamente
ecclesiasticas.

Ajuntou-se uma grande multidão de gente a ouvir a polemica, e, na opinião
dos assistentes, Zwinglio derrotou facilmente os seus antagonistas.

Esta polemica foi seguida por outra, em 1523, e por uma terceira, em
1524, e resultou das tres que o cantão de Zurich e os seus magistrados se
pozeram inteiramente ao lado de Zwinglio.

=A Reforma em Zurich.=—Ficou resolvida, em Zurich, uma reforma do culto
e de todo o systema ecclesiastico. Declarou-se que a missa não era tal
um sacrificio; que não se devia venerar as imagens; que a Ceia do Senhor
era uma simples commemoração da morte de Christo; que se devia ministrar
o calix aos seculares; e que todo o serviço religioso devia ser feito
na lingua corrente do povo. A procissão de Corpus Christi foi abolida,
e deixaram de ser pagas a extrema-uncção e a confissão. Em 1524, Leão
Judæus, amigo de Zwinglio, começou a traduzir o Velho Testamento, e antes
de decorridos dez annos tinha a Suissa cinco versões da Biblia.

Em Zurich havia uma cathedral, com deão e capitulo, sendo todas as
suas despezas custeadas com o rendimento de vastas propriedades. Os
conegos, reunidos em capitulo, desistiram dos seus beneficios. Uma
parte do dinheiro foi destinada ao sustento dos ministros da cidade, e
o resto ficou constituindo um fundo de instrucção. Era com este fundo
que a assembléa de Zurich, seguindo o conselho de Zwinglio, pagava ao
professorado das escolas. Foi tambem resolvido que se solicitasse em
todos os conventos, tanto de frades como de freiras, uma renuncia de bens
em beneficio da instrucção, e em muitos d’esses estabelecimentos assim
se fez, sob a condição de ficar garantida a sua subsistencia emquanto
vivessem.

A unica coisa que contrariou esta reformação foi a vinda, do norte da
Allemanha, de uns certos fanaticos anabaptistas. Os discipulos de Thomaz
Münzer não tardaram em causar perturbações. Conseguiram, com a sua
prégação, agregar a si alguns adherentes de entre a população de Zurich.
As suas doutrinas eram muito extravagantes. Diziam que todos os crentes,
constituindo um sacerdocio espiritual, eram especialmente ensinados de
Deus e não precisavam de leis que não fossem as que os seus corações e
consciencias lhes dictassem. E, para se mostrarem coherentes, queimaram
as suas Biblias em publico. Tinham idéas singularissimas. Como Christo
tivesse dito que os Seus discipulos se deviam tornar como creancinhas, os
enthusiastas anabaptistas, tomando esse preceito á letra, brincavam com
bonecos nas ruas de Zurich, e faziam outras coisas egualmente absurdas.
O enthusiasmo converteu-se por fim n’uma especie de loucura, de que
resultou haver sangue derramado. O conselho tolerou durante bastante
tempo as suas manias, mas viu-se por fim obrigado a mandal-os retirar,
proseguindo depois a obra da reforma com a mesma tranquillidade como
anteriormente.

A Reforma estendeu-se aos cantões circumvisinhos, taes como Basiléa,
Berne, Schaffhausen e Appenzell.

=Basiléa= era a séde de uma famosa universidade, muito frequentada pelos
sabios; Erasmo fazia d’ella o seu quartel general. Era tambem o centro da
industria do papel, e a maquina de impressão de Froben deu-lhe uma grande
celebridade. Era muito visitada pelos artistas, e n’ella habitou o grande
Holbein durante o periodo tumultuoso da Reforma. Muitos dos lettrados
que n’ella residiam estavam sob a influencia de Wyttenbach, professor de
Zwinglio, e achavam-se predispostos para acolher benevolamente as novas
doutrinas. Capito, o futuro reformador de Strasburgo, Polyhistor, o
eminente hebraista e celebre physico, Œcolampadius, o sabio de Reuchlin
e futuro companheiro de Zwinglio, e Farel, joven francez natural do
Delphinado, que tanto insistiu mais tarde com Calvino para que não
deixasse de ser o campeão da Reforma, eram, todos elles, habitantes de
Basiléa.

A polemica de Zurich estimulou alguns d’elles, e Œcolampadius e Farel
começaram a prégar contra a superstição.

=Berne=, a mais aristocratica das pequenas republicas suissas, fez-se
tambem representar na polemica de Zurich, e dentro em pouco a Reforma
começou a palpitar no meio dos cidadãos que a compunham. O conselho foi
instigado a annunciar que na cidade só seria prégado o Evangelho puro, e
tres prégadores, Kolb, Haller e Sebastião Meyer, aproveitaram a permissão
para fallarem contra a missa e contra as ceremonias papistas.

Uma lucta similhante teve logar em quasi todos os outros cantões, durante
a qual a Reforma foi, ainda que lentamente, ganhando sempre terreno, e
por fim a Suissa ficou dividida em duas partes pela questão religiosa.

=Os cantões florestaes= foram os unicos que se conservaram aferrados
ás suas antigas tradições, constituindo um centro de opposição a toda
e qualquer mudança em materia de religião. Quando a Reforma começou a
mostrar um indiscutivel progresso, não só em Zurich como nos outros
cantões, e Berne e Basiléa a haviam adoptado por completo, produziu-se
uma tal exacerbação entre os estados catholicos romanos e os estados
protestantes que a guerra parecia inevitavel. Em 1529 estava, em ambos
os lados, tudo preparado para a lucta, e Zwinglio alimentava a esperança
de que tudo se liquidasse rapidamente e de uma maneira decisiva. Ao
primeiro recontro, porém, não se poude dar o nome de batalha, e os
cantões florestaes, sem terem combatido, assignaram o Tratado de Cappel
em 1529, cuja clausula principal era esta: «Como a palavra de Deus e a fé
não são coisas em que seja licito usar de compulsão, ambos os partidos
ficam com a liberdade de observar o que entenderem ser justo, e tanto nas
provincias communs como nos territorios independentes as congregações
determinarão se a missa e outras usanças devem ser conservadas ou
abolidas.»

Este tratado não foi rigorosamente observado por nenhum dos partidos,
e deu logar a novas contendas, que terminaram com a vinda subita dos
Cantões Florestaes sobre Zurich, cujo exercito derrotaram, ficando
Zwinglio morto. Esta victoria não deu um grande avanço á causa romanista.
O segundo Tratado de Cappel contém quasi as mesmas disposições que o
primeiro, e o resultado foi que, tanto na Suissa como na Allemanha, cada
estado ficou com a liberdade de escolher a sua religião.

=Caracteristicos da Reforma de Zwinglio.=—Com a morte de Zwinglio
termina a primeira phase da Reforma suissa, e, antes de elle morrer,
a conferencia de Marburgo, assim como a antipathia de Luthero por uma
constituição popular na egreja, mostrou claramente que na Reforma tinha
de haver dois movimentos distinctos, que jámais se poderia unificar.
Esta falta de união foi causa de um grande prejuizo, e as culpas não
devem ser atiradas para cima de Zwinglio, mas sim para cima de Luthero.
Ambos tinham o mesmo fim em vista; ambos criam nos mesmos principios
evangelicos; as suas divergencias eram insignificantes, em comparação
de tudo aquillo em que concordavam. O feitio caracteristico da Reforma
de Zwinglio, porém, torna-se muito mais manifesto na sua ultima fórma
sob Calvino, e é referindo-nos a esse periodo que a vamos comparar com o
movimento lutherano.

Zwinglio e os que com elle cooperaram na obra da reforma fizeram muito
pouco no sentido de resolver uma questão que em breve tomou na egreja
reformada uma importancia capital: a maneira como a egreja tinha de ser
governada. Para elle era um ponto indiscutivel a necessidade de ter
sempre presente no espirito de todos que não havia ordem ou classe alguma
de homens que podessem ser chamados _espirituaes_, simplesmente pelo
facto de exercerem certas funcções. O que elle desejava era que todos se
compenetrassem do sacerdocio espiritual de todos os crentes, ministros ou
leigos. Mostrou tambem que era dever de todos os magistrados administrar
em nome de Christo e obedecer ás Suas leis. D’estas inteiramente boas e
verdadeiras idéas passou a perfilhar a opinião de que na egreja não devia
haver um governo separado do que estivesse á testa dos negocios civis
da republica. N’essa conformidade, todos os regulamentos respectivos ao
culto publico, ás doutrinas e á disciplina da egreja foram feitos, no
tempo de Zwinglio, pelo Conselho de Zurich, que era, n’aquelle estado,
o supremo poder civil. Esta sua idéa, mesmo durante a vida d’elle,
apresentou muitos inconvenientes, sendo um dos mais manifestos a ligação
que se formou entre a Reforma protestante e certas emprezas puramente
politicas. Zwinglio entendia que as nações modernas deviam ter, como o
antigo reino de Israel, governos theocraticos. Se as idéas de Zwinglio
tivessem continuado a prevalecer, não é provavel que a Reforma suissa
tivesse exercido o poder que exerceu para além das fronteiras da
republica; posto que, sob a influencia directa de Zwinglio, se adaptassem
facilmente a um pequeno estado como o de Zurich, não se podiam ter
applicado a outros maiores, e de maneira alguma convinham a uma pequena
egreja protestante que tivesse de luctar pela sua existencia contra um
governo secular que lhe fosse hostil.



CAPITULO II

A REFORMA EM GENEBRA SOB CALVINO

    Genebra perante a Reforma, pag. 67.—Farel em Genebra, pag.
    68.—A mocidade de Calvino, pag. 69.—_Institutos da Religião
    Christã_, pag. 71.—Calvino em Genebra, pag. 73.—A sua
    expulsão, pag. 75.—Genebra não pode passar sem elle, pag.
    76.—As _Ordenanças ecclesiasticas_, pag. 77.—Em que differem
    dos _Institutos_ pag. 79.—O seu effeito sobre uma reforma de
    costumes, pag. 81.—A morte de Calvino, pag. 82.—Succede-lhe
    Beza, pag. 83.—A influencia de Calvino sobre a theologia da
    Reforma, pag. 83.—A _Confissão de Zurich_, pag. 84.


=Genebra perante a Reforma.=—Depois da morte de Zwinglio e da segunda
Paz de Cappel, em 1531, os incidentes mais notaveis da Reforma suissa
localisaram-se n’uma cidade que estava quasi desligada da confederação.

Genebra era, desde o seculo doze, a séde de um bispado, e os seus bispos
tinham, como muitos outros do Imperio Allemão, jurisdicção sobre os
negocios civis. Os duques de Saboya reivindicavam tambem os seus direitos
sobre a cidade, e os dois partidos, o do bispo e o do duque, andavam
quasi constantemente em guerra.

Durante o seculo quinze a população da cidade foi adquirindo gradualmente
o direito de se governar a si propria, podendo, por fim, eleger um
conselho constituido pelos seus concidadãos. Em 1513 o papa Leão X poz
á testa da diocese um bispo que pertencia á casa de Saboya, e d’este
modo os dois partidos oppostos fundiram-se n’um só. Temos, pois, que no
principio da Reforma estavam em frente uma da outra, em Genebra, duas
facções rivaes: a dos saboyannos e a dos habitantes da cidade. Um dos
partidos trabalhava para que a cidade ficasse por completo sob o dominio
da casa de Saboya; o outro pretendia tornal-a uma republica livre, como
os cantões da Suissa, e para conseguirem o fim que tinham em vista
contrairam uma alliança com Berne e com Freiburgo. Os saboyannos, que com
os seus modos atrevidos e licenciosos se haviam tornado muito mal vistos
pela pacifica população, eram conhecidos pelo nome de «mamelukos», ao
passo que os do partido republicano eram cognominados «Eidgenossen»,
isto é, confederados. Este ultimo nome desperta algum interesse, por ser
provavelmente d’elle que se originou o nome do grande partido protestante
francez, os huguenotes.

A erudição do periodo da Renascença havia penetrado na cidade, assim
como a devassidão italiana. O partido aristocratico tinha-se tornado
notorio pela sua má vida. O palacio do bispo e o castello do duque de
Saboya eram theatro dos mais impudentes excessos, e estes maus exemplos
tinham corrompido muito a gente da cidade. O clero seguia o exemplo do
seu superior, e consta que havia apenas uma casa religiosa, o convento
das freiras franciscanas, em que se observava uma certa pureza de vida.
Os republicanos não eram isentos dos vicios que deshonravam os seus
adversarios; o seu desejo de liberdade era muitas vezes um desejo de
licença, e o seu enthusiasmo republicano tinha em muitos casos uma origem
pagã. Eram filhos da Renascença, e possuiam todos os defeitos d’esse
estranho movimento. A cidade estava cheia de scepticismo, licenciosidade
e superstição. As indulgencias do papa tiveram sempre muito boa venda em
Genebra.

=Farel em Genebra.=—Estavam as coisas n’este pé quando, em 1532,
veiu residir para Genebra, começando a prégar violentos e impetuosos
sermões contra o «anti-christo romano» e a idolatria e superstições da
egreja romanista, um joven francez, Guilherme Farel, que fôra um dos
reformadores de Berne. As suas predicas produziram um grande alvoroço;
os partidarios do bispo denunciaram-n’o, e os burguezes tinham a seu
respeito opiniões desencontradas.

Em 1525 os «eidgenossen» estavam definitivamente alliados a Berne e
a Freiburgo. Berne era protestante, e havia enviado Farel a Genebra;
Freiburgo era romanista, e havia encarregado algumas pessoas de instarem
com os burguezes para que pozessem fóra da cidade o impetuoso orador.
Elles pensaram muito no caso, e por fim pediram a Farel que se retirasse.
Este assim fez. O conselho resolveu depois manter a alliança com Berne,
que era o cantão mais forte, e dar uma das egrejas á gente de Berne, para
celebrarem n’ella o culto protestante. Farel voltou para Genebra, e foi
nomeado pastor d’essa egreja. O povo vinha em grandes multidões ouvil-o
prégar, e a Reforma foi avançando.

O duque de Saboya e o cantão de Freiburgo fizeram causa commum contra
Genebra, atacaram-n’a, e foram repellidos. O Conselho declarou abolida a
diocese, concedeu a Farel plena liberdade para prégar, e os seus sermões
sobre liberdade civil e religiosa accenderam o enthusiasmo do povo. Em
1535 teve logar, por ordem do conselho, uma assembléa publica, em que
Farel e tres companheiros seus desafiaram todos os presentes, como os
cavalleiros faziam nos torneios, para discutirem com elles os pontos
sobre theologia e moral que estavam em debate entre a egreja de Roma e os
reformadores.

O povo de Genebra, impetuoso e desordenado, que não sabia conter-se,
nem comprehendia que as coisas tinham de ser feitas devagar e com a
devida legalidade, precipitou-se, depois da polemica, para as egrejas,
destruiu as reliquias, derrubou as imagens, rasgou os paramentos, e
commetteu muitos outros actos de violencia. Em 27 de agosto o conselho
declarou abolido o catholicismo romano, e ordenou a todos os cidadãos
que adoptassem a religião reformada. A conversão forçada de uma cidade
inteira, por mandado do conselho municipal, suprema auctoridade civil,
não poderia, decerto, melhorar o caracter do povo. Havia, sem duvida,
muita gente sobre quem a prégação de Farel produzira bom effeito, mas
o Evangelho não pode conquistar os corações quando é imposto d’aquella
fórma. O estado moral da cidade era tão mau como no tempo do bispo, e
tudo indicava uma mudança para peior. Uns certos enthusiastas devassos
começaram a apregoar doutrinas falsas e immoraes ácerca da natureza da
liberdade christã. Parecia não haver meio de suster o povo. Farel tinha
esgotado todos os recursos da sua intelligencia. Por fim teve mão n’um
moço estudante francez que, quasi accidentalmente, se encontrava na
cidade, e supplicou-lhe que se conservasse junto d’elle e o auxiliasse.
Esse moço estudante era João Calvino, e aquella visita casual foi o
inicio da obra de Calvino em Genebra, tão importante para todas as
egrejas reformadas da Europa.

=A mocidade de Calvino.=—João Calvino, ou Chauvin, nasceu em Noyon, na
Picardia, em 10 de Julho de 1509. Era, portanto, uma creança quando
Luthero e Zwinglio começaram a atacar a egreja romanista, e pode-se
dizer que pertence á segunda geração da Reforma. O pae exercia um cargo
publico em Noyon, e era, além d’isso, secretario do bispo; a mãe, uma
senhora muito religiosa, chamava-se Joanna Le Franc de Cambrai. As
relações que o pae mantinha com as familias nobres da região e com o
bispo habilitaram-n’o a dar ao filho a melhor educação que n’aquelle
tempo era possivel adquirir-se. O rapaz foi creado com os filhos da nobre
familia de Mommor, e havia-lhe sido destinada, desde os primeiros annos,
a carreira ecclesiastica.

Quando o joven Calvino contava apenas treze annos, o pae obteve para
elle a apresentação para um beneficio ecclesiastico, e mandou-o para a
universidade de Paris. Foi primeiro para o Collegio de La Marche, onde
teve por professor o celebre Mathurino Corderier,[1] e em seguida para o
Collegio Montaigu, que mais tarde recebeu um outro alumno que egualmente
se celebrizou, Ignacio de Loyola.

Consta que o joven Calvino era pouco sociavel, e que os seus
condiscipulos lhe pozeram a alcunha de «caso accusativo», pelo motivo de
estar sempre a queixar-se d’este ou de aquelle. Quando elle tinha dezoito
annos, o pae obteve-lhe outro beneficio, e, para receber o respectivo
estipendio, teve de sujeitar-se á tonsura, sendo esta a unica coisa
que elle teve em commum com os padres da egreja de Roma. Não chegou a
ordenar-se, nem fez voto de celibato.

Em 1528 o pae teve uma desintelligencia com o bispo, e resolveu que o
filho, em vez de padre, fosse advogado, mandando-o, com esse intuito,
estudar jurisprudencia em Orleans. O mancebo obedeceu; tornou-se um
applicado estudante de direito, posto que similhantes estudos não fossem
do seu gosto; e, trabalhando de dia e de noite, conseguiu cursar com
egual exito tanto aquella faculdade como a de theologia. Alcançou fama
de ser o estudante mais distincto do seu tempo, e era voz corrente que
com as suas aptidões podia aspirar á mais elevada posição na carreira
juridica.

Com a morte do pae, em 1531, Calvino adquiriu a liberdade para seguir a
vida que mais lhe agradasse. Abandonou os estudos de direito, voltou,
em 1532, para Paris, e aggregou-se socegadamente á pequena communidade
de protestantes que costumavam reunir-se n’essa cidade para lerem e
estudarem as Escripturas, e para fazerem oração. Elle não nos diz
porque deu esse passo. Fêl-o tão naturalmente que com certeza já havia
muito que andava pensando no caso. Calvino fugia sempre de fallar no
que se tinha passado com elle sob o ponto de vista religioso. Era, a
este respeito, muito differente de Luthero. Este contava a sua historia
com a maxima franqueza, a todos expunha as suas duvidas, os seus
temores, a sua fé. Cada um tinha a sua natureza especial. Só uma vez é
que Calvino tirou de cima de si o véu com que se cobria. No prefacio
ao assombroso _Commentario ao Livro dos Psalmos_ diz-nos que Deus o
attraiu a Si mediante uma «subita conversão». Devia ter acontecido isso
quando Calvino estava em Orleans. Desde esse momento renunciou a uma
brilhante carreira, não quiz acceitar mais os proventos ecclesiasticos,
e ajuntou-se á pequena communidade evangelica de Paris, disposto a
partilhar os perigos que ella corresse.

Entregou-se a uma tranquilla vida litteraria, e já tinha começado a
publicar algumas obras, quando teve de fugir de Paris a toda a pressa,
para não ser preso por causa da sua religião. Foi para Strasburgo, onde
travou conhecimento com o reformador Martinho Bucer, e de ahi para
Basiléa e varios outros pontos, levando uma vida de estudante nomada.

    [1] Corderier, Corderius, ou Cordery era, ha cincoenta annos,
    um nome bem conhecido nas escolas paroquiaes da Escocia, onde
    se fazia uso dos seus exercicios em todas as aulas de latim.
    Converteu-se á fé reformada mediante o seu famoso discipulo,
    e fez tudo quanto estava ao seu alcance para espalhar as
    doutrinas evangelicas, utilisando para esse fim as phrases
    que nos seus exercicios deviam ser traduzidas em latim. Na
    edição que publicou pouco depois da sua conversão, as referidas
    phrases eram breves exposições das verdades evangelicas,
    ou energicos, ainda que laconicos, ataques ás superstições
    romanistas. Seguiu Calvino para Genebra, e falleceu ahi aos 88
    annos.

=Os Institutos da Religião Christã.=—Na primavera de 1536 publicou em
Basiléa a primeira edição dos seus _Institutos da Religião Christã_. A
obra estava escripta em latim, e foi depois traduzida em francez, para
uso, como elle proprio disse, dos seus compatriotas. A primeira edição
era mais pequena, e a todos os respeitos inferior, ás edições revistas de
1539 e 1559; mas como producção de um rapaz de vinte e seis annos, que
era a edade que Calvino tinha quando a publicou, não tem talvez rival.
Grangeou para o seu auctor o titulo de «Aristoteles da Reforma», e, mais
do que qualquer outro trabalho theologico, influiu nas idéas e amoldou o
caracter da Reforma Protestante.

Calvino diz-nos, no seu prefacio, que escreveu este livro com um
duplo fim. Quiz, com elle, «preparar os estudantes de theologia para
a leitura da Palavra divina, fornecendo-lhes uma facil introducção, e
habilitando-os a vencer todos os embaraços». Mas tinha tambem em vista
justificar o ensino dos reformadores e desfazer as calumnias dos seus
inimigos, que haviam instado com o rei de França para que os perseguisse,
e os expulsasse de França. Tinha a seguinte dedicatoria: «_A Sua
Christianissima Magestade, Francisco, rei de França, e seu soberano, João
Calvino deseja paz e salvação em Christo_». E ajuntava: «Exponho-vos a
minha confissão, para que conheçaes a natureza d’essa doutrina que tem
provocado uma tão ilimitada raiva a esses desvairados que estão agora,
por meio do fogo e da espada, pondo o vosso reino em desasocego. Pois
não tenho receio algum de confessar que este tratado contém um summario
d’essa mesma doutrina que, segundo os clamores d’elles, merece ser
castigada com prisão, desterro, proscripção e fogueira, e exterminada da
superficie da terra».

Quiz, de um modo preciso, e com toda a brandura, mostrar o que os
protestantes queriam, e fêl-o tão habilmente que incitou logo á
comparação d’essas crenças com o ensino da egreja medieval. Luthero fez
grande ostentação do Credo dos Apostolos, e nunca se cançava de dizer
que elle e os seus correligionarios acceitavam aquella antiga e venerada
summula da fé christã, e que, portanto, os protestantes pertenciam á
Egreja Catholica de Christo. Calvino reivindicou o mesmo; mas não ficou
por ahi: mostrou que aquella asserção era verdadeira, ainda mesmo quando
se descesse aos mais pequenos detalhes, e que, postos á prova do Credo
dos Apostolos, os protestantes eram catholicos mais genuinos do que os
romanistas.

Para ver claramente o que Calvino tinha na idéa com a publicação dos seus
_Institutos_ é necessario lembrar o que era o Credo dos Apostolos. Nosso
Senhor, antes da Sua ascensão, disse aos Seus discipulos que fossem a
todas as nações, baptizando-as em nome do Pae, do Filho e do Espirito
Santo; e assim os pastores christãos da era apostolica e post-apostolica,
quando recebiam na Egreja as pessoas que se convertiam, exigiam d’ellas
que fizessem a seguinte profissão de fé: «_Creio em Deus Pae, e em Seu
Filho Jesus Christo, e no Espirito Santo_, sendo esta a mais antiga e
mais simples formula do Credo. Depois accrescentou-se-lhe mais estas
palavras: _e na Santa Egreja Catholica_. Estas quatro orações eram
proferidas por todos os neophytos por occasião do baptismo. O Credo
dos Apostolos e todos os outros credos primitivos são simplesmente
desenvolvimentos d’essas quatro phrases; e os primeiros livros
theologicos que explicavam todos os pontos referentes á doutrina christã
eram exposições do Credo, assim como o Credo era, por seu turno, uma
exposição da confissão baptismal. Isto mostra-nos, entre outras coisas,
que a verdadeira theologia nasceu da simples expressão de uma confiança
em Deus acompanhada de adoração.

Os _Institutos_ de Calvino são, na realidade, uma exposição do Credo, e
dividem-se em quatro partes, cada uma d’ellas explicando uma porção do
Credo. A primeira parte falla de Deus o Creador, ou, como o Credo diz:
«Deus, Pae Omnipotente, Creador do céu e da terra»; a segunda parte
de Deus Filho, o Redemptor, e da Sua redempção; a terceira parte, de
Deus Espirito Santo e dos Seus meios de graça; e a quarta, da Egreja
Catholica, e da sua natureza e distinctivos.

A disposição, pois, que elle deu á sua obra, seguindo passo a passo
o Credo dos Apostolos, mostra que Calvino mantinha ácerca da Reforma
aquella mesma opinião que Luthero diligenciou expôr nitidamente no seu
tratado sobre o _Captiveiro Babylonico da Egreja de Deus_. Nunca lhe
acudiu á mente que estivesse contribuindo para a fundação de uma nova
egreja, ou que estivesse elaborando um novo credo, ou escrevendo uma nova
theologia. Não cria que os protestantes fossem homens que mantivessem
opiniões originaes, até então desconhecidas. A theologia da Reforma era
a velha theologia da Egreja de Christo, e as opiniões dos protestantes
eram convicções da verdade que se baseiavam na Palavra de Deus, e que,
conforme constava da historia da Christandade, haviam sido partilhadas
por todo o povo religioso. A theologia em que elle cria e que elle
ensinava era a velha theologia dos primitivos credos, exposta com toda
a clareza, e despojada das supersticiosas e falsas noções que pelos
pensadores medievaes haviam sido copiadas dos ritos e philosophia do
paganismo. A Reforma, dizia-se nos _Institutos_, não engendra opiniões
novas, trata apenas de desmascarar as falsidades e apresentar, em toda a
sua pureza, as verdades antigas.

=Calvino em Genebra.=—A publicação dos _Institutos_ fez com que Calvino
se tornasse bem conhecido dos primeiros vultos da Reforma; e quando, nas
suas peregrinações, deu comsigo em Genebra, tencionando passar ali a
noite e abalar em seguida, Farel pediu-lhe que ficasse ali com elle e o
auxiliasse nas difficuldades em que se encontrava. Calvino não queria de
fórma alguma abandonar aquella sua vida de estudante, mas ao mesmo tempo
reconhecia que era um dever para elle deitar mãos ao trabalho que podia
executar em Genebra, e por fim resolveu ficar na companhia de Farel.

Diz elle no prefacio ao seu _Commentario sobre o Livro dos Psalmos_:
«Como o caminho mais direito para Strasburgo, para onde tencionava
retirar-me, estava impedido por causa da guerra, tinha resolvido passar
rapidamente por Genebra, demorando-me na cidade uma noite apenas....
Sabedor d’isto, Farel, que trabalhava com extraordinario zelo para que o
Evangelho progredisse, empregou logo os maiores esforços para me deter.
E, depois de lhe ter dito que toda a minha ambição era poder entregar-me
socegadamente aos meus estudos, não me encontrando, portanto, predisposto
para qualquer outro encargo, elle, perdida a esperança de conseguir
qualquer coisa por meio de rogos, começou com imprecações, invocando
a maldição de Deus sobre os estudos que eu desejava fazer com toda a
tranquilidade, se eu me retirasse, deixando de prestar o meu concurso
n’uma occasião de aquellas em que era tão necessario. Ouvindo estas
suas palavras, senti-me tão atterrorisado que desisti da viagem que
projectava.»

Calvino tinha vinte e sete annos e Farel quarenta e sete, quando
começaram a trabalhar juntos em Genebra, e, não obstante a differença
das edades, tornaram-se amicissimos um do outro. «Tinhamos um coração e
uma alma», diz Calvino. Farel apresentou-o aos conselheiros da cidade.
Principiou a sua obra fazendo conferencias na cathedral, e immediatamente
se reconheceu que a sua palavra era attrahente e efficaz. A junta
nomeou-o pastor, e, de collaboração com Farel, metteu hombros á grave
tarefa de organizar a Reforma. Somos informados de que elle redigiu os
artigos de fé e os regulamentos para o governo da Egreja, tendo antes
d’isso, isto é, pouco depois da sua chegada a Genebra, escripto um
catecismo para a infancia. A obra dos reformadores foi approvada pelo
conselho da cidade, e esta, pelo que dizia respeito a todos os seus
aspectos exteriores, adoptou por completo a religião reformada.

Farel sabia, porém, havia muito, e Calvino em breve o reconheceu tambem,
que o de que Genebra necessitava era uma reforma moral. A cidade era
o mais que podia ser de dissoluta, e havia muito tempo que permanecia
n’aquelle estado. Os que durante muitas gerações tinham estado á testa
dos negocios publicos conheciam esse facto, e tinham promulgado leis
contra o viver licencioso. Entre os arquivos de Genebra relativos ao
principio do seculo dezeseis, e ainda entre alguns do seculo quinze,
apparecem leis sumptuarias contra o jogo, a embriaguez, as mascaradas,
as danças e o luxo no vestuario; e, examinando os documentos judiciaes,
encontram-se referencias a condemnações por infracções d’essas leis,
commettidas muito antes de Calvino ter fixado lá a sua residencia.

Isto tem sido esquecido pelos historiadores quando accusam Calvino de
ter tentado reformar o povo, mediante, como nós diriamos, leis votadas
no parlamento. Calvino não fez essas leis, nem ha evidencia de elle as
considerar muito importantes. Era, porém, de opinião, que sustentou
sempre com toda a firmeza, de que ás pessoas que tinham uma vida immoral,
cujas acções e linguagem não estavam em harmonia com a sua profissão
christã, não se devia permittir que participassem da solemne instituição
da Ceia do Senhor, e esse seu modo de vêr não tardou em indispôl-o com os
habitantes de Genebra.

Ao cabo de muitas admoestações, os reformadores resolveram, por fim,
exercer a disciplina ecclesiastica, afastando solemnemente da Mesa do
Senhor os commungantes indignos. Os magistrados, que estavam sempre
promptos a promulgar leis restrictivas do vicio, e até mesmo do viver
faustoso, não quizeram consentir em que se pozesse em execução esta
ordem de quem tinha a superintendencia na Egreja, e, ainda mais, o
pulpito ficou de ahi em deante vedado a Calvino e a Farel. Estes não
se submetteram, e no domingo de Pascoa de 1538 prégaram a uma multidão
excitada e armada, recusando administrar á congregação a Ceia do Senhor,
para evitar que esta fosse profanada.

No dia seguinte a junta da cidade reuniu-se para apreciar a conducta de
Calvino e Farel. Os reformadores foram accusados de pretender usurpar
o poder mediante os seus regulamentos ecclesiasticos, entre os quaes
figuravam o da abolição de todos os dias santos, excepto o domingo, e o
do desuso da pia baptismal e do pão asmo na Ceia do Senhor.

Estas accusações eram, evidentemente, meros pretextos, pois que o proprio
Calvino havia declarado que lhe era quasi indifferente que as coisas que
atraz mencionamos fossem ou não postas em pratica. O que os realmente
predispunha contra Calvino e Farel era a supposição em que estavam de que
elles pretendiam estabelecer um novo papado; os magistrados desejavam
conservar nas suas mãos, não só a administração civil como a disciplina
da Egreja. O resultado de tudo isto foi Calvino e Farel serem expulsos
da cidade, não pelos papistas, mas por aquelles que até ali tinham
contribuido para o avanço da Reforma.

O facto d’este conflicto entre os reformadores e os genebrenses ter
ocorrido logo no principio da vida publica de Calvino revela uma grande
differença entre os dois ramos da Reforma, o reformado, ou calvinista,
e o lutherano. Calvino mostrou ter, desde o inicio da sua carreira,
noções muito claras ácerca da disciplina da Egreja e do direito que
a communidade christã tinha de se governar a si propria em assumptos
espirituaes e do direito dos que estavam em auctoridade na Egreja
tinham de excluir dos privilegios a todos aquelles que fossem indignos
de participar d’elles. Luthero e Melanchthon tinham as mesmas idéas,
mas não as pozeram em pratica. Luthero não modificou o modo como a
superintendencia era exercida, limitando-se a transferil-a das mãos dos
bispos para as das auctoridades civis; e o effeito pratico, posto que não
premeditado, d’isto foi ficarem sendo os magistrados os que arbitravam
se esta ou aquella pessoa devia ou não approximar-se da mesa do Senhor.
Calvino, por outro lado, viu logo desde o principio que a Egreja, para
ter uma existencia visivel, e conservar-se distincta do Estado, devia
ter o direito de declarar quaes as pessoas que estavam no caso de ser
admittidas como membros da Egreja e partilhar todos os privilegios da
mesma, e ter a auctoridade para censurar os aggravos espirituaes e
punil-os mediante a perda dos sacramentos.

Não consta que Calvino pedisse em tempo algum outra coisa além de que a
disciplina da Egreja fosse exercida pela propria Egreja, representada
pelos seus officiaes. Calvino, logo no começo da sua carreira, proclamou
a independencia da Egreja em assumptos espirituaes, taes como a admissão
á mesa do Senhor e a exclusão d’ella.

=Calvino é expulso de Genebra.=—Expulso de Genebra, Calvino foi para
Basiléa, e d’ahi para Strasburgo, onde permaneceu tranquillamente tres
annos, ministrando a uma numerosa congregação de refugiados francezes,
e occupando-se com trabalhos litterarios. Strasburgo tinha sido um
logar intermediario entre a Allemanha e a Suissa, e Calvino travou ahi
conhecimento com muitos theologos allemães. Contraiu uma intima amizade
com Melanchthon, e encontrou-se com elle e com outros reformadores
allemães nas conferencias religiosas que se realizaram em Francfort,
Worms e Regensburgo. Em Setembro de 1540 casou com Idelette de Bure,
viuva de João Storder. Idelette era uma senhora muito temente a Deus
e muito instruida, e teve, do seu casamento com Calvino, tres filhos,
que morreram todos na infancia. Calvino não se refere muito, na sua
correspondencia, á sua vida domestica, mas as cartas que escreveu
a alguns amigos muito intimos ácerca do fallecimento da esposa e
do fallecimento dos filhinhos demonstram que no peito do austero e
ceremonioso francez batia um coração susceptivel de grandes affectos.

=Genebra não pode passar sem Calvino.=—No entretanto, Genebra continuava
agitada. Farel e Calvino haviam sido expulsos, e estavam longe da cidade,
mas o povo sentia a necessidade da sua presença. Não havia agora ali
uma influencia que a todos dominasse, e as coisas caminhavam de mal
para peior. Calvino tinha dito que a infidelidade tinha por origem a
depravação a que elle se oppozera, e os cidadãos mais esclarecidos
começaram a ver o quanto de verdade havia n’esta observação. As desordens
sociaes iam quasi conduzindo a desastres politicos. Os bernenses
intentaram apoderar-se da cidade; os catholicos romanos, tendo á frente
o cardeal Sadolet, trabalharam por submettel-a de novo ao papismo; os
anabaptistas, inimigos de toda a organização ecclesiastica e social, os
libertinos, os livres pensadores, todos luctaram por obter o predominio
em Genebra, e por fim a população começou a sentir-se cançada de aquella
tumultuosa situação e a anhelar pelo regresso dos seus desterrados
ministros.

A junta da cidade dirigiu-se a Calvino, pedindo-lhe que voltasse. Elle
ao principio recusou. «Não ha localidade que me aterrorize tanto como
Genebra», escreveu elle a um amigo. Continuaram, porém, a instar com elle
para que voltasse; muitos dos amigos que elle tinha entre os reformadores
francezes e allemães solicitaram-lhe que accedesse ao pedido dos
genebrenses, e as cidades suissas de Berne, Zurich e Basiléa fizeram côro
com elles. Condescendendo finalmente, regressou a Genebra.

Os magistrados offereceram-lhe para moradia uma casa com jardim situada
nas proximidades da sumptuosa egreja, nomearam-n’o ministro e professor
de theologia, e fixaram-lhe um estipendio annual de quinhentos florins,
doze medidas de trigo e duas cubas de vinho. Além d’isso, prometteram que
na Egreja de Genebra seria posta em vigor a disciplina ecclesiastica,
pois que Calvino havia insistido n’esse ponto. A convivencia que tivera
com os lutheranos ainda o tornara mais cuidadoso em manter o direito que
á Egreja assiste de velar pela sua pureza. Voltou triumphante a Genebra,
e foi recebido com as mais extravagantes manifestações de regozijo.
Foi mais uma vez desapontado no seu grande desejo de uma tranquilla
vida litteraria, e durante o resto dos seus dias teve de dedicar-se
inteiramente á causa publica.

Depois d’isso nunca mais saiu de Genebra, de que foi, segundo dizem,
durante vinte e quatro annos o senhor. Os historiadores teem-n’o
comparado a individualidades de indole muitissimo differente. Segundo
uns, foi o Lycurgo de Genebra; segundo outros, um dictador romano, ou um
novo Hildebrando, ou um Califa musulmano. O que é certo é que fez uma
grande obra, e passou a vida n’uma incessante actividade, apezar de estar
quasi sempre doente, soffrendo muito de dôres de cabeça e de asthma.

Prégava umas poucas de vezes por semana, e todos os dias dava aula.
Escreveu commentarios a todos os livros da Biblia, compoz tratados
theologicos, e tinha sempre que attender a uma immensa correspondencia.
Era elle quem dirigia a Egreja reformada em toda a Europa, e, segundo a
idéa de muitas pessoas, era, por assim dizer, omnipotente em Genebra,
tendo sido attribuidos á sua influencia tanto os bons como os maus
resultados da chamada theocracia genebrense.

É inquestionavel que durante o seu governo em Genebra o caracter da
cidade mudou inteiramente. Tendo sido a mais frivola e mais devassa
de todas as cidades europeas, tornou-se o berço do puritanismo, tanto
francez, como hollandez, como inglez, como escocez. As danças e
mascaradas passaram a ser coisas desconhecidas; as tabernas e o theatro
estavam sempre ás moscas, ao passo que as egrejas e os salões de
conferencias se enchiam até á porta.

=As ordenanças ecclesiasticas.=—O que effectuou tudo isto foram as
famosas ordenanças ecclesiasticas da Egreja de Genebra, e o modo em que
ellas foram applicadas pelos magistrados. Estas ordenanças eram, segundo
as poucas palavras do preambulo, o «regimen espiritual, que Deus ordenou
na Sua Egreja, e que, sob uma fórma propria, tinha de ser observado
na cidade de Genebra», e teem sido adoptadas por todas as egrejas
presbyteriannas.

Em conformidade com estas ordenanças, ha quatro especies ou graus
de officio na Egreja christã, estabelecidos por Deus para o governo
da mesma, e os que os exercem são chamados pastores, professores,
presbyteros e diaconos.

Compete aos pastores, que teem tambem o nome de superintendentes e
bispos, expôr a Palavra, administrar os sacramentos, e, conjunctamente
com os presbyteros, exercer a disciplina; eram geralmente escolhidos
pelos ministros em exercicio, e nomeados pelos magistrados, com
o consentimento do povo; tinham de dar contas dos seus actos nas
conferencias que para esse fim tinham logar trimestralmente na Egreja, e
eram, outrosim, responsaveis perante o consistorio e a junta da cidade.

Da classe dos professores faziam parte todos os lentes da universidade e
os mestres das escolas. Os presbyteros tinham a seu cargo a disciplina.
Não eram eleitos pela congregação, mas, sim, nomeados pela junta da
cidade, com previa consulta dos pastores; e todos elles tinham de ser
membros das juntas. Conjunctamente com os pastores, faziam uma visita
annual a toda a area que lhes pertencia, e experimentavam, de um modo
simples, a fé e o proceder de todos os membros da egreja.

A assembléa de todos os presbyteros e de todos os pastores constituia
o _Consistorio_, que era o conselho executivo e legislativo da Egreja.
O Consistorio reunia-se todas as semanas, sob a presidencia de um dos
quatro syndicos, ou primeiros magistrados, de Genebra, afim de receber
e examinar todos os documentos relativos a irregularidades na vida e
na conducta de quaesquer membros da Egreja, e deliberar ácerca da pena
ecclesiastica a applicar a este ou áquelle caso, pena que podia ir até á
exclusão da Mesa do Senhor. Não estavam auctorizados a infligir qualquer
censura ou castigo que não fosse espiritual, mas tinham obrigação de
participar todos os delictos á auctoridade civil, que era a unica que
tinha o direito de punil-os. Todos os presbyteros eram escolhidos
pela junta, e tinham de ser membros d’ella, resultando de ahi que os
magistrados genebrenses que tomavam assento no consistorio na qualidade
de presbyteros recolhiam as informações relativas a factos criminosos
e transmittiam-n’as a si proprios quando tomavam assento na junta na
qualidade de magistrados.

Os diaconos cuidavam dos pobres e dos enfermos, e eram egualmente
nomeados pela junta.

O plano do governo da Egreja concorda, nas linhas geraes, com os
principios que Calvino expoz nos seus _Institutos_, mas differe d’elles
em tantos detalhes importantes que se torna impossivel acreditar que todo
elle fosse obra do Reformador.

Nos _Institutos_ expoz Calvino com a maxima clareza quaes são os
verdadeiros principios do governo e disciplina ecclesiasticos. Prova que
Deus educa e aperfeiçôa o Seu povo n’esta vida mediante a Sua Egreja,
e que para a edificação da Egreja proveu uma variedade de dons, que
não são concedidos indescriminadamente a todos os christãos, sendo
limitado o numero d’estes que os teem recebido em maior escala. Estes
dons podem ser classificados em tres categorias, instrucção, governo
e caridade, ou, como os reformadores escocezes disseram, doutrina,
disciplina e distribuição, e a Egreja pode verificar que alguns dos seus
membros teem um talento especial para instruir, outros para dirigir, e
outros para tomarem conta das collectas e da distribuição do dinheiro.
Deus conferiu estes dons, e collocou na Egreja homens capazes de os
exercerem, para edificação do Seu povo, e, por consequencia, as funcções
que se desempenham na Egreja são de caracter ministerial e não tendem
a exaltar pessoa alguma. Os officiaes são homens que melhores serviços
podem prestar á communidade, e são, portanto, responsaveis perante
esta e perante Deus pelo modo como os prestam. Calvino insistiu muito
na verdadeira natureza e valor do presbytereado, que elle considerava
a mais efficaz barreira contra a conquista de uma supremacia sobre a
Egreja, como aquella que tinha sido uma das mais censuraveis usurpações
da Egreja de Roma. Mediante este officio tem a Egreja aquelle governo
methodico sem o qual nenhuma sociedade pode existir, e a communidade
christã pode conservar-se livre da usurpação do poder e da tyrannia
ecclesiastica por meio de um governo verdadeiramente representativo, isto
é, livremente escolhido pelos membros da congregação. Calvino affirmou
tambem, com muita insistencia, que este governo era espiritual, e que
só lhe pertencia julgar as infracções espirituaes e infligir castigos
espirituaes. O maior castigo espiritual era, segundo elle, a excommunhão.

=As ordenanças ecclesiasticas differem, a muitos respeitos, dos
principios expostos nos Institutos.=—Calvino combateu sempre
energicamente qualquer confusão entre a jurisdicção civil e a jurisdicção
ecclesiastica, declarando que as duas deviam estar completamente
separadas uma da outra. Nas _Ordenanças_ não se mantem esta separação. A
censura do consistorio era de continuo seguida, como veremos, de multa,
de desterro, e, até, de morte; quando, segundo a theoria de Calvino,
só castigos espirituaes se devem seguir a offensas espirituaes. Os
anciãos que exerciam o governo ou a disciplina não eram escolhidos pela
Egreja, nem eram realmente seus representantes. Eram designados pelos
magistrados civis da cidade, e só eram elegiveis os que já fossem membros
de uma organização politica. Os direitos da communidade christã eram
praticamente desprezados, posto que Calvino houvesse declarado que o
poder ecclesiastico pertencia realmente a toda a assembléa dos crentes. A
junta escolhia os pastores, podendo a Egreja impôr o seu veto; escolhia
d’entre si os presbyteros, e escolhia egualmente os diaconos.

Esta notavel desharmonia com os principios de Calvino era devida aos
magistrados de Genebra, que assim procediam em opposição aos desejos
do Reformador. Sentia-se especialmente molestado com o modo como eram
escolhidos os presbyteros, e declarou que não considerava as _Ordenanças_
um plano perfeito de governo ecclesiastico; pareceu-lhe evidentemente,
porém, que era o melhor que n’aquella occasião se poderia obter, e
acceitou-o, alimentando a esperança de que seria, mais tarde, modificado.
Agradava-lhe tanto, apezar dos seus defeitos, que o considerava um
modelo que podia ser copiado n’outros logares, e exprimiu a esperança de
que Genebra, situada na fronteira da França, da Allemanha e da Italia,
incitaria esses paizes a uma Reforma de caracter, perfeita e permanente.

Não obstante, os pontos em que as _Ordenanças_ divergiam dos principios
que Calvino expoz nos seus _Institutos_ deram occasião a esses
caracteristicos do governo genebrense que mais teem sido reprovados pelos
historiadores. É fóra de duvida que a corrupção moral que predominava
em Genebra foi combatida por leis severissimas, que chegavam mesmo
a ser crueis. A antiga legislação genebrense era, em muitos casos,
bastante severa, e quando se tratava de delictos especiaes a sua
severidade tornava-se extrema; mas depois de publicadas as _Ordenanças
Ecclesiasticas_ as leis foram applicadas com um rigor anteriormente
desconhecido.

O consistorio reunia-se todas as semanas, ás quintas feiras, e eram-lhe
fornecidas informações ácerca da maneira como o povo se comportava; e
essas informações eram communicadas á junta, ou conselho, que era o mesmo
Consistorio, mas revestido da auctoridade civil. Eram prohibidos os
divertimentos ruidosos, os jogos de azar, as danças, as canções profanas,
as pragas e as blasphemias. Todo o cidadão tinha de estar em casa ás nove
horas, sob pena de uma pesada condemnação. O adulterio era punido com
a morte. Uma creança que atirou com umas pedras á mãe foi publicamente
açoitada, e depois suspensa do patibulo pelos braços. Foram abolidas
todas as folganças que tinham logar por occasião dos casamentos; os
cortejos deixaram de levar tambores ou instrumentos musicaes á frente, e
não mais se dançou nas bodas. Os theatros só podiam levar á scena peças
biblicas. Ficou inteiramente prohibida a leitura de romances, e o auctor
de qualquer obra que desagradasse ao Consistorio era mettido na prisão.
Era preciso o maximo cuidado com o que se dizia, chegando as coisas a
tal ponto que os hoteleiros eram obrigados a referir as conversas que os
seus hospedes tinham tido á mesa. Nas hospedarias era tambem prohibido
fornecer comida ou bebida a quem não pedisse, antes de se servir, a
benção de Deus. Não era permittido jejuar, e um certo individuo foi
castigado por não comer carne á sexta-feira.

É impossivel dizer que parte tomou Calvino n’estes regulamentos, de uma
desnecessaria severidade. Muitos historiadores teem affirmado que elle
dispunha de todo o poder em Genebra, e que poderia ter evitado muita
coisa se quizesse. Elle era francez, e nenhuma nação tem como a França
apresentado, em epocas de grande crise, tão duros legisladores. Calvino
não tinha, por outro lado, abjurado a parte mais odiosa da theoria
medieval quanto á disciplina da Egreja, isto é, a que auctorizava os
tribunaes ecclesiasticos a recorrerem ao poder civil para que a certas
offensas espirituaes fosse applicada multa, prisão ou execução capital,
com o fundamento de que constituiam crimes contra a ordem e a paz da
sociedade. Calvino acceitou esta doutrina; e o mesmo fez Beza, que
chamava á liberdade de consciencia uma doutrina diabolica. Os theologos
de Westminster admittiram egualmente a theoria medieval, e trabalharam
para que ella fosse posta em pratica, em detrimento da reforma da egreja
de Inglaterra. Não só Calvino como todos os principaes reformadores
approvaram a morte de Servetus pelo motivo de haver negado a doutrina da
Trindade e apresentado blasphemas asserções em defeza da sua opinião.
Tudo isto tem de ser admittido.

=As ordenanças ecclesiasticas e a reforma dos costumes.=—Devemos
lembrar-nos, por outro lado, de que não podemos dizer o que seria preciso
para obter uma reforma de costumes n’uma cidade tão immoral e tão
turbulenta como Genebra.

A Reforma, justamente porque era um protesto contra o então existente
estado de coisas, teve de navegar contra a corrente do mal, que ella
propria provocou. É-nos quasi tão impossivel comprehender o perigo dos
excessos anabaptistas e outros como comprehender a corrupção moral
da epoca em que o christianismo surgiu e se propagou. Professava-se
o libertinismo pantheistico como se fosse um credo, e os documentos
litterarios do periodo da Renascença revelam uma desaforada sensualidade
que deve ser tomada em conta. O que Calvino viu deante de si em Genebra
foi uma indulgencia para tudo quanto fosse immoral, indulgencia que a
propria religião prescrevia, visto tratar-se de uma coisa natural. Era
este o lado sombrio da Reforma, para o qual não era agradavel olhar,
mas que existia, e que deve ser tomado em conta antes de se julgar o
procedimento do conselho de Genebra ou o de Calvino.

O governo de Calvino, se é que era d’elle, não causou a decima
parte do soffrimento que, a instigação de Luthero, os principes da
Allemanha infligiram aos camponezes revoltosos, e aos seus cabeças,
os enthusiasmados prophetas; mas o soffrimento causado pela paixão
cega, quer provenha do medo quer provenha do odio, tem, o que é coisa
curiosa, sido sempre olhado com maior brandura do que o soffrimento que é
infligido no proseguimento de um rigoroso proposito de reforma.

Á parte de tudo isto, comtudo, não é improvavel que Calvino fosse menos
omnipotente em Genebra do que se suppõe ter sido. A um francez, e de mais
a mais logico como elle era, custa a attribuir as incoherencias que se
notam entre os _Institutos_ e as _Ordenanças Ecclesiasticas_. É preciso
não esquecer que o que tornou possiveis estes castigos que teem sido
tão condemnados foram aquelles pontos das _Ordenanças_ que não eram da
responsabilidade de Calvino, e contra os quaes escreveu. A verdadeira
causa do mal era a relação que havia entre o consistorio e o governo
civil da cidade. Supponhamos que uma das nossas camaras municipaes
se constituia uma vez por semana em commissão zeladora da moralidade
publica. Não se sentiriam escandalizados os vereadores se os casos que
elles apresentassem á commissão, e que mereciam a reprovação d’ella,
ficassem impunes? Não seriam tentados quando, no mesmo dia ou no dia
seguinte, se encontrassem em plena sessão camararia, e revestidos de
toda a sua auctoridade, a insistir na applicação do castigo? Não se deve
attribuir a culpa de todos estes males a Calvino, ou mesmo ao conselho
de Genebra. Surgiram naturalmente das tres vezes abominavel mistura da
direcção dos negocios seculares com a direcção dos negocios espirituaes,
que constitue habitual peccado contra o qual a Egreja e o Estado se devem
precaver.

=A morte de Calvino.=—Durante a residencia de Calvino em Genebra, foi
esta adquirindo cada vez mais opulencia e preponderancia. Os magistrados
fundaram uma universidade, cujo primeiro reitor foi Theodoro Beza,
e as suas aulas foram, durante o primeiro anno, frequentadas por
oitocentos estudantes. Procuraram refugio na cidade, onde receberam um
excellente acolhimento, numerosissimos protestantes italianos, francezes
e escocezes. «Calvino converteu Genebra n’uma outra Roma». Pelas suas
cartas se vê o poder de que elle dispunha e a influencia que exercia.
Pediam-lhe conselhos, que nunca eram negados, os huguenotes da França, os
reformadores de Inglaterra, a congregação escoceza, e os dirigentes da
Reforma na Allemanha.

Morreu novo. O seu organismo, que nunca fôra robusto, resentiu-se do
excessivo trabalho a que elle se entregava. Prégou o seu ultimo sermão
no dia 6 de fevereiro de 1564, e falleceu a 27 de maio do mesmo anno,
contando cincoenta e cinco annos incompletos.

Conhecendo a approximação da morte, chamou para junto de si os syndicos,
ou primeiros magistrados de Genebra, e em seguida todos os ministros.
Prohibiu que sobre a sua sepultura se erigisse qualquer monumento,
acontecendo, d’esse modo, que se desconhece o sitio onde foi enterrado.

Era de pequena estatura, magro, de feições delicadas, nariz proeminente,
testa elevada, e olhos que em dadas occasiões chammejavam. Trajava sempre
com o mais escrupuloso esmero, e alimentava-se muito sobriamente.

Contrastando com Luthero, era um aristocrata pela educação e pelo
temperamento; grande observador de todas as regras da etiqueta, sentia-se
muito mais á vontade no meio das pessoas de posição do que no meio
do povo baixo. Tem-lhe alguem chamado frio e insensivel, mas o que é
facto é que os seus amigos e contemporaneos se referem sempre a esse
frio, timido, austero e polido francez em termos os mais affaveis e
respeitosos; e os mancebos davam-se perfeitamente com elle.

Muitos escriptores teem começado a estudar o caracter de Calvino com
um certo sentimento de hostilidade, e, depois de o haverem estudado,
descobrem que a sua antipathia se transformou em affectuosa admiração.
Como será sufficiente um exemplo, vejamos o que Ernesto Renan diz d’elle:

«Calvino era um de aquelles homens absolutos que parecem ter sido vasados
de um só jacto n’um molde, e que se estudam por meio de um simples olhar;
uma carta das que escrevam, um acto dos que pratiquem, é o bastante
para se fazer um juizo d’elles.... Não se importava com riquezas, nem
com titulos, nem com honras; indifferente ás pompas, modesto no viver,
apparentemente humilde, tudo sacrificava ao desejo de tornar os outros
eguaes a si. Exceptuando Ignacio de Loyola, não conheço outro homem que
podesse rivalisar com elle n’estes raros predicados. É surprehendente
como um homem cuja vida e cujos escriptos attrahem tão pouco as nossas
sympathias, se tornasse o centro de um tão grande movimento, e que as
suas palavras tão asperas, a sua elocução tão severa, podessem ter uma
tão espantosa influencia sobre os espiritos dos seus contemporaneos.
Como se pode explicar, por exemplo, que uma das mulheres mais distinctas
do seu tempo, Renée de França, que no seu palacio de Ferrara se via
cercada dos mais brilhantes talentos da Europa, se deixasse captivar por
aquelle severo doutrinador, enveredando, por sua influencia, n’uma senda
que tão espinhosa lhe deveria ter sido? Similhantes victorias só podem
ser alcançadas por aquelles que trabalham com sincera convicção. Sem
manifestar aquelle ardente desejo de promover o bem dos outros, que foi
o que assegurou a Luthero o bom exito dos seus trabalhos, sem possuir o
encanto, a perigosa, posto que languida, doçura de S. Francisco de Sales,
Calvino saiu victorioso, n’uma epoca e n’um paiz em que tudo annunciava
uma reacção contra o christianismo, e isso simplesmente por ser o maior
christão do seu tempo».

=Beza, o successor de Calvino.=—Theodoro Beza succedeu a Calvino em
Genebra, e manteve a reputação que a Egreja tinha adquirido; e até ao
meiado do seculo dezesete a voz de Genebra foi a que as numerosas egrejas
protestantes escutaram com maior acatamento.

=A influencia de Calvino sobre a theologia da Reforma.=—Sob a influencia
de Calvino, desappareceram as differenças theologicas que havia na
Suissa, e todas as egrejas que se chamavam reformadas adoptaram um typo
de doutrina. Estas egrejas não tinham, como as lutheranas, um Catecismo
e uma Confissão, mas, não obstante os varios credos, notava-se n’ellas
uma perfeita unidade de pensamento e de sentimento. Calvino não escreveu
Confissão alguma que viesse occupar o primeiro logar entre os credos das
egrejas que se chamam do seu nome, mas a sua influencia em toda a parte
se manifesta. Elle vive novamente, na obra dos seus discipulos.

Os seus mais importantes trabalhos que teem relação com o assumpto de que
nos estamos occupando são o Catecismo para a Infancia e a Confissão de
Zurich.

O Catecismo tinha por fim, disse elle, repôr no devido logar a instrucção
religiosa das creanças, que tão lamentavelmente havia sido descurada
pelos romanistas. Calvino, para a confecção do seu catecismo, serviu-se
do Credo dos Apostolos, dos Dez Mandamentos e da Oração Dominical.
Tiveram origem n’elle dois grandes Catecismos da Egreja Reformada: o
de Heidelberg, que contém o Credo das Egrejas da Allemanha, e o Breve
Catecismo da Assembléa de Westminster.

=A Confissão de Zurich= foi muito proveitosa, porque uniu as Egrejas
Reformadas quanto á doutrina dos sacramentos pelo facto de reconciliar
n’uma mais profunda unidade as opiniões de Luthero e de Zwinglio. Poz de
parte a metaphysica medieval com que Luthero havia sobrecarregado a sua
theoria, e ao mesmo tempo repudiou as idéas mais superficiaes de Zwinglio
e dos primeiros reformadores suissos, que ensinavam que os sacramentos
eram apenas signaes, ou imagens, das bençãos espirituaes.

Calvino fez um resumo da sua doutrina ao expôr esta Confissão: «Os
sacramentos são auxiliares por meio dos quaes ou somos implantados no
corpo de Christo, ou, no caso de já o estarmos, nos ligamos a Elle cada
vez mais, até que seja perfeita a nossa união com Christo, na vida
celestial».

A influencia de Calvino e de Genebra é, porém, mais nitidamente visivel
na geração de protestantes que ella educou e enviou a combater com o
romanismo. «N’uma occasião em que a Europa», diz Haüsser, «não podia
mostrar solidos resultados da reforma, este pequeno estado de Genebra
erguia-se como uma grande potencia; anno após anno, enviava apostolos
para todo o mundo, mediante os quaes eram apregoadas as suas doutrinas,
e tornou-se o mais temido contrapeso de Roma.... Os missionarios
provenientes d’este pequeno nucleo manifestavam o elevado e intrepido
espirito que procede de uma estoica educação e adestramento; tinham o
cunho da abnegação e do heroismo, que em toda a parte era absorvido pela
estreiteza theologica. Constituiram uma raça para a qual coisa alguma era
demasiadamente ousada, e que deu uma nova direcção ao protestantismo,
separando-o da velha e tradicional auctoridade monarquica, e fazendo com
que elle adoptasse o evangelho da democracia como parte do seu credo....
Genebra dictou um pequeno trecho da historia universal, trecho que
constitue a parte de que os seculos dezeseis e dezesete mais se devem
orgulhar. O seu Credo foi professado por muitos dos mais eminentes homens
da França, dos Paizes Baixos e da Gran-Bretanha; estes homens possuiam
almas fortes, caracteres de ferro vasados n’um molde em que havia uma
mistura de elementos romanos, germanicos, medievaes e modernos; e as
consequencias nacionaes e politicas da nova fé foram por elles defendidas
com o maximo rigor e coherencia.»

A Reforma lutherana fez poucos progressos fóra da Allemanha. A pequena
republica de Genebra uniu primeiro a Reforma suissa, e em seguida deu os
caracteristicos distinctivos aos movimentos reformadores da França, da
Hollanda, da Escocia, da Bohemia, da Hungria, da Moravia e de uma grande
parte da Allemanha. Luthero, o homem de festiva disposição de espirito,
tão humano em todos os sentidos, foi, afinal de contas, o reformador
de uma parte, apenas, da Allemanha; Calvino, tão insensivel, tão frio,
tão ceremonioso, tão sarcastico, de uma logica tão desapiedada, foi o
reformador de uma grande parte da christandade. A Reforma suissa passou
muito para além da Republica Helvetica, e abrangeu as egrejas da França,
da Hollanda e da Gran-Bretanha, com tudo o que d’ellas brotou.



CAPITULO III

A REFORMA EM FRANÇA

    Principios da Reforma em França, pag. 87.—Francisco I, pag.
    89.—A _Concordata_ de 1516, e a feição que ella deu á Reforma,
    pag. 89.—«Uma egreja debaixo da cruz», pag. 90.—O anno dos
    placards, pag. 92.—O Vaudois da Durance, pag. 92.—Henrique
    II e os Guises, pag. 93.—Organisação da Egreja Reformada,
    pag. 95.—Os huguenotes: Coligny e os irmãos Bourbon, pag.
    96.—O primeiro Synodo Nacional, pag. 97.—Anne de Bourg, pag.
    98.—O massacre de Amboise, pag. 99.—Coligny na Assembléa
    dos Notaveis, pag. 100.—Catharina de Medicis, pag. 100.—A
    Conferencia de Poissy, pag. 102.—O massacre de Vassy, e outros,
    pag. 103.—A guerra civil, os iconoclastas, pag. 103.—Coligny e
    Carlos IX, pag. 106.—O massacre de S. Bartholomeu, pag. 107.—A
    Santa Liga, pag. 109.—Henrique de Navarra, pag. 110.—O edicto
    de Nantes, pag. 110.


=Principios da Reforma em França.=—Antes da Reforma se ter tornado em
França um grande e importante movimento, appareceram dois typos da
cristandade reformada, sellados com as individualidades de dois homens:
Luthero e Calvino, o Pedro e o Paulo da Reforma, Na renhida lucta que em
seguida teve de ser sustentada com o romanismo, o movimento mais moderno
foi o que adquiriu maior importancia; foi Genebra, deixando Wittenberg
em segundo plano, que se mostrou em condições de se defrontar com Roma.
A dupla corrente da Reforma partiu d’estes dois centros para toda a
Europa, mas nos terriveis combates que se travaram a feroz democracia do
Calvinismo poude desenvolver uma força que era o dobro da do claudicante
conservantismo do movimento lutherano. A historia do progresso da Reforma
fóra da Allemanha é quasi inteiramente a historia do calvinismo, e do
triumpho das idéas calvinistas. Foi assim em França.

Os principios da Reforma franceza ficam lá muito para traz, datam de
uma epoca muito anterior á do nascimento de Calvino. Havia no sul e no
sueste, no fim do seculo quinze e no principio do seculo dezesseis,
uns taes ou quaes vestigios dos velhos albigenses; e os valdenses
mantiveram-se, e foram protegidos, em virtude de antigos tratados,
durante as perseguições dos huguenotes. A Egreja franceza havia-se
distinguido sempre pela sua opposição ás reivindicações da côrte
pontificia e do papa. Quando o papado, no seculo quinze, chegou a uma
grande decadencia, e papas libertinos occuparam a sé de Roma, a Egreja
franceza, tendo á frente os famosos chancelleres da universidade de
Paris, João Gerson e Pedro d’Ailly, desempenhou a parte principal na
convocação dos concilios reformadores de Pisa, Basiléa e Constancia, e no
refreamento da curia romana. A Egreja franceza tinha-se sempre opposto
energicamente ao ultramontanismo, e, protegida pela Sancção Pragmatica
de Bourges, era talvez mais genuinamente nacional do que qualquer outro
ramo da Egreja medieval. Muitas pessoas esperavam que a França, em vista
da sua historia passada, tomasse a iniciativa de um movimento reformador.
A Reforma, porém, que as summidades ecclesiasticas promoveram no seculo
quinze não foi uma reforma de doutrina ou uma revivificação da religião
espiritual. Os reformadores de Constancia queimaram João Huss.

Além d’isso, havia na Egreja franceza, pouco antes da Reforma, a mesma
immoralidade, a mesma incuria, a mesma ignorancia que desacreditou a
Egreja medieval do seculo dezeseis na Allemanha e na Italia; o inicio da
Reforma em França proveiu do despertamento das lettras e da leitura das
Escripturas nas linguas originaes.

Os primeiros sermões reformistas foram prégados em Meaux, onde o bispo,
Guilherme Briçonnet, viu que havia urgente necessidade de reprehender a
immoralidade monastica, e que o povo anhelava por um verdadeiro ensino
religioso. Elle tinha ouvido fallar da erudição de Jayme Lefévre, de
Etaples, e da perseguição que elle soffrera da parte dos doutores da
Sorbonne por causa dos seus estudos biblicos; e convidou-o, a elle e
ao seu ardente e joven discipulo, Guilherme Farel, o futuro amigo de
Calvino, para irem para a sua diocese e estudarem, ensinarem e prégarem
debaixo da sua protecção. Lefévre publicou, em 1523, uma traducção
do Novo Testamento em francez, e o povo comprou o livro e leu-o com
soffreguidão.

Os franciscanos, anciosos por se vingarem do que Briçonnet n’outro tempo
lhes havia feito, accusaram-n’o de heresia, e de favorecer herejes. No
meio da tempestade que então se levantou, o bispo perdeu a coragem. Farel
fugiu para Strasburgo, seguido pouco depois por Lefévre e Roussel, outro
prégador, e a Reforma ficou, apparentemente, suffocada. O povo, porém,
que possuia a Biblia, lia tratados de Luthero, e conservava na memoria os
sermões de Farel e de Roussel persistiu na fé evangelica. Alguns crentes
tiveram de soffrer o martyrio, mas o fermento espalhou-se, ainda que
occultamente, por toda a França.

=Francisco I.=—O rei de França, n’esses primeiros annos da Reforma,
era Francisco I, a quem depois Calvino dedicou os seus _Institutos da
Religião Christã_. Enthusiasta, e dotado de alguma intelligencia, havia
saudado a revivificação das letras, protegeu Lefévre durante o tempo em
que este sabio residiu em Paris, e orgulhava-se da correspondencia que
mantinha com homens de grandes conhecimentos, taes como Erasmo e Budaeus.
Suppunha-se um grande protector das letras, e toda a sua ambição era que
o considerassem como tal; a universidade de Paris havia-lhe merecido
uma especial attenção, e interessou-se tambem immenso na famosa maquina
de impressão inventada por Henrique Estevão. Estabeleceu as cadeiras de
Grego, Hebraico, e oratoria latina. Julgava-se poeta, e escreveu algumas
poesias. A irmã, Margarida de Angouleme, mais tarde rainha de Navarra,
foi uma das mais espirituosas conversadoras e uma das mais brilhantes
escriptoras do seu tempo. Francisco não sympatizava nada com o desleixo e
ignorancia de muitos dos clerigos de aquella epoca, e, particularmente,
considerava o movimento da Reforma uma lucta da intelligencia com
a estupidez. Protegeu os primeiros reformadores, chegando mesmo a
auxilial-os. Francisco era um principe frivolo e egoista, que ambicionava
brilhar como habil guerreiro, e cujo intento era estabelecer a absoluta
supremacia do soberano. Não sympatizava com o caracter profundamente
espiritual da Reforma, e as suas necessidades politicas não tardaram a
prevalecer sobre o seu amor pela instrucção.

=A Concordata de 1516, e a feição que ella deu á Reforma.=—A
independencia da Egreja franceza e os direitos do reino de França em
opposição ao papado haviam sido mantidos pela Sancção Pragmatica de
Bourges, que definia as liberdades das egrejas nacionaes de uma maneira
clara e energica. Declarou que o papa estava sujeito a um concilio
ecumenico, e que este concilio se devia reunir de dez em dez annos.
Declarou que todos os provimentos de elevados cargos ecclesiasticos,
taes como os bispados e abbadias, deviam ser feitos por eleição, e não
por designação do papa. Restringiu os dispendiosos e incommodos appellos
a Roma, e sanccionou o principio de que nenhum interdicto pode abranger
tanto os innocentes como os culpados. A Sancção Pragmatica tinha sido
sempre cuidadosamente defendida pela Egreja franceza, e pela maioria dos
soberanos de França. Era intensamente abominada pelos papas, e não podia
ser olhada com muito amor por um rei que pretendia a absoluta supremacia
do throno. Uma egreja independente deve zelar a independencia do povo.
Francisco comprehendia que, se podesse collocar a Egreja debaixo do seu
dominio, ser-lhe-hia mais facil chegar ao absolutismo. Entendeu-se,
portanto, com o papa, e trocou a Sancção Pragmatica por uma Concordata,
que foi, no futuro, uma grande desgraça para a França.

Mediante esta Concordata o rei renunciou aos principios dos Concilios
reformistas de Basiléa e de Constancia, e consentiu em que o papa ficasse
com direito ao _Annates_, isto é, o vencimento relativo ao primeiro anno
de todos os beneficios que eram providos, concedendo o papa, em troca,
que a nomeação de todos os cargos ecclesiasticos ficasse dependente do
rei. Por outras palavras, era reconhecida a posição dos papas como chefes
supremos da Egreja, e dava-se-lhes annualmente uma consideravel somma
de dinheiro; e o rei de França era praticamente, dentro do seu reino,
o chefe da Egreja, podendo dispôr de todos os arcebispados, bispados,
abbadias e priorados. Fez-se denuncia d’esse tratado, e de todos os modos
se trabalhou para o annullar, mas conseguiu vencer todas as opposições, e
permaneceu em vigor até á Revolução.

A Concordata de 1516 é a chave da historia da Reforma franceza, e
não é possivel exaggerar a importancia que ella tem para a historia
ecclesiastica franceza desde o principio do seculo dezeseis. Por um lado,
secularizou a Egreja franceza. Todos os officios ecclesiasticos de valor
eram doados pelo rei, e tinham de ser disputados por cortezãos que só nas
coisas do mundo pensavam. Por outro lado, tornou identicos os interesses
da Egreja e os do throno. Opposição ao systema ecclesiastico da Egreja
franceza era necessariamente opposição ao absolutismo do soberano. Esta
Concordata deu uma indole particular á lucta que a Reforma produziu em
França. Os reformadores não podiam deixar de ser tambem os adversarios do
absolutismo; e o rei, para ter o paiz sujeito a si na sua qualidade de
chefe da Egreja, via-se obrigado a sustentar o papa, que lhe concedera a
supremacia.

Aconteceu d’este modo que os protestantes tiveram em França um trabalho
muito diverso do trabalho de Luthero na Allemanha, porque tinham de se
oppôr não só á Egreja como ao Estado. Succedeu-lhes como aos reformadores
escocezes e aos protestantes dos Paizes Baixos; na Escocia, porém, a
Reforma poude, por fim, estabelecer uma monarquia limitada, e na Hollanda
uma republica. Em França, por outro lado, o poder real foi augmentando
lentamente; e, quando chegou a um ponto elevado, a um absolutismo como
o de Luiz XIV, o soberano encontrou-se apto para exterminar a egreja
protestante, por meio de uma sanguinolenta perseguição.

=«A Egreja que estava debaixo da Cruz».=—Luthero tinha, na Allemanha, um
principe do seu lado, e Calvino foi, em Genebra, auxiliado pela suprema
auctoridade civil. Em França os reformadores tiveram de luctar não só
contra o poder do rei como contra o poder da Egreja. A Egreja reformada,
em França, não recebeu, portanto, auxilio algum do poder civil, e
teve de sustentar um combate tão severo e tão rude como o que teve de
sustentar a Egreja dos primeiros tres seculos. A Egreja antenicena tinha
duas coisas contra si; a religião estabelecida, que era o paganismo, e
o Estado, que era egualmente pagão. A Egreja reformada de França teve
duas coisas contra si; foi perseguida pela egreja estabelecida no reino,
que era a romana, e foi perseguida pelas auctoridades civis, pois que
o poder do rei era, pela Concordata, em grande escala dependente do
reconhecimento do pontifice. Foi creando lentamente forças, sob uma dupla
perseguição, como a Egreja primitiva dos martyres e dos apologistas. Eram
dois os emblemas que ella gravava nos seus livros e esculpia nos seus
monumentos: a sarça que ardia sem se consumir, e a bigorna que levava
martelladas e estava sempre inteira. O grande Beza disse um dia ao rei
de Navarra: «Sire, a Egreja de Deus é uma bigorna que tem partido muitos
martellos».

Francisco, ao principio, não incommodou muito os protestantes que
existiam nos seus dominios; mas a sua derrota em Pavia, em 1525, e a sua
alliança com o papa, mostrou-lhe que era prudente, lá no seu modo de
ver as coisas, mostrar alguma vontade de expurgar da heresia as terras
de que era senhor, e deu licença para que se pozessem em pratica as
perseguições que tão ardentemente lhe eram pedidas pela Sorbonna, pelo
Parlamento de Paris, por muitos dos bispos, pela mãe, a rainha Luiza, e
por Du Pratt, o chanceller do reino. Foi só, porém, depois de Francisco
ser feito prisioneiro pela segunda vez, e n’uma occasião em que precisava
de dinheiro para as suas guerras, dinheiro que já não era possivel obter
por meio de impostos, que elle permittiu que a heresia fosse exterminada
de vez. O clero pôz á sua disposição elevadas quantias, exigindo-lhe em
troca que o coadjuvasse no aniquilamento dos herejes, e o rei viu-se
fornecido dos recursos de que necessitava, á custa da tortura e da
carnificina dos seus subditos protestantes. Isto foi em 1528.

Severas medidas foram decretadas contra os protestantes. Era prohibida a
leitura de obras protestantes; a ligação com pessoas suspeitas de heresia
importava condemnação; e os herejes, onde quer que fossem descobertos,
eram entregues ás auctoridades civis para serem castigados. Luiz de
Berguin, homem erudito e de nobre estirpe, e n’outro tempo amigo do
rei, e correspondente de Erasmo, foi a mais notavel victima d’estas
disposições.

A inconstancia da politica do rei veiu alterar o estado das coisas.
Francisco I intentou fazer uma alliança com os principes protestantes
allemães, e recusou, portanto, associar-se a um plano geral para a
exterminação da heresia.

=O anno dos placards.=—Em breve, porém, poz de parte este seu intento,
e começaram novamente as perseguições. Os protestantes, por seu lado,
mostraram uma grande somma de coragem. Imprimiram curtos folhetos em
que se atacava a missa e outros ritos da Egreja Catholica Romana, e
espalhavam-n’os pelas ruas e pelas escadas. O anno de 1535 foi chamado
o anno dos placards. Um imprudente introduziu nos aposentos do rei
um d’esses papeis em que a missa era apreciada com extrema dureza, e
Francisco ficou indignadissimo. No primeiro impulso, prohibiu que se
imprimisse fosse o que fosse, mas depois, revogando este decreto, entrou
a serio no seu papel de perseguidor. Decretou que a heresia fosse punida
com a morte; aquelle que denunciasse um hereje tinha direito á quarta
parte dos bens que este possuisse, no caso de se provar a veracidade
da accusação. Isto redobrou a perseguição, e em toda a França os
protestantes eram accusados, condemnados, e punidos com prisão, perda
de bens, e morte. Foi por este tempo que Calvino dedicou ao rei os seus
_Institutos_.

Os ultimos annos do reinado de Francisco I foram uns annos de terrivel
effusão de sangue e oppressão; e, comtudo, os protestantes augmentaram em
numero, e a repressão, posto que sanguinolenta, mostrava-se inefficaz.
O sangue dos martyres era a semente da Egreja. Em 1540 o Edicto de
Fontainebleau intimava os officiaes de justiça a processarem todos
aquelles em que houvesse mancha de heresia; a essas pessoas era negado
o direito de appellação; os juizes negligentes eram ameaçados com o
desagrado do rei, e os ecclesiasticos tiveram ordem para mostrar maior
zelo. «Todos os subditos leaes», dizia o edicto, «devem denunciar os
herejes, e empregar todos os meios para os extirparem, do mesmo modo
que são obrigados a contribuir para que se ponha termo a qualquer
conflagração publica». Seguiram-se outros edictos ainda mais severos,
mas a Reforma foi progredindo, e tanto homens como mulheres soffriam
resignadamente, por amor de Christo, todas aquellas calamidades.

=Os valdenses da Durance.=—A maior atrocidade commettida durante a
perseguição foi o massacre dos valdenses da Durance. Uma parte da
Provença que confina com a Durance chegara, dois seculos atraz, a estar
quasi despovoada, e os proprietarios das terras dirigiram um convite aos
camponezes dos Alpes para irem estabelecer-se nos seus territorios. Os
novos colonisadores eram valdenses, e a sua industria e indole economica
em breve encheram de ferteis herdades aquellas regiões desoladas.
Garantiu-se-lhes que a sua religião seria protegida, pois que os seus
senhorios, catholicos romanos, estavam satisfeitissimos com os serviços
que elles prestavam. Quando na Allemanha e na Suissa começou a Reforma,
estes aldeãos mandaram por alguns dos seus saudar os Reformadores, e em
1535 associaram-se por tal fórma ao movimento que forneceram o dinheiro
necessario para publicar a traducção das Escripturas Sagradas em francez,
feita por Roberto Olivetan, e corrigida por Calvino. Este procedimento
despertou a hostilidade de alguns ecclesiasticos francezes.

O bispo de Aix excitou o parlamento local; fizeram-se prisões, e alguns
dos aldeãos foram submettidos á tortura e soffreram morte violenta. Em
1540 o parlamento intimou quinze aldeãos de Mérindol a comparecer perante
elle como suspeitos de heresia. Os aldeãos, tendo sabido que a sua morte
estava resolvida, não appareceram; pelo que o parlamento fez sair o
infame _Arrêt de Mérindol_, que, em resumo, ordenava a destruição de toda
a aldeia.

A publicação d’este decreto provocou alguns protestos; o rei teve
conhecimento d’elle, mandou proceder a investigações, e em resultado
d’ellas deu ordem para que o referido decreto ficasse sem effeito. Foi,
porém, induzido a revogar essa ordem, organizou-se clandestinamente
uma expedição, e durante sete mezes de carnificina, com todos os seus
acompanhamentos de traição e de infame brutalidade, foram totalmente
destruidas vinte e duas cidades e aldeias, pereceram 4:000 homens e
mulheres, e perto de 700 foram enviados para as galés.

Assim desappareceu uma geração, e a Reforma em França estava ainda
luctando pela sua existencia no meio de perseguições mais terriveis do
que aquellas de que os protestantes foram victimas n’outro qualquer paiz.

=Henrique II e os Guises.=—Em 1547 Francisco I morreu, succedendo-lhe
Henrique II, seu filho, que seguiu a politica de seu pae, a qual
obedecia ao intuito de enfraquecer o imperio da Allemanha e consolidar,
em França, o poder real. Isto obrigava a occasionaes allianças com os
principes protestantes allemães, e dava logar, em França, a uma continua
perseguição aos protestantes. Todos os favoritos que tinha na sua côrte
eram inimigos da fé protestante. O rei desposara a celebre e infame
Catharina de Medicis, sobrinha do papa Clemente VII; e, além da rainha,
o protestantismo tinha por inimigos poderosos e sem escrupulos: Diana de
Poitiers, o Condestavel de Montmorency, primeiro ministro da corôa, que
gozava de grande reputação como perito na arte da guerra e na gerencia
dos negocios publicos, e os Guizes, notavel familia de procedencia
estrangeira, que alcançara grande poder em França. Francisco, duque de
Guize, tinha já conquistado grande renome como general; e seu irmão, o
cardeal de Lorraine, que foi durante vinte e tres annos o conselheiro
de Henrique II, era um dos homens mais sagazes da Europa. A irmã casou
com Jayme V da Escocia, e tiveram por sobrinha Maria Stuart, rainha da
Escocia, educada em França debaixo do cuidado d’elles, e casada por elles
com o Delphim de França.

Francisco fizera da perseguição aos protestantes um negocio tão urgente
que os tribunaes de justiça tiveram de interromper o julgamento de
varias causas. Henrique creou uma nova divisão judicial, que se occupava
exclusivamente dos casos de heresia, e as sentenças proferidas por estes
tribunaes especiaes eram tão severas que o povo chamava-lhes _chambres
ardentes_. Os martyres exhibiram um extraordinario heroismo, e a
perseguição não estorvou o derramamento do Evangelho.

Conta-se que Henrique manifestou em certa occasião o desejo de ver com
os seus proprios olhos, e interrogar, um d’esses obstinados herejes.
Foi levado á sua presença um pobre alfayate, preso sob a accusação de
ter trabalhado n’um dia santo, e esse homem, com grande espanto da
côrte, respondeu ousada e respeitosamente a todas as perguntas sobre
theologia que lhe foram feitas. Diana de Poitiers emprehendeu reduzil-o
ao silencio mediante a zombaria; mas o alfayate, que lhe conhecia o
caracter e estava ao facto da posição occupada por ella, retorquiu-lhe
solemnemente: «Senhora, dê-se por satisfeita em ter contaminado a França,
e não queira tocar com o seu veneno e com a sua immundicie uma coisa tão
pura e tão sagrada como é a religião de nosso Senhor Jesus Christo.» O
rei, encolerisado porque á amante fossem dirigidas estas palavras, deu
ordem para que immediatamente o julgassem e executassem, e quiz assistir
ao supplicio. Quando Henrique assomou a uma janella que dava para a praça
onde o martyr ia ser queimado, este viu-o, e não despregou mais d’elle
os olhos. Mesmo já depois de rodeiado pelas labaredas não deixou de
perseguir o rei com aquelle olhar, e Henrique referiu depois que durante
muito tempo aquelle espectaculo não se lhe varria da memoria durante o
dia e lhe perturbava o somno durante a noite.

Tornou-se manifesto para todo o reino, incluindo a côrte, que estas
repetidas execuções não estavam contribuindo para a repressão da Reforma.
Outros martyres se apresentavam jubilosamente para substituir aquelles
que os tinham antecedido; viuvas, mancebos, estudantes, raparigas
mimosas, fidalgos da mais elevada estirpe, todos preferiam o cruel
martyrio a negarem Christo. A côrte não pensava senão em medidas mais
severas de repressão, e em 1551 foi promulgado um novo edicto, o de
Chateaubriand, o qual, como os edictos de Decio, nos primeiros seculos,
mandava destruir toda a litteratura christã, na idéa de que por essa
fórma se faria desapparecer o christianismo.

Genebra estava situada na fronteira da França. Toda ella se encheu de
refugiados francezes. Um certo numero de rapazes, cheios de coragem
e de fé, instruidos por Calvino e seus companheiros nas verdades do
Evangelho, havia-se offerecido para distribuir livros e folhetos por
todos os pontos da França. O Edicto de Chateaubriand visava estes
colportores, assim como os livros e tratados que elles vendiam. Prohibia
terminantemente a entrada de quaesquer livros provenientes de Genebra
ou de outras localidades notoriamente rebeldes á Santa Sé, a existencia
nas livrarias de obras condemnadas, e toda a impressão clandestina.
Estabelecia uma inspecção semestral a todas as typographias, mandava
examinar todos os volumes que chegassem do estrangeiro, e submettia,
de quatro em quatro mezes, a grande feira de Lyão a uma fiscalisação
especial, pois que mediante ella é que se haviam espalhado pelo reino
muitos livros suspeitos. Foi prohibida a venda ambulante de livros,
fossem elles de que natureza fossem. Todo aquelle em cujo poder fossem
encontradas cartas de Genebra era preso e castigado. Ás pessoas
analphabetas não se consentia que discutissem pontos de fé nas tabernas,
nas officinas, nos campos, ou em reuniões clandestinas. Por determinação
da côrte, ficava, portanto, o povo impedido de se instruir, se é
que edictos e officiaes de justiça o poderiam impedir. A sementeira
proseguia. Dispostos para a vida ou para a morte, partiram de Genebra e
de Strasburgo, para diversos pontos da França, muitos mancebos, levando
comsigo Biblias, assim como livros e folhetos evangelicos. Beza mandou
dizer n’uma carta a Bullinger que foram em numero espantoso os homens que
se offereceram para arrostar com todos os perigos para que a Egreja de
Deus avançasse.

=Organisação da Egreja reformada.=—No meio d’estas terriveis
perseguições, os protestantes de França começaram a organizar-se em
Egreja. Havia mais de trinta annos que elles, ou estudavam isoladamente
a Biblia, ou formavam pequenos nucleos de crentes. A perseguição
augmentou-lhes a coragem, e resolveram por fim constituir uma communidade.

O nascimento de um filho de La Ferriêre, fidalgo francez residente
em Paris, em cuja casa um pequeno grupo de protestantes costumava
reunir-se, é que motivou essa decisão. O pae do recemnascido declarou
aos seus irmãos na fé que não podia ausentar-se de França, afim de obter
que lhe fosse administrado um sacramento puro, e que de fórma alguma
consentiria em que o baptismo se fizesse segundo o rito da Egreja romana.
Implorou-lhes, pois, que formassem uma Egreja, e escolhessem um pastor,
pondo assim termo a todas as difficuldades.

Acharam bom o alvitre, e, depois de jejuarem e fazerem oração, escolheram
para pastor a João Le Maçon, que tinha por sobrenome La Riviére, contava
vinte e dois annos, e havia abandonado familia, riqueza e perspectivas
de um brilhante futuro pela causa de Christo. A pequena assembléa passou
em seguida a escolher os presbyteros e os diaconos, estabeleceu-se uma
Egreja segundo o modelo de Genebra, e foi adoptada uma breve constituição.

Faltava só em França, ao que parecia, quem se collocasse á testa do
movimento. Succedendo-se rapidamente umas ás outras, as communidades
constituiram-se em congregações, com os seus presbyteros e diaconos. Tres
mezes depois da eleição de La Riviére, foi de Paris enviada a Genebra uma
carta em que se pedia outro ministro. Passado um mez, Angers tinha tres
pastores protestantes; e, posto que a perseguição continuasse sempre com
a mesma violencia, nunca deixava de haver quem se offerecesse para esses
perigosos logares, e a Reforma ia fazendo progressos.

=Os Huguenotes: Coligny e os irmãos Bourbon.=—Vendo que eram inuteis
todos os esforços empregados para impedir a Reforma, o cardeal propoz o
estabelecimento, em França, de uma Inquisição, modelada pela de Hespanha,
de que Fillippe se havia servido, com tanta efficacia, para escorraçar
de seus dominios a heresia. O espirito de liberdade constitucional
não estava, porém, tão morto em França que se permittisse a perda
total de todas as garantias que as leis concedem aos innocentes, o
que necessariamente viria a acontecer se se introduzisse a inquisição
hespanhola. Os varios tribunaes, e em particular os parlamentos,
protestaram contra essa proposta. O rei e os seus conselheiros insistiram
na adopção de similhante medida, mas em breve descobriram, para seu
espanto, que o unico resultado colhido foi algumas pessoas nobres, das
que de maior influencia dispunham, se declararem protestantes; e de ahi
em deante (1558) a côrte e os romanistas tiveram de se defrontar com um
forte partido huguenote.

A devassidão da côrte franceza trazia desgostosos muitos dos principaes
representantes da nobreza, e o que elles observaram tambem no
procedimento do clero levou-os a procurarem homens de vida pura que os
instruissem no christianismo. Alguns membros da mais alta aristocracia
que antipathizavam com os Guizes aggregaram-se aos calvinistas, uns por
simples politica, mas muitos outros por convicção. Estes homens faziam
uma opposição moral á licenciosidade da libidinosa vida palaciana,
que Francisco I tinha animado, e uma opposição politica ao systema
absolutista do rei e dos seus conselheiros.

Á testa d’este partido estavam os irmãos Bourbon, o almirante Coligny e
seu irmão Francisco d’Andelot.

Um filho de S. Luiz havia desposado a herdeira da casa Bourbon, e esta
familia era, no meiado do seculo dezeseis, representada por Antonio,
duque de Bourbon, que, na falta do rei e dos filhos d’este, era o
herdeiro do throno de França, e por seu irmão Luiz, duque de Condé.
Antonio Bourbon tinha casado com a piedosa e heroica filha de Margarida
de Angouleme, Joanna d’Albret, herdeira da corôa de Navarra, cujo
filho foi Henrique IV de França. Em virtude do seu casamento, recebeu o
titulo de rei de Navarra, e residia uma grande parte do tempo em Pau,
onde assistia ás prégações dos pastores protestantes. Quando voltou
para a côrte, começou tambem lá a frequentar as reuniões evangelicas, e
declarou-se, por fim, protestante. O duque de Condé fez o mesmo. Andelot,
o irmão mais novo do almirante Coligny, e a quem o povo chamava «o
cavalleiro sem pavor», introduziu prégadores protestantes no seu castello
da Bretanha, os quaes dirigiam a palavra a grandes agglomerações de
gente. Foi preso, mas, em vista da sua gerarquia e do seu poder, não se
atreveram a castigal-o.

Henrique, derrotado pelo partido opposicionista, concluiu um tratado de
paz com a Hespanha para poder dedicar toda a sua actividade á destruição
dos calvinistas. Era vastissimo, segundo se diz, o plano que elle tinha
preparado. Genebra e Strasburgo iam ser destruidas, e a heresia soffreria
um golpe mortal, tanto em França como nos Paizes Baixos. No meio, porém,
d’estes preparativos, Henrique, ferido accidentalmente n’um torneio que
teve logar em Junho de 1559, morreu.

=O primeiro synodo nacional.=—Um caso interessante é que, ao mesmo tempo
em que se estavam planeando novas medidas de repressão, os protestantes
francezes houvessem tomado uma deliberação que era mais um testemunho
da sua progressiva força. Debaixo de muito segredo, reuniram, n’uma
casa do Faubourg St. Germain, o seu primeiro _Synodo Nacional_. O que
motivou essa reunião foi o seguinte: Em 1558, quasi no fim do anno,
Antonio Chandieu, pastor de uma das egrejas de Paris, foi a Poitiers,
afim de auxiliar o serviço da Communhão que se ia celebrar n’esta cidade.
Encontrou-se lá, como era vulgar em similhantes occasiões, com pastores
que tinham vindo de varios pontos, e, conversando ácerca do estado da
Egreja, lamentaram a falta de unidade, assim como de modelos doutrinaes.
Chandieu foi encarregado de apresentar no consistorio de Paris as
opiniões dos irmãos. Resultou de ahi que a congregação parisiense enviou
cartas ás outras congregações, convidando-as a mandar delegados a uma
conferencia que ia realisar-se em Paris. Foi d’esta maneira que teve
origem o primeiro Synodo Nacional. Era uma pequena assembléa, em que
estavam representadas onze congregações apenas; mas proveu a Egreja
franceza de uma Confissão de Fé e de um Livro de Disciplina.

A Confissão, conhecida depois pelo nome de _Confessio Gallica_, foi
provavelmente redigida por Chandieu, e baseava-se n’uma resumida
Confissão que Calvino compoz, chamando para ella a attenção do rei. Foi
mais tarde revista por mais de uma vez, mas podemos ainda chamar-lhe a
Confissão da Egreja Protestante Franceza.

_O Livro da Disciplina Ecclesiastica_ foi modelado pelas _Ordenanças_
que Calvino escreveu para uso das egrejas de Genebra, mas contém
notaveis differenças, e mostra o que o livro de Calvino teria sido se
o conselho de Genebra lhe houvesse dado toda a liberdade de acção. A
constituição da Egreja franceza era inteiramente democratica e de um
caracter representativo. Reconhecia os consistorios, que já existiam
nas congregações, e, para os tornar verdadeiramente representativos,
preceituava que as eleições para presbyteros e diaconos fossem annuaes.
Provia tribunaes de appellação nos synodos provinciaes, que se reuniam
duas vezes por anno, e em que cada congregação era representada por um
pastor e um presbytero; e unia a Egreja toda sob um Synodo Nacional, ou
Assembléa Geral, que constituia o ultimo tribunal de appellação, e a
suprema auctoridade ecclesiastica.

É interessante observar como n’um paiz cujo governo se tornava de anno
para anno mais arbitrario e absolutista esta «Egreja sob o peso da Cruz»
organizava para seu uso um governo, que reconciliava mais perfeitamente
talvez do que todos quantos teem sido organizados desde então, o
principio da soberania popular com o de uma suprema auctoridade central.
Para a constituição do presbyterianismo escocez a França contribuiu
mais do que Genebra, e a organização da primitiva Egreja escoceza, a de
Knox, era quasi uma exacta reproducção da franceza, O facto d’ella se
afastar posteriormente do modelo francez, tornando vitalicios os cargos
de presbytero e diacono, e a usurpação do exclusivo direito, pela junta
mais moderna do presbyterio, de enviar representantes á Assembléa Geral,
privou o presbyterianismo escocez, inglez e americano de uma grande
parte do elemento popular que constituia a força das primitivas egrejas
escocezas e francezas.

=Anne de Bourg.=—A morte do rei não alterou em coisa alguma a politica
da côrte. Succedeu-lhe Francisco II, um mancebo de dezeseis annos. Este
tinha por esposa Maria, rainha da Escocia, e sobrinha dos Guises, e a sua
subida ao throno atirou com o poder para as mãos d’este fanatico partido,
que era capaz de tudo para conseguir os seus fins. Os Guises, porém, não
podiam fazer aquillo que só um legitimo soberano, consciente do poder que
n’elle reside, pode fazer. Pediram com instancia medidas para a repressão
dos protestantes mediante a exterminação, e aquelle seu grande empenho em
que se derramasse sangue veiu por fim voltar-se contra elles proprios.

O partido recebeu um golpe tremendo com o julgamento e execução de Anne
de Bourg, sobrinha de um dos chancelleres de França, que era tambem
juiz. O seu crime consistiu em ter, em conselho publico, dito a Henrique
II que era uma coisa muito seria condemnar aquelles que, no meio das
chammas, invocavam o nome do Salvador dos homens. Quando, mais tarde,
foi interrogada pelos Guises, fallou com tanta eloquencia e ousadia
que ganhou o apoio de uma grande parte do publico. Ao ser proferida a
sentença de condemnação á morte por meio da fogueira, tornou a fallar
com um tão tocante fervor, com uma resolução tão pathetica, que até
os proprios juizes se commoveram «Coisa alguma nos poderá separar de
Christo, sejam quaes forem as ciladas que nos armem, sejam quaes forem
as enfermidades que ataquem os nossos corpos. Sabemos que somos ha muito
como ovelhas que são levadas para o matadouro. Que nos matem, pois, que
nos despedacem; os que morrem no Senhor não deixam jámais de viver, e
todos hão de apparecer na resurreição geral.... E, sendo assim, para que
hei de eu permanecer mais tempo n’este mundo? Apodera-te de mim, verdugo,
e conduze-me ao logar do supplicio.»

Desde a execução de Bourg a historia do protestantismo francez começa a
ser outra. Os protestantes, que a pouco e pouco se haviam compenetrado da
força de que dispunham, começaram de aquelle ponto em deante a reunir-se
para tratarem do modo como se deviam manter na defensiva, e do modo como
deviam aproveitar a crescente impopularidade dos Guises. Alguns dos mais
impetuosos foram de parecer que se arvorasse immediatamente o estandarte
da revolta. Calvino e Beza, a quem consultaram, dissuadiram-n’os de
uma insurreição declarada. Não obstante, organizou-se uma conspiração.
La Renaudie, protestante, e inimigo declarado dos Guises, foi o chefe
d’essa conspiração, e a guerra civil que depois se seguiu teria sortido
bom effeito se a conspiração não houvesse sido denunciada. Os Guises
tiraram uma sangrenta vingança dos humildes adversarios da sua politica,
e houve enormes carnificinas, particularmente em Amboise, que ficaram bem
gravadas na memoria dos huguenotes. Os Guises accusaram judicialmente
Condé de ser o cabeça da conspiração. Este requereu uma assembléa de
todos os principes e de todos os membros do Conselho privado, e desafiou
os seus inimigos a que o denunciassem. O duque de Guise não se sentiu com
animo de o atacar de novo.

=O morticinio de Amboise=, longe de aterrorizar os protestantes, parece
que lhes deu uma nova coragem. Começaram então a ser conhecidos pelo nome
de _Huguenotes_. A origem d’este nome é obscura; tudo o que ao certo
sabemos a seu respeito è que depois da conspiração de Amboise andava na
bocca de toda a gente. Em Valence um bando armado apoderou-se da Egreja
dos franciscanos, onde os serviços religiosos passaram a ser feitos por
prégadores protestantes, sendo enorme a assistencia do povo. A Ceia do
Senhor foi, por bandos armados, celebrada «á moda de Genebra», em Nismes,
no Languedoc. O tempo das assembléas secretas tinha passado, e grandes
reuniões ao ar livre, no norte, meio-dia e sul da França, demonstravam
que a Reforma tinha sido abraçada por uma immensa quantidade de gente.

=Coligny na Assembléa dos Notaveis.=—A côrte, comtudo, estava convencida
de que a unica politica a seguir era a de exterminaçao, e as perseguições
continuavam com o mesmo vigor. Necessitava, porém, de dinheiro, pois
que as despezas do reino foram gradualmente excedendo as receitas, e
em Fontainebleau foi, por fim, convocada uma Assembléa dos Notaveis.
Os protestantes aproveitaram a opportunidade, apresentando o almirante
Coligny, chefe da grande casa de Chatillon, duas supplicas, uma ao rei,
outra á rainha mãe, da parte dos huguenotes da Normandia. Pediam a
cessação das perseguições e a liberdade para celebrarem publicamente o
culto divino.

Este corajoso acto de Coligny fez com que outros ganhassem animo. O
bispo de Valence fallou a favor dos huguenotes da sua diocese, e pediu
que fossem revogadas as leis que se oppunham á entoação dos hymnos
e á leitura das Escripturas, e que se convocasse um concilio geral.
O arcebispo de Vienne ainda se atreveu a mais. Perguntou se «estava
resolvida a morte da França para agradar a Sua Santidade». A côrte viu-se
obrigada a permittir que se realisasse a tal assembléa geral.

Os Guises não desanimaram. Para exterminio do protestantismo, tomaram a
resolução de matar os seus homens de maior nomeada, e, segundo parece,
tinham tambem em mente um massacre geral dos huguenotes. Fizeram com que
o rei chamasse á côrte os Bourbons, isto é, o rei de Navarra, e seu irmão
Luiz, duque de Conde, os quaes, sem se importarem com o perigo, para lá
partiram.

O duque foi preso e sentenciado á morte, e o rei de Navarra por pouco
escapou de ser assassinado. Quando, porém, a tempestade estava prestes a
estalar, o rei adoeceu e morreu.

«Já lêstes ou vos referiram» diz Calvino n’uma carta que enviou a Sturm,
«algum acontecimento mais opportuno do que esta morte do rei? Quando
a desgraça tinha chegado a tal ponto que não se podia remediar, Deus
revela-Se de subito lá do céu. Aquelle que traspassou os olhos do pae
feriu agora os ouvidos do filho».

=Catharina de Medicis.=—Pela morte de Francisco ficou herdeiro do
throno Carlos IX, que tinha então dez annos. Para regente foi nomeado
o protestante Antonio de Bourbon, rei de Navarra. A mãe do joven rei,
Catharina de Medicis, de quem haviam feito pouco caso durante a vida do
marido, e que havia sido offuscada pelos Guises durante o reinado de seu
filho mais velho, reivindicou então o direito de governar, na qualidade
de tutora natural de seu filho. Os amigos do rei de Navarra instaram
com este para que tambem fizesse valer os seus direitos. Se elle assim
tivesse procedido, o futuro da França seria, porventura, mais pacifico.
Ter-se-hia alcançado uma duradoura tolerancia religiosa, e ter-se-hiam
lançado os alicerces de uma monarquia constitucional; elle, porém, teve
a fraqueza de não fazer valer esses seus direitos, e Catharina foi
investida no poder.

As circumstancias, porém, obrigaram-n’a a fazer concessões a todos os
partidos. Não podia passar sem o apoio dos Guises, e ao mesmo tempo era
indispensavel entrar em negociações com os huguenotes. Todos os herejes
que estavam presos recuperaram, por meio de um edicto, a sua liberdade,
mas foram avisados de que deviam não dar mais motivo de queixa. No
entretanto reunia-se o Estado Geral, que havia sido convocado antes da
morte do ultimo rei.

Coligny pediu, em nome dos huguenotes, liberdade de religião; uma reforma
no governo da Egreja, e, em particular, a eleição livre dos bispos e do
clero; um concilio nacional, sob a presidencia do rei, para discutir as
questões religiosas, e, no entretanto, egrejas para os protestantes, e
uma reunião da Assembléa dos Notaveis de dois em dois annos. Offereceu-se
tambem para auxiliar o governo na promulgação de uma lei que auctorizasse
a venda dos bens da Egreja para occorrer ás despezas do Estado.

As reclamações de Coligny constituiam, no dizer de Ranke, o programma
da revolução do seculo dezoito; e, se ellas tivessem sido attendidas,
essa revolução não seria assignalada com o atheismo que a desacreditou,
e não seria necessario derrubar a monarquia e a aristocracia. A côrte
não estava preparada para essas mudanças radicaes, e o mais que se
poude obter de Catharina foi uma conferencia religiosa em Poissy, onde
podessem ser discutidos pontos de fé entre pastores protestantes e padres
catholicos romanos.

Em virtude da tolerancia que havia sido concedida aos huguenotes,
voltou para França muita gente que se tinha refugiado na Inglaterra, na
Allemanha, nos Paizes Baixos, e até mesmo na Italia. Vieram tambem alguns
pastores de Genebra, não faltando, d’esse modo, homens bem instruidos
que dirigissem as congregações protestantes. Era impossivel, porém,
mudar todas as coisas por meio de um compromisso politico. Os Guises
ameaçavam vingar-se. O idoso condestavel de Montmorency, que se tinha na
conta de ser o campeão da antiga fé, resolvera oppôr-se áquella corrente
conciliatoria, e fanaticas turbas se levantaram contra as assembléas
protestantes. Nas localidades onde os huguenotes estavam em maioria,
tornou-se difficil evitar que elles decisiva e energicamente defendessem
os seus direitos. N’algumas cidades o povo correu em massa ás egrejas,
derrubou as imagens e os quadros, e queimou as reliquias. Os que entre os
huguenotes occupavam os primeiros logares fizeram todo o possivel por
conter os seus correligionarios. Calvino escreveu de Genebra, protestando
energicamente contra toda e qualquer illegalidade. «Deus nunca disse a
pessoa alguma que destruisse os idolos, exceptuando aquelles que cada
um tenha em sua casa, ou os que em publico se encontrarem revestidos de
auctoridade.... A obediencia é melhor do que o sacrificio, e devemos ver
bem o que nos é licito fazer, e manter-nos dentro de certos limites».

=A Conferencia de Poissy.=—A data designada para a Conferencia
approximava-se com rapidez, e por toda a parte eram convidados todos os
francezes que tivessem qualquer coisa a dizer em materia de religião a
apresentarem-se na proxima assembléa de Poissy, na certeza de que não
correriam perigo algum e seriam escutados com a maxima attenção. Os
huguenotes tinham grande empenho em que Beza comparecesse, e pediram-lhe
encarecidamente que fosse lá represental-os. Elle ao principio não queria
ir, pois que estava convencido de que de similhante rainha se não tiraria
resultado algum. Por fim acquiesceu, e os huguenotes ficaram descançados
por saberem que os seus interesses estavam entregues em tão boas mãos.

Francez, nascido, em 1519, em Vezelay, e de nobre ascendencia, renunciara
a um brilhante futuro ao abraçar a causa da Reforma. Era um homem
de magestosa presença, muito illustrado, e de um trato captivante.
Abaixo de Calvino, era elle a pessoa por quem as egrejas reformadas se
deixavam guiar com maior confiança, e em quem viam o seu mais legitimo
representante. Foi recebido pelo rei de Navarra, e por seu irmão, Luiz
de Condé, e apresentado por elles á rainha mãe e ao cardeal de Lorraine.
O seu porte, a sua erudição, e os seus modos de grande personagem,
produziram sensação na côrte.

Quando teve logar a discussão publica, tornou-se tristemente manifesta a
ignorancia dos bispos francezes, e o cardeal de Lorraine e outros mais
trataram logo de pôr termo á conferencia, ou, no caso de não conseguirem
esse proposito, de a tornarem completamente esteril. O resultado da
discussão foi ambas as partes nomearem delegados para conferirem sobre
determinados pontos, e d’essas conferencias proveiu um Edicto de
Tolerancia, publicado em Janeiro de 1562.

Os protestantes tinham de renunciar ás suas egrejas e ás suas reuniões
secretas, mas era-lhes permittido fazer os seus cultos ás claras, e a
qualquer hora do dia, fora das povoações; e todos os seus ministros eram
obrigados a declarar, sob juramento, que não ensinariam coisa alguma que
não estivesse de accordo com as Escripturas e com o Credo de Nicéa. A
tolerancia era, como se vê, muito limitada; mas desapparecia o fundamento
legal para qualquer perseguição, e Calvino e Beza foram de parecer que um
tal compromisso, não obstante as pouco favoraveis condições em que era
feito, devia ser acceite. «Se a liberdade que o Edicto nos promette fôr
duradoura», escreveu Calvino, «o papismo cae por si mesmo».

Os catholicos romanos não estavam de fórma alguma dispostos a chegar a
um accordo com os protestantes. Os funccionarios civis, nas cidades e
nas provincias, pertenciam á religião do estado, e os parlamentos, ou
tribunaes de justiça permanentes, abominavam o protestantismo. Sabia-se,
além d’isso, que o Edicto da Tolerancia era apenas um ardil de Catharina
para ganhar tempo. Por outro lado, os Guises eram formalmente oppostos
a qualquer convenio, e todas estas circumstancias incitaram os dois
partidos a prepararem-se para uma guerra civil.

=O massacre de Vassy: outros massacres.=—O signal foi dado pelo duque de
Guise, o qual, com o maior atrevimento, violou o Edicto da Tolerancia.
No dia 1.º de Março de 1562, a um domingo de manhã, entrou, á frente de
um grupo de cavalleiros armados, na cidade de Vassy, onde uma pequena e
indefeza congregação de protestantes estava prestando culto a Deus n’um
celleiro. Quasi no fim levantou-se um tumulto, e as pessoas presentes,
que não tinham armas para se defender, foram, na sua grande maioria,
assassinadas. Foi este o inicio d’essas medonhas guerras civis que tanta
devastação produziram em França até Henrique IV subir ao throno.

O exemplo da carnificina que teve logar em Vassy foi seguido em muitos
outros pontos em que os catholicos romanos estavam em maioria. Em
Paris, em Sens, em Rouen, em toda a parte, emfim, os logares de culto
protestantes foram atacados e os que n’elles se haviam reunido tiveram
morte violenta. Em Toulouse os protestantes, temendo uma carnificina,
fecharam-se no Capitolio; foram atacados pelos catholicos romanos, e, ao
cabo de uma certa resistencia, entregaram-se sob a promessa de que lhes
seria permittido sair da cidade sem serem molestados. Uma vez cá fóra,
foram todos massacrados—homens, mulheres e creanças, tendo perecido, ao
todo, para cima de 3000 pessoas. Este morticinio de protestantes, em
que houve violação de um juramento, foi commemorado pelos catholicos
romanos de Toulouse em 1662 e 1762, e tel-o-hia sido egualmente em 1862
se o governo de Napoleão III se não houvesse opposto á celebração do
centenario.

Estes sanguinolentos massacres provocaram represalias. Os huguenotes
precipitaram-se para as egrejas papistas, e destruiram as imagens, os
altares e as reliquias. Destruição de imagens e derramamento de sangue
era a ordem do dia na maior parte das provincias de França.

=A guerra civil. Os iconoclastas.=—No meio de tudo isto os dois partidos
formaram-se gradualmente em dois exercitos inimigos, ficando um, o
papista, sob o commando de Francisco, duque de Guise, e o outro, o
protestante, sob o commando de Luiz, duque de Condé, e do almirante
Coligny. A França poude então presenciar todos os horrores de uma guerra
civil, em que o fanatismo religioso accrescentou, ás barbaridades communs
a todas as guerras, as mais atrozes crueldades.

O embaixador de Veneza, escrevendo aos chefes do seu Estado, exprimiu
a opinião de que esta primeira guerra religiosa obstou a que a França
se tornasse protestante. As crueldades dos papistas tinham desgostado
um grande numero de cidadãos francezes, que, sem serem impulsionados
por fortes sentimentos religiosos, ter-se-hiam de muito bom grado
alliado áquelles que, pela sua moderação, se mostravam competentes para
inaugurar, e manter na pratica, um systema de tolerancia. Os chefes
huguenotes faziam o maximo empenho em poder provar que os seus adherentes
sabiam fugir aos excessos, e Calvino e Beza recommendaram que não se
interviesse no culto dos catholicos romanos, excepto quando o caso fosse
tratado judicialmente, e ainda assim com muita serenidade. Não, foi,
porém, possivel evitar que os protestantes despedaçassem as imagens e
dessem cabo de tudo quanto encontraram nas egrejas.

Em Orleans foram umas poucas de egrejas atacadas ao mesmo tempo. Condé,
acompanhado de Coligny e de outros vultos importantes, dirigiu-se a
toda a pressa para a egreja de Santa Cruz, onde o tumulto era maior.
Ao chegarem á egreja, Condé reparou n’um soldado huguenote, que havia
subido a um ponto elevado da frontaria e se preparava para atirar cá para
baixo com a imagem de um santo. O duque pegou n’um arcabuz, apontou-o ao
dito soldado, e ordenou-lhe que descesse quanto antes. Elle não parou
com o que estava fazendo, proferindo, porém, estas palavras: «Deixe-me
primeiro fazer este idolo em migalhas, e depois mate-me, se isso fôr da
sua vontade». Tratando-se de gente assim, que preferia morrer a deixar
de destruir as imagens, era impossivel esperar que se podesse pôr um
dique á iconoclastia, e onde quer que as tropas protestantes entrassem
as egrejas ficavam n’uma completa desordem. Este procedimento foi tomado
em toda a França como um indicio de que os protestantes, se chegassem
a ter o poder nas mãos, seriam tão intolerantes como os catholicos, e,
por consequencia, a sympathia pela sua causa, que até ali fôra sempre
crescendo, começou a declinar.

O desenvolvimento da guerra foi, no seu conjuncto, desfavoravel aos
huguenotes. Francisco, duque de Guise, era um admiravel general, e os
papistas estavam bem providos de dinheiro e recebiam auxilio de fóra;
ao passo que os huguenotes estavam quasi exclusivamente dependentes dos
seus proprios recursos, e achavam-se muito mal fornecidos de fundos para
o proseguimento da lucta. Os huguenotes perderam a batalha de Dreux,
em Dezembro de 1562, graças, principalmente, á admiravel disciplina dos
auxiliares suissos de Guise; mas, por seu turno, os papistas perderam o
duque de Guise, que foi assassinado em Fevereiro de 1563.

Com a morte do duque, Catharina adquiriu maior poder, e tornou-se mais
facil a paz. Os huguenotes não tinham conseguido vencer os papistas;
e, do mesmo modo, os papistas não tinham conseguido exterminar os
protestantes. Não se haviam reconciliado uns com os outros, mas
achavam-se cançados; e convieram n’uma suspensão de hostilidades. O
Edicto da Paz garantia aos protestantes os privilegios que lhes haviam
sido concedidos um anno atraz, e accrescentava outros, sendo o mais
importante este: «Em cada baliado será escolhida uma cidade em cujos
arrabaldes os protestantes poderão realisar os seus cultos, e em todas
as cidades, excluindo Paris, onde em 7 de Março do anno corrente era
praticada a religião protestante, será a pratica d’esta permittida em
dois recintos _intra-muros_, que serão opportunamente designados pelo
rei». O Edicto de Amboise, saido em 12 de Março de 1563, só resolveu as
coisas por metade, o que irritou ambas as facções. Os catholicos romanos
não gostavam d’elle por tolerar a religião reformada, e os protestantes
por não lhes conceder tudo quanto elles desejavam. Foi obra de Catharina
e de Condé, cada um dos quaes confiava em que o futuro se encarregaria de
tornar inoffensivas para o seu partido as concessões que fazia.

As treguas duraram cerca de cinco annos, ao cabo dos quaes arrebentou a
segunda guerra religiosa. A lucta durou mais de um anno. A unica acção
decisiva foi a batalha de St. Denis, em que Montmorency foi morto.
Seguiu-se então o armisticio de Longjumeaux, cujas condições eram
identicas ás do Edicto de 1562.

Este armisticio durou apenas alguns mezes, findos os quaes começou a
terceira guerra religiosa. Os protestantes receiavam-se do duque de Alba,
o feroz governador dos Paizes Baixos, que se estava preparando para
ajudar a côrte franceza a exterminar todos aquelles que não quizessem
submetter-se á Egreja Catholica Romana, e resolveram tomar a offensiva.
Condé e Coligny souberam que o duque tinha aconselhado a rainha a tirar
a vida aos chefes huguenotes, cair depois sobre o povo, e, finalmente,
supprimir a obnoxia fé.

Os cabeças fugiram para La Rochelle, e a guerra começou. Combateu-se
durante quasi todo o anno de 1569, com alternativas de bom e mau
exito, tanto diplomatico como militar. Por fim, teve logar a batalha
de Jarnac, onde os huguenotes foram derrotados, e onde Condé e varios
outros encontraram a morte. A sorte parecia ter-se tornado crudelissima
para os huguenotes. Os chefes hereditarios do partido eram Henrique de
Navarra, moço de quinze annos, e seu primo Henrique de Conde, que não
tinha muito mais edade do que elle, de modo que Gaspar de Coligny é que
teve de arcar com toda a responsabilidade. Tratou de reunir as forças
dispersas, e, não obstante alguns revezes, poude obter um tratado de paz
que offerecia vantagens como nunca os huguenotes tinham logrado alcançar.
Foi auctorizado o culto publico n’um grande numero de cidades, e quatro
d’ellas—La Rochelle, Montauban, Cognac e La Charité—foram dadas aos
protestantes como logares de refugio.

=Coligny e Carlos IX.=—O almirante Coligny ficou sendo, em virtude d’este
tratado de paz, o chefe em quem os huguenotes mais confiavam. Deixou-se
ficar em La Rochelle, no meio dos seus correligionarios, e encarregou-se
da tutella dos dois jovens principes que eram as esperanças dos
protestantes, Henrique de Navarra e Henrique de Condé. O fim principal
que elle tinha em vista era de tornar permanentes as vantagens que os
reformados tinham conquistado mediante as terriveis guerras religiosas.
Convidaram-n’o a ir á côrte, e, a despeito de todos os avisos em
contrario, foi. «Prefiro», disse elle, «morrer mil vezes do que, por uma
indevida solicitude pela minha vida, dar occasião a que se avente uma
suspeita em todo o reino».

Como quer que fosse, o nescio, fraco e dissoluto Carlos IX sympathizou
com o velho fidalgo. O pobre rei, que tinha então uns vinte annos, não
havia conhecido nunca um homem como aquelle. A enfermidade não o havia
deixado desde a infancia, e estivera rodeiado por pessoas que tinham
interesse em o educar na imbecilidade e na devassidão. Assim que se poz
em contacto com Coligny, que era um homem que inspirava um instinctivo
respeito, que nada dizia ou fazia que não estivesse de accordo com as
suas convicções, que se havia tornado a mais celebre individualidade da
França, que fora o organisador do partido protestante, que era quasi
adorado pelos seus amigos, e que, apezar da sua edade avançada, estava
ainda em todo o vigor da vida, não poude deixar de confiar n’elle como
nunca tinha confiado em pessoa alguma.

Catharina, Henrique de Anjou, seu filho, e os Guises conheceram que o rei
estava sob uma nova influencia, a que precisavam de subtrahil-o a todo o
transe. Tinham medo de que o rei, tendo a seu lado um homem pundonoroso,
lhes escapasse das mãos; e esta extraordinaria affeição que o debil
Carlos sentiu por Coligny foi, segundo affirmam alguns historiadoros, a
causa do massacre de S. Bartholomeu.

Catharina e Henrique de Guise tramaram o assassinio de Coligny. O
attentado, porém, falhou. Catharina foi então ter com seu filho, e
referiu-lhe que Coligny e todos os demais huguenotes estavam convencidos
de que elle, Carlos, entrara também na conspiração que tinha por fim
a sua morte, e que, portanto nunca havia de ter paz emquanto os
protestantes não fossem exterminados. Em seguida propoz uma chacina dos
vultos preponderantes, em que o rei, fortemente instado, consentiu.

=A matança de S. Bartholomeu.=—Esta terrivel carnificina de protestantes,
que teve logar na vespera de S. Bartholomeu (24 de Agosto de 1572) foi
obra de Catharina de Medicis, de Henrique de Anjou e dos Guises. A
matança foi feita em Paris por 20:000 milicianos da cidade, coadjuvados
por alguns soldados e pelos mercenarios suissos, que eram pagos pelo
duque de Guise. As forças a que se commetteu aquella tarefa eram
commandadas pelos irmãos Guise.

Assassinaram em primeiro logar Coligny e alguns dos principaes cabeças,
e depois o massacre tornou-se geral. As casas dos protestantes tinham
sido previamente marcadas com cruzes brancas, e os assassinos, para
reconhecimento mutuo, traziam faxas brancas, além de outros signaes. Só
em Paris foram mortos, pelo menos, 2000 homens, metade dos quaes eram
pessoas de distincção. O historiador protestante Crespin diz que foram
mortos em Paris 10:000; e Brantôme, creatura sceptica e dissoluta, fixa o
numero em 4000. Organizaram-se carnificinas pelas provincias, e o numero
das victimas tem sido calculado entre 30:000 e 100:000. Sully, primeiro
ministro de Henrique IV, que estava provavelmente bem inteirado, affirma
que cairam sem vida 70:000 pessoas.

Ultimamente os escriptores catholicos romanos não se teem mostrado muito
orgulhosos de aquelle commettimento, mas quando a matança teve logar
muitos d’elles exultaram. Sabe-se perfeitamente que, se o acto não foi
instigado de Roma, o papa e a curia estavam, pelo menos, scientes de
que elle ia realisar-se. Houve illuminações em Roma para festejar o
acontecimento, os canhões do castello de S. Angelo salvaram, organizou-se
uma procissão que foi até á egreja de S. Marcos, e cunhou-se uma medalha
para commemorar o _Hugonotorum Strages_. Alguns dos principes catholicos
romanos enviaram mensagens de congratulação, e diz-se que o pobre e
corrompido Filippe II de Hespanha sorriu, pela primeira e ultima vez na
sua vida, quando a noticia lhe constou.

O massacre diminuiu cruelmente o poder dos huguenotes, e privou-os de
quasi todos os seus caudilhos; mas elles continuavam a existir, e, em
vez de se intimidarem, de se darem por vencidos, perante aquelle acto
sanguinario, resolveram em seus corações vingar-se d’elle. Ainda restavam
algumas cidades em poder dos protestantes; La Rochelle, Sancerre, Nismes,
Montauban, e ainda outras, fecharam as suas portas, e negaram-se a dar
entrada aos governadores que de Paris lhes enviaram.

La Rochelle foi atacada pelas tropas reaes commandadas por Henrique de
Anjou, e os habitantes soffreram todas as calamidades de um cerco,
obrigando, por fim, os sitiantes a retirar-se. Uma egualmente bem
succedida resistencia da parte de outras cidades forçou a côrte a entrar
em negociações com os seus odiados subditos protestantes, e ficou
restabelecida a paz.

D’esta vez os huguenotes convenceram-se de que deviam estar sempre
preparados para a guerra. Os horrores da vespera de S. Bartholomeu
haviam-lhes mostrado o quão implacaveis eram os seus inimigos, e a
traição por elles commetida quando foi do cerco e capitulação de Sancerre
deu-lhes uma prova da sua deslealdade. Os protestantes estiveram sitiados
oito mezes, e durante esse periodo morreram de fome quinhentos homens,
pelo menos, e todas as creanças com menos de doze annos. «Porque chora»,
exclamou um rapazito de dez annos, «ao ver-me morrer de fome? Eu não lhe
peço pão, mãe; sei que não tem nenhum para me dar. Visto Deus querer que
eu morra d’esta forma, devemos acceitar isso alegremente. Lazaro, aquelle
homem santo, não tinha tambem fome? Não o li eu na Biblia?» E depois de a
cidade se haver rendido teve logar, não obstante a promessa que lhe tinha
sido feita sob juramento, uma horrivel scena de homicidio e pilhagem.

Os huguenotes, que não tinham quem os dirigisse, resolveram organizar-se,
para que podessem estar sempre promptos, e tão diligentemente pozeram
os seus planos em execução que n’um curto prazo se encontraram aptos
para pôrem 20.000 homens em campo, á primeira voz. Foi em Montauban que
tudo organizaram, e foi de lá que dirigiram uma representação ao rei,
em que Coligny havia insistido pouco antes de principiarem as guerras
religiosas. A côrte ficou sabendo que o espirito huguenote não se havia
extinguido. Desde a matança de S. Bartholomeu um outro partido ia
adquirindo lentamente importancia em França. Era elle constituido pelos
catholicos romanos moderados, que estavam fartos de carnificinas, e que
attribuiam todos os males do Estado ao poder de que os estrangeiros
dispunham no reino. Exigiam a expulsão dos florentinos e dos lorrenezes,
isto é, da rainha-mãe e dos Guises; e insistiam na reintegração
das antigas liberdades da nação. Estes «Politicos», como também
eram chamados, ainda mais se aferraram ás suas idéas quando tiveram
conhecimento do traiçoeiro ataque a La Rochelle, e do programma politico
que os huguenotes expozeram em Milhau, e, revestidos de paciencia,
esperaram a occasião de intervir.

Posto que o cerco de La Rochelle e de outras cidades protestantes—a
quarta guerra religiosa, como lhe chamaram—fosse seguido de um tratado
de paz, nunca, de um modo ou do outro, se deixou de combater, e a
rejeição do pedido feito pelos huguenotes não permittia duvidas quanto á
imminencia de outra guerra ainda. Entretanto Carlos IX morria, em Maio
de 1574, de uma terrivel enfermidade em virtude da qual o sangue lhe
sahia por todos os poros da pelle, e o povo attribuiu-a a um castigo da
carnificina de S. Bartholomeu. Succedeu-lhe Henrique de Anjou, o terceiro
e mais vil dos filhos de Catharina, e que era o favorito d’esta. Henrique
era ao mesmo tempo um papista cheio de superstições e um libertino cheio
de impudencia.

Henrique III tinha-se, durante a vida de seu irmão, associado aos Guises,
e adherira ao partido papista; pouco depois de subir ao throno, porém,
como o amedrontasse a possibilidade de uma alliança entre os «politicos»
e os huguenotes, concedeu, por meio de um edicto, uma parte do que os
protestantes pediam. Concedeu, exceptuando em Paris, uma illimitada
liberdade religiosa, egualdade de privilegios sociaes, o direito de ser
julgado por um tribunal composto, em partes eguaes, de romanistas e de
protestantes, e, além d’isso, ficavam oito fortalezas, como penhor, nas
mãos dos protestantes.

=A Santa Liga.=—Este procedimento do rei deu logar á fundação da Santa
Liga, sociedade formada pelos Guises e pelos jesuitas, cujo fim era
promover uma alliança dos catholicos francezes com Filipe II de Hespanha
e com o papa. Visava, em primeiro logar, a governar a França no interesse
da fé catholica romana, não transigir em coisa alguma com os huguenotes,
e impôr-se ao rei; para mais tarde ficaria o aniquilar os Bourbons, ou,
pelo menos, o impedir que a corôa passasse para Henrique de Navarra.

Originaram-se de aqui as chamadas Guerras da Liga, em cujos variados
incidentes não necessitamos de entrar. Tanto a quinta, como a sexta,
como a setima guerra civil concluiu por um tratado de paz favoravel aos
protestantes.

Em 1585 a Liga foi remodelada, consolidando-se o poderio dos Guises. A
oitava guerra civil terminou em julho, mediante o tratado de Nemours,
que não era tão favoravel para os protestantes. A nona guerra civil teve
logar pouco depois. Foi denominada a Guerra dos Tres Henriques—Henrique
III, Henrique de Guise, e Henrique de Navarra, o qual, apezar da sua
pouca edade, havia ganho a confiança dos huguenotes. Essa guerra teve
o seu termo na batalha de Coultras, em que os huguenotes ficaram
victoriosos.

As luctas foram interrompidas pelas questões que surgiram entre o
rei e o duque de Guise, presidente da Liga. O rei percebeu que a sua
auctoridade diminuia rapidamente. Os Estados Geraes, que se reuniram
em Blois, em Outubro de 1588, mostraram-lhe que a França estava sob o
dominio do duque; e a insurreição que teve logar algumas semanas antes
foi uma revelação do quanto a Liga se havia ramificado. Não querendo
sujeitar-se por mais tempo áquella dependencia, resolveu libertar-se da
Liga mediante a morte dos seus dirigentes. Henrique, duque de Guise, e
Carlos, o cardeal, foram, portanto, assassinados em Dezembro de 1588,
juntamente com muitos dos seus amigos; mas a Liga continuou a existir.
É que ella havia estabelecido em toda a França associações similhantes
aos clubs jacobinos do periodo revolucionario; e, quando os Guises foram
assassinados, a sociedade mãe, ou, por outra, a Liga dos Dezeseis, como
era conhecida, apoderou-se do governo, collocou adherentes seus em todos
os logares de confiança, e submetteu os actos do rei á apreciação do
parlamento. Henrique III, accomettido de um desprezivel medo, fugiu
para o meio dos huguenotes, entregando-se ao seu grande rival, o rei de
Navarra. Jacques Clemente, frade dominicano, e um dos fanaticos da Liga,
foi, porém, em sua perseguição, e apunhalou-o. Algumas horas depois
Henrique III expirava, e o general huguenote ficava sendo o legitimo
herdeiro da corôa de França.

=Henrique de Navarra.=—Ao principio foi apenas reconhecido pela parte
protestante da França. A Liga dispunha de grande poder, e estava
resolvida a impedir que o throno fosse occupado por um huguenote. Até
mesmo os catholicos romanos moderados com dificuldade podiam admittir que
reinasse em toda a França um rei que professava a religião da minoria.
O papa recusava-se a reconhecer um soberano protestante, e Filippe
II de Hespanha fez a ameaça de uma invasão das suas tropas. N’estas
circumstancias, Henrique de Navarra fez uma coisa extraordinaria: pediu
para ser instruido nas doutrinas da religião catholica romana. Isto
chamou para o seu partido um grande numero de romanistas moderados, e o
rei poude desbaratar a Liga nas batalhas de Arques e Ivry.

A Liga continuava ainda a intimidai-o muito e projectava levar ao throno
Carlos de Guise, duque de Mayenne, ou o Cardeal Bourbon, tio de Henrique,
(que reinou effectivamente sob o nome de Carlos X), ou Filippe II de
Hespanha, que tinha casado com uma Valois.

Em face de todas estas complicações, Henrique deu um passo que a sua
heróica mãe nunca teria dado. Fez-se catholico romano. O effeito d’isto
foi que n’um maravilhosamente curto espaço de tempo a Liga se dissolveu,
e Henrique IV foi acclamado rei por quasi toda a França. Os seus velhos
companheiros de armas e correligionarios, posto que deplorassem a sua
apostasia, não abandonaram o joven que desde a infancia havia sido seu
associado e chefe, e que, depois dos afflictivos dias de Bartholomeu,
havia deixado a côrte assim que isso lhe fôra possivel, para combater
junto d’elles. Elle, em troca, concedeu-lhes aquillo por que haviam
luctado durante trinta annos.

=O Edicto de Nantes.=—Em 1598 foi assignado o famoso Edicto de Nantes,
que se adeantava mais em tolerancia religiosa do que qualquer outro
edicto do seculo dezeseis. Tinha, porém, um grande defeito, e era que as
circumstancias em que a França se encontrava tornavam impossivel garantir
liberdade religiosa sem conceder aos protestantes certos privilegios
politicos que os constituiam um estado no estado, e que mais tarde
obstaram á completa fusão dos dois partidos n’um governo.

Este edicto outorgava completa liberdade de consciencia; de ahi em deante
ninguem mais seria perseguido por causa das suas idéas religiosas.
Todos os nobres que possuissem aquillo a que se chamava «superior
jurisdicção» tinham auctorização para ensinar o calvinismo, e toda a
gente podia aproveitar-se das suas lições. Os nobres que não possuissem
essa jurisdicção gozavam do mesmo privilegio, e podiam ter ao seu
serviço quantas pessoas quizessem, quando residissem em localidades
onde não houvesse catholicos romanos com a «superior jurisdicção». Dava
licença para que continuasse, ou fosse restaurado, o culto publico «a
que chamam reformado» em todas as cidades onde elle já existia em Agosto
de 1597. Quando os protestantes estivessem espalhados por um districto
provinciano, designar-se-hia para local do culto uma das povoações.
Prohibia-se aos protestantes o culto publico em Paris, ou a cinco milhas
de distancia d’essa cidade, e nas seguintes cidades, onde predominava
o fanatismo catholico romano: Reims, Toulouse, Dijon e Lyon. N’outra
qualquer parte os protestantes podiam ter egrejas, sinos, escolas, etc.
Os principaes limites da liberdade religiosa consistiam em que a religião
romana era declarada a religião estabelecida, e em que os protestantes
tinham de pagar dizimos ao clero official, não podiam trabalhar nos dias
santificados, e eram obrigados a conformar-se com as leis matrimoniaes da
egreja catholica.

Os protestantes, ficou também declarado, tinham os mesmos deveres civis e
os mesmos privilegios dos catholicos romanos, e podiam concorrer a todos
os empregos e dignidades do Estado. Estabeleciam-se tribunaes de justiça
especiaes, para julgamento dos protestantes. Estes retinham durante oito
annos todas as cidadellas que lhes pertenciam anteriormente a 1597,
com todo o material de guerra; e n’essas cidades os governadores eram
nomeados pelos huguenotes.



CAPITULO IV

A REFORMA NOS PAIZES BAIXOS

    Os Paizes Baixos, pag. 113.—A politica de Carlos V, pag.
    114.—Os principios da Reforma, pag. 115.—Filippe II e os
    Paizes Baixos, pag. 115.—A inquisição, pag. 117.—Os novos
    bispados, pag. 118.—Tornar-se-ha hespanhol o paiz? pag. 119.—Os
    _mendicantes_, pag. 120.—Prégações ruraes, pag. 120.—O duque de
    Alba nos Paizes Baixos, pag. 121.—A prisão do conde Egmont e
    do conde Horn, pag. 122.—A guerra civil. O principe de Orange,
    pag. 124.—Os mendigos do mar, pag. 124.—A tomada de Brill, pag.
    126.—Requescens y Zuniga, pag. 128.—O cerco de Leyden, pag.
    129. Negociações entre as provincias do sul e as do norte, pag.
    130.—D. João de Austria, pag. 131.—Alexandre de Parma, pag.
    132.—O tratado de Utrecht, pag. 132.—A Egreja hollandeza, sua
    organização e confissão, pag. 133.—O _Confessio Belgica_, pag.
    134.—A constituição da Egreja hollandeza, pag. 134.—A força da
    Egreja na Hollanda, pag. 136.


=Os Paizes Baixos.=—A revolta dos Paizes Baixos contra Roma foi talvez a
ultima d’esse genero se a datarmos do triumpho final, mas aquelle paiz
teve a honra de fornecer os primeiros martyres da fé protestante.

Os Paizes Baixos ficavam em volta das boccas do Scheldt e do Rheno, e
na edade media constituiam o lado norte do velho reino de Lotharingia,
ou Lorrena, o celebre reino central, como era chamado. A sua situação,
com uma extensa costa maritima, e os grandes rios que o atravessavam,
tornava-o naturalmente um paiz commercial. O mar estava constantemente
usurpando a parte secca, e era necessario oppôr-lhe diques; os rios
trasbordavam, e era necessario evitar que os campos ficassem submergidos.

A perpetua lucta com a natureza a que estes perigos forçavam o povo
fez d’elle uma gente endurecida e apta para tratar de si sem o auxilio
alheio. O paiz abundava em grandes cidades, habitadas por gente livre e
opulenta. A vida burgueza começou mais cedo nos Paizes Baixos do que na
maioria das nações europeas. A liberdade civica era conhecida apreciada.
N’alguns pontos os dirigentes eram principes, ou bispos-principes;
n’outros havia um conselho districtal, o qual, como succedia em Utrecht,
considerava seu subdito o bispo da provincia.

Outras influencias contribuiam, para que se preservasse o espirito da
liberdade. O sul dos Paizes Baixos tinha sido a terra dos Trouvères, e a
sua influencia era ainda bastante para que no povo se conservasse vivo o
espirito anti-clerical. O clero romano nunca teve muito predominio nas
cidades mais importantes, e mesmo nas provincias não conseguiu jámais
levar de vencida as «Camaras de Oradores», como eram chamadas, as quaes
algumas vezes, sob o disfarce de clubs de archeiros, ou sociedades
de canto, eram na realidade agrupamentos que tinham por fim cultivar
os talentos dramaticos dos seus membros, ou para representarem os
oratorios medievaes, ou, mais frequentemente, para comporem e recitarem
poesias satyricas e comicas em que os vicios dos homens da Egreja eram
inexoravelmente atacados.

Os Paizes Baixos tinham sido tambem o theatro dos labores de Gerardo
Groot, o fundador das escolas para creanças pobres e dos asylos para
orphãos; e os seus collaboradores, os Irmãos da Vida Commum, tinham
diffundido os seus sentimentos de mystico desprezo por uma Egreja
mecanica e politica, e a sua ambição de que todos os paizes em redor
fossem devidamente educados e seguissem a religião do coração. Thomaz á
Kempis, João Wessel, João Goch, e outros reformadores que viveram antes
da Reforma, todos elles eram dos Paizes Baixos.

=A politica de Carlos V.=—No seculo quinze a maior parte d’estes estados
livres e d’estas cidades opulentas tinha caido sob o dominio dos duques
de Borgonha, que eram ao mesmo tempo vassalos da corôa franceza e do
Imperio. Não vem agora a proposito relatar a avidez com que Filippe o
Bom, e seu filho, Carlos o Ousado, luctaram para fazer do seu ducado um
reino, e para mostrar como o genio violento de Carlos deu motivo a que
os seus planos fracassassem. Os paizes arrancados ás garras da França
constituiram o dote de Maria de Borgonha, filha de Carlos, quando casou
com Maximiliano de Austria, que era neto de Carlos V, o imperador na
epoca em que se deram os primeiros episodios da Reforma.

Carlos V, que era conde de Hollanda, e _stadtholder_ dos Paizes Baixos,
assim como rei de Hespanha e imperador da Allemanha, nasceu e foi
educado nos Paizes Baixos, e reputava essas provincias suas propriedades
exclusivas. A politica constante do imperador foi a de auxiliar, até
onde podesse ser, os privilegios provinciaes e a liberdade civica, e nos
Paizes Baixos fez tudo quanto estava ao seu alcance para centralizar
o governo e remover os antigos privilegios constitucionaes. O povo
não recebia com agrado estas medidas, mas attribuia-as a conselhos de
procedencia hespanhola.

=Os principios da Reforma.=—Quando a Reforma começou na Allemanha, e
foi publicado o famoso edicto de Worms, collocando Luthero, os seus
adherentes e as suas obras sob o anathema do Imperio, Carlos fez sair nos
Paizes Baixos um decreto que continha disposições similhantes. O edicto
foi inefficaz na Allemanha, mas Carlos poude constranger á obediencia
nos Paizes Baixos. Em 1523, dois frades agostinhos, Henrique Voes e João
Esch, foram detidos pelas auctoridades, e, apoz um inquerito, foram
queimados em Bruxellas, sendo elles os primeiros martyres da Reforma.
Luthero compoz um hymno em sua honra, que intitulou «Cantico dos dois
martyres de Christo em Bruxellas, queimados pelos Sophistas de Louvain.»
Foram prohibidas as reuniões religiosas, assim como a introducção das
obras de Luthero.

Não obstante estas restricções, o Novo Testamento de Luthero foi
traduzido em hollandez, e impresso em Amsterdam em 1523, e as doutrinas
da Reforma tornaram-se largamente conhecidas.

Os regentes que estavam á frente das dezesete provincias em nome de
Carlos não deram plena execução aos severos edictos que lhes foram
confiados. Margarida de Saboya, tia de Carlos, era inclinada á tolerancia
em materia de religião, e Maria da Hungria, sua irmã, era, segundo
se diz, secretamente partidaria da Reforma. N’estas circumstancias o
movimento alastrou-se com rapidez no meio do povo, que estava acostumado
a ler, pensar e julgar por si proprio; pois que, diz um historiador, «até
nas cabanas dos pescadores da Frisilandia se depara com pessoas aptas não
somente para ler e escrever, como tambem para discutir, quaes letrados,
as interpretações biblicas.»

O movimento soffreu um grande revez com uma irupção do fanatismo
anabaptista em 1534. Em Leyden os fanaticos tentaram apoderar-se da
cidade e incendial-a. Em Amsterdam percorreram as ruas soltando loucos
vaticinios. Na Frisilandia penetraram n’um convento, e combateram
desesperadamente com os soldados que pretendiam fazel-os abandonar o
edificio. O governo foi inexoravel com elles. Deu-se-lhes uma verdadeira
caça, e foram torturados e mortos, affirmando-se que pereceram quasi
trinta mil pessoas, e entre ellas muitos e pacificos protestantes que não
approvavam de modo algum aquelles ardores anabaptistas. A Reforma, apezar
d’este contratempo, foi fazendo progressos nos Paizes Baixos, até que, em
1555, Carlos V abdicou em seu filho Filippe II, começando então o povo a
luctar pela liberdade politica e religiosa.

=Filippe II nos Paizes Baixos.=—Carlos viu todos os seus projectos
transtornados pela Reforma; seu filho Filippe resolveu adoptar a mesma
politica, usando, porém, do maior rigor e severidade. «Queria impôr,
illimitada e incondicionalmente, o despotismo temporal e espiritual a
que o restabelecido poder pontificio aspirava.» Sabemos agora que o
empreendimento de Filippe era, desde o principio, irrealisavel; mas o
elle ser ou não bem succedido constituiu um problema que teve a Europa
suspensa durante quasi meio seculo. Por fim só em Hespanha é que logrou
bom exito, para desgraça d’esta nação. O interesse que a lucta nos
Paizes Baixos desperta provém do facto de ser a primeira revolta contra
a politica de Filippe, e devido a ella o poder de Hespanha ficou tão
abalado que a Europa poude sentir-se em segurança.

Ao tomar conta dos dominios hereditarios de seu pae, Filippe achava-se
nos Paizes Baixos. Elle tinha observado com desgosto os progressos que
a religião reformada fazia n’essa terra. A Hespanha estava segura, pois
que se havia inteiramente extinguido n’ella toda a liberdade civil e
religiosa. Filippe podia, portanto, permanecer nos Paizes Baixos, e
superintender pessoalmente o inicio da sua obra de repressão. Descobriu
que a Biblia estava toda traduzida em hollandez, por Jacob Liesfeld, que
muitos dos nobres estavam em constante communicação com os principes
lutheranos da Allemanha, e que os protestantes dos Paizes Baixos se
entendiam tambem perfeitamente com os huguenotes francezes. As suas
medidas para exterminio da heresia foram cuidadosamente elaboradas e
com muita paciencia postas em pratica. Confiava, para o bom exito, na
presença do exercito hespanhol, n’uma especie de conselho que lhe fosse
dedicado e executasse a sua vontade nos mais minuciosos detalhes, no
estabelecimento da inquisição, e n’uma remodelação do episcopado das
provincias.

Os territorios da Hespanha, incluindo a parte que ficava ao sul dos
Pyrenéus e os Paizes Baixos, confinavam com a França, tanto ao norte como
ao sul, e quando em guerra com este paiz as tropas hespanholas haviam-se
aquartellado nas dezesete provincias, com o fim de se encontraram com o
exercito francez n’essa fronteira. Filippe resolveu conservar ahi essas
tropas e servir-se da presença d’ellas para impôr os seus designios.
Esta permanencia de tropas estrangeiras no seu territorio sem o seu
consentimento representava um attentado contra um dos privilegios que as
provincias mais apreciavam; o paiz, além d’isso, tinha acabado de passar
por uma grande fome, e a brutalidade dos soldados ainda mais exasperava
o povo, chegando os habitantes da Zelandia a declarar que antes queriam
morrer afogados do que continuarem por mais tempo sujeitos aos ultrajes
da soldadesca.

Filippe não podia ficar para sempre nos Paizes Baixos, pois que a sua
presença era necessaria na Hespanha, e antes de se retirar precisava
de nomear uma pessoa que ficasse governando em seu nome. As provincias
queriam que esse encargo recaisse sobre um dos seus nobres, e os nomes
de dois membros da aristocracia, Guilherme de Orange e o Conde Egmont,
que eram tambem principes do Imperio Allemão, foram frequentemente
pronunciados na presença do rei. Tinham sido ambos muito affeiçoados
a Carlos V, havendo demonstrado por meio de actos a sua dedicação, e
possuíam todos os requisitos para o desempenho de aquelle logar. A
escolha de Filippe, porém, caiu em sua cunhada, Margarida de Parma, que
estava inteiramente dependente d’elle, era estranha ao paiz, cuja lingua
ignorava, e conforme Filippe suppunha, lhe obedeceria cegamente. Deixou
junto d’ella, como primeiro conselheiro, Antonio Perrenot, mais conhecido
pelo cardeal Granvella, creatura sua, e mais um ou dois que elle sabia ao
certo que executariam sem hesitação qualquer ordem que mandasse.

=A Inquisiçao.=—O mais importante elemento de repressão, comtudo,
foi a inquisição. Esta terrivel instituição differia inteiramente da
organização que, com o mesmo nome, existiu antes da Reforma. A primeira
inquisição, estabelecida para exterminio dos albigenses do sul da
França, causou grandes soffrimentos aos não-conformistas da edade media,
mas as suas funcções eram geralmente entregues aos dominicanos e aos
franciscanos, e a rivalidade que havia entre uns e outros, combinada com
o facto de terem sido estas duas grandes ordens as que deram acolhida á
heresia medieval, obstou a que ella fosse o perseverante instrumento de
repressão de que os papas de epocas posteriores á da Reforma, os jesuitas
e os monarcas como Filippe II careciam. Foi, por conseguinte, remodelada
em Roma sob a superintendencia do cardeal Caraffa, que mais tarde se
chamou Paulo IV, separada das ordens monasticas, e restabelecida sobre
uma base independente.

Tinha por fim, segundo a bulla que presidiu á sua fundação, extirpar
a heresia, primeiro em Italia, e em seguida em todo o mundo; e no seu
funccionamento havia quatro regras a observar. Em materias de fè não se
permittia um momento de demora, e a inquisição tinha de proceder com
o maior rigor á mais leve suspeita, não se respeitava as pessoas dos
principes ou dos prelados, por mais elevada que fosse a sua posição;
usar-se-hia de um rigor especial para com aquelles que se acolhessem á
protecção de um rei ou de uma personagem equivalente; e não se concederia
uma falsa tolerancia a qualquer heresia, sobretudo ao calvinismo.

A idéa do cardeal Caraffa era tornar a inquisição alliada do Estado,
prestando o poder civil a sua coadjuvação para que as ordens da Egreja
fossem cumpridas, e acoimando esta de heresia qualquer acto ou phrase
que um Estado despotico entendesse que lhe era hostil. A inquisição
tornava-se assim uma terrivel maquina nas mãos de um governo despotico,
e, na verdade, onde quer que a sua presença se fez sentir por muito
tempo, toda a liberdade civil e religiosa foi suffocada.

A Italia e a Hespanha ainda não se restabeleceram das feridas por ella
abertas.

Carlos V estabeleceu a Inquisição tanto em Hespanha como nos Paizes
Baixos, e, de accordo com o que ella preceituava, publicou alguns edictos
cheios de violencia, aos quaes, não obstante a passiva opposição dos
regentes, não houve remedio senão obedecer. Foi prohibido imprimir,
copiar, conservar escondido, comprar, vender ou dar qualquer livro de
Luthero, Œcolampadius, Zwinglio, Bucer, Calvino, ou qualquer outro
hereje. Foi tambem prohibido damnificar, de uma ou outra fórma, a imagem
de qualquer santo canonizado, assistir a reuniões hereticas, ler as
Escripturas, e entrar n’uma discussão ou controversia religiosa. Os
transgressores, se se retractassem, eram mortos á espada ou enterrados
vivos; se não se retractassem, eram queimados, com confiscação de todos
os seus bens. Aquelle que denunciasse um hereje recebia uma boa parte
da sua fortuna, logo que fosse provada a veracidade da accusação. Os
suspeitos de heresia eram obrigados a abjurar, e, se tornava a haver
duvidas a seu respeito, procedia-se com elles como se fossem herejes
declarados. Durante o reinado de Carlos houve todos os annos um bom
numero de execuções, e, não obstante, a Reforma ia-se propagando. Em 1550
já tinham fugido á inquisição 10:000 pessoas, que procuraram refugio em
paizes estrangeiros. Filippe, a cujo conhecimento isto chegou, era de
opinião que o terrorismo ainda não tinha sido exercido senão em pequena
escala; concedeu, portanto, mais amplos poderes á inquisição, e ordenou á
regente e ao seu conselho que prestassem aos inquisidores todo o auxilio
que lhes fosse necessario.

=Os novos bispados.=—No principio do seculo dezesseis havia nos Paizes
Baixos quatro bispados: o de Arras, o de Cambray, o de Tournay e o de
Utrecht. Filippe, só com uma pennada, propoz que se acerescentassem
quatorze. O cardeal Caraffa, já então o papa Paulo IV, deu logo o
seu apoio a essa proposta, pois que, disse elle, a heresia andava
desenfreiada pelos Paizes Baixos, e a seara era abundante mas poucos
os obreiros. O clero dos Paizes Baixos protestou; o povo, indignado,
appellou para a constituição do paiz, que não permittia que o clero
fosse augmentado sem o consentimento d’este. Todos os protestos, porém,
foram baldados. Em 1560 o paiz foi dividido em quinze bispados, que
ficaram sobre as ordens de tres arcebispos, tendo por primaz o arcebispo
de Mechlin; e Filippe alcançou assim um bom numero de voluntarios
instrumentos de repressão, assim como uns poucos de tribunaes onde os
casos de heresia fossem julgados e sentenciados.

=Tornar-se-ha hespanhol o paiz?=—No entretanto o paiz ia-se alarmando.
Estas mudanças foram para a maioria dos neerlandezes indicios de que se
intentava reduzir os Paizes Baixos á condição de Hespanha. O patriotismo
identificou-se com a Reforma, e a causa nacional e a religião evangelica
caminharam, por assim dizer, de mãos dadas.

Isto deu um grande impulso ao movimento protestante. Tornou-se a causa
popular. Multidões intervieram nos castigos ecclesiasticos, apoderaram-se
das victimas condemnadas á morte pela inquisição, promoveram tumultos
por occasião da missa, e por vezes atacaram as egrejas e derrubaram as
imagens.

Os nobres assustaram-se, e reuniram-se para formularem as suas queixas.
O objecto da sua ira era Granvella, que tornaram culpado de todas as
medidas dignas de censura. Filippe, fingindo concordar com os nobres,
transferiu Granvella para outro ponto; mas o velho systema de terrorismo
continuou, e os nobres perceberam que o rei, com a sua usual duplicidade,
os queria fazer passar por culpados da tyrannia contra a qual haviam
protestado.

A proclamação dos decretos do Concilio de Trento provocou uma nova
resistencia. O principe de Orange, com toda a intrepidez, fallou
contra a proposta em termos violentos; houve uma assembléa de nobres,
e resolveu-se encarregar o conde Egmont da missão especial de informar
o rei dos sentimentos do povo das provincias; porque ainda se julgava
que Filippe ignorava certas coisas de que aliás estava perfeitamente
informado.

Egmont era um zeloso romanista, e tinha provado ser um subdito leal
do monarca hespanhol. Se alguem podia tirar partido de Filippe, esse
alguém, segundo a opinião geral, era Egmont. Partiu para Madrid em 1565,
onde foi recebido com apparente cordialidade, e assegurou-se-lhe que as
representações dos nobres seriam attendidas.

Como de costume, Filippe II não tinha intenção alguma de cumprir as suas
promessas. Deu, pelo contrario, ordem para que em todas as cidades fossem
proclamados, de seis em seis mezes, os decretos de Trento, os edictos com
caracter de perseguição e os sanguinarios mandatos da inquisição. Segundo
contam os historiadores, o effeito d’isto foi quasi indescriptivel; o
commercio ficou paralysado, as industrias desappareceram, e todo o paiz
parecia ter passado por um enorme cataclismo. Distribuiam-se pamphletos,
que eram avidamente lidos, contendo apaixonados appellos ao povo para
que pozesse termo á tyrannia. Um d’elles, que tomou a fórma de uma carta
aberta ao rei, dizia: «Estamos prontos a morrer pelo Evangelho, mas lemos
n’elle «Dae a Cesar o que é de Cesar, e a Deus o que é de Deus.» Damos
graças a Deus por até os nossos inimigos se verem constrangidos a dar
testemunho da nossa piedade e da nossa innocencia, e tanto assim que se
diz commummente: «Fulano não pragueja, porque é protestante.» «Fulano não
pratíca immoralidades nem se embriaga, porque pertence á nova seita».
«E, comtudo, atormentam-nos com toda a especie de castigo que se pode
inventar.»

=Os mendicantes.=—Os que entre os jovens fidalgos e burguezes tinham
um espirito mais ousado resolveram unir-se para resistirem á tyrannia.
Os seus chefes naturaes, que eram o principe de Orange e os condes de
Egmont e de Horn, conservaram-se afastados, por considerarem insensata
aquella empreza. Os confederados resolveram começar dirigindo-se em
solemne procissão á regente para lhe pedirem a abolição da inquisição
e a revogação de alguns dos edictos. Encontraram-se com a duqueza em 5
de Abril de 1556, e leram-lhe a representação que tinham preparado; e a
regente, perturbada com a imponencia do acto, convocou a toda a pressa
o conselho para saber o que havia de responder. Barlaymont, um dos seus
conselheiros, e pessoa muito da intimidade de Filippe, foi de opinião
que «aquelle bando de mendicantes» devia ser posto, á força, fóra do
palacio, A duqueza despediu-os cortezmente, mas houve quem lhes referisse
as palavras de Barlaymont. Achando-se trezentos d’elles reunidos n’um
banquete para deliberarem, o conde Brederode levantou-se, e disse:
«Chamam-nos mendicantes. Acceitamos esse nome. Empenhamos a nossa palavra
em como havemos de resistir á Inquisição, e conservar-nos fieis ao rei e
á Sacola do Pedinte.» Em seguida poz aos hombros uma sacola de coiro como
as que usam os mendigos que andam de terra em terra, e, deitando vinho
n’um copo de madeira, bebeu á prosperidade da causa.

=Prégações ruraes.=—O nome de mendicantes foi adoptado com grande
enthusiasmo, e fez-se do distinctivo um uso quasi universal. Por toda
a parte se viam burguezes, advogados, aldeãos e fidalgos com a sacola
de coiro dos mendigos vagabundos. O povo começou a compenetrar-se da
força de aquella aggremiação. Realisaram-se logo grandes conventiculos,
ou prégações ruraes, em todo o paiz. O povo vinha armado, accomodava as
mulheres e as creanças no ponto mais central, e punha sentinellas em
redor, collocando-se os homens, armados, um pouco fóra do ajuntamento,
e assim escutavam as pregações dos ministros excommungados. Liam as
Escripturas, cantavam hymnos, e ouviam orações feitas na sua lingua
natal. Era tal a agglomeração de gente, e estavam tão vigilantes e tão
bem armados, que os soldados não se atreviam a atacal-os. A regente
convenceu-se de que, se não lhe mandassem mais forças hespanholas, não
poderia conter a excitação popular.

O povo, encorajado com a immunidade com que as prégações ao ar livre se
faziam, começou a atacar os logares de culto catholicos romanos. Quando
os padres passavam pelas ruas de Antuerpia levando processionalmente
a milagrosa imagem da Virgem o Povo exclamava: «Mayken! Mayken!
(Mariasinha) chegou a tua hora!» Uma turba de marinheiros invadiu a
cathedral e destruiu os paramentos, as imagens e os quadros. N’outros
pontos, como Tournay e Valenciennes, tiveram logar outros actos de
violencia. A regente via-se sem forças para pôr termo aos tumultos, e,
em desespero, concedeu ao povo a abolição da inquisição e a tolerancia
da doutrina protestante. Confiando na sinceridade d’estas concessões, os
nobres tomaram sobre si o encargo de apaziguar a população e de reprimir
as desordens que se tinham levantado, e Guilherme de Orange e o conde
Egmont tomaram uma parte proeminente na obra da pacificação.

Filippe, encolerizado pelo facto de a regente se haver desviado do
regimen que elle adoptara, de desapiedada repressão, determinou, na
primeira opportunidade, subjugar aquelle paiz e exterminar os cabeças
de motim. Com a sua habitual dissimulação, procurou disfarçar os seus
intentos, e o conde Egmont foi por elle enganado. O principe de Orange,
sempre bem informado, e cauteloso por indole, sabia algumas coisas e
suspeitava de outras que estavam para sobrevir á sua desditosa patria,
e preveniu Egmont do perigo que este corria. Elle sabia que o rei havia
de voltar ao seu velho systema de repressão; que os nobres que haviam
dirigido o movimento não estavam suficientemente unidos para resistir;
que os chefes menos cautos dos Mendicantes se haviam de revoltar; e que o
rei havia de tomar, indescriminadamente, uma furiosa represalia.

Os mendicantes fizeram uma tentativa para se apoderarem de Walcheren;
reuniram-se em grande numero em Anstruweel, e ameaçaram Antuerpia. Na
sua marcha, destruiram reliquias e despojaram as egrejas das imagens e
dos paineis. Egmont, querendo provar a sua fidelidade ao rei, caiu sobre
esses insurgentes e desbaratou-os, terminando, por esse modo, a rebellião.

O rei, porém, tinha achado o pretexto que procurava; e o principe de
Orange tinha tão exactamente interpretado o curso dos acontecimentos que,
quando elle ainda ia a caminho do seu voluntario exilio, da Allemanha, ia
nos Paizes Baixos o duque de Alba, á frente de um novo corpo de exercito
hespanhol.

=O duque de Alba nos Paizes Baixos.=—Fernando Alvarez de Toledo, duque
de Alba, era um dos servidores de Filippe II que mais se parecia
com o seu amo. Era um hespanhol fanatico, um ignorante em todos os
assumptos politicos e economicos, um avarento, e um impudente enganador.
Publicações recentes teem demonstrado que elle possuía muito pouco
do talento que os remotos historiadores lhe teem attribuido. O que o
recommendou a Filippe foi a sua cruel obstinação, a sua dedicação por
elle, rei, a sua fanatica inclinação pela egreja catholica romana, e o
seu desprezo por todas as fórmas constitucionaes e por todos os impulsos
de misericordia.

Filippe, ao mandar o duque de Alba e as tropas, continuava a dissimular.
Assegurou á regente que não era sua intenção fazel-a substituir por elle,
e fez todo o possivel para acalmar as suspeitas dos nobres e dos estados
dos Paizes Baixos. Ao mesmo tempo dava ordem ao duque para acabar com
a Reforma de um modo radical; para tirar uma sanguinolenta vingança de
todos os disturbios que tinham sido commettidos; e para impôr conversões
á ponta da espada. As instrucções que o rei enviou, por carta, ao duque
de Alba eram: «Apoderar-se dos homens mais eminentes que haviam tomado
parte nos tumultos e pôl-os em condições de não tornarem a fazer damno;
prender e castigar os que de entre o povo estivessem criminosos; obter
pela violencia todas as riquezas do paiz para abastecimento dos cofres
de Madrid e para sustento das tropas; pôr em execução, com a maxima
severidade, os edictos contra a heresia; ultimar a organização dos novos
bispados, e punir as cidades rebeldes com a Inquisição e com a imposição
de subsidios.» As tropas embarcaram em Carthagena, desembarcaram em
Genova, e marcharam, atravez de Saboya, da Borgonha e da Lorrena, para o
Luxemburgo e Paizes Baixos.

Alba sabia perfeitamente o que se esperava d’elle, e todo o seu desejo
era desempenhar a missão que Filippe lhe confiara de um modo que
agradasse a seu amo. Uma das suas maximas favoritas era: «Antes assolar
uma nação por meio da guerra, se d’esse modo ella se conservar fiel a
Deus e ao rei, do que deixal-a intacta em beneficio de Satanaz e de seus
adherentes, os herejes.» Elle entrou nos Paizes Baixos inteiramente
convencido de que poderia subjugar o espirito nacional e religioso dos
seus habitantes. «Eu, que já submetti uma gente de ferro, em pouco tempo
domesticarei esta gente de manteiga», disse elle, pouco depois de ter
entrado no paiz.

=A prisão dos Condes Egmont e Horn.=—A primeira coisa que elle fez foi
lançar mão dos dirigentes do povo, e para isso recorreu á mais vil
dissimulação. Convidou-os para irem a Bruxellas, dispensou-lhes todas as
amabilidades, e fez todo o possivel para os conservar ao seu alcance até
ter opportunidade da os mandar prender. Ficou muito desapontado quando
Guilherme de Orange se lhe escapou das mãos, e empregou todos os esforços
para o attrair novamente. De subito, sem o menor aviso, prendeu o Conde
Egmont e o almirante Horn, e mandou encerral-os n’um carcere.

Este facto produziu uma enorme consternação. Ambos aquelles fidalgos
tinham mostrado a sua grande lealdade ao rei. Egmont havia incorrido no
odio do povo pela firmeza com que procurou reprimir a insurreição, e Horn
perdera todos os seus bens e todo o seu dinheiro no serviço de Filippe.
Aquellas prisões mostraram aos neerlandezes e á Europa que o reinado do
«rigor» tinha começado. A fuga de Guilherme de Orange foi publicamente
lamentada pelos hespanhoes. Quando Granvella soube em Roma, do feito de
Alba, perguntou: «Elle tem em seu poder o Silencioso?» E, depois de o
informarem de que Guilherme estava em liberdade, disse que Alba não tinha
conseguido coisa alguma, afinal de contas, pois que o homem que se lhe
havia escapado tinha mais valor do que todos os outros juntos.

Havendo-se apoderado dos dois fidalgos, Alba tratou em seguida de
aterrorisar o povo. Organizou um _Conselho de Disturbios_, que substituiu
o antigo Conselho de Estado, e que teve a sua primeira, reunião em 20 de
Setembro de 1567. Este conselho suspendeu todo o julgamento de causas
pelos tribunaes ordinarios, e o povo chamava-lhe o «Conselho de Sangue».
Alba presidia a elle, e procurava com todo o afan dar os crimes por
provados e infligir o respectivo castigo. Fazia todo o possivel para
evitar que os jurisconsultos interviessem. «Os juizes» dizia elle, «só
teem servido até aqui para lavrar a sentença depois de se fazer prova
do crime; mas agora as coisas passam-se de outra fórma». Este conselho
de disturbios privava toda a gente das suas garantias individuaes, e ia
investigar todos os delictos commettidos no passado. A accusação vulgar
era a de ter conspirado contra o rei e contra a egreja, ou, na linguagem
do codigo medieval, de ser réu de traição a Deus e ao rei. Todos os que
haviam assignado petições para que os edictos contra a heresia deixassem
de ser applicados, todos os que se haviam, de algum modo, opposto á
creação dos novos bispados, todos os que haviam dito que o rei tinha
obrigação de respeitar as liberdades das provincias, eram tidos como
traidores, e castigados com multas, com prisões e com a pena capital.
Todos os que eram apanhados a cantar o hymno dos mendicantes, todos os
que não se haviam opposto activamente ás prégações feitas ao ar livre, ou
que não haviam reagido contra a destruição das imagens, eram egualmente
tidos como traidores. Era sufficiente a suspeita, dispensava-se a
convicção, e em tres mezes o Conselho de Sangue enviou para o cadafalso
mil e oitocentas pessoas. Isto teve logar durante annos. Guilherme de
Orange pasmava da paciencia dos seus compatriotas, que soffreram sem uma
organizada resistencia, e escreveu apaixonadamente: «Onde está o vosso
espirito de liberdade? Onde está a vossa antiga bravura?»

No entretanto os Mendicantes continuavam a existir. Grupos d’elles
vagueiavam pelo paiz, escapando á vigilancia das tropas hespanholas,
roubando egrejas, mosteiros e residencias de clerigos. O paiz havia caido
na anarquia.

=A guerra civil. O principe de Orange.=—Em 1568 o principe de Orange
conjecturou que o paiz estava preparado para a revolta. Seu irmão, Luiz
de Nassau, entrou na Frisilandia, e conseguiu evitar que o inimigo se
apoderasse d’essa provincia. O duque de Alba marchou então contra os
protestantes. Antes de se pôr a caminho, porém, executou, para espalhar
o terror na capital, vinte membros da nobreza, e entre elles os condes
Egmont e Horn. A patriotica milicia não poude bater-se vantajosamente
com os disciplinados soldados de Alba, que derrotou por completo o
exercito de Luiz e o obrigou a sair dos Paizes Baixos. Regressou depois a
Bruxellas, para assistir ás sessões do Conselho de Sangue.

O principe de Orange, á frente de outro exercito, passou a vau o Meuse,
chegando, segundo se diz, a agua ao pescoço dos soldados, marchou sobre
o Brabant, e procurou dar batalha a Alba. O duque, que conhecia a sua
inferioridade, diligenciou evital-o, cançar-lhe as tropas com exhaustivas
marchas, e desalental-as. O exercito protestante, que era composto, na
sua maior parte, de mercenarios allemães, começou a exigir clamorosamente
o seu soldo, e o principe, a quem os hespanhoes deixavam sempre de mau
partido, viu-se obrigado, com a approximação do inverno, a licenciar
as suas tropas. Uma parte do exercito, composta de neerlandezes,
conservou-se junto d’elle; e o principe de Orange, com os seus dois
irmãos (o terceiro havia sido morto em combate) atravessou a fronteira, e
foi em auxilio dos huguenotes francezes.

Guilherme, o silencioso, como os seus contemporaneos lhe chamavam,
tinha até esse tempo sido catholico romano. Havia combatido contra os
hespanhoes mais por patriotismo do que por motivos religiosos; mas
durante o segundo desterro, quando a situação da sua patria se tornou
extremamente precaria, transformou-se, fez-se outro homem. Acceitou as
verdades da religião reformada, e tornou-se um firme protestante. Desde
esse tempo em deante foi um homem sincero e profundamente religioso,
descançando confiadamente na direcção e protecção de Deus.

=Os mendigos do mar.=—A parte mais valente da população neerlandeza eram
os marinheiros e os habitantes da costa, que luctavam quotidianamente com
as ondas do oceano germanico. Essa gente tinha, em grandissima parte,
acceitado as doutrinas dos pastores reformados, e havia sempre nutrido o
amor da liberdade, a despeito da implacavel oppressão dos hespanhoes e
a despeito da inquisição. Diz-se que o almirante Coligny, o prestigioso
chefe dos huguenotes francezes, chamou a attenção do principe de Orange
para a utilidade de constituir com estes marinheiros, pescadores e
traficantes maritimos uma força naval.

Quando Alba regressou á Bruxellas, para continuar a sua obra de execução
por meio do fogo, da agua e da decapitação, o principe conseguiu
pôr-se em communicação com os marinheiros e pescadores hollandezes.
Tinha resolvido crear uma armada para dar caça aos navios hespanhoes,
e conservar acceso o espirito patriotico das provincias. Deu as suas
instrucções aos commandantes dos improvisados vasos de guerra, e os
«Mendigos do Mar» tornaram-se dentro em pouco o terror dos hespanhoes.
Estes corsarios hollandezes recrutavam, ao principio, as suas
tripulações, e abasteciam-se, nos portos inglezes, mas, em virtude de
uma reclamação do embaixador hespanhol, a rainha Isabel prohibiu que
desembarcassem em Inglaterra. Viram-se compellidos a saquear as costas da
Hollanda, tornando-se assim o terror dos hespanhoes tanto no mar como em
terra.

O governo de Alba tinha quasi conduzido o paiz á ruina. As suas
proscripções e execuções haviam diminuido muito a população. O commercio
tinha chegado á ultima; da agricultura ninguem cuidava; as industrias
estavam paralysadas. Alba estava embaraçado por não ter dinheiro com
que pagasse ás tropas. Elle tinha promettido, ao sair de Hespanha, que
havia de fazer com que desde Antuerpia até Madrid o oiro constituisse um
rio com umas poucas de braças de profundidade. Era um leigo no que diz
respeito a economia politica, e não comprehendia que com as disposições
que tomara havia feito seccar os mananciaes da riqueza, transformando
em poucos annos um paiz rico n’um paiz pobre. Julgou que ainda seria
possivel extrair dinheiro dos hollandezes, e para conseguir esse fim
estabeleceu novos impostos. Acudiu-lhe á mente um genero de contribuição
que em Hespanha estava matando a vida commercial, e propoz o introduzil-a
nos Paizes Baixos.

O seu plano consistia em tributar um por cento sobre toda a propriedade;
esse imposto ficou sendo chamado a _Centesima_. A accrescentar a isto,
ficava-se tambem na obrigação de contribuir com cinco por cento, ou seja
a vigesima parte, de todas as rendas de terras, ou bens immoveis, e com
dez por cento, ou a decima parte, de todas as vendas de generos ou de
bens moveis. Este novo imposto, dividido em tres taxas, representava a
ruina completa do paiz. Seria impossivel existir commercio n’uma terra
onde elle tivesse de ser pago. Provocou maior opposição do que tudo
quanto Alba tinha até então posto em pratica. A primeira provincia que
protestou foi a de Utrecht, e logo depois todas as outras fizeram coro
com ella. Alba, comtudo, estava precisadissimo de dinheiro. O seu poder
dependia do exercito, e este tinha de ser pago; reconhecendo, porém,
que tinha avançado de mais, addiou a cobrança das decimas para de ali
a dois annos. A necessidade de dinheiro forçou-o, por fim, a pôr desde
logo em execução o que tinha decretado, e deu ordens terminantes para
se começarem a cobrar os dez e os vinte por cento. O resultado foi parar
logo todo o commercio e industria. Os padeiros não quizeram cozer pão,
os cervejeiros não quizeram fabricar cerveja, os sapateiros recusaram-se
a fazer calçado; e não havia quem vendesse os artigos de primeira
necessidade. E, como coisa alguma se vendesse, é claro que o imposto
sobre as vendas não podia ser cobrado.

=A tomada de Brill.=—Emquanto os estados permaneciam n’uma insurreição
passiva, a esquadra: dos «Mendigos do Mar», organizada por Guilherme,
guerreava incessantemente os hespanhoes, e, com uma ousadia que o bom
exito até ali alcançado lhes dava, aproaram de subito á ilha de Voorn,
e tomaram a cidade de Brill, que era considerada uma das chaves da
Hollanda. A posse d’essa cidade assegurava-lhes um ponto de ataque sobre
toda a costa dos Paizes Baixos e da Islandia, e foi a ella que ficou
devendo a sua origem o Estado das Sete Provincias.

De ahi em deante os hespanhoes nunca mais foram completamente senhores
dos Paizes Baixos. A sorte das armas esteve incerta durante muito tempo,
mas houve sempre uma parte do territorio flamengo independente de
Hespanha. Os «Mendigos do Mar», perfeitamente seguros em Brill, dirigiram
repetidos ataques ás povoações da costa, e em breve todas as principaes
cidades da Hollanda e da Zelandia estavam em seu poder, acabando por
proclamar Guilherme, principe de Orange, chefe da nação. O principe
acceitou esse perigoso cargo. Estava em França quando lhe deram a
noticia, e, disfarçando-se de camponez, atravessou as linhas do inimigo,
e deu-se pressa em tomar o commando dos insurgentes. Antes de chegar até
junto d’elles, a Hollanda e a Zelandia tinham-se pronunciado a seu favor.
Convocou uma assembléa dos Estados em Dordrecht, ou Dort, onde de eommum
accordo se resolveu estabelecer uma nova constituição, e, por unanimidade
de votos, o principe foi reconhecido «o verdadeiro representante do rei
na Hollanda, Zelandia, Frisilandia e Utrecht. Os estados, ali reunidos,
convieram em reconhecer a sua auctoridade, em votar impostos, e em
proseguir na politica d’elle. O seu primeiro decreto foi proclamar
liberdade de culto tanto aos catholicos como aos protestantes.

Organizou-se um novo exercito, e o principe de Orange, atravessando
o Meuse, tomou Oudenarde, Roermonde, e diversas outras cidades. Foi
acclamado em toda a parte, e a sua marcha foi tão facil que elle contava
chegar em pouco tempo a Bruxellas. Uma vez lá, confiou na promessa que
Coligny lhe fez de o ajudar a expulsar os hespanhoes do territorio
flamengo. Quando, porém, parecia estar em pleno successo, eis que
chega uma noticia que o deixou atordoado, como se (segundo as suas
proprias palavras) «tivesse levado com um malho na cabeça». Coligny
e os huguenotes francezes tinham sido massacrados na vespera de S.
Bartholomeu. Tudo estava perdido, pelos modos. Tornava-se necessario
abandonar Mons, que Luiz de Nassau tinha tomado pouco antes; e o exercito
do principe, apoz a retirada, foi dispensado do serviço.

Alba saiu de Bruxellas, e vingou-se atrozmente de Mons, Mechlin, Tergoes,
Naarden, Haarlem e Zutphen. As clausulas da capitulação de Mons foram
ignominiosamente violadas. Mechlin foi, de caso pensado, saqueada e
incendiada pelas tropas hespanholas. O general a quem foi confiado o
esbulho de Zutphen recebeu ordem para queimar todas as casas e matar
todos os habitantes. Haarlem foi sitiada, resistiu desesperadamente,
e por fim capitulou sob a promessa de um tratamento benevolo. Quando
os hespanhoes tomaram posse d’ella, degolaram, a sangue frio, todos os
soldados hollandezes, e com elles muitos centos de cidadãos, e, ligando
os corpos a dois e dois, lançaram-n’os na lagoa de Haarlem. Dir-se-hia
que os catholicos romanos tinham resolvido exterminar os protestantes
quando vissem que não podiam convertel-os.

Algumas cidades resistiram, e a causa da liberdade não estava
inteiramente perdida. O filho de Alba, D. Frederico, o verdugo de
Haarlem, foi derrotado na pequena cidade de Alkmaar, sendo obrigado a
retirar-se. Os «Mendigos do Mar» fizeram frente á esquadra hespanhola
que fôra enviada para os destroçar, dispersaram os navios e fizeram
prisioneiro o almirante. A nação de pescadores e de lojistas, de quem
a Hespanha e a Europa haviam escarnecido por verem a paciencia com
que supportavam as indignidades, tinha-se por fim mostrado uma raça
de heroes resolvidos a não se sujeitarem mais ao jugo hespanhol.
Guilherme o silencioso, a alma da revolta, tornou-se de um momento para
o outro uma importante personagem na Europa, que os reis precisariam de
lisongear. Publicou uma carta dirigida aos principes da christandade,
para justificar a revolta dos seus compatriotas. «Alba», disse elle,
«ha de tingir todos os rios e regatos com o nosso sangue e pendurar
em cada arvore da Hollanda um hollandez para que os seus desejos de
vingança fiquem satisfeitos. Pegámos, pois, em armas contra elle, em
defeza das nossas mulheres e dos nossos filhos. Se elle tiver mais força
do que nós, pereceremos, mas antes ter uma morte honrosa, e legar um
nome aureolado de gloria, do que curvar os pescoços deante do jugo e
permittir que a nossa terra fique escravisada. É por isso que as nossas
cidades se comprometteram a resistir a todos os cercos, a soffrer todas
as calamidades, a mesmo, se tanto necessario fôr, lançar fogo ás casas e
deixar-se morrer nas chammas, o que tudo seria preferivel a obedecer ás
intimativas d’esse algoz sedento de sangue».

A tormenta não podia deixar de inquietar Alba, apezar de toda a
confiança que elle tinha em si proprio. Pediu ao monarca que o mandasse
retirar dos Paizes Baixos. Como todos os tyrannos, considerou sempre
efficacissimo o seu systema, mesmo depois dos revezes soffridos. Era
sua opinião que se tivesse sido um pouco mais severo, se tivesse
accrescentado mais algumas gotas do sangue que fez derramar, o seu exito
seria completo. Quando Filippe, accedendo ao seu pedido, o demittiu do
cargo que occupava, não teve outro conselho a dar ao seu successor senão
o de mandar arrazar as cidades em que elle não podera pôr uma guarnição
hespanhola.

=Requescens y Zuniga, o novo representante do rei.=—A pessoa que Filippe
II escolheu para substituir o duque de Alba foi D. Luiz Requescens y
Zuniga, membro da mais alta aristocracia de Hespanha e cavalleiro de
Malta. Era elle um homem de indole magnanima, de nobre caracter, e, se
tivesse sido enviado á Hollanda dez annos mais cedo, a historia d’esse
paiz teria sido, certamente, muito diversa. Chegou, porém, tarde de
mais, e elle em breve o reconheceu. A Hespanha dispunha ainda, n’aquella
epoca, de um thesouro inexgotavel e de um illimitado numero de soldados.
Os patrioticos defensores da Hollanda não poderiam leval-a de vencida em
campo aberto; comtudo, o novo commandante hespanhol não os intimidou. Em
todas as cidades fortificadas se luctava com a energia do desespero, e os
«Mendigos do Mar» alcançavam triumphos sobre triumphos. E, comtudo, aos
patriotas faltava gente e dinheiro. Requescens, depois de observar tudo
isto, escreveu a Filippe: «Antes da minha chegada aqui, não comprehendia
como os rebeldes podiam sustentar frotas tão consideraveis, quando
vossa magestade nem uma, sequer, podia. Agora vejo que os homens que se
batem pelas suas vidas, pelas suas familias, pelos seus bens, pela sua
religião, embora falsa, pela sua causa, em summa, não exigem paga; dão-se
por satisfeitos com a sua ração quotidiana». Tratou logo de adoptar um
methodo inteiramente opposto ao de Alba. Aboliu os odiados impostos,
dissolveu o Conselho de Sangue, e proclamou uma amnistia geral. Procurou
também chegar a um accordo com os insurrectos.

Os habitantes da Hollanda e da Zelandia tinham tido uma amarga
experiencia de amnistias e accordos hespanhoes. «Temos ouvido demasiadas
vezes», disse Guilherme, «as palavras Combinado e Perpetuo. Ainda mesmo
que dessemos ouvidos ás vossas propostas, quem nos garante que o rei
as não daria depois por não feitas, sendo absolvido d’esse delicto
pelo papa?» A lucta continuou, portanto, e Requescens, que detestava a
politica do seu predecessor, teve de proseguir n’uma guerra que essa
mesma politica havia provocado.

A sorte das armas parecia manter-se inalteravel. Os hespanhoes tinham
saido sempre victoriosos em campo aberto, e quando no principio da
primavera de 1574 Guilherme e seu irmão Luiz entraram na Hollanda á
frente de um novo exercito composto, na sua maioria, de mercenarios
allemães, alcançaram outra victoria na Mooker Haide, mais decisiva,
segundo pareceu, do que qualquer outra que tivessem ganho anteriormente.
O exercito de Guilherme foi inteiramente derrotado, perecendo os seus
dois irmãos Luiz e Henrique, e com elles Christovão, Conde Palatino. Mais
uma vez se afigurou que os hollandezes acabariam, por fim, n’uma completa
submissão aos hespanhoes. Como sempre, porém, os heroes da patria,
vencidos em terra, eram vencedores no mar, e nas cidades fortificadas
combateu-se com tal denodo e perseverança que os hespanhoes não poderam
deixar de reconhecer a sua derrota.

Os «Mendigos do Mar» pozeram em debandada uma frota no principio d’esse
anno. Atacaram outra no Scheldt, apoderando-se de quarenta navios e
mettendo o resto no fundo.

=O cerco de Leyden.=—A cidade conservava-se havia muito tempo em poder
dos patriotas, e os hespanhoes faziam o maximo empenho em se apoderar
d’ella. Luiz de Nassau fez levantar o primeiro cerco que lhe pozeram,
mas desde maio de 1574 que o inimigo lhe dirigia repetidos e vigorosos
ataques. Não foi possivel a Guilherme, depois da batalha de Mooker
Haide, encontrar-se frente a frente com as tropas hespanholas. Precisava
de todos os seus homens para guarnecer as cidades fortificadas. Leyden
estava em perigo de ser conquistada, e não se lhe podia enviar soccorro
algum. Achava-se situada n’uma planicie cheia de pomares e de searas que
já pouco tempo esperariam pela ceifa, e esta planicie, como quasi todas
as da Hollanda, estava abaixo do nivel do mar, sendo, por conseguinte,
facil inundal-a, bastando para isso destruir os diques que se oppunham
á invasão das ondas. Guilherme não viu outro meio de a soccorrer senão
fazendo chegar a esquadra junto dos seus muros, e apresentou esse alvitre
aos respectivos habitantes, que o acceitaram. Foram, pois, abertos os
diques, e a esquadra dos «Mendigos do Mar» preparou-se para entrar com
a maré e navegar em seguida sobre submersas hortas, pomares e campos de
semeadura. O plano era este, mas levantou-se a contrarial-o uma chusma
de difficuldades. Tornou-se uma tarefa difficil arrombar os diques; a
agua começou a entrar, mas lentamente; violentissimos ventos a impelliam
para fóra. Entretanto os viveres eram cada vez mais escassos na cidade,
e a faminta população, subindo aos campanarios, via a agua sempre lá
ao longe, via que os soccorros se approximavam muito vagarosamente,
como se nunca houvessem de chegar, ou então como se houvessem de chegar
tarde de mais. Os hespanhoes, que tambem conheciam o perigo e a miseria
em que a cidade se encontrava, promettiam amnistias e uma honrosa
capitulação. «Temos dois braços», exclamou do alto das muralhas um dos
defensores, «e quando a fome nos apertar muito comemos o esquerdo, e
deixamos o outro para manejar a espada». Quatro mezes se passaram n’um
indescriptivel soffrimento, e por fim, em 3 de outubro, o mar chegou ao
sopé das fortificações, e com elle a frota hollandeza. Os hespanhoes
fugiram aterrorisados, pois que os «Mendigos do Mar» cairam sobre elles,
soltando o seu costumado grito de guerra: «Antes turcos do que papistas».
Os marinheiros e os habitantes da cidade dirigiram-se á sumptuosa egreja
para dar graças a Deus pelo livramento que, por Sua misericordia, lhes
viera do mar. Quando a numerosa congregação estava entoando um psalmo de
libertação, as vozes calaram-se de subito, e não se ouvia senão soluços.
Toda a gente, enfraquecida pelas longas vigilias e pelas privações, tendo
agora uma consciencia nitida do seu inesperado livramento, se pozera a
chorar.

A boa nova foi levada a Delft por Hans de Brugge, que chegou a esta
localidade quando o principe de Orange estava assistindo ao serviço
religioso da tarde, sendo só depois de elle terminar que o povo soube do
succedido. O principe, apezar de doente, montou a cavallo, e partiu logo
para Leyden, para tomar parte no regozijo publico. Propoz que, em acção
de graças, se fundasse na cidade um estabelecimento de instrucção, e foi
assim que teve origem a famosa universidade de Leyden. A cidade tornou-se
o centro do protestantismo das provincias. Picou sendo na Hollanda o que
Wittenberg era na Allemanha, Genebra na Suissa, e Saumur em França.

=Negociações entre as provincias do sul e as do norte.=—O levantamento
do cerco de Leyden mareou um novo periodo na guerra da independencia.
O oommissario hespanhol via que se estava formando, vagarosa e quasi
imperceptivelmente, um novo estado protestante, e as difficuldades que
de todos os lados o assediavam eram, pode-se dizer, invenciveis. Estava
elle luctando com ellas, quando de subito morreu, em 5 de Março de 1576.
A sua morte inesperada foi um golpe para a dominação hespanhola, e os
acontecimentos que se lhe seguiram mostraram aos neerlandeses que eram
catholicos romanos aonde o governo hespanhol poderia tel-os conduzido.
A morte de Requescens produziu uma certa perturbação na politica
hespanhola. Desde o tempo do duque de Alba o pagamento das tropas
tinha sido feito com difficuldade, e agora os cofres publicos estavam
despejados, e os soldados queixavam-se de se lhes dever alguns mezes de
soldo. Por fim, perdida a esperança de que essa divida fosse liquidada,
revolucionaram-se. «Dinheiro ou liberdade para saquear qualquer cidade»,
era o seu grito. A guarnição de Aalst foi a primeira a revoltar-se, sendo
secundada pelas de quasi todas as cidades fortificadas das provincias
do sul. Os revoltosos pozeram a saque as cidades de Aalst, Maestricat
e Antuerpia. Deram-se por toda a parte horriveis scenas de roubo e
assassinio e durante tres calamitosos dias de novembro a populosa e
opulenta cidade de Antuerpia soffreu tudo quanto sobre ella podia ser
exercido por uma soldadesca dissoluta e brutal.

O principe de Orange aproveitou esta sublevação para avançar com as
suas tropas, e dentro em pouco estava de posse da importante cidade de
Ghent. Os habitantes das provincias do sul tanto nobres como plebeus,
tinham, por sua vez, sido victimas de aquellas horrorosas calamidades
que os seus compatriotas os protestantes do norte, tinham, havia muito,
experimentado. Antuerpia tinha soffrido; Bruxellas, mais resoluta, pegou
em armas e expulsou os soldados hespanhoes. Os nobres de Flandres e de
Brabante estavam anciosos por se unirem ás provincias do norte; e pediram
a Guilherme que os livrasse dos hespanhoes. Em Ghent realisou-se um
congresso de representantes das provinciais do norte e do sul, ficando
assentes os preliminares de uma duradoura união. Foi a isto que se chamou
a _Pacificação de Ghent_, que foi assignada por delegados de dezesete
provincias.

Por este tratado eram expulsos os hespanhoes, estabelecia-se uma completa
liberdade de commercio entre as provincias do norte e as do sul, ficavam
revogados todos os edictos contra os protestantes, concedia-se protecção
aos catholicos romanos, todas as provincias se uniam para constituir
um unico Estado, e o principe de Orange ficava sendo _statholder_ até
posterior decisão, que seria tomada depois de se retirarem os hespanhoes.

=D. João de Austria nos Paizes Baixos.=—A _Pacificação de Ghent_ alarmou
em subido grau os politicos de Madrid. D. João de Austria, irmão de
Filippe, e homem de brilhante reputação, foi enviado aos Paizes Baixos
na qualidade de _statholder_ com plenos poderes. Os estados recusaram
reconhecel-o emquanto elle não fizesse sair as tropas hespanholas.
Apoz algumas negociações, as provincias obtiveram, apparentemente,
que elle attendesse ás suas aspirações com a publicação do _Edictum
Perpetuum_, que garantia a expulsão das tropas, a tolerancia para
com os protestantes, e a unificação dos estados; por algumas cartas
confidenciaes que foram interceptadas, viu-se, porém, que Filippe e o
seu regente não haviam abandonado a antiga politica de repressão, e o
conhecimento d’este facto uniu novamente os catholicos romanos do sul
com os protestantes do norte. Os Estados Geraes não reconheceram a
sua auctoridade, e designaram o principe de Orange para governador de
Brabante. Havia, comtudo, muita difficuldade em que o norte e o sul se
unissem por laços affectuosos. A tolerancia era impossivel n’aquelles
tempos, em que os credos differentes se hostilisavam por uma fórma
violenta, e as rivalidades locaes não se podiam vencer facilmente. Os
nobres de Flandres e de Brabante representavam dois papeis, e essa sua
duplicidade animou D. João de Austria a atacar as forças do principe
de Orange. A guerra terminou com a batalha de Gemblours, em que os
hespanhoes alcançaram uma completa victoria. O principe, comtudo,
mostrou-se, como sempre, tão grande na derrota como na victoria, e
o _statholder_ sentia fugir-lhe a esperança de que a totalidade da
Hollanda, se conservasse fiel ao rei hespanhol. Morreu, cercado por todas
estas difficuldades, em 1 de Outubro de 1578, e succedeu-lhe Alexandre de
Parma, o mais habil, talvez, dos representantes de Filippe.

=Alexandre de Parma nos Paizes Baixos.=—Alexandre Farnese, principe de
Parma, filho de Margarida de Parma, já tinha desempenhado anteriormente
aquelle cargo, e, no dizer de alguns auctores, foi o ultimo dos grandes
homens que a Hespanha possuiu no seculo dezeseis. Era um excellente
general, um habil politico, e um homem de tacto. Encontrou as coisas nas
provincias n’uma grande confusão. O seu unico elemento de força era a
rivalidade que existia entre o norte protestante e o sul catholico romano.

O Tratado de Ghent tornou-se letra morta. As provincias do norte
suppozeram que Flandres e Brabante as tinham traido nos negocios de
que resultou a batalha de Gemblours. As provincias do sul não queriam
submetter-se á dominação dos herejes do norte. Alexandre aproveitou-se
habilmente d’esta desunião para prender as provincias do sul á Hespanha,
com o inevitavel resultado de que os protestantes do norte se uniram
mais estreitamente uns aos outros e se tornaram mais resolutos na sua
determinação de permanecerem livres.

=O Tratado de Utrecht.=—Em 1579, a Hollanda, a Zelandia, Guelders,
Zutphen, Utrecht, Overyssel e Gröningen fizeram-se representar n’uma
assembléa, e redigiram o celebre Tratado de Utrecht, que continha, em
esboço, a futura constituição das provincias unidas. As Sete Provincias
não se separaram da Hespanha. Diziam-se ainda subditas da corôa
hespanhola, mas reivindicavam o direito de darem culto a Deus e de se
governarem segundo o seu modo de ver. Dois annos depois repelliram
inteiramente o jugo hespanhol, e proclamaram a sua independencia,
escolhendo Guilherme de Orange para seu governador perpetuo. Isto teve
logar em Julho de 1581, em resposta a uma proclamação de Filippe, em que
este denunciava Guilherme como um inimigo da humanidade, e offerecia uma
recompensa de vinte e cinco mil corôas de oiro, e, além d’isso, um titulo
de nobreza e o perdão de todos os crimes commettidos anteriormente, a
quem assassinasse o principe.

Do Tratado de Utrecht em deante, as Provincias Unidas foram attingindo
gradualmente uma completa independencia politica e tornaram-se uma
potencia protestante. Guilherme da Orange foi em 1584, morto a tiro por
um fanatico catholico romano chamado Gerardo, cujos herdeiros reclamaram
e obtiveram parte da recompensa promettida por Filippe. A sua obra não
terminou com a sua morte. As Sete Provincias elegeram, para Governador
em seu logar, a seu filho Mauricio, mancebo de dezesete annos, mas
já educado por seu pae para ser um habil general e um prudente chefe
politico. Poz-se resolutamente á testa de aquelle conflicto com a
Hespanha, que parecia interminavel. Isabel de Inglaterra prestou-lhe o
seu auxilio, com o qual ella ficou mais prejudicado do que outra coisa.
Depois da destruição da Armada, e do golpe que esse facto vibrou na
monarquia hespanhola, alcançou uma notavel victoria sobre as tropas
catholicas romanas. A guerra durou até 1604, ora vencendo uns ora
vencendo outros, e, por fim, no referido anno os hollandezes abalaram
fortemente o dominio hespanhol, apoderando-se dos navios que voltavam
das indias Occidentaes e Orientaes, carregados de preciosidades. Em 1607
combinou-se um armisticio, e em 1609 ficou resolvido que houvesse treguas
durante doze annos, tendo-se, porém, convertido essas treguas n’uma paz
definitiva. Os hollandezes tinham conquistado a sua independencia, e
constituiam uma poderosa nação protestante, cuja supremacia no mar só era
disputada pela Inglaterra.

=A Egreja Hollandeza. Sua organização e confissão.=—Durante os annos de
dura perseguição que o protestantismo soffreu nos Paizes Baixos desde o
principio da sua existencia, os protestantes, não obstante os rigores
postos em pratica contra elles, poderam organizar-se sob a fórma de
egreja, e publicar uma confissão. Isto não foi feito sem dificuldades,
que até entre elles proprios surgiram. Os habitantes dos Paizes Baixos
tinham recebido de varias origens a nova fé, e cada qual entendia que
só era verdadeira Reforma aquella que primeiramente havia chegado ao
seu conhecimento. Os primeiros reformadores dos Paizes Baixos haviam
aprendido o Evangelho em Wittemberg, com Luthero, e nas provincias do
norte eram numerosos os lutheranos. Um pouco mais tarde as opiniões
de Zwinglio penetraram na Hollanda, e foram adoptadas por pessoas que
tomavam muito a peito a pureza da religião. Nas provincias do sul a
Reforma foi transmittida ao povo por theologos francezes, educados no
calvinismo. E assim, nos Paizes Baixos, havia adherentes de Luthero, de
Zwinglio e de Calvino. Cada um dos partidos differençava-se dos outros,
especialmente pelo que dizia respeito ao governo da egreja; e, posto
que estas differenças fossem quasi vencidas, reappareceram mais tarde
na contestação que teve logar entre a egreja e o Estado Protestante,
acerca da vida e governo da egreja. Gradualmente, comtudo, o calvinismo
foi levando de vencida o lutheranismo e o zwinglianismo, e a egreja dos
neerlandezes tornou-se calvinista, tanto na doutrina como na disciplina.

=A Confissão Hollandeza.=—N’uma epoca relativamente afastada, isto é,
em 1559 (alguns dizem que em 1561) um joven pastor flamengo, Guido de
Brés, juntamente com Adriano de Saravia, Modetus, capellão de Guilherme
de Orange, e Wingen, prepararam uma Confissão de Fé, para, diziam elles,
justificar pela Escriptura a religião reformada.

Guido de Brés, que foi um dos primeiros evangelistas e martyres dos
Paizes Baixos, nasceu em 1540, na cidade de Mons. Havia estudado para
padre, e converteu-se dos erros do romanismo mediante o estudo das
Escripturas Sagradas. Depois da sua conversão fugiu para Inglaterra,
onde, nos dias de Eduardo VI, aprendeu theologia protestante. Foi depois
para a Suissa, e ao voltar tornou-se um ardente evangelista no norte da
França e no sul dos Paizes Baixos. Era um ardente admirador da Confissão
da Egreja Franceza, e modelou a sua Confissão para a Egreja Flamenga pela
celebre _Confessio Gallica_.

Esta Confissão, a Confissão Belga, como lhe chamavam, foi revista por
Francisco Junio, discipulo de Calvino, em 1561, e foi apresentada ao rei,
Filippe II, em 1562, assim como a Confissão de Augsburgo foi apresentada
a seu pae Carlos V. O eloquente discurso que acompanhou a Confissão pode
ser comparado á dedicatoria a Francisco I, que prefaciou os _Institutos_
de Calvino. Os protestantes negam que sejam rebeldes ao governo, e
declaram que só o que desejam é liberdade para adorar a Deus segundo a
consciencia e a Divina Palavra. De modo algum negarão a Christo, ainda
mesmo que tenham, segundo a linguagem que empregaram, de «offerecer as
costas ás chibatas, as linguas ás facas, e os corpos ao fogo, certos
de que os que seguem a Christo devem carregar com a cruz de Christo, e
renunciar-se a si proprios».

Esta Confissão, gradualmente adoptada pelos protestantes dos Paizes
Baixos, introduziu o calvinismo nas egrejas d’essa parte do mundo.

=A Constituição da Egreja Hollandeza.=—Em 1563, isto é, quando ainda
havia perseguição, os delegados de varias congregações protestantes
reuniram-se em synodo, e concordaram n’um systema de governo de egreja,
que copiou, em grande parte, os seus principios das _Ordenanças
Ecclesiasticas_ de Genebra; e a constituição da egreja, quasi desde o seu
inicio, foi baseada no modelo de Genebra. A organização presbyteriana,
com pastores, professores, presbyteros e diaconos, não foi adoptada nos
Paizes Baixos sem protesto da parte dos lutheranos, mas quando veiu sobre
elles a feroz perseguição do duque de Alba a fórma presbyteriana do
governo da Egreja foi a que melhor resistiu a todos os embates, sendo por
fim a que se tornou preponderante. O systema consistorial de Luthero é
apenas possivel quando o Estado esteja em favoraveis disposições para com
a egreja, mas o presbyterianismo, como a França, a Escocia e os Paizes
Baixos mostraram, pode manter-se, até mesmo quando a «Egreja sentir o
peso da cruz.»

N’uma assembléa da Egreja que teve logar em Dordrecht, em 1574, a
primeira assembléa geral da Egreja Hollandeza, foi revista, ampliada e
formalmente adoptada uma serie de artigos que já haviam sido approvados
n’uma reunião em Emden, e que continham os principaes elementos da
organização presbyteriana. Todos os ministros tinham de obedecer ás
_assembléas classicas_, ou presbyterios; e todos os presbyteros e
diaconos tinham de assignar a Confissão de Fé e os artigos respeitantes
ao governo da Egreja.

Torna-se necessario explicar duas particularidades do presbyterianismo
hollandez. As sessões da egreja não são, como na maioria das outras
egrejas presbyterianas, assembléas congregacionaes que se occupem do
governo de uma congregação. A sessão da egreja é composta de ministros e
presbyteros de um certo numero de congregações, e, a certos respeitos,
assimilha-se a um presbyterio. E, comtudo, como as das outras egrejas
presbyterianas, o tribunal de primeira instancia.

A outra particularidade da organização da Egreja hollandeza consiste em
que raras vezes podia deliberar como egreja. Isto era devido em parte
ao ciume do Estado protestante, e em parte á constituição politica
das Provincias Unidas. A Hollanda, ou as Provincias Unidas, era uma
confederação de estados, a muitos respeitos independentes uns dos outros.
A Reforma tendia a descentralizar a Egreja, e a produzir uma organização
ecclesiastica separada para cada estado politico independente. Tambem
se notava na Hollanda a tendencia para a formação de tantas egrejas
separadas quantas eram as provincias.

As Sete Provincias não constituiam uma nação; constituiam, antes, uma
confederação. Tinham-se obrigado a proteger-se umas ás outras na guerra,
e, portanto, a manter um exercito commum, e a contribuir para um fundo
militar commum; mas não formavam um estado. Os negocios internos de cada
provincia estavam sob a superintendencia de cada estado separado.

Quando Guilherme de Orange foi eleito governador vitalicio, uma das
clausulas a que elle ficava obrigado era a de que não reconheceria
qualquer concilio ou consistorio ecclesiastico que não tivesse a
approvação da provincia em que propozesse reunir-se. Os negocios
religiosos de cada provincia tinham de ser regulados por essa provincia.

Isto dava um aspecto de divisão á Egreja hollandeza, e impedia,
realmente, a acção incorporada e unida. A Egreja só podia reunir-se em
assembléa geral quando todas as Sete Provincias concordassem em dar-lhe
permissão. Este embaraço politico obstou muito á utilidade e influencia
da Egreja Reformada Hollandeza, e deu logar a uma continua lucta, na
Hollanda, entre a Egreja e o Estado.

=A força da Egreja na Hollanda.=—A prolongada peleja de quarenta e
cinco annos contra a Hespanha e o papismo parecia estimular as energias
da Egreja hollandeza e das suas universidades, e os seus collegios
theologicos em breve rivalizaram com mais antigas sédes de instrucção. A
universidade de Leyden, erguida em acção de graças quanto a uma milagrosa
libertação, foi fundada em 1575; Franecker começou a existir dez annos
depois (1585); as universidades de Gröningen (1612) Utrecht (1636) e
Harderwyk (1648) seguiram em successão apoz alguns annos de intervallo.
Todas estas universidades eram escolas theologicas, frequentadas por
alumnos procedentes de quasi todos os paizes protestantes da Europa. Os
theologos hollandezes do seculo dezesete tornaram-se famosos quanto á sua
erudição, zelo e agudeza theologica. Quando surgiu a grande controversia
armenia, que agitou mais tarde a Egreja hollandeza, os theologos da
Hollanda foram os que na Europa se celebrizaram mais, tanto pelo que diz
respeito á illustração como pelo que diz respeito á orthodoxia.

A Confissão de Westminster, que se tornou o credo da maior parte das
egrejas presbyterianas em paizes onde se fallava a lingua ingleza, é em
grande parte baseiada na antiga Confissão Hollandeza; e os theologos que
coordenaram os seus artigos copiaram muita coisa d’esses reformadores
hollandezes recentemente emergidos da sua terrivel e prolongada lucta com
o papismo hespanhol.



CAPITULO V

A REFORMA NA ESCOCIA

    Preparação para a reforma, pag. 137.—A antiga Egreja celtica
    o a Educação, pag. 137.—A Escocia e o lollardismo, pag.
    138.—A Escocia e Huss, pag. 138.—A Egreja romana na Escocia
    e a situação politica, pag. 142.—João Knox, pag. 141.—A
    Congregação e a Primeira Convenção, pag. 142.—A _Confissão
    escoceza_, pag. 144.—A rainha Maria e a Reforma, pag. 145.—O
    _Livro de Disciplina_, e a _Primeira Assembléa Geral_, pag.
    147.—A educação, pag. 148.—A morte de Knox, pag. 149.—Os bispos
    tulchanos, pag. 150.—André Melville, pag. 152.—O Segundo Livro
    de Disciplina, pag. 152.


=Preparação para a Reforma.=—A Escocia, longe do centro da vida europeia
no seculo dezeseis, recebeu, apezar d’isso, a Reforma quasi tão cedo como
a maioria dos outros paizes, e acceitou-a mais completamente do que elles.

A região tinha sido preparada para ella mediante a educação do povo,
mediante o constante commercio entre a Escocia e as nações continentaes,
especialmente a França e a Allemanha, e mediante a sympathia dos
estudantes escocezes para com os primeiros movimentos religiosos na
Inglaterra e na Bohemia; e por outro lado a condição da Egreja romana,
a pobreza das classes aristocraticas, e a situação politica do paiz
coadjuvaram em certa escala os esforços de aquelles que anhelavam por uma
reformação religiosa na Escocia.

=A antiga Egreja celtica e a Educação.=—A antiga Egreja celtica na
Escocia, que havia conservado a sua influencia no paiz durante perto
de setecentos annos, tinha sempre considerado a educação do povo como
um dever religioso. Os seus regulamentos declaram que é tão importante
ensinar os rapazes e as raparigas a ler e a escrever como administrar os
sacramentos ou tomar parte na _intimidade das almas_, que era o nome que
davam á confissão. O mosteiro celta era sempre um centro educativo, e
n’alguns casos a instrução ahi ministrada era a melhor que se podia obter
fóra de Constantinopla. Carlos Magno, ao estabelecer aquellas escolas
superiores, que depois se tornaram as mais antigas universidades da
Europa, procurou nos mosteiros celtas os primeiros professores. Quando
a Egreja celta da Escocia cedeu o logar á Egreja romana, o seu systema
educativo foi, em grande escala, adoptado, e a educação na Escocia
continuou a ser muito melhor do que se poderia esperar do seu estado de
civilisação.

As escolas cathedraes e monasticas produziram um grande numero de
professores e alumnos que desejavam ver os seus trabalhos continuados
n’uma universidade como as que n’aquella epoca estavam apparecendo em
toda a Europa.

Ao principio os poucos recursos do paiz obstavam á fundação de
universidades na Escocia, e mediante uma provisão feita pelo rei e
pelos bispos foram enviados os melhores estudantes a Oxford, Cambridge
e Paris. Professores viajantes foram da Escocia, com um certo numero
de estudantes, aos centros, inglezes e continentaes, de instrucção. E
era frequente que os jovens escocezes permanecessem fóra da patria na
qualidade de leccionistas ou estudantes nomadas.

=A Escocia e o lollardismo.=—Este contacto academico approximou muito
a Escocia dos grandes movimentos intellectuaes da Europa. No período
em que os estudantes escocezes iam em grande numero para Oxford,
Wycliffe exercia o professorado, e o lollardismo triumphava na grande
universidade ingleza. Os estudantes escocezes voltavam contaminados
com as maximas constitucionaes e as aspirações religiosas dos grandes
homens de Inglaterra, e o lollardismo propagou-se na Escocia. Depois das
universidades de Aberdeen, Glasgow e St.º André terem sido fundadas,
no seculo quinze, os velhos arquivos dizem-nos que as auctoridades
ecclesiasticas effectuaram inspecções com o fim de expurgar o corpo
docente dos erros de Lollard. A seu devido tempo, o lollardismo passou
das universidades para o publico, e os primeiros chronistas da Reforma
nunca deixam de se referir aos lollards, ou homens biblicos de Kent, e á
entrevista que tiveram com James IV.

Havia estudantes escocezes em Paris quando Pedro Dubois, Marsilio de
Padua e Guilherme de Ockham ensinavam publicamente que a egreja è o povo
christão, e que pode existir uma egreja sem papa e sem padres.

=A Escocia e Huss.=—A Bohemia e os actos de João Huss n’esse paiz eram
bem conhecidos na Escocia. Calderwood falla-nos de Paulo Craw, bohemio
que foi convencido de heresia a instancias de Henrique Wardlaw, bispo de
St.º André, perante sete doutores em theologia, por divulgar as doutrinas
de João Huss e de Wycliffe, «negando que houvesse qualquer modificação da
substancia do pão e do vinho na Ceia do Senhor, e reprovando a confissão
auricular e as orações aos santos defuntos.» Foi condenado á fogueira,
e no momento da execução «metteram-lhe uma bola de cobre na bocca; para
que o povo não ouvisse o seu justo protesto contra a injusta sentença
d’elles.» Recentes investigações arqueologicas teem tornado evidente uma
mais intima connexão entre a Escocia e a Bohemia do que até então se
suspeitava.

=A Egreja romana na Escocia o a situação politica.=—A Egreja romana na
Escocia era muito rica, e era talvez mais corrupta do que em qualquer
outra parte fóra da Italia. A herança que lhe foi legada pela Egreja
celta não era toda boa; os satyricos tinham começado a chamar a attenção
para o contraste entre as profissões e as vidas dos ecclesiasticos,
e os seus livros produziam grande impressão no povo baixo. «Quanto
aos modos mais particulares por que muita gente na Escocia adquiriu
algum conhecimento da verdade de Deus na epoca das grandes trevas,»
diz João Row, «havia alguns livros, taes como _Sir David Lindsay, e as
suas poesias ácerca das Quatro Monarquias_, que trata tambem de muitos
outros pontos, e expõe os abusos do clero de aquelle tempo; os _Psalmos
de Wedderburn_ e as _Balladas de Godlie_, em que se alteram para fins
piedosos muitos dos antigos canticos papistas: e uma _Queixa_ feita
pelos estropiados, cegos e pobres de Inglaterra contra os prelados,
padres, freiras e outras individualidades da egreja que dispendiam
prodigamente todos os dizimos e outros rendimentos ecclesiasticos em
prazeres illicitos, de modo que elles, os queixosos, não podiam adquirir
alimentação nem allivio, como Deus tinha ordenado. Estas coisas foram
impressas, e penetraram na Escocia. Havia tambem peças dramaticas,
comedias e outras historias notaveis, que eram representadas em publico;
a _Satyra_ de Sir David Lindsay foi representada no amphitheatro de S.
Johnston (Perth), na presença do rei James V, e de uma grande parte da
nobreza e da classe abastada, durando a representação um dia inteiro,
e fazendo sentir ao publico as trevas em que estava envolvido, e a
perversidade dos homens da egreja, e mostrando-lhe como a Egreja de Deus
seria se fosse dirigida de uma maneira differente, o que tudo foi muito
benefico n’aquella ocasião.

As riquezas da Egreja romana da Escocia tinham, havia muito, excitado a
inveja dos barões, que esperavam a ocasião em que podessem, sem risco,
apoderar-se de parte dos bens ecclesiasticos. Durante muito tempo não
occorreu similhante opportunidade. O clero era um senhorio que gozava da
estima geral. Os vassallos da Egreja estavam em muito melhores condições,
e tinham uma vida mais descançada, do que aquelles que cultivavam as
terras dos barões e de outras personagens de menor cathegoria. Os
camponezes escocezes rir-se-hiam, talvez, com as satyras de David
Lindsay, mas gostavam da Egreja, e perdoavam-lhe os defeitos.

Quando os prégadores escocezes que tinham estado em Wittenberg, ou que
tinham estudado as obras de Luthero e dos outros reformadores, ou que
sabiam pela Escriptura o que era desejar ardentemente o perdão e a
salvação, começaram a prégar um Evangelho reformado, então, e só então,
é que o povo principiou a comprehender a mordaz significação das satyras
que alvejavam a clerezia. As auctoridades ecclesiasticas fizeram todo
o possivel para supprimir estes reformadores. Patricio Hamilton, Jorge
Wishart e muitos outros prégadores cheios de fervor e de espiritualidade
foram martyrisados; e estas crueldades contribuiram mais do que os
sermões ou as satyras para que o povo escocez se desgostasse da Egreja
romana. A sanguinaria Maria tinha tornado a Inglaterra protestante; e
o cardeal Beaton, com os seus homicidios judiciaes, e particularmente
com o homicidio do velho Walter Mill, fez com que o povo da Escocia se
preparasse para Knox e para os lords da Congregação.

Durante umas poucas de gerações a politica exterior da Escocia tinha
sido de inimizade para com a Inglaterra e de amizade para com a França.
A alliança com esta nação havia motivado o casamento da James V com uma
princeza da casa de Guise, e, mais tarde, os esponsaes e casamento da
herdeira do throno da Escocia com o delphim da França. James V morreu,
ficando regente a rainha franceza, cuja conducta incutiu nos espiritos
de muitos escocezes o receio de que a Escocia viesse a tornar-se uma
provincia de França. Tinham sido nomeados francezes para cargos de
confiança na Escocia; o castello de Dunbar tinha uma guarnição franceza;
e a regente projectava crear um exercito permanente, segundo o systema
francez. Este alarme foi tomando tal vulto que o partido nacional, que
por fim triumphou, chegou a inverter a politica hereditaria da Escocia,
e ficou tendo por objecto uma alliança com a Inglaterra e uma guerra
com a França. A Inglaterra era protestante, emquanto que os verdadeiros
senhores da França eram os Guises, os cabecilhas do fanatico partido
romanista, os homens que planearam a carnificina de S. Bartholomeu.

Tal era o estado das coisas na Escocia quando João Knox começou a sua
admiravel obra de reformador.

O povo estava educado acima da sua civilisação, e podia comprehender
e saudar as novas idéas, tendo, como tinha, costumes grosseiros, e
vivendo, como vivia, uma vida rude. A egreja tinha perdido a confiança da
nação em virtude da immoralidade do clero, e por ultimo tinha excitado
as paixões do povo contra si com a sua cruel perseguição de homens de
uma vida immaculada que prégavam um Evangelho puro. Alguns dos barões
tinham partilhado a revivificação religiosa começada pelos prégadores
reformados; outros estavam anciosos por livrar o paiz do dominio francez,
e outros, ainda, queriam a todo o transe seguir o exemplo da Inglaterra
e enriquecer á custa da egreja. Todos estes motivos, uns puros e outros
não, estavam agitando o povo da Escocia nos annos que precederam o de
1560.

=João Knox=, nascido em Giffordsgate, nos arredores de Haddington, em
1505, educado na universidade de Glasgow, e ordenado padre em 1542,
tornou-se primeiramente conhecido do povo da Escocia quando, muito novo
ainda, andou em companhia de Jorge Wishart para proteger este prégador
reformado emquanto elle dirigia a palavra a immensos auditorios.
Depois do martyrio de Wishart, e do assassinio do cardeal Beaton, Knox
aggregou-se á facção que havia tomado de assalto o castello de St.º
André. Quando os defensores se viram forçados a capitular, os poucos
membros da guarnição que estavam, incluindo Knox, foram enviados para
França e condemnados á escravidão das galés. N’uma occasião em que puxava
pelos remos, foi-lhe apresentada uma imagem da Virgem, de pau, para elle
a beijar como meio de adoração. Knox recusou-se a honrar «o madeiro
pintado», e atirou com a imagem ao mar, dizendo que, como ella era de
pau, «não havia de ir para o fundo». Apoz um captiveiro de dezenove
mezes, elle, juntamente com outros que haviam sido aprisionados em
St.º André, foi solto a pedido de Eduardo VI de Inglaterra. Restituido
á liberdade em fevereiro de 1549, foi direito a Inglaterra, onde se
empregou como prégador viajante. A sua eloquencia, zelo e incomparavel
coragem em breve o collocaram em primeiro plano. Foi-lhe offerecida a
diocese de Rochester, mas recusou-a sob o fundamento de que não era sua
crença que similhante cargo fosse auctorizado pelas Escripturas. Foi
consultado ácerca da revisão dos _Artigos da Religião_, e suggeriu a
celebre _declaração sobre o assumpto de ajoelhar na Communhão_, que ficou
inserta no Segundo Livro de Oração Commum de Eduardo VI (1552). A subida
de Maria ao throno obrigou-o, apoz uma arrojada tentativa de proseguir na
sua obra de prégador nomada, a retirar-se para o continente.

Um anno foi gasto a visitar varias localidades da França e da Suissa. Em
Genebra tornou-se o intimo amigo de Calvino. Apoz uma curta estada em
Frankfort sobre o Maine, onde foi pastor da congregação de refugiados
inglezes que se haviam ajuntado ahi, tornou-se o pastor da Congregação
ingleza de Genebra em 1555. Durante a sua curta permanencia ahi tomou
parte na composição de aquelle directorio do culto publico, que, sob os
varios nomes de Livro de Ordem Commum, Livro de Genebra e Lithurgia de
Knox, serviu de guia no culto publico da Egreja reformada da Escocia
até á publicação e adopção do Directorio dos Theologos de Westminster.
Collaborou tambem ma traducção da mais popular das primitivas versões da
Sagrada Escriptura, a Biblia de Genebra.

Durante a sua ausencia foi ganhando a pouco e pouco a reputação de ser o
unico homem competente para conduzir os esforços do partido reformista da
Escocia a satisfactorio resultado final; e no outomno de 1555 regressou
á sua terra natal. Com a sua coragem habitual, começou logo a fazer
predicas nos aposentos que occupava em Edinburgo, e fez alguns gyros
predicativos, como, por exemplo, a Forfarshire, sob a protecção de
Erskine de Dun, e a West Lothian, sob a protecção de Lord Torphichen. Foi
durante esta visita que Knox principiou a administrar a Ceia do Senhor á
moda reformada. A primeira celebração foi em casa do conde de Glencairn,
na primavera de 1556.

O Reformador, provavelmente, não achou o paiz em estado de entrar em
qualquer grande movimento que o approximasse da Reforma, e partiu da
Escocia para Genebra em Julho de 1556. Queixou-se da lentidão, timidez
e falta de união entre os protestantes, quando alguns dos fidalgos
lhe solicitaram, em Março de 1557, que voltasse, e mandou dizer que
achava melhor addiar o seu regresso. Esta reprehenção deu logar a uma
Confederação dos nobres, que depois se tornou bem conhecida na Escocia
sob o titulo de Lords da Congregação.

=A Congregação e a Primeira Convenção.=—O turbulento caracter dos
barões escocezes, e a fraqueza da auctoridade central, tanto do rei
como dos estados, eram origem de constantes confederações de homens de
todas as classes para realisarem, com segurança, emprezas, umas vezes
legaes, e outras illegaes. Os confederados promettiam ajudar-se uns aos
outros na obra que se propunham executar, e defender-se mutuamente das
consequencias que se lhe seguissem. Estas combinações eram geralmente
redigidas em fórma legal por notarios publicos, e o seu cumprimento
tornava-se obrigatorio mediante todas as formulas de garantia que a lei
facultava. Estes Lords da Congregação seguiram um costume predominante
em todas as confederações quando se alliaram para manter e dar maior
desenvolvimento á bemdita palavra de Deus e á Sua congregação, e
para renunciar á congregação de Satanaz com todas as supersticiosas
abominações e idolatria que lhe eram inherentes; mas introduziram um
novo sentido espiritual n’esta alliança quando o seu pacto de federação
se tornou tambem uma promessa feita a Deus em publico, como as que
encontramos no Antigo Testamento, de serem verdadeiros e fieis á Sua
palavra e direcção. Esta «faixa assignada pelos Lords», como Calderwood
lhe chama, foi a primeira das cinco convenções que se tornaram famosas na
historia da Egreja Reformada da Escocia.

A esta convenção estavam ligadas duas resoluções, em que os confederados
resolveram insistir no uso do Livro de Oração de Eduardo VI nas paroquias
que estivessem debaixo do seu governo e dar incremento á exposição das
Escripturas, particularmente, pelas casas, até que as auctoridades
permittissem a prégação publica «por verdadeiros e fieis ministros».

Este acto reanimou grandemente todos aquelles que desejavam uma
reformação, e fez com que o povo tivesse ousadia para exprimir a sua
aversão pelas supersticiosas ceremonias da Egreja Catholica Romana. A
Côrte, em 1559, prohibiu de prégar todos aquelles que não estivessem
auctorizados pelos bispos; e, como não se fizesse caso d’essa prohibição,
os prégadores foram intimados a apresentar-se no tribunal de Stirling.

N’este entretanto Knox voltou á Escocia. Desembarcou em Leith, a 2 de
Maio, e dirigiu-se a Perth, onde os Lords da Congregação se haviam
reunido para proteger o seu prégador. Chegou a Perth a noticia, emquanto
Knox estava prégando, de que os ministros reformados estavam proscriptos,
e no dia seguinte, depois do sermão, quando um padre tentou dizer
missa na presença de uma excitada multidão, produziu-se um tumulto, e
a «vil turbamulta», segundo a expressão de Knox, entrou nos conventos
dos franciscanos e dos cartuxos, e pôl-os a saque. A rainha regente
marchou a atacar os sediciosos; o conde de Glencairn saiu a proteger
os reformados; estava prestes uma guerra civil. Quasi immediatamente,
porém, a rainha cedeu; de ambos os lados se entrou em negociações sem
uma mutua confiança. Por fim os Senhores da Congregação marcharam sobre
Edinburgo, tomaram posse da cidade em Outubro de 1559, e, convocando os
estados, depozeram a regente. Concluiu-se um tratado com a Inglaterra,
e Isabel mandou tropas inglezas para protegerem a Congregação. Houve um
combate entre a facção romanista, auxiliada pelo exercito francez, e a
Congregação, auxiliada pelas tropas que tinham ido de Inglaterra, e os
francezes foram repellidos. A rainha regente morreu em junho do anno
seguinte, e a Congregação ficou senhora da Escocia.

Os estados do reino reuniram-se, e foi posto á sua deliberação um pedido
da Congregação, referente a uma reforma de doutrina, de disciplina,
de administração dos sacramentos, e da distribuição do patrimonio da
egreja. Em resposta, os estados requisitaram um summario das desejadas
reformas doutrinaes; e de ali a quatro dias foi-lhes apresentado um
decumento, conhecido depois pelo nome de _Confissão Escoceza_. Foi tomado
em consideração, os prelados fizeram algumas, poucas, observações,
e, posto a votos, foi approvado quasi por unanimidade. Egual sorte
tiveram as outras tres Actas, que aboliam a jurisdicção do papa no
interior do reino, revogavam todas as anteriores determinações do
parlamento que eram contrarias á Palavra de Deus e á Confissão de Fé
recentemente adoptada, e prohibida a assistencia á missa e a outras
ceremonias idolatras. E a religião reformada ficou sendo a religião da
Escocia legalmente auctorizada. A auctoridade, comtudo, era o poder dos
Estados, independentemente do soberano; pois que a rainha regente tinha
fallecido, e a sua filha, Maria, rainha da Escocia, ainda não havia
regressado da França.

=A Confissão Escoceza, ou Confessio Scotica.=—Apresentada aos Estados,
e englobada nas suas Actas quando adoptada por elles, foi a obra de
seis reformadores escocezes: Knox, Spottiswood, Willock, Row, Douglas e
Winram. Diz-se que Maitland de Lethington, tido na conta de um dos mais
habeis estadistas do seu tempo, reviu o livro e attenuou algumas das suas
declarações. Redigido á pressa por um pequeno numero de theologos, é mais
complacente e humano do que a maioria dos credos, e por essa razão tem-se
recommendado a muitas pessoas que não se conformam com a logica impessoal
da Confissão de Westminster. As primeiras phrases do prefacio dão uma
idéa geral do todo. «Ha muito tempo que anceiavamos, queridos irmãos, por
notificar ao mundo a summula de aquella doutrina que professamos, e pela
qual nos havemos sujeitado ás ignominias e aos perigos. Tal tem sido,
porém, a ira de Satanaz contra nós e contra Jesus Christo, cuja verdade
eterna se manifestou ultimamente entre nós, que até hoje não nos tem
sido concedido tempo para desobstruir as nossas consciencias, o que com
muito regozijo teriamos feito.» O prefacio expõe tambem mais claramemte
do que qualquer outra Confissão do mesmo genero a reverencia com que os
vultos da Reforma tratavam a Palavra de Deus. «Pedimos a qualquer pessoa
que notar n’esta nossa Confissão algum artigo ou phrase que esteja em
desacordo com a Santa Palavra de Deus, que, dando prova da sua caridade
christã, nos advirta d’esse erro por escripto, e, pela nossa honra e
fidelidade, promettemos dar-lhe satisfação pela bocca de Deus, isto é,
mediante a Sua Santa Escriptura, ou então emendarmos aquillo que se
demonstrar que precisa de correcção. Perante Deus deixamos escripto nas
nossas consciencias que abominamos, do fundo do coração, todas as seitas
hereticas, e todos os promulgadores de doutrinas erroneas; e que com toda
a humildade abraçamos a pureza do Evangelho de Christo, que é o unico
alimento das nossas almas.»

A Confissão contém as crenças communs a todas as ramificações da Reforma.
Encerra, outrosim, todas as doutrinas chamadas ecumenicas, isto é, as
verdades expostas nos primeiros concilies ecumenicos, e incorporadas no
Credo dos Apostolos e ao Credo Niceno; e accrescenta aquellas doutrinas
de graça, de perdão e de luz mediante a Palavra e o Espirito que com a
reviviscencia da religião adquiriram uma proeminencia especial. Esta
Confissão é mais notavel pelos seus titulos suggestivos do que por
qualquer peculiaridade de doutrina. A doutrina da revelação é, por
exemplo, definida por si propria, independentemente da doutrina da
Escriptura, mediante este titulo: «A Revelação da Promessa». A Eleição
é considerada, segundo o antigo calvinismo, um meio de graça, uma
evidencia do «invencivel poder» de Deus quanto á salvação. Os pontos
em que a verdadeira egreja se distingue da falsa são, diz-se na dita
Confissão a genuina prégação da Palavra de Deus, a adequada administração
dos sacramentos, e a justiça na applicação da disciplina ecclesiastica.
A auctoridade das Escripturas, affirma tambem, procede de Deus, nada
tem que ver nem com homens nem com anjos; e a egreja sabe que ellas são
verdadeiras, porque «a verdadeira egreja ouve e obedece sempre á voz do
seu Esposo e Pastor.»

Esta Confissão foi primeiro lida toda de uma vez no parlamento, e depois
tornada a ler clausula por clausula. Randolpho, o embaixador inglez, que
assistiu a essa leitura, descreveu-a a Cecilio, o grande ministro de
Isabel, e entre outras coisas diz-nos que, quando se leram os artigos,
alguns dos barões ficaram tão commovidos que se levantaram dos seus
logares, declarando que estavam promptos a derramar o seu sangue em
defeza da Confissão», e que Lord Lindsay, com uma gravidade raras vezes
presenciada, disse: «Tenho vivido muitos annos; sou o mais edoso de todos
quantos aqui se encontram; e agora que aprouve a Deus deixar-me chegar a
este dia, em que tantas pessoas, algumas d’ellas pertencentes á nobreza,
sanccionaram uma obra tão digna, direi como Simeão, _Nunc dimitis_».

=A rainha Maria e a Reforma.=—A Reforma não tinha de triumphar na
Escocia tão de repente e com tanta facilidade. Sir James Sandilands,
encarregado de levar a Paris a Confissão de Fé, não só não conseguiu que
a joven rainha a assignasse, como o informaram do desagrado com que ella
soube dos acontecimentos occorridos na Escocia; e só apoz sete annos
de lucta, que terminou com a deposição da soberana, é que a Confissão
foi finalmente ratificada e a Egreja Reformada alcançou na Escocia um
completo reconhecimento official.

Francisco II, esposo de Maria, morreu em 1561, e a joven rainha chegou
á Escocia em agosto do mesmo anno. Vinha acompanhada de um numeroso
e brilhante sequito, do qual tambem faziam parte tres de seus tios,
membros da casa de Guise, e o filho do famoso Condestavel de Montmorency.
O duque de Guise e o cardeal de Lorena acompanharam-n’a até Calais.
Os reformadores escocezes conheciam bem os homens que rodeiavam a sua
rainha, e que tão ostensivamente se achavam dispostos a protegel-a.
Era do dominio publico que o duque de Guise estava á frente de aquelle
partido que ambicionava exterminar os protestantes francezes por meio
de um massacre geral. Fôra elle, segundo se presumia, o instigador do
assassinio judicial de Anne de Bourg, e que havia planeada a, carnificina
de Amboise. A devassidão dos Guises só era excedida pela sua deshumana
crueldade. Taes eram os homens que passaram á Escocia para acompanhar e
aconselhar a joven rainha.

Não é, pois, para surprehender que, ponderando estas coisas, Knox e os
seus amigos reputassem a vinda da rainha uma grande calamidade, e que
vissem no nevoeiro e chuva que durante dois dias caiu sobre a costa
oriental da Escocia, um como que aviso do céu, uma manifesta exposição da
felicidade que ella trouxera comsigo para aquelle paiz, felicidade que
se poderia traduzir por estas palavras: afflicção, dôr, obscurantismo e
impiedade.

A belleza physica, o privilegiado talento, os infortunios e o tragico fim
da joven rainha teem-n’a circumdado de uma aureola romantica. E, comtudo,
nem mesmo os seus admiradores teem feito inteira justiça á sua indomavel
coragem e aos seus grandes dotes intellectuaes. Estava quasi só ao voltar
para o seu paiz natal, e viu immediatamente que coisa alguma devia
esperar da França e que necessitava de crear um partido em que podesse
descançar confiadamente. Era uma rapariga de dezenove annos quando saiu
de França; apezar d’isso, Knox, que teve com ella algumas entrevistas
pouco depois da sua chegada, parece ter reconhecido n’ella uma mulher
superior, e ter-se compenetrado de que havia motivo para receiar que uma
das duas, ou a rainha ou a Reforma, tivesse de ir a terra. O combate que
ella sustentou sósinha com a Reforma foi observado com anciedade por toda
a Europa; e, se ella não tivesse sido educada n’uma côrte tão corrompida,
e se não tivesse convergido para ella o odio que aquelles seus parentes,
os Guises, haviam inspirado, podia muito bem ser que ficasse victoriosa.
Poderá parecer cruel fallar d’este modo, agora que o perigo já lá vae
ha seculos, mas o que é verdade é que bastantes familias pacificas e
religiosas, tanto na Hollanda, como na França, como no Paiz do Rheno, e
com mais razão ainda na Escocia e na Inglaterra, só respiraram á vontade
quando o machado poz finalmente, em Fotheringay, termo á triste e agitada
vida da rainha Maria.

A lucta começou com a sua chegada. Ella e a sua côrte foram, com todo
o espavento, ouvir missa logo no primeiro domingo, posto que fosse
prohibido dizer e ouvir missa, sob pena de um severo castigo. Principiou,
pois, por infringir as leis do estado, d’esse mesmo estado que havia
implantado a Reforma. Se quizessemos contar detalhadamente o que de ahi
em deante se passou encheríamos umas poucas de paginas. Apoz sete annos
de lucta, Maria foi aprisionada no castello de Lochleven, e deposta,
sendo collocado no throno o seu filho, ainda na infancia, James VI, e
ficando como regente do reino seu irmão James Stewart, conde de Moray.
O parlamento escocez votou novamente a Confissão de Fé; o regente
assignou-a em nome do soberano; e, assim ratificado, foi incluido na
legislação do paiz e a religião reformada ficou sendo a reforma do
christianismo legalmente reconhecida na Escocia.

=O Livro de Disciplina e a primeira assembléa geral.=—Pouco depois
de o parlamento de 1560 ter encerrado as suas sessões, os auctores
da Confissão foram encarregados de apresentar uma breve exposição do
melhor systema de governo de uma egreja reformada. Surgiu então aquelle
notavel documento que depois se chamou o Primeiro Livro de Disciplina, e
que constituiu a primeira formula de governo ecclesiastico na Escocia.
Dividia-se em sessões da egreja, synodos e assembléas geraes; e concedia
o titulo de officiaes da egreja aos ministros, professores, presbyteros,
diaconos, superintendentes e ledores. Os auctores do Livro de Disciplina
declararam ter ido procurar directamente ás Escripturas as linhas
geraes de aquelle systema de governo ecclesiastico a adoptar o qual
elles aconselhavam os seus compatriotas, e havia, indubitavelmente,
muita sinceridade, a par de muita exactidão, n’essa sua affirmativa.
Eram, comtudo, todos elles, homens affeiçoados á Egreja de Genebra,
e tinham tido relações pessoaes com os protestantes da França. A sua
fórma de governo foi, evidentemente, inspirada pelas idéas de Calvino,
e segue de perto as Ordenanças Ecclesiasticas da Egreja franceza. Os
officios de superintendente e leitor foram addicionados aos outros tres,
ou quatro, que caracterizam a fórma de governo presbyteriana. O cargo
de superintendente devia a sua origem á situação incerta do paiz e á
escassez de pastores protestantes. Os superintendentes tinham a seu cargo
divisões territoriaes que não correspondiam exactamente ás dioceses
episcopaes, e competia-lhes apresentar á Assembléa Geral relatorios
annuaes do estado ecclesiastico e religioso das respectivas provincias.
Os leitores deviam a sua existencia ao reduzido numero de pastores
protestantes, á grande importancia que os primitivos reformadores
escocezes davam a um ministerio educado, e tambem á difficuldade de obter
fundos para a sustentação dos pastores de todas as paroquias. O Livro de
Disciplina contém um capitulo sobre o patrimonio da egreja, que insiste
na necessidade de reservar os dinheiros possuidos pela egreja para a
manutenção da religião, as despezas com a educação, e os socorros dos
pobres. Foi a existencia d’este capitulo que fez com que os Estados não
aceitassem o livro com tanta promptidão como o fizeram com a Confissão
de Fé. Os barões de diversas categorias, que tinham assento na camara,
haviam-se, em muitos casos, apropriado do patrimonio da egreja em seu
beneficio particular, e não queriam assignar um documento que condemnava
o seu modo de proceder. O Livro de Disciplina, approvado pela Assembléa
Geral, e assignado por um grande numero de nobres e burguezes, nunca
recebeu a sancção official concedida á Confissão.

A Assembléa Geral da Egreja Reformada da Escocia reuniu-se pela primeira
vez em 1560, e, a despeito da luta em que a egreja se achava envolvida,
houve, pelo menos, uma reunião por anno, e algumas vezes mais, podendo
assim a egreja organizar-se e entrar em plena actividade.

Fez-se uma traducção do _Catecismo para a Infancia_, de Calvino, e
deu-se ordem para que se fizesse uso d’ella. O Livro de Ordem Commum,
ou a Lithurgia de Knox, foi substituindo a pouco e pouco a Lithurgia do
rei Eduardo VI, e a Egreja Reformada da Escocia, com a sua Confissão,
a sua constituição ecclesiastica, o seu methodo de culto publico e as
suas provisões para a instrucção das creanças, espalhou-se pelo paiz,
levantando egrejas, melhorando o estado moral do povo e contribuindo
efficazmente para a educação do mesmo.

Uma das principaes dificuldades com que a egreja teve de luctar foi
falta de dinheiro para pagar aos ministros. A Egreja Catholica Romana
tinha sido officialmente abolida, e, comtudo, não se havia feito
provisão alguma para a manutenção do clero reformado. A propriedade
ecclesiastica estava em condições anormaes. Até 1560 a Egreja Catholica
Romana da Escocia vinha sido muito opulenta, e havia estado de posse
de uma grande parte do territorio da nação. Emquanto a egreja estivera
luctando com Maria e procurando frustrar os esforços que ella empregava
para introduzir de novo a religião e hierarquia romanista, os prelados
distribuiram uma grande parte dos bens ecclesiasticos por quem elles
muito bem entenderam, os nobres apoderaram-se de uma parte d’elles ainda
maior, e o que restava e nominalmente pertencia á egreja estava nas mãos
de homens que se intitulavam bispos, abbades, priores, deãos e curas,
mas que nunca haviam recebido ordens, eram protestantes só no nome, e
se serviam de aquelles titulos ecclesiasticos para poderem usufruir as
propriedades a que o cargo dava direito. Depois de alguma discussão,
a Assembléa obteve do Estado que aquelas pessoas que conservavam em
seu poder bens que nominalmente pertenciam á egreja ficassem com dois
terços de rendimento para as suas despezas particulares, e entregassem
a restante terça parte para a manutenção do ministerio e das escolas,
e para os encargos de beneficencia. A Egreja Reformada, porém, teve
muita difficuldade em ver esta disposição convertida em lei, e assim,
durante os primeiros annos da Reforma os ministros e as escolas
foram principalmente mantidos por meio de offertas voluntarias, ou
«benevolencias», como Knox pittorescamente lhes chamava.

=A Educação.=—As idéas democraticas do presbyterianismo, avolumadas pela
necessidade de cooperar com o povo, fizeram com que os reformadores
escocezes se ocupassem seriamente da educação popular. Todos os
impulsionadores da Reforma, quer na Allemanha, quer na França, quer na
Hollanda, tinham reconhecido a importancia de esclarecer o povo; mas a
Hollanda e a Escocia foram talvez os dois paizes onde a tentativa foi
mais bem succedida. A educação do povo não era uma novidade na Escocia
e, posto que nos agitados tempos que precederam a Reforma as escolas
superiores tivessem desapparecido, e as universidades tivessem caido em
decadencia, o desejo de aprender não se havia extinguido por completo.
Knox e o seu amigo Jorge Buchanan tinham um plano magnifico para crear
escolas em todas as freguezias, estabelecer collegios superiores
em todas as cidades importantes e augmentar o poder e influencia
das universidades. O seu plano, devido á cubiça dos barões que se
haviam apoderado dos bens da egreja, pouco mais era do que uma devota
imaginação, mas havia-se apossado do espirito da Escocia, e a falta de
dotações era mais do que compensada pelo desejo ardente que o povo tinha
de se instruir. As tres universidades, de Santo André, de Glasgow e de
Aberdeen, receberam uma nova vida, e fundou-se uma quarta universidade,
a de Edinburgo. Alguns estudantes escocezes que haviam recebido educação
nas escolas continentaes, e que haviam abraçado a fé reformada, foram
encarregados de superintender o re-organizado systema educativo do
paiz, e tudo se fez em harmonia com o viver do povo, preferindo-se,
nas escolas, e externato ao internato, e estabelecendo um systema de
inspecção que era exercido, em cada circumscripção escolar, por um dos
homens mais espirituaes e de maiores conhecimentos. Knox estava tambem
disposto a impôr ás duas classes da sociedade, a mais baixa e a mais
elevada, uma frequencia obrigatoria ás aulas; quanto á classe media,
elle confiava no seu natural desejo de aprender. E desejava que o Estado
exercesse a sua auctoridade no sentido de compellir os mancebos de
posição a matricularem-se nas escolas superiores e nas universidades,
para que podessem prestar serviços uteis á nação.

=A morte de Knox.=—João Knox morreu em novembro de 1572. O assassinio do
seu amigo, o conde de Moray, o Bom Regente, havia-lhe feito uma grande
impressão, e a noticia do massacre de S. Bartholomeu, que havia chegado
recentemente á Escocia, produziu-lhe um tremendo abalo. Elle nunca havia
sido um homem robusto, e durante a sua vida havia passado por muitos
trabalhos, mas o seu intrepido espirito a tudo resistira. «Ignoro» diz
Smeaton, «se Deus poz jámais n’um corpo debil e franzino uma alma maior e
mais santa do que a d’elle». As forças começaram a faltar-lhe muito antes
de adoecer gravemente, mas luctou sempre contra o seu precario estado de
saude, e nunca deixou de prégar e exhortar como costumava fazer. James
Melville, que teve occasião de o ver quando estudava em Santo André,
apresenta-nos um retrato d’elle pouco antes da sua morte. «Via-se que
andava doente. Todos os dias eu o via passar para a egreja paroquial,
andando muito cautelosamente, com o pescoço resguardado por uma pelle, de
bengala na mão, e acompanhado pelo seu creado, o bom Ricardo Ballanden.
Era esse dito Ricardo e um outro creado que o ajudavam a subir para o
pulpito, a que elle se encostava durante algum tempo; logo, porém, que
entrava no sermão, enchia-se de uma actividade e de um vigor taes que
esse mesmo pulpito por pouco escapava de ficar feito em cavacos.»

Morreu antes de ter effectuado por completo a sua obra, pois que a Egreja
Reformada ainda tinha muitos obstaculos a vencer, e o facto de Knox não
tomar parte na batalha tornava-lhe mais difficil o sair victoriosa. Elle
não possuia a erudição de Calvino, nem uma disposição para se tornar
popular, como Luthero, mas nenhum homem o poderia egualar em coragem.
«Elle nada temia da carne, nem tão pouco a lisongeava.» E foi isso o que
fez o reformador da Escocia.

Como os seus contemporaneos francezes, tinha tanto de estadista como de
dirigente ecclesiastico, e emquanto viveu foi o guia do povo escocez.
Os nobres de bom grado teriam intervindo no movimento, e lhe teriam
dado uma feição mais em obediencia ao seu modo de pensar, mas Knox fez
do pulpito a força mais poderosa da Escocia, e com as suas ousadas
prégações creou uma opinião publica com que era preciso contar. Elle era,
individualmente, um homem de profunda espiritualidade, e «temia a Deus,
mas coisa alguma fóra d’Elle lhe mettia medo».

=Os bispos tulchanos.=—O poder da Egreja Reformada da Escocia foi
consideravelmente fortalecido e consolidado mediante o caracter
representativo dos seus conselhos, e, mais especialmente, da sua
Assembléa Geral, e a liberdade com que todos os assumptos de interesse
para a nação eram ahi tratados e discutidos deu á Assembléa da Egreja o
caracter de um parlamento nacional onde o povo da Escocia encontrava uma
defeza mais efficaz do que nos Estados do reino. Os olhos perspicazes
da rainha Maria haviam discernido esta força da egreja, e ella empregou
varios esforços, sempre infructiferos, para impedir a reunião da
Assembléa Geral. Depois da morte do conde Moray, o Bom Regente, isto é,
durante as regencias de Lennox, Mar e Morton, e durante o reinado de
James, a Assembléa foi sempre mal vista por aquelles que ambicionavam um
poder exclusivo. Sabia-se, porém, que era perigoso dirigir-se á Assembléa
um ataque directo, e aqueles que no Estado dispunham do poder tentaram
diminuir-lhe a auctoridade promovendo ecclesiasticos e elevando-os a
posições que lhes permittissem tomar assento nos Estados e defender ahi
as prerogativas da egreja. Depois da morte do regente Moray, a nobreza
tratou constantemente de derrubar o governo episcopal, e collocar a
Egreja sob o dominio dos bispos.

Uma outra, e talvez mais visivel, causa por que aquelles estavam em
auctoridade antipathisavam com a simples constituição presbyteriana que
o Livro de Disciplina havia preceituado á Egreja era o facto de ella
dar pouca occasião a que as receitas fossem espoliadas, ao passo que a
nomeação de bispos reunia uma grande proporção dos dinheiros da Egreja em
meia duzia de mãos, habilitava os patronos e entrar em negocios com os
ecclesiasticos que elles nomeassem para esses cargos, desviando-se assim
uma grande parte dos fundos de que a Egreja ainda estava de posse para as
algibeiras dos fidalgos de primeira plana.

Pouco antes da morte de Knox, a Assembléa, não sem protesto, tinha, a
instancias dos Lords do Conselho, concordado em acceitar ecclesiasticos
com o titulo de bispos, debaixo de certas condições, sendo as
principaes as seguintes: os bispos não teriam um poder superior ao dos
superintendentes, haviam de estar sujeitos á Assembléa Geral, e não
seriam nomeados sem que devidamente se providenciasse quanto ao sustento
do ministerio regular. Este accordo, chamado a _Convenção de Leith_, foi
devido principalmente ás diligencias de João Erskine, o antigo amigo
de Knox, um dos primitivos superintendentes, e que por mais de uma vez
exerceu na Assembléa o logar de Moderador. Alguns annos de experiencia
mostraram á egreja escoceza o perigo que para a sua vida livre, para a
sua vida democratica, provinha das disposições desta convenção, e pouco
depois da morte de Knox appareceram symptomas de um proximo conflicto.

O mais flagrante exemplo do uso que os nobres mais proeminentes faziam
d’estes bispos para defraudar a Egreja occorreu em 1581, que foi quando
Boyd, o arcebispo de Santo André, morreu. Assim que o edoso prelado
faleceu, o duque de Lennox resolveu apoderar-se das propriedades da
sé. Era impossivel pôr similhante coisa em pratica sem um legalisado
artificio, e o plano escolhido foi induzir Roberto Montgomery, ministro
em Stirling, a acceitar o cargo de arcebispo, tornar-se d’esse modo
herdeiro dos bens da sé, e passar depois os respectivos rendimentos para
as mãos de Lennox. Este caso foi, talvez, o peior d’elles todos; mas em
toda a Escocia se procedeu de uma fórma analoga, nomeando-se bispos,
abbades, etc., para que podessem tomar legalmente posse dos dinheiros
da Egreja, e, em vez de se lhes dar a devida applicação, passal-os para
os bolsos dos patronos seculares. O povo chamava a estes bispos, assim
como a quaesquer outros dignitarios que se prestavam a essas burlas,
tulchanos, e a primeira lucta com os bispos escocezes não foi uma
contestação entre o presbyterio e o episcopado, mas entre a Egreja, que
queria a todo o custo conservar o seu patrimonio, e esses tulchanos.
Quando na Assembléa se tratou do caso de Montgomery, «o moderador, David
Dickson, pediu licença para expôr a significação de bispos tulchanos.
Tratava-se de uma palavra em uso vulgar entre os montanhezes da Escocia.
Quando uma vacca não se deixa mungir, põem junto d’ella uma pelle de
vitello, empalhada, e é a essa pelle que chamam _tulchan_. Ora para
esses bispos que possuíam o titulo e o beneficio, sem desempenharem o
cargo, não se encontrou denominação mais significativa do que a de bispos
tulchanos.»

=André Melville.=—João Knox morreu quando este conflicto entre a Côrte
e a Egreja estava no principio, e era necessario fazel-o substituir
por outro dirigente. Entre os escocezes illustrados que o triumpho da
Reforma e a renascença das letras haviam attraido para o seu paiz natal,
André Melville era o que mais se tinha distinguido. Nascido, em 1545, em
Baldovy, perto de Montrose, recebeu a sua educação na Escola Primaria
d’essa cidade, e no Collegio de St.ª Maria, em St.º André. De ahi foi
para Paris, onde teve por professor o celebre Pedro Ramus. Depois de
terminar os estudos, obteve em Genebra uma cadeira de latim, e em 1574
voltou á Escocia, com a reputação de um dos mais eminentes sabios da
Europa. Pouco depois do seu regresso foi nomeado reitor da universidade
de Glasgow, e por tal fórma dirigiu esse estabelecimento de instrucção
que correu a matricular-se n’elle um elevadissimo numero de mancebos, não
só escocezes como estrangeiros.

Foi um dos membros da Assembléa de 1575, em que a questão do presbyterio
e do episcopado tomou pela primeira vez um caracter serio; e fez parte
da comissão nomeada por essa Assembléa para considerar se o nome e
deveres de um bispo tinham alguma auctorização biblica, isto é, se os
bispos que havia n’aquelle tempo na Egreja da Escocia estavam ali, e
desempenhavam os seus cargos, em obediencia á Palavra de Deus. A decisão
a que se chegou foi que o nome de bispo pertencia a todos os pastores da
Egreja de quem se havia confiado congregações, mas que tambem podia ser
applicado aos ministros escolhidos por seus irmãos para implantar egrejas
e inspeccionar as egrejas existentes, e o sentimento geral da Egreja a
este respeito pode colligir-se d’estas tres expressões, que indicam tres
especies de bispos: My Lord Bishop (_Meu Senhor Bispo_), My Lord’s Bishop
(_Bispo do Meu Senhor_), e Lord’s Bishop (_Bispo do Senhor_), sendo os
primeiros catholicos romanos, os segundos tulchanos, e os terceiros
pastores das congregações.

=O Segundo Livro de Disciplina.=—Quando a Egreja Reformada da Escocia se
encontrou face a face com estes novos problemas ecclesiasticos, sentiu
necessidade de um mais distincto e mais completo schema de governo da
egreja do que aquelle que o Primeiro Livro de Disciplina continha. Esse
systema de governo da egreja havia sido preparado á pressa, e fazia
menção de differentes materias que estavam fôra da esphera de um livro
de preceitos ecclesiasticos. A Assembléa de 1576 nomeou uma commissão
para tratar d’esse assumpto, e redigir um livro que podesse substituir
a obra de Knox e de Row. O dito livro foi escripto de vagar, com muita
perseverança, e finalmente em 1578 deu-se ordem para que o _O Segundo
Livro de Disciplina_ fosse impresso, afim de sujeital-o á critica e se
fazerem as necessarias correcções. Tres annos se dispenderam em ponderar
todos os seus pontos, todas as suas phrases, e o Livro de Politica, como
se lhe chamou, foi então acceite pela Assembléa e incluido nas suas Actas.

Este livro, que apresenta, n’um estylo conciso e claro, o esboço do
governo da Egreja Presbyteriana na Escocia, começa por fazer distincção
entre as leis ecclesiasticas e civis, e reivindica para a Egreja «uma
politica differente da politica do Estado». O conjuncto do governo da
egreja, diz o livro, comprehende doutrina, disciplina e distribuição; e
para este triplice governo ha um triplice officialato, que se divide em
pastor, ou bispo, presbytero e diacono. O Livro de Disciplina addiciona
um quarto oficio, ou de doutor, ou ensinador. N’um curto capitulo vem
descripta a natureza da vocação, assim como o modo da eleição e ordenação
dos pastores. Faz-se tambem uma descripção dos deveres que cabem a cada
uma das dignidades, e das varias assembléas em que aquelles que estão
d’ellas revestidos teem de comparecer, no exercicio dos seus cargos. É
singular que no anno que precedeu o da adopção do Livro de Disciplina
pela Assembléa recebesse o seu complemento a organização presbyteriana
da Egreja Escoceza mediante o universal reconhecimento do presbyterio
como um tribunal superior á sessão da egreja, mas inferior ao synodo;
e que este livro de politica não faça menção especial de similhante
tribunal, que actualmente exerce funcções tão importantes na organização
presbyteriana escoceza.

Como a publicação do _Segundo Livro de Disciplina_ a Egreja Reformada da
Escocia completou a sua organização ecclesiastica, e terminou a primeira
parte da sua historia. A Reforma estava por esse tempo firmemente
estabelecida, e o protestantismo tinha empolgado o povo da Escocia. A
Egreja tinha deante de si uma longa lucta; o conflito, porém, não era com
o papismo, mas com o Estado; não era no sentido de reformar a religião,
mas de desenvolver e preservar a fórma democratica do governo da Egreja,
que se impunha ao povo como sendo a mais conforme com a Palavra de Deus,
e a mais adequada para a habilitar a desempenhar os seus deveres de
Egreja de Christo.

Em 1574 a Escocia achava-se em curiosas circumstancias ecclesiasticas.
Haviam-se conservado as paroquias que existiam antes da Reforma, e cujo
numero era superior a mil. Para seu funccionamento havia 289 ministros
e 715 leitores, e muitos d’estes ultimos eram os padres catholicos
romanos que tinham vindo para a religião reformada mas que não possuiam
uma educação sufficiente para justificar a sua ordenação como pastores
protestantes. Estas paroquias passaram depois a constituir presbyterios,
os presbyterios foram agrupados em synodos, e o conjuncto estava sob a
direcção da Assembléa Geral. A organização presbyteriana era, n’um certo
sentido, completa. A par d’isto, porém, existiam as velhas dioceses,
anteriores á Reforma, em numero de treze, na sua maior parte occupadas
por homens que eram ministros protestantes, que haviam tomado o titulo
de bispos, mas que não exerciam funcções episcopaes. Apenas tres
d’esses bispos, o de St.º André, o de Glasgow e o de Aberdeen, haviam
tentado exercer a jurisdicção episcopal, e não o tinham feito tanto na
qualidade de bispos, como de superintendentes. Os bispos tinham assento
no parlamento escocez, e os seus deveres principaes eram administrar as
receitas da cathedral e desempenhar as funcções judiciaes que eram da
competencia dos bispos n’outro tempo, anteriormente á Reforma.

Esta organização episcopal vivia lado a lado com a activa e aggressiva
constituição presbyteriana da Egreja. O estado dos negocios ainda mais
anomalo se tornava com o facto de ainda viverem, e exercerem a sua
fiscalização, tres dos antigos superintendentes; e os districtos dos
outros superintendentes eram governados por commissarios provisorios
nomeados pela Assembléa, que podia demittil-os quando entendesse.

O fim que a Egreja tinha em vista com o conflicto que durou desde 1574
até 1638 era acabar inteiramente com aquillo a que chamava a inutil e
nociva organização episcopal, que não tinha ligação alguma com a obra
espiritual da Egreja, e substituir os superintendentes e commissarios
por presbyteros, unindo assim a Egreja n’um todo harmonico. O fim que a
côrte tinha em vista era conservar o velho systema episcopal, e, mediante
elle, ir gradualmente dividindo a Egreja em fragmentos, cada um d’elles
governado por um bispo que só era responsavel para com o parlamento; e,
no fim de tudo, restabelecer o episcopado no velho sentido da palavra, e
derribar por completo a constituição presbyteriana.

O anno de 1638 foi o do triumpho da Egreja, mas a historia completa
d’esta lucta ultrapassa os limites da presente obra.



III PARTE

A REFORMA ANGLICANA

CAPITULOS:

      I—A EGREJA DE INGLATERRA DURANTE O REINADO DE HENRIQUE VIII.

     II—A REFORMA SOB EDUARDO VI, E A REACÇÃO SOB MARIA.

    III—A REFORMA SOB ISABEL.



CAPITULO I

A EGREJA DE INGLATERRA DURANTE O REINADO DE HENRIQUE VIII

    O caracter excepcional do principio da Reforma ingleza, pag.
    157.—Antecipações da Reforma em Inglaterra, pag. 158.—O
    estado ecclesiastico de Inglaterra no principio da Reforma,
    pag. 159.—As relações de Inglaterra com o pontificado, pag.
    160.—As antigas relações de Henrique VIII com o pontificado,
    pag. 161.—Henrique muda de opinião, pag. 163.—Henrique VIII,
    Francisco I, Carlos V, e a rivalidade que havia entre elles,
    pag. 164.—A submissão do clero, pag. 165.—O progresso da
    separação de Roma, pag. 166.—Separação de Roma e Reforma: duas
    coisas differentes, pag. 168.—Execução da sir Thomaz More, pag.
    169.—Suppressão dos conventos e confiscação das propriedades
    da Egreja, pag. 170.—_Os Dez Artigos_, pag. 171.—_O Estatuto
    Sanguinario_, pag. 173.—A Egreja de Inglaterra em 1547, pag.
    173.


=O caracter excepcional do Principio da Reforma inglesa.=—A Egreja
e o povo inglez romperam com o systema ecclesiastico medieval em
circumstancias tão excepcionaes que é impossivel considerar esse
rompimento como fazendo parte da Reforma, ou como tendo muita coisa
em commum com os movimentos contemporaneos na Allemanha e na França.
Emquanto durou o reinado de Henrique VIII, a Egreja de Inglaterra, que
se havia separado do papa, pouco ou nada tinha de commum com a Reforma.
O que durante aquelle reinado se fez foi simplesmente demolir a Egreja
da edade media. A verdadeira Reforma começou no reinado de Eduardo VI,
e a sua adopção formal teve logar no de Isabel. Henrique VIII destruiu
a supremacia do papa, tanto espiritual como temporal; derrubou a grade
ecclesiastica que unia a Egreja de Inglaterra á grande Egreja Occidental
governada pelo bispo de Roma, mas não poz coisa alguma duradoura em seu
logar. O seu fim era estabelecer um papado real, tão despotico e ainda
mas secular do que aquelle que elle estava destruindo, sobre as minas
da jurisdicção do bispo de Roma. A Egreja que elle construiu segundo o
seu modelo não durou mais do que a vida d’elle; mas a sua obra durou o
bastante para dar á Reforma da Egreja de Inglaterra, quando ella mais
tarde se tornou um facto, aquelle caracter particular que a distinguiu
dos movimentos do mesmo genero occorridos n’outros paizes. O objecto
de Henrique era modificar de tal modo as condições ecclesiasticas da
Inglaterra que o rei occupasse o logar do papa, e ficasse governando,
não só temporal como espiritualmente, de modo que, mediante a Egreja,
tivesse sobre os seus subditos um dominio absoluto. Todas as reformas de
doutrina, de culto e de costumes eram tão abominaveis para Henrique como
para o bispo de Roma.

=Antecipações da Reforma em Inglaterra.=—Os historiadores ecclesiasticos
fazem, geralmente, datar os principios da Reforma do tempo de João
Wycliffe, o qual, no seculo quatorze, era, por assim dizer, a bocca da
Inglaterra, revoltando-se contra a supremacia espiritual e temporal que
o papa tinha no reino; mas é muito para duvidar que a sua influencia
continuasse a ser exercida sobre o povo inglez até ao seculo dezeseis,
e por tal fórma que a ella se devam attribuir os desejos de Reforma que
enchiam os corações de muitas pessoas de bons sentimentos religiosos.

Como Francisco de Assis e outros reformadores e revivificadores da
Edade Media, Wycliffe tinha abraçado apaixonadamente a idéa de que os
beneficios da salvação só podem ser aproveitados por aquelles que imitam
Christo, e que para imitar Jesus Christo torna-se indispensavel viver na
pobreza como Elle. Declarou, portanto, guerra aberta ao bem estipendiado
clero da opulenta Egreja de Inglaterra, e prégava que a Egreja, para ser
realmente de Christo, devia ser, pobre. Dizia que o Estado não faria mais
do que beneficiar a Egreja tirando-lhe a riqueza, pois que era esta um
obstaculo a que ella se parecesse com o seu Mestre. Em conformidade com
estas idéas, organisou um corpo de prégadores ambulantes, denominados
prégadores pobres, os quaes, tendo, a muitos respeitos, parecenças com
os evangelistas do movimento wesleyanno, andavam por toda a Inglaterra,
proclamando a doutrina da humildade. Era um fervoroso admirador dos
grandes juristas medievaes, taes como Guilherme de Ockham, o querido
mestre de Luthero, Marsillio de Padua, e Pedro Dubois de Paris. Elles
haviam proclamado, n’uma epoca muito anterior, que o Estado não era outra
coisa senão o povo; e Wycliffe, seguindo-lhes o exemplo, insistia em que
a Egreja não era outra coisa senão o povo. Ora isto atacava o systema
da Egreja medieval, que se apoiava na noção de que a verdadeira Egreja
era o clero, e de que o povo só fazia parte d’ella quando se punha em
contacto com os clerigos, que eram depositarios dos sacramentos. Foi por
esse motivo que elle traduziu a Biblia, que era o Livro da Egreja, e,
portanto, do povo christão, e não sómente do clero. As idéas da Wycliffe
foram avidamente adoptadas por uma grande parte da população ingleza,
e os seus discipulos, os lollardos, constituiram, por algum tempo, uma
fortissima aggremiação.

O lollardismo foi indubitavelmente uma preparação para a Reforma,
e os homens biblicos, como lhes chamavam, teriam exercido uma
grande influencia sobre o povo, no sentido de o predisporem para uma
revivificação da religião espiritual se tivessem existido na epoca em
que se operou o movimento reformador. Não se pode, porém, provar que
elles communicassem com essa geração, e não ha indicio algum de que
nos reinados de Henrique VII e Henrique VIII estivesse desenvolvido o
gosto pela leitura da Biblia ou houvesse uma corrente de sympathia pelos
prégadores pobres. O povo inglez, tomado na sua totalidade, parece não se
ter inclinado para a Reforma antes do tempo de Isabel.

=O estado ecclesiastico da Inglaterra no principio da Reforma.=—Quando
começou na Allemanha o movimento da Reforma, houve, sem duvida, muitos
inglezes que se sentiram attraidos para o reformador saxonio, e que
desejaram ver introduzido na Egreja um credo mais simples e mais em
harmonia com a Palavra de Deus, e uma fórma de culto como a que era
usada nos tempos apostolicos; mas a maioria não partilhava essas idéas.
Havia, certamente, muitissimas pessoas que desejariam ver modificados os
costumes dos clerigos, e especialmente o caracter moral dos frades, e
que ficariam satisfeitas se as propriedades da Egreja fossem sujeitas a
impostos e os grandes rendimentos dos bispados e das abbadias soffressem
alguma diminuição. E eram em numero sempre crescente as que se sentiam
desgostosas com a ignorancia do clero, e que, por motivos politicos ou
sociaes, desejavam ver cerceada a influencia do bispo de Roma. Não lhes
agradava a sua interferencia nas questões politicas, e indignava-os a
saida de grossas quantias para fóra do reino.

Não é provavel que o caracter moral do clero romano fosse peior em
Inglaterra do que em qualquer outro paiz, mas o que é verdade é que os
padres, com a sua conducta, desacreditavam a Egreja. O clero era de uma
ignorancia crassa, e havia, talvez, em Inglaterra menos conhecimento das
Escripturas do que na França ou na Allemanha, pois que, desde a epoca
do lollardismo, a leitura da Biblia era considerada um acto criminoso.
A Biblia era um livro desconhecido para os padres, e Erasmo conta que
viu, preso por uma corrente a uma coluna da cathedral de Canterbury um
Evangelho de Nicodemos que era lido como fazendo parte da Escriptura
canonica.

O alto clero pouco tinha que fazer na Egreja, e occupava-se em dirigir
os negocios do Estado, ou em presidir ás audiencias nos tribunaes de
justiça. O arcebispo de Canterbury era Lord Chanceller, o bispo de
Winchester director geral da Thesouraria, o bispo de Durham secretario de
Estado, e o bispo de Londres guarda-mór dos arquivos. Os bispos de Bath,
Hereford, Llandaff e Worcester nem sequer residiam no reino.

Dadas estas circunstancias, não é para estranhar que aquelles que amavam
sinceramente a instrucção se sentissem indignados perante a ignorancia
do clero, e procurassem abrir os olhos, não só a estes como ao povo em
geral; e que os patriotas inglezes, lembrando-se das antigas tradições de
um paiz que durante seculos havia mantido uma attitude altiva e reservada
para com as pretensões da Curia Romana, tivessem immensa vontade de
annular o poder do papa em Inglaterra. Como que exteriorisando o desejo
preponderante, surgiu um grupo de mancebos instruidos, capitaneados por
Colet, deão de S. Paulo, e Thomaz More, cujo intuito era purificar a
Egreja, o povo e o clero, e incitar a Egreja nacional de Inglaterra a
resistir ás usurpações do bispo de Roma.

=As relações de Inglaterra com o pontificado.=—Os bispos de Roma,
na Edade Media, reivindicavam a supremacia, tanto espiritual como
temporal, e o povo inglez havia resistido, por mais de uma vez, ás suas
reivindicações. Os papas, desde o tempo de Innocencio III, sustentavam
que todos os reis e principes eram seus vassallos, tanto pelo que dizia
respeito ás coisas sagradas como aos negocios civis. Este direito
havia sido imposto no reinado de João, que pagara tributo a Roma em
reconhecimento da supremacia papal. Quando, porém, foi exigido esse
tributo aos sucessores de João, elles, indignados, recusaram pagal-o. E
a Inglaterra, sem deixar de pertencer á Egreja Catholica medieval, havia
repudiado o direito do papa a intervir nas questões nacionaes. Rei algum
inglez, excepto João, se considerou vassallo do papa. Não era uma coisa
nova em Inglaterra, o não reconhecer a supremacia do papa nos negocios
temporaes.

Os papas tinham, desde o principio da Edade Media, exigido que os
reputassem arbitros supremos em todos os negocios espirituaes, e, por
consequencia, a Egreja ingleza devia estar sujeita ao seu dominio
absoluto. Estas reivindicações apresentavam-se, na pratica, debaixo
das seguintes fórmas: Os papas queriam que lhes fosse reconhecida a
decisão final em todas as nomeações ecclesiasticas; isto é, nenhum
bispo, ou abbade, ou outro qualquer dignitario da Egreja podia ser
collocado n’este ou n’aquelle posto sem a approvação do papa em ultima
instancia, e esta sua supremacia queriam que lhes fosse reconhecida de
uma fórma prática mediante o pagamento do primeiro anno do estipendio
que correspondia a cada oficio ecclesiastico. Queriam ter a decisão
final em todas as questões que se levantassem no seio da Egreja ingleza.
E isto significava, praticamente, que todos os clerigos, bispos,
abbades, simples padres e frades só podiam ser julgados pelos tribunaes
ecclesiasticos, e que o accusador ou o defensor tinha sempre o direito de
appellar dos tribunaes inglezes para o tribunal pontificio. Reivindicavam
tambem que as leis canonicas, isto é, as leis da Egreja promulgadas pelos
concilios e pelos papas, fossem reconhecidas em Inglaterra e tivessem a
mesma força que as leis ordinarias.

A supremacia espiritual do papa tinha sido repetidas vezes repellida pelo
povo inglez. Os reis de Inglaterra tinham declarado e tornado a declarar
que em caso algum se poderia appellar dos tribunaes inglezes para a Curia
Romana. Estas declarações tinham tomado a fórma de decretos, e no reinado
de Ricardo II ficaram englobadas no famoso codigo de _Proemunire_.
Segundo este codigo, ou estatuto, como lhe chamavam, qualquer appellação
para um tribunal de justiça estrangeiro, romano ou de outra qualquer
nacionalidade, era um crime a que correspondia um castigo severo.
Sustentava, de uma maneira peremptoria, que o rei era o arbitro supremo
em todas as questões civis ou ecclesiasticas, e tornava punivel qualquer
appellação de sentenças proferidas nos tribunaes civis para juizos
ecclesiasticos, quer da Inglaterra quer da Italia.

Além dos protestos do rei e do parlamento, reunidos n’este estatuto, o
povo, n’uma grande occasião pelo menos, negou solemnemente a supremacia
do papa, e asseverou a independencia da Egreja ingleza. A _Magna Charta_
foi feita com o intuito de restringir o poder pontificio, assim como de
reprimir o do rei; e a sua primeira clausula reivindicou a independencia
da Egreja de Inglaterra—_Quod ecclesia anglicana libera sit et habeat
omnia jura sua integra et libertates suas illaesas._

E Egreja e o povo inglez haviam-se acostumado a protestar contra a
interferencia papal, e os reformadores que tinham simplesmente em vista
promover a instrucção do clero, e reprimir a auctoridade que o papa
exercia na Inglaterra, podiam dizer, com exactidão historica, que não
punham em pratica uma coisa nova.

As aspirações d’esses reformadores podem ser apreciadas no romance
politico escripto por um dos mais intelligentes d’entre elles,—a
_Utopia_, de Thomaz More. Para esses homens a Reforma era apenas um
movimento intellectual e politico. Não era uma revivificação religiosa.
Podiam sympathizar com os concilios reformistas do secolo quinze, mas
entre elles e Wittenberg ou Genebra havia poucos pontos de contacto.

=As primitivas relações de Henrique VIII com o pontificado. Defensor
da Supremacia papal.=—Estes reformadores do estudo e da camara do
conselho saudaram com regozijo a subida de Henrique VIII ao throno
de Inglaterra. Suppunha-se, exactamente como aconteceu com o seu
contemporaneo, Francisco I de França, que o joven rei fosse um amigo
da nova litteratura, e um soberano predisposto a extirpar abusos. A
desillusão não se fez esperar. Logo de principio mostrou ser um dedicado
defensor da supremacia papal. A sua posição era estranha, e necessita de
uma explicação.

Henrique VII, o primeiro rei da casa de Tudor, havia conquistado o throno
de Inglaterra no campo de Bosworth, e conservava-o mediante uma precaria
subemphyteuse. Anhelava por tornar mais firme o seu poder mediante uma
alliança com um paiz estrangeiro, e, passando a Europa em revista,
certificou-se de que Fernando de Hespanha era quem o poderia auxiliar
melhor. Effectuou, portanto, com alguma dificuldade, o casamento de seu
filho mais velho, Arthur, com Catharina de Aragão, uma das filhas de
Fernando. Arthur morreu passado pouco tempo; e Henrique, desejando manter
a todo o transe a alliança hespanhola, tratou com todo o afan de casar
Catharina com o seu segundo filho, Henrique, que foi depois Henrique
VIII. O papa concedeu uma dispensa, e o casamento realisou-se. Henrique
VIII teve, pois, por mulher a viuva de seu irmão.

Nunca se poude saber ao certo se Arthur e Catharina foram realmente
casados. Se o casamento não passou de um contracto legal, não havia
motivo para que a dispensa do papa não fosse bem acceite mesmo por
aquelles que não viam com muito bons olhos a supremacia papal; se
foi, porém, um casamento em toda a accepcão da palavra, ficou então
demonstrado que o papa tinha auctoridade para conceder uma dispensa
que ia de encontro as leis divinas de parentesco. Segundo a opinião
geral, Arthur e Catharina viveram conjugalmente, de modo que Henrique
casou realmente com a viuva de seu irmão, e assim a dispensa do papa
só poderia ser concedida no caso de elle possuir aquelles supremos
poderes que os ultramontanos lhe atribuem. A legalidade do casamento de
Henrique e a legitimidade de sua filha Maria baseiava-se, portanto, na
supremacia do papa. E não é para admirar que Henrique VIII, no principio
do seu reinado, se conduzisse, no tocante a essa supremacia, mais em
conformidade com a opinião dos ultramontanos do que com as tradições da
corôa de Inglaterra. É que a validade do seu casamento, a legitimidade
de seus filhos, e o direito que a estes assistia de lhe succederem no
throno, dependiam, como já dissemos, da supremacia do papa.

Quando Luthero atacou o papa, Henrique tomou ostensivamente a defeza do
Bispo de Roma, e rei algum, depois de João, apoiou mais em absoluto as
reivindicações do papa do que elle. Os seus interesses pessoaes, assim
como os interesses de sua mulher e de seus filhos, estavam dependentes
d’esse seu apoio. A Inglaterra, no principio do reinado de Henrique,
estava positivamente avassallada á Sé de Roma. Henrique, posto que se
sentisse inclinado, pela educação recebida, a adoptar as idéas de Colet,
More e Erasmo, via-se obrigado, em vista da situação particular em que se
encontrava, a manter-se n’uma attitude de irreconciliavel hostilidade, e
o facto de ter reprovado os actos de Luthero conquistou-lhe o titulo de
Defensor da Fé.

=Henrique muda de opinião.=—Henrique nunca deixou de reconhecer a
supremacia do papa em todos os assumptos, durante os primeiros dezoito
annos do seu reinado. De um momento para o outro, porém, começou a
pensar de differente modo, e podem-se apresentar bastantes razões para
essa subita mudança de idéas. Parece que elle teve sempre duvidas
ácerca da legitimidade do seu casamento com Catharina, e que essas
duvidas se avolumaram á medida que ia perdendo a esperança de ter um
filho varão que lhe succedesse, chegando a convencer-se de que esse
facto representava um castigo divino por haver desposado a viuva de seu
irmão. Durante todo esse tempo, comtudo, a alliança hespanhola, que fôra
tratada primeiramente com Fernando, e mais tarde com o neto d’este, o
imperador Carlos V, havia sido de grande utilidade para Henrique e para
a Inglaterra; e essa mesma aliança é que havia, na opinião do rei, de
firmar o throno de sua filha, cuja legitimidade, declarada pelo papa,
encontraria no imperador um inabalavel sustentaculo.

Carlos V, porém, estava absorvido nos seus planos de anniquilar a
Reforma, e estabelecer o imperio medieval, e o papa só pensava em
conquistar para si uma posição independente, em se tornar o primeiro
dos principes italianos, revestido de todo o poder secular, de modo que
nenhum d’elles correspondia á expectativa de Henrique. Este deixou de ter
confiança na fidelidade d’elles á sua casa, quanto á sucessão do throno.
Encontrava-se n’uma situação embaraçosa, e, como meio mais rapido de
sair das suas difficuldades, resolveu pedir ao papa que o divorciasse
de Catharina de Aragão. Cessariam d’esse modo os seus escrupulos de
consciencia por haver casado com a cunhada; poderia contrair novo
casamento, a alimentar a esperança de ter um filho macho, seu legitimo
herdeiro. Entendeu-se, pois, com o cardeal Wolsey, seu ministro, e
dirigiu ao papa um pedido de divorcio.

N’aquela ocasião, porém, o papa queria evitar qualquer desintelligencia
com Carlos V, sobrinho de Catharina, e recusou dar o seu consentimento
para o divorcio, sendo então que Henrique, homem muito exaltado, e a
quem os obstaculos não faziam recuar, decidiu divorciar-se não obtante a
recusa do papa. Todos os interesses pessoaes que até certo tempo levaram
o rei a apoiar a supremacia papal se ligavam agora para que elle fizesse
exactamente o contrario. Se o papa tivesse sanccionado o divorcio, não
teria havido, provavelmente, ruptura com Roma, porque o rei continuaria a
ter interesse em que se mantivesse a supremacia papal; as circumstancias,
porém, aconselhavam-n’o a enveredar por outro caminho, e foi o que elle
fez.

Thomaz Cromwell alvitrou que se consultassem as universidades da Europa
sobre a legalidade do casamento de Henrique e este acceitou o alvitre
com grande alvoroço. Tratou-se, por conseguinte, de pôr esta idéa em
execução, entregando-se a eminentes vultos, a verdadeiras summidades,
o decidirem a questão segundo as leis canonicas, tendo ao mesmo tempo
na devida consideração a sensivel consciencia do rei. Apoz algum tempo,
e tendo-se dispendido com isso uma fabulosa quantia, as universidades
declararam, por uma muito pequena maioria, que o casamento de Henrique
com Catharina não era valido, concluindo-se d’esta decisão que Henrique
não tinha herdeiro algum legitimo.

Animado com este veridictum, resolveu pôr em pratica qualquer das
duas coisas seguintes: alarmar o papa, obrigando-o assim o conceder o
divorcio, ou repudiar a sua auctoridade suprema.

Foram muitos os motivos secundarios que contribuiram para que elle
tomasse esta ultima deliberação. Henrique, que gostava de viver com
muita ostentação, tinha desbaratado, havia muito, as riquezas que o
pae amontoara, e era-lhe impossivel augmentar os impostos. Os cofres
do Estado estavam despejados, e para os encher bastaria o espolio dos
conventos e mosteiros. Isto constituiu uma das razões, mas havia uma
outra que appellava mais fortemente para a sua vaidade.

=Henrique VIII, Francisco I, Carlos V, e a rivalidade que havia entre
elles.=—As tres grandes potencias europêas no tempo da Reforma eram
Hespanha, França e Inglaterra, e não podia deixar de haver rivalidade
entre os respectivos monarcas. O rei de Hespanha, que era o mais poderoso
dos tres, era tambem imperador da Allemanha, e todo o seu empenho
consistia em restabelecer no imperio o esplendor que este tivera na Edade
Media. Segundo as antigas noções medievaes, não havia mais do que uma
christandade, o imperador era supremo e soberano, e todos os outros reis
estavam sob a sua dependencia. Se Carlos fosse bem succedido nos seus
esforços, Francisco e Henrique passavam a occupar uma posição inferior
á que tinham, e, portanto, convinha-lhes trabalhar para que o plano
de restauração não vingasse. Uma christandade medieval implicava uma
egreja indivisa, centralizada no papa, o bispo de Roma. A politica dos
reis da França e de Inglaterra insistia em obstar a essa centralização
ecclesiastica, e fazer com que as egrejas das suas respectivas nações se
tornassem o mais independentes de Roma que fosse possivel.

Francisco havia conseguido isso quanto á França, e de um modo que
contribuiu bastante para que o seu prestigio augmentasse, e o seu
poder se consolidasse dentro do proprio reino. O papa, mediante a
Concordata de 1516, havia, sob a condição de que os _annates_ seriam
pagos com regularidade, e de que lhe seriam feitas certas e determinadas
concessões, investido praticamente o rei de França na chefatura da
egreja franceza, dando-lhe liberdade para prover como entendesse os
differentes cargos ecclesiasticos.

Henrique, rival de Francisco, era tambem seu imitador, e havia de lhe
ser difficil deixar de ter inveja das regalias que o papa lhe tinha
concedido. O que Francisco recebeu pela Concordata de 1516, deu o
parlamento inglez a Henrique quando o proclamou chefe supremo, sobre a
terra, da egreja de Inglaterra. De modo que em França a supremacia do rei
sobre a egreja fez com que fossem toleradas as reivindicações papaes, ao
passo que em Inglaterra promoveu a revolta contra Roma. A França, liberta
do dominio papal por livre vontade do proprio papa, podia ficar por ahi,
mantendo, a todos os outros respeitos, as velhas tradições da egreja. A
Inglaterra, que alcançara a sua independencia contra a vontade do papa,
e por meio de um acto de rebellião contra a sua auctoridade, tinha de
ir mais longe; para conservar a posição que tomara era-lhe necessario
afastar-se cada vez mais de Roma.

Sucedeu, assim, que a Reforma em Inglaterra foi o avanço quasi
involuntario de uma nação revoltada contra Roma, pois que a sua
resistencia á curia romana foi, em primeiro logar, o meio de que um
imperioso monarca se serviu para conseguir o seu engrandecimento pessoal,
e, em segundo logar, o meio de que um povo se serviu para conseguir a
sua independencia. A França, a despeito dos huguenotes, conservou-se
catholica romana; a Inglaterra, a despeito de Henrique VIII, tornou-se
uma nação protestante.

=A submissão do clero.=—Henrique depressa se certificou de que não
era possivel constranger o papa, mediante o medo, a conceder-lhes o
divorcio, mas resolveu obrigar o clero inglez a conformar-se pelo medo
com as suas deliberações. O cardeal Wolsey foi nomeado nuncio do papa
em Inglaterra, e todos os bispos e mais clerigos o reconheceram como
tal. Ora em 1531 o rei acusou-o abruptamente de haver transgredido a lei
do _Proemunire_ pelo facto de acceitar aquelle cargo e cumprir, ainda
que só apparentemente, os deveres que lhe eram inherentes, e accusou
egualmente todos os clerigos de Inglaterra de serem cumplices d’esse
crime pelo facto de o aceitarem na qualidade de embaixador do papa.
Declarou, outrosim, que tanto Wolsey como todos os clerigos da egreja
ingleza haviam incorrido, em virtude d’esse delicto, na perda de todos
os bens ecclesiasticos de que estavam de posse. O clero ficou seriamente
alarmado, e, para evitar uma catastrophe maior, sujeitou-se a pagar
uma multa de 118:000 libras e a assignar, ainda que de má vontade, uma
declaração de que o rei era «o unico protector, o unico senhor supremo,
e, _até onde é permittido pela lei de Christo_, o supremo cabeça da
egreja e do clero». A ambiguidade que se nota n’este reconhecimento foi
intencional. Era um subterfugio para as consciencias fracas, mas o rei
ficou satisfeito com a phrase, certo como estava de que poderia obrigar o
clero a proceder segundo a interpretação que elle proprio lhe dava.

Tratou sem demora de mostrar como era por ele compreendido o sentido
pratico de similhante declaração, desdobrando-o em tres artigos, que
os clerigos tiveram tambem de assignar. Declaravam que regulamento
ou preceito algum ecclesiastico seria de ali em deante promulgado ou
publicado pelo clero sem previo consentimento do rei; que approvavam
a nomeação de uma commissão de trinta e duas pessoas para rever os
antigos canones da egreja e cortar todos aqueles que fossem prejudicaes
á autoridade do rei; e, finalmente que os canones ecclesiasticos só eram
validos depois de ratificados com auctorização do rei. Estas proposições
foram submetidas á Convocação, ou Assembléa Geral da Egreja de
Inglaterra, e, depois de alguma hesitação, o clero, reunido, acceitou-as.
A Convocação foi um pouco mais longe do que o rei, pois que pediu para
que o clero inglez não pagasse mais os _annates_ á sé de Roma.

Esta decisão tomada pela Convocação, de que a egreja de Inglaterra
não podia fazer leis para sua direcção ou governo sem a sancção ou
ratificação do rei, tem sido chamada a _Submissão do Clero_. Assim no
ano de 1532 a egreja de Inglaterra, por ordem do rei e do parlamento,
renunciava á sua obediencia a Roma. Esta renuncia ao governo papal
incluia (1) o reconhecimento da supremacia real; (2) submissão á corôa
pela cedencia do direito de fazer leis; e (3) a recusa ao papa das
receitas que lhe haviam sido pagas durante gerações. A egreja conservava
as mesmas doutrinas, governo e culto, consistindo apenas a differença em
o rei tomar o logar que o papa tinha ocupado.

O clero tinha alimentado a esperança de que lhe fosse permittido reter
os _annates_ em seu poder, mas o rei mostrou que estava resolvido a que
a supremacia real fosse tão genuina como a antiga supremacia do bispo de
Roma, e insistiu em que o imposto pontificio fosse pago na thesouraria
real.

=O progresso da Separação de Roma.—O parlamento inglez, em
1529-1536.=—Durante os primeiros annos do reinado de Henrique VIII,
quando era do interesse do rei estar bem com o papa e com o rei de
Hespanha, todas as queixas contra a egreja haviam sido reprimidas.
Agora, porém, que Henrique queria aterrorisar o papa para o obrigar a
conceder-lhe o divorcio, as queixas eram animadas. Henrique servia-se
do parlamento como Carlos V se podia ter servido da Dieta allemã. Todas
as nações tinham accusações a apresentar contra a egreja. Os allemães
publicaram as suas _Cem Afrontas_; o parlamento inglez, convocado para
se reunir em 1529, tinha tambem queixas a fazer ácerca da libertação
do clero da jurisdicção dos tribunaes judiciaes da nação, ácerca da
auctoridade absoluta exercida pelos tribunaes ecclesiasticos sobre
os leigos em pleiteados casos de casamento, testamentos, successão,
calumnia, etc., ácerca das avarezas do clero e do elevado custo dos
enterros e dos baptismos, e assim successivamente. O parlamento formulou
estas queixas, e com isso alarmou, e não pouco, o clero, tornando-o mais
submisso ás imperiosas ordens do rei.

Em Janeiro de 1532 Henrique VIII desposou Anna Boleyn, provocando, d’esse
modo, pessoalmente o papa. O seu casamento com Catharina de Aragão foi
declarado nullo e sem effeito pelo arcebispo de Canterbury, que fallou
em nome da Egreja de Inglaterra, e por deliberação do parlamento. O
rei, a nação, e, um pouco constrangidamente, a egreja uniram-se, pois,
para desafiar collectivamente o papa, e para se revoltarem contra o
imperio ecclesiastico da Edade Media. O parlamento secundou este desafio
approvando leis que tendiam a uma separação completa, e que, pelo lado
politico, eram inoffensivas para os subditos inglezes. Sete dos seus
decretos teem uma importancia especial.

(1) Em 1533 o parlamento prohibiu ao clero o pagar os _annates_, ou o
vencimento do primeiro anno, quando se entrava na posse de qualquer
beneficio. Estas «primicias» tinham sido sempre consideradas uma
homenagem devida á supremacia do papa.

(2) Na mesma sessão o parlamento aboliu as appellações para Roma. O
_Estatuto para Repressão das Appellações_ declarava que nenhum subdito
inglez podia appellar de um tribunal da sua nação para outro qualquer,
e que similhante appellação constituia uma violação do Estatuto de
_Proemunire_, ficando sujeita ás devidas consequencias. Todas as questões
que tivessem de ser submettidas ao juizo da Egreja deviam ser entregues
aos tribunaes ecclesiasticos do reino. Continuavam a ser permittidas
as appellações de um arcediago para um bispo, e de um bispo para um
arcebispo; mas aqui parava o direito de appellar, e o tribunal do
arcebispo era o supremo tribunal de appellação. Só o rei podia appellar
d’este supremo tribunal ecclesiastico, e podia levar a sua appellação
para a Convocação, mas não fóra do reino.

(3) Em 1534 a _Submissão do Clero_ foi ratificada pelo parlamento. Ficou
declarado que era necessario o consentimento do rei para todas as leis
ecclesiasticas, e, para dar a isto um valor pratico, estabeleceu-se que
em todos os pleitos havia o direito de appellar do supremo tribunal
espiritual, que era o do arcebispo, para o rei.

(4) O parlamento declarou, outrosim, que o papa não tinha direito de
intervir na eleição dos bispos, e que todo e qualquer poder que se
attribuia ao papa pertencia realmente ao rei. Esse direito era definido
de tal fórma que se podesse dar todo o direito de nomeação ao rei, ao
passo que se preservava a sombra do antigo uso ecclesiastico. Quando
uma sé vagava, assistia ao rei o direito de auctorizar o deão e o
capitulo a eleger para o cargo vago qualquer pessoa mencionada na carta
de licença. As dispensações papaes eram tambem declaradas illegaes, e o
poder dispensativo que n’outro tempo, segundo era por todos reconhecido,
pertencia ao papa, ficava residindo agora na Egreja de Inglaterra, e o
seu exercicio pertencia aos arcebispos de Canterbury e de York.

(5) Para mostrar, comtudo, que todos estes Actos não tinham em vista
reforma alguma, mas sómente uma separação politica da Egreja de
Inglaterra quanto ao papado, o parlamento promulgou uma lei sobre a
heresia, em que se declarava que os herejes seriam queimados como
antigamente, em obediencia ao velho decreto _de combatendo hereticos_, e
o rei, como cabeça da Egreja, recebia o encargo de a purificar de falsas
doutrinas. Declarava-se, porém, que fallar mal do papa não constituia
heresia.

(6) Por ultimo, saiu d’este notavel parlamento o _Acto de Successão_ e o
_Acto de Traição_. O primeiro declarava que a princeza Maria, filha de
Catharina de Aragão, era illegitima, e transferia o direito de successão
para a princesa Isabel, filha de Anna Boleyn. O _Acto de Traição_ punia
com a morte todos aquelles que recusassem acceitar o _Acto de Successão_
ou reconhecer o novo titulo e as novas prerogativas do rei.

=Separação de Roma e Reforma: duas coisas differentes.=—Em todos os Actos
d’este parlamento, e em todas as decisões de uma submissa Convocação,
nada houve que não fosse puramente politico. A Inglaterra não se havia
tornado protestante ou lutherana, e Egreja reformada em Inglaterra era
coisa que não existia. A Inglaterra havia-se, tão sómente, desligado de
aquella alliança que, sob a superintendencia do imperador e do papa,
realisava a idéa medieval de um systema de governação, tanto civil como
ecclesiastico. O que torna importantissimas aquellas deliberações do
parlamento é o facto de ter sido a Inglaterra a primeira nação que rompeu
com o medievalismo e deixou de reconhecer o velho imperio ecclesiastico
da Edade Media. Os herejes, isto é, aquelles que haviam acceitado as
doutrinas de Luthero, ou que, entregando-se ao estudo da Biblia, tinham
chegado ao conhecimento de um mais puro christianismo, eram perseguidos
e mortos, usando-se com elles da mesma crueldade, do mesmo espirito de
vingança, como quando a Inglaterra era uma escrava obediente do papa.
Diz-se que Wolsey, no seu leito de morte, supplicou ao rei que destruisse
todos os signaes de lutheranismo; e, a despeito da grande tolerancia de
Thomaz More, os herejes eram procurados e castigados. Tindal, que tinha
traduzido em inglez o Novo Testamento de Erasmo, foi caçado de logar em
logar, como se fosse um animal feroz. Todos os que se atrevessem a fallar
contra a missa, a transubstanciação, o culto dos santos e a efficacia
das boas obras corriam o risco de ser presos e queimados como herejes.
Os Actos do Parlamento não haviam promovido a liberdade de consciencia,
tinham simplesmente dado logar a novos ensejos para perseguir e matar.
Para ajuntar aos antigos crimes theologicos, appareceu um outro. Quem se
recusasse a prestar o juramento de supremacia, quem se atrevesse a dizer
que Catharina de Aragão era a esposa legitima do rei, e que a princeza
Maria era a herdeira do throno, estava sujeito a ser preso, processado e
executado. A Inglaterra encontrava-se n’um estado anormal, n’um estado de
grande agitação, e os homens conscienciosos tudo soffriam por causa da
consciencia.

=A execução de Tomaz More.=—Thomaz More era o chanceller quando o
parlamento, reunido em 1529, separou a nação, mediante successivos Actos
do imperio ecclesiastico de Roma. Tinha sido na sua mocidade um distincto
estudante, e havia-se entregue com amor aos «estudos modernos» de latim,
grego e hebraico quando, em Oxford, assistira ás prelecções de Tinacre,
um dos primeiros humanistas inglezes, que se havia educado em Italia
para o seu trabalho escolastico em Inglaterra. Dedicara-se á carreira
da jurisprudencia, foi magistrado em Londres, e tornou-se notoria a sua
amizade ao deão Colet e a Erasmo. O seu livro _Utopias_ dá testemunho
de que elle havia adoptado muitas das opiniões de Marcello de Padua e
de outros juristas liberaes do fim da Edade Media. Elle opinava que
tanto a Egreja como o Estado existiam para beneficio do povo, e todo o
seu anhelo era uma reforma de costumes na Egreja. Investido no cargo
de chanceller, toda a gente notou a brandura de que elle usava com os
herejes; permaneceu, porém, ligado ás doutrinas da Egreja Catholica
Romana, e abandonou algumas das suas primitivas opiniões em favor de mais
estrictas idéas ácerca da origem divina da supremacia do papa. Reprovou,
portanto, todo o procedimento da côrte e do parlamento inglez depois da
queda de Wolsey. Avisou o rei de que não podia ser parte no divorcio de
Catharina de Aragão. Não quiz assistir ao casamento e coroação de Anna
Boleyn, e, ao ser ameaçado com as consequencias, disse ao rei que as
ameaças eram para as creanças e não para elle. Henrique tinha uma forte
affeição pelo seu chanceller; mas coisa alguma poderia augmentar mais
a duvida com respeito á validade do divorcio, do novo casamento e da
successão ao throno derivada d’este, do que a recusa da maior auctoridade
juridica da nação de ver em Catharina de Aragão uma mulher que não era a
esposa legitima de Henrique VIII.

More foi, portanto, obrigado a prestar juramento de fidelidade á nova
rainha, reconhecendo Anna Boleyn como a esposa legitima de Henrique VIII,
e a confirmar a legalidade do _Acto de Successão_. N’esta conjunctura,
elle tinha de obedecer á consciencia ou salvar a vida, e, com uma grande
serenidade de espirito, preferiu obedecer á consciencia. A mulher
foi ter com elle á prisão, rogando-lhe que se submettesse á ordem do
rei. «Senhora Alice», retorquiu elle, com toda a ternura, «esta casa
não estará tão perto do céu como a nossa?» A filha, Margarida Roper,
que era afamada pela sua erudição, pela sua affabilidade e pela sua
formosura, foi tambem vêl-o repetidas vezes, e as suas visitas como que
lhe fortaleceram a serena coragem. Morreu em Julho de 1535. Erasmo soube
da morte d’elle quando tinha entre mãos a sua _Pureza da Egreja_, a que
ajuntou um prefacio que é quasi uma biographia do seu velho amigo, a que
attribue uma alma mais pura do que a neve.

O assassinio judicial de Thomaz More e do bispo Fisher, seu companheiro
no soffrimento, veiu demonstrar o estado cahotico em que Henrique VIII
havia feito cair a Inglaterra, pois que, ao passo que eram queimados os
homens accusados de lutheranismo, executavam-se aquelles que mantinham a
auctoridade do papa no que dizia respeito aos costumes e á doutrina.

=A suppressão dos mosteiros e a confiscação dos bens da Egreja.=—Henrique
VIII tinha sido sempre um grande gastador. Tudo quanto o pae lhe deixara
havia desapparecido logo no principio do seu reinado, em virtude da
guerra com a França. O rei e a côrte tinham grande necessidade de
dinheiro. Thomaz Cromwell lembrou então que este podia ser obtido
mediante a suppressão de alguns dos mosteiros.

Do clero ninguem foi mais justamente atacado do que os monges, durante o
periodo da Reforma. A sua preguiça, as suas riquezas, a sua cupidez e a
sua má vida eram notorias em toda a Europa. Os auctores populares haviam
composto satyras a seu respeito, e graves estadistas tinham chamado a
attenção do papa para uma reforma das varias ordens.

Gromwell insistiu n’uma syndicancia aos mosteiros, com o fim de se ficar
sabendo se as queixas formuladas tinham fundamento. Foram visitadas tres
d’essas casas, e constatou-se que as vidas dos frades e das freiras
estavam longe de ser o que deviam ser, que a propriedade monacal
havia sido pessimamente administrada, e que muitos dos religiosos,
de ambos os sexos, desejavam desligar-se dos votos. O parlamento
approvou uma proposta de lei para que fossem supprimidos os conventos
menos importantes, e, passado algum tempo, eram encerrados todos os
estabelecimentos monacaes. Os respectivos bens foram confiscados em
proveito do rei. A grande somma de dinheiro que se obteve por esta fórma
podia, nas mãos de um monarca astuto e economico, ter constituido um
vasto capital cujo rendimento habilitaria o rei a prescindir de impostos,
e, por consequencia, a prescindir de parlamento, o que redundaria na
ruina, em Inglaterra, de todas as liberdades. Henrique era, por indole,
um despota, mas não tinha em si a força de vontade necessaria para pôr
em execução aquillo que lhe vinha á idéa. A sua ambição principal era
poder dispôr de muito dinheiro, e as propriedades confiscadas aos frades
foram postas em praça a vendidas pelo maior preço que foi possivel
obter. O resultado d’isso foi augmentar consideravelmente o numero dos
proprietarios em Inglaterra. Henrique dissipou em poucos annos todo o
dinheiro que d’aquelle fórma lhe fôra parar ás mãos, e ficou tão pobre e
tão necessitado do auxilio dos seus subditos como anteriormente.

=Os dez artigos.=—Cranmer, o arcebispo de Canterbury, que havia sido
um instrumento facil nas mãos do rei, quando este andou tratando de se
assenhorear das liberdades da Egreja e de uma grande parte das suas
riquezas, tinha uma secreta predilecção pelas doutrinas reformadas
de Luthero e de Zwinglio. Thomaz Cromwell, que desde o fallecimento
de Wolsey exercia o cargo de conselheiro politico do rei, era tambem
um admirador dos homens da Reforma. Ambos tinham o desejo, depois
da Inglaterra se ter separado politicamente do papado, e de se ter
effectuado a suppressão dos mosteiros, de introduzir uma reforma de
doutrina e de culto, e de equiparar a Egreja de Inglaterra ás egrejas
reformadas da Allemanha e da Suissa.

O schema politico de Cromwell consistia em collocar Henrique á frente de
uma confederação protestante que podesse rivalisar com o imperio medieval
de Carlos V. Isto sómente se poderia fazer, comtudo, se a Egreja da
Inglaterra abraçasse as doutrinas da Reforma e animasse os homens que até
ali tinham sido perseguidos como herejes.

O rei desapprovou energicamente a proposta, mas por fim cedeu, e em 1536
foram publicados, com a approvação da Convocação, os _Dez Artigos_,
que eram um breve formulario de doutrinas. Estes artigos asseveravam
a auctoridade da Escriptura, dos tres grandes e antigos credos, e dos
quatro concilios ecumenicos; affirmavam que o baptismo era necessario
para a salvação; que a penitencia, a confissão e a absolvição eram
egualmente coisas necessarias; que o corpo e sangue de Christo estavam
substancial, real e corporalmente presentes no pão e vinho da Eucaristia;
que a justificação tinha logar mediante a fé, junta com a caridade e
com a obediencia; que nas egrejas era licito o uso das imagens; que se
devia glorificar a Virgem e invocar os santos; que se devia conservar os
varios ritos e dias santificados da Egreja medieval, fazendo-se uso dos
paramentos, dos crucifixos e da agua benta; que existia o purgatorio; e
que, finalmente, se devia fazer orações pelos defuntos.

Estes Artigos, como se vê, não estavam em conformidade com a fé
protestante. Alguns historiadores ecclesiasticos teem dito que elles
foram muito judiciosamente collocados entre a doutrina dos reformadores
mais pronunciadamente biblicos e as velhas superstições; mas teem sido
mais bem descriptos como essencialmente «romanistas, com o papa atirado
para a margem». Fuller diz que elles foram destinados para creancinhas
«recentemente tiradas dos peitos de Roma.»

Emquanto estes acontecimentos iam tendo logar, Catharina de Aragão
morreu, em 1536, e o rei desembaraçou-se de Anna Boleyn, mandando-a
decapitar sob a accusação de infidelidade. Sua rilha, a princeza Isabel,
foi, pelo parlamento, declarada illegitima, e a successão tornou-se de
novo incerta.

O rei casou então com Jane Seymour, a cuja descendencia ficaram
reservados os direitos á corôa.

=A peregrinação da graça.=—As execuções de Thomaz More e do Bispo Fisher
haviam desgostado muitissimos subditos do rei que eram affeiçoados a
Roma, e estes, animando-se com a declaração da illegitimidade de Isabel
e com a incerteza quanto á successão, promoveram rebelliões em Yorkshire
e Lincolnshire. Os rebeldes contavam com o auxilio da Hespanha, e tinham
tambem muita confiança no effeito que havia de produzir a bulla, que
acabava de ser publicada, em que o papa excommungava Henrique VIII.

Os seus projectos, porém, foram com facilidade mallogrados, e o
nascimento de um filho de Jane Seymour, a quem o rei havia desposado
depois da morte de Catharina de Aragão, deu ao rei a cubiçada successão
legitima e fez cessar todos os sentimentos anarquicos entre o povo.

Infelizmente, a rainha falleceu ao dar á luz o filho.

Cromwell e Cranmer voltaram novamente com as suas idéas de uma união
protestante. Cranmer, juntamente com uma commissão de prelados, redigiu,
em 1537, o que se ficou chamando o _Livro do Bispo_, ou a _Instituição
de um Christão_, e que continha uma exposição de theologia muito mais
protestante do que os _Dez Artigos_.

No anno seguinte Cranmer, que havia estado em correspondencia com os
theologos de Wittenberg, organizou um outro credo chamado os _Treze
Artigos_, e que era largamente baseado na Confissão de Augsburgo.

O rei recusou sanccionar estes Artigos, e foi-se gradualmente afastando
do plano de uma alliança protestante. Cromwell caiu no desagrado de seu
amo em virtude da persistencia com que advogava esse plano, chegando a
apresentar um projecto de casamento de Henrique com Anna de Cleves, com
o fim de cimentar a alliança. Morreu no cadafalso, como havia succedido a
More e a Fisher, e o rei foi-se tornando cada vez mais reaccionario.

=O Estatuto Sanguinario, ou os Seis artigos.=—O primeiro indicio d’esse
facto foi a publicação do _Livro do Rei_, ou a _Necessaria Doutrina e
Erudição para todos os Christãos_. Em 1539, Henrique resolveu voltar á
politica do primeiro periodo do seu reinado, e poz-se em communicação
com Carlos V. A mudança na politica exterior do rei teve repercussão nos
negocios internos. Foram promulgados os _Seis Artigos_, «para abolir a
diversidade de opiniões», e foi revogoda a permissão de ler a Biblia
traduzida por Tindal.

Estes Artigos exigiam de todos os inglezes, sob pena de confiscação
dos bens, e de morte, que cressem na transubstanciação, que negassem
a necessidade dos leigos participarem do calix na communhão e que
admittissem o celibato do clero, a obrigação dos votos de castidade e a
necessidade das missas e da confissão auricular.

As doutrinas das egrejas reformadas da Allemanha e da Suissa tinham
feito algum progresso na Inglaterra, não obstante as perseguições, e
haviam sido abraçadas por um grande numero de pessoas durante aquelles
annos de tolerancia em que Cranmer e Cromwell dirigiram a politica do
rei, e esta lei dos Seis Artigos deu logar a uma grande perseguição. O
povo chamava-lhe o Estatuto Sanguinario e o Chicote das Seis Cordas. Deu
principio a um reinado de terror, que só terminou com a morte do rei.
Felizmente para a nação, esta não se fez esperar muito.

=O estado da Egreja de Inglaterra em 1547.=—Henrique morreu em 1547,
deixando tres filhos: Maria, filha de Catharina de Aragão, com 31
annos; Isabel, filha de Anna Boleyn, com 14; e Eduardo, filho de Jane
Seymour, com 10. Maria e Isabel haviam sido declaradas illegitimas pelo
parlamento. Eduardo succedeu a seu pae no throno.

Henrique deixou atraz de si um caos, para sair do qual teve a nação de
sustentar uma tremenda lucta. O rei, emquanto viveu, susteve com mão
ferrea os romanistas extremos e o partido protestante, e manteve até
ao fim o seu ideal, que era uma egreja catholica, desligada do papa.
E conseguiu-o, pondo-se no logar outr’ora occupado pelo papa. Exercia
sobre a Egreja uma auctoridade muito mais absoluta do que sobre o
Estado. A posição era difficil de sustentar, e foi-o muito mais para os
monarcas que succederam a Henrique, pois que as idéas reformistas iam-se
propagando cada vez mais. Deixou tambem sem solução muitos problemas
politicos. Os cofres publicos estavam vasios. A sua politica exterior foi
um subterfugio, que collocou em grandes embaraços os seus successores.
A venda dos bens da Egreja produziu uma mudança, tanto social como
economica, que difficultou a vida da nação.

O assumpto, porém, que exigia immediata resolução era: A Inglaterra devia
abraçar a Reforma, ou voltar de novo para o romanismo? A Egreja não podia
permanecer na situação em que Henrique a havia deixado.



CAPITULO II

A REFORMA NO TEMPO DE EDUARDO VI, E A REACÇÃO NO TEMPO DE MARIA

    Será adoptada a Reforma? pag. 175.—A visita real, o _Livro de
    Homilias_ e o _Livro de Oração Commum_, pag. 176.—A alliança
    com o protestantismo continental, pag. 178.—Os _Quarenta e
    Dois Artigos_, pag. 178.—Os principios do puritanismo, pag.
    179.—A morte de Eduardo VI, pag. 181.—O estado da Inglaterra
    por occasião da acclamação de Maria, pag. 182.—A Hespanha
    necessitava do auxilio da Inglaterra, pag. 183.—Como Maria se
    firmou no throno, pag. 183.—A alliança hespanhola, pag. 184.—A
    reconciliação com Roma, pag. 184.—Porque não foi bem succedida
    a reacção papal? pag. 185.—As perseguições durante o reinado
    de Maria, pag. 186.—A questão dos bens de raiz da Egreja, pag.
    186.—Os fructos do ensino no reinado de Eduardo, pag. 187.—A
    morte de Maria, pag. 187.


=Será adoptada a Reforma?=—Quando Henrique morreu, succedeu-lhe seu
filho, Eduardo VI, que era então um rapazito de dez annos. Pouco antes de
morrer, Henrique fez testamento, em que deixou instituido um conselho de
regencia, composto de dezeseis membros da nobreza, o qual entrou logo no
exercicio das suas funcções, começando a governar. O referido conselho
escolheu o conde de Hertford, que fazia parte d’elle, para o logar de
protector do reino, recebendo n’essa occasião, em conformidade, segundo
se diz, com o que estava estabelecido no testamento, o titulo de duque
de Somerset. A questão mais grave que este conselho de regencia tinha de
resolver era a questão religiosa. A Inglaterra não podia continuar no
estado em que se encontrava. Ou a Egreja se reformava, ou a nação tinha
de renovar a sua alliança com Roma. Se se tivesse consultado a opinião
publica, ver-se-hia, provavelmente, que uma grande maioria era partidaria
do romanismo. Os ultimos annos do reinado de Henrique tinham sido uns
annos de terror, e todas as desventuras eram attribuidas á supremacia
real em materia de religião. O povo de Inglaterra, por outro lado,
estava pouco ao facto das doutrinas reformadas, e a Biblia não estava
vulgarisada. A Reforma não havia sido prégada na Inglaterra, como o fôra
na Allemanha e na França. Não havia excitado o enthusiasmo popular.

A extincção dos conventos tinha feito com que a gente do campo desejasse
voltar ao antigo systema. Os inglezes não haviam opposto obstaculo algum
á extincção dos conventos e á confiscação dos bens da Egreja quando isso
foi pela primeira vez decretado; mas os camponezes em breve descobriram
que a unica coisa que havia resultado para elles fora uma substituição
de amos com quem se davam perfeitamente por outros que custavam immenso
a supportar. Os novos proprietarios vedavam os logradouros publicos,
derrubavam os muros e as sebes que dividiam entre si as quintas pequenas
para formarem extensas propriedades, e preferiam as pastagens ás searas
de trigo, diminuindo assim o valor das terras e dando logar a uma grande
falta de trabalho. A pobre gente suspirava por aquillo a que chamava os
bons tempos.

A extincção dos conventos tinha, por outro lado, atirado cá para fóra
com uma legião de homens que não tinham profissão alguma e incapazes de
ganhar a vida, era preciso cuidar d’essa gente. O governo havia entendido
que o meio menos dispendioso de arrumar os frades era collocal-os nas
freguezias, na qualidade de parocos ou de coadjuctores. E assim a Egreja
encheu-se de homens que trabalhavam de má vontade, e que odiavam aquella
nova ordem de coisas que lhes havia transtornado a vida.

Todas estas coisas tornavam duvidoso se a Inglaterra adoptaria a Reforma
ou se reconciliaria com Roma.

Por outro lado, havia homens fervorosos e cheios de resolução, que
estavam promptos a dar tudo quanto possuiam, e até a propria vida,
pela causa da Reforma, que elles estavam na convicção de ser a causa
de Christo. No numero d’esses homens figuravam o Protector, Somerset,
e outros membros do conselho da regencia, que deliberaram introduzir
a Reforma na Inglaterra. A intenção de se manter a supremacia real
appareceu sob a fórma de uma carta dirigida aos bispos, intimando-os a
solicitar do novo soberano a renovação das suas licenças. Isto tinha
sido inventado por Cromwell para que não fossem prejudicadas as regias
prerogativas.

=A real inspecção.—O Livro das Homilias.—O Livro de Oração
Commum.=—Ordenou-se uma real inspecção a todo o reino. O paiz foi
dividido em seis circumscripções, e para cada uma d’ellas foi nomeado um
funccionario, que deveria averiguar se os serviços ecclesiasticos estavam
sendo executados segundo as leis vigentes. A jurisdicção episcopal
esteve durante algum tempo suspensa, pois que os inspectores iam em nome
do rei. Providenciou-se tambem para que fossem melhorados os serviços
ecclesiasticos em certas localidades onde foram encontradas deficiencias.
O arcebispo Cranmer, que lá no seu intimo havia sido sempre lutherano,
e que animara o conselho da regencia em todos os planos d’este, compoz
um _Livro de Homilias_, que foi entregue ao clero paroquial, com a
recommendação de ser lido nas egrejas. A _Paraphrase do Novo Testamento_,
de Erasmo, foi adaptado ao uso inglez, e deu-se ordem para que tambem
fosse lida no culto publico.

Estas medidas não foram tomadas sem opposição. Gardiner, bispo de
Winchester, que tinha adquirido grande influencia sobre Henrique VIII
nos ultimos annos da vida d’este, e que fôra um dos auctores do Estatuto
Sanguinario, estava á testa do partido reaccionario, e protestou contra
todas as propostas dos visitadores.

Entretanto o parlamento reuniu-se, aboliu os _Seis Artigos_, declarou
que os clerigos ficavam desobrigados do voto de celibato, que na Ceia do
Senhor o vinho, assim como o pão, devia ser administrado aos leigos, e
approvou a politica ecclesiastica do Protector Somerset.

As inspecções proseguiram. A fim de tornar o serviço nas egrejas mais
simples, mais attrahente e mais uniforme, ordenou-se o uso do _Livro de
Oração Commum_, compilado, por Cranmer, dos antigos rituaes. Foi este o
_Primeiro Livro de Oração Commum de Eduardo VI_, e, posto que mais tarde
passasse por algumas modificações e fosse um tanto augmentado, é, no seu
conjuncto, o de que a Egreja de Inglaterra faz uso actualmente.

Iam apparecer em breve outros indicios de um afastamento do romanismo. As
imagens e reliquias das egrejas foram destruidas. Aboliram-se os antigos
dias de jejum, e o arcebispo Cranmer deu o exemplo, comendo carne, á
vista de todos, na quaresma.

Tudo isto desgostou immenso uma grande parte, talvez a maioria, do povo
e do clero, sem que, comtudo, resistissem abertamente. Bonner, bispo de
Londres, tentou oppôr-se indirectamente á corrente, declarando que o
novo Livro de Orações podia ser tomado n’um sentido romanista; mas isso
apenas levou a uma mais decisiva definição dos seus termos theologicos,
á remoção dos altares das egrejas e á sua substituição por mesas, e á
preparação de um novo _Livro de Ordem_.

Dentro em pouco tempo todo o aspecto da Egreja se havia mudado, e em
doutrina e culto a Egreja de Inglaterra tinha-se tornado protestante.
As mudanças que se haviam feito tinham promovido um grande sentimento
de desagrado para com Somerset; houve tentativas de revolta; e, posto
que estas fossem suffocadas, a falta de bom exito do Protector, tanto na
politica exterior como na interna, combinada com o desagrado produzido
pelas suas medidas religiosas, deu origem á sua queda, sendo succedido
pelo conde de Warwick.

=A alliança com o protestantismo continental.=—A subida de Eduardo
ao throno e a politica protestante de Somerset e Warwick animaram o
arcebispo Cranmer a renovar o seu antigo plano de uma alliança entre a
Egreja Romana e as Egrejas protestantes do Continente. Sob o congenial
patrocinio de Somerset, o plano de Cranmer parece ter incluido uma
assembléa, em Inglaterra, de delegados de todas as egrejas protestantes
com o fim de convocarem um concilio protestante que podesse servir de
resposta ao concilio de Trento e organizar um credo protestante commum.

Isto nunca se levou a effeito; mas Cranmer conseguiu que diversos
theologos estrangeiros o ajudassem a instruir o povo inglez na fé
reformada. Martinho Bucer e Paulo Fagius vieram de Strasburgo para
Inglaterra, e installaram-se em Cambridge, onde fizeram prelecções sobre
theologia e sobre as Escripturas do Antigo Testamento. Dois distinctos
italianos, Pedro Martyr de Florencia e Bernardo Ochino de Sienna,
vieram leccionar para Oxford. Estes theologos estrangeiros, todos
elles abalisados professores, instruiram um grande numero de rapazes
nos artigos da fé reformada, e prepararam uma geração de prégadores
para a futura Egreja de Inglaterra. Sustentaram tambem, segundo o uso
continental, polemicas publicas sobre pontos controversos de theologia,
taes como a Transubstanciação, o Celibato do Clero, o Purgatorio, etc.

Todos estes theologos eram mais calvinistas do que lutheranos, e foi
mediante elles que a Egreja de Inglaterra adquiriu aquella inclinação
para o modo calvinista, opposto ao lutherano, de expôr as doutrinas da fé
christã que serviu de molde aos seus artigos.

=Os Quarenta e Dois Artigos.=—Um dos resultados d’estas discussões e
disputas doutrinaes foi a publicação, em 1553, dos _Quarenta e Dois
Artigos_, que tinham por fim exprimir em fórma confissional o credo
da Egreja Reformada de Inglaterra. Foram obra de Cranmer, coadjuvado
pelos bispos e por outros homens de erudição. Cranmer tinha começado a
escrevel-os em 1549; e acabou-os em 1552.

A apparição d’estes Quarenta e Dois Artigos foi muito opportuna. A
rivalidade dos dois partidos, o romanista e o protestante, as polemicas
publicas dirigidas pelos theologos estrangeiros, e os trabalhos dos
prégadores ambulantes como João Knox, haviam feito com que o povo
desejasse ardentemente uma auctorizada exposição de doutrina tal como
estes artigos forneciam. Definiam com grande clareza os limites das
mudanças que a Egreja havia feito, quanto á sua theologia medieval.

Estes artigos de religião são em quasi todos os pontos eguaes aos Trinta
e nove Artigos que constituem o credo da actual Egreja da Inglaterra.
As sympathias de Cranmer tinham estado sempre voltadas para Luthero, e
elle copiou tres, nem menos, dos seus artigos directamente da Confissão
de Augsburgo. Esses artigos foram omittidos na revisão elizabethana, mas,
pelo que toca aos pontos essenciaes, os Trinta e dois Artigos de Eduardo
e os Trinta e nove Artigos de Isabel são um e o mesmo documento.

=Os principios do puritanismo.=—A livre discussão da theologia reformada
e das idéas da Reforma teve como um dos seus resultados a origem e
desenvolvimento, em Inglaterra, de uma theologia que acceitava cabalmente
os principios essenciaes da renascença da religião promovida pela
Reforma. Um d’estes principios era que Deus se havia collocado tão
perto do homem mediante a revelação da Sua pessoa em Jesus Christo, que
os homens, apezar de sobrecarregados com o peccado, podiam implorar
directamente a Deus o perdão, e, segundo as Suas promessas, recebel-o. As
theses de Luthero tinham estabelecido este grande principio da Reforma,
e todos os theologos insistiram na possibilidade de se ir directamente
ter com Deus sem ser necessaria qualquer mediação humana. A Egreja
medieval, por outro lado, havia negado este «sacerdocio espiritual dos
crentes»—pois que sacerdocio quer dizer o direito de accesso a Deus—e
havia collocado entre Deus e o povo o sacerdocio da Egreja. Tinha
tambem tornado visivel o sacerdocio do clero, insistindo em que cada
clerigo devia, quando exercesse o culto publico, usar um traje especial,
symbolico do seu officio sacerdotal, e havia levantado em cada egreja
um altar, ou logar especial onde se realisava o encontro de Deus com o
sacerdote.

Aquelles que haviam chegado ao conhecimento da verdade e magnificencia
da doutrina da Reforma, de que todos os crentes são sacerdotes que gozam
do direito de se approximarem de Deus por meio da fé, e de que qualquer
porção do solo onde a alma expectante procura o Deus que a pode perdoar
e remir é um altar, não podiam conformar-se com qualquer doutrina ou
symbolo visivel do sacerdocio especial do clero. Não se contentavam com
a exposição doutrinal das verdades da Reforma, não podiam supportar que
o povo fosse desencaminhado por qualquer symbolo ou rito exterior que
houvesse sido empregado, nos dias de superstição, para inculcar a falsa
doutrina medieval da mediação. Objectavam, portanto, á conservação de
todo e qualquer costume ecclesiastico que podesse desencaminhar o povo no
tocante a esta importante doutrina. Oppunham-se, especialmente, ao uso
das vestimentas ecclesiasticas e dos altares nas egrejas. Estes homens
foram os precursores dos puritanos inglezes.

É preciso ter sempre na lembrança que puritanismo não significou ao
principio um systema de governo ecclesiastico, e que nada tinha que ver
nem com o presbyterianismo nem com o congregacionalismo. Os primeiros
puritanos da Inglaterra não protestaram contra o episcopado como
systema de governo. As coisas ter-lhes-hiam succedido melhor por fim se
o houvessem feito. O seu protesto era contra tudo quanto no credo ou
no culto podesse desacreditar a doutrina do sacerdocio universal dos
crentes. Era sua opinião que as vestimentas clericaes e os altares nas
egrejas obscureciam a verdade vital, e recusavam-se a fazer uso das
sobrepelizes e a collocar-se deante dos altares com as costas voltadas
para a congregação.

A questão tomou dentro em pouco tempo uma fórma definida. João Hooper,
que havia sido monge cisterciano, e que adoptara as idéas da Reforma,
tornou-se um prégador de nomeada na Egreja ingleza. Durante os ultimos
annos do reinado de Henrique tivera a vida em perigo e havia fugido
do reino para Genebra. O contacto que teve com os theologos suissos
havia-lhe confirmado os principios, e ao regressar a Inglaterra achava-se
resolvido a oppôr-se a todos os ritos que cheirassem a superstição
medieval. Em 1550, o seu nome foi recommendado ao rei, quando se tratou
de prover o bispado de Gloucester. Ao contrario de João Knox, não fazia
objecção ao governo por meio de bispos, e acceitou a nomeação, mas
não quiz fazer uso das vestes episcopaes; e recusou-se, egualmente, a
proferir a seguinte phrase do juramento: «Assim Deus e todos os santos me
ajudem».

Muitos theologos, incluindo Calvino, haviam-se inclinado a considerar
estas coisas como de pouca importancia, mas Hooper pensava de differente
modo. Martinho Bucer e Pedro Martyr partilhavam a opinião de Calvino,
e tentaram demover Hooper da sua resolução por meio de argumentos. Não
poderam, porém, convencel-o, e elle recebeu ordem da côrte para se
conservar em sua casa e deixar de prégar. Obedeceu, mas no seu forçado
afastamento escreveu uma _Confissão e Protesto_ em que expunha com toda
a clareza as razões que haviam imperado na sua recusa de fazer uso das
vestes prelaticias. Por este seu feito, metteram-n’o na prisão. Passado
algum tempo, porém, fez-se um convenio ácerca das vestimentas, foram
omittidas do juramento as palavras «e todos os santos», e Hooper foi
consagrado bispo de Gloucester. Mas o que havia occorrido fazia prever
novas borrascas n’um futuro proximo.

Ridley, um dos mais habeis cabeças do partido da Reforma no tempo de
Eduardo, homem de vastos conhecimentos, de grande largueza de idéas, e
muito tolerante—havia-se empenhado om que á princeza Maria se concedesse
o servir a Deus conforme a vontade d’ella—quando o fizeram bispo de
Londres em substituição de Bonner, limpou tambem todas as egrejas da sua
diocese das imagens, reliquias e agua benta, e insistiu em que todos
os altares fossem removidos e se pozessem em seu logar mesas para a
communhão.

Estas coisas eram um mau presagio para o timido accordo entre o romanismo
e a Reforma, que era em que consistia o ideal de Cranmer relativamente á
Egreja de Inglaterra.

Despertaram uma mais severa opposição da parte de homens que haviam sido
sempre partidarios da Egreja medieval. Quando Hooper e Ridley mostraram
até onde a Reforma os poderia levar, Gardiner e Bonner redobraram de
furia contra elles. O governo teve de refreiar ambos os partidos. Hooper
tinha estado preso por causa das suas idéas reformistas. Gardiner e
Bonner foram encerrados na Torre por causa das suas idéas medievaes.

=A morte de Eduardo VI.=—O joven rei nunca havia sido muito robusto, e
antes de terminar o anno de 1552 o seu estado de saude alarmou seriamente
os principaes vultos do protestantismo. Á herdeira do throno era a
princeza Maria, filha de Catharina de Aragão. Tanto o parlamento como a
convocação haviam proclamado a sua illegitimidade, mas essas resoluções
não tinham grande peso moral. Toda a gente, estava convencida de que
Catharina tinha sido a esposa legitima de Henrique, e de que Maria era
sua filha, devendo, portanto, esta occupar o throno no caso de Eduardo
fallecer. Além d’isso, segundo a lei de successão ao throno, promulgada
por Henrique VIII, ella tinha de succeder a Eduardo, no caso d’este não
deixar herdeiros.

Maria era uma ferrenha catholica romana, de descendencia hespanhola,
que nunca havia esquecido os aggravos de que a mãe fora victima, e
que considerava a Reforma como uma rebellião contra Deus e um insulto
dirigido a ella propria. Prima de Carlos V, imperador da Allemanha, era
uma grande admiradora dos seus talentos e da sua politica, e de muito boa
vontade se collocaria n’uma completa dependencia d’elle.

O conhecimento d’estas coisas enchia de anciedade os espiritos dos
conselheiros de Eduardo. A subida de Maria ao throno seria um desastre
para a Reforma, que os attingiria tambem a elles. Viram que lhes era
necessario fazer todo o possivel para que o herdeiro do throno fosse um
principe ou princeza protestante.

Eduardo VI havia, em creança, abraçado firmemente o protestantismo,
e todo o seu empenho era que o monarca que viesse depois partilhasse
as mesmas crenças. Quando viu que lhe restava pouco tempo de vida,
resolveu nomear o seu successor. Nada o poude persuadir de que não
tivesse o poder de o nomear; e nada o poude induzir a que a nomeação
recaisse n’uma de suas irmãs. Elle estava convencido de que eram ambas
illegitimas, como o parlamento havia declarado, e que, por conseguinte,
não tinham direito algum á successão. Aquelle rapaz, que estava prestes
a morrer, era, pela sua tenacidade, um digno representante da casa de
Tudor. Poz deliberadamente de parte tanto Isabel como Maria; poz tambem
deliberadamente de parte Maria, a joven rainha da Escocia, representante
de Margarida, a irmã mais velha de seu pae, e escolheu Joanna Grey,
representante de Maria, irmã mais nova de seu pae. Joanna tinha casado
com o filho mais velho do conde de Northumberland, e era protestante.
Eduardo estava convencido de que o povo havia de acceitar a successora
por elle mencionada. Os seus conselheiros estavam convencidos de que o
protestantismo estava tão arraigado no paiz que nenhum catholico romano
poderia ser bem succedido. Enganavam-se ambos.

Assim que se deu o fallecimento de Eduardo, a rainha Joanna foi
devidamente acclamada; mas o povo, tomado de surpreza, não correspondeu
á acclamação. A princeza Maria fugiu, mas em volta d’ella reuniu-se
muita gente, e o povo secundou as suas reclamações. Passada uma semana,
tinha-se vencido toda a opposição, e o throno era de Maria.

A magnanima, formosa e instruida rainha foi presa e decapitada, e o
throno foi occupado, com o apoio geral, por uma soberana catholica romana.

=O estado da Inglaterra por occasião da acclamação de Maria
(1553).=—Quando Maria subiu ao throno, a Reforma, como um edificio
politico e visivel, com tanto custo levantado por Eduardo e pelos
seus conselheiros, desappareceu por completo, como coisa de nenhuma
substancia. É que ella havia sido imposta á Inglaterra pelo governo,
ao contrario do que acontecera em outros paizes, em que foi imposta ao
governo pelo povo ou acceite egualmente por governantes e governados.

Por outro lado, o paiz achava-se em pessimas circumstancias financeiras,
devido em parte á crise economica que a Europa estava atravessando, mas
devido principalmente ao desmedido fausto da côrte de Henrique VIII, e
á depreciação da moeda. O povo attribuia a sua miseria ao governo e a
todos os actos salientes das auctoridades. A extincção dos conventos e a
venda dos terrenos da Egreja foram logo tidas como a causa das desgraças
que affligiam o paiz; e os frades que haviam sido tirados das casas
religiosas, e que estavam espalhados pelo paiz na qualidade de parocos e
curas, ateiavam o fogo da antipathia pela Reforma, e preparavam o povo
para um regimen reaccionario, pelo que dizia respeito á religião.

Gardiner, bispo de Winchester, que havia saido da Torre quando Maria
iniciou o seu reinado, e se havia tornado o seu ministro favorito,
comprehendeu perfeitamente a situação. Elle sabia que o paiz, na sua
quasi totalidade, preferia a antiga religião mas que nunca gostara do
papa. Tratou, pois, de promover um regresso á situação em que se estava
no principio do reinado de Henrique VIII, sem que, porém, se tornasse tão
ostensiva a supremacia real.

Maria, posto que se deixasse guiar por Gardiner, tinha idéas mais
arrebatadas. A facilidade com que ella, apoz longos annos de indifferença
e abandono, havia cingido a corôa parecia-lhe um indicio de que o povo
se estava preparando com regozijo para o restabelecimento da antiga
religião e que tinha na conta de tão malefico o que se havia passado
nos ultimos annos como ella propria. Como filha de Henrique, e como
rainha de Inglaterra, sentia em si o dever de reparar, de accordo com
o papa, os ultrajes que a Egreja Romana havia soffrido ás mãos dos
estadistas inglezes. Como filha de Catharina de Aragão, e como prima de
Carlos V, parecia-lhe que devia prestar o seu auxilio aos hespanhoes,
e unir a Inglaterra á Hespanha, tanto no que dizia respeito á politica
internacional, como, e ainda mais especialmente, no que dizia respeito á
politica ecclesiastica.

=A Hespanha necessitava do auxilio da Inglaterra.=—Maria subiu ao
throno em 1553. O Tratado de Passau, entre os principes protestantes da
Allemanha e Carlos V, foi assignado em 1552. Carlos sentia-se forçado a
confessar que a Reforma o tinha vencido, quando Maria lhe participou a
sua acclamação e lhe supplicou que a aconselhasse. A alliança ingleza era
a unica coisa que poderia annullar o triumpho da Reforma, e restituir o
bom exito á politica austro-hespanhola. Carlos respondeu immediatamente,
e o seu conselho mostrou a anciedade em que elle se encontrava.

Maria, escreveu elle, devia, em primeiro logar, tornar firme o throno; em
seguida devia tornar segura uma alliança hespanhola, casando com Filippe,
herdeiro do imperador; e, executadas estas duas coisas, podia então fazer
as pazes com o papa.

O papa estava tão ancioso por congratular Maria como Carlos havia estado;
mas o imperador não queria despertar os sentimentos anti-papistas do povo
inglez; os interesses em jogo eram muitissimo fortes. E assim o Cardeal
Pole, nuncio do papa, recebeu ordem para se conservar nos Paizes Baixos
até a Inglaterra se achar preparada para o receber.

=Como Maria se firmou no throno.=—Ao principio fel-o com bastante
facilidade. A tentativa de collocar Joanna Grey no throno havia
desacreditado e desanimado os protestantes mais em evidencia, e poucos
d’entre elles appareceram. Foi, pois, facil a Gardiner obter que o
parlamento revogasse todas as leis que diziam respeito ao divorcio de
Catharina e á filiação de Maria. O decreto parlamentar que conferia ao
rei uma supremacia absoluta em todos os negocios ecclesiasticos foi um
meio excellente para fazer com que o paiz mudasse de religião. A rainha,
por occasião da sua acclamação, ouviu missa, segundo o antigo costume.
Cranmer protestou, sendo por esse facto remettido para a Torre, onde em
breve se lhe reuniram Latimer e Ridley. Foi abolido o Livro de Oração
Commum, e todas as mudanças introduzidas no culto no reinado de Eduardo
foram postas de parte. A Egreja de Inglaterra foi reposta nas condições
em que Henrique VII a havia deixado.

=A alliança hespanhola.=—O povo inglez não via com bons olhos a alliança
hespanhola, e era, em especial, hostil ao casamento da sua rainha com
Filippe de Hespanha. O bispo de Gardiner, que conhecia a indole da nação,
tratou de dissuadir a rainha, mas esta achava-se firmemente resolvida a
desposar Filippe. Gardiner, ao ver que nada podia impedir o casamento,
redigiu o contracto nupcial em termos taes que Filippe ficava sem direito
ao titulo real, não podia succeder á consorte e era-lhe defezo exercer
qualquer influencia nos negocios publicos de Inglaterra. O facto de
Carlos e seu filho terem acceitado estas condições mostra o valor que
elles davam a uma alliança estavel com a Inglaterra.

O povo inglez ficou indignado com similhante casamento, e para mostrar
o seu desagrado revoltou-se em diversas partes do reino; Pedro Carew
poz-se á frente dos rebeldes em Cornwall e Devon, o conde de Suffolk nos
condados do Centro, e Thomaz Wyatt em Kent. A unica revolta importante
foi capitaniada por Wyatt, e se não teve consequencias mais graves foi
isso devido á coragem da rainha. A nação reconheceu tambem que Maria era
filha de seu pae, e a legitima herdeira, e não teve grande sympathia
com as rebelliões contra ella. Filippe chegou, com instrucções de seu
pae para fazer tudo quanto estivesse ao seu alcance para agradar ao
povo inglez, as quaes elle, no seu modo extravagante, tratou de seguir,
bebendo cerveja ingleza e fazendo outras coisas do mesmo genero, e o
casamento celebrou-se com toda a pompa. Estava assegurada a alliança com
a Hespanha.

=A reconciliação com Roma.=—Filippe e Maria eram fervorosos catholicos
romanos, e anhelavam por que a Inglaterra se libertasse do anathema papal
que sobre ella havia caido quando Henrique desposou Anna Boleyn; mas
não era facil conseguir isso. O povo inglez obstinara-se sempre em não
reconhecer a supremacia papal, e eram muitos os pontos da sua historia
que o aconselhavam a não se submetter facilmente ao pontifice romano.
Carlos aconselhou o filho e a nora a procederem muito cautelosamente.
Havia, comtudo, uma difficuldade ainda maior: era a questão das terras
que haviam sido arrancadas do poder da Egreja e vendidas a particulares.
Por um lado, o papa não deixaria de insistir na sua restituição, e,
por outro, essa restituição iria, certamente, dar logar a violentos
protestos. Poucas d’essas terras estavam na posse da corôa; a maior parte
d’ellas tinha sido vendida, e o producto da venda gastara-se. A rainha
estava impossibilitada de tornar a compral-as aos respectivos donos e
restituil-as á Egreja.

Carlos V poude, com alguma difficuldade, induzir o papa a renunciar á
reivindicação d’esses bens abbaciaes, e a unica coisa que restava fazer
era predispôr o povo inglez para a chegada do nuncio.

O nuncio escolhido pelo papa foi Reginaldo Pole, segundo sobrinho de
Eduardo IV. Pertencia, portanto, á aristocracia ingleza, mas havia
preferido o desterro a reconhecer a supremacia real de Henrique VIII ou
a legalidade do divorcio de Catharina de Aragão. Era parente de Maria, e
fôra um dos que haviam soffrido por terem tomado a defeza da mãe d’ella.
Solicitou-se do parlamento a sua reabilitação. Esta foi proclamada,
e Pole foi recebido em Inglaterra como membro da nobreza. Apresentou
então as suas credenciaes, que o acreditavam como legado do papa. O povo
acolheu a noticia com indifferença. Por fim o parlamento approvou uma
proposta para que se tratasse de promover a reconciliação com Roma. Em
1554, no dia de Santo André, o cardeal nuncio absolveu solemnemente a
nação. Filippe e Maria, com ambas as casas do parlamento, ajoelharam-se
na presença do cardeal emquanto este os restituia á communhão da Santa
Madre Egreja. O parlamento revogou todas as leis que affirmavam a
supremacia real e que rejeitavam a supremacia do papa. O clero, por outro
lado, renunciou solemnemente a todas as reivindicações quanto aos bens
abbaciaes e a outras propriedades da Egreja que haviam sido sequestradas.
A união com Roma estava novamente restabelecida por completo.

=Porque não foi bem succedida a reacção.=—No espaço de dois annos
a Inglaterra estava, segundo todas as apparencias, inteiramente
reconciliada com o papa. Como que parecia que o reinado de Eduardo nunca
tinha existido, e que Henrique tinha vivido em harmonia com o papa até ao
fim da sua vida. Tinha-se estabelecido a reacção catholica romana, que
parecia disposta a levar tudo de vencida; mas apoz um curto periodo o
movimento reaccionario foi obrigado a deter-se, e dentro de alguns annos
a Inglaterra havia-se transformado n’uma grande nação protestante. Como
se operou esta transformação?

É talvez impossivel distinguir todas as causas, mas apparecem tres
d’ellas á superficie da historia: as perseguições que tiveram logar
durante o reinado de Maria, as questões por causa dos terrenos
ecclesiasticos, e o alastramento da opinião favoravel á Reforma como
resultado das predicas evangelicas no curto reinado de Eduardo.

=As perseguições no reinado de Maria.=—Os protestantes que existiam em
Inglaterra no tempo de Maria não soffreram tão atrozes perseguições como
as que dizimaram os huguenotes da França ou victimaram os reformadores
dos Paizes Baixos. Despertaram, comtudo, no paiz um tal horror ao papismo
que ainda hoje subsiste. A razão d’isso foi devida, em parte, ao modo
barbaro como se arrancou a vida aos martyres, e em parte á idéa, que
se arraigou, de que as execuções eram instigadas por Filippe, fazendo
parte do vasto plano que elle havia formado para reduzir a Inglaterra ao
dominio hespanhol.

A politica de Maria e de seus conselheiros era a de exterminar todos
os que durante o reinado anterior haviam fomentado a Reforma. Os
homens condemnados ao exterminio eram todos bem distinctos, tanto pelo
nascimento, como pela eloquencia, como pela illustração, como pela
piedade. Eram: Cranmer, o edoso primaz, Hooper, bem conhecido pela
sua férvida eloquencia, Ridley, um dos mais sabios e mais tolerantes
theologos reformados. O povo conhecia bem os homens que acabavam de ser
derrubados, e não foi indifferente á morte d’elles. A Inglaterra viu
serem entregues ao carrasco e queimados em vida os seus homens mais
eruditos e de maior capacidade moral.

E por que motivo? perguntaram todos. Por causa da alliança com a
Hespanha. Era preciso agradar a Pilippe, o beato, o hypocrita, o homem
insensivel a todos os males, e estar de bem com aquella nação que havia
consentido que os seus proprios filhos e filhas fossem torturados pela
inquisição, e, sem a menor sombra de revolta, se havia submettido ao mais
esmagador despotismo.

Os martyres encararam os ultimos momentos com um valor christão. Durante
a vida não conseguiram despertar a confiança universal, mas com as suas
mortes provaram que estavam bem convencidos do que apregoavam, e fizeram
penetrar no coração do povo a verdade das opiniões que haviam forcejado
por tornar dominantes emquanto poderam e pelas quaes morriam agora com
satisfação.

=As terras da Egreja.=—Maria havia sido prevenida por Carlos V de que
não devia tentar restituir á Egreja os bens abbaciaes. Estes tinham sido
vendidos, e, em virtude da venda, estavam divididos por cerca de quarenta
mil pessoas. Tocar-lhes era atacar o direito de propriedade. A Egreja e
o papa haviam renunciado á reivindicação da sua posse, antes mesmo do
parlamento ter abolido as leis que eram contrarias ao pontificado e á
religião catholica romana. Maria, porém, tinha o coração desasocegado.
Aquellas terras pesavam-lhe na consciencia. Como poderia a Inglaterra
ser abençoada emquanto tantos dos seus subditos e ella propria estavam
aproveitando dos roubos feitos á Egreja?

O papa Paulo IV, que havia sido consagrado em 1555, não approvou a
conducta do seu predecessor no que dizia respeito áquella questão, e
pediu repetidas vezes á rainha que fizesse a restituição. Maria accedeu,
por fim, ás suas instancias, e conseguiu com alguma difficuldade, que as
camaras dessem o seu consentimento para que as terras da Egreja, ainda em
poder da corôa, passassem para os seus primitivos donos. Isto produziu um
grande descontentamento. Fez com que os possuidores dos restantes bens
abbaciaes deixassem de considerar garantidos os seus direitos, e a perda
de dinheiro que a rainha soffreu obrigou-a a augmentar os impostos. A
Egreja mostrava-se, como sempre, inexoravel, e o povo começou a odial-a.

=O effeito do ensino da Reforma no reinado de Eduardo VI.=—Os theologos
estrangeiros que no reinado anterior tinham vindo ensinar para Oxford
e Cambridge haviam educado uma geração de jovens estudantes que,
convencidos da verdade das suas opiniões, as acceitaram e as espalharam
por entre o povo, e que com muita satisfação davam agora a sua vida por
ellas. Até ali pouco tinha havido na Reforma ingleza que despertasse
o enthusiasmo. O povo tinha passado, com a maior das facilidades, de
uma profissão de fé nacional para outra. As perseguições de Maria
tornaram heroica a Reforma; e jovens prégadores, amestrados por Martinho
Bucer e Pedro Martyr, arriscavam com muito gosto as suas vidas para
conseguirem que os seus compatriotas acceitassem as doutrinas biblicas
dos reformadores. As traducções da Biblia, e em especial a de Tindal e a
de Coverdale, eram lidas por centenas de pessoas, e a Inglaterra ia sendo
esclarecida ácerca da significação da Reforma.

O povo estava fartissimo de perseguições, e indignado contra a Egreja
que as havia occasionado; sentia desdem pela avidez que a Egreja havia
mostrado quando chamada a tomar de novo posse das propriedades que lhe
haviam sido tiradas, e conhecia agora melhor as Escripturas e estava mais
ao facto do que era a Reforma. Tudo indicava que a grande força de que a
reacção poderia dispôr não se manifestaria por muito tempo.

=A morte de Maria.=—Maria morreu em 1558, de uma hydropesia, escapando,
talvez, d’esse modo, de ser victima de uma revolução. «A mais infeliz das
rainhas, das esposas e das mulheres», o seu nascimento tinha enchido de
regozijo uma nação, e tivera por mãe uma princeza da mais altiva casa da
Europa. Na sua infancia havia recebido o tratamento de futura soberana
de Inglaterra, e era, no dizer de todos, uma encantadora e sympathica
rapariga. Depois, aos dezesete annos, foi-lhe vibrado um golpe esmagador,
que a cobriu de trevas para toda a vida, O seu pae, o parlamento, e
a Egreja do seu paiz chamaram-lhe filha illegitima, e, marcada com
este ferrete maldito, foi chorar na solidão a sua ignominia. Quando a
Inglaterra a saudou como rainha no seu trigesimo-setimo anno, era já uma
velha de faces cavadas e voz aspera, conhecendo-se apenas pelos olhos,
negros e cheios de fulgor, o quão formosa havia sido out’ora. O povo,
porém, parecia amar aquella mulher, que durante tanto tempo anhelava
por um affecto; casara com um marido da sua escolha, e ella propria se
reputava um instrumento predestinado pelo céu para que se reintegrasse no
divino favor uma nação excommungada. O marido, a quem ella idolatrava,
aborrecendo-se d’ella passado um anno ou dois, retirou-se para Hespanha.
A creança cujo nascimento ella desejava apaixonadamente não chegou a
nascer. A Egreja e o papa, a quem ella tanto sacrificara, fizeram-se
surdos ás suas supplicas, e pareciam não se importar com os desgostos que
a affligiam. E o povo, que a recebera com tanto enthusiasmo, e a quem
ella realmente amava, chamava-lhe Maria a Sanguinaria, e esse cognome
tem sido transmittido de geração em geração até aos nossos dias. Cada
tribulação por que passava era, no seu entender, um aviso do céu, por não
ter ainda feito plena propiciação pelos crimes da Inglaterra, e, assim,
as fogueiras da perseguição foram de novo accesas, e novas victimas se
arremessaram para ellas, para aplacar o Deus do romanismo do seculo
dezeseis.



CAPITULO III

A REFORMA NO TEMPO DE ISABEL

    A successão de Isabel, pag. 189.—Como se liquidou a questão
    religiosa, pag. 190.—_Os trinta e nove artigos_, pag.
    197.—O puritanismo e as vestimentas ministeriaes, pag.
    192.—A Inglaterra e o protestantismo de fóra do reino, pag.
    194.—A lucta interna com o catholicismo romano, pag. 195.—A
    Armada hespanhola, pag. 196.—As prophecias, pag. 197.—Os
    _conventiculos_, pag. 198.—_Os pamphletos anti-prelaticios_,
    pag. 198.—A Reforma ingleza, pag. 198.


=A sucessão de Isabel.=—Por morte de Maria, Isabel foi, sem opposição,
proclamada rainha. O partido catholico romano, que se poderia ter opposto
á sua successão, não dispunha de força para isso, pois que a Inglaterra
estava em guerra com a França, e a unica rival de Isabel era a esposa do
Delfim, Maria, a rainha da Escocia. E, comtudo, a sua legitimidade era
para todos os catholicos romanos em extremo duvidosa. Isabel era filha de
Anna Boleyn, e Catharina de Aragão ainda estava viva quando ella nascera.

A Inglaterra achava-se em deploraveis condições quando ella subiu ao
throno. Nos cofres do Estado não havia dinheiro, apezar de se terem
cobrado adeantadamente as receitas, e a guerra com a França estava
levando a ruina a todos os lares. A situação individual da rainha era
a mais precaria que se póde imaginar. A sua legitimidade era mais do
que duvidosa. A França, na primeira occasião opportuna, havia de fazer
valer os direitos de Maria Stuart. A Hespanha, que era, apparentemente,
a unica nação com que ella podia contar, era odiada pelos inglezes. A
força do protestantismo nas provincias era duvidosa. Vendo os perigos
de uma questão religiosa logo no principio do seu reinado, a rainha
contemporizou. Ia á missa para agradar aos catholicos romanos. Prohibiu
a elevação da hostia para agradar aos protestantes. E poz-se á espera de
ver o que a Hespanha e a Inglaterra diziam.

A Hespanha parecia estar em amigaveis disposições. Filippe II
ofereceu-lhe a mão de esposo, mas a alliança hespanhola dependia tanto
de Filippe como do papa, e Isabel não tardou em certificar-se de que da
Curia Romana não acolheria benevolamente a filha de Anna Boleyn. Quando
o embaixador anunciou a sua acclamação ao papa, este respondeu: «Isabel,
na sua qualidade de filha illegitima, não podia subir ao throno sem o meu
consentimento; é um desproposito da parte della, se o fizer. Que ella, em
primeiro logar, submetta á minha decisão as suas reivindicações.» Não era
preciso mais. Isabel não podia, de ahi em deante contar com a Hespanha.

Não teve, tão pouco, de esperar muito tempo pela resposta da Inglaterra.
O seu primeiro parlamento era quasi todo composto de protestantes.
As côrtes reuniram-se em 1559, e restabeleceram a supremacia real,
posto que de uma fórma modificada. Henrique VIII havia-se chamado a
si proprio «o unico chefe supremo da Egreja de Inglaterra no mundo».
Isabel contentou-se com um titulo menos pomposo, o de «Chief Governor»
(Governador Geral), e o parlamento decretou que todos os clerigos
e magistrados a reconhecessem, sob juramento, como rainha, «a quem
pertencia o governo de todos os estados, quer civis quer ecclesiasticos.»
Uma commissão de doutores em theologia, nomeada para rever o Livro de
Oração Commum do rei Eduardo, modificou-o de maneira que podesse ser
usado pelos catholicos romanos, e essa revisão foi, por recommendação
d’elles, adoptada.

A Inglaterra quiz abraçar o protestantismo, e Isabel, privada por Maria
da Escocia de uma alliança com a França, e pelo papa de uma alliança com
a Hespanha, não teve outro recurso senão o de conquistar as sympathias do
povo inglez e fazer-se egualmente protestante.

=Como se liquidou a questão religiosa.=—Isabel não era, de maneira
nenhuma, o que se chama uma boa protestante. Não possuia fortes
convicções religiosas. Parecia-se n’isso com a grande massa do povo e do
clero que lhe coubera em sorte governar. Quando Eduardo subiu ao throno,
era ella uma rapariga de dezeseis annos; apezar de tão nova, porém, sabia
conduzir-se muito ajuizadamente, e provou-o conformando-se com a religião
patrocinada pela côrte. Quando Maria cingiu, por sua vez, a corôa,
contava ella vinte annos, e era dotada de um espirito muito resoluto.
Conformou-se outra vez com o culto catholico romano. Era, pelo que tocava
aos sentimentos, uma digna filha de seu pae, e preferia as doutrinas e o
systema catholicos romanos, occupando o soberano o logar do papa.

Era uma Tudor, e amava o luxo e a sumptuosidade. Havia herdado uma grande
disposição para dominar, e a Egreja Catholica Romana era então o modelo
por excellencia de um governo despotico. Ella havia recebido uma boa
educação litteraria, e comprazia-se muito em ler os antigos auctores
gregos. Gostava de uma Egreja que mostrasse reverencia pelas opiniões e
praticas patristicas. Era muito amiga de festas e ceremonias, e preferia,
por esse motivo, o ritual apparatoso da Egreja de Roma. O que, porém, não
queria era encontrar o papa no seu caminho.

Detestava João Knox, e, mediante elle, Calvino e toda a escola
genebrense. Não gostava da doutrina da justificação pela fé, nem da
simplicidade do culto genebrense, e, acima de tudo, abominava aquelles
principios democraticos de governo da Egreja que se haviam identificado
com o presbyteriannismo. Os reformadores da envergadura de Knox, com as
suas doutrinas da predestinação, do livre perdão obtido directamente de
Deus, e do sacerdocio espiritual de todos os crentes, temiam sómente
a Deus. Isabel queria que os homens temessem tambem o rei, e estava
convencida de que o temor da Egreja era uma boa preparação para o temor
do monarca. Ella não possuia a subtileza de espirito para dizer como o
seu successor, «Sem bispo não pode haver rei», mas pensava-o.

O parlamento havia-lhe demonstrado que a Inglaterra era mais protestante
do que ella desejaria que fosse, e submetteu-se acceitando o Livro de
Oração Commum e outras usanças protestantes.

Os bispos catholicos romanos que haviam sido promovidos a essa dignidade
durante o reinado de Maria tiveram a coragem de protestar contra taes
mudanças. Resignaram os seus cargos ou foram d’elles exonerados. Em 1559
estavam vagas todas as sés episcopaes, á excepção da de Llandaff.

Foi instituido um novo episcopado, e á sua frente collocou a rainha
Matheus Parker, que havia sido um dos capellães de sua mãe.

Conseguiu-se completar o numero indispensavel de bispos para uma
consagração legal, chamando do isolamento a que se haviam acolhido os
bispos de Eduardo VI que a rainha Maria tinha deposto. As idéas de
Parker eram muito mais protestantes do que as de Isabel, mas parece
que elle não se preocupou muito com as innovações introduzidas pela
rainha. Escolheram-se outros bispos do mesmo caracter, e o todo ficou
constituindo uma Egreja protestante que descançava sobre uma visivel base
catholica romana.

Isabel em breve descobriu, porém, que os seus bispos eram muito mais
protestantes do que ela desejaria que fossem. As perseguições executadas
por ordem de Maria fizeram com que muitas familias inglezas se retirassem
para fóra do reino. Tinham formado colonias em Francfort, em Genebra,
e n’outras partes, tinham adquirido intimidade com os theologos
calvinistas, e, ao voltarem para Inglaterra, eram tambem calvinistas.
Eram pessoas que não podiam estar silenciosas; tinham soffrido, e os
martyres do ultimo reinado eram tidos em grande honra; tinham opiniões,
e podiam apresentar um motivo da sua fé. Os bispos sabiam que a Egreja
de Inglaterra não podia ser aquillo que Isabel desejava que fosse, e
devia possuir uma auctorizada exposição de doutrinas, um credo cujos
delineamentos principaes fossem calvinistas. A rainha viu-se obrigada
a consentir n’isso, e os bispos prepararam uma profissão de fé chamada
_Os Onze Artigos_. Isabel queria conservar as imagens, os crucifixos e
os paramentos, mas os bispos sabiam que o povo não se conformaria com
similhantes coisas. A questão prolongou-se tanto que os bispos, n’uma
occasião, ameaçaram-n’a com um pedido collectivo de demissão. O artigo
undecimo declarava, portanto, que «as imagens eram coisas vãs».

=Os trinta e nove artigos.=—Este curto formulario de doutrinas foi,
passado algum tempo, considerado insufficiente, e, além d’isso, a rainha
teimava em dar á Egreja uma orientação que a tornava muito parecida
com a catholica romana. Queria, por exemplo, tornar obrigatorio o
celibato clerical. Os bispos reconheceram a necessidade de uma serie,
ou exposição, auctorizada dos pontos dogmaticos da Egreja. O arcebispo
Parker, com a assistencia dos bispos de Ely e de Rochester, pegou nos
_Quarenta e dois Artigos_ de Cranmer, omittiu tres, e reviu os restantes.
A revisão foi apresentada ás Casas da Convocação, que lhe fizeram uma
segunda revisão. A rainha leu e esquadrinhou os Artigos antes de dar o
seu consentimento, e fez duas muito caracteristicas alterações. Inseriu a
primeira clausula do Artigo XX: «A Egreja tem poderes para decretar ritos
ou ceremonias, e auctoridade nas controversias sobre a fé»; e riscou
o Artigo XIX: «Dos impios, que não comem o corpo de Christo á Mesa da
Communhão». Os bispos, porém, insistiram na re-introducção d’esse Artigo,
e a rainha submetteu-se. Estes Artigos são, e houve intenção de que o
fossem, calvinistas na sua theologia. O bispo Jewel, que lhes fez uma
definitiva revisão em 1561, escreveu a Pedro Martyr, que se encontrava
em Zurich: «Quanto a pontos de doutrina, fomos cortando tudo até chegar
á carne viva, e não differimos de vocês na espessura de uma unha.» Assim
a Egreja, que havia alterado o seu Livro de Oração Commum para o amoldar
ao gosto catholico romano, formulou os seus artigos de religião, o seu
credo, de tal modo que ficou em conformidade com as egrejas reformadas da
Suissa.

=O puritanismo e as vestimentas clericaes.=—A rainha não gostava dos
trinta e nove artigos, e havia-o manifestado. A sua approvação tinha
sido uma victoria para o partido protestante com que ella dificilmente
se conformava. Animados com o bom exito alcançado, os puritanos
tentaram, de uma maneira vigorosa abolir o Livro de Oração Commum, e
desembaraçar-se de todos os ritos e paramentos que procediam da Egreja
medieval, e estiveram a ponto de ser bem succedidos. Isabel resistiu com
toda a força e tenacidade de que era dotada, e saiu, por fim, victoriosa.

Este conflicto com os puritanos começou cerca do anno de 1564, e
durou durante toda a vida de Isabel. Ao principio o ponto principal
em discussão era o uso da capa de asperges e da sobrepeliz, que é uma
sobrevivencia da toga branca, ou traje de ceremonia, do imperio romano.
Os puritanos do tempo de Isabel mantinham-se n’uma posição identica á de
seus irmãos no reinado de Eduardo VI. Sustentavam que os cargos na Egreja
christã não são sacerdotaes nem senhoriaes; ninguem era eleito bispo pelo
facto de ser clerigo, e poder por essa razão approximar-se mais de Deus
do que os seculares, ou porque o governo lhe havia sido conferido por uma
auctoridade de fóra da Egreja, mas porque os officios de superintendente
e pastor são de utilidade para a Egreja, e porque a Egreja chama esses
homens para a servirem no limite das suas funcções. Recusavam fazer uso
dos paramentos, porque estes significavam uma coisa em que elles não
criam.

A contestação tomou em breve um caracter violento. Os bispos sentiam-se
inclinados a contemporizar, pois que sabiam o quanto se havia espalhado
e quão profundamente arraigada estava aquella opposição ás vestes
clericaes; mas a rainha não lh’o permittiu. Fez uso do poder que a
supremacia lhe dava sobre os bispos para os obrigar a pôrem em execução a
Acta da Uniformidade, e isso deu logar a que o puritanismo fosse como que
um protesto contra a supremacia real e contra a constituição episcopal,
e como que um brado para que o povo tivesse voz activa no governo da
Egreja, o que só o presbyteriannismo ou o congregacionalismo pode
proporcionar. Durante os annos de 1565 e 1566 foram em grande numero os
ministros que perderam os seus logares por não se quererem conformar com
os usos estabelecidos.

A rainha entendia que a sua posição como governadora da Egreja a
auctorizava a proceder a continuos inqueritos ao modo como era conduzido
o culto publico nas paroquias de Inglaterra. Nomeou commissarios
reaes para inspeccionar e dar-lhe as necessarias informações, e estes
agentes de Isabel vieram a constituir o Tribunal da Alta Commissão,
que se tornou um instrumento de tyrannia ecclesiastica nos reinados
de seus successores. Por estes commissarios foi Isabel informada da
existencia dos não-conformistas, e insistiu n’uma submissão ás praticas
estabelecidas.

O povo fez, na sua maioria, causa commum com os ministros que estavam
inhibidos de tomar parte nos serviços. As prisões e as multas só
serviram, como sempre aconteceu, para ateiar as chammas da dissidencia.
Esta fez a sua apparição nas universidades. Os estudantes recusaram fazer
uso da sobrepeliz ou assistir aos serviços religiosos feitos por clerigos
paramentados. Foram tantas as paroquias que vagaram que não era possivel
arranjar ministros para todas; e, quando qualquer ministro submisso era
collocado n’uma d’ellas, o povo, em geral, apupava-o. Alguns dos mais
zelosos ministros separaram-se da Egreja nacional.

O grande dirigente dos puritanos era Thomaz Cartwright, que, tendo sido
educado no Collegio de S. João, em Cambridge, veiu a ser depois professor
de theologia. Era um homem piedoso e illustrado, e um eloquente prégador,
e, tendo perdido a sua cadeira de lente por causa das suas opiniões,
ainda por cima teve de soffrer o exilio. Dois puritanos, Field e Wilcox,
escreveram um folheto moderado—_Uma advertencia ao parlamento_—sobre
a disciplina da Egreja e as medidas violentas que haviam sido tomadas
contra os puritanos. Foram mandados para Newgate, como dois criminosos
quaesquer. Cartwright escreveu uma _Segunda Advertencia_ em defeza
dos seus amigos, e teve, pela segunda vez, de fugir do paiz. A rainha
respondia a cada pedido de tolerancia com novas exonerações, a ponto
de haver n’uma só diocese, a de Norwich, segundo consta, não menos
de trezentos ministros suspensos. O arcebispo Parker morreu em 1575,
havendo-lhe o cargo de executor da rainha, que desempenhava bem contra
sua vontade, tornado amargosissimos os ultimos annos da sua vida.

=A Inglaterra e o protestantismo de fóra do reino.=—Ha alguma desculpa
para as medidas tomadas por Isabel contra os puritanos no principio do
seu reinado. A Inglaterra estava fraca, estava empobrecida, e o throno
de Isabel não offerecia estabilidade. Não sympathisava com a Reforma no
que ella mais profundamente significava, e não a animava o desejo de
ver o seu povo convertido n’uma nação de enthusiasticos reformadores. A
Inglaterra, segundo a sua opinião, precisava de descanço e de paz para
recuperar as suas esgotadas energias. Se a Inglaterra tivesse abraçado
o protestantismo com verdadeiro enthusiasmo, não assistiria de braços
cruzados ás crueldades commettidas para com os protestantes francezes e
hollandezes pela França e pela Hollanda. Desempenharia na Escocia, nos
Paizes Baixos e na França o papel de campeão protestante. Isabel, com a
sua impassivel politica, conservou o povo inglez de reserva para o grande
futuro que o esperava. «Nada de guerra, meus senhores, nada de guerra»,
exclamava ella invariavelmente quando Cecil ou outro qualquer ministro
manifestava o desejo de a ver collocada á frente de uma liga protestante.

Isabel não obstante a sua anterior attitude de resistencia, não desejava
romper por completo com os papistas, ou apresentar-se quer aos seus
subditos catholicos romanos, quer ás nações continentaes, como uma rainha
forte e resoluta. A Inglaterra necessitava de descanço, e a rainha havia
determinado conservar em paz o seu paiz.

Isto explica em parte a sua politica de indifferença perante a lucta
em que os protestantes se achavam envolvidos n’outros paizes. Cecil,
o maior dos ministros que Isabel teve, queria que ella se pozesse á
frente de uma grande liga protestante e prestasse um auxilio efficaz aos
protestantes da Escocia, dos Paizes Baixos e da França. Os ciumes que
Isabel tinha de Maria Stuart forçaram-n’a a coadjuvar em grande medida o
partido protestante da Escocia—a coadjuval-o até ao ponto de elle poder
tornar preponderante aquella fórma de protestantismo em que tanto havia
perseverado. Pelo que, porém, diz respeito aos Paizes Baixos e á França,
Isabel não deu outro auxilio além do que era sufficiente para que o
partido protestante continuasse a existir, e isso mesmo foi feito mais
com o fito de consumir as forças da França e da Hespanha do que com o de
proteger perseguidos correligionarios.

=Luctas intestinas com o catholicismo romano.=—A politica da côrte
romana e especialmente as declarada sintenções e designios dos jesuitas
forçaram Isabel, depois de ter reinado quasi doze annos, a mostrar-se
mais decidida a defender a fé protestante, tanto em Inglaterra como fóra
d’ella. Os jesuitas tinham insistido repetidas vezes em que não se devia
guardar fidelidade aos chefes de estado protestantes; alguns dos seus
emissarios tinham pregado o assassinio como meio licito de desembaraçar
os paizes dos seus soberanos protestantes, e não faltavam exemplos que
advertissem Isabel da sorte que a esperava.

A sua rival, Maria Stuart, expulsa da Escocia, era para a Inglaterra uma
prisioneira perigosa. A morte de Isabel podia tornal-a, a ella que era a
esperança do partido catholico romano, a herdeira mais proxima do throno
inglez.

Em 1570, o regente Moray, que era o chefe politico da Reforma na Escocia,
foi escandalosamente assassinado. Em 1572 foi planeado, e barbaramente
posto em pratica, o massacre de S. Bartholomeu. No mesmo anno o duque
de Alba, Filippe II e o papa conferenciaram com Ridolfi, florentino
que residira durante muito tempo em Inglaterra, sobre a possibilidade
de uma insurreição catholica romana em Inglaterra, dirigida pelo duque
de Norfolk. Descoberta a conspiração, Norfolk foi decapitado. Todos
estes casos mostraram a Isabel que toda a sua salvação estava em entrar
verdadeiramente no caminho da Reforma, e mostraram tambem ao povo o
quanto Isabel era essencial para o triumpho do protestantismo.

É talvez uma evidencia de que a rainha e os seus subditos protestantes
se ligaram mais estreitamente o facto de Edmundo Grindal, clerigo
de pronunciadas tendencias puritanas, ter sido collocado na sé de
Canterbury, vaga em virtude da morte de Matheus Parker.

Em todo o caso, Isabel, se não se mostrou menos intolerante no reino,
reconheceu que era de seu dever enviar mais soccorro aos protestantes
de fóra. Os huguenotes receberam um auxilio pecuniario. Os aventureiros
inglezes, e entre elles Francisco Drake, tiveram permissão para fazerem
todo o mal que podessem ao commercio hespanhol. Isabel mandou, mesmo,
um corpo de exercito para ajudar os neerlandezes na sua guerra com a
Hespanha.

Este procedimento fez com que as forças catholicas romanas trabalhassem
com mais ardor para a ruina da Inglaterra. Estabeleceu-se um seminario
em Douay, e um collegio em Roma, onde se preparassem padres inglezes
que iriam depois para o seu paiz promover agitação entre os romanistas.
E eram continuos os rumores de novas conspirações para collocar Maria
Stuart no throno de Inglaterra.

Isabel e os seus conselheiros compenetraram-se, por fim, do perigo que
ella corria. O parlamento promulgou que os missionarios romanistas
ficavam sujeitos ás penalidades que correspondiam a crimes de alta
traição, e quando se descobriu a conspiração de Babington, para
assassinar Isabel e pôr Maria em liberdade, e se provou que Maria
estava ao facto de toda a trama, ficou decidida a execução da rainha
dos escocezes. Isabel não representou um papel muito heroico n’esta
tragedia, mas adquiriu a certeza de ter, d’esta vez, quebrado todas as
relações com Roma, assim como Roma e os poderes romanos não poderam
deixar de reconhecer que o tempo das conspiratas tinha findado, e que, ou
a Inglaterra seria subjugada, ou ter-se-hia de admittir a Reforma como um
facto consumado.

=A Armada hespanhola.=—Roma e Hespanha descobriram por fim o que o astuto
Guilherme Cecil tinha descoberto desde o principio. «O imperador aspira
á soberania da Europa, coisa que elle jámais poderá conseguir sem que
seja suprimida a religião reformada; e não poderá esmagar a Reforma sem
que primeiro esmague a Inglaterra». Carlos V tinha visto isso, mas não
muito claramente, quando se mostrou tão ancioso por uma alliança com a
Inglaterra, no principio do reinado de Maria. Filippe II viu-o quando
se offereceu para marido de Isabel. Coube, finalmente, a vez ao papa, o
qual, de mãos dadas com Filippe, fez convergir todos os seus esforços no
sentido de subjugar a Inglaterra.

A occasião era propicia. Filippe e a Santa Liga da França tinham,
apparentemente, triumphado. A Inglaterra encontrava-se isolada.

O papa Sixto V excommungou a rainha Isabel, e encarregou Filippe II de
executar a sentença. Sua Santidade contribuiu tambem com uma grande
quantia para ajuda da empreza. Os hespanhoes reuniram uma grande
esquadra, com a qual se propunham atacaria Inglaterra, e, para ter mais
seguro o bom exito, Alexandre de Parma, o mais habil general da Europa,
recebeu ordem para partir dos Paizes Baixos com o mesmo destino, levando
comsigo a flôridas tropas hespanholas.

Isabel appellou para o patriotismo da nação, e esta não se fez surda
ao seu appello. A Escocia, não obstante a execução de Maria, não quiz
levantar-se contra a Inglaterra. A França permaneceu inactiva, pois que
a liga não havia triumphado tanto como se suppozera e não tinha sido
possivel extinguir os huguenotes. Toda a Inglaterra pegou em armas.
Equiparam-se duzentos navios. A nação, fremente de enthusiamo, estava
preparada para o ataque. A Armada, composta de numerosos vasos de guerra
de grandes dimensões, aproou á Inglaterra, mas os ventos produziram-lhe
enormes avarias antes de chegar ao seu destino. Os navios inglezes
cercaram-n’a, e travaram com ella uma serie de combates navaes, que a
pozeram em deploraveis condições. Um temporal medonho completou a obra;
e a soberba frota, que os hespanhoes haviam equipado á custa de mil
sacrificios, deu miseravelmente á costa, sendo pouquissimos os barcos que
conseguiram chegar aos portos de onde haviam saido.

Foi desde então que a protestante Inglaterra ficou sendo a maior potencia
europeia. Não foi possivel supprimir a Reforma porque não foi possivel
vencer a Inglaterra.

É dificil dizer quanto o lado menos nobre de Isabel contribuiu para a
consecução d’este resultado final; o que é certo é que ella administrou
habilmente os recursos da nação, teve o maior cuidado em reprimir o
enthusiasmo d’esta, até que a ella se podesse entregar sem perigo algum,
e determinou, mediante o Acto de Uniformidade, cuja transgressão ficava
sujeita a severas penas, unificar exteriormente a Inglaterra. Pode ser
que os meios de que lançou mão não fossem reputados necessarios, mas
attingiu, pelo menos, o fim que tinha em vista.

=As prophecias.=—A nomeação de um arcebispo puritano não produziu os
beneficios que se esperava. Isabel tinha o costume de demonstrar aos
seus bispos que a supremacia real era uma coisa que existia de facto.
A rigorosa suppressão da não-conformidade havia occasionado uma grande
falta de ministros. Não era raro prover-se individuos sem aptidões para
prégar. Certos pastores animados de bons intuitos promoviam reuniões
clericaes, onde se discutia theologia e havia uma especie de curso
de oratoria. Estas reuniões, que tinham algumas parecenças com os
«Exercicios» da Escocia, e que eram, talvez, uma imitação d’elles,
chamavam-se as «Prophecias». A rainha não gostava d’ellas. Ella não via,
mesmo, a necessidade de se prégar sermões, e entendia que os ministros
se deviam limitar a ler as _Homilias_ ás congregações. O arcebispo
Grindal era favoravel a estas _Prophecias_, e quando a rainha lhe ordenou
para as prohibir recusou-se a fazel-o. A rainha, enfurecida, ameaçou-o
com a deposição, e chegou a suspendel-o do exercicio das suas funcções
episcopaes. Esta suspensão durou até quasi ao fim da vida do arcebispo.

=Os conventiculos.—Os pamphletos anti-prelaticios.=—Quando Grindal
morreu, Whitgift, o irreconciliavel adversario de Cartwright e do
puritanismo, foi elevado a arcebispo de Canterbury. A desastrosa
politica da rainha, rigorosamente executada por elle, teve as suas
naturaes consequencias. O povo, privado dos serviços dos clerigos a
quem respeitava, e obrigado a ouvir outros que não tinham direitos
nenhuns sobre elle, recusou-se a frequentar as egrejas. Reunia-se em
casas particulares e n’outros logares apropriados, e ahi fazia oração e
observava outros pormenores do culto publico. Estes conventiculos foram
declarados illicitos, mas, apezar d’isso, eram cada vez mais numerosos.
Surgiram as seitas não-conformistas.

Knox na Escocia e Beza em Genebra alarmaram-se com o estado da Egreja na
Inglaterra. Elles estavam ao facto das ameaças do poder catholico romano,
e sabiam bem que o protestantismo inglez precisava de estar muito unido.
Não sympathisavam de modo algum com o systema de Isabel, e, comtudo, eram
de opinião que o horror dos puritanos pelos paramentos religiosos era
algum tanto affectado e exaggerado. Escreveram aos dirigentes do partido,
rogando-lhes que se conformassem, mas a espada da perseguição tinha
penetrado demasiadamente nas suas almas. Impedidos de prégar, começaram
a escrever, e por entre o povo foram apparecendo diversos pamphletos por
elles publicados. O que se tornou mais notavel de tudo foi uma serie
de opusculos chamados _Anti-prelaticios_. Esses opusculos atacavam o
systema episcopal da Egreja de Inglaterra, e expunham com uma implacavel
severidade as varias ceremonias papistas que ella ainda conservava. Um
dos auctores, Nicolau Udal, foi descoberto, sendo executado em 1593.

=A Reforma ingleza= ficou firmemente estabelecida depois da derrota da
Armada hespanhola. A Inglaterra reconheceu finalmente que lhe competia
dirigir os Estados protestantes da Europa; e, não obstante o caracter
anomalo da Egreja reformada ingleza, o paiz soube tornar-se digno da sua
posição.

A Reforma ingleza, comtudo, era de um caracter tal que não pode ser
facilmente comparado com o do movimento do mesmo genero que teve logar
n’outros paizes. No primeiro periodo, um monarca caprichoso e absolutista
obrigou o reino a desligar-se do papado, ao mesmo tempo que reprimia
selvaticamente todas as tentativas de uma reforma religiosa, quer na
doutrina quer no culto.

Depois uma minoria da nação, onde figuravam, sem duvida, os homens de
maior capacidade intellectual e de melhores sentimentos, tratou de
promover uma reforma de doutrina e de culto. O movimento, empurrado, por
assim dizer, de fóra, não foi bem acolhido pelo conjunto da nação, que,
com a mudança de governo, voltou para o romanismo.

No reinado de Isabel a nação começou realmente a interessar-se pela
Reforma religiosa que havia agitado outros paizes, mas a supremacia real
encerrou o movimento dentro de uns certos limites que fizeram com que
elle não representasse verdadeiramente as aspirações da Egreja.

Tem sido moda nos ultimos annos entre os escriptores anglicanos e
ritualistas representarem a historia como se a Egreja tivesse sido levada
pelo seu proprio discernimento a assumir a attitude que assumiu para com
o romanismo, de um lado, e para com o decidido protestantismo, do outro;
mas estas representações não são defendidas pela evidencia contemporanea.
Os anglicanos fazem um grande cavallo de batalha do direito que a Egreja
tinha de se governar a si mesma mediante a sua organização episcopal
regularmente estabelecida; e empenham-se, tambem, em provar que a posição
que elles chamam catholica, e que outros chamam anomala, foi assumida
pela propria Egreja, actuando sob a direcção da sua regular jurisdicção
episcopal; mas os factos que se relacionam com este caso são contra
elles. A posição anomala de que se jactam não foi dada á Egreja pelos
seus bispos, mas pelo poder civil que actuava mediante a supremacia real.

Foi a supremacia real, de que elles não gostavam, que fez com que fosse
possivel á Egreja o adquirir uma fórma tal que podesse dar ás suas
theorias uma apparencia de base historica.

Foi a supremacia real que alterou o Livro de Oração Commum de Eduardo
VI, transformando-o n’um outro dentro de cujas formulas havia logar
para pessoas que teriam preferido conservar-se catholicas romanas
se considerações politicas não as obrigassem a passar para o lado
protestante.

Foi a supremacia real que insistiu em reter os paramentos e os ritos
contra os quaes os puritanos se revoltaram, e que diligenciou reter as
imagens, os crucifixos e a agua benta.

Foi a supremacia real e o seu conselho da Alta Commissão—conselho que
nada tinha que ver com o governo episcopal da Egreja, e que era de um
caracter inteiramente erastiano—que estabeleceu a Acta da Uniformidade,
e que impoz a conformidade sob pena de severos castigos, que podiam ser
exoneração, multa, prisão e até perda da vida.

Os cabeças ecclesiasticos, os bispos e o alto clero de Inglaterra
tinham, pela maior parte, o desejo de pôr a Egreja de Inglaterra muito
mais em harmonia, respectivamente á doutrina e ao culto, com as egrejas
reformadas do Continente, que haviam tomado Genebra para modelo.

Os bispos prepararam os _Os trinta e nove Artigos_, que o bispo Jewel,
a quem os seus irmãos confiaram a ultima revisão, declarou que haviam
sido redigidos com o proposito de mostrar que havia perfeita uniformidade
de doutrina, e especialmente da que se refere ao sacramento da Ceia do
Senhor, entre Genebra e Canterbury.

Os bispos, se os deixassem fazer o que entendessem, teriam sensatamente
tolerado as objecções dos puritanos quanto ás capas de asperges e ás
sobrepelizes, e teriam preferido o Segundo Livro de Oração Commum de
Eduardo VI, em uso havia muito tempo na presbyterianna Escocia, aquelle
que foi indicado por Isabel para satisfazer os escrupulos dos catholicos
romanos.

Os bispos obrigaram a rainha a declarar-se contra as imagens, os
crucifixos, a agua benta e o celibato do clero, isto é, contra todas
as coisas que ella desejaria conservar; e compelliram-n’a a acceitar o
Artigo vigesimo nono, que defende a theoria calvinista da Ceia do Senhor.

Se os bispos tivessem tido liberdade de acção, haveria logar na Egreja
de Inglaterra para os não-conformistas da actualidade, pois que a sua
queixa, começando por ahi, não era contra o governo episcopal, mas contra
os symbolos e ritos supersticiosos que lhes foram impostos pela rainha e
pela sua Commissão: difficilmente, porém, haveria logar para os modernos
ritualistas anglicanos.

Devem a posição, que legal e historicamente lhes deve ser concedida, a
duas coisas—(1) á supremacia real, que teve a força sufficiente para
reprimir e ter sujeito a si o episcopal e nacional desejo de uma Reforma
completa; e (2) ao facto de a uma numerosa parte do clero de Inglaterra
serem tão indifferentes as mudanças que poderam conservar-se no exercicio
das suas funcções durante os reinados de Eduardo, Maria e Isabel, isto é,
sob o systema puritano, romanista e anglicano.

A supremacia real deu á Egreja de Inglaterra o caracter claudicante da
sua reforma, e habilitou as pessoas que vivem actualmente a fallar dos
principios catholicos, isto é, medievaes, da Egreja ingleza.

Os historiadores teem mostrado que Isabel tinha necessariamente de
proceder da maneira cautelosa como procedeu, e, com aquella prepotencia
que a caracterizava, obstar a que a Egreja do seu paiz se reformasse por
completo. Ha alguma verdade no seu criticismo. Foi, comtudo, uma politica
myope, que só tratava de acudir ás primeiras necessidades, e que obedecia
muito ao principio de «depois de mim o diluvio.» Foi a supremacia real
de Isabel, imposta mediante o tribunal da Alta Commissão, que preparou
o caminho para a revolta puritana no reinado de Carlos I e para o dia
do Negro Bartholomeu no reinado de Carlos II. Se a Egreja de Inglaterra
tivesse sido entregue aos seus instinctos espirituaes, se a sua acção
não tivesse sido contrariada pelo erastianismo, poder-se-hia ter evitado
estas duas calamidades.



IV PARTE

OS PRINCIPIOS DA REFORMA

CAPITULOS:

      I—OS PRINCIPIOS DA REFORMA.

     II—COMO A REFORMA SE POZ EM CONTACTO COM A POLITICA.

    III—A CATHOLICIDADE DOS REFORMADORES.

     IV—OS PRINCIPIOS DOUTRINARIOS.



CAPITULO I

OS PRINCIPIOS DA REFORMA

    A Reforma foi uma revivificação da religião no meio de
    particulares condições sociaes, pag. 205.—Uma revivificação
    da religião e uma approximação de Deus, pag. 206.—Como a
    Egreja medieval chegara a impedir o caminho para Deus, pag.
    208.—Revoltas medievaes em favor de uma religião espiritual,
    pag. 209.—A imitação de Christo, pag. 209.—Francisco de Assis,
    pag. 210.—Os mysticos da Edade Media, pag. 211.—A significação
    do perdão, segundo a Reforma, pag. 212.—Previsões de uma
    revivificação religiosa operada pela Reforma, pag. 213.


=A Reforma foi uma revivificação da religião no meio de particulares
condições sociaes.=—O movimento da Reforma surgiu n’um dos mais notaveis
periodos da historia europea. A tomada de Constantinopla pelos turcos
ottomanos no meiado do seculo quinze dispersou por toda a Europa os
thesouros litterarios e os sabios de aquella rica e illustrada cidade.
Muitas pessoas começaram a estudar diligentemente os antigos auctores
latinos; aprenderam a lingua grega, e sentiram despertar-se-lhes a
sympathia pelos nobres pensamentos proferidos pelos velhos poetas
e philosophos gregos; leram o Novo Testamento na lingua em que foi
escripto; e os rabbis judeus encontraram, com grande surpreza sua, no
mundo occidental, homens com immensa vontade de aprenderem a sua antiga
lingua, o hebraico, e de estudarem o Velho Testamento guiados por elles.
Um mundo de novas idéas, quer na poesia, quer na philosophia, quer na
litteratura sagrada, se estava abrindo deante dos homens do periodo em
que a Reforma appareceu.

A descoberta da America por Colombo não só revolucionou o commercio e
tudo quanto se relaciona com elle, como tambem excitou a imaginação da
Europa. O que não poderiam os homens fazer, visto que tanto tinham feito
já, tanto tinham descoberto? Tudo quanto se disse e se escreveu n’aquella
epoca foi dito e escripto por homens que se julgavam em vesperas de
grandes acontecimentos. Foi um tempo de universal expectativa.

As condições politicas da Europa occidental tinham tambem mudado.
Os seculos quatorze e quinze assistiram ao nascimento das modernas
nações europeas. Haviam-se desprendido, umas apoz outras, do systema
politico medieval, e tornado independentes, com sentimentos, sympathias
e aspirações nacionaes, o que fez com que cada nação comprehendesse que
tinha um caminho especial a percorrer.

O resultado de tudo isto foi os homens sentirem que aquelle mundo de
costumes sociaes e de restricção politica e religiosa em que tinham
anteriormente vivido era pequeno de mais para elles; sentiram a
necessidade de mais espaço para respirarem. O mundo era maior; a vida
tinha muito mais aspectos do que aquelles que os paes d’elles tinham
jámais posto na sua idéa. Iam desapparecendo as velhas coisas, e tudo era
agora novo.

Emquanto o medievalismo durou, a Egreja, o Imperio e a philosophia
escolastica tinham dominado sobre as almas, os corpos e as mentes dos
homens, e traçado limites que elles não podiam ultrapassar. Estas
barreiras haviam-se desmoronado sob a influencia da nova vida que por
todos os lados penetrava n’elles, e os homens descobriram que a religião
era uma coisa maior do que a Santa Madre Egreja Catholica; que a vida
social, com todas as suas ramificações, não cabia nos limites do Sacro
Imperio Romano; que havia no coração do homem pensamentos que escapavam á
perspicacia dos mais eminentes sabios.

Em epocas anteriores alguns, mas poucos, pensadores tinham, com toda
a ousadia, dado expressão a essas idéas e aspirações, lucrando apenas
com isso o encontrarem-se na grave situação de isolamento social, como
acontece a todos aquelles cujos pensamentos não são comprehendidos
pelos homens do seu tempo. A invenção da imprensa tornou, porém, esses
pensamentos propriedade commum, e as multidões principiaram a ser
agitadas por elles.

Taes eram as condições sociaes do mundo quando a Reforma appareceu;
mas o movimento, em si, não pode ser explicado simplesmente por meio
de uma descripção d’essas condições sociaes. Teve logar uma verdadeira
renascença da religião, um cumprimento da promessa do derramamento do
Espirito Santo sobre a Egreja, que o esperava, e o movimento religioso
que surgiu n’uma tão especial conjunctura amoldou-se ás circumstancias, e
tirou d’ellas mesmas a sua força.

=Uma revivificação da religião e uma approximação de Deus.=—O que
mais agita os corações dos homens que se encontram no meio de um
grande movimento religioso dentro da Egreja christã é o desejo de se
approximarem de Deus, de se sentirem em communhão pessoal com aquelle
Deus que se mostrou cheio de graça e perdão mediante a vida e obra do
Senhor Jesus Christo. Os homens que estão realmente sob a influencia
de um grande despertamento religioso, e que são arrastados por um
movimento de revivificação, devem sentir este anhelo; e coisa alguma
deve contrarial-os mais do que depararam com o seu caminho atravancado
de obstaculos exactamente no ponto onde esperavam ter accesso á presença
divina.

Quando, no seculo dezeseis, a religião começou a revivescer, e mesmo
durante algum tempo depois, os homens que estavam sob a influencia d’essa
revivificação encontraram no seu caminho as taes barreiras de que já
falámos. A Egreja, que se intitulava a porta que dava accesso á presença
de Deus, tinha atravancado o caminho com a sua classe sacerdotal, com a
sua maneira de administrar os sacramentos, com a sua enfadonha lista de
penitencias e «boas obras». A Egreja, que devia ter mostrado a vereda
que conduzia á presença de Deus, parecia ter rodeiado o Seu santuario
de um triplice muro que tornava difficilima a entrada. Quando um homem
ou uma mulher sentia o peccado a atormentar-lhe o espirito, a Egreja
dizia-lhe que fosse ter, não com Deus, mas com o homem, muitas vezes
de vida immoral, e confessar-lhe tudo quanto havia feito ou pensado.
Quando anhelavam por ouvir consoladoras palavras de perdão, era-lhes
este assegurado, não por Deus, mas por um padre. A graça de Deus, de que
o homem tanto precisa durante a vida, e de que tanto precisa tambem á
hora da morte, era-lhes concedida por meio de uma serie de sacramentos a
que tinham de sujeitar todos os passos que davam n’este mundo. Renasciam
mediante o baptismo; adquiriam a sua maioridade perante a Egreja mediante
a confirmação; o seu casamento ficava isento do peccado da concupiscencia
mediante o sacramento do matrimonio; a penitencia restituia-os á vida,
depois de terem commettido qualquer peccado mortal; o sacramento da
Ceia do Senhor, administrado pelo menos uma vez por anno, alimentava-os
espiritualmente; e, finalmente, a extrema unção garantia-lhes o descanço
eterno quando se encontravam no leito da morte. Estas coisas não
constituiam de maneira alguma os signaes da livre graça de Deus, sob cujo
vasto docel o homem passa a sua vida espiritual. Eram, antes, umas portas
guardadas com toda a vigilancia, e que os padres abriam de mau humor, e
quasi sempre só depois de lhes pagarem, para dispensar aquella graça que
Deus dá gratuitamente.

Ninguem podia, tão pouco, viver livremente uma vida christã, dedicando ao
serviço de Deus todos os talentos que possuia. Para se viver santamente
era necessario observar umas tantas coisas que a Egreja prescrevia,
como, por exemplo, os frequentes jejuns, as interminaveis rezas, as
flagellações, e um conjuncto de tediosas ceremonias, que, se eram
manifestações de amor a Deus, não o eram, comtudo, em conformidade com a
maxima de S. João, beneficiando o proximo.

A Egreja estava sempre como que de sentinella á presença, de Deus,
proclamando a todos que, se almejassem por se approximar do compassivo
Redemptor só o poderiam fazer passando pelas estreitas portas que ella
guardava, e exigindo por essa passagem, isto é, pelo baptismo, pela
confirmação, pelo casamento, e pelos restantes sacramentos, umas vis
moedas, e inpondo de quando em quando uma compra de indulgencias, para
acabar de encher os seus cofres.

A grande Reforma foi um movimento religioso inspirado pelo irresistivel
desejo de uma approximação de Deus, e satisfez cabalmente esse desejo
levando deante de si, e fazendo desapparecer, todas as barreiras e
obstaculos.

=Como a Egreja medieval chegara a impedir o caminho para Deus.=—É natural
que occorra esta pergunta: Como é possivel que a Egreja se esquecesse a
tal ponto da sua missão e do verdadeiro fim da sua existencia que, como
os reformadores constataram, estivesse fazendo exactamente o contrario de
aquillo que devia fazer? A Egreja está no mundo para conduzir os homens
a Deus, e para os conservar junto d’Elle; mas Luthero e os seus irmãos
na fé haviam descoberto que ella se interpunha entre elles e Deus, e
que os conservava longe d’Elle. Como poude a Egreja tornar-se uma coisa
inteiramente opposta ao que era licito esperar que ella fosse? Como poude
a Egreja de Deus converter-se, segundo a graphica expressão de Knox,
«n’uma synanoga de Satanaz»? Para respondermos integralmente, ser-nos-hia
necessario um espaço de que não podemos dispôr; vamos, porém, dar uma
idéa geral do que se passou.

«A separação do mundo» é uma das maximas da vida christã, symbolisada
nos preceitos do Antigo Testamento, e incorporada nas normas da vida do
Novo testamento. A Egreja devia viver separada do mundo, e, em todos os
seculos, aquelles a quem coube a educação religiosa do mundo teem-se
esforçado por mostrar que isso pode ser facilmente posto em pratica.
Gregorio VII, mais conhecido pelo seu nome secular de Hildebrando, e
que viveu no principio da Edade Media e foi o grande organizador da
Egreja medieval, declarou que essa separação devia ser perfeitamente
visivel; trabalhou para que a Egreja se convertesse no reino de Christo;
e aquella sua opinião influiu muito no modo de ser da Egreja medieval.
Nos seus dias todo o governo politico estava nas mãos do chefe do Imperio
Romano, e Gregorio VII diligenciou fazer com que o reino de Christo fosse
tão visivel como esse imperio, e se constituisse em seu rival sobre a
terra. A idéa não era original, e quem a havia inspirado fôra o grande
Agostinho, mas Gregorio deu-lhe uma fórma pratica. Nas suas mãos a Egreja
tornou-se um reino em contraposição ao Imperio Romano da Edade Media, seu
adversario visivel. Isto não se poderia fazer sem transformar a Egreja
n’uma monarquia politica, pois que não pode haver comparação entre duas
coisas a não ser que sejam fundamentalmente analogas. O grande, o fatal,
defeito n’aquela idéa de separação do mundo, em que Gregorio andava
absorvido, proveiu do facto d’elle tomar uma parte do mundo, isto é, o
Imperio politico, pelo mundo todo de que era necessario haver separação,
de modo que a Egreja ficou separada do imperio, mas não ficou separada do
mundo.

A Egreja era santa, era espiritual, era o reino de Deus; todas estas
phrases, empregadas na Escriptura para descrever o parentesco espiritual
entre Deus e o seu povo foram malignamente applicadas a esta organização
politica visivelmente separada do Imperio politico da Edade Media. Um
homem era chamado _santo_ se pertencia a um dos reinos, e secular se
pertencia ao outro; um frade era um homem _santo_, um guarda do imperador
era um homem secular. Um campo era _santo_ se um papa ou um clerigo
qualquer recebia a respectiva renda; era secular se o proprietario não
tinha ordens ecclesiasticas. Todas as palavras e phrases que se deviam
reservar para quando se tratasse de assumptos espirituaes eram applicadas
na descripção de aquillo que era visivel e externo, de aquillo que
pertencia áquelle reino visivel a que se dera o nome de Egreja.

A Egreja era aquella organização dentro da qual se rendia culto a Deus;
era a esphera da religião; e quando, de caso pensado, ou em virtude
do modo habitual de fallar, se ensinou aos homens que a Egreja era
simplesmente uma sociedade visivel, a religião espiritual decaiu, sendo
substituida por uma outra que consistia apenas na observancia de um certo
numero de ceremonias. Esta petrificação da Egreja e da religião tornou-se
cada vez mais intoleravel, e contra ella se protestou praticamente
mediante diversas tentativas de revivificação. Quando a Reforma appareceu
era já impossivel supportal-a por mais tempo, e os homens insistiram em
que os nomes espirituaes fossem applicados ás coisas espirituaes, ou,
por outra, em que não se fizesse uso d’elles para desencaminhar as almas
piedosas.

=Revoltas medievaes em favor da religião espiritual. A imitação de
Christo.=—Posto que a Egreja medieval tivesse tendencia para se tornar
cada vez mais um reino politico, e cada vez menos uma egreja, não se
deve suppôr que durante a Edade Media não houvesse religião espiritual.
O Livro de Oração Commum da Egreja de Inglaterra era quasi todo copiado
de antigos livros cultuaes, escriptos n’uma epoca em que a idéa de Egreja
andava geralmente ligada á idéa de politica, e é innegavel que esse livro
está impregnado de um profundo sentimento religioso. Muitos dos hymnos
que eram cantados no culto publico por todas as egrejas protestantes
foram originalmente compostos por devotos poetas medievaes, que dedicavam
os seus talentos á causa de Christo. Esta religião espiritual tinha a
sua existencia dentro da Egreja medieval, e não estava em antagonismo
com o ritual d’esta. É que quasi nunca se chegou a pôr em contacto com
as theorias e doutrinas que eram não-espirituaes e friamente politicas.
Vivia comsigo mesma, n’uma verdadeira separação do mundo, sem procurar
definir as suas idéas, ou descutir o facto de terem os guias politicos
da Egreja restringido o sentido das phrases evangelicas. Vieram, porém,
tempos em que os homens se sentiram estimulados a exprimir os seus
pensamentos, e o modo como os exprimiam nem sempre estava em harmonia com
as definições dos estadistas ecclesiasticos. Para exemplificação d’isto,
vamos passar em revista dois periodos de reviviscencia.

=Francisco de Assis.=—Francisco de Assis, commovido pelas dolorosas
scenas que observava nas cidades, onde a população indigente, pela
maior parte composta de camponezes que haviam deixado as suas terras
para se livrarem do pagamento das contribuições e dos pesados serviços
a que os senhores feudaes, cheios de rapacidade, os obrigavam, vivia em
miseraveis e repellentes bairros, resolveu consagrar a sua vida ao ensino
espiritual d’esses parias da sociedade. E poz enthusiasticamente mãos á
obra, não com infatuação, nem movido por qualquer interesse, mas como
sob a influencia de uma grande idéa. Essa grande idéa era a tal maxima
da «separação do mundo», a mesma que, erradamente interpretada, havia
tornado politica a Egreja; mas elle deu-lhe outro sentido. A separação do
mundo não podia, segundo a sua opinião, ser explicada por meio de dois
espaços—um d’elles occupado pela Egreja e outro pela sociedade politica;
tinha de baseiar-se na conducta individual. Gregorio VII tinha definido a
separação de uma maneira negativa; havia dito «A Egreja é uma coisa que
o mundo não é, e está onde o mundo não está.» Francisco definiu-a de um
modo mais claro e mais descriptivo. A separação do mundo não consiste em
estar onde Christo está, mas em fazer o que Christo fez.

Francisco havia-se apossado de uma idéa que Anselmo de Chanterbury
expozera n’uma arida fórma escolastica, a da _imitação de Christo_;
e foi com o auxilio d’essa idéa que poude descrever a verdadeira e
individual separação do mundo, muito differente da separação politica
de Gregorio VII. Anselmo e Bernardo de Clairvaux tinham, um de uma
maneira fria e dogmatica, e outro n’um estylo de fervoroso prégador da
renascença, feito uso d’esta imitação de Christo, affirmando ser ella o
unico meio de os homens se aproveitarem dos beneficios que Christo lhes
alcançou. Os peccadores podem tomar parte na obra de Christo imitando-O.
Francisco pegou, por assim dizer, n’esta idéa e, ligando-a com a maxima
da separação do mundo, disse: «Eis aqui a verdadeira separação. Christo
não era d’este mundo. O Seu reino não era d’este mundo. A separação do
mundo é posta em pratica quando os homens teem sentimentos analogos aos
de Christo.»

Francisco, porém, vivia n’uma epoca em que os homens não tinham grande
largueza de vistas, e a vida e obra de Christo, assim como a Sua
separação do mundo, apresentavam-se-lhe claramente, mas de uma maneira
limitada. Nosso Senhor não era casado; estava separado da vida social
que provém do casamento. Era pobre; estava separado do mundo da riqueza,
do mundo possuidor de bens. Levou a Sua obediencia até ao ponto de Se
deixar matar; estava separado do mundo da livre vontade, da independencia
de vida e de acção. Prendeu-se a estes aspectos exteriores da vida de
Christo; fez consistir a imitação de Christo e a consequente separação do
mundo n’estes modos visiveis de proceder como Christo; e imitar Christo
ficou significando, entre os seus adeptos, fazer votos monasticos de
pobreza, castidade e obediencia.

O movimento revivificador dirigido por elle produziu grandes resultados
e teve um rapido successo; mas, como todos os outros movimentos que se
baseiam em imitaçõees exteriores da vida divina, depressa deixou de
impulsionar os espiritos, e os homens piedosos pozeram-se á procura de
uma melhor separação do mundo, uma separação mais profunda, e de uma mais
genuina imitação de Christo.

=Os Mysticos medievaes.=—Os mysticos julgaram ter encontrado uma solução
para o problema. A imitação de Christo e a separação do mundo á maneira
de Christo deviam, disseram elles, ser mais profunda e mais intima.
Deviam ser postas em connexão com uma religião espiritual, pois que é
a alma, e não aquillo que a cerca, que deve approximar-se de Christo,
afim de O imitar e de O seguir na Sua separação do mundo. O homem tem,
disseram elles, uma vida dupla; uma vida intrinseca, que é propriamente
a vida da alma, e uma vida exterior, uma vida visivel, passada no
meio da sociedade. Põe-se em communhão com Deus, não mediante aquella
vida exterior, que todos os homens vivem, mas mediante a que possue
espiritualmente, mediante a vida da alma. A separação do mundo não
consiste n’uma norma de proceder, n’uma separação de parte de aquella
vida visivel que todos teem necessariamente de viver, pois que separação
do mundo significa communhão com Deus, e essa communhão não tem logar de
uma fórma visivel, mas muita reconditamente, quando a alma se encontra a
sós com Elle. Os homens deviam renunciar a todas as affeições, a todos
os desejos, a todos os actos que podessem impedir a communhão da alma
com Deus, e entregar-se, n’uma deliberada solidão, áquelle Christo que
está sempre prompto a acolher o Seu povo. Tinham, como se vê, ácerca da
separação do mundo, a mesma idéa de Gregorio. Ligavam-n’a com aquella
idéa de imitação de Christo, em que Francisco de Assis tanto insistia.
Vivendo, porém, n’uma epoca calamitosa, em que abundavam as guerras, em
que abundavam as fomes, em que abundavam as epidemias, foram levados a
reconhecer, como a ninguem, antes ou depois d’elles, tem succedido, que
o reino de Deus está no interior dos corações. A renuncia ficou sendo a
sua senha, e essa sua renuncia era toda espiritual, e com ella se armaram
para soffrer pacientemente tudo quanto a Deus, na Sua Providencia,
aprouvesse enviar-lhes. Mostraram a Luthero o que vinha a ser religião
espiritual, mostraram-lhe que a religião deve, para ter esse nome, ser
espiritual, e approximaram-se, indubitavelmente, mais de Christo do que
Gregorio com a sua Egreja politica ou do que Francisco de Assis com a sua
pictorica imitação dos aspectos da vida de Christo no mundo.

=A significação do perdão, segundo a Reforma.=—Todos estes movimentos
eram revivificações da religião. Eram todos elles tentativas para
se chegar a uma verdadeira separação do mundo, que é o mesmo que
approximação de Deus. A Egreja sustentou esta prolongada lucta como
preparação para a Reforma, fazendo dos seus proprios desenganos outras
tantas alpondras para attingir coisas mais elevadas. E Luthero passou
por todas ellas. Como Gregorio VII, reconheceu a irresistivel força das
reivindicações da consciencia quando, a despeito da opposição da familia,
deixou de estudar direito para estudar theologia.

Foi Francisco de Assis quando pensou que a vida monastica e a imitação
de Christo segundo as regras monacaes lhe proporcionariam aquella
paz da alma que é o fructo de uma convivencia com Christo. Foi João
Tauler ou Nicolau de Basiléa quando se inteirou de que a religião,
para ser verdadeira, deve ser espiritual. Mas ainda assim elle não
ficou satisfeito. Não se sentiu tão perto de Deus em Christo como sabia
que lhe era indispensavel estar senão depois de experimentar aquella
bem-aventurada sensação de perdão pela qual anhelava. E porque havia
feito esta pergunta, «Como hei de eu adquirir a certeza do perdão? Como
hei de eu transpôr essa insuperavel barreira do peccado que se ergue
entre mim e o Deus de toda a santidade?» e considerara este ponto como de
summa importancia durante todo o periodo em que o seu espirito passou por
varias vicissitudes, é que poude fallar em nome de milhares de pessoas
piedosas que almejavam por aquella revivificação da religião que a
Reforma effectuou.

Durante toda a Edade Media, de que a devoção foi um dos principaes
caracteristicos, se desejou ardentemente viver perto de Deus, mas esse
desejo era manifestado mediante differentes perguntas, e cada tentativa
de revivificação tornava mais evidente a possibilidade de que elle
fosse satisfeito, Gregorio perguntava: «Como posso eu separar-me do
mundo?» Francisco de Assis dizia: «Como posso eu tornar-me similhante
a Christo?» Os mysticos perguntavam: «Como posso eu ter o sentimento
do perdão, e saber que Deus me perdoou os pecados?» Todos luctam com a
mesma dificuldade, todos desejam a mesma coisa; está-se cada vez mais
perto da solução do problema, á medida que as gerações se succedem,
até que por fim vieram os reformadores, que com tanto zelo procuraram
revivificar a religião, e pozeram em primeiro logar a questão do perdão,
e, conseguintemente, a do peccado, tocando assim no ponto principal.
Desembaracemo-nos do peccado, disseram elles; alcancemos o perdão, e
haverá então separação do mundo, imitação de Christo e communhão com Deus.

A revivificação da religião operada pela Reforma fez da espiritualidade
o ponto de partida, e corresponde-lhe sempre do mesmo modo. Os homens
alcançam o perdão de Deus indo pedil-o directamente a Deus, e confiando
na Sua promessa de que perdoaria. A livre e clemente graça de Deus,
revelada na pessoa e obra de Christo, e a confiança do homem n’essa
promettida graça são os dois polos entre os quaes vibra sempre a vida
religiosa da Reforma. Deus, por amor de Christo, prometteu perdoar o
peccado do Seu povo. O peccador confia n’essa promessa. Tal é o simples
aspecto religioso do movimento da Reforma. Todos aquelles que, sentindo a
necessidade do perdão, e tendo perfeita confiança na promessa do perdão
que Deus fez mediante Christo Jesus, vão ter com Elle, e, deixando de
pensar em si e no que podem fazer, descançam simplesmente n’essa promessa
e entregam tudo a Deus, são perdoados e teem a consciencia d’isso.

=Previsões de uma revivificação religiosa operada pela Reforma.=—Sendo
este o verdadeiro modo de encarar o movimento da Reforma, é manifesto que
elle não constituiu um caso singular, isolado, na historia da Egreja.
Todos os christãos piedosos teem sentido pouco mais ou menos a mesma
coisa, o seu espirito tem passado pelos mesmos transes. Teem ido ter com
Deus para serem perdoados; teem confiado na obra de Christo e na promessa
de Deus revelada n’essa obra. As orações de todas as gerações christãs
dão d’isso testemunho, os hymnos que se referem á vida do christão dizem
a mesma coisa, e o que a Reforma fez foi definir claramente que todos os
christãos tinham, com mais ou menos consciencia do facto, sentido.

Os christãos medievaes não tinham reconhecido que o que espiritualmente
experimentavam, e que era a linha central da sua vida religiosa, estava,
n’uma multiplicidade de modos, em contradicção com o credo, o culto e a
organização theoretica da sua Egreja. Não ha nada mais surprehendente
do que o contraste entre as exposições doutrinaes e as posições
ecclesiasticas de muitos e distinctos vultos da Egreja medieval e os
hymnos que elles não sómente cantavam como escreviam e as phrases que
empregavam nas suas orações. A sua theologia tinha muitos pontos de
contacto com a philosophia pagã de Aristoteles, no seu culto estavam
consubstanciados muitos ritos do paganismo, a fórma como a Sua Egreja
era dirigida era mais modelada na constituição do imperio romano do que
na constituição da Egreja do Novo Testamento; os christãos piedosos
viveram n’estas heterogeneas circumstancias até ao momento em que os
elementos pagãos que haviam sido introduzidos na sua Egreja se tornaram
tão preponderantes que elles se viram forçados a protestar contra elles.
Luthero achou o perdão antes de se haver desligado de Roma, e talvez que
nunca fosse compellido a revoltar-se se o paganismo que havia na Egreja
não tivesse tido a audacia de vender o perdão de Deus por dinheiro. Isso
levou-o, a elle e a muitos outros, a dar attenção a certos assumptos,
e compenetrou-se de que a venda do perdão dos peccados não era uma
horrivel profanação enxertada na Egreja que elles veneravam, mas sim uma
verdadeira e logica deducção de principios com que elles não se tinham
até ali preoccupado. Quando, pois, quizermos investigar os antecedentes
da Reforma, devemos procural-os n’aquelle evangelismo que sempre existiu
na Egreja medieval, manifestando-se na santidade da vida, na nobreza dos
hymnos, nas confissões do peccado, e na confiança nas promessas do Deus
do pacto. Os protestantes não precisam de reivindicar a sua affinidade
com homens cujo unico signal de vida religiosa consiste em não terem
reconhecido a auctoridade do papa, ou terem protestado contra o viver
religioso do seu tempo, em favor de idéas extraidas do mahometanismo
ou dos auctores pagãos. Teem uma mais nobre ascendencia em todos esses
homens e mulheres piedosas que, mesmo nos seculos mais obscuros da
Egreja, foram ter directamente com Deus, confiados, tanto no tocante á
vida presente como no tocante á vida futura, n’aquelle perdão e graça
renovadora que Elle revelou em Christo.



CAPITULO II

COMO A REFORMA SE POZ EM CONTACTO COM A POLITICA

    O velho systema ecclesiastico estava profundamente arraigado
    na vida social da epoca, pag. 215.—A Reforma desfez a nação
    medieval de uma sociedade politica, pag. 216.—Revolta contra
    o medievalismo, anteriormente á Reforma, pag. 217.—O _De
    Monarchia_ de Dante e o _Defensor Pacis_ de Marcello de Padua,
    pag. 218.


=O velho systema ecclesiastico estava profundamente arraigado na vida
social da epoca.=—A Reforma começou simplesmente como uma tentativa de
dar o culto a Deus de uma maneira mais simples, segundo os dictames da
consciencia e os impulsos da vida interior, da vida espiritual; mas não
podia ficar por ahi; significou por fim uma revolução nas condições da
sociedade e uma grande mudança na situação politica da Europa.

A Egreja medieval era muito rica, e possuia muitos bens de raiz, e quando
uma freguezia, ou uma provincia, ou um paiz se tornava protestante,
levantavam-se discussões sobre o destino a dar a estas propriedades.
Deviam ficar em poder dos padres, deviam passar para o do pastor
protestante, ou deviam as auctoridades civis tomar conta d’ellas e
administral-as como bens do Estado? A Egreja tinha o direito de cobrar
dizimos—o dizimo grande, ou a decima parte da colheita do trigo ou do
vinho, e o dizimo pequeno, ou a decima parte das ovelhas, dos vitellos,
dos porcos e dos ovos. Os padres e os frades recebiam remuneração pelos
baptismos, pelos casamentos, pelas confirmações e pelos enterros.
Quando as familias se tornavam protestantes, e dispensavam os serviços
dos clerigos da Egreja medieval, por não se quererem sujeitar a ritos
supersticiosos, aonde ir buscar aquelles dizimos e aquelles emolumentos?
A permissão para se render culto a Deus segundo as consciencias
preceituavam envolvia questões de dinheiro, que eram muitas vezes levadas
aos tribunaes, e que obrigaram, mesmo, a uma modificação das leis
concernentes á propriedade.

A Egreja medieval tinha o seu systema de celibato. Os clerigos não
podiam casar, e, alem dos parocos e dos curas, havia frades e freiras
celibatarias e que haviam feito votos de castidade, sanccionados
pelo Estado. Quando qualquer d’estes homens ou mulheres se tornasse
protestante, ser-lhe-hia permittido desligar-se dos votos e abandonar
o convento? e, no caso de ter levado dinheiro comsigo para o convento,
ser-lhe-hia restituido? Se todos os moradores de uma casa religiosa
abraçassem a fé protestante, poderiam conservar-se n’essa casa, e
continuar disfructando a respectiva dotação? A todas estas questões
juridicas deu logar a Reforma.

Mas havia outras questões muito mais graves. A Egreja medieval, segundo o
costume da epoca, tinha jurisdicção sobre muitos pleitos, que na Europa
moderna são julgados pelos tribunaes civis. As questões entre marido
e mulher, entre paes e filhos, e as que diziam respeito a heranças e
testamentos, estavam na alçada dos tribunaes ecclesiasticos, e nunca eram
submettidos ás instancias ordinarias do reino. A Egreja é que decidia se
um casamento era ou não legal, se este ou aquelle grau era prohibido, se
este ou aquelle filho era legitimo, etc. Estas questões levantavam sempre
comsigo uma outra, a da propriedade, pois que só os filhos ligitimos
podiam herdar os bens de seus paes. Só era licito o casamento que fosse
feito dentro dos graus auctorizados, e effectuado á face da Egreja por
um sacerdote ordenado. E isto porque, em conformidade com as idéas da
Egreja medieval, o matrimonio era um sacramento. E assim protestante
algum podia estar legalmente casado, porque a legalidade de um matrimonio
só podia provir de um sacramento que não podia ser administrado a
rebeldes, por constituir um acto de desobediencia á auctoridade da
Egreja. E a lei da Egreja era a lei da nação; pois que antes da Reforma
a Egreja tinha o direito de resolver todos estes casos. A não ser que
as leis fossem alteradas, filho algum de protestantes, casados por
pastores protestantes, podia herdar de seus paes, pois que, segundo a
lei da Egreja medieval, os paes não tinham contraido um casamento legal.
E, portanto, não andavam sómente envolvidas n’isto as questões que
diziam respeito á propriedade; affectava-se tambem a honra pessoal, e a
dignidade das esposas e dos filhos.

Poderiamos multiplicar os casos indefinidamente; mas os que citámos são
sufficientes para mostrar como o simples desejo de dar culto a Deus
segundo a consciencia alterou todas as condições da vida social. O
velho systema ecclesiastico descia até aos proprios alicerces da vida
quotidiana, e tudo apertava nas suas garras. A Reforma, ao atacal-o,
atacou por esse facto todas as leis: a da propriedade, a do casamento, e
a da hereditariedade.

=A Reforma desfez a noção medieval de uma sociedade politica.=—Segundo
as noções medievaes, a sociedade estava dividida em Egreja e em Estado
politico. O poder ecclesiastico estava todo centralizado na pessoa
do papa, que era o sacerdote universal; e o poder civil estava todo
centralizado na pessoa do imperador, que era o soberano universal. Um era
sacerdote dos sacerdotes, e o bispo dos bispos, e o outro era o rei dos
reis. Um homem pertencia á Egreja se estava sob a jurisdicção do papa;
era membro da sociedade civil se estava sob o dominio do imperador.

Tres poderosos chefes francos tinham, uns apoz outros, no fim do seculo
oitavo, proporcionado ao christianismo o dilatar-se, sem ser incommodado,
n’uma parte da Europa occidental. Com os seus fortes exercitos obstaram
ao avanço das hordas dos barbaros frisios e saxonios que pretendiam
opprimir a Europa com uma nova Dispersão das Nações, e obrigaram os
serracenos a retroceder para alem dos Pyrinéus. Como preito de gratidão,
o papa havia conferido a Carlos Magno, o ultimo dos tres, o titulo de
Imperador dos Romanos e reunido em volta d’elle o prestigio do nome
romano e tudo quanto restava das leis, artes e sciencias romanas. O
imperio assim estabelecido apresentava um estranho dualismo. Tinha um
chefe civil e outro espiritual, Cesar e o papa; e toda a jurisprudencia
europea se fundava na dupla theoria da representação; o imperador era
reputado o vigario de Deus nos negocios civis, ou terrestres, ao passo
que o papa governava em nome de Deus nas coisas espirituaes.

Segundo as noções medievaes, quando um homem recusava obedecer ao papa
no que dizia respeito ás materias espirituaes rebellava-se contra a
sociedade, pois que esta se baseava na idéa de que o papa e o imperador
eram os senhores supremos. O protestantismo quebrou esta união dos dois
elementos da christandade, que se affigurava necessaria para dar á
sociedade uma existencia politica e mantel-a sobre uma firme base moral.

=Revolta contra o medievalismo, anteriormente á Reforma.=—As idéas
medievaes tinham soffrido alguma coisa antes de apparecer a Reforma. O
nascimento das nações modernas, com os seus interesses em separado, o
que dava origem a constantes conflictos, e com as suas aspirações de
completa independencia, vibrou um golpe á noção medieval de christandade
indivizivel. Este sentimento de independencia nacional significava
revolta contra o imperador, a qual foi seguida, de uma fórma menos
perceptivel, de sedições nacionaes contra o papa. A lei ingleza de
_Proemunire_, que prohibe appellações para Roma, significava que existia
no reino de Inglaterra uma jurisdicção de que não se podia appellar;
e isso era uma revolta contra a noção medieval da christandade unida,
segundo a qual todas as appellações deviam ser depostas junto do throno
do imperador ou da cadeira do papa.

Noções independentes queria dizer egrejas independentes, e a revolta
de Henrique VIII não teve maior significação do que a de Eduardo III ou
a de Filippe, o Bello. A theoria gauleza foi, n’uma epoca posterior,
uma revolta contra a mesma idéa medieval de centralizar em Roma o poder
ecclesiastico.

A Reforma intensificou esta revolta. Deu-lhe um sentido mais amplo;
tornou-a permanente; animou a tendencia para a descentralização.
Depois de ter surgido a Reforma as nações tiveram mais um motivo para
dissenções, pois que a differença de credo indispôl-as umas com as outras.

Os mysticos medievaes, com as suas theorias de religião espiritual,
tinham dado pouca importancia ás idéas de unidade politica e
ecclesiastica que prevaleciam então na Europa, mas não as atacaram. A
convicção em que estavam de que a religião consiste n’uma communhão
espiritual com Deus tornava-os extremamente indifferentes a todas as
combinações e associações extrinsecas. De todos os reformadores só
Luthero mostrou partilhar o seu quietismo, ou passiva indifferença,
perante a união politico-ecclesiastica. A Reforma, porém, não era um
simples movimento individualista; fez ver a conveniencia de os homens se
ligarem uns com os outros, com a differença, comtudo, de que o centro
d’esse movimento associativo, d’essa força colligadora, não era aquelle
que as nações medievaes indicavam. Nutria a vida nacional; os homens,
pela razão de terem combatido lado a lado, de terem vivido no mesmo
paiz, de terem herdado as mesmas tradições, de terem soffrido os mesmos
infortunios, mantinham entre si uma especie de unidade espiritual.
As egrejas nacionaes, as protestantes, obedeciam a esta nova lei de
desenvolvimento do interior para o exterior. A Reforma, que operou uma
tão completa separação de Roma, e que, apezar d’isso, não destruiu a
sociedade, mostrou a todos os homens que podia haver vida social e
communhão religiosa sem aquella pressão exterior, sem que as idéas de
ordem e associação andassem ligadas á idéa de um imperio e uma egreja
universaes. A noção medieval de uma Europa unificada constrangia todas as
nações a obedecerem a um poder central, que residia no imperador; a noção
reformista era a de uma fraternidade de povos.

=A De Monarchia de Dante (1311-1313), e o Defensor Pacis (1324-1326), de
Marcello de Padua.=—Appareceram dois notaveis livros antes da Reforma, um
que pertencia ao passado que ia desapparecendo, e outro que pertencia ao
futuro que se avisinhava.

Dante, lamentando as interminaveis contendas dos estados italianos e
das nações europeas, escreveu a sua _De Monarchia_ para mostrar aos
seus contemporaneos como podiam viver em paz. O que elle propunha era
o restabelecimento, em toda a sua força, do velho imperio medieval, o
qual, mesmo visto do seu lado melhor, pouco mais era do que um sonho,
conservando o seu poderio mediante o poder que tinha de arrebatar a
imaginação, O reinado da paz universal teria logar, pensava elle, quando
se restabelecesse o poderoso imperio dos Cesares ou de Carlos Magno,
isto é, quando um energico imperador, com a sua côrte no centro do mundo
civilisado, ouvisse e julgasse os casos que de todos os pontos da terra
fossem submettidos á sua decisão final, e fizesse sentir o peso da sua
ferrea mão a todos aquelles que armassem contendas com os seus irmãos.
Este livro é o epitaphio do medievalismo.

Marcello de Padua, pouco mais ou menos pelo mesmo tempo, escreveu o
seu livro, o _Defensor Pacis_, que explicava como a verdadeira paz e
segurança nacional começam de dentro. Para Marcello o Estado é o povo,
e do povo—dos seu desejos, das suas aspirações, dos seus temores, dos
seus intentos—é que provém a vida nacional. O governo é do povo e para
o povo. E o mesmo se dá com a Egreja. O seu governo é ministerial; o
seu poder é derivado de aquelles sobre quem se exerce. Emquanto Dante
procurava um poder compellidor que operasse de fóra, Marcello predizia
que a força que havia de dominar as nações não podia deixar de ser uma
força auto-coerciva que tivesse a sua origem no proprio povo. A Reforma
contribuiu para que essa predicção se cumprisse, e para que as suas
theorias viessem a constituir uma descripção da vida politica e social da
actualidade.

Tal foi a revolução politica effectuada pela Reforma. Mudou o centro
da vida nacional de uma força repressora exterior para uma invisivel
fonte de acção. Fez para a vida politica da Europa o que Kepler fez para
a astronomia e Kant para a metaphysica: mudou o centro de fóra para
dentro.



CAPITULO III

A CATHOLICIDADE DOS REFORMADORES

    Os reformadores não tinham em mente crear uma nova Egreja,
    pag. 221.—Reivindicaram a sua posição por meio de um apello á
    Constituição do Imperio medieval, pag. 221.—A catholicidade da
    Reforma, segundo Luthero e Calvino, pag. 222.—A sua posição
    reivindicada pelo Credo dos Apostolos, pag. 223.


=Os reformadores não tinham em mente crear uma nova Egreja.=—Nenhum dos
reformadores—nem Luthero, nem Zwinglio, nem Calvino—pensou que procurando
dar culto a Deus da maneira mais simples que a Escriptura aconselhava,
e que a sua experiencia espiritual approvava, se estava afastando da
Egreja. Estavam abandonando o papa, e recusando ter communhão espiritual
com elle; mas continuavam, no seu entender, a pertencer á Egreja em que
tinham nascido, pela qual haviam sido baptizados, e em cuja communhão
tinham prestado culto a Deus desde a infancia.

Elles não pensavam que a Reforma queria dizer deixarem a Egreja de seus
antepassados. Não tinham desejo algum de fazer uma nova Egreja, e ainda
menos de crear uma nova religião. A religião que elles professavam era
a religião do Velho e do Novo Testamento, a religião dos santos de Deus
desde os dias de Pentecoste. A Egreja a que elles pertenciam desde a sua
separação de Roma era a Egreja doa Apostolos, dos Martyres e dos Padres.
Era a Egreja em que Deus tinha sido adorado, em que Christo havia sido
acreditado, e em que se havia sentido a presença do Espirito Santo, desde
o tempo dos apostolos até aos seus dias.

A Reforma conservava-os dentro da Egreja de seus paes, pensavam elles;
não os tirava d’ella. Como poderiam elles mostrar a toda a gente a
evidencia d’esse facto, a que davam tão grande importancia?

=Reivindicaram a sua posição por meio de um appello á Constituição do
Imperio medieval.=—Os reformadores tinham-se desligado do papa, e não
viviam mais em communhão com elle ou com a curia romana. No seu tempo,
porém, estar na Egreja era ter communhão com o papa e com Roma. Estar
fóra do districto dos cuidados pastoraes do papa significava, n’aquelles
tempos de excommunhões e interdicções por atacado, estar fóra dos
privilegios da Egreja.

Se o papa recusava ter communhão com qualquer homem, ou cidade, ou
provincia, e a tornava interdicta, ou a excommungava, eram, por esse
facto, interrompidos todos os serviços religiosos. Emquanto sobre aquella
area pesasse a excommunhão, não podia haver baptismos, nem casamentos,
nem confortos espirituaes á hora da morte. As egrejas permaneciam
fechadas, e todos os serviços do culto publico ficavam suspensos até ser
levantada a excommunhão. Segundo as idéas da epoca, não ter communhão com
o papa era estar fóra da Egreja. Era difficil demonstrar o contrario, de
um modo claro, sem auxilio de uma argumentação theologica.

O intelligentissimo espirito de Luthero descobriu um meio de mostrar
ao povo que a Egreja não se limitava ao circulo formado por aquelles
que estavam em communhão com o papa. O Santo Imperio Romano da Edade
Media era mais do que um estado politico; era tambem, sob um certo ponto
de vista, uma Egreja. O seu imperador recebera ordens de sub-diacono.
Chamava-se-lhe a Christandade. E, acima de tudo, os seus cidadãos deviam
a posição que occupavam dentro dos seus limites protectores ao facto
de terem acceite o Credo Niceno sob a fórma latina approvada pelo papa
Damaso. A Edade Media apresentava, portanto, a Egreja de Christo sob dois
aspectos: um era o da communhão com o papa, e o outro o da posição que
occupava no Imperio Romano.

Luthero manteve ostensivamente o seu direito de cidadão do imperio.
Declarou uma e outra vez a sua adhesão ao Credo Niceno sob a fórma
prescripta. Era, segundo a distincção feita pelo imperador, um christão
orthodoxo. Estava dentro da christandade, era membro da grande
communidade christã, posto que não estivesse em communhão com o papa.
Luthero aproveitou-se do caracter ecclesiastico do imperio da Edade
Media; teve o cuidado de declarar, o mais manifestamente possivel,
que era subdito do imperio, e que era, portanto, segundo a antiga
classificação ecclesiastica, christão, e membro da Egreja christã,
ainda que não estivesse em communhão com Roma. Fez com que aos seus
contemporaneos se tornasse evidente que a Egreja era mais ampla,
mesmo segundo as noções medievaes, do que a communhão com Roma. Elle
proprio estava fóra da communhão com Roma, e, comtudo, era membro da
christandade, e estava, por conseguinte, dentro da Egreja.

=A catholicidade da Reforma, segundo Luthero e Calvino.=—O imperio
medieval tinha o Credo Niceno como marca dos seus cidadãos, e a sua
dilatação era, portanto, egual á da Egreja christã. Luthero, para mostrar
que, não obstante haver-se desligado de Roma, não tinha abandonado a
Egreja Catholica de Christo, pegou no Credo dos Apostolos, no Credo
Niceno, e no Credo de Athanasio, e publicou-os como sendo a sua confissão
de fé. Diz elle no seu prefacio: «Reuni e publiquei estes tres Credos, ou
Confissões, em allemão, Confissões que teem sido até hoje sustentadas por
toda a Egreja; e com estas publicação testifico, de uma vez para sempre,
que adhiro á verdadeira Egreja de Christo, que até agora tem mantido
estas Confissões, mas não aquella falsa e pretenciosa Egreja, que é a
peor inimiga da verdadeira Egreja, e que tem collocado subrepticiamente
muita idolatria a par d’estas bellas Confissões.»

Além d’isso, no seu tratado de controversia contra os erros da Egreja
Romana, seguiu a orientação do prefacio que acabamos de citar.
Intitulou-o _Sobre o Captiveiro Babylonico da Egreja de Deus_.
Diligenciou provar que a Egreja tinha sido levada captiva pelo papa e
pela curia, exactamente como acontecera aos israelitas quando foram
transportados para Babylonia. A Egreja, libertada do jugo romano, ficava
com todos os privilegios que a Egreja de Deus sempre tivera, e ficava,
além d’isso, livre da escravidão.

A Reforma, na opinião de Luthero, tirou a Egreja de um captiveiro peior
do que o de Babylonia, e os vultos da Reforma eram homens comparaveis
a Zorobabel, Esdras e Nehemias. Não estavam fundando uma nova Egreja,
estavam reconduzindo a antiga Egreja dos Apostolos da servidão para a
liberdade.

Calvino era tambem um extremo defensor d’esta idéa, posto que não a
expozesse de um modo tão descriptivo. No prefacio aos seus _Institutos_
diz-nos que escreveu o livro para responder áquelles que diziam que as
doutrinas dos reformadores eram novas, duvidosas, e contrarias ás dos
Paes da Egreja. E refuta essas accusações, mostrando a catholicidade da
theologia da Reforma. Prova que todos os reformadores sustentaram as
grandes doutrinas catholicas que a Egreja manteve em todos os seculos,
e que, quando se afastaram do ensino da Egreja de Roma, ou de outra
qualquer doutrina, o fizeram justamente no ponto onde as idéas pagãs e
as praticas supersticiosas foram, de uma maneira bastante censuravel,
introduzidas.

=A sua posição reivindicada pelo Credo dos Apostolos.=—Os cabeças
da Reforma, que se encontravam á frente de uma grande revivificação
religiosa, não imaginavam que estavam dirigindo um movimento novo, e
muito menos que estavam fundando uma nova religião. Tinham, no seu
entender, uma ascendencia espiritual, e reputavam-se os verdadeiros
herdeiros e successores da Egreja dos Apostolos, dos Martyres e dos Paes,
e, tambem, da Edade Media. Nova era a Egreja Romana, e não a d’elles.
Pertenciam á antiga Egreja, reformada, e eram os verdadeiros herdeiros
dos seculos de vida santa que os tinham precedido.

Eram, porém, accusados pelos seus adversarios de serem scismaticos
e herejes, de terem abandonado a Egreja Catholica de Christo, e
de procurarem crear uma nova Egreja e fundar uma nova religião.
Disseram-lhes que a Egreja de Roma era a unica communidade christã, e a
unica Egreja Catholica e Apostolica.

Como responderam elles a isto tudo? A sua resposta estava-lhes preparada
pela propria Egreja Catholica Romana. A Egreja de Roma acceita o Credo
dos Apostolos, e esse Credo faz uma descripção da Egreja que está em
completo desaccordo com aquillo que o romanismo insinúa. O Credo dos
Apostolos diz «Creio na Santa Egreja Catholica e na communhão dos
santos», e não «Creio na Santa Egreja Catholica, e na communhão de Roma».
Não ha em nenhum dos credos antigos uma palavra que dê a entender que
catholicidade significa communhão com Roma; catholicidade quer dizer,
pelo contrario, _communhão com os santos_. Este ponto é bem frisado pelos
principaes reformadores. O Credo diz que a Santa Egreja Catholica se
baseia n’uma santa communhão, e que a santa communhão se baseia no perdão
dos peccados. A verdadeira catholicidade provém de uma santa communhão,
e esta existe em virtude do perdão que se alcança para todos os peccados
mediante a obra redemptora de nosso Senhor Jesus Christo.



CAPITULO IV

OS PRINCIPIOS DOUTRINARIOS DA REFORMA

    Os principios _formaes_ e _materiaes_ da Reforma, pag. 225.—O
    sacerdocio de todo os crentes: o grande principio da Reforma,
    pag. 226.—Explica a _Doutrina da Escriptura_, pag. 227, e da
    _Justificação pela Fé_, pag. 228.—A _Doutrina da Escriptura_
    da Reforma em contraste com a medieval, pag. 228.—A Doutrina
    medieval da Escriptura, pag. 229.—O quadruplo sentido da
    Escriptura, pag. 229.—A definição medieval de _fé salvadora_.
    Interpretação infallivel, pag. 230.—Os reformadores e a Biblia,
    pag. 231.—A doutrina da _justificação pela fé_ da Reforma em
    contraste com a medieval, pag. 232.—A absolvição clerical
    e justificação pela fé, pag. 233.—Justificação pela fé e
    justificação pelas obras, pag. 234.—Conclusão, pag. 235.


=Os principios formaes e materiaes da Reforma.=—Os principios
theologicos, ou doutrinarios, que deram um caracter distinctivo á
revivificação da religião promovida pela Reforma costumam ser divididos
em duas cathegorias, sendo uma d’ellas constituida pelos _formaes_ e a
outra pelos _materiaes_.

O dr. Dorner, historiador sagrado, estabelece este modo de encarar o
movimento reformista com muita clareza e energia na sua _Historia da
Theologia Protestante_. Segundo o dr. Dorner, a doutrina da Palavra de
Deus é o principio _formal_ da theologia da Reforma, e a doutrina da
Justificação pela Fé é o principio _material_ da mesma.

O uso d’estes termos technicos pode, comtudo, obscurecer, tanto na vida
religiosa como na theologia, o verdadeiro sentido do movimento que com
elle se quer explicar. O principio da Reforma, o impulso predominante
no movimento, era simplesmente aquelle que deve inspirar todas as
revivificações da religião, isto, é o fervoroso desejo, a ancia, de uma
approximação de Deus, o anhelo por estar na presença de Aquelle que Se
revelou, para que podessemos ser salvos, na pessoa de Jesus Christo.
Aquillo a que se tem chamado os principios, _formaes_ e _materiaes_, da
Reforma está unido a este mais simples, mas mais energico, impulso, e é
proveniente d’elle. O direito de chegar á presença de Deus foi, segundo a
crença dos reformadores, conferido por Elle a todos os que fazem parte do
Seu povo; mas o direito de chegar á presença de Deus é o que se chama o
sacerdocio, e o grande principio da Reforma baseia-se no _sacerdocio de
todos os crentes_—o direito que teem todos os homens e mulheres crentes,
todos os clerigos e seculares, de se dirigirem a Deus, e de procurarem
alcançar d’Elle o perdão mediante a confissão dos seus peccados, a luz
que lhes illumine os entendimentos, a communhão que os faça sair do seu
solitario isolamento, e o vigor necessario para viverem diariamente em
santidade.

=O sacerdocio de todos os crentes: grande principio da Reforma.=—Quando
Luthero e Zwinglio se revoltaram contra os abusos com que o romanismo
havia desfigurado a Egreja medieval, os dois grandes abusos eram a
venda das indulgencias e a excommunhão. Quanto ao primeiro d’esses
abusos, a venda das indulgencias, a Egreja medieval dizia praticamente
que não era necessario ir ter com Deus para obter o perdão, pois que a
Egreja podia concedel-o em melhores condições. O perdão que Deus dava,
mediante a obra de Christo, áquelles que se apresentassem contrictos
e arrependidos fornecia-o a Egreja a troco de uns tantos ducados.
Punha-se deliberadamente entre os pecadores e Deus, e afastava-os d’Elle,
insinuando-lhes, de uma maneira blasphema, que podia vender-lhes o
perdão mais barato. O homem não necessitava de ir ter com Deus cheio
de tristeza e arrependimento, nem de incutir na alma a confiança
nas Suas promessas. A Egreja sahia ao caminho de todo aquelle que
possuisse dinheiro. N’outras occasiões a Egreja recusava absolutamente
o perdão. Se uma cidade, ou uma diocese, ou um paiz offendia, mediante
os seus governantes, o papa ou a sua côrte de Roma, era-lhe imposta a
interdicção, e emquanto esta não fosse levantada não havia perdão para
peccado algum. A Egreja colocava-se entre a creança recemnascida e o
baptismo, entre o christão moribundo e a graça que lhe era concedida
á hora da morte, entre o mancebo e a donzella e o laço matrimonial
abençoado por Deus, entre o povo e o culto quotidiano. Ninguem se podia
approximar do Deus de toda a misericordia pelo motivo dos magistrados,
dos bispos ou do rei e seus conselheiros terem offendido o papa. A Egreja
tinha a faculdade de impedir o caminho, pois que havia declarado que
só por intervenção dos padres é que se poderia ter accesso a Deus; e
quando aos padres se prohibia o exercerem as suas funcções eclesiasticas,
o ministrarem os sacramentos, ficava cortada toda a comunicação com
Deus. O papa podia, com uma pennada, impedir que uma nação inteira se
approximasse de Deus, pois que tinha o direito de ordenar aos padres que
suspendessem os serviços religiosos; e, segundo a theoria medieval, essas
funcções exercidas pelos padres eram o unico meio de ter accesso a Deus.

Os reformadores, por outro lado, diziam: «O homem deve approximar-se
de Deus por meio da oração, por meio do perdão, por meio da communhão,
por meio do esclarecimento espiritual, sempre que fielmente o procurar
fazer; é impossivel que o caminho para Deus se feche de aquella maneira.»
Luthero disse que não fazia objecção alguma ás indulgencias se ellas
fossem consideradas o unico meio de se declarar que Deus é sempre
misericordioso. Recusava, porém, acreditar n’ellas, ou n’outro qualquer
rito da Egreja medieval, quando se fazia uso d’ellas para declarar que
os homens podiam alcançar o perdão sem se approximarem de Deus com um
espirito contricto, ou que podiam ser inteiramente excluidos da presença
de Deus por determinação de quaesquer outros homens.

Era esta idéa—que a presença de Deus é livre para quem fielmente a
procurar, que Deus não recusa ouvir a oração de qualquer penitente, e que
Elle faz com que as Suas promessas fallem directamente aos corações de
todos aquelles que compõem o Seu povo—que se enleiava em volta de base da
theologia da Reforma, e era a fonte de onde brotavam, em particular, as
doutrinas da Escriptura e da justificação pela fé.

=O principio do sacerdocio dos crentes explica a doutrina reformada
da Escriptura.=—Todos os reformadores criam que na Biblia Deus lhes
fallava da mesma maneira em que, em tempos remotos, havia fallado á
Egreja pelos Seus prophetas e apostolos. Diziam elles que o povo, tendo
nas mãos a Biblia traduzida do grego e do hebraico para uma lingua que
elle comprehendesse podia ouvir a voz de Deus, podia chegar-se a Elle
para receber instrucção, admoestação e lenitivos. Nos tempos do Antigo
Testamento Deus fallou ao Seu povo, umas vezes em sonhos e outras por
meio de visões, mas principalmente mediante embaixadores instruidos
por Elle, a que se chamava prophetas. Nos tempos do Novo Testamento
Deus fallou no meio do povo mediante Seu Filho, e o Seu Espirito fallou
tambem por intermedio dos apostolos de Christo. Todas estas revelações,
inseridas na Escriptura do Velho e Novo Testamento, são apresentadas
de tal fórma que Deus falla, na Biblia, ao Seu povo exactamente como
lhe fallou pela bocca dos homens santos da antiguidade. Os reformadores
proclamavam que na Biblia todos os crentes podem ouvir Deus, que lhes
falla directamente, e que a Sua voz pode ser ouvida por todos aquelles
em cujas mãos estiver a Biblia. A doutrina reformada da Palavra de Deus
exprime simplesmente um dos lados do cumprimento de aquelle anhelo pelo
accesso á presença de Deus, que constitue o elemento essencial, não
apenas da Reforma, mas de toda a verdadeira revivificação religiosa.

=O principio do sacerdocio espiritual de todos os crentes explica a
doutrina reformada da justificação pela fé.=—A doutrina da justificação
pela fé é um outro modo de asseverar que o anhelo pelo accesso a Deus
não é um desejo vão, mas uma coisa que pode ter um positivo cumprimento.
Segundo a theologia medieval, o peccador não podia implorar directamente
a Deus o perdão. Tinha que ir ter com o padre, e esse padre ficava
auctorizado a metter-se de permeio entre elle e Deus, e a negar o perdão
de Deus, se isso lhe fosse ordenado pelo papa ou por um seu superior
hierarquico. Por muito sincero que fosse o seu pezar, por muito forte
que fosse a sua confiança, o padre collocava-se entre elle e o seu
clemente Deus, e elle não podia confessar a Deus os seus peccados nem
ouvir de Deus a sentença do perdão senão pela bocca do padre. A doutrina
da justificação pela fé significa, na sua fórma mais simples, que é Deus
em pessoa quem profere o perdão, e que perdoa em attenção de tudo quanto
Christo fez e pode fazer pelo peccador; e que o homem pode ouvir proferir
este perdão se tiver fé na misericordia, na salvação e nas promessas de
Deus.

=A doutrina reformada da Escriptura, em contraste com a medieval.=—A
doutrina reformada da Escriptura é muitas vezes apresentada sob uma
fórma que não a põe em immediata connexão com o impulso preponderante
no movimento da Reforma. Os reformadores deram mais credito á Biblia, o
livro infallivel, do que á palavra de uma Egreja fallivel. Na Edade Media
os homens appellavam para a Egreja em ultima instancia, e acceitavam as
decisões dos papas e dos concilios como constituindo a ultima palavra
em todas as controversias sobre a doutrina e a moral; os reformadores
substituiram a Egreja, isto é, as decisões dos concilios e dos papas,
pela Biblia, e ensinaram que era para ella que se devia appellar em
ultima instancia. Este modo de expôr a differença entre os reformadores
e os seus antagonistas teve uma expressão mais concisa no dito de
Chillingworth, famoso theologo inglez, de que a Biblia, e só a Biblia, é
a religião dos protestantes.

Tudo isto é verdade, e, comtudo, não é a inteira verdade, podendo,
portanto, dar logar a uma noção erronea. Os catholicos romanos e os
protestantes não dão o mesmo sentido á palavra Biblia, e essa differença
de sentido traz á luz uma verdade que é algumas vezes esquecida. Quando
os catholicos romanos fallam da Biblia querem dizer uma coisa, e quando
os protestantes fallam da Biblia querem dizer outra, e n’esta differença
no emprego da palavra está uma parte importantissima da doutrina
reformada da Escriptura.

A Egreja medieval não se oppunha, em regra, a que o povo lesse a Biblia
para sua edificação. Era, pelo contrario, uma maxima na theologia da
Edade Media que todo o systema doutrinal da Egreja se fundava na Palavra
de Deus. Thomaz de Aquino, a maior auctoridade entre os theologos
medievaes, diz expressamente, no principio da sua importante obra, A
_summula da theologia_, que todo o circulo da doutrina christã se apoia
na Escriptura, que é a Palavra de Deus. Durante a Edade Media fizeram-se
continuamente traducções das Escripturas nas linguas dos povos da Europa;
é um perfeito erro suppôr-se que as primeiras traducções da Biblia se
fizeram durante o tempo da Reforma; em regra geral, animava-se o povo
a ler e estudar as Escripturas. Nos primeiros periodos da controversia
reformada, os arguentes catholicos romanos recorriam tanto á Biblia como
Luthero e os que estavam do seu lado. Estava guardado para a Egreja
Catholica posterior á Reforma o prohibir aos leigos a leitura da Palavra
de Deus.

=A doutrina medieval da Escriptura.=—Os theologos medievaes faziam,
comtudo, da Biblia um uso muito differente de aquelle que os protestantes
faziam, e na controversia protestante a differença de sentido não tardou
em fazer-se notar. Os theologos da Edade Media jámais consideraram
a Biblia um meio de graça; tinham-n’a na conta de um livro cheio de
informações, divinas informações, ácerca da doutrina e da moral. Era para
elles um repositorio de verdades doutrinarias e preceitos moraes, e mais
nada.

Os protestantes vêem n’ella um repositorio de verdades infalliveis,
mas vêem mais alguma coisa. É um meio de graça. Crêem que os homens
alcançam com a simples leitura da Biblia não só instrucção como tambem
communhão com Deus, não só o conhecimento de Deus como tambem intimidade
com Elle. Não se limita a apresentar verdades novas ácerca das coisas
divinas; excita para a vida espiritual. É para o protestante tudo o que
era para o theologo da Edade Media, e é mais alguma coisa. É um tão
efficaz estimulo de fé e vida santa como os sacramentos, ou a oração ou
o culto. Mediante um diligente uso da Biblia, os homens, na opinião dos
theologos protestantes, não sómente adquirem o conhecimento de Deus;
podem tornar-se participantes de aquella bemdita communhão entre Deus e o
Seu povo de que a Biblia faz menção.

=O quadruplo sentido da Escriptura.=—Esta noção medieval ácerca da
Biblia—que ella é um repositorio de informações ácerca das doutrinas e
da moral, e nada mais—encontra uma seria difficuldade: é que similhante
descripção não parece ser applicavel a uma grande parte de Biblia. As
Escripturas conteem longas listas de genealogias, capitulos que tratam
quasi exclusivamente dos utensilios do templo, ou são descripções
da vida humana, ou da historia nacional. N’essas porções da Biblia,
que constituem uma não pequena parte d’ella, não parece haver muita
informação doutrinal ou muitas regras para uma vida santa, e, não
obstante, são estas coisas que, segundo a definição medieval, compõem
a Biblia toda. O theologo medieval tinha, portanto, ou de cortar o
que lhe parecesse materia inapplicavel, ou inventar alguma maneira de
transformar as taboas genealogicas em doutrinas ou preceitos moraes.
Optou pela ultima d’estas coisas, e declarou que em todas as passagens
da Biblia havia mais do que um sentido. A Biblia, disse elle, tinha um
quadruplo sentido. Havia, em primeiro logar, o sentido _historico_ da
passagem lida, que era aquelle que se inferia das regras grammaticaes
e de interpretação. Seguiam-se depois os outros tres sentidos: O
_allegorico_, o _moral_ e o _anagogico_. Estes varios sentidos differiam
do historico, e os expositores medievaes extrahiam complicadas doutrinas
das genealogias de Abrahão e de David, e regras de conducta da descripção
das vestes do summo sacerdote ou da narrativa da viagem que nosso Senhor
fez de Capernaum a Naim.

É algumas vezes difficil saber qual é o verdadeiro sentido de certas
passagens da Biblia, mesmo quando o leitor se occupa simplesmente da
significação historica; e a difficuldade quadruplicará, se é verdade
que cada passagem tem quatro sentidos. Qualquer trecho da Biblia pode
significar aquillo que o leitor quizer, bastando para isso que o tome
n’um sentido mystico, ou allegorico.

=Definição medieval da fé salvadora. A interpretação
infallivel.=—Emquanto os theologos medievaes faziam quasi perder a
esperança de vir a saber-se ao certo o que a Biblia dizia segundo a sua
doutrina do quadruplo sentido, uma outra theoria d’elles tornava de
summa importancia que o crente tivesse precisas informações ácerca do
contheudo da Biblia. Diziam que fé não era confiança n’uma pessoa, mas
assentimento ás informações correctas; a fé que salva era, sustentavam
elles, assentimentos ás proposições acerca de Deus, do universo, e da
alma humana, contidas na Biblia. Por um lado, a sua doutrina do quadruplo
sentido tornava quasi impossivel a qualquer pessoa o certificar-se do que
a Escriptura ensinava; por outro, a sua definição de fé salvadora tornava
importantissimo, tanto no que diz respeito a esta vida, como no que diz
respeito á futura, que cada um tivesse noções claras e exactas do texto
biblico. E assim a Egreja medieval era obrigada a asseverar que havia,
não indicada por ella, uma maneira auctorizada de interpretar a Biblia,
e isso conduziu-a á sua doutrina da infallibilidade das declarações dos
concilios e dos papas no tocante ao ensino da Biblia.

É escusado dizer que, se a Biblia é por si propria de duvidosa
interpretação, e se é essencial para a salvação que o crente possua uma
verdadeira e correcta interpretação a que possa dar o seu assentimento,
o que fornecer uma interpretação infallivel tem mais valor do que
aquillo que é interpretado. E foi isso o que effectivamente succedeu.
As decisões dos concilios e dos papas, e a tradicional e auctorizada
interpretação da Biblia pela Egreja, adquiriram mais valor pratico do que
a propria Biblia. Os homens que consultassem simplesmente a Biblia podiam
cair no erro, e cair no erro era a morte; aquelles que confiassem na
interpretação biblica da Egreja nunca seriam induzidos ao erro.

Tudo isto, porém, tornava impossivel que a Biblia fosse um meio de
communhão entre Deus e o homem. Entre a Biblia e o crente collocavam os
theologos medievaes as opiniões dos concilios e dos papas, ou, n’uma
palavra, a Egreja. A Egreja interceptava o caminho para Deus mediante a
Sua Palavra interpondo-se ella propria e a sua auctorizada interpretação
entre o crente e a Biblia.

Os reformadores, anhelando pela communhão com Deus, e sabendo por aquillo
que o seu espirito havia experimentado que era possivel têl-a mediante
a simples leitura da Biblia, compenetraram-se do dever de deitar abaixo
essa barreira, e assim o fizeram. Essa barreira, porém, não podia ser
derrubada simplesmente com o dizer-se que a Biblia, e não as tradições
da Egreja, é que era a guia infallivel. A Biblia como os catholicos
romanos a entendiam, essa Biblia que expunha apenas preceitos de doutrina
e de moral, e cujas passagens tinham quatro sentidos, era simplesmente
um livro embaraçoso. Os reformadores tinham de mostrar a Biblia atravez
de outro prisma para que podessem dizer que era infallivel e que era o
arbitro supremo em todas as controversias.

=Os reformadores e a Biblia.=—Deram á Biblia a significação que ella
realmente tinha. Deus havia-lhes fallado por meio d’ella. O Deus pessoal,
que os creara e que os remira, havia-lhes fallado nas paginas da
Biblia, e tornara-os scientes do Seu poder e da Sua vontade de salvar.
A linguagem era algumas vezes obscura, mas encontraram outras passagens
mais claras, e os pontos faceis explicaram-lhes os difficeis. Podia ser
que os homens simples não a comprehendessem toda, não soubessem ligar
todas as suas asserções de modo a constituir um encadeado systema de
theologia; mas toda a gente, fosse ou não fosse theologa, podia ouvir a
voz de seu Pae, inteirar-se do proposito do seu Redemptor e ter fé nas
promessas do seu Senhor. Seria uma boa idéa fazer uma selecção de textos
e formar o systema de theologia protestante que tornasse as coisas mais
comprehensiveis; mas o essencial era ouvir o Deus pessoal e obedecer-Lhe;
era Elle fallar-lhes como em todos os seculos fallou ao Seu povo,
promettendo-lhes a salvação, ora directamente, ora mediante a narrativa
do Seu procedimento com o povo escolhido ou com homens excepcionalmente
favorecidos. Detalhe algum de vida, nacional ou individual, era inutil;
pois que ajudava a completar o quadro da communhão entre Deus e o Seu
povo de outr’ora, esse povo que havia de reviver n’elles e perpetuar
assim o grato sentimento de communhão com o Deus da alliança, bastando
para isso que tivessem a mesma fé dos santos do Antigo e Novo Testamentos.

Animados, como estavam, d’estas idéas, a Biblia não podia ser para elles
o que era para os theologos medievaes. Deixava de existir o quadruplo
sentido. A Biblia era Deus fallando com elles, um Pae fallando com Seus
filhos, do mesmo modo que um homem falla com os seus similhantes; e
ficava subsistindo apenas o sentido manifesto, o sentido historico. Era
mais do que um repositorio de doutrinas e de regras de moral; era, acima
de tudo, uma memoria e uma descripção da bemdita communhão que os santos
haviam tido com o Deus dos pactos desde a primeira revelação da promessa.
A fé era mais do que um frio assentimento ás verdades concernentes á
doutrina e á moral; era uma confiança pessoal no Salvador pessoal que Se
lhes dirigia por meio da Biblia.

Deram-se, por conseguinte, pressa em traduzir a Biblia em todas as
linguas, e collocar a Biblia nas mãos de todos, e declararam que um homem
que possuisse a Biblia, isto é, que ouvisse a voz de Deus, estava mais ao
facto do caminho da salvação do que os concilios e os papas sem ella.

A sua doutrina, que era fructo de tudo aquillo que elles haviam
espiritualmente experimentado, inculcava que o anhelo pela communhão com
Deus era satisfeito mediante a leitura e prégação da Palavra de Deus. A
Biblia porporcionava aos homens o encontrarem-se na presença de Deus e
ouvirem as Suas palavras de conforto.

=A doutrina reformada da justificação, em contraste com a medieval.=—O
segundo grande principio da theologia da Reforma é, por consenso
universal, a doutrina da justificação pela fé sómente. Pode-se tambem
pôl-a em directa connexão com o principio fundamental da Reforma, o
sacerdocio de todos os crentes, ou o direito de accesso, promettido na
Palavra de Deus, á Sua presença.

Ao contrastar a doutrina reformada com a medieval no tocante á
justificação, occorre a mesma difficuldade com que já deparámos
no contraste entre as duas doutrinas ácerca da Escriptura. Diz-se
vulgarmente que os reformadores apregoaram uma justificação pela fé
sómente, ao passo que os seus antagonistas apregoaram uma justificação
pelas obras; mas, posto que isto seja perfeitamente verdadeiro, devemos
lembrar-nos de que a palavra «justificação» é usada em dois sentidos
distinctos pelos dois disputantes.

Para os theologos medievaes, _justificar_ significa tornar justo; para
os reformadores significa declarar justo. Para aquelles é uma operação
que se faz durante um certo tempo; para estes é um acto momentaneo, é
um acto da livre graça de Deus, pelo qual Elle perdoa todos os nossos
peccados e nos acceita como justos a Seus olhos. Para aquelles é uma
obra de purificação do peccado, uma obra de santidade; para estes é a
formação de um juizo, ou, como os theologicos dizem, um acto _forense_.
Os reformadores viram que os theologos medievaes empregavam a palavra
justificação no sentido mencionado, e trataram de apresentar a sua outra
significação. E justificaram esse seu procedimento dizendo que o sentido
que deram ao termo é o que o Novo Testamento lhe dá, pois que o emprega
na accepção de acto, de sentença, de juizo, e nunca na de obra.

O primeiro contraste não é, portanto, entre a justificação medieval e
a doutrina da Reforma, mas entre a doutrina reformada da justificação
pela fé e a que lhe corresponde na Egreja medieval. Justificação, na
theologia reformada, quer dizer o acto de perdoar e de acceitar como
justo; corresponde a essa doutrina, na egreja medieval, a da absolvição
dada pelos padres, pois que era o unico modo como poderia ser concedido o
perdão dos peccados.

=A absolvição clerical e a justificação pela fé.=—Segundo a theologia
da Edade Media, o perdão divino do peccado tinha sempre de ser
proferido por um sacerdote. Quando o penitente se confessasse e se
mostrasse arrependido, tanto por palavras como por actos, o padre tinha
auctorização para pronunciar a sentença absolutoria, e essa sentença era
acceite como sendo proferida pelo proprio Deus, pois que o clero era o
orgão mediante o qual, e sómente mediante o qual, Deus perdoava.

Luthero e os outros reformadores viram que o padre que se suppunha
occupar o logar de Deus e fallar em nome de Deus commettia acções impias,
e a consciencia disse-lhes que, em vista de similhante facto, o perdão
do padre não podia ser o perdão de Deus. Luthero viu que um homem,
munido de um certificado de indulgencias, ia ter com um padre e recebia
perdão sem mostrar arrependimento quer por palavras quer por obras, sem
que, apparentemente, sentisse tristeza alguma no seu coração. Viu que
os padres pretendiam ser a trombeta de Deus, e que concediam perdão em
certos casos em que elle seria negado por um Deus justo e santo.

Luthero e os seus amigos tinham presenciado ou ouvido fallar de casos em
que o perdão de Deus havia sido recusado quando um Deus misericordioso
o teria concedido. Uma successão de papas havia castigado a cidade de
Strasburgo com uma interdicção pelo facto de ella ter tomado uma attitude
na politica allemã que não era do agrado da côrte pontificia, e durante
todo esse tempo não podia ser proferida uma palavra de perdão a qualquer
peccador contricto e arrependido. Os padres perdoavam quando Deus não
perdoava, e recusavam perdoar quando Deus estava prompto a conceder o Seu
perdão.

Luthero, vendo isto, e sabendo como havia sido perdoado por confiar
simplesmente nas promessas de Deus, declarou que o peccador pode ir ter
directamente com Deus, pezaroso por haver peccado e cheio de confiança
nas promessas de Deus, e obter d’Este o perdão. Asseverou que a não
ser que se alcance primeiramente o perdão de Deus, o do padre não tem
valor algum, e que, depois de se alcançar o perdão de Deus, o do padre
é inutil. O perdão alcançava-se indo ter com Deus, e não indo ter
com o padre e ouvindo d’elle a absolvição. A doutrina protestante da
justificação mostra o direito de accesso a Deus para Lhe rogar perdão,
e declara que padre algum está auctorizado a interpôr-se entre Deus e
o peccador arrependido. Deitou por terra a doutrina medieval de que o
perdão divino só pode ser alcançado mediante a absolvição clerical, e
de que o peccador arrependido não se deve prostrar aos pés de Deus mas
deante do confissionario.

=Justificação pela fé e justificação pelas obras.=—Segundo a theoria
medieval, antes de o perdão ser obtido pela fórma ordinaria, mediante
a absolvição sacerdotal, era indispensavel confessar os peccados,
mostrar contricção e fazer penitencia. Na confissão o peccador deve
mencionar ao padre todos os peccados que commetteu desde a ultima vez
que se confessou, e n’este catalogo de peccados não se deve faltar a
um só pormenor. Peccado algum pode ser perdoado sem que se tenha feito
menção d’elle. A confissão deve ser mecanicamente completa. Em seguida
á confissão vem a contricção, ou a dôr por haver offendido a Deus, e
esta, segundo a doutrina medieval, deve manifestar-se de certos modos
esteriotypados que a Egreja tem sanccionado. Depois, e só depois, é que é
possivel a absolvição, quer dizer, o perdão.

A Egreja da Edade Media collocava duas coisas entre o peccador e o perdão
divino proferido pelo sacerdote: uma completa confissão, mecanicamente
feita, em se que fizesse menção de todos os peccados cujo perdão se
desejava, e uma contricção manifestada de certos modos estabelecidos,
taes como a recitação de um grande numero de orações, a abstenção da
comida, etc., e a absolvição dependia da automatica integridade da
confissão e da contricção.

Os reformadores tinham a convicção de que o peccado era uma coisa séria
de mais para que o seu perdão dependesse de uma completa confissão, e
de uma contricção exteriormente manifestada. Deus perdoava por amor de
Christo, não em virtude de uma completa confissão ou de uma perfeita
contricção. Declararam, por consequencia, que, posto que o peccador deva
confessar os seus peccados, e esforçar-se seriamente por se conservar
no caminho da obediencia, o perdão depende da soberana graça de Deus,
revelada em Christo.

Tornou-se-lhes evidente a necessidade de derrubar os obstaculos que
a Egreja medieval havia erguido entre Deus e o homem, e que eram
constituidos pela confissão mecanica, e pela contricção, ou penitencia. O
arrependimento sincero, o arrependimento do coração, é que era de grande
importancia, porque abrangia confissão, contricção e confiança; e Deus, á
vista d’estas coisas, perdoava por amor de Christo.

Justificação pela fé, portanto, significa que o peccador contricto
pode dirigir-se immediatamente a Deus, confiando na consummada obra
de Christo, e alcançar o perdão sem a intervenção de padres ou de uma
serie de rotineiras ceremonias. Deus perdoa em attenção áquillo que
Christo fez, não em attenção áquillo que nós possamos fazer; e, desde
que o perdão se alcança mediante a obra de Christo, e não pelo nossos
esforços, pode ser, e é, dado no principio da carreira christã, não sendo
necessario esperar penosamente por elle até ao fim, como uma doutrina de
justificação pelas obras implicaria.

A doutrina da justificação pela fé, segunda columna da theologia
reformada, provém de aquelle anhelo pela approximação de Deus, ponto de
apoio da Reforma. Significa que o peccador que se sente arrependido, e
tem confiança nas promessas de Deus, pode ir immediatamente implorar-Lhe
o perdão e obtel-o sem interferencias clericaes e sem o cumprimento de
praticas mecanicas.

=Conclusão.=—A Reforma, que foi uma grande revivificação da religião,
tendo por base principal o anhelo pela presença de Deus, a Quem só era
possivel chegar-se mediante o arrependimento e a confissão, acompanhados
de plena confiança nas Suas promessas, aconselhava, pois, os crentes a
terem communhão com Elle por intermedio da Biblia, e a rogarem o perdão
prostrados junto do escabello de Seus pés, e derrubou as barreiras
que foram erguidas pela Egreja politica da Edade Media em frente da
livre e soberana graça de Deus. A nova espiritualidade que animava os
reformadores e os seus adherentes tinha, alimentada pela Palavra de
Deus, e ensinada pelo Seu Espirito, desabrochado por todos os lados,
dando logar a uma theologia reformada, onde a doutrina da predestinação
substituiu a theoria da communhão com Deus por intervenção do papa
e dos seus bispos onde a theoria dos sacramentos foi purificada pela
doutrina do Espirito Santo, onde as Escripturas arbitravam em todas as
controversias, e onde o perdão era proferido por Deus, e não pelo homem;
e em todas as suas ramificações se encontra como idéa predominante o
sacerdocio espiritual conferido por Deus a todos os crentes.



SUMMARIO CHRONOLOGICO


Acontecimentos contemporaneos

1493-1515.—Jan. 12, Maximiliano I. Imperador. Por sua morte ficou como
vice-rei Frederico, o Sabio, da Saxonia (1480-1525).

1499-1535.—O eleitor Joaquim I (Nestor) de Brandenburgo.

1500-1539.—O duque Jorge da Saxonia.

1509-1547.—Henrique VIII de Inglaterra.

1515-1547.—Francisco I de França.

1518-1567.—Filippe, o Magnanimo, de Hesse. (Nasc. em 1504).

1519.—Junho, _Carlos V, (Rei de Hespanha desde 1516)_—27 de Agosto de
1556, _Imperador da Allemanha (fall. em 1558)_.

1519-1566.—O sultão Suliman I.

1519-1521.—Fernando Cortez descobre e conquista o Mexico.

1520.—Magalhães faz uma viagem de circumnavegação.

1521-26.—Primeira guerra entre Carlos V e Francisco I.

1525.—Batalha de Pavia.

1526.—Paz de Madrid.

1523-33.—Frederico I da Dinamarca.

1523-60.—Gustavo Vasa, da Suecia.

1525.—Alberto de Brandenburgo (fall. em 1568); chefe dos cavalleiros
allemães; duque da Prussia, sob o dominio polaco.

1525-32.—O Eleitor João, o Constante, da Saxonia (irmão de Frederico, o
sabio).

1526.—Ago. 29: Luiz, rei da Hungria e da Bohemia, morre em Mohacz, em
combate com os turcos.

O seu successor, Fernando de Austria (Em Out., rei eleito da Bohemia),
tem de defender os seus direitos á Hungria, em detrimento dos turcos.

1527.—Saque de Roma.

1527-29.—A segunda guerra entre Carlos V e Francisco I; Paz de Cambrai,
em Agosto de 1529.

1527.—Henrique VIII de Inglaterra procura divorciar-se de Catharina do
Aragão (tia de Carlos V); 1529, Wolsey cae no desagrado; o chanceller
Thomaz More.

1529.—Set. a 14 de Out.; Suliman põe cerco a Vienna.

1531.—Fernando de Austria, rei dos romanos; opposição da Baviera e
Saxonia.

1532.—Ago. de 1547, João Frederico o Magnanimo, Eleitor da Saxonia, fall.
em 1554.

Henrique VIII divorciado, pelo parlamento, de Catharina de Aragão; Nov.
desposa Anna Boleyn.

1534.—O duque Ulrico de Würtemberg é rehabilitado por Filippe de Hesse.

1535.—Joaquim II, Eleitor de Brandenburgo.

1536-38.—Terceira guerra entre Carlos V e Francisco I.

1538.—A convenção de Nice: dez annos de treguas.

1541-53.—O duque Mauricio da Saxonia; recebeu o titulo de Eleitor em 1547.

1541.—Dieta em Regensburgo; Suliman submette os hungaros ao seu dominio.

1542-44.—Quarta guerra de Carlos V com Francisco I; a Paz de Crespi.

1542.—Dieta de Spira; união contra os turcos.

1544.—Dieta de Spira; reconhecimento dos protestantes; tudo em socego, na
expectativa de um Concilio Geral.

1545.—_Reformatio Wittenbergensis._

1546.—Segunda Conferencia Religiosa em Regensburgo; 18 de fev., Luthero
morre em Eisleben; os protestantes não apparecem na Dieta.

1546-47.—A guerra de Schmalkald; 19 de jun. liga entre Mauricio e o
imperador; 20 de jul., decreto contra João Frederico e Filippe; 27 de
out., Mauricio é nomeado eleitor; 24 de abr., batalha de Mühlberg,
ficando prisioneiro João Frederico; Filippe entrega-se em Halle; o
imperador falta á sua palavra.

1547-59.—Henrique II de França; desposa Catharina de Medici; fallece em
1589.

1547-53.—Eduardo VI de Inglaterra: nasc. em 1537.

1553-58.—Maria (a Sanguinaria) de Inglaterra.

1554.—9 de jul., Mauricio morre n’uma batalha perto de Sievershausen,
contra Alberto, Margarve de Brandenburgo.

Fernando é batido pelos turcos na Hungria.

1555-98.—Filippe II de Hespanha.

1556-64.—_Fernando I, imperador._

1558-1603.—Isabel de Inglaterra.

1559-60.—Francisco II de França (casado com Maria da Escocia)

1560-74.—Carlos IX de França.

1560-78.—Maria, rainha dos escocezes; executada em 1587.

1564-76.—_Maximiliano II, imperador._

1574-89.—Henrique III de França.

1576-1612.—_Rodolpho II, imperador._

1558-1648.—Christiano IV, rei da Dinamarca.

1589-1610.—Henrique IV de França, tornou-se catholico romano em 1593;
assassinado por Ravaillac em 14 de Maio de 1610.

1598-1621.—Filippe III de Hespanha.


Egreja Lutherana

1517.—Out. 31. MARTINHO LUTHERO (nascido em 10 de Nov. de 1483, em
Eisleben; 1497, estudando latim em Magdeburgo; 1499, em Eisenach (Frau
Cotta, f. em 1511); 1501, em Erfurt; 1505, mestre de artes; 17 de Julho,
entrou para o convento doa agostinhos, em Erfurt; 1508, professor em
Wittenberg; 1510, em Roma; 19 de Out. de 1562, doutor em theologia)
pregou 95 theses contra o abuso das indulgencias na egreja do castello de
Wittenberg. Contra-theses de João Tetzel, compostas por Conrado Wimpina.

1518.—Silvestre Mazzolini de Prierio: _Dialogos in proesumptuosas M. L.
Conclusiones de potestate Papae; Resp. ad Silv. Prier._, de Luthero.

26 Abril, Luthero na Polemica do Heidelberg.

Ago.: Citado para comparecer em Roma.

25 Ago.: Melanchthon em Wittenberg.

13-15 de Out.: Luthero em Augsburgo, perante o cardeal Thomaz Vio de
Gaeta: sua appellação _a papa male informato ad melius informandum_.

Nov.: _O sacramento da Penitencia_, de Luthero.

1519.—Jan.: Entrevista de Luthero com Carlos de Miltitz, camarista do
papa, em Altenburgo; Treguas.

27 de Jun. a 16 de Jul.: Polemica em LEIPSIC: (i) entre Eck e Carlstadt,
sobre a doutrina do Livre Arbitrio; (ii) entre Eck e Luthero, _De primeto
Papae_.

A controversia já não é sobre pontos de theologia ecclesiastica; abrange
toda a roda dos principios ecclesiasticos. Ruptura com a christandade
romana.

A doutrina do sacerdocio de todos os crentes.

A liberdade christã e o direito do juizo particular.

Sermões de Luthero sobre os sacramentos do arrependimento e do baptismo,
e sobre a excommunhão.

Pedido para que na Ceia do Senhor se fizesse uso dos dois elementos.

1520.—Abril: Ulrico v. Hutten (n. em 21 de Abr. de 1488, f. em 29 de
Ago. de 1523); Dialogo: Vadiscus, ou a Trindade Romana; 15 de Jun.,
Bulla de excommunhão contra 41 proposições de Luthero; o prazo de 60
dias para retractação; 23 de Jun., a obra de Luthero, «Aos fidalgos
christãos da nação allemã, Sobre a reforma de um Estado christão»; Out.
_De Captivitate Eccles. Babylonic._; _De libertate Christiana_ (sobre a
libertação do christão); 10 de Dez.; A queima da bulla pontificia.

1520.—17 e 18 de Abr., =Luthero na Dieta de Worms=; 26 de Abr., retira-se
de Worms; Março 3 a Maio 4 de 1522, em Wartburgo (Em Dez. principio a
traducção do N. T.)—Tratados: _Sobre a Penitencia_, _Contra as missas
particulares_, _Contra os votos clericaes e monacaes_, _O commentador
allemão_.

26 de Maio, Edicto de Worms, falsamente datado do 8 de Maio.

28 do Maio, Decreto Imperial contra Luthero.

Junho: Carlstadt contra o celíbato.

Out.: É abolida a missa em Wittenberg, pelos frades agostinhos (Gabriel
Didymus).

Dez. As innovações de Carlstadt.

25 de Dez.: A Ceia do Senhor nas duas especies.

27 de Dez.: Os prophetas em Wittenberg.

1522.—Fev.: Tumultos em Wittenberg contra as imagens e as pinturas.

7 de Maio: Luthero novamente em Wittenberg.

9-16 de Maio: Sermões contra o fanatismo.

Julho: _Contra Henricum regem Angliæ._

Set.: Fica prompta a traducçao do N. T. (a Biblia completa em 1534).

Dez.: Dieta em Nürnberg. Os Cem aggravos dos estadas allemães, em
resposta ao Breve de Adriano VI, de 26 de Nov.

1522-23.—A Reforma vence na Pomerania, na Livonia, na Silesia, na
Prussia, no Mecklenburgo; na Frisilandia Oriental desde 1519; 1523,
em Frankfort sobre o Maine, em Hall, na Suabia; 1524, Ulm, Strasburg,
Bremen, Nürnberg.

1523.—1 de Jul., Henrique Voes e João Esch (agostinhos) são queimados em
Bruxellas; os primeiros martyres.

Gustavo Vasa estabelece a Reforma na Suecia (Olaf e Lourenço Petersen,
Lourenço Andersen).

7 de Maio, assassinio de Sickingen; revolta dos nobres, suffocada pelos
principes.

Luthero: =Da Ordem do Culto Publico=: Dec.: _Formula Missæ_ (A Ceia do
Senhor _sub utraque_).

1524.—_O primeiro hymnario allemão._

Maio a Jun. de 1525, A GUERRA DOS CAMPONEZES; os camponezes são
massacrados em Frankenhausen. (Os doze Artigos de João Henglin).

1525.—Jan.: Luthero, _Contra os prophetas celestiaes_.

Maio: Exhorta os principes e os camponezes a conservarem a paz, com
commentarios sobre os Doze Artigos. Depois: _Contra os camponezes que
roubam e assassinam_.

13 de Junho, Desposa Catharina von Bora.

Tendencia conservadora da Reforma Lutherana; separação de elementos
reformatorios.

1525.—Dez.: Luthero, _De Servo Arbitrio_ (a mais estricta predestinação
supralapsariana) contra Erasmo, Διατριβὴ _de libero arbitrio_, Set. 1524.

1526.—Maio 4: Liga, em Torgau, entre Filippe de Hesse e João, o
Constante, a que adheriram em Junho, em Magdeburgo, outros principaes
evangelicos.

Junho 26, Liga, em Dessau, de principes catholicos romanos do sul da
Allemanha.

Junho e Julho, Dieta em Spira «Em materias de religião cada Estado deve
conduzir-se de uma maneira digna para com Deus e para com Sua Magestade
Imperial.»

Out. 20, Synodo em Homberg; Ordem ecclesiastica de Besse, instituida
por Francisco Lambert (nasc. em 1487, em Avignon; Franciscano; em 1525
fugiu para a Allemanha; 1527, professor em Marburgo; fallec. em 1539);
incondicional independencia da communidade christã, e estricta disciplina
ecclesiastica.

=Luthero.=—Missa allemã; ordem do culto publico.

Frederico I da Dinamarca adhere á doutrina lutherana. (João Tausen, em
Jütlandia desde 1524).

1527.—Livro de Inspecção, de Melanchthon; Gustavo Vasa propõe a Reforma á
Dieta em Westeräs.

Frederico I da Dinamarca, na Dieta de Odensee, dá á religião reformada
privilegios eguaes aos que a catholica romana tem.

1528.—Otto V. Informações dadas por Pack ácerca de uma Liga Catholica
romana formada em Breslau, em 1527; a Reforma propaga-se na Noruega.

1529.—26 de Fev., =Dieta de Spira=; 12 de Abr., a decisão da maioria
catholica romana dos Eleitos e Principes «Quem quer que tem imposto o
Edicto de Worms deve continuar a fazel-o; os demais não devem permittir
mais innovações; a ninguem se deve impedir celebrar missa.» 19 de Abr.,
concordam com ella as cidades.

PROTESTO: 25 de Abr. Appello dirigido ao imperador e ao Concilio pela
Saxonia, Hesse, Brandenburgo, Anhalt, Lüneburgo, e quatorze cidades.

Separação entre os protestantes lutheranos e os do sul da Allemanha;
Luthero oppõe-se a uma resistencia armada; Zwinglio planeia a abolição do
papado e do imperio medieval; Philippe de Hesse diligenceia promover a
união.

1-4 de Out.—Conferencia religiosa em Marburgo (Luthero, Melanchthon,
Zwinglio, Œcolampadius, Justo Jonas, Osiander, Brenz, etc.); 4 de Out.,
união em quatorze artigos, divisão no quinquagesimo—O Sacramento da
Ceia. _Zwinglio_: «Não ha na terra homens com quem eu mais gostosamente
me identificaria do que os de Wittenberg.» _Luthero_: «Vós tendes um
Espirito differente do nosso.»

16 de Out., Luthero no convento de Schwabach; 30 de Nov. em Schmalkald; a
Saxonia separa-se dos outros estados do sul da Allemanha.

1530.—=Dieta de Augsburgo=; 15 de Jan. entrada do imperador; infructiferas
negociações com os principes evangelicos para os induzir a incorporar-se
na procissão de Corpus-Christi; 20 de Jun., abertura da Dieta; 25 de Jun.
é lida a Confissão de Augsburgo (3 de Ago., é lida a Refutação); 11 de
Jul., é lida a Confissão Tetrapolitana (em 17 de Out. a Refutação) e a
_Fidei Ratio_, Zwinglio; 16 a 29 de Ago. Negociações com Melanchthon, em
que elle mostra muito pouca firmeza.

19 de Nov. Decreto da Dieta. Depois d’Abril de 1531, suppressão violenta
do protestantismo.

1531.—Liga protestante de Schmalkald: á frente d’ella, Hesse e Saxonia.

1532.—Dieta de Nürnberg: tolerancia até haver um Concilio Geral.

Dessan adopta a Reforma.

1534.—O Würtenburgo abraça a Reforma Lutherana.

1536.—A concordata de Wittenberg; Melanchthon Bucer; a _Ceia do Senhor_
conforme o lutheranismo; evita-se que tomem parte n’ella os indignos e os
incredulos; _Baptismo_; _Absolvição_; escondem-se os pontos em voz de se
explicarem.

Victoria da Reforma na Dinamarca.

1537.—Convenção de Schmalkald; os Artigos de Schmalkald.

1538.—Liga Catholica Romana em Nürnberg.

1539.—Victoria da Reforma na Saxonia Ducal, e no Brandenburgo Eleitoral.

1540.—Junho: Conferencia em Hagenau.

25 de Nov. a 14 de Jan. em Worms (Granvella, Melanchthon, Bucer, Capito,
Brenz, Calvino, Eck, Cochlæus).

1541.—27 de Abr. a 22 de Maio, conferencia em Regensburgo (Contarini,
Melanchthon, Bucer, Eck), a questão da Transubstanciação.

1542.—Nicolau V. Amosdorf, bispo de Naumbugo.

1544.—Dieta de Spira; reconhecimento dos protestantes; tudo em socego, na
expectativa de um Concilio Geral.

1545.—_Reformatio Wittenbergensis._

1546.—Segunda Conferencia Religiosa em Regensburgo; 18 de fev., Luthero
morre em Eisleben; os protestantes não apparecem na Dieta.

1546-47.—A guerra de Schmalkald; 19 de jun. liga entre Mauricio e o
imperador; 20 de jul., decreto contra João Frederico e Filippe; 27 de
out., Mauricio é nomeado eleitor; 24 de abr., batalha de Mühlberg,
ficando prisioneiro João Frederico; Filippe entrega-se em Halle; o
imperador falta á sua palavra.

1543.—Reforma no arcebispado de Köln; Hermann V. Wied, o arcebispo, é
avisado por Bucer e Melanchthon; excommungado em 1546; abdica em 1547;
fall. em 1552.

1548.—15 da maio, o Interim de Augsburgo conserva as hierarquias,
ceremonias, festividades e jejuns da Egreja Catholica Romana; casamento
dos clerigos e Ceia do Senhor _sub utraque_.

1548.—Interim de Leipsic (Mauricio da Saxonia e Melanchthon).

1551.—Vehemente desejo do imperador de que os protestantes se submettam
ao Concilio de Trento; Liga clandestina de Mauricio da Saxonia com
Henrique II de França.

Out.: Embaixadores do Würtemburgo, e jan. de 1552, embaixadores saxonios
em Trento.

1552.—20 de mar., Mauricio põe-se em fuga; 19 de maio, apodera-se do
castello de Ehrenberg, e da Passagem de Ehrenberg, as chaves do Tyrol;
dissolve-se o Concilio; julho: Tratado de Passau; João Frederico e
Filippe ficam livres.

1555.—25 de set. _Paz religiosa de Augsburgo_; a Egreja Lutherana
fica com os mesmos direitos legaes da Catholica Romana: _Cujus regio
ejus religio; o Reservatum ecclesiasticum_; a Egreja Reformada não é
reconhecida.

1558.—Disputas entre os antigos lutheranos (Gnesiolutherani) e os
discipulos de Melanchthon.

1560.—Morto de Melanchthon, 19 de abril.

1586-91.—Embaraços cripto-calvinistas na Saxonia eleitoral; supressão do
calvinismo; execução de Krells, em 1601.

_A Egreja Lutherana perde:_

(_a_) Em favor da Egreja Catholica Romana

1558.—A Baviera.

1578.—O ducado da Austria (Rodolpho II).

1584.—Os bispados Würzburgo, Bamberg, Salzburgo, Hildesheim, etc.

1594.—Steiermark, Carinthia (Fernando II).

1607.—Donauwerth.

(_b_) Em favor da Egreja Reformada

1560.—O Palatinado; 1563, o Catecismo de Heidelberg (Reformado sob
Frederico III; Lutherano sob Luiz VI, 1576-83; Reformado sob Frederico
IV, 1583-1618).

1568.—Bremen.

1596.—Anhalt (João Jorge, 1587-1603); revogação do Systema Consistorial e
do Catecismo Lutherano; 1597-1628, Artigos Calvinistas.

1605.—Hesse-Cassel, que estava sob o dominio do Landgrave Mauricio
(1592-1627).

1613.—O Brandenburgo, que estava sob o dominio do Eleitor João Sigismundo
1614, _Confessio Marchica_.

_Anti-Trinitarios_

_Miguel Servetus_, da Aragão; 1530, em Basiléa; 1531, _De Trinitatis
erroribus_; 1534, em Lyons; 1537, em Paris; 1540, em Vienna; 1553,
_Christianismi restitutio_; 1553, queimado em Genebra.

_Valentinus Gentilis_, da Calabria; decapitado em Berne, em 1556.

_Laelius Socinus_: nasc. em 1525, em Veneza; 1547, percorre a Suissa, a
Allemanha e a Polonia; fall. em 1562, em Zurich.

_Faustus Socinus_: nasc. em 1539, em Siena; 1559, em Lyons; 1562, em
Zurich; 1574-78, em Florença, e depois em Basiléa; 1579-98, na Polonia;
fall. em 1604.—_De Jesu Christo servatore: De Statu primi hominis ante
lapsium_, 1578.

1605.—Catecismo Racoviano.


Egreja Reformada

ULRICO ZWINGLIO: nascido em 1 de Jan. de 1484, em Wildhaus, no condado de
Toggenburgo; discipulo de Henrique Wolflin (Lupulus) em Berne; de Thomaz
Wyttenbach, em Basiléa. 1499, discipulo de Joaquim Vadianus em Vienna;
1506, mestre de artes; 1506-16, pastor em Glarus; 1516-18, prégador em
Santa Maria, Einsiedeln.

(Diebold de Geroldseck e o abbade Conrado de Rechenberg).

1518.—Zwinglio contra a indulgencia prégada por Bernardino Sampson
(Guardião do convento franciscano de Milão.)

1519.—1 de Jan., Zwinglio prega o seu primeiro sermão em Zurich; sermões
sobre o Evangelho da S. Matheus, os Actos e as Epistolas de Paulo;
sermões reformistas, expondo uma clara distincção entre o christianismo
biblico e o romanista; Estudo humanista da Escriptura (Epistolas
Paulinas).

EM FRANÇA, propaganda das doutrinas reformadas por Guilherme Briçonnet,
bispo de Meaux desde 1521. Juntamente com Le Fébre e Farel.

1521.—Cornelio Hoën, jurisconsulto allemão, escreve _De Eucharistia_
(a Ceia do Senhor puramente symbolica); a doutrina é introduzida em
Wittenberg e em Zurich por João Rhodius, presidente da Casa dos Irmãos,
em Utrecht.

1522.—16 de Abr. Zwinglio: _Von Erkiesen und Fryheit der Spysen_; Ago.:
_Apologeticus Archeteles_, ao bispo de Constança.

A theologia zwingliana torna-se gradualmente a mais forte nos Paizes
Baixos.

1523.—29 de Jan. Discussão em Zurich, entre Zwinglio e João Faber,
vigario geral do bispo; as 67 theses de Zwinglio.

26 de Out., Discussão em Zurich ácerca do culto das imagens e da missa.

17 de Nov., Instrucção do Concilio de Zurich aos pastores e prégadores.

1524.—Perfeita reforma esclesiastica em Zurich; os quadros das egrejas
são arreados; os conventos dos frades são encerrados.

Victoria da Reforma em Berne (Berchtholdt Haller. Nic. Manuel),
Appenzell, Solothurn; a Liga Romanista e os Cantões Florestaes de Lucerna.

1525.—A missa é abolida em Zurich; o culto publico muito simples e na
lingua allemã; a Ceia do Senhor _sub utraque_.

O commentario de Zwinglio, e a primeira parte da traducção da Biblia de
Zurich (primeira edição completa em 1531).

Zwinglio expôe detalhadamente o que pensa ácerca da Ceia do Senhor.

(Carlstadt torna publica, no sul da Allemanha, a sua theoria da Ceia de
Senhor, δεικτικῶς: Este meu Corpo, é o Corpo, etc.)

Zwinglio a Matheus Alber em Reutlingen, 16 de Nov. de 1524, _Menducatio
spiritualis_; depois no seu commentario.

_Contra_ Zwinglio: Bugenhagen.

_A favor_ de Zwinglio: Œcolampadius.

O Syngramma Suevicum, 1525, (em Hall), por Brenz, Schrepf, Griebler,
etc., e mais tarde Calvino.

Luthero contra Calvino—(1) no seu prefacio á traducção de Agricola do
Syngramma Suevicum; (2) em 1527 «Que a Palavra» etc.

Principios ecclesiasticos e politicos de Zwinglio; a sua reforma politica
na Suissa; liga politica dos cantões florestaes catholicos romanos para
conservarem a sua supremacia.

1526.—Os cantões catholicos romanos atacam os evangelicos.

Maio: Polemica em Baden (Eck e Œcolampadius).

1528.—Victoria da Reforma em St. Gall (Joaquim Vadianus, João Kessler).

1529.—A Reforma vence em Basiléa (Œcolampadius, Capito, Hedio).

Liga de cinco cantões florestaes com a Casa de Hapsburgo.

24 de Jun., Paz de Cappel; os cantões florestaes abandonam a Liga de
Hapsburgo e reconhecem a libertade de consciencia.

Separação entre os protestantes lutheranos e os do sul da Allemanha;
Luthero oppõe-se a uma resistencia armada; Zwinglio planeia a abolição do
papado e do imperio medieval; Philippe de Hesse diligenceia promover a
união.

1-4 de Out.—Conferencia religiosa em Marburgo (Luthero, Melanchthon,
Zwinglio, Œcolampadius, Justo Jonas, Osiander, Brenz, etc.); 4 de Out.,
união em quatorze artigos, divisão no quinquagesimo—O Sacramento da
Ceia. _Zwinglio_: «Não ha na terra homens com quem eu mais gostosamente
me identificaria do que os de Wittenberg.» _Luthero_: «Vós tendes um
Espirito differente do nosso.»

16 de Out., Luthero no convento de Schwabach; 30 de Nov. em Schmalkald; a
Saxonia separa-se dos outros estados do sul da Allemanha.

Os cantões catholicos romanos não observam as clausulas da paz.

1531.—15 de Maio, em Aarau nega-se provisões aos cantões florestaes com a
reprovação de Zwinglio.

11 de Out., Batalha de Cappel; _Zwinglio é assassinado_; Segunda Paz de
Cappel.

Henrique Bullinger, successor de Zwinglio.

_Reforma promovida por Calvino na Suissa franceza._

_Guilherme Farel_ (nasc. em 1489, no Delphinado; desde 1526, reformador
em Berne; em 1530, em Neufchatel; fall. em 1565, em Genebra); _Pedro
Viret_ (nasceu em 1511, em Orbe; 1531-59, em Lausanne; desde 1561, em
Nismes e Lyons; fall. em 1571); desde 1534, faz-se em Genebra propaganda
da Reforma.

1536.—JOÃO CALVINO em Genebra; nasc. em 10 de jul. de 1509, em Noyon;
estudou em Orleans e em Paris; 1533, abraçou a Reforma em Paris; em
Basiléa; 1536, =Instituto Christianæ Religionis=; depois em Ferrara;
rigorosa disciplina ecclesiastica; em 1538, pela pascoa, é expulso de
Genebra e ratira-se para Strasburgo; chamado novamente a Genebra em 1541;
fall. em 27 de Maio de 1564.

_Systema ecclesiastico adoptado por Calvino em Genebra._—Culto: oração
e prégação. Organisação presbyterianna. Jan. de 1542: _Ordonnances
ecclésiastiques de l’église de Genève._ Pastores, doutores, presbyteros e
diaconos. Disciplina da Egreja.

_A Reforma em França_, 1559-98

_Francisco I_, Humanista, importando-se pouco com a religião, fez da
Reforma arma politica; sua irmã Margarida, rainha de Navarra (fall.
em 1549) protege os reformadores; severa perseguição dos protestantes
francezes, não obstante a alliança com os principes protestantes allemães
e o pedido feito a Melanchthon para ir residir em França, em 1565.

Henrique II: Antonio de Navarra e sua mulher Joanna d’Albret põem-se á
testa do protestantismo em França.

1559-25.—29 do maio, Primeiro synodo reformado em Paris, organizado por
Antonio Chandieu, pastor parisiense; Confissão Gauleza.

1561.—Set.: Conferencia religiosa em Poissy, Theodora Beza.

1562.—Jan.: Os protestantes alcançam o direito de se reunirem para
o culto fóra das cidades; Francisco de Guise massacra a congregação
protestante de Vassy.

1562-63.—A guerra huguenote. Morte de Antonio de Navarra; Francisco de
Guise é alvejado perto de Orleans.

1567-68 e 1569-70. Guerras huguenotes.

1572.—24 de ago., massacre de Paris na vespera de S. Bartholomeu;
assassinio de Coligny e de 50:000 huguenotes.

1574-76.—Guerra huguenote; a Santa Liga dos Guises.

1588.—Assassinio de Henrique e Luiz de Guise.

1589.—Henrique é morto por um fanatico da Liga, J. Clement, em 1 de ago.

1593.—_Henrique IV faz-se catholico romano._

1598.—EDICTO DE NANTES: liberdade de consciencia; é permittido o
culto publico; todos os privilegios civis; cidades de refugio para os
huguenotes.

1620-28.—Revoltas huguenotes.

1620.—Tomada da Rochella.

Edicto de Nismes. São garantidos aos huguenotes direitos ecclesiasticos.

1552.—_Os 42 Artigos._

1554.—O cardeal Reginaldo Pole, legado pontificio; 1555-58,
Sanguinolentas perseguições no reínado de Maria; 1556, 21 de maio,
Cranmer é queimado em Oxford.

_A Rainha Isabel restabelece a Reforma_

1559.—Junho: Acta da Uniformidade, Matheus Parker, arcebispo de
Canterbury.

Revisão e readopção do livro de Oração Commum.

1562.—23 de jan., _Os 39 Artigos_: Doutrina calvinista da Predestinação,
Doutrina calvinista da Ceia do Senhor.

1567.—Os puritanos são excluidos da Egreja. Puritanismo; Reforma
espiritual mediante a collectividade evangelica, acceitação, em
Inglaterra, da doutrina do sacerdocio espiritual de todos os crentes,
e consequente guerra ás capas de asperges e outros paramentos
ecclesiasticos.

1570.—Thomaz Cartwright é expulso de Cambridge.

1582.—Roberto Browne, capellão do duque do Norfolk; separação da Egreja e
do Estado; cada congregação fórma uma egreja independente.


Movimentos Revolucionarios

_Os Mysticos_

A Nova Prophecia, o Espiritualismo, o Millenearismo, uma Congregação dos
perfeitamente santos, opposição ao baptismo de creanças.

Primeiro periodo até 1535.

1521.—Os Prophetas (de Zwickau) em Wittenberg: Nicolau Storch, Marcos
Thomé, ou Stübner, Martinho Celiarius.

André Bodenstein de Carlstadt: 1504, professor em Wittenberg; 1520,
em Copenhague, 1522, tumultos por causa das imagens e dos paramentos;
1523-24, em Orlamünde; excommungado depois no sul da Allemanha, na
Frisilandia Oriental, na Suissa; fallecido em 1541, em Basiléa.

1523.—Conrado Grebel, Felix Manz, e Stumpf. em Zurich, contra Zwinglio.

1524.—Alterações da ordem em Stockholmo; Melchior Hoffmann.

1525.—Thomaz Münzer em Mülhausen; executado em Maio de 1525.

Tratado: _Wider das geistlose sanftlebende Fleisch ze Wittenberg_, 1522.

Janeiro: Levantamento dos anabaptistas; Jürg Blaurock, monge proveniente
de Chur.

Severa perseguição dos anabaptistas (Hanz morre afogado em Zurich, em
1527; Balth. Hubmater é queimado em Vienna, em 1528; Hetzer é decapitado
em Constancia em 1529).

_Melchior Hoffmann_: nasc. em Hall, na Suabia; 1523, em Livonia; 1527,
em Holstein; 1529, em Strasburgo; de ahi foi para a Frisilandia, onde se
aggregou aos baptistas; depois nos Paizes Baixos; 1533, em Strasburgo;
fall. em 1540. (_Ordinanz Gottes_): um estricto millenario do genero mais
espiritual; propaga entre os baptistas as idéas millenarias.

_Gaspar Schwenkfeld_: nasc. em 1490, em Ossing, perto de Liegnitz;
ao serviço do duque de Liegnitz; 1525, julgou ter descoberto uma
interpretação das palavras da instituição da Ceia «Quod ipse panis
fractus est corpori esurienti, nempe cibus, hoc est corpus menm, cibus
videlicet esurientium animarum;» de onde proveiu a sua doutrina ácerca
de Christo, A Palavra Escondida (_De cursu Verbi Dei, origine fidei et
ratione justificationis_, 1527); da Pessoa de Christo (não feito homem,
mas gerado pela natureza divina: da sua carne divina); 1528, expulso da
Silesia; em Strasburgo, Spira, Ulm, Perseguido desde 1539 pelos theologos
lutheranos; em muitas controversias; fall. em 1561, em Ulm; discipulos
seus na Silesia; na Pennsylvania desde 1730.

1533.—_O Reino de Christo_ em Münster.

Bernardo Rothmann, superintendente evangelico em Münster, ajunta-se aos
anabaptistas; Henrique Roll e os prégadores de Wassenberg, provenientes
de Jülich.

No verão; Melchioritas in Münster.

Nov.: Jan. Matthiesen.

1534.—Quaresma: Tumulto, destruição das imagens e dos conventos.

Vespera da Pascoa: Queda de Matthiesen; João de Leyden colloca-se á
frente dos anabaptistas (Theocracia com communidade de bens e de esposas).

1535.—Vespera de S. João: tomada de Münster.

1536.—22 de Jan. João de Leyden, Knipperdolling e Krechting são
executados.

1534.—David Joris: nasc. em 1501, em Delft; associa-se aos anabaptistas;
promove reformas entre elles; a sua influencia nos Paizes Baixos e na
Frisilandia Oriental. 1542, o seu _Wunderbuch_; 1544, em Basiléa; uma
especulação mystico-espiritualista com tendencia racionalista.

_Os Mennonitas_

Menno Simonis: nasc. em 1496, em Witmarsum; 1524, padre; 1536, deixou de
exercer as suas funcções, desgostoso com a perseguição dos anabaptistas
de Münster, baptisado por um apostolo de Jan Matthiesen; reformou e
organisou as congregações anabaptistas na Hollanda e na Frisilandia;
fall. em Oldesloe; fez cessar o enthusiasmo fanatico, e deu maior
incremento á tendencia para o Donatismo.

Os seus discipulos, os mennonitas, tolerados em 1572, nos Paizes Baixos,
por Guilherme de Orange, encontravam-se tambem em Emden, Hamburgo,
Danzig, Elbing, no Palatinado e na Moravia; moderaram o espirito
anabaptista primitivo; rejeitaram todos os dogmas; prohibiram os
juramentos e a guerra; appellaram para a letra da Escriptura.

Egreja Anglicana

Inglaterra, 1547-1600, sob Henrique VIII: João Frith, Guilherme Tindal.

1534.—Acta do Parlamento ácerca da supremacia real; o Rei «o unico
chefe supremo, sobre a terra, da Egreja ingleza»; á frente do partido
evangelico, Thomaz Cranmer (1533, arcebispo de Canterbury) e Thomaz
Cromwell; Traducção da Biblia, em 1538.

1539.—28 de jul., Transubstanciação; negação do calix aos leigos;
celibato clerical; missas pelos defuntos; confissão auricular.

A Reforma de Henrique VIII foi um acto do rei, e significava apenas uma
revolta contra o systema medieval, sendo o papa substituido pelo rei.

Isolamento da Egreja da Inglaterra; cortadas todas as relações com o
papado; sem communicação alguma com as Egrejas Reformadas.

1547.—Sob o governo de Somerset, Lord Protector: Pedro Martyr Vermigli
(nasc. em 1500, em Florença; 1542, em Strasburgo; fall. em 1562, em
Zurich) e Bernardo Ochino (nasc. em 1487) levado para Oxford; Martinho
Bucer e Paulo Fagio, para Cambridge.

O Livro das Homilias.

1548.—O Livro da Oração Commum; revisto em 1552.

_A Escocia_

1558.—Os Lords da Congregação; o Evangelho Puro, o Livro de Oração Commum
do Rei Eduardo.

1560.—Assembléa dos Estados em Edinburgo; _A Confissão Escoceza_; o
Primeiro Livro de Disciplina; é approvado o governo presbyteriano
pelas Assembléas Geraes, pelos Synodos e pelas Sessões das egrejas;
Superintendentes.

_João Knox_: nasc. em 1505, em Haddington; desde 1546, prégador em St.º
André; 1547-49, nas galés; 1553-59, em Frankfort e Genebra; 1559 a 1572
(data do fallecimento) em Edinburgo.

1572.—Convenção de Leith; Bispos privados de exercerem as funcções
episcopaes: os Tulchanos.

1576.—Os inspectores nomeados pela Assembléa.

1578.—Segundo Livro de Disciplina.

1580.—A instituição dos presbyterios.


A Egreja Catholica Romana

11 de Março de 1513 a 1 de Dez. de 1521.—Leão X.

1517.—O Concilio de Latrão concede ao papa os dizimos de todos os bens
ecclesiasticos.

Indulgencia (a quinta entre 1500 e 1517) para a construcção de S. Pedro,
e para as despezas particulares do papa.

São concedidas á Allemanha tres commissões de indulgencias, uma d’ellas
arrendada ao arcebispo de Mayença (canonisado em 1514) sendo seu agente o
dominicano João Tetzel (fallecido em 1519).

Thomaz Vio de Gaeta (Cardeal Caetano): «A Egreja Catholica é a escrava do
papa»; assevera a infallibilidade papal no mais amplo sentido.

1519.—As côrtes de Aragão pedem tres Breves a Leão X (que nunca lhe foram
enviadas) para restringir a Inquisição. Pedidos similhantes, tambem
infructiferos, feitos pelos estados de Aragão, Castella e Catalunha, a
Carlos V em 1516.

_Os theologos romanistas no primeiro periodo da Reforma._

João Eck, professor de theologia em Ingolstadt desde 1510; nasc. em 1486,
na aldeia de Eck; fall. em 1543.

Jeronymo Emser, prégador palaciano do duque Jorge da Saxonia, fall. em
1527.

João Cochlæus (Dobeneck), deão de Francfort sobre o Maine, Canonicus em
Mayença e Breslau; fall. em 1552; _Commentaria de actis et scriptis M.
Lutheri_ (1517-46), 1549, _Historiæ Hussitarum_.

João Faber, 1518, Vigario Geral em Constancia (Costnitz); 1529,
Preboste de Ofen; 1530, Bispo de Vienna, fall. em 1561; 1523, _Malleus
hæreticorum_.

1521.—Henrique VIII de Inglaterra: _Assertatio VII. Sacramentorum contra
Lutherum_ (Defensor da Fé.)

15 de Abril, Decreto da Sorbonne, condemnando as doutrinas de Luthero.

8 de Maio, Edito de Carlos V. (fundado no edito de Worms) contra a
propaganda das doutrinas reformadas nos Paizes Baixos.

(1522, é encerrado, sobre o fundamento de heresia, o convento dos
Agostinhos de Antuerpia).

1522-23.—14 de Set. O papa Adriano VI (tutor de Carlos V, bispo de
Utrecht) instruido na sciencia antiga; aspiração por uma reforma do clero
mediante a hierarquia.

Em Hespanha, desde 1520 circulação dos escriptos de Luthero, em
traducções hespanholas feitas em Antuerpia.

1523.—João de Avila o «apostolo de Andaluzia», é perseguido por ter
adoptado as doutrinas lutheranas.

1523-34.—26 de Set. O papa Clemente VII (Julio Medici) filho natural de
Julião de Medico.

1524.—O cardeal Campeggio, legado do papa na Dieta de Nürnberg.

Liga, em Regensburgo, dos Estados Catholicos Romanos do Sul da Allemanha
(Fernando de Austria, os duques da Baviera e os bispos do sul da
Allemanha) Condições: Uma reforma ecclesiastica dentro de certo limites,
e uma alliança com o poder civil; não se permitindo, porém, que continuem
a ser prégadas as novas doutrinas.

1524.—Pedro Caraffa, bispo de Theate (Papa Paulo IV) institue a Ordem dos
Theatini para impedir o avanço da Reforma.

1526.—Maio 29: Liga em Cognac contra Carlos V (o papa, Francisco I,
Veneza e Milão).

1527.—Processo da Sorbonne contra Jacques le Fêvre (fall. em 1537,
durante uma viagem para Strasburgo), sob a protecção de Margarida de
Navarra.

1527.—Maio 6, Carlos de Bourbon ataca Roma; o papa encerrado em St.
Angelo até 6 de Junho. Carlos V, senhor de quasi todos os Estados da
Egreja, propõe o limitar-se o poder temporal do papa. O papa appella
para Inglaterra e para França; um exercito francez equipado á custa da
Inglaterra, marcha em seu auxilio.

1528.—Jun. 29: Paz entre o Imperador e o papa em Barcelona; o papa
recupera os Estados da Egreja e Florença; exterminio da heresia.

1530.—Congregações reformadas em _Hespanha_. Em Sevilha: Rodrigo de
Valero, Joh. Egidio, Ponce de la Fuente. Em Valladolid, 1555, Agostinho
Cazalla.

Francisco Enzinas traduz o Novo Testamento; em 1556, nova traducção por
João Perez.

Filippe II e a Inquisição condemnam essas obras.

_Italia._—A Reforma allemã desperta a vida religiosa e a theologia
agostinha; Contarini, Reginaldo Pole, Joh. de Merone, (arcebispo de
Modena). _Pedro Paulo Vergerius_ (abraçou a Reforma em 1548; fall. em
1565).

Reforma em Ferrara (Renée casa em 1527, com Hercules II); em Veneza; em
Napoles (João Valdez, fall. em 1540; e Bernardo Ochino); em Lucca (Pedro
Martyr).

1534-49.—O papa Paulo III (Farnese); Vergerius, seu legado na Allemanha.

1536.—Paulo III manda reunir em Mantua o Concilio havia longo tempo
promettido; 1537, addiado; mandado reunir em Vicenza; novamente addiado.

1542.—Antonio Paleario (queimado em 1570), _Del beneficio di Gesu Christo
crocifisso verso i Christiani_.

1540.—27 de Set., COMPANHIA DE JESUS constituida por Paulo III; _D.
Ignacio de Loyola_ nasc. em 1491, no castello de Loyola, situado na
provincia de Vasconça; ferido em 1521, em Pamplona; lendas de santos;
estudos em Barcelona; desde 1528 em Paris. Em 1534, com seis companheiros
(Francisco Xavier, Jacques Lainez, Pedro Lefebre, etc.), fez os votos
monasticos, accrescentando um outro, o de absoluta obediencia ao papa.
Loyola fall. em 1556; Lainez em 1561.

«Para zelar os interesses da hierarquia catholica romana contra o
protestantismo tanto dentro como fóra da Egreja.»

A obra missionaria de Francisco Xavier no Oriente da Asia.

A moral da Sociedade; casuistica.

Os seus dogmas: a superstição systematica.

1542.—O cardeal Caraffa aconselha o restabelecimento da Inquisição para
acabar com o protestantismo na Italia.

1545.—Abertura do _Concilio de Trento_; Primeiro periodo, 11 de mar. de
1547, em Trento; 21 de abr. de 1547 a 13 de set. de 1549, em Bolonha.
Segundo periodo, 1 de maio de 1551 a 28 de abr. de 1552, em Trento.
Terceiro periodo, 13 de jan. de 1562 a 4 de dez. de 1563 (25 sessões).
Doutrinas romanistas consolidadas mediante esse concilio.

1564.—_Professio Fidei Tridentinae_: 1566, _Catechismus Romanus_
(Leonardo Marini, Egidio Foscarari, Muzio Calini).

1548.—Filippe Nery funda o Oratorio.

1550-64.—Julio III (del Monte).

1551.—Fundação do Collegium Romanum Jesuita.

1552.—Fundação do Collegium Germanicum.

1555-59.—Paulo IV (Caraffa) protesta contra a Paz de Augsburgo;
Inquisição.

1559-65.—Pio IV (Medici) deixa-se guiar por seu sobrinho, o cardeal
Carlos Borromeu, arcebispo de Milão, fall. em 1584.

1564.—_Index librorum prohibitorum._

1566-72.—Pio V, zeloso dominicano.

1567.—Bulla de excommunhão contra 79 proposições agostinianas de Miguel
Baius (fall. em 1589). Chanceller da Universidade de Louvain.

1568.—_Breviarium._

1570.—_Misssale Romanum._

1572-85.—Gregorio XIII; carta congratulatoria a Carlos IX, ácerca do
massacre de S. Bartholomeu; _Te Deum_ em Roma, em honra do acontecimento.

1582.—Reforma do Calendario.

1582-1610.—Missões jesuitas na China.

1585-90.—Sixto V: Bibliotheca do Vaticano.

1588.—Annales Eccl., de Baronio.

1590.—Edição infallivel da Vulgata.

1592-1605.—Clemente VII.

1592.—Nova edição da vulgata (a chamada edição de Sixto V).

_Os Paizes Baixos_

1559.—Margarida de Parma; Granvella, bispo de Arras.

São creadas 14 novas dioceses. Inquisição.

1562.—_Confessio Belgica_; Guido de Brès, Adriano de Savaria, H. Modetus,
G. Wingen; revista por Francisco Junio, em 1571.

1566.—Compromisso em favor dos protestantes.

Tumultos por causa da imagens e das reliquias.

1568-78.—O duque de Alba.

Concilio de Sangue; Perseguição de protestantes; são mortos 18:000;
Egmont e Horn em 1568.

1572.—Tomada de Brill pelos mendigos do mar; Guilherme de Orange.

1576.—8 de Nov., Tratado de Ghent.

1579.—23 de jan., União de Utrecht, firmada pelas provincias do norte. 26
de julho, Declaração de independencia.

1584.—10 de julho, Assassinio de Guilherme de Orange; succede-lhe
Mauricio de Orange.

Fundação de Universidades—Leyden, em 1575; Franecker, em 1585; Gröningen,
em 1612; Utrecht, em 1638; Harderwyk, em 1648.


Theologia Protestante

FILIPPE MELANCHTHON (nasc. em 16 de Fev. de 1497, em Bretten); 1509-12,
em Heidelberg; 1512-14, em Tübingen; 1514, mestre de artes; 1514-18,
lecciona em Tübingen; 1518, professor de grego em Wittenberg; 29 de Ago.
Conferencia introductora, _De corrigendis adolescentiæ studiis_; 19 de
Set. de 1519. Bacharel em Theologia; fall. em 19 de Abr. de 1560. =Loci
communes rerum Theologicarum, seu hypotyposes Theologicæ=, 1521; tres
edições em 1521; a edição de 1525 modifica a predestinação absoluta; a
edição de 1535 reconstrue a sua theologia; edição de 1543, Synergismo.

ZWINGLIO: _Commentarius de vera et falsa religione_, 1525; _Fidei ratio
ad Carolun Imperatorem_, 3 de Jul. de 1530; _Sermonis de providentia Dei
Anamnemo_; 1530; _Christianæ Fidei expositio_, 1531.

(a) _Theologos Lutheranos_

Jorge Spalatim: nasc. em 1484, em Spalt, na diocese de Eichstädt; 1514,
capellão de Frederico, o Sabio; 1525, superintendente em Altenburgo;
fall. em 1545.

Justo Jonas: nasc. em 1493, em Nordhausen; 1521, Preboste e professor em
Wittenberg; 1544-46, em Halle; 1551, superintendente em Eisfeld; fall, em
1555.

Nicolau de Amsdorf: nasc. em 1483; desde 1502, em Wittenberg; 1524, em
Magdeburgo; 1528, em Goslar; 1542-46, bispo de Naumburgo; depois de 1550,
em Eisenach; fall. em 1565.

João Bugenhagen: nasc. em 1485; desde 1521, em Wittenberg; 1523, pastor,
1536, superintendente geral.

Gaspar Cruciger: 1528-48, fallecendo, em professor, em Wittenberg.

Frederico Myconius, franciscano em Annaberg, e depois pastor em Weimar;
1524, prégador da côrte em Gotha; fall. em 1546.

Paulo Speratus: 1521, em Vienna, depois em Iglau; 1523, em Wittenberg
(1524, «Chegou-nos a Salvação»): 1524, em Königsberg; 1529-51, bispo da
Pomerania, em Marienwerder.

João Brenz, nasc. em 1499: 1520, prégador romanista em Heidelberg,
1522-46, prégador lutherano em Hall, na Suabia; desde 1553, preboste em
Stuttgart; fall. em 11 de Setem. de 1570.

(_b_) _Os Theologos Zwinglianos_

João Œcolampadius, nasc. em 1488; 1515, pastor em Basiléa; 1519, em
Augsburgo; 1522 professor e prégador em Basiléa; fall. em 24 de Nov. de
1531.

Leão Judæus: 1523, cura de S. Pedro, em Zurich; nasc. em 1482; fall. em
1542.

Oswaldo Myconius (Geisshüsler) nasc. em 1483, em Lucerna; fall. em 1532;
14 de Out. de 1552, os Antistites em Basiléa.

Conrado Pellican (Kürsner): nasc. em 1478; 1493, franciscano; desde 1502,
Lector no convento dos Franciscanos de Basiléa; 1527, em Zurich, como
professor de hebreu; fall. em 1556.

(c) _Theologos intermediarios_

Urbano Rhegius: nasc. em 1496, em Argau sobre o Bodensee; 1512, professor
em Ingolstadt; 1519, padre em Constança; 1520-22, prégador em Augsburgo;
desde 1530, reformador em Brunswick, ao serviço do duque Ernesto; fall.
em Celle, em 23 de Maio de 1541.

Ambrosio Blaurer: nasc. em 1492, em Constança; 1534-38, reformador em
Würtemberg; até 1548, em Constança; em 1564, fall. em Winterthum (1534,
_Concordata de Stuttgart_.)

Martinho Bucer: nasc. em Sehlettstadt, em 1491; 1505, dominicano; desde
1524, pastor em Strasburgo; 1549, sob Eduardo VI, em Inglaterra e
professor em Cambridge; fall. em 28 de Fev. de 1551.

Wolfango Fabricio Capito: nasc. em 1478; 1515, em Basiléa; 1520, em
Mayença; 1523-1541, preboste de S. Thomaz, Strasburgo, fall. em 1541.

(d) _Confissões Zwinglianas_

1523.—Jan. 29, os 67 Artigos de Zwinglio.

Nov. 17, Instrucções ao Concilio de Zurich.

1530.—Julho 9, _Fidei Ratio ad Carolum V_. (de Zwinglio com o
assentimento de Œcolampadius e outros reformadores suissos).

1530.—_Confessio Tetrapolitana_ (Strasburgo, Constança, Lindau,
Memmingem): Bucer, Capito, Hedio; durante as sessões da Dieta de
Augsburgo.

1534.—_Confessio Basiliensio_ (Myconius) acceite por Mühlhausen em 1537,
e chamada Conf. Mühlhusiana.

1536.—_Confessio Helvetica Prior_ (Basil II) redigida em Basiléa por
delegados dos cantões evangelicos, (Jan. a Março) e pelos seus theologos
Bullinger, Myconius, Grynæus, Leão Judæus, etc.

(e) _Confissões Lutheranas_

1529.—_O Catecismo maior e mais pequeno_, de Luthero, em allemão;
appareceram simultaneamente.

1530.—=Confessio Augustana=, ou Confissão de Augsburgo. Constituida
por—(1) os 15 Artigos de Marburgo; (2) os 17 Artigos de Schwabach,
redigidos por Luthero; (3) os Artigos de Torgau, compilados por Luthero,
Melanchthon, Justo Jonas, Bugenhagen, e apresentada ao Eleitor, em
Torgem, em março de 1530. Obra de Melanchthon com a assistencia doe
theologos evangelicos reunidos em Augsburgo, e revista por Luthero.

Exposição da Doutrina Evangelica, «In que cerni potest, nihil inesse,
quod discrepet a Scripturis vel ab ecclesia catholica vel ab ecclesia
Romana, quatenus ex scriptoribus nota est.... Sed dissenus est de
quibusdam abusibus, qui sine certa auotoritate in ecclesiam irrepserunt.»
Philippe de Hesse aasignou-a, protestando, porém, contra o Artigo X, que
trata da Ceia do Senhor.

É impossivel averiguar com exactidão o texto, quer das edições allemãs
quer das latinas; a primeira edição impressa de Melanchthon; Wittenberg,
1530, em 4.º

_A Variata_ (variantes, especialmente no Artigo X) desde 1540.

_Apologia em favor da Confissão de Augsburgo._—_A prima delineatio
apologiæ_ por Melanchthon, em Set. de 1630, em Augsburgo; prompta a
imprimir em abril de 1531; a primeira edição em Abril de 1531; a edição
allemã de Justo Jonas, em Out. de 1531.

_Os artigos de Schmalkald_, por Luthero, para a Convenção Protestante de
Schmalkald, 1557, e com referencia ao proposto Concilio Geral em Mantua
(Estrictamente lutherano).

_Controversias na Egreja Lutherana_

1548-55.—_Adiaphoristicos_: Flacius, Wigand, Amsdorf, contra o Interim de
Leipsic.

1549-66.—_Osiander_: André Osiander (em Nürnberg, 1522-48; em Königsberg,
1549, fall. em 1552); 1550, _De Justificatione_; 1551, _De Unico
Mediatore Jesu Christi_. Justificação é uma participação da justiça de
Christo: _cujus natura divina homini quasi infunditur_.

Em opposição; Francisco Stancarus de Mantua (1551-52 em Königsberg,
depois em Siebenbürgen, e na Polonia; fall. em 1574); 1562, _De Trinitate
et Mediatore_, «Christo nossa justiça sómente pelo que respeita á Sua
natureza humana.»

1551-62.—Majorista: Jorge Major (fall. em 1574, quando professor em
Wittenberg); _bona opera necessaria esse ad salutem_. Refutado por
Amsdorf; _bona opera perniciosa esse ad salutem_.

1556-60.—Synergista: Pfeffinger, em 1555, _Propos. de libero arbitrio_
(conforme o synergismo de Melanchthon): contra elle, Amsdorf (1558)
_Confutalio_; e Flacio.

1560.—Discussão em Weimar, entre Flacio e Strigel. Flacio: o peccado
original não podia deixar de ser commettido pelo homem. A doutrina
lutherana é que prevalece. Heshusius: de _servo arbitrio_.

1527-40.—_Antinomiano_: João Agricola, nasc. em 1492, em Eisleben;
fall. em 1562, sendo prégador na casa imperial, em Berlim; 1527, contra
Melanchthon; e 1537, contra Luthero. A contriccão não vem declarada na
lei, mas no Evangelho. Retracta-se em 1540. Desde 1556, controversia
sobre _Tertius usus legis_.

1567.—_Crypto-Calvinista_: Melanchthon admitte as doutrinas calvinistas
da Ceia do Senhor. Christologia e Predestinação.

D’estas controversias conclue-se a necessidade de haver perfeita harmonia
na Egreja Lutherana; e proveem de ahi varias fórmas do concordia com as
quaes se constituiu a _Formula Concordia_.

(1) A concordia Swabia de Jac. Andræ (desde 1562 professor em Tübingen,
fall. em 1590) em 1574; 1575, a concordata de Martinho Chemnitz. 1576,
Formula de Lucas Osiander.

(2) Convenção de Torgau; o _Livro de Torgau_.

_Os principaes theologos lutheranos_

_Martinho Chemnitz_; 1554; fall. em 1586, Superintendente em Brunswich;
_Examen Concilii Trid._; 1565-73, _Loci Theologici_.

_Matheus Flacio_: nasc. em 1520, em Albona, na Illyria; 1545, em
Wittenberg; 1549 em Magdeburgo; 1557-61, em Jena; fall. em Frankfort
sobre o Maine, 11 de Mar. 1575.

_Catalogus Testium Veritatis_, 1556; _Ecclesi. Hist. per aliquot ...
studiosos et pios viros in urbe Magdeburgica_ (os seculos de Magdeburgo),
13 volum., 1560-74; _Clavis Script. Sac._, 1567; _Glossa Compendaria in
N. T._, 1570, etc.

_João Gerhard_: nasc em 1582, em Quedlinburgo; 1606, superintendente em
Heldburgo; 1615, Superintendente Geral em Coburgo; 1616 a 1637, professor
em Jena. _Loci Theologici_, 1610 a 1625; _Medit. Sac._, etc.

_Leonardo Hutter_: 1596 a 1616, professor em Wittenberg; _Compendium Loc.
Theol._, 1610; _Loci Commun. Theolog._, 1619.

_As Confissões de Fé da Egreja Reformada são universalmente reconhecidas._

_Cathechismus ecclesiæ. Genevensis_; 1541, Francez; 1545, Latino; Calvino.

Consensio in re sacramentaria ministrarum Tigur.; Eccles. et Joh. Calvini.

=O Catecismo de Heideiberg=: 1563, escripto sob a suggestão de Frederico
III do Palatinado, por Zacarias Ursinus (desde 1561 professor em
Heidelberg, fall. em 1583) e Gaspar Olevianus (professor em Heidelberg;
fall. em 1587).

_Confessio Helvetica Posterior_: 1566, enviado por Bullinger a Frederico
III do Palatinado.

_Os Decretos do Synodo de Dort_: 1619, reconhecidos nos Paizes Baixos,
na Suissa, no Palatinado, em 1620 na França; não foram universalmente
reconhecidos.

JOÃO CALVINO: =Institutio Religionis Christianæ=, 1535-36. Tres
edições, constituindo cada uma d’ellas uma ampliação, 1535, 1539 e
1559; _Commentarios ao Velho e Novo Testamentos_, 1539; _De æterna Dei
predestinatione_, 1552; _Defensio orthodoxæ fidei de S. Trinitate_, 1554,
contra Servetus.

_Henrique Bullinger_, successor de Zwinglio em Zurich, nasc. em 1504, em
Bremgarten, fall. em 17 de set. de 1578; Commentarios ao Novo Testamento,
1554; _Compendium relig. Christianæ; Histoire des persecutions de
l’Eglise_.

_Theodoro Beza_: nasc. em 1519; 1549, em Lausanna; 1558, professor e
pastor em Genebra; fall. em 1605. Traducção do Novo Testamento, com
annotações, 1565; _Histoire Eccles. des réformateurs au royaume de
France_, 1580.

_Rodolpho Hospinian_, pastor em Zurich; fall. em 1629; _De origine et
progres. controv. sacramentariæ_, etc.

_J. H. Hottinger_, professor em Heidelberg e Zurich; fall. em 1667;
_Hist. Eccl._ N. T.

_Gaspar Suicer_, professor em Saumur, fall. em 1684; _Thesaurus
Ecclesiasticus_.

_F. Dallæus_, professor em Saumur, fall. em Paris, em 1670; _Traité de
l’emploi des S. Péres_, 1632.



INDICE


    Absolvição clerical, 233.

    Agostinho, 208.

    Alba (Duque de), 105, 121, 125, 165.

    Allemanha (Situação politica da), 15.

    Amboise (Morticinio de), 99.

    Amboise, Edicto, 105.

    America (Descoberta da), 205.

    Anabaptistas (Os) em Genebra, 76.

    Anabaptistas (Os) em Zurich, 63.

    Anabaptistas (Os) nos Paizes Baixos, 115.

    Andersen (Lourenço), 52.

    Annatas (Os), 13, 60, 166.

    Anna Boleyn, 167, 184, 189.

    Anselmo, 210.

    Anstruweel, 121.

    Antuerpia, 121.

    _Apologeticus_, de Zwinglio, 62.

    Apostolos (Credo dos), 72, 223.

    _Appellações_, _Estatuto para a repressão das_, 167.

    Aristoteles, 214.

    Armada (a) hespanhola, 196.

    Artigos (Os Doze) dos camponezes allemães, 25.

    Artigos (Os dez), 171.

    Artigos (Os Seis), 173, 177.

    Artigos, (Os Quarenta e dois), 178.

    Artigos, (Os Trinta e Nove), 179, 192.

    Artigos, (Os Onze), 192.

    Augsburgo (Confissão de), 38.

    Augsburgo (Dieta de), 36.

    Augsburgo (Paz de), 47.

    Augsburgo (Interim de), 43.


    Babington (Conspiração de), 196.

    Ballanden (Ricardo), 150.

    Barlaymont, 120.

    Bartholomeu (Matança de S.), 107, 140, 149, 195.

    Basiléa, 64, 75.

    Beaton (Cardeal), 140.

    Bernardo de Clairvaux, 210.

    Berne, 59, 76.

    Berne (A Reforma em), 64.

    Beza, 83, 91.

    Beza em Poissy, 102.

    Biblia, Versão de Luthero, 19.

    Biblia, Franceza, 93.

    Biblia, Hollandeza, 116.

    Biblia (Doutrina da), 232.

    Bispados (os) nos Paizes Baixos, 118.

    Bispos (O livro dos), 172.

    Bispos (Os) na Escocia, 151.

    Boleyn (Anna), 167, 184, 189.

    Bonner (Bispo), 146.

    Borgonha (Carlos e Maria de), 114.

    Bourbon (Antonio de), 100.

    Bourbon (Condestavel de), 31.

    Bourbon (O principe), 96, 100.

    Bourg (Anne de), 98, 145.

    Bourges (Sancção Pragmatica de), 89.

    Brantôme, 107.

    Brederode (O Conde), 120.

    Brés (Guido), 134.

    Briçonnet, bispo de Meaux, 88.

    Brill (Tomada de), 126.

    Bruxellas, 115.

    Bucer, 71, 178, 187.

    Bugenhagen, 51.

    Bulla papal contra Luthero, 12.

    Bulla papal em favor da inquisição, 117.

    Bundschuh (Liga de), 24.


    Caetano (Cardeal), 10.

    Calderwood, 138, 142.

    Calvino (Mocidade de), 69.

    Calvino, (_Institutos da Religião_ de), 71, 78.

    Calvino em Genebra, 73.

    Calvino (Expulsão de), 75.

    Calvino (Morte de), 82.

    Calvino (Ordenanças ecclesiasticas de), 77.

    Cambridge, 178, 187, 194.

    Capito, 64.

    Cappel, (Paz de), 65.

    Caraffa (Cardeal), 117.

    Carew (Sir Peter), 184.

    Carlos V, imperador, 14, 164, 181, 184.

    Carlos V tenta subjugar a Reforma, 28, 32, 37.

    Carlos V (A politica de) nos Paizes Baixos, 114.

    Carlos IX de França, 106.

    Carlstadt, 11, 20.

    Cartwright (Thomaz), 194.

    Casamento (O), 216.

    Catharina de Aragão, 162, 169, 181, 183.

    Catharina de Medicis, 93, 100, 107.

    Catholicidade dos Reformadores, 222.

    Cecil (Sir William), 194, 196.

    Celtica (Egreja), 137.

    Chandieu (Antonio), 97.

    Chateaubriand (Edicto de), 94.

    Christiano II da Dinamarca, 50.

    Clemente VII, 29.

    Colet (Deão), 160, 162.

    Coligny (Almirante), 96, 100, 101, 104, 106.

    Commissão (Tribunal da Alta), 193, 199.

    Concilio (Reclama-se um), 21, 43.

    Concilio (o) de Trento, 44.

    Concordata (A) de 1516, 89, 164.

    Condé (Luiz de), 100, 102, 104, 105.

    Condé (Henrique de), 105.

    Confissão de Augsburgo, 38, 50.

    Confissão de Zurich, 84.

    Confissão Franceza, 97.

    Confissão Hollandeza, 134.

    Confissão Escoceza, 143.

    Congregação (Lords da), 142.

    _Consistorial_ (_Systema_), 30.

    Consistorio (O), 78, 98.

    Constança (Concilio de), 11.

    Cotta (Frau), 8.

    Convenção (A) Nacional, 142.

    Coverdale, 187.

    Cranach (Lucas), 16.

    Cranmer (Arcebispo), 171, 176, 184, 186.

    Craw (Paulo), 138.

    Crespin, 107.

    Cromwell (Thomaz), 163, 170.


    Dante, 218.

    Diana de Poitiers, 93.

    Dickson (David), 152.

    Dieta (A) allemã, 15.

    Dieta (A) de Worms, 16.

    Dieta (A) de Nürnberg, 20.

    Dieta (A) de Spira, 28.

    Dieta (A) de Augsburgo, 36, 47.

    Disciplina da Egreja, 30.

    Disciplina de Calvino, 77.

    Disciplina da Egreja franceza, 98.

    Disciplina (Livro da), 147, 152.

    Dissidencia (A), 194.

    Disturbios (O Conselho dos), 123.

    Dizimos (Os grandes e pequenos), 23, 215.

    Dordrecht, 135.

    Dorner, 225.

    Douay, 196.

    Douglas, 144.

    Drake (Sir Francis), 196.

    Dreux (Batalha de), 104.

    Dubois (Pedro), 138, 158.


    Eck (João), 9, 11, 17.

    Edictos de Tolerancia, em França, 103, 105, 110.

    Edinburgo, 143.

    Educação (A) na Escocia, 137, 148.

    Eduardo III, 218.

    Eduardo VI, 141, 157, 175, 181.

    Egmont (Conde), 117, 119, 120, 121, 122.

    Egreja (Disciplina da), 30, 98, 133, 134.

    Egreja (Riqueza da), 12.

    Egreja (A) em relação com a vida social, 215.

    Ehrenberg (Castello de), 46. Eidgenossen, 68.

    Einsiedeln, 61.

    Eisenach, 8.

    Eisleben, 7.

    Eleitores (Os) allemães, 15.

    Erasmo, 64, 170, 177.

    Erskine de Dun, 142, 151.

    Escocia (A Reforma na), 137-154.

    Esch (João), 115.

    Escriptura (A), 227.

    Eucaristia (A), 33.


    Fagius (Paulo), 178.

    Farel em Basiléa, 64.

    Farel em Genebra, 68.

    Farel em França, 88.

    Fé (A), 213, 230.

    Fernando de Aragão, 14, 162.

    Fernando de Austria, 37.

    Field, o puritano, 194.

    Fisher (Bispo), 170.

    Florestaes (cantões), 64.

    França (A Reforma em ), 87-111.

    Francisco de Assis, 210, 211.

    Francisco I de França, 28, 71, 89, 91, 164.

    Francfort sobre o Maine, 141.

    Frederico da Saxonia, 8, 28.

    Froben, 64.

    Frunsberg (General), 17, 31.


    Galle (Dr.), 52.

    Gallicanismo (O), 218.

    Gardiner (Bispo), 177, 182.

    Gemblours, 132.

    Genebra, 67, 77, 94.

    Ghent, 131.

    Ghent (Pacificação de), 131.

    Glarus, 60.

    Glencairn (Conde de), 142, 143.

    Goch (João), 114.

    Granvella (Cardeal), 117, 119, 123.

    Gregorio VII (Papa), 208, 212.

    Grey (Lady Jane), 182, 183.

    Grindal (Arcebispo), 198, 198.

    Guise (A familia), 93, 98, 100, 103-106, 140, 145.

    Gustavo Vasa, 51.


    Hagenau, 40.

    Hamilton (Patricio), 140.

    Held (Vice Chancellor), 40.

    Henrique VIII de Inglaterra, 157, 161, 163, 184, 190, 218.

    Henrique II de França, 93.

    Henrique III de França, 106, 109.

    Henrique IV de França, 105, 110.

    Henriques (Guerra dos tres), 109.

    Hesse (Organização da Egreja de), 29.

    Hildebrando, 208.

    Hogstraten, 9.

    _Homilias_ (_Livro de_), 177.

    Hooper (Bispo), 180, 186.

    Horn (Almirante), 120, 122.

    Huss (João), 11, 138.

    Hymnos Medievaes, 6, 214.


    Iconoclastas (Os), 103.

    _Imitação de Christo_, 210, 211.

    Imperador (O), 14, 28, 31, 32, 37, 38.

    Imperio (O) medieval, 14, 209, 217, 221.

    Indulgencias (As) em Zurich, 61.

    Indulgencias (As) na Allemanha, 1-2.

    Ingleza, (A Reforma) seu caracter, 159.

    Inquisição (A), 117, 186.

    Interdicção (A) papal, 226, 233.

    Interim (O) de Augsburgo, 43.

    Interim (O) de Leipzic, 43.

    Isabel (A rainha), 125, 133, 157, 189, 192, 194-201.


    Jansen, 50.

    Jarnac, 105.

    Jesuitas (Os), 45, 195.

    Jewel (Bispo), 192, 200.

    João da Saxonia, 37, 38.

    Jorge da Saxonia (Duque), 17, 42, 47.

    _Justificação_ (_A_), 233, 234.

    Jüterbogk, 4.


    Kempis (Thomaz á), 114.

    Knox (João), 141, 143, 144, 146, 148, 152, 178, 180, 191.

    Kyle (Os lollardos de), 138.


    La Ferriére, 95.

    Lainez, 45.

    Lambert (Martinho), 29.

    Lei (A) agraria entre os romanos, 24.

    Lefèvre, 88.

    Leipzic (Controversia de), 10.

    Leipzic (Interim de), 43.

    Leith (Convenção de), 151.

    Leyden (Cerco de), 129.

    Liesfeld (Jacob), 116.

    Liga Allemã (catholica), 40.

    Liga de Schmalkald, 39.

    Liga de França, 109, 196.

    Linacre, 196.

    Lindsay (Lord), 145.

    Lindsay (Sir David), 139.

    Lithurgia (A) de Knox, 141.

    Lollardismo (O), 138, 158.

    Longjumeaux, 105.

    Loyola (Ignacio), 45.

    Luthero e Tetzel, 4.

    Luthero (Mocidade de), 7.

    Luthero em Leipzic, 11.

    Luthero em Worms, 16.

    Luthero traduz a Biblia, 19.

    Luthero contra os camponezes, 27.

    Luthero não sympathiza com a Liga Protestante, 32.

    Luthero (Quietismo de), 32.

    Luthero (Mais ácerca de), 212, 214, 222.


    Madrid (Confederação de), 28.

    Madrid (Egmont em), 119.

    Maitland de Lethington, 144.

    Marburgo (Conferencia de), 33.

    Marcello de Padua, 138, 158, 218.

    Margarida de Navarra, 89.

    Margarida de Parma, 117.

    Margarida de Saboya, 115.

    Maria de Guise, 140.

    Maria, rainha de Inglaterra, 181, 184.

    Maria, rainha dos escocezes, 144, 145, 182, 189, 195.

    Martyr (Pedro), 178, 187, 192.

    Massacre de Amboise, 99.

    Massacre de S. Bartholomeu, 107, 140, 195.

    Massacre de Toulouse, 103.

    Massacre de Vassy, 103.

    Mauricio da Saxonia, 42, 46.

    Melanchthon, 19, 37, 39.

    Melville (André), 152.

    Melville (James), 149.

    Mendicantes (Os), 120, 123.

    Mendigos (Os) do mar, 124, 128, 129, 130.

    _Mérindol_ (_Arrêt de_), 93.

    Mill (Walter), 140.

    Miltitz (Cardeal), 10.

    Missa (A Doutrina da), 33, 39.

    Monasticos (Votos), 212.

    Montauban, 107.

    Montgomery, bispo de Glasgow, 151.

    Montmorency, 93, 105, 145.

    Mooker Haide, 129.

    Moray (Conde de), 146, 150, 195.

    More (Sir Thomaz), 161, 162, 168, 172.

    Morgarten, 59.

    Mosteiros (Suppressão dos) em Inglaterra, 170, 176, 186.

    Münzer (Thomaz), 20, 24, 63.

    Mystico (Sentido) da Escriptura, 230.

    Mysticos (Os) medievaes, 8, 32, 211, 218.


    Nantes (Edicto de), 110.

    Niceno (O credo), 222.

    Nicolau de Basiléa, 212.

    Nobres (Revolta dos) na Allemanha, 21.

    Norfolk (Duque de), 195.

    Noyon, 69.

    Nürnberg (Dieta de), 20.


    Ochino (Bernardo), 178.

    Ockham (Guilherme de), 8, 138.

    Œcolampadius, 33.

    Olivetan (Roberto), 93.

    Oppressões soffridas pelos camponezes, 16, 23, 24.

    Oração Commum (Livro de), 177, 184, 100, 209.

    Orange (Guilherme de), 117, 120, 121, 124, 126, 131, 132.

    Orange (Mauricio de), 123.

    Oradores (Camaras de), 144.

    Ordenanças Ecclesiasticas, 77, 79, 81.

    Orleans, 104.

    Oxford, 178, 187.


    Pamphletos anti-prelaticios, 198.

    Paizes Baixos (Os), 113.

    Paramentos (Os) na Egreja de Inglaterra, 179, 192.

    Parker (Arcebispo), 192, 194.

    Parma (Margarida de), 117.

    Parma (Alexandre de), 132, 197.

    Passau (Tratado de), 47, 183.

    Pavia (Batalha de), 28, 91.

    Perdão (O) do peccado, 4, 213.

    Perseguições em França, 91, 94.

    Perseguições nos Paizes Baixos, 123.

    Perseguições na Escocia, 140.

    Perseguições em Inglaterra, 168, 186.

    Perth (Tumultos em), 143.

    Petersen (Os irmãos), 52.

    Philippe de Hesse, 32, 33, 37, 42, 43.

    Philippe II de Hespanha, 107, 115, 121, 184, 186, 189, 195.

    Poissy (Conferencia de), 102.

    Pole (Cardeal), 46, 185.

    Polyhistor, 64.

    _Proemunire_, 161, 167, 217.

    _Presbyterianismo_, 72, 95, 98, 134, 147.

    Prierias (Silvestre), 9.

    _Prophecias_ (_As_), 197.

    Propriedade (As Leis da) e a Reforma, 215.

    Puritanos (Os), 179, 193.


    Randolpho, 145.

    Ratisbonna, 22.

    Reforma (Os principios da), 1, 225.

    Reforma (Antecipações da), 213.

    Reforma (A) e a vida social, 215.

    Reforma, (A) uma revivificação de religião, 205.

    Reforma (A) e a necessidade do perdão, 212.

    Regensburgo (Conferencia de), 40.

    Regensburgo (Convenção de), 22.

    Religião (A) espiritual, 209.

    Renan ácerca de Calvino, 83.

    Renaudie, 99.

    _Renuncia_ (_A_), 211.

    Requescens, 128.

    Revivificação (A Reforma, uma), 205.

    Revivificação (A) medieval, 210.

    Revolta (A) dos camponezes, 23.

    Revolta (A) dos nobres, 21.

    Ridley (Bispo), 180, 184, 186.

    Ritualistas (Os) na Igreja Ingleza, 199.

    Rochelle (La), 105, 107, 108.

    Romana (A Lei), 24.

    Roper (Margarida), 170.

    Row (João), 139, 144, 153.


    Sacerdocio (O) dos crentes, 179, 226.

    Saboya (Duque de), 67.

    Sacramentos (Os), 34.

    Sacramentos (A administração dos), 207.

    Sacramentos (Theoria dos), 236.

    Samson, traficante de Indulgencias, 61.

    Sancerre (Capitulação de), 107.

    Sandilands (Sir James), 145.

    Schmalkald (Liga de), 32, 39.

    Schmalkald (Guerra de), 42.

    _Separação do mundo_, 208.

    Sickingen (Frank von), 22.

    Smeaton, 149.

    Sobrepeliz (A), 193.

    Social (A vida) e a Reforma, 216.

    Somerset (Lord Protector), 175.

    Spalatin, 10, 16.

    Spira (Edicto de), 29.

    Staupitz, 8, 9.

    Stirling, 143.

    Stockolmo (Massacre de), 51.

    Storch, 20, 24.

    Sturm, 100.

    _Submissão do Clero_, 165.

    Sully (Duque de), 107.

    _Superintendentes_ (_Os_), 147.

    Supremacia (A) real em Inglaterra, 166, 176, 185, 190.

    Suecia (Reforma na), 51.

    Suissa (A Reforma), 57-66.

    Syndicancia aos mosteiros, 170.

    Syndicancia ás Egrejas, 176.

    Synodo da Egreja Franceza, 97.

    Synodo da Egreja Hollandeza, 134.


    Tauler (João), 9, 32, 212.

    Tetzel (João), 3, 4.

    Theses (As) de Luthero, 3, 5, 6.

    Theses (As) de Zwinglio, 62.

    Tindal traduz a Biblia, 187.

    Toggenburgo, 60.

    Torpichen (Lord), 142.

    Toulouse (Massacre de), 103.

    _Transubstanciação_ (_A_), 34, 36.

    Trento (O concilio de), 45.

    _Tulchanos_ (_Os bispos_), 150.


    Ubiquidade (Doutrina da), 36.

    Udal (Nicolau), 198.

    Upsala, 52.

    _Utopia_ (_A_) de Sir T. More, 161, 169.

    Utrecht, 113.

    Utrecht (Tratado de), 132.


    Valdenses (Os), 92.

    Valence (Bispo de), 100.

    Vassy (Massacre de), 103.

    Vienne (Arcebispo de), 100.

    Voes (Henrique), 115.


    Wardlaw, 138.

    Wartburgo, 18.

    Warwick (Conde de), 177.

    Wedderburn (Balladas Sacras de), 139.

    Wessel (João), 144.

    Westeräs, 52.

    Wied (Hermann von), 41.

    Wilcox, 194.

    Wildhaus, 66.

    Willock, 114.

    Wimpina (Conrado), 9.

    Winram, 144.

    Wishart (Jorge), 140, 141.

    Wittenberg (Os fanaticos de), 20.

    Wolsey (Cardeal), 162, 168.

    Worms (Conferencia de), 40.

    Worms (Dieta de), 16, 22, 24.

    Wyatt (Sir T.), 184.

    Wycliffe, 8, 11, 138, 158.

    Wyttenbach (Thomaz), 60, 64.


    Xavier (Francisco), 45.


    Zurich, 59, 62, 76.

    Zwinglio, 33, 35, 60, 66.





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