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Title: Novos contos - 4º volume da Comedia do Campo
Author: Queirós, Francisco Teixeira de, Moreno, Bento
Language: Portuguese
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produced from scanned images of public domain material
from the Google Books project.)



COMEDIA DO CAMPO

    LISBOA
    TYPOGRAPHIA DE ADOLPHO, MODESTO & C.ª
    _Rua Nova do Loureiro, 25 a 43_
    1887



                     _4.º vol. da_ COMEDIA DO CAMPO

                              NOVOS CONTOS

                                   DE

                              BENTO MORENO

                     La plupart des drames sont dans
                       les idées que nous formons
                     des choses. Les événements qui
                     nous paraissent dramatiques ne
                      sont que les sujets que notre
                     âme convertit en tragédie ou en
                   comédie, au gré de notre caractère.

                     H. DE BALZAC—_Modeste Mignon_.

                             [Illustration]

                                EDITORES
                         TAVARES CARDOSO & IRMÃO
                         _5, Largo do Camões, 6_
                                  1887



OBRAS DO MESMO AUCTOR

PUBLICADAS PELOS EDITORES DAVID CORAZZI E TAVARES CARDOSO & IRMÃO


COLLECÇÃO DA COMEDIA DO CAMPO:

    Contos—1 vol.                                 500

    Amor divino—1 vol.                            500

    Antonio Fogueira—1 vol.                       500

    Novos contos—1 vol                            600

COLLECÇÃO DA COMEDIA BURGUEZA:

    Noivos (quasi esgotada)—1 vol. de 500 pag.  1$000

    O Sallustio Nogueira—1 vol. de 500 pag.     1$000

    O Grande Homem (Comedia)—1 vol.               700

[Illustration]



[Illustration]



A MINHA MORTE


Estava na convalescença d’um typho. Não teria doze annos, mas na minha
imaginação representa-se ainda nitidamente esse longo periodo de
febre e de terriveis visões. Apesar de debil e quasi enfesado resisti
heroicamente ao soffrimento e á molestia. Sempre de costas na cama,
passava o tempo a contar e recontar as tabuas do tecto e a fileira de
cachos dependurados ao longo da parede branca. Sentia-me embebido em
estupidez; as perguntas que me faziam, ácerca do meu estado, do sabor
dos remedios e do apetite, ficavam sem resposta. Olhava para todos sem
comprehender o que diziam, ou, pelo menos, sem ter os meios de exprimir
tudo quanto de violento e de extraordinario se passava em todo o meu
corpo. Era como um empastamento geral da minha carne, uma liquifação
do meu cerebro, a ausencia de mim mesmo para sentir. Até as dores que
soffria, tendo um resto de consciencia para saber que se passavam em
mim, attribuia-as mais facilmente a outro corpo. O meu interior era o de
uma enorme fornalha; o proprio halito parecia-me de labaredas brancas,
formadas de ar incandescente. As minhas sensações reduziam-se a uma sede
permanente, que se não podia mitigar. Por mais que me humedecessem a
lingua, nem por um instante m’a podiam tornar molle e flexivel: era uma
lingua de papagaio, que seria facil quebrar como se fôra um caco. Ainda
me recordo de quanto me custava a supportal-a na bocca e de ter, por
vezes, desejos de a arrancar.

Mas depois fui melhorando. A volta das sensações ordinarias fazia-se
uma a uma, como pombos escorraçados d’um pombal. Era um renascimento
gradual, e noto que appareceram primeiro as sensações mais elementares,
aquellas em que o homem tem menos imperio. Todos os dias a febre
decrescia, reconquistava um pouco do viver antigo, como se eu tivesse
feito uma viagem ao chimerico paiz das sombras, e de lá voltasse por um
comprido corredor de muitas legoas, approximando-me instante a instante
da benefica luz do sol, que se visse brilhar ao fundo, cá n’este
mundo vulgar que todos habitamos. Entrei por fim em convalescença. O
facultativo consentiu que me levantasse todos os dias um nadita. Já podia
ir fazendo tentativas de chupar a minha aza de frango. O enjôo da comida
ainda era grande, por isso o meu desgosto era enorme. Reconhecendo-me
melhorado não estava nas condicções das outras pessoas...

No emtanto a minha alegria e satisfação voltaram com o franco apetite.
Tudo era pouco para mim, não havia coisa que me satisfizesse e era
preciso que me ralhassem para não ser tão guloso, que me podia fazer mal.
Até não queria que os outros comessem ao pé de mim; porque isso me dava
inveja, e até raiva, ficando a reparar com olhos avaros e insaciaveis.
O medico argumentava que o meu estomago devia estar fraco, que não
supportaria sem damno grandes quantidades; mas eu sentia-me como uma
grande planta, que lançasse por toda a parte as suas ambiciosas raizes,
para se sustentar á custa da seiva que pertencia ás outras e roubar-lh’a
com o poder absorvente de uma enorme bomba. A comida de predilecção
n’essa minha convalescença eram as boas sardinhas de Vigo, cabeçudas e
grandes, que os gallegos iam vender á minha terra. Á distancia de 26
annos, ainda hoje sinto no paladar o sabor d’essa incomparavel comida.

A chuva d’esse aspero mez de dezembro era frigidissima, o vento
assobiava pelas frinchas das portas. Como já podia andar por toda a
casa ia de vez em quando ao mirante, olhar para os montes que estão ao
norte, e contemplava-os todos cobertos de neve, como se fossem pyramides
collossaes, formadas d’assucar.

Mas a chuva e o vento que soprava d’aquelle lado obrigavam-me a descer;
pois que a janella não era guarnecida de vidraça. N’uma d’essas occasiões
até, a saraiva me veio bater na cara e eu, com medo de recahir,
fui-me logo sentar ao lume, que estava vivo, imponente, abrangendo
grandiosamente em labaredas, os potes de ferro que estavam ao redor.

A nossa cozinha era comprida, terrea e de telha vã. A lareira, grande,
coberta pelo enorme e phantastico chapeu da chaminé, muito farta de
lenha—podia aquecer uma duzia de pessoas á vontade. Na vespera do
sarrabulho ou na noite da consoada, essa cozinha tomava o aspecto
glorioso d’um templo em festa. Havia maior numero de potes; as labaredas
melhor sustentadas enroscavam-se umas nas outras sempre na mesma altura,
como parafusos sem fim. Era manifesta e patente a alegria, a satisfação,
o contentamento que este bom fogo produzia em todos, principalmente
quando as castanhas estoiravam debaixo das brazas e sabendo-se que estava
perto a enfusa de vinho.

Mas quando desci apressadamente do mirante, batido no rosto pela saraiva
e com o tetrico medo de recahir, a cosinha estava solitaria e lugubre.
Era dia ordinario, o lume bem acceso, o pote da ceia gorgolhava com a
fervura, os gatos e os cães, fraternalmente misturados, enroscavam-se
do lado do forno. Fui-me sentar ao meu canto, contando estar ali até á
reza. Lá fóra das portas era quasi escuro, a chuva e o vento passavam
ruidosamente sobre o telhado, produzindo ressonancia dentro da chaminé.
Todo este barulho exterior e material tornava mais sensivel a minha
solidão. Sabia que minha avó, estava á janella na dupla occupação de
rezar as suas contas e de vigiar se os visinhos traziam sardinhas da
praça, que era para tambem as mandar comprar. Porém o rom-rom dos gatos,
o arfar do lume, o ralho da fervura e o sussurro do vento formavam
um ambiente caracteristico de solidão ao qual se veio juntar a nota
sentimental e lugubre do toque das trindades. A torre da egreja era
sobranceira á cosinha e as nove badaladas cahiram-me espaçadamente no
cerebro imprimindo uma sensação gemebunda e prolongada. Apezar da viva
chamma do lume ser propria para desfazer tristezas, sentia sobre mim o
lendario pezo da noite, com todo o seu imprevisto de sombras. E a enorme
chaminé, negra de ferrugem, abria sobre mim um espaço indefinido, d’uma
amplitude amedrontadora. Diante dos meus olhos, em correnteza, estavam
pendurados os salpicões e eu contava-os machinalmente até á minha
chouricinha e á de meu irmão, que estavam juntas, á esquerda. Fui pouco
a pouco cahindo n’um longo esquecimento, fui perdendo a consciencia, a
ponto de quasi se extinguir o meu ser.

       *       *       *       *       *

Provavelmente o calor benefico do lume concorria para o entorpecimento.
Já quando o sino acabou de tocar as «ave marias» eu voejava n’uma
atmosphera de sensações vagas, como suspenso no meio do espaço. A
cadencia das badaladas deu-me o impulso ondulatorio que me atirou por
desconhecidas regiões, fóra de toda a contingencia. Um pingo d’agua cahia
a compasso da torneira da cosinha e o som tristonho parecido com o gemer
d’ave, feria-me levemente o ouvido como se fôra o desfallecer d’uma
d’essas musicas ideaes, que só existem na região do azul. O estrepito do
vento tambem se distanciára de mim, ouvia-o dilatado e longinquo, com a
doçura e encanto do som d’um pinheiral. Estava envolvido, tapetado d’uma
substancia isoladora que me fazia perceber attenuadas todas as sensações.
O meu pensar vago e indeciso, traduzia esta especie de anniquilamento das
minhas forças physicas e a perda das minhas idéas pessoaes. Reconhecia-me
consubstanciado n’este mundo novo e abstracto, balouçando-me n’uma
amplitude infinita como a da morte. Cá na minha, eu já não pertencia
ao numero dos vivos apesar da memoria me reproduzir claramente toda
a realidade material que eu gosára e soffrera, durante os annos da
convivencia terrestre. Confesso que tive saudades do que fôra. Gostava da
vida, mesmo simples e humilde como sempre a passára. Viver por viver e
para viver, é que me enthusiasmava e não as altas posições da fortuna e
da gloria. Todo o homem tem dentro em si tantos meios de ser feliz, que
não saber aproveital-os é signal de desequilibrio e doença. Por isso, a
idéa de ser um morto não me alegrava e, bem pelo contrario, principiei a
apavorar-me á maneira que percebia que isto era sério. Deixar assim de
repente, sem uma despedida, a vida terrena, na qual eu ia sonhadoramente
gosando a minha obscuridade, lá me parecia duro. E sem enterro, sem chôro
de parentes, sem nenhuma pompa funebre... como é que eu tinha morrido?
Depois, independente da questão do céu e do inferno, aquillo lá pelo
outro mundo não é satisfatorio. Antes de entrar nas regiões da perpetua
ventura ou do infinito castigo eu não via senão caras tremendas, que nada
tinham de commum com as expressões minhas conhecidas. Os que riam era
com esgares terrificantes, boccas arrepanhadas e olhos de fogo que me
faziam medo; os que choravam abriam taes guelas, e figuravam-se-me tão
pavorosas as suas cabelleiras formadas de florestas, que me senti gelado,
não podendo sequer encaral-os.

Não me faziam mal, não se approximavam de mim; mas eram desagradáveis
companheiros na sua impavidez sinistra. Tambem, lá por esses espaços,
que levianamente se chamam sideraes, eu não encontrava senão
precipicios, abysmos sem fim, montanhas cujos pincaros a minha vista
não podia alcançar. Por cima da cabeça tudo eram nuvens encastelladas
e carrancudas, que deviam conter fogo e tempestades para myriades de
seculos. Um raio de sol palpitante rompeu n’um momento esta espessura;
mas isso, maiores saudades me fez, por me lembrar com entranhado amor
tudo quanto tinha perdido de carinhoso e bom. Nunca senti como n’esse
instante o preço da vida. A epopeia grandiosa da eternidade, attrahia-me
muito pouco, não seduzia, com as suas magnificencias, a imaginação
simples da creança. Por isso a minha anciedade, a minha tortura cresceu
progressivamente. Nunca mais voltaria a gosar a tranquilla convivencia do
rio, dos montes, das campinas e dos penhascos?!... O canto dos passaros,
as paizagens floridas, o melancholico luar do outono, a exhuberancia da
primavera, os gosos familiares, as festas, as vindimas, as amizades...
tudo teria acabado para mim?!

Que tristesa, que amargura, que saudades me torturavam! As lagrimas
cahiam-me em fio, sentia-me soluçar, a minha admiração pelos sublimes
coros celestiaes, diminuia d’um modo consideravel. E tamanha era esta
saudade e esta dôr que nem o aspecto patente do fogo da querida lareira,
dos potes a ferver, dos salpicões pendurados diante dos meus olhos, me
dava a precisa tranquilidade e resignação. Não me lembro mesmo se cheguei
a considerar estas visões enganosas, como perfidos meios de transacção,
para eu me habituar á outra vida. O meu desespero só fazia augmentar,
sentia pungentissimamente quanto perdi. A minha chouricinha, que estava
ali em frente de mim, já eu não a poderia saborear, em quanto que meu
irmão, que era um vivo, havia de comer as duas e talvez muito regalado.

Principiava a reconhecer-me fatigado, exhausto de forças e ambicionava um
momento de repouso. Visto estar morto, a tormentosa viagem atravez dos
espaços infinitos havia de acabar. Decerto era este o pavoroso caminho da
eternidade, que teria no fim o ceu ou o inferno. Bem sei que logo para
começo podia ser o purgatorio, como logar de purificação; mas declaro
francamente que esta transigencia nos soffrimentos não me foi muito
consoladora. Talvez pelo receio de ter a vida cheia de peccados, julguei
mais provavel não vir a ser um dos eternos habitantes do paraizo!...
Estaria mais satisfeito, se o meu destino estivesse no ceu—atmosphera
ideal, mais pura que o diamante, de cor mais serena que a perola, logar
onde não ha noite, nem sombra, onde os cantos são perpetuos, como é
perpetua e renovada de instante a instante a floração d’aquella primavera
sem fim. No entretanto, se me fora licito ter uma opinião, haveria
declarado preferir a todas as sublimidades ideaes, o continuar na terra
contingente, com todos os seus males, desgostos e contratempos. Porem já
que me achava no outro mundo desejava antes o paraizo do que o inferno,
ou mesmo o purgatorio. Infelizmente este horrendo caminho que seguia, com
a velocidade d’um cyclone, não me dava esperanças de me levar á patria
eternamente luminosa e bella. O ultimo precipicio em que estava era d’um
horrendo incomparavel. Por todos os lados a treva sem limites, e para o
fundo um inconcebivel funil por onde ia resvalando!

Como no terrivel naufragio do conto de Poe, no qual todos os destroços
eram engulidos pelo redemoinho infernal do Maelstrom, assim o meu corpo,
o meu cerebro, o meu pensamento soffriam as torturas d’um movimento
concentrico. Sentia que de instante a instante me apertavam mais e
mais as paredes d’esta nova prisão. Descendo sempre estava cruelmente
atormentado e os meus olhos cheios de pavor não percebiam a menor restea
de luz. A minha existencia conhecia-a sómente pela dor d’uma perna onde
cravára com desespero as proprias unhas. A superficie interna do funil
era lisa a ponto de lhe não perceber o contacto.

Os circulos que eu descrevia eram cada vez menores, a ponto de para o
fim redemoinhar em volta de mim mesmo, como se houvera um eixo material,
servindo de ponto fixo. Evidentemente estava a chegar ao meu pavoroso e
tetrico fim! Uma sensação de frio penetrava-me até á medula dos ossos,
apesar de que, por uma inexplicavel contradicção, conservava no meu
corpo viva reminiscencia do meu calor natural e procurava concentrar-me,
aconchegar-me, metter-me por assim dizer, para dentro de mim mesmo.

Veio uma onda de calor que me lambeu a cara... Talvez o desmoronamento
da pilha d’achas que formavam a fogueira. Esta sensação, de certo
agradavel em outras circumstancias, poz-me em grande terror; pois que
mais me confirmou na ideia da proximidade do inferno. Lá ia eu cahir
n’esse fogo perpetuo, que tão horrendo antevira nas descripções dos
missionarios! E apesar do pavor, irritava-me esta evidente injustiça
d’um poder sobrenatural. Que peccados teriam commettido os meus doze
annos, para merecerem tão severa punição? Já não tinha lagrimas,
sentia-me anniquillado e sem força para me oppor. O meu incomparavel
infortunio, não se limitava a perder o gozo da vida terrena, que tanto
amava. E transigia covardemente: Se, ao menos, fosse trocar o mundo,
a familia, os brinquedos, a caça aos pardaes, a pesca aos barbos, a
minha chouricinha... pelo reino do ceu, vá lá. Não teria ganho, mas vá
lá. Porem abandonar todas estas coisas sympathicas e ter para todo o
sempre de gritar entre chammas, com o diabo a espicaçar-me e monstros
horrendos a deitarem-me perpetuamente pelas guelas chumbo derretido, breu
e azeite a ferver!... era o que eu não podia levar á paciencia. A grande
afflicção em que me vi deu-me ainda um momento de revolta, que resultou
d’uma onda de sangue novo que se me espalhou no cerebro. Por mais que
esquadrinhasse na consciencia, por mais que posesse aberto e claro o
meu passado insignificante, não me sentia merecedor de tão formidavel
pena! Resolvi interpor recurso. Deus é infinitamente misericordioso e de
certo me ouvirá—pensei. Alem de que eu tinha sobejos motivos para assim
proceder, attendendo ao modo excessivamente escuro como correra o meu
processo. Não me lembrava de ter apparecido na sua divina presença; não
vira aquellas venerandas e compridas barbas, brancas como espuma do mar;
não me recordava dos coros dos anjos e das virgens, nem das incomparaveis
bellezas da celestial habitação... Quem sabe se eu ia para o inferno
por engano! Quem me dizia não ser eu victima de manobras d’algum
verdadeiro condemnado que tivesse tido artes de se trocar por mim?! A
minha perturbada intelligencia comprehendia esta possibilidade. Por
tanto—resolvi—levantemos um clamor bem alto, uma supplica formidavel, que
alargando-se por este funil em que me acho, suba aos ouvidos justiceiros
do bom Deus, grande e omnipotente. A convicção da minha innocencia,
dava-me força para tamanha ousadia. E tomei enorme folego, enchi o peito
d’ar, concentrei em mim todas as energias da terra. Da minha garganta
sahiu um estridente brado que se dilatou pelos espaços! Ao mesmo tempo
fugi pela cozinha fóra e fui-me agarrar a minha avó, que resava as suas
contas encostada á janella. Contei-lhe toda a minha afflicção e os
tormentos mentaes em que me vira. Ella reconheceu logo, bem como depois o
confirmou um sacerdote nosso amigo, que este facto devia ser tomado como
um aviso do ceu. Apesar da minha pouca edade, este toque divino, mostrava
claramente que eu andava em peccado mortal. Uma confissão geral de todo
o meu negro passado era urgente. Os esconjuros deviam completar esta
obra de limpeza espiritual. Procedeu-se por esta forma e os exorcismos
foram resados por um padre gallego, que era homem eminente em escorraçar
demonios.

    Janeiro de 86.

[Illustration]



[Illustration]



NOSSO SENHOR JESUS CHRISTO


                                                (_A Valentina de Lucena_)

Entardecia. Como o brilho do sol desaparecera, uma illuminação egual
ameigava a paisagem. Os ultimos soutos de castanheiros transmontanos,
pareciam nodoas de relva nas encostas dos montes. A escuridade cahia
lentamente sobre os povoados, como um tenue orvalho. A physionomia das
terras, em especial dos arvoredos, principiava a ser minhota. Havia mais
d’uma hora que a carruagem rodava por uma estrada em declive. Disse-me
o cocheiro, que algumas casas e uma egreja agglomeradas n’um valle,
na margem direita do Tamega, formavam a povoação de Ribeira de Pena.
Montanhas severas e apocalypticas emmolduravam este bocadinho de campo,
no qual eu principiava a reconhecer a paisagem querida dos meus primeiros
annos.

Vinha só e sentia-me triste sem motivo. O continuado e monotono barulho
da carruagem, o assobio dolente e vago do cocheiro, a amortecedora luz
do crepusculo infiltrando-se por entre as penedias das encostas, os
renques d’arvores do valle tinham-me lançado n’um estado de inconsciente
melancolia. Já cançado da jornada, ainda me faltavam muitas horas para
chegar ao Arco, logar onde ficaria essa noite. N’um estado intermedio
ao somno e á vigilia, as ideias perpassavam-me no cerebro, umas vezes,
como nuvens transparentes e macias recordando momentos d’agradavel
convivencia; outras vezes, encastelladas e escuras, como são as ideias
proprias d’aquelles que vão perdendo o contente palpitar da mocidade!...
Oh! minha encantadora e modesta infancia, eu que sou um dos homens que
mais tem rido, dize-me tu se já algum dia fui alegre, despreocupadamente
alegre!...

       *       *       *       *       *

Á ponta da noite, no momento em que á luz indecisa, os objectos tem
adquirido um esfumado que os avoluma, a carruagem parou á porta d’uma
taberna para se desaguarem os cavallos. Os meus nervos foram chamados
á realidade com energia. N’um banco de pedra, d’esses toscos e muito
usuaes que se encontram juncto das habitações dos camponeses minhotos,
estava sentado um velhinho magro, tendo ao lado um saquito enfiado n’um
páu e uma pequena almotolia d’azeite presa á cintura por uma correia. O
seu rosto sumido era gracioso e terno como o d’uma creança; o sorriso
natural, que lhe resaltava da expressão, parecia sahir d’um berço.

Havia o quer que fosse de inconsciente e ethereo, de amoravel e bondoso,
no rosto d’esse pobresinho. Ali ninguem o conhecia; mas elle olhava para
todos com uma attenção familiar e intima. Um porco atrevido roçava-se-lhe
pelas calças, roncava-lhe junto á cara e elle afastava-o com humildade
e carinho, dizendo-lhe até palavras de conselho. De certo os seus
nervos delicados se encommodavam com aquelle grunhir insolente; mas
nem por isso se mostrava menos attencioso, para com o bruto. Fallava a
todos tão suave e brandamente que a sua voz semelhava um murmurio e uma
consolação á cabeceira d’um enfermo. O seu olhar, d’uma tranquillidade de
justo, prolongava-se pelo espaço infinito, quando olhava para o ceu. Os
cabellos brancos, enquadrando-lhe o rosto pacifico, eram limpos, finos
e fluctuantes como floccos de neve, tinham a transparencia do nimbo
dos sanctos. Tocou-me aquella bondade, aquelle ar compadecido e altivo.
Pareceu-me um pedinte e olhei-o com attenção antes de o interrogar. Elle
sorria-se para mim, com a expressão d’uma pessoa que conversa junto d’uma
lareira aldeã, quando a fogueira crepita e o vento uiva victoriosamente
sobre o telhado. Sentia-me attrahido para elle e então perguntei-lhe
mesmo de dentro da carruagem:

—Vocemecê vem de longe?

Parecera-me que sim. Os pés tinha-os doridos, talvez d’uma longa
caminhada. Estava alli a descançar. A dona da taberna disse que o não
conhecia e que não era das redondezas. O velhito, como eu lhe fallei,
levantou-se sorrindo e approximou-se. E n’um tom de mysterio, para que
mais ninguem o ouvisse, segredou-me:

—Se venho de longe? De muito longe. Nem eu mesmo o sei.

Tomei estas palavras como de soffrimento resignado e tive piedade.

Não sabia d’onde vinha, estava alquebrado pelo cansaço e não encarecia
as suas dores para me pedir esmola! Conheci-lhe pela expressão dolorida
do semblante, quando pôz os pés no chão para me vir fallar, que andára
muitas leguas a pé. Talvez para ir ver uma filha enferma! talvez para
exprimir outro grande affecto que lhe restasse no coração! Tantas terras
percorrera, que até a sua memoria enfraquecida pela edade não retivera os
nomes! Ter-se-hia perdido no caminho?...

Insisti com modos de incredulo:

—Essa é boa! Então não sabe d’onde vem?

Olhou-me com ar sereno e firme como de quem tinha dicto uma coisa
perfeitamente exacta.

—Não senhor. Ninguem sabe!...—segredou-me com extrema reserva.

E acrescentou sorrindo intelligentemente:

—A mim ninguem me conhece; mas eu conheço todo o mundo. Bem sei quem o
senhor é... É o senhor conde. Ah! cuidava que não sabia?...

No rosto do pobresito appareceu uma aurora de triumpho. Para lh’a
sustentar perguntei muito baixo:

—Mas como advinhou? Quem foi que lh’o disse?

A enormidade do seu poder reconheci-a no desdem superior com que me
olhou. Continha lá dentro infinitos thesouros de sabedoria e perspicacia,
á qual não resistiam os insondaveis mysterios do amplo ceu. Quem era eu,
um misero conde, diante d’aquella omnipotencia que considerava o globo
terraqueo como uma insignificante bolinha de pão?! Na minha tristesa e
confusão devia-se reconhecer que o comprehendi; pois que o velhinho, para
me consolar acrescentou:

—Eu sei tudo, advinho tudo. Se não digo d’onde venho é porque ando por
todo o mundo. Agora ahi vou eu para Hespanha ver se componho _aquillo_
e se acabo com todas essas questões que por lá vejo. Levo aqui—designou
o saquito—os papeis e livros necessarios para dar luz e felicidade _a
todos_—sublinhou.

       *       *       *       *       *

Entristeceu-me ver tamanho valor e convicção reunidos n’um corpo assim
fragil. Pedi-lhe com interesse e bons modos que me deixasse examinar
os seus thesouros. Accedeu da melhor vontade abrindo primeiro o sacco
d’estopa, dentro do qual estava um de panno preto, contendo ainda outro
de chita de ramagens. O cocheiro e a dona da taberna aproximaram-se
ironicamente para disfrutarem o pobre; mas elle, com um verdadeiro olhar
altivo e nobre, afastou-os significando, que taes segredos não eram
para espiritos grosseiros e motejadores. A meu pedido os indiscretos
retiraram-se e por fim o pobresito mostrou-me envolvidos em farrapos e
bem ligados com fitas de cores e cordeis, tres velhos alfarrabios em
lingua hespanhola e algumas folhas manuscriptas, d’uma lettra amarella
e inintelligivel. Pelo meio havia folhas seccas de castanheiro, algumas
flores mirradas e pequeninos ramos d’alecrim. Examinei com escrupulosa
attenção estas preciosidades, dando-lhes grande valor! Elle seguiu todos
os meus gestos e movimentos faciaes com olho sagaz e aspecto orgulhoso.
Quando lhe entreguei as suas preciosas reliquias, encarecendo-lhas elle
concluiu:

—Já o senhor conde vê que não é ninguem ao pé de mim.

—Oh! de certo!...

E depois que já tinha guardado os seus livros e papeis inestimaveis
perguntei-lhe:

—Mas como vem de muito longe deve trazer fome. Quer que lhe dê alguma
coisa?

Sem altivez respondeu:

—É da lei acceitar sempre a esmola. Fome não tenho. Ando por aqui ha um
rôr de seculos e nunca senti fome.

E com um sorriso delicioso, como quem faz uma revelação:

—Isso é para vocês que são d’este mundo. Para mim não, que não sou de cá.

—Ah! vocemecê não é de cá?

—Eu sim!...

E sorriu-se da minha estupidez, da minha falta de comprehensão,
abrangendo n’um infinito olhar toda a amplitude da terra ao ceu!
Habitava essas regiões ideaes e interminaveis do azul, suspenso na
serena ondulação do ar, e bafejado da poeira brilhante da luz. A
expressão humilde e conformada do seu rosto, a grandesa e compaixão
que lhe resaltava da voz fraca e singela, o seu triumphante sorriso de
tranquillidade... convenceram-me de que este velhinho resumia em si uma
entidade poderosa. Quem julgará elle representar n’este mundo?—perguntei
a mim mesmo. Talvez algum sancto milagroso, algum lobis-homem das lendas,
algum bruxo afamado entre o povo!... A convicção da sua immaterialidade
e do seu immenso poder reconhecia-se que a tinha, pelo tom desdenhoso e
superior com que se referia a tudo que o cercava. D’elle só veriam sahir
protecção e bondade:—os beneficios que um acto rudimentar do seu querer
podia espalhar sobre a terra eram incalculaveis. Um simples designio da
sua vontade tornaria os homens eternamente felizes ou desgraçados. Não
comia, não se cançava, não havia ponto na terra d’onde tivesse partido
ou que devesse occupar...—o mundo, o ceu, os espaços inconcebiveis eram
a séde da sua ubiquidade. Nem a dôr, nem o falivel o tocava. A misera
fraquesa humana não a sentia, a contingencia do globo merecia-lhe um
pensamento compadecido. Sereno e grande vivia no seu reino especial!...

Qual seria pois, o personagem imaginario que este velho magro, de rosto
sumido, alegre, bondoso, expressão de soberba e de compadecido, julgava
representar? Perguntei-lh’o com a premeditada cautela que elle empregava
nas suas palavras:

—Então quem é vocemecê?

—Pois ainda não advinhou?! Olha bem para mim creatura!... Nosso Senhor
Jesus Christo!

E fixando-me com tremenda piedade concluiu:

—Ando aqui para os salvar a todos.

Dei-lhe uma esmola. O pobresito retirou-se serenamente, depois de me
recommendar:

—Agora caluda, por causa d’esta gente. São hereges, não acreditam.

    Janeiro de 85.

[Illustration]



[Illustration]



O CEGO DE GUARDIAM


Logo que expirou o cunhado, José Domingues cahiu n’um scismar
atormentado. Só elle comprehendia a grande desgraça que n’esse dia
entrára na casa de sua irmã, pobre mãe de cinco filhos, que tinha para os
sustentar, unicamente uma roca. Lembrou-se de os trazer todos para onde
a si; mas como poderiam viver tantas pessoas com duas pipas de vinho e
um carro de pão? A pensar n’isto se consumia o pobre José Domingues, e
aquelles olhos cegos desde tenra infancia, estavam grossos como punhos
de tanto que tinham chorado. Até perdera o gosto á rebeca, prenda que
seu tio frade lhe deixára, juntamente com as territas de que vivia. A
comida entrava-lhe na bocca só á força, depois de muito o apoquentarem.
Como toda a gente o estimava em Guardiam, iam alli pela eira pessoas
conversar com elle, dando-lhe consolações e conselhos, coisas de pouca
valia, pois não produsiam alimento para os sobrinhos. O seu amigo Miguel
Tinta, trouxe o violão uma noite, para lhe acompanhar a rebeca; porem o
cego é que não estava para tocar.

—Que queres, não posso. Tenho aqui um peso de seiscentas arrobas—rematou
arrepanhando o coração.

Mas como algumas raparigas, com o fim caridoso de o tirarem d’aquelle
malucar, lhe pediram insistentemente, José Domingues tocou umas musicas
tristes, muito populares e queridas d’aquella gente. Foi n’esta occasião,
que o Miguel, sentindo o cerebro illuminado por uma ideia, disse com
enthusiasmo:

—Ouve lá. E se nós fossemos por ahi abaixo ambos! Não se ganharia alguma
coisa?

Todas as pessoas presentes acreditaram que sim e applaudiram com
estrepito a lembrança. Só o rabequista não tinha grande fé, pois disse:

—O que, a tocar? Uh!...

—Hade haver muito quem vos queira ouvir. Tentar fortuna é sempre bom
prophetisou emphaticamente Zé Maximo, o barbeiro.

Resolveram-no logo alli. Os dois mais interessados planearam a coisa
detalhadamente, mencionando as terras que percorreriam e as musicas que
haviam de escolher. Uma manhã de primavera, partiram com o sol rubro
no horisonte. Andaram por fóra alguns mezes e quando voltaram vinham
satisfeitos, porque traziam um bom par de moedas na algibeira. Foi uma
alegria para aquella gente, mormente para José Domingues, que ao entregar
o dinheiro á irmã pulava de contente, com os sobrinhos todos em volta a
agarrarem-se-lhe ás pernas. No forte das suas expansões, o cego, planeava
uma vida d’abundancia: queria que se comprasse um porco para matar n’esse
anno e mais um bácoro, para o seguinte.

—N’esta casa!—com seiscentos diabos!—hade tornar a haver salgadeira e
fumeiro, como antigamente—affirmou.

Foi este o começo da vida de tocador de rebeca, que tão popular fez o
cego de Guardiam, em toda a provincia do Minho.

       *       *       *       *       *

O seu nome chegou mesmo á cidade do Porto. Quem fallasse no _ceguinho_
designava logo José Domingues. A expressão persuasiva e bondosa do seu
rosto tornava-o attrahente e querido. Ou tocando a chorosa rebeca, ou
a cantar modas alegres, ou a gracejar com as raparigas, era sempre
comedido e delicado; por forma a ser cubiçada a sua presença. De todos
os cegos pedintes e trovadores, só elle gosava de verdadeira sympathia.
Chamavam-no a muitas casas para o ouvir e, alem da paga, offereciam-lhe
vinho e marmelada. Tambem elle não se parecia com nenhum d’esses
tocadores de sanfona, lamorientos e porcos. Sempre limpinho:—vestido de
briche; camisa lavada; botas de cano, toscas e fortes; a mão apoiada
no hombro do companheiro; o extincto olhar voltado para o sol; assim
percorria a provincia. Tinha o seu orgulho d’artista e de pequeno
proprietario—nunca exaltou ou fingiu miserias e necessidades para
provocar compaixão. Acceitava o que lhe dessem, fosse muito fosse pouco,
agradecendo tudo com um sorriso. O que ambiccionava principalmente era
que o escutassem com religião e amor. Se havia pelas janellas senhoras
formosas, em quem presumisse melhor comprehensão da musica, o Miguel
advertia-o; pois que n’essas circumstancias, o arco de José Domingues,
tinha movimentos expressivos, alma enthusiasta, e coração de poeta.

       *       *       *       *       *

Que ideia faria elle da formosura!...

Fora tão cedo, logo no começo da infancia, que perdera a vista!... As
suas recordações não podiam deixar de ser pedaços de mundo dispersos, mal
definidos, impressões fugitivas, como as da luz no pôr do sol. Comtudo
na viva e larga imaginação, era certo que lhe esvoaçavam encantadoras
imagens. A meiguice do sorriso, a bravura da expressão em certos
momentos, fazem-no presumir. Quando acreditava que a sua alma, a sua
rebeca, estava fazendo palpitar algum coração de mulher, o rosto bexigoso
e feio, animava-se-lhe triumphantemente, como uma aurora. Parecia que
tinha um resplendor, que respirava n’um circulo de luz propria.

É porque elle instinctivamente calculava que áquella expanção de
sensibilidade que lhe vibrava nos proprios nervos, corresponderiam outros
efluvios em nervos mais delicados. E a potente voz da arte embravecia-lhe
a natureza cheia de candura, transformando o humilde cego, n’um ente
dominador e altivo. A proximidade da mulher, a sua inflexão meiga e
dolente, amansava d’um modo absoluto, qualquer aspereza d’este homem,
que nunca lhe pudera calcular a pureza das linhas. Talvez isto fosse por
conhecer a dolorosa historia de seu tio frade, que morto aos septenta
annos, conservára até á ultima, o amor d’uma imagem extincta, evocando-a
aos sons da mesma rebeca, que José Domingues tocava!

Esse tio egresso fôra o seu educador e o seu amigo. Homem de viver em si,
conhecendo a musica e as lettras, ensinara-o a tocar, e transmittira-lhe
a alma que possuia. A doce affabilidade de convivencia com esse bom
velho, introduzira-lhe no coração sentimentos preciosos de humildade.
Despresar os bens terrenos, para se confortar nos gozos interiores, fôra
o que esse obscuro evangelista sempre lhe aconselhára, como meio de se
oppor á desgraça e soffrer com valor as agruras do mundo. Por isso, elle
acceitou em toda a conformidade, esta vida de tocador ambulante, por
mais que ella fosse contraria, ao seu quietismo aldeão. Ainda assim
tinha a impellil-o n’este vagabundear de terra em terra, o seu caracter
impressionavel d’artista. O fanatismo com que todos o ouviam em Guardiam,
em Refuinho e n’outros logares, por vezes lhe levantára as ambições e
sonhára com publico mais numeroso e selecto. Porem nunca pensára em sahir
da sua aldeia, e do adro da egreja, onde nos domingos, depois da missa
conventual, até o abbade parava a ouvil-o. _A donzella abandonada_,
o _Marinheiro_ e o _Cão fiel_ eram algumas das poucas cantigas que
n’esse tempo conhecia. Exprimia-as com tal sentimento e candura, que
era frequente perceber-se o chôro d’algum coração de rapariga enamorada
e sensivel, que encontrava nas palavras da canção qualquer lembrança
pungente. Então o José Domingues, que era galhofeiro dizia:

—Quem diabo está ahi a fungar, a rir-se da minha rabeca? Anda cá menina
que elles não te entendem!...

E beijava-a repetidas vezes, balouçando-a contra o seio, acariciando-a
como terna mãe acaricia um filho. Isto dava sempre bom effeito, alegrava
os ouvintes, tornava-os communicativos e contentes. Para que todos
bailassem, o cego, tocava-lhes a _Canninha verde_, a _Maria Cachucha_,
o _Afasta janota, arreda_, e os rapazes acercavam-se das raparigas,
formando logo a roda.

Se o Carvalhosa presenciava, nunca deixou de dizer com sorriso de
consentimento e um dedo no ar:

—Moços! juizo, ouviram? Muito juizinho.

       *       *       *       *       *

Agora que andava de terra em terra, a força de sympathia e attracção do
José Domingues dilatou-se por muita gente. A sua pequena estatura, a
magresa do corpo, a expressão terna, o olhar fixo e indefinido sempre
voltado para a luz, a delicadesa natural e a suavidade das suas fallas, a
inspiração muitas vezes caudalosa e atormentada da sua rabeca... tudo se
fixou na imaginação collectiva, com traços vigorosos e duradoiros. Elle é
que levava pelo mundo a sua fama. Todas as terras o estimavam e queriam
a ponto de se fallar com antecedencia da vinda do cego de Guardiam, que
tinha epocas determinadas e fixas, para os diversos pontos da provincia.
Se tardava uma semana, isso era logo motivo de reparo. Preoccupavam-se
com a ideia de que estivesse doente e nem queriam suppor que tivesse
morrido. O seu apparecimento era considerado como o das aves cantoras
na primavera, que preannunciam os bons dias e as flores. Por isso era
recebido com verdadeira satisfação este portador de novas canções e,
principalmente as raparigas do povo, saudavam-no com alegria expontanea e
sincera. Parava a conversar com pessoas de diversas cathegorias, e sempre
lhes narrava coisas novas em que os interessava pela simplicidade da sua
palavra.

Estas jornadas, pelos ensombrados caminhos da provincia, começava-as
no principio d’abril, quando os pampanos rebentam e parecem olhos de
satyros a rir de todo o mundo. O inverno passava-o em casa, junto do
lar crepitante, no meio dos sobrinhos, que lhe enchiam a alma de gosos
paternaes. Havia magustos com estoiros de castanhas e o bom rascante,
colhido nas videiras que lhe legara o tio frade. Havia a matança do porco
e a consoada, que eram festas salutares e bulhentas. A neve embranquecia
os montes sobranceiros, a rispida nortada esfuziava, ás lufadas, pelo
valle. Era preciso cada qual acercar-se da fogueira para assim ludibriar
a furia dos elementos, que zombeteavam cá fora. José Domingues com a sua
modestia bem provida do necessario, dizia aos sobrinhos, quando tinham
medo do trovão:

—Deixa lá, é a musica do pae do ceu.

—Gosto mais da rabeca do tio Zé. A musica do pae do ceu, não
presta—observou um de oito annos.

—É zabumba—considerou philosophicamente outro de menos edade.

       *       *       *       *       *

A primavera fazia-o sahir de Guardiam acompanhado do Miguel. Tinham um
jumento para levar o vestuario e o presigo dos primeiros dias. Durante
as chuvas, como os pintasilgos, tinha a voz amortecida. Só a fragancia
do ar tepido e balsamico o fazia cantor. Sentia, como os que tem bons
olhos, que a natureza se subtilisava para a festa grande da creação. No
fermentar estrondoso das sementes que rebentam, estava a sua paisagem
florida. As canções d’esta epoca, o _Regadinho_, o _Pintalhão_ eram
vivas, travessas e maliciosas. As do outono eram melancolicas, arrastadas
e dolentes, sentindo-se no arco da sua rabeca certa preguiça, e o
sentimento das vozes ternas, que vem de longe pelas corgas dos montes.
Havia n’esses cantos, notas flutuantes que pareciam folhas amarellentas
vagueando no ar, impellidas pelo rigido nordeste. Se na volta d’um
caminho percebia alguma cantiga sahida de pinheiral rumuroso, parava
escutando e, ás vezes, rebentavam-lhe lagrimas. Aproximava-se o tempo
de recolher a casa, ás consolações da familia. Lá voltava a Guardiam
com a imaginação cheia de lembranças alegres. No logar era festivamente
celebrada a sua volta e, rindo e chorando, José Domingues abraçava com
effusão e verdadeiro prazer todos que se lhe approximavam. Dançava,
pulava, atirava o chapeu ao ar, como uma creança!

É que se sentia entre corações d’amigos.

       *       *       *       *       *

N’um d’esses periodos d’inverno, que passára junto dos seus, ouviu ler na
gazeta que o padre Carvalhosa emprestava ao mestre-eschola de Guardiam,
que estava em Lisboa e talvez viesse ao Porto e a Braga um rabequista
celebre a quem chamavam pomposamente o «primeiro violinista do mundo».

—Olhem que não tocará melhor que o nosso José Domingues—affirmou
enthusiasta e patrioticamente o professor.

—Ora, senhor José Fortunato, nem diga isso. Eu, um pobre estupido, posso
lá!...—respondeu com modo agradecido.

—Deixa-te de tolices, homem. Olha que eu com os sessenta e cinco que já
conto, nunca ouvi como Frei Gonsalo. E já fui uma vez a Lisboa, com o
fidalgo de Refuinho, quando elle era vivo.

—Lá isso, maior que meu tio, não acredito que haja. Devo-lhe a alma que
tenho—confessou commovido.

José Fortunato ainda acrescentou:

—Olha que lá as meninas (as de Refuinho) estiveram no Porto com o tio
general. Presencearam por lá grandes coisas e disseram-me que antes
queriam ouvir o José Domingues.

—Isso são umas santinhas. Eu sou um pobre cego, não sei nada, senhor José
Fortunato.

—Não sabes nada? Sabes tudo, tens d’isto—rematou o mestre-eschola,
batendo uma punhada sobre o coração.

O mais velho dos sobrinhos do cego, comprehendendo tudo pelo instincto,
atirou a carapuça ao telhado, gritando:

—Viva o tio Zé Domingues e a sua rabeca!

—Viva! viva!—acompanharam os outros.

Mas o rabequista, ficou a scismar no que seria, essa maravilha tão
apregoada pela gazeta. Que poder, que attracção teria no seu arco, esse
homem que era superior a todos os que havia no mundo! Na sua mente
ingenua, apresentou-se logo uma figura aureolada de sol, dominando a
multidão dos admiradores que o applaudiam. Um publico de fidalgos e
mulheres ricas é bem differente do seu, que era rude e casual. Haveria
fragor de enthusiasmo, comprehensão vasta n’esse theatro em que as luzes
faziam sobresahir a opulencia. A apotheose alargava-se até aos confins
da terra e o artista victoriado levantava-se até ás nuvens... A alma
calorosa do cego de Guardiam, sentia-se enebriada com esse imaginado
triumpho, a commoção manifestava-se nas lagrimas que lhe apontavam. E
batendo uma palmada no joelho disse com resolução:

—Pois ainda não hei de morrer sem ouvir uma coisa d’estas!

N’esse momento chegou o Miguel Tinta a quem perguntou:

—Queres tu ir comigo a Braga ouvir o tal home?! Talvez se lhe possa tirar
alguma coisa.

       *       *       *       *       *

Sempre fora este o seu processo d’aprender e progredir. Musica que
ouvisse logo lhe ficava. Tinha no Porto e em Braga, quem lhe arranjasse
versos apropriados. Ás vezes mesmo, lhe ministravam musica e lettra,
o que valia oiro sobre azul. Entrava em todas as egrejas onde ouvisse
tocar o orgão e era assiduo perto das bandas militares, quando soubesse
que tocavam em publico. Se qualquer musica lhe calhava, elle e o Miguel
tractavam logo de lhe applicar versos dos que sabiam e assim chegaram a
popularisar canções, como aconteceu áquella que principiava:

    Veja lá menina
    Se levanta a saia
    .................

a qual toda a provincia decorou. Algumas vezes aconteceu
aristocratisarem-se as suas modas até chegarem ás salas de provincia, e
então José Domingues ouvindo-as celebradas em piano dizia com orgulho:

—Vê lá Miguel. Aquella trouxemol-a nós.

A noticia que ouvira ler na gazeta do padre Carvalhosa, sobresaltou-lhe
o coração, cheio de enthusiasmo pela musica. Era rigoroso dezembro; o
frio enregelava as carnes; as neves cobriam os montes; o ceu, estucado de
nuvens côr de lama, tinha uma immobilidade sombria. Os caminhos estavam
intransitaveis, muita gente lhe aconselhou a não fazer a jornada; mas
elle, logo que soube que o afamado rabequista chegára a Braga, resolveu
o Miguel e partiram. Era como uma peregrinação religiosa. De tempos
a tempos, José Domingues soltava seus ais admirativos e dizia para o
companheiro:

—Mas como será este home, que é o primeiro rabequista do mundo?

Miguel observou scepticamente:

—Quem sabe lá! Isto de gazetas, consentem o que lhe põem.

—Não, não. Deve ser coisa de respeito!—considerou absorvido na sua ideia.

Logo á entrada da cidade, perto da egreja de S. Vicente, procuraram um
estudante de Guardiam, com o fim de lhe pedirem esclarecimentos. Souberam
que tudo quanto se dizia era verdade, que o senhor arcebispo, tendo
escrupulos de ir ao theatro, convidára o famoso artista para tocar n’essa
noite no Paço. O estrangeiro accedera, para conquistar as sympathias do
prelado e do publico.

—Ó senhor Joãosinho—supplicou José Domingues—eu queria ouvil-o. Não me
poderá arranjar um buraco no palacio do senhor arcebispo? Eu arrumo-me em
qualquer parte. Um buraco que seja, menino.

       *       *       *       *       *

Não foi difficil obter esta infima posição. O estudante era amigo d’um
famulo de sua excellencia, o qual pôde esconder o cego n’um vão de
escada, proximo do logar onde se realisaria o concerto. José Domingues
levou comsigo a rabeca, pois desejava apertal-a sobre o peito para melhor
comprehender a musica. Tiveram de o introduzir de dia, n’um momento
conveniente para não ser presentido. Durante umas seis horas, esperou que
chegasse o instante. Encolhido, quieto, respirando brandamente para não
dar rumor de si, alli se conservou. Perto da noite, accometteu-o uma sede
furiosa, que supportou heroicamente, sem o menor arrependimento.

O famulo que alli o introduzira, veio n’uma furtadela perguntar-lhe se
estava bem e o cego respondeu agradecido:

—Ricamente, meu senhor. Só tenho uma sêde!...

Satisfeita esta necessidade ficou n’um paraizo. Momentos depois entrava
tudo quanto havia de selecto na sociedade bracarense. A alta clerezia
appresentou as suas familias respeitaveis. O general, o governador
civil, o commandante do 8, o juiz de direito, administrador do concelho,
delegado, professores do lyceu, trouxeram suas esposas e filhas. Ondulava
um murmurio de vozes e de sedas, e José Domingues ouvia pronunciar nomes
consagrados, que toda a vida respeitára humildemente. Isto augmentou
no seu espirito o valor d’aquella festa, tornando-a imponente. Era
um deslumbramento e um ceu aberto o que principiava a despontar na
sua imaginação. Agarrado a sua rabeca, apertando-a contra o seio,
estremecendo-a como se fora um ente animado, estava commovido. Ia-se
verificar a apotheose d’um seu irmão, e elle identificava-se com a gloria
do artista que não conhecia. Entrou o prelado. O cego deu conta d’esse
facto pelo recuar de cadeiras e pelos comprimentos. Pouco depois chega o
rabequista e a curiosidade da parte dos assistentes produziu um sussurro
maior, que immediatamente se acalmou, seguindo-se um silencio de mar que
se esbate sobre a areia.

       *       *       *       *       *

Logo que os primeiros sons da rabeca encheram a sala, a alma de José
Domingues sentiu-se arrebatada para um horisonte largo. Dos seus olhos
sem vista, irradiaram fulgurações d’uma belleza sideral. Erguendo-se no
amplo espaço com a pujança d’um crente, a sua imaginação livre, vagueou
na larguesa sem fim, n’um redemoinho d’harmonias, que o impelliam como
ligeiro farrapo de nuvem. Toda a miseria terrena desaparecera para elle.
Não estava n’um buraco, como cão despresivel, socio e companheiro de
ratos: aos seus olhos apparecia um amplo salão, ornamentado de riquezas
e de mulheres formosas. Esquecera-lhe o rouco uivar do vento sobre a
telha vãa da sua pobre casa, os caminhos enlameados e cheios de poças, os
encontros por vezes desagradaveis da sua vida de tocador.

Quando a rabeca tinha momentos alegres, extravagantes, buliçosos, José
Domingues ia indo n’aquella toada e vinham-lhe á mente coisas loucas
e pueris: dançava em volta d’uma fogueira, abraçava as raparigas
que lhe fugiam aos gritos, ouvia repiques de sinos, e ao longe, a
multidão festival passava para a romaria. Se era a dolencia das musicas
hespanholas, entranhadas de sentimento arabe, expraiando-se brandamente,
como as mansas aguas do Mediterraneo, os seus nervos sentiam uma paz
infinita, quasi um torpor. A visão paradisiaca d’uma primavera só formada
de cantos de passaros e de perfumes d’hervas e de flores, como elle
a contemplava n’esses momentos, era mais intensamente bella do que a
paisagem das amendoeiras e dos campos cheios de trevo e de malmequeres
brancos.

Mas o seu pendor, a tendencia da sua alma, era para todos os trechos
lacrimosos, d’uma plangencia terna que se abrissem largamente em
espaços constellados. Não valiam tanto os rouxinoes e os melros no
meio silencioso das mattas, e o rio murmuroso ladeado de choupos.
Corriam-lhe em fio as lagrimas e apesar dos applausos dos ouvintes, José
Domingues sentia que elles não comprehendiam bem aquella musica. Se
elle podesse, entraria de joelhos na sala, para beijar os pés do grande
artista mostrando-lhe a sua admiração, n’um chôro copioso e enthusiasta!
Rastejar pela terra como humilde verme, era o modo que a sua rudeza
achava bastante expressivo, para glorificar aquelle seu irmão. Porque não
procediam assim esses homens que o ouviam? Vinham-lhe suffucações de
colera contra os que se não levantavam em extasis d’um enthusiasmo viril
e ardente como o seu. É que não tinham alma para sentir. Elle humilde,
obscuro, rude, apertado entre as paredes d’aquelle buraco, era-lhes
superior, comprehendia o que elles não podiam comprehender, tinha em
si um thesouro, que nem todos os thesouros da terra podiam egualar.
Vibravam-lhe no cerebro os echos d’aquella musica, a sua commoção era
grande, os soluços que não podia evitar apanhava-os nas mãos para não
serem percebidos, com medo de perturbar aquella musica celestial!

       *       *       *       *       *

Todos estes sentimentos augmentaram de intensidade, e no coração
repercutiram-lhe os fremitos magestosos d’uma epopeia, quando os
primeiros accordes da «Ave Maria» de Gounod se fizeram ouvir. Na sua
imperfeita comprehensão, não se destrinçavam claramente as bellezas
accumuladas no famoso trecho. Vinha-lhe tudo em globo, tumultuariamente,
como se a lendaria figura da morte o arrebatasse n’um instante, levando-o
por ermos desconhecidos, onde a sensibilidade fosse outra. N’aquella
ondulação luminosa d’harmonias, sentia-se crescer, vencia espaços
incommensuraveis, passava gloriosamente sobre altos montes, ia em
rapido vôo sobre o mar tormentoso, para no fim parar em regiões serenas
formadas de luz e melodia. Arrepanhava as carnes procurando a realidade
na manifestação da dôr; mordia os punhos a ponto de fazer sangue; queria
gritar e não podia; agarrava-se energicamente á sua querida rabeca, n’uma
effusão de ternura e o seu coração não se apasiguava nunca! O canto
angelico e suave crescia em profundeza, augmentava em area—era como uma
palpitação infinita. O cerebro de José Domingues enchia-se de carinho,
o enthusiasmo suffocava-o, anniquilava-lhe as forças. E lá era levado
de novo, subindo até ficar sobranceiro ás nuvens, conhecendo instantes
de paz e de tortura, chorando, sorrindo, estorcendo-se no chão como uma
cobra ferida.

       *       *       *       *       *

Os bravos e as palmas d’esta vez foram mais estrondosos. Prolongaram-se
porque era o agradecimento final. Porem, todo esse ruido não pôde dominar
um doloroso grito, forte como se sahisse do peito d’Othelo n’um arranque
de ciume, meigo como se fora o ultimo queixume da rola Ophelia.

Ficaram rapidamente silenciosos e perplexos os espectadores. Um soluçar
ancioso continuou e para o logar d’onde elle vinha se dirigiram as
pessoas interessadas em tamanha dôr. N’aquelle buraco escuro, de bruços
sobre a rabeca que esmigalhára, estava o cego de Guardiam, que não
poderam mais chamar á vida!

    Janeiro de 86.

[Illustration]



[Illustration]



A VELHICE D’UM REI


Sentado na larga poltrona de seda azul, o monarcha conversava em voz
pausada e lenta. Uma graciosa imagem da Virgem, talhada em marfim, por
desconhecido artista da Renascença, dava-lhe ensejo de explicar a velhos
amigos, como conjecturava, que teriam trabalhado aquelles talentos
singulares, creadores de tantas maravilhas. Tenuissima nuvem de paz,
de conforto, de luxo estudado, pairava sobre este ambiente, tornando-o
em região intermedia á riqueza mundana e á severidade do gabinete d’um
sabio obscuro. No rosto sereno do rei, havia o orgulho do nascimento
e a tristeza propria dos annos. A sua longa barba branca, objecto de
veneração em todo o paiz, era até commentada entre a gente rude dos
campos. Quasi a tinham como symbolo de orgulho nacional, pois com
jactancia affirmavam não haver outro rei com barba tão longa, tão linda e
tão branca.

A vaidade das coisas realengas—orgulho natural nos paços doirados,
sentimento peculiar dos que soltam os primeiros vagidos sentados n’um
throno—diziam que a não tinha. A abnegação e o desprendimento de
todas essas pompas eram-lhe attribuidos com meiga sympathia entre as
classes populares, que são as que melhor comprehendem as inclinações
democraticas. Elle abdicára em seu herdeiro o poder de que disposera
durante muitos annos e havia praticado esse bello acto sem ostentação e
logo que o principe chegára á maioridade. Adquiriu a liberdade de homem,
entregando-se ás suas collecções artisticas, aos prazeres da caça e á
conversação intelligente. Perdia-se dias inteiros na espessura das mattas
reaes, sempre poeta, contemplando a luz e vivendo intimamente na absoluta
natureza silenciosa. Para ser um bom rei, querido e estimado, até muitos
o diziam generoso e esmoler.

Porém, nem todas as pessoas tinham esta opinião benevolente. Alguns
revelavam que fazia sentir as suas dadivas, fallando d’ellas. Censurava
os gastos de muitos que os não podiam fazer, tinha a opinião de que
a sua bolsa não era inexhaurivel. Egoista e reparador—chamavam-lhe.
Desfazia com palavras, alguma generosidade que praticava. Apontavam como
impropria, a ponta d’avareza que esboracava o manto real. Um soberano
amesquinha-se fallando de coisas tão vulgares. Era o que faltava que
procedesse d’outra fórma. Não fazia o povo muito mais pelo rei, do que
o rei pelo povo? Qual era o azeite e o vinho que produsiam as extensas
coutadas que a nação lhe dispensava para os seus divertimentos?!...

       *       *       *       *       *

Depois a velhice tornara-o rabujento. Os camaristas para lhe entreterem
as insomnias, tinham de colher ou inventar episodios escandalosos. Era
fatigante a sua exigencia nos detalhes e torturava-os com repetições. A
surdez obrigava-os a servirem-se da corneta acustica para lhe fallarem.
Havia perguntas e respostas disparatadas, situações grotescas que depois
se desfaziam em motejos nas ante-camaras. A consciencia d’estes factos
entristecera-o e só a muito custo lhe tiravam um sorriso, um ar de
approvação. A sensibilidade embotára-se-lhe com a velhice e só historias
picantes, difficeis de inventar, conseguiam distrahil-o.

A rainha,(tratavam-na assim por deferencia, só dentro do palacio) esposa
morganatica do rei, senhora ainda forte, saudavel, com vida para gastar,
abandonára-o n’este periodo de doença, sob pretexto de que elle estava
mais satisfeito entre os seus amigos. A falta d’um contacto feminino,
que lhe enternecesse a organisação, fizera variar aquella sensibilidade
que fôra delicada e exigente. Só episodios burlescos, onde apparecessem
mulheres adulteras, maridos comicamente trahidos, creadas servindo
intrigas amorosas, homens escapando-se de gatas por telhados... é que lhe
enchiam o vasio das longas insomnias. Alguns dos seus camaristas eram
rapazes de sangue ardente, creados n’uma vida ociosa e delicada. Passavam
um aborrecimento n’aquelle palacio de grossas muralhas. O que lhes valia
era a conversação das companheiras da rainha, senhoras formosas, muitas
gentis, todas de uma educação esmerada. Desanuviavam-se reciprocamente
d’aquella vida pautada e monotona, fazendo má lingua, fallando da
sociedade com a liberdade de parentes e camaradas. Um ou outro de
apetites mais grosseiros, preferia abraçar nos corredores sombrios as
simples creadas, mulheres de carnes saudaveis, sangue plebeu e revolto,
que enchem a existencia d’alegrias. As provas de tão insignificantes
delictos estavam nos beijos a cantar na escuridade, nos vultos a fugir
cautelosos, nas palavras de carinho apanhadas avulsamente n’um perpassar
rapido.

       *       *       *       *       *

Um dia, o medico de serviço approximou-se do rei para lhe tomar o pulso.
A um contrahir facial de suspeita do facultativo acrescentou o monarcha:

—Não passei muito bem a noite, não.

Tivera soffucações, maus sonhos, um dormir inquieto. O doutor
applicou-lhe demoradamente o ouvido á região cardiaca, concentrou-se n’um
raciocinio e quietou o doente com o sorriso profissional. Nervoso, talvez
a maldita dyspepsia—esclareceu.

Porém logo se dirigiu aos aposentos da rainha a informal-a da gravidade
e adiantado da molestia. Poucos minutos levou, para o mais humilde
serventuario do palacio saber que o soberano padecia d’uma lesão. Era
coisa já antiga e sómente os ultimos gelos a tinham aggravado. Congestões
abdominaes e no figado haviam obrigado aquelle velho coração a empregar,
nos ultimos tempos, um grande esforço para impellir o sangue até aos
confins do corpo. Um coração delicado de rei, batendo sempre moderamente
debaixo de lendarios arminhos, logo que sentiu resistencia ao seu poder,
entristeceu; principiou a condescender, a sobrecarregar-se; dilatou-se;
adelgaçou... e a terrivel aneurisma estava proxima a romper-se.

—É como se o monarcha, sentisse contra o seu poder providencial a revolta
dos seus vassalos—comparou o medico, com delicadeza de phrase.

Tal acontecimento impressionou diversamente. Não havia unanimidade de
sentir, nem de crença. Todos viam que o rei continuava a conversar na sua
voz pausada e fidalga. O doutor era homem sabio e respeitado, mas podia
enganar-se.

—A sciencia humana—disse um velho de sorriso sceptico—é fallivel. «A mais
aguda, segundo o poeta, é ignorancia cega ante a divina». O aspecto de
sua magestade não é para sobresaltos.

—E a edade?—argumentou outro.

—Sim, a edade é condição desfavoravel—rematou o primeiro.

Alguem notára, que nos ultimos tempos, o rei, outr’ora tão expansivo,
se callava frequentemente, levando a mão ao peito quando desejava
respirar mais fundo. Porém acreditavam ser o cansaço de estar sentado,
o aborrecimento de viver no quarto e a tristeza da maldita surdez, que
parecia não ter cura. Que se levantasse algumas vezes, que fosse até á
larga varanda admirar a primavera que principiava a romper nos campos e
veriam, como logo adquiriria vigor, como os olhos se lhe alegrariam.

       *       *       *       *       *

Os do pessoal menor do palacio, que tanto como outros viviam da
munificencia regia, preoccupavam-se, para o caso da morte, com o theor do
testamento. Alguns esperavam d’alli uma especie de liquidação vantajosa
da propria fortuna; outros, mais reservados e scepticos, temiam não ser
contemplados e perderem aquelle bom agasalho e santa ociosidade.

—Não nos fiemos em sapatos de defunto. Poderemos obter d’esta fórma o
equivalente do que gosamos?—resumiam.

—Ah! não póde deixar de ser! Até seria uma vergonha se o não fizesse!...

Esse rico papel escripto pelo proprio punho do rei, diziam estar dentro
d’um cofre de malachite, guardado n’um armario de ferro. Ninguem o tinha
lido, a não ser talvez o primogenito e a rainha; mas para todos era um
motivo de palavras humildes e risos captivantes, em face do doente.
Este homem, fabulosamente rico, podia deixar a independencia social aos
que eram pobres e accrescentamento de fortuna aos opulentos. E tinha de
o fazer, se queria engrandecida e celebrada a sua memoria. Isto de reis
são orgulhosos, mesmo quando o não parecem; teem a vaidade de que os
lamentem depois da morte, para se conservar a velha ideia biblica de que
o monarcha é o pae, é o senhor, é o ungido de Deus!

—N’esse caso que o pague—concluiam.

       *       *       *       *       *

Poucos dias depois do ultimo alvoroço ácerca da saude do rei, houve um
acontecimento que impressionou. O doente não tivera, durante a noite, uma
hora de somno tranquillo. Sonhara uma vida agitada de batalhas, sentira o
sangue tumultuar-lhe nas arterias.

—Vejam lá, n’estes tempos modernos, eu a imaginar torneios e golpes de
lança!—criticou elle mesmo.

O doutor foi de opinião, que lhe devia ter feito mal a visita d’um
antiquario estrangeiro. A surdez obrigava o monarcha a grandes esforços
na conversa. Durante perto d’uma hora os dois tinham discreteado ácerca
de tempos passados, da belleza e encanto da vida d’outr’ora, artistica e
batalhadora, despreoccupada e cheia d’aventuras—bons tempos em que houve
homens que foram simultaneamente guerreiros, poetas e artistas, como
Cellini.

—Evite-me vossa magestade essas commoções. Ponha-me esses sabios na
rua—recommendou o medico.

A mulher do rei foi claramente informada da extrema gravidade da
molestia de seu marido. Senhora de ascendentes fidalgos, muito temente
a Deus, conseguira enfileirar na familia do rei, por um abuso da força
poderosa da sua belleza e da sua carne, sobre a organisação já caduca do
soberano. Tambem se fallava de influencias clericaes, que miravam a obter
para certo instituto, parte da fortuna particular do monarcha. Todos
entendiam que ella se prestára a aquecer os membros frios d’um velho, por
simples vaidade de ser chamada rainha.

Amava a riqueza, a consideração publica, o fausto da corte e a supremacia
entre as mulheres. A importancia da doença do marido, cuja morte
para ella significava a perda de todas estas garantias e vantagens,
assustou-a. O seu rosto de vivo que era, tornou-se tão composto e triste,
que abrandou, no começo, a malevolencia de muitos que na corte lhe
eram hostis. Ella que tanto amava os theatros, os bailes, as corridas,
os passeios de carruagem ao ar livre, em face das bellas paisagens
illuminadas pelo sol, deixou de sahir logo que o mal tomou o caracter
assignaladamente grave, e installou-se ao lado da poltrona onde o marido
dormitava, ouvia os seus amigos, e arfava os cansaços da molestia.

Ella, ás vezes sob pretextos futeis pedia que a deixassem só com o rei.
Condescendiam os camaristas, formando conjecturas, que nem sempre eram
benevolas. Diziam que depois d’essas intimidades lhe notavam no rosto
uma agitação febril, mal dissimulada. Accrescentavam que no semblante
do rei, apesar da compostura calculada, apesar da respeitavel barba
branca que lhe diminuia a expressão, apesar de reclinado na poltrona
com as palpebras docemente cahidas... descobriam restos de fadiga e o
aspecto d’um homem contrariado. Parece que se percebera n’um dia barulho
d’altercação, parece que se ouvira depois um soluçar de mulher. A
creadagem affirmava ter sentido beijos de esposos, palavras de colera,
expressões de reconhecimento. Tudo isto não podia deixar de ser obra de
testamento—entendiam. Os velhos amigos do soberano, sempre lhe tinham
tractado respeitosamente a mulher, indicando, ainda assim, na friesa e
polidez dos cumprimentos, que a não estimavam. Na ausencia chamavam-lhe
intrusa, ambiciosa, desnaturada, pois abreviava os dias do doente com
mortificações, e até a sua notoria religiosidade, tomavam como impostura.

       *       *       *       *       *

A molestia progredia a olhos vistos, e já a ninguem era licito
desconhecer o proximo termo d’aquella vida d’opulencia. O proprio
doente disso estava convencido e quando lhe diziam palavras d’esperança
sorria com amargura. As ancias, as suffocações, agora mais frequentes
e incommodas eram um desmentido claro. A oppressão no peito dava-lhe
um sentimento de homem replecto. Os beiços engrossavam todos os dias,
as olheiras eram fundas como a sombra da noite, as palpebras pesadas e
adormecia facilmente como um bebedo. Este homem nascido em berço d’oiro,
esta imaginação educada e aberta sempre n’uma atmosphera de delicadezas,
repugnando-lhe as miserias asquerosas d’uma doença prolongada, começou a
ter pelo corpo de que fôra tão vaidoso, um desprezo invencivel. As suas
pernas estavam grossas como rudes troncos de carvalho, o ventre volumoso
chocalhava como um barril mal cheio, e, segundo lhe segredava a memoria,
devia conter um liquido viscoso, semelhante a baba d’animaes. Preferia
ter uma doença de cruciantes dôres. Devia haver molestias para reis,
molestias limpas, que fossem o logico terminar da vida das grandezas.
A cabeça recostada no espaldar alto da cadeira, o roupão de seda a
arfar-lhe sobre o peito, fechava voluntariamente os olhos para fugir á
vil realidade e entrar n’um mundo ideal de lembranças dignas. E parecia
conseguil-o, pois havia momentos em que o seu rosto era d’uma paz e duma
tranquillidade de stoico.

       *       *       *       *       *

Viveria em imaginação no seu passado?

Fôra criança e logo na edade em que o cerebro começa a perceber viu-se
rodeado da consideração, que pode gerar o orgulho—velhos fidalgos iam-lhe
submissamente confiar as suas barbas, para que o principe as tomasse
como brinquedo. Tinha sido entregue depois a professores, que sobre
elle exerciam uma auctoridade parecida antes com a obediencia. Quando
cavalleiro, gentil e vaidoso, o fanatismo de todas as mulheres, gosára
amores defezos, que tanto o divertiam pela posição do homem enganado.
Subiu ao throno, e viu curvadas diante de si, as illustrações do sangue
e da sciencia, homens de renome que só d’elle, do seu tradicional poder,
deviam receber a consagração. Aborrecido do mando, com o egoismo proprio
da velhice, abdicou, creara novos prazeres recolhidos, encontrára ainda
uma formosura que o amára, sentira-se remoçado e contente durante certo
periodo...

Porém n’outros momentos vinham-lhe subitas crispações faciaes
significativas de desgosto. É que sentia o desabar de todo esse mundo,
como desabam as montanhas n’um rancoroso terremoto. Tinha, ás vezes, a
sensação de que um largo alçapão se abria na terra e o engulia para uma
escuridade absoluta e eterna! Era homem como os outros. Diante da miseria
da carne estava nivelado com a plebe mais infima. A corôa, o sceptro, a
auctoridade real, os gosos da intelligencia, nada faziam para que tivesse
um fim grandioso.

Felizes só os reis antigos, mortos heroicamente nas batalhas medievaes,
atravessando inimigos com lanças relusentes e acabando entre maldições e
hymnos de gloria! A sua imaginação dolorida apresentava-lh’o ainda mais
repellente do que estava, o rosto espapaçado—palpebras entumescidas e
cyanoticas, beiços grossos e olhar sem brilho. Vira-se uma vez ao espelho
e ficara horrorisado de si mesmo. Despresava-se com nojo.

       *       *       *       *       *

Sobre todas as ironias da carne, vinha ainda a preversidade dos vivos
cubiçando-lhe os haveres. A mulher queria um testamento que lhe fosse
absolutamente favoravel. Era o legitimo preço da sua belleza e da sua
fresca mocidade, que elle estragára com beijos senís. Ao calor emprestado
pelo sangue da donzella, devia o rei o prolongamento d’uma vida
arruinada. Os filhos questionavam os seus direitos, com razões de casta,
ligando-as a interesses d’Estado. Fallavam das tradições de familia; da
abundante riqueza que era preciso ostentar, para se imporem pelo fausto,
como já se impunham pelo nascimento. Porém elle tinha amigos fieis,
companheiros dos enthusiasmos juvenis; creados cujos aturados serviços
mereciam uma recompensa, uma lembrança no supremo instante da despedida.
A exigente consorte queria tudo para si. Cá regularia todos esses deveres
como entendesse. Só assim poderia sustentar o respeito e consideração
publica, continuando na sua mão as dependencias que até alli tinham sido
do rei. Exhorava-o com beijos, com palavras acrimoniosas, com ameaças
sobre a sua memoria.

Como meio de sahir de taes amarguras, o monarcha lembrou-se do suicidio.
A razão aconselhava-lhe a findar o mais depressa uma existencia
assim despresivel. Seria um acto cobarde?!... Entre o soffrimento e
o gozo passa-se toda a vida humana. Quem não póde luctar desapparece
d’arena—pensou resolutamente. Ia furtar-se a muito desgosto, a sentir o
difinitivo escorrer do seu corpo, que já era massa inerte, alastrando-se
pelo chão. Ia poupar-se a afflicções, não queria supportar o peso
d’aquellas pernas inchadas, não queria ouvir por mais tempo o chocalhar
dos liquidos no ventre, o que lhe dava a ideia de que elle era um
despresivel odre, caminhando no dorso d’um macho.

       *       *       *       *       *

Que bella noite, serena e calma! Uma lampada de Sèvres, espalhava no
amplo quarto uma bruxuleante claridade. A rainha recolhera-se aos seus
aposentos. Alguns camaristas, medico e serventuarios, vigiavam os restos
d’aquella vida. Quando a apparencia d’um somno tranquillo se espalhou
no rosto do doente, todos se retiraram para as salas proximas. O rei
sentiu-se bem, só. Calculou que todos estariam despreoccupados da sua
pessoa. Convencido d’isto, teve um sorriso de triumpho! Logo tentou
erguer-se, fincando as mãos nos braços da cadeira. Mal se pôde mover!
Estava entorpecido, o corpo pesado, a sensibilidade ausente. Terrivel e
severo desgosto foi o seu, quando se viu nas condições de semelhança com
um sapo hydropico! Reagiu corajosamente contra a inercia dos musculos
e, n’este esforço de dignidade suprema, conseguiu levantar-se. Mas logo
se sentou, para não cahir. A colera do seu espirito tomou proporções
formidaveis, como o vento que arrasa florestas. Concentrou no combalido
coração o antigo vigor da juventude, toda a coragem da mocidade. Queria
supplantar este phantasma da impotencia, que se levantava deante dos seus
olhos. Passando da cadeira a apoiar-se no rebordo d’uma meza, depois
na hombreira da janella, apanhou a bengala de castão d’oiro e pedras
preciosas, que lhe mandára de presente um papa, e conseguiu firmar-se em
pé. Deu alguns passos cambaleantes; mas parecendo-lhe ouvir um rumor,
parou de subito. Não era ninguem. A sombra do seu corpo projectada pela
tenue luz estendia-se no pavimento, tremula de susto.

Oh! fraqueza, oh! implacavel miseria humana! Este senhor poderoso, esse
phantasma movendo-se tropego e cauto no silencio da noite, é o proprio
Luiz XI aterrado diante das visões do seu cerebro! Foi-se abeirando,
timido e com passo incerto, d’uma pequena estante entre duas janellas.
Lançou mão d’um objecto que metteu no bolso do _robe-de-chambre_,
furtivamente, como homem que andasse a roubar. N’esse momento a estante
oscilou, o barulho attrahiu um creado.

—Não preciso... não chamei...

Tremia de medo, como creança encontrada n’uma travessura. Veio o
medico e o camarista. Approximaram-se, ampararam-no até á cadeira, e
reprehenderam-no amoravelmente.

Desculpou-se com palavras de humildade e sujeição.

Tentára esta experiencia para vêr se podia andar, sem o auxilio de
ninguem. Querendo inferir, por si mesmo, da força e vigor de que
dispunha, era necessario mexer-se no quarto só, sem que o vigiassem.
Ainda estava vigoroso e forte—affirmou. Sentia-se com vida para muito
tempo.

Fortificaram-no n’esta ideia; porém retorquiam que fôra temeridade o que
acabava de fazer. Podia ter cahido, dar com a fronte na esquina de uma
cadeira e isto ser-lhe fatal, no estado de fraqueza em que ainda estava.
Assim se interromperia uma boa convalescença, assim adquiriria novos
padecimentos que podiam ser mais graves, muito mais graves do que os
actuaes.

Concordava em tudo, sorrindo. Porém, a tentativa, visto não ter dado
mal nenhum, estava contente por têl-a feito. Atravessára o quarto sem
auxilio, e era isso que até alli suppunha impossivel. Talvez no dia
seguinte fosse ao gabinete contiguo, depois á varanda e finalmente ao
jardim.

—Poderei experimentar doutor?

—Com precauções, meu senhor, com precauções.

Discorreu ainda, com serenidade, alguns minutos. Estava evidentemente
melhor, mais desafogado. Aquella experiencia tornára-o communicativo e
alegre. Conseguira ter vontade de dormir. Parecia-lhe que ia gozar um
somno regalado e sereno. Os olhos estavam com tendencia para se fecharem.
Que o deixassem só é que desejava.

—Mas vossa magestade...

—Não me levanto mais—atalhou. Palavra de rei.

       *       *       *       *       *

Sahiram. Tudo ficou em paz e tranquillidade. O rei conservou-se largo
periodo immovel, os olhos fitos n’uma armadura que estava de sentinella
a uma porta. Concentrou toda a força dos sentidos, para reconhecer que
o não vigiavam. A manhã surgia do infinito dos tempos. Os passaros
começaram a chilrear nas acacias do parque. Ouviu-se o cantar lento e
monotono do velho jardineiro, que por entre as flores regougava melopeias
do seu paiz. Levantava-se, subindo e alargando-se como um nevoeiro que
emerge d’um rio, o sussurro que fórma o dia—mistura de muitos sons. A
creação universal ia engrandecer-se com um novo impulso do sol, n’este
formoso dia de primavera.

O rei tinha uma expressão firme de tenebrosa coragem. Tacteava com
perspicacia, para encontrar no braço esquerdo o signal d’uma sangria, que
em moço lhe haviam feito, pela queda d’um cavallo. Na mão brilhava-lhe
uma pequena lamina de Toledo, obra de esmerado artista, com multiplicadas
linhas d’oiro encrustadas em ferro. Abandonava riqueza e fausto,
sentia-se podridão e lama! Com a indomita coragem dos altivos e dos
desventurados abriu a cicatriz quasi apagada. E emquanto esse sangue
de rei escorria, gottejando no chão, o moribundo encostou a cabeça no
espaldar alto da poltrona e com um sorriso de amargura, disse suspirando:

—Acabou-se.

Penderam-lhe os braços, a cabeça rolou para um lado, todo o seu corpo foi
entregue ao supremo desleixo da morte!

O segredo d’este acontecimento conservou-se nos intimos do palacio. O
medico, ao contemplar o cadaver inerme, com a ideia nos soffrimentos que
ainda estavam reservados ao monarcha se continuasse a padecer, concluiu:

—Foi melhor assim!

    Lisboa, janeiro 85.

[Illustration]



[Illustration]



A MULHER DE LUCAS


Diga-nos, então, como foi essa historia do seu casamento; como é que a
sua mulher fugiu de casa.

—Ora... não fallemos de coisas tristes. Eu já lh’o contei e o senhor bem
o sabe. Compram-me uma cautella?

—Mas desejo—insisti—que este meu amigo oiça tudo da sua propria bocca...

Sorriu, olhou interrogativo para nós ambos e perguntou:

—Porque? Este senhor conhece-a?—E mudando para um tom energico e quasi
enfurecido:—Sabe onde ella mora?

Fizemos-lhe signal negativo, e Lucas retomando a sua expressão habitual
de paciencia e doçura disse:

—São coisas de que me não quero lembrar. Lá vae, acabou, leve o diabo
paixões e mais quem com ellas engorda. Aquella mulher andou muito
mal comigo... Eu fazia-lhe tudo quanto ella queria, dava-lhe muita
libardade... Foi talvez por isso que recebi o pago que tive...

—Alguem que a desencaminhou... alguma companheira...—insinuou o meu amigo.

—Ná... ná... sempre teve aquella queda. Era muito chibante e espirituosa,
não era senhora para mim. Foi uma asneira... Passou—resumiu tristemente.

—Tambem não é tanto como diz. O Lucas estimava-a, e não se póde dizer um
velho—consolei-o.

—Ainda assim tenho mais vinte annos do que ella. Mas não fallo n’esse
particular. Não era senhora para mim, que sou um bruto. Uma raparigona
alta, bonita, bem feita, creada n’um collegio aqui de Lisboa, sabendo
francez e grammatica, toda perluxa e bem fallante... não era casamento
para o Lucas. A minha primeira, que Deus tem, é que estava na conta.

—Você tambem foi cahir em se casar duas vezes!—disse o meu amigo. Lá
n’uma, tenho ouvido dizer, quem quer cae.

—Nem sei como isso aconteceu, meu senhor—confessou melancolico. Uma
bebedeira que me passou na cabeça. Ha dias que melhor fora a gente
apparecer morto na cama. Luisa, a minha outra, era uma dona de casa.
Quando morreu fez-me falta para o negociosito, que eu tinha lá na terra.
O contracto dos gados trazia-me sempre por fora; chegava a ir á Galiza
comprar bois. Uma pessoa para me ficar no estabelecimento, era-me bem
necessaria. Depois o achar-me só, em casa, principiou a dar-me para
o figuedo, e sem uma companheira vivia triste como uma lesma. Até me
lembrei de me afogar. Teria sido melhor—rematou olhando para o chão, a
cofiar a barba reles.

       *       *       *       *       *

—Pelo que vejo gostava muito da sua primeira mulher...

—Assim... Era muito doente, mas boa creatura. Quando morreu fiz-lhe um
enterro de truz. Nunca lhe pude arrancar um filho, por mais dinheiro
que com ella gastei em medicinas e promessas. Aquillo era molestia das
entranhas. Morreu esmaleitada como a cera e magra como um guiço. Passei
uma ralação, sempre a por-lhe cataplasmas e a dar-lhe chás de noite,
por causa dos ataques. Dava gritos que acordavam a visinhança. Arrotos
que pareciam tiros de espingarda. O ultimo mez, não preguei olho e
já não podia... Veio então a Joanna, a irmã d’ella, que me ajudou a
levar aquillo até ao fim. Essa é que era boa mulher para mim: geitosa,
perfeitaça, trabalhadeira e rija como o ferro. Mas tinha tido uma falta,
com um rapaz que depois embarcou para o Brazil, e eu n’essas coisas
sempre fui muito dos diabos.

—Pois, attendendo ao futuro, tinha sido melhor ter-se casado com essa sua
cunhada—disse o meu amigo, presumindo já, que ao bom do Lucas, lhe haviam
succedido coisas da breca.

—Oh! que se a gente advinhasse, quantas vezes melhor!...—exclamou como
quem se sentia applaudido n’um pensamento secreto. E a coisa vinha a
fazer-se, mais tarde ou mais cedo; porque eu bebia os ares pela moça.
Mas logo a má sorte, me levou lá para a casa fronteira, o major com a
sobrinha...

—Talvez filha—insinuei.

—Não—respondeu vivamente offendido—era de gente casada. Até creio que
de familia muito nobre, cá de Lisboa. Pelo menos ella assim o dizia e
acreditem os senhores que tinha geitos d’isso. Morreu-lhe o pae, a mãe e
não lhe deixaram uma de X. Foi então que o major de quem eram parentes e
quando ainda era capitão metteu, á sua custa, a pequena n’um collegio.
Isso lá de educação e sabença, não acredito que haja outra que se lhe
ponha adeante. O major depois adoptou-a como filha e trazia-a sempre
comsigo.

—Nada ahi anda historia, ella era filha do major—insistiu o meu amigo.

—Não era—certificou com rosto circumspecto—não era, sério. Eu vi-lhe a
certidão d’edade, quando se tirou a licença. Era de gente casada e até
fidalga, diziam-no todos. Mas faltava-lhe dinheiro; porque o major para a
educar, teve de pedir ajuda aos outros parentes. Mas deu-lhe um saber de
truz. Eu nunca vi senhora mais distincta!—repetiu com ostentação.

—E depois o tal major, sabendo que o Lucas tinha o seu pataco,
impingiu-lha.

       *       *       *       *       *

Conservou-se alguns momentos silencioso e ar dubidativo. Em seguida
esclareceu:

—São sortes. Elles vieram morar em frente da minha casa. As filhas d’um
visconde que havia na terra, iam pra lá aprender o francez, o piano e
a grammatica. Porque aquillo é uma senhora que sabe tudo—repetiu com
vaidade. E bem fallante? nunca vi outra! Aquelles janotas iam conversal-a
da rua para a janella e ella sota e az a todos. Que regalo de mulher! O
delegado que lá estava ao tempo, disse deante de mim que em philosophias,
não encontrára senhora como aquella. Vi muitos homens embasbacados a
ouvil-a. E que homens! O desembargador João Xavier que era conhecido em
toda a parte. Caramba! que mulher tão esperta!—pronunciou batendo uma
palmada na coixa. Pena é que tenha a cabeça leve como uma folha secca.

—E vae, todo cheio de enthusiasmo, namorou-se da lisboeta...—presumi.

—Não senhor—esclareceu—nem tal me passava pela lembrança, se não fosse
ella. Eu bem via que não era homem para aquillo. Ella é que principiou
comigo de volta, a rir-se para mim, a espreitar pela frincha da janella,
a fazer-me tagatés... Não sabia o que tudo isto queria dizer, palavra
d’honra! Olhava para mim e via que não podia ser. Principiei a andar
assim a modo de esquisito, a não saber o que tinha. Um dia diz-me ella,
sem _tirte_ nem _guarte_, que eu era um viuvo ainda muito geitoso. Fazem
lá ideia! Logo que ouvi tal, d’aquella bocca linda como a maçan camoesa,
e com a graça e esprito que ella tinha em todas as coisas, senti cá por
dentro taes esfregações, que não fazem uma ideia! Caramba! até perdi o
comer! Andava assim a modo de tonto, pesava as coisas tão mal na loja,
que era uma risota. E então securas? Todo eu era um forno. De noite
principalmente passava o tempo a beber agua e em vez de dormir vinha-me
prantar á janella, com os olhos pregados na casa onde morava aquelle
demonio tentador, que foi a minha desgraça.

—Era uma paixão—conclui.

—E uma paixão furiosa—acrescentou o meu amigo.

—Sei lá que diabo era! Foi uma grande bebedeira. Parece que me tinham
dado alguma bruxaria a comer. D’ahi por diante nunca mais dei conta de
mim. Não era Lucas Baptista que fallava, era outro homem. Tinha-a sempre
diante dos olhos, quer de dia, quer de noite. As santas da egreja,
inclusiva Nossa Senhora—Deus me perdoe!—pareciam-me feias em comparação
d’ella. Um dia tirei-me dos meus cuidados e pilhando-a a geito na janella
disse-lhe: «Uma casa sem uma dona é triste como um campo de milho sem
sacho!»

       *       *       *       *       *

—E ella entendeu-o?

—Sei lá! Deu uma gargalhada e sahiu da janella. Fiquei assim a modo de
parvo. Se se tivesse rido de mim, se andasse a fazer chacota, é porque
me ia deitar na levada da azenha e nunca mais appareceria. Mas voltou
logo depois e com um sério muito sério, pôz o dedo no nariz a dizer-me
que lhe não fallasse assim da rua, que lhe podia arranjar alguma fama.
Eu então tive um baque no coração e disse de só para só: «Ella quer!»
Logo que encontrei modo perguntei-lhe em segredo: «Deseja a menina ser
a dona d’esta casa?» Mas quando estas palavras me sahiram da bocca, vi
abrirem-se-me debaixo dos pés as chammas do inferno.

—Porque! Ella disse que não?—perguntou o meu amigo.

—Qual! Pois isso é que foi. O demonio da serpente tentadora, com uns
olhos d’uma maganice que os senhores não fazem ideia, responde assim,
para só eu ouvir: «Isso é com meu tio!» E sae da janella, indo tocar no
piano uma modinha de que eu gostava tanto que até me fazia arrepios.
Caramba! Aquillo fez-me cá por dentro tal arrepanho, deu-me tanta alma
e coração, que desejava ter de meu o mundo inteiro, só para lh’o dar e
fazel-a princeza. Podia lá ser! Um velho, um estupido, que só sabia pesar
arroz e bacalhau e contractar em gados, casado com aquella senhora, tão
bem fallante e tão linda!... Eu só queria que os senhores conversassem
com ella! Desembaraçada e litterata como aquillo não ha. Vá lá o mais
poeta dar-lhe mote, sem vir com a cara a um lado! Os paes d’ella eram
gente grauda cá de Lisboa e o tal tio, honra lhe seja, deu-lhe educação
de espavento. Ainda hoje lhe quero bem só por isso! A tal viscondessa
de quem a D. Rozita do major, (era assim que lhe chamavam lá na terra)
ensinava as filhas, era uma creada ao pé d’ella. Uma senhora de mão
cheia, lá isso valha a verdade.

       *       *       *       *       *

—O amigo Lucas sabe a historia da nossa mãe Eva e a da maçan que Adão
comeu?—perguntei.

—Ouvi bastas vezes explicar isso lá ao abbade. Pois a gente não é de pau,
é de carne e osso, caramba! Logo n’esse dia o major entrou-me na loja a
comprar charutos. Era assim um home todo arroganças, sempre a retorcer os
bigodes e a dar com o chicote nas calças. Ainda bem conservado, talvez
uns dez annos mais velho do que eu. Chamei-o para traz d’umas saccas
d’assucar, que lhe queria dar duas palavras, em particular. A minha loja
era grande como um armazem! Fazia muito negocio e todos os mezes tinha
pagamentos de duzentos, quatrocentos e mesmo seiscentos mil réis aos
caixeiros do Porto, que iam ás cobranças. Ás vezes havia mais que um
pagamento. Bah! nem me quero lembrar! Tudo perdi, por causa d’aquella
má mulher, que foi a minha perdição. Nunca mais a tornei a ver, não sei
onde diabo se metteu; mas se um dia a encontro, ainda perco a cabeça e
chacino-a, como se faz aos porcos. Para mim hoje tanto se me dá da costa
d’Africa, de morrer no Limoeiro, ou d’um tiro, como se me dá da primeira
camisa que vesti—terminou com desespero.

—Mas o major. O que disse o famoso major?—perguntou interessado o meu
amigo.

—Ora... uma lenga, lenga. Principiou macambusio, a retorcer os bigodes...
Eu que nunca fui medroso, nem peco, pois muitas vezes venci a tiro os
guardas de alfandega na raia, por causa do contrabando, tremia como
varas verdes. Se elle me diz que não, espetava uma faca na minha propria
barriga. Porém, não disse. Mastigou em secco... mastigou... que era o
diabo; grande differença de edades; ella sempre tinha vivido com muita
decencia, mas não tinha nada de seu; que eu precisava de outra mulher...
E dava com o chicote pelas saccas do assucar, e encolhia os hombros e
passeiava d’um lado para o outro, sem atar nem desatar. Este aranzel
puchou por mim e disse: «Ó senhor major, eu bem sei que a não mereço; mas
se ella, assim mesmo como eu sou, me quizer e se eu tiver meios com que
lhe conservar todo o luxo que tem, o senhor não diz que não?»

—Ora, agarrou-lhe com as duas mãos—entendeu o meu companheiro.

—Não é tanto assim! Que não tinha nada com isso. Tinha-a creado; mas
não era sua filha. Demais já tinha passado a edade, podia fazer o que
quizesse. O que lhe custava era separar-se d’ella.

       *       *       *       *       *

—Ainda é vivo o major? perguntei.

—Não senhor, morreu d’um ataque, era um grande borrachão. Só o vinho do
Porto que elle me bebeu lá da loja?! Ficou-me a dever mais de cem mil
réis! Adiante. Por ultimo disse que sim; mas pediu-me quasi a chorar que
a tractasse bem, que elle sempre a educára muito mimosa.

—Estava tudo resolvido.

—É verdade, uma infelicidade. A gente não sabe onde as tem armadas.
Fomos casar ao Bom-Jesus de Braga e gastei mais de vinte moedas em tudo
isso. Foi ella que assim o quiz. O tio major pilhou uma borracheira que
chegou a estar de cama! Ao fim de tres dias voltamos para a terra n’um
carro fretado ao Franqueira. Pareciamos uns fidalgos. Foi talvez o luxo
que a perdeu, coitada, e a mim tambem—considerou com tristeza. Porque
ella não era má, os senhores podem acreditar; mas o janotismo deu-lhe
volta ao miolo, como acontece a quasi todas as mulheres, para mal dos
maridos—concluiu philosophicamente.

—Não foi só isso, talvez—repliquei. Ora confesse, amigo Lucas. O outro
era ahi algum rapaz novo e janota...

—Que!... Não senhores—interveio com vivacidade—um gebo como eu! Não me
troco! Assim um gordo, de cara espapada e barbicha de cabrito. Não me
troco. Essa é que é toda a minha matacão. Se Rosa fosse para onde algum
rapaz novo e bem parecido... vá. Sou velho e não me tenho por home que
a mereça. Mas para esse bruto com quem ella está! Ainda que eu viva cem
annos, não me posso consolar! Que posição tem elle?... (interrogou-se).
Uma logita alli para os lados de S. Paulo. Ora abobora!... O bicho mulher
não ha ninguem que o entenda!

—Realmente não se percebe bem, a loucura de sua mulher—reflectiu o meu
amigo. O senhor tractava-a mal, batia-lhe?

—Eu!? Eu bater-lhe?! O senhor está a caçoar comigo! Só o que queria saber
é onde ella desejaria passar, para ir beijar o chão onde pozesse os seus
pés. Fazem lá ideia! Aquillo para mim não era uma mulher, era uma santa.

E as lagrimas cahindo-lhe a quatro, Lucas acrescentou:

—Até é uma vergonha, o chorar ainda por aquella ingrata! Não está mais na
minha mão.

       *       *       *       *       *

—Então não comprehendo—insistiu o meu amigo—como depois de o querer para
marido, o regeitou.

—Pois eu comprehendo muito bem, com sua licença. A questão é que ella
casou comigo, para vir para Lisboa. Depois da bôda não nos demoramos
quatro mezes lá na terra. Principiou aquelle demonio a atanazar-me, que
não podia viver alli, que o negocio não prestava e como o tal tio já
tinha morrido, metteu-me na cabeça, que aqui em Lisboa, eu podia ganhar
mais dinheiro. Isto lá me custou, porque eu bem via ser uma asneira.
Mas ella tanto fez e eu com este meu fraco por aquella sereia, não tive
remedio. Viemos e os primeiros quatro mezes foi uma pandiga. Enguliu-se
um conto de reis, em carros, em theatros e com amigos que logo arranjei
no hotel da rua da Prata, onde estavamos. Muitos d’esses, hoje, nem
me compram uma cautela, só para me não fallarem. No fim d’isto eu que
via sumir-se o dinheiro disse-lhe: «Mulher, as libras acabam-se, é
preciso arranjar algumas.» Ella então teve a ideia de pôrmos uma loja de
capellista, onde ella estivesse a vender, para chamar freguesia. Para
chamar freguesia!—exclamou indignado e ironico.—O que eu merecia era com
uma moca no toutiço! A freguesia de que ella precisava sei eu! Era com um
marmeleiro!

       *       *       *       *       *

—Então foi ahi que ella...

—Não senhor. O tal gebo conhecemol-o á mesa do hotel e no theatro da rua
dos Condes. Á mesa estava o machacaz em frente de nós, sempre a offerecer
genebra ou vinho do Porto. Por isso, quando a gente arranjou a loja,
que foi alli para a Sé, o janota lampana, não me sahia de lá e era dos
melhores freguezes de charutos que a gente tinha. Fazia-se muito amigo e
eu que sempre fui um simples, contei-lhe a minha vida e confessei que o
negocio não dava para os gastos. No fim d’um anno pouco havia dos cinco
contos que trouxera da terra! Pois elle, com um estadão como eu tinha,
sempre de grande e á franceza, passeios aos domingos, carros, bailes de
mascaras!... E querem os senhores saber?... Foi a desavergonhada (eu a
este tempo, sou capaz de jurar sobre umas _Horas_, como ella ainda não
era má mulher!) que me lembrou fallar com o Gonsalves (era o tal!) para
elle me aconselhar alguma coisa, em que se ganhasse dinheiro. Fallei
n’isso ao cara de demonio e logo muito prompto me disse que mettesse o
que me restava em negocio de vinhos de Torres, que dava muito. Foi até
elle que me arranjou conhecimentos. Por este motivo principiei a andar
dias e dias por fóra de casa, por um lado e pelo outro, sempre n’uma fona.

—Ahi é que bate o ponto. O que elle quiz foi afastal-o para longe.

—Pois!... Eu nunca pequei por esperto. Penso que toda a gente é de boa
fé, como eu!... N’esta coisa de cauteleiro em que ando, tenho aprendido
muito. Hoje nem o mais pintado.

—O negocio de vinho fel-o perder a mulher e o dinheiro—raciocinou o meu
amigo.

—Como diz; porque logo que, por uma carta anonyma, vim a desconfiar
d’aquella ingrata peguei de vigial-a e para melhor o fazer vendi todo
o vinho de repente e com perca grossa. Um dia disse-lhe: «Mulher, tem
juizo, porta-te bem, olha que a honra não ha dinheiro que a pague!»
Respondeu-me que não fosse tolo e voltou-me as costas. Com o fim de
estar perto d’ella, arranjei coisa para ficar em Lisboa. Uns amigos
afiançaram-me em algumas casas de commercio, para eu andar a receber
dinheiro. Ella ralhou-me por isso e disse que havia de ser grande o meu
ganho. Eu respondi: «Para o que tu precisares nunca te hade faltar.
Ainda que eu venda o meu corpo ao diabo, terás sempre para os teus
alfinetes.» Sabem com o que me veio?: «Eu quero continuar a ir aos
theatros e dar os meus passeios. Não hei de estar toda a minha vida
mettida n’um buraco.»

—Tinha aspirações, vê-se.

—Tinha o diabo no corpo, é o que ella tinha. Eu não lhe merecia o pago
que me deu. Trabalhava como um mouro, só para que ella tivesse tudo. Não
havia chuva, não havia vento, não havia calor para mim. Sempre a correr
por essas ruas e então que estáfas! Ás duas por tres, cahia-lhe na loja
como quem vinha de passagem e sabe Deus se não tinha dado uma carreira
de Alcantara até á Sé, só para ver se havia alguma novidade. Os senhores
riem-se? É porque não sabem o que isto é. Chegava todo esbaforido, o
coração aos pulos no peito, e sempre com aquella mulher deante dos olhos
a enganar-me. Não comia, não dormia descançado, um verdadeiro inferno!

       *       *       *       *       *

—Afinal vê-se que gostava muito d’ella—insinuei.

Respondeu com vivacidade:

—Isso, mesmo cá de dentro. Tinha-me por força dado alguma bruxaria. E
que mal me pagou! Já não lhe pedia que me tivesse amor. Bem sei que não
podia ser, que sou um velho e um ninguem; mas não devia fazer o que fez.
Na noite em que, morto de fome e de frio, entrei em casa depois de ter
andado todo o dia n’uma roda viva, e não a encontrei, cahi no chão como
uma pedra. Tornei a mim, quando a vela do castiçal estava gasta. A casa
em desordem, os bahus e gavetas abertas, como se tivessem andado ladrões!
Aquella mulher perdida não se contentou em me deixar, levou tudo quanto
havia de bom, e fiquei com a triste camisa do corpo. Chorei mais do que
quando morreu minha mãe! Durante tres dias, quasi sem comer, nem beber,
corri toda a cidade pelos botequins, pelas casas de pasto e restaurantes,
pelos theatros com um revolve carregado a ver se os encontrava. Haviamos
de morrer todos tres. A ella tinha vontade de lhe beber o sangue por uma
tigela e a elle de lhe fazer a cabeça n’um bolo. Se os encontro havia de
me vingar até ao fundo d’alma!

—E ainda gosta d’ella?

—Gosto sim senhor, gosto. Para que hei de dizer que não? É o meu peccado.

Teve novas lagrimas nos olhos, que desejou esconder de nós, voltando-se
para a parede.

—Se ella o tornasse a procurar?

—Não me falle n’isso! Ferve-me o sangue! Se um dia a vejo...

—Ah! nunca mais a encontrou?—pergunta o meu amigo.

—Já disse que não senhor. Sei onde mora, porque conheço a casa d’esse
excommungado que m’a furtou; mas a ella nunca mais lhe puz os olhos
em cima. Pois é admiração! Com este meu modo de vida das cautelas e
dos jornaes, corro toda a cidade. Nem nos theatros, nem nos dias de
procissão, nem no Passeio. Aquillo é que só vae á missa cedo e não torna
a sahir—considerou melancolico.

—E se um dia a encontra?

—Mato-a! mato-a, com toda a certeza!—disse exaltado.

Depois mudando rapidamente de tom concluiu:

—Não mato, não mato... Adeus meus senhores, não me apoquentem.

E distanciou-se quasi suffocado pela dôr.

    Março de 85.

[Illustration]



[Illustration]



DOIS CATURRAS


Nas serenas tardes de verão, dormida a sésta regulamentar, o dr. Leandro
e frei Antonio, costumavam ir dar juntos um passeio. Sempre methodicos e
taciturnos sahiam de casa á hora conveniente, para se encontrarem junto
da igreja, sem esperarem um pelo outro. A menor falta n’este ponto, um
simples minuto de tardança, era caso para recriminações da parte do que
chegasse primeiro, recriminações manifestadas em monosyllabos de desgosto
e n’uma ou n’outra phrase curta e rapida, atirada para o silencio com
pronuncia desdenhosa: «Pegou-lhe bem na somneca», «Ficou abarrotado com o
jantar», «Isto foi pinga de mais...» Mas depois seguiam cabisbaixos pela
encosta acima, as mãos cruzadas sobre os rins, as bengalas pendentes,
e paravam de vez em quando, para tomar um pouco d’ar. Junto da ermida
da Senhora do Amparo, d’onde se disfructa uma paizagem restricta e
pacificadora, cada um ia-se sentar no seu banco de pedra, á distancia
d’alguns metros, como se fossem desconhecidos. E o frei Antonio, homem
d’um fundo de bondade mais rancoroso, depois de saborear a primeira
pitada, costumava dizer avulsamente, referindo-se a uma collina fronteira:

—Como é bello aquelle monte lá em cima! E é-o por ser unico!...

Leandro, fingindo que não ouvira, monologava:

—Pena é não haver outro monte igual, do lado d’acolá, por causa da
symetria!... Seria incomparavelmente mais bello!

Estas palavras, já significavam uma tregua e uma reconciliação. Eram
ironias mansas ao fim de muitos annos de argumentos, em viva polemica,
esmorraçando mesas, quebrando cadeiras que atiravam ás paredes juntas
com apostrophes. Porém nunca cederam, nem uma pollegada, n’este valioso
ponto de esthetica que os separava. Frei Antonio sempre partidario da
_unidade_, da simplicidade absoluta, e por extensão de principio do
pernão, detestava o _par_. Tinha orgulho em ser padre, só por causa do
celibato. No seu casaco sacerdotal e na ampla batina usava um unico
bolso, para n’elle incluir todas as coisas do seu uso—a caixa, as
chaves, o lenço vermelho, um pequeno breviario...

E justificava-se:

—Em quanto usei muitos, nunca encontrava o que queria. Agora é só metter
a mão e prompto. A caixa?... Aqui. (mostrava-a). O breviario?... Eil-o.
As chaves? o lenço?... Tudo, n’um ai.

Exhibia os objectos com o semblante glorioso d’um prestimano. Era
agressivo e até insolente para todos que lhe não acceitavam a invenção.
Mostrava-se propagandista, loquaz, capcioso, argumentado pelo seu lado.

       *       *       *       *       *

O dr. Leandro deleitava-se com a opinião diametralmente opposta. Pela
unidade e por tudo quanto era impar tinha mais do que desdem, tinha
desprezo. Dizia, como phrase de sentença, que a natureza nunca podia ser
manca. Para irritar o seu amigo, na presença de muita gente, extasiou-se
diante da insignificante igreja de S. Francisco, só porque tinha duas
torres iguaes. Fingiu-se enthusiasmado, mostrando um pasmo acintoso e
offensivo, e exclamou com os braços abertos:

—Que bello! Olhem como são perfeitamente iguaes! Como é sublime a
symetria!

Frei Antonio sorriu amargamente, encolhendo os hombros, e respondeu com
mal desvanecido azedume:

—Deus, a suprema perfeição, é _Um! Um só!_

E espetando o dedo no ar demorou-se com elle, vingadoramente, diante do
nariz do doutor, que objectou:

—Mas Jesus Christo, a encarnação do pae, tinha duas naturezas, divina e
humana.

O sacerdote enchendo-se de cordura disse-lhe:

—Não gosto de metter n’isto o divino; mas podia responder que sendo
tres,—_tres!_—sublinhou com emphase—as pessoas da Santissima Trindade,
essas mesmas se reduzem a _uma_.

—É tolo—ainda acrescentou o outro.—Não sabe que pela conta do marinheiro,
as pessoas da Santissima Trindade são dez.

—Que diz você seu hereje!—cresceu o sacerdote indignado.

O doutor explicou tranquillamente:

—Pois não sabe? Olhe. As pessoas da Santissima Trindade são tres; Padre,
Filho, Espirito santo—seis; tres pessoas distinctas—nove; um só Deus
verdadeiro —dez.

Os circumstantes riram-se; o frade afastou-se trombudo; e, por agora, o
advogado ficou victorioso, mostrando-o d’um modo saliente.

Como andavam sempre juntos, de momento a momento se levantavam novas
birras. O dr. Leandro, que era magro, pertinaz e acintoso estava
sempre a espicaçar o egresso. Nunca o convidava para jantar, sem que o
numero de convivas fosse par. Levava-os ao jardim para verem as flores
e notava-lhes, sempre com insistencia, que as disposera pelo systema
de parelhas (_de coices_—acrescentava o frade). Se tinha de abrir uma
janella procurava logo estabelecer uma corrente d’ar, escancarando outra,
o que endiabrava o clerigo, que vivia no terror das constipações. Em
tudo se mostrava o rancor d’estes dois irreconciliaveis amigos. Indo
no seu habitual passeio, se encontravam alguem a cavallo, o sacerdote
aproveitava logo o momento para dizer:

—Bonita egua! Não haverá outra como ella, para a emparelhar?

O dono, se era vaidoso, respondia indubitavelmente:

—Nunca a encontrei. Pois tenho corrido um rôr de feiras!

O sacerdote insuflava n’um sarcasmo mordente:

—É porque não procurou bem. Aqui este senhor era capaz de lh’a arranjar.

—Pois não arranjaste!—duvidava o dono da egua.

       *       *       *       *       *

O doutor procurou immediatamente a sua desforra. Logo que viu _O das
perdizes_, na sua carruagem puchada pela ostentosa parelha de baios,
disse-lhe:

—Ó Pessanha! Se esses teus cavallos fossem differentes era muito melhor,
diz aqui o frei Antonio.

—Pelo amor de Deus! não valiam dois patacos! Uma parelha assim, é muito
mais cára.

O frade resmungou.

—_Variatio deletact_, meu fidalgo. D’essa maneira até fazem mal á vista.

E quando se distanciou a carruagem, disse o sacerdote avulsamente:

—O universo é um.

—Os mandamentos da lei de Deus são dez e reduzem-se a dois.

—Já lhe fiz saber que não gosto de metter n’isto o divino, e lembro-lhe
que a gente faz cada coisa por sua vez.

O doutor apostrophou-o:

—Quantos olhos tem o senhor na sua cara?!...

—E não via as coisas muito melhor se tivesse um só, na testa por exemplo,
como os Cyclopes? Até não havia o perigo de se entortarem.

Leandro insistiu:

—Quantas pernas tem o senhor? quantos braços?

—E por quantas boccas come e diz asneiras o meu amigo! Por quantas
gargantas engole?—arremetteu o frade. O que o senhor tem decerto, é dois
juizos e nenhum d’elles vale tanto, como o casco d’uma cebola podre.

       *       *       *       *       *

Estava-se nas vindimas. O advogado ía todos os annos para a Feitosa e
acompanhava-o alli durante algum tempo frei Antonio. Era um costume já
antigo. Leandro quiz d’esta vez apertar com _argumentos materiaes_ a
paciencia do sacerdote. «É preciso provar ao latinista—pensou—que vale
mais do que um simples casco de cebola podre, o meu juizo.» Logo que
frei Antonio chegou á Feitosa, onde o doutor já o esperava, feriu-o
uma novidade nos antigos e sustentados habitos d’aquella casa:—era a
existencia de duas mezas de jantar, uma para cada um. O doutor só deu
esta explicação:

—O senhor tem o seu systema, eu cá tenho o meu.

E na meza de Leandro havia dois talheres, dois pedaços de pão e duas
canecas de vinho. Em frente d’um dos pratos estava uma cadeira, com um
travesseiro a fingir de pessoa e esse travesseiro tinha um chapeu na
cabeça, um bigode de sedas de cavallo e conservava-se impertigado, n’um
sentido de troça.

O sacerdote, teve um riso amarello, fingiu que chasqueava e observou com
grandeza de animo:

—Tambem é a unica companhia que merece.

E foi-se sentar á sua meza, que tinha tudo estrictamente para um; mas
em quantidade muito resumida, tanto de vinho, como de pão. Depois de se
ter sugeitado heroicamente a esta prova durante alguns dias, tomou a
resolução de assentar junto de si dois bonecos de palha, pedindo que lhe
servissem os seus companheiros.

       *       *       *       *       *

O doutor, que se não quiz mostrar vencido, levou ainda mais longe a
premeditada vingança, ordenando que no quarto onde sempre ambos dormiam,
houvesse uma só cama. Frei Antonio, um tanto perturbado, quando á noite
viu isto, perguntou á velha Joanna:

—Quem diabo vem a ficar aqui?

—Os senhores ambos. Ora o demo da brincadeira dos homes!

E o advogado accrescentou:

—Em coisa de cama sou pela unidade. As ultimas chuvas tem arrefecido o
tempo.

Ora, se havia coisa no mundo á qual o sacerdote preferisse a morte, era
a dormir com outro. Homem gordo, d’um suar facil, impaciente no sonho,
gostava de roncar á vontade, de alargar as pernas e deitar os braços
de fóra, quando lhe approuvesse. Antes passar a noite no chão, n’uma
mangedoura, ou sobre tôjo!... Desde que outro padre, n’uma estalagem de
Tras-os-Montes, o atirára da cama ao chão, estando elle a dormir e tendo
por essa occasião ferido a testa e o nariz nos cacos d’um objecto que se
quebrou, nunca mais acceitou companheiro de dormida.

Leandro sabia que o atacava no ponto mais fraco. O frade disse
simplesmente, em tom resoluto:

—P’ra graçola é de mais! Bem sabe que não durmo com outro. Então monto a
cavallo e vou-me _já, mesmo de noite_, embora.

—Pelo que vejo, a respeito de cama... para dois... duas?!—disse com
ironia o doutor, mostrando-lhe a outra que estava n’um quarto proximo.

E como não concluira ainda a sua argumentação pelos _materiaes_, quando
no dia seguinte, frei Antonio procurava os butes, para ir dizer a missa
conventual, a que se compromettera, encontrou sómente um. Sem ainda
calcular a significação do acontecimento, veio á porta em palmilhas de
meias, e gritou pela frincha que abriu:

—Ó Joanna! O outro bute?

—Pergunte por elle ao senhor doutor.

O ecclesiastico comprehendeu e disse zangado:

—Mau! mau! mau que m’arrenego!

Então Leandro, com ingenuidade fingida, respondeu-lhe do quarto:

—Passou ahi hontem um pobre, descalço d’um pé e dei-lho. O amigo tem na
realidade dois pés?

Frei Antonio, com ar apopletico, em mangas de camisa e em palmilhas,
o grosso tronco batido pela luz da janella do corredor, retorquiu
energicamente:

—Tenho sim senhor e você tem quatro. Ponha cá o bute e deixemo-nos de
chalaças. Já tocou ha um pedaço. Se essa gente fica sem missa por causa
das suas brincadeiras... quero ver.

       *       *       *       *       *

Isto passava das marcas. O sacerdote procurou um meio de tirar a
desforra. Havia de ir ter-lhe ao bolso, que era aonde doia mais ao
sovina do Leandro. No _Bracarense_ da vespera annunciava-se a proxima
chegada, á cidade dos Arcebispos, da actriz Emilia das Neves, tão
celebre e tão gabada, que alli ia representar no theatro de S. Geraldo.
O padre, encobrindo ruins intentos, convidou o doutor para irem a Braga.
O advogado chasqueou-o por esta manifestação de mundanidade, porém o
ecclesiastico explicou-se com modo circumspecto:

—Não que ella só representa dramas sacros. Nem o senhor Arcebispo,
consentia outra coisa, na sua cidade.

Combinaram-se n’uma apparente harmonia, acceitando ambos este periodo
de tregua. O frei Antonio fazia de bolsa. Como era expedito, sagaz e
conhecia Braga, o seu amigo facilmente lhe entregou a administração das
finanças communs. Porém, mal conhecia o advogado o que podia dar o
rancor d’um frade, que é espicaçado no que elle tem de mais precioso,
o appetite. As humilhações, as zangas, a quasi fome d’alguns dias na
Feitosa, haviam dado ao rotundo ecclesiastico um faro agudissimo de
vingança. Logo na diligencia principiou por comprar tres bilhetes,
entregando dois a Leandro que observou seccamente:

—Na verdade eram bem precisos tres logares, attendendo a que o senhor não
é um homem, é uma pipa.

Em Braga, no Transmontano, o doutor notou que o dono da hospedaria, um
velho coxo e rabugento, que estava sempre a praguejar deante do forno, se
ria descompostamente a tudo quanto lhe segredava o seu velho amigo frei
Antonio e que dissera depois d’um d’esses colloquios:

—Então afinfa-lhe? Trinca-lhe bem e entorna-lhe melhor? Vae valido.

E tambem percebeu que o sacerdote accrescentára:

—Tudo á farta e contas separadas.

Porém Leandro não se deu por achado. Alongou os beiços, sorriu com
esforço e á mesa onde estavam tres talheres, mostrou uma apparencia calma
e de coragem.

Por certo que identicas advertencias haviam sido feitas ao Miguel, um
creado bebedo e feio, que jogava a batota com os hospedes, pois que esse
Miguel, ao segredo do frade retroquiu olhando de soslaio para Leandro:

—S’tá dito! Que pandigos!

E apesar da resolução em que o doutor estava de se mostrar digno e
conveniente até ao fim, não pôde deixar de se sentir estrangulado pela
indignação, quando viu que o seu amigo lhe comprára dois bilhetes para o
theatro. Isto não tinha geito nenhum, era atirar dinheiro pela janella
sem necessidade! Na hospedaria, fechado dentro do seu quarto, que estava
preparado para duas pessoas, quando elle era só um, exclamou voltado para
o tecto:

—Este padre é o demonio! Mau raio, se lhe não espeto uma faca n’aquelle
bandulho!

Minutos depois veio pelo corredor frei Antonio que disse, fallando pelo
buraco da fechadura:

—Adeus Leandros, boas noites.

E logo em seguida, o Miguel acrescentou com a sua voz avinhada:

—Com bem passem, senhores _doutores_.

O advogado que já estava na cama e com a luz apagada, ressonou forte,
para não responder. No dia seguinte levantou-se cedo, com o fim de ir
sósinho almoçar debaixo da Arcada. Mas frei Antonio, que o espiava,
seguiu-o de perto, entrando logo depois d’elle e mandando vir para tres.
Leandro ao sair a porta do botequim, pronunciou de si para si:

—Isto acaba hoje! Deixa estar que hoje acaba!

       *       *       *       *       *

Tinha, porém, urgente necessidade de mandar fazer uma roupa de panno
preto—sobrecasaca, calça direita, collete de ceremonia com uma só ordem
de botões; fazenda boa que lhe durasse o resto de vida, que servisse
para visitas e festas. Frei Antonio conhecia na rua do Souto um mercador
de confiança; o doutor era menos pratico na cidade e por isso não teve
remedio senão entregar-se-lhe. Pareceu-lhe que n’este particular não
podia haver novidade. Foram ambos, ao lado um do outro, silenciosos e
escandalisados.

Em quanto um mestre de _atraz da Sé_ tomava as medidas, fallou-se de
politica... em deputados... e o negociante, homem discreto, de barba em
serrilha opinou:

—Boa asneira! Esfalfa-se a gente para os mandar p’ra essa Lisboa e lá não
fazem mais do que andar na pandiga, com moçoilas e em treatos. Tributos
são de cada vez maiores! No tempo do senhor D. Miguel...

O alfaiate, absolutista sanguineo, parou subitamente e disse n’uma
arremetida, olhando por cima dos oculos, com a medida suspensa da mão:

—E acraditam, que o rei legitimo, não ha de vir pôr fóra do seu reino
esta cambada?!

Todos concordaram em que havia de vir, menos o doutor que já lhe tinha
perdido as esperanças e se fizera liberal.

Quando voltaram á terra, Leandro teve uma viva polemica com frei
Antonio, por causa d’aquellas asneiras fóra de casa. Não era por gastar
mais ou menos uma moeda, porém embirrava com tanta tolice deante de
desconhecidos. O frade respondeu-lhe que bom gado era porcos, levou-o de
troça e continuaram nos seus passeios e nas suas caturrices habituaes.

       *       *       *       *       *

Quinze dias depois, o advogado recebeu pela diligencia de Braga duas
encommendas. Abriu a primeira e n’ella encontrou a roupa que mandára
fazer. Vinha tudo nos termos e a seu contento. Vestiu-a para ver se lhe
estava bem e a velha Joanna que elle chamou para dar parecer, disse que
estava mesmo um cravo, e recordou-lhe os seus tempos de rapaz, quando
elle vinha de Coimbra e era de todos o mais janota. Fôra n’esse tempo
que... Ella era creada da mãe de Leandro, uma boa senhora, temente a
Deus, confessando-se a miudo e reprehendendo sempre os atrevimentos e
brincadeiras do filho com as moças!... Havia 40 annos que Joanna alli
estava e ainda na memoria se lhe avivavam facilmente todos os quadros
ridentes da mocidade!...

—Mas a outra encommenda?—lembrou.

—É verdade—disse o doutor—isto não é para mim. Ha de haver engano.

Mas pegou n’ella, remirou-a por todos os lados, apalpou-a, cheirou-a
para advinhar o que seria... e nada! Pela terceira ou quarta vez releu
o subscripto, que era do mesmo talho de lettra da do negociante que lhe
remettia a sua roupa e com os mesmos dizeres.

—Só se frei Antonio tambem encommendou alguma coisa e que m’a mandassem
para eu lhe entregar—considerou com o embrulho suspenso nas duas mãos.

Para satisfazer a curiosidade de Joanna, sempre foi desatando os
barbantes, com precauções e cautelas, na convicção de que era coisa que
lhe não pertencia. Encontrou outra roupa, perfeitamente egual á sua. Não
podia presumir brincadeira tão pesada do seu amigo, e, como elle morava
perto, mandou-o chamar.

—Sabe para quem é esta coisa?—perguntou serenamente.

—Eu! Como posso advinhar?!

—Nada de brincadeiras—avisou. Será para si?

—Não gasto d’esses luxos. Nem eu cabia dentro d’este pé de meia—retorquiu
ironicamente o frade, suspendendo as calças no ar.

—Mas com mil demonios!—interroga colericamente o doutor. Sabe ou não
sabe?! Responda.

O frade respondeu com todo o socego:

—É provavel que seja para si. Em Braga, ninguem ignora que o senhor é
dois!

O doutor adiantando-se, poz-lhe diante dos olhos um punho cerrado.

—Sabe o que eu ignorava?—gritou. É que o senhor fosse um pedaço d’asno
como é!... Que o arrebento, seu odre!

O frade escandalisado, escachou as pernas e apresentando-lhe de frente o
seu valente tronco, oppoz-se-lhe com vehemencia:

—Ameaçar-me! olhe que o leva um milhão de demonios, seu cabrito esfolado!

E saiu nobremente da sala. Durante boa meia duzia d’annos, conservaram-se
inimigos e sem se fallarem. Porém depois reconciliaram-se n’um jantar de
boda, onde ambos se emborracharam até á ternura das recordações, e d’alli
ao fim da vida, continuaram a sustentar as suas theorias e a dar os seus
passeios habituaes.

[Illustration]



[Illustration]



A POSTURA DOS OVOS


As de Refuinho foram as ultimas a chegar. Por causa do ar da noite,
traziam as cabeças envolvidas em muitos chailes e só deixavam um
buraquinho para espreitar o creado, que ia adeante com o lampião. D.
Michaela, ao recebel-as no cimo da escada, logo ralhou com as meninas
por causa do agasalho excessivo. Nem pareciam raparigas novas, tantas
eram as cautelas que tomavam. D. Maria justificou as sobrinhas. Fora ella
quem aconselhara taes cuidados, por causa das possiveis dôres de dentes.
Só quem nunca soffreu d’ellas é que pode fallar! Quanto a si, explicou,
tossindo muito, com o seu modo resignado e soffredor:

—Oh! filha! Sempre te ando com uma gosma!...

Logo que entraram na sala, todos vieram comprimental-as. As da Torre
Velha conduziram as primas junto do candieiro, para lhes mostrarem o
retrato do irmão, que era militar e estudava em Lisboa. Tinham recebido
pelo ultimo correio, essa bella photographia d’um rapagão em pé, apoiado
negligentemente na espada e a barretina sobre uma _console_. Assentára
praça em cavallaria por inclinação: todos os presentes se lembravam,
de como era um demonio em pequeno, percorrendo o quinteiro em todos
os sentidos, montado n’uma canna! A carta escripta ás irmãs, era-o
n’um luxuoso papel cor de tremoço cosido e perfumada d’almiscar. Dizia
maravilhas das opulencias da capital, dos seus palacios, dos theatros e
das formosas mulheres que passeavam em carruagens descobertas, para serem
admiradas.

—Isso já por lá tem uma duzia de namoros—disse frei Ignacio, espreitando
por entre as cabeças das meninas.

Mas uma das da Torre Velha, confidente do militar nos seus primeiros
amôres, defendeu-o:

—Quem, o Zésinho?! Não é d’esses!

E encarou Clotilde de Refuinho, que baixou timidamente os olhos,
conservando-se muito tempo triste, encostada á mesa.

Os parceiros do rancoroso voltarete, enremissados da semana precedente,
estavam soffregos sobre o jogo. O desembargador João Xavier, para os
desculpar por se não levantarem, disse de longe, com a auctoridade d’um
marido, que esteve para ser de D. Maria, quarenta annos antes:

—Ó minha prima. Deus lh’as dê muito boas. Dispenso cumprimentos. Esta
remissa de quinze entradas tenho-a atravessada aqui.

       *       *       *       *       *

Mas quem se aproveitou do reboliço foi o dr. Leandro, que a esse tempo
levava uma reverendissima tunda, ás damas, do seu amigo frei Antonio,
que as jogava na perfeição. O advogado aproveitou o ensejo de atirar
com o taboleiro para o inferno, e fez na sala tal barulho, que parecia
a derrocada d’uma torre. Até ia trilhando o medico Pestana, homem de
grande saber e azedume, que lá estava com o seu esqueleto arrumado a
um canto, a chupar cigarros, todo concentrado no odio ao recebedor da
comarca, por causa da morgada, D. Michaela—mulher soberba, que os dois
ambicionavam furiosamente. O recebedor, o famoso Silveira, n’essa noite
em maré de fortuna amorosa, parecia um redemoinho pela sala, sempre com o
chaile-manta cinzento pendurado dos hombros. Foi elle que ao vêr muita
gente, propôz logo um quino, fallando com o seu ar estarola. Era quem
costumava tirar as bolas e salpicava o jogo de larachas muito apreciadas,
que por vezes lhe deram assignaladas victorias, quando a morgada ria até
ao engasgamento nervoso. Porém, n’essa noite, D. Michaela preferiu antes
ouvir a musica «Ao Luar», tocada no piano, com muito coração e esmero
pela Clotildinha. Ella que era romantica e sentimental, adorava esse
famoso trecho, que já uma vez a fizera suspirar em Barcellos. Era um
idyllio cheio de meiguices dolentes e das suaves fragancias das campinas.
Remurejavam brandamente arvoredos, um regato serpeava pela encosta e o
poetico rouxinol queixava-se no interior d’um loureiro. Frei Ignacio é
quem fazia de rouxinol, munido d’uma gaitinha; mas o famoso Silveira,
que tambem conhecia a musica, aproveitou cruelmente mais esta occasião
de triumphar sobre o medico. Propôz-se a tomar para si a parte do
rouxinol, sem nenhum auxilio de gaita. Os applausos á magnifica lembrança
foram calorosos. Todos sabiam, quanto o recebedor da comarca era eximio
imitador de vozes d’animaes e especialmente das aves. Em certos casos
o engano era completo. Um dia mugiu tão admiravelmente de vacca no
quinteiro de Refuinho, que a velha fidalga veio á janella toda afflicta,
ralhar com o moço, julgando que andava o gado solto. Ao dar com os olhos
no Silveira, que n’esse instante estava mugindo com desolação para o céu,
suppondo uma cria distante, reprehendeu-o:

—Fazer de vacca! Isso é peccado. Não teme um castigo do céu? As vaccas
não tem alma—concluiu agastada.

O medico Pestana, concordando em que o recebedor não tinha alma,
chasqueou o caso dizendo que o _homem_, fazendo de vacca ou de boi que
era o mesmo, mostrava grande geito para marido.

       *       *       *       *       *

Porém a novidade de imitar um rouxinol, foi muito celebrada; porque
ninguem lhe conhecia a prenda. O medico emmagrecia a olhos vistos, quando
a morgada dava palmas ao Silveira. Este para melhor o aguilhoar exhibiu
outras habilidades já conhecidas: fingiu o trote d’um cavallo que se
approxima e relinchou com as ventas altas no momento da chegada; o canto
do gallo ao amanhecer, batendo fortemente as azas, foi produzido com
rara perfeição; o coachar das rans em noites primaveraes, a chegada do
cuco em maio, os patos arrebanhados, o pardal, o melro, o perú... tudo
foi representado. Já não havia, nem volturete, nem bisca, nem ideias
de quino. Tinham para duas horas. O medico passeava ao fundo da sala,
sorumbatico e abatido. Frei Ignacio, sempre brincalhão, disse-lhe de
longe:

—Deixe-se d’isso, doutor. Quel-o vêr fazer de porco?

Todos o desejaram e elle não se fez rogado.

Sahiu da sala, para logo voltar silencioso e embrutecido. Vinha
sorumbatico e sorna, como um porco ao recolher. Uma creada chamou para
a comida: «_coxi, coxi, coxi_» e logo o Silveira principiou a correr,
como cevado cheio de fome, dando fortes grunhidos, gritos atroadores,
até que foi para um canto sugar a sua lavagem, com um _xou-xou_
embrulhado e caracteristico. Por fim suppondo-se um porco perseguido
por um cão, correu veloz, ladrando e grunhindo ao mesmo tempo, e sahiu
precipitadamente pela porta, dando um encontrão no medico.

Todos riram com boccas escancaradas. Frei Ignacio agachado a um canto,
já não podia mais, e por fim encostou a barriga á parede, com medo d’uma
colica. As meninas de Refuinho e da Torre Velha gargalhavam no regaço
umas das outras. O desembargador Xavier sorria de longe com dignidade,
olhando firme, com os seus occulos d’oiro.

Um joven poeta, estudante em Coimbra, foi da opinião e disse-o
claramente, que se aquelle phenomeno se exhibisse no _Palacio de
Cristal_, haveria grande concorrencia, porque era, em verdade, admiravel!
D. Michaela, que applaudira até as lagrimas, perguntou ao academico:

—O senhor Penaguião nunca o viu fazer de gallinha e pôr ovos?!...

—Nunca vi, senhora morgada...

—Então!...—concluiu com um entono que significava preço—nunca viu nada!

Todos se levantaram a pedir ao Silveira que exhibisse esta habilidade;
porém elle sentado n’uma cadeira, a limpar o suor do cachaço, não estava
para isso. Sentia-se cançado, ficaria para outro dia, não podia ser tudo
d’uma vez. A morgada, conhecendo o empenho dos seus convivas, disse mesmo
sem se levantar:

—Ande, vá pôr. Quero que o sr. Penaguião veja.

Não hesitou um momento. Um raio de vingança triumphante despediu-se do
seu fulvo olhar contra o medico, que ao vel-o prestar-se, sahiu da sala.
Porém isto, que todos julgaram um signal de covardia não o era de certo;
porque momentos depois o doutor tornou a entrar, com semblante conformado.

Como era uma exhibição mais complexa, tomou cada pessoa o seu logar.
As senhoras em cadeiras, em volta da sala, deixaram o canto livre para
a postura, que devia ser junto do piano. Os homens que se não puderam
sentar, encostaram-se ás entradas e nos vãos das janellas. O medico,
talvez para se mostrar generoso e soffrer deante de todos a propria
humilhação, occupou a cadeira mais perto do logar da postura.

Pareceu um acto publico de conformidade. O proprio Silveira assim o
entendeu. No meio d’um silencio valioso, depois de apenados dois
banquinhos para servirem de poleiros casuaes, o recebedor da comarca com
o chaile-manta pendente dos hombros, collocou-se no meio da sala, olhando
solemnemente em redor.

Mostrava-se grave, simples e ao mesmo tempo imponente!

       *       *       *       *       *

A principio houve um cacarejar avulso e sem grande significação. Andava
em volta dando pulinhos, erguendo a cabeça para ouvir facilmente, e
espanejava-se ao sol. Depois continuou em passo solemne, entoando um
_cá... cá... cá..._ reflectido e de concentração. Passados momentos, a
voz levantou-se gradualmente mais sonora, tinha gritos estridentes e
estendia o pescoço. Andava com vivacidade, os pulinhos eram sacudidos e o
corpo avolumava-se-lhe debaixo do chaile, quando afastava os cotovellos.
Subiu a um dos poleiros e lá do alto produziu um _ca-ca-ra-có_, rapido
e vibrante, como se fora uma sentinella gritando ás armas, para afastar
um inimigo possivel. Mas logo desceu para continuar n’um tom manso e
natural, andando em passo grave, seguro de que ninguem o viria perturbar.
De repente deu-lhe uma especie de furia, uma raiva e começou a correr
e a gritar desesperadamente, muito arrastado pelo chão, significando a
gallinha apertada por uma dôr e com a necessidade urgente de expellir de
si qualquer coisa. Os gritos eram fortes e expressivos, as arremetidas
para o lado do ninho insistentes, sempre com as azas de rasto,
afastando-se um momento para voltar depois mais precisado.

A situação ia-se tornando claramente dramatica.

O interesse dos circumstantes era cada vez maior. Exprimiam o sentimento
de admiração que os possuia, em frouxos de riso apanhados na mão e
muitos, boquiabertos, pronunciavam: «Ora!... Ora!...»

A morgada, que estava mais á vontade e não temia perturbar a
representação observou:

—É tal e qual a minha amarella. Uma coisa assim!...

       *       *       *       *       *

Vendo-se applaudido pela mulher a quem amava o Silveira foi sublime!
Aproximou-se sornamente do canto da postura. Reconhecia-se-lhe na
lentidão dos movimentos de parturiente, que se approximava o momento
supremo. Já ia arrastando o corpo, d’aza cahida, e um _có-có_...
guttural. Foi enfraquecendo a voz e os movimentos, andando em volta de
si mesmo a procurar o geito. Depois acamou-se acocorado, todo mettido
debaixo do chaile cinzento, n’uma attitude de objecto bruto e informe
que para alli estivesse arrumado. Houve um gemer soturno, como o regougar
d’um gato.

Foi n’este momento que o medico se abaixou fingindo que apanhava alguma
cousa. O Silveira não o percebeu, tão compenetrado estava das suas
altas funções de maternidade. Os assistentes, interessados no final
da comedia, tambem não repararam. Durante o minuto que o recebedor se
conservou agachado, trocaram-se apenas algumas observações em voz baixa.
Mas por fim, mestre Silveira, sahiu do ninho mostrando-se patentemente e
engulindo em secco, como se viesse d’um sonho. Começou a cacarejar com
alegria e orgulho em voz sonora e espantada. Saracoteava-se vistosamente,
espanejando-se, refrescando o corpo, na satisfação de quem cumprira um
dever e se livrára d’uma difficuldade. Esperto, vivaz, altivo, tudo
era _Ca-cá-rá-cá, ca-cá-rá-ki_... para um lado e para outro. E n’uma
reviravolta, quando fazia a ultima visita saudosa ao ninho, o soberbo
Silveira estacou de repente, empallideceu deixando de cantar, os braços
cahiram-lhe n’um assombro!

—Mas eu não fui!—pronunciou inconsciente.

O apparecimento imprevisto de dois ovos authenticos no logar da postura,
produziu uma gargalhada atterradora! Frei Ignacio, sempre larachista,
agarrou no recebedor pelos hombros, perguntando-lhe:

—Então hoje isto foi a sério, caro amigo?!

Porém o medico, cheio da sua vingança, disia ao mesmo tempo a D.
Michaela, em voz alta, de modo que todos ouvissem:

—Compre esta gallinha, senhora morgada, que lhe põe aos dois. Olhe que
sempre é melhor que a sua amarella!

[Illustration]



[Illustration]



RENDE-TE CENTURIÃO


Esperava-se que d’essa vez os _Passos_ fossem grandiosos. Tinha chegado
no verão um brazileiro, que para engrandecer a terra, concorria com
cincoenta libras. O abbade, depois da offerta, affirmou cathegoricamente,
que ía fazer reviver a memoria dos _Passos_ do fidalgo do Outeiro, que
sessenta annos antes, fizera _uns_ de que fallavam ainda com espanto,
os velhos das redondezas! Não havia de faltar nada: teriam muitos
anjos, musica da melhor e pregador de fama. Se viessem ainda esmolas,
mandar-se-hia armar a egreja, podiam-se reformar os andores que estavam
velhos; pois seria bonito que apparecessem differentes imagens do
Redemptor, significando as diversas partes da notabilissima _Paixão_.

—Quando foram os do fidalgo do Outeiro—acrescentou o abbade—houve a
guarda romana com o Centurião á frente, levando o seu distinctivo de
videira como emblema do direito de punição corporea, sobre os soldados.
Não sou d’esse tempo, mas ha ahi muitos homens que se lembram—concluiu,
dando grande preço ás suas palavras.

Era n’um domingo, depois da missa conventual. O abbade fallava na
sachristia, deante d’alguns freguezes, que o escutavam respeitosamente.
O benemerito senhor Guimarães, que abrira a subscripção com cincoenta
libras, era dos ouvintes. Reconhecendo, como todos, que a somma já
apontada era diminuta para se arranjar uma procissão a valer, poz
serenamente a luneta, pegou no papel onde estavam lançadas as differentes
verbas e leu:

—Tresentos e cinco mil e sete centos e cincoenta reis. É pouco!—disse.
Quanto entende o senhor abbade, que será preciso para se fazer coisa de
truz?!

O sacerdote olhou fixamente o tecto da sachristia, suspendendo-se do
labio inferior por dois dedos. Pronunciou, para si algumas palavras de
calculo, resumindo em voz alta:

—Quinhentos mil reis. Com quinhentos mil reis faz-se tudo.

—Pois feche lá essa conta e trate do negocio, meu reverendo—concluiu o
Guimarães, atirando generosamente com a meia folha d’almaço, sobre o
gavetão.

O abbade agarrou-o entre os seus rudes braços de camponez, affirmando-lhe:

—Com isso, temos tudo! Bom sermão; boa musica; bom côro; anjos; egreja
rica; um centurião com a sua guarda, que se lhe mandam ahi na villa fazer
vestimentas; e andores de espavento, que eu arranjo a virem de Braga, com
imagens e mais pertences. Creia o meu amigo, ponho-lhe ahi uns _Passos_,
que nem na cidade do Porto. Uma riqueza, verá.

—Então é dar ordens, está arrumado—acrescentou o Guimarães, fazendo um
gesto largo com a ponteira da bengala. Dinheiro não faltará, ainda que
seja preciso mais. Na minha vida de trabalho levei muito chimbalau, e
bastas vezes perdi contos e contos. Dê ordens, meu abbade, e ponha a
coisa na rua. Percebeu?

Esta grandeza do Guimarães foi muito gabada em toda a parte, bem como a
sua devoção. Felizmente não era como o traste do Cerqueira, um herege
que embirrava com missionarios. Esse era raro verem-no pela egreja, e
até quiz bater no afamado padre Antonio, porque lhe fez uma santa da
sobrinha, a Rosaria do Thomaz do Monte, pobre homem, agora maluco, por
causa das heresias que lhe mettera na cabeça o cunhado. Ainda bem que
o senhor Guimarães não era assim e gastava dinheiro em fazer coisas
boas, como ajudar uns _Passos_ de que todos se orgulhavam. Por isso
Deus o tinha protegido; por isso, sendo filho d’um pobre artista, era
hoje um fidalgo, tinha palacio e suas filhas usavam sedas. Não tardariam
em ver-lhe um titulo e era muito bem applicado, a um cavalheiro de tão
larga generosidade e que tão amigo se mostrava da terra. Podia ser como
outros, despresar do nascimento obscuro, viver n’esse Porto ou Lisboa, e
não fazer caso nem da sua aldeia, nem dos parentes pobres. «Viva o senhor
Guimarães, que ainda hade ser o nosso deputado»—affirmavam com emphase
pessoas de consideração.

       *       *       *       *       *

Desde aquelle momento o abbade não pensou n’outra coisa. Logo no dia
seguinte montou na sua egua e foi encontrar-se com a diligencia, que o
levaria a Braga. Como era homem de imaginação e muita fé, logo que alli
chegou entendeu-se com as pessoas que melhores conselhos lhe podiam dar.
Depois de varias conferencias resolveu encommendar tudo a um homem da
rua do Souto, o que era melhor arranjo. Combinou a armação da egreja;
os fardamentos do centurião, guardas, figuras e vestidos d’anjos; os
cantores para o coro, os andores e até as imagens. Quanto a imagens
foi mais difficil; pois que as confrarias entenderam que as não deviam
emprestar, sem o parecer favoravel do senhor Arcebispo.

Depois de trabalho insano só pôde conseguir, um _S. João_ e um _Senhor
prezo á columna_. Porém não ficou contente; porque as estatuas, antigas e
feias, não eram de causar grande devoção.

—Paciencia—disse resignado. Levam-se os seis andores. Tenho lá _Cruz ás
costas_ e _Senhora do encontro_. Levo d’aqui _Preso á columna_ e _S.
João_. _Canna verde_ e _Pretorio_ arranjo de Valença. Quem tem amigos...

Procurou, depois, saber onde morava actualmente o padre Silvestre,
capellão de infanteria 8 e seu antigo condiscipulo. Era um dos pregadores
mais afamados do alto Minho e o abbade, pela terceira vez, o escolhia
para lhe abrilhantar uma festa da sua egreja.

       *       *       *       *       *

Tendo conhecimento de que mudára para a Conega, cahiu-lhe em casa
d’um pulo. Havia annos que se não encontravam. Por isso houve effusão
d’alegria, muitos abraços e expansões n’este momento.

O pregador, escarranchado n’uma cadeira, disse para o seu amigo que se
lhe sentára na cama:

—Tu, magnifico, gordo, sempre abbade! Que diabo te trouxe n’este tempo de
trabalhos quaresmaes cá por Braga?

—O diabo não, creatura, foi Deus! Deus, o Senhor dos Passos é que me
trouxe hoje por cá. Mas deixa-me perguntar-te, antes que me esqueça.
Estás de mal c’o as...

—Estou sim—atalhou—não as podia aturar. Eram umas porcas. Nem roupa,
nem comida... uma immundicie. Depois tinha por companheiro o Antunes da
Cuspinheira, lembras-te? Um cevado com quem se não pode estar á mesa.
Deixei-as...

O abbade conformou-se, accrescentando:

—Pois custou-me a dar co’esta casa. Perguntei ao Sampaio, o famulo. E
venho cá por um motivo muito grave.

—Oh! com seis centos!—exclamou o capellão. Talvez algum caso de
consciencia. O homem é fraco, bem sei. Eu absolvo-te, diz da tua vida,
bezerro.

—Não, não é isso. Tenho uma festa de Passos, coisa rica. Paga lá um meu
parochiano, um brazileiro. Quero que tu pregues.

—Quando é? Na quarta dominga? Tenho que fazer, vou aos de Bouro.

—Não principies já com lonas. É na terceira dominga, homem.

—Então posso.

—Mas Souséca! eu quero um sermão novo em folha. Posso-te dar quinze
moedas.

O padre Silvestre reflectiu e disse:

—Valeu. Escrevo hoje mesmo ao Germano, o Germano das bochechas grandes.
Conhecel-o? Quero que elle me empreste um que lhe enviaram do Porto e
que fez grande barulho em Guimarães quando lá o pregou, ha dois annos.

—Mas, porque é que tu não o escreves? Com o teu talento...

—Escrevo sim; mas é para me inspirar. Tu bem sabes que estas coisas são
sempre as mesmas. Está tudo sabido, já se não póde inventar. A questão é
de _modo_. Percebes abbade?

       *       *       *       *       *

No sabbado, vespera da terceira dominga chegou a Refuinho o pregador.
Foi-se hospedar na _Residencia_. A sua entrada na aldeia foi celebrada
com alegria pelo ajuntamento de povo, que estava no adro da egreja e até
haveria repiques e foguetorio, se não fôra tempo santo de quaresma.

O Agrella, que ajudava o armador de Braga, veio dar ao padre Silvestre,
um aperto de mão, affectuoso e familiar.

—Cá andas tu como o peixe n’agua—disse-lhe o pregador.

—Não ha remedio senão dar um gaudio á raparigada—respondeu o alfaiate.
Muito estimei vel-o por cá, meu senhor. Ha que tempos!... Temos ahi uns
_Passos_ d’arromba. Não haverá outros, cinco leguas em redor.

O padre Silvestre saudava a todos de cima da burra. Os semblantes dos
camponezes eram risonhos, como se tractassem d’um noivado. Este rumor
attrahiu o abbade que se chegou á janella. Ao avistar o seu antigo
condiscipulo, gritou-lhe:

—Eh! Souséca! Sobe para cá diabo.

Mas foi elle que veio abaixo, de tamancos e meias de lã, envolvido no
amplo capote. Tomou o hospede entre os braços, apertou-o com amisade.

—Já me tardavas, maroto!—disse. Vou-te mandar pôr a ceia. Ó
rapariga!—gritou para cima—Elle cá está.

No alto da escada, appareceu a Joanna, de lenço vermelho cruzado sobre os
seios magnificos, e expondo, á vista de todos, a optima carne dos seus
braços.

—Então uma fornada, ein?—perguntou o pregador.

—Não ha remedio senhor reverendo capellão. A gente hade comer. Estou a
mettel-a no forno. Desculpe recebel-o assim.

Mas o padre Silvestre não era de ceremonias. Estava acostumado. Em casa
de sua mãe, nos tempos felizes em que vivera na aldeia, era a mesma
coisa. O trabalho primeiro que tudo. Faz a gente forte. Deu-lhe um
abraço de satisfação, fazendo muito gosto em sujar o capote, sobre o
lenço enfarinhado e os braços roliços, cheios de massa. A rapariga riu
estrondosamente, entregando-se-lhe com facilidade. O abbade, fingindo-se
suspeitoso, observou:

—Cautelinha, cautelinha, sôr Souséca!...

Tudo era levado á boa parte e sem malicia. O padre Silvestre pediu
tamancos e meias de lã, que tinha os pés gelados. Oito horas de
diligencia e a cavallo era de morrer. Se viesse alguma chuva não faria
mal nenhum, pois amaciava.

—Não imaginas abbade, como elle corta lá em cima, ao dobrar o monte.

—Imagino, imagino. Bastas vezes o tenho levado pela fucinheira. Mas toma
lá uns soccos e as meias e vem pr’o lume. Ceia-se alli mesmo.

       *       *       *       *       *

Pouco depois, pozeram diante do pregador a sua gallinha, salpicão e
a tigella de bom caldo, fumegante e appetitoso. Nos tempos em que ha
muito serviço divino, não se usam jejuns para quem prega ou canta. Tem
dispensa, bem merecida; pois que alguns, como o padre Silvestre, andam de
terra em terra, levando a palavra sancta, para converter peccadores. É
uma lida de seis centos demonios. Ganha-se dinheiro; mas não vale muito
a pena. Se os obrigassem a comer sardinhas, morriam no fim da quaresma.
Era Christo a subir ao ceu e elles a descerem á cova. Jejuns são para os
brutos, para os fortes, que não tem de puchar pela cachimonia.

—Cá na minha—affirmou Joanna atiçando o lume—se nós somos tão tapados é
por causa da brôa e do bacalhau.

O abbade, que estava estorcegando a sua posta sobre o prato, levantou a
cabeça para dizer:

—Olá, princeza. Vou-te mandar vir carne da villa, para tu comeres.

—E olhe que me havia de fazer bem, ao meu rico peitinho—confessou pondo a
mão sobre os proeminentes seios. Ao trabalho que lhe tenho.

O abbade continuou troçando:

—Ora sempre a gente vé coisas! Não te me faças lesma. Dá p’ra cá a infusa
e deixemo-nos de contos.

Mas o padre capellão fallou sério, explicando. O seu trabalho n’essa
quaresma era extraordinario. Em seguida a esse sermão, tinha outros.
_Passos_ em Bouro e toda a semana sancta em Amares, onde tinha de pregar
o do _lava-pés_, o do _enterro_, o de _lagrimas_ e o da _ressurreição_,
que é sempre uma predica demorada e cheia de conceitos.

—Pois sim—considerou o abbade—mas este d’amanhã é que mais te custa.

—Podéra! Tambem é o de mais pucho. Levou-me oito dias a compôr e oito a
decorar. É todo novo, acredita.

Tinham-no prevenido que, para o ouvir, viria gente de longe. Só em casa
do Guimarães, uns trinta hospedes—pessoas do Porto, de Braga... o diabo.
Mostrava-se preoccupado com o exito. Tinha medo que lhe esquecesse algum
d’esses trechos flamejantes, em que firmava orgulho litterario. Peça
meditada, feita com reflexão e calculo. Havia a bem conhecida passagem do
centurião, convertido por um toque de divina graça. O padre Silvestre não
julgava isto muito moderno; mas foi o abbade que lh’a exigiu, por saber
que era do gosto dos ouvintes e principalmente do bemfeitor. No emtanto,
entendia o pregador, que essa passagem produziria bom effeito, se fosse
convenientemente ensaiada.

—Quem tens tu ahi para centurião?—perguntou ao abbade.

—Um rapazote da freguezia. Boa figura, alto!...

—Pois hei-de-lhe querer fallar. Que venha cá amanhã de manha. Bem sabes
que isto tem o seu boccado de theatro.

       *       *       *       *       *

No dia seguinte o pregador estava a repetir o sermão na horta da
_Residencia_, passeando n’um carreiro, por cima do muro. O sol aquecia-o
agradavelmente por um lado, a sombra do seu corpo estendia-se na relva,
sobre a qual os gestos se lhe reproduziam mais amplos e magestosos!
Uma pobre cerdeira, despida de folhas, é que lhe servia de referencia.
D’aquelle lado era o Calvario, com a dolorosa imagem de Christo, vergado
sob a cruz. O povo estava em baixo, oppresso e contricto. A Virgem mãe, á
direita, banhada no pranto redemptor. Os verdugos, os da guarda romana,
os discipulos e todos os amigos de Jesus, lá os significava na vertente
do monte ignominioso, que no caso presente era um alcouve de cor alegre.

No meio d’uma apostrophe clamorosa, quando de braços abertos e solemne
chamava o divino soccorro, foi interrompido por uma voz:

—Senhor reverendo pregador?—chamaram.

O sacerdote, voltou a cabeça, conservando suspenso o gesto e perguntou
impaciente:

—Que diabo queres?

—Vossa Senhoria não me mandou chamar?

—Eu!

—Cá o nosso abbade é que disse.

—Ah!—exclamou, deixando cahir os braços. És o centurião?

—Entendo que sim—confessou o filho do Cancella.

       *       *       *       *       *

Disse-lhe que se approximasse. Explicou-lhe o caso. Em certa altura do
sermão, tinha de quebrar a lança, e prostrar-se de bruços, soluçando,
como peccador arrependido. Jesus Christo alli estava, coberto
d’opprobrio. Todos o tinham insultado no caminho do Calvario; porque
estava nas escripturas que assim devia ser. Elle, centurião, tambem
maltractára o sublime prisioneiro, dando-lhe com a lança e chasqueando-o.
Depois é que lhe veio um toque de luz divina e arrependeu-se.

—Tu entendes—explicava. Toque de luz divina é assim como uma pontuada
sobre o coração. Entendes? Diz lá.

—Entendo muito bellamente, senhor reverendo pregador. Eu já figurei
n’outros _Passos_, lá p’ra Monção—acrescentou com sorriso experimentado.
Mas senhor reverendo pregador, Vossa Senhoria, quer que eu me arrependa,
logo á primeira que mandar?

—Porque?

—Eu á primeira... á primeira... não queria—explicou, coçando a nuca. É cá
por causa da rapaziada, que depois chama podrico á gente.

—Ah! isso não tem nada. Lembra-te que estás deante do rei dos reis e
do senhor dos senhores. Mas não te rendas logo... logo... Olha bem
para mim—detalhou com bondade. Ao primeiro _rende-te_ eu pego no
lenço que está do lado da porta, levo-o á bocca, e torno a collocal-o
no mesmo sitio. Tu reparas em mim, dás uma sacudidella aos hombros,
assim, e continuas lá no teu posto. Eu fallo muito ainda. Ao segundo
_rende-te_, repito o caso do lenço _mudando-o então_—sublinhou—para o
meio do pulpito, d’esta maneira (Pegou no seu lenço de paninho vermelho,
conservou-o segundos pendente da mão e depois collocou-o sobre um triste
ramo de vide). Tornas a atinar comigo, um pouco mais sério do que da
primeira vez; nova sacudidella de hombros, e continuas lá na tua vida.
Sim, porque tu és um grande peccador e a divina graça não te póde tocar
assim do pé p’ra mão. Entendes isto?

—Muito bem, senhor reverendo pregador—affirmou o filho do Cancella, com o
queixo agarrado na mão direita.

—Mas ao terceiro _rende-te_—accentuou significativamente o padre
Silvestre, espaçando as syllabas—quando eu mudar o lenço para o lado do
altar mór, tu reparas em mim, com olhos muito arregalados, como quem
sentiu que lhe entrou alguma coisa no corpo; se quizeres dás um grande
berro, quebras a lança no joelho, atiras-te ao chão de bruços, finges
que choras (se te dér p’ra isso, choras realmente) e dizes alto: «Perdão
Senhor! Perdão! Perdão! Perdão!»

O rapaz pronunciou:

—Perdão Senhor! Perdão! Perdão! Perdão!

—Isso mesmo. É para o povo repetir: «Perdão senhor, perdão, perdão» e
chorar muito, como é costume.

—Entendi muito bellamente. O peior é se depois me chamam, cagarola e
podrico, que me levo de mil demonios.

—E que chamem?—observou o pregador. Então queriam que tu te não
arrependesses, depois de tocado pela divina graça? São uns brutos.

       *       *       *       *       *

Logo de manhã principiára a affluir gente que vinha de longe. A egreja,
os andores e o que se dizia dos anjos era um pasmo! A musica, logo que
chegou, foi tocar um hymno e duas polkas á porta do senhor Guimarães,
que veio á janella, com toda a sua respeitavel familia e hospedes,
palitando-se soberbamente. Zé Maximo, o homem das occasiões, levantou um
viva ao seu compadre e amigo, que foi correspondido atirando-se chapeus
ao ar. De tarde, antes de sahir a procissão, a musica voltou para o
beberete, que lhe foi servido no quinteiro. Houve vinho do Porto em
calices, quatro broas de pão de ló partidas á mão. Para os figurantes,
que estavam todos vestidos na vasta salla da tulha, á espera do momento,
foram enviados dois cabaços de vinho, meia duzia de brôas de pão de ló,
outra de garrafas de Porto e um cesto de cavacas. Houve por este motivo
grande barulho e algazarra dentro do casarão da tulha.

Foi a propria esposa do senhor Guimarães, que teve a delicadeza de
lhes ir encher os primeiros copos, como signal de apreço e um rasgo
democratico na sua vida faustosa. Os rapazes d’aldeia sentiam-se
engrandecidos dentro dos seus fatos galileus e romanos. As tres Marias e
a Veronica, apenas levaram aos beiços os copos de vinho, com medo de se
descomporem nos vestuarios. Os anjos, sentados em duas bancadas, comiam
gulosamente rebuçados, babando-se pelos cantos da bocca. Os irmãos do
Santissimo, encarregados de os acompanhar, vieram buscal-os para os
conduzir á presença do senhor Guimarães e dos seus hospedes, antes da
procissão. O destroço nas cavacas, no pão de ló e no vinho era feito,
pelo Velho Simeão, por José d’Arimathéa, por Caiphás e Pilatos, que se
mostravam altivos; pelo Evangelista e especialmente pelo Centurião e os
seus doze romanos, que promettiam não sahir d’alli, em quanto houvesse
uma gotta nos cantaros e nas garrafas. O filho do Cancella, estava
arrogante, animando os seus com manifesto prejuizo dos superiores,
Caiphás e Pilatos, não obedecendo ás palavras judiciosas do piedoso
Simeão, que bebia menos por causa da barba, e recommendava aos outros
compostura:

—Olhem que tomam por ahi alguma carraspana! É melhor voltarmos cá, outra
vez, no fim de tudo.

—Isso é o que tu querias—retorquiu o Centurião. É dar-lhe, rapazes, até
lhe chegar com o dedo.

E de tal modo comprehenderam estas palavras, que ao sahirem da tulha,
Cancella e os seus homens, levavam todo o seu animo e arrogancia natural,
fortalecida pelo vinho.

—Grandissimo odre—disse-lhe com inveja o Simeão da barba, perdendo a
suavidade, que era da indole do seu papel.

       *       *       *       *       *

Os _Passos_ começaram pelas duas horas. O itinerario foi combinado de
modo que primeiro que tudo passassem á porta do senhor Guimarães, que
seguia o andôr principal, como festeiro. A todas as senhoras que estavam
á janella da sua casa d’azulejo, em especial a sua esposa, fez uma larga
reverencia, passando ao mesmo tempo a mão na barba. Uma das coisas que
mais impressionou a gente postada nos valados, foi o terem os anjos
azas! Isso que concordava perfeitamente com o painel do altar mór, que
representava a Annunciação, nunca elles tinham visto! E iam todos muito
ricos, de setim branco e lentejoilas. Os melhores eram evidentemente os
vestidos em casa de D. Maria de Refuinho, apezar de que os da mulher
do sachristão e os da Lindoria, tambem não havia que lhes dizer:—ambas
tinham sido creadas de conventos em Vianna. Cada anjo distinguia-se pela
sua especialidade nas insignias de martyrio, em recordações da celebre
_paixão_; era a coroa de espinhos, o martello, as tenazes e os pregos
para crucificarem o Christo.

Havia dois que conduziam simulacros das escadas pelas quaes os verdugos
tinham subido aos braços da cruz. Um rapasote, com altivez para que
todos reparassem, sustentava na ponta d’uma canna a esponja que servira
ao fel e ao vinagre; outro era portador da lança com que se abrira o
sacratissimo lado. As chagas, em lacre vermelho, iam em salva de prata. A
Veronica, rapariga esbelta, mostrava com ar piedoso, no santo sudario, a
face penitente e ensanguentada do divino mestre. Quasi no fim iam as tres
Marias, todas a par, cobertas de gaze preto e logo a seguil-as, S. João,
o discipulo amado, com o queixo apoiado na mão esquerda. A Magdalena,
uma rapariga casadoira, de longas madeixas encaracolladas cahindo-lhe
nas espaduas nuas, caminhava em passo theatral, adeante do apostolo, e
significava limpar abundantes lagrimas, deitando de vez em quando um riso
de soslaio, ás pessoas conhecidas.

Entre os dois andores, o de Jesus vergando ao peso do madeiro, e o da
Virgem lacrimosa que implorava do ceu piedade, ia o Cyreneu resignado e
humilde logo em frente do Centurião, que commandava com arrogancia os
seus doze companheiros. Eram rapazes escolhidos entre os mais espadaudos
da visinhança. Orgulhosos dos capacetes prateados, das botas de montar,
dos mantos vermelhos e das terriveis barbas, sustentavam intemeratamente
as suas lanças, olhando em redor com provocação. O José Cancella
levando a insignia da videira, atiçava-os com olhares tremebundos e
modos arrogantes de capitão. O povo manifestava-lhes a sua antipathia,
principalmente ao José. Chamava-lhe ladrão, carrasco, ameaçava-o com o
inferno. A Lindoria, não se teve que lhe não dissesse, quando elle passou:

—Barbas de chibo! Um tição por esses olhos é que tu querias!

Porém o Cancella, apesar de carrancudo, não respondia. Pelos modos,
parecia ter cabellos no coração, aquelle diabo—diziam todos. Os seus
olhares furibundos sobre o Christo, não podiam constituir um peccado?
Era realmente de mais. O Centurião do tempo dos judeus tinha a sua
desculpa, porque não conhecia Jesus; mas este já ouvira muitas vezes os
missionarios. Era fingido, bem se sabia, mas escusava de estar a fazer
arremessos de lança, sobre a imagem que ia no andor; porque a isso é que
ninguem o obrigava.

O atrevimento provocou da parte d’um visinho, um sarcasmo reprehensivo:

—Vaes-te ahi a fazer de chibante e logo rendes-te como um sendeiro!

—Não me puches—retorquiu o Cancella—porque se vamos a isso, arraso tudo a
pau.

N’este momento o _trombeteiro_ deu signal para continuarem. Ao longe
ouvia-se o alarido dos rapazes, que admiravam os prodigios de força,
tanto do que levava o guião como do que sustentava o estandarte, pois
eram bandeiras que pesavam muitas arrobas. A procissão seguia por uma
encosta, no cimo da qual haveria o sermão do encontro.

       *       *       *       *       *

Um limpido ceu de março cobria os campos, que principiavam a reviver
para a alegria primaveral das cores e da luz. O sol glorioso batia de
frente nos anjos, obrigando-os a piscar os olhos. As lentejoilas, os
galões e os adereços faiscavam com ostentação. Todas essas innocentes
crianças iam pomposamente levadas para o Calvario, pelos seus parentes,
que lhes forneciam rebuçados em abundancia. A multidão commentava com
amor a riqueza dos vestidos e as lembranças do martyrio. O som plangente
e dolorido da musica, alastrava-se pelas campinas. O sermão do encontro,
só commoveu algumas antigas beatas, que lagrimejaram encostadas aos
carvalhos do largo. O pregador era um velho de voz pigarrada e bochecha
cahida. Todos o conheciam e não lhe davam valor. N’esse dia memoravel,
quem absorvia as attenções, era o padre Silvestre, que viera de Braga.
Para o ouvir corriam os mais ageis pelo monte abaixo e atulharam a egreja
com enthusiasmo. Para os andores entrarem pediram auxilio ao Cancella
e aos da guarda romana. Á força de muito encontrão é que puderam abrir
caminho. Houve gritos, exclamações injuriosas; mas as confrarias, os
anjos e mais figuras, tiveram os seus logares. Tambem, o Centurião e os
seus, foram logo, alli mesmo, pagos d’esse esforço, bebendo um cantaro
de vinho que veio para a sachristia. Depois que tudo se acommodou como
pôde, a egreja ficou silenciosa. A imagem do Redemptor e da Virgem
destacavam-se com energia, no horisonte do calvario, formado de nuvens
caliginosas. Havia anciedade pelo apparecimento do pregador.

       *       *       *       *       *

A figura grave do padre Silvestre mostrou-se no pulpito. Circumvagou
a vista, desde o guarda-vento até a repousar na imagem do Christo,
ajoelhado debaixo da cruz. O exordio foi longo, mas habilmente preparado
n’um crescendo de dôr. Seguiu a vida simples do filho do carpinteiro
de Nazareth, levando-o desde a malvadez de Herodes até ao baptismo no
Jordão. Mostrou-o predestinado pelas prophecias, para a sua divina
missão de soffrer o martyrio degradante que soffreu, por amor dos
homens. Anteriormente á vinda de Jesus, a humanidade vivia numa escura
masmorra, com porta, só para o inferno! As palavras da escriptura haviam
de cumprir-se e era preciso o sacrificio d’um Deus, para salvar o mundo.
_Elle_ encarnou, soffreu, demorou-se trinta annos distante da patria
celestial, para nos remir e dar exemplo. Nem que todos os homens vivessem
eternamente em penas afflictivas, poderiam pagar tão infinita bondade!
Por isso, na apaixonada peroração, o pregador, começou por considerar que
estando dentro d’aquella egreja, só miseros peccadores condemnados aos
rigores do inferno, convidava-os a que se prostrassem de bruços, para
pedirem perdão a Deus dos enormes peccados, que todos haviam de ter, no
logar mais intimo da alma.

Os gritos e soluços do povo sommavam-se, como elementos d’uma calamitosa
tempestade. A gritaria das mulheres, que davam bofetadas nos seus filhos
para os obrigar a carpir e conservarem memoria d’este sermão, esfusiavam
no ar como uivos de vento. O pregador, para tomar mais pathetico o
discurso, quil-o ornamentar com a conversão _d’um infiel_. O infiel
era o Centurião, o filho do Cancella, no qual ia experimentar o poder
extraordinario da divina palavra.

       *       *       *       *       *

Desde o principio se reconhecera, que o José estava casmurro; pois que, a
despeito de todo o povo chorar, elle sempre se mostrára atrevido, olhando
o pregador com altivez. Os seus soldados tambem o acompanhavam no ar
insolente. Algumas pessoas que estavam no segredo do que se passava,
attribuiam aquella chibancia ao ultimo cantaro de vinho. O pregador,
ignorante do facto, antes o julgou muito bem compenetrado do papel. Por
isso começou por pedir aos fieis, que o acompanhassem na exhortação que
ia fazer. Como as toupeiras que não tem olhos para a luz do sol, aquelle
desgraçado não tinha meio de presenciar o encanto da luz da divina graça.
Vivia em trevas infinitas, d’onde só podia sahir pelo enorme poder do
Senhor. E estendendo-lhe os braços paternaes, pediu suavemente:

—Rende-te Centurião!

—Rende-te Centurião!—acompanharam os circumstantes, n’uma voz chorosa e
precatoria.

O filho do Cancella, que passeava soberbamente no calvario, parou
cofiando a barba com magestade e affirmou resolucto:

—Não me rendo!

O Agrella, que estava alli perto, disse-lhe de modo que elle ouvisse:

—Não te rendes! Isso logo se verá meu pedaço d’asno.

Evidentemente, esta ameaça do alfaiate perturbou a vista do esforçado
Centurião. Por entre a longa barba, sahiu-lhe um bafo enfurecido de
colera, e se não fora a especial situação, era capaz de lhe quebrar a
cabeça com a lança.

O pregador, tendo limpo os beiços ao lenço, segundo a convenção,
continuou exhortando o infiel e pediu-lhe com mais instancia. Pintou,
deante do povo absorvido na sua palavra santa, o triste estado d’aquella
alma obcecada, recusando receber em si a divina luz! Empregou maior
energia de phrase, foi mais caloroso e persuasivo. O povo seguia-o,
supplicando com elle, levantando clamor cheio de lagrimas. Ao segundo
_rende-te_, quando o pregador mudou o lenço para o meio do pulpito, o
Centurião respondeu cathegorico:

—Não quero, não rendo!

—Á terceira nós veremos—afirmou de novo o Agrella, que estava certo do
que se passara entre o José Cancella e o pregador.

       *       *       *       *       *

O padre Silvestre investiu no ultimo pedido, dando-lhe a forma de
objurgatoria. Para ser mais solemne, começou em tom simples, subindo
gradualmente até ao intimativo.

Já via na fronte do Centurião um principio d’arrependimento. O grande
Deus ia feril-o com um d’esses raios de divina omnipotencia, como ferira
Paulo na estrada de Damasco, como ferira o impio Agostinho, e o proprio
Moisés na montanha. Não podia consentir-se que vivesse entre christãos,
uma alma peccadora e impenitente. A conversão havia de dar-se a preço da
propria morte, porque o Senhor usa de todos os meios, para chamar a si as
almas!

O filho do Cancella, perseguido d’ameaças, não se commoveu. Porém, quando
o pregador o equiparou aos grandes santos, já parecia amollecido no seu
espirito de resistencia. O povo chorava e clamava em altos gritos, o
peito enchia-se-lhe de ternura e arrependimento. Talvez fosse melhor
acabar com aquillo, prostrar-se por terra, como tinha promettido. O
pregador mudou o lenço para a direita e concluiu com voz energica e grave:

—Abre esses olhos peccador! Rende-te Centurião!

—Agora!—intimou o Agrella.

O chefe da guarda romana fixou no pulpito um olhar atrevido. Julgou-se
indigno da fama que tinha de valente se obedecesse á voz do Agrella. O
vinho dava-lhe coragem e audacia. Tomando a lança ás duas mãos, bateu
uma forte pancada no pavimento e respondeu ao pregador:

—Tenho-os bem abertos. Não me rendo! Não e não! Obrigue-me!

       *       *       *       *       *

Depois d’isto a situação ficou inteiramente perturbada. O padre Silvestre
teve uma paragem de surpreza. Não sabia o que aquillo queria dizer. Teria
havido algum esquecimento ou engano?! Para que o rapaz percebesse melhor,
tornou a pegar no lenço, suspendeu-o no ar e collocou-o á direita. Á voz
imprecativa do sacerdote, juntava-se o clamor plangente e formidavel do
povo. Pois que! O filho do Cancella tinha duvida em reconhecer o enorme
poder da Omnipotencia! em se rojar diante do Senhor dos Senhores, do Rei
dos Reis! em reconhecer que o Immaculado Cordeiro veio morrer fragilmente
na forma humana, só para nos remir e salvar! Estranha e incomprehensivel
cegueira! Empedernido no peccado, devia estar aquelle coração. E
pediu-lhe de novo que se rendesse, que attendesse á commovente voz de
todas aquellas mulheres que o exhortavam e no meio das quaes estaria sua
propria mãe.

As pessoas gradas pareciam irritadissimas. O brazileiro Guimarães
lembrou-se de o mandar prender; mas o desembargador João Xavier,
achou isso improprio do logar. Enviaram o Zé Maximo, que lhe disse com
moderação:

—Rende-te, diabo! Olha que o homem já está rouco.

—Deixe-o estar!—respondeu succintamente o Centurião.

Todos se mostravam inquietos. Semelhante cabeçudo, merecia boa doze de
páu—opinavam.

O pregador estava esfalfado. A sua voz, já pouco distincta, era coberta
pelo alarido que enchia a egreja! Ouviam-se supplicas, ameaças, palavras
soltas, gritos, creanças a chorar...

O filho do Cancella, de cada vez se inculcava mais firme, no proposito de
se não render. Foram pedir ao pae que lhe impozesse a obediencia; porém
o velho, que sempre tivera prosapias, mostrou má vontade de interferir.
Opinou que o rapaz se renderia quando entendesse, que o deixassem lá,
elle sabia bem do seu papel. Não era a primeira vez.

Tudo parecia perdido. O padre Silvestre, exhausto de forças, furioso
contra aquelle maroto, arrancou do peito um grito sublime. Com a colera
estampada no rosto, dirigiu-se ao povo, e apontou vivamente para o
Centurião clamando:

—Aqui d’El-rei! contra aquelle maroto! Prendam-no que foi elle que matou
Nosso Senhor Jesus Christo! Povo! Faz justiça por tuas mãos.

Os das confrarias largaram as tochas e correram em tropel. O chefe dos
soldados romanos preparava-se, juncto com os seus homens, para levarem
tudo á bordoada. Só então é que o velho Cancella se adeantou, agarrando o
filho pelo tronco:

—Eh! Zé. Que diabo é isso! Rende-te que já fizestes a tua figura, home!

Elle então, arrumando a lança para um canto, submetteu-se:

—Como vocemecê pede, vá lá! Se não ia tudo razo!

       *       *       *       *       *

Depois na sachristia, o Guimarães, furioso, disse-lhe:

—Precisavas que te mettessem um páu, entendes? Culpa tive-a eu em mandar
o cantaro de vinho. Não eras tu que fallavas, não.

O abbade, esse, mesmo d’estola, quiz-lhe esmurrar as ventas. O pregador é
que lhe agarrou n’um braço, socegando-o:

—Deixa-o. Quem lhe hade pôr uma farda ás costas, sou eu. Lá é que ellas
se pagam. Moinante!

O filho do Cancella, ouviu-os com ar sizudo, sem responder. A vista
toldou-se-lhe quando o ameaçaram. N’um impeto de colera, arrancou as
barbas postiças e arrumando com ellas ao chão, disse sahindo para fóra:

—Ainda um raio me parta se eu tornar a fazer de Centurião! Macacos me
mordam, se pozer outra vez isto na cabeça!

E atirou ao meio da herva do adro, o bello capacete prateado, que foi ter
a distancia.

O abbade, ainda se chegou á porta dizendo-lhe deante dos homens que alli
estavam:

—Ah! bom marmelleiro! Levem d’ahi esse odre de vinho, antes que eu lhe
ponha os ossos num feixe.

Em casa do pae, custou muito a socegal-o. Foi preciso deitarem-lhe uma
chapoeirada d’agua fria para o acalmar. O somno que dormiu, foi de mais
de doze horas!

    Fevereiro de 86.

[Illustration]



[Illustration]



A TRUTA GRANDE


Lá está o padre João, a dormir na sua cadeira de braços, debaixo da
fresca lata! Peito ao léo, as abas do amplo casaco de lustrina pendentes,
breviario para um lado, lenço para outro, caixa do rapé na mão, o ventre
arfando pausadamente... É todos os dias assim, depois de jantar, no tempo
dos calores. Para avaliar a tranquilidade de certas almas, é melhor
sentir-lhe a respiração suave, do que ler, tudo quanto pensadores e
casuistas, tem escripto acerca de moral. E julga-se um homem accordado,
o sereno eclesiastico, pois regouga palavras incomprehensiveis! Em
que bello paiz de sonhos trabalhará a sua ideia?! Sorri-se, o labio
papeja-lhe de contentamento... É que está á borda do rio, a canna de
pesca firme, o olho interessado, a respiração silenciosa. Rabea-lhe
em volta da isca e em breve a morderá, o peixe guloso e estupido. A
superficie da agua é serena. A transparencia deixa ver o fundo limoso e,
talvez, a truta grande, com a magestade do seu nadar, passe altiva, a
distancia.

Ah! magnifico padre João, como estaes evidentemente enganado! Os tremulos
e repetidos puxões que vos agitam o corpo, ebrio de goso, não são do
peixe a depennicar na isca, são as gallinhas em cata de moscas. Ellas é
que vos tiram pelas abas sebentas do casaco de lustrina, querido e obeso,
padre João!...

       *       *       *       *       *

O dia era d’agosto e bem quente. Atmosphera tremula e translucida, como
se fora de crystal fundido. No rio, as lavadeiras entoavam canticos
religiosos aprendidos com os missionarios e modas profanas colhidas
dos cegos que passavam. Nos campos em redor, áquella hora, não havia
murmurios do trabalho, pois já tinham acabado as sachas e as mondas.
As regas, essas faziam-se de noite. Eram duas da tarde e entram no
quinteiro os discipulos do latim. Ao verem o respeitado mestre, tão
docemente adormecido, deixam-no em paz e vão gazear para os lados do
rio. O porco foi menos condescendente. Tardava-lhe a lavagem e principiou
a grunhir em volta do quinteiro, parando com o focinho erguido para a
cosinha. Este barulho espertou o excelente ecclesiastico. Primeiro abriu
um olho, depois outro, conservando-se alguns minutos em contemplação,
mãos crusadas sobre o ventre. Parecia contar detalhadamente os doirados
cachos que formavam um docel sobre a sua cabeça! Por fim ergueu o tronco
considerando:

—Então não me ia deixando dormir?! Pois não é o meu costume. Ó
Luiza!—chamou repetindo tres vezes.

Uma voz de dentro da casa respondeu:

—Não posso lá ir. Estou a arranjar a lavagem. Não ouve o pórco?

—Tem piedade de mim, moça—exhorou o padre João. Tenho esta bocca como um
pau velho.

—Tambem, está sempre com seccuras!

       *       *       *       *       *

Mas a rapariga compadeceu-se. Primeiro que tractasse do porco foi á
adega, trouxe uma infusa de vinho, collocou-a desceremoniosamente no
chão, juncto do amo que disse:

—Deus t’o pague mulher! Deus t’o pague! Se não fosse isto, nem hoje podia
dar lições.

Com sorriso beatifico, pegou na infusa, repimpou-se na cadeira e começou
_glou, glou, glou_... até um final de saciedade, que consistiu n’um
prolongado ahhh!...

A creada, voltando com a lavagem, disse:

—Já ahi vieram os estudantes, mas como vocemecê estava de papo p’r’o ar,
lá se foram derriçar co’as raparigas p’r’o rio. Não lhe tem respeito
nenhum—censurou.

—Que respeito queres tu que me tenham?! Deixa-os lá, esta vida são dois
dias. Gostam das moças? Tambem eu já gostei... e ainda gosto—concluiu
arregalando olhos bregeiros.

—Um padre velho, sempre falla d’um modo...

—Historias! Velhos são os farrapos. Vae-me chamar esses estudantes. Se
não aprendem latim, não serão nada. Latim é a base. Vae-os chamar, anda.

E acabou de emborcar o resto da infusa, com um beber sereno de
satisfação. A creada reprehendeu-o:

—Todo elle é vinho. Quando não está, p’ra lá caminha.

—O que, bebedo? grandissima cachorra. É coisa que nunca me viste,
mentirosa. Gosto da pinga e de ti; mas não me embebedo com estas coisas.

—De mim! Arreda, que me quero casar.

—Com esse garotaço que te namorisca? Has-de casar sem banhos, nem benção,
eu t’o affianço. Vae-me alli chamar os estudantes, anda.

—Vá você, que tenho a massa a aziumar. Se hade tornar a adormecer...

       *       *       *       *       *

Luiza subiu a escada de pedra para a cosinha. O padre João levantou-se
sem resistencia, sahiu o portal e foi pelo carreiro abaixo, com o lenço
vermelho a resguardar-lhe a cabeça, do sol. Chegado á margem do rio, lá
viu os discipulos brincando com as lavadeiras. Muitas d’ellas levavam a
coisa de galhofa; outras enxotavam-nos com pragas. O professor não se
encolerisou, apesar de alguns estarem a fumar—o maior de todos os vicios,
e que elle odiava do fundo d’alma. Toda aquella alegria e mocidade lhe
arejou os sessenta annos. Enamorado da juventude, quedou-se a contemplar
o quadro cheio d’animação. Benevolo e risonho, fatiava comsigo mesmo.

—Não querem ver como se arreitam? Ora, ora, já a formiga tem catarrho!...

Levava o lenço ao nariz para enxugar o pingo da distracção. Escondido
por detraz d’um choupo, interessava-se na contemplação d’este quadro
virgiliano. Absorvia a fundos haustos o ar impregnado de terriveis
prazeres, que lhe revolviam os nervos. Recuava quarenta annos, ao tempo
das rapasiadas, dos bons acasos, quando apalpava contornos e sentia na
approximaçâo da carne, coisas de mil demonios. Talvez que ainda recuasse
mais, á famosa edade em que a imaginação trabalha inquieta, creando
gozos, adivinhando extasis e vive de imperiosos desejos, que entumescem.
A physionomia graciosa do padre João, expandia-se á vista do quadro
simples e primitivo—o beiço tremulo revelava o seu interior. A paisagem
era encantadora, a corrente da agua arrepiava-se nos seixos; na mente do
mestre de latim só podia haver quadros pittorescos de antigos faunos, a
rirem juncto de fontes, em florestas edylicas.

—Olha o Esteves—commentava—como repara nas pernas da Clementina!
Grandissimo tratante! Talvez não saibas o _Sum, és, fui_ e estás ahi
com esses olhos. Como já tem malicia! Mas que maliciasinha! mas que
maliciasona!

Limpou precipitadamente outro pingo. Humedecia os beiços com a lingua,
como o guloso de bellos manjares. Tudo aquillo o interessava. Sentou-se
na relva por traz da arvore. Tomou uma abundante pitada, fungada em tres
tempos, com todas as precauções para que o não presentissem.

—Ahh!!!...—respirou.

Queria ver onde aquillo chegava. Não podia ser grande coisa, estava
muita gente, as mulheres velhas são experientes. Alguma apalpadella,
um empurrão, talvez cocegas para fazer cahir as raparigas. Lá adeante,
no meio do salgueiral andava a Victoria a estender a roupa e cantava o
_Afasta_, _janota_, _arreda_. O padre João via-a pelas costas, o tronco
inclinado sobre a relva, as ancas largas, as rijas barrigas das pernas, á
mostra. Rapariga saudavel, muito alegre, amplo seio destinado a fecunda
maternidade. Disiam que namoriscava o filho do sachristão; mas de quem
ella parecia gostar verdadeiramente, era do praticante da botica, que
lhe dava fartura de banha de cheiro, para o cabello. Trabalhava distante
das outras lavadeiras, no coradouro, e para molhar as teias que lhe
estavam confiadas, mettia-se no rio até aos joelhos, atirando agua ás
manadas. O sol faiscando sobre a areia do seixal enlanguescia os corpos,
estonteava as cabeças. A Victoria desappareceu entre os salgueiros, para
os lados onde não havia gente. E pouco depois, o discipulo mais graúdo
do Padre João, o Thomaz do mercador, para lá se dirigiu, assobiando
disfarçadamente.

—Olhem o moinante! Não querem ver?—rugiu o mestre do latim.

Porem, mais longe, n’uma clareira, a moça, reappareceu. O padre d’alli
mesmo se pôz a vigiar, que não houvesse qualquer coisa. O estudante
encontrou-se com a lavadeira, quiz effectivamente agarral-a, mas a
rapariga esquivou-se-lhe, correndo adeante d’elle, furtando-se por
entre troncos d’arvores. O ecclesiastico para ver melhor, levantou-se,
seguia-os com prazer, inclinava-se para um lado e para o outro, punha-se
nos bicos dos pés.

A Victoria a dar gargalhadas condescendentes, gritava pelas companheiras,
ameaçava com um gougo o preseguidor. «E pilha-a.» «E agarra-a...»
«Agora... fugiu...» «Lá cahiram ambos...»—ia elle commentando, comforme
os cambiantes da lucta.

—O diabo é o Thomaz! Não escolheu mal o patifão—considerou, quando os
dois, junto um do outro, conversavam sensatamente.

       *       *       *       *       *

Mas o aspecto de conciliação perturbou-se. O estudante perseguiu de novo
a rapariga que lhe fugia, gritando. A Lindoria ouvindo, correu para o
sitio, cheia de fervor beato.

Ralhou, esbracejando descompostamente. A sua gritaria era para denunciar
o rapaz, ao longe: «Maroto, metta-se com quem lhe der trela, não
ande a desinquietar as almas». Ameaçou o estudante com o pae, com os
missionarios, com uma queixa ao professor, com o inferno.

—Ah! tambem não é coisa para tanto—disculpava o sacerdote comsigo. Elle
não fez mal nenhum.

Mas Lindoria não era d’este modo de pensar. Como Thomaz e outros
companheiros lhe retorquiram com palavras feias, ella enfurecida e
descomposta, subiu pelo carreiro, mesmo direita á casa do padre João. E
berrava pelo caminho:

—Seus tratantes. Hão de dar grandes padres ou doutores. Padres!
Abrenuncio! Eram capazes de dar cabo do reino dos céus. Ah! Vossa
Senhoria já ahi vem? É que ouviu esta pouca vergonha!

Tinha dado de frente com o ecclesiastico, que retrocedera no caminho,
para fingir que vinha de casa. A Lindoria, presumindo-lhe a ideia da
procura dos discipulos, indicou-lhos:

—Estão alli senhor. Tire-lhes a pelle das mãos pelo amor de Deus, pelas
cinco chagas, senhor padre João. Olhe que não sabe os marotos que tem!

A figura do mestre de latim, quedou-se respeitavel no alto da ladeira.
Com um gesto largo de commando, appontou aos discipulos o caminho da
aula.

Vieram todos junctos, como um cardume de peixes. O sacerdote caminhou
adeante, sem os esperar, com o lenço vermelho pela cabeça, as abas do
casaco afastadas como dois remos. E susteve-se um momento voltando-se
para traz, com o fim de os increpar:

—São estas as horas d’aula? Eu ha um rôr de tempo á espera!...

A beata ainda lhe quiz contar tudo, mas o padre João nem a quiz ouvir:

—Não me dás novidade. Conheço-os. Deixa-os por minha conta.

Os estudantes seguiram-no, com semblantes de pouco temor. Já tinham
experimentado mais vezes aquella farronca. Eram, quasi sempre, os dias
mais serenos e benevolos.

       *       *       *       *       *

Debaixo da varanda alpendrada, onde o ecclesiastico dava lições de verão,
que se iria passar?

O padre João fazia um barulho da breca. Movendo-se com uma presteza
desusada, foi ao quarto buscar a palmatoria, para amedrontar. Não se
queria ver entre os dentes de Lindoria, que era capaz de lhe inventar
a peior fama. Aquellas paredes e aquella figueira, habituadas ás
objurgatorias tytanicas de Tito-Livio, aos versos amplos do melodico
Virgilio, ás palavras conceituosas do velho Horacio e de Esopo, deviam
estar atemorizadas, pela subita colera do professor.

Chegou a parecer iracundo—o sobr’olho carregado, os beiços estendidos, o
rosto afogueado. Os rapazes curvados sobre os livros, já se não riam. O
padre, abrindo o Virgilio, disse desabridamente:

—Tradusa as Eclogas, senhor Magalhães. O senhor Thomaz emenda. Por cada
erro uma palmatoada no primeiro e duas no segundo. Vamos a ver se são tão
fortes em analyse, como na bregeirice.

Os mais pequenos, com as grammaticas abertas sobre os joelhos, estavam
pallidos! Nunca o tinham visto assim! Respirava-se alli uma atmosphera de
terror. O mestre tinha baforadas de colera, batia com a palmatoria sobre
a meza, arrumava os livros com impeto. O seu fim era crear em volta de
si, um ambiente de respeito.

A consciencia gritava-lhe que não seria bastante punidor; mas estava
resolvido a amedrontar a propria consciencia.

Para estabelecer uma intransigencia material entre si e aquelles que ia
julgar; para se recolher absolutamente no grave papel de juiz, cobriu
o rosto com o Virgilio. Não desejava ver os reus. Nenhum aspecto de
humildade ou compuncção o tocaria!

       *       *       *       *       *

O Thomaz era o melhor dos seus estudantes. Traduzia Virgilio com
elegancia, penetrando-lhe as subtilidades litterarias. Foi elle quem
principiou a licção e não o Magalhães, como ordenára o professor. O
padre João conheceu a manha. Deixou-se enganar, até lhe achou graça. Um
ligeiro sorriso (o primeiro na tempestade do seu rosto), abriu-se como
uma flor de cacto. As paisagens tepidas e enganosas, d’uma suavidade
extensa, principiaram a desenhar-se-lhe deante dos olhos. Tityro e
Melibeu philosophavam na sua linguagem culta e suave, como o murmurio dos
regatos. A pastora das florestas, idyllicamente á sombra das arvores,
dizia do seu peito coisas ternas ao pegureiro amado, que tangia frauta
rude, juncto d’um ribeiro. O verso sahia claro, levantando-se n’uma
cadencia adormecedora. Havia as messes côr de manteiga, enchendo de
riqueza o valle; na encosta estendiam-se rebanhos de cordeiros, que
balavam por suas mães. Esta completa abstracção de materialidade, foi
gradualmente enternecendo o mestre encolerisado.

Ao fim de poucos minutos, já respirava uma atmosphera de bondade
natural; havia descoberto o rosto incauto. Não déra pela transição.
Foi acompanhando em voz alta o discipulo que em breve o deixou só,
limitando-se a ouvil-o. Pouco depois, o professor estava de pé, no
meio da varanda, lendo com enthusiasmo, elevando-se nas maravilhas da
comtemplação egoista do poeta! Desapparecera o mestre iracundo, não havia
palmatoria. Boquiaberto, deante dos discipulos, exclamava:

—Como isto é bello! Como isto é bello!

Foi-se á caixa do rapé, tomou farta pitada, fungou-a sem rebuço, de
pernas escachadas. Cahiu extenuado de prazer, na sua cadeira magistral.
O Thomaz, que era velhaco, aproveitou o momento para dizer:

—Não sabe o senhor padre João, o que nós vimos ha boccado?

—Que foi?—perguntou.

—A truta grande, a serenar, encostada á pedra branca!

Tornou-se pallido e extatico! Endireitou-se na cadeira e disse,
esforçando-se por se mostrar tranquillo:

—A truta grande, que anda ahi no rio!?

—Vi-a com estes.—insistiu o discipulo. É assim!— designou o comprimento
d’um braço.

       *       *       *       *       *

Estes maliciosos conheciam-lhe o fraco, como toda a gente. Muito mais do
que apaixonado amante dos classicos latinos, era um pescador de canna.
Esta paixão soturna é que lhe enchia a existencia. Por ella esquecia
deveres sacerdotaes, obrigações escholares e a propria comida. Borracha
á cinta, um naco de brôa, azeitonas... e lá andava um dia inteiro, pela
margem do rio, para baixo e para cima, a cocar. Principalmente se o peixe
picava, se enchia o cacifre, o seu gozo era infinito. Só para algum
_Senhor fóra_ é que tinham ordem de o chamar, com tres badaladas no sino
da torre. Esta ideia d’um moribundo se preparar para ir á presença de
Deus, era mais forte. E resmungava ao enrolar a sedela:

—Como é para coisa d’estas, não ha remedio.

N’estes termos, habil foi o estratagema dos discipulos, para se lhe
apoderarem do espirito benevolente, e conseguirem o sueto que desejavam.

O caso, apontado pelo Thomaz, era grave. Havia annos que elle, ao
desafio com o morgado da Torre Velha, procuravam a gloria de pescar a
famosa truta grande! Era um animal matreiro, raramente se mostrava fóra
d’um fundo poço, onde as redes se não arriscavam.

Juncto da pedra branca, só a tinham visto, duas ou tres vezes.
A revelação do discipulo fez com que o padre João desconhecesse
immediatamente os encantos bucolicos de Virgilio, as pompas litterarias
de Tito-Livio. Deante de si, não tinha o criminoso que minutos antes
lhe arrancára berros de colera; só via o individuo, que possuia um
conhecimento para elle inestimavel.

—Então era a truta grande! Tu vistel-a bem?! Tu conhecel-a?!

—Se vi! Se conheço! Estava a serenar muito junctinha á pedra. Quando
vinha á tona algum bichinho a rabear, ella nadava depressa e, zaz,
abocava-o, dando um pulo fóra d’agua.

—Oh! com mil demonios!—exclamou.—Oh! minha Virgem Santissima, que lhe vou
metter o anzol, mesmo na guela!

E depois um pouco mais sereno, no abatimento produzido por uma onda de
gozo considerou:

—Ha quantos annos ando eu atraz d’essa ladra! O dia hoje está quente...
Sol de trovoada, é bom p’ra coisa! Que dirá o D. Luiz, quando souber?...

Mostrava nas palavras verdadeira energia de luctador; o seu campo de
batalha era aquelle.

       *       *       *       *       *

De entre muitas cannas, suspensas ao longo da parede da varanda, escolheu
a que tinha ponteira mais flexivel e resistente. Da gaveta da sua banca
de professor, tirou uma sedela de côr verde-agua.

Calculava tudo para ficar victorioso, n’esta peleja que durava annos.
Alli não havia mestre, nem discipulos. Os rapazes davam-lhe conselhos,
offereciam-se para ir ás minhocas, e o Thomaz achou muito grossa a sedela:

—És tolo—retorquiu o mestre. Não ves que é uma truta do tamanho d’um
savel! Se a apanho, vocês tem feriado tres dias! Como ficará o D. Luiz?
Ai! que regalo.

O morgado da Torre Velha era o seu competidor na pesca á linha.

Encontravam-se frequentemente n’este desafio tacito. A cada peixe que um
encacifrasse, o outro fazia um cumprimento espalhafatoso, mas odiento.
Ambos se julgavam com eguaes direitos, á creação de todo o rio. A truta
grande, porém, como um e outro tinham jurado apanhal-a, era motivo de
mais grave conflicto. Por causa d’ella tinham feito pesquizas especiaes.
Iam de noite, de dia, nas occasiões das cheias para juncto da azenha;
porque, de vez emquando, o formoso animal vinha-se alli refrescar, nas
aguas correntes.

       *       *       *       *       *

Estudavam em separado, os estados climatericos, para calcularem o
momento proprio de conseguirem o seu fim. Quando a qualquer d’elles
parecia opportuno, tomava a canna precipitadamente, e ainda que o jantar
estivesse na mesa, abalava para o rio. Muitas foram as desillusões,
fadigas e contrariedades; mas tudo venciam com tenacidade heroica. A
dormir e acordados tinham momentos de subito terror: cada um via o
outro, apparecendo victorioso, com a truta presa do anzol, usando de mil
habilidades para a trazer á margem, sem partir a sedela. Porém n’esta
occasião o mestre de latim (talvez ainda resto do espirito de rigorismo
com que entrára na varanda) entendeu que devia continuar as licções e
disse encostando a canna ao canto:

—Vamos primeiro acabar as licções.

Os discipulos entreolharam-se aterrados! Por esta é que elles não
esperavam. A lembrança feliz não sortira effeito. Uma risonha invenção,
reduzida a nada. O plano de irem roubar n’essa tarde certas uvas
doiradas, completamente gorado! Todos os rostos se voltaram para o
Thomaz, que estava cabisbaixo e confuso. Porém, neste apuro, foi o sonso
do Esteves, que fallou:

—A estas horas, já está por lá o senhor D. Luiz, com a sua canna...

O padre João, deu um pulo na cadeira e perguntou rapidamente:

—O senhor viu-o passar!?

—Não senhor; mas no outro dia pediu ao moleiro que, quando ella por alli
apparecesse, o mandasse chamar.

Era quasi tão terminante como se o tivessem lá visto. Seria mais acertado
partir immediatamente, antes que o da Torre Velha tivesse denuncia.
Tornava-se indispensavel tomar-lhe a deanteira.

—Bem, bem... Essas licções na ponta da lingua para amanhã. E não me
vão para o rio, por causa das lavadeiras. Não gosto da lingua da tal
Lindoria, que vae por ahi badalar... badalar...

       *       *       *       *       *

Partiu de canna ao hombro e n’um passo diligente. _Deus nobis heac otia
fecit_—segredava comsigo. Os discipulos fugiam para o outro lado, com
medo que ainda lhe desse a tineta, de voltar para traz. Corriam pelos
caminhos, davam saltos, guinchos... O Thomaz relembrou-lhes o que disse
o padre João, porém elles, não se importaram, continuando a correr e a
gritar sem fazerem caso.

Na margem do rio, o sacerdote, armou-se de todos os cuidados para não ser
presentido do esperto animal. Ao dirigir-se á pedra branca, os passos
eram miudos, evitando as folhas seccas, que gemem debaixo dos pés.

Que enorme prazer de vingança! Iria passar á porta do morgado, com
a truta pendente da mão. «Olha lá! rala-te p’ra’hi!»—havia de dizer
mentalmente. Nunca houve bandido que espreitasse com mais sagacidade a
sua victima.

Já de longe levava a canna prestes, a sedela colhida na mão para a lançar
imprevistamente. Estava a pouca distancia, quando estacou, pallido de
colera! O D. Luiz, surgíra n’esse momento da porta da azenha, seguindo
rio acima com o anzol tambem prompto!

—Olhem o excommungado do barbaças que teve denuncia!—exclamou o
ecclesiastico. Bem disseram os rapazes!

O fidalgo, homem edoso, corpulento, tez morena das soalheiras, olhar
emprehendedor, tambem o viu e, provavelmente, faria identicas reflexões.

Comprimentaram-se com sorriso desdenhoso e n’esse instante abriu-se entre
elles uma lucta colossal.

Estavam quasi a mesma distancia. Approximarem-se atabalhoados era
inconveniente. Tanto um, como outro comprehenderam a gravidade do
momento. O peixe era um só e decerto não teria a condescendencia de
pegar nos dois anzoes ao mesmo tempo. O padre João humildou-se. Fez ao
inimigo um signal em que pedia uma tregua, com o fim de parlamentarem.
As circumstancias exigíam prudencia e ambos se afastaram da margem, para
virem á falla.

O padre disse primeiro:

—Assim não póde ser, morgado. Nem p’ra mim, nem p’ra Vossa Senhoria!

—Que quer você que lh’eu faça? O rio não é grande?

—Mas a truta é uma, e se vamos á porfia escapule-se. Vossa Senhoria sabe
que ella está alli.

—Palavra que não! Porque diabo não está você a dar aula aos seus rapazes?!

O sacerdote, zangado comsigo por lhe ter denunciado a truta, não pôde
supportar-lhe a censura:

—E porque diabo não está o senhor a dormir a sua sesta! Ora é muito fina!

Estavam furiosos um contra o outro; mas a occasião era inopportuna para
se descomporem. N’esse momento, juncto da pedra branca, a superficie do
rio enrugou-se, a agua espadanou e um peixe enguliu um insecto que vinha
nadando.

—Seria ella?—rugiu o D. Luiz, com vontade de matar o padre.

—Ná...—opinou este fazendo-se forte—Ella ha de fazer mais mossa.

No fundo ambos acreditaram que podia ser. «Maldito sotaina!» «Maldito
barbaças!»—insultaram-se mentalmente.

—Bem—disse o padre. Dois ao mesmo tempo é que não póde ser. Quer Vossa
Senhoria que se tire á sorte quem ha-de ir?

—Valeu—concordou o fidalgo.

D. Luiz tirou um pataco do bolso e perguntou:

—Cruzes ou cunhos?

—Cruzes que eu sou padre. Agora trapaceie, se lhe parece.

—Não tenho os seus costumes, seu bebedo!—respondeu o fidalgo, mostrando
na palma da mão as cruzes da moeda.

E atirando ao ar o pataco com força, viram-no cahir a distancia. Os dois
pescadores correram cheios de commoção.

—Cunhos!—gritou o morgado ao ver a papuda efigie do rei D. João VI.

       *       *       *       *       *

O padre João acceitou resignado a sentença. Encostou a um valado a canna,
tirou prodiga pitada da caixa de prata e foi-se sentar n’uma pedra
trauteando cantochão, talvez pela mesma razão que tem os condemnados á
morte, para pedirem que rufem os tambores, junto do cadafalso. D. Luiz
augmentava-lhe o supplicio, caminhando vagarosamente para a margem. Dois
annos de pesquizas e cuidados iriam terminar n’aquelle instante, pela
victoria do seu adversario? Desappareceria aquelle tropheu de gloria, que
lhe dera tantos sonhos enthusiastas? Principiou a cantar alto, desvairado
por um sentimento de malevolencia. O da Torre Velha advertiu-o:

—Isso é para espantar, padre João?

Callou-se ficando n’um abatimento triste.

Ia presenciar a sua vergonha. O dia estava magnifico. Com ar de trovoada
o peixe pica, que nem mil diabos! E figurava-se-lhe na imaginação a truta
grande de guela aberta, aboccando a minhoca do barbaças. Era horrivel e
desoladora esta possibilidade!

Mas porque é que o cubiçado peixe não havia de fugir? A maior parte das
vezes é o que succede—consolou-se. A elle mesmo não lhe tinha acontecido?
Ella a serenar, a serenar, muito quietinha, deante dos seus olhos,
nem parecia coisa viva... Procurava o lado de cima, lançava o anzol a
distancia para vir nadando pela agua a baixo como um bicho inexperto, e
afinal, a truta que para elle era o animal mais intelligente da creação,
escapulia-se por entre os penedos, que era um regalo! Quantas vezes isto
lhe succedera? Uma infinidade.

       *       *       *       *       *

Ainda outra consideração:

O morgado não era grande pescador de linha. Ignorava muitos segredos
da arte sublime e não possuia todos os petrechos. Teria elle escolhido
uma sedela bastante verde-agua para não ser percebida, e bastante forte
para resistir aos repellões do valentissimo animal?! A truta é o peixe
mais valente do rio, tem uma força que poucos apreciam. Talvez o seu
antagonista não soubesse calcular essa rijeza—considerou.

Porém a gravidade do caso parecia ter dado ao D. Luiz uma intelligencia
agudissima. Atirou calculadamente o seu anzol e seguia pela margem, com
o olho álerta e prompto a dar a pancada, logo que chegasse o momento.
O padre João teve vontade de fingir uma dôr, só para o perturbar. A
anciedade do seu peito, crescia tumultuariamente, como oceano em furia.
Aquella alma bondosa, teve a ideia repugnante de desejar uma apoplexia
ao fidalgo! Mas reconhecendo-se criminoso, por este mau pensamento,
poz o coração á larga, tornou-se magnanimo e até, mentalmente, pediu a
Deus, que deixasse o morgado pescar a truta grande. Mas o da Torre Velha
relanceou-lhe um olhar triumphante e o padre João, logo mudou de parecer,
rosnando:

—Ah! ladrão! que se ella te foge muito me hei de rir.

O instante verdadeiramente supremo ia chegar. O anzol já se podia
calcular perto da pedra branca.

Que infernal chamma abrazava o peito do ecclesiastico!? Poz-se de pé,
só para seguir nas minudencias toda a peripecia. O fidalgo, attento e
subtil, empregava o maximo da sua intelligencia.

Afinal, sente a pancada! Curva-se a ponteira! O peixe estava preso!

—Ah! grande maroto, que m’a roubaste—exclamou o ecclesiastico.

O instincto obrigou-o a ser generoso. Gritou ao D. Luiz:

—Agora é não a deixar fugir.

—Elle é o deixa—respondeu com orgulho, o da Torre Velha.

       *       *       *       *       *

Começou a lucta heroica entre o fidalgo e o peixe. O animal era valente,
podia quebrar a sedela, se o quizesse tirar sofregamente do rio. Tambem
podia acontecer rasgar-se-lhe o beiço ou metter-se debaixo d’alguma
lapa, se não tomasse precauções. Para obstar aos inconvenientes era
indispensavel cançal-o, com paciencia e perspicacia. Por isso D. Luiz
attrahiu-o a um logar conhecido, e alli o deixou rabear, defendendo-lhe o
mysterioso poço, onde a truta se podia enredar n’alguma raiz. Puchava-a
vagaroso e com delicadesa, consentia-lhe prudentes guinadas para o largo,
dava-lhe linha calculadamente.

Ao fim de cinco minutos, tanto o fidalgo como o padre João, reconheceram
que o peixe estava prompto. Condescendia, deixava-se ir para onde o
levassem, mostrava-se fatigado e manso.

O sacerdote, já resignado, seguia todas as manobras sem rancor.

—Ande que apanhou—disse. Puche-a para perto e deite-lhe a mão debaixo
d’agua, se não, ainda a vê por um oculo.

       *       *       *       *       *

O D. Luiz aproveitou o conselho.

Attrahiu manhosamente o peixe ao sopé do muro, para que lhe ficasse
debaixo d’um terrouço. Depois desceu; deitou-se de barriga, tão baixo
que as barbas lhe tocavam na agua; introduziu um braço, guiando-se
pela sedela; e, quando conheceu que lhe tinha um dedo na guelra, disse
victorioso:

—Esta já não foge, padre! Que bruta que ella é!

Retirou o braço da agua, ergueu-se, ficando com o peixe pendente.

—Olhem o que é! Um barbo!... um peixe reles!—exclamou o sacerdote.

D. Luiz da Torre Velha, assim ludibriado pelo acaso, teve a ideia de
atirar com o barbo á cara do padre! Porem era uma injustiça—considerou.
Que culpa tinha de tudo isto o mestre de latim?! O seu abatimento, gerado
na fatal desillusão era patente. Pegou na canna, na sedela, no cacifre,
no peixe e... zaz!... atirou tudo ao meio do rio.

—Nunca mais! Póde ter a certeza de que nunca mais volto a isto—affirmou
retirando-se.

    Abril—85.

[Illustration]



[Illustration]



UM CORVO E UM PAPAGAIO

(CONTO PARA CREANÇAS, OFFERECIDO AOS MEUS FILHOS)


Isto passou-se no tempo dos animaes fallantes:

Um velho corvo, tendo de edade perto d’um seculo, n’um dia de muita
chuva e vento, veiu, já sem forças, poisar na beira d’um telhado. Este
valente da amplidão dos ares, tinha perdido toda a arrogancia do seu
porte; encolhido e a tremer não se podia já ter nas pernas. A extremidade
amarellada das suas pennas, outr’ora tão negras, mostrava que padecia
de velhice e de fome. Ao habitante eterno dos penhascos sombrios, ao
motejador das tempestades que assustam os homens, coube-lhe o vir dar
o ultimo suspiro da sua longa vida, perto do comedoiro farto e luxuoso
d’um vulgarissimo papagaio real. Este, de papo cheio, e aquecido pelo ar
tepido da cosinha, ao sentir a queda do corpo enfraquecido do corvo,
perguntou d’um modo gracejador:

—Que é lá!? Quem passa?

Uma voz quasi soluçante, conservando a meiguice dum peito corajoso, e o
vigor do suspiro d’um general moribundo nos campos de batalha, respondeu:

—Gente de paz, amigo. Descanço um momento.

—Olha um corvo!—gritou o papagaio cheio de medo. Aqui d’el-rei que me
come! Antonio, acode!

Mas o corvo, com uma voz tranquilla e cheia de bondade, serenou-o:

—Não te assustes... Não tenhas a meu respeito a opinião do povo, que
é errada. Sou meigo e infeliz. Tive filhos, casa, uma companheira de
muitos annos e tudo isto me roubaram os homens. Durante a minha vida d’um
seculo, tenho visto mais barbaridades praticadas pelos corações piedosos,
do que todas as que attribuem á minha raça maldita.

O papagaio, ainda receioso, mas cheio de curiosidade perguntou:

—Então não és feroz e cruel como dizem?

—Não. Tenho affectos; no alto dos meus queridos rochedos, muita vez
escutei com prazer o canto dos passaros nossos irmãos e a alguns quiz
imitar. Amigos meus e meus irmãos viveram entre homens, tornaram-se
familiares, chegando a comprehender a linguagem que se falla. Eu sempre
gostei do ar forte e da liberdade das montanhas. Hoje enfraquecido e
cheio de fome fui arrumado para este telhado, pelo vento que toda a vida
escarneci. Ha muitos dias que não como, dás-me alguma coisa d’isso que
ahi tens?

—Não posso—respondeu o egoista.—O meu arroz mal chega para mim... Tu
tambem o não comias. Do que mais gostas, segundo dizem, é de carne podre.

—Que remedio tenho eu, á falta de melhor? É o unico alimento dos
infelizes que vivem nas solidões. Comemos tudo... a fome é negra. O teu
arroz cheira tão bem... Dá-me um bocadinho? Poucos minutos me restam de
vida. Deixa-me ao menos aproveitar da tua comida, isso que tu deitas fóra
e desprezas.

       *       *       *       *       *

Fez um esforço para voar; mas não podia. No entretanto esse mesmo
movimento d’azas atemorisou o papagaio que bradou:

—Não te chegues, não te chegues! Tu o que desejas é comer o meu arroz e
talvez engulir-me a mim mesmo. Nada de brincadeiras. Essa tua fraqueza
póde muito bem ser fingida, para me enganares. Não te chegues, senão
chamo o Antonio, o meu amigo cosinheiro, que arranja coisinhas boas para
o meu papinho, e se elle vem, olha que dá cabo de ti.

O corvo, quasi agonisante, soluçava tremendo de frio e de fome:

—Não me odeies, lá por eu ter má opinião em toda a gente. No tempo em que
era forte, quantas vezes não cobri com o meu corpo, muitos passarinhos
que não podiam resistir á tempestade?! Fiz o bem que pude. Soccorre-me
hoje, que estou para morrer.

O papagaio, desconfiado e vaidoso, temendo que o rustico habitante dos
pincaros lhe sujasse a plumagem vistosa, ordenou:

—Então deixa-te estar ahi. Vou pedir ao Antonio que te deite um pedaço
de carne, da que não presta. Talvez a não mereças; mas devemos ser
caridosos—concluiu espanejando-se.

O velho corvo, já sem altivez, agradeceu com ternura na voz:

—Obrigado. Nosso Senhor t’o pague.

No telhado porém, não podia resistir aos impulsos do vento. Confiado, ou
talvez contra vontade, deu um vôo, do beiral onde estava, para o poleiro,
desculpando-se:

—Tem paciencia. Não posso estar alli. Comerei n’este cantinho a esmola
que me fazes.

Mas a proximidade d’aquelle corpo sujo, volumoso, d’aspecto selvagem,
assustou o timido papagaio real, que logo gritou fóra de si:

—Ó Antonio. Traz o pau!...

E esvoaçava sem querer poisar. Agarrava-se á corrente que o prendia ao
comedoiro. Tremia de verdadeiro medo, elle saudavel e nedio, diante
d’este habitante dos rochedos, que estava a dar o ultimo suspiro.

O cosinheiro, ao ver o corpo immundo e repellente, perto do seu estimado
papagaio, exclamou irado:

—Olha o ladrão de um corvo!...

E dando uma pancada no animal desfallecido, atirou-o sobre o lagedo da
rua, onde o desgraçado morreu logo. Em seguida, o Antonio com o fim de
socegar o seu querido, passava-lhe com brandura a mão na cabeça dizendo:

—Calla-te loiro, não tenhas medo. Queria-te fazer mal? Levou a sua conta.
Coitadinho do loiro, coitadinho do loiro.

Assim se cumpre, muitas vezes, a justiça na terra. Meus filhos, não
se deve acreditar facilmente nas culpas d’aquelles que são infelizes,
principalmente quando precisam de que se lhes faça bem.

    Lisboa, Março, 85.

[Illustration]



[Illustration]



A VISTA DO SALGUEIRO

(CONTO PARA CREANÇAS)


Ambrosio era velho e vivia n’uma casa muito pobre, toda esburacada e
de telha vãa. Lá dentro, os ratos eram tantos como as formigas n’um
carreiro; e elle, sentado ao lume, via-os ir e vir, sem mesmo ter medo
d’elles. Por traz da casa havia um pequeno quintal, ao fundo corria o
rio, e pegado estava o moinho, habitado pelo moleiro, homem que elle
odiava mais do que a morte.

Na tarde serena d’um dia d’agosto, Ambrosio, foi visto na margem,
sentado n’uma pedra, o queixo pousado nos joelhos, a olhar fixamente e
pasmado para uma arvore do outro lado. O ceu era dum azul pallido; as
aguas passavam silenciosamente, até entrarem na guela d’azenha, onde
produziam um sussurro; a roda movia-se de vagar; porque a força do rio
era pouca... O pensamento d’Ambrosio voava, n’um mundo de independencia
e maldade, planeando vinganças contra o moleiro seu inimigo. Era um odio
velho, nascido de conflictos diarios, aggravado por muitos nadas de que,
o do moinho, nem tinha consciencia. No corpo d’Ambrosio, magro como de
feiticeira, passava-se no momento em que o viram a olhar para o triste
salgueiro, uma lucta violenta e feroz.

N’esse dia, apparecera-lhe em casa, um bacoro de perna quebrada. Sem mais
reflectir attribuiu logo o maleficio ao damnado visinho e foi para alli
ruminar uma vingança, que o deixasse consolado. Tinha um coração de pedra
este demonio de velho! Se não fora assim, como poderia gozar, inventando
martyrios, n’uma tarde serena de verão, toda silencio e bondade!

Mas não se desprendia do terrivel desejo de matar o moleiro, com os
maiores soffrimentos e castigos, que no mundo tivesse havido! Seria capaz
de se vender ao diabo, só para conseguir o seu fim.

       *       *       *       *       *

Veio-lhe esta ideia audaciosa e encarou-a resolutamente. Tão firme foi
o seu pensar, que logo o diabo em pessoa alli lhe appareceu deante dos
olhos, offerecendo-se-lhe para tudo, em troca da alma se elle realmente
lh’a queria vender. Era figura bem conhecida, a que estava deante de
Ambrosio:—meio homem, meio cabra; um comprido pello cobrindo-lhe o corpo;
um rabo a dar para um lado e para o outro, como o d’um lobo; os cornos
arrebitados na cabeça; e os olhos a coriscarem como dois carvões accesos.
O velho não se atemorisou, e como desejava vingar-se do moleiro, sentiu o
peito cheio de goso, quando o diabo lhe disse:

—Ouvi a tua voz. Aqui me tens. Acceito o teu contracto. Pede o que
quizeres.

—Então tu é que és o diabo?—perguntou.

—Eu mesmo. Sou o que tudo posso depois lá do _Outro_ (apontou
desdenhosamente para o ceu). No meu reino posso mesmo mais do que _Elle_.

—Fazes-me tudo quanto eu quizer para matar o moleiro?

—Tudo, com tanto que me entregues a tua alma.

—E para que queres tu a minha alma?

—Para a guardar juncta com outras.

Ambrosio observou escarnecendo:

—Não acredito que faças bom negocio. Pelo que dizem os padres, a minha
alma não presta. Dou-ta, mas has-de trazer-me aqui o moleiro pelo
cachaço, e depois de bem amarrado e preso, deixares-me fazer o que eu
quizer. Mas quero-o bem amarrado e preso, porque tenho medo, entendes?

—Se entendo!... E só queres isso?

—Se perguntas é porque estás em maré de franquesa. Então vá lá: Quero
ser rei; ter muito dinheiro, muitos palacios, muitas cidades, muitos
cavallos, coisas ricas para comer.

—Só isso?

—Co’a breca! Muito boa deve ser a minha alma para ti. Olha, já que
offereces, quero uma sanfona, para tocar aos ouvidos de minha mulher,
quando ella estiver a resmungar... Tu sabes; ás vezes leva noites
inteiras ... ron-ron-ron... ron-ron-ron...

—E por quanto tempo desejas tudo isso?

—Essa agora é que nem parece sua, seu diabo! Isso por muito tempo.

—Não posso dar-te tudo por mais de cinco minutos.

—Cá me parece sovinice. Cinco minutos não é nada.

—É tempo bastante de gosares todas as coisas que pedes e de te
aborreceres de todas ellas.

Ambrosio deu uma estrondosa gargalhada, que encheu todo o valle,
repercutindo-se nos reconcavos visinhos. O diabo acrescentou:

—É como te digo. N’esse ponto te mostrarei o meu grande poder. Um
minuto basta para eu fazer passar na tua vida, todas as grandesas da
terra. Outro minuto para percorreres todas as grandes cidades do mundo.
O terceiro minuto para tocares sanfona a tua mulher e ella morrerá de
desespero. O quarto para matares com toda a pachorra o moleiro.

—E o quinto?—perguntou Ambrosio.

—Esse é para te aborreceres.

—Como tu és grande, diabo!—disse o velho enthusiasmado. Acceito.

—Deixa tirar uma gotta de sangue das tuas veias. Com esta penna de mocho,
molhada no teu sangue, has-de pôr o teu nome n’este livro.

O inimigo do moleiro sentiu uma picada no sangradouro e logo o seu nome
appareceu brilhante como o fogo, na pagina onde o escrevera, obrigado por
uma força irresistivel.

       *       *       *       *       *

Depois um vento infernal levou-o pelo espaço. Tudo quanto via e gosava
eram deslumbramentos e delicias. Corria-lhe o corpo um calor de mocidade.
Ricos manjares eram servidos em pratos d’oiro; as festas mais divertidas
e luxuosas, passavam-se em palacios de marfim e cristal. Camas formadas
de fofas nuvens, appareciam dispostas para um momento de cansaço. Levado
milagrosamente, passou sobre os mares onde ruem tempestades, viu a seus
pés cidades cheias de bulicio e riquesa, os reis da terra offereciam-lhe
homenagem! Os montes de perolas, oiro e diamantes já eram para Ambrosio
coisas sem valor. Por causa d’um mosquito que lhe passou no nariz, teve
uma rajada de colera, que fez tremer toda a terra!

Logo em seguida viu humilde e supplicante o moleiro, que já estava
preparado para o sacrificio.

—Quero matal-o cá á minha moda—disse para o diabo. Hade ser n’um banco,
escochinado, como um porco.

No momento seguinte estava junto de sua mulher tocando-lhe sanfona aos
ouvidos. A pobre velha, entrevada na cama, havia muitos annos, supplicava
com olhares, que lhe não atormentassem as ultimas horas de vida. Porém o
marido, homem de coração duro, foi implacavel até ao fim e viu-a morrer
no meio de soffrimentos horriveis. Depois é que deu começo á tarefa mais
importante, que era dar morte afflictiva ao moleiro.

       *       *       *       *       *

Espatifal-o como um porco fôra sempre a sua ideia fixa. Ia realisal-a.
A scena passa-se no quintalito junto do rio. A victima, com a sua
grande estatura sae do moinho. Vem manietado e humilde, ao pé do algoz,
apresentar-se para o sacrificio. Ainda que não ousava levantar os olhos,
o seu porte era digno.

—Ah!—disse Ambrosio com grande satisfação. Vamos lá a isto?

O proprio carrasco, é que foi buscar um banco. Apontando para elle,
mostrou-o á victima, com riso de mau:

—Hade ser aqui.

O pobre moleiro conservava-se calado e triste. Não ousava ter olhares
colericos, talvez, para o suplicio lhe ser menos barbaro. Não pedia;
pois era um homem valente, digno, bondoso e reconhecia a crueldade do
inimigo.

Ambrosio continuou:

—Só para chegar a isto dei a minha alma ao diabo. Se mil almas tivéra,
todas daria, só para te cravar mil vezes uma faca no coração e tirar-te
mil vidas que tu possuisses. Quem foi que me quebrou a perna do bacoro?
quem me fez secar a larangeira? quem me roubou a panella velha, com que
eu tirava agua do rio? quem me estragou o mangericão?

E como a victima dos seus odios, continuava a olhar para a terra, sem
responder, escarneceu:

—Ah! não foi ninguem!... Estas coisas fazem-se por si. Alem de seres o
grande ladrão, que me roubou os feijões, és mentiroso. Pois vaes pagal-as
todas juntas, meu rico amiguinho. Ora deite-se n’esta cama.

E com uma força que não era a do seu braço enfesado e velho, pegou no
moleiro que era um gigante, e estendeu-o como uma arveola sobre o banco,
atando-o fortemente com cordas.

—Agora espere que vou aqui buscar uma coisa.

Logo appareceu com um alguidar e uma comprida faca de matador. Mostrando
estes objectos, acrescentou:

—Isto é um alguidar para receber o teu sangue vermelho e quente. Isto,
uma coisa a que se chama faca para te fazer cocegas no coração. Talvez
ainda tenha tempo para arranjar um serrabulho d’esse sangue e coração.
Vamos á obra que se faz tarde.

Com placidez, gosando á vontade o martyrio do paciente, principiou a
arregaçar os punhos da camisa de estopa. Mostrou a faca reluzente á
victima que estava deitada. E voltando-se para o diabo disse:

—Você muito póde, seu amigo. Como eu tenho aqui este fanfarrão, sem se
mecher? Tenho pena que meu pae me não tivesse feito duas almas, para lhe
dar a você!

O demonio austero e grave não respondeu á lisonja. Ambrosio entrou de
novo no seu pardieiro e trouxe um pucaro d’agua quente. Tinha de molhar
a pelle da victima, para a ponta da faca entrar mais firmemente. E
chapinhando na garganta com a mão molhada, tinha uma respiração d’homem
feroz.

Apontou a faca ao logar apropriado, principiou a enterral-a lentamente,
para a dôr ser mais prolongada, o sangue já sahia em borbotões do peito
arquejante do moleiro.

—Não berra como os pórcos, este maldito!—considerou Ambrosio.

Ia-lhe remexendo cruelmente com o ferro nas entranhas! Gosava a sua
victoria, fazendo soffrer a victima.

Foi prolongando este goso até aos ultimos momentos do moleiro. E quando
reconheceu que alli estava definitivamente um morto respirou:

—Ahhh!... Isto valia bem uma duzia d’almas! Quanto falta senhor diabo?

—Vae acabar o tempo. Já lá te esperam. Olha!

Apontou para a bocca d’um enorme forno, onde entre as labaredas
infernaes, estavam homens e mulheres dando gritos. Todas as velhas ideias
de Ambrosio sobre penas eternas, se condensaram n’aquella realidade.
Affrontou heroicamente um tal espectaculo, deante do qual o seu coração
deshumano, ainda teve coragem para beber do sangue do inimigo! Porém o
mundo infernal das chammas e gritos, crescia rapida e formidavelmente.
O diabo sereno e magestoso estendia-lhe a mão para o agarrar, com as
suas unhas de macaco! O aspecto do demonio era tão medonho e terrivel,
que o velho Ambrosio teve subitamente um grande medo, todo o seu corpo
estremeceu como se oscillasse o mundo, amedrontado e covarde ia a dar um
passo para fugir...

N’esse instante escorregou e cahiu ao rio. Começou a berrar por soccorro
como um possesso. O seu choro era mais infeliz do que o de uma creança
sem mãe.

A agua escaldava-o e sentia-se abrazado como no meio de labaredas
infernaes! Quem lhe havia de acudir n’aquelle instante de afflicção? Foi
o visinho, o moleiro, a sua victima que sahindo fóra do seu moinho o viu
debater-se covardemente, como se estivesse assoberbado, por ondas d’um
mar tormentoso!

—Eh!... diabo de gato!—disse o collosso mettendo-se ao rio e agarrando-o
pela gola da vestia. Como diabo te aconteceu isto?

Levou-o para sua propria casa, metteu-o na cama agasalhado, deu-lhe um
caldo quente para o revigorar. O velho Ambrosio, olhando-o receioso,
batia o queixo de medo e dizia com a cabeça debaixo da roupa:

—Nada, não quero; elle póde deitar resalgar no caldo!

    Arcos, agosto, 86.

[Illustration]



INDICE


                                               PAG.

    A minha morte                                1

    Nosso Senhor Jesus Christo                  17

    O cego de Guardiam                          27

    A velhice d’um rei                          51

    A mulher de Lucas                           73

    Dois caturras                               95

    A postura dos ovos                         115

    Rende-te Centurião                         129

    A truta grande                             163

    Um corvo e um papagaio                     197

    A vista do salgueiro                       203





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