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Title: Ao Entardecer - (Contos Varios)
Author: Taunay, Alfredo Maria Adriano d'Escragno
Language: Portuguese
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Ao Entardecer



                           VISCONDE DE TAUNAY

                              Ao Entardecer

                             (Contos varios)

                             [Illustration]

                       H. GARNIER, LIVREIRO-EDITOR

                         71 e 73, rua do Ouvidor
                             RIO-DE-JANEIRO

                         6, rue des Saints-Pères
                                  PARIS

                                  1901



[Illustration: VISCONDE DE TAUNAY]



POBRE MENINO!



POBRE MENINO!


I

Em dia fresco e de chuva miuda, viajava eu na estrada de ferro Central.

Vinha de S. Paulo para o Rio de Janeiro em trem que parecia, contra
inveterados habitos, dever chegar á hora regulamentar.

A locomotiva como que se aprazia a devorar o espaço—na phrase
consagrada—por tempo tão grato que dispensava calor, poeira e grandes
atrazos, e o jornadear, calculado por tabella official de paradas certas,
inflexiveis, sempre as mesmas, era relativamente agradavel.

Na estação do Cruzeiro, onde desde largos annos—ia dizendo
seculos—imperam o porte dominador, a alentada bengala, a energica
gesticulação e as barbas medieváes e enchumaçadas do major Novaes, entrou
uma familia, regressando de Caxambú.

Páe, mãe, bastante moços, esta ainda vistosa, bonita, um filho, de 12
para 13 annos, visivelmente doente, duas creadas, uma branca, outra
preta, e um molecóte vestido de pagem, muitas malinhas de mão, chales,
cobertores, travesseiros, garrafas de leite e aguas mineraes, embrulhos
com restos, sem duvida, da matolotagem, comida á descida da serra.

Tudo aquillo ás carreiras se arrumou nos bancos vazios ao lado e ao redor
de mim.

Afinal, apitou a machina e partiu o barulhento comboio.

Cançado de ler, exgotados os jornaes de S. Paulo, parcos de novidades,
e um tanto aborrecido com um romance de Charles Merouvel comprado no
Garraux, que não me interessava, nem merecia interesse, puz-me a observar
os recem-chegados.

No rosto de todos, a inquietação, concentrada no menino que, apenas
sentado, pedira para se deitar.

—Sinto-me tão fraco! exclamou dolente. Não tenho mais forças!...

E com muita solicitude, creadas e molecote, auxiliando apressados os
amos e obedecendo-lhes ás indicações, arranjaram os meios de dar melhor
commodo ao doentinho, cujos pés ião além do banco e se retrahiam de cada
vez que passavam os empregados do trem.

Sim, doente, muito doente até. E tão sympathico, tão meigo, uma
expressão de tanta doçura na physionomia, nos olhos bem rasgados,
pestanudos, negros, scintillantes, mais do que ha vida normal, uns
olhos de soffrimento e febre!... Os labios como que reviam sangue, de
tão rubros; em compensação, as orelhas, muito grandes, desgraciosamente
apartadas, da cabeça, umas orelhas desmarcadas, como as do mallogrado
Napoleão IV, mostravão-se brancas, diaphanas, num gráo de deploravel e
significativo descoramento.

Impressionaram-me logo de principio os modos e as observações do menino.

A cada momento, sorria para os pais com immensa ternura, repassada
de melancolia, ainda que n’essa continua e commovedora caricia
transparecesse a vontade de lhes incutir coragem e esperanças.

—Apezar de tudo, disse todo superexcitado, estou mais valente do que
hontem. Assim mesmo não posso ainda estar olhando pela janella. Que pena!
Tinha tanto que ver! Apenas ficar bom havemos de viajar a valer, não é?
Levarei os meus cadernos de estudos e lucrarei muito. Não deve haver
melhor modo de aprender do que viajar. O livro vai sempre aberto diante
dos olhos... E eu, que fazia outra idéa da Mantiqueira... mais sombria,
mais cheia de buracões e pedras. Tão catita, que ella é!...

E buscando outra posição, gemeu surdamente.

—Sentes muita febre, _boy_? perguntou a mãe com augustia.

—Muita, não... já disse á mamãe, menos do que hontem; assim mesmo tenho
cá dentro um fogo!... Mas que bonita a serra desde o tunnel até ao
Perequê!...

—Talvez a frialdade da agua te tivesse feito mal, observou o pai; dous
copos cheios...

—Que mal, papai?! Nunca bebi com tanto gosto, nunca! Eram uns copinhos...
parecia que aquella agua devia curar-me afinal...

E como que em sub-delirio:

—Que bonita a descida! Como o céo estava puro! Eu quizera poder, como
um passarinho, atirar-me de cabeça para baixo, voando, voando, por cima
de todas aquellas montanhas e dobras e matarias! E o sol como brilhava,
com um calor tão bom, de saude; não como calor da febre! Lorena, não é,
papai? lá em baixo, na varzea, uns pontinhos brancos. Quanto é boa a
vida, a vida... a gente sentir-se valente, robusta... sem necessidade de
tanto remedio amargo!

—Vamos pôr-lhe o thermometro? propoz a mãe para o marido com uma lagrima
a cahir-lhe da palpebra.

Recalcitrou um pouco o pobresinho.

—Não, mamãe; sempre esta massada! Ficar parado um tempão... e para que,
afinal? Esta febre não me quer deixar... bem feliz se puder ir vivendo
com ella... me acostumando aos poucos.

Resignou-se, porém, com gracioso amuo e quedou se immovel e silencioso,
com o bracinho esquerdo bem encostado ao peito.

E os olhos negros, pestanudos, scintillantes, giravam de um lado para
outro, emquanto a ponta da lingua, em continuo vaivem, molhava os labios
recequidos e gretados pelo ardor da terrivel consumpção.

Cruzaram-se os seus olhares com os meus e tiveram como que um sorriso
de sympathia e cordialidade, com uma pontinha de vexame por estar assim
doente, anniquilado, n’aquella inferioridade da molestia triumphadora,
invicta.

Embora um tanto casmurro em viagem e nada propenso a entabolar relações
com adventicios companheiros de caminho, não me contive e, inclinando-me
para o lado em que estavam páe e mãe, perguntei-lhes, abaixando a voz:

—Desde muito enfermo este interessante menino?

Respondeu-me a senhora com verdadeiro açodamento de quem acha uma valvula
de expansão a constante e incompressivel sobresalto:

—Muito não... uns quarenta dias. Nem o senhor imagina como _boy_ era
forte e são... dormia como um chumbinho... bom appetite sempre, ávido
de movimento... _Boy_ não parava... travesso como um cabritinho, muito
bomsinho porém, sempre...

E _boy_ isto e _boy_ aquillo. Chamava-o assim desde creancinha. A
madrinha, muito dada a leituras inglezas, lhe puzera esse appellido
familiar...

—De que não gosto nada, interrompeo o menino com engraçada seriedade. Eu
me chamo Alberto.

Mas a mãe continuava:

—Haviam feito, no mez anterior, um passeio fatal á chacara de uns
amigos para os lados do Jardim Botanico, elle se agitára de mais com os
camaradas n’umas correrias sem fim, se resfriára...

—Brincaram perto de uma valla aberta de pouco, explicou o pai...

—Á noite, perturbação de digestão, e desde ahi uma febre tenaz, rebelde,
que nada pudera atalhar. Tomára já quinino... um desproposito!... um
horror!... Depois continuas mudanças, Gavea, Engenho Novo, Cascadura,
Barbacena, Caxambú, tudo sem resultado...

—Não ha tal, contradictou o pequeno, já estive peior... É não
desanimarmos. Olhem, façam tudo para não me deixarem morrer... Tenho
tanto que aprender e estudar!... Que atrazo este tempo todo em pura
perda! Como o Cardoso e o Souza devem ter-se adiantado nas aulas!...
Quando é que hei de pegal-os agora?...

Não pensava n’outra cousa, ia-me dizendo a mãe, emquanto as lagrimas,
como que já por habito, lhe corriam a fio. Tão boa creança, tão estimada
de todos, estudiosa... tanto estimulo! Uma ambição insaciavel de saber...
Muitas vezes se levantára ella da cama para apagar-lhe a véla e fazel-o
deitar-se... Ardendo em febre, pedia os livros, queria seguir as lições,
ouvir os professores... Nunca se vira cousa igual... Tirára já bonitos
premios... livros muito dourados, com gravuras...

—Já mamãe está falando de mim, interrompeu Alberto com ligeiro tom de
reprehensão. Este senhor ha de desculpar... é de todo a mãe. Não sou
melhor do que tantos outros...

E o seu rosto ensombreceu-se.

—Pelo contrario, valem mais do que eu, muito mais...

—Porque, meu amiguinho? perguntei commovido.

—Oh! elles têm saúde; eu nunca mais hei de tel-a, ainda que escape
d’esta... Tambem, d’ora em diante saberei arredar-me sempre de vallas
abertas... Verdade é que me diverti tanto!

E recomeçava o sub-delirio:

Cada qual nascêra com a sua sorte. O Carlinhos, que cahira dentro do
fôsso e se molhára dos pés á cabeça não tivéra nada... e elle!... Quanto
se rira, que boas gargalhadas déra, vendo o companheiro atolado... Sahira
sujo de lama, que era uma miseria... E a borboleta azul que estavam
perseguindo fugira, fugira, subindo muito alto... E as azas tinham-se
aberto largas, immensas, como um manto... tomando d’alli a pouco o céo
todo, de ponta a ponta... Tambem, que lembrança, querermos pegar o céo...
o céo!

Ahi, fazendo um esforço sobre si, perguntou impaciente:

—Papae, não é tempo de tirar o thermometro? Está me incommodando. Além da
febre e sêde... esta _caceteação_!...

Era tempo.

—Quantos gráus? indagou a mãe com dolorosa sofreguidão.

—38° e 8, respondeu o pai. Hoje, bem melhor do que hontem, pois a esta
hora Alberto tinha 39 e 2.

Via-se, porém, que encobria a verdade, pois destoavam as aquietadoras
palavras com o ar de desalento que simultaneamente se lhe estampava no
rosto. Ao guardar o thermometro no estojo de metal, fez-me imperceptivel
signal.

Levantei-me e fingi que ia refrescar o rosto no cubiculo ao lado,
poeirento e sujo _toilette_ do vagão.

D’ahi a pouco, chegava o homem.

—39 e 8, foram as suas primeiras palavras, pontuadas de terror.

E, acabrunhado, poz-se-me a contar o caso, banal, diario, tão commum,
mas sempre pungitivo da sua immensa desgraça. Esse menino, a alegria da
sua vida, a vida da sua mulher, ricos elles, sem mais objectivo algum na
existencia. Agora, aquella febre invencivel, que zombára de tudo e lhes
estava matando a adorada creança, debaixo dos olhos, dia por dia, hora
por hora. Mudem de ares, era o incessante conselho dos medicos; o recurso
unico que lhes restava. E não faziam outra cousa; de um lado para outro,
semanas inteiras. Para onde mais ir? E os terrores em logares distantes,
ermos, sem recursos, sem para quem appellar, quando vinham accessos de
estupenda violencia!...

Ao tomar então nos braços o filho, parecia que o tirava de um brazeiro...
queimava... Como poderia por mais tempo resistir organismo tão
delicado?... Que cruel expiação era essa? E expiação porque? Afinal, nem
elle, nem a mulher tinham culpas ou crimes a pagar? Porque os esmagava,
tão dura, a mão de Deus? De que o accusava a justiça eterna? Confessava
ter sido sempre bastante orgulhoso dos haveres herdados e sobretudo
d’aquelle filho tão perfeito... Mas quem o fizera assim? Não fôra a
propria natureza? Casára-se por amor com uma moça pobre, rejeitando
propostas de enlaces ricos. Nunca se arrependera, porém... haviam, até
pouco, sido tão venturosos! Parecia que a felicidade era um crime. A vida
devia ser triste, agoniada, passada em lagrimas e travada de amargos
desgostos...

E ao dizer tudo isso, apezar de violento esforço, tinha as palpebras
molhadas. Via-se que aquelle homem soffria cruelmente, sobretudo na
altivez innata, ao ter que abrir o peito, por irresistivel impulso, a um
desconhecido que arvorava, na conturbação da sua dor, em amigo e amigo
intimo.

Pouco se importára, a principio, com a tal febre, não pelas affirmações,
sempre tranquillisadoras, dos muitos medicos consultados, a mestrança,
porquanto, graças a Deus, podia pagal-os generosamente; mas
afigurava-se-lhe impossivel, fóra de toda a ordem, lei e justiça, que a
vida do seu Alberto pudesse perigar. Nem de leve lhe passára isso pela
mente... nunca!...

Um menino destinado a tanta cousa! Havia de ser, por força, homem
excepcional, conquistar as mais altas posições no Brasil, dando prestigio
á enorme fortuna que lhe estava destinada... Herdeiro universal do avô
riquissimo, com duas tias solteironas, de que era o ai-Jesus, ambas com
muitas posses, quem podia contar com futuro mais brilhante?... Elles,
os pais, tinham de renda mensal nada menos de cinco contos e gastavam-na
com regra e prudencia, fazendo ás vezes apertadas economias, para que o
Alberto na sua carreira politica jamais se preoccupasse com o dinheiro,
encontrando-o sempre, sempre á mão... Tudo isso, tudo seria debalde?
Arredava do espirito a possibilidade de irremediavel desastre... mas...

E a custo lhe sahiam as palavras... mas a morte a nada attende... a nada!
É inexoravel!

Prorompendo então em soluçoso pranto, agarrou-se a mim, convulsivamente.

—Ah! meu filho, meu Alberto! Quanto é castigada a minha soberba! Está
perdido... perdido!... E por quanto tempo, por quantos dias ainda o hei
de possuir?

Sacudi-o com certa energia:

—Silencio! sua senhora póde ouvil-o! Olhe, lave o rosto; esconda os
signaes da sua commoção. Naturalmente exaggera o perigo...

O desconsolado pai abanou a cabeça; mas obedeceu-me oppresso e alquebrado.


II

Quando voltámos aos nossos bancos, parecia Alberto presa de agitado
somno. Pelo menos, tinha as palpebras cahidas, como que prostradas por
vontade alheia ao organismo.

Via-se que febre intensa lhe trabalhava nas veias—faces escarlates,
beiços rubros, estremecimentos repetidos por todo o corpo, fulgurantes.
Relampagos de frio—assim nos dissera—lhe zigzagavam pela espinha dorsal,
contrahindo-lhe, de cada vez, os bracinhos magros, descarnados.

—Agua, agua, murmurou a custo, depois de algum tempo e abrindo com
sofreguidão os labios seccos, ávidos.

O molecóte apresentou-lhe rapido um copinho de leite, cortado com agua
mineral.

—_Mió_, nhonhô? perguntou baixinho com expressão de tocante e inquieto
interesse, _miósinho_.

Com um gesto de dedo, respondeu não o pobre do menino.

Em extatica e inexcedivel desolação, o contemplava a mãi, achegando os
cobertores, quando um movimento mais impacientado e vivo do doente os
atirava ao chão, n’aquellas crudelissimas alternativas de algidez e de
inaturavel calor.

—Apenas chegarmos ao Rio—disse ella para o marido, que, sorumbatico,
olhava pela janella a fugitiva paisagem—devemos logo embarcar, fazer uma
longa viagem de mar, talvez até á Europa...

Entreabriu Alberto os olhos e, em tom de ligeira malicia, objectou:

—Ora, a malvada embarcará comnosco... Está dentro de mim; não me largará
mais...

E o trem corria, corria! Entre Mendes e Rodeio, engolfou-se no tunnel
grande, acordando barulhos ensurdecedores, de fantasticos ferros a se
chocarem, sopros gigantescos, estalos enormes e suffocadora fumaça.

—Mamãe... mamãe! chamou o menino com indizivel angustia.

E ella, inclinando-se toda sobre o malsinado, como que a defendel-o de
mysterioso inimigo, a chorar, o acalentava, qual creancinha de berço.

Ia então desembocando em offuscadora claridade a locomotiva, triumphante
e a apitar estridente e galhofeira.

—Como é boa a luz, como é boa! exclamou Alberto erguendo nervosamente a
cabeça e com ar de verdadeira exultação. Pensei que ia morrer. A morte
deve ser assim; um tunnel, do qual a gente não sai mais nunca, comprido,
comprido e tão escuro, tão escuro, Santo Deus!... E onde a boa mamãe para
animar o filhinho... só, abandonado!...

Não sei por que, julguei dever intervir, como que desvendar consoladora
clareira ás negras idéas d’aquelle menino tão combalido e ameaçado.

—Não, Alberto, repliquei com involuntaria gravidade e imposição, na morte
ha tambem muita luz, muita esperança, muito céo, o verdadeiro céo, sempre
azul e grandioso... Na morte, mil alegrias e gozos esperam a alma, como a
vida não as póde dar... O tunnel acaba logo... começa depois sem demora
a realidade, eterna, cheia de encantos e esplendores... Illimitada é a
bondade do immenso Creador!

E estaquei, vexado do que acabara de expender, na vivacidade espontanea
daquella especie de prelecção tão descabida.

Mostrára Alberto certa sorpreza ao ouvir essas palavras, e, encarando-me
muito sério, respondeu com resignado desalento:

—Póde ser, póde bem ser... mas eu não quero ainda morrer!...

E retrahiu-se ao silencio. De vez em quando tiritava, encolhendo-se todo
e a bater os queixos. Buscava, porém, cauteloso, dominar manifestações
que impressionassem mais os paes, attentos ao menor symptoma de
aggravação, tão attentos quanto impotentes e vencidos; pobres, pobres
paes!

Passada a estação de Belém, já noite escura, observou a mãi, para dizer
qualquer cousa, que o trem não parava mais senão no Rio, no campo da
Acclamação.

Contrariou-a Alberto com inesperada alacridade e, nos olhos subitamente
accesos, pareceu ter singular prazer em assentar incontestavel verdade:

—Não, senhora; pára ainda em Cascadura.

E como suscitasse duvida o que affirmava, eu mesmo opinando contra elle,
mostrou bastante resolução e jovialidade em sustentar a sua asseveração.

—Você não se lembra, José, que o trem de São Paulo costuma parar em
Cascadura? perguntou para o molecóte, levantando-se a meio.

—_Iô_, nhonhô? respondeu o pagemsinho todo assarapantado, _iô_, não...
_ué_!

E tal a figura atrapalhada do negrinho pela obrigação de interpôr juizo
no debate, que não pudemos, todos nós, deixar de sorrir.

—Que tolinho! exclamou Alberto.

E deu uma risadinha gostosa. Depois cahiu novamente em comatoso
abatimento.

E, á luz vacillante, cheia de vaivens, quasi sinistra das fumosas
lampadas, o iamos observando, cada qual entregue a penosas meditações que
se concentravam, em doloroso accôrdo, n’um ponto unico.

Identificado, como se fosse velho amigo, ou, mais ainda, parente
chegado d’essa gente, que eu nem de longe conhecia, cujo nome ignorava
e nem sequer procurava saber, soffria com elles n’uma contensão dura,
cruciante, numa affinidade affectiva da maior intensidade e violencia.

Que viagem interminavel! Que hora aquella! Tudo tão sombrio em torno de
nós! Cessara a chuva; mas as trevas humidas, gottejantes, se condensavam
carrancudas, caliginosas, como que palpaveis. E a cada estação eram
apitos e assobios de perfurarem os ouvidos, ou então clamores angustiosos
e um bater de sino melancolico, lugubre, a dobrar finados.

—Ainda por cima este agouro, murmurou uma das creadas num como muchôcho.

Em Cascadura, parou, com effeito, o _expresso_, e um trem de suburbios
com elle cruzou n’um estrondear ensurdecedor de fragorosos gritos, uivos
e sibillos, como que a annunciarem pavoroso e irremediavel desastre,
choques horriveis, encontro medonho.

—_Boy, boy_, clamou a mãi simulando certo jubilo, você é que tinha razão!
Olha...

—Nhonhô, nhonhô, avisou por seu turno o molecote achegando-se e puxando
de leve o doentinho por um braço, _tá hi_ Cascadura.

Conservou-se Alberto inerte, indifferente. Suspirou apenas com mais força.

—O tunnel... o tunnel... Depois vem luz e céo... Bem me disse o homem...

—Não será bom vêr o thermometro? propoz a mãi com respiração cortada,
offegante.

—Não, mamãe, pelo amor de Deus, poude ainda implorar o pequeno.

Já ahi entraramos na zona dos suburbios e os lampeões de gaz, cada vez
mais chegados, indicavam a proximidade da capital. As estações todas
illuminadas, cheias de borborinho e animação populares. Numa d’ellas
tocava uma banda de musica saltitante peça e o contraste d’esses alegres
compassos mais me apertou o coração.

Revoltava-se, comtudo, o meu egoismo. Que necessidade essa de me
associar a todo aquelle drama intimo, que me trazia tão consternado e
tanto me abalava o systema nervoso? Por que não mudava de logar, não
procurava outro qualquer vagão? Afinal, não era aquillo tão comesinho?
Não assistira a tantos episodios de agonia e morte? Mais uma criança que
desapparecia no barathro insondavel... para dar razão ás estatisticas.
Que importancia no desenrolar geral da existencia? Gotta d’agua pura e
crystallina a cahir no abysmo... Não era, mesmo por isto, um afortunado
da sorte? Sahia da vida sem as miserias e desillusões que a vão
assaltando... limpo de toda a poeira e lama...

Procurava distrahir o espirito; mas ahi se me prenderam as vistas
insistentes, teimosas, hypnotisadas aos olhos então largamente abertos
de Alberto, não mais desassocegados e em tresvario, mas num movimento
lento de oscillação, como que destacados das orbitas a se mexerem um
tanto ao acaso. De quando em quando parecia que se sumião, cahidos, sem
mais apoio, dentro do craneo vasio, oco. E me diziam, assim mesmo, tanta
cousa, me falavam de tantos mysterios, me interpellavam com tamanha
anciedade!...

Interrogavam supplices, meigos, quem, em boa hora, lhe déra do mundo de
além idéa outra, que não de simples terror e aniquilamento para sempre,
n’aquelle instante tão proximo da suprema partida.

Sim, devéras, lá, fóra d’aqui, tambem sóes, tambem flores, esperanças,
carinhos? Tambem o conchego doce, protector de entes bons, superiores,
compassivos? Palavra?! Podia confiar? Não o quizera enganar... A leval-o,
d’alli a pouco, longe, longe, pela immensidade na desconhecida viagem, o
regaço de algum anjo, faria vezes da estremecida mãi? Para que, porém,
deixal-a? Para que despedaçar o coração d’aquelles fulminados pais?
Amavam-n’o tanto, tanto!

Quem incutira, porém, a esse homem desconhecido o poder de saber quanto
se passava da outra banda da vida? Talvez fosse um d’esses anjos
destinados a carregal-o, não era?... Ah! o disfarce mostrava-se bem
claro! Por que, porém, não se deixava enternecer? Não via a pungente dôr
dos que o cercavam? Pedisse a Deus misericordia... consentisse-lhe o
viver... A ninguem, nunca fizera mal algum... Promettia tudo... não por
elle, mas pelos paes... Passaria os annos a estudar, a dispensar o bem,
o amor, a pagar a divida solemne de interminavel gratidão! Seria quieto,
reflectido, honesto, caridoso, a sacrificar-se pelos outros, por todos...
amigo dos humildes, dos mendigos e desgraçados!... Mas tivesse pressa...
do contrario não o acharia mais na terra... Bem sentia a morte... sim, a
morte...

Passou mais um trem de suburbios com assustador estampido:

Ouvisse, ouvisse!... Ahi vinha ella... Que medo!... E já estava como que
sosinho... via-se na cova estreita com um mundo de terra por cima do seu
corpinho tão batido pela molestia!

—Não, não! Havia de ter coragem... dominava o seu terror, embora bem
justo, bem natural!... Creança, saberia morrer como homem... Poderia
estar chorando nos braços de pae e mãe, mas para que? Para tortural-os
mais? Quem sabe se não haviam de morrer tambem alli! Viessem, viessem
para cobrirem de flores o cantinho que eternamente o acolheria no
cemiterio, alvo, consolador com tantas cruzes e anjinhos de marmore a
rezarem.

Debalde buscava eu fugir á obsessão. Duas vezes me levantei; mas
irresistivelmente voltava a conversar com aquelles olhos, cada vez mais
resignados, penetrantes e de dolorosa eloquencia, cheios de sorprezas,
desconsolos e revoltas, com energia sopitados...

É preciso, é preciso: que fazer?

Bem quizera estar pensando, como menino, em cousas futeis e risonhas e
da sua idade, mas tinha por força que cuidar no que ha de mais serio e
triste, na morte... morte!

E já as pupillas negras, virando de vez em quando, se escondiam sob as
arcadas orbiculares, buscando vêr além, para dentro do pobre organismo
combalido... E já se fixava, no bater lento das palpebras pesadas,
plumbeas, impenetravel, o branco das escleroticas, como alvacento panno
cahido de scena finda, acabada...

E os bicos de gaz illuminavam de fóra, intermittentemente, o vagão, como
que em fantasmagorica visita, dando repentina luz a todos os recantos ou
deixando-o de subito em completa escuridão...

Iamos chegando, e no rostosinho de Alberto se desdobrava o pallor dos
ultimos instantes. Desbotava-se a rubidez das faces incendidas e
afilava-se, a mais e mais, o nariz correcto, aquilino.

Já a luz electrica chegava até nós.

E o trem estacou com o baque de definitiva parada, salteado pelos
carregadores em grita: «Malas, malas! bagagens! n. 20, n. 53!»

—Leve ao hombro o seu filho, disse eu para o pae, elle está...

E a palavra «expirando» ficou-me atravessada na garganta.

Parado, immovel, os vi partir, a todos. O pae, na frente, com o sagrado
fardo, a mãe, tropega, fóra de si, ao braço das creadas em soluços, atraz
o molecote com cobertores e chales...

E no vagão vasio, como que continuei a fitar aquelles olhos ardentes,
indagadores, tão suaves no ingente desespero, na duvida do problema
eterno....

_Poor boy, alas!_



CIGANINHA



CIGANINHA

(A AFFONSO CELSO, PRIMOROSO ESCRIPTOR)


I

Chamavam-lhe _Ciganinha_, e a principio tambem _Magriça_.

Exasperava-a, porém, este appellido. Quando o ouvia «ó, magriça!»
voltava-se rapida, furiosa, com os olhos a chammejar, e torcia a
cara toda nuns esgares muito feios de bruxa velha, botando para fóra
uma lingua de palmo, fina, comprida, serpentina. Soltava até grossas
palavradas.

Com a outra alcunha não se importava. Erguia os hombros num gesto de
expressivo pouco caso e concordava resmungando:

—Se sou mesma!

Por lei fatidica dos contrastes, havia recebido na pia baptismal o nome,
que nunca devêra confirmar, de Angelica—d’ahi Gêgéca ou Gégéca, como
costumava dizer a mãe, abrindo os _ee_ de modo especial e descançado, e
accrescentando sempre com languido suspiro de pezar:

—Um _diabréte_, esta _ménina_.

Desde bem pequena, mostrára, com effeito, indole muito independente,
genio violento, amigo de fazer as suas quatro vontades, audaz, altivo e
arrebatado, de par com muitos cahidos e engraçadas momices e caricias com
quem lhe cahia no gôto, ou permanentemente ou em horas de caprichoso bom
humor.

Positivamente endiabrada, só gostava de andar á volta com rapazes e
molequinhos, garotos da sua idade mais ou menos, furando matagaes,
correndo pelas varzeas, espojando-se na relva, deixando-se rolar
pelo barranco de areia até quasi dentro do rio, largo, magestoso,
esfrangalhada sempre, com as saias em molambos, o corpete a lhe cahir
pelos hombrinhos magros, descarnados, as pernas á vista, núas, nervosas,
esgalgadas, pés no chão, um tanto grandes e maltratados, mas não
espalmados e chatos.

Até perto dos 14 annos, ninguem como ella, a _Ciganinha_, para trepar nas
arvores a apanhar fructas ou excogitar e descobrir ninhos de passarinho
na ramagem mais folhuda e entrançada e pôr-lhes o gadanho em cima.

Agil como um sagui, leve que nem miudo e gracioso caxinguelê, eram de
ver-se o geito e a firmeza com que sabia agarrar-se ao tronco liso e
escorregadio das jaboticabeiras do matto e descascadas goiabeiras, indo
sem vacillar pelos galhos abertos até aos ramos mais finos, que sacudia
com vigor, para fazer tombar alguma goiaba teimosa e longe da mão avida,
impaciente.

E lá ia tambem pelas larangeiras acima, uma perna aqui, outra acolá,
escarrapachadas, sem se lhe dar com os espinhos agudos, minazes,
alcançando n’um apice as franças mais flexiveis e perigosas.

—Não quero que olhem para cima, bradava lá do alto, imperiosa, aos
companheiros agrupados em baixo, á espera dos pomos que ia colhendo e
arremessando.

Obedeciam-lhe de prompto, porquanto o rosto de algum mais curioso
e petulante ficava logo sujeito a moralisador e temido castigo e
bombardeio. Para prova, o filho do Manéca Fructuoso, que se vira em risco
de perder o olho esquerdo, quasi vasado por uma laranja verde, atirada
com pulso vigoroso e afeito a acertar no alvo.

Muitos dias ficára como exemplo aquella face inchada e rubra, á maneira
de uma bóla vermelha; e a todos explicava o ludibriado dono:

—Artes do demonio da _Ciganinha_; mas ha de pagar-me, tão certo como
dous e dous são quatro.

Quédas a valer levára ella das continuas e atrevidas ascensões, mas com
tão pouco não se occupava. Passado o atordoamento do baque em sólo duro,
e compondo-se depressa, pulava de contente ao verificar que ainda d’essa
vez não ficára com membro algum partido ou deslocado, tendo em nenhuma
conta arranhaduras fundas e dolorosas contusões.

No meio de todos esses desmandos e reparaveis extravagancias, singular
recato, instinctivo e selvatico pudor. Assim, jamais acceitara tomar, de
dia, banho no rio, em sucia e duvidosa promiscuidade com os camaradas de
travessuras. Banhava-se diariamente, sim, mas sósinha, á hora em que a
tarde se ia fechando noute, e sempre protegida por frondoso salgueiro,
que ainda mais ensombrava a bacia natural, onde immergia o gracil e
delgado corpinho.

Uma feita, já bem crescidinha, voltara á casa coberta de sangue vivo, uma
grande brecha aberta na cabeça.

—Não é nada, mamãi, affirmava toda exultante, com feição de legitimo
triumpho: uma batalha de pedras, bonita como tudo, com os filhos da
Narcisa _Mofina_. Del-lhes que foi um regalo. O Juca anda sempre me
chamando para as bibócas, a fazer-se de cebo commigo, pois bem, levou
até ao céo da bocca. Eu... contra quatro, hein? Não arredei pé emquanto
não os debandei. Só agora é que senti que me tinham tirado mel da
cachola... Canalhas!

E ainda se esgrimia exaltada, a pôr em fuga os numerosos adversarios.

Não cabia em si de ufana.

—Quatro, mamãi, quatro contra a filhinha de seu coração!

—Mas, menina, observava com tom plangente e arrastado a pobre da mãe,
isto lá são modos de rapariga? Onde vai _vance_ parar? Que _désgostos_
me esperam mais n’esta vida de _sópplicios_? Não basta o que já tenho
soffrido?

E desatava a chorar.

Muito dada a lagrimas essa D. Cula, diminutivo de Clotilde, usual em
todo o interior do Brasil; muito choramingadora, a boa da mulher.
Tambem, havia sido tão desventurosa na sua existencia penosa, solitaria,
predestinada aos abandonos!

Sempre feia, desenxabida, esgaivotada, pallida como cêra, n’um
emaciamento desconsolado de penuria constante e aniquiladora, era filha
de casal pauperrimo, que a deixára orphã bem cêdo, sem um cobre[1] no
fundo de velha bruáca.

Vivera ao Deus dará, muito quietinha, retrahida e medrosa a curtir negra
miseria de contorcer estomago e intestinos, e aguentando-se como podia
com umas costurazinhas e bordados de crivo, que lhe pagavam uma ninharia.

Viéra, depois, um cigano de arribação, muito pernostico e bulhento,
atirado a conquistador, e, sem mais nem menos, se mettera com ella,
procurando sobretudo explorar-lhe o trabalho e obrigando-a a fazer
doce de _fruta de lobo_, vendido aos tropeiros como marmelada, e mais
sequilhos e bolos de arroz e milho.

Quasi nada rendia o tal negocio, porque, além de tudo, o malandrino,
guloso e glutão por natureza, comia o melhor do que pretendia expor á
venda. Então, com grande dó e escandalo da vizinhança, começou a infeliz
a ser, dia e noite, quasi sem intervallo, malhada pelo patife do amigo.
Quanta bordoada! Que sovas de moerem os ossos!

De repente, após muita barganha aladroada, falcatruas vergonhosas e
innumeras dividas contrahidas a torto e a direito, desappareceu o
desbriado cigano—e para todo sempre. Foi-se embora, sem dizer adeus a
ninguem, internando-se pelo sertão fundo. Corria depois que acabara ás
mãos dos indios Affonsos, o que de certo bem merecera.

Signal da sua passagem, além do volumoso abdomen da Cula, só um
cofresinho de bom peso e fechado com cadeado de segredo cabalistico,
que a abandonada conservava com mysterioso cuidado e sério terror de
feitiçarias.

Em todo o caso, ficara a coitada gravida e só tinha de seu a casinha de
esburacadas paredes de adôbo e cobertura de sapê na barranca do rio,
casinha em que de pancada lhe haviam morrido pae e mãe, e testemunha
indifferente das colossaes e repetidas tundas. Ella ignorava até se lhe
pertencia ou não.

Do terreirosinho, de costume muito varrido e limpo, se via bem de fronte
o Paranahyba, todo espraiado, solemne, raramente ludroso, quasi sempre
puro e de aguas claras, a reflectir, como que em espelho animado e
corredio, tudo quanto se passava lá em cima, no Céo de Nosso Senhor Jesus
Christo e da Santissima Virgem Maria. No alto e embaixo, que combinações
de côres, ao esplendido arrebol da manhã e da tarde e nas multiplas
mutações e phantasmagorias das nuvens leves e doudejantes ou pesadas e
immoveis, illuminadas pelo descambar do sol!...

Ao brilho sereno do luar, então, que encantos, que quadros formosos,
diversos, cambiantes, ora meigos e risonhos, ora melancolicos, quasi
sombrios, de deixarem a gente cheia de scismas tristes e presagas!...

Da calmorreada e soffredora Cula se apiedaram, porém, os vizinhos; e
cada qual a ajudou como poude—uma gallinha idosa, meia duzia de ovos,
ou uma cadeira furada, um catre de couro já inservivel, chicaras e pote
esborcinados, miudezas e trastes de refugo, em extremo usados, quasi de
todo imprestaveis.

Todos eram tão pobres!

A pouco e pouco, nascida a Gêgéca, foi se tornando D. Cula estimada,
credora até de certa consideração, sempre muito séria e digna nos seus
extremos apuros e necessidades, activa ao seu modo e fazendo quanto podia
pela vida.

Entretinha relações de amisade com familias boas do logar, que lhe
pagavam as visitas; e, quando o vigario do Curralinho vinha até ao
povoado, parava sempre lá para apreciar o seu cafésinho gostoso e quente,
embora em chicara de folha de Flandres, que esfria depressa a bebida,
queimando os beiços de quem a toma, cafésinho acompanhado de umas brôas
e _brevidades_ muito bem feitas, pois ninguem as preparava melhor do que
ella, após as severas e tão accentuadas lições do perfido e brutal amante.

E assim se iam os dias escoando.

Segredavam as más linguas, e á frente de todos mexericava com sorrisos
ironicos e ares de desprezo o José Bispo, dono da venda mais bem sortida
e afreguezada, que, alta noute, não havendo luar, costumavam rondar a
porta da sisuda D. Cula certos vultos suspeitos, talvez o vigario ou
gente mais limpa e apatacada das tropas e boiadas, por alli de pouso,
antes de transporem o grande rio.

Quem está, porém, livre de calumnias e denigrações?

Depois da sua primeira e sabida desgraça, tinha a mulher tanta compostura
e tão resignada dignidade, que só mesmo a bisbilhotice de aldeia podia
esmerilhar duvidosas hypotheses, levando a mal as taes visitas, ainda que
a deshoras. E a miseria e a fome... bem más conselheiras!

Demais, já dissemos, não era nada appetecivel, descorada e pamonha como
tudo, nos modos e no fallar.

Com sotaque molle e cantado fazia justiça a si mesma, em invencivel
desalento e abandono:

—Eu sou tão _enjóada_! Quem ha de me _quérér_?


II

Devia, com effeito, a peste do cigano ter sido das arabias, ou sel-o
ainda, caso houvesse escapado das unhas dos temidos indios Affonsos.

Fizera da natureza apathica, dorminhoca, congochosa da Cula surdir, para
pasmo constante de todos, lepida, escorreita, andarilha, em continua
mexonada, a Gêgéca, a _Ciganinha_, cousa totalmente diversa, opposta,
antinomica, um azougue, uma agua viva, legitimo producto do tinhoso.

Não podia estar quieta e parada dous minutos, com uns modos azoinados,
bruscos, espontaneos, selvagens.

Tinha, positivamente, bicho carpinteiro em certa parte do corpo, que a
gente de lá designava com a maior sem cerimonia.

E bem falante, muito explicada, respondona como a maior das malcreadas,
sempre com a palavra do Cambronne na boca, prompta para desferil-a, como
se estivesse no quadrado da guarda imperial, em Waterloo, replicando á
intimação dos inglezes.

Uma occasião em que a mãi toda lacrimosa a reprehendia, accusada, como
fôra, de ter furtado um pombinho nuélo á Maria Rabolona, lavadeira no
porto, umas casas abaixo:

—Não fui eu, defendia-se, nunca minto... se o tivesse surripiado,
confessava... Já lhe disse... não fui eu.

E como D. Cula insistisse, amaldiçoando as escapadas e traquinices já
bastante graves, atirou-lhe ás bochechas:

—Ora, mamãi, de que serviu tambem _mêcé_ ter sido sempre boa, socegada,
mettida comsigo, uma santinha? O malvado do cigano não lhe fez mal, não a
surrou como boi corneta, e não a deixou de vez com a pança cheia?

—Menina! bradou D. Cula aterrada levando as mãos á cabeça, quem te
ensinou tudo isso? Olha, diabinho, Deus te ha de castigar! Santo Christo,
que será de nós?

—Deixe-se d’isso, replicou philosophicamente a _Ciganinha_ correndo já
para a porta, Deus tem muito em que cuidar. Quando se lembrar de mim, já
a raiva terá passado... A Maria Rebolona, que não se faça de engraçada
commigo... Sujo-lhe, num dia de chuva, toda a roupa estendida no
gramado... Hei de avisal-a uma vez por todas...

Esse furto do pombo nuélo... Para que insistirmos?... Por acaso, D. Cula
não teve sempre bons caldos, quando esteve tão doente? Quasi esticára
a canella, coitadinha, sem cirurgião ou curandeiro, que a visse por
caridade, nem remedio nenhum, nenhum para tomar!—E melhorsinha, não
comera pratazios de arroz bem cozido, em que se poderiam vêr ossadas
bastante suspeitas, até de gordas gallinhas?

Chegou a beber seus calicesinhos de vinho do Porto, comprado a 2$ o
martello na venda do José Bispo, o que serviu, semanas e semanas,
de thema a muita historia gaiata, longos commentarios e malevolas
conjecturas.

Pois, senhores, tudo falso e inventado, quanto ao vinho, pelo menos.
Querem saber a verdade? Por Deus Nosso Senhor Jesus Christo, que está nos
vendo e nos ouvindo.

Disséra um tropeiro para D. Cula:

—_Vancê_, dona, do que precisa é tomar todos os dias uns dous bons dedos
de vinho do Porto, da venda... Sem isto, não sára... não póde arribar tão
cedo.

—Mãi de misericordia! retrucara a agorentada martyr, que é da _cobreira_
para comprar a tal mézinha?...

—Ha de se arranjar, declarou Gêgéca, que se impressionara com o conselho.

E como costumava a miudo sopesar curiosa o cofresinho esquecido pelo
trastalhão do cigano, n’esse dia o levou ás escondidas para fóra de casa
e o arrombou no _cerrado_, sem a menor hesitação.

—Vamos ver, disséra para si, o que nos deixou o sem vergonha do meu pae.

Achou umas bugigangas, galhosinhos de arruda seccos, umas pedras
redondinhas pretas e verdes, tres figas de madeira poida e dous collares
compridos de ouro ou prata dourada, além de muitos papeis com signaes
esdruxulos, triangulos, meias luas, crescentes e estrellas rabudas.

—Diabo o leve, o bruxo, ou o guarde por lá! exclamou persignando-se, um
tanto assustada. E, recolhendo só o que para ella tinha valor, jogou o
mais dentro do rio, em logar bem fundo.

Tratou logo de reduzir a dinheiro um dos collares, guardando o outro para
si ou para maior de espadas, e foi propôr a venda a um boiadeiro pachola,
que se gabarolava de apatacado.

—Onde _campeou vancê_ isto? perguntou o homem olhando-a de esguelha, todo
desconfiado. Passou a unha?

—Não é da sua conta, _siô_ besta, foi a resposta. Quanto quer dar pelo
_lavrado_?

Propoz quantia visivelmente ridicula. Acordado, porém, o instincto do
negocio no sangue cigano, conseguiu a menina o dobro do primeiro preço.

E assim póde a chlorotica mãi, a quem tudo logo contou, saborear os seus
dedosinhos do apregoado e luxuoso vinho do Porto.

—Mas, filha dos meus pecados, observou assombrada, quem nos diz que no
cofre não havia _mandinga_? As desgraças vão chover em cima de nós duas...

—Qual! Foi muito bom; acabou-se agora a cai póra... Mecê verá!...

—Santa Rita nos proteja!... Se aquelle homem por cá apparecer, dá cabo de
nós, não ha que duvidar... a poder de tanta bordoada.

Fez a _Ciganinha_ significativo gesto de mófa e incredulidade:

—O diabo não é tão feio como se pinta... Elle que venha!... Ha de ouvir
boas... da minha boca!

E partiu á disparada, chilrando como um pintasilgo.

Atirava Gêgéca bodoque como poucos e lá ia com uma sacóla de bolas de
barro pelas mattas, de onde voltava sempre com alguma caça, papagaios,
tucanos, grallias e um ou outro mutum, que vendia por dous cruzados, ou
até vinte e cinco cobres a algum dono de tropa.

Preferia mil vezes essas correrias com meninotes da sua idade, já então
taludinha, a ficar estatelada á porta da casinha de sapê, resguardando
das moscas e vigiando o taboleiro de sequilhos e _brevidades_, á
espera dos possiveis freguezes. E, genuina herdeira do espirito guloso
e petiscador do pai, não vendia um bolinho, que logo não roesse um
bocadinho, dous ou tres na parte inferior, menos visivel.

Admittia sem pieguice muita graçola, até pesada, e ria-se com gosto,
mostrando os dentes bonitos, alvos, iguaes—cousa rara no interior—quando
á sua vista contavam historias e anecdotas bem crespas; não lhe tocassem,
porém, no corpo, lá isto não. Tinha a mão leve como tudo e dava bofetadas
de estalar aos que lhe beliscassem os quadris e as pernas, ainda bem
finas. Musculosa e ligeira, passava então taes rasteiras, que os gaiatos
e pelintrotes iam ao chão com grandes batecús e lá ficavam chiando de
dôr, no meio das estrepitosas vaias do rapazio.

Não falassem mal da mãe, não se atrevessem a agarral-a de certo modo, ou
não lhe fizessem propostas equivocas, era incontinenti uma surriada de
nomes feios e cabelludos, capaz de pôr tonto qualquer soldado tarimbeiro.
E por cima, muitas caretas e ademanes violentos de desafio e ameaça, com
energicos bamboleios de capoeiragem.

Sempre mal ajorcada, esfarrapada, as faces meio sujas, as unhas
caireladas, cabellos desgrenhados, rebeldes, todos em caracóes e
calamistrados, verdadeira gaforina, fincava n’elles uma flôr vermelha,
algum mimo de Venus, e passeava serena o orgulho da sua raça, quando
não dava cabriolas caprinas ou fazia mil maluquices, na expansão dos
inesperados impetos.

Voz geral no povoado:

—Esta rapariguinha leva a bréca de repente; acaba muito mal. Pobre da
D. Cula, que filha lhe pôz nos quartos o maldito do cigano! Cruzes!
Devéras, caipora assim é tambem demais... Talvez, o cujo fosse o diabo em
pessoa... Te arrenego, _abernuncio_! Só mesmo o demonio é que podia ter
a coragem de esbordor todos os dias a desgraçada amiga... era a ração...
Milagre, que a deixasse com braços e pernas... não lhe tivesse aberto a
cova com tanta porretada!...

Pelo que se vê, as surras de outr’ora haviam entrado nas tradições
populares. Tambem não poucas mulheres de má vida, as _fadistas_, nas
brigas com os tropeiros e scenas de ciumes, avisavam provocadoras e
afoutadas:

—Olhe, _siô_ moço, não sou nenhuma D. Cula. Para cá vem de carrinho. Tire
o seu cavallo da chuva, ouviu? Commigo nada de farófa... Depois queixe-se
ao bispo!

Tudo isto, tão longe, tão longe d’aqui, na villa de Santa Rita de Cassia,
á margem direita do bello rio Paranahyba, na minha pobre e formosa terra
natal—Estado de Goyaz!...

Transporta a larga corrente n’uma balsa de duas compridas canôas
encambulhadas por pranchões atravessados e um soalho por cima, chega-se a
uma praiasinha de areia fina—o porto de onde se empina elevado barranco.
Alguns bonitos salgueiros por perto.

E n’aquella balsa viajam, de um lado para outro do rio, homens e cavallos
de sella ou bestas de carga, então desarreadas e só com as cangalhas de
páos de forquilha assentes em chumaço grosso de macéga secca.

A boiada, muito chifruda, com os cornos compridos e bem abertos, ás vezes
elegantes lyras nas graciosas curvas, boiada goyana, forte, grande,
passa a nado; e os boiadeiros e camaradas a vão tangendo, na diagonal da
travessia, com uma grita immensa, que rebôa pela matta.

Refuga a principio o gado, mas, apertado pela gente a cavallo que montada
em pello o toca e estimúla, o pica e com elle se atira dentro d’agua,
afinal se decide agoniado e lá vai em denso cordão com cabeça bem
levantada, olhos aterrados e bocca offegante a deitar ruidosa respiração.
A extremidade opposta do pesado ruminante não mergulha tambem, surde
e como que se agita inquieta, presentindo perigos. É que, segundo voz
geral, se aquella parte do corpo, em que a _Ciganinha_ tinha bicho
carpinteiro, se molha, está irremissivelmente perdido o pobre do animal.
Singular destino! Caso digno do estudo dos entendidos e sábios!

De vez em quando, lá se destaca um boi e busca voltar á margem segura e
protectora, ou então roda de uma vez, embrulhado pela violenta corrente
do Paranahyba.

Levanta-se então brado de interesseira angustia e gananciado desespero,
não de piedade pela triste victima:—Lá vai um; lá vão dous!—E os
camaradas azafamados apressam, com gestos e clamores a mais e mais, a
passagem, até que o guia tome pé na borda de lá.

Em cima logo do porto de Santa Rita de Cassia, uma esplanadasinha de
grama verde e folhuda, largo fechado nos tres lados por linhas de pobres
casinhas terreas, algumas de telha, quasi todas de sapê.

No fundo, frente para o rio, a matriz, uma igrejasinha baixa, rebocada de
annos a annos, com um sino rachado á esquerda, suspenso a uma especie de
telheiro acaçapado, a cahir de podre.

E, ao redor da praça, assim pomposamente chrismada, estendendo-se para
aqui e acolá caprichosamente, umas moradasinhas, quasi sempre de porta
e duas janellas desguarnecidas de vidraças, moradasinhas bem caiadas e
alvas, encravadas em copado laranjal. Entre si, communicam por tortuosas
trilhas, que no tempo da florescencia ficam embalsamadas a pôr tonto um
christão.

Nessas larangeiras canta pela manhã e á tarde um mundo de maviosos
sabiás, a que respondem os bandos de afinados e sibilantes caraúnas
pousados nas palmeiras indaiás, que alli ficaram da primitiva floresta
virgem.


III

Cheia de travessuras no jaez das esboçadas foi, até quasi fazer-se moça,
a existencia toda da Angelica, além de uma ou outra façanha de mais
vulto, por exemplo, ir vagabundear, dias seguidos, da banda de lá do rio.

—Nossa Senhora da Abbadia, bradava D. Cula angustiada, sahindo da
habitual pasmaceira, não é que a menina se passou para as _Geraes_?!

Do outro lado, com effeito, de Paranahyba, fica o triangulo mineiro,
habitado por povos sérios, de certo, e pacificos, mas muito retrahidos e
com cara de poucos amigos.

Afinal, reapparecia a _Ciganinha_.

—Onde andaste, ménina dos meus peccados? indagava a desconsolada mãi.

—Ora, respondia a damnadinha, estive correndo mundo, assumptando, vendo...

—Mas, rapariga dos seiscentos, com quem, minha Santa Maria?

—Com o José Bexiguento, o filho da portugueza. Quiz, certo dia, fazer-se
de engraçado commigo; mas dei-lhe logo tal safanão, que d’ahi por diante
andou direitinho que nem um fuso.

Embora aos 16 annos, tinha ella, ainda que mais assentada de juizo,
pessima reputação; gozava de pessima reputação, dizem até bons classicos.

E bonita como mil peccados em penca, buliçosa, suggestiva, a pôr faulhas
de ardente cobiça nos olhos dos mais indifferentes e quietos.

Cabellos negros, bastos, então mais cuidados e lustrosos, mas sempre com
a sua florsinha, de preferencia vermelha, cabellos ondeados, com uns
crespinhos rebeldes na testa e na nuca roliça; rosto para o comprido,
n’um oval regular e como que fechado por encantadora covinha no queixo;
tez não muito morena, tanto assim que bem largas sardas lembravam as
grandes soalheiras de outr’ora, apanhadas em criança; sobrancelhas de
japoneza; olhos enormes, negros, rutilantes, avelludados, com uns cilios
que punham sombra ás atrigueiradas faces em que florescia suave rubidez;
labios humidos, polposos, com o brilho de romã entre aberta, n’um arco
deliciosamente desenhado, orelhas pequeninas, como conchinhas nacaradas.

E que elegancia nativa e senhoril no porte; que collo soberbo, cintura
fina, estatura mais que meiã—emfim, um todo, um conjuncto de fazer peccar
Santo Antão, na sua gruta da Thebaida.

Namoradeira como tudo, a Gêgéca; muito ufana da sua belleza, dos seus
encantos, mas acceitando a côrte e as homenagens de qualquer pé rapado.

A rapaziada de Santa Rita de Cassia e dos arredores umas 20 leguas andava
tonta, n’um rodopio.

Ao lusco-fusco, um corisco a diabinha, sempre á cata de aventuras banaes,
que sabia, porém, conter nos justos limites, avisada, aliás, a cada
instante pela voz arrastada, plangente da mãe, como agoureiro pregão:

—_Ménina_, _vancé_ se perde... Tanto vai o pote ao rio...
_Proteja-nos_... Santo Christo dos Milagres.

—Conheço o caminho, respondia a _Ciganinha_ e não me hei de perder assim
com duas razões... Estou traquejada na estrada e no atalho...

—«Lá vai a pestesinha», dizia-se ao lobrigar sobre tarde uma sombrinha
airosa, esbelta, esgueirando-se, sem grandes mysterios, aliás, por baixo
dos laranjaes. Ia até ás vezes cantarolando, com andar leve, mas seguro
e firme. E ouviam-se as gargalhadas de escarneo, que dava lá debaixo das
suas laranjeiras.

Com impudencia sem par contava as _bobagens_ que lhe haviam dito fulano e
sicrano, o tropeiro Vargas, o arrieiro Thomé do Valle, o mascate José de
Italia e mais este e mais aquelle, um povaréo grosso, emfim.

E imitava, com muita graça e valente debique, os protestos de amor
eterno, as declarações ardentes e claras ou timidas e ridiculas, o
gaguejado de quasi todos os pretendentes, os seus ademanes desengonçados.
E concluia:

—Que pagode!

Todos lhe apontavam mil amantes; mas ninguem podia gabar-se de o haver
sido. O filho do Manéca Fructuoso fôra já á cama doente de paixão.
Debalde fizera valer o caso do olho quasi vasado pela laranja verde. A
_Ciganinha_, sem compaixão, motejava do seu triste estado, no passado e
no presente.

—Um palerma, dizia desfazendo-se em crystalina e adoravel gargalhada,
que a tornava ainda mais irresistivel. Já me falou em casamento, como
se fosse um _favorão_, algum bicho de sete cabeças... Tão bom, como tão
bom... Que é elle, afinal? Filho de um empalamado...

E continuava a dar escandalosa corda a quantos lhe arrastavam a aza, quer
moço do povoado, quer adventicio e de passagem por Santa Rita.

—Essa rapariga é uma perdição, affirmava com pausa e todo convicto o José
Bispo, da venda.

Perdição ou não, estava sempre a Gêgéca prompta para as entrevistas
vespertinas, a que ia sem susto, sósinha, com a galhardia de se sahir
sempre bem, incolume e a contento da altiva consciencia.

E uma vez ou outra pescava uns presentesinhos, córtes de vestidos de
chita franceza e até de cassinha, lençosinhos bordados ou de seda,
garrafinhas e frascos de oleo fino para o cabello, ou perfumes em
moda entre as _senhoras donas_ do Rio de Janeiro, da côrte, o que
tudo aceitava, não por interesse, mas para obsequiar, muito instada
e rogada—uma lembrançasinha sem valor daquella tarde... E accentuava
a lembrança da tal tarde com um aperto de mão mais forte, que nada
significava, mas que a fazia desprender-se e fugir ás carreiras pelo
laranjal afóra.

Puzera-se tambem a trabalhar, e, ligeira como era, ajudava com muito
geito e bom resultado a pachorrenta da mãe. Ninguem resistia ao seu
sorriso, quando offerecia, convidativa e meiga, um docesinho de seu
taboleiro.

Um viajante, que por alli pousou com grande estado, da familia até dos
Jardins, salvo engano, chegou a pagar uma cocadasinha puxapuxa com
uns brincos de pedrinhas verdadeiras, amarellas, muito vistosas; tudo
desinteressadamente e por achal-a bonita devéras, como não vira igual nem
em S. Paulo, nem na Capital Federal. Tambem essa fama de formosura enchia
o sertão todo.

—Rapariga como a _Ciganinha_ de Santa Rita de Cassia, apregoava-se, não
ha duas nestas trezentas leguas á roda!... Cousa de pôr tonto o homem
mais valente!... E levada da carepa, um foguete, um buscapé... cruzes!


IV

Uma vez, com as suas facilidades, que tanto a desacreditavam, correu
Gêgéca sério perigo, bem sério.

Como era natural, não tardou o José Bispo, da venda, a querer engraçar-se
com ella e desejal-a com a impetuosidade do seu genio atabalhoado,
despotico, irascivel, mettendo medo a todo o mundo e cheio de grandezas e
valentias no meio d’aquella arraia miuda.

Por cima, inspector do quarteirão, embora não se tivesse naturalisado
cidadão brasileiro.

De cada vez que a _Ciganinha_ lá ia comprar alguma cousa, um cobre
de vinagre, meio tostão de azeite, um salamim de arroz, contava-lhe
historias, fazia-lhe mil promessas.

—Deixe-se de partes, Sr. _Portuga_, repellia-o Gêgéca; não se faça de
tolo, estou com pressa...

—Mas, _Ciganinha_...

—Limpe os beiços, Sr. pé de chumbo. Ande; que não vim cá para atural-o...

E assim era sempre.

Ora, como tudo isso occorria á vista de todos, apinhada a venda de
ociosos, tropeiros, creanças, _fadistas_, não raro havia troça á custa do
tal José Bispo.

—Assim, rapariga, applaudiam. Dê-lhe para baixo até mais não poder.

E se derretiam em caquinadas de chufa.

O homem bufava; procurava com esforço conter-se, mostrar frieza e desdem,
mas qual!

De cada vez que a Gêgéca reapparecia na immunda tasca, afigurava-se-lhe
que aquillo tudo se mudava em palacio encantado, n’um esplendor de cegar.

E a fadasinha, cada vez mais formosa, galhofeira e petulante, a
ludibrial-o sem dó nem receio algum.


V

Repellido sempre, poz-se José Bispo, descuidando até os negocios da
venda, a armar esperas á ciganinha, umas especies de tocaia, em que
perdia muito tempo e consumia a paciencia, reduzido a roer frenetico as
unhas ou antes o sabugo, conforme cacoethe velho.

Presentiu Gêgéca o imminente risco e, embora um tanto descuidosa e
zombadora, de continuo lhe furtava as voltas.

Uma tardesinha, porém, em que, scismando, fóra do costume, com certa
melancolia, se arredára mais do que convinha, foi de repente empolgada.
Quando deu accordo de si, o portuguez lhe mettera a mão em cima, e mão
bem pesada, adunca e violenta garra.

—Apanhei-te, pombinha de cascavel, exclamou com triumpho; vamos agora
ajustar nossas contas: basta de debiques e caçoadas.

Era o logar deserto, gritar de todo inutil. Só se ouviam, no silencio dos
ares, ciciar perto os flexiveis _sarandys_, cujos finos caules encurvados
pela correnteza do Paranahyba, a cada instante se erguem para logo se
dobrarem, produzindo brandos zunidos de plangente harpa eolia.

Sentiu na testa a nossa heroina camarinhas de algido suor; mas, fazendo
valente esforço sobre si, buscou não dar mostra do menor receio.

—Me largue, Sr. José Bispo, observou com serena gravidade; não são modos
de homem sério com uma moça como eu...

O tal appello á sua seriedade e ás maneiras pausadas da Gêgéca
desapontaram um tanto o vendeiro; uns simples minutos, comtudo.

—Que historias, replicou brutalmente. Vejam, só a santinha de páo ôco...
olhem, que partista!... Você cahiu no alçapão, e não solto o passarinho,
que custei tanto a agarrar...

—Mas, que é que o senhor quer de mim? perguntou ella com calma e
sobranceria, envolvendo-o n’um olhar de supremo desprezo.

—Que é que eu quero?... Cousa muito simples... que _seje_ minha... e
ha de sel-o, olaré!... á força, se não houver outro remedio... É de
tantos... Para que se fazer de pimpona só commigo?

Intenso rubor subiu ás faces de Gêgéca; os olhos faiscaram de raiva.

—Me largue, _siô_ gallego, exclamou impetuosa.

E com ameaça:

—Depois não se arrependa...

Sorriu-se zombeteiro o José Bispo.

—Ora, quero ver isto... ha de ser gaiato... Eu me arrepender? Nunca,
nunca!

E riu-se devéras, quando a ciganinha, reforçada como era, lhe imprimiu
forte empuxão para libertar o braço preso. Nem se mexeu do logar,
emquanto ella reconhecia, com intimo terror, que os dedos do portuguez a
atanazavam como guante de ferro.

—Não se faça de tola, Gégéca, eu bem sei que você esteve agora mesmo com
o Nhôr Grande da esquina...

—Mentira, protestou a rapariga.

—Pois se os vi passeiando juntos até se sumirem debaixo das arvores...

—É verdade, passeei com elle... mais nada... Nhôr Grande não é tão
ordinario que abuse de seu _talento_.

(Entre parenthesis.)

Sabem os possiveis e complascentes leitores, que cousa seja _talento_, em
todo o sertão d’este nosso Brasil?

Força physica, nada mais.

Continuemos agora, caso valha a pena estarem aturando esta massada, mas
disso não sou juiz. Como conheci, de passagem, a tal ciganinha levada da
breca e lhe admirei, ha uns pares de annos, a notavel belleza, tomei a
peito contar as suas façanhas e _capetagens_.

—Pois eu cá, replicou o brichote do José Bispo, entendo que _talento_
para muito serve... Olhe, quero ser bom; escute um pouco...

—Solte então o meu braço...

—_Iche_, lá isso não. Você disparava que nem veado matteiro.
_Assumpte_... entregue-se por gosto a mim e de amanhã em diante a bóto
de portas a dentro como minha caseira... D. Cula, sua mãi, virá morar
commigo... Nada lhes hadefaltar...

Arfava de indignação, odio e pavor o peito da pobresinha.

Vinha a tarde descendo depressa e, distante, á beira do rio, avisava uma
_anhuma póca_, com intervallado cantar á maneira do bater de dous páos
seccos, que a noite não tardava. A luz que ainda havia, tenue, esbatida,
descia de umas nuvens grandes, de intenso vermelho, a purpurejarem todo o
lado do poente.

Deu então Gêgéca novo arranco para traz com tal impeto, desta vez, que o
seu aggressor teve que avançar dous passos. Quasi de todo lhe quebrou o
animo esse esforço improficuo.

—Juro-lhe, bradou ella com a respiração offegante e immenso accento de
verdade e angustia, que nenhum homem ainda me tocou no corpo. Tenha
pena de mim, José Bispo. Se ha virgem n’este mundo, sou eu... Não me
desgrace... prefiro morrer...

—Qual, não se morre por isto, zombeteou o tendeiro.

—Tão certo como Deus estar no céo, affirmou Gêgéca arrebatada e ardendo
em febre, saia eu d’aqui suja, desgraçada e me vou logo e logo _pinchar_
ao rio. Ninguem mais me ha de ver.

Minha pobre mãi que se agarre com a Virgem Santissima... não terá mais
filha.

Viu José Bispo, no fundo, não de todo máo e perverso, que essa jura lhe
subia direitinha do coração—havia de executar o que promettia.

Vacillou pois.

—Mas se eu a amo como um perdido? Se a quero noite e dia?

—Razão de mais para me tratar com respeito... Não sou nenhuma _fadista_
para o capricho dos homens por qualquer meia pataca...

—Onde fica o mundo dos amigos e rufiões? Que querem dizer todas essas
conversas, á noitinha?... Santa Rita está cheia das suas passadas
tranquibernias...

—Brinco, gracejo, ouço as tolices que me dizem... deixo prégar á vontade,
mas ninguem toca no pulpito...

E concordou quasi com humildade:

—O senhor tem razão... Não é nada bonito o que tenho feito. Prometto
emendar-me. Ficarei-lhe querendo tanto, tanto bem!... A lição foi muito
séria.

Com a volubilidade de seu genio, Gêgéca, ao dizer conceitos tão sensatos,
já era outra, serenada a physionomia e, por isso mesmo, mais formosa e
seductora. Parecia-lhe que aquelle homem, cujas intenções a aterraram, de
subito se transformara em bom e leal censor.

Pouco durou a illusão.

—Não me levo por cantigas... Você falla em morrer, quando agora é que a
vida vai devéras principiar.

Recomeçava a dolorosa e indigna lucta.

—Não nasci para os teus beiços, gallego, porco, ladrão, tinhoso!

E as palavras sibilavam, ardentes, cuspidas com nausea, o corpo derreado
para traz em disposição de resistencia a todo o transe, e até ao ultimo
alento, lucta de morte.

Procurava José Bispo, vermelho, apoplectico de furor e volupia, enlaçal-a
pela cintura com o braço livre. Ia a dar-lhe o fatal cambapé.

Foi quando a ciganinha, com inopinado movimento de mergulho, agachou-se
rapida. Ao erguer-se, trazia na mão direita uma grande pedra
providencialmente achada aos seus pés e, sem perder um segundo, com ella
bateu por modo tão brusco e contundente nos peitos de José Bispo, que
este a largou, soltando um grito de surpreza e dor.

Era quanto bastava.

Fuzilou a Gêgéca pelo _cerrado_ afóra; mas á distancia parou e, pondo
os dedos nos cantos da bocca, atirou aos ares calmos e amornados uns
assovios tão finos, agudos e penetrantes, que a mataria já adormecida
pareceu sobresaltar-se. Respondeu-lhes, á margem do Paranahyba, a
assustada grita dos bulhentos e mettidiços _queroqueros_, de subito
alvoroçados.

Ao chegar á casa, toda fóra de si, arquejando de susto e de cansaço,
abraçou a ciganinha a mãi com angustiada vehemencia e, deixando-se cahir
de joelhos, prorompeu em longo e nervoso pranto.

Debalde tentou D. Cula saber o motivo. Afinal, suspeitando o que não era
real, triste e resignada, chorou ao lado da filha até alta noite.

Meu Deus, meu Deus, que será de nós? exclamava a cada instante.


VI

Da terrivel aventura não disse a ciganinha palavra a ninguem.

Tornou-se, porém, apprehensiva, muito mais prudente e não era assim com
duas razões que ia espairecer e dar um bocadinho de tréla aos rapazes, lá
debaixo das laranjeiras.

Preferia longos passeios sósinha, por caminhos e atalhos só della
conhecidos, mas, apenas começavam, lá pelas 5 da tarde, a desfilar nos
ares os bandos de pombos torquazes, buscando sempre inquietos e como
que irresolutos até no vôo, o pouso para a noite, tambem se encafuava
acautelada em casa, na _capuába_ da boa mamãe.

Ficára retrahida, inquieta, menos confiante nos seus meios physicos de
repulsa a tentativas de desacato.

Se se mostrava mais attenta aos requebros e protestos de dous ou tres,
era para tel-os á mão, como especie de guardas vigilantes, o que
desapontava não pouco os namorados de mais fresca data, obrigados a
gaguejar as suas declarações de paixão, quasi á vista de uns estafermos,
sorumbaticos, estatelados de tanto amor e estorvadores de profissão.

Do filho do Manéca Fructuoso, o tal do olho meio varado por uma laranja
verde, fizera Gêgéca gato sapato. A tudo se prestava o pobre do trangola,
macilento apalermado, comtanto que lhe fosse permittido respirar perto de
quem lhe comera a alma, na energica expressão sertaneja.

—O Malaquias da boiada chegada hontem, e o Fortunato da tropa do Chico
_ricasso_, dizia-lhe a ciganinha, querem por força falar commigo, cousa
de segredo. Quando o sol se metter na matta, venha me buscar, ouviu,
Nhonhô?

—Pois não, Gêgéca, _vancé_ manda...

E o Malaquias da boiada e o Fortunato da tropa ficavam, cada qual por seu
turno, todo embabocados e desageitosos, ao verem surgir ao lado da gentil
apparição, anciosamente esperada, o typo escaniçado, muito comprido e
ridiculo d’aquelle _patito_ do sertão, o nosso Nhonhô Fructuoso.

—É excusado; com a Gêgéca ninguem póde, era voz corrente em todo o
povoado de Santa Rita.

E tal ou qual prestigio mystico a rodeava, pois accrescentavam a meia
voz:

—Tem partes com o _anhanega_ e o _sacisé réré_; anda de pandega com
_currupiras_ e _boitatás_. Não poucos podem jural-o aos Santos Evangelhos.

Talvez por isso, mas muito mais pelos seus olhos a luzirem como
brilhantes negros, entre orlas de cabelludas pestanas, pelo seu narizinho
espirituoso, um nadinha arrebitado na ponta, pelas faces pennujadinhas
como _pecego do cerrado_, tão bonito no avelludado aspecto como feio
no nome (chamam-n’o _cagaiteira_), pelo seu corpo esbelto, cheio,
promettedor de mil thesouros, andava positivamente tonta, de miolo
virado, toda a rapaziada d’aquelles centros.

Não havia quem não parasse diante da chóça de D. Cula e, puxando logo
conversa, deixasse de comprar sem vontade mesmo, nem olhar a preço, todas
as _brevidades_ e ingenuas golosinas do interior, alli expostas á venda.
Florescia então por tal modo o negocio, que as duas mulheres já podiam
vestir com certa casquilhice umas saias de babados grandes de bom crivo,
e traziam sobre os hombros lenços finos de seda, barreados de azul, e aos
pés uns chinellinhos de couro de veado, enfeitados de debrum vermelho.

Não havia cocada, mãe benta, _manaoé_ ou _pé de moleque_ que parasse.
Além do que comiam, levavam os tropeiros lenços cheios—um nunca acabar—e
voltavam logo a pedir mais, só por causa do dedosinho de gostosa prosa e
contemplação.

E a ciganinha a vender tudo á porta da choupana materna, com muito
bons modos, risonha, escorreita, prompta á replica e rebatendo, habil
esgrimista, os cumprimentos demasiado ardentes á sua formosura—legitima
e bem instinctiva loureira, na sua Santa Rita do Paranahyba, como a
mais sabida a calculista americana do Norte n’esse incessante duello de
faceirice e esquivanças dos brilhantes salões de Washington e Nova-York.

Nem tardou a suprema e estrondosa consagração, dada pelas trovas do João
Valentim, o _sabiá gogano_, n’uma festa, quasi _cururú_, que chamara á
localidade muito povo de umas 30 leguas em torno.

Esse Valentim, que pachola ao violão! Quantos cahidos de braços e
revirados de olhos! Já meio velho, calvo, assim com uns restos de homem
bonito, atirado a _seductor_ de mulheres com as suas quadrinhas, que ia
desfiando á medida da inspiração todo choroso e derretido!

Vadio como tudo, só queria trabalhar nas cordas da guitarra ou no
machete, em que devéras pintava o sete, com umas unhas immensas,
attestado da sua preguiça e que zelava como inestimavel preciosidade,
sempre limpas de cairel e todas lustrosas.

E como sapateava ao fado, o pernostico bailante, apezar das juntas já
bastante perras! Como puxava fieira, ao convidar, em elegante derrengado
de corpo, o par ainda sentado! Não queria outra dama senão a Gêgéca, que,
n’essas occasiões pulava agil, airosa, provocadora, as faces rubras que
nem pimenta malagueta, os olhos faiscantes com uma pontinha de lascivia,
exuberante de seiva e mocidade, cousa mesmo de botar de pernas para o ar
moços até da capital federal!

—Olhe o diacho do velhão todo mettido a gallo do terreiro, murmuravam os
rapazes enciumados, quasi ameaçadores.


VII

N’essa especie de choradinho ou _cururú_ que ficou celebre, expandiu-se a
homenagem á formosura da Gêgéca nas seguintes quadras, cantadas com muita
denguice e grandes derreados, pelo João Valentim.

Repinicando o violão, nuns preludios todos cheios de blandicias, tomou
largo hausto e plangentemente soltou a voz já um tanto estragada e
rouquenha:

    «No Brasil jámais se viu
    Rapariga tão bonita,
    Como seja a _Ciganinha_
    D’esta nossa Santa Rita.»

Correu um sussurro de applauso e admiração, que o artista acompanhou em
surdina.

Erguendo, porém, o canto, obrigou o silencio, que se fez completo:

    «Busquem outros prata e ouro
    Nos mil sonhos d’ambição;
    Que eu só quero, altivo a tudo,
    Conquistar-lhe o coração.»

Gêgéca, lá do seu canto, impando embora de vaidade, deu um _ixe_!
significativo.

Concordou logo o cantor com as difficuldades da ardua campanha e gloriosa
posse:

    «Mas ahi é que são ellas,
    Pois a mais linda das flôres,
    Escarninha, volta o rosto,
    Não enxerga as minhas dores.»

Appellando para o idyllio, proseguiu, puxando as cordas do instrumento
com os dedos, muito abertos e recurvados:

    «Se junto ao Paranahyba
    Gemem tristes os salgueiros,
    Perto d’ella em vão soluço
    Preso aos olhos feiticeiros.»

—Cruzes, observou a _Ciganinha_ a uma mocinha chlorotica que lhe ficára
ao lado, dizer que os homens levam a nós pobres mulheres com estas
patacoadas e pacholices! Qual, este mundo não anda direito!

A tal reparo pareceu responder João Valentim, promettendo lugubre
desfecho ao repellido amor, de que se tornára illustre victima, éco aliás
de muitos pacientes:

    «Ó Gêgéca, meus peccados,
    És um castigo da sorte;
    Mas a tanto soffrimento
    Eu prefiro a dura morte!»

—Não morre não, Valentim, replicou a interpellada bem alto, o que
provocou até palmas no auditorio, deixando bastante enfiado o guitarrista.

—Que moça _cuéra_! exclamou um dos ouvintes.

Verdadeira inspiração inflammou, porém, o cantor com aquelle ironico
desafio e com arroubado rapto acudiu elle, erguendo o tom:

    «Ordem é do Ser Supremo:
    De joelhos, natureza!
    Abatei-vos, terras, céos,
    Ante a força da belleza!»[2]

Não pôde, porém, sustentar estro tão alto e descahiu logo em legitimo vôo
icario para o ridiculo:

    «Mas de tal consumição
    Olha bem, cruel Gêgéca,
    Vou ficando magro e secco,
    Que nem feia pereréca!»

E assim por diante, a não acabar mais, tudo muito chupado, cheio de ais!
e uis! com umas pieguices de mulherengo vadio... a sua caceteação,
em summa, que deixava a D. Cula toda babosa, enleiada com vontade de
alli mesmo abrir um pranto enorme, mas que a filha acolhia incredula,
indifferente, meio a bocejar.

Quando alguma quadra lhe cahia no goto, ria-se então, botando á mostra
os dentes rutilantes de alvura, sempre arêados com uns talosinhos molles
de aroeira do campo, nacaradas perolas tornadas mais brancas ainda pelo
contraste do vermelho appetecedor dos labios, frescos, carnudos, feitos
para beijos de enlouquecer.

Da rubida bocca, porém, partiam flechasinhas pungentes, como do seio das
rosas sahem zumbindo mordicantes abelhas.

Nem sequer soube poupar o sabiá goyano, o melodioso glorificador dos
seus encantos, pois sem respeito algum á necessidade da rima, logo lhe
paspegou ao cogote o appellido de João _Pereréca_, que adheriu e d’alli
em diante punha bambo e furioso o nosso seductor Valentim.

E entre a paixão real e a vaidade de poeta travou-se breve lucta, que
terminou pela victoria do Parnaso, offendido em sua meticulosa dignidade.

Declarou-se inimigo da Gêgéca, mas teve que desapparecer de Santa Rita de
Cassia, onde muito tempo depois cantavam outros bem convictos:

    «Ordem é do Ser supremo:
    De joelhos, natureza!
    Abatei-vos, terras, céos,
    Ante a força da belleza!»

Ou mais frequentemente ainda, tanto o ridiculo sobrepuja o bom, até em
Santa Rita do Paranahyba:

    «Mas de tal consumição
    Olha bem, cruel Gêgéca,
    Vou ficando magro e secco
    Que nem feia pereréca!»

Razão talvez mais plausivel levára João Valentim a de pressa sahir
d’aquelles locaes de inesperados desenganos. Foi pedir em casamento a
terrivel _Ciganinha_ e levou formidavel taboa tudo com grande pasmo de
D. Cula, que quasi desmaiou de emoção, ouvindo a despachada resposta da
filha ao avelhentado e petulante candidato:

—Olhe, Sr. João, disse-lhe a Gêgéca na bochecha, não se faz familia nem
se sustentam mulher e filhos com cantorias de pereréca!

Era, já se vê, rapariguinha pratica, bem americana.


VIII

Desde ahi verdadeira epidemia na rapaziada do povoado e adjacencias. Não
havia agora quem não quizesse casar com a _Ciganinha_.

A todos ia dizendo—não, não!

Para que nada faltasse ao seu triumpho, uma tarde appareceu de repente
lá pela casinha de D. Cula o vendeiro José Bispo, todo desajeitado,
inquieto, a suar como um burro, mettido n’um rodaque branco bem
engommado, de meias aos pés, dentro de alentados tamancos. Não tinha
gravata, mas ostentava collarinhos altos e tesos, com muita gomma.

Estavam as duas mulheres merendando. Comiam com os dedos molle pirãosinho
de farinha de mandioca a acompanhar um sorubysinho pescado de fresco e
cozido n’agua e sal.

Ficaram ambas sobremaneira sorpresas, até receiosas, sem saberem o que
fazer.

—Não é servido? perguntou a velha descorando muito, ao passo que Gêgéca
fazia-se escarlate.

—Obrigado, dona, respondeu José Bispo com timidez, transpondo a custo o
limiar da chóça.

—_Mas porém_ abanque-se, convidou a dona da casa indicando uma cadeira
velha.

O homem foi, depois de algum pigarro, entrando em materia. Ha muito
quizera vir lhes falar, mas uma cousa e outra, isto, aquillo, aquillo
outro, negocios, etc., etc., o haviam sempre atrapalhado.

Depois...! receios de ter offendido D. Gêgéca, mas lhe perdoasse, não
fôra por querer... estava muito arrependido das suas brutalidades...

Tudo muito gaguejado, emquanto D. Cula abria uns olhos muito grandes de
coruja assombrada.

Afinal desembuchou.

A menina era já moça feita, precisava tomar estado, ter uma posição, e
elle, no caso de principiar familia, vinha, nem mais nem menos, pedir a
sua mão.

E contou lá suas fanfarronadas.

Possuia bastante de seu para assegurar o futuro de ambas, pois até
pretendia mudar-se d’aquelle logarejo, que não lhe servia mais,
retirando-se para a capital, onde daria maior extensão ao negocio, para
_Goáyaz_—como dizia.

E parece, com effeito, que pronunciava mais certo do que os que dizem
Goyaz, pois o Sr. Beaurepaire Rohan, muito entendido em materia de bugres
e cousas do tupi, assim tambem é que falla,—_Goáyaz_. Muitas e muitas
vezes, eu, Heitor Malheiros, o tenho ouvido dizer d’esse modo, á fé meu
gráu. Verdade é que o juramento está hoje abolido, e não sou formado em
cousa alguma.

Continuava, porém, José Bispo. Dava aquelle passo na certeza de ser
attendido, embora muita gente certamente o devesse censurar. Não
duvidava dos bons sentimentos da menina, cujos modos entretanto serviam
de motivo a muitos mexericos e falatorios. Era franco. Nutria, porém,
a convicção de que tudo não passava de muita mocidade. Uma vez mulher
d’elle José Bispo, saberia portar-se de modo a só merecer respeito e
consideração dos povos todos de Santa Rita, e onde quer que fossem parar.

—_Dé_ certo, _dé_ certo, ia affirmando a lesma da D. Cula toda a babar-se
de gosto com a perspectiva de semelhante enlace, uma fortuna do céo.

Conservava-se Gêgéca retrahida, calada, com uns restos de pirão a seccar
na pontasinha dos dedos.

Uma vez superados os primeiros instantes de acanhamento, falou José Bispo
a valer, fazendo sobretudo alarde da sua qualidade de homem sério, de boa
posição e apatacado, insistindo muito nas vantagens que desse casamento
advirião para ellas duas.

Deixou até entrever, que, do seu lado, havia não pouco sacrificio.

A isso Gêgéca rompeu o silencio:

—Então, quem o mandou vir cá? perguntou desdenhosa e altiva.

Respondeu o vendeiro com sinceridade.

—A paixão, Gêgéca, a paixão! Tudo fiz para conter-me, mas não pude.
Estive quasi a fugir como um perdido, alta noite. Formei mil planos...
até de crimes. Achei que afinal era melhor dar o passo que dou. Se
_vancê_ me disser não, mesmo assim ficarei mais socegado. Estou disposto
a tudo... comtanto que não me queira mal... não me despreze, não se
volte, ao ver-me, com escarneo e nojo...

E aquelle homem brutal, violento, tinha os olhos supplicantes, cheios de
lagrimas, vencido pela _força da belleza_, como dissera João Valentim nas
suas trovas.

Estava D. Cula totalmente besta do que via e ouvia.

—Gêgéca aceita, disse afinal intromettendo-se, ainda que a vacillar e com
uns laivos de rubra emoção na eterna pallidez das faces; sem duvida ella
aceita... Que póde mais _quérer_ n’este mundo? É desafiar a sorte.

—Cale a bocca, mamãe, exclamou impaciente Gêgéca que parecia
concentrar-se em rapida e necessaria meditação.

Afinal, voltando-se para José Bispo, respondeu-lhe com serenidade:

—Pelo passo que o senhor deu hoje, perdôo-lhe do fundo do meu coração
tudo quanto me fez. Acabou-se o odio, e odio bem justo, que eu lhe
votava. Não posso, porém, attender ao seu pedido, que tanto me honra e
me levanta aos meus proprios olhos.

Não é que a diabinha da rapariga falava bem? Ora, sejam justos, leitores
da minha alma. De entre os 40.000 assignantes da _Gazeta de Noticias_ não
haverá meia duzia mais condescendente?

—Pelo meu genio, continuou ella, e com os seus arrebatamentos,
não podiamos ser senão dous infelizes, uma vez amarrados pela lei
do casamento. Falando-lhe assim, dou-lhe prova de que não sou tão
desajuizada como a muitos pareço. Por outro lado, e lado muito grave, que
faria o senhor da desgraçada Perpetua, com quem vive ha tantos annos? Que
seria dos seus quatro filhinhos, já tão abandonados?

—Mas, _ménina_, buscou inquieta interromper D. Cula, para que... se
metter assim na _vidá_... dos outros?...

Via, com effeito, José Bispo quasi a estalar de roxo, todo apoplectico,
tolhido de vergonha, embasbacado.

—E o que é a pobre Perpetua, perguntou com voz vibrante a _Ciganhinha_
á mãe, toda estarrecida, senão a D. Cula lá da praça?... Nem lhe faltam
pancadas e tundas, além do peso dos quatro pequenos... Só agora o
abandono...

—Gêgéca, exclamaram com tom de anciosa rogativa os dous, basta... basta!

E emquanto a chorona mamãi prorompia nos mais angustiosos soluços,
retirava-se José Bispo tonto, titubeante, empuxado por mil sentimentos,
numa afflicção bem real de pungitiva dôr, em que sobrelevava intenso
vexame de si mesmo, pela taboca que acabara de chupar.


IX

Por esse tempo chegou á Santa Rita do Paranahyba, vindo de S. Paulo, pela
cidade de Uberaba, o Dʳ Anselmo de Sá.

Entre nós, quanto tem progredido a tal Uberaba, no antigo sertão da
Farinha Podre! De bem poucos annos, só havia lá poeira vermelha que era
um inferno, continuas trovoadas roncando grosso, uns casarões sombrios
de cumieira muito alta e aspecto sinistro, o bom capuchinho frei Germano
com as suas eternas observações meteorologicas, o velho tenente-coronel
da guarda nacional Sampaio, advogado provisionado e membro do Instituto
Historico, além do João Caetano, o homem mais pacato do mundo, mas que,
de cada vez que abre a bocca e, muito de mansinho, começa á falar,
provoca por toda a parte um barulho dos seiscentos, protestos, gritos,
violentos apartes, retaliações e até tiros de garrucha!

Mas hoje, sim senhor! A tal Uberaba já faz figura de grande cidade...
no interior. Possue bazares quasi de luxo e mais isto, aquillo,
aquill’outro, cousa de encher o olho. D’aqui a um nadinha, terá
linha de _bonds_, confeitarias e gaz de illuminação, se não for luz
electrica, á imitação e moda de Juiz de Fóra que, só por isto, quer por
força ser a primeira cidade de Minas Geraes e só fala das outras com
desdem. Asseverou-me, pelo menos, bem proximos todos aquelles valiosos
melhoramentos o Borges Sampaio, o tal membro do Instituto, quando por lá
passei. Acho, comtudo, que o homem, aliás com excellentes intenções, tem
patriotismo demasiado uberabense e inflammavel.

Voltemos, porém, á nossa historia.

Atravessava o Dʳ Anselmo de Sá já tarde o grande rio e com muita bagagem,
pois viajava como um _lord_. Viu-se, pois, levado a pousar em Santa Rita
de Cassia.

Era esse moço parente chegado dos Confucios e Socrates da familia dos
Craveiros, ligados por laços de affinidade com os Moraes, Abreus,
Fleurys, Rodrigues, Jardins e Bulhões, gente toda de alto cothurno no
meu Goyaz, descendentes até do celebre conde, depois marquez de São
João da Palma, antepenultimo capitão-general e governador da Capitania
(apresentar armas!) e que lá fez maravilhas nos seus 5 annos de mando
absoluto e violento.

Demais, todos na minha terra, quasi sem excepção, pretendem provir
d’aquelle grande papão; e isto tem alguns inconvenientes.

Querem uma prova?

Em certo dia, um versejador de occasião, candidato a não sei que
logarzinho, foi procurar, aqui, no Rio de Janeiro, um dos filhos do
marquez—esse bem averiguado. Toca a esperal-o, e nada do protector
dignar-se apparecer.

Esgotada a paciencia a contemplar um retrato, tamanho natural, do
venerabundo e temivel fidalgo, todo coberto de dourados e fitões,
prégou-lhe afinal o tal pretendente embaixo na moldura com um alfinete
uma quadrinha altamente crespa e pornographica, relativamente á honra
materna e ao esquecimento em que essa mãe era tida. Que desaforo!

E safou-se, deixando o mote, sem esperar pela glosa. Que desaforo!

O tal marquez (cumpre-me, entretanto, dizel-o a bem da verdade historica)
deixou em todas as capitanias onde esteve e governou um mundo de filhos
naturaes... O excellentissimo Sr. capitão-general era povoador por
excellencia. Comprehendia—e tinha razão—que o Brasil, antes de tudo,
precisava e ainda precisa de gente. Ia, pois, no desenvolvimento do seu
programma administrativo, applicando com enthusiasmo o _multiplicamini_
de Jehovah, nem melhores serviços podia prestar á corôa de Portugal,
deixando ás forças da natureza fecundada o cumprimento do outro preceito,
_crescite_! e das mais obrigações, pagar impostos, ser soldado d’El-Rey,
etc., etc.

Estou porém, sahindo de mais da nossa estrada.

Ah! se eu tivesse ensejo, desfiava muita cousa interessante sobre Goyaz,
lembrando tambem os muitos homens notaveis que elle tem dado á patria,
pois me peza, devéras, o menospreço com que por ahi costumam falar do meu
cantinho natal.

Conhecem, por ventura, o padre Manuel José Fogaça, que foi prior da
igreja de Lourinhã, em Portugal, e bispo resignatario de Malaca? Pois
bem, era filho de Goyaz. Conhecem Alvaro José Xavier, commendador
de Christo e brigadeiro reformado, presidente da junta do governo
provisorio? E Luiz Antonio da Silva e Souza, eleito para as côrtes de
Lisboa, mas onde não esteve, professor publico de grammatica latina?

E o general Curado? Joaquim Xavier Curado? Quem se recorda mais d’elle?
Grã-cruz do Cruzeiro, commandou em chefe exercitos e ganhou batalhas
campaes. Veiu á luz do dia em Jaraguá. Como é que um cidadão goyano
nascido tão longe, no miudinho arraial do Conego, foi fazer o diabo e
pintar a manta no Rio da Prata, malhando sem tregoas nos castelhanos,
dando-lhes bordoeira de crear bicho e trazendo-os de canto chorado, é o
que custa crêr. Tenham, porém, paciencia; ahi está a historia, que não me
deixa mentir.

E tantos outros!

Uns conegos, padres, outros presbyteros seculares; emfim, renque de gente
do mais subido valor e posição e que deixou numerosa e estimavel prole.

O certo é, que, em Goyaz, predomina muito o sentimento aristocratico e
separação de castas. «Não sou filho das hervas», diz lá todo cheio de si
um d’aquelles mortaes e, firme n’isso, ninguem o faz arredar pé.

Pois o nosso Dʳ Anselmo de Sá era d’esses que não tinham sido achados
debaixo de um pé de couve e de tudo tirava não pouco orgulho, olhando aos
mais bem do alto da sua importancia e com ares de sincero pouco caso por
meio mundo.

De que lhe serviu, porém?

Foi botar os luzios na ciganinha, e _zás_! ficou pelo beiço, logo, no
dia da chegada, pela tardinha, tal qual um lambarysinho do Paranahyba,
fisgado na bocca por apontado e despiedoso anzol.

Isso não no rio, mas na novena que se estava rezando na igrejinha, por
signal que o sacristão, o Quincas Malhado, já de miolo molle, fazia
vezes de padre e puxava as rezas e ladainhas n’um latinorio levado da
bréca e que o Padre Eterno, apezar do seu polyglottismo, custaria bem a
entender.

Lá estava a nossa Gêgéca a encher a carunchosa matrizinha com as
irradiações e o esplendor da sua belleza.

Tambem foi o doutor pregar-lhe o olho em cima e ficou tonto,
tonto, abestalhado, bestificado, historica palavra do Sr. Silveira
Lobo—Aristides, o justo.

Nem me lembro bem como os francezes chamam esse repentino estado d’alma,
a tal fulminação—meu professor de francez foi tão fraco!—Por isto não me
arrisco; podia escrever alguma asneira.

—Mas quem é aquella moça? perguntava o Anselmo assarapantado, sofrego, a
quantos o rodeavam.

Aquelles olhos, aquelles olhos, santo Deus! que relampagos desferiam!
Por isto, quando pousaram bem em cheio no doutoréco, sentiu-se este
desfallecer, todo derretido de gosto, julgando-se na obrigação de sorrir
aparvalhadamente, mas a suar frio, quasi a tiritar!


X

Não dormiu toda a noite o nosso impressionavel Anselmo de Sá, a passear,
agitado, pelo povoado immerso em carregadas sombras, nervoso, irrequieto,
acordando o latir de um ou outro cão e fumando cigarros; a esperar, pelo
que?... Por emquanto, pela madrugada, que não chegava.

De nada valiam os esplendores do céo, de um azul ferrete, negro,
avelludado, profundo, como certas saphyras do oriente, céo marchetado
de tantas estrellas, que o Paranahyba d’ellas colhia fantasticas
fulgurações, no immenso serpear da larga corrente.

Afinal, sentiu-se o moço tão prostrado, com as pernas tão bambas, que
cahiu na cama feita sobre as canastras de viagem, e passou por uma
modorrasinha, mais que somno. Ás 7 horas da manhã já estava, porém, de
pé. Lembrou-se então de ir banhar-se nas aguas puras do rio, a vêr se
acalmava o incendio que sentia lavrar violento, inapagavel, dentro de
si e o suffocava; a mente conturbada, o peito oppresso, com os musculos
repuxados.

Qual! Gregorio de Mattos, sem procurarmos exemplos e approximações em
litteraturas de outras terras, na tal Europa e sobretudo na França, que
tanto nos avassalam, o nosso Gregorio de Mattos já disséra descrevendo
identica e penosa disposição d’alma:

    «_Tomo banhos de neve por dentro,_
    _Mas o fogo não quer abrandar!_»

E eram _banhos de neve_, cousa que não existe no Brasil, tomados
internamente, por cima! Como, porém, o poeta se os administrava, é o que
não nos diz, nem ensina.

Fica, comtudo, a receita para os apaixonados em tão melindrosas
circumstancias.

Nem de proposito, fôra Anselmo mergulhar o ardente corpo no banheiro
habitual da _ciganinha_, á sombra do salgueiro que tantos primores
costumava entrever de soslaio... Calculem só... De certo, a arvore foi
discreta, mas quem sabe? é tão singular, inexplicavel, mysteriosa, a
força catalytica, a acção de presença? Que prodigios não operam no seio
da natureza esses elementos mudos, impassiveis e inalteraveis?...

Qualquer que seja a causa, o pobre do rapaz sahiu d’aquella immersão
peior do que quando penetrára na agua tepida, ennervante, voluptuosa em
suas amornadas caricias. Tinha chammas nas veias.

Vestiu-se ás pressas e com o cabello grudado ao casco da cabeça, portanto
meio ridiculo para um pelintrote de S. Paulo, resolveu ir bater á porta
de D. Cula, orientado por um meninosinho, a quem generosamente deu 200
réis em nickel.

Sem demora lhe appareceu a visão celeste! nem mais, nem menos, de
repente, a Gêgéca, que lhe dardejou logo dous olhares de revirarem de
catrambias para o ar, não um simples bacharelete, mettido em paletot
sacco, de sarja verde fundo de garrafa, porém sim, com toda a sua
armadura de ferro, Roldão em pessoa, o sobrinho querido do imperador,
Carlos Magno, ou algum dos Doze Pares de França.

—Que deseja, Sr. doutor? perguntou a rapariga sorrindo com encantadora
ingenuidade, mas devéras surpresa e lisongeada d’aquella visita matinal.

—Venho... venho, balbuciou o Anselmo quasi estarrecido de tanta belleza
matutina, venho... encommendar á... senhora sua mãe... Não posso falar...
com ella? Cousa... urgente...

—Está ainda dormindo, replicou a ciganinha muito despachada.

Mas, demonio, ó filha d’aquelle diabo que tanto surrára a desgraçada
D. Cula, basta de atarantar mais o Sr. bacharel! Para que esse sorriso
enigmatico, para que esse bater languido de folhudas pestanas? Deixa,
pelo menos, o moço dizer o que quer, que encommenda era essa, tanto mais
que um raio ironico do sol ao nascedouro lhe brincava nas barbas ainda
incipientes, na ponta do nariz e no seu _pince-nez_ de myope!

Era comtudo, exacto. D. Cula, com os habitos de inveterada preguiça
goyana, ou antes sertaneja, ou melhor brasileira (_fiat justitia ne
pereat mundus_, diz o direito estudado, ou não estudado, pelo Dr. Anselmo
de Sá) D. Cula, apezar do calor, estava áquella hora encafuada na cama, o
tal catre velho, de que fala o capitulo I d’esta historia verdadeira.

—Não... não a encommode, implorou Anselmo com verdadeira angustia, como
se da repulsa de sua supplica pudessem provir grandes damnos. Quero... a
senhora... per... perdõe... Quero para a viagem... um taboleiro de doces.

E ficou assombrado da repentina idéa que lhe illuminára o cerebro;
dominado, porém, pelo terror de que o tal taboleiro de doces fosse cousa
tão fóra de alcance como o vélo de ouro, ou algum pomo do jardim das
Hesperidias.

Tranquillisou-se de prompto.

—Hontem mesmo á noite fizemos um bem grande, replicou Gêgéca. O senhor
volte logo para ajustal-o com mamãe.

Ia humildemente, todo soffrego, perguntar a que horas; mas não teve
tempo, _Pan!_ A ciganinha lhe batera com a porta na cara.

Já se viu o capricho?

Atraz dessa porta trancada, ficou ella comtudo pensativa, de sobrancelhas
um tanto cerradas. Vamos e venhamos, aquelle mancebo tão alvo, de
bigodinho revirado, _pince-nez_ de ouro, mãos e pés delicados, maneiras
finas, trage elegante, lhe agradava devéras, não lá exaggeradamente,
cousa extraordinaria; mas, emfim, esse não era, de certo, como os outros,
oh não!

—Que ha de novo, _ménina_? perguntou de um canto a voz arrastada de D.
Cula, entre dous bocejos.

—Um moço bem parecido que veiu pedir um taboleiro cheio de doces... para
não sei que viagem.

—Louvado seja! Diga-lhe que são tres _mira_ réis pagos á vista.

—Quaes 3§! objectou a filha. Peça-lhe a mamãe 5§, quando elle voltar.

—E se não _vortá_?

—Oh! se volta!...

Com effeito voltou e, ao preço exigido de 5§, impetrou licença para
offerecer 10§; favor feito a elle. Tomara informações seguras; uma viuva,
vivendo honestamente do penoso trabalho com a sua filha, já moça, ambas
sem protecção de ninguem—nada mais digno e commovente.

E, se não deitou discurseira, foi por sentir a cabeça que nem um ninho de
guaxupés assanhados, debaixo das baterias oculares da _ciganinha_.

—A moça sabe lêr? atreveu-se elle a perguntar á Gêgéca n’um momento em
que estiveram a sós.

—Mal e mal, respondeu ella sempre a sorrir (diabo do sorriso!) arranho...
quando a lettra é grande...

D’alli a pouco, tambem recebia um papel com garranchos bastante graúdos:
«Preciso muito falar-lhe logo á tarde, debaixo das laranjeiras.—Dr.
_Anselmo_.»

N’aquelle esplendoroso _doutor_ depositava o nosso homem muita confiança,
toda a confiança.

Entretanto, oh desillusão! a Gêgéca, n’essa tarde, deixou-se exactamente
ficar bem socegadinha em casa, a ajudar a mãi n’uma tachada de doce de
_fructa de lobo_, que esta no dia seguinte devia impingir como marmelada
ao desnorteado viajante.

E não é que o bolas do _cigano_ fizera escola e para alguma cousa
servira?!

Tudo neste mundo tem sua compensação.


XI

Deste dia em diante começou a ciganinha a pôr em pratica os mais
habeis manejos de faceira esquivança, deixando o Anselmo cada vez mais
transtornado de paixão e exaltados desejos.

Em Santa Rita já ninguem mais ignorava que o doutor, de pouso alli por
alguns dias, estava positivamente a definhar de amor. A todos tomava
para confidente, distribuindo dinheiro a rôdo e não se fartando de
ouvir falar na Gêgéca, ora em bem, ora mais frequentemente em mal, o
que o exasperava. As noticias do José Bispo então o torturavam de modo
horroroso, indizivel.

Fazia tenção firme de logo e logo partir, de fugir alta noite, sumir-se,
azular; marcava o dia certo, infallivel e, afinal, chegado o momento,
decidia continuar a ficar por alli a banzar.

Tudo lhe servia de pretexto, necessidade de dar forte descanço aos
animaes, receio de chuvas proximas, razões todas de cabo de esquadra, que
os camaradas iam acceitando com a indifferença que essa gente por tudo
mostra, no fatalismo da existencia.

—É _memo_, é _memo_! concordavam e lá iam folgar no rancho a tocar viola
emquanto esperavam que o Sr. doutor quizesse um bello dia, quando menos
contassem, levantar o pouso.

—Mas Gêgéca, D. Gêgéca, perguntava a medo Anselmo, em certa occasião, á
ciganinha pilhando-a de geito, porque é que você... a senhora... foge
assim de mim?...

—Por que o doutor deseja o meu mal, a minha desgraça! respondeu a moça
resoluta.

—Eu, Gêgéca, eu? protestou elle com verdadeira e sincera indignação, eu
que a amo tanto, que a quero como nunca suppuz poder querer a ninguem...
eu, que não durmo, não como, não tenho mais um momento de socego a pensar
na senhora... sempre em si?!

—E depois?...

—Depois o que?

—Sim, depois? Para mim a vergonha, as lagrimas, o abandono... tal e qual
minha pobre mãe, e tantas coitadas por este mundo de Deus!

Arregalou Anselmo uns olhos muito grandes. Sériamente cahia das nuvens,
via-se rolando aos trambolhões por enormes despenhadeiros.

—Eu te juro... fiel, fiel até morrer!...

—Sim, é o que vocês homens sempre dizem; a arapuca em que todas cahem...
um milhosinho pisado em troco da prisão eterna... valha-me Santa Rita!...

E arremedando o arroubo do rapaz repetiu com engraçado e fingido ardor e
apertando o peito nas mãos:

—Eu te juro... fiel, fiel até morrer! E riu-se ás gargalhadas.

Em outro tom, sem transição:

—Para nós, desgraçadas, as consequencias... o luto, esse eterno riso...
o peso desse gracejo... os trabalhos, nós, sobretudo, do sertão, sem
ninguem que nos ampare, nos mostre o caminho direito... nenhum castigo
para os homens, que têm por si a força, o abuso...

Ó ciganinha damnada! Quem te ensinou tudo isso? Em que livro foste
aprender toda essa desfiada de valentes argumentos, tu que só sabias
kyrielas de nomes feios e se lias era mal e mal, tão sómente lettra
graúda? Muito, muito póde o bom instincto!

—Então fujo d’aqui, vou me embora, desappareço... Você nunca mais ouvirá
fallar em mim... Hei de esquecel-a, logo e logo que der as costas a Santa
Rita...

—Paciencia, replicou a Gêgéca, levantando os hombros, a estrada é larga,
está ás suas ordens. Ninguem o agarra; olhe, eu não lhe estou dizendo de
ficar...

E, com melancolia, mirando o moço bem em cheio, os olhos carregados de
brandura:

—Quanto a esquecer-me, disse, é bem facil, bem natural. Que valho eu?
Uma pobre rapariga da roça... filha de mulher sem marido. Mas eu lhe
affianço, Sr. doutor, hei de sempre lembrar-me do Sr... viva eu cem
annos...

E quedou-se uns instantes a encaral-o immovel.

Mal poude Anselmo reter um frouxo de choro.

Parecia que todas as desgraças lhe cahiam em cima.

De repente:

—Então você gosta um bocadinho de mim? indagou com anciedade.

—Não sei, não posso dizer... nem sim, nem não... gratidão é amor?

—Mas, Gêgéca, qual será o seu destino, neste logar tão pobre, tão sem
recursos?... Tanta formosura para quem? Para que?

—Meu destino? Que interesse deve merecer-lhe? Ora... o de tantas
outras... Casarei com algum tropeiro por ahi... Estou vendo, estudando,
esperando alguem que não seja de todo máu...

—Você, casada com um tropeiro, meu Deus, meu Deus!! Impossivel!

—E porque não? Nem sequer valho um arrieiro?

—Oh! Gêgéca, muito mais, muito! Não leve a mal as minhas palavras; estou
fóra de mim, nem sei o que digo...

—Olhe, observou a _Ciganinha_, uma cousa juro por Deos que nos está
vendo, o homem que me tiver não se ha de arrepender... Sinto que não
nasci para mulher ordinaria... menos ainda para moça de porta aberta...

E com impeto:

—Não, isto não, antes a morte... mil vezes a morte!

Agarrando então violenta a mão de Anselmo e achegando-se a elle,
perguntou irada, com os sobrolhos fechados, as feições contrahidas:

—O José Bispo da venda lhe contou alguma mentira? Fallou mal de mim?
Responda, responda!

O moço repetiu o que era verdade.

—Não, elle se calla, todo embezerrado, quando outros cortam na pelle de
você... E não são poucos Gêgéca... ah, não!

—Uma sucia de _catimbáos_ e mofinos! exclamou ella com altivez. Podem
inventar o que quizerem, desafio-os a todos; mas o mais pintado d’elles
não teve isto de mim!... Ixe!

E fez estalar uma unha de encontro a outra.

Passou então por perto uma velha que ia buscar agua ao rio com um pote á
cabeça, e os dous pouco depois se separaram.

Anselmo levava, comtudo, a promessa formal do tão inspirado encontro a
sós, n’um recanto ensombrado que ella lhe indicou, a custo, incerta,
descontente, apprehensiva.


XII

Já se ia a placida e calida tarde fundindo em noute, quando no ponto
aprazado occorreu o _rendez-vous_ que devia ser decisivo, entre Gêgéca e
Anselmo de Sá.

Fôra este muitas horas antes, o sol ainda alto no horizonte, esperal-a
ardendo em febre e impaciencia, e suppondo-se a cada momento simplesmente
ludibriado pela suspirada _Ciganinha_.

Afinal appareceu ella, como que trazendo comsigo ondas da luz que já ia
faltando na terra, em derredor. Parecia descer do céo.

—Enfim! exclamou o moço, atirando-se arrebatadamente ao seu encontro.

Repelliu-o Gêgéca com brandura.

—Não toque no meu corpo, observou grave e resoluta, venho só para
ouvil-o, já que se mostra tão ancioso de conversar commigo. E será esta a
ultima vez, desde já o aviso.

—Sim, sim, concordou Anselmo; nada mais quero.

Começou então uma dessas declarações de amor, como tantas no fundo ouvira
ella, d’esta feita, porém, n’uma linguagem nova, sonora, arrebatada, que
dolorosamente lhe acariciava os ouvidos, a deixava enleada, com a cabeça
um tanto vertiginosa.

Presa de sincera paixão, foi Anselmo por vezes eloquente n’aquelles
surtos de elevada e platonica poesia, que é o perfido visgo das crueis e
irremediaveis exigencias physicas.

—Gêgéca, dizia elle, vejo, presinto que você deve amar-me um bocadinho,
mil vezes menos do que eu, mas sempre alguma cousa, e o amor não pensa,
não calcula, o amor é todo misericordia, é um sacrificio, dá vida, não
mata, não extermina!

E com fogo lhe prendia as mãos frias nas pontas.

—Por certo, balbuciava ella, você não é como os outros que me falaram
e sempre me falam em paixão... mas, afinal, e apezar das minhas
imprudencias, sou uma rapariga honesta... tenho sabido resguardar a minha
honra... que será de mim?

—Não lhe dê isto cuidado... leval-a-ei commigo...

—Sim, replicou a _Ciganinha_ ironica e mais senhora de si, como cousa
vergonhosa, não é, ás escondidas? Não chamam por ahi _malas_ essas pobres
creaturas que seguem com os viajantes? Ia eu ser como ellas, simples
_mala_! E minha pobre mãe, que não póde mais viver sem mim?

—Ah! verberou com real desespero Anselmo, numa explosão de ingenuo
egoismo tão commum em quem ama devéras, você não pensa senão em si. Eu
não valho nada; nasci para soffrer, para ser achincalhado, pisado aos
pés, para soffrer como um miseravel!... Quem me tirou o somno, o comer,
o beber, quem me causou mal tão fundo e incuravel, é que lhe deve dar
remedio... É de justiça, é de equidade! Isto brada aos céos...

Dubio luar clareava então um pouco os espaços, luar, porém tão pallido,
tão desmaiado!... Se jámais D. Cula pudesse fazer de lua, havia de
passear assim, desmaiada, chloro-anemica, pelo firmamento afóra.

De todos os lados tambem, como que immenso desalento na gigantesca
natureza, alquebradas e inertes as forças de resistencia numa modorra
lethal.

Só a Gêgéca a luctar valente com os arroubos de Anselmo e comsigo mesma.

Quiz o mancebo apressar o desfecho e de subito a tomou nos braços.

Ahi, porém, surgira o instincto da revolta no peito da _Ciganinha_ e
tal empurrão deu ella, que Anselmo cahiu redondamente no chão a certa
distancia.

Ah! não era o forçudo e temido José Bispo, esse bacharel; certamente não!

Rompeu elle em nervoso pranto, deixando-se ficar deitado na relva, com o
rosto occulto entre as mãos. E o corpo todo estremecia com a violencia
dos soluços.

Invadiu então o coração da moça sentimento tão intenso de compaixão e
remorso, que, sem saber bem o que fazia, foi sentar-se junto do misero
apaixonado e fez-lhe pousar a cabeça sobre um dos joelhos.

E ficaram os dous immoveis, elle a chorar em silencio, ella a
acariciar-lhe os cabellos com muita meiguice, ambos num enlevo de
indizivel doçura.

Ah! _Ciganinha_, _Ciganinha_, que perigo!

Que te podia salvar em momento tão extremo, quando tu mesma, a escorregar
por mysterioso e irresistivel declive, te entregavas ao entontecedor
esmorecimento de toda a tua energia, da tua vontade, tão imperiosa,
instantes antes, quão vencida agora e conculcada?

Pois, senhores, não lhes conto nada; ouçam, porém, o que succedeu.

Já quatro ardentes labios bem proximos se iam abotoar, naquella
suggestiva solidão, no mais sequioso beijo, quando, com bastante
estrepito, um animalsinho correu por alli perto, algum _guaxinim_ ou
_jaguatirica_, e foi quanto bastou para que Gêgéca voltasse a si e de um
pulo se puzesse de pé.

Quem sabe se não lhe valera a velazinha de cêra, que, dias antes, fôra
levar e accender, na igrejinha com toda a devoção, aos pés da sua
protectora, a Senhora D. Rita de Cassia, santa de muitos milagres e
bondades?

Em todo o caso, estava desfeito o terrivel feitiço. Aclaravam-se as
posições.

—Adeus, disse a _Ciganinha_. Siga o seu caminho, Anselmo; parta quanto
antes, amanhã se fôr possivel. É do fundo d’alma que lhe desejo todas as
felicidades? Esqueça até que existo n’este mundo.

Estava o moço positivamente apavorado.

—Não, não, dizia elle agarrando-lhe nas mãos e de joelhos, mil vezes, não!

E, no auge do desespero, exclamava:

—Que fazer, santo Deus, que fazer? Você quer a minha morte, quer com
certeza!...

Calava-se Gêgéca, como que a meditar.

Afinal:

—Levante-se, ordenou, e ouça-me com algum proposito e socego. Pergunta-me
que fazer, não é? Pois lhe respondo: cousa muito simples, muito natural:
case-se commigo.

Em qualquer outra circumstancia, simples gargalhada teria acolhido
semelhante alvitre; mas Anselmo estava tão atarantado e abatido que se
contentou com abrir uns olhos muito espantados.

—Eu... eu? balbuciou, casar... com você?

—Por que não?

E vendo mil duvidas nos olhos desvairados do moço:

—Ha de, acrescentou com altivez, achar-me digna de si... Não tenha
susto...

—Mas... meus paes, você nem imagina, tão cheios de si... bons, de certo;
pacificos, mas orgulhosos da sua familia, do seu nome...

—E eu, chaqueou ella ironica mas já ahi jovial, valho pouco? Minha mãe,
sim, é uma pobre coitada, mas quem lhe diz que meu pae não era algum
rei ou principe entre os ciganos?... Aquella gente é toda de grandes
segredos... Sinto ter jogado no Paranahyba uns papeis de familia...

—Gêgéca, implorou Anselmo, deixe de debicar-me... Responda, que dirão
meus paes... vendo-me chegar casado consigo...

—E levarei a mamãe, additou logo a _Ciganinha_... Não me separo della por
nada d’este mundo...

—Então?

—Ora, então? Hei de enfeitiçar seu pae, sua mãe, toda a sua gente; fica
por minha conta. Olhe, Anselmo, nunca lhe metterei vergonha... Você me
ensinará muita cousa que não sei, e Santa Rita me ajudará.

—Casar, casar, repetia assombrado o outro. E os papeis?

—Não lhe dê cuidado. Mando um proprio chamar o meu padrinho vigario e
tudo se arranja num momento. Bem, concluiu! Se você me procurar mais, ha
de ser para levar-me á igreja. Do contrario não olhe mais para mim. Adeus!

E, correndo para a casa, passou Gêgéca a noite em claro, sem um momento
de socego, resolvida porém de pedra e cal, como se diz, a não dar o braço
á torcer.


XIII

Mil projectos fez Anselmo, do seu lado. Chegou até a arrancar-se
d’aquelle pouso fatal, mas, dous dias depois, voltava á Santa Rita,
aniquillado, desfeito, devorado de mortaes saudades, em estado
positivamente lastimavel—um joguete da mais infrene paixão.

Pensou até em matar-se, atirar-se ao Paranahyba, acabar de vez com
aquella situação infernal, em que não via sahida possivel, o menor
postigo entreaberto, que lhe permittisse olhar mais desassombrado para o
futuro.

Que lucta ingente!

Afinal, numa bella manhã em que a natureza sorria inebriante, feliz,
bondosa, a aconselhar a todos os seres alegria, expansão e gozo, tomou
a suprema resolução e, batendo á porta da miseravel chóça das duas
mulheres, pediu solemnemente á D. Cula a mão da sua filha, a _Ciganinha_!

Como foi acolhido!

A recompensa foi tambem deslumbramentos sem par, além de um beijo, no fim
da visita, bem em cheio nos labios, capaz de deixar tonto de orgulho o
tzar de todas as Russias.

Para que contar mais o que se seguiu? Como tentar descrever o pasmo de
toda a povoação? E, no dia do casamento, o resplendor de Gêgéca, no
seu vestidinho branco de cassa fina, todo enfeitado com muitas flôres
naturaes de laranjeira? Sabem os leitores se tinha ou não direito de
carregal-as.

E o dia da partida? Ella a cavallo, D. Cula em solemne _banguê_, toda
lavada em lagrimas, e o Nhônhô Fructuoso como capataz da tropa?

Ainda hoje se fala de tudo isso em Santa Rita de Cassia.

Quando desfilava o prestito, não poude José Bispo, correspondendo
enfarruscado ao cumprimento dos que seguiam viagem, deixar de exclamar:

—Lá se vão as alegrias de Santa Rita!

E, para espairecer a tristeza, deu, nesse dia, formidavel surra á pobre
da Perpetua.

       *       *       *       *       *

Entrou por uma porta e sahiu pela outra, e acabou-se a historia.

Ficáram contentes? Não?

Pois então péção ao Affonsinho, ao Celso, que lhes conte outra. Ninguem
como elle para saber mil cousas do sertão; e as narra com muita
singeleza e graça, n’um estylo meigo, attrahente, crystallino, assim á
maneira de limpido regato a sussurrar entre margens floridas, magicas,
encantadoras.



CABEÇA E CORAÇAO



CABEÇA E CORAÇAO[3]

(esboço psychologico)


I

—Repare, Bettina, na pungente differença de idade que se interpõe entre
nós e dolorosamente nos separa um do outro. Nada de illusões de ambos
os lados. Eu poderia ser, não já seu pae, mas até seu avô. Veja como a
mão do tempo me pesou sobre a pensadora cabeça, o contraste dos meus
cabellos brancos com a sua cabelleira negra, exuberante de explendor
e seiva, verdadeiro diadema da mocidade. Como querer unir as sofregas
impaciencias dos primeiros anhelos da primavera á meditada calma dos
ultimos dias do outono? O presente não responde pelo futuro. Mil cousas
imprevistas nos esperão nos muitos meandros da existencia. Por mais
que a razão prepondere, por mais que busque guiar-nos e conduzir com
segurança, cumpre contar sempre com as surpresas do destino. A vida é
rio mysterioso em que não ha piloto, por mais prudente e experimentado
que seja, capaz de prever todos os perigos e fataes correntezas, para lá
da breve curva que o olhar alcança... E quer Você que eu me constitua
a causa da perda de muitas illusões suas, preciosas, repassadas de
encanto e sonhos, quando o viver se abre ante os seus passos tão cheio
de esperanças, promessas e alegrias? De orgulho se entumesce, de certo,
o meu peito por conhecer hoje, tão de perto, a intensidade do affecto
que a sua generosidade me dedica; mas urge que eu saiba resistir ao seu
arrastamento... e ao meu, tambem. Eu desposal-a? Um velho, para assim
dizer, chegado quasi aos sessenta annos! Prendel-a a mim, formosa,
cobiçada por tantos, rica, seductora? Fôra loucura de ambos... E que
diria o mundo?

—Que me importa o mundo? replicou arrebatada a bella e nevrotica donzella
após curto silencio. Não lhe incumbe, a elle, preparar-me a felicidade
que a sorte complascente me indica e que devo alcançar por mim mesma.
Muito tenho pensado, muito perscrutado nos recessos mais intimos da
minha alma e no fim acho que, de todas as homenagens, reaes ou fingidas,
prestadas pelos homens, só me fica a lembrança viva, suave, profunda, da
sua superioridade, Antenor, sobre todos. Conheci-o sempre tão differente
dos mais! Sinto, que a minha vida, sem a sua presença, o seu contacto, o
seu apoio terno e varonil, de infinda e vibrante meiguice, se me tornará
tão vazia, tão ôca, esteril e pesada que só essa possibilidade me incute
lethal tristeza, desalento enorme até ao fundo do coração. Que sentimento
senão o da verdade me leva a falar-lhe assim? Bem sabe, comsigo não
guardo segredos. Não poucos ambicionam a minha mão, desde aquelles que só
têm por si a banalidade da juventude, até aos que buscam deslumbrar-me
com as posições e honras conseguidas. Todos me têm falado de amor; só o
Sr. conservou a originalidade do silencio, embóra ha muito reconhecesse
eu que, no intimo, não era, não podia ser-lhe indifferente...

—Oh! sim, interrompeu elle com sincero arrôbo, quantas vezes me achei
sem forças para reprimir impetos, que, nem aos 25 annos, jámais me
conturbaram?! Por compaixão, não me colloque em posição difficil...
ridicula, aos meus proprios olhos...

—Até que invertidos os papeis, continuou exaltada a moça, pude emfim
arrancar-lhe o seu segredo. Já sei, afianço-lhe, o que é ser-se feliz!
O que experimentei naquella tarde decisiva, em que, após todos os seus
acanhamentos e resistencias bem leaes e valentes, o ouvi discorrer com
mascula e irresistivel eloquencia sobre o amor, applicando-o a nós dous,
é indescriptivel... Não cerrei os olhos um só minuto; e a madrugada me
encontrou á janella triumphante, mas alquebrada, ardendo em febre...

—Bettina, Bettina, implorava Antenor no tom de brando e dorido queixume,
quanto me arrependo de não ter sabido vencer-me... Perdôa o sonho... mais
calma!

—Que quer, meu bom amigo? Actua em mim tambem a influencia do nome que me
deram. Será Você... serás... o meu Gœthe!

—Mas aquelle era um genio, um ente privilegiado, a gloria de uma grande
nação, o orgulho da intelligencia humana; tudo merecia, a admiração
dos homens, as homenagens do mundo inteiro, o amor das mulheres, a
adoração de todas as idades. Subira passo a passo como sol offuscador em
firmamento sem nuvens, tocára ao zenith, cada vez mais rutilante, e ao
occaso, a trasmontar, illuminava com deslumbrante fulgôr o seculo em que
vivêra. Prostava-se a natureza intellectual ante aquella força creadora,
tão grande que parece impossivel excedel-a. Fez, com effeito, vibrar
todas as fibras do coração; desvendou-lhe, como o divinal Shakspeare,
muitos dos seus segredos; abrangeu as mais arduas questões da sciencia;
resolveu por méra intuição abstrusos problemas; revestio todas as
formas—Proteo estupendo e sempre admiravel, ninguem o igualou na extensão
e profundeza da inspiração e do saber!...

—Serás o meu Gœthe, insistia Bettina bebendo as palavras do seu
apaixonado e fitos nelle os quebrados e amorosos olhos; cada qual vive
e se expande no circulo em que o destino o fez nascer. Tivesses tido o
palco que elle, o genio, pisou, e a tua gloria houvera passado muito além
dos limites que conseguiste. Quem põe, assim mesmo, em duvida os teus
triumphos, os applausos que te derão a tribuna, o theatro, as lettras,
a justiça dos concidadãos? Serás o meu astro vivificador, o meu sol...
Felizes das que te viram e te deram o tributo do seu amor em teu zenith.
Para mim fôra até demasiado forte o teu brilho de então. Contento-me
com os raios desse occaso, já que tanto me falas nelle... Aliás, que
sou eu senão simples prolongamento do teu espirito, da tua vida moral?
Quem me educou a alma, me infundio o gosto e o gozo da leitura, ávida,
insaciavel? Quem me guiou no labyrintho da litteratura, me fez viver a
vida dos antigos, me incutio o enthusiasmo das obras primas, o amor do
bello, da arte, do honesto, do puro, do sublime? Que sou eu senão uma
filha da tua intelligencia, do teu gosto, das tuas inclinações ideaes e
sentimentos? E com a felicidade ao alcance da mão hei de deixal-a escapar
por preconceitos e convenções que aborreço e a que não se dóbra a minha
altivez innata? Que fazer de mim, se antepuzeres os argumentos da fria
razão a todos os impulsos da nossa alma? Valerá tão pouco, aos teus
proprios olhos, a creatura intellectual que formaste e é obra exclusiva
tua, que, em nome de um enlace bem equilibrado segundo leis physicas,
meramente materiaes, a atires, sem consciencia nem remordimento, nos
braços de qualquer peralvilho ridiculo, nullo, brutal ou effeminado?

—Já vivi demais, objectava Antenor com sensivel anciedade patenteando a
lucta que se lhe travára no intimo, e o que sei da existencia me ensinou
a desconfiar do que me resta viver... Acostumam-se os passos do homem
tanto a subir, quanto a descer, e agora só me toca ir baixando, costas
voltadas para o ponto culminante da parabola vital... Tenhamos ambos
justa comprehensão das cousas... saibamos resistir a nós mesmos...

E com os olhos a brilharem de emoção, difficilmente refreada:

—Calcule o esforço que me custa este appello. Imagine abandonada estatua
em florido jardim a repellir, se lhe fôra possivel, o pendão de rosas
que busca engrinaldar-lhe a fria e marmorea fronte... imagine viajante
exhausto da cansativa jornada a fugir da fonte fresca, pura, sussurrante,
que lhe vai estancar a sêde e restaurar-lhe as perdidas forças... Terei,
porém, energia; afastar-me-ei d’aqui, destes lugares que tanto estremeço,
bem sabe a causa, deixal-a-hei neste ambiente de perfumes e magicos
encantos, de que a minha alma levará sofrega algumas parcellas para
suavisação de immensas dores futuras... e depressa virá o esquecimento,
o olvido certo e merecido, dar-me razão. Rapidamente a ausencia me
envolverá em densas trevas... Experimentemos, Bettina...

—Fôra rematada loucura, indigna da sua reflexão, contrária a tudo quanto
lhe ensina o conhecimento que tem do coração humano... Pelo menos,
assim se me afigura... Por mim quero julgal-o. São susceptibilidades de
exaggerado melindre, de exaltado e meticuloso cavalheirismo, que mais o
levantam aos meus olhos... Aliás, para que e como discutir sentimentos?

—Dolosa conselheira é a imaginação... Não se deixe enlevar por fugitivas
illusões.

—De que vive o amor, qual o seu perenne alimento, senão a fantasia?
Deixe-se de hesitações que afinal acabam por deslocar-me, longe de mais,
do meu papel natural. A mim não competia vencer resistencias dessas,
sobretudo com o meu genio altivo e independente... Quer Você argumento
superior a tudo? É este o impeto que me impulsiona, o meu desejo
supremo... e basta!

Proseguindo com voz insinuante:

—Descanse em mim, Antenor. Acceito o simile de que ha pouco usou:
corôarei de rosas e lyrios os seus dias. Entregue-os, sem receio nem
vacillação, aos meus cuidados. Tomo compromisso solemne: no momento em
que eu suspeitar de mim mesma qualquer falha, o menor desfallecimento
na adoração que lhe consagro, abrir-lhe-ei o peito na mais depuradora
e completa confissão, achando novo alento nos seus conselhos, na sua
direcção espiritual, no seu apoio tão cheio de experiencia e meditação.
Falte eu a esse juramento, bem inutil e... deixarei de viver... Por
elle respondam a minha salvação eterna e as sagradas cinzas da minha
pobre mãe, tão cedo perdida!... Para que, porém, formularmos crueis
hypotheses em plena alegria? para que pensar em catastrophes e nos
horrores de subversões moraes, quando tudo sorri em torno de nós?...
Cogitar em medonhos terremotos, cercados dos explendores da natureza boa,
suggestiva, amante, toda ella hymno de paixão exultante e creadora, na
plena segurança da estabilidade das cousas e da bondade divina, não será
tentar os céos?

E Bettina, encostando a esculptural e imaginosa cabeça ao hombro do nobre
e esbelto varão, o escolhido da sua alma, alli ficou extatica, sentindo
as pulsações de um coração em que cégamente confiava e de cuja lealdade
tinha, já de largos annos, todas as provas possiveis.

Invadia-lhe o ser todo intenso desvanecimento: inspirar amor profundo,
irresistivel, a quem merecia da mais culta sociedade acatamento e
incontrastavel prestigio por innumeros dotes da intelligencia e do
caracter, e haver sabido resguardar-se para esse ente excepcional,
deixando que a razão e o sentimento o apontassem á sua escolha de entre
os muitos que a requestavam e lhe faziam solicita, ardente e zelosa
côrte, já pela innegavel belleza, já pelos avultados bens que mais realce
davam á formosura e a raro cultivo de espirito!

       *       *       *       *       *

Tempos depois, casavam-se Antenor e Bettina.

Duas ou trez semanas, foi assumpto de todas as conversas o disparatado
enlace, cuja iniciativa, assim se dizia e cochichava, pertencêra mais
directamente á desposada; mas afinal, acalmada a bisbilhotice, acabou
a sociedade, por admirar, com sorpreza e inveja, a _serenidade_ que
protegia com as suas brancas azas o ditoso lar, naquella união intima
do fulgor da juventude com a magestade, ainda que decadente, de uma
existencia credora, certo era, do respeito de todos.


II

Dous annos de profunda calma, senão de real e bem accentuada felicidade.

Sentia Bettina tanta paz de espirito, tamanho socego de corpo, como que
mysterioso e inquebravel silencio dentro e em torno de si, que aquillo
lhe parecia mais torpor e adormecimento de todo o seu ser, outr’ora tão
irrequieto e caprichoso, do que mesmo tranquillidade. Estabelecêra-se
natural prolongamento da depressão que á mulher costuma trazer o
casamento em sua iniciação physica, caracterisada, máo grado todas as
meiguices e cautelas, por um cunho feroz de lubricidade e violencia.
D’ahi, sorprezas immensas, dolorosos retrahimentos e cogitações
deprimentes, que só podem ser attenuados e vencidos pela impetuosidade e
pelos ardores do noivado.

Em lugar, pois, de experimentar do objectivo alcançado intensas alegrias
tão esperadas e promettidas pela imaginação, via nelle, pelo contrario,
motivos de desalento e desengano, com que de certo não contára. E por
essas falhas do sentimento sincero e violento que a envolvêra toda á
maneira de inteiriça e inatacavel couraça, se lhe ia insinuando, lenta,
mas insistentemente, inexplicavel tédio da vida, desgosto de si mesma
e, mais que isto, a impressão de um castigo por falta, ou erro, e erro
irreparavel, inconscientemente commettido. Buscava analysar o que
lhe ia n’alma e afigurava-se-lhe que penetrava sem guia, nem fio, em
um labyrintho inexploravel, cujas voltas de todo desconhecia e que a
deixavam perdida em densas trévas, sem mais orientação possivel. «Que
tenho?» perguntava com certo terror a si mesma nos rapidos momentos em
que ficava mais a sós e livre da solicitude, aliás tão intelligente e
estremecida do esposo, todo carinhos e suavidade. «Porque não me sinto
completamente feliz? Que me falta? Quero sel-o; quero, eis a minha
vontade, e nada a ella resiste.» Punha, portanto, esforçado empenho
nisso, mas o desanimo caminhava a par das mais valentes intenções;
d’onde, alguma irritação já contra a serenidade que Antenor dispuzéra
ao derredor delles dous com tanta discrição, quanto zelo. Parecia-lhe
um desencontro. Teria talvez, quem sabe? achado mais adequada a
inversa, expandir-se em festas e no ruido do mundo. Aspirava elle a
concentração cada vez mais intima, na identificação de todos os gostos
e preferencias, ao passo que Bettina experimentava nesse circulo, que
lhe parecia apertado demais, desillusões vagas, pouco definidas e no
intimo appellava para mais alguma agitação fóra, afim de dissipar o
tão inesperado e inconcebivel mal-estar. E com isso iam despertando,
inquietos, attentos, malevolos, os singulares e contradictorios impetos
do nervosismo, que desde menina tão imperiosamente a haviam dominado.

Deixando-a apathica, retrahira-se-lhe a imaginação como perfido ou
descuidoso companheiro que, depois de leval-a a arriscado passo, de
repente se sumira, trefego, desleal, abandonando-a sósinha em perigoso
lance. Buscava ver só razões de applauso no enlace que formára, muitas
vezes enumerava, ainda com orgulho, as qualidades que, aos olhos de
todos, tanta preeminencia davam a Antenor; e já lhe iam nascendo
impaciencias por encontral-o tão perfeito, segundo o que lhe podia exigir
a alma em esphera pura e elevada.

Toda essa evolução, porém, em extremo lenta, morosa e a se arrastar, como
insidioso reptil, de um dia para outro, formando uma só cadêa de élos
tenues, quasi imperceptiveis, mas resistentes, de tempera irrompivel.

Quiz Bettina voltar-se para o passado e nelle estudar a historia da
paixão que a avassalára com tanto imperio, fazendo-a victoriosa de não
poucos tropeços, resistencia do tutor, conselhos e rogos dos irmãos, das
amigas e até daquelle que afinal se tornára seu esposo, e ficou pasma de
haver posto tão grande violencia a cousas que agora lhe pareciam, senão
de todo mortas, quasi indifferentes.

Embora aborrecendo os livros naquella quadra fatal, ella que devorára
quantos lhe haviam cahido debaixo da mão, releu pausamente as obras
do marido e releu-as com os olhos da critica prevenida e disposta a
severidades e não mais com os arrastamentos e sympathias do coração.
Achou-as correctas, em puro estylo; mas, como de facto eram, frias,
alambicadas, demasiado polidas, sem esse colorido, essa espontaneidade
que attrahe, agarra e dá á idéa vida original, brilhante e por vezes
immortal. Pareceram-lhe então as poesias de Antenor, na sua perfeição
metrica e rythmica, reflexo pallido, esbatido, de versos de outrem, já
lidos, não sabia quando, ha muito tempo, cuidadosamente açacaladas, mas
sem fibra, nem estro; assim essas figuras aéreas, subtis, insubsistentes,
destituidas de fórmas e contornos claros, que espelhos combinados de
longe e em certa inclinação chegam a reproduzir no espaço e fazer
fluctuar como fantasticas visões. Na exuberancia de tropos, na diffusa
abundancia de palavras, faltavam os musculos, nervos, circulação de
fluido intenso, cálido, vivificante, áquellas evocações, apparições como
que de uma existencia anterior, já passada, já extincta, a suscitarem só
saudades na indecisa e anciada aspiração á realidade.

As interminaveis palestras, repassadas de tamanho encanto em que tanto
havia aprendido, a ouvir Antenor discorrer horas inteiras sobre um sem
numero de assumptos com suave eloquencia e indiscutivel saber, agora lhe
pesavam na sua feição de legitimas conferencias sem razão de ser nem
cabimento. E, na indeterminação do que mais podia agradar-lhe naquella
phase de inexprimivel displicencia, ora as cortava por modo repentino,
quasi aspero, desagradavel.

Preso não pouco tempo o seu espirito á direcção e influencia exclusivas
de Antenor, aspirava, quando menos convinha, a reconquistar a liberdade,
a readquirir independencia e autonomia no modo de encarar as cousas e
questões. Por isto tambem achava prazer especial e acre em contrariar, a
principio timidamente, mas depois bem de frente, opiniões e sentimentos
que, comtudo, no fundo e na essencia, reconhecia justos e indiscutiveis.

Nessas occasiões ainda a pungia o olhar sorpreso e magoado de Antenor,
que buscava logo, prudente e cavalheiroso, impedir qualquer causa de
azedume e dissidencia entre ambos, por mais passageira que fosse.

Mas a cautelosa e meiga condescendencia do marido se, nos começos, lhe
levava ao intimo certo travo de remorso, depois se lhe foi tornando
motivo de mais irritação.

Quizera encontrar impugnações varonis que lhe desbaratassem os
caprichosos e premeditados argumentos e dessem curso differente aos
pensamentos. A increpação de injusta que lhe irrogava a propria
consciencia foi-se curiosamente transmudando em proposito formal de
Antenor para affirmar cada vez mais o assignalamento da sua superioridade.

E tudo isto, que se desenvolvia lenta e gradualmente nos recessos mais
reconditos da alma, em vez de desvendal-o com leal e nobre franqueza ao
esposo, conforme tanto promettera, incobria-o acautelada, possuida talvez
do vexame de si mesma.

Sacrificio, aliás, pesado demais ao orgulho deixar suspeitar que errára
nos calculos da existencia, tão anciosamente desejada.

Por tal forma, porém, serena a superficie do formoso lago, que ninguem
poderia sequer desconfiar das correntes encontradas que se moviam nas
profundezas da massa liquida. No exterior, tão somente toques de
sensivel melancolia, sombras, embora leves, como que de longinquas nuvens
a perpassarem adelgaçadas sobre o disco do sol.

Nessas duvidas e agitações, conheceu Bettina que já era mãe.


III

Terriveis os mezes de gravidez. Despertou vivaz, impetuosa, a imaginação
de Bettina, sujeitando-a, em longas semanas de impossivel descanso, a
agudo e assustador soffrimento.

Não pensava senão em desgraças e morte, quando não era na perda completa
da belleza, na insanavel deformação do corpo e dos encantos physicos,
hypothese ainda mais intoleravel ao conturbado espirito.

Desenvolvia Antenor, punha em pratica todos os recursos da solicitude e
da paciencia, da razão e do sentimento, para combater e dissipar essas
tetricas apprehensões que revestiam mil fórmas caprichosas e de feroz
nereustemia; mas, não raro, já no intimo se reconhecia cansado de tarefa
tão ingente, em que não lograva senão mui parcialmente os justos fins.

Começava, aliás, a entrar-lhe a convicção de que naquelle enlace não se
déra, nem mais podia dar-se, a sonhada e indispensavel identificação das
duas naturezas, moral e physica, e d’ahi razões de inquietação, embora
cuidadosamente refreada e comprimida nas mais vagas cogitações.

Zelava as menores apparencias de um estremecimento, que, apezar de
toda a sincera intensidade, no fundo o fadigava, desviando-o, com
imperiosa e constante exigencia, dos estudos litterarios e das pesquizas
philosophicas, que lhe eram tão caros e tanto lhe haviam antes amenisado
e embellecido a existencia. Verificava, então, com sobresalto, que se
enganára, elle tambem, havendo já de muito passado a idade, transposto
os limites, em que a mulher é absolutamente tudo, o idolo, o culto
exclusivo, a origem, o centro dos mais extraordinarios e absorventes
sacrificios e dedicações. Amava, de certo, profundamente a esposa, de
cuja posse experimentava tanta ufania, mas quizéra nella encontrar uma
fonte de alevantadas inspirações intellectuaes, e não uma causa de
perenne perturbação, a girarem ambos n’um circulo de apertadas idéas,
sempre as mesmas e sempre a renascerem, quando pareciam desvanecidas e
até suffocadas.

No meio de todos os sustos e terrores, um consolo tinha Bettina; a
inabalavel certeza de que o filho (pois obrigatoriamente, no seu
entender, havia de ser um menino) traria dos mundos desconhecidos genio
e belleza irresistiveis, destinado, como devêra ser, a futuro raro,
bem raro, nos annaes dos fados humanos. E com a exaggeração que em tudo
punha, uma vez abertas as azas á imaginação, já o via no pinaculo da
gloria, cercado de resplendente aureola, illustrando de modo offuscador
o nome dos paes, guindado ás mais altas e cobiçadas posições sociaes.
Que poeta havia de ser, que orador e estadista! Ninguem o sobrelevaria
em talentos, magestade e formosura, além da innata distincção. Com a
singular condescendencia de mãe, aprazia-lhe ao pensamento a idéa de que
mulher alguma poderia resistir á seducção de ente tão superior.

Nasceu, com effeito, um menino; porém, só em parte realisava as douradas
esperanças; se tinha notavel correcção e delicadeza na graciosa miudeza
dos traços physionomicos, pela debilidade geral e melindrosa compleixão
mostrava que não viéra á luz apercebido dos meios para as luctas da vida.
Poude, graças a cuidados nunca vistos, resistir ou antes definhar uns
tres mezes; mas afinal partio para o céo. Nem havia como prendel-o por
mais tempo á terra.

Indescriptivel a dôr de Bettina. Esteve entre a vida e a morte e quasi
acompanhou o filhinho. Vencida, por fim, a agudeza da crise, que não
pouco durou, de todo o crudelissimo periodo lhe ficou singular impressão,
o direito de irrogar, lá de si para si, formal accusação ao marido. A
elle incumbia ter incutido alento e força, valentia organica e vitalidade
ao ente que haviam creado, a ella belleza e graça; e se um cumprira a
sua missão, o outro ficára muito aquem. E ahi, reflectia com pungente
insistencia na differença de idade, que lhe haviam todos, annos antes,
apontado como irreparavel desacordo, emergindo dessa dolorosa meditação
medo immenso de ver renovados os desenganos e as provações da maternidade.

Com a injustiça propria do caracter humano, achou que a resistencia de
Antenor não fôra, por egoismo, bastante leal e vigorosa; talvez mais um
meio de fortalecer e accender pela contrariedade o capricho e a teimosia,
as violencias da imaginação, o amor de cabeça, em summa, que a levára ao
casamento. Fazia-se então de victima immolada ao interesse de outrem.
Fuzilavam-lhe até na mente feias e deprimentes conjecturas que, indignada
comsigo mesma, buscava a todo o transe abafar e reprimir. Quem sabe se
aquelle homem... aquelle velho, não havia particularmente visado á sua
fortuna, aos bens que lhe constituiam quantioso dote?

E, apezar de todo o empenho em desviar-se desse resvaladiço declive,
via-o sempre aberto á meditação, a attrahir-lhe os passos, tão facil é
a insufflação de malevolo pensamento, perigoso germen, prompto logo a
crescer e deitar fundas raizes.

Por esse tempo, julgou Antenor dever recorrer á agitação da sociedade
para dar derivação e lenitivo á acabrunhadora tristeza da mulher. Não
foi, porém, sem custo que conseguio arrancal-a ao marasmo e leval-a a
bailes, theatros, concertos e festas.

Como radiosa e incomparavel revelação appareceu então Bettina aos olhos
do mundo, realçada a peregrina belleza pela sympathica melancolia,
que lhe ensombrava o demasiado fulgôr. Sorpreza e um tanto oirada do
movimento que tamanho contraste fazia com o modo de viver passado,
docemente a acariciaram logo as homenagens de que se vio cercada, já por
parte das senhoras do seu circulo e gerarchia, já, e ainda mais, pela
admiração dos homens.

Tambem, em pouco tempo, máo grado as reluctancias do marido que via
ultrapassado o objectivo collimado, entregou-se ella de todo ás
complicadas e interminaveis imposições da convivencia social, sem mais se
importar com as censuras tacitas de Antenor bem accentuadas pelo cansaço
physico, que a este não era mais dado occultar.

De volta de brilhante baile, prolongado até á madrugada, nesse mesmo dia
havia que tomar-se parte em pomposo e longo banquete e, logo depois
seguir para algum theatro ou concerto, em que se tornava obrigatorio o
comparecimento de todo o _high-life_—uma roda viva, emfim!

Para longe, a tranquillidade do lar, as horas placidas, iguaes, mas
tão suaves, consagradas ao socego e ás doces expansões da vida interna
e de familia! Com avassalador despotismo e no meio do ruido e de mil
leviandades, era agora o mundo que regulava a vertiginosa existencia
daquelles dous entes, mal lhes dando tempo para respirarem.

A Bettina, de certo, não faltaram adoradores que sem rebuço aspiravam
á sua conquista, tributando-lhe incessante e entontecedora côrte.
Conservou-se, porém, superior a todas as tentativas e a qualquer
desfallecimento e, em certa occasião, chegou a entregar ao marido cartas
de um dos seus mais ardentes apaixonados, escriptas com a sincera
eloquencia de um sentimento vehemente, incoercivel.

Nessa difficil e delicada emergencia, procedeu Antenor com tão immediata
decisão, tanto tino e melindroso apreço dos seus direitos e interesses,
que grangeou os applausos geraes da sociedade e mais se levantou na
estima de todos. Ficou-lhe grata a esposa por tel-a desembaraçado tão
geitosa e energicamente daquella compromettedora assiduidade, que do seu
lado repellira com toda a altivez.

Nem por isto, porém, cedeu menos ao arrastamento dos bailes e das
_soirées_.

Numa dessas noutes, foi que, pela primeira vez, vio e conheceu Fernando
de Aguiar, ha pouco chegado da Europa. Apresentado por uma amiga entre
duas quadrilhas, com elle dansou umas voltas de cerimoniosa valsa e
trocou algumas palavras indifferentes.

Sem saber pelo que, porém, sentio-se toda perturbada, com repentino
aperto, quasi dôr, de coração, angustiada, como que presa de grave
e indefinivel mal e deu-se pressa em regressar á casa. Deitada, só
poude conciliar agitados momentos de somno, quando os raios da aurora
acariciaram doce e pallidamente as janellas do seu bello e senhoril
palacete de residencia.


IV

Para Bettina começou então uma existencia de continuo supplicio.
Invadira-lhe o ser todo, de repente, de momento, como cidade tomada
de assalto por indomavel horda, a mais violenta paixão, um d’esses
movimentos de irrefreavel impetuosidade, que não consentem a menor
resistencia, um só minuto de reflexão, a mais simples contrariedade, a
mais leve objecção intima. Era cousa fatal, infallivel, que se impunha
como ordem sobrenatural, a que não havia senão curvar-se e obedecer.

Imagine-se vasta represa de agua, cujas falhas no muro de sustentação
quasi lineares e invisiveis de subito se abrissem como brechas enormes,
deixando que toda a massa liquida irrompesse louca, devastadora, em
ondas, catadupas e medonhos torvelinhos.

Tanto buscára ella outr’ora estudar o arrastamento que a pouco e pouco,
passo a passo, a levára aos braços de Antenor, tanto analysára em todas
as faces a meiga influição d’aquelle doce affecto, declive caro aos seus
instinctos, quanto, agora, impossivel lhe era ter mão no pensamento,
guial-o, dirigil-o e calcular qualquer das consequencias desse novo e tão
diverso sentimento.

Amava porque amava, não achava outra razão; vassalagem a uma lei de
irresistivel imperio e lei como que meramente physica, pois se affirmava
pela dôr acerba, teimosa, intoleravel, no organismo todo,—pontadas,
sobretudo, finas, agudas, terebrantes no coração, a penetrar-lhe as
fibras mais secretas, suffocações que quasi a faziam desmaiar, a sós, no
fundo do seu quarto, ardendo em febre e rolando convulsamente sobre o
leito, que lhe não dava um instante de repouso.

Era todo o seu corpo presa de verdadeiro abrazamento, arredada da
conturbada e estupefacta mente qualquer lembrança que não fosse elle,
só elle! Não queria, ou antes, não podia examinar, por pouco que fosse,
a origem de tamanha absorpção, esse aniquilamento de toda a posse sobre
si mesma, ficando-lhe vedado indagar se Fernando de Aguiar valia tanto,
tanto assim e porque accendêra tão violentas chammas.

De certo, não tinha o ideal de tão ardentes sonhos nada que o salientasse
particularmente do commum dos homens, nem sequer o physico, mais para
o insignificante e o vulgar do que para a excepção. Ah! sim, possuia a
mocidade, e d’ella emergia pujante, victorioso, como um hymno de saude
e força, esse prestigio immenso que Bettina, annos atraz, capitulára
de simples banalidade da juventude. De quanta possança, porém, essa
pretendida banalidade! Que de regalias e privilegios na encantada
primavera que floresce uma vez só e não mais se renova e volta! O brilho
vivo, scintillante, dos negros olhos de Fernando de Aguiar, bem rasgados
e um tanto audazes, o assetinado da cutis, a arrogancia do sedoso bigode
arqueado sobre labios rubros e humidos, valiam então mais, mil vezes,
do que os mais bellos versos e as palavras mais doces e convincentes de
Antenor, veladas pela melancolia dos annos já passados.

Ahi era o coração que decidia, entorpecidos a razão e o raciocinio,
naquella dolorosa e acabrunhadora hypnose.

E cada vez mais se accentuavam os soffrimentos physicos de Bettina,
cuja saude começou a resentir-se sériamente de tamanhos abalos.
Emmagreceu, tornou-se mysteriosa, concentrada, numa constante e tristonha
passividade, quer em casa, quer no turbilhão das festas. E se não
fugia d’ellas, era unicamente para poder ver e encontrar o objecto do
tresloucado amor, empenho tão claro e insistente que a sociedade e o
mesmo Antenor afinal não podérão deixar de nelle reparar.

Se, para aquella se tornava o caso thema de malevolos cochichos e
casuticas risadinhas, para o nobre varão foi começo de indescriptivel
angustia e percucientes perplexidades.

Ruia por terra ante as vistas, desilludidas para todo sempre, o edificio
da felicidade que julgára poder levantar, ainda que nos alicerces
tivesse, com a observação das cousas humanas, entrado, desde principio,
certa descrença e algum desalento. Buscou medir a extensão do mal, mas,
á primeira tentativa, não ousou aprofundal-o. Recolheu-se então, como
ultima salvaguarda e recurso extremo, á protecção de uma idéa fixa—a
impossibilidade de vir a perigar a sua honra.

Tudo quanto se passava não iria além de um capricho da exaltada
imaginação de Bettina. Oh! bem conhecia do quanto era capaz! Não
tardaria, porém, muito e cahiria em si, abrigando-se á segurança do lar,
prompto para acolhel-a no arripiar carreira em senda de leviandades, já
um tanto compromettedoras.

Factos anteriores davam-lhe bem segura garantia.

Não fôra tão espontanea a entrega d’aquelle masso de cartas? E tratava-se
então de um cavalheiro distincto, habil, de intelligencia reconhecida,
com grandes recursos de espirito e de salão e não poucos habitos de
seducção, ao passo que Fernando de Aguiar... qual! que absurdo! Um ente
tão futil, tão nullo! Não; aquelle enthusiasmo não repousava em base
alguma, tinha que desapparecer tão facilmente como havia surgido, por
méro erro de apreciação; abusões dissipados sem esforço algum, á maneira
de nevoas que ensombram formosa paizagem, sem poderem obscurecel-a.

Ah! quanto se enganava a experiencia d’aquelle homem!

Em certa manhã, desappareceu Bettina do seu rico e senhoril palacete de
residencia. Havia, rompendo com todos os deveres e principios, tomado
passagem n’um vapor transatlantico e fugido com o amante para a Europa.

       *       *       *       *       *

A corajosa altivez com que se portou então o infeliz marido, a
energia com que tratou de vencer e recalcar a sua dôr e repellir de
si o immerecido labéo, o prompto divorcio que conseguio, destacando
o intemerato nome do da culpada esposa, a quem, sem demora, mandou
entregar, com a mais escrupulosa exactidão e minudencia, os bens que
havia trazido comsigo, tudo isso, praticado sem a mais ligeira hesitação
ou sombra de sceptica jactancia, impedio que o ridiculo de leve
salpicasse a alevantada personalidade de Antenor. E para mais erguel-a no
conceito publico, mezes depois, publicava um livro da mais ampla esphera
moral, que girava, mais ou menos, em torno da melindrosa these que lhe
fôra peculiar; e ahi o escalpello imparcial e cuidadoso do analysta tudo
dissecára, fazendo justiça inteira a quem tinha ou não tinha por si a
razão e o direito; obra de cunho verdadeiramente original e escripto por
penna vigorosa, mas d’onde por vezes decorrêra muito pranto amargo.

Guardavam-lhe ainda o travo não poucas paginas.

Quando á Bettina, mezes após o irreparavel acto de loucura, via-se a
braços com o mais cruciante arrependimento.

Extincto o fogo da paixão, como sempre acondece, tinha de supportar
vencida e humilhada, as consequencias da posição equivoca a que se
atirára, mas que o mundo jamais perdôa, ao lado de quem brutalisando-a
logo, malbaratava a fortuna, que não lhe pertencia, no jogo e com
mulheres de occasião.

Dentro em breve, reconhecia que para Fernando de Aguiar tornára-se peso
quasi inaturavel.

Quantos golpes, a todos os momentos do dia, no seu orgulho, annos antes
tão susceptivel e tyrannico!

Diante da misera se abria longo, indefinido, interminavel, um futuro
arido, medonho, sinistro em todo o seu mysterio, como illimitado deserto,
sem uma sombra, uma fonte, uma arvore, o menor lenitivo ás agruras de
martyrisante viagem, para no fim encontrar, como terminação de indiziveis
agonias, a morte, só, desamparada, motivo de chacóta e de desprezo,
repellida por todos!

Desgraçado destino! Dia e noite chorava sobre si mesma todas as lagrimas
da sua alma, tão mal guiada, já pela cabeça, já pelo coração!...



UMA VINGANÇA



UMA VINGANÇA


I

Num baile—já pouca gente; muitas cadeiras vasias.

Ella, sentada, um tanto abatida, identificada com o enfado e a fadiga de
uma festa a acabar, a ouvir como por favor e com ar de sensivel amúo e
impaciente condescendencia um homem no vigor dos annos a falar, ardente,
arrebatado, numa grande agitação, sombrio, desconfiado, mas sobrio nos
gestos e a conter-se calculadamente—ambos longe, bem longe d’aquelle
ambiente de alegrias e despreoccupação, hostis um ao outro.

—Precisava, observava elle, explicar-me com toda a liberdade. Desde que
cheguei do Rio da Prata, não achei uma unica occasião. Verdade é que a
senhora tem feito estudo especial para não me consentir o menor ensejo.
Isto não póde continuar assim; prefiro então romper de uma boa vez.
Declaremo-nos logo inimigos irreconciliaveis.

—Pois falle; diga o que tem, o que de mim deseja.

—Aqui? Agora?

—Por que não? Onde quereria que fosse?

—Mas é tão grave a nossa conferencia...

Esboçou Sofia Dias um movimento de displicencia e incredulidade.

Inclinando-se para ella, lembrou então Mario Campos, com voz soturna e
emocionada, scenas do passado e passado bem proximo ainda—mezes quando
muito—a sua posição de homem casado, e bem casado uns bons pares de
annos, ante as seducções e inexplicaveis faceirices, quasi facilidades,
de moça formosa e solteira. Tanto fizera—oh! escusado era querer
protestar; a sociedade toda havia sido testemunha e sabia ser justa—que
afinal perdera elle a cabeça, e lhe consagrara paixão céga, invencivel,
de inaudita violencia. Méra victima ou não do artificio e dólo, durante
não pouco tempo se suppuzera devéras amado. Rico, feliz, esposo de uma
mulher bondosa, bonita e terna, de repente se sentira, sob o influxo
d’aquelle sentimento novo insuflado com raro talento suggestivo, o ente
mais desgraçado do mundo, avassalado irremediavelmente por influencia que
zombara de todo os seus planos e tentativas de resistencia. Que fazer
então da vida, longa, tão longa n’aquelle horrivel desencontro! Como
readquirir a felicidade perdida para todo sempre?

—Oh! interrompeu ella irritada e sardonica, ha tantos modos de se ser
feliz...

Podia ser, sobretudo para aquelles que não calculavam o alcance dos
actos e palavras. E por falar em palavras... certa noute, por exemplo,
n’uma volta de _bond_ do Jardim Botanico, ao luar, dissera-lhe ella uma
phrase, que lhe havia calado no espirito para nunca mais de lá sahir.
Fixara-se-lhe dentro d’alma com letras de fogo, que a cada momento do dia
e da noite lhe luziam ante os olhos deslumbrados. Não se lembrava?

—Não; respondeu Sofia com sinceridade e algum assombro. Que poderia eu
ter dito tão terrivel e sinistro? Não me metta medo.

Quiz sorrir; mas o sorriso pairou-lhe indeciso, frouxo, á flor dos
labios, d’esses sorrisos chamados amarellos.

Tivesse ella ou não medido o effeito, houvesse ou não sido mais uma
simples leviandade, a sua bocca a proferia, lembrasse-se bem do seu dito:
«Ah! se você fosse livre!»

—Ora, protestou Sofia empallidecendo seu tanto, uma hypothese...

E agora não estava elle livre, bem livre? Que significava, nessa nova
situação o seu inopinado retrahimento? Por que se mostrava ella tão
esquiva, tão differente dos tempos de out’rora, decorridos apenas seis
mezes empregados n’essa _indispensavel_—e apoiava no vocabulo—viagem ao
Rio da Prata? Quando suppunha encontral-a vibrante de amor e saudades
como elle, quando julgava alcançar a felicidade almejada e a que tinha
feito jus—oh! sim, tudo, tudo empenhara para conseguil-a—ahi a achava
radicalmente mudada, outra, de todo outra! Por que? De que servira então
aquelle anno de ardente affecto, pelo menos assim acreditara, de tamanhas
promessas e juras? Não teria elle sido senão mero joguete de passageiro
capricho, pretexto para ensaiar simples armas de namoradeira?

Sofia Dias mostrava-se cada vez mais impaciente. Fez até gesto de quem ia
levantar-se.

O outro continuava.

Por que se déra toda aquella comedia? A sua infeliz mulher alvo de
tantos remoques, motivo de continuos reparos e criticas, exposta a
incessante ridiculo, até se lhe tornar positivamente insupportavel. Não
tinha gosto, não sabia vestir-se, escolher chapéos; innumeras settas
farpadas, envenenadas, na sua mal ferida vaidade de marido. Meros
gracejos? Brinquedos de um coração máo, ardiloso, cruel, insensivel? Oh!
tomasse tento, aquella hora era decisiva. Passada ella, tiraria vingança
tremenda; era da raça dos que não perdoavam.

E, offegante, n’uma phrase curta, dura, contava episodios até da
infancia, em que se affirmara a irresistivel disposição ao desforço
violento por qualquer offensa ou injuria recebida. Sua mãe lhe dissera
um dia: «Menino, você com este genio ha de acabar mal!» Quem sabia se
o horoscopo não se ia realizar. Uma cousa lhe jurava. Alguem havia de
pagar. Não se adiantara tanto, para ficar, perante todos, como triste
symbolo de irrisão e escarneo, menospreço e miseria.

E os seus olhos chammejavam, emquanto dolorosa crispação dos labios lhe
erguia o canto da bocca. De longe, parecia estar sorrindo, todo entregue
a animada, ainda que banal, conversa de baile.

Sofia o ouvia com expressão de extremo cansaço. Afinal rompeu o silencio.

Confessava que a elle assistia alguma razão. Andára mal, concordava;
solteira e pretendida por não poucos, não devera nunca ter alimentado um
sentimento reprovavel, que não tinha razão de ser. Sahira do seu papel
natural e pagava as culpas da leviandade, sempre amarga. N’aquelle tempo
não media as consequencias de uns olhares mais quebrados e imprudentes
e os effeitos perigosos de qualquer namorosinho. Aquillo lhe serviria
de lição. Fôra, aliás, bem sincera na hora em que pronunciara aquellas
palavras, sem comtudo lhes dar maior significação. Alludira, com real
pezar, a cousa irreparavel e contra a qual não havia luctar. E fôra
essa convicção que, pouco a pouco, lhe abrira os olhos, desviando-a
do caminho errado que seguira. Não diz o proverbio que o que não tem
remedio, remediado está? Na ausencia d’elle, Mario, tanto lhe girara
no pensamento essa verdade, que afinal pudera dominar-se. Quem, aliás,
havia de imaginar, que tão cedo a pobre D. Beatriz sahiria d’este mundo,
desligando com o seu desapparecimento laços que deviam ser eternos?
N’isso o Barroso pleiteára a sua mão e ella não achara motivos para o
repellir, bem parecido, intelligente, em bella posição politica, ministro
talvez breve; que dizer contra esse candidato?

—E você o ama, Sofia? perguntou a custo, arquejante, o malaventurado
Mario.

—Amal-o, não, mas emfim gósto d’elle, não ha duvida. Creio que sou
refractaria a paixões violentas, arrebatadas. É outro o meu genero...

—Sim, observou Mario, ludibriar áquelles a quem prende na rêde dos seus
olhares fataes.

Sofia deu um muchôchosinho:

—Bom, temos melodrama...

Amiudadas vezes passava o moço o lenço pelo rosto, limpando gottas de
frigido suor.

Insistia, porém.

Por que deixar de realisar o que era tão natural, uma vez apartado o
unico obstaculo que se interpuzera entre os dous? Por ventura, valia
elle menos do que esse intruso, o tal Barroso? Era, de certo, um pouco
mais velho; mas tinha por si a precedencia. Ninguem estranharia aquelle
casamento com quem tanta corda lhe déra n’uma época em que não deveriam
ter sido aceitas as suas assiduidades. Culpa tivera ella, induzindo em
erro tanta gente.

Sofia ensaiou um gracejo e com tom de remoque:

—Para nós, solteiras, o senhor... você tem um grave defeito: é viuvo.

Pelos olhos de Mario relampejou um raio de odio e ferocidade tão visivel
e intenso, que a moça estremeceu. Com os dentes apertados sybillou a
resposta:

—Quem me fez viuvo, ouviu? não tem o direito de me attirar isto em rosto,
comprehende?

E o seu olhar torvo, dardejante, desvairado, buscava ir ao intimo de
Sofia, explicando-lhe talvez mysterios terriveis, possibilidades de
apavorar, completando a confissão confusamente bosquejada.

Por instinctiva defesa fechou-se a moça, fazendo poderoso esforço para
conservar-se calma, serena, alheia e superior a qualquer connivencia, por
longe que fosse.

Via-se subitamente envolvida em tenebrosas complicações, ameaçada de
perigos de que nunca pudera cogitar, e cujo alcance não lhe era dado
medir; tudo isso vago, indefinido na mente conturbada.

Ao mesmo tempo surgia-lhe medo immenso, incoercivel, d’aquelle homem,
cruel alvoroço por toda ella, penosas explicações, arrependimento
indisivel da sua leviandade e inconsideração, levada só e só pela ancia
das homenagens, viessem de onde viessem, o gosto de dominar e ser
requestada.

Continuava Mario Campos ameaçador.

Tudo caminhava para a tragedia; assim presentia. Quando quizesse ter mão
em si, havia de ser tarde. Avisava...

—Então, interrompeu Sofia fingindo indifferença, temos agora intimidação?
Quer levar-me pelo terror?

Elle, de subito, muito manso e cordato, sem transição, pedia perdão dos
seus arrebatamentos. Promettia ser brando como um cordeiro. Queria
só o que lhe parecia justiça. Implorava se preciso fosse, compaixão,
misericordia. Tivesse Sofia pena da sua desgraça, de que fôra a causa.
Contára tanto com o seu amor, a sua lealdade, e agora... Que é que
o esperava n’este mundo, se se visse repellido, enxotado, quando
architectara toda a existencia numa base unica, indispensavel, aquelle
casamento. Para o tornar possivel, não recuára diante de consideração
alguma. Tudo, tudo antepuzéra a isso-tudo, tudo, estivesse certa.

E recomeçavam as reticencias, as allusões vagas, mal indicadas, que
deixavam Sofia toda fria,—não poderia dizer como, com verdadeiros
calefrios pelo dorso, d’esses que, no dizer do povo, annunciam o esvoaçar
da morte por perto.

Então, proseguia Mario, de nada valiam provas do que existira entre elles?

—Que provas? protestou altiva e surpreza a moça.

—Ora, as murmurações e o reparo da sociedade, durante mais de anno.

Sofia levantou os hombros com desdem.

—E as suas cartas, ardentes, incendiarias. Ah! mostral-as-ei ao mundo
inteiro, a todos, a esse Barroso do inferno...

—Fôra indigno da sua parte. O cavalheirismo...

Cavalheirismo? replicava Mario Campos impetuoso, cheio de fél e ironia,
quando tudo lhe tiravam, lhe arrancavam, lhe roubavam?! Depois do que lhe
succedia, não era, não podia ser um homem como qualquer outro. Havia de
tomar o seu desforço do modo que melhor lhe aprouvesse, como um villão,
um miseravel, uma féra. Dependia d’ella. Dos seus labios estava suspensa
a sua vida. Não lhe diria jamais tudo; mas a morte pairava sobre ambos...

—Sofia, Sofia! implorava o misero.

A moça, porém, abanava implacavel a cabeça, pallida, os olhos sem fulgor,
meio cerrados, inquietos, mas energica, de tenção firme, inabalavel.

—Não, não; não é mais possivel...

N’isto um cavalheiro veiu lembrar-lhe o compromisso de uma valsa.

—Tenho certo escrupulo, disse elle um tanto malicioso, de interrompel-os;
conversavam tão animados...

—O Sr. Mario Campos, replicou Sofia com toda a naturalidade, estava me
contando a sua viagem ao Rio da Prata... bem interessante.

E lá se foi ella envolvida nos languidos effluvios de cadenciada e
vaporosa musica.


II

Que existencia a do desprezado Mario Campos!

Pareceu-lhe aquillo, a principio, um sonho, um pesadello, esse tremendo e
inopinado capricho de loureira a perturbar-lhe todos os planos e calculos
e a exasperar-lhe a paixão por modo inacreditavel.

Fez ainda algumas tentativas, procurou encontros, entrevistas; mas achou
todas as portas fechadas, as vasas cortadas, esbarrando com uma resolução
tão valente e decidida como a sua. Empenhava-se Sofia em mostrar-se de
posse do maior sangue-frio; e a sociedade, curiosa e attenta, observava
aquella especie de duello travado repentinamente entre dous entes, que,
pouco antes, tanto lhe dera que fallar em sentido bem diverso.

Cahiu depois o moço em profundo abatimento. Tudo se lhe afigurou
perdido, a mesma natureza em vesperas de definitiva destruição, apezar
dos rutilantes esplendores dos mais formosos e festivos dias. Encerrado
em casa semanas e semanas, n’essa casa cheia de conforto e luxo em que
não soubera dar o devido apreço á suave affeição da perdida esposa,
reconcentrava-se num desespero medonho, tétrico, a sós com os mais negros
pensamentos. Não lograva um momento de socego, e, para conciliar uma ou
duas horas de acabrunhado torpor, tinha que recorrer, após noutes de
absoluta insomnia, a elevadas doses de morphina.

Ahi emergiu-lhe das mais fundas entranhas odio immenso áquella mulher, e
com elle sêde ardente incontentavel, de estrepitosa vindicta. Ah! sim,
queria, precisava por força vingar-se, mas de modo unico, nunca visto,
inexcedivel, nem sequer imaginado. E tornou-se-lhe prazer exclusivo
procurar que desforço seria esse, capaz, só em ideal-o, de lhe applacar
um pouco tamanhas ancias, fogo tão devorador e indomavel.

Matal-a-ia sem vacillar; oh, sim! mas como fazel-a soffrer mil mortes,
n’uma agonia intérmina, á maneira d’essas aves de rapina, cruentissimos
açôres, que, por instincto infernal, dilaceram as victimas membro a
membro, pedaço por pedaço, lenta e quasi scientificamente, poupando com
cautela os orgãos essenciaes á vida, afim de se saciarem, dia a dia, de
carne sempre sangrenta e palpitante?

Mataria, oh, sim! aquelle homem... Tudo isto, porém, não fôra tão
banal? Que valia esse rival de occasião? Eliminado da scena, outro o
substituiria sem demora. Por tão pouco não se abate nem recúa a perfidia
da mulher. Para que, aliás, essa suppressão de vida? Em muitos casos não
é um favor a morte? Não representa a cessação da dôr, do soffrimento,
da vergonha? Por ella não suspirava elle, como supremo bem? Sim, tambem
tinha que morrer. No perpassar de todas as odientas combinações,
intoleravel se lhe afigurava continuar a existir. Reservava essa tortura
para Sofia; mas como transmudar tamanha concessão em martyrio constante,
em angustias sem nome, em indizivel supplicio, calcando para sempre aos
pés o seu orgulho, conspurcando-a perante a sociedade toda, arrastando-a
com eterno labéo, imprimindo-lhe na fronte signal de inapagavel ferrete?
Como?

Comparava os tempos anteriores ao amaldiçoado amor com tudo quanto
occorrera, uma vez ateada a criminosa e já tão flagiciada paixão. E a
lembrança da esposa, tão boa em sua discreta feição, o enchia de pavor.
Fugia de aprofundar comsigo mesmo o incerto mysterio... aquella janella
aberta por noite frigidissima, em Buenos-Ayres, ella a dormir fraca dos
pulmões, presa então de perigosa bronchite... depois a pneumonia dupla...
as vascas de terrivel agonia num estreito quarto de hotel... Que momentos
agora tão claros á sua memoria... Parecia os estar vendo; bastava
fechar os olhos. A pobresinha, resignada, quasi a sorrir, emquanto as
lagrimas lhe rolavam silenciosas pelas faces, apertando a mão assassina,
implorando protecção contra a morte que chegava... elle, com o pensamento
fixo no Rio de Janeiro, ardendo de impaciencia, brutalisando-a, doudo
por vêr tudo acabado, concluso, findo, espreitando, espiando o ultimo
estertor, o derradeiro suspiro, a convulsão suprema, que ia desatar as
cadeias do abominado captiveiro... Que indigna contraposição! De um lado
tanta pureza e resignação; do outro tamanha maldade, tão satanica e baixa
ferocidade. E para que o monstruoso attentado? D’elle agora emergiam
obrigatoriamente outros crimes, novas infamias.

Sentia-se condemnado. Justiça inteira havia de ser feita e pela propria
mão. Era ponto decidido, indiscutivel já no seu espirito. Ficaria, porém,
impune a causa de tantos males? Impossivel! Para beneficio de todos,
cumpria esmagar ente tão pernicioso, inutilisar de vez encantos tão
perigosos e lethaes.

E parafusava, sem se lhe deparar nada que apaziguasse um tanto as iras
exasperadas, em fremente ebullição.

Depois... serenou. Mostrou-se por toda a parte altivo, calmo e
indifferente. Tornou a frequentar theatros e logares, fallando no
proximo enlace de Sofia com desembaraço e naturalidade, applaudindo-o
até. Declarou-se curado de mal entendidas e pueris velleidades. Chegou a
cumprimentar a moça e, uma feita que se encontrou cara a cara com ella
apertou-lhe a mão sem nenhum constrangimento ou perturbação.

A varios amigos falou em proxima partida para terras longinquas, e ás
rodas habituaes levou um todo, senão risonho, pelo menos de tranquilla e
digna compostura.

Publicaram-se então os primeiros proclamas do casamento de Lucio Barroso
com Sofia Dias, a qual se suppunha afinal livre de qualquer complicação,
toda radiante de alegria e felicidade, cada vez mais formosa, faceira e
seductora, nos labios sempre róseo sorriso sobre nacarados dentes, bocca
humida e appetitosa de tentar um santo.

Numa bella manhã, sobresaltou-se a cidade em peso. Acabára de suicidar-se
com um tiro de revolver Mario Campos.

Sem declarar o motivo d’esse acto, recommendava que dessem immediata
publicidade e prompta execução ao testamento por elle depositado, dias
antes, no cartorio do tabellião Matheus.

N’esse documento, feito de accordo com as mais restrictas formalidades,
distribuia varios donativos a institutos de caridade e legava alguns bens
a parentes da sua mulher. Terminava, porém, pelas seguintes e terriveis
palavras, que causaram escandalo enorme, ecoando por todos os cantos da
capital:

«Eternamente grato a não poucas provas de affeição e condescendencia,
deixo os remanescentes, que calculo em 200 contos de réis, á minha amante
D. Sofia Dias, devendo esse legado transmittir-se em qualquer tempo á
successão ligitima ou _illegitima_, verificada em regra a filiação. Caso
não seja a quantia reclamada logo, entregar-se-hão annualmente os juros á
Misericordia.»

Dentro, duas cartas da imprudente moça, que se prestavam a muitas
interpretações.

No meio da indignação geral, do profundo abalo de uns, do revoltado
pasmo de outros, da pungente ironia dos maldizentes e da compungida
piedade dos bondosos, rompeu Lucio Barroso com estrondo o casamento; e
a malaventurada Sofia, salteada de febre cerebral, por largas semanas
esteve entre a vida e a morte.

Rumorejou-se na possibilidade de melindrosa justificação perante os
tribunaes; mas, afinal, a familia toda, mãe e duas filhas menores, depois
de mezes e mezes de sumiço, partiu para a Europa. Nunca mais se ouviu
fallar, se não vagamente, em Sofia Dias; parece que por lá se casára.

Ainda não foi até hoje levantada a ominosa herança... Quem nos diz, que
será sempre repellido o maldito e infamante legado?

Assim seja!



RAPTO ORIGINAL



RAPTO ORIGINAL


I

Namoravam-se a valer, de uns mezes atraz; a visinhança sabia de tudo,
acompanhava curiosa, accesa, as peripecias do derriço e tomava bons
regabofes.

Ella, muito nevrotica, atirada a romantismos, exaltada, amiga de leituras
violentas, _fin de siècle_, tocando piano por modo quasi notavel e
gostando de despertar, alta noute, o bairro com a valentia dos accordes
que desferia, nem bonita, nem feia, com esse viço da primeira mocidade
que os italianos espirituosamente appellidam _la beltá dell’ásino_,
vivendo numa atmosphera de perfumes entontecedores, exoticos, acres, a
soffrer, quasi todos os dias, de enxaquecas, que a levavam a abusar da
antipyrina e lhe davam desejos ardentes de se morphinisar, para cahir em
longos torpôres e fruir sonhos paradisiacos.

Filha unica de antigo negociante, retirado rico do commercio, o
commendador Jacintho Candelaria fazia as suas quatro mil vontades,
creada, como fôra, sem mãe, e no meio de numerosas mucamas, que beliscava
forte, nos dias de máo humor e mais nervosismo. Num só ponto, comtudo, e
ponto capital, desenvolvia o pae todas as energias de portuguez teimoso
e embezerrado. Significára á filha, desde em menina, e incessantemente
lh’o repetia, que só elle é que havia de casal-a. Tivesse paciencia e
sobretudo confiança, pois lhe daria para noivo, não nenhum velho ou
qualquer figura estapafurdia, porém sim rapaz novo, sacudido, de boa
presença, latagão de peso e medida, mas que offerecesse, depois de
cuidadosas provas, garantias seguras para tornal-a feliz no correr da
existencia.

Tambem soubéra o zelo paterno arredar já não poucos pintalegretes—uma
sucia de bilontras! berrava possesso o commendador,—alguns patricios até,
que lhe rondavam a casa, ou melhor, palacete das Laranjeiras, attrahidos
pelos dótes da rapariga, entre os quaes sobresahia, mais que os seus
olhos e apimentado donaire ou o talento ao piano, o dote ante-nupcial, de
que diziam maravilhas.

—De duzentos contos para cima, era voz geral, e logo de pancada, antes de
se agadanhar, por morte do velho, cobre muito grosso.

Estava, pois, a moça, entre dores de cabeça, nocturnos ao piano, bocejos
e manifestações hystericas, cada vez mais accentuadas, esperando o
pretendente _patent_, garantido pelo governo paternal, quando ferrou
n’esse namoro muito cerrado e sério—pois os pequenos á janella não
contavam—com o Arnaldo Gracias.

Gracias ou Garcia? Não, senhores, Gracias, no plural—d’isso fazia
questão,—elle, proprietario unico do nome. Zangava-se devéras, ou
fingia zangar-se, ao lhe não transporem, principalmente, o tal _r_
caracteristico, que a todos causava tamanha estranheza.

Bohemio aliás, até á medulla dos ossos.

Dotado de muito chiste natural, talentoso, com estupendo poder de
assimilação, sabendo tudo, e no fundo ignorante chapado, verboso, e mais
que isso eloquente, com uma phrase viva, faiscante, imaginosa, colorida,
entresachada de tropos, verdadeiro fogo de artificio, em que, se havia
muita fumaceira, fuzilavam, por vezes, alguns clarões.

Tinha a mania de inventar palavras, locuções; e algumas entravam logo em
circulação. Fôra quem puzera em giro o estrambotico _de quando em vez_,
tão em moda por algum tempo no Rio de Janeiro.

—Não me _banalisem_ o nome, costumava gritar nos cafés, batendo com
a bengalinha de junco no marmore das mesas, Gracias... Gracias; com
mil milhões de diabos! Não sou qualquer Garcia da venda ou da botica.
Descendo de guerreiros hespanhóes que costearam de rijo os mouros, os
infieis. Attemdam bem, tenho que zelar tradições, cousas até de religião.

E nas rodas de estudantes, que applaudiam e chasqueavam, lá vinham
vibrantes narrações das batalhas com a mourama, em que se haviam
illustrado os primitivos Gracias.

E tanto era o fogo que a tudo punha, como se assistira ás tremendas
pelejas, que, não raro, palmas rompiam, sinceras, espontaneas.

A todo o instante contava historias do arco da velha, sua vida em Pariz,
seus triumphos no _Quartier latin_. Fôra até amigo de Theophile Gautier,
a eterna creança, o poeta genial, o estylista impeccavel, e, com effeito,
parecia haver tomado ao mestre e companheiro de troças algumas scentelhas
do maravilhoso poder descriptivo.

Carioca da gemma, e votando certa ogeriza á gente nortista—«são trefegos,
invejosos», proclamava sem appellação possivel—tinha como obrigatorio o
odio ao burguez em geral.

—Miseraveis! exclamava com indignação repassada de desprezo;
_corriqueiraram-me_ o sublime Shakespeare! Babujaram-me de ignobil baba
o immenso Dante! Canalhas! Entrego-lhes o _Inferno_ e _Purgatorio_, já
que não ha mais defesa possivel; mas, com mil bombardas e pelas cinzas
dos meus avós, o _Paraiso_ é meu. Hei de zelar-lhe a alvinitente pureza,
custe o que custar, até á morte. Não consinto que n’elle toquem!...

E olhava para todos com ares de quem acabara de receber a sagrada herança
por testamento do immenso Dante, com recommendações expressas acerca
d’essa parte da _Divina Comedia_.

Lêra elle jámais esse _Paraiso_, por que quebrava tantas lanças, o
_Purgatorio_ ou simplesmente o _Inferno_? Nunca se soube.

Buscando abrigo em refugios extremos do gosto e da originalidade, ainda
não conspurcados pelo torpe vulgo, entranhara-se, como um perseguido,
pelas litteraturas do Norte e citava com pasmosa profusão os nomes mais
arrevesados, apregoando, dos primeiros nos circulos da rua do Ouvidor,
Dostoiewsky, Pissensky, Arne Garborg, Ibsen, Bjœnstierne-Bjœrnson,
Ostrowsky, Hastzembusch, Ocienxdlœger e outros de igual calibre.

Alto, magro, muito claro, com o olhar meio empanado sobre palpebras
empapuçadas, cabellos em continuo desalinho, barba espetada
perpendicularmente ao queixo, distinguia-se, mais que tudo, por pés
e mãos enormes. Calçava Clark 43 e luvas, letra... não; luvas era
superfluidade de que nunca usara. Em compensação, movia essas mãos
nuns gestos continuos, ora largos, calmos e generosos, ora freneticos,
raivosos, ameaçadores, de quem ia derrear meio mundo com pancada de moer
ossos.

Vivia ao Deus dará, sempre em vesperas de estrondosa collocação, já
n’alguma das secretarias de Estado, onde distribuiria o santo e a senha,
introduzindo reformas estupendas de mais apurado cunho litterario na
feitura das peças officiaes, já á frente de uma publicação periodica que
havia impreterivelmente de desbancar a _Revista dos Dous Mundos_—nada
menos.

—Vocês verão, annunciava exaltado, convicto, como ponho de pernas para o
ar o tal Buloz e toda a sua igrejinha carrança, pedantesca e jesuitica.
Será o protesto do mundo pensante contra aquella ridicula camarilha, que
pretende avassalar o intellecto universal. Preparem-se para estourar de
tanta gargalhada!

Por em quanto, porém, nem emprego de secretaria, nem revista. Passava
os dias a pedir _emprestadas_ a amigos e conhecidos umas miseraveis
quantias, que considerava favor ir embolsando; hospede dias, semanas
ou mezes seguidos, aqui, acolá; excellente rapaz no fundo, divertido,
serviçal e meigo, em meio de todas as bravatas e objurgações.

Sempre prompto para a pandega. Lá isso, contassem com elle; era dos
fieis, dos inabalaveis. Com a bréca, até em patuscadas ha deveres
a cumprir. Demais, a vida foi feita para desobrigar-se com honra e
pontualidade dos compromissos tomados; curta e boa—a sua divisa.

E desfiava umas 8 a 10 horas inteirinhas do dia na rua do Ouvidor que,
percorria do largo de S. Francisco á rua Primeiro de Março quinze ou
vinte vezes, ora ás carreiras como homem atarefadissimo e que não podia
perder um minuto, ora parando em cada botequim e n’elle chuchurreando
café, licores, cognac, leite, sorvetes, seu absynthosinho não raro, e
quantos liquidos, innocentes ou não, todos de bom grado lhe offereciam.

Pagava tudo com o seu verbo inflammado, multiforme, incansavel, já
contando anecdotas picarescas, engraçadissimas, já vociferando, sempre em
opposição violenta contra os homens do poder; hoje nihilista, communista,
anarchista, amanhã autocratico, déspota, feroz na desapiedada repressão e
no illimitado rigorismo, tudo com inabalavel convicção e grandes luzes de
argumentos.

Á noite, theatros, onde achava sempre meios de encaixar-se, sem jámais
se entender com o bilheiteiro. E, nos entreactos, eram interminaveis
catilinarias a proposito da decadencia da arte dramatica e dos costumes
publicos, adubada a prelecção com olhares de indignado manospreço ás
petulantes francezas e raparigas que por alli se exhibiam espivitadas,
provocadoras. Occasiões, porém, havia em que com ellas confabulava
graciosamente.

—Boas creaturas em summa, estas michélas e marafonas, dizia com sorriso
bonachão, o que não impedia de declarar-se discipulo intransigente de
Shopenhauer e de prégar inflexivel cruzada contra o _eterno feminino_, a
perdição do homem, o seu instrumento de degradação e insanavel villania.

—Tirem-me a mulher do mundo, urrava já muito escaldado com os _bocks_ de
cerveja e copinhos de cognac _fine champagne_, e faço de todos os homens
deuses, entes supernaturaes!

Davam-se épocas, entretanto, em que, de viseira alçada, com muita
nobreza, relembrando o cavalheirismo castelhano, se batia em prol do sexo
fraco, victima e martyr da prepotencia do forte, secularmente tyrannico e
maldoso, brutal e egoista. Nessa quadra de reivindicação, exigia, em nome
da justiça ultrajada, que a natureza repartisse com igualdade os gravames
da reproducção da especie.

Bradava então imperioso:

—Uma vez a esposa, outra o marido. Os taes senhores que experimentem o
que é bom. Quero vel-os _gravidos_!

E com toda a seriedade chegava a affirmar e prometter, que elle, Arnaldo
Gracias, á fé de gardingo e descendente de fidalgos wisigodos, de uma só
palavra, de antes quebrar que torcer, havia afinal de pôr cobro a tamanha
iniquidade.

Boas surriadas e espirituosos dichotes ia promovendo com tudo isso.

Morava não se sabia bem onde, alcandorado em qualquer pouso mais á mão,
quasi sempre _republicas_ abarrotadas de estudantes, onde discutia
sciencias, artes, litteratura, e lá se deixava ficar mais ou menos tempo,
conforme o capricho, não se lhe dando absolutamente com a amabilidade ou
os máos modos d’aquelles a quem dispensava a honra da sua convivencia.

É que estabelecia logo incommodativo communismo, e a applicação d’esse
systema devéras modificava o prazer das interminaveis e acaloradas
palestras, em que gastava tanto fluido vital. Com toda a sem cerimonia,
tomava a roupa dos outros, vestindo camisas alheias, quer engommadas de
fresco, quer já servidas, e enfiando-se sem o menor escrupulo nas calças
e nos paletots, que encontrásse mais de geito.

E por cima, se o apertavam mais sériamente apuros de dinheiro, não punha
duvida alguma em passar a mão nos livros dos que o hospedavam, levando
velhas grammaticas, compendios de mathematicas elementares, selectas
latinas, ou até obras de preço, que truncava sem o mais leve embaraço de
consciencia, e ia vender a esses modestos belchiores, chrismados com a
alcunha bem feia de... _cagacebos_.

Costumava, entretanto, que incoherencia! esbravejar com sincero furor
contra essa timida classe, tão util aos seus habitos, e propunha uma
Saint Barthélemy implacavel, que extinguisse de vez a abominada raça.

—Ha de chegar o dia, olé, se ha de! annunciava ameaçador. Tenho de olho
uns cinco ou seis... Já os avisei... Esses ficam por minha conta...
gallegos todos—uma bella bainha de toucinho para a adága dos meus avós!

No fundo, incapaz de matar um caçapo.


II

Tal era Arnaldo Gracias, por emquanto todo entregue á sua paixão pela
nevrotica Julia Candelaria.

Entabolara-se o caso, estando elle de pousada na casa em commum de varios
empregados do commercio, seus amigos intimos dessa temporada, como era
de meio mundo em certas quadras, segundo a veneta, pois não raro tinha
tambem accessos de misanthropia, e desapparecia, sem que ninguem pudesse
attinar onde ia encafuar-se.

Mettidos a aristocratas e moços de boa roda, habitavam os taes empregados
do commercio nas Larangeiras, perto do palacete Candelaria.

Panno para mangas forneceu o publico namoro de Gracias, estampando-lhe
as gazetas quasi que diarios sonetos coroscantes, embora monotonos e
impregnados de sentimento todo facticio. O auctor porém e alguns adeptos
fervorosos os tinham em conta de indiscutiveis obras primas.

—É o Petrarca sul-americano, decidia um dos discipulos na arte bohemia;
assombroso, um abysmo!

Não cabia pois Julia em si de contente, dava escandalo, servindo-se das
mucamas e dos molecotes da casa para, a cada momento, enviar cartas e
fitinhas, pontas de cabello e flores allegoricas, ou docesinhos e mais
isto e mais aquillo, ao incansavel trovador.

Teria, por certo, preferido mais elegancia e plastica no seu porte, barba
menos hirsuta, cabellos mais disciplinados e principalmente menos surrado
um celebre sobretudo, de verão e inverno; mas emfim, com um bocadinho de
exaltação muito senão póde transformar-se em qualidade esthetica.

—Que alma! exclamava com enthusiastico fervor, e que talento, quanta
imaginação!

Num bello dia, lembrou-se de autorisar o nosso Gracias a ir pedir ao
commendador a sua mão—uma tentativa.

«Perigosa cartada, a que jogamos, dizia ella em carta, mas procurarei por
todos os meios e com o maior geito preparar o terreno. Terei coragem;
conto com a sua resolução. Apresente-se afoutamente.»

E por ahi ia, numas quatro longas paginas.

Gracias, que não guardava segredos com ninguem, e menos ainda com os
amigos intimos de occasião, mostrou logo a carta aos companheiros de
estadia.

Foi um só brado.

—Olhem o felizardo! Então vai metter-se em cobreira grossa, tornar-se do
pé para a mão capitalista graúdo. Que protecção escancarada da sorte!
Duzentos contos de pancada!

Quedou-se o nosso heróe não pouco conturbado. Devéras, a fortuna
repentinamente lhe batia á porta, quando menos pensava em dinheiro? Então
iam ter fim todas as miserias que curtira, ainda que o não preoccupassem
lá muito, mesmo nada?! Duzentos contos? Que faria de tanto dinheiro, de
tantas notas de Thesouro Nacional?

Chegou a declarar muito sériamente que, mal entrasse no dote da menina,
mandaria construir vasto hospicio para cavallos e animaes vagabundos,
abandonados por doentes e imprestaveis.

—Palavra de honra, gritava, fustigando os moveis com muita força. A
humanidade lhes deve isto. Depois cuidarei de montar a minha grande
revista. Preciso, desde logo, dignificar o dinheiro do gallego.

E falava já com o entono de um millionario.

Em casa, porém, do commendador, reinava muita agitação. A peito
descoberto e com ares de irrevogavel resolução, denunciára Julia a paixão
que a dominava, batera o pé, tivera uma série de fanicos, mas nada
conseguira senão frequentes: «Ora bolas! Contenha-se, menina!» «Tenha
paciencia, estou já com noivo quasi arranjado!» «Que maluca!» «Não seja
tola», «vá bugiar» e outras phrases de invencivel resistencia, além de
muitas descomposturas ao tal pelintra, que viera interpor-se entre pae
e filha: «Um valdevinos; conheço-o muito: chupador de cerveja da rua do
Ouvidor, batedor de carteira», e mil outros deprimentes qualificativos,
entre os quaes voltava a cada passo o de «poeta d’agua doce».

De tudo foi logo informado Gracias, mas lá vinha a recommendação: «Não
se importe; apresente-se em casa e peça a minha mão. Precisamos ter do
nosso lado a razão. Papae gosta muito de mim mas lá a seu modo.»

E tal a insistencia que, numa tarde, ao escurecer, subiu o descendente
dos guerreiros hespanhóes, um tanto commovido, força é confessar, as
escadas do commendador Candelaria, enfiado n’uma casaca emprestada,
que, por signal, não lhe assentava nada. Logo se denunciava roupa de
emprestimo. Casaca só? Qual, camisa, d’esta feita bem limpa, collete,
gravata branca, calças, _claque_ e luvas que segurava da mão com
despretenciosa elegancia—jámais as poderia calçar. Fizera vir da loja
botinas de verniz para essa entrevista decisiva.

—É o meu Covadonga, annunciára elle, vou entestar frente a frente com o
sanguinario alarabe Alkamah. Pelas barbas dos Gracias, não me mette medo
o bronco Almoravide.

Recebeu-o Candelaria de cara muito amarrada, todo vermelho, quasi
apoplectico. Como, porém, se prezava de muito bem educado—uma das suas
manias—fel-o sentar e, empertigado, casmurro, deixou-o fallar, expôr ao
que vinha.

Após breve hesitação, fallou, fallou o rapaz quasi a perder o folego,
legitima conferencia, como se estivesse de posse da tribuna da Gloria.
Não poupou os excellentissimos.

Afinal o velho o interrompeu, todo inchado de ira:

—Tudo isto é muito bom, declarou com solemnidade de pessoa de finissimo
trato; mas o senhor, consinta-me a franqueza, não tem eira nem beira e
está perdendo o seu tempo. A minha filha não é para os seus beiços.

—Tenho diante de mim o futuro, exclamou lyricamente Gracias.

—Bom, bom, não admitto conversas fiadas.

E levantou-se para não arrebentar. Fervia-lhe o sangue nas entumecidas
veias.

Quiz o pretendente replicar.

—Basta, basta, meu rico senhor. Isto aqui não é ponto de bilontras.
Queira retirar-se, quanto antes. Pão, pão, queijo, queijo! Por alli é o
caminho da rua.

Portou-se Gracias com incontestavel dignidade e calma.

—Pois bem, exclamou um tanto melodramatico, retiro-me, Sr. commendador,
mas lavro solemne protesto. Hei de vingar-me, espere pela pancada.

E, descida a escada, ao chegar á soleira da porta, voltou-se, fez das
mãos em concavo sonoro porta-voz e atirou aos ares o mais formal desafio
a todos os paes despoticos e da velha escola.

—Ó sujo! Ó pé de chumbo.

Em vibrante epistola, sem mesmo despir a casaca, contou logo á Julia o
resultado da desastrada conferencia. «Fiquei, narrou elle, offendido
nos meus brios mais sensiveis e melindrosos. Tudo supportei por ser
esse brutamonte teu progenitor. Fôra outro homem, e a esta hora estaria
estrangulado, morto. Imagina quanto não soffri. Houve momentos em que
suppuz perder a razão com o esforço que fiz por me conter e reprimir os
marulhosos borbotões do meu sangue hespanhol. Ainda estou pasmo de ter
tido tamanho poder sobre tantos avós, que, do fundo das minhas entranhas,
bradavam ululantes: «Vinga-te, mancebo; lembra-te de nós, não deixes que
esse desalmado e vil portuguez zombe de Aragão e de Castella!»

E, mais por leviandade, do que de tenção feita, terminava propondo á
amada immediata evasão d’aquella sinistra Bastilha: «Fujamos, dizia
arrebatado, é preciso pôres termo a tão intenso padecer. Tudo tem
limites, a resignação, a paciencia, a cordura, ó doce palomba, estrella
do meu amor, vida da minha vida, etc., etc.»

«Fujamos», foi a resposta, sem a menor vacillação.

E os dous trataram da prompta realisação do temerario projecto.


III

Muniu-se, desde logo, Arnaldo Gracias de desabado _sombrero_ e vasto
manto hespanhol, que mysteriosamente arvorou, fizesse sol ou chuva,
como symbolo de graves complicações e perigosas incidencias, em sua
vida, o que a não poucos communicou, exigindo, porém, rigorosissimo
sigillo—questão de muito compromettimento.

Cuidou, em seguida, de lançar um emprestimo na praça do Rio de
Janeiro, cousa, aliás, bem modesta, uns 200$, que, entretanto, não lhe
foi facil reunir, embora offerecesse aos emprestadores de profissão
juros positivamente fabulosos. Emfim, já como favor pessoal, já
como adiantamento para um livro a sahir dos prélos e destinado a
estrondosa acceitação—intitulado, ora _Novos aspectos de critica_—ora
_A metempsychose á luz da sciencia_, ou então _O euréka nas lettras e
nas artes_—aos 5, 10 e 20$ pôde arranjar a somma precisa para ajustar
e aluguel de um carro de cocheira com cavallos pretos—velozes como o
pampeiro, recommendára elle—ter um quarto melhor no _Hotel dos Quatro
Cantos_—e outras despezas indispensaveis. Aos creados, largas gorgetas
prévias—era de obrigação no melindroso trecho.

Em poucos dias, tudo ficou minuciosamente combinado.

Com as liberdades de vida que tinha Julia Candelaria, nenhuma empreza
difficil, aliás, e menos ainda de assombrar, o sahir de casa pelo portão
do jardim, das 9½ ás 10 horas da noute, metter-se n’um carro á espera
alli por perto e... _fouette, cocher_! Nas vesperas do grande dia, ou
antes da noute fatidica, sentiu-se Gracias agitadissimo. Não é graça,
de certo, proceder-se ao rapto de uma menor, apatacada ou não. E esta
idéa de dinheiro pungia até o nosso bohemio de modo especial. Havia
momentos em que preferira saber a amada pauperrima, filha de necessitados
operarios, afim de tirar á aventura em que ia metter-se qualquer caracter
de vil interesse, como, infallivelmente, não deixaria a malevolencia de
assoalhar, perfida, viperina.

Além disto, por mais leviano e despreoccupado que se seja, por menos que
se pense, representavam esse feito e as immediatas consequencias tal
modificação de habitos na sua existencia livre e descuidosa, que, de vez
em quando, lhe girava a cabeça como se fôra a perder os sentidos.

Mal podia dormir e passava as noites a fumar cigarrinhos de palha,
uns após outros, e a beber chicaras de café, concentrado, apezar das
reclamações dos donos da casa.

—Você põe-se doudo varrido com esta historia de rapto, gritavam elles.

No dia então aprazado, não teve um momento de descanço o alvoroçado
Gracias. Duas, tres, dez, vinte vezes foi ao _tattersal_, repetiu
as instrucções, descreveu ao cocheiro aprazado os logares, todas
as particularidades do ponto de espera, fez d’elle seu confidente,
gratificando-o com toda a antecedencia. Do mesmo modo no _Hotel dos
Quatro Cantos_.

A rua do Ouvidor percorreu-a febrilmente o dia todo. Aqui, alli, nas
innumeras e vertiginosas passadas, a consultar todos os relogios como se
receiasse perder a hora solemne, foi ingerindo calices e mais calices
de cognac, kirsch e rhum e xerez e mais isto e mais aquillo, em numero
de todo o ponto incalculavel, capaz de encher de alto a baixo todo um
obelisco egypcio, consagrado a dados estatisticos sobre consumo de
liquidos.

E, entretanto, não dava signal de ebriedade; a superexcitação nervosa o
aguentava com valentia.

Não pôde jantar. Mal lambiscou umas gulozinas.

Tambem, á hora em que, encafuado no carro, se quedou á espreita da
presa, á maneira de ardilosa aranha no centro da teia, não podia mais
de cansaço, os membros todos alquebrados, numa lassidão inexprimivel.
Cochilava como um perdido e, embora quizesse impedir a conversa do
cocheiro com um caixeirinho da venda proxima á casa do commendador, não
se mexia, a cabecear, tolhido, inerte, estatelado, ouvindo, comtudo,
palavras que deviam tel-o sobresaltado: _espéra_, _rapto_, _moça do
bairro_...

Só despertou com a chegada de Julia Candelaria, toda de preto e envolvida
em mantilha negra, mas muito senhora de si, alegre, satisfeitissima
da sua proeza. Não encontrára estorvo algum; não suscitára nenhuma
desconfiança.

Soavam então 10 horas.

—Cocheiro, bradou Gracias sahindo do seu torpôr; toque para o ponto que
já sabe... Um relampago!

E lá se foi em disparada o vehiculo pelas ruas já silenciosas, com ares
de mysterio muito _chic_, baixas as cortinas, fustigados valentemente
os cavallos negros, encarregados de representar de pampeiro naquelle
dramatico episodio.

—Emfim... emfim... exclamou Gracias buscando chamar a si todo o
enthusiasmo das tradições castelhanas, chegou a nossa hora... chegou...
chegou...

Qual! somno invencivel lhe prendeu a lingua, fechou-lhe a bocca com
mão de ferro. Grande tambem o espanto de Julia, que a pouco e pouco se
mostrou amuada, offendida, e afinal se encolheu mal humorada a um canto
do carro.

Ao rapido balancear da tipoia sonhava o misero com uma cama larga,
macia, perfumada, irresistivel, em que afinal tomava desforra completa
das passadas insomnias! Como era bom dormir, dormir a farta, refazer as
forças perdidas, estender e desentesar os nervos e musculos, tantos e
tantos dias contrahidos, repuxados, _hypersthenisados_! Não, devéras,
nada vale um bom conchego, quando a gente tem somnos atrazados, nada se
lhe compara!

De repente accordou.

Era o carro que parava, alcançado o _Hotel dos Quatro Cantos_.

E o creado á porta, gravibundo, ainda que revestido de certo ar de
condescendencia, esperava os dous pombinhos e os foi guiando com toda a
discrição ao quarto preparado.

Fecharam-se.

Gracias, acabada a momentanea sacudidéla da chegada, não comprehendia
mais onde estava, o que fazia. Tudo entrava no dominio do sonho. E não
era que o via realisado? Como que lhe estirava amorosos braços uma cama,
a puxal-o com desapoderada attracção na sua brancura, deslumbrante a
olhos faceis, bem duvidosa, entretanto, máo grado todas as recommendações
mil vezes feitas. «Um ninho de cysnes!» pedira instante ao hoteleiro,
gostando, mais que tudo, da phrase.

Como, pois, não se deitar logo e logo a fio comprido? Como recusar-se
a tão convidativos e suaves encantos? Impossivel, superior a forças
humanas... n’aquella emergencia!

—Ao thálamo nupcial, balbuciou elle. Julia... minha celeste Julia!

E, dando o exemplo, tirou depressa as celebres botinas de verniz e,
vestido como estava, embrulhado no manto hespanhol, deixou-se ir, sem
resistencia, a um somno de chumbo, acabrunhador, ineluctavel. D’alli a
nada resonava como um bemaventurado.

Estava a imprudente Julia positivamente attonita, terrificada. Que
significava tudo aquillo?

Lembrou-se de gritar, de pedir soccorro, bater nas paredes, mas não
poude, sentia-se paralysada ao menor movimento, sem voz, sem acção.

Deixou-se cahir assombrada numa cadeira de braços e alli ficou, envolvida
em sua mantilha negra, apathisada, longo tempo, talvez horas, sem saber
o que seria d’ella. Olhava sem ver para o singular raptor, cujo corpo, á
luz da mortiça stearina, se lhe afigurava simplesmente o de algum bicho
monstruoso, repugnante; e lagrimas compridas desfiavam-lhe amargas pelas
faces afogueadas.

Nem de proposito, numa sala proxima, entre grandes berreiros,
terminava-se uma ceia com proporções orgiaticas, e os gritos
descompassados de homens e mulheres, o espoucar estrepitoso do
_champagne_, as saudes, os _hipps_ e _hurrhas_, lhe imprimiam ao systema
nervoso contrachoques electricos, que a punham quasi louca.

A pouco e pouco, porém, se iam acalmando e esbatendo todos os barulhos
da rua, e multiplos ruidos do hotel, quando a desventurada verificou,
transida de horror, que a vela breve se extinguiria. Como, ás escuras, em
tão pavorosas circumstancias? Se aquelle homem passasse do somno á morte?

E esta idéa tanto a aterrou, que, fazendo heroico esforço sobre si mesma,
procurou na maior anciedade e por toda a parte meios de prolongar a
claridade, prestes a sumir-se.

Foi-lhe de grata impressão encontrar na gaveta do lavatorio um pacóte de
falsificado Clichy.

—Emfim! não poude deixar de exclamar.

Recuperando algum alento, depois de reformar a vela, achegou-se a Gracias
e chamou-o, a principio com meiguice e bem baixinho, depois com força,
impaciencia e raiva.

—Arnaldo... Arnaldo, estou com medo... accorda! Sr. Arnaldo... accorde!...

Mal se mexeu o desastrado. Ergueu, n’um gesto inconsciente, as mãos
immensas, que puzeram temerosas sombras na parede, e murmurou:

—Conversaremos amanhã... temos... muito tempo.

Desanimou Julia de vez, instinctivamente offendida.

Emfim, não ficaria ás escuras, não era pouco; accendeu até duas velas
mais, e, de volta á sua cadeira de braços, com a maior intensidade de
luz, contemplou espaçadamente aquelle novo Endymion, presa de inquebravel
dormir, o ideal do seu romance, o pomo de discordia com o seu velho pai,
tão bom, prompto sempre a lhe fazer todas as vontades, o causador da sua
vergonha e irremediavel desgraça.

Pois devéras era aquillo?! Que nariz ridiculamente arrebitado, que
barbas de piaçava, que cabellos e que tez esverdeada, baça! E a grotesca
saliencia dos olhos por baixo das palpebras inchadas? E as sobrancelhas
em matagal, unidas como sombria e fatidica linha? Santo Deus, que pés
colossaes, mettidos em meias de branquidão negativa!

Que seria della, perdida para todo sempre, depois de tamanho escandalo,
travados a sua existencia inteira, o seu futuro, com o desse seductor
impossivel?!

E de novo chorou copiosamente quando a madrugada já vinha colorindo de
rosicler uns pontos do espaço, annunciada pelo estridulo grito dos gallos
matutinos.

Sorria-se todo feliz Gracias na sua beatitude de largo repouso afinal
conquistado; mas nem por isto se mostrava menos feio e repulsivo, pelo
contrario. Ah! quanto arrependimento, que intenso vexame, no peito de
Julia! Que acerbas reflexões! Que horas ainda! Que anhelo, para que
aquella noite acabasse e ao mesmo tempo nunca pudesse ter fim, nunca,
durasse eternamente.

Afinal, vencida por mortal fadiga e indizivel angustia, pegou tambem no
somno, na tal cadeira de balanço.


IV

Foi a triste e mesquinha heroina accordada em sobresalto por enorme
barulho. De todos os lados inundava o quarto sol alegre, triumphante;
deviam ser 8 horas da manhã.

Batiam á porta com desabalada violencia, iam arrombal-a.

Gracias nem se mexeu.

Julia Candelaria fez um esforço e, arrastando-se, deu volta á chave.

Atiraram-se sofregos para dentro em bolo o commendador, o delegado de
policia, soldados e curiosos. Fructificára a palestra de vespera do
indiscreto automedonte, pondo a auctoridade na pista immediata e certa
dos fugidinhos.

Dominando a immensa conturbação, viu a moça afinal a salvação. Agarrou-se
ao pae que, em vão, buscou repellil-a.

—Juro, exclamou ella bem alto e com accento de irrecusavel verdade, que
passei a noite toda naquella cadeira de braços. Não me acabrunhe mais com
a sua justa colera, meu pae... meu bom pae... minha protecção unica nesta
terra de miserias. Tenha pena de mim, da sua filha tão infeliz! Fui...
muito, muito culpada... mas salvei-me...

E com tudo isso Gracias nem se mexia.

Afinal, sacudiu-o umas tres ou quatro vezes o delegado com energia por um
braço, e o homem... despertou.

—Bom, disse elle com relativa calma, esbogalhando quanto poude os
estremunhados olhos, temos agora historias com a senhora policia... era
infallivel!

E, sentando-se na cama, pegou com as mãos os pés em attitude de quem
estava disposto a encetar conversa familiar e entrar em accordo amigavel.

Fossem razoaveis, era só o que pedia.

Não mostrava maior abalo.

—Aliás, continuou já um tanto altivo, acatei esta donzella como se
fôra minha irmã. Ella que o diga... Sei portar-me como cavalheiro.
Raptei-a, para que o commendador, aqui presente e que me merece estima e
consideração, consentisse na eterna união de dous corações leaes, que se
estremecem loucamente e anceiam um pelo outro!...

Julia soluçava como uma perdida.

—Que vergonha! Que vergonha!... Como é que se não morre nestes casos?

Candelaria mostrava-se muito abatido.

—Devéras, minha... filha? poude elle a custo perguntar.

Teve a moça uma arrancada de desespero e indignação.

—Casar-me com esse homem bradou estancando de subito o angustioso chorar,
antes a morte, mil vezes antes, na forca, diante do mundo inteiro!

E, numa explosão de bem sincera dôr, implorou humilde e meiga:

—Tenha dó, meu pae, da sua desgraçada filha... Leve-me d’aqui já e já...
Soffro como jámais pude imaginar soffrer!... Nada lhe occultarei!...
Nunca mais lhe hei de desobedecer, mas vamo nos embora... perdão, perdão.

       *       *       *       *       *

Quinze dias depois, e muito á capucha, effectuou-se o casamento de Julia
Candelaria com o desempenado rapagão que o commendador tinha desde muito
de olho, conforme avisára a filha.

Partiram os ditosos noivos sem demora para a Europa, e, de certo, não
acharam motivo algum de estranheza e queixa um em relação ao outro. Fôra,
ainda mais, o dote duplicado, acima de toda a expectação...

Quanto a Arnaldo Gracias, continuou na sua existencia desorientada e
solta, cada vez mais bohemio e mais satisfeito comsigo mesmo.

Toda uma epopéa aquelle momento phsychico da turbulenta vida!

Pudéra, qual outro archanjo S. Raphael conculcando aos pés o truculento
Belzebuth, subjugar victorioso a animalidade feroz e bramante, amordaçar
a turgidez da desencadeada luxuria, agrilhoar pela inacreditavel
possança do idealismo as tremendas e leoninas investidas da materia,
e arcar, braço a braço, peito contra peito, em esforço titanico, com
os impetos vorazes da volupia, tudo para quedar-se immovel de joelhos,
em extasi de mystica homenagem, puro, continente, sem pécha, na mais
adoravel e santa vigilia de amor e de respeito, ante o symbolo da paixão
etherea, seraphica, lyrio virginal, a flôr sublime, que sahira de tão
extraordinaria prova immaculada, impolluta, intemerata, adamantina,
realçado o brilho offuscador da incomparavel confiança, candidez e
castidade!

E com todos esses elementos da mais inspiradora subjectividade, em menos
de meia hora e entre dous calices de cognac, compôz, sublimando a virtude
propria e o seu heroismo, esplendido soneto nuns sonóros alexandrinos,
muito citados depois, e que, nos gremios litterarios da mocidade,
provocavam sempre applausos de fremente enthusiasmo e enternecida
admiração.



O ESTORVO



O ESTORVO


Muito, mas muito, contente sempre de si e comsigo mesmo o Amaro Esteves,
sobretudo agora que ganhára, por bamburrio, não pouco dinheiro no
_encilhamento_. Por cima, o premio integral de cem contos de reis na
loteria da Bahia.

Sim senhor, graças aos inesperados e meigos sorrisos da sorte, se
tornára, nada mais, nada menos, um capitalista importante.

E rapaz ainda, bonitasso, na casa dos 35, atirado ás mulheres, gostando
de roupagens claras, gravatas vermelhas com alfinetes de graudo
brilhante, pilherico, mettido a contar anecdotas engraçadas, picarescas.

A massada era a Nicóta, a mulher, tão franzina, desengonçada, chôchinha,
sem carnes, sempre retrahida, muito acaipirada, cousa demais. Tambem fôra
aquelle casamento uma bobagem, estopada de marca maior.

Mocinho, numa festa de roça, tolamente se embeiçára por ella, então
rapariga sem graça nenhuma, e, quando déra accordo si, _zás_, _traz_, _nó
cégo_, estava casado, amarrado para todo o sempre pelo _conjungo_ de um
vigario de aldêa. Que espiga!

Não era, de certo, másinha a Nicóta, muito accommodada, calada, no fundo
nulla, absolutamente nulla. Della não vinha nem bem, nem mal ao mundo.
Incapaz de matar uma mosca. Servira nos tempos de penuria e miseria,
quando vegetára nuns empregos réles, de _cacaracá_; mas agora que
pretendia fazer figura na sociedade, frequentar theatros, concertos e
bailes, receber e dar jantares, como se avir com semelhante pamonha?

Nada lhe assentava no corpo mal ajorcado, sem ondulações nem quadris. Não
havia chapéo que lhe quadrasse, e por mais joias que puzesse ficava até
peior.

Mettia-lhe devéras vergonha, ella ao seu braço pela rua do Ouvidor afóra.

Não sabia nem sequer aproveitar o cabello que tinha comprido e abundante.
Penteava-o á china, puxando-o todo para traz e deixando uma testa de
bater roupa, com uma cara muito feia, rechupada, faces encovadas, olhos
empapuçados, beiços escados em ponta, como bico de chocolateira.

Por mais que lhe dissesse: «arranje-se melhor, Nicóta; veja fulana, veja
sicrana», não adiantava um passo, nem cousa alguma conseguia.

Tinha por vezes vontade de lhe empurrar a mão, dar-lhe pancada e até cabo
da pelle, vel-a morta, mettida no caixão e enterrada. Que allivio! Com
mil bombas, aquillo não era mulher para elle!

Ah! fosse casado com alguma desempenada, que vida, que figurão! Alguem
que o comprehendesse e estivesse na altura da posição conquistada, elle
que pretendia agora abrir os seus salões, mandar até comprar um titulo em
Portugal.

Vejão, porém, só a Nicóta baroneza ou viscondessa; ninguem a tomaria ao
sério, ninguem; um varapáo de saias, sem expresão, sem vida, nem peixe,
nem carne. E a abrir a bocca, era logo um xurrilho de asneiras «_muié,
havéra, promóde, teia, panhou, rancou_». Mal sabia lêr e escrever.

Aquillo nunca se havia de desemburrar, excusado!

Só prestava para pregar botões ás camisas e ceroulas e coser na machina,
assim mesmo tão vagarosa, desconsolada sempre, á mercê do marido, numa
pasmaceira enorme, desfibrada, atonica, inerte, attenta só á limpeza da
casa, que trazia como um brinco.

Que massada, que peso, a tal Nicóta! Se ella pudesse esticar a cannela,
morrer de uma boa vez!... Não faria nada por isso, porque afinal não era
nenhum criminoso, desalmado e assassino. Só se a natureza se lembrasse
de libertal-o daquella lesma. E devia merecer esse favor, porque estava
mil furos acima de semelhante creatura chlorotica, esgrovinhada, incapaz
de lhe seguir os passos, sobretudo na vida nova que a fortuna lhe
proporcionára.

Com a bréca, dispôr de centenas de contos e estar de mãos e pés atados,
preso a um ente daquelles!

Lá podia pensar em viajar a Europa com a Nicóta? Por toda a parte
provocaria riso e chasco, bem merecidos, lá isso era verdade.

Nunca tivéra filhos e felizmente. Havião de ser uns apatetados da força
da mãe.

E de alguns annos a esta parte de continuo achacada; ora disto, ora
daquillo ou daquillo outro, umas dôres vagas, oppressões, faltas de
respiração, que a tornavão ainda mais feia, obrigando-a a esturdias
caretas.

Falára um medico em molestia do coração, adiantada até. Qual! Já havia
disso bom par de annos, e nada della arrebentar. Mulher doente, mulher
para sempre: o dictado tinha toda a razão. Mil raios!

Depois então das historias do _encilhamento_, parecera melhorar, e muito.
Não se queixava, nem mesmo o pouco ou quasi nada do costume.

Se, pelo menos, mostrasse ufania e admiração pelo marido! Nada! Incapaz
de qualquer movimento que não tivesse repetido na vespera, antehontem,
uma semana, um mez, dez ou quinze annos atraz.

Tambem elle a soccava sem a menor cerimonia em casa e, em todos os
tempos, ia lá fóra pagodear á grande. Agora não se fartava de ceiatas
com francezas bem pandegas e de cabello pintado de açafrão. E, no dia
seguinte das grossas patuscadas, encontrava sempre a mesma physionomia,
fria, impassivel, sem a menor alteração.

Devéras atacava-lhes os nervos.

Ah! se a tal molestia de coração pudesse estar caminhando! Quem sabe?
Qual! Ás vezes lhe perguntava com ar de interesse: «Então, Nicóta,
aquellas dôres?» «Estou bem _mió_, respondia ella a arrastar a voz
esganiçada e chorosa. Nunca mais tive nada!»

Elle viuvo, que vidão! Tudo se havia de transformar, desligado daquella
pesada poita. Montára casa rica, cheia de trastes dourados e numerosa
creadagem, alguns até francezes. E não é que a Nicóta se levantava quasi
de madrugada, como nos tempos de amanuense da secretaria de policia, em
que tinha de ir accender fogo e preparar café?

Que estupida, afinal!

E não ter animo de largal-a de vez n’algum pasto de Minas ou Goyaz! Não
se tinha em conta de nenhum barbaro, sem piedade ou canalha refinado. E
que dirião depois?

Só mesmo a morte. Nem podia tardar; tinha ella vivido quanto bastava.
Estavão casados, já uns 16 annos. Na tal festa da roça (maldita festa,
sua desgraça!) contava 20 feitos. Ora, 20 com 16, são 36; a sua idade,
delle, vejão só. Que loucura, que asneira aquelle casamento! Nem um
vintem de dóte, nem olhos, nem cintura, nada, nada, um páo secco! E isso
era a mulher de um capitalista!

Por esse tempo soffreu Amaro Esteves um desgosto não pequeno; a noticia
da morte, em Caxambú, do Pantaleão, seu bom amigo de pagodeiras. O homem,
sem saber, padecia do coração; foi ás aguas, abusou dellas e _bumba_!
botou-se de repente para o outro mundo! Ora, o Pantaleão, tão bello moço,
alegre e divertido, morrer assim aos 32 annos, quando tinha tanto que
gozar nesta vida!

Mas que perigo as taes aguas! Qualquer cousa nos pulmões ou coração e
toca a fugir. Nada de facilitar. Custa, ás vezes, tão pouco revirar de
uma feita os olhos!

Por esse tempo, começára tambem o nosso Amaro o namoro com a baroneza da
Silva Velho, no lyrico; uma viuva quasi quarentona, toda faceira, um
peixão em todo o caso. Chegarão as cousas a dar na vista de todos. «Ah,
Snr. maganão, lhe dissera o Santos Alves, o corretor, lembre-se de que é
casado.» Diabo, ter de lembrar-se logo disso!

Um pobre coitado, um pé rapado poucos annos antes, mettido agora em
derriço escandaloso com uma senhora do _high-life_, uma titular! Tivesse
a sua liberdade e jogava-se aos seus pés, pedindo-lhe humildemente a mão
de esposa.

Mas o inferno da Nicóta! Que trambôlho...

Não, aquillo não podia continuar assim, indefinidamente, até o demo dar
com o basta!

E a idéa de Caxambú não o deixava um instante, não lhe sahia mais da
cabeça, á toda a hora do dia e da noute, principalmente á noute, lá pela
madrugada, durante longas insomnias.

Foi afinal consultar o D.ʳ Maria Meirelles, um medico formado de fresco,
seu visinho, muito mocinho; indagou se uma estação de Caxambú não
conviria á mulher. Mostrava pouco appetite, suppunha-a doente do estomago
e figado. Caxambú? Optimo, excellente! Não podia haver cousa melhor.

Ahi, meio conturbado, falou em pontadas do coração, receios de estar esse
orgão affectado.

Então convinha examinar, auscultar. Mas não, coração que dóe é como
cão que ladra. Ligavão-se os incommodos uns aos outros, e Caxambú
daria conta de tudo. Pagou generosamente e sahio da consulta todo
alegre, exultante quasi. Estava salva a sua responsabilidade. Cobria-o
a autoridade daquelle profissional, que tinha obrigação de saber o seu
officio. Quanto a elle, nada occultára; fôra até bem claro, puzéra os
pontos nos _ii_. Podia lavar as mãos pelo que désse e viesse.

Chegou a se ter em conta de marido exemplar. Afinal, buscava solicito a
saude da mulher, sua companheira de tantos annos. Com certeza, Caxambú
lhe faria bem enorme.

E a pensar em tudo isso, na mais singular amalgama, em que via combinada
a vantagem de ambos, divisava futuro todo côr de rosa.

Aliás, com a bréca, ainda quando a opinião do D.ʳ Meirelles não o
desculpasse bastante aos proprios olhos, absolvião-no plenamente as
theorias modernas. Tinha o direito, como homem de resolução, de quebrar
com coragem os obstaculos que lhe impedião os passos.

Parafusou, parafusou e, afinal, partiu com a mulher para Caxambú.

E não é que as aguas começáram a fazer sensivel beneficio á Nicóta?
Chegou até a engordar, facto que nunca lhe succedêra. Bom, a elle, é que
as cousas sahião ás avessas. Viéra para um fim e o contrario é que se
dava. Forte caipora!

E nos seus intimos frenesins sentia impetos de esganar a mulher, ao vel-a
dormir com os beiços cada vez mais bico de chocolateira. Que cara, que
pelle amarellada e por cima ainda cheia de sardas! Mettia nôjo.

Não havia remedio; era resignar-se. Tinha que carregar aquella cruz até
ao ultimo dia da vida, seu destino.

Certo dia, porém, á mesa do jantar, Nicóta ergueu-se de repente, levou
a mão ao peito, soltou um grito abafado de angustia e tombou no chão,
redondamente morta.

Causou o caso no hotel immenso alarme, correrias, quedas, desmaios, um
horror!

Desfez-se elle num pranto sem fim, consolado pelos amigos de occasião.
«Tivesse paciencia, a sorte de todos, D. Nicóta fôra feliz até na mórte.»
«Com effeito, mas era tão bôa, companheira de tantos annos, assim de
repente, aggravante á sua dôr.» E mais isto e mais aquillo.

E não cessou de chorar e lamentar-se, ora mui leal e convencidamente, ora
por simples comedia, até á volta do cemiterio de Baependy, pois nesse
tempo Caxambú não possuia ainda terreno para enterrar os seus mortos, ou
hospedes, ou moradores do lugar.

Essa volta de Baependy!... A tarde estava tão linda e serena, o céo tão
puro e risonho, a paizagem toda tão grata, illuminada pelos ultimos raios
do poente em fogo!

Amaro Esteves sentio-se outro, o peito desafogado e dos labios
entreabertos deixou escapar expressivo e mysterioso _Emfim_!

E sorrio-se ao recordar-se da baroneza da Silva Velho. Fal-a-ia
viscondessa, não havia duvida.

Recolheu-se, ao chegar, a um aposento qualquer, deitou-se cedo e dormio
largo e tranquillo somno.

De madrugada acordou assombrado, tiritando de horror.

Clamor immenso, sem nome, indizivel, enchia aquelle quartinho de hotel;
mil clarins de Jericó, trompas infernaes, repercussões medonhas, écos
terrificos, tudo dominado por uma vóz pungente, um uivo de suprema agonia
a bradar: _Assassino! Assassino! Assassino!_

Gelido suor inundou-lhe o corpo todo e os cabellos se lhe erriçárão no
alto da cabeça...



NOTAS


[1] Quarenta réis.

[2] Com ligeiras alterações, ouvi todas estas quadrinhas da bocca de um
d’esses improvisadores populares.

[3] Foi este conto resposta á carta de um amigo já fallecido que, aos 60
annos, pediu a minha opinião sobre um casamento desproporcionado, que
afinal realisou. (_Nota do Autor._)



INDICE


    POBRE MENINO            7

    CIGANINHA              31

    CABEÇA E CORAÇÃO      105

    UMA VINGANÇA          135

    RAPTO ORIGINAL        153

    O ESTORVO             185

Paris.—Tip. Garnier Irmãos, 6, Rua dos Saints Pères.





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