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Title: O Bem e o Mal - Romance
Author: Castelo Branco, Camilo
Language: Portuguese
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                                  OBRAS
                                   DE
                         CAMILLO CASTELLO BRANCO

                             EDIÇÃO POPULAR

                                   VI

                              O BEM E O MAL



VOLUMES PUBLICADOS

Eis os titulos dos ultimos volumes:


N.º 29—As virtudes antigas—Um poeta portuguez... rico!

N.º 30—A filha do Doutor Negro.

N.º 31—Estrellas propicias.

N.º 32—A filha do regicida.

N.ºˢ 33 e 34—O demonio do ouro.

N.º 35—O regicida.

N.º 36—A filha do arcediago.

N.º 37—A neta do arcediago.

N.º 38—Delictos da Mocidade.

N.º 39—Onde está a felicidade?

N.º 40—Um homem de brios.

N.º 41—Memorias de Guilherme do Amaral.

N.ºˢ 42, 43 e 44—Mysterios de Lisboa.

N.ºˢ 45 e 46—Livro negro de padre Diniz.

N.ºˢ 47 e 48—O judeu.

N.º 49—Duas épocas da vida.

N.º 50—Estrellas funestas.

N.º 51—Lagrimas abençoadas.

N.º 52—Lucta de gigantes.

N.ºˢ 53 e 54—Memorias do carcere.

N.º 55—Mysterios de Fafe.

N.º 56—Coração, cabeça e estomago.

N.º 57—O que fazem mulheres.

N.º 58—O retrato de Ricardina.

N.º 59—O sangue.

N.º 60—O santo da montanha.

N.º 61—Vingança.

N.º 62—Vinte horas de liteira.

N.º 63—A queda d’um anjo.

N.º 64—Scenas da Foz.

N.º 65—Scenas contemporaneas.

N.º 66—O romance d’um rapaz pobre.

N.º 67—Aventuras de Bazilio Fernandes Enxertado.

N.º 68—Noites de Lamego.

N.º 69—Scenas innocentes da comedia humana.

N.ºˢ 70 e 71—Os Martyres.

N.º 72—Um livro.

N.º 73—A Sereia.

N.º 74—Esboços de apreciações litterarias.

N.º 75—Cousas leves e pesadas.

N.º 76—Theatro:—I. Agostinho de Ceuta.—O marquez de Torres-Novas.

N.º 77—Theatro:—II. Poesia ou dinheiro?—Justiça.—Espinhos e
flores.—Purgatorio e Paraizo.

N.º 78—Theatro:—III.—O Morgado de Fafe em Lisboa.—O Morgado de Fafe
amoroso.—O ultimo acto.—Abençoadas lagrimas!

N.º 79—Theatro:—IV.—O condemnado.—Como os anjos se vingam.—Entre a flauta
e a viola.

N.º 80—Theatro:—V.—O Lubis-Homem—A Morgadinha de Val-d’Amores.



                        _CAMILLO CASTELLO BRANCO_

                              O BEM E O MAL

                                 ROMANCE

                              SEXTA EDIÇÃO

                                 LISBOA
                     PARCERIA ANTONIO MARIA PEREIRA
                            LIVRARIA EDITORA
                         _Rua Augusta, 44 a 54_
                                  1910

                                  1910

                OFFICINAS TYPOGRAPHICA E DE ENCADERNAÇÃO
                         MOVIDAS A ELECTRICIDADE
                    Da PARCERIA ANTONIO MARIA PEREIRA

               _Rua Augusta, 44, 46 e 48—1.º e 2.º andar_
                                 LISBOA



PREFACIO DA SEGUNDA EDIÇÃO


Foi vagarosa a sahida da primeira edição d’este livro.

É obvia e, ao mesmo passo, desconsoladora a explicação. A novella não
perdeu por mal escripta; mas por mal pensada. Quanto a linguagem tanto
montava o quilate d’esta como o das suas irmans. A incorrecção é o
castigo de quem escreve muito á pressa para ir acabando mais de vagar. Em
Portugal é preciso isto.

O defeito d’este livro é a superabundancia de virtudes de infastiar
leitores que as exercitam eguaes e maiores, todos os dias.

Ainda bem.

Quem quizer voga e fama pinte e salpique de sangue e lama os seus
paineis. Ganhar a curiosa attenção dos leitores sómente é permittido a
quem lhes dá noticia de cousas não sabidas nem experimentadas. A virtude
é o ranço d’estas gordas almas da nossa terra. Relatem-se crimes de
cafrárias em linguagem de cafra.

    S. Miguel de Seide, agosto de 1868.

                                               _Camillo Castello Branco._



AO

PADRE ANTONIO DE AZEVEDO

Nome que os pobres, seus irmãos, reverenceiam, e os enfermos da alma
abençoam; ancião virtuoso; operario infatigavel em serviço de DEUS e da
humanidade

OFFERECE ESTE ESCRIPTO

_O Auctor._


                                                             _Meu Amigo:_

_Ha vinte e tres annos que eu vivi em sua companhia._

_Lembra-se d’aquelle incorrigivel rapaz de quatorze annos, que ia á venda
da Serra do Mesio jogar a bisca com os carvoeiros, e a bordoada, muitas
vezes?_

_Esse rapaz sou eu; é este velho, que lhe escreve aqui do cubiculo de um
hospital, muito visinho do cemiterio dos Prazeres._

_Eu sou aquelle a quem padre Antonio de Azevedo ensinou principios de
solpha, e as declinações da arte franceza._

_Sou aquelle que leu em sua casa as «Viagens de Cyro», o «Theatro dos
Deuzes», os «Luziadas», «As perigrinações de Fernão Mendes Pinto», e
outros livros, que foram os primeiros._

_Sou aquelle que, sem saber latim, resava matinas, laudes, terça, sexta,
etc., com padre Antonio._

_Sou, finalmente, aquelle, a quem padre Antonio disse:—«O tempo ha de
fazer de você alguma cousa.»_

_Passados vinte e tres annos, como eu acabasse de escrever o meu
quadragesimo segundo volume, lembrou-me dedicar-lh’o, meu venerando
amigo, e rogar-lhe que peça a Deus por mim._

    _Lisboa, 22 de junho de 1868_



I

A visão do presbyterio


Apresento o sr. Ladislau Tiberio Militão de Villa Cova.

Nasceu no termo de Pinhel em 1818. Seu pae, viuvo sem consolação, vestiu
o habito de frade mendicante no convento de Vinhaes. Assim cuidou elle
que dignamente honrava a memoria de sua santa mulher. Escolhera convento
pobre como penitencia, e deixara sua casa e filho unico sob a vigilancia
de um irmão clerigo, sujeito de clara fama e varão doutissimo.

N’aquella casa de Villa Cova, que dera o appellido a dez gerações de
honrados lavradores, floreceram, na passagem de cinco seculos, padres de
muito saber, uns famigerados na oratoria, outros grandes cazuistas, e
alguns bastantemente notaveis por sua virtude sem lettras, e nenhum por
lettras sem virtudes.

O educador de Ladislau sobre ser virtuoso, era grande letrado; a sua
sciencia, porém atrazára-se dous seculos na historia do espirito humano.

Padre Praxedes de Villa Cova sabia de cór Aristoteles e Platão.
Philosophia, physica, historia natural, grammatica, logica, metaphysica,
poetica, meteorologia, politica, e mais um centenar de sciencias todas
lh’as ensinaram os dous sabios de Stagira e Athenas. Na opinião d’elle, a
intelligencia do homem, depois de Platão e Aristoteles, envelhecera, ou
fingira remoçar-se com atavios de ouropel e pechisbeques, sem quilate na
experimentada mão de um sabio.

Era padre Praxedes copiosamente lido em livros portuguezes anteriores
ao seculo XVII, e possuia os melhores nas suas ponderosas estantes
de castanho. Da epocha dos Senhores Reis D. João V e D. José I já
pouquissimos volumes, e esses mesmos entremados do ouro puro dos
classicos, se honravam de prender-lhe a attenção.

Foi, desde menino, Ladislau encaminhado por esta, em parte, errada vereda
da sabedoria util e verdadeira.

Começou a escrever como caligraphicamente se escrevia ha dous seculos:
lettra garrafal, com as hastes a prumo, longas e enfeitadas com mui
engenhosos quadrados, mórmente as maiusculas. Era a escripta de
padre Praxedes, tal qual a que seu tio avô, sabio fallecido em 1707,
transmittira a um padre Heliodoro, seu filho, e este ao avô de Ladislau,
e o avô ao filho, que vinha a ser o tio paterno d’este padre Praxedes.
De modo que, n’aquella familia, o «traslado» da escripta em 1830 era
fielmente copiado do de 1680. Em tudo mais como na escripta.

Está situada a casa dos Militões de Villa Cova nas faldas de uma serra
chamada a _Castra_. Affirma documentalmente o padre que o chamar-se
Castra o sitio, vem de ter estado alli presidio romano, ha vinte seculos;
e quer elle que sobre as ruinas d’aquella atalaia dos senhores do mundo
esteja cimentada a modesta habitação dos Militões desde o seculo IX.

É a casa grossa de cantaria com dez janellas de peitoril sem vidraças,
quasi a roçarem nas proeminentes cornijas, assentadas em fortes cachorros
sem lavor. É largo e alto o portão de castanho, que abre sobre um
espaçoso quinteiro, intranzitavel na maior parte do anno, por causa das
gabellas de tojo e urze, que os pés do gado vão calcando e curtindo.

Do fundo do quinteiro, sobe larga escadaria a um pateo lageado com
guardas de pedra tão em bruto e sem visos de esquadria que parecem ter
alli ficado casualmente postas umas contra outras pelo revolutear aquoso
de algum diluvio.

Este exterior assim é triste, mais triste que a soledade das ruinas
de outras casas, que em redor existiam até ao começo d’este seculo,
e ás quaes os francezes acossados pegaram fogo, na sua ultima evasão
de Portugal. Do desastre da Povoa de Villa Cova salvou-se a casa dos
Militões, porque os incendiarios não acharam brecha por onde lançassem
o lume: o morro de pedra era incombustivel; as portadas de castanho tão
sómente a bala raza poderiam saltar dos seus enormes gonzos.

Os donos das ruinas não quizeram reedificar no sitio onde seus
antepassados tinham construido os pobres casalejos. Ajuizadamente
edificaram em terreno mais ao centro das suas leiras, visto que, em casa
de mais fertil torrão, já os avós dos actuaes tinham levado longe o
arroteamento e a cultura.

A casa dos Militões ficou, porém, solitaria, e tomou a si em bem dos
pobres o desmontar da terra deixada a monte.

As corpulentas arvores, que se abraçaram no declive da serra, mal
deixavam entrever a casa de Villa Cova. O vestigio unico de vida
n’aquelle fundão era o rolo de fumo que o vento rarefazia em apparencia
de nevoeirinhos sobre a copa do arvoredo, o qual, visto da cumiada da
Castra, semelhava uma mouta de arbustos.

Volviam mezes e mezes sem que pessoa estranha descesse a serra, em
demanda da casa dos Militões, excepto o viandante, que, surprehendido
pela noute, se guiava pela neblina de fumo, vista ao entardecer, ou pelo
convidativo cantar do gallo.

Em dias santificados, a familia fiava dos cães de gado a guarda da casa,
e ia ouvir missa á igreja parochial, um quarto de legua distante. Desde
tempos immemoriaes era a freguezia pastoreada por clerigo da casa de
Villa Cova. Este clerigo que, no discurso de tres seculos, parecia sempre
o mesmo, tinha sempre comsigo uma irmã, que, no traje, no dizer, e no
sentir, era a mesma irmã do padre do seculo XV.

Depois da missa, o pastor acompanhava os seus a Villa Cova, onde pasava
o dia; e á noute, entoadas as preces das Ave-Maria, lá transmontava o
serro, que o separava da sua igreja, abordoando-se d’um cerquinho, que
diziam ter trezentos ou mais annos de uso—tradição fundada na certeza de
outras muitas.

Este era ainda em 1830 o viver d’aquella patriarchal familia.

Ladislau Tiberio Militão estudava n’este tempo a grammatica de
Aristoteles. Frei Braz, seu pai, morreu n’aquelle anno; e no seguinte, o
tio, que parochiava. Ficou reduzida sua familia ao padre, que o ensinava,
e á tia Sebastiana, que, por morte do tio, voltára da igreja á casa, onde
uma serie de onze antecessoras tinha voltado com o lucto no coração e a
vida por um fio.

Apenas fallecido o pastor, foi padre Praxedes nomeado interinamente para
a vigararia de S. Julião da Serra. Não havia outro clerigo na familia,
nem outro administrador para a lavoura. Quiz o padre declinar a pesada
herança; mas, mal o souberam, os parochianos acudiram em rogos e lagrimas
a Villa Cova, pedindo ao virtuoso irmão do defuncto vigario que os não
desamparasse. Praxedes arrendou os bens, e transferiu-se á residencia
parochial com irmã e sobrinho, esperando ainda que algum clerigo pobre
das cercanias lhe tirasse dos hombros o cargo, e lhe libertasse o tempo
necessario ao ensino de Ladislau.

Malograda a esperança, e nomeado pelo governo, o parocho trasladou a
sua livraria, como quem já tinha ao certo que seus derradeiros annos,
muitos ou poucos, alli seriam vividos ao pé da sepultura dos seus onze
antepassados.

Na casa do presbyterio, continuou a educação litteraria de Ladislau.

Vivia o mocinho entre seus tios; não conhecia rapaz da sua idade com
que entretivesse as horas feriadas, ou conversasse em materia de
estudo. Mui naturalmente lhe pendeu o animo a umas tristezas que nem
viço e contentamentos de primeiros annos podiam desassombrar. Isto não
faria especie ao vigario nem á senhora Sebastiana. Era aquella soturna
melancolia a norma commum do viver d’esta familia. Muita quietação,
silencio tumular, um moverem-se de phantasmas, perpassando uns por outros
com glacial taciturnidade.

Estava ainda gravado no animo de todos o lance funereo da viuvez de
Braz. A mãe de Ladislau morrera como quem passa de um tumulo para outro.
Nem mesmo, depois que sahira o esquife, os gemidos se ouviram longo
tempo. E o viuvo, quasi sem declarar seus intentos, sahiu, ao terceiro
dia, de casa, foi orar sobre a lagea de sua mulher, e d’alli se partiu,
a pé, caminho de Vinhaes. Aqui, bateu á porta do mosteiro, que se lhe
abriu como casa de infelizes, e lá ficou. Tudo assim na vida ordinaria,
modelado por este extraordinario succedimento!

Ladislau contou os dezoito annos da sua idade, sem sentir abrir-se-lhe o
coração a alguma poesia: nem sequer á poesia da natureza!

As graças campestres das Georgicas de Virgilio sabia traduzil-as em
termos frios, rigorosamente grammaticaes, irreprehensiveis em sã e
fradesca latinidade; porém, no interno da sua alma, nenhum enlevo o
transportava da euphonia do verso para a formosura dos prados, das fontes
e do luar das suas noutes solitarias. Dormia-lhe o coração; ninguem á
volta de si proferira aquella palavra, que é bastante a despertal-o
para as alegres alvoradas do primeiro dia de amor, amor sem mulher, sem
esperança, sem emblema, amor em competencia com o ideal do amor dos
serafins.

Como se padre Praxedes premeditasse amortalhar este mancebo, já morto
antes de haver experimentado o palpitar estranho da vida, que estremece
em confusos desejos, uma vez, acabando de traduzir com Ladislau alguns
capitulos da «Cidade de Deus», de Santo Agostinho, fallou assim ao moço
de dezoito annos, sem uma só primavera:

—Ladislau, pensava eu esta noute, e muitas noutes hei vellado a pensar
que, d’aqui a pouco, voltarás á casa onde nasceste, deixando teu mestre
debaixo da pedra onde esperam o grande dia todos os nossos. Pensei com
tristeza que não virá tão cedo de nossa casa o padre guardador d’este
rebanho que os nossos antepassados acceitaram como de Deus, e vieram,
no atravessar de tantos annos, passando o cajado uns a outros. Agora é
que se acabou este legado de serviços, desvelos, e caridades aos nossos
irmãos... Quão grata seria a Deus que o não regeitassemos! Não estás tu
aqui tão bem inclinado á virtude, e aproveitado na sciencia das cousas
santas?!... Queres tu ser padre, Ladislau?

—Quero, meu tio—disse o moço com inalterado semblante, como se fosse
convidado a traduzir a «Carta aos Pisões» ou as «Lamentações de Jeremias».

—Sentes em ti vocação ao sacerdocio?—reperguntou o padre com alegre
sombra.

—Sinto, sim senhor; porque não hei de sentir?—disse Ladislau.

—Não tens pensado em outro futuro, meu sobrinho?

—Outro futuro!?—perguntou o moço como alheado na estranheza da
insistencia.

—Sim: outro futuro... Pensaste alguma vez em te casares?

—Não senhor.

—Nem te pende para a vida de esposo e pai a inclinação de teu animo?

—Nem tenho cogitado n’isso.

—Pois pensa, sobrinho, pensa, que esta vida de padre tem grandes alegrias
e grandes amarguras, como todas as vidas, todas as vocações. Se queres
a paz, que me tens visto no rosto, entra na trilha de meus passos; os
dissabores de dentro, esses, que são muitos, Deus te afaste o calix
d’elles; mas se t’o der, acceita-o, que a remuneração é infallivel:
acceita-o, meu sobrinho, que o descanço, vindo apoz a batalha, é
ineffavel como o jubilo dos Santos. Ora pois: pensarás um anno;
consultarás o teu espirito; e, em cada amanhecer, pedirás ao divino
Espirito Santo que te allumie.

Antes de findado o anno, padre Praxedes deu a alma ao Senhor; e
Sebastiana, que vivia para sepultar o ultimo vigario de S. João da Serra,
lá ficou na campa mais proxima, adormecendo-se a beneplacito de Deus,
como quem cumpriu sua missão.

Ladislau voltou á casa de Villa Cova com a sua livraria, e as supremas
palavras do tio moribundo, que tinham sido estas:

—Espera um anno mais, o conselho do Espirito Santo. Se o teu coração
estiver desatado de paixões, que prendem á terra, dá-o a Deus; se não,
meu sobrinho, sê um bom marido e bom pai, que esta virtude é por si
tambem um sublime sacerdocio. A vida solitaria, que tens vivido, se
poderes continual-a, filho, não a troques pelo mundo. Sacerdote, marido,
ou simples homem, sem mais obrigações que as communs com os outros
homens, além das que o decalogo te manda, foge, quanto poderes, da vida
que traz comsigo o esquecimento da morte. Ladislau, a sciencia é um
grandissimo mundo povoado de espirituaes amigos; os teus livros encerram,
cada um, sua alma, que te falla como amiga. N’este, acharás um desgraçado
contricto, que te conta os seus infortunios com o bispo de Hippona, ou
o fundador da nossa Arrabida[1]. Outro, como o thesouro de Kempis, se
te desentranha em balsamos para quantas feridas a dôr do ermo ou os
desenganos do mundo te abrirem no seio. Nos livros apprendi a fugir ao
mal sem o experimentar. Confessor quarenta annos, vi as angustias, que
vão por esse mundo, tantas, que não cabiam lá, e transbordavam até ao
nosso escondrijo. Recolhe-te a ti; não deixes os teus campos; affaz-te a
amar estas serras, onde o pé do impio não chegou ainda. Olha tu com que
serenidade eu fio meu remedio e salvação da divina misericordia: aqui
tens, na morte, um exemplo das vantagens da vida, que eu tive. É isto,
filho; é este acabar sem remorso nem temor, consolando-me de ter sido tão
moderado em meus desejos, que nem se quer peço a Deus que me dispense
mais um dia de existencia.

Estas e poucas mais foram as ultimas palavras do presbytero.

Ladislau Tiberio viveu um anno esperando o conselho do Espirito Santo.

Os chorosos parochianos de S. Julião da Serra, quando viram suas
consciencias em guarda de um sacerdote moço, que viera de longe
pastoreal-os, foram ter com Ladislau, representados pelos lavradores mais
abastados da freguezia.

—Que querem de mim?—perguntava o moço—que hei de eu fazer-lhes?

—Seu tio, que Deus haja—respondeu o mais respeitado—nos disse que talvez
o sr. Ladislau tomasse ordens para ser o nosso vigario.

—Pois sim; mas é cedo ainda, meus amigos. Deixai-me esperar o dia
destinado á minha decisão.

O dia chegou: era o anniversario da morte do padre Praxedes.

Ladislau, na manhã d’aquelle dia, foi orar ao templo, e ajoelhou sobre a
campa dos sacerdotes seus antepassados.

Raiava a aurora, quando entrou á egreja.

E enxergou um vulto, orando no arco da capella-mór.

Mais tarde, como o sol coasse pela estreita fresta lateral um raio de luz
sobre o vulto ajoelhado, Ladislau reconheceu uma mulher.



II

Amor de predestinação


A mulher ajoelhada á sombra do escuro arco, era Peregrina, irmã do
vigario.

Viera de longe para alli com seu irmão, sacerdote pobre, que devia a sua
ordenação ao bemfazer do padrinho, velho fidalgo de Pinhel. Em quanto
João se ordenava em Bragança, Peregrina vivera e educara-se sob o amparo
do padrinho de seu irmão, e querida das filhas do fidalgo, que a vestiam
de seus vestidos, e a sentavam entre si á meza.

Disse padre João a sua missa nova na capella do bemfeitor, e alli ficou
estimado como da familia, até que, por diligencias do fidalgo, recebeu a
apresentação na igreja de S. Julião da Serra.

Peregrina beijou a mão do velho caridoso, beijou o rosto de suas amigas
de infancia, e sahiu com o presbytero em demanda da vetusta igreja. Os
parochianos, posto que descontentes ao verem semblantes desconhecidos no
adro dos seus mortos, disseram:

«Assim é que vinha o pastor de Villa Cova com a irmã».

Era melancolico o presbyterio; as arvores ressequidas; o chão arido;
as penedias calvas; os tectos assentes em vigas; as paredes interiores
afumadas; os taboados movediços. Alli, as primaveras passariam
despresentidas, se não fosse o azulejar-se o céu, e os festões das
giestas na serra, e o calar-se o estridor das torrentes despenhadas dos
cerros das montanhas.

Peregrina, quando alli se viu, por um anoutecer de novembro, disse:

—Como isto é triste e feio!

Padre João olhou em redor de si, e respondeu:

—Irmã, este chão triste é que nos ha de dar o pão santo da independencia.
Bemdigamos o coração generoso dos nossos amigos, que me deram terra onde
lavrar com minhas proprias mãos o nosso sustento de cada dia. A casa
parece-nos agora triste, porque é noute. Ámanhã um raio de sol nos virá
alegrar estas paredes.

E, como assim fallasse, o vigario desceu ao adro, subiu sobre uma peanha
tosca, travou da corda que movia o sino unico do simulacro de torre, e
tangeu as nove badaladas de Ave-Marias. Os lavradores, que iam passando,
descobriram-se, pararam, oraram, benzeram-se, e seguiram seu caminho
murmurando:

—Os padres de Villa Cova faziam o mesmo. Quer Deus que todos os nossos
vigarios sejam bons e devotos.

Entretanto, Peregrina, rezada a oração final da sua prece da tarde,
alongou os olhos ás sombrias serras que avultavam para o lado de Pinhel,
e chorou. Eram saudades das filhas do bemfeitor, e do casal onde nascera,
e onde seus pais, caseiros do fidalgo, haviam morrido.

A irmã do vigario tinha 18 annos. Era dotada de abundantes graças,
compleição menos robusta que o ordinario das moças aldeãs, senhoril
talvez extraordinariamente, rica de negros cabellos, formosa de olhos,
doce e meiga no dizer, modestissima, parca em sorrisos, meditativa,
laboriosa, e muito dada á oração.

Costumava ella erguer-se ante-manhã, quando ouvia os passos do irmão no
sobrado visinho do seu quarto. O vigario madrugava assim para dizer missa
á hora em que os parochianos sahiam ás suas lavouras. Peregrina accendia
o lume, aconchegava o pucaro das brazas, cegava as couves, ia assistir
á missa do irmão, e vinha depois cosinhar o caldo que era a refeição
matinal do sacerdote e d’ella.

Uma grande parte do clero, que pastorêa almas, póde bem ser que me não
acceite a verosimilhança d’este caldo de couves. Espero que se desçam de
sua incredulidade, se eu lhes disser que a congrua e pé-de-altar de S.
Julião da Serra não davam para chá, n’aquelle tempo em que os direitos
da charopada chineza eram enormes, e os paladares eram genuinamente
portuguezes, lá d’aquellas serranias, se saboreavam de preferencia no
salutar cozimento de couves adubadas de saboroso unto. Ora eu, que
n’esta fidalga e franceza Lisboa tenho sido espectaculo de riso, pedindo
nos hoteis, e recommendando aos meus amigos o caldo verde, insisto
contumazmente em me expôr á mofa da gente culta, dando á estampa, n’este
logar e para meu duradouro opprobiro, o panegyrico do caldo verde, caldo
de meus avós, e de padre João e de sua irmã.

N’aquella madrugada, em que Ladislau fôra celebrar o anniversario da
morte de seu tio, orando na igreja, Peregrina demorára-se a rezar, finda
a missa, porque seu irmão entrára no confessionario. Déra ella conta de
ajoelhar-se alli perto de si o moço, já quando o templo estava vazio.
Soffreou, em quanto pôde, sua curiosidade, que teimava em querer conhecer
o recolhido devoto. Não era costume seu voltar a cabeça a um lado ou
outro, quando fallava a Deus; porém, tanta força lhe fazia o animo para o
sitio onde estava o moço que, apesar de profanação, aventuro-me a suppor
que o coração lhe estava tirando para alli os olhos por uns filamentos
mysteriosos que, alguma vez, a anatomia ha de encontrar entre olhos e
coração.

Foi o raio de sol nascente, vertido pela fresta esguia da capella-mór,
que de todo em todo aliciou Peregrina a olhar. Um raio do sol do Senhor
a alumiar-lhes o escuro do templo para se verem! Donoso e sublime
confidente de duas almas carecidas uma da outra! Nunca tão auspiciosos
preludios de um amor começaram n’esta vida. São dous moços: ella
virgem, e formosa, e immaculada; elle gentil, puro, e alli ajoelhado em
consultação de seu destino. A que bemdita e predita hora se entreluzem as
duas almas, embebidas em Deus e subitamente encontradas no mesmo arco da
igreja, em que os esposos costumam receber as bençãos!

Ladislau tinha as mãos erguidas, quando encarou no rosto de Peregrina.
As mãos ficaram na postura fervorosa; mas a oração, cortada em meio,
olvidou-se-lhe. E ella, que entrepassava nos dedos as contas do seu
rozario, continuou a dizer as palavras santas, mas sem ouvil-as na
audição interior do espirito.

Ambos a um tempo acordaram da fixidez da sua contemplação, e córaram.
Ladislau baixou os olhos, e ella ergueu-os. Um parece que pedia contas á
terra d’uma delicia, que nunca lhe havia dado nem presagiado; outro ia
no ceu como a decifrar o enigma da sensação nunca experimentada.

Instantes depois, padre João appareceu á porta da sacristia, e mandou á
irmã que accendesse os castiçaes do altar-mór, emquanto elle se revestia
para ministrar a sagrada communhão á confessada. Ladislau, como ouvisse
as ordens do vigario a Peregrina, ergueu-se e disse:

—Eu vou, se o sr. vigario quer. Já sei este serviço, que era minha
obrigação, em tempo de meus tios, que Deus haja.

Padre João já conhecia o sobrinho do defuncto Praxedes, como primeiro
lavrador da freguezia, e moço de estudo e virtudes, segundo lhe disse o
regedor da parochia, e o gravissimo mordomo do orago confirmára.

Acceitou o vigario o serviço a que Ladislau se teria offerecido, ainda
mesmo que a presença de Peregrina o não movesse á delicadeza. Esta
delicadeza era instinctiva certamente, e ensinada pelo coração, a
fundamental de todos os ceremoniaes, que nas activissimas cidades os
meninos aprendem em livros, como se a cortezia com damas não fosse pagina
escripta no mais diamantino do peito desde que abrimos olhos para vel-as.

Accendeu Ladislau as velas, e proveu de agua o jarro da communhão,
emquanto o vigario se paramentava. Subiu o ostiario ao altar, abriu o
sacrario e tomou a particula da pyxide. Uma nuvem escura de trovoada
imminente entoldára o sol, e a capella-mór voltava á frouxa luz
crepuscular. O ministro, severissimo em todo o ritual de seu sagrado
encargo, como não fiasse da claridade de uma só vela a perfeita passagem
da hostia á lingua da commungante, acenou á irmã para que tomasse uma
vela do outro lado.

Ladislau tremeu quando a viu tão perto de si; mas assim mesmo, não
desatremou em desconcerto com a urbanidade: entregou-lhe o cirio, que
tinha e foi tomar outro da tocheira.

Em verdade lhes digo, meus sensiveis leitores, que eu desejava ter assim
um painel, para serem dous os papeis da minha estimação. O que já possuo
é uma menina lagrimosa, que está dando de comer ao seu cão moribundo,
que não vê o alimento mas ainda a vê a ella, e parece despedir-se a
chorar. O outro quadro queria eu que fosse o vigario de S. Julião da
Serra pendido á fronte humilde da christã; d’um lado, Peregrina com o
rosto banhado do escarlate da flamma, que ella quer affastar de si,
adivinhando que os olhos do moço a estão contemplando; do outro lado,
Ladislau, involuntario, captivo, alheado de si, sem poder desfital-a. Eis
aqui as minhas quatro figuras todas absorvidas em amor de Deus. O padre
está enlevado na suprema magestade do seu ministerio: a penitente está-se
identificando a divindade do corpo e sangue de Jesus; Ladislau, em seu
silencioso spasmo, está psalmeando o hymo de graça que o primeiro homem
deu ao Senhor, no instante de ver inclinado a si um seio amparador de
mulher. E ella, Peregrina? De ti, purpureada virgem, só podem sentir teus
extasis, e contar-no’l-os as tuas iguaes n’este mundo, as que tiveram
simultaneamente a intuição do amor e a visão do primeiro homem amado.
Todos, pois, enlevados em aspirar divino: o sacerdote e a commungante
pela consciencia, os outros pelo coração, aberto em perfumes que queimam
a Deus o mais selecto e fino bago do seu incenso.

Findo o acto sacramental, o padre subiu os dous degraus do altar, cerrou
o sacrario, ajoelhou, e voltou á sacristia. Ladislau ficou em pé, rente
com o tocheiro de castanho tosco, d’onde tirara o cirio. Peregrina foi
depor a sua vela sobre a credencia, desceu ao fundo da igreja saudando os
quatro altares lateraes, e sahiu do adro, e logo entrou na vigairaria.
Ladislau, viu-a desapparecer, e disse de sua consciencia para Deus: «Não
tornarei a vel-a?»

Assomou o pastor no limiar da sacristia, e disse a Ladislau, que ia
sahindo:

—Desejo tel-o em minha companhia algum pouquinho tempo, sr. Ladislau. Se
não vai com pressa, tenha a bondade de esperar, que eu faço oração, e vou
já.

—Espero no adro o tempo que o sr. reverendo vigario quizer.

—Por que ha de ser no adro e não em casa?—tornou padre João.—Entre na
residencia, que a porta do sobrado está aberta.

Ladislau esperou no adro, e, emquanto esperava, tinha os olhos na
janellinha da saleta, em que seu tio costumava estar nas noites quentes,
esperando os freguezes, que voltavam das ceifas, e a todos fallava,
mandando-os sentar nos troços brutos de pedra, que alli tinham ficado
d’uma casa incendiada pelos francezes.

Assim contemplativo, viu elle chegar á janella a irmã do vigario, e
esconder-se, apenas o encarou, surprehendida.

Que instantes aquelles para ambos! Que ceus e ceus, vistos á lus d’um
relampago! Que extensos poemas de lagrimas costuma a saudade fazer depois
com as reminiscencias de uns momentos tão fugitivos!

Sahiu o vigario do templo, fechou a porta, e disse:

—Estava o sr. Ladislau a recordar-se de seus tios?... Não admira, que
eu mesmo, sem os ter conhecido, lhes respeito a memoria, pelos grandes
louvores que ouço dar ás suas virtudes. Basta ver o que este bom povo é,
para se avaliar as excellencias de quem assim o educou. O espirito dos
dous ultimos e defuntos vigarios de S. Julião da Serra está ainda com o
seu rebanho. Facil me ha de ser a mim, homem sem virtude nem experiencia,
pastoreal-o. Mais tenho que aprender que ensinar.

E, no sentido d’estas humildes palavras, foi dizendo outras, que se
insinuavam ao coração do moço já captivo do conciliador semblante do
sacerdote; e assim entraram na casinha parochial.

—Peregrina—disse o padre á irmã que os vira subir, e, sem saber por que,
se alvoroçara—olha que temos hospede; vê lá como te saes; não queiras que
o nosso convidado nos julgue forretas. Almoço de abbade rico, ouviste?

A moça não respondeu. Affastou da fogueira o caldo que fervia, lançou
alguns ovos á certã, e, tão depressa os cosinhou, foi á modesta arca do
seu fragal tirar a melhor toalha, e os garfos de ferro ainda lusidios em
primeiro uso.

Peregrina, posto o almoço na mesa, sentou-se no seu logar de costume, que
era um banquinho tosco achegado do escano. A mesa, construida de uma só
taboa afumada, engonçava n’aquelle adorno da lareira, talvez tão antigo
como a vigairaria de S. Julião da Serra.

Quando a moça se assentou, disse Ladislau:

—Aquelle banco era o logar de minha tia, que Deus tem!

E ficou contemplativo.

—E eu—disse padre João—estou no logar de seu tio, e o sr. Ladislau vem
sentar-se no logar que era seu.

Estava já na meza a travessa de barro vidrado com a fritada de ovos e
farinha triga. O vigario sorriu-se, e disse:

—Na meza de seu tio havia um prato e um talher para cada pessoa?

Ladislau, que não sabia o significado da palavra «talher», respondeu:

—Comiamos todos do mesmo prato; e na minha casa de Villa Cova, tanto meu
pae como meus tios comiamos á mesma meza dos creados e jornaleiros.

—Como ha trezentos annos—ajuntou o padre—como os patriarchas idumeos
com os seus servos e escravos. O sr. Ladislau ainda não viu, á luz da
civilisação, a grande distancia a que está dos seus criados. Vive, por em
quanto, na fé de que senhor e servo são homens filhos do mesmo pai, um
favorecido, outro desfavorecido pelo acaso do nascimento... O sr. não lê
as gazetas?—perguntou o vigario abruptamente.

—Não leio, nem as vi nunca—respondeu o moço—Ouvi dizer a meu tio que um
padre, d’aqui tres leguas, quando acertava de encontrar-se com elle na
feira de Pinhel, lhe mostrava gazetas.

—Pois—tornou o padre—as gazetas são uns papeis escriptos em letra
redonda, creados e sustentados para demonstrarem que todos os homens
tem direitos eguaes. Muito me admira que seus avós e o senhor tenham
praticado a egualdade sem terem lido as gazetas! Provavelmente em casa
dos Militões de Villa Cova lia-se o Evangelho de Jesus Nazareno.

—Lia, sim, senhor.

—Só assim pode explicar-se a virtude sem a doutrinação das gazetas. Dizem
que ellas são o baluarte da liberdade, da egualdade, e da fraternidade;
e eu estou em defender que o sermão da montanha, prégado pelo filho de
Deus ha mil e oitocentos annos, e o sermão da natureza, que sem cessar se
está ouvindo, bastam para fazer um homem irmão e amigo do outro homem,
por amor de Deus, que é pai de todos.

Posto que não excedesse os vinte e oito annos, o vigario, no pausado e
reflectido do seu dizer, competia com os cincoenta annos de algum egresso
d’aquelle tempo.

As faculdades d’este bem-fadado ministro da verdade tinham amadurado
antes da sasão propria. Costuma ser a desgraça quem antecipa, com a
precoce experiencia, a reflexão; porém observa-se que o juizo—o que
commummente se chama _siso_—proveniente das lições do infortunio, é um
recolhimento melancolico, mysantropo, deshumano ás vezes, e quasi sempre
intolerante. Em exemplos d’esses, que os ha em grande copia, acerto seria
arguirmos ao enojo das chimeras d’esta vida o que attribuimos á reflexão.

A madureza do vigario não era apressada pela desventura, nem triste, nem
intolerante. A indole, o habito da soledade, o estudo, a clara vista
da alma com que entrava no secreto e desconhecido do coração alheio,
explicam o ar grave, monacal, e discordante de seus annos. Não obstante,
o geito com que dizia as suas satyras ás gazetas dava mostras de espirito
faceto ou _humoristico_, segundo agora francezmente se diz.

Dos estudos do seminario passára o presbytero á capellania do padrinho de
Pinhel, fidalgo, como se disse, intractavel desde 1834, retrahido ao seu
quarto, em lucta permanente com os achaques da alma egualmente dolorosos
que os do corpo. A gota, o rheumatismo, a sciatica impacientavam-no tanto
ou menos que o desmancho das cousas politicas. Ruy de Nellas Gamboa de
Barbedo, que assim se chamava o gothico solarengo de Pinhel, se alguma
vez chamava padre João Ferreira ao seu quarto, era para lhe perguntar
pela quinquagesima vez:

—Que me dizes a isto, padre João?

—A isto?

—Sim, á queda do rei legitimo?

—É um facto consummado—dizia o padre.

—É uma usurpação consummada!—replicava o fidalgo, e sibillava um agudo
ai, levando a mão ao artelho esquerdo, cuja dor só podia comparar-se á do
artelho direito.

E como o afilhado não pudésse restaurar ao throno usurpado o senhor
legitimo á vontade do padrinho, Ruy voltava-lhe as costas, e o padre
sahia melancolico a encerrar-se no seu quarto com os seus poucos livros,
ou ia leccionar em primeiras letras as filhas do fidalgo, a segunda das
quaes principiara o alphabeto aos dezeseis annos, Deus sabe com que
repugnancia.

Demorei-me accintemente n’estas dispensaveis explicações para dar tempo
a que os tres convivas almoçassem e conversassem. _Conversassem_, é
menos exacto. Quem fallou sempre foi o vigario, e é de presumir que o
auditorio o attendesse escassamente. Ladislau, se alguma cousa escutava,
era o poema interior, os hymnos descompassados, mas sublimes, que soavam
dentro em seu coração. Estranhas musicas deviam de ser aquellas para o
moço surprehendido, na alva do seu primeiro dia de amor, por enchentes de
luz desconhecida! O amor, que vem procurado, como sensação necessaria á
felicidade da vida, perde dous terços da sua embriagante doçura; porém,
o amor inesperado, impetuoso e fulminante, esse é um abrir-se o céu a
verter no peito do homem todas as delicias puras que não correm perigo
de impestarem-se em contacto com as da terra. Era d’esta especie o
sentimento de Ladislau, nascido na hora em que elle ia confirmar sobre a
sepultura de seu tio o pacto de ser sacerdote, abjurar as desconhecidas
allianças do coração com o mundo, e acceitar as que atam o coração ao
mundo com o laço da caridade evangelica.

Ora, aquelle poema interior, se alguem podia decifral-o, era Peregrina.
A mulher innocente e admiravelmente dotada do sexto sentido, que recebe
as impressões não classificadas na ordem physica nem moral. Adivinha
quem a ama, antes que lh’o digam. Parece que o ar se lhe povoa de
espiritos amigos, que giram entre ella e os olhos de quem, a fito ou de
revez, a requesta. Aquelle diaphano veu de escarlate que lhe purpurea
o rosto, não é sangue como dizem os materiaes definidores de tudo: a
mimosa susceptibilidade de cutis, chamada pudor, não pode ser sangue; em
quanto a mim, é o sombreado das azas iriadas dos espiritos que voejam no
ambiente da mulher immaculada, ou então reflexo das coroas de rosas, com
que o deus festivo dos amores a infeita, cioso de ter nos seus altares o
pouco d’este mundo que merece e desculpa a idolatria.

Posto que este dizer tenha um sabor mythologico, pagão, e, sobretudo,
antiquissimo, ha-de o leitor conceder que o seu servo romancista, tal
qual vês, se desgarre do caminho trilhado á moderna, para não dizer
sempre que os seus personagens estavam arrobados, extaticos, ou, o que é
peior, perdidos de amor.

Os meus personagens, Ladislau e Peregrina, não estavam arrobados nem
extaticos, porque ambos confessam que comeram da travessa vidrada a sua
porção de ovos, e tomaram cada qual o seu caldo-verde (palavra indigna
de tão levantado assumpto!)

Perdidos tambem não estavam; porque o perder-se ou transverter-se o
coração é quasi sempre a prova real de não ter sido o primeiro nem o
melhor um certo amor com que os alienados se desculpam.

O amor, que não perde nem desvaira, esse é que é o amor.

Eil-o ahi, pois, profundo, sereno e bello como o oceano em calmaria.



III

Casamento patriarchal


Eu, que já escrevi doze casamentos felizes de uma assentada, querendo
agora enfeitar o de Ladislau e Peregrina, é tamanha a penuria do engenho
em que me vejo, que—a não me acudir a fada do estylo—hei de contar
o ditoso enlace, como elle está escripto no livro dos casamentos da
freguezia de S. Julião da Serra.

Convém saber que é cousa para pouco discurso a passagem do amor
ao sacramento, que o completa, lá n’essas terras abençoadas do
obscurantismo, como era o termo de Pinhel, e continuará a ser por estes
quatro seculos por vir, em virtude de lhe andar por muito longe das
raias o caminho de ferro. De S. Julião da Serra, então, isso aposto eu
que nunca ha de ser desalojada a santa ignorancia, que faz amarem-se e
casarem-se logo as pessoas que se querem.

Vamos a bosquejar o casamento de Ladislau e Peregrina. Se a descripção me
sair muito florida, não servirá. Guardarei os enfeites para exornação de
outros casamentos, onde as flores sejam empregadas em disfarçar a mingua
de coração e virtudes.

Findo o almoço Ladislau disse ao vigario:

—Como o dia está soalheiro e alegre, pedia eu ao sr. padre João e a sua
irmã, que viessem passar o dia a Villa Cova. Se houver precisão da sua
vinda á egreja para administrar a extrema-uncção, depressa o irá chamar
alguem a minha casa; porém, graças a Deus, não está ninguem, que eu
saiba, doente na freguezia.

—Pois vamos—disse o vigario sorrindo.—Caro lhe ha de ficar o almoço... O
bom presunto vai pagar os maus ovos. Vem d’ahi, Peregrina, vamos lá ver a
casa d’onde sahiram tantos homens grandes e obscuros, como são os homens
que se escondem da sociedade para serem bons. Quem dirá, sr. Ladislau,
que no curto horisonte d’estas serras que nos cercam, estão fechadas as
lembranças dos santos ministros do altar, que vieram de sua casa para
dentro d’estas quatro paredes velhas!... E seu pai, o viuvo amortalhado
no habito de frade pedinte!... Vamos!... A minha indole melancolica chega
a ser rustica! Vejo que o sr. Ladislau está alegre, e eu a chamal-o a
lembranças pesarosas!...

No decurso da caminhada de um quarto de legua, foi Ladislau contando
em miudos a sahida de seu pai para o convento de Vinhaes, e a saudade
escura dos que ficaram, encarando a porta, que se abrira á passagem de
um caixão, e logo ao desterrado perpetuo das alegrias d’esta vida. E o
moço, a fallar de sua mãi, chorava; que é sabida cousa a facilidade que
temos de chorar, quando o amor nos amollece, e, para assim dizer, anima
o coração. Sem a presença de Peregrina, Ladislau seria mais insensitivo,
mais duro, mais homem. O amor afemina as condições mais viris, e tem
feito que as faces queimadas e negras da polvorada das pelejas se
orvalhem e brilhem de lagrimas. No animo tenro e como infantil do moço
de Villa Cova, a bem dita influição da meiga menina, que o ia ouvindo
e amando, devia de abrir-lhe no peito os conductos todos das lagrimas
maviosas. Não sei que mysterio santo e dulcissimo está no fallarmos de
nossa mãi fallecida á mulher que nos bem quer. Póde ser que venha esta
sensibilidade de recebermos de uma o coração, que damos a outra. Ou,
talvez, seja de nos faltarem carinhos de mãi, e cuidar a gente que a
esposa nol-os-ha de reviver.

Subiram os tres caminheiros o serro de uma quebrada, d’onde se entrevia
a casa de Villa Cova, mal distincta do arvoredo de soutos e carvalhaes.
N’este alto, está um rochedo, a pender sobre uma gruta de lage, ageitada
pela natureza, e conhecida dos pastores, com guarida segura das trovoadas.

—Esta lapa convida—disse o vigario. Sentemo-nos aqui um pouco.

—Minha mãi,—disse Ladislau—chamava a esta penedia a sua gruta... eu ainda
lhes não disse que minha mãi era pastora.

—Pastora?!—acudiu Peregrina, com ar de lisongeira admiração, significando
sentir a patriarchal poesia da vida pastoril.

—Olhem se avistam—tornou o moço—pela garganta d’estas duas quebradas, lá
em baixo, uma casa, nas costas de um souto fechado? Alli nasceu minha
mãi de uns lavradores remediados; e, logo que teve a idade, tomou conta
da rez, e vinha todos os dias com ella para a serra. Aqui no cavo d’este
penhasco é que ella comia a sua merenda; e, assim que o sol começava a
descer, tambem ella descia ao valle.

—Sosinha?—atalhou Peregrina, com visagem de sústo.

—Sosinha com dous cães de gado, os quaes, assim que anoutecia, um tomava
a dianteira do rebanho, outro ia á beira d’ella. Muito chorou minha mãi,
ao morrerem-lhe de velhos os seus cães! Quando vinhamos á igreja, minha
mãi sentava-se sempre ahi n’essa pedra, onde está a sr.ª Peregrina, e
dizia a meu pai: «Olha, se te lembras, meu santo!» E ficavam-se a olhar
um no outro com semblante alegre.

Ladislau cessou de dizer o quer que fosse que attentamente o padre e a
irmã esperavam. Por mais curiosa e lhana, Peregrina perguntou:

—E que seria? Porque lhe dizia ella que se lembrasse?

O moço sorriu-se candidamente, e continuou:

—Meu pai estudava para padre, e já tinha ordens menores, quando encontrou
aqui minha mãi, andando elle ás perdizes. D’ahi a pouco tempo estavam
casados. Isto me contaram meus tios. É bem de ver que ella se lembrasse,
quando aqui chegava, da primeira vez que se viram, depois que eram
grandes. Em pequeninos tinham sido muito amigos; mas, como meu pai desde
os doze annos começou a estudar com um tio vigario, e veio habitar na
residencia de S. Julião, quando se tornaram a ver foi tamanho o amor
que...

Ladislau susteve-se com feminil pudor.

—E foram muito amigos?—disse Peregrina.

—Tão amigos—respondeu o padre—que se amortalharam ao mesmo tempo.—E,
erguendo-se, acrescentou:—Ora vamos lá por ahi abaixo.

D’alli até casa, Ladislau foi contando ao vigario os estudos que tinha
feito com seu tio, os livros que lêra, e os que mais eram do seu gosto.
No tocante ao intento de ordenar-se, nada tinha dito, quando padre João
lhe perguntou:

—Segundo me disseram, o sr. Ladislau está na ideia de ordenar-se?

—Faz hoje um anno que morreu meu tio—disse o sobrinho do padre
Praxedes.—Pouco antes de ir a Deus, me disse elle que esperasse um anno
a inspiração do Espirito Santo. Agora venho de orar sobre a sepultura de
meu tio, pedindo-lhe...

—Que o allumiasse no difficil transito—atalhou o vigario, e ajuntou
logo:—E vem decidido a ordenar-se?

Peregrina, que os seguia com alguma distancia, como ouvisse aquella
pergunta, insensivelmente estugou o passo para ouvir a resposta.

Ladislau respondeu:

—Ainda não.

E, como voltasse o rosto ao padre no acto de responder, e visse os olhos
de Peregrina, fitos em si, e expressivos de anciedade intima, Ladislau
recebeu dentro da alma uns tamanhos abalos de alegria que não pôde nunca
mais topar delicias comparaveis ás d’aquelle momento.

Entraram no quinteiro da casa de Villa Cova.

Á porta da córte dos cevados estava uma mulher octogenaria, com uma
varinha na mão, acommodando os recos, que brigavam em redor da pia.[2]
Esta mulher que tinha setenta annos de serviço em casa dos Militões,
quando o amo, Peregrina e o vigario entraram no quinteiro, deixou cahir
da mão trémula a varinha, e benzeu-se murmurando: «em nome da Santissima
Trindade, Padre, Filho e Espirito!»

—_Amen_, disse padre João.

—Que tem vm.ᶜᵉ, tia Brazia?!—perguntou Ladislau.

—Ainda não estou em mim!—respondeu a velha Brazia, caminhando para o
grupo, e formando com as mãos um sobreceu aos olhos para poder enxergar
os recem-chegados; e proseguiu:—Cousa assim! Pois não me havia de parecer
agora que via entrar por essas portas dentro... credo!...

—Quem lhe parecemos nós?—tornou Ladislau.

—Esta moça—tornou Brazia, aproximando-se de Peregrina—pareceu-me sua
mãe, que Deus tem; o meu menino parecia-me seu pae, o santinho; e este
sr. padre dava-me ares do sr. reverendo vigario Praxedes. Estou a vel-os
como eram ha trinta annos, quando vinham da igreja, depois da missa do
domingo, cá jantar a casa!

—Pois repare bem—disse o moço—que somos pessoas vivas, tia Brazia, e
havemos de jantar para a convencermos de que não somos phantasmas.

—Pois sim, meu menino; graças a Deus ha muito quê; mas olhe que os servos
estão todos por fóra, e eu não tenho pernas para andar atraz da gallinha.
Cozinhal-a cozinho-a eu; mas pilhal-a isso ha-de ser vm.ᶜᵉ. E quem é essa
mocinha tão bem posta e ageitada, benza-a Nosso Senhor?

—É irmã do sr. padre vigario, que está aqui.

—Ah! este é que é o sr. reverendo vigario? Bem me tinham dito que era
ainda bem moço; mas isso não tira. Se a santidade fosse aquella dos
velhos, então já eu estava no altar! Deite-me a sua benção, sr. reverendo
vigario, e com Deus venha a esta casa d’onde sahiram tres santos só dos
que conheci. Eu tenho dou carros de annos, aqui onde me vê, sanzinha e
escorreita, bemdita seja Nossa Senhora.[3] Conheci, só á minha parte, o
sr. padre Timotheo, o sr. padre Heitor, e o sr. padre Praxedes, afóra o
santo pai do meu Ladislau, que morreu com o habito dos missionarios de
Vinhaes.

Ladislau interrompeu Brazia, que ia sentar-se n’um feixe de vides para
mais commodamente contar os successos alegres e tristes dos ultimos
setenta annos da casa de Villa Cova. Pediu-lhe elle com brandura e graça
que reservasse para depois de jantar as suas historias.

—Então vamos para dentro—disse ella—eu cá vou com a nossa menina
mostrar-lhe a casa. Como é a sua graça?

—Peregrina.

—Por muitos annos e bons. Era melhor chamar-se Rosa, que é mesmo uma
flôr; que Pelingrina tambem é bonito nome. Ora, pois, vá o menino apanhar
a ave, que a panella vae já p’ro lume.

Ladislau e o vigario sahiram do quinteiro entraram na eira onde
esgaravatavam as gallinhas. No entanto, Peregrina, como a velha se
agachasse na lareira para espertar o lume amarroado, pediu-lhe que se
assentasse no escabello, e a deixasse a ella cosinhar. Brazia cedeu ás
instancias, repartindo o trabalho com a hospeda.

Ladislau entrou na cosinha com a ave, e viu Peregrina com um alguidar
no regaço, cegando as couves. Estranhou a Brazia o estar a irmã do sr.
vigario n’aquelle serviço, e a velha respondeu serenamente:

Ella assim o quer; e bem haja a moça! Estou-me a regalar de a ver!
Parece-me mesmo sua mãisinha, quando aqui entrou pela primeira vez. O
noivo estava lá no sobrado com os padrinhos e parentes, e ella desceu cá
p’ra cosinha a ajudar as criadas.

—Pois sim—replicou Ladislau—mas minha mãi era dona da casa e esta senhora
é hospeda.

—E por que não ha de ser dona? Se o não é, ella o será, querendo Nossa
Senhora.

Estas palavras avermelharam as faces de ambos, que não poderam suster o
relance de olhos que se trocaram.

—Pois então!—continuou a serva, cortando do presunto uma boa talhada.—A
vida de padre boa é; mas não queira o Senhor que o menino seja padre. O
que é preciso é casar, sr. Ladislau. Deus que lhe deparou esta creatura,
lá sabe por que o fez. Vamos; é casar depressa, que eu não quero morrer
sem ver gente miuda n’esta casa. O menino fez-me cabellos brancos, quando
era pequeno (que a fallar a verdade eu já não tinha cabello preto nem
para uma mézinha). Andava sempre a fugir p’ros campos, e eu a procural-o,
e ia dar com elle a caçar grillos á torreira do sol: e de inverno andava
sempre por essas fragas acima em risco de malhar aos fundões. Deu-me que
fazer; mas é o mesmo: quero aturar tambem os seus filhos. Quando eu vim
para cá, seu pae tinha cinco annos, e eu dez; se eu morrer, deixando cá
um netinho delle, vou contente... Então não dizem nada?

Ladislau, sem a velha dar fé, tinha sahido envergonhado, e mais ainda por
ver que a Peregrina, ao passo que Brazia fallava, descia o rosto sobre
a hortaliça, voltando-o de modo a não ser visto de frente pelo moço, que
por sua parte se estava tambem escondendo no mais sombrio da cosinha, até
encontrar a porta por onde sahiu.

O vigario, estava esperando Ladislau, na vasta casa da livraria.

Havia muito que ver e admirar nas estantes dos numerosos sabios d’aquella
familia. A bibliotheca fôra principiada no ultimo quartel do seculo XIV
por um padre Vicente Militão, que fôra peregrino a Roma, e estivera no
concilio tridentino, e lá fôra muito acceito, por seu saber, e reportadas
virtudes, ao santo arcebispo de Braga, D. Bartholomeu dos Martyres.
Encadernadas em pergaminho, com o Breviario do padre Vicente, lá estavam
algumas cartas do primaz das Hespanhas, cartas magoadas revelando o
peso das obrigações prelaticias, e outras mais de folga, datadas no
convento de Vianna do Minho, onde o humilde principe da igreja se fôra a
descançar, e morrer nas delicias «d’uma estreita cella, paredes nuas, em
mezas sem panno, um candieiro de ferro pendurado de um prego, uma cama
de frade ordinario sem cortina, nem genero de paramento sobre uma táboa
de pinho.» Estas palavras de fr. Luiz de Souza recordava o padre João
Ferreira, quando religiosamente deletreava os caracteres amarellados e
meio delidos das cartas do arcebispo.

Voltando á livraria, os successores de Padre Vicente enriqueceram-n’a,
empregando n’ella quanto dinheiro podiam amealhar, sem prejuizo
dos pobres. Como quer, porém, que o rendimento de sua grande lavra
sobre-excedesse o gasto, o remanescente era trocado por livros, enviados
á escolha de entendedores monasticos, com quem os padres de Villa Cova,
por amor da sciencia e piedosamente, entabolavam correspondencia.

Os tres ultimos sacerdotes d’esta familia não tinham comprado livro
algum, desde os ultimos annos do reinado de D. João V, em que a
religião degenerou de sua simplicidade em luxuosa, e, até certo ponto,
hypocrita ostentação; e, de mais a mais, os que a tractavam moral ou
dogmaticamente, escreviam-n’a em linguagem, que não era a de Domingos
Feo, Thomé de Jesus, Heitor Pinto, Arraes e Lucena. Para bem aquilatarmos
em qual grau de purismo classico andava a vernaculidade n’aquella serie
de padres letrados, basta dizer-se que no frontespicio do primeiro volume
dos sermonarios do padre A. Vieira, um padre Timotheo Militão escrevera:
«Tambem este grande engenho está gafado!» A gafa de que se lastimava o
escrupuloso idolatra dos aureos escriptores sem liga era aquelle geito
de conceitista italico-hispano em que o preclaro jesuita, a espaços, se
descuidava na oratoria.

Em quanto Ladislau e o vigario se entretem n’estas e semelhantes
praticas, ingratas ao leitor de paladar mais delicado, Brazia está
assim conversando com Peregrina, hombro a hombro, no escano da lareira,
emquanto a galinha ferve:

—Brazia não seja eu, se Deus me não ha-de ajudar! Lá que os moços se
querem, como eu á menina dos meus olhos, isso vou eu jural-o sobre umas
Horas, sendo preciso! A menina é uma perfeição; o meu Ladislau é aquillo
que alli está. Duas creaturas assim já vem lá de cima talhadas para serem
uma da outra; e, quando acertam de se toparem no mesmo caminho, vão ambas
p’ra direita, ou p’ra esquerda. Não tem remedio senão casarem-se.

—Pois sim—repetia Peregrina o que havia dito duas vezes:—Ainda hoje nos
vimos, e já a sr.ª Brazia nos quer ver casados?

—Então a menina cuida que uma pessoa só se conhece por ser vista muitas
vezes? Eu ouvia ler a Historia Sagrada á sr.ª Sebastiana, que sabia ler
como um padre, e já lá está na corte dos bemaventurados... Rezemos-lhe
por alma.

A sr.ª Brazia rezou alto, e Peregrina mentalmente.

—_Requiescat in pace_,—disse a velha.

—_Amen_,—respondeu Peregrina, e benzeram-se.

Brazia continuou:

—Pois como eu vinha dizendo, a Historia Sagrada conta que antigamente
um moço sahia da sua terra em cata de outra terra, onde estava a noiva,
que elle nunca vira. Batia á porta do sogro, pedia-lhe a filha e casava.
Isto é que eram tempos, moça! «O coração não tinha peccado que fosse
preciso descobrir com o tempo» dizia o sr. padre Praxedes, quando a irmã
se admirava de casamentos assim de fugida. Olhe-me bem n’isto, que estas
palavras teem muito que deslindar. N’aquelle tempo, a moça casadoura
era por dentro como por fóra; via-se como á luz do meio dia o que ella
lá tinha no seu interior: agora, pelos modos, é preciso espreitar muito
tempo as inclinações das pessoas! O pai do sr. Ladislau era dos rapazes
antigos: viu a menina lá em cima na lapa da Crasta, gostou d’ella, tornou
lá a saber se ella o queria, foi ás Chãs aonde ao sogro; e, d’ahi a dias,
já ella aqui estava a encher esta casa de satisfação. É como foi, e é
como ha de ser! Senhor Jesus do bom despacho, não me deixeis ficar mal!

Ladislau e o vigario, chamados pela velha, desceram á cosinha, onde
estava posta a meza. Jantaram alegremente e de vontade. Os dizeres de
Brazia, tendentes todos ao casamento, assazoavam as singelas iguarias do
vigario, que pondo os olhos, quer na irmã quer em Ladislau, reparava na
gravidade com que em silencio escutavam as facecias da inquebrantavel
velhinha.

—Será possivel que...

Disse entre si padre João, e cuidou ler no rosto do hospede e no rosto da
irmã esta resposta:

—É possivel, e é certo.

Findo o jantar, sahiram a tomar o sol na eira.

Brazia, porém, puchou da batina ao vigario, chamou-o de parte, e
disse-lhe:

—Deixe-os lá...

Padre João não achou que responder á velha, e fez menção de seguir sua
irmã, que o estava esperando.

—Não vá sem me ouvir duas palavras, sr. reverendo vigario. Sente-se
n’este tamborete, que eu vou dizer aos moços, que vão á sua vida, e nós
lá iremos ter.

O dialogo deteve-se boa meia hora. Depois sahiram á eira; e o padre
levava amparada no braço a velha, que jogava difficilmente os joelhos.

—Ora diga-me o que elles estão fazendo, que eu já não enxergo
nada—murmurou a velha.

—Ladislau está apanhando flores na ribanceira.

—Vê?—acudiu Brazia—que lhe disse eu? Flores são amores... E ella que faz?
Não anda tambem ás flores?!

—Não, tia Brazia. Está sentada.

—A enfiar algum annel de missanga?

—Tambem não.

—Não? Então é uma ingrata. Vou ralhar com ella. E, acercando-se com
extraordinaria presteza de Peregrina, disse-lhe em tom de graciosa
severidade:

—Vá fazer tambem um raminho, ande, menina, e dê-o ao sr. Ladislau.

Peregrina poz a vista timida no irmão. O vigario fez um gesto de
consentimento. Ergueu-se ella a colher umas enfezadas flores silvestres
e inverniças que se definhavam entre os silvedos, e Brazia, ao mesmo
tempo, dava umas palmadas e tregeitava uns saltinhos de cegonha, muito
para riso, senão justificassem a alegria que lhe acreançava os oitenta
annos. Santa creatura para namorados era aquella Brazia! Estar ella
dizendo tudo que elles queriam dizer-se; fazer-se lingua de corações á
hora em que nem os proprios donos saberiam articular a linguagem d’elles;
obrigar Peregrina a colher flores, quando a moça estava perguntando a si
propria se parecia mal colhel-as e offerecel-as! E hão de rir-se pessoas,
que amaram ou amam, da velhinha que tudo aquillo fez com tanto sizo e
proposito e angelicas intenções!

Peregrina deu as suas flores a Ladislau, e recebeu o ramilhete d’elle.
Qual dos dous tinha coração mais feminil? Pelo rubor da face não havia
estremal-os.

—Onde iria a tia Brazia?—perguntou o vigario, vendo-a sahir açodada e
regamboleando as rebeldes pernas pela eira fóra.

A velha pouco se deteve. Chegou esbofada. Chamou de parte Ladislau, e
disse-lhe de modo que o vigario e a irmã ouviram:

—Esta argolinha de ouro deu-a seu pae á mãisinha na vespera de se
casarem, e já foi de sua visavó. Aqui a tem. Vá dal-a á sua noiva, senão
levo-lha eu.

Ladislau ficou atonito e immovel. O vigario sorriu, e disse á velha:

—Sr.ª Brazia, vm.ᶜᵉ está sonhando um alegre sonho. Deixe ver se o tempo,
com a vontade de Deus, confirma os seus bons desejos, que serão tambem os
meus.

Ladislau, como levado de insuperavel força, avisinhou-se de Peregrina
e offereceu-lhe o annel. O vigario, abalado e commovido pela acção
inesperada do mancebo, tomou a mão convulsa de sua irmã, e vestiu-lhe o
annel. Depois, apertando nos braços o noivo de Peregrina, exclamou:

—Pois não é um sonho?

Accudiu Brazia:

—Qual sonho? O que eu quero é os primeiros banhos apregoados no domingo;
e de hoje a um mez esta menina é minha ama.

—Sua amiga, sua filha!—disse Peregrina abraçando-a.

Assim foi. Na quarta dominga seguinte receberam as bençãos estas duas
creaturas preordenadas para a felicidade da terra e ceu.

Os casamentos, que Deus escolhe, são assim determinados com uma
singelesa, copiada dos tempos visinhos da creação de varão e femea, como
entes necessarios a si, e de repente identificados por unidade insoluvel
de almas. E então era o viverem tão sós e um, como quem de uma só vida
tinham de prestar contas ao juiz supremo.

A mim parece-me que o cazar-se a gente devia ser como Ladislau e
Peregrina. Andar annos com o coração em ancias é desvigorisal-o para
quando elle é mais necessario. Pelo ordinario, os noivos que se amam
longo tempo, cazam-se quando o mais fino da sensibilidade está desgastado
na abstracção e na chimera.



IV

Outros amores


No dia immediato ao das bodas, o saudoso vigario fôra passar a tarde com
sua irmã, que o viera esperar com o marido ao rochedo da Crasta.

Ao entardecer, quando o padre se despedia, chegou um portador da
residencia com uma carta para Peregrina.

—Para mim?!—exclamou ella duvidosa.

—E letra da sr.ª D. Christina—disse padre João.

—Ella está lá—acrescentou o portador.

—Ella quem?—acudiu Peregrina.

—A fidalga, que escreveu a carta.

—Que novidade é esta?!—disse o vigario, abrindo e lendo.

—Lê alto, meu irmão!—disse Peregrina impaciente.

E o padre continuou a ler mentalmente, dobrou a carta, embolçou-a na
sotaina, e disse ao portador:

—Vai indo, que eu lá vou ter.

E, depois que o criado sahiu, murmurou com mui entranhada mágoa:

—Eu presagiei esta desgraça!

—Desgraça!—exclamou Peregrina.—Que é, meu João?

O padre, voltado a Ladislau, disse:

—A senhora, que escreve a minha irmã, é a filha mais nova de meu padrinho
e bemfeitor. Lê tu, Ladislau, e minha irmã que ouça.

Ladislau leu:

«_Peregrina._ Pela carta de teu irmão ao papá sabiamos que ias casar;
mas não cuidei que fosse tão depressa. Cheguei aqui a buscar o amparo
de teu irmão e o teu. Felizmente estaes perto, e sei que vireis em meu
soccorro. Eu venho fugida, e commigo vém o homem que amo, e a quem meu
pai me negou, sem compaixão das minhas lagrimas. Vimos rogar a teu bom
irmão que nos receba, e legitime a nossa união. A pobreza não nos aterra.
Logo que estejamos casados, teremos força do céu para supportarmos todos
os trabalhos. Vem, se podes, com teu irmão para me ajudares a vencel o,
se elle resistir ao sagrado dever de nos abençoar este amor, que não deve
ser a nossa perdição. Tua amiga _Christina_.»

—E vaes casal-os não é verdade?—exclamou a commovida senhora.

—Não é verdade—respondeu friamente o sacerdote.

—Como?!—tornou Peregrina—não os casas?

—Não. A filha desobediente não acha onde quer um ministro do Evangelho
que lhe galardoe a rebellião contra seu pai. A lei de Deus diz: _honrarás
teu pai e tua mãi_: a lei ecclesiastica diz ao cura d’almas: _não
casarás a menor sem consentimento de quem a governa, ou ordem superior
do teu prelado_. Eu vou sahir.

—Eu tambem vou... disse Peregrina.

—Não vaes—replicou o vigario.—Estás ao lado de teu marido, e Christina
apparece-te ao lado d’um homem que... não lhe é nada.

Peregrina baixou os olhos, e Ladislau disse:

—Tu ficas; eu é que vou. Manda apparelhar a egua, que a filha do teu
bemfeitor virá commigo.

A esposa lançou-se-lhe nos braços, e exclamou:

—Tu vaes buscar a infeliz menina?

—Pois se ella é infeliz!... murmurou Ladislau.

E sahiram.

Christina estava á janella do sobrado da residencia quando o vigario e o
cunhado chegaram.

Era noite muito escura.

—Estás ahi, Peregrina?—perguntou ella.

—Não está, minha senhora—respondeu o padre.—Está o marido de minha irmã.

A secura d’esta resposta intimidou Christina. E, receosa, voltando-se a
um moço de boa presença, disse: «Enganei-me, Casimiro; o padre não nos
recebe.»

O vigario entrou na saleta, seguido de Ladislau. Cortejou com mui
respeitosa reverencia a filha do seu bemfeitor, e levemente o cavalheiro,
a quem chamou Casimiro Bettencourt. Depois disse:

—Vi a carta que v. ex.ª escreveu a minha irmã. Peregrina não veio, por
ser inteiramente inutil a sua vinda. Eu não posso sem authorisação
canonica e civil ligar matrimonialmente v. ex.ª com este senhor.

—Eu vinha tão confiada na sua bondade...—disse Christina, retrahindo os
soluços sem reter as lagrimas.

—Em minha consciencia—tornou o vigario—digo que o mais prudente e
urgente acto n’este desgraçado successo é casarem-se; mas eu não posso
fazel-o...

—E então—atalhou Casimiro Bettancourt—um sacerdote do Christo assim nos
abandona, como quem diz: «sêde criminosos e infames á vossa vontade...»

—Não, senhor. O sacerdote de Christo faz, n’estes casos, o que faria
qualquer homem de boas entranhas. Irei pedir ao sr. Ruy de Nellas
consentimento para salvar sua filha da continuação do crime e da infamia.

—Meu pai é inexoravel!—acudiu Christina.

—Não pode ser—disse Ladislau.—Um homem, que amparou e educou dous filhos
desvalidos d’um seu cazeiro, não póde ser impiedoso com sua filha. Minha
senhora, peço licença para interpor o meu parecer n’uma questão em que
minha mulher não é estranha, e eu tambem não posso sêl-o. Ella não veio;
mas encarregou-me de vir aqui offerecer-lhe nossa casa; e, tão certa
está de que v. ex.ª nos honra em aceital-a, que já vim preparado para a
conducção de v. ex.ª.

—Pois heide eu ir!...—exclamou Christina, encarando anciada em Casimiro.

—O sr. Casimiro fica sendo meu hospede—respondeu o vigario.

—Separados!—bradou ella rompendo contra todos os estorvos do pudor, e
abraçando-se em Casimiro.

—Não!—clamou elle.—Christina, sacode os teus sapatos fóra d’esta porta, e
vamos ao nosso destino.

—O aggravo não me fere, que o não mereço, senhor!—disse placidamente
o vigario.—Eu convido o sr. Casimiro a ser meu hospede, em quanto se
solicita a licença do pai d’esta senhora. Se lhes é dolorosa esta
separação temporaria, Deus permittirá que os retornos de contentamento
a façam esquecer. Soffram alguns dias para merecerem o premio. Eu não
posso implorar o perdão para a desobediencia, allegando que os fugitivos
permanecem em criminosa união. Ha o recurso da mentira; mas eu não sei
mentir. Despeçam-se para um dia, que breve virá, se Deus nos ouvir. O sr.
Casimiro, que me applicou as palavras de Jesus aos apostolos, mostra que
lê e sabe os livros da religião. Seja, pois, religioso: peça comnosco ao
Senhor que lhe despache em bem o seu requerimento.

Casimiro apertou a mão de Christina, e disse:

—Vai, e esperemos.

—E esperemos—acrescentou o padre—por que, a baldarem-se os nossos bons
intentos, quem lhes ha de empecer ajuntarem-se? O mundo, quando vê dous
desgraçados, deixa-os passar, e vinga-se. Se o mundo é justo, não o direi
eu: vingança justa creio que não ha nenhuma ahi. O inverso da caridade é
a vingança. Tenham valor, que, se o não tem são mais fracos, desconfiam
do poder de Deus, e da sua propria fidelidade um a outro.

—Adeus! balbuciou Christina, suffocada de suspiros. Casimiro beijou-lhe a
mão, dobrou o joelho, e disse:

—Se te fiz desgraçada, perdôa-me.

Ladislau, debulhado em lagrimas, abraçou Casimiro, e exclamou:

—Sou seu amigo! O senhor ama deveras esta menina!

—Eu sei que se amam!—disse o vigario—por isso serei parte, quanto em mim
couber, na sua boa fortuna.

—E eu não?!—disse com vehemencia o de Villa Cova.

—Tu tambem, meu irmão. Ajudar-me-has com os teus conselhos, por que no
teu coração tenro está a sabedoria dos virtuosos, que te educaram.

—Não fomos infelizes, Christina!—clamou Casimiro.—Aqui estão comnosco
duas generosas almas. Vai, minha amiga!

—Venha—disse Ladislau—que minha mulher está pedindo a Deus que vamos.

Já não choravam ao separarem-se.

       *       *       *       *       *

Cumpre narrar, o mais breve que ser possa os antecedentes d’esta fuga.

De uma familia pobre de Pinhel sahira em 1814 um mancebo a assentar praça
no regimento de cavallaria de Bragança, onde serviu até furriel. De
Bragança passou para Lisboa em 1815. Aqui seguiu os postos até que fez a
campanha do cerco do Porto, já major do exercito sitiante, e ahi morreu
na ultima batalha. Este militar era pai de Casimiro Bettancourt.

Casimiro sabia que nascera em Lisboa em 1816, e não conhecia sua mãi.
Com referencia ao seu nascimento, apenas possuia a pagina de uma velha
carteira, que dizia: «Meu filho Casimiro nasceu em 15 de janeiro de
1816: foi baptisado em S. Domingos de Santarem, aos 22 do mesmo mez. Foi
creado no Cartacho, d’onde sahiu em 1820. Entrou no collegio dos Nobres
em 1825. Tenho pago todas as prestações até hoje 31 de dezembro de 1830.»
Em nenhum outro caderno de apontamentos encontrou indicios de sua mãi;
nem das muitas cartas que seu pai deixou esquecidas n’um bahu de folha,
pôde colligir quaes pertencessem a sua mãi. As que tinham data eram quasi
todas muito posteriores ao seu nascimento. Apenas duas assignadas com a
inicial E, posto que sem data, queria e conjecturava elle que fossem de
sua mãi: este querer fundava-se um pouco em vaidade, e muito em presagio,
como depois se verá.

Morto o pai, e transvertida a ordem politica, claro é que o joven alumno
do collegio dos Nobres havia de sahir entre dezeseis e dezesete annos
de idade, desvalido, desconhecido, e indifferente a toda a gente. Dos
sabidos amigos de seu pai uns tinham morrido, outros emigrado, e outros
esmolavam.

Sabia Casimiro que seu pae nascera em Pinhel, e se correspondia com sua
irmã, a largos espaços. Achou cartas assignadas por uma Marianna de
Bettencourt. Escreveu, ao acaso, á senhora d’aquelle nome, ou ao nome
d’aquella senhora. Responderam-lhe que sua tia tinha fallecido em 1832.
A pessoa, porém, que respondia, era o viuvo, carpinteiro de seu officio,
bom homem que lhe offerecia sua casa, e metade de suas sopas.

Obrigado a optar entre a fome e as sopas do artista, Casimiro foi para
Pinhel, auxiliado pela esmola de um condiscipulo, filho de um brigadeiro
liberal, camarada do finado major antes de 1828.

O artista redobrou de trabalho para não obrigar o sobrinho de sua mulher
a pegar da serra e da enxó. Comprava-lhe vestido á feição de que usavam
os moços remediados, e esperava que seu compadre Ruy de Nellas—padrinho
d’um filho que mandára para o Brazil, quinze annos antes—cedo ou tarde
conseguisse algum decente emprego para Casimiro.

O fidalgo admittia á sua casa e presença o moço, em attenção ao pai, que
morrera fiel á justa causa, como honrado e bravo. As filhas do fidalgo
achavam-n’o distincto, delicado, bem fallante, e divertido, quando a
tristeza, a dolorosa introversão o deixavam dissimular contentamento,
que o pobre, a bem dizer, nunca sentiu deveras. Ruy de Nellas mostrava
desejos de lhe abrir a carreira da independencia. Aos dezenove annos,
Casimiro pensava em ser soldado; o fidalgo, porém, queria que elle fosse
padre com um patrimonio fantastico, e o carpinteiro inclinava-se ao
generoso parecer de seu compadre.

Sacerdote é que não! Casimiro amava Christina, Chistina ia chorar com
elle; e sabia em que sombras de arvores, ou margens de ribeiras o moço ia
chorar.

E ella ia, tremendo de medo e paixão, e a pedir resguardo ás azas dos
anjos, buscal-o onde elle estivesse. Tremia, mas não corava de pejo. As
flôres que viam, invejavam-lhe a pureza. Arquejava-lhe o seio cançado de
retrahir-se: cuidava a doce creatura que o espirar alto a denunciava. Era
o offegar d’aquelle seio como o da avesinha anciada, que busca, de fronde
em fronde, o ninho que lhe desfizeram. De longe o antevia pelos olhos da
alma. As lagrimas tem seu odor: só lh’o não presentem os que as deixam
gotejar sem misericordia, sem dó.

E quem havia de ter pena do sobrinho do carpinteiro a não ser ella; que
o intendera ao primeiro instante de ser amada, e ao mesmo raio ardente
se queimára, e, se o timorato moço esmorecia de medo e pejo, era quem o
acoroçoava e levantava do seu abatimento?

Exceptuada a cumplice d’este enorme crime—o enormissimo crime de erguer
homem pobre olhos affectuosos á filha d’um Ruy de Nellas Gamboa de
Barbedo—o restante do mundo seria contra elle, se podesse adivinhal-o.

Adivinhava-o o padre João Ferreira, quando voltou de tomar as ultimas
ordens. A Casimiro disse:

—Subjugue o coração emquanto é tempo. Tenha sempre deante de seus olhos
os beneficios que deve ao sr. Ruy. Recompensar-lh’os com desgostos será
crueza e indignidade.

Casimiro não respondeu. O amor, aos dezoito annos, quando assim é
surprehendido, não sabe mentir.

A Christina disse o padre:

—A maior prova de estima, que v. ex.ª póde dar a Casimiro, é desvial-o
de si. Dos dous hade ser elle o mais desgraçado. Na sua idade, menina,
o amor é sempre uma creancice, e como criancice se esquece quando é
contrariado; porém, a primeira affeição do moço póde ser a ultima e
volver em desgraça irremediavel.

—Quem sabe?—disse Christina com pueril audacia e destemor.

—Eu não sei senão que v. ex.ª está amando um homem que seu pae repulsará
de casa, logo que desconfiar de tão estranhas intelligencias. A menina
será perdoada como inocente, e elle perseguido e castigado como villão.
Como penso que assim vem a acontecer, entendo que o seu amor será funesto
ao pobre orfão. Seria querer-lhe muito desenganal-o.

Observou padre João que as duas cegas creaturas, depois do aviso,
praticavam como se, em vez da censura, recebessem louvores. Buscavam-se
mais, escondiam-se mais, e, de dia para dia, pareciam ir declarando a
toda a gente o seu amor, como se contassem com o apoio do fidalgo.

Ruy de Nellas chamou o padre e disse-lhe:

—Ó afilhado, tu não desconfias de nada?

—A qual respeito, meu padrinho?

—Que minha filha Christina olha o Casimiro de um certo modo?

—Póde ser que v. ex.ª se não tenha enganado. Eu supponho que se estimam;
e meu padrinho não podia embaraçal-os de se estimarem.

—Essa não me parece tua!—exclamou o fidalgo.—Não posso embaraçal-os?!
Então quem é que póde?

—Ninguem, meu padrinho: o tempo é que corrige estes defeitos do coração
humano. Deixe v. ex. em silencio a suspeita que eu tomo a meu cuidado o
descanço de v. ex.ª.

—Nada de pannos quentes!—bradou Ruy de Nellas. Casimiro vai ser posto
fóra d’esta casa, e talvez de Pinhel. É assim que elle me paga? É-me bem
feito! muito bem feito! Não seja eu tolo de estar aqui de braços abertos
para receber desgraçados, que afinal...

Padre João esperou que seu padrinho desabafasse a sua ira, e disse com
humilde e pacato animo:

—Sou eu um dos desgraçados que v. ex.ª recebeu nos braços abertos para
todos: o que posso dar em troca de tantos beneficios é a lealdade do meu
coração, o meu leal aviso em coisa tão melindrosa. Se v. ex.ª perseguir
Casimiro, a sr.ª D. Christina, se já o ama como creio que sim, amal-o-ha
mais depois. Conheço de fundamento a indole d’esta menina, e algum tanto
a de Casimiro. Este moço tem espiritos de condição muito altiva, que se
revoltam contra a baixeza em que o lançou a desfortuna. Por vezes me tem
fallado do seu futuro com uns raptos de visionario, que me fariam rir,
se me não compadecessem. Presagiam-se brilhantes destinos, e esquece-se
de que o honrado carpinteiro está a suar para que elle se não avilte
no trabalho incompativel com as suas imaginações. Em quanto á sr.ª D.
Christina, é minha opinião que esta menina desobedece ao raciocinio, e
á força, se lh’a imposerem. Sabe v. ex.ª que, de todas as suas filhas,
esta foi a mais remissa em aprender o pouco que sabe, sobejando-lhe
talento para muito. Observei que uma palavra aspera m’a afugentava por
oito dias, e transtornava todo o anterior aproveitamento. Argumentando
d’estas coisas simples, por analogia, todas me levam a crer que o emprego
de providencias energicas dará mau resultado.

—Qual?!—atalhou o fidalgo.

—Uma fuga, uma vergonha.

—Tu pensas isso, João?!

—Ousaria eu dizer a meu padrinho o contrario do que penso?!

—E os ferrolhos dos conventos para que se fizeram?

—Para as freiras estarem seguras da inviolabilidade de suas pessoas.

—E para as filhas rebeldes.

—A rebellião continua nos conventos, a rebellião do espirito, contra a
qual não prevalecem os ferrolhos.

—Veremos.

—Seria acêrto não experimentar, meu padrinho.

—Então que queres tu que eu faça?: Deverei cazar minha filha com o
sobrinho do carpinteiro?

—Não, senhor. Penso que v. ex.ª, simulando inteiro desconhecimento do que
se passa, deve favorecer Casimiro para que siga a vida militar que deseja.

—Agora! agora que elle ousou pôr olhos em minha filha! o ingrato! pois
não! Vou mesmo agora estabelecer-lhe mesada em Coimbra ou Lisboa para
elle se formar em mathematica, e namorar-me de lá a filha! Estavam bem
avisados os pais, se tivessem de mandar a Coimbra os maltrapilhos que
lhes requestam as filhas! Não haveria ahi aprendiz de sapateiro, que se
não fizesse galan das herdeiras ricas! Ora, sr. padre João Ferreira,
outro officio! Não sei em que livros e em que terras tu foste estudar e
experimentar semelhantes desconchavos. Eu consultarei o meu travesseiro...

—Deus responda ás suas consultas, meu padrinho—disse o padre, quando o
fidalgo lhe voltou as costas.

No dia seguinte, ás cinco horas da manhã, já o fidalgo estava a pé, e
abria subtilmente a janella do seu quarto sobre o jardim cujo muramento
partia com a rua. Viu elle Christina sahir ao terreiro pela porta da
cozinha, atravessar as aleas de amoreiras, destrancar um postigo de
communicação com a estrada, e debruçar-se no peitoril. Desceu Ruy de
Nellas, de manso, ao jardim, e ia já em meio, quando a filha deu tento
da espionagem. Soltou um ai; mas de turvada que ficou, nem aviso deu a
Casimiro. O pai apertou o passo, correu impetuosamente ao postigo, e viu
o moço quieto, e sereno como se a surpreza fosse um gracejo de futuro
sogro, que se entretem a fazer foscas ao futuro genro, muito do seu
agrado.

Não assim Christina, que, passado o momento do spasmo, dobrou o joelho e
balbuciou:

—Meu pai, eu é que sou a culpada!

Não attendeu, nem acaso ouviu estas vozes o fidalgo. Inclinou-se á
estrada, e exclamou:

—Vá lá contar a seu tio carpinteiro a maneira como vossa mercê pagou a
hospitalidade, que lhe dei! E não me torne a rondar a casa, que não vá
algum dos meus criados apalpar-lhe as orelhas!

Fechou-se o postigo com estrondo. Aquellas palavras continuaram a
martellar nos ouvidos do moço, que levava as mãos á cabeça, como para as
não ouvir. Pensou em se matar, como toda a gente, alguma vez, excepto
os bons christãos, os felizes, e os tolos, que não são christãos nem
felizes, nem precisam ser senão tolos para viverem e até sobreviverem a
si proprios.

Caminhou ás cégas por uns trilhos de cabras, que se aplanavam n’uma chã,
arborisada de sôbros, onde padre João regularmente amanhecia com os seus
livros de theologia moral ou historia ecclesiastica.

—Casimiro viu-o, correu a elle, e exclamou:

—Valha-nos!

O padre reçebeu-o nos braços e ouviu acontecido.

—O remedio virá do ceu—disse elle.—Não sei que lhe faça, a não querer
receber-me um conselho. Espere, soffra, conforte-se, ore, e humilhe-se:
não sei que mais lhe diga.

Casimiro Bettancourt, ao anoutecer d’esse dia, adormecera com a face
encostada a uma pedra: era a lethargia da fome, da fadiga, e da
desesperação.

Não orára.



V

Veredas penhascosas


Ruy de Nellas, contente do feito, mas não seguro ainda, scismava na
escolha do convento em que devia encerrar Christina, quando o padre João
Ferreira chegou de dizer missa. Chamado a dar seu voto, o sacerdote
respondeu que obedecia, mas não aconselhava; que iria onde s. ex.ª o
mandasse negociar a reclusão de D. Christina, mas declinava de si o
minimo de responsabilidade em uma violencia, sobre inutil, perigosa.

Excitado pela colera, o fidalgo foi de encontro á prudencia do padre com
termos rudes; mas a humildade do servo paciente despontou-lhe as iras, e
introverteu-lh’as no seio em arrependimento. Ruy quasi lhe supplicou o
seu voto. Padre João repetiu o que dissera, e contou a situação em que
deixara Casimiro Bettancourt. Outra vez se irou o fidalgo, ouvindo o tom
lastimoso com que o padre fallava do filho do major; porém, não sabemos
dizer porquê, marejaram-se-lhes de lagrimas os olhos, quando o clerigo
disse:

—Agora vou ver se encontro o desgraçado ahi pela serra, que não vá elle
tentar contra a vida, e, matando-se, legar a v. ex.ª uma tristeza pezada
de mais para seus annos e sua nobre alma.

Sahiu o padre, e, ao anoitecer, encontrou Casimiro deitado na terra
humida, com a cabeça na pedra, e o rosto chammejante de febre. Agitou-o,
ergueu-o, amparou-lhe os passos, até o trazer á estrada, e d’ahi quasi em
braços a casa do carpinteiro.

Conversaram até altas horas da noite. Casimiro ouviu as ultimas palavras
do padre, e disse:

—Farei a sua vontade.

A vontade de padre João era que elle sahisse de Pinhel, e fosse a
Bragança assentar praça. A resistencia de Casimiro fôra pertinaz,
até ao derradeiro golpe, que o padre lhe descarregou, dizendo que a
demora d’elle em Pinhel seria a causa á clausura de Christina. Casimiro
sentou-se no catre, embebeu o suor frio da face na dobra do lençol, e
exclamou:

—Irei.

E foi cinco dias depois, caminho de Bragança; mas, ao fim do primeiro
dia de jornada, adoeceu perigosamente. O sangue refervido no peito
principiava a vulcanizar-lhe a cabeça. Deram-lhe uma enxerga, n’uma
taverna de Escalhão, e um padre que, em virtude de o ter confessado e
ungido, pôde saber que o viandante era de Pinhel e se chamava Casimiro
Bettancourt.

O carpinteiro ergueu mão do trabalho, embolçou as economias do seu
mealheiro, e foi caminho de Escalhão. O anjo do amor estava á cabeceira
do enfermo repellindo a morte. O coração repuchára a si a onda escaldante
de sangue, que banhara o cerebro, e espedaçava-se para deixar resurgir a
rasão. O artista esteve nove dias e nove noites ao lado de seu sobrinho.
Quando se lhe acabaram os escassos recursos, que levára, empenhou a cruz
de prata, que trazia ao peito; e pediu primeiro ao Crucificado que lhe
désse a vida do sobrinho de sua mulher.

Ao decimo dia, o carpinteiro construiu uma camilha n’um carro de lavoura,
e Casimiro, convalescente, foi transportado a Pinhel.

Ruy de Nellas e suas filhas, tirante Christina, passeavam n’uma alameda
fóra da povoação, quando o carro chegou. O carpinteiro, que caminhava
lentamente apoz o carro, descobriu-se, á vista do fidalgo, e disse:

—Guarde Deus a v. ex.ª, sr. compadre.

—Que levas ahi, Antonio?—disse o fidalgo.

—É meu sobrinho.

—Teu sobrinho?—Disseram-me que tinha ido assentar praça. Querem ver que
elle foi ferido em alguma batalha?

—O sr. compadre está a mangar com os pobres!... respondeu o carpinteiro
com um sorriso mais de pungir que propriamente a injuria.

N’este lanço, Casimiro Bettancourt affastou a ourella da manta, que
formava o pavilhão do carro, pôz fóra o rosto macerado, e disse:

—Sr. Ruy de Nellas, quem me feriu na batalha foi a espada da honra. Agora
vou eu travar uma batalha com o orgulho de v. ex.ª: veremos quem é o
vencido.

—Ora, sôr Casimiro!—replicou o fidalgo galhofando sarcasticamente—as suas
ameaças tem muita graça... passe muito bem.

E proseguiu no passeio, chibatando, com ares de Tarquinio ou Pombal, as
florinhas que se abriam por entre o ervaçal que arrelvava a alameda.

—Chama lá os bois, moço!—disse o artista ao carreiro.

Christina encerrada voluntariamente em seu quarto, nem de suas irmãs era
já bem vista. As outras senhoras, como izemptas e intactas de coração,
conservavam os espiritos excelsamente afidalgados, e levavam muito a mal
que sua irmã as quizesse aquinhoar no desdouro de um casamento desegual.
O fidalgo obrigára Christina, nos primeiros dias, a tomar o seu lugar na
meza commum; como visse, porém, que ella escandalisava a familia com suas
lagrimas ordenou que lhe levassem as criadas os alimentos ao quarto. E
assim se finava a pobre menina, desconsolada da voz humana, e descrida da
misericordia divina.

Peregrina, a sua confidente, a sua alegria, tinha ido com o irmão para S.
Julião da Serra. Queria escrever-lhe: mas que portador ousaria levar-lhe
a carta? Pensava em fugir para ella; mas com quem, com que recursos? A
não ser ella, quem faria chegar ás mãos de Casimiro as suas cartas, o
adeus sùpremo de sua alma, ao arrancar da vida? Respondia-lhe o calado
pavor da soledade ao afflictivo interrogatorio, em que se debatia, e já
por fim, desesperava.

Havia na caza um criado moço, que Casimiro Bettancourt ensinára a lêr
nas horas feriadas dos domingos. Nunca os dous namorados fiaram d’elle
segredos seus; mas o muchacho, que era atravessado, adivinhava o que não
via, e espreitava para examinar se tinha adivinhado.

Soube elle que o seu mestre de leitura chegára doente n’um carro, viu que
o fidalgo e as meninas andavam a passeio, foi de corrida a caza, bateu
de mansinho á porta do quarto de Christina, e disse-lhe pelo espelho da
fechadura:

—Fidalga, o sr. Casimiro chegou agora doente n’um carro.

Christina espediu um grito, e abriu a porta.

—Vem cá!—disse ella ao rapasito, que se ia escapulindo.—Que disseste?
Viste o sr. Casimiro?

—Vi-o descer do carro nos braços do tio Antonio carpinteiro. Vem amarello
como uma cidra.

—Tu és nosso amigo, José?—perguntou ella offegante.

—Sou, sim, senhora.

—Levas-lhe um bilhete?

—Dê-o cá, fidalga.

—Espera, que eu vou escrevêl-o... O melhor é tu ires esperar no pateo,
que eu lanço-t’o da janella, que não vá ver-te alguem aqui no corredor.

O mocinho esperou um quarto de hora, e levou a carta a Casimiro, que
respondeu logo.

Este rapaz de nove annos faz lembrar o mosquito que matou o leão, e o
braço fundibulario que derribou o gigante. Ahi estão a vigilancia e
omnipotencia de Ruy de Nellas Gamboa de Barbedo, senhor solarengo mais
velho da Beira Alta, anniquilladas pela intervenção do pegureiro, que o
senhor feudal nunca distinguia dos carneiros que apascentava!

O effeito das primeiras cartas foi uma transfiguração maravilhosa no
semblante de Christina e Casimiro. Já ella punha as mãos e ajoelhava a
orar: é certo que, pelo ordinario, attribuimos ao demonio o mal acintoso,
que o mundo nos faz, e agradecemos a Deus o bem casual ou intencional que
nos faz o mundo. Tudo isto redunda em elogio de Deus e nosso.

Ruy entrou pensativo em casa, dizendo entre si: «Mal fiz em a não metter
no convento; mas ainda não é tarde.»

Mandou vir á sua presença os creados e creadas, excepto o José-pastor,
como lhe chamavam. O rapasito ainda não gosava honras de creado
appellavel para assumpto grave. Declarou o fidalgo que faria entrar
n’uma cadeia o servo ou serva, que levasse ou trouxesse cartas entre sua
filha e Casimiro. Os creados innocentes e impeccaveis n’esta materia—por
isso que zelavam a fidalguia do seu amo contra o plebeismo do sobrinho
de mestre Antonio—juraram de espreitar os passos de Casimiro, e, em
testemunho de sua probidade, offereceram-se a quebrar-lhe as costellas,
sendo necessario.

Ruy de Nellas despediu-os satisfeito, e disse entre si: «Tanto faz tel-a
fechada em casa, como no convento. Parece-me até que está mais segura
aqui.»

José-pastor ouviu a creadagem na cosinha discorrer ácerca da
recommendação do fidalgo, e fez que não intendia. D’ahi a pouco, andava
elle no pateo a escrever com um pau carbonisado o seu nome nas lages
pollidas, e de vez em quando olhava, por debaixo do avental de saragoça,
contra a janella de Christina.

Viram-se. E elle escreveu a palavra _carta_, olhando de revez e
indicativamente para a menina. Fez ella um gesto de intelligencia, e elle
aspou a primeira palavra com os pés, e escreveu n’outra lage: _telhado_.
Outro signal de comprehensão, e logo outra palavra: _torre_, e depois
_trapeira_.

Queria isto dizer que elle ia ao postigo de uma especie de pombal, que
lá chamavam _torre_; que lançava de lá a carta ao telhado; e que fosse
Christina á trapeira, superior ao seu quarto, e colhesse a carta.

Sahiu-se excellentemente com a traça, e até sobreexcedeu o programma;
porque a menina, recebendo uma, atirou outra carta á base da torre, e o
rapasinho, que era optimo volatim em esgalhos de arvores, pendurou-se
pelos pés no banzo do postigo, e com um troço de uma aguilhada de seu uso
pastoril arpoou o papel. Estas habilidades é que Casimiro Bettancourt lhe
não havia ensinado com as primeiras lettras. Se a instrucção primaria
lh’as desenvolveu, isso é materia para mais dilatadas e opportunas
pesquizas.

Aligeirando o alcance d’estes successos, até ao ponto em que os
deixamos na vigairaria de S. Julião da Serra, direi que a fuga estava
pactuada desde as primeiras cartas, que se trocaram. As apostillas
subsequentes versavam sobre qual caminho e destino convinha seguir.
Casimiro lembrava-se do condiscipulo de collegio a quem devia o favor de
dinheiro com que jornadeára de Lisboa a Pinhel. Presumia elle que, se
fugissem para Lisboa, e procurassem aquelle amigo, achariam protector
para alcançar-se um emprego. Mas um fio de espada lhe cortava por alma
e coração, quando a nevoa negra da pobreza se lhe punha diante da
esplendida aurora do seu dia feliz. Quem lhes daria meios para caminharem
até Lisboa?

Como adivinhando esta pergunta, Christina propunha que fossem a S. Julião
da Serra, casassem lá, e pedissem ao padre João recursos para fugirem á
perseguição, até que Deus lhes acudisse.

N’estes dias revesados de alegrias e amarguras, para elles, que já tinham
aprasado o da fugida, o carpinteiro recebeu carta do filho, estabelecido
no Brazil, e o primeiro donativo de dinheiro. Quando Casimiro viu ouro
em mãos de seu tio, apertou o artista ao seio, e disse-lhe com os olhos
cheios de esperança e lagrimas:

—Empreste-me parte d’esse dinheiro, que é o preço da minha felicidade.

—Se é o preço da tua felicidade, ahi o tens todo—respondeu o carpinteiro,
lançando as peças sobre a meza.

—Menos de metade me basta—replicou Bettancourt.

—Pois toma d’aqui o que quizeres; mas conta-me o que vaes fazer.

Casimiro, temeroso da probidade de seu tio, nunca lhe havia revelado
o plano do rapto. Prudente receio era o seu. Mestre Antonio, bem que
estomagado das soberbas de seu compadre, não consentiria que seu sobrinho
o vingasse por semelhante meio. A ida de seu filho para o Brazil devia-se
em parte á generosidade do padrinho, que lhe déra enxoval e algum do
dinheiro da passagem. O mesmo fidalgo o ajudára a comprar o fato de
Casimiro, sem querer que o moço soubesse a obrigação em que ficava.
Mestre Antonio, além d’isto, reprovava o ousio de seu sobrinho em
inquietar uma menina talhada para marido de outra linhagem e haveres. Não
dominava ainda n’aquella epocha a aristocracia das artes, inchada hoje
com uns descomedimentos de orgulho, que prevalecem propriamente sobre os
da aristocracia de nascimento; de modo que a gente sisuda lastima que o
artista não seja bem creado para sustentar o seu real valor, sem andar
a todas as horas, de arremettida contra as distincções herdadas. Agora,
importuna a philaucia do artista; logo anoja a humilhação a que se desce.

Cingindo-me ao ponto: Casimiro reteve ainda o seu segredo, sophismando-o
d’est’arte:

—Eu vou continuar em Coimbra ou Lisboa o meu curso de mathematicas para
seguir a vida militar mais vantajosamente. Bem sei que este dinheiro
a pouco chega; mas espero achar, sem baixeza, recursos em mim proprio
para me alimentar. Ensinarei particularmente o que sei, e com o pequeno
salario me irei remindo.

—Se é isso, Casimiro—redarguiu mestre Antonio—leva o dinheiro todo, que
eu tanto faço com elle como sem elle. Assim como assim, duzentos mil
réis não me quitam de trabalho. Gosto bem de te ver botado ao caminho da
vida. Vai, moço; que o mundo é p’rós homens. Teu pai sahiu d’aqui com
duas camisas n’uma trouxa, sentou praça, e morreu major na flôr da idade:
teria quarenta annos. Se não morre, e o seu partido vinga, podia acabar
general. Tira-te d’aqui d’esta aldeia, homem! Tu tens lá umas ideias que
precisam de terras grandes. Vai-te á vida que eu cá estou com o meu pouco
para te acudir nas necessidades. Logo que teu primo mande mais dinheiro,
lá irá ter onde estiveres. Se um dia tiveres de teu, e eu já não poder
com o machado, então me irás pagando como poderes.

Casimiro debulhava-se em lagrimas, abraçado ao carpinteiro, que embebia
as suas no canhão da jaqueta de saragoça remendada nos cotovellos.
Aquella jaqueta deshonrar-se-ia grandemente se a puzessem á beira de
muitas fardas batidas a ouro e coalhadas de veneras!

Era como picar de remorso o doer-se de Casimiro. Mentir assim aquelle
velho tão bom, tão franco, tão desprendido, tão pobre!

Não importa! A sua paixão absolve-o já; o homem honrado e illudido
absolvel-o-ha depois.

Tinha, pois, Casimiro dinheiro para a fuga; d’isto avisou Christina; a
menina, porém, instava pelo casamento em S. Julião da Serra, e o moço, de
vontade e coração, condescendia, e desejava assim tão abrasadamente como
ella.

Ruy de Nellas encontrou o carpinteiro, e não lhe fallou, nem respondeu á
saudação com um gesto sequer.

—Porque está de mal commigo, sr. compadre?!—perguntou o operario com
magoada submissão.

—Porque és um ingrato!—bradou o fidalgo.

—Ingrato, senhor! Nemja isso! Deus me não ajude, se eu sou ingrato a v.
exª!

—Tens ahi teu sobrinho, que deu um pontapé no seu bemfeitor, e causou a
desgraça de minha filha, e a tristeza de minha casa!

—Meu sobrinho, sr. compadre, fez mal, é verdade; mas o mal está
remediado. Meu sobrinho vai-se embora por estes dias. Vai para Lisboa
continuar os seus estudos. Leva duzentos mil réis que eu recebi do meu
filho e afilhado de v. ex.ª, e por lá ficará até se fazer homem como meu
cunhado.

Ruy de Nellas deu um grande suspiro de desabafo, e disse:

—Fallas-me verdade?

—Como quem se confessa, fidalgo.

—Então compadre, o dito por não dito. Se eu soubesse que elle estava
ainda em tua casa, por falta de meios, o dinheiro dava-t’o eu, sem elle o
saber. Quando é que vai?

—Estão-se fazendo umas camisas, e, o mais tardar no fim da semana, vai
com Deus.

N’este dia á noute, Ruy disse a uma das filhas:

—Vai ao quarto de tua irmã, e diz-lhe com bons modos que venha tomar
chá comnosco. A tempestade está a passar: é preciso que a trateis, como
d’antes, d’aqui por diante.

Christina, maravilhada da brandura de sua irmã, desceu á sala, e beijou a
mão paternal, que se lhe offerecia com affavel sorriso.

Tomou chá trocou leves palavras com suas irmãs, e volveu ao seu quarto,
onde desvelou a noute, scismando na transfiguração de seu pai.

A horas de almoço, passou Ruy de Nellas no corredor contiguo ao quarto de
Christina, e disse-lhe tocando na porta:

—Vai o almoço para a meza, menina.

Christina estremeceu, e sumiu entre os cobertores a carta, que estava
escrevendo, cujo periodo mais importante era assim:

«....... Como penso que terei liberdade de descer ao jardim ao fim da
tarde, sahirei pela porta da quinta, que abre para a estrada. Se me
enganar, então ámanhã te avisarei......................................
.......................................................................
.................................

Não se enganára.

O caricioso pai sahiu com ella e suas irmãs a passear depois do almoço.
Amimou-a, depois de jantar, brindando-a com um vestido de tafetá azul
para festa dos annos da morgada. Ao fim da tarde viram-n’a sahir ao
jardim, e a mais abelhuda das irmãs disse:

—Papá, olhe que a Christina vai só...

—Deixal-a ir. Coitada! o inverno já lhe desfolhou as rosas que ella ha um
mez ainda regava!... Vai ver as suas plantas... Pobre filha, que pena me
faz vêl-a tão abatida!...

Christina demorava-se e o vento assobiava, impellindo contra a janella
borrifos de chuva.

—Vossa irmã, já está no seu quarto?! Vão ver.

As meninas alvoroçadas vieram dizer que no quarto não estava ella nem a
capa.

—Pois não viram que ella saiu de capa ao jardim?—reflectiu o pai.—Vamos
ao jardim, que ella deve lá estar abrigada da chuva... ou (ajuntou elle
no silencio de seu coração) escondida a chorar... pobre menina!

Espreitaram todos os escuros do arvoredo, chamando-a a brados. O fidalgo,
esporeado por diabolica suspeita, correu á porta do carro, e achou-a
aberta.

—Fugiu!—exclamou elle. Os criados que saiam todos por essas estradas,
e... que o matem!

E os criados sahiram todos na ideia... de o matarem!

Até o José-pastor lá ia na chusma, clamando que queria tambem matar o
ladrão da fidalga, e teimava que via as pegadas da menina lá por uns
caminhos onde ninguem via cousa nenhuma!

A estas horas, Christina e Casimiro transmontavam o cabeço da primeira
serra, que descia para umas gargantas intransitaveis.

Na ante-vespera, palmilhara Casimiro o terreno menos trilhado, e
orientara-se cabalmente da direcção que devia seguir até assomar á serra
visinha de S. Julião.



VI

A humildade vencedora


Os servos iam e vinham por estradas reaes, atalhos e mais desfrequentados
caminhos. Ninguem déra noticia dos fugitivos, excepto um guardador de
cabras, o qual disséra ter visto n’uma chã, passarem um senhor, vestido
á cidade, e uma senhora assim a modo de fidalga, e depois os vira entrar
á estrada de Trancoso. Estas novas quem as colheu foi o José-pastor, o
velhaco! Elle não viu guardador nenhum de cabras: inventou-o, sem que
ninguem lhe encommendasse a fabula. O que elle queria era attrahir as
pesquizas para o lado opposto de S. Julião da Serra. Serviçal até alli!

Quando, ao quarto dia de baldadas buscas, os criados mais pimpões
se abalaram para Trancoso armados até aos dentes, Ruy de Nellas foi
procurado por sujeito desconhecido. Entrando á presença do fidalgo, e
interrogado sobre quem era, disse:

—Sou um lavrador da freguezia de S. Julião da Serra.

—Onde está vigario meu afilhado padre João Ferreira?

—Sim, senhor.

—Como está elle!

—Doente de cama.

—Coitado! E Peregrina? Conhece a irmã do vigario?

—É minha mulher.

—Ah! sim? quanto folgo! Já cá sabiamos que ella casára bem.

—Estimo-a muito, que é digna d’isso.

—E vm.ᶜᵉ creio que é lavrador abastado...

—Graças a Deus, tenho mais que o necessario...

—Queira sentar-se. Esqueceu-me de o mandar sentar, com a satisfação de
ver o marido da nossa Peregrina... _Satisfação_, digo eu!... Vão por cá
muitissimas afflicções, senhor... como é a sua graça?

Ladislau, criado de v. ex.ª

—Muitas afflicções, sr. Ladislau! Cahiu em minha casa um raio!... Deus...
não sei que mal lhe fiz! Eu, que faço o bem que posso, que dou tudo
quanto me sobeja aos pobres, que eduquei minhas filhas na religião de
meus avós, estou aqui esmagado por uma vergonha, que me está cavando
a cova!... Quando ha sete annos me morreu minha mulher, pedi a Deus a
morte: oxalá que elle me tivesse ouvido!... Logo, em seguida, morreu o
meu unico filho varão. Resisti ainda. Depois vi cahir o Senhor D. Miguel
do throno á miseria da proscripção, e fiquei ainda em pé. Agora...
agora... esta punhalada corta-me o ultimo fio! Nos tres infortunios
passados, o Senhor Deus dos afflictos collocou a meu lado um dos seus
apostolos, que me amparou, e me fechou as chagas com o balsamo da
religião. Era um frade da sua freguezia, creio eu: Fr. Braz Militão do
convento de Vinhaes. Morreu o santo, que passou tres noutes á cabeceira
do meu leito, quando enviuvei. Elle tinha experimentado a minha dôr,
porque vestira o habito de frade mendicante, quando Deus lhe chamou sua
mulher...

—Esse frade era meu pai—disse Ladislau.

—Seu pai!—exclamou o fidalgo, erguendo-se a abraçal-o.—Pois o marido de
Peregrina é filho d’aquelle predestinado, a quem eu recorro ainda nas
minhas angustias?

—E eu recorrerei tambem para que meu bom pai alcance do Senhor o socego
de v. ex.ª

—Desculpe-me, que eu estou todo absorvido pela minha magua! Ainda não
fiz senão carpir-me; porém o sr. Ladislau calculará, quando fôr pai, a
natureza da minha dor... Que motivo o traz a esta casa?

—O seu infortunio, sr. Ruy.

—Pois sabia que minha filha fugiu? Já lá chegou a noticia? Foi sua mulher
que o mandou saber a atroz verdade? É certo, é horrivelmente certo que
essa desgraçada fugiu ha cinco dias, e todas as diligencias em procural-a
com o infame raptor se tem baldado!

—A sr.ª D. Christina está em minha casa—atalhou Ladislau.

Ruy de Nellas aproximou-se, quasi rosto a rosto, de Ladislau, e exclamou:

—Que diz?! em sua casa? com elle?

—Não, sr. Ruy. Em casa do filho de fr. Braz Militão não se agasalham
amantes fugitivos, salvo se elles forem tão desgraçados que não tenham
pão nem tecto. Em minha casa está unicamente a filha de v. ex.ª; em casa
do vigario está Casimiro Bettancourt.

—E meu afilhado—interrompeu iroso o fidalgo—consente que se recolha em
sua casa o roubador de minha filha, da filha de Ruy de Nellas, a quem
elle deve tudo o que é?!

—Lamento,—disse Ladislau—que meu cunhado aqui não esteja para dignamente
responder a v. ex.ª. Eu não tenho a virtude nem as expressões santas,
persuasivas, e affectuosas do afilhado de v. ex.ª. Estou aqui, porque
a doença ha tres dias o tem a elle na cama: apressei-me a vir para
que o padre, despresando a enfermidade, não viesse por este mau tempo
arriscar a vida. As intenções, todavia, de meu cunhado, acolhendo em sua
casa Casimiro Bettancourt, são obvias e justas. Os dous, desgraçados
pela cegueira do amor, foram pedir ao sacerdote a benção matrimonial; o
sacerdote não podia abençoal-os sem consentimento de v. ex.ª, e não podia
tambem abandonal-os sem faltar á caridade que professa, á sua propria
consciencia, e ao que deve ao sr. Ruy de Nellas. Abrir mão d’elles, na
situação em que os viu, o mesmo seria declarar-lhes que não ha divina
nem humana misericordia. Elles iriam porta fóra desconfiados da virtude
do ministro de Deus, em que tinham posto sua esperança, e julgar-se-iam
desquites de serem ou procurarem ser virtuosos...

—Bem!—atalhou Ruy, a que vem o senhor?

—Implorar a v. ex.ª consentimento...

—Para se casarem?

—Sim, senhor.

—Sabe o que pede? o sr. Ladislau sabe o que pede?!—bradou o fidalgo com
os olhos afuzilando ira e gestos descompostos.

—Sei que peço, segundo meu cunhado diz, o unico remedio de tal desgraça.

—Seu cunhado é um parvo!—rebradou o velho, batendo rijamente com o punho
fechado sobre a meza.—Repito: seu cunhado é um parvo, e não tem desculpa
nenhuma, porque sabe quem é o pai de Christina, e quem são os parentes
d’esse ninguem que roubou minha filha. Não lhe disse elle que Casimiro é
sobrinho d’um carpinteiro?

—Sim, senhor, disse.

—E então? Parece-lhe que é bem arranjado o casamento do sobrinho do
carpinteiro com a filha de Ruy de Nellas? Responda!... Que pena eu
tenho que, em lugar do senhor, não estivesse ahi o padre, a ver que me
respondia!...

—Parece-me que o padre responderia a v. ex.ª que a sr.ª D. Christina...

—Diga, diga!

—Casada com o sobrinho do carpinteiro está mais honrada que na situação
em que se acha agora.

—Quer isso dizer que da parte do mariola é muito grande favor casar-me
com a filha!?

—Não, sr. Ruy; eu não quiz dizer semelhante cousa; não vim aqui offender
v. ex.ª.

—Pois então?... A vontade do meu amigo padre (replicou o fidalgo,
sorrindo á palavra _amigo_) é que eu admitta em minha casa os noivos?

—Não lhe ouvi isso. O que elle unicamente pede é a certeza de que v. ex.ª
lhe levará a bem que elle os case, embora o seu consentimento não seja
escripto.

—Prohibo-o expressamente de os casar, sob pena de eu o fazer sahir da
igreja, e metter em processo!

—Que quer, por tanto, v. ex.ª que faça sua filha?—redarguiu Ladislau com
os olhos humidos de lagrimas de desanimação—Que ha de ella fazer?

—Entrar n’um convento, chorar o seu crime, e morrer lá, é o que eu quero.
A elle hei de perseguil-o até ao inferno! hei de mettêl-o n’uma masmorra,
e impontal-o para as Pedras-negras.

Ladislau recolheu-se breves instantes, e sahiu de si, dizendo com grande
impeto de pranto:

—Se aqui estivesse frei Braz de Villa Cova, que diria, n’este ponto, o
bom christão a v. ex.ª? Eu creio, senhor, que meu pai diria: «Perdão, e
misericordia. A neta dos reis de Judá, Maria, mãi de Jesus, foi eleita
pelo Eterno esposa d’um operario: era carpinteiro o pai putativo do
Redemptor dos homens.»

—Não me pregue sermões!—interrompeu Ruy de Nellas, cujas convicções, no
tocante ao casamento da Virgem Maria, eram muito pela rama. O fidalgo
acreditava que uma sua tia freira bernarda em Lisboa tinha oração infusa,
e, em seus extasis, se erguia sobre a terra quatro covados; acreditava
que S. Thiago e S. Jorge vieram em pessoa combater e vencer pelos
portuguezes; acreditava outro sim que a morte e vinda de D. Sebastião era
por ora cousa duvidosa, porém o casamento da filha dos reis de Israel com
um carpinteiro custava-lhe a tragar!

—Não me pregue sermões!—dissera, pois, Ruy de Nellas, e proseguiu:—Seu
pai, se aqui estivesse, iria sem que eu lh’o pedisse, procurar essa
mulher perdida, e convertêl-a a Deus, levando-a a um convento, e
obrigando-a a ver bem a sua vergonha para que nunca mais se amostrasse a
olhos do mundo. Seu pai, sr. Ladislau, de certo me não viria dizer que
premiasse a desobediencia de minha filha, e a petulancia do farropilha,
que m’a roubou, casando-os. Boa maneira de os castigar, não tem duvida
nenhuma! O resultado de tão funesto exemplo seria as outras minhas
filhas fugirem-me com os miseraveis que as seduzissem! Se a religião
mandasse ou aconselhasse tal, ai da ordem social, que então direitos de
pai e obediencia de filhas tudo andaria transtornado! Não, senhor! frei
Braz Militão não podia, de modo nenhum, ser o patrono de tamanho crime!

—Que quer, pois, v. ex.ª que se faça?—disse Ladislau com os olhos já
enchutos, e um tom de voz, que denotava outra condição de espirito.

—Já disse: ella, convento; elle, se poder fugir, que me fuja; mas já e
depressa, quando não a justiça fila-o.

—Creio que a sr.ª D. Christina não entrará em convento, nem Casimiro
fugirá sem ella.

—Veremos! Eu vou mandar homens a S. Julião da Serra!

—Fará v. ex.ª mal. Na minha terra nunca entraram homens de braço armado,
excepto os francezes, que incendiaram as casas por não encontrarem
alguem. As nossas defezas e resguardo são as serras. Eu conduzirei a
filha de v. ex.ª onde não possa a violencia alcançal-a. Ella fiou-se em
mim, acceitou a minha casa, hei de defendel-a. A não poder vêl-a esposa
do homem que ama, não serei eu que vá perfidamente arrancal-a ao seu
destino, bom ou mau, Deus sabe qual será. Calar-me seria uma perfidia.
Volto, pois, com o coração de lucto, e direi a meu cunhado que v. ex.ª
lhe prohibe remediar a desventura da sr.ª D. Christina.

—Mas diga-me cá!—acudiu de golpe o velho.—Se eu consentisse no casamento,
que se seguia? Minha filha voltava a Pinhel com o marido?

—Não, senhor.

—Pois então?

—Lá sabem o seu intento. A Pinhel não voltarão.

—Mas quem os sustenta, depois?

—Serei eu, se elles quizerem.

—Bello começo de vida! Vai viver minha filha ás sopas da...

Conteve-se Ruy; mas Ladislau, adivinhando-o concluiu a phrase:

—Ás sopas da serva de v. ex.ª... Minha mulher tanto se considera ainda
uma creada de v. ex.ª que recebe como a maior das honras ter á sua meza a
sr.ª D. Christina, e servil-a como creada.

—Perdôe-me, atalhou Ruy commovido, perdôe-me, que a minha dôr faz-me mau;
que eu não o sou, meu amigo! Sua mulher nunca foi minha creada. Sentei-a
á minha meza, e vesti-a como minhas filhas. Nunca me arrependi, e queria
não me arrepender nunca. Faça o sr. com que ella resolva Christina a
esquecer esse homem, e a fazer me a vontade. Póde ser que o tempo venha a
gastar o odio, que tenho a essa perdida, e a tire do convento. É o maior
serviço, que podem fazer-lhe, dissuadil-a. Façam com que Casimiro saia
de Portugal: que vá para o Brazil ou para o inferno, que eu não lhe faço
mal. Tenho dito, sr. Ladislau, a este respeito.

—Minha mulher não ousa dar taes conselhos á sr.ª D. Christina, nem eu a
minha mulher. Em fim, sr. Ruy, ouça v. ex.ª o que vou fazer. Acompanharei
sua filha ao lugar onde a encontrei; lá, onde a espera Casimiro
Bettancourt, direi a ambos: «Fiz o que pude, pedi com lagrimas, pedi com
razões: tudo se mallogrou. Agora se meu cunhado os não quer ou não póde
casar, sigam sua vida, vão mostrar-se por esse mundo deshonrados, e digam
que, se a deshonra os affasta das pessoas de bem, é por que esta infeliz
menina tem um pai, que antes a quer assim.» É o que farei e direi, sr.
Ruy de Nellas; mas antes d’isto, ainda me resta um esforço. Pedirei á
alma de meu pai que lhe toque o animo; e, de joelhos e mãos erguidas,
ainda uma vez, supplico a v. ex.ª que dê consentimento para que sua filha
seja honesta!

Disse Ladislau as ultimas palavras ajoelhado.

O fidalgo contou, passados annos, que, em lugar de Ladislau, vira, como
em sombra, fr. Braz Militão. Ha segredos de Deus; porém, bem póde ser que
o caso, a dar-se, fosse mera visualidade do velho. Fosse ou não, Ruy de
Nellas inclinou-se a levantar Ladislau de sua postura humilde, e disse:

—Valha-me Deus!

Passeou, de uma parede a outra, repetidas vezes, o salão, emquanto o moço
arquejante lhe estava como bebendo a resposta dos beiços convulsivos.
A final, parou o velho, em meio da sala, levou as mãos ás fontes, e,
sacudindo vertiginosamente os braços, exclamou:

—Casem! mas que eu os não veja mais!

E sentou-se, prostrado.

—Beijo as mãos de v. ex.ª—disse Ladislau, retirando-se com alvoroço tal
de alegria que a sua vontade era distancear-se depressa, receoso do
arrependimento.

Arrependimento que por um cabello, pouco depois, ia dando de si um feito
vil!

Ruy de Nellas ergueu-se de golpe, já quando o moço tinha sahido, e
esporeava a galope desapoderado a mula, estrada fóra.

Chegou ainda a gritar pelos creados, cujo maior numero tinha ido para
Trancoso. Era seu intento envial-os a S. Julião da Serra, infractores da
palavra de seu amo.

N’este lanço, estropearam no pateo dous cavallos: o cavalleiro era D.
Sueiro de Aguilar Vito de Alarcão Parma d’Eça, fidalgo de Miranda, com o
seu lacaio.

Este sujeito, além d’aquelle nome, que só por si é uma fortuna, nascera
primeiro que seus irmãos, na maior casa d’aquelles contornos de Miranda.
Barbedos e Alarcões tinham começado, pouco mais ou menos, com o genero
humano. Estas duas familias, em franqueza intima e modesta, diziam que
o primeiro sangue de Lisboa—da Lisboa de sangue azul, intende-se—era um
regato da fonte caudal, represada n’elles, ahi pela fundação dos reinados
de Leão e Castella.

Desde muito que Ruy de Nellas meditava em casar a filha morgada com D.
Sueiro de Aguilar, e n’isso trabalhára, com intervenção da parentella.

Eil-o ahi está agora o almejado genro a pedir-lhe a filha, e eil-o vem a
ponto de estorvar que o sogro se deshonre, violando a palavra dada, com
desdouros dos reis de Leão e Castella, seus avós.

Trocados os termos ceremoniosos, D. Sueiro perguntou pelas primas.

Entraram cinco meninas meia hora depois.

—E a prima Christina?—perguntou elle.

—Está na Guarda, em companhia da tia Mafalda Portugal—tartamudeou Ruy.

—Sinto—disse D. Sueiro—porque, vindo eu pedir a mão da prima Guiomar para
mim, sou encarregado de pedir a prima Christina para meu irmão Alexandre.

—Céus!—exclamou para dentro de si o fidalgo, e as meninas encararam-se
mutuamente.

—Fallaremos ácerca de Christina—disse Ruy, expedindo um gemido rouco.

E declinou a prática sobre trivialidades, até horas de jantar.

D. Alexandre, academico do primeiro anno na Universidade, tinha visto sua
prima na feira de Vizeu, um anno antes. Escrevera-lhe, mediante os bons
officios de sua tia D. Beatriz de Albuquerque. Não respondera Christina
senão termos agradecidos á escolha, posto que incondescendentes. Assim
mesmo, D. Alexandre de Aguilar recalcitrou, sem melhor exito. D. Sueiro,
porém, tomou a peito levar a noiva ao irmão.

Contou-se o incidente que prende com o porvir d’esta historia.



VII

Felicidades


O apparecimento de Ladislau Tiberio no alto da serra, que se arqueia
sobre a casa de Villa Cova, foi saudado com o agitar de dous lenços
brancos. O moço, segundo convenção feita, apeou, cortou uma haste de
castanheiro, arvorou n’ella o seu lenço, e floreando-o de cima da
cavalgadura, deu-se pressa na descida.

Quando tal viram, Christina, a rir e a chorar, lançou-se aos braços de
Peregrina, e foram ambas ajoelhar diante do oratorio. Como a alegria as
não deixava exprimir palavra, era-lhes preciso fallar em silencio com
Deus.

Meia hora depois, entrava no quinteiro Ladislau, e as duas senhoras,
arrebatadas como se a boa nova igualmente as deliciasse ambas, correram a
ouvir a confirmação do que disséra a bandeira branca.

—É certo?—exclamou Christina.

—É certo, minha senhora.

—Deixa-me ir um criado a S. Julião dar parte a Casimiro?—tornou ella.

—Vamos logo todos; mas, se v. ex.ª quer, mande o criado já.

—Então não: vamos todos... quero eu dar-lhe a nova. E meu pai está bom? e
minhas irmãs?

—Não vi suas irmãs; seu pai está inquieto; mas, como tem bom coração,
Deus o socegará.

Abraçaram-se outra vez as duas amigas, e Ladislau, entre risonho e
lagrimoso, gosava o não menor quinhão de sua alegria.

Fez-se logo noute, e esperaram que nascesse a lua para sahirem ao ingreme
e despedrado caminho da igreja.

Por volta das dez horas, chegaram á lapa da Crasta, no viso da serra
interposta, e lobrigaram um vulto.

—É elle!—exclamou Christina, lançando-se da egua.—É meu marido!

Casimiro Bettancourt correu ao encontro d’ella, e murmurou:

—Que dizes, Christina?

—O pai consentiu!—disse ella abafada pela commoção.

E Casimiro, desprendendo-se dos braços de Christina, foi cingir com o
peito o sereno Ladislau, que ficara segurando as redeas da egua.

—Meu salvador!—exclamou o moço.

—Seu amigo, como amigo de todos os infelizes que amam!—disse Ladislau e
ajuntou logo:

—O senhor que está aqui é que meu cunhado melhorou.

—O sr. vigario veio confessar um moribundo na aldeia, que está ao fundo
da serra, e eu, com licença d’elle, vim até aqui para ver o fumo da casa
de Villa Cova.

—Bem!—tornou Ladislau.—Vamos.

—Eu vou a pé—disse Christina—dá-me o teu braço, Casimiro.

—Ámanhã—atalhou Ladislau—ámanhã se encostará ao braço de seu marido,
minha senhora.

Christina córou; e Casimiro tomou as redeas da egua para ella saltar ao
albardão.

Ouviu-se um prolongado assobio como o dos caçadores em montados: era o
vigario que chamava o hospede. Casimiro respondeu, e Peregrina, puchando
do peito, quanto pôde, a voz, gritou:

—Cá vamos todos.

E, como todos rissem do agudissimo falsete da jubilosa Peregrina, o
vigario percebeu logo a impaciente felicidade que não pôde esperar pelo
dia seguinte.

E subiu a ladeira até encontrar o grupo.

—Abençoou Deus a tua resolução, já vejo!—disse padre João Ferreira ao
cunhado.

—Abençoou: pódes tu abençoal-os, meu irmão.

E os dous ficaram alguns passos atrazados, para irem conversando sobre os
successos de Pinhel, e os futuros em que os noivos não pensavam, nem era
generoso dizerem-lh’os.

Ninguem dormiu, n’aquella noite, na residencia de S. Julião. O vigario
sahiu, ante-manhã, a solicitar licença do arcipreste para casar os
contrahentes sob sua responsabilidade sem o previo pregão de banhos.
Obtida, voltou á egreja, e ouviu de confissão os desposados; e, em
seguida á ceremonia da communhão, ligou-os, abençoou-os e disse-lhes:

—Ficam sendo os dous uma só alma para as alegrias e para as provações.
Deus voltará a sua face divina d’aquelle dos dous que attribuir ao
outro o seu infortunio; e nós, os amigos de ambos, verteremos lagrimas
de sangue se os virmos infelizes, infelizes á mingua de conformidade e
fortaleza. Deus os tenha de sua mão.

Celebrado o matrimonio, almoçaram na residencia, e sahiram para Villa
Cova, onde Brazia, azafamada com o jantar, e duplamente ditosa com o
segundo casamento, dava ares de não ter o miolo fixo, no dizer dos outros
creados.

A felicidade d’este dia não tem historia: ou se a tem, conte-a o leitor
que a experimentou. Mas o meu leitor, casado por paixão, precisamente
foi obrigado a attender aos comprimentos de amigos e parentes, uns a
louvarem-lhe a noiva, outros a louvarem-n’o a si, estes a brindarem-n’o
com vinho, aquelles a perguntarem-lhe pelo dote da mulher: barafunda esta
que o não deixou sentir a sua felicidade.

Ora, na casa de Villa Cova, á mesa nupcial, além dos noivos, estavam o
vigario, os donos da casa, o carpinteiro de Pinhel, e a velha Brazia.
Os noivos repetiram em miudos a historia dos seus amores, os medos, as
tristezas, os jubilos, o intenderem-se com a linguagem pactuada das
flores. N’este ponto, Brazia ria muito e dizia que os namorados eram o
peccado. As espertezas de José-pastor foram contadas por Christina com
amostras do bem que queria ao rapasinho. Pediu ella ao marido que se
não esquecesse nunca do muito que lhe deviam, e lembrou-se de o mandar
estudar para padre se algum dia fosse remediada de bens de fortuna.

—Hade sahir bom padre!—atalhou a ridentissima velha.—Se assim souber
espreitar as ciladas do cão tinhoso, muitas almas hade ganhar p’ra Deus!

Com estas e outras festejadas palestras passaram o dia. Ao escurecer,
tornou o vigario á sua igreja, com promessa de voltar no dia seguinte, a
fim de se conversarem cousas muito importantes.

E nós vamos já ao ponto d’estas conversações decorridas á sombra d’uns
altos castanheiros, que pareciam ter alli ficado da idade de ouro para
darem testemunho de um feito d’outras eras.

—Diz tu o que tens a dizer, Ladislau—estas palavras proferiu o vigario,
logo que as duas senhoras se assentaram na grossa e retorcida raiz d’um
castanheiro, e Casimiro á beira d’ellas.

Ladislau voltou-se para seu cunhado e disse:

—Porque não has de ser tu?

—Quem melhor exprime a idéa é quem dignamente a concebeu.

—Pois fallarei—tornou o moço: deteve-se breve espaço, e disse—o sr.
Casimiro Bettancourt recebeu educação e tem espiritos que não são para
vida aldean, e d’esta aldeia a mais desacompanhada e triste que ser
póde. Isto é bom para mim, que nasci cá, e por todas essas pedras e
arvores tenho cobrado um affecto de solitario, que todo outro viver se me
affigura intoleravel. Que fará o sr. Casimiro, passados estes primeiros
dias, em tal solidão? Perguntará a si mesmo: «Que faço eu aqui? Em que
empregarei as minhas forças? Porque molde talharei o meu futuro?» Quando
assim se interrogar, a resposta será uma melancolica indecisão, com vêr
cerrados os caminhos para onde o animo o impelle. Vamos vêr se podemos
abril-os para pouparmos o nosso Casimiro á desconsolação de cruzar os
braços e dizer: «não sei!» O nosso amigo contou-me que, no collegio,
estudava mathematicas, para o fim de seguir a carreira das armas.

—É verdade—disse Casimiro.

—Pergunto eu se lhe agrada recomeçar ou continuar os seus estudos, e ser
militar.

—Desejava-o, tenho-o desejado sempre; mas a vida militar desprotegida é
má; e, nas minhas circumstancias, o estudar foi e é impossivel agora.

—Não é. O meu amigo assenta praça, e requer licença para estudar em
Lisboa, Porto, ou Coimbra. Tenho estas informações de meu cunhado. Eu
offereço-lhe os meios precisos para se alimentar com sua senhora em
qualquer das cidades que escolher, e assim se habilita para alguma vez me
pagar o adiantamento que fôr preciso.

—Mas o meu dote...—interrompeu Christina, com fidalgo animo.

—Não se falla no seu dote—retorquiu Ladislau.—O sr. Ruy de Nellas deu o
consentimento; mas não dá dote.

—O dote de minha mãi...—tornou ella.

—V. ex.ª não pede dote nenhum: eu disse a seu pai que a sustentação de
sua filha e marido não corriam á obrigação d’elle. Está desobrigado o
sr. Ruy de Nellas. Em resumo, o sr. Casimiro quer ser homem, quer a sua
independencia, quer empregar dignamente as faculdades, que Deus não dá
para ocios ou desperdicios. Resolve-se a abraçar a minha lembrança?

—De toda a vontade, e com o mais reconhecido coração. Diz-me uma voz
intima que eu poderei desempenhar-me.

—Tambem a mim m’o diz—ajuntou Ladislau.

—Desempenham-se todos os que trabalham—ajuntou o vigario.—O principal
estimulo que o sr. Casimiro leva para o seu engrandecimento é querer
mostrar a seu sôgro que se fez homem.

—Quem me faz homem é este anjo! exclamou Casimiro, abraçando o marido de
Peregrina, a qual já estava chorando, quer fosse a proxima ausencia de
Christina, quer o enthusiasmo da boa acção de seu marido a enternecesse a
lagrimas.

Volvidos quinze dias, iam sahir de Villa Cova os noivos com destino a
Coimbra. Ao despedirem-se, como Ladislau levasse á mala de Casimiro o
dinheiro contado para as despezas do primeiro trimestre, o hospede acudiu
dizendo que tinha intactos os duzentos mil réis que seu tio lhe dera.
Mestre Antonio, que fôra assistir á despedida do sobrinho, resistiu ás
instancias de Ladislau, não querendo reembolsar o dinheiro, e levou a sua
liberalidade ao ponto de offerecer á esposa de seu sobrinho uns brincos
de ouro, que elle chamava _cabaças_, os quaes tinham sido de sua mulher.
Liberalidade dissemos; e, com tudo, o valor real do presente orçava
por dezeseis tostões! Assim era que elle amava muito aquella memoria,
e o desprender-se d’ella foi o mais que podia fazer a sublime rudeza
do coração do operario! Dera a sorrir os duzentos mil réis, e foi, ás
escondidas, enchugar as lagrimas, quando se viu privado das arrecadas de
sua mulher! Ó santos corações do povo! mas do povo das montanhas, direi;
do povo, que ainda não sahiu á praça vociferando que é rei porque é povo.

Christina tirou das orelhas uns brincos de preço, que usava em casa de
seu pai, e adornou-se com os modestos, que lhe dera o artista; depois,
voltando-se a Peregrina, disse-lhe:

—Acceitas uma lembrança da tua amiga pobre, da amiga que vai subsistir
dos teus beneficios? E, tomando-lhe a cabeça contra o seio, obrigou-a
suavemente a receber os seus brincos, e beijou-a em ambas as faces.

—Acceita, Peregrina—disse Ladislau—que a tua senhora e amiga vai mais
enfeitada com a dadiva do pobre.

Partiram, acompanhadas até grande distancia pelo vigario, irmã, Ladislau
e Brazia. Mestre Antonio não houve rasões que o demovessem de ir a pé ao
lado de Christina, até ao Porto.

Como pernoitassem n’uma estalagem da aldeia de Pena verde, encontraram
um feitor da casa de Ruy de Nellas, acompanhando duas cargas de bahus.
O feitor, pasmado do encontro, não atinava a decidir-se se devia
cumprimentar ou desprezar a filha de seu amo. A menina porém, que se
não julgava despresivel, perguntou ao seu antigo creado d’onde vinham
aquelles bahus.

—Do Porto—disse breve e seccamente o conductor.

—Que levam?

—O enxoval da sr.ª morgada.

—Pois a mana Guiomar casa?

—Casa á vontade de seu pai—tornou o feitor, carregando de censura as
palavras, e collocando-se de esguelha.

Casimiro Bettancourt, que presenceara o dialogo, desceu ao pateo da
estalagem, onde estava o feitor; travou-lhe das lapelas da jaqueta, e
disse:

—Olha de frente para a filha de teu amo, e responde-lhe.

—Já respondi—disse o homem um pouquinho inquieto da segurança da sua
pessoa.

Casimiro perguntou á sobresaltada senhora o que queria ella saber do seu
creado.

—Nada...—balbuciou Christina, temerosa do resultado.

—Descobre-te—disse elle ao creado.

O feitor tirou o chapéu com as mãos ambas.

—Diz áquella senhora com quem casa tua ama, e responde ao mais que ella
te perguntar.

—Casa com o sr. D. Sueiro, de Miranda, que a foi pedir, e tambem ia pedir
a sr.ª D. Christina para o sr. D. Alexandre.

—Deixa-o, deixa-o!—disse Christina.

—Levas as duas orelhas—ajuntou Casimiro, largando-o—porque és creado do
sr. Ruy de Nellas. Tu consideras menos a filha de teu amo do que eu os
seus lacaios.

E, tornando ao quarto de Christina, disse-lhe risonho:

—Que excellente casamento te fiz perder!...

D. Alexandre de Aguilar Vito de Alarcão Parma d’Eça!

—Pois sim, disse ella muito de riso e mimo, mas se tornas a assustar-me,
arrependo-me de não ter respondido ás cartas do idiota Alexandrinho...
que vamos encontrar em Coimbra... Não sabes que elle está em Coimbra?

—Sabia, e então? Dar-se-ha caso que a vergontea ostro-goda me queira
cahir sobre as costas? É preciso temer os Vito Alarcões!... Deus nos
defenda!

Festejou ella muito os tregeitos de medo comico com que Casimiro
abrenunciou o rival temeroso, e não pensaram mais n’isso.

Tomou o estudante uma casa menos de modesta, fóra de portas em Santo
Antonio dos Olivaes. Em redor da casa fechava-se o arvoredo de alamos,
platanos e choupos. A mobilia era rigorosamente academica: as conhecidas
cadeiras como inventadas para descadeirar os occupantes; a meza de pinho
pintado de verde; a tarima de espaldar de taboado com silvas de flores
amarellas, imaginarias, e superiores ás mais inventivas das florestas
americanas. Tudo isto, porém, e o restante, que pouco mais era, limpo,
repintado, e lustroso alegrava a casinha. Depois era no mez de abril,
o abril de Coimbra, regorgeado de aves, arrelvado de boninas, copado
de sombras, e harmonioso de murmurios. E, depois, o amor, a paz, o
descanço de tamanhas batalhas, aformosentavam a vivenda de Santo Antonio
dos Olivaes, o amor, por sobre tudo, alindava, encantava, e vestia da
innocencia e das alfaias do eden aquelle silencioso abrigo de duas almas
fugidas ao mundo, e recolhidas em si e em Deus.

Principiou Casimiro a recordar os seus passados estudos, emquanto corria
aquelle anno lectivo, para no immediato se matricular. Raras vezes ia
á cidade dar conta ao leccionista dos seus estudos preparatorios. Como
o tempo lhe sobejava, lia ou ouvia ler Christina, que dava aos livros
unicamente as horas feriadas das suas occupações domesticas. Raro dia,
deixavam de escrever algumas linhas a Ladislau e Peregrina, dizendo
aquelles nadas que são um nunca findar entre pessoas que se presam.

Desceram, uma tarde de junho, ao Mondego, e subiram á beira da margem
esquerda. Paravam a intervallos para ouvirem o rumoroso suspirar da
folhagem, e o soido da limpha sobre que os salgueiros se dobravam a
remirar-se no espelho limpido.

Christina inclinou a face ao seio de seu esposo, e murmurou tão de leve,
que parecia afinar a voz pelo som d’aquellas harpas eolias da ramagem:

—Como somos felizes, ó Casimiro!...

—E eu cuidava que não havia felicidade n’este mundo! disse elle,
comprimindo-lhe a face com a mão tremente de meiguice.

—Como não ha de havel-a para os que amam o Senhor, e não fazem mal ao seu
semelhante!

—Eu devia esperar este bem, Christina; porque fui muito desgraçado... Não
fui?

—Eras... mas, desde que eu te amei...

—Fui muito mais desgraçado, filha... Então é que eu me vi pobre,
desvalido, sem pai, sem mãi... Que palavra, Christina!... MÃI!... Nunca
os meus labios proferiram esta palavra no seio de uma mulher! Nunca, nem
na minha desamparada orphandade, correu para mim uma mulher chamando-me
filho!... Como pude eu ser privado das caricias de minha mãi!? Como pôde
ella abandonar-me, e esquecer-me!? Porque não disse meu pai se ella era
morta?!...

—Ahi estás tu a entristecer-te!—atalhou a esposa—Não quero!... Vem cá!
Olha, Casimiro, eu chamo-te filho, filho de minha alma, do meu coração!
Amo-te mais que todas as mãis! Se alguma vez chorares, eu te consolarei,
com um carinho, que as mãis não sabem. Defender-te-hei com mais coragem
que ella. Morrerei por amor de ti, porque és tudo que eu tenho. Se Deus
me der filhos, heide amal-os menos que a ti, meu amado esposo!... Vês-me
tu a mim triste por ter deixado pai e irmãs?... É verdade que meu pai
aborrecia-me e minhas irmãs desprezavam-me mas por amor de ti, Casimiro,
por amor de eu te querer dar esta felicidade...

—Perdôa-me!—disse elle, beijando-a com estremecimento—Não me lembres
o que soffreste, que eu cuidarei que me argues de ingrato. Olha que a
minha tristeza é suavissima, ó minha filha. Lembrou-me meu pai, e os
seus ultimos affagos; tive saudades de minha mãi, que nunca vi; são uns
desejos, que parecem vaticinio de que hei de ainda encontral-a. Vê tu
que loucura, que poesia! É este sitio, estas arvores, e a serenidade
do céu que me fazem scismar assim... As pessoas, que têm a sua alegria
circumscripta ao curto espaço da sua casa, não devem vir meditar nos
lugares em que o espirito carece de voar ás raias do infinito. A tristeza
está n’ellas, filha. O espirito retrahe-se sobre si mesmo, e doe-se
da sua fraqueza. O que é ver ir aquella ave pelo azul do céu fóra, e
dizer: «onde irás tu?» É desejo de romper esta rêde de ferro que nos
cerca, rasgar os fechados horisontes da alma, e sondar em que mundo irei
com o teu espirito perpetuar a minha existencia. E a devanear n’isto,
accordam-se na alma todos os enlevos e saudades... Então vejo a sombra de
minha mãi e de meu pai, a passarem, a fugirem, como sonhos. Ditoso é o
meu accordar, porque te encontro, ó anjo da minha vida!...

E, dizendo, abraçou-a soffregamente, e bebeu-lhe as lagrimas, exclamando:

—É assim que minha mãi devia chorar, quando me lançou de si!...

—Mas eu—exclamou Christina—aperto-te ao meu coração, filho!



VIII

O Vigario de S. Julião da Serra


Temos de voltar a Pinhel.

D. Sueiro de Aguilar pediu instantemente que se mandasse buscar á Guarda
sua prima Christina. Tergiversou, em quanto pôde, Ruy de Nellas; porém,
quando o fidalgo de Miranda annunciou que iria pessoalmente buscal-a, o
velho, entre lagrimas e gemidos, declarou tudo.

—E não está ainda morto o villão?—perguntou D. Sueiro, concluida a
narrativa.

—Morto, não: nem sei onde está.

—E póde meu tio Ruy de Nellas Gamboa de Barbedo consentir que viva o cão
immundo! Um Gamboa deixar viver o raptor de sua filha!—replicou D.Sueiro.

—Que hei de eu fazer-lhe agora? é marido d’ella!...

—Antes viuva, antes perdida, antes morta!... Que ouvi eu! Christina,
amada por Alexandre de Aguilar, requestada e pedida, acha-se casada
com um sobrinho de carpinteiro! Ó tio! esta vergonha é insanavel!...
Quem dirá que minha bisavó foi casada com o primo carnal d’um avô de v.
ex.ª!?... Sinto, sinto amargamente dizer-lhe que não posso ser cunhado do
sobrinho do carpinteiro!

—Paciencia... murmurou Ruy—Deus me leve depressa. Estou farto das
affrontas dos nobres e dos plebeus. Elle roubou-me a filha, e tu Sueiro,
injurias a minha dôr! Que hei de eu fazer?

—Esmagar o verme!

—Valha-te Deus! não se esmagam assim homens! Os tempos são outros, meu
sobrinho. A plebe agora tem a força, e nós temos o direito.

—E a força! Vá lá um plebeu requestar irmã minha!... Não verá mais sol
nem lua! Juro-lh’o sobre...

D. Sueiro, como não visse á mão sobre que jurar, calou-se, e expediu um
grunhido, como usam os bravos, que parecem tirar a valentia da garganta.
E proseguiu:

—Já estarão casados?

—De certo estão ha tres dias.

—V. ex.ª deu o consentimento?

—Nem dei, nem deixei de dar... Callei-me, farto de ouvir as lastimas d’um
bom moço, que aqui veio...

—E houve sacerdote indigno que os recebesse sem licença legal e
canonicamente escripta?

—O sacerdote é meu afilhado, ordenado á minha custa, nomeado por minha
intervenção na igreja onde se receberam.

—Pasmo!... pois... ó sacrilegio da amisade! o crime inaudito! Padre João,
aquelle sarrafaçal de padre ousou sanctificar e legalisar o opprobio da
familia que lhe deu o pão, a sotaine, e a egreja! Qual vingança ha ahi de
tamanho crime!

Andava D. Sueiro de um lado a outro da sala, sacudindo os braços, em
mental soliloquio. Ruy amparava a cabeça entre as mãos, pozera os
cotovellos no peitoril da janella, e olhava, sem o ver, para um macisso
de murtas do jardim. As apostrophes irrisorias do sobrinho callaram-lhe
no animo, a ponto de o irarem contra o vigario de S. Julião. Monologando
comsigo, dizia:

—D. Sueiro tem razão. O padre, devendo ser o primeiro a embaraçar o
casamento, não só m’o mandou aconselhar como necessario, mas ainda por
cima me pediu e instou licença para casal-os. A ingratidão é flagrante! O
villão bandeou-se com o outro da sua estôfa. São uns pelos outros estes
filhos do nada! Se elle me fosse grato, restituia-me a minha filha, e
affugentava o raptor. Longe d’isso, agasalhou-o, sustentou-o, e recebeu-o
como se eu lh’o recommendasse!... Tem razão D. Sueiro! O padre merece
castigo! Não basta expulsal-o eu para sempre de minha casa: hei de
reduzil-o a viver da esmola da missa, se não poder caçar-lhe o exercicio
das ordens.

E continuou em voz alta:

—Dizes bem, meu sobrinho: o padre é um refalsado ingrato! Ha de ser
punido.

—E o troca tintas?

—Casimiro?

—Sim, o pêrro, o sobrinho do carpinteiro?

—Já disse que é tarde para o mandar castigar.

—Deixe-m’o por minha conta, tio Ruy. V. ex.ª não tem filho que lhe vingue
as cans; mas aqui está o braço indomavel do seu sobrinho.

—Não approvo—disse o velho—Estão casados. Já me não poupo á vergonha de
receber em minha casa a viuva do homem abjecto. É tarde para remedio. O
sangue já não lava a nodoa.

—Nodoa eterna!—acrescentou D. Sueiro de Aguilar.

—Seja o que Deus quizer!—Está visto que regeitas a esposa que pediste,
meu sobrinho. Ficaremos em paz; eu com ella, e tu com a tua dignidade
limpa. Mas olha que és injusto! Minha filha Guiomar está innocente no
delicto de Christina. Faz o que quizeres. Escolhe-a mais rica; mais
fidalga dificilmente a acharás em Portugal.

—Sei que é minha prima!—disse modestissimamente o fidalgo de Miranda,
e ficou alli, por não ter mais que dizer a tal respeito. Uma prima dos
Alarcões Parmas d’Eça não podia ser mais nada em materia genealogica. A
D. Guiomar, porém, entre as qualidades dignas de seu primo, sobrava-lhe a
de ser tôla, com uns longes de idiota.

O ajuntarem-se estes dous era preordenação, não direi do alto para
declinar a influencia divina de sobre as parvoiçadas que se fazem n’este
globo; mas, predestinação, isso era, se alguma ha n’esta cousa de
encontros e desencontros, que os poetas mirificamente explicam.

E tanto assim era que, n’aquelle mesmo dia, D. Sueiro, vindo de passeio
com D. Guiomar affectuosamente disse ao tio que, apezar de tudo, seria
seu genro, com a resalva de em sua casa nunca mais se proferir o nome de
Christina.

Concordes n’isto, afanaram-se logo em aviar os preparativos. D. Sueiro
d’Aguilar foi dispôr suas cousas a Miranda, e Ruy de Nellas enviou ao
Porto o feitor á compra do precioso enxoval.

Natural seria que o velho, contente e distrahido, perdoasse ao vigario
de S. Julião, ou esfriasse no ardor vingativo até esquecer o ingrato, e
desprezal-o fidalgamente.

Assim não foi. A natureza vai tão falsificada que já me quer parecer que
andamos a chamar natureza a tudo que é arte: arte, digo eu, synonimo de
manha, ardil, malicia e obra de satanaz.

Escreveu Ruy de Nellas ao seu procurador na Guarda, accusando o vigario
de S. Julião da Serra. Foi padre João chamado á camara ecclesiastica
para responder sobre o casamento irregular de Casimiro Bettencourt e D.
Christina de Nellas. Ingenuamente relatou o vigario que os casara com a
licença vocal do pai da contrahente. Redarguiram-lhe que era apocrifa a
licença, e d’alli sem averiguações o suspenderam do exercicio parochial.

Padre João, antes de recolher á vigararia para fazer entrega dos livros
á posse do novo pastor, foi a Pinhel, e serenamente bateu ao portão do
fidalgo.

Os creados receberam-o com má sombra, e um foi avisar o amo, e voltou
dizendo:

—O fidalgo não lhe falla. Vá-se o sr. padre em paz, que o amo, se o vê,
vai-lhe ao espinhaço.

—Diga ao sr. Ruy de Nellas que seu afilhado vem pedir-lhe perdão, e
explicar o seu procedimento.

O servo, vencido pela humildade, voltou ao amo, e trouxe esta resposta:

—Que lhe não perdôa, nem quer ouvir explicações.

—Um de vm.ᶜᵉˢ—replicou o manso vencedor do Evangelho—faz-me o favor de
lhe entregar uma carta?

—Entrego eu, disseram quasi todos.

—Volto já.

Sahiu o padre a escrever na primeira tenda que se lhe prestou. Dizia
assim a carta:

    «Meu bom padrinho consentiu verbalmente que eu casasse a sr.ª
    D. Christina com Casimiro?

    «Consentiu.

    «Meu padrinho requereu a suspensão das minhas funcções
    parochiaes, allegando a irregularidade d’aquelle casamento?

    «Requereu.

    «Devia fazel-o?

    «Cito perante Deus a consciencia de meu padrinho.

    «Se procedi mal, peço perdão. Se procedi bem, Deus me ampare.
    De v. ex.ª afilhado, capellão e servo.

                                                           _João._»

Ruy leu a carta com arremesso, e releu-a com brandura. A sua consciencia
estava deante de Deus. O juiz era inexoravel, e o velho supersticioso,
talvez. Tremia, e queria fugir de si proprio. Carregava-lhe no peito a
mão ferrea da justiça divina, e abafava-o. Ruy chamou o creado, e mandou
entrar o padre. O padre, porém, entregára a carta, e sahira caminho de
Villa Cova.

Deixemos o delinquente a resolver-se no inferno que se abriu com a mão
iniqua, e sigamos o homem de animo inteiro, o humilde triumphante.

Chegou a Villa Cova de rosto alegre, e disse:

—Certamente, Ladislau, não te enganaste com as palavras de meu padrinho,
respeito ao casamento da filha?

—Não me enganei; foram estas: _casem_; _mas que eu os não veja mais_.
Porque m’o perguntas?

—Fui suspenso de vigario, a requerimento do sr. Ruy de Nellas.

—Mas estás em paz comtigo e com os teus deveres.

—Estou.

—Então descança na tua casa, meu irmão. Fica ao pé de tua irmã. Villa
Cova, sem padre, está como viuva saudosa e inconsolavel. Os teus
parochianos já te amavam: paga-lhes o amor ficando entre elles. Virá
outro vigario enviado pelo governo; e tu serás o enviado de Deus.
Ambos são necessarios. E tu para mim, e em minha casa, és o cumulo de
felicidade.

—Ficarei e trabalharei—respondeu padre João.

No dia seguinte, chegou á residencia de S. Julião da Serra outro pastor.
D’ahi a curto espaço, estava o adro a transbordar de povo. A noticia
chegou aos campos, e os agricultores ergueram mão da sáfra, e accorreram
ao presbyterio.

Feita a entrega de livros e utensilios da igreja, padre João sahiu ao
adro, e disse:

—«Meus amigos, como no pouco tempo, que vos parochiei, não houve espaço
de mostrar meus vicios, saio de entre vós sem deixar má nota, escandalo,
ou desamor. Como fostes rebanho de um pastor santo, que me antecedeu,
achei-vos doceis, bons e virtuosos. Edifiquei-me entre vós, e aprendi a
crer na influencia de um bom parocho. Creio que a vontade do Altissimo é
que os vossos pastores no futuro não destruam as boas obras dos passados.
Elles semearam; vós sois o fructo, e de vós hão de fructear mais
gerações. E, por isso, é fé minha que o vigario novo terá o espirito dos
antigos. Sêde com elle o que fostes comigo. Ficai com Deus.»

Os ouvintes abraçaram-o em tropel, debulhados em lagrimas; e elle,
ensopando com as suas a manga da batina, encostou-se ao hombro de
Ladislau, e caminhou para Villa Cova.

Á mesma hora, Ruy de Nellas, humilhado pela consciencia na batalha com o
orgulho, escrevia ao procurador, mandando-o que fosse ao paço episcopal e
encarecidamente solicitasse o pôr pedra sobre o processo contra o padre
vigario de S. Julião da Serra, e levantar-se a suspensão. E desculpava a
mudança de seu animo, com ter-se lembrado que déra verbalmente a licença,
e o padre, em virtude d’isso, procedera regularmente. Encarecia em termos
afflictos os seus escrupulos e remorsos, pedindo a maxima brevidade no
levantamento da suspensão, e retirada do novo vigario.

Ora vejam que alavanca de ferro a prostrar um soberbo, foi a humillima
carta de padre João! Estas victorias dá-as o Evangelho; e as bandeiras
triumphaes são estas. Que é vencer Cezar a Pompeu, ou Scipião a
Annibal? Que é Roma armada avassalar o mundo? Que é Napoleão devastando
reinos e homens á frente de milhões de escravos? Dobrar o orgulho de
um homem, quando se lhe pede perdão d’um inventado aggravo, isso sim
é que é vencer. Qual philosopho, antes do divino Christo, ensinou a
citar ao tribunal do juiz supremo a consciencia d’um mau, e fazêl-o ahi
accusar-se, dobrar-se, condemnar-se, e reparar o ruim feito, a affronta,
a injustiça?

Alguns dias passados, padre João Ferreira era restituido á posse da
igreja, visto que ulteriores informações abonaram a regularidade do
matrimonio accusado indevidamente.

O povo da freguezia exorbitou da sua costumada prudencia, saltando
por cima das admonendas do seu vigario. Os mais enthusiastas fizeram
fogueiras como em noute de S. João, e correram a freguezia com esturdias
instrumentaes, e foguetes de lagrimas. Cotizaram-se seis lavradores
abastados para celebrarem o successo, n’um aprazado domingo, mandando
fabricar um balão na Guarda, e comprar na botica os ingredientes
para a ascensão, com grande copia de girandolas e quantas invenções
pyrotechnicas se achassem na Guarda e Vizeu afóra a musica de Pinhel. O
vigario empenhou rogos e authoridade em demovêl-os; porém, como os visse
inquebraveis no intento, chamou elle artificiosamente a si o dinheiro
destinado ás festivas despezas, obrigando-se a fiscalisal-o do melhor
modo.

Chegou o domingo aprasado. Logo de madrugada os lavradores foram á
residencia do vigario a tomar conta dos objectos que deviam ter chegado
no sabbado. Padre João mostrou-lhes uma arca de pinho, e disse:

—O balão, que ha de chegar ao céu, já ali está n’aquella arca.

Os lavradores quizeram vêl-o mas o padre differiu para as onze horas
desencaixotar o balão que havia de chegar ao céu.

—E os foguetes?—perguntaram elles.

—Tambem chegam logo, e hão de ser todos de lagrimas.

—E a musica?

—Vem tambem; e ha de ser musica de anjos.

Os parochianos encararam-se mutuamente e murmuraram:

—Anda aqui marosca!...

No fim da missa do dia, por volta de onze horas, o vigario assomou no
arco da igreja, tirou de entre os colchetes da batina um papel, onde
eram inscriptos os nomes de doze velhos pobres e doentes da freguezia. Á
proporção que os ia chamando, os velhinhos sahiam de entre a multidão e
collocavam-se em frente do vigario.

Chamado o duodecimo, que subiu amparado por dous netos, o padre mandou
conduzir da sachristia para o arco da egreja a arca de pinho, que os
lavradores tinham visto na casa parochial. Abriu elle a caixa, e foi
tirando e repartindo por cada um dos doze pobres uma roupa inteira de
pantalona, colete, e véstia de saragoça. Os velhos recebiam com mãos
tremulas a esmola, e murmuravam palavras de benção, e alimpavam os olhos
turvos de lagrimas para verem o seu remedio do proximo inverno. Finda a
repartição, o vigario, procurando com os olhos os lavradores cotisados
para a funcção, disse-lhes:

—Aqui está, meus amigos, o balão que chega ao céu; ali tendes no rosto
d’aquelles anciãos invalidos e doentes, as lagrimas, que são lagrimas de
graças ao Senhor e de gratidão a vós. Haveis de confessar que as lagrimas
dos foguetes são menos brilhantes e consoladoras. Quanto á musica,
dir-vos-hei, meus bons amigos, que os anjos do céu assistem com suas
musicas a esta vossa festa. Se fiscalizei mal os vossos trinta e seis mil
réis, accuzai-me para eu vol-os repôr.

Disse, e logo um, e todos os lavradores lhe foram beijar a mão; e os
pobres, a não serem retirados brandamente, iriam beijar-lhe os pés.

Ao meio dia em ponto, no sobrado da residencia, estava posta uma mesa
com treze pratos. Na cabeceira sentou-se o vigario, e os doze pobres já
lavados e vestidos, lateralmente. O jantar viera cosinhado de Villa Cova:
o bodo aos pobresinhos fôra devoção de Peregrina.

Ladislau e sua mulher serviram os convivas, um de cada lado, já partindo
em pequeninos bocados a ração de cada pobre, já ministrando-os á bôcca
do mais intrevado que se não servia de suas mãos.

Em redor da meza, de pé, silenciosos, e com que arrobados n’aquelle
espectaculo santo, estavam os principaes lavradores da freguezia. Por
vezes, uma ou outra voz, mal desabafada das lagrimas, murmurava:

—Louvado seja o Senhor!

E, cada lavrador enxugava os olhos.

Concluido o jantar, ergueu-se o sacerdote, e deu graças a Deus, em voz
alta; e, ao sahir da meza, proferiu estas palavras:

—Louvemos o Altissimo porque nos deu coração para sentirmos as alegrias
da caridade. Esta virtude, que commove até aos prantos consoladores é a
sombra dos contentamentos da bemaventurança. Meus amigos, a vossa festa
acabou; mas eu espero em Deus que haveis de vêl-a continuada no céu.



IX

D. Alexandre é espalmado


Decorreram dez mezes sem successo digno de menção, a não ser o nascimento
do primogenito dos bemaventurados de Villa Cova. Recebeu na pia baptismal
o nome de seu avô, sob cuja egide os paes o offereceram. Foi padrinho
o vigario, e madrinha D. Christina, representada pela velha Brazia, a
creada octogenaria, que já não morre sem o contentamento de pôr as mãos
no neto do santo, que ella conhecêra creança. E, com este espiritual
parentesco, pagou Ladislau os setenta annos de companhia da sua serva.

Casimiro Bettancourt cursava o primeiro anno mathematico, e era furriel
de infanteria. Continuava a viver retirado da mocidade, excepto
d’aquelles que o procuravam como auxiliador na interpretação de suas
lições.

Um d’estes disse-lhe, uma vez, que, no curso de leis, andava um rapaz
provinciano, que detrahia publicamente Casimiro Bettancourt.

—Que diz elle de mim?—perguntou Casimiro.

—Miserias...

—Que são miserias?

—Diz que tu és sobrinho de um carpinteiro.

—Isso é verdade: sobrinho de um honrado carpinteiro. Que mais diz? Vamos
ás _miserias_...

—Que roubaste a senhora com quem és casado.

—Tambem é verdade. Fugimos para nos casarmos. Que mais?

—Diz que pagaste assim indignamente os beneficios que devias ao pai
d’ella.

—Não procedi bem; mas todo o homem de coração me ha de absolver. Como não
a amei nem a raptei por ella ser rica, e não vivo nem pretendo viver do
patrimonio d’ella, a minha dignidade é invulneravel.

Isso não diz elle... mas eu ainda te não disse quem elle é...

—Já sei: é D. Alexandre de Aguilar Vito de Alarcão Parma d’Eça.

—É isso.

—Que diz elle em contrario do que eu affirmo?

—Que tu vives do producto das joias, que tua senhora subtrahiu ao pai.

—Mente!—disse serenamente Casimiro, e accrescentou:—Não quero ouvir mais.
Ouviram-lh’o muitas testemunhas?

—No botequim da Rua-larga. Eramos mais de vinte rapazes, e passavas tu
n’essa occasião.

—Se desejas servir-me...

—Se desejo!... Quebro-lhe a cara, se isso te apraz.

—Não, meu amigo. Eu sou um homem como elle. O que eu te peço é que tomes
nota das pessoas que ouviram a calumnia, para mais tarde pedires a
presença d’ellas.

—Facilmente: eu te digo os nomes... Eram...

—Escuso. Basta que tu saibas. São horas de estudarmos a lição.

E abancaram tranquillamente.

Volvidos oito dias, Casimiro Bettancourt disse ao condiscipulo:

—Amanhã é sabbado. Peço-te que reunas ás seis horas da tarde, no botequim
da Rua-larga, os teus amigos, caso aconteça lá ir D. Alexandre de Aguilar.

—Vai sempre: das oito horas em diante está embriagado.

—Com tanto que não o esteja ás seis...

—Isso é raro. Quando o está ás seis, é porque já se tinha embriagado ás
tres.

—Optimo! Espera-me lá.

Este dialogo correu na alamêda fronteira á casa. O academico escondia-se
de sua mulher.

No seguinte dia, disse Casimiro a Christina:

—Depois de jantar, vou ver um condiscipulo doente. É a primeira tarde que
passas sem mim, filha.

—É verdade!...

—Mas não has de soffrer, não? A saudade é uma companhia.

—Dizes-me isso com ar tão triste, Casimiro?

—É a saudade, minha querida!

—Pois não vás.

—Prometti ir; mandei-lhe dizer que ia...

—Deixa-me ver os teus olhos...—exclamou ella aproximando-se de golpe.

—Que tem os meus olhos?!

—Lagrimas! tu choras, Casimiro!

—Não...

—Um segredo! um segredo para a tua Christina!

—Serei eu um fraco!—disse elle como a si proprio, imaginando-se sósinho.

—Fraco por chorar? Se não tens razão, és... mas tu, Casimiro, nunca assim
te vi!... Não sahirás hoje mais... juro-t’o.

—Não jures, filha, que hei de sahir...

—E dizes-m’o assim com esse imperio!?

—É a honra...

—A honra!... Tu não vaes ver um condiscipulo doente.

—Não. Menti-te, Christina. Perdôa-me.

—Pois que é?!—atalhou ella sobresaltada.

Casimiro relatou exactamente o facto descripto, mostrou umas cartas
recem-chegadas de Villa-Cova, e perguntou:

—Devo ir, Christina?

—Vai!—exclamou ella—Vai, já que eu sou mulher!

E momentos depois, porque era mulher, abraçou-se n’elle, e soluçou:

—Ó Casimiro!...

—Quê, filha?

—Sê prudente, sim?

—Recommendas-m’o a mim?! Não viste que eu soffri oito dias, em silencio,
a affronta!?

E desprendeu-se dos braços d’ella.

Entrou no botiquim da Rua-larga com tão pacato semblante, como se ali não
fosse para mais que aligeirar as horas felizes da mocidade.

Os que o conheciam encararam em D. Alexandre de Aguilar.

O fidalgo de Miranda não conhecia Casimiro. Viu aquelle sugeito fardado
de infanteria 6, e disse:

—Isto é já botiquim de soldados?

—É um academico: o primeiro premiado de mathematica.

—É aquelle—ajuntou outro—de quem tu contaste as proezas casamenteiras.

—Ah! o sobrinho do mestre Antonio! lá me quiz parecer que devia ser
furriel.

Isto fôra dito, muito á puridade, aos circumstantes, que não se riram.

O amigo de Casimiro aproximou-se da meza e disse-lhe:

—Estão todos.

—D. Alexandre como visse esta aproximação, ponderou:

—Elles conhecem-se?!... Quem é este academico, que lhe falla? este que
chamam Vilhena?

—É filho segundo de uma casa distincta de Braga.

—Cuidei que fosse filho primeiro de algum chapeleiro de Braga...

Casimiro pagou a chavena de café, ergueu-se e foi a passo mezurado á
banca de D. Alexandre.

O fidalgo encarou n’elle, e logo nos circumstantes, como quem diz: «que
quer o tolo?!»

E os academicos que, formavam cerco á meza, abriam fileiras ao lado,
arrastando os bancos.

Bettancourt fez um gesto cortez aos rapazes, e disse:

—O senhor D. Alexandre de Aguilar conhece-me?

—Se o conheço...

Casimiro fez um gesto de cabeça affirmativo.

Conheço-o de o ver agora ahi, e dizerem-me quem o sr. é.

—Que sabe o sr. da minha vida?—tornou Casimiro.

—Que sei da sua vida?!

—Dispensemos o ecco, sr. D. Alexandre. Quem pergunta sou eu. Que sabe da
minha vida?

—E se eu lhe disser que não lhe dou satisfações? Agora sou eu quem
pergunta.

—Respondo-lhe que o sr. é um infame, e depois arranco-lhe a lingua.

O fidalgo Alarcão Parma d’Eça ia a dizer o quer que era, e engasgou-se.

Casimiro Bettancourt continuou no mesmo tom de serena conversação:

—Disse v. ex.ª que eu era sobrinho de um carpinteiro. Disse verdade.
Que eu raptara uma senhora, cujo marido sou. É certo. Ajuntou que eu
estava vivendo das joias, que minha mulher roubára a seu pai. Mentiu.
Vejo que esta palavra não inquieta grandemente o sangue azul de v. ex.ª
Ainda assim, quero imaginar que o sr. D. Alexandre me pede provas da sua
aleivosia.

Tirou Casimiro do bolço interno da fardêta duas cartas. Abriu a primeira,
lançou-a sobre a meza, e disse:

—Conhece essa lettra?

—Conheço—respondeu D. Alexandre—é de meu tio Ruy de Nellas Gamboa de
Barbedo.

—Pai de minha mulher—ajuntou Casimiro, voltando-se aos academicos
circumpostos; e fallando para elles, continuou:

—Como eu soubesse que o sr. D. Alexandre me alcunhava de receptador dos
furtos de minha mulher, escrevi a um homem de bem, pedindo-lhe que se
apresentasse ao sr. Ruy de Nellas, meu sogro, perguntando-lhe se sua
filha, no acto da fuga, subtrahira de casa algum objecto de valor, e
o declarasse por escripto. Esta segunda carta é a resposta da pessoa
encarregada; e diz:

«O correio só dá tempo a dizer-lhe que o sr. Ruy de Nellas, apenas me
ouviu, e escreveu a declaração que contheuda remetto, e mostrou-se
espantado de que a calumnia propale o que elle nunca disse; e de o não
ter dito m’o jurou pela alma de sua mulher, e honra de suas filhas. Sem
mais. Seu amigo, _P. João Ferreira_.»

—Leia-a agora o sr. D. Alexandre a declaração de seu tio.

—Leia-a o senhor!—bradou com grande esforço de falsa coragem o
calumniador esmagado.

—Leia-a!—tornou Casimiro com um lançar de olhos fulminante.

O fidalgo tomou o papel nas mãos convulsas, e deixou-o logo cahir.

—A covardia cega-o!—disse Casimiro sorrindo—Algum dos cavalheiros tem a
bondade de ler?

O mais chegado de D. Alexandre leu o seguinte:

    «Ruy de Nellas Gamboa de Barbedo, de Pinhel, declaro que minha
    filha Christina Elisiaria, não subtrahiu de minha casa valor
    algum, nem os seus proprios vestidos e adresses, quando fugiu
    para casar-se com Casimiro Bettancourt. E por isto ser verdade,
    mui espontaneamente, e com juramento aos santos Evangelhos o
    declaro agora e sempre. Pinhel, 22 de abril de 1839.—_Ruy de
    Nellas_, etc.»

—Está reconhecida a assignatura?—disse Casimiro.

—Está—respondeu o estudante, que lera—E quando não estivesse já o
sobrinho a tinha reconhecido.

—Isso não valia nada—tornou o furriel.—Nenhum dos cavalheiros prestaria
fé ao reconhecimento do sr. D. Alexandre de Aguilar. Declare, pois, o sr.
D. Alexandre que mentiu infamissimamente e offereça a cara para que todos
lhe cuspam n’ella.

O fidalgo ergueu-se, e bramiu:

—O senhor!...

—Que mais?—perguntou Casimiro.

—Insulta-me?

—Não. Obrigo-o a sentar-se, que me incommoda vel-o de pé.

E, dizendo, baixou-lhe no alto da cabeça uma palmada, que effectivamente
o fez apoiar-se sobre as ilhargas.

E, voltando-se com rosto faceto aos academicos disse:

—O espectaculo foi feio, que o miseravel não dá sequer um soffrivel truão
com medo. Agradeço a attenção dos cavalheiros, mórmente com o sobrinho de
um carpinteiro, que, por não ser nobre tem vontade de ser honrado.

Sahiu do botiquim acompanhado de quasi todos os estudantes. Os poucos,
que ficaram como petrificados, por não saberem que dizer a D. Alexandre
de Aguilar Vito de Alarcão Parma d’Eça, retiraram-se cabisbaixos.

Casimiro estugou o passo, caminho de Santo Antonio dos Olivaes, e
encontrou a esposa anciada, fóra de casa.

Contou-lhe, sem fatuidade, o essencial do acontecido, e reservou o facto
da monumental palmada na cabeça. O delicado moço julgou melindrar sua
mulher, dizendo-lhe que castigára com a mão um seu parente.

Foi o successo estrondosamente contado e applaudido em Coimbra, tanto
porque era de razão applaudil-o como por ser no tempo em que a mocidade
academica, popular e burgueza na maxima parte, desadorava os fidalgos
castellãos, e não perdia lanço de os metter a riso.

D. Alexandre, no dia seguinte, foi para Miranda, em busca de romanso e
solidão para pensar na vingança de covarde, que não podia já ser de outra
natureza.

Vamos no rasto d’este reptil.

O extraordinario da chegada do estudante, quando as aulas estavam abertas
e os actos não começados, devia ser de algum modo explicado a D. Sueiro
e á parentella alvorotada. Contou elle que tinha tosse; e o caso foi que
tossiu. O medico da casa apalpou-o, auscultou-o, e decidiu-se pela tosse,
em concordancia com a faculdade medica de Coimbra, que mandára a ares
patrios o mancebo, ameaçado de coisa séria. Em verdade, a pertinacia da
embriaguez reduzira D. Alexandre a um viver morbido, asthenico, e analogo
ao do ethico; e já não admira que a palmada capital do sadio Casimiro o
fizesse sentar.

Suppunha D. Sueiro que o casamento de Christina era muita parte na
doença do irmão, e curava de remediar o mal de amor com os amores novos
da cunhada que tinha em casa, galante menina, Mafalda de nome. Era a
vigessima nona Mafalda n’aquella familia de Pinhel. Entrando n’este
numero a santa infanta Mafalda, fundadora do mosteiro de Arouca, irmã
de D. Affonso II, que tambem era da familia, pelos modos, e sem duvida
nenhuma.

Se a menina o amava não sei, nem averiguei, por ser demais na pauta
d’este escripto; o que me consta é que D. Alexandre, tão adentrado
estava com os seus calculos de vingança, que não dava pela prima, nem se
lisongeava do seu amor.

A unica pessoa de Miranda, com quem se abria o fidalgo, era um desertor
de cavallaria, muito dos Alarcões, especie de molosso da casa, sob cujas
telhas estava a seguro.

As intelligencias de D. Alexandre com o desertor são obvias; curava de
comprar-lhe o braço vingador; mas, tão em segredo, que nunca viesse á luz
a sua segunda ignominia.

Conchavaram-se de barato. D. Alexandre daria ao desertor basta quantia
a transportal-o ao Brasil, e o desertor, em mesquinha paga de tamanho
beneficio, mataria Casimiro Bettencourt.

N’este accordo, pediu D. Alexandre ao morgado que lhe deixasse levar
como creado o desertor, visto que a plebe academica se bandeara contra
os estudantes fidalgos e devotos da causa vencida. Annuiu promptamente
o irmão, contente de vêr que D. Alexandre recobrava côres, e olvidara
Christina.

Abertas as aulas voltou o moço á Universidade, com o seu vingador, por
tal arte disfarçado, que dava de si um rustico cavallariço, incapaz de
fazer mal a folego vivo.

Os amigos dos annos anteriores fugiam-lhe, e novos nenhum lhe apertava a
mão. O opprobio do fidalgo era ainda materia de ociosos, revivido com a
sua presença.

Preoccupava-o a traça de fazer conhecido Casimiro ao seu matador: cousa
não facil na multidão de mil e tantos moços, entre os quaes raro se via o
solitario de Santo Antonio dos Olivaes.

O solicito confidente de D. Alexandre tomou sobre si o encargo de
conhecer Casimiro, e esperava tiral-o pelas feições que lhe vira em
Pinhel, quando elle era mocinho de quinze annos.

N’este intento, foi como de passeio a Santo Antonio dos Olivaes; e, logo
por fortuna, ao dobrar o combro de uma azinhaga, viu um sujeito de farda
militar com uma senhora pelo braço.

—Cá está o homem!—disse entre si, e deteve-se a examinal-o, sem attentar
em Christina, que o examinava a elle. Casimiro, por sua parte, nem deu
tento do reparo do caminheiro.

Ora, Christina tinha visto aquelle homem em Pinhel, recebêra da mão
d’elle uma carta de D. Alexandre, e lembrava-se de ter ouvido dizer ao
primo D. Sueiro que aquelle soldado de dragões era o seu guarda fiel, e
com elle iria ao inferno atacar Satanaz.

O desertor, porém, olvidou-se-lhe Christina, e nem por sombra imaginou
ser reconhecido.

A senhora estremeceu... e duvidou. Já elle se havia sumido, quando ella
disse:

—Acautella-te, meu filho!

—De quê?

—Vi agora um creado dos de Miranda... Não póde deixar de ser elle... Veio
com o Alexandre, e anda a espreitar-te.

—Que tem isso, Christina?

—Tem, que elle é um malvado... Ai meu Deus! d’aqui em diante não tenho
momento de socego! Queres que nos vamos embora d’este ermo? Aluga casa na
cidade. Pódes ser assaltado no caminho. Tu és valente, meu Casimiro; mas
d’uma traição ninguem se livra!

—Os prevenidos livram-se—atalhou Casimiro.—Não vejo causa para mêdo; mas,
se has de viver inquieta, mudemos, filha.

—Sim: faz-me isso, que é annos de vida que me poupas!

Andava Casimiro em procura de casa, quando recebeu a seguinte carta de
Ladislau:

    «Meu compadre. Vai ser surprehendido com a minha petição, á
    qual subscrevem minha mulher e meu cunhado. Logo que esta
    receber, metta-se a caminho com a sua senhora, e venham
    direitos á sua casa de Villa Cova. Iremos os tres esperal-os
    a meio caminho. Perder um anno da Universidade não faz
    implicancia á sua futura sorte, se ella tem de ser boa.
    Esperamol-os; porque não posso acreditar que meus compadres
    faltem ao seu _Ladislau_.»

Casimiro leu, e disse:

—Vamos, e vamos hoje.



X

A victoria d’uma creancinha


D. Mafalda de Nellas, voltando de Miranda a Pinhel, trazia a
escalavrar-lhe o coração o espinho do despeito. Isto não induz a
liquidarmos que a menina amasse o primo D. Alexandre. O despeito das
senhoras basta a explical-o a indifferença mesma dos homens que ellas
desamam.

Como quer que fosse, Mafalda saira de Miranda, odiando o cunhado de sua
irmã, no dia seguinte ao da ida d’elle para Coimbra.

Eis aqui o que ella contou ao pai, logo que chegou:

—Estava eu n’uma das grutas da quinta, quando o primo Alexandre,
sentando-se, sem me vêr, nas costas da gruta, deu um grande assobio.
Fez-me curiosidade aquillo, e estive quieta para vêr o que sortia d’ali.
Pouco depois, chegou um homem de grandes barbas, que eu já tenho visto em
nossa casa, em companhia do mano Sueiro.

—Bem sei, o desertor—atalhou o pai.

—É isso: eu já tinha ouvido lá dizer á mana, que elle era desertor.

—E depois?

—Depois o primo, assim que elle chegou, disse-lhe:—Olha que vaes commigo
para Coimbra. Está decidido—e o desertor respondeu: «Pois isso é que é
preciso!»—Mas vê se aparas essas barbas, que tens cara de facinora—disse
o primo—eu tenho medo que, em apparecendo morto o Casimiro, todos digam
que foi obra do meu creado.—Eu quando tal ouvi comecei a tremer, e tive
medo d’aquelle homem! Quiz dizel-o á mana Guiomar; mas ella falla tão
mal do Casimiro e da mana Christina, que julguei imprudente dizer o que
ouvira.

—E depois?—atalhou o velho com inquietação.

—Depois, estiveram a fallar em facadas e tiros. E o desertor dizia: «são
dous palmos de ferro, fidalgo.» E tirou da algibeira uma navalha, que
relusia, e tamanha, meu pai, como eu nunca vi! Ainda disseram mais coisas
que não me lembram, e foi cada um para seu lado. Ó papá, elles irão matar
o marido da mana Christina? Coitado!... por que é que o matam?

—Dá me papel e tinteiro, e um creado que apparelhe o macho para ir
immediatamente a um recado.

Ruy de Nellas escreveu esta carta.

    «Sr. Ladislau. Sei que alguem intenta matar em Coimbra o marido
    de Christina. Ha tres dias que para ali partiu o assassino ou
    assassinos. Avise-o como seu amigo, para que se acautelle, ou
    se retire. Eu aborreço os infames, e as vinganças covardes:
    por isso me apresso a participar-lhe este plano, que oxalá não
    esteja executado, quando chegar a sua carta. Espero em Deus que
    não. Do seu amigo, _Ruy de Nellas_.»

O creado partiu a toda a brida.

Ladislau leu a carta em suores frios. Escreveu duas linhas de
agradecimento a Ruy, e preparou-se para ir a Coimbra. Acaso entrára o
vigario, e, lendo a carta, impediu de ir, allegando que o correio chegava
primeiro.

Padre João e seu cunhado, sabiam os successos de Coimbra, e, sem se
consultarem, nomearam D. Alexandre.

—Casimiro está vivo—disse com firmeza o padre.

—Quem n’ol-o assevera?!—perguntaram Peregrina e Ladislau.

—É o raciocinio. Alexandre é incapaz de matar de rosto ou á traição.
Precisamente leva um sicario assalariado que eu conheço ha dez annos. Os
faccinoras por estipendio são muito covardes, porque amam tanto a vida
que, para sustental-a se expõem a perdel-a. Se D. Alexandre offendido
vergonhosamente carece de animo para se desaffrontar, devemos crêr que
ao carnifice alugado falte a coragem para accommetter o homem que o
não offendeu. Além de que eu vou jurar que Casimiro se prepara contra
as insidias do seu inimigo, e terá só de pelejar com um homem. Sobre
todas essas conjecturas, roguemos a Deus pela vida do nosso amigo, e
escreve-lhe a chamal-o em termos, que não assustem Christina.

Escreveu Ladislau a carta copiada no anterior capitulo; e, no dia
seguinte, sahiram de Villa Cova, e, á segunda jornada, pernoitaram em
Gouvea. Dous dias depois chegaram Casimiro e Christina.

A esposa de Ladislau, para abraçar sua comadre, pousou sobre o leito a
creancinha que lhe adormecêra ao seio.

Christina, porém, como se não visse o fervor da amiga, ajoelhou á beira
do leito, e beijou soffregamente o menino, que sorria aos affagos de
algum anjo. Era bello de verem-se todos cinco, em redor da creança, como
se para outro fim se não reunissem! Parece que ella lhes estava dizendo:
«Distrahi vosso espirito de dores, que eu estou pedindo a Deus que vos
defenda.»

Peregrina pôde furtar as caricias de Christina, tomando-a para si com
força.

—Estava a invejar-te, minha comadre!—disse a esposa de Casimiro—mas olha,
não devo invejar-te, não!...

E disse-lhe ao ouvido breves palavras, explicadas pela exclamação de
Peregrina:

—Sim? e não m’o tinha dito!... que ditosas seremos com os nossos
filhinhos!

O vigario sorriu-se, e murmurou:

—Não ha creanças mais creanças que as mães! Estas alegrias raras vezes
lh’as recomeçam depois os filhos!...

Casimiro concentrou-se tristemente, e Christina disse:

—Não fallem em mãe diante de meu marido, por quem são!

—Fallem, fallem—disse Casimiro—que eu tenho de encontral-a no ceu pelo
muito que a desejei n’este mundo.

E, tomando o braço de Ladislau, chegou a uma janella, e perguntou:

—Que é isto? Que significa esta chamada?

—Não m’o pergunte diante de sua senhora.

—Porque não? ella é forte. Se um dia me fraquearem os esteios da honra,
minha mulher ha de fortalecer-m’os. Diga, meu compadre.

Ladislau mostrou a carta de Ruy de Nellas; e Christina, ouvindo-a ler,
exclamou:

—Não te disse eu?... Era o desertor ou não?

—Era o desertor—respondeu o vigario.

—Pois sabia?—acudiu Christina.

—Disse-m’o a razão e a pratica dos _valorosos barões_ de Miranda. V. ex.ª
viu-o?

—Vi: mostrou-m’o o nosso anjo da guarda!... E meu pai é que te avisa,
Casimiro! Quem me déra poder beijar-lhe a mão!

—Seu pai é um homem de bem ás direitas, minha senhora—disse o
vigario—Seria um modêlo de virtuosos, se os preconceitos de raça o não
molestassem. Porque não ha de v. ex.ª ainda beijar-lhe a mão? Esperemos.

—E agora?—disse Casimiro—que querem de mim? Será airoso que eu me vá
esconder a Villa Cova das iras de D. Alexandre?

—É dever de marido e pai fugir o perigo—disse Ladislau—Sabemos que lhe
sobra animo; porém agora, quer-se e requer-se que o coração seja maior
que o animo. Sua senhora manda; o vigario aconselha; e minha mulher e eu
rogamos. Falta-lhe paciencia para viver alguns mezes na tristonha casa da
serra? É assim ingrato áquella terra agreste onde desabrocharam todas as
flores da sua felicidade, meu compadre?!

—Ó meu amigo, meu generoso irmão!—exclamou Casimiro, nos braços de
Ladislau—Vamos, vamos para Villa-Cova. Lá sei eu que tenho segura a vida,
a alegria, e sempre viçosas as flores de felicidade, que se abriram no
seu nobre coração, e para mim! Não é covardia fugir. Covardes são os que
não tem uma esposa, e fogem; covardes são os que não tem amigos como
vós, e fogem!

—E no filhinho não fallas?—disse Christina sorrindo-lhe com incantadora
meiguice.

—Não o disse eu!—acudiu o vigario—Agora, quer s. ex.ª que todo o coração
de seu marido esteja embebido do futuro filhinho! Valha-vos Deus, mães
loucas do amor de vossos filhos, que sois capazes de ceder do coração dos
maridos em beneficio dos pequerruchos, anjos purissimos a quem basta o
bafejo do Senhor!

N’estas doces praticas, que eu, a mêdo, submetti á benevolencia do
leitor, se passaram as horas do descanço, até ao repontar da alva, em que
proseguiram sua jornada. Lá vão os felizes, escoltados por suas mesmas
virtudes.

Entretanto, recebeu D. Alexandre de Aguilar a nova de ter sahido de
Coimbra Casimiro Bettancourt, e o mesmo foi assoalhar, mediante alguns
necessitados de sua recheada bolça, que o furriel se evadira, sabendo
que ia ser desafiado a duello de morte. Correu o boato, justificado por
circumstancias: a precipitação da sahida, o estarem abertas as aulas,
o ignorar-se o intento da retirada, o ter dito Casimiro, na vespera,
que procurava casa em Coimbra, tudo induzia a crer a atoarda molesta á
reputada intrepidez do militar.

A _Vedeta da Liberdade_, jornal portuense, publicou uma correspondencia
de Coimbra, em que se dizia em grypho: _que um estudante militar,
appellidado Bettancourt, fugira com a mulher para se não bater com
D. Alexandre de Aguilar, academico brioso, a quem, no anno anterior,
insultára_. E accrescentava: _O tal militar é avezado a fugas: uma vez
fugiu com a filha d’um nobilissimo cavalheiro, onde seu tio carpinteirava
agora; fugiu com as costellas incolumes, porque o tio carpinteiro não
sabe endireitar costellas quebradas._

O jornal appareceu em Villa Cova subscriptado, a Casimiro de Bettancourt.

Casimiro leu a correspondencia em voz alta.

E Ladislau perguntou:

—Que é isso?

—É uma gazeta—disse o vigario.

—Uma gazeta?—reperguntou Ladislau.

—Sim.

—Mas... (desculpem a minha ignorancia...) como se faz isso?

—Isso que, meu irmão?

—Como se estampam esses insultos?

—Estampam-se.

—Então...—estou confuso, e vejo que me não percebem...—as gazetas servem
de insultar? quem quer infamar alguem vai a casa do homem, que tem esse
modo de vida, e diz-lhe: «imprima lá esse insulto», é isto?

—É isso—illucidou o padre—com o accrescento de que o dono do jornal
recebe tanto por linha do insulto publicado.

Ladislau ergueu-se com nunca visto impeto de furia, e exclamou:

—Então isso é infame! e a civilisação que isso consente é a barbaria, é o
escarneo de Deus e das leis de nosso paiz!

Casimiro sorriu, e disse:

—A indignação de meu compadre tem graça!... A que distancia este bom
rapaz vive do mundo culto! Quer elle, talvez, que a civilisação esteja
em Villa Cova, e a barbaria em casa do jornalista!... A gazeta, meu
querido amigo, tem outra face, que o sr. vigario lhe não mostrou, e é
que, se eu quizer insultar d’aqui D. Alexandre de Aguilar, o mesmo dono
da gazeta me vende o espaço de seu papel, e imprime o meu insulto; e,
no dia seguinte, vende o mesmo espaço para o louvor de D. Alexandre e
meu. O dono d’este papel é como a estatua em que Aretino fixava as suas
vaias aos reis e aos papas, n’um tempo em que papas e reis eram cousas
sacratissimas e inviolaveis. Agora, que não ha nada defêso, com que
direito me hei de eu queixar? Não me alistei eu no exercito que defende
as instituições livres?! Seria paradoxo gritar eu contra uma alavanca
do progresso, chamada nem mais nem menos que «Vedeta da liberdade»! Os
homens livres passam deante da estatua de Pasquino, e descobrem-se. Assim
como a discussão racional e illustrada aclara as escuridades e aplana os
empeços da ideia util, por igual razão as injurias á pessoa, os ataques á
moral de cada individuo servem de o abrir, á luz da analyse, e ver tudo o
que elle lá tem dentro do coração e consciencia. A licença da imprensa é
uma inquisição: em lugar de fogueiras tem atoleiros de lama. Das chammas
do auto-de-fé sahiram almas purificadas, no crer de alguns theologos; e
da alma da imprensa desbragada devem sahir as consciencias lavadas, no
entender de alguns legisladores. Sejamos do nosso tempo, meu compadre.

—Pois, sim—disse Ladislau—mas deixe-me render louvores a Deus por me ter
dado o nascimento n’estas serras! Eu não cuidei que era assim o mundo.
N’este ultimo anno quantas paixões más que eu não conhecia! Meu mestre
decerto as ignorava; senão, ter-m’as-ia dito. Os meus livros tambem m’as
não disseram...

—É por que os seus livros são bons—atalhou Casimiro Bettancourt—A
corrompida sociedade da Roma imperial não tinha gazetas; mas tinha
historiadores e poetas. Se meu compadre os ler, imagina que maus
inventores o querem deleitar com fabulas hediondas. O homem foi sempre
mau; será mau até ao fim. A sociedade parece melhor do que foi, olhada
collectivamente: é parte n’isto a lei, e grande parte o calculo.
Cada individuo se constrange e infrea no pacto social para auferir
as vantagens de o não romper: porém, o instincto de cada homem, em
communidade de homem, está de continuo repuchando para a desorganisação.
Eu acceito, como puros os corações formados na solidão, a não se dar a
segunda hypothese do proverbio, que disse: homem sósinho, das duas uma:
ou Deus ou bruto[4]. Melhor seria dizer, com Santo Agostinho, ou anjo
ou demonio. Ladislau formou-se aqui, rescende virtudes extraordinarias;
mas, se fôr ás cidades, á feira dos vicios, sentirá coar-lhe um veneno
corrosivo nas entranhas; e, a meia volta, perderá de vista a benigna
estrella d’estas suas montanhas. Ó meu amigo, não se alongue do seu
paraizo! não queira saber que nome tem, a dez leguas da sua aldeia, o que
meu compadre chama dever, civilisação, amor, caridade e Deus.

Os gosos da vida domestica aligeiravam os mezes da inactividade de
Casimiro. Ao quinto de residencia em Villa Cova, realisou-se a ventura
saudada por Peregrina na estalagem de Gouvea: Christina foi mãi de uma
menina, que trouxe do céu o seu quinhão de felicidade, do qual todos
participaram.

Queria o pai que Ladislau e Peregrina fossem padrinhos; mas o vigario,
consoante as velhas praxes de filhos casados contra vontade paternal,
pediu que fosse convidado o avô, por carta de D. Christina.

Escreveu ella com humildade sem baixeza uma carta, onde se lia este
periodo:

    «É uma ternura filial que me anima a escrever a meu pai: não
    é a necessidade que me obriga. Se sou pobre, ainda não tive
    occasião de sentir desejos de ser rica. O perdão de meu pai é
    que eu desejo e peço, se foi delicto o acto que está sendo a
    minha felicidade. Quizera um dia beijar as mãos de meu pai e
    dizer-lhe que tenho tanta vaidade em ser filha de v. ex.ª como
    esposa de Casimiro.»

Foi lida a carta e discutida. O vigario achou duras algumas palavras
d’aquelle relanço, e pediu a illisão das palavras: «_se foi delicto o
acto que está sendo a minha felicidade_»; bem como: «_tenho tanta vaidade
em ser filha de v. ex.ª como esposa de Casimiro_.» As primeiras palavras
foram substituidas: as ultimas não. Christina nem ao marido obedeceu.

Ruy de Nellas recebeu a carta, e leu-a sem rancor até ás expressões
rebeldes á censura do vigario; mas, n’este ponto, rasgou o papel e disse
ao portador:

—A resposta é esta: diz lá que eu é que não tenho vaidade nenhuma em ser
padrinho de um filho do sr. Casimiro.

Tal resposta magoou medianamente a familia de Villa-Cova.

—É soberbo!—disse Ladislau.

—Preconceitos de raça—acrescentou o vigario.

—Não tem outra falha a excellente alma do sr. Ruy.

—Pois ha de ser padrinho da neta!—tornou Ladislau.

—Que capricho é esse, meu compadre?—perguntou Casimiro.

—Não é capricho: é batalha dada contra a soberba: havemos de amolgal-a
com a brandura.

Na segunda dominga, posterior ao nascimento da menina, sahiu, ante-manhã,
de Villa Cova Ladislau, uma ama de leite, e a creancinha. Chegaram
a Pinhel ás nove horas, e elle entrou á igreja parochial, onde, por
informações de mestre Antonio carpinteiro, Ladislau soubera que o fidalgo
ia ouvir missa. A ama sentou-se no adro, e esperou, rodeada de meninos,
que se acotovellavam para ver o rosado rosto da baptisanda.

Ladislau apresentou-se ao abbade, com uma carta do padre João Ferreira, e
conversaram.

Ás dez horas tangeu a sineta á missa, e chegou o fidalgo com suas filhas,
e foram ajoelhar na alcatifa da sua capella privativa. Antes do terceiro
toque, o abbade aproximou-se de Ruy de Nellas, e disse-lhe:

—Faz v. ex.ª a esmola de fazer christã uma creancinha?

—Sim, abbade, pois não!

—E de escolher a madrinha?

—Será minha filha Mafalda.

Chamou elle a menina, e acercaram-se do baptisterio.

A ama entrou com a creança, chamada pelo sachristão.

A um lado, estava Ladislau com uma tocha, escondendo-se ao lance d’olhos
de Ruy de Nellas.

Ao descobrimento da menina, Mafalda exclamou:

—Ai! tão linda que é!... Veja, papá! Ó manas, venham ver que perfeição!...

—Quem são os pais?—disse o fidalgo.

O abbade, como tivesse começado as ceremonias do sacramento, não
respondeu; e, pouco depois, perguntou:

—Qual é o nome?

—É o meu—disse Mafalda.

Findo o acto, foram á sachristia lavrar no livro o assento baptismal.

O abbade escreveu á vista dos apontamentos, e leu depois para
conhecimento dos padrinhos:

«Mafalda, natural de Villa-Cova, termo de Pinhel, filha legitima de
Casimiro Bettancourt, natural de Santarem, e da ill.ᵐᵃ e ex.ᵐᵃ sr.ª D.
Christina Elisiaria de Nellas Gamboa de Barbedo»...

—Como?!—exclamou o fidalgo—Como se intende isto? Que abuso foi este, sr.
abbade?!

Ladislau sahiu do escuro da sachristia, e disse:

—O abuso é meu, sr. Ruy de Nellas. E v. ex.ª não me castiga, porque eu
vou pôr em seus braços a creancinha a implorar o meu perdão e o de sua
mãi.

E tomou a menina dos braços da ama, e depositou-a nos da madrinha,
dizendo-lhe:

—Seja v. ex.ª a intercessora de sua irmã!

—Dê-lhe um beijo, papá! rogou maviosamente D. Mafalda.

O velho poz a mão na face da creança, e disse:

—Não tens culpa tu, pobre innocente!...

E o abbade continuou a leitura do assento baptismal, sorrindo, e olhando
por cima dos oculos, para ver Ruy de Nellas, que deixava chupar-lhe a
creança no dedo mendinho.

Ao sahirem da sachristia, o fidalgo disse á ama da creança.

—Vá lá a casa, depois da missa, mulher, e o sr. tambem se quizer.

Ladislau fez um signal de agradecimento.

Finda a missa, a menina foi levada a casa do avô. As quatro tias deram
inquietações á ama, temerosa de que lhe abafassem a creança com beijos.

Entretanto, Ladislau contava a Ruy de Nellas os successos de Coimbra e os
aleives da correspondencia da «Vedeta da Liberdade».

O velho ouviu-o em silencio; mas com ar de satisfação, em quanto aos
brios de seu genro no justo castigo de Alexandre; porém, quando soube
que as gazetas traziam o seu nome aparelhado com o do carpinteiro,
irritou-se, e clamou:

—Quando pensei eu de andar pelas gazetas!... É o que minha filha me
arranjou!...

Este accesso durou alguns segundos.

Continuaram a conversar serenamente. Eram horas de partir para
Villa-Cova. O fidalgo mandou entrar a afilhada, e deu-lhe um beijo, e
duas peças á ama.

E—caso unico!—apertou a mão do lavrador de Villa-Cova, e disse-lhe por
ultimo:

—O tempo fará o resto. É cedo por ora! A ferida sangra ainda!

—O balsamo do Evangelho, sr. Ruy de Nellas...—respondeu Ladislau,
sahindo.



XI

Guilherme Lira


Seria ocioso, bem que alegre trabalho, contar os jubilos de Christina,
retomando ao seio a filha, que seu pai e irmãs tinham beijado. Casimiro,
homem não estranho a vanglorias, que parecem ser condição das indoles
arremessadas ás glorias uteis, folgava de ver sua filha acariciada
pelo fidalgo, cuja prosapia, o moço, nas verduras dos dezoito annos,
sinceramente invejava. Ó barro humano!

Disse Ladislau que Ruy approvára a sahida de Coimbra, e esperava que o
anno decorrido esfriasse a vingança de D. Alexandre, estando elle de mais
a mais como vingado, fazendo crer que lhe fugia Casimiro. Era tambem
este o parecer do vigario e de Ladislau. Casimiro, ainda assim, dizia
contrariando:

—Não, meus amigos: o odio dos fracos é inextinguivel; é a unica força, a
energia tenebrosa, que lhes deu a natureza.

No seguinte anno lectivo, voltou a Coimbra, com maior familia, o pobre
grangeador do futuro. Doia-lhe ter de augmentar suas despezas, sahidas
todas dos celleiros de Villa-Cova. Era grande magoa para o aberto coração
de Ladislau entender em pacificar o espirito do seu amigo, fazendo-lhe
sentir que escassamente lhe emprestava uma parte das sobras de suas
colheitas. E santamente mentia Ladislau! A sua lavoura, comquanto grande,
era toda de cereaes, vendidos por baixo preço, e urgentes ao consummo e
vestir de sua familia. O que elle estava dispendendo era dinheiro antigo,
que encontrára, ouro do seculo XVI, peculio amuado ao canto do armario de
pau santo, em que seus tios padres iam annumerando algumas moedas, muitas
menos que as derramadas pela pobreza.

Lembrava-se Christina de escrever ao pai, a pedir-lhe sua legitima
materna. Casimiro, antes que ella expendesse o seu pensamento, atalhou-a
n’estes termos:

—Sendo preciso, iria primeiro pedir a meu tio carpinteiro metade do seu
estipendio de cada dia.

Peregrina, sabedora do intento, revelara-o ao marido.

Ladislau, a sós com a filha de Ruy de Nellas, queixou-se, observando-lhe
que era crueldade obrigal-o a faltar á sua palavra, tendo elle dito a Ruy
de Nellas que sua filha e marido nunca lhe pediriam meios de vida.

Os raros amigos de Bettancourt, assim que o viram em Coimbra,
repetiram-lhe as calumnias divulgadas, fingindo não acredital-as. O mais
sincero e rude ousou dizer-lhe:

—Déste um mau passo em fugir.

—Não fugi. O amigo, a quem devo a minha subsistencia em Coimbra,
chamou-me, e eu fui.

—Não devias ir, tendo sido desafiado por D. Alexandre.

—Nunca fui desafiado.

—Como não foste!?

—Nunca fui desafiado; e, no caso de o ter sido, regeitaria a proposta.
Não jogo friamente a vida, que é de minha mulher e de minha filha, contra
a vida de D. Alexandre, que é um homem abjecto, nem contra a vida do
mais extremado em probidade. Nunca para mim alguem provará a sua honra,
batendo-se com victoria, nem o vencido terei em conta de deshonrado. O
duello póde significar algumas vezes coragem, mas sentença absolutoria de
um infame, nunca.

—Mas decididamente não fugiste ao duello?

—Offende-me a renitencia—respondeu Bettancourt molestado.

—Desculpa, que é a renitencia de um amigo zeloso de tua dignidade.
A academia acreditou em D. Alexandre e nos propagadores do boato.
Appareceram homens a dizerem que tinham sido agentes do desafio.

—Mentiram.

—Mas a mentira vingou.

—Estou resignado: já a vi impressa n’um jornal, e achei-me forte na minha
consciencia.

—Mas a opinião publica...—voltou o academico, espicaçando, em nome da
opinião publica, o animo impenetravel do marido e pai.

—Que queres que eu diga á opinião publica?

—Que a desmintas: escreve uma correspondencia.

—Não desço.

—Descer! pois é descer acudires por tua honra!?

—Se a consciencia me não accusa, que logro eu em constituir a academia
meu juiz? Além de que, meu amigo, eu venho estudar. Falta-me o tempo
para o util: como hei de eu ir dispendêl-o a entreter a curiosidade
publica? Diz aos teus amigos que eu sou calumniado, e elles julguem-me a
seu sabor.

—Faz o que quizeres: dou por cumprida a minha missão de amigo.

       *       *       *       *       *

Christina vivia tranquilla. Ladislau, que lançara espias em Miranda,
soubera que D. Alexandre sahira para Coimbra, e o desertor ficára. A nova
agradou a Casimiro, receioso dos sustos da senhora.

Recomeçou o academico os estudos do segundo anno com fervor. Sabia que
seus mesmos condiscipulos o detrahiam, lamentando, como usam lamentar
inimigos, a nodoa da farda de um militar. O facto estrondoso do botequim
da rua Larga tinha esquecido, ou era interpretado de varios modos, todos
estupidos; que a malquerença faz timbre em ser estupida, quando não póde
ser feroz. Todavia, a frechada não lhe vasava ao coração. O pai extremoso
abroquellava-se com a filhinha, e dizia á esposa:

—Sêde o meu mundo. Aos teus olhos sou quem sou, minha amiga. Infamam-me
lá fóra; mas diz-me tu, filha, que eu sou digno de ti.

N’um sabbado ao cahir da tarde, passaram á Ponte, vindos da Quinta das
Lagrimas, Casimiro, e sua mulher.

D. Alexandre de Aguilar estava sentado com numerosos estudantes nas
guardas da ponte. Ao perpassar Casimiro, o fidalgo de Miranda tossiu
aquelle grunhido peculiar do insulto. Os academicos de sua parcialidade,
em respeito á dama, abstiveram-se de acompanhar o amigo na _trossa_.

D. Alexandre, desenfreado como costumam os covardes no momento em que
persuadem-se não o serem, disse:

—Não se envergonha aquella dama! Que ostentação e baixeza d’alma.

Christina ouviu. O que o amor nobre faz d’uma alma timida! Voltou-se
contra o parente, e respondeu:

—É muito infame!

—Silencio!—disse Casimiro, apertando-lhe convulsivamente o braço.

D. Alexandre expediu uma cascalhada; e os academicos, indifferentes ao
conflicto, disseram-se:

—Com effeito! é muito covarde o Bettancourt, que deixa assim insultar a
mulher! Comprehendam lá a decantada historia do botequim!

Na extremidade da ponte, estava o academico, já conhecido por seus
dialogos com Casimiro. O marido de Christina aproximou-se d’elle e
disse-lhe:

—Conserva-te aqui um instante ao pé de minha mulher, que eu volto já.

—Não!—exclamou Christina.

—Christina—disse elle com um aspecto, que a esposa nunca lhe vira.

E caminhou ao longo da ponte, sem denotar arrebatamento na serenidade do
passo.

Os academicos do bando de D. Alexandre disseram:

—É elle que vem!

O fidalgo desceu-se da guarda como quem se prepara a receber o aggressor.
Não era isso. O mêdo pesa como chumbo na região abdominal. Foi o gravame
do mêdo que mecanicamente o desceu.

Casimiro lançou-lhe a mão esquerda á garganta, e com a direita levou-lhe
a cabeça a aresta da guarda.

Depois como o atordoado fidalgo escouceasse os couces instinctivos da
defeza, o aggressor abarcou-o pela cintura, no proposito de o despejar
ao Mondego. Acudiram-lhe muitos, sem, comtudo, arremetterem contra o
furriel. Casimiro sentiu nas barbas mão estranha. Olhou com impetuosa
furia, e viu Christina, que punha as mãos supplicantes. Descurvou os
dedos da garganta do estudante, e deu o braço a sua mulher. Pelo ar
quieto, com que elle sahiu ao fim da ponte haviam de imaginar que o
sujeito acabava de abraçar um amigo!

Grande parte da academia parecia andar envergonhada depois d’este
successo. Os detraidores, chamados por algum amigo de Bettancourt, a
dizerem ácerca do facto, corriam-se, e gargarejavam o desmentido, que os
suppliciava.

O academico, mais dolorido do descredito de Casimiro, seguiu-lhe os
passos a casa, abraçou-o com transporte, e exclamou:

—Tu és um grande homem!

—Vem vêr minha filhinha como dorme docemente!—respondeu Casimiro.

—Que dirão agora os calumniadores?—tornou o academico.

—Que eu sou um assassino.

—Um bravo! um modêlo de dignidade.

—Como quizerem. Vem ver minha filha, se gostas de creancinhas.

Foram. A mãi, que, uma hora antes, sentira denodo viril para aggredir o
insultador, estava agora chorando sobre as faixas da filhinha. Casimiro
aconchegou-a de si e murmurou:

—Então? que é isso, filha?

—Tremo pela tua vida, Casimiro!

—Convence-te, Christina: eu não posso ser morto por D. Alexandre, nem por
assassinos de sua paga.

O fidalgo dos Vitos Alarcões tractou da cabeça na cama uns quinze dias:
parece que o granito lhe entrou dentro obra de meia pollegada, sendo que
em tal cabeça nunca tinha penetrado cousa alguma outra. Fechada a brecha,
metteram-se as ferias de Natal, e o convalescente foi para casa.

Ladislau, sempre attento aos passos do desertor, soube que chegara a
Miranda D. Alexandre de Aguilar, de cujo infortunio na ponte já estava
informado por carta de Christina, que incessantemente lhe pedia toda a
vigilancia sobre o scelerado.

D. Sueiro deu logo tento da cicatriz da cabeça fraterna, e disse:

—Levaste ou cahiste, mano?

—Cahi do cavallo.

—Bom tombo! ias ficando sem um olho! Estás um limpo cavalleiro, não tem
duvida!

E ficaram n’isto; mas as familias d’outros academicos de Miranda, de
bocca em bocca, fizeram chegar ás orelhas de D. Sueiro de Aguilar a rija
sova, que levara o irmão.

O senhor dos Coutos de Fervença e Caçarelhos Estevães e Villariça disse
ao irmão:

—Como assim?

—Assim quê?—perguntou D. Alexandre.

—Corre que essa cicatriz foi bordoada que levaste! Foi ou não?

—Foi desordem: dei e levei.

—E ficaste mal?

—Fiquei ferido; mas sem deshonra. O adversario era valente como as armas.

—Quem?

—O marido de tua cunhada.

—O villão? E vive!...

—Por em quanto... vive.

—De que serve aqui o Ayrão?

Ayrão era a graça do desertor.

D. Sueiro acrescentou:

—Leva-o, e mostra-lh’o. Acabemos com isto de uma vez... Estou a ver
quando o tio Ruy de Nellas recebe o genro em casa. Já lhe baptisou o
filho, e, escrevendo a Guiomar, fallou-lhe de Christina com piedade. O
tio Ruy degenerou. Se viver muito, ha de envergonhar-nos.

       *       *       *       *       *

Foi para Coimbra D. Alexandre.

Ladislau recebeu a ponto a informação: o desertor ficára. Avisou-o de
Villa-Cova. Christina exultou; mas, seis dias depois, recebeu novo
aviso: o sicario partira aforrado, e em disfarce. A pontualidade d’estas
informações deviam-se a um jornaleiro de Villa-Cova, o qual, industriado
por Ladislau, fôra a Miranda pedir trabalho á casa dos Alarcões, e lá
ficára servo de lavoura.

D. Alexandre concertára o plano do homicidio, com estupido ardil: já se
lhe não dava que se lhe imputasse a morte de Casimiro; e, para desviar
suspeitas de braço estranho, escondia o matador em casa.

Ayrão entrou de noite, e sumia-se de dia nos quartos escusos da casa. Os
frequentadores dos jantares de D. Alexandre guardavam delicada reserva
ácerca da desgraça do mez anterior. O amphitrião é quem, uma vez por
outra, dizia:

—Tenho sêde de sangue!

Ou, bebendo até cahir, exclamava:

—Á saude do assassino, que ha de vingar a honra de vinte gerações de
fidalgos de solar conhecido!

Defronte de D. Alexandre morava o estudante de direito Guilherme Lira.

Lira foi o mais esforçado e turbulento academico dos seis annos
subsequentes á restauração da liberdade. Presidiu á famigerada «Sociedade
da Manta»[5]. Era o pau mais valente do riba-Tejo, e o mais figadal
inimigo de poltrões.

Do fidalgo de Miranda tinha elle nojo, nojo favoravel ao covarde; se
fosse odio, tel-o-ia desorelhado.

Observou Guilherme Lira que em casa do visinho D. Alexandre estava um
homem de cara sinistra, o qual se escondia no escuro da casa assim
que nas janellas fronteiras assomava gente. Lira espreitou, e viu-o,
accendendo o cachimbo no charuto do amo, e gesticulando com aquelle
especial geito das féras humanas, vesadas ao tracto da taverna, da feira,
e da encruzilhada.

Guilherme sympathisava d’alma com Casimiro Bettancourt. Depois do
facto da ponte, estando elle com o seu bando de bravos na Calçada, viu
Casimiro, que vinha com sua esposa. Lira sahiu da roda, foi á frente do
furriel, e disse, com os olhos em Christina:

—Dê-me v. ex.ª licença que eu abrace seu marido.

E pegou d’elle ao alto soffregamente, exclamando:

—Que pena que tu sejas casado, homem de figados, que te queria entregar o
macête da minha loja!

Casimiro sorriu, agradeceu, e apertou-lhe affectuosa e modestamente a
mão.

Isto explica a espionagem de Lira, e o aventar de prompto que o ignobil
visinho traçava a morte de Casimiro.

Foi logo d’alli em procura do estudioso mathematico, e disse-lhe:

—Olha que o covarde tem uma besta-féra em casa. Estuda socegado, que eu
te guardarei, porque não estudo, nem tenho que fazer.

—Agradeço—disse Casimiro—mas, em verdade te juro que não temo a
besta-féra.

—Bem sei, rapaz, bem sei; mas o que eu te venho dizer é que não penses
mesmo no modo de a mandar ao diabo. Isso cá se arranja. Adeus: não te
quero roubar tempo.

Descubriu Guilherme que D. Alexandre sahia de noute, e com elle outro
academico sobre quem a capa mal ageitada ia delatando a contrafacção.

Fez-se Lira encontrado com elles, metteu-lhes a cara, e reconheceu o
assassino, sob o disfarce de estudante.

A traça do homicidio era desesperada. Como Casimiro passava as noutes
estudando, Ayrão lembrara il-o matar em casa. O rancor applaudiu o
alvitre, e accelerou a execução. D. Sueiro esporeava de lá os brios do
mano e pasmava da demora.

Descubriu Lira que os visinhos por volta de dez horas paravam á sombra do
Arco, que faz a extrema da _Couraça dos Apostolos_, onde morava Casimiro,
e depois subiam distanceados a calçada, e o mais corpulento, que era o
disfarçado, contra-punha de leve o hombro a uma porta de quintal, ou
remirava a janella alumiada pelo clarão do candieiro, ao qual Casimiro
estudava até duas horas da manhã.

As portas apalpadas não davam de si; arrombal-as com estrondo seria
derrancar o plano.

Accudiu nova idéa ao homicida: chamar Casimiro á janella, e desfechar-lhe
um tiro.

Reflexionou D. Alexandre, e previu que a opinião publica havia de
reprovar o covardissimo feito.

Regeitou, por tanto a idéa, e reforçou-se na do assalto.

Casimiro Bettancourt ignorava o que ia cá fora em sete noutes
successivas. Guilherme achou inutil avisal-o. Queria elle egoistamente
para si a cabal satisfação de castigar os miseraveis, sem incommodo do
estudante. A muito custo se refreára, durante as sete noutes, á espera
de lhes comprehender o intento, e cahir sobre elles no momento de o
praticarem.

Guilherme Lira desvellava-se e preoccupava-se d’esta catastrophe, como se
vida de pai, irmão, ou amada corressem perigo!

Sublime doido! Sympathica loucura!



XII

Serenidade da innocencia


Ás dez horas de uma noute de janeiro de 1840, Christina, convidada
pela limpidez da lua, tão brilhante n’aquellas noutes, se o céu está
desannuviado, chegou á janella, sem correr as vidraças. Do exterior
não podia ser vista, que era completa a escuridade dentro; viu, porém,
Christina, dous homens parados na rua, com as cabeças muito conchegadas,
em agitada e inaudivel conversação. Teve mêdo, e correu ao gabinete
do marido a chamal-o. Casimiro, pé ante pé, segundo a esposa lhe
recommendava, espreitou, e, sem hesitação, disse:

—Um é D. Alexandre; o outro não conheço. Vejamos o que fazem.

—Vê!—disse Christina—olharam para a janella do teu quarto.

—É uma contemplação estupida!—redarguiu Casimiro.

—Agora esconderam-se debaixo das janellas.

—Quererão escalar a casa?!—tornou elle em ar de mofa.

—Quem sabe?! Olha... lá deram um encontrão á porta do quintal!

—É que são ratoneiros de couves. Que podem elles querer do quintal senão
as tuas couves gallegas?

—Tu brincas, meu Casimiro!... Olha que isto é sério!... E não passa
patrulha nenhuma!...

—Calla-te, creança! Se te ouvem, perderemos este espectaculo gratuito.
Deixa vêr no que isto dispara. Lá vem outro estudante, rente pela parede
d’alem! como elle se embuça!...

—Parou!—disse Christina agitada.

—Será da malta?! As couves não chegam para todos.

—Lá vai para baixo.

—E os outros seguem-no.

—Já não seguem.

—Elles ahi voltam, outra vez para a sombra.

—Outro empurrão á porta da escada!—murmurou Christina alvoroçada e
tremula.

—Então o negocio não é de horta! Teremos hospedes assim mal-criados!
Ver-me-hei forçado a recebêl-os com igual delicadeza!

A arma unica de Casimiro Bettancourt era uma enferrujada espada de seu
pai. Tirou-a de baixo do leito, e disse á esposa:

—Deixa-me a escada livre, e não temas.

—Á escada não vais: póde vir um tiro!

—Não vem tiro nenhum: apaga todas as luzes.

Dous estrondosos encontrões metteram dentro a fragil porta. Christina
soltou um ai, e involuntariamente correu ao leito onde a menina chorava
acordada pela rija pancada.

Casimiro estava no topo da escada, e viu do lado da rua um homem de
batina academica apanhar de hombro a hombro com um pau as costas, do que
elle affirmára ser D. Alexandre. Os dous aggressores saltaram ao meio da
rua, e Casimiro, ia na colla d’elles, quando Christina, com a menina nos
braços, lhe estorvou o passo, exclamando:

—Casimiro, Casimiro! pela tua filhinha te rogo!

A catastrophe, tão almejada de Guilherme Lira, rematava assim na rua.

Ayrão, logo que o amo levou a primeira pancada, correu de faca sobre
Guilherme, e recebeu em cheio peito uma choupada, e segunda no ventre. Já
cambaleava moribundo, quando recebeu a terceira, e bateu nas lages com a
face morta.

D. Alexandre ia fugindo, com a maxima velocidade de sua prudencia, quando
uma segunda bordoada o apanhou pela nuca. Rugiu e afocinhou, forçado por
um doloroso raspar de ferro na orelha direita.

Guilherme volveu a sondar a respiração do desertor, e responsou-o ao
diabo.

D’alli correu á escada de Casimiro, e chamou-o.

—Quem é?—respondeu Casimiro com a espada apontada.

—O Lira. Creio que estão ambos mortos; um de certo. Agora,
acautella-te... Já está gente nas janellas. Posso sahir pela porta de
traz? Aqui reconhecem-me.

—Sahe—disse Casimiro—Vem por aqui... Quem mataste?

—Boa pergunta! A besta-féra não se levanta mais; o outro desconfio que
está vivo. Deixal-o viver... Por aqui?... bem... Adeus! Segredo de
sepultura, ouviste?

—A recommendação é indigna de mim.

Guilherme Lira entrou no Becco das Flores, e sumiu-se de travessa em
travessa, reapparecendo, vestido á futrica, na Couraça dos Apostolos.

Quando chegou occupavam a rua centenares de pessoas. Em redor do cadaver
de Ayrão estavam muitos estudantes de envolta com a policia. Nenhum
academico reconhecia o morto, que trajava batina, bem que tivesse illeso
o rosto. Emquanto a este, esperou-se o dia para lavrar-se auto.

D. Alexandre já tinha sido transportado em braços, e moribundo, segundo
diziam os que lhe viram o rosto ensanguentado, e ouviram o archejar
estertoroso do peito comprimido pelo derramamento das costas.

A visinhança dizia que vira entrar um homem de batina e capa nas escadas
de Casimiro Bettancourt. A opinião geral decidiu que fôra Casimiro o
assassino, visto que o sugeito entrado não sahira.

Christina chorava, e dizia, ouvindo as vozes da rua:

—Que será de nós? Prendem-te, Casimiro. Fujamos... vamos para Villa Cova.

—Socega, filha. Se me prenderem, hão de soltar-me! Attende-me, Christina:
Nunca dirás uma só palavra com referencia a este acontecimento. Nunca
proferirás o nome de Guilherme Lira. Nunca dirás que eu estou innocente.
Juras-m’o?

—E tu... perdido, meu infeliz amigo... perdido!—atalhou ella, archejante
de gemidos—desgraçado por minha causa!

Casimiro apertou-a ao seio, e disse-lhe:

—Crês em Deus?

—Se creio em Deus...

—Crês que a justiça divina me faça padecer innocentemente?...

—Mas a justiça humana...—interrompeu ella.

—Mulher de pouca fé!... Se visses a serenidade do meu espirito, vias em
mim a influição de Deus!

       *       *       *       *       *

As authoridades superiores, avisadas do acontecimento e do author
indigitado do crime, mandaram guardar por soldados as avenidas da casa de
Casimiro, para o prenderem de dia.

O academico deitou-se á sua hora regular, e obrigou a alvoroçada esposa a
deitar-se com a filhinha inquieta.

Ás tres horas e meia da manhã rebentou de subito um ruido estridoroso na
rua, depois de alguns repetidos brados das sentinellas.

Chegava a «Sociedade da Manta» acaudilhada por Guilherme Lira, em numero
de vinte e tantos bravos, armados de refes e clavinas.

Os soldados outros tantos seriam. Á primeira carga inesperada, a tropa
titubeou entre fugir ou defender-se, e, n’esta perplexidade, soffreu o
desaire de ser desarmada e contundida com as proprias armas.

Libertas as portas, Guilherme chamou Casimiro, subiu e disse
imperiosamente:

—Foge!

—Não fujo.

—Como não foges?

—Não: salva-te tu, que eu me livrarei da justiça.

—Não livras: diz toda a gente que tu mataste o homem. Alexandre está
vivo, e diz que foste tu quem mataste o seu creado, e lhe tiraste a elle
a orelha.

—Deixaste sem orelha o homem?

—Nada de riso: foges ou não?

—Já te disse, Guilherme: vai na certeza de que o teu nome nunca será
envolvido na minha justificação.

Uma vez de fóra disse:

—Olha que tocam as cornetas na Sophia, ó Lira! Vem, que não temos partido
contra o regimento.

—Adeus!—concluiu Guilherme—Oxalá que te não arrependas!

—Fujamos!—exclamou Christina.

—Porque me não attendes, filha? disse maviosamente Casimiro, e desceu a
fechar a porta.

Poucos segundos depois, estava a rua cogulada de soldados, e muitas vozes
diziam que o assassino tinha fugido com os academicos.

—O melhor é arrombarem as portas, camaradas!—dizia um cidadão—Que fazem
vossês ahi, se elle fugiu? É arrombar que não ha outro modo de saber se
elle está.

—Arrombar!—contrariou um alferes—a Carta Constitucional prohibe arrombar;
mas bate-se a ver se falla alguem.

—Ou isso—disse o cidadão prudente.

O alferes bateu urbanamente. Casimiro abriu de prompto a janella do seu
quarto, e perguntou:

—Quem é?

—Ah!—disse o alferes—está em casa?

—Estou em casa. Não quer mais nada?

—Não sr. Foi para sabermos... dizia-se que não estava lá ninguem...
Perdoará o incommodo.

—Boas noutes—respondeu Casimiro. Depois, baixou a vidraça, e disse a
Christina—A rua está vistosa! As armas refrangem a lua, e dão a lembrar
uma illuminura da idade média! Apaga a luz da saleta, que eu gosto de
ver este arraial de batalha, que me parece um sonho!

—Ó Casimiro!—balbuciou ella—como tu pódes rir, e eu sinto-me aqui morrer!

—És fraca. Nunca te tinha conhecido esse aleijão! Parecias-me uma
natureza perfeita em amor, em brios, e em força. A força é que te falta,
minha debil filha!

—Enganas-te, Casimiro!—replicou ella—É que eu era tão feliz!...

—E ámanhã que impede que o sejas?

—Ámanhã... estarás preso!....

—E então? A luz do teu amor teme de romper as grades da cadeia?! A nossa
filhinha hesita entrar lá comtigo? Não vai commigo a imperturbavel
consolação da consciencia?

—Mas eu tambem vou...

—Pois irás, filha. Quem te veda de estar com teu marido preso?!

Conversaram n’este sentido longo tempo; e já a final, Christina estava
conformada com a ideia da prisão, e logo cuidou em enfardelar os fatinhos
da filhinha, emquanto o marido escrevia a seguinte carta:

    «Meu caro compadre.

    «D. Alexandre de Aguilar foi gravemente ferido, e o seu creado
    está morto. Este acontecimento deu-se á porta da minha caza, ha
    cinco horas. O povo, a academia, e as authoridades indigitam-me
    como author do successo. Esperam que nasça o sol para me
    prenderem.

    «Escrevo-lhe agora, 4 horas da manhã, receando que os
    interrogatorios me tirem o tempo no correr do dia.

    «Minha mulher tem estado attribulada, mas, como appelei do seu
    coração para a sua coragem, vejo-a reanimado e esperançosa
    da minha absolvição em despeito do povo, da academia e das
    authoridades.

    «Peço aos meus amigos que não se afflijam, e me creiam forte
    bastante para luctar com o mal do mundo. Refugio-me na vossa
    estima, e sou o vosso irmão agradecido, _C. Bettancourt_.»

Ao apontar o sol, a authoridade administrativa, auxiliada pela militar,
bateu á porta de Casimiro, e esperou instantes. O proprio academico
desceu a abrir, e offereceu ceremoniosamente a sua casa.

—Está o sr. preso—disse o administrador.

—Já o sabia—respondeu Casimiro.

—Bem. V. s.ª acompanha-me. Irá comnosco o sr. alferes da companhia.

—Como queiram: vou só, vou com v. sr.ᵃˢ, vou com a escolta: para mim é de
todo o ponto indifferente.

—Dispenso a força, sr. alferes, disse o administrador: póde v. s.ª
mandal-a recolher com o sargento; o sr. alferes tem de ficar para
solemnisar a prisão d’este academico que é furriel.

—Se querem subir...—disse o preso.

—Não, senhor: vá, e volte, que nós esperamos.

O administrador, em quanto Casimiro subiu a dar as ultimas palavras de
conforto a sua mulher, disse ao commandante da força:

—Este homem ou está innocente, ou excede tudo que eu tenho visto em
coragem!

—Será cynismo? replicou o militar.

—É cynismo, não pode deixar de ser cynismo—optou o cidadão que propozera
o arrombamento das portas.

No entanto, Casimiro dizia a Christina, depois de beijar Mafalda:

—Eu escrevo-te de casa do administrador, dizendo-te o meu destino;
naturalmente irei de lá para a cadeia; e tu, como boa gerente da
casa—continuou elle jovialmente—irás lá ter, depois de ter dado as
ordens para o jantar. Olha que a instauração de um processo por crime
de morte não obriga a jejum, minha filha. Lembra-te que as consciencias
puras concorrem muito para o bom appetite, e são optimas auxiliares do
estomago. E adeus, até logo.

Christina ajoelhou com a filha nos braços, e orou. E, orando, ouvia dizer
fóra:

—Mas como elle vai direito e senhor seu!

—Elle se entortará quando lhe pezarem nas costas os caibros da Portagem!

—Terá pena ultima?—perguntava uma rapariga de má vida, e acrescentava:
coitadinho! é tão novo, e de mais a mais casado, e tem uma filhinha!...

—Deixal-o ter!—atalhava uma velha, que vinha da missa d’alva, e ia ouvir
a segunda, para depois ir ouvir a terceira—Deixal-o ter! Quem mata,
morra! As forcas não se inventaram para os que morrem, é para os que
matam.

O axioma foi applaudido pelo cidadão prudente, e outros sujeitos
honestos, cuja garganta zombára muitas vezes da corda de esparto do Livro
V das Ordenações.

E Christina callava a oração para escutar, e orava para não ouvir.

Perguntou a authoridade a Casimiro Bettancourt o nome, a naturalidade, os
annos, o estado, a profissão, etc. E proseguiu:

—A voz publica e as apparencias dão-no ao senhor como homicida de um
homem ainda desconhecido, e tambem o incriminam de espancador de D.
Alexandre de Aguilar, cuja vida está ainda duvidosa. O sr. Bettancourt é
réu d’estes crimes?

Casimiro não respondeu.

—Ouviu a pergunta que lhe fiz?—tornou a authoridade suspeitando a surdez
do preso.

—Ouvi, sim, senhor.

—Que responde?

—Nada.

—Nada?! é boa essa!... Matou ou não matou?

—Se ha provas de que fui eu, porque m’as pedem? Se as não ha, porque me
prendem?

—A lei manda interrogar os réus.

—Póde ser; mas não obriga os réus a responder.

—O silencio é uma confissão—redarguiu o administrador.

—É o anexim «quem calla consente» arvorado em axioma juridico. Boa
hermeneutica!

—Modere as suas ironias, que a occasião é inopportuna, sr. Bettancourt.
D. Alexandre de Aguilar Vito de Alarcão Parma d’Eça diz que fôra atacado
pelo sr. Casimiro, quando passava á sua porta.

—Se o diz, elle o provará.

—A visinhança depõe que v. s.ª entrára em sua casa depois de ter deixado
morto um homem e o outro cahido.

—Já sei: ouvi o parecer de meus visinhos antes de v. s.ª os interrogar.

—E que diz a isto senhor?

—Nada.

—Diz que está innocente?

—Já tive a honra de dizer a v. s.ª que não digo nada. As provas
responderão por mim, e a lei me julgará.

—Está claro. Vai v. s.ª recolher-se á cadeia, e esperar lá a nota da
culpa.

—Posso ser visitado por minha mulher e minha filha?

—Sim, senhor, em quanto a policia julgar isso indifferente ao processo.

—E quando póde impecer ao processo que eu veja minha familia?

—Ha casos...

—Bom. Recebo as suas ordens.

—Vai acompanhal-o um official do juizo. O sr. Bettancourt inspira-me
confiança, e por isso o allivio do vexame de ir com soldados.

—Agradeço a confiança; mas os soldados não me vexam: cumpra v. s.ª o seu
dever de authoridade.

—Vá, e pense sériamente na sua situação, que é grave, sr. Bettancourt.
Póde ser que o senhor esteja innocente; mas as suas desavenças anteriores
com D. Alexandre condemnam-no. Póde ser que v. s.ª matasse em justa
defeza: se assim foi, convém attenuar a culpa com essa circumstancia.
Esse seu systema de responder com o silencio, sobre ser excentrico, é
confirmativo da imputação. Dou-lhe este conselho, movido pela sympathia
que me causa a sua abnegação e como despreso da vida. Sei que tem
familia, e avalio as angustias de sua consorte; por isso lhe peço que se
abstenha d’esse stoicismo inutil, e—peior ainda—prejudicial. Se póde,
decline de si a responsabilidade de um homicidio, que é sempre e em
todos os casos deshonra. Se matou, negue, negue sempre!—acrescentou o
administrador, collando-lhe no ouvido os labios.

Casimiro agradeceu o conselho com um sorriso, e sahiu á direita do
official de justiça.

Á porta da authoridade, quando Casimiro sahiu, agglomerava-se um cento de
pessoas, gentio baixo, regateiras da praça de Sansão, serventes, gaiatos,
e alguns cidadãos honestos, nomeadamente o oraculo da Couraça dos
Apostolos. A custo rompeu o aguazil a multidão, que se premia em redor de
Casimiro, e lhe roçava as faces com o halito acre da aguardente.

—Chamo soldados!—bradou o official de justiça.

—Não é preciso—disse um academico, que estanceava mais distante n’um
grupo de estudantes.

E, tirando a carreteira das mãos de um lavrador, cresceu sobre a
multidão, e apanhou quatro cabeças da primeira paulada. A rua, momentos
depois, estava deserta, como se passasse n’ella a ira do Senhor.

—Foge que é o Lira!—diziam muitas vozes, convulsas de terror, menos o
cidadão da Couraça dos Apostolos, que levou a sua cabeça ao visinho
boticario.

Era, com effeito, Guilherme Lira, cujo sangue refervia em phrenesi,
e sêde de beber o sangue da humanidade. Infurecia-o o remorso de
ter deixado vivo D. Alexandre! Saber elle que o vil declarava ter
sido assaltado por Casimiro, espicaçou-lhe o odio e a ancia de ir
estrangulal-o em casa. Depois, via Casimiro preso, sabia já as suas
respostas á authoridade, pungia-o o arrependimento de o perder, quando
cuidava salval-o de inimigos infames, e não poder salval-o, sem se
declarar elle mesmo o aggressor!

O governador civil, o reitor, as authoridades subalternas, receiosas de
sublevação academica, instigada por Guilherme Lira, preveniram a tropa,
e assignaram ordens de prisão dos mais celebres desordeiros, no caso de
motim.

A este tempo estava na cadeia Casimiro Bettancourt, contrastando, com
sua quietação, o reboliço que fremia cá fóra. Christina seguira-lhe os
passos, e entrara apoz elle. Mafalda ia muito risonha e fagueira. Não
fallava, mas gesticulava as suas caricias, e pendurava-se do collo do
pai, beijando-lhe os olhos.

E Christina observava em redor de si a nudez, a sombra, a immundicie da
salêta. Queria chorar; mas pejava-se do esposo, e retinha-se para o não
affligir.

—Voltas a casa, minha filha?—disse Casimiro—Olha que são dez horas, e
nós costumamos almoçar ás nove. Basta de sacrificio á justiça humana,
Christina! Uma hora é de mais!

—Tu não estás muito triste, pois não, meu Casimiro?—exclamou ella,
cingindo-lhe o pescoço, com quanto carinho podem exprimir as angustias
supremas.

—Se estou triste!... Quando me viste mais risonho, Christina!... Alegre,
minha esposa, alegre como esta creança que te sorri! A minha consciencia
está serena como a d’esta menina; por isso nos vês tão contentes ambos!



XIII

O Réu


A carta, recebida em Villa Cova, foi a primeira grande angustia que
alanceou o coração de Ladislau.

Correu á igreja, e d’ali a uma aldeia da serra, onde estava o vigario
sacramentando um enfermo. Leram a carta, e ambos inferiram que o matador
era Casimiro; justa inferencia dos termos d’ella.

—Matar!—disse o vigario consternado.—Matar!... Eu não cuidava isto de
Casimiro! Nem ao menos diz que matou defendendo sua vida, a vida de sua
mulher, e de sua filha!... Repara tu na serenidade com que elle diz: _D.
Alexandre de Aguilar foi gravemente ferido, e o seu creado está morto.
Este acontecimento deu-se á porta de minha casa ha cinco horas. O povo,
as authoridades, e a academia, indigitam-me como author do successo..._
Se não fosse elle o author, diria: _indigitam-me falsamente!_... E mais
abaixo: _Minha mulher tem estado attribulada, mas como appelei do seu
coração para a sua coragem, vejo-a reanimada e esperançosa de minha
absolvição em despeito do povo, da academia e das authoridades!_... De
que elle fia a sua absolvição, se as provas o condemnam a tal ponto que
tudo lhe é contra!... Ó meu Deus, meu Deus! que conta havemos de dar á
nossa consciencia de termos trabalhado para o casamento de Christina com
este malfadado!

Ladislau ouviu a mais larga exclamação do attribulado sacerdote, e disse
com pausa:

—Eu estou em crêr que Casimiro não matou.

—Ó homem, tu não intendes esta carta?

—Penso que intendi. Onde diz elle que matou?

—E onde diz elle que não matou?—retorquiu o padre.

—É verdade: não confessa nem nega. Diz que o apontam como matador. Isto é
differente. Eu leio no Evangelho que Jesus Christo, quando o arguiam...

—Calla-te meu irmão! esses confrontos são sacrilegos!—atalhou o
sacerdote, inflammado em zelo santo.

—A minha intenção era boa, Deus o sabe. Seja o que fôr, eu creio que
o meu compadre está innocente. Um homem, que mata, não escreve assim
com este socego. Aqui ha mysterio, e continuará a havel-o. As cartas
demoram-se; e, quer demorem quer não, amanhã vou para Coimbra e Peregrina
vai comigo. Desgraçada Christina!... E que terá elle penado? que fará
sósinha a pobre menina com sua filha?...

—Vai a Coimbra, Ladislau, vai!—disse o vigario—Se é criminoso,
amparemol-o; se não é, ajudemol-o a vencer as iniquidades do mundo,
querendo Deus que nós sejamos instrumentos de sua divina justiça. Eu
tambem iria, se podesse: escrever-lhe-hei as consolações da religião.

No dia proximo sahiram de Villa Cova Ladislau, Peregrina, e o menino, a
grandes jornadas para Coimbra. O lavrador levava todo o seu peculio, o
ouro de sua mulher, e alfaias de antiga prata, que havia em casa. Apearam
na estalagem, e foram d’alli á cadeia. Encontraram Casimiro sentado á
meza de jantar com a filha no collo, e Christina a um canto da salleta
aquecendo café n’um fogareiro.

—Não t’o disse eu?!—exclamou Christina, quando o chaveiro abriu a porta,
e deu entrada aos visitantes—Não veio carta, vieram elles!

As duas senhoras abraçadas fallavam em soluços. Ladislau rompeu tambem em
pranto desfeito. Casimiro, porém, sereno e com os braços abertos, dizia:

—O compadre tambem é dama?! Não rivalisemos com as nossas mulheres no seu
privilegio de chorar!... Conversemos como homens.

—Está innocente, meu amigo?—perguntou de sobresalto Ladislau.

—Que pressa!...—respondeu em ar de graça o prezo—Parece que o meu
compadre sahiu de casa com essa pergunta á flor dos beiços. Ora, diga-me:
se eu lhe responder que matei o desertor, e feri de morte o fidalgo, o
meu amigo retira-me a sua mão pura e generosa?

—Não. Casimiro só mataria um homem defendendo-se. Foi em defesa que o
matou?

—Vou responder-lhe; porém, requeiro á sua nobre alma um juramento antes
de me ouvir. Não lhe digo que me jure por seu pai, pela vida de sua
esposa ou filho: jure por sua honra.

—Jurei.

—Agora saiba que eu não matei, nem mandei matar.

—Oh meu amigo!—clamou com agitada vehemencia Ladislau.

—Não falle mais alto que eu, meu compadre, que póde ser ouvido. Não matei
nem mandei matar, nem folguei com a morte do assassino trazido para mim,
nem com os ferimentos de D. Alexandre. Houve um homem que me quiz salvar
dos dous inimigos, que me esperavam, e matou-os, no momento em que me
arrombavam as portas. O nome d’este homem irá commigo e com minha mulher
á sepultura: nunca m’o pergunte. A sociedade proclama-me assassino:
embora. Deus me defenderá e salvará. Aos interrogatorios nada respondo
que me absolva ou condemne. Veremos se o jury me vê provado assassino.
Agora, meu amigo, tem o sr. a sua honra de sentinella á sua lingua.
Tomemos café. São só duas as chavenas; mas tambem ha dous pires: as
chavenas para os hospedes; os pires para nós, Christina. Arranja lá isso.

Ladislau fitava nos olhos Casimiro, e murmurava:

—Que homem! que desgraçado tão digno d’outra sorte!

—Veja lá o que são as cousas! eu cuidei que meu compadre me estava
invejando esta paz de coração!—disse Casimiro.

Horas depois, sahiram duas senhoras a transferir a bagagem da estalagem
para a casa da Couraça dos Apostolos. Concordaram em viver juntas, nas
horas em que era vedado o ingresso no carcere.

O processo proseguiu seus termos, com desvantagem de Casimiro, sem
embargo de ser vigiado pelo primeiro advogado de Coimbra, que alcançára
procuração do réu, depois de muitas instancias suas e de Guilherme Lira.

D. Sueiro de Aguilar tinha descido a Coimbra, com comitiva de dois
lacaios, e dinheiro grosso para, consoante a sua phrase, _erguer, sendo
preciso, uma forca de ouro, onde perneasse o assassino de seu irmão_.

D. Alexandre erguera-se ao cabo de vinte dias, e composera as melênas
de modo, que o logar da extincta orelha ficasse coberto de lustrosas
espiraes. A orelha cancerára e cahira, deixando um orificio hediondo e
pustuloso. Guilherme Lira, quando acertava de o encontrar, dizia-lhe
sempre:

—Cuidado com a outra.

—A outra quê?—animou-se a perguntar D. Alexandre.

—A outra orelha, patife!

O epitheto gelou de neve as cavernas d’aquelle vil peito que esvasiava o
pus pelo esqualor do ouvido.

D. Sueiro accelerava o processo, e descia de sua prosapia regirando do
advogado para o escrivão, do procurador para o delegado, do juiz para os
influentes do jury.

N’uma d’essas suadas correrias, passando ao escurecer no bêco de D.
Sisenando, encontrou um academico, que lhe cingiu ao pescoço umas mãos,
que pareciam golilhas de ferro, e lhe jogou a catapulta da cabeça, tres
vezes, contra a hombreira do floreado granito da porta do palacio, onde
morreu apunhalada a irmã da rainha D. Leonor Telles. Depois, largando-o
atordoado, disse:

—Primeira admoestação!

E andou.

D. Sueiro, ao outro dia, escreveu a todos os governadores possiveis de
Coimbra. A policia fingiu que se mechia, e D. Sueiro não sahiu da cama.

O leitor já sabe que só Guilherme Lira podia tentar a destruição da
melhor pedra monumental de Coimbra com a cabeça de D. Sueiro de Aguilar
Vito etc.

Um homem sisudo da policia disse ao rico-homem de Miranda:

—O meu parecer é que v. ex.ª vá para sua casa. A meu vêr, o fidalgo traz
á perna a _sociedade da Manta_. Dê louvores a Deus em o não terem matado
como fizeram a um lente, ha dous mezes: e perdoará o atrevimento do
seu servo em o aconselhar. Em quanto a mim quem quebrou a cabeça de v.
ex.ª foi o Guilherme Lira! Mas vão lá prendêl-o, e, de mais a mais, sem
provas! Bem aviado estava eu! Elle bate-se com um regimento, e é capaz e
mais os seus trinta companheiros, de arrasar Coimbra.

—Então isto aqui é um sertão de selvagens!—bradou D. Soeiro—As leis...

—As leis estudam-se aqui—disse o cadimo aguazil—e o Guilherme Lira
sabe-as bem, que é quintanista de direito; mas o malvado despreza as
leis de papel, e tem lá umas de pau para seu uso, não digo bem: para uso
d’aquelles que as levam impressas nas costas. Em fim...

O homem da justiça encolheu os hombros, e despediu-se.

No dia seguinte, D. Sueiro foi para Miranda, e levava ainda uns parches
de alvaiade na testa, e uns pontos nos tegumentos sobrejacentes aos ossos
parietaes.

D. Alexandre ficou; porém, assim que o sol inclinava ao poente,
recolhia-se. Guilherme Lira entrava em casa todas as noutes, e
espreitava-o da janella. Cada noute, ao vêr-lhe a luz no quarto,
arrepellava-se. Dizia com picaresco chiste o feroz academico a Casimiro:
«a vida d’aquelle homem peza-me como um burro sobre o peito!»

E Bettancourt pedia-lhe encarecidamente que o deixasse, por ser um
estorvo nullo á sua liberdade.

Ruy de Nellas, conscio do successo, mandou chamar o vigario de S. Julião
da Serra, e informou-se. Padre João Ferreira relatou de cór o contheudo
da primeira carta de Casimiro, e mostrou duas linhas de outra de
Ladislau, que dizia: _Casimiro está innocente. Casimiro é victima da sua
honra. Nada mais te digo, porque só isto me é permittido dizer, e a ti
só, meu irmão._

—E tu crês na innocencia de Casimiro?

—Creio, meu padrinho, como creio que vivo.

—E elle deixa-se ir á revelia?

—Não posso, nem sei responder a v. ex.ª

—É preciso que eu o proteja. É preciso, que elle é marido de minha filha!
Os de Miranda não hão de levar a melhor.

—Que quer v. ex.ª que se faça?

—Que vás a Coimbra, e leves dinheiro para elle, e para a justiça.

—É desnecessario dinheiro. Meu cunhado foi prevenido.

—Deixal-o ir. O dinheiro que eu mando, é meu; quero que minha filha o
receba! Eu vou mandar o meu capellão substituir-te na igreja, e tu partes
já para Coimbra.

—Recebo as ordens de v. ex.ª

—Vamos ver quem vence!—continuou o fidalgo, apertando os alveolos, onde
os dentes ausentes não podiam rangir.—Os de Miranda, tem muita prôa?...
Deixa que eu vou abater-lh’a!... Vai, João, que lá irão umas cartas.
Se Casimiro ficar condemnado, tu ou teu cunhado vão para Lisboa, e
entreguem as cartas onde eu mandar. Lá está minha irmã, a condessa de
Asinhoso. Ha vinte e tres annos que não lhe escrevo: mas sei que ella
está morta por fazer as pazes commigo.

—Bom seria que estivessem feitas—disse respeitosamente o padre.

—É verdade; mas que queres? orgulho de parte a parte... E sabes tu porque
eu despresei minha irmã?

—Nunca v. ex.ª me deu a honra de m’o revelar.

—Pois eu t’o direi quando voltares. Foi um caso de honra, que os de
Miranda não costumam castigar. Lá tem em casa uma irmã do pai, que fugiu
do mosteiro de Lorvão, e deu escandalo. Lá a tem... e não põem crepe nas
pedras d’armas... E vinha cá D. Sueiro vituperar-me porque eu não mandava
matar Casimiro!... Olha quem!... Se eu tivesse tantos santos a pedir por
mim, como de vezes me tenho arrependido de lhe dar a minha morgada!...
Forte brutalidade!... Cegaram-me as vaidades de reatar as duas casas dos
mais antigos ricos-homens da Beira e Traz-os-Montes!... Emfim... o que eu
não consinto é que da casa de Miranda vão matadores professos assassinar
o marido de minha filha... São horas... Aqui tens um conto de réis em
ouro. Parte, João; e escreve a dizer o que se passar. Dá muitos beijos a
minha afilhada, e diz a minha filha... que lhe perdôo!

O vigario ajoelhou diante de Ruy de Nellas, e clamou:

—Deixe correr as minhas lagrimas de alegria sobre as suas mãos, meu
nobre, meu virtuoso padrinho!

—Não fiques agora ahi a chorar, homem!—Disse o velho, erguendo-o.—Aqui
estou eu tambem...—proseguiu, enxugando os olhos.—Vai, que são horas.

A apparição do vigario na saleta da cadeia foi saudada com um brado de
alegria. Cercaram-n’o todos, e beijaram-n’o todos.

—Eu só dou beijos em creanças,—disse elle em tremores de exultação.—Sr.ª
D. Christina deixe-me dar á sua filha os beijos do avô.

—Fallou com o meu papá!—exclamou ella.—Está muito zangado contra o meu
pobre Casimiro?

—Isso está, minha senhora! zangadissimo, feroz!

—Cuida que foi elle quem...—E reteve-se, relanceando os olhos ao marido,
que a observava.

—Não sei o que elle cuida...—volveu o padre. A ira do fidalgo subiu ao
ponto culminante d’elle mandar ao sr. Casimiro um conto de réis para o
custeio das suas despezas judiciarias. É onde póde chegar a ferocidade
humana!

—O sr. Ruy perdoou-me?—perguntou Casimiro mais recolhido que expansivo.

—Se isto não é perdoar... A mim não me encarregou de lhe notificar o
perdão; mas á sr.ª D. Christina manda dizer que está perdoada. Aqui teem
o dinheiro, que é ouro, e rasga-me a algibeira da sotaina.

Christina fez um gesto, significando ao padre que entregasse o dinheiro
ao marido; Casimiro fez outro gesto, indicando Ladislau.

—Então que resolvem?—disse o padre.

—Resolve minha mulher,—disse Casimiro—que esse dinheiro passe ao poder
do nosso mordomo, o sr. Ladislau Tiberio Militão de Villa Cova, em cujo
cargo hemos por bem nomeal-o para lhe fazermos honra. Assim deve formular
as suas nomeações quem tem, como eu, guarda de official á porta.

Ladislau, sorrindo, respondeu:

—A não servir de mais, deixem-me ser mordomo. Eu guardo o dinheiro, e
darei contas.

Relatou o padre a sua chamada a Pinhel, e o sentir do fidalgo, com a
promessa das cartas para Lisboa, caso o exito do processo fosse funesto
em primeira instancia. Acrescentou que Ruy de Nellas tinha muita
confiança no valimento de sua irmã, na capital, a sr.ª condessa de
Asinhoso.

—É a primeira vez que ouço fallar n’essa irmã do sr. Ruy!—disse
Casimiro.—Nunca me fallaste em tua tia, Christina.

—Porque a tinha esquecido—respondeu a senhora.—Eu e minhas irmãs mais
novas ainda ha poucos annos soubemos que tinhamos em Lisboa uma tia.
Ignoro as desintelligencias que se deram entre ella e o papá, muito antes
de eu nascer. O certo é que em nossa casa nunca se fallou em tal tia, e
diante do papá seria perigoso fallar. Muito me espanta agora que elle
queira escrever-lhe! Vejo que meu pai está mudado!

—Sabe que desavença de familia foi essa, padre João?—perguntou
Bettancourt.

—Não, senhor. Ninguem o sabe em Pinhel. Apenas sei que em Lisboa viveu
desde menina a irmã do sr. Ruy de Nellas, em companhia de um grande
fidalgo seu tio, e mais os dous irmãos filhos segundos. Tambem sei que
estes irmãos lá morreram, e que a sr.ª casou com o conde de Asinhoso. É o
que eu sei d’um clerigo velho de Pinhel, que a viu em menina, e me disse
ser ella vinte annos mais nova que o morgado. Deve hoje ter, portanto, a
sr.ª condessa quarenta e seis.

Sobre este incidente exhauriu-se aqui a pratica, em que Bettancourt,
de condição scismadora em cousas mysteriosas, mostrava estar muito
entretido.

O patrono de Casimiro, sabendo que o sogro do seu cliente o protegia em
Lisboa, e quasi seguro da condemnação do réu no tribunal conimbricense,
inredou o processo de modo que, no caso de se provar o crime em jury,
houvesse direito a pedir um recurso por nullidades, sem ser ouvido o
tribunal da segunda instancia. A lei organisadora dos processos em
Portugal, paiz de mais leis que tem o universo é uma corda bamba que se
presta a saltos maravilhosos sob o pé d’um habil volatim. «Vai o processo
para Lisboa, dizia o jurisconsulto, e lá, se o braço fôr forte, os autos
vem arremessados á cara do juiz, e o juiz dá alvará de soltura ao preso.»

Este salvador intento do causidico foi revelado a Casimiro, com grande
alegria, pelo vigario. E o preso respondeu:

—Não quero! diga-lhe que não quero! Ha-de ser a lei, sem coacção, sem
torcedura, sem vexame de poderosos, que me destrancará aquellas portas.
Mas que digam ser dolorosa a experiencia: não importa. Quero experimentar
até que ponto um réu innocente póde ser torturado. Hei de ir de
condemnação em condemnação, até poder dizer: «Acuda-me a justiça divina,
que a dos homens é infame!»

—Mas—atalhou o padre—se as provas são taes que a lei tem de forçosamente
o reconhecer criminoso?

—Não são tal! As provas permittem que as destrua o ardil d’um habil
jurisconsulto. É isto certo?

—É.

—Pois bem: eu quero que a lei as anniquile, e não a trapaça: que este
acto se cumpra á luz do sol, á luz de todas as consciencias, que me
condemnam. Que faz que as influencias poderosas me libertem, se o mundo
ha de dizer: «salvaram-no as influencias! o ferrete de homicida lá o tem
na testa!» Não quero, sr. padre João! Agradeça ao compadecido patrono:
mas avise-o de que eu serei no tribunal o interprete mais severo da lei
contra mim.

O advogado, quando tal ouviu, pasmou e disse:

—É um doudo maior da marca, este homem! Creia que irá da cadeia para a
enfermaria dos alienados!

E proseguiu:

—É vergonha fazer-lhe eu uma pergunta, sr. padre João: Casimiro
Bettancourt, matou um homem e espancou o outro?

O padre não respondeu. E o advogado repetiu:

—Matou ou não?... Pois o senhor cala-se a esta pergunta?

—Calo, sim, sr. doutor. Não posso responder.

—Está claro! Outro doudo!... Que esquisita familia é esta! Já fiz a mesma
pergunta á mulher do preso: silencio! Interroguei Ladislau Tiberio:
silencio... O sr. padre João Ferreira...

—Silencio!—atalhou o vigario.

—Nem a mim, que sou seu advogado—tornou com azedume o doutor—ha uma
pessoa que me diga matou ou não!...

—Ha—disse um academico que entrava.

—És tu?—perguntou o advogado a Guilherme Lira.

—Sou eu. Casimiro Bettancourt não matou. Tu vaes advogar a causa do homem
mais honrado e innocente do mundo!

—Posso dar-te como testemunha, Lira?

—Da sua honra e innocencia? podes; mas não me cites, que eu... ouve-me...
eu hei de tirar Casimiro da forca.

—Santo Deus!—exclamou o vigario, lavado de subito suor.—Da forca! Pois é
caso de sentença ultima?

—Se a sentença ultima é inapplicavel n’este caso,—disse o advogado—não
sei onde está no codigo penal o crime condigno! Mas não se falla aqui em
forca... pensemos...

—Não pensemos...—interrompeu Lira—Deixa correr o tempo que pensa por nós.

Padre João foi contar a Casimiro o que ouvira em casa do lettrado,
citando o nome de Lira.

O academico recolheu-se, voltou a face, e o sentido apparentemente, sobre
outro assumpto, e disse em sua mente:

—Que intenta fazer aquelle desgraçado?

Pergunta que o leitor se digna fazer-me e espera a resposta.



XIV

Episodio


O padre João Ferreira escrevia miudamente ao fidalgo de Pinhel, e o
mesmo Christina, bem que Ruy de Nellas tão sómente respondesse ao
padre, accusando a recepção das cartas da filha, com a incumbencia de
dizer a Christina que lhe eram agradaveis as suas lettras. De Casimiro
Bettancourt só dizia o necessario, attinente ao processo.

Entre o velho e D. Sueiro corria declarada inimisade. Já o de Miranda
sabia que o seu sogro protegia Casimiro. Escrevera-lhe altivo reprovando
amargamente a incongruencia do seu proceder. O de Pinhel respondeu
que o marido de Christina padecia innocente, e D. Alexandre mentia
imputando-lhe a morte do faccinoroso, de que elle villãmente se
acompanhava. Replicou raivoso D. Sueiro, doestando o sogro, e ejaculando
phrases de lacaio a proposito do lustre de sua raça, sujada por um
parente, _posto que remoto garfo de seu tronco_. As palavras sublinhadas
affrontaram gravemente Ruy de Nellas! Este repto, quinhentos annos
antes, daria de si guerra a ferro e fogo, entre os dous ricos-homens. Mas
agora, n’este tempo de calmaria podre, em que as injurias se castigam
na policia correccional com multa de dez tostões e custas do processo,
Ruy de Nellas rebateu a provocação com outras não menos pungentes que
certeiras injurias. E foi grão-caso perguntar-lhe o velho se a Madre
Nazareth, fugida do mosteiro de Lorvão, em 1810, e agarrada por ordem
regia nas encruzilhadas do inferno, e mettida no tronco para se depurar
dos vicios, seria um garfo meritorio do tronco dos Parmas d’Eça ao qual
elle Ruy de Nellas se glorificava de ser estranho? Chegadas a tal extremo
as insolencias, a reconciliação era impossivel, apesar mesmo das frias
tentativas de D. Guiomar, que nunca fôra amorosa filha nem irmã.

As cartas do padre ao fidalgo aventavam como certo o mau resultado do
pleito em Coimbra, e invocavam o patrocinio de Ruy para que em Lisboa o
supremo tribunal ou o poder moderador dirimissem a sentença condemnatoria.

Teve Ruy de Nellas como acêrto escrever desde logo a sua irmã,
convidando-a a esquecerem o passado, para ir assim predispondo-a a mais
de vontade o servir. A condessa de Asinhoso respondeu com muito amor
ao irmão, lastimando que elle recusasse a sua amisade tantas vezes, em
diversos tempos, offerecida; e accrescentava: «Eu não podia odiar o mano
Ruy, que nenhuma parte tomou nos supplicios que me fizeram. Os algozes já
estão na presença de Deus!»

—Ainda não está arrependida!...—disse entre si o fidalgo, relendo aquelle
periodo.—Mulheres, mulheres!...—accrescentou sacudindo a cabeça.

Estranhará o leitor, que entre aqui mal cabido o episodio de umas
aventuras de D. Eugenia de Nellas, condessa de Asinhoso. Conto, porém,
com a sua attenção; e peço licença para me desvanecer de apontado em não
me desviar da historia principal, sem ao depois me justificar do defeito.

D. Frederico de Paim e Lucena, tio materno de Ruy, vivia na capital,
e muito no Paço, gozando as suas numerosas commendas, solteiro,
septagenario, e abastado.

Corria por sua conta a educação palaciana de dous sobrinhos, Vasco e
Gonçalo, irmãos de Ruy.

Eugenia, muito mais nova que seus irmãos, sahiu tambem de Pinhel, aos
doze annos, em 1806, para ser educada em convento, visto que sua mãe
tinha morrido, e sua cunhada a tractava asperamente.

Em 1811 sahiu a menina do collegio para casa de seu tio. Eram uns
dezoito annos superabundantes de quantas graças feminis, raras vezes, a
inspiração divina segréda aos creadores que dizem á tella ou ao marmore
o seu _fiat lux_, e o marmore e a tella desentranham em Fornarinas de
Raphael, em Collonas como as de Angelo, em Venus como as de Praxiteles.
D’estas, o artista, o que não é artista, o homem de coração e sêde do
bello, diz: «fel-as o cinzel ou o pincel dos anjos!» de Eugenia diria
o artista, o amador, o poeta, o moço ardente, o ancião esquecido de
seus ardores, diriam todos: «é um bafejo de Deus, uma alma vestida das
perfeições materiaes, privativas do céu, se no céu podem conceber-se
fórmas corporeas!»

Foi Eugenia requestada por consideraveis senhores da côrte. D. Frederico
respondia aos que solicitavam sua mão: «Minha sobrinha é orphã de pai e
mãi. Casará á sua escolha. Intenda-se com ella quem houver de ser seu
marido, que eu lavo as mãos d’ahi.»

Boa resposta; mas Eugenia repellia delicadamente os pretendentes, as
maviosidades, e as soberbas feridas na resistencia.

Pois tão dotada e fadada para amar, Eugenia era assim de refractaria
condição ao bem supremo da vida? Dar-se-ha que o seu peito seja dentro de
alabastro como se afigura no exterior?

Não; o mesmo amor de que a julgam inimiga é quem a incrueceu assim contra
os aulicos, os ricos, os soberanos da galanteria d’aquelle tempo.

Amava Eugenia, e amava desatinadamente. O eleito de sua alma era um
alferes de cavalleria, amavel de figura, composto de encantos; mas sem
fôro grande nem pequeno, sem amigos das primeiras casas do reino, sem
nome, que, ao menos, recordasse um general illustre, um lidador distincto
das ultimas pelejas grandes da patria com os estranhos. Um mero e simples
alferes, pallido, só, melancolico, e timido debaixo dos olhos d’ella.

O palacio de D. Frederico de Paim era na rua de Santa Barbara. O alferes
passava alli duas vezes em cada dia, e alguns dias duas vezes em cada
hora.

E ella via-o sempre, esperava-o sempre, esperava-o até mais vezes do que
o via. Gonçalo e Vasco viam-no tambem, e diziam:

—A assiduidade d’este homem!... Que cuidará elle, ou que cuidará nossa
irmã!

Indagaram pela rama; e, em occasião opportuna, disseram a Eugenia:

—Olha que o militar que vês ahi passar, e procuras vêr, é um biltre, que
principiou soldado. Sirva-te isto de governo, e lembra-te que és Eugenia
de Nellas Gamboa de Barbedo.

A menina, se a revelação a envergonhasse, córaria; se o coração lhe
doesse, impallideceria; ora, como nem córou nem impallideceu, é razão
presumir que o seu pudor e coração ficaram illesos; e, depois, concluir
que ella, assim mesmo, amava-o sem pejo da baixeza d’elle nem vangloria
de seus appellidos. Concluam assim que tem a maxima probabilidade do
acêrto.

E o alferes continuou a passar na Rua de Santa Barbara, e a surgir no
alto da collina da Penha de França, d’onde Eugenia do seu miradouro o
avistava.

D. Frederico, avisado pelos sobrinhos, disse que estava seguro do bom
siso de Eugenia; mas, por cautella, na primavera de 1815, quando a menina
já entrava nos seus vinte annos, foi passar seis mezes á sua quinta de
Camarate.

—O remedio prudente é este—disse o velho aos sobrinhos.—Não façamos
alarido, que ha casos de frageis avesinhas, espavoridas por algazarras,
romperem os arames da gaiola.

Quando isto foi, já o alferes se carteava com Eugenia, mediante a aia,
que viera de Pinhel.

A passagem para Camarate aggravou a infermidade. Convem saber que
ha casos em que o amor, o mais sadio e rosado dos deuses, se chama
«infermidade». Exemplo: amarem-se duas pessoas, divorciadas pelo acaso do
nascimento ou da riqueza, é infermidade; amarem-se, porém, um casal de
ricos, de nobres, de ralé social, ou de mendicantes, isso sim é amor, que
é saude, e só póde adoecer, n’uns, em hidropesia de tedio, n’outros, em
resiccação de fome.

A quinta de Camarate era um arvoredo, que competia com o reinado de D.
João III. Fôra plantado e alinhado por D. Mem Vasques de Lucena, sumilher
de El-Rei, e aio do infante D. João, pai de D. Sebastião Era memoria que
aquellas arvores, ainda tenras, tinham visto os amores de D. João III com
D. Izabel Moniz, moça da camara da rainha D. Leonor, amores que deram
de si o principe, arcebispo de Braga, D. Duarte, que morreu na flor dos
annos. Para alli diziam os Lucenas que o monarcha transferira a dama,
odiosa á rainha.

Parecia, pois, que a folhagem do arvoredo estava rumorejando uma chronica
de reaes amores.

As fontes respondiam ás arvores, as aves ás fontes, as borboletas
dialogavam com as flores, as flores trahiam com a viração as borboletas:
era tudo alli um suspirar, um ouvir-se muito interno harpas e córos,
symphonias aerias, milhares de pronunciações confusas da terra, dizendo
todas «amor»!

E para onde elles levaram Eugenia, que já comsigo levava a saudade!—a
saudade, verdugo que mata acariciando, corda de estrangulação tecida com
fios de ouro, segredo que Lucifer, ao despenhar-se, roubou do céu, e
nunca mais restituiu!

Alli é que o amor pegou d’ella com violenta mão, sendo que até áquelle
dia lhe fôra sempre mão cheia de meiguices e serenas esperanças.

Gonçalo e Vasco julgaram sua irmã segura, e ficaram por Lisboa, onde
tinham seus affectos, e suas devassidões. O velho, contente com as suas
arvores, e com a menina, que lhe ouvia a menos edificativa lenda dos
amores de D. Izabel Moniz, não sahia de Camarate.

Á noite, assim que a brisa esfriasse, D. Frederico digressava do jardim,
dava um osculo em sua sobrinha, e fechava-se em seus aposentos.

Ora, depois ainda, a menina ficava sentada no banco rustico, resguardada
de sycomoros, aspirando as baunilhas, sacudindo as granulações das
pimenteiras, ou devaneando pela via lactea fóra, de constellação em
constellação, com os olhos lá, e o coração na terra proxima, no muro
da quinta por onde o alferes subia. E não se atemorisava dos plátanos
gigantes nem das danças macabras das sombras, agitadas pelo vento da alta
noute!

Á uma hora rugia a folhagem debaixo dos seus pés nas ruas ladeadas de
murtas; os molossos lambiam-lhe as mãos, sorvendo os latidos ferozes; as
avesinhas acordavam e saudavam-na ao passar; o rouxinol das cinceiras
soltava as notas mais dilectas; e ella ia á gruta conhecida, e esperava
com a mão no seio como quem diz ao coração: «Espera, ditoso impaciente!»

Ao abrir da manhã de 16 de agosto d’este anno de 1815, Eugenia ouviu
quatro tiros nas cercanias da quinta, e tremeu, tremeu até cahir de
joelhos.

D’ahi a pouco estrondearam os argolões do portão da quinta. A aia entrou
ao quarto da menina, e disse:

—Chegaram seus irmãos. O senhor Gonçalo vem ferido n’um braço: já foi
chamar-se o cirurgião ao Lumiar.

Gonçalo e Vasco estrenoutaram o tio, e fecharam-se com elle. O que ahi
disseram collige-se dos successos seguintes.

Durante o dia, Eugenia não viu seus irmãos nem tio. Sabia que se faziam
preparativos de viagem. Mandou indagar dos caseiros o que seriam os tiros
da madrugada. Os cazeiros tinham ouvido as detonações, e a estropeada de
cavallos. Estaria morto o alferes?

—Matal-o-hiam?—perguntava Eugenia á sua aia—e, depois, ousava perguntal-o
a Deus.

Se ella podesse ouvir este dialogo dos irmãos...

—Chego a duvidar que as pistolas tivessem ballas—dizia Gonçalo.

—Carreguei-as eu—afirmava Vasco.

—E foi-se a salvo!

—Quem sabe?!

—Não o viste correr sobre nós, e desfechar de perto, e retirar-se muito a
passo? E depois não o avistaste a subir a charneca sobre o cavallo?

—Vi.

—Como queres tu que elle fosse ferido!?—retorquiu Gonçalo—Com meia
pollegada á esquerda, o canalha mettia-me a bala na cintura—dizia elle
levando a mão ao ante-braço direito—Eu é que estou ferido devéras... Não
contávamos com isto, Vasco! O homem tem fibras!

Ao fim da tarde, sahiu da cocheira uma caleça de jornada apposta á
parelha de machos.

N’esta occasião foi chamada á presença de seu tio, que mansamente lhe
disse:

—Se tivesses pai ou mãi, mandar-te-ia para elles, sem te dizer a razão:
tu a saberias de mais, e eu me pouparia á dôr e pejo de repetil-a.
Entrego-te a teus irmãos. D’elles te defendi alguma vez; agora estou
desarmado pelo teu proceder. Disse de mais. Ahi fóra está posta a caleça
para conduzir-te a outra parte, segundo vontade de Vasco. Não vai
Gonçalo, que está ferido da bala do homem que saltava os muros da minha
quinta, com teu consentimento. Adeus, Eugenia.

D. Frederico entrou rapidamente no seu quarto, contiguo á sala, e
fechou-se a chorar.

Vestiu-se Eugenia soluçante, e cobrou animo, quando viu que a sua aia se
preparava. Entraram ambas na caleça, onde as seguiu Vasco. Chegaram de
noute a Lisboa, e pararam á porta do palacio de D. Frederico.

Vasco mandou descer a aia de sua irmã, e disse-lhe:

—Sobe; diz ao mordomo que te pague; e vai á tua vida.

—Onde vai ella?!—gritou Eugenia.

—Não queremos gritos—atalhou o irmão.—Pica, bolieiro!

As mulas galoparam até entrarem á estrada do Beato Antonio, onde Vasco de
Nellas cavalgou, adiantando-se.

A jornada de Eugenia durou dous dias e meio. Parou a carroça diante de
um palacete velho, em Recaldim, no termo de Torres Novas. Era ali uma
grossa commenda de D. Frederico, casa chamada da «renda», habitada pelos
Pains de Lucena, quando, desgostosos da destronisação de Affonso VI, se
affastaram da côrte.

Entrou Eugenia a um grande salão decorado como o deixaram seus avós,
quando voltaram a Lisboa.

A tranzida menina sentiu frio e medo.

Surdiu-lhe logo, de sob a orla de um reposteiro de côr inqualificavel,
uma creatura, ao que parecia, femeal. Dirieis que uma cuvilheira dos
Lucenas, adormecida em 1680, ao sahirem seus amos, acordára como
Epimenides, cento e trinta annos depois, e estremunhada sahira ao salão
para vêr qual das fidalguinhas Pains estava a soluçar.

Eugenia encarou-a, e estremeceu.

—Entrou a velha, fez tres mesuras, e disse:

—Guarde Deus a v. ex.ª

—Adeus—murmurou Eugenia.

—Em quanto não chegam as outras creadas—tornou a creatura com ares
benignos—a fidalga queira mandar-me em seu serviço. Eu fui ama de leite
de sua mãezinha, que foi casar a Pinhel.

Estas palavras reanimaram Eugenia, que se aproximou voluntariamente da
velha, em quanto ella continuava:

—V. ex.ª é o retrato d’ella: já o sabia por m’o dizer o sr. Frederico;
mas eu estou aqui ha quarenta annos desde que ella casou. Seu avô, o sr.
D. Carlos de Lucena, mandou-me para Recaldim com ordenado e casa para
a velhice. Já quiz botar-me por essa estrada fóra, até Lisboa, só para
ver a filha da minha menina; mas a carga dos annos, oitenta bons, não se
leva onde a gente quer. Fiquei agora atonita, quando vi entrar o menino
Vasco, e me disse: «minha irmã vem aqui estar algum tempo. Ámanhã chegam
outras creadas, que ficam debaixo da sua vigilancia, e um creado que lhe
transmittirá as minhas ordens.

—O mano já sahiu?—atalhou Eugenia.

—Chegou ás quatro, e sahiu ás cinco horas da manhã. Admiro que v. ex.ª o
não encontrasse... Então é que foi pelo caminho de baixo.

Eugenia, n’um impeto de confiança, abraçou-se na velha, e exclamou:

—Por alma de minha mãi, vale-me?

—Se lhe valho, meu serafim? que quer v. ex.ª da sua serva humilde?

—Queria escrever uma carta.

—Ó menina, isso barato é de fazer; mas o rendeiro da commenda anda á
cobrança, e levou a chave da sala, onde está o tinteiro e o papel.

—Pois nem um bocadinho de papel?!... Não tem um livro?...

—Livro tenho as minhas _Horas_ e o _Retiro Espiritual_.

—Deixa-me vêr se ha uma lauda em branco?

O _Retiro_ tinha a folha do ante-rosto surrada, mas susceptivel de
receber caracteres. Eugenia despregou um alfinete, picou o dedo
indicador, apertou-o até bolhar sangue. Depois com a cabeça do alfinete
embebida, escreveu:

_Estou em Recaldim, perto de Torres Novas, na commenda do tio. Aqui
morrerei._ Voltou-se com recrescente vehemencia para a velha, e disse:

—Dá-me um bocadinho de pão para eu fechar este bilhete?

—Sim, minha menina.

Mastigou o pão, fechou o bilhete e subscriptou-o.

—E agora?—tornou ella—o peor é agora...

—Que queria v. ex.ª?!

—Que me levasse esse bilhete a Lisboa.

—A Lisboa? A menina não sabe o que é ir a Lisboa! São dous dias e meio de
jornada, andando de noute duas horas.

—Não importa... Eu pago...

—Mas pagar a quem, meu anjinho do Senhor? Ora venha cá... isto é paixão?

—Paixão de morrer, minha amiga...

—Chame-me sua creada Brites. Paixão para bem ou para mal?

—Eu queria casar-me com elle; mas meus irmãos perseguem-nos.

—Eu logo vi que a vinda de v. ex.ª era cousa de amor... O seu adonis não
é fidalgo pois não?

—Não é...

—Logo vi... E é pessoa de bom porte?

—É um alferes de cavalleria, muito bom de coração, muito gentil, a minha
paixão unica, o meu disvello de ha tres annos, a minha vida... e será a
causa da minha morte.

—Coitadinha! Deus o fará melhor. Então quer a menina que elle saiba que a
trouxeram para aqui?

—Sim, queria.

—Então, deixe estar, que eu de hoje até ámanhã, hei de cogitar no caso.
Pediu-me isso por alma de sua mãi, eu só se não poder de todo em todo.
Quem me ha de levar a cartinha, se as contas me não falham, ha de ser o
cocheiro da caleça; mas o peor é não termos outro papel... Ora espere,
que eu tenho alli uma sentença que me cá deixou meu sobrinho, que andava
a aprender a ler. Tinta arranja-se sem a menina furar os seus mimosos
dedinhos. Com uma pouca de felugem da chaminé e vinagre, faz-se tinta.
Penna, vai se tirar uma de gallinha, e com uma faca fazem-se-lhe os bicos.

A sr.ª Brites em tanto tempo quanta era a anciedade de Eugenia, veio com
tudo a ponto: meia folha de papel sellado do tempo de D. João V, uma
tigella com a dissolução de felugem em vinagre, uma penna de galinha, e a
faca mais afiada.

Eugenia, se se não uzasse o aparo das pennas, tel-o-ia inventado n’essa
occasião.

Estava tudo em ordem. Sorveu a sr.ª Brites uma pitada de esturrinho, e
disse:

—Escreva lá v. ex.ª



XV

Continuação


D. Eugenia escreveu o que dictava Brites:

«Minha sobrinha. Logo que esta receberes, sem demora de tempo, vai tu
mesma em pessoa pessoalmente...»

       *       *       *       *       *

—Onde é que ella ha de ir levar a carta?—perguntou Brites.

—Ao quartel de cavalleria a Alcantara.

—Escreva, meu serafim:

    «Vai ao quartel de cavalleria a Alcantara, e entrega o bilhete,
    que vai dentro d’esta, á pessoa que lá diz por fóra...»

—Eu—interrompeu-se Brites atacada de modestia—não tenho muito geito para
notar cartas; mas o que a gente quer é que nos entendam.

—Vai muito bem—disse Eugenia.

—Pois ponha lá:

«Toma conta que a não vás entregar a outra pessoa; e da resposta que
houver escreve-me para Torres Novas. Sem mais enfado, tracta d’isto como
coisa de muita... de muita...»

       *       *       *       *       *

—Ponha lá a menina uma palavra, que diga... sim... que diga que é cousa
de muita aquella.

—De muita consideração.

—Isso mesmo.

Eugenia sobrescritou á sr.ª Apollinaria dos Martyres, na calçada dos
Barbadinhos, n.º 21—quinto andar á esquerda.

A irmã de Ruy de Nellas abraçou-se na ama de sua mãi, e clamou:

—Cuidei que estava mais desamparada. Ha almas boas em toda a parte,
louvado seja o Altissimo!

—_Amen_—respondeu christãmente a sr.ª Brites, e foi á cosinha, onde o
bolieiro estava jantando para voltar com a caleça ao fim da tarde.

—Vm.ᶜᵉ faz-me o favor de entregar em Lisboa uma carta á minha sobrinha?
Aqui vae o nome e a rua. Se lhe não custa...—disse a velha.

—Não me custa nada, tia Brites; mas dobre-me a porção de vinho.

—Ahi vai, homem. Beba; mas não desatreme, nem me perca a minha cartinha.

—Fique certa, que de hoje a tres dias por estas horas, já está nas mãos
da dita supplicanta. Diz ella tudo pelo claro nas costas?

—Vai tudo pelo claro.

—Então, metta-m’a ahi no bolso da jaqueta, e carregue-me o copo.

Foi a carta entregue á sr. Apollinaria, e o bilhete ao alferes de
cavalleria, o qual, segundo veridicas informações da engommadeira da rua
dos Barbadinhos, chorou, e vasou as algibeiras nas mãos tolerantes da
sr.ª Apollinaria.

Escreveu o alferes uma longa carta a D. Eugenia. Principiava contando
a descarga de dous tiros inuteis que lhe déram. Disse não conhecer as
pessoas, que lhe atiraram, por virem rebuçadas, e estar ainda a limpar
a manhã. Contou que o não feriram; mas suppunha elle ter sido mais
certeiro na pontaria. Acrescentava que ia ser removido para Bragança, por
intrigas e influencia dos irmãos de Eugenia; e declarava-se, a final tão
desgraçado e desprovido de recursos, que não podia ir arrebatal-a das
mãos da sua cruel familia, sem desertar, e collocar-se na precisão de ir
perecer de miseria com ella em reino estrangeiro. Pedia-lhe, em summa de
tudo, animo, e esperança.

Leu Eugenia a carta com profundo desgosto.

«Não me terá elle amor?!»—disse ella entre si.

Viu-a chorar a devotada Brites, e pediu-lhe o favor de lhe ler a carta.
Quiz ouvil-a segunda e terceira vez. Consolidou as suas convicções com
uma pitada e disse:

—Esse rapaz, quem quer que elle seja, tem tino na cabeça, e pensa bem. A
menina por que chora?

—Nem sequer falla em vir vêr-me!...

—Pois se o pobre homem vai de marcha lá para cascos de rolhas, como quer
a fidalga que elle deserte ás bandeiras, e venha aqui? E depois? que
seria d’elle? e a sorte da minha flor do céu, era muito melhor!?...

Pudéram muito com D. Eugenia as razões de Brites, e mais ainda a promessa
de tomar a velha á sua conta a correspondencia segura entre Bragança e
Torres Novas.

Era chegado o momento de uma confidencia, que tem sido o balsamo de
piedade em coração de pais lacerados, pela ira e pela deshonra: não será
muito que o leitor, invocado a julgal-o O BEM E O MAL d’esta serie de
biographias, dê sua piedade á desventura culpada, assim como tem dado
suas bençãos á virtude sem nodoa. Ha crimes repulsivos; o engenho mais
abalisado, a philosophia mais bem fingida, sob capa de verdade, tenta
em balde mover-nos á compaixão do delinquente, em quanto o retalhar do
remorso o não fez delir com lagrimas o stygma que a moral lhe assignalou:
outros crimes, porém, são de si, e por vontade divina, sympathicos não
direi; mas, se a ré se pranteia, e se olha em seu seio, e exclama: «Ó
meu Deus! hei de eu espedaçar em respeito ao mundo este filho, que é
o meu amor e o meu opprobrio?... hei de eu abafar o grito da minha
consciencia e coração, para que o mundo me veja um rosto limpo, um rosto
lavado no sangue do meu filho?...» Quando a mulher assim falla a Deus,
a misericordia divina dá-lhe um anteparo contra as injurias do mundo; e
o mundo, se lhe adivinha as dôres, e o mimo d’aquella paixão, á qual só
falta um sacramento para ser santa, o mundo perdoa-lhe, embora a repulse
do contacto das almas candidas, das suas filhas, das suas esposas, das
suas irmãs, que Deus permitta não humilhem com maiores desprezos a
desgraçada que é mãi.

É, pois, chegado o momento da confidencia. Quem a recebe é a consternada
velha, que vira nascer a mãi d’aquella menina. Até áquelle momento,
Brites estivera longe de imaginar um erro n’aquelles amores: julgava-os
na sua maxima pureza. Descem lagrimas nas rugas dos oitenta annos,
lagrimas de bom agouro, que deixam mais livre o accesso á piedade.
Eugenia cuida que o revelar-se aos irmãos lhe dará um esposo, lhe será
redempção de ignominia.

—Não, minha infeliz senhora, não!—exclama a velha.

E conta-lhe tres identicas e desventurosas historias, que ella presenciou
em sessenta annos de serviço n’aquella familia: tres mulheres sepultadas
em conventos, onde nunca entrou raio de contricção nem conforto.

       *       *       *       *       *

O alferes sabe em Bragança as agonias de Eugenia, e sente n’alma o
estylete excruciante da expiação. Nenhuma morte sustenta o parallello com
as flagellações de seis mezes, soffridas a tantas leguas de distancia.

Eugenia recebe o ar e a luz pela janella do seu quarto unicamente.
Teme-se da observação das creadas, que lhe espiam os passos, em
suspeitarem de Brites. A velhinha tudo provê e prevê; mas, a intervallos
quer morrer, antevendo as agonias da hora improrogavel, da hora em que
o grito de afflicção rompe atravez das mãos da vergonha, que tentam
suffocal-o.

Era no mez de dezembro de 1816.

O alferes lançou-se aos pés do general da provincia de Traz-os-Montes,
que demorava em Bragança n’essa occasião. Abre-lhe sua alma, em torrentes
de pranto. O velho general chora, e diz:

—Tenho rigorosas recommendações a seu respeito; mas vá, peça-me licença
para ir ver sua familia. Dou-lh’a por quinze dias. Vá, embora eu tenha de
soffrer.

O alferes vestiu habitos paisanos e desceu a Torres Novas. Alli vestiu-se
de mendigo, simulou uma paralisia de braços, e pediu gasalhado em
Recaldim. Trocou ligeiras palavras com Brites, e não viu Eugenia. Voltou
á albergaria do commendador algumas noutes. Os creados contemplavam-n’o,
e diziam:

—Tão novo e tolhido de braços!

As creadas accrescentavam:

—E não havia de ser feio!

Na noute de quinze de janeiro, por volta de onze horas, abriu-se a porta
da albergaria, entrou Brites com a face alagada de suor e lagrimas. O
alferes formou entre os braços com as dobras da capa de mendigo uma
caminha de farrapos, recebeu um menino, e sahiu. A duzentos passos estava
o leal camarada do official, com um cavallo á redea. O alferes cavalgou,
o auxiliar saltou á anca do cavallo, e partiram.

Em Torres Novas alimentaram o recemnascido. Proseguiram até Santarem,
onde foi baptisado sete dias depois. Alli veio uma ama do Cartaxo, e o
levou comsigo.

Estava a expirar a licença. O alferes entrou no quartel, á ultima hora, e
beijou as mãos do general, dizendo:

—Dei-lhe o nome de v. ex.ª. Ahi me fica a memoria da sua commiseração,
general!

       *       *       *       *       *

D. Eugenia de Nellas, dous mezes depois d’estes successos, recebia uma
carta de seu irmão Vasco, participando-lhe que ia casar com uma titular
brazileira, agraciada pelo sr. D. João VI, e convidava sua irmã a
acompanhal-o á côrte do Rio de Janeiro.

D. Eugenia respondeu que queria viver e morrer no seu desterro de
Recaldim.

    «Bem sei—replicou Vasco.—Bem sei...—Brevemente, se quizeres
    salvar o amante, mudarás de resolução.»

Decorreram alguns mezes. Instaura-se processo a Gomes Freire de Andrade.
São presos os cumplices da conspiração, e os suspeitos cumplices. O
alferes é chamado a Lisboa, e recolhido ao castello de S. Jorge, como
indiciado nos planos subversivos do general Freire de Andrade. São os
Lucenas que tramam a bem agourada perdição do alferes.

Eugenia é avisada do encarceramento do alferes.

A faca apontada ao peito da timida senhora é um dillema: se ella persiste
em ficar, o alferes morrerá; se vai para o Brazil, o réu absolvido.

Eugenia vai para o Brasil, o alferes, sem saber porque o accusam, nem
porque o absolvem, sahe do castello e entra nas fileiras.

Ruy de Nellas, acantoado sempre no seu solar de Pinhel recebera a
infausta nova da queda de sua irmã. Respondendo a Vasco, disse: «Não
tenho irmã, nunca me fallem n’essa mulher. Fizeram bem não me dizer o
nome do insultador de nossa familia, se é que elle tem nome.»

       *       *       *       *       *

Saltemos a 1820. D. Eugenia é o assombro dos salões do Rio de Janeiro.
Reviçam-lhe todas as graças; a da melancolia realça-lh’as, melancolia que
dava a entender que o anjo, lembrado do céu, tinha saudades.

Vasco é-lhe odioso. A casa do irmão atormenta-a como um ergastulo. Perdeu
esperanças de voltar á patria, e aspira a ver no céu o esposo de sua alma.

De repente, como que as esperanças lhe morrem, e a querida dos fidalgos
brazilienses desce os olhos sobre a terra.

Vê um conde que fôra de Portugal com o principe regente, e a requesta de
joelhos. E vai ella, levanta com a sua mão o homem que ha de resgatal-a
do dominio do irmão, e sahe condessa de Asinhoso da casa abominada.

No redemoinho das festas, a condessa parece estar sempre em contemplação
d’um tumulo. E o marido mais a adora assim; e ella, de lhe ver o amor
atravez das lagrimas, enchuga-lh’as e pede a Deus um novo coração para
seu marido.

Nunca mais seus labios responderam a Vasco; e, ao terceiro dia de casada,
disse ao conde:

—Meu amigo, a presença de meu irmão n’esta casa é como a do algoz da
minha felicidade, e da tua, se posso dar-t’a.

O conde de Asinhoso ouvia sua mulher, e obedecia com jubilosa escravidão.

Gonçalo de Nellas havia morrido em 1819. D. Frederico Pain de Lucena
morreu em 1820, legando os seus bens ao sobrinho vivo; Vasco, em viagem
para a patria, morreu de febres.

A condessa enviuvou em 1833. Cuidou em liquidar os seus copiosos haveres,
e voltar a Portugal.

Uma delirante esperança vinha com ella. Rica, livre, com a alma inteira
no seu passado amor!

Desembarcou em Lisboa por junho de 1834. Reinava D. Pedro IV.

Mandou indagar do alferes de 1817 aos seus camaradas anteriores á scisão
politica. Responderam-lhe que tinha morrido na guerra.

Ergueu ella então as mãos e disse:

—Ó meu Deus: merecia eu tamanho castigo?!

Mandou ainda perguntar por um filho do militar que morrera. Ninguem deu
novas de tal filho. O espirito publico batia as azas ainda no ambiente de
fogo e ninguem curava saber onde podia existir o filho d’um official que
morrera rebelde.

Foi então que a condessa d’Asinhoso, aterrada da sua soledade, escreveu
a Ruy de Nellas, pedindo-lhe a sua estima, e uma filha que lhe fosse
companhia.

O irmão não lhe respondeu.

       *       *       *       *       *

Esta é a historia triste da senhora cujo valimento Ruy de Nellas vai
pedir a favor de seu genro.

Qual é o valimento da condessa em Lisboa? É o prestigio da riqueza, e da
belleza ainda.

Quarenta e seis annos, com trinta de amarguras e ainda formosa! É que ha
mulheres de tamanha alma, que primeiro o fel da desgraça ha de enchel-a
antes que o corpo se alquebre.

Das masmorras de 1793 sahiam formosissimas mulheres para a Guilhotina.

A mulher de Luiz XVI tinha pequena alma, sonhára vinganças mesquinhas, e
por isso lhe encaneceram os cabellos n’uma hora.

Madame Roland, a scismadora de revoluções uteis, ia formosa no seu carro
de morte.

Carlota Corday illuminou-se de formosura mystica ao vêr-se espelhada no
aço do alfange.



XVI

O julgamento


Ao cabo de cincoenta dias estava o processo prompto para entrar em
julgamento. Dominava em Coimbra a opinião de ser inevitavelmente
condemnado Casimiro de Bettancourt. A innocencia que algumas pessoas
apregoavam, era em geral recebida, a riso, como um paradoxo.

A alma de Christina confrangia-se, e os labios sorriam ainda. Era ella
só quem ainda simulava esperanças; mas que supplicios surdos lhe custava
dissimulação!

Ladislau e o vigario em vão queriam imital-a. A sua tristeza era como
as trevas do cego que não se allumiam ao tremor convulso da palpebra.
Queriam esperançar-se e de toda a parte lhes soava como irremediavel
a sentença. Rosnava-se em compra de jurados: não era preciso arguir
ao suborno a condemnação. Casimiro estava sem defeza: o seu silencio
impressionava favoravelmente as almas distinctas; o vulgacho, porém,
que havia de julgar das provas, daria importancia nulla á mudez do
réu. Os protectores de D. Alexandre eram os mais graudos fidalgos de
Coimbra e cercanias. Por Casimiro Bettancourt ninguem pedia. O padre e o
cunhado, reduziam-se a promover o andamento rapido do processo, pagando
liberalmente as despezas e actividade do procurador. Isto era bastante;
mas faltava muito.

Ruy de Nellas affligia-se a cada nova carta desanimadora que recebia;
entretanto, a solução favoravel em Lisboa era um respiradouro para elle e
para os poucos amigos do preso.

Designado o dia do julgamento, o pai de Christina escreveu a sua irmã,
contando-lhe os pormenores do casamento da filha, as desventuras do
genro, a sua innocencia no crime assacado, a indefeza pertinaz em que se
pozera, o mysterio do homicidio, a certeza de que o silencio de Casimiro
Bettancourt era um heroismo de honra, talvez novo. Rematava pedindo á
condessa de Asinhoso, que patrocinasse em Lisboa sua sobrinha, que era
mãe e esposa extremosa.

Na ante-vespera da audiencia, travaram desordem uma malta de academicos
richosos com as patrulhas nocturnas. Alguns estudantes retiraram feridos,
e invocaram Guilherme Lira, em nome da honra academica. O chefe da
Sociedade da Manta respondeu que n’uma das proximas noutes, seria vingada
a academia.

No dia immediato entrou Guilherme no escriptorio de um tabellião, e pediu
meia folha de papel sellado. Assignou-se no fundo da lauda, e fez que o
notario lhe reconhecesse a assignatura.

Recolheu a casa, e deteve-se algum espaço, escrevendo no branco da
folha assignada e reconhecida. Fechou em fórma de officio, lacrou, e
escreveu algumas palavras no involucro. Depois fez algumas cartas: uma
subscriptada a D. Joaquina Soares de Lira, sua mãi, residente em Evora;
outra a sua irmã, casada em Extremoz; e ainda uma terceira brevissima,
dirigida a uma senhora, que tinha o segredo da ferocidade d’aquelle
homem. Terminava assim: «Não te cito para o céu nem para o inferno.
Chamo-te diante do teu proprio remorso. Viste-me um anjo aos dezoito
annos; e fizeste de mim isto que sou. Não te accuso: lá tens dentro
d’alma o teu algoz. É tempo de acabar.»

Deitou a carta na caixa postal, e foi á cadeia, segundo o seu costume
quotidiano, vêr Casimiro. Eram quatro horas da tarde. Estava o jantar na
meza. Guilherme sentou-se ao lado de Christina, e comeu com appetencia.
De uma vez inclinou-se ao ouvido da senhora e disse-lhe:

—Ámanhã já v. ex.ª janta em sua casa com seu marido...

Christina soltou um brado de alegria.

—Que é?!—inquiriram todos.

Guilherme fitou-a e descahiu as palpebras.

Era impôr-lhe silencio, e ella abafou a revelação, que lhe crispava
nervosamente os labios, e arquejava o seio.

Esperaram, brevemente a resposta com anciedade. Christina fitou os olhos
supplicantes no academico, e elle, erguendo-se, disse:

—Póde fallar, minha senhora, d’aqui a instantes.

E abraçou Casimiro, beijando-o nas faces ambas; abraçou Christina
osculando-lhe a fronte; apertou affectuosamente as mãos de Peregrina,
Ladislau e padre João; affagou as duas creancinhas, e sahiu de golpe.

Casimiro chamou-o com vehemencia, e elle não voltou.

Referiu Christina o que lhe ouvira. Casimiro concentrou-se, pensou alguns
minutos, e disse:

—Não mentiu. Ámanhã jantaremos em liberdade.

Pediram-lhe o sentido das palavras do academico.

Bettancourt respondeu:

—Ámanhã.

Notaram todos que a tarde e noute d’aquelle dia foram as mais tristes
horas de Casimiro na sua prisão de dous mezes. E, comtudo, Christina
escondia o seu contentamento.

Eram dez horas da noute, quando Casimiro ouviu grande grita e o estrondo
de alguns tiros. Estava já sósinho, passeando febrilmente na saleta, e
disse entre si:

—É agora.

O alarido e o tiroteio continuaram.

Collou o ouvido ás portadas da janella, e ouviu dizer na rua:

—Mataram o Lira.

Meia hora depois recahiu tudo em silencio quebrado pelas passadas
das patrulhas em tresdobro. E o carcereiro bateu de manso á porta de
Casimiro, e disse:

—Dorme?

—Não. Póde entrar.

—Vou contar-lhe o que vai. O seu amigo Lira espancou as patrulhas, que
encontrou desde o bairro alto até á rua do Coruche. A Sociedade da Manta
appareceu em armas, atacou reforço, que sahiu do quartel. Quando ia
retirando para o Monte Arroio a estudantada debaixo de fogo, o Lira ficou
atraz, sem arma nenhuma, a não ser o varapau de choupa que mettia a peito
dos soldados. Tinha elle recuado até ás grades de Santa Cruz, quando
cahiu morto com uma bala atravessada de fonte a fonte. Meu filho vem
de observar. Faz dó ver um homem tão valente assim morto como se mata
qualquer poltrão!...

—Obrigado á sua noticia.

—O sr. ficou triste devéras!—tornou o carcereiro—Tem razão, que elle era
seu amigo d’uma vez!... Boas noites, sr. Bettancourt. Ámanhã é o dia da
grande batalha, espero em Deus que...

O carcereiro tão certo estava da condemnação, que não ousou concluir a
phrase da esperança em Deus.

Mal se abriram as portas da cadeia, entraram Christina e os amigos a
contarem o successo. A justiça ia tomar conta do espolio do morto.
Coimbra estava agitada de terror. Esperava-se grande lucta da academia
com a tropa no acto do enterro de Guilherme. Suppunha o padre que se não
abrisse o tribunal, para obviar o azo da desordem. Contou Ladislau que
o estudante, na vespera, tinha ido reconhecer a sua assignatura a um
tabellião. Christina, que tudo sabia, esperava que seu marido fosse salvo
por uma declaração de Guilherme. Eram, porém, nove horas, e não apparecia
alvará de soltura, nem contra ordem de julgamento.

Ás dez horas chegou o official de juizo para acompanhar o réu ao tribunal.

Logo á sahida do carcere, ouviu Casimiro dizer:

—É preciso ir acabando com os assassinos. Um já lá vai: este não tarda;
os outros hão de ir quando lhes chegar a vez.

Quem tão sisudamente discreteava era o cidadão honesto da Couraça dos
Apostolos, em cuja cabeça Guilherme deixára um signal inutil para a
morigeração da pessoa.

Sentou-se Casimiro no banco dos réus. Christina, Peregrina, o padre e
Ladislau ficaram fóra da teia. D. Alexandre de Aguilar, como parte,
sentára-se entre o seu advogado e o representante do ministerio publico.
Na acareação de author e réu, perguntado o primeiro se reconhecia em
Casimiro Bettancourt o sujeito que espancára, o fidalgo respondeu:

—Não podia ser outro.

—Pergunto a v. ex.ª se é aquelle e não se podia ser outro—replicou o juiz.

—É aquelle.

Sahiram a depor as testemunhas de accusação. Eram concordes em dizer que
viram entrar na casa do réo o sujeito que matára um homem, e deixára
outro estendido. Recordaram todas as precedentes aggressões que o réu
fizera contra o author, já no botequim da rua Larga, já na ponte. O
cidadão honesto sobreexcedeu a má vontade das demais testemunhas, dizendo
que o réu era sujeito de tão máus costumes que roubára uma filha a um
fidalgo seu bemfeitor, e com a filha roubára as joias da familia.

—Esse infame está a mentir!—exclamou Christina.

Casimiro voltou-se para o lado onde estava sua mulher, e encarou-a fito,
com severo olhar.

O juiz disse:

—A senhora não pode aqui fallar.

—O que ella diz não se escreve—accrescentou a faceta testemunha, sorrindo
do alto da sua probidade.

—Querello da testemunha—disse o advogado do réu.

—Eu não querello da testemunha—emendou Casimiro.

—Em tempo competente resolverão—admoestou o juiz.

Convergiram todos os olhares sobre Casimiro.

Um dos jurados disse:

—Eu já não condemno aquelle homem!

—Porquê?!—perguntou o visinho.

—Aquelle homem está innocente ou é doudo.

—Qual doudo? aquillo é um grande farcista! Elle não querella da
testemunha, porque sabe que roubou as joias.

Terminou o depoimento de accusação por parte do author e do ministerio
publico.

Esperava-se por testemunhas de defeza: o escrivão disse que não estavam
inscriptas nenhumas.

—É doudo ou não?—disse o jurado bem intencionado.

—Qual doudo? replicou o outro.—É tão patife que não tem quem o defenda.

Ia levantar-se o patrono de D. Alexandre, quando o administrador do
concelho entrou na sala do tribunal, e entregou ao advogado do réo uma
carta em fórma de officio.

O orador, que já tinha dito: «Srs. jurados!» suspendeu-se.

O patrono do réo leu uma meia folha de papel, e disse, em pé, com os
cabellos hirtos:

—Sr. doutor juiz de direito, v. ex.ª me dirá se o debate deve continuar,
depois de ler a declaração que remetto á consideração de v. ex.ª.

Machinalmente ergueram-se todos, auditorio, e jurados.

O juiz leu mentalmente, e passou o papel ao delegado. Trocaram breves
palavras, e deram ao official de justiça o papel.

—Leia o sr. advogado do réo—disse o juiz.—Eu por mim intendo que terminou
o debate.

—Sou de egual parecer!—ajuntou o ministerio publico.

O advogado de Casimiro, limpando as camarinhas do suor, leu com voz
tremente de alegria e commoção d’alma:

    «Declaro eu Guilherme de Noronha e Lira, estudante do 5.º anno
    de direito, que fui eu quem matou, na noute de 16 de janeiro do
    corrente anno de 1840, um creado de D. Alexandre de Aguilar,
    e empreguei os meios de matar tambem o amo. Não tinha contra
    algum d’elles motivo de odio pessoal; mas, como inimigo jurado
    de poltrões covardes, e sabendo eu que elles espreitavam
    ensejo de matar Casimiro de Bettancourt, mancebo tão honrado
    como valente, protestei livral-o de tão miseraveis inimigos,
    atacando-os sósinho e sem mais arma que um páu de choupa, no
    momento em que elles tinham arrombado a porta de Casimiro
    para o irem matar entre sua mulher e sua filhinha d’um anno.
    Declaro mais que fui eu quem afugentou a companhia, postada
    ás portas de Casimiro na intenção de o arrancar ás garras
    da justiça; mas o meu amigo não quiz fugir, assegurando-me
    que se havia de salvar sem pôr em risco a minha segurança. E
    por tanto, resolvido a acabar com a vida, poucas horas antes
    de me deixar matar, faço esta declaração, e peço a Casimiro
    Bettancourt perdão de o ter infelicitado, quando cuidava que
    o beneficiava com o meu zêlo guardador da sua preciosa vida.
    Peço tambem perdão da inexplicavel fraqueza que me tolheu de
    eu ter feito esta declaração desde o momento que o meu amigo
    entrou no carcere. Eu sei que elle me perdoou; mas volto as
    minhas supplicas para a esposa attribulada, que tantas vezes,
    com um sorriso de amiga, devia execrar o causador das suas
    calamidades! Faço esta declaração debaixo dos olhos de Deus,
    e juro pela virtude de minha mãi que é verdade o que digo, e
    será infame quem me não acreditar. Coimbra 19 de março de 1840.
    _Guilherme de Noronha e Lira_».

D. Christina perdêra o alento nos braços de Peregrina. Muitos academicos
romperam de salto a teia, e vieram parar no meio da sala. O advogado
do réu, esquecido das praxes, foi abraçar o cliente, que parecia dar
levemente conta da agitação do auditorio, e applicava o ouvido aos
soluços da esposa. Os jurados limpavam as lagrimas, excepto um que
tinha recebido uns vinte mil réis de D. Alexandre. O fidalgo-autor
acachapara-se de modo, que parecia querer sumir-se debaixo da meza. O
seu advogado lia a declaração, e carecia de coragem para impugnar-lhe a
validade. O juiz dizia ao delegado:

—Deviamos esperar isto, ou cousa semelhante. Este homem, sem provar nada,
tinha provado a sua innocencia.

E o delegado confirmava:

—Eu espero a minha vez de abraçal-o!

O cidadão honesto da Couraça dos Apostolos ia a sahir, quando Casimiro,
que parecia absorto, disse:

—Sr. juiz, peço a v. ex.ª a graça de ordenar áquella testemunha, que se
demore um instante.

—Quer querellar!—bradou o patrono.

—Não quero querellar—acudiu Casimiro, desabotoando uma carteira, d’onde
tirou um papel, e accrescentou:

—Disse a testemunha que eu roubára as joias da familia de minha mulher. A
testemunha faltou á verdade. Peço licença para ler, e offerecer ao exame
das pessoas, que me escutam, a seguinte declaração de meu sogro «Ruy de
Nellas Gamboa de Barbedo, de Pinhel, declaro que minha filha Christina
Elisiaria não subtrahiu de minha casa valor algum, nem os seus proprios
vestidos e adresses, quando fugiu para casar com Casimiro Bettancourt.
E por isto ser verdade, mui espontaneamente, e com juramento aos Santos
Evangelhos o declaro agora e sempre. Pinhel 22 de abril de 1839. _Ruy de
Nellas_, etc.»

—Meu sogro está vivo para confirmar esta declaração.

—Confirmo!—bradou uma voz d’entre as turbas comprimidas na teia. E logo
um gentil ancião de veneraveis cans, e nobre aspeito, com as faces
arregoadas de lagrimas, entrou na clareira que a multidão lhe abria, e
chegou á beira de Casimiro, e repetiu com a voz quebrada de soluços:

—Confirmo! confirmo! honrado moço, meu filho amado!

E abraçou-se n’elle, e logo na filha, que se lhe lançou aos pés, e em
Ladislau e no padre, e na irmã, e em todos quantos vinham com olhos
humidos, porque alli quantos choravam, e choravam todos, elle adoptava
como amigos, como quinhoeiros da sua alegria!

Que momentos aquelles! Aquelle jubilo febril não matou, porque era santo,
porque a Providencia divina se comprazia em contemplal-o!



XVII

Contrastes


Ia a turbulenta comitiva, que seguiu até casa de Bettancourt. A faisca
electrica de enthusiasmo, recebida nos lances do tribunal, conflagrou
animos juvenis, em bellicoso arrebatamento contra a policia e a tropa;
por maneira que, as duas familias levavam um prestito de centenares de
mancebos, urrando vivas á academia, e morras aos futricas e aos soldados.
Casimiro parou algumas vezes no intuito de arengar aos moços; porém, a
cada palavra conciliadora respondia o fremir de muitas vozes, a pedirem
sangue e vingança?

—Parecem-me canibaes!—dizia Ruy de Nellas ao vigario.—Esta rapaziada não
tem quem a governe!? Pobres pais e mãis!

Conseguiram entrar em casa, e accommodar os pequenitos, que vinham
chorando de medrosos da vozeria, Mafalda nos braços do avô, e o filho de
Ladislau nos do padre João.

Casimiro sahiu á janella a dizer expressões de reconhecimento que a
turba desattendia, clamando sempre vingança, e pedindo ao academico que
tomasse o commando dos estudantes para vingar a morte do valente que o
defendera a elle.

Por entre os amotinados circulavam pessoas de respeito, pacificando
os animos, ou enganando-os para mais azado lanço. A custo, porém se
dispersaram, comprommettidos a reunirem-se no sahimento de Guilherme Lira.

Aquietou-se a rua.

O velho sentou-se entre a filha e o genro, lançando-lhes os braços em
volta do pescoço. Alegremente conversou, ora queixando-se de não o terem
muitas vezes importunado com rogos de perdão, ora promettendo-lhes em
dobro a amisade, que lhes não déra mais cedo.

—Nada de Coimbra—dizia elle a Bettancourt—Vamos para Pinhel, que tu
não tens necessidade de ser official com tanto trabalho. A legitima de
tua mulher vai augmentando, sou eu que a tomo a juros; e, emquanto eu
viver, estareis em casa, sem dispender do vosso. É preciso pagarem se
as dividas de dinheiro, que as de amor nunca se pagam. Este Ladislau é
um grande moço, é o pai no rosto e no coração. Este padre João sei eu
bem o que elle é; creou-se debaixo das minhas telhas, e ha de vir a ser
bispo, se a virtude é qualidade para ser bispo. Em quanto á cachorra da
Peregrina, esta, se não fosse do Ladislau, havia de casar commigo, que
está guapa, esbelta, e uma perfeita dama. Vocês riem-se? Talvez pensem
que se eu quizesse dar madrasta á minha Christina, andaria muito tempo
a farejar nas boas familias da provincia!... Ora agora, tu, Casimiro,
deixa-te de mathematicas, faz te lavrador, toma á tua conta os cazeiros
da nossa casa, melhora-me os bens livres quanto pudéres, bemfeitorias e
mais bemfeitorias nos prasos de nomeação, que eu quero deixar o menos que
possa ser ao D. Sueiro, áquelle vil enroupado em habitos fidalgos. São
uns lacaios todos, desde o morgado até D. Alexandre, e a minha Guiomar lá
se fez com elles, que nem já se dignou escrever-me no dia dos meus annos!
Deixai-a commigo... Vamos a saber: vocês não jantam? O contentamento
é boa iguaria; mas vejam sempre se me guizam o contentamento com umas
batatas e umas fatias de presunto. Vocês comem o contentamento, e eu o
resto.

Sahiu Ladislau a tomar o jantar no Paço do Conde, visto que em casa
ninguem atinava a saber onde estavam as panelas.

Entretanto, continuou o infatigavel fidalgo:

—Vou logo escrever a minha irmã, a contar-lhe o succedido. Tenho vontade
de a vêr; não queria morrer sem a vêr! Foi para Lisboa aos treze annos:
era um lyrio de brancura, e galanteria. Nunca mais a vi... Velha não
póde estar, que eu levo-lhe vinte annos de vantagem... Bella vantagem,
não tem duvida!... Talvez a convide a vir passar comnosco em Pinhel
alguma temporada; mas ella sahe lá de Lisboa! Disse-me um deputado que
a condessa vive lá no ultimo fausto, e é visitada por tudo que tem um
nome grande na aristocracia e na politica. Será ella constitucional?
Isso lá me custa; mas, em fim, o marido era-o; e justo é que ella herde
as convicções de quem herdou seiscentos mil cruzados em dinheiro, que os
vinculos foram a quem tocaram. Fez uma asneira minha irmã em enviuvar sem
filhos.

Ninguem lhe cortava a jovial parlenda ao velho, até que chegou Ladislau
com dous moços carregados de vitualhas. Á excepção de Ruy de Nellas, os
convivas debicaram levemente as iguarias. Casimiro comêra regularmente
no dia em que fôra preso; e, solto, entretinha-se a repartir o prato
entre os pequenos. Não parecia ser a satisfação da alma que lhe tornava
fastidioso o alimento; pelo contrario, revia-lhe o semblante uma
extraordinaria melancholia.

É que o moço via diante de si continuamente a imagem de Guilherme,
que, vinte e quatro horas antes, tinha dito a Christina: «Ámanhã já
v. ex.ª janta em casa com seu marido.» E abstinha-se de revelar a sua
mágoa para não compungir a esposa e amigos, que tão alegres estavam, e
perdoavelmente esquecidos do commensal do dia anterior, áquella hora
amortalhado!

Era já proposito de Casimiro sahir da Universidade, e ir buscar sua
vida em qualquer parte ou mistér. Aquelle anno era o segundo já
perdido. Entrou-se da certeza que a desgraça lhe atravancava o caminho
das sciencias. Elle amava o estudo, deleitava-se nas asperidões da
mathematica, e ia desatar-se para sempre e saudosissimo dos seus livros,
das suas oito horas de estudo, da sua banqueta de pinho pintada, e de
toda aquella pobreza limpa, que as mãos de sua mulher transformavam em
jaspes, mognos, razes e ouro.

O convite de ir para Pinhel, com o sogro, seu amigo, entrar no goso das
honras da illustre familia, ostentar a benemerencia da sua probidade,
regendo a avultada casa, vingar-se assim pacificamente dos de Miranda,
nenhum d’estes incitamentos lhe descontava nas dôres. Será paradoxal o
dizer que Bettancourt mais se queria refugiar no casal de Villa Cova com
sua mulher e filha, e antes de melhor rosto acceitaria o seu prato á
meza de Ladislau? Pois é uma sublime verdade esta! Casimiro olhava em
Ladislau, no vigario, e sua irmã, e dizia-se: «Ó meus amigos, a minha
dôr inconsolavel será deixar-vos. Eu hei de fugir sempre para as vossas
serras, em quanto tiver vida para me lembrar o que fostes para mim e
minha mulher nos dias de desamparo!»

—Cuidei que te vinha trazer mais alegria, Casimiro—dizia o fidalgo.

—V. ex.ª desculpe a minha tristeza—responde Casimiro—Enterra-se hoje um
meu amigo.

—Pois sim, bem sei que deves ter pena do rapaz; comtudo, cada coisa tem
seu logar. Conversa com a gente, abre um riso n’esse rosto, e faz que eu
me não persuada que sou aqui de mais para a tua satisfação.

Casimiro levou aos labios a mão do velho, e disse:

—V. ex.ª está gracejando; mas ainda assim, magoa-me. Eu poderia esperar
muitas melhorias á minha sorte, que ainda hontem era desgraçadissima
no dizer do mundo; porém, a vinda de v. ex.ª com tão amoravel perdão,
tamanho bem é que nem eu sonhava. V. ex.ª dirá se eu...

—Não me dês sempre _excellencia_, Casimiro; chama-me alguma vez pai, se
queres que eu te chame filho.

Beijou-lhe de novo a mão, em quanto Christina, tomando o maior quinhão do
contentamento d’aquella adopção paternal, abraçou-se ao pescoço do velho,
e acariciou-o infantilmente.

Ao anoitecer, Casimiro pediu licença para sahir.

—Onde vaes?—acudiu Ruy de Nellas.

—Vou acompanhar o cadaver de Guilherme Lira.

Encararam-se mutuamente, e voz nenhuma contrariou a piedade do amigo.

Ladislau, tomando licença de sua mulher, seguiu o compadre. O vigario
ficou em companhia de Ruy e das senhoras.

Christina, ao despedir-se do esposo, no patamar da escada, disse-lhe em
modelação supplicante:

—E se houver desordem?...

—Eu farei que haja paz, minha filha.

—Então vaes na idéa de te envolveres na desordem?

—Não, filha, vou na ideia de evital-a. Limpa as lagrimas, Christina, não
appareças assim diante de teu pai, que me accusará de duro para ti. Bem
sabes que sagrado dever eu vou cumprir, minha filha.

Sahiram.

Raro academico faltou ao sahimento do cadaver. As alas negras moviam-se
vagarosas, tristes e com os olhos em terra. Ao lampejar das tochas
rebrilhavam muitas lagrimas.

Guilherme Lira morrera propugnando pelos brios academicos, diziam: era
um engano. Guilherme morrera, suicidando-se. É verdade que, no correr de
quatro annos, mão terrorista pesára sobre a gente coimbran, avêssa aos
academicos, de cujo pão vivem. Soldados e verdeaes respeitavam a batina,
porque Guilherme Lira vestia uma. Sobravam razões de gratidão áquelle
desgraçado; mas o seu morrer, o derradeiro arrojo, não era já valentia;
fôra um ir metter o peito ás espingardas que o abocavam.

Foi o cadaver lançado á cova. N’este acto, Casimiro sahiu de entre a
multidão que rodeava a sepultura, e lançou sobre o cadaver a primeira pá
de terra. Depois cruzando as mãos sobre o peito, e sem desfitar os olhos
da cabeça empannada e ensanguentada do morto, disse:

—«Alli está a mocidade e a força; alli está um mancebo que deixou mãi
n’este mundo; n’isto parou o grande alento d’onde os infortunios da vida
desviaram as torrentes dos influxos do céu. Este homem seria um anjo do
bem, se melhores condições da mocidade o não houvessem saturado de odio
contra o mundo. Eu sei a historia d’esta existencia perdida, senhores.
Este moço era bom; derramou inutilmente os balsamos do coração; achou-se
vasio de amor; e repletou-se de peçonha e odio. Cansou-lhe a coragem
para a resignação; sobreveio-lhe o delirio da vingança, vingança cega,
sêde voraz de sangue; mas observai, senhores, que a tentação nem sempre
venceu o instincto do céu com que fôra dotado este moço. Aquelle homem
teve tantos amigos, tantos que, entre vós, um só não ha que se peje de
mostrar as lagrimas. As minhas seria vergonhoso que se não vissem: eu hei
de choral-as longo tempo... Vós sabeis que as portas do carcere se me
abriram hoje, porque esta sepultura vai ser fechada. E eu, na presença de
centenaros de testemunhas, e por aquella redemptora cruz, vos juro que
acceitaria a minha prisão perpetua em troca da vida d’este homem, que era
vosso, assim como tinha sido meu defensor...»

—Vingança! vingança!—bradaram algumas vozes de estudantes, que agitavam
os gorros, e as tochas.

Espectaculo para terror era aquelle em volta de um cadaver!

E o brado, conglobado de mil brados, respondeu:

—Vingança!

Casimiro ergueu a mão, pedindo silencio, e exclamou:

—Paz! paz! é que eu vos peço, em nome de vossas mãis, em nome das cans
do velho pai, que espera amparar-se em vosso braço! em nome de vossas
irmãs que fiam do vosso auxilio o seu futuro! em nome das almas candidas
que vos sorriem ao coração dias de maior felicidade! Paz vos peço eu,
meus amigos, apontando-vos este moço que está por aquelles labios frios
contando o que é a desordem, o que é a guerra, o que é desencaminhar-se
um homem da estrada, onde ha espinhos, para tomar pela estrada onde ha
abysmos. Que util lição, que excellente preceptor não está sendo este
cadaver! Lembrai-vos, senhores, que este moço tem mãi.

Entrai com o espirito no coração das vossas. Avaliai o amargor das
lagrimas que verterá cada uma das santas do amor, se um de vós cahir
n’aquell’outra sepultura. Consenti que eu falle n’este instante pelo
brado de todas, e vos peça o que ellas supplicantes a cada um de vós
pedem: «Paz, meu filho!»

Callou-se Casimiro. Respondeu o ciciar da respiração alta do immoto
auditorio. Retirou-se elle da margem da cova, e caminhou triste por entre
a multidão, que deixára pender o braço sobre a arma escondida sob a capa.
D’ahi a pouco, os academicos debandavam em grupos, e o silencio d’aquella
sepultura estendeu-se pela face da cidade.

Ao sahir do cemiterio viu Casimiro diante de si a esposa, o sogro, o
vigario e Peregrina.

—Viemos ouvir-te, filho—disse commovido o velho.

—É superior á nossa admiração, sr. Casimiro!—disse o vigario.

—Eu sou apenas superior aos maus pela virtude de os lastimar—respondeu
Casimiro, dando o braço ao sogro, cuja sensibilidade lhe quebrantava as
forças.

Desde logo, a pedido de Ruy de Nellas, começaram as senhoras os aprestos
para a jornada no dia immediato á tarde. O velho futurava o rompimento de
alguma revolução academica, a intervenção pacificadora de Casimiro, e a
fortuita desgraça de ser empenhado pela honra a coadjuvar o partido dos
estudantes.

       *       *       *       *       *

A esta hora, meia noute seria, D. Alexandre de Aguilar, infamado,
despresado, e solitario na sua angustia, esvasiava garrafas de cognac,
no intento de aturdir-se e responder com a gargalhada do ebrio ao grito
da vergonha. Os deploraveis perdidos, que se valem d’esta triaga, parece
que a si proprios se estão castigando com mais crueza do que poderia
castigal-os a justiça humana. Noute alta, o ébrio batia com a cabeça
nas vidraças de sua janella, farpava a face nas arestas dos vidros, e
rugia imprecações contra Deus. As patrulhas acummulavam-se á sua porta,
e gargalhavam das estupidas objurgatorias do moço. Acudiam os academicos
visinhos, e bradavam-lhe:

—Calla-te ahi, miseravel; afoga-te em cognac; não appareças mais á luz do
sol; mas calla-te, besta, que, para seres fera, só te falta a bravura.

O tumulento fitava o ouvido, e respondia com roucos insultos requintados
em obscenidades de alcouce.

De madrugada, o neto dos Parmas d’Eça acordou de frio que tinha o peito
ensopado no proprio vomito.

Sentou-se, circumvagando os olhos espavoridos por sobre a desordem que o
rodeava. Ergueu-se cambaleando, recahiu n’uma poltrona, escondeu o rosto
entre as mãos, e chorou.

Oh! aquellas lagrimas é que não eram infames.

O desgraçado lembrou-se que, cinco annos antes, tinha mãi, e que a
prophetica senhora muitas vezes lhe dissera: «Presagia-me o coração que
has de ser desgraçado, meu filho.»

—Porque?—perguntava elle.

—Porque tens dezesete annos; sahiste hontem do collegio e já hoje
escarneces a religião de teus pais. Assim tão cedo deixaste estragar o
coração!... D’aqui a annos, nem por amor do teu nome, nem por calculo,
serás honrado!

E, cinco annos depois, e só então, lhe lembraram as palavras de sua
mãi!... Era o seu anjo da guarda que as recebera então, e agora lh’as
offerecia á memoria, como lenimento unico d’aquella funda ulcera do
descredito, desgraça, e infamia.

Na noute d’esse dia, D. Alexandre desappareceu de Coimbra, foi caminho de
Lisboa, d’ahi pediu sua legitima a D.Sueiro e sahiu de Portugal. Ha vinte
e tres annos que foi, e não voltou.



XVIII

Mãi!


Ás duas horas da madrugada do dia seguinte ao das scenas descriptas no
anterior capitulo, chegou á porta da hospedaria, chamada do _Paço do
Conde_, uma carruagem, tirada por duas parelhas. Abertas as portas, apeou
uma senhora, dando a mão a um padre velho que descera primeiro, e logo
a creada. O padre, respondendo á pergunta do creado do hotel, disse que
a senhora condessa de Asinhoso tomaria um caldo de gallinha, e voltou a
receber as ordens de s. ex.ª

—Pergunte padre Francisco—disse ella—se hoje foi o julgamento de um
academico chamado Casimiro de Bettancourt.

O padre foi cumprir, dizendo entre si: «que importa á senhora condessa o
julgamento do academico, chamado Casimiro de Bettancourt? Pois será para
assistir á audiencia que ella vem a Coimbra com viagens forçadas?!»

Volveu o padre, dizendo:

—É uma historia interessante, que parece novella, a tal do academico,
senhora condessa. Em resumo, conta o estalajadeiro que, estando para ser
julgado o reu, e forçosamente condemnado, appareceu a declaração d’outro
academico, que mataram antes de hontem, confessando-se o matador. Em
consequencia do quê, o tal Bettancourt foi posto em liberdade.

—Graças, graças, meu Deus!—exclamou a condessa ajoelhando.

O padre empedreniu-se, e encarou na creada tambem estupefacta: nenhum
ousava tugir um monossyllabo.

Ergueu-se a condessa, e enviou de novo o capellão a pedir ao dono do
hotel a bondade de fallar com ella por alguns minutos.

O estalajadeiro vestiu a casaca, esperou na sala a senhora condessa.

Interrogou-o ella ácerca de todas as miudezas concernentes á soltura
de Bettancourt. O informador relatou-as todas, desde as severas lições
que o academico dera a D. Alexandre, até ao lindo discurso, dizia elle,
que o amigo de Guilherme Lira improvisára á beira da sepultura: e n’uma
especie de apostilla á narrativa contou a esquecida circumstancia de
ter irrompido inesperadamente pelo tribunal dentro o fidalgo, sogro do
estudante.

—Pois elle está em Coimbra?!—interrompeu vivamente a condessa.

—Vi-o eu, minha senhora! É um velho bonito! basta vêl-o para se dizer:
«aquelle é um fidalgo dos antigos tempos!»

—Sabe onde mora Casimiro Bettancourt?

—Sei, minha senhora.

—De manhã tem a bondade de me guiar a casa d’elle?

—Pois não, senhora condessa?

O capellão, cujo quarto era sob o pavimento dos aposentos da condessa,
apesar de contuso e moido dos solavancos da carruagem pelas barrocas da
estrada real de 1840, não poude adormecer, ouvindo até á madrugada os
passos da illustre dama, e o abrir e fechar de portas d’uma janella.
Certo fôra que a condessa nem sequer encostára a face ás almofadas do
leito, e, de quarto em quarto de hora, ia impaciente abrir a janella e
ver se rompia a alva.

Assim que aclarou o céu, já a senhora despertou a creada para lhe dar do
bahú outros vestidos e ornatos.

Ao nascer do sol, estava s. ex.ª vestida a rigor de viuva opulenta:
modestia elegante, pompa meio velada pela côr escura do estofo.

O egresso, que perdera a esperança de adormecer, levantou-se, e foi á
antecamara receber as ordens da condessa. Sahiu ella a dizer-lhe que
tomaria uma chavena de café, e ás nove horas sahiria acompanhada de sua
reverendissima.

Sua reverendissima, vendo-a assim adereçada, consentiu que o demonio da
maledicencia lhe encavalgasse o espirito: «Dar-se-ha caso, dizia elle
comsigo, que a condessa esteja namorada d’esse Bettancourt? Querem ver
que esta senhora, aos quarenta e seis annos, tresvaliou, e vai destruir
o bom nome que está gosando?? Mas não!—monologou elle, tornando sobre
si—Vai-te espirito aleivoso que me tentas! Aqui anda segredo que eu vou
saber logo! Esta senhora é o typo da honestidade, e o modelo das viuvas
honradas.

Ás nove horas sahiu a condessa, com o seu capellão e o estalajadeiro.

Chegaram defronte da pequena casa da Couraça dos Apostolos.

—É aqui—disse o guia.

—Obrigada. Póde ir, que eu demoro-me.

Subiu a dama a declivosa escadinha, e bateu á porta do topo. O capellão
seguiu-a, gemendo.

Abriu uma creada a porta.

—Posso fallar ao sr. Ruy de Nellas?—disse a condessa.

Foi a creada á saleta em que as duas familias estavam almoçando, e
noticiou que era uma senhora ricamente vestida a perguntar pelo sr. Ruy
de Nellas.

—Quem póde ser?!—reflectiu o fidalgo.

—Abre o meu quarto de estudo, e diz á senhora que entre—disse Casimiro.

Quando a creada sahia da saleta, já a condessa estava á entrada, dizendo:

—Não sou de ceremonias, vou entrando, porque já conheci a voz do mano Ruy.

Levantaram-se todos. O velho abriu os braços, e ficou de braços abertos,
e bocca tambem aberta.

A condessa chegou-se ao alcance do abraço, e disse:

—Parece que o mano duvida...

Duvido...—balbuciou elle—pela mesma razão que não devia duvidar... Tu
tens vinte e cinco annos, Eugenia! Estás como te vi sahir de Pinhel!

—Cuidei que lisonjas eram desusadas entre irmãos, Ruy!... Pois eu
dir-te-hei que estás bastante alcançado. A vida de provincia é menos
salutar do que dizem as pessoas que envelhecem na corte. Senta-te, Ruy, e
dá-me uma chavena do teu café.

—Tu aqui, mana!... tu aqui!...—voltava o fidalgo—Deixa-me convencer bem
de que estou acordado! Quem é aquelle senhor?...

—É o meu capellão.

—Sente-se, sr. padre capellão, sente-se.

—Qual d’estas meninas é a tua filha?—perguntou a condessa.

—É esta, aqui tens a minha Christina.

A condessa beijou-a, abraçou-a, e mandou-a sentar.

—Este é meu genro—continuou o velho apresentando-lh’o.

Casimiro deu um passo, e curvou reverentemente a cabeça.

—Este é que é o sr. Casimiro Bettancourt?—disse a condessa apertando-lhe
a mão.

E a mão ardia, tremia, e apertava extraordinariamente.

—As outras pessoas,—concluiu Ruy—são filhos do meu coração: aquella é a
minha Peregrina, e aquelle o meu padre João. Lembras-te, Eugenia, do José
Ferreira da Rochousa, nosso caseiro?

—Lembro.

—Pois são filhos d’elle que eu herdei. Aquell’outro, que alli vês, é
Ladislau, marido de Peregrina.

—E estas duas creancinhas?

—Uma é minha neta e tua sobrinha, primogenita e unica de Christina, a
outra é filha de Ladislau.

A condessa, ouvindo o irmão, a cada instante relanceava os olhos a
Bettancourt, unico da comitiva, que ficára de pé, no intento de servir a
hospeda, e dar a sua cadeira ao capellão.

—Senta-te, Casimiro—disse o velho—Aqui tens, Eugenia, o meu orgulho,
a minha gloria, o meu Casimiro sem mancha de culpa, com a sua honra
illibada! Não foi preciso appellarmos para Lisboa. A justiça de Deus veio
mais cedo do que a esperavamos. Eu te conto como isso foi...

—Sei tudo—atalhou a irmã—Já me informaram na hospedaria.

—Mas como estás tu aqui, mana?—tornou Ruy—Vinhas munida, talvez, de
cartas para alcançares a absolvição de teu sobrinho em Coimbra?

—Não, Ruy—tartamudeou a condessa.

—Então que palpite foi esse de te botares ao caminho, sem saberes a
decisão do julgamento?!

—Dizes bem, Ruy... foi um palpite...

—Bem hajas tu que vieste dar o remate á nossa satisfação! Agora vais
comnosco para Pinhel, não é assim?

—Irei. E hoje janto comvosco.

—Isso estava sabido!... pois então?!

A condessa disse a padre Francisco:

—Póde ir, e descansar á sua vontade, padre capellão, que eu passo aqui o
dia. Queira dar esta parte á creada.

Sahiu o padre, e todos passaram ao quarto de estudo de Casimiro, que era
a parte mais alegre e arejada da casa.

—Estou entre amigos!—disse com um profundo suspiro a condessa—É a
primeira vez na minha vida que digo isto!

Ruy comprehendeu a irmã, relembrou a mocidade dolorosa de Eugenia, e fez
um gesto compassivo, e outro que significára: «Não lembremos o que lá
vai.»

Porém, Casimiro, impressionado d’aquellas palavras disse respeitosamente:

—As felicidades de v. ex.ª não devem ter sido invejaveis!... Em volta da
riqueza, da formosura, e de um nome distincto costumam reunir-se muitos
amigos... ou, pelo menos, muitos que o parecem...

A condessa encarou n’elle com penetrantes olhos, e disse:

—Lastima-me, não é verdade?

—Minha senhora—balbuciou Casimiro—peço perdão... não quiz dizer que
lastimava v. ex.ª... Quaesquer que tenham sido suas magoas, a sua elevada
posição não consente que eu me condôa...

—Está bom, está bom—atalhou Ruy—não se falla aqui em magoas, nem dó, nem
lastimas! Este meu Casimiro tem uma propensão para discursos tristes, que
nunca vi!... Olha que hontem á noute, mana, o que elle disse á beira da
sepultura do Guilherme, ia arrancar ao fundo do coração as lagrimas de
quem nunca tivesse chorado!

—É porque eu dava o exemplo, chorando, sr.ª condessa—ajuntou Casimiro.

—E deve ter chorado muito!—disse ella.

—Pouco, minha senhora. Sou um homem muito resignado, ou muito forte. A
mim as grandes angustias levemente me abalam. Algumas vezes tenho chorado
por cousas insignificantes. Posso ver a olhos enxutos morrer minha filha,
e não poderei ouvir sem lagrimas o piar de uma ave, a quem mataram os
filhos no ninho. Isto será deformidade de organisação; mas dureza de alma
não é, minha senhora... Meditando na minha indole, vim a considerar que
para mim o incentivo das lagrimas é uma certa poesia funebre e maviosa,
sensação que eu não sei d’outro modo definir; ao passo que as desditas
positivas, cerradas e suffocantes regelam-me a alma.

—Elle ahi está a fugir para a tristeza!—interrompeu o fidalgo.

—Deixa-o fallar, mano...—pediu a condessa.

—S. ex.ª tem rasão...—disse Bettancourt eu sou incorrigivel e tenho
contagio. Aqui está a minha Christina absorvida tambem na sua meditação...

—Não—acudiu Christina—eu estava a pensar com alegria nas tuas tristezas
passadas, meu Casimiro.

—E todos com o passado ás voltas!—clamou Ruy—Fallem no presente,
descubram o futuro, e não me afflijam, que vai aqui tudo raso! Querem ver
que a minha Eugenia tambem é melancolica? Em pequena eras muito, menina!
O teu gosto eram sombras de arvores, fontes, ver o céu de noute... Aqui
estou eu tambem a fugir para traz trinta e tantos annos! Bem diz o
Casimiro que a sua scisma é pegadiça!...

—Mas olha, mano, deixa-me conversar com o teu genro, que o passado te
aborreça...

—O que eu observo, Eugenia, é que tu sympathisas grandemente com elle!...

—Porque não!?

—Beijo as mãos de v. ex.ª—disse Casimiro.

—Isso quando se diz, faz-se.

—O quê, senhora condessa?

—Disse que me beijava as mãos... então... beije.

Casimiro inclinou-se, e beijou de leve a mão da dama, que lhe apertou
vertiginosamente a d’elle.

Este visivel estremecimento impressionou Christina e Peregrina, que se
encararam de um modo que podia ser duvidar do bom senso da condessa.

—Vamos conversar, sr. Casimiro—disse Eugenia—Queira sentar-se ao meu
lado. Meu mano já me disse que o sr. era filho de um militar, que morreu
no cêrco do Porto.

—Sim, minha senhora, sou filho de Duarte Bettancourt.

—Conheceu seu pai? Onde estava quando elle morreu?

—Conheci meu pai. Vi-o em 1830 pela ultima vez. Estava eu no collegio dos
Nobres, quando elle morreu.

—Sabe em que anno nasceu?

—Sei-o dos proprios apontamentos de meu pai.

—Escriptos por elle mesmo?

—Sim, minha senhora.

—Dá-me licença que os veja?

—Por que não, sr.ª condessa? Aqui está a velha carteira de meu pai...

A condessa tomou da mão de Casimiro, com sofrega ancia, a carteira, que
folheou.

—Onde é?—disse ella convulsiva.

—Aqui, minha senhora—respondeu Casimiro indicando-lhe a pagina, que a
condessa leu:

_Meu filho Casimiro nasceu em 15 de janeiro de 1816. Foi baptisado em S.
Domingos de Santarem aos 22 do mesmo mez. Foi creado no Cartaxo d’onde
sahiu em 1820..._

A condessa murmurava ainda; mas não lia o restante da nota. Fechou a
carteira, e voltou-a nas mãos, remirando-a. Depois, pregou os olhos no
rosto de Casimiro, e permaneceu n’este spasmo alguns minutos, até que
muito do fundo do seio lhe sahiu um grito estridente, e uma explosão de
lagrimas em que a luz da vista parecia innevoar-se.

—V. ex.ª soffre!...—disse Casimiro.

E acercaram-se todos da condessa, que, tomando a mão de Bettancourt,
ergueu-se de impeto e disse-lhe:

—Leve-me a uma janella... dê-me ar, e uma gotta d’agua.

—São nervos!—observou Ruy—É da casa, que é abafada... Abram todas as
janellas... Queres tu descer ao quintal? Vai com ella, Casimiro... Vamos
todos.

—Estou melhor—atalhou D. Eugenia—Já respirei...

—Costumam dar-te estes accessos, mana?

—Costumam...

Sentou-se de novo, reparando na carteira, e outra vez se lhe tingiu de
escarlate febril o rosto.

—Mysterio!—disse o vigario ao ouvido do cunhado.

—Que cuidas?!—perguntou Ladislau...

—Esperemos.

A condessa affastou das fontes os cabellos empastados de suor, e disse
cortando as palavras de suspensões, que pareciam o abafar de mão estranha
na garganta:

—Casimiro esteve no collegio dos Nobres até...

—Até 1834, minha senhora—respondeu o filho do major.

—E depois...

—Como perdi meu pai, fui a Pinhel procurar amparo de parentes pobres.

—E nunca viu no «Diario do Governo» um annuncio perguntando se existia um
filho do major Duarte Bettancourt?

—A Pinhel nunca chegou esse jornal—disse Casimiro—E quem se interessava
em saber se eu existia?

—Quem?...

—Sim, minha senhora.

—Era eu.

—V. ex.ª!—acudiu Casimiro com assombro.

—Com que fim eras tu, Eugenia?—perguntou o fidalgo.

A condessa fitou a vista incendiada no irmão; e disse:

—Com o fim de saber se existia... meu filho!

Assim devia ficar uma familia de Pompeia, de subito, empedrada na invasão
da lava fulminante. Uns a outros, com olhos pavidos, pareciam pedir o
claro sentido d’aquellas palavras.

Casimiro sentiu lavaredas no seio e descerrou os labios á expedição
do lume. Estrondeavam-lhe no encephalo umas allucinações de ebrio.
Dos olhos de sua mãi afuzilavam umas como frechas que lhe cortavam
de lampejos o curto espaço de ar intermedio. Para os outros, ha só o
termo «estupefacção» que os descreva. A condessa oscillava outra vez
assoberbada pela commoção nervosa; já se não sustinha, com as mãos
apoiadas nas costas da cadeira. Levantou-as, estendeu os braços como a
pedir amparo. Encontrou o seio de Casimiro, e n’elle inclinou a face,
exclamando:

—Meu filho!...

Mas isto tudo é um sonho!—disse Ruy de Nellas, levando as mãos ás fontes.

Casimiro ajoelhou com a mãi nos braços. As duas senhoras, sem segura
consciencia do que faziam, foram amparar a condessa. O vigario pôz
as mãos em attitude de quem ora. Ladislau cruzou os braços no peito
contemplando o grupo.

De subito, Casimiro afastou um pouco a face, contemplou o rosto pallido
da condessa, beijou-a na fronte e disse:

—Tenho mãi, meu Deus!... Eu sabia que a tinha, e havia de encontral-a!...

Então, chorou, a torrentes!

Se não chorasse enlouquecia.



XIX

Paz e contentamento


Decorridas algumas semanas, o casamento de Casimiro Bettancourt com sua
prima carnal D. Christina de Nellas era validado pelo nuncio apostolico,
dispensando no parentesco, e saneando a ingnorada irregularidade. A
condessa perfilhava Casimiro para lhe segurar a successão de seus grandes
cabedaes. Casimiro, porém, com quanta delicadeza e respeito a ternura
filial lhe inspirou, disse que só acceitava a perfilhação para ser seu
filho, e não seu herdeiro. Ficou interdicta, e alheia da intenção da
resposta, a condessa. O filho esclareceu assim a propria demencia:

—Minha mãi herdou de seu marido: eu, filho de outro homem, que morreu
pobre, peço licença para ser estranho aos haveres do sr. conde de
Asinhoso. Eu sou filho de D. Eugenia de Nellas. Minha mãi ainda tem a sua
legitima n’esta casa de Pinhel. Essa acceito-a como dote para egualar o
patrimonio de minha mulher.

—Pois sim, filho, faça-se a tua vontade—disse a condessa.—Por minha
morte ficarás agricultando algumas geiras de terra em Pinhel, que valerão
doze mil cruzados. Ficarás sendo um lavrador dos menos abastados da
comarca. Minha sobrinha Guiomar virá senhorear-se do vinculo e da casa
que é vinculada. Tu com tua mulher e filhos irás viver no casal da
Rechousa, ou n’outro semelhante, que ameaçam ruina.

—As paredes abaladas especam-se, minha querida mãi; a dignidade aluida é
que nunca mais se repara. Eu amo a mediania, que é o refugio da paz. As
lições da vida deu-m’as o lavrador de Villa Cova. Minha mãi prometteu-me
ir ver de perto a casa de entre serras, aquelle abrigo de honrados e de
santos. Venha commigo alli estar uns dias, e v. ex.ª olhando d’alli para
o céu, dirá: «se ha paraizo na terra, se ha bem no mundo, é aqui».

—Iremos, filho: eu tambem o desejo. Já estou convidada para ser madrinha
do segundo filho de Ladislau. Bem vês que ando a cuidar-lhe do enxoval.

E, logo na semana seguinte, partiram todos para Villa Cova, e as meninas
solteiras de Pinhel tambem.

Quem é este homem de jaqueta de panno azul e colete encarnado, e chapeu
braguez que vai a pé, ao lado da egua em que monta a condessa?

É mestre Antonio—o carpinteiro.—Alli vai conversando em obras, que é
preciso fazer aqui e acolá, nas casas arruinadas do fidalgo. A condessa
trabalha por tirar este homem do officio: offerece-lhe dinheiro para
erguer casa, e comprar bens. Mestre Antonio responde:

—Fidalga, grande nau grande tormenta! Deixe-me cá com a minha vida que
vou bem assim. Meu filho brazileiro manda-me duzentos mil réis cada anno,
e eu, a fallar verdade a v. ex.ª, tenho-os alli para uma gaveta, sem
saber de que me servem. A minha alegria é o trabalho. Em pegando dous
dias-santos, ando como tolo sem saber em que hei de gastar o tempo.

—Mas gaste-o em trabalhar nos seus bens.

—Nos meus bens trabalho eu, sr.ª condessa. Logo que me pagam o serviço,
alguma cousa tenho dos bens em que trabalho.

       *       *       *       *       *

Ficarás, por tanto, carpinteiro, honrado homem, mas homem honrado, toda a
tua vida!

       *       *       *       *       *

Custa a caber tanta gente na casa de Villa Cova! Armam-se leitos de
bancos nos cazarões das tulhas. O quarto solemne dos padres é consignado
ao fidalgo. A condessa occupa o de Peregrina. Que feliz barafunda alli
vai! Os creados vem carregados de caça dos montes. O fidalgo quer ir á
cosinha fazer umas troixas de ovos, cuja receita lhe deram os anjos. A
condessa anda lá pelos campos a correr atraz da nétinha. As irmãs de
Christina sobem á lapa da Crasta e entram de lá a berrar que lhes acudam,
que as comem os lobos. O capellão da condessa, acertando de encontrar na
livraria dos padres Militões as cartas manuscriptas de fr. Bartholomeu
dos Martyres, persegue toda a gente para que lhe ouçam ler as cartas e os
commentarios soporiferos d’elle.

Quem mais o atura é Casimiro que foge do bulicio para a livraria defeza
ás corrimaças das cunhadas.

Chega o dia do baptisado, e n’esse dia apparece inesperado em Villa Cova
um tabellião de Pinhel, a rôgo da sr.ª condessa de Asinhoso. Lavra-se uma
escriptura. É uma doação que faz a mãe de Casimiro ao seu afilhado Ruy,
filho de Ladislau. Dôa-lhe quinze mil cruzados em inscripções nos Bancos
de Portugal, em virtude dos muitos e impagaveis favores que devia a seus
pais.

Casimiro abraça sua mãi, e exclama:

—A virtude é engenhosa, minha querida amiga!

Os pais do menino beijam-lhe a mão, e Ladislau diz:

—Com a condição de que meu filho conservará o deposito como patrimonio
dos desgraçados: mande v. ex.ª escrever esta clausula na escriptura.

—Ladislau—disse a condessa—já lh’a deve ter escripta no coração.

       *       *       *       *       *

Alli se detiveram trinta dias. De Pinhel, em cada semana, vinham cargas
de viveres. Ladislau sentia-se, e o fidalgo respondia:

—Isto é para o capellão da mana condessa, que lê muito as cartas do
fr. Bartholomeu; chora de enthusiasmo; mas não o imita na temperança.
Seria capaz de engulir o santo, o bom do egresso, se o pilhasse! Sem
este contrapeso de vitualhas, amigo Ladislau, eramos todos victimas
da gulodice do padre. Vamos lançando estes bocados ao Acheronte, que
promette, ao contrario do outro, levar-nos para o céu, se não adormecer
no meio do caminho.

A alegria dava graça ao velho, que, em geral, era semsaborão.

Na volta para Pinhel trouxeram comsigo a familia de Villa Cova, salvo o
vigario que voltou ao amor do seu rebanho.

Sahiu para Lisboa o capellão da condessa com ordens ao procurador para
vender o palacio, os trens, os primores da Asia, que opulentavam a triste
vivenda da viuva. Triste, sem um amigo, como ella dizia. Ao mesmo tempo,
o egresso cumpriu outras ordens com referencia ao ministro da justiça.
Ultimado tudo, voltou o padre a Pinhel: ia reloucado de prazer, porque,
á ultima hora, soubera que fôra nomeado conego da patriarchal. Beijou as
mãos á condessa.

—Vá—disse-lhe ella sorrindo—vá imitar na pobreza ecclesiastica o seu
predilecto Bartholomeu dos Martyres.

Na mesma data era nomeado conego da sé da Guarda o padre João Ferreira.

O vigario, avisado na sua pobre parochia, foi a Pinhel, depositou a mercê
nas mãos da condessa, e disse:

—Perdoe-me v. ex.ª a recusa: eu não posso separar-me de minha mãe e
cunhado. V. ex.ª não quer que eu me deixe alli viver á sombra das
virtudes dos padres de Villa Cova.

—Eis aqui um padre novo, que destôa das doutrinas do meu velho
capellão!—disse a condessa—Pois sim, padre João, vá para o seu
presbyterio, e venha ver-me muita vez, e tome á sua conta a minha velhice.

Christina contou a sua tia e sogra os menores incidentes do seu namôro, e
mostrou-lhe o José-pastor que tão util e leal lhe fôra.

Chamou a fidalga José-pastor e mandou-lhe que dissesse a razão por que
fizéra aquelles serviços ao sr. Casimiro e á menina.

O rapaz respondeu:

—Era toda a gente contra elles, e eu disse cá c’os meus botões: ora deixa
estar que eu vos dou nas ventas para traz.

—E nunca te deram nada?

—Elles que me haviam de dar, fidalga??

—Então fazias tudo sem interesse?

—O que eu queria era vel-os casados. A menina estava lá em cima fechada
a chorar, e o sr. Casimiro andava lá por longe escondido... fizeram-me
muita pena! Foi o que foi.

—Queres tu ser padre?—perguntou a condessa.

—Padre?!

—Sim.

—Não, senhora. Antes queria ser sargento.

—Sargento!... mas tu és muito rapaz ainda para assentar praça.

—Posso assentar praça de tambor, que os tambores são do meu tamanho.

—És tolo, rapaz! Queres tu estudar para depois ser official?

—Eu já sei ler, que me ensinou o sr. Casimiro.

—Pois sim; mas agora vais aprender outras coisas para Lisboa.

—E leva-se lá bordoada de cego?

—Não, patarata, ninguem lá te bate.

—Então, se a fidalga quer, e o fidalgo deixar, vou.

E foi para a Polytechnica de Lisboa, com recommendação da condessa.

D. Sueiro de Aguilar teve noticia d’estes successos estupendos. Sentiu
guinadas de fazer as pases com a familia de Villa-Cova, e por um cabello
se não descobre n’esta extrema de despejo. Guiomar ainda escreveu a sua
tia, cumprimentando-a pela sua chegada. A condessa respondeu: «agradeço o
cumprimento de minha sobrinha, e faço votos pela sua felicidade.»

Esta sequidão irritou D. Sueiro, que se desentranhou em apostrophes
contra a canalha de Pinhel. A tia de sua mulher foi exposta á irrisão dos
seus hospedes, na presença da sobrinha. Repetiram-se os vilipendiosos
amores que deram o filho natural, sobrinho do carpinteiro. Desde este
facto, D. Guiomar odiou o marido, cuja hediondez de caracter só podia ser
avantajada por D. Alexandre.

Tratou a condessa de casar suas sobrinhas, com auxilio dos seus haveres.
Accorreram pretendentes das duas provincias contiguas, e casaram
todas com morgados, homens de bem, vaidosos de seus appellidos, mas
inoffensivos, e virtuosos mesmo por vaidade de imitarem seus avoengos.
As senhoras dispersas por aquelles palacetes solarengos reuniam-se em
casa de seu pai, nas festas do anno, nos natalicios, e no anniversario do
casamento de Casimiro. Esta clausula fôra instituida pela condessa.

A tiro de peça de Pinhel, existiam uns casebres derrocados, onde nascera,
segundo informações de mestre Antonio, seu cunhado Duarte Bettancourt,
filho de um soldado da ilha de S. Miguel, que ficára na metropole, e
alli estabelecera uma tenda. Comprou a condessa estes pardieiros aos
possuidores, e mandou-os arrazar, e sobre elles edificar um obelisco
cintado por grossa cantaria, com portas de ferro. Ia todos os dias ver a
obra, que durou um anno, com os melhores alveneis da provincia. Concluido
o obelisco, foi entalhada na base uma lamina de ferro com esta legenda:

    Á MEMORIA
    DE
    DUARTE BETTANCOURT
    MORTO NO SEU POSTO DE HONRA
    EM 1834
    MANDOU ERIGIR SEU FILHO
    CASIMIRO BETTANCOURT
    EM 1843

Ruy de Nellas, lá muito no seu interior, não gostou da lembrança. Era a
natureza a puchar por elle.

N’este tempo, teve a condessa uma hora de muitas lagrimas.

Casimiro, de proposito e por veneração, nunca lhe mostrára duas cartas,
que conservava entre os papeis de seu pai, assignadas pela inicial _E._

N’uma tarde, como estivessem sentados na base da columna, Casimiro tirou
da carteira dous papeis dobrados e amarellecidos.

—Que é isso, filho?

—Veja, minha mãi:

Abriu ella, e exclamou:

—É minha a letra! Como possues isto?!

—Minha mãi já deve saber como as possuo.

A condessa leu soluçante, e beijou aquelle papel, que estivera nas mãos
de Duarte. Leu a segunda, e, em meio da pagina, susteve-se afogada de
ancias e lagrimas.

Casimiro arrependeu-se da indiscripção, e acariciou-a, pedindo-lhe, pela
memoria de seu pai, que vencesse a sua dor.

Era este o contheudo da primeira carta:

«Não soffras, D.—Conta com o meu valor. Parece-me que vou ser arrebatada
para uma quinta do tio. Não sei qual. Eu te avisarei a preço de tudo. O
mais que podem é matar-me meus irmãos. A minha alma irá identificar-se
á tua: viverei sempre comtigo na terra, e amando-te de um mundo melhor.
Socega, meu amigo. Se Deus vê a nossa innocente paixão, elle nos
protegerá. Se não ha Deus para nós, seremos um para o outro. Tua, _E._»

Esta carta devia ter sido escripta antes da ida para Camarate.

A segunda dizia:

«É horrivel esta oppressão! Tenho medo de morrer abafada pela angustia.
Vem, approxima-te, dá-me alentos, se não prefiro antecipar a morte. Ai!
que soledade! que abandono n’esta hora! Vem, vem, D., que eu queria
ver-te antes de morrer! _E._»

Presume-se que esta ultima carta foi escripta de Recaldim para Torres
Novas, quando Duarte desceu de Bragança, a receber das mãos de Brites
aquella creança, que alli está agora, homem, com o rosto de sua mãi
apertado ao seio.

Em seguida áquelle trance, a condessa acamou, e teve febre por longos
dias. A presença do filho, magro, livido, triste como quem pede a
primasia na morte ao lado de um enfermo em perigo, abrazou-a em supplicas
ferverosas a Deus, pedindo a vida. Declinaram as febres, volveram
esperanças e saude, e continuou o hymno de graças ao Senhor, entoado por
aquellas duas familias que rodeavam o leito de Eugenia.

Segura a convalescença, a condessa, prevendo que, por morte de seu irmão,
a casa de Pinhel passaria á successora do vinculo, cuidou em construir um
palacete em nome de Christina.

Casimiro objectou que d’aquelle modo passava a seus filhos a casa do
conde de Asinhoso.

A mãi respondeu:

—Quererás tu privar-me que eu beneficie minha sobrinha? Isto não tem
nada que ver comtigo, Casimiro! As demazias da dignidade são uma
impertinencia.



Conclusão


Passaram-se vinte e um annos.

Ainda que o contrario se afigure a pessoas, que teem a boa sorte de não
escrever romances, a conclusão d’um livro d’esta especie é dolorosa
de fazer-se, quer os personagens tenham existido, quer vivessem, como
chimeras queridas, na phantasia do escriptor.

É doloroso, digo, porque ha ahi um facto formidavel e horrendo, que
tanto vinga nos personagens verdadeiros como nos imaginados: é a morte.
O romancista historico tem de matal-os em nome da historia: o romancista
inventor tem de matal-os em nome da verosimilhança.

Eu creio que o leitor denega sua fé aos successos que lhe contei. É
injusto com a maxima parte d’elles. Ahi foram esboçadas umas pessoas que
viveram, e outras que vivem com outros nomes e em outras terras. E por
isso redobra a minha mágoa por não poder dizer que vivem todos.

As duas sympathicas velhinhas, Brazia de Villa Cova e Brites de Recaldim,
essas ha muito que já lá vão. Com isto privo o jornalismo do innocente
gaudio de annunciar duas macrobias. Brazia morreu, como lá dizem, á
imitação d’um passarinho, com oitenta e nove annos de idade, em seu
perfeito juizo, e conformada com a vontade de Deus. Legou os seus
ordenados de setenta e nove annos ao filho mais velho de Ladislau, e o
seu ouro, composto de cordão e anneis, a Peregrina. É verdade que estes
valores não chegaram para as missas de que ella onerou os herdeiros por
sua alma e por almas idas ha tanto tempo que ou Deus as tinha comsigo, ou
o descondemnal-as seria tardio intento. Brites lá se finou em Recaldim,
poucos mezes depois da sahida de D. Eugenia para o Brazil. As desventuras
da filha da sua menina minaram-n’a tanto que a saudosa velha, de dia para
dia, se resvalou á sepultura, pedindo a Deus que a não castigasse por
ter protegido a desgraçada senhora. Aquella Apollinaria da calçada dos
Barbadinhos, que o leitor esqueceu, não esqueceu á condessa de Asinhoso.
De volta do Rio de Janeiro procurou-a, achou-a pobre e cega, deu-lhe
abundancia, empregou-lhe os filhos, e fez-lhe o enterro annos depois.

Ruy de Nellas morreu em 1850, nos braços de Casimiro e Christina, unicos
filhos que viu á hora da morte. O vigario de S. Julião d’Arga tão santos
dizeres lhe fallou n’aquella tremenda hora, que o moribundo inclinou
suavemente a cabeça, e expediu a alma ao seu creador, abençoando as
filhas ausentes.

Ao nono dia depois do fallecimento, a casa estava vasia, e D. Soeiro
estava a empossar-se n’ella, instaurando logo demandas ás cunhadas, e
articulando contra Casimiro Bettancourt um libello de subtracção de
baixella vinculada: calumnia que nos tribunaes redundou em maior infamia
do litigante.

Christina, Casimiro e sua mãi passaram á casa construida. Ahi receberam,
volvidos tres annos, D. Guiomar de Nellas, fugitiva do marido, que a
martyrisava, tornando-a serva de suas creadas, com quem elle devassamente
commerciava a morte lenta da esposa. Casimiro recebeu-a com respeito,
Christina com amor, a condessa com a virtuosa indulgencia que aprendera
na desgraça. A perseguição de D. Sueiro alli mesmo lhe cravou a seta
hervada, fazendo-a intimar para se ir voluntariamente estender no potro
de torturas. Casimiro tomou sua cunhada á sua guarda, depositou-a n’um
mosteiro de Villa Real, e d’ahi requereu separação judiciaria, que
conseguiu com illibados creditos. D. Sueiro, passados annos, morreu
d’um tiro que por descuido se deu, andando á caça. Em Miranda vogava a
suspeita de que o tiro lhe fôra desfechado por um lavrador vingativo,
inconciliavel com a fidalga deshonra de sua irmã. Guiomar tomou cargo da
educação de suas filhas, que não tinham educação nenhuma, e vive em paz e
devotamente no seu palacio de Pinhel.

Ladislau lá está em Villa Cova, saudoso do seu primogenito, que, ha
dous annos, casou com Mafalda, filha de Casimiro, e foi viver em casa
do sogro. Ruy, seu filho segundo, está-se ordenando para, no futuro,
continuar a missão dos sacerdotes d’aquella casa. O matrimoniarem-se
aquelles dous primogenitos era plano feito desde o berço, e sanccionado
pelo céu. Amaram-se desde infantes, e hoje adoram-se como seus paes.

Mestre Antonio tambem já lá está no mundo das almas generosas e puras.
Acabou a vida quasi sem erguer mão do trabalho. Como intrevasse aos
sessenta annos, mesmo sentado no leito fazia bocetas para doce, ás quaes
dava consummo a condessa, arrumando-as em rimas, e pagando-as por um
preço que o artista aceitava, sorrindo á piedade da fidalga. Nunca foi
possivel demovel-o de sua casa e da sua officina! Ponha o compositor os
pontos de admiração que lhe parecer.

Do vigario de S. Julião sabe tambem o leitor que não ha tiral-o d’alli.
As virtudes do ultimo padre de Villa Cova é preciso lembral-as elle, que
o povo, abençoando as que vê, esqueceu as outras. O egresso capellão
da condessa, propendendo a bispo, fez-se politico, e fallava mais nos
comicios eleitoraes que cantava no coro. Na vespera de ser nomeado, ceou
com tres deputados de sua fabrica, e rebentou de madrugada, com grande
terror das creadas, que affirmaram não cheirar bem o conego: o que é
possivel e sem que a sua alma perdesse por isso.

José Pastor, transformado em José de Castro Vieira e Silva (como elle
arranjou isto!), é tenente de engenheiros, empregado nas estradas, com
grandes vencimentos e creditos de habilidade. Estudou muito, fez a
pontaria a engrandecer-se, não quiz saber de namoros, nem de theatros,
nem de bailes, e medita em fazer-se deputado por alguma parte, no
louvavel intuito de ser ministro das obras publicas: ministro, que hei
de defender, posto que o considero mais de molde para os estrangeiros em
vista da diplomacia de telhado, que o vimos tirar a limpo ha vinte e seis
annos.

A condessa de Asinhoso é ainda uma senhora robusta com os seus 67 annos.
A felicidade é a saude. Em certos dias do anno vai visitar a memoria de
Duarte Bettancourt, e depois sobe, a pé, a S. Julião ouvir missa por
alma d’elle. Respeitavel piedade, cujo quilate só Deus póde avaliar, a
despeito da censura hypocrita com que nós fingimos representar os juizos
do Senhor.

Aqui está o que podemos dizer d’estas familias. As outras filhas de Ruy
de Nellas lá estão em suas casas, honrando seus maridos, e abençoando a
mão liberal de sua tia que, em vida, vai disseminando a sua riqueza, já
muito diminuta em comparação do que foi. Parece que o anjo da felicidade
anda, de casa em casa, saudando, ora o lavrador de Villa Cova, ora o
lavrador de Pinhel, ora o virtuoso de S. Julião; e dos actos de todos vai
dar contas ao Senhor, que o reenvia com bençãos novas.



Moralidade


Occorre d’esta historia, natural e concludentemente que o coração do
homem, formado na sciencia e nos costumes antigos, encerra a urna dos
balsamos para as chagas dos corações formados á moderna. Exemplos tres
vezes bemditos: o vigario de S. Julião da Serra, Ladislau Tiberio,
Peregrina e Casimiro Bettancourt.

Excellente seria que tivessemos muitas d’aquellas reliquias dos tempos
obscuros, as quaes nos servissem como de quebra-luz, a fim de que a
brilhante claridade dos mil lampadarios da civilisação nos não ceguem de
todo.

Aqui está, muito á flor da terra, a moralidade da historia, em que
tentamos esboçar uma face do _bem_ e outra do _mal_ d’esta vida, tão
infamada por uns como glorificada por outros.

Senhor dos mundos! vós, quando creastes a brasa da sêde que requeima
os labios do caminheiro do nosso deserto, mandastes ás areias que se
desentranhassem em fontes! As fontes correm. E o impio sequioso bebe,
consola-se e... injuria-vos.


FIM



NOTAS


[1] Antonio de Oliveira Soares, que de capitão de cavallos e costumes
perdidos, passou a frade arrabido e vida muito penitente.

[2] O leitor provavelmente não encontra no seu «Diccionario» o termo
_reco_. O povo de Traz-os-montes, e de porção da Beira-Alta dá aquelle
nome, cuja etimologia ignoro, aos cevados. Eu leio muito pelo diccionario
inedito do povo d’aquellas provincias, que sabe a lingua portugueza como
fr. Luiz de Sousa.

[3] Nas aldeias do norte d’esta nossa terra tão pittoresca de linguagem,
algumas vezes perguntava eu quantos annos tinha tal velhinho, e não
entendia esta resposta: «já passa de dous carros» Vim depois a saber que
lá se contam os annos a quarenta por cada carro, por analogia com o carro
de pão de quarenta alqueires.

[4] Aut Deus, aut bestia.

[5] A «Sociedade da manta» era uma congregação de mancebos destemidos
que tiveram Coimbra atterrada, e reagiam ao exercito, quando não achavam
_futricas_ que escadeirar.





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