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Title: Electra - Drama em cinco actos Author: Pérez Galdós, Benito Language: Portuguese As this book started as an ASCII text book there are no pictures available. *** Start of this LibraryBlog Digital Book "Electra - Drama em cinco actos" *** PÉREZ GALDÓZ ELECTRA DRAMA EM CINCO ACTOS VERSÃO PORTUGUEZA DE RAMALHO ORTIGÃO PORTO LIVRARIA CHARDRON De Lello & Irmão, editores 1901 Unica traducção portugueza auctorisada pelo auctor _Porto—Imprensa Moderna_ ACTO PRIMEIRO Sala sumptuosa no palacio dos senhores de Garcia Yuste. Á direita, sahida para o jardim. Ao fundo, communicação para outras salas do palacio. Á direita, no primeiro plano, porta dos quartos d’Electra. SCENA I MARQUEZ E JOSÉ _José_ Estão no jardim... Vou dar parte. _Marquez_ Espera lá. É esta a primeira visita que faço aos senhores de Garcia Yuste no seu palacio novo... Deixa-me dar uma vista d’olhos... Está n’um grande pé... Bem hajam os que tão bem empregam o seu dinheiro! Porque não é sómente o seu estado de casa, é o bem que fazem, o generosos que são em obras pias... _José_ Oh! lá isso...! _Marquez_ E tão mettidos comsigo! tanto da paz e do socego do lar!... Ainda que, segundo cuido, ha novidade agora na familia... _José_ Novidade? Ah! já sei... Quer o snr. Marquez referir-se... _Marquez_ Escuta, José! Promettes fazer o que eu te peça? _José_ Já o snr. Marquez sabe que eu me não esqueço nunca dos quatorze annos que servi na sua casa... O snr. Marquez manda, não pergunta. _Marquez_ Pois venho cá de proposito para conhecer essa interessante senhorita, que os teus amos trouxeram agora d’um collegio de França... _José_ A senhorita Electra. _Marquez_ Podes dizer-me se os senhores estão contentes com essa nova sobrinha? É pessôa amoravel, agradecida? _José_ Oh! n’esse particular!... Os senhores morrem por ella... Sómente... _Marquez_ Quê? _José_ A menina é travessasita... _Marquez_ A edade! _José_ Brincalhôna, oh! mas brincalhôna, que se não faz uma ideia... _Marquez_ Mas diz que é linda, que é um anjo... _José_ Um anjo sim, se ha anjos parecidos com mafarricos... É que nos põe o sal na moleira a todos cá de casa! _Marquez_ Estou morto por conhecêl-a! _José_ No jardim a encontra o snr. Marquez. É lá que passa as manhãs pondo em redemoinho tudo. _Marquez_ (_olhando para o jardim_) Lindo jardim, bello parque, as velhas arvores do antigo palacio das Gravelinas... _José_ É exacto. _Marquez_ O grande predio, ao fundo da alameda, é tambem dos senhores de Yuste? _José_ Tambem. Com entrada pelo jardim e pela rua. Em baixo tem o seu laboratorio o sobrinho dos patrões, o senhorito Maximo, primeiro dos trunfos de Hispanha nas mathematicas, e... na outra coisa... na... _Marquez_ Bem sei... Chamam-lhe o _Magico prodigioso_... Conheci-o em Londres... ainda a mulher d’elle era viva. _José_ Morreu em fevereiro do anno passado... e deixou-lhe dois filhos, dois amores! _Marquez_ Ultimamente renovei com elle o meu antigo conhecimento, e, apesar de nos não visitarmos, por certos motivos, somos muito amigos. _José_ Tambem eu gósto d’elle. Optimo sujeito...! _Marquez_ E outra coisa: não estão arrependidos os teus amos de terem mettido em casa esse diabretesito? _José_ (_receoso de que venha gente_) Eu direi a V. Ex.ª... Tenho notado... (_Vê vir D. Urbano pelo jardim_) Ahi vem o senhor. _Marquez_ Põe-te a andar. SCENA II MARQUEZ E D. URBANO _Marquez_ (_abrindo-lhe os braços_) Querido Urbano! _Urbano_ Marquez! ditosos olhos!... _Marquez_ E Evarista? _Urbano_ Bem... Sómente extranhando muito as grandes ausencias do marquez de Ronda... _Marquez_ Oh! você não imagina o inverno que passámos... _Urbano_ E Virginia? _Marquez_ Assim, assim... Sempre achacada, mas reagindo constantemente pela força de uma vontade tenaz, cabeçuda lhe chamarei. _Urbano_ Pois ainda bem! ainda bem!... Com quê... quer que desçamos ao jardim? _Marquez_ Vamos já! Deixe-me tomar assento, pouco a pouco, na sua casa nova... (_Senta-se_) E conte-me lá, querido, conte-me d’essa menina encantada, que foram buscar ao collegio. _Urbano_ Não, não estava já no collegio. Tinha ido para Hendaya, para uns parentes da mãe. Eu nunca fui muito da opinião de a trazer para cá. Mas Evarista emprehendeu n’isso... Quer sondar o caracter da pequena, apurar se d’ella se poderá fazer uma mulher em termos, ou se nos estará destinada a vergonha de a vêr herdar as tendencias da mãe... Você sabe que era uma prima irmã de minha mulher; e escuso de lhe lembrar os escandalos que deu essa Eleuteria desde o anno de 80 a 85. _Marquez_ Nem me fale n’isso! _Urbano_ Emfim, foi a ponto de que a familia, vexada, rompeu com ella de todo e para sempre! Esta menina, agora, cujo pae se não sabe quem seja, criou-se com a mãe até os cinco annos. Depois levaram-a para as Ursulinas de Bayona. Lá, ou por abreviar ou pelo que fosse, puzeram-lhe esse nome, exquisito e novo, de Electra. _Marquez_ Novo, propriamente, não. Á pobre mãe—coitadita—Eleuteria Dias, todos nós, os intimos da casa, lhe chamavamos tambem Electra, em parte talvez por abreviatura, e em parte porque ao pae, militar valente mas assignaladamente desditoso na vida conjugal, tinham posto a alcunha de _Agamemnon_. _Urbano_ D’essa não sabia... Tambem nunca vivi com elles. Eleuteria, pela fama que tinha, figurava-se-me uma creatura repugnante... _Marquez_ Por amor de Deus, querido Urbano, não sejamos pharisaicos... Lembre-se que Eleuteria—a quem chamaremos _Electra I_—mudou de vida, ahi por 88... _Urbano_ E não deu pouco que falar esse arrependimento tambem. Lá foi morrer a S. João da Penitencia, em 95, regenerada, abominando a monstruosa libertinagem da sua vida... _Marquez_ (_como quem lhe reprehende o rigorismo_) Deus lhe perdoou... _Urbano_ Sim, sim... perdão, esquecimento... _Marquez_ E tratam então agora de tentear _Electra II_ a vêr se inclinará para bem ou se lhe dará para mal... Que resultado vão dando as provas? _Urbano_ Resultados obscuros, contradictorios, variaveis de dia para dia, de hora para hora. Ha momentos em que ella nos revela qualidades sublimes, mal encobertas pela sua innocencia; outros, em que nos apparece como a creatura mais doida a quem Deus deu licença de vir ao mundo. Tão depressa encanta pela sua candura angelica como aterra a gente pelas diabolicas subtilezas que desfia da sua propria ignorancia. _Marquez_ Natural desequilibrio da edade, excesso de imaginação, talvez. É esperta? _Urbano_ Como a electricidade em pessoa, mysteriosa, repentista, de grande tino. Destroe, transtorna, perturba, illumina. _Marquez_ (_levantando-se_) Fervo em curiosidade. Vamos vêl-a. SCENA III MARQUEZ, URBANO, CUESTA, pelo fundo _Cuesta_ (_entra com mostras de cançaço, tira do bolso a carteira de negocios, e dirige-se á mesa_) Marquez... Tudo bom por cá? _Marquez_ Oh! grande Cuesta! que nos conta o nosso incançavel agente? _Cuesta_ (_senta-se. Revela um padecimento de coração_) O incançavel... começa a cançar. _Urbano_ Homem! e que me dizes da alta d’hontem no Amortisavel? _Cuesta_ Veio de Paris com dois inteiros. _Urbano_ Fizeste a nossa liquidação? _Marquez_ E a minha? _Cuesta_ Estou com isso... (_Tira papeis da carteira e escreve a lapis_) N’um instante saberão as cifras exactas. Tirou-se todo o partido que se podia tirar da conversão. _Marquez_ Naturalmente... Sendo o typo de emissão dos novos valores 79,50... tendo nós comprado por preço muito baixo o papel recolhido... _Urbano_ Naturalmente... _Cuesta_ O resultado foi enorme. _Marquez_ Querido Urbano, esta facilidade com que se enriquece é positivo que dá o amor da vida e o enthusiasmo da belleza humana. Vamos para o jardim. _Urbano_ (_a Cuesta_) Vens? _Cuesta_ Preciso de dez minutos de silencio para pôr em ordem os meus apontamentos. _Urbano_ Deixamos-te em socego. Não queres nada? _Cuesta_ (_abstrahido nas suas contas_) Não... quero dizer... Sim: manda-me vir um copo de agoa. Estou abrasado. _Urbano_ Immediatamente. (_Sae com o Marquez para o jardim_) SCENA IV CUESTA E PATROS _Cuesta_ (_corrigindo as suas notas_) Ah! cá está o erro. Aos de Yuste toca... um milhão e seiscentas mil pezetas. Ao marquez de Ronda, duzentas e vinte e duas mil... Temos que descontar as doze mil e tanto, equivalentes aos nove mil francos... (_Entra Patros com copos d’agoa, caramellos e cognac. Espera que Cuesta termine a sua conta_) _Patros_ Ponho aqui, D. Leonardo? _Cuesta_ Põe e espera um instante... Um milhão e oitocentos... com os seiscentos e dez... fazem... claro! está certo. Bem bom! bem bom!... Com que então, Patros... (_tira do bolso dinheiro, que lhe dá_) Toma lá! _Patros_ Muito obrigado! _Cuesta_ E já te aviso que espero de ti um favôr... _Patros_ Dirá, D. Leonardo. _Cuesta_ Pois, minha amiga... (_remechendo um caramello_) Escuta... _Patros_ Não quer cognac?... Se vem cançado, a agoa só pode fazer-lhe mal. _Cuesta_ Sim: deita um poucochito... Pois o que eu quereria...—Não vás pôr malicia no que a não tem: sentido!—o que eu quereria era falar alguns momentos, a sós, com a senhorita Electra. Conhecendo-me como me conheces, comprehenderás de certo que o meu fim é o mais honrado e o mais digno... Mas sempre t’o digo para te tirar todo o escrupulo... (_Recolhe os papeis_) Antes que venha alguem, poderás dizer-me que occasião e que logar será melhor? _Patros_ Para dizer duas palavras á senhorita Electra... (_meditando_) terá de ser então quando os senhores estiverem com o procurador... Eu verei. _Cuesta_ Se pudesse ser hoje, melhor. _Patros_ Ainda cá volta hoje? _Cuesta_ Volto. Avisa-me. _Patros_ Esteja certo. (_Recolhe o serviço e sae_) SCENA V CUESTA E PANTOJA, que entra em scena meditabundo, abstraído, todo vestido de preto _Cuesta_ Amigo Pantoja, salve-o Deus! Como vamos? _Pantoja_ (_suspira_) Vivendo, amigo, que é o mesmo que dizer: esperando. _Cuesta_ Esperando melhor vida... _Pantoja_ Padecendo n’esta o que Deus determine para merecer a outra. _Cuesta_ E de saude que tal? _Pantoja_ Mal e bem. Mal, porque me affligem desgostos e achaques; bem, porque me apraz a dôr, e me regosija o soffrimento. (_Inquieto, e como dominado por uma ideia fixa, olha para o jardim_) _Cuesta_ Que ascetico vem hoje! _Pantoja_ Olhe que cabecinha de vento a d’aquella Electra...! Lá vae ella de corrida com os pequenos do porteiro, com os dois filhos do Maximo, e ainda com filhos dos visinhos. Quando a deixam n’aquellas travessuras de creança é que ella é feliz. _Cuesta_ Adoravel creaturinha! Que Deus a fade bem, para ser uma mulher como se quer! _Pantoja_ D’aquella graciosa boneca, d’aquella voluvel menina facilmente se poderia tirar um anjo; da mulher que ella ha de ser, não sei. _Cuesta_ Não o entendo bem, amigo Pantoja. _Pantoja_ Entendo-me eu... Olhe, olhe como brincam... (_Assustado_) Deus de misericordia! quem é que vae com ella?... Não é o marquez de Ronda? _Cuesta_ Elle mesmo. _Pantoja_ Que corrupto homem! Tenorio da geração passada não se decide a jubilar-se para não dar um desgosto a Satanaz! _Cuesta_ Para que mais uma vez se possa dizer que não ha paraizo sem serpente... _Pantoja_ Para isso não! serpente já tinhamos. (_Passeia nervoso e displicente pela sala_) _Cuesta_ E diga-me, passando a outra coisa: teve já noticia do dinheirão que lhes trouxe? _Pantoja_ (_sem prestar grande attenção e fixando-se n’outra ideia que não formúla_) Ah! sim, já... Ganhou-se muito. _Cuesta_ Evarista completará agora a sua grande obra religiosa. _Pantoja_ (_maquinalmente_) Sim. _Cuesta_ E poderá o amigo Pantoja consagrar muito maiores recursos a S. José da Penitencia. _Pantoja_ Sim... (_Voltando á sua ideia fixa_) Serpente já tinhamos... Que dizia, amigo Cuesta? _Cuesta_ Dizia eu... _Pantoja_ Desculpe interrompel-o... Sabe se sempre é certo que o nosso visinho de defronte, o nosso maravilhoso sábio, inventor e quasi thaumaturgo, projecte mudar de casa? _Cuesta_ Quem? Maximo? Acho que sim... Parece que em Bilbau e em Barcelona acolhem com enthusiasmo os seus admiraveis estudos para novas applicações da electricidade; e lhe offerecem todos os capitaes que elle queira para proseguir nas experiencias que encetou. _Pantoja_ (_meditativo_) Oh! capitaes eu lh’os daria tambem, comtanto que... SCENA VI PANTOJA, CUESTA, EVARISTA, URBANO E O MARQUEZ, que veem do jardim _Evarista_ (_soltando o braço do Marquez_) Bons dias, Cuesta. Pantoja, quanto estimo vêl-o! (_Cuesta e Pantoja inclinam-se e beijam-lhe respeitosamente a mão. A senhora de Yuste senta-se á direita; o Marquez em pé ao lado d’ella. Os outros agrupam-se á esquerda falando de negocios._) _Marquez_ (_reatando com Evarista uma conversação interrompida_) Por este andar a minha boa amiga não sómente passa á Historia mas passa a figurar tambem no _Anno Christão_. _Evarista_ Não me gabe por coisas em que não ha merecimento nenhum, Marquez... Não temos filhos: Deus cumula-nos de riqueza. Temos em cada anno uma herança. Sem trabalho nenhum—nem, sequer o de discorrer—o excesso dos nossos rendimentos, habilmente manejados pelo amigo Cuesta, capitalisa-se sem darmos por isso, e cria novas fontes de dinheiro. Se compramos uma quinta, a subida dos productos triplica n’esse mesmo anno o valor da terra. Se ficamos senhores de um baldio inteiramente sáfaro, acontece que no subsolo se descobre um jazigo immenso de carvão, de ferro ou de chumbo... Que quer dizer tudo isto? _Marquez_ Quer dizer—acho eu—que quando Deus multiplica tantas riquezas sobre quem nem as deseja nem as estima, bem claramente elle está indicando que as concede para que sejam empregadas em servil-o. _Evarista_ É claro. Interpretando-o tambem assim, eu apresso-me a cumprir a vontade de Deus. O dinheiro que Cuesta nos veio hoje trazer apenas me passará pelas mãos, e com elle completarei a somma de sete milhões consagrados á obra do Santo Patrocinio. E mais farei para que a casa e o collegio de Madrid tenham o decoro e a magnificencia adequada a um tão grande instituto. Desenvolveremos tambem as obras do collegio de Valencia e do de Cadiz... _Pantoja_ (_passando para o grupo da direita_) Sem esquecer, minha senhora, a casa dos altos estudos, a sua escola de instrucção superior, que virá a ser o santuario da verdadeira Sciencia. _Evarista_ Bem sabe que é esse o meu constante pensamento. _Urbano_ (_passando tambem para a direita_) N’isso se pensa n’esta casa de noite e de dia. _Marquez_ Admiravel, minha querida amiga, admiravel! (_Levanta-se_) _Evarista_ (_a Cuesta, que igualmente tem passado para a direita_) E agora, amigo Leonardo, que vamos fazer? _Cuesta_ (_sentando-se ao lado de Evarista, a quem propõe novas operações_) Por hoje nos limitaremos a metter algum dinheiro... (_Pantoja, em pé, colloca-se á esquerda de Evarista_) _Marquez_ (_passeando na scena com Urbano_) Ha de permittir, querido Urbano, que, proclamando os merecimentos sublimes da senhora de Garcia Yuste, eu não deite em sacco roto os nossos: falo da minha mulher e de mim. Saberá que Virginia já fez a caridade de transferir para as Escravas de Jesus um bom terço da nossa fortuna... _Urbano_ Das mais solidas da Andaluzia. _Marquez_ E por nosso testamento deixamos tudo a essas senhoras, menos a parte destinada a certos encargos e aos parentes pobres. _Urbano_ Ora vejam lá!... Mas, segundo me constou, o Marquez aqui ha annos parece que não via com enthusiasmo illimitado que a piedade da marqueza, minha senhora, se tornasse tão angelicamente dispendiosa... _Marquez_ É certo... mas converti-me. Abjurei todos os meus erros. A minha mulher catechisou-me. _Urbano_ Exactissimamente o que me succedeu a mim. Evarista virou-me com o forro de santo para fóra. _Marquez_ Para conservar a paz e estabelecer a harmonia conjugal, principiei por contemporisar, continuei contemporisando... Pois, meu amiguinho, contemporisação foi ella que, a pouco e pouco, cheguei ao que se vê: Sou um escravo... das _Escravas de Jesus_! E não me arrependo. Vivo n’uma placidez beatifica, curado de todas as inquietações da minha vida. E estou já agora a convencer-me de uma coisa: é que a minha mulher não sómente salva a sua alma, mas que me salva a minha tambem! _Urbano_ Pois é o que eu egualmente recommendo cá em casa: que não se esqueçam, podendo tambem ser, de me salvar a mim! _Marquez_ Nós, homens, não temos iniciativa para nada. _Urbano_ Absolutamente para nada! _Marquez_ Verdade seja que ás vezes até o que se chama respirar nos prohibem! _Urbano_ Prohibida a respiração... Conheço! _Marquez_ Mas vivemos em paz. _Urbano_ E servimos a Deus sem esforço nenhum. Isso é que é. _Marquez_ As nossas mulheres lá vão adeante de nós, por esse bemdito caminho da eternidade, pela gloria fóra; e podemos estar socegados, que nos não deixam na estrada. _Urbano_ Pois! é a sua obrigação. _Evarista_ Urbano?... _Urbano_ (_acudindo pressuroso_) Menina... _Evarista_ Põe-te á disposição de Cuesta para a liquidação e para a entrega aos padres. _Urbano_ Hoje mesmo. (_Cuesta levanta-se_) _Evarista_ E outra coisa: faze-me favor de chegar ao jardim, e dizer a Electra que tem já tres horas de brincadeira. _Pantoja_ (_imperioso_) Que se venha embora. É brincar de mais. _Urbano_ Vou já. (_Vendo vir Electra_) Ella ahi vem. SCENA VII ELECTRA, atraz d’ella MAXIMO _Electra_ (_Entra a correr e a rir, perseguida por Maximo, a quem ganhou na corrida. O seu riso é de medo infantil_) Bem feito, que não me pilhas!... Enraivece-te, brutamontes! _Maximo_ (_traz em uma das mãos varios objectos que indicará, e na outra um ramo de choupo, que esgrime como um chicote_) Eu te digo se te pilho ou não, selvagem! _Electra_ (_sem fazer caso dos que estão em scena, corre a casa com infantil ligeiresa e vae refugiar-se no vestido de D. Evarista, ajoelhando-se-lhe aos pés e abraçando-a pela cinta_) Estou salva!... Tia, ponha-o fóra! _Maximo_ Ah! já foges! já tens medo, minha menina! _Evarista_ Mas, filha da minh’alma! quando é que terás modos de senhora? E tu, Maximo, és tão creança como ella. _Maximo_ (_mostrando as coisas que traz_) Vejam o que esse demonico me fez. Quebrou-me estes dois tubos... E olhem o estado em que poz estes papeis, contendo calculos que representam um trabalho enorme. (_Mostra os papeis suspendendo-os de alto_) D’este fez uma passarola; este deu-o aos pequenos para pintarem elephantes, burros e um couraçado a atirar balas a um castello... _Pantoja_ Então ella foi ao laboratorio? _Maximo_ E revolucionou os pequenos... Revolveram-me tudo! _Pantoja_ (_com severidade_) Isso, menina... _Evarista_ Electra! _Marquez_ (_enthusiasmado_) Electra! Encanto de menina grande! Bemditas travessuras! _Electra_ Eu não lhe quebrei os tubos. Não ha tal! Foi Pepito que lhe fez esse obsequio. Os papeis, sim senhor; fui eu que peguei n’elles, imaginando que não serviam para nada com os hediondos esgaravunhos que tinham. _Cuesta_ Basta! haja pazes! _Maximo_ Pois vá lá, por esta vez... (_a Electra_) Perdôo-te. Deves-me a vida... Toma lá. (_Entrega-lhe a chibata; Electra recebe-a, e bate-lhe brandamente_) _Electra_ Toma agora tu! Esta é pelo que me disseste. (_Batendo-lhe com mais força_) Esta agora pelo que não quizeste dizer-me. _Maximo_ Disse-te tudo. _Pantoja_ Moderação! juizo! _Evarista_ Que te disse elle? _Maximo_ Disse-lhe verdades uteis... Que aprenda por si mesma o muito que ainda ignora; que abra bem abertos esses grandes olhos e que os estenda pela vida humana, para que veja que nem tudo é alegria, que ha tambem no mundo deveres, desenganos e sacrificios... _Electra_ Chega o lobishomem! (_Occupa o centro da scena, onde todos a rodeiam, menos Pantoja, que se colloca ao lado d’Evarista_) _Cuesta_ Nem tudo applausos! _Urbano_ A severidade é precisa. _Maximo_ Em severidade ninguem me ganha... Dize: é ou não é verdade que sou severo, e que tu m’o agradeces? Confessa que me agradeces! _Electra_ (_batendo-lhe de leve_) Peste de sábio! Se isto fôsse um açoite verdadeiro, ainda com mais alma te batia. _Marquez_ (_risonho e encarinhado_) Electra, veja se me bate em mim tambem... Faça-me essa esmola! _Electra_ Em si não, porque não tenho confiança... Só se fôr muito de levesinho... assim... assim... assim... (_Toca levemente no Marquez, em Cuesta e em Urbano_) _Evarista_ Melhor seria que tocasses piano para esses senhores ouvirem. _Maximo_ Quê, se não estuda nada! Só uma coisa se póde comparar á sua grande disposição artistica, é o seu espantoso desapego de todas as artes. _Cuesta_ Que nos mostre as aquarellas e os desenhos. O Marquez vae vêr. (_Juntam-se todos em volta da meza, menos Evarista e Pantoja, que conversam áparte_) _Electra_ Ahi sim senhor! (_Procurando a pasta de desenhos entre os livros e as revistas que estão na mesa_) Agora se vae vêr se sou ou se não sou uma artista! _Maximo_ Forte gabarola! _Electra_ (_desatando as fitas da pasta_) Pois sim! tu a desfazeres e eu a augmentar-me veremos quem póde mais. Ora aqui está, e pasmem! (_Mostrando os desenhos_) Que teem que dizer a estes portentosos esboços de paizagem, de figura, de animaes? a estas vaccas que parecem pessoas? a estas naturezas mortas que parecem vivas? a estes rochedos que só lhes falta fallarem?! (_Todos se extasiam no exame dos desenhos, que passam de mão em mão_) _Evarista_ (_tendo desviado a attenção do grupo do centro, entabolou conversa intima com Pantoja_) Tem razão, Salvador. Quando é que a não tem? Agora, no caso de Electra, o seu argumento é um clarão que nos illumina a todos. _Pantoja_ Não vá crêr que seja a minha pobre intelligencia que projecta essa luz. Ella é apenas o resplendor de um fogo intenso que tenho em mim: a vontade! Por meio d’esta força, que devo a Deus, esmaguei o meu orgulho e emendei os meus erros. _Evarista_ Depois da confidencia que hontem á noite me fez é indiscutivel para mim o seu direito de intervir na educação d’essa cabeça de vento... _Pantoja_ Para lhe ensinar o caminho da vida, para lhe mostrar o alto fito da nossa misera existencia na terra... _Evarista_ E esse direito que indubitavelmente lhe cabe, implica deveres inilludiveis... _Pantoja_ Quanto lhe agradeço que tão perfeitaimente o comprehenda, minha senhora e amiga da minha alma! Eu receava que a minha confidencia d’hontem, historia funesta que reveste de negro os melhores annos da minha vida, me tivesse feito decaír da sua estima! _Evarista_ Não, meu amigo. Quem é que dentro da humanidade se póde considerar liberto da fraqueza humana? Em si o peccador regenerou-se, castigando a vida com as mortificações do arrependimento, e dignificando-a com a pratica da virtude. _Pantoja_ A divina tristeza, o amor da solidão, o convicto desprezo de todas as vaidades do mundo foram a salvação da minha alma. Pois bem: eu não estaria completamente purificado perante a minha consciencia se n’esta occasião não interviesse nos negocios da terra para salvar dos seus perigos a angelica innocencia d’essa menina, fatalmente destinada, se lhe não acudirmos, a precipitar-se pelo caminho em que se perdeu a sua desgraçada mãe. _Evarista_ A minha opinião é que fale com ella... _Pantoja_ A sós. _Evarista_ Assim o entendo: a sós. Faça-lhe comprehender, o mais delicadamente que possa, a especie de auctoridade que tem... _Pantoja_ É todo o meu desejo esse... (_Continuam em voz baixa_) _Electra_ (_no grupo do centro disputando com Maximo_) Deixa-te de sentenças, que tu d’isto não sabes nada! Então não querem vêr com a que elle se sae? que o passaro parece um velho pensativo, e que a mulher faz lembrar uma lagosta desmaiada... _Marquez_ Não senhor... Eu acho que está muito bem feito! _Maximo_ Ás vezes tambem lhe dá para ahi! Quando menos pensa saem-lhe coisas prodigiosamente exactas. _Cuesta_ É certo que estas velhas arvores, atravez das quaes se descobre uma triste faixa de mar, ao longe... _Electra_ A minha especialidade aposto que ainda nenhum adivinhou qual é?... Pois são os troncos velhos, são os carcomidos muros em ruina. É singular que só pinto bem aquillo que não conheço: a tristeza, o passado, o môrto! A grande luminosidade radeante da alegria, da mocidade, não me sae! (_Com pena e assombro_) Sou uma grande artista para tudo que não sou eu! _Urbano_ Tem graça. _Cuesta_ Esta menina é optima! _Marquez_ É scintillante! _Maximo_ Esperemos que lhe venha a reflexão tambem... a seu tempo... _Electra_ (_zombando de Maximo_) A reflexão! a gravidade! o tempo que ha de vir!... É a sombra que sempre me deita este cipreste!... Ora fica sabendo que eu hei de ter tudo isso quando me dér para ahi... e mais do que tu, meu sabichão! _Maximo_ Veremos... veremos isso quando te chegar a vez! _Pantoja_ (_que não tem dado attenção ao que se passa no grupo_) Não posso occultar-lhe, minha senhora, que me desagrada muito a familiaridade de Electra com o sobrinho do seu marido. _Evarista_ Ha de se lhe corrigir. Mas no emtanto sempre tenha você em conta que este Maximo, que ahi vê, é um homem perfeitamente de bem e raramente serio... _Pantoja_ Bem sei, minha amiga... Mas nos desfiladeiros da confiança excessiva resvalam os mais solidos e os mais firmes; uma triste experiencia m’o ensinou a mim! _Electra_ (_no grupo do centro_) Eu hei de tomar todo o juizo que eu quizer quando elle me fôr preciso. Ninguem se põe serio emquanto Deus não manda. Ninguem diz ai ai senão quando alguma coisa lhe doe. _Marquez_ Lá isso é verdade! _Cuesta_ Um dia aprenderá a ser pratica. _Electra_ De certo que sim! No dia em que venha Deus e me diga: «Menina: aqui tens a dôr, a duvida, a responsabilidade, o dever...» _Maximo_ E breve o dirá!... _Electra_ Para que eu lhe responda! _Evarista_ Electra, minha filha, não disparates. _Electra_ Tia, é este Maximo... (_passa para o lado de Evarista_) _Urbano_ O Maximo tem razão... _Cuesta_ Certamente que sim. (_Cuesta e Urbano passam tambem para o lado de Evarista e de Pantoja, ficando sós á esquerda Maximo e o Marquez_) _Maximo_ Então, Marquez, qual é o resultado da sua primeira observação? _Marquez_ Encantou-me a rapariga. Vejo que você não exagerava nada. _Maximo_ E por baixo do fascinante encanto d’essa innocencia não pôde a sua penetração descobrir alguma coisa... _Marquez_ Ah! sim... belleza moral, juizo pratico... Ainda não tive tempo para isso... Continúo a observar... _Maximo_ É que eu—você sabe—consagrado ao estudo desde muito moço, mal conheço o mundo, e os caracteres humanos são para mim uma escripta em que apenas soletro. _Marquez_ Pois esse, meu amigo, é o unico dos livros em que eu leio de cadeira. _Maximo_ Quer vir a minha casa? _Marquez_ Com muito gosto. É possivel que minha mulher me reprehenda se souber que eu visito uma officina de electrotechnia, uma escandalosa fabrica de luz. Mas não será de uma severidade que eu não aguente. Posso aventurar-me... Voltarei depois aqui, e com o pretexto de admirar a menina ao piano falarei com ella e proseguirei os meus estudos. _Maximo_ (_alto_) Vem, Marquez? _Urbano_ Então assim nos deixam? _Marquez_ Vamos vêr o laboratorio do nosso amigo. _Evarista_ Marquez, estou muito sentida, mas muito, pela sua longa ausencia. Quererá descarregar-se de tantos peccados velhos almoçando hoje comnosco? É o seu castigo... _Marquez_ Acceito-o em desconto da minha culpa e beijo a mão que tão docemente me corrige. _Evarista_ Maximo, tu vens tambem. _Maximo_ Se me deixarem livre, virei, de certo. _Electra_ Não venhas, homem de Deus, não venhas! (_Com alegria que não dissimula_) Vens? Dize que sim! (_Corrigindo-se_) Não, não: dize que não. _Maximo_ Descança que te não livras de mim! Á força has de ganhar juizo... _Electra_ E has de perdêl-o tu, caturra velho! (_Segue-o com a vista até que sae. Saem Maximo e o Marquez pelo jardim. José entra pelo fundo_) SCENA VIII ELECTRA, EVARISTA, URBANO, PANTOJA, CUESTA E JOSÉ _José_ (_annunciando_) A senhora Superiora de S. José da Penitencia. _Pantoja_ Ah! a nossa bôa soror Barbara da Cruz... _Evarista_ Que entre para aqui. (_Levanta-se_) Espera! Iremos recebêl-a ao salão. _Pantoja_ Feliz opportunidade! escuso de ir ao convento. _Evarista_ Electra, estudar. (_Indica-lhe a sala proxima_) _Cuesta_ (_despedindo-se_) Eu saio e volto logo. _Evarista_ Adeus. _Cuesta_ (_áparte, referindo-se a Electra_) Deixam-a só? _Pantoja_ (_a Electra_) Menina! Cultive com esmero a grande arte sagrada. Applique todo o seu talento ao estudo de Bach... para que se compenetre do admiravel estylo religioso. (_Saem todos menos Electra_) SCENA IX ELECTRA, pouco depois CUESTA _Electra_ (_entoando uma psalmodia de egreja, reune os desenhos e recolhe-os nas suas pastas_) Bach... para que me compenetre do estylo religioso... é bom!... É bom, e é engraçado. (_Canta_) _Cuesta_ (_entra pelo fundo, recatando-se_) Só...! _Electra_ (_canta algumas notas liturgicas. Vendo Cuesta_) Oh! D. Leonardo...! Cuidei que tinha sahido... _Cuesta_ (_com timidez_) Sahi mas voltei, minha querida menina. Preciso muito de lhe falar. _Electra_ (_um poucochinho assustada_) A mim! _Cuesta_ É um assumpto delicado, extremamente delicado... (_Com fadiga e difficuldade em respirar_) Perdoe-me. Padeço do coração... não posso estar de pé. (_Electra chega-lhe uma cadeira. Senta-se_) Tão delicado este assumpto, que não sei por onde comece... _Electra_ Deus meu, que é? _Cuesta_ (_animando-se_) Electra, eu conheci sua mãe. _Electra_ Ah! a minha mãe foi bem desgraçada... _Cuesta_ Que entende a menina por ser desgraçada? _Electra_ Eu... entendo que viveu entre pessoas que a não deixaram ser tão bôa como ella queria. _Cuesta_ Ahi está uma profunda verdade que, sem querer, a menina disse... Lembra-se da sua mãe?... Pensa algumas vezes n’ella?... _Electra_ A minha mãe é para mim uma recordação, vaga sim, mas de uma doçura incomparavel... uma querida imagem que nunca me abandona... Guardo-a viva no meu coração, que não é mais que uma grande memoria, no fundo da qual a procuram sempre os meus olhos anciosos de vêl-a. Minha pobre mamãsinha! (_Leva o lenço aos olhos. Cuesta suspira_) Diga-me, D. Leonardo, quando você conheceu minha mãe era eu muito pequenina... _Cuesta_ Era um miminho. Faziamos-lhe cócegas para a vêr rir... o seu riso parecia-me o encanto da natureza, a alegria do universo. _Electra_ Ahi está, D. Leonardo, ahi está porque eu sahi tão doida, tão travêssa, tão desparafusada... você alguma vez me teria pegado ao collo... _Cuesta_ Innumeraveis vezes. _Electra_ (_sorrindo sem ter acabado de enxugar as lagrimas_) E eu não lhe puxava pelos bigodes? _Cuesta_ Ás vezes com tanta força que me fazia doer. _Electra_ E de certo então me batia nas mãos... _Cuesta_ Devagarinho, sim. _Electra_ Pois ha de crêr que talvez que ainda me doam tambem? _Cuesta_ (_impaciente por entrar em materia_) Mas vamos ao caso... E antes de mais nada a advirto, minha querida Electra, que é muito reservado o que lhe vou dizer... para nós ambos unicamente. _Electra_ Mette-me medo... _Cuesta_ Não, não é uma coisa que assuste... Veja em mim a menina um amigo, o melhor de todos os seus amigos; veja n’este acto o interesse mais puro e o mais elevado sentimento... _Electra_ (_confusa_) Sim, não duvído, mas... _Cuesta_ Eis aqui porque dou este passo... Com quanto não seja ainda muito velho, não me sinto com corda para longo tempo de vida. Viuvo ha vinte annos, não tenho mais familia que a minha filha Pilar, já casada e longe. Estou quasi só n’este mundo, tenho o pé no estribo para marchar para o outro... E a minha solidão, ai! parece empurrar-me e dar-me pressa... (_Com grande difficuldade de expressão_) Mas antes de partir... (_Pausa_) Electra, quanto pensei em si antes de a trazerem para Madrid!... E desde que chegou, Deus meu, senti—como lh’o direi?... Imagine o mais profundo, o mais puro affecto de um coração, envolvido nos gritos de uma consciencia... _Electra_ (_aturdida_) Que grave coisa deve ser essa, a consciencia! A minha é, por ora, como um menino que dorme no seu berço. _Cuesta_ (_com tristeza_) A minha é velha e memoriosa. Nem dorme, nem me deixa dormir, assignalando-me sempre, a grandes brados, os erros graves da minha vida. _Electra_ Erros graves na vida... você, tão bom... _Cuesta_ Bom? Sim... talvez... Bom mas peccador... Emfim deixemos os erros, tratemos dos seus resultados. Eu não quero de nenhum modo que a menina se possa achar ao desabrigo. Não tem fortuna propria, e é duvidoso que a protecção de Urbano e d’Evarista seja persistente e constante. Como havia de consentir eu que um dia se visse pobre, desamparada? _Electra_ (_com penosa lucta entre o seu conhecimento e a sua innocencia_) Eu não sei se o entendo... não sei se devo entendel-o. _Cuesta_ O mais apropositado será que me entenda, e não o diga; que acceite a minha protecção, e a não agradeça. Vão juntos o meu dever e o seu direito. Por culpa minha, Electra, não se quebrará o fio que une cada creatura na terra, com as creaturas que foram e com as que ainda vivem... E se hoje me determino a resolver este caso é porque... porque ha uns tempos me assalta o terror das mortes subitas. Meu pae e meu irmão morreram como fulminados de raio. A lesão cardiaca, destruidora da familia, sinto-a bem aqui: (_indicando o coração_) é um triste relogio que me conta as horas e os dias. Não posso adiar mais... Que me não colha a morte deixando abandonada no mundo a sua preciosa existencia! E concluo aqui, pedindo-lhe que tenha como assegurado na vida um bem estar modesto... _Electra_ Um bem estar modesto... Eu?... para mim? _Cuesta_ O sufficiente para viver n’uma decorosa independencia... _Electra_ (_confusa_) Mas eu, que merecimentos tenho?... Perdôe-me, se não posso acabar de me convencer... _Cuesta_ Mais tarde o convencimento virá. _Electra_ E por que não fala n’isso a meus tios?... _Cuesta_ (_preoccupado_) Porque... A seu tempo o saberão. Por agora ninguem mais deve ter conhecimento da resolução que tomei. _Electra_ Mas... _Cuesta_ (_commovido, levantando-se_) E agora, Electra, não quererá mal a este pobre enfermo, que tem contados os seus dias? _Electra_ Querer-lhe mal!? Se é tão facil e tão doce para mim o querer bem! Mas não fale em morrer, D. Leonardo. _Cuesta_ Completamente me consola saber que chorará talvez por mim... _Electra_ Não faça com que eu chore já... _Cuesta_ (_apressando a sahida para vencer a sua commoção_) E agora, minha querida filha, adeus. _Electra_ Adeus... (_retendo-o_) E que nome lhe devo dar? _Cuesta_ O de amigo me basta. Adeus. (_Arranca-se para saír pelo fundo. Electra segue-o com a vista até que desappareça_) SCENA X ELECTRA E O MARQUEZ _Electra_ (_meditativa_) Meu Deus, que devo pensar? Aquellas meias palavras parece que ainda me dizem mais do que palavras completas. Mãesinha da minha alma!... (_O marquez entra pelo jardim e adeanta-se devagar_) Ah! O snr. Marquez! _Marquez_ Assustei-a? _Electra_ Não: surprehendeu-me apenas... Se vem para me ouvir tocar, aviso-o de que perdeu a viagem. Eu não toco hoje. _Marquez_ Tanto melhor: assim fallaremos... Mal lhe sou apresentado entro em cheio na admiração das suas prendas, e, conhecida uma parte do seu caracter, vivamente desejo conhecel-a mais... Vae estranhar esta curiosidade, e julgar-me importuno... _Electra_ Não acho. Eu sou curiosa tambem, e tanto que desde já me permitto fazer-lhe uma pergunta: é amigo de Maximo? _Marquez_ Estimo-o e admiro-o muito... Coisa rara não é verdade? _Electra_ Coisa naturalissima, me parece. _Marquez_ Tão moça como é, talvez que se não dê bem conta das causas da minha amisade com o _magico prodigioso_... Vamos a vêr se me faço entender. _Electra_ Explique-m’o bem. _Marquez_ Senhorita, a sociedade que eu frequento, o circulo da minha propria familia e os habitos da minha casa produzem em mim um effeito de asphyxia, de lento ameaço apopletico. Quasi que sem dar por isso, por simples impulso instinctivo de conservação, lanço-me de vez em quando á procura de um pouco d’ar respiravel. Os meus olhos, velhos e nostalgicos, voltam-se então avidamente para a sciencia e para a natureza... Maximo, para mim, é um sanatorio. _Electra_ Quer-me parecer que vou começando a entendêl-o, e á sua doença de confinado, com faltas d’ar e de vida... _Marquez_ Prova de que raciocina. Devo tambem dizer-lhe que tenho por esse homem um interesse immenso. _Electra_ Estima-o devidamente, admira-o pelas suas altas qualidades... _Marquez_ E lastimo-o pelo seu infortunio. _Electra_ (_surprehendida_) Maximo, desafortunado? _Marquez_ Que desdita maior que a da solidão em que elle vive? A viuvez prematura submergiu-o nos estudos mais profundos e mais absorventes, que podem comprometter-lhe a saude e a vida. É um dos meus receios. _Electra_ Tem os filhos, que o acompanham e a consolam... O Marquez viu-os hoje... Que lindas creaturinhas! O maior, que vae fazer agora cinco annos, é um prodigio de intelligencia. O pequenito, de dois annos, é o mais engraçado sujeitinho de todo o mundo. Eu adoro-os, sonho com elles, e gostava, por elles, de ser creada de meninos. _Marquez_ O pobre Maximo, aferrado aos seus estudos, não pode attendêl-os como devia ser. _Electra_ É o que eu digo tambem. _Marquez_ Claro! Maximo do que precisa é de uma mulher... Aqui principiam as difficuldades e as dúvidas. Por mais que olhe e que procure, não vejo, não encontro a mulher digna de repartir a sua vida com a do grande homem. _Electra_ Não a encontra, está visto, porque a não ha, não a ha. Para Maximo deve-se arranjar uma mulher, principalmente, de muito juizo... _Marquez_ Primeiro que tudo, isso: de muito juizo. _Electra_ O contrario de mim, que, não tenho nenhum, nenhum, nenhum! _Marquez_ Não direi eu isso... _Electra_ Que, ainda assim, quando lhe digo tolices e lhe chamo brutamontes, tonto e sabichão, não vá o Marquez pensar que o digo a sério. É brincadeira! _Marquez_ Tambem me queria parecer que não era uma convicção philosophica. _Electra_ Brincadeira descabida, talvez, porque elle é seriissimo... E sobre esse ponto gostaria de ouvir o seu conselho: acha que eu deva tornar-me séria? _Marquez_ Nunca! Cada creatura é como Deus a quiz fazer. Ninguem precisa de ser serio para ser bom. _Electra_ Pois veja lá! eu que não sei nada, tinha pensado isso mesmo! SCENA XI ELECTRA, MARQUEZ E PANTOJA pelo fundo _Pantoja_ (_do fundo, áparte_) E atreve-se a pôr os olhos peçonhentos n’uma tal flôr de candura, este libertino, velho e incorrigivel! (_Adeanta-se lentamente_) _Marquez_ (_dando por Pantoja, áparte_) Cae-nos o apagador em cima. Apaguemo-nos! _Electra_ O snr. Marquez tinha vindo para me ouvir tocar, mas eu estou muito estupida hoje. Ficou para outra vez. _Marquez_ O meu caro snr. Pantoja sabe que Beethoven é a minha paixão. Como me tinham dito que Electra o interpreta bem, esperava ouvir-lhe a _Sonata pathetica_ ou o _Clair de lune_... Puzemo-nos a conversar, e, visto que não é occasião agora... _Pantoja_ (_com desabrimento_) A hora do estudo acabou. _Marquez_ (_recobrando o seu papel de sociedade_) Outro dia será! Virginia e eu, meu presado snr. Pantoja, muito estimariamos que quizesse honrar-nos com os seus conselhos relativamente ao _Recolhimento das Escravas de Jesus_. _Pantoja_ Sim senhor, hoje irei vêr a marqueza, e fallaremos... _Marquez_ Nas _Escravas_ a encontrará o meu illustre amigo toda a santissima tarde... E como creio que sou demais... (_Movimento de retirar-se_) _Electra_ O snr. Marquez não estorva. _Marquez_ Vou-me com a musica... até o laboratorio de Maximo. _Pantoja_ Vá, vá, que ha de gostar! _Marquez_ Até ao almoço, meu muito respeitavel amigo. _Pantoja_ Guarde-o Deus. (_Sae o marquez pelo jardim_) SCENA XII ELECTRA E PANTOJA _Pantoja_ (_vivamente_) Que é que elle lhe dizia? que lhe estava contando esse depravador de innocencias? _Electra_ Nada: historias vagas, anecdotas para rir... _Pantoja_ As taes historias! Desconfie sempre das anecdotas jocosas, e dos narradores amenos, que escondem entre suavidades e fragrancias de jasmins uma ponta envenenada de estilete... Estou a achal-a perplexa, enleada, abstrahida, quasi medrosa, como quem acaba de sentir pela macia relva matisada de lirios um roçagar de reptil. _Electra_ Ah! não. _Pantoja_ Essa inquietação resultante das conversações perturbadoras ha de acalmal-a a minha palavra serena e benefica. _Electra_ Vejo que é poeta, snr. de Pantoja; e dá-me prazer ouvil-o. _Pantoja_ (_indica-lhe uma cadeira, e sentam-se ambos_) Minha presada filha, vou dar-lhe a explicação da intensa ternura que me inspira... Terá dado por isso? _Electra_ Tenho. _Pantoja_ Tal explicação equivale á revelação de um segredo... _Electra_ (_muito assustada_) Deus do ceu! estou a tremer... _Pantoja_ Socegue, minha filha... E ouça primeiro a parte d’esta confidencia mais dolorosa para mim. Fui muito mau, Electra. _Electra_ Como assim, com a fama de santidade que tem! _Pantoja_ Fui mau—digo-lh’o eu—em certa occasião da minha vida. (_Suspirando_) Já lá vão alguns annos. _Electra_ (_vivamente_) Quantos? Poderei eu lembrar-me ainda do tempo da sua maldade, snr. de Pantoja? _Pantoja_ Não pode. Quando eu me depravei, quando me afundi no lodaçal do peccado, não tinha a menina ainda nascido... _Electra_ Mas nasci afinal... _Pantoja_ (_depois de uma pausa_) É certo. _Electra_ Nasci... e d’ahi? Por quem é, abrevie essa historia... _Pantoja_ A sua perturbação me indica que devemos desviar os olhos do passado. A sua condição presente socega-me. _Electra_ Porquê? _Pantoja_ Porque ha de ter um amparo, um arrimo para toda a vida. Nada mais ineffavel para mim do que a fortuna de velar pelo destino de uma creatura tão bella e tão nobre! Quero consagrar-me a defendel-a de todo o mal, a guardal-a, a acalental-a, a dirigil-a, para que sempre se conserve incolume, intemerata e pura; para que nunca lhe toque nem a mais tenue sombra, nem o mais afastado respiro do mal. É hoje uma menina que parece um anjo. Não me conformo com que unicamente o pareça; quero que para mim o seja. _Electra_ (_friamente_) Que eu seja um anjo de sua composição e propriedade sua?... E parece-lhe que se deva considerar como um rasgo de caridade extraordinaria e sublime esse fervoroso desejo que mostra de ter assim, um anjo de seu? _Pantoja_ Não é caridade: é obrigação. Tu—entendes?—tens o direito de ser amparada por mim; eu tenho o dever de amparar-te. _Electra_ Tamanha confiança... tão severa auctoridade... _Pantoja_ A minha auctoridade provém do meu entranhado affecto, assim como do calor do sol provém a força da terra. A minha protecção é um producto da minha consciencia. _Electra_ (_levanta-se muito agitada, e afastando-se de Pantoja, áparte_) Virgem mãe santissima! dois protectores! e um que precisa de opprimir para proteger! (_alto_) Olhe: eu admiro-o e respeito muito as suas virtudes. Emquanto á sua auctoridade—perdoe-me o atrevimento de lh’o dizer—não a comprehendo bem claramente, e parece-me que só a minha tia é que devo submissão e obediencia. _Pantoja_ Vem a ser a mesma coisa. Evarista faz-me a honra de me consultar em tudo. Obedecer-lhe a ella é submetter-te a mim. _Electra_ Então tambem a tia me quer para anjo d’ella? ainda por cima de eu já estar para anjo do snr. de Pantoja?! _Pantoja_ Anjo de todos, de Deus principalmente. Convence-te, filha da minha alma, que vieste a bôas mãos, e que só te cumpre deixar-te guiar na virtude e na purificação. _Electra_ (_com displicencia_) Pois, se querem purificar-me, purifiquem-me... Mas estão bem certos de que eu seja impura e má? _Pantoja_ Poderias vir a sel-o. Melhor se vence o mal prevenindo que remediando. _Electra_ Pobre de mim! (_Levantando os olhos em extase, suspira. Pausa_) _Pantoja_ Porque suspiras assim? _Electra_ Deixe-me aliviar o meu triste coração. Pesam-me demais em cima d’elle as consciencias dos outros. SCENA XIII ELECTRA, PANTOJA E EVARISTA, pelo fundo _Evarista_ Amigo Pantoja, a Madre Barbara da Cruz espera-o para se despedir e receber as suas ordens. _Pantoja_ Ah! não me lembrava... Vou immediatamente. (_Áparte a Evarista_) Falamos. Vigie. Acautelemo-nos! (_Antes de saír Pantoja, pelo fundo, entram o Marquez e Maximo pela direita_) SCENA XIV ELECTRA, EVARISTA, MARQUEZ E MAXIMO _Marquez_ Tardamos? _Evarista_ Não. Estiveram no laboratorio?... (_Formam-se dois grupos: Electra e Maximo á esquerda; Evarista e o Marquez á direita._) _Marquez_ Lá estivemos. É um prodigio este homem... (_Segue falando no que viu_) _Electra_ (_suspirando_) Sim, Maximo, preciso de consultar-te sobre um caso grave. _Maximo_ (_com vivo interesse_) Conta depressa! _Electra_ (_receosa olhando para o outro grupo_) Impossivel agora. _Maximo_ Quando então? _Electra_ Não sei... Não sei quando t’o poderei dizer... Não se resume em quatro palavras... _Maximo_ Pobre rapariga!... O que eu te predisse... Chegam as seriedades da vida, os deveres, as amarguras... _Electra_ Talvez. _Maximo_ (_olhando-a fito, com grande interesse_) Na expressão da tua physionomia ha um veu de tristeza e um estremecimento de susto... Desconheço-te. _Electra_ Querem annular o que eu sou, e reduzir-me a outra coisa... a uma coisa angelical e celeste, que não sei o que é! _Maximo_ (_vivamente_) Por Deus, não consintas isso! Defende-te, Electra. _Electra_ Que me aconselhas? _Maximo_ (_sem vacillar_) A independencia. _Electra_ A independencia! _Maximo_ Sim, a emancipação... N’uma palavra: Insurge-te! _Electra_ Queres dizer que faça quanto me vier á cabeça, que danse, que pule, que corra pelo parque emquanto me appeteça, que entre na tua casa como em paiz conquistado, que conspire com os teus pequenos, que fuja com elles para o jardim, para longe, para onde eu quizer?... _Maximo_ Tudo! _Electra_ Olha o que dizes!?... _Maximo_ Digo-te isto. _Electra_ Mas é o contrario que me tens recommendado sempre! _Maximo_ (_olhando-a fixamente_) Na tua cara, no vinco dos teus sobrolhos, na tremura da tua bocca, eu vejo que estão radicalmente transformadas as condições da tua vida. Tu agora tens medo. _Electra_ (_medrosa_) Tenho, sim. _Maximo_ Tu... (_Hesitando no verbo que ha de empregar. Vae a dizer amar, mas não ousa_) Tu queres ardentemente que alguma coisa succeda... _Electra_ (_com effusão_) Quero. (_Pausa_) E dizes-me tu que contra o medo... a insubordinação. _Maximo_ Sim: solta livremente todos os teus impulsos para que quanto ha em ti se manifeste, e se saiba quem tu és. _Electra_ O que eu sou? Queres conhecer... _Maximo_ A tua alma... _Electra_ Os meus segredos... _Maximo_ A tua alma... N’ella se comprehende tudo. _Electra_ (_notando que Evaristo a observa_) Basta... Olham para nós. SCENA XV OS MESMOS, URBANO E PANTOJA, pelo fundo _Urbano_ Almoça-se? _Pantoja_ (_a Evarista, suffocado, vendo Electra com Maximo_) Então assim a deixa só com Mephistopheles? _Evarista_ Não tenha sustos, Pantoja. _Marquez_ (_rindo_) Não tem de que os ter. Esse Mephistopheles é um santo. (_Dá o braço a Evarista_) _Pantoja_ (_imperiosamente, pegando na mão de Electra para a conduzir_) Commigo! (_Electra, andando com Pantoja, volta a cabeça para olhar para Maximo_) _Maximo_ (_olhando para Electra e para Pantoja_) Comtigo?... Havemos de vêr com quem! (_Maximo e Urbano são os ultimos que saem_) FIM DO PRIMEIRO ACTO ACTO SEGUNDO Scenario do primeiro acto SCENA I EVARISTA, URBANO, á banca, despachando negocios, BALBINA, que serve á snr.ª de Yuste uma taça de caldo _Urbano_ (_dispondo-se a escrever_) Que é que se diz ao reitor do Patrocinio? _Evarista_ O que se combinou: approvamos a planta, e acceitamos o orçamento. Depois nos entenderemos com o empreiteiro. _Urbano_ Já sabes a quanto monta a obra... (_Lendo n’um apontamento_) Trezentas e vinte e duas mil pezetas... _Evarista_ Bem. Ainda nos sobeja dinheiro para a continuação do Soccorro. (_A Balbina, que recolhe a taça_) Não te esqueças do que te incumbi. _Balbina_ Continúo vigiando, como a senhora determinou. Mas este recreio a que a menina agora se entrega não me parece de cuidado. Tantas cartas de namorados juntas são carteio de mais. A menina, emquanto a mim, para o que puxa não é para a tolice, é para a risota. _Evarista_ Mas quem traz todas essas cartas que ella recebe? _Balbina_ Isso não sei... Mas ando de pedra no sapato com a Patros. _Evarista_ Espreita-as, e informa-me. _Balbina_ Fica ao meu cuidado, deixe estar! (_retira-se Balbina_) SCENA II OS MESMOS E MAXIMO, apressado, com plantas e papeis _Maximo_ Estórvo? _Evarista_ Não, filho, podes entrar. _Maximo_ São dois minutos, tia. _Urbano_ Vens do ministerio? _Maximo_ Venho da conferencia com os bilbaínos. Tenho hoje um dia de prova tremenda... Immenso que conferir, immenso que falar, immenso que correr, e, para me não faltar mais nada, a casa toda revirada com o debaixo para cima! _Evarista_ Mas, homem, que foi isso?! Diz a Balbina que despediste as creadas... _Maximo_ Pessoal infame, tia! Tres ladras! Pul-as na rua. Estou com o ordenança e com a ama. Que lindo arranjo, hein? _Evarista_ Vem comer cá. _Maximo_ Comer cá é bom de dizer. A tia fala bem! E os pequenos com quem ficam? Se os trago põem-lhe a cabeça em agoa, desarranjam-lhe tudo... _Evarista_ Não tragas. Eu adoro as creanças. Mas têl-as commigo, não. Revolvem tudo, sujam tudo! corridas, risadas, cantatas, berratas, guinchos, patadas medonhas no chão! fazem-me doida. E mêdo que caiam, que se mólhem, que as arranhem os gatos, que rachem as cabeças, que esburaquem os olhos uns dos outros. Nada... Não quero responsabilidades. _Maximo_ Eu o que queria é que a tia me mandasse uma cosinheira. _Evarista_ Manda-se-te para lá a Henriqueta. Urbano, toma nota. _Maximo_ Bom. (_Dispondo-se a partir_) _Evarista_ Olha lá! os teus negocios parece que vão bem... Já sabes o que te tenho dito: Se o _magico prodigioso_ precisar de dinheiro para a implantação dos seus inventos, não tem mais do que dizel-o... _Maximo_ Obrigado, tia... Tenho á minha disposição quanto dinheiro queira... Assim eu tivesse uma creatura que me soubesse fazer sôpa! _Urbano_ Esse senhor dentro de poucos annos ha de estar muito mais rico do que nós. _Maximo_ Isso bem pode ser que sim. _Urbano_ Obra do seu talento. _Maximo_ (_com modestia_) Não: do trabalho, da perseverança, da paciencia... _Evarista_ Nem me digas! Trabalhas monstruosamente. _Maximo_ Quanto é preciso que trabalhe, por obrigação, por consolação, por prazer, e, a final, por enthusiasmo adquirido tambem. _Urbano_ Passa a monomania isso. É uma borracheira de estudo. _Evarista_ (_grave_) Não: é a ambição, a maldita ambição, que a tantos fascina e a tantos deita a perder. _Maximo_ Ambição legitima e indispensavel á humanidade. Imagine a tia... _Evarista_ (_cortando-lhe a palavra_) É a ancia das riquezas, para saciar com ellas a avidez do goso. Gosar, gosar, gosar: isso unicamente quereis, e para isso vos consumis, sacrificando o estomago, o cerebro, o coração e a propria alma, sem vos lembrardes da inanidade das coisas da terra e da brevidade da vida. Rapidamente nos vamos, e tudo cá fica. _Maximo_ (_impaciente por sahir_) Tudo, menos eu, que me safo já. SCENA III OS MESMOS E JOSÉ _José_ (_annunciando_) O snr. marquez de Ronda. _Maximo_ (_detendo-se_) Esperarei já agora para o vêr. _Evarista_ (_recolhendo os papeis_) Não manda Deus que trabalhemos hoje. _Urbano_ Adivinho ao que vem. _Evarista_ Que entre, José, que entre! (_José sae_) _Maximo_ Vem convidal-os para a inauguração da nova _Irmandade da Escravidão_ fundada por Virginia. Disse-m’o hontem á noite. _Evarista_ Bem sei... Então é hoje? SCENA IV EVARISTA, URBANO, MAXIMO E O MARQUEZ _Marquez_ (_saudando com affabilidade_) Querida amiga... Urbano... (_A Maximo_) Olá! não esperava encontrar o magico... _Maximo_ O magico diz-lhe adeus e some-se. _Marquez_ Um momento. (_Retendo-o_) _Evarista_ Sim, Marquez: iremos. _Marquez_ Já sabem? _Urbano_ A que horas? _Marquez_ Ás cinco em ponto. (_A Maximo_) A si não lhe digo porque sei que não tem tempo. _Maximo_ Desgraçadamente. Segue-se então que o não espero hoje. _Marquez_ Como, se temos essa festa rija de religião e de mundanismo! mas lá vou á noite. _Evarista_ (_levemente zombeteira_) Já cá se tem notado, com muito regosijo é claro, a frequencia das visitas do Marquez á caverna do nigromante. _Maximo_ O Marquez dá-me muita honra com a sua amizade e com o interesse que toma pelos meus estudos. _Marquez_ Veio-me agora o delirio das maquinas e dos phenomenos electricos... Caturrices de velho! _Urbano_ (_a Maximo_) Parabens pelo discipulo. _Evarista_ Deus sabe... (_Maliciosa_) Deus sabe quem será o mestre e quem o alumno! _Marquez_ A respeito do mestre, sinto que elle esteja presente porque isso me priva de applicar aos seus meritos todas as mordeduras que a inveja me inspira. _Evarista_ Retira-te, Maximo; vamos dizer mal de ti. _Maximo_ Repaste-se a má lingua! Adeusinho todos. Adeus, tia. _Evarista_ Vae com Nossa Senhora! _Marquez_ (_a Maximo que sae_) Até á noite, se me deixarem. (_A Evarista_) Extraordinario homem! Sempre o admirei muito, mas agora que tenho apreciado mais de perto todas as suas qualidades, sustento que não ha outro no mundo como este seu sobrinho. _Evarista_ No terreno scientifico. _Marquez_ Em todos os terrenos, senhora de Yuste. Pois quê?!... _Evarista_ De certo que como intelligencia... _Marquez_ (_com enthusiasmo_) Como intelligencia, como caracter, como coração, como tudo... Quem é que é melhor? _Evarista_ (_sem querer empenhar-se n’uma discussão delicada_) Bem, bem, Marquez... (_Variando de tom_) É então ás cinco, disse...? _Marquez_ Em ponto. Contamos tambem com Electra. _Evarista_ Não sei se a leve... _Marquez_ Ora essa! Tenho incumbencia especialissima de conseguir a presença da senhorita Electra n’esta solemnidade, e já prometti que sim. Virginia deseja muito conhecêl-a. _Urbano_ Á vista d’isso... _Marquez_ Não me deixem ficar mal! _Evarista_ Bem: conte com ella. _Marquez_ Teremos muita gente, toda a nossa roda... _Urbano_ Oh! vae estar brilhante com certeza. _Marquez_ Com que então, até já. Tenho de ir a casa de Otumba, e passarei por cá na volta. (_Ouve-se a voz de Electra pela esquerda, chalrando e rindo alegremente. O marquez pára a escutal-a_) SCENA V OS MESMOS E ELECTRA _Electra_ Pois sim, sim... rica, minha riquinha! mais um beijo... Que doida que és! que doida que sou! mas entendemo-nos ambas. (_Apparece pela esquerda com uma grande e rica boneca, que beija e que embala. Detem-se envergonhada_) _Evarista_ Que vem a ser isto, rapariga? _Marquez_ Não lhe ralhe. _Electra_ Mademoiselle Lulu e eu damos á lingoa, contamo-nos coisas. _Urbano_ (_ao Marquez_) Anda desatinada hoje. _Electra_ (_afastando-se, diz segredinhos á boneca. Os outros olham_) Que linda que és, Lulu! Mas elle, ainda mais lindo que tu. Que feliz seria o meu amor com elle e comtigo! _Marquez_ Sempre folgazã, pelo que vejo... _Evarista_ Pelo contrario: desde hontem n’uma tristeza que nos dá cuidado. _Marquez_ Tristeza? idealidade antes. _Evarista_ E, agora, está vendo... _Marquez_ (_carinhoso, dirigindo-se para ella_) Rica menina! _Electra_ (_approximando a cara da boneca da do marquez_) Vamos, Mademoiselle, não se me faça môna: dê um beijinho a este senhor. (_Antes que o marquez beije a boneca dá-lhe um leve carolo com a cabeça de Lulu_) _Marquez_ A Lulu não beija: a Lulu marra. (_Acariciando o queixinho de Electra_) Por isso gósto mais da sua amiguinha do que d’ella. _Electra_ De miôlo póde crêr que tanto tem uma como outra. _Urbano_ Mas que conversas tu com a boneca? _Electra_ Desafógo com ella, conto-lhe as minhas penas. _Evarista_ Penas, tu? _Electra_ Penas eu, sim, pois quê?... E quando nos vê muito caladas ambas é porque nos estão lembrando as nossas coisas passadas... _Marquez_ Ah! se a interessa o passado já é um signal de que pensa pela sua cabecinha. _Evarista_ E que coisas passadas são essas que dizes? _Electra_ Digo do tempo em que nasci. (_Com gravidade_) O dia em que eu vim ao mundo foi um dia muito triste, pois não foi? Lembra-se aqui alguem de como foi esse dia? _Evarista_ Filha, que tontices que dizes! E não tens vergonha de que o snr. Marquez te veja tão adoidada? _Electra_ Creia, tia, que não ha doidos tão doidos, nem creanças tão creanças, que não tenham sua razão para dizer o que dizem e para fazer o que fazem. _Marquez_ Muito bem pensado. _Evarista_ Qual é então a tua razão para esses brinquedos tão fóra da tua edade? _Electra_ (_olhando para o marquez, que sorri ao seu lado_) Isso não posso contar agora. _Marquez_ Quer dizer que me retire. _Evarista_ Electra! _Marquez_ Eu ia já despedir-me... com bem pena de que as minhas occupações me privem de convivencia tão interessante. Adeus, senhorita; volto ás cinco para a levar commigo. _Electra_ A mim! _Evarista_ Sim; vamos á inauguração das _Escravas_. _Electra_ E eu tambem? _Evarista_ Podes-te ir vestindo. _Electra_ (_assustada_) Ha de estar muita gente... A gente mette-me medo. Gósto mais de ficar só. _Marquez_ Estaremos em familia. E com isto me despégo. _Evarista_ Até logo, Marquez. _Marquez_ (_a Electra_) Menina, ás cinco; aprendámos a ser pontuaes. (_Sae pelo fundo com Urbano_) SCENA VI EVARISTA E ELECTRA _Evarista_ Explicarás agora a extranha maluquice em que andas. _Electra_ Eu lhe digo, tia: tenho uma dúvida... como direi?... um problema... _Evarista_ Problemas, tu! _Electra_ Exactamente, no plural, problemas... porque é de mais d’um que se trata. _Evarista_ Valha-te Nossa Senhora! _Electra_ E quero vêr se m’os resolve... _Evarista_ Quem? _Electra_ Uma pessôa que já não vive. _Evarista_ Que dizes? _Electra_ Minha mãe. Não se afflija... Minha mãe pode-me dizer o que eu pretendo... e aconselhar-me. A tia não acredita que as pessôas do outro mundo podem vir a este? (_Gesto de incredulidade de Evarista_) Não acredita. Acredito eu. Acredito porque o tenho visto. Eu tenho visto minha mãe... _Evarista_ Virgem Maria! como tens essa cabeça! _Electra_ ... Quando era muito pequenina, assim, d’este tamanho... _Evarista_ Nas Ursulinas de Bayona? _Electra_ Sim... Minha mãe apparecia-me. _Evarista_ Em sonhos, naturalmente. _Electra_ Não, não: estando eu acordada, tão bem acordada como estou agora. (_Colloca a boneca n’uma cadeira_) _Evarista_ Pensa no que dizes, Electra... _Electra_ Quando eu estava só, sósinha, triste ou doente; quando alguem me lastimava dando-me a perceber a desairosa situação que eu tinha no mundo, a minha mãe vinha, e consolava-me. Primeiro via-a imperfeitamente, confusa, como vaporosa, a parecer diluir-se nas coisas distantes, nas coisas proximas. Adeantava-se, n’uma claridade que tremeluzia... Depois, não bulia mais; era uma fórma quieta, uma serena imagem triste... E eu não podia então duvidar de que a tinha ali... Era minha mãe... Das primeiras vezes via-a em traje elegante de grande dama... Um dia, por fim, appareceu-me de habito e escapulario de monja. O seu rosto envolvido nas toucas brancas, e o seu corpo coberto pela estamenha pendente tinham uma magestade de belleza que não póde imaginar quem a não viu. _Evarista_ Tu deliras, minha pobre filha! _Electra_ Junto de mim abria os braços como se quizesse enlaçar-me. Falava-me n’uma voz dôce, mas longinqua e recondita... não sei como lh’o explique... Eu perguntava-lhe coisas, e ella respondia-me... (_maior incredulidade de Evarista_) A tia não acredita? _Evarista_ Vae dizendo. _Electra_ Nas Ursulinas tinha uma bella boneca, a que eu chamava tambem Lulu... Veja a tia que mysterio este!... Sempre que eu andava pela horta, ao cahir da tarde, só, levando ao colo a minha boneca—tão melancolica eu como ella—olhando muito para o ceu, era certa, segura, infallivel, a visão de minha mãe... primeiro entre as arvores, como enformada no ôco das folhagens; depois, desenhando-se de luz, e caminhando para mim, vagarosamente, por entre os troncos escuros... _Evarista_ E em mais crescida, quando vivias em Hendaya... tambem?... _Electra_ Nos primeiros tempos não... Então já eu brincava com bonecas vivas: os dois pequerruchinhos da minha prima Rosalia, menina e menino, que nunca se separavam de mim, e me adoravam, como eu a elles. De noite, na solidão do nosso quarto, com os meninos dormidinhos, como elles aqui... e eu aqui (_indica o logar dos dois leitos parallelos_) por entre as duas caminhas brancas a minha mãe passava, meiga, silenciosa, aeria, sem pisar o chão... E debruçava-se para mim... _Evarista_ Cala-te, por Deus, que até me fazes medo... Mas depois que foste mais crescida... agora—digamos—acabaram essas visões... _Electra_ Nunca mais as tive desde que deixei de viver com bonecas e com meninos. É por isso que eu trato de voltar á edade da innocencia, e de me fazer creança pequena outra vez, a vêr se, tornando a ser o que fui, voltará tambem minha mãe a vêr-me, como d’antes... Para que falemos, e me responda ao que lhe quero perguntar... e me dê conselho... _Evarista_ E que dúvidas são as tuas, que assim precisas... _Electra_ (_pondo os olhos no chão_) Dúvidas?... coisas que a gente não sabe, e quer saber. _Evarista_ Tolice! Que tão grave caso vem a ser esse para que precises de consulta e de conselho?... _Electra_ Cá uma coisa... (_Vacilla, está quasi a dizêl-o_) _Evarista_ O quê? dize. _Electra_ Uma coisa... (_Com timidez infantil dando voltas á boneca e sem se atrever a revelar o seu segredo_) Uma certa coisa... _Evarista_ (_severa e affectuosa_) Ih! que intoleravel que estás, com tanta creancice! (_Tira-lhe a boneca_) Que estupida e ao mesmo tempo que atilada que tu és! Tão depressa te mostras um prodigio de intelligencia e de graça como parece que não passas de maluca... Andam ás bulhas com a tua alma cherubins e demonios. Temos que intervir para acabar com essa lucta e dar em Satanaz muitos açoites, ainda que algum te caia em ti e te dôa um poucochito... (_Beija-a_) Vamos! juizo. Precisas de te occupar n’alguma coisa, de distrahir essa cabeça... Não te esqueça de que é ás cinco a festa... Vae-te arranjar, anda... _Electra_ Sim, tia. _Evarista_ Faltam tres quartos. _Electra_ Vou apromptar-me. _Evarista_ E poucas brincadeiras... cuidado! (_Sae pelo fundo levando a boneca pendida, suspensa por um braço_) SCENA VII ELECTRA E PATROS _Electra_ (_olhando para a boneca_) Pobre Lulu! como te levam á dependura! (_Imitando a postura da boneca e apalpando o seu proprio braço dolorido_) Que dôr que vaes ter, coitada, no hombro desengonçado! (_Senta-se meditabunda_) E o outro á minha espera... Como foi triste a separação! como elle chorava, estendendo-me os bracinhos!... e eu que lhe prometti voltar... _Patros_ (_assomando cautelosa pela esquerda_) Senhorita, senhorita... _Electra_ Entra. _Patros_ (_avançando com precaução_) Não está ninguem? _Electra_ Estamos sós. _Patros_ Não se pilha outra occasião assim, menina! Ou agora ou nunca. _Electra_ Vens de lá? _Patros_ Agora mesmo... Muitos senhores que dizem numeros... milhões, _bilhões_ e _quatrilhões_... E lá dentro, ninguem. _Electra_ (_vacillando_) Atrevo-me? _Patros_ (_decidida_) Atreva-se, menina. _Electra_ Nossa Senhora do Carmo, protegei-me! (_Dirige-se á sahida que dá para o jardim. Pára assustada_) Espera. Não será melhor sahirmos pelo outro lado? Pode estar a tia á janella da casa de jantar... _Patros_ Pode, pode! Demos a volta por aqui. (_Pela esquerda_) _Electra_ Sim, por aqui... Estou a tremer toda... de valentia! e de medo. Ávante! (_Saem a correr pela esquerda_) SCENA VIII URBANO E JOSÉ, que entram pelo fundo ao tempo a que saem as duas _Urbano_ Quem vae ali? _José_ É a Patros. _Urbano_ Então que temos?... conta lá. _José_ São já cinco os que fazem olho á menina: cinco vistos por mim. Fóra os que não vi. _Urbano_ E quê? rondam a casa? _José_ Dois pela manhã, dois de tarde, e o mais pequenitate de todos, de sol a sol. _Urbano_ Tens notado se ha communicação entre a janella do quarto da senhorita Electra e a rua por meio de cesto pendente ou de cordão telephonico? _José_ Não vi nada d’isso. Mas cá eu, se fôsse os senhores, mudava a menina para os quartos d’acolá. (_Á esquerda_) _Urbano_ E algum d’esses meninos não se coará para dentro do jardim? _José_ Isso sim! Não que elles teem espinhaço e querem-o para mais d’uma vez. _Urbano_ Bem: vae vigiando sempre. (_Entra Cuesta pelo fundo_) SCENA IX URBANO E CUESTA, com papeis e cartas _Urbano_ Ora graças a Deus, Leonardo! _Cuesta_ Já te tinha dito que não vinha de manhã. (_A José, dando-lhe uma carta_) Isto para registar. Logo irão mais cartas. (_Sae José_) _Urbano_ (_pegando n’um papel que Cuesta lhe entrega_) Que vem a ser isto? _Cuesta_ O recibo das cem mil e tantas pesetas... assigna-me agora um talão de sessenta e sete mil... _Urbano_ Para a remessa para Roma... _Cuesta_ Isso mesmo. E Evarista? _Urbano_ A vestir-se. _Cuesta_ Já sei que vaes á inauguração das _Escravas_ e que tambem vae Electra. _Urbano_ Essa pequena, positivamente, não promette coisa boa. Está cada vez mais caprichosa e mais leviana... _Cuesta_ (_vivamente_) Sem maldade! _Urbano_ Mas com symptomas d’isso. Evarista, que é a cautella e a prudencia em pessoa, anda a pensar em submettel-a a um regimen sanitario em S. José da Penitencia. _Cuesta_ Has de me permittir que discorde inteiramente d’esse alvitre. Tu dirás que quem me manda a mim... _Urbano_ Pelo contrario: como amigo da casa muito estimo que dês opinião e conselho. _Cuesta_ Isso de arrastar para a vida claustral uma rapariga que não denota manifesta vocação de piedade, é grave... E não devereis extranhar que porventura alguem se opponha... _Urbano_ Quem se ha de oppôr? _Cuesta_ Que sei eu! alguem... Na vida d’esta menina ha, por emquanto, um factor desconhecido... Um bello dia poderá succeder... não direi que succeda... Um bello dia, quando puxeis pela corda com mais força, poderá vir uma voz que diga: «Alto lá, senhores de Yuste!» _Urbano_ E nós responderemos: «Querido snr. factor desconhecido, aqui tem a menina, com o que nos livra d’uma tutella difficil e incommoda.» _Cuesta_ (_senta-se com muita fadiga_) Isto, Urbano, é apenas uma supposição minha... é um modo de fallar... _Urbano_ Não te sentes bem? Queres tomar alguma coisa? _Cuesta_ Não... Este maldito coração recusa-se a ser dirigido pela vontade... _Urbano_ Descansa... Queres-te tu deitar? _Cuesta_ Pois não sabes o que tenho que fazer? (_Tirando papeis do bolso_) Para já, duas carta urgentes, que teem de partir hoje. _Urbano_ Escreve-as aqui. (_Fazendo um logar á meza, e retirando livros e papeis_) _Cuesta_ Está dito... installo-me ahi. _Urbano_ Eu estou atarefadissimo tambem. Tenho voltas que dar... _Cuesta_ Não penses mais em mim. (_Escreve_) _Urbano_ Desculpa. Evarista não tarda ahi. _Cuesta_ (_sem olhar_) Até logo... (_Sae Urbano pelo fundo_) SCENA X CUESTA, ELECTRA E PATROS (Assomam as duas á porta da esquerda como para reconhecer o terreno) _Electra_ Cuidado, Patros... Por aqui é difficil trazêl-o. _Patros_ (_reconhecendo Cuesta, que vê de costas_) D. Leonardo! _Electra_ Chut!... O mais seguro é deixal-o no teu quarto até á noite. Que massada a tal inauguração! _Cuesta_ (_volta-se ao ouvir vozes_) Ah! Electra... _Electra_ Importunamos, D. Leonardo?... _Cuesta_ Não, minha amiguinha. Quer fazer-me o favor de esperar um pouquinho... que termine uma carta? Tenho que lhe dizer. _Electra_ Aqui me tem. (_Áparte a Patros_) Que sécca! (_Alto_) Vinhamos unicamente buscar um papel e um lapiz para umas contas. (_Tira da meza um lapiz e papel. Áparte a Patros_) Cuida bem d’elle... Que amor que elle está adormecido! Com o seu focinhinho côr de rosa e as mãos sujas, com as unhitas pretas de andar a escarvar na terra... Dá vontade de o engulir! _Patros_ Com os lindos pés gordos, e a espessa carapinha d’ouro que elle tem... _Electra_ (_com effusão de carinho_) Dá volta á cabeça da gente. Olha bem por elle, Patros; vê lá!... _Patros_ Levo-lhe agora um bôlo. _Electra_ Não dou licença. Prohibo rigorosamente os bôlos. Para lhe sujarem o estomago!... Leva-lhe uma sopinha... _Patros_ Mas como hei de eu arranjar sopinha? _Electra_ Tens razão... Ah! pede na cosinha uma taça de leite para mim. _Patros_ Isso mesmo! E dou-lh’a quando acordar. _Electra_ Toma lá tambem o papel e o lapiz para elle fazer os seus rabiscos... É a coisa de que mais gosta... Depois, á noite, na primeira occasião, mette-o no meu quarto, para dormir comigo. _Cuesta_ (_fechando a carta_) Acabei. _Electra_ Perdoe um momento, D. Leonardo. (_Áparte a Patros_) Não o deixes nem um momento... Muito cuidadinho! Se D. Leonardo me não prender muito, ainda irei dar-lhe um beijo antes de me vestir. _Cuesta_ Patros, estas cartas para o correio! _Patros_ Vão-se levar já. SCENA XI CUESTA E ELECTRA _Cuesta_ (_pegando-lhe nas mãos_) Venha cá, sua grande extravagante... quanto me alegra vêl-a! _Electra_ É muito meu amigo, D. Leonardo? Não imagina como eu gosto de que me estimem! _Cuesta_ Mas precisamos tambem de ter mais um poucochinho de proposito e d’assento n’essa cabecinha... É bom que não haja nada que se nos dizer... E a mim contaram-me—pêtas já se vê!—que fervilham os namorados... _Electra_ Ah! Sim, eu já lhes perdi a conta! Mas não gosto senão d’um. _Cuesta_ D’um! E quem é? _Electra_ Isso... lá me parece perguntar de mais... _Cuesta_ Eu conheço-o? _Electra_ Se conhece! _Cuesta_ Fez-lhe a sua declaração d’uma maneira decente? _Electra_ Não me fez declaração nenhuma, nem me disse nada... até agora. _Cuesta_ E a menina ama esse timido donzel, e julga-se correspondida? _Electra_ Suspeito que me corresponde... Mas não o asseguro... _Cuesta_ Tenha confiança em mim, e conte-me isso. _Electra_ Agora não, que vou vestir-me. _Cuesta_ Falaremos depois. _Electra_ (_medrosa, olhando para o fundo_) Se não viesse a tia... _Cuesta_ Vista-se... Ámanhã será. _Electra_ Sim, ámanhã. Adeus. (_Corre para a direita. Movida de uma ideia repentina dá meia volta_) Antes de me vestir... (_Áparte_) Não resisto. Vou dar-lhe um beijo. (_Sae correndo pela esquerda. Cuesta segue-a com a vista e suspira_) SCENA XII CUESTA, URBANO E EVARISTA; depois ELECTRA _Cuesta_ (_reunindo e recolhendo os papeis_) Que felicidade a minha, se publicamente a pudesse amar! _Evarista_ (_vestida para sahir_) Desculpe terem-no deixado para ahi, Leonardo. Já me disse Urbano que lançamos uma grande operação. _Urbano_ (_entregando a Cuesta um talão_) Ahi tens. _Evarista_ Não me espantarei se o vir apparecer-nos com outra carga de dinheiro... Deus o dá, Deus o recebe... (_Assoma Electra pela porta da esquerda. Ao vêr a tia hesita, não se atreve a atravessar. Decide-se por fim, procurando escapulir-se. Evarista segura-a_) Ora não ha! Então ainda te não vestiste? D’onde vens? _Electra_ Da casa de engommar. Fui á Patros para me alisar um papo... _Evarista_ Gabo-te a pachorra! (_Notando que sae a ponta de uma carta de uma das algibeiras do avental de Electra_) Que tens aqui? (_Pega na carta_) _Electra_ Uma carta. _Cuesta_ Creancices. _Evarista_ Não imagina, Cuesta, o desgosto que esta rapariga me dá com as suas travessuras, que já não são tão innocentes como isso! (_Dá a carta a Urbano_) Lê tu. _Cuesta_ Vamos a vêr isso. _Urbano_ (_lendo_) Senhorita—Tenho para mim que n’esse rosto feiticeiro... _Evarista_ (_zombando_) Muito bonito! (_Electra contém difficilmente o riso_) _Urbano_ (_continúa a ler_) ...que n’esse rosto feiticeiro escreveu o Supremo artifice o problema do... do... (_Sem entender a palavra seguinte_) _Electra_ (_apontando_) ...do «cosmos». _Urbano_ Isso mesmo: do cosmos, symbolisando em seu luminoso olhar, na sua bocca divina, o poderoso agente physico, que... _Evarista_ (_arrebatando a carta_) Que indecencias! _Urbano_ (_descobrindo outra carta em outro bolso_) está outra. (_Pega n’ella_) _Cuesta_ Vejamos essa! _Evarista_ Isto, Electra, não é o corpo de uma menina: é um marco postal. _Urbano_ (_lendo_) Desapiedada Electra, com que palavras exprimirei o meu desespero, a minha loucura, o meu frenesi...? _Evarista_ Basta... Isso revolta-me. (_Incommodada revista as algibeiras de Electra_) Apostaria que ainda ha mais. _Cuesta_ Indulgencia, Evarista! _Electra_ Tia, não se amofine mais... _Evarista_ Que me não amofine!... A amofinação eu t’a contarei... Veste-te immediatamente. _Urbano_ (_consultando o relogio_) É quasi a hora. _Electra_ N’um momento! _Evarista_ Avia-te, avia-te! (_Electra, contente de se vêr solta, corre para o seu quarto_) SCENA XIII CUESTA, URBANO, EVARISTA E PANTOJA _Evarista_ (_com tristeza e desalento_) E então, Leonardo, que me diz a isto? _Cuesta_ O socego com que deixou devassar os seus segredos demonstra bem a pouca importancia que lhes dá e que elles teem. _Evarista_ Não, não é tanto assim... _Pantoja_ (_pelo fundo, anciado_) Está o Cuesta! Já se não pode dizer o que se quer... _Evarista_ (_contente de vêl-o_) Até que emfim, Pantoja... (_Formam-se dois grupos: á esquerda Cuesta sentado, Urbano em pé; á direita, Pantoja e Evarista, sentados_) _Pantoja_ Venho contar-lhe coisas da maior gravidade. _Evarista_ Ai de mim! seja o que Deus quizer. _Pantoja_ (_repetindo a phrase com reservas_) Seja o que Deus quizer... está muito bem, mas queiramos tambem nós o que quer Deus, e empenhemos toda a nossa vontade em produzir o bem, por mais que nos custe! _Evarista_ A sua energia fortifica a minha... Então... que ha? _Pantoja_ Ha pouco, em casa de Requesens, falou-se de Electra em termos dissolutos. Contavam que, indecorosamente envolvida por um vespeiro de namorados, ella se divertia a receber e a mandar cartas a toda a hora do dia. _Evarista_ Infelizmente, Salvador, a frivolidade d’esta menina é tal que, com toda a minha ternura por ella, nem eu mesma a sei defender! _Pantoja_ (_angustiado_) Pois saiba mais, e veja que não tem limites a maldade humana. Hontem á noite o marquez de Ronda, na tertulia da sua casa, na presença de Virginia, sua santa mulher, e de outras pessoas do maior respeito, não cessou de exaltar os encantos de Electra com expressões do mais material e repugnante mundanismo. _Evarista_ Tenhamos paciencia, meu amigo. _Pantoja_ Paciencia... Paciencia é uma virtude que vale muito pouco sempre que se não reforça com a resolução. Não confundamos essa virtude com o vicio da negligencia, e determinemo-nos com firmeza, minha querida amiga, a resguardar Electra da infamia do mundo, em logar onde não veja exemplos de leviandade e onde não ouça uma só palavra do contagioso impudor da sociedade em que vivemos. _Evarista_ Onde respire um ambiente de pura virtude... _Pantoja_ E não a perturbe o zumbido de pretendentes impudicos e infecciosos... Na critica edade da formação do caracter, em que ella está, temos nós a obrigação de livral-a do immenso perigo, do maior de todos... _Evarista_ Que perigo? _Pantoja_ O homem. Nada na terra peor que o homem... quando não é bom. Por mim o sei: fui o meu proprio mestre. O meu desvario, de que pela graça de Deus me curei, e depois d’isso a minha tão longa e entristecida convalescença, duramente me ensinaram a grave e delicada medicina das almas... Deixe-me, e eu lhe salvarei essa menina... (_Interrompe-o Urbano, que passa para o grupo da direita_) _Urbano_ (_dando importancia á sua revelação_) Sabem o que me disse Cuesta? Que entre a cafila dos pretendentes ha um preferido. Electra mesma o confessou. _Evarista_ E quem é? (_Passa da direita para a esquerda, ficando á direita de Pantoja e d’Urbano_) _Urbano_ (_a Pantoja_) Isto poderia modificar os termos do problema. _Pantoja_ (_mal humorado_) E que significa essa preferencia? É um affecto puro, ou é uma paixoneta immoderada, febril e ephemera, d’essas que constituem o mais grave symptoma da loucura do seculo? (_Excitado e levantando a voz_) É o que é preciso saber-se! que se saiba quem é! _Urbano_ Saberemos... _Pantoja_ (_passando para junto de Cuesta_) O snr. Cuesta não a interrogou? _Evarista_ (_ao centro, a Urbano_) Procura tu certificar-te. _Cuesta_ (_enfadado, em resposta a Pantoja_) Parece-me que estão os snrs. desenvolvendo um zelo excessivo e contraproducente. _Pantoja_ (_com uma suavidade que não encobre a sua altaneria_) O meu zelo, meu muito querido D. Leonardo, é o zelo que devo ter. _Cuesta_ (_um tanto ferido_) Eu julguei na minha qualidade de velho amigo da casa... _Pantoja_ (_levando Urbano comsigo para a direita_) Cuesta mette-se demais com o que não é da sua conta. _Cuesta_ (_a Evarista sem lhe dar cuidado que Pantoja o ouça_) O nosso presado snr. Pantoja é talvez demasiadamente afouto na facilidade com que penetra nas attribuições dos outros. _Evarista_ (_sem saber bem que explicação dar_) Emfim, como nosso amigo muito antigo e leal... _Cuesta_ Tambem eu o sou. _Urbano_ (_olhando para o fundo_) Ahi está já o Marquez. SCENA XIV OS MESMOS E O MARQUEZ _Marquez_ Em boa hora chego! _Pantoja_ (_áparte_) Em pessima! _Marquez_ (_depois de saudar Evarista_) E Electra? _Evarista_ Vem já. _Marquez_ (_cortejando os outros_) Já não é cêdo. _Urbano_ É a hora. (_Pantoja, impaciente, espera Electra á porta do seu quarto. Cuesta fala com Urbano_) SCENA XV OS MESMOS E ELECTRA _Pantoja_ (_com alegria annunciando-a_) Eil-a aqui. (_Electra entra pela direita, muito elegantemente vestida com singeleza e distincção_) _Marquez_ (_encomiastico_) Que elegante! _Electra_ (_satisfeita, voltando-se para que a vejam de todos os lados_) Meus senhores, que me dizem? _Cuesta_ Divina! _Marquez_ Ideal! _Evarista_ Sim: estás bem. _Pantoja_ (_fastiento dos elogios tributados a Electra_) Vamo-nos? (_Preparam-se para sahir_) SCENA XVI OS MESMOS E BALBINA, que interrompe bruscamente a scena, entrando pela esquerda, pressurosa e suffocada _Balbina_ Minha senhora! Minha senhora! (_Suspensão geral_) _Todos_ (_menos Electra_) Que é? _Balbina_ Ai! o que a menina foi fazer! _Electra_ (_áparte, batendo o pé_) Descobriram-me! _Balbina_ Santo nome de Jesus!... Do que ella se havia de lembrar!... (_rindo_) Não, que uma coisa assim!... Em nome do Padre... _Evarista_ (_impaciente_) Acaba... _Electra_ Eu confessarei, se me deixam. Foi que... _Balbina_ Foi a casa do snr. D. Maximo, e roubou-lhe... com muita graça, mas roubou... _Urbano_ O quê?... _Balbina_ O menino mais pequeno! (_Olham todos para Electra, que promptamente se recompõe do susto e assume uma altitude serena e grave_) _Evarista_ (_a Electra_) Isto que vem a ser? _Pantoja_ Electra! _Balbina_ Estava o menino dormindo muito socegadinho. A senhorita e a maluca da Patros entraram pela casa dentro, ás escondidas e em bicos de pés... Embrulharam-o, muito bem embrulhado, e fugiram com elle para cá. _Evarista_ É inacreditavel. _Pantoja_ (_reprimindo a sua irritação_) E não é decente. _Electra_ (_com effusão_) Tia! pois se nos queremos tanto, tanto d’alma!... eu a elle e elle a mim! _Marquez_ (_enthusiasmado_) Que exemplar mulher! _Cuesta_ Merece todo o perdão. _Evarista_ Maximo estará furioso a estas horas... _Balbina_ O José já para lá foi a correr... _Urbano_ E a creança onde está? _Balbina_ Está no quarto da Patros. A menina escondeu-o lá até que ella de noite lh’o leve para dormir com a menina. (_Sorrisos dos homens, menos de Pantoja_) O menino acordou ha um momento, e a Patros quiz dar-lhe um biscouto para o entreter... Eu, que o ouço, acudo, e vejo-o... Virgem Maria! Quiz pegar n’elle... Qual! estrebuchou e bateu-me... Tive de lhe dar uma palmadinha tambem... _Electra_ (_correndo para a esquerda com um impulso instinctivo_) Oh! meu querido amorsinho! _Pantoja_ (_procurando contel-a_) Não. _Evarista_ (_segurando-a por um braço_) Espera. _Balbina_ (_á porta da esquerda_) Ainda se ouve chorar. _Electra_ Pobresinho d’elle! _Evarista_ Que o levem para a sua casa. _Electra_ Ninguem lhe toque... Ninguem se atreva a tocar-lhe... É meu. (_Desprende-se á força de Evarista e de Pantoja, que querem contel-a, e sae de uma corrida pela esquerda_) SCENA XVII OS MESMOS E JOSÉ _Pantoja_ (_colerico, passando para a direita_) Que falta de dignidade e de juizo! _José_ (_pressuroso, pelo jardim_) Minha senhora... _Evarista_ O snr. D. Maximo que disse? _José_ Não sabia de nada. Está lá com uns senhores. Quando lhe contei poz-se a rir... Como se nada!... Diz que o menino que está muito bem entregue á menina. _Urbano_ Já é pachorra! _Evarista_ (_a José_) Vaes leval-o a casa. Para que a menina aprenda. _Marquez_ Voto por que a deixem gosar um pouco mais do seu lindo crime. SCENA XVIII OS MESMOS E ELECTRA, pela esquerda, trazendo nos braços o menino, que tem pouco mais ou menos dois annos _Electra_ Queridinho da minh’alma! _Evarista_ Deixa o menino, e vamo-nos. _Urbano_ São horas. _Cuesta_ (_ao marquez_) Eu, pela minha parte, acho que é um rasgo de maternidade. E applaudo-o. _Marquez_ Eu digo que é um lance angelico. E adoro-o. _Evarista_ (_querendo pegar no menino_) Então, Electra? _Electra_ (_em passo ligeiro afasta-se dos que querem tirar-lhe o pequerrucho. Este abraça-lhe o pescoço_) Não, não posso deixal-o agora. _Evarista_ Balbina, pega n’esse menino. _Electra_ (_passa de um lado para o outro, procurando um refugio_) Não! e não! _Urbano_ Dá-m’o a mim. _Electra_ Não! _Pantoja_ (_imperioso, a José_) Pegue n’elle, José. _Electra_ Não, já disse!... Ninguem lhe toca... É meu. _Evarista_ Mas, filha, se temos de sahir! _Electra_ Saiam! vão com Deus. (_Vendo que o chapeu a inhibe de abraçar e beijar o seu amiguinho, arranca-o rapidamente da cabeça e atira-o para longe. Continúa a passear o menino, fugindo dos que lh’o querem tirar, e, sem ouvir, falando com o pequerrucho, que lhe deita os braços ao pescoço e a beija_) Dorme, dorme, meu amor. Não tenhas medo, filhinho... Dorme, que não te largo. _Evarista_ Então vamos ou não vamos? _Electra_ Eu não vou... Tens fome? tens sede, meu anjo? Eu te acalentarei... Deixa berrar esses egoistas todos, que se não lembram de que não tens mãe! _Pantoja_ Mas tem quem olhe por elle. _Evarista_ Basta! (_Imperiosa, aos creados_) levem-o para a sua casa. _Electra_ (_resolutamente, sem deixar que toquem na creança_) A casa! a casa! (_Com passo decidido, sem olhar para ninguem, corre para o jardim e sae. Seguem-a todos com a vista, indecisos, não ousando dar um passo para ella_) _Pantoja_ Que escandalo! _Evarista_ Que loucura! _Marquez_ Que juizo! o juizo mais perfeito da mulher! Achou o seu caminho. FIM DO SEGUNDO ACTO ACTO TERCEIRO O laboratorio de Maximo. Ao fundo, occupando grande parte da parede, divisoria com revestimento de madeira na parte inferior e envidraçada para cima. Este tapamento separa a scena d’um vasto local, em que se vêem maquinas e apparelhos para a producção de energia electrica. A porta praticavel no socco divisoria communica com a rua. Á direita, no primeiro plano, um corredor que dá passagem para o jardim dos snrs. de Garcia Yuste. No ultimo plano, uma porta de communicação com a habitação de Maximo e com a cosinha. Entre a porta e o corredor, uma estante com livros. Á esquerda, porta de passagem para as casas em que trabalham os ajudantes. Junto a esta porta, uma estante com apparelhos de physica e objectos de uso scientifico. Ao fundo, dos dois lados do socco de madeira, prateleiras com frascos de diversas substancias e livros. No angulo da direita um pequeno aparador. Á esquerda da scena, a mesa do laboratorio com os objectos que no dialogo se indicam. Fazendo angulo com ella, a balança de precisão sobre um supporte de fabrica. Ao centro pequena mesa de jantar, e quatro cadeiras. SCENA I MAXIMO, trabalhando n’um calculo, com grande attenção ao que está fazendo—ELECTRA em pé, arranjando os multiplos objectos que estão na meza: livros, capsulas, tubos de ensaio, etc. Veste com simplicidade caseira, e grande avental branco. _Maximo_ (_sem levantar os olhos do papel_) Para mim, Electra, a dupla historia que me contas, esse supposto poder dos dois cavalheiros, é um facto destituido de valor positivo. _Electra_ (_suspirando_) Deus te ouça! _Maximo_ Tudo se reduz a duas paternidades platonicas sem nenhum effeito legal... até agora. O mais feio do caso é a auctoridade que quer assumir o snr. de Pantoja... _Electra_ Auctoridade oppressiva, suffocante, que me tira o ar. Nem me fales n’isso, se não me queres amargurar a alegria de estar cá em casa! _Maximo_ Devéras? assim te affliges? _Electra_ Ainda mais: ponho-me n’esse estado singularissimo de cabeça e de nervos... Já te contei... Em certas occasiões da minha vida apodera-se de mim um desejo, fixo, fundo, absorvente, de tornar a vêr a imagem da minha pobre mãe, como a via na minha meninez... Pois sempre que se aggrava para mim a tyrannia de Pantoja, renasce o meu doloroso e invencivel anceio; e sinto a perturbação nervosa e mental que me annuncia... _Maximo_ A visão da tua mãe? Isso, rapariga, não é d’um espirito rijo e são. Aprende-me a governar essa imaginação... Trabalha-me para a frente, e á má cara. O ocio é o peor de todos os perturbadores da intelligencia. _Electra_ (_muito animada_) Cá estou seguindo á risca o que me mandaste fazer. (_Pega n’uns frascos de substancias mineraes e leva-os para uma das estantes_) Estes frascos para o seu logar... Emquanto penso n’isto nem penso na furia da tia logo que souber... _Maximo_ (_attento ao trabalho_) A tia até ha de acabar por gostar... Mas deixa que tu, tambem!... Não te bastou a loucura d’hontem... raptar insidiosamente o menino... Tornas a trazer-m’o... ficas-te a embalal-o e adormecel-o, muito mais tempo que o regular... E, não contente ainda com a saturnal d’hontem, pespegas-te hoje cá em casa, e aqui andas a sargentear, para uma banda e para outra, muitissimo fresca da tua vida!... Ainda foi por Deus, que convidados para a distribuição dos premios e para o almoço em Santa Clara os tios ainda a estas horas ignorem o pulo medonho que a boneca deu da casa d’elles para a minha! _Electra_ Tu é que me aconselhaste que me insubordinasse... «_Insubordina-te!_» _Maximo_ Sim senhor: fui o instigador do delicto... E gabo-me d’isso. _Electra_ A minha consciencia diz-me que não ha mal nenhum no que faço. _Maximo_ Pois está bem de vêr que não ha... Foi talvez para casa de um pulha que tu vieste!... Não faltaria mais nada senão que principiasse agora a haver mal em estar alguem na minha casa! _Electra_ (_trabalhando sempre e falando sem se distrahir do que faz_) Eu digo mais: estando tu esmagado de trabalho, só, sem creados, e estando eu para ahi, de mãos a abanar, sem ter absolutamente nada que fazer, o que pareceria mal, o que seria indecente, é que eu não viesse... _Maximo_ Cuidar de mim e dos pequenos... Effectivamente, se isso não é logica, digo-te que botemos luto, porque já não ha logica no mundo! _Electra_ Queridos pequerruchinhos! Toda a gente sabe que os adoro... São a minha paixão, o meu fraco... (_Maximo, abstrahido n’uma conta, cessa de dar attenção ao que ouve_) Chega-me a parecer... (_Approxima-se da mesa levando uns livros que não estavam no seu logar_) _Maximo_ (_vagamente_) Quê? _Electra_ Que nem a sua propria mãe lhes quereria tanto como eu! _Maximo_ (_satisfeito com o resultado do seu calculo, lendo em voz alta uma cifra_) Zero, trezentos e dezoito... Fazes favor de me dar as _Tabellas de resistencias_... aquelle livro encarnado... _Electra_ (_correndo á estante da direita_) Não é este? _Maximo_ Mais adeante. _Electra_ É verdade... que tôla! _Maximo_ Fica-te muito bem,—sabes?—que em tão pouco tempo conheças todos os meus livros e os seus logares na estante... _Electra_ Não dirás que te não puz tudo muito arranjadinho. _Maximo_ Não; e darei graças a Deus, porque entrou finalmente n’este antro, revolto e poeirento, a limpeza e a ordem! _Electra_ (_desvanecida_) Confessas então que não sou absolutamente, absolutamente inutil? _Maximo_ (_olhando com fixidez para ella_) Não ha nada inutil na creação. Quem te diz a ti que te não creou Deus para altos destinos? Quem te diz que não virás a ser... _Electra_ (_anciosa_) O quê? _Maximo_ Uma alma grande, formosa e nobre, que está por hora meia afofada ainda na serradura e na estopa de uma boneca? _Electra_ (_com alegria_) Pae do ceu, se assim fosse! (_Maximo levanta-se e, na estante da esquerda, pega n’umas barras de metal, que examina_) Nem me digas isso que me entonteces de alegria... Pode-se cantar?... _Maximo_ Podes cantar... (_Electra repete trauteando o andante de uma sonata_) A boa musica é a espóra das ideias preguiçosas, que não affluem; e é o gancho que puxa pelas que estão agarradas de mais ao fundo do entendimento. Canta, companheira, canta... (_Prosegue attento á sua occupação_) _Electra_ (_á estante do fundo_) Continúo coordenando isto. Os metaloides para este lado. Já os conheço pelos rotulos... Como este trabalhito entretem! Era capaz de ficar aqui todo o santo dia... _Maximo_ (_jovial_) Camarada! _Electra_ (_correndo para elle_) Que manda o magico? _Maximo_ Eu não mando por ora. Proponho. (_Pega n’um frasco que contém um metal em limalha_) Se a menina magica quer collaborar commigo ha de fazer favor de me pesar trinta grammas d’este metal. _Electra_ Péso. _Maximo_ Sabes já pesar na balança de precisão... _Electra_ Perfeitamente. Dá cá. (_Alegre, contente, ao deitar o metal na capsula, admira-lhe a belleza_) É lindo! Que é isto? _Maximo_ É aluminio. Parece-se comtigo. Pesa pouco... _Electra_ Ah! eu então?... _Maximo_ Pesa pouco, mas é extremamente tenaz. (_Olhando-lhe para a cara_) Tu tambem? _Electra_ Em coisas que eu cá sei, sou tenaz até á barbaridade, e, chegado o momento, estou certa de que o seria até ao martyrio. (_Continúa pesando sem interromper a operação_) _Maximo_ Que coisas são essas? _Electra_ Que te importa! Tu és o magico, mas eu é que magíco... commigo, ás vezes. _Maximo_ (_attento ao trabalho_) Pesas-me depois setenta grammas de cobre. (_Dá-lhe outro frasco_) _Electra_ O cobre então serás tu... Não: é tambem feio de mais para se parecer comtigo. _Maximo_ É feio, mas util. _Electra_ Compara-te antes ao ouro, que é o que vale mais. _Maximo_ Nada de ditos! Estás a desmoralisar-me o laboratorio. _Electra_ Dá ao menos licença de que me reveja nas qualidades do metal bonito que se parece commigo... Sou tenaz... Não me quebro... Farás favor de o dizer á tia e ao tio Urbano, que, no sermão que me prégaram esta manhã, por umas quarenta vezes me disseram que sou fragil... Fragil, eu! _Maximo_ Não sabem o que dizem. _Electra_ Sabem lá elles... nem o que é o aluminio, nem o que eu sou! _Maximo_ Mas toma sentido, que te não equivoques no peso! _Electra_ Equivocar-me eu! Pateta! Eu tenho muito mais tino do que ninguem cuida! _Maximo_ Já vou vendo, já vou vendo! (_Dirige-se a uma das estantes em procura d’um cadinho_) A tia, quando chegar a casa, é que lhe ha de custar um pouco mais a compenetrar-se de que tenhas todo o tino que dizes... _Electra_ Deus, que vê os corações, sabe se eu tenho culpa! Porque é que a tia não deixa que eu venha para cá? _Maximo_ (_voltando com o cadinho que escolheu_) Por que tu és uma menina solteira, e as meninas solteiras não podem ficar assim em casa d’um homem só, por mais honrado e por mais digno que elle seja. _Electra_ Pois, senhor, não haja dúvida que, por essa regra, estão divertidas as pobres meninas solteiras! (_Termina o peso e apresenta os dois metaes pesados nas suas duas capsulas de porcelana_) Aqui tens o aluminio e o cobre. _Maximo_ (_pegando nas capsulas_) Um primor. Que limpeza de mãos... Que firmeza de pulso, e que serenidade de attenção para não fazer d’isto uma trapalhada! Estás fina. _Electra_ Estou contente apenas. Quando se tem a alegria tudo corre bem. _Maximo_ Ahi disse a collega uma importantissima verdade. (_Verte os dois corpos no cadinho_) _Electra_ Isso é um cadinho, não é? _Maximo_ Sim senhor, para fundirmos os dois metaes. _Electra_ Para nos fundirmos tu e eu, se não pegarmos á bulha no meio do fogo... (_Trauteia a sonata_) _Maximo_ Faze favor de chamar o Ricardo. _Electra_ (_correndo á porta da esquerda_) Ricardo! _Maximo_ Que venha tambem o Gil. _Electra_ Gil! Venham ambos, que manda o mestre... não se demorem! SCENA II ELECTRA, MAXIMO, RICARDO E GIL, o primeiro vestido de operario, com blusa, o segundo em trage burguez, com mangas de alpaca, pena na orelha _Gil_ (_mostrando um calculo_) Aqui está o valor obtido. _Maximo_ (_lê rapidamente a cifra_) 0,158,073... Está errado (_Seguro do que diz e com certa severidade_) Não é possivel que para um diametro de cabo menor de quatro millimetros obtenhamos um circuito maior, segundo o teu calculo. A verdadeira distancia deve ser inferior a duzentos kilometros... _Gil_ Não sei então... eu... (_Confuso_) _Maximo_ Está mal. É que te distrahiste. _Electra_ É que vocês, coitados, não teem... a attenção serena... _Maximo_ Emquanto fazeis os calculos estaes a pensar em historias da carocha. _Electra_ E a conversar, a falar de touros, de theatros, da politica... assim não fazemos nada. _Gil_ Vou rectificar as operações. _Electra_ E, sobretudo, muita paciencia, muita contensão, todos os cinco sentidos!... Senão tornamos á mesma. _Gil_ Vou vêr isto. _Maximo_ Anda lá e não te descuides (_Gil sae e Maximo, virando-se para Ricardo, entrega-lhe o cadinho_) Aqui tens. _Ricardo_ Para fundir... _Maximo_ Está preparado o forno? _Ricardo_ Sim senhor. _Maximo_ Mette immediatamente, e quando esteja em fusão, avisa. Com esta aleação vamos fazer um novo ensaio de conductibilidade... Espero chegar aos duzentos kilometros com perda escassissima. _Ricardo_ Faz-se o ensaio hoje? _Maximo_ (_atormentado por uma ideia fixa_) Sim, quanto antes. Não abandono este problema. (_A Electra_) É a minha ideia fixa, que me não deixa viver. _Electra_ Ideia fixa tambem eu tenho uma, e por ella vivo. Avante! _Maximo_ Avante, _Electra_! Avante, _Ricardo_! _Ricardo_ Não manda mais nada, patrão? _Maximo_ Que actives a fusão. _Electra_ Que se fundam bem os metaes! _Ricardo_ Hão de ficar os dois em um só, senhorita. _Electra_ Dois n’um. _Maximo_ (_como preparando-se para outra occupação_) Agora, minha graciosa discipula... _Electra_ Agora ha de o mestre perdoar, mas tenho de ir vêr se acordaram os meninos. _Maximo_ Ha quanto tempo comeram? _Electra_ Ha trez quartos d’hora. Devem dormir meia hora mais. Está bem regulado assim? _Maximo_ Está bem tudo o que determines. _Electra_ Olha o que dizes, que estarás por tudo... _Maximo_ (_carinhosamente_) Por tudo. _Electra_ Que se fique sabendo!... Eu venho já. (_Sae ligeira e cantando pela esquerda. Entra ao mesmo tempo um operario, pelo fundo_) SCENA III MAXIMO E O OPERARIO _Maximo_ Que ha? _Operario_ Veio aquelle senhor, o marquez de Ronda... _Maximo_ Porque não entrou? _Operario_ Perguntou pelo patrão... Disse-lhe que tinha uma visita... Elle então, como pessoa da casa, logo disse: «Já sei... ha de ser a senhorita Electra... Voltarei logo». _Maximo_ Porque lhe não disseste que entrasse, meu pascacio? _Operario_ Como me disse que voltava... _Maximo_ Pois sempre que vier, que entre, esteja que não esteja a senhorita Electra, e sobretudo estando. _Operario_ Assim se fará. (_Sae pelo fundo_) SCENA IV MAXIMO E ELECTRA _Electra_ (_voltando do interior da casa_) Dormidinhos como dois anjos... até d’aqui a meia hora... _Maximo_ E os adultos não comem? não se almoça hoje n’esta casa? _Electra_ Quando queiras. Está feito o almoço. (_Dirige-se para o aparador, onde está a pequena baixella: talheres, toalha, guardanapos, fructeira_) _Maximo_ É como deve ser... Tudo a horas... assim se chega sempre ao que se quer. _Electra_ (_estendendo a toalha_) Ao que eu quero não chegarei nunca por mais pontualidade que ponha... _Maximo_ Deixa-me ajudar-te... (_Vae-lhe passando os pratos, os talheres, o pão, o vinho_) Chegas, sim. _Electra_ Achas? _Maximo_ Acho. Tão certo que chegas como que tenho uma fome de cincoenta cavallos de força. _Electra_ Melhor, para que te agrade o almoço. _Maximo_ A elle! _Electra_ N’um minuto. (_Sae_) SCENA V MAXIMO E GIL _Maximo_ Bemdita seja essa mulhersinha preciosa, que tão simples, tão instinctiva, tão ingenuamente, traz a sua grande alma inquieta, torturada e núa, a inundar de alegria e de luz este esconderijo da sciencia, transformando tão estreita aridez em tão vasto paraizo! Bemdita a que com um mero sorriso de creança vem arrancar da sua abstracção consumidora este pobre Fausto, envelhecido aos trinta e cinco annos, e dizer-lhe: «Nem só de verdades se vive!» (_Interrompe-o Gil, que tem entrado um pouco antes e se approxima sem ser visto_) _Gil_ (_satisfeito mostrando o calculo_) Pronto. Creio ter achado a cifra exacta. _Maximo_ (_pega no papel e olha-o vagamente, sem se fixar_) A exactidão!... E tambem tu pensarás que só de coisas exactas vive o homem!? Saturada de certeza, a alma insaciada appetece, mais que tudo, o que é apenas o sonho, e vôa para elle, avassalada e rendida, sem nem sequer tentar saber se é para a realidade, se para a illusão, que vôa!... Considerando bem, Gil, nada mais natural do que um equivoco de calculo. _Gil_ Sim, senhor, muito facilmente se distrae uma pessoa pensando em... _Maximo_ Em coisas vagas, indefinidas, aereas, vaporosamente illuminadas de côr de rosa e d’azul... _Gil_ Eu, distrahido, confundi a cifra da potencial com a da resistencia... Mas já rectifiquei... Queira vêr se está bem. _Maximo_ (_lê_) 0,318,73... (_Com repentina transição para um goso expansivo_) Homem! e que não estivesse! Se ainda errasses outra vez?... A exactidão dos mathematicos perdoaria, por hoje, á nossa phantasia de poetas. _Gil_ Ah! a exactidão não perdôa nunca: é a tyrannia da nossa vida; opprime-nos, escravisa-nos, não nos deixa respirar. _Maximo_ Essa mestra implacavel tambem algumas vezes nos sorri, nos acalenta e nos encanta. Vês essa cifra? _Gil_ (_contente, dizendo de memoria_) 0,318,73. _Maximo_ Pois sabe que nunca os maiores poetas do mundo, Virgilio ou Homero, Dante, Lope de Vega ou Calderon escreveram estrophe mais inspirada e mais poetica do que é hoje para mim a d’esses miseros numeros! É verdade que a harmonia, o encanto poetico não é n’elles que está. Está em que... Adeus, vae almoçar... Deixa-me, deixa-nos... (_Afasta-o com a mão para que saia. No ponto da scena em que pode olhar para o interior da habitação_) Ali é que está a imaginação, a poesia, o ideal, no fundo d’essa cosinha, onde n’este momento ondula a mais altiva e a mais virginal flôr da innocencia, da candura e da bondade humana. SCENA VI MAXIMO E ELECTRA _Electra_ (_entrando com uma terrina fumegante_) Aqui está o banquete. _Maximo_ A vêr o que se fez! arroz com menudilhos... O thema é digno de Lucullo. _Electra_ Elogia-o sem provar: está superfino. (_Senta-se_) Vou-te servir. (_Servindo-o_) _Maximo_ Não tanto. _Electra_ Olha que não tens mais nada... Acho que se não deve ter mais d’uma coisa... e escolher a melhor. _Maximo_ Meu Deus! o que diria a tia, se agora nos visse aqui almoçando juntos... _Electra_ Um almoço feito por mim! _Maximo_ Sabes que está maravilhoso o teu arroz? _Electra_ Foi minha mestra, em Hendaya, uma senhora valenciana. Eu fiz um curso de arrozes. Sei-os fazer de sete maneiras differentes, todos riquissimos. _Maximo_ Decididamente és todo um mundo novo. _Electra_ E quem é o meu Colombo? _Maximo_ Não ha Colombo que ousasse descobrir-te. Tu és um mundo que apparece. _Electra_ Será talvez por eu ser um mundosito assim desconhecido, que querem metter-me no convento para me livrar do perigo de que dêem commigo. E é o que me espera... _Maximo_ D’essa é bem natural que não escapes. _Electra_ (_assustada_) Que dizes! _Maximo_ Quero dizer: escapas... porque te hei de salvar eu. _Electra_ Prometteste-me o teu amparo. _Maximo_ E dou-t’o. _Electra_ Que tencionas fazer? _Maximo_ Eu te digo: o negocio é grave... _Electra_ Falas com a tia, já se sabe... _Maximo_ Falo com a tia... _Electra_ E que lhe dizes? _Maximo_ Falo com o tio... _Electra_ Façamos de conta que se acabaram todos os tios com quem fazes tenção de falar. E depois? _Maximo_ Depois, tendo-te provisoriamente abrigado no mais inviolavel sacrario, procederei minuciosamente ao exame e á sellecção dos noivos. E sobre este assumpto temos que conversar... _Electra_ Vaes ralhar-me? _Maximo_ Não: já me disseste que te enfastia esse brinquedo de bonecos vivos. _Electra_ Cuidei que me distrahiriam, e cada vez me entristeciam mais! _Maximo_ Nenhum d’elles te inspirou um sentimento especial, distincto do dos outros? _Electra_ Nenhum! _Maximo_ Declararam-se todos por escripto? _Electra_ Uns por escripto; outros por meio de olhares espantosos, que nunca cheguei a comprehender bem o que quizessem exprimir, e por isso não metto estes em conta... _Maximo_ Perdão: teem de entrar todos no rol: epistolares e olheiros. E aqui chegamos ao ponto sobre que devo dar-te, desde já, a minha sincera opinião: casa-te, Electra; casa-te quanto antes! _Electra_ (_envergonhada, baixando os olhos_) Assim... tão breve!... _Maximo_ O mais breve possivel. Precisas de ter a teu lado um homem, um marido. Tens a alma, a tempera, os instinctos e as virtudes da casa conjugal. É portanto forçoso que da grande lista dos teus pretendentes se escolha um, o melhor, o mais digno de te amar e de ser amado por ti, porque, sem amor, considera bem que não ha familia. _Electra_ Estou certa. _Maximo_ E tu nasceste destinada para a vida exemplar e fecunda de um lar feliz... (_Teem acabado de comer o arroz_) _Electra_ Queres mais? _Maximo_ Não: estou satisfeito. _Electra_ De sobremesa tens fructa, que é do que mais gostas. (_Põe na mesa o fructeiro_) _Maximo_ (_pegando n’uma bella maçã_) Gósto, porque esta (_mostrando-lhe a maçã_) é a verdade em toda a sua pureza. Aqui não interveio a mão do homem senão para a colher. _Electra_ É a obra divina, bella, simples, admiravel. _Maximo_ Faz Deus esta prodigiosa maravilha para a dar ao homem; e nem sempre lh’a agradece aquelle que foi eleito para em certo dia e a certa hora passar por baixo da macieira em fructo! _Electra_ Quantas vezes basta, para colher a felicidade, esquecer-se a gente por um momento da terra, e levantar os olhos para cima! _Maximo_ (_contemplando-a_) Pois é o que eu faço, Electra. SCENA VII ELECTRA, MAXIMO E RICARDO, pela esquerda _Ricardo_ Mestre... _Maximo_ Quê? _Ricardo_ Chegamos ao rubro. _Electra_ A fusão! _Maximo_ Avisa-me ao branco incipiente. _Ricardo_ Virei dizer. _Maximo_ Olha. Que preparem na officina a bateria Bunsen. E previne de que hei de precisar para logo do dinamo grande. SCENA VIII ELECTRA E MAXIMO, depois o OPERARIO _Electra_ (_com tristeza_) D’aqui a um instante vaes tratar da fusão, e eu... _Maximo_ Tu—está claro—irás para casa. _Electra_ Nem é bom pensar no que vae ser quando eu chegue! _Maximo_ Tu ouves, calas-te, e esperas. _Electra_ Esperar... esperar sempre! (_Acabam de almoçar_) Ai que, se tu me não vales, não sei o que será de mim, com a tia e com o snr. de Pantoja... Elles a teimarem que eu vá para anjo, e Deus a desageitar-me cada vez mais para a carreira angelical! _Maximo_ (_que se tem levantado e parece disposto a continuar o trabalho_) Não tenhas cuidado. Confia em mim. Eu te irei requerer como teu protector e teu mestre... _Electra_ (_approximando-se supplicante_) Não te demores então, Maximo. Por amor dos teus filhos, não te demores. Se tu me tomasses tambem como filha, para estar com os meninos, para viver com elles! _Operario_ (_pelo fundo_) O snr. marquez de Ronda. _Electra_ (_assustada_) Vou-me embora? _Maximo_ Por vir o Marquez? (_Ao creado_) Que entre. (_O operario sae_) Offerecia-se-lhe café, se houvesse. _Electra_ Vou buscal-o. (_Sae com pressa_) SCENA IX MAXIMO, MARQUEZ E ELECTRA. No fim da scena, RICARDO _Maximo_ Entre, Marquez. _Marquez_ Maximo... (_Olhando em redor, desconsolado_) E Electra? _Maximo_ Na cosinha. Foi buscar-nos café. _Marquez_ Na cosinha! Continua-se vivendo então n’esta casa como na ilha de Robinson? Ahi está o que não comprehendo: como tendo você lá em cima todos os confôrtos d’um palacio... _Maximo_ É muito simples... O trabalho e o habito do estudo enclausuram-me aqui. Puz os pequenos ao lado da officina para os ter ao pé de mim; e, reduzindo o mais que me foi possivel a minha orbita d’acção, para aqui me fiquei, recluso no dever que me impuz, como um asceta na estreiteza da sua gruta. _Marquez_ Sem nem sequer se lembrar de que é rico... _Maximo_ A minha riqueza é a singeleza, o meu luxo é a sobriedade, o meu repouso é o trabalho, e assim viverei emquanto viver só... _Marquez_ Não tardará então muito em mudar de vida... Precisamente lhe venho contar... (_Entra Electra com a bandeja contendo o serviço e a maquina de café_) Oh! a deusa do lar! _Electra_ (_adeanta-se cautelosa de que não caia alguma peça_) Por Deus, Marquez, não me ralhe. _Marquez_ Eu ralhar? _Electra_ Nem me faça rir... para não haver um desastre. Sentido! (_O marquez pega na bandeja_) _Marquez_ Aqui me tem para companheiro de infortunios... Ainda então lhe parece que eu seja dos que ralham? Eu sou dos que explicam. Mas não pertencem a esta seita os senhores ali do outro lado do jardim... _Electra_ Os tios. _Marquez_ A noticia do lindo idyllio, que se está passando aqui como na inverosimilhança de uma tapeçaria ou de um panno de leque, lá chegou já á distribuição dos premios em Santa Clara, onde a estas horas estará deliberando o conclave. As suas resoluções serão terriveis. _Electra_ A Virgem Maria me valha! _Marquez_ Socegue... _Maximo_ Isso tem de ser agora commigo. _Marquez_ Será comnosco. O seu café, minha menina, está digno de Jupiter, pae dos deuses: é do que elles tomam no olympo, aos domingos. _Maximo_ Segue-se, Electra, que em vez de regressar sósinha, teremos de ir ambos levar-te aos snrs. de Yuste. _Ricardo_ (_assumando á porta da esquerda_) Snr. D. Maximo, o branco incipiente! _Electra_ (_com inconsciente alegria infantil_) A fusão! _Maximo_ (_a Ricardo_) Não posso agora. Chama-me quando chegar o branco resplandecente. (_Ricardo sae_) _Marquez_ Peço licença... (_Tendo-se servido de vinho_) Eu brindo o hymeneu dos metaes, saudando os cadinhos do magico prodigioso. SCENA X MAXIMO, ELECTRA, MARQUEZ E PANTOJA _Electra_ (_aterrada_) D. Salvador! Deus me acuda! _Maximo_ Queira entrar, snr. de Pantoja. (_Pantoja adeanta-se lentamente_) A que devo a honra...? _Pantoja_ Antecipando-me aos meus bons amigos, tios d’esta menina, que d’aqui a um momento terão voltado a casa, aqui me acho resolvido a cumprir o dever d’elles e o meu. _Maximo_ A familia toda consubstanciada no snr. de Pantoja... _Marquez_ Para metter medo á gente. _Maximo_ Considera-nos reus d’algum tremendo crime... _Pantoja_ Não considero senão unicamente que esta menina não pode estar aqui. Venho buscal-a. Ha de sahir commigo. (_Pega na mão de Electra, insensivel, immobilisada pelo medo_) Vem. _Maximo_ Queira perdoar (_Sereno e grave, approxima-se de Pantoja_) Com todo o respeito que lhe devo, rogo-lhe, snr. de Pantoja, que solte a mão d’esta senhora. Antes de lhe tocar, teria sido mais opportuno que falasse commigo, que sou o dono d’esta casa, e o responsavel de tudo o que n’ella se passa, de tudo o que vê... e de tudo o que não queira vêr. _Pantoja_ (_depois de uma breve hesitação larga a mão de Electra_) Seja assim. Deixarei de dirigir-me a esta pobre creatura, desvairada ou trazida aqui ao engano, e falarei comtigo, a quem quizera dizer apenas muito breves palavras:—Venho buscar Electra. Dá-me o que não te pertence, o que não te pertencerá nunca. _Maximo_ Electra é inteiramente livre. Nem eu a trouxe aqui contra sua vontade, nem contra sua vontade a levará d’aqui quem quer que seja. _Marquez_ Se se pudesse, pelo menos, conhecer os fundamentos da auctoridade do snr. de Pantoja... _Pantoja_ Eu não preciso de lhes dizer, aos senhores, qual é a proveniencia da auctoridade de que disponho, e que esta menina me reconhece, prestando-me a obediencia que lhe peço. Não é verdade, Electra, que basta uma palavra minha para immediatamente te separar d’estes homens, e levar-te para quem depositou em ti o seu mais puro amor, e nem vive nem quer viver na terra senão para ti? (_Electra, immobilisada, olhando para o chão, cala-se_) _Maximo_ Não, bem vê que não basta essa unica palavra sua. _Marquez_ Não offerece dúvida que é uma palavra bôa, mas insufficiente. _Maximo_ Quer permittir que a interrogue eu? Electra, minha querida amiga, assegura-te o coração e a consciencia que entre todos os homens que conheces, entre os que vês aqui e os que não estão presentes, é sómente e exclusivamente ao muito dedicado e ao muito respeitavel snr. de Pantoja que tu deves submissão e amor? _Marquez_ Fale abertamente e destemidamente, menina! Diga-nos o que o seu coração e a sua consciencia lhe dictarem. _Maximo_ E se este senhor, a quem indubitavelmente deves toda a consideração e todo o respeito, te ordenar que o sigas, e nós outros te dissermos que fiques, de tua livre e plena vontade, que determinas? _Electra_ (_depois de penosa lucta_) Ficar. _Marquez_ Já vê... _Pantoja_ Não está em si... Fascinaram-a. _Maximo_ Parece-me inutil a insistencia... _Marquez_ Para acabar vencido... _Pantoja_ (_com fria tenacidade_) Eu não sou dos que os homens vencem. A razão é vencedora sempre, e eu seria indigno da que Deus me deu, e que defenderei até o meu derradeiro alento, se a não puzesse continuamente acima de todo o erro e de todo o extravio. Maximo, os metaes que ardem nos teus fornos são menos duros do que eu. As tuas mais poderosas maquinas são brinquedos de vidro comparadas com a minha vontade. Electra pertence-me: basta que eu o diga. _Electra_ Que terror, meu Deus! _Maximo_ Se quer assegurar-se do que póde a sua vontade opponha-a á minha. _Pantoja_ Dispenso demonstrações comtigo ou com quem quer que seja. Basta-me saber o que devo fazer, e fazer o que devo. _Maximo_ Pois toda a minha força é essa: o dever. _Pantoja_ O teu dever é uma hypothese terrena e accidental. O meu gira em torno de uma consciencia tão rija e tão forte como o eixo do universo; e os meus fins são tão altos que nem tu os alcanças nem poderás alcançal-os nunca. _Maximo_ Por mais incommensuravel que seja a elevação dos seus fins, pelo amor de Electra eu irei a toda essa altura, para a defender. _Marquez_ Esta senhora voltará comnosco á sua casa. _Maximo_ Commigo. E isso bastará para justificação de todos os seus actos, e para que os tios lhe perdoem, se teem que perdoar-lhe. _Pantoja_ Os senhores de Yuste não renegarão n’esta conjunctura os sentimentos e as convicções de toda a sua vida. (_Exaltando-se_) Eu estou no mundo unicamente para que Electra se não perca. E não se ha de perder. Assim o quer a vontade divina, de que a minha é um reflexo, e que vós confundis com um capricho da brutalidade humana, porque não sabeis nada do que são nas puras regiões espirituaes as emprezas de uma alma... Pobres cegos! pobres loucos!... _Electra_ (_consternada_) D. Salvador, não se desgoste—por Nossa Senhora lh’o peço! Eu não sou má, Maximo é bom... Sabem-o todos... Sabem-o os tios... e o snr. de Pantoja bem o sabe! Não deveria sublevar-me até o ponto de vir para aqui sósinha, como determinei vir... Foi um acto de grave rebeldia, concordo. Voltarei para casa... Maximo e o snr. de Ronda irão commigo, e os tios hão de perdoar-me... (_A Maximo e ao Marquez_) Não é verdade que me perdoarão? (_A Pantoja_) Porque é esta má vontade a Maximo, que nunca lhe fez mal nenhum?... Confessa—pois não é assim?—que elle nunca lhe fez nem lhe quiz mal? Em que se funda essa aversão? _Maximo_ Não é aversão: é odio recondito, inextinguivel. _Pantoja_ Odiar-te, não. As minhas crenças prohibem-me o odio. De certo que ha entre nós ambos uma incompatibilidade proveniente da nossa differença de principios... Teu pae, Lazaro Yuste, e eu, tivemos desavenças profundas, que é melhor esquecer... Mas a ti, Maximo, nunca te quiz mal... Antes te quero bem. (_Mudando de tom para mais suave e conciliador_) Perdôa a severidade com que te falei, e permitte que, fazendo um grande esforço sobre mim, eu te implore que deixes Electra partir commigo. _Maximo_ (_inflexivel_) Não posso annuir. _Pantoja_ (_violentando-se mais_) Por segunda vez, Maximo, esquecendo todos os resentimentos, profundamente humilhado, eu te supplico... Deixa-a. _Maximo_ Não. _Pantoja_ (_devorando o vexame_) Bem... Pela segunda vez m’o negaste... Para offerecer ás tuas bofetadas não tenho mais de duas faces, por isso te não peço por terceira vez a mesma coisa. (_Com gravidade e rigidez_) Adeus, Electra... Maximo, Marquez, adeus. _Electra_ (_baixo a Maximo_) Por quem és, Maximo, transige um pouco... _Maximo_ (_redondamente_) Não. _Electra_ Não disseste que me levarieis, tu e o Marquez? Vamos todos. (_Esta phrase é ouvida por Pantoja que se detem na sua marcha lenta para a sahida_) _Maximo_ Não... Ha de ir primeiro elle. Nós iremos quando nos convenha, e sem a salvaguarda de ninguem. _Pantoja_ (_friamente da porta_) E a que vaes senão a aggravar a situação d’essa menina? _Maximo_ Vou ao que devo ir. _Pantoja_ Pode-se saber o que é? _Maximo_ Escusado. _Pantoja_ Não preciso de que me reveles as tuas intenções. Para quê, se as conheço? (_Dá alguns passos para o centro da scena, cravando a vista em Maximo_) Não me fio na expressão dos teus olhos. Penetro na tua mente, e descubro o que pensas... Interroguei-te, não para saber da tua intenção mas para ouvir as promessas com que a encobres... Em ti não mora a verdade, nem o bem... não, não, não... (_Sae repetindo as ultimas palavras_) SCENA XI ELECTRA, MAXIMO, MARQUEZ E RICARDO (Principia a escurecer) _Electra_ (_consternada, procurando um refugio em Maximo_) Maximo, ampara-me! Livra-me do terror que me inspira este homem. _Maximo_ Conta commigo. Não tenhas medo. (_Pega-lhe nas mãos_) _Marquez_ Começa a escurecer. Vamos. _Electra_ Vamos... (_Incredula e medrosa_) Então, deveras, sempre vou comtigo? _Maximo_ Juntos n’esta hora, como o seremos para toda a vida... _Electra_ Comtigo para sempre? (_Augmenta a escuridão_) _Ricardo_ (_á porta da esquerda_) Snr. D. Maximo, o branco deslumbrante! _Marquez_ (_a Ricardo_) A fusão está feita. Creio que se podem apagar os fornos. _Maximo_ (_com effusão beijando as mãos de Electra_) Minha alma, minha consolação, minha alegria! comtigo para todo sempre... O que vou dizer aos nossos tios é que te peço, que te faço minha, que serás a minha mulher e a mamãsinha dos meus filhos. _Electra_ (_opprimida, como se a alegria a transtornasse_) Não me enganas?... Virei a viver sempre com os teus meninos? Serei entre elles a menina maior?... Serei tua mulher? _Maximo_ (_com voz forte_) Sim. (_Illuminada a casa do fundo, resplandece com viva claridade toda a scena_) _Marquez_ Vamo-nos. É noite. _Electra_ É o dia!... o meu dia eterno! (_Maximo enlaça-a pela cintura e saem. O marquez segue-os_) FIM DO TERCEIRO ACTO ACTO QUARTO Jardim do palacio de Garcia Yuste. Á direita, a entrada para o palacio, com escadaria larga de poucos degraus. Á esquerda, jogando com a entrada, um corpo de architectura grutesca, ornado com baixos-relevos: junto d’esta construcção, um banco de pedra, em angulo, de risco elegante. Jarrões ou plantas exoticas adornam este terraço, com pavimento de mosaico, entre o edificio e o solo areado do jardim. No segundo plano e no fundo, o jardim com grandes arvores e macissos de flores. Do centro partem trez arruamentos em curva. O da esquerda leva á rua. Cadeiras de ferro. É de dia. SCENA I ELECTRA E PATROS, com um cesto de flores que acabam de colher _Electra_ (_tirando uma carta da algibeira_) Deixa ficar as flores, e aqui tens a carta. _Patros_ (_pousando as flores_) Com esta faz trez desde esta manhã! _Electra_ (_escolhendo as flores mais pequenas com que fórma tres ramilhetes_) São tantas as coisas que Maximo tem que me dizer, e eu a elle... _Patros_ Bemdito seja Deus, que da noite de hontem para hoje tanta felicidade lhe deu, senhorita Electra! _Electra_ E que depressa, Patros! que rapidamente! como n’um sonho, que tudo se fez! Hontem á noite fiquei pedida, e hoje marcam os tios o dia do casamento... _Patros_ E no emtanto, carta para lá, carta para cá... de não acabar nunca... _Electra_ Que queres? Se desde hontem nos não podemos vêr como companheiros, na fabrica, porque sômos noivos agora... Temos de nos corresponder por escrito. Na carta das oito horas e um quarto falava-lhe das coisas muito serias que estou impaciente por dizer-lhe. Na das nove e vinte e cinco recommendava-lhe que se não esquecesse da colhér de xarope que tem de se dar a Pepito de duas em duas horas... N’esta agora digo-lhe que a tia foi para a missa e que tem demora... É natural que elle lhe queira falar... _Patros_ Até ás onze horas de certo que não volta a senhora da egreja... _Electra_ E ás onze vou eu para a missa com o tio. (_Atando os tres ramilhetes_) Pronto! Este para elle, estes para cada um dos meninos... Um a cada um para que não briguem... (_Dispondo-se a compôr o ramo grande_) E agora o ramo grande para a Senhora das Dôres... Vae, e volta depressa para me ajudares... Espera resposta—é claro—uma palavra que seja! _Patros_ Vou de corrida. (_Sae pelo fundo_) _Electra_ (_escolhendo as mais lindas flores para o grande ramo_) Hoje, minha querida Mãe Santissima, ha de ser maior a minha offerenda; e a minha pena é que não seja tão grande que fique sem uma só flôr o jardim dos tios... Deante da tua santa imagem queria eu hoje collocar todas as mais lindas coisas da terra: as rosas, as estrellas e os corações amantes... Virgem Maria! consolação e esperança nossa! não me desampareis, levae-me ao bem que te pedi, e que hontem á noite me prometteu a expressão dos teus divinos olhos quando as minhas lagrimas te disseram a gratidão e a esperança da minha alma...! _Patros_ (_pressurosa pelo fundo_) Não trago carta, mas trago um recadinho, que ainda é melhor... _Electra_ Que vem cá? _Patros_ Logo que saiam uns senhores, que estavam já a despedir-se... Que a menina o espere aqui para lhe falar um momento... Tem de ir a uma conferencia depois... _Electra_ (_olhando para o fundo_) Virá já?... _Patros_ Ahi vem. _Electra_ (_dando-lhe o ramo_) Toma lá... para Nossa Senhora... Para a Nossa Senhora do meu quarto, bem entendido! Não é para a do altar do oratorio, toma sentido: é para a da cabeceira da minha cama. _Patros_ Pois pudera! (_Entra correndo pela escada_) SCENA II ELECTRA, MAXIMO, depois o MARQUEZ _Maximo_ (_a distancia, abrindo um pouco os braços_) Menina! _Electra_ (_mesma attitude_) Maximo! _Maximo_ Aqui estamos embaçados, deante um do outro, sem saber que dizer. _Electra_ Embaçadissimos. Começa tu. _Maximo_ Tu... para te desacanhares... Dize-me uma grande mentira: que me não amas. _Electra_ Dize-me primeiro tu uma grande verdade. _Maximo_ Que te adoro. (_Approximam-se_) _Electra_ Em paga d’essa mentira toma esta rosa que te escolhi, sem brilho, pequena, singela, humilde, como eu quero ser para ti. _Maximo_ Tu tens um grande coração e um alto espirito... _Electra_ Não tenho; mas gostava de ser ainda mais tôsca e mais informe do que sou para que tu me ensinasses tudo, e eu não tivesse nada que não fôsse teu. _Maximo_ Deus fez de ti a sua obra mais preciosa... _Electra_ E deu-te essa obra, que é apenas o esboço d’uma creatura humana, para que tu a completes e aperfeiçôes. _Maximo_ Para que eu a enthronise e a corôe, deixando desenvolver-se d’ella a immortal flôr de humanidade, que é a simples mulher da casa, forte, pura, alegre e compadecida. (_Consulta o relogio_) _Electra_ Tens essa conferencia... Vae á tua obrigação... Não te demorarás muito? _Maximo_ Virei encontrar-me com a tia quando ella vier da missa. _Electra_ E o marquez, desde hontem... voltou como tinha dito? _Maximo_ Deixei-o agora na fabrica a escrever ao tabellião. Incomparavel amigo!... Hontem á noite—sabes?—contei-lhe, ao voltar para casa, o teu romance paterno... esse romance dos dois capitulos... Indignou-o a intervenção despotica de Pantoja e de Cuesta na tua vida; e essa lamentavel historia mais ainda o fortaleceu na firme determinação de defender-nos... _Electra_ (_surprehendida_) Mas então precisamos ainda de que nos defendam? _Maximo_ No essencial é claro que não... Mas quem nos assegura que esses dois homens não tentem oppôr-nos alguns obstaculos de jurisdicção theorica? _Electra_ (_tranquillisando-se_) D’essa jurisdicção nos riremos nós. _Maximo_ Mas rindo, rindo, teremos de a prevenir e de a annullar. _Marquez_ (_pressuroso pelo fundo_) Então ainda aqui? _Maximo_ Falavamos de si, e deliberavamos nomeal-o procurador dos nossos negocios de familia... _Marquez_ Acceito a procuração... (_Reprehendendo-o com doçura_) Mas, homem, que se lhe faz tarde! _Maximo_ Adeus, adeus! até já. _Electra_ (_vendo-o partir_) Vae, e vem depressa. SCENA III ELECTRA E O MARQUEZ _Marquez_ Ahi está o que é um galan de categoria scientifica... Parabens pelo achado d’esta preciosidade rara. A graça e a alegria da sua edade precisava da alliança de uma razão grave e de um coração firme, como o d’este homem. É elle, entre quantos eu conheço, o mais perfeitamente destinado para fazer da minha querida menina uma grande e exemplar mulher. _Electra_ Fará de mim o que elle quizer que eu seja. (_Com muita curiosidade_) Mas diga-me, snr. de Ronda, conheceu a primeira mulher de Maximo? Perdôe-me esta curiosidade, e não extranhe que eu deseje saber da vida toda do homem que amo. _Marquez_ Não convivi com ella... Vi-a com Maximo uma ou duas vezes. Era uma vascongada, sêcca, vulgar, pouco intelligente, bôa esposa para um lar tranquillo mas sem felicidade... _Electra_ Os paes d’elle sim, conheceu-os muito? _Marquez_ A mãe nunca a vi. Era uma senhora franceza, de alto merito. Foi em môça uma das amigas de minha mulher. O pae, Lazaro de Yuste, conheci-o ha trinta annos em Hispanha e em França. Era homem muito intelligente, bem parecido, felicissimo em negocios de minas, e não menos afortunado em negocios de amor. Era falado. _Electra_ N’esse ponto não se parece com elle o filho, que é a austeridade em pessôa. _Marquez_ De certo que sim. O seu futuro marido, minha querida Electra, é o modelo dos homens, e a honra de uma geração muito mais perfeita do que infelizmente foi a minha. Para que nada lhe falte, esse portentoso magico até é rico... rico pelo que lhe deixou o pae e mais rico ainda pelo que herdou agora dos tios de França. Que mais quer? Peça por bôca, e verá como Deus lhe responde: «Menina, não tenho mais que lhe dar.» _Electra_ (_suspirando_) Ai!... E agora, outra coisa... diga-me, meu querido Marquez: posso estar socegada? _Marquez_ Inteiramente. _Electra_ Escuso de ter medo das pessôas...—já lhe disseram—das pessôas que se julgam com sufficiente auctoridade... _Marquez_ Essas pessôas poderão talvez incommodar-nos passageiramente, emquanto nós não resolvermos encurtar-lhes os vôos. _Electra_ O snr. de Cuesta... _Marquez_ Esse não é de cuidado. Ainda hoje lhe falei, e estou certo de que nos dará o seu mais convicto assentimento. _Electra_ O snr. de Pantoja... _Marquez_ Esse ha de resmungar um pouco mais, e pretenderá fazer-nos ouvir as trombetas biblicas para nos assustar; mas não lhe tenha medo. _Electra_ Deveras? _Marquez_ Não vale nada. _Electra_ Não tenho de que me atterrar quando o encontre? _Marquez_ Não mais que da importunidade de um mosquito. _Electra_ Que allivio me dá! (_Com enthusiasmo carinhoso_) Deus lhe pague! Deus o bemdiga, snr. de Ronda! _Marquez_ (_muito affectuoso_) Deus será comvosco. SCENA IV OS MESMOS E URBANO, vindo de casa, de chapeu na cabeça _Urbano_ Marquez, bons dias. _Marquez_ Querido Urbano, posso falar comsigo? _Urbano_ Não lhe faz differença depois da missa...? (_A Electra_) Então, rapariga, que vagares são esses? Está a tocar. _Electra_ Só tenho que pôr o chapeu. Meio minuto, tio. (_Entra correndo em casa_) SCENA V MARQUEZ E URBANO _Marquez_ Temos de pôr dia para o casamento, e de fazer escriptura de consentimento em regra. _Urbano_ Será talvez melhor que você trate de tudo directamente com minha mulher. _Marquez_ Mas, meu amigo, chegou o momento de fazer frente a certas ingerencias que annullam a sua auctoridade de chefe de familia. _Urbano_ Meu caro de Ronda, peça-me você que altere, que transtorne todo o systema planetario, que tire os astros d’aqui assim e que os ponha para acolá; mas não peça coisa nenhuma que seja contraria ao parecer de minha mulher. _Marquez_ Homem, isso tambem lá me parece submissão de mais!... Eu pela minha parte insisto em que devo tratar este negocio particularmente com você e não com Evarista. _Urbano_ Vamos á missa e depois falaremos. _Marquez_ Pois vamos lá, eu tambem vou. SCENA VI OS MESMOS, ELECTRA, EVARISTA E PANTOJA _Electra_ (_de chapeu, luvas, livro de missa_) Pronta. _Urbano_ Vamos. O Marquez vae comnosco. _Evarista_ (_pelo fundo, á esquerda, seguida de Pantoja_) Vão ligeiros. _Pantoja_ Depressa, se querem chegar. _Evarista_ O marquez volta? _Marquez_ Infalibillissimamente, minha senhora. _Evarista_ Até logo. (_Saem Electra, o marquez e Urbano pelo fundo, á esquerda_) SCENA VII EVARISTA E PANTOJA, que com mostras de cansaço e desalento se atira para o banco da esquerda, primeiro plano. _Evarista_ Entramos? _Pantoja_ Perdão: deixe-me respirar por um momento. Na egreja abafava-se... com o calôr, com o apertão de gente... _Evarista_ Vou-lhe mandar vir alguma coisa fresca... (_chamando_) Balbina! _Pantoja_ Não, obrigado. _Evarista_ Uma taça de tilia... _Pantoja_ Tambem não. (_Na occasião de Balbina sahir, a senhora dá-lhe a mantilha, que acaba de tirar, e o livro de missa_) _Evarista_ Não ha motivo, emquanto a mim, para nos affligirmos tanto... _Pantoja_ Não é, como querem dizer, o meu orgulho; é n’um ponto mais delicado e mais profundo que eu me sinto ferido. Nega-se-me a consolação e a gloria de dirigir essa creatura e de a levar commigo pelo caminho do bem. E vejo com grande magoa que você, tão affecta aos meus principios, e que eu considerava uma fiel amiga e uma fervorosa alliada, me abandona na hora critica. _Evarista_ Perdoe-me, D. Salvador. Eu não o abandono. Estavamos inteiramente de accordo, com relação a Electra, em guardal-a por algum tempo—nunca se tratou de a encerrar para sempre—em S. José da Penitencia, attendendo á disciplina e purificação d’aquella casa... Mas surge agora repentinamente esta inesperada veneta de Maximo, e eu não posso, realmente, não posso de modo nenhum recusar o meu consentimento... É uma loucura? será... Mas de Maximo, como homem de honrado e correcto procedimento, que tem que dizer? _Pantoja_ Nada. (_corrigindo-se_) Isto é: alguma coisa poderia talvez... Mas, por agora, o que unicamente digo é que Electra não está preparada para o casamento, não tem aptidão para eleger marido... Não reprovo em absoluto que se case, quando seja com um homem cujas ideias a não pervertam... Mas este ponto é para mais tarde... O essencial n’este momento é que essa tenra creatura entre quanto antes no sagrado asylo, onde nos cumpre estudar, com o tacto mais subtil e mais carinhoso, a configuração do seu caracter, as suas predilecções, as suas tendencias, os seus affectos; e em vista do que observarmos, fundamentadamente e seguramente depois d’este prévio exame, resolveremos... (_Altaneiro_) Que ha que dizer a isto?—pergunto eu agora. _Evarista_ (_acobardada_) O que digo é que para esse plano... na realidade perfeito... eu não posso, não ouso offerecer-lhe a minha cooperação. _Pantoja_ (_com arrogancia, passeando_) De modo que, segundo os seus caridosos principios, se Electra se quer perder, que se perca!... que importa?... Se ella quer condemnar a sua alma, que a condemne!... Que temos nós com isso? _Evarista_ (_com maior timidez, suggestionada_) Perder-se! condemnar-se! E está porventura na minha mão evital-o? _Pantoja_ (_com energia_) Está. _Evarista_ Oh! não... Não tenho a audacia de intervir... E com que direito?... Impossivel, Salvador, impossivel... _Pantoja_ (_affirmando mais a sua auctoridade_) Saiba, minha amiga, que o acto de apartar Electra de um mundo nefasto, em que por todos os lados a rodeiam appetites e voracidades ferozes, não é um despotismo: é o amor na expressão mais alta e mais pura do carinho paternal. Ainda por acaso ignora, Evarista, que o fim supremo e unico da minha vida não é hoje outro senão o bem d’esta menina? _Evarista_ (_acobardando-se mais_) Bem sei que é assim. _Pantoja_ (_com effusão_) Eu amo Electra com um amor que as grosseiras palavras do homem não podem definir. Desde que os meus olhos a viram, a voz do sangue me bradou do mais fundo do meu ser que essa creatura me pertence... Quero têl-a, e devo têl-a, santamente, debaixo do meu dominio paternal... Quero que ella me ame como os anjos amam... que seja a pura imagem da minha crença, o limpido espelho do meu eterno ideal... que se reconheça obrigada a padecer por aquelles que lhe deram a vida, e purificando-se pela mortificação, nos ajude a nós, que fômos maus, a alcançar o perdão de Deus... Não comprehende estas coisas, Evarista? _Evarista_ (_abatida_) Comprehendo-as e profundamente admiro a elevação do seu entendimento. _Pantoja_ Menos admiração e mais eficacia em meu auxilio é o que lhe peço. _Evarista_ Não posso... (_Senta-se chorosa e abatida_) _Pantoja_ É bem natural que Electra lhe não mereça o mesmo interesse que tão profundamente me inspira a mim. (_Empregando suavidades de persuasão_) Convenho em que n’estes primeiros tempos lhe tenha de pesar algum tanto o seu brusco apartamento das alegrias mundanas, mas muito rapidamente se adaptará á dôce paz, á venturosa quietação do claustro... Eu a dotarei amplissimamente. Tudo quanto tenho será para ella, para o esplendor da sua santa casa... Será nomeada Superiora, e sob a minha auctoridade, e pelo meu conselho, governará a congregação... (_Com profunda commoção_) Que celestial ventura, meu Deus! Que felicidade para ella, e para mim! (_Fica-se como em extase_) _Evarista_ Comprehendo que por não acceder ao que deseja de mim eu privo talvez uma creatura de chegar ao estado mais perfeito da condição humana... Conhece bem os meus sentimentos, Salvador... Sabe com quanto prazer eu trocaria sem vacillar toda a opulencia em que vivo pela gloria de dirigir obscuramente uma modesta casa religiosa do maior trabalho e da maior humildade! Sempre o admirei pela sua larga protecção a S. José da Penitencia, e subiu de ponto essa admiração quando soube que redobrou o seu auxilio desde a occasião em que a minha pobre Eleuteria foi procurar n’esse instituto o esquecimento, a paz e o perdão dos seus erros de amor, como os de Magdalena. N’esse acto da vida do rico snr. de Pantoja se me revelou a espiritualidade mais pura a que se pode elevar um homem. _Pantoja_ Sim: desde que a sua desventurada prima deu entrada n’aquelle sagrado asylo, a minha protecção não sómente se tornou mais positiva mas ainda mais espiritual. Nunca, nunca mais tornei a pôr os meus olhos em Eleuteria depois de convertida, porque de ninguem—nem de mim!—ella se tornou a deixar vêr desde que lhe cortaram os cabellos e lhe botaram o escapulario. Mas eu ia quotidianamente á egreja; e invisivel do côro, n’um recanto da nave, praticava em espirito com a penitente, considerando-a tão perfeitamente regenerada como eu proprio o estava. Morreu a infeliz aos quarenta e cinco annos da sua edade. Então obtive o consentimento de uma sepultura no interior do edificio. E desde esse dia não protegi mais a congregação, tornei-a inteiramente minha, porque n’ella repousavam debaixo da pedra de uma campa os restos d’aquella que eu amei. Juntára-nos o peccado, reunia-nos o arrependimento, ella na paz da morte, eu na tempestuosa provação da vida... _Evarista_ E ainda agora aquelle a que bem podemos chamar o senhor e o reformador do convento, todos os dias, sem excepção de um unico, visita aquella santa casa e se ajoelha no cemiterio humilde e docemente poetico, onde as monjas dormem o somno eterno. _Pantoja_ (_vivamente_) Sabia isso? _Evarista_ Sabia... E que no claustro, silencioso e florido, entre loendros e cyprestes... _Pantoja_ É certo... quem lh’o disse? _Evarista_ ...vagueia, como um propicio phantasma da saudade, o sombrio fundador d’aquella casa, implorando de Deus o descanço d’ella e o seu. _Pantoja_ Sim... Ali repousarão tambem os meus pobres ossos. (_Com vehemencia_) Quero, além d’isso, que assim como em espirito eu me não aparto por um só momento d’aquella casa, ahi passe tambem, pelo tempo que fôr preciso, o espirito de Electra... Não a violentarei á vida claustral; mas se, experimentando essa existencia, e apreciando o seu incomparavel sabor, ella deliberasse persistir na clausura, eu acreditaria então que Deus me destinara para a mais ineffavel graça. Ali as cinzas adoradas da peccadora redimida; ali, na candida alvura do seu habito de noviça, a minha filha; ali eu, pedindo a Deus para ellas a gloria eterna. E na morte, o escondido e imperturbado repouso na mesma terra amada,—todos os meus amores commigo e todos nós em Deus... _Evarista_ (_com viva commoção_) Perfeita grandeza, por certo... Idealidade incomparavel. _Pantoja_ Duvída ainda de que o meu pensamento seja o mais elevado? De que me não move nenhuma paixão ruim? _Evarista_ Como quer que duvíde? _Pantoja_ Pois se com effeito lhe parece bello o meu plano, porque me não ajuda a realisal-o? _Evarista_ Porque me não considero com poderes para isso. _Pantoja_ Nem assegurando-lhe eu que a reclusão de Electra terá um caracter provisorio? _Evarista_ Nem assim. Não, D. Salvador, não conte commigo... (_luctando com a sua consciencia_) Reconheço toda a elevação, toda a formosura das suas ideias... D’ellas sinto um ecco suave e acariciador na minha propria alma. Mas—que quer, meu bom amigo—vivo no mundo em que Deus me collocou: tenho tambem para com este mundo deveres sagrados. Dêvo-me, com aquelles que me rodeiam, á vida social; e na vida da sociedade e da familia o seu projecto é... como lh’o direi, sem o magoar?... é uma anomalia angelica. _Pantoja_ (_dissimulando o seu enfado_) Bem. Paciencia... (_Passeia caviloso e sombrio_) _Evarista_ (_depois de uma pausa_) Em que pensa? Desiste? _Pantoja_ (_com naturalidade e firmeza_) Não, minha senhora. _Evarista_ Qual então o seu projecto? _Pantoja_ Não sei... Ha de acudir-me uma ideia... Pensarei... (_Resolvendo-se_) Minha cara amiga, quer fazer-me o favor de escrever uma carta á superiora da Penitencia? _Evarista_ Dizendo-lhe...? _Pantoja_ Que venha aqui immediatamente, com duas irmãs, n’uma carruagem. _Evarista_ Porque lhe não escreve directamente? _Pantoja_ Porque tenho de acudir a outras coisas. _Evarista_ Quer já? _Pantoja_ O mais breve possivel... _Evarista_ Bem. (_Dirige-se para casa_) _Pantoja_ Peço-lhe que mande a carta sem perda de tempo. _Evarista_ (_olhando do alto da escada para o jardim_) Creio que elles ahi vem. _Pantoja_ Depressa a carta, minha cara amiga. _Evarista_ Vae já... Deus nos inspire a todos. (_Entra em casa_) _Pantoja_ Lá vou ter. (_Áparte_) Que me não vejam! (_Esconde-se atraz do macisso da direita junto da escada_) SCENA VIII PANTOJA, occulto; ELECTRA, URBANO, MARQUEZ, que voltam da missa—PATROS, que desce de casa. _Electra_ (_adeantando-se encontra-se com Patros junto da escada_) Veio? _Patros_ Não, senhorita. (_Ouve-se o canto afastado dos meninos que brincam no jardim_) _Electra_ Morro de impaciencia. (_Tira o chapeu e as luvas, que entrega a Patros com o livro de missa_) Vou brincar com os pequenos emquanto espero... Não... Vou apanhar flôres. (_Colhe algumas no macisso da esquerda_) _Urbano_ (_a Patros_) A senhora? _Patros_ Em casa. _Marquez_ Vamos ter com ella. _Urbano_ Vamos a isso. (_Entram em casa. Patros segue-os_) _Electra_ (_admirando as flôres que acaba de cortar_) Que lindos, que graciosos rainunculos! (_Pantoja apparece e Electra assusta-se ao vêl-o_) Ai! SCENA IX ELECTRA E PANTOJA _Pantoja_ Assim te assusto, minha filha? _Electra_ É verdade... Não posso evital-o... Que quer? Bem sei que não devia, e que não tenho de que ter medo... Perdôe-me por quem é, D. Salvador... Vou jogar ao côrro com os pequenos... _Pantoja_ Um momento. Vaes aos meninos para que elles te dêem da sua alegria? _Electra_ Não, hoje não; vou repartir com elles da que trasborda da minha alma. (_Afasta-se o canto de roda dos meninos_) _Pantoja_ Já sei a causa d’essa grande alegria, já a sei... _Electra_ Uma vez que sabe, não tenho então que lhe contar. Até logo snr. de Pantoja. _Pantoja_ Ingrata! Concede-me um instante... _Electra_ Um instantinho só? _Pantoja_ Unicamente. _Electra_ Bom. (_Senta-se no banco de pedra. Colloca a um lado as flôres e vae escolhendo aquellas com que se touca, mettendo-as no cabello_) _Pantoja_ Não sei porque tens reservas commigo sabendo quanto me interesso pela tua felicidade e pela tua vida... _Electra_ (_sem olhar para elle, attenta ás flôres_) Pois, se o interessa a minha felicidade, alegre-se commigo: sou a creatura feliz. _Pantoja_ Feliz hoje. E amanhã? _Electra_ Amanhã mais feliz do que hoje... E sempre mais, sempre o mesmo! _Pantoja_ A alegria verdadeira e constante, o goso perenne e indestructivel só existem no amor eterno, superior ás inquietações e ás miserias humanas. _Electra_ (_adornado o cabello, põe flôres no seio e no cinto_) Toca-me outra vez no antigo registro de que tenho de ser anjo... Sou uma pobre pessoasinha summamente terrestre, D. Salvador. Deus fez-me para mulher, e botou-me a este mundo. Já vê que, se estou aqui, é porque elle não precisava de mim para o ceu n’esta occasião. _Pantoja_ Ha tambem anjos na terra, minha filha. Anjos são todos aquelles que no meio das desordens da materia sabem viver a pura vida do espirito. _Electra_ (_mostrando o collo e o busto ornados de florinhas. Ouve-se mais perto o coro dos meninos_) Que tal? não lhe pareço um anjo? _Pantoja_ Pareces, e quero que o sejas. _Electra_ Assim me adorno para divertir os meninos. Se visse a graça que elles me acham! (_Com uma triste ideia subita_) Sabe com que eu me estou parecendo agora? Com um menino morto. Assim se enfeitam os meninos quando os levam a enterrar. _Pantoja_ Para symbolisar a ideal belleza do ceu para onde elles vão. _Electra_ (_arrancando as flôres_) Não, isso não, não quero parecer menina morta. Dá-me a ideia de que vem o snr. de Pantoja para me levar á sepultura! _Pantoja_ Oh! eu não te quero enterrada. Quereria rodear-te de luz. (_Vae esmorecendo e cessa de todo o côro dos meninos_) _Electra_ Tambem se põem luzes aos meninos mortos. _Pantoja_ Não quero a tua morte, quero a tua vida; não a vida inquieta e vulgar, mas dôce, livre, elevada, amorosa, com um eterno e puro amor divino. _Electra_ (_Confusa_) E porque é que me deseja tudo isso? _Pantoja_ Porque te quero muito, com um amor mais excelso que todos os amores humanos. Melhor comprehenderás a grandeza d’este affecto, dizendo-te que para evitar-te a mais leve dôr eu tomaria para mim os mais espantosos tormentos que se possam imaginar. _Electra_ (_estonteada, sem entender bem_) É o cumulo da abnegação uma coisa d’essas. _Pantoja_ Considera agora quanto soffrerei por não poder evitar um desgostosinho, um dissabor, que te vou dar. _Electra_ A mim? _Pantoja_ A ti mesma. _Electra_ Um desgosto? _Pantoja_ Desgosto que mais me afflige por ter de ser eu que t’o cause. _Electra_ (_rebelando-se, levanta-se_) Desgostos! Não os quero. Não os acceito. Guarde-os. Que ninguem hoje me traga senão alegrias! _Pantoja_ (_condoído_) Bem quizera dar-t’as, mas não posso. _Electra_ Que terror que tenho! (_Com subita ideia que a tranquillisa_) Ah! já sei... Pobre D. Salvador!... É que me quer dizer mal de Maximo... Alguma coisa que lhe parece mal, mas que a mim me parece bem... Escusa de se cançar porque nem me convence nem o acredito. (_Precipitando-se na emissão das palavras sem dar tempo a que Pantoja fale_) Maximo é o maior e o melhor homem do mundo, é o primeiro, e todo aquelle que me disser uma palavra contraria a esta verdade, mente, e detesto-o pela mentira, e detesto-o... _Pantoja_ Por Deus, minha filha! Não te arrebates assim... Ouve. Eu não digo mal de ninguem, nem dos que me odeiam. Maximo é bom, é trabalhador, é intelligentissimo... Que mais queres? _Electra_ (_satisfeita_) Assim, continue assim... Vae dizendo muito bem. _Pantoja_ Digo mais ainda: que podes amal-o, que deves amal-o... _Electra_ (_com alegria_) Ah! _Pantoja_ Amal-o entranhadamente... (_Pausa_) A culpa não é d’elle, não é... _Electra_ (_assustada outra vez_) Querem vêr que ainda acaba por lhe attribuir maldades? _Pantoja_ A elle não. _Electra_ Então a quem? (_Recordando-se_) Ah! adivinho: o snr. de Pantoja e o pae de Maximo foram implacaveis inimigos. Tambem me disseram já que esse senhor de Yuste, honradissimo nos seus negocios, foi, talvez, um pouco demais galanteador e mundanario... Mas que me importa isso? _Pantoja_ Pobre innocente! não sabes o que dizes. _Electra_ Digo que esse excellente homem... _Pantoja_ Lazaro Yuste, sim... Ao nomeal-o tenho de associar a sua triste memoria á de uma pessoa que já não vive... muito querida de ti... _Electra_ (_comprehendendo e não querendo comprehender_) De mim! _Pantoja_ Que morreu, e a quem tu muito queres. (_Pausa. Olham um para o outro_) _Electra_ (_com terror e em voz apenas perceptivel_) Minha mãe! (_Pantoja faz um signal affirmativo_) Minha mãe! (_Attonita, desejando e temendo uma explicação_) _Pantoja_ Chegaram os dias de perdão. Perdoemos. _Electra_ (_indignada_) Minha mãe, a minha pobre mãe! Não falam d’ella senão para a deshonrar, para a denegrir... E ultrajam-a aquelles mesmos que a envilleceram! Pudesse eu tel-os a todos na mão para os desfazer, para os destruir, para não deixar d’elles nem uma migalha assim! _Pantoja_ Terias que principiar por Lazaro Yuste. _Electra_ O pae de Maximo! _Pantoja_ O primeiro depravador da desgraçada Eleuteria. _Electra_ Quem é que o diz? _Pantoja_ Quem o sabe. _Electra_ E... (_Fixam-se nos olhos. Electra não se atreve a expôr a sua ideia_) _Pantoja_ Triste de mim!... Não deveria falar-te d’isto. Dera para o esconder todos os dias que me restam de vida. Comprehenderás que não podia ser... O meu amor por ti ordena-me que fale. _Electra_ (_angustiada_) Meu Deus! e ter eu de ouvil-o! _Pantoja_ Disse eu que foi Lazaro Yuste... _Electra_ (_tapando os ouvidos_) Não quero, não quero ouvir. _Pantoja_ Tinha então tua mãe a edade que tens agora: desoito annos... _Electra_ Não acredito, não acredito... _Pantoja_ Era uma jovem senhora encantadora, quasi uma creança, que supportou com a mais corajosa dignidade o horror d’aquella vergonha... _Electra_ (_rebelando-se com energia_) Cale-se! Cale-se! _Pantoja_ A vergonha do nascimento de Maximo. _Electra_ (_apavorada, com o rosto demudado, recua cravando os olhos em Pantoja_) Ah! _Pantoja_ Procurando com discrição attenuar a affronta da sua victima, Lazaro occultou o menino e levou-o misteriosamente comsigo para França. _Electra_ A mãe de Maximo foi uma senhora franceza: Josephina Perret. _Pantoja_ Mãe adoptiva. _Electra_ (_tapando os olhos com ambas as mãos_) Divino Jesus! É o ceu que desaba... _Pantoja_ (_condoído_) Filha da minha alma, volve para Deus os teus olhos. _Electra_ (_demudada_) É um sonho... Tudo o que estou vendo é illusão, é mentira. (_Olhando espantadamente para uma parte e para outra_) Mentira estas arvores, esta casa, este ceu... Mentira tu! tu! tu, que não existes, monstro d’um pesadelo horrivel!... (_Com os punhos na cabeça_) Acorda, desgraçada, acorda! _Pantoja_ (_tentando socegal-a_) Electra, querida Electra! Pobre innocente! _Electra_ (_com um grito d’alma_) Mãe, minha mãe!... A verdade, dize-me a verdade... (_Fóra de si percorre a scena_) Onde estás, mãe?... Quero a morte ou a verdade... Minha mãe! minha mãe!... (_Sae pelo fundo, perdendo-se na longinqua espessura das arvores. Ouve-se proximo o canto dos meninos jogando ao côrro_) SCENA X PANTOJA, URBANO, MARQUEZ, vindos de casa, á pressa. Depois d’elles BALBINA E PATROS _Urbano_ Que é? _Marquez_ Ouvimos gritar Electra. _Balbina_ Foi a correr pelo jardim. _Patros_ Por aqui. (_As duas creadas assustadas correm e internam-se no jardim_) _Marquez_ (_olhando por entre as arvores_) Lá vae correndo... Continúa a gritar... Pobre Electra! (_Adeanta-se para o jardim_) _Urbano_ Que foi isto? _Pantoja_ Eu lh’o direi... Um momento... Providenciemos antes de mais nada... _Urbano_ O quê? _Pantoja_ (_procurando coordenar as suas ideias_) Deixe-me pensar... Trazel-a para casa já... Ir buscal-a... Vá! _Urbano_ (_olhando para o jardim_) Lá está já o meu sobrinho... _Pantoja_ (_contrariado_) Em que má hora! _Urbano_ Correm para elle os meninos... Parece que o informam... Electra foge-lhe... Não o quer vêr... Mette-se na gruta... O Marquez intervem... Pobre Maximo! _Pantoja_ Vá! vá ter com elles!... Não deixe que Maximo intervenha... _Urbano_ Que balburdia! (_Interna-se no jardim_) _Pantoja_ Se eu podesse... (_hesitante em ir e não ir_) _Balbina_ (_voltando pressurosa do jardim_) Pobre menina! Chama aos gritos pela sua mãe... Sentou-se agarrada aos meninos á porta da gruta, e ninguem a tira d’ali... _Pantoja_ E Maximo? _Balbina_ Muito inquieto, sem saber o que ha de fazer, como todos nós... Vou chamar a senhora... _Pantoja_ Não, não vá. Já chegaram a senhora superiora e as irmãs de S. José? _Balbina_ Já, sim senhor, chegaram agora. _Pantoja_ Não diga nada á senhora. Vá para casa e espere por mim. _Balbina_ Sim, senhor. (_Sobe para casa_) _Pantoja_ (_indeciso e como assustado_) Não sei que faça... Pela primeira vez na minha vida hesito... Irei?... Esperarei aqui? (_resolvendo-se_) Vou. (_A poucos passos encontra-se com Maximo, agitado e colerico, que vem do jardim e o detem_) SCENA XI PANTOJA E MAXIMO _Maximo_ (_ardentemente em toda a scena_) Alto!... Diz-me o marquez de Ronda que d’aqui, depois de uma demorada conversação comsigo, sahiu Electra no delirio em que está. _Pantoja_ (_perturbado_) Aqui... de certo... falamos... A senhorita Electra... _Maximo_ Foi mordida pelo monstro. _Pantoja_ Talvez... mas o monstro não sou eu. É um mais terrivel, que se alimenta de factos e que se chama a Historia. (_Querendo ir-se_) Adeus. _Maximo_ (_agarrando-o fortemente por um braço_) Espere. Primeiro vae repetir aqui, já, immediatamente, o que foi que disse a Electra esse seu monstro da Historia... _Pantoja_ (_sem saber que dizer_) Eu... convém assentar préviamente que... _Maximo_ Nada de preambulos... Quero aqui a verdade, concreta, exacta, precisa... Electra foi offendida de um modo tão profundo que lhe alterou a razão... Com que palavras, com que suggestões? Preciso de sabel-o prontamente. Trata-se da mulher que é tudo para mim no mundo. _Pantoja_ Para mim é mais: é o ceu e a terra. _Maximo_ Quero saber, n’este mesmo instante, que horrivel maquinação foi esta, urdida por si, contra essa menina, contra mim, contra nós ambos eternamente unidos pela effusão das nossas almas. Com que baba se envenenou aquella a quem eu posso e devo chamar desde já a minha legitima mulher? Que responde? _Pantoja_ Nada. _Maximo_ (_acommette-o explodindo em colera_) Pois por esse infame silencio, mascara impudente e abjecta de um egoismo tão grande que não cabe no mundo; por essa virtude não sei se falsa, se verdadeira, que da sombra desfere o raio que nos aniquilla; (_agarra-o pela garganta e derriba-o no banco_) por essa doçura que envenena, por essa suavidade que estrangula, Deus te confunda, homem grande ou miseravel reptil, aguia, serpente, ou o que sejas! _Pantoja_ (_recobrando alento_) Que brutalidade! que infamia! que demencia! _Maximo_ Bem sei. Estou doido... (_Recompondo-se_) E quem é que dispõe assim do poder diabolico de desvirtuar o meu caracter, arrastando-me a esta colera insensata, fazendo-me o estupido aggressor de um ente debil e mesquinho, incapaz de responder á força com a força? _Pantoja_ (_tomando aprumo_) Com a força te respondo. (_Voltando á sua condição normal, exprimindo-se com serenidade sentenciosa_) Tu és a força do musculo, eu a força da alma. (_Maximo olha para elle, attonito e confuso_) Posso mais do que tu, infinitamente mais. Duvídas? _Maximo_ De que póde mais? _Pantoja_ A ira suffoca-te, e cega-te o orgulho. Eu, injuriado e escarnecido, recobro a serenidade. Tu não. Tu tremes. Tu, que te julgas a força, tu, Maximo, tremes! _Maximo_ É a ira. Não a provoque. _Pantoja_ Nem a provoco nem a temo. (_Cada vez mais senhor de si_) Tu maltratas-me. Eu perdôo-te. _Maximo_ Que me perdôa a mim! (_iracundo_) Mas é para o homicidio que assim me empurra! _Pantoja_ (_com serena e fria gravidade, sem jactancia_) Enfurece-te, grita, bate-me... Aqui me tens inabalavel e indifferente... Não ha força humana que me dobre nem poder nenhum da terra que me afaste do meu caminho. Injuria-me, fere-me, mata-me: não me defendo. O martyrio não me repugna. Póde a violencia destruir o meu pobre corpo, que nada vale. Mas o que está aqui (_na sua mente_) é indestructivel. Na minha vontade só um poder impera: o de Deus. E se a minha vontade se extinguir na morte, a ideia que sustento lhe sobreviverá, triumphante e eterna. _Maximo_ Não póde ter ideias grandes quem não tem grandeza, nem piedade, nem ternura, nem compaixão. _Pantoja_ O meu fim é mais alto que todos os raciocinios. Para elle me dirijo por qualquer caminho que se me depare. _Maximo_ (_aterrado_) Por qualquer caminho!? Para ir para Deus não ha senão um: o da Bondade Humana. (_Com exaltação_) Deus do ceu! tu não pódes permittir que ao teu reino se chegue por lobregas e tortuosas alfurjas, nem que á tua gloria se suba calcando os corações que te amam... Não; Deus não permitte isso. Vêr tal absurdo seria vêr toda a Natureza em ruina, toda a maquina do Universo destruida e aniquillada. _Pantoja_ Estás offendendo Deus com as tuas palavras blasphemas. _Maximo_ Mais o offendes tu com os teus actos sacrilegos. _Pantoja_ Basta. Não disputo comtigo. Não tenho mais que dizer-te. _Maximo_ Não tem mais? Se ainda me não disse nada! (_Segura-o vigorosamente por um braço_) Vamos d’aqui ter com Electra, e, na presença d’ella, ou esclarece as minhas dúvidas e me tira da anciedade horrivel em que estou, ou ahi morre, e morro eu, e morreremos todos trez. Assim lh’o juro pela memoria de minha mãe. _Pantoja_ (_depois de o encarar fixamente_) Vamos. (_Ao darem os primeiros passos sae Evarista de casa_) SCENA XII OS MESMOS, EVARISTA E PATROS. Atraz d’Evarista a superiora e as duas irmãs de S. José _Evarista_ Que succedeu, Maximo?... Que colera é essa? _Maximo_ É este homem que me enlouquece... Venha, tia, venha tambem comnosco... (_Vendo a superiora e as irmãs, amedrontado_) Que mulheres são aquellas? Que querem essas senhoras? (_Chega Patros do jardim, correndo_) _Patros_ (_pesarosa, choramigando_) Minha senhora, a senhorita enlouqueceu... Corre, foge, desapparece, chamando em gritos por sua mãe... Não quer que a consolem... não ouve, não vê ninguem, não conhece ninguem! _Evarista_ (_caminhando para o jardim_) Filha da minh’alma! _Maximo_ (_olhando para o jardim_) Ahi vem. (_Larga Pantoja e dirige-se a ella_) _Patros_ O senhor e o snr. Marquez conseguiram convencel-a e trazem-a para casa... (_Apparece Electra conduzida pelo marquez e por Urbano. Junto d’elles, Maximo. Ao vêr os que estão em scena Electra oppõe alguma resistencia. Suave e carinhosamente a obrigam a approximar-se. Traz o cabello e o seio adornado de flôrzinhas_) SCENA XIII ELECTRA, MAXIMO, EVARISTA, PANTOJA, URBANO, MARQUEZ E PATROS (Conservam-se na scena a superiora e as irmãs) _Evarista_ Deliras, minha pobre filha! _Maximo_ Ouve, minh’alma, vem, escuta. O meu carinho será a tua razão. _Electra_ (_afasta-se de Maximo com um movimento de pudor. O seu delirio é sereno, sem gritos, sem risadas. Manifesta-o com uma accentuação de dôr resignada e melancolica_) Não te approximes. Não te pertenço. Já não sou tua. _Maximo_ Porque me foges? para onde vaes sem mim? _Pantoja_ (_que passou para a direita, junto de Evarista_) Para a eterna verdade, para a inalteravel paz. _Electra_ Vou por minha mãe. Sabem onde está minha mãe?... Vi-a no côrro dos meninos... Foi depois até a mimosa que está á entrada da gruta... E eu a seguil-a sem a alcançar... Olhava para mim e fugia... (_Ouve-se ao longe o canto dos meninos_) _Marquez_ Aqui está Maximo... Olhe... É o seu noivo. _Maximo_ (_vivamente_) Serei o teu marido... Ninguem se oppõe, e não ha força nenhuma que o empeça, Electra, minha vida. _Electra_ (_impondo silencio_) Quem fala aqui de noivos e noivas? Quebradas as festas do noivado: não ha bôda... Que tristeza a da minha alma!... Só ha padres com tochas a rezar por defuntos... Que grande é o mundo, e que só que está! que vazio!... Acima da terra, pelo ceu, passam nuvens negras, que são illusões, as illusões que foram minhas e não são de ninguem agora... as illusões sem dôno!... Que solidão!... Tudo escurece, tudo chora... Vae acabar o mundo... vae acabar. (_Com arrebatamento de medo_) Quero fugir, quero-me esconder. Não quero padres, não quero tochas, não quero officios... Quero ir para a minha mãe... Onde m’a enterraram?... Levem-me á pedra da sua campa, e ali juntas, nós ambas, minha mãe e eu, lhe direi as penas da minha alma, e ella me dirá verdades... verdades! _Pantoja_ (_áparte, a Evarista_) É a occasião. Aproveitemol-a. _Evarista_ Vem, minha filha, nós te levaremos á quietação e á paz. _Maximo_ Não: o descanso e a razão estão aqui. Electra é minha... (_Evarista procura leval-a_) Exijo-a. _Electra_ Adeus, Maximo... Já te não pertenço: pertenço á minha dôr... A minha mãe chama-me para o seu lado... (_Extactica, anciosa, prestando uma attenção intensissima_) Ouço-lhe a voz... _Maximo_ A voz! _Electra_ Silencio, que me chama! (_delirando de alegria_) que está chamando por mim! _Evarista_ Torna a ti, meu amor! _Electra_ Não ouviram? Não ouvem?... Lá vou, mamãsinha, lá vou! (_Corre para o alto da escada_) Vamo-nos! (_A Maximo, que quer seguil-a_) Eu só... É por mim só que chama. Tu não... Para estar sósinha commigo... Não ouves a voz d’ella dizendo: Eleectra! Eleeeectra!... Vou vêl-a, vou falar-lhe... (_Vae entrando na casa com Evarista e Pantoja_) _Maximo_ Que iniquidade e que horror! Para m’a roubarem, enlouqueceram-na. (_Quer desprender-se dos braços de Urbano e do marquez_) _Marquez_ (_contendo-o_) Não enlouqueças tambem tu. _Urbano_ Socega! _Marquez_ Descansa, que eu te asseguro que a recobraremos! _Maximo_ Amarrem-me! Levem-me manietado para a solidão, para a sciencia, para a verdade. Este mundo incerto, mentiroso e iniquo, não é para mim! FIM DO QUARTO ACTO ACTO QUINTO Sala do locutorio em S. José da Penitencia. Portas lateraes. Ao fundo uma grande janela d’onde se vê o claustro. SCENA I EVARISTA E SOROR DOROTHÊA _Evarista_ (_entrando com a freira_) D. Salvador...? _Dorothêa_ Chegou ha um momento: está no escritorio com a superiora e com a madre escrivã. _Evarista_ Então Urbano lá irá ter com elle... Emquanto esperamos, dê-me noticias de Electra... Foi muito feliz a escolha que fizeram de si, irmã Dorothêa—tão sympathica e tão dôce—para a acompanhar, para viver com ella, para ser a sua amiga e a sua confidente... _Dorothêa_ Electra não me quer mal, e é talvez certo que por essa razão algum tanto contribuirei para a socegar. _Evarista_ (_aponta para a cabeça_) E como está ella de...? _Dorothêa_ Bem. Recuperou inteiramente a razão, e não tem nenhum vestigio de delirio, a não ser ainda aquella ideia fixa de querer vêr a mãe, de lhe falar, de ter d’ella a solução das suas dúvidas. Todo o tempo que tem livre das obrigações religiosas, e todo o que póde alcançar, o passa no pateo do nosso cemiterio, e na horta contigua; e tanto ahi como no dormitorio, sempre a mesma preoccupação a absorve. _Evarista_ E lembra-se de Maximo? fala d’elle? _Dorothêa_ Fala: mas nas suas meditações e nas suas rezas a ideia que mais acaricia é de poder amal-o como um irmão, e, pelo que ainda hoje me disse, espera conseguil-o. _Evarista_ Mas é uma ideia apenas! É preciso que a essa ideia se associe o coração... E bem poderia ser que assim succedesse se a desgraça de antes d’hontem não viesse alterar o seguimento dos factos... _Dorothêa_ Uma desgraça!... _Evarista_ Morreu o nosso velho amigo D. Leonardo Cuesta... _Dorothêa_ Não sabia... _Evarista_ Que immensa tristeza para todos nós! Ha dias que se sentia mal, e presagiava o seu fim. Sahiu na segunda feira muito cêdo, e na rua perdeu os sentidos. Levaram-o para casa, e ás tres horas da tarde estava morto. _Dorothêa_ Pobre senhor! _Evarista_ No testamento nomeia Electra herdeira de metade da sua grande fortuna... _Dorothêa_ Ah! _Evarista_ Mas coma expressa condição de que ella abandone a vida religiosa. Sabe se D. Salvador já terá conhecimento d’isto? _Dorothêa_ Supponho que sim, porque elle tem conhecimento de tudo, e adivinha o que não conhece. _Evarista_ E é verdade! _Dorothêa_ (_vendo chegar Urbano_) O snr. D. Urbano. SCENA II AS MESMAS E URBANO _Evarista_ Falaste-lhe? _Urbano_ Sim. Deixei-o a trabalhar no escritorio, com um tino, com uma fixidez d’attenção, que me assombram. Que homem! _Evarista_ Já teve noticia das ultimas disposições do pobre Cuesta? _Urbano_ Já. _Evarista_ Está contrariado? _Urbano_ Se está não o mostra. Bem sabes que nem nos casos mais difficeis elle deixa transparecer as suas commoções... _Evarista_ (_interrompendo-o com enthusiasmo_) É um espirito d’aguia, que paira acima de todas as tempestades da terra. _Urbano_ Interrogando-o a respeito das esperanças que tinha de conservar Electra no convento, respondeu-me singelamente com uma serenidade pasmosa: «Confio em Deus». _Evarista_ Que grandeza d’alma! E sabe que Maximo e o Marquez são os testamenteiros? _Urbano_ Sabe mais. Recebeu ao meio dia uma carta d’elles annunciando-lhe que virão esta tarde, acompanhados d’um tabellião, inquirir a menina, para que declare se acceita ou se renuncia a herança. _Evarista_ E á vista d’essa communicação...? _Urbano_ Nada: imperturbavel, como sempre, repetindo a sua conhecida formula, que o pinta n’um traço: «Confio em Deus». SCENA III OS MESMOS, MAXIMO E O MARQUEZ (pela esquerda) _Marquez_ Esperaremos aqui. _Maximo_ (_vendo Evarista_) Adeus, tia. (_Sauda-a com affecto_) _Evarista_ (_respondendo ao cumprimento do marquez_) Então, Marquez... Ha finalmente esperanças de ganhar a batalha? _Marquez_ Não sei... Luctamos com féra de muito ardil. _Evarista_ E a ti, Maximo, que te parece?... _Maximo_ Que estamos em frente d’um terrivel mestre consummado no embuste. Mas eu confio em Deus. _Evarista_ Tambem tu...? _Maximo_ Naturalmente: em Deus confia todo aquelle que crê na verdade. Combatemos pela verdade. Como poderiamos suppôr que Deus nos abandone? Não poderia ser, querida tia. _Urbano_ Não viste Electra quando atravessaste os claustros? _Maximo_ Não vi. _Dorothêa_ (_approximando-se da janela_) Vae passar agora. Vem do cemiterio. _Maximo_ (_correndo para a janela com Urbano_) Que triste! e que bella! A brancura do habito dá-lhe o aspecto aereo de uma apparição. (_chamando-a_) Electra! _Urbano_ Cala-te. _Maximo_ Não posso. (_Volta a olhar_) É então certo que vive... É ella que vae ali na sua realidade primorosa, ou é uma imagem mystica que se despegou d’um retabulo d’altar para andar pela terra?... Lá volta para traz... levanta os olhos para o ceu... Se a visse diluir-se no ar, dissipando-se como uma sombra, não me admiraria... Põe os olhos no chão... Pára... Em que estará pensando? (_Continua a contemplar Electra_) _Marquez_ (_que ficou no proscenio com Evarista_) ...Sim, minha senhora: falso, falsissimo! _Evarista_ Olhe o que affirma, marquez... _Marquez_ Affirmo que ou o veneravel D. Salvador se equivoca, ou que disse, sabendo-o, o contrario da verdade, movido de razões e fins, que não penetram as nossas limitadas intelligencias. _Evarista_ É impossivel, marquez... Faltar á verdade um homem tão justo, de tão pura consciencia, de ideias tão altas! _Marquez_ E quem nos diz, minha cara amiga, que nos arcanos d’essas consciencias exaltadas não ha uma lei moral, cujas subtilezas estão longe do nosso mesquinho alcance? Ha absurdos na vida do espirito como os ha na natureza, onde vemos inumeros phenomenos cujas causas não são as que se figuram. _Evarista_ Não: não posso crer! Ha talvez casos em que a mentira aplana o caminho do bem. Mas não estamos n’um caso d’esses... Eu por mim, não acredito. _Marquez_ Para que possa formar o seu juizo, ouça o que lhe vou dizer. A marqueza, Virginia, assegura-me que de Josephina Perret—sem que n’isto possa haver mistificação nem equivoco—nasceu este homem que ahi está... E Evarista, amiga intima de Josephina Perret, prova e demonstra esse facto da maneira mais simples, mais clara e mais positiva. Além d’isso, eu mesmo pude comprovar que Lazaro Yuste viveu longe de Madrid desde 1863 até 1866. _Evarista_ Com tudo isso, marquez, não posso convencer-me de que... _Marquez_ (_vendo entrar Pantoja pela direita_) Ahi vem elle. _Maximo_ (_descendo ao proscenio_) Chega o abutre. _Dorothêa_ Se me dão licença retiro-me. (_Sae pela esquerda. Pantoja permanece um instante junto da porta_) SCENA IV EVARISTA, MAXIMO, URBANO, MARQUEZ E PANTOJA _Pantoja_ (_adeantando-se vagarosamente_) Meus senhores, desculpem-me tel-os feito esperar. _Maximo_ Prevenido do objecto da nossa visita, creio que será inutil expol-o... _Marquez_ (_benignamente_) Não o repetiremos para não mortificar o snr. de Pantoja, que deve a estas horas considerar perdida a sua inutil campanha. _Pantoja_ (_sereno, sem jactancia_) Eu não perco nunca. _Maximo_ Será adeantar muito. _Pantoja_ E asseguro que Electra, tendo aprendido já a desprezar os bens da terra, não acceitará o legado. _Evarista_ Já vês que este homem não se rende. _Pantoja_ Não me rendo... nunca, nunca. _Maximo_ Estou vendo. (_Sem poder dominar-se_) É então preciso matal-o? _Pantoja_ Venha a morte. _Marquez_ Não chegaremos a tanto. _Pantoja_ Cheguem onde queiram. Hão de encontrar-me sempre impassivel e estavel, no meu posto. _Marquez_ Confiamos na lei. _Pantoja_ Eu em Deus. E digo aos representantes da lei que Electra, adaptando-se facilmente a esta vida de pureza, libando já as doçuras ineffaveis da oração e da paz em Deus, não abandonará esta santa casa. _Maximo_ (_impaciente_) Podemos falar-lhe? _Pantoja_ N’este momento, precisamente, não. _Maximo_ (_querendo protestar_) Oh! _Pantoja_ Socegue. _Maximo_ Não posso. _Evarista_ É a hora do côro. Quer D. Salvador dizer, por certo, que depois da hora... _Pantoja_ Está claro que sim. E para que se convençam de que nada temo, podem trazer além do tabellião, o snr. delegado do governo. Mandarei abrir a portaria... Permittirei que falem emquanto queiram com Electra. E se depois d’isso ella quizer sahir, que sáia... _Marquez_ Cumprirá o que diz? _Pantoja_ Como não? se é em Deus unicamente que confio. _Marquez_ Voltaremos logo. (_Toma o braço de Maximo_) _Pantoja_ E nós para a egreja. (_Saem Urbano, Evarista e Pantoja_) SCENA V MARQUEZ E MAXIMO, que percorre a scena muito agitado, impaciente, receioso _Marquez_ Que diz a isto, Maximo? _Maximo_ Que este homem, de tão superior talento para fascinar os debeis e para zombar dos fortes, nos enlouquecerá a todos. Eu não sou para isto. Em luctas de tal ordem, vontade contra vontade, sinto-me arrastado á violencia. _Marquez_ E que faz tenção de fazer? _Maximo_ Leval-a embora. A bem ou a mal. Por vontade ou á força. Se não tiver bastante poder para isto, adquiril-o, compral-o; trazer amigos, cumplices, um esquadrão, um exercito... (_Com crescente fervor_) Renascem em mim os rancores dos antigos bandos, com toda a ferocidade romantica do feudalismo. _Marquez_ Assim pensa, e assim o diz, um homem de sciencia! _Maximo_ Os extremos tocam-se. (_Exaltando-se mais_) Para esse homem, para esse monstro não ha argumentos, não ha raciocinios... É preciso matal-o. _Marquez_ Nem tanto, nem tanto, meu querido! Imitemol-o, sejamos como elle astutos, insidiosos, perseverantes. _Maximo_ (_com brio e eloquencia_) Não: sejamos como eu... sinceros, claros, valorosos. Marchemos de cabeça alta e de cara descoberta para o inimigo. Destruamol-o, ou deixemo-nos destruir por elle... Mas d’uma vez, de uma só investida, de um só golpe... Ou elle ou nós. _Marquez_ Não, Maximo. Temos de ir com tento. Temos de respeitar a ordem social em que vivemos. _Maximo_ A ordem social em que vivemos envolve-nos em uma rede de mentiras e de argucias, e n’essa rede morreremos estrangulados, sem defeza alguma... presos de garganta, e de pés e mãos, nas malhas de milhares e milhares de leis capciosas, de vontades fraudulentas, aleivosas, subornadas, corrompidas. _Marquez_ Socega. Preparemo-nos para o que esta tarde nos espera. Temos de prever os obstaculos para pensar com tempo no modo de os vencer... Que succederá quando dissermos a Electra que a mãe do seu noivo é com effeito e fóra de toda a dúvida Josephina Perret e não Eleuteria Dias? _Maximo_ Que ha de succeder? Que não o acreditará, porque na sua mente se petrificou o erro e será já tarde para o desarraigar. Pois não se sabe o que pode a suggestão contínua? O que póde o insinuante e invasivo ambiente de uma casa como esta sobre as ideias dos que a habitam? _Marquez_ Empregaremos meios efficases. _Maximo_ (_com violencia_) Quaes? Deitar fogo ao convento, deitar fogo a Madrid... _Marquez_ Não divagues. Se Electra não quizer sahir, leval-a-hemos á força. _Maximo_ (_muito vivamente até o fim_) Ou uma força triumphante, ou uma desesperação de vencido... morrer eu, morrer ella, morrermos todos. _Marquez_ Morrer não. Vivamos todos, e preparemo-nos para a peor solução. Tenho uma chave para entrar no claustro pela Rua Nova, e a irmã Dorothêa pertence-me... Caluda! _Maximo_ Violencia! _Marquez_ Subtilesa e astucia! _Maximo_ Adeante, de pronto, e pelo caminho direito! _Marquez_ Não, homem, de vagar, com geito, e pelo atalho enesgado! (_Tomando-lhe o braço_) E vamo-nos d’aqui, que estamos a tornar-nos suspeitos... (_Levando-o_) _Maximo_ Sim, vamo-nos. _Marquez_ Confia em mim. _Maximo_ Confio em Deus. MUTAÇÃO Claustro de S. José da Penitencia. Á direita uma asa da egreja, com frestões envidraçados, pelos quaes transluz a claridade interior. Á esquerda grande portada por onde se passa a outro claustro, que se suppõe communicar com a rua. Ao fundo, entre a egreja e as construcções da esquerda, grande arco abatido, para lá do qual se vê em ultimo plano o cemiterio da congregação. É noite escura. SCENA VI ELECTRA E SOROR DOROTHÊA _Dorothêa_ Tão certo como ser noite, vieram dois sujeitos ao convento com proposito de te arrancar d’aqui e de te levar para o mundo. Não o crês? _Electra_ Sem que me digas quem são, o meu coração o adivinha: Maximo e o marquez de Ronda... Se é certo que projectam levar-me é enorme a perturbação que me causam. Desde que entrei n’esta santa casa emprehendi, como sabes, a grande batalha do meu espirito. Procuro, humildemente e com a ajuda de Deus, transformar em amor fraternal o amor de uma natureza bem diversa que arrebatou a minha alma... Converter o ardente fogo do sol numa fria claridade da lua... O constante meditar, lento mas progressivo, o desmaio do coração, e as ideias submissas e dôces que Deus me envia vão-me dando forças para vencer. _Dorothêa_ Querida irmã, se em ti sentes a fortaleza d’esse novo amor, porque tens mêdo de te encontrar com D. Maximo de Yuste? _Electra_ Porque, vendo-o, sinto que todo o terreno ganho o perderia n’um só instante. _Dorothêa_ (_incredula_) E achas, em tua verdade, que tenhas algum terreno ganho?... _Electra_ Oh! sim, algum... não muito por emquanto. _Dorothêa_ Talvez, irmã Electra, que o vêr essa pessoa te demonstre se effectivamente podes... _Electra_ (_vivamente_) Oh! não m’o digas, que não posso!... No estado em que me sinto, n’este principio de lucta, se o visse, se o ouvisse, eu perderia toda a esperança de paz... Não vês que em minha consciencia eu me estou debatendo contra dois impossiveis: não poder amal-o como esposo; não poder amal-o como irmão? (_Aterrada_) Que supplicio, meu Jesus!... Para o mundo não, não... Prefiro estar aqui, n’esta solidão de morte, n’este laboratorio da minha alma, junto do cadinho divino, em que estou fundindo um viver novo. _Dorothêa_ Não esperes que as tuas ideias te deem a paz. Confia em Deus e n’aquelles que Deus te envia... (_Resolvendo-se a falar mais claramente_) Não te amedrontes assim perante o que suppões teu irmão. Alguem talvez negará que o seja. _Electra_ (_em grande excitação_) Cala-te! Cala-te! Em assumpto de tão grande melindre toda a palavra que não contenha a certeza é inutil e cruel... Póde levar-me á loucura. O que eu peço a Deus é a morte, ou a verdade inteiramente indubitavel e definitiva. _Dorothêa_ Socega, pobre Electra... _Electra_ (_exaltando-se cada vez mais_) Todas as confusões que me atormentaram ao vir para aqui estão renascendo no meu espirito... Atropelam-se-me no pensamento anjos e demonios... Deixa-me... Eu quero fugir de mim mesma... (_Corre a scena em grande agitação. Soror Dorothêa segue-a procurando acalmal-a_) _Dorothêa_ Tranquillisa-te, por Deus!... Esse tormento vae ter fim. (_Olha com anciedade para a porta da esquerda_) _Electra_ (_parecendo-lhe ouvir uma voz longinqua_) Ouve... Minha mãe que me chama. _Dorothêa_ Não delires... Outras vozes, vozes de pessoas vivas, te chamarão. _Electra_ É minha mãe... Silencio!... (_Escutando. Entra Pantoja pela direita_) SCENA VII ELECTRA, PANTOJA E DOROTHÊA _Pantoja_ Minha filha, como sahiste da egreja sem que eu te visse? _Dorothêa_ Sahimos para respirar ao ar livre. Electra asfixiava. (_Áparte_) Approxima-se a hora... Deus nos ajude! _Pantoja_ Sentes-te mal, minha filha? _Electra_ (_com voz assustada e sumida_) A minha mãe chama por mim. _Pantoja_ (_pegando-lhe carinhosamente na mão_) A dôce voz da tua mãe, falando-te em espirito te dará conforto, prendendo-te com piedade e amôr a este sagrado refugio. (_Ouve-se passando na egreja o côro das noviças_) Ouve, Electra... É a voz dos anjos que te chamam do ceu. _Electra_ (_delirante_) É o côro dos meninos a brincar. E entre essas vozes ternas, distingo a de minha mãe chamando-me da sepultura. _Pantoja_ Estás allucinada. É o divino côro dos anjos. _Electra_ Não, não ha anjos... Ouço o meu nome, ouço o bulicio dos meninos, que revolve toda a minha alma. São os filhos dos homens que fazem a alegria da vida. (_Continua a ouvir-se mais apagado o côro das noviças_) _Pantoja_ (_inquieto_) Irmã Dorothêa, diga á irmã porteira que vigie a porta da Rua Nova e a da Ronda. (_Á esquerda e á direita_) _Dorothêa_ Sim, meu senhor... _Pantoja_ Mas não; irei eu mesmo... Não me fio de ninguem... Vou eu mesmo vigiar todo o claustro, todas as passagens, todos os recantos da casa. (_Assustado, julgando ouvir ruido_) Escute... Não ouvio? _Dorothêa_ Quê?... Não ouvi nada... É illusão. _Pantoja_ Pareceu-me ouvir um rumor de vozes... e bater n’uma porta ao longe. (_Escuta_) _Dorothêa_ De que lado? (_Olhando para o fundo á direita_) _Pantoja_ Na direcção da enfermaria... Não estou socegado... Quero vêr eu mesmo... Electra, volta para a egreja... Leve-a, irmã Dorothêa... Esperem-me lá... (_Dando-lhes pressa_) Andem... (_Acompanha-as até á porta da egreja. Sae pressuroso, inquieto, pelo fundo, á direita. Dorothêa vê-o afastar-se, pega na mão de Electra, e vivamente volta com ella ao centro da scena. Electra, sem vontade, deixa-se levar_) SCENA VIII ELECTRA E SOROR DOROTHÊA _Dorothêa_ Vem commigo... Para a egreja não. _Electra_ Aqui... Deixa-me respirar, deixa-me viver. _Dorothêa_ (_aparte, inquieta_) É a hora dada pelo marquez de Ronda... Aproveitemos os minutos, os segundos, ou tudo está perdido. (_Olhando para a esquerda_) Vou dar-lhes entrada para este claustro... (_Alto_) Irmã Electra, espera-me aqui. _Electra_ (_assustada_) Onde vaes? (_Pega-lhe no braço_) _Dorothêa_ (_com decisão, defendendo-se_) Tratar de ti, dar-te a saude e dar-te a vida... Prepara-te para sahir d’este sepulcro, e leva-me comtigo. _Electra_ (_tremula_) Irmã Dorothêa... não me deixes. _Dorothêa_ Este momento decide da tua sorte... Volverás ao mundo... verás Maximo. _Electra_ Quando? _Dorothêa_ Já... Vaes vêl-o entrar por ali... (_Esquerda_) Animo!... Não me estorves... Não te movas d’aqui. (_Sae correndo pela esquerda_) _Electra_ Meu Deus! Virgem Santissima!... Será certo?... Por aqui... por aqui virá... (_Julga vêr Maximo na escuridão_) Ah! é elle... Maximo! (_Falando como em sonhos, desviando-se como d’um ser real_) Pára... Deixa-me... Não posso amar-te como irmão, não posso... Está no fogo o cadinho em que quero fundir um coração novo... Não vês que não posso levantar os olhos para ti?... Para que me fitas d’esse modo, se me não pódes levar comtigo?... É aqui que eu procuro a verdade. Minha mãe chama por mim... (_Com accento desesperado_) Mãe! mãe! (_Volta-se de frente para o fundo. Ao soarem as ultimas palavras de Electra, apparece a sombra de Eleuteria, formosa figura em habito de monja. Electra de costas para o publico, contempla-a com os braços cruzados no peito_) Oh! (_Grande pausa_) SCENA IX ELECTRA E A SOMBRA DE ELEUTERIA, que vagamente se destaca na obscuridade do fundo. Electra adeanta-se para ella. Ficam as duas figuras frente a frente, á menor distancia possivel uma da outra. _A Sombra_ Sou a tua mãe, e venho a aplacar a angustia do teu coração amante. A minha voz dará á tua consciencia a paz. Nenhum vinculo da natureza te prende ao homem que te escolheu por mulher. O que te disseram foi uma ficção carinhosa destinada a trazer-te á nossa companhia e á doçura d’esta santa casa. _Electra_ Oh! mãe adorada, que consolação me dás! _A Sombra_ Dou-te a verdade, e com ella a fortaleza e a esperança. Acceita, minha filha, como provação em que se retemperou a força da tua alma, esta reclusão transitoria, e não maldigas quem a promoveu... Se o amor conjugal e as alegrias da familia solicitam a tua alma deixa-te de boamente levar da suavidade d’essa atracção, e não procures aqui uma santidade que não é para ti. Deus está em toda a parte... Eu não pude encontral-o fóra d’este abençoado refugio... Procura-o tu no mundo por vereda differente d’aquella em que eu me perdi... (_A sombra cala-se e desapparece no momento em que se ouve a voz de Maximo_) SCENA ULTIMA ELECTRA, MAXIMO, MARQUEZ, PANTOJA E SOROR DOROTHÊA _Maximo_ (_á porta da esquerda_) Electra! _Electra_ (_correndo para elle_) Ah! _Pantoja_ (_pela direita_) Minha filha, onde estás? _Marquez_ Comnôsco. _Maximo_ Commigo. _Pantoja_ Foges-me, Electra? _Maximo_ Não foge... Resuscita. FIM *** End of this LibraryBlog Digital Book "Electra - Drama em cinco actos" *** Copyright 2023 LibraryBlog. All rights reserved.