By Author | [ A B C D E F G H I J K L M N O P Q R S T U V W X Y Z | Other Symbols ] |
By Title | [ A B C D E F G H I J K L M N O P Q R S T U V W X Y Z | Other Symbols ] |
By Language |
Download this book: [ ASCII ] Look for this book on Amazon Tweet |
Title: Viagem ao norte do Brazil feita nos annos 1613 a 1614, pelo Padre Ivo D'Evreux Author: D'Evreux, Ivo Language: Portuguese As this book started as an ASCII text book there are no pictures available. *** Start of this LibraryBlog Digital Book "Viagem ao norte do Brazil feita nos annos 1613 a 1614, pelo Padre Ivo D'Evreux" *** produced from images generously made available by Cornell University Digital Collections) VIAGEM AO NORTE DO BRAZIL PELO PADRE IVO D’EVREUX VIAGEM AO NORTE DO BRASIL FEITA NOS ANNOS DE 1613 A 1614, PELO PADRE IVO D’EVREUX RELIGIOSO CAPUCHINHO PUBLICADA CONFORME O EXEMPLAR, UNICO, CONSERVADO NA BIBLIOTHECA IMPERIAL DE PARIZ COM INTRODUCÇÃO E NOTAS POR MR. FERDINAND DINIZ, CONSERVADOR DA BIBLIOTHECA SANTA GENOVEVA Traduzida pelo DR. CEZAR AUGUSTO MARQUES Cavalleiro da Real e Militar Ordem Portuguesa de Nosso Senhor Jesus Christo, Cavalleiro e Official da Imperial Ordem da Rosa, Membro do Instituto Historico, Geographico, e Ethnographico do Brazil, da Sociedade Geographica de Pariz, e socio correspondente, effectivo, honorario e benemerito de muitas outras sociedades litterarias e scientificas, nacionaes e estrangeiras. MARANHÃO—1874. Maranhão.—Typ. do Frias, r. da Palma 6. Á SAUDOSISSIMA MEMORIA, DE MEU PAE E VERDADEIRO AMIGO O Illm. Sr. Augusto José Marques. Á vós, ó meo querido Pae, levanto, dedico e consagro este pequeno, porem sincero monumento de minha saudade sempre viva, de meo extremecido amor, de meo eterno reconhecimento, e de minha dôr pungente pela vossa ausencia d’este Mundo. Bem sei que Deos, querendo recompensar vossas virtudes, cêdo vos tirou do seio dos que muito vos extremeciam; mas essa ideia póde sim consolar-me, nunca porem mitigar as vivas saudades, que me pungem a alma. Aceitae, ó meo bom Pae, estas flores que, ainda uma vez banhadas com minhas lagrymas, espalho sobre vosso tumulo, a lá do Céo, onde vos collocaram vossas virtudes e a Misericordia Divina, abençoae o vosso filho Cezar. AO LEITOR. A introducção, que se vae lêr, escripta pela habil penna de Mr. Ferdinand Diniz dispensa-me de escrever um prologo, e felizmente sou substituido de maneira muito vantajosa para os meos leitores. Realisei ainda uma vez um dos meos mais ardentes desejos, traduzindo e entregando á publicidade uma das obras raras a respeito da historia primitiva do Maranhão, que me tem merecido muitas investigações e aturado estudo. Dou-me por satisfeito d’esta e de outras fadigas, si d’ellas resultar algum proveito ao publico menos, lido para quem fiz esta traducção. Maranhão, 20 de outubro de 1874. _Dr. Cesar Augusto Marques._ INTRODUCÇÃO. O Padre Ivo de Evreux e as primeiras missões do Maranhão. No tempo de Luiz XIII, o magnifico Convento dos Capuchinhos da rua de Santo Honorato contava entre seos Monges dois religiosos com o mesmo nome—o Padre Ivo de Paris e o Padre Ivo de Evreux. O primeiro, advogado antigo, verboso, ardente na discussão, muito versado nas ideias do seu seculo, gosava pela cidade de alta reputação, e as biographias modernas confirmão ainda sua fama passada: o segundo, amigo reconcentrado do estudo, e mais ainda da humanidade, espirito observador, alma apaixonada pelas bellezas da naturesa, prompto a acudir onde o chamava seo zelo, não se importando da curiosidade que podia despertar, foi completamente esquecido, e de tal forma, que, apezar de seo reconhecido merito, decorreram 250 annos sobre seo humilde tumulo sem que uma voz amiga tenha para elle despertado a attenção publica. Para que se fallasse n’este obscuro Monge foram necessarias duas cousas, com que não se contava durante sua vida: a transformação em poderoso Imperio dos desertos, que elle percorreo, e o amor apaixonado por certos livros velhos, que se rehabilitam e com razão, pois elles, por si só, narram factos que, sendo desconhecidos, fariam com que a civilisação crescente de certos paizes caminhasse na ignorancia de sua origem. Tinha então o grande Convento de Pariz muitos homens condemnados á injusto esquecimento. Fundado em 1575 por Catharina de Medicis,[A] havia em pouco tempo adquerido fama de conter monges doutos em theologia, zelosos, cheios de abnegnação e caritativos nas epidemias, a qual, quasi intacta, conservou durante o decimo sexto seculo. Era n’elle, que o partido, favoravel aos religiosos regulares, vinha procurar espiritos activos para luctar com o Bispo de Belley. Era sobre estes vastos terrenos, possuidos apenas pela Casa de _Tremouille_, que existia essa immensa officina bem conhecida pelo Corpo medico de Pariz, onde os cortesãos, assim como os mais humildes burguezes vinham provêr-se de medicamentos, que só ahi encontravam, ou que se preparavam com incuria notavel nos outros lugares de tão grande cidade.[B] Fallemos francamente: não era nem a sciencia, então incontestavel, d’esses Religiosos, nem os resultados positivos de sua cuidadosa administração, nem mesmo os beneficios diarios, pelos quaes eram tão uteis ás classes necessitadas, que lhes grangearam o credito unisono, que gosavam em Pariz, pois o deviam sobre tudo as brilhantes conversões, realisadas recentemente no Mosteiro de Santo Honorato. Foi n’este Convento, que um dos maiores senhores do ultimo reinado, o conde de Bouchage, mais conhecido depois pelo Padre Angelo de Joyeuse, veio trocar as grandezas da Côrte, onde voluntariamente demittio-se dos seos cargos militares, pela vida pobre e obscura que ahi se passava. Foi n’este sombrio asylo que um dos ramos mais illustres da familia de Pembroke veio abjurar o calvinismo, e, renunciando vida mais brilhante, sugeitou-se ás humildes funcções, que desde o principio do seculo lhes foram impostos, obrigando-se a proseguir sem descanço na missão a que voluntariamente se impozera. Facil nos seria abundar agora na citação de nomes celebres, e de causar talvez admiração fazendo sobresahir os esquecidos: para ser breve devemos porem cingir-nos ao objecto em questão.[C] O Padre Ivo d’Evreux e o Padre Ivo de Pariz appareceram, como dissemos, quase ao mesmo tempo; porem a fama, sempre crescente de um, eclypsou completamente a lembrança mui fugitiva, que o outro deixou, e até em bons escriptos são elles confundidos. Tiveram, comtudo, bom é repetir, destino bem differente. Ivo de Evreux, como dissemos, fugia em geral do bulicio politico, e somente tomava parte nas luctas do seculo quando tinha de sustentar algum ponto de doutrina religiosa: o segundo, muito mais moço na Ordem, que o seo homonymo, sempre prompto a entrar nos combates, que as Ordens Regulares sustentavam algumas vezes contra o poder ecclesiastico, tinha por isto adquirido muita fama, com que bastante se gloriava o Mosteiro. Era notado não só como orador eloquente, mas tambem como um dos mais fecundos do seu tempo. A hyperbole do elogio monastico chegou até o ponto de consideral-o como o engenho mais poderoso de sua Ordem. Foi sempre elle quem representou unicamente seos Superiores: eram d’elle os muitos livros, escriptos quase todos em latim, que foram oppostos, e victoriosamente, ás publicações violentas atiradas contra as Ordens mendicantes. Da sua antiga occupação de advogado se recordava e se aproveitava das tricas e desordens, proprias da epocha, e até lançava mão da astrologia judiciaria, pelo que se lhe attribuio a authoria do _Fatum Mundi_, livro absurdo, mas que durante algum tempo preoccupou a attenção publica. Declarado por unanimidade o oraculo do seu Convento, nem se quer por um momento houve a ideia de associar-se á sua lembrança o nome d’um Religioso, igual ao seo, e que apenas sabia sacrificar-se com o fim de ganhar algumas almas para Deos! O que fazia o nosso modesto amante da natureza diante de tal personagem, tão cercada de gloria, diante da _Phenix_ dos theologos francezes, como então por gosto o appelidavam?[D] Mas, quem é que se recorda hoje do Padre Ivo de Pariz? Quem cuida hoje nas discussões, cuja vehemencia lhe attribuiram tão viva admiração? Colloquemos os homens e os factos nos lugares, que devem occupar. Ivo d’Evreux poude contemplar em sua grandeza primitiva uma terra exuberante de vida e de mocidade: dois seculos de esquecimento passaram sobre sua obra, e hoje em dia brilha elle remoçado, cheio de graça, ao lado de Lery, de Fernando Cardim, de Anchieta, emfim de todas essas almas privilegiadas, que uniam a faculdade da observação á apreciação apurada das bellezas da natureza, e que saudaram, poetas desconhecidos, a aurora de um grande Imperio. Ivo d’Evreux, diga-se com pezar, teve o destino de quasi todos os historiadores primitivos do novo mundo: sua biographia, embora pouco desenvolvida, ainda está por escrever, e apesar das mais minuciosas e constantes investigações n’estes ultimos tempos, apenas conhecemos as circumstancias mais importantes de sua vida, e assim mesmo nada ao certo saberiamos si não fossem algumas notas colhidas em varios archivos dos antigos Conventos. Foi geral o esquecimento tanto da sua obra, como do seo autor. Pensam os escriptores de sua Ordem haverem dito bastante, lembrando ter elle vivido no seculo XVII, ter sido missionario zeloso, e autor de um livro, continuação obrigada da viagem do Padre Claudio, e até se esquecem de mencionar a sua existencia por espaço de dois annos entre os indios, onde este apenas demorou-se quatro mezes. Conforme as inducções, que se podem tirar de um folheto manuscripto, conservado na bibliotheca _Mazarina_, opusculo cheio de datas precisas, relativas aos Capuchinhos do Convento da rua de Santo Honorato, o nosso Missionario devia ter nascido em 1577. Indica por certo seu sobrenome a cidade onde elle nasceo, porem ignoramos qual foi o nome, que teve no seculo, como então se dizia. Á este respeito os amadores das viagens antigas foram mais bem succedidos quanto ao seo companheiro, o Padre Claudio, que se sabe pertencera a uma excellente familia, a dos Foullon.[E] O que ha de bem averiguado é, que os paes do Padre Ivo o applicaram á estudos excellentes, e que os seus professores não se contentaram de ensinarem-lhe só o latim e sim tambem o grego, e até o hebreu, e inspiraram-lhe tal gosto litterario, sem o qual não ha escriptor habil. No convento de Ruão passou o seo noviciado, e ahi entrou em 18 de agosto de 1595, não existindo a menor duvida a este respeito.[F] Depois de ter tomado o habito n’essa Caza, ahi provavelmente demorou-se alguns annos, e devia prégar na maior parte das cidades da alta Normandia. É provavel, que então se achasse em relações de estudo e de sacerdocio com o joven Francisco de Bourdemare, como elle natural da Normandia, como elle Prégador em sua Provincia, e mais tarde designado para succedel-o na missão do Maranhão.[G] Distinguido muito cedo pelos seos Superiores, e tendo já o titulo de Prégador, que então só se dava aos Religiosos notaveis, foi designado o Padre Ivo para preencher as funcções de Guardião do Convento de Montfort. Infelizmente os documentos, que temos á vista e que provam este facto, não dizem qual foi a Cidade onde se passaram a maior parte dos annos de estudo do nosso bom Missionario. Ha em França mais de treze localidades com este nome e não nos é possivel, absolutamente fallando, dizer onde o nosso viajante se fortaleceu em sua carreira religiosa. Nos primeiros annos do seculo mudou logo de residencia, e achamol-o no grande Convento de Santo Honorato, no meiado do anno de 1611, no tempo em que era Provincial da Ordem o Padre Leonardo de Pariz,[H] quase na occasião d’este sabio Religioso ter sido pelo Papa nomeado Superior das missões orientaes. Teremos ainda occasião de fallar no movimento politico, dado ás expedições maritimas, quando ja ia em meio o seculo XVI, e que tinha por fim fazer com que, o nosso comercio partilhasse das vantagens, que a Hespanha e Portugal haviam para si monopolisado. Cincoenta annos mais tarde, embora aproveitando-se das vantagens adquiridas pelas exploraçães dos Varazano, dos Cartier, dos Roberval, e de tantos outros navegantes, que nos deram o que n’aquelle tempo se chamava _nova França_, todas as attenções se fixavam nas regiões mais favorecidas, que então se pretendia colonisar, e as quaes com enthusiasmo se chamava _França equinoccial_. Ja havia desde 1555 uma _França Antarctica_, a qual, apesar de ter este nome por tão pouco tempo, não deixou comtudo de grangear para nossos homens do mar as sympathias calorosas e dedicadas dos povos indigenas, que então em tribus numerosas occupavam o Brazil em varias partes. Auxiliava tambem estas conquistas pacificas o movimento protestante, bem que não devesse deixar vestigios duradouros n’America do Sul, porque os refugiados e os Missionarios subordinavam a si e procuravam á porfia converter á suas crenças estas nações barbaras.[I] Sem tratar dos armadores de Dieppe, cujas primeiras explorações pelas costas do Maranhão, datam de 1524, sem mencionar as navegações de Affonso de Xaintongeois até as boccas do Amazonas no anno de 1542, ser-nos-ia facil provar, que 25 annos mais tarde Henrique IV doara a um bravo capitão da religião reformada a immensa extensão de territorio, para a qual devia ir Ivo d’Evreux, sahindo do seu pacifico retiro de Montfort, afim de cathequisar os selvagens. Vemos com effeito Daniel de la Touche, senhor de Ravardiere, de posse d’essas doações tão vagamente definidas pelas Cartas patentes de julho de 1605.[J] Adquirimos tambem a certeza, que depois de dois annos, após duas viagens successivas ao norte do Brasil, Ravardiere decidio os Tabajaras e Tupinambás, propriamente ditos, a mandarem uma especie de embaixada ao Rei Christianissimo com o fim de solicitar sua protecção contra as invasões dos portuguezes. Foi debalde esta missão d’indios, porem como Ravardiere continuasse a residir por muito tempo entre elles, conseguio em 1610, que lhe fossem renovadas as doações feitas cinco annos antes, e assim julgou-se authorisado, logo depois da morte de Henrique IV, a formar uma associação para a definitiva colonisação d’estas regiões abandonadas.[K] Não foi comtudo aos partidistas de sua Religião, que se dirigio Ravardiere para ser bem succedido n’este empenho: pelo contrario sem hesitar entrou em conferencia com catholicos proeminentes, cuja lealdade perfeitamente conhecia, como sejam, o almirante Francisco de Razilly, uma das mais antigas glorias da França, e Niculau de Harlay, uma de suas summidades financeiras, e elles se lhe associaram para a exploração d’este previlegio. Em todo o seculo XVII não conhecemos outra transacção, entre catholicos e protestantes, mais leal e desinteressada: foi na verdade uma empresa, digna de contar em si o Padre Ivo d’Evreux, tão sincero como justo. O titulo de lugar-tenente do Rei, sem a menor questão, foi transferido á Rasilly, que teve toda a liberdade de acção, não deixando comtudo de fazer prevalecer as prerogativas da communhão, que professava. Em todas as praias onde desembarcassem, devia levantar-se uma cruz com toda a solemnidade, e bem assim missionarios catholicos seriam condusidos para propagação da fe entre o gentilismo. Estes contractos foram na verdade pontualmente executados, e nem na obra de Claudio d’Abbeville, e nem na de Ivo de Evreux se encontra uma só palavra, que faça suspeitar o menor estremecimento entre os chefes da expedicção. Fortalecido com o credito, que de ha muito gosava na Corte, ajudado alem disto, por soccorros pecuniarios, e pela verdadeira importancia, que lhe proveio de associar-se com Niculau de Harlay, senhor de Sancy, Barão de Molle e de Grois Bois, o almirante Razilly com toda a prestesa chegou ao fim, que tinha em vista, interessando a Regente no bom exito de uma empreza, ja antecedentemente approvada por Henrique IV. Por seos rogos escreveo Maria de Medicis ao Padre Leonardo, que n’esse tempo era Guardião do grande Convento dos Capuchinhos da rua de Santo Honorato, pedindo-lhe com toda a instancia quatro religiosos, afim de fundarem um convento da Ordem na Ilha do Maranhão. Diga-se a verdade: o norte do Brazil que actualmente offerece todos os recursos da civilisação, então se apresentava, até mesmo aos mais doutos da Universidade de Pariz, como um paiz entregue a todos os horrores da vida selvagem; os cosmographos francezes quando d’ella tractavam, exageravam a rusticidade d’esse paiz, deixando comtudo a imaginação o campo inteiramente livre, não marcando nenhum limite exacto, e era sobre essas informações inexactas que Raleigh se deleitava de evocar todos os monstros do mundo antigo. Nem um só momento exitaram estes Religiosos quando o Padre Provincial lhes leo a Carta regia na occasião em que se achavam no refeitorio: d’entre elles quarenta quizeram ser escolhidos para tão perigosa empresa, e os documentos officiaes, que temos à vista, nos fizeram até conhecer a especie de enthusiasmo que d’elles se apoderou quando souberam o contheudo da mensagem das Tulherias. Offereceram-se a maior parte dos Padres com expontaneo enthusiasmo para esta nova missão, e sendo reprimido o zelo dos mais fervorosos, declarou logo o Padre Leonardo, de accordo com o Definidor da Ordem, que seriam quatro apenas os escolhidos, de conformidade com o pedido. Eis a lista destes nomes pela ordem, que devem guardar entre si, e os raros historiadores, que d’elles tem tratado teriam evitado alguns erros se, como nós, tivessem consultado os archivos do Convento. O muito veneravel Padre Ivo d’Evreux, superior.[L] O muito veneravel Padre Claudio d’Abbeville. O muito veneravel Padre Arsenio de Paris. O muito veneravel Padre Ambrosio de Amiens. Ajoelharam-se os escolhidos diante do Padre Leonardo, e humildemente lhes agradeceram tal honra; foi-lhes annunciada a proximidade da viagem, e desde esse momento para ella se acharam promptos. Não ha a menor duvida á respeito da qualidade do Religioso, a quem se confiou a direcção das missões do Maranhão, e não se comprehende como Berredo, antigo Governador da Provincia, que foi autoridade no Brazil, deo o titulo de Superior á Claudio d’Abbeville, que occupa na ordem hierarchica o lugar immediato ao digno Missionario director dos trabalhos. Certamente era necessario que o Padre Ivo ja tivesse adquirido na Ordem credito inabalavel para que fosse preferido aos tres religiosos, seos adjuntos. Eram sacerdotes todos tres; como elle deram provas de possuirem solida instrucção, e o terceiro até, ja muito adiántado na carreira, por varias vezes tinha occupado certos empregos honrosos, signaes evidentes da consideração de seos superiores. O Padre Ambrosio éra alem d’isto dedicado com ardor á todas as obras de caridade, durante as calamidades dos ultimos annos do seculo, sendo muito conhecida sua bondade sempre em acção: suas prédicas fervorosas, bem acolhidas pelo povo, lhe grangearam o apellido de «_Apostolo da França_.»[M] Tem a data de 12 de agosto de 1611 as _Cartas de obediencia_, que os Superiores deram ao Padre Ivo d’Evreux, e lhe ordenaram, que fosse embarcar-se no porto de Caucale n’um navio sob o commando de Rzailly, lugar-tenente do Rei. Não devemos repetir aqui o que em termos percisos e apropriados contou Claudio d’Abbeville na primeira parte de sua narração a respeito dos pormenores da longa viagem dos missionarios até o Brazil, da separação forçada da flotilha, que os conduzia, e das peripecias d’esta navegação, que durou cinco mezes. O que porem podemos affirmar é que o Padre Ivo não soffreu somente o aborrecimento de uma viagem maritima, cujas difficuldades não se pode agora imaginar, e que aos cuidados de uma installação penosa vieram reunir-se fadigas imprevistas, e depois de desembarcado, dores pungentes, como fossem as que elle experimentou pela morte do digno Padre Ambrosio, e em seguida os soffrimentos provenientes de uma molestia, que o forçou a regressar, e da qual foi victima afinal. Tudo isto foi narrado com simplicidade e dignidade por tão zeloso missionario, e sem duvida muito melhor do que o fariamos. O que não disse o pobre Monge, cuja exquisita sensibilidade e admiravel resignação se revelam tantas vezes, foi o pezar, que experimentou quando vio, que da coragem imprudente de Pésieux resultou a morte d’este seo amigo, sem que o valor de Ravardiere podesse ser bastante para sustentar a Colonia; o que tambem não poude contar foi a perda das funcções de Superior da missão, que devia assumir antes do triumpho das armas de Jeronymo d’Albuquerque, e da expulsão definitiva dos francezes. Para explicar essas circumstancias, não mencionadas de forma alguma pelo digno missionario, é indispensavel fallar-se da situação administrativa em que então se achava o grande Convento da rua de Santo Honorato. O Padre Leonardo, tão afamado entre seos irmãos de habito, em 1614 deixou de ser Provincial, e só poderia ser reeleito no anno de 1615. Foi substituido pelo veneravel Honorato de Champigny,[N] e com razão elogiam-se os melhoramentos de toda a natureza, a actividade, e especialmente a distribuição de soccorros caridosos, postos em pratica durante a sua administração. N’esta epocha, um Religioso estrangeiro, natural da Escossia, e descendente de uma boa familia, attrahia a si os olhares de seos irmãos, e póde dizer-se até os da propria França, o Padre Archanjo de Pembroke, que veio substituir de alguma forma o Padre Angelo de Joyeuse. Eleito Provincial em 1609, e não deixando depois d’isto d’exercer importantes encargos, foi este Capuchinho, logo depois da partida do Padre Ivo, nomeiado director dos missões _nas Indias orientaes e occidentaes_. Os motivos, que fizeram abandonar mais tarde a missão do Maranhão, não foram declarados, ou para melhor dizer, não existiam. Archanjo de Pembroke resolveo ir pessoalmente ao Brasil dar consideravel impulso á pequena missão, que alguns mezes antes havia sido derigida por Francisco de Razilly. Para este fim escolheo onze religiosos, de cujo zelo podia confiar: infelizmente ignoram-se os seos nomes, e apenas se sabe que entre elles havia um historiador, cuja _Narração_, nos parece de facto perdida, por não ter sido possivel encontral-a, apezar de todas as pesquizas feitas com constancia e perseverança por muitos mezes em Pariz, Ruão e Madrid.[O] O Padre Francisco de Bourdemare pertenceo á classe d’esses ricos gentis-homens, que após á saciedade de todas as superfluidades da fortuna, de repente suffocam n’um carcere o que se chama orgulho do seculo e lembranças mundanas. Havia ja alguns annos, que era viuvo: á seo filho entregou todas as suas herdades, e depois foi sepultar-se nos Mosteiros de Orleans e de Ruão, e d’ahi mudou-se para o Convento da rua de Santo Honorato em Pariz, onde exhibio diariamente, dizem, provas de humildade muito alem da exigida pelos membros da Communidade. Gentil-homem notavel, não havia muito, pela sua elegancia, na epocha da grandeza, anterior ao fausto de Luiz XIV, então somente trazia vestidos remendados, e ainda á sua pobreza juntava o habito de Capuchinho. Completar o seu martyrio dedicando-se fervorosamente á conversão dos selvagens, pareceo-lhe coisa tão natural como invejavel; este homem, cuja sociedade tinha sido tão procurada, e cuja instrucção era tão solida á ponto de poder escrever em latim uma obra volumosa, encarou como beneficio dos Definidores da sua Ordem o ser mandado a um paiz deserto, onde faltassem todos os recursos na vida: elle e Archanjo de Pembroke, cuja existencia tinha sido ainda mais brilhante que a sua, embarcaram-se com outros dez Monges n’um navio commandado pelo bravo Pratz, que com tresentos colonos novos ia soccorrer Ravardiere, cuja situação sem duvida era prevista em Pariz como difficil. Cheios de presentes pelos senhores da Córte de Luiz XIII com os quaes ainda bem recentemente elles entretinham relações diarias, e sobretudo satisfeitos por levarem ao modesto Convento do Maranhão os bellos ornamentos feitos pelas proprias mãos da Duqueza de Guise, partiram do Havre, e pode dizer-se, que para aquelle tempo foi por certo um phenomeno, pois apenas gastaram dois mezes e meio para chegarem á costa do norte do Brazil, porem apenas vellejavam ainda na bahia de Guaxenduba souberam logo do estado lastimoso, em que se achavam os negocios da França n’aquelles lugares. Não ignoravam os Missionarios, que pelo seo Instituto se achavam ao abrigo das eventualidades politicas, que o resto da expedição podia temer (por exemplo não podiam ser prisioneiros): foram, como que com pompa, para o seo Convento em S. Luiz, e comsigo levaram os presentes da Duqueza de Guise, porem apenas acharam ahi um só religioso, o Padre Arsenio de Pariz,[P] e esse mesmo muito doente. Mais doente ainda, que seo unico companheiro se achava o Padre Ivo d’Evreux, quando soube, estar substituido como Superior do nascente Mosteiro, e é provavel, que elle embarcasse a bordo d’algum dos navios da esquadra. Dizem os documentos que temos á vista, que n’esse tempo elle se achava em inacção, victima d’uma paralysia geral, consequencia provavel das fadigas, a que diariamente se entregava no _Fórte_. Para explicar a invasão lenta, porem continua, de tão triste molestia, basta recordar agora o que era então a nascente cidade de S. Luiz. Embora seja hoje, e com razão, esta risonha Capital considerada uma das cidades mais saudaveis do Imperio do Brasil, então apenas surgia do seio das florestas: os miasmas deleterios, que constantemente se desprendiam dos logares recentemente desbravados, a falta absoluta de certos medicamentos energicos, apropriados a combater com decidida vantagem essas influencias paludosas: tudo isto explica como o Padre Ivo d’Evreux não poude esperar pelo resultado da guerra começada, e como se vio coagido a regressar para a Europa, receiando ser pesado á missão depois de haver sido o seu agente mais activo e o seu sustentaculo mais dedicado. Não sabemos como se effectuou esta viagem, nem si elle foi para Pariz, e nem tão pouco si foi em sua terra natal buscar um azylo no Convento dos Capuchinhos,[Q] fundado apenas alguns mezes depois da sua partida. Os archivos da cidade d’Evreux, nada dizem a tal respeito, e nem tambem relativamente á missão brasileira, parecendo-nos dever esperar-se do acaso o apparecimento de documentos biographicos, cuja existencia nem se suspeita. O historico da segunda missão dos Capuchinhos franceses em Maranhão, completamente ignorada por Berredo e outros escriptores portuguezes, não nos deixa na mesma incertesa quanto aos missionarios, que succederam á Ivo d’Evreux e aos seos companheiros.[R] Sabemos que chegaram em 15 de junho diante da nascente cidade, que cantaram um _Te-Deum_ no dia 22 do mesmo mez, no rustico Convento principiado a edificar por seos antecessores, e tambem não ignoramos hoje, que elles previram o máo exito da missão. Ignoramos o que fez o Padre Arcanjo no Convento de São Luiz, porem quasi que se pode dizer, que não imitou o zelo dos Padres Ivo d’Evreux e Arsenio de Pariz, sendo tão mal succedido em seos esforços que até appareceo a desunião «entre as coisas da Colonia, augmentada ainda com a chegada dos portuguezes, que se assenhorearam do paiz.» O piedoso biographo, cuja narração nos serve do guia, diz, que o novo Superior administrou o baptismo a 650 indios, porem accrescenta logo, que sem duvida estes pobres selvagens não ficaram por muito tempo fieis á religião, que abraçaram, voltando a sua antiga idolatria: «não chega a sessenta os christãos sinceros, e n’esse numero estão incluidos vinte meninos.» Si se encontrasse uma biographia cheia de particularidades e de aventuras do Monge escossez, de que tracta o velho historiador da Ordem, taxando-a de muito exagerada, provavelmente n’ella se encontrariam narrações minuciosas de sua missão na America. Infelizmente este livro, se existe em alguma bibliotheca pouco conhecida, é tão raro como o de Francisco de Bourdemare, e temos sido infelizes nas diversas pesquizas, que até hoje fizemos com o fim de offerecer aos nossos leitores um extracto do seo contheudo.[S] Suspeitamos que o Padre Arcanjo de Pembroke deixou muitos dos seos confrades no Convento dos Capuchinhos recentemente edificado, e que regressou para França ao fim de 1614 no navio do Capitão Pratz, que levou á Paris Gregorio Fragoso, sobrinho de Jeronymo de Albuquerque, incumbido d’uma missão diplomatica, que devia discutir-se em Lisboa. Recolhido á sua cella no Convento da rua de Santo Honorato, o Padre Ancanjo facilmente esqueceo-se do Brasil[T], tomou parte nos acontecimentos politicos do seu tempo, vieram de novo as dignidades da Ordem procural-o, e viveo no grande mosteiro até o momento, em que Richelieu chegou ao apogeo do seo poder. Os amadores das viagens antigas, aquelles que prescrutam ainda com interesse as lembranças espalhadas aqui e ali, e com as quaes se deve compôr a historia das nossas Colonias, mais gloriosa do que se pensa, não se demoraram n’essas particularidades, e antes desejaram saber como o Maranhão escapou aos esforços corajosos do bravo Ravardiere. A _Historia Geral do Brasil_, publicada ultimamente pelo veridico Sr. Adolpho de Varnhagem lhe responderá com mais promptidão ainda do que o poeta laureado Southey. Ahi lerão como as forças portuguezas, expedidas d’esde outubro de 1612 para expellir os francezes do seu novo estabelecimento, de que tinha ciumes a Corte de Madrid, ainda em Maio de 1613 foram reforçadas por Jeronymo d’Albuquerque vindo do Ceará, onde combinou com Martim Soares nos meios de ser bem succedida essa expedição sob seo commando, a qual se antolhava irriçada de difficuldades. De Pernambuco ainda vieram reforços indispensaveis, e por isso em 23 d’agosto começou o bloqueio das forças francezas, porem no dia 19 de novembro, Ravardiere á frente de 200 soldados d’infantaria, e de 1500 indios atacou com energia os sitiadores de sua nascente cidade; perdeo-se ahi o bravo Pezieux n’uma imprudente tentativa por não ter executado as ordens do seu chefe mais experiente do que elle. Tomaram por sua vez a offensiva os portuguezes, e em pouco tempo, apesar da sua reconhecida habilidade e do seu notavel valor, foi obrigado o Chefe da nova Colonia a concordar n’um armisticio, cujo desenlace seria terminado perante as Cortes de Madrid e de Pariz, para as quaes appellaram ambas as partes belligerantes. Antes de chegar a este ponto vio Ravardiere de seo exercito cem homens mortos e nove prisioneiros. Pode dizer-se, que si sua resistencia foi a de um bravo, como tal ja reconhecido, o procedimento, que então ostentarão seos adversarios, foi em todo o sentido generoso, porem, força é dizer que depois de convenções tão livremente estipuladas, e quando em 3 de Novembro de 1615 entregou Ravardiere com todas as solemnidades o _Forte de São Luiz_ á Alexandre de Moura appareceo um acto de deslealdade manchando esta campanha tão nobremente terminada. Ravardiere deixou o Maranhão e foi em companhia de Alexandre de Moura para Pernambuco, d’onde partio em pouco tempo para Lisboa, e ahi no _Forte de Belem_ soffreo rigorosa prisão, que não durou menos de tres annos.[U] Pelo que acabamos de dizer vê-se facilmente, que a Cidade de S. Luiz, a florescente Capital de uma das mais ricas Provincias do Brasil, é uma Cidade de origem absolutamente franceza, e a Camara Municipal assim felizmente o comprehendeo por haver ainda ha pouco tempo feito surgir das ruinas os modestos edificios, que attestam esta epocha, provando com isto, e ao mesmo tempo, ausencia de patriotismo mesquinho e sentimento de bom gosto.[V] Mas voltando ao livro, que nos prende a attenção, façamos conhecer a sorte caprichosa, que o esperava em França. Despertaremos tambem com o bom Religioso algumas reminicencias, com que se pode enfeitar a poesia. Menos infeliz na apparencia que João de Lery, tão bem classificado com o appellido de «Montaigne dos velhos viajantes,»[W] Ivo d’Evreux durante 15 annos não vio seo manuscripto, extraviado por um infortunio, que o ferio completa e absolutamente. Enviado aos Superiores da Ordem este livro, complemento do de Claudio d’Abbeville, foi destruido antes de haver apparecido. Impresso por Francisco Huby, em cujas officinas já havia sido edictada a obra do seo companheiro, foi inteiramente dilacerado. Francisco Huby, dizemos com pezar, deixou-se n’essa occasião seduzir, e esquecendo-se dos deveres inherentes á sua profissão, não se importou em ser o instrumento d’uma vingança politica tão mesquinha. É de suppôr, que o motivo, que fez prender Ravardiere no _Forte de Belem_, levantou tambem mãos sacrilegas para destruir na rua de São Thiago o precioso volume, no qual se expunham com admiravel sinceridade as vantagens para a França, provenientes da expedição de 1613. Entre a impressão da viagem de Claudio d’Abbeville, e a do livro, que é sua continuação, deo-se um acontecimento politico d’alto alcance. Foi resolvido o casamento de Luiz XIII, ainda menino, com uma princesa hespanhola[X], e um partido inteiro mostrou muito interesse em dissipar qualquer sombra, que prejudicasse a casa de Hespanha. Os projectos de conquista d’America do Sul não acharam mais apoio, e desde então empregaram-se todos os meios afim de ser esquecido um projecto de conquista, com que ja se havia inquietado a Hespanha, chegando-se até a destruir completamente a simples narração dos incidentes d’essa missão ja passada ha tanto tempo, embora escripta com toda a calma e conveniencia. Quando se deo este acto arbitrario havia em França um homem, que ligava muito interesse á obra e ao seo auctor. Felizmente Francisco de Razilly não cahio no captiveiro, que paralisava todos os esforços de Ravardiere, e pode até affirmar-se, que não perdeo de vista, por um só momento, as vantagens, que seo paiz podia tirar de uma Colonia, cujos primeiros passos elle tinha dirigido. Sabendo que hia ser destruido o volume do Padre Ivo d’Evreux, apezar de impresso inteiramente, foi á imprensa de Huby para vêr se obtinha um exemplar: ou porque não fosse com toda a promptidão, ou porque ja se tivesse dado começo a destruição da obra, apenas poude salvar algumas folhas por si ou por _meios_ subtis de um seo agente, as quaes reunidas mostraram a lamentavel perda de diversos fragmentos, e com essas lacunas tão importantes foi impossivel formar um exemplar completo. Mandou o Almirante imprimir o seu protesto em outra parte, e não nas officinas da rua de Sam Thiago, juntou-o ao livro, encadernado com todo o luxo, tendo na frente as armas da casa de França, e foi leval-o, não á Maria de Medicis, antiga protectora da Colonia do Maranhão, e sim a Luiz XIII. O menino rei ainda na anno antecedente tinha brincado muito com tres pobres selvagens Tupinambás, dos quaes fora padrinho, e suas recordações eram ainda tam frescas, que de vez em quando esboçava os grotescos ornatos, com que se enfeitavam os nossos indios:[Y] leo talvez algumas paginas do bello volume, que Razilly lhe offereceo, e n’isto ficou todo o seo interesse. Richelieu ainda não era Superintendente da sua marinha, e ainda dormiram na Corte por muitos annos os projectos de longas navegações. O livro do Padre Ivo, junto ao do Padre Claudio, foi posto nas estantes da bibliotheca, e ahi todos os deixaram em paz. Foi no tempo do digno Van-Praet, no principio de 1835, que o autor d’esta noticia teve a felicidade de encontral-o. Seria occioso o dizer como o feliz descubridor ficou surprehendido lendo esta agradavel narração, tão sincera em suas menores particularidades como preciosa pelas suas uteis noticias. Para comprehender bem o seo valor basta dizer-se, que o nosso bom missionario demorou-se dois annos, onde seo veneravel companheiro apenas demorou-se quatro mezes. Desde então appareceo Ivo d’Evreux n’uma serie de artigos, que publicava a _Revista de Pariz_ a respeito dos _antigos viajantes francezes_, e na verdade sem desvantagem, ao lado do Padre du Tertre, a quem Chateaubriand justamente chamou o Bernardin de Sant’Pierre do 16º seculo. Este artigo, cujo menor defeito era sem duvida alguma o ser pouco desenvolvido, formou n’esse mesmo anno uma pequena brochura, publicada em casa de Techener, e immediatamente esgotou-se a edicção. Desde essa epocha não foi mais Ivo d’Evreux de todo desconhecido aos amadores das viagens antigas, aos homens de bom gosto, que buscam avidos de curiosidade os escriptores esquecidos, percursores do grande seculo. Preoccupado, mais do que se crê na Europa, de suas tradicções poeticas, e de suas nascentes glorias, o Brasil saudou o nome do velho viajante, e lhe deo um lugar entre os homens pouco conhecidos, mas que devem ser consultados quando se tracta dos tempos primitivos. O Imperador D. Pedro, que occupa um lugar entre os bibliographos mais illustrados, e que tem decidido gosto pelas raridades bibliographicas, que derramam alguma luz sobre as antiguidades do seo vasto Imperio, mandou extrahir uma copia, sendo depois imitado seo exemplo! O unico exemplar, pertencente á bibliotheca imperial d’ahi em diante foi lido e relido:[Z] uma phalange de escriptores habeis e zelosos, que exhumaram do pó a historia do seo bello paiz, o chamaram em testemunho de suas asserções, Adolpho de Varnhagem, Pereira da Silva, Lisboa o auctor do _Timon_, e no ultimo lugar o sabio Caetano da Silva, o citaram entre as melhores autoridades, que se pode invocar sobre as crenças dos indios, e assim o fizeram sahir da obscuridade, em que jazia. Não tinha a França prestado attenção a estes testemunhos de estima para dar ao Padre Ivo d’Evreux o lugar, que merecia. Se Boucher de la Richarderie não tivesse pronunciado seo nome, levantando o mais que poude o de Claudio d’Abbeville, o Sr. Henrique Ternaux Compans não o incluiria na sua preciosa collecção dos viajantes conhecedores da antiga America. O Sr. d’Avezac o cita com destincção e faz sobre-sahir suas boas qualidades. Todos estes testemunhos de admiração para com o humilde escriptor, que sem ostentação sacrificou sua obra, infelizmente tem concorrido pouco para tirar sua vida da obscuridade, e não sabemos em que auctoridade se baseia um sabio bibliographo para dizer que elle viveo até 1650.[AA] Á vista d’um volumoso manuscripto da bibliotheca imperial pensamos um dia que ião ser esclarecidas todas as nossas duvidas sobre os principaes pontos da biographia do nosso escriptor, porem assim não aconteceo. _Os elogios historicos de todos os grandes homens e de todos os illustres religiosos da Provincia de Pariz_ infelizmente só dão noticias relativas aos religiosos de Santo Honorato, de Picpus, e de S. Thiago.[AB] Chegou-se até a dizer na obra, que havendo o Padre Paschoal d’Abbeville[AC] separado sua Provincia da Normandia em 1629 não devia procurar-se n’esta compilação o nome dos Religiosos, que não residiram em Pariz. Não se deve esquecer de todo a excitação puramente litteraria, que se experimentou em França logo depois da chegada dos selvagens brasileiros, que desembarcaram sessenta annos antes em Ruão ou em Pariz. Estes apparecimentos successivos d’indios, seguidos sempre de narrações mais ou menos notaveis, levão evidentemente o espirito a pensar nas bellezas primitivas da natureza, o que produz encantos e amplidão de ideias. D’esta influencia não se livrou o nosso Montaigne, como elle revellou em algumas palavras espirituosas, que escreveu a proposito d’uma cantiga brasileira. Os dois maiores poetas d’aquelles tempos, tão differentes entre si e comtudo tão approximados, se abalaram a ponto de dedicarem particular attenção a esses habitantes das grandes florestas, por acaso misturados com os cortezãos de França, que invejavam seos gosos pacificos, e a tranquillidade de suas existencias. Ronsard não é de parecer que estes homens, que lembram a origem do Mundo, percam sua feliz innocencia, e por isso insta com os visitantes para que não troquem a sua ignorancia pelos cuidados da civilisação.[AD] Malherbe tambem a respeito d’elles entreteve por muito tempo o douto Peiresc, por meio de cartas, onde dizia que a paz e a alegria estava em imital-os. Suas dansas inspiraram os mais delicados cortesãos, e um dos mais habeis artistas de Pariz fez com as suas arias uma especie de dança muito agradavel, cuja descripção nos deixou o poeta.[AE] Poderiamos ainda citar outros exemplos d’esta subita predilecção pela independencia dos pobres indios, e especialmente pelo magnifico paiz, que habitam. Conforme estes poetas, a cuja frente deve collocar-se Bartas,[AF] é n’esta fonte vital, que pode restaurar-se por novas comparações um estro quasi a exhaurir-se. Sem duvida alguma todos estes antigos viajantes, completamente esquecidos durante um seculo, exerceram real influencia no seo tempo, e ainda mais alem, como se pode provar á vista dos escriptos de Chateaubriand: a singelesa de suas narrações e a frescura de suas pinturas inspiraram os grandes escriptores, já cuidadosos de abandonarem nas suas descripções os typos ajustados ou estudados, e de influirem ou attrahirem só pela verdade. Ivo d’Evreux não foi somente um pintor habil, um narrador sincero, e sim tambem um observador perspicaz dos costumes de uma raça, para assim dizer extincta, e que não se poderia consultar frequentemente. Para escolher um só exemplo entre muitos, que elle offerece, basta dizer-se, que foi o unico, que descreveo os verdadeiros idolos, modelados em cera, ou esculpidos em madeira pelos indios. Hans-Staden, Thevet, Lery e o proprio Gabriel Soares, tão prolixos á respeito do culto do _maracá_, guardam silencio relativamente ao que então se rendia á essas estatuasinhas modeladas grosseiramente, sem duvida, pelos habitantes nomades das grandes florestas, as quaes com tudo servem para mostrar um principio da pratica nascente da arte: assim elle o confessa n’estas palavras: «Este mau costume crescia e estendia-se pelas aldeias proximas de Juniparão.» Depois accrescentou, que seo companheiro o Revd. Padre Arsenio encontrou estes idolos na visinhança dos bosques.... Ora, pode-se deduzir d’este trecho curiosa inducção, não sem interesse para a archeologia futura de um grande Imperio, e vem a ser, que no começo do XVII seculo notavel mudança se tinha já feito nas ideias religiosas do grande povo da costa. Sem duvida, n’esse tempo ja os Piagas tinham visto imagens nas igrejas, que se edificavam em varias partes do litoral: com a maravilhosa facilidade d’imitação, innata nos indios, ja no fim do XVI seculo tinham representado em estatuas alguns dos numerosos genios de suas florestas. Estes primeiros idolos foram infelizmente modelados em madeira, e embora houvesse grande copia d’elles, nenhum, ao menos que o saibamos, é conservado nos museos ethnographicos do novo Mundo, estabelecidos em varias localidades. Os Tupinambás, apenas chegaram na visinhança do rio das Amazonas, receberam ideias mais adiantadas de povos mais civilisados que elles: a poderosa nação dos Omaguas, por exemplo, cujas tribus vinham das regiões peruviannas, poderia ter influido sobre a arte grosseira, de que entre elles encontraram se tão curiosos _especimens_. Note-se, que estes importantes factos são, em geral, absolutamente despresados pelos escriptores portuguezes, e por isso não é pequena gloria para a nossa litteratura antiga, o ter possuido escriptores, dotados de genio tão observador á ponto de prestarem muita attenção ao estudo d’estes objectos. Entre os que se misturaram com estas nações infelizes, no principio do seculo XVII, não conhecemos, na verdade, senão um unico viajante portuguez, cuja narração encantadora deve estar ao lado das de João de Lery e do Padre Ivo d’Evreux.[AG] Foi Fernando Cardin, Superior dos Jesuitas ainda em 1609, e que visitou os indios do Sul depois de haver por muito tempo administrado as aldeias dos Ilheos e da Bahia. Bem que este Missionario não possa, pela importancia de documentos, comparar-se a Gabriel Soares,[AH] a quem se deve recorrer sempre que se queira, ter ideia exacta da nacionalidade dos indios, e da emigração das suas tribus, comtudo muito se lhe assimelha pelo seo estylo: como elle despresa os preconceitos, ama os selvagens, e com animação pinta admiravelmente o indio na sua aldeia, dando-nos a saber a grandesa, cheia de sinceridade, do seo caracter. A descripção do Padre Ivo d’Evreux não é, somente, mais um documento de grande importancia, que se ajunta á historia do Brasil com o fim de provar unicamente factos tendentes á fundação da Cidade de S. Luiz e sim para os francezes tem outro genero de merecimento. Pela sincera elegancia de sua dicção, pela cor habilmente destribuida de seo estylo, pela perspicacia de suas observações, e, pode tambem dizer-se, pelo sentimento apurado das bellesas da naturesa, que mostra o seu autor, ella pertence á serie de escriptores francezes, continuadores da epocha de Montaigne, e prognosticadores do grande seculo. Ivo d’Evreux, si fosse lido, teria nesse tempo influido, como alguns annos antes, João de Lery, que descreveo scenas analogas áquellas que elle tão bem soube pintar. Claudio d’Abbeville, escriptor muito menos habil do que elle, foi o continuador d’esta influencia litteraria. Si no retiro, por elle escolhido, e que cremos, não sem fundamento, ter sido em Ruão ou Evreux, ou mesmo no arrebalde de Sant’Eloy, soubesse o Padre Ivo qual foi a sorte definitiva dos seos charos indios, sua alma se teria entristecido profundamente. Depois de expulsos os francezes, foi Jeronymo d’Albuquerque nomeiado capitão-mór do Maranhão sendo Francisco Caldeira Castello Branco designado para continuar os descobrimentos e conquistas nas regiões do Pará. Dos esforços combinados destes dois officiaes resultou a fundação da risonha Cidade de S. Luiz e da de Belem. Estas duas Cidades edificaram-se pacificamente, sem opposição alguma da parte dos indios, que até ajudaram os consideraveis trabalhos, exigidos para a construcção d’ellas, e muitos d’elles acompanharam até um Official chamado Bento Maciel ás margens do rio Pindaré em busca de immensas riquezas metalicas, que se desconfiava existirem por ahi algures: fatal expedicção, cujo resultado foi somente a destruição dos Guajajaras. Os Tupinambás inegavelmente não eram mais hostis aos portuguezes, e viviam sob a direcção de Mathias d’Albuquerque, filho do governador; mas nem por isso deixavam elles de lastimar a ausencia de seos antigos alliados. Ja não residiam nos arrebaldes da cidade nova, e sim no districto de Cumã em numerosas aldeias. Indo um dia o seo chefe europeo ter com seo pae, que o mandou chamar, passaram por Tapuitapera alguns indios vindos do Pará, trasendo cartas para o capitão-mór de S. Luiz. Um Tupinambá convertido ao christianismo, por nome Amaro, aproveitou-se da passagem dos seos compatriotas para executar um plano terrivel. Tomou uma das cartas, abrio-a, e fingindo lel-a[AI] dirigio-se aos chefes das aldeias, e declarou-lhes que o fim d’estas missivas era uma abominavel trahição, urdida pelos portuguezes, que tinham resolvido, atreveo-se elle a dizer, reduzil-os á condicção d’escravos. Terrivel carnificina, onde pereceram todos os brancos, foi o resultado d’esta astucia do indio, bem facil de ser acreditada á vista dos acontecimentos precedentes. Espalhou-se pelo littoral a noticia d’este facto. Mathias de Albuquerque promptamente regressou ao campo onde se deram scenas tão tristes, e vingou seos compatriotas exterminando sem piedade os Tupinambás. As tribus, que moravam mais longe, insurgiram-se, e formaram entre si indissoluvel alliança, animando-as implacavel vingança, apezar de serem á principio tão pacificas, e de se acharem tão dispostas á abraçar a nova fé, que lhe tinha prégado o Padre Ivo d’Evreux. Levantaram-se tambem, e espontaneamente, aldeias mui longinquas. Jeronymo d’Albuquerque expedio contra ellas tropas aguerridas, e em breve o incendio e a morte substituio as festas, que faziam com toda a segurança e boa fé. Tinham apenas passado tres annos depois da partida dos capuchinhos francezes, e por isso era no principio do anno de 1617. A Cidade de S. Luiz do Maranhão, activamente edificada, começou a tomar o aspecto de uma Cidade européa. Este progresso inquietava os selvagens, que á custa de seos soffrimentos tornaram-se previdentes; forçados á deixar o sul do Brazil procuraram grandes florestas, e abrigados em seos seios esperavam recobrar sua independencia, e para isto só tinham um pensamento—a destruição completa de uma raça invasora, que não poude ser expellida pelos seos antepassados. Formaram os chefes Tupinambás uma liga desde os desertos de Cumã até ás margens do Amazonas: pretendiam assaltar de surpreza a nova colonia, e n’um dia convencionado matariam todos os habitantes. N’esse tempo não havia quasi indio, que não arrostasse sem medo as descargas de mosquetaria. Em quanto se ouvia este plano, e se trabalhava na sua execução, estava em Tapuitapera Mathias d’Albuquerque, com pequeno numero de soldados, descuidado de si e dos seos: entre os indios appareceu um trahidor, que descobrio o projecto dos chefes dos selvagens ao commandante portuguez, que não se assustando com o numero dos seos terriveis inimigos, travou-se com elles no primeiro combate, e levou-os de vencida até á distancia de 50 legoas, ajudado em tão atrevida acção pelo bravo official Manoel Pires. Ainda vivia, porem bem proximo do termo de sua existencia o antagonista de Razilly e de la Ravardière: sem sahir da nova Cidade de S. Luiz muito ajudou seo filho com seos conselhos e com remessa de soldados que tinha em reserva. Não se assustou Mathias de Albuquerque com as difficuldades de todo o genero, que encontrava seo pequeno exercito n’esses immensos desertos; foi batendo os indios pouco á pouco até que em 3 de Fevereiro de 1617 derrotou-os completamente, e obrigou-os a procurar refugio no seio das florestas. Só então, depois de exterminadas as tribus mais temiveis, é que o velho general se recolheo á Cidade de S. Luiz, e o que elle havia feito nos desertos do Maranhão tinha tambem posto em pratica Francisco Caldeira nas solidões do Pará, onde se edificava a Cidade de Belem. Não eram estes, por certo, os sonhos de Ivo de Evreux e de seos tres companheiros para com o Maranhão: em suas almas haviam imaginado a fundação de uma Cidade nova, onde os corações innocentes dos indios se lhes reuniriam para em commum louvar o Deos da paz. Ordens de exterminio, em vez de orações, faziam em redor dos colonos um deserto que causava terror. Seriamos injustos, se não dissesemos, que os Religiosos trasidos por Jeronimo d’Albuquerque continuaram a missão dos Padres francezes. Como Ivo d’Evreux e Claudio d’Abbeville, os Padres portuguezes Frei Cosme de São Damião e Frei Manoel da Piedade, eram da Ordem dos Capuchinhos desde 1617, isto é, desde o momento em que a guerra se tornou mais cruel, e Bourdemare publicou seo livro: á Corte de Madrid pediram religiosos activos, acostumados a todas as fadigas, e por isso capazes de affrontal-as e de os ajudar. No dia 22 de julho chegaram mais quatro religiosos a essas terras, não para o pequeno Convento de São Luiz, e sim foram residir nas circumvisinhanças da Cidade de Belem, e d’ahi começou a cathequese no Pará.[AJ] Não se sabe com certesa, se estes factos historicos, que de ora em diante terão lugar importante nos _Annaes do Brasil_, chegaram aos ouvidos dos missionarios dedicados que tantas fadigas soffreram para a conversão dos indios; a Europa gastou mais de dois seculos olhando para elles com indifferença, e ainda passaram mais vinte annos depois d’elles terminados, para então ver-se a continuação corajosa da obra dos seos antecessores[AK] por alguns Capuchinhos do Convento de Pariz: n’esse tempo estava Ivo d’Evreux bem proximo do termo de sua existencia, se é que ja não se tinha acabado tão dura perigrinação para elle. Tudo emfim estava acabado para os povos, nossos fieis alliados por algum tempo, e aos quaes procuramos fazer comprehender as luzes do Evangelho. Achavam-se ja embrenhados nas margens desertas do Xingù, do Tocantins, e do Araguaya: ahi, bem longe dos colonos europeos se perpetuaram sob os nomes de _Apiacas_, de _Gés_ e de _Mundurucus_, outrora tão temidos e hoje tão pouco, e até pelo contrario favorecidos por uma administração humana.[AL] Estes primitivos senhores do Brasil fallam ainda o idioma puro dos Tupys, cujos vestigios nos foram conservados por Ivo d’Evreux e Thevet, e especialmente por João de Lery, antes de ter reunido por meio de laboriosas fadigas os elementos do seo livro. Foi nas margens destes grandes rios, ja citados, que ha quarenta annos o illustre Martius observou tantas tribus desimadas. Ainda agora se lastimaria muito o sabio viajante sabendo, que até hoje ninguem colheo as ultimas lembranças, guardadas como legado por esses indios. Quando o governo brasileiro pensou, ha pouco tempo, na creação d’uma commissão scientifica, composta de sabios nacionaes, encarregada de visitar os pontos mais longinquos d’esse immenso Imperio, que não conta menos de 36° do Oriente ao Ocidente, forão o Ceará, o Maranhão, o Pará e o Rio de Janeiro os primeiros lugares designados para a exploração. Comprehendeo muito bem, que se havia nestas terras virgens admiraveis productos da natureza a colher, tambem existia uma mythologia e uma serie de tradicções historicas á salvar-se do esquecimento, em quanto Freire Allemão, Capanema e Gabaglia faziam collecções de preciosos materiaes sobre historia natural, geographia e meteorologia, que formaram o objecto d’uma vasta publicação.[AM] Um poeta historiador, estimado pelo seo paiz, corajosamente embrenhava-se n’essas solidões incognitas para conhecer os segredos da vida intima dos indios. Antonio Gonçalves Dias, nascido no interior da provincia do Maranhão, familiarisado desde a infancia com as legendas americanas, fallando a _lingoa geral_, incumbia-se de alguma forma da execução do programma de Martius. Bem cedo as legendas americanas, não nos animamos a dizer os mythos religiosos dos grandes povos do littoral, nos appareceram, taes quaes tem sido perpetuadas no interior, (graças talvez ao exilio) e quando chegar o momento de estudar-se com afinco a ethnographia, então se comprehenderá todo o valor das narrações sinceras de Lery, de Hans Staden, e de Ivo d’Evreux. Seria injustiça muito censuravel o negar-se as antigas tentativas feitas pelos Religiosos portuguezes para a cathequese dos povos selvagens, habitantes das regiões do Amazonas: graças a elles, em 1607, principiou a exploração do Maranhão por essas viagens, corajosamente emprehendidas por Missionarios vindos dos Conventos de Pernambuco. Estas tentativas não foram perdidas para a geographia, mas quanto ao proveito do Christianismo, ellas se terminaram em um martyrio inutil. Mais tarde, sem duvida, a obra dos Figueiras e dos Pintos produsio seos fructos, assim como os grandes trabalhos evangelicos suavisaram a posição dos indios do Maranhão.[AN] Foi ainda um escriptor francez, quase desconhecido, contemporaneo dos nossos bons missionarios, que com muito zelo, e pode até dizer-se com cuidado verdadeiramente piedoso, traçou o _itinerario_ seguido por estes homens corajosos, de tempo do Padre Ivo, e sem duvida seos conhecidos, mas que não possuiam nem a bondade e nem a sinceridade d’elle.[AO] Conta-nos Pedro du Jarric como as immensas regiões do Brasil, cubiçadas pela França, foram percorridas por dois Religiosos de sua Ordem, quase no mesmo tempo, em que Ravardiere pela primeira vez explorava o littoral. N’essa occasião Francisco Pinto e Luiz Figueira tinham grande vantagem moral sobre os francezes, porque sabiam muito bem a lingoa dos povos, que buscavam converter. Muito mais moço do que o seo companheiro, martyr no apostolado, o Padre Luiz Figueira iniciou-se, então mais do que nunca, nos segredos de uma lingoa, já visivelmente alterada no littoral, porem pura no seio das florestas. Cinco annos após a impressão do volume do Padre Ivo, elle publicou a sua _Arte de Grammatica_, e pela primeira vez depois de alguns ensaios incompletos do seculo XVI conheceu-se os principios de um idioma, que ainda fallava um povo corajoso, porem prestes a morrer.[AP] Voltemos ao nosso piedoso viajante. Se vivesse ainda, como é bem provavel, alem da epocha em que se deram estes acontecimentos, em 1619 por exemplo, Ivo d’Evreux certamente não fazia mais parte do grande Mosteiro d’onde outrora sahio com destino ao novo mundo. Póde suppôr-se, que o seo homonimo de Pariz principiava a eclipsal-o, e por isso vivia elle longe da grande Communidade: se residisse no Convento da rua de Santo Honorato, não é provavel que fosse de todo esquecido nas pequenas biographias, escriptas tão liberalmente á respeito de Religiosos, que nada escreveram, como seja, entre outros, Ivo de Corbeil, simples irmão leigo, fallescido em 1623, apenas conhecido na Ordem pelo seo amor á humanidade. Temos alem d’isto a certesa de ter se recolhido o Padre Ivo d’Evreux ao modesto Convento de sua terra natal: em 1620 estava elle em Santo Eloy,[AQ] e suppomos ter escolhido esta residencia por ser proxima ao Convento de Andelys. N’estas ferteis campinas, onde se despertou o genio de Poussin, ainda o nosso bom Missionario teve descanço bastante para admirar os risos da natureza e a frescura das paisagens. É possivel que em outra occasião tivesse elle oportunidade para conservar-nos suas minuciosas observações, que hoje talvez o fizessem distincto naturalista, mas depois da emoção impressa em seo pensamento pela magestosa solidão das florestas seculares do Brasil, somente se deixou captivar pelas calorosas discussões da theologia. Um livro ainda difficil de ser obtido (a cada momento topamos com raridades tão difficeis de serem alcançadas como a _Viagem_) nos prova, que no seo retiro não poude resistir ao espirito do seculo. Não tendo mais indios a converter se pôz a discutir com protestantes, e coisa estranha, foi um dos seos compatriotas, personagem muito estimado pelos seos correligionarios, a quem elle atacou ou talvez a quem respondeu somente. Ignoramos o titulo do primeiro opusculo, que elle arremessou ao seu adversario, porem um sabio bibliographo da Normandia, o Sr. Frére, nos deo o segundo, para nós uma especie de revelação. É este o titulo do folheto «_Supplemento necessario ao escripto que o Capuchinho Ivo fez imprimir relativamente as conferencias entre elle e João Maximiliano Delangle_.» Ruão, David Jeuffroy. 1618 em 8.º[AR] Este escripto, attribuido pelo douto bibliographo ao nosso missionario, bem puderia não ser devido á sua propria penna, porem prova o apparecimento de outra obra mais desenvolvida, e a existencia de serias discussões oraes entre elle e os dissidentes. Mais agradaveis sem duvida lhe foram sinceras discussões, que havia pouco tempo teve com Japi-Açu na Ilha do Maranhão, onde as continuas predicas feitas no Forte de S. Luiz, em presença de grande assembleia de indios, somente eram interrompidas pela severa polidez, que lhes prescrevia escutar o orador em quanto quizessem que elle fallasse, circumstancia, diga-se de passagem, que bem poderia em algumas occasiões enganar um zeloso missionario sobre o exito de seos esforços. Ivo d’Evreux então achava-se a braços com um dos homens mais firmes e mais estimados entre os protestantes, e o escripto do Religioso foi denunciado ao parlamento. João Maximiliano de Baux, senhor de Langle, era um ministro, joven, ardente, natural de Evreux como o Padre Ivo, morador em Quevilly, pequena Cidade de 1:500 a 1:600 habitantes á pequena distancia de Ruão.[AS] Ignoramos qual o objecto da discussão, e embora todas as nossas deligencias não vimos uma só peça do processo, porem é certo que o ultimo escripto, revelado pelo Sr. Frère, excitou de maneira notavel a attenção da autoridade, porque em 8 d’Abril de 1620 proferio o parlamento uma sentença a esse respeito condemnando David Jeuffroy a pagar uma multa de 50 libras por haver publicado sem licença previa o livro denunciado.[AT] Como se vê, não alcançou esta decisão o nosso Missionario, e sim limitou-se ao impressor, por elle escolhido, embora contenha uma censura indirecta ao livro suppondo-se, que o nosso bom Missionario, pelo ardor da questão, se deixasse arrebatar a ponto de fazer allusões pessoaes dignas de censura. Á este respeito havia pouco escrupulo em 1618, e afinal se pensava que seria interrompida a carreira do joven ministro, atacado pelo Padre Ivo: bem longe d’isto, porque em 1623 foi pelos seos correligionarios nomeado deputado ao synodo nacional de Charenton, e quatro annos depois tambem fez parte do da Normandia, na villa de Alençon. De 1620 em diante perdemos todos os vestigios do Padre Ivo d’Evreux; comtudo muitos escriptores ecclesiasticos depois d’isto registaram seo nome em seos vastos obituarios, multiplicando erros, e assim provando que nunca viram a obra do Padre Ivo. Boverio de Salluzo,[AU] Marcellino de Piza,[AV] Wading,[AW] ordinariamente tão exacto, o Padre Diniz de Gênes,[AX] ou só dão particularidades geraes, mui approximadas relativamente á sua obra, sem mencionar a data d’ella, ou grosseiramente alteram o millesimo do anno da impressão. Este ultimo, por exemplo, diz que foi em 1654, erro bem claro, proveniente d’um primeiro erro typographico, repetido por Masseville,[AY] e até por Moreri Normando.[AZ] O Padre Francisco Martin, da Ordem dos Franciscanos, cujo manuscripto se guarda em Caen, por seo motu proprio a colloca no anno de 1659, dando sempre como lugar da impressão a cidade de Ruão. O _Epithome da la bibliotheca oriental y occidental_ de Leon Pinello, livro reeditado por Barcia no seculo XVIII, é o unico, que n’aquelle tempo mencionou com exactidão a _Viagem_, que reimprimimos, embora o seo titulo fosse tão alterado pelo bibliographo hespanhol a ponto de por elle ser difficil reconhecer-se o habil continuador do Padre Claudio d’Abbeville, devido isto a influencia de Diniz de Gênes.[BA] Quasi que temos certesa, á vista dos manuscriptos doados pelo grande Convento da rua de Santo Honorato, de ter vivido o Padre Ivo d’Evreux alem de 1629, já esquecido porque n’aquelle tempo havia firme proposito de desviar o Rei de Hespanha das tentativas feitas, não havia muito, á respeito do Maranhão. É verdade, que os antigos chefes da expedição não poderam renovar tão vasta empreza, onde se achavam seos maiores interesses. Embora a estima, que parecia gosar na corte o Almirante Rasilly, foi mal succedido em todos os seos projectos com este fim, e depois que o bravo Ravardiere, preso no Castello de Belem, recobrou a sua liberdade, nunca mais regressou á America do sul. Apparecem ainda estes dois nomes na historia da nossa marinha[BB] e de maneira gloriosa, porem na Africa, n’essas praias doentias, onde para segurança do commercio deviam ser castigados de vez em quando atrevidos piratas. Ravardiere, como acabamos de vêr, empregou gloriosamente os ultimos annos de sua vida tão activa em favor do Christianismo, assim como já o tinha feito em prol de sua patria, faltando-lhe apenas tempo para redigir a Narração de suas viagens pela America do sul. Sabemos com certesa ter ordenado, que se escrevesse em 1614 um Relatorio minucioso de sua expedição pelo Amazonas. Até nós não chegou esta especie de jornal, que alem de esclarecer muitas coisas, seria tambem de muito interesse para ser comparado com os documentos fornecidos n’essa epocha por um francez, cujas viagens mereceo as honras da impressão. Na verdade, dez annos antes, no meiado de 1604, João Mocquet, o guarda das curiosidades de Henrique IV e de Luiz XIII, percorreo as margens do Amazonas, e exforçou-se para fazer conhecer aos seos compatriotas este grande rio. Infelizmente este pobre cirurgião d’aldeia tinha mais zelo do que luzes, e por isso não podiam ser suas observações confrontadas com as de um homem, tão conhecido pela sua instrucção, como pela sua lealdade. A viagem de Ravardiere pelo Amazonas e Maranhão deve estar minuciosamente descripta na grande chronica dos Padres da Companhia, existente em Evora. Consultando os sabios trabalhos bibliographicos do Sr. Rivara, n’elles adquirimos esta certesa, pois o Cap. 111 d’este vasto _Cathalogo_ tracta especialmente do dominio dos francezes n’essas regiões. Não podemos pessoalmente examinal-o. Graças ao espirito investigador de tantos sabios historiadores, ainda não perdemos de todo a esperança de encontrar o escripto em questão. Diariamente emprega o Brazil os mais louvaveis exforços para colligir documentos inedictos, fontes da sua historia, e se em alguma livraria por ahi algures fosse descuberta a _Viagem_ de Ravardiere, serviria, com os escriptos de Claudio d’Abbeville e de Ivo d’Evreux, de guia seguro para se consultar relativamente a estas Provincias do norte, das quaes só se conhecem as explendidas solidões, e cujo passado nos foi, para assim dizer, revelado pelo nosso Missionario. NOTAS [A] A ordem constitutiva do Mosteiro tem a data de 28 de Novembro. O lugar da escolha foi concedido no anno precedente por Catharina de Medicis aos Capuchinhos, vindos da Italia, e a doação foi confirmada por Henrique III em 24 de setembro de 1574. Vide _Boverio_, Annali di Frati minori. [B] O _Mercure-Galant_ deo á luz uma descripção, muito curiosa, da grande botica do Convento. [C] Em 1617 contavam-se 655 Religiosos nas duas Custodias de Pariz e de Roão, e entre elles 209 clerigos. Em 1685 haviam em França 5:681 Capuchinhos. [D] Não inventamos: um dos seos mais ardentes admiradores, tambem Capuchinho, falla d’elle nestes termos: _Tantarum segete scientiarum, factus est dives ut Galliæ Phœnix hac nostra ætate communiter sit appelatus_. Vide o vasto Repertorio de Diniz de Gênes. _Bibliotheca scriptorum ordinis minorum Sancti Francisci capucinorum._ Wading, mais moderado, contenta-se em chamar o Padre Ivo de Pariz—_egregius concinnator, insignis Capuccinus_. O autor anonymo dos elogios manuscriptos dos Capuchinhos da Cidade de Pariz não pôz limites ao seu enthusiasmo, quando disse: «a natureza parece ter querido exgotar-se, quando cedeo a tão grande personagem tudo quanto podia dar-lhe com abundancia de grandeza, tão rara quam admiravel.» Nasceo em 1590, Ivo de Pariz, tomou o habito religioso em 27 de setembro de 1620, seis annos depois que o Padre Ivo de Evreux regressou doente do Brazil, e afinal falleceo em 14 de ouctubro de 1678. Este religioso conseguio imprimir vinte e oito obras de sua lavra, cujos titulos principaes vamos reproduzir seguindo a ordem chronologica de suas publicações. _Os felizes resultados da piedade, ou os triumphos da vida religiosa sobre o mundo, e contra a heresia._ 4.ª edicção, Pariz 1634. 2 vol. em 12. _Da indifferença._ 2.ª edicção. Pariz. 1640. em 8.º _A theologia natural._ Pariz. 1640-1643. 4 T. em 4.º _Astrologiæ novæ methodus et fatum universi observatum, a Franc Allaeo Arabe Christiano._ Pariz. 1654. Temeo este Capuchinho, apesar de atrevido e credulo, publicar este livro com o seo nome, e por isso deo-o á luz sob o titulo _Fatum Mundi_. _Jus naturale rebus creatis á Deo constitutum_ etc. etc. Parisiis. 1658 in folio. O _Fatum Mundi_ foi reimpresso em 1658, e no anno seguinte appareceu esta obra. _Dissertatio de libro præcedenti ad amplissimos viros senatus Britanniæ Armoricæ._ Parisiis. 1659. in folio. _Digestum sapientiæ in quo hebetur scientiarum omnium rerum divinarum et humanarum nexus_ etc. etc. 1654-1659. 3 vol. in fol, reimpressos com augmentos em 1661. _O Magistrado christão, coordenado pelo Padre Ivo, seo sobrinho._ Pariz. 1688 em 12. _As falsas opiniões do Mundo._ Pariz 1688 em 12 etc. etc. Vê-se, que não ha analogia alguma entre os estudos d’estes dois Capuchinhos. Uma das obras do Padre Ivo de Pariz foi queimada pela mão do carrasco. [E] E não Silvére, como por descuido disse em sua biographia o veneravel Eyriés. (Vid Mr. Prarond. _Les hommes utiles de l’arrondissement d’Abbeville._ 1858—in 8.º) [F] Vid o Manuscripto da Bibliotheca mazarina, ja citada, que tem este titulo «_Annales des R. P. Capucins de la Province de Paris, la mer et la source de toutes celles de ça les monts._» N. 2879 pet in 4.º [G] Francisco de Bourdemare, ou Boudemard, natural de Ruão, deixou a Provincia, onde gosava sua familia de muita consideração para em Orleans fazer-se Capuchinho. Como noviço entrou no Convento d’esta Cidade, em 2 de outubro de 1603, porem é muito provavel, que voltasse para a Normandia antes de ir residir no grande Convento da rua de Santo Honorato. [H] O Padre Leonardo morreu em Pariz com 72 annos de idade, no dia 4 de setembro de 1640. Antonio Fauro, seo pae, era conselheiro do parlamento de Pariz. O livro dos _Elogios-historicos_, manuscripto da Bibliotheca Imperial, o qualifica como «o maior homem, que ja teve, e que nunca mais terá, a Religião dos Capuchinhos.» Encontra-se elle outra vez Provincial na rua de Santo Honorato no anno de 1615. [I] Vide à respeito da expedicção protestante do Sr. Villegagnon, as Relações circunstanciadas de Niculau Barre, de João de Lery e do Anonymo conhecido por Chrispim. É certo que estabeleceram os Calvinistas seo predominio na Bahia do Rio de Janeiro, porem á elle se podem oppôr diversos pamphletos, escriptos por causa do Chefe da empresa. Estas peças satyricas fazem parte das ricas collecções da _Bibliotheca do Arsenal_. [J] Como se verá em outro lugar, logo após a publicação da primeira parte da viagem, a antiga expedição de Ravardière foi precedida pelas de Riffault em 1594, e de De-Vaux, o companheiro d’este ultimo, que misturando-se com os Indios dedicou-se muito ao descobrimento d’este paiz. [K] Julgamos dever reproduzir aqui o texto d’esta concessão renovada: não conhecemos o primeiro. «Luiz, a todos os que virem a presente. Saude. O defunto Rei Henrique, o grande, nosso muito honrado senhor e pae, a quem Deos perdoe, tendo por Cartas patentes de julho de 1605 constituido e estabelecido o Sr. de Revardiere de la Touche, seo lugar-tenente general na America, desde o rio do Amazonas até a Ilha da Trindade, e havendo elle feito duas viagens ás Indias para descobrir as enseadas e rios proprios para o desembarque e estabelecimento de colonias, no que seria bem succedido, pois apenas chegou n’esse paiz soube predispôr os habitantes das ilhas do Maranhão e terra firme, os Tupinambás e Tobajaras, e outros a procurarem nossa protecção e sugeitarem-se á nossa authoridade, tanto por seo generoso e prudente procedimento, como pela affeição e inclinação natural, que n’estes povos se encontram para com a nação franceza, bem conhecida por elles pela remessa que fizeram dos seos embaixadores, que morreram apenas chegaram ao porto de Caucalle, e dos quaes teriamos ainda recebido iguaes protestos, segundo as narrações feitas pelo Sr. de Ravardiere, tudo isto depois nos daria occasião de lhe fazer expedir nossas Cartas patentes de outubro de 1610 para regressar, como Chefe, ao dito paiz, continuar seos progressos, como teria feito, e ahi demorar-se-ia dois annos e meio em paz, e 18 mezes tanto em guerra como em treguas com os portuguezes etc. etc.» Guardamos para a proxima publicação do livro de Claudio d’Abbeville, de que este é o complemento, todas as occorrencias politicas, relativas á expedicção, e reservamos tambem para ella os traços biographicos de Razilly, de Ravardiere e de Pezieux. [L] Pode-se ler tudo isto minuciosamente na _Carta de obediencia_ dada ao Padre Ivo na _Chronologia historica dos Capuchinhos da Cidade de Paris_ pag. 193. Tem a data de 27 de agosto de 1611, e começa assim: «_Venerando in Christo Patri Ivoni Ebroiense predicatori ordinis fratrum minorum Sancti Francisci Capucinorum, frater Leonardus pariensis ejusdem ordinis in Provincia parisiensi licet immeritus salutem in domino, in eo qui est nostra salus_». [M] Descançam seos restos mortaes no Brazil, pois foi o unico de seos companheiros, que não voltou á Europa. O padre Ambrosio de Amiens, pelos seos estudos, tinha-se distinguido na Sorbona, e quando ia requerer licença para seguir a carreira da magistratura, ou dedicar-se simplesmente á advocacia, resolveo em 1575 entrar na Ordem dos Capuchinhos: foi um dos primeiros irmãos, que tomou o habito no Convento da rua de Santo Honorato, onde por diversas vezes exerceo o cargo de Guardião. Deve-se collocar entre os annos de 1584 e 1586 a epocha das corajosas dedicações, em que elle afrontou os horrores do contagio para soccorrer a população parisiense, que então lhe deo o sobrenome pelo qual era conhecido. A sua idade, ja avançada, devia isental-o d’esta viagem, porem não foi possivel resistir-se ás suas instancias, e nem a todos os meios, que empregou para fazer parte d’essa missão, que foi de grande utilidade. Vêde o _Manuscripto_ da Bibliotheca Imperial intitulado «_Eloges historiques de tous les grands hommes, et de tous les illustres religieux de la Province de Pariz_.» [N] O Padre Honorato de Champigny morreo com cheiro de Santidade em 1621. [O] Sabemos d’esta obra por Guibert apenas, pois nenhuma outra bibliographia especial a menciona. Bourdemare publicou suas observações sob o titulo _Relatio de populis brasiliensibus_. Madrid. 1617 in 4.º Leon Pinelli falla de Frei J. Francisco de Burdemar (assim escreveo elle) como falla de Ivo d’Evreux por ouvir dizer. Affirma o _Livro dos elogios_ ter emprehendido duas viagens á America, e afinal que morrera como _forasteiro_ n’um dos Conventos da sua Ordem em Hespanha, um anno antes da publicação do seo livro. Parece-nos, que a expressão pelo biographo usada da palavra espanhola—_forasteiro_, quer dizer pura e simplesmente—_estrangeiro_. [P] O Padre Arsenio de Pariz tambem não tardou em deixar o Brasil, porem o triste resultado dos negocios do Maranhão não arrefeceu o seo zelo pelas missões. Foi para o Canadá onde prégou aos Hurons depois de haver convertido os Tupinambás. Foi Superior das missões da America do Norte por cinco annos e depois morreo no grande Convento de Pariz, em 20 de Junho de 1645 contando 46 annos de habito. É muito provavel, que tivesse por successor na America o Padre Angelo de Luynes, Guardião de Noyon, pois foi Commissario e Superior das missões do Canadá em 1646. [Q] O Convento dos Capuchinhos da Cidade d’Evreux foi edificado em 1612 «na extremidade de um suburbio da cidade do lado do meio dia, devido em parte aos cuidados e á liberalidade de João le Jau, então grande penitenciario e vigario geral da diocese.» Vide _Histoire civile et ecclesiastique du comté d’Evreux_, pag. 365. O abbade Lebeurier, cujas luzes e zelo archiologico são conhecidos, prestou-se a fazer a este respeito todas as pesquizas possiveis, porem, infelizmente, debalde. [R] O manuscripto que temos á vista, e que dá conta summaria da viagem de Arcanjo de Pemuroke, não nos diz claramente o nome da localidade onde saltaram os Missionarios, e por isso nos limitamos a transcrever a narração do seo desembarque: «foram alguns soldados á terra, e acharam diversos obstaculos, que nos pareceram máos prognosticos, como fossem alguns portuguezes e um sacerdote secular, que assolavão os gentios contra os francezes, e do _Forte_ souberam nossos soldados, que os portuguezes projectavam tomar a costa do Maranhão, e d’ella expellir os francezes, o que fez suspeitar aos Padres que poucos fructos aqui colheriam:» _Ms. da herdade dos Capuchinhos da rua de Santo Honorato_. [S] Circumscripto a um pequeno quadro, apenas podemos dar mui summariamente a descripção dos acontecimentos, que deram em resultado o abandono do Maranhão pelos francezes. Acabou-se tudo em 21 de novembro de 1614, depois da batalha onde falleceu o infeliz Pézieux. Alem da grande _Memoria_ publicada pela Academia Real das Sciencias de Lisboa á respeito d’esta expedicção, encontram-se mais amplas informações sobre este periodo da historia do Maranhão e suas missões pelos Jesuitas na vasta e preciosa publicação do Dr. A. J. de Mello Moraes, intitulada «_Corographia historica, chronologica, genealogica, nobiliaria e politica do Imperio do Brasil_.» (Vide o Tomo 3º, publicado em 1860). [T] Sua morte está marcada nos _Obituarios_ da Ordem no dia 29 d’Agosto de 1632, isto é, no anno em que foi celebrado o tractado de Castelnaudary. Contava n’esse tempo 47 annos de Religião, e n’ella sempre foi conhecido pelo _Religioso escossez_, embora pertencesse realmente a uma familia gaulesa. [U] Ordinariamente calam os historiadores esta ultima circumstancia, e não se encontra nem se quer referida summariamente e sem commentarios senão na collecção diplomatica (Quadro elementar) do Visconde de Santarem. A Carta authographa, que prova o captiveiro de Ravardiere existe na _Bibliotheca da rua Richelieu_, onde a vimos. Ella contraria, repita-se, o que se passou um anno antes no campo de Jeronymo d’Albuquerque. Está escripta com muita moderação, e foi derigida a M. de Puysieux (Vid _fonds franç._—Nº 228—15 p. 197.) [V] Informações inexactas sem duvida fizeram com que Mr. Ferdinand Diniz mencionasse aqui este facto, nunca acontecido.—Do traductor. [W] Lembro-me com prazer duma delicada expressão do sabio Augusto de Saint Hilaire. Lery, como se sabe, viajou pelo Rio de Janeiro no tempo de Villegagnon, isto é em 1556. A primeira edicção da sua interessante narrativa somente appareceu em 1571. Nosso Ivo d’Evreux, cujo estylo tem tantos pontos de contacto com o d’este escriptor, leria seo livro? N’elle nada encontramos, que nos leve a responder pela afirmativa. Multiplicaram-se porem as edicções de Lery e a tal ponto, que a quinquagesima e ultima foi em 1611. [X] Este projecto de dupla aliança entre as duas corôas ja era de 1612, porem foi annunciado officialmente em 25 de Março do mesmo anno, mas só foi executado d’ahi ha tres annos. Partiram os Missionarios a 19 de Março. Os esponsaes do rei de França com a infanta ainda não preocupavam os espiritos como depois aconteceo, por exemplo, em 1615. Todos os factos relativos aos dois reinados são minuciosamente descriptos no livro intitulado «_Inventaire generale de l’histoire de France par Jean de Serre, commençant á Pharamond et finissant á Louis XIII_. Paris, Mathurin Henault, in 18. (Vid o T. VIII). [Y] Podia ainda ver-se, ha alguns mezes atraz, na casa de um vendedor de curiosidades, da rua do Petit Leon, um desenho attribuido a Luiz XIII, quando menino, representando muito bem a figura d’um Tupinambá enfeitado com pinturas exquisitas. [Z] Devo ainda a Mr. Ferdinand Diniz a seguinte communicação, feita em carta, por mim sempre muito presada, de 16 de setembro de 1873. «O segundo exemplar conhecido da obra do Padre Ivo d’Evreux pertence ao Sr. Dr. Court, habil e zeloso bibliographo e possuidor, por sua fortuna, de grandes raridades. «Tive em minhas mãos este precioso exemplar, que custou 800 francos. «Tem mais duas ou tres folhas do que o da Bibliotheca Imperial. «O feliz possuidor do exemplar conhecido mora em Pariz, _rue du Centre n. 4_; actualmente anda viajando em beneficio da saude alterada de um seo irmão, porem quando elle voltar, irei de novo visitar seo thesouro.»—Do traductor. [AA] É geral a obscuridade, que reina sobre a biographia d’estes antigos viajantes, tão importantes debaixo do ponto de vista da historia. O veneravel Eyriés, que citamos as vezes, é bem pouco baseiado em suas ideias, por exemplo, quando affirma que Claudio d’Abbeville viveo até 1632, quando os Manuscriptos da casa de Santo Honorato o dão por fallecido em Ruão no anno de 1616 com 23 annos de religião. Tambem não é exacto o attribuir-se-lhe a _Vida da bemaventurada Coletta_, virgem da Ordem de Santa Clara, pois appareceo este livro em 1616, em 12, e em 1628 em 8º: as iniciaes, que traz no frontespicio bem poderiam evitar este engano, na verdade pequeno. O opusculo, de que estamos tractando, acha-se na _Bibliotheca do Arsenal_, onde o examinamos. [AB] Essa compilação, verdadeiramente curiosa, começou em 18 de novembro de 1709, e se compunha outr’ora de 3 vol. em 4.º. O T. 1º, infelizmente perdido, continha os _Annaes da Provincia_, e provavelmente ficamos privados de algumas preciosas particularidades sobre a missão do Padre Ivo: tinha o titulo de—_Capuchinhos da rua de Santo Honorato_, 4.º (Ter.) [AC] O Padre Pascoal d’Abbeville foi eleito 19º Provincial do Convento da rua de Santo Honorato: a divisão havida em 1629 foi provavelmente por causa do numero sempre crescente de Religiosos nos tres Conventos de Pariz. [AD] Em geral não são conhecidos estes versos de Ronsard, derigidos ao fundador da França antarctica, a essa personagem voluvel, ora huguenote, ora fervoroso catholico; cujas severidades excentricas Lery evitou fugindo para as mais longinquas florestas: Douto Villegaignon, como te enganas! Tu pretendes em vão tornar ameno D’America o viver estranho e rude... Acaso não vês tu que a nova gente Tão nua é no trajar como no peito É nua de malicia?—que não sabe Ao vicio e á virtude o nome ao menos? —Que não sonha com Reis nem com Senados, E, isenta do temor, das leis ao jugo, Á mercè das paixões a vida passa? Ignoras, por ventura, que ahi mostra-se Cada homem de si livre senhor; e Leis, Senádos, Reis, em si resume? Não é a terra e o ar commum a todos? Vê-se, áquella, cobrir ferro importuno O seio virginal de longos sulcos?... Commum é tudo ahi, como dos rios São as aguas perennes que trasbordam Sem processo intentar de plena posse. Oh, não queiras, por isso, dessa gente O repouso turbar dos velhos usos! Si ha remorso em tua alma, em paz os deixa; Não procures, p’ra os campos estenderem. Ensinar-lhes á terra pôr limites! Choverão os processos, e a fraude Á amisáde terá então de unir-se! Logo após, d’ambição o duro espinho (Como a nòs acontece, desgraçados!) Tormento lhes será—negro, incessante. —Seu repouso não quebres: são felizes; Elles gosam na terra a edade d’oiro. (Traducção do Sr. J. T. de Souza.) [AE] Vide a «Correspondencia e a Collecção Peiresc.» [AF] Este estimavel escriptor deo d’isto uma prova no seo poema da primeira semana, somente impresso em 1610 embora fallecesse seo auctor em 1599. Ja o ardente Cocuyo á Nova Espanha Vai nas azas dois fachos conduzindo, Outros dois flamejando ergue na fronte. Á luz d’este esplendor de regios leitos Nos cortinados arabescos pintam-se, Á luz d’este esplendor em noite negra O habil artesão o marfim pule, Conta o avaro, no cofre, seu thesouro, Veloz o escriptor a penna guia. Traducção do Sr. J. T. de Souza. [AG] _Narrativa epistolar de uma viagem e missão jesuitica pela Bahia, Porto Seguro, Pernambuco, Espirito Santo, Rio de Janeiro, etc. escripta em duas cartas ao Padre Provincial em Portugal_. Lisboa. 1847 em 8.º [AH] _Tratado descriptivo do Brasil em 1587_, etc. Rio de Janeiro, 1851 em 8.º Foram estas duas obras exhumadas pelo Sr. F. A. de Varnhagem, historiador tão conhecido do Brasil. Esta ultima obra, de que existe um Manuscripto na _bibliotheca imperial_ de Pariz foi tambem reproduzida por seo habil edictor na _Revista_ trimensal. Morreo Gabriel Soares em 1591 n’uma praia deserta, após deploravel naufragio: como se vê foi quasi contemporaneo de Ivo d’Evreux. [AI] Affirma Berredo ser este indio um amigo dedicado dos franceses, porem melhor informado o _Jornal de Timon_ nos deo o nome deste selvagem, educado nas missões do Sul. Ja se vê, que não podia ter muita affeição aos francezes. Para urdir este horrivel estratagema, basta somente o odio, que nutriam certos indios contra os dominadores do seo paiz, não sendo necessario ser filho de Ruão ou de Rochelles. [AJ] Vide _Berredo, Annaes historicos do Maranhão_, e tambem o _Jornal de Timon_ de J. Lisboa, ns. 11 e 12, 1858, Lisboa. Diz este escriptor ter fallecido Jeronimo d’Albuquerque em 1618 succedendo-lhe no governo seo filho Antonio d’Albuquerque. [AK] Partiram para Goiana em 1635 os Missionarios da Ordem dos Capuchinhos, cujos trabalhos podem ser vistos nos manuscriptos legados pelo grande Convento de Pariz. [AL] Vide a respeito d’estes povos a rapida visita, que lhes fez Castelnau em 1851: _Expedicção scientifica nas partes centraes d’America do Sul_. T. 2º pag. 316. [AM] Vide _Trabalhos da Commissão scientifica de exploração_. Rio de Janeiro. Typ. de Laemmert—1862 in 4.º [AN] Na _Corographia historica_ do Dr. Mello Moraes encontram-se noticias minuciosas sobre as missões dos jesuitas e administração dos indios no Maranhão. Desde o principio do seo T. 3º teve este escriptor o cuidado de confessar o immenso auxilio, que lhe prestaram as obras doadas ao Instituto Historico do Rio de Janeiro pelo conselheiro Antonio de Vasconcellos de Drumond e Menezes. Em suas longas viagens, o diplomata, a quem se deve tão preciosas informações sobre a Africa, não se limitou a estas investigações, pois ainda colheu muitos manuscriptos á respeito do Brazil, que hoje servem de base ao historiador. Cego ha muitos annos, faz ainda muita honra á sua patria. [AO] Tres annos antes da partida dos Capuchinhos para Maranhão, o padre du Jarric dedicava ao Rei menino o seguinte livro: «_Segunda parte da historia das coisas mais memoraveis, acontecidas tanto nas indias orientaes como nos outros paizes descubertos pelos portuguezes, no estabelecimento e progresso da fé christan e catholica, e principalmente do que fizeram e soffreram os religiosos da companhia de Jesus para este fim ate o anno de 1600_» pelo Padre Pedro du Jarric, da mesma companhia em Bordeaux, Simon Mellange. 1610 em 4.º Tudo quanto diz respeito ao Brazil acha-se n’este vasto resumo desde pag. 248 até 359, porem deve procurar-se os factos curiosos, citados n’esta noticia no livro 5º do que o auctor chamou _Historia das Indias Orientaes_, parte 3ª pag. 490. [AP] Desta primeira edicção, publicada em 1621, tornou-se, para assim dizer, impossivel ser encontrado um sò exemplar. A segunda edicção sahio com o titulo _Arte de grammatica da lingua brasilica do padre Luiz Figueira, Theologo da Companhia de Jesus_. Lisboa, Miguel Deslande, anno 1687, pet. em 12.º O sabio bibliographo portuguez o Sr. Innocencio Francisco da Silva não reproduz exactamente este titulo, porem menciona uma edicção da Bahia em 1851 pelo Sr. João Joaquim da Silva Guimarães, cujo titulo é muito extenso. A grammatica do Padre Anchieta—_Arte da grammatica da lingua mais usada na costa do Brasil_, appareceo em Coimbra no anno de 1595, em 8º, e d’ella em Portugal apenas se conhece um exemplar. [AQ] Santo Eloy, perto de Gisors, no destricto de Euro, é uma povoação de 381 habitantes, á 25 kil. de Andelys. Ha tambem Santo Eloy de Fourques, aldeia do Euro, a 25 kil. de Bernay. Estamos propensos a crer, que foi na primeira, onde residio o nosso Missionario. [AR] Vide _Bibliographia Normanda_. Derigimo-nos directamente á douta officiosidade do Sr. Frère afim de obtermos o conhecimento do _Supplemento necessario_, porem apesar de constantes investigações vio-se na impossibilidade de nos dar outras noticias alem das que colhemos em sua excellente obra. [AS] Quevilly, _Clavilleum_, povoação do Senna inferior, distante de Ruão apenas 6 kil. e faz parte do districto de Grande Couronne. [AT] Mais tarde foi chamado Maximiliano de Baux para encarregar-se da egreja do culto reformado em Ruão, viveo até a idade de 84 annos, e falleceo em 1674 deixando reputação de homem recto, e de costumes austeros. Vide os irmãos Haag, a _França protestante_. [AU] _Cupucinorum Annales_. Lugduni, 1632, em fol. e depois a traducção italianna—_Annali di Fratri minori Cappucini_ etc. Venetia 1643 em 4.º [AV] _Annales seu sacrarum historiarum ordinis minorum sancti Francisci qui Capucini nuncupantur_ etc. Lugduni. 1676. [AW] _Annales ordinis minorum_. 2.ª edic., Roma, 1731. Depois os _Scriptores ordinis minorum_. 1650, em fol. [AX] _Bibliotheca scriptorum ordinis minorum_, Genova, 1680 em 4.º, reimp. em 1691 in fol. Este ultimo depois de algumas linhas, em que fallou do merecimento de _Ivo Ebroycensis, vulgo de Evreux_, dá tambem noticia do seu livro: _scripsit gallicé Relationem sui itineris et navigationis sociorum que Capucinorum ad regnum Marangani: cui etiam adjunxit historiam de moribus illarum nationum_. Rothomagi. 1654. Vid T. 1º em 4.º [AY] _Historia da Normandia_. T. VI pag. 414. Masseville prova com toda a evidencia ter se contentado com traduzir o Padre Diniz de Gênes, pois disse ter o nosso Missionario, «dado uma Relação geographica das regiões, por onde se embrenhou, e particularmente do paiz do _Marangan_». _Regni Marangani_, escreveo seo predecessor. [AZ] Vede este precioso manuscripto na Bibliotheca de Caen. Uma bibliotheca americana organisada pelo coronel Antonio de Alcedo. Madrid. 1791, 2 vol. em 8º, não menciona o Padre Ivo, causando-nos tal omissão pouco desgosto, á vista de se dizer ahi haver o Padre Claudio d’Abbeville, seu companheiro, convertido com infatigavel zelo os selvagens do Canadá! [BA] A primeira edicção do _Epitome_, hoje rarissima por ter sido suprimida por ordem da Inquisição, só traz no seu titulo aberto a gravura o anno da impressão 1629 e o nome de _Antonio de Léon_, e não o de Pinelo. Não falla de Ivo d’Evreux, isto é, deste livro, que pertence a Bibliotheca de Santa Genoveva. Na edicção em 3 vol. pequenos em fol., por Barcia, assim menciona invertendo o seu titulo: _Fr. Ivon d’Evreux, capuchino. Relacion de su viage al Reino de Marangano, com sus companeros: historia de los costumbres de aquellas naciones_. Imp. em 1654 em 4º francez. [BB] Isaac de Razilly, cavalleiro da ordem de São João de Jerusalem, primeiro capitão do almirantado de França, chefe d’esquadra da armada real na provincia da Bretanha, foi nomeiado almirante da frota real, em expedicção nas costas da Barbaria no anno de 1630, e adjunto de Ravardière: em 3 de septembro d’esse mesmo anno estava elle em Safy resgatando captivos. CONTINUAÇÃO DA HISTORIA DAS COISAS MAIS MEMORAVEIS HAVIDAS EM MARANHÃO[1] NOS ANNOS DE 1613 A 1614 SEGUNDO TRATADO PARIZ. IMPRENSA DE FRANCISCO HUBY RUA DE SÃO THIAGO, NA BIBLIA DE OIRO, E NA SUA OFFICINA NO PALACIO DA GALERIA DOS PRESIONEIROS MDCXV COM PRIVILEGIO DO REI AO REI SENHOR. O que eu pude por meios subtis saber á respeito do livro do Rvd. Padre Ivo d’Evreux, supprimido por fraude e impiedade mediante certa quantia dada ao impressor Francisco Huby,[2] ponho agora na presença de V. Magestade, dois annos e meio depois do seu apparecimento, tão injustamente supprimida apenas veio a luz, afim de que V. M. e a Rainha sua Mãe, então regente, não visse a verdade tão clara, como ahi estava, e fosse mais facilmente illudida sua boa fé, por meio de falsas informações para que, contra suas santas e boas intenções, deixasse morrer a empresa, mais cheia de piedade e honra, que então se podia executar no novo Mundo, como se conhecerá tanto pela obra do Padre Claudio d’Abbeville, como por esta, embora incompleta por faltar a maior parte do Prefacio e alguns capitulos no fim. Praticaram estes actos com intenção de perder V. M. o titulo de Rei Christianissimo forçando-o a abandonar os sacrificios, e as obrigações contrahidas para com os novos christãos, a reputação de suas armas e bandeiras, a utilidade vossa e de vossos subditos, proveniente de um paiz tão rico e fertil, um porto tão importante como proprio á navegação de longo curso, hoje deteriorado, e tudo o mais adquerido com muitas despezas e cuidados. Para chegar-se a este ponto necessario foi recorrer á duas imposturas, muito bem conhecidas por pessoas de bom senso: uma foi de dizer-se que este paiz nada produzia, e nem tinha riqueza alguma, contra a verdade geralmente sabida: a outra foi de serem os indios incapazes de receberem a luz do Christianismo em opposição á palavra de Deos e á doutrina universal da Igreja. Eis como, Senhor, acabou-se esta excellente empresa tão bem começada, sendo tão triste resultado devido a fraude e a malicia d’aquelles, que, desejando occultar seos defeitos, os atiravam sobre o paiz, que por negligencia dos maus francezes, cuidadosos só do seo proveito e interesse particular, se esqueceram do de V. M., embaraçando perda tão notavel, ludibrio hoje de todas as nações estrangeiras, menoscabo de vossa auctoridade real em toda a Europa, e de dôr a todos os vossos bons subditos. Quando V. M. quizer sahir d’estas illusões, aconselhado por pessoas honradas, e reconhecidas pelo seu zelo ao augmento da gloria de Deos, e do vosso reinado, eu vos offereço ainda a minha vida e a de meus irmãos, fazendo conhecer, com a nossa pouca pratica e experiencia, por todos os cantos do novo Mundo, que em toda a christandade não ha um Monarcha tão grande e poderoso, como um Rei de França, quando elle quizer empregar não seo poder, e sim apenas sua authoridade. Eis, Senhor, tudo o que pode um dos vossos mais humildes subditos, que, embora tenha soffrido, durante vossa minoridade, maos tractos, perda de bens e de fortuna, ainda tem coragem bastante para vos servir com dedicação. Estou certo de acolherdes meos serviços, e o voto solemne, que faço de ser até o fim de minha vida, Vosso humillissimo e obedientissimo servo e subdito _Francisco de Rasilly_. AO REI SENHOR. A principal razão, que moveo os antigos a collocar entre os Deoses a maior parte dos seos Imperadores, foi o espirito religioso d’elles manifestado durante a vida. Coisa notavel na historia: ainda que alguns imperadores levantados da infima classe até ao cume do poder, se tenham mostrado crueis e sanguinarios para com seos subditos, comtudo alcançaram, após sua morte, o nome de Deoses, tiveram Templos e altares, sacrificios e sacerdotes, creados e nomeados pelo senado em virtude da piedade e da religião, que conservaram inalteraveis no meio dos seos muitos defeitos. Estes monarchas, grandes em dominio e pequenos no conhecimento do verdadeiro Deos, tinham innato em seo coração o amor pela Magestade divina, de que são viva imagem todos os monarchas, e por isso lhes pertence estender o reino de Deos como seos Loco-tenentes. Com esta intenção espalhavam arcos e tropheos, columnas e imagens para o ensino da religião, e á posteridade legavam chapas e laminas de metaes indistructiveis, como sejam o bronze, o ouro, e a prata, onde se viam gravadas as suas imagens, e com ellas alguns vestigios da sua piedade, cuja memoria o tempo não póde destruir. Antonino, o pio, assim deixou buriladas em bronze e prata, sua caridade e religião representadas na imagem de uma mulher, vestida como Deosa, tendo em frente um altar onde se achava um pouco de fogo ardendo constantemente, e no qual ella derramava á todo o instante, como em sacrificio, oleos odoriferos, mostrando com isto a Piedade e Religião, que consagrava aos Deoses. Si a inclinação natural, sem o auxilio da graça e da luz sobrenatural, podesse tanto no coração d’estes monarchas, o que podemos dizer e pensar quando Deos inspira o coração dos reis illustrados e ricos da verdadeira religião? Luiz 4.º, imperador, principe virtuoso e geralmente estimado á todas as suas occupações preferia a Religião, e para animar todos os seos subditos á imital-o, mandou cunhar o dinheiro com a figura de um templo atravessado por uma cruz, e ao redor lia-se a inscripção—_Christiana Religio_. O que excedeo, Senhor, a todos os Monarchas do Mundo, em piedade, e religião, foi São Luiz, a honra dos francezes, e de quem herdastes sangue e sceptro, nome e imitação de suas virtudes, porque não só empregou seos thesouros e sua nobresa, mas tambem sua pessoa, atravessando mares, (mares, que, como a morte, não fazem distincção quando querem involver alguem nas suas ondas) afim de erguer a piedade e a religião, abatidas pela crueldade dos infieis, e n’esta tarefa morreu. Até hoje ainda não houve seculo algum de Rei, tão parecido com o do bom São Luiz, como o vosso, Senhor, e deixando á parte o que não vem a proposito, eu tomarei somente este bello feito, com que imitastes sua piedade e religião, para com esses pobres selvagens, desejosos em extremo de conhecerem a Deos, e de viverem á sombra de vossas luzes, como sejam os habitantes de _Maranhão_, de _Tapuytapera_, de _Cumã_, de _Cayté_, do _Pará_, alem dos _Tabaiares_ e os _Cabellos-compridos_ e muitas outras Nações, que muito ambicionavam aproximarem-se dos Padres, como direi adiante. Tudo isto, Senhor, só vós podeis, porque os indios naturalmente gostam dos francezes e aborrecem os portuguezes: os nossos religiosos apenas podem arriscar suas vidas para convertel-os, porem pouco duraria isto a não ser a vossa real piedade. Não é empresa tão difficil como se calcula, e nem tão cheia de cuidados e de gostos, como se suppõe: não serão precisos 500 ou 1:000 escudos, pois basta mediocre liberalidade, porem bem administrada para a sustentação do seminario, onde se devem educar os filhos dos selvagens, unica esperança da firmesa da religião n’aquelle paiz. Si V. M., Senhor, se resolver a fazer isto, asseguro-vos que o vosso exemplo será imitado por muitos Principes e Princezas, Senhores e Damas, que contribuirão com alguma coisa para o augmento da fé n’aquelles logares. Para que eu não canse a V. M. com desagradavel prolixidade, acabarei com esta historia evangelica da pobre Chananea, reputada como cadella, a qual pedia, para livrar sua filha do poder do Diabo, apenas as migalhas, que cahiam da meza real do Redemptor. Descende do mesmo Pae de Chananéa esta nação de selvagens, e seos filhos estão no dominio do diabo, como infieis: ella não pede nem vossos thesouros, e nem grande quantia, e sim apenas as migalhas superfluas, que cahem, aqui e ali, da vossa real grandesa. Por tudo isto, Senhor, eu humildemente vos supplico, que olheis com bons olhos para esta pobre Nação, e que recebaes com animo bem disposto este pequeno _Tratado das coisas mais notaveis acontecidas durante a minha residencia entre elles por espaço de dois annos_, conforme as ordens da Rainha vossa Mãe, dadas aos nossos Rvds. Padres, que procurei cumprir tanto quanto me foi possivel, como vereis quando lerdes essa minha obra, cujo trabalho, si merecer a vossa approvação, dar-me-hei por muito bem recompensado em quanto viver, e toda a existencia, que por Deos me fôr concedida, eu a empregarei em servir fielmente a V. M., como aquelle que é e sempre será de V. M. subdito muito humilde e fiel, Frei _Ivo d’Evreux_, Capuchinho. ADVERTENCIA AO LEITOR. AMIGO LEITOR. Advirto-vos, que não repetirei aqui coisas ja escriptas pelo Padre Claudio d’Abbeville na sua _Historia_, e somente accrescentarei o que mais do que elle soube por experiencia, pois eu estive em Maranhão dois annos completos e elle apenas quatro mezes: verificareis esta verdade, comparando os nossos escriptos, e facilmente descobrireis o que augmentei. PREFACIO A RESPEITO DOS DOIS SEGUINTES TRATADOS. A _Sapiencia_ nos _Proverbios_ 29, apresenta um ensino allegorico, muito bonito, n’estas palavras: _pauper et dives obviaverunt sibi, utriusque illuminator est Dominus_: vi o pobre sahindo do Hospital cuberto de chagas e ulceras, carregado, e não vestido, de trapos, caminhar pela praça publica e entrar no Templo do Senhor pela porta do meio-dia: na mesma occasião vi o rico sahir do seu palacio, vestido de seda e carregado de ouro, prata, e pedras preciosas, caminhando pela estrada que vae dar á porta do Tabernaculo pelo lado do Septentrião, tão a proposito, que um e outro, o pobre e o rico, se encontraram frente a frente, bem no centro da grande cortina do _Sancta Sanctorum_, onde a face do Senhor espalha tão bella claridade, que o rosto d’estas duas pessoas brilhavam com o mesmo esplendor divino. Vejamos o que quer dizer a _Sapiencia_ na obscuridade d’estas palavras. Deixemos as diversas explicações mysticas e espirituaes, que d’ellas se podem deduzir, e tomemos somente a que nos pode servir em relação ao que escrevemos no frontespicio do nosso livro. O pobre é o padre São Francisco e os Religiosos da sua Ordem: o rico é o poder real de Vossa Magestade Christianissima, proveniente do ramo sagrado do Rei São Luiz. Quando e onde se encontraram este pobre e este rico? Foi sem a menor duvida na missão evangelica para converter os indios. Entre os dois estava Deos, o grande illuminador dos peccadores nas trevas da morte. O pobre São Francisco na conversão dos gentios fez nas Indias o que disse São Paulo:—_ego plantavi_, plantei a fé entre os selvagens do Maranhão: São Luiz, protector da França, e avô do nosso Rei, quando nos mettemos n’esta empresa, respondeo—_Rigabo_—eu a regarei, e não consentirei que ella murche á falta de cuidados. De nada serviria a planta, si em sua raiz não se deitasse agua para ella florescer, por que em pouco tempo o rigor do sol a seccaria, e o nosso Deos, que sempre prescruta a inclinação dos seos subditos, affirma que infalivelmente a augmentará—_incrementum dabo_: e por uma luz, sempre crescente de dia para dia, derramada entre os indios á respeito dos mysterios da nossa fé, espancareis as trevas da ignorancia, porque o Senhor é o illuminador de ambos, _utriusque illuminator est Dominus_. Quem melhor o pode saber que os selvagens aos quaes baptisamos e lhes promettemos fazel-os christãos? Si invocassemos o seo testemunho, elles responderiam—_credimus_. Oh! Piedade Real, não perdestes vosso tempo enviando-nos como Mensageiros do Evangelho. Continuação da historia das coisas mais memoraveis, acontecidas no Maranhão em 1613 e 1614. PRIMEIRO TRATADO. CAPITULO I Da construcção das capellas de S. Francisco e S. Luiz do Maranhão.[3] O Psalmista Rei David, no seo Psalmo 28, composto em acção de graças pelo acabamento do Tabernaculo, disse—_Afferte Domino fili Dei, afferte Domino filios arietum_. «Trazei ao Senhor, ó filhos de Deos, trazei cordeiros ao Senhor,» o que Rabbi Jonathas assim explicou—_Tribuite coram Domino laudem cœtus Angelorum, tribuite coram Domino gloriam et fortitudinem_—«dae louvores ao Senhor, ó choros angelicos, dae ao Senhor gloria e força:» queria elle dizer, que os Anjos bemaventurados auxiliam os homens em todos os seos santos projectos, e especialmente quando se trata de procurar a salvação das almas, porque caminham adiante estes felizes espiritos e rompem a turba dos diabos, inimigos da salvação afim de soccorrerem os homens apostolicos, incumbidos de salvarem as almas errantes nos desertos da infidelidade, ahi comparados aos filhos dos Carneiros que saltam aqui e ali pelos rochedos da dureza do coração, porem afagados pelas doçuras do Evangelho se deixam guiar brandamente até a porta do Tabernaculo de Deos, levados no grande mar do baptismo, e offerecidos á face do _Sancta Sanctorum_. Os primeiros sacrificios, que Deos recebeo do povo de Israel, em procura da terra da promissão, d’onde expellio a infidelidade, foram sob as tendas e pavilhões do Tabernaculo, porem depois edificou-se o templo, e ahi continuaram os mesmos sacrificios. Coisa similhante nos aconteceo quando fomos a esse paiz, cheio de infidelidade e ignorancia de Deos, carregado de demonios, insolentes tyrannos d’essas pobres almas captivas, levar a luz do Evangelho, banir as falsas crenças, expellir os demonios, plantar e construir a Igreja de Deos: durante mais de quatro mezes celebramos os santos sacrificios n’uma bonita tenda, no meio de arvores verdejantes: partindo depois alguns da nossa comitiva para a França em busca de auxilio, e ficando o resto para fundar a Colonia; fizemos edificar a _Capella de São Francisco do Maranhão_ em um bello e agradavel lugar, junto do mar, proximo de uma bella e inexgotavel fonte, e ahi escolhi minha moradia, que um dia tinha de servir de Convento aos Religiosos, que eu esperava para me ajudarem. Acabou-se esta Capella na vespera de Natal e muito a proposito pela devoção, que sempre teve o Seraphico Padre São Francisco, a quem era dedicada. Alem de todas as festas do anno celebrava a noite, estrellada e sem trevas, do nascimento do verdadeiro Sol, Jesus-Christo, e tinha este santo Padre o costume de fazer um presepio, a cujo lado passava toda a noite contemplando o profundo mysterio da Encarnação, e da vinda tão estranha do Altissimo á terra. Na verdade enchia-me de immenso prazer vendo n’esta capellinha, feita de madeira, coberta de folhas de palmeiras, mais similhante ao presepio de Belem do que esses grandes e preciosos templos da Europa, os nossos compatriotas francezes cantarem os psalmos e matinas d’esta noite, e depois de purificados pelo Sacramento da penitencia receberem o mesmo Filho de Deos no presepio dos seos corações, envolvido nas faixas do Santissimo Sacramento do altar. Festejamos tambem o dia de natal; a noite prégamos, o que sempre fizemos depois das festas e nos domingos, e com prazer, embora muito soffressemos no principio: em quanto durou esta devoção corria o tempo tão depressa, que o dia parecia ter somente duas horas; e assim achando-se o nosso espirito preoccupado com obras piedosas sentia a morte vir tão depressa. Não fui eu só que senti isto, muitas outras pessoas depois me disseram o mesmo, e em quanto me permittio a saude, observou-se, e sem enfado, este uso. Augmentou-se ainda mais esta devoção quando se edificou no _Forte_ a _Capella de São Luiz_,[4] á imitação das Igrejas dos nossos Conventos, com madeira, cercada e cuberta de ramos fortes, cortados das arvores chamadas _Acaiukantin_. Ahi celebrei missas, cantei vesperas, préguei e baptisei os cathecumenos. A tarde tocava o sino, todos se reuniam n’esta capella, onde se cantava a saudação angelica, implorava-se a graça divina, e depois cada um ia para onde queria. CAPITULO II Do estado do poder temporal em sua primitiva. Compõe-se o homem de espirito e corpo; devendo zelar em primeiro lugar aquelle como mais nobre e depois este; pareceu-nos de muita razão cuidar a principio nas Capellas para n’ellas abastecer o espirito com a palavra de Deos, e do SS. Sacramento, e depois no que diz respeito áo temporal. Assim como uma terra, ainda inculta não dá grande contentamento á seu dono, e si elle não tivesse pão, que lhe viesse d’algures, por certo que morreria de fome, assim tambem era sem commodidades o lugar escolhido para a edificação da fortaleza de São Luiz, n’uma ponta de rocha, habitada outr’ora por selvagens, que a cultivaram a seu modo, ou para melhor dizer a esterilisaram, visto que depois de tres annos faltaram-lhe forças para produzir couza alguma, alem de matto agreste, sendo necessario descançar por muitos annos. Foi a causa dos nossos soffrimentos no principio, pois apenas tinhamos farinha de mandioca para fazer _mingau_, isto é, uma especie de papa com sal, agua e pimenta, chamada pelos indios _Yonker_, e assim passavamos a vida. Quem não podia comer esta farinha secca, desmanchava-a n’agoa, e assim alimentava-se com ella. Os que em França somente usavam de comidas delicadas, n’aquelle paiz apenas achavam legumes bem agradaveis. Conto isto para louvar a paciencia dos francezes em serviço do seo Rei, para destruir essa macula, que ordinariamente lhes lanção, de impacientes, imprudentes e desobedientes, porque na verdade eu só vi o contrario. Os que desejarem muito ir para aquelle paiz, não se admirem de ouvir fallar em tanta pobresa, porque não soffrerão mais do que nós, visto a terra ir melhorando diariamente, e os viveres se augmentarem gradualmente. Para remediar esta falta, resolveo-se mandar pescar peixe-boi[5], á 30 ou 40 legoas distante da ilha: estes peixes tem a testa como os bois, porem sem cornos, duas patas adiante debaixo das mamas, párem filhos como as vaccas, nutrem-nos com seo leite, mas a cria tem a propriedade notavel de abraçar a mãe pelas costas com suas patinhas, e nunca as deixa embora mortas, pelo que alguns são agarrados vivos, e assim trazidos para a Ilha: são muito delicados. Sirva isto d’instrucção aos meninos, cumprindo a Lei de Deos, que manda honrar Pae e Mãe, isto é, amar e respeitar, e de advertencia aos catholicos para ficarem firmes e unidos no seio da Igreja, sua Mãe, d’onde perseguição alguma as possa arrancar, amando todos os bons francezes, seo Rei e sua Patria. São apanhados estes peixes-bois nos pastos, ou nas hervas que crescem nas praias. Vão os selvagens remando mansamente suas canôas por detraz d’ellas, atiram-lhe duas ou tres setas, e apenas mortas são puxadas para terra, retalhadas e salgadas. Coisa igual acontece aos glutões, que no meio dos banquetes são surprehendidos e n’um instante lá vão para o inferno. Encontra-se o sal necessario ás commodidades da vida, na distancia de 40 legoas da Ilha, em terrenos arenosos, onde se mostra naturalmente, em forma de gelo, duro e luzente como cristal, por occasião do fluxo e refluxo do mar, e quando este se retira o sol o cresta e é melhor que o sal de França e de Hespanha. È necessario apanhal-o antes da estação das chuvas para que ellas lavem o lugar onde elle estava. Chegado a este ponto, dispersou-se uma parte dos francezes pelas aldeias, conforme o costume do paiz, que é ter _Chetuasaps_, isto é, hospedes ou compadres, aos quaes por pagamento se dava generos em vez de dinheiro. Esta hospitalidade ou compadresco é entre elles muito intima, porque estimam seos hospedes, como se fossem seos proprios filhos, vão caçar e pescar para elles e conforme o seo costume entregam-lhes as filhas, que desde então se chamam _Maria_, e tem por sobrenome o do Francez a quem se ligam, de sorte que dizendo-se _Maria de tal_ sabe-se logo de quem é concubina. Com certesa não sei porque dão este nome ás concubinas: mostrei um certo dia a um selvagem um registro da Mãe de Deos, e lhe disse _Koai Tupan Marie_, «eis a Mãe de Deos,» _ché ai Tupan Arobiar Marie_, «creio e conheço, que _Maria_ é a Mãe de Deos,» e _Maria_ chamamos nossas filhas que damos aos _Caraibas_. Este costume foi prohibido aos francezes, e si ha alguma falta á este respeito é occultamente, e os proprios selvagens que no principio d’esta prohibição desconfiaram da fidelidade e da amisade dos francezes, apenas souberam, que Deos só permittia a posse da mulher por meio do casamento, e que os Padres, Missionarios de Deos, assim o prégavam e prohibiam por ordem do _Maioral_, mostram-se escandalisados quando vêem o contrario, que denunciam logo a este e a nós, de maneira que qualquer francez deve fazer seos negocios mui occultamente si não quizer ser conhecido. CAPITULO III Da construcção do Forte de São Luiz, e do interesse dos selvagens em carregar terra. Chegado o tempo proprio de trabalhar nas fortificações da praça designada á defeza dos francezes, fincada a madeira segundo o plano dado para servir de cercadura ao _Forte_, e de sustentar as terras, mandou-se então avisar por todas as aldeias da ilha e da provincia de Tapuytapera,[6] que viessem Indios uns após outros conduzir a terra tirada dos fossos para os terraços das cortinas, esporões e plata-formas, depois cobertas por grandes e grossas _Apparituries_, «mangues» arvores duras como ferro e incorruptiveis; de forma que seria contra ella quasi inutil o tiro do canhão, e mui difficil a escalada: assim se disse e assim se fez: de todas as aldeias pouco a pouco vinham os selvagens com suas mulheres e filhos, trazendo viveres para o tempo, que calculavam demorar-se no trabalho, e sempre debaixo das ordens dos seos Principaes, costume que geralmente observam, trazendo-os sempre na frente da Companhia, fazendo-lhes a natureza conhecer, que o exemplo dos superiores anima infinitamente os inferiores. Mais do que nós são elles fieis á natureza, pois vemos o contrario na Republica Christã, d’onde provem os erros e a corrupção dos costumes, porque ainda que devamos prestar attenção somente á doutrina e não entregarmo-nos a má vida, os fracos fazem o que querem sem cuidar do máo nome, que adquirem. Apenas chegavam estes selvagens entregavam-se ao trabalho com incomparavel dedicação, mostrando na voz e nos gestos admiravel coragem, parecendo antes que iam á um festejo de casamento do que para o serviço, rindo e brincando uns com os outros, correndo dos fossos para os terraços com uma especie de emulação para vêr quem dava mais caminhadas, e conduzia maior numero de cestos de terra. Notareis agora, que não ha ninguem no mundo mais infatigavel do que elles, quando de boa vontade trabalham em qualquer coisa; não cuidam em comer e beber com tanto que tenham á sua frente o seu chefe, e quando encontram difficuldades, por maiores que sejam, riem, cantam e gritam para se animarem reciprocamente. Se ao contrario o tractardes com asperesa e ameaças, nada farão que preste, e conhecendo o seo natural nunca constrangem seos filhos e nem seos escravos, e antes os governam com doçura. O francez, especialmente os nobres, tem igual naturesa; não soffrem constrangimento, porem não duvidam expôr sua vida, afim de comprirem as doces ordens dos seos Principes: bello argumento para convencer os que governam, que mais vale a doçura e clemencia do que o rigor e a força, respeitando assim o natural da Nação francesa. Não trabalhavam somente os homens e sim tambem as mulheres e os filhinhos, aos quaes elles davam pequenos cestos, para carregar terra conforme suas forças. Vi muitos meninos, apenas com dois ou tres annos d’idade, fazer a carga com suas mãosinhas e não ter força para conduzil-a. Perguntei a alguns velhos porque consentiam que trabalhassem os meninos, servindo isto para distrahir os que os vigiavam, especialmente seos paes, que assim não podiam adiantar a tarefa, achando-se elles sempre em perigo, ou por estarem nùs apezar de tenrinhos, ou por poderem ser feridos pelo desabamento de algum pedaço de terra, ou por alguma pedra, que se desprendesse do monte. Respondeo-me assim o interprete. Temos muito prazer vendo nossos filhos comnosco trabalhando n’este _Forte_, para que um dia digam á seos filhos e estes a seos descendentes «eis a Fortalesa, que nós e nossos paes fizemos para os Francezes, que trouxeram Padres, que levantaram casas a Deos, e que vieram defender-nos de nossos inimigos.» É mui commum esta maneira de communicar á seos filhos o que entre elles se passa, já que por escriptos não podem fazel-o aos vindouros, e ir assim á posteridade. Para nada esquecer, como que gravam na memoria as occorrencias, e só d’esta maneira se pode explicar como contam muitas coisas passadas nos seculos, em que viveram seos avós, ou no tempo da sua mocidade: vão passando por esta forma o que sabem a seos filhos, como ainda diremos ádiante. Desejaria muito, que nossos Paes assim se empenhassem para gravar no coração de seos descendentes... * * * * * ... mente e em abundancia, os selvagens lançam fogo nos espinhaes e moutas, onde se recolhem esses reptis. Ha de tres qualidades:[7] uma de terra, que mora nos mattos; outra de agoa doce, que mora nas margens dos rios e lugares pantanosos: a ultima, é do mar, e a que vem pôr seos ovos na areia, que fica bem perto, e onde os occultam com geito. Parece-se muito com os ovos de galinhas, menos na casca, que não é tão dura, e sim mais flexivel e molle, nem tão grossos e agudos, e sim mais redondos, porem muito saborosos, quer comidos na casca, quer de outra qualquer maneira. Nas margens d’este rio encontram-se arvores medicinaes, muito melhores do que as que se achavam commummente, como eu e muitos dos meos companheiros verificamos: alem d’esta virtude, são mais fortes que as do Levante, mostrando a experiencia que uma onça d’estas faz tanto effeito como duas d’aquelle paiz. Sendo bem preparadas certas composições são excellentes laxantes, e assim conservam o corpo para seo beneficio. Existem bellos prados, largos e compridos á perder de vista, que produzem herva fina e macia. Encontra-se a piteira, de cujos productos se fazem na China muitos tafetás: crescem seos ramos como a cauda de um cavallo, tem a bellesa da seda e é ainda mais forte. A terra é forte e feraz e produz com mais certesa, que a do _Maranhão_, ou de suas visinhanças, e dizem-me que dá duas colheitas annualmente. As florestas são altas, virgens, e ricas de muitas especies de madeiras, quer proprias á tincturaria, quer á medicina, e asseguram-nos os selvagens, que lá moram, a existencia ahi do _pau brazil_. No meio d’estas florestas, ha muitos viados, capivaras, cabras, vaccas bravas[8] e javalis, e em poucas horas matareis tantas quantas precisardes, e para que não me accusem de hyperbolico, invoco o testemunho dos que viajaram pelo _Miary_, e hoje se acham em França: se lerem isto, dirão que são estas as informações, que me deram, e que os selvagens, remadores das suas canoas, lhes traziam tanta caça, que d’ella não sabiam o que fazer. Contou-me um fidalgo, que andou n’essa viagem, haver morto com um só tiro tres javalis,[9] o que não poderia acontecer se estivessem espalhados. Ha muitas arvores carregadas de cortiço de mel de abelhas, as quaes são mais pequenas e franzinas do que as nossas, porem mais industriosas, pois fabricam mel excellente, liquido, e tão claro como agua potavel pura, guardado em pequenas celulas de cera da grossura da casca de um ovo, similhantes na forma á nossas garrafinhas de vidro, e penduradas com alguma ordem n’uma arvoresinha de cera, que se acha encostada ou presa pelos ramos ao tronco, ou nas cavidades das arvores das florestas ou dos prados. Com este mel fabrica-se vinho muito forte e quente para o estomago, similhante na côr e no gosto ao de Canaria. Nossa gente, quando por lá andou, fez algum vinho, e com elle embebedou-se. Existe tambem ahi uma especie de mel, impropriamente, assim chamado, porque é tão azedo, como vinagre, e fabricado por outra especie de abelhas. Alguns dias depois que ahi chegou nossa gente, procuraram os _Tabajares_,[10] e suas habitações: encontraram, não os que procuravam, e sim os _Aiupaues_,[11] e caminhos recentemente abertos. Vendo que diminuia a farinha, da qual apenas poderia ter quanto bastasse para regressar a Maranhão, essa mesma muito pouca, deliberou regressar com os seos selvagens, deixando ahi somente dois escravos _Tabajares_, a quem deram farinha para um mez, e diversos generos, promettendo-lhes liberdade com certesa, e boa recompensa si fossem procurar e achassem seos similhantes, o que acceitaram e cumpriram aproximando-se das suas aldeias e gritando para não serem flexados, visto andar esta Nação em guerra com uma outra visinha. Aos seos gritos accudiram muitos, aos quaes contaram o que traziam, como estavam em Maranhão os francezes bem fortificados, que entre elles se achavam os Padres, que os foram procurar; mas que se viram obrigados a retirar-se por falta de farinha, sendo elles escolhidos para ir procural-os, e dando-lhes os presentes fortaleciam mais as suas palavras, mormente sendo proferidas por dois individuos, seos conhecidos, que foram escravisados na guerra pelos _Tupinambás_. Bem podeis calcular como elles ficaram alegres com as noticias dadas pelos _Tabajares_. Ahi descançaram por tres ou quatro mezes para contarem tudo bem a sua vontade, e regressamos com nossa gente para a Ilha. CAPITULO VII Dos preparativos dos Tupinambás para uma viagem ao Amazonas. Apenas voltou esta expedição do Mearim, fallou-se com enthusiasmo de uma viagem, em breves dias, ao Amazonas.[12] Já antes se havia fallado n’ella, porem com tal friesa, que poucos acreditavam, não havendo probabilidade de deixar-se a Ilha, sendo nós tão poucos para defendel a contra as aggressões dos portuguezes, que nos ameaçavam ha muito tempo. Ao divulgar-se esta noticia levantaram-se a ilha e as provincias visinhas, porque, como é geralmente sabido, não ha no Mundo nação alguma mais inclinada á guerra e á viagens pelo desconhecido como estes selvagens brasileiros. Quatrocentas ou quinhentas legoas nada são para elles quando vão atacar seos inimigos e fazel-os escravos. Com quanto sejam por naturesa timidos e medrosos, nos combates ganham calor, não abandonam o campo, e quando perdem as armas pelejam com unhas e dentes. Suas guerras são feitas, pela maior parte por surpresa e astucias; ao romper do dia assaltam seos inimigos dentro de suas aldeias: salvam-se de ordinario os que tem boas pernas, sendo aprisionados os velhos, as mulheres, e os meninos, e condusidos como escravos para as terras dos _Tupinambás_. Tambem sob o pretexto de negocio, vão elles pelas praias, onde moram seos inimigos, promettem-lhes muito, mostram-lhes suas mercadorias em _caramemos_ ou _paneiros_, onde arranjam o que tem de melhor, e quando os veem entretidos, lançam-se sobre elles, pobres ingenuos, matam uns, aprisionam e captivam outros: por este motivo todas as nações do Brasil, desconfiam d’elles, julgam-nos traidores, e nem querem sua paz. São muito afoitos quando estão com os francezes, e querem que estes vão sempre adiante, e se acontece voltar um francez para traz, ninguem corre melhor e mais veloz do que elles. D’isto se conclue quanto valle a opinião que se forma de certas pessoas, que não passa de uma loucura e vaidade d’este mundo, acontecendo muitas vezes ficarem atraz os bons e virtuosos ou serem queridos e levados os viciosos e corrompidos. Indaguei e procurei saber muito o modo como se preparavam para a guerra, não me contentando só com as informações. Em primeiro lugar as mulheres e as suas filhas preparam a _farinha de munição_,[13] e em abundancia, por saberem, naturalmente, que um soldado bem nutrido valle por dois, que a fome é a coisa mais perigosa n’um exercito, por transformar os mais valentes em covardes, e fracos, os quaes em vez de atacarem o inimigo, buscam meios de viver. É differente da usual esta farinha de munição, por ser mais bem cozida, e misturada com _cariman_ para durar mais tempo, embora menos saborosa, porem mais san e fresca. Em segundo lugar empregam-se os homens em fazer canoas, ou concertar as que já possuem proprias para este fim, por que é necessario, que sejam compridas e largas para levarem muitas pessoas, suas armas e provisões, e comtudo são feitas de uma arvore, cortada bem perto da raiz, sem galhos e ramos, ficando apenas o tronco bem direito em toda a sua extensão, e então tiram-lhe a casca, e racham n’a dando-lhe meio pé de largura e profundidade: n’este caso lançam-lhe fogo n’essa fenda por meio de cavacos bem seccos, e vão queimando pouco a pouco o interior do tronco, raspam com uma chapa de aço, e assim vão fazendo até que o tronco esteja todo cavado, deixando apenas duas pollegadas d’espessura, e depois com alavancas dão-lhe fórma e largura: estas canoas conduzem as vezes 200 ou 300 pessoas[14] com as suas competentes munições. São conduzidas por mancebos fortes e robustos, escolhidos de proposito, por meio de remos de pás de tres pés cada um, que cortam as agoas a pique e não de travessia. Em terceiro lugar preparam suas pennas, tanto para a cabeça, braços, e rins, como para as armas. Para a cabeça usam de uma peruca ou cabelleira de pennas de cores vermelhas, amarellas, verde-gaio e violetas, que prendem aos cabellos com uma especie de colla ou grude. Enfeitam a testa com grandes pennas de araras, e outros passaros similhantes, de cores variadas, e dispostas á maneira de mitra, que amarram atraz da cabeça. Nos braços atam braceletes tambem de pennas de diversas cores, tecidas com fio de algodão, similhante á mitra de que acabamos de fallar. Nos rins usam de uma roda de pennas da cauda de ema,[15] presa por dois fios d’algodão, tinctos de vermelho, cruzando-se pelos hombros a maneira de suspensorios, de sorte que ao vel-os emplumados, dir-se-hia que são emas, que só tem pennas nestas tres partes do corpo. Na verdade, quando os vejo assim lembro-me do que antigamente disse Job no cap. 39. _Penna struthionis similis est pennis Erodii et Accipitris_: a penna de ema é igual a da garça real e do gavião: esta passagem é claramente explicada por diversas licções ou versões dos Gregos e dos Romanos, que tinham por costume apresentarem os coroneis aos capitães e soldados pennas d’ema para collocarem em seos capacetes e morriões afim de animal-os á guerra. Quiz saber por intermedio do meu interprete porque traziam sobre os rins estas pennas de ema: responderam-me, que seos paes lhes deixaram este costume para ensinar-lhes como deviam proceder na guerra, imitando a ema, pois quando ella se sente mais forte ataca atrevidamente o seo perseguidor, e quando mais fraca abre suas azas, despede o vôo e arremessa com os pés areia e pedras sobre seos inimigos: assim devemos fazer, accrescentavam elles. Reconheci este costume da ema, vendo uma pequena, creada na aldeia de _Vsaap_, que era perseguida diariamente por todos os rapasinhos do lugar: quando eram só dois ou tres, ella os accommettia, e dando-lhes com o peito, atirava-os por terra, porem quando era maior o numero preferia fugir. Estou certo, que muitas pessoas se admirarão, não só do que acabo de dizer, mas tambem como é possivel buscarem estes selvagens, meios de governarem-se entre as praticas animaes: si se lembrarem porem que o conhecimento das hervas medicinaes foi ensinado aos homens pela cegonha, pela pomba; pelo viado e pelo cabrito; que a maneira de fazer a guerra e postar sentinellas foi colhida das aves chamadas grous; que a bondade do estado monarchico foi a principio observado entre as abelhas; que os architectos com as andorinhas aprenderam a fazer abobadas; que o proprio Jesus-Christo nos mandou observar o milhafre, o abutre, a aguia e o pardal, desapparecerá a admiração, e especialmente si acreditarem, que estes selvagens imitam com a maior perfeição possivel os passaros e animaes do seo paiz, o que elles exaltam nos cantos que recitam em suas festas. Por que nos passaros de sua terra predominam as cores verde-gaio, vermelho e amarello elles gostam de pannos e vestidos destas tres cores. Por que as onças e os javalis são os animaes mais ferozes do mundo, elles arrancam os seos dentes e os trazem nos labios e orelhas afim de parecerem mais terriveis. As pennas das armas são postas nas extremidades dos arcos e das flexas. Assim preparados bebem publicamente o vinho de _muay_, e dizem adeos aos que ficam. CAPITULO VIII Partida dos francezes para o Amazonas em companhia dos selvagens. Antes que entre na materia, convem narrar o que me disseram os selvagens relativamente á verdade da existencia das Amazonas, porque é questão de todos os dias se n’esses lugares ha Amazonas, e si são similhantes ás descriptas pelos historiadores? É voz geral e commum entre os selvagens, que ha Amazonas, e que habitam n’uma ilha muito grande, cercada pelo grande rio do _Maranhão_, ou das _Amazonas_, que desembocca no mar por um espaço de 50 legoas de largura: que essas Amazonas foram antigamente mulheres e filhas dos _Tupinambás_, que se retiraram da companhia e do dominio d’elles—seduzidas e guiadas por uma d’ellas: que internando-se pelo paiz ao longo d’esta costa, descobriram á final uma linda ilha, ahi se recolheram, e em certas estações do anno acceitam por companheiros os homens das habitações mais proximas. Si párem um menino pertence ao pae, que d’elle cuida logo depois de desmamado: si porem é uma menina fica com a mãe em casa. Eis a voz geral e commum. N’um dia, quando os francezes andavam n’esta viagem, fui visitado por um grande Principal, que morava muito acima n’este rio. Depois dos seos cumprimentos, que descreverei mais adiante, me disse morar nas ultimas terras dos Tupinambás, e que só em duas luas podia voltar do rio _Maranhão_ á sua aldeia, e então lhe respondi admirando-me do trabalho que tomou vindo de tão longe. Replicou-me «fui ao Pará vêr meos parentes, quando foram os francezes guerrear nossos inimigos, e ouvindo fallar de vós e dos outros Padres, quiz vel-os pessoalmente para dar noticias certas aos meos companheiros.» Por intermedio do meo interprete lhe perguntei si sua residencia era muito longe da das _Amazonas_, e elle respondeo-me «uma lua,» isto é, um mez para ir. Repliquei-lhe, si tinha estado entre ellas, e si as tinha visto, e respondeu-me «que nem uma coisa nem outra», pois nas canoas de guerra, onde andou, se desviou da ilha onde ellas residiam. Esta palavra _Amasonas_ lhes foi imposta pelos portuguezes e francezes[16] pela similhança, que ellas tinham com as antigas _Amazonas_ por causa de sua separação dos homens; porem não cortam a mama direita, e nem imitam a coragem d’essas afamadas guerreiras, mas vivem como as outras mulheres selvagens, ageis e dextras no manejo do arco, e nuas se defendem dos seos inimigos, como podem. No dia 8 de julho de 1613 do porto de Santa Maria do Maranhão, partio o Sr. Ravardiere ao som de muitos tiros de artilharia e mosquetaria, com que o saudou o Forte de S. Luiz segundo é costume entre os militares. Levou em sua companhia 40 soldados valentes, e 10 marinheiros, e por cautella tambem 20 dos principaes selvagens, tanto da Ilha do Maranhão e de Tapuytapera, como de Cumã. Seguio para Cumã[17] onde o esperavam muitas canoas de indios, e provendo-se de farinha seguio para _Caieté_ onde haviam 20 aldeias de _Tupinambás_, e ahi se demorando mais de um mez, reforçou a tripolação de sua embarcação com mais 60 escravos que lhe deram. No dia 17 de agosto partio de _Caieté_ com muitos habitantes d’essa localidade, e dirigio-se para a aldeia _Meron_, onde em grandes canoas embarcou selvagens e francezes, e seguio para a embocadura do rio _Pará_: em viagem morreo afogado um francez por ter se virado a canoa em que elle ia, porem salvaram-se seos companheiros trepados no dorso da mesma. O rio Pará desde a sua emboccadura para cima é muito povoado de Tupinambás; chegando á ultima aldeia, situada á 60 legoas da sua emboccadura, todos os principaes d’esses lugares lhe pediram com instancia, que fosse guerrear os _Camarapins_,[18] os quaes são muito ferozes, não querem paz, e por isso não poupam seos inimigos, pois quando os captivam, matam-nos e comem-nos: poucos dias antes tinham matado tres filhinhos d’um dos principaes dos Tupinambás d’aquellas regiões, e guardaram os ossos d’elles para mostrar aos paes afim de causar-lhes mais dó. Este exercito de francezes e de Tupinambás, em numero de 1200, sahio do _Pará_, entrou no rio de _Pacajares_, d’ahi dirigio-se ao de _Parisop_,[19] onde encontraram _Vuacété_ ou _Vuac-Uaçú_, que simpathisando com este movimento offereceo para reforçal-o 1200 dos seos companheiros. Acceitou-se apenas um pequeno numero de selvagens, que elle mesmo acompanhou, e os encaminhou ao lugar, onde residiam os inimigos, o qual era nas _Iuras_,[20] que são casas feitas á imitação das «_Ponte aux changes_,» de S. Miguel de Paris, collocadas no cume de grossas arvores plantadas n’agoa. Foram immediatamente cercados pelos nossos, que os saudaram com 1000 ou 1200 tiros de mosquetaria em tres horas: defenderam-se porem elles valorosamente de sorte que sobre os nossos cahiam as flexas como chuva ou saraiva, ferindo alguns francezes e Tupinambás, porem não matando um só. Sobre alguns dispararam-se tiros de morteiro, e de canhão, incendiaram-se-lhes tres _Iuras_ morrendo n’essa occasião 60 indios d’elles, o que somente servio para mais augmentar-lhes o desespero pois antes queriam morrer do que cahir nas mãos dos Tupinambás. Á vista d’isto resolveo-se abandonal-os com intenção de ver, si n’outra occasião, tratados com doçura podiam ser domesticados. Durante o medonho combate dos mosqueteiros, usaram os selvagens d’uma traça singular pendurando os seos mortos no parapeito de suas _Iuras_, e por meio de uma corda de algodão amarrada aos pés faziam com que elles se mexessem. Pelas fendas ou frestas viam os francezes estes corpos, e julgando-os vivos contra elles faziam fogo tres e quatro vezes a ponto de ficarem despedaçados, o que provocava os gritos e zombarias d’estes canalhas, e somente terminou-se esta triste scena quando uma mulher acenando com um pano branco á maneira dos parlamentares, fez com que cessasse o fogo, e então ella gritou «_Vuac, Vuac._» Porque trouxeste estas boccas de fogo, (fallava dos francezes por causa da luz, que sahia das caçoletas de suas armas) para arruinar-nos, e destruir a terra? «Pensas contar-nos no numero dos teos escravos, eis os ossos dos teos amigos e dos teos alliados, cuja carne comi, e ainda espero comer a tua e a dos teos.» Pelos interpretes se lhe disse, que se entregasse afim de salvar o resto, que havia. Não, não, respondeo ella, nunca nos entregaremos aos _Tupinambás_, elles são traidores. Eis aqui os nossos principaes, que morreram victimas d’essas boccas de fogo de gente, que nunca vimos: si fôr necessario morreremos todos, voluntariamente, como fizeram nossos grandes guerreiros. Nossa nação é grande, e ahi fica para vingar nossa morte. Um dos seos principaes veio n’uma canoa collocar-se á frente do nosso exercito, trazendo n’uma das mãos um feixe de flexas, e na outra o arco, disse: «Vinde, vinde ao combate, nada tememos, somos valentes, e eu só por mim atravessarei a muitos.» Chegando-se porem muito perto dos nossos soldados, um d’elles acertou-lhe com uma balla na testa, que o atirou n’agoa ja morto. Eram tão dextros no manejo das flexas, que atirando-as ao ar vinham cahir na galeota, onde estavam nossos soldados, e nas canoas dos indios, ferindo muitos. Por isto avaliareis a coragem d’estes selvagens, maus somente pela naturesa. O que seriam si fossem policiados, ou conduzidos e instruidos pela disciplina militar? CAPITULO IX Do que aconteceu na Ilha durante esta viagem, e principalmente das astucias de um selvagem chamado Capitão. Em quanto uma parte dos nossos francezes, e muitos dos principaes selvagens estavam no Pará e em suas circumvisinhanças passaram-se na Ilha muitas coisas notaveis, que contarei nos seguintes capitulos. Tratarei em primeiro lugar de um indio agradavel e astucioso intitulado Capitão,[21] irmão da mãe de um principal, muito amigo dos francezes, chamado _Ianuaravaête_, que quer dizer _cão grande_ ou _cão furioso_. Este Capitão astuciosamente aproximou-se de nós, dizendo por intermedio do interprete, que desejava ser christão, aprender a ler, e a escrever, fallar francez e fazer cortesias, gestos e ceremonias dos francezes. Acreditaram nas suas palavras, e alguns até cercaram-lhe de muitas attenções. Passou alguns mezes em nossa visinhança, e mostrando-se com desejos de ter vestidos como os nossos paramentos sagrados, com os quaes diziamos missa; por sua mulher nos mandou pedir, o que negamos. Não nos deixou por esta recusa, porem algum tempo depois, disfarçando muito bem seo descontentamento, ia á sua aldeia e voltava, até que poude espalhar pela _Ilha_ o boato de que os francezes pretendiam escravisar os Tupinambás, e por tanto que era necessario fugir e abandonal-os. Alguns acreditaram, e por isso deixaram suas aldeias e foram para outras, onde podessem fugir com mais prestesa si assim fosse necessario. Julgou chegada a occasião de se fazer valer entre os seos: pois tinha extremo desejo de ser grande, e não podia chegar a sel-o, porque fogem as honras d’aquelles que as procuram com methodo, o que vemos em todas as condicções, e foi este o seo fim e intenção quando de nós se aproximou, servindo-se de nosso concurso para realisar seo desideratum, visto o ambicioso nada poupar, nem mesmo as coisas sagradas, para obter o que deseja. Principiou visitando as aldeias da Ilha, onde desconfiava ter descontentes, e ahi nas cabanas e na _casa-grande_, costumava batendo nas coxas grandes palmadas, harengar assim—_Ché, Ché, Ché, auaête. Ché, Ché, Ché. Pagy Uaçú, Ché, Ché, Ché, Aiuka pais &_: quer isto dizer, eu, eu, eu, sou furioso e valente. Eu, eu, eu, sou um grande feiticeiro. Fui eu, fui eu, fui eu que matei os Padres, etc. Fiz morrer o Padre, que está enterrado em _Yuiret_, onde mora o _Pay Uaçú_, o grande Padre a quem reenviei todos os males, que tem causado,[22] e a quem matarei como o outro. Atormentarei os Francezes com molestias, e lhe darei tantos bixos nas pernas e nos pés, que elles se verão na necessidade de regressar a sua patria. Farei morrer suas plantações e assim morrerão de fome: já com elles morei, comi com elles muitas vezes, e vi o que praticavam quando serviam a _Tupan_, e reconheci que nada sabiam á vista de nós outros _Pagés_, feiticeiros. Á vista disto não devemos temel-os, saiamos, quero caminhar na frente, porque sou forte e valente. Perto de dois mezes gastou elle percorrendo assim a Ilha sem que de nada soubessemos, porque quando os negocios são secretos e de interesse publico, não são descobertos como acontece quando se trata de utilidade particular. _Japy-açú_ o reprehendeo e mui acremente por estes discursos, bem como _Piraiuua_; porem seo irmão o _Cão-grande_ o denunciou, e alem d’isso pedio licença para ir em pessoa agarral-o e prendel-o. Chegaram promptamente estas noticias aos ouvidos de _Capitão_, que começou a tremer como si tivesse febre, e não dizia mais _Ché auo-êtê_, nem _Ché Pagi uaçú_, ou _Ché Aiuca Pay_, porem ao contrario diante dos seos, tremendo de medo, dizia: «_Ché assequegai seta, ypocku Tupinambo, ypocku decatugué: giriragoy Topinamho giriragoy seta atupaué: ypocku ianuara vaeté, ypocku decatugné giriragoy ianuara vaeté giriragoy seta atupaué_.» Ah! que medo tenho, oh! quanto são malvados os Tupinambás, perfeitos malvados:[23] mentiram os _Tupinambás_, mentiram muito e muito: o _Cão grande_, é um malvado, malvado completo: mentio o _Cão-grande_, mentio tambem muito e muito, etc. Nada disto eu disse, não causei a morte do Padre, não disse que queria fazer morrer o Padre-grande, e nem que lhe dei molestias. Tambem não disse, que quero atormentar os Francezes, e fazer seccar suas plantas, porque não sou e nem fui feiticeiro, e assim quero ser filho dos Padres, quero voltar e trabalhar para elles, e si os deixei foi para colher meo milho: quero ir ja onde está o Padre-Grande, levar-lhe o meo milho, o meo peixe, e a minha caça, e dar-lhe um dos meos escravos para apaziguar o chefe dos francezes afim delle não crer no _Cão grande_, que sempre me quer mal embora eu seja seo irmão: muitas vezes me quiz matar, e si o _Muruuichaue_, quer dizer o «Principal dos Francezes» lhe der uma vez ordem de prender-me, elle me matará sem duvida alguma. Por estas palavras conhecereis a indole d’estes selvagens, que não dizem a verdade quando necessitam defender-se. Este miseravel _Capitão_, fugio e escondeo-se nos mattos, e depois foi para uma aldeia chamada _Giroparieta_, quer dizer _aldeia de todos os diabos_, ao pé da praia, e d’ahi enviou-me um dos seos parentes pedir-me paz, e que obtivesse do Maioral o seu perdão. Mandou-me um seu escravo forte e robusto, bom pescador, e caçador: elle, sua mulher e mais pessoas da familia, me vieram ver, trazendo-me milho, peixe, e caça, e tanto elle como sua mulher muito fallaram para me persuadir de que eu não devia crer o que se dissesse d’elle, chamando os _Tupinambás_ e o _Cão-grande_,—mentirosos e outros nomes feios, asseverando que era bom amigo, que desejava ser christão, e que si o Maioral, e eu tambem nos esquecessemos de tudo, elle e sua mulher regressariam contentes. CAPITULO X Da chegada de uma barca portugueza á Maranhão. Quando menos pensavamos, achando-se a Ilha sem indios e sem francezes, por terem aquelles ido viajar pelo Amazonas, e estes pela segunda vez ao _Miary_, de que brevemente trataremos, por espaço de um mez fomos incommodados com mil noticias, ora de selvagens residentes perto do mar, ora de francezes moradores nos fortes, que diziam ter ouvido tiros de peça para o lado da costa da pequena _Ilha de Santa Anna_, e da de _Tabucuru_,[24] e ter visto tres navios velejando ao redor da Ilha, eis que se apresentou uma barca, commandada por um capitão portuguez, chamado Martin Soares. Vinha da Ilha de Santa Anna, onde tinha desembarcado, tomado posse d’ella para o Rei Catholico, plantado uma grande Cruz, e levantado um marco com uma inscripção, de que logo fallaremos. Andou este navio por todo o porto de Caurs, saltando sua tripulação sempre que lhe approuve para vêr e escolher lugares proprios á plantação de canas e ao fabrico do assucar, especialmente no lugar chamado _Ianuarapin_, onde foi erguida uma Cruz com o fim de crear-se uma bella habitação de portuguezes, e construir-se muitos engenhos de assucar. Approximaram-se depois da enseiada de Caurs, uma das entradas da Ilha, onde depois da sua vinda, se edificaram dois bellos fortes afim de impedir o desembarque. Elles davam alguns tiros de peça para chamar os selvagens da Ilha: nenhum lá foi, menos o Principal de _Itaparis_, suspeito por traidor: perguntaram-lhe muita coisa, e ignora-se o que respondeo: deram-lhe machados e fouces, e depois veio para a Ilha. Os portuguezes traziam comsigo os indios _Canibaes_,[25] moradores em _Mocuru_, e parentes de outros do mesmo nome refugiados em Maranhão, os quaes elles mandaram á terra para tomar conhecimento, e informações, si na Ilha haviam muitos francezes, si estavam fortificados, e si tinham canhões. Felizmente dirigiram-se aos _Tupinambás_, que lhes disseram não haver na Ilha um só francez, um só forte, um só navio, barca, nem canhão, e com tal segurança principiaram a comer, e os Tupinambás mandaram immediatamente ao forte de S. Luiz contar tudo isto. Expedio-se logo uma barca, bem esquipada, com o fim de prender os portuguezes; porem aconteceo, que um traidor _Canibal_, inimigo rancoroso dos francezes, e a quem já se tinha muitas vezes perdoado castigos, em que havia incorrido, sabendo da noticia da vinda dos outros, foi procural-os furtivamente, e em segredo lhes disse—«que fazeis aqui, fugi depressa para o mar, regressae ao vosso navio, porque os francezes tem na Ilha um bello forte, canôas, navios, e canhões.» Mal ouviram isto, levantaram-se ás pressas, e disseram aos seos hospedes _Tupinambás_, que os divertiam—Ah! maus, enganaes vossos camaradas—e assim dizendo á passos apressados foram com o traidor para a sua canôa, e em breve chegaram a barca, ancorada n’uma enseiada um pouco adiante. Vendo isto os portuguezes, desconfiaram logo que os francezes estavam na Ilha, e que não deixariam de os perseguir, e apenas tinham levantado ancoras, descobriram a barca dos francezes, e estes a d’elles, apressaram-se a tomar a dianteira dos portuguezes, navegando á bolina, muito bem, quebrando os rolos d’agoa, pelos bancos d’area, pouco pensando em encalhar comtanto que conseguissem apresional-a do que lhes resultaria muita commodidade, visto conhecer-se a intenção dos portuguezes, descoberta pela bôa vontade dos... * * * * * ... todas as Nações, e nós vemos por experiencia em varios lugares da França, d’onde veio o proverbio—_chorar de alegria_. Chegados ao Forte depois de descançarem como poderam, conservaram-se serios e reservados sem entregarem-se á vivacidade e impulso da curiosidade, e sendo a imperfeição unica dos francezes o fazer tudo ás pressas, buscando todos os meios de conseguir seos fins, foram elles ter com o Maioral, aos quaes assim fallaram: «Conforme as noticias que déstes a dois dos nossos, escravos entre os _Tupinambás_, para nos transmittirem fielmente a respeito da tua vinda e da dos Padres n’estes lugares afim de defender-nos dos _Peros_, e ensinar-nos a conhecer o verdadeiro Deos, dar-nos machados e outras ferramentas para facilitar a nossa vida, fallamos n’isto em muitas reuniões, e recordando-nos de que os francezes sempre nos fôram fieis, vivendo em paz comnosco, e acompanhando-nos á guerra, onde alguns morreram, todos os meos similhantes mostraram-se contentes e resolveram, de combinação com o nosso chefe, obedecer-te e em tudo fazer-te a vontade: eis porque me mandaram expressamente afim de pedir-te alguns francezes para acompanhar-nos e guardar-nos até voltarmos do lugar, por ti indicado.» Respondeo-se-lhe com palavras de amisade, e que se lhes daria os francezes. Sahindo d’ahi foram procurar-me em minha casa, onde tambem me exposeram a sua missão, de que fallarei quando for occasião. Pediram-me o meu pequeno interprete para ir com elles assegurar ao _Thion_, seo chefe, e a todos os seos companheiros, que eu os receberia como filhos de Deos, e que podiam vir afoitamente confiados na protecção dos Padres. Acompanhados por muitos francezes e pelo meo interprete, a quem dei algumas imagens como mimos, a _Thion_, elles embarcaram para o Mearim em busca de suas casas. Foram recebidos com muitos applausos, choros, lagrymas, e danças de dia e de noite. Prepararam vinhos em abundancia, presentearam os francezes com muitos porcos do matto e outras caças, e offereceram-lhes muitas raparigas das mais bonitas, o que regeitaram dizendo que Deos não queria, e que os Padres prohibiam, e se quizessem agradar os Padres, quando fossem para a Ilha, deviam levar Cruzes para expellir o _Giropary_[26] do meio d’elles: assim o disseram, assim o fizeram, plantando muitas Cruzes, em varios lugares na frente de suas casas, como ainda hoje se vê, e que ficaram como prova de habitação antiga, d’onde foram chamados para ir á outra terra, já illuminada pelo conhecimento de Deos, e enriquecida com os Sacrosantos Sacramentos da Igreja, como aconteceo outr’ora com a nação do povo de Israel, que sahio do Egypto em busca da terra da Promissão. Dispostas estas coisas, cada um cuidou em arrumar-se e fazer sua colheita, destruir as roças, e preparar bom farnél, pois deviam em pouco tempo deixar e abandonar este lugar: indagavam muito de varias coisas tendentes á sua salvação, e eram satisfeitas as suas perguntas. Aproveitaram-se os Francezes da occasião e facilidade, que lhes offerecia para conquistar a nação proxima de indios inimigos, da aldeia de Thion, e causava pena ouvil-os dizer, que haviam comido a muitos, porque eram mais fortes, tinham maior numero de aldeiamentos e de homens, e o Principal d’elles, chamado _Farinha-grossa_, valente na guerra, alegre, e muito propenso ao Christianismo, como fallaremos n’outro lugar, dizia com garbo, «si eu quizesse comer os inimigos, não ficaria um só, porem conservei-os para satisfazer minha vontade, uns após outros, entreter meo apetite, e exercitar diariamente minha gente na guerra: e de que serviria matal-os todos de uma só vez quando não havia quem os comesse? Alem d’isto não tendo minha gente com quem bater-se, se desuniriam, e separar-se-iam como aconteceo á _Thion_.» Assim disse, porque antes estas duas nações formavam uma só, morando juntas, em lugares longinquos e distantes dos inimigos, contra os quaes podiam exercitar-se na guerra, e apezar de tudo atacaram-se reciprocamente. Tal proceder confirma a bella maxima do Estado—quem deseja conservar o interior em paz, deve empregar os sediciosos fóra d’ahi, especialmente contra os inimigos da fé, e fallando em sentido moral—quem quer salvár o coração de todo o vicio e imperfeição deve resguardal-o das impressões exteriores. Como condições de paz estabeleceo-se o esquecimento reciproco de todas as injurias, mortes e banquetes com os corpos dos inimigos: que devia revestir-se de paciencia quem mais perdesse: que não devia havêr exprobrações de parte á parte, e quando recolhidos a Ilha, morariam separados uns dos outros, e todos seriam fieis aos Francezes. Chegada a occasião foram enviadas muitas canoas e barcos, nas quaes vieram para a Ilha. Foram bem recebidos, o seo chefe _Thion_ saudado com cinco tiros de peça, e duas descargas de mosquetaria, passando por meio de soldados francezes, dispostos conforme as ceremonias da guerra, assim entrou no Forte, onde o Sr. Pesieux e eu o acolhemos, e o condusimos á sua casa para descançar. Em lugar proprio contarei o que elle nos disse. CAPITULO XIII Do valor e dos costumes dos selvagens do Miary. Conversando familiarmente com esta nação, descubri muitas de suas particularidades, e tambem outras, pertencentes tanto á elles como á todos os _Tupinambás_, ainda não escriptas por pessoa alguma, ou ao menos mencionadas sufficientemente, e como são bellas e raras tractarei d’ellas mais detidamente. Estes povos, antes de reunidos, eram chamados _Tabajares_ pelos Tupinambás.[27] Este nome é appelativo e commum para designar toda a sorte de inimigos, e tanto assim é, que esta mesma nação de _Tabajares_ chamava os _Tupinambás_ da ilha _Tabajares_, _Topinambas_, embora pacificados e amigos. Os _Topinambas_ os chamavam _Mearinenses_, quer dizer vindos do _Miary_,[28] ou habitantes do _Miary_, assim como os Dinamarquezes, que vieram occupar a Neustria, Provincia antiga e dependente da Corôa de França, foram chamados Normandos, e sendo ella conservada em homenagem pelos Reis de França, perdeo seo antigo nome, e conservou o de Normandia. Os francezes os chamam _Pedras-verdes_[29] por causa de uma montanha, não muito longe de sua antiga habitação, onde se acham mui bellas e preciosas _pedras verdes_, dotadas de muitas propriedades, especialmente contra doenças do baço, e frouxo de sangue, e tambem me disseram haver ahi esmeraldas muito finas: ahi hiam os selvagens buscar estas pedras verdes tanto para collocal-as em seos labios, como para negocio com as nações visinhas. Os _Tupinambás_ e os _Tapuias_ dão muito apreço a estas pedras:[30] vi por uma pedra para o beiço dar o valor de mais de vinte escudos de mercadorias um _Tupinambá_ á um _Miarinense_, em nossa casa de São Francisco, no Maranhão. Um certo _Cabelo comprido_ veio ter comnosco, ornado com seos enfeites mais lindos, que consistiam em dois chifres de bodes, e quatro dentes de corça, muito cumpridos, em vez de brincos, de que muito se orgulhava por havel-os alcançado com industria, ao passo que era commum, especialmente entre as mulheres, trasel-os de madeira, redondos, muito toscos, e da grossura de dois dedos: calculae o buraco, que fazem nas orelhas: a maior porem de suas ostentações era uma destas pedras verdes, de comprimento, pelo menos, de quatro dedos, bem redonda, o que me agradou tanto á ponto de desejar trazel-a para a França. Perguntei-lhe o que queria que lhe désse por esta pedra: respondeo-me, «dê-me um Navio de França, carregado de machados, de foices, de vestidos, de espadas e de arcabuses.» Outro Tupinambá, já muito velho, trazia uma pedra destas em seo labio inferior: era oval e tão larga como o concavo da mão, e como a tivesse trasido por muito tempo ahi, sem nunca tiral-a, estava como que encaixilhada no seo queixo, ja tendo a carne se dobrado sobre os bordos da pedra e tomado a sua propria forma. Narrei tudo isto afim de demonstrar o valor destas pedras verdes. Estes _Miarinenses_ são ordinariamente de boa estatura, bem conformados, e valentes na guerra: sendo bem guiados não recuam e nem fogem como os outros Tupinambás, explicando-se isto pelo facto de serem criados entre os combates, sempre travados contra os portuguezes, aos quaes atacaram outr’ora, escalaram suas fortalezas, tomaram suas bandeiras e nunca mais abandonaram sua primeira habitação, como nos contou _Thion_, seo Principal, quando veio do Forte de São Luiz, se a falta de canhões não obrigasse os francezes, que estavam com elles, a cederem á força e á superioridade do numero dos portuguezes. Causa gosto ver o zelo e o cuidado, com que trazem as espadas, que lhes dão os francezes, sempre a seo lado, sem nunca tiral-as senão quando se deitam, e quando trabalham em suas roças, penduram-nas junto a si em algum ramo de arvore, fazendo-me lembrar a historia de Nehemias, na reparação dos muros de Jerusalem, quando os seos habitantes trasiam n’uma das mãos as armas e na outra os instrumentos do trabalho. Gostam muito de traser as espadas tão limpas como cristal, e para isso as esfregam com areia fina e azeite de mamona, amolam-nas repetidas vezes para estarem sempre cortantes, aguçam as pontas, quando estão gastas pela ferrugem muito commum na zona tórrida. Acostumam-se a bem manejal-as, fazendo marchas e contra-marchas, á maneira dos suissos quando esgrimam. Alem de serem corajosos e bons soldados, trabalham muito bem, e antes quero uma hora de tarefa d’elles do que um dia dos _Tupinambás_. Seos Principaes trabalham tanto quanto os seos subordinados de menor representação, porem o serviço está bem regulado, porque ao romper do dia levantam-se, almoçam, e depois vão elles mulher e filhos, conjunctamente, alegres risonhos, cantando trabalhar em suas roças, e quando o sol principia a chegar ao seo maior auge do calor, que é perto das dez horas, deixam a lida, vão comer e dormir, e duas horas depois do meio dia, quando o sol principia a declinar voltam outra vez ao trabalho, onde se conservam até ao anoitecer. Os Principaes, que ordinariamente tem mesa franca, para o que necessitam de roças maiores, preparam um _Cauin_ geral, e como todos partilham d’elle, se incumbem de cuidar nas plantações, o que fazem com alegria n’uma ou duas manhãs, e depois vão beber na casa d’aquelle para quem trabalharam, bebendo cada um quando chega a sua vez, e quando o acham bom o gabam com todas as suas forças, compõem cantigas adequadas, que entoam ao redor da casa ao som do _Maracá_, pronunciando estas ou outras similhantes palavras: «oh! o vinho, o bom vinho, nunca elle teve igual; oh! o vinho, o bom vinho, nós o beberemos á vontade, oh! o vinho, o bom vinho, n’elle não acharemos preguiça.» Chamam o vinho preguiçoso quando não tem força bastante para embriagal-os immediatamente, e que não lhes provocam o vomito por mais que bebam. Tomam as raparigas parte n’esta festa, onde se dança e canta-se á fartar, deitam-se os que se embriagam logo e raras vezes apparecem questões: são alegres e agradaveis n’essa occasião, especialmente as mulheres, que fazem mil macaquices á ponto de provocarem grande hilaridade, até a individuos mais tristes e melancolicos. Por mim confesso, que nunca em minha vida me ri tanto como quando estas mulheres altercavam umas com as outras, empunhando copos de madeira cheios de vinho, bebendo ora um, ora outro, fazendo muitas macaquices e tregeitos. Dão com muita facilidade o que mais presam, como sejam suas filhas e suas mulheres, porque observei quando se cuidou na segunda viagem do _Miary_ que muitos _Tupinambás_ tanto da _Ilha_ do Maranhão, como de Tapuitapera, foram de proposito com os Francezes para pedirem filhas e mulheres dos Miarinenses, o que facilmente obtiveram, como muitas outras coisas, que só fazem estes povos, e por isso mesmo muito caros e preciosos entre os Tupinambás. Tambem tem por costume, que igualmente observei entre os Tupinambás, o trazerem assobios e flautas, feitos dos ossos das pernas, coxas e braços de seos inimigos, dos quaes arrancam sons fortes, agudos e claros, e ao som d’elles entoam seos cantos usuaes, especialmente quando estão nos _Cauins_, ou quando vão a guerra. As raparigas não se despresam em casar com velhos e grisalhos, como praticam as dos _Tupinambás_, e sim antes querem esposar um velho, especialmente quando é Principal, e admirei-me, como coisa desagradavel, o vêr muitas jovens, de quinze a deseseis annos, casadas com velhos, e o contrario praticam as raparigas dos _Tupinambás_, as quaes passam a sua mocidade livremente, e depois acceitam um marido. O que acabei de dizer, só tem por fim o mostrar a cegueira das almas captivadas pelo espirito immundo, que não se descuida de perdel-as por meio de suas traças. CAPITULO XIV Das incisões, que fazem estes selvagens em seos corpos e como escravisam seos inimigos. Estes povos, e não só elles, porem geralmente todos os Indios do Brazil, tem por costume cortar o corpo, e recortal-o tão lindamente, que os costureiros e alfaiates, embora habeis em sua profissão, buscam imital-os no córte dos seos vestidos. Este costume não é só privativo dos homens, e sim tambem das mulheres, com a differença unica de que os homens se cortam por todo o corpo, e as mulheres apenas desde o umbigo até as coxas, o que praticam por meio de um dente de _Cutia_, muito agudo, e uma especie de gomma queimada, reduzida á carvão, applicada sobre a chaga, e nunca se apagam os córtes. Digo de passagem e não para demorar-me, e sim apenas para descubrir a origem deste antigo costume, que me parece ser fundado pela naturesa, visto ser praticado, já ha muitos annos, por nações civilisadas, cujo conhecimento por falta de communicação não podia ter esta Nação barbara, e assim inventou-o e d’elle usou. Soube d’estes selvagens, que duas razões os levam a cortar assim seos corpos, uma significa o pesar e o sentimento, que tem pela morte de seos paes, assassinados pelos seos inimigos, e outra representa o protesto de vingança, que contra estes promettem elles, como valentes e fortes, parecendo quererem dizer por estes córtes dolorosos, que não pouparam nem seo sangue e nem sua vida para vingal-os, e na verdade quanto mais estigmatisados mais valentes e corajosos são reputados, no que tambem são imitados pelas mulheres de iguaes qualidades. Para mostrar a origem anterior d’este costume, não necessito remontar-me ás historias profanas, no que seria prolixo, e sim contentar-me-hei fazendo vêr em diversos trechos das escripturas sanctas quanto Deos reprova este uso barbaro e selvagem. No Levitico 19. _Super mortuo non incidetis carnem vestram, nec figuras aliquas, aut stigmatas facietis vobis._ Sobre a vossa carne não fareis incisões, figuras ou signaes. No cap. 21. _Necque in carnibus suis facient incisuras_: e não farão incisões na sua carne. No Deut. 14. _Non vos incidetis, necfacietis calvitiem super mortuo._ No morto não fareis incisões e nem cortareis os cabellos. Á respeito d’estas passagens interpretam os Padres, como fazem os gentios e os idolatras, e de maneira notavel este trecho—_não fareis incisões e nem cortareis os cabellos_, por que se vêem juntas estas duas coisas, que os indios sempre separam restrictamente: quanto á incisão, já sabeis o que ella significa, mas quanto ao arrancamento do cabello ficae sabendo, que apenas as mulheres e as moças sabem do captiveiro ou morte na guerra dos seos Paes ou maridos, cortam os cabellos, gritam e lamentam-se horrivelmente, excitando seos similhantes á vingança, á tomar as armas e a perseguir seos inimigos, como farei vêr quando narrar a _Historia dos Tremembeses_. Dos escravos, que me deram n’aquelle paiz para trabalharem á bem da minha subsistencia soube da maneira como faziam prisioneiros e escravos. N’um certo dia reprehendi a preguiça d’um d’elles, fórte e valente, que me fora dado por um _Tupinambá_, e elle para minha advertencia me deo a seguinte resposta, embora branda (bem sei o que é necessario observar para com esta nação, que as reprehensões consideram como chagas e feridas, e aos castigos preferem a morte,[31] e por esta forma desejam antes morrer com honra, segundo dizem, no meio das assembleias, como ja muito bem descreveo o Padre Claudio d’Abbeville): eil-a «na guerra não me pozeste a mão sobre a espadua,[32] como fez aquelle que me deo a ti para agora me reprehenderes.» Nasceo-me logo a curiosidade de saber por intermedio do meu interprete o que elle queria dizer, e então fiquei sciente de ser uma ceremonia de guerra entre estas nações, quando um é prisioneiro do outro, bater-lhe este com a mão sobre a espadua e dizer-lhe—faço-te meo escravo—e desde então este infeliz captivo, por maior que seja entre os seos, se reconhece escravo e vencido, acompanha o vencedor, serve-o fielmente sem que seo senhor ande vigiando-o, tendo liberdade para andar por onde quiser, só fazendo o que fôr de sua vontade, e de ordinario casa-se com a filha ou a irmã do seo senhor, e assim vive até o dia em que deve ser morto e comido, o que não se pratica mais em _Maranhão_, _Tapuitapera_ e em _Cumã_, e só raras vezes em _Caieté_. Estas nações me despertaram a lembrança do que li outr’ora nos livros sagrados e na Historia dos Romanos, quando procediam ao captiveiro dos prisioneiros, e para bem entender-se bom é notar-se, que foram as ceremonias externas inventadas para representarem com sinceridade as affeições do interior: por exemplo, dobrar o joelho, beijar a mão, descubrir a cabeça, quando saudamos alguem, que estimamos, são outros tantos testemunhos de apreço interno em que o temos: outr’ora as espadas tinham hierogliphos representando o mysterio occulto das acções internas e externas dos homens. Deixando de parte o que não serve ao meo fim contento-me em referir os dois seguintes casos:—o sceptro apoiado sobre a espadua significa o poder regio: a alabarda sobre a espadua declara o poder dos chefes de guerra: as maças de ouro e prata—o poder dos Senados e dos Pontifices: os machados com ramos de parreira enroscadas—o poder dos consulados e dos governadores das provincias. Observe-se o que foi escripto por Isaias cap. 9. _Factus est Principatus super humerum ejus_, seo dominio foi posto sobre sua espadua, e no cap. 22. _Dabo clavem domus Davis super humerum ejus_, e porei a chave da casa de David sobre sua espadua, quer dizer o—sceptro de David. Ao contrario, pôr uma canga, como trazem os bois ou cavallos quando no trabalho, ou então passar debaixo de uma lança, atravessada sobre duas outras fixadas perpendicularmente, ou receber sobre a espadua nua uma vergastada era o signal da escravidão, como muito bem o patenteiou Isaias, cap. 9. _Jugum oneris ejus et virgam humeris ejus, et sceptrum exactoris ejus superasti_: venceste o jugo do teu fardo e a vara de sua espada, o sceptro do seu exactor, fallando do captiveiro da Gentilidade, libertada pelo Salvador: assim tambem estes selvagens batendo sobre o hombro de seus prisioneiros, significavam serem elles seos captivos, e na verdade encontro uma bella profecia, toda litteral, narrando esta desgraça, á qual estão sujeitos estes pobres selvagens de Chanaan, por juizo impenetravel da sabedoria divina, e participação da antiga maldição de Channan, seo Pae: é em Isaias, cap. 47—_Tolle molam, et mole farinam: denuda turpitudinem tuam, discooperi humerum, revela crura, transit flumina_, toma a mó, e móe a farinha, descobre tua torpesa e tua espadua, mostra tuas coxas e passa o rio. Tomam estes selvagens a mó, e a farinha, não tendo ferramenta alguma para trabalhar, quer nos bosques quer nas roças, servem-se unicamente de machados de pedra para cortar arvores, fazer suas casas e canoas, aguçar paus, cultivar a terra, semeiar, plantar raizes, e por unica recompensa de seos trabalhos só comem farinha, e raizes passadas por um rallador, feito de pedrinhas agudas, engastadas n’uma taboa da largura de meio pé. Cosinham a farinha n’uma grande panella de barro, ao fogo, como amplamente está escripto na Historia do R. Padre Claudio d’Abbeville. É tão patente sua torpesa, que suas mulheres e filhas, embora honestas, sentem repugnancia de se vestirem. Trazem o hombro descuberto, sujeito á este grande captiveiro, commum a todas as nações. Mostram suas coxas, e a falta de castidade está em uso entre elles sem reprovação, menos o adulterio. Passam rios buscando ilhas incognitas atraz de segurança. CAPITULO XV Leis do Captiveiro. Já que estamos fallando dos escravos bom é tratar das leis do captiveiro, isto é, das que devem guardar os escravos. Primeiramente não devem tocar na mulher do seo senhor, sob pena de serem flexados logo, e a mulher morta ou pelo menos bem açoitada, e entregue a seos Paes, resultando-lhe muita vergonha de ser companheira de um dos seos servos. Notae, que as raparigas não são despresadas por se entregarem a quem muito bem lhes parece em quanto solteiras, logo porem que recebem um marido, si se entregam a outro, alem da injuria de serem chamadas _Patakeres_, quer dizer, prostitutas, tem seos maridos o poder de matal-as, açoital-as e repudial-as. É bem verdade terem os francezes abrandado esta lei tão rude, não dando permissão aos maridos de matar tanto o escravo como a mulher adultera, ordenando que fossem conduzidos ao Forte de São Luiz para vêr punil-as, ou elle mesmo infringir-lhes o castigo, como vi acontecer, entre outros factos, no adulterio commettido entre a mulher do Principal _Uyrapyran_, e um escravo, bonito rapaz. Tinha o referido escravo muito amor a esta mulher, e depois de ter cogitado todos os meios de gosal-a, vio-a ir um dia á fonte, muito longe da aldeia, foi logo atraz expôr-lhe sua vontade, e depois agarrando-a com violencia entranhou-se com ella n’um bosque, onde saciou seos desejos, e como ella era de boa familia não quiz gritar para não ser diffamada, e ainda em cima pedio segredo ao escravo. Enfadado o marido com a grande demora da mulher, e desconfiando de alguma cousa por ser bonita e agradavel, foi á fonte, onde encontrou junto a borda o pote de sua mulher cheio d’agoa, e lançando a vista ao redor, como costumam a praticar os homens ciumentos, vio sahir sua mulher de um lado do bosque e o escravo de outro. Agarrou o escravo pelo colleirinho, e confiou-o à guarda dos seos amigos, e levou sua mulher para casa de seos paes, que se comprometteram a entregal-a quando pedisse. Na manhã seguinte, em companhia dos seos, levou este escravo á minha casa, expondo-me o facto como acima referi, acrescentando que si não fosse o respeito ás recommendações dos Padres e dos Francezes, elle teria matado o escravo, perdoando comtudo a sua mulher visto ter sido forçada, a qual ja havia entregado a seos parentes com intenção de repudial-a. Louvei a sua obediencia e respeito: era na verdade um homem bem feito, de bonito rosto, e bom corpo, fallando bem e em bons termos, mostrando tanto nas maneiras como no corpo, generosidade e nobresa de coragem. Mandei-o á presença do senhor de Pezieux, loco-tenente de Sua Magestade na ausencia do Sr. de la Ravardiere, que tendo ouvido a queixa, mandou carregar de ferros os pés do escravo, promettendo ao Principal fazer a justiça, que elle quizesse. Replicou-lhe o Principal que desejava vel-o morto como era costume: respondeo o senhor de Pezieux, que Deos tinha ordenado em sua lei, que deviam morrer tanto o homem como a mulher adultera. Sim, disse o Principal, porem ella foi constrangida. «Não, respondeo o senhor de Pezieux, a mulher não pode ser forçada por um só homem, ou pelo menos deve gritar, e não pedir segredo ao selvagem, o que é tacito consentimento:» dizia tudo isto para salvar o escravo da morte, por que muito bem sabia não concordar o Principal na morte de sua mulher visto os muitos parentes que ella tinha. Conseguio-o logo, porque elle pedio ao Sr. de Pezieux, que não matasse o escravo, mas sim que o prendesse na golilha, e que lhe fosse permittido açoital-o á vontade. «Sim, disse-lhe o Sr. de Pezieux, com tanto que dês quatro açoites com cordas em tua mulher, diante de todas as mulheres, que se acharem no Forte, e ao som da corneta.» Acordes n’isto, na manhã seguinte, foi a mulher conduzida e confrontada com o escravo, reconheceo-se que o facto deo-se como ja referi, foram ambos conduzidos á praça publica do Forte, onde se fincou o esteio e a golilha: ahi o marido representou o papel de verdugo, escolheo tres ou quatro cordas bem duras, que enrolou em seo braço, e voltou em sua mão direita, e com ellas açoitou sua mulher por quatro vezes, deixando-lhes vergões bem grossos e cumpridos, impressos sobre seos rins, ventre e costas, não sem derramar muitas lagrimas, que lhe corriam ao longo das faces, e sem exhalar profundos suspiros: sua mulher tambem gemia, com a vista baixa, envergonhada de assim se vêr rodeiada por tantas mulheres, que, como ella, tambem choravam tanto por compaixão, como apprehensivas de que para o futuro não lhes acontecesse o mesmo. Os homens ao contrario mostravam-se alegres diante de tão boa justiça, e gracejando diziam á suas mulheres—_ah! se te pilho!_ Durante todo o dia estiveram tristes as mulheres dos Tabajares. Depois de haver açoitado sua mulher, este bom marido lhe disse «eu não tinha desejos de castigar-te, fiz o que pude perante o Maioral dos Francezes para salvar-te, porem vae, enchuga tuas lagrimas, e tornar-te hei a tomar por mulher, e te levarei para casa quando acabar de castigar este escravo.» Sabe Deos, se o pesar que elle teve pelos açoites, que deo a mulher, melhorou a sorte do pobre escravo, porque pondo-o na praça ou no largo, fez um circulo do tamanho do seo chicote, separado todos, um por um. Tinha o escravo ferros nos pés, estava em pé, nu como a palma da mão, e assim soffreu o castigo, sem dizer uma palavra e sem mecher-se: por tres vezes cansado e sem poder respirar descançou, depois de fortalecido recommeçou e de tal maneira, que não poupou uma só parte do corpo. Começou pelos pés, seguio pelas pernas, coxas, partes naturaes, rins, ventre, espaduas, peito, e acabou pelo rosto e testa. Esteve muito tempo doente por este castigo, sempre com ferros nos pés, conforme pedio o Principal, porem passado algum tempo consentio que lhos tirassem, á pedido do senhor de Pezieux, que desejava satisfazer os desejos dos seos Principaes para melhor obrigal-os a serem fieis aos Francezes. Acabado isto, tomou conta da mulher, que já não chorava, e sim principiava a rir-se, e assim voltaram para casa como se nada tivesse acontecido. CAPITULO XVI Outras leis para os escravos. Consistem as outras leis, em não poderem os escravos, de ambos os sexos, casarem-se senão á vontade dos seos senhores, porque tanto uns como outros moram juntos e seos descendentes pertencem ao mesmo domno. Os selvagens _Tupinambás_ tomam ordinariamente para mulher as raparigas captivas, e dão suas proprias filhas ou irmans aos mancebos escravos afim de cuidarem no arranjo da casa e da cozinha. Praticam o contrario os francezes, porque compram homens e mulheres escravas para casal-os, ficando a mulher com o dever de cuidar no arranjo da casa, e o marido com o de ir pescar e caçar. Se acontece um francez comprar alguma rapariga escrava, mostra-a a algum joven _Tupinambá_, que morre de amores pelas que são bellas, depois promette-lhe que será seo genro pois ama sua escrava como si fosse sua propria filha para assim vir o _Tupinambá_ morar com elle, casar com a rapariga, e por esta forma ter por uma escrava dois escravos, a quem trata por filha e genro, e elles o chamam seo _Cheru_, isto é, seo Pae. As raparigas escravas, que não se casão, dispoem de si como querem, si por ventura seos senhores não lhe prohibem relações com certos e determinados individuos, porque então em caso contrario soffrem muito; mas quando seos senhores lhe impoem completa abstinencia, ellas lhe dizem bem claramente, que então as tomem por mulheres visto não querer, que alguem as ame. Devem os escravos trazer fielmente o resultado da sua pescaria e caçada, e depôl-o aos pés do seo senhor ou senhora, para elles escolherem e depois lhes darem o resto. Não podem trabalhar para outrem sem consentimento do seo senhor, e nem dar seo rebanho, que lhes deo o senhor, sem lhe dizerem antes uma palavra, pois de outra forma pode ser tomado como coisa, que não pertence legitimamente aos escravos. Não devem passar atravez da parede das casas, somente feita de _pindoba_, ou de ramos de palmeira, ao contrario são criminosos de morte, porque devem passar pela porta, commum, ou atravez da parede de palmas. Não devem fugir, porque quando são agarrados, está tudo perdido, visto que são comidos: n’este caso já não pertencem ao senhor, e sim a todos, e para este fim quando se prende um escravo fugido, sahem da aldeia as velhas, vão ao seu encontro, e gritando dizem «é nosso, entregae-nos, queremos comel-o», e batendo com a mão na bocca, gritam uns para os outros com certa expressão «nós o comeremos, nós o comeremos, é nosso.» Vou dar-lhes um exemplo: Um guerreiro Principal da ilha do Maranhão, chamado _Ybuira Pointan_,[33] quer dizer, _Pau brasil_, ao regressar da guerra trouxe comsigo alguns escravos, dos quaes um procurou salvar-se pela fuga, porem sendo agarrado, foram as velhas ao seu encontro batendo na bocca com as mãos, e dizendo «é nosso, entregae-o, é necessario que seja comido». Houve muita difficuldade em salval-o apezar da prohibição de não se comerem os escravos, e si não se empregassem ameaças, elle seria devorado pelas velhas. Si acontece morrerem de molestias estes escravos, sendo assim privados do leito de honra, isto é, de serem mortos e comidos publicamente, um pouco antes do seo fallecimento levam-nos para o matto, lá partem-lhe a cabeça, espalham o cerebro, e deixam o corpo insepulto e entregue a certas aves grandes, similhantes aos nossos corvos, que comem os enforcados e os rodados. Quando são achados mortos em seos leitos, atiram-nos em terra, arrastam-nos pelos pés até o matto, onde lhes racham a cabeça, como acima disse, o que ja não se pratica na Ilha e nem em suas circumvisinhanças, senão raras vezes e occultamente. Gozam tambem de muitos privilegios, que os levam a residir voluntariamente entre os _Tupinambás_, sem desejar fugir, considerando seos senhores e senhoras como paes e mães, pela docilidade com que os tratam cumprindo assim seo dever; não ralham com elles e nem os offendem, não os espancam, desculpam-nos em muita coisa contanto que não offenda os seos costumes: são muito compadecidos, e chegam a chorar quando os francezes tratam os seos com aspereza, e si outros se lastimam do procedimento dos francezes prestam-lhe todo o credito ao que dizem. Quando fogem dos francezes elles os occultam, levam-lhes o sustento nos mattos, vão vesital-os, as raparigas vão dormir com elles, contam-lhes o que se passa, aconselham-nos sobre o que devem fazer, e de tal sorte que é muito difficil agarral-os, embora vão atraz d’elles uns vinte homens, e isto não fazem para com os escravos dos seos similhantes. Vem a proposito o contar que um dia perguntei a um dos escravos, que tinha em meu poder, si não estava satisfeito vivendo commigo, não só porque lhe ensinei a temer a Deos, como tambem pela certesa, que tinha, de não ser comido, e que, quando christão, seria livre, morando com os padres como si fosse filho d’elles. Pelo interprete respondeo-me julgar-se feliz por haver cahido nas mãos dos Padres, tanto por conhecer á Deos como por viver com elles, e si fosse para o poder de outro chefe, não estaria socegado e nem descançado de não ser comido, porque, acrescentava elle, quando se morre, nada mais se sente, quer elles comam ou não, e o mesmo para o morto: amofinar-me-ia de morrer na minha cama, e não á maneira dos grandes no meio das danças e dos _Cauins_, afim de vingar-me antes de morrer, dos que iriam comer-me. Quando penso, que sou filho de um dos grandes do meo paiz, que meo pae é homem moderado, que todos o cercavam para escutal-o quando elle ia á _casa grande_,[34] vendo-me agora escravo, sem pintura no corpo, sem cocar, sem enfeites nos braços, e nem nos pulsos, como acontece aos filhos dos grandes das nossas terras, antes queria ser morto especialmente quando me lembro, que fui agarrado ainda menino, com minha mãe, lá na minha terra, e trazido para _Comã_, onde vi matar e comer minha mãe, com quem desejei morrer, porque ella me amava muito, e por isso não posso senão lamentar minha vida. Proferindo estas palavras, chorou muito, a ponto de pungir-me o coração, visto saber por experiencia quanto são amorosos estes selvagens, para com seos paes, e estes para com elles. Accrescentou, que depois de ter sido sua mãe morta e comida, seo senhor e sua senhora o adoptaram por filho, e elle os tratava por pae e mãe: quando fallava d’elles era com affeição inexplicavel, embora tivessem comido sua propria mãe, e ja fosse resolvido o comel-o tambem pouco tempo antes de chegarmos á Ilha. Seo senhor e senhora tomavam o trabalho de vir vel-o em nossa casa, embora fosse necessario vencer a distancia de 50 legoas, desde sua aldeia até aqui. Gozam ainda de muitos outros privilegios, porque lhes é permittido o namorar as raparigas livres, sem risco algum, olhar mesmo para as raparigas de seo senhor e senhora, si quizerem, e n’isto não ha muita recusa, comtudo ellas buscam os mattos e em certas cabanazinhas os esperam em hora marcada, para evitar pequeno remoque que costumam a fazer das moças de boa raça, quando se entregam a escravos, o que serve antes de riso do que de deshonra. Vão livremente aos _Cauins_, e dansas publicas, enfeitando de mil maneiras o seo corpo quer com pinturas, quer com pennas, quando podem, pois estas são muito caras. Vivem com os filhos de seos senhores, como si fossem irmãos, e em breve tempo gozam muita liberdade no seo captiveiro. CAPITULO XVII Quanto são misericordiosos os selvagens para com os criminosos por acaso e sem malicia. Entre as perfeições naturaes que a experiencia me tem mostrado n’estes selvagens, nota-se uma justa misericordia, isto é, desejam a punição dos maus, quando por maldade praticam algum crime, e ao contrario são compadecidos e pedem misericordia para aquelles, que por acaso ou inadvertidamente incorrem n’alguma falta, e isto vou provar á vista do seguinte exemplo. _Maioba_ é uma grande aldeia, distante tres leguas do Forte de São Luiz: o seo Principal é um bom homem, amado pelos francezes, e veio fazer a nossa casa. Tinha dois filhos fortes e robustos, ambos casados, e duas filhas, uma casada e outra solteira, bonitas e engraçadas, muito amadas por seo Pae e Mãe, de tal forma que eram perdidos por ellas e o assumpto predilecto de suas conversações, e guardavam a solteira para um francez quando voltassem os navios, diziam elles, e que os francezes se resolvessem a casar com indias. Fundava seos castellos e sua fortuna sobre um fragil barco, similhante a aquella boa mulher, que tendo em suas mãos o primeiro ovo de sua gallinha, sua imaginação ia levantando-a até um principado, que d’ahi ha pouco cahio no chão e inutilisou-se, e com elle foi-se toda a ventura esperada por ella. Assim este homem não tendo outra consolação senão em sua filha, poucos dias depois, por uma noite tão triste, _Geropary_ torceo o collo d’esta plantinha, virando-lhe a bocca para as costas: coisa terrivel! estava negra como o diabo, os olhos esbugalhados e revirados, a bocca aberta, a lingua sahida para fóra, os labios superiores e inferiores revirados á deixar vêr os dentes e as gengivas, o que poderia pela tristesa e medo, que causava, matar a seos parentes. Nunca pude saber qual foi a causa d’isto, e apenas me disseram que era infiel, e talvez vivesse deshonestamente, porem nunca deo escandalo. Embora seo pae tivesse vendido sua filha mais velha á algum francez para d’ella abusar, depois a tirou da companhia do seo marido. Dizem os que se acham em peccado mortal, que elles estão sob o dominio e posse do diabo, e o mesmo lhes aconteceria, si Deos quizesse. Não foi só esta desgraça, porque uma arrasta outra comsigo, e a primeira é embaixadora da segunda. Pouco tempo depois, este Principal fez uma festa de vinho publicamente, e para isto convidou não só os habitantes de sua aldeia, como tambem os da visinhança. Quando todos dançavam e cantavam, quando o vinho fervia e muitos já se achavam embriagados, seos dois filhos, de que ja fallei, travaram-se de razões, e o autor da questão querendo agarrar seo irmão, por um acaso ferio-lhe no ventre com um punhado de flechas, que este trasia pelo que cahio logo banhado em sangue. Tiraram-se as flexas com muita dor, como bem se calcula, o soffrimento fez desapparecer o vinho, a festa ficou perturbada, as cantorias se mudaram em gritos e lamentos, o vinho em lagrimas, as dansas em espancamentos proprios e arrancamento de cabellos. O infeliz pae, expectador de similhante tragedia, assentado n’uma rede d’algodão, teve um desmaio, e cahio para traz. Voltando a si, disse aos que o rodeiavam, que de uma só vez perdeo seos dois filhos, não fallando na que tinha perdido antes, um ferido por sua culpa, e o outro que os francezes mandariam matar; todos se condoeram d’elle. Resolveram todos os Principaes da Ilha a virem ao Forte de São Luiz interceder a favor do vivo. Em quanto se passavam estes factos, o ferido contra sua vontade, aproximava-se da morte, chamou seo irmão, e lhe disse: sou um grande criminoso, pois de uma só vez matei muitas pessoas, isto é, a mim, a meo pae, que morrerá de tristesa e a ti porque os francezes te mandarão matar: elles são justiceiros em punir os maus: mas sabes tu o que ha? toma meo conselho, e faze o que te digo. Os Padres que vieram com os francezes, são compadecidos, e nos amam e aos nossos filhos, e pelos seos interpretes soube que aqui vieram para salvar-nos. Já ouvi dizer, n’uma reunião a um dos nossos similhantes, que os antecessores dos Padres baptisaram antigamente em quanto com elles estiveram, e que vio os _Canibaes_ se abrigarem em suas Igrejas, quando faziam alguma maldade, por terem certesa de que ahi ninguem lhes faria mal. Faze o mesmo, quando anoitecer vae com meo Pae procurar o Padre na sua cabana de _Yviret_, pede para te pôr na casa de Deos, que é defronte da residencia d’elle, e ahi fica, até que meo Pae, conjuntamente com os Principaes, intercedam por ti, e consigam o teo perdão do Maioral dos francezes. Para mais facilidade, tu sabes que os Francezes necessitam de canoas e de escravos, offereça pois meo Pae ao chefe tua canoa e teos escravos, para que não morras. Tudo isto foi cumprido pontualmente, porque este velho, Pae dos dois rapazes, foi procurar-me, rogou-me e instou-me para que recebesse seo filho na casa de Deos, e intercedesse para ser perdoado pelo Maioral dos Francezes, buscando convencer-me, entre outras, com estas razões. «Vós outros Padres fazeis regorgitar de povo as nossas _Casas Grandes_, quando quereis, desejando vêr ahi grandes e pequenos, afim de ouvirem a causa, que vos obrigou a deixar vossas casas e terras, muito melhores do que estas, para nos ensinarem a naturesa de Deos, que é, como dizeis, bom, misericordioso, amante da vida e inimigo da morte, e por isso não quer que ninguem morra assim como elle morreo n’um madeiro para fazer viver os mortos. «Dizeis ainda, que nossos filhos não são mais nossos, o sim vossos, que Deos vol-os deo, e que d’elles tomaes cuidados até a morte: mostrae-me hoje, que vossa palavra é verdadeira. «Estou velho, perdi todos os meos filhos, só me resta um, que fez esta casa, que vos estima muito, e a todos os Padres e quer ser christão. «Matou seo irmão sem querer, ou melhor, foi seo irmão quem se matou a si proprio com as flechas, que trazia. Rogo-te o recebas na casa de Deos, e vem commigo fallar ao chefe, porque elle nada te recusará visto estimar-te muito. «Quiz trazer commigo o filho, a favor de quem intercedo porem elle teme muito a ira dos Francezes: actualmente anda errante e fugitivo pelos mattos, como si fosse um javaly: quando ouve o ramalhar das arvores suspeita ser os Franceses, que armados andam em busca d’elle para prendel-o e conduzi-lo a _Yviret_, onde será amarrado á bocca de uma peça.» Respondi pelo meo interprete, asseverando-lhe que empregaria os meos esforços, que tinha esperança de obter o que elle desejava porque o chefe me estimava; mas que era bom, que elle fosse pessoalmente fazer seo pedido, e que eu iria depois delle. Foi immediatamente ao Forte em companhia de um dos principaes interpretes da Colonia, chamado _Migan_,[35] e expôz suas razões e rogos ao senhor de Pezieux, por esta fôrma. «Sou um Pae muito infeliz, e acabarei minha velhice como os javalys, vivendo só, comendo raizes amargas e cruas, se de mim não tiveres piedade. «A misericordia muito convem aos grandes, e maiores não podem ser, quando usam d’ella e de clemencia. «É teu rei o maior do Mundo, como nos contam os nossos, que estiveram em França. «Elle para aqui te mandou como um dos Principaes da sua côrte afim de nos livrares do captiveiro dos _Peros_: ora como és grande, e misericordioso, usa de misericordia para com os infelizes, que são desgraçados por acaso e não por malicia. «Bem conheço, que é preciso ser justo, e indagar o motivo para se fazer a escolha, e proceder-se a vingança sobre os maus, o que mui restrictamente observamos entre nós, desde os nossos paes, mas quando a falta não é originada por maldade nós perdoamos. «Tenho dois filhos, como sabes, os quaes tem vindo trabalhar no teo Forte, um matou o outro por acaso e sem maldade, ou para melhor dizer, suicidou-se o mais velho nas flechas do mais moço, que está vivo, e te peço que não o persigas e sim o perdôes. «É elle, que me hade sustentar na velhice: sempre foi amigo dos francezes, e quando algum vae a minha aldeia, chama logo os seos cães, e vae caçar cotias e as pacas para elle comer. «Fez a cása dos Padres, e assevera-me que elles o protegem. «Sempre foi muito obediente á sua madrasta, que o ama como si fosse seo proprio filho: seo irmão, que sem querer, elle matou, era mau, não estimava os Francezes, nunca lhes deo coisa alguma, não ia á caça para elles, aborrecia sua madrasta, e muitas vezes a zangava: quando morreo, estava bebado, e veio tomar a mulher do seo irmão, e arrancando o filho, que ella tinha ao collo, atirou o menino para um lado e a mãe para outro, dando-lhe bofetadas, embora estivesse grávida, na minha presença e á vista do seo marido, e tudo soffremos com paciencia; porem vindo agarrar seo irmão para espancal-o, ferio-se no ventre com as flechas, que elle trasia na mão e assim morreo. «Porque perderei eu meos dois filhos, de uma só vez, e já na minha velhice? «Si queres mandar matar o unico que tenho, mata-me primeiro, e depois a elle. Elle te dá sua canoa para a pescaria e seos escravos para te servirem.» Admirou o Sr. de Pezieux este discurso, como depois me disse e por muitas vezes, e o referio á diversas pessoas, admirando-se de ver tão bella Rhetorica na bocca de um selvagem. Previno-vos, que represento todos estes discursos e supplicas o mais sinceramente que me foi possivel, sem o emprego de artificio algum. Respondeo o Sr. de Pezieux dizendo ser grande crime um irmão matar outro, mas como elle asseverava ter sido antes por culpa do fallecido do que pela do vivo, perdoava a rogo dos Padres, a quem nada queria recusar, e assegurou-lhe logo que seo filho nada soffreria, que acceitava a canoa e os escravos, porem que tudo isto lhe offerecia para o arrimo de sua velhice visto ser elle amigo dos Padres e dos Francezes. Alegrou-se muito o bom velho com este acto de misericordia e liberalidade, e não foi ingrato, não só fazendo conhecido por toda a Ilha o facto, como tambem offerecendo ao dito Sr. e a nós tudo quanto elle e seu filho caçavam. CAPITULO XVIII Quanto é facil civilizar os selvagens á maneira dos francezes, e ensinar-lhes os officios, que temos em França. No Liv. 2.º, Cap. 1.º, dos Machabeos, lemos, que o fogo sagrado do altar foi escondido no poço de Nephtar durante o captiveiro do povo e se transformou em limo. Quando o povo regressou, já livre, os Sacerdotes apanharam este limo, e o deitaram na madeira do altar, levantado para os sacrificios. Apenas o sol, lá de cima, começou a lançar seos raios sobre o limo, este se transformou em fogo, e devorou os holocaustos. Desejo servir-me d’esta figura para explicar o que tenho a dizer n’este e nos seguintes Capitulos. Convem notar, que por este fogo se deve entender o espirito humano imitando a naturesa do fogo por sua actividade, ligeiresa, calôr e claridade, o qual se torna lodo e limo, escondido n’um centro differente do seo proprio, devido isto á sua alma captiva pela infidelidade. Quero dizer, que sendo o espirito do homem creado para conhecer a Deos, e aprender artes e sciencias, torna-se entorpecido e obscurecido entre as immundicies, quando sua alma está presa nas cadeias da infidelidade, sob a tyrannia de Satanaz, mas quando sua alma desprende-se do captiveiro pela intenção e guia dos Prophetas de Deos, sahe o espirito d’esse poço lamacento, e animado pela luz, e conhecimento de Deos, das artes, e das boas sciencias, torna-se apto e prompto para executar o que percebe e aprende, o que farei vêr, e tocar com o dedo a respeito dos nossos selvagens, e mui principalmente quando de suas perguntas mais comesinhas nasce a esperança d’elles se civilisarem, e viverem reunidos n’uma cidade, negociando, aprendendo officios, estudando, escrevendo e adquirindo sciencia. Tenho para mim, que são mais faceis de serem civilisados, do que os aldeões de França, por ter a novidade não sei que influencia sobre o espirito afim de excital-o a aprender o que elle vê de novo, e lhe agrada. Os nossos _Tupinambás_ nunca tiveram ideia alguma de civilisação até hoje; eis a razão porque elles se esforção, por toda a forma, de imitar os nossos francezes, como depois direi. Ao contrario os aldeões da nossa França estão de tal sorte enraisados em sua rusticidade, que, em qualquer conversação, embora nas cidades entre pessoas distinctas, sempre mostram signaes de camponezes. Aos _Tupinambás_, depois de dois annos de convivencia com os francezes, estes lhes ensinaram a tirar o chapeu, a saudar a todos, a beijar as mãos, a comprimentar, a dar os bons dias, a dizer adeos, a ir á Igreja, a tomar agua benta, a ajoelhar-se, a pôr as mãos, a fazer o signal da Cruz na testa e no peito, a bater no peito diante de Deos, a ouvir missa e sermão, ainda que nada d’isto comprehendam, a levar o _Agnus Dei_, a ajudar o sacerdote á missa, a assentar-se á mesa, a estender a toalha diante de si, a lavar suas mãos, a pegar na carne com tres dedos, a cortal-a no prato, e a beber em commum, e breve farão todos os actos de civilidade e delicadesa, que se costuma a praticar entre nós, e já se acham tão adiantados a ponto de parecerem ter sempre vivido entre os francezes. Ninguem pois poderá contestar-me, que não sejam estes factos bastante para convencer-nos do que devemos esperar e acreditar ser esta nação, com o andar dos tempos, civilisada, honesta e muito aproveitada. Como os exemplos provam mais que outra qualquer especie de argumentação, vou contar-vos o caso de alguns selvagens educados em casa de nobres. Actualmente ha em Maranhão uma mulher selvagem, de uma das boas raças da Ilha, que foi antigamente, quando bem pequena, tomada pelos portuguezes, e vendida como escrava á D. Catharina de Albuquerque, sobrinha do grande Albuquerque, Vice-Rei das Indias Orientaes, sob o dominio do Rei de Portugal, a qual reside presentemente em Pernambuco, e é Marqueza de Fernando de Noronha, ilha muito bella e fertil, segundo diz o Revd. Padre Claudio d’Abbeville na sua Historia. Esta rapariga fez-se christã, e se a vestissem á portugueza não se poderia facilmente dizer qual a sua origem, se portugueza ou selvagem, mostrando sempre a vergonha e o pudor, inseparaveis de uma mulher, e occultando com cuidado a imperfeição do seo sexo. Poderia dizer outro tanto de muitos selvagens, educados entre os portuguezes, e dos quaes alguns foram á França, e conservam ainda hoje o que aprenderam, e o praticam quando se acham entre os francezes. É novo entre elles o uso da barba e dos bigodes, porem como vêem esse uso entre os Francezes, tambem deixam crescer tanto uma como outra coisa. Tem incomparavel aptidão para as artes e officios. Conheço um selvagem do Miary, chamado _Ferrador_, por causa do officio, que aprendeo, vendo somente trabalhar um ferrador francez que nada lhe explicou. Sabia muito bem malhar com os outros uma barra de ferro encandecida, como se tivesse longa pratica, apesar de ser coisa muito sabida entre os officiaes do mesmo officio, que é necessario muito tempo para aprender-se a musica dos martellos na bigorna do ferrador. Achando-se este mesmo selvagem nos desertos do Miary com seos semelhantes, sem bigorna e martello, limas e tornos, trabalhava comtudo muito bem fazendo pontas ou lanças para flechas, harpões e anzóes. Por bigorna tinha uma pedra muito dura, por martello outra de menor consistencia, e depois aquecendo ao fogo o ferro, dava-lhe a forma que queria. Os officios mais necessarios entre elles são os de ferreiro, tanoeiro, carpinteiro, marcineiro, cordoeiro, alfaiate, sapateiro, tecelão, oleiro, ladrilhador, e agricultor. Para todos estes officios são aptos e inclinados pela natureza. Para o de ferreiro ou de ferrador ja referimos um exemplo. Quanto ao officio de tecelão seria a sua especialidade se aprendessem; tecem seos leitos muito bem, trabalham em lã tão perfeitamente como os francezes, embora não empreguem a lançadeira, e nem a agulha de ferro, e sim pequenos pausinhos. Contarei ainda uma bonita historia. Fui um dia visitar o grande _Thion_, principal dos Pedras-verdes, _Tabajares_; quando cheguei a sua casa, e porque lhe pedisse, uma de suas mulheres me levou para debaixo de uma bella arvore no fim da sua cabana, que a abrigava dos ardores do sol, onde estava armado um teiar de faser redes de algodão, em que elle trabalhava. Gostei muito de vêr este grande Capitão, velho Coronel de sua nação, enobrecido por tantas cicatrises, entregando-se com praser á este officio, e não podendo conter-me, perguntei-lhe a razão d’isto, esperando aprender alguma coisa de novo n’este facto tão particular, que estava vendo. Pelo meu interprete lhe perguntei a razão, porque se dava a esse mister. Respondeo-me, «porque os rapases observam minhas acções e praticam o que eu faço; se eu ficasse deitado na rede e a fumar, elles não quereriam fazer outra coisa: quando me vêm ir para o campo com o machado no hombro e a fouce na mão, ou tecer rede, elles se se envergonham de nada fazer.» Eu e os que comigo então se achavam, sentiram muito prazer ouvindo estas palavras, e desejaria vel-as praticadas por todos os christãos, porque então a ociosidade, mãe de todos os vicios, não estaria em França, como actualmente se vê. O officio de carpinteiro não lhes é muito difficil, porque os vi fazendo suas casas, e as dos Francezes, assentando seo machado, e repetindo o golpe no mesmo lugar, quatro ou cinco vezes, com tanta firmeza, como faria qualquer carpinteiro bem habil. A arte de marcineria lhes é facil, porque com suas fouces aplainam um pedaço de pau, tão liso e tão igual, como se tivesse passado o raspador por cima d’elle. Com o auxilio de suas facas somente, fazem macaquinhos e outras figuras de madeira. Não precisam de serra, e nem de outro qualquer instrumento para fazer seos arcos, remos e espada de guerra, pois basta-lhes uma simples machadinha. Cavam, arranjam suas canôas, e dão-lhes a forma, que lhes apraz. Brevemente tractarei de outros officios, nos quaes os vi trabalhar com tal industria a ponto de parecer-me que, com pouco tempo de ensino, chegaram á perfeição. Alem d’isto fazem muito bem vestidos, cubertas de cama, sobre-céos, sanéfas e cortinados de cama, pennas de diversas cores, que por sua perfeição se pensa terem vindo de fóra. Não fallarei da propensão natural, que elles tem para pintar, fazer diversas folhagens, e figuras, servindo-se apenas de uma pequena lasca de pau, ou ponteiro, ao passo que os nossos pintores necessitam de tantos pinceis, compassos, regoas, e lapis. CAPITULO XIX Quanto são aptos os selvagens para aprenderem sciencias e virtudes. Quando regressei das Indias para a França, pelas frequentes e constantes perguntas, feitas pelas pessoas, que me vinham visitar, reconheci quanto é difficil acreditarem os Francezes, que os selvagens sejam aptos para aprenderem sciencia e virtude, e não sei se alguns chegam a ponto de julgar estes povos antes do genero dos macacos, do que dos homens. Em quanto a mim elles são homens, e provarei, e por tanto capazes de obterem sciencia e virtude. Seneca na sua epistola 110 disse «_Omnibus natura dedit fundamenta semenque virtutum_.» A natura deo a todas as creaturas, sem excepção de uma só, as raizes e as sementes das virtudes, palavras mui notaveis: assim como as raizes e as sementes são lançadas na terra e por conseguinte enterradas em suas entranhas, assim tambem Deos lançou naturalmente no espirito do homem as raizes e as sementes da virtude: com taes alicerces pode o homem, ajudado por Deos, edificar um predio, e extrahir da semente uma bella arvore carregada de flores e de fructos, doutrina esta muito bem provada por S. João Chrisostomo, na Homilia 55, ao povo de Antiochia, e na Homilia 15 á respeito da Epistola 1ª á Thimotheo moralisando esta passagem do Genesis:—_Germinet terra, herbam virentem, e omne lignum pomiferum_, «produsa a terra herva verdejante ou arvore fructifera:» acrescentou ainda—_Dic ut producat ipse terra fructum proprium et exibit quicquid facere velis_, «dize e ordena á tua propria terra, que produza seo fructo natural, e verás ella produzir logo o que pedires.» São Bernardo, no _Tractado da vida solitaria_, disse—_virtus vis est quædam ex natura_, «a virtude é uma certa força, que sahe da natureza.» Se assim não fôr, quero provar por muitos exemplos, começando pelas sciencias, para cujo ensino concorrem as tres faculdades da alma—vontade, intelligencia, e memoria: a vontade dá ao homem o desejo de aprender, e por ella vencemos toda a sorte de trabalhos e difficuldades: a intelligencia dá vivacidade para comprehender, e a memoria guarda e conserva o que conheceo e aprendeo. São mui curiosos os selvagens de saber novidades e para satisfazer tal desejo, os caminhos e a distancia das terras, por maiores, que sejam, lhes parecem curtos, não sentem a fome, porque passam, e os trabalhos como que são descanço para elles: prestam-vos toda a sua attenção, escutam o que disserdes durante o tempo que vos parecer, sem enfado e em silencio, á respeito de Deos, ou de qualquer assumpto, e se tiverdes paciencia, elles vos farão milhares de perguntas. Lembra-me, que entre as praticas, que eu lhes fazia ordinariamente por intermedio do meo interprete, eu lhes disse que apenas chegassem de França os Padres, elles mandariam edificar casas de pedra ou de madeira, onde seriam recolhidos seos filhos, aos quaes os Padres ensinariam tudo o que sabem os _Caraibas_. Responderam-me: oh! quanto são felizes nossos filhos por aprenderem tão bellas coisas, oh! quanto fomos infelizes nós e os nossos antepassados por não haverem Principaes n’esse tempo. É viva sua intelligencia como reconhecereis pelo seguinte facto. Não ha estrellas no Ceo, que elles não conheçam e calculam pouco mais ou menos a vinda das chuvas e as outras estações do anno. Pela phisionomia distinguem um Francez de um Portuguez, um Tapuyo de um Tupinambá, e assim por diante. Nada fazem antes de pensar, e pezam em seu juiso uma coisa antes de emittir sua opinião. Ficam serios e pensativos, porem não se precipitam em fallar. Mas, dizeis vós, como é possivel que estas pessoas tenham tal juiso fazendo o que fazem? Porque elles dão por uma faca cem escudos de ambar gris, ou qualquer outra coisa, que apreciamos, como sejam: ouro, prata e pedras preciosas. Eu vos direi a opinião que elles fazem de nós, muito contraria n’este ponto: julgam-nos loucos e pouco judiciosos em apreciar mais as coisas, que não servem para o sustento da vida do que aquellas, que nos proporcionam o viver commodamente. Na verdade, quem deixará de confessar, ser uma faca mais necessaria á vida do homem, do que um diamante de cem mil escudos, comparando um objecto com outro, e pondo de parte, a estima que se lhe dá? Para provar que não lhes falta juiso afim de avaliar a estima que fazem os Francezes das coisas existentes em sua terra, basta dizer, que elles sabem altear muito o preço das coisas, que julgam ser apreciadas pelos francezes. Um dia disseram-me alguns, que era preciso haver muita falta de madeira em França, e que experimentassemos muito frio para mandarmos navios de tão longe, a mercê de tantos perigos, carregarem de paus.[36] Respondi-lhes que não era para queimar e sim para tingir de cores. Replicaram-me: porque nos compraes o que cresce em nosso paiz a troco de vestidos vermelhos, amarellos e verde-gaios? Eu os satisfiz dizendo ser necessario misturar outras cores com as do seo paiz para tingir panos. Si me disserdes, que elles fazem acções inteiramente brutaes, como as de comer seos inimigos, e praticar tudo que os offenda, como seja expol-os em lugares onde ha piolhos, vermes, espinhos, etc., eu vos responderei não provir isto de falta de juiso, porem sim de um erro hereditario, sempre existente entre elles, por pensarem, que sua honra depende de vingança: parece-me, que tambem não é desculpavel o erro dos nossos francezes de se matarem em duello, e comtudo vemos os mais bellos espiritos, e os primeiros da nobreza concordarem com este erro, despresando a Lei de Deos, e arriscando a eternidade de sua salvação. Quanto a memoria elles a possuem muito feliz, porque lembram-se sempre do que viram e ouviram com todas as circumstancias do lugar, do tempo, das pessoas, quando o caso se disse ou se executou, fazendo uma geographia ou descripção natural com a ponta de seos dedos na areia, do que estão contando. O que mais me admirou foi vel-os narrar tudo quanto se ha passado desde tempos immemoriaes, somente por tradicção, porque tem por costume os velhos contar diante dos moços quem foram seos avós e antepassados, e o que se passou no tempo d’elles: fazem isto na _casa grande_, algumas vezes nas suas residencias particulares, acordando muito cedo, e convidando gente para ouvil-os, e o mesmo fazem quando se vesitam, porque abraçando-se com amisade, e chorando, contam um ao outro, palavra por palavra quem foram seos avós e ante-passados, e o que se passou no tempo em que viveram. CAPITULO XX Continuação do objecto antecedente. Concordo que sejam estes povos inclinados pela naturesa á muitos vicios, porem é necessario lembrar-nos, que elles são captivos por infidelidade d’estes espiritos rebeldes a Lei de Deos, e instigadores da sua transgressão. São João na sua Epistola 1.ª chama _iniquidade_ ou _desigualdade_ o desvio ou a digressão do direito, como muito bem explica o texto Grego[BC] ——————————, assim traduzido _Peccatum est exorbitatio á lege_. Esta Lei é divina ou humana: aquella dada por escripto á Moysés, e depois por Jesus Christo aos christãos, e esta acha-se gravada no intimo d’alma. Transgredindo-se estas duas Leis commettem-se dois peccados, um contra os mandamentos de Deos, e outro contra a lei natural: por elles serão accusados e condemnados os incredulos, cada um de per si, alem do peccado commum da infidelidade. Entre todos os vicios a que estão sugeitos estes barbaros, sobresahe a vingança, que nunca perdoam, e a praticam logo que podem, embora as boas apparencias com que tratam seos inimigos reconciliados. Não ha a menor duvida que retirando-se os francezes do Maranhão, todas as nações, antes inimigas, que ahi residem promiscuamente, por terem a nossa alliança, devorar-se-hão umas ás outras, embora, o que é para admirar, vivam agora muito bem sob o dominio dos francezes, e até contrahindo-se casamentos entre ellas. Gostam tanto de vinho a ponto de ser considerada a embriaguez por elles, e até mesmo pelas mulheres, como uma grande honra. São impudicos extraordinariamente, mais as raparigas do que qualquer outros inventores de noticias falsas, mentirosos, levianos e inconstantes, vicios mui communs a todos os incredulos, e por ultimo são extremamente preguiçosos a ponto de não quererem trabalhar, embora vivam na miseria, antes do que na opulencia por meio do trabalho. Se elles quizessem, não era necessario muito cansaço para terem em poucas horas muita carne e peixe. O que acabo de dizer, refere-se especialmente aos _Tupinambás_, porque as outras nações, como sejam os _Tabajares_, _Cabellos-compridos_, _Tremembés_, _Canibaes_, _Pacajares_, _Camarapins_, e _Pinarienses_, e outros trabalham muito para viver, ajuntar generos, ter boa casa, e todas as commodidades. Vou dar-vos um exemplo bem notavel da preguiça dos nossos _Tupinambás_. Obtendo alguns Francezes do Forte licença para irem passear ás aldeias, foram á do chefe _Vsaap_. Na entrada da primeira choupana encontraram um grande fumeiro cheio de caça, e ao lado d’elle um indio, dono da casa, deitado n’uma rede de algodão, que gemia muito como se estivesse bastante doente. Os nossos Francezes alegres e promptos á festejarem esta mesa tão bem preparada, lhe perguntaram com brandura e carinho _Dê omano Chetuasap_, «está doente meo compadre?» Sim, respondeo elle. Que tendes, replicaram os Francezes, quem vos fez mal? Minha mulher, disse elle. Foi para roça desde pela manhã, e eu ainda não comi. A farinha e a carne está tão perto de vós, porque não vos levantaes, para comer, disseram os francezes? Sou preguiçoso, não sei levantar-me. Quereis, tornaram os francezes, que vos levemos a farinha e a carne, e comeremos comvosco? Quero, respondeo elle logo. Começaram todos a aliviar o fumeiro, pozeram tudo diante d’elle, e assentando-se em roda, como é de costume, excitaram-lhe o apetite pela boa vontade que mostravam, e o trabalho, que elles tiveram de tirar a comida de cima do fumeiro, em distancia de tres pés, foi o unico pagamento de tal companhia na mesa. Apesar de suas perversas inclinações, elles tem outras muito boas, louvaveis e virtuosas. Vivem pacificamente com os outros, dividem com elles o resultado de sua pescaria, caçada e lavoura, e não comem ás escondidas. Um dia na aldeia de Januaran só tinham farinha para comer. Appareceu um rapaz trazendo uma perdiz morta ha pouco; sua mãe depennou-a ao fogo, cozinhou-a, deitou-a n’um pilão, reduzio-a á pó, e juntando-lhe folhas de mandioca, cujo gosto é similhante ao da chicoria selvagem, fez ferver tudo, e depois de bem picado ou cortado em pedacinhos, d’esta mistura fez pequenos bolos, do tamanho de uma balla, e mandou distribuil-os pela aldeia, um para cada choupana. Vi ainda uma coisa mais admiravel, embora comesinha, e sem consequencia. Appareceram em minha casa muitos selvagens esfaimados, vindos da pescaria, onde somente apanharam um carangueijo, que assaram sobre carvões, e pedindo-me farinha, o comeram todos, fazendo roda, cada um o seo pedacinho: eram doze ou treze. Bem podeis imaginar o que tocaria a cada um, sendo o carangueijo do tamanho de um ovo de galinha. É muito grande a liberalidade entre elles, e desconhecida a avaresa. Si algum delles tiver desejos de possuir uma coisa, que pertença a outro, elle o diz francamente, e é preciso que o objecto seja muito estimado para não ser dado logo, embora o que a pedio fique na obrigação de dar ao outro tambem o que elle desejar. Tornam-se mais liberaes para com os estrangeiros do que para com seos patricios. Ficam reduzidos á pobresa comtanto que bem hospedem os estrangeiros, que vão visital-os, julgando-se bem recompensados com a fama de liberaes, espalhada pelos que não são de sua terra, e julgam chegar ella até aos paizes estrangeiros, onde serão tidos por grandes e ricos. Com taes ideias muitas vezes vão fazer visitas a cem, duzentas e tresentas legoas afim de serem apreciados por suas liberalidades. Nunca roubam uns aos outros; o que possuem está á vista, pendurado nas vigas e barrotes de suas casas. É bem verdade, que dentro da Ilha actualmente, em Tapuytapera, e Cumã, elles tem cofres, que lhes deram os Francezes, onde guardam o que tem de melhor, e, ou excitados por isto, ou pelo exemplo dos Francezes, muitos d’elles ja aprenderam a arte de furtar. Elles chamam furtar—_Mondá_, ao ladrão _Mondaron_, e este nome é entre elles grande injuria a ponto de mudarem de côr quando o pronunciam: chamar uma mulher ladra, é duas vezes prostituta, com o nome de _Menondere_ para differençar de prostituta simples—_Patakuere_, é aquelle primeiro epitheto o mais afrontoso, que se lhe pode dizer. Tomareis uma boa vingança chamando-os ladrões, quando elles vos atirarem ao rosto um bem claro, e expressivo _Giriragoy_, que quer dizer _mentiste_, sem exceptuar pessoa alguma, e por isto bem podeis avaliar quanto este vicio é detestado por elles, pois não podem tolerar a injuria. Guardam reciproca equidade, não se enganam nem se illudem: si um offende a outro, segue-se logo a pena de _Talião_: são mui tolerantes, respeitam-se reciprocamente, especialmente os velhos. São muito soffredores em suas miserias e fome chegando até a comer terra,[37] ao que acostumam seos filhos, o que vi muitas vezes. Vi muitos meninos tendo nas mãos uma bolla de terra, que ha em sua aldeia como _terra siggilada_, a qual apreciam e comem como fazem as crianças, em França com as maçans, as pêras, e outros fructos que se lhes dá. Não se esmeram no preparo da comida, como nós, por que ou a cozinham ao fogo, ou a fazem ferver n’uma panella sem sal, ou assam-n’a no fumeiro. CAPITULO XXI Ordem e respeito da naturesa entre os selvagens, observada inviolavelmente pela mocidade. O que mais me impressionou e admirou durante os dois annos, que estive entre os selvagens, foi a ordem e respeito observado inviolavelmente pelos moços para com os seos parentes mais velhos, ou entre elles, fazendo cada um o que permitte a sua idade sem cuidar do que se acha no mais alto ou no menor grau. Ninguem deixará de admirar-se commigo vendo a naturesa somente ter n’estes barbaros o poder de fazel-os guardar o respeito, que os meninos devem a seos maiores, e fazer conter a estes no que é exigido pela diversidade das idades. Quem não se hade admirar vendo a naturesa somente ter mais força para fazer observar estas coisas, do que a Lei e a graça de Jesus-Christo sobre os Christãos, entre os quaes raras vezes se contem a mocidade nos seos deveres, apesar de todos os bons ensinos, mestres e pedagogos, apparecendo sempre confusão e grande presumpção. Muito praser terei si o caso seguinte nos der algum remedio. Distinguem os selvagens suas idades por certos graus, e cada grau tem no frontespicio de sua entrada, seu nome proprio, que ensina ao que pretende entrar em seo palacio os seos jardins e alamedas, a sua occupação, e isto por enigmas, como eram outr’ora os Hierogliphos dos Egypcios. O primeiro grau é destinado as crianças do sexo masculino e legitimos e dão-lhe em sua lingua o nome de _Peitan_, isto é, «menino sahindo do ventre de sua mãe.» Á este primeiro grau da idade do menino é inteiramente cheio de ignorancia, de fraqueza e de lagrimas, base de todos os outros graus. A natureza, boa mãe d’estes selvagens, quiz que o menino sahindo do ventre de sua mãe, se achasse em estado de receber em si as primeiras sementes do natural commum d’estes selvagens, porque não é afagado, pensado, aquecido, bem nutrido, bem tratado, nem confiado aos cuidados de alguma ama, e sim apenas lavado em algum riacho ou n’alguma vasilha com agua, deitado n’uma redezinha de algodão, com todos os seos membros em plena liberdade, nus inteiramente, tendo por unico alimento o leite de sua mãe, e grãos de milho assados, mastigados por ella até ficarem reduzidos á farinha, amassados com saliva em forma de caldo, e postos em sua boquinha como costumam a fazer os passaros com a sua prole, isto é, passando de bocca para bocca. É bem verdade, que quando o menino é um pouco forte, por conhecimento e inclinação natural, ri-se, brinca e salta, nos braços de sua mãe, pensando estar mastigando sua comida, levando seo bracinho á bocca d’ella, recebendo no concavo de sua mãosinha este repasto natural, que leva á bocca e come: quando se sente farto, bota fóra o resto, e virando a cara, e batendo com as mãos na bocca da mãe, lhe dá a entender que não quer mais. Obedece a mãe promptamente não forçando seo apetite e nem lhe dando occasião de chorar. Si o menino tem sêde, por gestos sabe pedir o peito de sua mãe. Em tão tenra idade mostram o respeito e o dever, que a natureza lhes dá, porque não são gritadores, comtanto que vejam suas mães, e ficam no lugar onde os deixam. Quando vão trabalhar nas roças ellas as assentam nuasinhas na areia ou na terra, onde ficam caladinhas, ainda que o ardor do sol lhes dê no rosto ou no corpo. Qual seria de nós, que hoje poderia viver soffrendo na primeira idade tantos encommodos? Esperam os nossos paes a retribuição e dever, que principiamos a pagar-lhes desde a primeira idade, si não estão cegos pelo amor que nos tem; o mesmo devem esperar nas outras idades, sendo mais reconhecidos os nossos deveres para com elles, custe o que custar-nos. Começa a segunda idade, quando o menino anima-se a andar sosinho, e apezar de haver alguma confusão da-se-lhe o mesmo nome. Observei differença na maneira de criar os meninos, que não sabem andar, e os que se esforçam para o fazer, o que nos leva a formar outra classe, e dar-lhe nome proprio: chama-se _Kunumy-miry_, «rapazinho»[38] e abrange até 7 a 8 annos. Durante este tempo não se separam de suas mães, e nem acompanham seos Paes, e o que é mais, deixam-nos mamar até que por si mesmo aborreçam o peito, habituando-se pouco a pouco ás comidas grosseiras como os grandes e adultos. Dão lhes pequenos arcos e flexas proporcionaes ás suas forças, reunindo-se uns aos outros plantam e juntam algumas cabaças, nas quaes fazem alvo para o tiro das suas flechas adextrando assim bem cêdo seos braços. Não açoitam, e nem castigam seos filhos, que obedecem a seos paes e respeitam os mais velhos. È muito agradavel esta idade dos meninos, e n’ella podereis descobrir a differença existente entre nós pela naturesa e pela graça: sem fazer comparação, acho-os mimosos, doceis e affaveis como os meninos francezes, não esquecendo antes tornando bem saliente a graça do Espirito Santo concedida pelo baptismo aos filhos dos Christãos. Si acontece morrerem os meninos n’esta idade, tem os paes pesar profundo, e sempre se recordam d’elles, especialmente nas cerimonias de lagrimas e lamentações, recordações que fazem uns aos outros, lastimando esta perda e a morte dos seos filhinhos, dando-lhes o nome de _Ykunumirmee-seon_ «o menino morto na infancia.» Vi mães, quase loucas, no meio de suas roças, ou nas matas sosinhas, em pé ou agachadas, chorando amargamente, e quando lhes perguntava para que faziam isto, respondiam-me «Oh! recordo-me da morte de meos filhinhos, _Ché Kunumirmee-seon_, ainda na infancia» e depois continuavam a chorar e muito. È na verdade mui natural o ter pesar da perda e morte d’estes meninos, que ja haviam custado tantos trabalhos á seos paes, e que estavam na edade de dar-lhes alguma alegria. Acha-se a terceira classe entre estas duas primeiras—infancia e puericia, e as da adolescencia e virilidade, entre os 8 a 15 annos, a que chamamos mocidade: appellidam-nos os selvagens simplesmente por _Kunumy_ sendo a infancia chamada _Kunumy-miry_, e a adolescencia _Kunumy-uaçu_. Estes _Kunumys_, ou rapazes, na idade do 8 a 15 annos, não ficam mais em casa e nem ao redor de sua mãe, e sim acompanham seos paes, tomam parte no trabalho d’elles imitando o que vêem fazer: empregam-se em buscar comida para a familia, vão as matas caçar aves, e ao mar flechar peixes e admira vêr a industria com que flecham as vezes tres a tres peixes juntos, ou agarram em linha feita de _tucu_ ou em _pussars_, especie de rêde de pescar, que enchem de ostras e outros mariscos, e levam para casa. Não se lhes manda fazer isto, porem elles o fazem por instincto proprio, como dever de sua idade, e já feito tambem por seos antepassados. Este trabalho e exercicio mais agradavel do que penoso, e proporcional a sua idade, os isenta de muitos vicios, aos quaes a naturesa corrompida costuma a prestar attenção, e a ter predilecção por elles. Eis a razão porque se facilita á mocidade diversos exercicios liberaes e mecanicos, para distrahil-a e desvial-a da má inclinação de cada um, reforçada pelo ocio mormente n’aquella idade. A quarta classe é para os que os selvagens chamam _Kunumy-uaçú_, «mancebos»: abrange a idade de 15 a 25 annos, por nós chamada «adolescencia.» Tem outro modo de vida, entregam-se com todo o esforço ao trabalho, acostumam se a remar, e por isso são escolhidos para tripularem as canôas quando vão á guerra. Applicam-se especialmente a fazer flexas para a guerra, a caçarem com cães, a flechar e arpoar peixes grandes, não usam ainda de _Karacóbes_, isto é, de um pedaço de pano atado na frente para encobrir suas vergonhas, como fazem os homens casados, e sim de uma folha de Palmeira. Tem o poder de dividir o que possuem com os mais velhos, reunidos na _Casa-grande_, onde conversam, e servem tambem os mais velhos. É n’este tempo, diga-se a verdade, que elles mais ajudam a seos paes e mães, trabalhando, pescando e caçando, antes de se casarem, e portanto sem obrigação de sustentarem mulher: eis porque sentem muito seos paes quando elles morrem n’esta idade, dando-lhes em signal de sua dor o nome de _Ykunumy-uaçú-remee-seon_, que quer dizer «o mancebo morto» ou «o mancebo morto na sua adolescencia.» Abrange a quinta classe desde 25 até 40 annos, e se chama _Aua_ o individuo n’ella comprehendido, vocabulo aplicado a todas as idades, assim como usamos com o nome _homem_. Apesar d’isto ser privativo d’esta idade, assim como o homem é pelos Latinos chamado _vir_, _á virtude_, e em Francez idade viril, de virilidade, quer dizer—a força, que no homem chegou a seu termo: n’esta mesma lingua de selvagens a palavra _Aua_, de que procede _Auaté_, quer dizer «forte, robusto, valente, audacioso», para significar a 5ª idade dos seos filhos. N’essa occasião como guerreiros são bons para combater, nunca porem para commandar: buscam casar-se, o que não é difficil por consistir o enxoval da noiva apenas de algumas cabaças, que lhes dá sua mãe para principiar sua casa, vestidos, e roupas, ao contrario em nosso paiz as mães fornecem enfeites e pedras brancas a suas filhas. Os paes dão por dote aos maridos de suas filhas 30 ou 40 toros de pau de tamanho proprio a poderem ser levados á casa do noivo, os quaes servem para com elles se accender o _fogo das bodas_: o individuo casado de novo não se chama _Aua_, e sim _Mendar-amo_. Embora sejam casados o homem e a mulher não ficam livres da obrigação natural de proteger seos paes e ajudal-os a fazer suas roças. Soube d’isto em minha casa, vendo a filha de _Japy-açú_, baptisada e casada á face da Igreja, dizer a um outro selvagem, seo marido, tambem christão, quando pretendia ir a _Tapuitapera_ ajudar o Rvd. Padre Arsenio no baptismo de muitos selvagens, «Onde queres ir? Tu bem sabes que ainda não se fizeram as roças de meo Pae, e que ha falta de mantimentos: não sabes, que si elle me deo a ti foi com a obrigação de o auxiliares na velhice? Si queres abandonal-o então volto para a casa d’elle.» Advertiram-na á respeito d’estas ultimas palavras, fazendo-a reconhecer o juramento que dera, de nunca abandonal-o ou separar-se d’elle, louvando-se comtudo muito os outros sentimentos, que manifestou á favor de seo Pae, e praza a Deos que todos os christãos a imitassem dando verdadeira intelligencia a estas palavras formaes do casamento que o homem e a mulher deixaram seos paes para viverem juntos—porque de outra fórma seria Deus authorisar a ingratidão dos filhos casados sob pretexto de terem filhos, ou poder tel-os e precisar cuidar do seo sustento, quando ao contrario Deos condemna, como reprobo, o que abandona seos paes, sem os quaes, não fallando na vontade de Deos, não viriam ao mundo nem elles, e nem seos filhos, embora por essas palavras mostre a grande união, que pelo casamento se faz entre o corpo e o espiríto dos casados. Comprehende a 6ª classe os annos de 40 até a morte: é a mais honrosa de todas, e cercada de respeito e veneração, os soldados valentes, e os capitães prudentes. Assim como o mez dá a colheita dos trabalhos e a recompensa da paciencia, com que o lavrador supportou o inverno e a primavera, lavrando com a sua charrua o campo em todos os sentidos, sem ser ajudado pela terra, assim tambem quando chega a estação da velhice são honrados pelos que tem menos idade. O que occupa esta classe chama-se _Thuyuae_, quer dizer, «ancião ou velho.» Não póde, como os outros, ser assiduo ao trabalho: trabalha quando quer, e bem a sua vontade, mais para exemplo da mocidade, respeitando tradicções da sua Nação, do que por necessidade: é ouvido com todo o silencio na _casa-grande_, falla grave e pausadamente usando de gestos, que bem explicam o que elle quer dizer e o sentimento, com que falla. Todos lhe respondem com brandura e respeito, e ouvem-nos os mancebos com attenção: quando vae a festa das _Cauinagens_ é o primeiro, que se assenta e é servido; entre as moças, que distribuem o vinho pelos convidados, as de mais consideração o servem, e são as parentas mais proximas do que fez o convite. No meio das danças entoam os cantos; dam-lhe a nota, principiam pela mais baixa até a mais grave, crescendo gradualmente até chegar á força da nossa musica. Suas mulheres cuidam n’elles, lavam-lhes os pés, apromptam e trazem-lhe a comida, e se ha alguma difficuldade na carne, no peixe ou nos mariscos, ellas a tiram, accommodando-a ás suas forças. Quando morrem alguns d’elles os velhos lhe prestam honras, e o choram como as mulheres, e lhe dam o nome de _thuy-uae-pee-seon_: quando morrem na guerra, chamam-no _marate-kuepee-seon_, «velho morto no meio das armas», o que ennobrece tanto seos filhos e parentes, como entre nós qualquer velho Coronel, que occupou sua vida inteira no serviço do exercito pelo Rei e pela Patria, e que por corôa de gloria morreo com as armas na mão, com a frente para os inimigos, no meio de renhido combate, coisa nunca esquecida por seos filhos antes considerada como grande herança, e de que se aproveitam apresentando-os ao Principe como bons serviços de seo Pae, e pedindo por elles uma recompensa. Não fazendo estes selvagens caso algum de recompensas humanas, porem empenhando todas as suas forças para conseguirem essas honras, provam com isto o quanto apreciam não só os actos de heroismo de seos paes, mas tambem a serem estimados por causa d’elles. Os que morrem nos seos leitos não deixam de ser honrados, conforme o seo merito, e chamam-no _theon-suyee-seon_, «o bom velho que morreo na cama». Por isto podeis avaliar como a naturesa por si só nos ensina a respeitar, a ajudar, e a soccorrer os velhos e anciões e á refrear com violencia a temeridade e presumpção dos moços, que sem prevêrem o futuro, não se recordam de que na sua velhice, se lhes fará justamente o que elles, quando jovens, fizeram aos mais velhos, dando esse exemplo á seos filhos, e ensinando-os a serem ingratos. CAPITULO XXII A mesma ordem e respeito é observada entre as raparigas e as mulheres. Encontram-se n’estes selvagens vestigios da naturesa, como as pedras preciosas se acham nas encostas das montanhas. Seria um louco o que quizesse encontrar em seos jazigos os diamantes tão claros e brilhantes, como quanto lapidados e engastados n’um anel. Provem esta differença de se acharem tão ricas pedras cubertas de jaça sem mostrar o seo valor de tal sorte, que muitos passam e tornam a passar por cima d’ellas sem levantal-as visto não as conhecerem. Acontece a mesma coisa na conversação d’estes pobres selvagens: muitos ignoram e ignorarão ainda o que tenho narrado e narrarei, e embora tenham conversado com elles por muito tempo, por falta de conhecimento ou de observação da boa conducta natural d’estas pessoas fóra da graça de Deos, passaram por ellas, á similhança das pedras preciosas, sem tirar o menor proveito, e olhando-as com indifferença. A mesma ordem de classes de idade tenho observado entre as raparigas e as mulheres, como entre os homens. A primeira classe é commum á ambos os sexos, cujos individuos, sahindo immediatamente do ventre de suas mães, se chama _Peitan_, como já dissemos no art. antecedente. A segunda classe estabelece distinção de idade, de sexo, e de dever: d’idade de moça para moça, de sexo de moça para rapaz, e de dever de mais moça para mais velha. Comprehende esta classe os sete primeiros annos, e a rapariga d’esse tempo se chama _kugnantin-myri_, quer dizer _rapariguinha_. Reside com sua mãe, mama mais um anno do que os rapazes, e vi meninas com seis annos d’idade ainda mamando, embora comam bem, fallem, e corram como as outras. Em quanto os rapazes d’esta idade carregam arcos e flexas, as raparigas se empregam em ajudar suas mães, fiando algodão como podem, e fazendo uma especie de redesinha como costumam por brinquedo, e amassando o barro com que imitam as mais habeis no fabrico de potes e panellas. Expliquemos o amor, que o pae e a mãe dedicam a seos filhos e filhas. Pae e mãe consagram todo o seo amor aos filhos, e ás raparigas apenas accidentalmente, e n’isto acho-lhes razão natural, nossa luz commum, a qual nos torna mais affeiçoados aos filhos do que ás filhas, porque aquelles conservam o tronco e estas o despedaçam. Abrangem a terceira classe desde 7 até 15 annos, e a moça n’esta idade se chama _kugnantin_, «rapariga»: n’este tempo ordinariamente perdem, por suas loucas phantasias, o que este sexo tem de mais charo, e sem o que não podem ser estimadas nem diante de Deos, nem dos homens; perdoem-me se digo, que n’esta idade não são prudentes, embora a honra e a lei de Deos as convidasse á immortalidade da candura, porque estas pobres raparigas selvagens pensam, e muito mal, aconselhadas pelo autor de todas as desgraças, que não devem ser mais puras quando chega esse tempo. Nada mais direi para não offender o leitor: basta tocar apenas o fio do meo discurso. N’essa idade aprendem todos os deveres de uma mulher: fiam algodão, tecem redes, trabalham em embiras, semeam e plantão nas roças, fabricam farinha, fazem vinhos, preparam a comida, guardam completo silencio quando se acham em quaesquer reuniões onde ha homens, e em geral fallam pouco se não estão com outras da mesma idade. A quarta classe está entre 15 a 25 annos, e a rapariga n’ella comprehendida chama-se _kugnammucu_, «moça ou mulher completa», o que nós dizemos por «moça boa para casar.» Passaremos em silencio o abuso, que se pratica n’estes annos, devido aos enganos de sua Nação, reputados como lei por elles. São ellas, que cuidam da casa alliviando suas mães, e tratando das coisas necessarias á vida da familia: cedo são pedidas em casamento, si seos paes não as destinam para algum francez afim de terem muitos generos, e no caso contrario são concedidas, e então se chamam _kugnammucu-poare_,[39] «mulher casada, ou no vigor da idade.» D’ahi em diante acompanha seo marido carregando na cabeça e ás costas todos os utencilios necessarios ao preparo da comida, as vezes a propria comida, ou os viveres necessarios á jornada, como fazem os burros de carga com a bagagem e alimentação dos seos senhores. É occasião de dizer, que ambiciosos como os grandes da Europa, que desejam ostentar sua grandesa apresentando grande numero de burros, estes selvagens tambem desejam ter muitas mulheres para acompanhal-os, e levar suas bagagens, mormente havendo entre elles o costume de serem estimados e apreciados pelo grande numero de mulheres á seo cargo. Quando grávidas, após o casamento, são chamadas _puruabore_, «mulher prenhe», e apezar d’este estado não deixam de trabalhar até á hora do parto, como si nada tivessem. Apresentam grande volume, porque ordinariamente parem meninos grandes e corpolentos. Talvez se pense que n’este estado cuidam ellas em cobrir sua nudez, porem não soffrem a menor alteração o seo modo de viver. Chegado o tempo do parto, si assim se póde chamar, não procura para esse fim a cama, si as dores não são fortes: em qualquer dos casos senta-se, é rodeada por suas visinhas convidadas para assistil-as, pouco antes do apparecimento das dores, por meio d’estas palavras _chemenbuirare-kuritim_ «eu vou já partir, ou estou quase a parir»: corre veloz o boato de casa em casa, que tal e tal mulher vae parir, dizendo com o nome proprio da parturiente estas palavras _ymen-buirare_, que significa «tal mulher pario, ou está para parir.» Acha-se ahi o marido com as visinhas, e si ha demora no parto, elle aperta-lhe o ventre para fazer sahir o menino, o que acontecido, deita-se para observar o resguardo em lugar de sua mulher,[40] a qual continua a fazer o serviço do costume, e então é vesitado em sua cama por todas as mulheres da aldeia, que lhe dirigem palavras cheias de consolação pelo trabalho e dôr, que teve de fazer o menino, sendo tratado como gravemente doente e muito cançado, á maneira do que se pratica em identicas circumstancias com as mulheres de paizes civilisados. Comprehende a quinta classe desde 25 até 40 annos, quando o homem e a mulher attingem ao seo maior vigor. Dam-lhe geral e commummente o nome de _kugnan_, «uma mulher, ou uma mulher em todo o seo vigor». N’essa idade conservam ainda as indias alguns traços de sua mocidade, e principiam a declinar sensivelmente, sendo feias e porcas, trazendo as mamas pendentes á similhança dos cães de caça, o que causa horror: quando jovens, são bonitas e asseiadas, e tem os peitos em pé. Não quero demorar-me muito n’esta materia, e concluo dizendo, que a recompensa dada n’este mundo á puresa é a incorruptibilidade e inteiresa acompanhada de bom cheiro, mui bem representada nas letras santas pela flôr do lyrio puro, inteiro e cheiroso—_sicut lilium inter spinas, sic amia mea inter filias_. A sexta e ultima classe está entre os 40 annos e o resto da vida, e então a mulher se chama _Uainuy_: n’este tempo ainda parem. Gosam do privilegio da mãe de familia: presidem ao fabrico dos _cauins_, e de todas as outras bebidas fermentadas. Occupam lugar distincto na _casa-grande_ quando ahi vão as mulheres conversar, e quando ainda se achava em pleno vigor o poder de comerem os escravos, eram ellas as incumbidas de assar bem o corpo d’elles, de guardar a gordura, que não queriam, para fazer o _mingau_, de cozinhar as tripas, e outros intestinos em grandes panellas de barro, de n’ellas misturar farinha e couves, e dividil-as depois por escudellas de pau, que mandavam distribuir pelas raparigas. Dam principio ás lagrymas e lamentos pelos defunctos, ou pela boa chegada de suas amigas. Ensinam ás moças o que aprenderam. Usam de más palavras, e são mais descaradas do que as raparigas e as moças, e nem me atrevo a dizer o que ellas são, o que vi e observei, sendo tambem verdade que vi e conheci muitas boas, honestas e caridosas. Existiam no _Forte de São Luiz_ duas boas mulheres _Tabajares_, que não se cansavam de trazer-me presentesinhos, e quando me os offereciam, sempre choravam e desculpavam-se de não poderem dar melhores. Não espero muito d’estas velhas: e o superior nada tem a fazer senão esperar que a morte o livre d’ellas: quando morrem não são muito choradas e nem lamentadas, porque os selvagens gostam muito de ter mulheres moças. Os selvagens creem supersticiosamente terem as mulheres, depois de mortas, muita difficuldade de deparar com o lugar onde, alem das montanhas, dançam seos ante-passados, e que muitas ficam pelos caminhos, se é que lá chegam. Não guardam asseio algum quando atingem a idade da decrepitude, e entre os velhos e velhas nota-se a differença de serem os velhos veneraveis e apresentarem gravidade e autoridade, e as velhas encolhidas e enrugadas como pergaminho exposto ao fogo: com tudo isto são respeitadas por seos maridos e filhos, especialmente pelas moças e meninas. CAPITULO XXIII Da consaguinidade entre os selvagens. Como entre nós, a consaguinidade entre estes barbaros tem muitos graus e ramos, e se observa entre todas as familias com tanto cuidado como fazemos, excepto porem a castimonia, que tem alguns embaraços entre elles, menos no primeiro grau—de pae para filha. Entre os irmãos e irmans não ha casamentos, mas duvido, e não sem razão, da regularidade da vida d’elles, e nem isto merece ser escripto. Bróta o primeiro ramo do tronco de seos avós, que elles chamam _Tamoin_,[41] e debaixo desta denominação comprehendem todos os seos ante-passados desde Nóe até o ultimo dos seos avós, e admira como se lembram e contam de avô em avô, seos ante-passados, o que difficilmente fazemos na Europa podendo remontar-nos, sem esquecer-nos, até o tataravô. O segundo ramo nasce e cresce do primeiro e chama-se _Tuue_, «pae», e é o que os gera em legitimo casamento, como acontece entre nós, porque para os bastardos ha outra Lei, de que fallarei em lugar proprio. Este ramo paterno dá outro, que se chama _Taire_, «filho», o qual se córta e divide-se em diversos galhos, a que chamam _chéircure_, «meo irmão mais velho», um dia—a cumieira da casa e da familia, e _chéubuire_, «meo irmãosinho», que só cuidará da casa, si fallecer seo irmão mais velho. Tendo filhos um destes irmãos, qualquer que seja o sexo, deve chamar o irmão de seo pae _chétuteure_, «meo tio» e sua mulher _chéaché_, «minha tia». Da mesma forma si seo pae tiver irmans elle as chama _chéaché_, «minha tia», como tambem os maridos d’estas _chétuteure_, «meo tio». Os tios e tias chamam os meninos de seos irmãos e irmans _chéyeure_ «meo sobrinho», e as meninas _reindeure_ ou _chereindeure_, «minha sobrinha». Os filhos de dois irmãos, isto é, de um irmão e os de outra irman se chamam os homens _rieure_ ou _cherieure_, «meo primo», e as moças _yeipere_ ou _cheitipere_ «minha prima.» Quanto á descendencia do lado das mulheres, a avó é o tronco, seja paterna ou materna, e chama-se _ariy_ ou _cheariy_, «minha avó.» A mãe é o segundo ramo, e chama-se _Ai_, «mãe», ou _cheai_, «minha mãe». Seguem-se gradualmente a filha, cujo nome é _tagyre_, filha, ou _cheagyre_, «minha filha», a irman _teindure_, «irman», ou _chéreindure_, «minha irman», a tia _yaché_, «tia», ou _chéaché_, «minha tia», a sobrinha _reindure_ ou _chereindure_, «minha sobrinha», ou «minha pequena irman», modo de fallar entre elles, a prima _yetipere_, «prima», ou _cheytipere_, «minha prima.» Eis os ramos de consaguinidade entre elles. Para os homens. Avô. Pae. Filho. Irmão. Tio. Sobrinho. Primo. Traduzido em sua lingua é _Chéramoin_ ou _tamoin_. _Tuue_ ou _chéru_. _Tayre_ ou _chéayre_. _Cheircure_ ou _chéubuire_. _Tuteure_ ou _chétuteure_. _Yeure_ ou _chéyeure_. _Rieure_ ou _chérieure_. Para as mulheres. Avó. Mãe. Filha. Irman. Tia. Sobrinha. Prima. Em sua linguagem. _Ariy_ ou _Ché-Ariy_. _Ai_ ou _Chéai_. _Tagyre_ ou _Chéagyre_. _Theindeure_ ou _Chéreindeure_. _Yaché_ ou _Chéaché_. _Reindure_ ou _Chéreindure_. _Yetipere_ ou _Ché-yetipere_. Alem d’estas consaguinidades existem mais duas por contractos de alliança; uma quando se dá sua filha á um individuo, ou quando se recebe uma moça para casar-se com seu filho, e outra quando, por contracto d’alliança com os francezes, lhes dam suas filhas para concubinas. Aos que dam suas filhas chamam _taiuuen_ «genro», ou _Chéraiuuen_, «meo genro». Á mulher de seo filho chamam _Tautateu_, «nóra», ou _Cherautateu_, «minha nora». Chamam os Francezes seos alliados por hospitalidade _Tuasap_, «compadre» ou _ché-tuasap_, «meo compadre» e as vezes _Chéaire_, «meo filho,» ou _Cheraiuuen_, «meu genro,» quando sua filha é concubina do Francez. É este o ramo d’alliança. Genro. Nóra. Compadre. Em sua linguagem é _Taiuuen_, ou _Ché-raiuuen_. _Tautateu_ ou _Cherautateu_. _Tuassap_ ou _Chetuassap_, ou então _Ché-aire_. São bastardos os filhos, que tem fóra do casamento legitimo á moda d’elles, e entre estes bastardos ha ainda certa ordem. A primeira é dos que tem pae e mãe, ambos Tupinambás: a segunda dos que tem por mãe uma india Tupinambá e por pae um Francez: a terceira dos filhos de um Tupinambá e de uma escrava: a quarta de uma Tupinambá e de um escravo: a quinta finalmente de uma escrava e de um Francez. A linha dos bastardos é a seguinte: De um Tupinambá com uma Tupinambá. De uma india Tupinambá com um Francez. De um Tupinambá com uma escrava. De uma india Tupinambá e um escravo. De uma escrava e de um Francez. Em sua linguagem chamam estes bastardos _Marap_, ou _Ché-marap_, e aos bastardos dos Francezes _Mulatres_, «mulatos.» São diversas as leis d’estes bastardos conforme sua descendencia, e antes de tratar d’ellas convem estabelecer a regra geral para com os bastardos, que é quando... (Falta uma folha.) ... elles o chamam _Toreuue_, «folgasão,» _Cheroreuue_, «sou divertido, folgasão:» o que é agradavel e tem para dizer alguma coisa chama-se _aron-ayue_. Suas saudações, perguntas e respostas, quando juntas, são o mais amavel que é possivel, mormente quando as fazem com acento muito longo, brando, e insinuante, especialmente as mulheres e as moças, e como sei que será agradavel ao Leitor vou aqui transcrever algumas de suas frazes communs e ordinarias.[42] Quando se levantam pela manhã dizem Tyen-de-Koem. Bom dia. Nein Tyen-de-Koem Para vós tambem. A tarde, do regressar do trabalho, quando se despedem Tyen de Karuq. Boa tarde. Nein Tyen de Karuq. Para vós tambem. Quando chega a noite, e querem dormir, dizem reciprocamente. Tyen-de-potom. Boa noite. Nein-Tyen-de-petom. Para vós tambem. Se alguem se derige a elles, ou passa ao pé d’elles ou se encontra no caminho, muitas vezes pára um pouco, com expressão docil e rosto prasenteiro perguntam um ao outro: Mamo sui pereiu? D’onde vindes? Mamo peresso? Onde ides? Logo que respondem e dizem d’onde vem e para onde vão, podeis ficar certo que se trata de uma das coisas seguintes, constante emprego de sua vida e exercicio, isto é, da pescaria no mar, da entrada nos bosques, da derrubada das arvores, da visita de suas roças, da plantação de raizes, da colheita dos fructos, e dos nabos, da caçada, dos passeios por varios lugares, da visita das aldeias e das habitações de uns e outros. São estas as respostas d’elles. Paranam-sui-kaiut. Venho do mar. Pira-rekie-sui-kaiut. Venho de pescar. Kaa-sui-kaiut. Venho do matto. Ybuira monosoc, ou então ybuira mondoc. Venho de cortar matto. Ko-sui-kaiut. Venho da roça. Ko-piraruer-kaiut. Venho de roçar. Maetum aruere. Venho de cavar e de plantar. Vuapoo-aruere kaiut. Venho de colher fructos. Kaaue-aruere kaiut. Venho da caça. Mosu-aruere-kaiut. Venho de passeiar. Taaue-sui-kaiut. Venho de tal aldeia. Ahere-piac-sui-kaiut. Venho de ver tal pessoa. Chere-suiu então cheretansui. Venho de minha casa. Ne in cheaiurco. Adeos, vou-me embora. Ne in oro iurco. Adeos, vamo-nos embora. Quando vae algum visinho procural-os em sua casa, ou quando sentem falta de alguma coisa, procurando por ahi algures elles perguntam: Que procuraes? Maeperese-kar? Que perguntaes? Maraereico? Então dizem o que procuram, e respondem ás perguntas mui francamente; por exemplo: Quero comêr. Agerure deué-cheremyuran ressé. Quero farinha. Agerure uiressé. Quero carne. Agerure soo ressé. Quero peixe. Agerure pyra ressé. Quero agoa. Agerure v-ressé. Quero fogo. Agerure tata cheué. Quero uma faca. Agerure xè. Um machado. Iu. Se veem alguem pensativo, elles lhe perguntam o que ha e no que pensam. Que pensaes? Mara-péde-ie-mongueta. Elle responde: Não penso em coisa alguma. Ai Kogué. Penso em alguma coisa. Maerssé-kaien-arico. Penso em vós. Dressé kaien-arico. Si veem um conversando com outros, tem muita curiosidade de saber o que dizem, e por isso vão procural-os, e amigavelmente lhe perguntam: Que dizeis? ou então, em que { Mára-erepe? Mára-erepipo? conversavam? { Mara-peie-peiupé. Respondem elles: Fallavamos de nossas occupações. Ore-rei-koran koiomongueta. Fallavamos de vós. Deressé koia-mongueta. Assim passavam entre si a vida mui pacifica e familiarmente. CAPITULO XXV Dos caracteres incompativeis entre os selvagens. Costumava Socrates dizer, que assim como o vinho aspero e grosseiro é de digestão má e desagradavel ao paladar, assim tambem os caracteres rudes, grosseiros e impectuosos não servem para companheiros de uma conversação entre homens. Escreveo Plutarcho, que assim como o som aspero dos caldeirões e panellas quebradas encolerisam os tigres a ponto de fazel-os accommetter desesperadamente e saltar sobre os que vem fazer perto d’elles tão incommodo e desagradavel barulho, assim tambem fazem as más inclinações, ou os maus caracteres entre os homens. Aborrecem sobre todas as coisas o companheiro, que provoca e faz mal ao seo visinho, e chamam-no _Moiaron_, e quando se insultam por palavras, chamam-no então _Oroacap_. Quando encontram taes caracteres, fogem d’elles e evitam iguaes contestações, e ainda fazem mais, previnem os Francezes seos compadres, afim de que nada peçam á tal gente. Si por ventura teem mulheres com esse genio ficam muito contrariados, e não necessitam ser muito rogados afim de livrarem-se d’ellas, ou de consentir que vão para onde bem lhes parecer. Ha em _Juniparan_, na Ilha, um hermaphrodita, no exterior mais homem do que mulher, porque tem face e voz de mulher, cabellos finos, flexiveis, e compridos, e comtudo casou-se e teve filhos, mas tem um genio tão fórte que vive porque receiam os selvagens da aldeia trocar palavras com elle. Presenciei a mudança de uma familia inteira somente para evitar a visinhança de um selvagem de muito máo caracter. Escarnecem e despresam o homem, que se accommoda com as provocações e questões de sua mulher quando ella tem mau genio. Em quanto ahi morei, aconteceo aborrecer-se um selvagem do mau genio de sua mulher a ponto de empunhar com a mão direita um cacete, e na esquerda segurar nos cabellos d’ella querendo experimentar se este oleo e balsamo adoçaria o azedume de seo mal, porem admirou-se de vêr, que cahindo o fogo na chaga mais o augmentasse, porque podendo escapar-se de suas mãos, á vista dos visinhos, tomou tambem ella outro cacete, quiz fazer o mesmo ao marido, e depois de se haverem espancado reciprocamente com grande applauso de todos, ficaram ambos com igualdade de circumstancias frente a frente um do outro, sendo depois o marido a fabula e o assumpto de todas as conversas, quer dos grandes quer dos pequenos. Diziam os antigos nas suas _Casas-grandes_, que elle não teve remedio si não ficar com sua mulher, porque já a conhecia. Vi os abandonar e deixar seos generos a quem vendem, só para evitar questões com o comprador. Notareis, que elles só tem—_sim_ e _não_—quando negociam juntos, ou com os Francezes, nunca regateando. Muitos outros exemplos eu poderia ainda reproduzir, porem bastam estes. Avaliam muito bem as pessoas colericas, a que chamam _Poromotare-vim_, e reciprocamente se advertem dizendo—_Cheporomatare-vim_, «estou encholerisado,» e então ninguem lhe diz nada, antes buscam abandonal-o o mais que podem, o que exprimem por _Mogerecoap_, «abrandar alguem». _Aimogerecoap_, «abrando o que está encolerisado.» Observei muitas vezes, quando viam um Francez enraivecido, ficarem como que fóra de si, mudarem de côr, e fugirem da vista d’elle, dizendo uns aos outros _Ymari turuçu_ «está muito zangado, está muito enfurecido.» _Ché-assequeié seta_. «Tenho medo d’elle.» Aconteceu encolerisarem-se muitas vezes duas ou tres pessoas da nossa equipagem na aldeia, em que estavam. Vieram por isto os Principaes ao Forte de São Luiz queixarem-se e pedindo, que lhes tirassem de lá esses Francezes, porque lhes faziam medo, e especialmente a seos filhos, o que conseguiram. Si as questões de palavras e as raivas são temiveis, muito mais ainda o são os insultos e as disputas, o que é muito raro, a ponto de espancarem-se, o que chamam _ionupan_ «espancar-se», e ainda mais quando se ferem, o que explicam por _iuapichap_, «ferir-se,» mormente quando depois de se haverem maltratado reciprocamente vão por despeito queimar as suas casas, o que exprimem pela palavra _Iuapic_ «incendiarios» reciprocos: todos sentem estas coisas, e ninguem se atreve a metter-se entre elles para aplacal-os: eis como fazem: vae cada um para seu lado, e tomando uma porção de pindoba secca, acendem-na, atiram sobre a cobertura de sua propria casa, dizendo uns aos outros—salve quem poder sua casa, queimei a minha, ninguem podia oppôr-se a minha vontade, e assim em poucos momentos a aldeia está queimada e ninguem lhe diz nada. Aconteceria isto muitas vezes na Ilha, se não fosse o receio que tinham dos Francezes. Não gostam de ser injuriados, seja homem ou mulher, e nem mesmo as publicas consentem que se as chame _Pataqueres_ «meretrises.» Recorda-me que tendo tido uma india escrava um filho de um Francez, as outras lançaram-lhe isto em rosto chamando-a _Pataquere_, «meretriz» com o que se doeu muito, e disse que, se continuassem, ella mataria seo filho ou o enterraria vivo. Chamam a injuria _Curap_. Ninguem se admire de evitarem estes selvagens a colera e seos effeitos, por ser esta paixão contraria a natureza do homem, fazendo-o inteiramente bruto, como disse São Basilio Magno, na Homilia 10, da ira, e transformar o homem n’um animal feroz—_Hominem penitus in feram converti_: São Gregorio de Nissa, na Oração 2ª sobre a bemaventurança, compara a colera com esses antigos feiticeiros do Paganismo, que por encanto mudavam e transformavam o homem em diversos animaes ferozes como o javaly e a panthera. A colera faz o mesmo. São Gregorio Magno, no 5º livro da sua _Moral_, cap. 30, diz ser o cerebro do colerico o buraco, onde se geram as víboras.—_Cogitationes iracundi viperæ sunt generationis_. Platão contra esta paixão aconselhava, como remedio, aos seos discipulos, que observassem bem os gestos e as palavras de um homem colerico, e ou que se mirassem n’um espelho quando se enraivecessem. Não é coisa nova e nem fóra de proposito o temerem e fugirem estes selvagens quando veem um homem encolerisado, especialmente um Francez, porque diz o proverbio, cap. 27—_Impetum concitati spiritus ferre quis poterit?_ Não é menos difficil de crer-se, que, por despeito, apoz calorosa ou inconveniente questão, queimem elles suas casas, porque no _Proverbio 26_ acha-se _sicut carbones ad prunas et ligna ad ignem_—assim como o carvão é para o brasieiro, e a lenha para o fogo, assim tambem a questão de palavras é para o homem naturalmente colerico, _sic homo iracundus suscitat rixas_, e no _Ecclesiastico 28_, _secundum ligna sylvæ, sic ignis exardescit_—tal é a quantidade da lenha qual a força do fogo, fallando da colera. CAPITULO XXVI Da economia dos selvagens. Dizia Pitacus ser bem regulada a familia quando n’ella encontram-se duas coisas—falta de superfluidade tanto no que diz respeito á vida como ao governo da casa, e o que é necessario para isto. Diz Cicero, que perguntando-se a Catão, qual é o melhor governo de uma casa, elle respondera—onde houver comida, vestuario e amor ao trabalho. Parece-me ser estas sentenças mais applicaveis aos selvagens, e aos que passam vida frugal do que á outra classe de individuos. São Thomaz definindo a economia concluio dizendo não ser outra coisa mais do que uma boa ordem domestica, e para conseguir-se este fim convinha, que a familia tivesse viveres e tudo o mais necessario a vida, sendo mui essencial não só uma boa intelligencia, como tambem que cuidassem todos os membros d’ella em seos deveres. A propria natureza, e não qualquer sciencia adquirida, ensina isto aos selvagens. As aldeias são divididas em quatro habitações, sob o governo de um _Muruuichaue_, para o temporal, e um _Pagy-uaçú_ «um feiticeiro» para as molestias e bruxarias.[43] Cada habitação tem o seo Principal: estes quatro Principaes estão sob as ordens do maioral da aldeia, o qual conjunctamente com outros de varias aldeias obedecem ao Principal soberano da provincia. Cada... (falta uma folha.) CAPITULO XXVIII Do cuidado que do seo corpo tem os selvagens. Platão chamava o corpo um privilegio da Naturesa, e Crates, o philosopho, um reino solitario. Mereceriam estas duas sentenças amplo desenvolvimento, si não nos occupassemos de uma historia, que exige estylo conciso, sem superfluidade de palavras ou digressões fóra de proposito. Applicamos comtudo o dizer d’estes dois philosophos ao nosso assumpto para notar, que tendo a naturesa, por longos annos, recusado vestidos aos corpos dos indios, os compensara formando-os bellos e agradaveis, sem o menor auxilio de suas mães, que apenas os lavam e carregam como si fosse qualquer pedaço de pau. Assenta-lhes muito bem a opinião de Crates chamando o corpo um reino solitario e deserto, porque assim como os animaes do deserto crescem e ficam vigorosos, em quanto residem ahi, isto é, em sua plena liberdade, assim tambem quando sob o dominio do homem e presos, embora no Palacio dos Reis e principes da terra, para serem vistos e observados como novidade, principiam logo a emagrecer, a entristecer-se, a perder o desejo da propagação e de conservação da especie, somente por terem perdido a liberdade que outr’ora gosavam no seu reino solitario. Negando a natureza á estes selvagens viveres bem preparados, bebidas bem feitas, vestidos pomposos, leitos macios, soberbas casas e palacios, compensou-os porem, dando lhes plena liberdade como aos passarinhos no ar, e as bestas no campo, sem lastimarem-se, como fazem outros quando comparam as pretendidas commodidades d’este Mundo. Se o diabo com o fim de roubar-lhes o bem da salvação, não se metesse entre elles, levantando novas discordias afim de se matarem e comerem reciprocamente, não haveriam por certo homens mais felizes no mundo por causa de sua natural franqueza e liberdade, que, adubando as suas carnes as transformam em perfeita e saudavel nutrição, e d’ahi provem a bellesa de seos corpos. Espero a objecção para responder—isto é, de se terem visto muitos indios sordidos e horriveis. Respondo: não é no rosto, onde se deve observar a forma e a bellesa de um homem, e eis a razão porque Demostenes zombou, quando os embaixadores de Athenas regressando de sua commissão junto a Philippe, Rei de Macedonia, gabavam muito a formosura d’elle: não, não, disse Demostenes, não é digna de louvor a belleza do rosto de um homem, tão commum entre os Cortezãos, porem merece encomios a sua estatura, a proporção de seos membros, e a sua figura e elegancia. Fallo de haver a naturesa dado ordinariamente aos selvagens, e especialmente aos _Tupinambás_, corpo bem feito, bem proporcional e elegante, e quando estragam seos rostos por incisões, fendas, e extravagancias de pinturas e de ossos, o fazem pela ideia erronea, que tem, de serem por isto reputados valentes. Tem muito cuidado na limpesa de seos corpos: lavam-se muitas vezes, e não se passa um só dia, em que não deitem muita agua sobre si, em que se não esfreguem com as mãos por todos os lados para tirar o pó e outras immundicies. Penteiam-se as mulheres muitas vezes. Receiam emmagrecer, o que chamam em sua linguagem _angaiuare_, e lastimam-se diante dos seos semelhantes dizendo _Ché-angaiuare_, «estou magro,» e todos se compadecem mormente quando chegam de qualquer viagem abatidos pelo trabalho: todos o lastimam e o deploram, dizendo _Deangoiuare seta_, «ah! quanto está magro, só tem ossos.» Eis a causa unica por que não podiam residir comnosco os rapazes baptisados, visto temerem muito as mães, que não emagrecessem em poder dos Francezes, os quaes suppunham ter falta de tudo. Não consentiam que seos maridos trouxessem comsigo os filhos para vêr os Padres e as Capellas de Deos, senão á força, e com vivas recommendações para que voltassem, e quando se lembravam d’elles grande era a sua tristesa, e choravam. Conservei em minha companhia um rapaz de _Tapuitapera_ chamado _Miguel_, já baptisado, e que muito bem sabia a doutrina christã, afim de ensinal-a aos meos escravos. Residio comigo por alguns mezes, porem não poude ficar mais por causa das importunações de sua mãe, e a dor que mostrava chorando e lamentando-se constantemente, de maneira que veio seo pae de proposito para leval-o, dizendo-lhe que sua mãe o esperava cheia de piedade (modo de fallar para mostrar compaixão): veio pedir-me licença para o seo regresso chorando por deixar-me (tanto amam e estimam seos paes!) dizendo que sua mãe estava magra, e cheia de tristesa por sua ausencia e pensando tambem que elle definhava estando comigo, asseverando-me que contaria á sua mãe o bom tratamento que eu lhe dava, e a licença que lhe concedi de voltar a sua casa. Um de nossos escravos commetteo uma falta, pela qual ia ser castigado: mal soube elle desta resolução, e quando ia ser preso, disse que estava magro, e que não o açoitassem como si fosse gordo, porque a gordura cobre os ossos, apara os açoites e impede que a dor lhes chegue. «Si me açoitaes com força me quebraes as veias apenas cobertas pela pelle», e assim dizia por ser muito magro. Para engordarem reuniam-se muitos indios, embarcavam-se n’uma canoa grande, muniam-se de farinha, de flechas e de cães, iam á terra firme, onde matavam a caça, que apeteciam, como veados, onças, capivaras, vaccas bravas, tatùs, e muitos passaros, e ahi se demorando em quanto havia farinha, engordavam á farta com estas comidas, e voltavam depois para a Ilha trasendo muita caça assada. Quando á Ilha regressou da guerra do Pará o indio _Brasil_ julgando-se magro, pedio licença ao Sr. de Ravardiere para ir á terra firme levando comsigo alguns Francezes afim de engordar, o que lhe foi permittido. Embrenharam-se muito pelo sertão, e quando a felicidade os encheo de caça, aconteceo-lhes uma desgraça—acabou-se-lhes a farinha: viram-se obrigados a comer palmito, como si fosse pão, com a carne que tinham, o que contrariou muito os Francezes não habituados a esta especie de pão, sentindo muito que a festa não fosse completa, havendo tanta carne, sem pão e sem sal. Aconteceo-lhes o mesmo, que a Midas, possuidor de muito ouro, quando sua mulher lhe apresentou na meza muitas iguarias, todas porem de ouro, ou então á Tantalo morrendo de sêde apezar de cercado d’agoa: o mesmo lhes aconteceo, emagreciam em vez de engordarem por não levarem a farinha necessaria. N’este ponto os Francezes imitam os selvagens, e por isso estes os estimam. Os Francezes residentes no Fórte pedem licença para passeiar e refazerem-se de forças. Quando os selvagens sabem d’isto, vão á caça, e mediante a troca de alguns generos offerecem a estes passeiadores dois ou tres banquetes: findos estes regressam á sua terra, e assim vão continuando ora n’uma aldeia, ora n’outra, girando por toda a Ilha, ou provincia de _Tapuitapera_ e _Comã_ divertindo-se e engordando. Os Francezes hospedados por seos compadres n’estas aldeias não são muito felizes em seos passeios, porque se ha então alguma coisa boa não é para elles, e sim para os viandantes. Costumam os selvagens dar o melhor, que possuem aos hospedes, por dois ou tres dias, findos os quaes tratam-nos com o uso commum e trivial. Admire-se, eu vos peço, ainda que ligeiramente, o grande amor de Deos para com os homens, dando-lhes o sentimento natural da caridade para com o proximo. O que fazem de melhor os christãos, ou observam os Religiosos, do que a caridade puramente natural dos selvagens, que não podem alcançar a gloria, bem differente do que acontece á caridade sobre natural dos christãos, que espera a recompensa da vida eterna? O aceio do corpo faz-se por muitas maneiras, e entre ellas contam-se estas. Trazem sempre na bocca a herva do Petun, (tabaco ou fumo) cujo fumo expellem pela bocca e narinas com intenção de seccar as humidades do cerebro e as vezes o engolem para limpar o estomago de cruezas que sahem por meio do arrôto. Apenas acabam de comer fumam o Petun, e o mesmo praticam pela manhan e a noite, quando se levantam e deitam-se. A proposito de Petun devo contar a ideia supersticiosa, que formam desta herva e do seo fumo. Crêem, que esta herva os torna discretos, judiciosos, e eloquentes, de forma que antes de começarem algum discurso usam d’ella: não me parece, que seja comtudo muito supersticiosa, porque ha nisto uma razão natural: eu mesmo a experimentei, e reconheci, que a sua fumaça exclarece o entendimento dissipando os vapores dos orgãos do cerebro, fortalece a voz seccando a humidade e escarros da bocca, permittindo assim facilidade á lingua para bem exercer suas funcções. É facil experimentar-se isto usando-se d’ella com parcimonia e em occasião propria, porque o abuso continuado d’ella não me parece bom e saudavel aos que se alimentam de bebidas e carnes quentes, porem é util aos que sentem frios e humidos o estomago e o cerebro. Eis a razão porque o selvagem, habitante d’esta zona humida, e que bebe de ordinario somente agoa, uza constantemente d’este fumo afim de descarregar o cerebro de humidades e frialdade, e o estomago de cruezas, o que tambem praticam os marinheiros e os habitantes das praias. Pondo-se de infusão por espaço de 24 horas esta herva, presta-se muito para purificar o corpo de infecções. Usa-se somente do vinho. Crêem tambem que, engolindo o fumo, ficam alegres, joviaes e previnidos contra a tristesa e melancolia. Vou referir-vos alguns casos que me contaram: Um selvagem que foi morto na bocca de uma peça, e de quem hei-de fallar no _Tratado do Spiritual_, antes de se encaminhar para o supplicio pedio um macinho de _Petun_, como ultima consolação d’esta vida afim de morrer com energia e alegria. Apenas alcançou o que desejava mostrou-se alegre e sempre cantando até o fim. Quando seos companheiros o ataram á bocca da peça, elle pedio para que não amarrassem o braço direito de fórma que o embaraçasse de levar á bocca o Petun: quando a bala dividio o seo corpo em duas partes, uma foi para o mar, e a outra cahio na base do rochedo, e n’esta achou-se ainda seguro pela mão direita o mólho de _Petun_. Os selvagens sentenciados á morte não soffrem a pena sem usarem antes do _Petun_, conforme o costume da terra, e não deixavam este habito nem mesmo os doentes. Os feiticeiros do paiz servem-se d’esta planta com proveito, o que agora não refiro, e sim guardo para o fazer mais adiante, si não me esquecer. Empregam ainda outro meio para a conservação da saude. Comem muitas vezes e pouco de cada uma: depois que comem lavam muito bem a bocca, e se tem sêde quando comem, bebem pouco apenas para apagar a sêde, gargarejam bem a agua na bocca para aplacar o ardor do paladar. Cozinham muito bem suas comidas, e não usam d’ellas meias cozidas ou aferventadas, sendo n’isto mais cuidadosos do que os Francezes. Untam-se com azeite de palmas, de urucú, e de genipapo,[44] o que tem sempre em abundancia. Estou certo que os meos leitores, pouco conhecedores da disposição do corpo humano e do regimem necessario á sua conservação, julgarão que a natureza ensinou a estes homens o mesmo que a sciencia e a experiencia ensinaram a outros. CAPITULO XXIX De algumas indisposições naturaes, a que os selvagens se acham sugeitos, e quaes os nomes, que dão aos membros do corpo. São os selvagens, na verdade, dotados pela naturesa com boa saude, feliz e agradavel disposição. Raras vezes, na proporção de um para cem, encontram-se entre elles corpos mal feitos e monstruosos. Não vi um só cego, apesar de existirem, porque elles o chamam _Thessa-um_, «cego,» _Cheressa-um_, «estou cego,» e _Ressa-um_ «tu és cego.» Notei porem terem alguns a vista curta, especialmente os velhos, e notavelmente as mulheres, visto que depois de 30 annos d’idade tem a vista tão curta e fraca a ponto de não poderem mais tirar dos pés os _Thons_[45] «bixos» como fazem os rapazes e as moças. A proposito dizia um capitão Francez, não da nossa gente e pouco crente, que o Papa não tinha poder sobre o mar, porque Deos havia dito a São Pedro que seo poder estendia-se somente sobre a terra, e por isso todos os que passam o mar em busca d’estas terras não são mais sugeitos aos mandamentos da Igreja, podendo mui livremente tomar uma rapariga para concubina, visto terem necessidade d’ella para tirar dos pés d’elle e de outros francezes estes bixos. Conto isto para mostrar quanto são perigosos estes paizes ás almas que tudo envenenam. Vi zarolhos, a que chamam _Thessaue_, porem muito poucos, e vesgos que denominam _Thessauen_, «vesgo» _Cheressauen_, «estou vesgo,» _Deressauen_ «tu és vesgo.» Encontram-se alguns gagos, a que chamam _Gningayue_, «gago,» _Chegningayue_, «estou gago.» Os velhos e os meninos são muito ramellosos, a que chamam _Thessau-um_ «ramelloso» _Cheressau-um_ «estou ramelloso», _Deressau-um_ «tu és ramelloso»: é o resultado da grande humidade do paiz, mais predominante nos corpos dos meninos e dos velhos por causa da fraqueza do calor natural, que é maior nos corpos d’estes do que nos dos outros, onde é mais forte e intenso. Existem poucos calvos, e se chamam _apterep_ «calvo,» _Cheapterep_ «estou calvo», e não existem muitos por serem seos cabellos nutridos com força, e eis a razão porque tem os cabellos fortes, duros e lisos. Encontram-se poucos coxos _Parin_, poucos manetas _Iuuasuc_, e poucos mudos _Gneen-eum_, alguns gottosos _Karuarebore_, de _Karuare_ «gotta.» Encontra-se tambem uma especie de sarnentos de raça, os quaes mudam de pelle annualmente, e comtudo não sentem molestia alguma, estão sãos, e chamam-nos a todos, que soffrem este mal _Kuruuebore_. Ha tambem obesos, _Timbep_, e se diz _Chetimbep_ «estou obeso,» _Detimbep_ «tu és obeso,» e _Ytimbep_, «elle é obeso.» A todas as partes do corpo dão um nome especial, e particular. Chamam a alma _an_, «minha alma» _che-an_, «tua alma» _dean_, «nossas almas» _orean_, «vossas almas» _pean_, «suas almas» _yan_, em quanto a alma está unida ao corpo, porque quando está separada chamam-na _anguere_. A cabeça. _Acan._ Minha cabeça. _Cheacan._ Caspa. _Kua._ Cabellos. _Aue._ Meos cabellos. _Cheaue._ Cerebro. _Aputuon._ Rosto. _Suua._ Palpebra. _Taupepyre._ Cara. _Tova._ Meo rosto. _Cherova._ Teo rosto. _Derova._ Seo rosto. _Sova._ Olho. _Tessa._ Lagrymas. _Thessau._ Meo olho. _Cheressa._ Mancha no olho. _Tessaton._ Vi uma mancha no olho. _Cheressaton._ Piscar os olhos. _Sapumi._ Pisco os olhos. _Assapumi._ Ouvido. _Apuissa._ Ouvir. _Sendup._ Ouço. _Assendup._ Orelha. _Nemby._ Minha orelha. _Chénemby._ Nariz. _Tin._ Monco. _Embuue._ Narinas. _Apoin-uare._ Paladar da bocca, ou véo do paladar. _Konguire._ Bocca. _Giuru._ Beiço superior. _Apuan._ Beiço inferior. _Teube._ Garganta. _Yasseok._ Escarrar. _Gneumon._ Eu escarro. _Auendeumon._ Tu escarras. _Eveuendeumon._ Saliva. _Thenduc._ Lingua. _Apekon._ Minha lingua. _Ché-ape kon._ Fallar. _Gneem._ Eu fallo. _Aigneem._ Bom fallador. _Gneemporam._ Halito. _Puitu._ Dentes. _Taim._ Doe-me os dentes. _Chéréuassu._ Meo dente. _Cheraim._ Teo dente. _Deraim._ Seo dente. _Saim._ Dente maxillar. _Taiuue._ Mastigar. _Chuu._ Eu mastigo. _Achuu._ Face. _Tovape._ Beijar. _Geurupuitare._ Eu beijo. _Aigeurupuitare._ Bochechudo. _Tovape-uaçu._ Queixo. _Tendeuua._ Barba. _Tendeuua-aue._ Barbudo. _Tendeuuaaue-reKuare._ Cachaço. _Aiure._ Collo. _Aiuripui._ Estrangular. _Iubuic._ Peito. _Potia._ Espaduas. _Atiue._ Braços. _Iuua._ Cotuvello. _Tenuvangan._ Punho. _Papue._ Palma da mão. _Papuitare._ Mão. _Pó._ Minha mão. _Chépo._ Mão direita. _Ekatua._ Mão esquerda. _Açu._ Dedos. _Puan._ Unha. _Puampé._ Minha unha. _Chépuampé._ Mama. _Cam._ Coração. _Gnaen._ Veias. _Taiuc._ Sangue. _Tubui._ Baço. _Perep._ Tripa. _Thyepuy._ Figado. _Puya._ Fel. _Puya-upiare._ Barriga. _Thuye-uaçu._ Ventre. _Theic._ Embigo. _Puruan._ Dorso. _Atucupé._ Rins. _Puiacoo._ Ilharga. _Ké._ Minha ilharga. _Ché-ké._ Costella. _Aru kan._ Minha costella. _Ché-aru kan._ Quadril. _Tenambuik._ Madre. _Acaia._ Testiculos. _Pere-ketin._ Nadegas. _Tevire._ Curva da perna. _Ananguire._ Coxas. _Uue._ Joelhos. _Tenupuian._ Pernas. _Tuma._ Pé. _Pui._ Calcanhar. _Puita._ Planta de pé. _Puipuitare._ Dedo do pé. _Puissan._ Corpo. _Tétè._ Meo corpo. _Chéreté._ Pello. _Pyre._ Suor. _Thue._ Gordura. _Kaue._ Osso. _Cam._ Meo osso. _Chécam._ Tutano. _Camaputuon._ CAPITULO XXX De algumas molestias particulares a estes paizes de indios, e de seos remedios. O Genesis nos ensina, como explicam os doutores haver Deos dado aos homens contra todos os males o fructo de uma arvore, a maneira da Theriaga. Este mesmo Deos, sempre bom para com todas as creaturas, embora pequenas e longe d’elle, prevendo que esta infeliz raça de selvagens viveria, por longos annos, vagabunda e nua pelas grandes florestas do Brasil, lhes deo muitas especies de arvores e hervas para o curativo de suas feridas e molestias. Tem este paiz muitas arvores medicinaes, gommas salutiferas, e excellentes hervas, como não ha em parte alguma. O tempo e o estudo hão de fazel-as conhecidas.[46] Vi tirar-se da casca de certa arvore uma especie de almecega, similhante á que cresce nos jardins da Europa, e dizem os selvagens que serve para toda a molestia, e assim a empregam. Contam mais, que todos os animaes ferozes quando se sentem feridos ou doentes, recorrem a esta arvore para curarem-se, e por isso raras vezes se encontra uma só com toda a sua casca, por ser roida constantemente por todos os bixos. Encontra-se tambem crescida nas folhas das arvores uma especie de gomma branca, de côr prateada, e que dizem ser muito boa para certas chagas. Ha outra gomma, tambem branca, optima para limpar chagas e fazer suppurar os abcessos profundos fazendo seo effeito em 24 horas. Vi o seo emprego n’um moço francez, que estava commigo o qual tinha, por causa dos bixos, os pés e as pernas tão estragados e inchados a ponto de receiarmos que as perdesse: coisa horrivel e impossivel de narrar-se bem: fez-se applicação de emplastos d’esta gomma nas pernas e pés, e no dia seguinte estava são como si antes não tivesse coisa alguma, porque puchando os bixos do interior das carnes onde se achavam á superficie das feridas, ahi pela cabeça se grudaram os emplastos, e assim morreram todos em numero consideravel, limpando muito bem a chaga e deixando-a viva e vermelha. Não fallarei de outras hervas e balsamos, e nem d’um milhão de hervas, das quaes se podem destillar espiritos e essencias, porque desejo fallar de certas molestias, reinantes n’este paiz, dos remedios, que contra ellas se applicam, não porque seja a terra doentia e insalubre, antes muito boa e saudavel, especialmente de junho a janeiro: durante este tempo as brisas, isto é, os ventos de Este ou do Oriente sopram constantemente, livrando o paiz de vapores pestillenciaes, e por isso raras vezes adoecem os selvagens, e a fallar a verdade, elles só tem uma molestia, de que morrem. São os francezes muito mais sujeitos á doenças, como a experiencia fez conhecer a mim e a outros, porem creio ser isto devido ás necessidades e miserias, porque passamos no principio do estabelecimento ou da fundação e não a outra causa. Tinham então os francezes poucas commodidades, porem ja começavam a gozal-as quando deixei a Ilha. Não desejo a pessoa alguma taes necessidades e molestias, porem fiquem todos certos e convencidos de que não soffrerão a centesima parte do que soffremos. Das suas molestias a primeira chama-se _Pian_, que vem da palavra _Pé_, que quer dizer «caminho», ou, se quereis, «pé,» por originar esta molestia do escarro, ou da sanie, espalhado no chão, por onde se caminha: começa ordinariamente debaixo dos dedos dos pés, do tamanho de um liard,[BD] de côr negra: os indios chamam esta mancha _Aipian_, isto é, a «Mãe Pian,»[47] porque d’ella descendem todas as outras chagas e postemas, que esta horrivel molestia espalha por todo o corpo á maneira de uma herva ou arbusto, que sahindo d’esta _Mãe Pian_, como de uma raiz, fosse sempre crescendo, subindo, e espalhando, pelo corpo ramos, folhas e olhos, que enchesse interna e externamente o doente de crueis dores, e de incrivel putrefacção, das quaes muitos morrem. Dura pouco mais ou menos dois annos. Si um francez soffrer esta molestia deve curar-se perfeitamente antes de regressar ao seo paiz, porque não ha remedio no mundo, excepto no Brasil, que a cure, a não ser o rhuibarbo commum, isto é, a morte, que cura todos os males. Ja disse como esta molestia chega accidentalmente: vejamos agora sua origem e fonte ordinaria e natural afim de prevenir os francezes, que la forem. Esta molestia ataca os francezes, como o mal de Napoles, por excessiva communicação com as raparigas indigenas: para evital-a convem a vida casta, ou então que tragam suas mulheres, ou que se casem com as indias christãs, visto ser o casamento poderoso antidoto contra tal veneno, o que se observa mesmo no casamento natural dos indios, os quaes não soffrem o _grande mal_, se não o tem adquirido algures, e sim o _pequeno_, que todos soffrem na vida, similhante a syphilis e a variola na Europa. Esta _bouba_ grande excede em dor e sordidez, sem comparação, ao mal de Napoles, e com razão, porque merece ser punido n’esta vida o peccado, que commettem os francezes com as Indias, arrebatando de nossas mãos, estas infelizes almas quando pretendiamos salval-as, si com seos maus exemplos não as conduzissem ás fornalhas da lubricidade. Meditem bem os que são capazes de commetterem taes crimes, na conta que darão a Deos por haverem causado o damno e a perda d’estas pobres almas indigenas. Si a vida eterna é somente concedida aos que buscam a salvação de outrem, que lugar esperarão os que, para satisfação de brutaes desejos, seduzem essas pobres creaturas a ponto de fazel-as despresar as prédicas do Evangelho e a sua propria salvação? Tempo e paciencia são os principaes remedios para esta molestia; os suores aproveitam muito, mitigam e encurtam o tempo, bem como as dietas e o regimen de vida. A experiencia tem mostrado, que para estas molestias a carne mais propria é a do _tubarão_ (não usada pelos sãos, por lhes fazer vomitar até sangue, e produzir-lhes grandes molestias) cozida com hervas duras e amargas, que se encontram em todo o paiz. Por um momento de prazer soffrem mil dores, e o que para os bons é veneno para elles é carne saudavel, embora de mau gosto. É costume d’este astuto Boticario Satanaz untar o bordo do copo com mel ou assucar para se beber de um só trago o veneno, que depois vae roer e encher de dor as entranhas: quero dizer, que ao peccador apresenta o prazer, e não o seo castigo, e bem depressa experimenta o desgraçado, que o prazer vôa, porem a dor é eterna. O Sr. de Ravardiere, outros francezes, e eu sobre todos, soffremos intensas febres quartans, terçans, e incertas, as quaes depois de haverem mortificado muito o corpo, deixam dores nos rins, produzem colicas insuportaveis com vomitos continuos, sempre debilitando o corpo, resfriando e contrahindo o estomago, acompanhada por continua fluxão do cerebro, que se espalha pelos braços, coxas, e pernas, tornando-as sem acção, á similhança de uma estatua ou pedra immovel. Parece-me que é a molestia, que ceifa maior numero de selvagens tornando-os ethicos e paralyticos. Os remedios para estas molestias são—o beber menos agua que fôr possivel, porque o sabor das aguas alterado com o calor da febre, faz beber muita agua, perdendo o estomago seo calor proprio, adquirindo grande crueza e fraqueza, de que resulta não só a sua constricção, mas tambem a pituita e outros humores corrompidos: presentemente como ha cerveja espero que não sejam frequentes estas molestias e que não chegarão ao excesso, que vi, e cujas consequencias ainda sinto. O vinho e a aguardente são bons para aquecer o estomago, e por isso aconselho aos que lá forem, que poupem muito o seo vinho e aguardente para essa e outras necessidades, e não os gastem prodigamente em deboches, mórmente sendo a cerveja, ahi feita com milho bom, muito mais saborosa e saudavel, por causa do continuo calor, do que o vinho e a aguardente. As boas bebidas são o unico remedio, e as aves e ovos ahi em abundancia são o alimento d’esses doentes. As outras molestias são o defluxo e violentas dores de dentes por causa da humidade da noite nesta Zona tórrida, como bem notou o jesuita Acosta, na sua _Historia dos Indios_, a qual pode recorrer o leitor, visto que nada quero dizer ou escrever sem sciencia propria. É tão forte a humidade da noite, que produz ferrugem nas espadas, mosquetes, facas, machados e machadinhos, que corroe e destroe não havendo cuidado de os limpar. São mui frias as fluxões do cerebro, pois descendo á raiz dos dentes apodrecem-nos e os fazem cahir. São remedios especiaes á estes males a applicação de cauterios no pescoço e braços, e cobrir bem a cabeça durante a noite. Todos os annos reina doença de olhos, das quaes poucos escapam especialmente os Franceses, porque dura apenas oito dias, sendo por sua vehemencia antes furor do que molestia, e si se não atacar logo corre-se o risco de vêr-se somente metade do mau tempo. È facil o remedio: tome-se um pouco de vitriolo, deite-se n’uma garrafa cheia d’agoa bem limpa, e d’ella se derrame um pouco nos olhos bem abertos e fixos, abstendo-se de tocal-os, tendo-os sempre cobertos, e não os expondo ao vento e nem ao sol, porque senão o mal redobra visto que sendo formada esta molestia de uma fluxão quente e acrimoniosa, si esfregardes os olhos e vos expôrdes a acção do vento e do sol, mais exacerbareis o vosso mal. CAPITULO XXXI Da morte e dos funeraes dos Indios. Jacob despresou duas irmans Lya e Rachel, o que é diversamente explicado por Padres e Doutores. Tomarei somente o que convem á historia, isto é, que Deos tem duas filhas a Naturesa e a Graça, que dá por esposa aos seos escolhidos. A Naturesa é imperfeita, porem fecunda como Lya: a Graça é de formosura inexcedivel, porem esteril como Rachel. Ambas são irmans: basta vel-as para reconhecer-se, e como taes são seos filhos-irmãos germanos; differençando-se apenas por linhas diversas, isto é, n’um ponto de ceremonia, nas ultimas homenagens prestadas a seos parentes, reconhecemos facilmente a verdadeira religião e os seos herdeiros. Acha-se isto tão naturalmente gravado no fundo da alma das nações as mais barbaras, que serve de argumento mui positivo para provar acharem-se em verdadeira graça os que prestam homenagem aos seos defunctos. Em caso contrario prova-se que estão em poder do gentilismo, e em opposição ao instincto puramente natural, imitando n’este caso os brutos, não fazendo caso dos seos amigos fallecidos, especialmente da sua alma, melhor parte de sua composição. É a maldição dada por Job, no cap. 18—_Memoria illius pereat de terra, et non celebretur nomem ejus in plateis_, «desappareça da terra a sua memoria, e nem seja seo nome pronunciado na rua.» Symmachus explicando diz _Non erit nomem ejus in faciem fori_—não chegará seo nome ao foro dos senadores, e mais claramente Policronius _Nec in amicorum versabitur memoria_ «nem seos amigos se recordarão d’elles,» grande maldição, visto que os povos os mais selvagens do Universo que são os habitantes do Brasil nada mais receiam, após a morte, do que não serem chorados e lamentados, isto é, que para elles, na morte, não hajam da parte dos seos parentes, lagrymas, lamentações, e outras ceremonias embora supersticiosas. Quando se acham muito doentes estes selvagens, e por seos parentes julgados em perigo de vida, perguntam-lhes o que desejam comer antes da morte, e saciam-lhes o desejo. Em quanto doentes alimentam-se com farinha de mandioca e _ionker_ «pimenta da india,» misturada com sal, julgando com tal dieta, abuso inaudito entre elles, recobrarão a antiga saude. Vi um homem e uma mulher da nação dos _Tabajares_, que tinham só pelle e ossos, parecendo-me terem apenas vida por dois dias, e por isso os baptisei logo, apenas me pediram, e escaparem da morte tomando taes caldos. Quando chega a hora da morte, reunem-se todos os seos parentes, e geralmente todos os seos concidadãos, cercam-lhe o leito do moribundo, os parentes mais perto, depois os velhos e as velhas, e assim de idade em idade: não dizem uma só palavra, olham-no com toda a attenção, banham-se de lagrymas constantemente; mas apenas a pobre creatura exhala o ultimo suspiro, dão berros e gritos, fazem lamentações compostas por uma musica do vozes fortes, agudas, baixas, infantis, emfim de todo o genero, que infallivelmente enternece todos os corações, embora sejam naturaes todas essas dores e lagrymas, sem conhecimento do bem e do mal, que poderá gozar esse espirito desprendido do corpo morto. Depois de muitas lamentações, o Principal da aldeia ou o Principal dos amigos fazia um grande discurso muito commovente, batendo muitas vezes no peito e nas coxas, e então contava as façanhas e proesas do morto, dizendo no fim—_Ha quem d’elle se queixe? Não fez em sua vida o que faz um homem forte e valente?_ Conto isto porque presenciei-o tres ou quatro vezes, lembrando-me de haver lido e notado em Polybio, Livro 6º, e em Deodoro da Sicilia, Livro 2º, cap. 3º, terem os antigos Romanos o costume de levarem seos defunctos á Praça publica, e ahi o filho mais velho da casa, ou o principal herdeiro em falta de filhos machos e de maior idade, subia á uma especie de theatro, e desfiando todos os louvores, que podia fazer ao morto, seo parente, desafiava todos os assistentes para que o accusassem, si podessem, afim d’elle defendel-o, e depois convidava-os a acompanharem o corpo até a sepultura. Voltemos aos nossos selvagens. Acabado que seja o choro e o discurso tomam o corpo, ja cheio de pennas na cabeça e nos braços, uns o vestem com um capote, outros lhe dão um chapeo, si o ha, trasem-lhe o massinho de petum[48], seo arco, frexas, machados, foices, fogo, agoa, farinha, carne e peixe e o que em vida elle mais apreciava. Faziam depois um buraco fundo e redondo em fórma de poço: assentavam o morto sobre seos calcanhares conforme era o seo costume, e á cova desciam-no de mansinho[49] accommodando ao redor d’elle a farinha, a agoa, a carne, o peixe e ao lado de sua mão direita afim de poder pegar em tudo com facilidade e na esquerda arrumavam os machados, as foices, os arcos e as flexas. Ao lado d’elle faziam um buraco, onde accendiam fogo com lenha bem secca afim de não apagar-se, e despedindo-se d’elle o incumbiam de dar muitas lembranças á seos paes, avós e amigos, que dançavam nas montanhas, alem dos Andes, onde julgam ir todos depois de mortos. Uns dão-lhe presentes para levarem a seos amigos, e outros lhe recommendam, entre varias coisas, muito animo no decorrer da viagem, que não deixem o fogo apagar-se, que não passem pela terra dos inimigos, e que nunca se esqueçam de seos machados e foices quando dormirem n’algum lugar. Cobrem-no depois pouco á pouco com terra, e ficam ainda por algum tempo junto á cova, chorando-o muito e dizendo-lhe adeos: de vez em quando ahi voltam as mulheres ora de dia ora de noite, choram muito e perguntam á sepultura, se elle ja partio. A proposito contarei tres historias interessantes. Enterraram um bom velho em distancia de 50 passos de minha casa. Dia e noite consumiam-me as velhas com seos choros. Para adquirir socego lembrei-me de mandar esconder n’uma moita em caminho, perto da cova, dois rapazes francezes, que commigo moravam. Mais adiante mandei tambem esconder dois escravos nossos, a quem ensinei o que deviam fazer. A noite todos occuparam as suas posições, e no fim de um quarto de hora quando vieram as velhas, todas juntas, e que principiaram a gritar na cova, responderam os franceses, imitando _Jeropary_, e ellas cheias de susto despararam a correr, e quando no caminho encontraram outros dois _Jeropary_, redobraram de esforços, e saltando por abrolhos e espinheiros chegaram á casa mais mortas do que vivas, e ahi sobresaltando a todos mandaram fechar as portas para que não entrasse o tal _Jeropary_. Estava eu perto e muito gostei d’esta comedia por alcançar socego, visto não regressarem mais as velhas. Morreo um selvagem, e foi enterrado na estrada perto de _São Francisco_, lugar no _Forte de São Luiz_. Fora baptisado antes da sua morte, e com tudo, sem sciencia nossa, enterraram-no ahi e com as ceremonias que já descrevi. Mortifiquei-me muito com isto, ralhei bastante, porem não pude descobrir o culpado por já haver decorrido tres ou quatro dias. Passando por ahi achei sua mulher, que voltava da roça, assentada sobre a sepultura, chorando amargamente, e espalhando n’ella algumas espigas de milho. Indagando-lhe o que fazia, respondeo-me estar perguntando a seo marido si elle ja tinha partido, porque receiava haverem amarrado muito as suas pernas, e não lhe terem dado a sua faca, pois havia levado comsigo apenas o seo machado e sua foice, e que lhe trasia o milho para comer e partir no caso de já não ter mais provisões. Fil-a sahir, mostrando como pude, a sua ignorancia e superstição. Falleceo um menino com doença no ventre, de dois annos de idade, e duas horas depois de baptisado. Eu, o Sr. de Pezieux, e outros franceses fomos amortalhal-o n’um lençol d’algodão. Encontramos o corpo cercado por muitas velhas, fazendo algasarra capaz de quebrar uma cabeça de aço, carregado de missangas, que trasem para ahi os francezes, e de muitos busios, de que usam nos seos adornos e enfeites para as grandes festas. Não podemos convencer ás velhas afim de serem tirados taes enfeites, e sendo assim mesmo conduzido n’uma prancha por um francez, fizemos o seo funeral a maneira da Europa, levando o seo corpo á capella do Forte de São Luiz, onde recitamos as orações prescriptas pela Igreja para esse fim. Seguiram-nos as velhas de bem perto, e não se animando a entrar, começaram a entoar uma musica tão alta e forte, que não nos entendiamos dentro da Igreja. Imposemos silencio, e foi o corpo enterrado no cemiterio junto á capella. As velhas se metteram entre os francezes, umas trazendo fogo, agoa, farinha, e outras o mais que ja dissemos para o caminho, o que mandei deitar fóra fazendo-lhes vêr a asneira por intermedio do interprete. Recolheram-se as suas casas, onde se fartaram de chorar. CAPITULO XXXII Do regresso á Ilha do Sr. de la Ravardiere e de alguns Principaes, que o seguiram. Com a chegada da barca portugueza o Sr. de Pezieux escreveo ao Sr. de la Ravardiere e expedio uma canôa para tal fim, descrevendo o estado em que nos achavamos e prestes a sermos sitiados em breve tempo. Gastou a canoa tres mezes na viagem, e sciente destas coisas partio logo que poude em direcção da Ilha, afrontando perigos, que muitos são n’estes mares; porem de coisa alguma nos serviria sua actividade, porque se n’esse intervallo soffressemos o cerco seriamos já então vencedores ou vencidos. Esta interrupção da viagem do Amazonas causou muito mal a Colonia, porque se teria colhido muitos generos pelas margens dos rios, muito mais povoados de selvagens de diversas nações do que a Ilha, Tapuitapera, Comã e Caieté.[50] São mais pacificos, e bem providos de algodão. Quanto mais pobres e necessitados de machados, foices, facas e vestidos, tanto mais facil é a troco de qualquer d’estes objectos alcançar grandes riquezas. Outro prejuiso soffreo a Colonia dos francezes, porque achando-se muitas nações resolvidas a aproximarem-se da Ilha, por ahi residirem e fazerem suas roças, vindo com o Sr. de la Ravardiere, ao saberem taes noticias dos portuguezes, resolveram suspender a execução do seo plano, e esperar o resultado dos negocios. Chegando o Sr. de la Ravardiere proseguio-se activamente nas obras dos Fortes das avenidas da Ilha, montando-se-lhes artilharia e dando-se-lhes guarnição. Passados alguns dias achou-se acompanhado por muitos guerreiros selvagens, que vieram para a Ilha, e entre elles estava o _Arraia grande_ dos Caietés, selvagem pelos seos muito estimado, valente, bom conselheiro, e de tal influencia, que os seos companheiros o seguem, trabalham e abraçam inteiramente as suas ideias, o que foi muito util aos francezes visto assim terem muitos homens dedicados, e occupados no serviço. Pouco antes da viagem do Amazonas alguns bregeiros espalharam entre os _Caietés_ do _Pará_, que sob o pretexto dessa viagem iam os francezes captival-os. Esta noticia aterrou-os de tal forma, que muitos ja estavam resolvidos a deixar suas casas, e a buscar outro lugar quando o _Arraia grande_ por seos discursos lhes fez vêr quanto era infundado o seo receio, dizendo então muito bem dos francezes. Elle, sua mulher, e alguns parentes acompanharam uma barca, que ia da Ilha para o Pará em busca dos generos do paiz, ahi mui preciosos. Quiz a infelicidade que, no regresso para a Ilha, naufragasse a canôa por estar muito pesada duas legoas longe da terra. Despresaram todas as riquezas, procurando salvarem-se agarrados a um pedaço da escotilha, a uma taboa, ou ao bote. Esperou o _Arraia grande_, que todos procurassem meios de salvarem-se, e afinal elle, sua mulher, e um interprete francez si puzeram a nadar animando elle a todos com estas palavras—«a morte é invejosa, vêde como atira estas ondas sobre a nossa cabeça afim de nos arremeçar no abysmo, mostremos-lhe que somos ainda fortes e valentes, e que não é chegado o tempo de nos levar.» Salvaram-se todos em varias ilhas não habitadas, excepto um francez, victima de tubarões.[51] Vendo o _Arraia grande_ os francezes nús e famintos, em lugares estereis e cercados de mar, atirou-se ás ondas, a nado atravessou grande espaço cheio de mangue desembaraçando-se á muito custo das raizes destas arvores, e do tujuco onde as vezes se enterrava até o pescoço. Chegando a aldeia dos seos similhantes animou-os a virem com algumas canoas, vestidos e viveres, e depois que todos regressaram ás aldeias defronte do lugar do naufragio, elle lhes entregou tudo quanto haviam perdido, e que o mar tinha atirado ás praias. Outr’ora este indio, n’um navio de São Maló, veio a França, onde se demorou um anno pouco mais ou menos, e em tão pouco tempo aprendeo a fallar francez, e ainda hoje se fazia entender bem, embora ja se houvessem passado muitos annos, e tem tão bom juiso e memoria que ainda hoje conta varias particularidades, que la existem. Não trato do estado espiritual, e nem do que me disse relativamente ao Christianismo, porque deixo isso para o seo lugar proprio, mas quanto ao temporal muitas vezes o ouvi dizer aos seos similhantes, e especialmente aos _Tabajares_ do Forte de São Luiz, «que os francezes eram fortes, que habitavam um paiz grande, abundante de boas comidas, de muito vinho, de pão, de boi, de carneiro, de galinhas, de muitas especies de ovos, e de grande variedade de peixes: que suas casas eram construidas de pedras, cercadas de grossos muros, onde estava assestada grossa artilharia, batendo o mar na base da muralha, ou então sendo esta circulada de fossos cheios d’agoa. «Pelas ruas estão lojas de todos os generos. Andam a cavallo, e os Grandes, ou melhor os Principaes são acompanhados por muitas pessoas, como o Sr. de la Ravardiere, residente perto da cidade, onde cheguei. «O Rei de França mora no centro do seo reino, n’uma cidade chamada Pariz. Os francezes aborrecem, como nós, os _Peros_, e lhes fazem guerra por terra e por mar, e sempre com vantagem, porque são fracos os _Peros_, valentes e animosos os francezes como nenhuma outra nação, e eis a razão porque não devemos temer aquelles visto estes nos defenderem. Alguns maldizentes de nossa gente espalharam não terem os francezes podido tomar os _Camarapins_, porem isto é falso. Cumpriram seo dever e si os Tupinambás tivessem querido ajudar-nos, seriam agarrados, porem o chefe dos franceses condoeo-se d’elles, e não quiz que todos fossem queimados como aconteceo em parte.» Fez este e outros discursos similhantes, e depois percorrendo a Ilha, em cada aldeia os repetia nas _reuniões_ na _caza grande_. Procurando imitar a maneira porque entrou na grande praça de São Luiz, não só para saudar os Tabajaras, como tambem para ajudar os francezes, dispoz elle a sua gente, em numero de cem a cento e vinte, um a um, ou um atraz do outro, e assim por diante. A uns deo cabaças, panellas, e rodela, e a outros espadas e punhaes, a estes arcos e flexas, a aquelles differentes instrumentos, dividindo os tocadores de Maracá[52] pelas desenas, e assim percorreram a habitação dos _Tabajaras_, e depois foram á praça grande do Forte, onde estavamos, e ahi acabaram suas danças, muito similhantes a dos _Pantalons_, andando e fazendo mesuras, batendo todos ao mesmo tempo com o pé em terra, ao som da voz e do Maracá, cujo compasso todos observavam entoando sempre louvores aos francezes. Mechiam em todos os sentidos a cabeça e as mãos, com taes gestos que faziam rir as pedras. Chamam os Tupinambás a esta dança _Porasséu-tapui_, quer dizer, _dança dos Tapuias_, porque era outra a dança dos _Tupinambás_, sempre em roda e nunca mudando de lugar. Acabada a dança, veio saudar-nos, e foi comer e descançar na casa, que se lhe havia preparado. CAPITULO XXXIII Viagem do capitão Maillar,[53] pela terra firme á casa de um grande feiticeiro. Descripção d’esta terra e das zombarias d’elle. É verdade, reconhecida por todos que hão habitado o Brasil, não ser a terra firme tão bonita e tão fertil como as Ilhas. São as ilhas formadas por areia preta e fina, queimada e ardente pelo continuo calor, e por isso são ellas mais sujeitas n’esta Zona tórrida aos calores e ardores, porque o mar redobra pela reflexão e poder da luz do Sol sobre a capacidade proxima e concentrica da terra, o que se prova por meio dos espelhos ardentes, cujos centros sendo opacos, e mais elevados do que suas circumferencias e bordas, os raios do sól se reunem e concentram ahi, produzindo fogo e chama, e assim queimando os objectos convenientemente dispostos n’esses lugares. Ouvindo o Sr. de la Ravardiere os indios fallarem muitas vezes de uma localidade muito boa, distante 100 ou 150 legoas do Maranhão, na terra firme para as bandas do rio Mearim e longe d’elle 40 ou 50 legoas, mandou uma barca e canoas com o capitão Maillar de São Maló, alguns francezes, e um cirurgião, todos muito conhecedores da natureza das hervas e arvores preciosas. Ahi vivia, vindo do Maranhão, um dos seos principaes feiticeiros, com 40 ou 50 selvagens, entre homens e mulheres, n’uma aldeia, que edificara, cultivando a terra, que tudo lhe produzia em abundancia, e por isso abusando da credulidade dos Tupinambás este miseravel lhes dizia possuir um espirito com o poder de fazer a terra dar-lhe o que quizesse. Ahi chegou o capitão com muitas difficuldades, passando vasta e comprida planicie de juncos e caniços, atravessando agoa pela cintura, e depois de alguma demora regressou contando-nos o seguinte. A terra d’esta localidade é dura, gorda e negra, boa para a cultura da canna do assucar, e muito melhor que a de Pernambuco, o que bem podia avaliar por ter residido por muitos annos ahi e em outros lugares possuidos pelos portuguezes. A terra é cortada por muitos riachos capazes de moverem engenhos para o fabrico do assucar. Ha abundancia de peixes d’agoa doce, grandes e de varias qualidades; são innumeraveis as tartarugas; existe toda a qualidade, e em quantidade inexprimivel, de caça, como sejam viados, corças, javalis, vacas-bravas, e diversas especies de tatús, muitos coelhos e lebres, iguaes ás de França, porem mais pequenas, immensa variedade de passaros, como sejam perdizes, faisões, mutuns,[54] pombas bravas, trocazes, rolas, garças-reaes, e outras admiraveis. A terra produz raizes tão grossas como a coxa: o tabaco petum ahi cresce forte e optimo, e dizem que dá duas colheitas por anno. O milho cresce forte, cheio, e dá muitas espigas. Ha fructas muito melhores, e em maior quantidade do que na Ilha, em _Tapuitapera_, e _Comã_, papagaios de varias côres e diversos tamanhos, notando-se entre elles os _Tuins_,[55] do tamanho de pardaes, os quaes aprendem com facilidade a fallar, porem morrem de mal quando são levados para a Ilha: vi entre muitos salvarem-se apenas seis, os quaes comendo, cantando, e dançando em suas gaiolas, sem apparencia de molestia, davam duas ou tres voltas e morriam logo. Ha tambem muitos macacos e monos barbados, bonitos e raros, e que seriam muito apreciados em França, se lá chegassem. Ahi residia um barbeiro ou feiticeiro muito bem arranjado e com todas as commodidades. Tinha vindo, um pouco antes d’esta viagem, fazer suas feitiçarias e nigromancias para ganhar o vestuario e a ferramenta dos selvagens do Maranhão e leval-os comsigo quando fosse para a sua terra. Estas feitiçarias eram diversas. Tinha uma grande boneca, que com artificio se movia, especialmente com o maxilar inferior; dizia elle ás mulheres dos selvagens, que si desejavam vêr quadruplicada a sua colheita de grãos e legumes trouxessem e dessem á ella alguns d’estes generos, afim de serem mastigados tres ou quatro vezes, e por esta forma recebendo a força de multiplicação do seo espirito, que estava na boneca, podiam depois serem plantados em suas roças, pois já comsigo levavam a força da multiplicação. Gozou de muita influencia por onde passou, muitas foram as dadivas das mulheres, e mal satisfazia o que promettia, guardavam ellas com todo o cuidado os legumes e grãos mastigados. Estabeleceo uma dansa ou procissão geral fazendo com que todos os selvagens levassem na mão um ramo de palmeira espinhosa,[56] chamada _tucum_, e assim andavam ao redor das casas, cantando e dansando, para animar, dizia elle, o seo espirito a mandar chuvas, então n’esse anno mui tardias: depois da procissão _cauinavam_ (bebiam _cauim_) até cahir.[57] Mandou encher d’agoa muitas vasilhas de barro, e rosnando em cima d’ella não sei que palavras, ensopava um ramo de palmeira, e com ella aspergia a cabeça de cada um d’elles, dizendo «sêde limpos e puros afim de meo espirito enviar-vos chuva em abundancia.» Tomava uma grande tabóca de bambu, enchia-a de _petum_, deitava-lhe fogo n’uma das extremidades, e depois soprava a fumaça sobre os selvagens dizendo «recebei a força do meo espirito,[58] e por elle gozareis sempre saude, e sereis valentes contra vossos inimigos.» Plantou no centro d’aldeia uma arvore de maio, carregou-a de algodão, e depois de haver dado muitas voltas e vira-voltas em redor, lhes prognosticou grande colheita n’esse anno. Apezar de tudo isto não vindo a chuva, dia e noite fazia elle dançar e cantar os selvagens, gritando com quanta força tinham afim de despertar seo espirito, como faziam outr’ora os sacrificadores de Baal. Com tudo isto não choveo. Fez acreditar á estes selvagens, que elle bem via o seo espirito, carregado de chuvas, do lado do mar, porem que não se animava a vir por causa da _Cruz_, erguida no centro da praça, fronteira a Capella de N. S. d’Vsaap, e que se quizessem ter chuva não havia mais do que deital-a por terra, e teriam concordado n’isto facilmente, pondo-o logo em execução se ahi não estivessem os Francezes, e si não temessem o castigo. Chegando estas noticias ao Forte, mandou-se immediatamente o _Cão-grande_ e alguns Francezes para irem buscar o feiticeiro afim de vêr si elle poderia dançar no meio d’uma sala, contra sua vontade, e teria sido preso si, advertido como foi, não preparasse sua bagagem, e com sua equipagem não se salvasse n’uma canôa, mandando desculpar-se, d’ahi ha pouco tempo, por um seo parente trazendo muitos presentes com o fim de fazer pazes. Fez crer aos selvagens da Ilha, que tinha um espirito muito bom, que era muito amigo de Deos, que não era mau, e que por tanto só podia fazer bem. Dizia elle: «come commigo, dorme, caminha diante de mim, e muitas vezes vôa diante dos meos olhos, e quando é tempo de fazer minhas hortas, só tenho o trabalho de marcal-as com um pau a sua extensão, e no dia seguinte acho tudo prompto.» Sabendo alguns selvagens christãos, que pretendiamos castigar seo companheiro que d’elles tanto abusou, me pediram, que me condoesse d’elle e que nada soffresse por não ter sido mau e nem o seo espirito, visto terem ambos feito crescer os bens da terra. Ensinei-lhes a este respeito o que deviam crêr. Vede, meos leitores, quanto Satanaz é astucioso: similhante á um macaco imita as ceremonias da Igreja para elevar sua superstição, e conservar sob seo dominio as almas dos infieis por essa procissão de palmas, essa aspersão d’agoa, esse sopro de fumo para communicar o espirito, de que fallaremos mais simplesmente no _Tratado do espiritual_. CAPITULO XXXIV Da vinda dos Tremembés, como foram perseguidos, suas habitações, e procedimento. N’esse tempo a nação dos _Tremembés_, moradora alem da montanha de _Camussy_, e nas planicies e areiaes da banda do rio _Tury_, não muito distante das Arvores Seccas, das Areias Brancas, e da pequena Ilha de Santa Anna, sahio, sem esperar-se, para a floresta, onde se aninham os passaros vermelhos, e para os areiaes onde se encontra o ambar gris, e se pesca grande quantidade de peixes, com intenção, de surprehender os _Tupinambás_, seos inimigos irreconciliaveis, o que malogrou-se, visto que muitos _Tupinambás_ da Ilha tendo ido ahi com o fim especial de pescar, foram accommettidos pelos _Tremembés_,[59] sendo uns mortos immediatamente, outros captivos sem saber-se o que d’elles fizeram, e finalmente alguns embarcados n’uma canôa poderam salvar-se regressando á Ilha do Maranhão, onde contaram tão tristes casos causando nas aldeias, a que pertenciam os mortos, tanta indignação, que todos, vóz em grita e chorando, especialmente as mães e as mulheres, insistiram pela vingança, ao que acquiesceram os Principaes, vindo pedir aos francezes um chefe e alguns soldados, no que foram satisfeitos. _Japy-açú_ foi o conductor d’este exercito[60] composto de grande numero de selvagens, e acompanhado por alguns francezes. Atravessaram o mar entre a ilha e as areias brancas, saltaram em terra para descançar e passar a noite pescando uns, caçando outros, e as mulheres e as filhas procurando agoa pelos areiaes, a qual não podia ser senão salôbra, isto é, meia doce e meia salgada, armando as redes, fazendo fogo e preparando a comida. Os mancebos _Tupinambás_ fizeram _Aiupuues_, (choupanas) tanto para os Principaes como para os Francezes: na melhor _auipaue_ alojou-se o Coronel, e os Capitães armaram suas redes ao redor da do Coronel, ceremonia que observam em todas as suas guerras, especialmente quando se acham perto do inimigo. Escondem o fogo com receio de não serem á noite descubertos pelos inimigos, por ser costume geral d’elles o fazer subir no cume de arvores muito altas suas sentinellas afim de descubrirem fogo ou luz dos inimigos. Na manhã seguinte puzeram-se em marcha até um grande areial cercado de mato por tres lados, e de mar pelo ultimo: ahi encontraram as choupanas dos _Tremembés_, uma panella portugueza, e combinando isto com o que já sabiamos anteriormente, ficamos sabendo, que os Portuguezes estavam na _Tartaruga_, na serra de _Camussy_, unidos aos _Tremembés_, aos _Montagnars_, tanto de _Ybuapap_ como de _Mocuru_, principalmente com _Jeropary-uaçu_, isto é, com o _Grande-diabo_, principe e rei de uma grande nação de Cambaes,[61] muito amigo dos francezes, e inimigo natural dos portuguezes, podendo afiançar-se com certesa, que si os francezes ahi fossem, elle trahiria os portuguezes e unindo-se a elles, por ser _mulato-francez_, isto é, filho de um francez e de uma india. Voltemos ao nosso proposito. Encontraram os nossos selvagens ainda vivo um dos seus, que fugio para o mato, e escondeo-se no concavo de uma arvore; porem ouvindo o som das trompas de guerra, que eram feitas de um grosso madeiro cavado, tendo as aberturas superior e inferior similhantes á uma trombeta, sahio muito magro, e quase que sem figura humana por não ter comido durante oito dias senão folhas da arvore, onde escondeo-se: ensinou, como lhe permittiram suas forças, o lugar onde jaziam mortos seos companheiros, que foram encontrados com as cabeças rachadas, e sobre seos corpos os machados de pedras, instrumentos d’essas atrocidades, por ser costume entre elles nunca se servirem d’uma arma com que ja mataram um inimigo. _Caruatapyran_, um dos Principaes de Comã, trouxe-me um d’esses machados de pedra, ainda tinto de sangue, com alguns cabellos adherentes, e com um pouco do cerebro do Principal _Íanuaran_, que com elle foi morto, o que se soube por ser encontrado sobre seo corpo. _Caruatapyran_ pegando um d’esses machados, feito em fórma de crescente, ensinou-me o que eu não sabia, dizendo-me terem os _Tremembés_ o costume mensal de vellar toda a noite fazendo seos machados até ficarem perfeitos, em virtude da superstição, que nutriam, de que indo para a guerra armados com taes instrumentos nunca seriam vencidos, e sim sempre vencedores. Em quanto os homens e as mulheres se entregavam a este trabalho dançavam as moças e os meninos a frente das choupanas ao luar do crescente. São valentes os _Tremembés_ e temidos pelos _Tupinambás_; d’estatura regular, mais vagamundos do que estaveis em suas moradias: alimentam-se ordinariamente de peixes, porem vão á caça quando lhes apraz: não gostam de fazer hortas, e nem casas: moram debaixo das choupanas; preferem as planicies ás florestas porque com um simples olhar descobrem tudo quanto está ás suas vistas. Não conduzem após si muita bagagem, pois contentam-se com seos arcos, flexas, machados, um pouco de _cauï_, algumas cabaças[62] para guardar agoa, e umas panellas para cozinhar a comida: com mais destresa que os Tupinambás pescam á flexa: são tão robustos a ponto de segurarem pelo braço um dos seos inimigos e atirarem-no ao chão, como se fosse um capão. Dormem n’areia ordinariamente. Servem-se d’este lugar de areias brancas, e de arvores seccas para agarrar os _Tupinambás_, como ratoeira para pilhar ratos, e isto por tres razões. A primeira, por causa da pesca, ahi abundante e variada. A segunda, por causa de uma floresta, onde os passaros vermelhos de todas as partes vem fazer ninho para desovar. Não deixam de ir ahi em certo tempo os _Tupinambás_ para tirar do ninho os filhótes e os ovos meios chocos, havendo abundancia impossivel de descrever-se, levando, quando regressão á villa, provisão para dois mezes, preparando antecedentemente uns assados, e outros seccos e duros como paus, o que nunca me agradou, e a fallar verdade, nunca pude comel-os, embora sejam para os selvagens o primeiro prato, e bem delicioso. Logo contarei alguns uzos particulares, e bem notaveis, d’estes passaros. O terceiro motivo é para colher o ambar-gris, chamado pelos Tupinambás _Piraputy_ «excremento de peixes,»[63] por que elles pensam ser o ambar-gris o excremento das baleias, ou de outros peixes iguaes em corpulencia, o qual vindo á tona d’agoa, é pelas ondas atirado a essas praias. Dizem alguns francezes não ser o ambar-gris outra coisa mais do que a «flor do mar,» a que os selvagens chamam _Paranampoture_, ou uma certa gomma do mar, _Paranamussuk_. Decida o leitor como lhe aprouver. N’estas areias encontra-se o ambar-gris em massa, mais n’um tempo do que n’outro, e algumas vezes chega a massa a tal tamanho e grossura, que merece ser guardada n’algum gabinete real, não podendo ser justamente apreçada e vendida. Acontece as vezes virem poisar sobre ellas todos os bixos, passaros, carangueijos, lagartos, e outros reptis d’ahi, das circumvisinhanças, e do mar, e com elles as vêem procurando-as com cuidado, e por isso são essas grandes massas partidas em varios pedaços. Aconselhei a elles, que ahi fizessem um _Forte_ não só para impedirem as correrias dos _Tremembés_, como para tapar a entrada aos navios, que buscam a Ilha de Sant’Anna afim de colherem o ambar-gris; não ha duvida, que o mar atira muitas vezes sobre estas areias o ambar, que por ahi espalhado é comido por animaes, passaros e reptis, pois os selvagens da Ilha ahi vão apenas duas ou tres vezes durante o anno. Tenho certesa, que a colheita do ambar chegaria para pagar as despezas do Forte, da sua guarnição, e do mais que fosse necessario. Os nossos selvagens e francezes depois de muitas indagações por varios lugares somente acharam os corpos mortos dos seos, as choupanas, e vestigios de inimigos, e assim regressaram á Ilha mais famintos do que feridos. CAPITULO XXXV Da chegada dos Cabellos-compridos á Tapuitapera e da viagem ao Uarpy. Lá para o lado do Oeste havia uma nação, de que nunca se fallou, desconhecida por todos os _Tupinambás_, moradora nos mattos na distancia de mais de 400 á 500 legoas da Ilha, sem conhecer a vantagem dos machados e das foices, pois apenas se serviam dos machados de pedra, e assim viviam em segredo nas florestas d’essa localidade sob a obediencia de um Rei. Souberam por alguns selvagens, que apresionaram no mar, da vinda dos francezes á Maranhão, da sua residencia ahi, trazendo comsigo Padres, que ensinavam qual era o verdadeiro Deos, e absolviam os selvagens dos seos peccados. Levando taes noticias ao seo rei mandou este logo algumas canoas, e n’uma d’ellas foi o governador, abaixo d’elle, d’esta nação, acompanhado por duzentos mancebos fortes e valentes, ageis na natação e no uso da flecha, com instrucção de chegarem á Ilha, porem não podendo pôr pé em terra, limitando-se apenas a fallar com os interpretes dos francezes, e regressando depois á sua terra tomando todo o cuidado para não ser descoberto o caminho que seguiam. Chegaram defronte de _Tapuitapera_, onde então se achava o interprete _Migam_, que apenas soube da chegada d’elles foi ao seo encontro no mar, e com o seo Principal fallou por muito tempo. Interrogou-o o Principal acerca dos Padres, quem eram, o que faziam e ensinavam: á respeito dos francezes, quaes suas forças, e mercadorias, si era certo terem conciliado os _Tupinambás_ com os _Tabajares_, e si viviam em paz na Ilha. Respondendo o interprete a tudo isto, como devia, ficou satisfeito e assim o disse, asseverando que o mesmo aconteceria a seo Rei e a sua Nação, porque todos desejavam aproximarem-se dos francezes para conhecerem a Deos, terem machados e foices de ferro, com que cultivassem suas roças, e estivessem sempre em guarda contra os seos inimigos, plantando muito algodão e outros generos para offerecerem, como recompensa, aos francezes, aos quaes apenas pediam alliança e protecção. Perguntou-lhes o interprete, si era grande sua nação, e si estava muito longe, ao que respondeo affirmativamente, marcando a distancia por legoas pouco mais ou menos, que podiam haver da Ilha á sua terra, mostrando com os dedos o numero de luas, isto é, de mezes, que eram necessarios para regressarem ao seo paiz, e accrescentou «não te posso dizer o logar da nossa habitação, porque meo Rei assim me prohibio, e tambem porque receiamos, que si nos faça guerra. D’aqui ha seis mezes regressarei para te dar certas noticias, e podes dizer ao teo chefe, que sendo verdadeiras as tuas informações viremos morar por aqui perto.» O interprete respondeo—«vem, te rogo, vêr o Fórte, que fizemos, as grandes peças, que montamos sobre suas muralhas, e os francezes, que as guarnecem para de tudo dares noticias á teo Rei.» «Não, disse elle, eu e os meos recebemos ordem de não saltar em terra». Tanto porem instaram com elle, quase recebendo refens, consentio alguns dos seos saltar em _Tapuitapera_, onde foram muito bem tratados, e ahi adquirindo, em troca de generos, que levaram, alguns machados e foices, regressaram mui contentes. Durante essa visita, conservaram-se a nado as canoas, os remos armados, e tudo prestes se houvesse alguma traição. Tinham os outros as flechas e os arcos promptos, tanto desconfiam estas nações umas das outras! Apenas chegaram os seos, restituiram os refens, e foram-se em paz. Deos os guie e os traga ao seo gremio. Quanto á viagem ao _Uarpy_,[64][BE] rio e região, em distancia para mais de 120 legoas da Ilha, lá para as bandas dos Caietés, foi emprehendida pelo Sr. de Pezieux, com alguns francezes, e duzentos selvagens pelos seguintes motivos. Primeiro: para descobrir uma mina de oiro e prata na distancia de 100 legoas acima do rio, d’onde os selvagens nos trouxeram enxofre mineral, muito bom, e por tanto havia esperança de serem as minas boas e abundantes. Tem me esquecido dizer, que ha em toda esta terra grande numero de minas de oiro, misturado com cobre, de prata misturada com chumbo,[65] o que provam as agoas mineraes que descem dos montes. Segundo: para traser comsigo uma nação de Tabajares, habitante das margens do Rio. Terceiro: para procurar uma nação de _cabellos compridos_ por ahi errante, os quaes são doceis, faceis de serem civilisados, e que negociam com os _Tupinambás_. Si se realisarem estas coisas, como creio, a Ilha será em pouco tempo rica de generos cultivados por todos estes selvagens reunidos, e tornar-se-ha forte contra a invasão dos portuguezes, e descançando n’esta esperança vou fallar de algumas raridades, que notei ahi, cortando as difficuldades que se apresentam á primeira vista por meio de razões boas e naturaes. CAPITULO XXXVI Dos astros e do sól. É bello e magnifico o Ceo, n’esta zona tórrida, embora pareça muito menos estrellado do que na Europa, isto é, não apparecem tantas estrellinhas fixadas na abobada azulada d’aquelle como acontece na do nosso, pois no Maranhão ha estrellas maiores e brilhantes, e mais luzentes do que aqui. Não me convenço de lá não haverem menos estrellas do que aqui, antes esta falta, que noto, attribuo á minha vista, e por mais esta razão. Todos os que habitam fóra dos dois solsticios, _Cancer_ e _Capricornio_, olham obliquamente o centro do ceo, que é a linha ecliptica ou zona tórrida, onde passa o sol, e por tanto tem maior horisonte, ou maior espaço do ceo a contemplar, e menos numero de estrellas a contar. É pela experiencia confirmada esta razão, porque nasce e deita-se o sol, sem preceder aurora, e assim acaba o dia e começa a noite, e si ha tarde ou manhã é quasi nada. Na Europa acontece o contrario, pois algumas vezes temos mais de duas horas de tarde, e outras tantas de manhã, antes do nascimento e do occaso do sol, porque os habitantes da zona tórrida estão na esphéra direita e nós outros na obliqua. Ainda acrescento outra experiencia. Quando regressamos de Maranhão para cá, no Polo Septentrional, descubrimos mais depressa a estrella d’este Polo, do que quando na nossa viagem para lá descobrimos a estrella do Cruzeiro embora mais elevada do que o Polo Antarctico ou Austral. Ainda fiz outra observação n’este planeta do Sol, é que mostra dois meios-dias diversos entre os dois termos do anno, de sorte que n’uma metade do anno, olhando o Este está á direita, isto é, na parte austral, e no resto do anno a esquerda, isto é, na parte septentrional, e em ambos elles ha pouca sombra. O sol no zenith somente duas vezes no anno olha para esta terra, como succede a todas as regiões contidas nos dois solsticios: algumas vezes está tão perto da esphera direita, que pouco falta para chegar ao meio dia, e ferir-vos a prumo o cume da cabeça. Comtudo isto destinguem-se perfeitamente ambos estes meios-dias. Explica-se isto por ser preciso cortar duas vezes, annualmente, o sol quando no zenith, a zona tórrida, como já disse, para fazer os solsticios de Cancer e Capricornio, e por tanto os habitantes da zona tórrida o vêem fazer o seo meio-dia ora de um lado, ora de outro: por exemplo: quando sahe do Capricornio afim de encaminhar-se para Cancer, os brasileiros habitantes da zona tórrida observam o seo meio-dia á direita e quando deixa Cancer com direcção á Capricornio vêem-no á esquerda. Abre-se-me vasto campo para descobrir a sabedoria de Deos na organisação do mundo, tendo por fim apenas escrever succintamente uma historia, entrego á consideração do leitor chamando a sua attenção para a maneira como Deos dividio o curso do sol em duas extremidades e um meio, recebendo os habitantes de todas estas tres partes a mesma luz durante o anno, tanto uns como outros, excepto os habitantes de Cancer, que apenas tem durante o anno tres dias e algumas horas de sol mais do que os de Capricornio, originando-se por isso os annos bissextos e a reforma do calendario, como vamos explicar. Principiemos pelo meio-dia, e acabemos pelas extremidades. O meio é composto de duas extremidades, equidistantes uma da outra, porque de outra forma não seria meio. O curso do Sol se faz em 24 horas, dia natural, e em 12 mezes por anno. Ora sendo a zona tórrida o meio do curso diario e annual do sol, é indispensavel, que na sua terceira parte e porção mostre diaria e annualmente á luz do sol igual a que se apresenta nas duas extremidades, o que não poderia fazer; si os dias não fossem iguaes, tendo cada um 12 horas de Sol, porque, si excedessem ainda que pouco, não seria o meio do curso do sol, e sim cahiria mais para uma das duas extremidades, tendo, durante 12 mezes, uns dias maiores do que outros, compensando n’uns o que n’outros perdia, e convindo por isso marcar-se outra zona de céo, que fosse o meio e o centro d’esse curso, sendo o meio a essencia e a base das duas extremidades. É impossivel imaginar-se dois extremos sem meio: como ja disse, o meio é composto de duas extremidades, e por isso sendo a zona tórrida o meio da carreira do sol, deve ter sua porção de luz á custa das duas extremidades, que são dose e dose, que dá o sol igualmente para os dois solsticios, entre as duas partes do anno, recompensando n’um tempo o que n’outro perdeo. Consideremos agora uma terceira porção para servir de meio d’estas duas extremidades, dose á dose. Convem tomar 12 de uma parte e 12 de outra para ser o todo igual: comprehendereis assim facilmente como esta zona tórrida gosa igualmente com as outras partes do mundo da luz do sol sem mudar seo numero de seis a seis em tempo algum, porque partecipa igualmente das duas extremidades, quer vá o sol visitar Cancer e seos habitantes dando-lhe com a sua boa chegada mais largura e liberalidade de luz, quer vá fazer outro tanto no Capricornio, não lhe sendo por isso de forma alguma importuna a zona tórrida, e nem alteando o seo imposto ordinario, fazendo-lhe pagar somente, seis horas da manhã, e seis depois do meio dia, a luz e calor para a sua passagem da travessia da terra, e pelo trabalho dos seos habitantes durante a sua vinda. Quanto ás terras e aos habitantes inter e extra-tropicaes dividem entre si igualmente, pouco mais ou menos, em diversos tempos, a luz do sol, e por compensação mais n’um tempo do que em outro: no fim do anno acham que cada um teve 12 horas de luz para um dia natural, e dose mezes por anno. Já disse que os habitantes de Cancer, dentro e fóra do seo Tropico, gosam mais tres dias do sol do que os outros. Dar a razão natural d’isto, e o que dizem os astrologos, é o mesmo que nada, por ser segredo, que em si guardou a divina Providencia, e uma honra que deo ao mundo antigo, composto d’Asia, Africa e Europa, e si basta uma razão allegorica, sou de opinião que é para fazer sobresahir tres privilegios especiaes, que sobre o mundo velho alcançou o novo, e que são—a primeira habitação do homem expellido do Paraiso Terrestre; dadiva da lei escripta á Moysés; e a redempção do mundo por Jesus Christo. CAPITULO XXXVII Ventos, chuvas, trovões, e relampagos em Maranhão e suas circumvisinhanças. Alem do que a este respeito disse em sua _Historia_ o padre Claudio d’Abbeville acrescentarei para satisfação do leitor o que me fez conhecer a experiencia: 1.º Fallando dos ventos, entre os quaes o do Oriente tem o sceptro e occupa o reino do Brasil, alem das razões dadas por esse Reverendo Padre, dou outra, que devo aos mathematicos, que por lá andaram e escreveram sobre a materia. Dizem elles, que a constancia d’esse vento soprando por ahi é devida á disposição das costas do Brasil, em linha recta de Este a Oeste, porque tendo o sol levantado os vapores da terra e da agoa e atirando-os apòs si, pela violencia do seo curso diario encontram as costas do Brasil do Oriente ao Ocidente sem inflexão ou curva alguma e por isso seguem por ahi. Praticamente observa-se isto com o fumo, que espalha-se no primeiro corpo solido, que encontra como sustentaculo de sua fraqueza, e sem elle derrama-se á feição do vento, que ahi sopra. Com quanto o vento das outras tres partes do mundo, a saber, Oeste, Norte e Sul não reinem no Maranhão e suas circumvisinhanças em comparação com o de Este, não se pode comtudo dizer, que não soprem algumas vezes ventos do Norte e do Sul, e raras vezes o de Oeste. Em Maranhão os ventos vão sempre augmentando desde Agosto até Janeiro, que é propriamente o estio d’esta terra, e quando o tempo é sempre sereno. Explica-se isto pelo curso do sol que regressando do solsticio de Cancer para o de Capricornio surgem debaixo da zona tórrida grandes vapores, aquosos e humidos, e quanto mais se aproxima d’essas terras mais se levanta, e por tanto mais se reforçam esses ventos, que não são outra coisa senão esses vapores misturados com o ar. 2.º A razão porque começam as chuvas em Janeiro ou em Fevereiro, e vão sempre augmentando até principio de Junho ou fins de Abril, é porque o Sol volta do solsticio de Capricornio para o de Cancer, e attrahindo muita humidade expande-a no ar, e d’ahi cahem as chuvas: quanto mais o Sol se aproxima do seo termo, mais augmenta sua humidade, e torna a queda das agoas mais expessa, forte, e rapida, e por isso vemos no Brazil ser differente a epocha e a força das chuvas, isto é, mais depressa e mais abundante n’uma terra do que em outra. De ordinario são as chuvas abundantes e frequentes, duradouras e continuas, mais á noite do que de dia: é o tempo proprio para semeiar-se, porque tudo nasce, cresce, produz, e dá colheitas. Quando a terra é arenosa, e que está secca pela proximidade do Sol, ao cahir das chuvas continuas e abundantes, ella absorve admiravelmente as agoas, muda a sua secura para uma temperatura humida, que é a mãe das gerações. São diversas estas chuvas do orvalho da noite no estio, porque tem este bom cheiro e aquellas mau, visto que provindo as chuvas do choque de expessos vapores aerios, trazem portanto comsigo a qualidade de seos agentes e a sua causa efficiente: acrescente-se ainda que a queda impetuosa das agoas sobre a terra, coberta de folhas em putrefacção ou de cinzas de paus queimados, revolve-a, e d’ella faz desprender-se, com o seo estado constante de calor natural, mau cheiro proveniente de taes objectos. O orvalho cahindo doce e brandamente em noite serena, mais fria do que cálida, exhala cheiro agradavel, especialmente quando se derrama sobre plantas odoriferas. É mais doentio o tempo das chuvas do que o das brisas, ou ventos de Este, porque em primeiro logar não sopram mais os ventos, e por conseguinte não purificam o ar, e d’elle não expellem vapores intensos, maritimos e aquosos, e por isso mui doentios: em segundo logar chocando-se as nuvens e cahindo as chuvas, apparecem molezas no corpo, doenças de coração, desarranjos do estomago, enfraquecendo-se os nervos, e infiltrando-se os ossos de humidade o que não apparece no tempo das ventanias, que limpam o ar, o mar, e a terra. 3.º Os trovões e relampagos são, sem comparação alguma, mais fortes e frequentes no Brasil do que no mundo velho, especialmente no tempo das chuvas, são horriveis os trovões, parecendo abalar-se a terra, e um relampago dura mais do que dose na Europa. Durante esse tempo não sahem de casa os selvagens, e nem o mais valente se atreve a pôr o nariz fóra da porta, e eu mesmo, sem ser dos mais timoratos, fartei-me de medo, embora ninguem visse a queda do raio. Eis a razão. Emquanto é brando o calor de Agosto á Fevereiro raras vezes ha trovões; mas quando surge a guerra do frio e do calor, que é de Fevereiro á Junho, então é necessario que appareçam escorvas e peças, isto é, raios e trovões. N’este tempo reina o calor na zona tórrida com todo o seo vigor, e o frio então se fortifica pelo regresso do Sol de Capricornio para Cancer, cheio de humidades do ar, e por isso é grande o combate, mais frequentes os trovões, e mais medonhos os relampagos. Não se descobre a queda dos raios porque são altas e vigorosas as arvores do Brazil, e ordinariamente é n’ellas, como acontece em toda a parte, onde cahem os raios. Como é o paiz coberto de florestas, e repleto de arvores de admiravel altura, é bem facil cahir o raio desapercebidamente. Prova-se isto todos os dias com arvores cahidas e queimadas, que se encontram nas florestas. CAPITULO XXXVIII Mar, agoas, e fontes do Maranhão. O mar, pelas suas marés, não é o mesmo que o do restante do Mundo. Embora o Occeano acompanhe infallivelmente o crescente, o plenilunio, e o minguante da Lua, comtudo notaram nossos marinheiros em um ou dois dias, e algumas vezes mais, differença e falta de igualdade do que se observa n’outras marés do Universo. Explica-se isto observando-se, que o Brazil está cercado de milhares de inflexões ou voltas, formadas umas por bancos e corôas de areia, e outras por voltas de pontas de terra e bahias. Accrescente-se ainda terem todas estas terras as sahidas mui retalhadas, que impossibilitam o desembocar da maré com toda a sua força para os rios salgados e portos e barras, como acontece n’outras partes. Reparae por exemplo o fluxo e refluxo do mar no rio Sena, pois quando o mar no Havre da Graça principia a refluir já a onda chegou a Ponte de Arche. Reparei tambem na seguinte coisa commum ás outras marés, porem não tanto como as antecedentes. O mar no seo fluxo, batendo nas pontas das rochas, deixa no meio um canal ou rego, que mostra a sua corrente principal, forrado de excrecencias maritimas, que ahi se amontoam, e si passar-se uma corda pelo seo nivel poderá servir de marca aos pilotos para reconhecer o canal no meio dos recifes. Parece-me explicar-se isto pela propriedade da forma circular, que tem os elementos, a qual lhes permitte expandir-se até a circumferencia: em virtude d’isto o mar faz no meio do centro do seo fluxo o rego, ou fio de sua carreira, depois dispersa-se, e dá a cada ponta de rochedo a sahida para a maré, e por isso tenho observado algumas vezes muitos pedaços de pau serem arremeçados em diversos sentidos contra os rochedos pela violencia e corrente d’essas differentes marés. As agoas do Maranhão são incorruptiveis, e muito melhores do que as da Europa, como tive occasião de verificar por espaço de dez semanas na viagem do meo regresso: eis a razão: quanto mais sugeito está um corpo á transformação e mudanças de qualidade, mais susceptivel se torna de ser corrompido e mau por causa das alterações, que soffre, ora as agoas do Maranhão achando-se sempre no mesmo estado, são por tanto incorruptiveis e optimas. As agoas da Europa são pelo contrario ora quentes, ora frias, e por conseguinte corrompidas e más. Não são frias como as da Europa as fontes do Maranhão, porque sendo baixas as terras do Brazil não póde operar-se a anteperistase em suas entranhas, especialmente pela proximidade do sól, que penetra muito bem e com todo o vigor na terra, que é arenosa e mui susceptivel de calor. As agoas da Europa são frias no Estio por causa da grande anteperistase das terras, d’onde cahem as agoas, que são altas, muitas vezes fortes e densas, e por isso resistem ao sol. Conservam as fontes do Brazil sempre a mesma temperatura, porque o sol derrama-se igualmente por cima d’ellas, que nada tem, que lhes possa imprimir alguma qualidade fria. Entre as fontes do Maranhão umas são melhores do que outras, e tem até côres diversas: a que nasce da terra é diversa em gosto e côr, porque sendo a terra baixa, e havendo muitas arvores, umas com bom gosto e outras com mau, estendem por ahi suas raizes, e d’ellas os olhos d’agoa, ou os veios das fontes recebem qualidade boa ou má, tanto da terra como das arvores. Notei n’estas fontes o seccarem umas em setembro, e outras minguarem muito, porque sendo o terreno do Maranhão quente, secco, e arenoso consome facilmente as agoas das chuvas, que por elle corre, e que serve de alimento ás ditas fontes: achando-se pois os mezes de setembro, outubro, novembro e dezembro muito longe das chuvas, é natural, que ás fontes aconteça o que já dissemos. Quem quizer beber agoa muito fria, deve expol-a ao sereno, e na manhã seguinte está tão fria como gêlo, o que não lhe succederá se n’essa hora for buscal-a á fonte, porque sendo as noites em Maranhão muito frias, ellas tem muito mais força sobre uma porção d’agoa guardada n’uma vasilha, cercada de ar por todos os lados, do que sobre agoas sempre em movimento pela corrente, contidas em leitos baixos, cobertas e sombrias por todos os lados, e tendo a superficie apenas á vista. Facilmente observa-se isto na Europa, durante o inverno, nas fontes e poços situados em lugares retirados e sombrios, pois nunca suas agoas se gelam, ou pelo menos se esfriam. CAPITULO XXXIX Singularidades de algumas arvores do Maranhão.[66] As arvores do Maranhão, em sua maior parte, são duras e pesadas, porque a solidez nas coisas mixtas provem da boa cocção da humidade. N’este paiz existe em igual abundancia tanto a humidade como o calor, cada um durante a sua estação: as chuvas tem seo tempo proprio para alagar a terra, e o calor tambem o tem para coser e digerir esta humidade, que é nutricção dos vegetaes, especialmente das arvores, que estendendo suas raizes dentro e fóra da terra por ahi chupam muita agoa e sobrevindo o calor transforma a humidade em corpo solido. As arvores estão sempre verdejantes por successão diaria e continua de folhas novas ás velhas, de fórma que, sahindo aquellas dos olhos dos ramos vão logo por força propria attrahindo a seiva, ficando d’ella privada as velhas, que por isso definham e cahem. Observamos isto no nosso corpo quando uma unha nova vem substituir a velha. Por esta renovação de folhas conservam-se as arvores no mesmo estado, o que não vemos na Europa porque o inverno retem no interior das arvores o calor natural d’ellas: é necessario que cáiam as folhas antes da ausencia do calor, ficando só a humidade, que apodrece o pé da folha em vez de lhe dar vigor como acontecia no tempo do calor, e por tanto assim se faz a queda das folhas. No Brazil acontece o contrario porque vivendo o calor e a humidade em boa e perpetua companhia, novas folhas nascem ao mesmo tempo que as velhas cahem: geralmente, em todas as coisas notam-se tres estados: 1.º Crescer. 2.º Permanecer. 3.º Decrescer e assim sempre até morrer: eis o que observamos nas folhas—teem tempo para crescerem, ficarem perfeitas, e depois irem definhando até cahirem seccas. Entre estas arvores merecem especial menção em primeiro lugar os _mangues_, arvores, que crescem nas barreiras do mar, e espalham seos ramos, e fibras sobre as areias do mar, ou entre as pedras que cobrem o limo, ahi se fortificam, engrossam, e chegando ao seo estado completo, começam elles mesmos a deitar novas fibras, que tem igual desenvolvimento, e assim se reproduzem infinitamente, não pelas raizes, como as outras arvores, e sim pelos seos ramos. Não sei o que mais admirar, si a successão perpetua de pae a filho, ou a geração inteiramente diversa das outras arvores. A razão, porque assim produzem estas arvores, provém de serem altas, pesadas e em seo principio finas e delgadas para a raiz, e grossas no centro: se nasciam da raiz de seo pae, nunca poderiam subir por causa da fraqueza e delicadesa de seo pé, da grossura e peso do seo meio, e assim ficam deitadas e rastejando pela areia, a que deo a natureza o encargo de dar dois nascimentos; um do ramo de seo pae, onde ficam perpetuamente encorporadas e por conseguinte bem sustentadas, outro da origem da enseiada do mar, na qual ellas aprofundam e estendem suas raizes, e d’ahi extrahem segunda nutrição, e assim sustentadas e nutridas por cima e por baixo com facilidade crescem. Notae de passagem esta bella particularidade de terem dois nascimentos e duas nutrições: a primeira de cima consubstancial com o seo gerador, que com elle faz uma mesma essencia, sendo gerado, sahido d’elle, e sempre com elle e inseparavelmente vivendo de sua nutrição. O segundo nascimento e nutrição é debaixo do seio da areia do mar, nutrindo-se do mesmo mar, chamando para cima esta nutrição para unil-a com a que recebe de seo Pae: por estas duas nutrições cresce, estende seos ramos, dos quaes, de novo, por outro nascimento produz seos fios, que adquirem raizes dentro do mesmo mar, que o produz. D’esta comparação eu me servia para fazer comprehender aos selvagens o Mysterio da Encarnação do Filho de Deos dizendo ter elle dois nascimentos, um de cima, eterno e divino, sahindo de seo Pae sem d’elle sahir, distincto de seo pae por hypostase como o ramo de mangue, com o filho gerado d’elle, unico comtudo na essencia e na substancia com seo gerador, como a fibra com seo ramo, vivendo de uma mesma nutrição divina e celeste, a saber, o amor do Espirito Santo, que constitue a terceira pessoa da Trindade: o outro nascimento é de baixo, temporal e humano, sahido do seio da Virgem Maria, nutrido com o seo leite sagrado, foi crescendo homem e Deos ao mesmo tempo, vivendo interiormente da nutrição divina, e exteriormente da nutrição corporal, e quando chegou á idade de 33 annos e meio, depois de haver communicado sua doutrina celeste aos homens, confirmada por seos milagres, estendeo seos braços, consentindo que fossem pregados na arvore da Cruz e do meio de suas chagas sahiram seos escolhidos, que depois tomaram raizes na Santa Igreja, regenerados pela agoa do baptismo, e nutridos pelos Sanctos Sacramentos. Diziam-me os selvagens, que comprehendiam isto muito bem e sem a menor difficuldade, porque si Deos deo tal poder ás arvores, que não sentem, porque não poderia elle fazer o mesmo a si? N’esse paiz existem arvores, que se mostram exteriormente seccas, sem folha alguma, e comtudo quando chega o tempo proprio brotam d’ellas em quantidade flores muito bellas e em cachopas, porem são de diversas cores e ordinariamente amarellas. Encontra-se a razão d’esta particularidade no logar escolhido pela naturesa para terminar a sua acção: por exemplo; quando é liberal dando a qualquer membro um excesso de nutrição, é á custa dos outros: quando estas arvores dão sua seiva para formar uma casca grossa, verdejante e humida e cobrir de lindas folhas os seos ramos, não produzem bellas flores, as quaes naturalmente, em todos os vegetaes, formam-se de uma seiva bem digerida e subtil, e por tanto podendo subir facilmente até as extremidades dos ramos, não cuidando das outras partes da arvore para lhes dar qualquer nutrição. Reconheci isto em França, onde se pódam as cerejeiras para não dar fructo, afim de com toda a sua seiva produzirem flores largas e dobradas, como rosas almiscaradas duplas. Tambem existem outras arvores, que fecham suas folhas, e as dobram sobre si, quando o sol está no seo occaso, e apenas se levanta ellas desdobram-se e expandem, como acontece em França, ao Girasol. Este phenomeno é devido á humidade ou sereno na noite, que as aperta e fecha porque o frio tem essa qualidade, e o calor do dia as abre e as expande por ter essa propriedade. Com bastante difficuldade pude deparar com as razões naturaes de muitas singularidades, que vi em Maranhão, porem confesso com franqueza, que nunca achei a causa natural: certas arvores d’aquelle paiz, apenas se toca com a mão o seo tronco, immediatamente fecham todas as suas folhas: por certo haverá n’estas arvores alguma propriedade sensitiva, como ha na esponja, a qual apenas sente a mão do homem, que a pretende cortar, ella se aperta, e occulta-se no concavo e na fenda da pedra do mar, que a forma. Os cajueiros, que produzem uma fructa propria para fazer vinho, nascem espontaneamente pela costa do mar, e por isso vivem da seiva maritima e salgada, resultando d’isto ser o vinho de cajú picante e acre, e produzir no futuro dores nos rins, e ser prejudicial aos pulmões. Por experiencia coei este vinho, e d’elle tirei muito sal. Ha espinhos, que dirieis serem creados por Deos para representar o mysterio da paixão de Jesus Christo,[67] porque crescem formando ramilhetes quatro em cima, equidistantes á maneira de uma Cruz, e um no cume com a ponta virada para o Ceo, ornado de nove folhas, dispostas como tres raminhos, cada um com tres espinhos, que em tempo proprio se transformam em tres flores, ficando o espinho maior no centro. São estes cinco espinhos os instrumentos das cinco chagas de Jesus-Christo. Cercando a corôa de espinhos seo Chefe, como o espinho de cima é cercado de folhas, isto é, de peccados e de vaidades das tres idades do mundo, na lei da natureza, escripta e de fé, cujos peccados e imperfeições se transformam, pelo merecimento do sangue de Jesus Christo, em flores da Graça, em boas obras, e na recompensa da gloria. CAPITULO XL Dos peixes, passaros e lagartos, que se encontram n’esses paizes. Eis uma questão não pequena, de phisica ou de philosophia natural—«como pode um animal, vivo e perfeito na sua especie, formar-se sem progenitores.» Alberto, o grande escriptor, vio peixes vivos no meio de uma grande pedra marmore, tirada da rocha, e rachada no centro. Não é novidade para os que leram este autor, porque eu vi em Maranhão, nos regatos formados pelas chuvas, e que pouco duram, muito bons peixes, iguaes em tamanho e côr aos que vivem em rios permanentes, e que nascem de ovas. Como é possivel, que sem haver ovas, possam estes peixes nascer, crescer e morrer, com a queda, augmento e ausencia das chuvas? A razão d’isto está na força e influencia dos planetas predominantes em janeiro e fevereiro, quando nascem estes peixes, e na conjuncção forte da humidade e do calor e na disposição do terreno, tudo isto combinado de tal forma, que dá origem a taes e taes peixes de preferencia aqui do que em qualquer outra parte; como vemos na Europa em que a diversidade das terras, por onde passam as chuvas, produz differentes variedades de peixes. Entre os passaros do Maranhão, dos quaes eu diria maravilhas, si outros ja o não tivessem feito, notei uma especie singular de aves aquaticas vermelhas,[68] cuja penna e carne são de côr escarlate, dando-se a particularidade de serem brancas quando sahem do ovo, depois com o tempo, quando podem vôar; são pretos, e assim ficam até chegarem a sua grandesa e grossura natural, d’ahi vão se tornando meio pardos e meio vermelhos, e finalmente totalmente rubros, passando assim por quatro mudanças. Não digo isto por ouvir dizer, porem observei nos que se criam em casa presos. Este phenomeno não se dá sem uma razão profunda, e fundada na naturesa, e me parece ser esta: a côr da pelle e das pennas é devida á disposição e qualidade do alimento, que nutre a ave, porque diz o philosopho, a pelle e as pennas nascem, crescem e se nutrem com a superfluidade dos alimentos: ora a côr branca faz suppor alimentação leve e delicada, e por isso a avesinha ao sahir da casca do ovo, vivendo somente á custa de moscas e mosquitos, que vôam ao redor d’elle, é natural que suas plumas, originadas de tão fraca comida, tenham a côr branca. A côr negra porem faz crer em abundancia e superfluidade de alimentação, porque a intensidade do calor natural vae sempre excitando o apetite, e empurrando-o para o pasto e por isso notei, que quando esta ave tem as pennas pretas é glutão e come constantemente. A côr parda e meia vermelha mostra uma tendencia, ou uma regra, nascida expontaneamente da naturesa para acolher uma certa alimentação, que lhe é propria, e então observei escolher esta ave uma comida singular e especial, isto é—os carangueijos, os quaes consummidos no estomago, ahi se transformam em chylo vermelho como escarlate, e este cahindo no figado, se d’elle não receber alguma côr, como acontece com os outros animaes, tinge-o com sua côr, e sempre assim passa para as veias, das veias para a carne, da carne para as pennas, e tão perfeitamente, que si fosse um mettido dentro de uma panella para cozinhar, podia dizer-se que havia dentro uma porção de vermelhão. Entre milhares de lagartos e reptis do mar, appliquei minha attenção para uma especie bem monstruosa. É um animal que vive umas vezes n’agoa, outras em terra, e tambem nas arvores, contendo em si as tres espheras com que vivem todos os animaes do mundo. Com os peixes partilha o elemento d’agoa, com os homens e os quadrupedes o da terra, e com os passaros aninha-se e repousa nas arvores. Direi ainda que só parece terem os astros lhe dado sobre os rins, desde a cabeça até o fim da cauda um reflexo de seos raios e brilhos, porque notareis no dorso uma bella facha de raios do sol e das estrellas, similhantes aos que fazem os nossos pintores ao redor do globo do sol e das estrellas. Tem a pelle esmaltada de côr prateiada e azulada, como a abobada celeste quando serena. Quando este animal sente a intensidade do Sol, sahe do mar, sobe ás arvores visinhas, e escolhendo um ramo para deitar-se, ahi se estende e descança. Põe seos ovos nas arvores maritimas, os quaes aquecidos pelo calor do Sol deixam sahir os lagartinhos, que apenas sahem das cascas dos ovos conhecem logo o pae e a mãe, acompanham-no ao pasto no mar, em terra e nas arvores. Explico a rasão d’isto dizendo que quanto mais humido é o animal, mais somnolento é elle. Entre todas as especies de animaes esta sorte de lagartos é humida e fria, e por tanto sujeita ao dormir, e como seja mais agradavel o somno quando se tem os membros em certo grau de calor, eis por que elles buscam soalheiros. Reconhecendo pequeno o seo calor natural, eis porque põem seos ovos em lugar expostos aos raios do Sol. CAPITULO XLI Da pesca do Piry. Os selvagens do _Maranhão_, de _Tapuitapera_, e de _Comã_ tem uma pescaria certa e annual, como annualmente a do bacalhau nos Bancos da Terra Nova. Alguns mezes depois das chuvas, quando julgam as agoas escoadas, muitos embarcam em suas canoas, levando farinha para alguns mezes ou seis semanas, e assim vão costeando a terra á um lugar distante da Ilha 40 ou mais legoas: ahi se arrancham, levantam choupanas, e depois dedicam-se a pescaria, a caça dos crocodillos, e á procura das tartarugas. Ahi se reunem muitos selvagens de diversas aldeias da Ilha, de Tapuitapera, e de Comã. Apanham-se os peixes nas pôças, ou buracos de areia com pouca agoa, e quando se vae um pouco mais tarde, coagido pela estação, encontram-se essas pôças seccas e o peixe morto. Sendo impossivel dizer-se o numero ou a quantidade d’estes peixes, faço porem comprehendel-a asseverando, que chega para carregar todos os selvagens, e ainda fica muitissimo. São grossos e curtos, não excedem porem a grossura e expessura de um braço, tem de comprimento meio pé entre a cauda e a cabeça, o focinho achatado e muito similhante ao do tenca, e parecem-se muito com os peixes maritimos chamados _marujos pintados_. Apanhados nas redes, que levam, chamadas _pussars_, seguram-nas pelo meio dose a dose, lançam-nos com entranhas e tudo ao fumeiro para assal-os, e assim ajuntam muitos, que levam para suas casas, e com esta comida sustentam-se um ou dois mezes. Quando querem comer, tiram a pelle do peixe, seccam-na ao sol, pisam-na em um almofariz, reduzem-na á pó, com que fazem seos _mingaus_, isto é, suas bebidas, como fazem os turcos com o pó dos quartos de boi cozidos ao forno quando vão para a guerra. Dirigindo-me um dia para a Ilha, achei-me em certa aldeia, onde nada tendo que dar-me para jantar, ferveram alguns d’estes peixes n’uma panella, do caldo fizeram _mingau_, vindo o resto no prato. Bem contra minha vontade de nada me servi por causa do mau gosto da fumaça, porem com muito apetite comeram de tudo os francezes, que vinham commigo, achando saborosos os peixes, com grande satisfação dos indios, que os apreciam tanto á ponto de irem muito longe buscal-os. Como se acham em tanta abundancia estes peixes em taes fóssos ou poços desde o inverno até esse tempo? Se explicações servem ja as dei no cap. 40, e por isso á ellas me refiro, acrescentando ainda o seguinte. A grande quantidade de chuva faz transbordar os rios, os regatos, e o proprio mar, de maneira que todos estes campos ficam innundados até a altura de um homem: assim sahem os peixes do lugar natural, onde habitavam, ahi regalam-se com pastos novos a ponto de não se lembrarem de regressar a Patria, e por isso quando as agoas se abaixam, ficam presos em fóssos e poços como vimos em todos os lugares onde se dão estes factos. A caça dos jacarés lhes é util e agradavel: são pequenos crocodillos com 8 ou 10 pés de comprimento, de pelle dura, ventre molle, sem lingua, com olhos vivos, sempre alerta e maus: accommettem o homem, cortam e devoram o primeiro membro que agarram. Escondem-se em grotas, á margem dos rios, e sempre de emboscada, nadam como peixes, arrastam-se ligeira e brandamente, abrem a bocca, e como que intentam assustar-vos si vos encontram: põem ovos iguaes aos de galinha, porem cobertos de protuberancias, como as castanhas; dizem que são bons para comer, mas eu não affianço porque nunca os provei, pois sempre tive muito horror á estes bixos. Chocam seos ovos, e d’elles sahem jacarésinhos, gordos, grandes e compridos, como os lagartos que vemos pelo estio correr nos muros. É para admirar, que de tão pequeno bixo origine-se tão grande animal, e que apenas sahido da casca do ovo começa a andar e arrastar-se! Sua carne cheira a almiscar, é doce e desagradavel: os selvagens porem não fazem caso d’isto, apreciam-na muito quando a encontram, e por isso empregam-se muito em caçal-os. O logar _Piry_, humido e cheio de limo, tem muitos jacarés, que são perseguidos pelos selvagens por meio de flechas, atiradas com direcção á garganta ou á barriga, e depois acabam-nos com uma barra de ferro, escamam-nos, e cortam-nos em pedaços, que assam. Si são pequenos, cozinham-nos com escamas, e assim preparados acham-nos muito bons e até delicados, porque assados com sua gordura, dizem elles, nada perdem de sua substancia. Achei melhor crer do que experimentar, embora tivesse muitas occasiões de o fazer, visto que recebi muitos presentes d’elles quando voltaram os selvagens do _Piry_. A recordação somente d’estes animaes me fazia nauseas até o coração, á vista d’esses pedaços. Diziam os francezes, que o comeram, ser similhante a carne fresca de porco, um pouco mais adocicada, oleosa, e com o cheiro de almiscar. He muito perigoso tomar-se banho n’esse paiz, a não ser em logar descoberto, porque estes despresiveis animaes se arrastam de mansinho e se atiram sobre vós. Contaram-me, que um menino, da aldeia de _Rasaiup_, cahindo n’um riacho, onde hia buscar agoa, foi agarrado e devorado pelos jacarés. Quando andei pelas costas do mar, desde _Trou_ até _Rasaiup_, em companhia de muitos selvagens, elles me levaram para beber agoa n’uma grota cheia de sarças e outras mattas, e me advirtiram, que ahi ninguem se podia demorar muito por ser o escondrijo dos jacarés. Fazem-lhes muita guerra os nossos selvagens, por gosto e utilidade, e trazem grande provisão d’elles quando voltam do Piry. A razão de não terem lingua, estes animaes é porque segundo creio, tem a garganta e o pescoço, inteiramente inflexiveis, a ponto de não poderem olhar nem para traz nem para o lado sem moverem o corpo todo: alem disso, elles tem o maxillar inferior duro e immovel, tudo isto contrario ao uso da lingua, e só mastigam com o maxillar superior. Eis porque agarram e devoram a presa de um só jacto, não precisando viral-a e reviral-a da garganta. Disse S. Gregorio, que os crocodillos do Nilo chegavam a ter até o comprimento de 20 covados, a cor de açafrão, porem os do Maranhão e de suas circumvisinhanças não iam alem, como ja disse, de 10 ou 12 pés, com a differença tambem de habitarem aquelles, durante a noite, a agoa, e de dia a terra, porque busca o calor, visto serem no Egypto á noite as agoas quentes e a terra fria, e de dia vice-versa. No Maranhão acontece o contrario: de noite ficam em terra, e de dia n’agoa, porque as agoas são frias á noite e quentes de dia, e a terra temperada. A razão, porque este animal tem medo dos que o perseguem, e é atrevido contra os que fogem d’elle, é porque facilmente atira-se sobre este, e só com muita difficuldade se defende d’aquelles, sendo este procedimento o resultado de sua naturesa timida e assustada. Tem só um intestino, porque não faz a primeira digestão nas carnes cortadas em bocadinhos. Temem mais os selvagens que os francezes, e os do Nilo receiam mais os egypcios do que os estrangeiros, o que explica Solinus dizendo reconhecerem elles naturalmente pelo cheiro os que o guerreiam constantemente. Disse um phisiologista, que quando elle devora alguem, chora a sua desgraça: não sei si será verdade.[69] Alem d’estes exercicios, no Piry perseguem os selvagens as tartarugas, ahi em quantidade incrivel, e trazem-nas vivas tantas quantas podem. Não são avarentos, antes sim por poucos generos alcançareis muitas. Lembro-me, que passando algumas canoas pela nossa situação de São Francisco, por uma faquinha de custo de um soldo na França, deram-me setenta, e pela farinha, que lhes offereci para jantar, mimosearam-me com vinte e cinco, que guardei em lugar humido e fresco, deitando-lhes todos os dias um pouco d’agoa, e assim se conserváram sem comer por mais de seis semanas. Os selvagens comem-nas com muito gosto, e dizem que ellas lhes conservam a saude, e lhes fazem bom estomago. Cozinham-nas em seos cascos inteirinhas, sem tirar-lhes as entranhas, e nós as achamos assim preparadas muito melhores do que de outra fórma. Si algum d’elles soffre dos ouvidos por algum defluxo tiram as mulheres o sangue d’estes reptis, misturam-no com o leite tirado de suas mamas, e com isto friccionam o fundo da orelha. Quando arrancam o cabello dos seos corpos, com pinças de ferro, que lhes dão os francezes, esfregam a pelle com... (falta uma folha). CAPITULO XLIII Da caça dos ratos, das formigas e das lagartixas. Ha outra caçada de um verme, tão divertida e agradavel como as precedentes, é a dos ratos domesticos e selvagens. Não comem os domesticos, ao menos que eu saiba, porem caçam-nos cruelmente; porque si entra um rato em qualquer casa, reunem-se todos os habitantes, uns com arcos, e outros com flechas e paus, e com o auxilio tambem de alguns cães não escapa o pobre rato. Depois de morto é espetado na ponta de uma vara, fincada no meio da aldeia, para servir de alvo ao exercicio das flexas dos meninos. As aldeias mais proximas dos portos, onde chegam navios, tem mais ratos, porque apenas sentem a terra, atiram-se as ondas, nadam, trocando assim o seo paiz natal, que é o mar, para ficar n’um paiz mais firme e seguro, que é a terra. Comem os ratos selvagens, que vivem nos bosques e no dizer d’elles é comida deliciosa. Caçam-nos assim: cavam um buraco no meio de um certo lugar no matto, fazem varias entradas, similhantes ás coelheiras, ou terreiros de coelhos: reunem-se depois muitos sujeitos, armados de paus, e vão fazer grande alarido ao redor d’esse fosso, como se costuma fazer nas caçadas dos lobos. Batem as mattas, e d’ellas fazem sahir os ratos, e elles fugindo, e encontrando esses buracos tão proprios para se occultarem, ahi entram, e então aproximando-se os selvagens, toma cada um conta do seo buraco, e entrando outros dentro do fosso, á cacete matam os ratos, dividem-nos igualmente, e regressam para a aldeia trazendo cada um o que lhe tocou. Assam os ratos ao fumeiro ou sobre carvões, abrem-nos por diante sem lhes tirar a pelle, a qual fazem tostar depois que o animal está cozido por dentro, para não perder a gordura, e depois os guardam dentro de uma porção de farinha. São estes ratos assim preparados, guardadas as proporções, mais apreciados do que os javalys e os viados, e as vezes trazem os selvagens quantidade incrivel d’elles. Caçam as formigas em tempo de chuva, por ser a epocha propria d’ellas mudarem de habitação. As que podem vôar buscam a região do ar, deixando suas casas, feitas e cavadas na terra. As outras, si por instincto natural desconfiam, que podem as agoas invadir suas grutas, e estragar seos armazens, celleiros, ou dispensa, pegam na bagagem, com ordem digna de ser mencionada, e auxiliadas com a experiencia, como vou contar para servir de modello a todas as outras. Na nossa casa de S. Francisco, no principio das chuvas um milhar de milhões de formigas sahio de uma caverna, perto d’ahi, e veio tomar posse de um canto do meo quarto, onde cavou camaras, ante-camaras e celleiros. N’uma bella manhã sahiram todas, e trouxeram um alqueire, talvez, de ovos, indo em diversas estações, isto é, em distancia de 2 passos uma da outra. Cada acervo trazia suas formigas em ordem, vindo descarregar cada uma o que trazia no montão proximo, e assim iam fazendo os outros acervos ou companhias. Admirei-me de vêr tantas formigas, e tantos ovos, que deitavam mau cheiro. Mandei fazer bom fogo, e atirar sobre estes ovos, e no caminho por onde passavam estes animaes. Puzeram-se em alarme, e cada uma buscou salvar os ovos que poude, como fez Eneas á Anchises, seo pae na destruição de Troya. Não fui tão bem succedido, porque regressaram ao lugar que haviam escolhido, não pensando talvez, que me incommodassem, o que assim não aconteceo, porque reunindo-se todas por espaço de 2 dias, deliberaram ir a pilhagem fóra do quarto, mostrando-se contentes com a habitação, que bem a meo pesar lhes dei. Causar-vos-hia satisfação vendo estes animaesinhos, desde o amanhecer até ao anoitecer, fazer suas provisões, que são as folhas de uma certa arvore, em cujos ramos, como presenciei, estavam muitas para cortal-as e deixal-as cahir em terra, onde cada formiga pegava no que podia e levava para os armazens. Tinham aberto dois caminhos, muito bons para o seo tamanho: por um iam as carregadas, e por outro as desembaraçadas, evitando assim a confusão e a mistura, embora fossem mais de quatrocentas as carregadeiras. O mesmo fazem as outras especies de formigas. É para admirar-se tambem a especie de abobadas, que com admiravel industria fazem quando querem caminhar abrigadas. Caçam os selvagens somente as formigas grossas como o dedo pollegar, para o que aballa-se uma aldeia inteira de homens, mulheres, rapazes e raparigas. A primeira vez que vi esta caçada, não sabia o que era, e nem onde hia tão apressada tanta gente deixando suas casas para correr após as formigas voadoras, as quaes agarram mettem-nas n’uma cabaça, tiram-lhes as azas para frital-as e comel-as. Caçam-nas tambem por outra maneira, e são as raparigas e as mulheres que, sentando-se na bocca da caverna, convidam-nas a sahir[70] por meio de uma pequena cantoria, assim traduzida pelo meo interprete. «Vinde, minha amiga, vinde vêr a mulher formosa, ella vos dará avelans.» Repetiam isto á medida que iam sahindo, e que iam sendo agarradas, tirando-se-lhes as azas e os pés. Quando eram duas as mulheres, cantava uma e depois outra, e as formigas que então sahiam, eram da cantora. Causa admiração vendo-se os grandes pedaços de terra, que tiram de suas cavernas. No tempo das chuvas tapam os buracos do lado das enchurradas, e deixam somente aquelles, por onde pode vir a chuva raras vezes. As formigas do Maranhão tem dois inimigos encarniçados, especialmente estas alladas: um—certa especie de cães selvagens,[71] com pello de lobo, fedorentos o mais que é possivel, focinho e lingua muito aguda, e que procura o formigueiro para alimentar-se: outro, uma qualidade de formigas corpulentas, que de ordinario nascem com as outras, como o zangão entre as abelhas, e em quanto são pequenas e fracas, trabalham conjuntamente sem fazerem barulho, e nem se offenderem. Quando grandes e fortes deixam as outras, fazem bando á parte, só e só, não vivem mais em companhia, e põem se de embuscada pelo caminho, onde costumam passar suas irmãs e parentas, como fez antigamente Abimelech, bastardo de Gedeon, sobre os 70 filhos legitimos de seo pae, seos proprios irmãos, os quaes matou todos sobre uma pedra em Ephra. Sirva d’isto ao leitor para applicar como julgar acertado. Eis como os nossos selvagens se distrahem mais utilmente com estes animaes, do que os nossos rapazes com as borboletas: de tudo se aproveitam e nada perdem, reunindo o util ao agradavel. Vejamos o resto. A caça dos lagartos, chamados pelos _Tupinambás_—_Tarure_ (os grandes) e _Toju_ (os pequenos,) é feita por diverso modo,[72] conforme são da terra ou do mar. Os maritimos habitam ordinariamente as praias cobertas de mangues, onde, duas vezes dentro do espaço de 24 horas, entra o mar. Ahi nutrem-se de carangueijos, de mexilhões, e de camarões, vulgarmente chamados em França—lagostins, e de peixes, que apanham na enchente. Poem seos ovos nos concavos das arvores. Os selvagens caçam-nos e flecham-nos na vasante; enterrando-se pelo tujuco. Para comida servem tanto como os coelhos, ou uma grande lebre, conforme o tamanho do animal. Fervem-nos para fazer mingau, ou assam-nos ao fumeiro. Os francezes assam-nos ao espeto, bem untado de gordura de peixe-boi, e a primeira vista pensareis que são coelhos ou lebres espetadas. O guisado, que d’elles se faz, é muito parecido com o das lebres e coelhos, e muitos francezes gostam mais d’elles do que os nossos coelhos. Eu antes quero crêr do que provar. A caça dos lagartos terrestres é mais de meninos que de homens, embora tenha visto alguns homens atraz delles, como os meninos, e até 20 selvagens, homens e rapazes, atraz de trez lagartos. Apenas os pilham, assam-nos, e toma cada um a parte, que lhe pertence e acham-na muito boa. Os rapazes apenas os veem correr pela casa, nas paredes ou nas arvores, flecham-nos, porem escolhem os maiores por que tem mais que comer: alguns tem o comprimento de um braço e a mesma largura. Ha outros vermes, que não sahem das arvores, deitados sobre folhas, expostos ao sol: dizem os selvagens que são venenosos, e por isso os deixam: não se assustam com a vossa presença, si não os perseguirdes. Parecem-se com os camaleões, de que ainda fallarei, tem brilho nos olhos, e a côr de escarlate. Costumam estes lagartos domesticos á juntarem-se e unirem-se em forma de bolla, de tal maneira que a cauda do macho toca a cabeça da femea, e reciprocamente, e assim todos curvados, tocam-se as duas cabeças e as duas caudas. Tive medo quando vi isto pela primeira vez, porque não sabia o que seria, e nem si era alguma especie de serpente, com quatro olhos, e um só corpo enrolado. Os lagartos femeas são mais grossos do que os machos. Os pequenos lagartos poem ovos, de cinco até sete cada um do tamanho da cabeça do dedo minimo, n’um buraco, que cobrem de areia, fazendo o resto o calôr do sol. Os lagartos grandes põem ovos maiores, á proporção do seo corpo, e ordinariamente fazem ninhos nos tectos das casas, nos bosques, e para ahi levam tudo o que acham ser molle, como sejam musgos, pennas, algodão, farrapos, e frequentam muito a casa si não lhes fazem mal. Fazem tanto barulho como um cão, quando caminham e conduzem na bocca o que acham, e é um prazer vel-os em tal lida. Não fazem caminho direito quando construem seo ninho, e antes usam de muitos rodeios para não serem descobertos. O sol chóca e faz abrir seos ovos, porque são muito frios e não tem calor proprio para isso. São caçados por cobras grandes e horriveis, umas brancas como agoa, outras de côr de violeta, e finalmente algumas manchadas de diversas côres. Invadem até as casas para nos tectos caçarem estes lagartos, que apenas as presentem ao longe, fogem como se a casa tivesse pegado fogo. Mandei matar tres cobras d’estas n’um domingo, quando eu e meos companheiros fomos dizer missa na capella de S. Francisco, onde as achamos perseguindo os lagartos grandes, dos quaes já tinham matado muitos. Pagaram tal temeridade levando cada uma mais de cincoenta cacetadas, e ainda se salvariam, si eu não as mandasse cortar em pedaços, que viveram e remecheram-se por mais de 24 horas procurando reunirem-se o que não conseguiram por estarem distantes umas das outras, talvez por quatro ou cinco passos. Os selvagens tem muito horror d’estes lagartos, e dizem ser venenosos. Os lagartos, quando velhos, perdem sua cauda, que fica negra, e por isso mesmo é fragil como vidro, e quebra-se por qualquer causa. Não creio, que ellas renasçam, embora o affirme Aristoteles. Fundo-me no que observei n’um lagarto grande, que estava na nossa casa de S. Francisco, onde se conservou por dois annos sem cauda, vindo diariamente comer em nossa presença, com as galinhas com que se familiarisou. Dizem, e os francezes o asseveram por experiencia, que ha uma especie de lagartos grandes que apanham os frangos, e levam-nos para o matto, onde vão comel-os. CAPITULO XLIV Das aranhas, cigarras e mosquitos. A vida do homem é comparada com a da aranha em muitos lugares da Escriptura Santa, especialmente no Psal. 89. _Anni nostri sicut Aranea meditabuntur_ «nossos annos se passaram, serão contados e meditados como os da Aranha.» Escreveo S. Isidoro, que a aranha é um verme do elemento do ar, n’elle nutrido, d’onde se deriva a etymologia do seo nome, nunca descança, sempre trabalha, de si tira com que formar sua teia, sempre em perigo por se achar ella, seos bens, e suas riquezas, suspensas n’um fio, mercê do menor sopro de vento, ou do capricho de um criado ou de uma camareira, que com um espanador destrua todo o trabalho. Quereis mais bello espelho para considerar as desgraças e miserias d’esta vida? Não perderei tempo referindo o que se sabe acerca da naturesa d’este verme, e apenas contarei o que achei de curioso e especial nas formigas do Maranhão, e antes de entrar na materia fallarei d’uma especie do tamanho de um punho de braço, e as vezes até maior. Encontram-se ordinariamente no tronco das arvores, proximas ás casas, nas estacas, nos cantos, caminham pouco, não tem teias, muito venenosas, vermelhas quasi da côr de borrachos quando sahem do ovo, coisa horrivel e feia! Fogem d’ellas os Indios, e julgam mortifera a sua picada. Nutrem-se da corrupção do ar. Existem outras de diversas especies, maiores e menores, e todas domesticadas, e nos mattos encontram-se grandes, menores, e pequenas. Em todo o tempo produzem e especialmente no inverno. Com a frescura da noite juntam-se: deixa o macho a sua teia para se unir com o seo fio á teia da femea, si ella está collocada em lugar mais baixo: si porem a teia da femea é superior á do macho desce ella, vem procural-o, e assim si juntam. É muito facil de vêr-se, pois o praticam todos os dias, no fim da tarde. O macho é pequeno, e a femea é tres vezes maior do que elle. Fazem uma pequena bolça, redonda e chata, muito bem feita e tecida, parecendo-se com setim branco e a similhança de um breve de _Agnus Dei_. N’ella deixam apenas um buraquinho, por onde com o pé introduzem os ovos. Quando está fechada a bolça tapam o buraquinho, e carregam-na junto ao ventre e estomago, aquecendo-a por esta fórma, e quando presentem estar os filhos em estado de sahir, rasgam a bolça ao redor, como se faz com a casca da fava, sahem logo, correm pela teia da mãe, e a noite agasalham-se debaixo da mãe, como fazem os pintos com as gallinhas afim de resguardarem-se do frio da noite. Quando tem forças, cada uma faz a sua teia, e por sua industria cuida de si. Ha outras, que fazem pequenos pucaros de barro, do tamanho e feitio de uma ameixa de dama, tão bem feitos, quanto é possivel, por dentro e por fóra, o que tambem fazem certas especies de moscas, de que ainda fallarei. São as boccas d’estes potes proporcionaes aos seos tamanhos, com um buraco tão pequeno, em que cabe apenas um alfinete, por onde sahem os ovos para serem aquecidos pelo Sol. Este pucaro costuma estar junto a uma arvore, ou n’uma folha de palmeira, e a terra de que é feito, muito se parece com a de _Beauvais_. Enchem o pucaro de ovos, tapam no, e quando as mães julgam ja terem os filhos sahido da casca, destapam o buraco, e então sahem as aranhasinhas e acompanham-nas. As aranhas dos mattos procedem de outro modo: roem as amendoas das nozes das palmeiras espinhosas, pouco a pouco e deitam fora tudo por meio de tres buracos naturaes, que tem estes fructos: depois ahi dentro fazem seus ninhos e depositam seos ovos. São differentes as teias destas aranhas quanto a sua posição por ellas escolhidas. As domesticadas armam suas teias nas rachas e entradas dos buracos, afim de agarrarem moscas e mosquitos. Umas estendem suas teias nas arvores, de um ramo a outro, e de um arbusto a outro para agarrarem borboletas e outros bichinhos iguaes: outras tecem as teias por cima da terra para pilharem vermes, como sejam formigas e outros iguaes. Algumas fazem teias tão fortes, que até n’ellas cahem lagartinhas, e então descem as aranhas, matam-nas por meio de um aguilhão, que tem em si, e depois chupam-lhe os miolos e o sangue, e só quando se fartam, é que as deixam. Vi aranhas do mar, muito parecidas com as de terra porem maiores.[73] Habitam em buracos nas praias, e alimentam-se de peixinhos. Dizem que chupam o sangue e o humor das cobras, iguaes as que mandei cortar em pedaços, e asseveram os selvagens, que se morderem a cabeça d’algum individuo, ficará louco. No Maranhão, como em parte alguma, tem muitas cigarras,[74] que fazem em tempo proprio um barulho infernal, como eu não acreditaria si não ouvisse: ha de diversas variedades, tamanhos e cantos. São umas grossas, tem seis pollegadas de comprimento, e voz forte e alta a ponto de ferir-vos vivamente os ouvidos. Não cantam no inverno, e sim no estio, e quando se aproximam as chuvas gritam tanto a ponto de estalarem pelos lados, como me contaram os selvagens, sendo isto causado pelo bater das azas quando si esforçam e se incham para dar mais harmonia á voz. Estudei os usos e costumes destes animaes em alguns, que conservei entre folhas na nossa casa. Reconheci ser seo canto devido a tres coisas. 1.ª Engolem o ar, enchem o ventre, entumecem-se bem para estenderem bem os lados, e ficarem sonoras. Ha grande accordo entre a extensão dos lados, e as azas, por meio das quaes forma-se o som, que claramente se vê tomarem ellas folego quando erguem as azas, e quando abaixam, estendem e dilatam os flancos. 2.ª As azas são mui finas e diaphanas, e por tanto proprias para formar o som por serem muito seccas. 3.ª As azas de cima sendo fortes e massiças, tocando e batendo as azas do meio contra os lados e com auxilio do ar, forma o som. Vou fazer-vos comprehender isto por meio de comparações vulgares. N’uma cithara ha tres coisas para produzir harmonia—as costas onde fica o ar, que entra pela rosa do meio, as cordas tesas, limpas, seccas e bem collocadas, e a mão do tocador: assim tem estes animaesinhos as costas e as ilhargas cheias de ar, que entrou pela bocca, as segundas azas são as cordas, e as grossas a mão do tocador. Cantam no estio desde o nascer do sol até meia noite ou duas horas depois, e se callam por causa do orvalho, que começa a cahir com frio, e assim ficam até que appareça o sol e com seos raios extinga as gottas de orvalho, que cahiram nas folhas, e então vem ellas aquecer suas azas. Em quanto guardam silencio, é minha opinião, que ellas se nutrem com o mesmo orvalho, e não digo isto sem causa pois quasi sempre ficam no mesmo logar, e quando sentem algum movimento voam para outra folha. Algumas d’ellas, especialmente as todas verdes, não tem voz, arrastam-se pela terra como os gafanhotos, juntam-se como as moscas, põem em setembro ovinhos negros nos buracos dos ramos das arvores, nos quaes se formam os vermes, ao depois cigarras: vão pouco a pouco se fortificando afim de passarem a estação invernosa, e substituirem seos paes e mães que n’esse tempo morrem arrebentados á força de gritar como ja disse. Não tem sangue, ou tem muito menos que as moscas, porem são organisadas de uma substancia porosa, secca, e ligeira. Matam-nas as gallinhas, porem não as comem, e quando por acaso o fazem, enfraquecem e emmagrecem. Ha n’este paiz diversas especies de mosquitos, porem apenas tratarei dos que o merecerem pelos seos principios naturaes, e são os chamados _Maringoins_ pelos selvagens: ha de diversos tamanhos e grossura, e todos tem a mesma forma. Originam-se de um humor acre, gostam dos sabores picantes e acidos, e por isso encontram-se muito no mar e suas praias no tempo do inverno, formados pelo humor e vapores do mar. Incommodam muito os homens picando-lhes a pelle com seo bico ponteagudo como uma agulha, e sugando assim o humor salgado, que corre entre a pelle e a carne. Gostam da luz porem aborrecem a chama e a fumaça, e por isso quando anoitece, as que andam por fóra, poisam nas folhas das arvores, e os que estão dentro de casa nos tectos, bem a seu pesar, por causa das fogueiras, que acendem os selvagens ao redor de si, para se livrarem d’elles. Nos lugares mais proximos a agoa, maior abundancia d’elles existe, visto serem creados por agoas, como ja disse. São caçados pelos morcegos, que, buscando-os nos lugares onde se fixam, involvem-nos com suas azas e depois os comem. São por elles muitissimo perseguidos os nossos francezes, quando vão á pesca do peixe-boi, e para evital-os armam suas redes no ramo das arvores, o mais alto que podem, por ahi soprarem mais o ar e o vento: si se partissem as cordas dariam bello salto, e não deixam de emballançar-se para afugental-os. CAPITULO XLV Dos grillos, dos camaleões e das moscas. De todos os animaes, que fazem companhia ao homem, no Brasil, nenhum ha que iguale ao grillo, chamado pelos selvagens _Cuju_[75]; e por ser tão familiar e domestico pude á vontade satisfazer minha curiosidade estudando este animalsinho. Nasce da corrupção. Quando se faz uma casa coberta de palma fresca, apparecem n’um momento milhões e milhares d’estes grillos ou _Cujus_. Virão dos bosques visinhos? não pode ser; porque nas casas cobertas de palma velha não são encontrados, logo força é confessar, que formam-se na palma nova com o auxilio do sol. Notei que dois ou tres dias depois de coberta a casa, os grillos são brancos como neve, signal de nova geração, pouco a pouco tomam a sua cor ordinaria, amarello-negro. Alem d’isto originam-se tambem de ervilhas, e favas podres o que conheci por experiencia. Quanto á producção do pae e da mãe provêm d’uma semente deixada nas folhas de palma: é pegajosa e fica onde se colloca, até que d’ella por meio de calor saia outro grillosinho. É ardente no seo ajuntamento, e eis porque tanto se multiplicam. É muito pequeno, porem astucioso, tem horas para comer e para cantar: não deixam de procurar comida quando presentem estarem todos deitados, e então descem do tecto e correm, por assim dizer, os cantos da casa, onde se aproveitam de todas as migalhas e restos de comida, e se encontram restos de carangueijo deixam tudo mais. Acabada a comida regressam a seos logares, onde cantam e passam o resto da noite, e o dia tambem, se o ardor do sol o não encommodar. Não gostam de chuvas, e emquanto está chovendo, não cantam. Gostam portanto do tempo sereno e doce, sem muito calor, e sem muita chuva. Roem muito os pannos, que encontram, e se acharem um capote de cem escudos n’uma noite dão cabo d’elle. Não tocam em panno de linho á não estar elle engordurado, ou com algum liquido, de que gostem, e por isso para conservar-se alguns vestidos, embrulham-se n’estes pannos. Tem quatro inimigos capitaes. 1.º Os lagartos, que correm apoz elles, como os cães atraz das lebres. É um gosto vêr as voltas e vira-voltas que dá a caça e o caçador. 2.º Certos macaquinhos amarellos e verdes a que chamam os selvagens _Sapaius_, vivos e ageis como um passaro; caçam com uma das mãos e na outra guardam os grillos. 3.º São as gallinhas, que os devoram com incrivel avidez, e para isto voam sobre as casas, e não poucas vezes estragam a cobertura d’ellas. 4.º São certas formigas grandes, que atacam-os nos buracos e cavernas, onde se abrigam nas casas: distrahi-me algumas vezes vendo tão singular combate; a formiga desce ao buraco, onde tanto faz, que o _Cuju_ sahe á campo, ou então é puchado pelos pés, e muitas vezes prefere a morte á perder suas pernas posteriores, que leva a formiga. Outras vezes deixa-se o grillo comer dentro do buraco, de maneira que somente fica a cabeça e as azas, que as formigas carregam como tropheos. Tem os grillos particular malicia, como experimentei, por que mordem a extremidade dos dedos das pessoas, que dormem, e carregam o bocadinho de pelle que podem tirar. Achei-me por isso muito encommodado do pollegar, a ponto de não poder escrever por oito dias. O Camaleão é um animal do tamanho e da grossura de um pequeno lagarto, e á elle similhante no rosto, olhos, e cabeça, tendo nas costas escamas como o crocodillo, e parece ter a pelle coberta de pelle ou limo. Tem a cauda muito comprida, e de ordinario dobrada em dedalus, diminuindo gradualmente até a ponta. Raras vezes se vê o macho com a femea, e por isso não me atrevo a contar o modo de sua procreação, porque não pude vel-a, e nem imaginal-a. Contento-me apenas em referir o que vi. É muito demorado no seo andar, está sempre ao sol, deitado sobre folhas ou ramos, e por isso se pensa que vive só de orvalho. Batem-lhe as ilhargas constantemente, e muito mais quando receiam alguma coisa, sendo isto motivado pela sua timidez natural, proveniente de muito humor frio, pelo qual torna-se venenoso quando é comido por algum animal. Nunca se encontra nas arvores fructiferas, prevenção da naturesa para não envenenar com o seo frio excessivo o fructo que tocasse, e por isso é visto nos ramos de arvores, que somente servem para o fogo. Como o lagarto tem quatro pés, e muda de côr conforme o movimento do corpo, e os batimentos das ilhargas. São raros em Maranhão, e somente são encontrados em lugares bem expostos ao meio-dia: deitam-se nas folhas, estendem as quatro patas, e descançam a cabeça. Não fazem movimento algum com os olhos, quando estão vendo, e nem abaixam as palpebras superiores: constantemente bate-lhe o papo. Dizem, que se este animal fosse lançado ao fogo difficilmente arderia, porem envenenaria pela fumaça as pessoas presentes. Não fiz esta experiencia com o camaleão, e sim com outro animal mui similhante a elle pela friesa. Mandei lançal-o n’um braseiro, que mandei preparar, e retirando-me para longe, tomei cuidado que ficasse sempre no fogo, movendo-o constantemente, e depois que morreo, vio-se que o fogo não poude obrar contra seo corpo, ficando inteiro e solido, conservando sua figura e pelle: mandei tiral-o do fogo e enterral-o. Ha muitas especies de moscas, umas da noite, outras do dia. As moscas da noite são as que buscam o seo sustento durante ella agarrando os bichinhos, que voam, onde encontram: como tem de alimentar-se nas trevas, deo-lhes a Providencia uma luz,[76] que trazem adiante e atraz: a luz dianteira está n’uma placa de forma quadrangular, adherente ao estomago, sendo os dous angulos, que tocam a sua barba, muito estreitos, e esta construida de uma pellicula diaphana, e coberta de um pello mui delicado, com que recebem a humidade da noite, e por este meio produzem um brilho de luz. Percebeis bem isto recordando vos do brilho da pescada á noite, por causa da delicadesa da escama ou da sua pelle humedecida. Acontece o mesmo com certa especie de madeira podre, ou melhor rarifeita, e tenue, livre de todas as immundicies, e que tem a propriedade de attrahir a humidade. O mesmo tem elles no chato da barriga, onde se encontra uma pellicula bem lisa, cheia do pello tão fino, de que acima fallei. Quando voam atravez de uma noite escura, parecem ser grossas faiscas de ardente fornalha de fundir metaes. Pertencem ao dia as outras moscas; são infinitas e varias e por isso somente me demorarei, tratando das que tiverem alguma coisa digna da consideração do leitor, como sejam as abelhas, e as vespas, e do mais que fallarei. As abelhas do Maranhão, e de suas circumvisinhanças fabricam suas casas de tres modos: entre os ramos das arvores, como ja disse, quando escrevi sobre o _Meary_, ou no concavo das arvores, isto é, no tronco principal, porque escolhem uma arvore que tenha uma concavidade no tronco, sobem pela frente d’elle, e depois descem até a terra, onde fazem os alicerces dos seos cortiços, e depois fabricam o seo mel, caminhando sempre para cima. Quando não é assim, escolhem lugar apropriado, levantam da terra um cortiço concavo, onde fabricam mel e cera. É virgem a sua geração, e creio não haver entre elles macho e femea, e assim todos trazem comsigo o germen da futura procreação. Dir-vos-hei a razão d’este meu modo de pensar, que formei observando com attenção um cortiço de abelhas n’uma grande arvore concava e secca, distante 30 passos de nossa casa de São Francisco, o que ainda me foi facil, pois estas moscas não dão ferroadas,[77] comtanto que não se lhes faça mal, embora se esteja bem perto d’ellas. Fizeram os selvagens um buraco ao pé d’esta arvore, por onde sahia o mel, e por ahi observei tudo bem a minha vontade, até mesmo as camarasinhas, em que se achavam ellas envolvidas. Estes casulos eram tapados de todos os lados, embrulhados n’uma tella bem delicada, e por cima está a cera e o mel. N’algumas camarasinhas d’estas, achei somente algumas gottas de semente, claras como a agoa da rocha, e soube ser a materia de que se organisavam as novas moscas. N’umas vi o _cháos_, ainda informe, feito e composto desta materia prima, a maneira de uma pasta molle, branca como creme: n’outras vi moscasinhas, perfeitamente formadas, e ja com movimento, porem envolvidas n’uma tella delicada e diaphana, que rasguei com cuidado, e vi n’estas moscas todas as suas partes bem distinctas e conformadas, menos os pés, por serem os ultimos, que se formam, e ja depois, que se movem. Reconheci ser verdade o que diz S. Isidoro d’estas moscas «_Apes dictæ sunt quia sine pedibus nascutur, nain postmodum accipiunt_:» as _abelhas_, ou antes os _apedes_, são assim chamados porque nascem sem pés, sendo este nome composto por _a_, que quer dizer—_sem_, e _pedes_—_pés_. Assim composta quer dizer—_sem pés_, mas não se usa em francez, e sim emprega-se o nome de _abelhas_. Sobre o que eu disse á respeito de sua geração virginal, alem da experiencia, que eu tive, de que podem duvidar alguns espiritos, ha uma testemunha irrefragavel, Santo Ambrosio, Doutor que si dedicou ao estudo dos segredos da abelha mais do que nenhum outro antes ou depois d’elle. Não o fez sem motivo, pois desde o seo berço que estas moscas se alojaram em seos labios, e depois em toda a sua bocca, eis suas palavras: _Apes nuilo concubitu miscentur, nec libidine resolvuntur, nec partus doloribus quatiuntur, sed integritatem corporis virginalem servantes subito maximum filiorum examen emittunt_: «não si misturam as abelhas por meio de alguma conjuncção, não si entregam por meio de sensualidade, não soffrem dores de parto, porem conservam a integridade virginal de seo corpo, e em pouco tempo produzem grande numero de novas abelhas.» Diz o autor do livro da «_Naturesa das coisas_»—_Omnibus virginalis integritas corporis_—«conservam todas a inteiresa virginal do seo corpo.» Ha diversas especies de vespas, tendo uma d’ellas alguma coisa de novo: esta qualidade é negra, mui delgada no meio do corpo a ponto de julgar-se estar o ventre unido ao estomago por um só fio. São industriosas o mais, que é possivel. Recolhem-se todas á um nicho de terra, no cimo das arvores, tão bem estocado, que dentro d’elle não cahe uma só gotta d’agoa; a cobertura ou tecto d’este nicho é em fórma de zimborio, e apenas cahe a chuva, corre ligeiramente, e ahi não si demora: n’elle não tem abertura alguma, e apenas cinco ou seis buracos proporcionaes á grossura d’ellas. No interior fazem accommodações para viver, e fabricam uma especie de mel bem amargoso, e negro como tinta. Cada uma tem sua casa, cavada na espessura do nicho, á maneira dos buracos de um pombal, onde se agasalham os seos habitantes. É admiravel a sua industria no fabrico d’estes nichos, e presenciei-a muitas vezes. Á margem das fontes fazem argamassa, carregando com os pés um pouco de terra, que desmancham e amassam com agoa, que vão buscar, e trazem unido ao pello de suas coxas. Assim preparado, vão carregando em varias partes do seo corpo. 1.º No pescoço. 2.º Nos pés. 3.º Na união das coxas contra seo corpo. Não deixam seos filhos no nicho commum, porem fabrica cada uma o seo cubiculo á parte, á imitação da flor de meimendro, presa ou suspensa á algum pau, ou outra coisa coberta, longe do perigo de ventos e de chuva. Levam muito tempo preparando seo nicho, e o enfeitam o mais que podem, com o brunidor do seo fucinho. Depositam no interior sua semente, como fazem as abelhas, fecham a entrada, occultam-na, dormem á noite em commum, e ainda a madrugada está longe, e já ellas se despertam para montar guarda e fazer sentinella ao redor de sua habitação, fazendo guerra de morte a quem se lhe aproximar. Posso dar noticias d’isto, porque um dia, indo a um canto de minha casa arrumar não sei o que, quando passei, bati, sem querer, com a minha cabeça no nicho, onde estava a mãe, e ella, julgando mal de minhas intenções, pensou que eu o fizesse por maldade, e cheia de colera, escolheo a parte mais delicada do corpo humano, isto é, os olhos, para vingar-se. Permittio Deos porem que em lugar dos olhos me ferisse as sobrancelhas com o seo aguilhão. Foi tão doloroso o golpe, e tão penetrante o veneno, que cahi por terra, batendo-me extraordinariamente todas as minhas veias, desde a planta dos pés até o cume da cabeça, como nunca senti em minha vida. Recolhi-me a cama com o coração sobresaltado, inchou muito a parte offendida, e ardia como brasa. Julguei perder o olho, e assim estive por muitos dias, ao depois fiquei bom. Procream ainda de outra forma. Fazem um pequeno pucaro de barro, arredondado, similhante aos feitos pelas aranhas, como ja disse, deitam dentro suas sementes, que se transformam em vermes vermelhos, iguaes aos que se encontram nas ameixas das damas: adquire depois azas, e fica vespa. Não tem os selvagens cantharidas em seo paiz, porem fazem muito apreço d’ellas e dão muitos generos para possuil-as. Trazem-nas os francezes, porque anteriormente já tinham ensinado aos selvagens as propriedades d’ellas, o que não se deve escrever: prova isto que os homens viciosos mais depressa gastariam esta nação do que ella o é por natureza. Ha tambem insectos e vermes roedores mui subtis e engenhosos, com uma capa bonita e inteira, porem passando uma escova por cima, desapparece até o pello e fica só a urdidura. O mesmo acontece aos vermes roedores dos bosques, que fazem grande sussurro. Deos porem fez passaros que vae tirando das arvores taes vermes. CAPITULO XLVI Das onças e dos macacos do Brazil. A onça é o animal mais furioso do Brazil e é do tamanho dos galgos da Europa. No rosto parece-se muito com o gato, tem bigodes horrivelmente dispostos, vista perspicaz e aterradora, pelle como a de lobo, manchada de negro á maneira da do leopardo, garras muito compridas, patas como de gato, cauda grande e maior que todo o corpo diminuindo pouco a pouco até a ponta, e com ella brinca n’um areial voltando-se para apanhal-a, e correndo para o mesmo fim, como fazem os gatinhos no meio de uma salla, divertindo-se cada um com o rabinho. Ama a solidão, aborrece a sociedade, habita só nos bosques, e somente é acompanhada por occasião da sua juncção, o que feito retira-se a femea. Nada receia, nada teme: pára vendo dirigir-vos á ella, ou fica no fim da estrada, por onde tendes de passar, de forma que ou voltareis, ou então combatereis porque não cede. É melhor a retirada ainda que com algum vexame, do que por orgulho arriscar sua vida em luta com tal animal. O Rvd. padre Arsenio assim o fez, vindo da aldeia da _Mayoba_ para a nossa casa de S. Francisco, quando encontrou, ao meio dia, na estrada uma onça que veio esperal-o. Regressou para a aldeia, e assim evitou perigo tão proximo. Não buscam os homens, e é raro encontral-as, e quando isto se dá o perigo é certo. Não se atiram, e nem correm logo atraz das pessoas que vêem, antes dão-lhe tempo bastante para fugir, e apenas agarram um ou outro menino, porem raras vezes. Tem muito medo de fogo a ponto de não se approximarem d’elle, e por isso evitam-nas os indios accendendo fogueiras em suas casas, sempre abertas quer de dia quer de noite. Fazem guerra desabrida aos cães e macacos, vindo agarrar aquelles até junto ás aldeias, sem causarem o menor mal aos selvagens deitados em suas redes, e quando vão estes á caça, acompanhados por muitos cães, são estes devorados e comidos pelas onças, que fingem correr diante d’elles, e quando se acham longe de seos senhores, saltam sobre elles e facilmente os estrangulam. Poucos escapam de suas garras para trazer noticias a seos senhores, que não os ouvindo ladrar, acreditam que as onças os comeram. Não vão mais alem, e regressam mais depressa a casa onde suas mulheres e filhos choram a morte do cão, que elles levaram á caça com intenção de divertirem-se. Si é perigoso atacar um soldado furioso, e victorioso de seos inimigos, ainda muito mais o é apresentando-se em tal occasião á vista das onças. Caçam os macacos desta sorte: batem em circumferencia o bosque, onde se abrigam os macacos, encurralam-nos n’um ponto, onde se agrupam: então trepam as onças em varias arvores, e d’ali se atiram sobre os ramos e hastes de outras onde estão os macacos, e assim os apanham. Empregam tambem outro ardil. Occultam-se debaixo de folhas n’um lugar, onde ellas sabem, que os macacos vem beber, ou quando estão pescando mariscos e carangueijos, então d’um só pulo agarram os que podem. Fazem ainda mais. Quando vêem ou ouvem que os macacos estão reunidos em qualquer lugar, vão surrateiramente arrastando a barriga pelo chão, como fazem os gatos quando querem agarrar algum ratinho, e depois estendem-se e fingem-se mortas. Chega um macaco, pára, chama outros, que chegam logo, descem o mais que podem, sempre desconfiados, para verem e examinarem se na verdade está morto o inimigo: rangem uns os dentes, e outros como que fazem uma especie de discurso de congratulação por tal fim: eis senão quando resuscita o fingido morto, mais depressa do que elles sobe ao cimo da arvore, onde transforma a vida d’elles em morte, não simulada e sim real. A onça só pare uma vez, e um só filho, como a leôa, e eis a razão de haverem poucas no Brasil. A onçasinha rasga o utero de sua mãe, que o nutre mui curiosamente até que fique em estado de cuidar por si de sua alimentação. Apesar de tal ruptura, unem-se em tempo proprio, porem não ha fructos d’esta união. As onças são errantes, caminham por diversos logares, atravessam braços de mar, e quando falta-lhes pasto em terra, vão ao mar pescar carangueijos e outros iguaes bixos do mar. Existem tambem onças marinhas, como ja disse quando fallei do Meary, tendo a parte anterior igual a da terra, e a posterior similhante a cauda de um peixe. São tão furiosas, como as terrestres, e saltam da agua contra seos inimigos. Machos e femeas veem-se livres dos filhos que trazem no ventre, á maneira das baleias, dos golfinhos e de outros peixes do mar. Em Maranhão e seos contornos ha muita variedade de macacos:[78] uns grandes, fortes, barbados, e de sexo bem distincto, especie perigosa, e que nas mattas muito bem se defendem das invasões dos selvagens. Contou-me um interprete que n’um certo dia um selvagem com uma flecha ferio a espadua de um destes macacos, e que elle tirou a flecha, arremeçou-a contra o selvagem e o ferio gravemente. Atiram-se sobre as raparigas e mulheres, e forçam-nas si não são mais fortes do que elle. Ha outros barbados, mais pequenos, que trazem mamas nos seios, e sexo bem visivel em lugar proprio. São muito bem tratados pelos francezes: os selvagens os agarram atirando um projectil qualquer sobre elles, que cahem atordoados, e são assim amarrados. Os triviaes são quasi que similhantes em sexo, e nem merecem descripção alguma. Em geral os monos são agradaveis á vista. Caminham um atraz do outro, e com tal cadencia no passo, que os que vem atraz assentam os pés e as mãos, onde assentaram os que foram adiante. Fazem assim uma corda de duzentos á tresentos, e diria ainda mais, si não receiasse causar admiração ao leitor. Achei-me muitas vezes nas mattas, onde elles habitavam e dir-vos-hei, sem precisar o numero, que vi grande quantidade d’elles na fórma ja dita. Cousa agradavel o mais que se pode imaginar. Arremeçam-se estes animaes de uma arvore a outra, de um ramo a outro, como faria um passaro bem voador, e o fazem com tal prestesa, que mal se vê. Si vos descobrem debaixo de alguma arvore, fazem incrivel matinada, e depois de vos fazerem muitas caretas e de dizer-vos mil injurias em sua linguagem, embrenham-se pelos mattos. Nunca deixam em hora certa,[79] á tarde ou noite, de ir beber agoa, mas sabeis com que subtileza? Pára o grosso do exercito na distancia de 300 passos da fonte, manda espias para examinar a fonte e suas circumvisinhanças, espreitam si nada ha que os assuste, examinam com cuidado si ha embuscada de algum inimigo, e apenas o descobrem gritam com voz forte e correm a reunir-se ao exercito. Voltam depois de algum tempo e praticam o mesmo. No caso de segurança gritam e ganem para vir o exercito, e chegado este ainda usa de outra velhacaria. Bebem todos um a um: á medida, que um bebe, passa alem e trepa n’uma arvore, e assim até o ultimo: assim bebem, passam para outro lado, por onde não vieram e ahi acabam a fieira. Deixam a fonte e vão em tumulto procurar seos amores, e n’isto ha ordinariamente grandes gritarias, gemidos, mordiduras e arranhamentos, porque querem os mais fortes escolher as damas e serem servidos em primeiro lugar. Nada digo sem experiencia e tudo isto presenciei todas as tardes na nossa fonte de S. Francisco. Vão pescar sempre em companhia, carregando ás macacas ás costas seos filhos. Pescam carangueijos e mariscos. Antes de agarrarem os carangueijos, quebram-lhe as tezoiras para livrarem-se das mordidellas, depois quebram-nos com os dentes, e, se estão rijos, com pedras, e o mesmo fazem com os mariscos. Cuidam muito as mães no sustento dos filhos, antes de poderem elles por si buscal-o; tiram o marisco e o carangueijo da concha, limpam-no muito bem, e offerecem ao filho nas costas, e estes o agarram e comem. Nunca vão para longe das arvores: é o seo refugio apenas ouvem algum motim, ou vêem alguem, e por isso para as suas pescarias escolhem lugares proximos á arvores altas e copadas. Si veêm passar uma canoa de selvagens, muito longe d’elles, saudam-nos rindo a seu modo, si se aproxima a canoa, fogem, e ninguem os pilha. CAPITULO XLVII Das aguias, dos passaros grandes e dos passarinhos d’aquelle paiz. Na Ilha ordinariamente não se vêem aguias, porem ha muitas na terra firme, proxima a Maranhão. Não são verdadeiramente tão grandes como a do velho mundo, porem são mais furiosas, atrevidas, e valentes, que accommettem os homens, e não fazem seos ninhos, sobre rochedos, como diz Job, _Aquilla in petris manet_ «a aguia mora nos rochedos» porem entre as arvores. Vou contar-vos á este respeito o que ouvi em Maranhão sobre duas aguias extraordinariamente ferozes, que vieram aninhar-se nos mangues _d’Uy-rapiran_, aldeiazinha na costa, distante legoa e meia do Forte de S. Luiz. Mostraram-me o lugar, onde ellas viviam, n’um dia, em que passeiando pelo mar fui visitar um francez, morador n’essa aldeia. Tinham essas aguias cortado ramos mais grossos do que uma côxa de homem, e tinham feito tão boas acommodações, que melhores não fariam doze homens. Ahi tinham depositado seos ovos com seos filhinhos, e ninguem se atrevia a passar por perto. Vão caçar cabritos-montezes, matam-nos, espedaçam-nos com unhas e bicos, e depois trazem alguns boccados a seos filhos. Pescam da mesma fórma arremeçando-se sobre os golphinhos, pirapamas, e trombudos, e tiram-no do mar com suas garras, deitam-nos em terra, dividem-nos em pedaços, que levam a seos filhos. Vão ainda mais longe: mataram um homem e uma mulher _Tupinambás_, o que lhes causou a sua morte e a do seos filhos, porque si lhes armou uma cilada tão bem arranjada, que conseguio-se matar o macho, e a femea achando-se viuva retirou-se para a terra firme abandonando seos filhinhos, que foram passados pelas armas dos _Tupinambás_ em vingança do crime commettido na pessoa dos dois, que elles mataram, e destruio-se-lhes o ninho. A femea é maior que o macho, ambos de côr parda, olhar vivo e feroz, poupa forte e irriçada no cume da cabeça, pennas grossas no canudo e grandes como a de um gallo da India: servem-se d’ellas os _Tupinambás_ para emplumar suas flexas. Nota-se n’estas pennas uma coisa particular e especial: si os selvagens as misturam com outras pennas, como sejam de araras, e de outros passaros grandes, são estas roidas e comidas por aquellas, pelo que são guardadas a parte, e com outras não as deitam em suas flexas. Por maiores, que sejam os outros passaros, é a Aguia o Senhor e o Rei não por igualdade de forças, mas por subtileza e ligeireza de vôo, subindo muito alto quando quer perseguir os passaros grandes, e descendo mui rasteiramente quando elles tambem descem, e quebram-lhes a cabeça com o bico. Ficam assustados todos os passaros quando ouvem o seo grito, calam-se e occultam-se entre folhas. Caçam principalmente os gaviões, parecidos com as pombas brancas, que vivem nas praias, saltando de ramo em ramo, esperando a vinda de passarinhos para assaltal-os e agarral-os. Ahi vão as aguias caçal-os, e despedaçal-os n’um momento. Nutrem-se tambem de tartarugas do mar e de terra, e não poupam a alguma serpente ou cobra que por ventura encontrem. Raras vezes podem os selvagens pilhal-as de geito para flechal-as. Trepam-se no cume das arvores, onde expandem as azas aos raios do sol, tirando com seo bico as pennas velhas, que por esse estado ja não servem: ahi vão os selvagens buscar estas pennas para seo uso. Assimelham-se muito na fórma e côr ás pennas dos gallos da India, e são muito boas para escrever. Alem d’estas aguias ha passaros grandes chamados _uira uaçú_, quasi do tamanho dos abestruses da Africa,[80] mais compridos, porem não tão grossos. Os grous de lá parecem-se com os pardaes. Si algum foi para a França, levado por nossos companheiros, saibam que ha outros ainda mais grossos. Agarram-nos os selvagens quando pequenos, e para isso procuram a occasião em que os paes vão caçar. São brancos quando pequenos, mechem-se pouco a pouco, e vão mudando até que alcance suas pennas e cor verdadeiras. São muito glutões, e parece que não se fartam, porem quando comem é por muitos dias. Si os macacos pudessem persuadir os selvagens a extinguir essa raça, o fariam indubitavelmente, porque perdem milhões dos seos para sustento d’ellas. Os _Tupinambás_, que criam estes passaros, conhecem que a melhor carne, que se lhes pode dar, é a de macacos, e para isto vão ao matto caçal-os e matal-os. Ha outras especies de passaros grandes, porem que não se comparam com estes, e são as _araras_, os _canindés_, e outros, os quaes são agarrados pelos indios por maneira astuciosa. Vão ao matto, escolhem as arvores, onde costumam estes passaros passar a noite, e onde se recolhem depois de comer: fazem debaixo d’essas arvores uma casinha redonda, com capacidade para conter tres homens, e coberta de palhas: ahi se recolhem e esperam a vinda dos passaros, que como não desconfiam, aproximam-se muito, e então os selvagens lhes atiram qualquer projectil, que os atordoa sem matal-os, cahem em terra onde são facilmente agarrados e prendem, e com o correr do tempo de tal maneira se domesticam, que embora os soltem, não deixam a casa do seo dono: introduzem-se pelos quartos, fazem grande matinada, com voz similhante a do côrvo, aprendem a fallar como os papagaios, e dão suas pennas á seos hospedes para com ellas se adornarem e enfeitarem.[81] Os habitantes do rio depennam seos gansos para encher colchões, e os indios tiram as pennas d’estes passaros para fazer seos enfeites e adornos. Ha muitas e diversas qualidades de garças, umas maiores, e outras mais pequenas. Fazem seos ninhos nos mangues á beira do mar, vivem de peixe, e trazem alguns inteiros a seos filhos que principiam a comel-os desde os seos primeiros dias. Admirei-me de ter sido encontrado um peixe grande, do tamanho de um arenque, no ventre de uma garça, pouca implumada. Os selvagens vão tirar dos ninhos as garçasinhas, armados de bons cacetes para se defenderem dos paes e mães, que em tal caso não deixam de acudir aos que nutrem tão terna e cuidadosamente afim de estenderem a especie. Similhantes as garças ha outros passaros chamados _forquilhas_ pelos francezes e portuguezes, porque teem a cauda fendida quando vôãm: fazem seos ninhos nos mangues, em lugar recondito, e pouco frequentado dos homens o quanto é possivel: ahi põem, e deixam seos filhos, vão para o mar, e ahi ficam por todo o dia enchendo de peixe uma grande bolsa, que trasem debaixo da goela, e que depois levam a seos filhos: quando está vasia esta bolsa, enche-se de vento que os alivia e sustenta no meio do ar, quando passam muitos dias e noites sem ir a terra, e atiram-se pelo mar em distancia de 50 a 60 legoas procurando alimentos. Tem a vista extraordinariamente apurada a ponto de verem do mais alto lugar, a que sobem, o peixe que náda no mar, e sobre elle cahem e agarram-no. Tem uma propriedade muito boa e é que perseguem os peixes, que andam atraz dos pequenos para devoral-os. Aproximam-se d’agoa, e como querem participar da presa, perseguem-nos o quanto podem. Alem destes passaros grandes ha milhares de passarinhos, entre os quaes merecem especial menção os seguintes. As andorinhas do mar em tão grande quantidade, que cobrem as praias nas vasantes: são boas para se comer, e á vontade matareis muitas com uma arma, carregada de chumbo miudo, e sentado n’uma canoa. Ha outra qualidade de passaros, que admiram muito a ponto de não se acreditar, e comtudo é verdade, por mim experimentada, os quaes tem por bico duas facas, embutidas em seos cabos, e aos quaes dão o nome de _navalhas_: o bico não lhes serve para buscar alimento, e por isso dizem que elles só vivem de vento, porque essas facas cortantes não lhes servem senão de passatempo quando passeiam pelas praias, e encontram outros passaros, que são por elles cortados pelo meio. No dia, em que parti do Maranhão, um mancebo pertencente ao Sr. de Sam Vicente, que me acompanhou em toda a minha viagem, matou um, cujo bico guardei e trouxe para a França. Ha melros como os de França, iguaes na plumagem e no canto, que espandem suas pennas á vontade no fim das chuvas, quando vem o bom tempo visitar os habitantes da zona tórrida: no fim do bom tempo e principio das chuvas soltam um canto triste, como que chorando o passado, e prevendo as tempestades do inverno, si tal nome merece. Ha muitos passarinhos de bellesa incrivel: uns pardos, outros cor de violeta, azulados, amarellos e mesclados: fazem os selvagens penachos de suas pennas, que são muito caras por ser difficil matal-os, porque presentindo o inimigo, que os busca, trepam-se no cume das arvores mais altas, nas pontas dos ramos, fazem seos ninhos os quaes amarram com uma embira muito forte, e na outra extremidade que cahe no sollo, fabricam uma especie de pote de terra, no qual criam seos filhos entrando por um só buraco, proporcional á sua grossura. Trouxe para França esses passarinhos, que aqui causaram muita admiração. Possue o Maranhão um genero de passarinhos, que não excede no corpo á extremidade do pollegar, e acrescento com todas as suas pennas, e tem canto melodioso, que faz lembrar o das andorinhas, que imitam quando querem cantar: levantam o bico, e soltam o canto o mais alto, que podem, e o sustentam em quanto o permittem suas azas. Fazem suas casas junto ás fontes, onde muitas vezes vão banhar suas azinhas para mais facilmente voarem alto. Ahi perto fazem seos ninhos, e imaginae o tamanho dos ovos, que chegam de 5 a 7: seos filhinhos ainda são de mais admiravel pequenez. São tão fecundos, que os meninos enchem cabaças de ovos d’elles. Ha de diversas cores, amarellos, violetas, pardos, etc. CAPITULO XLVIII Resposta a muitas perguntas, que fazem n’aquelle paiz á respeito das Indias Occidentaes. Para perfeição d’este primeiro tratado, julguei acertado responder á todas ás perguntas, que se fazem n’esse paiz. 1.ª Si esta terra de equinoccio pode ser habitada por francezes delicados, naturaes de um paiz temperado, criados com cuidado e bons alimentos, pois não parece poderem se accommodar n’um paiz agreste, selvagem, cheio de mattas, entre barbaros, e debaixo da zona tórrida e ardente. Respondo, que na verdade todos os principios são difficeis, porem pouco a pouco apparece a facilidade. Não ha no mundo villa ou aldeia, que não cause susto e encommodo no principio, porem depois de alguns annos tudo vae bem, e os nossos padres ja ahi deixaram o fructo de suas fadigas. Não eram mui delicados os cidadãos romanos? E comtudo não deixaram Roma e Italia para plantarem suas colonias nas florestas gaulezas e allemans? O portuguez não é, como nós os francezes, na Europa sugeito a todas as molestias, trabalhos e fadigas? Sim! porem é neste ponto mais soffredor do que nós, pois bem sabe ser necessario primeiro lavrar para depois colher: comtudo estabelece-se muito bem no Brasil, faz grandes negocios, sendo a terra bem preparada e cultivada. Havendo dinheiro ha ahi de tudo, como em Lisboa. Eu vos lembro, que se a paciencia dos homens tem tornado, dentro de oito mezes, boas e ferteis as terras crestadas pelo gelo ou congeladas, uma terra, o coração do mundo, não será habitavel pelos francezes? É até loucura pensar n’isto, e portanto concluo, que esta terra é apropriada á naturesa dos francezes como é a França, si for bem cultivada e provida de viveres necessarios e acommodados ao gosto francez, como sejam pão e vinho: quanto á carne, peixe, legumes e raises, ha de tudo isto incrivel abundancia, tendo apenas o trabalho de colher e plantar os vegetaes. Enganar-se-hia porem quem pensasse, que as arvores produzissem patinhos assados, as corças, quartos de carneiro, recentemente tirados do espeto, e o ar andorinhas bem cozidas, de fórma que não havia mais trabalho do que abrir a bocca e comer. Com tal fantasia, não lhe aconselho, que lá vá, porque arrepender-se-hia. É pois esta terra habitavel pelos francezes, e si ahi não tiverem commodidades, arrepender-se-hão, porem tarde. 2.ª Eis o que disse, e basta[82] a terra é habitavel, e pode ahi morar-se com algum encommodo durante alguns annos. Mas será saudavel para os francezes? Os indios ahi são sadios, e vivem longo tempo, embora selvagens e barbaros, nascidos n’este clima, e acostumados á tal temperatura. Não tem os francezes tal privilegio, pois são sujeitos á muitas febres, que se terminam em paralysia e outros encommodos. Respondo a isto, que julgamos das substancias pelos accidentes, e das terras pelos encommodos e enfermidades. Comparemos agora a menor aldeia de França com a Colonia Francesa n’estas terras, e no espaço de um anno achamos haver na aldeia dez vezes mais doentes do que em dois no Maranhão. Si algumas pessoas se dão mal, não é novidade pois em toda a parte está a morte: assim são as molestias. D’estes males não estão isentos Reis e Principes em paizes os mais agradaveis e salubres, que se possa imaginar. Em dois annos, que lá estive, apenas houve uma morte a do Rvd. padre Ambrosio:[83] fallo da morte natural, porque os devorados pelos peixes, a culpa foi d’elles por se lançarem ao mar. Morreu o Rvd. padre de uma paralysia, porque estando muito atado a derrubar arvores grandes, e tendo o suor molhado seo habito, foi assim mesmo celebrar missa, e apenas sahio da igreja foi acommettido por uma febre, de que falleceo poucos dias depois. Digo isto com certesa, porque o assisti até o fim, achando-se fóra em serviço de Deos os outros dois padres. Á vista d’isto Maranhão e Paris pleiteam entre si. Diz Paris—«és má terra, porque mataste um padre capuchinho que te mandei.» Responde Maranhão «por um perdi quatro dos meos.» «Tendes rasão para censurar-me?» Assim o deveria ser, si os meus fossem tratados como principes, e o pobre capuchinho apenas tivesse farinha, ou pouco mais. «Concordemos pois, que o clima é sam e salubre, e que desperta muito o apetite, e si houvessem muitas gulodices como em França, para ahi iriam as pressas muitas moças francezas.» 3.ª Dizem vae tudo muito bem, porem não ha vinho, e nem trigo, principaes alimentos, indispensaveis nos melhores banquetes para as carnes mais delicadas. Respondo, que ha milho em grande abundancia, de que se pode fazer pão, como nós o faziamos, e o achavamos muito agradavel ao gosto, embora gostassemos mais da farinha do paiz, especialmente quando fresca, porque não é pesada ao estomago. Este pão de milho serve d’alimento em muitas terras do velho mundo,[84] e especialmente na Turquia, onde é chamado trigo da Turquia. Não se perdeo ainda a esperança, que a terra firme do Brasil, forte e gorda, não possa produzir trigo, com que se fabrique o pão como na França. Os habitantes de Pernambuco ja o fizeram; não estão longe de nós, porem em terras peiores. Quanto a terra firme do Maranhão, melhor seria si o rei de Hespanha não prohibisse nas Indias Orientaes e Occidentaes plantação de trigo e de vinhas para tel-as sempre dependentes de seo soccorro, e de tudo quanto cresce nos seos Reinos de Hespanha e Portugal. Accrescento ainda, que o Perú, que está no mesmo paralello que a terra firme do Maranhão, é abundante de trigo e de vinhas. Quem pode impedir, que ahi se produzam estes generos? Quanto ao vinho, não é feito das vinhas do paiz, embora ahi possam crescer,[85] e contam-nos, que as trazidas pelos nossos religiosos na ultima viagem pegaram e produziram fructos. Quem pode impedir grandes plantações de vinhas, e que em dois ou tres annos se façam grandes colheitas? A França nem sempre tem vinho, actualmente porem tem muito. Os flamengos, os inglezes, os hibernios e dinamarquezes não fabricam vinho, contentam-se com cerveja, e se querem beber vinho abrem a bolsa, e ahi vão os melhores vinhos do Universo. O mesmo succede em Maranhão, porque os navios ahi os levam. É bem verdade, que é um pouco mais caro do que em França, porem é melhor, segundo pensam alguns francezes, que avaliam as coisas pelo preço. Os mais economicos acostumam-se com a cerveja do paiz que é muito boa por ser feita de milho, e não é muito cara por haver muita abundancia deste genero na terra e serem as agoas boas e puras. 4.ª Dizem. Si é assim não é máo, porem pode ahi fazer-se vantagens, visto que, em quanto ahi estive, nunca me animei a gastar dinheiro. Respondo. Se todos soubessem porque se dava essa falta, ficariam contentes, porem não é cousa que todos devam saber. Direi somente, que esta falta não provem da terra, que é propria a produsir bons generos quando bem cultivada, como sejam: _Algodão_, _canafistula_, _madeira de diversas cores_, _piteira_,[86] _tinturas de urucú_, _de cramesim_, _pimentas longas_, _lapis-lazuli_, _cobre_, _prata_, _oiro_, _pedras preciosas_, _plumas_, _passaros de diversas cores_, _macacos_, _macacos-monos_, _e saguins_, e especialmente assucares, quando si levantarem engenhos e plantarem cannas. Si nada de lá se trouxer (callando o que si deve dizer em publico) provem da má direcção dos negocios, cuidando cada um de si, o que tem feito com que haja pouco sortimento de mercadorias francezas, necessarias aos selvagens, e pelas quaes dão algodão, tinturas, pimentas, e outras coisas similhantes, alem de outros generos, que por si mesmo possam obter os francezes. Vendo os selvagens a pobresa dos armazens, onde apenas haviam mercadorias para com ellas si comprar farinha, ficam preguiçosos, nada fazem e nem farão emquanto os francezes não tiverem coisa alguma a dar-lhes em recompensa: tal é o seo genio e assim o farão, e por isto não merecem censura, por que em todo o Christianismo não si encontra um só homem, que trabalhe de graça. Não vos admireis si nada tragam, e sim si na primeira viagem conduzirem comsigo alguma coisa. Não me prendo as rasões ja ditas, e outras, que callo, e sim no caso de provêr-se á esta falta, como convem, eu vos asseguro que a Ilha e suas circumvisinhanças ainda produzirão bons estofos. Tendo satisfeito a todas as perguntas e objecções sinto repugnancia em responder a muitos mancebos, que por bens de fortuna somente possuem a espada e o punhal, mais que ricos de coragem cortam muitas vezes a garganta uns dos outros, e vão em companhia para um paiz bem triste, onde navio algum vae levar novidades. Desejaria perguntar-lhes—que fazeis em França senão esposar questões de vossos irmãos mais velhos? Porque não experimentaes fortuna, ou ao menos porque não ides enriquecer vosso espirito com a vista de coisas novas? Passarieis assim o vosso tempo, em quanto si aplaca o vosso coração, e si fortalece o vosso juiso: prestarieis serviço a Deos e ao vosso Rei visitando esta nova França. Ahi descobrireis novas terras, achareis alguma coisa de valor, como sejam pedras preciosas etc., e quando mais não fosse, bastaria que, quando voltardes, não ficasseis mudo nas reuniões, porque aquelle que viaja tem sempre ganho o seo pão. As cinzas e os fogões são para os cazeiros, creados por Deos para cultivar a terra. A nobresa n’este mundo tem outro fim, e qual é elle? o de empregar vossos esforços e trabalhos para dilatar o reinado de Deos, ajudar os Apostolos de Jesus Christo a chegarem aos fins para os quaes são enviados, isto é, para augmento do sceptro e da corôa de vosso principe, e morrer por estas duas empresas—é morrer em leito de honra. Vós me respondereis—mas sob que ordens e porque meios? Minha penna, senhores, não pode ir mais longe. Fiz o que devia e o resto ignoro. Espero portanto, que Deos inspirará aquelles, que tudo podem, á favor da perfeição de tão alta empresa. CAPITULO XLIX Instrucção para os que vão pela primeira vez ás Indias. Sabio é aquelle, diz o proverbio, que para seos negocios se aproveita do exemplo e experiencia dos outros. Se os nossos francezes, antes de terem ido á India, soubessem o que depois conheceram, teriam melhor dirigido os seos negocios, e nem teriam passado pelos encommodos, que soffreram: o que resolver ahi ir, calcule quanto tempo ahi se pode demorar, junte ainda mais um bocado, porque lá não se tem a commodidade do regresso quando se quer. Faça seo sortimento para esse tempo, e por duas formas, uma para si e outra para os selvagens afim de obter delles viveres e outros generos. As suas provisões devem consistir de aguardente forte, do melhor vinho de Canaria, em bons frascos de estanho, bem arrolhados e acondicionados n’uma frasqueira fechada a chave, e esta tão bem guardada, como o seo coração, para servir nas necessidades e nas molestias que podem apparecer. Fuja de sucia com pessoa alguma, porque então desapparecem bem depressa as suas provisões. É costume no mar, desde que se suspeita haver vinho ou agoardente na frasqueira de algum passageiro, o pedir-se de vez em quando uma vez d’esses espiritos para beber em companhia, e quando se está em viagem deve-se fazer de duas coisas uma, ou ser-se liberal e para isso não faltam instigações, ou então passar-se por velhaco, e soffrer todas as injurias, que lhe queiram fazer. O meio mais seguro para evitar estas coisas é não entrar em sucias. Para a passagem do mar deve surtir-se de algum vinho tinto, e de coisas iguaes para quando precisar visto o trivial do navio ser muito mal preparado. Deve fornecer-se de um bom numero de camisas, lenços, e vestidos de fustão, e não de estofos pesados, excepto os vestuarios para festas, porque n’este paiz não se precisa senão de pannos leves. Leve sabão para o aceio da casa, muitos sapatos porque lá não achará um só, senão os que para ahi forem levados e por alto preço, de forma que pelo preço de um par tereis em França uma duzia, toalhas, guardanapos, lençóes e um bom colchão, e se quizerdes viver á francesa, isto é, com limpesa, deveis levar baixela de estanho para quando estiverdes doentes. Devereis levar assucar, boas especiarias, uma porção de rhuibarbo muito fino, tudo bem acondicionado n’uma caixa para livrar o assucar das formigas do paiz, porque é impossivel imaginar-se o que fazem estes animaesinhos, que metem-se por toda a parte, e tudo trespassam se é de madeira. Devem essas caixas ser feitas de ferro branco. As mercadorias pelas quaes dos Indios obtereis em troca viveres e outros generos do paiz, e escravos para servir-vos e cultivar vossas roças, são as seguintes—facas de cabo de pau, de que usam os magarefes, e muito apetecidas pelos selvagens, muitas thesouras de bolsa de couro, muitos pentes, contas de vidro verde-gaio, a que chamam missanga, foices,[87] machados, podões, chapeos de pouco valor, fraques, camisollas, calções de adellos, espadas velhas, e arcabuses de pouco preço. Dão muito apreço a tudo isto, e assim tereis escravos e bons generos. Não esqueçaes tambem pannos verdes-gaios, e vermelhos de pouco valor, porque não fazem grande differença dos estofos, rosetas, assobios, campainhas, anneis de cobre dourado, anzóes, alicates de latão chatos, com um pé de cumprimento e meio de largura, tudo isto por elles muito apreciado. Assim bem providos destes generos, não duvideis de serdes bem vindo entre elles: ahi não deveis viver vida folgada, e muito negocio fareis n’esse paiz pelo qual pouco dareis, se souberdes guiar-vos. Assim preparado, não vos esqueçaes do principal, que é antes de embarcardes purificar e robustecer vossa alma com o Santissimo Sacramento da confissão e da communhão, dispondo todos os vossos negocios como quem não sabe se o mar lhe permittirá o voltar. Apenas embarcado, fazei vossa cama o mais perto, que fôr possivel, do mastro grande para evitardes o balanço visto ser ahi o lugar mais quieto do navio. Deve-se sempre temer a Deos, porem não receiar os acasos do mar, sendo melhor mostrar o rosto tranquillo do que desassocegado, visto de nada servir o medo. Não vos assusteis senão quando os pilotos implorarem misericordia, porque então é preciso cuidar da alma, visto irem mal as cousas. Quando virdes o navio navegando de lado, as caixas viradas, o mar entrando no convez, as vellas molhando-se nas ondas, os marinheiros jurando e buffando,[88] não vos assusteis, mostrae-vos sempre de animo prasenteiro, não vos descuidando porem da vossa consciencia. Não questioneis com algum marinheiro, pois com isso nada alcançareis. Quando chegardes ao porto, não vos apresseis em saltar, cuidae primeiro nas vossas mercadorias e bagagem, porque acontece muitas vezes visitarem a bagagem, e serrarem os caixões, onde vem os generos, de maneira que se possa introduzir a mão. Fazei conduzir tudo em vossa companhia para casa do vosso Compadre, que deveis escolher com estes predicados se fôr possivel. 1.º Que tenha escravos, canôa e cães, para não sentirdes falta de peixe e de caça, senão raras vezes tereis estes generos, sendo necessario compral-os aos selvagens, e assim muito cara vos seria a vida. 2.º Indagae se elle tem bom genio especialmente a mulher, porque nada ha peior do que má hospede. Se encontrardes bom acolhimento, convem fazer alguns presentes, e depois deveis trazel-os sempre na esperança de outros, sem serdes comtudo muito liberal, e por isso todos os mezes lhe deveis dar alguma coisa afim de não vos chamarem avarento, e como tal não vos apregoem entre os seos iguaes, criando assim difficuldades quando quizerdes obter alguma coisa. Não vos deixeis prender pelos affagos das filhas dos vossos hospedes, ou de outras, pois não vos faltarão caricias se souberem que tendes mercadorias. Em tudo o mais é preciso andar prevenido, tendo sempre bem presente á memoria o acaso e o perigo, que fazem contrahir molestias sórdidas áquelles, que de si se esquecem. Podeis livrar-vos d’isto com facilidade, mormente se considerardes o grande peccado, que commeteis. CAPITULO L Do acolhimento, que fazem os selvagens aos francezes recem-chegados, e como convem proceder para com elles. Si ha nação no mundo, que goste de fazer bom acolhimento aos seos amigos recem-chegados, e que os receba em suas casas para tratal-os bem o quanto é possivel, sem duvida alguma os _Tupinambás_ occupam o primeiro lugar á vista do que fizeram aos francezes. Logo que fundeou o navio, que trasiam os francezes, surgiram de todos os lados selvagens em suas canôas, bem enfeitados de pennas e preparados segundo sua classe como si fossem para uma grande festa. Apenas descobrem ao longe navios que demandam a terra corre logo este boato por todas as aldeias _Aurt vgar uaçú Karaibe_, ou _Aurt Navire suay_ «ahi vem os grandes navios de França.» Immediatamente tomam os seos vestidos bonitos, si os tem, e principiam a fallar uns aos outros por esta forma: «ahi vem navios de França, e eu vou ter um bom compadre, elle me dará machados, foices, facas, espadas, e roupa: eu lhe darei minha filha, irei pescar e caçar para elle, plantarei muito algodão, dar-lhe-hei gaviões e ambar, e ficarei rico, porque hei de escolher um bom compadre, que tenha muitas mercadorias.» Dizendo isto batem nas pernas e nos peitos em signal de alegria. As mulheres e os rapazes fabricam farinha fresca e nova, e os homens vão pescar e caçar, e quando a casa está provida de carnes de diversas qualidades, raizes, peixes, caça, e farinha, vão todos aos navios. Os mais impacientes vão em suas canôas á bordo do navio, ancorado na enseiada, endagar se vieram os seos velhos _Chetuassaps_, e qual é o francez que traz mais generos para lhe offerecer seo compadresco, sua casa e sua filha. Apenas salta o francez é logo rodeiado por elles: homens e mulheres mostram-se prasenteiros, presenteam-nos com viveres, convidam-nos para compadre, offerecem-se para levar-lhes sua bagagem, em fim fazem o que podem para contental-os e agradal-os. Não tem inveja por estar um francez em casa de outro: o que primeiro se apresenta é que leva o hospede, sem a menor questão, e nem por isso se insultam. Fazem mais ainda: quando um francez muda de compadre, não questionam por isto, despresam-no, e tem-no por homem mau, e assim raciocinam. «Si não poude viver com aquelle, como viverá commigo?» Si o selvagem é genioso, avarento e preguiçoso, quando o francez o deixa não se zangam os outros, antes dizem «É bem feito ser elle despresado, é um homem difficil de ser aturado, avarento e preguiçoso.» Escolhendo o francez um compadre, segue-o e vae para a aldeia,[89] e então o hospede com certa gravidade, como si nunca o houvesse visto, lhe estende a mão e lhe diz: «_Ereiup Chetuassap?_» «Chegaste meu compadre,»[90] coisa digna de vêr-se e de contemplar-se. Direis ao vel-os, que sahem á maneira dos imperadores de um gabinete bem fechado, onde estavam empenhados em grandes negocios. Si querem fazer grande acolhimento a um francez e lhe mostrar que muito o estimam, antes que o pae de familia lhe diga _Ereiup_, as mulheres e as filhas o lamentam e depois dam-lhe bons dias. Responde-lhe o francez _Pá_, «sim?» resposta que quer dizer «sim de todo o coração: eu te escolhi para morar comtigo, e para ser meo compadre, e do numero de tua familia: te dei a preferencia porque te estimo e por me pareceres bom homem.» Diz-lhe o selvagem—_Auge-y-po_ «muito bem, estou muito contente, honras-me muito, sêde bem vindo e aqui serás tão bem acolhido como em parte alguma.» Por isto reconhecereis a candura e a simplicidade da naturesa, que consiste em poucas palavras e muitas obras. O contrario acontece á corrupção, pois inventa muitos discursos, muitas palavras adocicadas, cortejo sobre cortejo muitas vezes só com o chapéo, e não com o coração. D’estas duas recepções qual será a melhor e a mais consentanea com a lei de Deos, e com a simplicidade do christianismo? Após aquellas palavras, elle vos diz—_Marapé derere?_ «Como te chamas? qual é o teu nome? como queres que te chamemos? que nome queres que se te dê?» Convem notar, que si não escolherdes um nome pelo qual sereis conhecido em toda a parte, elles vos darão um escolhido entre as coisas naturaes, existentes no seo paiz, e o mais apropriado á vossa physionomia, genio, ou maneira de viver, que por ventura descobrirem em vossa pessoa. Por exemplo, entre os francezes, um foi chamado _beiço de sargo_, porque tinha o beiço inferior puchado para diante como os peixes chamados _sargos_. Tiveram outros o apellido de _garganta grande_ porque nada o fartava, de _sapo-boi_,[91] por estar sempre entumecido, de _cão pirento_ pela sua cor má, de _piriquito_ porque levava só a fallar, de _lança grande_ por ser alto e esguio, e assim por diante, e ordinariamente fazem estas coisas em suas _casas grandes_, e por esta fórma pouco mais ou menos. «Que nome se ha de dar a teo compadre?» —Não sei, é preciso estudar. Indica cada um a sua opinião, e o nome que encontra mais apropriado, e si é bem recebido pela assembléa lhe é imposto com seo consentimento, si é homem de posição: si é do vulgo, queira ou não queira, ha de ter o nome, que lhe der a assembléa. Tem tambem outra maneira de impôr nomes: quando elles vos estimam, e vos dam muito apreço, elles vos dam o seo proprio nome. Depois de saber vosso nome pensam na cozinha dizendo—_Demursusen Chetuasap_, ou então _Deambuassuk Chetuasap?_ «Tem fome, meo compadre? quer comer alguma coisa?» A hospede vos escuta e vos attende prompta a servir-vos si disserdes _sim_ ou _não_, porque tomarão vossa resposta, como dinheiro contado, visto que n’essas terras nem se deve ser vergonhoso, e nem guardar silencio. Si tendes fome, direis _Pá, chemursusain, Pá, cheambuassuk_, «sim, tenho fome, quero comer.» Perguntam elles _Maé-pereipotar_, «que queres tu comer? que desejas tu que eu te traga?» São mui liberaes no principio, diligentes na caça e na pesca, afim de contentar-vos e ganhar vossa affeição para obter generos; mas cuidado, não lhe dês tudo no principio, conservae-o sempre na esperança, dando-lhe cada mez alguma coisinha. Á sua pergunta dizei, si quereis carne, peixe, passaros, raizes, ou outra qualquer coisa, e então vossos hospedes, o marido e a mulher trazem para vós a caça, o _Mingau_, que tiverem, podeis comer a vontade e dar a quem quizerdes. Apenas tiverdes comido, arma a sua rede ao pé da vossa, principia a conversar comvosco, offerece-vos um caximbo cheio de fumo, que accende, chupa tres fumaças, que expelle pelas ventas, e depois vos entrega como coisa muito bôa, e que faz muita estima, como na França se pratica com as bebidas. Accende tambem seo caximbo, e depois de haver tomado cinco ou seis fumaças diz—_Ereia Kasse pipo_: «deixaste teo paiz para vir ver-nos, visitar-nos e trazer-nos generos?» Respondei-lhe _Pá_—«sim, deixei tudo, despresei meos amigos, e meo paiz para vir aqui vêr-te.» Levantando então a cabeça como que admirado, diz _Yandé repiac aut_, «compadeceo-se de mim, olhou-nos com piedade: lembraram-se os francezes de nós, não se esqueceram de nós.» Deixaram sua terra para nos vir ver—_Y Katu Karaibe_: «são bons os francezes e muito nossos amigos.» Depois pergunta ao francez _Mabuype deruuichaue Yrom?_ «Comvosco quantos superiores, guerreiros, capitães e principaes vieram?» Responde-lhe elle _Seta_, «muitos.» Replica o selvagem—_De Muruuichaue?_ «Não és d’esse numero? Não és um dos principaes?» Bem podeis pensar, que não ha ninguem, por mais mediocre, que seja a sua condicção, que de si não diga bem, e por isso responde o francez _Ché Muruuichaue_ «sim, sou um dos principaes.» Diz o selvagem _Teh Augeypo_ «muito bem, estou muito contente: basta, fallemos de outra coisa.» _Ereru patua? Ereru de caramemo seta?_ «Trouxestes muitas caixas e cestas, cheias de mercadorias?» São as melhores noticias, que se lhes pode dar, para as quaes tem sempre dispostos o animo e o coração, de sorte, que tudo quanto dizem é somente como que um preambulo para chegar a este ponto. Depois que o francez responde-lhe affirmativamente diz o selvagem—_Mea porerut decarameno pupé?_ «O que trouxestes em vossas caixas e coffres de joias? que mercadorias?» dizem elles com vóz doce e agradavel, pois são muito curiosos de saber o que trazem comsigo os francezes. Deve estar prevenido o francez para não dizer e nem mostrar o que elles desejam, afim de trasel-os sempre na expectativa, si dos seos serviços quer aproveitar-se. Deve responder-lhe—_Y Katu paué_ «trouxe tantas coisas, cujos nomes nem mesmo sei, são bellas e magnificas.» Esta resposta é como agoa lançada na fornalha ardente do ferreiro, a qual redobra o calor, e activa a chama, e assim desperta a curiosidade do selvagem, até por meios adulatorios, expressados por gestos, dizendo _Eimonbeu opap-Katu_ «eu te peço, não me occultes nada, dize-me.» _Yassoi-auok de Karamemo assepiak demae_: «Abre-me tuas caixas, teos cestos, deixa-me vêr tuas mercadorias, tuas riquezas.» Deve responder o francez _Aimosanen ressepiak_ ou _Kayren deué_ «agora não posso, deixa-me descançar, logo te mostrarei:» _Begoyé sepiak_ «não duvides, um dia verás á tua vontade.» O selvagem entende o que isto quer dizer, e vendo que perde seo tempo, diz a si mesmo, levantando os hombros, e como que se lastimando—_Augé katut tegné_, «pois bem, esperarei.» Bem sei que não serei ouvido, porem, diz elle ao francez _Dererupé xeapare amon?_ «Não trouxestes muitas fouces e machadinhos de cabo de ferro?» _Dererupé urá sossea-mon?_ «Trouxestes machados de cabo de pau?» _Ererupé ytaxéamo?_ «Não trouxestes facas d’aço?» _Ererupé ytaapen?_ «Trouxestes espadas d’aço?» _Ererupé tatau?_ «Trouxeste arcabuzes?» _Ererupé tatapuy seta?_ «Trouxeste muita polvora?» Responde o francez a tudo isto _Aru seta yagatupé giapareté_ «Sim, trouxe muita coisa boa e bonita.» Diz o selvagem _Augé-y-pó_ «Muito bem.» _Ercipotar turumi? Ercipotar keré?_ «queres dormir? queres deitar-te?» Responde o francez _Pa che potar_ «sim, quero dormir, deixa-me.» Da-lhe então o selvagem as boas tardes, ou boas noites, dizendo—_Nein tyande karuk tyande petom_ «boa tarde, boa noite, descançae á vontade.» Deixemol-os em descanço, e passemos á segunda parte d’esta historia. Continuação da historia das coisas mais memoraveis, acontecidas no Maranhão em 1613 e 1614. SEGUNDO TRATADO. CAPITULO I Dos fructos do Evangelho, que appareceram cedo pelo baptismo de muitos meninos. O cantico segundo, (representando allegoricamente a origem da Igreja, em terra nova, ainda não illuminada pelo conhecimento do verdadeiro Deos) diz: _Vox turturis audita est in terra nostra: ficus protulit grossos suos: vineæ florentes dederunt odorem suum_: «foi ouvida a voz da rolla em nossa terra: produzio a figueira seos figos verdes, e as vinhas em florescencia derramaram seo aroma.» Interpretando estas palavras Rabbi Jonathas, diz em sua Paraphrase chaldaica, que a vóz da rolla significa a vóz do Espirito Santo annunciando a Redempção promettida a Abraham, pae de todos os crentes: eis suas proprias palavras:—_Vox spiritus sancti et redemptiones quam dixi Abrahæ Patri vestro_: «a vóz do Espirito Santo e da Redempção, que prometti a Abraham, vosso Pae.» Diz mais, que pela figueira deve entender-se a Igreja, e que pelos figos novos se representa a confissão da fé, que devem os crentes fazer diante de Deos, e finalmente que pelas vinhas em flor exhalando bom cheiro são indicados os meninos louvando o Senhor dos seculos: _Cœtus Israel, qui comparatus est precocibus ficubus aperuit os suum, et etiam pueri et infantes laudaverunt Dominatorem sæculi_: em nosso tempo vimos isto realisado em Maranhão, e suas circumvisinhanças, onde depois que á vóz do Espirito Santo, por meio da prédica do Evangelho, se fez ouvir n’estas terras, e tocou o coração de muitos, especialmente dos que solicitaram o baptismo, a bella figueira da Igreja produzio novos figos, que são as almas sahidas de infidelidade para a crença do verdadeiro Deos, e então as vinhas em florescencia exhalaram seo cheiro quando em suas cabeças receberam os meninos as agoas do baptismo, louvando o Senhor dos Seculos pela parte que ja tomavam do sangue de Jesus Christo e da fé da Igreja. Coisa admiravel, digna de ser bem pensada e considerada: apenas a vóz do Evangelho trovejou, e fuzilou por essas florestas desertas, por estas sarças, cheias de agudos espinhos, esses pobres bichos (esses selvagens) presos nos laços do cruel caçador Satanaz, começaram animados pela força e impetuosidade d’essa vóz a construir seus pequenos templos, como outr’ora tinha predicto o Propheta Rei David no Psalmo 28. _Vox Domini præparantis Cervos, et revelabit condensa et in templo ejus omnes dicent gloriam_: a vóz do Senhor amançando os viados, descobrirá o interior das brenhas e das sarças e no seo Templo todos entoarão louvores á elle. Explicam os doutos, em varias licções, estas palavras dizendo que á voz do Senhor parem os bichos seos filhos, á similhança da mão da parteira ou do cirurgião habil, que serve para tirar do ventre da mulher o menino sam e salvo. Esta voz não é outra, a darmos credito aos naturalistas, senão o ribombo do trovão, e a luz do relampago, que por um segredo muito intimo da naturesa faz com que param as femeas dos animaes ferozes. O mesmo produz a prédica do Evangelho, animada e vivificada pelo Espirito Santo, excitando o coração d’estes barbaros, ha muito tempo internados nas sarças e brenhas da ignorancia, da infidelidade, e dos maos costumes. Nas _casas grandes_ não se falla mais de outra coisa senão do conhecimento de Deos, contando cada um o que ouvio de nós quando veio visitar-nos, e terminando essas especies de conferencias pela manifestação do grande desejo, que tinham de vêr seos filhos baptisados e elles tambem, por meio d’estas e outras palavras similhantes. Que coisas, diziam elles, são estas, que os Padres nos contam por meio dos interpretes? Nunca as ouvimos iguaes. Nossos paes, ja por tradicção nos contaram, que outr’ora veio aqui um grande _Maratá de Tupan_,[92] isto é, Apostolo de Deos nas provincias, onde residiam, e lhes ensinou muitas coisas de Deos: foi elle quem lhes mostrou a mandioca, as raizes para fazer pão, porque antes só comiam nossos paes raizes do matto. Vendo este _Maratá_, que nossos antepassados não faziam caso do que dizia, resolveo deixal-os, mas antes quiz dar-lhes um testemunho de sua vinda aqui, esculpindo n’uma rocha uma especie de mesa, imagens, letras, á fórma de seos pés, e dos seos companheiros, as patas dos animaes, que trasiam, os furos dos cajados, a que se arrimavam em viagem, o que feito passaram o mar, procurando outra terra. Reconhecendo nossos paes sua falta, procuraram-no muito, porem nunca d’elle tiveram noticias, e até hoje ainda não veio visitar-nos algum _Maratá de Tupan_. Muito tempo ha, que frequentamos os francezes, e nenhum d’elles nos trouxe padres, e nem nos contou o que por seos interpretes nos dizem os padres. Por exemplo fazem viver de maneira diversa os _Caraibas_. Prohibem os francezes de tomarem nossas filhas, o que outr’ora faziam com facilidade, dando-nos em troca algumas mercadorias. Dizem grandes coisas de Deos, e á elle fallam em suas Igrejas, e para isso fecham as portas, fazem-nos sahir para que desça _Tupan_ diante d’elles, e então si ajoelham todos os _Caraibas_. Bebe e come _Tupan_ em bellos vazos de oiro, e em mesa bem preparada e ornada de bellos estofos, e bonitos pannos de linho. Adornam-se com ricos vestuarios, e quando querem fallar aos _Caraibas_ assentam-se no meio d’elles, e somente falla um Padre, que está assentado. Escutam-no todos os francezes, falla por muito tempo, cança-se, ninguem o entende porem todos ahi estão firmes. Depois que este falla, cantam uns depois de outros, de lado a lado, lêem n’um _Cotiare_, (n’um livro) o que cantam e dizem elles que assim estão fallando á Deos. Julgam nossos paes perdidos com _Jeropary_, ardendo em fogos subterraneos, e riem-se de nós quando choramos e lamentamos nos funeraes de nossos parentes. Mandam atirar no matto a comida, a bebida, e o fogo, que costumamos dar aos nossos parentes defunctos para fazer a viagem até onde estão nossos avós nas montanhas dos Andes. Elles nos dizem e prégam, que somos muito tollos em dar credito aos nossos _barbeiros_ e _feiticeiros_, especialmente ao seo sopro para o curativo dos infermos. Fallam com altivez contra _Jeropary_, e não o temem de fórma alguma. Promettem aos que crêem em _Tupan_, e que elles lavam com suas mãos, de subir ao Céo por cima das estrellas, do sol e da lua, onde está _Tupan_ sentado, e em roda d’elle os _Maratás_, e todos os que acreditam em suas palavras, e são por elles lavados. Regeitam raparigas e mulheres, dizendo que o filho de _Tupan_ não as teve, sahindo do ventre de uma rapariga chamada _Maria_ com a qual nunca seo marido teve relações. Ha dias nos quaes não comem carne embora lh’a offereçam. Não se passam dez dias, contando pelos dedos, que não mandem os Francezes vestirem-se com roupas bonitas, e irem a casa de _Tupan_ fallar com elles e escutar a palavra de Deos. Vestem-se de maneira diversa dos outros francezes, caminham diante d’elles, e todos os saudam. Convivem sempre com os grandes, que lhes fazem tudo quanto querem, e dizem até que abandonaram suas riquezas e fazendas para mais livres conversarem com _Tupan_, e manifestarem a vontade d’elle aos francezes. Quando vamos vel-os, nos acariciam, especialmente a nossos filhos dizendo-nos, que já não nos pertencem e sim a elles, sendo-lhes dados por _Tupan_. Que não nos penalizemos por isso, porque nunca nos deixarão e nem nossos filhos: que elles são muitos em França, que todos os annos virão outros, que depois de haverem educado e ensinado nossos filhos, os farão fallar em Deos tão familiarmente como elles o fazem: que lhes ensinarão a _rotiarer_ (a escrever) e a fazer fallar o _papere_ (o papel) mandado de muito longe aos que estão auzentes. Dizem-nos que seo Rei é poderoso, que os ama, e nos ajudará em quanto elles estiverem comnosco. Ah! porque não somos mais moços para vêr as grandes coisas, que farão os Padres em nossas terras! Elles construirão com pedra grandes Igrejas como ha em França. Trarão bellos estofos para ornar o lugar, onde desce _Tupan_. Mandarão buscar _miengarres_, isto é, musicos cantores[93] para entoarem as grandezas de _Tupan_. Recolherão todos os nossos filhos n’um lugar, onde alguns dos Padres cuidarão d’elles. Mandarão buscar de França mulheres para ensinarem o que sabem á nossas filhas. Não nos faltarão ferramentas para nossas roças. Ah! diziam alguns d’elles em continuação, si chegarmos a vêr essas mulheres em nossas terras, então temos certesa que não nos deixarão os francezes, e nem os Padres, especialmente si nos derem mulheres de França. Si eu tivesse, disse um d’elles, uma mulher franceza não queria outra, e faria tanta roça que havia de chegar para sustentar tantas francezas, como de dedos eu tenho nas mãos e nos pés, isto é, vinte, numero infinido para significar muito, porque depois de terem chegado a vinte, começam a contar de novo. Levantando-se então elle, que era o Principal no meio do grupo, em que me achava, e batendo nas nadegas com quanta força tinha, disse _Aça-uçu, Kugnan Karaibe, Aça-uçu seta, &._ «Amo uma mulher francesa com todo o meu coração, amo-a extremosamente.» Respondeo o _Cão grande_, tambem Principal—«prometteram-me uma mulher francesa, que desposarei na mão dos padres, e me farei christão como fiz meo filho Luiz-galante, e quero ter em pouco tempo um filho legitimo. Minha primeira mulher está velha, e por isso não precisa mais de marido, e as outras oito, ainda moças, as darei por esposas a meos parentes, e ficarei só com a mulher de França, e minha velha mulher para nos servir.» Faziam outros iguaes discursos em suas _cazas grandes_ e na minha residencia, ou quando me viam passar, contentando-me de referir apenas o que acima escrevi para mostrar o fervor d’estes barbaros, suscitado pelo Divino Espirito Santo. _Vox turturis audita est in terra nostra_, para produzir de seo seio fechado e preoccupado por mil infecções estes bellos e amigaveis viadinhos, _vox Domini præparantis Cervos_, e em outro logar _Cerva charissima e gratissimus hynnulus_, cap. 5º dos _proverbios_, «a côrça muito estimada, e o templo muito lindo.» Continuemos. A estas palavras seguio-se logo a pratica, porque foram muitos meninos entregues ao Rvd. padre Arsenio, residente em _Juniparan_, e a mim, morador em São Francisco, perto do Fórte de São Luiz, para acudir aos francezes e receber os Indios de outras terras, que todos os dias nos vinham vêr e conhecer, si era verdade o que de nós se dizia em longes terras. Foi esta a divisão, que fizemos, de tantas e tão grandes terras para cultivar e lavrar o que permittissem nossas forças, cuidando um de uma parte e outro de outra, excepto quando houvesse necessidade de sahir da Ilha, porque então se tomariam providencias adequadas. Impossivel é á palavra o pintar o contentamento e a alegria, que sentiamos vendo estes selvagens trazer-nos seos filhos, voluntaria e expontaneamente, para serem baptisados, preparando-os o melhor que podiam com os meios offerecidos pelos francezes, isto é, vestidos com um pedaço de panno de algodão, escolhendo padrinhos entre os francezes, contrahindo assim com elles estreita alliança, especialmente com os meninos baptisados, si estivessem em idade de o conhecerem, porque então considerariam seos padrinhos como seos proprios paes, chamando-lhes pelo nome de _cheru_, «meo pae» e sendo pelos francezes chamados os rapazes _cheaire_ «meo filho,» e as meninas _cheagire_ «minha filha»: vestiam-nos em summa o melhor, que podiam, e os selvagens, paes dos meninos baptisados, lhes offereciam todas as commodidades resultantes de suas roças, de suas pescarias, e caçadas. Vendo assim estas cousas, lembrava-me do que diz o cap. 5º dos _canticos_. _Oculi ejus sicut cólombæ super rivulos aquarum, quæ lactæ sunt lotæ, et resident juxta fluenta plenissima_: «os olhos de Jesus Christo, esposo da Igreja, parecem-se com os olhos da pomba, orvalhada de leite, que contempla os regatos das fontes, e faz seo abrigo e morada nos rochedos, que abrangem rios amplos e espaçosos.» Estes olhos de Jesus Christo são as graças do Espirito Santo, que fazem quebrar seos ovos á maneira das tartarugas, expostos á mercê das innundações do mar e da frialdade da areia. Tem estes mesmos olhos por plano e fim lavar e purificar as almas, especialmente as almasinhas rociadas de leite. Assim como a pomba branca brinca sobre os riachos, e habita á margem dos grandes rios, assim tambem o Espirito Santo folga e muito na conversão de uma terra nova, e encara com bons olhos a sahida d’estas almasinhas do estado geral d’estas terras barbaras, a saber, da ignorancia de Deos para chegar a conhecel-o por meio das agoas do baptismo, partecipantes, como nós, da visão de Deos, porque não fazem accepção de ninguem, visto que estas almas barbaras lhe custaram tanto como as nossas. Oh! preço infinito! oh! falta de caridade, que não tem desculpa perante Deos, de se verem tantas almas pedindo a salvação, sem embaraços e riscos, e em risco de se perderem por não haver um pequeno auxilio. Bom Deos! todos nós acreditamos, e Jesus Christo confirma esta crença, que uma só alma valle mais que todo o resto do mundo, isto é, que todos os imperios, e reinados da terra, que todas as riquezas e thesouros do homem: mais ah! não temos difficuldade de pôr em execução nossas crenças. Não posso deixar este assumpto sem primeiro declarar a luta interior, que experimentei, para fazer vêr e descarregar minha consciencia tanto quanto a julgo compromettida, parecendo-me bastante para minha justificação e defesa o que acabo de dizer. Li e notei em bons auctores, profundos e perspicases no conhecimento dos segredos e mysterios da Escriptura, que as pombas brancas orvalhadas de leite eram certas pombas, que os Syrios creavam em honra e veneração de sua rainha Semiramis, sendo prohibido matal-as sob pena de morte. Contam-nos os antigos ter-se esta rainha immortalisado por um acto memoravel, entre seos altos feitos d’armas, o mais milagroso quanto é possivel á grandesa dos reis, qual a suspensão entre o Céo e a terra de seos jardins, pomares, e bosques de recreio. Salomão procurou esta comparação entre as coisas profanas para mostrar uma obra divina notavel entre as outras, qual a conversão das almas, inteiramente reservada ao poder de Deos por ser uma segunda creação pela qual assim como suspendeo a terra no ar, assim tambem suspenderá jardins, pomares, e florestas de sua igreja com surpresa dos calculos e juizos humanos, afim do dar lugar aos seos predestinados e eleitos chamando-os quando lhes apraz, no meio dos desertos, e do interior das mais vastas e densas florestas. Antes de ir adiante, não deixarei escapar a coincidencia que se nota entre a grande Semiramis e Maria de França, rainha christianissima. Semiramis rainha reinante e tutora do seu filho o rei d’Asyria emprehendeo grandes coisas, em beneficio e sustentaculo do imperio de seo filho. Igual caso se dá com a nossa rainha, e embora Semiramis tenha em seo tempo feito muitas obras magnificas, pelas quaes grangeou o amor e a obediencia de seos subditos mais do que outra qualquer, sua antecessora, a immortalidade de seo nome foi devida a seos edificios miraculosos. Com igual razão direi, que entre as heroicas acções da rainha, mãe do rei, que levaram a posteridade seo nome immortal, conta-se a missão dos padres capuchinhos ás terras do Brasil para ahi plantar os jardins da igreja, começada e fundada sob sua authoridade e ordem, e assim será o Brasil obrigado a sustentar estas pombas brancas em memoria e lembrança de tão grande Semiramis que tem tanta piedade como poder para aperfeiçoar esta empresa. Ainda vos peço, que em nossas pequenas pombas rociadas de leite deveis vêr os filhinhos dos selvagens conduzidos ao gremio do christianismo pelo baptismo. Ha cinco annos, pouco mais ou menos, nem havia desejo de se intentar a cathequese d’esta gente. O diabo ahi mandava com imperio, arrastava para si todas estas almas sem pagar dizimo a Deos, porem presentemente, em quanto durar e continuar a missão, com o auxilio de Deos ouvireis dizer quaes os grandes fructos, ja colhidos, e outros que se colhem todos os dias. A nossa maior consolação, a que nos fazia soffrer as amarguras e as difficuldades dos trabalhos, que ahi não nos faltavam, era vêr a franqueza e boa vontade, com que os selvagens nos apresentavam seos filhos para serem baptisados dizendo então nós, em conversa com elles, que para nós nada havia mais agradavel do que o trazerem elles seos filhos á pia baptismal, e sempre que comnosco fallavam era assumpto da conversa a manifestação de seos desejos por verem seos filhos por nós baptisados. Poderia aqui reproduzir muitos exemplos para confirmar esta verdade, mas como tenho de referil-os em lugar proprio, deixo-os agora de mão. CAPITULO II Do baptismo de muitos infermos e velhos, que falleceram depois de christãos. Entre os mais bellos enigmas sagrados, que recita Job no seo livro, está no Cap. XIV a parabola do loureiro dizendo. _Si senuerit in terra radix ejus, et in pulvere mortuus fuerit truncus illius, ad odorem aquæ germinabit, et faciet comam quasi cùm primo plantatum est_: «Si a raiz do loureiro se mergulha na terra, e seo tronco morrer no pó, apenas sentir o cheiro da agoa germinará e produzirá nova copa de folhas, como si fosse recentemente plantado.» Os Setenta assim inverteram esta passagem: _Si in petra mortuus fuerit truncus ejus, ab odore aquæ florebit, et faciet messem, sicut nova plantata_: «si o tronco do Loureiro morrer na pedra, com o cheiro d’agoa florescerá, e como planta nova mostrará em breve sua copa.» Outra versão ha ainda mais bella: _Attracto humore aquæo iterum germinat, exibet quæ fructus decerpendos, ut plantæ solent_ «o Loureiro morto chupando a agoa germina de novo, e como as outras plantas offerece sazonados fructos.» N’estes trez trechos descobrireis muitas coisas, que servem litteralmente ao nosso fim. 1.º A raiz do Loureiro dentro da terra. 2.º Seo tronco morto no pó ou na pedra. 3.º O cheiro d’agoa, que dá a vida perdida á raiz e ao tronco fazendo produzir folhas, flores e fructos. O Loureiro representa as Nações infieis, conforme a ficção dos antigos da nympha Daphné, a qual perseguida pelos demonios com o nome de Appollo foi convertida em Loureiro. Sua raiz sepultada no pó ou na rocha representa longa serie de annos, nos quaes estas Nações barbaras jazeram entregues aos seos barbaros e inveterados costumes. O tronco ja morto representa o fim e terminação d’esta ignorancia. Deos querendo presentemente visitar esta Nação escolheo os enfermos, os velhos, os caducos e moribundos para fazel-os renascer em Jesus Christo, levando as folhas verdes da graça, as flores dos dons do Espirito Santo, e os fructos dos meritos da paixão de Jesus Christo, e com isto tudo o cheiro e o atractivo da agoa do baptismo. Sentiamos muito consolo quando baptisavamos os doentes e os velhos, cuja morte era esperada com certeza, por que receiavamos que por falta de soccorros, nos vissemos obrigados a deixar e abandonar todos os meninos recentemente baptisados e os adultos, que constantemente si apresentavam. Tinhamos ao menos certeza, que baptisando os que se achavam proximos da morte, abria-se o Paraizo, e perdia-se a occasião que lhes faria perder talvez a graça obtida, ficando sós e longe dos Ministros da Igreja para nutril-os na graça recebida. Alem d’isto o baptismo d’estes velhos fazia muita impressão no coração das testemunhas vendo a devoção, com que ordinariamente recebiam o baptismo. Vou dar-vos alguns exemplos. Na ilha cahiram doentes duas raparigas, uma livre e outra escrava, sendo aquella casada com um Tupinambá, muito bom moço, o qual depois da morte de sua mulher, constantemente nos perseguia para ser baptisado, aprendendo com muito boa vontade a doutrina christã. Esta rapariga, proxima da morte, pedio que lhe dessem o baptismo, confessando por palavras nascidas do coração a verdade da nossa religião, mostrando por signaes exteriores o toque do Espirito Santo no seo coração, banhando-se de lagrymas de amor e de reconhecimento ao grande _Tupan_, que lhe fazia tão assignalada graça de a ter feito nascer neste seculo para tiral-a do meio de tantas almas perdidas de sua nação e conceder-lhe o goso do paraizo. Fitava com attenção o Ceo, e com palavras doceis e tremulas recitava o que sabia á respeito da crença de Deos, repellindo para bem longe _Geropary_ e seos antigos enganos. No meio d’este discurso, precursor da morte, lamentava a condemnação de seos antepassados. Fazia exposições muito bellas a seo marido e o animava a receber quanto antes a purificação de seos peccados. Devo dizer d’ella um facto muito particular, qual o de haver conhecido um só homem, o seo marido, o que é não pequeno milagre n’aquelle paiz, por causa do mau costume introdusido pelo diabo no coração das moças, de se honrarem pela deshonra, e de não apreciarem a castidade ou a virgindade. Bem vêdes por isto, que em todos os escolhidos de Deos ha sempre alguma virtude natural, que provoque, não por merecimento e sim pela occasião, a graça de Deos, que similhante ao sol, com indifferença, está a entrar n’alma de todos, si houver para isso disposição. A _Tapuia_, ou escrava, atacada por violenta febre, que a atormentava muito, achava-se em sua rede só e por todos abandonada, conforme o uso e costumes d’elles, que consideram grande deshonra cuidar d’uma escrava quando está a morrer, isto antes da nossa chegada a ilha, quando então lhes mostrámos o quanto era desagradavel á Deos a crueldade com que atiravam por terra o escravo moribundo e lhe quebravam a cabeça como ja disse. Esta desgraçada mulher, prisioneira de Satan, e victima das desgraças communs da natureza, que são as enfermidades e as doçuras dolorosas e insuportaveis, sem pessoa alguma junto de si foi então olhada com piedade, e visitada por seo Creador, animando-a a pedir o baptismo. Oh! juiso de Deos! Oh! providencia eterna! Quem poderá comprehender teos conselhos na vida do homem! Esta pobre creatura, dardejada vivamente no coração pelas flechas das primeiras graças do seo senhor, não merecidas por alguma obra boa anterior, que houvesse feito, lançava suas vistas por todo o quarto procurando ver, si alguem lhe apparecia para mandar chamar os Padres, afim de ser lavada com as agoas do baptismo, e felizmente lhe appareceu um francez, a quem expoz seos desejos, e veio elle logo dizel-os ao padre, indicando a casa d’ella, que era perto, e elle foi logo visital-a, instruil-a e baptisal-a. O francez, que cuidou d’ella, e o padre que a baptisou, me contaram coisas admiraveis. Esta infeliz creatura quanto ao corpo, porem muito feliz quanto á alma, principiou a experimentar os penhores do Ceo, e o merecimento do sangue de Jesus Christo que recebeo pelo baptismo. Tinha sempre os olhos fixos no Ceo, derramava abundantes lagrymas, e dizia de momento a momento, estas palavras—_Y Katu Tupan, ché arobiar Tupan_. Oh! quanto Deos é bom! Oh! quanto Deos é bom! eu creio n’elle. Depois por meio de signaes mostrava aos francezes, que _Jiropary_, o diabo, andava ao redor de sua rede, e então dizia _Ko Jiropary, Ko y pochu Jiropary_: «está ali o diabo, atirai sobre elle a agoa de _Tupan_, isto é, agoa benta para elle fugir.» Fazia-lhe o francez a vontade e dizia ella que o diabo fugia a toda a pressa, e por isso constantemente pedia ao francez que derramasse em roda d’ella e de sua rede muita agoa benta o que fazia, bem como o padre quando ahi se achava. Apenas lhe apparecia uma dor de cabeça, que muito a encommodava, pedia para que lavassem a testa, as fontes e a cabeça com agoa benta, com que alliviava muito, a ponto de não sentir mais doença alguma: pouco depois entregou sua alma ao Creador. Amortalharam e sepultaram seo corpo á maneira dos christãos: aconteceo porem, que alguns malvados, filhos de _Giropary_, que nunca foram descobertos, senão seriam punidos, foram á noite desenterral-a, quebraram-lhe a cabeça e roubaram o panno de algodão de sua mortalha: pela manhã foi outra vez sepultada. Ninguem se admire d’isto, pois o diabo reserva sempre para si alguns bons servos, mesmo nos reinos os mais bem policiados, afim de executar suas mais detestaveis intenções. Sabeis sem duvida, que os _Tupinambás_ aborrecem naturalmente os que abrem as sepulturas dos mortos e não podem por isso tolerar, que os francezes abram as covas, onde foram enterrados seos parentes para lhes tirar os objectos, que elles cheios de superstição ali deixam. Ahi estava a morrer um velho _Tabajare_, tão magro, que os ossos lhe furavam a pelle, sem voz, e sem movimentos na sua rede. Julgando-se mais proximo da morte do que da vida, inspirado por Deos, pedio o baptismo. Fomos visital-o e cathequisal-o pedindo-lhe sua opinião a respeito de todos os pontos e artigos, que lhe propuzemos. Com as mãos postas nos disse que acreditava no que lhe diziamos. Demorando-nos nos artigos relativos á crença da Santissima Trindade, da Incarnação, Morte, e Paixão do Filho de Deos, do Baptismo, e do Mysterio da Santa Eucharistia, por que estava proximo da morte, procuramos fazer-lhe entender estas materias tão altas e profundas por comparações familiares, a que prestou muita attenção, e dezejando com todo o fervor o baptismo nós lhe promettemos, que no cazo de ficar bom elle receberia as ceremonias do baptismo na capella de S. Luiz, e aprenderia com gosto a doutrina christan, que ensinavamos aos catecumenos antes de baptisal-os. Respondeo-nos, que não era tão longe a Capella de Sam Luiz, que não podesse ser levado até lá afim de, antes de morrer, ser baptisado, consolação que muito desejava afim de ir direito para o Ceo. Vendo este fervor e devoção ficamos satisfeitos e concordamos ser elle carregado n’uma rede até a igreja de Sam Luiz, e ahi baptisado com toda a solemnidade. Alguns dias depois morreo tranquillamente. N’esse mesmo tempo cahio doente uma mulher _Tabajare_, e tão gravemente, que todos julgavam-na em breve morta: fomos vel-a e lhe offerecemos o baptismo que aceitou de muito boa vontade, e com muita attenção escutava o que diziamos, por intermedio dos interpretes, a respeito das glorias do Paraizo, das penas do inferno, do que ella devia crer, antes de receber o baptismo no caso de Deos lhe dar saude, e que podesse aprender a religião christan, e então na igreja receberia as ceremonias do baptismo, no que concordou e foi baptisada: recobrando sua saude, julgou do seu dever cumprir sua palavra, embaraçando-a porem o facto de ser mulher de um _Tabajare_, que tinha mais duas, não podendo ella continuar a viver com elle casada segundo as leis do christianismo. Removemos este obstaculo seguindo o conselho de Sam Paulo: _si qua mulier fidelis habet virum infidelem et hic consentit habitare cum illa, non dimitat virum etc quod si infidelis discedit, discedat_: «si alguma mulher fiel estiver casada com um homem infiel, e que este queira morar com ella, ella que não o deixe, si o homem infiel a deixar, ella o deixe tambem.» Em virtude d’isto fizemos saber a seo marido, que se quizesse ter por unica esta mulher christan, deixando as outras, que ella não o abandonaria, mas que si quizesse viver como d’antes na qualidade de concubina, que nós e os grandes dos francezes lhe afiançavamos, que elle seria despresado como incompativel com o christianismo. A principio mostrou repugnancia porem afinal concordou, vivendo como mulher christan e unica com seo marido. Faziamos o mesmo aos meninos pequenos, proximos á morte, observando porem estas formalidades: pediamos o consentimento dos paes e mães antes de baptisal-os, embora não os deixassemos de baptisar, quando os viamos moribundos: apesar de estarmos certos da boa vontade geral dos selvagens de apresentarem seos filhos ao baptismo, nós lhes prestavamos esta homenagem com o fim de attrahil-os á se converterem. Não vem a proposito referir aqui alguns exemplos, porque nada acho n’isto de extraordinario. CAPITULO III Do baptismo de muitos adultos, especialmente de um chamado Martinho. Antes de tratar d’esta materia, julgo necessario advertir ao leitor, que no fim da obra do reverendo padre Claudio achará alguma coisa d’esta e da seguinte historia, tudo extrahido de uma de minhas cartas, que enviei de Maranhão, á meos superiores, e como apenas esbocei-as, justo é que eu as descreva minuciosamente. Estas sagradas agoas do baptismo não estagnaram na ilha, pois atravessando a corrente forte e impetuosa do mar, sem com elle misturar-se, passaram ás terras firmes de _Alcantara_ e _Comã_, que despertadas por seo doce sussurro acolheram bem os espiritos d’aquelles, que Deos tinha escolhido para si, e pelo bom gosto d’ellas procuraram indagar-lhes a origem, maravilha, que não pode ser descripta como merece, pois á força d’estas agoas venceo incomparavelmente a actividade do azougue, chamando a si todos os pedaços de oiro espalhados por diversos lugares, isto é, as almas inspiradas por Deos em _Tapuitapera_ e _Comã_ vinham á Maranhão onde tinha assentado seos alicerces a salvação d’este paiz. Quem poderia dizer o grande numero de pessoas, que nos vinham visitar para aprender alguma coisa dos mysterios da nossa fé? Na verdade ninguem, mas para contentar o leitor e dar-lhe alguma ideia direi, que não havia um só dia, em que não recebesse novos visitadores e as vezes chegavam a 100 e a 120: eis a razão porque não podia deixar facilmente o Forte, e ir ás aldeias á meo cargo ministrar o pasto espiritual. Muitos d’estes selvagens de diversas idades se me apresentaram pedindo o baptismo, o que eu difficultava, e somente concedia aos que julgava, por algum acto extraordinario, enviados por Deos para tal fim. A razão porque apresentavamos essas difficuldades ja o disse, por vir da incertesa do soccorro, e do temor em que estavamos de baptisar todos os que nos pediam, e depois deixal-os sem coadjutores, pelo que poderiam cahir em peior estado do que se achavam anteriormente. Não deixavamos comtudo de trazel-os esperançados, e aproveitavamos a occasião de instruil-os no conhecimento e amor do Omnipotente até á vinda dos novos padres, que os acharam promptos para satisfazer suas vontades. Entre os que foram inspirados vivamente pelo Espirito Santo, e que por isso baptisamos havia um indio de _Tapuitapera_, principal n’uma aldeia antiga d’esta provincia, chamada _Marentin_, sempre grande amigo dos francezes, de boa indole, modesto, de poucas fallas, olhos sempre voltados para terra, tido outr’ora entre os seos por afamado barbeiro ou feiticeiro, tendo n’elle muita fé os doentes. Contou-me elle e depois muitos outros, que era christão, e quando exercia a sua arte de barbeiro era visitado por muitos espiritos folgazões, que brincavam diante d’elle, quando embrenhava-se nos mattos, tomando diversas cores, sem lhes fazer mal algum antes até tornando-se seos intimos: achavam-se porem na duvida si eram espiritos bons ou maos: tal era a sua crença n’estes espiritos bons ou maos. Conforme o costume tinha tres mulheres, antes de ser christão. Aconteceo porem, que inexperadamente viesse com muitos selvagens, seos similhantes, de _Tapuitapera_ para vêr não só a nós como tambem as ceremonias, com que serviamos a _Tupan_. Achando-se no _Forte de S. Luiz_, vio na manhã do dia seguinte (que era domingo) os francezes vestidos com suas boas roupas, acompanhando seos chefes em caminho para a nossa casa de S. Francisco afim de ouvirem missa. Após estes iam os selvagens, o que o animou a seguir o prestito, especialmente pelo desejo e intenção, que tinham, ha muitos annos de aproximar-se de nós. A Capella de Sam Francisco encheo-se logo de francezes, de selvagens christãos, e não christãos, que tinham todos especial devoção de receber em si algumas gottas de agoa benta. _Marentin_, observando a pressa de todos, alcançou como poude o canto de uma porta, trepou-se n’um banco, que ahi achou para ver á sua vontade tudo quanto eu fazia. Apenas pisei nos degraos do altar, voltei-me afim de saudar a todos, e descobrindo este selvagem acudio ao meu espirito a esperança de salval-o. Contou depois, como prestou attenção a todas as ceremonias, que fiz na celebração do alto e profundo mysterio da Missa, e desejou saber porque me revesti de alva branca, liguei a cintura, deitei o manipulo no braço, e a estolla no pescoço: aproximei-me á direita do altar, onde me apresentaram um vaso com agoa e sal, sobre o qual pronunciei algumas palavras fazendo muitos signaes da Cruz; levantaram-se os francezes, me respondiam cantando, e tendo eu um ramo de palma na mão o mergulhei n’agoa deitando algumas gottas no altar, depois sobre mim, e levantando-me fui aspergir os francezes começando pelos chefes e acabando pelos que estavam na porta da Igreja, chegando tambem para esse fim os selvagens não christãos, na convicção de que lhes serviria contra _Jeropary_, desceo elle mesmo do banco, rompeo a multidão para receber tambem algumas gottas d’agoa benta, o que conseguio. Não gosou logo esta gotta de celeste orvalho, porque as cantharidas peçonhentas e venenosas cahiram sobre as flores de sua alma entre-abertas, porem as abelhas industriosas de inspirações divinas vieram reunir ahi o doce mel da raça christã, porque regressando ao seo lugar agachou-se atraz dos outros, dormio, e durante o seo somno vio o Ceo aberto, e para elle irem subindo muitas pessoas vestidas de branco, e atraz d’ellas muitos _Tupinambás_ a medida, que eram por nós baptisados. Disseram-lhe na visita que as pessoas vestidas de branco eram _Caraybas_, isto é, francezes ou christãos,[94] conhecedores de Deos e do baptismo desde a mais remota antiguidade, e que os selvagens, que os acompanham, eram lavados por nós, e acreditam em Deos, em nossas palavras e de nossas mãos recebiam o baptismo. Despertando, não disse palavra, porem ficou muito pensativo e melancolico, e assim embarcou, e foi para a sua terra. Chegando a sua casa todos o desconheceram, e lhe perguntaram o que sentia, e si havia recebido alguma desfeita dos francezes em _Yviret_. Sem dar resposta alguma de dia para dia mais se entristecia, fugia da companhia de seos similhantes passeando só em suas roças e bosques, onde foi accommettido por estes espiritos loucos, cahindo depois tão gravemente doente a ponto de chegar ás portas da morte, sempre afflicto pela visão, que vira em _Yviret_, e pelos espiritos de que já fallei. Finalmente ouvio uma voz interior dizendo-lhe que se quizesse livrar-se de tál afflicção e molestia, e ir com Deos para o Ceo convinha, antes de morrer, lavar-se com essa agoa, que cahio n’elle quando esteve na casa de _Tupan_ em _Yviret_. Obedecendo a esta voz, em madrugada alta, mandou um seo irmão ter comnosco, e pedir-nos por intermedio do chefe dos francezes, cuja intervenção invocou, um pouco d’agoa de _Tupan_, n’uma porção de algodão, guardada n’um _caramémo_,[95] afim de não se perder uma só gotta para lavar sua cabeça, e ir assim lavado para o Ceo. Cumprio a ordem o enviado, dando seo recado ao Sr. de Pezieux, bom catholico, que se admirou, bem como o Sr. de Ravardiere e outros. O Sr. de Pezieux mandou-me este homem, com um interprete, para me dizer o fim de sua vinda que muito me maravilhou vendo n’um selvagem tão grande fé, misturada com temor, respeito e humildade. Quiz ir logo ter com elle, porem não pude, porque, como ja disse, de todas as partes vinham diariamente muitos selvagens procurar-me, e nem foi possivel mandar-lhe o Rvd. padre Arsenio porque estava occupado em outro logar, e por isso mandei-lhe um francez proprio e capaz para fazer-lhe companhia, cuidar na sua salvação e baptisal-o, sem ceremonia, no caso de receio de morte. Chegando á sua casa o francez com o irmão de Marentin, disse-lhe que eu não podia deixar a ilha, e nem o Forte de Sam Luiz por causa dos muitos selvagens, que me vinham procurar, mas que elle vinha em meo logar afim de o baptisar, antes de morrer, no caso d’estar tão doente á ponto de não poder ir á ilha para ser baptisado por nossas mãos. Ouvindo isto recobrou forças e actividade, e disse, «visto que a coisa é assim, não quero ser baptisado por um _Caraiba_, e sim pelas mãos dos padres,» e nem deixou de levantar-se (embora doente e fraco a ponto de não poder estar em pé senão com muito custo) na manhã seguinte, de embarcar-se e vir procurar-me no _Forte_, expondo-me o seo grande desejo de ser filho de Deos e baptisado, e de apagar as visões, que tinha na cabeça. Respondi-lhe que era necessario aprender a doutrina christan o mais cedo que podesse, deixando muitas mulheres, e contentando-se apenas com uma. Eram estas as duas coisas, que, entre outras, exigiamos dos adultos. Replicou-me, que em quanto a pluralidade de mulheres foi coisa, que nunca approvou, e que achava de razão um homem ter uma mulher só, mas que em beneficio de sua casa necessitava de muitas. Disse-lhe que podia ter muitas mulheres como servas, e não como esposas. Concordou n’isto facilmente, e cheio de bons desejos em poucos dias aprendeo a doutrina christan e pedio-me, que eu o instruisse, antes de ser baptisado, das ceremonias que com tanta attenção vio no primeiro dia, em que foi tocado pelo espirito de Deos. Disse-lhe que Tupan era um grande Senhor, sempre comnosco embora não seja visto, devendo ser servido com profunda reverencia, com ornatos e vestidos diversos do ordinario. Expliquei-lhe que o primeiro vestido branco, que me vio tomar, significava tres coisas: 1.º a innocencia e puresa, com que deviamos apparecer diante d’elle; 2.ª o vestido de sua humanidade, proveniente do sangue de uma virgem, de quem fallava com os homens: 3.ª para representar o vestido de zombaria, que lhe deram seos inimigos quando quiz por nós soffrer, ameaçando-lhe de o fazer padecer o que quizessem, embora tivesse elle o poder de impedil-os em suas intenções. Disse-lhe, que a corda com que apertei a cintura, e essas tiras de seda, que puz no braço e no pescoço representavam os ornamentos, que deviamos dar á nossa alma para ser agradavel a Deos: a corda quer dizer—continencia de mulheres, a tira do braço—o bem, que devemos fazer ao proximo, e a do pescoço, onde é costume trazer-se collares e aderesses,—o amor e a perseverança na nossa profissão, que tudo isto junto faz lembrar as cordas com que foi preso o Salvador. O outro vestido de seda, que puz por cima de tudo isto, mostra o zelo ou a salvação das almas, que devemos procurar, não nos contentando só de ir para o Ceo, mas fazendo tudo quanto pudermos para que nos acompanhem nossos similhantes. Significa tambem o segundo vestido a vestimenta de zombaria, que foi dado a Nosso Senhor em sua Paixão. A respeito da agoa e do sal, sobre que pronunciei algumas palavras, expliquei-lhe que eu o fiz para dar a agoa o poder, da parte de Deos, de expellir o diabo do lugar e das pessoas, em que estivesse, e que a aspersão, que eu fazia com a palma sobre os francezes era para expellir o diabo, que andava ao redor d’elles, e que o canto, que elles entoavam em quanto eu lhes lançava agoa benta, era uma supplica a Deos para purifical-os de seos peccados. Perfeitamente instruido de todas estas coisas, concordamos baptisal-o no dia da festa da Santissima Trindade. Para seo padrinho escolheo o Sr. de Pezieux, e no dia aprazado vestiram-no com uma roupa de algodão bem alvo em respeitosa homenagem ao Sacramento, que ia receber, isto é, a innocencia e candura baptismal conferida sob a invocação das tres pessoas da Santissima Trindade. Grande numero de selvagens, principalmente de _Tapuitapera_, assistiram a este baptismo, o que lhes fez grande impressão no espirito, vendo este homem, seo similhante, respeitado por elles tanto por suas antigas feitiçarias, como por sua autoridade e idade, receber, como si fosse menino, sobre sua cabeça a agoa de Jesus Christo. Querendo aproveitar tão boa occasião pedi aos francezes que abrissem caminho para que de mim se aproximassem os primeiros e os principaes selvagens, que ahi se achassem, aos quaes dirigi a palavra por meio do interprete. «Todos os dias, meos amigos, vedes em vossa terra os passaros seguirem uns aos outros, de forma que quando uns levantam o vôo, todos os outros os acompanham. «Sabeis tambem que os javalys caminham em grande companhia, sem que um só delles se desvie dos passos dos primeiros. «Por experiencia conheceis que os _Paratins_, isto é, os peixes chamados—sargos—no mar andam sempre em grandes bandos seguindo seos conductores, de tal fórma que vindo os primeiros ao encontro de vossas canôas, quando ides pescar, imitam-nos os outros cahindo dentro dellas e assim apanhaes vós grande quantidade d’esses peixes. «O que é isto? O exemplo dos similhantes. A naturesa implantou em tódas as creaturas vivas e intelligentes o desejo d’imitação de coisas similhantes, conforme as differentes especies. «Observae agora este homem vosso similhante e principal, que si fez filho de Deos. «Bem sei que trazei-nos vossos filhos, porem pensam alguns de vós que não são capazes, por velhos, de receberem o baptismo: é um engano, porque, como vossos filhos, podeis ser baptisados, e ir para o Ceo. Vêde diante de nós este homem que vou baptisar, que me prometteo de ensinar os que o quizessem ouvir. Abri os ouvidos para ouvil-o.» Dito isto, mandei ajoelhar-se nos degraus do altar, e recitar em vóz alta e clara na sua lingua, e de mãos postas a doutrina christã, que para diante será encontrada em lugar proprio. Comecei depois as ceremonias do baptismo, observadas com muita attenção por todos os selvagens, recebendo o nome de Martim Francisco, lembrado por seo padrinho por tal ou qual semelhança com o seo antigo nome de _Marentin_, fazendo assim geralmente conhecido pelos selvagens tal conversão. Acabado isto, mandei-o sentar junto de seo Padrinho, e comecei a celebração da missa, que ouvio com toda a devoção, de mãos postas, e na occasião de levantar-se a Hostia ajoelhou-se, como os outros, recitou a oração dominical e o credo em quanto vio os francezes tambem de joelhos. Passados alguns dias quiz regressar á sua aldeia, tendo alcançado a saude do corpo e da alma, e despedindo de nossos chefes e de mim, nós o mimoseamos com rosarios, imagens, _Agnus Dei_ e bentinhos. Recommendamos muito, que depois de orar a Deos, resasse tambem para a Virgem Maria, Mãe de Jesus Christo, recitando em sua lingua _Ave Maria_ tantas vezes quantas fossem as contas do seo rosario, e a oração dominical tantas quantas fossem as contas grandes. Tomou tal devoção com a Santissima Mãe de Deos que trazia sempre ao pescoço o seo rosario, que beijava muitas vezes, e quando queria orar a Deos elle o tirava e fazia o que lhe ensinamos. Antes de partir disse-me que só tinha um filho, que me traria no seo regresso para eu vel-o, e quando estivesse instruido na doutrina christã, eu o baptisaria e elle o daria aos Padres para ficar sempre com elles. Prometteo igualmente escolher uma das suas tres mulheres, com certesa a mãe do seo filho, si ella quizesse ser christã como elle, conservando as outras como servas. Bem compromettido com estas promessas, embarcou para _Tapuitapera_ em procura de sua aldeia e de sua casa. CAPITULO IV Do que fez este christão em beneficio da instrucção e conversão dos seos similhantes. Nada ha mais bravio e mais difficil para domesticar-se do que a phanthéra, ainda mais por ser de naturesa furiosa para com os animaes das florestas, que ella ataca e despedaça no primeiro encontro. Ao contrario, quando se sente grávida, torna-se mais favoravel, exhala bom cheiro pelos poros do seo corpo, e muda sua voz de cruel para branda, como que convidando os outros animaes a seguil-a, o que fazem. A nação dos _Tupinambás_ era uma verdadeira panthéra, cruel como nenhuma, segundo mostra o seo procedimento devorando seos inimigos. Apenas appareceo a graça sobre estas terras, mudaram em doçura sua crueldade; seos discursos desesperados em salutares; seos cheiros putridos, provenientes de seus fumeiros em outros agradaveis, approximando-se aos de Jesus Christo, transbordando de amor para com o proximo, desejando-lhe fazer o mesmo que elles receberam, inspirados pela concepção espiritual das graças de Deos no fundo de sua alma, como se lê nos _Canticos_ I. _Oleum effusum nomen tuum, idéo adolescentulæ dilexerunt te nimis_: e pouco depois, _Trahe me post te, curremus in odorem unguentorum tuorum_: «teo nome, ó Salvador do Mundo, e o teo conhecimento é um balsamo derramado, por cuja influencia e cheiro sentem-se as novas almas cheias de teo amor, e todas se dedicam a adquerir-te.» Martinho Francisco entre os outros selvagens executou esta doutrina, porque apenas chegou a aldeia principiou a fallar a seos visinhos, e d’ahi caminhando para outras aldeias da provincia de _Tapuitapéra_, sempre das grandezas de Deos e das graças que elle recebeo. Apresentava sempre aos olhos dos selvagens a desgraça dos seos antepassados, que tinham fallecido nas crenças de _Jeropary_, e a felicidade, que gozavam os que se baptisavam e se faziam filhos de Deos. Taes conversas produziram effeito, muitos procuraram a fonte de salvação para n’ella beber, e sugar o leite do peito de Jesus-Christo, como elle o fez e se conta do Unicorne, que procurando as agoas, distantes do veneno, por acaso foi tocado até o coração pela suavidade do canto de uma joven donzella[96] deitada sob os ramos floridos das arvores da floresta, o que livrou este animal de sua furia natural e o aproximou do peito d’aquella que o commoveo. O Unicorne, grato e não avaro do bem recebido, desejoso de que seos similhantes tambem o partilhem, vae procural-os no centro dos bosques, e por todas as sortes e gestos convidam-nos a seguil-o afim de tomarem parte na sua felicidade. A joven donzella representa a esposa de Jesus Christo, a santa igreja, seo canto harmonioso a prédica do Evangelho, seo peito, onde são acolhidos os proprios animaes irracionaes, a misericordia divina com todo o seo poder, as agoas sem veneno, os sagrados sacramentos, o feroz Unicorne, os infieis, e Martinho Francisco, por seos discursos e exemplos, foi a primeira acquisição, seguida de muitas outras. Não se tinham passados seis mezes, e ja se experimentavam grandes effeitos, porque tendo elle convertido e instruido muitos habitantes de _Tapuitapéra_ de todas as idades, mandou-nos os mais instruidos e intelligentes ao Forte de Sam Luiz para serem baptisados, o que fez, depois de os reter comigo por algum tempo para experimental-os em seos desejos. Augmentando-se diariamente o numero dos catecumenos em _Tapuitapéra_ foi necessario ahi ir o Rvd. padre Arsenio para baptisar muitos d’elles, dignos d’essa graça tanto pelo seo desejo, como pela sua instrucção christã. Tinha Martinho edificado uma Capella, e junto d’ella uma casa, no meio de sua aldeia, com o auxilio dos outros christãos e selvagens ahi residentes. Benzeo o padre a Capella, e tomou conta da casa, onde foi vesitado e sustentado em quanto ahi esteve, por christãos e selvagens. Depois que baptisou os que para isso julgou aptos, foi vêr algumas aldeias da provincia, e o seo principal soberano, e por toda a parte foi muito bem acolhido, manifestando todos em geral o desejo de serem christãos, e de terem padres em suas aldeias. Alcançou o bom homem Martinho Francisco nome honroso, dado pelos habitantes de _Tapuitapéra_ em recompensa de seos trabalhos e fadigas para fazel-os christãos por ter sido entre elles o primeiro christão, e por saberem quanto nós o estimavamos. Chamaram-no _Pai-miry_, «Padre pequeno ou o vigario dos Padres,» e na verdade bem merecia tal nome, porque desde que se fez christão nunca mais se descobrio n’elle vestigios do antigo homem, ou os máos costumes dos selvagens. Era grave, modesto, pouco fallador e raras vezes ria-se, e nada fazia que parecesse ser contrario ao christianismo. Era este o regimen de vida que observava, e como mais velho fazia observar aos outros christãos: 1.º Pela manhã e á tarde reuniam-se todos na Capella: levantava-se um d’elles, ajoelhavam-se outros, e depois dizia um em seo idioma «_em nome do Pai, do Filho, e do Espirito Santo_» e fazia o signal da Cruz, na testa, na bocca e nos peitos, no que era pelos outros imitado: punha depois as mãos, fixava a vista no altar, e recitava pausada e distinctamente a oração dominical, o symbolo dos Apostolos, os mandamentos de Deos e da Igreja, o que findo, si tinha alguma advertencia a fazer aproveitava a occasião, sinão, recolhia-se cada um á sua casa. 2.º Viviam em commum quando se achavam juntos, e para isso traziam o resultado de suas pescarias e caçadas para serem igualmente dividido entre elles, e antes de comerem, o mais velho recitava em sua linguagem o _Benedicite_, fazendo o signal da Cruz sobre si, e sobre as iguarias: tiravam todos o chapeo, faziam em si o mesmo signal e ninguem tocava na comida antes de abençoada. Em quanto comiam não contavam coisas más ou que excitasse o riso, como fazem os Tupinambás; porem o mais velho dizia alguma coisa á respeito de Deos e da Religião. 3.º Nunca iam aos _cauins_ e reuniões, conforme costumavam os _Tupinambás_: era um dos pontos principaes, que Martinho Francisco gravava no coração dos convertidos, isto é, que os _cauins_ eram inventados por _Jeropary_ para semeiar a discordia entre elles, e fazer com que praticassem toda a especie de males os que os frequentassem, sendo impossivel amar a Deos quem gostasse de _cauins_, porque, dizia elle, quando descubro, que alguns dos meos similhantes se retiram das _cauinagens_, agouro que bem depressa serão christãos e vou procural-os; mas não tenho animo para fazer o mesmo aos que frequentam taes orgias. O que elle dizia era verdade por ser horrivel espectaculo vêr essas gentes em reuniões, parecendo antes congresso nocturno de feiticeiros do que ajuntamento de homens. Achei-me apenas uma só vez n’estas reuniões para d’ellas poder fallar, e nunca mais lá tornei. Via aqui uns deitados em suas redes vomitando com muita força, outro caminhando ou marchando em diversos sentidos com o juiso perdido pelo vinho, ali outros gritando, fazendo mil tregeitos, estes dançando ao som do _maracá_, aquelles bebendo com muito boa vontade, aquell’outros fumando para mais se embriagarem, e o que ainda é peior, é estarem mulheres e moças ahi misturadas parecendo bem difficil a presença de Bacho sem Venus. Por minha vontade os francezes deviam fazer o que fizeram os portuguezes, isto é, prohibir todas estas _cauinagens_: os portuguezes, depois que habitaram algum tempo na India, reconheceram, que um dos maiores embaraços para a propagação do christianismo eram essas reuniões diabolicas, de que procedem todas as discordias e desgraças entre os selvagens. 4.º Vestem-se estes novos christãos o melhor que podem, caminham todos juntos, não trazem flechas e nem arcos, excepto quando vão á caça ou a pesca, contentando-se em trazer um cacete de uma especie de ebano, negro ou vermelho, com que se distinguem facilmente dos outros. Quando vão a outras aldeias, si encontram algum christão, recolhem-se á casa d’elle, contentam-se com o que tem e vivem sóbriamente como tanto convem a um christão. CAPITULO V De um Indio, condemnado á morte, que pedio o baptismo antes de morrer. Não se acreditaria, si a experiencia não o tivesse confirmado, que vendo-se simplesmente por fora a concha de uma ostra marinha coberta e suja de lama e lodo, que ella em si ja tivesse uma perola preciosa digna de ser collocada no gabinete dos principes. Quem poderá crer, que um selvagem iniquo, impuro, e immundo, como não posso dizer, embora creia que o proprio diabo, author de taes traças, se envergonhe d’isto, não tenha inimisade e soberba contra o soberano, que o tira d’isto? Quem poderá, digo eu, crer, que tal individuo, por determinação da divina Providencia, fosse escolhido para o reino do Ceo, e tirado d’esses abysmos infernaes, para receber (na hora da morte, bem merecidas por suas torpezas) o sagrado baptismo, que o lava de todas as máculas, e lhe proporciona facil e franca entrada no Paraiso? Um pobre indio, bruto, mais cavallo do que homem, fugio para o matto por ouvir dizer, que os francezes o procuravam e aos seos similhantes para matal-os e purificar a terra de suas maldades por meio da santidade do Evangelho, da candura, da puresa, e da claresa da Religião Catholica Apostolica Romana. Apenas foi apanhado amarraram-no, e trouxeram-no com segurança ao Forte de Sam Luiz, onde deitaram-lhe ferros aos pés: vigiaram-no bem até que chegassem os principaes de outras aldeias para assistirem ao seo processo, e proferirem sua sentença, como fizeram a final. Não esperou o prisioneiro pelo principio do processo, e elle mesmo sentenciou-se, porque diante de todos disse, «vou morrer, e bem o mereço, porem desejo que igual fim tenham os meos cumplices.» Terminado o processo e proferida a sentença, cuidou-se em sua alma dizendo-se-lhe, que si elle recebesse o baptismo, apesar de sua má vida passada, iria direito para o Ceo apenas sua alma se desprendesse do corpo. Acreditou nossas palavras, e pedio o baptismo: para tal fim veio o Sr. de Pezieux procurar-me em nossa casa de S. Francisco em Maranhão, e conversando si devia ser eu quem o baptisasse, resolvemos negativamente pelas seguintes razões: Pensavam os selvagens que nós outros padres eram pessoas misericordiosas e compassivas, que expontaneamente empregavamos nossos esforços perante os grandes para alcançar a vida dos condemnados: que os grandes nos estimavam, e nada nos negavam, e que, alem d’isto, nós prégavamos, que Deos não queria a morte e sim a vida do peccador, e que por isso tinhamos vindo aqui para dar essa vida de forma que, si eu o baptisasse publicamente, antes d’elle morrer, teria satisfeito muitos caprichos d’estes espiritos debeis e incapazes a respeito da opinião, que formavam de nós e que seria muito prejudicial a nossas intenções dando alem d’isso causa a varias murmurações dos selvagens, que diziam—«si os padres gostam da vida, porque deixam este christão ir morrer? Si amam tanto os christãos porque não amam este? Si os grandes nada lhes negam, porque não pedem a vida d’este?» Por tudo isto, e por outras razões, que omitto, decidimos ser conveniente e necessario, que eu não o baptisasse. Roguei pois ao dito senhor que, depois de instruil-o pelos interpretes, o baptisasse antes de ir ao supplicio, sem as ceremonias da igreja o que se prestou e cumprio. Recebeo, com tranquilidade e sem tristeza, na presença dos principaes selvagens o baptismo, depois do que um dos Principaes, chamado _Karuatapiran_ «Cardo vermelho,» de quem ainda fallarei, lhe disse estas palavras: «Tens agora occasião de estares consolado e de não te affligires, pois presentemente és filho de Deos pelo baptismo, que recebeste da mão de _Tatu-uaçu_ (nome do Sr. de Pezieux em sua lingua) com permissão dos Padres. Morres por teos crimes, approvamos tua morte, e eu mesmo quero pôr o fogo na peça para que saibam e vejam os francezes, que detestamos tuas maldades; mas repara na bondade de Deos e dos Padres para comtigo, expellindo Jeropary para longe de ti por meio do baptismo de maneira que apenas tua alma sahir do corpo vae direita para o Ceo vêr _Tupan_ e viver com os _Caraibas_, que o cercam: quando _Tupan_ mandar alguem tomar teo corpo, si quizeres ter no Ceo os cabellos compridos e o corpo de mulher antes do que o de um homem, pede a _Tupan_, que te dê o corpo de mulher e resuscitarás mulher, e lá no Ceo ficarás ao lado das mulheres e não dos homens.» Desculpareis este pobre selvagem, não christão e nem cathecumeno, fallando da Resurreição. Elle nos ouvio ensinar que n’um dia resuscitariam todos os homens, regressando cada alma do lugar em que estava para occupar o seo corpo, acrescentando o que pensou ser indifferente á Resurreição, isto é, que uma alma recebe um corpo de homem ou de mulher, no que se enganou não se deixando em pé tal ideia falsa, pois elle e o paciente foram instruidos da verdade: julguei acertado referir aqui simplesmente o que se passou para que o leitor reconheça sempre quanto sou fiel em minhas descripções, como ja disse, e provarei sempre nos discursos, que ainda hei de transcrever. Este infeliz condemnado recebeo as consolações de muito boa vontade, e antes de caminhar para o supplicio disse aos que o acompanhavam: «vou morrer, não mais os verei, não tenho mais medo de _Jeropary_ pois sou filho de Deos, não tenho que prover-me de fogo, de farinha, de agoa, e nem de ferramenta alguma para viajar alem das montanhas, onde cuidaes que estão dançando vossos paes. Dae-me porem um pouco de _Petum_ para que eu morra alegremente, com voz e sem medo.» Deram-lhe o que elle pedio, á similhança dos que vão ser justiçados, aos quaes tambem se dá pão e vinho, costume não d’agora, e sim desde a mais remota antiguidade, pois então se offerecia aos criminosos vinho com myrrha e opio para provocar o somno dos pacientes. Feito isto, levaram-no para junto da peça montada na muralha do Forte de S. Luiz, junto ao mar, amarraram-no pela cintura á bocca da peça, e o _Cardo vermelho_ lançou fogo á escorva, em presença de todos os Principaes, dos selvagens e dos francezes, e immediatamente a bala dividio o corpo em duas porções, cahindo uma ao pé da muralha, e outra no mar, onde nunca mais foi encontrada. Quanto a sua alma, é de crer que os anjos a levassem ao Ceo, pois morreo logo depois de haver recebido as agoas do baptismo, certesa infallivel da salvação d’aquelles, a quem Deos concedeo tal graça, não pequena e nem commum, porem tão rara como o arrependimento do bom ladrão na Cruz, que tendo vivido sempre desregradamente até chegar áquelle logar, recebeo comtudo esta promessa de Jesus Christo—_Hodie mecum eris in Paradiso_, «hoje estarás commigo no Paraiso»: outro tanto podemos dizer d’esse infeliz e desgraçado indio, que nos deo tão bella occasião d’admirar e de adorar os juizos de Deos. _Karuatapiran_, o algoz, com gestos e palavras mostrava grande contentamento e alegria perante os francezes por haver recebido tal honra, que apreciava muito mais do que as que sua Nação cheia de abusos dá aos que publicamente matam os prisioneiros, sendo essas consideradas as maiores existentes entre elles, e um favor não pequeno aos mancebos, quando escolhidos para tal fim, pois é uma especie de accesso de grandeza para ser um dia Principal. Por tudo isto o grande _Karuatapiran_ exaltava-se d’este seo feito e d’elle se servia para se fazer timido dizendo por todas as aldeias por onde andava, o que tinha feito, asseverando ser irmão dos francezes, seo defensor e exterminador dos maus e dos rebeldes. CAPITULO VI Formulario dos discursos, que faziamos aos selvagens, quando nos vinham vêr, para chamal-os ao conhecimento de Deos e á obediencia de nosso Rei. O meio pelo qual outr’ora os Athenienses chamavam os povos ao conhecimento da Philosophia, e á obediencia de uma Republica, era representado pelo simulacro do seo _Palladium_, que fingiam ser trazido do Ceo, e por elles collocado no lugar mais alto de sua cidade. Tal era o idolo de Pallas, armado dos pés até a cabeça, correndo de sua bocca raios de mel, que cahiam sobre seos ouvintes e expectadores, produzindo-lhes doce somno. Ensinaram os Druidas a mesma coisa aos Gaulezes levantando a estatua de Hercules no frontespicio de seos Templos, tendo na sua cabeça a cabeça de um leão, e nas espaduas a clava de suas victorias, sahindo de sua bocca uma especie de hera, porem de oiro, que prendia pelas orelhas homens e mulheres, moços e velhos afim de attrahil-os a si. Com isto queriam os Athenienses e os Gaulezes dizer, que os homens são attrahidos pela doçura e pela razão á obediencia das leis divinas e humanas, na qual se conservam por meio das armas, sustentadas pelos soberanos para a conservação dos seos vassallos. O primeiro d’estes dois fins nos pertencia desde que Sua Magestade e os nossos Padres nos remetteram para cá á fim de chamarmos ao conhecimento de Deos estas pobres almas selvagens, que, antes de começarmos a cathequisal-as, reconhecemol-as anciosas por doçura, e por isso combinamos pautar por ella nossas palavras e acções, com que sempre nos démos muito bem. Já tinha lido no cantico primeiro, que entre os ornamentos dados por Jesus Christo á sua Igreja, a mansidão e a clemencia para com os peccadores e infieis era um dos primeiros deveres conforme estas palavras: _Murenulas aureas faciemus tibi vermiculatus argento_ «nós te faremos collares de oiro, torcidos como pequenas lampreias, esmaltadas de fios de prata em forma de vermesinho para mais fazer realçar a bellesa do oiro.» Dizem os Septenta—_Simulachra auri faciemus tibi, cum vermiculacionibus argenti_; «nós te faremos pequenas estatuas de oiro fino, esmaltadas de fio de prata do feitio de vermesinhos.» Accrescenta Rabbi Jonathas que taes eram as taboas de Saphira, em que estavam gravados os mandamentos da lei de Deos porque a luz da gloria do Doador dava á saphyra diaphana a côr de oiro, e a escripta gravada em linha pelo dedo de Deos formava o esmalte em pequenas lampreias ou vermes da terra. Quem não diria que ha intelligencia entre estas ceremonias divinas e as dos Athenienses e Gaulezes, visto significar-nos umas e outras, por meio de estatuas e cadeias de oiro, a força e o poder da doçura para subjugar as almas mais barbaras á obediencia das leis de Deos. Não é sem rasão, que Jesus Christo ornou os collares de oiro de sua esposa com figuras de vermes da terra, e de pequenas lampreias, visto que elle mesmo se fez verme para chamar a si os vermes, e misturou-se com a terra para se juntar com os vermes, que ahi achasse. Assim como as lampreias não repellem as serpentes por que podem causar medo com o veneno, que estas vomitarem, assim tambem Jesus Christo não despresa os homens, pobres serpentes, comtanto que estes se despojem do seo veneno. Si o Mestre fez isto, o que devem fazer os obscuros discipulos de Sua Magestade? Quem se offerece a servir a Deos na conversão dos selvagens deve modelar suas palavras e acções pela doçura, de que sempre usou Jesus Christo na terra. Eram estes os artigos de nossas conferencias com os selvagens. 1. Procuravamos convencel-os, que eramos seos amigos, e amigos fieis, mais que seos paes, mães, e outros parentes, dizendo-lhes estas e outras palavras _pera-uçu_, _pare koroyco_ «somos vossos amigos, vossos intimos.» Com taes expressões alegraram-se muito, e cheios de confiança vinham conversar comnosco a ponto de tornarem-se importunos, não nos permittindo descanço algum, e só nos olhando e observando até os nossos menores gestos. Vou dar-vos alguns exemplos. Um dia de paschoa, depois do serviço, ao qual assistiram muitos selvagens, tanto de _Tapuitapera_ como da _Ilha_, quiz recolher-me para meditar no sermão, que devia prégar depois do jantar, e para isto mandei fechar as portas de nossa casa para que ninguem entrasse durante esse pouco tempo até a hora da prédica, porem os selvagens impacientes, para entrarem, rodeiaram a casa duas ou tres vezes buscando uma abertura, e afinal quebraram algumas estacas e por ahi passaram. Mostrei-lhes má cara significando o meo descontentamento pelo que haviam feito, e lhes perguntei porque eram tão importunos? Responderam-me «porque tinhamos vontade de te vêr, e fallar comtigo livremente, na ausencia dos francezes, e para esse fim viemos de proposito». Á vista d’isto não tive outro remedio senão atural-os. Quando eu orava sosinho na nossa Capella, com as portas fechadas, rompiam o panno de Guiné, com que forramos a Igrejinha para vêr o que fazia eu ajoelhado defronte do Altar, e diziam uns para os outros _ygneém Tupan_ «falla com Deos», e d’ahi não sahiam em quanto eu rezava. Para livrar-me d’estas importunações mandei construir uma cerca ao redor da nossa casa e Capella de S. Francisco, muito forte, e entremeiada com ramos de palmeira espinhosa, assim conhecida por ter espinhos maiores do que o comprimento de um dedo, e embora tudo isto achavam meios de entrar e de me procurarem. Ao escrever isto recorda-me o dito de Antalcide, escripto por Plutarcho no tratado dos _Apophtegmas Laconicos_, «quem quizer ganhar a amisade dos homens, deve ter na lingua um regato de mel, e nas mãos muitos fructos» isto é—palavras doces e serviços conforme ás palavras. Mais não podiamos fazer para com estes selvagens do que captarmos sua amisade por palavras doceis, e fazer-lhes conhecer a Deos e os sacramentos da Igreja, unicos fructos da Paixão de Jesus Christo. Ælian, no livro 14 de suas _Historias diversas_, disse, que «Epaminondas se admiraria muito se sahisse do seo palacio para misturar-se com o povo, e não adquirisse um novo amigo para juntal-o aos seos amigos.» Não nos seria necessario ir a 200 e nem a 300 legoas afim de conquistar novos amigos para Jesus Christo, porque viriam por si mesmos offerecer-se para isso. Gelius no livro 1º cap. 3º conta, que Pericles, um dos grandes do Areopago de Athenas, terminava a amisade dos homens junto aos altares dos Deoses, porem nunca fallou da amisade divina entre Deos e os homens, estabelecida e enraisada sobre os altares, porque pagão, como era, não podia comprehender a força e o vigor de tal amor, similhante ao do proprio centro, onde cada creatura tem o destino de viver e descançar. O poderoso rei Darius recebeu em presente de um seu amigo uma bella romã, que partio ao meio, e admirando a bellesa e o numero dos seos grãosinhos disse aos que com elle estavam—por minha vontade eu teria tantos Zopiros, (nome do seo mais intimo amigo) quanto ha de grãos n’esta romã. Não foi pequena graça, e nem pequeno privilegio, que Deos fez á Ordem Seraphica de São Francisco dando-lhe a faca da palavra para abrir o pomo ainda inteiro e fechado das terras de Maranhão afim de apresentar a Jesus Christo milhões de almas, não só para com Elle se conciliarem, mas tambem para um dia lhe serem fieis esposas. Deos inspirou a Salomão, no liv. 4º dos Reis, cap. 29, fazer os capiteis das columnas com arame, semeiado de romãs, indicando assim a missão do Evangelho para com as nações infieis, servindo para agarrar os peixes fugitivos por meio de uma eloquencia docil, e as romãs para ligal-os e unil-os pelo amor de Jesus Christo ao resto dos fieis, não havendo nada mais forte para obter o accordo que o proprio amor. Eis a razão porque julguei ser absolutamente necessario fazer conhecer a estes selvagens, que nós os amavamos terna e infinitamente, que lhes offereciamos nossas pessoas e bens, dizendo-lhes _ore-mae pémareamo_ «tudo o que temos é vosso.» Por isto quando tinhamos muitos peixes, o que acontecia ordinariamente, lhes davamos todos, especialmente aos _Tabajares_, recem-chegados á _Ilha_, ainda necessitados de tudo, por não terem feito roças, especialmente os nossos visinhos. 2.º Nós lhes expunhamos os fructos e os emolumentos, que deviam esperar de nossa amisade, isto é, reforma em sua vida, conhecimento do verdadeiro Deos, defesa do nosso rei contra seos inimigos, o qual não deixaria de enviar-lhes homens e armas conforme necessitassem. _Pe moé Koroiut, pere Koramrecé: Tupan mombe-ouane koroiut peam: yande mogna gare, rhé, opap katu, ahé maé mognan. Yangaturan: yandé renonde vuac ueriko: ahé gneem rupi yané rekormé. Pepusurom peamo tareumbare soiy yauaeté oreru vichaue: Pepusurum okat araia oboure uaia pepusurô anuam_; quer isto dizer—«Nós vos ensinamos a viver mais para a vossa felicidade: queremos ensinar-vos o verdadeiro Deos, creador do universo, infinitamente bom, e que nos prometteo o Ceo si n’esta vida fizermos o que elle diz. Viemos defender-vos de vossos inimigos. Nosso rei, que é forte e poderoso, vos dará sempre soccorro de armas e de homens.» Prestavam muita attenção ao que diziamos, e nos respondiam que os francezes sempre os haviam auxiliado; que tinham vindo agora por ordem do rei para tiral-os das cadeias de _Jeropary_, que não duvidavam aprender grandes coisas á respeito de Deos, especialmente quando ja soubessemos sua lingua, porque os interpretes, diziam elles, não fallam como vós á Deos. Não nos podem dizer outra coisa, porem se fallasseis comnosco vós nos dirieis o que Deos vos disser. Nossos filhos serão mais felizes do que nós, porque comvosco aprenderão a lingua francesa, como nos promettestes, e assim terão mais conhecimento de Deos do que nós, que ja somos velhos. Nós o que temos feito é correr e andar errantes pelos bosques adiante dos _Peros_[97] tendo por alimento apenas raizes de arvores. Nossos filhos estarão seguros contra seos inimigos, os francezes se unirão á nossas filhas, e nossos filhos ás filhas dos francezes, e assim seremos parentes: ficareis comnosco, em nossas aldeias, e sereis nossos padres _Tupan_ os amará, e _Jeropary_ nada poderá contra elles. Haverá abundancia de viveres e nunca se sentirá falta de mercadorias francezas. Oh! quanto serão felizes! porem nós não veremos estas coisas. O imperador Vespasiano e tambem Domiciano, quando entravam n’um paiz novo para ahi estabelecer Colonias Romanas, tinham por costume mandar fundir em bronze a Fé e os seos fructos, que publicamente promettiam a todos, representando uma dama, que estendia a mão direita, symbolo da Fé, trazendo na esquerda a cornucopia da abundancia, cheia de toda a especie de fructos, e tinham este mesmo carimbo o dinheiro, que ahi faziam correr assegurando por esta fórma a sua fidelidade para com estes povos, de que resultaria muitos bens e commodidades á sua nação. Tomae, se quizerdes, por esta dama a Santa Igreja entrando pela primeira vez n’estas terras barbaras, estendendo sua mão direita para prometter aos seos habitantes a fé de Jesus Christo, seo esposo, e a fidelidade de seos sectarios, que não se poupam a trabalhos, e arriscam até a propria vida para ajudal-a na salvação d’ellas. Os fructos, que ella lhes offerecia, eram os sacramentos, o conhecimento de Deos e das coisas divinas. Tomae tambem, si quizerdes, por esta mesma Dama, a França plantando pela primeira vez seos lyrios n’estas regiões e paizes do Brazil, dando com a mão direita a segurança de defender e conservar estes selvagens obedientes á sua corôa, e com a esquerda os fructos provenientes do commercio entre ella e o Brazil. CAPITULO VII Formulario da doutrina christã, que aprendiam e recitavam de cór, antes de serem baptisados. No Levitico 1.º, e em outro lugar lemos, que antes da victima escolhida ser levada ao altar devia aquelle, que a apresentava, pôr suas mãos na cabeça entre os cornos. Accrescentam outros, que esses cornos eram enfeitados de flores de junco marinho, (cujos espinhos, e não flores, foram postos na cabeça de Jesus Christo, offerecido em holocausto sobre a Cruz) e então os sacerdotes agarravam a victima, e a lavavam n’um grande vaso de bronze chamado _mar_. Representa isto os novos cathecumenos, desejosos de serem lavados pelo baptismo, e offerecidos diante do altar do Redemptor. A primeira coisa, que se exige d’estes cathecumenos, é que ponham as mãos sobre a cabeça: as mãos são os hyerogliphos das obras, e a cabeça a séde do espirito e do entendimento. A primeira coisa portanto necessaria á estes noviços da fé christã é a operação do entendimento; quero com esta expressão dizer, que elles saibam e entendam o que pretendem crêr e prometter, e torcer os cornos da curiosidade e o proprio juizo dos orgulhosos possuidores do Junco marinho, corôa dos deoses, por meio da obediencia á Revelação divina. É o que pediamos aos adultos antes de conferir-lhes o baptismo, e nenhum o conseguia sem primeiro conhecer bem isto, por acto obrigatorio, a que deveriam tambem assistir os christãos, ignorantes de sua fé e profissão. DOUTRINA CHRISTÃ _na lingua dos Tupinambás[98] e em francez, e, em primeiro lugar a oração dominical_ _Ore-ruuc vuac peté cuare,_ Padre nosso, que estás no Ceo, _y moe-tepoire derere-toico_ sanctificado seja teo nome, _to-ure de reigne_ venha nós o teo reino, _teié-mognan deremimotare yboipé vaacpe iémognan eaue,_ seja feita a tua vontade assim na terra como no Ceo. _oreremiu-areduare eimé iury oreue,_ dae-nos hoje o pão quotidiano, _de-eiuru oré yangaypaue reçe,_ perdôa nossas offensas, _ore recome-moçaré supè ore-ieuron eaue_ como nós perdoamos aos que nos offendem _moar-ocar humé yepé tecomemo-pupé_ não nos deixeis cahir em tentação _oré pessuron peyepé mae ayue suy._ mas livrae-nos do mal. Amen Jesus. SAUDAÇÃO ANGELICA. _Ave Maria gratia, resse tonussen väé,_ Eu te saudo Maria, de graça cheia, _Deyron yandé yaré-reco_ o Senhor é comtigo, _ymonbeu katu poïre aue edereico kugnan suy_ benta és tú entre as mulheres. _ymonbeau katu poïre aue demeinboïre Jesus._ bento é o fructo do teo ventre, Jesus. ORAÇÃO A VIRGEM. _Santa Maria Tupan seu_ Santa Maria mãe de Deos _hé Tupan mongueta ore yangaypaue vaë ressé_ rogae a Deos por nós peccadores _cohu yran ore-requi ore-rumeué_ agora, e na hora de nossa morte. Amen Jesus. O SYMBOLO DOS APOSTOLOS. _Arobiar Tupan_ Creio em Deos _tuue opap katu maeté tiruan_ padre todo poderoso _mognangare vuac_ creador do Ceo _mognangare ybuy_ creador da terra _Jesus-Christo tayre oyepe vac_ em Jesus Christo, seo filho unico _ahe Sainct Esprit, demognan pitan amo_ que foi concebido do Espirito Santo _ahé poïre oart Sainct Marie, suy_ e nasceo da Virgem Maria _Ponce Pilate muruuichaue amoseico sericomemo poïre amo_ padeceo sob poder de Poncio Pilatos, presidente _yiuca poire amo yuira_ morreo sobre o madeiro da Cruz _ioasaue ressé_ morreo _ymoiar ypoire ytemim buire amo_ foi amortalhado e enterrado no sepulchro _ouue ieuue euue apeterpé_ desceo aos infernos _ahé sui turiare mossa poire ressé uue ombueue sui. Secobé yereie-buire_ ao terceiro dia resurgio dos mortos _oié upire vuacpé_ subio ao Ceo _Tupan tuue opap-katu maeté tiruan mognangare katu aue cotu seua_ está assentado á direita de Deos, seo Pae Omnipotente _ahé sui turiné ycobé vãe omano vãe poire paué recomognan_ de lá virá a julgar vivos e mortos. _Arobiar Saincte eglise catholique_ Creio na Santa Igreja Catholica, _arobiar Saincte tecokatu demosaoc morupé_ creio na communhão dos Santos _arobiar teco-engay paue ressé morupé Tupan deuron_ creio na remissão dos peccados por Deos _arobiar asé-recobé iebure_ creio na resurreição da carne _arobiar teiubé opauaaerem-eim-rerecoe nuame_ creio na vida eterna. Amen Jesus. OS DEZ MANDAMENTOS. _1.º Ymoeté yepé Tupan._ I Honra um só Deos _2.º Aytè ereté netieume poire renoy teigné._ II Não jurarás em vão o nome de teo Deos. _3.º Ymoeté dimanche are maratecuare eum aue._ III Honra e sanctifica o domingo, dia de repouso. _4.º Ymoeté deruue desseu eaue._ IV Honra teo pae e tua mãe. _5.º Eparapiti humé._ V Tu não matarás. _6.º Eporopotare humé._ VI Tu guardarás castidade. _7.º Emonmaron humé._ VII Tu não furtarás. _8.º Teremoen humé aua ressé._ VIII Tu não levantarás falso testemunho contra teo proximo. _9.º Yemonmotare humé aua remerico ressé._ IX Tu não conhecerás a mulher de outrem. _10. Yemonmotare humé aua mae ressé._ X Tu não cubiçarás coisas alheias. RESUMO DOS MANDAMENTOS DE DEOS. _1.º Opap katu maeté tiruan sosay asé Tupan rausuué._ Sobre todas as cousas amarás a Deos. _2.º Oie ausuue eaué asé uua pichare raussuue._ Ama teo proximo como a ti mesmo. OS MANDAMENTOS DA SANTA IGREJA. _1.º Arve maratecuare ehumé messe renduue._ Ouve missa nos dias de festa. _2.º Sei hu iauion yemonbeu._ Todos os annos ao menos uma vez confessa teos peccados. _3.º Tupan rare pacques iauion._ Teo Deos pela paschoa commungarás. _4.º Iecuacuue iauion erecucuue._ Tu guardarás jejuns pela quaresma e vigilias. _5.º Aiamion asé mae moiaoc._ Pagarás os dizimos. OS SETE SACRAMENTOS. _1.º Iemongaraiue._ Baptismo. _2.º Asé seurap aua reu assu yendu karaiue non._ Receberás na testa o santo oleo pela mão do Bispo. _3.º Asé-reon yanondé Tupan rare._ Antes de morrer receberás o corpo de Deos. _5.º Oyekoacuue, oyemonbeu._ Penitencia, confissão. _6.º Oyemo-auare._ Ordem. _7.º Mendar._ Casamento. CAPITULO VIII Qual a crença natural dos selvagens a respeito de Deos, dos espiritos e da alma. O Psalmista Rei David, no Psalmo 101, que é uma supplica por elle composta para os pobres e infelizes, cheios de anciedade e oppressão, particularmente os infieis, diz—_Placuerunt servis tuis lapides ejus, et terra ejus miserebuntur._ «As pedras de Syão agradarão a teos servos; e por esta causa serão misericordiosas para com a terra.» S. Jeronymo transforma estas palavras d’esta forma—_Quia placitos fecerunt servi tui lapides ejus, et pulverem ejus miserabilem_. «Teos servos fizeram suas pedras agradaveis á tua Magestade, até chegar ao pó sem consideração.» Apliquemos estas palavras ao nosso objecto, pondo de parte todos os outros mysterios, e digamos que _Placuerunt servis tuis lapides ejus_. Em nossa primeira missão achamos estes pobres selvagens e barbaros como pedras proprias para construir e edificar a Santa Igreja em paizes desertos, e com o nosso ministerio demos a misericordia divina á algum punhado de terra e areia. Baptisamos muitos meninos, moribundos e adultos, que são na verdade tres grãos de areia, á similhança da extenção e profundidade das areias do mar, isto é, em comparação da quantidade e multidão das nações immensas pelo seo numero, na visinhança do Maranhão. Digamos depois, com São Jeronymo, _quia placitos fecerunt servi tui lapides ejus, et pulverem ejus miserabilem_, que temos feito vêr a toda a Christandade, e aos seos monarchas, espirituaes ou temporaes, em desencargo de nossa consciencia, que á Deos agrada o despertar estes barbaros do profundo somno de uma crença má, ou si quizerdes, que á Deos agrada fazer arder e queimar a pequena faisca do fogo da luz natural, que sob as causas de mil superstições é sempre guardada entre estas nações desde o naufragio universal do diluvio. Esta faisca, occulta sob as cinsas, entre estes selvagens, é a crença natural, que sempre tiveram de Deos, dos espiritos e da immortalidade da alma. Quanto á crença de Deos, é impossivel, naturalmente fallando, que haja no Mundo uma Nação tão rude, estupida e brutal que não reconheça universalmente uma Magestade Soberana, porque, como diz Lactancio Firmiano, em suas Instituições divinas, livro 1.º, cap. 2.º—_Nemo est enim tam rudis, tam feris moribus, qui non oculos suos in cœlis tollens etc_. Não ha homem tão rude, nem tão brutal, que levantando os olhos para o Ceo, ainda que não possa comprehender que haja Deos, qual seja a sua providencia, embora não conheça da grandesa e extenção dos Ceos, do perpetuo movimento d’elles, da disposição, firmesa, utilidade e bellesa d’estas abobadas azuladas, que não reconheça haver um Soberano que tudo isto dirige e com harmonia. Boecio, livr. 4º, da _Consolação dos sabios_. Prosa 6.ª _Omnium generatio rerum_ etc. «que a geração continua dos mistos, a diversidade, e ordem das formas, que vestem a materia primitiva, convence natural e necessariamente, que ha um primeiro director no movimento uniforme de tantas coisas de formas contrarias no sentido de aperfeiçoar este mundo universal.» Seneca, na Epistola 92 á seo amigo Lucilio—_Quis dubitare potest mi Lucilli, quin Deorum immortalium munus sit quod vivimus?_ «Quem é meu amigo Lucilio, que duvida não ser sua vida um dom e beneficio dos Deoses immortaes?» Aristoteles, Livro II _dos animaes_, depois que contou muito bem a perfeição d’elles concluio _debemus inspicere formas et delectari in Artifice qui fecit eas_: «devemos contemplar as formas das creaturas, não para olhal-as só e simplesmente, e sim para d’ellas passar ao que as fez afim de nos regosijarmos.» É facto averiguado sempre terem tido estes selvagens conhecimento de Deos, porem não da Essencia, Unidade, e Trindade, materia inteiramente dependente de fé, embora Deos tenha deixado na naturesa alguns vestigios, pelos quaes possam os homens formar algumas conjecturas. Aristoteles, livro 4º, do _Ceo e da terra_, depois de ter pensado muito nas perfeições d’este mundo, disse _Nihil est perfectum nisi Trinitas_. «Somente a Trindade é perfeita.» Estes selvagens sempre chamaram a Deos—_Tupan_, nome que dão ao _trovão_, a maneira do que se pratica entre os homens, isto é, terem as obras primas o nome do autor: Note-se porem que este nome no singular não se applica aos relampagos e trovões, que rebentam e illuminam todas as partes, por cima da cabeça dos selvagens, aterrando-os, porque sabem e reconhecem, que elles são formados pela poderosa mão d’Aquelle, que habita nos Ceos. Por intermedio do interprete informei-me dos velhos do paiz si elles acreditavam, que este _Tupan_, autor do trovão, era homem como elle? Responderam-me que não, porque si fosse um homem como nós, seria um grande senhor, e como poderia elle correr tão depressa, do Oriente para o Occidente, quando troveja ao mesmo tempo sobre nós, e nas quatro partes do mundo, tanto na França, como sobre nós? Demais, si fosse homem, era necessario, que outro homem o fizesse, porque todo o homem procede de outro homem. Ainda mais: _Jeropary_ é o creado de Deos, e nós não o vemos, ao passo que todo o homem se vê, e por isso não pensamos, que _Tupan_ seja um homem. Mas, repliquei eu, o que pensaes que elle seja? Não sabemos, responderam, porem pensamos, que existe em toda a parte, e que fez tudo quanto existe. Nossos feiticeiros ainda não fallaram com elle, pois apenas fallam com os companheiros de _Jeropary_. Eis a crença de Deos, sempre pela naturesa impressa nos espiritos dos selvagens, que com tudo não o reconheciam por meio de preces e de supplicios. Acreditavam naturalmente nos espiritos bons e maus. Chamam os bons espiritos ou anjos _Apoiaueué_, e os maos ou diabos _Uaiupia_. Vou contar-vos o que pude colher de suas conversas por diversas vezes. Pensam que os anjos lhes trazem chuva em tempo proprio, que não fazem mal ás suas roças, que não os castigam e nem os atormentam, que sobem ao Ceo para contar á Deos o que se passa aqui na terra, que não causam medo nem á noite e nem nos bosques, que acompanham e protegem os francezes. Pensam, que os diabos estão sob o dominio de _Jeropary_, que era creado de Deos, e que por suas maldades Deos o despresou, não querendo mais vêl-o e nem aos seos, pelo que aborrecia os homens e nada valia: que os diabos impedem as vindas das chuvas em tempo proprio, que os trazem em guerra com seos inimigos, que os maltrata, e lhes faz medo, habitando ordinariamente em aldeias abandonadas, especialmente em logares onde tem sido sepultados os corpos de seos parentes. Ouvi tambem dizer a alguns indios, que indo elles apanhar cajus em algumas aldeias abandonadas, sahio-lhe ao encontro _Jeropary_ gritando com voz medonha, e chegou até o ponto de espancar muito alguns dos seos. Dizem tambem, que _Jeropary_ e os seos tem certos animaes, que nunca se vê, que só andam a noite, soltando gritos horriveis, que abala todo o interior (o que ouvi infinitas vezes) com os quaes convivem, e por isso os chamam _Soo-Jeropary_ «animal de Jeropary», e creem que estes animaes servem aos diabos ora de homens ora de mulheres, e por isso nós o chamamos _Succubes_ e _Incubes_, e os selvagens _Kugnan Jeropary_ «a mulher do diabo» _Aua Jeropary_ «o homem do diabo.» Ha tambem certos passaros noturnos, que não cantam, mas que tem um piado queixoso, enfadonho, e triste, que vivem sempre escondidos, não sahindo dos bosques, chamados pelos indios _Uyra Jeropary_ «passaros do diabo,»[99] e dizem que os diabos com elles convivem, que quando põem é um ovo em cada lugar, e assim por diante, que são cobertos pelo diabo, e que só comem terra. Não exgotando minha curiosidade procurei indagar bem a verdade d’isto: muitas vezes estes animaes nocturnos vinham rodear nossa casa de Sam Francisco e soltar seos gritos medonhos, quando as noites eram sombrias e negras. Apromptei-me para com outros francezes investir estes passaros onde se achassem conforme pudessemos prevêr, porem nada pudemos conseguir por não vel-os, embora os ouvissemos gritar em distancia de mais de um quarto de legoa. Disseram-me alguns francezes, que eram uma especie de gatos bravos, o que não pode ser a vista do som, do sussurro e do volume do grito, que elle solta. Outros disseram ser o vagido de _vaccas bravas_, o que negam os selvagens dizendo ser vozes de uma especie de animaes parecidos com maçaricos, e maiores do que uma raposa. Quiz eu mesmo verificar o que eram estes passaros de _Jeropary_, e para isto fui caminhando de mansinho até onde meos ouvidos me levaram a pensar, que lá estavam, pelo piado melancolico d’elles. Calculado o lugar ahi fui no dia seguinte á tarde muito cedo occultar-me nos mattos, e d’esta vez não me enganei porque apenas anoiteceu aproximou-se este triste passaro de mim e distante apenas dois passos saltando sobre a areia, e soltou seo canto medonho, o que não pude aturar. Sahi logo do meo logar e fui onde elle estava e nada achei: sua configuração e tamanho era de uma coruja de França e as pennas pardas. Tudo o que referi não está longe do senso commum, porque lemos na Historia, e em diversos autores a união dos diabos com animaes feios e immundos, e foi elle que desde o principio do mundo tomou a forma de uma serpente cabelluda para enganar nossos primeiros paes. Creem na immortalidade da alma: quando no corpo chamam-na _An_, e quando deixa este para ir ao lugar, que lhe é destinado, _Anguere_. Creem que só as mulheres virtuosas tem alma immortal, segundo o que pude comprehender de varios discursos d’elles e de muitas perguntas que lhes fiz, pensando que estas mulheres virtuosas devem ser postas ao lado dos homens, visto terem todos almas immortaes depois da morte. Em quanto ás outras mulheres duvidam que ellas tenham alma. Pensam, e muito naturalmente, que as almas dos maus vão ter com _Jeropary_, que são ellas que os atormentam de concomitancia com o proprio diabo, e que vão residir nas antigas aldeias, onde são enterrados os corpos, que habitaram. Pensam, que as almas dos bons, vão para um lugar de repouso, onde dançam constantemente sem nada lhes faltar. Eis tudo quanto pude saber relativamente a estes tres pontos de sua crença natural de Deos, dos Espiritos e das Almas, por meio de cuidadosas indagações entre discursos communs, que ouvi por dois annos de muitissimos selvagens. CAPITULO IX Dos principaes meios usados pelo diabo para conter em suas cadeias por tão longo tempo estes selvagens. Adonibesec, um dos maiores tyrannos do mundo, venceo e subjugou setenta Reis, aos quaes mandou cortar os dedos das mãos e dos pés, e todas as vezes que queria comer, mandava buscal-os e pol-os debaixo da mesa como cães para roerem os ossos, e os boccados de pão, que lhes atirava, e era com isto unicamente que elles viviam, porque acabada a refeição do tyranno passavam elles outra vez para os grilhões. Este tyranno representava o diabo, cujo poder sempre exerceu nas Nações á elle sujeitas pela infidelidade, tendo-as sempre presas, não lhes consentindo outros viveres alem dos seos restos, cortando-lhes todos os meios de acção e de fuga, alterando ou extinguindo os signaes, que Deos naturalmente imprimio nos homens, pelos quaes podiam inclinar-se a Deos para d’elles ter piedade, que é o que o diabo mais teme, o que é facil de vêr-se em nossos selvagens por longo tempo sem conhecimento algum do Deos Omnipotente, presos em suas cadeias infernaes pelos abusos e corrupções, que entre elles lançou o diabo. Eis porque S. Paulo representava as artimanhas e tricas de Satanaz em suas... (Falta uma folha.) ... esta razão tinhamos nós occasião d’admirar a forma e a maneira de proceder dos Pagés ou Feiticeiros, que occupam entre os selvagens o lugar de Mediadores entre os espiritos e o resto do povo, e são os que hão adquirido maior autoridade por suas fraudes, subtilezas e abusos, com que tem subjugado esta gente mui fortemente sob o reinado do inimigo da salvação, como está escripto no _Proverbio 29_—_Princeps qui libenter audit verba mendacii, omnes ministros habet impios_ «o Principe, que prestar ouvidos á mentira, é servido por ministros impios e maus.» Pondo de parte a explicação litteraria d’esta passagem, nós a aplicamos ao nosso fim dizendo, que este Principe, que presta attenção á mentira, ou para melhor dizer, que é o Pae da mentira, é o diabo inimigo da verdade: seos officiaes abusam do povo por meio de invenções, subtilesas, e encantos provenientes da instigação dos demonios, como são os feiticeiros brazileiros, e com tal autoridade se conservam sem a menor contestação, embora conheçam os enganos, que reciprocamente empregam contra seos compatriotas. Estes feiticeiros não tem chefes, porem tornam-se taes, si os favorece a capacidade de seo espirito, de sorte que os que o possuem melhor, são considerados mais habeis. Começam muitos a aprender este officio, convidados pela honra e lucro, que d’elle colhem os mais espertos, porem poucos atingem á perfeição. Não encontrareis muitas aldeias, onde os principaes e os velhos não confessem saber alguma coisa d’elle. Os noviços d’essa arte estudam muito a merecer elogios, e d’elles dizer-se maravilhas e fazem alguma subtilesa diante de seos similhantes para obter fama. Depende seo adiantamento d’algum acaso, como por exemplo se predizem a chuva, e ella apparece, se sopram algum doente e elles recobram a saude, o que os faz muito estimados e respeitados como feiticeiros experientes. Por exemplo, sem comparação, si algum medico novo ou cirurgião cuidasse de um doente perdido, ou de alguma chaga pertinaz, e que apparecesse a saude, não tanto pela industria do medico, e sim pela boa naturesa coadjuvada por unguentos communs, não ha duvida que tal cura seria attribuida á sciencia e experiencia dos curadores, e se aproveitariam d’isto para fazer voar sua fama entre as boas cidades, e serem recebidos com muita distincção nas boas casas. O mesmo acontece no Brasil com estes novos feiticeiros, quando se restabelece o infermo depois dos seos sopros. Não receis que isto fique só na casa do doente, porque sae o feiticeirinho de aldeia em aldeia contando suas proesas, e triplicando-as. O diabo, espirito suberbo, não se communica indifferentemente a todos os feiticeiros; porem d’entre elles escolhem os mais bellos espiritos, e lhes infundem suas invenções e subtilesas. Julgae por isto. Nunca vereis os diabos fazerem grandes operações e communicações aos pequenos feiticeiros, e limitam-se apenas a dar-lhe malicia conforme o juiso e talento do seo espirito. Si pelo contrario encontram algum bello espirito, elles o instruem largamente de suas perversas e condemnaveis sciencias, que são de ordinario as nigromancias, judiarias e magicas. O mesmo acontece aos feiticeiros: achareis muitos pequenos, de que não se faz grande caso, e nem se tem muito medo, valendo-lhes pouco o officio: outros mais instruidos e mediocres, que occupam o lugar medio entre pequenos e grandes. Ordinariamente viajam por certas aldeias importunando os seos habitantes, cuidando de dansas e de outras coisas, que dependem do seo officio. Si algum seu collega apparece por ahi, elles não ficam contentes, mas quando é convidado algum de seos superiores soffrem-no com paciencia. Quanto mais progressos fazem nos abusos, mais graves se mostram: fallam pouco, buscam a solidão, evitam o mais que podem as companhias, com o que alcançam mais honra e respeito, são mais procurados depois dos Principaes, e estes lhes fallam com attenção ahi usada, e ninguem os maltrata. Para conservar taes honras edificam suas casas á parte, longe de visinhos. O demonio ardiloso ensina o que pratica a disciplina religiosa, isto é, o necessario para conservar o espirito de Deos, fazer sua alma capaz das suas visitas e consolações para o que necessario é amar a solidão e n’ella residir, evitando cuidadosamente o mais que é possivel a companhia dos homens, com o que não somente adquirireis favores espirituaes, mas tambem a honra e o respeito d’aquelles, que evitaes. A compleição dos homens é similhante a da honra e da sombra: si correis após ellas, ellas fugirão diante de vós, si as evitaes, ellas vos procurarão. Assim são os homens: sê-de com elles familiares, e sereis despresados; fugi d’elles, sereis respeitados. Por similhança este velho doutor da malicia ensina os seos principaes discipulos a evitar communicações, a fugir de tristezas e melancolias, a fugir de invenções e fantesias, a residir sós com suas familias com o fim de poder melhor imprimir em seos pensamentos os meios, pelos quaes quer conservar estes povos na ignorancia e superstição regosijando-se de vêr tantas nações presas em suas cadeias. Não é de hoje, e nem n’esta nação somente, que elle inverte os exercicios da verdadeira Religião, mas de todos os tempos e em todos os lugares, porque não pode ser autor, e sim falso imitador do verdadeiro bem. Assim como a serpente se occulta debaixo das folhas para picar o segador, assim tambem elle occulta seo veneno e sua falsa Religião sob apparencia somente de uma imitação das obras de Deos. Dizem Plinio e Solinus, que Cerasto, serpente mortifera, se cobre d’areia deixando apenas de fóra os cornos afim de enganar os passaros com a ideia de ser comida, e quando se approximam, ella sahe da embuscada e os apanha. O Genesis compara o diabo com esta serpente _Cerastes in semita_ «Ceraste no caminho.» Vemos isto em nossos selvagens, nutridos e entretidos com taes engodos, que eu não os acreditaria si os não visse, e si o leitor duvidar, peço-lhe que creia no que vou contar-lhe. São tão tolos estes pobres selvagens, que em relação aos seos feiticeiros, especialmente aos grandes, creem firmemente, que elles podem enviar-lhes molestias e fomes, e tirar-lhes tudo o que elles tem, e embora saibam os proprios feiticeiros, que elles todos são embusteiros, não julgam poder curar-se sem que passem por mãos de outros. Si adoece algum francez nas aldeias, seo Compadre e sua Comadre lhe pedem permissão para que os feiticeiros o visitem, o bafejem, e lhe toquem com as mãos. O que dirieis vós, si eu vos dissesse, que vindo visitar-me muitos selvagens, quando adoeci, me pediram muito affectuosamente licença para me trazerem seos feiticeiros afim de me bafejarem, e apalparem-me, sem o que, asseguravam-me, eu não ficaria bom? O grande _Thion_ adoecendo apenas chegou do _Mearim_ ao Fórte de S. Luiz, pensou, e por muito tempo acreditou ser isto devido a ameaça do Principal-feiticeiro da sua terra, que pretendia seduzir e impedir esses povos _Mearinenses_ de virem á Ilha, logrando vêr muitos com elle ficarem nas florestas do _Mearim_. Tinha ameaçado _Thion_ com a morte apenas aqui chegasse, o que não aconteceo, porque depois d’uma febre violenta recobrou sua saude: com tudo, emquanto esteve doente, pensou morrer, por maiores que fossem as nossas advertencias de que não devia prestar credito a taes feiticeiras. Si estes pequenos e mediocres feiticeiros gozam de autoridade entre os seos, muito mais aquelles, que se chamam propriamente _Pagy-uaçú_[100] «grandes feiticeiros», porque são como os Soberanos d’uma Provincia, muito temidos, chegando a tal poder por muitas subtilesas: de ordinario tem communicação tacita com o diabo. Por onde passam, seguem-nos os povos; são graves e por isso não se communicam facilmente com os seos: são muito bem acompanhados quando vão a qualquer parte, e tem muitas mulheres, não lhes faltam mercadorias, julgam-se felizes seos similhantes quando os presenteiam, e com uma feitiçaria tiram aos seos compatriotas o melhor que possuem em suas caixas. Não descobrem suas subtilezas diante dos selvagens, e pelo contrario zombam delles, e muitos me contaram os meios, que empregaram para isto, o que ainda direi em lugar proprio. _Japy-açú_ e o grande feiticeiro de _Tapuitapera_ tiveram entre si uma questão, de que resultou reciproca desconfiança. O grande feiticeiro mandou dizer-lhe, si elle já não se lembrava das molestias, que outr’ora lhe enviou, e de que pensou morrer a ponto de lhe pedir que as removesse, e si agora já não as temia? Estas palavras impressionaram _Japy-açú_, e julgou-se feliz de ter sua amisade. A questão foi por causa de uma mulher retida por força; porem merece ser contada esta historia por haver relação entre ella e o objecto de que tratamos. Adquirio o grande feiticeiro de _Tapuitapera_ em sua Provincia e circumvisinhança fama e autoridade de um perfeito Magico, que a seu bel-prazer distribuia molestias e mortes, curava e dava saude, e por isso alcançou em seo paiz o grau de Soberano Principal, e dispunha de todos á sua vontade. _Japy-açú_ mofava e zombava de tudo isto, o que sabido pelo outro o fez dizer, que em pouco tempo em si mesmo experimentaria si não tinha o poder de fazer bem ou mal a quem quizesse. Não fez _Japy-açú_ caso d’isto, porem veio a fortuna proteger ao seo contrario fazendo com que elle cahisse doente muito naturalmente; pensou ser sua molestia devida ao feiticeiro de _Tapuitapéra_, embora a existencia do mar entre uma e outra Provincia, e pela força de imaginação agravou-se sua molestia a ponto de o julgarem á morte. Todos os feiticeiros e feiticeirinhos da Ilha o visitaram, porem nenhum lhe deo saude e afinal escolheo as melhores fazendas que havia e humildemente mandou a esse feiticeiro seo antagonista, pedindo-lhe pelos mensageiros seos parentes, que desse ordens á molestia para deixal-o. O feiticeiro tomando as mercadorias lhe mandou não sei que moxinifada para elle tomar, asseverando-lhe cura em breve tempo. _Japy-açu_ acreditou, principiou pouco a pouco a passar melhor temendo d’ahi em diante o feiticeiro, que comtudo entre os seos zombava d’elle, e outras vezes o apontava para mais firmar sua autoridade. Ora como é possivel, direis vós, que appareçam e desappareçam as molestias por força d’imaginação e apprehensão, d’estes selvagens a respeito das ameaças ou dos favores de seos feiticeiros? Decida a medicina: comtudo responderei á pergunta com os exemplos mui communs, dos _Hypocondriacos_, ou doentes imaginarios, os quaes embora sãos, e bem conservados, julgam-se debeis e fracos, pensando cada um soffrer uma molestia differente. Fechando este artigo, eu vos faço notar que se julgam uns grandes feiticeiros por fazerem mal, e outros por praticarem o bem. CAPITULO XI Como falla o diabo aos feiticeiros do Brazil, suas falsas prophecias, idolos e sacrificios. Diz Santo Agostinho, que o diabo insuflado por sua soberba quiz ser obedecido como Deos, imitando com falsidade em tudo e por tudo o proceder de Deos, especialmente em seos oraculos—_Diabolus est Angelus per superbiam separatus á Deo, qui in veritate non istetit, et doctor mendacii, etc_. «o diabo é um Anjo separado por sua soberba de Deos, que não quiz persistir na verdade fazendo-se assim doutor da mentira.» Vendo que Deos fallava outr’ora a seos prophetas por diversos modos, e a seo povo entre duas figuras de cherubins postas sobre a arca da alliança, quiz tambem em todos os tempos ter falsos prophetas, com os quaes consultava seos desgraçados projectos, e seos falsos oraculos proferidos entre diversas figuras por meio de demonios escondidos por ahi ou occultos ora sob a figura de uma serpente, ora de um touro, ora de um mocho ou gralha, e finalmente de uma pyramide, estatua e assim por diante. Advinhavam estes falsos prophetas o futuro não por espirito prophetico, visto não ter o diabo tal poder, e sim por experiencia de muito tempo, junta á subtilesa de seo espirito, que os faz presagiar coisas futuras pelo que vê nos homens e nas coisas, como bem diz Isidoro—_Dæmones triplici acumine præscientiæ vigent, scilicet, sublimitate naturæ, experientia temporum, revelatione superiorum potestatum_, «possuem os demonios tres subtilesas para prevêr o futuro, finura por naturesa, experiencia de tempo, e revelação de poderes superiores.» Deixando de parte a experiencia tão antiga dos seos procedimentos para com a Gentilidade, quero fazer-vos vêr o que ha de verdadeiro a tal respeito, visto que o diabo tem sempre enganado, e ainda hoje, estes pobres selvagens por seos oraculos e predicções. O feiticeiro, de que ja vos fallei, recolhido ás campinas do Mearim, tinha em casa diabos sob a figura de pequenos passaros negros, que o advertiam do que deviam fazer e do que se passava na ilha e em outros lugares. Quando quiz ir a Maranhão revelaram-lhe estes passaros por occasião de andar passeiando nas suas roças, que cedo chegariam os Tapuyas, e destruiriam seo milho e suas raizes, mas que nenhum mal succederia nem a elle, nem aos seos, e assim aconteceo, porque vindo os Tapuyas de mansinho para sorprehendel-o, ouviram grande matinada na casa do feiticeiro, e por isso não se animaram a atacar, receiando superioridade de defensores, contentando-se com carregar os milhos e raizes, e assim se foram. Estes mesmos passaros, ou os diabos sob tal forma, ordenaram a este feiticeiro, que fosse á ilha do Maranhão, fazer suas feitiçarias, e convidar os que quizessem deixar a ilha para vir ahi residir devendo desembarcar no porto de _Taperussu_, isto é, na aldeia dos animaes gordos, n’uma das extremidades do Maranhão, sendo-lhe absolutamente prohibido aproximar-se do lugar onde moravam os padres, o que cumprio pontualmente. Nunca poude vir ahi nos vêr, apesar de toda a segurança que lhe promettiamos. Dizia que seos espiritos nos temiam, e se lhes desobedecessem, suas roças ficariam por fazer, não trabalharia mais, e perderia o poder, que tinha entre os seos, que seos espiritos lhe haviam aconselhado de retirar-se do Maranhão antes de nós lá chegarmos afim de continuarem á viver com elle tão pacificamente como até hoje. Estes e outros factos contava elle aos habitantes de _Taperussu_, que em parte lhe prestavam credito, pois n’essa occasião muitas mulheres se agarravam ás suas pernas, chorando e gritando, pedindo-lhe para que não deixasse o seo paiz, e nem fosse para _Yuiret_, onde estavamos, principalmente porque lhe fora isso prohibido pelos espiritos, e se fizesse o contrario succeder-lhe-hia mal. Considerae, leitor, a maldade, e o temor d’estes demonios, maldade para impedir que se cheguem os homens á luz da verdade, ficando sempre obedientes ás trevas da infidelidade. É proprio da malicia fugir da claridade com medo de serem descobertas suas maldades, e sua autoridade destruida. O temor, que elles tem, dos servos de Deos, em cuja presença não se podem sustentar, bem como o mocho diante dos raios do sol, e os sapos á vista da flor e cheiro da vinha, mostra quam grande é o poder de Deos, dado á sua igreja contra a potestade do inferno. Prosigamos. Dois principaes feiticeiros governavam duas nações de _Tabajares_, inimigas reciprocas, das quaes abusavam dizendo que tinham repetidas conferencias com os diabos tomando a figura de diversos passaros. O feiticeiro do lado de Thion, mau e desgraçado (que nunca quiz vir á ilha, e que della desviava seos similhantes o mais que podia) criava em sua casa um morcego, a que chamava _Endura_, que lhe fallava em voz humana em lingua dos _Tupinambás_, algumas vezes tão alto, que podia ser ouvido á seis passos de distancia, não distincta, porem confusamente e com timbre infantil. Respondia-lhe o selvagem ficando só em sua casa, porque despedia a todos quando percebia que elle lhe queria fallar. Quando os nossos la foram afim de preparar os selvagens a sahir do seo paiz para a ilha, instigou-se a curiosidade de alguns francezes, que tinham ouvido dizer maravilhas d’este feiticeiro, e pediram a seos compadres que lhes dissessem o que percebessem do colloquio d’elle com o morcego, e para isso aproximaram-se de mansinho da morada d’elle a ponto de ouvirem perfeitamente a voz de ambos, e querendo chegar mais perto foram descobertos pelo feiticeiro, e retirou-se o morcego. Chamou-os o feiticeiro, sem zangar-se, fel-os entrar em sua casa, e perguntou-lhes o que queriam e porque estavam a escutar? Responderam-lhes os francezes, que tinham ouvido dizer aos selvagens seos similhantes, que ahi havia uma communicação visivel e familiar com _Jeropary_, que d’ella desejavam vêr alguma coisa, e eis porque se tinham aproximado, e ouvido distinctamente duas vozes, a sua e uma outra mais doce e clara. É verdade, disse elle, eu fallava agora com o meo morcego, que me veio dizer maravilhas e grandes novidades, como sejam guerra em França, e que os _Caraibas_ do Maranhão não estavam onde pensavam, que de nada me assustasse, e ficasse com elle n’esta terra não acompanhando á ilha meos compatriotas, que aqui não ficariamos muito tempo, porque os francezes regressariam á sua patria, e que muitos selvagens de _Tapuitapéra_ tinham fugido para o matto. Perguntaram-lhes os francezes como elle criava e sustentava este morcego? Respondeo, que um dia seo espirito, em quanto elle estava só, lhe disse que de ora em diante lhe fallaria sob a figura de tão feio animal, e que por isso lhe havia preparado um quarto em sua casa, onde dormiria e descançaria, comendo do que elle comesse, e quando quizesse fallar-lhe, que elle o ouviria e responderia: que este espirito tambem quando quizesse communicar-lhe alguma coisa de novo o chamaria por seo nome, e com elle fallaria na casa ou no bosque, e mandou o feiticeiro fazer-lhe um ninho para recolher-se, e com elle sempre fallava sob a forma de morcego. Dizendo isto mostrou um dos cantos da sua casa, onde estava o ninho feito de folhas de palmeira: ahi, disse, vem elle comigo conversar, discorremos como dois iguaes, e come o que lhe dou. Não posso deixar de notar as particularidades seguintes: 1.ª Porque o diabo antes quiz tomar a forma de um morcego do que a de outro qualquer passaro. 2.ª Como o diabo imita a voz humana. 3.ª Da verdade d’estas novidades em França, e como é possivel, que saiba o diabo o que se passa no mundo. 4.ª Porque razão comia carne. 5.ª Da localidade por elle escolhida para discorrer com o seo Magico. Para satisfazer a primeira, dizemos, que o axioma dos philosophos—_todos procuram seos similhantes_, é uma verdade provada quer nas coisas physicas, quer nas sobrenaturaes, porque o diabo, que por sua soberba se fez espirito immundo, busca de ordinario tomar as formas mais horriveis e immundas, que pode ser, para communicar-se com seos bons servos e amigos. Bem sei o que disse S. Paulo—_Ipse enim Sathanas transfigurat se in Angelum lucis_ «que Satanaz, transformado em camaleão, para seduzir os tolos, toma a forma de um Anjo de luz», isto é, reveste-se de bellas figuras, ou profere boas palavras para melhor fazer seo jogo. As bonitas formas de mulheres e raparigas, que elle toma para melhor attrahir os homens luxuriosos, não tem outro motivo senão o desejo de chamar a si os individuos conforme sua inclinação. Diz S. Thomaz, que por este motivo, não pode o diabo aborrecer naturalmente os Anjos felizes, porque tem parte na natureza d’elles, sendo impossivel amal-os em relação á justiça dos Anjos, e injustiça dos diabos. D’esta conclusão deduso duas inclinações dos demonios: uma natural com que amam as coisas boas, ou pelo menos não as podem aborrecer, e a outra é proveniente da culpa e da soberba, com que procuram coisas immundas e abominaveis, e não podem proceder de diverso modo porque gostam da perversão do appetite, por culpa da natureza. Dizemos por isto em lingua vulgar, que o diabo horrorisa-se das torpesas e maldades, a que leva o homem a praticar por suas instigações, o que entendereis conforme a distincção da naturesa e a culpa do diabo. Eis uma das principaes causas, porque este cruel Behemot toma a figura de morcego, a que accrescento outra tirada de uma propriedade peculiar aos morcegos, qual a destes maus passaros nocturnos, muito mais horriveis e maiores do que os de França procurarem as pessoas que estão deitadas e dormindo,[101] e lhe arrancarem um pedaço de carne e depois lhe chuparem muito sangue sem que se desperte a victima, porque tem a propriedade de conservar o homem adormecido emquanto lhe chupam o sangue: achando-se fartos o deixam, continuando o sangue a correr, e por isto fica debil a pessoa, e por muitos dias anda com difficuldade. Melhor escolha não podia fazer Satanaz para representar sua naturesa e crueldade porque anda a noite, e sob as trevas da ignorancia procura os homens adormecidos e si delicia nas suas carnes, tirando-lhe a inclinação natural que tem para com Deos, e procura meios de sugar á sua vontade o sangue, instrumento da vida, as affeições e paixões dos seos captivos para tornal-os fracos e impotentes em fazer o bem e procurar sua salvação. 2.º Consiste a 2ª dificuldade na imitação da voz humana pelo diabo, não tendo orgãos e nem lingua para fazel-o. Sua palavra é apenas a manifestação de seo desejo e vontade quando falla aos outros diabos, seos companheiros, e aos homens pelas impressões fantasticas, que faz as suas imaginações. Comtudo nos ensina a Santa Escriptura, que elle servio-se da lingua da serpente para seduzir nossa primeira mãe, permittindo Deos, porque não tem poder na creatura, em quanto fraca e indigente, sem licença de Deos, e com ella pode crear um corpo no ar, e articular em qualquer lingua até mesmo nas desconhecidas suas affeições e desejos. Ponho de parte mil outros modos, pelos quaes manifesta seos desejos aos feiticeiros, por não ser nosso proposito. 3.º Notamos as noticias, que deo dos motins havidos era França, isto é, d’esta ultima leva de soldados, e como poude ser isto. Direi com Santo Agostinho, que os demonios excedem em ligeiresa todo o corpo existente na maquina do mundo, nada havendo que possa com elles competir em velocidade. Em 24 horas fez o primeiro movel este grande curso em torno das abobadas inferiores, espaço superior aos calculos dos mathematicos, de tal modo que dentro d’uma hora vence não sei quantas mil legoas. Calculae agora a ligeiresa d’estes espiritos, que em poucos momentos giram ao redor do universo, sabendo e vendo o que por elle se passa, e conjecturando o que se pode predizer das coisas futuras: si tão ligeiros fossem os correios, á cada hora receberiamos noticias de todas as partes. 4.º Usava de carne, dado o caso de ser verdadeira a existencia d’este morcego, de que se servia o diabo, e por tanto tinha necessidade de nutrir-se, e si fosse apenas parto de imaginação não tinha precisão de carne para viver. Não obstante tudo isto, tem sempre sido costume do demonio comer e beber apparentemente em companhia do seos mais dedicados servos, imitando assim o exemplo dos anjos bons do antigo Testamento, que comiam com Abraham, Loth, Tobias e outros. 5.º A situação do logar procurado por este espirito, isto é, os bosques, o concavo das arvores, ou o recanto de alguma casa solitaria, nos faz ver a inclinação, que tem estes espiritos rebeldes a fazerem, como os condemnados, suas moradias em logares escuros e desertos, tristes e melancolicos, temendo, se assim se pode dizer, a luz creada, e a doçura da harmonia. Acha-se isto em prova na pessoa de Saul, possesso, sendo aplacado pelo som da harpa de David. Asmodeo foi preso pelo anjo Raphael no fundo do deserto, e Satanaz pelo anjo do Apocalypse no fundo dos abysmos. Este pobre, victima de legiões diabolicas, que Jesus-Christo livrou, dia e noite morava nos sepulchros dos defuntos. Fingiam os antigos, que Cerberas, tirado do inferno, apenas vio a brilhante luz do sol principiou a vomitar Aconite, até que lhe foi permittido regressar ás suas cavernas tenebrosas. Diga-se isto em relação ao feiticeiro da aldeia do grande _Thion_. Quanto ao _Pagy-uassu_, das aldeias de _farinha molhada_, prevenio aos seos, alguns mezes antes, da chegada dos francezes, que breve chegavam os _Caraybas_, trazendo-lhes mercadorias, sendo para notar, que ignoravam a estada dos francezes na _Ilha do Maranhão_. Com tal aviso vestiram-se uns de camisas, e outros de diversos factos do tempo, que outr’ora com elles moravam os francezes. Assim vestidos foram ter com os habitantes das aldeias de _Thion_, e para assustal-os lhes disseram—«entregae-vos á nós, porque os francezes estão comnosco; olhae as roupas que nos deram.» Estas palavras intimidaram muito a _Thion_ e os seos, e pensavam em fugir quando chegaram os enviados dos francezes dizendo-lhes, que estes os veriam ver logo que elles mandassem suas embaixadas á ilha. Por isto podeis ver, quanto o astucioso Satanaz dava poderes a estes _pagys_, fazendo-lhes prever coisas futuras. Sua astucia porem não é tão grande, relativamente á predicção, porque via o esforço dos francezes visitando os povos visinhos, e tambem o desejo e a resolução de ir procurar essas nações, onde se achassem, e por tanto este bom criado advertio seo senhor. Usam os diabos de outra maneira de fallar e de communicar-se com os diabos e com os feiticeiros d’este paiz, a saber, fazem um buraco em terra, dentro de casas longinquas, deitam-se de bruços os feiticeiros, mettem a cabeça no buraco, fecham os olhos, perguntam ao demonio o que querem, e do fundo do buraco estes lhes respondem. Este uso era muito trivial na Gentilidade, e deixando as historias profanas vou referir-me ao que está escripto no livro 1º dos Reys, cap. 28 quando Saul foi consultar a feiticeira de Endor, a qual curvando-se em terra, metendo a cabeça e o rosto n’um buraco, fazendo suas invocações, disse—_Deos vidi ascendentes de terra_—«vi Deoses subindo da terra.» Não é sem fundamento, que ella escreveo e servio-se d’estas palavras—_vi deoses_, a menos, que estas feitiçarias não tivessem poder e força para fazer apparecer alguns diabos, mas quiz Deos, que a propria alma de Samuel acudisse á sua palavra afim de prophetisar a ultima desgraça de Saul, que em suas necessidades havia recorrido aos adevinhos e feiticeiros. Soube de alguns francezes, moradores na aldeia de _Vsaap_, que um feiticeiro d’ahi era mui respeitado e temido pelos selvagens, por ser geral a crença delle fallar com toda a liberdade com o diabo, pela maneira ja dita, e por isso não se atreviam a aproximar-se de sua casa quando viam a porta fechada receiando tal colloquio. Havia tambem na Ilha uma velha feiticeira, que guardava-se muito em segredo: era mui apreciada pelos selvagens e procurada especialmente nas molestias incuraveis; quando todos os feiticeiros já não sabiam o que haviam fazer, então ella era convidada, e trazida com segurança, porem sempre occulta. N’um dia, segundo o que me disseram alguns francezes, ella veio a _Vsaap_ para fazer uma cura, já sem esperança, e, antes de começar fechou-se n’uma casa, isolada no meio da praça da aldeia, e ahi fez suas invocações e feitiçarias diabolicas sobre o corpo do infermo, fazendo apparecer visivelmente o seo demonio. Os francezes, que isto me contaram, tiveram desejos de espiar o que fazia esta feiticeira, porem os selvagens os embaraçaram o mais que poderam, asseverando-lhes serem perigosos e maus os espiritos d’esta mulher, de fórma que na seguinte noite torceriam o pescoço de quem os espiasse. Zombaram os francezes, e foram de muito boa vontade á essa casa, com grande admiração dos selvagens, que os julgavam atrevidos e presumpçosos, e fazendo um buraco na parede de palha viram as gesticulações d’essa mulher e notaram não sei que de monstruoso ao redor d’ella, não podendo destinguir o que era, e assim se retiraram. Em quanto estive doente, muitas pessoas me fallaram d’esta desgraçada creatura com grandes gabos e estima, como infallivel em dar saude aos que lh’a pediam. Bem podeis calcular si me agradavam taes palavras. Fallaram-me tambem de certos barbeiros d’aquelles paizes, que habitavam em choupanas nos bosques, onde iam consultar seos espiritos. Na verdade, é frequente na Ilha e nos paizes visinhos edificarem os feiticeiros pequenas choupanas de palha em lugares longinquos nos mattos: ahi collocam pequenos idolos de cera ou de madeira em forma humana,[102] uns maiores, outros menores, porem os maiores não tem mais que um covado. Ali em certos dias vão elles levando comsigo fogo, agoa, carne ou peixe, farinha, milho, legumes, pennas de côr e flôres. D’estas carnes fazem uma especie de sacrificio a esses idolos queimam resinas cheirosas, enfeitam-nos com pennas e flores, e ahi se demoram muito tempo sosinhos: crê-se que era a communicação d’estes espiritos. Crescia este mau costume, e estendia-se as aldeias visinhas de _Juniparan_, onde morava o Revd. Padre Arsenio a ponto d’elle encontrar estes idolos de cera na visinhança dos bosques e algumas vezes nas proprias casas. Livrou-se d’elles por meio d’exorcismos, que fez em sua Capella contra estes diabos tão insolentes como atrevidos, e depois não ouvi mais fallar n’isto. Considerae agora a presumpção de Satanaz, que em todos os lugares, e em todas as nações, quando póde, se faz conhecido por alguma especie de adoração e sacrificio por saber, que nenhuma religião boa ou má, pode existir sem algum sacrificio e representação da coisa adorada. Eis porque elle inventou os idolos em lugar das verdadeiras imagens, que Deos mandou levantar no tabernaculo, e depois no templo de Salomão. Em vez dos verdadeiros sacrificios, que Deos estabelecia na sua lei, procurou este espirito soberbo ter altares e sacrificios de toda a especie de animaes e fructos da terra. Comquanto esta nação de selvagens não tivesse perante o publico algumas ceremonias de religião, nem préces e nem orações, comtudo em particular estes feiticeiros serviam ao diabo, como ja disse. Para acabar, direi que acreditavam estas pessoas em espiritos particulares, até mesmo francezes. Vou dar-vos exemplos. Quando o Sr. de la Ravardiere, depois da guerra dos _Camarapins_, regressava do Pará, advertio-lhe uma mulher que fora resolvida a sua morte, bem como a de todos os francezes e _Tupinambás_, que o acompanhavam, pelos selvagens d’aldeia, onde estava alojado. Fez-se tudo quanto foi possivel para descobrir-se a verdade, porem todos negaram e nada confessaram. Fizeram crer aos selvagens d’aquelles lugares, que no relogio d’algibeira, que trasia o Sr. de la Ravardiere, havia um _espirito_ escondido, que dava movimento ao que se via por dentro e por fóra, e que aos francezes revellava as coisas mais secretas. Fez-se vir ao chefe, ao qual se disse, que se o ponteiro do relogio chegasse a tal ponto do quadrante, que fallava a verdade o _espirito_, e por isso acrescentaram—leva-o comtigo e guarda-o até ahi chegar o ponteiro, e vem antes do nosso _espirito_ e conta-nos tudo. Pegou do relogio e levou-o para sua casa, e vendo que elle caminhava sempre para diante, acreditou facilmente no espirito dos francezes, que imprimia tal movimento, e não esperou que chegasse ao fim prescripto, voltou, declarou tudo e restituio o relogio. O capitão d’um navio de guerra deo-nos uma bella imagem, tomada de um navio portuguez, que ia para Pernambuco. Por acaso mandei guardar essa imagem, na hora em que a recebi, n’uma das caixas, que tinha em nosso quarto, e n’esse mesmo momento vieram muitas mulheres indias á nossa casa, e vendo a imagem muito bem esculpida, pintada com diversas cores sobre fundo de oiro, admiraram-se e não queriam entrar, dizendo—_Y anaité asse quege seta?_ «que coisa nova é esta que nos olha tão vivamente? Ella nos faz medo.» Fil-os entrar dizendo-lhes que não tivessem medo, e que era uma imagem dos servos de Deos. Admirei-me de vel-os immediatamente prostrados a seos pés chorando sua boa vinda, e depois me perguntaram que carne ella comia para irem buscal-a. Ri-me de tal simplicidade, e colloquei a imagem na Capella de Sam Francisco. Coisa igual aconteceo a um _Tabajare_, muito simples, vendo da porta da Capella de S. Luiz um bello crucifixo, que dentro estava. Não me foi possivel fazel-o entrar na Capella, e dizia ao interprete. «Elle me olha vivamente, está vivo sem duvida, tenho medo d’entrar não sendo baptisado porque me faz mal.» Fizeram o mesmo muitos outros, porem tomando o crucifixo em meos braços, fiz-lhes vêr que elle era de madeira, representando com tal forma o que Jesus Christo por nós soffreo. Eis o resultado da superstição, como eu já disse, que entre elles derramaram seos feiticeiros, tanto á respeito de seos idolos, como de seos espiritos. CAPITULO XII De algumas outras ceremonias diabolicas praticadas pelos feiticeiros do Brazil. Sentiria muito este Principe se deixasse intacta alguma coisa no serviço de Deos, sem procurar imital-a falsamente, e sem buscar introduzil-a no culto supersticioso de sua soberba. Outr’ora Deos no Antigo Testamento instituio as agoas da Purificação, feitas e compostas de diversas materias e differentes ceremonias, conforme o fim e objecto, a que se destinavam, tanto para purificar os homens, os vasos, e os utensilios do Templo, como os vestidos, as casas e todos os moveis. Por imitação instituio este demonio as agoas de lustração, das quaes se serviam os pagãos para diversos fins, bem como os judeos, lavando e aspergindo com ellas os homens antes dos sacrificios, os utencilios dos templos dos idolos, as casas, os vestidos e moveis dos infieis. Vejamos se esqueceo-se esta desgraçada serpente d’illudir nossos selvagens com taes superstições. Quando outros exemplos não podessemos produzir alem do já referido no _Tratado do Temporal_, das nigromancias feitas pelo feiticeiro, vindo dos campos do Mearim, bastava só esse para demonstrar claramente as loucuras e abusos, que semeára este antigo enganador entre os povos, em relação ao nosso fim. Como soube, da propria bocca dos feiticeiros, de muitas particularidades, que faziam para illudir estas gentes, não quero privar o leitor de as conhecer. È costume dos _Pagys-uaçus_ celebrarem, em certa epoca do anno, lustrações publicas,[103] isto é, purificações supersticiosas por aspersão d’agoa sobre os selvagens, e bem que tudo dependa de sua imaginação, fazendo á capricho taes oblações, comtudo de ordinario enchem d’agoa grandes potes de barro, proferindo em segredo algumas palavras sobre elles, deitando tambem fumaças de _Petum_, e misturando tambem um pouco de pó da casa, em que se acham, punham-se a dançar, e depois o feiticeiro toma um ramo de palha, mete dentro do pote, e com elle asperge a companhia. Feito isto, toma cada um a porção d’agua que quer nas _cuias_, ou tigellas de madeira, e com ella lavam a si e a seos filhos. _Pacamão_, grande feiticeiro de _Commã_,[104] contou-me um dia, que faria sahir agoa da terra, com que lavava estas gentes, com grande admiração de todos os barbaros, que viam sahir tão fresquinha essa agua do meio de sua casa, e a tomavam como si fosse milagrosamente enviada pelos espiritos, mas o astucioso tinha enchido d’agoa um grande vaso e mettendo-o em terra d’elle fazia sahir agoa por meio de tubos ou canaes, ou tabocas, que em abundancia se encontram nas mattas do Brasil, e d’esta forma illudia os seos. Aos gentios tinha o diabo communicado muitas ideias erroneas á respeito das agoas, das fontes, e dos regatos. N’umas habitavam Nymphas, e n’outras deosas: estas faziam uma coisa, e aquellas—outras; umas eram perigosas e enganadoras, outras agradaveis e sinceras; umas sagradas, e outras profanas. Quando os selvagens vêem certa especie de lagartos, parecidos com os venenosos de diversas cores, correr para agoa, pensam supersticiosamente, que essa fonte é prejudicial ás mulheres, e que d’ella bebe _Jeropary_. Sabendo desta superstição para livrar-me do encommodo que me davam as mulheres vindo lavar-se na fonte do nosso logar de Sam Francisco, fiz correr o boato, que lá haviam sardões, e depois d’isto nenhuma mais se animou a ir ahi excepto as escravas do Forte, que não tinham licença de lavar-se na fonte, e d’est’arte tive o prazer de mandar amural-a e fechar á chave, afim de conservar a agoa sempre limpa. Chega esta superstição a ponto de acreditarem, que estes lagartos atiram-se ás mulheres, adormecem-nas, e gozam-nas, ficando grávidas, e parindo lagartos em vez de crianças. Eis porque, quando mandei espalhar tal boato, vinham as escravas do Forte em bandos, armadas de cacetes, de facas, e de outros instrumentos iguaes para se defenderem, diziam ellas, d’estes lagartos, o que motivaram muito riso a nós outros, os francezes. Alem das agoas de lustrações, e diabolicas abluções praticadas por estes feiticeiros tem uma maneira particular de communicar seo espirito aos outros, isto é, por meio da herva _Petun_ introdusida n’um caniço, de que elles pucham a fumaça, lançando-a sobre os circunstantes ou soprando-a mesmo na canna, exhortando-os a receber seo espirito e sua virtude. Parece que este cautelloso dragão quer com tal ceremonia falsa imitar Jesus Christo quando deo seo espirito aos Apostolos, e o seo poder aos seos successores para transmitil-o aos iniciados nas ordens sagradas. Assim se lê em São João—_Insufflavit et dixit eis, accipite Spiritum Sanctum_: «soprou sobre elles, e lhes disse—Recebei o Espirito Santo.» D’onde estes feiticeiros tirariam esta ceremonia satanica, si o diabo não lh’as tivesse mostrado? Achando-se sempre fechados n’esta grande e vasta região do Brasil, sem communicação alguma com o velho mundo, não podiam aprendel-a de outra nação. Estes bafejos lhes são muito particulares, como ceremonia necessaria para curar os infermos, porque vós os vedes puchar pela bocca, como podem, o mal, dizem elles, do paciente, fazendo-o passar para a bocca e garganta d’elle, inchando muito as bochechas, e deixando d’ellas sahir de um só jacto o vento ahi contido, causando estampido igual ao de um tiro de pistola, e escarrando com grande força dizendo ser o mal, que haviam chupado, e fazendo acreditar ao doente. Á este respeito o Sr. de Pezieux e eu passamos um dia alegre na aldeia de _Vsaap_. Um pobre moço selvagem estava atacado pela colica do paiz. Veio um d’estes feiticeiros exercer sua attração de espirito sobre o seo ventre, fazendo muitos tregeitos, e retrahindo-se por diversas vezes vendo-nos prestar-lhe muita attenção, e apesar de tudo isto o doente continuava a gritar. Veio o feiticeiro depois procurar-nos e mostrando-nos dois outros pregos nos disse—«eis o que lhe tirei do ventre, cujos intestinos estão cheios d’isto, é preciso tiral-os um por um. Si eu não os tirasse todos, lhe cravariam as tripas e a garganta.» Imbuio a este moço, sempre gritando, que lhe tinha tirado do ventre esses pregos. Si essas casas fossem cobertas de ardosias, penso que meteria na cabeça d’esse rapaz ter elle comido as ripas e os pregos; mas não sendo communs entre elles pregos de ferro, não sei como poude illudir os assistentes com tal loucura. Poderia referir muitos outros exemplos, porem bastam-me estes ao meo fim. Ora si é coisa digna de admiração vêr o Espirito Infernal em tudo quanto acabamos de dizer até aqui, muito maior deve ser o nosso espanto pelo que vou dizer, isto é, pela existencia da confissão auricular entre os selvagens. Nada digo que não ouvisse da bocca de _Pacamão_, de outros selvagens e dos franceses. O grande _Pagy_, na sua provincia de _Commã_, ia visitar, quando lhe aprasia, as aldeias do seo dominio, ordenando que todos fossem confessar-se com elle, especialmente as mulheres e as raparigas, e quando encontrava alguma que se recusava a dizer tudo, elle a ameaçava com o seo _espirito_, que as havia de atormentar, e tinha muita finura para reconhecer si occultavam ou não alguma coisa. Dava-lhes depois não sei que especie de absolvição, e contava tal feito d’esta e d’aquella, e apesar de tudo isto sempre exerceo seo officio de confessar até nossa chegada. Pensae, eu vos peço, quem lhe ensinaria esta maneira de confissão auricular, de ameaçar seos similhantes, no caso de occultarem alguma coisa com o seo _espirito_, que os castigaria, e que os absolveria, se tudo confessassem? CAPITULO XIII Claros signaes do reino do diabo no Maranhão. O Salvador do Mundo em S. Marcos, antes de subir á direita de seo Pae, encarregou a seos Apostolos e discipulos de irem pelo universo converter os infieis assegurando-lhes por certos indicios e signaes a proxima ruina do imperio dos demonios, a saber—_signa eos qui crediderint hæc sequentur: In nomine meo dæmonia ejicient, linguis loquentur novis, serpentes tollent, et si mortiferum quid biberint, non eis nocebit. Super ægros manus imponent et bene habebunt_: «estes signaes seguiram os crentes, em meu nome expellirão o diabo, fallarão novas lingoas, desviarão as serpentes, e si beberem algum veneno mortifero nada soffrerão.» Para bem entender-se estas palavras, convem notar com os padres e doutores, que foram postas litteralmente em pratica pelos primeiros christãos, quando na primeira idade da igreja era preciso combater a obstinação dos judeos e a louca sabedoria dos gentios. Depois que estendeo-se a fé por todo o universo, que foi por todos condemnada a pertinacia dos judeos e tida por vaidade a sabedoria humana, não foi mais necessario observar litteralmente estes signaes na conversão dos incredulos e sim unicamente a pratica allegorica e mistica. Eis o que desejamos mostrar n’este capitulo ter-se feito todos os dias em Maranhão. Primeiramente elle disse—_In nomine meo dæmonia ejicient_: «em meo nome elles expellirão os demonios.» Em dois annos que estive em Maranhão, vi isto cumprido por diversas formas, por que os diabos fizeram apparecer realmente o medo e o temor que tinham do nome de Deos, procurando por todos os meios embaraçar nossa missão, já persuadindo seos feiticeiros, mais fieis, a ordenar as nações sobre que tinham poder, de não se aproximarem de nós, já infundindo-lhes terror com o signal da Cruz e excitando-os a arrancar os que existiam, dando maus exemplos com ridicularisar o que sanctamente ensinavamos a estes barbaros, intimidando por muitas vezes os habitantes de _Maranhão_, _Tapuitapéra_, _Commã_, _Caetés_, _Pará_ e _Mearim_ e fazendo-os fugir para os matos e logares desconhecidos com receio de serem presos e captivados pelos francezes ou pelos portuguezes. Finalmente mostrou-se tudo de forma diversa, porque quando julgavamos tudo perdido, foi quando Deos mostrou o poder do seo nome, conservando não só estes selvagens junto de nós, mas tambem fazendo com que despresassem seos feiticeiros e o poder do diabo, fazendo fugir _Jeropary_, com o nome de Deos, e a ablução de Jesus Christo. Vou mostrar bons exemplos. Lembrar-vos-heis do que acima vos disse tanto dos feiticeiros dos campos do Mearim e das habitações de _Thion_, como da maneira porque os diabos manifestavam o temor, que tinham das cruzes, que plantavamos em nome de Jesus Christo, e de nós seos fieis servos: quando alguns de seos Principaes me diziam, que estes feiticeiros não quiseram vir com elles, eu lhes perguntava a razão, e elles me respondiam—_porque Jeropary tem medo de Tupan_. _Acaiuy_, principal do Mearim, de quem fallaremos mais de espaço, veio me pedir licença para fazer sua casa ao pé da minha, não querendo ficar com os outros no _Forte_, dizendo-me entre outras rasões que tinha para isto, ser porque _Jeropary_ não se atrevia a aproximar-se do logar, em que habitavamos visto termos vindo expressamente para repellil-o. _Pedro Cão_, selvagem baptisado em Dieppe havia muitos annos, dizia a mim e aos Srs. de la Ravardiere, de Pezieux, e a outros quando o interrogavamos á respeito de sua felicidade na guerra, que Deos sempre o livrára de mil perigos porque era christão, e fazia fugir o diabo apenas chegava n’uma aldeia, e que seos similhantes mostravam-se animados, quando em companhia d’elle, não temendo _Jeropary_. O mesmo pensavam os habitantes de _Tapuytapéra_ á respeito dos novos christãos, julgando que elles perseguiam e faziam fugir _Jeropary_, mostrando-se contentes por isto quando tinham esses christãos em suas aldeias. Servindo-nos d’estas crenças embutiamos no espirito dos cathecumenos como ponto de fé, que logo que elles fossem _lavados_, adquiririam poder contra o diabo, e nunca mais deviam temel-o. Corre voz geral em todas estas terras, que os diabos são _espiritos maus_, que temem os _Pays_ e os _Caraybas_, isto é, os padres e todos os que são baptisados. Recorda-me que fallando mil vezes d’esta materia aos selvagens, elles me disseram—_Jeropary yportassuasseque gésera_—«o diabo está agora pobre e miseravel, tem muito medo e já não é atrevido como era.» _Jeropary ypochu, Tupan Katu_ «o diabo é mau, cruel e nada valle, porem Deos é muito bom.» Que desejarieis mais para o complemento d’este primeiro signal, e segurança da total ruina do diabo? São os proprios diabos, que confessam temer o nome de Jesus Christo, as armas de sua paixão, e até os seos servos, dissuadindo seos intimos amigos para que de nós se ausentassem, abalando ceos e terra afim de embaraçar-nos, e movendo tudo para inutilisar nossos esforços, emfim cahiram de ventas no chão, e chegaram ao cabo de suas astucias. Os que outr’ora os temiam, hoje os despresam; emfim só nos resta continuar as obras começadas. _Linguis loquentur novis_: «fallarão novas linguas». Na verdade os nossos selvagens do Maranhão fallam uma linguagem inteiramente nova, visto que, esse _Marata_ antigo, isto é, um dos Apostolos de Jesus Christo de quem fallarei mais adiante, não lhes ensinou a fallar como fallam agora, a saber: na profissão do christianismo recitando o symbolo dos Apostolos _Arobiar Tupan_ etc. etc., a dirigir-se a Deos por meio da oração dominical _Oreruue_ etc. a encaminhar suas vidas e acções segundo os mandamentos da lei de Deos _Ymoeté yepé Tupan_ etc. etc. conforme os mandamentos da Igreja. _Are maratecuare ehumé_ etc. «lavar e fortificar suas almas pelos Santissimos Sacramentos.» _Iemongarauiue_ etc. É por certo fallar linguagem nova, quando discorrem sobre os mysterios da nossa fé, como sejam a unidade da essencia em Deos, e na Trindade das Pessoas; que o Filho de Deos tomou corpo no ventre da Virgem: que os maus vão para o inferno, que todos os homens resuscitarão em corpo e alma, indo depois cada um para o lugar de sua sentença: são estes com tudo os discursos diarios dos feiticeiros, só fallando em matar, comer, assar e seccar a carne dos seos inimigos, e nas suas incontinencias, libertinagens e loucuras. Admirar-se-ha muito quem pensar em tal mudança entre os barbaros, que somente sabem o que lhes ensinou a natureza. Creem os judeos, que os Apostolos sahiram d’um tunel, bem cheio, de vinho e de carne, e viram que os gentios de diversas nações davam signaes de entender o que prégavam, e que os Apostolos por sua vez tambem os percebiam. Tambem vos disse, que os selvagens ficavam muito admirados quando viam seos similhantes, baptisados, discorrer em sua lingua sobre coisas altas, profundas, e tão novas, como as que conheciamos por seos interpretes, e diziam uns aos outros—como é que esta gente falla tambem de _Tupan_, como os Padres lhes tem ensinado tão bellas coisas, quaes as que nos contam: como nossos filhos sabem mais do que nós, nossos Padres, e mais remotos antepassados, que embora tenham vivido muito nada nos contaram como estes Padres: por força fallaram com Deos. _Em terceiro lugar._ _Serpentes tollent_ «elles desviaram as serpentes.» Que são essas serpentes do Brazil, que com sua lingua e cauda envenenam estes povos? Não são todos os grandes e pequenos feiticeiros, que envenenam suas Nações? A fé de Jesus Christo é como a Cegonha, que purifica o paiz, onde está, das serpentes venenosas. S. Paulo, na Ilha de Malta, atirou ao fogo a vibora que trazia no dedo. O dedo dado por Jesus Christo aos Apostolos, é o poder do Espirito Santo, que de ordinario busca agentes naturaes docemente, sem constrangimento, para dispôr o objecto a receber uma nova fórma pelo banimento e ruina de outra fórma contraria. Estas viboras, arremeçadas ao fogo, são os Ministros de Satanaz, que o Espirito Santo expelle para tornar a Nação cheia d’abusos susceptivel de acceitar o Evangelho e de conhecer a Deos. Si eu disser, que me parece ter o Espirito Santo, em relação a estes feiticeiros do Maranhão, feito um grande milagre, que nunca fez para com os sacrificadores do Paganismo, creio ser bem recebida a minha opinião, porque, alem de dois ou tres feiticeiros, todos os grandes só desejam ser baptisados: ao contrario, raras vezes estes sacrificadores do diabo, na gentilidade esposavam o christianismo. Por isso podiamos dizer, que as serpentes venenosas, que se arrastam na terra, tornam-se passaros voadores no elemento do ar, conforme a profecia de Isaias: _De radice colubri egredietur Regulus, et semen ejus absorvens volucrem_: «da raiz da cobra sahirá o Basilico, e a semente do Basilico engulirá o passaro,» o que Vatable assim interpreta[105]: _De radice serpentis egredietur Regulos, et fructus ejus, cerestes volans_: «da raiz da serpente sahirá o Basilico, e o seo fructo será uma cerasta volante.» Para entender esta passagem convem recordar-se do que escrevem os naturalistas, a saber, que as cobras grandes e grossas geram o Basilico quando comem um sapo; porem o Basilico procura gallinhas brancas, com quem se unem, pondo ellas ovos, que enterram n’areia ao ardor do Sol, e d’elles sahem serpentes, que voam. Nada dizem, que eu não visse em Maranhão, conforme me diziam e pensavam os selvagens, e aconteceo-me por duas vezes, que uma gallinha branca que eu tinha, pozesse dois ovosinhos redondos como uma ameixa de dama e salpicados, e depois ella mudou de cacarejar, e parecia louca. Disseram-me então os selvagens, que infallivelmente o Basilico nos mattos a tinha coberto, pelo que convinha matar, quebrar e queimar os ovos, para evitar a morte infallivel de quem os comêsse: si se deixasse os ovos, sem queimal-os, d’elles sahiriam serpentes voadoras, que não era a primeira vez, que isto acontecia, e então todas as gallinhas mudam de canto, e não param n’um lugar. Appliquemos isto ao nosso fim, e digamos que a antiga cobra é Satanaz, Principe dos Demonios, os Basilicos são os Diabos destacados nas Provincias por Lucifer para seduzir o Mundo; as serpentes são seos Ministros, como sejam os _Pagys_ ou feiticeiros do Brazil, que desejam adquerir azas para mudar de elemento da terra para o do ar, deixar seos velhos e abominaveis costumes de arrastar o peito em seo execrando e diabolico serviço, e aproximar-se do Ceo, como o resto dos indios pela ablução ou lavagem de seos antigos peccados pelo Sacramento do Baptismo. Estas serpentes, tão perseguidas no Brazil, são esses desgraçados costumes, e abominaveis peccados, como sejam as vilanias, raivas, e vinganças, já descriptas amplamente n’outra parte. _Em quarto lugar._ _Et si mortiferum quid biberint non eis nocebit_: «e si bebem algum veneno mortifero, não lhes damnificará.» O verdadeiro veneno, que engolem as almas, é a falsa doutrina, que o Diabo faz suggerir nos ouvidos dos novos christãos. Vós o achareis em muitos exemplos do proprio seculo dos Apostolos. Certos seductores iam corromper os individuos sem malicia, e apenas bebiam ellas o _Aconito_, sentiam-se afflictos, impressionados em sua alma, e abalados em sua fé; porem o Espirito Santo mencionado no genesis—_Spiritus Domini, ferebatur super aquas_ «o Espirito do Senhor é levado sobre as agoas de Chaos,» isto é, ainda não purificadas e nem limpidas, ou como querem dizer os outros: _Incubabat aquis_, deitava-se sobre as agoas do Chaos para d’elle tirar as bellas pombas, como fingiam os Poetas, os ovos de Thetis, cobertos pelo pombo branco, ou o Cysne, de que sahiram Castor e Pollux, ou então _fouebat aquas_, aquecia essas agoas ainda frias. O Espirito Santo, digo eu desculpa mais facilmente a fragilidade e fraquesa d’estes novos christãos, mas não as dos antigos crentes. Assim vae adejando sobre as agoas desviadas do verdadeiro caminho pelos maus discursos d’aquelles, que tem a alma mal conformada, vae chocando os ovos abandonados pelo Pae e Mãe, almas recentemente lavadas, porem separadas da presença d’aquelles que as tem lavado. Aquecidas essas agoas geladas pelo sopro do pernicioso Aquilon, não quer que o veneno bebido lhes dê a morte, conduzindo-as ao regaço de sua Mãe, e entre os braços dos que, depois de Deos, os geraram espiritualmente em Jesus Christo para obrigal-os a vomitar o veneno do seo coração, e tomar o alimento salutar, pelo qual se fortificaram para resistir de ora em diante a todos os choques. Passou-se isto no Brazil, como aconteceo no tempo dos Apostolos, onde um certo numero de novos christãos de _Tapuitapéra_, seduzidos por más palavras de um certo personagem, metade d’elles se deshouveram e renunciaram o Christianismo; porem nós cuidamos d’elles com todo o zelo. Assim fizeram os nossos superiores, que redobraram de cuidados para remediar este mal levando para ahi tudo quanto julgaram necessario, e por isso essas novas plantas, fanadas por brisa gelada, adquiriram seo antigo vigor e florescencia, e tornando a vel-os no Forte de Sam Luiz, procuramos animal-os a ficarem firmes e constantes na profissão do Christianismo, e ordenamos-lhes de não se separarem de Martinho Francisco, ahi nosso suffraganeo. Sentia-se o diabo cercado por todos os lados, e peiores os seos negocios de dia para dia. N’esta epocha, em que estou escrevendo, espero que os padres que por la andam, lhe deem terriveis combates, e que seo reinado vá de decadencia em decadencia, até total ruina; porque antes de eu deixar a ilha, via e experimentava a disposição geral e universal d’estes selvagens,[106] especialmente dos meninos, para os converterem. CAPITULO XIV Os filhos do Brazil darão cabo do reinado de Lucifer, e começarão a estabelecer o reinado de Jesus Christo. O psalmista rei David, no seo psalmo 8.º—_In finem pro torcularibus, psalmus David_, isto é, o psalmo de David, que deve ser cantado em acção de graças ao Senhor no fim das vindimas diz, prevendo a ruina total do imperio de Lucifer sobre as almas dos infieis, e o estabelecimento do reinado de Jesus Christo—_Ex ore infantium et lactentium perfecisti laudem propter inimicos tuos, ut destruas inimicum et ultorem_. «Tens apurado teos louvores pela bocca dos meninos e das crianças de peito á despeito dos teos inimigos, e por isso tu destroes o adversario e o tyranno vingativo.» Rabbi Jonathas embellezou esta passagem, e esclareceo-a por esta forma—_Fundasti fortitudinem, ut destruas Auctorem inimicitiarum et ultorem_ «estabelecestes a força do teo imperio pela bocca e confissão da Fé dos meninos para mostrar tua grandesa, e destruir o autor das vinganças e o sanguinario vingador.» Disse São Jeronymo—_Quiescat inimicus et ultor_ «fechaste a bocca ao seductor inimigo da salvação, e enraivecido contra os homens pela voz dos meninos.» Grande maravilha é o serem os meninos o symbolo da proxima fundação do reinado de Jesus Christo e a queda do poder dos demonios. Não me demoro em fundamentar com muitos exemplos este signal da providencia de Deos, e assim limito-me a referir o que se passou no Triumpho de Jesus Christo antes de sua Paixão, quando os meninos em alta voz diziam—_Hosanna filio David_ «seja bem vindo o Filho de Deos,» o que disse em primeiro logar o santo rei no seo cantico—_In finem pro torcularibus_, «no fim pelas pressões,» isto é, no fim do reinado de Satanaz, e no principio da Paixão de Jesus Christo, quando era tempo de pagarem os meninos este tributo de reconhecimento. Em segundo lugar, de dia a dia, na continuação, no fim, e na consummação do captiveiro de Satanaz sobre as almas infieis, e no principio da Santa Igreja, fundada entre ellas, principalmente pelos meninos, o que desejo mostrar ter sido feito pelos filhos do Brasil. Estas almas juvenis, ainda não corrompidas por antigos e maus costumes de seos paes, mostram não sei que disposição singular e particular para receber, como si fosse uma taboa rasa, qualquer pintura... (Falta uma folha.) ... repugnancia: nós lhe facilitavamos os meios de o entender comparando com as coisas, que veem diariamente. Assim como crescem as ostras sobre os ramos das arvores, tomando carnes e recebendo vida entre duas conchas, sem mistura, nem effusão de semente do humor marinho, e apenas pelo calor do sol, assim tambem o Filho de Deos no ventre da joven, a Santa Virgem, recebeo seo precioso sangue da materia, e o Espirito Santo, do calor, e assim tomou corpo sem alguma outra operação humana. Gostavam muito da comparação, e me disseram que em seo paiz muitas coisas se geravam pela simples influencia do Sol, como os lagartos, que sahem dos ovos, depois que recebem a vida do calor do Sol, e por isso não tinham difficuldade em crer o que nós lhes ensinavamos, e nem que Deos se fizesse homem para morrer afim de salvar os seos, porque, diziam elles, _Jeropary_, apesar de ser espirito mau, entra no corpo dos monstros para nos amedrontar, espancar e atormentar. Sobre tudo muita admiração nos causava o como facilmente se convenciam da verdade e da realidade de Jesus Christo, Filho de Deos, sob as especies de pão e vinho, ao passo que viamos tantas almas vacillantes n’este ponto, embora lhes sóbre espirito e comprehensão para outras coisas. A este respeito não pude dizer outra coisa, senão o que disse a Escriptura Santa no proverbio 25—_Sicut qui mel multum comedit, non est ei bonun, sic qui scrutator est magestatis, opprimetur a gloria_.—«É coisa tão doce como o mel, mas quem d’ella comer muito, não pode offender mais o estomago.» Nada ha de mais suave e delicioso do que a contemplação das obras de Deos e a leitura das letras santas, mas para aquelle que vae muito alem, e tudo mede pela vara de seo espirito, impellido pela soberba de seo entendimento. Nada ha mais seguro, que não fique opprimido pelos vivos raios da gloria de Sua Magestade, como se observa nos mochos cegos, visto quererem olhar e julgar da face do sol, e da sua luz. Ao contrario, os que manejam com temor e humildade os mysterios de nossa fé, são esclarecidos sem prejuiso de suas vistas, e docilmente obedecem a vontade e poder do soberano, que pode o que quer, quer e faz o que diz. Estes pobres selvagens, fallo até dos que não são ainda christãos, apenas se lhes fazia signal de sahirem da igreja, retiravam-se promptamente, ficando comtudo na porta, que se conservava fechada em quanto se recitava o canon da missa, e fazia-se a communhão. Diziam elles, em resumo, que n’essa hora descia _Tupan_ sobre os altares, bebendo e comendo comnosco, que não tinham merecimento para ficar ahi em frente d’elle senão quando fossem baptisados, e a maior parte d’elles se ajoelhavam, imitando os francezes. Os Indios christãos ajoelhavam-se apenas ouviam tocar a campainha, juntavam as mãos e adoravam a Deos. Ao mysterio do Sacratissimo Corpo e Precioso Sangue do Filho de Deos elles chamam _Tupan_, quer dizer, o proprio Deos, segundo suas crenças, _Aséreu yanondé Tupan rare_, quer dizer, «antes de morrer receberás o corpo de Deos». Ainda que eu reconhecesse n’elles facilidade de crer segredo tão profundo, não me animaria a communicar-lhes senão em artigo de morte, e antes queria deixar esta tarefa para os que viessem depois de mim, porque dando n’um certo dia a communhão a uma India, a quem examinei tanto quanto pude antes de lhe dar o Precioso Corpo de Jesus Christo na Paschoa, apenas recebeo a Hostia Consagrada perturbou-se muito e não a poude engolir a ponto de querer tiral-a com a mão o que lhe prohibi disendo só poder ser tocada por sacerdotes, que não tivesse receio, e nem se assustasse tendo de receber seo Deos, que era de sua vontade, que ella recebesse a hostia e a engolisse com toda a confiança, o que fez mediante um pouco de vinho que lhe dei a beber no calix: tão grande secura da lingoa e bocca proveio da grande timidez d’ella em receber tão santo manjar, o que me resolveo de então em diante a deixal-os bem fundamentarem-se no conhecimento d’este artigo antes de administrar-lhes o Santo Sacramento, e ainda que muitos me pedissem o _Tupan_, eu lhes respondia que esperassem pela vinda dos nossos padres. Não ha grande difficuldade em fazel-os confessar suas faltas, até mesmo as proprias mulheres, e de coisas que são difficeis a este sexo declarar aos sacerdotes, representantes da pessoa de Deos. Mui livremente vos dizem sim e não, o tempo, o lugar, a qualidade das pessoas, o numero de seos peccados, sem algum vexame tolo e mau como por ahi se observa. Não tem a menor hesitação em crer na efficacia do baptismo, que é o lavamento dos peccados, a filiação de Deos, e a acquisição do Ceo, tendo como certo que os baptisados vão para o paraiso gozar da companhia de Deos, com tanto que não caiam outra vez em peccado mortal. Acreditaram sempre, que havia inferno, onde estava _Jeropary_, e para onde iam os maus. Sabiam ao mesmo tempo por tradicção, que Deos era muito feliz lá em cima, vivendo com os espiritos bons, e que seos paes que tinham tido boa vida, iam para um lugar de delicias, onde nada lhes faltava embora terrestre. A vista d’isto facil nos foi fazel-os entender o que deviam crer do paraiso, do inferno e de um terceiro lugar, onde se purificam as almas antes de irem para o Ceo, de um quarto onde os meninos, que não chegaram a receber o baptismo, morrendo antes do uso da razão, eram recebidos para não padecerem por nunca poderem vêr a Deos, visto ser o baptismo a chave do Ceo. Não se acreditaria, senão vendo-se, quanto são os selvagens curiosos por saberem das coisas de Deos. Todos, quando com elles conversavamos, nos faziam mil perguntas á este respeito, iguaes á estas: Como Deos fez o Mundo? Si o fez com suas proprias mãos, ou si ajudado pelos bons espiritos poude fazer o Ceo, as estrellas, o sol, a lua, o fogo, o ar, a agoa, a terra, os primeiros homens, os primeiros passaros, peixes e animaes, reptis, arvores e hervas? O que existia antes de feito o mundo, e o que fazia Deos vivendo sosinho? De que forma está no Ceo? Como faz rebumbar o trovão, e cahir a chuva? Si falla aos homens, si viemos do Ceo, si nascemos de mulheres, si vimos anjos e diabos? Quem nos ensinou tudo quanto ensinavamos, si não morriamos, e depois da nossa morte como si faziam outros padres? Si em França haviam muitos padres, si andam vestidos como nós, si havia um padre que fosse rei, porque regeitavamos mulheres e mercadorias? Si a Mãe de Deos era uma rapariga como outra qualquer, si bebia e comia como nós, porque tinha morrido, si não vinha do Ceo passeiar as vezes na terra e fallar comnosco? Si os Apostolos eram padres como nós, quantos tinham existido, porque os outros _Caraibas_ francezes não eram tambem padres como nós, si fomos nós mesmos que nos fizemos Padres, ou si foi outra pessoa? A todas estas e a muitas outras perguntas respondiamos com a verdade, e elles por gestos e palavras demonstravam seo contentamento. Assim corria de maneira agradavel o tempo entre taes perguntas e entretinimento. É por isso que pretendo aqui deixar as diversas e mais singulares conversações, que tive com os _Muruuichaues_, isto é, com os principaes de _Maranhão_, _Tapuitapéra_, _Commã_, _Caietés_, _Pará_ e _Miary_. Não quero demorar-me mais fallando em taes perguntas e respostas, visto que as vereis mais adiante, e espero que minhas respostas vos contentarão muito, e vos assevero que serão fielmente transcriptas até na propria linguagem com que foram proferidas. Espero desculpa não só por isso como tambem pelo mais que ja deixei escripto, mormente não se achando tantos ornatos n’esta historia como exigia a curiosidade d’este seculo. É minha opinião, que a bellesa de uma historia consiste na verdade do facto e na simplicidade do estylo. Si eu não descrever palavra por palavra essas conferencias, ou si não usar de muitas palavras, basta que não offenda em coisa alguma a substancia do facto, sendo essa abundancia de discurso necessaria e requerida para vos fazer entender bem claramente suas intenções, e as nossas expressões. CAPITULO XVI Primeira conferencia com Pacamão, grande feiticeiro de Commã. Tendo tido muitas conferencias com este principal e grande feiticeiro, vou narral-as por capitulos: eis o primeiro. _Pacamão_ é pequeno no corpo, vil e abjecto á tal ponto, que quem não o conhece, não faria caso d’elle. Comtudo isto é o maior e o mais graduado de todos os principaes do Maranhão, especialmente na provincia de _Commã_, uma das mais bellas, fertil e povoada no paiz dos _Tupinambás_. Goza entre elles de tal poder, que somente com sua palavra tem movido todos os habitantes, sendo extremamente temído. É fino e velhaco tanto quanto pode ser um selvagem, e por essas qualidades chegou a obter esse poder, grandesa e prestigio, sendo tido por supremo curandeiro, subtilissimo feiticeiro, muito familiarisado com os Espiritos, tendo entre suas mãos e á sua disposição a morte e a vida, concedendo vida e saude a quem bem lhe aprouver; alem de grande bafejador entretinha os ingenuos por meio de confissões, de lustração, incensamento, e muitas outras coisas iguaes como ja dissemos. Não foi dos primeiros a visitar os francezes e fazer-lhes seos offerecimentos, desejando vêr o que elles queriam, porque tinham vindo aqui, e como se estabeleceriam. Informando-se bem de tudo isto, veio ao Forte de Sam Luiz, entrou, e saudou agradavelmente o Sr. de la Ravardiere. Vinha bem acompanhado por indios enfeitados de pennas, trouxe comsigo a mais vigorosa de todas as suas mulheres, cujo numero chegava a trinta. Chegando a _Yuiret_, tendo passado o mar em nossa barca, que tinha ido buscar farinha á sua terra, distante mais de 40 legoas do Forte de Sam Luiz, fez saber ao Sr. de la Ravardiere, que ia ao seo Forte, e foi esperado. Formou sua gente, uns atraz dos outros, e todos o acompanharam. Andou ao redor das casas, situadas na grande praça de Sam Luiz, fallando como era de costume, apregoando sua grandesa, o seo amor aos francezes, o objecto da sua visita, e tambem o valor e poder dos francezes. Acabado isto, aproximou-se da porta do Forte, perto de um quartinho, onde estavam alguns francezes observando o que elle fazia. Ordenou á sua mulher, que se prevenisse para carregal-o até a casa do governador, e foi obedecido promptamente, escanxando-se na cintura d’ella como usam os indios quando carregam seos filhos: assim entrou no Forte, e dirigio-se ao dito senhor: sua mulher era negra como o diabo e pintada desde a planta dos pés até a cabeça com o succo do genipapo. Antes de ir adiante pensae si era possivel conter o riso, vendo-se um dos Principaes do Brazil montado em tão bello cavallo. Foi comtudo muito bem acolhido, e disse o que lhe veio á mente para desculpar-se, findo o que, e depois de tratar dos seos negocios, veio á minha casa, em São Francisco, acompanhado por gente implumada. Mandei logo armar-lhe uma rede de algodão bem alva, onde assentou-se, e pedindo a um dos seos companheiros o seo caximbo, este o entregou ja com fogo. Depois de ter tomado tres ou quatro caximbadas, exhalando o fumo pelas ventas começou assim a fallar-me grave e pausadamente achando-me defronte d’elle n’outra rede: «Ha muitas luas, que eu tive vontade de te vir vêr e aos outros Padres; mas tu, que fallas com Deos sabes, que não é bom e nem prudente ser-se leviano e facil, mormente nós outros que fallamos com os Espiritos, e mover-nos com as primeiras noticias e pôr-nos á caminho, porque sendo observados pelos nossos similhantes, elles nos imitarão. «O poder, que alcançamos sobre nossa gente, se conserva por certa gravidade em nossas acções e palavras. «Os intromettidos, e os que a primeira noticia apromptam suas canoas, se emplumam e vão logo vêr o que ha de novo são pouco estimados, e nunca chegam a ser grandes Principaes. «Foi isto o que me impedio e embaraçou de vir logo. «Os habitantes de _Tapuitapéra_ e muitos de minha provincia vieram antes de mim, porem são menos do que eu. «Alegro-me com a vossa vinda, porque saberei que ha Deos: sou mais capaz de o saber do que um só dos meos similhantes: não desejava que um só d’elles me precedesse ou que tu o levasses diante de mim, e o fizesses fallar com Deos. «Quando me ensinardes o que é _Tupan_, terei mais autoridade e serei mais estimado, do que actualmente, e em meo paiz occuparei o primeiro logar depois de ti. «Dize o que queres que eu faça, e quando meos similhantes virem, que eu sou filho de Deos e lavado todos desejarão sel-o, buscando imitar-me. «Terei grande pesar, si estimares outro mais do que eu, porque sempre vizei altas coisas. «Tinha muita curiosidade de visitar e de ouvir os Francezes. «De meos avós aprendi a historia de Noé, o qual construio uma barca, pôz dentro sua gente, que Deos fez chuver abundantemente por muitos dias, que a terra ficou submergida debaixo d’agoa, invadindo campos, montanhas, valles, mar, e separando-nos de vós. «Noé foi pae de todos. «Soube tambem que Maria era Mãe de _Tupan_, sendo Virgem, porem Deos mesmo fez corpo para si no ventre d’ella e quando cresceo mandou _Maratás_, Apostolos para toda a parte, nossos paes viram um, cujos vestigios ainda existe. «Vós outros padres são mais do que nós, porque fallaes a _Tupan_, e sois temídos pelos espiritos: eis porque quero ser padre. «Muito tempo ha, que eu sou _pagy_, e ninguem é mais do que eu, porem não faço caso d’isto, porque vejo que meos similhantes somente vos apreciarão. «Desejaria muito que viesses a minha provincia, boa terra, onde se encontram muitos javalys, viados, e corças, nada te faltará, e sempre estarei comtigo.» Respondi-lhe a tudo isto, dizendo ter muita satisfação de vel-o, ja tendo muitas vezes ouvido fallar d’elle e do seo poder, como enganava com certos ardis os indios fazendo-os acreditar ter em seo poder um espirito familiar, sendo ainda maior o seo contentamento por vel-o principiar a reconhecer sua falta, sendo certo que por seo discurso eu bem percebia que elle não tinha a intenção, que Deos exige, para ser posto no numero dos seos filhos e lavado com agoa divina. Replicou-me assim: «Que queres dizer com isto, que eu não procuro Deos como convem? «Será porque desejo ser padre como tu, fazer-me admirar mais do que nunca entre os meos, persuadil-os a ser filhos de Deos, a procurar-te para serem baptisados, e fazeres em minha provincia o que quizeres, que de mim se diga que eu era o grande _Pagy_, sendo o primeiro a reconhecer Deos e vós outros padres. «Sendo estimado pelo grande espirito, os outros á minha sombra procurarão a Deos e farão como eu. «Si eu não me fizer lavar, muitos não o farão, e dirão—esperemos que _Pacamão_ seja _Caraiba_, e depois nós o seremos, porque tem melhor espirito e é mais esperto do que nós. «Deves saber que antes de terdes chegado, eu ja lavava os habitantes do meo paiz, como vós padres fazeis com os vossos, porem em nome do meo espirito, e vós o praticaes em nome de _Tupan_. «Eu bafejava os infermos, e elles ficavam bons: elles me diziam o que fizeram, e eu embaracei _Jeropary_ de fazer-lhes mal. «Fazia apparecer annos bons, e vingava-me dando doenças aos que me despresavam. Dava-lhes agua que corria do pavimento de minha casa, o que agora não faço e nem quero mais fazer, porque era a subtilesa do meo espirito, que me suggeria todas estas coisas, zombando assim dos meos, que julgavam, por falta de espirito, ser isto maravilha. «Foi um francez que me ensinou a fazer brotar agoa do soalho de minha casa.» Respondi-lhe pelo meu interprete, que na sua réplica descobria não procurar elle a Deos como era conveniente, por que pretendia por meio do baptismo fazer-se maior e mais estimado entre os seos do que era antes por meio de seos grosseiros embustes, visto que Deos exigia de seos filhos, que fossem humildes, e que se arrependessem dos peccados passados: com quanto na verdade Deos não deixe de exaltar os seos, muito mais do que os diabos fazem com os seos sectarios, em quanto elle tivesse esse espirito, não esperasse que os padres o baptisassem, e sim o fariam só quando elle não fosse soberbo, e estivesse arrependido de suas feitiçarias. Em quanto eu dizia estas palavras, chegou o interprete do Sr. de la Ravardiere por nome _Mingan_, a quem eu tinha mandado chamar para conversar com _Pacamão_, porque é da indole d’esses selvagens dar mais credito aos interpretes mais velhos do que aos moços. Contei-lhe palavra por palavra toda a nossa conferencia até aquella hora, e lhe pedi para fallar a elle de conformidade com os meos e seos pensamentos. Eis como elle fallou: «Tu bem sabes, que ha muito tempo eu converso comvosco, e com vossos paes, quando estavamos em _Potyiu_. «Muitas vezes te chamei embusteiro por abusares de teos similhantes, muito credulos. «Tu lhes fazias crer tudo quanto querias: teos paes e todos os não baptisados vão para _Jeropary_ no inferno, e tu irás com elles si não fizeres o que dizem os padres. «Quando estavamos comtigo antes da vinda dos padres, sempre zombavamos do que faziam vós e os outros _pagys_: não diziamos palavra por não ser esse o nosso fim, e sim colher algodão. «Lançavamos mão de vossas filhas, e d’ellas tinhamos filhos, o que é hoje prohibido pelos Padres, não me atrevendo por isto nem eu e nem os outros, ir a Igreja, porque os Padres nos ensinam, que Deos prohibe a deshonestidade. «Tens trinta mulheres, deves deixal-as e te contentares com uma, se desejas ser filho de Deos e receber o baptismo. «Pensa bem e sobretudo na felicidade que si te offerece de poder salvar-te e livrar-te das patas do Diabo. «Teos paes não tiveram tal occasião: foi Deos que te inspirou a vir ter com os Padres e lhes pedir o baptismo. «Lembra-te que Deos sabe de tudo e não pode ser enganado, quer e deseja que todos que o buscam, renunciem o diabo e suas acções.» Respondeo assim _Pacamão_: «Não sabes o que tenho sido entre os meos? Quanto caso fazem de meos feitiços? Não sabes que sempre tratei os francezes como pude, e de muito boa vontade? «Animei sempre meos similhantes a dar-lhes suas filhas e seos generos em troco de ferramentas: sentia-me satisfeito entre elles aprendendo alguma coisa de novo, porque os francezes tem mais espirito e intelligencia do que nós, e apenas soube da chegada dos Padres fiquei muito contente, e disse aos meos similhantes—que felicidade! elles nos ensinaram a conhecer a Deos, quero ir vel-os. Foi isto que aqui me trouxe, e é d’isto que nos occupamos.» Disse a _Migan_ estar elle repetindo o que eu ja havia dito, isto é, que era bem vindo, sendo porem necessario buscar o baptismo com arrependimento e humildade. Migan explicou-lhe muito bem a grandeza e o poder de Deos, e a pequenez dos homens, especialmente dos captivos de Satanaz. Mostrou-se satisfeito, e me prometteo vir na manhã seguinte fallar commigo dos seos negocios. Assim finalisou-se esta conferencia, e si retiraram para o Forte depois de ter cada um bebido um pouco de agoardente. Vamos notar muito bellas particularidades n’este discurso, que não seriam entendidas ou passariam desapercebidas si não fossem indicadas. Em primeiro lugar o falso zelo d’estes selvagens em conservarem sua autoridade e prestigio entre os seos, não fazendo acção alguma sem reflectir, pela qual possam ser mal apreciados pelos seos inferiores, tão levianos e imperfeitos como elles, e por conseguinte tão incapazes de entretêr os espiritos familiares como elles: supponhamos que para ter o gozo dos espiritos é preciso ser constante e grave, e não se deixar levar pelas primeiras informações. Pensando n’isto, vêde como os diabos abusam da luz natural do homem, que claramente nos faz vêr si desejamos conservar em nós o verdadeiro espirito de Deos, sendo conveniente banir a leviandade e inconstancia do nosso interior, reconcentrar-nos com firmesa, e nada fazer ou dizer, que não seja discutido e decidido pela rasão. De outra fórma somos menores em relação a profissão do Christianismo, do que estes feiticeiros, que se esforçam a ser graves procurando conquistar a estima de seos similhantes. Em segundo lugar notareis os effeitos do espirito diabolico, que são a soberba e a grande presumpção, que já se abriga até entre as coisas sagradas: tão grande é o seo veneno a ponto de querer atacar o seo contrario, visto não haver maior antagonismo do que entre o Espirito de Deos e o de Satanaz, a humildade de Jesus Christo e a soberba de Lucifer, a abnegação do Christão e a presumpção dos filhos do diabo! Assim procedia Simão, o magico, para com S. Pedro, procurando com seo dinheiro o Espirito de Deos, afim de se fazer reconhecido como grande por meio do Espirito Santo. Que grande cegueira julgar Deos vassallo da vaidade! Que desgraça estar uma alma presa por infernaes obscuridades! Este pobre feiticeiro do Brazil julgava no principio, que tinhamos Deos em nossa algibeira para dal-o a quem bem nos aprouvesse, obedecendo elle a quem o entregassemos. Com o fim de se apoderar de sua alma o diabo o escravisa e o obriga a commetter mil loucuras, inspirando esse _Pagy_ para isso. Deos nos livre de tal perigo! Em terceiro lugar—quanto ao que elle disse de Noé e da Virgem não ousarei dizer d’onde elle teve essas ideias: si foi dos francezes, não parece muito, porque os que vieram antes de nós só lhes fallariam de obscenidade, e concubinatos; é mais provavel, que fosse de tradicções antigas, porque apenas chegamos a _Yuiret_, _Japy-açú_ nos fallou quasi da mesma maneira do diluvio e de um Apostolo, que por aqui andou, como se lê na obra do Reverendo Padre Claudio d’Abbeville. CAPITULO XVII Segunda conferencia, que tive com Pacamão. Na manhã seguinte veio vêr-me, como me tinha promettido, em companhia de sua gente. Não quiz assentar-se na rede, e pegando-me na mão disse-me _Ché assepiak ok Tupan_ «eu te rogo leva-me a vêr a casa de Deos quero fallar-te conforme teos discursos de hontem á tarde.» Disse-lhe, que me acompanhasse, que satisfaria seos desejos, e assim o fiz. Logo que entraram todos, mandou que ficassem na porta e proximando-se de mim fallou-me em segredo—aquelles, nada sabem e nem entendem o que se fallar á respeito de Deos, por tanto quero que conversemos á vontade. Mandei ornar a nossa Capella com os melhores paramentos, e pôr sobre os degraos do altar muitas e differentes Imagens. Aproximamos-nos do altar sempre acompanhado pelo intreprete. Por mais de duas horas indagou de mim tudo quanto via. 1.º Quiz saber o que significava o Crucifixo dizendo-me—quem é este morto tão bem feito e tão bem estendido n’este pau encruzado? Expliquei-lhe que isto representava o Filho de Deos, feito homem no ventre da Virgem, pregado por seos inimigos sobre esse madeiro afim de ir ter com seu seo Pae, felicidade que alcançariam tambem os que fossem lavados com o sangue, que elle via correr de suas mãos, pés e lado. Conservou-se admirado por algum tempo, olhando com muita attenção a Imagem do Crucificado: exhalou depois um suspiro, e soltou estas palavras como _omano Tupan?_ «Que! será possivel que Deos morresse?» Repliquei-lhe não ser necessario, que elle pensasse que Deos tivesse morrido, porque sempre viveo desde a eternidade, dando vida aos homens e aos animaes: o que falleceo foi o corpo somente, que elle tomou da Virgem Santa Maria para matar _Jeropary_, como elle via fazer aos meninos quando querem apanhar um peixe grande no mar, que devora os pequenos, deitando como isca no anzol de sua linha o corpo de um d’esses peixinhos, o que sendo visto pelo peixe grande atira-se sobre elle e vê-se pilhado, puxado, derribado e morto, em favor e livramento dos pequenos. Assim tambem este mau _Jeropary_ ia devorando todos os nossos Paes, porem aprouve a Deos enviar seo Filho para pescal-o á linha, servindo de haste esta Cruz, de anzol ou de croquezinho estes cravos e espinhos, e d’isca seo corpo. Mas, respondeo-me elle, porque havia o diabo de ter poder sobre nossos paes? Porque, respondi, elles foram rebeldes á lei de Deos, comendo do fructo prohibido, e deixaram-se enganar pelo diabo, debaixo da forma de serpente. Com quanto Deos nos podesse salvar por outros meios, achou mais docil e rasoavel tomar o rapinador em lugar de suas victimas. Mostrou-se contente, e perguntou—o corpo de _Tupan_ está ainda em França sobre a Cruz, como este que tu me mostras, e tu o vistes? Não, respondi, porem resuscitou pouco depois da sua morte, levando seo corpo lá para cima, lá para o Ceo, vivendo e brilhando como o sol, sentado no mais bello lugar do Paraizo, vindo curvar-se diante d’elle todos os espiritos e almas de pessoas de bem, e agradecer-lhes a morte do seo inimigo. Com a protecção d’este corpo, os nossos, depois de mortos, resuscitarão e irão para o Ceo levados pelos Anjos, isto é, nós que somos lavados com o sangue derramado de suas chagas. Vossos corpos e os de vossos paes irão ter com _Jeropary_ arder em fogos eternos, si não fordes lavados com este sangue. É necessario, disse elle, correr muito sangue de seo corpo, e que vós o guardeis com todo o cuidado para lavar tanta gente. Respondi—és ainda muito obtuso para comprehenderes estes mysterios. «Basta ter sido espalhado uma unica vez esse sangue sobre a terra, e que em memoria e respeito a elle lavemos espiritualmente as almas com agoa elementar, que derramamos sobre vossos corpos. «Não vês correr sempre uma fonte, ainda que cavada uma só vez pela mão de Deos? «Tu bem sabes, que as constellações sete-estrellas e a ursamenor foram pregadas uma só vez no Ceo, e com tudo todos os annos, apenas brilham por cima da tua cabeça, ellas te mandam chuva, que rega tuas roças.» Disse ainda: «Eram malvados os que mataram _Tupan_, porque elle era bom, eu o amo, e n’elle creio.» Respondi-lhe. Foram seduzidos por _Jeropary_, como tu, que os animou a perseguil-o, a matal-o, e crucifical-o, porque elle os censurava por sua maldade, como nós agora fazemos, seguindo em tudo a lei, que nos deo. Todos os que obedecem ao diabo são seos inimigos e si elle hoje voltasse ao Mundo passaria por iguaes soffrimentos, repetindo os actuaes o mesmo que fizeram os outros antigamente. Respondeo-me—desejava que me desses uma Imagem como esta para levar commigo quando regressasse á minha provincia. Repetirei palavra por palavra á meos similhantes o que acabas de dizer-me, e farei para ella melhor casa do que esta, eu a fecharei muito bem, só eu entrarei ahi, e algumas pessoas capazes de entenderem as explicações, que me destes. Respondi—quando fores baptisado, nós te daremos licença para fazeres uma casa, onde levantaremos um Altar igual á este, com iguaes ornatos, e com Imagens como as que estás vendo. 2.º Nos pés do Crucifixo havia uma Imagem de Nossa Senhora, feita em bordado alto, de extrema belleza, e revestida de perolas, presente do Sr. de S. Vicente quando regressou á França: olhando para ella, perguntou-me—quem é esta mulher tão bonita, e este menino que olha para ella de mãos postas? Eu lhe disse, que era a figura de Maria, Mãe de Deos, e este menino é o filho de Deos quando sahio do ventre d’Ella. Repetio estas palavras duas ou tres vezes—_Ko ai Tupan Marie?_ «Como é Maria Mãe de Deos?» _Kugnan Ycatu_, «linda mulher.» Respondi, que assim devia ser, pois que Deos a escolheo para Esposa e Mãe de seu Filho, que era a Princesa de todas as mulheres, tendo tido por marido Deos unicamente, e que sendo pura deo á luz o Filho de Deos, que tinha resuscitado depois da sua morte, como aconteceo a seo Filho, sendo levada para o Ceo pelos Anjos, onde estava assentada ao pé do corpo de seo Filho. Que grande coisa, disse elle, uma Virgem parir. Como, respondi eu, não vês crescerem as ôstras nos ramos das arvores, só e unicamente, sem auxilio algum? Deos ama a puresa, porque elle é mais puro do que a luz do sol. È verdade, respondeo, porem vós, e os outros padres, sabeis grandes coisas, sois mais sabios do que nós, porque não prestamos attenção ás coisas da nossa terra, que vemos todos os dias, e vós em tão pouco tempo já as conheceis. Ainda não é tudo, disse-lhe, vinde commigo, e prestae attenção ao que vou dizer-vos por intermedio do meo interprete para repetirdes tudo, quanto souberdes, aos teos companheiros, que ficaram na porta por tua ordem, visto ser da vontade de Deos que todos se salvem grandes e pequenos. Dizendo-lhe isto, fiz-lhe vêr todas as peças e quadros da creação e da redempção, apontando-lhe todas as suas diversas partes: n’uma, por exemplo, a creação dos Ceos e dos elementos, n’outra a creação dos peixes e dos passaros, e n’outra a creação dos animaes, das arvores e das hervas: causava prazer vel-os olhar com muita attenção para as figuras dos passaros, dos peixes e dos animaes afim de conhecerem os da sua terra, e quando descobriam um parecido, não deixavam de dizer-nos—eis tal passaro, tal peixe, e tal animal, e os que não conheciam perguntavam si haviam em França, e como se chamava. Captivou-lhes principalmente a attenção a figura de Deos, no meio do quadro, com os braços abertos, soltando da bocca um forte sopro de vento, e me perguntaram o que isto queria dizer? Expliquei-lhes, que isto representava a maneira, como foram feitas todas as coisas, apenas com a palavra de Deos, cujo poder e dominio estendia-se ás duas extremidades do Ceo. Admirou-se tambem muito da mulher ter sido formada pela costella do homem, quando dormia, pedio-me explicações, e assim o satisfiz dizendo, que Deos quiz com isto que elle tivesse uma só mulher e não mais de trinta como elle tinha; porque si Deos quizesse, que tivesse mais de uma, elle o teria permittido desde o principio, e sendo creado somente uma e ainda á custa da costella do homem assim demonstrou, que este só devia ter uma mulher, a quem amasse e conservasse, e não mudal-a á capricho da vontade, como fazeis vós outros, sectarios de Jeropary, que vos persuadio terdes muitas mulheres afim de indispor-vos e estrangular-vos uns com os outros, visto que costumaes roubal-as até na casa de seos proprios maridos. Na escada do altar estavam as imagens dos doze Apostolos e o padre Sam Francisco, muito bem feitas e illuminadas. Perguntou-me quem eram esses _Caraybas_? Estes doze, respondi, são doze _Maratas_ do filho do _Tupan_,[107] os quaes, depois que subiram ao Ceo, dividiram o Mundo Universal em doze partes: tomou cada um a sua, onde foi guerrear _Jeropary_, e lavar todos os crentes em Deos, deixando successores, que foram se revesando até nós. Peguei na imagem de S. Bartholomeo, e lhe disse—Olhae, veio a vossa terra este grande _Marata_, e aqui fez muitas maravilhas, como por tradicção vos contou vossos antepassados. Foi elle quem fez talhar, á rocha, o altar as imagens, e as inscripções, que ainda existem actualmente, como tendes visto.[108] Foi elle quem vos deixou a _mandióca_, e vos ensinou a fazer pão, pois vossos paes, antes de sua vinda, comiam só raizes amargas dos mattos. Como não quizestes obedecer, elle vos deixou, predizendo grandes desgraças, e que ficarieis por muito tempo sem vêr _Maratas_. Tal qual aconteceo, e só agora é que tivestes quem vos livrasse das mãos do diabo, e vos fizesse filho de Deos. Tomae cuidado em não fazerdes o que fizeram vossos paes. Logo que lhes transmitti estas palavras pelo meu interprete, olhou para a imagem de Sam Francisco e me disse—quem é aquelle que está vestido como tu? É, disse eu, o pae de nós outros padres, que assim se vestem. Vive ainda? replicou, está em França? Foi elle quem te mandou para cá e aos outros padres? Não, respondi, ja não vive, morreo, porque nós todos morremos, porem deixou successores, que nos mandaram para cá. Não está mais em França, e sim no Ceo com Deos, onde esperamos ir vel-o. Não tinha mulheres, como vós não tendes? perguntou. Não, respondi, porque todos os padres não as tem, imitando assim o Filho de Deos, seo Rei, que vivendo n’este mundo não tinha mulher. Dizendo isto, olhava o Ceo e as sanefas que cobriam nosso altar, as quaes eram de bello damasco com grandes folhagens, agaloadas, e guarnecidas de passamanes e franjas de prata fina, bem como o frontal do altar. Disse depois que tudo era bonito, e que serviamos _Tupan_ com grande reverencia e pedio-me para baptisal-o antes do seo regresso, e que lhe desse imagens para leval-as comsigo. É preciso, respondi, que saibas antes a doutrina de Deos. Não me dissestes ja, replicou elle, tudo quanto era necessario saber para ser lavado? Não, respondi, isto não passou de uma conversa: ha ainda muito que aprender. Que me ensinarás ainda? Respondi—si quizeres morar commigo eu te ensinarei, ou te farei ensinar muita coisa, mas não te posso baptisar ja, sem primeiro saberes a doutrina de _Tupan_. Quero experimentar tua constancia, e esperar nossos padres que não tardam a chegar conforme me prometteram. Elles te baptisarão, e irão comtigo fazer a casa de Deos na tua aldeia, e não te deixaram mais. Antes d’isso não deixes de repetir na tua _caza grande_ á teos similhantes o que sabes: não faças mais feitiçarias, e assim nós, e todos os francezes, te estimaremos, e sempre serás bem vindo. Prometto, disse elle, e cumprirei minha palavra. Bem desejo que tu me lavasses agora. Não deixarei de te vir visitar muitas vezes, porque sempre aprenderei alguma coisa. Chamou então seos companheiros, que ficaram por todo este tempo na porta da igreja. Que obediencia e respeito entre os selvagens! Mandou que se aproximassem ao altar e á elles repetio o que lhe ensinei, mostrando-lhes as imagens e explicando o que representavam. Esta pobre gente estava como que fóra de si, mostrando-se admirada a seo geito, e depois despedio-se e foi para o Forte de S. Luiz, onde embarcou e regressou á sua terra. Veio depois visitar-me para tratar do mesmo objecto, e contou-me como cumprio suas promessas, fallando na _caza grande_, e repetindo o que lhe ensinei, e affirmou que todos se fariam christãos logo que elle fosse baptisado, o que me pedio ainda uma vez. Animei-o a continuar a proceder assim, e dei-lhe esperança de que seria baptisado em pouco tempo, apenas chegassem os Padres de França. Conversamos ainda sobre os objectos, de que já nos tinhamos occupado da primeira vez, e com avidez recebia todos os conhecimentos mostrando por seos gestos indizivel contentamento. N’esta segunda visita, veio mais modesto, e acompanhado por poucas pessoas, sem muitos enfeites de pennas, e fallando com muito menos arrogancia do que o fez na primeira vez. CAPITULO XVIII Conferencia com o grande feiticeiro de Tapuytapéra. O grande feiticeiro de _Tapuytapéra_ era homem muito respeitavel, de boa estatura e bem feito, valente guerreiro, modesto, grave, e de poucas palavras: era muito amigo dos francezes, e gozava entre os habitantes do seo paiz do mesmo poder, que Pacamão em _Commã_, Japy-açú em _Maranhão_, o Arraia-grande entre os _Caietés_, Thion e Farinha-molhada entre os _Tabajares_, rico, e de muito bons filhos, que são fieis aos francezes e christãos, como d’aqui ha pouco diremos. Veio ao Fórte de S. Luiz seguido por perto de tresentos a quatrocentos dos seos companheiros para fazel-os trabalhar nas fortificações, e regressar á seos lares depois de acabarem seo tempo, revesando-se assim, e nunca menos de dusentos a tresentos selvagens. Durante as horas do trabalho assentava-se elle junto aos francezes mais graduados, ahi vigiava a sua gente, animava-a, e recommendava-lhe perfeição de obra. Fui vêl-o n’essa lida, desculpou-se muito para commigo, por intermedio do seo interprete, por não me ter vindo vêr logo que chegou a Ilha, por estas palavras: «Não te fui procurar, embora tivesse muito que conversar comtigo, porem deve ser com descanço. «Agora é preciso vigiar minha gente no trabalho, afim de se empregar com animo na fortificação d’esta praça. «Não deixarei de te ir vêr com _Migan_, que está aqui para te fazer sabedor do que eu digo, contando-me tambem as maravilhas, que ensinas aos nossos similhantes.» Respondi-lhe, que achava isto bom, e que estava contente vendo-o assiduo no trabalho para que fóssem bem feitas as trincheiras e fóssos afim de resistirem a seos inimigos, e que depois si nos offerecia occasião de conferenciarmos: que era só isto, que eu desejava, que nós todos o estimavamos e muito, tanto por sua bondade natural como porque elle era amigo dos francezes, e sempre fiel. Assentamos-nos depois um em frente do outro, conversamos sobre muitas coisas indifferentes, especialmente do enthusiasmo de sua gente, e particularmente das crianças, que carregavam terra, o que causava a elle e á nós muita satisfação, fazendo-me dizer e a proposito, que bem razão lhes assistia n’esse trabalho, cheio de fervor e de coragem, pois era para elles, que se lidava, visto que um dia veriam as maravilhas feitas pelos francezes n’esta terra. «Serão bem differentes do que somos, dizia elle, porque serão _Caraibas_, andarão vestidos, e verão as Igrejas de Deos construidas de pedra.» Confirmei em minha resposta a felicidade de seos filhos no futuro, assegurando-lhes, que d’ella tambem gozariam porque não haveria muita demora na vinda de soccorros e navios de França trazendo muitos Padres, muitos francezes guerreiros, muita ferramenta e generos para elles: que então se construiriam casas á maneira dos francezes, que seriam acompanhados por elles quando fossem guerrear seos inimigos, que viriam os _Tupinambás_ e os outros alliados cultivar a terra da _Ilha_, e que tudo isto poderiam vêr antes de morrerem. Ditas estas palavras despedi-me d’elle, e regressei á minha habitação. Quando acabou o tempo do seo trabalho veio visitar-me, acompanhado pelos principaes da sua Nação, e pelo interprete _Migan_. Assentou-se, e pedindo fumo, como costumava, me disse estas palavras: —Antigamente usei de muitas feitiçarias para me tornar grande e authoridade entre os meos. Muito tempo ha que conheci este abuso, e que zombo dos que se empregam n’este officio. Não ignoro a existencia de um Deos, porem não sei conhecel-o. Seria impossivel o giro annual do sol, a existencia de ventos e chuvas, e o forte estampido dos trovões si não houvesse um Deos, autor de tudo isto. Temos então homens maus, que vivem livremente sem temer algum castigo, e pensamos que elles irão ter com _Jeropary_. Temos outros homens, que são bons, que não matam, que dão expontaneamente a sua comida, e pensamos serem elles amados por Deos, e por tanto que não vão cahir no poder do diabo. Alegrei-me muito quando me noticiaram a vinda dos padres, que faziam conhecer _Tupan_, e que em seo nome lavavam os homens: foi este o principal motivo, que aqui me trouxe para vos vêr, e manifestar-vos o meo desejo de ser instruido e baptisado, porque ja soube, que dissestes serem condemnados os não baptisados, e que se perderam nossos paes. Tenho muitos filhos, quero que sejam christãos, como eu afim de irmos todos para a companhia de Deos. Desejo edificar na minha aldeia para elle uma casa, e junto d’ella outra para vós: eu o sustentarei e nada lhe faltará. Os que na minha provincia confiam e tem fé em mim, serão christãos.— Traduzindo-me o interprete tudo quanto acima escrevi, acrescentou «este homem tem muito amor a Deos, e conhece-o muito, porque usa das palavras mais expressivas da sua lingua para melhor exprimir o que sente e conhece, e tenho muita pena de não poderdes entendel-o e conhecer o que elle diz. Respondei conforme seos desejos, fazei com que elle entenda estas palavras, o mais eloquentemente que puderdes.» «Informaram-nos os francezes muito bem de vós e de vossos filhos, tanto de vossa fidelidade, e amisade, como de vossa natural bondade: eis o verdadeiro meio de cedo receberdes o favor de Deos, alcançardes seo conhecimento e seo baptismo. Tu o vês ordinariamente diante de ti quando a terra produz facilmente muitos fructos, provenientes da semente n’ella lançada. «O homem é a terra, e o Evangelho a semente: quando Deos encontra boa terra, sem cardos e nem espinhos, elle ahi lança sua semente: á vista disto muito espero de ti e de teos filhos, e te asseguro que si fossemos mais nós os padres, tu já levavas um comtigo: tende porem paciencia, breve chegarão outros. «Não deixes comtudo de edificar a casa de Deos e a dos padres, para que apenas cheguem, possas leval-os e acommodal-os. «Não podes demorar-te aqui muito tempo em virtude do teo cargo: nós como somos poucos, não podemos tambem ir comtigo; conserva teos bons desejos, e Deos te ajudará. «Conheci ja que tens muito amor a Deos, que seo espirito tocou-te o coração, e illuminou-te o entendimento para te guiar no que me dissestes: é grande bem para ti, não o despreses.» Respondeo-me assim: —Nunca fui mau, nunca me agradaram as carnificinas dos nossos escravos. Nunca roubei as mulheres dos outros, contentava-me com as minhas. É bem verdade, que me fiz temido ameaçando os que me despresam com molestias, que contrahiam por medo. Nunca fallei com Espiritos, como fazem os outros _pagés_, e apenas empreguei a subtilesa da minha intelligencia, e a grandesa da minha coragem. Minhas feitiçarias concorreram menos do que a coragem, que muitas vezes hei manifestado na guerra, para conquistar a authoridade que hoje occupo. Estou velho, e só ambiciono paz e tranquilidade.— Respondi-lhe haver procedido bem, irritando contra si muito menos o soberano, á vista do comportamento de outros feiticeiros, que entretinham relações com o diabo, e que assim ficasse gosando a tranquillidade de sua consciencia até o dia do seo baptismo. Pedio-me para vêr a Capella, e buscou informar-se de tudo quanto via—altares, paramentos, e imagens. Expliquei-lhe tudo bem á sua vontade, e assim despedio-se de mim para regressar ao seu paiz, o que fez. Dei-lhe imagens para levar comsigo, o que recebeo com muita alegria, e expliquei-lhe o que significavam, e recommendei-lhe que as guardasse com todo o cuidado para que _Jeropary_ não as tomasse, visto ter sido vencido antigamente pelo Filho de Deos, que morreo na Cruz. Com taes impressões partio. Pouco tempo depois foi convertido Martinho Francisco a quem permittimos edificar uma Capella na sua aldeia, onde celebrariamos missa, e baptisariamos quando fossemos a _Tapuitapéra_. Este grande feiticeiro, de quem acabamos de fallar, teve ciumes, e mandou-me dizer, que muito se admirava de eu ter dado licença a Martinho Francisco para fazer uma Capella na sua aldeia antes d’elle construir uma na sua, preferencia que elle bem merecia pela sua grandesa, tendo tambem padres comsigo como lhe fôra permittido. Aos que me trouxeram o recado respondi não ter ultrapassado de forma alguma minhas palavras e promessas, que era elle o primeiro de _Tapuitapéra_, a quem tinha dado licença para fazer uma capella, que devia preceder os outros e em quanto aos padres ainda não tinham chegado: que quando fossemos a _Tapuitapéra_ não deixariamos de ir vel-o e visital-o; mas que eu não podia recusar a Martinho Francisco, ja christão, o ter junto de si uma casa de Deos para fazer suas orações. Achou boa a resposta. Entre os convertidos por Martinho, depois do seo baptismo, foram dois dos filhos d’este _Muruuichaue_, e com isto teve Martinho singular consolação, animando-os a aprender suas crenças e a doutrina christan; porem aconteceo, infelizmente, serem elles seduzidos pelas más palavras de um de nossos interpretes para deixarem o Christianismo. Sabendo seo bom pae, que elles para esse fim tinham deixado seos habitos e vestidos, lhes disse o que ides fazer? moveis-vos por bem pouco! «Porque vos despis, e dissestes, que não querieis mais ser christãos? «Quero agora que torneis a tomar vossos vestidos; ide procurar Martinho Francisco na sua aldeia, e d’elle recebei a doutrina, que os padres lhe ensinaram. «Não vos separeis d’elle, e nem cá venham senão em sua companhia. «Eu mandarei chamal-o para que vá ter com os padres.» Estes rapazes obedeceram a seo pae, tornaram a tomar seos vestidos, vieram procurar Martinho Francisco, que foi ter com o grande feiticeiro, e veio depois em companhia de muitos christãos ao Forte de Sam Luiz para nos declarar, e aos nossos chefes, como se passaram estas coisas, e a ellas se deo remedio, conforme a occasião permittio. O Revd. Padre Arsenio, acompanhado por muitos christãos, foi vêl-o em sua aldeia, onde foi muito bem recebido, notando toda a alegria que póde mostrar no rosto um selvagem, presenteou-lhe com muita caça, e rogou-lhes que si quizesse morar em _Tapuitapéra_ que escolhesse para residencia sua aldeia, e ahi seria bem acommodado, tanto quanto permitte o paiz. Depois d’isto mandou-me seo filho mais velho, chamado _Chenamby_, «minha orelha,» com sua mulher, ambos com carga, e um filho pequeno. Disse _Chenamby_—Meo pae está com muito cuidado em ti, receia que não tenhas farinha, e é isto que aqui me traz. Logo que houver milho elle te mandará muito. Tem muita vontade de saber logo que aqui cheguem os Padres, porque immediatamente deixará a sua aldeia, e atravessará o mar para cumprimental-os, pedir um d’elles e leval-o comsigo para aprender a sciencia de Deos, e ser por elle lavado. Dois dos meos irmãos são _Caraibas_, os quaes, como sabes, se despiram, apesar das observações, que lhe fizeram, actualmente vão indo bem, e estão sempre com o _padre-miry_, «padre pequeno,» (sobrenome que davam a Martinho Francisco por causa do empenho d’elle em converter as almas): quero ser christão, conjunctamente com meo pae, minha mulher, que aqui está, e meo filho pequeno que ella carrega, o qual chegando á idade propria, darei aos padres para ser por elles instruido.— Este _Chenamby_ balbuciava um pouco o francez, e entendia tambem alguma coisa, graças ao trabalho e empenho, que para isso empregava, fallando com os francezes o mais que podia. Respondi-lhe em sua linguagem por meio do interprete, d’esta forma: «Que estava muito contente por seo pae lembrar-se de nós principalmente pela constancia da boa vontade de seo pae e de seos irmãos para com o christianismo, e especialmente vendo elle e sua mulher dispostos a receberem a fé christã, e a nos offerecerem seos filhos para ensinarmos o que fosse conveniente quando comnosco estivesse. «Exhortei-os por muitas palavras a terem elle e sua mulher constancia em tal desejo.» Sua mulher era de agradavel presença, moça, modesta, e trazia em seos olhos não sei que pudor, não se animando a olhar-me directamente: alem d’isto occultava com o pé direito de seo filho sua enfermidade, guardando o respeito natural de não se apresentar de outra forma diante de mim, de que tirei boa conclusão agradando-me ainda mais de suas maneiras e procedimento: achei-a muito boa e caridosa para com os francezes, humilde e obediente a seo sogro e marido, virtudes não pequenas n’uma india. Antes de partir prometteo-me seo marido, que não casaria com outra, e nem a abandonaria. Respondi-lhe, que se assim fizesse os padres o casariam á face da igreja, depois de baptisado. CAPITULO XIX Conferencia com Iacupen.[109] Era Iacupen um dos principaes da tribu dos _canibaleiros_, conduzidos para a ilha pelo Sr. de la Ravardiere, pae de um mancebo christão, de boa indole, chamado João, e antes _Acaiuy-miry_, «cajú pequeno ou cajusinho.» Teve por varias vezes o trabalho de vir de Juniparan procurar-me e conversar commigo sobre as coisas divinas, e sobre a vaidade d’este mundo. Um dia veio a minha casa com seo filho, e assim fallou-me: —Tenho muito desgosto de não ser baptisado, porque sei que em quanto estiver assim, o diabo pode perseguir-me e perder-me. Ah! quem pode assegurar-me a vida até a noite? Agora volto para minha aldeia, posso encontrar uma onça furiosa, que me corte a garganta, e me mate sosinho no bosque. Para onde irá meo espirito? Não tenho pesar e nem inveja, que meo filho, que aqui está, se baptisasse primeiro do que eu. Mas dize-me: não é coisa notavel, que elle seja Filho de Deos antes de mim, seo pae, e que eu d’elle aprenda o que devia ensinar-lhe? Penso n’isto, e torno a pensar muitas vezes, principalmente depois da vossa vinda, e da de outros padres: lembro-me da crueldade de _Jeropary_ para com a nossa nação, porque tem feito morrer a todos, e persuadio a nossos feiticeiros de conduzir-nos ao centro de uma floresta desconhecida, onde dançariamos constantemente, alimentando-nos somente do amago das palmeiras e da caça, succumbindo muitos por fraqueza e debilidade. Sahindo nós de lá, e vindo nos navios do _Muruuichaue_ la Ravardiere para a ilha do Maranhão, armou-nos _Jeropary_ outra emboscada, instigando por meio de um francez aos _Tupinambás_ para matarem e comerem muita gente nossa: si não é a vossa chegada acabariam comnosco. Ja vedes, que somos muito infelizes n’esta vida. Perseguimos os veados e outros bixos para matal-os e comel-os, porem elles não necessitam de ferramentas, de fogo e nem de canoas, pois acham a comida feita: quando perseguidos n’um lugar, em poucas horas transportam-se para outro atravessando até braços de mar, sem canôa: nós outros porem não podemos fazer o mesmo: faltam-nos ferramentas, fogo e canoas, e o que é mais, vem ainda perseguir-nos nossos inimigos, ora os _Peros_, ora os _Tupinambás_, e finalmente outras nações adversarias: finalmente a nossa posição é peior do que a dos animaes da terra.— Respondi-lhe: «O que disseste, é bem certo, porque o diabo o que deseja somente é matar o corpo e perder a alma, e assim procede sempre com aquelles, com quem tem pouco a ganhar retendo-os em suas cadeias: é um monsenhor, e trata cruelmente seos servos. «Deos não é recebedor dos velhos, e nem dos moços. Os primeiros, que se apresentam, são recebidos por elle, comtudo os ultimos são sempre os primeiros, porque recebem o christianismo com mais consideração, e o conservam com mais fervor do que os que o abraçam ligeiramente. «Nosso Deos nos fez miseraveis n’este mundo afim de não olharmos só nas delicias da carne, e sim para preparar-nos com destino a outra vida alem d’esta.» Antes de passar adiante convem explicar o que elle quiz dizer, quando fallou da desgraça de sua nação, devida aos conselhos dos seos feiticeiros, e á carnificina feita pelos _Tupinambás_. Havia entre elles um grande feiticeiro, que entretinha com o diabo visiveis relações, e gozava de tal poder entre elles que todos lhe obedeciam. Aproveitou-se o diabo de tal ensejo para seduzir e enganar esta populaça, ensinando ao feiticeiro o que devia dizer-lhe para elle ir tomar posse d’uma terra, onde tudo, facil e sem trabalho lhe appareceria á medida de seos desejos. Esta nação, tão cheia de prejuisos, seguio este desgraçado, não intermediando muito tempo sem conhecer a zombaria do espirito do conductor, porque falleceram milhares, e acharam-se no meio de vasta floresta, dançando constantemente, como elle lhe ordenou, até que chegasse o Espirito para lhe indicar o lugar procurado. Ahi achou-se o Sr. de la Ravardiere, demonstrou-lhe seo engano, o que reconhecido, seguiram-no e embarcaram-se em seos navios com destino á Ilha do Maranhão, onde algum tempo depois um miseravel francez tendo uma questão com o Principal d’essa gente, para vingar-se, instigou os _Tupinambás_ a matal-a, subindo esta carnificina a cem ou á cento e vinte, entre mortos e prisioneiros. Tal barbaridade foi praticada cinco ou seis mezes antes da nossa chegada. Continuemos. Depois de minha resposta, disse-me: —Tenho bem pesar de não poder obsequiar-vos como mereceis, porque não tenho meios de ter escravos; outr’ora fui rico, hoje sou pobre. Fiz o que pude ao padre, residente em _Juniparan_. Tenho bem pesar de não traser-te caça sempre que venho vêr-te.— Repliquei-lhe immediatamente: «Não é isto que desejo de ti, e estou muito contente de conhecer tua devoção, e tua boa vontade, porem ambiciono que sempre progridas de dia á dia, e adquiras novos conhecimentos á respeito de Deos. «Tens um padre na tua aldeia, visita-o sempre, e d’elle aprende as maravilhas de _Tupan_. «Tens alem d’isto teo filho, que sabe a doutrina christan; elle que a ensine a ti e a todos de tua casa, o que fará melhor do que nós, visto pronunciar bem as palavras da tua lingua.» —O que acabas de dizer-me afflige-me muito, respondeo-me elle, porque meo filho depois de christão, logo no principio, procedeo bem: ja sabia lêr um pouco no seo _Cotiare_, e escrever, estava sempre com o padre, e o seguia por toda a parte. Deixou depois tudo isto, entregou-se á liberdade, esqueceo o que havia aprendido, e foge para o matto quando o padre o procura: isto me mata e como nada aproveito em fallar-lhe, eu te peço que tu lhe mostres, e proves ser elle filho de Deos, e que _Jeropary_ o quer seduzir: eil-o aqui, falla-lhe.» Satisfiz-lhe o desejo, recordando á seo filho o fervor, com que recebeo o baptismo, admirando-me de vel-o tão mudado a ponto de fugir dos padres, pelo que eu acreditava andar o diabo no seo encalço si não regressasse aos seos deveres, se não frequentasse o padre de _Juniparan_, e não abraçasse sua antiga fé. Ouvio-me pacientemente, e prometteo-me melhor procedimento. Considerae, eu vos peço, o zelo de um verdadeiro pae para salvar seo filho, como mostrou o grande feiticeiro de _Tapuitapéra_: este pae é ainda pagão, e comtudo vós o vedes solicito, e cuidadoso pela consciencia de seo filho. Quantos paes ha em França, que só cuidam dos bens temporaes de seos filhos, e despresam os espirituaes! Veio outra vez visitar-me em companhia de alguns selvagens, seos visinhos: rolou nossa conversação á respeito da creação do Mundo, da providencia de Deos para com o procedimento dos homens, e da vocação singular e particular de cada um. —É preciso, disse, que seja Deos um Espirito poderoso, incomprehensivel para nós, para crear com uma só palavra, como ouvimos muitas vezes de vós outros padres, tudo o que vemos e ouvimos. Imagino a immensidade do mar, que ha d’aqui até a França, tanto assim, que os navios gastam doze luas no trajecto de ida e volta, e admiro que o sol, que temos, seja tambem vosso. Quantos passaros, peixes, e animaes existe no Mundo, todos foram feitos por _Tupan_.— O segundo ponto de discussão foi este: «Vejo-me embaraçado quando penso nas diversas nações, que existem no Mundo. «Vejo os francezes ricos, valentes, inventando navios para passarem o mar, canoas, e polvora para matar os homens insensivelmente, bem vestidos e nutridos, temidos e respeitados. «Ao contrario nós vivemos errantes e vagabundos, sem roupas, machados, fouces, facas e outras ferramentas. «De que procede isto? «Nascem ao mesmo tempo dois meninos, um francez, e outro _Tupinambá_, ambos doentes e fracos, e não obstante um nasce para gozar de todas as commodidades e o outro para viver pobremente. «Livres nascemos, um não tem mais do que outro, e comtudo uns são escravos, e outros _Muruuicháues_.» Eis o terceiro ponto de discussão: —Não posso tranquilisar o meo espirito quando penso, que vós outros francezes tendes mais conhecimento de Deos do que nós. Porque temos vivido tanto tempo na ignorancia? Dizei-nos, que foi Deos quem vos enviou, e para que não o fez antes? Nossos paes não se teriam perdido, como succedeo. Os padres são homens como nós, e porque elles fallam a Deos, e nós não?— Respondi-lhe a tudo isto, dizendo «ser muito pequeno nosso espirito para conceber coisas tão altas, reservadas por Deos só para si. Basta saber que elle fez tudo, ama e dá o necessario a todos.» Quando vê um individuo disposto a abraçar suas crenças não deixa de o mandar vesitar pelos seos Apostolos, que lhe proporcionam meios de salvar-se, sendo de crer não achar-se seo coração e espirito, antes da nossa vinda, disposto e apto para receber tão grande luz, qual a do Evangelho. Estes e outros discursos similhantes, que adiante encontrareis, vos habilitarão a julgar da capacidade de suas almas para receberem a fé de Jesus Christo, nosso Salvador. CAPITULO XX Conferencia com o Principal d’Orobutin. Era este Principal de alta estatura, muito magro, modesto e affavel, e tinha estado doente desde a nossa chegada até quando veio vesitar-nos. Entrou em nossa casa acompanhado por alguns dos seos, com muito respeito e quasi a tremer. Acolhendo-o muito bem, mandei sental-o em frente a mim n’uma rêde de algodão, e logo conforme o costume, principiou assim a fallar-me: «Vim hoje ter comtigo, ó padre, para duas coisas: a primeira para desculpar-me e pedir-te que não repares o não me encontrares quando chegaste em _Uraparis_, como fizeram _Japy-açú_, _Pira-Juua_, _Ianuarauaeté_, e outros Principaes da ilha, e não poude tambem vir antes de _Pacamão_, de _Aua Thion_, meo chefe, pois achava-me gravemente doente, porem no meio de minha molestia sempre tive o desejo de vêr teo rosto, e ouvir de tua bocca o que meos companheiros de aldeia me contavam de vós outros padres. «A segunda coisa que aqui me traz, é offerecer-te meos filhos, que t’os dou, quero que sejam teos, e que os faças _Caraibas_. «Desejo igualmente e peço-te, que venhas tu ou um dos padres á minha aldeia edificar uma casa para Deos instruir a mim e a meos similhantes, e declarar-nos o que _Tupan_ deseja de nós para sermos lavados, como tem sido os outros. «Asseguro-te que não faltariam viveres, por ser minha terra boa e abundante de caça.» Advirto ao leitor, que é facil traduzir as palavras e pensamentos d’este selvagem, porem não os gestos e a vivacidade do seo espirito ao pronuncial-os: direi apenas que suas expressões eram acompanhadas de lagrymas e com vóz cheia de fervor e devoção revelava-me o toque do Espirito Santo, e o ardente desejo de ser christão. Respondi-lhe: «Não precisa pedires desculpa pela tua auzencia quando saltamos na ilha, porque alem de estares doente, muito longe é d’aqui á tua aldeia, e isto só basta para seres desculpado. «Regosijo-me muito vendo em ti tão boa vontade para comnosco, e tão grande desejo de tua salvação, da de teos filhos e em geral da de teos similhantes. «Si actualmente tivessemos mais padres acredita que eu iria, ou mandaria outro á tua aldeia, porem não podemos deixar a ilha por causa dos estrangeiros que nos vem vêr, e ao que é conveniente corresponder. «Logo que chegarem os padres de França asseguro-te que terás um d’elles, porque reconheço claramente seres um dos escolhidos por Deos para seo filho. «Coragem, e espera o que te digo.» Replicou-me: «Déste-me muita consolação, porque desde que correo o boato em nossa terra de dizerdes maravilhas de _Tupan_ e de tratardes com bondade nossos similhantes, que eu nunca mais tive socego de espirito. «Quando irás procurar os padres, quando da bocca delles ouvirás o que dizem teos compatriotas? Levanta-te, e faze esforços para caminhar. «Obedecendo muitas vezes a este pensamento, levantei-me da cama, porem estava tão magro e descarnado, que nem pude sustentar-me nas pernas: olha para meos braços, meo corpo, e minhas coxas, que não recobraram ainda a carne e a gordura, que a molestia me comeo. «Admirou-me muito quando soube ter _Marentin_ vindo tão doente procurar-te, e receber o baptismo. «Peço-te encarecidamente, que antes do meo regresso me ensines alguma coisa de Deos, e acredita, que fixarei em minha memoria, e não esquecerei uma só palavra, e mui fielmente o referirei a minha gente e a meos filhos. «Tenho tres filhos, sendo o mais velho este que aqui vedes: quero que fiquem com os padres quando vierem, que se assentem á seos pés, e que escutem com cuidado o que elles disserem, e cumpram suas ordens. «Elles caçarão e pescarão para os padres.» Pelo interprete lhe disse ter elle razão, e que eu não podia recusal-a, e assim que attendesse bem ao que eu ia ensinar-lhe, e que chamasse para junto de si seo filho e seos companheiros, o que feito principiei a explicar-lhes o mysterio da creação e da redempção por meio de comparações ordinarias e palpaveis. É impossivel descrever-se a attenção e emoção, com que elle recebia estas agoas sagradas do Redemptor. Nunca animal algum foi tão avido e desejoso por uma fonte clara em pleno estio, do que este saboreando a nova doutrina. Prasa ao Ceos, sem fazer comparação alguma, que os christãos acolhessem a palavra de Deos com tanta avidez. Tinha as espaduas curvadas, em quanto fallei, os olhos meio baixos, e apenas como que a furto respirava e cuspia, e n’essa occasião era possivel presentir-se o caminhar de um rato. No fim disse-me—que grandes coisas! nunca ouvi fallar n’ellas e nem n’outras similhantes, porque Deos não quiz fallar comnosco, e nem com os nossos antepassados, e nenhum _Caraiba_ ainda nos entreteve contando-as. Acabas de dizer-me que Deos está em toda a parte, que não póde ser visto, mas vê tudo e nos ouve, acompanhando-nos por toda a parte, e sempre adiante: que somente os baptisados podem sentil-o e reconhecel-o, que não tem corpo como nós, mas sim é um espirito derramado por todo o universo. Ouvi bem, mas difficilmente comprehendo, porque não estamos costumados a ouvir tão grandes coisas, e sim temos inclinação natural para pescar, caçar, flechar e fazer muitos exercicios. Em quanto aos mais entregamo-nos aos nossos feiticeiros, dotados de animo mais subtil para conversarem com os espiritos. Disseste-me ser Deos como o ar que respiramos constantemente, pois sem elle morreriamos: que _Tupan_ nos dava vida e respiração, entrava em nós e nos cercava por toda a parte como o ar: que assim como o ar existe e vae por toda a parte, assim tambem Deos entrava e existia em todo o lugar. Entendo bem este ponto, pois si Deos fez o ar, necessariamente é mais do que elle. Estou muito satisfeito por me dizeres, que _Jeropary_ apenas era criado ou servo de _Tupan_, que é perseguido pelos espiritos bons, quando faz ou persegue algum homem ou mulher sem licença de Deos, e que finalmente não tem poder sobre os baptisados. Bem fez Deos, porque _Jeropary_ é mau, e eu bem desejaria que elle fosse açoitado até morrer pelos bons Espiritos. Apenas eu fôr christão, si elle aproximar-se de minha aldeia, irei atrevidamente ao seo encontro, e não terei medo algum.— Desculpae as expressões d’este selvagem, não christão. Escutae o resto da sua conversação. —Era necessario, que a moça, com quem Deos se casou, fosse muito bonita, riquissima, e a mais poderosa do seo paiz, por ser _Tupan_ o maior de todos os _Muruuichaues_: creio que seo filho tinha grande sequito e muito acompanhamento; porem os malvados traidores, que o mataram, eram velhacos e cautellosos porque o fizeram occultamente pois si sua gente soubesse o teriam defendido. Parece-me que ficariam bem admirados quando o viram sahir vivo de sua sepultura: devia então vingar-se dos que o fizeram morrer, mas tu me disseste uma coisa admiravel, isto é, que elle subio para o Ceo, somente em corpo e alma, que está sentado acima do sól, que tem olhos mais claros que o sól e a lua, que nada se faz na terra, que elle não veja e observe tanto na tua patria como na nossa, ouvindo distinctamente as nossas palavras, as vossas preces nas Igrejas, escutando-as, e vindo todos os dias sobre os vossos altares, onde com elle fallaes, bem como todos os _Caraibas_ com liberdade, até sem abrir a bocca, não deixando de perceber o que dizeis em vosso coração. Disseste tambem, que foi elle quem vos mandou para cá afim de ensinar-nos estas coisas, a meo vêr muito bellas, e não me enfadarei de ouvil-as, porem o barco está prompto para regressar, e estão á minha espera minhas roças, que deixei boas para a colheita. Tudo isto obriga-me a partir, alem de não ter trazido farinha commigo.— Respondi-lhe, que si era só por falta de farinha, que elle se via constrangido a partir, que eu tinha alguma á sua disposição e de seos companheiros. Agradeceo-me a seo modo, despedimos-nos reciprocamente, e elle partio. CAPITULO XXI Conferencia com o Onda, um dos Principaes de Commã. Este Principal sempre foi o pae commum dos francezes em _Commã_ honrando-os, respeitando-os, e defendendo-os contra todas as más indisposições suscitadas, como era costume, pelos malvados e libertinos, a ponto de ser por elles aborrecido e ameaçado de ser espancado senão morto a não ser o receio, que tinham dos francezes. Quando foi nossa gente ao Pará, elle a acolheu com toda a bondade e generosidade, ambicionando ser o _chetuasap_ ordinario do chefe dos francezes, consistindo toda a sua fortuna e felicidade em ser amado e apreciado pelos francezes. Tinha um filho com 20 annos d’idade, que recommendou muito ao Sr. de la Ravardiere e a todos nós, pedindo que o acolhessemos bem, não exigindo outra recompensa de sua fiel amisade senão a de poder seo filho viver entre os francezes, n’uma palavra—ser francez. N’essa occasião tinha recommendado á seo filho, que se esforçasse o mais, que podesse, para aprender a lingua francesa, e para o conseguir com mais facilidade ordenou-lhe que frequentasse os francezes quanto podesse, estando sempre entre os residentes em _Commã_, e de tal fórma se houve, que aprendeo algumas palavras de nossa lingua. Pensou este bom homem ter obtido todas as riquezas do mundo, quando vio seo filho balbuciar vinte ou trinta palavras francezas, e julgou ser tempo de trazer este grande doutor aos _pays_, isto é, aos padres para ser baptisado, e depois ser _Caraiba_, «francez.» Tereis sem duvida notado, tanto por este discurso, como por muitos outros precedentes e subsequentes, que os selvagens julgavam necessario ser primeiro baptisado para depois ser francez, sendo manifesta loucura o pensar em contrario e na verdade não se enganavam. O verdadeiro francez é mais francez pela piedade e religião do que pela origem, visto que Deos o felicitou fazendo-o vassallo e subdito de um rei christianissimo, primeiro filho da igreja, e sempre seo fidelissimo protector, como demonstrou em todo o tempo e em todas as occasiões. Si dermos credito a Santo Agostinho, no Tratado do Ante-Christo, é elle, que deve resistir a este Ante-Christo, como se vê em mais de um lugar. Voltemos ao nosso homem. Trouxe seo filho com muito respeito, e assentando-se n’uma rêde, e o rapaz perto d’elle, desculpou-se de não ter vindo logo vêr-nos e visitar-nos, assegurando porem ser um dos nossos melhores amigos, que desejava ter padres com elle na sua aldeia, que os acolheria muito bem, que nada lhes faltaria para a vida, nem javalis, veados, e outros bichos proprios á esse fim. É por esta fórma que todos se desculpam. Depois d’isto, assim fallou-me: «Sou homem de idade, como vedes, porem tenho muita força, e espero vêr este meo filho, que aqui te trago, bom _Caraiba_, como me prometteo o Grande, que sympathisa com elle, quer vestil-o e tel-o aqui com os francezes. Eis porque venho pedir-te para laval-o com agoa de _Tupan_: assevero-te, que elle sabe tudo quanto é preciso saber, e breve o ouvirás porque tive o cuidado que elle fallasse com os francezes, e todos me dizem que elle entende muito. É bom rapaz e amigo dos francezes.» Dizendo isto, fez signal a seo filho para aproximar-se, e ordenou-lhe que contasse tudo quanto sabia de francez. Só com muito custo podia conter o riso, e nem si quer me era permittido usar do interprete que ria-se a bom rir, de tal simplicidade; comtudo, eu o tranquilisei pedindo-lhe desculpa pelas travessuras de um pequeno papagaio, que eu tinha, a fim de não pensar que era elle o provocador do riso. O rapaz recitou-me a doutrina, que seo pae julgava bastante para receber o baptismo, e o fez d’esta maneira: _bom dia, senhor, como estaes: Bem, senhor, prompto ao vosso serviço, quereis comer, sim: pão, peixe, carne, minha cabeça, eo chapeo, meo gibão, meo borzeguim, minha camisa_[BF] Não pude ouvir mais com receio de arrebentar de riso. Disse-lhe ser bastante, que só por isto eu fazia ideia d’elle não ter perdido seo tempo. O bom homem pressuroso interrompeo-me dizendo ter ainda que dizer-me. Levantou-se do seo logar, tomou todos os utencilios do meo quarto, e mostrando-me um apoz outro disse-me, que elle de tudo sabia o nome em francez. Aproximando-se de minha mesa, e agarrando-a com duas mãos, dizia—elle ainda sabe o nome d’isto em francez. Dirigio-se a seu filho, e perguntou-lhe se era verdade o que dizia. Sim, respondeo-lhe o moço, e ainda mais, pois chamaria pelo nome tal e tal francez, bem como tambem sabia a denominação das armas: _Um arcabuz, que faz puf, uma espada, um canhão, que faz pataú_. Mas, disse-lhe o pae, bem depressa saberás o resto? Sim. Muito bem, replicou o pae, não deixes de vir todos os dias recitar tua lição diante do padre. Deixando-lhe toda a liberdade de fallar afim d’eu poder conter o riso, e d’elle dar expansão ao seo fervor, que não era isto, que eu exigia para conferir-lhe o baptismo, e sim o conhecimento de Deos e de outras coisas dependentes da nossa religião. Ficou admirado de ouvir-me, reconhecendo inutil a estima que elle tinha de vêr seo filho, grande doutor, e parecendo não entender até o que eu lhe dizia. Pelo interprete expliquei-lhe o meu pensamento, e elle respondeo-me não ter ouvido ainda fallar n’isso, mas que como seo filho era intelligente cedo aprenderia bastando-lhe apenas uma lua, para o que deixava seo filho no Forte de Sam Luiz. Disse-lhe que elle fazia muito, que eu o trataria o melhor que me fosse possivel, e sempre seria bem acolhido entre os francezes. Mas, disse eu, porque não procuras para ti o bem, que desejas a teo filho? Ah! respondeo-me, sou muito velho: nada mais poderei aprender, como esses rapazes, que vão ser _Caraibas_. Como, repliquei, antes queres ir com os diabos queimar-te no inferno, do que esforçar-te para aprenderes a sciencia de Deos? Tua velhice não é desculpa aproveitavel. Tens eloquencia para fallar um dia inteiro, si quizeres. Calcula ha quanto tempo fallas, e quantas palavras tens proferido. Não precisas aprender a quinta parte das questões, que me tens proposto, afim de seres christão; nas palavras de tua lingua, pelas quaes comprehendemos os objectos expressados na nossa linguagem. Aprendeis com muita facilidade cantigas e descantes, tão compridos sobre feitos de vossos antepassados. Poderás assim aprender facilmente o que queres, que saiba teo filho. Pois bem, me disse elle, vou fazel-o. Voltando-se para o filho, recommendou-lhe que escutasse bem tudo quanto lhe ensinassem, que não perdesse uma só palavra, e que imitasse todas as acções dos francezes, que viria depois buscal-o para a terra d’elle afim de ensinar-lhe o que tivesse aprendido. Serás bem recebido, todos farão caso de ti, e se reunirão para te ouvir contar tão boas coisas. Depois viremos procurar os padres para nos baptisarem. Assim fallando, olhou-me a sorrir-se. Muito bem, disse elle: Padre, não beberemos bom vinho de França? ou _Cauin_, que queima, isto é, aguardente? Não terás d’ella alguma garrafa na tua frasqueira? Dá-me as chaves d’ella. O _Muruuichaue_ me deo em sua casa um pouco, e era muito boa e muito forte: esfregando seo estomago com a mão, dizia-me, olha, ainda sinto ella aquecer-me. É costume da França tirar da frasqueira a garrafa quando se recebe visitas de amigos. Tenho desejos de vir muitas vezes a _Yuiret_, quando chegam navios de França para gozar do seo vinho muito melhor do que o nosso. Vendo finalmente a simplicidade d’este homem, que foi o primeiro a rir-se, e não tratando nós mais das coisas de Deos, foi-me necessario rir tambem, dar-lhe agoardente, e depois de ter bebido um bom copo, pelo interprete notou não ter eu bebido com elle, que convinha fazel-o, e que depois elle me acompanharia. Assim o fiz para chamar estes homens ao seio de Deos, tel-os como que obrigados ou agradecidos a nós em tudo quanto podessemos, conforme sua naturesa, quando n’isto não ha offensa á Deos. Depois de achar-se um pouco enthusiasmado com o segundo copo começou a pronunciar gutturalmente estas palavras—_Goy y katu de katogne kauin tata_, «oh! quanto é bom, muito bom o vinho de fogo, ou o vinho que arde.» Como mau agouro ouvi a palavra _Goy_, que é o começo para beber-se muito, e principiei a cogitar na maneira por que havia de fechar a garrafa, visto não haver necessidade de tal despesa, então grande pela sua falta. Disse ao meu interprete, que a levasse, e este querendo cumprir a minha determinação, o meo selvagem agarrou a dizendo não ser costume dos francezes guardarem as garrafas, tiradas da frasqueira para a meza e que por muitas vezes se tinha achado entre elles. Reconheci que era necessario resgatar a minha prisioneira, embora ella nada me ficasse a devêr pela sua boa composição. Disse-lhe, que _cauiu-tata_ não era similhante ao que tinha bebido antigamente, que perturbava a cabeça de quem o bebesse muito, que eu devia cuidar do seo corpo e de sua saude, mas que eu ainda lhe daria um copinho para dizer-lhe adeos, e assim foi-se satisfeito. Veio visitar-me no dia seguinte. Prevenindo-me e indo ao encontro dos seos desejos mostrei-lhe uma garrafa quebrada, igual a do dia antecedente fingindo estar muito triste pela agoardente que se tinha derramado e perdido: mostrou-me igual sentimento, e batendo na coxa me disse—Aqui está, si tivesses permittido, nós a tinhamos bebido, e nada teria acontecido. o... * * * * * _Faltam as ultimas folhas d’esta narração no exemplar unico da edicção original, existente na Bibliotheca Imperial de Pariz._ (Vide o Prefacio.) _Suppre-se de alguma forma esta falta, bem sensivel, publicando-se no fim da obra, curiosissimas cartas, por longo tempo esquecidas._ NOTAS [BC] Por falta de typos proprios deixamos em claro este espaço.—Do traductor. [BD] Quarta parte de um soldo de França.—Do traductor. [BE] Gurupy.—Do traductor. [BF] Em francez muito mal escripto estão estas palavras, é impossivel traduzil-as com taes erros.—Do traductor. ADDENDUM. Congratulação á França pela chegada dos Padres Capuchinhos á nova India da America Meridional do Brazil. Grande reino, e povo francez, tens razão de louvar a Deos: Christianissimo Reinado, de dia para dia crescem tuas alegrias, dando sempre de ti boas novidades: sól dos reinos, flor dos povos do Universo, és notavel por todas as maneiras. Por tua antiguidade na fé catholica, religião christã, devoção aos altares divinos, e fervor em ouvir a palavra de Deos. Pelo amor e dedicação a teo Principe natural, por tua honesta sinceridade, ou sincera franqueza, na conversação, qualidades, que nenhuma outra nação possue como tu. Esplendido, magnifico, e magnanimo reino sobre todos os reinos da terra. Pela magestade da tua corôa, a bella e antiga serie de teos monarchas até o numero de sessenta e quatro Reis, dos quaes foram uns Imperadores, outros Santos canonisados no Ceo: e tambem pelo valor e proezas na guerra, praticada por tua gente valerosa, liberal nobresa de gravata branca como leite. Pela sapiencia de tuas universidades em todas as especies de sciencias e faculdades, pela amplidão de teos magistrados, pela prudencia de teos respeitaveis parlamentos, pela serenidade de teos conselhos, e pelas bellas leis de tua politica. Que digo eu? Povo sabio, intelligente, grande nação, illustre reino, ceo estrellado de tão bellos espiritos delicados, parabens: és na verdade maravilhosamente illustre! Pela multidão de tantos prelados veneraveis, grandes bispos, ricos abbades, e chefes de ordens. Pelo crescido numero de tantos homens santos, notaveis pela bondade, famosos pela sciencia, e nobres pela progenie, illustres pelos milagres que hão florescido e brilhado dentro e fora dos teos mosteiros. Pela tua posição entre dois grandes mares, onde por meio de teos dois braços exerces piedade e justiça em villas tão grandes e bellas, ricas, afamadas e populosas, n’um paiz tão abundante, e em provincias tão amplas e copiosas, e em tão grande numero. O que te falta para chegares ao cumulo de tua felicidade? O que pode accrescentar-se ao ramalhete de teos louvores, á grinalda de tuas honras, á corôa de tuas glorias, tecida em ternario, symbolisado pelos teos tres lyzes, em campo de oiro, a não ser que hoje enriquecido pelo Rei Luiz, o rei dos lyzes, alcances, sob sua authoridade, o cheiro de Jesus no Ceo, e ao longe a salvação dos povos selvagens mergulhados em trevas, e nas sombras da morte d’infidelidade, de incivilidade, e de barbaridade. Foste por Deos escolhido para tão grande honra, satisfação e alegria para levar ahi, o suave nome do Redemptor, estabelecer o imperial sceptro de sua cruz triumphante, signal sagrado, signal do Filho do Homem, e estandarte do grande rei dos reis, sob o qual se devem reunir todos os povos, que se desejam salvar, e então ahi semear a boa nova do seo Evangelho, salvador dos crentes. Outr’ora até o occidente buscando para o meio-dia pelo grande Carlos Magno, com a sua espada de ferro, mostraste o teu valor contra os serracenos, importunos á Hespanha. Até ao oriente pelo grande São Luiz, uma, duas vezes, fizeste sentir á impiedade turca, a força de teo braço, e erguido na Palestina, esse bello estandarte da Santa Cruz por um duque de Boillon, por um duque de Mercœur, e um duque de Nevers. Tremeram ao ouvir o nome da França, tão fatal a elles, a quem mostraste tua coragem com o cutello na mão. Mas agora—_Nova bella eligit Dominus, Clypeus, et hasta si apparuerint_, novas guerras, conquistas impertinentes, escudos e lanças, ahi se verão? Nada d’isto, e sim a Cruz de Jesus, o altar do grande rei, exercitos com seu augustissimo Missah, espada de Deos e de Gedeon, d’aquelle que é Deos e homem ao mesmo tempo, agoa benta para expellir os diabos, a conquista dos corações antropophagos ou comedores de homens pelo meio simples da palavra de Deos, que fará despil-os de crueldade, e de então em diante amarem o proximo como a si mesmo, abandonarem a imprudencia e o impudor, revestirem-se com o branco da innocencia e da honestidade: oh! quanta brutalidade adquirirá o uso da razão, e tu, ó França, foste escolhida para fazer tal guerra? Em tua consciencia, dize-me, não é esta uma guerra, com sceptro de liz, de rosas e de flores? Quem ouvio jamais coisas similhantes nas batalhas do mundo? porem estas são guerras do amantissimo Jesus. Nada mais te falta agora depois dos teos combates de outras eras, senão o alegrar-te de plantar a fé e a lei entre gente de ferozes costumes, e de barbaros feitos, porem mui facil em supportar o jugo do teu humano concurso, o que não tem podido conseguir o soberbo ou rustico portuguez. Regosija-te pois, principe dos lyzes, por ser a tua maior gloria o servir ao grande Rei do Ceo e da terra, de legado e de embaixada de suas maravilhas e grandezas em ilhas remotas, e em partes longinquas da Região Austral. Esta sabia Princesa christianissima, muito catholica, e de magnanima coragem, qual outra Judith, nossa grande rainha, a Regente nossa senhora fez esta exigencia por cartas dirigidas aos Reverendissimos Padres Superiores dos Capuchinhos da provincia de França, e de Pariz, seos humildes servos. Reuniram-se em capitulo para conceder ao Sr. de Rasily, loco-tenente-general de Sua Magestade n’aquellas terras tão remotas um certo numero de religiosos, que deviam ser consagrados á uma empresa tão sancta como perigosa. Sendo este desejo acolhido livremente, em lugar de quatro, que hoje lá se acham como exploradores da terra, todos quatro sacerdotes e prégadores, o padre Ivo d’Evreux, o padre Claudio d’Abbeville, o padre Ambrosio de Amiens, o padre Arsenio de Paris, todos em numero de cincoenta e quatro, presentes ao capitulo, se inscreveram e offereceram-se cordialmente para arriscar sua vida, tão nobremente, afim de salvar esses pobres pagés, esses pobres selvagens, esses infelizes atormentados pela tempestade do diabo sem consolador e sem pae. Ainda agora, para maior gloria do Salvador, foi a narração augmentada por tres pares de cartas, mais recentes do que as precedentes. Narram ellas a sua partida, a sua navegação, ora calma, ora tempestuosa, a sua feliz chegada, e tantos beneficios, que Sua Magestade, por intermedio d’elles, tem já feito, e com taes particularidades, como nunca se vio impresso. Lêde pois. Mas antes d’isto, para que o Deista, o Censor mundano, e o zombador heretico não se ria de projectos tão honrosos, vindos do Ceo, convem saber-se, que ha longo tempo fôra tudo isto prophetisado por santos inspirados pelo Espirito Santo. Disse o Propheta Isaias—_propter hoc in doctrinis glorificate Dominum, in insulis maris nomen Domini Dei Israel_: pelo que eu fizer no meio da terra glorificae o Senhor por doutrinas, pregae essas doutrinas por todas as ilhas do mar, annunciae, e glorificae o nome do Senhor, Deos d’Israel. Alem d’isso, eis meo Salvador, eu o unirei a mim, meo escolhido, minha alma n’elle se completa e elle dará juiso aos gentios etc. etc. E as ilhas esperaram attentas a lei, e eu t’a daria em alliança do povo como luz aos gentios afim de abrires os olhos aos cegos, e tirares os prisioneiros dos calabouços, das prisões e das densas trevas. Louvae ao Senhor por meio de canticos por toda a terra, mares, ilhas, e seos habitantes—_ponent Domino gloriam et laudem ejus in insulis numciabunt_: glorificarão ao Senhor e o louvarão nas ilhas. Prophetisa o mesmo, que ellas receberão sua lei: meo Justo está perto, sahio meo Salvador (Deos é o Pae) meos braços julgarão os povos, as ilhas me esperarão e sustentarão meo braço, isto é, receberão meo filho. N’outro lugar fallando á sua igreja, que é a Romana (n’outra taes factos nunca appareceram) diz—por que as ilhas me esperam, e no começo os navios do mar, para que eu conduza teos filhos de bem longe. No Capitulo 66 Deos disse pelo mesmo Propheta: «Porei n’elles o signal, mandarei os que ja se salvaram aos gentios no mar, na Africa, em Lidia que atiram a flecha, á Italia, a Grecia e as ilhas longinquas, aos que não ouvirão fallar de mim e não presenciarão minha gloria, e elles annunciarão minha gloria aos gentios, e os conduzirão como dadiva ou offerenda ao Senhor, ricos presentes e perolas preciosas a Deos.» O propheta Sophonias: «Os homens illustres o adorarão em qualquer parte e em todas as ilhas dos gentios.» O grande inspirador dos Prophetas por seo Espirito, Jesus Christo tambem disse e prophetisou taes coisas. E este Evangelho do Reino será prégado pelo Universo, como testemunho a todos os gentios, e então virá a consummação do Mundo. Nós outros catholicos devemos sentir grande alegria vendo cumprir-se todos os dias a palavra de Deos tão fielmente, não por meio de uma Assembléa reunida com tal fim, e sim pela Santa Igreja Romana, e deve em particular este grande reino agradecer a Deos por d’elle servir-se para levar tão longe a gloria dos seos tropheos. O seguinte trecho vos convencerá d’esta verdade, extrahida de quatro cartas, que d’aquelle paiz escreveo o Padre Arsenio, um dos quatro, a saber, uma ao Revd. Padre Commissario Provincial, uma ao Revd. Padre Custodio da custodia de Pariz, uma ao Revd. Padre Vigario de Pariz, e uma a seo irmão, todas datadas em 27 de Agosto, e dizendo mais que a sua quarta carta de 20. Outra carta do Revd. Padre Claudio a seos dois irmãos, o Sr. Foulon, e o Padre Marçal,[110] e uma para dois Padres já mencionados, escripta ao Sr. Fermanet, e para vos ser agradavel e não repetir as mesmas, foi tudo reunido n’uma só carta, como vereis, mui fielmente, e com suas proprias palavras. Lêde em nome de Deos. _Fidelissima narração, extrahida de seis pares de cartas dos Revds. Padres Claudio d’Abbeville e Arsenio, Prégadores Capuchinhos, escriptas aos Padres da sua Ordem de Pariz, e a outras pessoas do seculo, sendo quatro do Revd. Padre Arsenio, uma do Padre Claudio, e uma para duas pessoas._ _Meos Reverendos e carissimos Padres._—A paz do Senhor seja comvosco. Nós vos dirigimos esta pequena carta para dar-vos noticias acerca da nossa viagem, e como chegamos, mercê de Deos, felizmente a esta terra do Brazil na Ilha do Maranhão, entre os povos _Tupinambás_, não sem grandes fadigas. Cinco mezes estivemos no mar soffrendo encommodos, que só podem avaliar os que por elles já passaram, e como o Sr. de Rasilly, por estes dois ou tres mezes, regressa á França afim de trazer-nos novos auxilios, reservamos-nos para n’essa occasião descrevermos mais amplamente o resultado da nossa viagem, tanto no mar como em terra, n’este novo Mundo. Aproveitamos agora a occasião para dizer-vos e muito ás pressas, que para aqui chegarmos foi necessario partir de Caucale, porto da Bretanha, e já estando d’elle distante dusentas legoas do mar levantou-se grande tempestade, que separou os nossos tres navios, uns dos outros, causando admiração, até mesmo aos nossos melhores pilotos, o não ter algum d’elles naufragado. Quiz Deos porem livrar-nos d’esta desgraça, e encontramos dois de nossos navios, arribados em Inglaterra, d’onde vos escrevemos, e creio que já estareis de posse das nossas cartas. Na segunda-feira de Paschoa partimos de Plymouth,[111] na Inglaterra, e navegamos sempre com bom tempo, menos alguns dias na costa de Guiné, mui perigosa pelas molestias do paiz. Sahindo de Plymouth auxiliou-nos vento tão favoravel, que em pouco tempo passamos as Ilhas Canarias, por entre as ilhas _Boa Ventura_ e _Canaria grande_, vistas por nós perfeitamente. Das Canarias ganhamos a Costa d’Africa no Cabo do Bajador, sempre navegando pela Barbaria: de Bajador desviamos-nos da Costa d’Africa até o rio chamado _Lore_ pelos hespanhoes,[112] e perto d’elle fundeamos: sahindo d’ahi ainda nos desviamos da Costa d’Africa até o Cabo branco, lugar bem debaixo do tropico de Cancer. D’este Cabo procuramos a Costa de Guiné, passando entre as ilhas do Cabo verde, o proprio Cabo verde lugar perigosissimo pelas molestias contagiosas, ahi reinantes em certas estações do anno: esta molestia ataca as gengivas de tal sorte, que a carne cobre os dentes, e os faz cahir com grande perda de sangue a ponto de não se poder estancar, sobrevindo tambem os encommodos de estomago e inchação, e d’isto tudo resulta a morte escapando poucos: mercê de Deos ninguem morreo durante a nossa viagem, porem apenas entramos na terra, falleceram tres, e ahi ficaram sepultados. De Guiné viemos-nos aproximando da linha equinoccial, que passamos bem difficilmente, coisa ja por nós esperada á vista da estação em que estavamos. Soprou vento contrario por quinze dias causando-nos grandes sustos, e receios de que não apparecessem calmarias antes de passarmos a linha: graças a Deos, pouco a pouco, embora o vento contrario, tanto bordo demos, que quando mal pensamos, estavamos no hemispherio do meio dia. Passando a linha, avistamos e afinal chegamos a uma pequena ilha chamada Fernando de la Roque,[113] situada a quatro graus de altura para o meio dia, e a cinco para seis legoas de circumferencia, ilha bella e agradavel, cujas propriedades, querendo Deos, havemos de descrever na primeira opportunidade: é na verdade um verdadeiro paraisosinho terreste. Saltamos n’esta ilha, onde apenas achamos 17 ou 18 indios selvagens, em companhia de um portuguez, todos escravos e ahi postos por determinação da gente de Pernambuco: d’estes indios baptisamos cinco. Depois de havermos plantado a Cruz n’esta ilha, no centro de uma capella, feita por nós para celebração da santa missa, e de abençoado o logar onde residimos por 15 dias, casamos dois destes selvagens, um indio com uma india, depois de baptisados. Não quizemos baptisar o resto aqui, porem achamos bom addiar o baptismo até chegarmos ao lugar do nosso destino, si bem que libertassemos todos esses selvagens tirando-os do captiveiro, e fazendo-os livres com muita satisfação d’elles, depois do que manifestaram ardente desejo de nos acompanharem até Maranhão, como de facto aconteceo. Vieram comnosco trazendo muito algodão, e outros generos, que possuiam. De Fernando de la Roque ganhamos a Costa do Brasil, caminhando até o _cabo da tartaruga_, terra firme no paiz dos _canibaes_, onde, diz Euzebio, na sua _Historia_, passara o Apostolo Sam Matheus á vista d’esta Costa do Brasil: imaginae a nossa alegria vendo terras tão desejadas após cinco mezes de navegação. Depois de 15 dias de demora no _cabo das tartarugas_, continuamos a navegar, e chegamos á ilha do Maranhão, onde fundeamos no dia da gloriosa Santa Anna, Mãe da Sagrada Virgem Maria, com que muito me alegrei, (disse o padre Claudio) por termos tido n’esse dia, que eu tanto amo, a felicidade de chegarmos ao lugar tão desejado. No domingo seguinte saltamos todos em terra, levando agoa benta, cantando o _Te-Deum laudamus_, o _Veni Creator_, a ladainha de Nossa Senhora, e depois caminhamos em procissão desde o porto atê ao lugar escolhido para levantar se uma Cruz, a qual foi carregada pelo Sr. de Rasilly e todos os Principaes da nossa Companhia. Depois de benzida esta ilha, até então _Ilhasinha_, foi pelos Srs. de Rasilly e la Ravardière chamada _Ilha de Santa Anna_, não só por termos ahi chegado n’esse dia, como tambem porque chamava-se Anna a Condessa de Soissons, parenta do Sr. de Rasilly.[114] Depois plantamos a Cruz: ao pé d’ella, estando todo o largo abençoado, enterramos um pobre homem, tanoeiro, que vinha comnosco. Fêz-se tudo isto com geral contentamento e demoramo-nos ahi oito dias. Deixamos esta pequena ilha e fomos procurar a ilha grande do Maranhão, habitada por selvagens (que são as pedras preciosas que cobiçamos) e graças a Deos chegamos bons e bem dispostos. Vestidos com os nossos habitos de sarja fina por causa do calor da zona tórrida e revestidos de uma bonita sobrepelliz branca, empunhando nossos bastões, e em cima de tudo a Cruz com o Crucificado, descemos do navio para uma canôa, especie de batel construido pelos indios de um só tronco de pau, onde estavam todos os selvagens, que ja tinham estado na praia com o Sr. de Rasilly, e muitos francezes ja dos que vieram comnosco e ja dos pertencentes á equipagem do Sr. de Manoir, e do Capitão Geraldo, todos francezes, que aqui achamos: muitos d’estes selvagens atiraram-se ao mar e nadaram afim de chegarem primeiro do que nós. Assim conduzidos saltamos em terra, onde se ajoelhou o Sr. de Rasilly e todos os francezes para nos receberem (honra não commum) e como nos achassemos embaraçados com tal sorpresa, eu tive (disse o padre Claudio) a feliz lembrança de entoar o _Te-Deum laudamus_ conforme o cantico da igreja, e assim caminhamos em procissão entre lagrymas de alegria de muitos francezes, e seguidos pelos indios. Assim tomamos posse d’esta terra e novo mundo para Jesus Christo, e em seo nome, esperando abençôar o lugar, e n’elle plantar a Cruz em qualquer dia para isso designado. Deixo as outras particularidades para contar-vos quando escrever mais de espaço sobre esta nossa viagem. Somente vos digo que no domingo 12 de agosto, dia de Santa Clara, celebramos todos quatro as primeiras missas, que aqui se disseram. Com bem razão ordenou Deos que o dia de uma Santa Virgem da nossa Ordem, que deo nova luz ao mundo, fosse escolhido para fazer brilhar a nova luz do seo Evangelho n’este novo mundo. Não é possivel descrever-vos o grande contentamento, que mostraram estes pobres selvagens com a nossa vinda. É um povo conquistado e ganhado, povo grande, que na verdade nos ama, e nos dedica affeição, e chama-nos grandes prophetas de Deos e de Tupan, e em sua linguagem padres Carribain, Matarata.[115] Depois que aqui chegamos temos tido muito boas noticias. Os indios do Pará, outro povo, de um lado visinho do Amazonas, e do outro d’este povo, onde existem somente cem mil homens, desejam muito que lá vamos instruil-os. Embora _messis multa, operarii autem pauci_ «seja grande a colheita, são poucos os operarios.» Si quizessemos desde ja se baptisaria grande parte. É certo que «_regiones albescunt ad messem_,» estas regiões aqui enbranquecem mostrando a necessidade de ceifa, felizmente chegou o tempo de ser Deos aqui adorado e reconhecido. Agora estamos procurando lugar para nos acommodar e fazer uma Capella, até que cheguem de França pedreiros para edificarem uma Igreja. Existem muitas mattas virgens, que convem arrotear antes. Não posso descrever-vos agora o grande contentamento dos selvagens pela nossa chegada. Dão-nos boa esperança de se converterem. Todo este povo ainda que bruto e selvagem mostrou-se contente com a nossa chegada, tem vindo vêr-nos com muita alegria, manifestando grande desejo de instruir-se no christianismo. Creio que quando soubermos a lingua d’elles haverá muito que colher, com grande satisfação para os que tem zelo pelas coisas de Deos e pela salvação das almas. Preparam todos os seos filhos para nos trazerem afim de serem por nós instruidos, e ja nos prometteram não mais comer carne humana. São muito bonachãos, e não maliciosos. Por unica religião apenas creem em Deos, que chamam _Tupan_, e na immortalidade da alma. Quanto ao paiz é terra fertil e muito boa, onde não ha frio, e sim estio constante; ninguem conhece o que é frio, e as arvores estão sempre verdes. Os dias e as noites são sempre do mesmo tamanho: nasce o sol as 6 horas da manhã e encerra-se as 6 da tarde. Estamos apenas a dois graos e meio da linha equinoccial ou do Equador. É voz geral haver n’este paiz muitas riquezas, como sejam minas de oiro, de pedras preciosas, de perolas, de ambar-gris, alem de muitas pimenteiras, muito algodão, muita herva da rainha, ou petum, e muito assucar. Brevemente, quando nos estabelecermos bem, nós vos asseguramos ser isto aqui um pequeno paraiso terreste, com todas as commodidades e alegrias. Não posso ir mais longe: fica o resto para quando fôr o Sr. de Rasilly, e então hei-de dizer-vos outras coisas em particular. Quanto a minha saude nunca passei tão bem como agora, graças a Deos e só bebendo agoa, (palavras do padre Claudio.) Si na França me fosse preciso fazer a millesima parte do que aqui faço, mil vezes teria morrido, e n’isto reconheço, que _non in solo pane vivit homo_, «o homem não vive só de pão.» Convem que para cá venham os delicados de França. Louvo a Deos por nunca ter enjoado, com grande admiração de todos. Quando chegamos no paiz dos calores, justamente quando estavamos sob o tropico de Cancer, quando o sol estava subindo, tive apenas dois ou tres pequenos accessos de febre passageira, graças a Deos. Deixo o mais para outra occasião, pois agora falta-nos tempo, e sobram-nos trabalhos. Rogae a Deos por nós, e pelos nossos companheiros, o mais que poderdes, pois agora, mais do que nunca necessitamos da graça de Deos, sem as quaes nada se consegue. O que n’este sentido fizerdes, Deos vos compensará. _Summario de algumas coisas mais particulares, referidas vocalmente aos Padres Capuchinhos de Pariz pelo Sr. de Manoir._ O Sr. de Manoir,[116] (um dos capitães, de que se fallou na carta precedente, que fôra encontrado n’aquelle paiz com o capitão Geraldo) chegando ultimamente á França, e sendo portador da carta, ja transcripta e de muitas outras (algumas das quaes bem desejariamos aqui publicar para que não ficassem sepultadas no esquecimento as maravilhosas obras de Deos, de que ellas fallam, como que para despertarem os homens afim de louvarem a sabedoria, providencia, e bondade do Creador) contou muitas particularidades dos padres, não referidas em suas cartas. Disse, que os padres chegando ahi começaram a edificar sua morada, construindo uma Capella para celebração da missa, e algumas cellas pequenas para residencia, sendo coadjuvados por alguns selvagens com alguns pannos e ramos de arvores. N’um certo dia, quando um padre celebrava missa, chegou um selvagem dos mais velhos, (que elles consideram seos governadores, honrando-os e respeitando-os por causa da sua idade avançada) em companhia de trinta selvagens para ouvirem missa, o que fizeram, admirando com grande surpresa tão bellas ceremonias, e tão lindos ornatos, por elles nunca visto (pois que homens e mulheres andam todos nús.) Quando o sacerdote chegou á consagração e ao offertorio, desceo um véo entre elle e o povo, de forma que este não poude ver aquelle, e nem o que se fazia por detraz d’esse véo. Julgaram isto uma affronta e mostraram-se offendidos, e por isso, finda a missa, foram perguntar a causa de tal offensa. Responderam os padres que n’isto não havia offensa, e que assim se fez por serem elles ainda pagãos, não podendo ser a Missa celebrada em suas presenças embora estando na Igreja. Deram-se por satisfeitos e mostraram-se tranquillos, e foram contar o occorrido ás suas mulheres, que se mostraram desejosas de vêr os grandes Prophetas de Deos e de Tupan, e se reuniram em grande numero para tal fim. Não quizeram porem os padres abrir-lhes a porta de sua pequena choupana porque estavam núas, mas ellas não esperaram por segunda recusa e metteram a porta dentro, o que não lhes foi difficil praticar, entraram e não se cançaram de olhar e contemplar os Padres, embora se demorassem pouco tempo, por lhes pedirem os Padres que se retirassem, o que cumpriram. Depois desta visita, reuniram-se os velhos em grande numero e combinaram entre si qual devia ser o presente que offerecessem a esses Prophetas, como demonstração de sua benevolencia e regosijo pela sua chegada. Finalmente concordaram, visto dormirem os Padres no chão duro, que se désse a cada um o seo colchão de algodão, que ahi floresce, e uma das mais bellas raparigas, o maior presente que costumam fazer. Trouxeram quatro colchões e quatro raparigas, e offereceram aos Padres, que rindo-se aceitaram aquelles e recusaram estas com palavras de agradecimento. Admirados com tal procedimento, diziam uns aos outros. O que é isto? Estes Prophetas não são homens como nós? Porque não acceitam estas raparigas, sendo impossivel o passar um homem sem ellas? Porque nos fazem tal offensa? Responderam os Padres, que assim procediam, não por que reprovassem o casamento, quando conforme ás leis de Deos, visto que até elles o louvavam, mas como Deos havia outhorgado graças mui particulares a elles, e não aos outros homens, porque o serviam com mais perfeição, podiam passar sem mulheres por meio dessas graças. Ouvindo esta pobre gente taes palavras ficaram admirados e como que fóra de si, contemplando a santidade destes Prophetas, e d’ahi em diante os veneraram mais, julgando-se felizes quando lhes entregavam seos filhos para serem educados em nossa santa fé, e afinal baptisados. Tudo isto se poderá vêr na seguinte carta, escripta por esses Padres á um honrado mercador de Ruão chamado Fermanet, um dos seos maiores bemfeitores, para que se veja que nada acrescentamos, e que apenas narramos os factos pura e simplesmente colhidos n’essas cartas e em informações de pessoas fidedignas, testemunhas occulares, e por que n’ella se encontram particularidades não mencionados nos outros. Eil-a: _Carta escripta pelos Padres Capuchinhos ao Sr. Fermanet._ A paz do Senhor Deos esteja comvosco. Depois de tantas recommendações, que nos fizestes quando partimos para vos escrever, seriamos culpados si não vos dessemos noticias de paiz tão bom, graças á Deos. Depois de 4 a 5 mezes de viagem ahi chegamos felizmente, sendo bem recebidos pelos Indios, conforme sua rusticidade, não nos importando o modo e sim a demonstração do seo contentamento então e ainda agora diariamente, trazendo-nos seos filhos para instruil-os o que faremos mediante a graça de Deos. Quando voltar o Sr. de Rasilly, por estes 2 ou 3 mezes, nós vos mandaremos o numero dos convertidos e dos baptisados. O paiz é muito bom, e ha esperança de produzir muito tabaco Petum, e Urucú, havendo ja muito assucar, bellas pedras, ambar-gris, e dizem-nos, que distante d’aqui 20 legoas ha uma mina de oiro. Si não fosse grande a nossa pressa, nós vos dariamos mais algumas noticias, porem não podemos alongar-nos. Beijando humildemente vossas mãos, e recommendando-nos á senhora vossa mulher, somos de vós e d’ella Vossos humillissimos servos em Nosso Senhor. Frei _Claudio d’Abbeville_. Frei _Arsenio de Pariz_. _Narração de um marinheiro, vindo do mesmo paiz, feita ao Revd. padre Guardião do Havre da Grace, e por este communicada ao Revd. padre Commissario._ Revd. Padre, eu vos saúdo humildemente em Nosso Senhor. O fim d’esta é communicar-vos, que veio hoje procurar-me um marinheiro, que vio e fallou com os nossos Irmãos, que estão em Maranhão com os Tupinambás, onde felizmente chegaram no dia 8 de Julho. Este marinheiro ahi ouvio missa, e á ella assistio com muito respeito um velho selvagem do paiz, acompanhado por 25 ou 30 indios. Quando chegou o tempo de consagrar-se e elevar-se a santa hostia, desceo um véo, causando-lhes isto admiração. Recebida a explicação mostraram-se satisfeitos, e logo começaram a contar por toda a parte o que viram, e por isso vieram muitos ajudal-os a edificar sua habitação e Forte, ja em principio. Veio o marinheiro em 22 de Agosto no navio de Moisset, recommendado ao Sr. de Manoir, a quem, segundo pensa, terão nossos Irmãos entregado suas cartas, ou a algum outro official de navio, o que me dispensa de contar-vos outras particularidades. Não mudaram, e nem mudarão a côr dos seos habitos, usando apenas de um tecido mais leve do que o nosso, por causa do calor. Deos seja louvado por tudo, e lhes conceda a graça de ahi apparecerem muitos fructos para a gloria do seo Santissimo Nome, e exaltação da Santa Fé da sua Igreja. Sou de vossa Reverendissima o menor servo em Jesus Christo Havre, 12 de Novembro de 1612. Frei _Theophilo_, indigno Capuchinho. NOTAS CRITICAS E HISTORICAS SOBRE A VIAGEM DO PADRE IVO DE EVREUX POR MR. FERDINAND DINIZ. NOTAS. 1 (frontespicio). Esta vasta provincia, uma das mais florescentes do Brazil, antes da chegada dos missionarios francezes não teve estabelecimento algum importante. Eram arbitrarios os seos limites, convindo não esquecer que a immensa capitania do Piauhy fez parte d’ella até 1811. Presentemente tem 186 legoas, de 20 ao gráo, de comprimento, 140 de largura, e nunca menos de 20,000 legoas quadradas de superficie. Fica entre 1° 16′ e 7° 35′ de lat. merid. Confina ao N O com o Pará, servindo de linha divisoria o Gurupy, á N E é banhada pelo Occeano Atlantico, a S E com o Piauhy, separando-a d’elle o rio Parnahyba, e finalmente a S com a provincia de Goyaz pelo rio Tocantins.[BG] Ainda que seja quente e humido o clima do Maranhão é sadio. As chuvas que fertilisam este rico territorio principiam regularmente em outubro. O aspecto geral do paiz offerece por toda a parte ondulações do terreno, mas em nenhuma offerece elevações consideraveis, exceptuando-se d’estas asserções geraes e por força mui summarias a comarca de Pastos-bons, onde se encontram montanhas como sejam Alpercatas, Valentim, Negro etc. É regada por 14 correntes d’agoa. De todos estes rios é o _Parnahyba_ o mais considerável: infelizmente suas margens não são totalmente sadias, pois em varios pontos, como em quasi toda a provincia, reinam as febres intermitentes. Avalia-se seo curso em 240 legoas. O _Itapecurú_, seo immediato, e de que falla constantemente o Padre Ivo d’Evreux, banha apenas 150 legoas de terreno, o Mearim 78 legoas, sendo ainda menos consideraveis o _Pindaré_, o _Tury-assú_, o _Gurupy_, e o _Manoel Alves Grande_. Julga-se que é de 462,000 pessoas a população de toda a provincia, embora diga o relatorio official da presidencia, com data de 3 de julho de 1862, que esta cifra é apenas de 312,628 almas, sendo 227,873 livres e 84,755 escravos. Convem observar, que o recenseamento geral da população do Imperio, feito em 1825, dava apenas 165,020 almas, sendo esta cifra muito inferior á realidade, porque recusaram muitos Srs. dizer com certesa o numero dos seos escravos. Nada se sabe, e nem será possivel saber-se exactamente, a respeito da povoação nomade dos indios, isto é, d’aquella cujo conhecimento seria muito curioso afim de apreciar-se as mudanças, que houveram nas aldeias depois do que escreveo o Padre Ivo, podendo apenas dizer-se que é maior no Maranhão, no Pará, e na nova provincia do Rio Negro, do que n’outra qualquer parte. Em summa o governo só tem dados mui imperfeitos e raros sobre estas infelizes hordas, das quaes se occupa actualmente. Os cuidados tardios, embora caridosos, da administração provincial, tem que acabar muitos males afim de que seja completa a reparação. Tudo ainda está por fazer relativamente aos Indios. Não souberam estas tribus conservar nem a dignidade que dá completa liberdade aos habitantes das florestas, e nem os principios de civilisação, que se intentou incutir-lhes no seculo XVII. Reconcentradas no interior por Mathias de Albuquerque, dizimadas pela variola, hoje são apenas a sombra do que foram sob o dominio dos seos chefes independentes. Esta população indigena é comtudo maior nos desertos do Maranhão, e embora d’ella não tratem certas estatisticas, é avaliada em 5,000 o numero dos indigenas reunidos em aldeias. Si dermos credito á um intelligente militar, que viveo em constantes relações com elles por espaço de 20 annos, a sua decadencia physica é menor que a moral, pois perderam até a reminiscencia de suas tradicções théogonicas, ainda mal, visto ser muito curioso o comparal-as com a narração dos antigos viajantes francezes. Sob este ponto são elles menos favorecidos que os Guarayos, visitados por Orbigny, os quaes ainda hoje repetem em seos canticos as legendas cosmogonicas do seculo XVI. Os indios do Maranhão, entre os quaes se contam os Timbyras, os Gés, os Krans, e os Cherentes não podem fornecer ao historiador senão informações mui incompletas, pois que ha perto de 40 annos já o major Francisco de Paula Ribeiro se queixava do immenso esquecimento d’elles, (vide _Revista Trimensal_, tomo 3.º, pag. 311) esquecimento fatal de grandes tradicções, pelo que se tornam hoje preciosos certos livros, como sejam os dos nossos velhos missionarios, onde pelo menos se encontram os mythos antigos, ahi escriptos para serem combatidos. De vez em quando entre estes indios degenerados apresentam-se alguns homens energicos, que comprehendem o abatimento de sua raça, e que desejariam vel-a progredir, porem são mui raros, pouco comprehendidos, e demais só olham para o futuro, e não experimentam amor algum por sua antiga nacionalidade. Seos compatriotas longe de ajudal-os nos trabalhos emprehendidos para melhorar seo futuro, ainda os amesquinham com o seo odio tão irreflectido quam brutal. Foi o que aconteceo a _Tempe_ e a _Kocril_, chefes conhecidos pelo major Ribeiro. Trabalharam inutilmente para chamar ao caminho da civilisação as tribus, cujo governo lhe foi confiado, e a final foram victimas do seo zelo. Vide «_Memoria sobre as nações gentias, que presentemente habitam o continente do Maranhão escripta no anno de 1819 pelo major graduado Francisco de Paula Ribeiro_, _Revista Trimensal_, T. 3º pag. 184.» De passagem disemos, que não deixaram descendentes, pelo menos conhecidos, os Tupinambás cathequisados pelos missionarios francezes, suppondo-se apenas, que um ramo d’esta grande nação ainda hoje povôa _Vinhaes_ e _Villa do Paço do Lumiar_, achando-se no mesmo caso _S. Miguel_ e _Tresidélla_, a margem do rio Itapecurú, e _Vianna_, no Pindaré. Com mais probabilidade ainda confundiram-se os Tupinambás com as tribus do inferior, tomando os nomes de Timbyras e Gamellas. São tambem subdivisões dos Timbyras os _Sakamecrans_, os _Kapiekrans_ ou _Canellas-finas_, e os Gés, que vagam pelas grandes florestas á Oeste do Itapecurú. Nega o major Ribeiro, que ainda sejam antropóphagos estas diversas tribus. N’este escriptor imparcial, e que reconhece a ferocidade dos Timbyras, é que se deve estudar as horriveis represalias, de que tem sido elles os indios, sendo a escravidão a menos sanguinolenta. Elle avaliou em 80:000 o numero d’indios selvagens, embrenhados nos mattos em 1819, hoje sem duvida consideravelmente diminuido. 2 (pag. 1). Francisco Huby era tambem livreiro e tinha sua loja n’uma praça entre os mais afreguezados armazens na galeria dos prisioneiros em Palacio, e soffrera-a como os outros no grande incendio de 1618. Quatro annos antes d’elle encarregar-se da publicação do livro de Claudio d’Abbeville, de que este é continuação, morava na rua de Sam Thiago no _Folle de oiro_, e não na _Biblia de oiro_, que depois tomou por divisa. Si foi ferido na prosperidade, foi justamente por haver permittido, que mão impia privasse a França por mais de dois seculos do livro precioso, de que tinha sido edictor, e que hoje entregamos a publicidade, graças a uma d’essas empresas litterarias tão raras em nossos dias, onde a honra das letras é o pensamento dominante e superior a todas as considerações. O volume, que servio para a nossa reimpressão é encadernado em marroquim encarnado, semeiado do flores de lys de oiro, e com as armas de Luiz XIII. Faz parte da reserva sob n.º 01766 da Bibliotheca Imperial de Pariz. 3 (pag. 9). A capital do Maranhão occupa ainda hoje o mesmo lugar escolhido por seos antigos fundadores. Está situada a 2° 30′ e 44″ lat. austral e 1° 6′ e 24″ de long. oriental do meridiano do Forte de Villegagnon, na bahia do Rio de Janeiro. La Ravardiere e Rasilly escolheram para edifical-a a ponta de terra O d’uma pequena peninsula, ligada á ilha do Maranhão pela calçada do _Caminho grande_. Os rios _Anil_ e _Bacanga_, vindos de diversos pontos da ilha confundem suas agoas na mesma embocadura e formam vasta bahia. A elevação, que se apresenta ao S do _Anil_, á E e ao N. do _Bacanga_ (lugar onde se confundem as agoas d’estes dois pequenos rios) é o lugar primitivo onde se levantou a cidade nascente collocada sob o patrocinio de Sam Luiz. A cidade de Sam Luiz, elevada em 1676 á dignidade episcopal por uma Bulla de Innocencio XI, conta nunca menos de 30 mil habitantes, e está situada em terreno docemente ondulado, sempre, em todas as estações, carregado de rica vegetação, e assim offerecendo aos viajantes panorama encantador. (Vide _Corographia Brasilica_, _Will. Hadfield_, _Milliet de St. Adolphe_, e principalmente os _Apontamentos estatisticos da provincia do Maranhão_, annexos ao _Almanack_ de 1860 publicado por B. de Mattos.) Esta linda cidade é naturalmente dividida pela espinha dorsal da peninsula, que separa as duas bacias dos rios na direcção de E. O. Seo ponto mais elevado é o _Campo d’Ourique_, onde apresenta 32m 692c de elevação acima do nivel medio do mar. É dividida em tres parochias: _N. S. da Victoria_, _S. João_, e _N. S. da Conceição_, tem 72 ruas, 19 becos, 10 praças, 55 edificios publicos, e 2,764 casas, das quaes 450 tem um só pavimento. Para utilidade dos habitantes podem ser maiores e mais regulares as praças, e embora sejam as ruas cortadas em angulo recto, podiam ser mais largas e melhor dispostas sendo observadas as regras da hygiene. Não são más suas calçadas, e tem declive bastante em relação aos dois rios que banham a cidade. Em resumo é a Capital do Maranhão saudavel e limpa. «O navio que demandar o porto, toma por marca o Palacio do governo, assentado n’uma eminencia que domina o porto. Este edificio tem a seos pés o Forte de Sam Luiz, e de suas janellas percorrendo-se com os olhos uma extensa bahia avista-se ao longe as costas e a cidade de Alcantara: mais perto da barra está o pequeno _Forte da Ponta d’areia_, e dentro do porto na margem opposta do Bacanga a pequena _ermida do Bomfim_, muito arruinada, e na frente do Anil a _Ponta de Sam Francisco_, onde segundo a noticia que nos dirige, entregou la Ravardiere ao commandante portuguez a cidade nascente e a fortalesa de Sam Luiz, nunca se podendo assas louvar n’essa occasião o procedimento inteiramente nobre do commandante francez e de Alexandre de Moura por parte da Hespanha. O joven cirurgião de Pariz que foi com tanto zelo pensar os feridos dos dois partidos, e que recebeo tão penhorador acolhimento no campo inimigo poude d’elle dar somente uma ideia, por sua narração sincera e franca, da cordialidade, que appareceu entre os francezes e os portuguezes depois do combate. (Vide _Archivos das viagens publicadas_ por M. Ternaux Compans.) Em distancia de alguns metros pelo Anil acima está o convento e Igreja de Santo Antonio, construidos no proprio lugar onde em 1612 Ivo d’Evreux, ajudado pelos padres Arsenio e Claudio d’Abbeville, edificou seo conventosinho sob a invocação de Sam Francisco. Soffreo depois d’isto varios concertos e augmentos este mosteiro dos Capuchinhos francezes, achando-se hoje uma parte do edificio moderno occupado pelo Seminario Episcopal, e a Igreja, hoje em construcção, levanta-se com architectura gothica simples.» Pelo que nos dizem será a igreja mais bonita do Maranhão. Não é esta a unica construcção digna de mencionar-se na cidade, porem é a unica que nos interessa directamente. Mencionamos apenas o _Caes da Sagração_, assim chamado em memoria da coroação e sagração do Sr. D. Pedro 2.º, e da vasta bahia, onde agora se escava para poder n’ella fundear uma fragata a vapor da primeira ordem, e apenas citamos a dóca que se projecta fazer nas _enseiadas das Pedras_.[BH] Contam-se muitas construcções monumentaes, como sejam a igreja do Carmo, a Cathedral, o quartel do Campo de Ourique, o Theatro, e mais outras que força é omittir, pois apenas n’uma ligeira nota desejamos mostrar englobadamente o que em 250 annos se tornou isto fundação francesa. William Hadfield, um dos mais modernos viajantes, que tratou d’este paiz, observou que é na cidade de Sam Luiz, onde no Brasil se falla o portuguez com mais pureza. É a patria de dois escriptores mui estimados no Imperio, Odorico Mendes e João Francisco Lisboa, fallecido ha pouco. Depois de haver traduzido com superioridade de estylo, que causaria inveja aos contemporaneos de Camões, occupa-se actualmente Odorico Mendes na traducção em verso das obras de Homero, onde a sciencia do rythmo disputa com a inspiração. Quanto ao poeta das legendas nacionaes, cujos cantos são geralmente repetidos no Brasil (queremos fallar de Gonçalves Dias) pertence tambem á provincia do Maranhão, por elle explorada como sabio e como viajante intrepido, porem nasceu em Caxias. As obras d’esses tres escriptores honram ao paiz, são tambem a honra da bibliotheca publica; porem este estabelecimento, creado n’uma cidade eminentemente litteraria, não está em relação com as necessidades crescentes de outras instituições suas, relativas á instrucção publica. Ha tres annos contava apenas 1031 volumes. Prasa aos Ceos, que o livro, que agora réproduzimos, o primeiro que, com o de Claudio d’Abbeville, foi escripto na Cidade nascente, marque o principio de uma era nova para estabelecimento tão indispensavel n’uma Capital, já florescente. Muitas outras instituições supprem esta deficiencia, publica-se na Capital diversos jornaes, taes como o _Publicador Maranhense_, a _Imprensa_, o _Jornal do Commercio_ etc. etc., e tambem ha uma _Associação typographica_, um _Gabinete de leitura_, e a sociedade litteraria _Atheneo Maranhense_. Tudo isto na verdade é mui differente do tempo, em que o Padre Arsenio de Pariz com muita difficuldade achava apenas uma folha de papel para escrevêr á seos Superiores. 4 (pag. 11). A Cathedral de _São Luiz_ ou do _Maranhão_, (assim com estes dois nomes se designa a Cidade) deixou a invocação de São Luiz de França. É a antiga Igreja do Convento dos Jesuitas a actual cathedral sob a invocação de N. S. da Victoria. (Vide Ayres do Cazal—_Corographia Brazilica_. Rio de Janeiro 1817. T. 1.º pag. 166). Parece-nos, que nas grandes construcções, que actualmente se estão trabalhando para o augmento do Convento de S. Antonio, respeitou-se a pequena Capella feita pelos francezes. São tres os frades d’esta Ordem, Frei Vicente de Jesus, guardião; Frei Ricardo do Sepulchro e Frei Joaquim de S. Francisco, todos sacerdotes. 5 (pag. 12). Ao norte do Brazil e no interior da Goyanna havia então prodigiosa abundancia d’esta especie de fóca, cuja carne era muito saborosa: chamam-na os portuguezes _peixe-boi_, e os indios _manati_. Ainda hoje os habitantes ribeirinhos do Amazonas e do Tocantins nutrem-se com a excellente carne d’este peixe. (Vide Osculati, _America equatoriale_). Claudio d’Abbeville lhe deo o nome de _Uraraura_. 6 (pag. 14). Esta localidade, ja citada, ainda o será muitas vezes. O vasto territorio, ainda hoje conhecido em Maranhão pelo nome de _Tapuitapéra_, está hoje dividido pelas comarcas de Alcantara e de Guimarães. Antigamente foi occupado por onze aldeias de indios, das quaes a maior era Cumã. _Tapuitapéra_ dista 40 legoas de Maranhão.[BI] Pensa _Martius_ que esta palavra quer dizer—habitação de indios inimigos. Vide _Glossaria linguarum brasilensium_. Erlanguem. 1863, em 8.º N’esta obra acham-se tambem os nomes dos lugares, dos vegetaes e dos animaes. O _Aparaturier_, que deo tão felizes comparações ao padre Ivo, é simplesmente o mangue (_Rhyzophora._ Lin.) Esta arvore das praias americanas tão util á industria, forma vastas florestas maritimas, e em roda da costa do Brasil e de Venezuela. Com muita frequencia se tem destruido estas arvores, em varios lugares, e temos ouvido até attribuir-se a invasão recente da febre amarella á destruição systematica d’este bonito vegetal, que aformosêa com sua verdura todas as praias brasileiras. Cahindo sob o ferro do cultivador deixa á descoberto praias cheias de lôdo, habitadas por myriades de carangueijos, formando assim pantanos d’onde se desprendem miasmas de especie muito perigosa. No Brasil conhece-se duas qualidades de mangue, o _branco_ e o _vermelho_, e para a descripção scientifica d’elles enviamos nossos leitores para Aug. de St. Hilaire. Julgamos que a palavra antiga, ahi empregada pelo padre Ivo, vem do verbo _parere_, parir, porque esta arvore se reproduz pelas raizes, que, como arcadas, espalham ao redor de si. (Vide _Nossas scenas da naturesa sob os tropicos_,) e ahi achareis o effeito do mangue nas paisagens. 7 (pag. 17). É lamentavel esta lacuna, porem deixa comtudo perceber, que se trata das tartarugas do Maranhão. Com os ovos d’este chelidoniano prepara-se no Pará o que se chama—_manteiga de tartaruga_, de que se exporta prodigiosa quantidade. 8 (pag. 17). N’esta enumeração mui completa de quadrupedes que se podem caçar, um nome desperta naturalmente a attenção do leitor, e é _vacca brava_. É bem possivel, rigorosamente fallando, que os campos do Mearim ja tivessem algum individuo da raça bovina, ja ha muito tempo introduzida em Pernambuco: Claudio d’Abbeville é muito explicito n’este ponto. Mas não é d’isto que quiz tratar o nosso bom missionario: a vacca brava, ou _bragua_, como chama em outro lugar, é o _Tapir_ ou _Tapié_, conforme Montoya, animal muito commum em todo o Brasil. Para denominal-o serviram-se os hespanhoes e portuguezes d’um nome pedido por emprestimo aos Mouros. Chamavam-no tambem _Anta_ ou _Danta_, que significa, dizem, bufalo. Quando chegou aos americanos a sua vez de dar nome ao boi, chamaram-no _Tapir-açù_. Martius observa com razão, que esta palavra na lingua geral se applica a todo o mamifero corpulento. Sendo este pachyderma o animal mais corpulento conhecido na America do Sul, foi sua caça procurada de preferencia pelos Europeos, e assim desappareceo, ou pelo menos tornou-se mais rara nos lugares onde outr’ora era abundante. Em certos paizes da America era um animal sagrado, e assim figura em diversos monumentos. No Brasil procuravam os indigenas este animal, tanto por ser boa caça como pela espessura de seo couro, de que faziam escudos impenetraveis ás flexas, pela maior parte armadas de uma ponta aguda de madeira ou de cana. João de Lery trouxe do Brasil para França alguns d’esses broqueis, porem não chegaram á Europa, porque uma terrivel fome devida á longa viagem de 5 mezes obrigou o pobre viajante a comel-as, depois de amolecidas por meio d’agoa. Os nossos leitores que desejarem conhecer minuciosamente o Tapir americano, consultem uma excellente dissertação, dedicada especialmente á este animal, escripta pelo Dr. Roulin, Bibliothecario do Instituto. No _Glossario_ de Martius lê-se uma extensa synonimia relativa ao Tapir. (Vide pag. 479.) 9 (pag. 18) É certo que os indios d’esta tribu foram contrarios aos francezes. Ha na historia d’esta expedição um ponto, que não foi ainda bem esclarecido: o mais afamado capitão de indios de que se recorda o Brasil fez suas primeiras campanhas durante o dominio dos francezes. O celebre Camarão, o grande chefe ou _Morubixaba_ dos Tabajares, commandava 30 frecheiros na lucta entre la Ravardiere e Jeronymo de Albuquerque. Convidado pelo governo portuguez para tomar parte n’esta guerra, partio de sua aldeia, no _Rio Grande do Norte_, e foi para o _Presidio de N. S. do Amparo_, no Maranhão, em 6 de setembro de 1614: seguio-o seo irmão _Jacauna_ com um filho de igual nome, e de 18 annos de idade. Depois de muitos annos Camarão, que teve tão boa escola, adquirio fama immortal nos fastos do Brasil por occasião da expulsão dos hollandezes. (Vide _Memorias para a historia da Capitania do Maranhão, impressa nas Noticias para a historia e geographia das Nações ultramarinas_.) 10 (pag. 18). No Brasil não ha verdadeiros javalys, e nem este nome se pode dar aos _Pecoris_ ou _Tajassus_, ou _Porcos do Matto_ na linguagem dos naturaes. Não é extraordinaria a proesa do fidalgo, porque andando os _pecaris_ sempre em bando basta chumbo grosso para matal-os. Martius deo a synomimia completa d’este animal no _Glossaria linguarum brasiliensium_. (Vide a divisão _Animalia cum Synonimis_, pag. 477.) 11 (pag. 18). Um _ajoupa_ é uma pequena cabana coberta de folhas e abertas por todos os lados. Esta palavra é muito usada nos nossos estabelecimentos de Guyana. Vê-se estampas de _ajoupas_ em Barrére. 12 (pag. 19). Em 1542 a fóz do grande rio foi explorada por Aphonso de Xaintongeois. (Vide o _Manuscripto original de sua viagem_ na Bibliotheca Imperial de Pariz.) João Mocquet, cirurgião francez, guarda das curiosidades de Henrique IV, visitou suas praias. (Vide o _Manuscripto_ do seo _Relatorio_ na _Bibliotheca de Santa Genoveva_.) Finalmente la Ravardiere fez até lá um reconhecimento. João Mocquet foi muito explicito quando tratou do mytho das Amasonas, que tanto occupou Condamine e o illustre Humboldt. Tudo quanto elle referio d’estas guerreiras soube do chefe _Anacaiury_, cujo personagem, ou seo homonymo, encontra-se nas obras de Ivo d’Evreux. Governava uma nação no Oyapok ou do Yapoco. Mocquet disse a seos leitores, que não poude visitar, como desejava, o Amasonas «por serem violentas as correntes para os navios, e mesmo para o seo patacho que ja fazia muita agoa.» Todas estas narrações a respeito do grande rio deixou em França impressões tão duradouras, que o Conde de Pagan, quarenta annos depois, convidou a Mararin a reerguer projectos esquecidos. Para a conquista da Amasonia elle queria união com os indios, e por sua vontade devia o Cardeal ligar-se «aos illustres _Homagues_ (Omaguas) aos generosos _Yorimanes_ e aos valentes _Tupinambás_.» Nunca certamente os selvagens receberam tão pomposos nomes! Seria mui curiosa, si se achasse, a narração da expedição pelas margens do Amasonas em 1613, feita por ordem de la Ravardiere e ainda no tempo de Luiz XIII existia uma copia. 13 (pag. 20). Entra Gabriel Soares em minuciosas descripções do fabrico d’esta farinha, de que os indios fazem grandes provisões. A especie de mandioca, conhecida pelo nome de _Carimã_, serve de base. Esta raiz a principio dissecada a fogo brando, depois ralada, é pisada n’um almofariz, peneirada e misturada com certa quantidade de outra qualidade de mandióca na occasião de ser torrada, o que se faz até ficar muito secca, e n’esse estado é conservada por muito tempo. Encontram-se sobre esta industria agricola do Brasil todos os esclarecimentos necessarios no _Tratado descriptivo do Brasil_, pag. 167. Augusto Saint-Hilaire disse com rasão, que a cultura da mandióca tirou a maior parte dos seos processos da economia domestica dos Tupis, e resumio concisa e habilmente tudo que ha a dizer-se relativamente ao cultivo da planta. (_Voyage dans le district des Diamants et sur le littoral du Brésil_. T. 2—pag. 263 e seguintes.) 14 (pag. 21). Gabriel Soares está aqui inteiramente de accordo com o nosso Missionario. Estas grandes canoas chamavam-se _Maracatim_, por causa do _Maracá_, que, como protector, trasiam na prôa. _Iga_ chamava-se uma canôa pequena, e _Igaripé_ uma canoa de cortiça ou casca de arvores, etc. etc. (Vide _Ruiz de Montoya_, _Tesoro_, na pag. 173.) 15 (pag. 21). André Thevet, e depois d’elle João de Lery descreveram com exactidão este genero de ornato, chamado _Araroye_ pelo ultimo d’estes viajantes. Coube ao padre Ivo fazer-nos conhecer seo valor symbolico. 16 (pag. 24). A curiosa narração do indio confirma a opinião de Humboldt, e bem pode ser que antigamente se encontrassem algumas mulheres cansadas do jugo dos homens, e por isso entregues á vida guerreira. Combina igualmente com as tradicções colhidas por Condamine e sessenta annos antes do Padre Ivo o franciscano. André Thevet não esteve longe de vêr n’estes selvagens americanos descendentes directos do exercito feminino commandado por Pentisilée. Humbold disse com rasão, que o mytho das Amasonas era de todos os seculos e de todos os periodos da civilisação. 17 (pag. 25). Esta nação não é indicada no _Diccionario topographico, historico, descriptivo da Comarca do Alto Amasonas_. Recife. 1852—1 vol. em 12. Tambem não a encontramos na longa nomenclatura da _Corographia Paraense_ de Ignacio Accioli de Cerqueira e Silva. Deve estar extincta, e Martius tambem não a cita no seo _Glossaria_, publicado ultimamente. 18 (pag. 25). Por este nome, aqui tão frequente, designa-se uma grande aldeia alem de Tapuitapéra. Era tambem o nome de um vasto territorio e de um rio. Segundo o padre Claudio—_Cumã_ significa _proprio para pesca_, porem duvidamos que seja exacta a explicação. Debalde procura-se esta palavra no _Glossaria_ de Martius publicado em 1863. 19 (pag. 25). _Cazal_, o _Diccionario do Alto Amasonas_, e _Accioli_ nada dizem a respeito d’estes rios, onde comtudo esteve um exercito de 2,000 homens! Martius trata de uma nação de _Pacajaz_ ou _Pacayá_, no Pará. (Vide _Glossaria linguarum_. pag. 519.) 20 (pag. 25). Esta ligeira descripção das casas aereas construidas sobre mangues e troncos das palmeiras _muritis_ lembra um facto bem curioso, classificado outr’ora como fabula, e descripto na Relação de Walther Ralegh. É bem possivel que haja alguma exageração, porem o facto é authentico, e deo-se na foz do Orenoco. Os _Waraons_ visitados ha perto de um seculo pelo Dr. Leblond, os _Guaraunos_ descriptos pelo sabio Codazzi, são um e o mesmo povo, salvos de inteira destruição por sua maneira de viver. Os _Camarapins_, cujo desaparecimento acabamos de provar, foram menos felises. Á respeito dos indios das _Iouras_ consulte-se o resumo, que outr’ora fizemos, dos manuscriptos, por onde o Medico francez provou sua moradia entre os Waraons. (Vide _Guyana_, 1828, em 18.) Codazzi, cujos bellos trabalhos geographicos são conhecidos, citava em 1841, os Guaraunos, como não tendo ainda abandonado suas casas aereas. Ha trinta annos, quando muito, vinham elles negociar com os habitantes da Trindade. (Vide o _Resumen de la Geographia de Venezuela_. Pariz. 1841—em 8.) Agostinho Codazzi morreo ultimamente. Quanto aos manuscriptos de Leblond, que ja tivemos á nossa disposição, pertenciam á collecção das viagens, possuida em 1824 pelo edictor Nepveu. 21 (pag. 28). Este personagem tinha um nome todo portuguez, e era muito dedicado á nação, a cujos interesses servia. O titulo de _Capitão_ afinal estendeo-se a todos os chefes da raça indigena. 22 (pag. 29). Este selvagem fanfarrão gabava-se de ter feito morrer o padre Ambrosio, residente em _Iuiret_, cuja pronuncia segundo Claudio d’Abbeville, é _Jeuiree_, e ella indica a estranha significação d’este nome. O _Pay açu_, o grande padre é Ivo d’Evreux. A palavra _Pay_ quer dizer em portuguez _Padre_. Pay-_guaçu_, diz Ruiz de Montoya significar Bispo ou Prelado em Guarany. O nome de _Pay_ foi mais facilmente adoptado pelos indigenas pela sua analogia em designar pessoas graves. Os feiticeiros eram chamados—_hechizeros_—para servir-nos da propria expressão do lexicographo hespanhol. Da _lingua geral_, modificação do Guarany, _Pay_ significa padre, monge e senhor. _Pay Abaré Guaçu_ era a designação dos prelados e dos jesuitas. Os indios ainda chamavam o papa _Pay aboré oçu eté_. 23 (pag. 29). Não sabemos porque o missionario modifica a orthographia do nome de um povo, que elle ja escreveo muitas vezes de forma diversa. Claudio d’Abbeville escreve _Topinambás_, o author da sumptuosa entrada _Tupinabaulx_, Hans Staden _Topinembas_, e emfim João de Lery _Tuupinambaults_. Malherbe suavisando a expressão escreve _Topinambus_. Foi esta ultima orthographia a que prevaleceo no tempo de Luiz XIV, porem preferimos a que é adoptada pelos brasileiros. 24 (pag. 31). Por esta palavra tão vaga, aqui empregada pelo padre Ivo, suppomos que elle pretende designar os povos mais selvagens ainda que os Tupinambás, ou então que se entregavam mais especialmente a anthropophagia. Nas obras de Humboldt encontra-se uma curiosa definição da palavra _Canibal_. Notaremos apenas, que 50 annos antes do tempo, em que escreveo o padre Ivo, designavam-se assim, quasi que exclusivamente, os indios mais proximos do Equador. Na historia da França antarctica por André Thevet, á proposito da madeira de tincturaria, lê-se o seguinte: «o da costa do rio de Ianaire é melhor que o da costa de Canibaes e de toda a costa do Maranhão,» (pag. 116 verso), e mais adiante: «visto que chegamos a estes Canibaes, d’elles diremos apenas, que este povo, depois do cabo de Santo Agostinho, e alem até o Maranhão, é o mais cruel e deshumano que em qualquer outra parte da America. Esta canalha come ordinariamente carne humana, como nós comemos carneiro.» (pag. 119.) 25 (pag. 31.) Foi com effeito nas margens do Itapecurú, que se apresentaram os portuguezes. Claudio d’Abbeville disse algumas palavras sobre este bello rio, porem exagerou o seo curso. Nós estamos tão pouco ao facto da geographia d’esse paiz, que Adriano Balbi se contentou em mencionar seo nome apenas no quadro, que traçou, dos rios do Maranhão. Que prodigiosas mudanças não se terão operado sobre suas margens desde o tempo, em que o nosso bom frade assim o chamava alterando-lhe o nome! Em lugar d’estas florestas, onde andavam errantes os Timbyras, cultiva-se milho, mandióca, canna de assucar, fumo e algodão, e a producção ultima d’este genero foi tão abundante, que subio a 35,000 saccas. Em França não se conhece o nome das cidades mais importantes, assentadas á margem d’este rio, e apenas se encontram em nossos livros de geographia. Quem já ouvio fallar da pequena cidade de Caxias, a risonha patria de Gonçalves Dias? Comtudo é uma cidade rica, commercial, banhada pelo Itapecurú, e distante da capital sessenta legoas. Em 1821 era apenas um povoado de 2,400 almas, e hoje este numero elevou-se a 6,000 habitantes. Caxias é o centro do commercio entretido com o Piauhy, e com immensas solidões de campos de criação de gado, conhecidas pelo nome de _sertão_. Edificada para assim dizer no deserto, tem escolas florescentes, um theatro, estabelecimentos de utilidade publica, que nem sempre se encontra em cidades mais consideraveis. O nome de _Caxias_ tem no Brazil significação politica, porque, em 1832, travou-se no _Morro do Alecrim_ uma batalha, cujo resultado consolidou a Independencia da Provincia. Mais tarde, na propria colina, chamada das _Tabócas_ deo-se o sanguinolento combate, onde foi vencido[BJ] _Fidié_, e que inspirou a Gonçalves Dias tão energicos versos. Seriam necessarios volumes para narrar, ainda que summariamente, as perturbações, que se seguiram a este acontecimento, e as luctas tempestuosas, que houveram neste canto ignorado do mundo até 1848, quando o Dr. Furtado conseguio reprimir a horda, que assolava esta cidade nascente.[BK] A propria naturesa, por si só, é grande n’estas regiões: 20 mil habitantes formam a população d’este vasto municipio, empregado superficialmente na agricultura. Na distancia, em que nos achamos, estas revoluções tão cumpridas para serem contadas, assimilham-se ás da idade media, que a historia local as vezes registra, mas que facilmente esquece visto não ligar-se á algum dos grandes interesses, que prende a attenção do mundo. Com mais justa rasão pode applicar-se isto a villa do Codó, a mais florescente após Caxias, como ella banhada pelo Itapicurú, e como ella separada da Capital por um espaço de 60 legoas. 26 (pag. 34). Este nome do principio do mal, acceito em toda a obra pelo Padre Ivo d’Evreux e por Claudio d’Abbeville parece ser mais particular ao Norte do Brazil. Martius escreve _Jurupari_, ou _Jerupari_. _Anhagá_ parece ser mais uzado ao Sul. Não se acha a significação desta palavra no _Tesoro de la lingua Guarani_. _Angai_ neste precioso Diccionario significa espirito mau. _Anhanga_ significa hoje apenas um _phantasma_. (Vide Gonçalves Dias, _Diccionario da lingua Tupy_.) 27 (pag. 36). Estes povos, antes de reunidos, eram chamados Tabaiares pelos Tupinambás. Pag. 36. Tabajares não significa de maneira alguma _inimigo_, e sim senhores da Aldeia. (Vide Adolpho de Varnhagem, _Historia geral do Brazil_. T. 1.º Accioli. _Revista do Instituto_.) 28 (pag. 36). A denominação, adoptada no Seculo XVII por nossos compatriotas, veio sem duvida alguma do costume que tinham estes indios de furar o labio inferior, e mesmo as faces para n’ellas introduzir discos de uma especie de esmeralda, feitos com muita paciencia, e apreciados como joias estimaveis. (Vide _Sur l’usage de se percer la lévre inferieure chez les Américains du sud_, a serie de nossos artigos, inserida com muitas gravuras no _Magasin pittoresque_. T. 18 pag. 138, 183, 239. 338, 350 e 390.) 29 (pag. 36). _Mearinense_ é evidentemente um nome creado pelo nosso bom Missionario, e melhor não o inventaria Rabelais. Os Mearinenses eram os proprios Tupinambás que residiam nas ferteis margens do Meary, d’onde proveio o nome á provincia, no pensar de Cazal. O Mearim, que offerece um curso de 166 legoas, só é navegavel no inverno, e as canoas grandes sobem unicamente até 60 legoas. Nasce na _Serra do Negro e Canella_ aos 8° 2′ e 23″ de lat. e 2° 21′ de long. contados da Ilha de Villegagnon na bahia do Rio de Janeiro. 30 (pag. 36). A palavra _Tapuya_ ou _Tapuy_ tem levantado grandes discussões: será o nome de um povo? (Vide o _Diccionario de Gonçalves Dias_). Significará inimigo? Ruiz de Montoya nada diz a tal respeito. Será preciso crear uma nação distincta da dos Tupys, a qual estes deram tal nome. Um escriptor, authoridade na materia, Ignacio Accioli não hesita a tal respeito. Quando enumera as principaes divisões da raça Tupica, elle diz: «outra nação geral, a dos Tapuias, divide-se, como pensam muitos, em pequenas tribus fallando perto de cem dialectos, e são os _Aymorés_, os _Potentus_, os _Guaitacás_, os _Guaramonis_, os _Guaregores_, os _Jaçarussus_, os _Amanipaqués_, os _Payeias_ e grande numero de outras.» (Vide T. XII da _Revista Trimensal—Dissertação historica, ethnographica e politica sobre quaes eram as tribus aborigenes_, etc., etc., pag. 143.) 31 (pag. 42). Este pensamento passou como proverbio na ilha e em Goyana. 32 (pag. 42). Hans Staden prisioneiro, pelos Tupinambás em 1550, ao sahir do Forte da Bertioga suscitou grande discussão para saber-se com certeza, quem foi o primeiro que o tocou. (Vide _la Collection. Ternaux Compans_.) 33 (pag. 49). Nada tem de extraordinario o nome d’este chefe, porem é necessario escrevel-o assim com mais exactidão, _Ibira Pitanga_. (Vide _Ruiz de Montoya_.) Lery escreveo _Araboutan_, Thevet _Oraboutan_. Desapparece esta celebre madeira cada vez mais das grandes florestas, onde íam buscal-os os nossos antepassados. 34 (pag. 51). É um Tabajara quem falla, porem observamos, que a palavra _Carbet_ não pertence á _lingua geral_. O padre Ruiz de Montoya não a inserio no seo precioso _Tesoro de la lingua Guarany_. É usado mais particularmente entre os Galibis e os outros povos de Guyana. Resente-se esta expressão da visinhança da nossa colonia. Convem fazer certa differenca entre os _Carbets_, ou _casa grande_, e as _Ocas_ ou _Tabas_, que formavam a architectura rudimentar dos outros povos do Brasil. Ouçamos a este respeito o Padre _du Tertre_. «No meio de todas estas casas, fazem uma grande, commum, a que chamam _Carbet_, a qual tem ordinariamente 60 ou 80 pés de comprimento, e é formada de grandes forquilhas de 12 a 20 pés de altura, infincadas na terra: sobre ellas collocam uma palmeira, ou outro tronco de arvore muito direito, que serve de cumieira, e n’ella ajustam caibros, que descem até tocar em terra, e cobrem-nos com ramos ou folhas de palmeiras, ficando muito escuro o interior da casa, pois a claridade só entra pela porta, e esta é tão baixa, que para entrar-se é necessario curvar-se.» Estas particularidades pedimos emprestadas a uma obra do anno de 1643, e se referem especialmente a architectura rustica dos Caraibas insulares. Escolhemos este exemplo quasi contemporaneo do livro publicado pelo nosso autor, porque na realidade não ha grande differença entre os _Carbets_ das ilhas e os dos continentes. Si se escrevesse uma historia d’essas casas de folhas tão rapidamente construidas, apresentar-se-iam certas variedades conforme os usos e fins para que se destinam. (Vide a este respeito _Le voyage pittoresque au Bresil de Debet_, depois as gravuras do livro de _André Thevet_, publicado em 1558.) Haviam pequenos e grandes _Carbets_, aquelles onde os Piagas faziam suas charlatanerias, e estes onde se formavam os grandes conselhos. Tinham estes ultimos a configuração de um dos nossos vastos alpendres, tendo lugar para 150 ou 200 guerreiros. No XVII seculo, na linguagem de nossas colonias, nas ilhas ou no continente, formar um conselho qualquer era _Carbeter_; o termo era proprio e acha-se usado por todos os viajantes. (Vide entre outros Biet, _Voyage de la France équinoxiale_. Paris. 1654, em 4.º) 35 (pag. 56). David Migan era natural de Dieppe, e como fizeram tantos outros naturaes da Normandia no fim do seculo XVI, veio tentar fortuna entre os selvagens do Brasil. Encontraram-no os chefes da opposição estabelecido havia muitos annos em Jupinaram, na ilha do Maranhão. Era em toda a extensão da palavra um interprete da Normandia, e sabe Deos de que reputação gozavam estes interpretes no que dizia respeito ao que então se chamava mundo civilisado. Comparavam-nos até aos selvagens, cujos odiosos festins, dizia-se, que elles partilhavam. David Migan teve as honras do Mercurio francez. (Vide T. 3, pag. 164) Regressou á França com Rasilly a quem era muito affeiçoado, e assim foi bom por ser o unico capaz de traduzir para a Rainha, a longa exposição de Itapucu. De passagem lembramos ter elle tambem assignado o termo de cessão, que la Ravardiere fez de seos direitos a Francisco de Rasilly, o que indica, sem duvida alguma, o gozar de consideração excepcional. O nome de Migan nos parece ser _nome de guerra_, pois esta palavra na lingua _tupy_, significa o caldo grosso, que se fazia com a farinha de mandioca. Malherbe, que estava nas Tulherias, quando se apresentaram os indios, notou a habilidade d’este homem. Havia outro interprete chamado Sebastião, muito affeiçoado a Ivo d’Evreux. 36 (pag. 65). É mui curioso o achar-se em Maranhão, no anno de 1612, um selvagem fazendo ao padre Ivo o mesmo raciocinio, a que foi obrigado á responder João de Lery em 1556: «o que quer dizer vós _Mair_ e _Peros_, (francezes e portuguezes) virdes de tão longe buscar madeira para vos aquecer? Lá não a tendes?» (Vide _Histoire d’un voyage en la terre du Bresil_, Rouen 1578 em 8.º) 37 (pag. 70). Largamente descreveo Mr. Humboldt a região dos Otomanos, e as porções immensas de terra, que reunem estes indios para comer quando lhes falta a caça e a pesca. Pensa o grande viajante, que esta terra secca ao sol, formando tulhas de bolasinhas, dispostas symetricamente, é procurada pelos selvagens por conterem particulas animalisadas e que a fazem nutritiva. Prova o padre du Tertre, que tanto os indios das ilhas como os do continente comem terra, embora pense que seja por aberração de gosto. «Todos comem terra, mães e filhos, diz elle, e a causa de tão grande aberração de gosto não pode proceder, penso eu, senão de um excesso de melancolia.» (_Hist. nat. das Antilhas, habitadas pelos francezes_. T. 2º, pag. 375.) Não longe das regiões descriptas pelo padre Ivo, á margem do rio Ucayale, encontram-se ainda os indios _Pinacos_, cujo nome verdadeiro é _Puynagas_. Estes indios despresados por seos compatriotas, são afamados comedores de terra. A este respeito, entre outros, foi publicado um curioso opusculo de Mr. Moreau de Jonnès com o titulo de _Observations sur les Geophages des Antilles_. Paris. An. VI. Tem somente 11 paginas. 38 (pag. 73). Na enumeração das diversas classes da infancia achamos ainda exactidão no padre Ivo, embora confundisse a letra N com a R: a palavra _menino_ escreve-se _Curumim_ nos Glossarios brasileiros. (Vide Gonçalves Dias, _Diccionario da lingua Tupy_. Leipzig, 1858 em 12.) 39 (pag. 81). Gonçalves Dias chama a virgem _Cunhã mucu_. (Vide _Diccionario_.) 40 (pag. 82). Este singular uso, fallado por todos os viajantes do XVI seculo, como acaba de ver-se ainda não estava modificado. Não se encontra somente entre os Caraibas das ilhas, e sim tambem em pleno vigor na Europa, e especialmente entre os Bascos, e era então chamado a «encubação.» As «_Miscellanias historicas_,» publicadas em Orange em 1675, contem interessantes observações á tal respeito. «Nota-se, diz elle, um admiravel costume em Bearn. Quando pare uma mulher, anda á pé e o marido deita-se para guardar o resguardo. Creio que os Bearnenses tomaram este costume dos hespanhoes, de quem Strabon disse a mesma coisa no livro 3º da sua _Geographia_.» O mesmo faziam os Tibarénienses, como refere Nimphodore, na excellente obra de Apollonio de Rhodes, livro 2, e os Tartaros segundo o testemunho de Marco Paulo, cap. 41. livro 2.º Esto uso, tão exquisito, e só explicavel si se podesse descer até o recondito mais intimo do caracter indiano, era religiosamente observado pelos mais valentes e afamados guerreiros Tupinambás, e provocaria o riso do homem civilisado, si indagasse a sua origem natural. Torna-se porem admiravel, para assim dizer, quando se sabe ser tal costume acompanhado de mui crueis privações, porque o indio, que acaba de ser pae, e que se condemna a tão ridiculo repouso, não só priva-se de alimentos, como ainda se entrega a outros supplicios com intenção de evitar que soffra o filhinho certos males, que elle receia. Pela sua ignorancia e superstição julga-se com grande influencia phisiologica sobre o menino, e muito soffre e com stoicismo afim de poupar algumas dores ao recem-nascido. O homem civilisado das cidades, embora mediocremente intelligente, abstem-se de esquadrinhar estas ideias cheias de dedicação, embora inconstantes dos selvagens, e ri-se antes de proferir seo juiso. A companheira do indio tambem supersticiosa, approva o que faz seo marido: soffre, sem queixar-se, verdadeiras dores e entrega-se a um novo trabalho ainda mais pesado, porque todo o serviço da casa cahe sobre ella. No modo de pensar desta pobre mulher a salvação do recem-nascido depende do procedimento stoico de seo marido. Nunca podemos saber qual era o motivo, que obrigava os antigos a entregarem-se a este repouso tão exquisito, não differente provavelmente do concedido aos americanos. Carli, cuja engenhosa erudicção explica tantas coisas antigas da America, não procurou mesmo uma hypothese para descobrir motivo tão ridiculo. Enganou-se por certo, quando disse serem elles alimentados abundantemente. (Vide _Lettres Américaines_. Boston et Pariz, 1788, T. 1 pag. 114.) É bom ler-se com cuidado a versão francesa d’esta curiosa passagem. Não soube o traductor francez, Febvre de Villebrune, dar real valor ás palavras _italianisadas_ pelo autor. Antonio Biet, é mais justo para com os indios, e menos inclinado á zombaria do que os seos predecessores, quando descreve a «incubação» entre os Galibis. «O pobre indio, diz elle, soffre muito durante seis semanas, come pouco, e quando acaba o resguardo, está tão magro como um esqueleto.» O mesmo viajante nos mostra o Galibi, sempre paciente, não deixando a _casa grande_, e nem se animando a levantar os olhos para os que o rodeiam. (_Voyage de la France equinoccial_, Livro 3.º pag. 390.) Descrevendo os costumes de certos Caraibas, não podia o autor da historia moral das Antilhas esquecer a incubação. Rochefort conta as particularidades e especifica sua analogia com uma ceremonia identica, que vio n’uma provincia de França. Este repouso forçado do indio pareceo-lhe muito absurdo, porem não nega ao pobre paciente o merito do jejum, antes confessa, que durante sua reclusão apenas lhe dão um pouco de farinha e agoa. (Vide _Historia moral_ pag. 494.) Não proseguiremos n’estas citações, bastando dizer que entre os povos do Brasil os Tupiniquins, os Tupinacs, os Tabajares, os Petiguaras, e muitas outras tribus imitam os Tupis, e estes nomes nada mais adiantam. Convem comtudo fazer bem saliente o amor paterno entre os indios, dando-se assim ao mais extravagante dos costumes a sua origem verdadeira. 41 (pag. 84). _Tamoi_ quer dizer avô na lingua dos Tupinambás: aqui ha alteração de palavra, proveniente por differença de pronuncia. Lê-se no _Tesoro de la lingua Guarany_, base da lexicographia brasileira _Tamôi_, _abuelo_, _Cheramòi_, _mi abuelo_, _Cherúramôîruba_, _mi bisabuelo_, _Cherúramôî_, _el abuelo de mi padre_, etc. Por sua origem tinham os Tamoyos real proeminencia sobre as outras tribus da mesma raça. No meiado do Seculo XVI habitavam as circumvisinhanças de _Nicteroy_, ou antes do Rio de Janeiro: como alliados fieis dos franceses foram expellidos d’esse bello territorio por Salema, e os restos de suas tribus desceram para as regiões do Norte, onde encontraram seos antigos amigos, que se haviam refugiado especialmente nos campos de Maranhão. 42 (pag. 87). Não é de mediocre importancia a especie de vocabulario, aqui offerecida pelo nosso missionario. Os leitores francezes, pouco familiarisados com a philologia americana, despresaram sem duvida esta collecção de frases, provenientes d’uma lingua, que comtudo servio de recreiação á Boileau: o mesmo não acontecerá n’um vasto Imperio, onde as letras são hoje tão honradas. Ha muitos annos já, que o Autor da _Historia Geral do Brazil_ provou a importancia do estudo das linguas indigenas n’uma _Memoria_ impressa entre as actas do _Instituto Historico do Rio de Janeiro_. (Agosto 1840.) O padre Anchieta, a quem se deve a composição da primeira grammatica, conhecida, da lingua geral, não fallava o Tupy sem uma especie de enthusiasmo; o padre Figueira o imitou em sua sincera admiração; Laet, com quanto não manifestasse admiração gabou sua abundancia e doçura, e nisto foi seguido por Bettendorf. Pode dizer-se, que entre todos estes foi o padre Araujo quem melhor fez sobresahir sua importancia debaixo do ponto de vista philosophico. «Como foi, disse algures esse Religioso, que os povos, que a fallaram, tendo suas ideias limitadas em estreito circulo de objectos, todos necessarios embora á seo modo de vida, podessem conceber signaes representando idéas, capazes de indicar o objecto, que não conheciam antes, e isto não de qualquer forma, e sim com propriedade, energia e elegancia», accrescentando «sem ter ideia alguma da religião, a não ser da natural, encontraram em sua propria lingua expressão para patenteiar toda a sublimidade dos mysterios da religião, e da Graça, sem pedir emprestado coisa alguma aos outros idiomas.» Enganar-se-ia completamente quem julgasse estar hoje esquecida a lingua usada entre tribus numerosas quando em 1500 Pedro Alvares Cabral descobrio o Brasil. Deixou não só vestigios na Geographia do Brazil, mais tambem ainda hoje se falla n’algumas aldeias, tendo estreita affinidade com o _Guarany_, lingua usada na mór parte do Paraguay. Comtudo não é a mesma do seculo XVI. Modificam-se os idiomas dos povos selvagens á similhança dos idiomas dos povos civilisados, e ainda mais talvez quando uma corrente de ideias novas vem desvial-os da liberdade do seo andar. O _Maya_, o _Quiché_, o _Aztéco_, o _Quichua_, o _Aymara_ não são o que foram no tempo de Cortez, de Alvarado, e de Pizarro. Si o sabio Veytia podesse, ha perto de um seculo, confrontar a differença enorme, que apresenta o Nahuatl antigo com o que fallavam muitas pessoas do seo tempo, imagine-se o que não succederia quando se fizesse a mesma confrontação entre a lingua Tupy, e o moderno Guarany. Esta ultima lingua, tão em uso no Paraguay, não é mais fallada com a pureza da sua origem, segundo diz o Sr. Beaurepaire de Rohan, si não pelos _Cayuas_, das nascentes de Iguatiny. São pois mui preciosos todos os livros, que tratam da lingua antiga debaixo do ponto de vista grammatical. Debaixo d’este ponto de vista, as viagens d’Hans Staden, de Thevet, e de Lery tem mais valor do que as Relações de Claudio d’Abbeville e Ivo d’Evreux. Acham-se todos os promenores apreciaveis á este respeito no nosso opusculo publicado sob este titulo—_Une fête bresilienne célébrée á Rouen en 1550. Suivie d’un fragment du XVI siécle roulant sur la Théogonie des anciens peuples du Brésil e des poésies en langue Tupique de Christovam Valente_. Pariz, Techener, 1850, gr. em 8.º O sabio Hermann E. Ludewig não conheceo o vocabulario apresentado pelo padre Ivo, ou pelo menos não tratou d’elle. (Vide _The literature of American aboriginal languages_. London, 1857, in 8.) Finalmente tem se feito n’estes ultimos tempos trabalhos de tanto folego, merecendo o primeiro lugar os do illustre _Martius_. Um distincto litterato brazileiro, o Dr. Gonçalves Dias, que já publicou em _Leipzig_ o _Diccionario da lingua Tupy_ (1858) foi de novo estudal-o nas profundas florestas do Amazonas. A philologia brasileira ainda fará grandes progressos. 43 (pag. 94). Aqui ha falta sensivel em nosso texto, por ter indubitavel o nosso viajante occupar-se largamente d’uma raça, que com os _Morobixabas_ representam o papel principal na vida civil e politica dos Brasileiros. Simão de Vasconcellos nas suas—_Noticias do Brasil_—nada deixa a desejar a tal respeito, e para elle enviamos nossos leitores, observando apenas que os _Piayes_, os _Pagé_ ou _Pagy_ somente alcançavam a prodigiosa influencia, que gozavam, submettendo-se á experiencias e a jejuns tão rigorosos a ponto de arriscarem sua vida, obtendo finalmente o titulo, que tanto ambicionavam. São as mesmas essas provas ou experiencias desde a embocadura do Orenoco até as do Rio da Prata. Quando o candidato estava ja muito enfraquecido pelo jejum, entregavam-no ás mordiduras das formigas, abarrotavam-no de bebidas asquerosas, cuja base era o succo do tabaco, e algumas vezes defumavam-no a ponto de perder os sentidos. Si resistia a taes supplicios, era igual senão superior aos guerreiros. Deixou-nos Vasconcellos a respeito do que se pode chamar _Collegio dos Piagas_, á similhança do _Collegio dos Druidas_, certas particularidades muito minuciosas, applicaveis principalmente ás Provincias do Sul. No Norte os _Pages Aybas_ eram os feiticeiros afamados astrologos, ou melhor _tempestuosos_, a que nada podia resistir. Sob sua dependencia estavam os astros, e sob sua obediencia o sol e a lua para cumprir suas ordens: desencadeiavam os ventos e levantavam tempestades. Os mais ferozes animaes, como as onças e jacarés, obedeciam-no. Para alcançar aos olhos do publico tal poder recorria o Pagé Aybas a um meio, que nunca falhou, isto, é a _herva dos feiticeiros_ ainda mais poderosa do que a da Europa, o _Paricá_, cujos effeitos terriveis foram descriptos pelo Dr. Rodrigues Ferreira. (Vide _Memorias das Academias das Sciencias de Lisboa_.) Mastigava-se o _Paricá_, e com isto fazia-se um unguento, uzado para uncturas. 44 (pag. 100). Ha aqui um pequeno erro typographico, que convem corrigir: leia-se pois _rocou_. Em toda a America Meridional costumavam os selvagens tingir a pelle de vermelho alaranjado, ou de negro azulado por meio do _rocou_, _Bixia Orellana_, ou _Genipapeiro_ (_Genipa Americana_.) O Padre Ivo descrevendo com exactidão o fructo d’esta arvore, em abundancia no Maranhão, diz—o summo claro, e limpido que se extrahe della, fica muito negro logo depois da sua applicação, e assim conserva-se por 9 dias (Vide a este respeito _Humboldt_, _Voyage aux régions équinoxiales_.) 45 (pag. 101). Serve-se aqui Ivo d’Evreux de uma expressão impropria designando pela palavra _Thon_ o que se chama _bicho de pé_, _niga_, _pulex penetrans_, dos entomologistas. Bem pode ser que a palavra seja da _lingua geral_. Encontra-se com a mesma accepção em Thevet, que a escreveo em 1558 (Vide _France antarctique_. pag. 90). È muito conhecido este insecto, e por isso desnecessario é demorarmo-nos descrevendo os males, que produz. (Vide entre outros Naturalistas, o veridico Auguste de Saint-Hilaire, _Voyage dans l’interieur du Brésil_. T. 1.º pag. 35 e 36). 46 (pag. 106). Realisou-se completamente a prophecia do bom Padre. Poucas são as regiões do mundo, que, como esta, tenham sido exploradas em beneficio da sciencia. Alem das _Plantas uteis do Brazil_, devidas ao nunca assás chorado Augusto de St. Hilaire, ha hoje a _Flora brasiliensis_ do illustre Martius, tambem autor da _Materia-medica_ deste paiz. Não desejamos cançar o espirito do leitor com uma arida nomenclatura de livros especiaes. Contentamos-nos apenas dizendo, que muito tem os brazileiros concorrido para estes trabalhos scientificos, citando somente as _Memorias_ do Dr. Freire Allemão, recentemente publicadas, e a grande collecção, infelizmente não acabada, da _Flora Fluminensis_. 47 (pag. 108). Esta molestia, tão cruel e tão similhante á syphilis, se não é a propria syphilis, tambem acha-se descripta na _France antarctique_ de André Thevet, livro publicado em 1558 (vide pag. 86). João de Lery tambem descreveo seos symptomas. Está claro, que não se pode attribuir aos negros de Guiné molestia tão geral entre os Americanos. 48 (pag. 114). O Padre Ivo é rigorosamente exacto no que diz á respeito dos funeraes dos Indios, e com elle concordam em tudo Lery e Thevet, dando este ultimo uma excellente estampa representando um Indio prestes a ser sepultado. (Vide pag. 82 v.) 49 (pag. 114). Não se esqueciam os Tupinambás de collocar, entre as suas singulares previsões para o morto, um pouco de tabaco, carne, peixe, raizes de cará e de farinha de mandióca. É rigorosamente verdadeiro tudo o que o padre Ivo conta n’este capitulo, como se pode vêr nas estampas que apresentam Thevèt na _France antarctique_, e Lery na sua _voyage_. 50 (pag. 117). Os Tapuytapéras, cujo nome deviam á uma localidade do Maranhão, tinham cabellos cumpridos. Pertenciam á raça Tupy, pois que _Migan_, o interprete natural de Dieppe, entendia sua linguagem, e o mesmo succedia aos de Commã, cuja aldeia tinha indios com este nome. Os Cahetés, no seculo XVI, constituiam uma nação essencialmente bellicosa occupando a maior parte do territorio de Pernambuco. Fallavam a lingua Tupica, ou _lingua geral_. Encontram-se as mais curiosas particularidades á respeito de sua organisação interna no _Roteiro do Brasil_, manuscripto existente na Bibliotheca Imperial de Pariz. Hoje está sabido, que este livro, tão notavel, composto em 1587 por Gabriel Soares, é o trabalho mais completo, que existe sobre as diversas tribus do Brasil existentes no tempo do padre Ivo. Passados muitos annos a Academia Real das Sciencias de Lisboa, reconhecendo a sua importancia, imprimio-a nas suas _Noticias das nações ultramarinas_, e depois o Sr. Francisco Adolpho de Varnhagem, colleccionando todas as copias d’esta mesma obra, embora sob diversos titulos, publicou uma nova edicção superior á todas, sob o titulo de _Tratado descriptivo do Brasil em 1587, obra de Gabriel Soares de Sousa, senhor de engenho na Bahia, nella residente dezesete annos, seo vereador da Camara_. _Rio de Janeiro._—1851 em 8.º 51 (pag. 118). O padre Ivo quando quer designar o tubarão, escreve impropriamente _requin_, quando na primitiva era _requiem_. Pode bem ser, que o nome imposto a este peixe tão voraz provenha da rapidez com que mata. 52 (pag. 120). O _Maracá_ era um instrumento symbolico, usado tanto nas festas religiosas como nas profanas. Thevet, o guarda das curiosidades do Rei, o descreveo muito bem em seos manuscriptos, inedictos, e como sei que não será desagradavel para aqui transcrevo as suas palavras: Tendo nas mãos um ou dois _maracás_, que é um fructo grande, de forma oval, similhante ao ovo de abestruz, e da grossura de uma abobora, mais agradavel á vista do que ao paladar, pelo que ninguem o come, fazem com elles muitos mysterios e superstições tão extravagantes como incriveis. Cavam o fructo, enchem-no de milho graudo, amarram-no a ponta de uma haste, enfeitam-no com pennas e enterrando a outra ponta, fica ella em pé. Cada casa tem um ou dois Maracás, que respeitam como si fosse _Tupan_, trazendo-o sempre na mão, quando dançam e fazendo chocalhar. Pensam que é _Tupan_ que lhes falla (Manuscripto de André Thevet, conservado na Bibliotheca Imperial de Pariz.) Hans Staden e Lery, Roulox Baro escreveram largas paginas a respeito do Maracá, e o proprio Malherbe falla dos que ouvio em Paris por occasião do baptismo de tres indios sendo padrinho Luiz XIII. Chegando a Pariz, e residindo no Convento dos seos protectores, os indios revestidos dos seos bellos adornos, e com o _maracá_ em punho, excitaram muito enthusiasmo, a ponto de haver muita paixão pela sua dança e pela sua propria musica. Seria muito curioso si hoje se achasse a Sarabanda composta em honra d’elles pelo famoso Gauthier. Malherbe escreveo ao celebre Peirese dizendo tel-a mandado á Marco Antonio «como excellente peça digna de ouvir-se» (Vide _Correspondance_, pag. 285, antiga edicção.) Ainda, passadas 12 paginas Malherbe tratou da musica então em voga, e do seo auctor, dizendo «ser Gauthier considerado o primeiro no officio, ignorando porem si sahira bem, e si o gosto da Provincia se conformará com o da Côrte.» Não se contentaram somente de proporcionar aos pobres selvagens distracções ligeiras, pois procuraram obrigal-os a residir em França. Diz o poeta pag. 275 «os Capuchinhos, para obsequiarem completamente estes pobres selvagens, resolveram algumas beatas a casarem-se com elles, e ja deram começo a excursão d’este plano.» Emquanto porem eram bem acolhidos os guerreiros do Maranhão, suas mulheres não gozavam iguaes favores. Uma certa Princesa cujo nome calla o poeta, manifestando opinião singular, dizia «que para elles tinha muita satisfação de dar-lhes casa e comida, mas que ás senhoras, suas mulheres, não podiam ser senão...» bem me entendeis, e por isso não podia recebel-as em sua casa. 53 (pag. 120). É mui curioso o saber-se, que esta expedição exploradora ás margens do Mearim, reconheceo logo serem essas terras essencialmente proprias para a plantação da canna de assucar, a que se empregam todos os braços de 15 annos para cá, sendo esta revolução agricola devida á influencia do Dr. Joaquim Franco de Sá. A charrua despresada por tão longos annos hoje sulca este solo admiravel. 54 (pag. 122). Deve lêr-se _Mutum_ sendo a especie mais pequena designada pelo nome de _Mutum Pinima_. (Vide _Diccionario Tupy_ de Gonçalves Dias.) Trata-se aqui de Hocco _Crax Alector_, caça mui procurada. A imperial sociedade de acclimatação emprega actualmente louvaveis exforços para naturalisar em França este passaro do Brasil e da Goyana. 55 (pag. 122). É uma linda especie de periquito, conhecida no Brasil pelo nome de _Tui_. Forma ás vezes bandos tão grandes a ponto de ser um dos flagellos da agricultura. 56 (pag. 123). É a palmeira chamada—_Tucum_—pelos brasileiros. Consulte-se a magnifica _Monographia das palmeiras_ por Martius. O _Tucum_ tem fibras verdes e macias, das quaes se faz excellente fio, proprio para cordas. 57 (pag. 123). Ivo d’Evreux não hesita com sua sinceridade habitual a formar um verbo derivado da lingua indigena. Desde as margens do Orenoco até as do Rio da Prata era o _Cauim_ preparado em grande quantidade. Tinha o mesmo nome em toda a parte esta especie de cerveja, ou talvez melhor de cidra, quer fosse preparada com milho mastigado pelas mulheres, quer com mandióca cajú ou jabuticaba. Encontramos este fabrico e nome até entre os Araucans. (Vide a importante obra, do Chili, do Sr. Claudio Gay.) A palavra _cauin_ atravessou espaços immensos, são os mesmos em toda a parte os processos para o seu fabrico, o que prova estreito parentesco entre os povos mais distantes, uns dos outros. Hans Staden, Lery, Thevet tem apontado seos abusos, e chamamos a attenção dos nossos leitores para as suas curiosas narrativas. O que os nossos antigos viajantes chamavam _Cauinage_ era afinal uma solemnidade, cujo sentido religioso não conhecemos. Precediam ou succediam estas orgias ás grandes expedicções. O «vinho da Europa» se chama hoje _Cauin Pyranga_, e a aguardente tão fatal aos indios, _Cauin Tata_, «bebida de fogo.» 58 (pag. 123). Descreve com minuciosa curiosidade João de Lery esta festa solemne, na qual se infiltrava o _espirito de coragem_, aos guerreiros prestes a partirem para uma expedição. Uma das estampas do seo livro representa até esta ceremonia. Entre todas as tribus da raça tupy o tabaco é considerado como planta sagrada. Reunimos tudo que se sabia ha alguns annos á respeito da origem do _Petum_ na carta, que dirigimos a Mr. Alfredo Demersay, sobre a introducção do tabaco em França, (Vide _Etudes economiques sur l’Amerique meridionale. Du Tabac du Paraguay_. Pariz. Guillamin. 1851 em 8.º) 59 (pag. 125). O nome d’esta nação tão pouco conhecida, e que se apresenta á penna do padre Ivo, é uma garantia da exactidão das suas narrações. Ainda em 1817 existiam alguns _Tramembez_ entre os trabalhadores brancos do Ceará: cultivavam mandióca e residiam na villa de _Nossa Senhora da Conceição d’Almofalla_, onde haviam muitas salinas. (Vide Ayres Casal, _Corographia Brasilica_, T. 2º, pag. 235.) Gaba o padre Ivo o valor e a industria d’estes indios, inimigos encarniçados dos Tupinambás. 60 (pag. 125). Tratamos d’este famoso indio quando elle se revestio do commando. É a figura indigena mais predominante nas duas obras do padre Claudio d’Abbeville e padre Ivo. Na _lingua geral_ a palavra _japim_ é o nome de um lindo passaro, de pennas amarellas e negras, que anda em numerosos bandos e que em toda a parte faz tão lindos ninhos. Pode tambem dar-se-lhe outra significação. _Japy_ significa na lingua indigena do Maranhão, «o choque, o golpe.» (Vide Gonçalves Dias, _Diccionario_.) A primeira explicação é a unica adoptada. Japy-uaçú era o que se chamava um _Mitagaya_, um grande guerreiro. 61 (pag. 126). Deixa-se o padre Ivo levar muito pelas recordações da Europa. _Jeropary-açú_, de que tratam escriptores portuguezes, nada tem de commum com um principe ou um rei, taes como eram representados no novo-mundo por convenção hierarchica. Este erro ja havia sido anteriormente commettido por André Thevèt na sua _França antartica_ e na sua _Cosmographia_. O historiador de Portugal, La Clede, que vivia no seculo XVIII foi mais longe ainda na enumeração dos pomposos titulos, que dá a alguns pobres chefes de tribus. 62 (pag. 127). Com o nome de _cabaças_ conhece-se geralmente no Brasil vasilhas ordinarias, feitas com o fructo da cabeceira. Em Venezuella chama-se _Tutumas_. Algumas destas vasilhas naturaes mostram delicados ornatos, cores inalteraveis pela agua e grande brilho. (Vide a este respeito Claudio d’Abbeville, _Histoire de la mission des péres Capucins_.) 63 (pag. 128). É isto confirmado por Magalhães de Gandavo, o primeiro escriptor portuguez, que escreveo uma historia regular do Brasil em 1576. Este amigo de Camões recorda a expressão indigena de que se serve o padre Ivo, porem não partilha sua opinião, antes crê ser o ambar um producto vegetal formado no fundo do mar. O que é certo é, que nos seculos XVI e XVII o encontro, quasi sempre casual, de enormes pedaços de ambar, arremeçados pelas ondas em praias não exploradas, enriqueceo muita gente. 64 (pag. 131). Debalde procuramos este nome no livro de Ayres do Casal, e no Diccionario de Milliet de Saint Adolphe. A região habitada pelos Cahetés de que trata, sabemos com certesa ser na provincia de Pernambuco. A palavra _Cahetés_ significa _floresta grande_, e se applica a diversas localidades. Foram os _Cahetés_, que em 1556 mataram e devoraram o primeiro Bispo do Brasil, D. Pedro Fernandes Sardinha. Este sabio prelado, natural de Setubal, e educado na universidade de Pariz, regressava á Lisboa, onde ia queixar-se do governador da Bahia. Mostra-se ainda hoje a colina, onde elle morreu, e não cresce ahi planta alguma, segundo a crença do povo. (Vide Adolpho de Varnhagem—_Historia Geral do Brazil_.) O livro de Gabriel Soares contem tudo quanto se deseja á respeito dos Cahetés, indios considerados geralmente como invensiveis guerreiros, e que se gabavam de habeis musicos. A exploração do _Uarpy_, de que aqui se trata, e emprehendida pelo Sr. de Pezieux é uma prova evidente do cuidado, que havia de explorar-se esta região, percorrendo-se de N. a S. 65 (pag. 131). Estas minas de oiro, que se esperava encontrar no Maranhão em 1613, existem hoje na serra de _Maracassumé_. Encontra-se o metal precioso sobre tudo em _Piranhas_, (districto de _Santa Helena_) nas cabeceiras dos rios Pindaré, Gurupy, Cabello de Velha (_Cururupu_) Prata (Santa Helena) na Revirada, nas margens do Tomatahy, etc., etc., porem em pequena porção. Existe cobre na Chapada no lugar _Fazendinha_ e no Alto Pindaré. Ferro existe em mais lugares, nos montes de Tirocambo e em Pastos-Bons. Suppõe-se haverem minas de estanho, porem ainda não se sabe com certesa. Encontra-se tambem o carvão de pedra, precioso mineral no estado actual da industria: depararam-se ja com alguns indicios no canal do Arapapahy, e affirma-se haver uma mina na distancia de meia legoa do Codó, na fazenda de Santo Antonio, cujas amostras provam ser de superior qualidade. Dizem haver tambem em Vinhaes. Em Sam José dos Mattões encontram-se cristaes de rocha e pedras semi-preciosas, e saphiras em Sam Bernardo da Parnahyba. De passagem lembramos que as primeiras minas de ouro, ou para melhor dizer, os primeiros veios de ouro, destinados a enriquecerem o Brasil, somente foram descobertos em Minas-Geraes, no anno de 1595. Pelas Provincias do norte não conheceo a Metropole as riquezas metalicas d’este vasto territorio, onde desemboccam o _Rio doce_, e o _Jequitinhonha_. Sabe-se que este ultimo rio que toma o nome de Belmonte na occasião em que se lança no mar, pouco distante do primeiro, com o andar dos tempos deo á corôa enorme quantidade de diamantes. Estas pedras, encontradas em 1729, principalmente no valle cercado de alcantiladas rochas, chamado pelos indios—_Ivitur_, e pelos portuguezes—_Serro do Frio_, não eram completamente despresadas pelos indios, pois seos filhos as ajuntavam, e com ellas brincavam. No Maranhão não ha diamantes. 66 (pag. 141). Mostra-se o padre Ivo aqui mui parco em suas descripções, porem deve-se desculpal-o por não ser naturalista como um theologo do seo tempo. Foi ainda mais parco o seo predecessor. O que disse de algumas plantas do genero _mimosa_ indica a sua preoccupação á respeito de certos phenomenos naturaes. As qualidades maleficas, que reconhece no succo do Cajú, de que se fabrica uma especie de cidra, são mui exageradas. Diremos de passagem, que a palavra _Cauin_ deriva-se do nome indigena d’esta arvore. _Caju-y_, licor de _Caju_. 67 (pag. 145). Á flor da paixão (_Grenadilla cœrulea_) na qual a imaginação prevenida encontra santos attributos, gozava então de prodigioso favor. Foi descripta em varias obras, e gravada exagerando-se os pontos de similhança, que podia ter com os instrumentos do supplicio de Jesus Christo. Ivo d’Evreux encontrou nos campos do Brasil magnificas flores d’estas, e mostrou-as aos amadores. Alguns annos depois elle se teria aproveitado da descripção poetica, que d’ella fez o poeta popular Santa Rita Durão no poema intitulado _Caramuru_. Lembramos aos amadores de flores phantasticas uma gravura do seculo XVII, mui curiosa, mostrando a planta com o seo tamanho natural na obra _Antonii Possevini Mantuani Societatis, Jesu cultura ingeniorum, examen ingeniorum Joannis Huartis. Expenditur Coloniæ Agrippinæ_. 1610 em 12. 68 (pag. 146). O guará (_Ibis rubra_, ou _Tantalus ruber_) desappareceo em parte de varias localidades do littoral, onde costumava expandir sua brilhante plumagem, sujeita, conforme a idade, a diversas modificações. Na obra curiosa de Hans Staden, publicada na Allemanha em 1557, vê-se qual é o papel, que representa esta ave na industria indigena. Formavam os Tupinambás em tempo certo verdadeiras expedições para procurar as pennas d’ellas, sempre raras, afim de servirem nas festas com que as tribus se obsequiavam reciprocamente. Em caso de necessidade eram substituidas por pennas de gallinhas, tinctas com uma preparação vermelha de _Ibirapitanga_, ou pau-brasil. Actualmente refugiou-se o guará nas margens, pouco frequentadas, do rio de Sam Francisco, e principalmente nas desertas regiões do Rio Negro. Ainda tambem encontram-se algumas na _lagoa dos patos_, e em _Guaratuba_. (Vide _le second voyage d’Aug. St. Hilaire_. T. 2º, pag. 222.) 69 (pag. 152). É impossivel aos que não leram as obras da idade media interpretar bem o sentido d’esta frase. O livro conhecido sob o nome de _Phisiologus_ gozava ainda de certo credito no tempo do padre Ivo de Evreux. Quem quizer informar-se d’isto minuciosamente leia o precioso resumo d’esta curiosa obra, publicada pelos Rvds. padres Cahier e Martin, sob o titulo _Melanges d’Archéologie, d’histoire et de litterature_. 4 vol. in-fol. 70 (pag. 156). As mulheres Tupinambás, que assim cantavam para attrahir as formigas, e activar a caça d’estes insectos, não o faziam somente para destruil-as, ou para resguardar suas plantações de milho de uma invasão invencivel. As formigas grandes torradas eram consideradas como uma das golodices mais preciosas, cuja receita foi por ellas ensinada a alguns colonos do Sul, e sem duvida não será desputada pelos nossos modernos Brillat Savarin. Assim como os Arabes comem ainda hoje gafanhotos, conservados em sal ou pela dissecação, e os Guaraons das margens do Orénoco apreciam muito as larvas da palmeira Muriti (não fallando de outra comida da terra do mesmo genero), assim tambem os nossos selvagens guardam grandes provisões d’estes insectos para sua nutrição. Augusto de Saint-Hilaire, o mais verdadeiro viajante, que percorreo o Brasil, achou ainda em vigor o costume de se comer formigas assadas. Depois de ter affirmado ser muito apreciado esse manjar no Espirito Santo, pelo que os habitantes de Campos, sempre rivaes dos da Cidade da Victoria, os chamavam _Tata Tanajuras_, «comedores de formigas», accrescentou «eu mesmo comi um prato d’estes animaes, preparados por uma mulher Paulista, e não lhes achei mau gosto.» (Vide _Le second voyage au Brésil_. T. 2.º pag. 181). Martim Soares de Souza, com rasão chamado o Gregorio de Tours dos Brasileiros, é mais claro a respeito do proveito que os indios tiravam das formigas como alimento. Copiamos aqui o que elle tão curiosamente disse. Depois de haver fallado da especie grande, a que chamam Içans, escreveo—«_E estas formigas comem os indios, torradas sobre o fogo, e fazem-lhe muita festa; e alguns homens brancos andam entre elles, e os mistiços as tem por bom jantar, e o gabam de saboroso, dizendo que sabem a passas de Alicante: e torradas são brancas dentro._» 71 (pag. 156). O pretendido cão, de que aqui falla o nosso Missionario, está muito longe da raça canina: é apenas o _papa-formigas_, chamado pelos indigenas _tamanduá_, e pela sciencia _Myrmecophaga jubata_. O naturalista Waterton, que com tanta curiosidade estudou os quadrupedes do novo mundo nos proprios lugares, onde com plena liberdade se entregam aos seos instinctos, fez excellente descripção d’este animal. Ha no Brasil muitas especies de papa-formigas, sendo rarissima a chamada pelos portuguezes _Tamanduà-cavallo_: parece ter sido este sobrenome o causador de haver o padre Claudio d’Abbeville errado, quando disse ser o _papa-formigas_ do tamanho de um cavallo. A palavra india, que designa este curioso animal, é composta de duas Tupis—_taixi_, «formiga,» e _mondê_ ou _mondâ_, «tomar.» 72 (pag. 157). Deve escrever-se _Taranyra_, cujo nome pertence a um pequeno lagarto. Falla-se aqui do _Tiú_ (_Tupinambis monitor_). É excellente a carne d’este reptil, e muito havia de concorrer para tornal-a saborosa a preparação culinaria tão gabada pelo Padre Ivo d’Evreux. A repugnancia d’esse bom Padre para taes comidas, não é de fórma alguma partilhada pelos descendentes dos Europeos, acostumados ás melhores mezas. A carne de Tui pela sua côr e maciesa muito assimilha-se á da gallinha mais preciosa, e por isso apparece nas melhores mezas do Brasil. 73 (pag. 162). O nosso autor quer fallar da _Aranha caranguejeira_, (_Aranea avicularia_) porem aqui enganou-se. Exagera muito as dimensões d’este insecto, na verdade nojento, como se pode vêr em todas as collecções de entomologia. Não é verdade dizer-se que não fabricam fios para suas teias: a sua picada não mata, porem envenena. Na lingua Tupy chama-se _Nhandu-Guaçu_ ou de _Jandu_. 74 (pag. 163). O que nos diz o bom Religioso do barulho da cigarra denota gosto de observação na historia natural, muito raro n’aquella epoca, mas convem não confundir a cigarra brasileira com o insecto assim chamado na Europa. 75 (pag. 165). Na lingua _Tupi_ escreve-se _Okiju_. (Vide _Martius_, _Glossaria ling. bras._ pag. 465). 76 (pag. 168). Ivo d’Evreux confesse-se, está aqui muito inferior á seo contemporaneo o Padre du Tertre. É verdade porem tudo quanto elle diz da luz dos _pyrilampos_. A entomologia estava então muito pouco adiantada para que houvesse uma classificação entre os insectos, e não temos habilitações para preencher esta falta. Actualmente conhece-se no Brazil oito especies de pyrilampos a saber: _Lampyris crassicornis_, _ « signaticollis_, _ « concoloripennis_, _ « fulvipes_, _ « diaphana_, _ « hespera_, _ « nigra_, _ « maculata_. Pode tambem juntar-se a estes lindos insectos a _lucidota thoraxica_. 77 (pag. 169). É muito exacto, e as abelhas do Brazil não tem aguilhão: eis o que diz um observador sabio e veridico. Depois de haver affirmado, como o Padre Ivo, que as abelhas não picavam, disse Augusto de Saint Hilaire «uma especie chamada _tataira_ deixa, segundo dizem, escapar pelo anus um liquido ardente; e por isso é só á noite que se colhe o seo mel.» As especies chamadas _uruçú-boi_, _sanharó_, _burá_, _bravo_, _chupé_, _arapua_ e _tupi_ se defendem, quando são atacadas, mas parece não terem aguilhão, limitando-se a morderem como fazem as outras. É muito liquido o mel das diversas especies, e a cera tem a côr parda muito carregada, não se podendo até hoje conseguir tornal-a branca, como a da Europa. Spix e Martius dão curiosas informações a respeito d’estes uteis insectos, que completam as do nosso grande botanico. (Vide _Voyage dans les provinces do Rio de Janeiro e de Minas Geraes_. T. 2.º, pag. 371 e seguintes.) 78 (pag. 176). Não ha talvez no mundo região alguma, que tenha maior variedade de macacos do que o Brazil. Creio que aqui se trata primeiro da _guariba_, ou _mycetes ursinus_, e depois do macaquinho _stentor_, que intentou descrevêr o nosso bom Missionario. É provavelmente d’esta especie a descripção tão agradavel e tão animada, feita pelo nosso velho escriptor. Convem observar porem que o Padre Ivo fez-se echo de uma crença popular muito vulgar no seculo XVI. Esta especie de legenda das florestas, muito mais applicavel aos macacos da Africa e da Asia do que aos do novo-mundo, não se extinguio ainda de todo nos campos da America Meridional, e mostraram a M. Castelnau uma india, que julgava ter escolhido seo marido entre os macacos das florestas (Vide _Expedition dans les parties centrales de l’Amérique du sud, de Rio de Janeiro á Lima et de Lima au Pará, exécutée par ordre du governement français_. Paris 1851, _partie historique_. 5 vol. in 8.º) 79 (pag. 177). Basta ter-se vivido nas florestas habitadas por macacos para conhecer-se a exactidão do que escreveo o Padre Ivo. 80 (pag. 180). Ha aqui com certesa erro, ou então exageração. O Padre Claudio d’Abbeville, que descreve a mesma ave de rapina (pag. 232) julga ser elle «duas vezes mais corpolento do que a aguia, ter a perna da grossura de um braço, e a pata em fórma de unhada.» Poderia ser esta descripção do Condor, porem não existe esta ave na America do Sul. Diz o Coronel Ignacio Accioli ter o _gavião real_ tanta força a ponto de fazer parar em sua carreira um viado por mais forte que seja. É tão phantastica a descripção do Padre Ivo, que á primeira vista se pode applical-a ao abestruz americano de _Nandú_, que se encontra somente no Ceará e Piauhy. Um escriptor contemporaneo, Gabriel Soares, tantas vezes citado, restabelece a verdade fallando do _Ura-açu_ disse «são passaros, como os milhafres de Portugal, sem differença alguma, negros e de azas grandes, de cujas pennas utilisam-se os indios para emplumarem suas flexas, e vivem de rapina.» (Vide _Tratado descriptivo do Brasil em 1587_. Rio de Janeiro.—1851 1.º vol. in 8.º pag. 232.) Lembramos de passagem, que debaixo do ponto de vista scientifico a parte ornithologica é muito imperfeita, embora a bellesa do estylo do nosso velho viajante. O que diz, por exemplo, o Padre Ivo do passaro mosca, ou do colibri, é inteiramente inexacto, pois elle não tem o tal canto agudo, que faz lembrar o grito da cotovia. Confundiram-se as recordações com a distancia. 81 (pag. 181). Ivo de Evreux quer dizer, que os Indios se _fazem galans_, preparando-se com pennas de papagaios. Faziam os Tupinambás com estas pennas não só mantos, diademas e perneiras, mas tambem cortavam bem miudinhas as pennas pequenas e coloridas d’estes passaros, e cobriam com esta pennugem o corpo, e n’elle grudavam-na com certa gomma. Este enfeite selvagem e singularmente original ainda é muito usado e apreciado em certas tribus. Segundo conta João de Lery durou mais de tres seculos. A viagem pittoresca de Debret apresenta uma amostra. 82 (pag. 185). Basta, é bastante. Os hespanhóes e os portuguezes conservaram a palavra _bastar_. 83 (pag. 185). Já pagamos justo tributo de saudade a este Religioso, tão cheio de bondade como de zelo, cuja sepultura no antigo cemiterio do pequeno Convento não é sabida em Maranhão. Como indica o seo sobrenome de Religião, nasceo o Padre Ambrosio na Capital da Picardia, «de parentes abastados, diz o manuscripto dos elogios, e que lhe deram educação conforme permittiam seos negocios.» Depois de haver estudado na Sorbona, quando estava prestes a receber a sua carta de licenciado, foi abalado pelas prédicas do Padre Pacifico de São Gervasio, e entrou no Convento em 1575, quasi no tempo da fundação do Mosteiro de Santo Honorato. Em 1599 acabou seo noviciado, e com satisfação começou a preencher as obrigações de irmão leigo. Cedo passou a prégador, e então adquirio essa fama de caridoso, que o fez tão popular. Aspirava a mais do que isto, «porque queria converter todas as Indias», diz a noticia a elle dedicada. O Padre Ivo cercava de todos os cuidados os seos confrades quando emprehendiam viagens tão incommodas principalmente n’aquelle tempo. Estava já muito enfraquecido, e sem forças, quando em 26 de setembro de 1612 cahio doente, em sua pobre cabana de pindoba. Ardente febre o devorava, e comtudo, ainda depois de receber a extrema uncção, conservou em bom estado e sempre firme o uso de suas faculdades intellectuaes. Transcrevamos aqui algumas palavras, que mostram qual foi o fim de tão bom velho. Claudio d’Abbeville assim o conta: «Cahindo sobre elle um pequeno painel da Imagem de S. Pedro, pendurado por cima de sua cama, e a que dedicava profunda devoção, elle disse—vamos, grande Santo, partamos, ja que vieste buscar-me.— «Dizendo isto olhou para o Crucifixo e após curta agonia restituio ao Creador sua alma tão bôa em 9 de Outubro de 1612, dia da festividade do Glorioso Apostolo de França, S. Diniz, Bispo de Pariz: «Foi sepultado no lugar chamado S. Francisco, consagrado ao nosso Patriarcha, como premicias dos Capuchinhos Francezes.» (Vide tambem «_Éloges historiques de tous les illustres religieux capucins de la ville de Paris, les uns par la prédication, les autres par les vertus et sainteté de leurs œuvres, les autres par les missions parmy les infidelles etc. etc._ sob numero _Capucin_ Saint Honoré 4 (ter).)» É para sentir-se e muito que se tenha perdido ha alguns annos o 1.º vol. d’esta importante collecção, contendo os Annaes da Provincia. 84 (pag. 186). Prova esta phrase tão rigorosa do velho missionario a rapidez, com que se espalhou na Europa o _avati_, dos brasileiros, o _milho_ dos ilheos visto, bem como o tabaco, por Christovão Colombo na primeira viagem em 1493. Levantaram os botanicos grande questão, ainda não resolvida, sobre a origem primitiva do milho. Pelo que diz respeito ao Brasil citamos a opinião d’um viajante, que por seu saber pode passar por authoridade. Augusto de St. Hilaire pensa ter nascido no Paraguay, onde o vio em estado inculto. A cultura do milho é ao Sul d’America a planta nutritiva por excellencia, e prepara-se sua farinha por processos simples, e que dão optimo gosto. Enviamos nossos leitores, que desejam instruir-se de tudo quanto se refere á esta graminea para o precioso livro do Dr. Duchesne—_Traité complet du maüs ou blé de Turquie_. Paris. Renouard, 1833 em 8º, e para a grande obra de M. Bonafous. 85 (pag. 187). Falla aqui verdade o padre Ivo, porem não se segue que ao norte do Brasil se possa fazer vinho. O maior obstaculo, que encontra este fabrico, está no amadurecimento do fructo sob os tropicos. No mesmo cacho ao lado de muitas uvas maduras encontra-se grande numero de verdes. È voz corrente ter-se feito algum vinho na visinhança da Bahia. Caminhando-se para o sul, na região temperada de Mendoza, a uva amadurece perfeitamente, e dá vinho precioso. (Vide, entre outras viagens a respeito d’este ponto curioso de agricultura americana—_Sallusti_, _Storia delle missione del Chile_. 4. vol. em 8.º Padre Barrére. _Nouvelle Relation de la France equinoxiale_. Paris, 1743. 1º vol. em 12, pags. 53 e 54.) 86 (pag. 187). Trata-se aqui do fio que se extrahe com abundancia de uma especie de Ananaz. (_Ananas non aculeatus_, _Pitta dictus Plum_.) Com elle os portuguezes faziam meias, quasi tão procuradas como as de seda. 87 (pag. 191). Não se encontra esta palavra no Diccionario de Nicot, irmão de Villemain. Podemos affirmar, que se deve escrever _hansares_—que significa—uma foice de grande tamanho. 88 (pag. 192). Fazer certo sussurro expellindo com força o ar pelo nariz. É expressão do povo, confundida no Diccionario da Academia com a palavra—_renâcler_ «roncar» usada trivialmente no stylo familiar. 89 (pag. 194). São por Cardim muito bem pintadas essas recepções de indios. Os brasileiros não podem preferir, na bellesa da narração e no encanto das particularidades, senão um só viajante portuguez á Ivo d’Evreux e á Claudio d’Abbeville, e é aquelle cujo nome acabamos de proferir. Este escriptor agradavel porem muito conciso, pertence á ordem dos jesuitas. Foi para o Brasil em 1583, e ahi ficou revestido de todas as dignidades até o fim de 1618: soube portanto do estabelecimento dos francezes ao Norte do Brasil, e certamente na Bahia soube de sua expulsão, e sobre isto infelizmente nada disse. Fernão Cardim estava em posição bem diversa da do padre Ivo d’Evreux. Pelas costas do Brasil, onde elle se apresentava, submettiam-se os indios ao christianismo, perdendo sua grandeza primitiva e conservando a maior parte dos seos usos. O Missionario francez ao contrario cathequisa os indigenas, que combatem pela sua independencia contra seos conquistadores. Os dois bons missionarios tiveram ambos a mesma sincera indulgencia e admiração para com os povos ainda na infancia, aos quaes pregaram, e cuja prévidencia é o seo maior e mais terrivel defeito. As cartas de Fernão Cardim foram felizmente descobertas pelo incansavel autor da _Historia geral do Brasil_. O Sr. Francisco Adolpho de Varnhagem não pôz seo nome n’esta preciosa publicação, honra que aqui lhe restituimos, e a que tem direito como homem de saber e gosto. O opusculo de Fernão Cardim tem o titulo de _Narrativa epistolar de uma viagem e missão jesuitica pela Bahia, Ilheos etc etc._—_Lisboa_, 1847, em 8.º de 123 paginas. Parece-me que o sabio edictor não se lembrou de haverem preciosas informações á respeito de Cardim e dos missionarios contemporaneos do Brasil n’um escriptor de Toulon por nome Jarric. (Vide _La 2me partie des choses plus memorables advenues tant aux Indes orientales que autres pays de la découverte des Portugais en l’establissement de la foi chrestienne et catholique etc. Bordeaux 1610_ em 4.º É dedicado a Luiz XIII. O que n’este livro se refere ao Brasil, e particularmente ás regiões visinhas do Maranhão, acha-se na pag. 248 até 359.) Morreo o padre du Jarric em 1609. Foi sua obra traduzida em latim, e impressa na Colonia em 1615. Esta traducção, augmentada em alguns lugares, foi publicada em 4 vol. em 8.º 90 (pag. 194). Ha quasi certesa de não ter o nosso bom missionario lido a narração de André Thevet, publicada em 1558, e nem a viagem mais recente de João de Lery, cujas opiniões religiosas deviam afastal-o d’essas obras. Comparando-se estes velhos viajantes entre si, facilmente nota-se a similhança das narrativas. Eis o que disse João de Lery á respeito da recepção, que lhe fizeram os Tupinambás. Descrevendo as ceremonias, que fazem os _Tuupinambaults_ para receberem seos amigos, que os vem visitar, merece dizer-se em primeiro lugar, que apenas chega o viajante a casa do _Mussacat_, isto é, do bom pae de familia, dá de comer aos que por ahi passam, e que elle escolher para seo hospede, facto que se hade praticar em toda e qualquer aldeia, por onde se transitar, sob pena de cauzar enfado se não é procurado immediatamente. Assenta-se depois n’uma rede onde fica por algum tempo em silencio. Vêm depois as mulheres, sentam-se no chão, tapam os olhos com as mãos deplorando a bôa vinda d’aquelle, cujos louvores farão em occasião apropriada. Por exemplo:—tiveste tanto trabalho para nos vêr; tu és bom, e valente: si é um francez, ou outro qualquer estrangeiro, accrescentam—trouxestes para nós tão bellas obras, como aqui não temos, e immediatamente derramam muitas lagrymas, e assim aplaudem e lisongeam. Si o recem-chegado assentado em seo leito quer pagar-lhes as finezas, dizendo de sua parte coisas agradaveis, não querendo porem chorar, (como eu sei alguns dos nossos, que vendo as maneiras d’essas mulheres perante elles, foram tão nescios, que as imitaram) devem ao menos por fingimento exhalar alguns suspiros. Feitos assim estes primeiros cumprimentos pelas mulheres, entra depois o _mussacat_, isto é, o velho dono da casa, que fingirá durante um quarto d’hora não vos vêr (caricia mui opposta ás nossas embaixadas, cumprimentos e apertos de mão á chegada dos nossos amigos). Chega-se depois onde estaes, e diz _ereiubé_, isto é, chegaste? etc. etc. (vide _Jean de Lery, istoire d’un voyage en la terre du Brésil_. Rouen, 1578, em 8º, 1ª edicção.) 91 (pag. 195). Ha no Brasil um sapo de grande tamanho, a que se deo o nome de «_sapo boi_.» Claudio d’Abbeville diz—«n’aquelle paiz encontram-se uns sapos muito grandes a que chamam _cururu_. Alguns ha que tem mais de um pé ou pé e meio de diametro: quando são esfolados, é impossivel dizer-se quam branca é a sua carne, e como são bons para comer-se. Vi alguns fidalgos francezes comel-a com apetite. 92 (pag. 203). Mui visivelmente falla-se aqui da lenda brasileira relativa a _Sumé_, o legislador dos Tupys. No curioso opusculo, que a respeito d’este personagem publicou o Sr. Adolpho de Varnhagem, conta a sua chegada á Ilha do Maranhão, e como desappareceo na occasião, em que se preparavam todos para sacrifical-o. A palavra—_Maratá_—nos põe em embaraços, pois debalde a procuramos em Ruiz de Montoya: é alteração da palavra _Mair_ ou _Maïr_, tantas vezes empregada por Lery e Thevèt, para mostrar ou indicar um estrangeiro, ou uma pessoa extraordinaria. Não podemos dar uma resposta satisfatoria. O Sumé, que propaga a cultura da mandióca, é barbado. Diz-se com razão ser personagem analoga a Manco Capac dos peruanos, e ao Quetzalcoalt dos Azetecas, e ao Zamma da America Central. (Vide Adolpho de Varnhagem, _Historia geral do Brasil_. T. 1º pag. 136, e _Sumé. Lenda mytho-religiosa americana etc. agora traduzida por um Paulista de Sorocaba_. Madrid, 1855, broch. in 8 de 39 pag.) 93 (pag. 205). O verbo _cantar_ na linguagem tupy é _Nheengar_. Um _Nheengaçara_ é um cantor propriamente dito. 94 (pag. 220). Parecerá estranho ao leitor serem os francezes comparados n’este lugar aos Caraibas. Os que lerem com attenção as obras de Humboldt acharão a chave d’este enigma. Os Caraibas do continente americano, nação immensa, eram notaveis em toda a America pelo seo valor e penetração. Seos piayas, ou antes seos feiticeiros os elevavam acima de todas as outras nações: eram no Novo Mundo o mesmo que os Chaldeos no velho. Simão de Vasconcellos nos dá a prova d’esta supremacia intellectual: no sul do Brasil os _Caraibe-bébé_, eram feiticeiros ou advinhadores notaveis: assim se chamavam os homens intelligentes, os espiritos, e os anjos, e depois tambem os estrangeiros. O Sr. Adolpho de Varnhagem fez notar, que o nome de _Carayba_ foi em seo principio dado aos Europeos, sendo todos os Christãos assim chamados. (Historia geral, pag. 312.) 95 (pag. 220). Um _Caramémo_ é que se chama em Guyana um _Pagará_, isto é, um paneiro leve, feito com folhas de certa palmeira e ás vezes com bonita forma. Claudio d’Abbeville assim tambem o chama, quando descreveo os utensilios de uma casa indigena. Barrère fez desenhar este lindo _Specimen_. 96 (pag. 226). Ivo d’Evreux, familiarisado com todos os symbolos em voga no seo tempo, não se esqueceo de uma graciosa alegoria na qual figura o Unicornio. Vide _Le Monde enchantée_, e especialmente a dissertação intitulada _Revue de l’histoire de la Licorne par un naturaliste de Montpellier_. (P. J. Amoreu.) Montpellier Durville, 1818, em 8.º 47 pags. 97 (pag. 239). É sabido ser esse o nome, que aos portuguezes davam os Tupinambás. _Pero_ quer dizer _cão_ na lingua de Camões, mas suppõe-se que o nome—_Pedro_—muito usado no Brazil, provinha de tão estranha designação. Ayres Casal conta até á este respeito uma historiasinha, recorrendo á tradicção, de como um serralheiro, chamado Pedro, fôra arremeçado pelas ondas, após um naufragio, ás praias do Maranhão. Graças a sua habilidade no trabalho do ferro fez-se este homem agradavel aos indios, e seo nome com pequena modificação servio d’ahi em diante para fazer conhecidos os individuos, que se julgavam ser da sua raça. Em sua _Corographia_ o Dr. Mello Moraes escreveo esta _legenda_ muito mais completa. 98 (pag. 242). Não se tem procurado esclarecer por meio de uma discussão grammatical—esta parte do livro. Differenças mui sensiveis, produzidas pelo tempo e sobre tudo pela pronuncia, fizeram este lugar para assim dizer indicifravel. Nada é mais dificil do que traduzir pelos caracteres da nossa escripta os sons das linguas indigenas. Essas inflexões tão delicadas, e as vezes tão fugitivas, em sua apparente rudeza são dificultosamente ffixadas no papel. Notou Humboldt pertencerem ellas algumas vezes á certos caracteres physicos das raças. As nações européas, as mais habituadas á estes estudos, não percebiam da mesma fórma os sons, e nem os escreviam da mesma maneira: quando os portuguezes ouvem _Oca_, por exemplo, ou então _Toba_, o francez percebe _Oc_ e _Tob_, e quando aquelle ouve _Murubixaba_ este percebe _Muruvichave_. Deixa a differença de ser grande quando são as palavras pronunciadas conforme o genio de cada lingua. A palavra _Tupinambás_, como se acha escripta no principio d’esta nota, (_Tobinambos_) equivale absolutamente pelo som na lingua portuguesa á palavra _Tupinambus_, como a pronunciavam os contemporaneos de Malherbe. Para a historia da linguistica não é sem interesse esta curta doutrina christã, podendo ser comparada com certas obras do mesmo genero, escriptas por penna portuguesa, estando n’este caso, entre outras, os canticos religiosos em lingua tupy por Christovão Valente, os quaes incluí no opusculo—_Une fête brésilienne_. Pariz. Techener, 1850. Não se póde achar o livro que os contem, e talvez só exista na Bibliotheca Imperial. Reproduzimos aqui seo nome—_Cathecismo brasilico da doutrina christã, com o ceremonial dos sacramentos e mais actos parochiaes. Composto por padres doutos da Companhia de Jesus, aperfeiçoado e dado á luz pelo padre Antonio de Araujo da mesma Companhia, emendado nesta segunda impressão pelo padre Bertholomeu de Lean da mesma Companhia_, Lisboa, na officina de Miguel Deslandes 1861, em 8.º pequeno. A primeira edicção foi em 1618. Si se quizesse, poder-se-ía completar este estudo comparativo procurando os seguintes manuscriptos, citados por Barbosa Machado, e que seria coisa curiosa si fossem publicados. Ludewig os ommittio em seo importante trabalho, completado por Mr. Trubener. O Padre João de Jesus _explicação dos mysterios da fé_. O Padre Manoel da Veiga _Cathecismo_. F. Pedro de Santa Rosa _Confessionario_. André Thevèt nos seos manuscriptos conservados na Bibliotheca Imperial de Pariz, dá o _Pater_ e o _Credo_ em lingua _tupy_, depois reproduzidos em sua grande _Cosmographia_. São preciosos estes dois documentos especialmente por sua antiguidade, pois datam de 1556. Entre os livros d’este genero um dos mais modernos e dos mais curiosos é o do Padre Marcos Antonio, intitulado: _Doutrina e perguntas dos mysterios principaes de nossa santa fé na lingua Brasila_. Foi composto em 1750 e Ludewig menciona-o como fazendo parte das collecções do _British Museum_. 99 (pag. 250). Lery ja tinha asseverado o effeito, que faz nos indios o canto melancolico do Macauhan. A crença nos mensageiros das almas, nos passaros propheticos ainda não se extinguio de todo, pois ainda existe na poderosa nação dos Guayacurus, depois de haver exercido antigamente sua poderosa influencia em todas as tribus dos Tupys, porem o padre Ivo deo-lhe extensão que nunca teve, visivel alteração nas antigas ideias mythologicas. O nome d’este passaro respeitado é escripto em portuguez _Acaúan_, e tambem _Macauan_: nutre-se de reptis, e não tem esse aspecto sinistro, que lhe dá o nosso bom Missionario. Tem a cabeça muito grossa em relação ao corpo, é côr de cinza, o peito e o ventre vermelhos, azas e cauda negras com pintas brancas. Pensa hoje em dia a maior parte dos indios, que a missão deste passaro é annunciar-lhe a chegada de algum hospede. Consulte-se sobre o Acaúan, Accioli, _Corographia Paraense_, e Gonçalves Dias, _Diccionario da lingua Tupy_. Martius na palavra _Oacaoam_ diz ser o Macagua de Felix de Azara. Falco (herpethocheres). 100 (pag. 257). No tempo de Ivo d’Evreux, eram chamados _Barbeiros_, os cirurgiões mais habeis, e alguns annos antes até o illustre Ambrosio Paré era assim conhecido. Como os _Piayes_, _Pagé_, _Pagy_, _Boyés_ ou _Piaches_ (por todos estes nomes são conhecidos) cuidam de curar feridas e molestias. O padre Ivo, como se verá adiante, os compára por despreso aos barbeiros, mas entenda-se, aos barbeiros das aldeias. Este capitulo é por certo um dos mais curiosos do livro, e deve ser com todo o cuidado comparado com o que escreveo Simão de Vasconcellos, (_Chronica da Companhia de Jesus_, in fol.) e com todas as _Memorias_ publicadas pelo Instituto Historico do Rio de Janeiro sobre a religião primitiva dos indigenas, achando-se ahi bem claramente definidos os attributos de Jeropary. É na verdade para sentir-se a falta de uma folha, porque nos trouxe a perda de preciosos documentos de homens praticos e habeis, que entre si conservavam as tradicções. 101 (pag. 264). No tempo d’esta narração eram ainda os morcegos classificados como passaros. O que aqui diz o nosso viajante sobre os vampyros não é exageração. Consulte-se a este respeito Ch. Watterten (_Excursions dans l’Amerique meridionale_, p. 15 e 389.) Este sabio naturalista descreveo com minucioso cuidado o genero da ferida, que produz o morcego americano nas pessoas, que dormem. Matou um vampyro, que tinha 32 pollegadas de extensão de azas abertas. Em geral são muito menores. 102 (pag. 268). Entre os antigos viajantes do seculo XVII é Ivo d’Evreux o unico, como notamos, que menciona entre os Tupinambás os rudimentos de estatuaria (imperfeita sem duvida) com applicação á mythologia d’estes povos. D’estas coisas nada escreveram Thevèt, Hans Stadens, e Lery, Vasconcellos, Cardin e Jaboatão. Eram os Tupys unicamente caçadores, e só per accidens se entregavam á vida agricola. Os unicos vestigios de cultura, que d’elles conhecemos, se referem aos seos _Macanas_, ou a sua _Lyvera-péme_, especie de armas pesadas, que elles enfeitavam á capricho. Tinham por costume pôr um Maracá, enfeitado de bonitas pennas na prôa de suas canôas de guerra, tão esguias como elegantes, e será bem possivel, que a base d’esse instrumento seja ornado de sculpturas similhantes ás que se observam entre os insulares da Polynesia. É provavel que multiplicando-se suas relações com os Europeos, tenham os Tupinambás bebido entre elles ideias de sculptura rudimentar que applicam á suas divindades grosseiras. O veridico Barrére, que escreveo mais de um seculo depois de Ivo d’Evreux, falla de um piaya fazendo uma estatueta de _Anaanh_, genio do mal, que não é senão o _Anhanga_ do padre Nobrega e de Anchieta, cuja terrivel missão sobre a terra foi tão bem descripta por João de Lery, que sempre o chamou _Aignan_. Dêem-lhe nas ilhas ou nos continentes os nomes de _Uracan_, de _Hyorocan_, de _Jeropary_, de _Maboya_, de _Amignao_, reconheçam-se os genios secundarios, como seos mensageiros (apenas citarei um, o malicioso _Chinay_, que faz emmagrecer os pobres indios sugando-lhes seo sangue.) Anhanga teve sempre fama terrivel nos seculos XVII e XVIII. Este typo primitivo da sculptura religiosa dos Tupys foi infelizmente aberto em madeira muito molle, e por isso não poude resistir á acção do tempo, ou á invasão das formigas: duvidamos que se encontre um só _specimen_ de dois seculos atraz. Eis finalmente a passagem tão curiosa de Barrére que confirma as palavras do padre Ivo. «Tem os indios outra sorte de feitiçaria, que os singularisa. Fazem uma figura do diabo n’um pedaço de madeira molle e sonora: esta estatua do tamanho de tres a quatro pés é muito feia pela sua immensa cauda, e grandes lanhos. «Chamam-na _Anaantanha_ que parece dizer—_imagem do diabo_, porque _Tanha_ significa figura, e _Anaan-diabo_. Depois de haverem soprado sobre os enfermos, trazem os _Piayas_ esta figura para fóra da _casa-grande_: «Ahi elles o interrogam, esbordoam-na á cacete, como para obrigar o diabo, bem a seu pesar, a deixar o enfermo.» (Vide _Nouvelle Relation de la France équinoxiale, contenant la description des côtes de la Guiane, de l’isle de Cayenne, le commerce de cette colonie, les divers changements arrivés dans ce pays_ etc. etc. Paris. 1743, em 12 gr.) N’um capitulo precedente Ivo d’Evreux ja fallou de uma boneca que tinha uma especie de mecanismo, que servia para as nigromancias do Piaya. É para sentir-se, que não se encontrasse um só d’estes idolos nas collecções etnographicas, que então começou-se a fazer. Poucos annos antes de haver la Ravardiere explorado o rio do Amasonas, João Mocquet, o guarda das curiosidades do Rei, percorreo essas praias, e seria de rara felicidade para a archeologia americana si elle encontrasse alguns dos idolos de que falla o padre Ivo. 103 (pag. 271). É mui provavel, que estas lustrações sejam feitas á imitação das ceremonias, que entre os christãos viram os _Tupinambás_. Pode bem ser, que o mesmo aconteça á respeito da pretendida confissão auricular de que falla o autor um pouco mais adiante. Os antigos viajantes, Hans Staden, Lery e Thevèt nada dizem, que tenha relação com tal costume. 104 (pag. 272). Parece á primeira vista ter recebido este _piaga_, tão influente, um nome francez: assim porem não aconteceu. Havia n’esse tempo um poderoso Chefe, chamado _Pacquara-behu_ «barriga d’uma paca cheia d’agoa». _Pacamont_ pode significar a «paca agarrada na armadilha», (_Pacamondé_). O nome da terra, onde tinha influencia, significa a «região das plantas leitosas», e escreve-se _Cumá_. 105 (pag. 280). Vatable ou Vateblé era um celebre sabio na lingua hebraica, no seculo XVI, restaurador na França dos estudos orientaes. Morreo em 1547. Suas notas sobre o antigo testamento acham-se na Biblia de Robert Etienne. 106 (pag. 282). Prova-nos esta phrase ter o Padre Ivo escripto sua obra na Europa, e saber da missão dirigida pelo Padre Archangelo. Affirma Marcellino de Piza terem 565 indios recebido o baptismo n’esta segunda expedição religiosa. (Vide _Annales historiarum ordinis minorum_. Lugd. 1676 in fol.) O Padre Archangelo, acompanhado por 12 confrades, portador de magnificos ornamentos bordados pela Duqueza de Guize devia por certo cercar-se de outra pompa, que não tiveram os quatro Geraes Capuchinhos, que deram principio á missão. Graças aos documentos, que nos são proporcionados pela marinha, e que devemos ao obsequio do Sr. P. Margry, soubemos por uma carta inedicta do Sr. de Beaulieu a Mr. de Razilly, que o Padre Archangelo, muito conhecedor do valor do dinheiro abstrahindo o seo voto de pobresa, não quiz embarcar-se antes de lhe haverem dado a esperança de conseguir subsidios. Apesar dos recursos, de que dispunha o seo chefe espiritual, ainda está por fazer a historia d’esta segunda missão: não deixou até vestigios, e ficará para sempre ignorada em quanto não descobrirmos o livro de Francisco de Bourdenare. Sabemos apenas que muito mais favorecido, que Ivo d’Evreux, por seos superiores, recebeo, graças ás suas cartas de obediencia, o direito de admittir noviços em seo Convento. Não teve tempo de utilisar-se de tal privilegio, mas quando regressou á Europa, em recompensa do seo zelo foi em 1615 nomeado Guardião do grande Convento da rua de Santo Honorato. Todos estes factos, omittidos naturalmente pelos historiadores do Maranhão, acham-se referidos nos _Éloges historiques_, manuscripto da Bibliotheca Imperial, e seria injustiça esquecer serem elles tambem narrados pelo Padre Marcellino de Piza. Depois de haver contado como o Geral dos Capuchinhos Paulo de Caesena deo licença á Honorato de Pariz, então Provincial, para mandar á America uma segunda missão, disse:—«_Ille nihil cunctatus, duodecim fratres ad hanc expeditionem, aptos elegit quorum animosa phalanx navem conscençâ secedens in Indiam, a barbara illa natione jam capucinorum placidis moribus assueta per humaniter fuit excepta_.» Na entrada dos portuguezes o Padre Archangelo de Pembroke retirou-se com os Capuchinhos francezes ficando em lugar d’elles os Franciscanos, que em numero de vinte se recolheram ao Mosteiro. Sob a direcção de Frei Christovão Severino teve então o Convento nova regra. Foram as bases lançadas em 1624 porem só foram cumpridas pontualmente em 4 de Agosto do anno seguinte. Abstemos-nos porem de offerecer ás vistas do leitor as desgraçadas peripecias, porque passou este Mosteiro durante 225 annos: basta dizer, que no fim de um seculo estava quasi reduzido a ruinas. Em 1860 o actual Guardião, que tinha sob seo governo somente dois franciscanos, mas que soube felizmente captar as sympathias dos habitantes de São Luiz, recorreo á caridade publica afim de concertar-se como merece este edificio, a que se ligam interessantes recordações do paiz. A Ordem é actualmente muito pobre, porem offerece grande contraste, segundo é voz geral, quando em seo zelo é comparada com outros Conventos[BL] opulentos da Cidade, que estão se arruinando. Não foram em vão as supplicas de Frei Vicente de Jesus, pois elle arrecadou grandes quantias, que chegaram para reparar os estragos do tempo. Conservando a humilde Capella, onde orou o Padre Ivo d’Evreux, fizeram-se novas edificações que tornaram a Igreja de Santo Antonio a mais linda de tão bella Cidade. 107 (pag. 301). É mui curioso vêr aqui o Padre Ivo d’Evreux fazer uma especie de allusão á antigas crenças d’esses povos, as quaes Thevet, ou talvez o Cavalheiro de Villegagnon tinham guardado desde 1555, e que parece ser ignoradas pelos nossos viajantes do Seculo XVI, pois não tratam d’ellas em suas narrações. Uma nota, mesmo concisa nos levaria muito longe, e vêr-nos-iamos forçados a chamar a attenção do leitor para um opusculo, no qual reunimos tudo o que podemos encontrar á respeito das ideias mythologicas dos Tamoyos e dos Tupinambás. (Vide sobre os _Maraïta—Une fête bresilienne célébrée à Rouen em 1550 suivie d’un fragment du XVIme siécle roulant sur la Théogonie des anciens peuples du Brésil_. Paris, Techener, 1850 gr. in 8.º) 108 (pag. 301). A legenda brazileira de geração em geração transmittio a narração das perigrinações de dois prophetas, bem distinctos, igualmente estimados por esses selvagens, que os chamou _Tamandaré_ e _Sumé_. Como Boudaha, deixou o ultimo impressas as suas pegadas sobre a rocha viva, quando deixou a terra. O mytho de Tamandaré, que se lê na descripção do diluvio americano, é contado extensamente por Vasconcellos nas suas _Noticias do Brazil_, pag. 47 e 48. Ahi se lerá como o Noé americano subindo ao cume de uma palmeira, que tocava com o seo vertice o Ceo, e agarrando d’ahi sua Familia poude salval-a, e com ella repovoou a terra. Na phrase aqui citada, Ivo d’Evreux alludio ao legislador mais moderno, Sumé, este Triptolémio brazileiro, que ensinou a cultura da mandióca aos descendentes de Tamandaré. Simão de Vasconcellos diz mui positivamente, que «havia entre elles tradicção muito antiga, transmittida de paes a filhos, dizendo haverem apparecido, muitos seculos depois do diluvio, homens brancos n’estas terras, que fallavam aos povos de um só Deos e de outra vida. Um d’elles chamava-se _Sumé_, que parece quer dizer _Thomé_.» Preferindo a tradicção, que dá a São Bartholameu a honra de haver evangelisado os povos longiquos, provou com isto o Padre Ivo o seo conhecimento das origens. Com effeito, segundo diz Eusebio, chegou este Apostolo viajante até a extremidade das Indias, São Pantene percorreo o interior da Asia desde o III seculo, e ahi já achou vestigios do christianismo, que bem se podiam attribuir ás prédicas de Sam Bartholameo. Prevaleceo comtudo no Brasil a legenda em contrario, como a outra na India. (Vide _Jornada do Arcebispo de Goa dom Frei Aleixo de Menezes, quando foi ás serras de Malauare, lugares em que moram os antiguos christãos de S. Thomé_. Coimbra, 1606, in fol.) No tempo de Vasconcellos bem visiveis eram os signaes dos pés de S. Thomé, ao norte do porto de S. Vicente, perto da Villa. Estes signaes de dois pes nùs por maravilha impressos na rocha (_tão vivos e expressos, como si em um mesmo tempo juntamente se fizeram_) não eram vistos debaixo d’agoa. O religioso franciscano Jaboatam achou no Recife, em Pernambuco, pegàdas santas. N’esta segunda edicção da legenda, somente apparece um pé como o de um menino de 5 annos, que suppõe ser o piedoso narrador o de um jovem companheiro do Apostolo. (Vide _Novo Orbe Serafico_, reimpresso ultimamente pelos esforços do _Instituto Historico e Geoqraphico do Rio de Janeiro_.) Não se encontram esses afamados signaes somente em diversos pontos do littoral, e sim em outros lugares, o que seria enfadonho enumerar. Não contentes ainda com isto fizeram com que o santo viajante se embrenhasse corajosamente pelo interior do Brasil, onde em caracteres gigantescos sobre pedras ou rochas escreveo a historia da sua missão. Ha em Minas uma aldeia, a que se deo o nome chamando-a _Sam Thomé das Lettras_. Um observador circumspecto, o general Cunha Mattos, não vio taes inscripções, e combateo a tradicção dizendo que esses traços phantasticos, que se observam n’um dos lados da _Serra das lettras_ foram formados por accidentes de terreno, isto é, por dendrites, para servir-me de suas expressões. (Vide _Itinerario do Rio de Janeiro ao Pará e Maranhão_. Rio de Janeiro. 1836. 2 vol. em 8.º T. 1.º pag. 63). Dura até hoje esta opinião sobre a gigantesca inscripção da _Serra das lettras_, e acredita-se actualmente serem devidos a infiltração de particulas ferruginosas obrando sobre o grão da serra, e por est’arte simulando caracteres escriptos. No Brasil são muitos os hieroglyphos grosseiramente embutidos, e ninguem duvida serem devidos á origem indigena. Muitas obras nos mostram os seos _fac-simile_. A grande viagem pitoresca de Mr. Debret tem dois, que não deixam de ter interesse. Fallamos da inscripção do monte de _Anastabia_, e das esculpturas embutidas n’uma rocha, que se encontra perto das margens do rio Yapurá, na provincia do Pará, bem pode ser que as palavras do Padre Ivo se refiram á este monumento, grosseiramente trabalhado, e de que trata Mr. Debret na pag. 46 do seo T. 1º, porem em alguns não acha a mais prevenida imaginação bases para assentar uma opinião historica ou religiosa. Pelo que se refere _ás rochas incisadas_, de que falla o nosso bom frade, é tradicção geral em toda a America, que estes accidentes, resultados de grandes commoções da natureza, são sempre explicados pela legenda indigena, que os attribue ao supremo poder de um semi-Deos, que, a sua vontade, quebra as montanhas mais resistentes ao trabalho do homem e, algumas vezes, até os mais gigantescos. Em Nova-Granada o salto de Tequendama não teve outra origem, pois foi feito, como se sabe, pelo grande Bochica: poderiamos tambem citar a abertura feita no _recife_, que margina o littoral de Pernambuco, e que se attribue ao grande Sumé, ou ao seu representante christão, o Apostolo viajante. (Vide Frei Antonio de Santa Maria Jaboatão, _Novo Orbe Serafico Brasilico_, ou _Chronica dos frades menores da provincia do Brasil_. 2.ª edicç. Rio de Janeiro. 1858.) Jaboatão escreveu em 1761. 109 (pag. 311). Tinha este chefe indigena um nome bem conhecido na ornithologia do Brasil. O _Jacupema_ é o _Penelopsupereiliaris_ uma das melhores caças do Brasil. 110 (pag. 334.) Na familia dos Foulon, de que gozava muita consideração em Abbeville, tinham muitos dos seos membros se dedicado á vida monastica. O padre Marçal esteve em Pariz com seo irmão o padre Claudio; este ultimo, cujo artigo está tão cheio de erros na biographia universal, era ja guardião do convento na sua patria desde 1608, mas, como o padre Ivo, começou o seo noviciado em 9 de junho de 1595. A bibliotheca do Arsenal possue um opusculo, hoje raro, do padre Claudio, cujo titulo é—_L’arrivée des Pêres Capucins et la conversion des sauvages a nostre sainte Foy déclarés par le R. P. Claude d’Abbeville, prédicateur capucin à Paris_, chez Jean Nigaut, rue de St. Jean de Latran, em 1613. Pode comparar-se este escripto com o artigo intitulado—_Retour du sieur de Rasilly en France et des Toupinambous qu’il amena á Paris._ _Mercure française_. T. 3, pag. 164. _L’histoire chronologique de la bienheureuse Colette, réformatrice des trois ordres du Seraphique Pere St. François._ Paris. Nicolas Buon, 1628, em 12: não é do padre Claudio, como suppõe Eyriés. A dedicatoria tem a assignatura de Fr. S. d’A, indigno capuchinho. Já tinha morrido Claudio d’Abbeville quando appareceo esta obra. Depois de ter 23 annos de religião, falleceo em Ruão em 1616 e não em 1632. 111 (pag. 335). Leia-se _Plymouth_: Claudio d’Abbeville escreve _Pleme_. 112 (pag. 335). Trata-se aqui do _Rio do Ouro_. 113 (pag. 336). Difficilmente por este nome se sabe ser a _Ilha de Fernão de Noronha_, e não _Fernando de Noronha_, como escreve alguns geographos. Está a 75° long. E. N. E. do Cabo de Sam Roque, e na lat. de 3° 48, á 52′. Explica-se esta alteração de nome pela sua visinhança do Cabo de Sam Roque. Alguns viajantes antigos escreveram _Fernando de la Rogne_: n’esse caso está o padre Claudio. 114 (pag. 337). Omittio o padre Claudio d’Abbeville esta ultima circumstancia. 115 (pag. 339). Leia-se _Tupan_ em vez de _Iupan_. Quanto a palavra Matarata, que ahi se lê, não se pode entender pelo adjectivo _Mbaraeté_, que significa—_forte_. Parece estar sob esta significação no _Tesoro de la lingua Guarany_, do padre Ruiz de Montoya. 116 (pag. 341). O capitão du Manoir estava ha muito tempo estabelecido na Ilha, onde tinha muitas relações. Foi elle quem hospedou os Missionarios, e lhes offereceo uma festa «tão magnifica como podia ser em França» disse o padre Claudio, a qual assistiram os Srs. de Rasilly e Pezieux. Foi da sua habitação que partiram os nossos para tomar posse do lugar, onde se edificou o _Forte de Sam Luiz_. Regressou á França antes de ser o Maranhão tomado pelos portuguezes. Quando evacuaram as nossas forças navaes o porto do Maranhão, muitos francezes não seguiram o exemplo de Manoir, e se estabeleceram na nova Colonia, onde só foram permittidos artistas. Erraria quem suppozesse ter sido abandonada a missão fundada com tanto zelo pelos nossos Religiosos: sem a menor alteração foram incumbidos d’ellas os Franciscanos: a este respeito achou-se tudo quanto podia desejar-se no _Orbe Seraphico_ do padre Jaboatão. Contem este resumo uma longa biographia de Frei Francisco do Rosario, frade celebre na Ordem de Sam Francisco, que tomou posse do Convento dos Capuchinhos perto de dez annos depois, que estes o abandonaram de todo. Embrenhava-se muitas vezes este zeloso Missionario nos desertos desconhecidos do Maranhão, onde ia cathequisar os indios. Em 1630 compôz uma obra aproveitavel sobre as tribus que visitou. Infelizmente nunca foi publicada, e o seria se fosse encontrada, como precioso commentario á obra do padre Ivo. Cansado por seos trabalhos, cuja multiplicidade espanta até a imaginação, foi para a Bahia, onde revestido das dignidades da ordem falleceo com cheiro de santidade em 24 de fevereiro de 1650. Afirma-se haver elle predicto muitos annos antes os grandes acontecimentos politicos, que, produzindo a expulsão da Hespanha, dava independencia ao Brasil. Parece que vio-se obrigado a reconstruir em 1625 os edificios que deixaram em começo os nossos Religiosos, e por isso foi elle em Sam Luiz julgado como o primeiro fundador do Convento da sua Ordem. Vamos ainda dizer uma palavra para acabar estas notas. Serão ellas ainda um dia completadas pelo trabalho, que ha de preceder a _Relação do Padre Claudio d’Abbeville_, e si se quizer, o podem ser ja, consultando se varias obras francezas contemporaneas, absolutamente despresadas, sob este ponto de vista, pelos historiadores da America. N’este caso, entre outros, está o padre Pedro du Jarric, pois, na verdade, ninguem pensaria achar n’uma _Historia das Indias orientaes_ todos os factos religiosos, acontecidos em Maranhão antes de 1607. Consultando-se o 5.º volume d’esta volumosa obra, encontra-se a tragica historia dos padres Francisco Pinto e Luiz Figueira, jesuitas portuguezes, os primeiros que visitaram os desertos desconhecidos, cujo littoral occuparam os francezes. Francisco Pyrard, o viajante Belga, residente na pequena cidade de Laval, nos contou tambem na sua _Relação das Indias e especialmente das Ilhas Maldivas_, o que na Europa se pensava do Brasil no tempo, em que viveo o padre Ivo. Não trata do Maranhão, e bem o podia fazer. Deve ainda dizer-se que esta bella provincia, conhecida mais pela obra de Mr. Herald do que por outras antigas, ficou por muito tempo fóra da toda a vida politica. Doada a principio aos filhos de José de Barros, o famoso historiador das Indias, só foi conhecida na Europa por uma lastimavel catastrophe, pois era esquecida apesar da fertilidade e da magnificencia da sua vegetação. Apparece comtudo n’um dos monumentos geographicos mais importantes, onde se verificou o que era o Brasil no seculo XVI: queremos fallar da bella _Carta_ de Gaspar Viegas, que tem a data de outubro de 1534, hoje na Bibliotheca Imperial de Paris. Nenhum historiador até hoje ainda a mencionou, apezar de sua exactidão tão admiravel para aquelles tempos e ainda continuaria a ser esquecida se o Sr. de Cortambert não nos fizesse o favor de communicar-nos a sua existencia. Sentimos muito praser recordando-nos, que este bello trabalho do desconhecido geographo vae de hora em diante ligar-se ao mais vasto e ao mais exacto reconhecimento das costas do Brasil, que tem podido obter a sciencia n’estes ultimos tempos, e d’ella fará objecto de especial estudo o Sr. capitão da fragata Mouchez na sua grande obra nautica a respeito do littoral do Brasil. Deviam acabar aqui as notas indispensaveis para conhecer-se na França e mesmo na America o texto do nosso velho viajante. Accrescentaremos apenas uma palavra, talvez indispensavel para comprehender-se o valor do documento por nós exhumado. O padre Arsenio de Pariz, o fiel companheiro do padre Ivo d’Evreux, disse em 1613 ao Superior do seo Mosteiro á proposito das regiões, por onde evangelisou, o seguinte: «Eu vos asseguro, meo padre, que quando estiver um pouco estabelecido, será um verdadeiro paraiso terrestre.» A esperança do bom Religioso não era das que se podem realisar completamente: não caminham assim as coisas neste mundo, porem não sendo o paraiso, é o Maranhão uma das provincias de um vasto Imperio, que vae progredindo. No meio de prosperidades reaes, e apezar dos esforços de espiritos felizmente bem intencionados, o progresso intelletual do paiz está muito longe do que devia ser. As recordações do passado, que tanto desenvolvem as populações, ahi não existem. Não ha archivos, bibliothecas publicas, e nem instituições litterarias, e tanto é verdade isto, que o Imperador, o Sr. D. Pedro 2º, ha dez annos incumbio um dos homens mais activos e eminentes d’este paiz para examinar na Cidade de Sam Luiz o estado real dos depositos litterarios da Capital do Maranhão. Não reproduziremos aqui as queixas judiciosas e bem fundadas do Sr. Gonçalves Dias sobre o lamentavel estado dos estabelecimentos, objecto de suas investigações. Pode lêr-se o seo _Relatorio_ escripto em bom estylo na _Revista Trimensal_ publicada com tanto zelo pelo Instituto Historico do Rio de Janeiro. Citaremos apenas, que ha dez annos, Gonçalves Dias achou 2:000 volumes na Bibliotheca Publica e no Almanach de 1860, edictado pelo Sr. B. de Mattos, apparecem 1:030 em deploravel estado! Possa a reimpressão da obra do padre Ivo d’Evreux marcar uma nova era na patria de Odorico Mendes, de Gonçalves Dias, e de João Lisboa. FIM. NOTAS [BG] Consulte-se a respeito de todos estes assumptos o meo _Diccionario historico e geographico do Maranhão_. Iria longe se eu quizesse acompanhar _parí passu_ esta publicação, onde não poucas vezes foi illudida a bôa fé de Mr. Ferdinand Diniz.—Do traductor. [BH] Outro engano. Aqui não se conhece esta dóca.—Do traductor. [BI] 40 leguas? Não, e sim 4 leguas. Vide art. _Alcantara_ no meo _Diccionario_.—Do traductor. [BJ] É engano. O major Fidié não foi vencido, e sim capitulou honrosamente em 1.º de Agosto de 1823. (Vide _Historia da Independencia do Maranhão_ (1822 a 1823) pelo Dr. Luiz Antonio Vieira da Silva, hoje Senador do Imperio, pag. 109 a 127.)—Do traductor. [BK] Mr. Ferdinand Diniz foi illudido por escriptos politicos, embora habilmente manejados porem sempre com paixão. Não foi o Conselheiro Furtado a quem se deve esse estado de paz, e sim a outro cidadão como ja disse no meo _Diccionario_ neste trecho que para aqui transcrevo. —Durou este triste e lamentavel estado de ferocidade ou dezespero até o tempo, em que o fallescido Dr. Eduardo Olympio Machado perante os escolhidos da Provincia em 1851 recitou estas palavras: «A febre homicida, que ía lavrando pelo municipio de Caxias, tem feito, vae para tres mezes, prolongada remissão. E qual o reagente que conseguio acalmar seos lugubres accessos? A energia e actividade do actual delegado de policia o Dr. João de Carvalho Fernandes Vieira, o qual, formando culpa aos delinquentes, perseguindo-os com incansavel zelo, devassando as casas de certos individuos, que até então contavam, senão com acquiescencia, com o silencio da auctoridade publica, tem conseguido restituir á tranquilidade o districto de sua jurisdicção.» Foram estes valiosos e importantes serviços apreciados pelo Governo Central, pois mandou por mais de um Aviso louvar o Dr. João de Carvalho. D’ahi a poucos annos houve quem intentasse arrancar esses louros da fronte do energico e activo ex-juiz municipal e delegado de policia de Caxias para offerecer a outro, que nada fez, não cuidando da historia que tudo registra e a todos faz justiça! Esta acção, por demais injusta, nos faz lembrar estes versos do poeta de Mantua: Hos ego versiculos feci: tulit alter honores Sic vas non vobis, nidificates, aves etc etc. Do traductor. [BL] É injustiça confundir-se nesta censura o Convento do Carmo, graças ao zelo do seo benemerito Provincial o Revd. Frei Caetano de Santa Rita Serejo.—Do traductor. INDICE. Ao leitor Introducção 1 Ao Rei 1 Ao Rei 3 Prefacio 7 Da construcção das capellas de S. Francisco e S. Luiz do Maranhão 9 Do estado do poder temporal em sua primitiva 11 Da construcção do Forte de S. Luiz, e do interesse dos selvagens em carregar terra 14 Dos preparativos dos Tupinambás para uma viagem ao Amazonas 19 Partida dos francezes para o Amazonas em companhia dos selvagens 23 Do que aconteceo na Ilha durante esta viagem, e principalmente das astucias de um selvagem chamado Capitão 27 Da chegada de uma barca portugueza a Maranhão 31 Do valor e dos costumes dos selvagens do Miary 36 Das incisões, que fazem estes selvagens em seos corpos e como escravisam seos inimigos 40 Leis do captiveiro 44 Outras leis para os escravos 48 Quanto são misericordiosos os selvagens para com os criminosos por acaso e sem malicia 52 Quanto é facil civilisar os selvagens á maneira dos francezes e ensinar-lhes os officios que temos em França 58 Quanto são aptos os selvagens para aprenderem sciencias e virtudes 63 Continuação do objecto antecedente 67 Ordem e respeito da naturesa entre os selvagens, observada inviolavelmente pela mocidade 71 A mesma ordem e respeito é observada entre as raparigas e as mulheres 79 Da consaguinidade entre os selvagens 84 Dos caracteres incompativeis entre os selvagens 90 Da economia dos selvagens 94 Do cuidado que do seo corpo tem os selvagens 95 De algumas indisposições naturaes, a que os selvagens se acham sujeitos, e quaes os nomes que dão aos membros do corpo 101 De algumas molestias particulares á estes paizes de indios e de seos remedios 106 Da morte e dos funeraes dos indios 111 Do regresso á ilha do Sr. de la Ravardiere e de alguns Principaes, que o seguiram 116 Viagem do capitão Maillar pela terra firme á casa de um grande feiticeiro. Descripção desta terra e das zombarias d’elle 120 Da vinda dos Tremembés, como foram perseguidos, suas habitações e procedimento 125 Da chegada dos Cabellos-compridos á Tapuytapéra e da viagem ao Uarpy 129 Dos astros e do sol 132 Ventos, chuvas, trovões e relampagos em Maranhão e suas circumvisinhanças 135 Mar, agoas e fontes do Maranhão 139 Singularidades de algumas arvores do Maranhão 141 Dos peixes, passaros e lagartos, que se encontram n’estes paizes 146 Da pesca do Pery 148 Da caça dos ratos, das formigas e das lagartixas 153 Das aranhas, cigarras e mosquitos 165 Dos grilos, dos camaleões e das moscas 160 Das onças e dos macacos do Brazil 173 Das aguias, dos passaros grandes e dos passarinhos d’aquelle paiz 178 Resposta a muitas perguntas, que fazem n’aquelle paiz á respeito das Indias Occidentaes 184 Instrucção para os que vão pela primeira vez ás Indias 189 Do acolhimento, que fazem os selvagens aos francezes recem-chegados, e como convem proceder para com elles 193 Dos fructos do Evangelho, que appareceram cedo pelo baptismo de muitos meninos 201 Do baptismo de muitos enfermos e velhos, que falleceram depois de christãos 210 Do baptismo de muitos adultos, especialmente d’um chamado Martinho 217 Do que fez este christão em beneficio da instrucção e conversão dos seos similhantes 225 De um Indio condemnado á morte, que pedio o baptismo antes de morrer 230 Formulario dos discursos, que faziamos aos selvagens quando nos vinham vêr, para chamal-os ao conhecimento de Deos e á obediencia de nosso Rei 234 Formulario da doutrina christã, que aprendiam e recitavam de cór, antes de serem baptisados 241 Qual a crença natural dos selvagens a respeito de Deos, dos espiritos e da alma 246 Dos principaes meios usados pelo diabo para conter em suas cadeias por tão longo tempo estes selvagens 252 Como falla o diabo aos feiticeiros do Brasil, suas falsas profecias, idolos e sacrificios 259 De algumas outras ceremonias diabolicas praticadas pelos feiticeiros do Brasil 271 Claros signaes do reino do diabo em Maranhão 275 Os filhos do Brazil darão cabo do reinado de Lucifer e começarão a restabelecer o reinado de Jesus Christo 283 Primeira conferencia com Pacamão, grande feiticeiro de Commã 289 Segunda conferencia que tive com Pacamão 296 Conferencia com o grande feiticeiro de Tapuytapéra 304 Conferencia com Jacupen 311 Conferencia com o principal de Orubutin 317 Conferencia com o Onda, um dos principaes de Commã 321 Congratulação á França etc. etc. 329 Fidelissima narração etc. etc. 334 Narração d’um marinheiro 344 Notas criticas e historicas por Mr. Ferdinand Diniz 347 *** End of this LibraryBlog Digital Book "Viagem ao norte do Brazil feita nos annos 1613 a 1614, pelo Padre Ivo D'Evreux" *** Copyright 2023 LibraryBlog. All rights reserved.