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Title: Viagem ao norte do Brazil feita nos annos 1613 a 1614, pelo Padre Ivo D'Evreux
Author: D'Evreux, Ivo
Language: Portuguese
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*** Start of this LibraryBlog Digital Book "Viagem ao norte do Brazil feita nos annos 1613 a 1614, pelo Padre Ivo D'Evreux" ***


produced from images generously made available by Cornell
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VIAGEM AO NORTE DO BRAZIL PELO PADRE IVO D’EVREUX



                                 VIAGEM
                                   AO
                             NORTE DO BRASIL
                     FEITA NOS ANNOS DE 1613 A 1614,

                               PELO PADRE
                              IVO D’EVREUX
                          RELIGIOSO CAPUCHINHO

     PUBLICADA CONFORME O EXEMPLAR, UNICO, CONSERVADO NA BIBLIOTHECA
                            IMPERIAL DE PARIZ

                         COM INTRODUCÇÃO E NOTAS
                                   POR
                          MR. FERDINAND DINIZ,
                CONSERVADOR DA BIBLIOTHECA SANTA GENOVEVA

                             Traduzida pelo
                        DR. CEZAR AUGUSTO MARQUES
      Cavalleiro da Real e Militar Ordem Portuguesa de Nosso Senhor
     Jesus Christo, Cavalleiro e Official da Imperial Ordem da Rosa,
       Membro do Instituto Historico, Geographico, e Ethnographico
          do Brazil, da Sociedade Geographica de Pariz, e socio
       correspondente, effectivo, honorario e benemerito de muitas
        outras sociedades litterarias e scientificas, nacionaes e
                              estrangeiras.

                             MARANHÃO—1874.

                 Maranhão.—Typ. do Frias, r. da Palma 6.



Á SAUDOSISSIMA MEMORIA, DE MEU PAE E VERDADEIRO AMIGO

O Illm. Sr. Augusto José Marques.


Á vós, ó meo querido Pae, levanto, dedico e consagro este pequeno, porem
sincero monumento de minha saudade sempre viva, de meo extremecido amor,
de meo eterno reconhecimento, e de minha dôr pungente pela vossa ausencia
d’este Mundo.

Bem sei que Deos, querendo recompensar vossas virtudes, cêdo vos tirou do
seio dos que muito vos extremeciam; mas essa ideia póde sim consolar-me,
nunca porem mitigar as vivas saudades, que me pungem a alma.

Aceitae, ó meo bom Pae, estas flores que, ainda uma vez banhadas com
minhas lagrymas, espalho sobre vosso tumulo, a lá do Céo, onde vos
collocaram vossas virtudes e a Misericordia Divina, abençoae o vosso filho

                                                                   Cezar.



AO LEITOR.


A introducção, que se vae lêr, escripta pela habil penna de Mr. Ferdinand
Diniz dispensa-me de escrever um prologo, e felizmente sou substituido de
maneira muito vantajosa para os meos leitores.

Realisei ainda uma vez um dos meos mais ardentes desejos, traduzindo
e entregando á publicidade uma das obras raras a respeito da historia
primitiva do Maranhão, que me tem merecido muitas investigações e aturado
estudo.

Dou-me por satisfeito d’esta e de outras fadigas, si d’ellas resultar
algum proveito ao publico menos, lido para quem fiz esta traducção.

Maranhão, 20 de outubro de 1874.

                                             _Dr. Cesar Augusto Marques._



INTRODUCÇÃO.

O Padre Ivo de Evreux e as primeiras missões do Maranhão.


No tempo de Luiz XIII, o magnifico Convento dos Capuchinhos da rua de
Santo Honorato contava entre seos Monges dois religiosos com o mesmo
nome—o Padre Ivo de Paris e o Padre Ivo de Evreux. O primeiro, advogado
antigo, verboso, ardente na discussão, muito versado nas ideias do seu
seculo, gosava pela cidade de alta reputação, e as biographias modernas
confirmão ainda sua fama passada: o segundo, amigo reconcentrado do
estudo, e mais ainda da humanidade, espirito observador, alma apaixonada
pelas bellezas da naturesa, prompto a acudir onde o chamava seo zelo,
não se importando da curiosidade que podia despertar, foi completamente
esquecido, e de tal forma, que, apezar de seo reconhecido merito,
decorreram 250 annos sobre seo humilde tumulo sem que uma voz amiga tenha
para elle despertado a attenção publica.

Para que se fallasse n’este obscuro Monge foram necessarias duas cousas,
com que não se contava durante sua vida: a transformação em poderoso
Imperio dos desertos, que elle percorreo, e o amor apaixonado por certos
livros velhos, que se rehabilitam e com razão, pois elles, por si só,
narram factos que, sendo desconhecidos, fariam com que a civilisação
crescente de certos paizes caminhasse na ignorancia de sua origem.

Tinha então o grande Convento de Pariz muitos homens condemnados á
injusto esquecimento.

Fundado em 1575 por Catharina de Medicis,[A] havia em pouco tempo
adquerido fama de conter monges doutos em theologia, zelosos, cheios de
abnegnação e caritativos nas epidemias, a qual, quasi intacta, conservou
durante o decimo sexto seculo.

Era n’elle, que o partido, favoravel aos religiosos regulares, vinha
procurar espiritos activos para luctar com o Bispo de Belley.

Era sobre estes vastos terrenos, possuidos apenas pela Casa de
_Tremouille_, que existia essa immensa officina bem conhecida pelo Corpo
medico de Pariz, onde os cortesãos, assim como os mais humildes burguezes
vinham provêr-se de medicamentos, que só ahi encontravam, ou que se
preparavam com incuria notavel nos outros lugares de tão grande cidade.[B]

Fallemos francamente: não era nem a sciencia, então incontestavel,
d’esses Religiosos, nem os resultados positivos de sua cuidadosa
administração, nem mesmo os beneficios diarios, pelos quaes eram tão
uteis ás classes necessitadas, que lhes grangearam o credito unisono,
que gosavam em Pariz, pois o deviam sobre tudo as brilhantes conversões,
realisadas recentemente no Mosteiro de Santo Honorato.

Foi n’este Convento, que um dos maiores senhores do ultimo reinado, o
conde de Bouchage, mais conhecido depois pelo Padre Angelo de Joyeuse,
veio trocar as grandezas da Côrte, onde voluntariamente demittio-se dos
seos cargos militares, pela vida pobre e obscura que ahi se passava.

Foi n’este sombrio asylo que um dos ramos mais illustres da familia de
Pembroke veio abjurar o calvinismo, e, renunciando vida mais brilhante,
sugeitou-se ás humildes funcções, que desde o principio do seculo lhes
foram impostos, obrigando-se a proseguir sem descanço na missão a que
voluntariamente se impozera.

Facil nos seria abundar agora na citação de nomes celebres, e de causar
talvez admiração fazendo sobresahir os esquecidos: para ser breve devemos
porem cingir-nos ao objecto em questão.[C]

O Padre Ivo d’Evreux e o Padre Ivo de Pariz appareceram, como dissemos,
quase ao mesmo tempo; porem a fama, sempre crescente de um, eclypsou
completamente a lembrança mui fugitiva, que o outro deixou, e até em bons
escriptos são elles confundidos. Tiveram, comtudo, bom é repetir, destino
bem differente.

Ivo de Evreux, como dissemos, fugia em geral do bulicio politico, e
somente tomava parte nas luctas do seculo quando tinha de sustentar
algum ponto de doutrina religiosa: o segundo, muito mais moço na Ordem,
que o seo homonymo, sempre prompto a entrar nos combates, que as Ordens
Regulares sustentavam algumas vezes contra o poder ecclesiastico, tinha
por isto adquirido muita fama, com que bastante se gloriava o Mosteiro.

Era notado não só como orador eloquente, mas tambem como um dos mais
fecundos do seu tempo.

A hyperbole do elogio monastico chegou até o ponto de consideral-o como o
engenho mais poderoso de sua Ordem.

Foi sempre elle quem representou unicamente seos Superiores: eram d’elle
os muitos livros, escriptos quase todos em latim, que foram oppostos,
e victoriosamente, ás publicações violentas atiradas contra as Ordens
mendicantes.

Da sua antiga occupação de advogado se recordava e se aproveitava das
tricas e desordens, proprias da epocha, e até lançava mão da astrologia
judiciaria, pelo que se lhe attribuio a authoria do _Fatum Mundi_, livro
absurdo, mas que durante algum tempo preoccupou a attenção publica.

Declarado por unanimidade o oraculo do seu Convento, nem se quer por
um momento houve a ideia de associar-se á sua lembrança o nome d’um
Religioso, igual ao seo, e que apenas sabia sacrificar-se com o fim de
ganhar algumas almas para Deos! O que fazia o nosso modesto amante da
natureza diante de tal personagem, tão cercada de gloria, diante da
_Phenix_ dos theologos francezes, como então por gosto o appelidavam?[D]

Mas, quem é que se recorda hoje do Padre Ivo de Pariz? Quem cuida hoje
nas discussões, cuja vehemencia lhe attribuiram tão viva admiração?

Colloquemos os homens e os factos nos lugares, que devem occupar.

Ivo d’Evreux poude contemplar em sua grandeza primitiva uma terra
exuberante de vida e de mocidade: dois seculos de esquecimento passaram
sobre sua obra, e hoje em dia brilha elle remoçado, cheio de graça, ao
lado de Lery, de Fernando Cardim, de Anchieta, emfim de todas essas almas
privilegiadas, que uniam a faculdade da observação á apreciação apurada
das bellezas da natureza, e que saudaram, poetas desconhecidos, a aurora
de um grande Imperio.

Ivo d’Evreux, diga-se com pezar, teve o destino de quasi todos os
historiadores primitivos do novo mundo: sua biographia, embora pouco
desenvolvida, ainda está por escrever, e apesar das mais minuciosas e
constantes investigações n’estes ultimos tempos, apenas conhecemos as
circumstancias mais importantes de sua vida, e assim mesmo nada ao certo
saberiamos si não fossem algumas notas colhidas em varios archivos dos
antigos Conventos. Foi geral o esquecimento tanto da sua obra, como do
seo autor. Pensam os escriptores de sua Ordem haverem dito bastante,
lembrando ter elle vivido no seculo XVII, ter sido missionario zeloso, e
autor de um livro, continuação obrigada da viagem do Padre Claudio, e até
se esquecem de mencionar a sua existencia por espaço de dois annos entre
os indios, onde este apenas demorou-se quatro mezes.

Conforme as inducções, que se podem tirar de um folheto manuscripto,
conservado na bibliotheca _Mazarina_, opusculo cheio de datas precisas,
relativas aos Capuchinhos do Convento da rua de Santo Honorato, o nosso
Missionario devia ter nascido em 1577.

Indica por certo seu sobrenome a cidade onde elle nasceo, porem ignoramos
qual foi o nome, que teve no seculo, como então se dizia. Á este respeito
os amadores das viagens antigas foram mais bem succedidos quanto ao seo
companheiro, o Padre Claudio, que se sabe pertencera a uma excellente
familia, a dos Foullon.[E] O que ha de bem averiguado é, que os paes do
Padre Ivo o applicaram á estudos excellentes, e que os seus professores
não se contentaram de ensinarem-lhe só o latim e sim tambem o grego, e
até o hebreu, e inspiraram-lhe tal gosto litterario, sem o qual não ha
escriptor habil.

No convento de Ruão passou o seo noviciado, e ahi entrou em 18 de agosto
de 1595, não existindo a menor duvida a este respeito.[F]

Depois de ter tomado o habito n’essa Caza, ahi provavelmente demorou-se
alguns annos, e devia prégar na maior parte das cidades da alta Normandia.

É provavel, que então se achasse em relações de estudo e de sacerdocio
com o joven Francisco de Bourdemare, como elle natural da Normandia, como
elle Prégador em sua Provincia, e mais tarde designado para succedel-o na
missão do Maranhão.[G]

Distinguido muito cedo pelos seos Superiores, e tendo já o titulo de
Prégador, que então só se dava aos Religiosos notaveis, foi designado o
Padre Ivo para preencher as funcções de Guardião do Convento de Montfort.

Infelizmente os documentos, que temos á vista e que provam este facto,
não dizem qual foi a Cidade onde se passaram a maior parte dos annos de
estudo do nosso bom Missionario.

Ha em França mais de treze localidades com este nome e não nos é
possivel, absolutamente fallando, dizer onde o nosso viajante se
fortaleceu em sua carreira religiosa.

Nos primeiros annos do seculo mudou logo de residencia, e achamol-o no
grande Convento de Santo Honorato, no meiado do anno de 1611, no tempo
em que era Provincial da Ordem o Padre Leonardo de Pariz,[H] quase na
occasião d’este sabio Religioso ter sido pelo Papa nomeado Superior das
missões orientaes.

Teremos ainda occasião de fallar no movimento politico, dado ás
expedições maritimas, quando ja ia em meio o seculo XVI, e que tinha
por fim fazer com que, o nosso comercio partilhasse das vantagens, que
a Hespanha e Portugal haviam para si monopolisado. Cincoenta annos mais
tarde, embora aproveitando-se das vantagens adquiridas pelas exploraçães
dos Varazano, dos Cartier, dos Roberval, e de tantos outros navegantes,
que nos deram o que n’aquelle tempo se chamava _nova França_, todas as
attenções se fixavam nas regiões mais favorecidas, que então se pretendia
colonisar, e as quaes com enthusiasmo se chamava _França equinoccial_.

Ja havia desde 1555 uma _França Antarctica_, a qual, apesar de ter este
nome por tão pouco tempo, não deixou comtudo de grangear para nossos
homens do mar as sympathias calorosas e dedicadas dos povos indigenas,
que então em tribus numerosas occupavam o Brazil em varias partes.
Auxiliava tambem estas conquistas pacificas o movimento protestante, bem
que não devesse deixar vestigios duradouros n’America do Sul, porque os
refugiados e os Missionarios subordinavam a si e procuravam á porfia
converter á suas crenças estas nações barbaras.[I]

Sem tratar dos armadores de Dieppe, cujas primeiras explorações pelas
costas do Maranhão, datam de 1524, sem mencionar as navegações de
Affonso de Xaintongeois até as boccas do Amazonas no anno de 1542,
ser-nos-ia facil provar, que 25 annos mais tarde Henrique IV doara a um
bravo capitão da religião reformada a immensa extensão de territorio,
para a qual devia ir Ivo d’Evreux, sahindo do seu pacifico retiro de
Montfort, afim de cathequisar os selvagens.

Vemos com effeito Daniel de la Touche, senhor de Ravardiere, de posse
d’essas doações tão vagamente definidas pelas Cartas patentes de julho de
1605.[J]

Adquirimos tambem a certeza, que depois de dois annos, após duas viagens
successivas ao norte do Brasil, Ravardiere decidio os Tabajaras e
Tupinambás, propriamente ditos, a mandarem uma especie de embaixada
ao Rei Christianissimo com o fim de solicitar sua protecção contra as
invasões dos portuguezes.

Foi debalde esta missão d’indios, porem como Ravardiere continuasse
a residir por muito tempo entre elles, conseguio em 1610, que lhe
fossem renovadas as doações feitas cinco annos antes, e assim julgou-se
authorisado, logo depois da morte de Henrique IV, a formar uma associação
para a definitiva colonisação d’estas regiões abandonadas.[K]

Não foi comtudo aos partidistas de sua Religião, que se dirigio
Ravardiere para ser bem succedido n’este empenho: pelo contrario sem
hesitar entrou em conferencia com catholicos proeminentes, cuja lealdade
perfeitamente conhecia, como sejam, o almirante Francisco de Razilly,
uma das mais antigas glorias da França, e Niculau de Harlay, uma de suas
summidades financeiras, e elles se lhe associaram para a exploração
d’este previlegio.

Em todo o seculo XVII não conhecemos outra transacção, entre catholicos
e protestantes, mais leal e desinteressada: foi na verdade uma empresa,
digna de contar em si o Padre Ivo d’Evreux, tão sincero como justo.

O titulo de lugar-tenente do Rei, sem a menor questão, foi transferido
á Rasilly, que teve toda a liberdade de acção, não deixando comtudo de
fazer prevalecer as prerogativas da communhão, que professava.

Em todas as praias onde desembarcassem, devia levantar-se uma cruz com
toda a solemnidade, e bem assim missionarios catholicos seriam condusidos
para propagação da fe entre o gentilismo.

Estes contractos foram na verdade pontualmente executados, e nem na obra
de Claudio d’Abbeville, e nem na de Ivo de Evreux se encontra uma só
palavra, que faça suspeitar o menor estremecimento entre os chefes da
expedicção.

Fortalecido com o credito, que de ha muito gosava na Corte, ajudado alem
disto, por soccorros pecuniarios, e pela verdadeira importancia, que lhe
proveio de associar-se com Niculau de Harlay, senhor de Sancy, Barão de
Molle e de Grois Bois, o almirante Razilly com toda a prestesa chegou
ao fim, que tinha em vista, interessando a Regente no bom exito de uma
empreza, ja antecedentemente approvada por Henrique IV.

Por seos rogos escreveo Maria de Medicis ao Padre Leonardo, que n’esse
tempo era Guardião do grande Convento dos Capuchinhos da rua de Santo
Honorato, pedindo-lhe com toda a instancia quatro religiosos, afim de
fundarem um convento da Ordem na Ilha do Maranhão.

Diga-se a verdade: o norte do Brazil que actualmente offerece todos os
recursos da civilisação, então se apresentava, até mesmo aos mais doutos
da Universidade de Pariz, como um paiz entregue a todos os horrores
da vida selvagem; os cosmographos francezes quando d’ella tractavam,
exageravam a rusticidade d’esse paiz, deixando comtudo a imaginação o
campo inteiramente livre, não marcando nenhum limite exacto, e era sobre
essas informações inexactas que Raleigh se deleitava de evocar todos os
monstros do mundo antigo.

Nem um só momento exitaram estes Religiosos quando o Padre Provincial
lhes leo a Carta regia na occasião em que se achavam no refeitorio:
d’entre elles quarenta quizeram ser escolhidos para tão perigosa empresa,
e os documentos officiaes, que temos à vista, nos fizeram até conhecer
a especie de enthusiasmo que d’elles se apoderou quando souberam o
contheudo da mensagem das Tulherias. Offereceram-se a maior parte
dos Padres com expontaneo enthusiasmo para esta nova missão, e sendo
reprimido o zelo dos mais fervorosos, declarou logo o Padre Leonardo, de
accordo com o Definidor da Ordem, que seriam quatro apenas os escolhidos,
de conformidade com o pedido.

Eis a lista destes nomes pela ordem, que devem guardar entre si, e os
raros historiadores, que d’elles tem tratado teriam evitado alguns erros
se, como nós, tivessem consultado os archivos do Convento.

O muito veneravel Padre Ivo d’Evreux, superior.[L]

O muito veneravel Padre Claudio d’Abbeville.

O muito veneravel Padre Arsenio de Paris.

O muito veneravel Padre Ambrosio de Amiens.

Ajoelharam-se os escolhidos diante do Padre Leonardo, e humildemente lhes
agradeceram tal honra; foi-lhes annunciada a proximidade da viagem, e
desde esse momento para ella se acharam promptos.

Não ha a menor duvida á respeito da qualidade do Religioso, a quem se
confiou a direcção das missões do Maranhão, e não se comprehende como
Berredo, antigo Governador da Provincia, que foi autoridade no Brazil,
deo o titulo de Superior á Claudio d’Abbeville, que occupa na ordem
hierarchica o lugar immediato ao digno Missionario director dos trabalhos.

Certamente era necessario que o Padre Ivo ja tivesse adquirido na Ordem
credito inabalavel para que fosse preferido aos tres religiosos, seos
adjuntos. Eram sacerdotes todos tres; como elle deram provas de possuirem
solida instrucção, e o terceiro até, ja muito adiántado na carreira, por
varias vezes tinha occupado certos empregos honrosos, signaes evidentes
da consideração de seos superiores. O Padre Ambrosio éra alem d’isto
dedicado com ardor á todas as obras de caridade, durante as calamidades
dos ultimos annos do seculo, sendo muito conhecida sua bondade sempre em
acção: suas prédicas fervorosas, bem acolhidas pelo povo, lhe grangearam
o apellido de «_Apostolo da França_.»[M]

Tem a data de 12 de agosto de 1611 as _Cartas de obediencia_, que os
Superiores deram ao Padre Ivo d’Evreux, e lhe ordenaram, que fosse
embarcar-se no porto de Caucale n’um navio sob o commando de Rzailly,
lugar-tenente do Rei.

Não devemos repetir aqui o que em termos percisos e apropriados contou
Claudio d’Abbeville na primeira parte de sua narração a respeito dos
pormenores da longa viagem dos missionarios até o Brazil, da separação
forçada da flotilha, que os conduzia, e das peripecias d’esta navegação,
que durou cinco mezes. O que porem podemos affirmar é que o Padre
Ivo não soffreu somente o aborrecimento de uma viagem maritima, cujas
difficuldades não se pode agora imaginar, e que aos cuidados de uma
installação penosa vieram reunir-se fadigas imprevistas, e depois de
desembarcado, dores pungentes, como fossem as que elle experimentou pela
morte do digno Padre Ambrosio, e em seguida os soffrimentos provenientes
de uma molestia, que o forçou a regressar, e da qual foi victima afinal.

Tudo isto foi narrado com simplicidade e dignidade por tão zeloso
missionario, e sem duvida muito melhor do que o fariamos.

O que não disse o pobre Monge, cuja exquisita sensibilidade e admiravel
resignação se revelam tantas vezes, foi o pezar, que experimentou quando
vio, que da coragem imprudente de Pésieux resultou a morte d’este seo
amigo, sem que o valor de Ravardiere podesse ser bastante para sustentar
a Colonia; o que tambem não poude contar foi a perda das funcções de
Superior da missão, que devia assumir antes do triumpho das armas de
Jeronymo d’Albuquerque, e da expulsão definitiva dos francezes. Para
explicar essas circumstancias, não mencionadas de forma alguma pelo digno
missionario, é indispensavel fallar-se da situação administrativa em que
então se achava o grande Convento da rua de Santo Honorato.

O Padre Leonardo, tão afamado entre seos irmãos de habito, em 1614
deixou de ser Provincial, e só poderia ser reeleito no anno de 1615.
Foi substituido pelo veneravel Honorato de Champigny,[N] e com razão
elogiam-se os melhoramentos de toda a natureza, a actividade, e
especialmente a distribuição de soccorros caridosos, postos em pratica
durante a sua administração.

N’esta epocha, um Religioso estrangeiro, natural da Escossia, e
descendente de uma boa familia, attrahia a si os olhares de seos irmãos,
e póde dizer-se até os da propria França, o Padre Archanjo de Pembroke,
que veio substituir de alguma forma o Padre Angelo de Joyeuse.

Eleito Provincial em 1609, e não deixando depois d’isto d’exercer
importantes encargos, foi este Capuchinho, logo depois da partida
do Padre Ivo, nomeiado director dos missões _nas Indias orientaes e
occidentaes_. Os motivos, que fizeram abandonar mais tarde a missão do
Maranhão, não foram declarados, ou para melhor dizer, não existiam.
Archanjo de Pembroke resolveo ir pessoalmente ao Brasil dar consideravel
impulso á pequena missão, que alguns mezes antes havia sido derigida por
Francisco de Razilly.

Para este fim escolheo onze religiosos, de cujo zelo podia confiar:
infelizmente ignoram-se os seos nomes, e apenas se sabe que entre elles
havia um historiador, cuja _Narração_, nos parece de facto perdida, por
não ter sido possivel encontral-a, apezar de todas as pesquizas feitas
com constancia e perseverança por muitos mezes em Pariz, Ruão e Madrid.[O]

O Padre Francisco de Bourdemare pertenceo á classe d’esses ricos
gentis-homens, que após á saciedade de todas as superfluidades da
fortuna, de repente suffocam n’um carcere o que se chama orgulho do
seculo e lembranças mundanas.

Havia ja alguns annos, que era viuvo: á seo filho entregou todas as suas
herdades, e depois foi sepultar-se nos Mosteiros de Orleans e de Ruão,
e d’ahi mudou-se para o Convento da rua de Santo Honorato em Pariz, onde
exhibio diariamente, dizem, provas de humildade muito alem da exigida
pelos membros da Communidade.

Gentil-homem notavel, não havia muito, pela sua elegancia, na epocha da
grandeza, anterior ao fausto de Luiz XIV, então somente trazia vestidos
remendados, e ainda á sua pobreza juntava o habito de Capuchinho.

Completar o seu martyrio dedicando-se fervorosamente á conversão dos
selvagens, pareceo-lhe coisa tão natural como invejavel; este homem, cuja
sociedade tinha sido tão procurada, e cuja instrucção era tão solida
á ponto de poder escrever em latim uma obra volumosa, encarou como
beneficio dos Definidores da sua Ordem o ser mandado a um paiz deserto,
onde faltassem todos os recursos na vida: elle e Archanjo de Pembroke,
cuja existencia tinha sido ainda mais brilhante que a sua, embarcaram-se
com outros dez Monges n’um navio commandado pelo bravo Pratz, que com
tresentos colonos novos ia soccorrer Ravardiere, cuja situação sem duvida
era prevista em Pariz como difficil.

Cheios de presentes pelos senhores da Córte de Luiz XIII com os quaes
ainda bem recentemente elles entretinham relações diarias, e sobretudo
satisfeitos por levarem ao modesto Convento do Maranhão os bellos
ornamentos feitos pelas proprias mãos da Duqueza de Guise, partiram
do Havre, e pode dizer-se, que para aquelle tempo foi por certo um
phenomeno, pois apenas gastaram dois mezes e meio para chegarem á costa
do norte do Brazil, porem apenas vellejavam ainda na bahia de Guaxenduba
souberam logo do estado lastimoso, em que se achavam os negocios da
França n’aquelles lugares.

Não ignoravam os Missionarios, que pelo seo Instituto se achavam ao
abrigo das eventualidades politicas, que o resto da expedição podia
temer (por exemplo não podiam ser prisioneiros): foram, como que com
pompa, para o seo Convento em S. Luiz, e comsigo levaram os presentes
da Duqueza de Guise, porem apenas acharam ahi um só religioso, o Padre
Arsenio de Pariz,[P] e esse mesmo muito doente.

Mais doente ainda, que seo unico companheiro se achava o Padre Ivo
d’Evreux, quando soube, estar substituido como Superior do nascente
Mosteiro, e é provavel, que elle embarcasse a bordo d’algum dos navios da
esquadra.

Dizem os documentos que temos á vista, que n’esse tempo elle se achava
em inacção, victima d’uma paralysia geral, consequencia provavel das
fadigas, a que diariamente se entregava no _Fórte_.

Para explicar a invasão lenta, porem continua, de tão triste molestia,
basta recordar agora o que era então a nascente cidade de S. Luiz.

Embora seja hoje, e com razão, esta risonha Capital considerada uma das
cidades mais saudaveis do Imperio do Brasil, então apenas surgia do seio
das florestas: os miasmas deleterios, que constantemente se desprendiam
dos logares recentemente desbravados, a falta absoluta de certos
medicamentos energicos, apropriados a combater com decidida vantagem
essas influencias paludosas: tudo isto explica como o Padre Ivo d’Evreux
não poude esperar pelo resultado da guerra começada, e como se vio
coagido a regressar para a Europa, receiando ser pesado á missão depois
de haver sido o seu agente mais activo e o seu sustentaculo mais dedicado.

Não sabemos como se effectuou esta viagem, nem si elle foi para Pariz, e
nem tão pouco si foi em sua terra natal buscar um azylo no Convento dos
Capuchinhos,[Q] fundado apenas alguns mezes depois da sua partida.

Os archivos da cidade d’Evreux, nada dizem a tal respeito, e nem tambem
relativamente á missão brasileira, parecendo-nos dever esperar-se do
acaso o apparecimento de documentos biographicos, cuja existencia nem se
suspeita.

O historico da segunda missão dos Capuchinhos franceses em Maranhão,
completamente ignorada por Berredo e outros escriptores portuguezes, não
nos deixa na mesma incertesa quanto aos missionarios, que succederam á
Ivo d’Evreux e aos seos companheiros.[R]

Sabemos que chegaram em 15 de junho diante da nascente cidade, que
cantaram um _Te-Deum_ no dia 22 do mesmo mez, no rustico Convento
principiado a edificar por seos antecessores, e tambem não ignoramos
hoje, que elles previram o máo exito da missão.

Ignoramos o que fez o Padre Arcanjo no Convento de São Luiz, porem
quasi que se pode dizer, que não imitou o zelo dos Padres Ivo d’Evreux
e Arsenio de Pariz, sendo tão mal succedido em seos esforços que até
appareceo a desunião «entre as coisas da Colonia, augmentada ainda com a
chegada dos portuguezes, que se assenhorearam do paiz.»

O piedoso biographo, cuja narração nos serve do guia, diz, que o novo
Superior administrou o baptismo a 650 indios, porem accrescenta logo,
que sem duvida estes pobres selvagens não ficaram por muito tempo fieis
á religião, que abraçaram, voltando a sua antiga idolatria: «não chega
a sessenta os christãos sinceros, e n’esse numero estão incluidos vinte
meninos.» Si se encontrasse uma biographia cheia de particularidades e
de aventuras do Monge escossez, de que tracta o velho historiador da
Ordem, taxando-a de muito exagerada, provavelmente n’ella se encontrariam
narrações minuciosas de sua missão na America. Infelizmente este livro,
se existe em alguma bibliotheca pouco conhecida, é tão raro como o de
Francisco de Bourdemare, e temos sido infelizes nas diversas pesquizas,
que até hoje fizemos com o fim de offerecer aos nossos leitores um
extracto do seo contheudo.[S]

Suspeitamos que o Padre Arcanjo de Pembroke deixou muitos dos seos
confrades no Convento dos Capuchinhos recentemente edificado, e que
regressou para França ao fim de 1614 no navio do Capitão Pratz, que levou
á Paris Gregorio Fragoso, sobrinho de Jeronymo de Albuquerque, incumbido
d’uma missão diplomatica, que devia discutir-se em Lisboa.

Recolhido á sua cella no Convento da rua de Santo Honorato, o
Padre Ancanjo facilmente esqueceo-se do Brasil[T], tomou parte nos
acontecimentos politicos do seu tempo, vieram de novo as dignidades
da Ordem procural-o, e viveo no grande mosteiro até o momento, em que
Richelieu chegou ao apogeo do seo poder.

Os amadores das viagens antigas, aquelles que prescrutam ainda com
interesse as lembranças espalhadas aqui e ali, e com as quaes se deve
compôr a historia das nossas Colonias, mais gloriosa do que se pensa, não
se demoraram n’essas particularidades, e antes desejaram saber como o
Maranhão escapou aos esforços corajosos do bravo Ravardiere.

A _Historia Geral do Brasil_, publicada ultimamente pelo veridico
Sr. Adolpho de Varnhagem lhe responderá com mais promptidão ainda do
que o poeta laureado Southey. Ahi lerão como as forças portuguezas,
expedidas d’esde outubro de 1612 para expellir os francezes do seu novo
estabelecimento, de que tinha ciumes a Corte de Madrid, ainda em Maio de
1613 foram reforçadas por Jeronymo d’Albuquerque vindo do Ceará, onde
combinou com Martim Soares nos meios de ser bem succedida essa expedição
sob seo commando, a qual se antolhava irriçada de difficuldades.

De Pernambuco ainda vieram reforços indispensaveis, e por isso em 23
d’agosto começou o bloqueio das forças francezas, porem no dia 19 de
novembro, Ravardiere á frente de 200 soldados d’infantaria, e de 1500
indios atacou com energia os sitiadores de sua nascente cidade; perdeo-se
ahi o bravo Pezieux n’uma imprudente tentativa por não ter executado as
ordens do seu chefe mais experiente do que elle.

Tomaram por sua vez a offensiva os portuguezes, e em pouco tempo, apesar
da sua reconhecida habilidade e do seu notavel valor, foi obrigado
o Chefe da nova Colonia a concordar n’um armisticio, cujo desenlace
seria terminado perante as Cortes de Madrid e de Pariz, para as quaes
appellaram ambas as partes belligerantes.

Antes de chegar a este ponto vio Ravardiere de seo exercito cem homens
mortos e nove prisioneiros. Pode dizer-se, que si sua resistencia foi
a de um bravo, como tal ja reconhecido, o procedimento, que então
ostentarão seos adversarios, foi em todo o sentido generoso, porem, força
é dizer que depois de convenções tão livremente estipuladas, e quando em
3 de Novembro de 1615 entregou Ravardiere com todas as solemnidades o
_Forte de São Luiz_ á Alexandre de Moura appareceo um acto de deslealdade
manchando esta campanha tão nobremente terminada. Ravardiere deixou o
Maranhão e foi em companhia de Alexandre de Moura para Pernambuco, d’onde
partio em pouco tempo para Lisboa, e ahi no _Forte de Belem_ soffreo
rigorosa prisão, que não durou menos de tres annos.[U]

Pelo que acabamos de dizer vê-se facilmente, que a Cidade de S. Luiz, a
florescente Capital de uma das mais ricas Provincias do Brasil, é uma
Cidade de origem absolutamente franceza, e a Camara Municipal assim
felizmente o comprehendeo por haver ainda ha pouco tempo feito surgir
das ruinas os modestos edificios, que attestam esta epocha, provando com
isto, e ao mesmo tempo, ausencia de patriotismo mesquinho e sentimento de
bom gosto.[V]

Mas voltando ao livro, que nos prende a attenção, façamos conhecer a
sorte caprichosa, que o esperava em França. Despertaremos tambem com o
bom Religioso algumas reminicencias, com que se pode enfeitar a poesia.

Menos infeliz na apparencia que João de Lery, tão bem classificado com o
appellido de «Montaigne dos velhos viajantes,»[W] Ivo d’Evreux durante 15
annos não vio seo manuscripto, extraviado por um infortunio, que o ferio
completa e absolutamente.

Enviado aos Superiores da Ordem este livro, complemento do de Claudio
d’Abbeville, foi destruido antes de haver apparecido. Impresso por
Francisco Huby, em cujas officinas já havia sido edictada a obra do seo
companheiro, foi inteiramente dilacerado.

Francisco Huby, dizemos com pezar, deixou-se n’essa occasião seduzir, e
esquecendo-se dos deveres inherentes á sua profissão, não se importou em
ser o instrumento d’uma vingança politica tão mesquinha.

É de suppôr, que o motivo, que fez prender Ravardiere no _Forte de
Belem_, levantou tambem mãos sacrilegas para destruir na rua de São
Thiago o precioso volume, no qual se expunham com admiravel sinceridade
as vantagens para a França, provenientes da expedição de 1613.

Entre a impressão da viagem de Claudio d’Abbeville, e a do livro, que é
sua continuação, deo-se um acontecimento politico d’alto alcance.

Foi resolvido o casamento de Luiz XIII, ainda menino, com uma princesa
hespanhola[X], e um partido inteiro mostrou muito interesse em dissipar
qualquer sombra, que prejudicasse a casa de Hespanha.

Os projectos de conquista d’America do Sul não acharam mais apoio,
e desde então empregaram-se todos os meios afim de ser esquecido um
projecto de conquista, com que ja se havia inquietado a Hespanha,
chegando-se até a destruir completamente a simples narração dos
incidentes d’essa missão ja passada ha tanto tempo, embora escripta com
toda a calma e conveniencia.

Quando se deo este acto arbitrario havia em França um homem, que ligava
muito interesse á obra e ao seo auctor.

Felizmente Francisco de Razilly não cahio no captiveiro, que paralisava
todos os esforços de Ravardiere, e pode até affirmar-se, que não perdeo
de vista, por um só momento, as vantagens, que seo paiz podia tirar de
uma Colonia, cujos primeiros passos elle tinha dirigido. Sabendo que
hia ser destruido o volume do Padre Ivo d’Evreux, apezar de impresso
inteiramente, foi á imprensa de Huby para vêr se obtinha um exemplar:
ou porque não fosse com toda a promptidão, ou porque ja se tivesse dado
começo a destruição da obra, apenas poude salvar algumas folhas por
si ou por _meios_ subtis de um seo agente, as quaes reunidas mostraram
a lamentavel perda de diversos fragmentos, e com essas lacunas tão
importantes foi impossivel formar um exemplar completo. Mandou o
Almirante imprimir o seu protesto em outra parte, e não nas officinas
da rua de Sam Thiago, juntou-o ao livro, encadernado com todo o luxo,
tendo na frente as armas da casa de França, e foi leval-o, não á Maria de
Medicis, antiga protectora da Colonia do Maranhão, e sim a Luiz XIII.

O menino rei ainda na anno antecedente tinha brincado muito com tres
pobres selvagens Tupinambás, dos quaes fora padrinho, e suas recordações
eram ainda tam frescas, que de vez em quando esboçava os grotescos
ornatos, com que se enfeitavam os nossos indios:[Y] leo talvez algumas
paginas do bello volume, que Razilly lhe offereceo, e n’isto ficou todo
o seo interesse. Richelieu ainda não era Superintendente da sua marinha,
e ainda dormiram na Corte por muitos annos os projectos de longas
navegações.

O livro do Padre Ivo, junto ao do Padre Claudio, foi posto nas estantes
da bibliotheca, e ahi todos os deixaram em paz.

Foi no tempo do digno Van-Praet, no principio de 1835, que o autor d’esta
noticia teve a felicidade de encontral-o. Seria occioso o dizer como o
feliz descubridor ficou surprehendido lendo esta agradavel narração, tão
sincera em suas menores particularidades como preciosa pelas suas uteis
noticias. Para comprehender bem o seo valor basta dizer-se, que o nosso
bom missionario demorou-se dois annos, onde seo veneravel companheiro
apenas demorou-se quatro mezes. Desde então appareceo Ivo d’Evreux n’uma
serie de artigos, que publicava a _Revista de Pariz_ a respeito dos
_antigos viajantes francezes_, e na verdade sem desvantagem, ao lado do
Padre du Tertre, a quem Chateaubriand justamente chamou o Bernardin de
Sant’Pierre do 16º seculo.

Este artigo, cujo menor defeito era sem duvida alguma o ser pouco
desenvolvido, formou n’esse mesmo anno uma pequena brochura, publicada em
casa de Techener, e immediatamente esgotou-se a edicção.

Desde essa epocha não foi mais Ivo d’Evreux de todo desconhecido aos
amadores das viagens antigas, aos homens de bom gosto, que buscam avidos
de curiosidade os escriptores esquecidos, percursores do grande seculo.
Preoccupado, mais do que se crê na Europa, de suas tradicções poeticas,
e de suas nascentes glorias, o Brasil saudou o nome do velho viajante,
e lhe deo um lugar entre os homens pouco conhecidos, mas que devem ser
consultados quando se tracta dos tempos primitivos.

O Imperador D. Pedro, que occupa um lugar entre os bibliographos mais
illustrados, e que tem decidido gosto pelas raridades bibliographicas,
que derramam alguma luz sobre as antiguidades do seo vasto Imperio,
mandou extrahir uma copia, sendo depois imitado seo exemplo!

O unico exemplar, pertencente á bibliotheca imperial d’ahi em diante foi
lido e relido:[Z] uma phalange de escriptores habeis e zelosos, que
exhumaram do pó a historia do seo bello paiz, o chamaram em testemunho de
suas asserções, Adolpho de Varnhagem, Pereira da Silva, Lisboa o auctor
do _Timon_, e no ultimo lugar o sabio Caetano da Silva, o citaram entre
as melhores autoridades, que se pode invocar sobre as crenças dos indios,
e assim o fizeram sahir da obscuridade, em que jazia.

Não tinha a França prestado attenção a estes testemunhos de estima
para dar ao Padre Ivo d’Evreux o lugar, que merecia. Se Boucher de la
Richarderie não tivesse pronunciado seo nome, levantando o mais que poude
o de Claudio d’Abbeville, o Sr. Henrique Ternaux Compans não o incluiria
na sua preciosa collecção dos viajantes conhecedores da antiga America. O
Sr. d’Avezac o cita com destincção e faz sobre-sahir suas boas qualidades.

Todos estes testemunhos de admiração para com o humilde escriptor, que
sem ostentação sacrificou sua obra, infelizmente tem concorrido pouco
para tirar sua vida da obscuridade, e não sabemos em que auctoridade se
baseia um sabio bibliographo para dizer que elle viveo até 1650.[AA]

Á vista d’um volumoso manuscripto da bibliotheca imperial pensamos
um dia que ião ser esclarecidas todas as nossas duvidas sobre os
principaes pontos da biographia do nosso escriptor, porem assim não
aconteceo. _Os elogios historicos de todos os grandes homens e de todos
os illustres religiosos da Provincia de Pariz_ infelizmente só dão
noticias relativas aos religiosos de Santo Honorato, de Picpus, e de S.
Thiago.[AB] Chegou-se até a dizer na obra, que havendo o Padre Paschoal
d’Abbeville[AC] separado sua Provincia da Normandia em 1629 não devia
procurar-se n’esta compilação o nome dos Religiosos, que não residiram em
Pariz.

Não se deve esquecer de todo a excitação puramente litteraria, que se
experimentou em França logo depois da chegada dos selvagens brasileiros,
que desembarcaram sessenta annos antes em Ruão ou em Pariz. Estes
apparecimentos successivos d’indios, seguidos sempre de narrações mais
ou menos notaveis, levão evidentemente o espirito a pensar nas bellezas
primitivas da natureza, o que produz encantos e amplidão de ideias.

D’esta influencia não se livrou o nosso Montaigne, como elle revellou em
algumas palavras espirituosas, que escreveu a proposito d’uma cantiga
brasileira.

Os dois maiores poetas d’aquelles tempos, tão differentes entre si e
comtudo tão approximados, se abalaram a ponto de dedicarem particular
attenção a esses habitantes das grandes florestas, por acaso misturados
com os cortezãos de França, que invejavam seos gosos pacificos, e a
tranquillidade de suas existencias.

Ronsard não é de parecer que estes homens, que lembram a origem do Mundo,
percam sua feliz innocencia, e por isso insta com os visitantes para que
não troquem a sua ignorancia pelos cuidados da civilisação.[AD]

Malherbe tambem a respeito d’elles entreteve por muito tempo o douto
Peiresc, por meio de cartas, onde dizia que a paz e a alegria estava em
imital-os.

Suas dansas inspiraram os mais delicados cortesãos, e um dos mais habeis
artistas de Pariz fez com as suas arias uma especie de dança muito
agradavel, cuja descripção nos deixou o poeta.[AE]

Poderiamos ainda citar outros exemplos d’esta subita predilecção pela
independencia dos pobres indios, e especialmente pelo magnifico paiz, que
habitam.

Conforme estes poetas, a cuja frente deve collocar-se Bartas,[AF] é
n’esta fonte vital, que pode restaurar-se por novas comparações um estro
quasi a exhaurir-se.

Sem duvida alguma todos estes antigos viajantes, completamente esquecidos
durante um seculo, exerceram real influencia no seo tempo, e ainda mais
alem, como se pode provar á vista dos escriptos de Chateaubriand: a
singelesa de suas narrações e a frescura de suas pinturas inspiraram os
grandes escriptores, já cuidadosos de abandonarem nas suas descripções
os typos ajustados ou estudados, e de influirem ou attrahirem só pela
verdade.

Ivo d’Evreux não foi somente um pintor habil, um narrador sincero, e sim
tambem um observador perspicaz dos costumes de uma raça, para assim dizer
extincta, e que não se poderia consultar frequentemente.

Para escolher um só exemplo entre muitos, que elle offerece, basta
dizer-se, que foi o unico, que descreveo os verdadeiros idolos, modelados
em cera, ou esculpidos em madeira pelos indios.

Hans-Staden, Thevet, Lery e o proprio Gabriel Soares, tão prolixos á
respeito do culto do _maracá_, guardam silencio relativamente ao que
então se rendia á essas estatuasinhas modeladas grosseiramente, sem
duvida, pelos habitantes nomades das grandes florestas, as quaes com tudo
servem para mostrar um principio da pratica nascente da arte: assim elle
o confessa n’estas palavras: «Este mau costume crescia e estendia-se
pelas aldeias proximas de Juniparão.» Depois accrescentou, que seo
companheiro o Revd. Padre Arsenio encontrou estes idolos na visinhança
dos bosques.... Ora, pode-se deduzir d’este trecho curiosa inducção, não
sem interesse para a archeologia futura de um grande Imperio, e vem a
ser, que no começo do XVII seculo notavel mudança se tinha já feito nas
ideias religiosas do grande povo da costa.

Sem duvida, n’esse tempo ja os Piagas tinham visto imagens nas igrejas,
que se edificavam em varias partes do litoral: com a maravilhosa
facilidade d’imitação, innata nos indios, ja no fim do XVI seculo tinham
representado em estatuas alguns dos numerosos genios de suas florestas.
Estes primeiros idolos foram infelizmente modelados em madeira, e
embora houvesse grande copia d’elles, nenhum, ao menos que o saibamos,
é conservado nos museos ethnographicos do novo Mundo, estabelecidos em
varias localidades. Os Tupinambás, apenas chegaram na visinhança do rio
das Amazonas, receberam ideias mais adiantadas de povos mais civilisados
que elles: a poderosa nação dos Omaguas, por exemplo, cujas tribus vinham
das regiões peruviannas, poderia ter influido sobre a arte grosseira, de
que entre elles encontraram se tão curiosos _especimens_. Note-se, que
estes importantes factos são, em geral, absolutamente despresados pelos
escriptores portuguezes, e por isso não é pequena gloria para a nossa
litteratura antiga, o ter possuido escriptores, dotados de genio tão
observador á ponto de prestarem muita attenção ao estudo d’estes objectos.

Entre os que se misturaram com estas nações infelizes, no principio
do seculo XVII, não conhecemos, na verdade, senão um unico viajante
portuguez, cuja narração encantadora deve estar ao lado das de João de
Lery e do Padre Ivo d’Evreux.[AG]

Foi Fernando Cardin, Superior dos Jesuitas ainda em 1609, e que visitou
os indios do Sul depois de haver por muito tempo administrado as
aldeias dos Ilheos e da Bahia. Bem que este Missionario não possa, pela
importancia de documentos, comparar-se a Gabriel Soares,[AH] a quem se
deve recorrer sempre que se queira, ter ideia exacta da nacionalidade dos
indios, e da emigração das suas tribus, comtudo muito se lhe assimelha
pelo seo estylo: como elle despresa os preconceitos, ama os selvagens,
e com animação pinta admiravelmente o indio na sua aldeia, dando-nos a
saber a grandesa, cheia de sinceridade, do seo caracter.

A descripção do Padre Ivo d’Evreux não é, somente, mais um documento de
grande importancia, que se ajunta á historia do Brasil com o fim de
provar unicamente factos tendentes á fundação da Cidade de S. Luiz e sim
para os francezes tem outro genero de merecimento.

Pela sincera elegancia de sua dicção, pela cor habilmente destribuida
de seo estylo, pela perspicacia de suas observações, e, pode tambem
dizer-se, pelo sentimento apurado das bellesas da naturesa, que mostra o
seu autor, ella pertence á serie de escriptores francezes, continuadores
da epocha de Montaigne, e prognosticadores do grande seculo. Ivo
d’Evreux, si fosse lido, teria nesse tempo influido, como alguns annos
antes, João de Lery, que descreveo scenas analogas áquellas que elle tão
bem soube pintar. Claudio d’Abbeville, escriptor muito menos habil do que
elle, foi o continuador d’esta influencia litteraria.

Si no retiro, por elle escolhido, e que cremos, não sem fundamento, ter
sido em Ruão ou Evreux, ou mesmo no arrebalde de Sant’Eloy, soubesse o
Padre Ivo qual foi a sorte definitiva dos seos charos indios, sua alma se
teria entristecido profundamente.

Depois de expulsos os francezes, foi Jeronymo d’Albuquerque nomeiado
capitão-mór do Maranhão sendo Francisco Caldeira Castello Branco
designado para continuar os descobrimentos e conquistas nas regiões do
Pará.

Dos esforços combinados destes dois officiaes resultou a fundação da
risonha Cidade de S. Luiz e da de Belem.

Estas duas Cidades edificaram-se pacificamente, sem opposição alguma da
parte dos indios, que até ajudaram os consideraveis trabalhos, exigidos
para a construcção d’ellas, e muitos d’elles acompanharam até um Official
chamado Bento Maciel ás margens do rio Pindaré em busca de immensas
riquezas metalicas, que se desconfiava existirem por ahi algures: fatal
expedicção, cujo resultado foi somente a destruição dos Guajajaras.

Os Tupinambás inegavelmente não eram mais hostis aos portuguezes, e
viviam sob a direcção de Mathias d’Albuquerque, filho do governador;
mas nem por isso deixavam elles de lastimar a ausencia de seos antigos
alliados. Ja não residiam nos arrebaldes da cidade nova, e sim no
districto de Cumã em numerosas aldeias. Indo um dia o seo chefe europeo
ter com seo pae, que o mandou chamar, passaram por Tapuitapera alguns
indios vindos do Pará, trasendo cartas para o capitão-mór de S. Luiz. Um
Tupinambá convertido ao christianismo, por nome Amaro, aproveitou-se da
passagem dos seos compatriotas para executar um plano terrivel.

Tomou uma das cartas, abrio-a, e fingindo lel-a[AI] dirigio-se aos
chefes das aldeias, e declarou-lhes que o fim d’estas missivas era uma
abominavel trahição, urdida pelos portuguezes, que tinham resolvido,
atreveo-se elle a dizer, reduzil-os á condicção d’escravos.

Terrivel carnificina, onde pereceram todos os brancos, foi o resultado
d’esta astucia do indio, bem facil de ser acreditada á vista dos
acontecimentos precedentes.

Espalhou-se pelo littoral a noticia d’este facto. Mathias de Albuquerque
promptamente regressou ao campo onde se deram scenas tão tristes, e
vingou seos compatriotas exterminando sem piedade os Tupinambás.

As tribus, que moravam mais longe, insurgiram-se, e formaram entre si
indissoluvel alliança, animando-as implacavel vingança, apezar de serem á
principio tão pacificas, e de se acharem tão dispostas á abraçar a nova
fé, que lhe tinha prégado o Padre Ivo d’Evreux. Levantaram-se tambem, e
espontaneamente, aldeias mui longinquas.

Jeronymo d’Albuquerque expedio contra ellas tropas aguerridas, e em
breve o incendio e a morte substituio as festas, que faziam com toda a
segurança e boa fé.

Tinham apenas passado tres annos depois da partida dos capuchinhos
francezes, e por isso era no principio do anno de 1617. A Cidade de S.
Luiz do Maranhão, activamente edificada, começou a tomar o aspecto de uma
Cidade européa.

Este progresso inquietava os selvagens, que á custa de seos soffrimentos
tornaram-se previdentes; forçados á deixar o sul do Brazil procuraram
grandes florestas, e abrigados em seos seios esperavam recobrar sua
independencia, e para isto só tinham um pensamento—a destruição completa
de uma raça invasora, que não poude ser expellida pelos seos antepassados.

Formaram os chefes Tupinambás uma liga desde os desertos de Cumã até ás
margens do Amazonas: pretendiam assaltar de surpreza a nova colonia,
e n’um dia convencionado matariam todos os habitantes. N’esse tempo
não havia quasi indio, que não arrostasse sem medo as descargas de
mosquetaria.

Em quanto se ouvia este plano, e se trabalhava na sua execução, estava
em Tapuitapera Mathias d’Albuquerque, com pequeno numero de soldados,
descuidado de si e dos seos: entre os indios appareceu um trahidor, que
descobrio o projecto dos chefes dos selvagens ao commandante portuguez,
que não se assustando com o numero dos seos terriveis inimigos, travou-se
com elles no primeiro combate, e levou-os de vencida até á distancia de
50 legoas, ajudado em tão atrevida acção pelo bravo official Manoel Pires.

Ainda vivia, porem bem proximo do termo de sua existencia o antagonista
de Razilly e de la Ravardière: sem sahir da nova Cidade de S. Luiz muito
ajudou seo filho com seos conselhos e com remessa de soldados que tinha
em reserva.

Não se assustou Mathias de Albuquerque com as difficuldades de todo o
genero, que encontrava seo pequeno exercito n’esses immensos desertos;
foi batendo os indios pouco á pouco até que em 3 de Fevereiro de 1617
derrotou-os completamente, e obrigou-os a procurar refugio no seio das
florestas. Só então, depois de exterminadas as tribus mais temiveis, é
que o velho general se recolheo á Cidade de S. Luiz, e o que elle havia
feito nos desertos do Maranhão tinha tambem posto em pratica Francisco
Caldeira nas solidões do Pará, onde se edificava a Cidade de Belem.

Não eram estes, por certo, os sonhos de Ivo de Evreux e de seos tres
companheiros para com o Maranhão: em suas almas haviam imaginado a
fundação de uma Cidade nova, onde os corações innocentes dos indios se
lhes reuniriam para em commum louvar o Deos da paz. Ordens de exterminio,
em vez de orações, faziam em redor dos colonos um deserto que causava
terror. Seriamos injustos, se não dissesemos, que os Religiosos trasidos
por Jeronimo d’Albuquerque continuaram a missão dos Padres francezes.
Como Ivo d’Evreux e Claudio d’Abbeville, os Padres portuguezes Frei Cosme
de São Damião e Frei Manoel da Piedade, eram da Ordem dos Capuchinhos
desde 1617, isto é, desde o momento em que a guerra se tornou mais
cruel, e Bourdemare publicou seo livro: á Corte de Madrid pediram
religiosos activos, acostumados a todas as fadigas, e por isso capazes
de affrontal-as e de os ajudar. No dia 22 de julho chegaram mais quatro
religiosos a essas terras, não para o pequeno Convento de São Luiz, e sim
foram residir nas circumvisinhanças da Cidade de Belem, e d’ahi começou a
cathequese no Pará.[AJ]

Não se sabe com certesa, se estes factos historicos, que de ora em diante
terão lugar importante nos _Annaes do Brasil_, chegaram aos ouvidos dos
missionarios dedicados que tantas fadigas soffreram para a conversão
dos indios; a Europa gastou mais de dois seculos olhando para elles
com indifferença, e ainda passaram mais vinte annos depois d’elles
terminados, para então ver-se a continuação corajosa da obra dos seos
antecessores[AK] por alguns Capuchinhos do Convento de Pariz: n’esse
tempo estava Ivo d’Evreux bem proximo do termo de sua existencia, se é
que ja não se tinha acabado tão dura perigrinação para elle.

Tudo emfim estava acabado para os povos, nossos fieis alliados por algum
tempo, e aos quaes procuramos fazer comprehender as luzes do Evangelho.
Achavam-se ja embrenhados nas margens desertas do Xingù, do Tocantins, e
do Araguaya: ahi, bem longe dos colonos europeos se perpetuaram sob os
nomes de _Apiacas_, de _Gés_ e de _Mundurucus_, outrora tão temidos e
hoje tão pouco, e até pelo contrario favorecidos por uma administração
humana.[AL]

Estes primitivos senhores do Brasil fallam ainda o idioma puro dos
Tupys, cujos vestigios nos foram conservados por Ivo d’Evreux e Thevet,
e especialmente por João de Lery, antes de ter reunido por meio de
laboriosas fadigas os elementos do seo livro.

Foi nas margens destes grandes rios, ja citados, que ha quarenta annos o
illustre Martius observou tantas tribus desimadas.

Ainda agora se lastimaria muito o sabio viajante sabendo, que até hoje
ninguem colheo as ultimas lembranças, guardadas como legado por esses
indios. Quando o governo brasileiro pensou, ha pouco tempo, na creação
d’uma commissão scientifica, composta de sabios nacionaes, encarregada de
visitar os pontos mais longinquos d’esse immenso Imperio, que não conta
menos de 36° do Oriente ao Ocidente, forão o Ceará, o Maranhão, o Pará
e o Rio de Janeiro os primeiros lugares designados para a exploração.
Comprehendeo muito bem, que se havia nestas terras virgens admiraveis
productos da natureza a colher, tambem existia uma mythologia e uma serie
de tradicções historicas á salvar-se do esquecimento, em quanto Freire
Allemão, Capanema e Gabaglia faziam collecções de preciosos materiaes
sobre historia natural, geographia e meteorologia, que formaram o objecto
d’uma vasta publicação.[AM]

Um poeta historiador, estimado pelo seo paiz, corajosamente embrenhava-se
n’essas solidões incognitas para conhecer os segredos da vida intima
dos indios. Antonio Gonçalves Dias, nascido no interior da provincia do
Maranhão, familiarisado desde a infancia com as legendas americanas,
fallando a _lingoa geral_, incumbia-se de alguma forma da execução do
programma de Martius.

Bem cedo as legendas americanas, não nos animamos a dizer os mythos
religiosos dos grandes povos do littoral, nos appareceram, taes quaes tem
sido perpetuadas no interior, (graças talvez ao exilio) e quando chegar o
momento de estudar-se com afinco a ethnographia, então se comprehenderá
todo o valor das narrações sinceras de Lery, de Hans Staden, e de Ivo
d’Evreux.

Seria injustiça muito censuravel o negar-se as antigas tentativas feitas
pelos Religiosos portuguezes para a cathequese dos povos selvagens,
habitantes das regiões do Amazonas: graças a elles, em 1607, principiou
a exploração do Maranhão por essas viagens, corajosamente emprehendidas
por Missionarios vindos dos Conventos de Pernambuco. Estas tentativas
não foram perdidas para a geographia, mas quanto ao proveito do
Christianismo, ellas se terminaram em um martyrio inutil. Mais tarde, sem
duvida, a obra dos Figueiras e dos Pintos produsio seos fructos, assim
como os grandes trabalhos evangelicos suavisaram a posição dos indios do
Maranhão.[AN]

Foi ainda um escriptor francez, quase desconhecido, contemporaneo dos
nossos bons missionarios, que com muito zelo, e pode até dizer-se com
cuidado verdadeiramente piedoso, traçou o _itinerario_ seguido por estes
homens corajosos, de tempo do Padre Ivo, e sem duvida seos conhecidos,
mas que não possuiam nem a bondade e nem a sinceridade d’elle.[AO]

Conta-nos Pedro du Jarric como as immensas regiões do Brasil, cubiçadas
pela França, foram percorridas por dois Religiosos de sua Ordem, quase no
mesmo tempo, em que Ravardiere pela primeira vez explorava o littoral.

N’essa occasião Francisco Pinto e Luiz Figueira tinham grande vantagem
moral sobre os francezes, porque sabiam muito bem a lingoa dos povos, que
buscavam converter.

Muito mais moço do que o seo companheiro, martyr no apostolado, o Padre
Luiz Figueira iniciou-se, então mais do que nunca, nos segredos de uma
lingoa, já visivelmente alterada no littoral, porem pura no seio das
florestas.

Cinco annos após a impressão do volume do Padre Ivo, elle publicou a
sua _Arte de Grammatica_, e pela primeira vez depois de alguns ensaios
incompletos do seculo XVI conheceu-se os principios de um idioma, que
ainda fallava um povo corajoso, porem prestes a morrer.[AP]

Voltemos ao nosso piedoso viajante.

Se vivesse ainda, como é bem provavel, alem da epocha em que se deram
estes acontecimentos, em 1619 por exemplo, Ivo d’Evreux certamente não
fazia mais parte do grande Mosteiro d’onde outrora sahio com destino ao
novo mundo.

Póde suppôr-se, que o seo homonimo de Pariz principiava a eclipsal-o, e
por isso vivia elle longe da grande Communidade: se residisse no Convento
da rua de Santo Honorato, não é provavel que fosse de todo esquecido
nas pequenas biographias, escriptas tão liberalmente á respeito de
Religiosos, que nada escreveram, como seja, entre outros, Ivo de Corbeil,
simples irmão leigo, fallescido em 1623, apenas conhecido na Ordem pelo
seo amor á humanidade.

Temos alem d’isto a certesa de ter se recolhido o Padre Ivo d’Evreux
ao modesto Convento de sua terra natal: em 1620 estava elle em Santo
Eloy,[AQ] e suppomos ter escolhido esta residencia por ser proxima ao
Convento de Andelys.

N’estas ferteis campinas, onde se despertou o genio de Poussin, ainda o
nosso bom Missionario teve descanço bastante para admirar os risos da
natureza e a frescura das paisagens.

É possivel que em outra occasião tivesse elle oportunidade para
conservar-nos suas minuciosas observações, que hoje talvez o fizessem
distincto naturalista, mas depois da emoção impressa em seo pensamento
pela magestosa solidão das florestas seculares do Brasil, somente se
deixou captivar pelas calorosas discussões da theologia.

Um livro ainda difficil de ser obtido (a cada momento topamos com
raridades tão difficeis de serem alcançadas como a _Viagem_) nos prova,
que no seo retiro não poude resistir ao espirito do seculo.

Não tendo mais indios a converter se pôz a discutir com protestantes, e
coisa estranha, foi um dos seos compatriotas, personagem muito estimado
pelos seos correligionarios, a quem elle atacou ou talvez a quem
respondeu somente.

Ignoramos o titulo do primeiro opusculo, que elle arremessou ao seu
adversario, porem um sabio bibliographo da Normandia, o Sr. Frére, nos
deo o segundo, para nós uma especie de revelação.

É este o titulo do folheto «_Supplemento necessario ao escripto que o
Capuchinho Ivo fez imprimir relativamente as conferencias entre elle e
João Maximiliano Delangle_.» Ruão, David Jeuffroy. 1618 em 8.º[AR]

Este escripto, attribuido pelo douto bibliographo ao nosso missionario,
bem puderia não ser devido á sua propria penna, porem prova o
apparecimento de outra obra mais desenvolvida, e a existencia de serias
discussões oraes entre elle e os dissidentes. Mais agradaveis sem duvida
lhe foram sinceras discussões, que havia pouco tempo teve com Japi-Açu na
Ilha do Maranhão, onde as continuas predicas feitas no Forte de S. Luiz,
em presença de grande assembleia de indios, somente eram interrompidas
pela severa polidez, que lhes prescrevia escutar o orador em quanto
quizessem que elle fallasse, circumstancia, diga-se de passagem, que bem
poderia em algumas occasiões enganar um zeloso missionario sobre o exito
de seos esforços.

Ivo d’Evreux então achava-se a braços com um dos homens mais firmes e
mais estimados entre os protestantes, e o escripto do Religioso foi
denunciado ao parlamento.

João Maximiliano de Baux, senhor de Langle, era um ministro, joven,
ardente, natural de Evreux como o Padre Ivo, morador em Quevilly, pequena
Cidade de 1:500 a 1:600 habitantes á pequena distancia de Ruão.[AS]

Ignoramos qual o objecto da discussão, e embora todas as nossas
deligencias não vimos uma só peça do processo, porem é certo que o ultimo
escripto, revelado pelo Sr. Frère, excitou de maneira notavel a attenção
da autoridade, porque em 8 d’Abril de 1620 proferio o parlamento uma
sentença a esse respeito condemnando David Jeuffroy a pagar uma multa de
50 libras por haver publicado sem licença previa o livro denunciado.[AT]
Como se vê, não alcançou esta decisão o nosso Missionario, e sim
limitou-se ao impressor, por elle escolhido, embora contenha uma censura
indirecta ao livro suppondo-se, que o nosso bom Missionario, pelo ardor
da questão, se deixasse arrebatar a ponto de fazer allusões pessoaes
dignas de censura.

Á este respeito havia pouco escrupulo em 1618, e afinal se pensava que
seria interrompida a carreira do joven ministro, atacado pelo Padre Ivo:
bem longe d’isto, porque em 1623 foi pelos seos correligionarios nomeado
deputado ao synodo nacional de Charenton, e quatro annos depois tambem
fez parte do da Normandia, na villa de Alençon.

De 1620 em diante perdemos todos os vestigios do Padre Ivo d’Evreux;
comtudo muitos escriptores ecclesiasticos depois d’isto registaram seo
nome em seos vastos obituarios, multiplicando erros, e assim provando que
nunca viram a obra do Padre Ivo.

Boverio de Salluzo,[AU] Marcellino de Piza,[AV] Wading,[AW]
ordinariamente tão exacto, o Padre Diniz de Gênes,[AX] ou só dão
particularidades geraes, mui approximadas relativamente á sua obra, sem
mencionar a data d’ella, ou grosseiramente alteram o millesimo do anno da
impressão. Este ultimo, por exemplo, diz que foi em 1654, erro bem claro,
proveniente d’um primeiro erro typographico, repetido por Masseville,[AY]
e até por Moreri Normando.[AZ] O Padre Francisco Martin, da Ordem dos
Franciscanos, cujo manuscripto se guarda em Caen, por seo motu proprio a
colloca no anno de 1659, dando sempre como lugar da impressão a cidade de
Ruão.

O _Epithome da la bibliotheca oriental y occidental_ de Leon Pinello,
livro reeditado por Barcia no seculo XVIII, é o unico, que n’aquelle
tempo mencionou com exactidão a _Viagem_, que reimprimimos, embora o seo
titulo fosse tão alterado pelo bibliographo hespanhol a ponto de por
elle ser difficil reconhecer-se o habil continuador do Padre Claudio
d’Abbeville, devido isto a influencia de Diniz de Gênes.[BA]

Quasi que temos certesa, á vista dos manuscriptos doados pelo grande
Convento da rua de Santo Honorato, de ter vivido o Padre Ivo d’Evreux
alem de 1629, já esquecido porque n’aquelle tempo havia firme proposito
de desviar o Rei de Hespanha das tentativas feitas, não havia muito, á
respeito do Maranhão.

É verdade, que os antigos chefes da expedição não poderam renovar tão
vasta empreza, onde se achavam seos maiores interesses.

Embora a estima, que parecia gosar na corte o Almirante Rasilly, foi mal
succedido em todos os seos projectos com este fim, e depois que o bravo
Ravardiere, preso no Castello de Belem, recobrou a sua liberdade, nunca
mais regressou á America do sul.

Apparecem ainda estes dois nomes na historia da nossa marinha[BB] e de
maneira gloriosa, porem na Africa, n’essas praias doentias, onde para
segurança do commercio deviam ser castigados de vez em quando atrevidos
piratas.

Ravardiere, como acabamos de vêr, empregou gloriosamente os ultimos annos
de sua vida tão activa em favor do Christianismo, assim como já o tinha
feito em prol de sua patria, faltando-lhe apenas tempo para redigir a
Narração de suas viagens pela America do sul.

Sabemos com certesa ter ordenado, que se escrevesse em 1614 um Relatorio
minucioso de sua expedição pelo Amazonas. Até nós não chegou esta
especie de jornal, que alem de esclarecer muitas coisas, seria tambem de
muito interesse para ser comparado com os documentos fornecidos n’essa
epocha por um francez, cujas viagens mereceo as honras da impressão.

Na verdade, dez annos antes, no meiado de 1604, João Mocquet, o guarda
das curiosidades de Henrique IV e de Luiz XIII, percorreo as margens do
Amazonas, e exforçou-se para fazer conhecer aos seos compatriotas este
grande rio. Infelizmente este pobre cirurgião d’aldeia tinha mais zelo do
que luzes, e por isso não podiam ser suas observações confrontadas com as
de um homem, tão conhecido pela sua instrucção, como pela sua lealdade.

A viagem de Ravardiere pelo Amazonas e Maranhão deve estar minuciosamente
descripta na grande chronica dos Padres da Companhia, existente em Evora.

Consultando os sabios trabalhos bibliographicos do Sr. Rivara, n’elles
adquirimos esta certesa, pois o Cap. 111 d’este vasto _Cathalogo_ tracta
especialmente do dominio dos francezes n’essas regiões. Não podemos
pessoalmente examinal-o. Graças ao espirito investigador de tantos sabios
historiadores, ainda não perdemos de todo a esperança de encontrar o
escripto em questão.

Diariamente emprega o Brazil os mais louvaveis exforços para colligir
documentos inedictos, fontes da sua historia, e se em alguma livraria por
ahi algures fosse descuberta a _Viagem_ de Ravardiere, serviria, com os
escriptos de Claudio d’Abbeville e de Ivo d’Evreux, de guia seguro para
se consultar relativamente a estas Provincias do norte, das quaes só se
conhecem as explendidas solidões, e cujo passado nos foi, para assim
dizer, revelado pelo nosso Missionario.


NOTAS

[A] A ordem constitutiva do Mosteiro tem a data de 28 de Novembro. O
lugar da escolha foi concedido no anno precedente por Catharina de
Medicis aos Capuchinhos, vindos da Italia, e a doação foi confirmada por
Henrique III em 24 de setembro de 1574. Vide _Boverio_, Annali di Frati
minori.

[B] O _Mercure-Galant_ deo á luz uma descripção, muito curiosa, da grande
botica do Convento.

[C] Em 1617 contavam-se 655 Religiosos nas duas Custodias de Pariz e de
Roão, e entre elles 209 clerigos.

Em 1685 haviam em França 5:681 Capuchinhos.

[D] Não inventamos: um dos seos mais ardentes admiradores, tambem
Capuchinho, falla d’elle nestes termos: _Tantarum segete scientiarum,
factus est dives ut Galliæ Phœnix hac nostra ætate communiter sit
appelatus_. Vide o vasto Repertorio de Diniz de Gênes. _Bibliotheca
scriptorum ordinis minorum Sancti Francisci capucinorum._

Wading, mais moderado, contenta-se em chamar o Padre Ivo de
Pariz—_egregius concinnator, insignis Capuccinus_.

O autor anonymo dos elogios manuscriptos dos Capuchinhos da Cidade de
Pariz não pôz limites ao seu enthusiasmo, quando disse: «a natureza
parece ter querido exgotar-se, quando cedeo a tão grande personagem tudo
quanto podia dar-lhe com abundancia de grandeza, tão rara quam admiravel.»

Nasceo em 1590, Ivo de Pariz, tomou o habito religioso em 27 de setembro
de 1620, seis annos depois que o Padre Ivo de Evreux regressou doente do
Brazil, e afinal falleceo em 14 de ouctubro de 1678.

Este religioso conseguio imprimir vinte e oito obras de sua lavra, cujos
titulos principaes vamos reproduzir seguindo a ordem chronologica de suas
publicações.

_Os felizes resultados da piedade, ou os triumphos da vida religiosa
sobre o mundo, e contra a heresia._ 4.ª edicção, Pariz 1634. 2 vol. em 12.

_Da indifferença._ 2.ª edicção. Pariz. 1640. em 8.º

_A theologia natural._ Pariz. 1640-1643. 4 T. em 4.º

_Astrologiæ novæ methodus et fatum universi observatum, a Franc Allaeo
Arabe Christiano._ Pariz. 1654. Temeo este Capuchinho, apesar de atrevido
e credulo, publicar este livro com o seo nome, e por isso deo-o á luz sob
o titulo _Fatum Mundi_.

_Jus naturale rebus creatis á Deo constitutum_ etc. etc. Parisiis. 1658
in folio.

O _Fatum Mundi_ foi reimpresso em 1658, e no anno seguinte appareceu esta
obra.

_Dissertatio de libro præcedenti ad amplissimos viros senatus Britanniæ
Armoricæ._ Parisiis. 1659. in folio.

_Digestum sapientiæ in quo hebetur scientiarum omnium rerum divinarum
et humanarum nexus_ etc. etc. 1654-1659. 3 vol. in fol, reimpressos com
augmentos em 1661.

_O Magistrado christão, coordenado pelo Padre Ivo, seo sobrinho._ Pariz.
1688 em 12.

_As falsas opiniões do Mundo._ Pariz 1688 em 12 etc. etc.

Vê-se, que não ha analogia alguma entre os estudos d’estes dois
Capuchinhos.

Uma das obras do Padre Ivo de Pariz foi queimada pela mão do carrasco.

[E] E não Silvére, como por descuido disse em sua biographia o veneravel
Eyriés. (Vid Mr. Prarond. _Les hommes utiles de l’arrondissement
d’Abbeville._ 1858—in 8.º)

[F] Vid o Manuscripto da Bibliotheca mazarina, ja citada, que tem este
titulo «_Annales des R. P. Capucins de la Province de Paris, la mer et la
source de toutes celles de ça les monts._» N. 2879 pet in 4.º

[G] Francisco de Bourdemare, ou Boudemard, natural de Ruão, deixou a
Provincia, onde gosava sua familia de muita consideração para em Orleans
fazer-se Capuchinho. Como noviço entrou no Convento d’esta Cidade, em 2
de outubro de 1603, porem é muito provavel, que voltasse para a Normandia
antes de ir residir no grande Convento da rua de Santo Honorato.

[H] O Padre Leonardo morreu em Pariz com 72 annos de idade, no dia 4 de
setembro de 1640. Antonio Fauro, seo pae, era conselheiro do parlamento
de Pariz.

O livro dos _Elogios-historicos_, manuscripto da Bibliotheca Imperial,
o qualifica como «o maior homem, que ja teve, e que nunca mais terá, a
Religião dos Capuchinhos.» Encontra-se elle outra vez Provincial na rua
de Santo Honorato no anno de 1615.

[I] Vide à respeito da expedicção protestante do Sr. Villegagnon, as
Relações circunstanciadas de Niculau Barre, de João de Lery e do Anonymo
conhecido por Chrispim. É certo que estabeleceram os Calvinistas seo
predominio na Bahia do Rio de Janeiro, porem á elle se podem oppôr
diversos pamphletos, escriptos por causa do Chefe da empresa. Estas peças
satyricas fazem parte das ricas collecções da _Bibliotheca do Arsenal_.

[J] Como se verá em outro lugar, logo após a publicação da primeira
parte da viagem, a antiga expedição de Ravardière foi precedida pelas
de Riffault em 1594, e de De-Vaux, o companheiro d’este ultimo, que
misturando-se com os Indios dedicou-se muito ao descobrimento d’este paiz.

[K] Julgamos dever reproduzir aqui o texto d’esta concessão renovada: não
conhecemos o primeiro. «Luiz, a todos os que virem a presente. Saude.
O defunto Rei Henrique, o grande, nosso muito honrado senhor e pae, a
quem Deos perdoe, tendo por Cartas patentes de julho de 1605 constituido
e estabelecido o Sr. de Revardiere de la Touche, seo lugar-tenente
general na America, desde o rio do Amazonas até a Ilha da Trindade, e
havendo elle feito duas viagens ás Indias para descobrir as enseadas e
rios proprios para o desembarque e estabelecimento de colonias, no que
seria bem succedido, pois apenas chegou n’esse paiz soube predispôr
os habitantes das ilhas do Maranhão e terra firme, os Tupinambás e
Tobajaras, e outros a procurarem nossa protecção e sugeitarem-se á nossa
authoridade, tanto por seo generoso e prudente procedimento, como pela
affeição e inclinação natural, que n’estes povos se encontram para com
a nação franceza, bem conhecida por elles pela remessa que fizeram dos
seos embaixadores, que morreram apenas chegaram ao porto de Caucalle, e
dos quaes teriamos ainda recebido iguaes protestos, segundo as narrações
feitas pelo Sr. de Ravardiere, tudo isto depois nos daria occasião de lhe
fazer expedir nossas Cartas patentes de outubro de 1610 para regressar,
como Chefe, ao dito paiz, continuar seos progressos, como teria feito, e
ahi demorar-se-ia dois annos e meio em paz, e 18 mezes tanto em guerra
como em treguas com os portuguezes etc. etc.»

Guardamos para a proxima publicação do livro de Claudio d’Abbeville, de
que este é o complemento, todas as occorrencias politicas, relativas
á expedicção, e reservamos tambem para ella os traços biographicos de
Razilly, de Ravardiere e de Pezieux.

[L] Pode-se ler tudo isto minuciosamente na _Carta de obediencia_ dada ao
Padre Ivo na _Chronologia historica dos Capuchinhos da Cidade de Paris_
pag. 193. Tem a data de 27 de agosto de 1611, e começa assim: «_Venerando
in Christo Patri Ivoni Ebroiense predicatori ordinis fratrum minorum
Sancti Francisci Capucinorum, frater Leonardus pariensis ejusdem ordinis
in Provincia parisiensi licet immeritus salutem in domino, in eo qui est
nostra salus_».

[M] Descançam seos restos mortaes no Brazil, pois foi o unico de seos
companheiros, que não voltou á Europa. O padre Ambrosio de Amiens,
pelos seos estudos, tinha-se distinguido na Sorbona, e quando ia
requerer licença para seguir a carreira da magistratura, ou dedicar-se
simplesmente á advocacia, resolveo em 1575 entrar na Ordem dos
Capuchinhos: foi um dos primeiros irmãos, que tomou o habito no Convento
da rua de Santo Honorato, onde por diversas vezes exerceo o cargo de
Guardião.

Deve-se collocar entre os annos de 1584 e 1586 a epocha das corajosas
dedicações, em que elle afrontou os horrores do contagio para soccorrer
a população parisiense, que então lhe deo o sobrenome pelo qual era
conhecido. A sua idade, ja avançada, devia isental-o d’esta viagem, porem
não foi possivel resistir-se ás suas instancias, e nem a todos os meios,
que empregou para fazer parte d’essa missão, que foi de grande utilidade.

Vêde o _Manuscripto_ da Bibliotheca Imperial intitulado «_Eloges
historiques de tous les grands hommes, et de tous les illustres religieux
de la Province de Pariz_.»

[N] O Padre Honorato de Champigny morreo com cheiro de Santidade em 1621.

[O] Sabemos d’esta obra por Guibert apenas, pois nenhuma outra
bibliographia especial a menciona. Bourdemare publicou suas observações
sob o titulo _Relatio de populis brasiliensibus_. Madrid. 1617 in 4.º
Leon Pinelli falla de Frei J. Francisco de Burdemar (assim escreveo
elle) como falla de Ivo d’Evreux por ouvir dizer. Affirma o _Livro dos
elogios_ ter emprehendido duas viagens á America, e afinal que morrera
como _forasteiro_ n’um dos Conventos da sua Ordem em Hespanha, um anno
antes da publicação do seo livro. Parece-nos, que a expressão pelo
biographo usada da palavra espanhola—_forasteiro_, quer dizer pura e
simplesmente—_estrangeiro_.

[P] O Padre Arsenio de Pariz tambem não tardou em deixar o Brasil, porem
o triste resultado dos negocios do Maranhão não arrefeceu o seo zelo
pelas missões. Foi para o Canadá onde prégou aos Hurons depois de haver
convertido os Tupinambás.

Foi Superior das missões da America do Norte por cinco annos e depois
morreo no grande Convento de Pariz, em 20 de Junho de 1645 contando 46
annos de habito. É muito provavel, que tivesse por successor na America
o Padre Angelo de Luynes, Guardião de Noyon, pois foi Commissario e
Superior das missões do Canadá em 1646.

[Q] O Convento dos Capuchinhos da Cidade d’Evreux foi edificado em 1612
«na extremidade de um suburbio da cidade do lado do meio dia, devido
em parte aos cuidados e á liberalidade de João le Jau, então grande
penitenciario e vigario geral da diocese.» Vide _Histoire civile et
ecclesiastique du comté d’Evreux_, pag. 365. O abbade Lebeurier, cujas
luzes e zelo archiologico são conhecidos, prestou-se a fazer a este
respeito todas as pesquizas possiveis, porem, infelizmente, debalde.

[R] O manuscripto que temos á vista, e que dá conta summaria da viagem
de Arcanjo de Pemuroke, não nos diz claramente o nome da localidade
onde saltaram os Missionarios, e por isso nos limitamos a transcrever a
narração do seo desembarque: «foram alguns soldados á terra, e acharam
diversos obstaculos, que nos pareceram máos prognosticos, como fossem
alguns portuguezes e um sacerdote secular, que assolavão os gentios
contra os francezes, e do _Forte_ souberam nossos soldados, que os
portuguezes projectavam tomar a costa do Maranhão, e d’ella expellir
os francezes, o que fez suspeitar aos Padres que poucos fructos aqui
colheriam:» _Ms. da herdade dos Capuchinhos da rua de Santo Honorato_.

[S] Circumscripto a um pequeno quadro, apenas podemos dar mui
summariamente a descripção dos acontecimentos, que deram em resultado o
abandono do Maranhão pelos francezes.

Acabou-se tudo em 21 de novembro de 1614, depois da batalha onde falleceu
o infeliz Pézieux.

Alem da grande _Memoria_ publicada pela Academia Real das Sciencias de
Lisboa á respeito d’esta expedicção, encontram-se mais amplas informações
sobre este periodo da historia do Maranhão e suas missões pelos Jesuitas
na vasta e preciosa publicação do Dr. A. J. de Mello Moraes, intitulada
«_Corographia historica, chronologica, genealogica, nobiliaria e politica
do Imperio do Brasil_.» (Vide o Tomo 3º, publicado em 1860).

[T] Sua morte está marcada nos _Obituarios_ da Ordem no dia 29 d’Agosto
de 1632, isto é, no anno em que foi celebrado o tractado de Castelnaudary.

Contava n’esse tempo 47 annos de Religião, e n’ella sempre foi conhecido
pelo _Religioso escossez_, embora pertencesse realmente a uma familia
gaulesa.

[U] Ordinariamente calam os historiadores esta ultima circumstancia, e
não se encontra nem se quer referida summariamente e sem commentarios
senão na collecção diplomatica (Quadro elementar) do Visconde de
Santarem. A Carta authographa, que prova o captiveiro de Ravardiere
existe na _Bibliotheca da rua Richelieu_, onde a vimos. Ella contraria,
repita-se, o que se passou um anno antes no campo de Jeronymo
d’Albuquerque. Está escripta com muita moderação, e foi derigida a M. de
Puysieux (Vid _fonds franç._—Nº 228—15 p. 197.)

[V] Informações inexactas sem duvida fizeram com que Mr. Ferdinand Diniz
mencionasse aqui este facto, nunca acontecido.—Do traductor.

[W] Lembro-me com prazer duma delicada expressão do sabio Augusto de
Saint Hilaire.

Lery, como se sabe, viajou pelo Rio de Janeiro no tempo de Villegagnon,
isto é em 1556. A primeira edicção da sua interessante narrativa
somente appareceu em 1571. Nosso Ivo d’Evreux, cujo estylo tem tantos
pontos de contacto com o d’este escriptor, leria seo livro? N’elle nada
encontramos, que nos leve a responder pela afirmativa. Multiplicaram-se
porem as edicções de Lery e a tal ponto, que a quinquagesima e ultima foi
em 1611.

[X] Este projecto de dupla aliança entre as duas corôas ja era de 1612,
porem foi annunciado officialmente em 25 de Março do mesmo anno, mas só
foi executado d’ahi ha tres annos.

Partiram os Missionarios a 19 de Março. Os esponsaes do rei de França com
a infanta ainda não preocupavam os espiritos como depois aconteceo, por
exemplo, em 1615.

Todos os factos relativos aos dois reinados são minuciosamente descriptos
no livro intitulado «_Inventaire generale de l’histoire de France par
Jean de Serre, commençant á Pharamond et finissant á Louis XIII_. Paris,
Mathurin Henault, in 18. (Vid o T. VIII).

[Y] Podia ainda ver-se, ha alguns mezes atraz, na casa de um vendedor de
curiosidades, da rua do Petit Leon, um desenho attribuido a Luiz XIII,
quando menino, representando muito bem a figura d’um Tupinambá enfeitado
com pinturas exquisitas.

[Z] Devo ainda a Mr. Ferdinand Diniz a seguinte communicação, feita em
carta, por mim sempre muito presada, de 16 de setembro de 1873.

«O segundo exemplar conhecido da obra do Padre Ivo d’Evreux pertence ao
Sr. Dr. Court, habil e zeloso bibliographo e possuidor, por sua fortuna,
de grandes raridades.

«Tive em minhas mãos este precioso exemplar, que custou 800 francos.

«Tem mais duas ou tres folhas do que o da Bibliotheca Imperial.

«O feliz possuidor do exemplar conhecido mora em Pariz, _rue du Centre n.
4_; actualmente anda viajando em beneficio da saude alterada de um seo
irmão, porem quando elle voltar, irei de novo visitar seo thesouro.»—Do
traductor.

[AA] É geral a obscuridade, que reina sobre a biographia d’estes antigos
viajantes, tão importantes debaixo do ponto de vista da historia. O
veneravel Eyriés, que citamos as vezes, é bem pouco baseiado em suas
ideias, por exemplo, quando affirma que Claudio d’Abbeville viveo
até 1632, quando os Manuscriptos da casa de Santo Honorato o dão por
fallecido em Ruão no anno de 1616 com 23 annos de religião.

Tambem não é exacto o attribuir-se-lhe a _Vida da bemaventurada Coletta_,
virgem da Ordem de Santa Clara, pois appareceo este livro em 1616, em
12, e em 1628 em 8º: as iniciaes, que traz no frontespicio bem poderiam
evitar este engano, na verdade pequeno.

O opusculo, de que estamos tractando, acha-se na _Bibliotheca do
Arsenal_, onde o examinamos.

[AB] Essa compilação, verdadeiramente curiosa, começou em 18 de novembro
de 1709, e se compunha outr’ora de 3 vol. em 4.º. O T. 1º, infelizmente
perdido, continha os _Annaes da Provincia_, e provavelmente ficamos
privados de algumas preciosas particularidades sobre a missão do Padre
Ivo: tinha o titulo de—_Capuchinhos da rua de Santo Honorato_, 4.º (Ter.)

[AC] O Padre Pascoal d’Abbeville foi eleito 19º Provincial do Convento
da rua de Santo Honorato: a divisão havida em 1629 foi provavelmente por
causa do numero sempre crescente de Religiosos nos tres Conventos de
Pariz.

[AD] Em geral não são conhecidos estes versos de Ronsard, derigidos ao
fundador da França antarctica, a essa personagem voluvel, ora huguenote,
ora fervoroso catholico; cujas severidades excentricas Lery evitou
fugindo para as mais longinquas florestas:

    Douto Villegaignon, como te enganas!
    Tu pretendes em vão tornar ameno
    D’America o viver estranho e rude...
    Acaso não vês tu que a nova gente
    Tão nua é no trajar como no peito
    É nua de malicia?—que não sabe
    Ao vicio e á virtude o nome ao menos?
    —Que não sonha com Reis nem com Senados,
    E, isenta do temor, das leis ao jugo,
    Á mercè das paixões a vida passa?
    Ignoras, por ventura, que ahi mostra-se
    Cada homem de si livre senhor;
    e Leis, Senádos, Reis, em si resume?
    Não é a terra e o ar commum a todos?
    Vê-se, áquella, cobrir ferro importuno
    O seio virginal de longos sulcos?...
    Commum é tudo ahi, como dos rios
    São as aguas perennes que trasbordam
    Sem processo intentar de plena posse.
    Oh, não queiras, por isso, dessa gente
    O repouso turbar dos velhos usos!
    Si ha remorso em tua alma, em paz os deixa;
    Não procures, p’ra os campos estenderem.
    Ensinar-lhes á terra pôr limites!
    Choverão os processos, e a fraude
    Á amisáde terá então de unir-se!
    Logo após, d’ambição o duro espinho
    (Como a nòs acontece, desgraçados!)
    Tormento lhes será—negro, incessante.
    —Seu repouso não quebres: são felizes;
    Elles gosam na terra a edade d’oiro.

            (Traducção do Sr. J. T. de Souza.)

[AE] Vide a «Correspondencia e a Collecção Peiresc.»

[AF] Este estimavel escriptor deo d’isto uma prova no seo poema da
primeira semana, somente impresso em 1610 embora fallecesse seo auctor em
1599.

    Ja o ardente Cocuyo á Nova Espanha
    Vai nas azas dois fachos conduzindo,
    Outros dois flamejando ergue na fronte.
    Á luz d’este esplendor de regios leitos
    Nos cortinados arabescos pintam-se,
    Á luz d’este esplendor em noite negra
    O habil artesão o marfim pule,
    Conta o avaro, no cofre, seu thesouro,
    Veloz o escriptor a penna guia.

            Traducção do Sr. J. T. de Souza.

[AG] _Narrativa epistolar de uma viagem e missão jesuitica pela Bahia,
Porto Seguro, Pernambuco, Espirito Santo, Rio de Janeiro, etc. escripta
em duas cartas ao Padre Provincial em Portugal_. Lisboa. 1847 em 8.º

[AH] _Tratado descriptivo do Brasil em 1587_, etc. Rio de Janeiro, 1851
em 8.º Foram estas duas obras exhumadas pelo Sr. F. A. de Varnhagem,
historiador tão conhecido do Brasil. Esta ultima obra, de que existe um
Manuscripto na _bibliotheca imperial_ de Pariz foi tambem reproduzida
por seo habil edictor na _Revista_ trimensal. Morreo Gabriel Soares em
1591 n’uma praia deserta, após deploravel naufragio: como se vê foi quasi
contemporaneo de Ivo d’Evreux.

[AI] Affirma Berredo ser este indio um amigo dedicado dos franceses,
porem melhor informado o _Jornal de Timon_ nos deo o nome deste selvagem,
educado nas missões do Sul. Ja se vê, que não podia ter muita affeição
aos francezes.

Para urdir este horrivel estratagema, basta somente o odio, que nutriam
certos indios contra os dominadores do seo paiz, não sendo necessario ser
filho de Ruão ou de Rochelles.

[AJ] Vide _Berredo, Annaes historicos do Maranhão_, e tambem o _Jornal de
Timon_ de J. Lisboa, ns. 11 e 12, 1858, Lisboa. Diz este escriptor ter
fallecido Jeronimo d’Albuquerque em 1618 succedendo-lhe no governo seo
filho Antonio d’Albuquerque.

[AK] Partiram para Goiana em 1635 os Missionarios da Ordem dos
Capuchinhos, cujos trabalhos podem ser vistos nos manuscriptos legados
pelo grande Convento de Pariz.

[AL] Vide a respeito d’estes povos a rapida visita, que lhes fez
Castelnau em 1851: _Expedicção scientifica nas partes centraes d’America
do Sul_. T. 2º pag. 316.

[AM] Vide _Trabalhos da Commissão scientifica de exploração_. Rio de
Janeiro. Typ. de Laemmert—1862 in 4.º

[AN] Na _Corographia historica_ do Dr. Mello Moraes encontram-se noticias
minuciosas sobre as missões dos jesuitas e administração dos indios no
Maranhão. Desde o principio do seo T. 3º teve este escriptor o cuidado
de confessar o immenso auxilio, que lhe prestaram as obras doadas ao
Instituto Historico do Rio de Janeiro pelo conselheiro Antonio de
Vasconcellos de Drumond e Menezes. Em suas longas viagens, o diplomata, a
quem se deve tão preciosas informações sobre a Africa, não se limitou a
estas investigações, pois ainda colheu muitos manuscriptos á respeito do
Brazil, que hoje servem de base ao historiador.

Cego ha muitos annos, faz ainda muita honra á sua patria.

[AO] Tres annos antes da partida dos Capuchinhos para Maranhão, o padre
du Jarric dedicava ao Rei menino o seguinte livro: «_Segunda parte
da historia das coisas mais memoraveis, acontecidas tanto nas indias
orientaes como nos outros paizes descubertos pelos portuguezes, no
estabelecimento e progresso da fé christan e catholica, e principalmente
do que fizeram e soffreram os religiosos da companhia de Jesus para este
fim ate o anno de 1600_» pelo Padre Pedro du Jarric, da mesma companhia
em Bordeaux, Simon Mellange. 1610 em 4.º Tudo quanto diz respeito ao
Brazil acha-se n’este vasto resumo desde pag. 248 até 359, porem deve
procurar-se os factos curiosos, citados n’esta noticia no livro 5º do que
o auctor chamou _Historia das Indias Orientaes_, parte 3ª pag. 490.

[AP] Desta primeira edicção, publicada em 1621, tornou-se, para assim
dizer, impossivel ser encontrado um sò exemplar.

A segunda edicção sahio com o titulo _Arte de grammatica da lingua
brasilica do padre Luiz Figueira, Theologo da Companhia de Jesus_.
Lisboa, Miguel Deslande, anno 1687, pet. em 12.º O sabio bibliographo
portuguez o Sr. Innocencio Francisco da Silva não reproduz exactamente
este titulo, porem menciona uma edicção da Bahia em 1851 pelo Sr. João
Joaquim da Silva Guimarães, cujo titulo é muito extenso.

A grammatica do Padre Anchieta—_Arte da grammatica da lingua mais usada
na costa do Brasil_, appareceo em Coimbra no anno de 1595, em 8º, e
d’ella em Portugal apenas se conhece um exemplar.

[AQ] Santo Eloy, perto de Gisors, no destricto de Euro, é uma povoação de
381 habitantes, á 25 kil. de Andelys.

Ha tambem Santo Eloy de Fourques, aldeia do Euro, a 25 kil. de Bernay.

Estamos propensos a crer, que foi na primeira, onde residio o nosso
Missionario.

[AR] Vide _Bibliographia Normanda_.

Derigimo-nos directamente á douta officiosidade do Sr. Frère afim de
obtermos o conhecimento do _Supplemento necessario_, porem apesar de
constantes investigações vio-se na impossibilidade de nos dar outras
noticias alem das que colhemos em sua excellente obra.

[AS] Quevilly, _Clavilleum_, povoação do Senna inferior, distante de Ruão
apenas 6 kil. e faz parte do districto de Grande Couronne.

[AT] Mais tarde foi chamado Maximiliano de Baux para encarregar-se
da egreja do culto reformado em Ruão, viveo até a idade de 84 annos,
e falleceo em 1674 deixando reputação de homem recto, e de costumes
austeros.

Vide os irmãos Haag, a _França protestante_.

[AU] _Cupucinorum Annales_. Lugduni, 1632, em fol. e depois a traducção
italianna—_Annali di Fratri minori Cappucini_ etc. Venetia 1643 em 4.º

[AV] _Annales seu sacrarum historiarum ordinis minorum sancti Francisci
qui Capucini nuncupantur_ etc. Lugduni. 1676.

[AW] _Annales ordinis minorum_. 2.ª edic., Roma, 1731. Depois os
_Scriptores ordinis minorum_. 1650, em fol.

[AX] _Bibliotheca scriptorum ordinis minorum_, Genova, 1680 em 4.º,
reimp. em 1691 in fol. Este ultimo depois de algumas linhas, em que
fallou do merecimento de _Ivo Ebroycensis, vulgo de Evreux_, dá tambem
noticia do seu livro: _scripsit gallicé Relationem sui itineris et
navigationis sociorum que Capucinorum ad regnum Marangani: cui etiam
adjunxit historiam de moribus illarum nationum_. Rothomagi. 1654. Vid T.
1º em 4.º

[AY] _Historia da Normandia_. T. VI pag. 414. Masseville prova com toda
a evidencia ter se contentado com traduzir o Padre Diniz de Gênes, pois
disse ter o nosso Missionario, «dado uma Relação geographica das regiões,
por onde se embrenhou, e particularmente do paiz do _Marangan_». _Regni
Marangani_, escreveo seo predecessor.

[AZ] Vede este precioso manuscripto na Bibliotheca de Caen. Uma
bibliotheca americana organisada pelo coronel Antonio de Alcedo.
Madrid. 1791, 2 vol. em 8º, não menciona o Padre Ivo, causando-nos tal
omissão pouco desgosto, á vista de se dizer ahi haver o Padre Claudio
d’Abbeville, seu companheiro, convertido com infatigavel zelo os
selvagens do Canadá!

[BA] A primeira edicção do _Epitome_, hoje rarissima por ter sido
suprimida por ordem da Inquisição, só traz no seu titulo aberto a
gravura o anno da impressão 1629 e o nome de _Antonio de Léon_, e
não o de Pinelo. Não falla de Ivo d’Evreux, isto é, deste livro, que
pertence a Bibliotheca de Santa Genoveva. Na edicção em 3 vol. pequenos
em fol., por Barcia, assim menciona invertendo o seu titulo: _Fr. Ivon
d’Evreux, capuchino. Relacion de su viage al Reino de Marangano, com sus
companeros: historia de los costumbres de aquellas naciones_. Imp. em
1654 em 4º francez.

[BB] Isaac de Razilly, cavalleiro da ordem de São João de Jerusalem,
primeiro capitão do almirantado de França, chefe d’esquadra da armada
real na provincia da Bretanha, foi nomeiado almirante da frota real,
em expedicção nas costas da Barbaria no anno de 1630, e adjunto de
Ravardière: em 3 de septembro d’esse mesmo anno estava elle em Safy
resgatando captivos.



                               CONTINUAÇÃO

                               DA HISTORIA

                       DAS COISAS MAIS MEMORAVEIS

                               HAVIDAS EM

                               MARANHÃO[1]

                        NOS ANNOS DE 1613 A 1614

                             SEGUNDO TRATADO

                                 PARIZ.
                       IMPRENSA DE FRANCISCO HUBY
         RUA DE SÃO THIAGO, NA BIBLIA DE OIRO, E NA SUA OFFICINA
                 NO PALACIO DA GALERIA DOS PRESIONEIROS
                                  MDCXV
                          COM PRIVILEGIO DO REI



AO REI


SENHOR.

O que eu pude por meios subtis saber á respeito do livro do Rvd.
Padre Ivo d’Evreux, supprimido por fraude e impiedade mediante certa
quantia dada ao impressor Francisco Huby,[2] ponho agora na presença
de V. Magestade, dois annos e meio depois do seu apparecimento, tão
injustamente supprimida apenas veio a luz, afim de que V. M. e a Rainha
sua Mãe, então regente, não visse a verdade tão clara, como ahi estava, e
fosse mais facilmente illudida sua boa fé, por meio de falsas informações
para que, contra suas santas e boas intenções, deixasse morrer a empresa,
mais cheia de piedade e honra, que então se podia executar no novo Mundo,
como se conhecerá tanto pela obra do Padre Claudio d’Abbeville, como por
esta, embora incompleta por faltar a maior parte do Prefacio e alguns
capitulos no fim.

Praticaram estes actos com intenção de perder V. M. o titulo de Rei
Christianissimo forçando-o a abandonar os sacrificios, e as obrigações
contrahidas para com os novos christãos, a reputação de suas armas e
bandeiras, a utilidade vossa e de vossos subditos, proveniente de um
paiz tão rico e fertil, um porto tão importante como proprio á navegação
de longo curso, hoje deteriorado, e tudo o mais adquerido com muitas
despezas e cuidados.

Para chegar-se a este ponto necessario foi recorrer á duas imposturas,
muito bem conhecidas por pessoas de bom senso: uma foi de dizer-se que
este paiz nada produzia, e nem tinha riqueza alguma, contra a verdade
geralmente sabida: a outra foi de serem os indios incapazes de receberem
a luz do Christianismo em opposição á palavra de Deos e á doutrina
universal da Igreja.

Eis como, Senhor, acabou-se esta excellente empresa tão bem começada,
sendo tão triste resultado devido a fraude e a malicia d’aquelles,
que, desejando occultar seos defeitos, os atiravam sobre o paiz, que
por negligencia dos maus francezes, cuidadosos só do seo proveito e
interesse particular, se esqueceram do de V. M., embaraçando perda tão
notavel, ludibrio hoje de todas as nações estrangeiras, menoscabo de
vossa auctoridade real em toda a Europa, e de dôr a todos os vossos bons
subditos. Quando V. M. quizer sahir d’estas illusões, aconselhado por
pessoas honradas, e reconhecidas pelo seu zelo ao augmento da gloria
de Deos, e do vosso reinado, eu vos offereço ainda a minha vida e a de
meus irmãos, fazendo conhecer, com a nossa pouca pratica e experiencia,
por todos os cantos do novo Mundo, que em toda a christandade não ha um
Monarcha tão grande e poderoso, como um Rei de França, quando elle quizer
empregar não seo poder, e sim apenas sua authoridade.

Eis, Senhor, tudo o que pode um dos vossos mais humildes subditos, que,
embora tenha soffrido, durante vossa minoridade, maos tractos, perda
de bens e de fortuna, ainda tem coragem bastante para vos servir com
dedicação.

Estou certo de acolherdes meos serviços, e o voto solemne, que faço de
ser até o fim de minha vida,

Vosso humillissimo e obedientissimo servo e subdito

                                                  _Francisco de Rasilly_.



AO REI


SENHOR.

A principal razão, que moveo os antigos a collocar entre os Deoses a
maior parte dos seos Imperadores, foi o espirito religioso d’elles
manifestado durante a vida.

Coisa notavel na historia: ainda que alguns imperadores levantados
da infima classe até ao cume do poder, se tenham mostrado crueis e
sanguinarios para com seos subditos, comtudo alcançaram, após sua morte,
o nome de Deoses, tiveram Templos e altares, sacrificios e sacerdotes,
creados e nomeados pelo senado em virtude da piedade e da religião, que
conservaram inalteraveis no meio dos seos muitos defeitos.

Estes monarchas, grandes em dominio e pequenos no conhecimento do
verdadeiro Deos, tinham innato em seo coração o amor pela Magestade
divina, de que são viva imagem todos os monarchas, e por isso lhes
pertence estender o reino de Deos como seos Loco-tenentes.

Com esta intenção espalhavam arcos e tropheos, columnas e imagens para o
ensino da religião, e á posteridade legavam chapas e laminas de metaes
indistructiveis, como sejam o bronze, o ouro, e a prata, onde se viam
gravadas as suas imagens, e com ellas alguns vestigios da sua piedade,
cuja memoria o tempo não póde destruir.

Antonino, o pio, assim deixou buriladas em bronze e prata, sua caridade
e religião representadas na imagem de uma mulher, vestida como Deosa,
tendo em frente um altar onde se achava um pouco de fogo ardendo
constantemente, e no qual ella derramava á todo o instante, como em
sacrificio, oleos odoriferos, mostrando com isto a Piedade e Religião,
que consagrava aos Deoses.

Si a inclinação natural, sem o auxilio da graça e da luz sobrenatural,
podesse tanto no coração d’estes monarchas, o que podemos dizer e pensar
quando Deos inspira o coração dos reis illustrados e ricos da verdadeira
religião?

Luiz 4.º, imperador, principe virtuoso e geralmente estimado á todas
as suas occupações preferia a Religião, e para animar todos os seos
subditos á imital-o, mandou cunhar o dinheiro com a figura de um templo
atravessado por uma cruz, e ao redor lia-se a inscripção—_Christiana
Religio_.

O que excedeo, Senhor, a todos os Monarchas do Mundo, em piedade, e
religião, foi São Luiz, a honra dos francezes, e de quem herdastes sangue
e sceptro, nome e imitação de suas virtudes, porque não só empregou seos
thesouros e sua nobresa, mas tambem sua pessoa, atravessando mares,
(mares, que, como a morte, não fazem distincção quando querem involver
alguem nas suas ondas) afim de erguer a piedade e a religião, abatidas
pela crueldade dos infieis, e n’esta tarefa morreu.

Até hoje ainda não houve seculo algum de Rei, tão parecido com o do
bom São Luiz, como o vosso, Senhor, e deixando á parte o que não vem a
proposito, eu tomarei somente este bello feito, com que imitastes sua
piedade e religião, para com esses pobres selvagens, desejosos em extremo
de conhecerem a Deos, e de viverem á sombra de vossas luzes, como sejam
os habitantes de _Maranhão_, de _Tapuytapera_, de _Cumã_, de _Cayté_, do
_Pará_, alem dos _Tabaiares_ e os _Cabellos-compridos_ e muitas outras
Nações, que muito ambicionavam aproximarem-se dos Padres, como direi
adiante.

Tudo isto, Senhor, só vós podeis, porque os indios naturalmente gostam
dos francezes e aborrecem os portuguezes: os nossos religiosos apenas
podem arriscar suas vidas para convertel-os, porem pouco duraria isto a
não ser a vossa real piedade.

Não é empresa tão difficil como se calcula, e nem tão cheia de cuidados e
de gostos, como se suppõe: não serão precisos 500 ou 1:000 escudos, pois
basta mediocre liberalidade, porem bem administrada para a sustentação do
seminario, onde se devem educar os filhos dos selvagens, unica esperança
da firmesa da religião n’aquelle paiz.

Si V. M., Senhor, se resolver a fazer isto, asseguro-vos que o vosso
exemplo será imitado por muitos Principes e Princezas, Senhores e Damas,
que contribuirão com alguma coisa para o augmento da fé n’aquelles
logares.

Para que eu não canse a V. M. com desagradavel prolixidade, acabarei com
esta historia evangelica da pobre Chananea, reputada como cadella, a qual
pedia, para livrar sua filha do poder do Diabo, apenas as migalhas, que
cahiam da meza real do Redemptor.

Descende do mesmo Pae de Chananéa esta nação de selvagens, e seos filhos
estão no dominio do diabo, como infieis: ella não pede nem vossos
thesouros, e nem grande quantia, e sim apenas as migalhas superfluas, que
cahem, aqui e ali, da vossa real grandesa.

Por tudo isto, Senhor, eu humildemente vos supplico, que olheis com bons
olhos para esta pobre Nação, e que recebaes com animo bem disposto este
pequeno _Tratado das coisas mais notaveis acontecidas durante a minha
residencia entre elles por espaço de dois annos_, conforme as ordens da
Rainha vossa Mãe, dadas aos nossos Rvds. Padres, que procurei cumprir
tanto quanto me foi possivel, como vereis quando lerdes essa minha obra,
cujo trabalho, si merecer a vossa approvação, dar-me-hei por muito bem
recompensado em quanto viver, e toda a existencia, que por Deos me fôr
concedida, eu a empregarei em servir fielmente a V. M., como aquelle que
é e sempre será de

                   V. M. subdito muito humilde e fiel,

                                         Frei _Ivo d’Evreux_, Capuchinho.



ADVERTENCIA AO LEITOR.


AMIGO LEITOR.

Advirto-vos, que não repetirei aqui coisas ja escriptas pelo Padre
Claudio d’Abbeville na sua _Historia_, e somente accrescentarei o que
mais do que elle soube por experiencia, pois eu estive em Maranhão
dois annos completos e elle apenas quatro mezes: verificareis esta
verdade, comparando os nossos escriptos, e facilmente descobrireis o que
augmentei.



PREFACIO A RESPEITO DOS DOIS SEGUINTES TRATADOS.


A _Sapiencia_ nos _Proverbios_ 29, apresenta um ensino allegorico, muito
bonito, n’estas palavras: _pauper et dives obviaverunt sibi, utriusque
illuminator est Dominus_: vi o pobre sahindo do Hospital cuberto de
chagas e ulceras, carregado, e não vestido, de trapos, caminhar pela
praça publica e entrar no Templo do Senhor pela porta do meio-dia:
na mesma occasião vi o rico sahir do seu palacio, vestido de seda e
carregado de ouro, prata, e pedras preciosas, caminhando pela estrada que
vae dar á porta do Tabernaculo pelo lado do Septentrião, tão a proposito,
que um e outro, o pobre e o rico, se encontraram frente a frente, bem no
centro da grande cortina do _Sancta Sanctorum_, onde a face do Senhor
espalha tão bella claridade, que o rosto d’estas duas pessoas brilhavam
com o mesmo esplendor divino.

Vejamos o que quer dizer a _Sapiencia_ na obscuridade d’estas palavras.

Deixemos as diversas explicações mysticas e espirituaes, que d’ellas se
podem deduzir, e tomemos somente a que nos pode servir em relação ao que
escrevemos no frontespicio do nosso livro.

O pobre é o padre São Francisco e os Religiosos da sua Ordem: o rico é
o poder real de Vossa Magestade Christianissima, proveniente do ramo
sagrado do Rei São Luiz. Quando e onde se encontraram este pobre e este
rico? Foi sem a menor duvida na missão evangelica para converter os
indios. Entre os dois estava Deos, o grande illuminador dos peccadores
nas trevas da morte.

O pobre São Francisco na conversão dos gentios fez nas Indias o que
disse São Paulo:—_ego plantavi_, plantei a fé entre os selvagens do
Maranhão: São Luiz, protector da França, e avô do nosso Rei, quando
nos mettemos n’esta empresa, respondeo—_Rigabo_—eu a regarei, e não
consentirei que ella murche á falta de cuidados. De nada serviria a
planta, si em sua raiz não se deitasse agua para ella florescer, por que
em pouco tempo o rigor do sol a seccaria, e o nosso Deos, que sempre
prescruta a inclinação dos seos subditos, affirma que infalivelmente a
augmentará—_incrementum dabo_: e por uma luz, sempre crescente de dia
para dia, derramada entre os indios á respeito dos mysterios da nossa fé,
espancareis as trevas da ignorancia, porque o Senhor é o illuminador de
ambos, _utriusque illuminator est Dominus_.

Quem melhor o pode saber que os selvagens aos quaes baptisamos e lhes
promettemos fazel-os christãos?

Si invocassemos o seo testemunho, elles responderiam—_credimus_.

Oh! Piedade Real, não perdestes vosso tempo enviando-nos como Mensageiros
do Evangelho.



Continuação da historia das coisas mais memoraveis, acontecidas no
Maranhão em 1613 e 1614.



PRIMEIRO TRATADO.



CAPITULO I

Da construcção das capellas de S. Francisco e S. Luiz do Maranhão.[3]


O Psalmista Rei David, no seo Psalmo 28, composto em acção de graças pelo
acabamento do Tabernaculo, disse—_Afferte Domino fili Dei, afferte Domino
filios arietum_.

«Trazei ao Senhor, ó filhos de Deos, trazei cordeiros ao Senhor,» o
que Rabbi Jonathas assim explicou—_Tribuite coram Domino laudem cœtus
Angelorum, tribuite coram Domino gloriam et fortitudinem_—«dae louvores
ao Senhor, ó choros angelicos, dae ao Senhor gloria e força:» queria elle
dizer, que os Anjos bemaventurados auxiliam os homens em todos os seos
santos projectos, e especialmente quando se trata de procurar a salvação
das almas, porque caminham adiante estes felizes espiritos e rompem a
turba dos diabos, inimigos da salvação afim de soccorrerem os homens
apostolicos, incumbidos de salvarem as almas errantes nos desertos da
infidelidade, ahi comparados aos filhos dos Carneiros que saltam aqui e
ali pelos rochedos da dureza do coração, porem afagados pelas doçuras
do Evangelho se deixam guiar brandamente até a porta do Tabernaculo de
Deos, levados no grande mar do baptismo, e offerecidos á face do _Sancta
Sanctorum_.

Os primeiros sacrificios, que Deos recebeo do povo de Israel, em procura
da terra da promissão, d’onde expellio a infidelidade, foram sob as
tendas e pavilhões do Tabernaculo, porem depois edificou-se o templo, e
ahi continuaram os mesmos sacrificios.

Coisa similhante nos aconteceo quando fomos a esse paiz, cheio de
infidelidade e ignorancia de Deos, carregado de demonios, insolentes
tyrannos d’essas pobres almas captivas, levar a luz do Evangelho, banir
as falsas crenças, expellir os demonios, plantar e construir a Igreja de
Deos: durante mais de quatro mezes celebramos os santos sacrificios n’uma
bonita tenda, no meio de arvores verdejantes: partindo depois alguns
da nossa comitiva para a França em busca de auxilio, e ficando o resto
para fundar a Colonia; fizemos edificar a _Capella de São Francisco do
Maranhão_ em um bello e agradavel lugar, junto do mar, proximo de uma
bella e inexgotavel fonte, e ahi escolhi minha moradia, que um dia tinha
de servir de Convento aos Religiosos, que eu esperava para me ajudarem.

Acabou-se esta Capella na vespera de Natal e muito a proposito pela
devoção, que sempre teve o Seraphico Padre São Francisco, a quem era
dedicada.

Alem de todas as festas do anno celebrava a noite, estrellada e sem
trevas, do nascimento do verdadeiro Sol, Jesus-Christo, e tinha este
santo Padre o costume de fazer um presepio, a cujo lado passava toda a
noite contemplando o profundo mysterio da Encarnação, e da vinda tão
estranha do Altissimo á terra.

Na verdade enchia-me de immenso prazer vendo n’esta capellinha, feita
de madeira, coberta de folhas de palmeiras, mais similhante ao presepio
de Belem do que esses grandes e preciosos templos da Europa, os nossos
compatriotas francezes cantarem os psalmos e matinas d’esta noite, e
depois de purificados pelo Sacramento da penitencia receberem o mesmo
Filho de Deos no presepio dos seos corações, envolvido nas faixas do
Santissimo Sacramento do altar.

Festejamos tambem o dia de natal; a noite prégamos, o que sempre fizemos
depois das festas e nos domingos, e com prazer, embora muito soffressemos
no principio: em quanto durou esta devoção corria o tempo tão depressa,
que o dia parecia ter somente duas horas; e assim achando-se o nosso
espirito preoccupado com obras piedosas sentia a morte vir tão depressa.

Não fui eu só que senti isto, muitas outras pessoas depois me disseram o
mesmo, e em quanto me permittio a saude, observou-se, e sem enfado, este
uso.

Augmentou-se ainda mais esta devoção quando se edificou no _Forte_ a
_Capella de São Luiz_,[4] á imitação das Igrejas dos nossos Conventos,
com madeira, cercada e cuberta de ramos fortes, cortados das arvores
chamadas _Acaiukantin_.

Ahi celebrei missas, cantei vesperas, préguei e baptisei os cathecumenos.

A tarde tocava o sino, todos se reuniam n’esta capella, onde se cantava a
saudação angelica, implorava-se a graça divina, e depois cada um ia para
onde queria.



CAPITULO II

Do estado do poder temporal em sua primitiva.


Compõe-se o homem de espirito e corpo; devendo zelar em primeiro lugar
aquelle como mais nobre e depois este; pareceu-nos de muita razão cuidar
a principio nas Capellas para n’ellas abastecer o espirito com a palavra
de Deos, e do SS. Sacramento, e depois no que diz respeito áo temporal.

Assim como uma terra, ainda inculta não dá grande contentamento á
seu dono, e si elle não tivesse pão, que lhe viesse d’algures, por
certo que morreria de fome, assim tambem era sem commodidades o lugar
escolhido para a edificação da fortaleza de São Luiz, n’uma ponta de
rocha, habitada outr’ora por selvagens, que a cultivaram a seu modo,
ou para melhor dizer a esterilisaram, visto que depois de tres annos
faltaram-lhe forças para produzir couza alguma, alem de matto agreste,
sendo necessario descançar por muitos annos.

Foi a causa dos nossos soffrimentos no principio, pois apenas tinhamos
farinha de mandioca para fazer _mingau_, isto é, uma especie de papa com
sal, agua e pimenta, chamada pelos indios _Yonker_, e assim passavamos a
vida.

Quem não podia comer esta farinha secca, desmanchava-a n’agoa, e assim
alimentava-se com ella.

Os que em França somente usavam de comidas delicadas, n’aquelle paiz
apenas achavam legumes bem agradaveis.

Conto isto para louvar a paciencia dos francezes em serviço do seo
Rei, para destruir essa macula, que ordinariamente lhes lanção, de
impacientes, imprudentes e desobedientes, porque na verdade eu só vi o
contrario.

Os que desejarem muito ir para aquelle paiz, não se admirem de ouvir
fallar em tanta pobresa, porque não soffrerão mais do que nós, visto a
terra ir melhorando diariamente, e os viveres se augmentarem gradualmente.

Para remediar esta falta, resolveo-se mandar pescar peixe-boi[5], á 30 ou
40 legoas distante da ilha: estes peixes tem a testa como os bois, porem
sem cornos, duas patas adiante debaixo das mamas, párem filhos como as
vaccas, nutrem-nos com seo leite, mas a cria tem a propriedade notavel
de abraçar a mãe pelas costas com suas patinhas, e nunca as deixa embora
mortas, pelo que alguns são agarrados vivos, e assim trazidos para a
Ilha: são muito delicados.

Sirva isto d’instrucção aos meninos, cumprindo a Lei de Deos, que
manda honrar Pae e Mãe, isto é, amar e respeitar, e de advertencia
aos catholicos para ficarem firmes e unidos no seio da Igreja, sua
Mãe, d’onde perseguição alguma as possa arrancar, amando todos os bons
francezes, seo Rei e sua Patria.

São apanhados estes peixes-bois nos pastos, ou nas hervas que crescem nas
praias.

Vão os selvagens remando mansamente suas canôas por detraz d’ellas,
atiram-lhe duas ou tres setas, e apenas mortas são puxadas para terra,
retalhadas e salgadas.

Coisa igual acontece aos glutões, que no meio dos banquetes são
surprehendidos e n’um instante lá vão para o inferno.

Encontra-se o sal necessario ás commodidades da vida, na distancia de
40 legoas da Ilha, em terrenos arenosos, onde se mostra naturalmente,
em forma de gelo, duro e luzente como cristal, por occasião do fluxo e
refluxo do mar, e quando este se retira o sol o cresta e é melhor que o
sal de França e de Hespanha.

È necessario apanhal-o antes da estação das chuvas para que ellas lavem o
lugar onde elle estava.

Chegado a este ponto, dispersou-se uma parte dos francezes pelas aldeias,
conforme o costume do paiz, que é ter _Chetuasaps_, isto é, hospedes ou
compadres, aos quaes por pagamento se dava generos em vez de dinheiro.

Esta hospitalidade ou compadresco é entre elles muito intima, porque
estimam seos hospedes, como se fossem seos proprios filhos, vão caçar e
pescar para elles e conforme o seo costume entregam-lhes as filhas, que
desde então se chamam _Maria_, e tem por sobrenome o do Francez a quem
se ligam, de sorte que dizendo-se _Maria de tal_ sabe-se logo de quem é
concubina.

Com certesa não sei porque dão este nome ás concubinas: mostrei um certo
dia a um selvagem um registro da Mãe de Deos, e lhe disse _Koai Tupan
Marie_, «eis a Mãe de Deos,» _ché ai Tupan Arobiar Marie_, «creio e
conheço, que _Maria_ é a Mãe de Deos,» e _Maria_ chamamos nossas filhas
que damos aos _Caraibas_.

Este costume foi prohibido aos francezes, e si ha alguma falta á este
respeito é occultamente, e os proprios selvagens que no principio d’esta
prohibição desconfiaram da fidelidade e da amisade dos francezes, apenas
souberam, que Deos só permittia a posse da mulher por meio do casamento,
e que os Padres, Missionarios de Deos, assim o prégavam e prohibiam por
ordem do _Maioral_, mostram-se escandalisados quando vêem o contrario,
que denunciam logo a este e a nós, de maneira que qualquer francez deve
fazer seos negocios mui occultamente si não quizer ser conhecido.



CAPITULO III

Da construcção do Forte de São Luiz, e do interesse dos selvagens em
carregar terra.


Chegado o tempo proprio de trabalhar nas fortificações da praça designada
á defeza dos francezes, fincada a madeira segundo o plano dado para
servir de cercadura ao _Forte_, e de sustentar as terras, mandou-se então
avisar por todas as aldeias da ilha e da provincia de Tapuytapera,[6]
que viessem Indios uns após outros conduzir a terra tirada dos fossos
para os terraços das cortinas, esporões e plata-formas, depois cobertas
por grandes e grossas _Apparituries_, «mangues» arvores duras como ferro
e incorruptiveis; de forma que seria contra ella quasi inutil o tiro do
canhão, e mui difficil a escalada: assim se disse e assim se fez: de
todas as aldeias pouco a pouco vinham os selvagens com suas mulheres
e filhos, trazendo viveres para o tempo, que calculavam demorar-se no
trabalho, e sempre debaixo das ordens dos seos Principaes, costume
que geralmente observam, trazendo-os sempre na frente da Companhia,
fazendo-lhes a natureza conhecer, que o exemplo dos superiores anima
infinitamente os inferiores.

Mais do que nós são elles fieis á natureza, pois vemos o contrario na
Republica Christã, d’onde provem os erros e a corrupção dos costumes,
porque ainda que devamos prestar attenção somente á doutrina e não
entregarmo-nos a má vida, os fracos fazem o que querem sem cuidar do máo
nome, que adquirem.

Apenas chegavam estes selvagens entregavam-se ao trabalho com
incomparavel dedicação, mostrando na voz e nos gestos admiravel coragem,
parecendo antes que iam á um festejo de casamento do que para o serviço,
rindo e brincando uns com os outros, correndo dos fossos para os terraços
com uma especie de emulação para vêr quem dava mais caminhadas, e
conduzia maior numero de cestos de terra.

Notareis agora, que não ha ninguem no mundo mais infatigavel do que
elles, quando de boa vontade trabalham em qualquer coisa; não cuidam em
comer e beber com tanto que tenham á sua frente o seu chefe, e quando
encontram difficuldades, por maiores que sejam, riem, cantam e gritam
para se animarem reciprocamente.

Se ao contrario o tractardes com asperesa e ameaças, nada farão que
preste, e conhecendo o seo natural nunca constrangem seos filhos e nem
seos escravos, e antes os governam com doçura.

O francez, especialmente os nobres, tem igual naturesa; não soffrem
constrangimento, porem não duvidam expôr sua vida, afim de comprirem as
doces ordens dos seos Principes: bello argumento para convencer os que
governam, que mais vale a doçura e clemencia do que o rigor e a força,
respeitando assim o natural da Nação francesa.

Não trabalhavam somente os homens e sim tambem as mulheres e os
filhinhos, aos quaes elles davam pequenos cestos, para carregar terra
conforme suas forças.

Vi muitos meninos, apenas com dois ou tres annos d’idade, fazer a carga
com suas mãosinhas e não ter força para conduzil-a.

Perguntei a alguns velhos porque consentiam que trabalhassem os meninos,
servindo isto para distrahir os que os vigiavam, especialmente seos
paes, que assim não podiam adiantar a tarefa, achando-se elles sempre
em perigo, ou por estarem nùs apezar de tenrinhos, ou por poderem ser
feridos pelo desabamento de algum pedaço de terra, ou por alguma pedra,
que se desprendesse do monte.

Respondeo-me assim o interprete. Temos muito prazer vendo nossos filhos
comnosco trabalhando n’este _Forte_, para que um dia digam á seos filhos
e estes a seos descendentes «eis a Fortalesa, que nós e nossos paes
fizemos para os Francezes, que trouxeram Padres, que levantaram casas a
Deos, e que vieram defender-nos de nossos inimigos.»

É mui commum esta maneira de communicar á seos filhos o que entre elles
se passa, já que por escriptos não podem fazel-o aos vindouros, e ir
assim á posteridade.

Para nada esquecer, como que gravam na memoria as occorrencias, e só
d’esta maneira se pode explicar como contam muitas coisas passadas nos
seculos, em que viveram seos avós, ou no tempo da sua mocidade: vão
passando por esta forma o que sabem a seos filhos, como ainda diremos
ádiante.

Desejaria muito, que nossos Paes assim se empenhassem para gravar no
coração de seos descendentes...

       *       *       *       *       *

... mente e em abundancia, os selvagens lançam fogo nos espinhaes e
moutas, onde se recolhem esses reptis.

Ha de tres qualidades:[7] uma de terra, que mora nos mattos; outra de
agoa doce, que mora nas margens dos rios e lugares pantanosos: a ultima,
é do mar, e a que vem pôr seos ovos na areia, que fica bem perto, e onde
os occultam com geito. Parece-se muito com os ovos de galinhas, menos na
casca, que não é tão dura, e sim mais flexivel e molle, nem tão grossos
e agudos, e sim mais redondos, porem muito saborosos, quer comidos na
casca, quer de outra qualquer maneira.

Nas margens d’este rio encontram-se arvores medicinaes, muito melhores do
que as que se achavam commummente, como eu e muitos dos meos companheiros
verificamos: alem d’esta virtude, são mais fortes que as do Levante,
mostrando a experiencia que uma onça d’estas faz tanto effeito como duas
d’aquelle paiz. Sendo bem preparadas certas composições são excellentes
laxantes, e assim conservam o corpo para seo beneficio. Existem bellos
prados, largos e compridos á perder de vista, que produzem herva fina
e macia. Encontra-se a piteira, de cujos productos se fazem na China
muitos tafetás: crescem seos ramos como a cauda de um cavallo, tem a
bellesa da seda e é ainda mais forte. A terra é forte e feraz e produz
com mais certesa, que a do _Maranhão_, ou de suas visinhanças, e dizem-me
que dá duas colheitas annualmente. As florestas são altas, virgens, e
ricas de muitas especies de madeiras, quer proprias á tincturaria, quer
á medicina, e asseguram-nos os selvagens, que lá moram, a existencia ahi
do _pau brazil_. No meio d’estas florestas, ha muitos viados, capivaras,
cabras, vaccas bravas[8] e javalis, e em poucas horas matareis tantas
quantas precisardes, e para que não me accusem de hyperbolico, invoco
o testemunho dos que viajaram pelo _Miary_, e hoje se acham em França:
se lerem isto, dirão que são estas as informações, que me deram, e que
os selvagens, remadores das suas canoas, lhes traziam tanta caça, que
d’ella não sabiam o que fazer.

Contou-me um fidalgo, que andou n’essa viagem, haver morto com um só tiro
tres javalis,[9] o que não poderia acontecer se estivessem espalhados.

Ha muitas arvores carregadas de cortiço de mel de abelhas, as quaes são
mais pequenas e franzinas do que as nossas, porem mais industriosas, pois
fabricam mel excellente, liquido, e tão claro como agua potavel pura,
guardado em pequenas celulas de cera da grossura da casca de um ovo,
similhantes na forma á nossas garrafinhas de vidro, e penduradas com
alguma ordem n’uma arvoresinha de cera, que se acha encostada ou presa
pelos ramos ao tronco, ou nas cavidades das arvores das florestas ou dos
prados.

Com este mel fabrica-se vinho muito forte e quente para o estomago,
similhante na côr e no gosto ao de Canaria. Nossa gente, quando por lá
andou, fez algum vinho, e com elle embebedou-se.

Existe tambem ahi uma especie de mel, impropriamente, assim chamado,
porque é tão azedo, como vinagre, e fabricado por outra especie de
abelhas.

Alguns dias depois que ahi chegou nossa gente, procuraram os
_Tabajares_,[10] e suas habitações: encontraram, não os que procuravam, e
sim os _Aiupaues_,[11] e caminhos recentemente abertos.

Vendo que diminuia a farinha, da qual apenas poderia ter quanto bastasse
para regressar a Maranhão, essa mesma muito pouca, deliberou regressar
com os seos selvagens, deixando ahi somente dois escravos _Tabajares_,
a quem deram farinha para um mez, e diversos generos, promettendo-lhes
liberdade com certesa, e boa recompensa si fossem procurar e achassem
seos similhantes, o que acceitaram e cumpriram aproximando-se das suas
aldeias e gritando para não serem flexados, visto andar esta Nação em
guerra com uma outra visinha. Aos seos gritos accudiram muitos, aos
quaes contaram o que traziam, como estavam em Maranhão os francezes
bem fortificados, que entre elles se achavam os Padres, que os foram
procurar; mas que se viram obrigados a retirar-se por falta de farinha,
sendo elles escolhidos para ir procural-os, e dando-lhes os presentes
fortaleciam mais as suas palavras, mormente sendo proferidas por dois
individuos, seos conhecidos, que foram escravisados na guerra pelos
_Tupinambás_.

Bem podeis calcular como elles ficaram alegres com as noticias dadas
pelos _Tabajares_. Ahi descançaram por tres ou quatro mezes para contarem
tudo bem a sua vontade, e regressamos com nossa gente para a Ilha.



CAPITULO VII

Dos preparativos dos Tupinambás para uma viagem ao Amazonas.


Apenas voltou esta expedição do Mearim, fallou-se com enthusiasmo de uma
viagem, em breves dias, ao Amazonas.[12]

Já antes se havia fallado n’ella, porem com tal friesa, que poucos
acreditavam, não havendo probabilidade de deixar-se a Ilha, sendo nós
tão poucos para defendel a contra as aggressões dos portuguezes, que nos
ameaçavam ha muito tempo.

Ao divulgar-se esta noticia levantaram-se a ilha e as provincias
visinhas, porque, como é geralmente sabido, não ha no Mundo nação
alguma mais inclinada á guerra e á viagens pelo desconhecido como estes
selvagens brasileiros.

Quatrocentas ou quinhentas legoas nada são para elles quando vão atacar
seos inimigos e fazel-os escravos. Com quanto sejam por naturesa timidos
e medrosos, nos combates ganham calor, não abandonam o campo, e quando
perdem as armas pelejam com unhas e dentes.

Suas guerras são feitas, pela maior parte por surpresa e astucias; ao
romper do dia assaltam seos inimigos dentro de suas aldeias: salvam-se
de ordinario os que tem boas pernas, sendo aprisionados os velhos,
as mulheres, e os meninos, e condusidos como escravos para as terras
dos _Tupinambás_. Tambem sob o pretexto de negocio, vão elles pelas
praias, onde moram seos inimigos, promettem-lhes muito, mostram-lhes
suas mercadorias em _caramemos_ ou _paneiros_, onde arranjam o que tem
de melhor, e quando os veem entretidos, lançam-se sobre elles, pobres
ingenuos, matam uns, aprisionam e captivam outros: por este motivo todas
as nações do Brasil, desconfiam d’elles, julgam-nos traidores, e nem
querem sua paz.

São muito afoitos quando estão com os francezes, e querem que estes
vão sempre adiante, e se acontece voltar um francez para traz, ninguem
corre melhor e mais veloz do que elles. D’isto se conclue quanto valle a
opinião que se forma de certas pessoas, que não passa de uma loucura e
vaidade d’este mundo, acontecendo muitas vezes ficarem atraz os bons e
virtuosos ou serem queridos e levados os viciosos e corrompidos.

Indaguei e procurei saber muito o modo como se preparavam para a guerra,
não me contentando só com as informações.

Em primeiro lugar as mulheres e as suas filhas preparam a _farinha de
munição_,[13] e em abundancia, por saberem, naturalmente, que um soldado
bem nutrido valle por dois, que a fome é a coisa mais perigosa n’um
exercito, por transformar os mais valentes em covardes, e fracos, os
quaes em vez de atacarem o inimigo, buscam meios de viver.

É differente da usual esta farinha de munição, por ser mais bem cozida,
e misturada com _cariman_ para durar mais tempo, embora menos saborosa,
porem mais san e fresca.

Em segundo lugar empregam-se os homens em fazer canoas, ou concertar as
que já possuem proprias para este fim, por que é necessario, que sejam
compridas e largas para levarem muitas pessoas, suas armas e provisões, e
comtudo são feitas de uma arvore, cortada bem perto da raiz, sem galhos
e ramos, ficando apenas o tronco bem direito em toda a sua extensão,
e então tiram-lhe a casca, e racham n’a dando-lhe meio pé de largura
e profundidade: n’este caso lançam-lhe fogo n’essa fenda por meio de
cavacos bem seccos, e vão queimando pouco a pouco o interior do tronco,
raspam com uma chapa de aço, e assim vão fazendo até que o tronco esteja
todo cavado, deixando apenas duas pollegadas d’espessura, e depois com
alavancas dão-lhe fórma e largura: estas canoas conduzem as vezes 200
ou 300 pessoas[14] com as suas competentes munições. São conduzidas por
mancebos fortes e robustos, escolhidos de proposito, por meio de remos de
pás de tres pés cada um, que cortam as agoas a pique e não de travessia.

Em terceiro lugar preparam suas pennas, tanto para a cabeça, braços, e
rins, como para as armas. Para a cabeça usam de uma peruca ou cabelleira
de pennas de cores vermelhas, amarellas, verde-gaio e violetas, que
prendem aos cabellos com uma especie de colla ou grude.

Enfeitam a testa com grandes pennas de araras, e outros passaros
similhantes, de cores variadas, e dispostas á maneira de mitra, que
amarram atraz da cabeça.

Nos braços atam braceletes tambem de pennas de diversas cores, tecidas
com fio de algodão, similhante á mitra de que acabamos de fallar.

Nos rins usam de uma roda de pennas da cauda de ema,[15] presa por dois
fios d’algodão, tinctos de vermelho, cruzando-se pelos hombros a maneira
de suspensorios, de sorte que ao vel-os emplumados, dir-se-hia que são
emas, que só tem pennas nestas tres partes do corpo.

Na verdade, quando os vejo assim lembro-me do que antigamente disse Job
no cap. 39. _Penna struthionis similis est pennis Erodii et Accipitris_:
a penna de ema é igual a da garça real e do gavião: esta passagem é
claramente explicada por diversas licções ou versões dos Gregos e dos
Romanos, que tinham por costume apresentarem os coroneis aos capitães e
soldados pennas d’ema para collocarem em seos capacetes e morriões afim
de animal-os á guerra.

Quiz saber por intermedio do meu interprete porque traziam sobre os
rins estas pennas de ema: responderam-me, que seos paes lhes deixaram
este costume para ensinar-lhes como deviam proceder na guerra, imitando
a ema, pois quando ella se sente mais forte ataca atrevidamente o
seo perseguidor, e quando mais fraca abre suas azas, despede o vôo e
arremessa com os pés areia e pedras sobre seos inimigos: assim devemos
fazer, accrescentavam elles. Reconheci este costume da ema, vendo uma
pequena, creada na aldeia de _Vsaap_, que era perseguida diariamente
por todos os rapasinhos do lugar: quando eram só dois ou tres, ella os
accommettia, e dando-lhes com o peito, atirava-os por terra, porem quando
era maior o numero preferia fugir.

Estou certo, que muitas pessoas se admirarão, não só do que acabo de
dizer, mas tambem como é possivel buscarem estes selvagens, meios de
governarem-se entre as praticas animaes: si se lembrarem porem que o
conhecimento das hervas medicinaes foi ensinado aos homens pela cegonha,
pela pomba; pelo viado e pelo cabrito; que a maneira de fazer a guerra
e postar sentinellas foi colhida das aves chamadas grous; que a bondade
do estado monarchico foi a principio observado entre as abelhas; que os
architectos com as andorinhas aprenderam a fazer abobadas; que o proprio
Jesus-Christo nos mandou observar o milhafre, o abutre, a aguia e o
pardal, desapparecerá a admiração, e especialmente si acreditarem, que
estes selvagens imitam com a maior perfeição possivel os passaros e
animaes do seo paiz, o que elles exaltam nos cantos que recitam em suas
festas.

Por que nos passaros de sua terra predominam as cores verde-gaio,
vermelho e amarello elles gostam de pannos e vestidos destas tres cores.

Por que as onças e os javalis são os animaes mais ferozes do mundo,
elles arrancam os seos dentes e os trazem nos labios e orelhas afim de
parecerem mais terriveis.

As pennas das armas são postas nas extremidades dos arcos e das flexas.

Assim preparados bebem publicamente o vinho de _muay_, e dizem adeos aos
que ficam.



CAPITULO VIII

Partida dos francezes para o Amazonas em companhia dos selvagens.


Antes que entre na materia, convem narrar o que me disseram os selvagens
relativamente á verdade da existencia das Amazonas, porque é questão de
todos os dias se n’esses lugares ha Amazonas, e si são similhantes ás
descriptas pelos historiadores?

É voz geral e commum entre os selvagens, que ha Amazonas, e que habitam
n’uma ilha muito grande, cercada pelo grande rio do _Maranhão_, ou das
_Amazonas_, que desembocca no mar por um espaço de 50 legoas de largura:
que essas Amazonas foram antigamente mulheres e filhas dos _Tupinambás_,
que se retiraram da companhia e do dominio d’elles—seduzidas e guiadas
por uma d’ellas: que internando-se pelo paiz ao longo d’esta costa,
descobriram á final uma linda ilha, ahi se recolheram, e em certas
estações do anno acceitam por companheiros os homens das habitações mais
proximas.

Si párem um menino pertence ao pae, que d’elle cuida logo depois de
desmamado: si porem é uma menina fica com a mãe em casa. Eis a voz geral
e commum.

N’um dia, quando os francezes andavam n’esta viagem, fui visitado por
um grande Principal, que morava muito acima n’este rio. Depois dos
seos cumprimentos, que descreverei mais adiante, me disse morar nas
ultimas terras dos Tupinambás, e que só em duas luas podia voltar do rio
_Maranhão_ á sua aldeia, e então lhe respondi admirando-me do trabalho
que tomou vindo de tão longe. Replicou-me «fui ao Pará vêr meos parentes,
quando foram os francezes guerrear nossos inimigos, e ouvindo fallar
de vós e dos outros Padres, quiz vel-os pessoalmente para dar noticias
certas aos meos companheiros.»

Por intermedio do meo interprete lhe perguntei si sua residencia era
muito longe da das _Amazonas_, e elle respondeo-me «uma lua,» isto é, um
mez para ir.

Repliquei-lhe, si tinha estado entre ellas, e si as tinha visto, e
respondeu-me «que nem uma coisa nem outra», pois nas canoas de guerra,
onde andou, se desviou da ilha onde ellas residiam.

Esta palavra _Amasonas_ lhes foi imposta pelos portuguezes e
francezes[16] pela similhança, que ellas tinham com as antigas _Amazonas_
por causa de sua separação dos homens; porem não cortam a mama direita,
e nem imitam a coragem d’essas afamadas guerreiras, mas vivem como as
outras mulheres selvagens, ageis e dextras no manejo do arco, e nuas se
defendem dos seos inimigos, como podem.

No dia 8 de julho de 1613 do porto de Santa Maria do Maranhão, partio o
Sr. Ravardiere ao som de muitos tiros de artilharia e mosquetaria, com
que o saudou o Forte de S. Luiz segundo é costume entre os militares.

Levou em sua companhia 40 soldados valentes, e 10 marinheiros, e por
cautella tambem 20 dos principaes selvagens, tanto da Ilha do Maranhão e
de Tapuytapera, como de Cumã.

Seguio para Cumã[17] onde o esperavam muitas canoas de indios, e
provendo-se de farinha seguio para _Caieté_ onde haviam 20 aldeias de
_Tupinambás_, e ahi se demorando mais de um mez, reforçou a tripolação de
sua embarcação com mais 60 escravos que lhe deram.

No dia 17 de agosto partio de _Caieté_ com muitos habitantes d’essa
localidade, e dirigio-se para a aldeia _Meron_, onde em grandes canoas
embarcou selvagens e francezes, e seguio para a embocadura do rio _Pará_:
em viagem morreo afogado um francez por ter se virado a canoa em que elle
ia, porem salvaram-se seos companheiros trepados no dorso da mesma.

O rio Pará desde a sua emboccadura para cima é muito povoado de
Tupinambás; chegando á ultima aldeia, situada á 60 legoas da sua
emboccadura, todos os principaes d’esses lugares lhe pediram com
instancia, que fosse guerrear os _Camarapins_,[18] os quaes são muito
ferozes, não querem paz, e por isso não poupam seos inimigos, pois quando
os captivam, matam-nos e comem-nos: poucos dias antes tinham matado
tres filhinhos d’um dos principaes dos Tupinambás d’aquellas regiões, e
guardaram os ossos d’elles para mostrar aos paes afim de causar-lhes mais
dó.

Este exercito de francezes e de Tupinambás, em numero de 1200,
sahio do _Pará_, entrou no rio de _Pacajares_, d’ahi dirigio-se ao
de _Parisop_,[19] onde encontraram _Vuacété_ ou _Vuac-Uaçú_, que
simpathisando com este movimento offereceo para reforçal-o 1200 dos seos
companheiros.

Acceitou-se apenas um pequeno numero de selvagens, que elle mesmo
acompanhou, e os encaminhou ao lugar, onde residiam os inimigos, o qual
era nas _Iuras_,[20] que são casas feitas á imitação das «_Ponte aux
changes_,» de S. Miguel de Paris, collocadas no cume de grossas arvores
plantadas n’agoa.

Foram immediatamente cercados pelos nossos, que os saudaram com 1000
ou 1200 tiros de mosquetaria em tres horas: defenderam-se porem elles
valorosamente de sorte que sobre os nossos cahiam as flexas como chuva ou
saraiva, ferindo alguns francezes e Tupinambás, porem não matando um só.

Sobre alguns dispararam-se tiros de morteiro, e de canhão,
incendiaram-se-lhes tres _Iuras_ morrendo n’essa occasião 60 indios
d’elles, o que somente servio para mais augmentar-lhes o desespero pois
antes queriam morrer do que cahir nas mãos dos Tupinambás.

Á vista d’isto resolveo-se abandonal-os com intenção de ver, si n’outra
occasião, tratados com doçura podiam ser domesticados.

Durante o medonho combate dos mosqueteiros, usaram os selvagens d’uma
traça singular pendurando os seos mortos no parapeito de suas _Iuras_, e
por meio de uma corda de algodão amarrada aos pés faziam com que elles se
mexessem.

Pelas fendas ou frestas viam os francezes estes corpos, e julgando-os
vivos contra elles faziam fogo tres e quatro vezes a ponto de ficarem
despedaçados, o que provocava os gritos e zombarias d’estes canalhas, e
somente terminou-se esta triste scena quando uma mulher acenando com um
pano branco á maneira dos parlamentares, fez com que cessasse o fogo, e
então ella gritou «_Vuac, Vuac._» Porque trouxeste estas boccas de fogo,
(fallava dos francezes por causa da luz, que sahia das caçoletas de suas
armas) para arruinar-nos, e destruir a terra?

«Pensas contar-nos no numero dos teos escravos, eis os ossos dos teos
amigos e dos teos alliados, cuja carne comi, e ainda espero comer a tua e
a dos teos.»

Pelos interpretes se lhe disse, que se entregasse afim de salvar o resto,
que havia.

Não, não, respondeo ella, nunca nos entregaremos aos _Tupinambás_,
elles são traidores. Eis aqui os nossos principaes, que morreram
victimas d’essas boccas de fogo de gente, que nunca vimos: si fôr
necessario morreremos todos, voluntariamente, como fizeram nossos grandes
guerreiros. Nossa nação é grande, e ahi fica para vingar nossa morte.

Um dos seos principaes veio n’uma canoa collocar-se á frente do nosso
exercito, trazendo n’uma das mãos um feixe de flexas, e na outra o arco,
disse: «Vinde, vinde ao combate, nada tememos, somos valentes, e eu só
por mim atravessarei a muitos.»

Chegando-se porem muito perto dos nossos soldados, um d’elles acertou-lhe
com uma balla na testa, que o atirou n’agoa ja morto.

Eram tão dextros no manejo das flexas, que atirando-as ao ar vinham
cahir na galeota, onde estavam nossos soldados, e nas canoas dos indios,
ferindo muitos.

Por isto avaliareis a coragem d’estes selvagens, maus somente pela
naturesa.

O que seriam si fossem policiados, ou conduzidos e instruidos pela
disciplina militar?



CAPITULO IX

Do que aconteceu na Ilha durante esta viagem, e principalmente das
astucias de um selvagem chamado Capitão.


Em quanto uma parte dos nossos francezes, e muitos dos principaes
selvagens estavam no Pará e em suas circumvisinhanças passaram-se na
Ilha muitas coisas notaveis, que contarei nos seguintes capitulos.

Tratarei em primeiro lugar de um indio agradavel e astucioso intitulado
Capitão,[21] irmão da mãe de um principal, muito amigo dos francezes,
chamado _Ianuaravaête_, que quer dizer _cão grande_ ou _cão furioso_.

Este Capitão astuciosamente aproximou-se de nós, dizendo por intermedio
do interprete, que desejava ser christão, aprender a ler, e a escrever,
fallar francez e fazer cortesias, gestos e ceremonias dos francezes.

Acreditaram nas suas palavras, e alguns até cercaram-lhe de muitas
attenções.

Passou alguns mezes em nossa visinhança, e mostrando-se com desejos de
ter vestidos como os nossos paramentos sagrados, com os quaes diziamos
missa; por sua mulher nos mandou pedir, o que negamos.

Não nos deixou por esta recusa, porem algum tempo depois, disfarçando
muito bem seo descontentamento, ia á sua aldeia e voltava, até que poude
espalhar pela _Ilha_ o boato de que os francezes pretendiam escravisar os
Tupinambás, e por tanto que era necessario fugir e abandonal-os.

Alguns acreditaram, e por isso deixaram suas aldeias e foram para outras,
onde podessem fugir com mais prestesa si assim fosse necessario.

Julgou chegada a occasião de se fazer valer entre os seos: pois tinha
extremo desejo de ser grande, e não podia chegar a sel-o, porque fogem as
honras d’aquelles que as procuram com methodo, o que vemos em todas as
condicções, e foi este o seo fim e intenção quando de nós se aproximou,
servindo-se de nosso concurso para realisar seo desideratum, visto o
ambicioso nada poupar, nem mesmo as coisas sagradas, para obter o que
deseja.

Principiou visitando as aldeias da Ilha, onde desconfiava ter
descontentes, e ahi nas cabanas e na _casa-grande_, costumava batendo nas
coxas grandes palmadas, harengar assim—_Ché, Ché, Ché, auaête. Ché, Ché,
Ché. Pagy Uaçú, Ché, Ché, Ché, Aiuka pais &_: quer isto dizer, eu, eu,
eu, sou furioso e valente. Eu, eu, eu, sou um grande feiticeiro. Fui eu,
fui eu, fui eu que matei os Padres, etc. Fiz morrer o Padre, que está
enterrado em _Yuiret_, onde mora o _Pay Uaçú_, o grande Padre a quem
reenviei todos os males, que tem causado,[22] e a quem matarei como o
outro.

Atormentarei os Francezes com molestias, e lhe darei tantos bixos nas
pernas e nos pés, que elles se verão na necessidade de regressar a sua
patria. Farei morrer suas plantações e assim morrerão de fome: já com
elles morei, comi com elles muitas vezes, e vi o que praticavam quando
serviam a _Tupan_, e reconheci que nada sabiam á vista de nós outros
_Pagés_, feiticeiros.

Á vista disto não devemos temel-os, saiamos, quero caminhar na frente,
porque sou forte e valente.

Perto de dois mezes gastou elle percorrendo assim a Ilha sem que de
nada soubessemos, porque quando os negocios são secretos e de interesse
publico, não são descobertos como acontece quando se trata de utilidade
particular.

_Japy-açú_ o reprehendeo e mui acremente por estes discursos, bem como
_Piraiuua_; porem seo irmão o _Cão-grande_ o denunciou, e alem d’isso
pedio licença para ir em pessoa agarral-o e prendel-o.

Chegaram promptamente estas noticias aos ouvidos de _Capitão_, que
começou a tremer como si tivesse febre, e não dizia mais _Ché auo-êtê_,
nem _Ché Pagi uaçú_, ou _Ché Aiuca Pay_, porem ao contrario diante dos
seos, tremendo de medo, dizia: «_Ché assequegai seta, ypocku Tupinambo,
ypocku decatugué: giriragoy Topinamho giriragoy seta atupaué: ypocku
ianuara vaeté, ypocku decatugné giriragoy ianuara vaeté giriragoy seta
atupaué_.»

Ah! que medo tenho, oh! quanto são malvados os Tupinambás, perfeitos
malvados:[23] mentiram os _Tupinambás_, mentiram muito e muito: o _Cão
grande_, é um malvado, malvado completo: mentio o _Cão-grande_, mentio
tambem muito e muito, etc. Nada disto eu disse, não causei a morte do
Padre, não disse que queria fazer morrer o Padre-grande, e nem que lhe
dei molestias.

Tambem não disse, que quero atormentar os Francezes, e fazer seccar suas
plantas, porque não sou e nem fui feiticeiro, e assim quero ser filho
dos Padres, quero voltar e trabalhar para elles, e si os deixei foi para
colher meo milho: quero ir ja onde está o Padre-Grande, levar-lhe o meo
milho, o meo peixe, e a minha caça, e dar-lhe um dos meos escravos para
apaziguar o chefe dos francezes afim delle não crer no _Cão grande_, que
sempre me quer mal embora eu seja seo irmão: muitas vezes me quiz matar,
e si o _Muruuichaue_, quer dizer o «Principal dos Francezes» lhe der uma
vez ordem de prender-me, elle me matará sem duvida alguma.

Por estas palavras conhecereis a indole d’estes selvagens, que não dizem
a verdade quando necessitam defender-se.

Este miseravel _Capitão_, fugio e escondeo-se nos mattos, e depois foi
para uma aldeia chamada _Giroparieta_, quer dizer _aldeia de todos os
diabos_, ao pé da praia, e d’ahi enviou-me um dos seos parentes pedir-me
paz, e que obtivesse do Maioral o seu perdão.

Mandou-me um seu escravo forte e robusto, bom pescador, e caçador:
elle, sua mulher e mais pessoas da familia, me vieram ver, trazendo-me
milho, peixe, e caça, e tanto elle como sua mulher muito fallaram
para me persuadir de que eu não devia crer o que se dissesse d’elle,
chamando os _Tupinambás_ e o _Cão-grande_,—mentirosos e outros nomes
feios, asseverando que era bom amigo, que desejava ser christão, e que
si o Maioral, e eu tambem nos esquecessemos de tudo, elle e sua mulher
regressariam contentes.



CAPITULO X

Da chegada de uma barca portugueza á Maranhão.


Quando menos pensavamos, achando-se a Ilha sem indios e sem francezes,
por terem aquelles ido viajar pelo Amazonas, e estes pela segunda vez
ao _Miary_, de que brevemente trataremos, por espaço de um mez fomos
incommodados com mil noticias, ora de selvagens residentes perto do
mar, ora de francezes moradores nos fortes, que diziam ter ouvido tiros
de peça para o lado da costa da pequena _Ilha de Santa Anna_, e da de
_Tabucuru_,[24] e ter visto tres navios velejando ao redor da Ilha, eis
que se apresentou uma barca, commandada por um capitão portuguez, chamado
Martin Soares.

Vinha da Ilha de Santa Anna, onde tinha desembarcado, tomado posse d’ella
para o Rei Catholico, plantado uma grande Cruz, e levantado um marco com
uma inscripção, de que logo fallaremos.

Andou este navio por todo o porto de Caurs, saltando sua tripulação
sempre que lhe approuve para vêr e escolher lugares proprios á plantação
de canas e ao fabrico do assucar, especialmente no lugar chamado
_Ianuarapin_, onde foi erguida uma Cruz com o fim de crear-se uma bella
habitação de portuguezes, e construir-se muitos engenhos de assucar.

Approximaram-se depois da enseiada de Caurs, uma das entradas da Ilha,
onde depois da sua vinda, se edificaram dois bellos fortes afim de
impedir o desembarque.

Elles davam alguns tiros de peça para chamar os selvagens da Ilha:
nenhum lá foi, menos o Principal de _Itaparis_, suspeito por traidor:
perguntaram-lhe muita coisa, e ignora-se o que respondeo: deram-lhe
machados e fouces, e depois veio para a Ilha.

Os portuguezes traziam comsigo os indios _Canibaes_,[25] moradores em
_Mocuru_, e parentes de outros do mesmo nome refugiados em Maranhão, os
quaes elles mandaram á terra para tomar conhecimento, e informações, si
na Ilha haviam muitos francezes, si estavam fortificados, e si tinham
canhões.

Felizmente dirigiram-se aos _Tupinambás_, que lhes disseram não haver
na Ilha um só francez, um só forte, um só navio, barca, nem canhão,
e com tal segurança principiaram a comer, e os Tupinambás mandaram
immediatamente ao forte de S. Luiz contar tudo isto.

Expedio-se logo uma barca, bem esquipada, com o fim de prender os
portuguezes; porem aconteceo, que um traidor _Canibal_, inimigo rancoroso
dos francezes, e a quem já se tinha muitas vezes perdoado castigos,
em que havia incorrido, sabendo da noticia da vinda dos outros, foi
procural-os furtivamente, e em segredo lhes disse—«que fazeis aqui, fugi
depressa para o mar, regressae ao vosso navio, porque os francezes tem na
Ilha um bello forte, canôas, navios, e canhões.»

Mal ouviram isto, levantaram-se ás pressas, e disseram aos seos hospedes
_Tupinambás_, que os divertiam—Ah! maus, enganaes vossos camaradas—e
assim dizendo á passos apressados foram com o traidor para a sua canôa, e
em breve chegaram a barca, ancorada n’uma enseiada um pouco adiante.

Vendo isto os portuguezes, desconfiaram logo que os francezes estavam
na Ilha, e que não deixariam de os perseguir, e apenas tinham levantado
ancoras, descobriram a barca dos francezes, e estes a d’elles,
apressaram-se a tomar a dianteira dos portuguezes, navegando á bolina,
muito bem, quebrando os rolos d’agoa, pelos bancos d’area, pouco pensando
em encalhar comtanto que conseguissem apresional-a do que lhes resultaria
muita commodidade, visto conhecer-se a intenção dos portuguezes,
descoberta pela bôa vontade dos...

       *       *       *       *       *

... todas as Nações, e nós vemos por experiencia em varios lugares da
França, d’onde veio o proverbio—_chorar de alegria_.

Chegados ao Forte depois de descançarem como poderam, conservaram-se
serios e reservados sem entregarem-se á vivacidade e impulso da
curiosidade, e sendo a imperfeição unica dos francezes o fazer tudo ás
pressas, buscando todos os meios de conseguir seos fins, foram elles ter
com o Maioral, aos quaes assim fallaram:

«Conforme as noticias que déstes a dois dos nossos, escravos entre os
_Tupinambás_, para nos transmittirem fielmente a respeito da tua vinda
e da dos Padres n’estes lugares afim de defender-nos dos _Peros_, e
ensinar-nos a conhecer o verdadeiro Deos, dar-nos machados e outras
ferramentas para facilitar a nossa vida, fallamos n’isto em muitas
reuniões, e recordando-nos de que os francezes sempre nos fôram fieis,
vivendo em paz comnosco, e acompanhando-nos á guerra, onde alguns
morreram, todos os meos similhantes mostraram-se contentes e resolveram,
de combinação com o nosso chefe, obedecer-te e em tudo fazer-te a
vontade: eis porque me mandaram expressamente afim de pedir-te alguns
francezes para acompanhar-nos e guardar-nos até voltarmos do lugar, por
ti indicado.»

Respondeo-se-lhe com palavras de amisade, e que se lhes daria os
francezes.

Sahindo d’ahi foram procurar-me em minha casa, onde tambem me exposeram a
sua missão, de que fallarei quando for occasião.

Pediram-me o meu pequeno interprete para ir com elles assegurar ao
_Thion_, seo chefe, e a todos os seos companheiros, que eu os receberia
como filhos de Deos, e que podiam vir afoitamente confiados na protecção
dos Padres.

Acompanhados por muitos francezes e pelo meo interprete, a quem dei
algumas imagens como mimos, a _Thion_, elles embarcaram para o Mearim em
busca de suas casas.

Foram recebidos com muitos applausos, choros, lagrymas, e danças de dia e
de noite.

Prepararam vinhos em abundancia, presentearam os francezes com muitos
porcos do matto e outras caças, e offereceram-lhes muitas raparigas das
mais bonitas, o que regeitaram dizendo que Deos não queria, e que os
Padres prohibiam, e se quizessem agradar os Padres, quando fossem para a
Ilha, deviam levar Cruzes para expellir o _Giropary_[26] do meio d’elles:
assim o disseram, assim o fizeram, plantando muitas Cruzes, em varios
lugares na frente de suas casas, como ainda hoje se vê, e que ficaram
como prova de habitação antiga, d’onde foram chamados para ir á outra
terra, já illuminada pelo conhecimento de Deos, e enriquecida com os
Sacrosantos Sacramentos da Igreja, como aconteceo outr’ora com a nação do
povo de Israel, que sahio do Egypto em busca da terra da Promissão.

Dispostas estas coisas, cada um cuidou em arrumar-se e fazer sua
colheita, destruir as roças, e preparar bom farnél, pois deviam em pouco
tempo deixar e abandonar este lugar: indagavam muito de varias coisas
tendentes á sua salvação, e eram satisfeitas as suas perguntas.

Aproveitaram-se os Francezes da occasião e facilidade, que lhes offerecia
para conquistar a nação proxima de indios inimigos, da aldeia de Thion,
e causava pena ouvil-os dizer, que haviam comido a muitos, porque eram
mais fortes, tinham maior numero de aldeiamentos e de homens, e o
Principal d’elles, chamado _Farinha-grossa_, valente na guerra, alegre,
e muito propenso ao Christianismo, como fallaremos n’outro lugar, dizia
com garbo, «si eu quizesse comer os inimigos, não ficaria um só, porem
conservei-os para satisfazer minha vontade, uns após outros, entreter
meo apetite, e exercitar diariamente minha gente na guerra: e de que
serviria matal-os todos de uma só vez quando não havia quem os comesse?
Alem d’isto não tendo minha gente com quem bater-se, se desuniriam, e
separar-se-iam como aconteceo á _Thion_.» Assim disse, porque antes estas
duas nações formavam uma só, morando juntas, em lugares longinquos e
distantes dos inimigos, contra os quaes podiam exercitar-se na guerra, e
apezar de tudo atacaram-se reciprocamente.

Tal proceder confirma a bella maxima do Estado—quem deseja conservar o
interior em paz, deve empregar os sediciosos fóra d’ahi, especialmente
contra os inimigos da fé, e fallando em sentido moral—quem quer salvár o
coração de todo o vicio e imperfeição deve resguardal-o das impressões
exteriores.

Como condições de paz estabeleceo-se o esquecimento reciproco de todas
as injurias, mortes e banquetes com os corpos dos inimigos: que devia
revestir-se de paciencia quem mais perdesse: que não devia havêr
exprobrações de parte á parte, e quando recolhidos a Ilha, morariam
separados uns dos outros, e todos seriam fieis aos Francezes.

Chegada a occasião foram enviadas muitas canoas e barcos, nas quaes
vieram para a Ilha.

Foram bem recebidos, o seo chefe _Thion_ saudado com cinco tiros de peça,
e duas descargas de mosquetaria, passando por meio de soldados francezes,
dispostos conforme as ceremonias da guerra, assim entrou no Forte, onde o
Sr. Pesieux e eu o acolhemos, e o condusimos á sua casa para descançar.

Em lugar proprio contarei o que elle nos disse.



CAPITULO XIII

Do valor e dos costumes dos selvagens do Miary.


Conversando familiarmente com esta nação, descubri muitas de suas
particularidades, e tambem outras, pertencentes tanto á elles como á
todos os _Tupinambás_, ainda não escriptas por pessoa alguma, ou ao menos
mencionadas sufficientemente, e como são bellas e raras tractarei d’ellas
mais detidamente.

Estes povos, antes de reunidos, eram chamados _Tabajares_ pelos
Tupinambás.[27]

Este nome é appelativo e commum para designar toda a sorte de inimigos,
e tanto assim é, que esta mesma nação de _Tabajares_ chamava os
_Tupinambás_ da ilha _Tabajares_, _Topinambas_, embora pacificados e
amigos. Os _Topinambas_ os chamavam _Mearinenses_, quer dizer vindos do
_Miary_,[28] ou habitantes do _Miary_, assim como os Dinamarquezes, que
vieram occupar a Neustria, Provincia antiga e dependente da Corôa de
França, foram chamados Normandos, e sendo ella conservada em homenagem
pelos Reis de França, perdeo seo antigo nome, e conservou o de Normandia.

Os francezes os chamam _Pedras-verdes_[29] por causa de uma montanha, não
muito longe de sua antiga habitação, onde se acham mui bellas e preciosas
_pedras verdes_, dotadas de muitas propriedades, especialmente contra
doenças do baço, e frouxo de sangue, e tambem me disseram haver ahi
esmeraldas muito finas: ahi hiam os selvagens buscar estas pedras verdes
tanto para collocal-as em seos labios, como para negocio com as nações
visinhas.

Os _Tupinambás_ e os _Tapuias_ dão muito apreço a estas pedras:[30]
vi por uma pedra para o beiço dar o valor de mais de vinte escudos de
mercadorias um _Tupinambá_ á um _Miarinense_, em nossa casa de São
Francisco, no Maranhão.

Um certo _Cabelo comprido_ veio ter comnosco, ornado com seos enfeites
mais lindos, que consistiam em dois chifres de bodes, e quatro dentes de
corça, muito cumpridos, em vez de brincos, de que muito se orgulhava por
havel-os alcançado com industria, ao passo que era commum, especialmente
entre as mulheres, trasel-os de madeira, redondos, muito toscos, e da
grossura de dois dedos: calculae o buraco, que fazem nas orelhas: a maior
porem de suas ostentações era uma destas pedras verdes, de comprimento,
pelo menos, de quatro dedos, bem redonda, o que me agradou tanto á ponto
de desejar trazel-a para a França. Perguntei-lhe o que queria que lhe
désse por esta pedra: respondeo-me, «dê-me um Navio de França, carregado
de machados, de foices, de vestidos, de espadas e de arcabuses.»

Outro Tupinambá, já muito velho, trazia uma pedra destas em seo labio
inferior: era oval e tão larga como o concavo da mão, e como a tivesse
trasido por muito tempo ahi, sem nunca tiral-a, estava como que
encaixilhada no seo queixo, ja tendo a carne se dobrado sobre os bordos
da pedra e tomado a sua propria forma.

Narrei tudo isto afim de demonstrar o valor destas pedras verdes.

Estes _Miarinenses_ são ordinariamente de boa estatura, bem conformados,
e valentes na guerra: sendo bem guiados não recuam e nem fogem como os
outros Tupinambás, explicando-se isto pelo facto de serem criados entre
os combates, sempre travados contra os portuguezes, aos quaes atacaram
outr’ora, escalaram suas fortalezas, tomaram suas bandeiras e nunca
mais abandonaram sua primeira habitação, como nos contou _Thion_, seo
Principal, quando veio do Forte de São Luiz, se a falta de canhões não
obrigasse os francezes, que estavam com elles, a cederem á força e á
superioridade do numero dos portuguezes.

Causa gosto ver o zelo e o cuidado, com que trazem as espadas, que lhes
dão os francezes, sempre a seo lado, sem nunca tiral-as senão quando
se deitam, e quando trabalham em suas roças, penduram-nas junto a si
em algum ramo de arvore, fazendo-me lembrar a historia de Nehemias, na
reparação dos muros de Jerusalem, quando os seos habitantes trasiam n’uma
das mãos as armas e na outra os instrumentos do trabalho.

Gostam muito de traser as espadas tão limpas como cristal, e para isso as
esfregam com areia fina e azeite de mamona, amolam-nas repetidas vezes
para estarem sempre cortantes, aguçam as pontas, quando estão gastas pela
ferrugem muito commum na zona tórrida.

Acostumam-se a bem manejal-as, fazendo marchas e contra-marchas, á
maneira dos suissos quando esgrimam.

Alem de serem corajosos e bons soldados, trabalham muito bem, e antes
quero uma hora de tarefa d’elles do que um dia dos _Tupinambás_.

Seos Principaes trabalham tanto quanto os seos subordinados de menor
representação, porem o serviço está bem regulado, porque ao romper do dia
levantam-se, almoçam, e depois vão elles mulher e filhos, conjunctamente,
alegres risonhos, cantando trabalhar em suas roças, e quando o sol
principia a chegar ao seo maior auge do calor, que é perto das dez horas,
deixam a lida, vão comer e dormir, e duas horas depois do meio dia,
quando o sol principia a declinar voltam outra vez ao trabalho, onde se
conservam até ao anoitecer.

Os Principaes, que ordinariamente tem mesa franca, para o que necessitam
de roças maiores, preparam um _Cauin_ geral, e como todos partilham
d’elle, se incumbem de cuidar nas plantações, o que fazem com alegria
n’uma ou duas manhãs, e depois vão beber na casa d’aquelle para quem
trabalharam, bebendo cada um quando chega a sua vez, e quando o acham
bom o gabam com todas as suas forças, compõem cantigas adequadas, que
entoam ao redor da casa ao som do _Maracá_, pronunciando estas ou outras
similhantes palavras: «oh! o vinho, o bom vinho, nunca elle teve igual;
oh! o vinho, o bom vinho, nós o beberemos á vontade, oh! o vinho, o bom
vinho, n’elle não acharemos preguiça.»

Chamam o vinho preguiçoso quando não tem força bastante para embriagal-os
immediatamente, e que não lhes provocam o vomito por mais que bebam.

Tomam as raparigas parte n’esta festa, onde se dança e canta-se á fartar,
deitam-se os que se embriagam logo e raras vezes apparecem questões:
são alegres e agradaveis n’essa occasião, especialmente as mulheres,
que fazem mil macaquices á ponto de provocarem grande hilaridade, até a
individuos mais tristes e melancolicos. Por mim confesso, que nunca em
minha vida me ri tanto como quando estas mulheres altercavam umas com as
outras, empunhando copos de madeira cheios de vinho, bebendo ora um, ora
outro, fazendo muitas macaquices e tregeitos.

Dão com muita facilidade o que mais presam, como sejam suas filhas e suas
mulheres, porque observei quando se cuidou na segunda viagem do _Miary_
que muitos _Tupinambás_ tanto da _Ilha_ do Maranhão, como de Tapuitapera,
foram de proposito com os Francezes para pedirem filhas e mulheres dos
Miarinenses, o que facilmente obtiveram, como muitas outras coisas, que
só fazem estes povos, e por isso mesmo muito caros e preciosos entre os
Tupinambás.

Tambem tem por costume, que igualmente observei entre os Tupinambás, o
trazerem assobios e flautas, feitos dos ossos das pernas, coxas e braços
de seos inimigos, dos quaes arrancam sons fortes, agudos e claros, e ao
som d’elles entoam seos cantos usuaes, especialmente quando estão nos
_Cauins_, ou quando vão a guerra.

As raparigas não se despresam em casar com velhos e grisalhos, como
praticam as dos _Tupinambás_, e sim antes querem esposar um velho,
especialmente quando é Principal, e admirei-me, como coisa desagradavel,
o vêr muitas jovens, de quinze a deseseis annos, casadas com velhos, e o
contrario praticam as raparigas dos _Tupinambás_, as quaes passam a sua
mocidade livremente, e depois acceitam um marido.

O que acabei de dizer, só tem por fim o mostrar a cegueira das almas
captivadas pelo espirito immundo, que não se descuida de perdel-as por
meio de suas traças.



CAPITULO XIV

Das incisões, que fazem estes selvagens em seos corpos e como escravisam
seos inimigos.


Estes povos, e não só elles, porem geralmente todos os Indios do Brazil,
tem por costume cortar o corpo, e recortal-o tão lindamente, que os
costureiros e alfaiates, embora habeis em sua profissão, buscam imital-os
no córte dos seos vestidos.

Este costume não é só privativo dos homens, e sim tambem das mulheres,
com a differença unica de que os homens se cortam por todo o corpo, e
as mulheres apenas desde o umbigo até as coxas, o que praticam por meio
de um dente de _Cutia_, muito agudo, e uma especie de gomma queimada,
reduzida á carvão, applicada sobre a chaga, e nunca se apagam os córtes.

Digo de passagem e não para demorar-me, e sim apenas para descubrir a
origem deste antigo costume, que me parece ser fundado pela naturesa,
visto ser praticado, já ha muitos annos, por nações civilisadas, cujo
conhecimento por falta de communicação não podia ter esta Nação barbara,
e assim inventou-o e d’elle usou.

Soube d’estes selvagens, que duas razões os levam a cortar assim seos
corpos, uma significa o pesar e o sentimento, que tem pela morte de seos
paes, assassinados pelos seos inimigos, e outra representa o protesto
de vingança, que contra estes promettem elles, como valentes e fortes,
parecendo quererem dizer por estes córtes dolorosos, que não pouparam
nem seo sangue e nem sua vida para vingal-os, e na verdade quanto mais
estigmatisados mais valentes e corajosos são reputados, no que tambem são
imitados pelas mulheres de iguaes qualidades.

Para mostrar a origem anterior d’este costume, não necessito remontar-me
ás historias profanas, no que seria prolixo, e sim contentar-me-hei
fazendo vêr em diversos trechos das escripturas sanctas quanto Deos
reprova este uso barbaro e selvagem. No Levitico 19. _Super mortuo non
incidetis carnem vestram, nec figuras aliquas, aut stigmatas facietis
vobis._ Sobre a vossa carne não fareis incisões, figuras ou signaes.
No cap. 21. _Necque in carnibus suis facient incisuras_: e não farão
incisões na sua carne. No Deut. 14. _Non vos incidetis, necfacietis
calvitiem super mortuo._ No morto não fareis incisões e nem cortareis os
cabellos.

Á respeito d’estas passagens interpretam os Padres, como fazem os gentios
e os idolatras, e de maneira notavel este trecho—_não fareis incisões e
nem cortareis os cabellos_, por que se vêem juntas estas duas coisas, que
os indios sempre separam restrictamente: quanto á incisão, já sabeis o
que ella significa, mas quanto ao arrancamento do cabello ficae sabendo,
que apenas as mulheres e as moças sabem do captiveiro ou morte na guerra
dos seos Paes ou maridos, cortam os cabellos, gritam e lamentam-se
horrivelmente, excitando seos similhantes á vingança, á tomar as armas e
a perseguir seos inimigos, como farei vêr quando narrar a _Historia dos
Tremembeses_.

Dos escravos, que me deram n’aquelle paiz para trabalharem á bem da minha
subsistencia soube da maneira como faziam prisioneiros e escravos.

N’um certo dia reprehendi a preguiça d’um d’elles, fórte e valente, que
me fora dado por um _Tupinambá_, e elle para minha advertencia me deo a
seguinte resposta, embora branda (bem sei o que é necessario observar
para com esta nação, que as reprehensões consideram como chagas e
feridas, e aos castigos preferem a morte,[31] e por esta forma desejam
antes morrer com honra, segundo dizem, no meio das assembleias, como ja
muito bem descreveo o Padre Claudio d’Abbeville): eil-a «na guerra não
me pozeste a mão sobre a espadua,[32] como fez aquelle que me deo a ti
para agora me reprehenderes.» Nasceo-me logo a curiosidade de saber por
intermedio do meu interprete o que elle queria dizer, e então fiquei
sciente de ser uma ceremonia de guerra entre estas nações, quando um
é prisioneiro do outro, bater-lhe este com a mão sobre a espadua e
dizer-lhe—faço-te meo escravo—e desde então este infeliz captivo, por
maior que seja entre os seos, se reconhece escravo e vencido, acompanha
o vencedor, serve-o fielmente sem que seo senhor ande vigiando-o, tendo
liberdade para andar por onde quiser, só fazendo o que fôr de sua
vontade, e de ordinario casa-se com a filha ou a irmã do seo senhor, e
assim vive até o dia em que deve ser morto e comido, o que não se pratica
mais em _Maranhão_, _Tapuitapera_ e em _Cumã_, e só raras vezes em
_Caieté_.

Estas nações me despertaram a lembrança do que li outr’ora nos livros
sagrados e na Historia dos Romanos, quando procediam ao captiveiro
dos prisioneiros, e para bem entender-se bom é notar-se, que foram as
ceremonias externas inventadas para representarem com sinceridade as
affeições do interior: por exemplo, dobrar o joelho, beijar a mão,
descubrir a cabeça, quando saudamos alguem, que estimamos, são outros
tantos testemunhos de apreço interno em que o temos: outr’ora as espadas
tinham hierogliphos representando o mysterio occulto das acções internas
e externas dos homens.

Deixando de parte o que não serve ao meo fim contento-me em referir os
dois seguintes casos:—o sceptro apoiado sobre a espadua significa o
poder regio: a alabarda sobre a espadua declara o poder dos chefes de
guerra: as maças de ouro e prata—o poder dos Senados e dos Pontifices: os
machados com ramos de parreira enroscadas—o poder dos consulados e dos
governadores das provincias. Observe-se o que foi escripto por Isaias
cap. 9. _Factus est Principatus super humerum ejus_, seo dominio foi
posto sobre sua espadua, e no cap. 22. _Dabo clavem domus Davis super
humerum ejus_, e porei a chave da casa de David sobre sua espadua, quer
dizer o—sceptro de David.

Ao contrario, pôr uma canga, como trazem os bois ou cavallos quando
no trabalho, ou então passar debaixo de uma lança, atravessada sobre
duas outras fixadas perpendicularmente, ou receber sobre a espadua nua
uma vergastada era o signal da escravidão, como muito bem o patenteiou
Isaias, cap. 9. _Jugum oneris ejus et virgam humeris ejus, et sceptrum
exactoris ejus superasti_: venceste o jugo do teu fardo e a vara de sua
espada, o sceptro do seu exactor, fallando do captiveiro da Gentilidade,
libertada pelo Salvador: assim tambem estes selvagens batendo sobre o
hombro de seus prisioneiros, significavam serem elles seos captivos, e
na verdade encontro uma bella profecia, toda litteral, narrando esta
desgraça, á qual estão sujeitos estes pobres selvagens de Chanaan, por
juizo impenetravel da sabedoria divina, e participação da antiga maldição
de Channan, seo Pae: é em Isaias, cap. 47—_Tolle molam, et mole farinam:
denuda turpitudinem tuam, discooperi humerum, revela crura, transit
flumina_, toma a mó, e móe a farinha, descobre tua torpesa e tua espadua,
mostra tuas coxas e passa o rio.

Tomam estes selvagens a mó, e a farinha, não tendo ferramenta alguma
para trabalhar, quer nos bosques quer nas roças, servem-se unicamente de
machados de pedra para cortar arvores, fazer suas casas e canoas, aguçar
paus, cultivar a terra, semeiar, plantar raizes, e por unica recompensa
de seos trabalhos só comem farinha, e raizes passadas por um rallador,
feito de pedrinhas agudas, engastadas n’uma taboa da largura de meio pé.

Cosinham a farinha n’uma grande panella de barro, ao fogo, como
amplamente está escripto na Historia do R. Padre Claudio d’Abbeville.

É tão patente sua torpesa, que suas mulheres e filhas, embora honestas,
sentem repugnancia de se vestirem. Trazem o hombro descuberto, sujeito
á este grande captiveiro, commum a todas as nações. Mostram suas coxas,
e a falta de castidade está em uso entre elles sem reprovação, menos o
adulterio.

Passam rios buscando ilhas incognitas atraz de segurança.



CAPITULO XV

Leis do Captiveiro.


Já que estamos fallando dos escravos bom é tratar das leis do captiveiro,
isto é, das que devem guardar os escravos.

Primeiramente não devem tocar na mulher do seo senhor, sob pena de serem
flexados logo, e a mulher morta ou pelo menos bem açoitada, e entregue
a seos Paes, resultando-lhe muita vergonha de ser companheira de um dos
seos servos.

Notae, que as raparigas não são despresadas por se entregarem a quem
muito bem lhes parece em quanto solteiras, logo porem que recebem um
marido, si se entregam a outro, alem da injuria de serem chamadas
_Patakeres_, quer dizer, prostitutas, tem seos maridos o poder de
matal-as, açoital-as e repudial-as.

É bem verdade terem os francezes abrandado esta lei tão rude, não dando
permissão aos maridos de matar tanto o escravo como a mulher adultera,
ordenando que fossem conduzidos ao Forte de São Luiz para vêr punil-as,
ou elle mesmo infringir-lhes o castigo, como vi acontecer, entre outros
factos, no adulterio commettido entre a mulher do Principal _Uyrapyran_,
e um escravo, bonito rapaz.

Tinha o referido escravo muito amor a esta mulher, e depois de ter
cogitado todos os meios de gosal-a, vio-a ir um dia á fonte, muito longe
da aldeia, foi logo atraz expôr-lhe sua vontade, e depois agarrando-a com
violencia entranhou-se com ella n’um bosque, onde saciou seos desejos, e
como ella era de boa familia não quiz gritar para não ser diffamada, e
ainda em cima pedio segredo ao escravo.

Enfadado o marido com a grande demora da mulher, e desconfiando de alguma
cousa por ser bonita e agradavel, foi á fonte, onde encontrou junto a
borda o pote de sua mulher cheio d’agoa, e lançando a vista ao redor,
como costumam a praticar os homens ciumentos, vio sahir sua mulher de um
lado do bosque e o escravo de outro. Agarrou o escravo pelo colleirinho,
e confiou-o à guarda dos seos amigos, e levou sua mulher para casa de
seos paes, que se comprometteram a entregal-a quando pedisse.

Na manhã seguinte, em companhia dos seos, levou este escravo á minha
casa, expondo-me o facto como acima referi, acrescentando que si não
fosse o respeito ás recommendações dos Padres e dos Francezes, elle teria
matado o escravo, perdoando comtudo a sua mulher visto ter sido forçada,
a qual ja havia entregado a seos parentes com intenção de repudial-a.

Louvei a sua obediencia e respeito: era na verdade um homem bem feito,
de bonito rosto, e bom corpo, fallando bem e em bons termos, mostrando
tanto nas maneiras como no corpo, generosidade e nobresa de coragem.

Mandei-o á presença do senhor de Pezieux, loco-tenente de Sua Magestade
na ausencia do Sr. de la Ravardiere, que tendo ouvido a queixa, mandou
carregar de ferros os pés do escravo, promettendo ao Principal fazer a
justiça, que elle quizesse.

Replicou-lhe o Principal que desejava vel-o morto como era costume:
respondeo o senhor de Pezieux, que Deos tinha ordenado em sua lei, que
deviam morrer tanto o homem como a mulher adultera.

Sim, disse o Principal, porem ella foi constrangida.

«Não, respondeo o senhor de Pezieux, a mulher não pode ser forçada por
um só homem, ou pelo menos deve gritar, e não pedir segredo ao selvagem,
o que é tacito consentimento:» dizia tudo isto para salvar o escravo da
morte, por que muito bem sabia não concordar o Principal na morte de sua
mulher visto os muitos parentes que ella tinha.

Conseguio-o logo, porque elle pedio ao Sr. de Pezieux, que não matasse o
escravo, mas sim que o prendesse na golilha, e que lhe fosse permittido
açoital-o á vontade.

«Sim, disse-lhe o Sr. de Pezieux, com tanto que dês quatro açoites com
cordas em tua mulher, diante de todas as mulheres, que se acharem no
Forte, e ao som da corneta.»

Acordes n’isto, na manhã seguinte, foi a mulher conduzida e confrontada
com o escravo, reconheceo-se que o facto deo-se como ja referi, foram
ambos conduzidos á praça publica do Forte, onde se fincou o esteio e a
golilha: ahi o marido representou o papel de verdugo, escolheo tres ou
quatro cordas bem duras, que enrolou em seo braço, e voltou em sua mão
direita, e com ellas açoitou sua mulher por quatro vezes, deixando-lhes
vergões bem grossos e cumpridos, impressos sobre seos rins, ventre e
costas, não sem derramar muitas lagrimas, que lhe corriam ao longo das
faces, e sem exhalar profundos suspiros: sua mulher tambem gemia, com a
vista baixa, envergonhada de assim se vêr rodeiada por tantas mulheres,
que, como ella, tambem choravam tanto por compaixão, como apprehensivas
de que para o futuro não lhes acontecesse o mesmo.

Os homens ao contrario mostravam-se alegres diante de tão boa justiça, e
gracejando diziam á suas mulheres—_ah! se te pilho!_

Durante todo o dia estiveram tristes as mulheres dos Tabajares.

Depois de haver açoitado sua mulher, este bom marido lhe disse «eu não
tinha desejos de castigar-te, fiz o que pude perante o Maioral dos
Francezes para salvar-te, porem vae, enchuga tuas lagrimas, e tornar-te
hei a tomar por mulher, e te levarei para casa quando acabar de castigar
este escravo.»

Sabe Deos, se o pesar que elle teve pelos açoites, que deo a mulher,
melhorou a sorte do pobre escravo, porque pondo-o na praça ou no largo,
fez um circulo do tamanho do seo chicote, separado todos, um por um.

Tinha o escravo ferros nos pés, estava em pé, nu como a palma da mão,
e assim soffreu o castigo, sem dizer uma palavra e sem mecher-se: por
tres vezes cansado e sem poder respirar descançou, depois de fortalecido
recommeçou e de tal maneira, que não poupou uma só parte do corpo.

Começou pelos pés, seguio pelas pernas, coxas, partes naturaes, rins,
ventre, espaduas, peito, e acabou pelo rosto e testa.

Esteve muito tempo doente por este castigo, sempre com ferros nos pés,
conforme pedio o Principal, porem passado algum tempo consentio que
lhos tirassem, á pedido do senhor de Pezieux, que desejava satisfazer
os desejos dos seos Principaes para melhor obrigal-os a serem fieis aos
Francezes.

Acabado isto, tomou conta da mulher, que já não chorava, e sim
principiava a rir-se, e assim voltaram para casa como se nada tivesse
acontecido.



CAPITULO XVI

Outras leis para os escravos.


Consistem as outras leis, em não poderem os escravos, de ambos os sexos,
casarem-se senão á vontade dos seos senhores, porque tanto uns como
outros moram juntos e seos descendentes pertencem ao mesmo domno.

Os selvagens _Tupinambás_ tomam ordinariamente para mulher as raparigas
captivas, e dão suas proprias filhas ou irmans aos mancebos escravos afim
de cuidarem no arranjo da casa e da cozinha.

Praticam o contrario os francezes, porque compram homens e mulheres
escravas para casal-os, ficando a mulher com o dever de cuidar no arranjo
da casa, e o marido com o de ir pescar e caçar.

Se acontece um francez comprar alguma rapariga escrava, mostra-a a algum
joven _Tupinambá_, que morre de amores pelas que são bellas, depois
promette-lhe que será seo genro pois ama sua escrava como si fosse sua
propria filha para assim vir o _Tupinambá_ morar com elle, casar com a
rapariga, e por esta forma ter por uma escrava dois escravos, a quem
trata por filha e genro, e elles o chamam seo _Cheru_, isto é, seo Pae.

As raparigas escravas, que não se casão, dispoem de si como querem,
si por ventura seos senhores não lhe prohibem relações com certos e
determinados individuos, porque então em caso contrario soffrem muito;
mas quando seos senhores lhe impoem completa abstinencia, ellas lhe dizem
bem claramente, que então as tomem por mulheres visto não querer, que
alguem as ame.

Devem os escravos trazer fielmente o resultado da sua pescaria e caçada,
e depôl-o aos pés do seo senhor ou senhora, para elles escolherem e
depois lhes darem o resto.

Não podem trabalhar para outrem sem consentimento do seo senhor, e
nem dar seo rebanho, que lhes deo o senhor, sem lhe dizerem antes uma
palavra, pois de outra forma pode ser tomado como coisa, que não pertence
legitimamente aos escravos.

Não devem passar atravez da parede das casas, somente feita de _pindoba_,
ou de ramos de palmeira, ao contrario são criminosos de morte, porque
devem passar pela porta, commum, ou atravez da parede de palmas.

Não devem fugir, porque quando são agarrados, está tudo perdido, visto
que são comidos: n’este caso já não pertencem ao senhor, e sim a todos,
e para este fim quando se prende um escravo fugido, sahem da aldeia as
velhas, vão ao seu encontro, e gritando dizem «é nosso, entregae-nos,
queremos comel-o», e batendo com a mão na bocca, gritam uns para os
outros com certa expressão «nós o comeremos, nós o comeremos, é nosso.»

Vou dar-lhes um exemplo:

Um guerreiro Principal da ilha do Maranhão, chamado _Ybuira Pointan_,[33]
quer dizer, _Pau brasil_, ao regressar da guerra trouxe comsigo alguns
escravos, dos quaes um procurou salvar-se pela fuga, porem sendo
agarrado, foram as velhas ao seu encontro batendo na bocca com as mãos, e
dizendo «é nosso, entregae-o, é necessario que seja comido».

Houve muita difficuldade em salval-o apezar da prohibição de não se
comerem os escravos, e si não se empregassem ameaças, elle seria devorado
pelas velhas.

Si acontece morrerem de molestias estes escravos, sendo assim privados do
leito de honra, isto é, de serem mortos e comidos publicamente, um pouco
antes do seo fallecimento levam-nos para o matto, lá partem-lhe a cabeça,
espalham o cerebro, e deixam o corpo insepulto e entregue a certas aves
grandes, similhantes aos nossos corvos, que comem os enforcados e os
rodados.

Quando são achados mortos em seos leitos, atiram-nos em terra,
arrastam-nos pelos pés até o matto, onde lhes racham a cabeça, como acima
disse, o que ja não se pratica na Ilha e nem em suas circumvisinhanças,
senão raras vezes e occultamente.

Gozam tambem de muitos privilegios, que os levam a residir
voluntariamente entre os _Tupinambás_, sem desejar fugir, considerando
seos senhores e senhoras como paes e mães, pela docilidade com que os
tratam cumprindo assim seo dever; não ralham com elles e nem os offendem,
não os espancam, desculpam-nos em muita coisa contanto que não offenda
os seos costumes: são muito compadecidos, e chegam a chorar quando
os francezes tratam os seos com aspereza, e si outros se lastimam do
procedimento dos francezes prestam-lhe todo o credito ao que dizem.

Quando fogem dos francezes elles os occultam, levam-lhes o sustento nos
mattos, vão vesital-os, as raparigas vão dormir com elles, contam-lhes o
que se passa, aconselham-nos sobre o que devem fazer, e de tal sorte que
é muito difficil agarral-os, embora vão atraz d’elles uns vinte homens, e
isto não fazem para com os escravos dos seos similhantes.

Vem a proposito o contar que um dia perguntei a um dos escravos, que
tinha em meu poder, si não estava satisfeito vivendo commigo, não só
porque lhe ensinei a temer a Deos, como tambem pela certesa, que tinha,
de não ser comido, e que, quando christão, seria livre, morando com os
padres como si fosse filho d’elles.

Pelo interprete respondeo-me julgar-se feliz por haver cahido nas mãos
dos Padres, tanto por conhecer á Deos como por viver com elles, e si
fosse para o poder de outro chefe, não estaria socegado e nem descançado
de não ser comido, porque, acrescentava elle, quando se morre, nada mais
se sente, quer elles comam ou não, e o mesmo para o morto: amofinar-me-ia
de morrer na minha cama, e não á maneira dos grandes no meio das danças e
dos _Cauins_, afim de vingar-me antes de morrer, dos que iriam comer-me.

Quando penso, que sou filho de um dos grandes do meo paiz, que meo
pae é homem moderado, que todos o cercavam para escutal-o quando elle
ia á _casa grande_,[34] vendo-me agora escravo, sem pintura no corpo,
sem cocar, sem enfeites nos braços, e nem nos pulsos, como acontece
aos filhos dos grandes das nossas terras, antes queria ser morto
especialmente quando me lembro, que fui agarrado ainda menino, com minha
mãe, lá na minha terra, e trazido para _Comã_, onde vi matar e comer
minha mãe, com quem desejei morrer, porque ella me amava muito, e por
isso não posso senão lamentar minha vida.

Proferindo estas palavras, chorou muito, a ponto de pungir-me o coração,
visto saber por experiencia quanto são amorosos estes selvagens, para com
seos paes, e estes para com elles.

Accrescentou, que depois de ter sido sua mãe morta e comida, seo senhor
e sua senhora o adoptaram por filho, e elle os tratava por pae e mãe:
quando fallava d’elles era com affeição inexplicavel, embora tivessem
comido sua propria mãe, e ja fosse resolvido o comel-o tambem pouco tempo
antes de chegarmos á Ilha.

Seo senhor e senhora tomavam o trabalho de vir vel-o em nossa casa,
embora fosse necessario vencer a distancia de 50 legoas, desde sua aldeia
até aqui.

Gozam ainda de muitos outros privilegios, porque lhes é permittido
o namorar as raparigas livres, sem risco algum, olhar mesmo para as
raparigas de seo senhor e senhora, si quizerem, e n’isto não ha muita
recusa, comtudo ellas buscam os mattos e em certas cabanazinhas os
esperam em hora marcada, para evitar pequeno remoque que costumam a fazer
das moças de boa raça, quando se entregam a escravos, o que serve antes
de riso do que de deshonra.

Vão livremente aos _Cauins_, e dansas publicas, enfeitando de mil
maneiras o seo corpo quer com pinturas, quer com pennas, quando podem,
pois estas são muito caras.

Vivem com os filhos de seos senhores, como si fossem irmãos, e em breve
tempo gozam muita liberdade no seo captiveiro.



CAPITULO XVII

Quanto são misericordiosos os selvagens para com os criminosos por acaso
e sem malicia.


Entre as perfeições naturaes que a experiencia me tem mostrado n’estes
selvagens, nota-se uma justa misericordia, isto é, desejam a punição
dos maus, quando por maldade praticam algum crime, e ao contrario são
compadecidos e pedem misericordia para aquelles, que por acaso ou
inadvertidamente incorrem n’alguma falta, e isto vou provar á vista do
seguinte exemplo.

_Maioba_ é uma grande aldeia, distante tres leguas do Forte de São Luiz:
o seo Principal é um bom homem, amado pelos francezes, e veio fazer a
nossa casa.

Tinha dois filhos fortes e robustos, ambos casados, e duas filhas, uma
casada e outra solteira, bonitas e engraçadas, muito amadas por seo Pae
e Mãe, de tal forma que eram perdidos por ellas e o assumpto predilecto
de suas conversações, e guardavam a solteira para um francez quando
voltassem os navios, diziam elles, e que os francezes se resolvessem a
casar com indias.

Fundava seos castellos e sua fortuna sobre um fragil barco, similhante
a aquella boa mulher, que tendo em suas mãos o primeiro ovo de sua
gallinha, sua imaginação ia levantando-a até um principado, que d’ahi ha
pouco cahio no chão e inutilisou-se, e com elle foi-se toda a ventura
esperada por ella.

Assim este homem não tendo outra consolação senão em sua filha, poucos
dias depois, por uma noite tão triste, _Geropary_ torceo o collo d’esta
plantinha, virando-lhe a bocca para as costas: coisa terrivel! estava
negra como o diabo, os olhos esbugalhados e revirados, a bocca aberta, a
lingua sahida para fóra, os labios superiores e inferiores revirados á
deixar vêr os dentes e as gengivas, o que poderia pela tristesa e medo,
que causava, matar a seos parentes.

Nunca pude saber qual foi a causa d’isto, e apenas me disseram que era
infiel, e talvez vivesse deshonestamente, porem nunca deo escandalo.

Embora seo pae tivesse vendido sua filha mais velha á algum francez para
d’ella abusar, depois a tirou da companhia do seo marido.

Dizem os que se acham em peccado mortal, que elles estão sob o dominio e
posse do diabo, e o mesmo lhes aconteceria, si Deos quizesse.

Não foi só esta desgraça, porque uma arrasta outra comsigo, e a primeira
é embaixadora da segunda.

Pouco tempo depois, este Principal fez uma festa de vinho publicamente, e
para isto convidou não só os habitantes de sua aldeia, como tambem os da
visinhança.

Quando todos dançavam e cantavam, quando o vinho fervia e muitos já se
achavam embriagados, seos dois filhos, de que ja fallei, travaram-se de
razões, e o autor da questão querendo agarrar seo irmão, por um acaso
ferio-lhe no ventre com um punhado de flechas, que este trasia pelo que
cahio logo banhado em sangue. Tiraram-se as flexas com muita dor, como
bem se calcula, o soffrimento fez desapparecer o vinho, a festa ficou
perturbada, as cantorias se mudaram em gritos e lamentos, o vinho em
lagrimas, as dansas em espancamentos proprios e arrancamento de cabellos.

O infeliz pae, expectador de similhante tragedia, assentado n’uma rede
d’algodão, teve um desmaio, e cahio para traz.

Voltando a si, disse aos que o rodeiavam, que de uma só vez perdeo seos
dois filhos, não fallando na que tinha perdido antes, um ferido por sua
culpa, e o outro que os francezes mandariam matar; todos se condoeram
d’elle.

Resolveram todos os Principaes da Ilha a virem ao Forte de São Luiz
interceder a favor do vivo.

Em quanto se passavam estes factos, o ferido contra sua vontade,
aproximava-se da morte, chamou seo irmão, e lhe disse: sou um grande
criminoso, pois de uma só vez matei muitas pessoas, isto é, a mim, a
meo pae, que morrerá de tristesa e a ti porque os francezes te mandarão
matar: elles são justiceiros em punir os maus: mas sabes tu o que ha?
toma meo conselho, e faze o que te digo.

Os Padres que vieram com os francezes, são compadecidos, e nos amam e
aos nossos filhos, e pelos seos interpretes soube que aqui vieram para
salvar-nos.

Já ouvi dizer, n’uma reunião a um dos nossos similhantes, que os
antecessores dos Padres baptisaram antigamente em quanto com elles
estiveram, e que vio os _Canibaes_ se abrigarem em suas Igrejas, quando
faziam alguma maldade, por terem certesa de que ahi ninguem lhes faria
mal.

Faze o mesmo, quando anoitecer vae com meo Pae procurar o Padre na sua
cabana de _Yviret_, pede para te pôr na casa de Deos, que é defronte da
residencia d’elle, e ahi fica, até que meo Pae, conjuntamente com os
Principaes, intercedam por ti, e consigam o teo perdão do Maioral dos
francezes.

Para mais facilidade, tu sabes que os Francezes necessitam de canoas e de
escravos, offereça pois meo Pae ao chefe tua canoa e teos escravos, para
que não morras.

Tudo isto foi cumprido pontualmente, porque este velho, Pae dos dois
rapazes, foi procurar-me, rogou-me e instou-me para que recebesse seo
filho na casa de Deos, e intercedesse para ser perdoado pelo Maioral dos
Francezes, buscando convencer-me, entre outras, com estas razões.

«Vós outros Padres fazeis regorgitar de povo as nossas _Casas Grandes_,
quando quereis, desejando vêr ahi grandes e pequenos, afim de ouvirem a
causa, que vos obrigou a deixar vossas casas e terras, muito melhores do
que estas, para nos ensinarem a naturesa de Deos, que é, como dizeis,
bom, misericordioso, amante da vida e inimigo da morte, e por isso não
quer que ninguem morra assim como elle morreo n’um madeiro para fazer
viver os mortos.

«Dizeis ainda, que nossos filhos não são mais nossos, o sim vossos, que
Deos vol-os deo, e que d’elles tomaes cuidados até a morte: mostrae-me
hoje, que vossa palavra é verdadeira.

«Estou velho, perdi todos os meos filhos, só me resta um, que fez esta
casa, que vos estima muito, e a todos os Padres e quer ser christão.

«Matou seo irmão sem querer, ou melhor, foi seo irmão quem se matou a
si proprio com as flechas, que trazia. Rogo-te o recebas na casa de
Deos, e vem commigo fallar ao chefe, porque elle nada te recusará visto
estimar-te muito.

«Quiz trazer commigo o filho, a favor de quem intercedo porem elle teme
muito a ira dos Francezes: actualmente anda errante e fugitivo pelos
mattos, como si fosse um javaly: quando ouve o ramalhar das arvores
suspeita ser os Franceses, que armados andam em busca d’elle para
prendel-o e conduzi-lo a _Yviret_, onde será amarrado á bocca de uma
peça.»

Respondi pelo meo interprete, asseverando-lhe que empregaria os meos
esforços, que tinha esperança de obter o que elle desejava porque o chefe
me estimava; mas que era bom, que elle fosse pessoalmente fazer seo
pedido, e que eu iria depois delle.

Foi immediatamente ao Forte em companhia de um dos principaes interpretes
da Colonia, chamado _Migan_,[35] e expôz suas razões e rogos ao senhor de
Pezieux, por esta fôrma.

«Sou um Pae muito infeliz, e acabarei minha velhice como os javalys,
vivendo só, comendo raizes amargas e cruas, se de mim não tiveres piedade.

«A misericordia muito convem aos grandes, e maiores não podem ser, quando
usam d’ella e de clemencia.

«É teu rei o maior do Mundo, como nos contam os nossos, que estiveram em
França.

«Elle para aqui te mandou como um dos Principaes da sua côrte afim de nos
livrares do captiveiro dos _Peros_: ora como és grande, e misericordioso,
usa de misericordia para com os infelizes, que são desgraçados por acaso
e não por malicia.

«Bem conheço, que é preciso ser justo, e indagar o motivo para se fazer a
escolha, e proceder-se a vingança sobre os maus, o que mui restrictamente
observamos entre nós, desde os nossos paes, mas quando a falta não é
originada por maldade nós perdoamos.

«Tenho dois filhos, como sabes, os quaes tem vindo trabalhar no teo
Forte, um matou o outro por acaso e sem maldade, ou para melhor dizer,
suicidou-se o mais velho nas flechas do mais moço, que está vivo, e te
peço que não o persigas e sim o perdôes.

«É elle, que me hade sustentar na velhice: sempre foi amigo dos
francezes, e quando algum vae a minha aldeia, chama logo os seos cães, e
vae caçar cotias e as pacas para elle comer.

«Fez a cása dos Padres, e assevera-me que elles o protegem.

«Sempre foi muito obediente á sua madrasta, que o ama como si fosse
seo proprio filho: seo irmão, que sem querer, elle matou, era mau, não
estimava os Francezes, nunca lhes deo coisa alguma, não ia á caça para
elles, aborrecia sua madrasta, e muitas vezes a zangava: quando morreo,
estava bebado, e veio tomar a mulher do seo irmão, e arrancando o filho,
que ella tinha ao collo, atirou o menino para um lado e a mãe para outro,
dando-lhe bofetadas, embora estivesse grávida, na minha presença e á
vista do seo marido, e tudo soffremos com paciencia; porem vindo agarrar
seo irmão para espancal-o, ferio-se no ventre com as flechas, que elle
trasia na mão e assim morreo.

«Porque perderei eu meos dois filhos, de uma só vez, e já na minha
velhice?

«Si queres mandar matar o unico que tenho, mata-me primeiro, e depois
a elle. Elle te dá sua canoa para a pescaria e seos escravos para te
servirem.»

Admirou o Sr. de Pezieux este discurso, como depois me disse e por muitas
vezes, e o referio á diversas pessoas, admirando-se de ver tão bella
Rhetorica na bocca de um selvagem.

Previno-vos, que represento todos estes discursos e supplicas o mais
sinceramente que me foi possivel, sem o emprego de artificio algum.

Respondeo o Sr. de Pezieux dizendo ser grande crime um irmão matar outro,
mas como elle asseverava ter sido antes por culpa do fallecido do que
pela do vivo, perdoava a rogo dos Padres, a quem nada queria recusar, e
assegurou-lhe logo que seo filho nada soffreria, que acceitava a canoa
e os escravos, porem que tudo isto lhe offerecia para o arrimo de sua
velhice visto ser elle amigo dos Padres e dos Francezes.

Alegrou-se muito o bom velho com este acto de misericordia e
liberalidade, e não foi ingrato, não só fazendo conhecido por toda a Ilha
o facto, como tambem offerecendo ao dito Sr. e a nós tudo quanto elle e
seu filho caçavam.



CAPITULO XVIII

Quanto é facil civilizar os selvagens á maneira dos francezes, e
ensinar-lhes os officios, que temos em França.


No Liv. 2.º, Cap. 1.º, dos Machabeos, lemos, que o fogo sagrado do altar
foi escondido no poço de Nephtar durante o captiveiro do povo e se
transformou em limo.

Quando o povo regressou, já livre, os Sacerdotes apanharam este limo, e o
deitaram na madeira do altar, levantado para os sacrificios.

Apenas o sol, lá de cima, começou a lançar seos raios sobre o limo, este
se transformou em fogo, e devorou os holocaustos.

Desejo servir-me d’esta figura para explicar o que tenho a dizer n’este e
nos seguintes Capitulos.

Convem notar, que por este fogo se deve entender o espirito humano
imitando a naturesa do fogo por sua actividade, ligeiresa, calôr e
claridade, o qual se torna lodo e limo, escondido n’um centro differente
do seo proprio, devido isto á sua alma captiva pela infidelidade.

Quero dizer, que sendo o espirito do homem creado para conhecer a Deos,
e aprender artes e sciencias, torna-se entorpecido e obscurecido entre
as immundicies, quando sua alma está presa nas cadeias da infidelidade,
sob a tyrannia de Satanaz, mas quando sua alma desprende-se do captiveiro
pela intenção e guia dos Prophetas de Deos, sahe o espirito d’esse
poço lamacento, e animado pela luz, e conhecimento de Deos, das artes,
e das boas sciencias, torna-se apto e prompto para executar o que
percebe e aprende, o que farei vêr, e tocar com o dedo a respeito dos
nossos selvagens, e mui principalmente quando de suas perguntas mais
comesinhas nasce a esperança d’elles se civilisarem, e viverem reunidos
n’uma cidade, negociando, aprendendo officios, estudando, escrevendo e
adquirindo sciencia.

Tenho para mim, que são mais faceis de serem civilisados, do que os
aldeões de França, por ter a novidade não sei que influencia sobre o
espirito afim de excital-o a aprender o que elle vê de novo, e lhe agrada.

Os nossos _Tupinambás_ nunca tiveram ideia alguma de civilisação até
hoje; eis a razão porque elles se esforção, por toda a forma, de imitar
os nossos francezes, como depois direi.

Ao contrario os aldeões da nossa França estão de tal sorte enraisados em
sua rusticidade, que, em qualquer conversação, embora nas cidades entre
pessoas distinctas, sempre mostram signaes de camponezes.

Aos _Tupinambás_, depois de dois annos de convivencia com os francezes,
estes lhes ensinaram a tirar o chapeu, a saudar a todos, a beijar as
mãos, a comprimentar, a dar os bons dias, a dizer adeos, a ir á Igreja,
a tomar agua benta, a ajoelhar-se, a pôr as mãos, a fazer o signal da
Cruz na testa e no peito, a bater no peito diante de Deos, a ouvir missa
e sermão, ainda que nada d’isto comprehendam, a levar o _Agnus Dei_, a
ajudar o sacerdote á missa, a assentar-se á mesa, a estender a toalha
diante de si, a lavar suas mãos, a pegar na carne com tres dedos, a
cortal-a no prato, e a beber em commum, e breve farão todos os actos
de civilidade e delicadesa, que se costuma a praticar entre nós, e já
se acham tão adiantados a ponto de parecerem ter sempre vivido entre os
francezes.

Ninguem pois poderá contestar-me, que não sejam estes factos bastante
para convencer-nos do que devemos esperar e acreditar ser esta nação, com
o andar dos tempos, civilisada, honesta e muito aproveitada.

Como os exemplos provam mais que outra qualquer especie de argumentação,
vou contar-vos o caso de alguns selvagens educados em casa de nobres.

Actualmente ha em Maranhão uma mulher selvagem, de uma das boas raças da
Ilha, que foi antigamente, quando bem pequena, tomada pelos portuguezes,
e vendida como escrava á D. Catharina de Albuquerque, sobrinha do grande
Albuquerque, Vice-Rei das Indias Orientaes, sob o dominio do Rei de
Portugal, a qual reside presentemente em Pernambuco, e é Marqueza de
Fernando de Noronha, ilha muito bella e fertil, segundo diz o Revd. Padre
Claudio d’Abbeville na sua Historia.

Esta rapariga fez-se christã, e se a vestissem á portugueza não se
poderia facilmente dizer qual a sua origem, se portugueza ou selvagem,
mostrando sempre a vergonha e o pudor, inseparaveis de uma mulher, e
occultando com cuidado a imperfeição do seo sexo.

Poderia dizer outro tanto de muitos selvagens, educados entre os
portuguezes, e dos quaes alguns foram á França, e conservam ainda hoje o
que aprenderam, e o praticam quando se acham entre os francezes.

É novo entre elles o uso da barba e dos bigodes, porem como vêem esse uso
entre os Francezes, tambem deixam crescer tanto uma como outra coisa.

Tem incomparavel aptidão para as artes e officios.

Conheço um selvagem do Miary, chamado _Ferrador_, por causa do officio,
que aprendeo, vendo somente trabalhar um ferrador francez que nada lhe
explicou.

Sabia muito bem malhar com os outros uma barra de ferro encandecida,
como se tivesse longa pratica, apesar de ser coisa muito sabida entre os
officiaes do mesmo officio, que é necessario muito tempo para aprender-se
a musica dos martellos na bigorna do ferrador.

Achando-se este mesmo selvagem nos desertos do Miary com seos
semelhantes, sem bigorna e martello, limas e tornos, trabalhava comtudo
muito bem fazendo pontas ou lanças para flechas, harpões e anzóes.
Por bigorna tinha uma pedra muito dura, por martello outra de menor
consistencia, e depois aquecendo ao fogo o ferro, dava-lhe a forma que
queria.

Os officios mais necessarios entre elles são os de ferreiro, tanoeiro,
carpinteiro, marcineiro, cordoeiro, alfaiate, sapateiro, tecelão, oleiro,
ladrilhador, e agricultor.

Para todos estes officios são aptos e inclinados pela natureza.

Para o de ferreiro ou de ferrador ja referimos um exemplo.

Quanto ao officio de tecelão seria a sua especialidade se aprendessem;
tecem seos leitos muito bem, trabalham em lã tão perfeitamente como os
francezes, embora não empreguem a lançadeira, e nem a agulha de ferro, e
sim pequenos pausinhos.

Contarei ainda uma bonita historia.

Fui um dia visitar o grande _Thion_, principal dos Pedras-verdes,
_Tabajares_; quando cheguei a sua casa, e porque lhe pedisse, uma de suas
mulheres me levou para debaixo de uma bella arvore no fim da sua cabana,
que a abrigava dos ardores do sol, onde estava armado um teiar de faser
redes de algodão, em que elle trabalhava.

Gostei muito de vêr este grande Capitão, velho Coronel de sua nação,
enobrecido por tantas cicatrises, entregando-se com praser á este
officio, e não podendo conter-me, perguntei-lhe a razão d’isto, esperando
aprender alguma coisa de novo n’este facto tão particular, que estava
vendo.

Pelo meu interprete lhe perguntei a razão, porque se dava a esse mister.

Respondeo-me, «porque os rapases observam minhas acções e praticam o que
eu faço; se eu ficasse deitado na rede e a fumar, elles não quereriam
fazer outra coisa: quando me vêm ir para o campo com o machado no hombro
e a fouce na mão, ou tecer rede, elles se se envergonham de nada fazer.»

Eu e os que comigo então se achavam, sentiram muito prazer ouvindo estas
palavras, e desejaria vel-as praticadas por todos os christãos, porque
então a ociosidade, mãe de todos os vicios, não estaria em França, como
actualmente se vê.

O officio de carpinteiro não lhes é muito difficil, porque os vi fazendo
suas casas, e as dos Francezes, assentando seo machado, e repetindo o
golpe no mesmo lugar, quatro ou cinco vezes, com tanta firmeza, como
faria qualquer carpinteiro bem habil.

A arte de marcineria lhes é facil, porque com suas fouces aplainam um
pedaço de pau, tão liso e tão igual, como se tivesse passado o raspador
por cima d’elle.

Com o auxilio de suas facas somente, fazem macaquinhos e outras figuras
de madeira.

Não precisam de serra, e nem de outro qualquer instrumento para fazer
seos arcos, remos e espada de guerra, pois basta-lhes uma simples
machadinha.

Cavam, arranjam suas canôas, e dão-lhes a forma, que lhes apraz.

Brevemente tractarei de outros officios, nos quaes os vi trabalhar com
tal industria a ponto de parecer-me que, com pouco tempo de ensino,
chegaram á perfeição.

Alem d’isto fazem muito bem vestidos, cubertas de cama, sobre-céos,
sanéfas e cortinados de cama, pennas de diversas cores, que por sua
perfeição se pensa terem vindo de fóra.

Não fallarei da propensão natural, que elles tem para pintar, fazer
diversas folhagens, e figuras, servindo-se apenas de uma pequena lasca de
pau, ou ponteiro, ao passo que os nossos pintores necessitam de tantos
pinceis, compassos, regoas, e lapis.



CAPITULO XIX

Quanto são aptos os selvagens para aprenderem sciencias e virtudes.


Quando regressei das Indias para a França, pelas frequentes e constantes
perguntas, feitas pelas pessoas, que me vinham visitar, reconheci quanto
é difficil acreditarem os Francezes, que os selvagens sejam aptos para
aprenderem sciencia e virtude, e não sei se alguns chegam a ponto de
julgar estes povos antes do genero dos macacos, do que dos homens.

Em quanto a mim elles são homens, e provarei, e por tanto capazes de
obterem sciencia e virtude.

Seneca na sua epistola 110 disse «_Omnibus natura dedit fundamenta
semenque virtutum_.» A natura deo a todas as creaturas, sem excepção de
uma só, as raizes e as sementes das virtudes, palavras mui notaveis:
assim como as raizes e as sementes são lançadas na terra e por
conseguinte enterradas em suas entranhas, assim tambem Deos lançou
naturalmente no espirito do homem as raizes e as sementes da virtude:
com taes alicerces pode o homem, ajudado por Deos, edificar um predio, e
extrahir da semente uma bella arvore carregada de flores e de fructos,
doutrina esta muito bem provada por S. João Chrisostomo, na Homilia
55, ao povo de Antiochia, e na Homilia 15 á respeito da Epistola 1ª á
Thimotheo moralisando esta passagem do Genesis:—_Germinet terra, herbam
virentem, e omne lignum pomiferum_, «produsa a terra herva verdejante ou
arvore fructifera:» acrescentou ainda—_Dic ut producat ipse terra fructum
proprium et exibit quicquid facere velis_, «dize e ordena á tua propria
terra, que produza seo fructo natural, e verás ella produzir logo o que
pedires.»

São Bernardo, no _Tractado da vida solitaria_, disse—_virtus vis est
quædam ex natura_, «a virtude é uma certa força, que sahe da natureza.»

Se assim não fôr, quero provar por muitos exemplos, começando pelas
sciencias, para cujo ensino concorrem as tres faculdades da alma—vontade,
intelligencia, e memoria: a vontade dá ao homem o desejo de aprender,
e por ella vencemos toda a sorte de trabalhos e difficuldades: a
intelligencia dá vivacidade para comprehender, e a memoria guarda e
conserva o que conheceo e aprendeo.

São mui curiosos os selvagens de saber novidades e para satisfazer tal
desejo, os caminhos e a distancia das terras, por maiores, que sejam,
lhes parecem curtos, não sentem a fome, porque passam, e os trabalhos
como que são descanço para elles: prestam-vos toda a sua attenção,
escutam o que disserdes durante o tempo que vos parecer, sem enfado e
em silencio, á respeito de Deos, ou de qualquer assumpto, e se tiverdes
paciencia, elles vos farão milhares de perguntas.

Lembra-me, que entre as praticas, que eu lhes fazia ordinariamente por
intermedio do meo interprete, eu lhes disse que apenas chegassem de
França os Padres, elles mandariam edificar casas de pedra ou de madeira,
onde seriam recolhidos seos filhos, aos quaes os Padres ensinariam tudo o
que sabem os _Caraibas_.

Responderam-me: oh! quanto são felizes nossos filhos por aprenderem tão
bellas coisas, oh! quanto fomos infelizes nós e os nossos antepassados
por não haverem Principaes n’esse tempo.

É viva sua intelligencia como reconhecereis pelo seguinte facto.

Não ha estrellas no Ceo, que elles não conheçam e calculam pouco mais ou
menos a vinda das chuvas e as outras estações do anno.

Pela phisionomia distinguem um Francez de um Portuguez, um Tapuyo de um
Tupinambá, e assim por diante.

Nada fazem antes de pensar, e pezam em seu juiso uma coisa antes de
emittir sua opinião. Ficam serios e pensativos, porem não se precipitam
em fallar.

Mas, dizeis vós, como é possivel que estas pessoas tenham tal juiso
fazendo o que fazem?

Porque elles dão por uma faca cem escudos de ambar gris, ou qualquer
outra coisa, que apreciamos, como sejam: ouro, prata e pedras preciosas.

Eu vos direi a opinião que elles fazem de nós, muito contraria n’este
ponto: julgam-nos loucos e pouco judiciosos em apreciar mais as coisas,
que não servem para o sustento da vida do que aquellas, que nos
proporcionam o viver commodamente.

Na verdade, quem deixará de confessar, ser uma faca mais necessaria á
vida do homem, do que um diamante de cem mil escudos, comparando um
objecto com outro, e pondo de parte, a estima que se lhe dá?

Para provar que não lhes falta juiso afim de avaliar a estima que fazem
os Francezes das coisas existentes em sua terra, basta dizer, que elles
sabem altear muito o preço das coisas, que julgam ser apreciadas pelos
francezes.

Um dia disseram-me alguns, que era preciso haver muita falta de madeira
em França, e que experimentassemos muito frio para mandarmos navios de
tão longe, a mercê de tantos perigos, carregarem de paus.[36]

Respondi-lhes que não era para queimar e sim para tingir de cores.

Replicaram-me: porque nos compraes o que cresce em nosso paiz a troco de
vestidos vermelhos, amarellos e verde-gaios? Eu os satisfiz dizendo ser
necessario misturar outras cores com as do seo paiz para tingir panos.

Si me disserdes, que elles fazem acções inteiramente brutaes, como
as de comer seos inimigos, e praticar tudo que os offenda, como seja
expol-os em lugares onde ha piolhos, vermes, espinhos, etc., eu vos
responderei não provir isto de falta de juiso, porem sim de um erro
hereditario, sempre existente entre elles, por pensarem, que sua honra
depende de vingança: parece-me, que tambem não é desculpavel o erro
dos nossos francezes de se matarem em duello, e comtudo vemos os mais
bellos espiritos, e os primeiros da nobreza concordarem com este erro,
despresando a Lei de Deos, e arriscando a eternidade de sua salvação.

Quanto a memoria elles a possuem muito feliz, porque lembram-se sempre do
que viram e ouviram com todas as circumstancias do lugar, do tempo, das
pessoas, quando o caso se disse ou se executou, fazendo uma geographia
ou descripção natural com a ponta de seos dedos na areia, do que estão
contando.

O que mais me admirou foi vel-os narrar tudo quanto se ha passado desde
tempos immemoriaes, somente por tradicção, porque tem por costume os
velhos contar diante dos moços quem foram seos avós e antepassados, e
o que se passou no tempo d’elles: fazem isto na _casa grande_, algumas
vezes nas suas residencias particulares, acordando muito cedo, e
convidando gente para ouvil-os, e o mesmo fazem quando se vesitam, porque
abraçando-se com amisade, e chorando, contam um ao outro, palavra por
palavra quem foram seos avós e ante-passados, e o que se passou no tempo
em que viveram.



CAPITULO XX

Continuação do objecto antecedente.


Concordo que sejam estes povos inclinados pela naturesa á muitos vicios,
porem é necessario lembrar-nos, que elles são captivos por infidelidade
d’estes espiritos rebeldes a Lei de Deos, e instigadores da sua
transgressão.

São João na sua Epistola 1.ª chama _iniquidade_ ou _desigualdade_
o desvio ou a digressão do direito, como muito bem explica o texto
Grego[BC] ——————————, assim traduzido _Peccatum est exorbitatio á lege_.

Esta Lei é divina ou humana: aquella dada por escripto á Moysés, e depois
por Jesus Christo aos christãos, e esta acha-se gravada no intimo d’alma.

Transgredindo-se estas duas Leis commettem-se dois peccados, um contra
os mandamentos de Deos, e outro contra a lei natural: por elles serão
accusados e condemnados os incredulos, cada um de per si, alem do peccado
commum da infidelidade.

Entre todos os vicios a que estão sugeitos estes barbaros, sobresahe a
vingança, que nunca perdoam, e a praticam logo que podem, embora as boas
apparencias com que tratam seos inimigos reconciliados.

Não ha a menor duvida que retirando-se os francezes do Maranhão, todas as
nações, antes inimigas, que ahi residem promiscuamente, por terem a nossa
alliança, devorar-se-hão umas ás outras, embora, o que é para admirar,
vivam agora muito bem sob o dominio dos francezes, e até contrahindo-se
casamentos entre ellas.

Gostam tanto de vinho a ponto de ser considerada a embriaguez por elles,
e até mesmo pelas mulheres, como uma grande honra.

São impudicos extraordinariamente, mais as raparigas do que qualquer
outros inventores de noticias falsas, mentirosos, levianos e
inconstantes, vicios mui communs a todos os incredulos, e por ultimo são
extremamente preguiçosos a ponto de não quererem trabalhar, embora vivam
na miseria, antes do que na opulencia por meio do trabalho.

Se elles quizessem, não era necessario muito cansaço para terem em poucas
horas muita carne e peixe.

O que acabo de dizer, refere-se especialmente aos _Tupinambás_, porque
as outras nações, como sejam os _Tabajares_, _Cabellos-compridos_,
_Tremembés_, _Canibaes_, _Pacajares_, _Camarapins_, e _Pinarienses_, e
outros trabalham muito para viver, ajuntar generos, ter boa casa, e todas
as commodidades.

Vou dar-vos um exemplo bem notavel da preguiça dos nossos _Tupinambás_.

Obtendo alguns Francezes do Forte licença para irem passear ás aldeias,
foram á do chefe _Vsaap_.

Na entrada da primeira choupana encontraram um grande fumeiro cheio de
caça, e ao lado d’elle um indio, dono da casa, deitado n’uma rede de
algodão, que gemia muito como se estivesse bastante doente.

Os nossos Francezes alegres e promptos á festejarem esta mesa tão bem
preparada, lhe perguntaram com brandura e carinho _Dê omano Chetuasap_,
«está doente meo compadre?» Sim, respondeo elle. Que tendes, replicaram
os Francezes, quem vos fez mal? Minha mulher, disse elle. Foi para roça
desde pela manhã, e eu ainda não comi. A farinha e a carne está tão perto
de vós, porque não vos levantaes, para comer, disseram os francezes? Sou
preguiçoso, não sei levantar-me. Quereis, tornaram os francezes, que vos
levemos a farinha e a carne, e comeremos comvosco? Quero, respondeo elle
logo.

Começaram todos a aliviar o fumeiro, pozeram tudo diante d’elle, e
assentando-se em roda, como é de costume, excitaram-lhe o apetite pela
boa vontade que mostravam, e o trabalho, que elles tiveram de tirar
a comida de cima do fumeiro, em distancia de tres pés, foi o unico
pagamento de tal companhia na mesa.

Apesar de suas perversas inclinações, elles tem outras muito boas,
louvaveis e virtuosas.

Vivem pacificamente com os outros, dividem com elles o resultado de sua
pescaria, caçada e lavoura, e não comem ás escondidas.

Um dia na aldeia de Januaran só tinham farinha para comer. Appareceu um
rapaz trazendo uma perdiz morta ha pouco; sua mãe depennou-a ao fogo,
cozinhou-a, deitou-a n’um pilão, reduzio-a á pó, e juntando-lhe folhas
de mandioca, cujo gosto é similhante ao da chicoria selvagem, fez ferver
tudo, e depois de bem picado ou cortado em pedacinhos, d’esta mistura
fez pequenos bolos, do tamanho de uma balla, e mandou distribuil-os pela
aldeia, um para cada choupana.

Vi ainda uma coisa mais admiravel, embora comesinha, e sem consequencia.

Appareceram em minha casa muitos selvagens esfaimados, vindos da
pescaria, onde somente apanharam um carangueijo, que assaram sobre
carvões, e pedindo-me farinha, o comeram todos, fazendo roda, cada um o
seo pedacinho: eram doze ou treze.

Bem podeis imaginar o que tocaria a cada um, sendo o carangueijo do
tamanho de um ovo de galinha.

É muito grande a liberalidade entre elles, e desconhecida a avaresa.

Si algum delles tiver desejos de possuir uma coisa, que pertença a outro,
elle o diz francamente, e é preciso que o objecto seja muito estimado
para não ser dado logo, embora o que a pedio fique na obrigação de dar ao
outro tambem o que elle desejar.

Tornam-se mais liberaes para com os estrangeiros do que para com seos
patricios.

Ficam reduzidos á pobresa comtanto que bem hospedem os estrangeiros, que
vão visital-os, julgando-se bem recompensados com a fama de liberaes,
espalhada pelos que não são de sua terra, e julgam chegar ella até aos
paizes estrangeiros, onde serão tidos por grandes e ricos.

Com taes ideias muitas vezes vão fazer visitas a cem, duzentas e
tresentas legoas afim de serem apreciados por suas liberalidades.

Nunca roubam uns aos outros; o que possuem está á vista, pendurado nas
vigas e barrotes de suas casas.

É bem verdade, que dentro da Ilha actualmente, em Tapuytapera, e Cumã,
elles tem cofres, que lhes deram os Francezes, onde guardam o que tem de
melhor, e, ou excitados por isto, ou pelo exemplo dos Francezes, muitos
d’elles ja aprenderam a arte de furtar.

Elles chamam furtar—_Mondá_, ao ladrão _Mondaron_, e este nome é entre
elles grande injuria a ponto de mudarem de côr quando o pronunciam:
chamar uma mulher ladra, é duas vezes prostituta, com o nome de
_Menondere_ para differençar de prostituta simples—_Patakuere_, é aquelle
primeiro epitheto o mais afrontoso, que se lhe pode dizer.

Tomareis uma boa vingança chamando-os ladrões, quando elles vos atirarem
ao rosto um bem claro, e expressivo _Giriragoy_, que quer dizer
_mentiste_, sem exceptuar pessoa alguma, e por isto bem podeis avaliar
quanto este vicio é detestado por elles, pois não podem tolerar a injuria.

Guardam reciproca equidade, não se enganam nem se illudem: si um
offende a outro, segue-se logo a pena de _Talião_: são mui tolerantes,
respeitam-se reciprocamente, especialmente os velhos.

São muito soffredores em suas miserias e fome chegando até a comer
terra,[37] ao que acostumam seos filhos, o que vi muitas vezes.

Vi muitos meninos tendo nas mãos uma bolla de terra, que ha em sua aldeia
como _terra siggilada_, a qual apreciam e comem como fazem as crianças,
em França com as maçans, as pêras, e outros fructos que se lhes dá.

Não se esmeram no preparo da comida, como nós, por que ou a cozinham ao
fogo, ou a fazem ferver n’uma panella sem sal, ou assam-n’a no fumeiro.



CAPITULO XXI

Ordem e respeito da naturesa entre os selvagens, observada
inviolavelmente pela mocidade.


O que mais me impressionou e admirou durante os dois annos, que estive
entre os selvagens, foi a ordem e respeito observado inviolavelmente
pelos moços para com os seos parentes mais velhos, ou entre elles,
fazendo cada um o que permitte a sua idade sem cuidar do que se acha no
mais alto ou no menor grau.

Ninguem deixará de admirar-se commigo vendo a naturesa somente ter
n’estes barbaros o poder de fazel-os guardar o respeito, que os meninos
devem a seos maiores, e fazer conter a estes no que é exigido pela
diversidade das idades.

Quem não se hade admirar vendo a naturesa somente ter mais força para
fazer observar estas coisas, do que a Lei e a graça de Jesus-Christo
sobre os Christãos, entre os quaes raras vezes se contem a mocidade nos
seos deveres, apesar de todos os bons ensinos, mestres e pedagogos,
apparecendo sempre confusão e grande presumpção.

Muito praser terei si o caso seguinte nos der algum remedio.

Distinguem os selvagens suas idades por certos graus, e cada grau tem no
frontespicio de sua entrada, seu nome proprio, que ensina ao que pretende
entrar em seo palacio os seos jardins e alamedas, a sua occupação, e isto
por enigmas, como eram outr’ora os Hierogliphos dos Egypcios.

O primeiro grau é destinado as crianças do sexo masculino e legitimos
e dão-lhe em sua lingua o nome de _Peitan_, isto é, «menino sahindo do
ventre de sua mãe.»

Á este primeiro grau da idade do menino é inteiramente cheio de
ignorancia, de fraqueza e de lagrimas, base de todos os outros graus.

A natureza, boa mãe d’estes selvagens, quiz que o menino sahindo do
ventre de sua mãe, se achasse em estado de receber em si as primeiras
sementes do natural commum d’estes selvagens, porque não é afagado,
pensado, aquecido, bem nutrido, bem tratado, nem confiado aos cuidados
de alguma ama, e sim apenas lavado em algum riacho ou n’alguma vasilha
com agua, deitado n’uma redezinha de algodão, com todos os seos membros
em plena liberdade, nus inteiramente, tendo por unico alimento o leite
de sua mãe, e grãos de milho assados, mastigados por ella até ficarem
reduzidos á farinha, amassados com saliva em forma de caldo, e postos em
sua boquinha como costumam a fazer os passaros com a sua prole, isto é,
passando de bocca para bocca.

É bem verdade, que quando o menino é um pouco forte, por conhecimento
e inclinação natural, ri-se, brinca e salta, nos braços de sua mãe,
pensando estar mastigando sua comida, levando seo bracinho á bocca
d’ella, recebendo no concavo de sua mãosinha este repasto natural, que
leva á bocca e come: quando se sente farto, bota fóra o resto, e virando
a cara, e batendo com as mãos na bocca da mãe, lhe dá a entender que não
quer mais.

Obedece a mãe promptamente não forçando seo apetite e nem lhe dando
occasião de chorar.

Si o menino tem sêde, por gestos sabe pedir o peito de sua mãe.

Em tão tenra idade mostram o respeito e o dever, que a natureza lhes dá,
porque não são gritadores, comtanto que vejam suas mães, e ficam no lugar
onde os deixam.

Quando vão trabalhar nas roças ellas as assentam nuasinhas na areia ou na
terra, onde ficam caladinhas, ainda que o ardor do sol lhes dê no rosto
ou no corpo.

Qual seria de nós, que hoje poderia viver soffrendo na primeira idade
tantos encommodos?

Esperam os nossos paes a retribuição e dever, que principiamos a
pagar-lhes desde a primeira idade, si não estão cegos pelo amor que nos
tem; o mesmo devem esperar nas outras idades, sendo mais reconhecidos os
nossos deveres para com elles, custe o que custar-nos.

Começa a segunda idade, quando o menino anima-se a andar sosinho, e
apezar de haver alguma confusão da-se-lhe o mesmo nome.

Observei differença na maneira de criar os meninos, que não sabem andar,
e os que se esforçam para o fazer, o que nos leva a formar outra classe,
e dar-lhe nome proprio: chama-se _Kunumy-miry_, «rapazinho»[38] e abrange
até 7 a 8 annos.

Durante este tempo não se separam de suas mães, e nem acompanham seos
Paes, e o que é mais, deixam-nos mamar até que por si mesmo aborreçam o
peito, habituando-se pouco a pouco ás comidas grosseiras como os grandes
e adultos.

Dão lhes pequenos arcos e flexas proporcionaes ás suas forças,
reunindo-se uns aos outros plantam e juntam algumas cabaças, nas quaes
fazem alvo para o tiro das suas flechas adextrando assim bem cêdo seos
braços.

Não açoitam, e nem castigam seos filhos, que obedecem a seos paes e
respeitam os mais velhos.

È muito agradavel esta idade dos meninos, e n’ella podereis descobrir a
differença existente entre nós pela naturesa e pela graça: sem fazer
comparação, acho-os mimosos, doceis e affaveis como os meninos francezes,
não esquecendo antes tornando bem saliente a graça do Espirito Santo
concedida pelo baptismo aos filhos dos Christãos.

Si acontece morrerem os meninos n’esta idade, tem os paes pesar profundo,
e sempre se recordam d’elles, especialmente nas cerimonias de lagrimas e
lamentações, recordações que fazem uns aos outros, lastimando esta perda
e a morte dos seos filhinhos, dando-lhes o nome de _Ykunumirmee-seon_ «o
menino morto na infancia.»

Vi mães, quase loucas, no meio de suas roças, ou nas matas sosinhas, em
pé ou agachadas, chorando amargamente, e quando lhes perguntava para que
faziam isto, respondiam-me «Oh! recordo-me da morte de meos filhinhos,
_Ché Kunumirmee-seon_, ainda na infancia» e depois continuavam a chorar e
muito.

È na verdade mui natural o ter pesar da perda e morte d’estes meninos,
que ja haviam custado tantos trabalhos á seos paes, e que estavam na
edade de dar-lhes alguma alegria.

Acha-se a terceira classe entre estas duas primeiras—infancia e puericia,
e as da adolescencia e virilidade, entre os 8 a 15 annos, a que chamamos
mocidade: appellidam-nos os selvagens simplesmente por _Kunumy_ sendo a
infancia chamada _Kunumy-miry_, e a adolescencia _Kunumy-uaçu_.

Estes _Kunumys_, ou rapazes, na idade do 8 a 15 annos, não ficam mais
em casa e nem ao redor de sua mãe, e sim acompanham seos paes, tomam
parte no trabalho d’elles imitando o que vêem fazer: empregam-se em
buscar comida para a familia, vão as matas caçar aves, e ao mar flechar
peixes e admira vêr a industria com que flecham as vezes tres a tres
peixes juntos, ou agarram em linha feita de _tucu_ ou em _pussars_,
especie de rêde de pescar, que enchem de ostras e outros mariscos, e
levam para casa. Não se lhes manda fazer isto, porem elles o fazem por
instincto proprio, como dever de sua idade, e já feito tambem por seos
antepassados.

Este trabalho e exercicio mais agradavel do que penoso, e proporcional a
sua idade, os isenta de muitos vicios, aos quaes a naturesa corrompida
costuma a prestar attenção, e a ter predilecção por elles.

Eis a razão porque se facilita á mocidade diversos exercicios liberaes
e mecanicos, para distrahil-a e desvial-a da má inclinação de cada um,
reforçada pelo ocio mormente n’aquella idade.

A quarta classe é para os que os selvagens chamam _Kunumy-uaçú_,
«mancebos»: abrange a idade de 15 a 25 annos, por nós chamada
«adolescencia.»

Tem outro modo de vida, entregam-se com todo o esforço ao trabalho,
acostumam se a remar, e por isso são escolhidos para tripularem as canôas
quando vão á guerra.

Applicam-se especialmente a fazer flexas para a guerra, a caçarem com
cães, a flechar e arpoar peixes grandes, não usam ainda de _Karacóbes_,
isto é, de um pedaço de pano atado na frente para encobrir suas
vergonhas, como fazem os homens casados, e sim de uma folha de Palmeira.

Tem o poder de dividir o que possuem com os mais velhos, reunidos na
_Casa-grande_, onde conversam, e servem tambem os mais velhos.

É n’este tempo, diga-se a verdade, que elles mais ajudam a seos paes e
mães, trabalhando, pescando e caçando, antes de se casarem, e portanto
sem obrigação de sustentarem mulher: eis porque sentem muito seos paes
quando elles morrem n’esta idade, dando-lhes em signal de sua dor o nome
de _Ykunumy-uaçú-remee-seon_, que quer dizer «o mancebo morto» ou «o
mancebo morto na sua adolescencia.»

Abrange a quinta classe desde 25 até 40 annos, e se chama _Aua_ o
individuo n’ella comprehendido, vocabulo aplicado a todas as idades,
assim como usamos com o nome _homem_.

Apesar d’isto ser privativo d’esta idade, assim como o homem é pelos
Latinos chamado _vir_, _á virtude_, e em Francez idade viril, de
virilidade, quer dizer—a força, que no homem chegou a seu termo: n’esta
mesma lingua de selvagens a palavra _Aua_, de que procede _Auaté_, quer
dizer «forte, robusto, valente, audacioso», para significar a 5ª idade
dos seos filhos.

N’essa occasião como guerreiros são bons para combater, nunca porem para
commandar: buscam casar-se, o que não é difficil por consistir o enxoval
da noiva apenas de algumas cabaças, que lhes dá sua mãe para principiar
sua casa, vestidos, e roupas, ao contrario em nosso paiz as mães fornecem
enfeites e pedras brancas a suas filhas.

Os paes dão por dote aos maridos de suas filhas 30 ou 40 toros de pau de
tamanho proprio a poderem ser levados á casa do noivo, os quaes servem
para com elles se accender o _fogo das bodas_: o individuo casado de novo
não se chama _Aua_, e sim _Mendar-amo_.

Embora sejam casados o homem e a mulher não ficam livres da obrigação
natural de proteger seos paes e ajudal-os a fazer suas roças.

Soube d’isto em minha casa, vendo a filha de _Japy-açú_, baptisada e
casada á face da Igreja, dizer a um outro selvagem, seo marido, tambem
christão, quando pretendia ir a _Tapuitapera_ ajudar o Rvd. Padre Arsenio
no baptismo de muitos selvagens, «Onde queres ir? Tu bem sabes que ainda
não se fizeram as roças de meo Pae, e que ha falta de mantimentos: não
sabes, que si elle me deo a ti foi com a obrigação de o auxiliares na
velhice? Si queres abandonal-o então volto para a casa d’elle.»

Advertiram-na á respeito d’estas ultimas palavras, fazendo-a reconhecer
o juramento que dera, de nunca abandonal-o ou separar-se d’elle,
louvando-se comtudo muito os outros sentimentos, que manifestou á favor
de seo Pae, e praza a Deos que todos os christãos a imitassem dando
verdadeira intelligencia a estas palavras formaes do casamento que o
homem e a mulher deixaram seos paes para viverem juntos—porque de outra
fórma seria Deus authorisar a ingratidão dos filhos casados sob pretexto
de terem filhos, ou poder tel-os e precisar cuidar do seo sustento,
quando ao contrario Deos condemna, como reprobo, o que abandona seos
paes, sem os quaes, não fallando na vontade de Deos, não viriam ao mundo
nem elles, e nem seos filhos, embora por essas palavras mostre a grande
união, que pelo casamento se faz entre o corpo e o espiríto dos casados.

Comprehende a 6ª classe os annos de 40 até a morte: é a mais honrosa de
todas, e cercada de respeito e veneração, os soldados valentes, e os
capitães prudentes.

Assim como o mez dá a colheita dos trabalhos e a recompensa da paciencia,
com que o lavrador supportou o inverno e a primavera, lavrando com a sua
charrua o campo em todos os sentidos, sem ser ajudado pela terra, assim
tambem quando chega a estação da velhice são honrados pelos que tem menos
idade.

O que occupa esta classe chama-se _Thuyuae_, quer dizer, «ancião ou
velho.»

Não póde, como os outros, ser assiduo ao trabalho: trabalha quando
quer, e bem a sua vontade, mais para exemplo da mocidade, respeitando
tradicções da sua Nação, do que por necessidade: é ouvido com todo o
silencio na _casa-grande_, falla grave e pausadamente usando de gestos,
que bem explicam o que elle quer dizer e o sentimento, com que falla.

Todos lhe respondem com brandura e respeito, e ouvem-nos os mancebos
com attenção: quando vae a festa das _Cauinagens_ é o primeiro, que
se assenta e é servido; entre as moças, que distribuem o vinho pelos
convidados, as de mais consideração o servem, e são as parentas mais
proximas do que fez o convite.

No meio das danças entoam os cantos; dam-lhe a nota, principiam pela mais
baixa até a mais grave, crescendo gradualmente até chegar á força da
nossa musica.

Suas mulheres cuidam n’elles, lavam-lhes os pés, apromptam e trazem-lhe a
comida, e se ha alguma difficuldade na carne, no peixe ou nos mariscos,
ellas a tiram, accommodando-a ás suas forças.

Quando morrem alguns d’elles os velhos lhe prestam honras, e o choram
como as mulheres, e lhe dam o nome de _thuy-uae-pee-seon_: quando
morrem na guerra, chamam-no _marate-kuepee-seon_, «velho morto no meio
das armas», o que ennobrece tanto seos filhos e parentes, como entre
nós qualquer velho Coronel, que occupou sua vida inteira no serviço do
exercito pelo Rei e pela Patria, e que por corôa de gloria morreo com as
armas na mão, com a frente para os inimigos, no meio de renhido combate,
coisa nunca esquecida por seos filhos antes considerada como grande
herança, e de que se aproveitam apresentando-os ao Principe como bons
serviços de seo Pae, e pedindo por elles uma recompensa.

Não fazendo estes selvagens caso algum de recompensas humanas, porem
empenhando todas as suas forças para conseguirem essas honras, provam
com isto o quanto apreciam não só os actos de heroismo de seos paes, mas
tambem a serem estimados por causa d’elles.

Os que morrem nos seos leitos não deixam de ser honrados, conforme o seo
merito, e chamam-no _theon-suyee-seon_, «o bom velho que morreo na cama».

Por isto podeis avaliar como a naturesa por si só nos ensina a respeitar,
a ajudar, e a soccorrer os velhos e anciões e á refrear com violencia
a temeridade e presumpção dos moços, que sem prevêrem o futuro, não se
recordam de que na sua velhice, se lhes fará justamente o que elles,
quando jovens, fizeram aos mais velhos, dando esse exemplo á seos filhos,
e ensinando-os a serem ingratos.



CAPITULO XXII

A mesma ordem e respeito é observada entre as raparigas e as mulheres.


Encontram-se n’estes selvagens vestigios da naturesa, como as pedras
preciosas se acham nas encostas das montanhas.

Seria um louco o que quizesse encontrar em seos jazigos os diamantes tão
claros e brilhantes, como quanto lapidados e engastados n’um anel.

Provem esta differença de se acharem tão ricas pedras cubertas de jaça
sem mostrar o seo valor de tal sorte, que muitos passam e tornam a passar
por cima d’ellas sem levantal-as visto não as conhecerem.

Acontece a mesma coisa na conversação d’estes pobres selvagens: muitos
ignoram e ignorarão ainda o que tenho narrado e narrarei, e embora tenham
conversado com elles por muito tempo, por falta de conhecimento ou de
observação da boa conducta natural d’estas pessoas fóra da graça de Deos,
passaram por ellas, á similhança das pedras preciosas, sem tirar o menor
proveito, e olhando-as com indifferença.

A mesma ordem de classes de idade tenho observado entre as raparigas e as
mulheres, como entre os homens.

A primeira classe é commum á ambos os sexos, cujos individuos, sahindo
immediatamente do ventre de suas mães, se chama _Peitan_, como já
dissemos no art. antecedente.

A segunda classe estabelece distinção de idade, de sexo, e de dever:
d’idade de moça para moça, de sexo de moça para rapaz, e de dever de mais
moça para mais velha.

Comprehende esta classe os sete primeiros annos, e a rapariga d’esse
tempo se chama _kugnantin-myri_, quer dizer _rapariguinha_.

Reside com sua mãe, mama mais um anno do que os rapazes, e vi meninas com
seis annos d’idade ainda mamando, embora comam bem, fallem, e corram como
as outras.

Em quanto os rapazes d’esta idade carregam arcos e flexas, as raparigas
se empregam em ajudar suas mães, fiando algodão como podem, e fazendo uma
especie de redesinha como costumam por brinquedo, e amassando o barro com
que imitam as mais habeis no fabrico de potes e panellas.

Expliquemos o amor, que o pae e a mãe dedicam a seos filhos e filhas.

Pae e mãe consagram todo o seo amor aos filhos, e ás raparigas apenas
accidentalmente, e n’isto acho-lhes razão natural, nossa luz commum,
a qual nos torna mais affeiçoados aos filhos do que ás filhas, porque
aquelles conservam o tronco e estas o despedaçam.

Abrangem a terceira classe desde 7 até 15 annos, e a moça n’esta idade se
chama _kugnantin_, «rapariga»: n’este tempo ordinariamente perdem, por
suas loucas phantasias, o que este sexo tem de mais charo, e sem o que
não podem ser estimadas nem diante de Deos, nem dos homens; perdoem-me
se digo, que n’esta idade não são prudentes, embora a honra e a lei
de Deos as convidasse á immortalidade da candura, porque estas pobres
raparigas selvagens pensam, e muito mal, aconselhadas pelo autor de todas
as desgraças, que não devem ser mais puras quando chega esse tempo. Nada
mais direi para não offender o leitor: basta tocar apenas o fio do meo
discurso.

N’essa idade aprendem todos os deveres de uma mulher: fiam algodão,
tecem redes, trabalham em embiras, semeam e plantão nas roças, fabricam
farinha, fazem vinhos, preparam a comida, guardam completo silencio
quando se acham em quaesquer reuniões onde ha homens, e em geral fallam
pouco se não estão com outras da mesma idade.

A quarta classe está entre 15 a 25 annos, e a rapariga n’ella
comprehendida chama-se _kugnammucu_, «moça ou mulher completa», o que nós
dizemos por «moça boa para casar.»

Passaremos em silencio o abuso, que se pratica n’estes annos, devido aos
enganos de sua Nação, reputados como lei por elles.

São ellas, que cuidam da casa alliviando suas mães, e tratando das
coisas necessarias á vida da familia: cedo são pedidas em casamento,
si seos paes não as destinam para algum francez afim de terem muitos
generos, e no caso contrario são concedidas, e então se chamam
_kugnammucu-poare_,[39] «mulher casada, ou no vigor da idade.»

D’ahi em diante acompanha seo marido carregando na cabeça e ás costas
todos os utencilios necessarios ao preparo da comida, as vezes a propria
comida, ou os viveres necessarios á jornada, como fazem os burros de
carga com a bagagem e alimentação dos seos senhores.

É occasião de dizer, que ambiciosos como os grandes da Europa, que
desejam ostentar sua grandesa apresentando grande numero de burros, estes
selvagens tambem desejam ter muitas mulheres para acompanhal-os, e levar
suas bagagens, mormente havendo entre elles o costume de serem estimados
e apreciados pelo grande numero de mulheres á seo cargo.

Quando grávidas, após o casamento, são chamadas _puruabore_, «mulher
prenhe», e apezar d’este estado não deixam de trabalhar até á hora
do parto, como si nada tivessem. Apresentam grande volume, porque
ordinariamente parem meninos grandes e corpolentos.

Talvez se pense que n’este estado cuidam ellas em cobrir sua nudez, porem
não soffrem a menor alteração o seo modo de viver.

Chegado o tempo do parto, si assim se póde chamar, não procura para
esse fim a cama, si as dores não são fortes: em qualquer dos casos
senta-se, é rodeada por suas visinhas convidadas para assistil-as,
pouco antes do apparecimento das dores, por meio d’estas palavras
_chemenbuirare-kuritim_ «eu vou já partir, ou estou quase a parir»: corre
veloz o boato de casa em casa, que tal e tal mulher vae parir, dizendo
com o nome proprio da parturiente estas palavras _ymen-buirare_, que
significa «tal mulher pario, ou está para parir.»

Acha-se ahi o marido com as visinhas, e si ha demora no parto, elle
aperta-lhe o ventre para fazer sahir o menino, o que acontecido, deita-se
para observar o resguardo em lugar de sua mulher,[40] a qual continua a
fazer o serviço do costume, e então é vesitado em sua cama por todas as
mulheres da aldeia, que lhe dirigem palavras cheias de consolação pelo
trabalho e dôr, que teve de fazer o menino, sendo tratado como gravemente
doente e muito cançado, á maneira do que se pratica em identicas
circumstancias com as mulheres de paizes civilisados.

Comprehende a quinta classe desde 25 até 40 annos, quando o homem e a
mulher attingem ao seo maior vigor.

Dam-lhe geral e commummente o nome de _kugnan_, «uma mulher, ou uma
mulher em todo o seo vigor».

N’essa idade conservam ainda as indias alguns traços de sua mocidade, e
principiam a declinar sensivelmente, sendo feias e porcas, trazendo as
mamas pendentes á similhança dos cães de caça, o que causa horror: quando
jovens, são bonitas e asseiadas, e tem os peitos em pé.

Não quero demorar-me muito n’esta materia, e concluo dizendo, que a
recompensa dada n’este mundo á puresa é a incorruptibilidade e inteiresa
acompanhada de bom cheiro, mui bem representada nas letras santas pela
flôr do lyrio puro, inteiro e cheiroso—_sicut lilium inter spinas, sic
amia mea inter filias_.

A sexta e ultima classe está entre os 40 annos e o resto da vida, e então
a mulher se chama _Uainuy_: n’este tempo ainda parem.

Gosam do privilegio da mãe de familia: presidem ao fabrico dos _cauins_,
e de todas as outras bebidas fermentadas.

Occupam lugar distincto na _casa-grande_ quando ahi vão as mulheres
conversar, e quando ainda se achava em pleno vigor o poder de comerem
os escravos, eram ellas as incumbidas de assar bem o corpo d’elles, de
guardar a gordura, que não queriam, para fazer o _mingau_, de cozinhar
as tripas, e outros intestinos em grandes panellas de barro, de n’ellas
misturar farinha e couves, e dividil-as depois por escudellas de pau, que
mandavam distribuir pelas raparigas.

Dam principio ás lagrymas e lamentos pelos defunctos, ou pela boa chegada
de suas amigas.

Ensinam ás moças o que aprenderam.

Usam de más palavras, e são mais descaradas do que as raparigas e as
moças, e nem me atrevo a dizer o que ellas são, o que vi e observei,
sendo tambem verdade que vi e conheci muitas boas, honestas e caridosas.

Existiam no _Forte de São Luiz_ duas boas mulheres _Tabajares_, que não
se cansavam de trazer-me presentesinhos, e quando me os offereciam,
sempre choravam e desculpavam-se de não poderem dar melhores.

Não espero muito d’estas velhas: e o superior nada tem a fazer senão
esperar que a morte o livre d’ellas: quando morrem não são muito choradas
e nem lamentadas, porque os selvagens gostam muito de ter mulheres moças.

Os selvagens creem supersticiosamente terem as mulheres, depois de
mortas, muita difficuldade de deparar com o lugar onde, alem das
montanhas, dançam seos ante-passados, e que muitas ficam pelos caminhos,
se é que lá chegam.

Não guardam asseio algum quando atingem a idade da decrepitude, e entre
os velhos e velhas nota-se a differença de serem os velhos veneraveis e
apresentarem gravidade e autoridade, e as velhas encolhidas e enrugadas
como pergaminho exposto ao fogo: com tudo isto são respeitadas por seos
maridos e filhos, especialmente pelas moças e meninas.



CAPITULO XXIII

Da consaguinidade entre os selvagens.


Como entre nós, a consaguinidade entre estes barbaros tem muitos graus
e ramos, e se observa entre todas as familias com tanto cuidado como
fazemos, excepto porem a castimonia, que tem alguns embaraços entre
elles, menos no primeiro grau—de pae para filha.

Entre os irmãos e irmans não ha casamentos, mas duvido, e não sem razão,
da regularidade da vida d’elles, e nem isto merece ser escripto.

Bróta o primeiro ramo do tronco de seos avós, que elles chamam
_Tamoin_,[41] e debaixo desta denominação comprehendem todos os seos
ante-passados desde Nóe até o ultimo dos seos avós, e admira como se
lembram e contam de avô em avô, seos ante-passados, o que difficilmente
fazemos na Europa podendo remontar-nos, sem esquecer-nos, até o tataravô.

O segundo ramo nasce e cresce do primeiro e chama-se _Tuue_, «pae», e é o
que os gera em legitimo casamento, como acontece entre nós, porque para
os bastardos ha outra Lei, de que fallarei em lugar proprio.

Este ramo paterno dá outro, que se chama _Taire_, «filho», o qual se
córta e divide-se em diversos galhos, a que chamam _chéircure_, «meo
irmão mais velho», um dia—a cumieira da casa e da familia, e _chéubuire_,
«meo irmãosinho», que só cuidará da casa, si fallecer seo irmão mais
velho.

Tendo filhos um destes irmãos, qualquer que seja o sexo, deve chamar o
irmão de seo pae _chétuteure_, «meo tio» e sua mulher _chéaché_, «minha
tia». Da mesma forma si seo pae tiver irmans elle as chama _chéaché_,
«minha tia», como tambem os maridos d’estas _chétuteure_, «meo tio».

Os tios e tias chamam os meninos de seos irmãos e irmans _chéyeure_ «meo
sobrinho», e as meninas _reindeure_ ou _chereindeure_, «minha sobrinha».

Os filhos de dois irmãos, isto é, de um irmão e os de outra irman se
chamam os homens _rieure_ ou _cherieure_, «meo primo», e as moças
_yeipere_ ou _cheitipere_ «minha prima.»

Quanto á descendencia do lado das mulheres, a avó é o tronco, seja
paterna ou materna, e chama-se _ariy_ ou _cheariy_, «minha avó.»

A mãe é o segundo ramo, e chama-se _Ai_, «mãe», ou _cheai_, «minha mãe».

Seguem-se gradualmente a filha, cujo nome é _tagyre_, filha, ou
_cheagyre_, «minha filha», a irman _teindure_, «irman», ou _chéreindure_,
«minha irman», a tia _yaché_, «tia», ou _chéaché_, «minha tia», a
sobrinha _reindure_ ou _chereindure_, «minha sobrinha», ou «minha pequena
irman», modo de fallar entre elles, a prima _yetipere_, «prima», ou
_cheytipere_, «minha prima.»

Eis os ramos de consaguinidade entre elles.

Para os homens.

    Avô.
    Pae.
    Filho.
    Irmão.
    Tio.
    Sobrinho.
    Primo.

Traduzido em sua lingua é

    _Chéramoin_ ou _tamoin_.
    _Tuue_ ou _chéru_.
    _Tayre_ ou _chéayre_.
    _Cheircure_ ou _chéubuire_.
    _Tuteure_ ou _chétuteure_.
    _Yeure_ ou _chéyeure_.
    _Rieure_ ou _chérieure_.

Para as mulheres.

    Avó.
    Mãe.
    Filha.
    Irman.
    Tia.
    Sobrinha.
    Prima.

Em sua linguagem.

    _Ariy_ ou _Ché-Ariy_.
    _Ai_ ou _Chéai_.
    _Tagyre_ ou _Chéagyre_.
    _Theindeure_ ou _Chéreindeure_.
    _Yaché_ ou _Chéaché_.
    _Reindure_ ou _Chéreindure_.
    _Yetipere_ ou _Ché-yetipere_.

Alem d’estas consaguinidades existem mais duas por contractos de
alliança; uma quando se dá sua filha á um individuo, ou quando se recebe
uma moça para casar-se com seu filho, e outra quando, por contracto
d’alliança com os francezes, lhes dam suas filhas para concubinas.

Aos que dam suas filhas chamam _taiuuen_ «genro», ou _Chéraiuuen_, «meo
genro».

Á mulher de seo filho chamam _Tautateu_, «nóra», ou _Cherautateu_, «minha
nora».

Chamam os Francezes seos alliados por hospitalidade _Tuasap_, «compadre»
ou _ché-tuasap_, «meo compadre» e as vezes _Chéaire_, «meo filho,» ou
_Cheraiuuen_, «meu genro,» quando sua filha é concubina do Francez.

É este o ramo d’alliança.

    Genro.
    Nóra.
    Compadre.

Em sua linguagem é

    _Taiuuen_, ou _Ché-raiuuen_.
    _Tautateu_ ou _Cherautateu_.
    _Tuassap_ ou _Chetuassap_, ou então _Ché-aire_.

São bastardos os filhos, que tem fóra do casamento legitimo á moda
d’elles, e entre estes bastardos ha ainda certa ordem.

A primeira é dos que tem pae e mãe, ambos Tupinambás: a segunda dos que
tem por mãe uma india Tupinambá e por pae um Francez: a terceira dos
filhos de um Tupinambá e de uma escrava: a quarta de uma Tupinambá e de
um escravo: a quinta finalmente de uma escrava e de um Francez.

A linha dos bastardos é a seguinte:

    De um Tupinambá com uma Tupinambá.
    De uma india Tupinambá com um Francez.
    De um Tupinambá com uma escrava.
    De uma india Tupinambá e um escravo.
    De uma escrava e de um Francez.

Em sua linguagem chamam estes bastardos _Marap_, ou _Ché-marap_, e aos
bastardos dos Francezes _Mulatres_, «mulatos.»

São diversas as leis d’estes bastardos conforme sua descendencia, e antes
de tratar d’ellas convem estabelecer a regra geral para com os bastardos,
que é quando...

    (Falta uma folha.)

... elles o chamam _Toreuue_, «folgasão,» _Cheroreuue_, «sou divertido,
folgasão:» o que é agradavel e tem para dizer alguma coisa chama-se
_aron-ayue_.

Suas saudações, perguntas e respostas, quando juntas, são o mais amavel
que é possivel, mormente quando as fazem com acento muito longo, brando,
e insinuante, especialmente as mulheres e as moças, e como sei que será
agradavel ao Leitor vou aqui transcrever algumas de suas frazes communs e
ordinarias.[42]

Quando se levantam pela manhã dizem

    Tyen-de-Koem.                            Bom dia.
    Nein Tyen-de-Koem                        Para vós tambem.

A tarde, do regressar do trabalho, quando se despedem

    Tyen de Karuq.                           Boa tarde.
    Nein Tyen de Karuq.                      Para vós tambem.

Quando chega a noite, e querem dormir, dizem reciprocamente.

    Tyen-de-potom.                           Boa noite.
    Nein-Tyen-de-petom.                      Para vós tambem.

Se alguem se derige a elles, ou passa ao pé d’elles ou se encontra
no caminho, muitas vezes pára um pouco, com expressão docil e rosto
prasenteiro perguntam um ao outro:

    Mamo sui pereiu?                         D’onde vindes?
    Mamo peresso?                            Onde ides?

Logo que respondem e dizem d’onde vem e para onde vão, podeis ficar
certo que se trata de uma das coisas seguintes, constante emprego de sua
vida e exercicio, isto é, da pescaria no mar, da entrada nos bosques, da
derrubada das arvores, da visita de suas roças, da plantação de raizes,
da colheita dos fructos, e dos nabos, da caçada, dos passeios por varios
lugares, da visita das aldeias e das habitações de uns e outros.

São estas as respostas d’elles.

    Paranam-sui-kaiut.                       Venho do mar.
    Pira-rekie-sui-kaiut.                    Venho de pescar.
    Kaa-sui-kaiut.                           Venho do matto.
    Ybuira monosoc, ou então ybuira mondoc.  Venho de cortar matto.
    Ko-sui-kaiut.                            Venho da roça.
    Ko-piraruer-kaiut.                       Venho de roçar.
    Maetum aruere.                           Venho de cavar e de plantar.
    Vuapoo-aruere kaiut.                     Venho de colher fructos.
    Kaaue-aruere kaiut.                      Venho da caça.
    Mosu-aruere-kaiut.                       Venho de passeiar.
    Taaue-sui-kaiut.                         Venho de tal aldeia.
    Ahere-piac-sui-kaiut.                    Venho de ver tal pessoa.
    Chere-suiu então cheretansui.            Venho de minha casa.
    Ne in cheaiurco.                         Adeos, vou-me embora.
    Ne in oro iurco.                         Adeos, vamo-nos embora.

Quando vae algum visinho procural-os em sua casa, ou quando sentem falta
de alguma coisa, procurando por ahi algures elles perguntam:

    Que procuraes?                           Maeperese-kar?
    Que perguntaes?                          Maraereico?

Então dizem o que procuram, e respondem ás perguntas mui francamente; por
exemplo:

    Quero comêr.                            Agerure deué-cheremyuran ressé.
    Quero farinha.                          Agerure uiressé.
    Quero carne.                            Agerure soo ressé.
    Quero peixe.                            Agerure pyra ressé.
    Quero agoa.                             Agerure v-ressé.
    Quero fogo.                             Agerure tata cheué.
    Quero uma faca.                         Agerure xè.
    Um machado.                             Iu.

Se veem alguem pensativo, elles lhe perguntam o que ha e no que pensam.

    Que pensaes?                             Mara-péde-ie-mongueta.

Elle responde:

    Não penso em coisa alguma.               Ai Kogué.
    Penso em alguma coisa.                   Maerssé-kaien-arico.
    Penso em vós.                            Dressé kaien-arico.

Si veem um conversando com outros, tem muita curiosidade de saber o que
dizem, e por isso vão procural-os, e amigavelmente lhe perguntam:

    Que dizeis? ou então, em que           { Mára-erepe? Mára-erepipo?
    conversavam?                           { Mara-peie-peiupé.

Respondem elles:

    Fallavamos de nossas occupações.         Ore-rei-koran koiomongueta.
    Fallavamos de vós.                       Deressé koia-mongueta.

Assim passavam entre si a vida mui pacifica e familiarmente.



CAPITULO XXV

Dos caracteres incompativeis entre os selvagens.


Costumava Socrates dizer, que assim como o vinho aspero e grosseiro é de
digestão má e desagradavel ao paladar, assim tambem os caracteres rudes,
grosseiros e impectuosos não servem para companheiros de uma conversação
entre homens.

Escreveo Plutarcho, que assim como o som aspero dos caldeirões e
panellas quebradas encolerisam os tigres a ponto de fazel-os accommetter
desesperadamente e saltar sobre os que vem fazer perto d’elles tão
incommodo e desagradavel barulho, assim tambem fazem as más inclinações,
ou os maus caracteres entre os homens.

Aborrecem sobre todas as coisas o companheiro, que provoca e faz mal ao
seo visinho, e chamam-no _Moiaron_, e quando se insultam por palavras,
chamam-no então _Oroacap_.

Quando encontram taes caracteres, fogem d’elles e evitam iguaes
contestações, e ainda fazem mais, previnem os Francezes seos compadres,
afim de que nada peçam á tal gente.

Si por ventura teem mulheres com esse genio ficam muito contrariados,
e não necessitam ser muito rogados afim de livrarem-se d’ellas, ou de
consentir que vão para onde bem lhes parecer.

Ha em _Juniparan_, na Ilha, um hermaphrodita, no exterior mais homem do
que mulher, porque tem face e voz de mulher, cabellos finos, flexiveis, e
compridos, e comtudo casou-se e teve filhos, mas tem um genio tão fórte
que vive porque receiam os selvagens da aldeia trocar palavras com elle.

Presenciei a mudança de uma familia inteira somente para evitar a
visinhança de um selvagem de muito máo caracter.

Escarnecem e despresam o homem, que se accommoda com as provocações e
questões de sua mulher quando ella tem mau genio.

Em quanto ahi morei, aconteceo aborrecer-se um selvagem do mau genio de
sua mulher a ponto de empunhar com a mão direita um cacete, e na esquerda
segurar nos cabellos d’ella querendo experimentar se este oleo e balsamo
adoçaria o azedume de seo mal, porem admirou-se de vêr, que cahindo o
fogo na chaga mais o augmentasse, porque podendo escapar-se de suas mãos,
á vista dos visinhos, tomou tambem ella outro cacete, quiz fazer o mesmo
ao marido, e depois de se haverem espancado reciprocamente com grande
applauso de todos, ficaram ambos com igualdade de circumstancias frente a
frente um do outro, sendo depois o marido a fabula e o assumpto de todas
as conversas, quer dos grandes quer dos pequenos. Diziam os antigos nas
suas _Casas-grandes_, que elle não teve remedio si não ficar com sua
mulher, porque já a conhecia.

Vi os abandonar e deixar seos generos a quem vendem, só para evitar
questões com o comprador.

Notareis, que elles só tem—_sim_ e _não_—quando negociam juntos, ou com
os Francezes, nunca regateando.

Muitos outros exemplos eu poderia ainda reproduzir, porem bastam estes.

Avaliam muito bem as pessoas colericas, a que chamam _Poromotare-vim_,
e reciprocamente se advertem dizendo—_Cheporomatare-vim_, «estou
encholerisado,» e então ninguem lhe diz nada, antes buscam abandonal-o
o mais que podem, o que exprimem por _Mogerecoap_, «abrandar alguem».
_Aimogerecoap_, «abrando o que está encolerisado.»

Observei muitas vezes, quando viam um Francez enraivecido, ficarem como
que fóra de si, mudarem de côr, e fugirem da vista d’elle, dizendo uns
aos outros _Ymari turuçu_ «está muito zangado, está muito enfurecido.»
_Ché-assequeié seta_. «Tenho medo d’elle.»

Aconteceu encolerisarem-se muitas vezes duas ou tres pessoas da nossa
equipagem na aldeia, em que estavam. Vieram por isto os Principaes ao
Forte de São Luiz queixarem-se e pedindo, que lhes tirassem de lá esses
Francezes, porque lhes faziam medo, e especialmente a seos filhos, o que
conseguiram.

Si as questões de palavras e as raivas são temiveis, muito mais ainda
o são os insultos e as disputas, o que é muito raro, a ponto de
espancarem-se, o que chamam _ionupan_ «espancar-se», e ainda mais quando
se ferem, o que explicam por _iuapichap_, «ferir-se,» mormente quando
depois de se haverem maltratado reciprocamente vão por despeito queimar
as suas casas, o que exprimem pela palavra _Iuapic_ «incendiarios»
reciprocos: todos sentem estas coisas, e ninguem se atreve a metter-se
entre elles para aplacal-os: eis como fazem: vae cada um para seu lado, e
tomando uma porção de pindoba secca, acendem-na, atiram sobre a cobertura
de sua propria casa, dizendo uns aos outros—salve quem poder sua casa,
queimei a minha, ninguem podia oppôr-se a minha vontade, e assim em
poucos momentos a aldeia está queimada e ninguem lhe diz nada.

Aconteceria isto muitas vezes na Ilha, se não fosse o receio que tinham
dos Francezes.

Não gostam de ser injuriados, seja homem ou mulher, e nem mesmo as
publicas consentem que se as chame _Pataqueres_ «meretrises.»

Recorda-me que tendo tido uma india escrava um filho de um Francez, as
outras lançaram-lhe isto em rosto chamando-a _Pataquere_, «meretriz» com
o que se doeu muito, e disse que, se continuassem, ella mataria seo filho
ou o enterraria vivo.

Chamam a injuria _Curap_.

Ninguem se admire de evitarem estes selvagens a colera e seos
effeitos, por ser esta paixão contraria a natureza do homem, fazendo-o
inteiramente bruto, como disse São Basilio Magno, na Homilia 10, da
ira, e transformar o homem n’um animal feroz—_Hominem penitus in feram
converti_: São Gregorio de Nissa, na Oração 2ª sobre a bemaventurança,
compara a colera com esses antigos feiticeiros do Paganismo, que por
encanto mudavam e transformavam o homem em diversos animaes ferozes como
o javaly e a panthera. A colera faz o mesmo.

São Gregorio Magno, no 5º livro da sua _Moral_, cap. 30, diz ser o
cerebro do colerico o buraco, onde se geram as víboras.—_Cogitationes
iracundi viperæ sunt generationis_.

Platão contra esta paixão aconselhava, como remedio, aos seos discipulos,
que observassem bem os gestos e as palavras de um homem colerico, e ou
que se mirassem n’um espelho quando se enraivecessem.

Não é coisa nova e nem fóra de proposito o temerem e fugirem estes
selvagens quando veem um homem encolerisado, especialmente um Francez,
porque diz o proverbio, cap. 27—_Impetum concitati spiritus ferre quis
poterit?_

Não é menos difficil de crer-se, que, por despeito, apoz calorosa ou
inconveniente questão, queimem elles suas casas, porque no _Proverbio
26_ acha-se _sicut carbones ad prunas et ligna ad ignem_—assim como o
carvão é para o brasieiro, e a lenha para o fogo, assim tambem a questão
de palavras é para o homem naturalmente colerico, _sic homo iracundus
suscitat rixas_, e no _Ecclesiastico 28_, _secundum ligna sylvæ, sic
ignis exardescit_—tal é a quantidade da lenha qual a força do fogo,
fallando da colera.



CAPITULO XXVI

Da economia dos selvagens.


Dizia Pitacus ser bem regulada a familia quando n’ella encontram-se duas
coisas—falta de superfluidade tanto no que diz respeito á vida como ao
governo da casa, e o que é necessario para isto.

Diz Cicero, que perguntando-se a Catão, qual é o melhor governo de uma
casa, elle respondera—onde houver comida, vestuario e amor ao trabalho.

Parece-me ser estas sentenças mais applicaveis aos selvagens, e aos que
passam vida frugal do que á outra classe de individuos.

São Thomaz definindo a economia concluio dizendo não ser outra coisa mais
do que uma boa ordem domestica, e para conseguir-se este fim convinha,
que a familia tivesse viveres e tudo o mais necessario a vida, sendo mui
essencial não só uma boa intelligencia, como tambem que cuidassem todos
os membros d’ella em seos deveres.

A propria natureza, e não qualquer sciencia adquirida, ensina isto aos
selvagens.

As aldeias são divididas em quatro habitações, sob o governo de um
_Muruuichaue_, para o temporal, e um _Pagy-uaçú_ «um feiticeiro» para as
molestias e bruxarias.[43]

Cada habitação tem o seo Principal: estes quatro Principaes estão sob as
ordens do maioral da aldeia, o qual conjunctamente com outros de varias
aldeias obedecem ao Principal soberano da provincia. Cada...

    (falta uma folha.)



CAPITULO XXVIII

Do cuidado que do seo corpo tem os selvagens.


Platão chamava o corpo um privilegio da Naturesa, e Crates, o philosopho,
um reino solitario.

Mereceriam estas duas sentenças amplo desenvolvimento, si não nos
occupassemos de uma historia, que exige estylo conciso, sem superfluidade
de palavras ou digressões fóra de proposito.

Applicamos comtudo o dizer d’estes dois philosophos ao nosso assumpto
para notar, que tendo a naturesa, por longos annos, recusado vestidos aos
corpos dos indios, os compensara formando-os bellos e agradaveis, sem o
menor auxilio de suas mães, que apenas os lavam e carregam como si fosse
qualquer pedaço de pau.

Assenta-lhes muito bem a opinião de Crates chamando o corpo um reino
solitario e deserto, porque assim como os animaes do deserto crescem e
ficam vigorosos, em quanto residem ahi, isto é, em sua plena liberdade,
assim tambem quando sob o dominio do homem e presos, embora no Palacio
dos Reis e principes da terra, para serem vistos e observados como
novidade, principiam logo a emagrecer, a entristecer-se, a perder o
desejo da propagação e de conservação da especie, somente por terem
perdido a liberdade que outr’ora gosavam no seu reino solitario.

Negando a natureza á estes selvagens viveres bem preparados, bebidas bem
feitas, vestidos pomposos, leitos macios, soberbas casas e palacios,
compensou-os porem, dando lhes plena liberdade como aos passarinhos no
ar, e as bestas no campo, sem lastimarem-se, como fazem outros quando
comparam as pretendidas commodidades d’este Mundo.

Se o diabo com o fim de roubar-lhes o bem da salvação, não se metesse
entre elles, levantando novas discordias afim de se matarem e comerem
reciprocamente, não haveriam por certo homens mais felizes no mundo por
causa de sua natural franqueza e liberdade, que, adubando as suas carnes
as transformam em perfeita e saudavel nutrição, e d’ahi provem a bellesa
de seos corpos.

Espero a objecção para responder—isto é, de se terem visto muitos indios
sordidos e horriveis. Respondo: não é no rosto, onde se deve observar a
forma e a bellesa de um homem, e eis a razão porque Demostenes zombou,
quando os embaixadores de Athenas regressando de sua commissão junto a
Philippe, Rei de Macedonia, gabavam muito a formosura d’elle: não, não,
disse Demostenes, não é digna de louvor a belleza do rosto de um homem,
tão commum entre os Cortezãos, porem merece encomios a sua estatura, a
proporção de seos membros, e a sua figura e elegancia.

Fallo de haver a naturesa dado ordinariamente aos selvagens, e
especialmente aos _Tupinambás_, corpo bem feito, bem proporcional
e elegante, e quando estragam seos rostos por incisões, fendas, e
extravagancias de pinturas e de ossos, o fazem pela ideia erronea, que
tem, de serem por isto reputados valentes.

Tem muito cuidado na limpesa de seos corpos: lavam-se muitas vezes, e
não se passa um só dia, em que não deitem muita agua sobre si, em que se
não esfreguem com as mãos por todos os lados para tirar o pó e outras
immundicies.

Penteiam-se as mulheres muitas vezes.

Receiam emmagrecer, o que chamam em sua linguagem _angaiuare_, e
lastimam-se diante dos seos semelhantes dizendo _Ché-angaiuare_, «estou
magro,» e todos se compadecem mormente quando chegam de qualquer
viagem abatidos pelo trabalho: todos o lastimam e o deploram, dizendo
_Deangoiuare seta_, «ah! quanto está magro, só tem ossos.»

Eis a causa unica por que não podiam residir comnosco os rapazes
baptisados, visto temerem muito as mães, que não emagrecessem em poder
dos Francezes, os quaes suppunham ter falta de tudo.

Não consentiam que seos maridos trouxessem comsigo os filhos para vêr os
Padres e as Capellas de Deos, senão á força, e com vivas recommendações
para que voltassem, e quando se lembravam d’elles grande era a sua
tristesa, e choravam.

Conservei em minha companhia um rapaz de _Tapuitapera_ chamado _Miguel_,
já baptisado, e que muito bem sabia a doutrina christã, afim de ensinal-a
aos meos escravos.

Residio comigo por alguns mezes, porem não poude ficar mais por causa das
importunações de sua mãe, e a dor que mostrava chorando e lamentando-se
constantemente, de maneira que veio seo pae de proposito para leval-o,
dizendo-lhe que sua mãe o esperava cheia de piedade (modo de fallar para
mostrar compaixão): veio pedir-me licença para o seo regresso chorando
por deixar-me (tanto amam e estimam seos paes!) dizendo que sua mãe
estava magra, e cheia de tristesa por sua ausencia e pensando tambem que
elle definhava estando comigo, asseverando-me que contaria á sua mãe o
bom tratamento que eu lhe dava, e a licença que lhe concedi de voltar a
sua casa.

Um de nossos escravos commetteo uma falta, pela qual ia ser castigado:
mal soube elle desta resolução, e quando ia ser preso, disse que estava
magro, e que não o açoitassem como si fosse gordo, porque a gordura
cobre os ossos, apara os açoites e impede que a dor lhes chegue. «Si me
açoitaes com força me quebraes as veias apenas cobertas pela pelle», e
assim dizia por ser muito magro.

Para engordarem reuniam-se muitos indios, embarcavam-se n’uma canoa
grande, muniam-se de farinha, de flechas e de cães, iam á terra firme,
onde matavam a caça, que apeteciam, como veados, onças, capivaras, vaccas
bravas, tatùs, e muitos passaros, e ahi se demorando em quanto havia
farinha, engordavam á farta com estas comidas, e voltavam depois para a
Ilha trasendo muita caça assada.

Quando á Ilha regressou da guerra do Pará o indio _Brasil_ julgando-se
magro, pedio licença ao Sr. de Ravardiere para ir á terra firme levando
comsigo alguns Francezes afim de engordar, o que lhe foi permittido.

Embrenharam-se muito pelo sertão, e quando a felicidade os encheo de
caça, aconteceo-lhes uma desgraça—acabou-se-lhes a farinha: viram-se
obrigados a comer palmito, como si fosse pão, com a carne que tinham, o
que contrariou muito os Francezes não habituados a esta especie de pão,
sentindo muito que a festa não fosse completa, havendo tanta carne, sem
pão e sem sal.

Aconteceo-lhes o mesmo, que a Midas, possuidor de muito ouro, quando sua
mulher lhe apresentou na meza muitas iguarias, todas porem de ouro, ou
então á Tantalo morrendo de sêde apezar de cercado d’agoa: o mesmo lhes
aconteceo, emagreciam em vez de engordarem por não levarem a farinha
necessaria.

N’este ponto os Francezes imitam os selvagens, e por isso estes os
estimam.

Os Francezes residentes no Fórte pedem licença para passeiar e
refazerem-se de forças.

Quando os selvagens sabem d’isto, vão á caça, e mediante a troca de
alguns generos offerecem a estes passeiadores dois ou tres banquetes:
findos estes regressam á sua terra, e assim vão continuando ora
n’uma aldeia, ora n’outra, girando por toda a Ilha, ou provincia de
_Tapuitapera_ e _Comã_ divertindo-se e engordando.

Os Francezes hospedados por seos compadres n’estas aldeias não são muito
felizes em seos passeios, porque se ha então alguma coisa boa não é para
elles, e sim para os viandantes.

Costumam os selvagens dar o melhor, que possuem aos hospedes, por dois ou
tres dias, findos os quaes tratam-nos com o uso commum e trivial.

Admire-se, eu vos peço, ainda que ligeiramente, o grande amor de Deos
para com os homens, dando-lhes o sentimento natural da caridade para com
o proximo. O que fazem de melhor os christãos, ou observam os Religiosos,
do que a caridade puramente natural dos selvagens, que não podem alcançar
a gloria, bem differente do que acontece á caridade sobre natural dos
christãos, que espera a recompensa da vida eterna?

O aceio do corpo faz-se por muitas maneiras, e entre ellas contam-se
estas.

Trazem sempre na bocca a herva do Petun, (tabaco ou fumo) cujo fumo
expellem pela bocca e narinas com intenção de seccar as humidades do
cerebro e as vezes o engolem para limpar o estomago de cruezas que sahem
por meio do arrôto.

Apenas acabam de comer fumam o Petun, e o mesmo praticam pela manhan e a
noite, quando se levantam e deitam-se.

A proposito de Petun devo contar a ideia supersticiosa, que formam desta
herva e do seo fumo.

Crêem, que esta herva os torna discretos, judiciosos, e eloquentes, de
forma que antes de começarem algum discurso usam d’ella: não me parece,
que seja comtudo muito supersticiosa, porque ha nisto uma razão natural:
eu mesmo a experimentei, e reconheci, que a sua fumaça exclarece o
entendimento dissipando os vapores dos orgãos do cerebro, fortalece a voz
seccando a humidade e escarros da bocca, permittindo assim facilidade á
lingua para bem exercer suas funcções.

É facil experimentar-se isto usando-se d’ella com parcimonia e em
occasião propria, porque o abuso continuado d’ella não me parece bom e
saudavel aos que se alimentam de bebidas e carnes quentes, porem é util
aos que sentem frios e humidos o estomago e o cerebro.

Eis a razão porque o selvagem, habitante d’esta zona humida, e que
bebe de ordinario somente agoa, uza constantemente d’este fumo afim de
descarregar o cerebro de humidades e frialdade, e o estomago de cruezas,
o que tambem praticam os marinheiros e os habitantes das praias.

Pondo-se de infusão por espaço de 24 horas esta herva, presta-se muito
para purificar o corpo de infecções. Usa-se somente do vinho.

Crêem tambem que, engolindo o fumo, ficam alegres, joviaes e previnidos
contra a tristesa e melancolia.

Vou referir-vos alguns casos que me contaram:

Um selvagem que foi morto na bocca de uma peça, e de quem hei-de fallar
no _Tratado do Spiritual_, antes de se encaminhar para o supplicio pedio
um macinho de _Petun_, como ultima consolação d’esta vida afim de morrer
com energia e alegria. Apenas alcançou o que desejava mostrou-se alegre e
sempre cantando até o fim.

Quando seos companheiros o ataram á bocca da peça, elle pedio para que
não amarrassem o braço direito de fórma que o embaraçasse de levar á
bocca o Petun: quando a bala dividio o seo corpo em duas partes, uma foi
para o mar, e a outra cahio na base do rochedo, e n’esta achou-se ainda
seguro pela mão direita o mólho de _Petun_.

Os selvagens sentenciados á morte não soffrem a pena sem usarem antes
do _Petun_, conforme o costume da terra, e não deixavam este habito nem
mesmo os doentes.

Os feiticeiros do paiz servem-se d’esta planta com proveito, o que agora
não refiro, e sim guardo para o fazer mais adiante, si não me esquecer.

Empregam ainda outro meio para a conservação da saude.

Comem muitas vezes e pouco de cada uma: depois que comem lavam muito bem
a bocca, e se tem sêde quando comem, bebem pouco apenas para apagar a
sêde, gargarejam bem a agua na bocca para aplacar o ardor do paladar.

Cozinham muito bem suas comidas, e não usam d’ellas meias cozidas ou
aferventadas, sendo n’isto mais cuidadosos do que os Francezes.

Untam-se com azeite de palmas, de urucú, e de genipapo,[44] o que tem
sempre em abundancia.

Estou certo que os meos leitores, pouco conhecedores da disposição do
corpo humano e do regimem necessario á sua conservação, julgarão que a
natureza ensinou a estes homens o mesmo que a sciencia e a experiencia
ensinaram a outros.



CAPITULO XXIX

De algumas indisposições naturaes, a que os selvagens se acham sugeitos,
e quaes os nomes, que dão aos membros do corpo.


São os selvagens, na verdade, dotados pela naturesa com boa saude, feliz
e agradavel disposição.

Raras vezes, na proporção de um para cem, encontram-se entre elles corpos
mal feitos e monstruosos.

Não vi um só cego, apesar de existirem, porque elles o chamam
_Thessa-um_, «cego,» _Cheressa-um_, «estou cego,» e _Ressa-um_ «tu és
cego.»

Notei porem terem alguns a vista curta, especialmente os velhos, e
notavelmente as mulheres, visto que depois de 30 annos d’idade tem a
vista tão curta e fraca a ponto de não poderem mais tirar dos pés os
_Thons_[45] «bixos» como fazem os rapazes e as moças.

A proposito dizia um capitão Francez, não da nossa gente e pouco crente,
que o Papa não tinha poder sobre o mar, porque Deos havia dito a São
Pedro que seo poder estendia-se somente sobre a terra, e por isso todos
os que passam o mar em busca d’estas terras não são mais sugeitos aos
mandamentos da Igreja, podendo mui livremente tomar uma rapariga para
concubina, visto terem necessidade d’ella para tirar dos pés d’elle e de
outros francezes estes bixos.

Conto isto para mostrar quanto são perigosos estes paizes ás almas que
tudo envenenam.

Vi zarolhos, a que chamam _Thessaue_, porem muito poucos, e vesgos que
denominam _Thessauen_, «vesgo» _Cheressauen_, «estou vesgo,» _Deressauen_
«tu és vesgo.»

Encontram-se alguns gagos, a que chamam _Gningayue_, «gago,»
_Chegningayue_, «estou gago.»

Os velhos e os meninos são muito ramellosos, a que chamam _Thessau-um_
«ramelloso» _Cheressau-um_ «estou ramelloso», _Deressau-um_ «tu és
ramelloso»: é o resultado da grande humidade do paiz, mais predominante
nos corpos dos meninos e dos velhos por causa da fraqueza do calor
natural, que é maior nos corpos d’estes do que nos dos outros, onde é
mais forte e intenso.

Existem poucos calvos, e se chamam _apterep_ «calvo,» _Cheapterep_ «estou
calvo», e não existem muitos por serem seos cabellos nutridos com força,
e eis a razão porque tem os cabellos fortes, duros e lisos.

Encontram-se poucos coxos _Parin_, poucos manetas _Iuuasuc_, e poucos
mudos _Gneen-eum_, alguns gottosos _Karuarebore_, de _Karuare_ «gotta.»

Encontra-se tambem uma especie de sarnentos de raça, os quaes mudam de
pelle annualmente, e comtudo não sentem molestia alguma, estão sãos, e
chamam-nos a todos, que soffrem este mal _Kuruuebore_.

Ha tambem obesos, _Timbep_, e se diz _Chetimbep_ «estou obeso,»
_Detimbep_ «tu és obeso,» e _Ytimbep_, «elle é obeso.»

A todas as partes do corpo dão um nome especial, e particular.

Chamam a alma _an_, «minha alma» _che-an_, «tua alma» _dean_, «nossas
almas» _orean_, «vossas almas» _pean_, «suas almas» _yan_, em quanto
a alma está unida ao corpo, porque quando está separada chamam-na
_anguere_.

    A cabeça.                                _Acan._
    Minha cabeça.                            _Cheacan._
    Caspa.                                   _Kua._
    Cabellos.                                _Aue._
    Meos cabellos.                           _Cheaue._
    Cerebro.                                 _Aputuon._
    Rosto.                                   _Suua._
    Palpebra.                                _Taupepyre._
    Cara.                                    _Tova._
    Meo rosto.                               _Cherova._
    Teo rosto.                               _Derova._
    Seo rosto.                               _Sova._
    Olho.                                    _Tessa._
    Lagrymas.                                _Thessau._
    Meo olho.                                _Cheressa._
    Mancha no olho.                          _Tessaton._
    Vi uma mancha no olho.                   _Cheressaton._
    Piscar os olhos.                         _Sapumi._
    Pisco os olhos.                          _Assapumi._
    Ouvido.                                  _Apuissa._
    Ouvir.                                   _Sendup._
    Ouço.                                    _Assendup._
    Orelha.                                  _Nemby._
    Minha orelha.                            _Chénemby._
    Nariz.                                   _Tin._
    Monco.                                   _Embuue._
    Narinas.                                 _Apoin-uare._
    Paladar da bocca, ou véo do paladar.     _Konguire._
    Bocca.                                   _Giuru._
    Beiço superior.                          _Apuan._
    Beiço inferior.                          _Teube._
    Garganta.                                _Yasseok._
    Escarrar.                                _Gneumon._
    Eu escarro.                              _Auendeumon._
    Tu escarras.                             _Eveuendeumon._
    Saliva.                                  _Thenduc._
    Lingua.                                  _Apekon._
    Minha lingua.                            _Ché-ape kon._
    Fallar.                                  _Gneem._
    Eu fallo.                                _Aigneem._
    Bom fallador.                            _Gneemporam._
    Halito.                                  _Puitu._
    Dentes.                                  _Taim._
    Doe-me os dentes.                        _Chéréuassu._
    Meo dente.                               _Cheraim._
    Teo dente.                               _Deraim._
    Seo dente.                               _Saim._
    Dente maxillar.                          _Taiuue._
    Mastigar.                                _Chuu._
    Eu mastigo.                              _Achuu._
    Face.                                    _Tovape._
    Beijar.                                  _Geurupuitare._
    Eu beijo.                                _Aigeurupuitare._
    Bochechudo.                              _Tovape-uaçu._
    Queixo.                                  _Tendeuua._
    Barba.                                   _Tendeuua-aue._
    Barbudo.                                 _Tendeuuaaue-reKuare._
    Cachaço.                                 _Aiure._
    Collo.                                   _Aiuripui._
    Estrangular.                             _Iubuic._
    Peito.                                   _Potia._
    Espaduas.                                _Atiue._
    Braços.                                  _Iuua._
    Cotuvello.                               _Tenuvangan._
    Punho.                                   _Papue._
    Palma da mão.                            _Papuitare._
    Mão.                                     _Pó._
    Minha mão.                               _Chépo._
    Mão direita.                             _Ekatua._
    Mão esquerda.                            _Açu._
    Dedos.                                   _Puan._
    Unha.                                    _Puampé._
    Minha unha.                              _Chépuampé._
    Mama.                                    _Cam._
    Coração.                                 _Gnaen._
    Veias.                                   _Taiuc._
    Sangue.                                  _Tubui._
    Baço.                                    _Perep._
    Tripa.                                   _Thyepuy._
    Figado.                                  _Puya._
    Fel.                                     _Puya-upiare._
    Barriga.                                 _Thuye-uaçu._
    Ventre.                                  _Theic._
    Embigo.                                  _Puruan._
    Dorso.                                   _Atucupé._
    Rins.                                    _Puiacoo._
    Ilharga.                                 _Ké._
    Minha ilharga.                           _Ché-ké._
    Costella.                                _Aru kan._
    Minha costella.                          _Ché-aru kan._
    Quadril.                                 _Tenambuik._
    Madre.                                   _Acaia._
    Testiculos.                              _Pere-ketin._
    Nadegas.                                 _Tevire._
    Curva da perna.                          _Ananguire._
    Coxas.                                   _Uue._
    Joelhos.                                 _Tenupuian._
    Pernas.                                  _Tuma._
    Pé.                                      _Pui._
    Calcanhar.                               _Puita._
    Planta de pé.                            _Puipuitare._
    Dedo do pé.                              _Puissan._
    Corpo.                                   _Tétè._
    Meo corpo.                               _Chéreté._
    Pello.                                   _Pyre._
    Suor.                                    _Thue._
    Gordura.                                 _Kaue._
    Osso.                                    _Cam._
    Meo osso.                                _Chécam._
    Tutano.                                  _Camaputuon._



CAPITULO XXX

De algumas molestias particulares a estes paizes de indios, e de seos
remedios.


O Genesis nos ensina, como explicam os doutores haver Deos dado aos
homens contra todos os males o fructo de uma arvore, a maneira da
Theriaga.

Este mesmo Deos, sempre bom para com todas as creaturas, embora pequenas
e longe d’elle, prevendo que esta infeliz raça de selvagens viveria, por
longos annos, vagabunda e nua pelas grandes florestas do Brasil, lhes deo
muitas especies de arvores e hervas para o curativo de suas feridas e
molestias.

Tem este paiz muitas arvores medicinaes, gommas salutiferas, e
excellentes hervas, como não ha em parte alguma.

O tempo e o estudo hão de fazel-as conhecidas.[46] Vi tirar-se da casca
de certa arvore uma especie de almecega, similhante á que cresce nos
jardins da Europa, e dizem os selvagens que serve para toda a molestia,
e assim a empregam. Contam mais, que todos os animaes ferozes quando se
sentem feridos ou doentes, recorrem a esta arvore para curarem-se, e por
isso raras vezes se encontra uma só com toda a sua casca, por ser roida
constantemente por todos os bixos.

Encontra-se tambem crescida nas folhas das arvores uma especie de gomma
branca, de côr prateada, e que dizem ser muito boa para certas chagas.

Ha outra gomma, tambem branca, optima para limpar chagas e fazer suppurar
os abcessos profundos fazendo seo effeito em 24 horas.

Vi o seo emprego n’um moço francez, que estava commigo o qual tinha, por
causa dos bixos, os pés e as pernas tão estragados e inchados a ponto
de receiarmos que as perdesse: coisa horrivel e impossivel de narrar-se
bem: fez-se applicação de emplastos d’esta gomma nas pernas e pés, e no
dia seguinte estava são como si antes não tivesse coisa alguma, porque
puchando os bixos do interior das carnes onde se achavam á superficie das
feridas, ahi pela cabeça se grudaram os emplastos, e assim morreram todos
em numero consideravel, limpando muito bem a chaga e deixando-a viva e
vermelha.

Não fallarei de outras hervas e balsamos, e nem d’um milhão de hervas,
das quaes se podem destillar espiritos e essencias, porque desejo
fallar de certas molestias, reinantes n’este paiz, dos remedios, que
contra ellas se applicam, não porque seja a terra doentia e insalubre,
antes muito boa e saudavel, especialmente de junho a janeiro: durante
este tempo as brisas, isto é, os ventos de Este ou do Oriente sopram
constantemente, livrando o paiz de vapores pestillenciaes, e por isso
raras vezes adoecem os selvagens, e a fallar a verdade, elles só tem uma
molestia, de que morrem.

São os francezes muito mais sujeitos á doenças, como a experiencia fez
conhecer a mim e a outros, porem creio ser isto devido ás necessidades e
miserias, porque passamos no principio do estabelecimento ou da fundação
e não a outra causa.

Tinham então os francezes poucas commodidades, porem ja começavam a
gozal-as quando deixei a Ilha.

Não desejo a pessoa alguma taes necessidades e molestias, porem fiquem
todos certos e convencidos de que não soffrerão a centesima parte do que
soffremos.

Das suas molestias a primeira chama-se _Pian_, que vem da palavra
_Pé_, que quer dizer «caminho», ou, se quereis, «pé,» por originar
esta molestia do escarro, ou da sanie, espalhado no chão, por onde se
caminha: começa ordinariamente debaixo dos dedos dos pés, do tamanho de
um liard,[BD] de côr negra: os indios chamam esta mancha _Aipian_, isto
é, a «Mãe Pian,»[47] porque d’ella descendem todas as outras chagas e
postemas, que esta horrivel molestia espalha por todo o corpo á maneira
de uma herva ou arbusto, que sahindo d’esta _Mãe Pian_, como de uma raiz,
fosse sempre crescendo, subindo, e espalhando, pelo corpo ramos, folhas e
olhos, que enchesse interna e externamente o doente de crueis dores, e de
incrivel putrefacção, das quaes muitos morrem. Dura pouco mais ou menos
dois annos.

Si um francez soffrer esta molestia deve curar-se perfeitamente antes de
regressar ao seo paiz, porque não ha remedio no mundo, excepto no Brasil,
que a cure, a não ser o rhuibarbo commum, isto é, a morte, que cura todos
os males.

Ja disse como esta molestia chega accidentalmente: vejamos agora sua
origem e fonte ordinaria e natural afim de prevenir os francezes, que la
forem.

Esta molestia ataca os francezes, como o mal de Napoles, por excessiva
communicação com as raparigas indigenas: para evital-a convem a vida
casta, ou então que tragam suas mulheres, ou que se casem com as indias
christãs, visto ser o casamento poderoso antidoto contra tal veneno,
o que se observa mesmo no casamento natural dos indios, os quaes não
soffrem o _grande mal_, se não o tem adquirido algures, e sim o
_pequeno_, que todos soffrem na vida, similhante a syphilis e a variola
na Europa.

Esta _bouba_ grande excede em dor e sordidez, sem comparação, ao mal de
Napoles, e com razão, porque merece ser punido n’esta vida o peccado, que
commettem os francezes com as Indias, arrebatando de nossas mãos, estas
infelizes almas quando pretendiamos salval-as, si com seos maus exemplos
não as conduzissem ás fornalhas da lubricidade.

Meditem bem os que são capazes de commetterem taes crimes, na conta que
darão a Deos por haverem causado o damno e a perda d’estas pobres almas
indigenas.

Si a vida eterna é somente concedida aos que buscam a salvação de outrem,
que lugar esperarão os que, para satisfação de brutaes desejos, seduzem
essas pobres creaturas a ponto de fazel-as despresar as prédicas do
Evangelho e a sua propria salvação?

Tempo e paciencia são os principaes remedios para esta molestia; os
suores aproveitam muito, mitigam e encurtam o tempo, bem como as dietas e
o regimen de vida.

A experiencia tem mostrado, que para estas molestias a carne mais propria
é a do _tubarão_ (não usada pelos sãos, por lhes fazer vomitar até
sangue, e produzir-lhes grandes molestias) cozida com hervas duras e
amargas, que se encontram em todo o paiz.

Por um momento de prazer soffrem mil dores, e o que para os bons é veneno
para elles é carne saudavel, embora de mau gosto.

É costume d’este astuto Boticario Satanaz untar o bordo do copo com mel
ou assucar para se beber de um só trago o veneno, que depois vae roer
e encher de dor as entranhas: quero dizer, que ao peccador apresenta o
prazer, e não o seo castigo, e bem depressa experimenta o desgraçado, que
o prazer vôa, porem a dor é eterna.

O Sr. de Ravardiere, outros francezes, e eu sobre todos, soffremos
intensas febres quartans, terçans, e incertas, as quaes depois de
haverem mortificado muito o corpo, deixam dores nos rins, produzem
colicas insuportaveis com vomitos continuos, sempre debilitando o corpo,
resfriando e contrahindo o estomago, acompanhada por continua fluxão do
cerebro, que se espalha pelos braços, coxas, e pernas, tornando-as sem
acção, á similhança de uma estatua ou pedra immovel.

Parece-me que é a molestia, que ceifa maior numero de selvagens
tornando-os ethicos e paralyticos.

Os remedios para estas molestias são—o beber menos agua que fôr possivel,
porque o sabor das aguas alterado com o calor da febre, faz beber muita
agua, perdendo o estomago seo calor proprio, adquirindo grande crueza e
fraqueza, de que resulta não só a sua constricção, mas tambem a pituita e
outros humores corrompidos: presentemente como ha cerveja espero que não
sejam frequentes estas molestias e que não chegarão ao excesso, que vi, e
cujas consequencias ainda sinto.

O vinho e a aguardente são bons para aquecer o estomago, e por isso
aconselho aos que lá forem, que poupem muito o seo vinho e aguardente
para essa e outras necessidades, e não os gastem prodigamente em
deboches, mórmente sendo a cerveja, ahi feita com milho bom, muito mais
saborosa e saudavel, por causa do continuo calor, do que o vinho e a
aguardente.

As boas bebidas são o unico remedio, e as aves e ovos ahi em abundancia
são o alimento d’esses doentes.

As outras molestias são o defluxo e violentas dores de dentes por causa
da humidade da noite nesta Zona tórrida, como bem notou o jesuita Acosta,
na sua _Historia dos Indios_, a qual pode recorrer o leitor, visto que
nada quero dizer ou escrever sem sciencia propria.

É tão forte a humidade da noite, que produz ferrugem nas espadas,
mosquetes, facas, machados e machadinhos, que corroe e destroe não
havendo cuidado de os limpar.

São mui frias as fluxões do cerebro, pois descendo á raiz dos dentes
apodrecem-nos e os fazem cahir.

São remedios especiaes á estes males a applicação de cauterios no pescoço
e braços, e cobrir bem a cabeça durante a noite.

Todos os annos reina doença de olhos, das quaes poucos escapam
especialmente os Franceses, porque dura apenas oito dias, sendo por sua
vehemencia antes furor do que molestia, e si se não atacar logo corre-se
o risco de vêr-se somente metade do mau tempo.

È facil o remedio: tome-se um pouco de vitriolo, deite-se n’uma garrafa
cheia d’agoa bem limpa, e d’ella se derrame um pouco nos olhos bem
abertos e fixos, abstendo-se de tocal-os, tendo-os sempre cobertos, e
não os expondo ao vento e nem ao sol, porque senão o mal redobra visto
que sendo formada esta molestia de uma fluxão quente e acrimoniosa, si
esfregardes os olhos e vos expôrdes a acção do vento e do sol, mais
exacerbareis o vosso mal.



CAPITULO XXXI

Da morte e dos funeraes dos Indios.


Jacob despresou duas irmans Lya e Rachel, o que é diversamente explicado
por Padres e Doutores. Tomarei somente o que convem á historia, isto é,
que Deos tem duas filhas a Naturesa e a Graça, que dá por esposa aos seos
escolhidos.

A Naturesa é imperfeita, porem fecunda como Lya: a Graça é de formosura
inexcedivel, porem esteril como Rachel. Ambas são irmans: basta vel-as
para reconhecer-se, e como taes são seos filhos-irmãos germanos;
differençando-se apenas por linhas diversas, isto é, n’um ponto de
ceremonia, nas ultimas homenagens prestadas a seos parentes, reconhecemos
facilmente a verdadeira religião e os seos herdeiros.

Acha-se isto tão naturalmente gravado no fundo da alma das nações as mais
barbaras, que serve de argumento mui positivo para provar acharem-se em
verdadeira graça os que prestam homenagem aos seos defunctos.

Em caso contrario prova-se que estão em poder do gentilismo, e em
opposição ao instincto puramente natural, imitando n’este caso os brutos,
não fazendo caso dos seos amigos fallecidos, especialmente da sua alma,
melhor parte de sua composição.

É a maldição dada por Job, no cap. 18—_Memoria illius pereat de terra,
et non celebretur nomem ejus in plateis_, «desappareça da terra a sua
memoria, e nem seja seo nome pronunciado na rua.»

Symmachus explicando diz _Non erit nomem ejus in faciem fori_—não chegará
seo nome ao foro dos senadores, e mais claramente Policronius _Nec in
amicorum versabitur memoria_ «nem seos amigos se recordarão d’elles,»
grande maldição, visto que os povos os mais selvagens do Universo que
são os habitantes do Brasil nada mais receiam, após a morte, do que não
serem chorados e lamentados, isto é, que para elles, na morte, não hajam
da parte dos seos parentes, lagrymas, lamentações, e outras ceremonias
embora supersticiosas.

Quando se acham muito doentes estes selvagens, e por seos parentes
julgados em perigo de vida, perguntam-lhes o que desejam comer antes da
morte, e saciam-lhes o desejo.

Em quanto doentes alimentam-se com farinha de mandioca e _ionker_
«pimenta da india,» misturada com sal, julgando com tal dieta, abuso
inaudito entre elles, recobrarão a antiga saude.

Vi um homem e uma mulher da nação dos _Tabajares_, que tinham só pelle
e ossos, parecendo-me terem apenas vida por dois dias, e por isso os
baptisei logo, apenas me pediram, e escaparem da morte tomando taes
caldos.

Quando chega a hora da morte, reunem-se todos os seos parentes, e
geralmente todos os seos concidadãos, cercam-lhe o leito do moribundo, os
parentes mais perto, depois os velhos e as velhas, e assim de idade em
idade: não dizem uma só palavra, olham-no com toda a attenção, banham-se
de lagrymas constantemente; mas apenas a pobre creatura exhala o ultimo
suspiro, dão berros e gritos, fazem lamentações compostas por uma musica
do vozes fortes, agudas, baixas, infantis, emfim de todo o genero, que
infallivelmente enternece todos os corações, embora sejam naturaes todas
essas dores e lagrymas, sem conhecimento do bem e do mal, que poderá
gozar esse espirito desprendido do corpo morto.

Depois de muitas lamentações, o Principal da aldeia ou o Principal dos
amigos fazia um grande discurso muito commovente, batendo muitas vezes
no peito e nas coxas, e então contava as façanhas e proesas do morto,
dizendo no fim—_Ha quem d’elle se queixe? Não fez em sua vida o que faz
um homem forte e valente?_

Conto isto porque presenciei-o tres ou quatro vezes, lembrando-me de
haver lido e notado em Polybio, Livro 6º, e em Deodoro da Sicilia, Livro
2º, cap. 3º, terem os antigos Romanos o costume de levarem seos defunctos
á Praça publica, e ahi o filho mais velho da casa, ou o principal
herdeiro em falta de filhos machos e de maior idade, subia á uma especie
de theatro, e desfiando todos os louvores, que podia fazer ao morto,
seo parente, desafiava todos os assistentes para que o accusassem, si
podessem, afim d’elle defendel-o, e depois convidava-os a acompanharem o
corpo até a sepultura.

Voltemos aos nossos selvagens. Acabado que seja o choro e o discurso
tomam o corpo, ja cheio de pennas na cabeça e nos braços, uns o vestem
com um capote, outros lhe dão um chapeo, si o ha, trasem-lhe o massinho
de petum[48], seo arco, frexas, machados, foices, fogo, agoa, farinha,
carne e peixe e o que em vida elle mais apreciava.

Faziam depois um buraco fundo e redondo em fórma de poço: assentavam
o morto sobre seos calcanhares conforme era o seo costume, e á cova
desciam-no de mansinho[49] accommodando ao redor d’elle a farinha, a
agoa, a carne, o peixe e ao lado de sua mão direita afim de poder pegar
em tudo com facilidade e na esquerda arrumavam os machados, as foices, os
arcos e as flexas.

Ao lado d’elle faziam um buraco, onde accendiam fogo com lenha bem secca
afim de não apagar-se, e despedindo-se d’elle o incumbiam de dar muitas
lembranças á seos paes, avós e amigos, que dançavam nas montanhas, alem
dos Andes, onde julgam ir todos depois de mortos.

Uns dão-lhe presentes para levarem a seos amigos, e outros lhe
recommendam, entre varias coisas, muito animo no decorrer da viagem, que
não deixem o fogo apagar-se, que não passem pela terra dos inimigos, e
que nunca se esqueçam de seos machados e foices quando dormirem n’algum
lugar.

Cobrem-no depois pouco á pouco com terra, e ficam ainda por algum tempo
junto á cova, chorando-o muito e dizendo-lhe adeos: de vez em quando ahi
voltam as mulheres ora de dia ora de noite, choram muito e perguntam á
sepultura, se elle ja partio.

A proposito contarei tres historias interessantes.

Enterraram um bom velho em distancia de 50 passos de minha casa. Dia e
noite consumiam-me as velhas com seos choros.

Para adquirir socego lembrei-me de mandar esconder n’uma moita em
caminho, perto da cova, dois rapazes francezes, que commigo moravam. Mais
adiante mandei tambem esconder dois escravos nossos, a quem ensinei o que
deviam fazer.

A noite todos occuparam as suas posições, e no fim de um quarto de hora
quando vieram as velhas, todas juntas, e que principiaram a gritar na
cova, responderam os franceses, imitando _Jeropary_, e ellas cheias de
susto despararam a correr, e quando no caminho encontraram outros dois
_Jeropary_, redobraram de esforços, e saltando por abrolhos e espinheiros
chegaram á casa mais mortas do que vivas, e ahi sobresaltando a todos
mandaram fechar as portas para que não entrasse o tal _Jeropary_.

Estava eu perto e muito gostei d’esta comedia por alcançar socego, visto
não regressarem mais as velhas.

Morreo um selvagem, e foi enterrado na estrada perto de _São Francisco_,
lugar no _Forte de São Luiz_.

Fora baptisado antes da sua morte, e com tudo, sem sciencia nossa,
enterraram-no ahi e com as ceremonias que já descrevi. Mortifiquei-me
muito com isto, ralhei bastante, porem não pude descobrir o culpado por
já haver decorrido tres ou quatro dias.

Passando por ahi achei sua mulher, que voltava da roça, assentada sobre a
sepultura, chorando amargamente, e espalhando n’ella algumas espigas de
milho.

Indagando-lhe o que fazia, respondeo-me estar perguntando a seo marido
si elle ja tinha partido, porque receiava haverem amarrado muito as suas
pernas, e não lhe terem dado a sua faca, pois havia levado comsigo apenas
o seo machado e sua foice, e que lhe trasia o milho para comer e partir
no caso de já não ter mais provisões.

Fil-a sahir, mostrando como pude, a sua ignorancia e superstição.

Falleceo um menino com doença no ventre, de dois annos de idade, e duas
horas depois de baptisado.

Eu, o Sr. de Pezieux, e outros franceses fomos amortalhal-o n’um lençol
d’algodão.

Encontramos o corpo cercado por muitas velhas, fazendo algasarra capaz de
quebrar uma cabeça de aço, carregado de missangas, que trasem para ahi os
francezes, e de muitos busios, de que usam nos seos adornos e enfeites
para as grandes festas.

Não podemos convencer ás velhas afim de serem tirados taes enfeites, e
sendo assim mesmo conduzido n’uma prancha por um francez, fizemos o seo
funeral a maneira da Europa, levando o seo corpo á capella do Forte de
São Luiz, onde recitamos as orações prescriptas pela Igreja para esse fim.

Seguiram-nos as velhas de bem perto, e não se animando a entrar,
começaram a entoar uma musica tão alta e forte, que não nos entendiamos
dentro da Igreja.

Imposemos silencio, e foi o corpo enterrado no cemiterio junto á capella.

As velhas se metteram entre os francezes, umas trazendo fogo, agoa,
farinha, e outras o mais que ja dissemos para o caminho, o que mandei
deitar fóra fazendo-lhes vêr a asneira por intermedio do interprete.

Recolheram-se as suas casas, onde se fartaram de chorar.



CAPITULO XXXII

Do regresso á Ilha do Sr. de la Ravardiere e de alguns Principaes, que o
seguiram.


Com a chegada da barca portugueza o Sr. de Pezieux escreveo ao Sr. de la
Ravardiere e expedio uma canôa para tal fim, descrevendo o estado em que
nos achavamos e prestes a sermos sitiados em breve tempo.

Gastou a canoa tres mezes na viagem, e sciente destas coisas partio
logo que poude em direcção da Ilha, afrontando perigos, que muitos são
n’estes mares; porem de coisa alguma nos serviria sua actividade, porque
se n’esse intervallo soffressemos o cerco seriamos já então vencedores ou
vencidos.

Esta interrupção da viagem do Amazonas causou muito mal a Colonia, porque
se teria colhido muitos generos pelas margens dos rios, muito mais
povoados de selvagens de diversas nações do que a Ilha, Tapuitapera, Comã
e Caieté.[50]

São mais pacificos, e bem providos de algodão.

Quanto mais pobres e necessitados de machados, foices, facas e vestidos,
tanto mais facil é a troco de qualquer d’estes objectos alcançar grandes
riquezas.

Outro prejuiso soffreo a Colonia dos francezes, porque achando-se muitas
nações resolvidas a aproximarem-se da Ilha, por ahi residirem e fazerem
suas roças, vindo com o Sr. de la Ravardiere, ao saberem taes noticias
dos portuguezes, resolveram suspender a execução do seo plano, e esperar
o resultado dos negocios.

Chegando o Sr. de la Ravardiere proseguio-se activamente nas obras dos
Fortes das avenidas da Ilha, montando-se-lhes artilharia e dando-se-lhes
guarnição.

Passados alguns dias achou-se acompanhado por muitos guerreiros
selvagens, que vieram para a Ilha, e entre elles estava o _Arraia
grande_ dos Caietés, selvagem pelos seos muito estimado, valente, bom
conselheiro, e de tal influencia, que os seos companheiros o seguem,
trabalham e abraçam inteiramente as suas ideias, o que foi muito util
aos francezes visto assim terem muitos homens dedicados, e occupados no
serviço.

Pouco antes da viagem do Amazonas alguns bregeiros espalharam entre os
_Caietés_ do _Pará_, que sob o pretexto dessa viagem iam os francezes
captival-os.

Esta noticia aterrou-os de tal forma, que muitos ja estavam resolvidos a
deixar suas casas, e a buscar outro lugar quando o _Arraia grande_ por
seos discursos lhes fez vêr quanto era infundado o seo receio, dizendo
então muito bem dos francezes.

Elle, sua mulher, e alguns parentes acompanharam uma barca, que ia da
Ilha para o Pará em busca dos generos do paiz, ahi mui preciosos.

Quiz a infelicidade que, no regresso para a Ilha, naufragasse a canôa por
estar muito pesada duas legoas longe da terra.

Despresaram todas as riquezas, procurando salvarem-se agarrados a um
pedaço da escotilha, a uma taboa, ou ao bote.

Esperou o _Arraia grande_, que todos procurassem meios de salvarem-se,
e afinal elle, sua mulher, e um interprete francez si puzeram a nadar
animando elle a todos com estas palavras—«a morte é invejosa, vêde como
atira estas ondas sobre a nossa cabeça afim de nos arremeçar no abysmo,
mostremos-lhe que somos ainda fortes e valentes, e que não é chegado o
tempo de nos levar.»

Salvaram-se todos em varias ilhas não habitadas, excepto um francez,
victima de tubarões.[51]

Vendo o _Arraia grande_ os francezes nús e famintos, em lugares estereis
e cercados de mar, atirou-se ás ondas, a nado atravessou grande espaço
cheio de mangue desembaraçando-se á muito custo das raizes destas
arvores, e do tujuco onde as vezes se enterrava até o pescoço.

Chegando a aldeia dos seos similhantes animou-os a virem com algumas
canoas, vestidos e viveres, e depois que todos regressaram ás aldeias
defronte do lugar do naufragio, elle lhes entregou tudo quanto haviam
perdido, e que o mar tinha atirado ás praias.

Outr’ora este indio, n’um navio de São Maló, veio a França, onde se
demorou um anno pouco mais ou menos, e em tão pouco tempo aprendeo
a fallar francez, e ainda hoje se fazia entender bem, embora ja se
houvessem passado muitos annos, e tem tão bom juiso e memoria que ainda
hoje conta varias particularidades, que la existem.

Não trato do estado espiritual, e nem do que me disse relativamente ao
Christianismo, porque deixo isso para o seo lugar proprio, mas quanto ao
temporal muitas vezes o ouvi dizer aos seos similhantes, e especialmente
aos _Tabajares_ do Forte de São Luiz, «que os francezes eram fortes, que
habitavam um paiz grande, abundante de boas comidas, de muito vinho, de
pão, de boi, de carneiro, de galinhas, de muitas especies de ovos, e de
grande variedade de peixes: que suas casas eram construidas de pedras,
cercadas de grossos muros, onde estava assestada grossa artilharia,
batendo o mar na base da muralha, ou então sendo esta circulada de fossos
cheios d’agoa.

«Pelas ruas estão lojas de todos os generos. Andam a cavallo, e os
Grandes, ou melhor os Principaes são acompanhados por muitas pessoas,
como o Sr. de la Ravardiere, residente perto da cidade, onde cheguei.

«O Rei de França mora no centro do seo reino, n’uma cidade chamada Pariz.
Os francezes aborrecem, como nós, os _Peros_, e lhes fazem guerra por
terra e por mar, e sempre com vantagem, porque são fracos os _Peros_,
valentes e animosos os francezes como nenhuma outra nação, e eis a razão
porque não devemos temer aquelles visto estes nos defenderem. Alguns
maldizentes de nossa gente espalharam não terem os francezes podido
tomar os _Camarapins_, porem isto é falso. Cumpriram seo dever e si os
Tupinambás tivessem querido ajudar-nos, seriam agarrados, porem o chefe
dos franceses condoeo-se d’elles, e não quiz que todos fossem queimados
como aconteceo em parte.»

Fez este e outros discursos similhantes, e depois percorrendo a Ilha, em
cada aldeia os repetia nas _reuniões_ na _caza grande_.

Procurando imitar a maneira porque entrou na grande praça de São Luiz,
não só para saudar os Tabajaras, como tambem para ajudar os francezes,
dispoz elle a sua gente, em numero de cem a cento e vinte, um a um, ou um
atraz do outro, e assim por diante.

A uns deo cabaças, panellas, e rodela, e a outros espadas e punhaes, a
estes arcos e flexas, a aquelles differentes instrumentos, dividindo os
tocadores de Maracá[52] pelas desenas, e assim percorreram a habitação
dos _Tabajaras_, e depois foram á praça grande do Forte, onde estavamos,
e ahi acabaram suas danças, muito similhantes a dos _Pantalons_, andando
e fazendo mesuras, batendo todos ao mesmo tempo com o pé em terra, ao
som da voz e do Maracá, cujo compasso todos observavam entoando sempre
louvores aos francezes.

Mechiam em todos os sentidos a cabeça e as mãos, com taes gestos que
faziam rir as pedras.

Chamam os Tupinambás a esta dança _Porasséu-tapui_, quer dizer, _dança
dos Tapuias_, porque era outra a dança dos _Tupinambás_, sempre em roda e
nunca mudando de lugar.

Acabada a dança, veio saudar-nos, e foi comer e descançar na casa, que se
lhe havia preparado.



CAPITULO XXXIII

Viagem do capitão Maillar,[53] pela terra firme á casa de um grande
feiticeiro. Descripção d’esta terra e das zombarias d’elle.


É verdade, reconhecida por todos que hão habitado o Brasil, não ser a
terra firme tão bonita e tão fertil como as Ilhas.

São as ilhas formadas por areia preta e fina, queimada e ardente pelo
continuo calor, e por isso são ellas mais sujeitas n’esta Zona tórrida
aos calores e ardores, porque o mar redobra pela reflexão e poder da
luz do Sol sobre a capacidade proxima e concentrica da terra, o que se
prova por meio dos espelhos ardentes, cujos centros sendo opacos, e mais
elevados do que suas circumferencias e bordas, os raios do sól se reunem
e concentram ahi, produzindo fogo e chama, e assim queimando os objectos
convenientemente dispostos n’esses lugares.

Ouvindo o Sr. de la Ravardiere os indios fallarem muitas vezes de uma
localidade muito boa, distante 100 ou 150 legoas do Maranhão, na terra
firme para as bandas do rio Mearim e longe d’elle 40 ou 50 legoas, mandou
uma barca e canoas com o capitão Maillar de São Maló, alguns francezes, e
um cirurgião, todos muito conhecedores da natureza das hervas e arvores
preciosas.

Ahi vivia, vindo do Maranhão, um dos seos principaes feiticeiros, com 40
ou 50 selvagens, entre homens e mulheres, n’uma aldeia, que edificara,
cultivando a terra, que tudo lhe produzia em abundancia, e por isso
abusando da credulidade dos Tupinambás este miseravel lhes dizia possuir
um espirito com o poder de fazer a terra dar-lhe o que quizesse.

Ahi chegou o capitão com muitas difficuldades, passando vasta e comprida
planicie de juncos e caniços, atravessando agoa pela cintura, e depois de
alguma demora regressou contando-nos o seguinte.

A terra d’esta localidade é dura, gorda e negra, boa para a cultura da
canna do assucar, e muito melhor que a de Pernambuco, o que bem podia
avaliar por ter residido por muitos annos ahi e em outros lugares
possuidos pelos portuguezes.

A terra é cortada por muitos riachos capazes de moverem engenhos para o
fabrico do assucar.

Ha abundancia de peixes d’agoa doce, grandes e de varias qualidades; são
innumeraveis as tartarugas; existe toda a qualidade, e em quantidade
inexprimivel, de caça, como sejam viados, corças, javalis, vacas-bravas,
e diversas especies de tatús, muitos coelhos e lebres, iguaes ás de
França, porem mais pequenas, immensa variedade de passaros, como
sejam perdizes, faisões, mutuns,[54] pombas bravas, trocazes, rolas,
garças-reaes, e outras admiraveis.

A terra produz raizes tão grossas como a coxa: o tabaco petum ahi cresce
forte e optimo, e dizem que dá duas colheitas por anno.

O milho cresce forte, cheio, e dá muitas espigas.

Ha fructas muito melhores, e em maior quantidade do que na Ilha, em
_Tapuitapera_, e _Comã_, papagaios de varias côres e diversos tamanhos,
notando-se entre elles os _Tuins_,[55] do tamanho de pardaes, os quaes
aprendem com facilidade a fallar, porem morrem de mal quando são levados
para a Ilha: vi entre muitos salvarem-se apenas seis, os quaes comendo,
cantando, e dançando em suas gaiolas, sem apparencia de molestia, davam
duas ou tres voltas e morriam logo.

Ha tambem muitos macacos e monos barbados, bonitos e raros, e que seriam
muito apreciados em França, se lá chegassem.

Ahi residia um barbeiro ou feiticeiro muito bem arranjado e com todas as
commodidades.

Tinha vindo, um pouco antes d’esta viagem, fazer suas feitiçarias e
nigromancias para ganhar o vestuario e a ferramenta dos selvagens
do Maranhão e leval-os comsigo quando fosse para a sua terra. Estas
feitiçarias eram diversas.

Tinha uma grande boneca, que com artificio se movia, especialmente
com o maxilar inferior; dizia elle ás mulheres dos selvagens, que si
desejavam vêr quadruplicada a sua colheita de grãos e legumes trouxessem
e dessem á ella alguns d’estes generos, afim de serem mastigados tres ou
quatro vezes, e por esta forma recebendo a força de multiplicação do seo
espirito, que estava na boneca, podiam depois serem plantados em suas
roças, pois já comsigo levavam a força da multiplicação.

Gozou de muita influencia por onde passou, muitas foram as dadivas das
mulheres, e mal satisfazia o que promettia, guardavam ellas com todo o
cuidado os legumes e grãos mastigados.

Estabeleceo uma dansa ou procissão geral fazendo com que todos os
selvagens levassem na mão um ramo de palmeira espinhosa,[56] chamada
_tucum_, e assim andavam ao redor das casas, cantando e dansando, para
animar, dizia elle, o seo espirito a mandar chuvas, então n’esse anno mui
tardias: depois da procissão _cauinavam_ (bebiam _cauim_) até cahir.[57]

Mandou encher d’agoa muitas vasilhas de barro, e rosnando em cima d’ella
não sei que palavras, ensopava um ramo de palmeira, e com ella aspergia
a cabeça de cada um d’elles, dizendo «sêde limpos e puros afim de meo
espirito enviar-vos chuva em abundancia.»

Tomava uma grande tabóca de bambu, enchia-a de _petum_, deitava-lhe fogo
n’uma das extremidades, e depois soprava a fumaça sobre os selvagens
dizendo «recebei a força do meo espirito,[58] e por elle gozareis sempre
saude, e sereis valentes contra vossos inimigos.»

Plantou no centro d’aldeia uma arvore de maio, carregou-a de algodão,
e depois de haver dado muitas voltas e vira-voltas em redor, lhes
prognosticou grande colheita n’esse anno.

Apezar de tudo isto não vindo a chuva, dia e noite fazia elle dançar e
cantar os selvagens, gritando com quanta força tinham afim de despertar
seo espirito, como faziam outr’ora os sacrificadores de Baal.

Com tudo isto não choveo.

Fez acreditar á estes selvagens, que elle bem via o seo espirito,
carregado de chuvas, do lado do mar, porem que não se animava a vir por
causa da _Cruz_, erguida no centro da praça, fronteira a Capella de N. S.
d’Vsaap, e que se quizessem ter chuva não havia mais do que deital-a por
terra, e teriam concordado n’isto facilmente, pondo-o logo em execução se
ahi não estivessem os Francezes, e si não temessem o castigo.

Chegando estas noticias ao Forte, mandou-se immediatamente o _Cão-grande_
e alguns Francezes para irem buscar o feiticeiro afim de vêr si elle
poderia dançar no meio d’uma sala, contra sua vontade, e teria sido preso
si, advertido como foi, não preparasse sua bagagem, e com sua equipagem
não se salvasse n’uma canôa, mandando desculpar-se, d’ahi ha pouco tempo,
por um seo parente trazendo muitos presentes com o fim de fazer pazes.

Fez crer aos selvagens da Ilha, que tinha um espirito muito bom, que era
muito amigo de Deos, que não era mau, e que por tanto só podia fazer bem.

Dizia elle: «come commigo, dorme, caminha diante de mim, e muitas vezes
vôa diante dos meos olhos, e quando é tempo de fazer minhas hortas,
só tenho o trabalho de marcal-as com um pau a sua extensão, e no dia
seguinte acho tudo prompto.»

Sabendo alguns selvagens christãos, que pretendiamos castigar seo
companheiro que d’elles tanto abusou, me pediram, que me condoesse d’elle
e que nada soffresse por não ter sido mau e nem o seo espirito, visto
terem ambos feito crescer os bens da terra. Ensinei-lhes a este respeito
o que deviam crêr.

Vede, meos leitores, quanto Satanaz é astucioso: similhante á um macaco
imita as ceremonias da Igreja para elevar sua superstição, e conservar
sob seo dominio as almas dos infieis por essa procissão de palmas, essa
aspersão d’agoa, esse sopro de fumo para communicar o espirito, de que
fallaremos mais simplesmente no _Tratado do espiritual_.



CAPITULO XXXIV

Da vinda dos Tremembés, como foram perseguidos, suas habitações, e
procedimento.


N’esse tempo a nação dos _Tremembés_, moradora alem da montanha de
_Camussy_, e nas planicies e areiaes da banda do rio _Tury_, não muito
distante das Arvores Seccas, das Areias Brancas, e da pequena Ilha de
Santa Anna, sahio, sem esperar-se, para a floresta, onde se aninham os
passaros vermelhos, e para os areiaes onde se encontra o ambar gris,
e se pesca grande quantidade de peixes, com intenção, de surprehender
os _Tupinambás_, seos inimigos irreconciliaveis, o que malogrou-se,
visto que muitos _Tupinambás_ da Ilha tendo ido ahi com o fim especial
de pescar, foram accommettidos pelos _Tremembés_,[59] sendo uns mortos
immediatamente, outros captivos sem saber-se o que d’elles fizeram, e
finalmente alguns embarcados n’uma canôa poderam salvar-se regressando á
Ilha do Maranhão, onde contaram tão tristes casos causando nas aldeias,
a que pertenciam os mortos, tanta indignação, que todos, vóz em grita e
chorando, especialmente as mães e as mulheres, insistiram pela vingança,
ao que acquiesceram os Principaes, vindo pedir aos francezes um chefe e
alguns soldados, no que foram satisfeitos.

_Japy-açú_ foi o conductor d’este exercito[60] composto de grande numero
de selvagens, e acompanhado por alguns francezes.

Atravessaram o mar entre a ilha e as areias brancas, saltaram em terra
para descançar e passar a noite pescando uns, caçando outros, e as
mulheres e as filhas procurando agoa pelos areiaes, a qual não podia
ser senão salôbra, isto é, meia doce e meia salgada, armando as redes,
fazendo fogo e preparando a comida.

Os mancebos _Tupinambás_ fizeram _Aiupuues_, (choupanas) tanto para
os Principaes como para os Francezes: na melhor _auipaue_ alojou-se
o Coronel, e os Capitães armaram suas redes ao redor da do Coronel,
ceremonia que observam em todas as suas guerras, especialmente quando se
acham perto do inimigo.

Escondem o fogo com receio de não serem á noite descubertos pelos
inimigos, por ser costume geral d’elles o fazer subir no cume de arvores
muito altas suas sentinellas afim de descubrirem fogo ou luz dos inimigos.

Na manhã seguinte puzeram-se em marcha até um grande areial cercado de
mato por tres lados, e de mar pelo ultimo: ahi encontraram as choupanas
dos _Tremembés_, uma panella portugueza, e combinando isto com o que
já sabiamos anteriormente, ficamos sabendo, que os Portuguezes estavam
na _Tartaruga_, na serra de _Camussy_, unidos aos _Tremembés_, aos
_Montagnars_, tanto de _Ybuapap_ como de _Mocuru_, principalmente com
_Jeropary-uaçu_, isto é, com o _Grande-diabo_, principe e rei de uma
grande nação de Cambaes,[61] muito amigo dos francezes, e inimigo natural
dos portuguezes, podendo afiançar-se com certesa, que si os francezes
ahi fossem, elle trahiria os portuguezes e unindo-se a elles, por ser
_mulato-francez_, isto é, filho de um francez e de uma india.

Voltemos ao nosso proposito.

Encontraram os nossos selvagens ainda vivo um dos seus, que fugio para
o mato, e escondeo-se no concavo de uma arvore; porem ouvindo o som das
trompas de guerra, que eram feitas de um grosso madeiro cavado, tendo as
aberturas superior e inferior similhantes á uma trombeta, sahio muito
magro, e quase que sem figura humana por não ter comido durante oito dias
senão folhas da arvore, onde escondeo-se: ensinou, como lhe permittiram
suas forças, o lugar onde jaziam mortos seos companheiros, que foram
encontrados com as cabeças rachadas, e sobre seos corpos os machados de
pedras, instrumentos d’essas atrocidades, por ser costume entre elles
nunca se servirem d’uma arma com que ja mataram um inimigo.

_Caruatapyran_, um dos Principaes de Comã, trouxe-me um d’esses machados
de pedra, ainda tinto de sangue, com alguns cabellos adherentes, e com um
pouco do cerebro do Principal _Íanuaran_, que com elle foi morto, o que
se soube por ser encontrado sobre seo corpo.

_Caruatapyran_ pegando um d’esses machados, feito em fórma de crescente,
ensinou-me o que eu não sabia, dizendo-me terem os _Tremembés_ o
costume mensal de vellar toda a noite fazendo seos machados até ficarem
perfeitos, em virtude da superstição, que nutriam, de que indo para a
guerra armados com taes instrumentos nunca seriam vencidos, e sim sempre
vencedores.

Em quanto os homens e as mulheres se entregavam a este trabalho dançavam
as moças e os meninos a frente das choupanas ao luar do crescente.

São valentes os _Tremembés_ e temidos pelos _Tupinambás_; d’estatura
regular, mais vagamundos do que estaveis em suas moradias: alimentam-se
ordinariamente de peixes, porem vão á caça quando lhes apraz: não gostam
de fazer hortas, e nem casas: moram debaixo das choupanas; preferem as
planicies ás florestas porque com um simples olhar descobrem tudo quanto
está ás suas vistas.

Não conduzem após si muita bagagem, pois contentam-se com seos arcos,
flexas, machados, um pouco de _cauï_, algumas cabaças[62] para guardar
agoa, e umas panellas para cozinhar a comida: com mais destresa que os
Tupinambás pescam á flexa: são tão robustos a ponto de segurarem pelo
braço um dos seos inimigos e atirarem-no ao chão, como se fosse um capão.
Dormem n’areia ordinariamente.

Servem-se d’este lugar de areias brancas, e de arvores seccas para
agarrar os _Tupinambás_, como ratoeira para pilhar ratos, e isto por tres
razões.

A primeira, por causa da pesca, ahi abundante e variada.

A segunda, por causa de uma floresta, onde os passaros vermelhos de todas
as partes vem fazer ninho para desovar. Não deixam de ir ahi em certo
tempo os _Tupinambás_ para tirar do ninho os filhótes e os ovos meios
chocos, havendo abundancia impossivel de descrever-se, levando, quando
regressão á villa, provisão para dois mezes, preparando antecedentemente
uns assados, e outros seccos e duros como paus, o que nunca me agradou, e
a fallar verdade, nunca pude comel-os, embora sejam para os selvagens o
primeiro prato, e bem delicioso. Logo contarei alguns uzos particulares,
e bem notaveis, d’estes passaros.

O terceiro motivo é para colher o ambar-gris, chamado pelos Tupinambás
_Piraputy_ «excremento de peixes,»[63] por que elles pensam ser o
ambar-gris o excremento das baleias, ou de outros peixes iguaes em
corpulencia, o qual vindo á tona d’agoa, é pelas ondas atirado a essas
praias.

Dizem alguns francezes não ser o ambar-gris outra coisa mais do que a
«flor do mar,» a que os selvagens chamam _Paranampoture_, ou uma certa
gomma do mar, _Paranamussuk_.

Decida o leitor como lhe aprouver.

N’estas areias encontra-se o ambar-gris em massa, mais n’um tempo do que
n’outro, e algumas vezes chega a massa a tal tamanho e grossura, que
merece ser guardada n’algum gabinete real, não podendo ser justamente
apreçada e vendida. Acontece as vezes virem poisar sobre ellas todos
os bixos, passaros, carangueijos, lagartos, e outros reptis d’ahi, das
circumvisinhanças, e do mar, e com elles as vêem procurando-as com
cuidado, e por isso são essas grandes massas partidas em varios pedaços.

Aconselhei a elles, que ahi fizessem um _Forte_ não só para impedirem
as correrias dos _Tremembés_, como para tapar a entrada aos navios, que
buscam a Ilha de Sant’Anna afim de colherem o ambar-gris; não ha duvida,
que o mar atira muitas vezes sobre estas areias o ambar, que por ahi
espalhado é comido por animaes, passaros e reptis, pois os selvagens da
Ilha ahi vão apenas duas ou tres vezes durante o anno.

Tenho certesa, que a colheita do ambar chegaria para pagar as despezas do
Forte, da sua guarnição, e do mais que fosse necessario.

Os nossos selvagens e francezes depois de muitas indagações por varios
lugares somente acharam os corpos mortos dos seos, as choupanas, e
vestigios de inimigos, e assim regressaram á Ilha mais famintos do que
feridos.



CAPITULO XXXV

Da chegada dos Cabellos-compridos á Tapuitapera e da viagem ao Uarpy.


Lá para o lado do Oeste havia uma nação, de que nunca se fallou,
desconhecida por todos os _Tupinambás_, moradora nos mattos na distancia
de mais de 400 á 500 legoas da Ilha, sem conhecer a vantagem dos machados
e das foices, pois apenas se serviam dos machados de pedra, e assim
viviam em segredo nas florestas d’essa localidade sob a obediencia de um
Rei.

Souberam por alguns selvagens, que apresionaram no mar, da vinda dos
francezes á Maranhão, da sua residencia ahi, trazendo comsigo Padres, que
ensinavam qual era o verdadeiro Deos, e absolviam os selvagens dos seos
peccados.

Levando taes noticias ao seo rei mandou este logo algumas canoas, e
n’uma d’ellas foi o governador, abaixo d’elle, d’esta nação, acompanhado
por duzentos mancebos fortes e valentes, ageis na natação e no uso da
flecha, com instrucção de chegarem á Ilha, porem não podendo pôr pé em
terra, limitando-se apenas a fallar com os interpretes dos francezes,
e regressando depois á sua terra tomando todo o cuidado para não ser
descoberto o caminho que seguiam.

Chegaram defronte de _Tapuitapera_, onde então se achava o interprete
_Migam_, que apenas soube da chegada d’elles foi ao seo encontro no mar,
e com o seo Principal fallou por muito tempo.

Interrogou-o o Principal acerca dos Padres, quem eram, o que faziam e
ensinavam: á respeito dos francezes, quaes suas forças, e mercadorias,
si era certo terem conciliado os _Tupinambás_ com os _Tabajares_, e si
viviam em paz na Ilha.

Respondendo o interprete a tudo isto, como devia, ficou satisfeito
e assim o disse, asseverando que o mesmo aconteceria a seo Rei e a
sua Nação, porque todos desejavam aproximarem-se dos francezes para
conhecerem a Deos, terem machados e foices de ferro, com que cultivassem
suas roças, e estivessem sempre em guarda contra os seos inimigos,
plantando muito algodão e outros generos para offerecerem, como
recompensa, aos francezes, aos quaes apenas pediam alliança e protecção.

Perguntou-lhes o interprete, si era grande sua nação, e si estava muito
longe, ao que respondeo affirmativamente, marcando a distancia por legoas
pouco mais ou menos, que podiam haver da Ilha á sua terra, mostrando
com os dedos o numero de luas, isto é, de mezes, que eram necessarios
para regressarem ao seo paiz, e accrescentou «não te posso dizer o logar
da nossa habitação, porque meo Rei assim me prohibio, e tambem porque
receiamos, que si nos faça guerra. D’aqui ha seis mezes regressarei para
te dar certas noticias, e podes dizer ao teo chefe, que sendo verdadeiras
as tuas informações viremos morar por aqui perto.»

O interprete respondeo—«vem, te rogo, vêr o Fórte, que fizemos, as
grandes peças, que montamos sobre suas muralhas, e os francezes, que as
guarnecem para de tudo dares noticias á teo Rei.»

«Não, disse elle, eu e os meos recebemos ordem de não saltar em terra».
Tanto porem instaram com elle, quase recebendo refens, consentio alguns
dos seos saltar em _Tapuitapera_, onde foram muito bem tratados, e ahi
adquirindo, em troca de generos, que levaram, alguns machados e foices,
regressaram mui contentes.

Durante essa visita, conservaram-se a nado as canoas, os remos armados, e
tudo prestes se houvesse alguma traição. Tinham os outros as flechas e os
arcos promptos, tanto desconfiam estas nações umas das outras!

Apenas chegaram os seos, restituiram os refens, e foram-se em paz. Deos
os guie e os traga ao seo gremio.

Quanto á viagem ao _Uarpy_,[64][BE] rio e região, em distancia para mais
de 120 legoas da Ilha, lá para as bandas dos Caietés, foi emprehendida
pelo Sr. de Pezieux, com alguns francezes, e duzentos selvagens pelos
seguintes motivos.

Primeiro: para descobrir uma mina de oiro e prata na distancia de
100 legoas acima do rio, d’onde os selvagens nos trouxeram enxofre
mineral, muito bom, e por tanto havia esperança de serem as minas boas e
abundantes.

Tem me esquecido dizer, que ha em toda esta terra grande numero de minas
de oiro, misturado com cobre, de prata misturada com chumbo,[65] o que
provam as agoas mineraes que descem dos montes.

Segundo: para traser comsigo uma nação de Tabajares, habitante das
margens do Rio.

Terceiro: para procurar uma nação de _cabellos compridos_ por ahi
errante, os quaes são doceis, faceis de serem civilisados, e que negociam
com os _Tupinambás_.

Si se realisarem estas coisas, como creio, a Ilha será em pouco tempo
rica de generos cultivados por todos estes selvagens reunidos, e
tornar-se-ha forte contra a invasão dos portuguezes, e descançando
n’esta esperança vou fallar de algumas raridades, que notei ahi, cortando
as difficuldades que se apresentam á primeira vista por meio de razões
boas e naturaes.



CAPITULO XXXVI

Dos astros e do sól.


É bello e magnifico o Ceo, n’esta zona tórrida, embora pareça muito menos
estrellado do que na Europa, isto é, não apparecem tantas estrellinhas
fixadas na abobada azulada d’aquelle como acontece na do nosso, pois no
Maranhão ha estrellas maiores e brilhantes, e mais luzentes do que aqui.

Não me convenço de lá não haverem menos estrellas do que aqui, antes esta
falta, que noto, attribuo á minha vista, e por mais esta razão.

Todos os que habitam fóra dos dois solsticios, _Cancer_ e _Capricornio_,
olham obliquamente o centro do ceo, que é a linha ecliptica ou zona
tórrida, onde passa o sol, e por tanto tem maior horisonte, ou maior
espaço do ceo a contemplar, e menos numero de estrellas a contar.

É pela experiencia confirmada esta razão, porque nasce e deita-se o sol,
sem preceder aurora, e assim acaba o dia e começa a noite, e si ha tarde
ou manhã é quasi nada.

Na Europa acontece o contrario, pois algumas vezes temos mais de duas
horas de tarde, e outras tantas de manhã, antes do nascimento e do occaso
do sol, porque os habitantes da zona tórrida estão na esphéra direita e
nós outros na obliqua.

Ainda acrescento outra experiencia.

Quando regressamos de Maranhão para cá, no Polo Septentrional,
descubrimos mais depressa a estrella d’este Polo, do que quando na nossa
viagem para lá descobrimos a estrella do Cruzeiro embora mais elevada do
que o Polo Antarctico ou Austral.

Ainda fiz outra observação n’este planeta do Sol, é que mostra dois
meios-dias diversos entre os dois termos do anno, de sorte que n’uma
metade do anno, olhando o Este está á direita, isto é, na parte austral,
e no resto do anno a esquerda, isto é, na parte septentrional, e em
ambos elles ha pouca sombra. O sol no zenith somente duas vezes no anno
olha para esta terra, como succede a todas as regiões contidas nos dois
solsticios: algumas vezes está tão perto da esphera direita, que pouco
falta para chegar ao meio dia, e ferir-vos a prumo o cume da cabeça.

Comtudo isto destinguem-se perfeitamente ambos estes meios-dias.

Explica-se isto por ser preciso cortar duas vezes, annualmente, o sol
quando no zenith, a zona tórrida, como já disse, para fazer os solsticios
de Cancer e Capricornio, e por tanto os habitantes da zona tórrida o vêem
fazer o seo meio-dia ora de um lado, ora de outro: por exemplo: quando
sahe do Capricornio afim de encaminhar-se para Cancer, os brasileiros
habitantes da zona tórrida observam o seo meio-dia á direita e quando
deixa Cancer com direcção á Capricornio vêem-no á esquerda.

Abre-se-me vasto campo para descobrir a sabedoria de Deos na organisação
do mundo, tendo por fim apenas escrever succintamente uma historia,
entrego á consideração do leitor chamando a sua attenção para a maneira
como Deos dividio o curso do sol em duas extremidades e um meio,
recebendo os habitantes de todas estas tres partes a mesma luz durante o
anno, tanto uns como outros, excepto os habitantes de Cancer, que apenas
tem durante o anno tres dias e algumas horas de sol mais do que os de
Capricornio, originando-se por isso os annos bissextos e a reforma do
calendario, como vamos explicar.

Principiemos pelo meio-dia, e acabemos pelas extremidades.

O meio é composto de duas extremidades, equidistantes uma da outra,
porque de outra forma não seria meio.

O curso do Sol se faz em 24 horas, dia natural, e em 12 mezes por anno.

Ora sendo a zona tórrida o meio do curso diario e annual do sol, é
indispensavel, que na sua terceira parte e porção mostre diaria e
annualmente á luz do sol igual a que se apresenta nas duas extremidades,
o que não poderia fazer; si os dias não fossem iguaes, tendo cada um 12
horas de Sol, porque, si excedessem ainda que pouco, não seria o meio do
curso do sol, e sim cahiria mais para uma das duas extremidades, tendo,
durante 12 mezes, uns dias maiores do que outros, compensando n’uns o que
n’outros perdia, e convindo por isso marcar-se outra zona de céo, que
fosse o meio e o centro d’esse curso, sendo o meio a essencia e a base
das duas extremidades.

É impossivel imaginar-se dois extremos sem meio: como ja disse, o meio
é composto de duas extremidades, e por isso sendo a zona tórrida o
meio da carreira do sol, deve ter sua porção de luz á custa das duas
extremidades, que são dose e dose, que dá o sol igualmente para os dois
solsticios, entre as duas partes do anno, recompensando n’um tempo o que
n’outro perdeo.

Consideremos agora uma terceira porção para servir de meio d’estas duas
extremidades, dose á dose.

Convem tomar 12 de uma parte e 12 de outra para ser o todo igual:
comprehendereis assim facilmente como esta zona tórrida gosa igualmente
com as outras partes do mundo da luz do sol sem mudar seo numero de seis
a seis em tempo algum, porque partecipa igualmente das duas extremidades,
quer vá o sol visitar Cancer e seos habitantes dando-lhe com a sua boa
chegada mais largura e liberalidade de luz, quer vá fazer outro tanto
no Capricornio, não lhe sendo por isso de forma alguma importuna a zona
tórrida, e nem alteando o seo imposto ordinario, fazendo-lhe pagar
somente, seis horas da manhã, e seis depois do meio dia, a luz e calor
para a sua passagem da travessia da terra, e pelo trabalho dos seos
habitantes durante a sua vinda.

Quanto ás terras e aos habitantes inter e extra-tropicaes dividem entre
si igualmente, pouco mais ou menos, em diversos tempos, a luz do sol, e
por compensação mais n’um tempo do que em outro: no fim do anno acham que
cada um teve 12 horas de luz para um dia natural, e dose mezes por anno.

Já disse que os habitantes de Cancer, dentro e fóra do seo Tropico, gosam
mais tres dias do sol do que os outros.

Dar a razão natural d’isto, e o que dizem os astrologos, é o mesmo que
nada, por ser segredo, que em si guardou a divina Providencia, e uma
honra que deo ao mundo antigo, composto d’Asia, Africa e Europa, e si
basta uma razão allegorica, sou de opinião que é para fazer sobresahir
tres privilegios especiaes, que sobre o mundo velho alcançou o novo, e
que são—a primeira habitação do homem expellido do Paraiso Terrestre;
dadiva da lei escripta á Moysés; e a redempção do mundo por Jesus Christo.



CAPITULO XXXVII

Ventos, chuvas, trovões, e relampagos em Maranhão e suas
circumvisinhanças.


Alem do que a este respeito disse em sua _Historia_ o padre Claudio
d’Abbeville acrescentarei para satisfação do leitor o que me fez conhecer
a experiencia:

1.º Fallando dos ventos, entre os quaes o do Oriente tem o sceptro e
occupa o reino do Brasil, alem das razões dadas por esse Reverendo Padre,
dou outra, que devo aos mathematicos, que por lá andaram e escreveram
sobre a materia.

Dizem elles, que a constancia d’esse vento soprando por ahi é devida á
disposição das costas do Brasil, em linha recta de Este a Oeste, porque
tendo o sol levantado os vapores da terra e da agoa e atirando-os apòs
si, pela violencia do seo curso diario encontram as costas do Brasil do
Oriente ao Ocidente sem inflexão ou curva alguma e por isso seguem por
ahi.

Praticamente observa-se isto com o fumo, que espalha-se no primeiro
corpo solido, que encontra como sustentaculo de sua fraqueza, e sem elle
derrama-se á feição do vento, que ahi sopra.

Com quanto o vento das outras tres partes do mundo, a saber, Oeste, Norte
e Sul não reinem no Maranhão e suas circumvisinhanças em comparação com o
de Este, não se pode comtudo dizer, que não soprem algumas vezes ventos
do Norte e do Sul, e raras vezes o de Oeste.

Em Maranhão os ventos vão sempre augmentando desde Agosto até Janeiro,
que é propriamente o estio d’esta terra, e quando o tempo é sempre sereno.

Explica-se isto pelo curso do sol que regressando do solsticio de Cancer
para o de Capricornio surgem debaixo da zona tórrida grandes vapores,
aquosos e humidos, e quanto mais se aproxima d’essas terras mais se
levanta, e por tanto mais se reforçam esses ventos, que não são outra
coisa senão esses vapores misturados com o ar.

2.º A razão porque começam as chuvas em Janeiro ou em Fevereiro, e vão
sempre augmentando até principio de Junho ou fins de Abril, é porque o
Sol volta do solsticio de Capricornio para o de Cancer, e attrahindo
muita humidade expande-a no ar, e d’ahi cahem as chuvas: quanto mais o
Sol se aproxima do seo termo, mais augmenta sua humidade, e torna a queda
das agoas mais expessa, forte, e rapida, e por isso vemos no Brazil ser
differente a epocha e a força das chuvas, isto é, mais depressa e mais
abundante n’uma terra do que em outra.

De ordinario são as chuvas abundantes e frequentes, duradouras e
continuas, mais á noite do que de dia: é o tempo proprio para semeiar-se,
porque tudo nasce, cresce, produz, e dá colheitas.

Quando a terra é arenosa, e que está secca pela proximidade do Sol, ao
cahir das chuvas continuas e abundantes, ella absorve admiravelmente as
agoas, muda a sua secura para uma temperatura humida, que é a mãe das
gerações.

São diversas estas chuvas do orvalho da noite no estio, porque tem
este bom cheiro e aquellas mau, visto que provindo as chuvas do choque
de expessos vapores aerios, trazem portanto comsigo a qualidade de
seos agentes e a sua causa efficiente: acrescente-se ainda que a queda
impetuosa das agoas sobre a terra, coberta de folhas em putrefacção ou
de cinzas de paus queimados, revolve-a, e d’ella faz desprender-se, com
o seo estado constante de calor natural, mau cheiro proveniente de taes
objectos.

O orvalho cahindo doce e brandamente em noite serena, mais fria do que
cálida, exhala cheiro agradavel, especialmente quando se derrama sobre
plantas odoriferas.

É mais doentio o tempo das chuvas do que o das brisas, ou ventos de Este,
porque em primeiro logar não sopram mais os ventos, e por conseguinte
não purificam o ar, e d’elle não expellem vapores intensos, maritimos e
aquosos, e por isso mui doentios: em segundo logar chocando-se as nuvens
e cahindo as chuvas, apparecem molezas no corpo, doenças de coração,
desarranjos do estomago, enfraquecendo-se os nervos, e infiltrando-se os
ossos de humidade o que não apparece no tempo das ventanias, que limpam o
ar, o mar, e a terra.

3.º Os trovões e relampagos são, sem comparação alguma, mais fortes e
frequentes no Brasil do que no mundo velho, especialmente no tempo das
chuvas, são horriveis os trovões, parecendo abalar-se a terra, e um
relampago dura mais do que dose na Europa.

Durante esse tempo não sahem de casa os selvagens, e nem o mais valente
se atreve a pôr o nariz fóra da porta, e eu mesmo, sem ser dos mais
timoratos, fartei-me de medo, embora ninguem visse a queda do raio.

Eis a razão.

Emquanto é brando o calor de Agosto á Fevereiro raras vezes ha trovões;
mas quando surge a guerra do frio e do calor, que é de Fevereiro á Junho,
então é necessario que appareçam escorvas e peças, isto é, raios e
trovões.

N’este tempo reina o calor na zona tórrida com todo o seo vigor, e o frio
então se fortifica pelo regresso do Sol de Capricornio para Cancer, cheio
de humidades do ar, e por isso é grande o combate, mais frequentes os
trovões, e mais medonhos os relampagos.

Não se descobre a queda dos raios porque são altas e vigorosas as arvores
do Brazil, e ordinariamente é n’ellas, como acontece em toda a parte,
onde cahem os raios.

Como é o paiz coberto de florestas, e repleto de arvores de admiravel
altura, é bem facil cahir o raio desapercebidamente.

Prova-se isto todos os dias com arvores cahidas e queimadas, que se
encontram nas florestas.



CAPITULO XXXVIII

Mar, agoas, e fontes do Maranhão.


O mar, pelas suas marés, não é o mesmo que o do restante do Mundo.

Embora o Occeano acompanhe infallivelmente o crescente, o plenilunio, e o
minguante da Lua, comtudo notaram nossos marinheiros em um ou dois dias,
e algumas vezes mais, differença e falta de igualdade do que se observa
n’outras marés do Universo.

Explica-se isto observando-se, que o Brazil está cercado de milhares de
inflexões ou voltas, formadas umas por bancos e corôas de areia, e outras
por voltas de pontas de terra e bahias.

Accrescente-se ainda terem todas estas terras as sahidas mui retalhadas,
que impossibilitam o desembocar da maré com toda a sua força para os rios
salgados e portos e barras, como acontece n’outras partes.

Reparae por exemplo o fluxo e refluxo do mar no rio Sena, pois quando o
mar no Havre da Graça principia a refluir já a onda chegou a Ponte de
Arche.

Reparei tambem na seguinte coisa commum ás outras marés, porem não tanto
como as antecedentes.

O mar no seo fluxo, batendo nas pontas das rochas, deixa no meio um canal
ou rego, que mostra a sua corrente principal, forrado de excrecencias
maritimas, que ahi se amontoam, e si passar-se uma corda pelo seo nivel
poderá servir de marca aos pilotos para reconhecer o canal no meio dos
recifes.

Parece-me explicar-se isto pela propriedade da forma circular, que tem
os elementos, a qual lhes permitte expandir-se até a circumferencia: em
virtude d’isto o mar faz no meio do centro do seo fluxo o rego, ou fio de
sua carreira, depois dispersa-se, e dá a cada ponta de rochedo a sahida
para a maré, e por isso tenho observado algumas vezes muitos pedaços
de pau serem arremeçados em diversos sentidos contra os rochedos pela
violencia e corrente d’essas differentes marés.

As agoas do Maranhão são incorruptiveis, e muito melhores do que as da
Europa, como tive occasião de verificar por espaço de dez semanas na
viagem do meo regresso: eis a razão: quanto mais sugeito está um corpo á
transformação e mudanças de qualidade, mais susceptivel se torna de ser
corrompido e mau por causa das alterações, que soffre, ora as agoas do
Maranhão achando-se sempre no mesmo estado, são por tanto incorruptiveis
e optimas. As agoas da Europa são pelo contrario ora quentes, ora frias,
e por conseguinte corrompidas e más.

Não são frias como as da Europa as fontes do Maranhão, porque sendo
baixas as terras do Brazil não póde operar-se a anteperistase em suas
entranhas, especialmente pela proximidade do sól, que penetra muito bem e
com todo o vigor na terra, que é arenosa e mui susceptivel de calor.

As agoas da Europa são frias no Estio por causa da grande anteperistase
das terras, d’onde cahem as agoas, que são altas, muitas vezes fortes e
densas, e por isso resistem ao sol.

Conservam as fontes do Brazil sempre a mesma temperatura, porque o sol
derrama-se igualmente por cima d’ellas, que nada tem, que lhes possa
imprimir alguma qualidade fria.

Entre as fontes do Maranhão umas são melhores do que outras, e tem até
côres diversas: a que nasce da terra é diversa em gosto e côr, porque
sendo a terra baixa, e havendo muitas arvores, umas com bom gosto e
outras com mau, estendem por ahi suas raizes, e d’ellas os olhos d’agoa,
ou os veios das fontes recebem qualidade boa ou má, tanto da terra como
das arvores.

Notei n’estas fontes o seccarem umas em setembro, e outras minguarem
muito, porque sendo o terreno do Maranhão quente, secco, e arenoso
consome facilmente as agoas das chuvas, que por elle corre, e que serve
de alimento ás ditas fontes: achando-se pois os mezes de setembro,
outubro, novembro e dezembro muito longe das chuvas, é natural, que ás
fontes aconteça o que já dissemos.

Quem quizer beber agoa muito fria, deve expol-a ao sereno, e na manhã
seguinte está tão fria como gêlo, o que não lhe succederá se n’essa
hora for buscal-a á fonte, porque sendo as noites em Maranhão muito
frias, ellas tem muito mais força sobre uma porção d’agoa guardada n’uma
vasilha, cercada de ar por todos os lados, do que sobre agoas sempre em
movimento pela corrente, contidas em leitos baixos, cobertas e sombrias
por todos os lados, e tendo a superficie apenas á vista.

Facilmente observa-se isto na Europa, durante o inverno, nas fontes e
poços situados em lugares retirados e sombrios, pois nunca suas agoas se
gelam, ou pelo menos se esfriam.



CAPITULO XXXIX

Singularidades de algumas arvores do Maranhão.[66]


As arvores do Maranhão, em sua maior parte, são duras e pesadas, porque a
solidez nas coisas mixtas provem da boa cocção da humidade.

N’este paiz existe em igual abundancia tanto a humidade como o calor,
cada um durante a sua estação: as chuvas tem seo tempo proprio para
alagar a terra, e o calor tambem o tem para coser e digerir esta
humidade, que é nutricção dos vegetaes, especialmente das arvores, que
estendendo suas raizes dentro e fóra da terra por ahi chupam muita agoa
e sobrevindo o calor transforma a humidade em corpo solido.

As arvores estão sempre verdejantes por successão diaria e continua de
folhas novas ás velhas, de fórma que, sahindo aquellas dos olhos dos
ramos vão logo por força propria attrahindo a seiva, ficando d’ella
privada as velhas, que por isso definham e cahem.

Observamos isto no nosso corpo quando uma unha nova vem substituir a
velha.

Por esta renovação de folhas conservam-se as arvores no mesmo estado, o
que não vemos na Europa porque o inverno retem no interior das arvores o
calor natural d’ellas: é necessario que cáiam as folhas antes da ausencia
do calor, ficando só a humidade, que apodrece o pé da folha em vez de lhe
dar vigor como acontecia no tempo do calor, e por tanto assim se faz a
queda das folhas.

No Brazil acontece o contrario porque vivendo o calor e a humidade em
boa e perpetua companhia, novas folhas nascem ao mesmo tempo que as
velhas cahem: geralmente, em todas as coisas notam-se tres estados: 1.º
Crescer. 2.º Permanecer. 3.º Decrescer e assim sempre até morrer: eis o
que observamos nas folhas—teem tempo para crescerem, ficarem perfeitas, e
depois irem definhando até cahirem seccas.

Entre estas arvores merecem especial menção em primeiro lugar os
_mangues_, arvores, que crescem nas barreiras do mar, e espalham
seos ramos, e fibras sobre as areias do mar, ou entre as pedras que
cobrem o limo, ahi se fortificam, engrossam, e chegando ao seo estado
completo, começam elles mesmos a deitar novas fibras, que tem igual
desenvolvimento, e assim se reproduzem infinitamente, não pelas raizes,
como as outras arvores, e sim pelos seos ramos.

Não sei o que mais admirar, si a successão perpetua de pae a filho, ou a
geração inteiramente diversa das outras arvores.

A razão, porque assim produzem estas arvores, provém de serem altas,
pesadas e em seo principio finas e delgadas para a raiz, e grossas no
centro: se nasciam da raiz de seo pae, nunca poderiam subir por causa da
fraqueza e delicadesa de seo pé, da grossura e peso do seo meio, e assim
ficam deitadas e rastejando pela areia, a que deo a natureza o encargo
de dar dois nascimentos; um do ramo de seo pae, onde ficam perpetuamente
encorporadas e por conseguinte bem sustentadas, outro da origem da
enseiada do mar, na qual ellas aprofundam e estendem suas raizes, e d’ahi
extrahem segunda nutrição, e assim sustentadas e nutridas por cima e por
baixo com facilidade crescem.

Notae de passagem esta bella particularidade de terem dois nascimentos e
duas nutrições: a primeira de cima consubstancial com o seo gerador, que
com elle faz uma mesma essencia, sendo gerado, sahido d’elle, e sempre
com elle e inseparavelmente vivendo de sua nutrição. O segundo nascimento
e nutrição é debaixo do seio da areia do mar, nutrindo-se do mesmo mar,
chamando para cima esta nutrição para unil-a com a que recebe de seo Pae:
por estas duas nutrições cresce, estende seos ramos, dos quaes, de novo,
por outro nascimento produz seos fios, que adquirem raizes dentro do
mesmo mar, que o produz.

D’esta comparação eu me servia para fazer comprehender aos selvagens
o Mysterio da Encarnação do Filho de Deos dizendo ter elle dois
nascimentos, um de cima, eterno e divino, sahindo de seo Pae sem d’elle
sahir, distincto de seo pae por hypostase como o ramo de mangue, com o
filho gerado d’elle, unico comtudo na essencia e na substancia com seo
gerador, como a fibra com seo ramo, vivendo de uma mesma nutrição divina
e celeste, a saber, o amor do Espirito Santo, que constitue a terceira
pessoa da Trindade: o outro nascimento é de baixo, temporal e humano,
sahido do seio da Virgem Maria, nutrido com o seo leite sagrado, foi
crescendo homem e Deos ao mesmo tempo, vivendo interiormente da nutrição
divina, e exteriormente da nutrição corporal, e quando chegou á idade
de 33 annos e meio, depois de haver communicado sua doutrina celeste aos
homens, confirmada por seos milagres, estendeo seos braços, consentindo
que fossem pregados na arvore da Cruz e do meio de suas chagas sahiram
seos escolhidos, que depois tomaram raizes na Santa Igreja, regenerados
pela agoa do baptismo, e nutridos pelos Sanctos Sacramentos.

Diziam-me os selvagens, que comprehendiam isto muito bem e sem a menor
difficuldade, porque si Deos deo tal poder ás arvores, que não sentem,
porque não poderia elle fazer o mesmo a si?

N’esse paiz existem arvores, que se mostram exteriormente seccas, sem
folha alguma, e comtudo quando chega o tempo proprio brotam d’ellas em
quantidade flores muito bellas e em cachopas, porem são de diversas cores
e ordinariamente amarellas.

Encontra-se a razão d’esta particularidade no logar escolhido pela
naturesa para terminar a sua acção: por exemplo; quando é liberal dando
a qualquer membro um excesso de nutrição, é á custa dos outros: quando
estas arvores dão sua seiva para formar uma casca grossa, verdejante
e humida e cobrir de lindas folhas os seos ramos, não produzem bellas
flores, as quaes naturalmente, em todos os vegetaes, formam-se de uma
seiva bem digerida e subtil, e por tanto podendo subir facilmente até as
extremidades dos ramos, não cuidando das outras partes da arvore para
lhes dar qualquer nutrição.

Reconheci isto em França, onde se pódam as cerejeiras para não dar
fructo, afim de com toda a sua seiva produzirem flores largas e dobradas,
como rosas almiscaradas duplas.

Tambem existem outras arvores, que fecham suas folhas, e as dobram
sobre si, quando o sol está no seo occaso, e apenas se levanta ellas
desdobram-se e expandem, como acontece em França, ao Girasol.

Este phenomeno é devido á humidade ou sereno na noite, que as aperta e
fecha porque o frio tem essa qualidade, e o calor do dia as abre e as
expande por ter essa propriedade.

Com bastante difficuldade pude deparar com as razões naturaes de muitas
singularidades, que vi em Maranhão, porem confesso com franqueza, que
nunca achei a causa natural: certas arvores d’aquelle paiz, apenas se
toca com a mão o seo tronco, immediatamente fecham todas as suas folhas:
por certo haverá n’estas arvores alguma propriedade sensitiva, como ha
na esponja, a qual apenas sente a mão do homem, que a pretende cortar,
ella se aperta, e occulta-se no concavo e na fenda da pedra do mar, que a
forma.

Os cajueiros, que produzem uma fructa propria para fazer vinho, nascem
espontaneamente pela costa do mar, e por isso vivem da seiva maritima e
salgada, resultando d’isto ser o vinho de cajú picante e acre, e produzir
no futuro dores nos rins, e ser prejudicial aos pulmões.

Por experiencia coei este vinho, e d’elle tirei muito sal.

Ha espinhos, que dirieis serem creados por Deos para representar o
mysterio da paixão de Jesus Christo,[67] porque crescem formando
ramilhetes quatro em cima, equidistantes á maneira de uma Cruz, e um no
cume com a ponta virada para o Ceo, ornado de nove folhas, dispostas
como tres raminhos, cada um com tres espinhos, que em tempo proprio se
transformam em tres flores, ficando o espinho maior no centro.

São estes cinco espinhos os instrumentos das cinco chagas de
Jesus-Christo. Cercando a corôa de espinhos seo Chefe, como o espinho
de cima é cercado de folhas, isto é, de peccados e de vaidades das tres
idades do mundo, na lei da natureza, escripta e de fé, cujos peccados e
imperfeições se transformam, pelo merecimento do sangue de Jesus Christo,
em flores da Graça, em boas obras, e na recompensa da gloria.



CAPITULO XL

Dos peixes, passaros e lagartos, que se encontram n’esses paizes.


Eis uma questão não pequena, de phisica ou de philosophia natural—«como
pode um animal, vivo e perfeito na sua especie, formar-se sem
progenitores.»

Alberto, o grande escriptor, vio peixes vivos no meio de uma grande pedra
marmore, tirada da rocha, e rachada no centro.

Não é novidade para os que leram este autor, porque eu vi em Maranhão,
nos regatos formados pelas chuvas, e que pouco duram, muito bons peixes,
iguaes em tamanho e côr aos que vivem em rios permanentes, e que nascem
de ovas.

Como é possivel, que sem haver ovas, possam estes peixes nascer, crescer
e morrer, com a queda, augmento e ausencia das chuvas?

A razão d’isto está na força e influencia dos planetas predominantes em
janeiro e fevereiro, quando nascem estes peixes, e na conjuncção forte
da humidade e do calor e na disposição do terreno, tudo isto combinado
de tal forma, que dá origem a taes e taes peixes de preferencia aqui do
que em qualquer outra parte; como vemos na Europa em que a diversidade
das terras, por onde passam as chuvas, produz differentes variedades de
peixes.

Entre os passaros do Maranhão, dos quaes eu diria maravilhas, si outros
ja o não tivessem feito, notei uma especie singular de aves aquaticas
vermelhas,[68] cuja penna e carne são de côr escarlate, dando-se a
particularidade de serem brancas quando sahem do ovo, depois com o tempo,
quando podem vôar; são pretos, e assim ficam até chegarem a sua grandesa
e grossura natural, d’ahi vão se tornando meio pardos e meio vermelhos, e
finalmente totalmente rubros, passando assim por quatro mudanças.

Não digo isto por ouvir dizer, porem observei nos que se criam em casa
presos. Este phenomeno não se dá sem uma razão profunda, e fundada na
naturesa, e me parece ser esta: a côr da pelle e das pennas é devida
á disposição e qualidade do alimento, que nutre a ave, porque diz o
philosopho, a pelle e as pennas nascem, crescem e se nutrem com a
superfluidade dos alimentos: ora a côr branca faz suppor alimentação
leve e delicada, e por isso a avesinha ao sahir da casca do ovo, vivendo
somente á custa de moscas e mosquitos, que vôam ao redor d’elle, é
natural que suas plumas, originadas de tão fraca comida, tenham a côr
branca.

A côr negra porem faz crer em abundancia e superfluidade de alimentação,
porque a intensidade do calor natural vae sempre excitando o apetite, e
empurrando-o para o pasto e por isso notei, que quando esta ave tem as
pennas pretas é glutão e come constantemente.

A côr parda e meia vermelha mostra uma tendencia, ou uma regra, nascida
expontaneamente da naturesa para acolher uma certa alimentação, que
lhe é propria, e então observei escolher esta ave uma comida singular
e especial, isto é—os carangueijos, os quaes consummidos no estomago,
ahi se transformam em chylo vermelho como escarlate, e este cahindo no
figado, se d’elle não receber alguma côr, como acontece com os outros
animaes, tinge-o com sua côr, e sempre assim passa para as veias, das
veias para a carne, da carne para as pennas, e tão perfeitamente, que si
fosse um mettido dentro de uma panella para cozinhar, podia dizer-se que
havia dentro uma porção de vermelhão.

Entre milhares de lagartos e reptis do mar, appliquei minha attenção para
uma especie bem monstruosa.

É um animal que vive umas vezes n’agoa, outras em terra, e tambem nas
arvores, contendo em si as tres espheras com que vivem todos os animaes
do mundo.

Com os peixes partilha o elemento d’agoa, com os homens e os quadrupedes
o da terra, e com os passaros aninha-se e repousa nas arvores. Direi
ainda que só parece terem os astros lhe dado sobre os rins, desde a
cabeça até o fim da cauda um reflexo de seos raios e brilhos, porque
notareis no dorso uma bella facha de raios do sol e das estrellas,
similhantes aos que fazem os nossos pintores ao redor do globo do sol e
das estrellas.

Tem a pelle esmaltada de côr prateiada e azulada, como a abobada celeste
quando serena.

Quando este animal sente a intensidade do Sol, sahe do mar, sobe ás
arvores visinhas, e escolhendo um ramo para deitar-se, ahi se estende e
descança.

Põe seos ovos nas arvores maritimas, os quaes aquecidos pelo calor do
Sol deixam sahir os lagartinhos, que apenas sahem das cascas dos ovos
conhecem logo o pae e a mãe, acompanham-no ao pasto no mar, em terra e
nas arvores.

Explico a rasão d’isto dizendo que quanto mais humido é o animal, mais
somnolento é elle. Entre todas as especies de animaes esta sorte de
lagartos é humida e fria, e por tanto sujeita ao dormir, e como seja
mais agradavel o somno quando se tem os membros em certo grau de calor,
eis por que elles buscam soalheiros. Reconhecendo pequeno o seo calor
natural, eis porque põem seos ovos em lugar expostos aos raios do Sol.



CAPITULO XLI

Da pesca do Piry.


Os selvagens do _Maranhão_, de _Tapuitapera_, e de _Comã_ tem uma
pescaria certa e annual, como annualmente a do bacalhau nos Bancos da
Terra Nova.

Alguns mezes depois das chuvas, quando julgam as agoas escoadas, muitos
embarcam em suas canoas, levando farinha para alguns mezes ou seis
semanas, e assim vão costeando a terra á um lugar distante da Ilha 40 ou
mais legoas: ahi se arrancham, levantam choupanas, e depois dedicam-se a
pescaria, a caça dos crocodillos, e á procura das tartarugas.

Ahi se reunem muitos selvagens de diversas aldeias da Ilha, de
Tapuitapera, e de Comã.

Apanham-se os peixes nas pôças, ou buracos de areia com pouca agoa, e
quando se vae um pouco mais tarde, coagido pela estação, encontram-se
essas pôças seccas e o peixe morto.

Sendo impossivel dizer-se o numero ou a quantidade d’estes peixes, faço
porem comprehendel-a asseverando, que chega para carregar todos os
selvagens, e ainda fica muitissimo. São grossos e curtos, não excedem
porem a grossura e expessura de um braço, tem de comprimento meio pé
entre a cauda e a cabeça, o focinho achatado e muito similhante ao do
tenca, e parecem-se muito com os peixes maritimos chamados _marujos
pintados_.

Apanhados nas redes, que levam, chamadas _pussars_, seguram-nas pelo meio
dose a dose, lançam-nos com entranhas e tudo ao fumeiro para assal-os,
e assim ajuntam muitos, que levam para suas casas, e com esta comida
sustentam-se um ou dois mezes. Quando querem comer, tiram a pelle do
peixe, seccam-na ao sol, pisam-na em um almofariz, reduzem-na á pó, com
que fazem seos _mingaus_, isto é, suas bebidas, como fazem os turcos com
o pó dos quartos de boi cozidos ao forno quando vão para a guerra.

Dirigindo-me um dia para a Ilha, achei-me em certa aldeia, onde nada
tendo que dar-me para jantar, ferveram alguns d’estes peixes n’uma
panella, do caldo fizeram _mingau_, vindo o resto no prato.

Bem contra minha vontade de nada me servi por causa do mau gosto da
fumaça, porem com muito apetite comeram de tudo os francezes, que vinham
commigo, achando saborosos os peixes, com grande satisfação dos indios,
que os apreciam tanto á ponto de irem muito longe buscal-os.

Como se acham em tanta abundancia estes peixes em taes fóssos ou poços
desde o inverno até esse tempo? Se explicações servem ja as dei no cap.
40, e por isso á ellas me refiro, acrescentando ainda o seguinte.

A grande quantidade de chuva faz transbordar os rios, os regatos, e o
proprio mar, de maneira que todos estes campos ficam innundados até
a altura de um homem: assim sahem os peixes do lugar natural, onde
habitavam, ahi regalam-se com pastos novos a ponto de não se lembrarem de
regressar a Patria, e por isso quando as agoas se abaixam, ficam presos
em fóssos e poços como vimos em todos os lugares onde se dão estes factos.

A caça dos jacarés lhes é util e agradavel: são pequenos crocodillos com
8 ou 10 pés de comprimento, de pelle dura, ventre molle, sem lingua, com
olhos vivos, sempre alerta e maus: accommettem o homem, cortam e devoram
o primeiro membro que agarram.

Escondem-se em grotas, á margem dos rios, e sempre de emboscada, nadam
como peixes, arrastam-se ligeira e brandamente, abrem a bocca, e como que
intentam assustar-vos si vos encontram: põem ovos iguaes aos de galinha,
porem cobertos de protuberancias, como as castanhas; dizem que são bons
para comer, mas eu não affianço porque nunca os provei, pois sempre tive
muito horror á estes bixos.

Chocam seos ovos, e d’elles sahem jacarésinhos, gordos, grandes e
compridos, como os lagartos que vemos pelo estio correr nos muros.

É para admirar, que de tão pequeno bixo origine-se tão grande animal, e
que apenas sahido da casca do ovo começa a andar e arrastar-se!

Sua carne cheira a almiscar, é doce e desagradavel: os selvagens porem
não fazem caso d’isto, apreciam-na muito quando a encontram, e por isso
empregam-se muito em caçal-os.

O logar _Piry_, humido e cheio de limo, tem muitos jacarés, que são
perseguidos pelos selvagens por meio de flechas, atiradas com direcção
á garganta ou á barriga, e depois acabam-nos com uma barra de ferro,
escamam-nos, e cortam-nos em pedaços, que assam.

Si são pequenos, cozinham-nos com escamas, e assim preparados acham-nos
muito bons e até delicados, porque assados com sua gordura, dizem elles,
nada perdem de sua substancia.

Achei melhor crer do que experimentar, embora tivesse muitas occasiões
de o fazer, visto que recebi muitos presentes d’elles quando voltaram os
selvagens do _Piry_.

A recordação somente d’estes animaes me fazia nauseas até o coração, á
vista d’esses pedaços.

Diziam os francezes, que o comeram, ser similhante a carne fresca de
porco, um pouco mais adocicada, oleosa, e com o cheiro de almiscar.

He muito perigoso tomar-se banho n’esse paiz, a não ser em logar
descoberto, porque estes despresiveis animaes se arrastam de mansinho e
se atiram sobre vós.

Contaram-me, que um menino, da aldeia de _Rasaiup_, cahindo n’um riacho,
onde hia buscar agoa, foi agarrado e devorado pelos jacarés.

Quando andei pelas costas do mar, desde _Trou_ até _Rasaiup_, em
companhia de muitos selvagens, elles me levaram para beber agoa n’uma
grota cheia de sarças e outras mattas, e me advirtiram, que ahi ninguem
se podia demorar muito por ser o escondrijo dos jacarés.

Fazem-lhes muita guerra os nossos selvagens, por gosto e utilidade, e
trazem grande provisão d’elles quando voltam do Piry.

A razão de não terem lingua, estes animaes é porque segundo creio, tem a
garganta e o pescoço, inteiramente inflexiveis, a ponto de não poderem
olhar nem para traz nem para o lado sem moverem o corpo todo: alem
disso, elles tem o maxillar inferior duro e immovel, tudo isto contrario
ao uso da lingua, e só mastigam com o maxillar superior.

Eis porque agarram e devoram a presa de um só jacto, não precisando
viral-a e reviral-a da garganta.

Disse S. Gregorio, que os crocodillos do Nilo chegavam a ter até o
comprimento de 20 covados, a cor de açafrão, porem os do Maranhão e de
suas circumvisinhanças não iam alem, como ja disse, de 10 ou 12 pés, com
a differença tambem de habitarem aquelles, durante a noite, a agoa, e de
dia a terra, porque busca o calor, visto serem no Egypto á noite as agoas
quentes e a terra fria, e de dia vice-versa.

No Maranhão acontece o contrario: de noite ficam em terra, e de dia
n’agoa, porque as agoas são frias á noite e quentes de dia, e a terra
temperada.

A razão, porque este animal tem medo dos que o perseguem, e é atrevido
contra os que fogem d’elle, é porque facilmente atira-se sobre este, e só
com muita difficuldade se defende d’aquelles, sendo este procedimento o
resultado de sua naturesa timida e assustada.

Tem só um intestino, porque não faz a primeira digestão nas carnes
cortadas em bocadinhos.

Temem mais os selvagens que os francezes, e os do Nilo receiam mais
os egypcios do que os estrangeiros, o que explica Solinus dizendo
reconhecerem elles naturalmente pelo cheiro os que o guerreiam
constantemente.

Disse um phisiologista, que quando elle devora alguem, chora a sua
desgraça: não sei si será verdade.[69]

Alem d’estes exercicios, no Piry perseguem os selvagens as tartarugas,
ahi em quantidade incrivel, e trazem-nas vivas tantas quantas podem.

Não são avarentos, antes sim por poucos generos alcançareis muitas.

Lembro-me, que passando algumas canoas pela nossa situação de São
Francisco, por uma faquinha de custo de um soldo na França, deram-me
setenta, e pela farinha, que lhes offereci para jantar, mimosearam-me com
vinte e cinco, que guardei em lugar humido e fresco, deitando-lhes todos
os dias um pouco d’agoa, e assim se conserváram sem comer por mais de
seis semanas.

Os selvagens comem-nas com muito gosto, e dizem que ellas lhes conservam
a saude, e lhes fazem bom estomago.

Cozinham-nas em seos cascos inteirinhas, sem tirar-lhes as entranhas, e
nós as achamos assim preparadas muito melhores do que de outra fórma.

Si algum d’elles soffre dos ouvidos por algum defluxo tiram as mulheres
o sangue d’estes reptis, misturam-no com o leite tirado de suas mamas, e
com isto friccionam o fundo da orelha.

Quando arrancam o cabello dos seos corpos, com pinças de ferro, que lhes
dão os francezes, esfregam a pelle com...

    (falta uma folha).



CAPITULO XLIII

Da caça dos ratos, das formigas e das lagartixas.


Ha outra caçada de um verme, tão divertida e agradavel como as
precedentes, é a dos ratos domesticos e selvagens.

Não comem os domesticos, ao menos que eu saiba, porem caçam-nos
cruelmente; porque si entra um rato em qualquer casa, reunem-se todos os
habitantes, uns com arcos, e outros com flechas e paus, e com o auxilio
tambem de alguns cães não escapa o pobre rato.

Depois de morto é espetado na ponta de uma vara, fincada no meio da
aldeia, para servir de alvo ao exercicio das flexas dos meninos.

As aldeias mais proximas dos portos, onde chegam navios, tem mais ratos,
porque apenas sentem a terra, atiram-se as ondas, nadam, trocando assim
o seo paiz natal, que é o mar, para ficar n’um paiz mais firme e seguro,
que é a terra.

Comem os ratos selvagens, que vivem nos bosques e no dizer d’elles é
comida deliciosa.

Caçam-nos assim: cavam um buraco no meio de um certo lugar no matto,
fazem varias entradas, similhantes ás coelheiras, ou terreiros de
coelhos: reunem-se depois muitos sujeitos, armados de paus, e vão fazer
grande alarido ao redor d’esse fosso, como se costuma fazer nas caçadas
dos lobos.

Batem as mattas, e d’ellas fazem sahir os ratos, e elles fugindo, e
encontrando esses buracos tão proprios para se occultarem, ahi entram,
e então aproximando-se os selvagens, toma cada um conta do seo buraco,
e entrando outros dentro do fosso, á cacete matam os ratos, dividem-nos
igualmente, e regressam para a aldeia trazendo cada um o que lhe tocou.

Assam os ratos ao fumeiro ou sobre carvões, abrem-nos por diante sem
lhes tirar a pelle, a qual fazem tostar depois que o animal está cozido
por dentro, para não perder a gordura, e depois os guardam dentro de uma
porção de farinha.

São estes ratos assim preparados, guardadas as proporções, mais
apreciados do que os javalys e os viados, e as vezes trazem os selvagens
quantidade incrivel d’elles.

Caçam as formigas em tempo de chuva, por ser a epocha propria d’ellas
mudarem de habitação.

As que podem vôar buscam a região do ar, deixando suas casas, feitas e
cavadas na terra.

As outras, si por instincto natural desconfiam, que podem as agoas
invadir suas grutas, e estragar seos armazens, celleiros, ou dispensa,
pegam na bagagem, com ordem digna de ser mencionada, e auxiliadas com a
experiencia, como vou contar para servir de modello a todas as outras.

Na nossa casa de S. Francisco, no principio das chuvas um milhar de
milhões de formigas sahio de uma caverna, perto d’ahi, e veio tomar posse
de um canto do meo quarto, onde cavou camaras, ante-camaras e celleiros.

N’uma bella manhã sahiram todas, e trouxeram um alqueire, talvez, de
ovos, indo em diversas estações, isto é, em distancia de 2 passos uma da
outra.

Cada acervo trazia suas formigas em ordem, vindo descarregar cada uma o
que trazia no montão proximo, e assim iam fazendo os outros acervos ou
companhias.

Admirei-me de vêr tantas formigas, e tantos ovos, que deitavam mau cheiro.

Mandei fazer bom fogo, e atirar sobre estes ovos, e no caminho por onde
passavam estes animaes.

Puzeram-se em alarme, e cada uma buscou salvar os ovos que poude, como
fez Eneas á Anchises, seo pae na destruição de Troya.

Não fui tão bem succedido, porque regressaram ao lugar que haviam
escolhido, não pensando talvez, que me incommodassem, o que assim não
aconteceo, porque reunindo-se todas por espaço de 2 dias, deliberaram ir
a pilhagem fóra do quarto, mostrando-se contentes com a habitação, que
bem a meo pesar lhes dei.

Causar-vos-hia satisfação vendo estes animaesinhos, desde o amanhecer
até ao anoitecer, fazer suas provisões, que são as folhas de uma certa
arvore, em cujos ramos, como presenciei, estavam muitas para cortal-as e
deixal-as cahir em terra, onde cada formiga pegava no que podia e levava
para os armazens.

Tinham aberto dois caminhos, muito bons para o seo tamanho: por um iam as
carregadas, e por outro as desembaraçadas, evitando assim a confusão e
a mistura, embora fossem mais de quatrocentas as carregadeiras. O mesmo
fazem as outras especies de formigas.

É para admirar-se tambem a especie de abobadas, que com admiravel
industria fazem quando querem caminhar abrigadas.

Caçam os selvagens somente as formigas grossas como o dedo pollegar,
para o que aballa-se uma aldeia inteira de homens, mulheres, rapazes e
raparigas.

A primeira vez que vi esta caçada, não sabia o que era, e nem onde
hia tão apressada tanta gente deixando suas casas para correr após as
formigas voadoras, as quaes agarram mettem-nas n’uma cabaça, tiram-lhes
as azas para frital-as e comel-as.

Caçam-nas tambem por outra maneira, e são as raparigas e as mulheres que,
sentando-se na bocca da caverna, convidam-nas a sahir[70] por meio de uma
pequena cantoria, assim traduzida pelo meo interprete.

«Vinde, minha amiga, vinde vêr a mulher formosa, ella vos dará avelans.»

Repetiam isto á medida que iam sahindo, e que iam sendo agarradas,
tirando-se-lhes as azas e os pés.

Quando eram duas as mulheres, cantava uma e depois outra, e as formigas
que então sahiam, eram da cantora.

Causa admiração vendo-se os grandes pedaços de terra, que tiram de suas
cavernas.

No tempo das chuvas tapam os buracos do lado das enchurradas, e deixam
somente aquelles, por onde pode vir a chuva raras vezes.

As formigas do Maranhão tem dois inimigos encarniçados, especialmente
estas alladas: um—certa especie de cães selvagens,[71] com pello de
lobo, fedorentos o mais que é possivel, focinho e lingua muito aguda,
e que procura o formigueiro para alimentar-se: outro, uma qualidade de
formigas corpulentas, que de ordinario nascem com as outras, como o
zangão entre as abelhas, e em quanto são pequenas e fracas, trabalham
conjuntamente sem fazerem barulho, e nem se offenderem.

Quando grandes e fortes deixam as outras, fazem bando á parte, só e só,
não vivem mais em companhia, e põem se de embuscada pelo caminho, onde
costumam passar suas irmãs e parentas, como fez antigamente Abimelech,
bastardo de Gedeon, sobre os 70 filhos legitimos de seo pae, seos
proprios irmãos, os quaes matou todos sobre uma pedra em Ephra.

Sirva d’isto ao leitor para applicar como julgar acertado.

Eis como os nossos selvagens se distrahem mais utilmente com estes
animaes, do que os nossos rapazes com as borboletas: de tudo se
aproveitam e nada perdem, reunindo o util ao agradavel.

Vejamos o resto.

A caça dos lagartos, chamados pelos _Tupinambás_—_Tarure_ (os grandes) e
_Toju_ (os pequenos,) é feita por diverso modo,[72] conforme são da terra
ou do mar.

Os maritimos habitam ordinariamente as praias cobertas de mangues, onde,
duas vezes dentro do espaço de 24 horas, entra o mar.

Ahi nutrem-se de carangueijos, de mexilhões, e de camarões, vulgarmente
chamados em França—lagostins, e de peixes, que apanham na enchente.

Poem seos ovos nos concavos das arvores.

Os selvagens caçam-nos e flecham-nos na vasante; enterrando-se pelo
tujuco.

Para comida servem tanto como os coelhos, ou uma grande lebre, conforme o
tamanho do animal.

Fervem-nos para fazer mingau, ou assam-nos ao fumeiro.

Os francezes assam-nos ao espeto, bem untado de gordura de peixe-boi, e a
primeira vista pensareis que são coelhos ou lebres espetadas.

O guisado, que d’elles se faz, é muito parecido com o das lebres e
coelhos, e muitos francezes gostam mais d’elles do que os nossos coelhos.

Eu antes quero crêr do que provar.

A caça dos lagartos terrestres é mais de meninos que de homens, embora
tenha visto alguns homens atraz delles, como os meninos, e até 20
selvagens, homens e rapazes, atraz de trez lagartos.

Apenas os pilham, assam-nos, e toma cada um a parte, que lhe pertence e
acham-na muito boa.

Os rapazes apenas os veem correr pela casa, nas paredes ou nas arvores,
flecham-nos, porem escolhem os maiores por que tem mais que comer: alguns
tem o comprimento de um braço e a mesma largura.

Ha outros vermes, que não sahem das arvores, deitados sobre folhas,
expostos ao sol: dizem os selvagens que são venenosos, e por isso os
deixam: não se assustam com a vossa presença, si não os perseguirdes.

Parecem-se com os camaleões, de que ainda fallarei, tem brilho nos olhos,
e a côr de escarlate.

Costumam estes lagartos domesticos á juntarem-se e unirem-se em forma
de bolla, de tal maneira que a cauda do macho toca a cabeça da femea, e
reciprocamente, e assim todos curvados, tocam-se as duas cabeças e as
duas caudas.

Tive medo quando vi isto pela primeira vez, porque não sabia o que seria,
e nem si era alguma especie de serpente, com quatro olhos, e um só corpo
enrolado.

Os lagartos femeas são mais grossos do que os machos.

Os pequenos lagartos poem ovos, de cinco até sete cada um do tamanho da
cabeça do dedo minimo, n’um buraco, que cobrem de areia, fazendo o resto
o calôr do sol.

Os lagartos grandes põem ovos maiores, á proporção do seo corpo, e
ordinariamente fazem ninhos nos tectos das casas, nos bosques, e para ahi
levam tudo o que acham ser molle, como sejam musgos, pennas, algodão,
farrapos, e frequentam muito a casa si não lhes fazem mal.

Fazem tanto barulho como um cão, quando caminham e conduzem na bocca o
que acham, e é um prazer vel-os em tal lida.

Não fazem caminho direito quando construem seo ninho, e antes usam de
muitos rodeios para não serem descobertos.

O sol chóca e faz abrir seos ovos, porque são muito frios e não tem calor
proprio para isso.

São caçados por cobras grandes e horriveis, umas brancas como agoa,
outras de côr de violeta, e finalmente algumas manchadas de diversas
côres.

Invadem até as casas para nos tectos caçarem estes lagartos, que apenas
as presentem ao longe, fogem como se a casa tivesse pegado fogo.

Mandei matar tres cobras d’estas n’um domingo, quando eu e meos
companheiros fomos dizer missa na capella de S. Francisco, onde as
achamos perseguindo os lagartos grandes, dos quaes já tinham matado
muitos.

Pagaram tal temeridade levando cada uma mais de cincoenta cacetadas, e
ainda se salvariam, si eu não as mandasse cortar em pedaços, que viveram
e remecheram-se por mais de 24 horas procurando reunirem-se o que não
conseguiram por estarem distantes umas das outras, talvez por quatro ou
cinco passos.

Os selvagens tem muito horror d’estes lagartos, e dizem ser venenosos.

Os lagartos, quando velhos, perdem sua cauda, que fica negra, e por isso
mesmo é fragil como vidro, e quebra-se por qualquer causa.

Não creio, que ellas renasçam, embora o affirme Aristoteles.

Fundo-me no que observei n’um lagarto grande, que estava na nossa
casa de S. Francisco, onde se conservou por dois annos sem cauda,
vindo diariamente comer em nossa presença, com as galinhas com que se
familiarisou.

Dizem, e os francezes o asseveram por experiencia, que ha uma especie de
lagartos grandes que apanham os frangos, e levam-nos para o matto, onde
vão comel-os.



CAPITULO XLIV

Das aranhas, cigarras e mosquitos.


A vida do homem é comparada com a da aranha em muitos lugares da
Escriptura Santa, especialmente no Psal. 89. _Anni nostri sicut Aranea
meditabuntur_ «nossos annos se passaram, serão contados e meditados como
os da Aranha.»

Escreveo S. Isidoro, que a aranha é um verme do elemento do ar, n’elle
nutrido, d’onde se deriva a etymologia do seo nome, nunca descança,
sempre trabalha, de si tira com que formar sua teia, sempre em perigo por
se achar ella, seos bens, e suas riquezas, suspensas n’um fio, mercê do
menor sopro de vento, ou do capricho de um criado ou de uma camareira,
que com um espanador destrua todo o trabalho.

Quereis mais bello espelho para considerar as desgraças e miserias d’esta
vida?

Não perderei tempo referindo o que se sabe acerca da naturesa d’este
verme, e apenas contarei o que achei de curioso e especial nas formigas
do Maranhão, e antes de entrar na materia fallarei d’uma especie do
tamanho de um punho de braço, e as vezes até maior.

Encontram-se ordinariamente no tronco das arvores, proximas ás casas,
nas estacas, nos cantos, caminham pouco, não tem teias, muito venenosas,
vermelhas quasi da côr de borrachos quando sahem do ovo, coisa horrivel e
feia!

Fogem d’ellas os Indios, e julgam mortifera a sua picada. Nutrem-se da
corrupção do ar.

Existem outras de diversas especies, maiores e menores, e todas
domesticadas, e nos mattos encontram-se grandes, menores, e pequenas.

Em todo o tempo produzem e especialmente no inverno.

Com a frescura da noite juntam-se: deixa o macho a sua teia para se unir
com o seo fio á teia da femea, si ella está collocada em lugar mais
baixo: si porem a teia da femea é superior á do macho desce ella, vem
procural-o, e assim si juntam.

É muito facil de vêr-se, pois o praticam todos os dias, no fim da tarde.

O macho é pequeno, e a femea é tres vezes maior do que elle.

Fazem uma pequena bolça, redonda e chata, muito bem feita e tecida,
parecendo-se com setim branco e a similhança de um breve de _Agnus Dei_.

N’ella deixam apenas um buraquinho, por onde com o pé introduzem os ovos.

Quando está fechada a bolça tapam o buraquinho, e carregam-na junto
ao ventre e estomago, aquecendo-a por esta fórma, e quando presentem
estar os filhos em estado de sahir, rasgam a bolça ao redor, como se
faz com a casca da fava, sahem logo, correm pela teia da mãe, e a noite
agasalham-se debaixo da mãe, como fazem os pintos com as gallinhas afim
de resguardarem-se do frio da noite.

Quando tem forças, cada uma faz a sua teia, e por sua industria cuida de
si.

Ha outras, que fazem pequenos pucaros de barro, do tamanho e feitio de
uma ameixa de dama, tão bem feitos, quanto é possivel, por dentro e por
fóra, o que tambem fazem certas especies de moscas, de que ainda fallarei.

São as boccas d’estes potes proporcionaes aos seos tamanhos, com um
buraco tão pequeno, em que cabe apenas um alfinete, por onde sahem os
ovos para serem aquecidos pelo Sol.

Este pucaro costuma estar junto a uma arvore, ou n’uma folha de palmeira,
e a terra de que é feito, muito se parece com a de _Beauvais_.

Enchem o pucaro de ovos, tapam no, e quando as mães julgam ja terem os
filhos sahido da casca, destapam o buraco, e então sahem as aranhasinhas
e acompanham-nas.

As aranhas dos mattos procedem de outro modo: roem as amendoas das nozes
das palmeiras espinhosas, pouco a pouco e deitam fora tudo por meio de
tres buracos naturaes, que tem estes fructos: depois ahi dentro fazem
seus ninhos e depositam seos ovos.

São differentes as teias destas aranhas quanto a sua posição por ellas
escolhidas.

As domesticadas armam suas teias nas rachas e entradas dos buracos, afim
de agarrarem moscas e mosquitos.

Umas estendem suas teias nas arvores, de um ramo a outro, e de um arbusto
a outro para agarrarem borboletas e outros bichinhos iguaes: outras tecem
as teias por cima da terra para pilharem vermes, como sejam formigas e
outros iguaes.

Algumas fazem teias tão fortes, que até n’ellas cahem lagartinhas, e
então descem as aranhas, matam-nas por meio de um aguilhão, que tem em
si, e depois chupam-lhe os miolos e o sangue, e só quando se fartam, é
que as deixam.

Vi aranhas do mar, muito parecidas com as de terra porem maiores.[73]
Habitam em buracos nas praias, e alimentam-se de peixinhos.

Dizem que chupam o sangue e o humor das cobras, iguaes as que mandei
cortar em pedaços, e asseveram os selvagens, que se morderem a cabeça
d’algum individuo, ficará louco. No Maranhão, como em parte alguma, tem
muitas cigarras,[74] que fazem em tempo proprio um barulho infernal, como
eu não acreditaria si não ouvisse: ha de diversas variedades, tamanhos e
cantos.

São umas grossas, tem seis pollegadas de comprimento, e voz forte e
alta a ponto de ferir-vos vivamente os ouvidos. Não cantam no inverno,
e sim no estio, e quando se aproximam as chuvas gritam tanto a ponto de
estalarem pelos lados, como me contaram os selvagens, sendo isto causado
pelo bater das azas quando si esforçam e se incham para dar mais harmonia
á voz.

Estudei os usos e costumes destes animaes em alguns, que conservei entre
folhas na nossa casa.

Reconheci ser seo canto devido a tres coisas.

1.ª Engolem o ar, enchem o ventre, entumecem-se bem para estenderem bem
os lados, e ficarem sonoras. Ha grande accordo entre a extensão dos
lados, e as azas, por meio das quaes forma-se o som, que claramente se vê
tomarem ellas folego quando erguem as azas, e quando abaixam, estendem e
dilatam os flancos.

2.ª As azas são mui finas e diaphanas, e por tanto proprias para formar o
som por serem muito seccas.

3.ª As azas de cima sendo fortes e massiças, tocando e batendo as azas do
meio contra os lados e com auxilio do ar, forma o som.

Vou fazer-vos comprehender isto por meio de comparações vulgares.

N’uma cithara ha tres coisas para produzir harmonia—as costas onde fica
o ar, que entra pela rosa do meio, as cordas tesas, limpas, seccas e bem
collocadas, e a mão do tocador: assim tem estes animaesinhos as costas e
as ilhargas cheias de ar, que entrou pela bocca, as segundas azas são as
cordas, e as grossas a mão do tocador.

Cantam no estio desde o nascer do sol até meia noite ou duas horas
depois, e se callam por causa do orvalho, que começa a cahir com frio, e
assim ficam até que appareça o sol e com seos raios extinga as gottas de
orvalho, que cahiram nas folhas, e então vem ellas aquecer suas azas.

Em quanto guardam silencio, é minha opinião, que ellas se nutrem com o
mesmo orvalho, e não digo isto sem causa pois quasi sempre ficam no mesmo
logar, e quando sentem algum movimento voam para outra folha.

Algumas d’ellas, especialmente as todas verdes, não tem voz, arrastam-se
pela terra como os gafanhotos, juntam-se como as moscas, põem em setembro
ovinhos negros nos buracos dos ramos das arvores, nos quaes se formam os
vermes, ao depois cigarras: vão pouco a pouco se fortificando afim de
passarem a estação invernosa, e substituirem seos paes e mães que n’esse
tempo morrem arrebentados á força de gritar como ja disse.

Não tem sangue, ou tem muito menos que as moscas, porem são organisadas
de uma substancia porosa, secca, e ligeira.

Matam-nas as gallinhas, porem não as comem, e quando por acaso o fazem,
enfraquecem e emmagrecem.

Ha n’este paiz diversas especies de mosquitos, porem apenas tratarei
dos que o merecerem pelos seos principios naturaes, e são os chamados
_Maringoins_ pelos selvagens: ha de diversos tamanhos e grossura, e todos
tem a mesma forma.

Originam-se de um humor acre, gostam dos sabores picantes e acidos, e
por isso encontram-se muito no mar e suas praias no tempo do inverno,
formados pelo humor e vapores do mar.

Incommodam muito os homens picando-lhes a pelle com seo bico ponteagudo
como uma agulha, e sugando assim o humor salgado, que corre entre a pelle
e a carne.

Gostam da luz porem aborrecem a chama e a fumaça, e por isso quando
anoitece, as que andam por fóra, poisam nas folhas das arvores, e os
que estão dentro de casa nos tectos, bem a seu pesar, por causa das
fogueiras, que acendem os selvagens ao redor de si, para se livrarem
d’elles.

Nos lugares mais proximos a agoa, maior abundancia d’elles existe, visto
serem creados por agoas, como ja disse.

São caçados pelos morcegos, que, buscando-os nos lugares onde se fixam,
involvem-nos com suas azas e depois os comem.

São por elles muitissimo perseguidos os nossos francezes, quando vão
á pesca do peixe-boi, e para evital-os armam suas redes no ramo das
arvores, o mais alto que podem, por ahi soprarem mais o ar e o vento: si
se partissem as cordas dariam bello salto, e não deixam de emballançar-se
para afugental-os.



CAPITULO XLV

Dos grillos, dos camaleões e das moscas.


De todos os animaes, que fazem companhia ao homem, no Brasil, nenhum
ha que iguale ao grillo, chamado pelos selvagens _Cuju_[75]; e por ser
tão familiar e domestico pude á vontade satisfazer minha curiosidade
estudando este animalsinho.

Nasce da corrupção.

Quando se faz uma casa coberta de palma fresca, apparecem n’um momento
milhões e milhares d’estes grillos ou _Cujus_. Virão dos bosques
visinhos? não pode ser; porque nas casas cobertas de palma velha não são
encontrados, logo força é confessar, que formam-se na palma nova com o
auxilio do sol.

Notei que dois ou tres dias depois de coberta a casa, os grillos são
brancos como neve, signal de nova geração, pouco a pouco tomam a sua cor
ordinaria, amarello-negro.

Alem d’isto originam-se tambem de ervilhas, e favas podres o que conheci
por experiencia.

Quanto á producção do pae e da mãe provêm d’uma semente deixada nas
folhas de palma: é pegajosa e fica onde se colloca, até que d’ella por
meio de calor saia outro grillosinho.

É ardente no seo ajuntamento, e eis porque tanto se multiplicam.

É muito pequeno, porem astucioso, tem horas para comer e para cantar:
não deixam de procurar comida quando presentem estarem todos deitados, e
então descem do tecto e correm, por assim dizer, os cantos da casa, onde
se aproveitam de todas as migalhas e restos de comida, e se encontram
restos de carangueijo deixam tudo mais.

Acabada a comida regressam a seos logares, onde cantam e passam o resto
da noite, e o dia tambem, se o ardor do sol o não encommodar.

Não gostam de chuvas, e emquanto está chovendo, não cantam.

Gostam portanto do tempo sereno e doce, sem muito calor, e sem muita
chuva. Roem muito os pannos, que encontram, e se acharem um capote de cem
escudos n’uma noite dão cabo d’elle.

Não tocam em panno de linho á não estar elle engordurado, ou com algum
liquido, de que gostem, e por isso para conservar-se alguns vestidos,
embrulham-se n’estes pannos.

Tem quatro inimigos capitaes.

1.º Os lagartos, que correm apoz elles, como os cães atraz das lebres.

É um gosto vêr as voltas e vira-voltas que dá a caça e o caçador.

2.º Certos macaquinhos amarellos e verdes a que chamam os selvagens
_Sapaius_, vivos e ageis como um passaro; caçam com uma das mãos e na
outra guardam os grillos.

3.º São as gallinhas, que os devoram com incrivel avidez, e para isto
voam sobre as casas, e não poucas vezes estragam a cobertura d’ellas.

4.º São certas formigas grandes, que atacam-os nos buracos e cavernas,
onde se abrigam nas casas: distrahi-me algumas vezes vendo tão singular
combate; a formiga desce ao buraco, onde tanto faz, que o _Cuju_ sahe á
campo, ou então é puchado pelos pés, e muitas vezes prefere a morte á
perder suas pernas posteriores, que leva a formiga.

Outras vezes deixa-se o grillo comer dentro do buraco, de maneira que
somente fica a cabeça e as azas, que as formigas carregam como tropheos.

Tem os grillos particular malicia, como experimentei, por que mordem a
extremidade dos dedos das pessoas, que dormem, e carregam o bocadinho de
pelle que podem tirar.

Achei-me por isso muito encommodado do pollegar, a ponto de não poder
escrever por oito dias.

O Camaleão é um animal do tamanho e da grossura de um pequeno lagarto,
e á elle similhante no rosto, olhos, e cabeça, tendo nas costas escamas
como o crocodillo, e parece ter a pelle coberta de pelle ou limo.

Tem a cauda muito comprida, e de ordinario dobrada em dedalus, diminuindo
gradualmente até a ponta.

Raras vezes se vê o macho com a femea, e por isso não me atrevo a contar
o modo de sua procreação, porque não pude vel-a, e nem imaginal-a.
Contento-me apenas em referir o que vi.

É muito demorado no seo andar, está sempre ao sol, deitado sobre folhas
ou ramos, e por isso se pensa que vive só de orvalho.

Batem-lhe as ilhargas constantemente, e muito mais quando receiam alguma
coisa, sendo isto motivado pela sua timidez natural, proveniente de muito
humor frio, pelo qual torna-se venenoso quando é comido por algum animal.

Nunca se encontra nas arvores fructiferas, prevenção da naturesa para não
envenenar com o seo frio excessivo o fructo que tocasse, e por isso é
visto nos ramos de arvores, que somente servem para o fogo.

Como o lagarto tem quatro pés, e muda de côr conforme o movimento do
corpo, e os batimentos das ilhargas.

São raros em Maranhão, e somente são encontrados em lugares bem expostos
ao meio-dia: deitam-se nas folhas, estendem as quatro patas, e descançam
a cabeça. Não fazem movimento algum com os olhos, quando estão vendo, e
nem abaixam as palpebras superiores: constantemente bate-lhe o papo.

Dizem, que se este animal fosse lançado ao fogo difficilmente arderia,
porem envenenaria pela fumaça as pessoas presentes.

Não fiz esta experiencia com o camaleão, e sim com outro animal mui
similhante a elle pela friesa.

Mandei lançal-o n’um braseiro, que mandei preparar, e retirando-me
para longe, tomei cuidado que ficasse sempre no fogo, movendo-o
constantemente, e depois que morreo, vio-se que o fogo não poude obrar
contra seo corpo, ficando inteiro e solido, conservando sua figura e
pelle: mandei tiral-o do fogo e enterral-o.

Ha muitas especies de moscas, umas da noite, outras do dia.

As moscas da noite são as que buscam o seo sustento durante ella
agarrando os bichinhos, que voam, onde encontram: como tem de
alimentar-se nas trevas, deo-lhes a Providencia uma luz,[76] que trazem
adiante e atraz: a luz dianteira está n’uma placa de forma quadrangular,
adherente ao estomago, sendo os dous angulos, que tocam a sua barba,
muito estreitos, e esta construida de uma pellicula diaphana, e coberta
de um pello mui delicado, com que recebem a humidade da noite, e por este
meio produzem um brilho de luz. Percebeis bem isto recordando vos do
brilho da pescada á noite, por causa da delicadesa da escama ou da sua
pelle humedecida.

Acontece o mesmo com certa especie de madeira podre, ou melhor rarifeita,
e tenue, livre de todas as immundicies, e que tem a propriedade de
attrahir a humidade.

O mesmo tem elles no chato da barriga, onde se encontra uma pellicula bem
lisa, cheia do pello tão fino, de que acima fallei.

Quando voam atravez de uma noite escura, parecem ser grossas faiscas de
ardente fornalha de fundir metaes.

Pertencem ao dia as outras moscas; são infinitas e varias e por isso
somente me demorarei, tratando das que tiverem alguma coisa digna da
consideração do leitor, como sejam as abelhas, e as vespas, e do mais que
fallarei.

As abelhas do Maranhão, e de suas circumvisinhanças fabricam suas casas
de tres modos: entre os ramos das arvores, como ja disse, quando escrevi
sobre o _Meary_, ou no concavo das arvores, isto é, no tronco principal,
porque escolhem uma arvore que tenha uma concavidade no tronco, sobem
pela frente d’elle, e depois descem até a terra, onde fazem os alicerces
dos seos cortiços, e depois fabricam o seo mel, caminhando sempre para
cima. Quando não é assim, escolhem lugar apropriado, levantam da terra um
cortiço concavo, onde fabricam mel e cera.

É virgem a sua geração, e creio não haver entre elles macho e femea, e
assim todos trazem comsigo o germen da futura procreação.

Dir-vos-hei a razão d’este meu modo de pensar, que formei observando
com attenção um cortiço de abelhas n’uma grande arvore concava e secca,
distante 30 passos de nossa casa de São Francisco, o que ainda me foi
facil, pois estas moscas não dão ferroadas,[77] comtanto que não se lhes
faça mal, embora se esteja bem perto d’ellas.

Fizeram os selvagens um buraco ao pé d’esta arvore, por onde sahia o mel,
e por ahi observei tudo bem a minha vontade, até mesmo as camarasinhas,
em que se achavam ellas envolvidas.

Estes casulos eram tapados de todos os lados, embrulhados n’uma tella bem
delicada, e por cima está a cera e o mel.

N’algumas camarasinhas d’estas, achei somente algumas gottas de semente,
claras como a agoa da rocha, e soube ser a materia de que se organisavam
as novas moscas.

N’umas vi o _cháos_, ainda informe, feito e composto desta materia prima,
a maneira de uma pasta molle, branca como creme: n’outras vi moscasinhas,
perfeitamente formadas, e ja com movimento, porem envolvidas n’uma tella
delicada e diaphana, que rasguei com cuidado, e vi n’estas moscas todas
as suas partes bem distinctas e conformadas, menos os pés, por serem os
ultimos, que se formam, e ja depois, que se movem.

Reconheci ser verdade o que diz S. Isidoro d’estas moscas «_Apes
dictæ sunt quia sine pedibus nascutur, nain postmodum accipiunt_:»
as _abelhas_, ou antes os _apedes_, são assim chamados porque nascem
sem pés, sendo este nome composto por _a_, que quer dizer—_sem_, e
_pedes_—_pés_. Assim composta quer dizer—_sem pés_, mas não se usa em
francez, e sim emprega-se o nome de _abelhas_.

Sobre o que eu disse á respeito de sua geração virginal, alem da
experiencia, que eu tive, de que podem duvidar alguns espiritos, ha uma
testemunha irrefragavel, Santo Ambrosio, Doutor que si dedicou ao estudo
dos segredos da abelha mais do que nenhum outro antes ou depois d’elle.

Não o fez sem motivo, pois desde o seo berço que estas moscas se alojaram
em seos labios, e depois em toda a sua bocca, eis suas palavras: _Apes
nuilo concubitu miscentur, nec libidine resolvuntur, nec partus doloribus
quatiuntur, sed integritatem corporis virginalem servantes subito maximum
filiorum examen emittunt_: «não si misturam as abelhas por meio de alguma
conjuncção, não si entregam por meio de sensualidade, não soffrem dores
de parto, porem conservam a integridade virginal de seo corpo, e em
pouco tempo produzem grande numero de novas abelhas.»

Diz o autor do livro da «_Naturesa das coisas_»—_Omnibus virginalis
integritas corporis_—«conservam todas a inteiresa virginal do seo corpo.»

Ha diversas especies de vespas, tendo uma d’ellas alguma coisa de novo:
esta qualidade é negra, mui delgada no meio do corpo a ponto de julgar-se
estar o ventre unido ao estomago por um só fio.

São industriosas o mais, que é possivel.

Recolhem-se todas á um nicho de terra, no cimo das arvores, tão bem
estocado, que dentro d’elle não cahe uma só gotta d’agoa; a cobertura ou
tecto d’este nicho é em fórma de zimborio, e apenas cahe a chuva, corre
ligeiramente, e ahi não si demora: n’elle não tem abertura alguma, e
apenas cinco ou seis buracos proporcionaes á grossura d’ellas.

No interior fazem accommodações para viver, e fabricam uma especie de mel
bem amargoso, e negro como tinta.

Cada uma tem sua casa, cavada na espessura do nicho, á maneira dos
buracos de um pombal, onde se agasalham os seos habitantes.

É admiravel a sua industria no fabrico d’estes nichos, e presenciei-a
muitas vezes.

Á margem das fontes fazem argamassa, carregando com os pés um pouco de
terra, que desmancham e amassam com agoa, que vão buscar, e trazem unido
ao pello de suas coxas. Assim preparado, vão carregando em varias partes
do seo corpo.

1.º No pescoço.

2.º Nos pés.

3.º Na união das coxas contra seo corpo.

Não deixam seos filhos no nicho commum, porem fabrica cada uma o seo
cubiculo á parte, á imitação da flor de meimendro, presa ou suspensa á
algum pau, ou outra coisa coberta, longe do perigo de ventos e de chuva.

Levam muito tempo preparando seo nicho, e o enfeitam o mais que podem,
com o brunidor do seo fucinho.

Depositam no interior sua semente, como fazem as abelhas, fecham a
entrada, occultam-na, dormem á noite em commum, e ainda a madrugada está
longe, e já ellas se despertam para montar guarda e fazer sentinella ao
redor de sua habitação, fazendo guerra de morte a quem se lhe aproximar.

Posso dar noticias d’isto, porque um dia, indo a um canto de minha casa
arrumar não sei o que, quando passei, bati, sem querer, com a minha
cabeça no nicho, onde estava a mãe, e ella, julgando mal de minhas
intenções, pensou que eu o fizesse por maldade, e cheia de colera,
escolheo a parte mais delicada do corpo humano, isto é, os olhos, para
vingar-se.

Permittio Deos porem que em lugar dos olhos me ferisse as sobrancelhas
com o seo aguilhão.

Foi tão doloroso o golpe, e tão penetrante o veneno, que cahi por terra,
batendo-me extraordinariamente todas as minhas veias, desde a planta dos
pés até o cume da cabeça, como nunca senti em minha vida.

Recolhi-me a cama com o coração sobresaltado, inchou muito a parte
offendida, e ardia como brasa.

Julguei perder o olho, e assim estive por muitos dias, ao depois fiquei
bom.

Procream ainda de outra forma. Fazem um pequeno pucaro de barro,
arredondado, similhante aos feitos pelas aranhas, como ja disse, deitam
dentro suas sementes, que se transformam em vermes vermelhos, iguaes aos
que se encontram nas ameixas das damas: adquire depois azas, e fica vespa.

Não tem os selvagens cantharidas em seo paiz, porem fazem muito apreço
d’ellas e dão muitos generos para possuil-as. Trazem-nas os francezes,
porque anteriormente já tinham ensinado aos selvagens as propriedades
d’ellas, o que não se deve escrever: prova isto que os homens viciosos
mais depressa gastariam esta nação do que ella o é por natureza.

Ha tambem insectos e vermes roedores mui subtis e engenhosos, com uma
capa bonita e inteira, porem passando uma escova por cima, desapparece
até o pello e fica só a urdidura.

O mesmo acontece aos vermes roedores dos bosques, que fazem grande
sussurro.

Deos porem fez passaros que vae tirando das arvores taes vermes.



CAPITULO XLVI

Das onças e dos macacos do Brazil.


A onça é o animal mais furioso do Brazil e é do tamanho dos galgos da
Europa.

No rosto parece-se muito com o gato, tem bigodes horrivelmente dispostos,
vista perspicaz e aterradora, pelle como a de lobo, manchada de negro á
maneira da do leopardo, garras muito compridas, patas como de gato, cauda
grande e maior que todo o corpo diminuindo pouco a pouco até a ponta, e
com ella brinca n’um areial voltando-se para apanhal-a, e correndo para
o mesmo fim, como fazem os gatinhos no meio de uma salla, divertindo-se
cada um com o rabinho.

Ama a solidão, aborrece a sociedade, habita só nos bosques, e somente é
acompanhada por occasião da sua juncção, o que feito retira-se a femea.

Nada receia, nada teme: pára vendo dirigir-vos á ella, ou fica no fim da
estrada, por onde tendes de passar, de forma que ou voltareis, ou então
combatereis porque não cede.

É melhor a retirada ainda que com algum vexame, do que por orgulho
arriscar sua vida em luta com tal animal.

O Rvd. padre Arsenio assim o fez, vindo da aldeia da _Mayoba_ para a
nossa casa de S. Francisco, quando encontrou, ao meio dia, na estrada uma
onça que veio esperal-o. Regressou para a aldeia, e assim evitou perigo
tão proximo.

Não buscam os homens, e é raro encontral-as, e quando isto se dá o perigo
é certo.

Não se atiram, e nem correm logo atraz das pessoas que vêem, antes
dão-lhe tempo bastante para fugir, e apenas agarram um ou outro menino,
porem raras vezes.

Tem muito medo de fogo a ponto de não se approximarem d’elle, e por isso
evitam-nas os indios accendendo fogueiras em suas casas, sempre abertas
quer de dia quer de noite.

Fazem guerra desabrida aos cães e macacos, vindo agarrar aquelles até
junto ás aldeias, sem causarem o menor mal aos selvagens deitados em
suas redes, e quando vão estes á caça, acompanhados por muitos cães, são
estes devorados e comidos pelas onças, que fingem correr diante d’elles,
e quando se acham longe de seos senhores, saltam sobre elles e facilmente
os estrangulam.

Poucos escapam de suas garras para trazer noticias a seos senhores, que
não os ouvindo ladrar, acreditam que as onças os comeram.

Não vão mais alem, e regressam mais depressa a casa onde suas mulheres e
filhos choram a morte do cão, que elles levaram á caça com intenção de
divertirem-se.

Si é perigoso atacar um soldado furioso, e victorioso de seos inimigos,
ainda muito mais o é apresentando-se em tal occasião á vista das onças.

Caçam os macacos desta sorte: batem em circumferencia o bosque, onde se
abrigam os macacos, encurralam-nos n’um ponto, onde se agrupam: então
trepam as onças em varias arvores, e d’ali se atiram sobre os ramos e
hastes de outras onde estão os macacos, e assim os apanham.

Empregam tambem outro ardil. Occultam-se debaixo de folhas n’um lugar,
onde ellas sabem, que os macacos vem beber, ou quando estão pescando
mariscos e carangueijos, então d’um só pulo agarram os que podem.

Fazem ainda mais.

Quando vêem ou ouvem que os macacos estão reunidos em qualquer lugar,
vão surrateiramente arrastando a barriga pelo chão, como fazem os gatos
quando querem agarrar algum ratinho, e depois estendem-se e fingem-se
mortas.

Chega um macaco, pára, chama outros, que chegam logo, descem o mais
que podem, sempre desconfiados, para verem e examinarem se na verdade
está morto o inimigo: rangem uns os dentes, e outros como que fazem
uma especie de discurso de congratulação por tal fim: eis senão quando
resuscita o fingido morto, mais depressa do que elles sobe ao cimo da
arvore, onde transforma a vida d’elles em morte, não simulada e sim real.

A onça só pare uma vez, e um só filho, como a leôa, e eis a razão de
haverem poucas no Brasil. A onçasinha rasga o utero de sua mãe, que o
nutre mui curiosamente até que fique em estado de cuidar por si de sua
alimentação. Apesar de tal ruptura, unem-se em tempo proprio, porem não
ha fructos d’esta união.

As onças são errantes, caminham por diversos logares, atravessam
braços de mar, e quando falta-lhes pasto em terra, vão ao mar pescar
carangueijos e outros iguaes bixos do mar.

Existem tambem onças marinhas, como ja disse quando fallei do Meary,
tendo a parte anterior igual a da terra, e a posterior similhante a cauda
de um peixe.

São tão furiosas, como as terrestres, e saltam da agua contra seos
inimigos.

Machos e femeas veem-se livres dos filhos que trazem no ventre, á maneira
das baleias, dos golfinhos e de outros peixes do mar.

Em Maranhão e seos contornos ha muita variedade de macacos:[78] uns
grandes, fortes, barbados, e de sexo bem distincto, especie perigosa, e
que nas mattas muito bem se defendem das invasões dos selvagens.

Contou-me um interprete que n’um certo dia um selvagem com uma flecha
ferio a espadua de um destes macacos, e que elle tirou a flecha,
arremeçou-a contra o selvagem e o ferio gravemente.

Atiram-se sobre as raparigas e mulheres, e forçam-nas si não são mais
fortes do que elle.

Ha outros barbados, mais pequenos, que trazem mamas nos seios, e sexo bem
visivel em lugar proprio.

São muito bem tratados pelos francezes: os selvagens os agarram atirando
um projectil qualquer sobre elles, que cahem atordoados, e são assim
amarrados.

Os triviaes são quasi que similhantes em sexo, e nem merecem descripção
alguma.

Em geral os monos são agradaveis á vista.

Caminham um atraz do outro, e com tal cadencia no passo, que os que vem
atraz assentam os pés e as mãos, onde assentaram os que foram adiante.

Fazem assim uma corda de duzentos á tresentos, e diria ainda mais, si não
receiasse causar admiração ao leitor.

Achei-me muitas vezes nas mattas, onde elles habitavam e dir-vos-hei, sem
precisar o numero, que vi grande quantidade d’elles na fórma ja dita.

Cousa agradavel o mais que se pode imaginar.

Arremeçam-se estes animaes de uma arvore a outra, de um ramo a outro,
como faria um passaro bem voador, e o fazem com tal prestesa, que mal se
vê.

Si vos descobrem debaixo de alguma arvore, fazem incrivel matinada, e
depois de vos fazerem muitas caretas e de dizer-vos mil injurias em sua
linguagem, embrenham-se pelos mattos.

Nunca deixam em hora certa,[79] á tarde ou noite, de ir beber agoa, mas
sabeis com que subtileza?

Pára o grosso do exercito na distancia de 300 passos da fonte, manda
espias para examinar a fonte e suas circumvisinhanças, espreitam si
nada ha que os assuste, examinam com cuidado si ha embuscada de algum
inimigo, e apenas o descobrem gritam com voz forte e correm a reunir-se
ao exercito.

Voltam depois de algum tempo e praticam o mesmo.

No caso de segurança gritam e ganem para vir o exercito, e chegado este
ainda usa de outra velhacaria.

Bebem todos um a um: á medida, que um bebe, passa alem e trepa n’uma
arvore, e assim até o ultimo: assim bebem, passam para outro lado, por
onde não vieram e ahi acabam a fieira.

Deixam a fonte e vão em tumulto procurar seos amores, e n’isto ha
ordinariamente grandes gritarias, gemidos, mordiduras e arranhamentos,
porque querem os mais fortes escolher as damas e serem servidos em
primeiro lugar.

Nada digo sem experiencia e tudo isto presenciei todas as tardes na nossa
fonte de S. Francisco.

Vão pescar sempre em companhia, carregando ás macacas ás costas seos
filhos.

Pescam carangueijos e mariscos.

Antes de agarrarem os carangueijos, quebram-lhe as tezoiras para
livrarem-se das mordidellas, depois quebram-nos com os dentes, e, se
estão rijos, com pedras, e o mesmo fazem com os mariscos.

Cuidam muito as mães no sustento dos filhos, antes de poderem elles por
si buscal-o; tiram o marisco e o carangueijo da concha, limpam-no muito
bem, e offerecem ao filho nas costas, e estes o agarram e comem.

Nunca vão para longe das arvores: é o seo refugio apenas ouvem algum
motim, ou vêem alguem, e por isso para as suas pescarias escolhem lugares
proximos á arvores altas e copadas.

Si veêm passar uma canoa de selvagens, muito longe d’elles, saudam-nos
rindo a seu modo, si se aproxima a canoa, fogem, e ninguem os pilha.



CAPITULO XLVII

Das aguias, dos passaros grandes e dos passarinhos d’aquelle paiz.


Na Ilha ordinariamente não se vêem aguias, porem ha muitas na terra
firme, proxima a Maranhão.

Não são verdadeiramente tão grandes como a do velho mundo, porem são mais
furiosas, atrevidas, e valentes, que accommettem os homens, e não fazem
seos ninhos, sobre rochedos, como diz Job, _Aquilla in petris manet_ «a
aguia mora nos rochedos» porem entre as arvores.

Vou contar-vos á este respeito o que ouvi em Maranhão sobre duas
aguias extraordinariamente ferozes, que vieram aninhar-se nos mangues
_d’Uy-rapiran_, aldeiazinha na costa, distante legoa e meia do Forte de
S. Luiz.

Mostraram-me o lugar, onde ellas viviam, n’um dia, em que passeiando pelo
mar fui visitar um francez, morador n’essa aldeia.

Tinham essas aguias cortado ramos mais grossos do que uma côxa de homem,
e tinham feito tão boas acommodações, que melhores não fariam doze
homens.

Ahi tinham depositado seos ovos com seos filhinhos, e ninguem se atrevia
a passar por perto.

Vão caçar cabritos-montezes, matam-nos, espedaçam-nos com unhas e bicos,
e depois trazem alguns boccados a seos filhos.

Pescam da mesma fórma arremeçando-se sobre os golphinhos, pirapamas,
e trombudos, e tiram-no do mar com suas garras, deitam-nos em terra,
dividem-nos em pedaços, que levam a seos filhos.

Vão ainda mais longe: mataram um homem e uma mulher _Tupinambás_, o
que lhes causou a sua morte e a do seos filhos, porque si lhes armou
uma cilada tão bem arranjada, que conseguio-se matar o macho, e a
femea achando-se viuva retirou-se para a terra firme abandonando
seos filhinhos, que foram passados pelas armas dos _Tupinambás_ em
vingança do crime commettido na pessoa dos dois, que elles mataram, e
destruio-se-lhes o ninho.

A femea é maior que o macho, ambos de côr parda, olhar vivo e feroz,
poupa forte e irriçada no cume da cabeça, pennas grossas no canudo e
grandes como a de um gallo da India: servem-se d’ellas os _Tupinambás_
para emplumar suas flexas.

Nota-se n’estas pennas uma coisa particular e especial: si os selvagens
as misturam com outras pennas, como sejam de araras, e de outros passaros
grandes, são estas roidas e comidas por aquellas, pelo que são guardadas
a parte, e com outras não as deitam em suas flexas.

Por maiores, que sejam os outros passaros, é a Aguia o Senhor e o Rei não
por igualdade de forças, mas por subtileza e ligeireza de vôo, subindo
muito alto quando quer perseguir os passaros grandes, e descendo mui
rasteiramente quando elles tambem descem, e quebram-lhes a cabeça com o
bico.

Ficam assustados todos os passaros quando ouvem o seo grito, calam-se e
occultam-se entre folhas.

Caçam principalmente os gaviões, parecidos com as pombas brancas,
que vivem nas praias, saltando de ramo em ramo, esperando a vinda de
passarinhos para assaltal-os e agarral-os. Ahi vão as aguias caçal-os, e
despedaçal-os n’um momento.

Nutrem-se tambem de tartarugas do mar e de terra, e não poupam a alguma
serpente ou cobra que por ventura encontrem.

Raras vezes podem os selvagens pilhal-as de geito para flechal-as.

Trepam-se no cume das arvores, onde expandem as azas aos raios do sol,
tirando com seo bico as pennas velhas, que por esse estado ja não servem:
ahi vão os selvagens buscar estas pennas para seo uso.

Assimelham-se muito na fórma e côr ás pennas dos gallos da India, e são
muito boas para escrever.

Alem d’estas aguias ha passaros grandes chamados _uira uaçú_, quasi do
tamanho dos abestruses da Africa,[80] mais compridos, porem não tão
grossos.

Os grous de lá parecem-se com os pardaes. Si algum foi para a França,
levado por nossos companheiros, saibam que ha outros ainda mais grossos.

Agarram-nos os selvagens quando pequenos, e para isso procuram a occasião
em que os paes vão caçar.

São brancos quando pequenos, mechem-se pouco a pouco, e vão mudando até
que alcance suas pennas e cor verdadeiras.

São muito glutões, e parece que não se fartam, porem quando comem é por
muitos dias.

Si os macacos pudessem persuadir os selvagens a extinguir essa raça, o
fariam indubitavelmente, porque perdem milhões dos seos para sustento
d’ellas.

Os _Tupinambás_, que criam estes passaros, conhecem que a melhor carne,
que se lhes pode dar, é a de macacos, e para isto vão ao matto caçal-os e
matal-os.

Ha outras especies de passaros grandes, porem que não se comparam com
estes, e são as _araras_, os _canindés_, e outros, os quaes são agarrados
pelos indios por maneira astuciosa.

Vão ao matto, escolhem as arvores, onde costumam estes passaros passar a
noite, e onde se recolhem depois de comer: fazem debaixo d’essas arvores
uma casinha redonda, com capacidade para conter tres homens, e coberta
de palhas: ahi se recolhem e esperam a vinda dos passaros, que como
não desconfiam, aproximam-se muito, e então os selvagens lhes atiram
qualquer projectil, que os atordoa sem matal-os, cahem em terra onde são
facilmente agarrados e prendem, e com o correr do tempo de tal maneira
se domesticam, que embora os soltem, não deixam a casa do seo dono:
introduzem-se pelos quartos, fazem grande matinada, com voz similhante a
do côrvo, aprendem a fallar como os papagaios, e dão suas pennas á seos
hospedes para com ellas se adornarem e enfeitarem.[81]

Os habitantes do rio depennam seos gansos para encher colchões, e os
indios tiram as pennas d’estes passaros para fazer seos enfeites e
adornos.

Ha muitas e diversas qualidades de garças, umas maiores, e outras mais
pequenas.

Fazem seos ninhos nos mangues á beira do mar, vivem de peixe, e trazem
alguns inteiros a seos filhos que principiam a comel-os desde os seos
primeiros dias.

Admirei-me de ter sido encontrado um peixe grande, do tamanho de um
arenque, no ventre de uma garça, pouca implumada.

Os selvagens vão tirar dos ninhos as garçasinhas, armados de bons cacetes
para se defenderem dos paes e mães, que em tal caso não deixam de acudir
aos que nutrem tão terna e cuidadosamente afim de estenderem a especie.

Similhantes as garças ha outros passaros chamados _forquilhas_ pelos
francezes e portuguezes, porque teem a cauda fendida quando vôãm: fazem
seos ninhos nos mangues, em lugar recondito, e pouco frequentado dos
homens o quanto é possivel: ahi põem, e deixam seos filhos, vão para o
mar, e ahi ficam por todo o dia enchendo de peixe uma grande bolsa, que
trasem debaixo da goela, e que depois levam a seos filhos: quando está
vasia esta bolsa, enche-se de vento que os alivia e sustenta no meio do
ar, quando passam muitos dias e noites sem ir a terra, e atiram-se pelo
mar em distancia de 50 a 60 legoas procurando alimentos.

Tem a vista extraordinariamente apurada a ponto de verem do mais alto
lugar, a que sobem, o peixe que náda no mar, e sobre elle cahem e
agarram-no. Tem uma propriedade muito boa e é que perseguem os peixes,
que andam atraz dos pequenos para devoral-os.

Aproximam-se d’agoa, e como querem participar da presa, perseguem-nos o
quanto podem.

Alem destes passaros grandes ha milhares de passarinhos, entre os quaes
merecem especial menção os seguintes.

As andorinhas do mar em tão grande quantidade, que cobrem as praias nas
vasantes: são boas para se comer, e á vontade matareis muitas com uma
arma, carregada de chumbo miudo, e sentado n’uma canoa.

Ha outra qualidade de passaros, que admiram muito a ponto de não se
acreditar, e comtudo é verdade, por mim experimentada, os quaes tem por
bico duas facas, embutidas em seos cabos, e aos quaes dão o nome de
_navalhas_: o bico não lhes serve para buscar alimento, e por isso dizem
que elles só vivem de vento, porque essas facas cortantes não lhes servem
senão de passatempo quando passeiam pelas praias, e encontram outros
passaros, que são por elles cortados pelo meio.

No dia, em que parti do Maranhão, um mancebo pertencente ao Sr. de Sam
Vicente, que me acompanhou em toda a minha viagem, matou um, cujo bico
guardei e trouxe para a França.

Ha melros como os de França, iguaes na plumagem e no canto, que espandem
suas pennas á vontade no fim das chuvas, quando vem o bom tempo visitar
os habitantes da zona tórrida: no fim do bom tempo e principio das chuvas
soltam um canto triste, como que chorando o passado, e prevendo as
tempestades do inverno, si tal nome merece.

Ha muitos passarinhos de bellesa incrivel: uns pardos, outros cor de
violeta, azulados, amarellos e mesclados: fazem os selvagens penachos
de suas pennas, que são muito caras por ser difficil matal-os, porque
presentindo o inimigo, que os busca, trepam-se no cume das arvores mais
altas, nas pontas dos ramos, fazem seos ninhos os quaes amarram com uma
embira muito forte, e na outra extremidade que cahe no sollo, fabricam
uma especie de pote de terra, no qual criam seos filhos entrando por um
só buraco, proporcional á sua grossura.

Trouxe para França esses passarinhos, que aqui causaram muita admiração.

Possue o Maranhão um genero de passarinhos, que não excede no corpo á
extremidade do pollegar, e acrescento com todas as suas pennas, e tem
canto melodioso, que faz lembrar o das andorinhas, que imitam quando
querem cantar: levantam o bico, e soltam o canto o mais alto, que podem,
e o sustentam em quanto o permittem suas azas.

Fazem suas casas junto ás fontes, onde muitas vezes vão banhar suas
azinhas para mais facilmente voarem alto. Ahi perto fazem seos ninhos, e
imaginae o tamanho dos ovos, que chegam de 5 a 7: seos filhinhos ainda
são de mais admiravel pequenez.

São tão fecundos, que os meninos enchem cabaças de ovos d’elles.

Ha de diversas cores, amarellos, violetas, pardos, etc.



CAPITULO XLVIII

Resposta a muitas perguntas, que fazem n’aquelle paiz á respeito das
Indias Occidentaes.


Para perfeição d’este primeiro tratado, julguei acertado responder á
todas ás perguntas, que se fazem n’esse paiz.

1.ª Si esta terra de equinoccio pode ser habitada por francezes
delicados, naturaes de um paiz temperado, criados com cuidado e bons
alimentos, pois não parece poderem se accommodar n’um paiz agreste,
selvagem, cheio de mattas, entre barbaros, e debaixo da zona tórrida e
ardente.

Respondo, que na verdade todos os principios são difficeis, porem pouco a
pouco apparece a facilidade.

Não ha no mundo villa ou aldeia, que não cause susto e encommodo no
principio, porem depois de alguns annos tudo vae bem, e os nossos padres
ja ahi deixaram o fructo de suas fadigas.

Não eram mui delicados os cidadãos romanos? E comtudo não deixaram Roma e
Italia para plantarem suas colonias nas florestas gaulezas e allemans?

O portuguez não é, como nós os francezes, na Europa sugeito a todas as
molestias, trabalhos e fadigas? Sim! porem é neste ponto mais soffredor
do que nós, pois bem sabe ser necessario primeiro lavrar para depois
colher: comtudo estabelece-se muito bem no Brasil, faz grandes negocios,
sendo a terra bem preparada e cultivada. Havendo dinheiro ha ahi de
tudo, como em Lisboa. Eu vos lembro, que se a paciencia dos homens tem
tornado, dentro de oito mezes, boas e ferteis as terras crestadas pelo
gelo ou congeladas, uma terra, o coração do mundo, não será habitavel
pelos francezes? É até loucura pensar n’isto, e portanto concluo, que
esta terra é apropriada á naturesa dos francezes como é a França, si for
bem cultivada e provida de viveres necessarios e acommodados ao gosto
francez, como sejam pão e vinho: quanto á carne, peixe, legumes e raises,
ha de tudo isto incrivel abundancia, tendo apenas o trabalho de colher e
plantar os vegetaes.

Enganar-se-hia porem quem pensasse, que as arvores produzissem patinhos
assados, as corças, quartos de carneiro, recentemente tirados do espeto,
e o ar andorinhas bem cozidas, de fórma que não havia mais trabalho do
que abrir a bocca e comer.

Com tal fantasia, não lhe aconselho, que lá vá, porque arrepender-se-hia.

É pois esta terra habitavel pelos francezes, e si ahi não tiverem
commodidades, arrepender-se-hão, porem tarde.

2.ª Eis o que disse, e basta[82] a terra é habitavel, e pode ahi
morar-se com algum encommodo durante alguns annos. Mas será saudavel
para os francezes? Os indios ahi são sadios, e vivem longo tempo,
embora selvagens e barbaros, nascidos n’este clima, e acostumados á tal
temperatura. Não tem os francezes tal privilegio, pois são sujeitos á
muitas febres, que se terminam em paralysia e outros encommodos. Respondo
a isto, que julgamos das substancias pelos accidentes, e das terras pelos
encommodos e enfermidades.

Comparemos agora a menor aldeia de França com a Colonia Francesa n’estas
terras, e no espaço de um anno achamos haver na aldeia dez vezes mais
doentes do que em dois no Maranhão.

Si algumas pessoas se dão mal, não é novidade pois em toda a parte está a
morte: assim são as molestias.

D’estes males não estão isentos Reis e Principes em paizes os mais
agradaveis e salubres, que se possa imaginar.

Em dois annos, que lá estive, apenas houve uma morte a do Rvd. padre
Ambrosio:[83] fallo da morte natural, porque os devorados pelos peixes, a
culpa foi d’elles por se lançarem ao mar.

Morreu o Rvd. padre de uma paralysia, porque estando muito atado a
derrubar arvores grandes, e tendo o suor molhado seo habito, foi assim
mesmo celebrar missa, e apenas sahio da igreja foi acommettido por uma
febre, de que falleceo poucos dias depois.

Digo isto com certesa, porque o assisti até o fim, achando-se fóra em
serviço de Deos os outros dois padres.

Á vista d’isto Maranhão e Paris pleiteam entre si.

Diz Paris—«és má terra, porque mataste um padre capuchinho que te mandei.»

Responde Maranhão «por um perdi quatro dos meos.»

«Tendes rasão para censurar-me?» Assim o deveria ser, si os meus fossem
tratados como principes, e o pobre capuchinho apenas tivesse farinha, ou
pouco mais.

«Concordemos pois, que o clima é sam e salubre, e que desperta muito o
apetite, e si houvessem muitas gulodices como em França, para ahi iriam
as pressas muitas moças francezas.»

3.ª Dizem vae tudo muito bem, porem não ha vinho, e nem trigo, principaes
alimentos, indispensaveis nos melhores banquetes para as carnes mais
delicadas.

Respondo, que ha milho em grande abundancia, de que se pode fazer pão,
como nós o faziamos, e o achavamos muito agradavel ao gosto, embora
gostassemos mais da farinha do paiz, especialmente quando fresca, porque
não é pesada ao estomago.

Este pão de milho serve d’alimento em muitas terras do velho mundo,[84] e
especialmente na Turquia, onde é chamado trigo da Turquia.

Não se perdeo ainda a esperança, que a terra firme do Brasil, forte e
gorda, não possa produzir trigo, com que se fabrique o pão como na França.

Os habitantes de Pernambuco ja o fizeram; não estão longe de nós, porem
em terras peiores.

Quanto a terra firme do Maranhão, melhor seria si o rei de Hespanha não
prohibisse nas Indias Orientaes e Occidentaes plantação de trigo e de
vinhas para tel-as sempre dependentes de seo soccorro, e de tudo quanto
cresce nos seos Reinos de Hespanha e Portugal.

Accrescento ainda, que o Perú, que está no mesmo paralello que a terra
firme do Maranhão, é abundante de trigo e de vinhas. Quem pode impedir,
que ahi se produzam estes generos?

Quanto ao vinho, não é feito das vinhas do paiz, embora ahi possam
crescer,[85] e contam-nos, que as trazidas pelos nossos religiosos na
ultima viagem pegaram e produziram fructos. Quem pode impedir grandes
plantações de vinhas, e que em dois ou tres annos se façam grandes
colheitas?

A França nem sempre tem vinho, actualmente porem tem muito.

Os flamengos, os inglezes, os hibernios e dinamarquezes não fabricam
vinho, contentam-se com cerveja, e se querem beber vinho abrem a bolsa, e
ahi vão os melhores vinhos do Universo.

O mesmo succede em Maranhão, porque os navios ahi os levam. É bem
verdade, que é um pouco mais caro do que em França, porem é melhor,
segundo pensam alguns francezes, que avaliam as coisas pelo preço.

Os mais economicos acostumam-se com a cerveja do paiz que é muito boa por
ser feita de milho, e não é muito cara por haver muita abundancia deste
genero na terra e serem as agoas boas e puras.

4.ª Dizem. Si é assim não é máo, porem pode ahi fazer-se vantagens, visto
que, em quanto ahi estive, nunca me animei a gastar dinheiro. Respondo.

Se todos soubessem porque se dava essa falta, ficariam contentes, porem
não é cousa que todos devam saber.

Direi somente, que esta falta não provem da terra, que é propria a
produsir bons generos quando bem cultivada, como sejam: _Algodão_,
_canafistula_, _madeira de diversas cores_, _piteira_,[86] _tinturas
de urucú_, _de cramesim_, _pimentas longas_, _lapis-lazuli_, _cobre_,
_prata_, _oiro_, _pedras preciosas_, _plumas_, _passaros de diversas
cores_, _macacos_, _macacos-monos_, _e saguins_, e especialmente
assucares, quando si levantarem engenhos e plantarem cannas.

Si nada de lá se trouxer (callando o que si deve dizer em publico) provem
da má direcção dos negocios, cuidando cada um de si, o que tem feito
com que haja pouco sortimento de mercadorias francezas, necessarias aos
selvagens, e pelas quaes dão algodão, tinturas, pimentas, e outras coisas
similhantes, alem de outros generos, que por si mesmo possam obter os
francezes.

Vendo os selvagens a pobresa dos armazens, onde apenas haviam mercadorias
para com ellas si comprar farinha, ficam preguiçosos, nada fazem e nem
farão emquanto os francezes não tiverem coisa alguma a dar-lhes em
recompensa: tal é o seo genio e assim o farão, e por isto não merecem
censura, por que em todo o Christianismo não si encontra um só homem, que
trabalhe de graça.

Não vos admireis si nada tragam, e sim si na primeira viagem conduzirem
comsigo alguma coisa.

Não me prendo as rasões ja ditas, e outras, que callo, e sim no caso de
provêr-se á esta falta, como convem, eu vos asseguro que a Ilha e suas
circumvisinhanças ainda produzirão bons estofos.

Tendo satisfeito a todas as perguntas e objecções sinto repugnancia em
responder a muitos mancebos, que por bens de fortuna somente possuem
a espada e o punhal, mais que ricos de coragem cortam muitas vezes a
garganta uns dos outros, e vão em companhia para um paiz bem triste, onde
navio algum vae levar novidades.

Desejaria perguntar-lhes—que fazeis em França senão esposar questões de
vossos irmãos mais velhos? Porque não experimentaes fortuna, ou ao menos
porque não ides enriquecer vosso espirito com a vista de coisas novas?
Passarieis assim o vosso tempo, em quanto si aplaca o vosso coração, e
si fortalece o vosso juiso: prestarieis serviço a Deos e ao vosso Rei
visitando esta nova França.

Ahi descobrireis novas terras, achareis alguma coisa de valor, como sejam
pedras preciosas etc., e quando mais não fosse, bastaria que, quando
voltardes, não ficasseis mudo nas reuniões, porque aquelle que viaja tem
sempre ganho o seo pão.

As cinzas e os fogões são para os cazeiros, creados por Deos para
cultivar a terra.

A nobresa n’este mundo tem outro fim, e qual é elle? o de empregar vossos
esforços e trabalhos para dilatar o reinado de Deos, ajudar os Apostolos
de Jesus Christo a chegarem aos fins para os quaes são enviados, isto é,
para augmento do sceptro e da corôa de vosso principe, e morrer por estas
duas empresas—é morrer em leito de honra.

Vós me respondereis—mas sob que ordens e porque meios? Minha penna,
senhores, não pode ir mais longe. Fiz o que devia e o resto ignoro.

Espero portanto, que Deos inspirará aquelles, que tudo podem, á favor da
perfeição de tão alta empresa.



CAPITULO XLIX

Instrucção para os que vão pela primeira vez ás Indias.


Sabio é aquelle, diz o proverbio, que para seos negocios se aproveita do
exemplo e experiencia dos outros.

Se os nossos francezes, antes de terem ido á India, soubessem o que
depois conheceram, teriam melhor dirigido os seos negocios, e nem teriam
passado pelos encommodos, que soffreram: o que resolver ahi ir, calcule
quanto tempo ahi se pode demorar, junte ainda mais um bocado, porque lá
não se tem a commodidade do regresso quando se quer.

Faça seo sortimento para esse tempo, e por duas formas, uma para si e
outra para os selvagens afim de obter delles viveres e outros generos.

As suas provisões devem consistir de aguardente forte, do melhor vinho
de Canaria, em bons frascos de estanho, bem arrolhados e acondicionados
n’uma frasqueira fechada a chave, e esta tão bem guardada, como o seo
coração, para servir nas necessidades e nas molestias que podem apparecer.

Fuja de sucia com pessoa alguma, porque então desapparecem bem depressa
as suas provisões.

É costume no mar, desde que se suspeita haver vinho ou agoardente na
frasqueira de algum passageiro, o pedir-se de vez em quando uma vez
d’esses espiritos para beber em companhia, e quando se está em viagem
deve-se fazer de duas coisas uma, ou ser-se liberal e para isso não
faltam instigações, ou então passar-se por velhaco, e soffrer todas as
injurias, que lhe queiram fazer.

O meio mais seguro para evitar estas coisas é não entrar em sucias.

Para a passagem do mar deve surtir-se de algum vinho tinto, e de coisas
iguaes para quando precisar visto o trivial do navio ser muito mal
preparado.

Deve fornecer-se de um bom numero de camisas, lenços, e vestidos de
fustão, e não de estofos pesados, excepto os vestuarios para festas,
porque n’este paiz não se precisa senão de pannos leves.

Leve sabão para o aceio da casa, muitos sapatos porque lá não achará um
só, senão os que para ahi forem levados e por alto preço, de forma que
pelo preço de um par tereis em França uma duzia, toalhas, guardanapos,
lençóes e um bom colchão, e se quizerdes viver á francesa, isto é, com
limpesa, deveis levar baixela de estanho para quando estiverdes doentes.

Devereis levar assucar, boas especiarias, uma porção de rhuibarbo muito
fino, tudo bem acondicionado n’uma caixa para livrar o assucar das
formigas do paiz, porque é impossivel imaginar-se o que fazem estes
animaesinhos, que metem-se por toda a parte, e tudo trespassam se é de
madeira.

Devem essas caixas ser feitas de ferro branco.

As mercadorias pelas quaes dos Indios obtereis em troca viveres e outros
generos do paiz, e escravos para servir-vos e cultivar vossas roças, são
as seguintes—facas de cabo de pau, de que usam os magarefes, e muito
apetecidas pelos selvagens, muitas thesouras de bolsa de couro, muitos
pentes, contas de vidro verde-gaio, a que chamam missanga, foices,[87]
machados, podões, chapeos de pouco valor, fraques, camisollas, calções de
adellos, espadas velhas, e arcabuses de pouco preço.

Dão muito apreço a tudo isto, e assim tereis escravos e bons generos.

Não esqueçaes tambem pannos verdes-gaios, e vermelhos de pouco valor,
porque não fazem grande differença dos estofos, rosetas, assobios,
campainhas, anneis de cobre dourado, anzóes, alicates de latão chatos,
com um pé de cumprimento e meio de largura, tudo isto por elles muito
apreciado.

Assim bem providos destes generos, não duvideis de serdes bem vindo entre
elles: ahi não deveis viver vida folgada, e muito negocio fareis n’esse
paiz pelo qual pouco dareis, se souberdes guiar-vos.

Assim preparado, não vos esqueçaes do principal, que é antes de
embarcardes purificar e robustecer vossa alma com o Santissimo Sacramento
da confissão e da communhão, dispondo todos os vossos negocios como quem
não sabe se o mar lhe permittirá o voltar.

Apenas embarcado, fazei vossa cama o mais perto, que fôr possivel, do
mastro grande para evitardes o balanço visto ser ahi o lugar mais quieto
do navio.

Deve-se sempre temer a Deos, porem não receiar os acasos do mar, sendo
melhor mostrar o rosto tranquillo do que desassocegado, visto de nada
servir o medo.

Não vos assusteis senão quando os pilotos implorarem misericordia, porque
então é preciso cuidar da alma, visto irem mal as cousas.

Quando virdes o navio navegando de lado, as caixas viradas, o mar
entrando no convez, as vellas molhando-se nas ondas, os marinheiros
jurando e buffando,[88] não vos assusteis, mostrae-vos sempre de animo
prasenteiro, não vos descuidando porem da vossa consciencia.

Não questioneis com algum marinheiro, pois com isso nada alcançareis.

Quando chegardes ao porto, não vos apresseis em saltar, cuidae primeiro
nas vossas mercadorias e bagagem, porque acontece muitas vezes visitarem
a bagagem, e serrarem os caixões, onde vem os generos, de maneira que se
possa introduzir a mão.

Fazei conduzir tudo em vossa companhia para casa do vosso Compadre, que
deveis escolher com estes predicados se fôr possivel.

1.º Que tenha escravos, canôa e cães, para não sentirdes falta de peixe
e de caça, senão raras vezes tereis estes generos, sendo necessario
compral-os aos selvagens, e assim muito cara vos seria a vida.

2.º Indagae se elle tem bom genio especialmente a mulher, porque nada ha
peior do que má hospede.

Se encontrardes bom acolhimento, convem fazer alguns presentes, e depois
deveis trazel-os sempre na esperança de outros, sem serdes comtudo muito
liberal, e por isso todos os mezes lhe deveis dar alguma coisa afim de
não vos chamarem avarento, e como tal não vos apregoem entre os seos
iguaes, criando assim difficuldades quando quizerdes obter alguma coisa.

Não vos deixeis prender pelos affagos das filhas dos vossos hospedes,
ou de outras, pois não vos faltarão caricias se souberem que tendes
mercadorias.

Em tudo o mais é preciso andar prevenido, tendo sempre bem presente á
memoria o acaso e o perigo, que fazem contrahir molestias sórdidas
áquelles, que de si se esquecem.

Podeis livrar-vos d’isto com facilidade, mormente se considerardes o
grande peccado, que commeteis.



CAPITULO L

Do acolhimento, que fazem os selvagens aos francezes recem-chegados, e
como convem proceder para com elles.


Si ha nação no mundo, que goste de fazer bom acolhimento aos seos amigos
recem-chegados, e que os receba em suas casas para tratal-os bem o quanto
é possivel, sem duvida alguma os _Tupinambás_ occupam o primeiro lugar á
vista do que fizeram aos francezes.

Logo que fundeou o navio, que trasiam os francezes, surgiram de todos os
lados selvagens em suas canôas, bem enfeitados de pennas e preparados
segundo sua classe como si fossem para uma grande festa.

Apenas descobrem ao longe navios que demandam a terra corre logo este
boato por todas as aldeias _Aurt vgar uaçú Karaibe_, ou _Aurt Navire
suay_ «ahi vem os grandes navios de França.»

Immediatamente tomam os seos vestidos bonitos, si os tem, e principiam
a fallar uns aos outros por esta forma: «ahi vem navios de França, e eu
vou ter um bom compadre, elle me dará machados, foices, facas, espadas, e
roupa: eu lhe darei minha filha, irei pescar e caçar para elle, plantarei
muito algodão, dar-lhe-hei gaviões e ambar, e ficarei rico, porque hei
de escolher um bom compadre, que tenha muitas mercadorias.»

Dizendo isto batem nas pernas e nos peitos em signal de alegria.

As mulheres e os rapazes fabricam farinha fresca e nova, e os homens
vão pescar e caçar, e quando a casa está provida de carnes de diversas
qualidades, raizes, peixes, caça, e farinha, vão todos aos navios.

Os mais impacientes vão em suas canôas á bordo do navio, ancorado na
enseiada, endagar se vieram os seos velhos _Chetuassaps_, e qual é o
francez que traz mais generos para lhe offerecer seo compadresco, sua
casa e sua filha.

Apenas salta o francez é logo rodeiado por elles: homens e mulheres
mostram-se prasenteiros, presenteam-nos com viveres, convidam-nos para
compadre, offerecem-se para levar-lhes sua bagagem, em fim fazem o que
podem para contental-os e agradal-os.

Não tem inveja por estar um francez em casa de outro: o que primeiro se
apresenta é que leva o hospede, sem a menor questão, e nem por isso se
insultam.

Fazem mais ainda: quando um francez muda de compadre, não questionam por
isto, despresam-no, e tem-no por homem mau, e assim raciocinam.

«Si não poude viver com aquelle, como viverá commigo?»

Si o selvagem é genioso, avarento e preguiçoso, quando o francez o deixa
não se zangam os outros, antes dizem «É bem feito ser elle despresado, é
um homem difficil de ser aturado, avarento e preguiçoso.»

Escolhendo o francez um compadre, segue-o e vae para a aldeia,[89] e
então o hospede com certa gravidade, como si nunca o houvesse visto,
lhe estende a mão e lhe diz: «_Ereiup Chetuassap?_» «Chegaste meu
compadre,»[90] coisa digna de vêr-se e de contemplar-se.

Direis ao vel-os, que sahem á maneira dos imperadores de um gabinete bem
fechado, onde estavam empenhados em grandes negocios.

Si querem fazer grande acolhimento a um francez e lhe mostrar que muito o
estimam, antes que o pae de familia lhe diga _Ereiup_, as mulheres e as
filhas o lamentam e depois dam-lhe bons dias.

Responde-lhe o francez _Pá_, «sim?» resposta que quer dizer «sim de todo
o coração: eu te escolhi para morar comtigo, e para ser meo compadre, e
do numero de tua familia: te dei a preferencia porque te estimo e por me
pareceres bom homem.»

Diz-lhe o selvagem—_Auge-y-po_ «muito bem, estou muito contente,
honras-me muito, sêde bem vindo e aqui serás tão bem acolhido como em
parte alguma.»

Por isto reconhecereis a candura e a simplicidade da naturesa, que
consiste em poucas palavras e muitas obras. O contrario acontece á
corrupção, pois inventa muitos discursos, muitas palavras adocicadas,
cortejo sobre cortejo muitas vezes só com o chapéo, e não com o coração.

D’estas duas recepções qual será a melhor e a mais consentanea com a lei
de Deos, e com a simplicidade do christianismo?

Após aquellas palavras, elle vos diz—_Marapé derere?_ «Como te chamas?
qual é o teu nome? como queres que te chamemos? que nome queres que se te
dê?»

Convem notar, que si não escolherdes um nome pelo qual sereis conhecido
em toda a parte, elles vos darão um escolhido entre as coisas naturaes,
existentes no seo paiz, e o mais apropriado á vossa physionomia, genio,
ou maneira de viver, que por ventura descobrirem em vossa pessoa.

Por exemplo, entre os francezes, um foi chamado _beiço de sargo_, porque
tinha o beiço inferior puchado para diante como os peixes chamados
_sargos_.

Tiveram outros o apellido de _garganta grande_ porque nada o fartava,
de _sapo-boi_,[91] por estar sempre entumecido, de _cão pirento_ pela
sua cor má, de _piriquito_ porque levava só a fallar, de _lança grande_
por ser alto e esguio, e assim por diante, e ordinariamente fazem estas
coisas em suas _casas grandes_, e por esta fórma pouco mais ou menos.
«Que nome se ha de dar a teo compadre?»

—Não sei, é preciso estudar.

Indica cada um a sua opinião, e o nome que encontra mais apropriado, e si
é bem recebido pela assembléa lhe é imposto com seo consentimento, si é
homem de posição: si é do vulgo, queira ou não queira, ha de ter o nome,
que lhe der a assembléa.

Tem tambem outra maneira de impôr nomes: quando elles vos estimam, e vos
dam muito apreço, elles vos dam o seo proprio nome.

Depois de saber vosso nome pensam na cozinha dizendo—_Demursusen
Chetuasap_, ou então _Deambuassuk Chetuasap?_ «Tem fome, meo compadre?
quer comer alguma coisa?»

A hospede vos escuta e vos attende prompta a servir-vos si disserdes
_sim_ ou _não_, porque tomarão vossa resposta, como dinheiro contado,
visto que n’essas terras nem se deve ser vergonhoso, e nem guardar
silencio.

Si tendes fome, direis _Pá, chemursusain, Pá, cheambuassuk_, «sim, tenho
fome, quero comer.»

Perguntam elles _Maé-pereipotar_, «que queres tu comer? que desejas tu
que eu te traga?»

São mui liberaes no principio, diligentes na caça e na pesca, afim de
contentar-vos e ganhar vossa affeição para obter generos; mas cuidado,
não lhe dês tudo no principio, conservae-o sempre na esperança, dando-lhe
cada mez alguma coisinha.

Á sua pergunta dizei, si quereis carne, peixe, passaros, raizes, ou outra
qualquer coisa, e então vossos hospedes, o marido e a mulher trazem para
vós a caça, o _Mingau_, que tiverem, podeis comer a vontade e dar a quem
quizerdes.

Apenas tiverdes comido, arma a sua rede ao pé da vossa, principia a
conversar comvosco, offerece-vos um caximbo cheio de fumo, que accende,
chupa tres fumaças, que expelle pelas ventas, e depois vos entrega como
coisa muito bôa, e que faz muita estima, como na França se pratica com
as bebidas.

Accende tambem seo caximbo, e depois de haver tomado cinco ou seis
fumaças diz—_Ereia Kasse pipo_: «deixaste teo paiz para vir ver-nos,
visitar-nos e trazer-nos generos?»

Respondei-lhe _Pá_—«sim, deixei tudo, despresei meos amigos, e meo paiz
para vir aqui vêr-te.»

Levantando então a cabeça como que admirado, diz _Yandé repiac aut_,
«compadeceo-se de mim, olhou-nos com piedade: lembraram-se os francezes
de nós, não se esqueceram de nós.»

Deixaram sua terra para nos vir ver—_Y Katu Karaibe_: «são bons os
francezes e muito nossos amigos.»

Depois pergunta ao francez _Mabuype deruuichaue Yrom?_ «Comvosco quantos
superiores, guerreiros, capitães e principaes vieram?»

Responde-lhe elle _Seta_, «muitos.»

Replica o selvagem—_De Muruuichaue?_ «Não és d’esse numero? Não és um dos
principaes?»

Bem podeis pensar, que não ha ninguem, por mais mediocre, que seja a sua
condicção, que de si não diga bem, e por isso responde o francez _Ché
Muruuichaue_ «sim, sou um dos principaes.»

Diz o selvagem _Teh Augeypo_ «muito bem, estou muito contente: basta,
fallemos de outra coisa.» _Ereru patua? Ereru de caramemo seta?_
«Trouxestes muitas caixas e cestas, cheias de mercadorias?»

São as melhores noticias, que se lhes pode dar, para as quaes tem sempre
dispostos o animo e o coração, de sorte, que tudo quanto dizem é somente
como que um preambulo para chegar a este ponto.

Depois que o francez responde-lhe affirmativamente diz o selvagem—_Mea
porerut decarameno pupé?_ «O que trouxestes em vossas caixas e coffres de
joias? que mercadorias?» dizem elles com vóz doce e agradavel, pois são
muito curiosos de saber o que trazem comsigo os francezes.

Deve estar prevenido o francez para não dizer e nem mostrar o que elles
desejam, afim de trasel-os sempre na expectativa, si dos seos serviços
quer aproveitar-se.

Deve responder-lhe—_Y Katu paué_ «trouxe tantas coisas, cujos nomes nem
mesmo sei, são bellas e magnificas.»

Esta resposta é como agoa lançada na fornalha ardente do ferreiro, a
qual redobra o calor, e activa a chama, e assim desperta a curiosidade
do selvagem, até por meios adulatorios, expressados por gestos, dizendo
_Eimonbeu opap-Katu_ «eu te peço, não me occultes nada, dize-me.»
_Yassoi-auok de Karamemo assepiak demae_: «Abre-me tuas caixas, teos
cestos, deixa-me vêr tuas mercadorias, tuas riquezas.»

Deve responder o francez _Aimosanen ressepiak_ ou _Kayren deué_ «agora
não posso, deixa-me descançar, logo te mostrarei:» _Begoyé sepiak_ «não
duvides, um dia verás á tua vontade.»

O selvagem entende o que isto quer dizer, e vendo que perde seo tempo,
diz a si mesmo, levantando os hombros, e como que se lastimando—_Augé
katut tegné_, «pois bem, esperarei.»

Bem sei que não serei ouvido, porem, diz elle ao francez _Dererupé
xeapare amon?_ «Não trouxestes muitas fouces e machadinhos de cabo de
ferro?»

_Dererupé urá sossea-mon?_ «Trouxestes machados de cabo de pau?» _Ererupé
ytaxéamo?_ «Não trouxestes facas d’aço?» _Ererupé ytaapen?_ «Trouxestes
espadas d’aço?» _Ererupé tatau?_ «Trouxeste arcabuzes?» _Ererupé tatapuy
seta?_ «Trouxeste muita polvora?»

Responde o francez a tudo isto _Aru seta yagatupé giapareté_ «Sim, trouxe
muita coisa boa e bonita.» Diz o selvagem _Augé-y-pó_ «Muito bem.»

_Ercipotar turumi? Ercipotar keré?_ «queres dormir? queres deitar-te?»
Responde o francez _Pa che potar_ «sim, quero dormir, deixa-me.»

Da-lhe então o selvagem as boas tardes, ou boas noites, dizendo—_Nein
tyande karuk tyande petom_ «boa tarde, boa noite, descançae á vontade.»

Deixemol-os em descanço, e passemos á segunda parte d’esta historia.



Continuação da historia das coisas mais memoraveis, acontecidas no
Maranhão em 1613 e 1614.



SEGUNDO TRATADO.



CAPITULO I

Dos fructos do Evangelho, que appareceram cedo pelo baptismo de muitos
meninos.


O cantico segundo, (representando allegoricamente a origem da Igreja, em
terra nova, ainda não illuminada pelo conhecimento do verdadeiro Deos)
diz: _Vox turturis audita est in terra nostra: ficus protulit grossos
suos: vineæ florentes dederunt odorem suum_: «foi ouvida a voz da rolla
em nossa terra: produzio a figueira seos figos verdes, e as vinhas em
florescencia derramaram seo aroma.»

Interpretando estas palavras Rabbi Jonathas, diz em sua Paraphrase
chaldaica, que a vóz da rolla significa a vóz do Espirito Santo
annunciando a Redempção promettida a Abraham, pae de todos os crentes:
eis suas proprias palavras:—_Vox spiritus sancti et redemptiones quam
dixi Abrahæ Patri vestro_: «a vóz do Espirito Santo e da Redempção, que
prometti a Abraham, vosso Pae.»

Diz mais, que pela figueira deve entender-se a Igreja, e que pelos figos
novos se representa a confissão da fé, que devem os crentes fazer diante
de Deos, e finalmente que pelas vinhas em flor exhalando bom cheiro são
indicados os meninos louvando o Senhor dos seculos: _Cœtus Israel,
qui comparatus est precocibus ficubus aperuit os suum, et etiam pueri
et infantes laudaverunt Dominatorem sæculi_: em nosso tempo vimos isto
realisado em Maranhão, e suas circumvisinhanças, onde depois que á vóz do
Espirito Santo, por meio da prédica do Evangelho, se fez ouvir n’estas
terras, e tocou o coração de muitos, especialmente dos que solicitaram
o baptismo, a bella figueira da Igreja produzio novos figos, que são as
almas sahidas de infidelidade para a crença do verdadeiro Deos, e então
as vinhas em florescencia exhalaram seo cheiro quando em suas cabeças
receberam os meninos as agoas do baptismo, louvando o Senhor dos Seculos
pela parte que ja tomavam do sangue de Jesus Christo e da fé da Igreja.

Coisa admiravel, digna de ser bem pensada e considerada: apenas a vóz do
Evangelho trovejou, e fuzilou por essas florestas desertas, por estas
sarças, cheias de agudos espinhos, esses pobres bichos (esses selvagens)
presos nos laços do cruel caçador Satanaz, começaram animados pela força
e impetuosidade d’essa vóz a construir seus pequenos templos, como
outr’ora tinha predicto o Propheta Rei David no Psalmo 28. _Vox Domini
præparantis Cervos, et revelabit condensa et in templo ejus omnes dicent
gloriam_: a vóz do Senhor amançando os viados, descobrirá o interior das
brenhas e das sarças e no seo Templo todos entoarão louvores á elle.

Explicam os doutos, em varias licções, estas palavras dizendo que á voz
do Senhor parem os bichos seos filhos, á similhança da mão da parteira ou
do cirurgião habil, que serve para tirar do ventre da mulher o menino sam
e salvo.

Esta voz não é outra, a darmos credito aos naturalistas, senão o ribombo
do trovão, e a luz do relampago, que por um segredo muito intimo da
naturesa faz com que param as femeas dos animaes ferozes.

O mesmo produz a prédica do Evangelho, animada e vivificada pelo Espirito
Santo, excitando o coração d’estes barbaros, ha muito tempo internados
nas sarças e brenhas da ignorancia, da infidelidade, e dos maos costumes.

Nas _casas grandes_ não se falla mais de outra coisa senão do
conhecimento de Deos, contando cada um o que ouvio de nós quando
veio visitar-nos, e terminando essas especies de conferencias pela
manifestação do grande desejo, que tinham de vêr seos filhos baptisados e
elles tambem, por meio d’estas e outras palavras similhantes.

Que coisas, diziam elles, são estas, que os Padres nos contam por meio
dos interpretes? Nunca as ouvimos iguaes.

Nossos paes, ja por tradicção nos contaram, que outr’ora veio aqui um
grande _Maratá de Tupan_,[92] isto é, Apostolo de Deos nas provincias,
onde residiam, e lhes ensinou muitas coisas de Deos: foi elle quem lhes
mostrou a mandioca, as raizes para fazer pão, porque antes só comiam
nossos paes raizes do matto.

Vendo este _Maratá_, que nossos antepassados não faziam caso do que
dizia, resolveo deixal-os, mas antes quiz dar-lhes um testemunho de sua
vinda aqui, esculpindo n’uma rocha uma especie de mesa, imagens, letras,
á fórma de seos pés, e dos seos companheiros, as patas dos animaes, que
trasiam, os furos dos cajados, a que se arrimavam em viagem, o que feito
passaram o mar, procurando outra terra.

Reconhecendo nossos paes sua falta, procuraram-no muito, porem nunca
d’elle tiveram noticias, e até hoje ainda não veio visitar-nos algum
_Maratá de Tupan_.

Muito tempo ha, que frequentamos os francezes, e nenhum d’elles nos
trouxe padres, e nem nos contou o que por seos interpretes nos dizem os
padres.

Por exemplo fazem viver de maneira diversa os _Caraibas_.

Prohibem os francezes de tomarem nossas filhas, o que outr’ora faziam com
facilidade, dando-nos em troca algumas mercadorias.

Dizem grandes coisas de Deos, e á elle fallam em suas Igrejas, e para
isso fecham as portas, fazem-nos sahir para que desça _Tupan_ diante
d’elles, e então si ajoelham todos os _Caraibas_.

Bebe e come _Tupan_ em bellos vazos de oiro, e em mesa bem preparada e
ornada de bellos estofos, e bonitos pannos de linho.

Adornam-se com ricos vestuarios, e quando querem fallar aos _Caraibas_
assentam-se no meio d’elles, e somente falla um Padre, que está assentado.

Escutam-no todos os francezes, falla por muito tempo, cança-se, ninguem o
entende porem todos ahi estão firmes.

Depois que este falla, cantam uns depois de outros, de lado a lado, lêem
n’um _Cotiare_, (n’um livro) o que cantam e dizem elles que assim estão
fallando á Deos.

Julgam nossos paes perdidos com _Jeropary_, ardendo em fogos
subterraneos, e riem-se de nós quando choramos e lamentamos nos funeraes
de nossos parentes.

Mandam atirar no matto a comida, a bebida, e o fogo, que costumamos dar
aos nossos parentes defunctos para fazer a viagem até onde estão nossos
avós nas montanhas dos Andes.

Elles nos dizem e prégam, que somos muito tollos em dar credito aos
nossos _barbeiros_ e _feiticeiros_, especialmente ao seo sopro para o
curativo dos infermos.

Fallam com altivez contra _Jeropary_, e não o temem de fórma alguma.

Promettem aos que crêem em _Tupan_, e que elles lavam com suas mãos, de
subir ao Céo por cima das estrellas, do sol e da lua, onde está _Tupan_
sentado, e em roda d’elle os _Maratás_, e todos os que acreditam em suas
palavras, e são por elles lavados.

Regeitam raparigas e mulheres, dizendo que o filho de _Tupan_ não as
teve, sahindo do ventre de uma rapariga chamada _Maria_ com a qual nunca
seo marido teve relações.

Ha dias nos quaes não comem carne embora lh’a offereçam.

Não se passam dez dias, contando pelos dedos, que não mandem os Francezes
vestirem-se com roupas bonitas, e irem a casa de _Tupan_ fallar com elles
e escutar a palavra de Deos.

Vestem-se de maneira diversa dos outros francezes, caminham diante
d’elles, e todos os saudam. Convivem sempre com os grandes, que lhes
fazem tudo quanto querem, e dizem até que abandonaram suas riquezas e
fazendas para mais livres conversarem com _Tupan_, e manifestarem a
vontade d’elle aos francezes.

Quando vamos vel-os, nos acariciam, especialmente a nossos filhos
dizendo-nos, que já não nos pertencem e sim a elles, sendo-lhes dados por
_Tupan_.

Que não nos penalizemos por isso, porque nunca nos deixarão e nem nossos
filhos: que elles são muitos em França, que todos os annos virão outros,
que depois de haverem educado e ensinado nossos filhos, os farão fallar
em Deos tão familiarmente como elles o fazem: que lhes ensinarão a
_rotiarer_ (a escrever) e a fazer fallar o _papere_ (o papel) mandado de
muito longe aos que estão auzentes.

Dizem-nos que seo Rei é poderoso, que os ama, e nos ajudará em quanto
elles estiverem comnosco. Ah! porque não somos mais moços para vêr as
grandes coisas, que farão os Padres em nossas terras! Elles construirão
com pedra grandes Igrejas como ha em França.

Trarão bellos estofos para ornar o lugar, onde desce _Tupan_. Mandarão
buscar _miengarres_, isto é, musicos cantores[93] para entoarem as
grandezas de _Tupan_.

Recolherão todos os nossos filhos n’um lugar, onde alguns dos Padres
cuidarão d’elles. Mandarão buscar de França mulheres para ensinarem o
que sabem á nossas filhas. Não nos faltarão ferramentas para nossas
roças. Ah! diziam alguns d’elles em continuação, si chegarmos a vêr essas
mulheres em nossas terras, então temos certesa que não nos deixarão
os francezes, e nem os Padres, especialmente si nos derem mulheres de
França. Si eu tivesse, disse um d’elles, uma mulher franceza não queria
outra, e faria tanta roça que havia de chegar para sustentar tantas
francezas, como de dedos eu tenho nas mãos e nos pés, isto é, vinte,
numero infinido para significar muito, porque depois de terem chegado a
vinte, começam a contar de novo.

Levantando-se então elle, que era o Principal no meio do grupo, em que
me achava, e batendo nas nadegas com quanta força tinha, disse _Aça-uçu,
Kugnan Karaibe, Aça-uçu seta, &._ «Amo uma mulher francesa com todo o meu
coração, amo-a extremosamente.»

Respondeo o _Cão grande_, tambem Principal—«prometteram-me uma mulher
francesa, que desposarei na mão dos padres, e me farei christão como fiz
meo filho Luiz-galante, e quero ter em pouco tempo um filho legitimo.
Minha primeira mulher está velha, e por isso não precisa mais de marido,
e as outras oito, ainda moças, as darei por esposas a meos parentes, e
ficarei só com a mulher de França, e minha velha mulher para nos servir.»

Faziam outros iguaes discursos em suas _cazas grandes_ e na minha
residencia, ou quando me viam passar, contentando-me de referir apenas o
que acima escrevi para mostrar o fervor d’estes barbaros, suscitado pelo
Divino Espirito Santo.

_Vox turturis audita est in terra nostra_, para produzir de seo seio
fechado e preoccupado por mil infecções estes bellos e amigaveis
viadinhos, _vox Domini præparantis Cervos_, e em outro logar _Cerva
charissima e gratissimus hynnulus_, cap. 5º dos _proverbios_, «a côrça
muito estimada, e o templo muito lindo.»

Continuemos.

A estas palavras seguio-se logo a pratica, porque foram muitos meninos
entregues ao Rvd. padre Arsenio, residente em _Juniparan_, e a mim,
morador em São Francisco, perto do Fórte de São Luiz, para acudir aos
francezes e receber os Indios de outras terras, que todos os dias nos
vinham vêr e conhecer, si era verdade o que de nós se dizia em longes
terras.

Foi esta a divisão, que fizemos, de tantas e tão grandes terras para
cultivar e lavrar o que permittissem nossas forças, cuidando um de uma
parte e outro de outra, excepto quando houvesse necessidade de sahir da
Ilha, porque então se tomariam providencias adequadas.

Impossivel é á palavra o pintar o contentamento e a alegria, que
sentiamos vendo estes selvagens trazer-nos seos filhos, voluntaria e
expontaneamente, para serem baptisados, preparando-os o melhor que
podiam com os meios offerecidos pelos francezes, isto é, vestidos com
um pedaço de panno de algodão, escolhendo padrinhos entre os francezes,
contrahindo assim com elles estreita alliança, especialmente com os
meninos baptisados, si estivessem em idade de o conhecerem, porque então
considerariam seos padrinhos como seos proprios paes, chamando-lhes
pelo nome de _cheru_, «meo pae» e sendo pelos francezes chamados os
rapazes _cheaire_ «meo filho,» e as meninas _cheagire_ «minha filha»:
vestiam-nos em summa o melhor, que podiam, e os selvagens, paes dos
meninos baptisados, lhes offereciam todas as commodidades resultantes de
suas roças, de suas pescarias, e caçadas.

Vendo assim estas cousas, lembrava-me do que diz o cap. 5º dos
_canticos_. _Oculi ejus sicut cólombæ super rivulos aquarum, quæ lactæ
sunt lotæ, et resident juxta fluenta plenissima_: «os olhos de Jesus
Christo, esposo da Igreja, parecem-se com os olhos da pomba, orvalhada de
leite, que contempla os regatos das fontes, e faz seo abrigo e morada nos
rochedos, que abrangem rios amplos e espaçosos.»

Estes olhos de Jesus Christo são as graças do Espirito Santo, que
fazem quebrar seos ovos á maneira das tartarugas, expostos á mercê das
innundações do mar e da frialdade da areia.

Tem estes mesmos olhos por plano e fim lavar e purificar as almas,
especialmente as almasinhas rociadas de leite. Assim como a pomba branca
brinca sobre os riachos, e habita á margem dos grandes rios, assim tambem
o Espirito Santo folga e muito na conversão de uma terra nova, e encara
com bons olhos a sahida d’estas almasinhas do estado geral d’estas terras
barbaras, a saber, da ignorancia de Deos para chegar a conhecel-o por
meio das agoas do baptismo, partecipantes, como nós, da visão de Deos,
porque não fazem accepção de ninguem, visto que estas almas barbaras lhe
custaram tanto como as nossas.

Oh! preço infinito! oh! falta de caridade, que não tem desculpa perante
Deos, de se verem tantas almas pedindo a salvação, sem embaraços e
riscos, e em risco de se perderem por não haver um pequeno auxilio.

Bom Deos! todos nós acreditamos, e Jesus Christo confirma esta crença,
que uma só alma valle mais que todo o resto do mundo, isto é, que todos
os imperios, e reinados da terra, que todas as riquezas e thesouros do
homem: mais ah! não temos difficuldade de pôr em execução nossas crenças.

Não posso deixar este assumpto sem primeiro declarar a luta interior, que
experimentei, para fazer vêr e descarregar minha consciencia tanto quanto
a julgo compromettida, parecendo-me bastante para minha justificação e
defesa o que acabo de dizer.

Li e notei em bons auctores, profundos e perspicases no conhecimento dos
segredos e mysterios da Escriptura, que as pombas brancas orvalhadas de
leite eram certas pombas, que os Syrios creavam em honra e veneração de
sua rainha Semiramis, sendo prohibido matal-as sob pena de morte.

Contam-nos os antigos ter-se esta rainha immortalisado por um acto
memoravel, entre seos altos feitos d’armas, o mais milagroso quanto é
possivel á grandesa dos reis, qual a suspensão entre o Céo e a terra de
seos jardins, pomares, e bosques de recreio.

Salomão procurou esta comparação entre as coisas profanas para mostrar
uma obra divina notavel entre as outras, qual a conversão das almas,
inteiramente reservada ao poder de Deos por ser uma segunda creação pela
qual assim como suspendeo a terra no ar, assim tambem suspenderá jardins,
pomares, e florestas de sua igreja com surpresa dos calculos e juizos
humanos, afim do dar lugar aos seos predestinados e eleitos chamando-os
quando lhes apraz, no meio dos desertos, e do interior das mais vastas e
densas florestas.

Antes de ir adiante, não deixarei escapar a coincidencia que se nota
entre a grande Semiramis e Maria de França, rainha christianissima.

Semiramis rainha reinante e tutora do seu filho o rei d’Asyria
emprehendeo grandes coisas, em beneficio e sustentaculo do imperio de seo
filho.

Igual caso se dá com a nossa rainha, e embora Semiramis tenha em seo
tempo feito muitas obras magnificas, pelas quaes grangeou o amor e a
obediencia de seos subditos mais do que outra qualquer, sua antecessora,
a immortalidade de seo nome foi devida a seos edificios miraculosos.

Com igual razão direi, que entre as heroicas acções da rainha, mãe do
rei, que levaram a posteridade seo nome immortal, conta-se a missão dos
padres capuchinhos ás terras do Brasil para ahi plantar os jardins da
igreja, começada e fundada sob sua authoridade e ordem, e assim será o
Brasil obrigado a sustentar estas pombas brancas em memoria e lembrança
de tão grande Semiramis que tem tanta piedade como poder para aperfeiçoar
esta empresa.

Ainda vos peço, que em nossas pequenas pombas rociadas de leite deveis
vêr os filhinhos dos selvagens conduzidos ao gremio do christianismo pelo
baptismo.

Ha cinco annos, pouco mais ou menos, nem havia desejo de se intentar a
cathequese d’esta gente.

O diabo ahi mandava com imperio, arrastava para si todas estas almas sem
pagar dizimo a Deos, porem presentemente, em quanto durar e continuar a
missão, com o auxilio de Deos ouvireis dizer quaes os grandes fructos,
ja colhidos, e outros que se colhem todos os dias.

A nossa maior consolação, a que nos fazia soffrer as amarguras e as
difficuldades dos trabalhos, que ahi não nos faltavam, era vêr a
franqueza e boa vontade, com que os selvagens nos apresentavam seos
filhos para serem baptisados dizendo então nós, em conversa com elles,
que para nós nada havia mais agradavel do que o trazerem elles seos
filhos á pia baptismal, e sempre que comnosco fallavam era assumpto da
conversa a manifestação de seos desejos por verem seos filhos por nós
baptisados.

Poderia aqui reproduzir muitos exemplos para confirmar esta verdade, mas
como tenho de referil-os em lugar proprio, deixo-os agora de mão.



CAPITULO II

Do baptismo de muitos infermos e velhos, que falleceram depois de
christãos.


Entre os mais bellos enigmas sagrados, que recita Job no seo livro,
está no Cap. XIV a parabola do loureiro dizendo. _Si senuerit in terra
radix ejus, et in pulvere mortuus fuerit truncus illius, ad odorem aquæ
germinabit, et faciet comam quasi cùm primo plantatum est_: «Si a raiz do
loureiro se mergulha na terra, e seo tronco morrer no pó, apenas sentir o
cheiro da agoa germinará e produzirá nova copa de folhas, como si fosse
recentemente plantado.»

Os Setenta assim inverteram esta passagem: _Si in petra mortuus fuerit
truncus ejus, ab odore aquæ florebit, et faciet messem, sicut nova
plantata_: «si o tronco do Loureiro morrer na pedra, com o cheiro d’agoa
florescerá, e como planta nova mostrará em breve sua copa.»

Outra versão ha ainda mais bella: _Attracto humore aquæo iterum germinat,
exibet quæ fructus decerpendos, ut plantæ solent_ «o Loureiro morto
chupando a agoa germina de novo, e como as outras plantas offerece
sazonados fructos.»

N’estes trez trechos descobrireis muitas coisas, que servem litteralmente
ao nosso fim.

1.º A raiz do Loureiro dentro da terra.

2.º Seo tronco morto no pó ou na pedra.

3.º O cheiro d’agoa, que dá a vida perdida á raiz e ao tronco fazendo
produzir folhas, flores e fructos.

O Loureiro representa as Nações infieis, conforme a ficção dos antigos da
nympha Daphné, a qual perseguida pelos demonios com o nome de Appollo foi
convertida em Loureiro.

Sua raiz sepultada no pó ou na rocha representa longa serie de annos,
nos quaes estas Nações barbaras jazeram entregues aos seos barbaros e
inveterados costumes.

O tronco ja morto representa o fim e terminação d’esta ignorancia.

Deos querendo presentemente visitar esta Nação escolheo os enfermos, os
velhos, os caducos e moribundos para fazel-os renascer em Jesus Christo,
levando as folhas verdes da graça, as flores dos dons do Espirito Santo,
e os fructos dos meritos da paixão de Jesus Christo, e com isto tudo o
cheiro e o atractivo da agoa do baptismo.

Sentiamos muito consolo quando baptisavamos os doentes e os velhos, cuja
morte era esperada com certeza, por que receiavamos que por falta de
soccorros, nos vissemos obrigados a deixar e abandonar todos os meninos
recentemente baptisados e os adultos, que constantemente si apresentavam.

Tinhamos ao menos certeza, que baptisando os que se achavam proximos da
morte, abria-se o Paraizo, e perdia-se a occasião que lhes faria perder
talvez a graça obtida, ficando sós e longe dos Ministros da Igreja para
nutril-os na graça recebida.

Alem d’isto o baptismo d’estes velhos fazia muita impressão no coração
das testemunhas vendo a devoção, com que ordinariamente recebiam o
baptismo.

Vou dar-vos alguns exemplos.

Na ilha cahiram doentes duas raparigas, uma livre e outra escrava,
sendo aquella casada com um Tupinambá, muito bom moço, o qual depois da
morte de sua mulher, constantemente nos perseguia para ser baptisado,
aprendendo com muito boa vontade a doutrina christã.

Esta rapariga, proxima da morte, pedio que lhe dessem o baptismo,
confessando por palavras nascidas do coração a verdade da nossa religião,
mostrando por signaes exteriores o toque do Espirito Santo no seo
coração, banhando-se de lagrymas de amor e de reconhecimento ao grande
_Tupan_, que lhe fazia tão assignalada graça de a ter feito nascer neste
seculo para tiral-a do meio de tantas almas perdidas de sua nação e
conceder-lhe o goso do paraizo.

Fitava com attenção o Ceo, e com palavras doceis e tremulas recitava
o que sabia á respeito da crença de Deos, repellindo para bem longe
_Geropary_ e seos antigos enganos.

No meio d’este discurso, precursor da morte, lamentava a condemnação de
seos antepassados.

Fazia exposições muito bellas a seo marido e o animava a receber quanto
antes a purificação de seos peccados.

Devo dizer d’ella um facto muito particular, qual o de haver conhecido um
só homem, o seo marido, o que é não pequeno milagre n’aquelle paiz, por
causa do mau costume introdusido pelo diabo no coração das moças, de se
honrarem pela deshonra, e de não apreciarem a castidade ou a virgindade.

Bem vêdes por isto, que em todos os escolhidos de Deos ha sempre alguma
virtude natural, que provoque, não por merecimento e sim pela occasião,
a graça de Deos, que similhante ao sol, com indifferença, está a entrar
n’alma de todos, si houver para isso disposição.

A _Tapuia_, ou escrava, atacada por violenta febre, que a atormentava
muito, achava-se em sua rede só e por todos abandonada, conforme o uso
e costumes d’elles, que consideram grande deshonra cuidar d’uma escrava
quando está a morrer, isto antes da nossa chegada a ilha, quando então
lhes mostrámos o quanto era desagradavel á Deos a crueldade com que
atiravam por terra o escravo moribundo e lhe quebravam a cabeça como ja
disse.

Esta desgraçada mulher, prisioneira de Satan, e victima das desgraças
communs da natureza, que são as enfermidades e as doçuras dolorosas
e insuportaveis, sem pessoa alguma junto de si foi então olhada com
piedade, e visitada por seo Creador, animando-a a pedir o baptismo. Oh!
juiso de Deos! Oh! providencia eterna!

Quem poderá comprehender teos conselhos na vida do homem!

Esta pobre creatura, dardejada vivamente no coração pelas flechas das
primeiras graças do seo senhor, não merecidas por alguma obra boa
anterior, que houvesse feito, lançava suas vistas por todo o quarto
procurando ver, si alguem lhe apparecia para mandar chamar os Padres,
afim de ser lavada com as agoas do baptismo, e felizmente lhe appareceu
um francez, a quem expoz seos desejos, e veio elle logo dizel-os ao
padre, indicando a casa d’ella, que era perto, e elle foi logo visital-a,
instruil-a e baptisal-a.

O francez, que cuidou d’ella, e o padre que a baptisou, me contaram
coisas admiraveis.

Esta infeliz creatura quanto ao corpo, porem muito feliz quanto á alma,
principiou a experimentar os penhores do Ceo, e o merecimento do sangue
de Jesus Christo que recebeo pelo baptismo. Tinha sempre os olhos fixos
no Ceo, derramava abundantes lagrymas, e dizia de momento a momento,
estas palavras—_Y Katu Tupan, ché arobiar Tupan_. Oh! quanto Deos é
bom! Oh! quanto Deos é bom! eu creio n’elle. Depois por meio de signaes
mostrava aos francezes, que _Jiropary_, o diabo, andava ao redor de sua
rede, e então dizia _Ko Jiropary, Ko y pochu Jiropary_: «está ali o
diabo, atirai sobre elle a agoa de _Tupan_, isto é, agoa benta para elle
fugir.» Fazia-lhe o francez a vontade e dizia ella que o diabo fugia a
toda a pressa, e por isso constantemente pedia ao francez que derramasse
em roda d’ella e de sua rede muita agoa benta o que fazia, bem como o
padre quando ahi se achava.

Apenas lhe apparecia uma dor de cabeça, que muito a encommodava, pedia
para que lavassem a testa, as fontes e a cabeça com agoa benta, com que
alliviava muito, a ponto de não sentir mais doença alguma: pouco depois
entregou sua alma ao Creador.

Amortalharam e sepultaram seo corpo á maneira dos christãos: aconteceo
porem, que alguns malvados, filhos de _Giropary_, que nunca foram
descobertos, senão seriam punidos, foram á noite desenterral-a,
quebraram-lhe a cabeça e roubaram o panno de algodão de sua mortalha:
pela manhã foi outra vez sepultada.

Ninguem se admire d’isto, pois o diabo reserva sempre para si alguns bons
servos, mesmo nos reinos os mais bem policiados, afim de executar suas
mais detestaveis intenções.

Sabeis sem duvida, que os _Tupinambás_ aborrecem naturalmente os que
abrem as sepulturas dos mortos e não podem por isso tolerar, que os
francezes abram as covas, onde foram enterrados seos parentes para lhes
tirar os objectos, que elles cheios de superstição ali deixam.

Ahi estava a morrer um velho _Tabajare_, tão magro, que os ossos lhe
furavam a pelle, sem voz, e sem movimentos na sua rede.

Julgando-se mais proximo da morte do que da vida, inspirado por Deos,
pedio o baptismo.

Fomos visital-o e cathequisal-o pedindo-lhe sua opinião a respeito de
todos os pontos e artigos, que lhe propuzemos.

Com as mãos postas nos disse que acreditava no que lhe diziamos.

Demorando-nos nos artigos relativos á crença da Santissima Trindade, da
Incarnação, Morte, e Paixão do Filho de Deos, do Baptismo, e do Mysterio
da Santa Eucharistia, por que estava proximo da morte, procuramos
fazer-lhe entender estas materias tão altas e profundas por comparações
familiares, a que prestou muita attenção, e dezejando com todo o fervor
o baptismo nós lhe promettemos, que no cazo de ficar bom elle receberia
as ceremonias do baptismo na capella de S. Luiz, e aprenderia com gosto a
doutrina christan, que ensinavamos aos catecumenos antes de baptisal-os.

Respondeo-nos, que não era tão longe a Capella de Sam Luiz, que não
podesse ser levado até lá afim de, antes de morrer, ser baptisado,
consolação que muito desejava afim de ir direito para o Ceo.

Vendo este fervor e devoção ficamos satisfeitos e concordamos ser elle
carregado n’uma rede até a igreja de Sam Luiz, e ahi baptisado com toda a
solemnidade.

Alguns dias depois morreo tranquillamente.

N’esse mesmo tempo cahio doente uma mulher _Tabajare_, e tão gravemente,
que todos julgavam-na em breve morta: fomos vel-a e lhe offerecemos o
baptismo que aceitou de muito boa vontade, e com muita attenção escutava
o que diziamos, por intermedio dos interpretes, a respeito das glorias do
Paraizo, das penas do inferno, do que ella devia crer, antes de receber o
baptismo no caso de Deos lhe dar saude, e que podesse aprender a religião
christan, e então na igreja receberia as ceremonias do baptismo, no que
concordou e foi baptisada: recobrando sua saude, julgou do seu dever
cumprir sua palavra, embaraçando-a porem o facto de ser mulher de um
_Tabajare_, que tinha mais duas, não podendo ella continuar a viver com
elle casada segundo as leis do christianismo.

Removemos este obstaculo seguindo o conselho de Sam Paulo: _si qua mulier
fidelis habet virum infidelem et hic consentit habitare cum illa, non
dimitat virum etc quod si infidelis discedit, discedat_: «si alguma
mulher fiel estiver casada com um homem infiel, e que este queira morar
com ella, ella que não o deixe, si o homem infiel a deixar, ella o deixe
tambem.»

Em virtude d’isto fizemos saber a seo marido, que se quizesse ter
por unica esta mulher christan, deixando as outras, que ella não o
abandonaria, mas que si quizesse viver como d’antes na qualidade de
concubina, que nós e os grandes dos francezes lhe afiançavamos, que elle
seria despresado como incompativel com o christianismo.

A principio mostrou repugnancia porem afinal concordou, vivendo como
mulher christan e unica com seo marido.

Faziamos o mesmo aos meninos pequenos, proximos á morte, observando porem
estas formalidades: pediamos o consentimento dos paes e mães antes de
baptisal-os, embora não os deixassemos de baptisar, quando os viamos
moribundos: apesar de estarmos certos da boa vontade geral dos selvagens
de apresentarem seos filhos ao baptismo, nós lhes prestavamos esta
homenagem com o fim de attrahil-os á se converterem.

Não vem a proposito referir aqui alguns exemplos, porque nada acho n’isto
de extraordinario.



CAPITULO III

Do baptismo de muitos adultos, especialmente de um chamado Martinho.


Antes de tratar d’esta materia, julgo necessario advertir ao leitor, que
no fim da obra do reverendo padre Claudio achará alguma coisa d’esta e da
seguinte historia, tudo extrahido de uma de minhas cartas, que enviei de
Maranhão, á meos superiores, e como apenas esbocei-as, justo é que eu as
descreva minuciosamente.

Estas sagradas agoas do baptismo não estagnaram na ilha, pois
atravessando a corrente forte e impetuosa do mar, sem com elle
misturar-se, passaram ás terras firmes de _Alcantara_ e _Comã_, que
despertadas por seo doce sussurro acolheram bem os espiritos d’aquelles,
que Deos tinha escolhido para si, e pelo bom gosto d’ellas procuraram
indagar-lhes a origem, maravilha, que não pode ser descripta como merece,
pois á força d’estas agoas venceo incomparavelmente a actividade do
azougue, chamando a si todos os pedaços de oiro espalhados por diversos
lugares, isto é, as almas inspiradas por Deos em _Tapuitapera_ e _Comã_
vinham á Maranhão onde tinha assentado seos alicerces a salvação d’este
paiz.

Quem poderia dizer o grande numero de pessoas, que nos vinham visitar
para aprender alguma coisa dos mysterios da nossa fé?

Na verdade ninguem, mas para contentar o leitor e dar-lhe alguma ideia
direi, que não havia um só dia, em que não recebesse novos visitadores
e as vezes chegavam a 100 e a 120: eis a razão porque não podia deixar
facilmente o Forte, e ir ás aldeias á meo cargo ministrar o pasto
espiritual.

Muitos d’estes selvagens de diversas idades se me apresentaram pedindo o
baptismo, o que eu difficultava, e somente concedia aos que julgava, por
algum acto extraordinario, enviados por Deos para tal fim.

A razão porque apresentavamos essas difficuldades ja o disse, por vir da
incertesa do soccorro, e do temor em que estavamos de baptisar todos os
que nos pediam, e depois deixal-os sem coadjutores, pelo que poderiam
cahir em peior estado do que se achavam anteriormente.

Não deixavamos comtudo de trazel-os esperançados, e aproveitavamos a
occasião de instruil-os no conhecimento e amor do Omnipotente até á vinda
dos novos padres, que os acharam promptos para satisfazer suas vontades.

Entre os que foram inspirados vivamente pelo Espirito Santo, e que
por isso baptisamos havia um indio de _Tapuitapera_, principal n’uma
aldeia antiga d’esta provincia, chamada _Marentin_, sempre grande amigo
dos francezes, de boa indole, modesto, de poucas fallas, olhos sempre
voltados para terra, tido outr’ora entre os seos por afamado barbeiro ou
feiticeiro, tendo n’elle muita fé os doentes.

Contou-me elle e depois muitos outros, que era christão, e quando exercia
a sua arte de barbeiro era visitado por muitos espiritos folgazões,
que brincavam diante d’elle, quando embrenhava-se nos mattos, tomando
diversas cores, sem lhes fazer mal algum antes até tornando-se seos
intimos: achavam-se porem na duvida si eram espiritos bons ou maos: tal
era a sua crença n’estes espiritos bons ou maos.

Conforme o costume tinha tres mulheres, antes de ser christão.

Aconteceo porem, que inexperadamente viesse com muitos selvagens, seos
similhantes, de _Tapuitapera_ para vêr não só a nós como tambem as
ceremonias, com que serviamos a _Tupan_.

Achando-se no _Forte de S. Luiz_, vio na manhã do dia seguinte (que era
domingo) os francezes vestidos com suas boas roupas, acompanhando seos
chefes em caminho para a nossa casa de S. Francisco afim de ouvirem
missa. Após estes iam os selvagens, o que o animou a seguir o prestito,
especialmente pelo desejo e intenção, que tinham, ha muitos annos de
aproximar-se de nós.

A Capella de Sam Francisco encheo-se logo de francezes, de selvagens
christãos, e não christãos, que tinham todos especial devoção de receber
em si algumas gottas de agoa benta.

_Marentin_, observando a pressa de todos, alcançou como poude o canto de
uma porta, trepou-se n’um banco, que ahi achou para ver á sua vontade
tudo quanto eu fazia.

Apenas pisei nos degraos do altar, voltei-me afim de saudar a todos, e
descobrindo este selvagem acudio ao meu espirito a esperança de salval-o.

Contou depois, como prestou attenção a todas as ceremonias, que fiz
na celebração do alto e profundo mysterio da Missa, e desejou saber
porque me revesti de alva branca, liguei a cintura, deitei o manipulo
no braço, e a estolla no pescoço: aproximei-me á direita do altar,
onde me apresentaram um vaso com agoa e sal, sobre o qual pronunciei
algumas palavras fazendo muitos signaes da Cruz; levantaram-se os
francezes, me respondiam cantando, e tendo eu um ramo de palma na mão o
mergulhei n’agoa deitando algumas gottas no altar, depois sobre mim, e
levantando-me fui aspergir os francezes começando pelos chefes e acabando
pelos que estavam na porta da Igreja, chegando tambem para esse fim
os selvagens não christãos, na convicção de que lhes serviria contra
_Jeropary_, desceo elle mesmo do banco, rompeo a multidão para receber
tambem algumas gottas d’agoa benta, o que conseguio.

Não gosou logo esta gotta de celeste orvalho, porque as cantharidas
peçonhentas e venenosas cahiram sobre as flores de sua alma
entre-abertas, porem as abelhas industriosas de inspirações divinas
vieram reunir ahi o doce mel da raça christã, porque regressando ao seo
lugar agachou-se atraz dos outros, dormio, e durante o seo somno vio o
Ceo aberto, e para elle irem subindo muitas pessoas vestidas de branco, e
atraz d’ellas muitos _Tupinambás_ a medida, que eram por nós baptisados.

Disseram-lhe na visita que as pessoas vestidas de branco eram _Caraybas_,
isto é, francezes ou christãos,[94] conhecedores de Deos e do baptismo
desde a mais remota antiguidade, e que os selvagens, que os acompanham,
eram lavados por nós, e acreditam em Deos, em nossas palavras e de nossas
mãos recebiam o baptismo.

Despertando, não disse palavra, porem ficou muito pensativo e
melancolico, e assim embarcou, e foi para a sua terra.

Chegando a sua casa todos o desconheceram, e lhe perguntaram o que
sentia, e si havia recebido alguma desfeita dos francezes em _Yviret_.

Sem dar resposta alguma de dia para dia mais se entristecia, fugia da
companhia de seos similhantes passeando só em suas roças e bosques,
onde foi accommettido por estes espiritos loucos, cahindo depois tão
gravemente doente a ponto de chegar ás portas da morte, sempre afflicto
pela visão, que vira em _Yviret_, e pelos espiritos de que já fallei.

Finalmente ouvio uma voz interior dizendo-lhe que se quizesse livrar-se
de tál afflicção e molestia, e ir com Deos para o Ceo convinha, antes de
morrer, lavar-se com essa agoa, que cahio n’elle quando esteve na casa de
_Tupan_ em _Yviret_.

Obedecendo a esta voz, em madrugada alta, mandou um seo irmão ter
comnosco, e pedir-nos por intermedio do chefe dos francezes, cuja
intervenção invocou, um pouco d’agoa de _Tupan_, n’uma porção de algodão,
guardada n’um _caramémo_,[95] afim de não se perder uma só gotta para
lavar sua cabeça, e ir assim lavado para o Ceo.

Cumprio a ordem o enviado, dando seo recado ao Sr. de Pezieux, bom
catholico, que se admirou, bem como o Sr. de Ravardiere e outros.

O Sr. de Pezieux mandou-me este homem, com um interprete, para me dizer o
fim de sua vinda que muito me maravilhou vendo n’um selvagem tão grande
fé, misturada com temor, respeito e humildade.

Quiz ir logo ter com elle, porem não pude, porque, como ja disse, de
todas as partes vinham diariamente muitos selvagens procurar-me, e nem
foi possivel mandar-lhe o Rvd. padre Arsenio porque estava occupado
em outro logar, e por isso mandei-lhe um francez proprio e capaz para
fazer-lhe companhia, cuidar na sua salvação e baptisal-o, sem ceremonia,
no caso de receio de morte.

Chegando á sua casa o francez com o irmão de Marentin, disse-lhe que eu
não podia deixar a ilha, e nem o Forte de Sam Luiz por causa dos muitos
selvagens, que me vinham procurar, mas que elle vinha em meo logar afim
de o baptisar, antes de morrer, no caso d’estar tão doente á ponto de não
poder ir á ilha para ser baptisado por nossas mãos.

Ouvindo isto recobrou forças e actividade, e disse, «visto que a coisa
é assim, não quero ser baptisado por um _Caraiba_, e sim pelas mãos dos
padres,» e nem deixou de levantar-se (embora doente e fraco a ponto
de não poder estar em pé senão com muito custo) na manhã seguinte, de
embarcar-se e vir procurar-me no _Forte_, expondo-me o seo grande desejo
de ser filho de Deos e baptisado, e de apagar as visões, que tinha na
cabeça.

Respondi-lhe que era necessario aprender a doutrina christan o mais cedo
que podesse, deixando muitas mulheres, e contentando-se apenas com uma.

Eram estas as duas coisas, que, entre outras, exigiamos dos adultos.

Replicou-me, que em quanto a pluralidade de mulheres foi coisa, que nunca
approvou, e que achava de razão um homem ter uma mulher só, mas que em
beneficio de sua casa necessitava de muitas.

Disse-lhe que podia ter muitas mulheres como servas, e não como esposas.

Concordou n’isto facilmente, e cheio de bons desejos em poucos dias
aprendeo a doutrina christan e pedio-me, que eu o instruisse, antes de
ser baptisado, das ceremonias que com tanta attenção vio no primeiro dia,
em que foi tocado pelo espirito de Deos.

Disse-lhe que Tupan era um grande Senhor, sempre comnosco embora não
seja visto, devendo ser servido com profunda reverencia, com ornatos e
vestidos diversos do ordinario.

Expliquei-lhe que o primeiro vestido branco, que me vio tomar,
significava tres coisas: 1.º a innocencia e puresa, com que deviamos
apparecer diante d’elle; 2.ª o vestido de sua humanidade, proveniente do
sangue de uma virgem, de quem fallava com os homens: 3.ª para representar
o vestido de zombaria, que lhe deram seos inimigos quando quiz por nós
soffrer, ameaçando-lhe de o fazer padecer o que quizessem, embora tivesse
elle o poder de impedil-os em suas intenções.

Disse-lhe, que a corda com que apertei a cintura, e essas tiras de
seda, que puz no braço e no pescoço representavam os ornamentos, que
deviamos dar á nossa alma para ser agradavel a Deos: a corda quer
dizer—continencia de mulheres, a tira do braço—o bem, que devemos
fazer ao proximo, e a do pescoço, onde é costume trazer-se collares e
aderesses,—o amor e a perseverança na nossa profissão, que tudo isto
junto faz lembrar as cordas com que foi preso o Salvador.

O outro vestido de seda, que puz por cima de tudo isto, mostra o zelo ou
a salvação das almas, que devemos procurar, não nos contentando só de
ir para o Ceo, mas fazendo tudo quanto pudermos para que nos acompanhem
nossos similhantes.

Significa tambem o segundo vestido a vestimenta de zombaria, que foi dado
a Nosso Senhor em sua Paixão.

A respeito da agoa e do sal, sobre que pronunciei algumas palavras,
expliquei-lhe que eu o fiz para dar a agoa o poder, da parte de Deos,
de expellir o diabo do lugar e das pessoas, em que estivesse, e que a
aspersão, que eu fazia com a palma sobre os francezes era para expellir
o diabo, que andava ao redor d’elles, e que o canto, que elles entoavam
em quanto eu lhes lançava agoa benta, era uma supplica a Deos para
purifical-os de seos peccados.

Perfeitamente instruido de todas estas coisas, concordamos baptisal-o no
dia da festa da Santissima Trindade.

Para seo padrinho escolheo o Sr. de Pezieux, e no dia aprazado
vestiram-no com uma roupa de algodão bem alvo em respeitosa homenagem
ao Sacramento, que ia receber, isto é, a innocencia e candura baptismal
conferida sob a invocação das tres pessoas da Santissima Trindade.

Grande numero de selvagens, principalmente de _Tapuitapera_, assistiram
a este baptismo, o que lhes fez grande impressão no espirito, vendo
este homem, seo similhante, respeitado por elles tanto por suas antigas
feitiçarias, como por sua autoridade e idade, receber, como si fosse
menino, sobre sua cabeça a agoa de Jesus Christo.

Querendo aproveitar tão boa occasião pedi aos francezes que abrissem
caminho para que de mim se aproximassem os primeiros e os principaes
selvagens, que ahi se achassem, aos quaes dirigi a palavra por meio do
interprete.

«Todos os dias, meos amigos, vedes em vossa terra os passaros seguirem
uns aos outros, de forma que quando uns levantam o vôo, todos os outros
os acompanham.

«Sabeis tambem que os javalys caminham em grande companhia, sem que um só
delles se desvie dos passos dos primeiros.

«Por experiencia conheceis que os _Paratins_, isto é, os peixes
chamados—sargos—no mar andam sempre em grandes bandos seguindo seos
conductores, de tal fórma que vindo os primeiros ao encontro de vossas
canôas, quando ides pescar, imitam-nos os outros cahindo dentro dellas e
assim apanhaes vós grande quantidade d’esses peixes.

«O que é isto? O exemplo dos similhantes. A naturesa implantou em
tódas as creaturas vivas e intelligentes o desejo d’imitação de coisas
similhantes, conforme as differentes especies.

«Observae agora este homem vosso similhante e principal, que si fez filho
de Deos.

«Bem sei que trazei-nos vossos filhos, porem pensam alguns de vós que não
são capazes, por velhos, de receberem o baptismo: é um engano, porque,
como vossos filhos, podeis ser baptisados, e ir para o Ceo. Vêde diante
de nós este homem que vou baptisar, que me prometteo de ensinar os que o
quizessem ouvir. Abri os ouvidos para ouvil-o.»

Dito isto, mandei ajoelhar-se nos degraus do altar, e recitar em vóz alta
e clara na sua lingua, e de mãos postas a doutrina christã, que para
diante será encontrada em lugar proprio.

Comecei depois as ceremonias do baptismo, observadas com muita attenção
por todos os selvagens, recebendo o nome de Martim Francisco, lembrado
por seo padrinho por tal ou qual semelhança com o seo antigo nome de
_Marentin_, fazendo assim geralmente conhecido pelos selvagens tal
conversão.

Acabado isto, mandei-o sentar junto de seo Padrinho, e comecei a
celebração da missa, que ouvio com toda a devoção, de mãos postas, e na
occasião de levantar-se a Hostia ajoelhou-se, como os outros, recitou a
oração dominical e o credo em quanto vio os francezes tambem de joelhos.

Passados alguns dias quiz regressar á sua aldeia, tendo alcançado a
saude do corpo e da alma, e despedindo de nossos chefes e de mim, nós o
mimoseamos com rosarios, imagens, _Agnus Dei_ e bentinhos.

Recommendamos muito, que depois de orar a Deos, resasse tambem para a
Virgem Maria, Mãe de Jesus Christo, recitando em sua lingua _Ave Maria_
tantas vezes quantas fossem as contas do seo rosario, e a oração
dominical tantas quantas fossem as contas grandes.

Tomou tal devoção com a Santissima Mãe de Deos que trazia sempre ao
pescoço o seo rosario, que beijava muitas vezes, e quando queria orar a
Deos elle o tirava e fazia o que lhe ensinamos.

Antes de partir disse-me que só tinha um filho, que me traria no seo
regresso para eu vel-o, e quando estivesse instruido na doutrina christã,
eu o baptisaria e elle o daria aos Padres para ficar sempre com elles.

Prometteo igualmente escolher uma das suas tres mulheres, com certesa a
mãe do seo filho, si ella quizesse ser christã como elle, conservando as
outras como servas.

Bem compromettido com estas promessas, embarcou para _Tapuitapera_ em
procura de sua aldeia e de sua casa.



CAPITULO IV

Do que fez este christão em beneficio da instrucção e conversão dos seos
similhantes.


Nada ha mais bravio e mais difficil para domesticar-se do que a
phanthéra, ainda mais por ser de naturesa furiosa para com os animaes das
florestas, que ella ataca e despedaça no primeiro encontro.

Ao contrario, quando se sente grávida, torna-se mais favoravel, exhala
bom cheiro pelos poros do seo corpo, e muda sua voz de cruel para branda,
como que convidando os outros animaes a seguil-a, o que fazem.

A nação dos _Tupinambás_ era uma verdadeira panthéra, cruel como nenhuma,
segundo mostra o seo procedimento devorando seos inimigos. Apenas
appareceo a graça sobre estas terras, mudaram em doçura sua crueldade;
seos discursos desesperados em salutares; seos cheiros putridos,
provenientes de seus fumeiros em outros agradaveis, approximando-se aos
de Jesus Christo, transbordando de amor para com o proximo, desejando-lhe
fazer o mesmo que elles receberam, inspirados pela concepção espiritual
das graças de Deos no fundo de sua alma, como se lê nos _Canticos_ I.
_Oleum effusum nomen tuum, idéo adolescentulæ dilexerunt te nimis_: e
pouco depois, _Trahe me post te, curremus in odorem unguentorum tuorum_:
«teo nome, ó Salvador do Mundo, e o teo conhecimento é um balsamo
derramado, por cuja influencia e cheiro sentem-se as novas almas cheias
de teo amor, e todas se dedicam a adquerir-te.»

Martinho Francisco entre os outros selvagens executou esta doutrina,
porque apenas chegou a aldeia principiou a fallar a seos visinhos, e
d’ahi caminhando para outras aldeias da provincia de _Tapuitapéra_,
sempre das grandezas de Deos e das graças que elle recebeo. Apresentava
sempre aos olhos dos selvagens a desgraça dos seos antepassados, que
tinham fallecido nas crenças de _Jeropary_, e a felicidade, que gozavam
os que se baptisavam e se faziam filhos de Deos.

Taes conversas produziram effeito, muitos procuraram a fonte de salvação
para n’ella beber, e sugar o leite do peito de Jesus-Christo, como elle o
fez e se conta do Unicorne, que procurando as agoas, distantes do veneno,
por acaso foi tocado até o coração pela suavidade do canto de uma joven
donzella[96] deitada sob os ramos floridos das arvores da floresta, o que
livrou este animal de sua furia natural e o aproximou do peito d’aquella
que o commoveo.

O Unicorne, grato e não avaro do bem recebido, desejoso de que seos
similhantes tambem o partilhem, vae procural-os no centro dos bosques,
e por todas as sortes e gestos convidam-nos a seguil-o afim de tomarem
parte na sua felicidade.

A joven donzella representa a esposa de Jesus Christo, a santa igreja,
seo canto harmonioso a prédica do Evangelho, seo peito, onde são
acolhidos os proprios animaes irracionaes, a misericordia divina com
todo o seo poder, as agoas sem veneno, os sagrados sacramentos, o
feroz Unicorne, os infieis, e Martinho Francisco, por seos discursos e
exemplos, foi a primeira acquisição, seguida de muitas outras.

Não se tinham passados seis mezes, e ja se experimentavam grandes
effeitos, porque tendo elle convertido e instruido muitos habitantes
de _Tapuitapéra_ de todas as idades, mandou-nos os mais instruidos e
intelligentes ao Forte de Sam Luiz para serem baptisados, o que fez,
depois de os reter comigo por algum tempo para experimental-os em seos
desejos.

Augmentando-se diariamente o numero dos catecumenos em _Tapuitapéra_ foi
necessario ahi ir o Rvd. padre Arsenio para baptisar muitos d’elles,
dignos d’essa graça tanto pelo seo desejo, como pela sua instrucção
christã.

Tinha Martinho edificado uma Capella, e junto d’ella uma casa, no meio de
sua aldeia, com o auxilio dos outros christãos e selvagens ahi residentes.

Benzeo o padre a Capella, e tomou conta da casa, onde foi vesitado e
sustentado em quanto ahi esteve, por christãos e selvagens.

Depois que baptisou os que para isso julgou aptos, foi vêr algumas
aldeias da provincia, e o seo principal soberano, e por toda a parte
foi muito bem acolhido, manifestando todos em geral o desejo de serem
christãos, e de terem padres em suas aldeias.

Alcançou o bom homem Martinho Francisco nome honroso, dado pelos
habitantes de _Tapuitapéra_ em recompensa de seos trabalhos e fadigas
para fazel-os christãos por ter sido entre elles o primeiro christão, e
por saberem quanto nós o estimavamos.

Chamaram-no _Pai-miry_, «Padre pequeno ou o vigario dos Padres,» e na
verdade bem merecia tal nome, porque desde que se fez christão nunca mais
se descobrio n’elle vestigios do antigo homem, ou os máos costumes dos
selvagens. Era grave, modesto, pouco fallador e raras vezes ria-se, e
nada fazia que parecesse ser contrario ao christianismo.

Era este o regimen de vida que observava, e como mais velho fazia
observar aos outros christãos:

1.º Pela manhã e á tarde reuniam-se todos na Capella: levantava-se um
d’elles, ajoelhavam-se outros, e depois dizia um em seo idioma «_em
nome do Pai, do Filho, e do Espirito Santo_» e fazia o signal da Cruz,
na testa, na bocca e nos peitos, no que era pelos outros imitado:
punha depois as mãos, fixava a vista no altar, e recitava pausada
e distinctamente a oração dominical, o symbolo dos Apostolos, os
mandamentos de Deos e da Igreja, o que findo, si tinha alguma advertencia
a fazer aproveitava a occasião, sinão, recolhia-se cada um á sua casa.

2.º Viviam em commum quando se achavam juntos, e para isso traziam o
resultado de suas pescarias e caçadas para serem igualmente dividido
entre elles, e antes de comerem, o mais velho recitava em sua linguagem
o _Benedicite_, fazendo o signal da Cruz sobre si, e sobre as iguarias:
tiravam todos o chapeo, faziam em si o mesmo signal e ninguem tocava na
comida antes de abençoada.

Em quanto comiam não contavam coisas más ou que excitasse o riso, como
fazem os Tupinambás; porem o mais velho dizia alguma coisa á respeito de
Deos e da Religião.

3.º Nunca iam aos _cauins_ e reuniões, conforme costumavam os
_Tupinambás_: era um dos pontos principaes, que Martinho Francisco
gravava no coração dos convertidos, isto é, que os _cauins_ eram
inventados por _Jeropary_ para semeiar a discordia entre elles, e fazer
com que praticassem toda a especie de males os que os frequentassem,
sendo impossivel amar a Deos quem gostasse de _cauins_, porque, dizia
elle, quando descubro, que alguns dos meos similhantes se retiram das
_cauinagens_, agouro que bem depressa serão christãos e vou procural-os;
mas não tenho animo para fazer o mesmo aos que frequentam taes orgias.

O que elle dizia era verdade por ser horrivel espectaculo vêr essas
gentes em reuniões, parecendo antes congresso nocturno de feiticeiros do
que ajuntamento de homens.

Achei-me apenas uma só vez n’estas reuniões para d’ellas poder fallar, e
nunca mais lá tornei.

Via aqui uns deitados em suas redes vomitando com muita força, outro
caminhando ou marchando em diversos sentidos com o juiso perdido pelo
vinho, ali outros gritando, fazendo mil tregeitos, estes dançando ao
som do _maracá_, aquelles bebendo com muito boa vontade, aquell’outros
fumando para mais se embriagarem, e o que ainda é peior, é estarem
mulheres e moças ahi misturadas parecendo bem difficil a presença de
Bacho sem Venus.

Por minha vontade os francezes deviam fazer o que fizeram os portuguezes,
isto é, prohibir todas estas _cauinagens_: os portuguezes, depois
que habitaram algum tempo na India, reconheceram, que um dos maiores
embaraços para a propagação do christianismo eram essas reuniões
diabolicas, de que procedem todas as discordias e desgraças entre os
selvagens.

4.º Vestem-se estes novos christãos o melhor que podem, caminham todos
juntos, não trazem flechas e nem arcos, excepto quando vão á caça ou a
pesca, contentando-se em trazer um cacete de uma especie de ebano, negro
ou vermelho, com que se distinguem facilmente dos outros.

Quando vão a outras aldeias, si encontram algum christão, recolhem-se á
casa d’elle, contentam-se com o que tem e vivem sóbriamente como tanto
convem a um christão.



CAPITULO V

De um Indio, condemnado á morte, que pedio o baptismo antes de morrer.


Não se acreditaria, si a experiencia não o tivesse confirmado, que
vendo-se simplesmente por fora a concha de uma ostra marinha coberta e
suja de lama e lodo, que ella em si ja tivesse uma perola preciosa digna
de ser collocada no gabinete dos principes.

Quem poderá crer, que um selvagem iniquo, impuro, e immundo, como não
posso dizer, embora creia que o proprio diabo, author de taes traças, se
envergonhe d’isto, não tenha inimisade e soberba contra o soberano, que o
tira d’isto?

Quem poderá, digo eu, crer, que tal individuo, por determinação da divina
Providencia, fosse escolhido para o reino do Ceo, e tirado d’esses
abysmos infernaes, para receber (na hora da morte, bem merecidas por
suas torpezas) o sagrado baptismo, que o lava de todas as máculas, e lhe
proporciona facil e franca entrada no Paraiso?

Um pobre indio, bruto, mais cavallo do que homem, fugio para o matto por
ouvir dizer, que os francezes o procuravam e aos seos similhantes para
matal-os e purificar a terra de suas maldades por meio da santidade do
Evangelho, da candura, da puresa, e da claresa da Religião Catholica
Apostolica Romana.

Apenas foi apanhado amarraram-no, e trouxeram-no com segurança ao Forte
de Sam Luiz, onde deitaram-lhe ferros aos pés: vigiaram-no bem até
que chegassem os principaes de outras aldeias para assistirem ao seo
processo, e proferirem sua sentença, como fizeram a final.

Não esperou o prisioneiro pelo principio do processo, e elle mesmo
sentenciou-se, porque diante de todos disse, «vou morrer, e bem o mereço,
porem desejo que igual fim tenham os meos cumplices.»

Terminado o processo e proferida a sentença, cuidou-se em sua alma
dizendo-se-lhe, que si elle recebesse o baptismo, apesar de sua má vida
passada, iria direito para o Ceo apenas sua alma se desprendesse do corpo.

Acreditou nossas palavras, e pedio o baptismo: para tal fim veio o Sr.
de Pezieux procurar-me em nossa casa de S. Francisco em Maranhão, e
conversando si devia ser eu quem o baptisasse, resolvemos negativamente
pelas seguintes razões:

Pensavam os selvagens que nós outros padres eram pessoas misericordiosas
e compassivas, que expontaneamente empregavamos nossos esforços perante
os grandes para alcançar a vida dos condemnados: que os grandes nos
estimavam, e nada nos negavam, e que, alem d’isto, nós prégavamos,
que Deos não queria a morte e sim a vida do peccador, e que por isso
tinhamos vindo aqui para dar essa vida de forma que, si eu o baptisasse
publicamente, antes d’elle morrer, teria satisfeito muitos caprichos
d’estes espiritos debeis e incapazes a respeito da opinião, que formavam
de nós e que seria muito prejudicial a nossas intenções dando alem d’isso
causa a varias murmurações dos selvagens, que diziam—«si os padres
gostam da vida, porque deixam este christão ir morrer? Si amam tanto os
christãos porque não amam este? Si os grandes nada lhes negam, porque não
pedem a vida d’este?»

Por tudo isto, e por outras razões, que omitto, decidimos ser conveniente
e necessario, que eu não o baptisasse. Roguei pois ao dito senhor que,
depois de instruil-o pelos interpretes, o baptisasse antes de ir ao
supplicio, sem as ceremonias da igreja o que se prestou e cumprio.

Recebeo, com tranquilidade e sem tristeza, na presença dos principaes
selvagens o baptismo, depois do que um dos Principaes, chamado
_Karuatapiran_ «Cardo vermelho,» de quem ainda fallarei, lhe disse estas
palavras:

«Tens agora occasião de estares consolado e de não te affligires, pois
presentemente és filho de Deos pelo baptismo, que recebeste da mão de
_Tatu-uaçu_ (nome do Sr. de Pezieux em sua lingua) com permissão dos
Padres. Morres por teos crimes, approvamos tua morte, e eu mesmo quero
pôr o fogo na peça para que saibam e vejam os francezes, que detestamos
tuas maldades; mas repara na bondade de Deos e dos Padres para comtigo,
expellindo Jeropary para longe de ti por meio do baptismo de maneira que
apenas tua alma sahir do corpo vae direita para o Ceo vêr _Tupan_ e viver
com os _Caraibas_, que o cercam: quando _Tupan_ mandar alguem tomar teo
corpo, si quizeres ter no Ceo os cabellos compridos e o corpo de mulher
antes do que o de um homem, pede a _Tupan_, que te dê o corpo de mulher e
resuscitarás mulher, e lá no Ceo ficarás ao lado das mulheres e não dos
homens.»

Desculpareis este pobre selvagem, não christão e nem cathecumeno,
fallando da Resurreição. Elle nos ouvio ensinar que n’um dia
resuscitariam todos os homens, regressando cada alma do lugar em
que estava para occupar o seo corpo, acrescentando o que pensou ser
indifferente á Resurreição, isto é, que uma alma recebe um corpo de homem
ou de mulher, no que se enganou não se deixando em pé tal ideia falsa,
pois elle e o paciente foram instruidos da verdade: julguei acertado
referir aqui simplesmente o que se passou para que o leitor reconheça
sempre quanto sou fiel em minhas descripções, como ja disse, e provarei
sempre nos discursos, que ainda hei de transcrever.

Este infeliz condemnado recebeo as consolações de muito boa vontade, e
antes de caminhar para o supplicio disse aos que o acompanhavam: «vou
morrer, não mais os verei, não tenho mais medo de _Jeropary_ pois sou
filho de Deos, não tenho que prover-me de fogo, de farinha, de agoa, e
nem de ferramenta alguma para viajar alem das montanhas, onde cuidaes que
estão dançando vossos paes. Dae-me porem um pouco de _Petum_ para que eu
morra alegremente, com voz e sem medo.»

Deram-lhe o que elle pedio, á similhança dos que vão ser justiçados, aos
quaes tambem se dá pão e vinho, costume não d’agora, e sim desde a mais
remota antiguidade, pois então se offerecia aos criminosos vinho com
myrrha e opio para provocar o somno dos pacientes.

Feito isto, levaram-no para junto da peça montada na muralha do Forte
de S. Luiz, junto ao mar, amarraram-no pela cintura á bocca da peça,
e o _Cardo vermelho_ lançou fogo á escorva, em presença de todos os
Principaes, dos selvagens e dos francezes, e immediatamente a bala
dividio o corpo em duas porções, cahindo uma ao pé da muralha, e outra no
mar, onde nunca mais foi encontrada.

Quanto a sua alma, é de crer que os anjos a levassem ao Ceo, pois morreo
logo depois de haver recebido as agoas do baptismo, certesa infallivel da
salvação d’aquelles, a quem Deos concedeo tal graça, não pequena e nem
commum, porem tão rara como o arrependimento do bom ladrão na Cruz, que
tendo vivido sempre desregradamente até chegar áquelle logar, recebeo
comtudo esta promessa de Jesus Christo—_Hodie mecum eris in Paradiso_,
«hoje estarás commigo no Paraiso»: outro tanto podemos dizer d’esse
infeliz e desgraçado indio, que nos deo tão bella occasião d’admirar e de
adorar os juizos de Deos.

_Karuatapiran_, o algoz, com gestos e palavras mostrava grande
contentamento e alegria perante os francezes por haver recebido tal
honra, que apreciava muito mais do que as que sua Nação cheia de abusos
dá aos que publicamente matam os prisioneiros, sendo essas consideradas
as maiores existentes entre elles, e um favor não pequeno aos mancebos,
quando escolhidos para tal fim, pois é uma especie de accesso de grandeza
para ser um dia Principal.

Por tudo isto o grande _Karuatapiran_ exaltava-se d’este seo feito e
d’elle se servia para se fazer timido dizendo por todas as aldeias por
onde andava, o que tinha feito, asseverando ser irmão dos francezes, seo
defensor e exterminador dos maus e dos rebeldes.



CAPITULO VI

Formulario dos discursos, que faziamos aos selvagens, quando nos vinham
vêr, para chamal-os ao conhecimento de Deos e á obediencia de nosso Rei.


O meio pelo qual outr’ora os Athenienses chamavam os povos ao
conhecimento da Philosophia, e á obediencia de uma Republica, era
representado pelo simulacro do seo _Palladium_, que fingiam ser trazido
do Ceo, e por elles collocado no lugar mais alto de sua cidade.

Tal era o idolo de Pallas, armado dos pés até a cabeça, correndo de
sua bocca raios de mel, que cahiam sobre seos ouvintes e expectadores,
produzindo-lhes doce somno.

Ensinaram os Druidas a mesma coisa aos Gaulezes levantando a estatua de
Hercules no frontespicio de seos Templos, tendo na sua cabeça a cabeça de
um leão, e nas espaduas a clava de suas victorias, sahindo de sua bocca
uma especie de hera, porem de oiro, que prendia pelas orelhas homens e
mulheres, moços e velhos afim de attrahil-os a si.

Com isto queriam os Athenienses e os Gaulezes dizer, que os homens são
attrahidos pela doçura e pela razão á obediencia das leis divinas e
humanas, na qual se conservam por meio das armas, sustentadas pelos
soberanos para a conservação dos seos vassallos.

O primeiro d’estes dois fins nos pertencia desde que Sua Magestade e os
nossos Padres nos remetteram para cá á fim de chamarmos ao conhecimento
de Deos estas pobres almas selvagens, que, antes de começarmos a
cathequisal-as, reconhecemol-as anciosas por doçura, e por isso
combinamos pautar por ella nossas palavras e acções, com que sempre nos
démos muito bem.

Já tinha lido no cantico primeiro, que entre os ornamentos dados
por Jesus Christo á sua Igreja, a mansidão e a clemencia para com
os peccadores e infieis era um dos primeiros deveres conforme estas
palavras: _Murenulas aureas faciemus tibi vermiculatus argento_ «nós te
faremos collares de oiro, torcidos como pequenas lampreias, esmaltadas de
fios de prata em forma de vermesinho para mais fazer realçar a bellesa do
oiro.»

Dizem os Septenta—_Simulachra auri faciemus tibi, cum vermiculacionibus
argenti_; «nós te faremos pequenas estatuas de oiro fino, esmaltadas de
fio de prata do feitio de vermesinhos.»

Accrescenta Rabbi Jonathas que taes eram as taboas de Saphira, em que
estavam gravados os mandamentos da lei de Deos porque a luz da gloria do
Doador dava á saphyra diaphana a côr de oiro, e a escripta gravada em
linha pelo dedo de Deos formava o esmalte em pequenas lampreias ou vermes
da terra.

Quem não diria que ha intelligencia entre estas ceremonias divinas e as
dos Athenienses e Gaulezes, visto significar-nos umas e outras, por meio
de estatuas e cadeias de oiro, a força e o poder da doçura para subjugar
as almas mais barbaras á obediencia das leis de Deos.

Não é sem rasão, que Jesus Christo ornou os collares de oiro de sua
esposa com figuras de vermes da terra, e de pequenas lampreias, visto que
elle mesmo se fez verme para chamar a si os vermes, e misturou-se com a
terra para se juntar com os vermes, que ahi achasse.

Assim como as lampreias não repellem as serpentes por que podem causar
medo com o veneno, que estas vomitarem, assim tambem Jesus Christo não
despresa os homens, pobres serpentes, comtanto que estes se despojem do
seo veneno.

Si o Mestre fez isto, o que devem fazer os obscuros discipulos de Sua
Magestade?

Quem se offerece a servir a Deos na conversão dos selvagens deve modelar
suas palavras e acções pela doçura, de que sempre usou Jesus Christo na
terra.

Eram estes os artigos de nossas conferencias com os selvagens.

1. Procuravamos convencel-os, que eramos seos amigos, e amigos fieis,
mais que seos paes, mães, e outros parentes, dizendo-lhes estas e outras
palavras _pera-uçu_, _pare koroyco_ «somos vossos amigos, vossos intimos.»

Com taes expressões alegraram-se muito, e cheios de confiança vinham
conversar comnosco a ponto de tornarem-se importunos, não nos permittindo
descanço algum, e só nos olhando e observando até os nossos menores
gestos.

Vou dar-vos alguns exemplos.

Um dia de paschoa, depois do serviço, ao qual assistiram muitos
selvagens, tanto de _Tapuitapera_ como da _Ilha_, quiz recolher-me para
meditar no sermão, que devia prégar depois do jantar, e para isto mandei
fechar as portas de nossa casa para que ninguem entrasse durante esse
pouco tempo até a hora da prédica, porem os selvagens impacientes, para
entrarem, rodeiaram a casa duas ou tres vezes buscando uma abertura, e
afinal quebraram algumas estacas e por ahi passaram.

Mostrei-lhes má cara significando o meo descontentamento pelo que haviam
feito, e lhes perguntei porque eram tão importunos?

Responderam-me «porque tinhamos vontade de te vêr, e fallar comtigo
livremente, na ausencia dos francezes, e para esse fim viemos de
proposito». Á vista d’isto não tive outro remedio senão atural-os.

Quando eu orava sosinho na nossa Capella, com as portas fechadas, rompiam
o panno de Guiné, com que forramos a Igrejinha para vêr o que fazia eu
ajoelhado defronte do Altar, e diziam uns para os outros _ygneém Tupan_
«falla com Deos», e d’ahi não sahiam em quanto eu rezava.

Para livrar-me d’estas importunações mandei construir uma cerca ao redor
da nossa casa e Capella de S. Francisco, muito forte, e entremeiada com
ramos de palmeira espinhosa, assim conhecida por ter espinhos maiores do
que o comprimento de um dedo, e embora tudo isto achavam meios de entrar
e de me procurarem.

Ao escrever isto recorda-me o dito de Antalcide, escripto por Plutarcho
no tratado dos _Apophtegmas Laconicos_, «quem quizer ganhar a amisade dos
homens, deve ter na lingua um regato de mel, e nas mãos muitos fructos»
isto é—palavras doces e serviços conforme ás palavras.

Mais não podiamos fazer para com estes selvagens do que captarmos
sua amisade por palavras doceis, e fazer-lhes conhecer a Deos e os
sacramentos da Igreja, unicos fructos da Paixão de Jesus Christo.

Ælian, no livro 14 de suas _Historias diversas_, disse, que «Epaminondas
se admiraria muito se sahisse do seo palacio para misturar-se com o povo,
e não adquirisse um novo amigo para juntal-o aos seos amigos.»

Não nos seria necessario ir a 200 e nem a 300 legoas afim de conquistar
novos amigos para Jesus Christo, porque viriam por si mesmos offerecer-se
para isso.

Gelius no livro 1º cap. 3º conta, que Pericles, um dos grandes do
Areopago de Athenas, terminava a amisade dos homens junto aos altares dos
Deoses, porem nunca fallou da amisade divina entre Deos e os homens,
estabelecida e enraisada sobre os altares, porque pagão, como era, não
podia comprehender a força e o vigor de tal amor, similhante ao do
proprio centro, onde cada creatura tem o destino de viver e descançar.

O poderoso rei Darius recebeu em presente de um seu amigo uma bella romã,
que partio ao meio, e admirando a bellesa e o numero dos seos grãosinhos
disse aos que com elle estavam—por minha vontade eu teria tantos Zopiros,
(nome do seo mais intimo amigo) quanto ha de grãos n’esta romã.

Não foi pequena graça, e nem pequeno privilegio, que Deos fez á Ordem
Seraphica de São Francisco dando-lhe a faca da palavra para abrir o pomo
ainda inteiro e fechado das terras de Maranhão afim de apresentar a Jesus
Christo milhões de almas, não só para com Elle se conciliarem, mas tambem
para um dia lhe serem fieis esposas.

Deos inspirou a Salomão, no liv. 4º dos Reis, cap. 29, fazer os capiteis
das columnas com arame, semeiado de romãs, indicando assim a missão do
Evangelho para com as nações infieis, servindo para agarrar os peixes
fugitivos por meio de uma eloquencia docil, e as romãs para ligal-os e
unil-os pelo amor de Jesus Christo ao resto dos fieis, não havendo nada
mais forte para obter o accordo que o proprio amor.

Eis a razão porque julguei ser absolutamente necessario fazer conhecer
a estes selvagens, que nós os amavamos terna e infinitamente, que lhes
offereciamos nossas pessoas e bens, dizendo-lhes _ore-mae pémareamo_
«tudo o que temos é vosso.»

Por isto quando tinhamos muitos peixes, o que acontecia ordinariamente,
lhes davamos todos, especialmente aos _Tabajares_, recem-chegados
á _Ilha_, ainda necessitados de tudo, por não terem feito roças,
especialmente os nossos visinhos.

2.º Nós lhes expunhamos os fructos e os emolumentos, que deviam esperar
de nossa amisade, isto é, reforma em sua vida, conhecimento do verdadeiro
Deos, defesa do nosso rei contra seos inimigos, o qual não deixaria de
enviar-lhes homens e armas conforme necessitassem. _Pe moé Koroiut,
pere Koramrecé: Tupan mombe-ouane koroiut peam: yande mogna gare, rhé,
opap katu, ahé maé mognan. Yangaturan: yandé renonde vuac ueriko: ahé
gneem rupi yané rekormé. Pepusurom peamo tareumbare soiy yauaeté oreru
vichaue: Pepusurum okat araia oboure uaia pepusurô anuam_; quer isto
dizer—«Nós vos ensinamos a viver mais para a vossa felicidade: queremos
ensinar-vos o verdadeiro Deos, creador do universo, infinitamente bom, e
que nos prometteo o Ceo si n’esta vida fizermos o que elle diz. Viemos
defender-vos de vossos inimigos. Nosso rei, que é forte e poderoso, vos
dará sempre soccorro de armas e de homens.»

Prestavam muita attenção ao que diziamos, e nos respondiam que os
francezes sempre os haviam auxiliado; que tinham vindo agora por ordem do
rei para tiral-os das cadeias de _Jeropary_, que não duvidavam aprender
grandes coisas á respeito de Deos, especialmente quando ja soubessemos
sua lingua, porque os interpretes, diziam elles, não fallam como vós
á Deos. Não nos podem dizer outra coisa, porem se fallasseis comnosco
vós nos dirieis o que Deos vos disser. Nossos filhos serão mais felizes
do que nós, porque comvosco aprenderão a lingua francesa, como nos
promettestes, e assim terão mais conhecimento de Deos do que nós, que ja
somos velhos.

Nós o que temos feito é correr e andar errantes pelos bosques adiante
dos _Peros_[97] tendo por alimento apenas raizes de arvores. Nossos
filhos estarão seguros contra seos inimigos, os francezes se unirão
á nossas filhas, e nossos filhos ás filhas dos francezes, e assim
seremos parentes: ficareis comnosco, em nossas aldeias, e sereis nossos
padres _Tupan_ os amará, e _Jeropary_ nada poderá contra elles. Haverá
abundancia de viveres e nunca se sentirá falta de mercadorias francezas.

Oh! quanto serão felizes! porem nós não veremos estas coisas.

O imperador Vespasiano e tambem Domiciano, quando entravam n’um paiz
novo para ahi estabelecer Colonias Romanas, tinham por costume mandar
fundir em bronze a Fé e os seos fructos, que publicamente promettiam a
todos, representando uma dama, que estendia a mão direita, symbolo da Fé,
trazendo na esquerda a cornucopia da abundancia, cheia de toda a especie
de fructos, e tinham este mesmo carimbo o dinheiro, que ahi faziam correr
assegurando por esta fórma a sua fidelidade para com estes povos, de que
resultaria muitos bens e commodidades á sua nação.

Tomae, se quizerdes, por esta dama a Santa Igreja entrando pela primeira
vez n’estas terras barbaras, estendendo sua mão direita para prometter
aos seos habitantes a fé de Jesus Christo, seo esposo, e a fidelidade de
seos sectarios, que não se poupam a trabalhos, e arriscam até a propria
vida para ajudal-a na salvação d’ellas.

Os fructos, que ella lhes offerecia, eram os sacramentos, o conhecimento
de Deos e das coisas divinas.

Tomae tambem, si quizerdes, por esta mesma Dama, a França plantando
pela primeira vez seos lyrios n’estas regiões e paizes do Brazil, dando
com a mão direita a segurança de defender e conservar estes selvagens
obedientes á sua corôa, e com a esquerda os fructos provenientes do
commercio entre ella e o Brazil.



CAPITULO VII

Formulario da doutrina christã, que aprendiam e recitavam de cór, antes
de serem baptisados.


No Levitico 1.º, e em outro lugar lemos, que antes da victima escolhida
ser levada ao altar devia aquelle, que a apresentava, pôr suas mãos na
cabeça entre os cornos.

Accrescentam outros, que esses cornos eram enfeitados de flores de junco
marinho, (cujos espinhos, e não flores, foram postos na cabeça de Jesus
Christo, offerecido em holocausto sobre a Cruz) e então os sacerdotes
agarravam a victima, e a lavavam n’um grande vaso de bronze chamado
_mar_. Representa isto os novos cathecumenos, desejosos de serem lavados
pelo baptismo, e offerecidos diante do altar do Redemptor.

A primeira coisa, que se exige d’estes cathecumenos, é que ponham as
mãos sobre a cabeça: as mãos são os hyerogliphos das obras, e a cabeça a
séde do espirito e do entendimento. A primeira coisa portanto necessaria
á estes noviços da fé christã é a operação do entendimento; quero com
esta expressão dizer, que elles saibam e entendam o que pretendem crêr
e prometter, e torcer os cornos da curiosidade e o proprio juizo dos
orgulhosos possuidores do Junco marinho, corôa dos deoses, por meio da
obediencia á Revelação divina. É o que pediamos aos adultos antes de
conferir-lhes o baptismo, e nenhum o conseguia sem primeiro conhecer bem
isto, por acto obrigatorio, a que deveriam tambem assistir os christãos,
ignorantes de sua fé e profissão.


DOUTRINA CHRISTÃ

_na lingua dos Tupinambás[98] e em francez, e, em primeiro lugar a oração
dominical_

  _Ore-ruuc vuac peté cuare,_
  Padre nosso, que estás no Ceo,
  _y moe-tepoire derere-toico_
  sanctificado seja teo nome,
  _to-ure de reigne_
  venha nós o teo reino,
  _teié-mognan deremimotare yboipé vaacpe iémognan eaue,_
  seja feita a tua vontade assim na terra como no Ceo.
  _oreremiu-areduare eimé iury oreue,_
  dae-nos hoje o pão quotidiano,
  _de-eiuru oré yangaypaue reçe,_
  perdôa nossas offensas,
  _ore recome-moçaré supè ore-ieuron eaue_
  como nós perdoamos aos que nos offendem
  _moar-ocar humé yepé tecomemo-pupé_
  não nos deixeis cahir em tentação
  _oré pessuron peyepé mae ayue suy._
  mas livrae-nos do mal. Amen Jesus.

SAUDAÇÃO ANGELICA.

  _Ave Maria gratia, resse tonussen väé,_
  Eu te saudo Maria, de graça cheia,
  _Deyron yandé yaré-reco_
  o Senhor é comtigo,
  _ymonbeu katu poïre aue edereico kugnan suy_
  benta és tú entre as mulheres.
  _ymonbeau katu poïre aue demeinboïre Jesus._
  bento é o fructo do teo ventre, Jesus.

ORAÇÃO A VIRGEM.

  _Santa Maria Tupan seu_
  Santa Maria mãe de Deos
  _hé Tupan mongueta ore yangaypaue vaë ressé_
  rogae a Deos por nós peccadores
  _cohu yran ore-requi ore-rumeué_
  agora, e na hora de nossa morte. Amen Jesus.

O SYMBOLO DOS APOSTOLOS.

  _Arobiar Tupan_
  Creio em Deos
  _tuue opap katu maeté tiruan_
  padre todo poderoso
  _mognangare vuac_
  creador do Ceo
  _mognangare ybuy_
  creador da terra
  _Jesus-Christo tayre oyepe vac_
  em Jesus Christo, seo filho unico
  _ahe Sainct Esprit, demognan pitan amo_
  que foi concebido do Espirito Santo
  _ahé poïre oart Sainct Marie, suy_
  e nasceo da Virgem Maria
  _Ponce Pilate muruuichaue amoseico sericomemo poïre amo_
  padeceo sob poder de Poncio Pilatos, presidente
  _yiuca poire amo yuira_
  morreo sobre o madeiro da Cruz
  _ioasaue ressé_
  morreo
  _ymoiar ypoire ytemim buire amo_
  foi amortalhado e enterrado no sepulchro
  _ouue ieuue euue apeterpé_
  desceo aos infernos
  _ahé sui turiare mossa poire ressé uue ombueue sui. Secobé yereie-buire_
  ao terceiro dia resurgio dos mortos
  _oié upire vuacpé_
  subio ao Ceo
  _Tupan tuue opap-katu maeté tiruan mognangare katu aue cotu seua_
  está assentado á direita de Deos, seo Pae Omnipotente
  _ahé sui turiné ycobé vãe omano vãe poire paué recomognan_
  de lá virá a julgar vivos e mortos.
  _Arobiar Saincte eglise catholique_
  Creio na Santa Igreja Catholica,
  _arobiar Saincte tecokatu demosaoc morupé_
  creio na communhão dos Santos
  _arobiar teco-engay paue ressé morupé Tupan deuron_
  creio na remissão dos peccados por Deos
  _arobiar asé-recobé iebure_
  creio na resurreição da carne
  _arobiar teiubé opauaaerem-eim-rerecoe nuame_
  creio na vida eterna. Amen Jesus.

OS DEZ MANDAMENTOS.

  _1.º Ymoeté yepé Tupan._
  I Honra um só Deos
  _2.º Aytè ereté netieume poire renoy teigné._
  II Não jurarás em vão o nome de teo Deos.
  _3.º Ymoeté dimanche are maratecuare eum aue._
  III Honra e sanctifica o domingo, dia de repouso.
  _4.º Ymoeté deruue desseu eaue._
  IV Honra teo pae e tua mãe.
  _5.º Eparapiti humé._
  V Tu não matarás.
  _6.º Eporopotare humé._
  VI Tu guardarás castidade.
  _7.º Emonmaron humé._
  VII Tu não furtarás.
  _8.º Teremoen humé aua ressé._
  VIII Tu não levantarás falso testemunho contra teo proximo.
  _9.º Yemonmotare humé aua remerico ressé._
  IX Tu não conhecerás a mulher de outrem.
  _10. Yemonmotare humé aua mae ressé._
  X Tu não cubiçarás coisas alheias.

RESUMO DOS MANDAMENTOS DE DEOS.

  _1.º Opap katu maeté tiruan sosay asé Tupan rausuué._
  Sobre todas as cousas amarás a Deos.
  _2.º Oie ausuue eaué asé uua pichare raussuue._
  Ama teo proximo como a ti mesmo.

OS MANDAMENTOS DA SANTA IGREJA.

  _1.º Arve maratecuare ehumé messe renduue._
  Ouve missa nos dias de festa.
  _2.º Sei hu iauion yemonbeu._
  Todos os annos ao menos uma vez confessa teos peccados.
  _3.º Tupan rare pacques iauion._
  Teo Deos pela paschoa commungarás.
  _4.º Iecuacuue iauion erecucuue._
  Tu guardarás jejuns pela quaresma e vigilias.
  _5.º Aiamion asé mae moiaoc._
  Pagarás os dizimos.

OS SETE SACRAMENTOS.

  _1.º Iemongaraiue._
  Baptismo.
  _2.º Asé seurap aua reu assu yendu karaiue non._
  Receberás na testa o santo oleo pela mão do Bispo.
  _3.º Asé-reon yanondé Tupan rare._
  Antes de morrer receberás o corpo de Deos.
  _5.º Oyekoacuue, oyemonbeu._
  Penitencia, confissão.
  _6.º Oyemo-auare._
  Ordem.
  _7.º Mendar._
  Casamento.



CAPITULO VIII

Qual a crença natural dos selvagens a respeito de Deos, dos espiritos e
da alma.


O Psalmista Rei David, no Psalmo 101, que é uma supplica por elle
composta para os pobres e infelizes, cheios de anciedade e oppressão,
particularmente os infieis, diz—_Placuerunt servis tuis lapides ejus, et
terra ejus miserebuntur._ «As pedras de Syão agradarão a teos servos; e
por esta causa serão misericordiosas para com a terra.»

S. Jeronymo transforma estas palavras d’esta forma—_Quia placitos
fecerunt servi tui lapides ejus, et pulverem ejus miserabilem_. «Teos
servos fizeram suas pedras agradaveis á tua Magestade, até chegar ao pó
sem consideração.»

Apliquemos estas palavras ao nosso objecto, pondo de parte todos os
outros mysterios, e digamos que _Placuerunt servis tuis lapides ejus_.

Em nossa primeira missão achamos estes pobres selvagens e barbaros como
pedras proprias para construir e edificar a Santa Igreja em paizes
desertos, e com o nosso ministerio demos a misericordia divina á algum
punhado de terra e areia.

Baptisamos muitos meninos, moribundos e adultos, que são na verdade tres
grãos de areia, á similhança da extenção e profundidade das areias do
mar, isto é, em comparação da quantidade e multidão das nações immensas
pelo seo numero, na visinhança do Maranhão.

Digamos depois, com São Jeronymo, _quia placitos fecerunt servi tui
lapides ejus, et pulverem ejus miserabilem_, que temos feito vêr a toda
a Christandade, e aos seos monarchas, espirituaes ou temporaes, em
desencargo de nossa consciencia, que á Deos agrada o despertar estes
barbaros do profundo somno de uma crença má, ou si quizerdes, que á Deos
agrada fazer arder e queimar a pequena faisca do fogo da luz natural, que
sob as causas de mil superstições é sempre guardada entre estas nações
desde o naufragio universal do diluvio.

Esta faisca, occulta sob as cinsas, entre estes selvagens, é a crença
natural, que sempre tiveram de Deos, dos espiritos e da immortalidade da
alma.

Quanto á crença de Deos, é impossivel, naturalmente fallando, que
haja no Mundo uma Nação tão rude, estupida e brutal que não reconheça
universalmente uma Magestade Soberana, porque, como diz Lactancio
Firmiano, em suas Instituições divinas, livro 1.º, cap. 2.º—_Nemo est
enim tam rudis, tam feris moribus, qui non oculos suos in cœlis tollens
etc_. Não ha homem tão rude, nem tão brutal, que levantando os olhos
para o Ceo, ainda que não possa comprehender que haja Deos, qual seja a
sua providencia, embora não conheça da grandesa e extenção dos Ceos, do
perpetuo movimento d’elles, da disposição, firmesa, utilidade e bellesa
d’estas abobadas azuladas, que não reconheça haver um Soberano que tudo
isto dirige e com harmonia.

Boecio, livr. 4º, da _Consolação dos sabios_. Prosa 6.ª _Omnium generatio
rerum_ etc. «que a geração continua dos mistos, a diversidade, e
ordem das formas, que vestem a materia primitiva, convence natural e
necessariamente, que ha um primeiro director no movimento uniforme de
tantas coisas de formas contrarias no sentido de aperfeiçoar este mundo
universal.»

Seneca, na Epistola 92 á seo amigo Lucilio—_Quis dubitare potest mi
Lucilli, quin Deorum immortalium munus sit quod vivimus?_ «Quem é meu
amigo Lucilio, que duvida não ser sua vida um dom e beneficio dos Deoses
immortaes?»

Aristoteles, Livro II _dos animaes_, depois que contou muito bem a
perfeição d’elles concluio _debemus inspicere formas et delectari in
Artifice qui fecit eas_: «devemos contemplar as formas das creaturas, não
para olhal-as só e simplesmente, e sim para d’ellas passar ao que as fez
afim de nos regosijarmos.»

É facto averiguado sempre terem tido estes selvagens conhecimento de
Deos, porem não da Essencia, Unidade, e Trindade, materia inteiramente
dependente de fé, embora Deos tenha deixado na naturesa alguns vestigios,
pelos quaes possam os homens formar algumas conjecturas.

Aristoteles, livro 4º, do _Ceo e da terra_, depois de ter pensado muito
nas perfeições d’este mundo, disse _Nihil est perfectum nisi Trinitas_.
«Somente a Trindade é perfeita.»

Estes selvagens sempre chamaram a Deos—_Tupan_, nome que dão ao _trovão_,
a maneira do que se pratica entre os homens, isto é, terem as obras
primas o nome do autor: Note-se porem que este nome no singular não se
applica aos relampagos e trovões, que rebentam e illuminam todas as
partes, por cima da cabeça dos selvagens, aterrando-os, porque sabem
e reconhecem, que elles são formados pela poderosa mão d’Aquelle, que
habita nos Ceos.

Por intermedio do interprete informei-me dos velhos do paiz si elles
acreditavam, que este _Tupan_, autor do trovão, era homem como elle?

Responderam-me que não, porque si fosse um homem como nós, seria um
grande senhor, e como poderia elle correr tão depressa, do Oriente
para o Occidente, quando troveja ao mesmo tempo sobre nós, e nas quatro
partes do mundo, tanto na França, como sobre nós? Demais, si fosse homem,
era necessario, que outro homem o fizesse, porque todo o homem procede
de outro homem. Ainda mais: _Jeropary_ é o creado de Deos, e nós não o
vemos, ao passo que todo o homem se vê, e por isso não pensamos, que
_Tupan_ seja um homem.

Mas, repliquei eu, o que pensaes que elle seja?

Não sabemos, responderam, porem pensamos, que existe em toda a parte, e
que fez tudo quanto existe. Nossos feiticeiros ainda não fallaram com
elle, pois apenas fallam com os companheiros de _Jeropary_.

Eis a crença de Deos, sempre pela naturesa impressa nos espiritos dos
selvagens, que com tudo não o reconheciam por meio de preces e de
supplicios.

Acreditavam naturalmente nos espiritos bons e maus.

Chamam os bons espiritos ou anjos _Apoiaueué_, e os maos ou diabos
_Uaiupia_.

Vou contar-vos o que pude colher de suas conversas por diversas vezes.

Pensam que os anjos lhes trazem chuva em tempo proprio, que não fazem mal
ás suas roças, que não os castigam e nem os atormentam, que sobem ao Ceo
para contar á Deos o que se passa aqui na terra, que não causam medo nem
á noite e nem nos bosques, que acompanham e protegem os francezes.

Pensam, que os diabos estão sob o dominio de _Jeropary_, que era creado
de Deos, e que por suas maldades Deos o despresou, não querendo mais
vêl-o e nem aos seos, pelo que aborrecia os homens e nada valia: que os
diabos impedem as vindas das chuvas em tempo proprio, que os trazem em
guerra com seos inimigos, que os maltrata, e lhes faz medo, habitando
ordinariamente em aldeias abandonadas, especialmente em logares onde tem
sido sepultados os corpos de seos parentes.

Ouvi tambem dizer a alguns indios, que indo elles apanhar cajus em
algumas aldeias abandonadas, sahio-lhe ao encontro _Jeropary_ gritando
com voz medonha, e chegou até o ponto de espancar muito alguns dos seos.

Dizem tambem, que _Jeropary_ e os seos tem certos animaes, que nunca
se vê, que só andam a noite, soltando gritos horriveis, que abala todo
o interior (o que ouvi infinitas vezes) com os quaes convivem, e por
isso os chamam _Soo-Jeropary_ «animal de Jeropary», e creem que estes
animaes servem aos diabos ora de homens ora de mulheres, e por isso nós
o chamamos _Succubes_ e _Incubes_, e os selvagens _Kugnan Jeropary_ «a
mulher do diabo» _Aua Jeropary_ «o homem do diabo.»

Ha tambem certos passaros noturnos, que não cantam, mas que tem um
piado queixoso, enfadonho, e triste, que vivem sempre escondidos, não
sahindo dos bosques, chamados pelos indios _Uyra Jeropary_ «passaros do
diabo,»[99] e dizem que os diabos com elles convivem, que quando põem é
um ovo em cada lugar, e assim por diante, que são cobertos pelo diabo, e
que só comem terra.

Não exgotando minha curiosidade procurei indagar bem a verdade d’isto:
muitas vezes estes animaes nocturnos vinham rodear nossa casa de Sam
Francisco e soltar seos gritos medonhos, quando as noites eram sombrias e
negras.

Apromptei-me para com outros francezes investir estes passaros onde se
achassem conforme pudessemos prevêr, porem nada pudemos conseguir por não
vel-os, embora os ouvissemos gritar em distancia de mais de um quarto de
legoa.

Disseram-me alguns francezes, que eram uma especie de gatos bravos, o que
não pode ser a vista do som, do sussurro e do volume do grito, que elle
solta.

Outros disseram ser o vagido de _vaccas bravas_, o que negam os selvagens
dizendo ser vozes de uma especie de animaes parecidos com maçaricos, e
maiores do que uma raposa.

Quiz eu mesmo verificar o que eram estes passaros de _Jeropary_, e
para isto fui caminhando de mansinho até onde meos ouvidos me levaram
a pensar, que lá estavam, pelo piado melancolico d’elles. Calculado o
lugar ahi fui no dia seguinte á tarde muito cedo occultar-me nos mattos,
e d’esta vez não me enganei porque apenas anoiteceu aproximou-se este
triste passaro de mim e distante apenas dois passos saltando sobre a
areia, e soltou seo canto medonho, o que não pude aturar. Sahi logo do
meo logar e fui onde elle estava e nada achei: sua configuração e tamanho
era de uma coruja de França e as pennas pardas.

Tudo o que referi não está longe do senso commum, porque lemos na
Historia, e em diversos autores a união dos diabos com animaes feios e
immundos, e foi elle que desde o principio do mundo tomou a forma de uma
serpente cabelluda para enganar nossos primeiros paes.

Creem na immortalidade da alma: quando no corpo chamam-na _An_, e quando
deixa este para ir ao lugar, que lhe é destinado, _Anguere_.

Creem que só as mulheres virtuosas tem alma immortal, segundo o que pude
comprehender de varios discursos d’elles e de muitas perguntas que lhes
fiz, pensando que estas mulheres virtuosas devem ser postas ao lado dos
homens, visto terem todos almas immortaes depois da morte.

Em quanto ás outras mulheres duvidam que ellas tenham alma.

Pensam, e muito naturalmente, que as almas dos maus vão ter com
_Jeropary_, que são ellas que os atormentam de concomitancia com o
proprio diabo, e que vão residir nas antigas aldeias, onde são enterrados
os corpos, que habitaram.

Pensam, que as almas dos bons, vão para um lugar de repouso, onde dançam
constantemente sem nada lhes faltar.

Eis tudo quanto pude saber relativamente a estes tres pontos de sua
crença natural de Deos, dos Espiritos e das Almas, por meio de
cuidadosas indagações entre discursos communs, que ouvi por dois annos de
muitissimos selvagens.



CAPITULO IX

Dos principaes meios usados pelo diabo para conter em suas cadeias por
tão longo tempo estes selvagens.


Adonibesec, um dos maiores tyrannos do mundo, venceo e subjugou setenta
Reis, aos quaes mandou cortar os dedos das mãos e dos pés, e todas as
vezes que queria comer, mandava buscal-os e pol-os debaixo da mesa como
cães para roerem os ossos, e os boccados de pão, que lhes atirava, e
era com isto unicamente que elles viviam, porque acabada a refeição do
tyranno passavam elles outra vez para os grilhões.

Este tyranno representava o diabo, cujo poder sempre exerceu nas Nações
á elle sujeitas pela infidelidade, tendo-as sempre presas, não lhes
consentindo outros viveres alem dos seos restos, cortando-lhes todos os
meios de acção e de fuga, alterando ou extinguindo os signaes, que Deos
naturalmente imprimio nos homens, pelos quaes podiam inclinar-se a Deos
para d’elles ter piedade, que é o que o diabo mais teme, o que é facil de
vêr-se em nossos selvagens por longo tempo sem conhecimento algum do Deos
Omnipotente, presos em suas cadeias infernaes pelos abusos e corrupções,
que entre elles lançou o diabo.

Eis porque S. Paulo representava as artimanhas e tricas de Satanaz em
suas...

    (Falta uma folha.)

... esta razão tinhamos nós occasião d’admirar a forma e a maneira de
proceder dos Pagés ou Feiticeiros, que occupam entre os selvagens o lugar
de Mediadores entre os espiritos e o resto do povo, e são os que hão
adquirido maior autoridade por suas fraudes, subtilezas e abusos, com
que tem subjugado esta gente mui fortemente sob o reinado do inimigo da
salvação, como está escripto no _Proverbio 29_—_Princeps qui libenter
audit verba mendacii, omnes ministros habet impios_ «o Principe, que
prestar ouvidos á mentira, é servido por ministros impios e maus.»

Pondo de parte a explicação litteraria d’esta passagem, nós a aplicamos
ao nosso fim dizendo, que este Principe, que presta attenção á mentira,
ou para melhor dizer, que é o Pae da mentira, é o diabo inimigo da
verdade: seos officiaes abusam do povo por meio de invenções, subtilesas,
e encantos provenientes da instigação dos demonios, como são os
feiticeiros brazileiros, e com tal autoridade se conservam sem a menor
contestação, embora conheçam os enganos, que reciprocamente empregam
contra seos compatriotas.

Estes feiticeiros não tem chefes, porem tornam-se taes, si os favorece
a capacidade de seo espirito, de sorte que os que o possuem melhor, são
considerados mais habeis.

Começam muitos a aprender este officio, convidados pela honra e lucro,
que d’elle colhem os mais espertos, porem poucos atingem á perfeição.

Não encontrareis muitas aldeias, onde os principaes e os velhos não
confessem saber alguma coisa d’elle.

Os noviços d’essa arte estudam muito a merecer elogios, e d’elles
dizer-se maravilhas e fazem alguma subtilesa diante de seos similhantes
para obter fama.

Depende seo adiantamento d’algum acaso, como por exemplo se predizem a
chuva, e ella apparece, se sopram algum doente e elles recobram a saude,
o que os faz muito estimados e respeitados como feiticeiros experientes.

Por exemplo, sem comparação, si algum medico novo ou cirurgião cuidasse
de um doente perdido, ou de alguma chaga pertinaz, e que apparecesse
a saude, não tanto pela industria do medico, e sim pela boa naturesa
coadjuvada por unguentos communs, não ha duvida que tal cura seria
attribuida á sciencia e experiencia dos curadores, e se aproveitariam
d’isto para fazer voar sua fama entre as boas cidades, e serem recebidos
com muita distincção nas boas casas.

O mesmo acontece no Brasil com estes novos feiticeiros, quando se
restabelece o infermo depois dos seos sopros.

Não receis que isto fique só na casa do doente, porque sae o
feiticeirinho de aldeia em aldeia contando suas proesas, e triplicando-as.

O diabo, espirito suberbo, não se communica indifferentemente a todos os
feiticeiros; porem d’entre elles escolhem os mais bellos espiritos, e
lhes infundem suas invenções e subtilesas.

Julgae por isto. Nunca vereis os diabos fazerem grandes operações e
communicações aos pequenos feiticeiros, e limitam-se apenas a dar-lhe
malicia conforme o juiso e talento do seo espirito.

Si pelo contrario encontram algum bello espirito, elles o instruem
largamente de suas perversas e condemnaveis sciencias, que são de
ordinario as nigromancias, judiarias e magicas. O mesmo acontece aos
feiticeiros: achareis muitos pequenos, de que não se faz grande caso,
e nem se tem muito medo, valendo-lhes pouco o officio: outros mais
instruidos e mediocres, que occupam o lugar medio entre pequenos e
grandes. Ordinariamente viajam por certas aldeias importunando os seos
habitantes, cuidando de dansas e de outras coisas, que dependem do seo
officio.

Si algum seu collega apparece por ahi, elles não ficam contentes, mas
quando é convidado algum de seos superiores soffrem-no com paciencia.

Quanto mais progressos fazem nos abusos, mais graves se mostram: fallam
pouco, buscam a solidão, evitam o mais que podem as companhias, com
o que alcançam mais honra e respeito, são mais procurados depois dos
Principaes, e estes lhes fallam com attenção ahi usada, e ninguem os
maltrata.

Para conservar taes honras edificam suas casas á parte, longe de visinhos.

O demonio ardiloso ensina o que pratica a disciplina religiosa, isto é,
o necessario para conservar o espirito de Deos, fazer sua alma capaz
das suas visitas e consolações para o que necessario é amar a solidão e
n’ella residir, evitando cuidadosamente o mais que é possivel a companhia
dos homens, com o que não somente adquirireis favores espirituaes, mas
tambem a honra e o respeito d’aquelles, que evitaes.

A compleição dos homens é similhante a da honra e da sombra: si correis
após ellas, ellas fugirão diante de vós, si as evitaes, ellas vos
procurarão.

Assim são os homens: sê-de com elles familiares, e sereis despresados;
fugi d’elles, sereis respeitados.

Por similhança este velho doutor da malicia ensina os seos principaes
discipulos a evitar communicações, a fugir de tristezas e melancolias, a
fugir de invenções e fantesias, a residir sós com suas familias com o fim
de poder melhor imprimir em seos pensamentos os meios, pelos quaes quer
conservar estes povos na ignorancia e superstição regosijando-se de vêr
tantas nações presas em suas cadeias.

Não é de hoje, e nem n’esta nação somente, que elle inverte os exercicios
da verdadeira Religião, mas de todos os tempos e em todos os lugares,
porque não pode ser autor, e sim falso imitador do verdadeiro bem.

Assim como a serpente se occulta debaixo das folhas para picar o segador,
assim tambem elle occulta seo veneno e sua falsa Religião sob apparencia
somente de uma imitação das obras de Deos.

Dizem Plinio e Solinus, que Cerasto, serpente mortifera, se cobre d’areia
deixando apenas de fóra os cornos afim de enganar os passaros com a ideia
de ser comida, e quando se approximam, ella sahe da embuscada e os apanha.

O Genesis compara o diabo com esta serpente _Cerastes in semita_ «Ceraste
no caminho.» Vemos isto em nossos selvagens, nutridos e entretidos com
taes engodos, que eu não os acreditaria si os não visse, e si o leitor
duvidar, peço-lhe que creia no que vou contar-lhe.

São tão tolos estes pobres selvagens, que em relação aos seos
feiticeiros, especialmente aos grandes, creem firmemente, que elles podem
enviar-lhes molestias e fomes, e tirar-lhes tudo o que elles tem, e
embora saibam os proprios feiticeiros, que elles todos são embusteiros,
não julgam poder curar-se sem que passem por mãos de outros.

Si adoece algum francez nas aldeias, seo Compadre e sua Comadre lhe pedem
permissão para que os feiticeiros o visitem, o bafejem, e lhe toquem com
as mãos.

O que dirieis vós, si eu vos dissesse, que vindo visitar-me muitos
selvagens, quando adoeci, me pediram muito affectuosamente licença para
me trazerem seos feiticeiros afim de me bafejarem, e apalparem-me, sem o
que, asseguravam-me, eu não ficaria bom?

O grande _Thion_ adoecendo apenas chegou do _Mearim_ ao Fórte de S.
Luiz, pensou, e por muito tempo acreditou ser isto devido a ameaça do
Principal-feiticeiro da sua terra, que pretendia seduzir e impedir esses
povos _Mearinenses_ de virem á Ilha, logrando vêr muitos com elle ficarem
nas florestas do _Mearim_.

Tinha ameaçado _Thion_ com a morte apenas aqui chegasse, o que não
aconteceo, porque depois d’uma febre violenta recobrou sua saude: com
tudo, emquanto esteve doente, pensou morrer, por maiores que fossem as
nossas advertencias de que não devia prestar credito a taes feiticeiras.

Si estes pequenos e mediocres feiticeiros gozam de autoridade entre os
seos, muito mais aquelles, que se chamam propriamente _Pagy-uaçú_[100]
«grandes feiticeiros», porque são como os Soberanos d’uma Provincia,
muito temidos, chegando a tal poder por muitas subtilesas: de ordinario
tem communicação tacita com o diabo. Por onde passam, seguem-nos os
povos; são graves e por isso não se communicam facilmente com os seos:
são muito bem acompanhados quando vão a qualquer parte, e tem muitas
mulheres, não lhes faltam mercadorias, julgam-se felizes seos similhantes
quando os presenteiam, e com uma feitiçaria tiram aos seos compatriotas o
melhor que possuem em suas caixas.

Não descobrem suas subtilezas diante dos selvagens, e pelo contrario
zombam delles, e muitos me contaram os meios, que empregaram para isto, o
que ainda direi em lugar proprio.

_Japy-açú_ e o grande feiticeiro de _Tapuitapera_ tiveram entre si uma
questão, de que resultou reciproca desconfiança.

O grande feiticeiro mandou dizer-lhe, si elle já não se lembrava das
molestias, que outr’ora lhe enviou, e de que pensou morrer a ponto de lhe
pedir que as removesse, e si agora já não as temia?

Estas palavras impressionaram _Japy-açú_, e julgou-se feliz de ter sua
amisade. A questão foi por causa de uma mulher retida por força; porem
merece ser contada esta historia por haver relação entre ella e o objecto
de que tratamos.

Adquirio o grande feiticeiro de _Tapuitapera_ em sua Provincia e
circumvisinhança fama e autoridade de um perfeito Magico, que a seu
bel-prazer distribuia molestias e mortes, curava e dava saude, e por isso
alcançou em seo paiz o grau de Soberano Principal, e dispunha de todos á
sua vontade.

_Japy-açú_ mofava e zombava de tudo isto, o que sabido pelo outro o fez
dizer, que em pouco tempo em si mesmo experimentaria si não tinha o poder
de fazer bem ou mal a quem quizesse.

Não fez _Japy-açú_ caso d’isto, porem veio a fortuna proteger ao seo
contrario fazendo com que elle cahisse doente muito naturalmente;
pensou ser sua molestia devida ao feiticeiro de _Tapuitapéra_, embora a
existencia do mar entre uma e outra Provincia, e pela força de imaginação
agravou-se sua molestia a ponto de o julgarem á morte.

Todos os feiticeiros e feiticeirinhos da Ilha o visitaram, porem nenhum
lhe deo saude e afinal escolheo as melhores fazendas que havia e
humildemente mandou a esse feiticeiro seo antagonista, pedindo-lhe pelos
mensageiros seos parentes, que desse ordens á molestia para deixal-o.

O feiticeiro tomando as mercadorias lhe mandou não sei que moxinifada
para elle tomar, asseverando-lhe cura em breve tempo. _Japy-açu_
acreditou, principiou pouco a pouco a passar melhor temendo d’ahi em
diante o feiticeiro, que comtudo entre os seos zombava d’elle, e outras
vezes o apontava para mais firmar sua autoridade.

Ora como é possivel, direis vós, que appareçam e desappareçam as
molestias por força d’imaginação e apprehensão, d’estes selvagens a
respeito das ameaças ou dos favores de seos feiticeiros?

Decida a medicina: comtudo responderei á pergunta com os exemplos mui
communs, dos _Hypocondriacos_, ou doentes imaginarios, os quaes embora
sãos, e bem conservados, julgam-se debeis e fracos, pensando cada um
soffrer uma molestia differente.

Fechando este artigo, eu vos faço notar que se julgam uns grandes
feiticeiros por fazerem mal, e outros por praticarem o bem.



CAPITULO XI

Como falla o diabo aos feiticeiros do Brazil, suas falsas prophecias,
idolos e sacrificios.


Diz Santo Agostinho, que o diabo insuflado por sua soberba quiz ser
obedecido como Deos, imitando com falsidade em tudo e por tudo o
proceder de Deos, especialmente em seos oraculos—_Diabolus est Angelus
per superbiam separatus á Deo, qui in veritate non istetit, et doctor
mendacii, etc_. «o diabo é um Anjo separado por sua soberba de Deos, que
não quiz persistir na verdade fazendo-se assim doutor da mentira.»

Vendo que Deos fallava outr’ora a seos prophetas por diversos modos,
e a seo povo entre duas figuras de cherubins postas sobre a arca da
alliança, quiz tambem em todos os tempos ter falsos prophetas, com os
quaes consultava seos desgraçados projectos, e seos falsos oraculos
proferidos entre diversas figuras por meio de demonios escondidos por ahi
ou occultos ora sob a figura de uma serpente, ora de um touro, ora de um
mocho ou gralha, e finalmente de uma pyramide, estatua e assim por diante.

Advinhavam estes falsos prophetas o futuro não por espirito prophetico,
visto não ter o diabo tal poder, e sim por experiencia de muito tempo,
junta á subtilesa de seo espirito, que os faz presagiar coisas futuras
pelo que vê nos homens e nas coisas, como bem diz Isidoro—_Dæmones
triplici acumine præscientiæ vigent, scilicet, sublimitate naturæ,
experientia temporum, revelatione superiorum potestatum_, «possuem os
demonios tres subtilesas para prevêr o futuro, finura por naturesa,
experiencia de tempo, e revelação de poderes superiores.»

Deixando de parte a experiencia tão antiga dos seos procedimentos para
com a Gentilidade, quero fazer-vos vêr o que ha de verdadeiro a tal
respeito, visto que o diabo tem sempre enganado, e ainda hoje, estes
pobres selvagens por seos oraculos e predicções.

O feiticeiro, de que ja vos fallei, recolhido ás campinas do Mearim,
tinha em casa diabos sob a figura de pequenos passaros negros, que o
advertiam do que deviam fazer e do que se passava na ilha e em outros
lugares.

Quando quiz ir a Maranhão revelaram-lhe estes passaros por occasião
de andar passeiando nas suas roças, que cedo chegariam os Tapuyas, e
destruiriam seo milho e suas raizes, mas que nenhum mal succederia
nem a elle, nem aos seos, e assim aconteceo, porque vindo os Tapuyas
de mansinho para sorprehendel-o, ouviram grande matinada na casa do
feiticeiro, e por isso não se animaram a atacar, receiando superioridade
de defensores, contentando-se com carregar os milhos e raizes, e assim se
foram.

Estes mesmos passaros, ou os diabos sob tal forma, ordenaram a este
feiticeiro, que fosse á ilha do Maranhão, fazer suas feitiçarias, e
convidar os que quizessem deixar a ilha para vir ahi residir devendo
desembarcar no porto de _Taperussu_, isto é, na aldeia dos animaes
gordos, n’uma das extremidades do Maranhão, sendo-lhe absolutamente
prohibido aproximar-se do lugar onde moravam os padres, o que cumprio
pontualmente.

Nunca poude vir ahi nos vêr, apesar de toda a segurança que lhe
promettiamos. Dizia que seos espiritos nos temiam, e se lhes
desobedecessem, suas roças ficariam por fazer, não trabalharia mais, e
perderia o poder, que tinha entre os seos, que seos espiritos lhe haviam
aconselhado de retirar-se do Maranhão antes de nós lá chegarmos afim de
continuarem á viver com elle tão pacificamente como até hoje.

Estes e outros factos contava elle aos habitantes de _Taperussu_, que
em parte lhe prestavam credito, pois n’essa occasião muitas mulheres
se agarravam ás suas pernas, chorando e gritando, pedindo-lhe para que
não deixasse o seo paiz, e nem fosse para _Yuiret_, onde estavamos,
principalmente porque lhe fora isso prohibido pelos espiritos, e se
fizesse o contrario succeder-lhe-hia mal.

Considerae, leitor, a maldade, e o temor d’estes demonios, maldade
para impedir que se cheguem os homens á luz da verdade, ficando sempre
obedientes ás trevas da infidelidade.

É proprio da malicia fugir da claridade com medo de serem descobertas
suas maldades, e sua autoridade destruida.

O temor, que elles tem, dos servos de Deos, em cuja presença não se podem
sustentar, bem como o mocho diante dos raios do sol, e os sapos á vista
da flor e cheiro da vinha, mostra quam grande é o poder de Deos, dado á
sua igreja contra a potestade do inferno.

Prosigamos.

Dois principaes feiticeiros governavam duas nações de _Tabajares_,
inimigas reciprocas, das quaes abusavam dizendo que tinham repetidas
conferencias com os diabos tomando a figura de diversos passaros.

O feiticeiro do lado de Thion, mau e desgraçado (que nunca quiz vir á
ilha, e que della desviava seos similhantes o mais que podia) criava
em sua casa um morcego, a que chamava _Endura_, que lhe fallava em voz
humana em lingua dos _Tupinambás_, algumas vezes tão alto, que podia ser
ouvido á seis passos de distancia, não distincta, porem confusamente e
com timbre infantil.

Respondia-lhe o selvagem ficando só em sua casa, porque despedia a todos
quando percebia que elle lhe queria fallar.

Quando os nossos la foram afim de preparar os selvagens a sahir do seo
paiz para a ilha, instigou-se a curiosidade de alguns francezes, que
tinham ouvido dizer maravilhas d’este feiticeiro, e pediram a seos
compadres que lhes dissessem o que percebessem do colloquio d’elle com o
morcego, e para isso aproximaram-se de mansinho da morada d’elle a ponto
de ouvirem perfeitamente a voz de ambos, e querendo chegar mais perto
foram descobertos pelo feiticeiro, e retirou-se o morcego.

Chamou-os o feiticeiro, sem zangar-se, fel-os entrar em sua casa, e
perguntou-lhes o que queriam e porque estavam a escutar?

Responderam-lhes os francezes, que tinham ouvido dizer aos selvagens
seos similhantes, que ahi havia uma communicação visivel e familiar com
_Jeropary_, que d’ella desejavam vêr alguma coisa, e eis porque se tinham
aproximado, e ouvido distinctamente duas vozes, a sua e uma outra mais
doce e clara.

É verdade, disse elle, eu fallava agora com o meo morcego, que me veio
dizer maravilhas e grandes novidades, como sejam guerra em França, e
que os _Caraibas_ do Maranhão não estavam onde pensavam, que de nada me
assustasse, e ficasse com elle n’esta terra não acompanhando á ilha meos
compatriotas, que aqui não ficariamos muito tempo, porque os francezes
regressariam á sua patria, e que muitos selvagens de _Tapuitapéra_ tinham
fugido para o matto.

Perguntaram-lhes os francezes como elle criava e sustentava este morcego?

Respondeo, que um dia seo espirito, em quanto elle estava só, lhe disse
que de ora em diante lhe fallaria sob a figura de tão feio animal, e
que por isso lhe havia preparado um quarto em sua casa, onde dormiria e
descançaria, comendo do que elle comesse, e quando quizesse fallar-lhe,
que elle o ouviria e responderia: que este espirito tambem quando
quizesse communicar-lhe alguma coisa de novo o chamaria por seo nome, e
com elle fallaria na casa ou no bosque, e mandou o feiticeiro fazer-lhe
um ninho para recolher-se, e com elle sempre fallava sob a forma de
morcego.

Dizendo isto mostrou um dos cantos da sua casa, onde estava o ninho feito
de folhas de palmeira: ahi, disse, vem elle comigo conversar, discorremos
como dois iguaes, e come o que lhe dou.

Não posso deixar de notar as particularidades seguintes:

1.ª Porque o diabo antes quiz tomar a forma de um morcego do que a de
outro qualquer passaro.

2.ª Como o diabo imita a voz humana.

3.ª Da verdade d’estas novidades em França, e como é possivel, que saiba
o diabo o que se passa no mundo.

4.ª Porque razão comia carne.

5.ª Da localidade por elle escolhida para discorrer com o seo Magico.

Para satisfazer a primeira, dizemos, que o axioma dos philosophos—_todos
procuram seos similhantes_, é uma verdade provada quer nas coisas
physicas, quer nas sobrenaturaes, porque o diabo, que por sua soberba se
fez espirito immundo, busca de ordinario tomar as formas mais horriveis e
immundas, que pode ser, para communicar-se com seos bons servos e amigos.

Bem sei o que disse S. Paulo—_Ipse enim Sathanas transfigurat se in
Angelum lucis_ «que Satanaz, transformado em camaleão, para seduzir os
tolos, toma a forma de um Anjo de luz», isto é, reveste-se de bellas
figuras, ou profere boas palavras para melhor fazer seo jogo.

As bonitas formas de mulheres e raparigas, que elle toma para melhor
attrahir os homens luxuriosos, não tem outro motivo senão o desejo de
chamar a si os individuos conforme sua inclinação.

Diz S. Thomaz, que por este motivo, não pode o diabo aborrecer
naturalmente os Anjos felizes, porque tem parte na natureza d’elles,
sendo impossivel amal-os em relação á justiça dos Anjos, e injustiça dos
diabos.

D’esta conclusão deduso duas inclinações dos demonios: uma natural com
que amam as coisas boas, ou pelo menos não as podem aborrecer, e a outra
é proveniente da culpa e da soberba, com que procuram coisas immundas
e abominaveis, e não podem proceder de diverso modo porque gostam da
perversão do appetite, por culpa da natureza.

Dizemos por isto em lingua vulgar, que o diabo horrorisa-se das torpesas
e maldades, a que leva o homem a praticar por suas instigações, o que
entendereis conforme a distincção da naturesa e a culpa do diabo.

Eis uma das principaes causas, porque este cruel Behemot toma a figura de
morcego, a que accrescento outra tirada de uma propriedade peculiar aos
morcegos, qual a destes maus passaros nocturnos, muito mais horriveis e
maiores do que os de França procurarem as pessoas que estão deitadas e
dormindo,[101] e lhe arrancarem um pedaço de carne e depois lhe chuparem
muito sangue sem que se desperte a victima, porque tem a propriedade de
conservar o homem adormecido emquanto lhe chupam o sangue: achando-se
fartos o deixam, continuando o sangue a correr, e por isto fica debil a
pessoa, e por muitos dias anda com difficuldade.

Melhor escolha não podia fazer Satanaz para representar sua naturesa e
crueldade porque anda a noite, e sob as trevas da ignorancia procura os
homens adormecidos e si delicia nas suas carnes, tirando-lhe a inclinação
natural que tem para com Deos, e procura meios de sugar á sua vontade o
sangue, instrumento da vida, as affeições e paixões dos seos captivos
para tornal-os fracos e impotentes em fazer o bem e procurar sua salvação.

2.º Consiste a 2ª dificuldade na imitação da voz humana pelo diabo, não
tendo orgãos e nem lingua para fazel-o.

Sua palavra é apenas a manifestação de seo desejo e vontade quando falla
aos outros diabos, seos companheiros, e aos homens pelas impressões
fantasticas, que faz as suas imaginações.

Comtudo nos ensina a Santa Escriptura, que elle servio-se da lingua da
serpente para seduzir nossa primeira mãe, permittindo Deos, porque não
tem poder na creatura, em quanto fraca e indigente, sem licença de Deos,
e com ella pode crear um corpo no ar, e articular em qualquer lingua até
mesmo nas desconhecidas suas affeições e desejos.

Ponho de parte mil outros modos, pelos quaes manifesta seos desejos aos
feiticeiros, por não ser nosso proposito.

3.º Notamos as noticias, que deo dos motins havidos era França, isto é,
d’esta ultima leva de soldados, e como poude ser isto.

Direi com Santo Agostinho, que os demonios excedem em ligeiresa todo o
corpo existente na maquina do mundo, nada havendo que possa com elles
competir em velocidade.

Em 24 horas fez o primeiro movel este grande curso em torno das abobadas
inferiores, espaço superior aos calculos dos mathematicos, de tal modo
que dentro d’uma hora vence não sei quantas mil legoas.

Calculae agora a ligeiresa d’estes espiritos, que em poucos momentos
giram ao redor do universo, sabendo e vendo o que por elle se passa, e
conjecturando o que se pode predizer das coisas futuras: si tão ligeiros
fossem os correios, á cada hora receberiamos noticias de todas as partes.

4.º Usava de carne, dado o caso de ser verdadeira a existencia d’este
morcego, de que se servia o diabo, e por tanto tinha necessidade de
nutrir-se, e si fosse apenas parto de imaginação não tinha precisão de
carne para viver.

Não obstante tudo isto, tem sempre sido costume do demonio comer e beber
apparentemente em companhia do seos mais dedicados servos, imitando assim
o exemplo dos anjos bons do antigo Testamento, que comiam com Abraham,
Loth, Tobias e outros.

5.º A situação do logar procurado por este espirito, isto é, os bosques,
o concavo das arvores, ou o recanto de alguma casa solitaria, nos faz
ver a inclinação, que tem estes espiritos rebeldes a fazerem, como os
condemnados, suas moradias em logares escuros e desertos, tristes e
melancolicos, temendo, se assim se pode dizer, a luz creada, e a doçura
da harmonia.

Acha-se isto em prova na pessoa de Saul, possesso, sendo aplacado pelo
som da harpa de David.

Asmodeo foi preso pelo anjo Raphael no fundo do deserto, e Satanaz pelo
anjo do Apocalypse no fundo dos abysmos.

Este pobre, victima de legiões diabolicas, que Jesus-Christo livrou, dia
e noite morava nos sepulchros dos defuntos.

Fingiam os antigos, que Cerberas, tirado do inferno, apenas vio a
brilhante luz do sol principiou a vomitar Aconite, até que lhe foi
permittido regressar ás suas cavernas tenebrosas.

Diga-se isto em relação ao feiticeiro da aldeia do grande _Thion_.

Quanto ao _Pagy-uassu_, das aldeias de _farinha molhada_, prevenio aos
seos, alguns mezes antes, da chegada dos francezes, que breve chegavam os
_Caraybas_, trazendo-lhes mercadorias, sendo para notar, que ignoravam a
estada dos francezes na _Ilha do Maranhão_.

Com tal aviso vestiram-se uns de camisas, e outros de diversos factos do
tempo, que outr’ora com elles moravam os francezes.

Assim vestidos foram ter com os habitantes das aldeias de _Thion_, e para
assustal-os lhes disseram—«entregae-vos á nós, porque os francezes estão
comnosco; olhae as roupas que nos deram.»

Estas palavras intimidaram muito a _Thion_ e os seos, e pensavam em fugir
quando chegaram os enviados dos francezes dizendo-lhes, que estes os
veriam ver logo que elles mandassem suas embaixadas á ilha.

Por isto podeis ver, quanto o astucioso Satanaz dava poderes a estes
_pagys_, fazendo-lhes prever coisas futuras.

Sua astucia porem não é tão grande, relativamente á predicção, porque via
o esforço dos francezes visitando os povos visinhos, e tambem o desejo e
a resolução de ir procurar essas nações, onde se achassem, e por tanto
este bom criado advertio seo senhor.

Usam os diabos de outra maneira de fallar e de communicar-se com os
diabos e com os feiticeiros d’este paiz, a saber, fazem um buraco em
terra, dentro de casas longinquas, deitam-se de bruços os feiticeiros,
mettem a cabeça no buraco, fecham os olhos, perguntam ao demonio o que
querem, e do fundo do buraco estes lhes respondem.

Este uso era muito trivial na Gentilidade, e deixando as historias
profanas vou referir-me ao que está escripto no livro 1º dos Reys, cap.
28 quando Saul foi consultar a feiticeira de Endor, a qual curvando-se em
terra, metendo a cabeça e o rosto n’um buraco, fazendo suas invocações,
disse—_Deos vidi ascendentes de terra_—«vi Deoses subindo da terra.»

Não é sem fundamento, que ella escreveo e servio-se d’estas palavras—_vi
deoses_, a menos, que estas feitiçarias não tivessem poder e força
para fazer apparecer alguns diabos, mas quiz Deos, que a propria alma
de Samuel acudisse á sua palavra afim de prophetisar a ultima desgraça
de Saul, que em suas necessidades havia recorrido aos adevinhos e
feiticeiros.

Soube de alguns francezes, moradores na aldeia de _Vsaap_, que um
feiticeiro d’ahi era mui respeitado e temido pelos selvagens, por ser
geral a crença delle fallar com toda a liberdade com o diabo, pela
maneira ja dita, e por isso não se atreviam a aproximar-se de sua casa
quando viam a porta fechada receiando tal colloquio.

Havia tambem na Ilha uma velha feiticeira, que guardava-se muito em
segredo: era mui apreciada pelos selvagens e procurada especialmente nas
molestias incuraveis; quando todos os feiticeiros já não sabiam o que
haviam fazer, então ella era convidada, e trazida com segurança, porem
sempre occulta.

N’um dia, segundo o que me disseram alguns francezes, ella veio a _Vsaap_
para fazer uma cura, já sem esperança, e, antes de começar fechou-se
n’uma casa, isolada no meio da praça da aldeia, e ahi fez suas invocações
e feitiçarias diabolicas sobre o corpo do infermo, fazendo apparecer
visivelmente o seo demonio.

Os francezes, que isto me contaram, tiveram desejos de espiar o que fazia
esta feiticeira, porem os selvagens os embaraçaram o mais que poderam,
asseverando-lhes serem perigosos e maus os espiritos d’esta mulher, de
fórma que na seguinte noite torceriam o pescoço de quem os espiasse.

Zombaram os francezes, e foram de muito boa vontade á essa casa, com
grande admiração dos selvagens, que os julgavam atrevidos e presumpçosos,
e fazendo um buraco na parede de palha viram as gesticulações d’essa
mulher e notaram não sei que de monstruoso ao redor d’ella, não podendo
destinguir o que era, e assim se retiraram.

Em quanto estive doente, muitas pessoas me fallaram d’esta desgraçada
creatura com grandes gabos e estima, como infallivel em dar saude aos que
lh’a pediam. Bem podeis calcular si me agradavam taes palavras.

Fallaram-me tambem de certos barbeiros d’aquelles paizes, que habitavam
em choupanas nos bosques, onde iam consultar seos espiritos.

Na verdade, é frequente na Ilha e nos paizes visinhos edificarem os
feiticeiros pequenas choupanas de palha em lugares longinquos nos mattos:
ahi collocam pequenos idolos de cera ou de madeira em forma humana,[102]
uns maiores, outros menores, porem os maiores não tem mais que um covado.
Ali em certos dias vão elles levando comsigo fogo, agoa, carne ou peixe,
farinha, milho, legumes, pennas de côr e flôres. D’estas carnes fazem
uma especie de sacrificio a esses idolos queimam resinas cheirosas,
enfeitam-nos com pennas e flores, e ahi se demoram muito tempo sosinhos:
crê-se que era a communicação d’estes espiritos.

Crescia este mau costume, e estendia-se as aldeias visinhas de
_Juniparan_, onde morava o Revd. Padre Arsenio a ponto d’elle encontrar
estes idolos de cera na visinhança dos bosques e algumas vezes nas
proprias casas.

Livrou-se d’elles por meio d’exorcismos, que fez em sua Capella contra
estes diabos tão insolentes como atrevidos, e depois não ouvi mais fallar
n’isto.

Considerae agora a presumpção de Satanaz, que em todos os lugares, e em
todas as nações, quando póde, se faz conhecido por alguma especie de
adoração e sacrificio por saber, que nenhuma religião boa ou má, pode
existir sem algum sacrificio e representação da coisa adorada.

Eis porque elle inventou os idolos em lugar das verdadeiras imagens, que
Deos mandou levantar no tabernaculo, e depois no templo de Salomão.

Em vez dos verdadeiros sacrificios, que Deos estabelecia na sua lei,
procurou este espirito soberbo ter altares e sacrificios de toda a
especie de animaes e fructos da terra.

Comquanto esta nação de selvagens não tivesse perante o publico algumas
ceremonias de religião, nem préces e nem orações, comtudo em particular
estes feiticeiros serviam ao diabo, como ja disse.

Para acabar, direi que acreditavam estas pessoas em espiritos
particulares, até mesmo francezes.

Vou dar-vos exemplos.

Quando o Sr. de la Ravardiere, depois da guerra dos _Camarapins_,
regressava do Pará, advertio-lhe uma mulher que fora resolvida a
sua morte, bem como a de todos os francezes e _Tupinambás_, que o
acompanhavam, pelos selvagens d’aldeia, onde estava alojado.

Fez-se tudo quanto foi possivel para descobrir-se a verdade, porem todos
negaram e nada confessaram.

Fizeram crer aos selvagens d’aquelles lugares, que no relogio
d’algibeira, que trasia o Sr. de la Ravardiere, havia um _espirito_
escondido, que dava movimento ao que se via por dentro e por fóra, e que
aos francezes revellava as coisas mais secretas.

Fez-se vir ao chefe, ao qual se disse, que se o ponteiro do relogio
chegasse a tal ponto do quadrante, que fallava a verdade o _espirito_,
e por isso acrescentaram—leva-o comtigo e guarda-o até ahi chegar o
ponteiro, e vem antes do nosso _espirito_ e conta-nos tudo.

Pegou do relogio e levou-o para sua casa, e vendo que elle caminhava
sempre para diante, acreditou facilmente no espirito dos francezes, que
imprimia tal movimento, e não esperou que chegasse ao fim prescripto,
voltou, declarou tudo e restituio o relogio.

O capitão d’um navio de guerra deo-nos uma bella imagem, tomada de um
navio portuguez, que ia para Pernambuco.

Por acaso mandei guardar essa imagem, na hora em que a recebi, n’uma das
caixas, que tinha em nosso quarto, e n’esse mesmo momento vieram muitas
mulheres indias á nossa casa, e vendo a imagem muito bem esculpida,
pintada com diversas cores sobre fundo de oiro, admiraram-se e não
queriam entrar, dizendo—_Y anaité asse quege seta?_ «que coisa nova
é esta que nos olha tão vivamente? Ella nos faz medo.» Fil-os entrar
dizendo-lhes que não tivessem medo, e que era uma imagem dos servos de
Deos. Admirei-me de vel-os immediatamente prostrados a seos pés chorando
sua boa vinda, e depois me perguntaram que carne ella comia para irem
buscal-a. Ri-me de tal simplicidade, e colloquei a imagem na Capella de
Sam Francisco.

Coisa igual aconteceo a um _Tabajare_, muito simples, vendo da porta da
Capella de S. Luiz um bello crucifixo, que dentro estava. Não me foi
possivel fazel-o entrar na Capella, e dizia ao interprete. «Elle me olha
vivamente, está vivo sem duvida, tenho medo d’entrar não sendo baptisado
porque me faz mal.»

Fizeram o mesmo muitos outros, porem tomando o crucifixo em meos braços,
fiz-lhes vêr que elle era de madeira, representando com tal forma o que
Jesus Christo por nós soffreo.

Eis o resultado da superstição, como eu já disse, que entre elles
derramaram seos feiticeiros, tanto á respeito de seos idolos, como de
seos espiritos.



CAPITULO XII

De algumas outras ceremonias diabolicas praticadas pelos feiticeiros do
Brazil.


Sentiria muito este Principe se deixasse intacta alguma coisa no serviço
de Deos, sem procurar imital-a falsamente, e sem buscar introduzil-a no
culto supersticioso de sua soberba.

Outr’ora Deos no Antigo Testamento instituio as agoas da Purificação,
feitas e compostas de diversas materias e differentes ceremonias,
conforme o fim e objecto, a que se destinavam, tanto para purificar os
homens, os vasos, e os utensilios do Templo, como os vestidos, as casas e
todos os moveis.

Por imitação instituio este demonio as agoas de lustração, das quaes
se serviam os pagãos para diversos fins, bem como os judeos, lavando e
aspergindo com ellas os homens antes dos sacrificios, os utencilios dos
templos dos idolos, as casas, os vestidos e moveis dos infieis.

Vejamos se esqueceo-se esta desgraçada serpente d’illudir nossos
selvagens com taes superstições.

Quando outros exemplos não podessemos produzir alem do já referido no
_Tratado do Temporal_, das nigromancias feitas pelo feiticeiro, vindo dos
campos do Mearim, bastava só esse para demonstrar claramente as loucuras
e abusos, que semeára este antigo enganador entre os povos, em relação ao
nosso fim.

Como soube, da propria bocca dos feiticeiros, de muitas particularidades,
que faziam para illudir estas gentes, não quero privar o leitor de as
conhecer.

È costume dos _Pagys-uaçus_ celebrarem, em certa epoca do anno,
lustrações publicas,[103] isto é, purificações supersticiosas por
aspersão d’agoa sobre os selvagens, e bem que tudo dependa de sua
imaginação, fazendo á capricho taes oblações, comtudo de ordinario enchem
d’agoa grandes potes de barro, proferindo em segredo algumas palavras
sobre elles, deitando tambem fumaças de _Petum_, e misturando tambem um
pouco de pó da casa, em que se acham, punham-se a dançar, e depois o
feiticeiro toma um ramo de palha, mete dentro do pote, e com elle asperge
a companhia.

Feito isto, toma cada um a porção d’agua que quer nas _cuias_, ou
tigellas de madeira, e com ella lavam a si e a seos filhos.

_Pacamão_, grande feiticeiro de _Commã_,[104] contou-me um dia, que faria
sahir agoa da terra, com que lavava estas gentes, com grande admiração de
todos os barbaros, que viam sahir tão fresquinha essa agua do meio de sua
casa, e a tomavam como si fosse milagrosamente enviada pelos espiritos,
mas o astucioso tinha enchido d’agoa um grande vaso e mettendo-o em terra
d’elle fazia sahir agoa por meio de tubos ou canaes, ou tabocas, que em
abundancia se encontram nas mattas do Brasil, e d’esta forma illudia os
seos.

Aos gentios tinha o diabo communicado muitas ideias erroneas á respeito
das agoas, das fontes, e dos regatos. N’umas habitavam Nymphas, e
n’outras deosas: estas faziam uma coisa, e aquellas—outras; umas eram
perigosas e enganadoras, outras agradaveis e sinceras; umas sagradas, e
outras profanas.

Quando os selvagens vêem certa especie de lagartos, parecidos com os
venenosos de diversas cores, correr para agoa, pensam supersticiosamente,
que essa fonte é prejudicial ás mulheres, e que d’ella bebe _Jeropary_.

Sabendo desta superstição para livrar-me do encommodo que me davam as
mulheres vindo lavar-se na fonte do nosso logar de Sam Francisco, fiz
correr o boato, que lá haviam sardões, e depois d’isto nenhuma mais se
animou a ir ahi excepto as escravas do Forte, que não tinham licença
de lavar-se na fonte, e d’est’arte tive o prazer de mandar amural-a e
fechar á chave, afim de conservar a agoa sempre limpa.

Chega esta superstição a ponto de acreditarem, que estes lagartos
atiram-se ás mulheres, adormecem-nas, e gozam-nas, ficando grávidas, e
parindo lagartos em vez de crianças.

Eis porque, quando mandei espalhar tal boato, vinham as escravas do Forte
em bandos, armadas de cacetes, de facas, e de outros instrumentos iguaes
para se defenderem, diziam ellas, d’estes lagartos, o que motivaram muito
riso a nós outros, os francezes.

Alem das agoas de lustrações, e diabolicas abluções praticadas por estes
feiticeiros tem uma maneira particular de communicar seo espirito aos
outros, isto é, por meio da herva _Petun_ introdusida n’um caniço, de que
elles pucham a fumaça, lançando-a sobre os circunstantes ou soprando-a
mesmo na canna, exhortando-os a receber seo espirito e sua virtude.

Parece que este cautelloso dragão quer com tal ceremonia falsa imitar
Jesus Christo quando deo seo espirito aos Apostolos, e o seo poder aos
seos successores para transmitil-o aos iniciados nas ordens sagradas.
Assim se lê em São João—_Insufflavit et dixit eis, accipite Spiritum
Sanctum_: «soprou sobre elles, e lhes disse—Recebei o Espirito Santo.»

D’onde estes feiticeiros tirariam esta ceremonia satanica, si o diabo não
lh’as tivesse mostrado? Achando-se sempre fechados n’esta grande e vasta
região do Brasil, sem communicação alguma com o velho mundo, não podiam
aprendel-a de outra nação.

Estes bafejos lhes são muito particulares, como ceremonia necessaria para
curar os infermos, porque vós os vedes puchar pela bocca, como podem, o
mal, dizem elles, do paciente, fazendo-o passar para a bocca e garganta
d’elle, inchando muito as bochechas, e deixando d’ellas sahir de um só
jacto o vento ahi contido, causando estampido igual ao de um tiro de
pistola, e escarrando com grande força dizendo ser o mal, que haviam
chupado, e fazendo acreditar ao doente.

Á este respeito o Sr. de Pezieux e eu passamos um dia alegre na aldeia de
_Vsaap_.

Um pobre moço selvagem estava atacado pela colica do paiz.

Veio um d’estes feiticeiros exercer sua attração de espirito sobre o
seo ventre, fazendo muitos tregeitos, e retrahindo-se por diversas
vezes vendo-nos prestar-lhe muita attenção, e apesar de tudo isto o
doente continuava a gritar. Veio o feiticeiro depois procurar-nos e
mostrando-nos dois outros pregos nos disse—«eis o que lhe tirei do
ventre, cujos intestinos estão cheios d’isto, é preciso tiral-os um por
um. Si eu não os tirasse todos, lhe cravariam as tripas e a garganta.»

Imbuio a este moço, sempre gritando, que lhe tinha tirado do ventre esses
pregos.

Si essas casas fossem cobertas de ardosias, penso que meteria na cabeça
d’esse rapaz ter elle comido as ripas e os pregos; mas não sendo communs
entre elles pregos de ferro, não sei como poude illudir os assistentes
com tal loucura.

Poderia referir muitos outros exemplos, porem bastam-me estes ao meo fim.

Ora si é coisa digna de admiração vêr o Espirito Infernal em tudo quanto
acabamos de dizer até aqui, muito maior deve ser o nosso espanto pelo
que vou dizer, isto é, pela existencia da confissão auricular entre os
selvagens.

Nada digo que não ouvisse da bocca de _Pacamão_, de outros selvagens e
dos franceses.

O grande _Pagy_, na sua provincia de _Commã_, ia visitar, quando
lhe aprasia, as aldeias do seo dominio, ordenando que todos fossem
confessar-se com elle, especialmente as mulheres e as raparigas, e quando
encontrava alguma que se recusava a dizer tudo, elle a ameaçava com o
seo _espirito_, que as havia de atormentar, e tinha muita finura para
reconhecer si occultavam ou não alguma coisa. Dava-lhes depois não sei
que especie de absolvição, e contava tal feito d’esta e d’aquella, e
apesar de tudo isto sempre exerceo seo officio de confessar até nossa
chegada.

Pensae, eu vos peço, quem lhe ensinaria esta maneira de confissão
auricular, de ameaçar seos similhantes, no caso de occultarem alguma
coisa com o seo _espirito_, que os castigaria, e que os absolveria, se
tudo confessassem?



CAPITULO XIII

Claros signaes do reino do diabo no Maranhão.


O Salvador do Mundo em S. Marcos, antes de subir á direita de seo Pae,
encarregou a seos Apostolos e discipulos de irem pelo universo converter
os infieis assegurando-lhes por certos indicios e signaes a proxima
ruina do imperio dos demonios, a saber—_signa eos qui crediderint hæc
sequentur: In nomine meo dæmonia ejicient, linguis loquentur novis,
serpentes tollent, et si mortiferum quid biberint, non eis nocebit.
Super ægros manus imponent et bene habebunt_: «estes signaes seguiram
os crentes, em meu nome expellirão o diabo, fallarão novas lingoas,
desviarão as serpentes, e si beberem algum veneno mortifero nada
soffrerão.»

Para bem entender-se estas palavras, convem notar com os padres e
doutores, que foram postas litteralmente em pratica pelos primeiros
christãos, quando na primeira idade da igreja era preciso combater a
obstinação dos judeos e a louca sabedoria dos gentios.

Depois que estendeo-se a fé por todo o universo, que foi por todos
condemnada a pertinacia dos judeos e tida por vaidade a sabedoria humana,
não foi mais necessario observar litteralmente estes signaes na conversão
dos incredulos e sim unicamente a pratica allegorica e mistica.

Eis o que desejamos mostrar n’este capitulo ter-se feito todos os dias em
Maranhão.

Primeiramente elle disse—_In nomine meo dæmonia ejicient_: «em meo nome
elles expellirão os demonios.»

Em dois annos que estive em Maranhão, vi isto cumprido por diversas
formas, por que os diabos fizeram apparecer realmente o medo e o temor
que tinham do nome de Deos, procurando por todos os meios embaraçar nossa
missão, já persuadindo seos feiticeiros, mais fieis, a ordenar as nações
sobre que tinham poder, de não se aproximarem de nós, já infundindo-lhes
terror com o signal da Cruz e excitando-os a arrancar os que existiam,
dando maus exemplos com ridicularisar o que sanctamente ensinavamos a
estes barbaros, intimidando por muitas vezes os habitantes de _Maranhão_,
_Tapuitapéra_, _Commã_, _Caetés_, _Pará_ e _Mearim_ e fazendo-os fugir
para os matos e logares desconhecidos com receio de serem presos e
captivados pelos francezes ou pelos portuguezes.

Finalmente mostrou-se tudo de forma diversa, porque quando julgavamos
tudo perdido, foi quando Deos mostrou o poder do seo nome, conservando
não só estes selvagens junto de nós, mas tambem fazendo com que
despresassem seos feiticeiros e o poder do diabo, fazendo fugir
_Jeropary_, com o nome de Deos, e a ablução de Jesus Christo.

Vou mostrar bons exemplos.

Lembrar-vos-heis do que acima vos disse tanto dos feiticeiros dos campos
do Mearim e das habitações de _Thion_, como da maneira porque os diabos
manifestavam o temor, que tinham das cruzes, que plantavamos em nome
de Jesus Christo, e de nós seos fieis servos: quando alguns de seos
Principaes me diziam, que estes feiticeiros não quiseram vir com elles,
eu lhes perguntava a razão, e elles me respondiam—_porque Jeropary tem
medo de Tupan_.

_Acaiuy_, principal do Mearim, de quem fallaremos mais de espaço, veio
me pedir licença para fazer sua casa ao pé da minha, não querendo ficar
com os outros no _Forte_, dizendo-me entre outras rasões que tinha para
isto, ser porque _Jeropary_ não se atrevia a aproximar-se do logar, em
que habitavamos visto termos vindo expressamente para repellil-o.

_Pedro Cão_, selvagem baptisado em Dieppe havia muitos annos, dizia
a mim e aos Srs. de la Ravardiere, de Pezieux, e a outros quando o
interrogavamos á respeito de sua felicidade na guerra, que Deos sempre o
livrára de mil perigos porque era christão, e fazia fugir o diabo apenas
chegava n’uma aldeia, e que seos similhantes mostravam-se animados,
quando em companhia d’elle, não temendo _Jeropary_.

O mesmo pensavam os habitantes de _Tapuytapéra_ á respeito dos novos
christãos, julgando que elles perseguiam e faziam fugir _Jeropary_,
mostrando-se contentes por isto quando tinham esses christãos em suas
aldeias.

Servindo-nos d’estas crenças embutiamos no espirito dos cathecumenos
como ponto de fé, que logo que elles fossem _lavados_, adquiririam poder
contra o diabo, e nunca mais deviam temel-o.

Corre voz geral em todas estas terras, que os diabos são _espiritos
maus_, que temem os _Pays_ e os _Caraybas_, isto é, os padres e todos os
que são baptisados.

Recorda-me que fallando mil vezes d’esta materia aos selvagens, elles me
disseram—_Jeropary yportassuasseque gésera_—«o diabo está agora pobre
e miseravel, tem muito medo e já não é atrevido como era.» _Jeropary
ypochu, Tupan Katu_ «o diabo é mau, cruel e nada valle, porem Deos é
muito bom.»

Que desejarieis mais para o complemento d’este primeiro signal, e
segurança da total ruina do diabo?

São os proprios diabos, que confessam temer o nome de Jesus Christo,
as armas de sua paixão, e até os seos servos, dissuadindo seos intimos
amigos para que de nós se ausentassem, abalando ceos e terra afim de
embaraçar-nos, e movendo tudo para inutilisar nossos esforços, emfim
cahiram de ventas no chão, e chegaram ao cabo de suas astucias.

Os que outr’ora os temiam, hoje os despresam; emfim só nos resta
continuar as obras começadas.

_Linguis loquentur novis_: «fallarão novas linguas». Na verdade os nossos
selvagens do Maranhão fallam uma linguagem inteiramente nova, visto
que, esse _Marata_ antigo, isto é, um dos Apostolos de Jesus Christo
de quem fallarei mais adiante, não lhes ensinou a fallar como fallam
agora, a saber: na profissão do christianismo recitando o symbolo dos
Apostolos _Arobiar Tupan_ etc. etc., a dirigir-se a Deos por meio da
oração dominical _Oreruue_ etc. a encaminhar suas vidas e acções segundo
os mandamentos da lei de Deos _Ymoeté yepé Tupan_ etc. etc. conforme os
mandamentos da Igreja. _Are maratecuare ehumé_ etc. «lavar e fortificar
suas almas pelos Santissimos Sacramentos.» _Iemongarauiue_ etc.

É por certo fallar linguagem nova, quando discorrem sobre os mysterios
da nossa fé, como sejam a unidade da essencia em Deos, e na Trindade
das Pessoas; que o Filho de Deos tomou corpo no ventre da Virgem: que
os maus vão para o inferno, que todos os homens resuscitarão em corpo e
alma, indo depois cada um para o lugar de sua sentença: são estes com
tudo os discursos diarios dos feiticeiros, só fallando em matar, comer,
assar e seccar a carne dos seos inimigos, e nas suas incontinencias,
libertinagens e loucuras.

Admirar-se-ha muito quem pensar em tal mudança entre os barbaros, que
somente sabem o que lhes ensinou a natureza.

Creem os judeos, que os Apostolos sahiram d’um tunel, bem cheio, de vinho
e de carne, e viram que os gentios de diversas nações davam signaes
de entender o que prégavam, e que os Apostolos por sua vez tambem os
percebiam.

Tambem vos disse, que os selvagens ficavam muito admirados quando viam
seos similhantes, baptisados, discorrer em sua lingua sobre coisas altas,
profundas, e tão novas, como as que conheciamos por seos interpretes, e
diziam uns aos outros—como é que esta gente falla tambem de _Tupan_, como
os Padres lhes tem ensinado tão bellas coisas, quaes as que nos contam:
como nossos filhos sabem mais do que nós, nossos Padres, e mais remotos
antepassados, que embora tenham vivido muito nada nos contaram como estes
Padres: por força fallaram com Deos.

_Em terceiro lugar._ _Serpentes tollent_ «elles desviaram as serpentes.»
Que são essas serpentes do Brazil, que com sua lingua e cauda envenenam
estes povos? Não são todos os grandes e pequenos feiticeiros, que
envenenam suas Nações?

A fé de Jesus Christo é como a Cegonha, que purifica o paiz, onde está,
das serpentes venenosas.

S. Paulo, na Ilha de Malta, atirou ao fogo a vibora que trazia no dedo.

O dedo dado por Jesus Christo aos Apostolos, é o poder do Espirito Santo,
que de ordinario busca agentes naturaes docemente, sem constrangimento,
para dispôr o objecto a receber uma nova fórma pelo banimento e ruina de
outra fórma contraria.

Estas viboras, arremeçadas ao fogo, são os Ministros de Satanaz, que o
Espirito Santo expelle para tornar a Nação cheia d’abusos susceptivel de
acceitar o Evangelho e de conhecer a Deos.

Si eu disser, que me parece ter o Espirito Santo, em relação a estes
feiticeiros do Maranhão, feito um grande milagre, que nunca fez para com
os sacrificadores do Paganismo, creio ser bem recebida a minha opinião,
porque, alem de dois ou tres feiticeiros, todos os grandes só desejam ser
baptisados: ao contrario, raras vezes estes sacrificadores do diabo, na
gentilidade esposavam o christianismo.

Por isso podiamos dizer, que as serpentes venenosas, que se arrastam na
terra, tornam-se passaros voadores no elemento do ar, conforme a profecia
de Isaias: _De radice colubri egredietur Regulus, et semen ejus absorvens
volucrem_: «da raiz da cobra sahirá o Basilico, e a semente do Basilico
engulirá o passaro,» o que Vatable assim interpreta[105]: _De radice
serpentis egredietur Regulos, et fructus ejus, cerestes volans_: «da raiz
da serpente sahirá o Basilico, e o seo fructo será uma cerasta volante.»

Para entender esta passagem convem recordar-se do que escrevem os
naturalistas, a saber, que as cobras grandes e grossas geram o Basilico
quando comem um sapo; porem o Basilico procura gallinhas brancas, com
quem se unem, pondo ellas ovos, que enterram n’areia ao ardor do Sol, e
d’elles sahem serpentes, que voam.

Nada dizem, que eu não visse em Maranhão, conforme me diziam e pensavam
os selvagens, e aconteceo-me por duas vezes, que uma gallinha branca
que eu tinha, pozesse dois ovosinhos redondos como uma ameixa de dama e
salpicados, e depois ella mudou de cacarejar, e parecia louca.

Disseram-me então os selvagens, que infallivelmente o Basilico nos mattos
a tinha coberto, pelo que convinha matar, quebrar e queimar os ovos, para
evitar a morte infallivel de quem os comêsse: si se deixasse os ovos, sem
queimal-os, d’elles sahiriam serpentes voadoras, que não era a primeira
vez, que isto acontecia, e então todas as gallinhas mudam de canto, e não
param n’um lugar.

Appliquemos isto ao nosso fim, e digamos que a antiga cobra é Satanaz,
Principe dos Demonios, os Basilicos são os Diabos destacados nas
Provincias por Lucifer para seduzir o Mundo; as serpentes são seos
Ministros, como sejam os _Pagys_ ou feiticeiros do Brazil, que desejam
adquerir azas para mudar de elemento da terra para o do ar, deixar seos
velhos e abominaveis costumes de arrastar o peito em seo execrando e
diabolico serviço, e aproximar-se do Ceo, como o resto dos indios pela
ablução ou lavagem de seos antigos peccados pelo Sacramento do Baptismo.

Estas serpentes, tão perseguidas no Brazil, são esses desgraçados
costumes, e abominaveis peccados, como sejam as vilanias, raivas, e
vinganças, já descriptas amplamente n’outra parte.

_Em quarto lugar._ _Et si mortiferum quid biberint non eis nocebit_: «e
si bebem algum veneno mortifero, não lhes damnificará.» O verdadeiro
veneno, que engolem as almas, é a falsa doutrina, que o Diabo faz
suggerir nos ouvidos dos novos christãos.

Vós o achareis em muitos exemplos do proprio seculo dos Apostolos. Certos
seductores iam corromper os individuos sem malicia, e apenas bebiam ellas
o _Aconito_, sentiam-se afflictos, impressionados em sua alma, e abalados
em sua fé; porem o Espirito Santo mencionado no genesis—_Spiritus Domini,
ferebatur super aquas_ «o Espirito do Senhor é levado sobre as agoas de
Chaos,» isto é, ainda não purificadas e nem limpidas, ou como querem
dizer os outros: _Incubabat aquis_, deitava-se sobre as agoas do Chaos
para d’elle tirar as bellas pombas, como fingiam os Poetas, os ovos de
Thetis, cobertos pelo pombo branco, ou o Cysne, de que sahiram Castor e
Pollux, ou então _fouebat aquas_, aquecia essas agoas ainda frias.

O Espirito Santo, digo eu desculpa mais facilmente a fragilidade e
fraquesa d’estes novos christãos, mas não as dos antigos crentes.

Assim vae adejando sobre as agoas desviadas do verdadeiro caminho pelos
maus discursos d’aquelles, que tem a alma mal conformada, vae chocando
os ovos abandonados pelo Pae e Mãe, almas recentemente lavadas, porem
separadas da presença d’aquelles que as tem lavado.

Aquecidas essas agoas geladas pelo sopro do pernicioso Aquilon, não quer
que o veneno bebido lhes dê a morte, conduzindo-as ao regaço de sua Mãe,
e entre os braços dos que, depois de Deos, os geraram espiritualmente em
Jesus Christo para obrigal-os a vomitar o veneno do seo coração, e tomar
o alimento salutar, pelo qual se fortificaram para resistir de ora em
diante a todos os choques.

Passou-se isto no Brazil, como aconteceo no tempo dos Apostolos, onde
um certo numero de novos christãos de _Tapuitapéra_, seduzidos por
más palavras de um certo personagem, metade d’elles se deshouveram e
renunciaram o Christianismo; porem nós cuidamos d’elles com todo o zelo.

Assim fizeram os nossos superiores, que redobraram de cuidados para
remediar este mal levando para ahi tudo quanto julgaram necessario,
e por isso essas novas plantas, fanadas por brisa gelada, adquiriram
seo antigo vigor e florescencia, e tornando a vel-os no Forte de Sam
Luiz, procuramos animal-os a ficarem firmes e constantes na profissão
do Christianismo, e ordenamos-lhes de não se separarem de Martinho
Francisco, ahi nosso suffraganeo.

Sentia-se o diabo cercado por todos os lados, e peiores os seos negocios
de dia para dia.

N’esta epocha, em que estou escrevendo, espero que os padres que por la
andam, lhe deem terriveis combates, e que seo reinado vá de decadencia
em decadencia, até total ruina; porque antes de eu deixar a ilha, via
e experimentava a disposição geral e universal d’estes selvagens,[106]
especialmente dos meninos, para os converterem.



CAPITULO XIV

Os filhos do Brazil darão cabo do reinado de Lucifer, e começarão a
estabelecer o reinado de Jesus Christo.


O psalmista rei David, no seo psalmo 8.º—_In finem pro torcularibus,
psalmus David_, isto é, o psalmo de David, que deve ser cantado em acção
de graças ao Senhor no fim das vindimas diz, prevendo a ruina total do
imperio de Lucifer sobre as almas dos infieis, e o estabelecimento do
reinado de Jesus Christo—_Ex ore infantium et lactentium perfecisti
laudem propter inimicos tuos, ut destruas inimicum et ultorem_. «Tens
apurado teos louvores pela bocca dos meninos e das crianças de peito
á despeito dos teos inimigos, e por isso tu destroes o adversario e o
tyranno vingativo.»

Rabbi Jonathas embellezou esta passagem, e esclareceo-a por esta
forma—_Fundasti fortitudinem, ut destruas Auctorem inimicitiarum et
ultorem_ «estabelecestes a força do teo imperio pela bocca e confissão
da Fé dos meninos para mostrar tua grandesa, e destruir o autor das
vinganças e o sanguinario vingador.»

Disse São Jeronymo—_Quiescat inimicus et ultor_ «fechaste a bocca ao
seductor inimigo da salvação, e enraivecido contra os homens pela voz dos
meninos.»

Grande maravilha é o serem os meninos o symbolo da proxima fundação do
reinado de Jesus Christo e a queda do poder dos demonios.

Não me demoro em fundamentar com muitos exemplos este signal da
providencia de Deos, e assim limito-me a referir o que se passou no
Triumpho de Jesus Christo antes de sua Paixão, quando os meninos em
alta voz diziam—_Hosanna filio David_ «seja bem vindo o Filho de Deos,»
o que disse em primeiro logar o santo rei no seo cantico—_In finem pro
torcularibus_, «no fim pelas pressões,» isto é, no fim do reinado de
Satanaz, e no principio da Paixão de Jesus Christo, quando era tempo de
pagarem os meninos este tributo de reconhecimento.

Em segundo lugar, de dia a dia, na continuação, no fim, e na consummação
do captiveiro de Satanaz sobre as almas infieis, e no principio da Santa
Igreja, fundada entre ellas, principalmente pelos meninos, o que desejo
mostrar ter sido feito pelos filhos do Brasil.

Estas almas juvenis, ainda não corrompidas por antigos e maus costumes
de seos paes, mostram não sei que disposição singular e particular para
receber, como si fosse uma taboa rasa, qualquer pintura...

    (Falta uma folha.)

... repugnancia: nós lhe facilitavamos os meios de o entender comparando
com as coisas, que veem diariamente.

Assim como crescem as ostras sobre os ramos das arvores, tomando carnes
e recebendo vida entre duas conchas, sem mistura, nem effusão de semente
do humor marinho, e apenas pelo calor do sol, assim tambem o Filho de
Deos no ventre da joven, a Santa Virgem, recebeo seo precioso sangue da
materia, e o Espirito Santo, do calor, e assim tomou corpo sem alguma
outra operação humana.

Gostavam muito da comparação, e me disseram que em seo paiz muitas coisas
se geravam pela simples influencia do Sol, como os lagartos, que sahem
dos ovos, depois que recebem a vida do calor do Sol, e por isso não
tinham difficuldade em crer o que nós lhes ensinavamos, e nem que Deos se
fizesse homem para morrer afim de salvar os seos, porque, diziam elles,
_Jeropary_, apesar de ser espirito mau, entra no corpo dos monstros para
nos amedrontar, espancar e atormentar.

Sobre tudo muita admiração nos causava o como facilmente se convenciam da
verdade e da realidade de Jesus Christo, Filho de Deos, sob as especies
de pão e vinho, ao passo que viamos tantas almas vacillantes n’este
ponto, embora lhes sóbre espirito e comprehensão para outras coisas.

A este respeito não pude dizer outra coisa, senão o que disse a
Escriptura Santa no proverbio 25—_Sicut qui mel multum comedit, non est
ei bonun, sic qui scrutator est magestatis, opprimetur a gloria_.—«É
coisa tão doce como o mel, mas quem d’ella comer muito, não pode offender
mais o estomago.»

Nada ha de mais suave e delicioso do que a contemplação das obras de
Deos e a leitura das letras santas, mas para aquelle que vae muito alem,
e tudo mede pela vara de seo espirito, impellido pela soberba de seo
entendimento.

Nada ha mais seguro, que não fique opprimido pelos vivos raios da gloria
de Sua Magestade, como se observa nos mochos cegos, visto quererem olhar
e julgar da face do sol, e da sua luz.

Ao contrario, os que manejam com temor e humildade os mysterios de nossa
fé, são esclarecidos sem prejuiso de suas vistas, e docilmente obedecem a
vontade e poder do soberano, que pode o que quer, quer e faz o que diz.

Estes pobres selvagens, fallo até dos que não são ainda christãos, apenas
se lhes fazia signal de sahirem da igreja, retiravam-se promptamente,
ficando comtudo na porta, que se conservava fechada em quanto se recitava
o canon da missa, e fazia-se a communhão.

Diziam elles, em resumo, que n’essa hora descia _Tupan_ sobre os altares,
bebendo e comendo comnosco, que não tinham merecimento para ficar ahi em
frente d’elle senão quando fossem baptisados, e a maior parte d’elles se
ajoelhavam, imitando os francezes.

Os Indios christãos ajoelhavam-se apenas ouviam tocar a campainha,
juntavam as mãos e adoravam a Deos.

Ao mysterio do Sacratissimo Corpo e Precioso Sangue do Filho de Deos
elles chamam _Tupan_, quer dizer, o proprio Deos, segundo suas crenças,
_Aséreu yanondé Tupan rare_, quer dizer, «antes de morrer receberás o
corpo de Deos».

Ainda que eu reconhecesse n’elles facilidade de crer segredo tão
profundo, não me animaria a communicar-lhes senão em artigo de morte,
e antes queria deixar esta tarefa para os que viessem depois de mim,
porque dando n’um certo dia a communhão a uma India, a quem examinei
tanto quanto pude antes de lhe dar o Precioso Corpo de Jesus Christo na
Paschoa, apenas recebeo a Hostia Consagrada perturbou-se muito e não
a poude engolir a ponto de querer tiral-a com a mão o que lhe prohibi
disendo só poder ser tocada por sacerdotes, que não tivesse receio, e
nem se assustasse tendo de receber seo Deos, que era de sua vontade,
que ella recebesse a hostia e a engolisse com toda a confiança, o que
fez mediante um pouco de vinho que lhe dei a beber no calix: tão grande
secura da lingoa e bocca proveio da grande timidez d’ella em receber
tão santo manjar, o que me resolveo de então em diante a deixal-os bem
fundamentarem-se no conhecimento d’este artigo antes de administrar-lhes
o Santo Sacramento, e ainda que muitos me pedissem o _Tupan_, eu lhes
respondia que esperassem pela vinda dos nossos padres.

Não ha grande difficuldade em fazel-os confessar suas faltas, até mesmo
as proprias mulheres, e de coisas que são difficeis a este sexo declarar
aos sacerdotes, representantes da pessoa de Deos.

Mui livremente vos dizem sim e não, o tempo, o lugar, a qualidade das
pessoas, o numero de seos peccados, sem algum vexame tolo e mau como por
ahi se observa.

Não tem a menor hesitação em crer na efficacia do baptismo, que é o
lavamento dos peccados, a filiação de Deos, e a acquisição do Ceo, tendo
como certo que os baptisados vão para o paraiso gozar da companhia de
Deos, com tanto que não caiam outra vez em peccado mortal.

Acreditaram sempre, que havia inferno, onde estava _Jeropary_, e para
onde iam os maus.

Sabiam ao mesmo tempo por tradicção, que Deos era muito feliz lá em cima,
vivendo com os espiritos bons, e que seos paes que tinham tido boa vida,
iam para um lugar de delicias, onde nada lhes faltava embora terrestre.

A vista d’isto facil nos foi fazel-os entender o que deviam crer do
paraiso, do inferno e de um terceiro lugar, onde se purificam as almas
antes de irem para o Ceo, de um quarto onde os meninos, que não chegaram
a receber o baptismo, morrendo antes do uso da razão, eram recebidos para
não padecerem por nunca poderem vêr a Deos, visto ser o baptismo a chave
do Ceo.

Não se acreditaria, senão vendo-se, quanto são os selvagens curiosos por
saberem das coisas de Deos. Todos, quando com elles conversavamos, nos
faziam mil perguntas á este respeito, iguaes á estas:

Como Deos fez o Mundo?

Si o fez com suas proprias mãos, ou si ajudado pelos bons espiritos poude
fazer o Ceo, as estrellas, o sol, a lua, o fogo, o ar, a agoa, a terra,
os primeiros homens, os primeiros passaros, peixes e animaes, reptis,
arvores e hervas?

O que existia antes de feito o mundo, e o que fazia Deos vivendo sosinho?

De que forma está no Ceo?

Como faz rebumbar o trovão, e cahir a chuva?

Si falla aos homens, si viemos do Ceo, si nascemos de mulheres, si vimos
anjos e diabos?

Quem nos ensinou tudo quanto ensinavamos, si não morriamos, e depois da
nossa morte como si faziam outros padres?

Si em França haviam muitos padres, si andam vestidos como nós, si havia
um padre que fosse rei, porque regeitavamos mulheres e mercadorias?

Si a Mãe de Deos era uma rapariga como outra qualquer, si bebia e comia
como nós, porque tinha morrido, si não vinha do Ceo passeiar as vezes na
terra e fallar comnosco?

Si os Apostolos eram padres como nós, quantos tinham existido, porque os
outros _Caraibas_ francezes não eram tambem padres como nós, si fomos nós
mesmos que nos fizemos Padres, ou si foi outra pessoa?

A todas estas e a muitas outras perguntas respondiamos com a verdade, e
elles por gestos e palavras demonstravam seo contentamento.

Assim corria de maneira agradavel o tempo entre taes perguntas e
entretinimento.

É por isso que pretendo aqui deixar as diversas e mais singulares
conversações, que tive com os _Muruuichaues_, isto é, com os principaes
de _Maranhão_, _Tapuitapéra_, _Commã_, _Caietés_, _Pará_ e _Miary_.

Não quero demorar-me mais fallando em taes perguntas e respostas, visto
que as vereis mais adiante, e espero que minhas respostas vos contentarão
muito, e vos assevero que serão fielmente transcriptas até na propria
linguagem com que foram proferidas.

Espero desculpa não só por isso como tambem pelo mais que ja deixei
escripto, mormente não se achando tantos ornatos n’esta historia como
exigia a curiosidade d’este seculo.

É minha opinião, que a bellesa de uma historia consiste na verdade do
facto e na simplicidade do estylo.

Si eu não descrever palavra por palavra essas conferencias, ou si
não usar de muitas palavras, basta que não offenda em coisa alguma a
substancia do facto, sendo essa abundancia de discurso necessaria e
requerida para vos fazer entender bem claramente suas intenções, e as
nossas expressões.



CAPITULO XVI

Primeira conferencia com Pacamão, grande feiticeiro de Commã.


Tendo tido muitas conferencias com este principal e grande feiticeiro,
vou narral-as por capitulos: eis o primeiro.

_Pacamão_ é pequeno no corpo, vil e abjecto á tal ponto, que quem não o
conhece, não faria caso d’elle.

Comtudo isto é o maior e o mais graduado de todos os principaes do
Maranhão, especialmente na provincia de _Commã_, uma das mais bellas,
fertil e povoada no paiz dos _Tupinambás_.

Goza entre elles de tal poder, que somente com sua palavra tem movido
todos os habitantes, sendo extremamente temído.

É fino e velhaco tanto quanto pode ser um selvagem, e por essas
qualidades chegou a obter esse poder, grandesa e prestigio, sendo tido
por supremo curandeiro, subtilissimo feiticeiro, muito familiarisado
com os Espiritos, tendo entre suas mãos e á sua disposição a morte e a
vida, concedendo vida e saude a quem bem lhe aprouver; alem de grande
bafejador entretinha os ingenuos por meio de confissões, de lustração,
incensamento, e muitas outras coisas iguaes como ja dissemos.

Não foi dos primeiros a visitar os francezes e fazer-lhes seos
offerecimentos, desejando vêr o que elles queriam, porque tinham vindo
aqui, e como se estabeleceriam.

Informando-se bem de tudo isto, veio ao Forte de Sam Luiz, entrou, e
saudou agradavelmente o Sr. de la Ravardiere. Vinha bem acompanhado por
indios enfeitados de pennas, trouxe comsigo a mais vigorosa de todas as
suas mulheres, cujo numero chegava a trinta.

Chegando a _Yuiret_, tendo passado o mar em nossa barca, que tinha ido
buscar farinha á sua terra, distante mais de 40 legoas do Forte de Sam
Luiz, fez saber ao Sr. de la Ravardiere, que ia ao seo Forte, e foi
esperado.

Formou sua gente, uns atraz dos outros, e todos o acompanharam.

Andou ao redor das casas, situadas na grande praça de Sam Luiz, fallando
como era de costume, apregoando sua grandesa, o seo amor aos francezes, o
objecto da sua visita, e tambem o valor e poder dos francezes.

Acabado isto, aproximou-se da porta do Forte, perto de um quartinho, onde
estavam alguns francezes observando o que elle fazia.

Ordenou á sua mulher, que se prevenisse para carregal-o até a casa do
governador, e foi obedecido promptamente, escanxando-se na cintura d’ella
como usam os indios quando carregam seos filhos: assim entrou no Forte,
e dirigio-se ao dito senhor: sua mulher era negra como o diabo e pintada
desde a planta dos pés até a cabeça com o succo do genipapo.

Antes de ir adiante pensae si era possivel conter o riso, vendo-se um dos
Principaes do Brazil montado em tão bello cavallo.

Foi comtudo muito bem acolhido, e disse o que lhe veio á mente para
desculpar-se, findo o que, e depois de tratar dos seos negocios, veio á
minha casa, em São Francisco, acompanhado por gente implumada.

Mandei logo armar-lhe uma rede de algodão bem alva, onde assentou-se, e
pedindo a um dos seos companheiros o seo caximbo, este o entregou ja com
fogo.

Depois de ter tomado tres ou quatro caximbadas, exhalando o fumo pelas
ventas começou assim a fallar-me grave e pausadamente achando-me defronte
d’elle n’outra rede:

«Ha muitas luas, que eu tive vontade de te vir vêr e aos outros Padres;
mas tu, que fallas com Deos sabes, que não é bom e nem prudente ser-se
leviano e facil, mormente nós outros que fallamos com os Espiritos, e
mover-nos com as primeiras noticias e pôr-nos á caminho, porque sendo
observados pelos nossos similhantes, elles nos imitarão.

«O poder, que alcançamos sobre nossa gente, se conserva por certa
gravidade em nossas acções e palavras.

«Os intromettidos, e os que a primeira noticia apromptam suas canoas, se
emplumam e vão logo vêr o que ha de novo são pouco estimados, e nunca
chegam a ser grandes Principaes.

«Foi isto o que me impedio e embaraçou de vir logo.

«Os habitantes de _Tapuitapéra_ e muitos de minha provincia vieram antes
de mim, porem são menos do que eu.

«Alegro-me com a vossa vinda, porque saberei que ha Deos: sou mais capaz
de o saber do que um só dos meos similhantes: não desejava que um só
d’elles me precedesse ou que tu o levasses diante de mim, e o fizesses
fallar com Deos.

«Quando me ensinardes o que é _Tupan_, terei mais autoridade e serei mais
estimado, do que actualmente, e em meo paiz occuparei o primeiro logar
depois de ti.

«Dize o que queres que eu faça, e quando meos similhantes virem, que eu
sou filho de Deos e lavado todos desejarão sel-o, buscando imitar-me.

«Terei grande pesar, si estimares outro mais do que eu, porque sempre
vizei altas coisas.

«Tinha muita curiosidade de visitar e de ouvir os Francezes.

«De meos avós aprendi a historia de Noé, o qual construio uma barca, pôz
dentro sua gente, que Deos fez chuver abundantemente por muitos dias, que
a terra ficou submergida debaixo d’agoa, invadindo campos, montanhas,
valles, mar, e separando-nos de vós.

«Noé foi pae de todos.

«Soube tambem que Maria era Mãe de _Tupan_, sendo Virgem, porem Deos
mesmo fez corpo para si no ventre d’ella e quando cresceo mandou
_Maratás_, Apostolos para toda a parte, nossos paes viram um, cujos
vestigios ainda existe.

«Vós outros padres são mais do que nós, porque fallaes a _Tupan_, e sois
temídos pelos espiritos: eis porque quero ser padre.

«Muito tempo ha, que eu sou _pagy_, e ninguem é mais do que eu, porem não
faço caso d’isto, porque vejo que meos similhantes somente vos apreciarão.

«Desejaria muito que viesses a minha provincia, boa terra, onde se
encontram muitos javalys, viados, e corças, nada te faltará, e sempre
estarei comtigo.»

Respondi-lhe a tudo isto, dizendo ter muita satisfação de vel-o, ja tendo
muitas vezes ouvido fallar d’elle e do seo poder, como enganava com
certos ardis os indios fazendo-os acreditar ter em seo poder um espirito
familiar, sendo ainda maior o seo contentamento por vel-o principiar a
reconhecer sua falta, sendo certo que por seo discurso eu bem percebia
que elle não tinha a intenção, que Deos exige, para ser posto no numero
dos seos filhos e lavado com agoa divina.

Replicou-me assim:

«Que queres dizer com isto, que eu não procuro Deos como convem?

«Será porque desejo ser padre como tu, fazer-me admirar mais do que nunca
entre os meos, persuadil-os a ser filhos de Deos, a procurar-te para
serem baptisados, e fazeres em minha provincia o que quizeres, que de mim
se diga que eu era o grande _Pagy_, sendo o primeiro a reconhecer Deos e
vós outros padres.

«Sendo estimado pelo grande espirito, os outros á minha sombra procurarão
a Deos e farão como eu.

«Si eu não me fizer lavar, muitos não o farão, e dirão—esperemos que
_Pacamão_ seja _Caraiba_, e depois nós o seremos, porque tem melhor
espirito e é mais esperto do que nós.

«Deves saber que antes de terdes chegado, eu ja lavava os habitantes do
meo paiz, como vós padres fazeis com os vossos, porem em nome do meo
espirito, e vós o praticaes em nome de _Tupan_.

«Eu bafejava os infermos, e elles ficavam bons: elles me diziam o que
fizeram, e eu embaracei _Jeropary_ de fazer-lhes mal.

«Fazia apparecer annos bons, e vingava-me dando doenças aos que me
despresavam. Dava-lhes agua que corria do pavimento de minha casa, o que
agora não faço e nem quero mais fazer, porque era a subtilesa do meo
espirito, que me suggeria todas estas coisas, zombando assim dos meos,
que julgavam, por falta de espirito, ser isto maravilha.

«Foi um francez que me ensinou a fazer brotar agoa do soalho de minha
casa.»

Respondi-lhe pelo meu interprete, que na sua réplica descobria não
procurar elle a Deos como era conveniente, por que pretendia por meio
do baptismo fazer-se maior e mais estimado entre os seos do que era
antes por meio de seos grosseiros embustes, visto que Deos exigia de
seos filhos, que fossem humildes, e que se arrependessem dos peccados
passados: com quanto na verdade Deos não deixe de exaltar os seos,
muito mais do que os diabos fazem com os seos sectarios, em quanto elle
tivesse esse espirito, não esperasse que os padres o baptisassem, e sim o
fariam só quando elle não fosse soberbo, e estivesse arrependido de suas
feitiçarias.

Em quanto eu dizia estas palavras, chegou o interprete do Sr. de la
Ravardiere por nome _Mingan_, a quem eu tinha mandado chamar para
conversar com _Pacamão_, porque é da indole d’esses selvagens dar mais
credito aos interpretes mais velhos do que aos moços.

Contei-lhe palavra por palavra toda a nossa conferencia até aquella
hora, e lhe pedi para fallar a elle de conformidade com os meos e seos
pensamentos.

Eis como elle fallou:

«Tu bem sabes, que ha muito tempo eu converso comvosco, e com vossos
paes, quando estavamos em _Potyiu_.

«Muitas vezes te chamei embusteiro por abusares de teos similhantes,
muito credulos.

«Tu lhes fazias crer tudo quanto querias: teos paes e todos os não
baptisados vão para _Jeropary_ no inferno, e tu irás com elles si não
fizeres o que dizem os padres.

«Quando estavamos comtigo antes da vinda dos padres, sempre zombavamos do
que faziam vós e os outros _pagys_: não diziamos palavra por não ser esse
o nosso fim, e sim colher algodão.

«Lançavamos mão de vossas filhas, e d’ellas tinhamos filhos, o que é
hoje prohibido pelos Padres, não me atrevendo por isto nem eu e nem os
outros, ir a Igreja, porque os Padres nos ensinam, que Deos prohibe a
deshonestidade.

«Tens trinta mulheres, deves deixal-as e te contentares com uma, se
desejas ser filho de Deos e receber o baptismo.

«Pensa bem e sobretudo na felicidade que si te offerece de poder
salvar-te e livrar-te das patas do Diabo.

«Teos paes não tiveram tal occasião: foi Deos que te inspirou a vir ter
com os Padres e lhes pedir o baptismo.

«Lembra-te que Deos sabe de tudo e não pode ser enganado, quer e deseja
que todos que o buscam, renunciem o diabo e suas acções.»

Respondeo assim _Pacamão_:

«Não sabes o que tenho sido entre os meos? Quanto caso fazem de meos
feitiços? Não sabes que sempre tratei os francezes como pude, e de muito
boa vontade?

«Animei sempre meos similhantes a dar-lhes suas filhas e seos generos em
troco de ferramentas: sentia-me satisfeito entre elles aprendendo alguma
coisa de novo, porque os francezes tem mais espirito e intelligencia do
que nós, e apenas soube da chegada dos Padres fiquei muito contente, e
disse aos meos similhantes—que felicidade! elles nos ensinaram a conhecer
a Deos, quero ir vel-os. Foi isto que aqui me trouxe, e é d’isto que nos
occupamos.»

Disse a _Migan_ estar elle repetindo o que eu ja havia dito, isto
é, que era bem vindo, sendo porem necessario buscar o baptismo com
arrependimento e humildade.

Migan explicou-lhe muito bem a grandeza e o poder de Deos, e a pequenez
dos homens, especialmente dos captivos de Satanaz.

Mostrou-se satisfeito, e me prometteo vir na manhã seguinte fallar
commigo dos seos negocios.

Assim finalisou-se esta conferencia, e si retiraram para o Forte depois
de ter cada um bebido um pouco de agoardente.

Vamos notar muito bellas particularidades n’este discurso, que não seriam
entendidas ou passariam desapercebidas si não fossem indicadas.

Em primeiro lugar o falso zelo d’estes selvagens em conservarem sua
autoridade e prestigio entre os seos, não fazendo acção alguma sem
reflectir, pela qual possam ser mal apreciados pelos seos inferiores,
tão levianos e imperfeitos como elles, e por conseguinte tão incapazes
de entretêr os espiritos familiares como elles: supponhamos que para ter
o gozo dos espiritos é preciso ser constante e grave, e não se deixar
levar pelas primeiras informações. Pensando n’isto, vêde como os diabos
abusam da luz natural do homem, que claramente nos faz vêr si desejamos
conservar em nós o verdadeiro espirito de Deos, sendo conveniente banir
a leviandade e inconstancia do nosso interior, reconcentrar-nos com
firmesa, e nada fazer ou dizer, que não seja discutido e decidido pela
rasão.

De outra fórma somos menores em relação a profissão do Christianismo, do
que estes feiticeiros, que se esforçam a ser graves procurando conquistar
a estima de seos similhantes.

Em segundo lugar notareis os effeitos do espirito diabolico, que são
a soberba e a grande presumpção, que já se abriga até entre as coisas
sagradas: tão grande é o seo veneno a ponto de querer atacar o seo
contrario, visto não haver maior antagonismo do que entre o Espirito de
Deos e o de Satanaz, a humildade de Jesus Christo e a soberba de Lucifer,
a abnegação do Christão e a presumpção dos filhos do diabo!

Assim procedia Simão, o magico, para com S. Pedro, procurando com seo
dinheiro o Espirito de Deos, afim de se fazer reconhecido como grande por
meio do Espirito Santo.

Que grande cegueira julgar Deos vassallo da vaidade!

Que desgraça estar uma alma presa por infernaes obscuridades!

Este pobre feiticeiro do Brazil julgava no principio, que tinhamos Deos
em nossa algibeira para dal-o a quem bem nos aprouvesse, obedecendo elle
a quem o entregassemos.

Com o fim de se apoderar de sua alma o diabo o escravisa e o obriga a
commetter mil loucuras, inspirando esse _Pagy_ para isso. Deos nos livre
de tal perigo!

Em terceiro lugar—quanto ao que elle disse de Noé e da Virgem não
ousarei dizer d’onde elle teve essas ideias: si foi dos francezes, não
parece muito, porque os que vieram antes de nós só lhes fallariam de
obscenidade, e concubinatos; é mais provavel, que fosse de tradicções
antigas, porque apenas chegamos a _Yuiret_, _Japy-açú_ nos fallou quasi
da mesma maneira do diluvio e de um Apostolo, que por aqui andou, como se
lê na obra do Reverendo Padre Claudio d’Abbeville.



CAPITULO XVII

Segunda conferencia, que tive com Pacamão.


Na manhã seguinte veio vêr-me, como me tinha promettido, em companhia de
sua gente.

Não quiz assentar-se na rede, e pegando-me na mão disse-me _Ché assepiak
ok Tupan_ «eu te rogo leva-me a vêr a casa de Deos quero fallar-te
conforme teos discursos de hontem á tarde.»

Disse-lhe, que me acompanhasse, que satisfaria seos desejos, e assim o
fiz.

Logo que entraram todos, mandou que ficassem na porta e proximando-se de
mim fallou-me em segredo—aquelles, nada sabem e nem entendem o que se
fallar á respeito de Deos, por tanto quero que conversemos á vontade.

Mandei ornar a nossa Capella com os melhores paramentos, e pôr sobre os
degraos do altar muitas e differentes Imagens.

Aproximamos-nos do altar sempre acompanhado pelo intreprete.

Por mais de duas horas indagou de mim tudo quanto via.

1.º Quiz saber o que significava o Crucifixo dizendo-me—quem é este morto
tão bem feito e tão bem estendido n’este pau encruzado? Expliquei-lhe
que isto representava o Filho de Deos, feito homem no ventre da Virgem,
pregado por seos inimigos sobre esse madeiro afim de ir ter com seu
seo Pae, felicidade que alcançariam tambem os que fossem lavados com o
sangue, que elle via correr de suas mãos, pés e lado.

Conservou-se admirado por algum tempo, olhando com muita attenção a
Imagem do Crucificado: exhalou depois um suspiro, e soltou estas palavras
como _omano Tupan?_ «Que! será possivel que Deos morresse?»

Repliquei-lhe não ser necessario, que elle pensasse que Deos tivesse
morrido, porque sempre viveo desde a eternidade, dando vida aos homens
e aos animaes: o que falleceo foi o corpo somente, que elle tomou da
Virgem Santa Maria para matar _Jeropary_, como elle via fazer aos meninos
quando querem apanhar um peixe grande no mar, que devora os pequenos,
deitando como isca no anzol de sua linha o corpo de um d’esses peixinhos,
o que sendo visto pelo peixe grande atira-se sobre elle e vê-se pilhado,
puxado, derribado e morto, em favor e livramento dos pequenos.

Assim tambem este mau _Jeropary_ ia devorando todos os nossos Paes, porem
aprouve a Deos enviar seo Filho para pescal-o á linha, servindo de haste
esta Cruz, de anzol ou de croquezinho estes cravos e espinhos, e d’isca
seo corpo.

Mas, respondeo-me elle, porque havia o diabo de ter poder sobre nossos
paes?

Porque, respondi, elles foram rebeldes á lei de Deos, comendo do fructo
prohibido, e deixaram-se enganar pelo diabo, debaixo da forma de serpente.

Com quanto Deos nos podesse salvar por outros meios, achou mais docil e
rasoavel tomar o rapinador em lugar de suas victimas.

Mostrou-se contente, e perguntou—o corpo de _Tupan_ está ainda em França
sobre a Cruz, como este que tu me mostras, e tu o vistes?

Não, respondi, porem resuscitou pouco depois da sua morte, levando seo
corpo lá para cima, lá para o Ceo, vivendo e brilhando como o sol,
sentado no mais bello lugar do Paraizo, vindo curvar-se diante d’elle
todos os espiritos e almas de pessoas de bem, e agradecer-lhes a morte do
seo inimigo.

Com a protecção d’este corpo, os nossos, depois de mortos, resuscitarão e
irão para o Ceo levados pelos Anjos, isto é, nós que somos lavados com o
sangue derramado de suas chagas.

Vossos corpos e os de vossos paes irão ter com _Jeropary_ arder em fogos
eternos, si não fordes lavados com este sangue.

É necessario, disse elle, correr muito sangue de seo corpo, e que vós o
guardeis com todo o cuidado para lavar tanta gente.

Respondi—és ainda muito obtuso para comprehenderes estes mysterios.

«Basta ter sido espalhado uma unica vez esse sangue sobre a terra, e que
em memoria e respeito a elle lavemos espiritualmente as almas com agoa
elementar, que derramamos sobre vossos corpos.

«Não vês correr sempre uma fonte, ainda que cavada uma só vez pela mão de
Deos?

«Tu bem sabes, que as constellações sete-estrellas e a ursamenor foram
pregadas uma só vez no Ceo, e com tudo todos os annos, apenas brilham por
cima da tua cabeça, ellas te mandam chuva, que rega tuas roças.»

Disse ainda:

«Eram malvados os que mataram _Tupan_, porque elle era bom, eu o amo, e
n’elle creio.»

Respondi-lhe. Foram seduzidos por _Jeropary_, como tu, que os animou a
perseguil-o, a matal-o, e crucifical-o, porque elle os censurava por sua
maldade, como nós agora fazemos, seguindo em tudo a lei, que nos deo.
Todos os que obedecem ao diabo são seos inimigos e si elle hoje voltasse
ao Mundo passaria por iguaes soffrimentos, repetindo os actuaes o mesmo
que fizeram os outros antigamente.

Respondeo-me—desejava que me desses uma Imagem como esta para levar
commigo quando regressasse á minha provincia. Repetirei palavra por
palavra á meos similhantes o que acabas de dizer-me, e farei para ella
melhor casa do que esta, eu a fecharei muito bem, só eu entrarei ahi, e
algumas pessoas capazes de entenderem as explicações, que me destes.

Respondi—quando fores baptisado, nós te daremos licença para fazeres uma
casa, onde levantaremos um Altar igual á este, com iguaes ornatos, e com
Imagens como as que estás vendo.

2.º Nos pés do Crucifixo havia uma Imagem de Nossa Senhora, feita em
bordado alto, de extrema belleza, e revestida de perolas, presente
do Sr. de S. Vicente quando regressou á França: olhando para ella,
perguntou-me—quem é esta mulher tão bonita, e este menino que olha para
ella de mãos postas? Eu lhe disse, que era a figura de Maria, Mãe de
Deos, e este menino é o filho de Deos quando sahio do ventre d’Ella.

Repetio estas palavras duas ou tres vezes—_Ko ai Tupan Marie?_ «Como é
Maria Mãe de Deos?» _Kugnan Ycatu_, «linda mulher.»

Respondi, que assim devia ser, pois que Deos a escolheo para Esposa e Mãe
de seu Filho, que era a Princesa de todas as mulheres, tendo tido por
marido Deos unicamente, e que sendo pura deo á luz o Filho de Deos, que
tinha resuscitado depois da sua morte, como aconteceo a seo Filho, sendo
levada para o Ceo pelos Anjos, onde estava assentada ao pé do corpo de
seo Filho.

Que grande coisa, disse elle, uma Virgem parir. Como, respondi eu, não
vês crescerem as ôstras nos ramos das arvores, só e unicamente, sem
auxilio algum?

Deos ama a puresa, porque elle é mais puro do que a luz do sol.

È verdade, respondeo, porem vós, e os outros padres, sabeis grandes
coisas, sois mais sabios do que nós, porque não prestamos attenção ás
coisas da nossa terra, que vemos todos os dias, e vós em tão pouco tempo
já as conheceis.

Ainda não é tudo, disse-lhe, vinde commigo, e prestae attenção ao que vou
dizer-vos por intermedio do meo interprete para repetirdes tudo, quanto
souberdes, aos teos companheiros, que ficaram na porta por tua ordem,
visto ser da vontade de Deos que todos se salvem grandes e pequenos.

Dizendo-lhe isto, fiz-lhe vêr todas as peças e quadros da creação e
da redempção, apontando-lhe todas as suas diversas partes: n’uma, por
exemplo, a creação dos Ceos e dos elementos, n’outra a creação dos peixes
e dos passaros, e n’outra a creação dos animaes, das arvores e das
hervas: causava prazer vel-os olhar com muita attenção para as figuras
dos passaros, dos peixes e dos animaes afim de conhecerem os da sua
terra, e quando descobriam um parecido, não deixavam de dizer-nos—eis tal
passaro, tal peixe, e tal animal, e os que não conheciam perguntavam
si haviam em França, e como se chamava. Captivou-lhes principalmente a
attenção a figura de Deos, no meio do quadro, com os braços abertos,
soltando da bocca um forte sopro de vento, e me perguntaram o que isto
queria dizer?

Expliquei-lhes, que isto representava a maneira, como foram feitas todas
as coisas, apenas com a palavra de Deos, cujo poder e dominio estendia-se
ás duas extremidades do Ceo.

Admirou-se tambem muito da mulher ter sido formada pela costella do
homem, quando dormia, pedio-me explicações, e assim o satisfiz dizendo,
que Deos quiz com isto que elle tivesse uma só mulher e não mais de
trinta como elle tinha; porque si Deos quizesse, que tivesse mais de uma,
elle o teria permittido desde o principio, e sendo creado somente uma e
ainda á custa da costella do homem assim demonstrou, que este só devia
ter uma mulher, a quem amasse e conservasse, e não mudal-a á capricho da
vontade, como fazeis vós outros, sectarios de Jeropary, que vos persuadio
terdes muitas mulheres afim de indispor-vos e estrangular-vos uns com
os outros, visto que costumaes roubal-as até na casa de seos proprios
maridos.

Na escada do altar estavam as imagens dos doze Apostolos e o padre Sam
Francisco, muito bem feitas e illuminadas.

Perguntou-me quem eram esses _Caraybas_?

Estes doze, respondi, são doze _Maratas_ do filho do _Tupan_,[107] os
quaes, depois que subiram ao Ceo, dividiram o Mundo Universal em doze
partes: tomou cada um a sua, onde foi guerrear _Jeropary_, e lavar todos
os crentes em Deos, deixando successores, que foram se revesando até nós.
Peguei na imagem de S. Bartholomeo, e lhe disse—Olhae, veio a vossa terra
este grande _Marata_, e aqui fez muitas maravilhas, como por tradicção
vos contou vossos antepassados. Foi elle quem fez talhar, á rocha, o
altar as imagens, e as inscripções, que ainda existem actualmente, como
tendes visto.[108]

Foi elle quem vos deixou a _mandióca_, e vos ensinou a fazer pão, pois
vossos paes, antes de sua vinda, comiam só raizes amargas dos mattos.

Como não quizestes obedecer, elle vos deixou, predizendo grandes
desgraças, e que ficarieis por muito tempo sem vêr _Maratas_.

Tal qual aconteceo, e só agora é que tivestes quem vos livrasse das mãos
do diabo, e vos fizesse filho de Deos.

Tomae cuidado em não fazerdes o que fizeram vossos paes.

Logo que lhes transmitti estas palavras pelo meu interprete, olhou para a
imagem de Sam Francisco e me disse—quem é aquelle que está vestido como
tu?

É, disse eu, o pae de nós outros padres, que assim se vestem.

Vive ainda? replicou, está em França? Foi elle quem te mandou para cá e
aos outros padres?

Não, respondi, ja não vive, morreo, porque nós todos morremos, porem
deixou successores, que nos mandaram para cá. Não está mais em França, e
sim no Ceo com Deos, onde esperamos ir vel-o.

Não tinha mulheres, como vós não tendes? perguntou.

Não, respondi, porque todos os padres não as tem, imitando assim o Filho
de Deos, seo Rei, que vivendo n’este mundo não tinha mulher.

Dizendo isto, olhava o Ceo e as sanefas que cobriam nosso altar, as quaes
eram de bello damasco com grandes folhagens, agaloadas, e guarnecidas de
passamanes e franjas de prata fina, bem como o frontal do altar.

Disse depois que tudo era bonito, e que serviamos _Tupan_ com grande
reverencia e pedio-me para baptisal-o antes do seo regresso, e que lhe
desse imagens para leval-as comsigo.

É preciso, respondi, que saibas antes a doutrina de Deos.

Não me dissestes ja, replicou elle, tudo quanto era necessario saber para
ser lavado?

Não, respondi, isto não passou de uma conversa: ha ainda muito que
aprender.

Que me ensinarás ainda?

Respondi—si quizeres morar commigo eu te ensinarei, ou te farei ensinar
muita coisa, mas não te posso baptisar ja, sem primeiro saberes a
doutrina de _Tupan_. Quero experimentar tua constancia, e esperar
nossos padres que não tardam a chegar conforme me prometteram. Elles te
baptisarão, e irão comtigo fazer a casa de Deos na tua aldeia, e não te
deixaram mais.

Antes d’isso não deixes de repetir na tua _caza grande_ á teos
similhantes o que sabes: não faças mais feitiçarias, e assim nós, e todos
os francezes, te estimaremos, e sempre serás bem vindo.

Prometto, disse elle, e cumprirei minha palavra. Bem desejo que tu me
lavasses agora. Não deixarei de te vir visitar muitas vezes, porque
sempre aprenderei alguma coisa.

Chamou então seos companheiros, que ficaram por todo este tempo na porta
da igreja.

Que obediencia e respeito entre os selvagens! Mandou que se aproximassem
ao altar e á elles repetio o que lhe ensinei, mostrando-lhes as imagens e
explicando o que representavam.

Esta pobre gente estava como que fóra de si, mostrando-se admirada a seo
geito, e depois despedio-se e foi para o Forte de S. Luiz, onde embarcou
e regressou á sua terra.

Veio depois visitar-me para tratar do mesmo objecto, e contou-me como
cumprio suas promessas, fallando na _caza grande_, e repetindo o que lhe
ensinei, e affirmou que todos se fariam christãos logo que elle fosse
baptisado, o que me pedio ainda uma vez.

Animei-o a continuar a proceder assim, e dei-lhe esperança de que seria
baptisado em pouco tempo, apenas chegassem os Padres de França.

Conversamos ainda sobre os objectos, de que já nos tinhamos occupado da
primeira vez, e com avidez recebia todos os conhecimentos mostrando por
seos gestos indizivel contentamento.

N’esta segunda visita, veio mais modesto, e acompanhado por poucas
pessoas, sem muitos enfeites de pennas, e fallando com muito menos
arrogancia do que o fez na primeira vez.



CAPITULO XVIII

Conferencia com o grande feiticeiro de Tapuytapéra.


O grande feiticeiro de _Tapuytapéra_ era homem muito respeitavel, de boa
estatura e bem feito, valente guerreiro, modesto, grave, e de poucas
palavras: era muito amigo dos francezes, e gozava entre os habitantes do
seo paiz do mesmo poder, que Pacamão em _Commã_, Japy-açú em _Maranhão_,
o Arraia-grande entre os _Caietés_, Thion e Farinha-molhada entre os
_Tabajares_, rico, e de muito bons filhos, que são fieis aos francezes e
christãos, como d’aqui ha pouco diremos.

Veio ao Fórte de S. Luiz seguido por perto de tresentos a quatrocentos
dos seos companheiros para fazel-os trabalhar nas fortificações, e
regressar á seos lares depois de acabarem seo tempo, revesando-se assim,
e nunca menos de dusentos a tresentos selvagens.

Durante as horas do trabalho assentava-se elle junto aos francezes
mais graduados, ahi vigiava a sua gente, animava-a, e recommendava-lhe
perfeição de obra.

Fui vêl-o n’essa lida, desculpou-se muito para commigo, por intermedio
do seo interprete, por não me ter vindo vêr logo que chegou a Ilha, por
estas palavras:

«Não te fui procurar, embora tivesse muito que conversar comtigo, porem
deve ser com descanço.

«Agora é preciso vigiar minha gente no trabalho, afim de se empregar com
animo na fortificação d’esta praça.

«Não deixarei de te ir vêr com _Migan_, que está aqui para te fazer
sabedor do que eu digo, contando-me tambem as maravilhas, que ensinas aos
nossos similhantes.»

Respondi-lhe, que achava isto bom, e que estava contente vendo-o assiduo
no trabalho para que fóssem bem feitas as trincheiras e fóssos afim
de resistirem a seos inimigos, e que depois si nos offerecia occasião
de conferenciarmos: que era só isto, que eu desejava, que nós todos o
estimavamos e muito, tanto por sua bondade natural como porque elle era
amigo dos francezes, e sempre fiel.

Assentamos-nos depois um em frente do outro, conversamos sobre muitas
coisas indifferentes, especialmente do enthusiasmo de sua gente, e
particularmente das crianças, que carregavam terra, o que causava a elle
e á nós muita satisfação, fazendo-me dizer e a proposito, que bem razão
lhes assistia n’esse trabalho, cheio de fervor e de coragem, pois era
para elles, que se lidava, visto que um dia veriam as maravilhas feitas
pelos francezes n’esta terra.

«Serão bem differentes do que somos, dizia elle, porque serão _Caraibas_,
andarão vestidos, e verão as Igrejas de Deos construidas de pedra.»

Confirmei em minha resposta a felicidade de seos filhos no futuro,
assegurando-lhes, que d’ella tambem gozariam porque não haveria muita
demora na vinda de soccorros e navios de França trazendo muitos Padres,
muitos francezes guerreiros, muita ferramenta e generos para elles:
que então se construiriam casas á maneira dos francezes, que seriam
acompanhados por elles quando fossem guerrear seos inimigos, que viriam
os _Tupinambás_ e os outros alliados cultivar a terra da _Ilha_, e que
tudo isto poderiam vêr antes de morrerem.

Ditas estas palavras despedi-me d’elle, e regressei á minha habitação.

Quando acabou o tempo do seo trabalho veio visitar-me, acompanhado pelos
principaes da sua Nação, e pelo interprete _Migan_.

Assentou-se, e pedindo fumo, como costumava, me disse estas palavras:

—Antigamente usei de muitas feitiçarias para me tornar grande e
authoridade entre os meos.

Muito tempo ha que conheci este abuso, e que zombo dos que se empregam
n’este officio.

Não ignoro a existencia de um Deos, porem não sei conhecel-o.

Seria impossivel o giro annual do sol, a existencia de ventos e chuvas, e
o forte estampido dos trovões si não houvesse um Deos, autor de tudo isto.

Temos então homens maus, que vivem livremente sem temer algum castigo, e
pensamos que elles irão ter com _Jeropary_.

Temos outros homens, que são bons, que não matam, que dão expontaneamente
a sua comida, e pensamos serem elles amados por Deos, e por tanto que não
vão cahir no poder do diabo.

Alegrei-me muito quando me noticiaram a vinda dos padres, que faziam
conhecer _Tupan_, e que em seo nome lavavam os homens: foi este o
principal motivo, que aqui me trouxe para vos vêr, e manifestar-vos o meo
desejo de ser instruido e baptisado, porque ja soube, que dissestes serem
condemnados os não baptisados, e que se perderam nossos paes.

Tenho muitos filhos, quero que sejam christãos, como eu afim de irmos
todos para a companhia de Deos.

Desejo edificar na minha aldeia para elle uma casa, e junto d’ella outra
para vós: eu o sustentarei e nada lhe faltará.

Os que na minha provincia confiam e tem fé em mim, serão christãos.—

Traduzindo-me o interprete tudo quanto acima escrevi, acrescentou «este
homem tem muito amor a Deos, e conhece-o muito, porque usa das palavras
mais expressivas da sua lingua para melhor exprimir o que sente e
conhece, e tenho muita pena de não poderdes entendel-o e conhecer o que
elle diz. Respondei conforme seos desejos, fazei com que elle entenda
estas palavras, o mais eloquentemente que puderdes.»

«Informaram-nos os francezes muito bem de vós e de vossos filhos, tanto
de vossa fidelidade, e amisade, como de vossa natural bondade: eis o
verdadeiro meio de cedo receberdes o favor de Deos, alcançardes seo
conhecimento e seo baptismo. Tu o vês ordinariamente diante de ti quando
a terra produz facilmente muitos fructos, provenientes da semente n’ella
lançada.

«O homem é a terra, e o Evangelho a semente: quando Deos encontra boa
terra, sem cardos e nem espinhos, elle ahi lança sua semente: á vista
disto muito espero de ti e de teos filhos, e te asseguro que si fossemos
mais nós os padres, tu já levavas um comtigo: tende porem paciencia,
breve chegarão outros.

«Não deixes comtudo de edificar a casa de Deos e a dos padres, para que
apenas cheguem, possas leval-os e acommodal-os.

«Não podes demorar-te aqui muito tempo em virtude do teo cargo: nós como
somos poucos, não podemos tambem ir comtigo; conserva teos bons desejos,
e Deos te ajudará.

«Conheci ja que tens muito amor a Deos, que seo espirito tocou-te o
coração, e illuminou-te o entendimento para te guiar no que me dissestes:
é grande bem para ti, não o despreses.»

Respondeo-me assim:

—Nunca fui mau, nunca me agradaram as carnificinas dos nossos escravos.
Nunca roubei as mulheres dos outros, contentava-me com as minhas. É bem
verdade, que me fiz temido ameaçando os que me despresam com molestias,
que contrahiam por medo.

Nunca fallei com Espiritos, como fazem os outros _pagés_, e apenas
empreguei a subtilesa da minha intelligencia, e a grandesa da minha
coragem. Minhas feitiçarias concorreram menos do que a coragem, que
muitas vezes hei manifestado na guerra, para conquistar a authoridade que
hoje occupo.

Estou velho, e só ambiciono paz e tranquilidade.—

Respondi-lhe haver procedido bem, irritando contra si muito menos o
soberano, á vista do comportamento de outros feiticeiros, que entretinham
relações com o diabo, e que assim ficasse gosando a tranquillidade de sua
consciencia até o dia do seo baptismo.

Pedio-me para vêr a Capella, e buscou informar-se de tudo quanto
via—altares, paramentos, e imagens.

Expliquei-lhe tudo bem á sua vontade, e assim despedio-se de mim para
regressar ao seu paiz, o que fez. Dei-lhe imagens para levar comsigo,
o que recebeo com muita alegria, e expliquei-lhe o que significavam, e
recommendei-lhe que as guardasse com todo o cuidado para que _Jeropary_
não as tomasse, visto ter sido vencido antigamente pelo Filho de Deos,
que morreo na Cruz.

Com taes impressões partio.

Pouco tempo depois foi convertido Martinho Francisco a quem permittimos
edificar uma Capella na sua aldeia, onde celebrariamos missa, e
baptisariamos quando fossemos a _Tapuitapéra_.

Este grande feiticeiro, de quem acabamos de fallar, teve ciumes, e
mandou-me dizer, que muito se admirava de eu ter dado licença a Martinho
Francisco para fazer uma Capella na sua aldeia antes d’elle construir uma
na sua, preferencia que elle bem merecia pela sua grandesa, tendo tambem
padres comsigo como lhe fôra permittido.

Aos que me trouxeram o recado respondi não ter ultrapassado de
forma alguma minhas palavras e promessas, que era elle o primeiro
de _Tapuitapéra_, a quem tinha dado licença para fazer uma capella,
que devia preceder os outros e em quanto aos padres ainda não tinham
chegado: que quando fossemos a _Tapuitapéra_ não deixariamos de ir vel-o
e visital-o; mas que eu não podia recusar a Martinho Francisco, ja
christão, o ter junto de si uma casa de Deos para fazer suas orações.
Achou boa a resposta.

Entre os convertidos por Martinho, depois do seo baptismo, foram dois
dos filhos d’este _Muruuichaue_, e com isto teve Martinho singular
consolação, animando-os a aprender suas crenças e a doutrina christan;
porem aconteceo, infelizmente, serem elles seduzidos pelas más palavras
de um de nossos interpretes para deixarem o Christianismo.

Sabendo seo bom pae, que elles para esse fim tinham deixado seos habitos
e vestidos, lhes disse o que ides fazer? moveis-vos por bem pouco!

«Porque vos despis, e dissestes, que não querieis mais ser christãos?

«Quero agora que torneis a tomar vossos vestidos; ide procurar Martinho
Francisco na sua aldeia, e d’elle recebei a doutrina, que os padres lhe
ensinaram.

«Não vos separeis d’elle, e nem cá venham senão em sua companhia.

«Eu mandarei chamal-o para que vá ter com os padres.»

Estes rapazes obedeceram a seo pae, tornaram a tomar seos vestidos,
vieram procurar Martinho Francisco, que foi ter com o grande feiticeiro,
e veio depois em companhia de muitos christãos ao Forte de Sam Luiz para
nos declarar, e aos nossos chefes, como se passaram estas coisas, e a
ellas se deo remedio, conforme a occasião permittio.

O Revd. Padre Arsenio, acompanhado por muitos christãos, foi vêl-o em
sua aldeia, onde foi muito bem recebido, notando toda a alegria que póde
mostrar no rosto um selvagem, presenteou-lhe com muita caça, e rogou-lhes
que si quizesse morar em _Tapuitapéra_ que escolhesse para residencia
sua aldeia, e ahi seria bem acommodado, tanto quanto permitte o paiz.

Depois d’isto mandou-me seo filho mais velho, chamado _Chenamby_,
«minha orelha,» com sua mulher, ambos com carga, e um filho pequeno.
Disse _Chenamby_—Meo pae está com muito cuidado em ti, receia que não
tenhas farinha, e é isto que aqui me traz. Logo que houver milho elle
te mandará muito. Tem muita vontade de saber logo que aqui cheguem os
Padres, porque immediatamente deixará a sua aldeia, e atravessará o mar
para cumprimental-os, pedir um d’elles e leval-o comsigo para aprender a
sciencia de Deos, e ser por elle lavado.

Dois dos meos irmãos são _Caraibas_, os quaes, como sabes, se despiram,
apesar das observações, que lhe fizeram, actualmente vão indo bem, e
estão sempre com o _padre-miry_, «padre pequeno,» (sobrenome que davam a
Martinho Francisco por causa do empenho d’elle em converter as almas):
quero ser christão, conjunctamente com meo pae, minha mulher, que aqui
está, e meo filho pequeno que ella carrega, o qual chegando á idade
propria, darei aos padres para ser por elles instruido.—

Este _Chenamby_ balbuciava um pouco o francez, e entendia tambem alguma
coisa, graças ao trabalho e empenho, que para isso empregava, fallando
com os francezes o mais que podia.

Respondi-lhe em sua linguagem por meio do interprete, d’esta forma:

«Que estava muito contente por seo pae lembrar-se de nós principalmente
pela constancia da boa vontade de seo pae e de seos irmãos para com
o christianismo, e especialmente vendo elle e sua mulher dispostos a
receberem a fé christã, e a nos offerecerem seos filhos para ensinarmos o
que fosse conveniente quando comnosco estivesse.

«Exhortei-os por muitas palavras a terem elle e sua mulher constancia em
tal desejo.»

Sua mulher era de agradavel presença, moça, modesta, e trazia em seos
olhos não sei que pudor, não se animando a olhar-me directamente: alem
d’isto occultava com o pé direito de seo filho sua enfermidade, guardando
o respeito natural de não se apresentar de outra forma diante de mim,
de que tirei boa conclusão agradando-me ainda mais de suas maneiras e
procedimento: achei-a muito boa e caridosa para com os francezes, humilde
e obediente a seo sogro e marido, virtudes não pequenas n’uma india.

Antes de partir prometteo-me seo marido, que não casaria com outra, e nem
a abandonaria.

Respondi-lhe, que se assim fizesse os padres o casariam á face da igreja,
depois de baptisado.



CAPITULO XIX

Conferencia com Iacupen.[109]


Era Iacupen um dos principaes da tribu dos _canibaleiros_, conduzidos
para a ilha pelo Sr. de la Ravardiere, pae de um mancebo christão, de boa
indole, chamado João, e antes _Acaiuy-miry_, «cajú pequeno ou cajusinho.»
Teve por varias vezes o trabalho de vir de Juniparan procurar-me e
conversar commigo sobre as coisas divinas, e sobre a vaidade d’este mundo.

Um dia veio a minha casa com seo filho, e assim fallou-me:

—Tenho muito desgosto de não ser baptisado, porque sei que em quanto
estiver assim, o diabo pode perseguir-me e perder-me.

Ah! quem pode assegurar-me a vida até a noite?

Agora volto para minha aldeia, posso encontrar uma onça furiosa, que me
corte a garganta, e me mate sosinho no bosque.

Para onde irá meo espirito?

Não tenho pesar e nem inveja, que meo filho, que aqui está, se baptisasse
primeiro do que eu.

Mas dize-me: não é coisa notavel, que elle seja Filho de Deos antes de
mim, seo pae, e que eu d’elle aprenda o que devia ensinar-lhe?

Penso n’isto, e torno a pensar muitas vezes, principalmente depois
da vossa vinda, e da de outros padres: lembro-me da crueldade de
_Jeropary_ para com a nossa nação, porque tem feito morrer a todos, e
persuadio a nossos feiticeiros de conduzir-nos ao centro de uma floresta
desconhecida, onde dançariamos constantemente, alimentando-nos somente
do amago das palmeiras e da caça, succumbindo muitos por fraqueza e
debilidade.

Sahindo nós de lá, e vindo nos navios do _Muruuichaue_ la Ravardiere para
a ilha do Maranhão, armou-nos _Jeropary_ outra emboscada, instigando por
meio de um francez aos _Tupinambás_ para matarem e comerem muita gente
nossa: si não é a vossa chegada acabariam comnosco.

Ja vedes, que somos muito infelizes n’esta vida.

Perseguimos os veados e outros bixos para matal-os e comel-os, porem
elles não necessitam de ferramentas, de fogo e nem de canoas, pois
acham a comida feita: quando perseguidos n’um lugar, em poucas horas
transportam-se para outro atravessando até braços de mar, sem canôa: nós
outros porem não podemos fazer o mesmo: faltam-nos ferramentas, fogo e
canoas, e o que é mais, vem ainda perseguir-nos nossos inimigos, ora os
_Peros_, ora os _Tupinambás_, e finalmente outras nações adversarias:
finalmente a nossa posição é peior do que a dos animaes da terra.—

Respondi-lhe: «O que disseste, é bem certo, porque o diabo o que deseja
somente é matar o corpo e perder a alma, e assim procede sempre com
aquelles, com quem tem pouco a ganhar retendo-os em suas cadeias: é um
monsenhor, e trata cruelmente seos servos.

«Deos não é recebedor dos velhos, e nem dos moços. Os primeiros, que se
apresentam, são recebidos por elle, comtudo os ultimos são sempre os
primeiros, porque recebem o christianismo com mais consideração, e o
conservam com mais fervor do que os que o abraçam ligeiramente.

«Nosso Deos nos fez miseraveis n’este mundo afim de não olharmos só nas
delicias da carne, e sim para preparar-nos com destino a outra vida alem
d’esta.»

Antes de passar adiante convem explicar o que elle quiz dizer, quando
fallou da desgraça de sua nação, devida aos conselhos dos seos
feiticeiros, e á carnificina feita pelos _Tupinambás_.

Havia entre elles um grande feiticeiro, que entretinha com o diabo
visiveis relações, e gozava de tal poder entre elles que todos lhe
obedeciam.

Aproveitou-se o diabo de tal ensejo para seduzir e enganar esta populaça,
ensinando ao feiticeiro o que devia dizer-lhe para elle ir tomar posse
d’uma terra, onde tudo, facil e sem trabalho lhe appareceria á medida de
seos desejos.

Esta nação, tão cheia de prejuisos, seguio este desgraçado, não
intermediando muito tempo sem conhecer a zombaria do espirito do
conductor, porque falleceram milhares, e acharam-se no meio de vasta
floresta, dançando constantemente, como elle lhe ordenou, até que
chegasse o Espirito para lhe indicar o lugar procurado.

Ahi achou-se o Sr. de la Ravardiere, demonstrou-lhe seo engano, o que
reconhecido, seguiram-no e embarcaram-se em seos navios com destino á
Ilha do Maranhão, onde algum tempo depois um miseravel francez tendo
uma questão com o Principal d’essa gente, para vingar-se, instigou os
_Tupinambás_ a matal-a, subindo esta carnificina a cem ou á cento e
vinte, entre mortos e prisioneiros.

Tal barbaridade foi praticada cinco ou seis mezes antes da nossa chegada.

Continuemos.

Depois de minha resposta, disse-me:

—Tenho bem pesar de não poder obsequiar-vos como mereceis, porque não
tenho meios de ter escravos; outr’ora fui rico, hoje sou pobre.

Fiz o que pude ao padre, residente em _Juniparan_.

Tenho bem pesar de não traser-te caça sempre que venho vêr-te.—

Repliquei-lhe immediatamente:

«Não é isto que desejo de ti, e estou muito contente de conhecer tua
devoção, e tua boa vontade, porem ambiciono que sempre progridas de dia á
dia, e adquiras novos conhecimentos á respeito de Deos.

«Tens um padre na tua aldeia, visita-o sempre, e d’elle aprende as
maravilhas de _Tupan_.

«Tens alem d’isto teo filho, que sabe a doutrina christan; elle que a
ensine a ti e a todos de tua casa, o que fará melhor do que nós, visto
pronunciar bem as palavras da tua lingua.»

—O que acabas de dizer-me afflige-me muito, respondeo-me elle, porque meo
filho depois de christão, logo no principio, procedeo bem: ja sabia lêr
um pouco no seo _Cotiare_, e escrever, estava sempre com o padre, e o
seguia por toda a parte.

Deixou depois tudo isto, entregou-se á liberdade, esqueceo o que havia
aprendido, e foge para o matto quando o padre o procura: isto me mata
e como nada aproveito em fallar-lhe, eu te peço que tu lhe mostres, e
proves ser elle filho de Deos, e que _Jeropary_ o quer seduzir: eil-o
aqui, falla-lhe.»

Satisfiz-lhe o desejo, recordando á seo filho o fervor, com que recebeo o
baptismo, admirando-me de vel-o tão mudado a ponto de fugir dos padres,
pelo que eu acreditava andar o diabo no seo encalço si não regressasse
aos seos deveres, se não frequentasse o padre de _Juniparan_, e não
abraçasse sua antiga fé.

Ouvio-me pacientemente, e prometteo-me melhor procedimento.

Considerae, eu vos peço, o zelo de um verdadeiro pae para salvar seo
filho, como mostrou o grande feiticeiro de _Tapuitapéra_: este pae é
ainda pagão, e comtudo vós o vedes solicito, e cuidadoso pela consciencia
de seo filho.

Quantos paes ha em França, que só cuidam dos bens temporaes de seos
filhos, e despresam os espirituaes!

Veio outra vez visitar-me em companhia de alguns selvagens, seos
visinhos: rolou nossa conversação á respeito da creação do Mundo, da
providencia de Deos para com o procedimento dos homens, e da vocação
singular e particular de cada um.

—É preciso, disse, que seja Deos um Espirito poderoso, incomprehensivel
para nós, para crear com uma só palavra, como ouvimos muitas vezes de vós
outros padres, tudo o que vemos e ouvimos.

Imagino a immensidade do mar, que ha d’aqui até a França, tanto assim,
que os navios gastam doze luas no trajecto de ida e volta, e admiro que o
sol, que temos, seja tambem vosso.

Quantos passaros, peixes, e animaes existe no Mundo, todos foram feitos
por _Tupan_.—

O segundo ponto de discussão foi este:

«Vejo-me embaraçado quando penso nas diversas nações, que existem no
Mundo.

«Vejo os francezes ricos, valentes, inventando navios para passarem o
mar, canoas, e polvora para matar os homens insensivelmente, bem vestidos
e nutridos, temidos e respeitados.

«Ao contrario nós vivemos errantes e vagabundos, sem roupas, machados,
fouces, facas e outras ferramentas.

«De que procede isto?

«Nascem ao mesmo tempo dois meninos, um francez, e outro _Tupinambá_,
ambos doentes e fracos, e não obstante um nasce para gozar de todas as
commodidades e o outro para viver pobremente.

«Livres nascemos, um não tem mais do que outro, e comtudo uns são
escravos, e outros _Muruuicháues_.»

Eis o terceiro ponto de discussão:

—Não posso tranquilisar o meo espirito quando penso, que vós outros
francezes tendes mais conhecimento de Deos do que nós. Porque temos
vivido tanto tempo na ignorancia? Dizei-nos, que foi Deos quem vos
enviou, e para que não o fez antes? Nossos paes não se teriam perdido,
como succedeo. Os padres são homens como nós, e porque elles fallam a
Deos, e nós não?—

Respondi-lhe a tudo isto, dizendo «ser muito pequeno nosso espirito para
conceber coisas tão altas, reservadas por Deos só para si. Basta saber
que elle fez tudo, ama e dá o necessario a todos.»

Quando vê um individuo disposto a abraçar suas crenças não deixa de
o mandar vesitar pelos seos Apostolos, que lhe proporcionam meios de
salvar-se, sendo de crer não achar-se seo coração e espirito, antes da
nossa vinda, disposto e apto para receber tão grande luz, qual a do
Evangelho.

Estes e outros discursos similhantes, que adiante encontrareis, vos
habilitarão a julgar da capacidade de suas almas para receberem a fé de
Jesus Christo, nosso Salvador.



CAPITULO XX

Conferencia com o Principal d’Orobutin.


Era este Principal de alta estatura, muito magro, modesto e affavel, e
tinha estado doente desde a nossa chegada até quando veio vesitar-nos.

Entrou em nossa casa acompanhado por alguns dos seos, com muito respeito
e quasi a tremer.

Acolhendo-o muito bem, mandei sental-o em frente a mim n’uma rêde de
algodão, e logo conforme o costume, principiou assim a fallar-me:

«Vim hoje ter comtigo, ó padre, para duas coisas: a primeira para
desculpar-me e pedir-te que não repares o não me encontrares quando
chegaste em _Uraparis_, como fizeram _Japy-açú_, _Pira-Juua_,
_Ianuarauaeté_, e outros Principaes da ilha, e não poude tambem vir
antes de _Pacamão_, de _Aua Thion_, meo chefe, pois achava-me gravemente
doente, porem no meio de minha molestia sempre tive o desejo de vêr teo
rosto, e ouvir de tua bocca o que meos companheiros de aldeia me contavam
de vós outros padres.

«A segunda coisa que aqui me traz, é offerecer-te meos filhos, que t’os
dou, quero que sejam teos, e que os faças _Caraibas_.

«Desejo igualmente e peço-te, que venhas tu ou um dos padres á minha
aldeia edificar uma casa para Deos instruir a mim e a meos similhantes,
e declarar-nos o que _Tupan_ deseja de nós para sermos lavados, como tem
sido os outros.

«Asseguro-te que não faltariam viveres, por ser minha terra boa e
abundante de caça.»

Advirto ao leitor, que é facil traduzir as palavras e pensamentos
d’este selvagem, porem não os gestos e a vivacidade do seo espirito ao
pronuncial-os: direi apenas que suas expressões eram acompanhadas de
lagrymas e com vóz cheia de fervor e devoção revelava-me o toque do
Espirito Santo, e o ardente desejo de ser christão.

Respondi-lhe:

«Não precisa pedires desculpa pela tua auzencia quando saltamos na ilha,
porque alem de estares doente, muito longe é d’aqui á tua aldeia, e isto
só basta para seres desculpado.

«Regosijo-me muito vendo em ti tão boa vontade para comnosco, e tão
grande desejo de tua salvação, da de teos filhos e em geral da de teos
similhantes.

«Si actualmente tivessemos mais padres acredita que eu iria, ou mandaria
outro á tua aldeia, porem não podemos deixar a ilha por causa dos
estrangeiros que nos vem vêr, e ao que é conveniente corresponder.

«Logo que chegarem os padres de França asseguro-te que terás um d’elles,
porque reconheço claramente seres um dos escolhidos por Deos para seo
filho.

«Coragem, e espera o que te digo.»

Replicou-me:

«Déste-me muita consolação, porque desde que correo o boato em nossa
terra de dizerdes maravilhas de _Tupan_ e de tratardes com bondade nossos
similhantes, que eu nunca mais tive socego de espirito.

«Quando irás procurar os padres, quando da bocca delles ouvirás o que
dizem teos compatriotas? Levanta-te, e faze esforços para caminhar.

«Obedecendo muitas vezes a este pensamento, levantei-me da cama, porem
estava tão magro e descarnado, que nem pude sustentar-me nas pernas: olha
para meos braços, meo corpo, e minhas coxas, que não recobraram ainda a
carne e a gordura, que a molestia me comeo.

«Admirou-me muito quando soube ter _Marentin_ vindo tão doente
procurar-te, e receber o baptismo.

«Peço-te encarecidamente, que antes do meo regresso me ensines alguma
coisa de Deos, e acredita, que fixarei em minha memoria, e não
esquecerei uma só palavra, e mui fielmente o referirei a minha gente e a
meos filhos.

«Tenho tres filhos, sendo o mais velho este que aqui vedes: quero que
fiquem com os padres quando vierem, que se assentem á seos pés, e que
escutem com cuidado o que elles disserem, e cumpram suas ordens.

«Elles caçarão e pescarão para os padres.»

Pelo interprete lhe disse ter elle razão, e que eu não podia recusal-a,
e assim que attendesse bem ao que eu ia ensinar-lhe, e que chamasse
para junto de si seo filho e seos companheiros, o que feito principiei
a explicar-lhes o mysterio da creação e da redempção por meio de
comparações ordinarias e palpaveis.

É impossivel descrever-se a attenção e emoção, com que elle recebia estas
agoas sagradas do Redemptor.

Nunca animal algum foi tão avido e desejoso por uma fonte clara em pleno
estio, do que este saboreando a nova doutrina.

Prasa ao Ceos, sem fazer comparação alguma, que os christãos acolhessem a
palavra de Deos com tanta avidez.

Tinha as espaduas curvadas, em quanto fallei, os olhos meio baixos,
e apenas como que a furto respirava e cuspia, e n’essa occasião era
possivel presentir-se o caminhar de um rato.

No fim disse-me—que grandes coisas! nunca ouvi fallar n’ellas e nem
n’outras similhantes, porque Deos não quiz fallar comnosco, e nem com os
nossos antepassados, e nenhum _Caraiba_ ainda nos entreteve contando-as.

Acabas de dizer-me que Deos está em toda a parte, que não póde ser visto,
mas vê tudo e nos ouve, acompanhando-nos por toda a parte, e sempre
adiante: que somente os baptisados podem sentil-o e reconhecel-o, que não
tem corpo como nós, mas sim é um espirito derramado por todo o universo.

Ouvi bem, mas difficilmente comprehendo, porque não estamos costumados
a ouvir tão grandes coisas, e sim temos inclinação natural para
pescar, caçar, flechar e fazer muitos exercicios. Em quanto aos mais
entregamo-nos aos nossos feiticeiros, dotados de animo mais subtil para
conversarem com os espiritos.

Disseste-me ser Deos como o ar que respiramos constantemente, pois sem
elle morreriamos: que _Tupan_ nos dava vida e respiração, entrava em nós
e nos cercava por toda a parte como o ar: que assim como o ar existe e
vae por toda a parte, assim tambem Deos entrava e existia em todo o lugar.

Entendo bem este ponto, pois si Deos fez o ar, necessariamente é mais do
que elle.

Estou muito satisfeito por me dizeres, que _Jeropary_ apenas era criado
ou servo de _Tupan_, que é perseguido pelos espiritos bons, quando faz ou
persegue algum homem ou mulher sem licença de Deos, e que finalmente não
tem poder sobre os baptisados.

Bem fez Deos, porque _Jeropary_ é mau, e eu bem desejaria que elle fosse
açoitado até morrer pelos bons Espiritos.

Apenas eu fôr christão, si elle aproximar-se de minha aldeia, irei
atrevidamente ao seo encontro, e não terei medo algum.—

Desculpae as expressões d’este selvagem, não christão.

Escutae o resto da sua conversação.

—Era necessario, que a moça, com quem Deos se casou, fosse muito bonita,
riquissima, e a mais poderosa do seo paiz, por ser _Tupan_ o maior de
todos os _Muruuichaues_: creio que seo filho tinha grande sequito e muito
acompanhamento; porem os malvados traidores, que o mataram, eram velhacos
e cautellosos porque o fizeram occultamente pois si sua gente soubesse o
teriam defendido.

Parece-me que ficariam bem admirados quando o viram sahir vivo de sua
sepultura: devia então vingar-se dos que o fizeram morrer, mas tu me
disseste uma coisa admiravel, isto é, que elle subio para o Ceo, somente
em corpo e alma, que está sentado acima do sól, que tem olhos mais
claros que o sól e a lua, que nada se faz na terra, que elle não veja
e observe tanto na tua patria como na nossa, ouvindo distinctamente as
nossas palavras, as vossas preces nas Igrejas, escutando-as, e vindo
todos os dias sobre os vossos altares, onde com elle fallaes, bem como
todos os _Caraibas_ com liberdade, até sem abrir a bocca, não deixando de
perceber o que dizeis em vosso coração.

Disseste tambem, que foi elle quem vos mandou para cá afim de ensinar-nos
estas coisas, a meo vêr muito bellas, e não me enfadarei de ouvil-as,
porem o barco está prompto para regressar, e estão á minha espera minhas
roças, que deixei boas para a colheita.

Tudo isto obriga-me a partir, alem de não ter trazido farinha commigo.—

Respondi-lhe, que si era só por falta de farinha, que elle se via
constrangido a partir, que eu tinha alguma á sua disposição e de seos
companheiros.

Agradeceo-me a seo modo, despedimos-nos reciprocamente, e elle partio.



CAPITULO XXI

Conferencia com o Onda, um dos Principaes de Commã.


Este Principal sempre foi o pae commum dos francezes em _Commã_
honrando-os, respeitando-os, e defendendo-os contra todas as más
indisposições suscitadas, como era costume, pelos malvados e libertinos,
a ponto de ser por elles aborrecido e ameaçado de ser espancado senão
morto a não ser o receio, que tinham dos francezes.

Quando foi nossa gente ao Pará, elle a acolheu com toda a bondade e
generosidade, ambicionando ser o _chetuasap_ ordinario do chefe dos
francezes, consistindo toda a sua fortuna e felicidade em ser amado e
apreciado pelos francezes.

Tinha um filho com 20 annos d’idade, que recommendou muito ao Sr. de la
Ravardiere e a todos nós, pedindo que o acolhessemos bem, não exigindo
outra recompensa de sua fiel amisade senão a de poder seo filho viver
entre os francezes, n’uma palavra—ser francez.

N’essa occasião tinha recommendado á seo filho, que se esforçasse o mais,
que podesse, para aprender a lingua francesa, e para o conseguir com mais
facilidade ordenou-lhe que frequentasse os francezes quanto podesse,
estando sempre entre os residentes em _Commã_, e de tal fórma se houve,
que aprendeo algumas palavras de nossa lingua.

Pensou este bom homem ter obtido todas as riquezas do mundo, quando vio
seo filho balbuciar vinte ou trinta palavras francezas, e julgou ser
tempo de trazer este grande doutor aos _pays_, isto é, aos padres para
ser baptisado, e depois ser _Caraiba_, «francez.»

Tereis sem duvida notado, tanto por este discurso, como por muitos outros
precedentes e subsequentes, que os selvagens julgavam necessario ser
primeiro baptisado para depois ser francez, sendo manifesta loucura o
pensar em contrario e na verdade não se enganavam.

O verdadeiro francez é mais francez pela piedade e religião do que pela
origem, visto que Deos o felicitou fazendo-o vassallo e subdito de um
rei christianissimo, primeiro filho da igreja, e sempre seo fidelissimo
protector, como demonstrou em todo o tempo e em todas as occasiões.

Si dermos credito a Santo Agostinho, no Tratado do Ante-Christo, é elle,
que deve resistir a este Ante-Christo, como se vê em mais de um lugar.

Voltemos ao nosso homem.

Trouxe seo filho com muito respeito, e assentando-se n’uma rêde, e
o rapaz perto d’elle, desculpou-se de não ter vindo logo vêr-nos e
visitar-nos, assegurando porem ser um dos nossos melhores amigos, que
desejava ter padres com elle na sua aldeia, que os acolheria muito bem,
que nada lhes faltaria para a vida, nem javalis, veados, e outros bichos
proprios á esse fim.

É por esta fórma que todos se desculpam.

Depois d’isto, assim fallou-me:

«Sou homem de idade, como vedes, porem tenho muita força, e espero vêr
este meo filho, que aqui te trago, bom _Caraiba_, como me prometteo
o Grande, que sympathisa com elle, quer vestil-o e tel-o aqui com os
francezes.

Eis porque venho pedir-te para laval-o com agoa de _Tupan_: assevero-te,
que elle sabe tudo quanto é preciso saber, e breve o ouvirás porque tive
o cuidado que elle fallasse com os francezes, e todos me dizem que elle
entende muito.

É bom rapaz e amigo dos francezes.»

Dizendo isto, fez signal a seo filho para aproximar-se, e ordenou-lhe que
contasse tudo quanto sabia de francez.

Só com muito custo podia conter o riso, e nem si quer me era permittido
usar do interprete que ria-se a bom rir, de tal simplicidade; comtudo,
eu o tranquilisei pedindo-lhe desculpa pelas travessuras de um pequeno
papagaio, que eu tinha, a fim de não pensar que era elle o provocador do
riso.

O rapaz recitou-me a doutrina, que seo pae julgava bastante para receber
o baptismo, e o fez d’esta maneira: _bom dia, senhor, como estaes: Bem,
senhor, prompto ao vosso serviço, quereis comer, sim: pão, peixe, carne,
minha cabeça, eo chapeo, meo gibão, meo borzeguim, minha camisa_[BF]

Não pude ouvir mais com receio de arrebentar de riso.

Disse-lhe ser bastante, que só por isto eu fazia ideia d’elle não ter
perdido seo tempo.

O bom homem pressuroso interrompeo-me dizendo ter ainda que dizer-me.

Levantou-se do seo logar, tomou todos os utencilios do meo quarto, e
mostrando-me um apoz outro disse-me, que elle de tudo sabia o nome em
francez.

Aproximando-se de minha mesa, e agarrando-a com duas mãos, dizia—elle
ainda sabe o nome d’isto em francez.

Dirigio-se a seu filho, e perguntou-lhe se era verdade o que dizia. Sim,
respondeo-lhe o moço, e ainda mais, pois chamaria pelo nome tal e tal
francez, bem como tambem sabia a denominação das armas: _Um arcabuz, que
faz puf, uma espada, um canhão, que faz pataú_.

Mas, disse-lhe o pae, bem depressa saberás o resto?

Sim.

Muito bem, replicou o pae, não deixes de vir todos os dias recitar tua
lição diante do padre.

Deixando-lhe toda a liberdade de fallar afim d’eu poder conter o riso, e
d’elle dar expansão ao seo fervor, que não era isto, que eu exigia para
conferir-lhe o baptismo, e sim o conhecimento de Deos e de outras coisas
dependentes da nossa religião.

Ficou admirado de ouvir-me, reconhecendo inutil a estima que elle tinha
de vêr seo filho, grande doutor, e parecendo não entender até o que eu
lhe dizia.

Pelo interprete expliquei-lhe o meu pensamento, e elle respondeo-me não
ter ouvido ainda fallar n’isso, mas que como seo filho era intelligente
cedo aprenderia bastando-lhe apenas uma lua, para o que deixava seo filho
no Forte de Sam Luiz.

Disse-lhe que elle fazia muito, que eu o trataria o melhor que me fosse
possivel, e sempre seria bem acolhido entre os francezes.

Mas, disse eu, porque não procuras para ti o bem, que desejas a teo filho?

Ah! respondeo-me, sou muito velho: nada mais poderei aprender, como esses
rapazes, que vão ser _Caraibas_.

Como, repliquei, antes queres ir com os diabos queimar-te no inferno, do
que esforçar-te para aprenderes a sciencia de Deos? Tua velhice não é
desculpa aproveitavel.

Tens eloquencia para fallar um dia inteiro, si quizeres. Calcula ha
quanto tempo fallas, e quantas palavras tens proferido.

Não precisas aprender a quinta parte das questões, que me tens proposto,
afim de seres christão; nas palavras de tua lingua, pelas quaes
comprehendemos os objectos expressados na nossa linguagem.

Aprendeis com muita facilidade cantigas e descantes, tão compridos sobre
feitos de vossos antepassados.

Poderás assim aprender facilmente o que queres, que saiba teo filho.

Pois bem, me disse elle, vou fazel-o.

Voltando-se para o filho, recommendou-lhe que escutasse bem tudo quanto
lhe ensinassem, que não perdesse uma só palavra, e que imitasse todas as
acções dos francezes, que viria depois buscal-o para a terra d’elle afim
de ensinar-lhe o que tivesse aprendido.

Serás bem recebido, todos farão caso de ti, e se reunirão para te ouvir
contar tão boas coisas. Depois viremos procurar os padres para nos
baptisarem.

Assim fallando, olhou-me a sorrir-se.

Muito bem, disse elle: Padre, não beberemos bom vinho de França? ou
_Cauin_, que queima, isto é, aguardente?

Não terás d’ella alguma garrafa na tua frasqueira? Dá-me as chaves d’ella.

O _Muruuichaue_ me deo em sua casa um pouco, e era muito boa e muito
forte: esfregando seo estomago com a mão, dizia-me, olha, ainda sinto
ella aquecer-me.

É costume da França tirar da frasqueira a garrafa quando se recebe
visitas de amigos.

Tenho desejos de vir muitas vezes a _Yuiret_, quando chegam navios de
França para gozar do seo vinho muito melhor do que o nosso.

Vendo finalmente a simplicidade d’este homem, que foi o primeiro a
rir-se, e não tratando nós mais das coisas de Deos, foi-me necessario
rir tambem, dar-lhe agoardente, e depois de ter bebido um bom copo, pelo
interprete notou não ter eu bebido com elle, que convinha fazel-o, e que
depois elle me acompanharia.

Assim o fiz para chamar estes homens ao seio de Deos, tel-os como que
obrigados ou agradecidos a nós em tudo quanto podessemos, conforme sua
naturesa, quando n’isto não ha offensa á Deos.

Depois de achar-se um pouco enthusiasmado com o segundo copo começou a
pronunciar gutturalmente estas palavras—_Goy y katu de katogne kauin
tata_, «oh! quanto é bom, muito bom o vinho de fogo, ou o vinho que arde.»

Como mau agouro ouvi a palavra _Goy_, que é o começo para beber-se muito,
e principiei a cogitar na maneira por que havia de fechar a garrafa,
visto não haver necessidade de tal despesa, então grande pela sua falta.

Disse ao meu interprete, que a levasse, e este querendo cumprir a minha
determinação, o meo selvagem agarrou a dizendo não ser costume dos
francezes guardarem as garrafas, tiradas da frasqueira para a meza e que
por muitas vezes se tinha achado entre elles.

Reconheci que era necessario resgatar a minha prisioneira, embora ella
nada me ficasse a devêr pela sua boa composição.

Disse-lhe, que _cauiu-tata_ não era similhante ao que tinha bebido
antigamente, que perturbava a cabeça de quem o bebesse muito, que eu
devia cuidar do seo corpo e de sua saude, mas que eu ainda lhe daria um
copinho para dizer-lhe adeos, e assim foi-se satisfeito.

Veio visitar-me no dia seguinte. Prevenindo-me e indo ao encontro dos
seos desejos mostrei-lhe uma garrafa quebrada, igual a do dia antecedente
fingindo estar muito triste pela agoardente que se tinha derramado e
perdido: mostrou-me igual sentimento, e batendo na coxa me disse—Aqui
está, si tivesses permittido, nós a tinhamos bebido, e nada teria
acontecido.

o...

       *       *       *       *       *

_Faltam as ultimas folhas d’esta narração no exemplar unico da edicção
original, existente na Bibliotheca Imperial de Pariz._ (Vide o Prefacio.)

_Suppre-se de alguma forma esta falta, bem sensivel, publicando-se no fim
da obra, curiosissimas cartas, por longo tempo esquecidas._


NOTAS

[BC] Por falta de typos proprios deixamos em claro este espaço.—Do
traductor.

[BD] Quarta parte de um soldo de França.—Do traductor.

[BE] Gurupy.—Do traductor.

[BF] Em francez muito mal escripto estão estas palavras, é impossivel
traduzil-as com taes erros.—Do traductor.



ADDENDUM.


Congratulação á França pela chegada dos Padres Capuchinhos á nova India
da America Meridional do Brazil.

Grande reino, e povo francez, tens razão de louvar a Deos:
Christianissimo Reinado, de dia para dia crescem tuas alegrias, dando
sempre de ti boas novidades: sól dos reinos, flor dos povos do Universo,
és notavel por todas as maneiras.

Por tua antiguidade na fé catholica, religião christã, devoção aos
altares divinos, e fervor em ouvir a palavra de Deos.

Pelo amor e dedicação a teo Principe natural, por tua honesta
sinceridade, ou sincera franqueza, na conversação, qualidades, que
nenhuma outra nação possue como tu.

Esplendido, magnifico, e magnanimo reino sobre todos os reinos da terra.

Pela magestade da tua corôa, a bella e antiga serie de teos monarchas
até o numero de sessenta e quatro Reis, dos quaes foram uns Imperadores,
outros Santos canonisados no Ceo: e tambem pelo valor e proezas na
guerra, praticada por tua gente valerosa, liberal nobresa de gravata
branca como leite.

Pela sapiencia de tuas universidades em todas as especies de sciencias
e faculdades, pela amplidão de teos magistrados, pela prudencia de teos
respeitaveis parlamentos, pela serenidade de teos conselhos, e pelas
bellas leis de tua politica.

Que digo eu?

Povo sabio, intelligente, grande nação, illustre reino, ceo estrellado de
tão bellos espiritos delicados, parabens: és na verdade maravilhosamente
illustre!

Pela multidão de tantos prelados veneraveis, grandes bispos, ricos
abbades, e chefes de ordens.

Pelo crescido numero de tantos homens santos, notaveis pela bondade,
famosos pela sciencia, e nobres pela progenie, illustres pelos milagres
que hão florescido e brilhado dentro e fora dos teos mosteiros.

Pela tua posição entre dois grandes mares, onde por meio de teos dois
braços exerces piedade e justiça em villas tão grandes e bellas, ricas,
afamadas e populosas, n’um paiz tão abundante, e em provincias tão amplas
e copiosas, e em tão grande numero.

O que te falta para chegares ao cumulo de tua felicidade?

O que pode accrescentar-se ao ramalhete de teos louvores, á grinalda de
tuas honras, á corôa de tuas glorias, tecida em ternario, symbolisado
pelos teos tres lyzes, em campo de oiro, a não ser que hoje enriquecido
pelo Rei Luiz, o rei dos lyzes, alcances, sob sua authoridade, o cheiro
de Jesus no Ceo, e ao longe a salvação dos povos selvagens mergulhados
em trevas, e nas sombras da morte d’infidelidade, de incivilidade, e de
barbaridade.

Foste por Deos escolhido para tão grande honra, satisfação e alegria para
levar ahi, o suave nome do Redemptor, estabelecer o imperial sceptro
de sua cruz triumphante, signal sagrado, signal do Filho do Homem, e
estandarte do grande rei dos reis, sob o qual se devem reunir todos
os povos, que se desejam salvar, e então ahi semear a boa nova do seo
Evangelho, salvador dos crentes.

Outr’ora até o occidente buscando para o meio-dia pelo grande Carlos
Magno, com a sua espada de ferro, mostraste o teu valor contra os
serracenos, importunos á Hespanha.

Até ao oriente pelo grande São Luiz, uma, duas vezes, fizeste sentir
á impiedade turca, a força de teo braço, e erguido na Palestina, esse
bello estandarte da Santa Cruz por um duque de Boillon, por um duque de
Mercœur, e um duque de Nevers.

Tremeram ao ouvir o nome da França, tão fatal a elles, a quem mostraste
tua coragem com o cutello na mão.

Mas agora—_Nova bella eligit Dominus, Clypeus, et hasta si apparuerint_,
novas guerras, conquistas impertinentes, escudos e lanças, ahi se verão?
Nada d’isto, e sim a Cruz de Jesus, o altar do grande rei, exercitos com
seu augustissimo Missah, espada de Deos e de Gedeon, d’aquelle que é Deos
e homem ao mesmo tempo, agoa benta para expellir os diabos, a conquista
dos corações antropophagos ou comedores de homens pelo meio simples da
palavra de Deos, que fará despil-os de crueldade, e de então em diante
amarem o proximo como a si mesmo, abandonarem a imprudencia e o impudor,
revestirem-se com o branco da innocencia e da honestidade: oh! quanta
brutalidade adquirirá o uso da razão, e tu, ó França, foste escolhida
para fazer tal guerra? Em tua consciencia, dize-me, não é esta uma
guerra, com sceptro de liz, de rosas e de flores?

Quem ouvio jamais coisas similhantes nas batalhas do mundo? porem estas
são guerras do amantissimo Jesus.

Nada mais te falta agora depois dos teos combates de outras eras, senão
o alegrar-te de plantar a fé e a lei entre gente de ferozes costumes, e
de barbaros feitos, porem mui facil em supportar o jugo do teu humano
concurso, o que não tem podido conseguir o soberbo ou rustico portuguez.

Regosija-te pois, principe dos lyzes, por ser a tua maior gloria o
servir ao grande Rei do Ceo e da terra, de legado e de embaixada de suas
maravilhas e grandezas em ilhas remotas, e em partes longinquas da Região
Austral.

Esta sabia Princesa christianissima, muito catholica, e de magnanima
coragem, qual outra Judith, nossa grande rainha, a Regente nossa senhora
fez esta exigencia por cartas dirigidas aos Reverendissimos Padres
Superiores dos Capuchinhos da provincia de França, e de Pariz, seos
humildes servos.

Reuniram-se em capitulo para conceder ao Sr. de Rasily,
loco-tenente-general de Sua Magestade n’aquellas terras tão remotas um
certo numero de religiosos, que deviam ser consagrados á uma empresa tão
sancta como perigosa.

Sendo este desejo acolhido livremente, em lugar de quatro, que hoje lá se
acham como exploradores da terra, todos quatro sacerdotes e prégadores,
o padre Ivo d’Evreux, o padre Claudio d’Abbeville, o padre Ambrosio de
Amiens, o padre Arsenio de Paris, todos em numero de cincoenta e quatro,
presentes ao capitulo, se inscreveram e offereceram-se cordialmente para
arriscar sua vida, tão nobremente, afim de salvar esses pobres pagés,
esses pobres selvagens, esses infelizes atormentados pela tempestade do
diabo sem consolador e sem pae.

Ainda agora, para maior gloria do Salvador, foi a narração augmentada por
tres pares de cartas, mais recentes do que as precedentes. Narram ellas
a sua partida, a sua navegação, ora calma, ora tempestuosa, a sua feliz
chegada, e tantos beneficios, que Sua Magestade, por intermedio d’elles,
tem já feito, e com taes particularidades, como nunca se vio impresso.

Lêde pois.

Mas antes d’isto, para que o Deista, o Censor mundano, e o zombador
heretico não se ria de projectos tão honrosos, vindos do Ceo, convem
saber-se, que ha longo tempo fôra tudo isto prophetisado por santos
inspirados pelo Espirito Santo.

Disse o Propheta Isaias—_propter hoc in doctrinis glorificate Dominum,
in insulis maris nomen Domini Dei Israel_: pelo que eu fizer no meio da
terra glorificae o Senhor por doutrinas, pregae essas doutrinas por todas
as ilhas do mar, annunciae, e glorificae o nome do Senhor, Deos d’Israel.

Alem d’isso, eis meo Salvador, eu o unirei a mim, meo escolhido, minha
alma n’elle se completa e elle dará juiso aos gentios etc. etc.

E as ilhas esperaram attentas a lei, e eu t’a daria em alliança do povo
como luz aos gentios afim de abrires os olhos aos cegos, e tirares os
prisioneiros dos calabouços, das prisões e das densas trevas.

Louvae ao Senhor por meio de canticos por toda a terra, mares, ilhas,
e seos habitantes—_ponent Domino gloriam et laudem ejus in insulis
numciabunt_: glorificarão ao Senhor e o louvarão nas ilhas.

Prophetisa o mesmo, que ellas receberão sua lei: meo Justo está perto,
sahio meo Salvador (Deos é o Pae) meos braços julgarão os povos, as ilhas
me esperarão e sustentarão meo braço, isto é, receberão meo filho.

N’outro lugar fallando á sua igreja, que é a Romana (n’outra taes factos
nunca appareceram) diz—por que as ilhas me esperam, e no começo os navios
do mar, para que eu conduza teos filhos de bem longe.

No Capitulo 66 Deos disse pelo mesmo Propheta:

«Porei n’elles o signal, mandarei os que ja se salvaram aos gentios no
mar, na Africa, em Lidia que atiram a flecha, á Italia, a Grecia e as
ilhas longinquas, aos que não ouvirão fallar de mim e não presenciarão
minha gloria, e elles annunciarão minha gloria aos gentios, e os
conduzirão como dadiva ou offerenda ao Senhor, ricos presentes e perolas
preciosas a Deos.»

O propheta Sophonias:

«Os homens illustres o adorarão em qualquer parte e em todas as ilhas dos
gentios.»

O grande inspirador dos Prophetas por seo Espirito, Jesus Christo tambem
disse e prophetisou taes coisas.

E este Evangelho do Reino será prégado pelo Universo, como testemunho a
todos os gentios, e então virá a consummação do Mundo.

Nós outros catholicos devemos sentir grande alegria vendo cumprir-se
todos os dias a palavra de Deos tão fielmente, não por meio de uma
Assembléa reunida com tal fim, e sim pela Santa Igreja Romana, e deve em
particular este grande reino agradecer a Deos por d’elle servir-se para
levar tão longe a gloria dos seos tropheos.

O seguinte trecho vos convencerá d’esta verdade, extrahida de quatro
cartas, que d’aquelle paiz escreveo o Padre Arsenio, um dos quatro, a
saber, uma ao Revd. Padre Commissario Provincial, uma ao Revd. Padre
Custodio da custodia de Pariz, uma ao Revd. Padre Vigario de Pariz, e
uma a seo irmão, todas datadas em 27 de Agosto, e dizendo mais que a
sua quarta carta de 20. Outra carta do Revd. Padre Claudio a seos dois
irmãos, o Sr. Foulon, e o Padre Marçal,[110] e uma para dois Padres já
mencionados, escripta ao Sr. Fermanet, e para vos ser agradavel e não
repetir as mesmas, foi tudo reunido n’uma só carta, como vereis, mui
fielmente, e com suas proprias palavras.

Lêde em nome de Deos.


_Fidelissima narração, extrahida de seis pares de cartas dos Revds.
Padres Claudio d’Abbeville e Arsenio, Prégadores Capuchinhos, escriptas
aos Padres da sua Ordem de Pariz, e a outras pessoas do seculo, sendo
quatro do Revd. Padre Arsenio, uma do Padre Claudio, e uma para duas
pessoas._

_Meos Reverendos e carissimos Padres._—A paz do Senhor seja comvosco.
Nós vos dirigimos esta pequena carta para dar-vos noticias acerca da
nossa viagem, e como chegamos, mercê de Deos, felizmente a esta terra do
Brazil na Ilha do Maranhão, entre os povos _Tupinambás_, não sem grandes
fadigas.

Cinco mezes estivemos no mar soffrendo encommodos, que só podem avaliar
os que por elles já passaram, e como o Sr. de Rasilly, por estes dois
ou tres mezes, regressa á França afim de trazer-nos novos auxilios,
reservamos-nos para n’essa occasião descrevermos mais amplamente o
resultado da nossa viagem, tanto no mar como em terra, n’este novo Mundo.

Aproveitamos agora a occasião para dizer-vos e muito ás pressas, que
para aqui chegarmos foi necessario partir de Caucale, porto da Bretanha,
e já estando d’elle distante dusentas legoas do mar levantou-se grande
tempestade, que separou os nossos tres navios, uns dos outros, causando
admiração, até mesmo aos nossos melhores pilotos, o não ter algum d’elles
naufragado.

Quiz Deos porem livrar-nos d’esta desgraça, e encontramos dois de nossos
navios, arribados em Inglaterra, d’onde vos escrevemos, e creio que já
estareis de posse das nossas cartas.

Na segunda-feira de Paschoa partimos de Plymouth,[111] na Inglaterra, e
navegamos sempre com bom tempo, menos alguns dias na costa de Guiné, mui
perigosa pelas molestias do paiz.

Sahindo de Plymouth auxiliou-nos vento tão favoravel, que em pouco tempo
passamos as Ilhas Canarias, por entre as ilhas _Boa Ventura_ e _Canaria
grande_, vistas por nós perfeitamente.

Das Canarias ganhamos a Costa d’Africa no Cabo do Bajador, sempre
navegando pela Barbaria: de Bajador desviamos-nos da Costa d’Africa até
o rio chamado _Lore_ pelos hespanhoes,[112] e perto d’elle fundeamos:
sahindo d’ahi ainda nos desviamos da Costa d’Africa até o Cabo branco,
lugar bem debaixo do tropico de Cancer.

D’este Cabo procuramos a Costa de Guiné, passando entre as ilhas do
Cabo verde, o proprio Cabo verde lugar perigosissimo pelas molestias
contagiosas, ahi reinantes em certas estações do anno: esta molestia
ataca as gengivas de tal sorte, que a carne cobre os dentes, e os faz
cahir com grande perda de sangue a ponto de não se poder estancar,
sobrevindo tambem os encommodos de estomago e inchação, e d’isto tudo
resulta a morte escapando poucos: mercê de Deos ninguem morreo durante
a nossa viagem, porem apenas entramos na terra, falleceram tres, e ahi
ficaram sepultados.

De Guiné viemos-nos aproximando da linha equinoccial, que passamos bem
difficilmente, coisa ja por nós esperada á vista da estação em que
estavamos.

Soprou vento contrario por quinze dias causando-nos grandes sustos, e
receios de que não apparecessem calmarias antes de passarmos a linha:
graças a Deos, pouco a pouco, embora o vento contrario, tanto bordo
demos, que quando mal pensamos, estavamos no hemispherio do meio dia.

Passando a linha, avistamos e afinal chegamos a uma pequena ilha chamada
Fernando de la Roque,[113] situada a quatro graus de altura para o
meio dia, e a cinco para seis legoas de circumferencia, ilha bella e
agradavel, cujas propriedades, querendo Deos, havemos de descrever na
primeira opportunidade: é na verdade um verdadeiro paraisosinho terreste.

Saltamos n’esta ilha, onde apenas achamos 17 ou 18 indios selvagens, em
companhia de um portuguez, todos escravos e ahi postos por determinação
da gente de Pernambuco: d’estes indios baptisamos cinco.

Depois de havermos plantado a Cruz n’esta ilha, no centro de uma capella,
feita por nós para celebração da santa missa, e de abençoado o logar onde
residimos por 15 dias, casamos dois destes selvagens, um indio com uma
india, depois de baptisados.

Não quizemos baptisar o resto aqui, porem achamos bom addiar o baptismo
até chegarmos ao lugar do nosso destino, si bem que libertassemos todos
esses selvagens tirando-os do captiveiro, e fazendo-os livres com muita
satisfação d’elles, depois do que manifestaram ardente desejo de nos
acompanharem até Maranhão, como de facto aconteceo.

Vieram comnosco trazendo muito algodão, e outros generos, que possuiam.

De Fernando de la Roque ganhamos a Costa do Brasil, caminhando até o
_cabo da tartaruga_, terra firme no paiz dos _canibaes_, onde, diz
Euzebio, na sua _Historia_, passara o Apostolo Sam Matheus á vista d’esta
Costa do Brasil: imaginae a nossa alegria vendo terras tão desejadas após
cinco mezes de navegação.

Depois de 15 dias de demora no _cabo das tartarugas_, continuamos a
navegar, e chegamos á ilha do Maranhão, onde fundeamos no dia da gloriosa
Santa Anna, Mãe da Sagrada Virgem Maria, com que muito me alegrei,
(disse o padre Claudio) por termos tido n’esse dia, que eu tanto amo, a
felicidade de chegarmos ao lugar tão desejado.

No domingo seguinte saltamos todos em terra, levando agoa benta, cantando
o _Te-Deum laudamus_, o _Veni Creator_, a ladainha de Nossa Senhora, e
depois caminhamos em procissão desde o porto atê ao lugar escolhido para
levantar se uma Cruz, a qual foi carregada pelo Sr. de Rasilly e todos os
Principaes da nossa Companhia.

Depois de benzida esta ilha, até então _Ilhasinha_, foi pelos Srs. de
Rasilly e la Ravardière chamada _Ilha de Santa Anna_, não só por termos
ahi chegado n’esse dia, como tambem porque chamava-se Anna a Condessa de
Soissons, parenta do Sr. de Rasilly.[114]

Depois plantamos a Cruz: ao pé d’ella, estando todo o largo abençoado,
enterramos um pobre homem, tanoeiro, que vinha comnosco.

Fêz-se tudo isto com geral contentamento e demoramo-nos ahi oito dias.

Deixamos esta pequena ilha e fomos procurar a ilha grande do Maranhão,
habitada por selvagens (que são as pedras preciosas que cobiçamos) e
graças a Deos chegamos bons e bem dispostos.

Vestidos com os nossos habitos de sarja fina por causa do calor da zona
tórrida e revestidos de uma bonita sobrepelliz branca, empunhando nossos
bastões, e em cima de tudo a Cruz com o Crucificado, descemos do navio
para uma canôa, especie de batel construido pelos indios de um só tronco
de pau, onde estavam todos os selvagens, que ja tinham estado na praia
com o Sr. de Rasilly, e muitos francezes ja dos que vieram comnosco e
ja dos pertencentes á equipagem do Sr. de Manoir, e do Capitão Geraldo,
todos francezes, que aqui achamos: muitos d’estes selvagens atiraram-se
ao mar e nadaram afim de chegarem primeiro do que nós.

Assim conduzidos saltamos em terra, onde se ajoelhou o Sr. de Rasilly
e todos os francezes para nos receberem (honra não commum) e como nos
achassemos embaraçados com tal sorpresa, eu tive (disse o padre Claudio)
a feliz lembrança de entoar o _Te-Deum laudamus_ conforme o cantico da
igreja, e assim caminhamos em procissão entre lagrymas de alegria de
muitos francezes, e seguidos pelos indios.

Assim tomamos posse d’esta terra e novo mundo para Jesus Christo, e em
seo nome, esperando abençôar o lugar, e n’elle plantar a Cruz em qualquer
dia para isso designado.

Deixo as outras particularidades para contar-vos quando escrever mais de
espaço sobre esta nossa viagem.

Somente vos digo que no domingo 12 de agosto, dia de Santa Clara,
celebramos todos quatro as primeiras missas, que aqui se disseram.

Com bem razão ordenou Deos que o dia de uma Santa Virgem da nossa Ordem,
que deo nova luz ao mundo, fosse escolhido para fazer brilhar a nova luz
do seo Evangelho n’este novo mundo.

Não é possivel descrever-vos o grande contentamento, que mostraram estes
pobres selvagens com a nossa vinda.

É um povo conquistado e ganhado, povo grande, que na verdade nos ama, e
nos dedica affeição, e chama-nos grandes prophetas de Deos e de Tupan, e
em sua linguagem padres Carribain, Matarata.[115]

Depois que aqui chegamos temos tido muito boas noticias.

Os indios do Pará, outro povo, de um lado visinho do Amazonas, e do outro
d’este povo, onde existem somente cem mil homens, desejam muito que lá
vamos instruil-os.

Embora _messis multa, operarii autem pauci_ «seja grande a colheita, são
poucos os operarios.» Si quizessemos desde ja se baptisaria grande parte.

É certo que «_regiones albescunt ad messem_,» estas regiões aqui
enbranquecem mostrando a necessidade de ceifa, felizmente chegou o tempo
de ser Deos aqui adorado e reconhecido.

Agora estamos procurando lugar para nos acommodar e fazer uma Capella,
até que cheguem de França pedreiros para edificarem uma Igreja.

Existem muitas mattas virgens, que convem arrotear antes.

Não posso descrever-vos agora o grande contentamento dos selvagens pela
nossa chegada.

Dão-nos boa esperança de se converterem. Todo este povo ainda que bruto e
selvagem mostrou-se contente com a nossa chegada, tem vindo vêr-nos com
muita alegria, manifestando grande desejo de instruir-se no christianismo.

Creio que quando soubermos a lingua d’elles haverá muito que colher,
com grande satisfação para os que tem zelo pelas coisas de Deos e pela
salvação das almas.

Preparam todos os seos filhos para nos trazerem afim de serem por nós
instruidos, e ja nos prometteram não mais comer carne humana. São muito
bonachãos, e não maliciosos. Por unica religião apenas creem em Deos, que
chamam _Tupan_, e na immortalidade da alma.

Quanto ao paiz é terra fertil e muito boa, onde não ha frio, e sim estio
constante; ninguem conhece o que é frio, e as arvores estão sempre
verdes.

Os dias e as noites são sempre do mesmo tamanho: nasce o sol as 6 horas
da manhã e encerra-se as 6 da tarde.

Estamos apenas a dois graos e meio da linha equinoccial ou do Equador.

É voz geral haver n’este paiz muitas riquezas, como sejam minas de
oiro, de pedras preciosas, de perolas, de ambar-gris, alem de muitas
pimenteiras, muito algodão, muita herva da rainha, ou petum, e muito
assucar.

Brevemente, quando nos estabelecermos bem, nós vos asseguramos ser isto
aqui um pequeno paraiso terreste, com todas as commodidades e alegrias.

Não posso ir mais longe: fica o resto para quando fôr o Sr. de Rasilly, e
então hei-de dizer-vos outras coisas em particular.

Quanto a minha saude nunca passei tão bem como agora, graças a Deos e só
bebendo agoa, (palavras do padre Claudio.)

Si na França me fosse preciso fazer a millesima parte do que aqui faço,
mil vezes teria morrido, e n’isto reconheço, que _non in solo pane vivit
homo_, «o homem não vive só de pão.»

Convem que para cá venham os delicados de França.

Louvo a Deos por nunca ter enjoado, com grande admiração de todos.

Quando chegamos no paiz dos calores, justamente quando estavamos sob o
tropico de Cancer, quando o sol estava subindo, tive apenas dois ou tres
pequenos accessos de febre passageira, graças a Deos.

Deixo o mais para outra occasião, pois agora falta-nos tempo, e
sobram-nos trabalhos.

Rogae a Deos por nós, e pelos nossos companheiros, o mais que poderdes,
pois agora, mais do que nunca necessitamos da graça de Deos, sem as quaes
nada se consegue.

O que n’este sentido fizerdes, Deos vos compensará.


_Summario de algumas coisas mais particulares, referidas vocalmente aos
Padres Capuchinhos de Pariz pelo Sr. de Manoir._

O Sr. de Manoir,[116] (um dos capitães, de que se fallou na carta
precedente, que fôra encontrado n’aquelle paiz com o capitão Geraldo)
chegando ultimamente á França, e sendo portador da carta, ja transcripta
e de muitas outras (algumas das quaes bem desejariamos aqui publicar para
que não ficassem sepultadas no esquecimento as maravilhosas obras de
Deos, de que ellas fallam, como que para despertarem os homens afim de
louvarem a sabedoria, providencia, e bondade do Creador) contou muitas
particularidades dos padres, não referidas em suas cartas.

Disse, que os padres chegando ahi começaram a edificar sua morada,
construindo uma Capella para celebração da missa, e algumas cellas
pequenas para residencia, sendo coadjuvados por alguns selvagens com
alguns pannos e ramos de arvores.

N’um certo dia, quando um padre celebrava missa, chegou um selvagem dos
mais velhos, (que elles consideram seos governadores, honrando-os e
respeitando-os por causa da sua idade avançada) em companhia de trinta
selvagens para ouvirem missa, o que fizeram, admirando com grande
surpresa tão bellas ceremonias, e tão lindos ornatos, por elles nunca
visto (pois que homens e mulheres andam todos nús.)

Quando o sacerdote chegou á consagração e ao offertorio, desceo um véo
entre elle e o povo, de forma que este não poude ver aquelle, e nem o que
se fazia por detraz d’esse véo.

Julgaram isto uma affronta e mostraram-se offendidos, e por isso, finda a
missa, foram perguntar a causa de tal offensa.

Responderam os padres que n’isto não havia offensa, e que assim se fez
por serem elles ainda pagãos, não podendo ser a Missa celebrada em suas
presenças embora estando na Igreja.

Deram-se por satisfeitos e mostraram-se tranquillos, e foram contar o
occorrido ás suas mulheres, que se mostraram desejosas de vêr os grandes
Prophetas de Deos e de Tupan, e se reuniram em grande numero para tal fim.

Não quizeram porem os padres abrir-lhes a porta de sua pequena choupana
porque estavam núas, mas ellas não esperaram por segunda recusa e
metteram a porta dentro, o que não lhes foi difficil praticar, entraram
e não se cançaram de olhar e contemplar os Padres, embora se demorassem
pouco tempo, por lhes pedirem os Padres que se retirassem, o que
cumpriram.

Depois desta visita, reuniram-se os velhos em grande numero e combinaram
entre si qual devia ser o presente que offerecessem a esses Prophetas,
como demonstração de sua benevolencia e regosijo pela sua chegada.

Finalmente concordaram, visto dormirem os Padres no chão duro, que se
désse a cada um o seo colchão de algodão, que ahi floresce, e uma das
mais bellas raparigas, o maior presente que costumam fazer.

Trouxeram quatro colchões e quatro raparigas, e offereceram aos Padres,
que rindo-se aceitaram aquelles e recusaram estas com palavras de
agradecimento.

Admirados com tal procedimento, diziam uns aos outros. O que é isto?
Estes Prophetas não são homens como nós? Porque não acceitam estas
raparigas, sendo impossivel o passar um homem sem ellas? Porque nos fazem
tal offensa?

Responderam os Padres, que assim procediam, não por que reprovassem
o casamento, quando conforme ás leis de Deos, visto que até elles o
louvavam, mas como Deos havia outhorgado graças mui particulares a elles,
e não aos outros homens, porque o serviam com mais perfeição, podiam
passar sem mulheres por meio dessas graças.

Ouvindo esta pobre gente taes palavras ficaram admirados e como que fóra
de si, contemplando a santidade destes Prophetas, e d’ahi em diante os
veneraram mais, julgando-se felizes quando lhes entregavam seos filhos
para serem educados em nossa santa fé, e afinal baptisados.

Tudo isto se poderá vêr na seguinte carta, escripta por esses Padres
á um honrado mercador de Ruão chamado Fermanet, um dos seos maiores
bemfeitores, para que se veja que nada acrescentamos, e que apenas
narramos os factos pura e simplesmente colhidos n’essas cartas e em
informações de pessoas fidedignas, testemunhas occulares, e por que
n’ella se encontram particularidades não mencionados nos outros.

Eil-a:


_Carta escripta pelos Padres Capuchinhos ao Sr. Fermanet._

A paz do Senhor Deos esteja comvosco.

Depois de tantas recommendações, que nos fizestes quando partimos para
vos escrever, seriamos culpados si não vos dessemos noticias de paiz tão
bom, graças á Deos.

Depois de 4 a 5 mezes de viagem ahi chegamos felizmente, sendo bem
recebidos pelos Indios, conforme sua rusticidade, não nos importando
o modo e sim a demonstração do seo contentamento então e ainda agora
diariamente, trazendo-nos seos filhos para instruil-os o que faremos
mediante a graça de Deos.

Quando voltar o Sr. de Rasilly, por estes 2 ou 3 mezes, nós vos
mandaremos o numero dos convertidos e dos baptisados.

O paiz é muito bom, e ha esperança de produzir muito tabaco Petum, e
Urucú, havendo ja muito assucar, bellas pedras, ambar-gris, e dizem-nos,
que distante d’aqui 20 legoas ha uma mina de oiro.

Si não fosse grande a nossa pressa, nós vos dariamos mais algumas
noticias, porem não podemos alongar-nos.

Beijando humildemente vossas mãos, e recommendando-nos á senhora vossa
mulher, somos de vós e d’ella

           Vossos humillissimos servos em Nosso Senhor.

                                              Frei _Claudio d’Abbeville_.
                                              Frei _Arsenio de Pariz_.


_Narração de um marinheiro, vindo do mesmo paiz, feita ao Revd. padre
Guardião do Havre da Grace, e por este communicada ao Revd. padre
Commissario._

Revd. Padre, eu vos saúdo humildemente em Nosso Senhor.

O fim d’esta é communicar-vos, que veio hoje procurar-me um marinheiro,
que vio e fallou com os nossos Irmãos, que estão em Maranhão com os
Tupinambás, onde felizmente chegaram no dia 8 de Julho.

Este marinheiro ahi ouvio missa, e á ella assistio com muito respeito um
velho selvagem do paiz, acompanhado por 25 ou 30 indios.

Quando chegou o tempo de consagrar-se e elevar-se a santa hostia, desceo
um véo, causando-lhes isto admiração.

Recebida a explicação mostraram-se satisfeitos, e logo começaram a contar
por toda a parte o que viram, e por isso vieram muitos ajudal-os a
edificar sua habitação e Forte, ja em principio.

Veio o marinheiro em 22 de Agosto no navio de Moisset, recommendado ao
Sr. de Manoir, a quem, segundo pensa, terão nossos Irmãos entregado
suas cartas, ou a algum outro official de navio, o que me dispensa de
contar-vos outras particularidades.

Não mudaram, e nem mudarão a côr dos seos habitos, usando apenas de um
tecido mais leve do que o nosso, por causa do calor.

Deos seja louvado por tudo, e lhes conceda a graça de ahi apparecerem
muitos fructos para a gloria do seo Santissimo Nome, e exaltação da Santa
Fé da sua Igreja.

Sou de vossa Reverendissima o menor servo em Jesus Christo

Havre, 12 de Novembro de 1612.

                                    Frei _Theophilo_, indigno Capuchinho.



                                  NOTAS

                          CRITICAS E HISTORICAS

                            SOBRE A VIAGEM DO

                           PADRE IVO DE EVREUX

                                   POR

                          MR. FERDINAND DINIZ.



NOTAS.


1 (frontespicio).

Esta vasta provincia, uma das mais florescentes do Brazil, antes da
chegada dos missionarios francezes não teve estabelecimento algum
importante. Eram arbitrarios os seos limites, convindo não esquecer que
a immensa capitania do Piauhy fez parte d’ella até 1811. Presentemente
tem 186 legoas, de 20 ao gráo, de comprimento, 140 de largura, e nunca
menos de 20,000 legoas quadradas de superficie. Fica entre 1° 16′ e 7°
35′ de lat. merid. Confina ao N O com o Pará, servindo de linha divisoria
o Gurupy, á N E é banhada pelo Occeano Atlantico, a S E com o Piauhy,
separando-a d’elle o rio Parnahyba, e finalmente a S com a provincia de
Goyaz pelo rio Tocantins.[BG]

Ainda que seja quente e humido o clima do Maranhão é sadio. As chuvas que
fertilisam este rico territorio principiam regularmente em outubro.

O aspecto geral do paiz offerece por toda a parte ondulações do terreno,
mas em nenhuma offerece elevações consideraveis, exceptuando-se d’estas
asserções geraes e por força mui summarias a comarca de Pastos-bons, onde
se encontram montanhas como sejam Alpercatas, Valentim, Negro etc. É
regada por 14 correntes d’agoa.

De todos estes rios é o _Parnahyba_ o mais considerável: infelizmente
suas margens não são totalmente sadias, pois em varios pontos, como
em quasi toda a provincia, reinam as febres intermitentes. Avalia-se
seo curso em 240 legoas. O _Itapecurú_, seo immediato, e de que falla
constantemente o Padre Ivo d’Evreux, banha apenas 150 legoas de terreno,
o Mearim 78 legoas, sendo ainda menos consideraveis o _Pindaré_, o
_Tury-assú_, o _Gurupy_, e o _Manoel Alves Grande_. Julga-se que é de
462,000 pessoas a população de toda a provincia, embora diga o relatorio
official da presidencia, com data de 3 de julho de 1862, que esta cifra é
apenas de 312,628 almas, sendo 227,873 livres e 84,755 escravos. Convem
observar, que o recenseamento geral da população do Imperio, feito em
1825, dava apenas 165,020 almas, sendo esta cifra muito inferior á
realidade, porque recusaram muitos Srs. dizer com certesa o numero dos
seos escravos.

Nada se sabe, e nem será possivel saber-se exactamente, a respeito da
povoação nomade dos indios, isto é, d’aquella cujo conhecimento seria
muito curioso afim de apreciar-se as mudanças, que houveram nas aldeias
depois do que escreveo o Padre Ivo, podendo apenas dizer-se que é maior
no Maranhão, no Pará, e na nova provincia do Rio Negro, do que n’outra
qualquer parte.

Em summa o governo só tem dados mui imperfeitos e raros sobre estas
infelizes hordas, das quaes se occupa actualmente.

Os cuidados tardios, embora caridosos, da administração provincial, tem
que acabar muitos males afim de que seja completa a reparação.

Tudo ainda está por fazer relativamente aos Indios.

Não souberam estas tribus conservar nem a dignidade que dá completa
liberdade aos habitantes das florestas, e nem os principios de
civilisação, que se intentou incutir-lhes no seculo XVII.

Reconcentradas no interior por Mathias de Albuquerque, dizimadas pela
variola, hoje são apenas a sombra do que foram sob o dominio dos seos
chefes independentes.

Esta população indigena é comtudo maior nos desertos do Maranhão, e
embora d’ella não tratem certas estatisticas, é avaliada em 5,000 o
numero dos indigenas reunidos em aldeias.

Si dermos credito á um intelligente militar, que viveo em constantes
relações com elles por espaço de 20 annos, a sua decadencia physica é
menor que a moral, pois perderam até a reminiscencia de suas tradicções
théogonicas, ainda mal, visto ser muito curioso o comparal-as com a
narração dos antigos viajantes francezes.

Sob este ponto são elles menos favorecidos que os Guarayos, visitados
por Orbigny, os quaes ainda hoje repetem em seos canticos as legendas
cosmogonicas do seculo XVI.

Os indios do Maranhão, entre os quaes se contam os Timbyras, os Gés, os
Krans, e os Cherentes não podem fornecer ao historiador senão informações
mui incompletas, pois que ha perto de 40 annos já o major Francisco de
Paula Ribeiro se queixava do immenso esquecimento d’elles, (vide _Revista
Trimensal_, tomo 3.º, pag. 311) esquecimento fatal de grandes tradicções,
pelo que se tornam hoje preciosos certos livros, como sejam os dos nossos
velhos missionarios, onde pelo menos se encontram os mythos antigos, ahi
escriptos para serem combatidos.

De vez em quando entre estes indios degenerados apresentam-se alguns
homens energicos, que comprehendem o abatimento de sua raça, e que
desejariam vel-a progredir, porem são mui raros, pouco comprehendidos,
e demais só olham para o futuro, e não experimentam amor algum por sua
antiga nacionalidade.

Seos compatriotas longe de ajudal-os nos trabalhos emprehendidos para
melhorar seo futuro, ainda os amesquinham com o seo odio tão irreflectido
quam brutal.

Foi o que aconteceo a _Tempe_ e a _Kocril_, chefes conhecidos pelo major
Ribeiro. Trabalharam inutilmente para chamar ao caminho da civilisação as
tribus, cujo governo lhe foi confiado, e a final foram victimas do seo
zelo.

Vide «_Memoria sobre as nações gentias, que presentemente habitam o
continente do Maranhão escripta no anno de 1819 pelo major graduado
Francisco de Paula Ribeiro_, _Revista Trimensal_, T. 3º pag. 184.»

De passagem disemos, que não deixaram descendentes, pelo menos
conhecidos, os Tupinambás cathequisados pelos missionarios francezes,
suppondo-se apenas, que um ramo d’esta grande nação ainda hoje povôa
_Vinhaes_ e _Villa do Paço do Lumiar_, achando-se no mesmo caso _S.
Miguel_ e _Tresidélla_, a margem do rio Itapecurú, e _Vianna_, no Pindaré.

Com mais probabilidade ainda confundiram-se os Tupinambás com as
tribus do inferior, tomando os nomes de Timbyras e Gamellas. São
tambem subdivisões dos Timbyras os _Sakamecrans_, os _Kapiekrans_ ou
_Canellas-finas_, e os Gés, que vagam pelas grandes florestas á Oeste
do Itapecurú. Nega o major Ribeiro, que ainda sejam antropóphagos estas
diversas tribus. N’este escriptor imparcial, e que reconhece a ferocidade
dos Timbyras, é que se deve estudar as horriveis represalias, de que tem
sido elles os indios, sendo a escravidão a menos sanguinolenta. Elle
avaliou em 80:000 o numero d’indios selvagens, embrenhados nos mattos em
1819, hoje sem duvida consideravelmente diminuido.


2 (pag. 1).

Francisco Huby era tambem livreiro e tinha sua loja n’uma praça entre
os mais afreguezados armazens na galeria dos prisioneiros em Palacio, e
soffrera-a como os outros no grande incendio de 1618.

Quatro annos antes d’elle encarregar-se da publicação do livro de Claudio
d’Abbeville, de que este é continuação, morava na rua de Sam Thiago no
_Folle de oiro_, e não na _Biblia de oiro_, que depois tomou por divisa.

Si foi ferido na prosperidade, foi justamente por haver permittido, que
mão impia privasse a França por mais de dois seculos do livro precioso,
de que tinha sido edictor, e que hoje entregamos a publicidade, graças a
uma d’essas empresas litterarias tão raras em nossos dias, onde a honra
das letras é o pensamento dominante e superior a todas as considerações.

O volume, que servio para a nossa reimpressão é encadernado em marroquim
encarnado, semeiado do flores de lys de oiro, e com as armas de Luiz
XIII. Faz parte da reserva sob n.º 01766 da Bibliotheca Imperial de Pariz.


3 (pag. 9).

A capital do Maranhão occupa ainda hoje o mesmo lugar escolhido por seos
antigos fundadores. Está situada a 2° 30′ e 44″ lat. austral e 1° 6′ e
24″ de long. oriental do meridiano do Forte de Villegagnon, na bahia do
Rio de Janeiro.

La Ravardiere e Rasilly escolheram para edifical-a a ponta de terra
O d’uma pequena peninsula, ligada á ilha do Maranhão pela calçada do
_Caminho grande_.

Os rios _Anil_ e _Bacanga_, vindos de diversos pontos da ilha confundem
suas agoas na mesma embocadura e formam vasta bahia. A elevação, que
se apresenta ao S do _Anil_, á E e ao N. do _Bacanga_ (lugar onde se
confundem as agoas d’estes dois pequenos rios) é o lugar primitivo onde
se levantou a cidade nascente collocada sob o patrocinio de Sam Luiz.

A cidade de Sam Luiz, elevada em 1676 á dignidade episcopal por uma Bulla
de Innocencio XI, conta nunca menos de 30 mil habitantes, e está situada
em terreno docemente ondulado, sempre, em todas as estações, carregado de
rica vegetação, e assim offerecendo aos viajantes panorama encantador.
(Vide _Corographia Brasilica_, _Will. Hadfield_, _Milliet de St.
Adolphe_, e principalmente os _Apontamentos estatisticos da provincia do
Maranhão_, annexos ao _Almanack_ de 1860 publicado por B. de Mattos.)

Esta linda cidade é naturalmente dividida pela espinha dorsal da
peninsula, que separa as duas bacias dos rios na direcção de E. O.

Seo ponto mais elevado é o _Campo d’Ourique_, onde apresenta 32m 692c de
elevação acima do nivel medio do mar.

É dividida em tres parochias: _N. S. da Victoria_, _S. João_, e _N. S. da
Conceição_, tem 72 ruas, 19 becos, 10 praças, 55 edificios publicos, e
2,764 casas, das quaes 450 tem um só pavimento.

Para utilidade dos habitantes podem ser maiores e mais regulares as
praças, e embora sejam as ruas cortadas em angulo recto, podiam ser mais
largas e melhor dispostas sendo observadas as regras da hygiene.

Não são más suas calçadas, e tem declive bastante em relação aos dois
rios que banham a cidade. Em resumo é a Capital do Maranhão saudavel e
limpa.

«O navio que demandar o porto, toma por marca o Palacio do governo,
assentado n’uma eminencia que domina o porto.

Este edificio tem a seos pés o Forte de Sam Luiz, e de suas janellas
percorrendo-se com os olhos uma extensa bahia avista-se ao longe as
costas e a cidade de Alcantara: mais perto da barra está o pequeno _Forte
da Ponta d’areia_, e dentro do porto na margem opposta do Bacanga a
pequena _ermida do Bomfim_, muito arruinada, e na frente do Anil a _Ponta
de Sam Francisco_, onde segundo a noticia que nos dirige, entregou la
Ravardiere ao commandante portuguez a cidade nascente e a fortalesa de
Sam Luiz, nunca se podendo assas louvar n’essa occasião o procedimento
inteiramente nobre do commandante francez e de Alexandre de Moura por
parte da Hespanha.

O joven cirurgião de Pariz que foi com tanto zelo pensar os feridos dos
dois partidos, e que recebeo tão penhorador acolhimento no campo inimigo
poude d’elle dar somente uma ideia, por sua narração sincera e franca,
da cordialidade, que appareceu entre os francezes e os portuguezes depois
do combate. (Vide _Archivos das viagens publicadas_ por M. Ternaux
Compans.)

Em distancia de alguns metros pelo Anil acima está o convento e Igreja de
Santo Antonio, construidos no proprio lugar onde em 1612 Ivo d’Evreux,
ajudado pelos padres Arsenio e Claudio d’Abbeville, edificou seo
conventosinho sob a invocação de Sam Francisco. Soffreo depois d’isto
varios concertos e augmentos este mosteiro dos Capuchinhos francezes,
achando-se hoje uma parte do edificio moderno occupado pelo Seminario
Episcopal, e a Igreja, hoje em construcção, levanta-se com architectura
gothica simples.» Pelo que nos dizem será a igreja mais bonita do
Maranhão.

Não é esta a unica construcção digna de mencionar-se na cidade, porem é a
unica que nos interessa directamente.

Mencionamos apenas o _Caes da Sagração_, assim chamado em memoria da
coroação e sagração do Sr. D. Pedro 2.º, e da vasta bahia, onde agora
se escava para poder n’ella fundear uma fragata a vapor da primeira
ordem, e apenas citamos a dóca que se projecta fazer nas _enseiadas das
Pedras_.[BH]

Contam-se muitas construcções monumentaes, como sejam a igreja do Carmo,
a Cathedral, o quartel do Campo de Ourique, o Theatro, e mais outras
que força é omittir, pois apenas n’uma ligeira nota desejamos mostrar
englobadamente o que em 250 annos se tornou isto fundação francesa.

William Hadfield, um dos mais modernos viajantes, que tratou d’este paiz,
observou que é na cidade de Sam Luiz, onde no Brasil se falla o portuguez
com mais pureza. É a patria de dois escriptores mui estimados no Imperio,
Odorico Mendes e João Francisco Lisboa, fallecido ha pouco.

Depois de haver traduzido com superioridade de estylo, que causaria
inveja aos contemporaneos de Camões, occupa-se actualmente Odorico Mendes
na traducção em verso das obras de Homero, onde a sciencia do rythmo
disputa com a inspiração.

Quanto ao poeta das legendas nacionaes, cujos cantos são geralmente
repetidos no Brasil (queremos fallar de Gonçalves Dias) pertence tambem
á provincia do Maranhão, por elle explorada como sabio e como viajante
intrepido, porem nasceu em Caxias.

As obras d’esses tres escriptores honram ao paiz, são tambem a honra da
bibliotheca publica; porem este estabelecimento, creado n’uma cidade
eminentemente litteraria, não está em relação com as necessidades
crescentes de outras instituições suas, relativas á instrucção publica.
Ha tres annos contava apenas 1031 volumes.

Prasa aos Ceos, que o livro, que agora réproduzimos, o primeiro que,
com o de Claudio d’Abbeville, foi escripto na Cidade nascente, marque
o principio de uma era nova para estabelecimento tão indispensavel
n’uma Capital, já florescente. Muitas outras instituições supprem
esta deficiencia, publica-se na Capital diversos jornaes, taes como o
_Publicador Maranhense_, a _Imprensa_, o _Jornal do Commercio_ etc. etc.,
e tambem ha uma _Associação typographica_, um _Gabinete de leitura_, e a
sociedade litteraria _Atheneo Maranhense_.

Tudo isto na verdade é mui differente do tempo, em que o Padre Arsenio
de Pariz com muita difficuldade achava apenas uma folha de papel para
escrevêr á seos Superiores.


4 (pag. 11).

A Cathedral de _São Luiz_ ou do _Maranhão_, (assim com estes dois nomes
se designa a Cidade) deixou a invocação de São Luiz de França. É a antiga
Igreja do Convento dos Jesuitas a actual cathedral sob a invocação de N.
S. da Victoria. (Vide Ayres do Cazal—_Corographia Brazilica_. Rio de
Janeiro 1817. T. 1.º pag. 166).

Parece-nos, que nas grandes construcções, que actualmente se estão
trabalhando para o augmento do Convento de S. Antonio, respeitou-se a
pequena Capella feita pelos francezes. São tres os frades d’esta Ordem,
Frei Vicente de Jesus, guardião; Frei Ricardo do Sepulchro e Frei Joaquim
de S. Francisco, todos sacerdotes.


5 (pag. 12).

Ao norte do Brazil e no interior da Goyanna havia então prodigiosa
abundancia d’esta especie de fóca, cuja carne era muito saborosa:
chamam-na os portuguezes _peixe-boi_, e os indios _manati_. Ainda hoje
os habitantes ribeirinhos do Amazonas e do Tocantins nutrem-se com a
excellente carne d’este peixe. (Vide Osculati, _America equatoriale_).
Claudio d’Abbeville lhe deo o nome de _Uraraura_.


6 (pag. 14).

Esta localidade, ja citada, ainda o será muitas vezes.

O vasto territorio, ainda hoje conhecido em Maranhão pelo nome de
_Tapuitapéra_, está hoje dividido pelas comarcas de Alcantara e de
Guimarães. Antigamente foi occupado por onze aldeias de indios, das quaes
a maior era Cumã. _Tapuitapéra_ dista 40 legoas de Maranhão.[BI] Pensa
_Martius_ que esta palavra quer dizer—habitação de indios inimigos. Vide
_Glossaria linguarum brasilensium_. Erlanguem. 1863, em 8.º

N’esta obra acham-se tambem os nomes dos lugares, dos vegetaes e dos
animaes.

O _Aparaturier_, que deo tão felizes comparações ao padre Ivo, é
simplesmente o mangue (_Rhyzophora._ Lin.) Esta arvore das praias
americanas tão util á industria, forma vastas florestas maritimas, e
em roda da costa do Brasil e de Venezuela. Com muita frequencia se
tem destruido estas arvores, em varios lugares, e temos ouvido até
attribuir-se a invasão recente da febre amarella á destruição systematica
d’este bonito vegetal, que aformosêa com sua verdura todas as praias
brasileiras. Cahindo sob o ferro do cultivador deixa á descoberto praias
cheias de lôdo, habitadas por myriades de carangueijos, formando assim
pantanos d’onde se desprendem miasmas de especie muito perigosa.

No Brasil conhece-se duas qualidades de mangue, o _branco_ e o
_vermelho_, e para a descripção scientifica d’elles enviamos nossos
leitores para Aug. de St. Hilaire. Julgamos que a palavra antiga, ahi
empregada pelo padre Ivo, vem do verbo _parere_, parir, porque esta
arvore se reproduz pelas raizes, que, como arcadas, espalham ao redor de
si. (Vide _Nossas scenas da naturesa sob os tropicos_,) e ahi achareis o
effeito do mangue nas paisagens.


7 (pag. 17).

É lamentavel esta lacuna, porem deixa comtudo perceber, que se trata das
tartarugas do Maranhão.

Com os ovos d’este chelidoniano prepara-se no Pará o que se
chama—_manteiga de tartaruga_, de que se exporta prodigiosa quantidade.


8 (pag. 17).

N’esta enumeração mui completa de quadrupedes que se podem caçar, um nome
desperta naturalmente a attenção do leitor, e é _vacca brava_. É bem
possivel, rigorosamente fallando, que os campos do Mearim ja tivessem
algum individuo da raça bovina, ja ha muito tempo introduzida em
Pernambuco: Claudio d’Abbeville é muito explicito n’este ponto.

Mas não é d’isto que quiz tratar o nosso bom missionario: a vacca brava,
ou _bragua_, como chama em outro lugar, é o _Tapir_ ou _Tapié_, conforme
Montoya, animal muito commum em todo o Brasil.

Para denominal-o serviram-se os hespanhoes e portuguezes d’um nome pedido
por emprestimo aos Mouros. Chamavam-no tambem _Anta_ ou _Danta_, que
significa, dizem, bufalo. Quando chegou aos americanos a sua vez de dar
nome ao boi, chamaram-no _Tapir-açù_.

Martius observa com razão, que esta palavra na lingua geral se applica
a todo o mamifero corpulento. Sendo este pachyderma o animal mais
corpulento conhecido na America do Sul, foi sua caça procurada de
preferencia pelos Europeos, e assim desappareceo, ou pelo menos tornou-se
mais rara nos lugares onde outr’ora era abundante. Em certos paizes da
America era um animal sagrado, e assim figura em diversos monumentos.

No Brasil procuravam os indigenas este animal, tanto por ser boa caça
como pela espessura de seo couro, de que faziam escudos impenetraveis ás
flexas, pela maior parte armadas de uma ponta aguda de madeira ou de cana.

João de Lery trouxe do Brasil para França alguns d’esses broqueis, porem
não chegaram á Europa, porque uma terrivel fome devida á longa viagem de
5 mezes obrigou o pobre viajante a comel-as, depois de amolecidas por
meio d’agoa.

Os nossos leitores que desejarem conhecer minuciosamente o Tapir
americano, consultem uma excellente dissertação, dedicada especialmente á
este animal, escripta pelo Dr. Roulin, Bibliothecario do Instituto.

No _Glossario_ de Martius lê-se uma extensa synonimia relativa ao Tapir.
(Vide pag. 479.)


9 (pag. 18)

É certo que os indios d’esta tribu foram contrarios aos francezes.

Ha na historia d’esta expedição um ponto, que não foi ainda bem
esclarecido: o mais afamado capitão de indios de que se recorda o Brasil
fez suas primeiras campanhas durante o dominio dos francezes.

O celebre Camarão, o grande chefe ou _Morubixaba_ dos Tabajares,
commandava 30 frecheiros na lucta entre la Ravardiere e Jeronymo de
Albuquerque.

Convidado pelo governo portuguez para tomar parte n’esta guerra, partio
de sua aldeia, no _Rio Grande do Norte_, e foi para o _Presidio de N. S.
do Amparo_, no Maranhão, em 6 de setembro de 1614: seguio-o seo irmão
_Jacauna_ com um filho de igual nome, e de 18 annos de idade.

Depois de muitos annos Camarão, que teve tão boa escola, adquirio fama
immortal nos fastos do Brasil por occasião da expulsão dos hollandezes.
(Vide _Memorias para a historia da Capitania do Maranhão, impressa nas
Noticias para a historia e geographia das Nações ultramarinas_.)


10 (pag. 18).

No Brasil não ha verdadeiros javalys, e nem este nome se pode dar aos
_Pecoris_ ou _Tajassus_, ou _Porcos do Matto_ na linguagem dos naturaes.
Não é extraordinaria a proesa do fidalgo, porque andando os _pecaris_
sempre em bando basta chumbo grosso para matal-os. Martius deo a
synomimia completa d’este animal no _Glossaria linguarum brasiliensium_.
(Vide a divisão _Animalia cum Synonimis_, pag. 477.)


11 (pag. 18).

Um _ajoupa_ é uma pequena cabana coberta de folhas e abertas por todos os
lados.

Esta palavra é muito usada nos nossos estabelecimentos de Guyana. Vê-se
estampas de _ajoupas_ em Barrére.


12 (pag. 19).

Em 1542 a fóz do grande rio foi explorada por Aphonso de Xaintongeois.
(Vide o _Manuscripto original de sua viagem_ na Bibliotheca Imperial de
Pariz.)

João Mocquet, cirurgião francez, guarda das curiosidades de Henrique
IV, visitou suas praias. (Vide o _Manuscripto_ do seo _Relatorio_ na
_Bibliotheca de Santa Genoveva_.)

Finalmente la Ravardiere fez até lá um reconhecimento.

João Mocquet foi muito explicito quando tratou do mytho das Amasonas, que
tanto occupou Condamine e o illustre Humboldt. Tudo quanto elle referio
d’estas guerreiras soube do chefe _Anacaiury_, cujo personagem, ou seo
homonymo, encontra-se nas obras de Ivo d’Evreux.

Governava uma nação no Oyapok ou do Yapoco.

Mocquet disse a seos leitores, que não poude visitar, como desejava, o
Amasonas «por serem violentas as correntes para os navios, e mesmo para o
seo patacho que ja fazia muita agoa.»

Todas estas narrações a respeito do grande rio deixou em França
impressões tão duradouras, que o Conde de Pagan, quarenta annos depois,
convidou a Mararin a reerguer projectos esquecidos. Para a conquista
da Amasonia elle queria união com os indios, e por sua vontade devia
o Cardeal ligar-se «aos illustres _Homagues_ (Omaguas) aos generosos
_Yorimanes_ e aos valentes _Tupinambás_.» Nunca certamente os selvagens
receberam tão pomposos nomes!

Seria mui curiosa, si se achasse, a narração da expedição pelas margens
do Amasonas em 1613, feita por ordem de la Ravardiere e ainda no tempo de
Luiz XIII existia uma copia.


13 (pag. 20).

Entra Gabriel Soares em minuciosas descripções do fabrico d’esta farinha,
de que os indios fazem grandes provisões.

A especie de mandioca, conhecida pelo nome de _Carimã_, serve de base.

Esta raiz a principio dissecada a fogo brando, depois ralada, é pisada
n’um almofariz, peneirada e misturada com certa quantidade de outra
qualidade de mandióca na occasião de ser torrada, o que se faz até ficar
muito secca, e n’esse estado é conservada por muito tempo.

Encontram-se sobre esta industria agricola do Brasil todos os
esclarecimentos necessarios no _Tratado descriptivo do Brasil_, pag. 167.

Augusto Saint-Hilaire disse com rasão, que a cultura da mandióca tirou a
maior parte dos seos processos da economia domestica dos Tupis, e resumio
concisa e habilmente tudo que ha a dizer-se relativamente ao cultivo da
planta. (_Voyage dans le district des Diamants et sur le littoral du
Brésil_. T. 2—pag. 263 e seguintes.)


14 (pag. 21).

Gabriel Soares está aqui inteiramente de accordo com o nosso Missionario.

Estas grandes canoas chamavam-se _Maracatim_, por causa do _Maracá_, que,
como protector, trasiam na prôa. _Iga_ chamava-se uma canôa pequena, e
_Igaripé_ uma canoa de cortiça ou casca de arvores, etc. etc. (Vide _Ruiz
de Montoya_, _Tesoro_, na pag. 173.)


15 (pag. 21).

André Thevet, e depois d’elle João de Lery descreveram com exactidão este
genero de ornato, chamado _Araroye_ pelo ultimo d’estes viajantes.

Coube ao padre Ivo fazer-nos conhecer seo valor symbolico.


16 (pag. 24).

A curiosa narração do indio confirma a opinião de Humboldt, e bem pode
ser que antigamente se encontrassem algumas mulheres cansadas do jugo dos
homens, e por isso entregues á vida guerreira.

Combina igualmente com as tradicções colhidas por Condamine e sessenta
annos antes do Padre Ivo o franciscano. André Thevet não esteve longe
de vêr n’estes selvagens americanos descendentes directos do exercito
feminino commandado por Pentisilée.

Humbold disse com rasão, que o mytho das Amasonas era de todos os seculos
e de todos os periodos da civilisação.


17 (pag. 25).

Esta nação não é indicada no _Diccionario topographico, historico,
descriptivo da Comarca do Alto Amasonas_. Recife. 1852—1 vol. em 12.

Tambem não a encontramos na longa nomenclatura da _Corographia Paraense_
de Ignacio Accioli de Cerqueira e Silva. Deve estar extincta, e Martius
tambem não a cita no seo _Glossaria_, publicado ultimamente.


18 (pag. 25).

Por este nome, aqui tão frequente, designa-se uma grande aldeia alem de
Tapuitapéra.

Era tambem o nome de um vasto territorio e de um rio.

Segundo o padre Claudio—_Cumã_ significa _proprio para pesca_, porem
duvidamos que seja exacta a explicação.

Debalde procura-se esta palavra no _Glossaria_ de Martius publicado em
1863.


19 (pag. 25).

_Cazal_, o _Diccionario do Alto Amasonas_, e _Accioli_ nada dizem a
respeito d’estes rios, onde comtudo esteve um exercito de 2,000 homens!
Martius trata de uma nação de _Pacajaz_ ou _Pacayá_, no Pará. (Vide
_Glossaria linguarum_. pag. 519.)


20 (pag. 25).

Esta ligeira descripção das casas aereas construidas sobre mangues e
troncos das palmeiras _muritis_ lembra um facto bem curioso, classificado
outr’ora como fabula, e descripto na Relação de Walther Ralegh.

É bem possivel que haja alguma exageração, porem o facto é authentico, e
deo-se na foz do Orenoco.

Os _Waraons_ visitados ha perto de um seculo pelo Dr. Leblond, os
_Guaraunos_ descriptos pelo sabio Codazzi, são um e o mesmo povo, salvos
de inteira destruição por sua maneira de viver.

Os _Camarapins_, cujo desaparecimento acabamos de provar, foram menos
felises.

Á respeito dos indios das _Iouras_ consulte-se o resumo, que outr’ora
fizemos, dos manuscriptos, por onde o Medico francez provou sua moradia
entre os Waraons. (Vide _Guyana_, 1828, em 18.)

Codazzi, cujos bellos trabalhos geographicos são conhecidos, citava em
1841, os Guaraunos, como não tendo ainda abandonado suas casas aereas.

Ha trinta annos, quando muito, vinham elles negociar com os habitantes da
Trindade. (Vide o _Resumen de la Geographia de Venezuela_. Pariz. 1841—em
8.)

Agostinho Codazzi morreo ultimamente.

Quanto aos manuscriptos de Leblond, que ja tivemos á nossa disposição,
pertenciam á collecção das viagens, possuida em 1824 pelo edictor Nepveu.


21 (pag. 28).

Este personagem tinha um nome todo portuguez, e era muito dedicado á
nação, a cujos interesses servia.

O titulo de _Capitão_ afinal estendeo-se a todos os chefes da raça
indigena.


22 (pag. 29).

Este selvagem fanfarrão gabava-se de ter feito morrer o padre Ambrosio,
residente em _Iuiret_, cuja pronuncia segundo Claudio d’Abbeville, é
_Jeuiree_, e ella indica a estranha significação d’este nome.

O _Pay açu_, o grande padre é Ivo d’Evreux. A palavra _Pay_ quer dizer em
portuguez _Padre_. Pay-_guaçu_, diz Ruiz de Montoya significar Bispo ou
Prelado em Guarany.

O nome de _Pay_ foi mais facilmente adoptado pelos indigenas pela
sua analogia em designar pessoas graves. Os feiticeiros eram
chamados—_hechizeros_—para servir-nos da propria expressão do
lexicographo hespanhol.

Da _lingua geral_, modificação do Guarany, _Pay_ significa padre, monge e
senhor. _Pay Abaré Guaçu_ era a designação dos prelados e dos jesuitas.
Os indios ainda chamavam o papa _Pay aboré oçu eté_.


23 (pag. 29).

Não sabemos porque o missionario modifica a orthographia do nome de um
povo, que elle ja escreveo muitas vezes de forma diversa.

Claudio d’Abbeville escreve _Topinambás_, o author da sumptuosa
entrada _Tupinabaulx_, Hans Staden _Topinembas_, e emfim João de Lery
_Tuupinambaults_. Malherbe suavisando a expressão escreve _Topinambus_.
Foi esta ultima orthographia a que prevaleceo no tempo de Luiz XIV, porem
preferimos a que é adoptada pelos brasileiros.


24 (pag. 31).

Por esta palavra tão vaga, aqui empregada pelo padre Ivo, suppomos que
elle pretende designar os povos mais selvagens ainda que os Tupinambás,
ou então que se entregavam mais especialmente a anthropophagia.

Nas obras de Humboldt encontra-se uma curiosa definição da palavra
_Canibal_. Notaremos apenas, que 50 annos antes do tempo, em que escreveo
o padre Ivo, designavam-se assim, quasi que exclusivamente, os indios
mais proximos do Equador.

Na historia da França antarctica por André Thevet, á proposito da madeira
de tincturaria, lê-se o seguinte: «o da costa do rio de Ianaire é melhor
que o da costa de Canibaes e de toda a costa do Maranhão,» (pag. 116
verso), e mais adiante: «visto que chegamos a estes Canibaes, d’elles
diremos apenas, que este povo, depois do cabo de Santo Agostinho, e alem
até o Maranhão, é o mais cruel e deshumano que em qualquer outra parte da
America. Esta canalha come ordinariamente carne humana, como nós comemos
carneiro.» (pag. 119.)


25 (pag. 31.)

Foi com effeito nas margens do Itapecurú, que se apresentaram os
portuguezes.

Claudio d’Abbeville disse algumas palavras sobre este bello rio, porem
exagerou o seo curso.

Nós estamos tão pouco ao facto da geographia d’esse paiz, que Adriano
Balbi se contentou em mencionar seo nome apenas no quadro, que traçou,
dos rios do Maranhão.

Que prodigiosas mudanças não se terão operado sobre suas margens desde o
tempo, em que o nosso bom frade assim o chamava alterando-lhe o nome!

Em lugar d’estas florestas, onde andavam errantes os Timbyras, cultiva-se
milho, mandióca, canna de assucar, fumo e algodão, e a producção ultima
d’este genero foi tão abundante, que subio a 35,000 saccas.

Em França não se conhece o nome das cidades mais importantes, assentadas
á margem d’este rio, e apenas se encontram em nossos livros de geographia.

Quem já ouvio fallar da pequena cidade de Caxias, a risonha patria de
Gonçalves Dias? Comtudo é uma cidade rica, commercial, banhada pelo
Itapecurú, e distante da capital sessenta legoas.

Em 1821 era apenas um povoado de 2,400 almas, e hoje este numero
elevou-se a 6,000 habitantes.

Caxias é o centro do commercio entretido com o Piauhy, e com immensas
solidões de campos de criação de gado, conhecidas pelo nome de _sertão_.

Edificada para assim dizer no deserto, tem escolas florescentes, um
theatro, estabelecimentos de utilidade publica, que nem sempre se
encontra em cidades mais consideraveis.

O nome de _Caxias_ tem no Brazil significação politica, porque, em 1832,
travou-se no _Morro do Alecrim_ uma batalha, cujo resultado consolidou a
Independencia da Provincia. Mais tarde, na propria colina, chamada das
_Tabócas_ deo-se o sanguinolento combate, onde foi vencido[BJ] _Fidié_, e
que inspirou a Gonçalves Dias tão energicos versos.

Seriam necessarios volumes para narrar, ainda que summariamente, as
perturbações, que se seguiram a este acontecimento, e as luctas
tempestuosas, que houveram neste canto ignorado do mundo até 1848, quando
o Dr. Furtado conseguio reprimir a horda, que assolava esta cidade
nascente.[BK]

A propria naturesa, por si só, é grande n’estas regiões: 20 mil
habitantes formam a população d’este vasto municipio, empregado
superficialmente na agricultura.

Na distancia, em que nos achamos, estas revoluções tão cumpridas para
serem contadas, assimilham-se ás da idade media, que a historia local as
vezes registra, mas que facilmente esquece visto não ligar-se á algum dos
grandes interesses, que prende a attenção do mundo.

Com mais justa rasão pode applicar-se isto a villa do Codó, a mais
florescente após Caxias, como ella banhada pelo Itapicurú, e como ella
separada da Capital por um espaço de 60 legoas.


26 (pag. 34).

Este nome do principio do mal, acceito em toda a obra pelo Padre Ivo
d’Evreux e por Claudio d’Abbeville parece ser mais particular ao Norte do
Brazil.

Martius escreve _Jurupari_, ou _Jerupari_. _Anhagá_ parece ser mais uzado
ao Sul. Não se acha a significação desta palavra no _Tesoro de la lingua
Guarani_. _Angai_ neste precioso Diccionario significa espirito mau.
_Anhanga_ significa hoje apenas um _phantasma_. (Vide Gonçalves Dias,
_Diccionario da lingua Tupy_.)


27 (pag. 36).

Estes povos, antes de reunidos, eram chamados Tabaiares pelos Tupinambás.
Pag. 36.

Tabajares não significa de maneira alguma _inimigo_, e sim senhores da
Aldeia. (Vide Adolpho de Varnhagem, _Historia geral do Brazil_. T. 1.º
Accioli. _Revista do Instituto_.)


28 (pag. 36).

A denominação, adoptada no Seculo XVII por nossos compatriotas, veio
sem duvida alguma do costume que tinham estes indios de furar o labio
inferior, e mesmo as faces para n’ellas introduzir discos de uma especie
de esmeralda, feitos com muita paciencia, e apreciados como joias
estimaveis. (Vide _Sur l’usage de se percer la lévre inferieure chez
les Américains du sud_, a serie de nossos artigos, inserida com muitas
gravuras no _Magasin pittoresque_. T. 18 pag. 138, 183, 239. 338, 350 e
390.)


29 (pag. 36).

_Mearinense_ é evidentemente um nome creado pelo nosso bom Missionario, e
melhor não o inventaria Rabelais.

Os Mearinenses eram os proprios Tupinambás que residiam nas ferteis
margens do Meary, d’onde proveio o nome á provincia, no pensar de Cazal.
O Mearim, que offerece um curso de 166 legoas, só é navegavel no inverno,
e as canoas grandes sobem unicamente até 60 legoas. Nasce na _Serra do
Negro e Canella_ aos 8° 2′ e 23″ de lat. e 2° 21′ de long. contados da
Ilha de Villegagnon na bahia do Rio de Janeiro.


30 (pag. 36).

A palavra _Tapuya_ ou _Tapuy_ tem levantado grandes discussões: será o
nome de um povo? (Vide o _Diccionario de Gonçalves Dias_).

Significará inimigo? Ruiz de Montoya nada diz a tal respeito. Será
preciso crear uma nação distincta da dos Tupys, a qual estes deram tal
nome. Um escriptor, authoridade na materia, Ignacio Accioli não hesita a
tal respeito.

Quando enumera as principaes divisões da raça Tupica, elle diz:
«outra nação geral, a dos Tapuias, divide-se, como pensam muitos, em
pequenas tribus fallando perto de cem dialectos, e são os _Aymorés_,
os _Potentus_, os _Guaitacás_, os _Guaramonis_, os _Guaregores_, os
_Jaçarussus_, os _Amanipaqués_, os _Payeias_ e grande numero de outras.»
(Vide T. XII da _Revista Trimensal—Dissertação historica, ethnographica e
politica sobre quaes eram as tribus aborigenes_, etc., etc., pag. 143.)


31 (pag. 42).

Este pensamento passou como proverbio na ilha e em Goyana.


32 (pag. 42).

Hans Staden prisioneiro, pelos Tupinambás em 1550, ao sahir do Forte da
Bertioga suscitou grande discussão para saber-se com certeza, quem foi o
primeiro que o tocou. (Vide _la Collection. Ternaux Compans_.)


33 (pag. 49).

Nada tem de extraordinario o nome d’este chefe, porem é necessario
escrevel-o assim com mais exactidão, _Ibira Pitanga_. (Vide _Ruiz de
Montoya_.) Lery escreveo _Araboutan_, Thevet _Oraboutan_. Desapparece
esta celebre madeira cada vez mais das grandes florestas, onde íam
buscal-os os nossos antepassados.


34 (pag. 51).

É um Tabajara quem falla, porem observamos, que a palavra _Carbet_ não
pertence á _lingua geral_.

O padre Ruiz de Montoya não a inserio no seo precioso _Tesoro de la
lingua Guarany_.

É usado mais particularmente entre os Galibis e os outros povos de Guyana.

Resente-se esta expressão da visinhança da nossa colonia.

Convem fazer certa differenca entre os _Carbets_, ou _casa grande_, e
as _Ocas_ ou _Tabas_, que formavam a architectura rudimentar dos outros
povos do Brasil.

Ouçamos a este respeito o Padre _du Tertre_. «No meio de todas estas
casas, fazem uma grande, commum, a que chamam _Carbet_, a qual tem
ordinariamente 60 ou 80 pés de comprimento, e é formada de grandes
forquilhas de 12 a 20 pés de altura, infincadas na terra: sobre ellas
collocam uma palmeira, ou outro tronco de arvore muito direito, que serve
de cumieira, e n’ella ajustam caibros, que descem até tocar em terra,
e cobrem-nos com ramos ou folhas de palmeiras, ficando muito escuro o
interior da casa, pois a claridade só entra pela porta, e esta é tão
baixa, que para entrar-se é necessario curvar-se.»

Estas particularidades pedimos emprestadas a uma obra do anno de 1643, e
se referem especialmente a architectura rustica dos Caraibas insulares.

Escolhemos este exemplo quasi contemporaneo do livro publicado pelo nosso
autor, porque na realidade não ha grande differença entre os _Carbets_
das ilhas e os dos continentes.

Si se escrevesse uma historia d’essas casas de folhas tão rapidamente
construidas, apresentar-se-iam certas variedades conforme os usos e
fins para que se destinam. (Vide a este respeito _Le voyage pittoresque
au Bresil de Debet_, depois as gravuras do livro de _André Thevet_,
publicado em 1558.)

Haviam pequenos e grandes _Carbets_, aquelles onde os Piagas faziam suas
charlatanerias, e estes onde se formavam os grandes conselhos.

Tinham estes ultimos a configuração de um dos nossos vastos alpendres,
tendo lugar para 150 ou 200 guerreiros.

No XVII seculo, na linguagem de nossas colonias, nas ilhas ou no
continente, formar um conselho qualquer era _Carbeter_; o termo era
proprio e acha-se usado por todos os viajantes. (Vide entre outros Biet,
_Voyage de la France équinoxiale_. Paris. 1654, em 4.º)


35 (pag. 56).

David Migan era natural de Dieppe, e como fizeram tantos outros naturaes
da Normandia no fim do seculo XVI, veio tentar fortuna entre os selvagens
do Brasil.

Encontraram-no os chefes da opposição estabelecido havia muitos annos em
Jupinaram, na ilha do Maranhão.

Era em toda a extensão da palavra um interprete da Normandia, e sabe Deos
de que reputação gozavam estes interpretes no que dizia respeito ao que
então se chamava mundo civilisado.

Comparavam-nos até aos selvagens, cujos odiosos festins, dizia-se, que
elles partilhavam.

David Migan teve as honras do Mercurio francez. (Vide T. 3, pag. 164)

Regressou á França com Rasilly a quem era muito affeiçoado, e assim foi
bom por ser o unico capaz de traduzir para a Rainha, a longa exposição de
Itapucu.

De passagem lembramos ter elle tambem assignado o termo de cessão, que la
Ravardiere fez de seos direitos a Francisco de Rasilly, o que indica, sem
duvida alguma, o gozar de consideração excepcional.

O nome de Migan nos parece ser _nome de guerra_, pois esta palavra na
lingua _tupy_, significa o caldo grosso, que se fazia com a farinha de
mandioca.

Malherbe, que estava nas Tulherias, quando se apresentaram os indios,
notou a habilidade d’este homem.

Havia outro interprete chamado Sebastião, muito affeiçoado a Ivo d’Evreux.


36 (pag. 65).

É mui curioso o achar-se em Maranhão, no anno de 1612, um selvagem
fazendo ao padre Ivo o mesmo raciocinio, a que foi obrigado á responder
João de Lery em 1556: «o que quer dizer vós _Mair_ e _Peros_, (francezes
e portuguezes) virdes de tão longe buscar madeira para vos aquecer? Lá
não a tendes?» (Vide _Histoire d’un voyage en la terre du Bresil_, Rouen
1578 em 8.º)


37 (pag. 70).

Largamente descreveo Mr. Humboldt a região dos Otomanos, e as porções
immensas de terra, que reunem estes indios para comer quando lhes falta a
caça e a pesca.

Pensa o grande viajante, que esta terra secca ao sol, formando tulhas de
bolasinhas, dispostas symetricamente, é procurada pelos selvagens por
conterem particulas animalisadas e que a fazem nutritiva.

Prova o padre du Tertre, que tanto os indios das ilhas como os do
continente comem terra, embora pense que seja por aberração de gosto.

«Todos comem terra, mães e filhos, diz elle, e a causa de tão grande
aberração de gosto não pode proceder, penso eu, senão de um excesso de
melancolia.» (_Hist. nat. das Antilhas, habitadas pelos francezes_. T.
2º, pag. 375.)

Não longe das regiões descriptas pelo padre Ivo, á margem do rio
Ucayale, encontram-se ainda os indios _Pinacos_, cujo nome verdadeiro é
_Puynagas_. Estes indios despresados por seos compatriotas, são afamados
comedores de terra. A este respeito, entre outros, foi publicado um
curioso opusculo de Mr. Moreau de Jonnès com o titulo de _Observations
sur les Geophages des Antilles_. Paris. An. VI. Tem somente 11 paginas.


38 (pag. 73).

Na enumeração das diversas classes da infancia achamos ainda exactidão
no padre Ivo, embora confundisse a letra N com a R: a palavra _menino_
escreve-se _Curumim_ nos Glossarios brasileiros. (Vide Gonçalves Dias,
_Diccionario da lingua Tupy_. Leipzig, 1858 em 12.)


39 (pag. 81).

Gonçalves Dias chama a virgem _Cunhã mucu_. (Vide _Diccionario_.)


40 (pag. 82).

Este singular uso, fallado por todos os viajantes do XVI seculo, como
acaba de ver-se ainda não estava modificado.

Não se encontra somente entre os Caraibas das ilhas, e sim tambem em
pleno vigor na Europa, e especialmente entre os Bascos, e era então
chamado a «encubação.»

As «_Miscellanias historicas_,» publicadas em Orange em 1675, contem
interessantes observações á tal respeito. «Nota-se, diz elle, um
admiravel costume em Bearn. Quando pare uma mulher, anda á pé e o marido
deita-se para guardar o resguardo. Creio que os Bearnenses tomaram este
costume dos hespanhoes, de quem Strabon disse a mesma coisa no livro 3º
da sua _Geographia_.»

O mesmo faziam os Tibarénienses, como refere Nimphodore, na excellente
obra de Apollonio de Rhodes, livro 2, e os Tartaros segundo o testemunho
de Marco Paulo, cap. 41. livro 2.º

Esto uso, tão exquisito, e só explicavel si se podesse descer até o
recondito mais intimo do caracter indiano, era religiosamente observado
pelos mais valentes e afamados guerreiros Tupinambás, e provocaria o riso
do homem civilisado, si indagasse a sua origem natural. Torna-se porem
admiravel, para assim dizer, quando se sabe ser tal costume acompanhado
de mui crueis privações, porque o indio, que acaba de ser pae, e que
se condemna a tão ridiculo repouso, não só priva-se de alimentos, como
ainda se entrega a outros supplicios com intenção de evitar que soffra o
filhinho certos males, que elle receia.

Pela sua ignorancia e superstição julga-se com grande influencia
phisiologica sobre o menino, e muito soffre e com stoicismo afim de
poupar algumas dores ao recem-nascido.

O homem civilisado das cidades, embora mediocremente intelligente,
abstem-se de esquadrinhar estas ideias cheias de dedicação, embora
inconstantes dos selvagens, e ri-se antes de proferir seo juiso.

A companheira do indio tambem supersticiosa, approva o que faz seo
marido: soffre, sem queixar-se, verdadeiras dores e entrega-se a um novo
trabalho ainda mais pesado, porque todo o serviço da casa cahe sobre
ella.

No modo de pensar desta pobre mulher a salvação do recem-nascido depende
do procedimento stoico de seo marido. Nunca podemos saber qual era o
motivo, que obrigava os antigos a entregarem-se a este repouso tão
exquisito, não differente provavelmente do concedido aos americanos.
Carli, cuja engenhosa erudicção explica tantas coisas antigas da
America, não procurou mesmo uma hypothese para descobrir motivo tão
ridiculo. Enganou-se por certo, quando disse serem elles alimentados
abundantemente. (Vide _Lettres Américaines_. Boston et Pariz, 1788, T. 1
pag. 114.)

É bom ler-se com cuidado a versão francesa d’esta curiosa passagem.

Não soube o traductor francez, Febvre de Villebrune, dar real valor ás
palavras _italianisadas_ pelo autor.

Antonio Biet, é mais justo para com os indios, e menos inclinado á
zombaria do que os seos predecessores, quando descreve a «incubação»
entre os Galibis.

«O pobre indio, diz elle, soffre muito durante seis semanas, come pouco,
e quando acaba o resguardo, está tão magro como um esqueleto.»

O mesmo viajante nos mostra o Galibi, sempre paciente, não deixando
a _casa grande_, e nem se animando a levantar os olhos para os que o
rodeiam. (_Voyage de la France equinoccial_, Livro 3.º pag. 390.)

Descrevendo os costumes de certos Caraibas, não podia o autor da historia
moral das Antilhas esquecer a incubação.

Rochefort conta as particularidades e especifica sua analogia com uma
ceremonia identica, que vio n’uma provincia de França.

Este repouso forçado do indio pareceo-lhe muito absurdo, porem não nega
ao pobre paciente o merito do jejum, antes confessa, que durante sua
reclusão apenas lhe dão um pouco de farinha e agoa. (Vide _Historia
moral_ pag. 494.)

Não proseguiremos n’estas citações, bastando dizer que entre os povos
do Brasil os Tupiniquins, os Tupinacs, os Tabajares, os Petiguaras, e
muitas outras tribus imitam os Tupis, e estes nomes nada mais adiantam.

Convem comtudo fazer bem saliente o amor paterno entre os indios,
dando-se assim ao mais extravagante dos costumes a sua origem verdadeira.


41 (pag. 84).

_Tamoi_ quer dizer avô na lingua dos Tupinambás: aqui ha alteração de
palavra, proveniente por differença de pronuncia.

Lê-se no _Tesoro de la lingua Guarany_, base da lexicographia brasileira
_Tamôi_, _abuelo_, _Cheramòi_, _mi abuelo_, _Cherúramôîruba_, _mi
bisabuelo_, _Cherúramôî_, _el abuelo de mi padre_, etc.

Por sua origem tinham os Tamoyos real proeminencia sobre as outras tribus
da mesma raça.

No meiado do Seculo XVI habitavam as circumvisinhanças de _Nicteroy_,
ou antes do Rio de Janeiro: como alliados fieis dos franceses foram
expellidos d’esse bello territorio por Salema, e os restos de suas tribus
desceram para as regiões do Norte, onde encontraram seos antigos amigos,
que se haviam refugiado especialmente nos campos de Maranhão.


42 (pag. 87).

Não é de mediocre importancia a especie de vocabulario, aqui offerecida
pelo nosso missionario.

Os leitores francezes, pouco familiarisados com a philologia americana,
despresaram sem duvida esta collecção de frases, provenientes d’uma
lingua, que comtudo servio de recreiação á Boileau: o mesmo não
acontecerá n’um vasto Imperio, onde as letras são hoje tão honradas.

Ha muitos annos já, que o Autor da _Historia Geral do Brazil_ provou a
importancia do estudo das linguas indigenas n’uma _Memoria_ impressa
entre as actas do _Instituto Historico do Rio de Janeiro_. (Agosto 1840.)

O padre Anchieta, a quem se deve a composição da primeira grammatica,
conhecida, da lingua geral, não fallava o Tupy sem uma especie de
enthusiasmo; o padre Figueira o imitou em sua sincera admiração; Laet,
com quanto não manifestasse admiração gabou sua abundancia e doçura, e
nisto foi seguido por Bettendorf.

Pode dizer-se, que entre todos estes foi o padre Araujo quem melhor fez
sobresahir sua importancia debaixo do ponto de vista philosophico.

«Como foi, disse algures esse Religioso, que os povos, que a fallaram,
tendo suas ideias limitadas em estreito circulo de objectos, todos
necessarios embora á seo modo de vida, podessem conceber signaes
representando idéas, capazes de indicar o objecto, que não conheciam
antes, e isto não de qualquer forma, e sim com propriedade, energia e
elegancia», accrescentando «sem ter ideia alguma da religião, a não ser
da natural, encontraram em sua propria lingua expressão para patenteiar
toda a sublimidade dos mysterios da religião, e da Graça, sem pedir
emprestado coisa alguma aos outros idiomas.»

Enganar-se-ia completamente quem julgasse estar hoje esquecida a lingua
usada entre tribus numerosas quando em 1500 Pedro Alvares Cabral
descobrio o Brasil.

Deixou não só vestigios na Geographia do Brazil, mais tambem ainda hoje
se falla n’algumas aldeias, tendo estreita affinidade com o _Guarany_,
lingua usada na mór parte do Paraguay. Comtudo não é a mesma do seculo
XVI.

Modificam-se os idiomas dos povos selvagens á similhança dos idiomas dos
povos civilisados, e ainda mais talvez quando uma corrente de ideias
novas vem desvial-os da liberdade do seo andar.

O _Maya_, o _Quiché_, o _Aztéco_, o _Quichua_, o _Aymara_ não são o que
foram no tempo de Cortez, de Alvarado, e de Pizarro.

Si o sabio Veytia podesse, ha perto de um seculo, confrontar a differença
enorme, que apresenta o Nahuatl antigo com o que fallavam muitas pessoas
do seo tempo, imagine-se o que não succederia quando se fizesse a mesma
confrontação entre a lingua Tupy, e o moderno Guarany.

Esta ultima lingua, tão em uso no Paraguay, não é mais fallada com a
pureza da sua origem, segundo diz o Sr. Beaurepaire de Rohan, si não
pelos _Cayuas_, das nascentes de Iguatiny.

São pois mui preciosos todos os livros, que tratam da lingua antiga
debaixo do ponto de vista grammatical.

Debaixo d’este ponto de vista, as viagens d’Hans Staden, de Thevet, e
de Lery tem mais valor do que as Relações de Claudio d’Abbeville e Ivo
d’Evreux.

Acham-se todos os promenores apreciaveis á este respeito no nosso
opusculo publicado sob este titulo—_Une fête bresilienne célébrée á Rouen
en 1550. Suivie d’un fragment du XVI siécle roulant sur la Théogonie des
anciens peuples du Brésil e des poésies en langue Tupique de Christovam
Valente_. Pariz, Techener, 1850, gr. em 8.º

O sabio Hermann E. Ludewig não conheceo o vocabulario apresentado pelo
padre Ivo, ou pelo menos não tratou d’elle. (Vide _The literature of
American aboriginal languages_. London, 1857, in 8.)

Finalmente tem se feito n’estes ultimos tempos trabalhos de tanto folego,
merecendo o primeiro lugar os do illustre _Martius_.

Um distincto litterato brazileiro, o Dr. Gonçalves Dias, que já publicou
em _Leipzig_ o _Diccionario da lingua Tupy_ (1858) foi de novo estudal-o
nas profundas florestas do Amazonas.

A philologia brasileira ainda fará grandes progressos.


43 (pag. 94).

Aqui ha falta sensivel em nosso texto, por ter indubitavel o nosso
viajante occupar-se largamente d’uma raça, que com os _Morobixabas_
representam o papel principal na vida civil e politica dos Brasileiros.

Simão de Vasconcellos nas suas—_Noticias do Brasil_—nada deixa a desejar
a tal respeito, e para elle enviamos nossos leitores, observando apenas
que os _Piayes_, os _Pagé_ ou _Pagy_ somente alcançavam a prodigiosa
influencia, que gozavam, submettendo-se á experiencias e a jejuns tão
rigorosos a ponto de arriscarem sua vida, obtendo finalmente o titulo,
que tanto ambicionavam.

São as mesmas essas provas ou experiencias desde a embocadura do Orenoco
até as do Rio da Prata.

Quando o candidato estava ja muito enfraquecido pelo jejum, entregavam-no
ás mordiduras das formigas, abarrotavam-no de bebidas asquerosas, cuja
base era o succo do tabaco, e algumas vezes defumavam-no a ponto de
perder os sentidos.

Si resistia a taes supplicios, era igual senão superior aos guerreiros.

Deixou-nos Vasconcellos a respeito do que se pode chamar _Collegio dos
Piagas_, á similhança do _Collegio dos Druidas_, certas particularidades
muito minuciosas, applicaveis principalmente ás Provincias do Sul.

No Norte os _Pages Aybas_ eram os feiticeiros afamados astrologos, ou
melhor _tempestuosos_, a que nada podia resistir. Sob sua dependencia
estavam os astros, e sob sua obediencia o sol e a lua para cumprir suas
ordens: desencadeiavam os ventos e levantavam tempestades. Os mais
ferozes animaes, como as onças e jacarés, obedeciam-no.

Para alcançar aos olhos do publico tal poder recorria o Pagé Aybas a um
meio, que nunca falhou, isto, é a _herva dos feiticeiros_ ainda mais
poderosa do que a da Europa, o _Paricá_, cujos effeitos terriveis foram
descriptos pelo Dr. Rodrigues Ferreira. (Vide _Memorias das Academias
das Sciencias de Lisboa_.)

Mastigava-se o _Paricá_, e com isto fazia-se um unguento, uzado para
uncturas.


44 (pag. 100).

Ha aqui um pequeno erro typographico, que convem corrigir: leia-se pois
_rocou_.

Em toda a America Meridional costumavam os selvagens tingir a pelle de
vermelho alaranjado, ou de negro azulado por meio do _rocou_, _Bixia
Orellana_, ou _Genipapeiro_ (_Genipa Americana_.)

O Padre Ivo descrevendo com exactidão o fructo d’esta arvore, em
abundancia no Maranhão, diz—o summo claro, e limpido que se extrahe
della, fica muito negro logo depois da sua applicação, e assim
conserva-se por 9 dias (Vide a este respeito _Humboldt_, _Voyage aux
régions équinoxiales_.)


45 (pag. 101).

Serve-se aqui Ivo d’Evreux de uma expressão impropria designando pela
palavra _Thon_ o que se chama _bicho de pé_, _niga_, _pulex penetrans_,
dos entomologistas. Bem pode ser que a palavra seja da _lingua geral_.
Encontra-se com a mesma accepção em Thevet, que a escreveo em 1558 (Vide
_France antarctique_. pag. 90). È muito conhecido este insecto, e por
isso desnecessario é demorarmo-nos descrevendo os males, que produz.
(Vide entre outros Naturalistas, o veridico Auguste de Saint-Hilaire,
_Voyage dans l’interieur du Brésil_. T. 1.º pag. 35 e 36).


46 (pag. 106).

Realisou-se completamente a prophecia do bom Padre.

Poucas são as regiões do mundo, que, como esta, tenham sido exploradas em
beneficio da sciencia.

Alem das _Plantas uteis do Brazil_, devidas ao nunca assás chorado
Augusto de St. Hilaire, ha hoje a _Flora brasiliensis_ do illustre
Martius, tambem autor da _Materia-medica_ deste paiz.

Não desejamos cançar o espirito do leitor com uma arida nomenclatura de
livros especiaes.

Contentamos-nos apenas dizendo, que muito tem os brazileiros concorrido
para estes trabalhos scientificos, citando somente as _Memorias_ do
Dr. Freire Allemão, recentemente publicadas, e a grande collecção,
infelizmente não acabada, da _Flora Fluminensis_.


47 (pag. 108).

Esta molestia, tão cruel e tão similhante á syphilis, se não é a propria
syphilis, tambem acha-se descripta na _France antarctique_ de André
Thevet, livro publicado em 1558 (vide pag. 86). João de Lery tambem
descreveo seos symptomas. Está claro, que não se pode attribuir aos
negros de Guiné molestia tão geral entre os Americanos.


48 (pag. 114).

O Padre Ivo é rigorosamente exacto no que diz á respeito dos funeraes dos
Indios, e com elle concordam em tudo Lery e Thevet, dando este ultimo uma
excellente estampa representando um Indio prestes a ser sepultado. (Vide
pag. 82 v.)


49 (pag. 114).

Não se esqueciam os Tupinambás de collocar, entre as suas singulares
previsões para o morto, um pouco de tabaco, carne, peixe, raizes de cará
e de farinha de mandióca. É rigorosamente verdadeiro tudo o que o padre
Ivo conta n’este capitulo, como se pode vêr nas estampas que apresentam
Thevèt na _France antarctique_, e Lery na sua _voyage_.


50 (pag. 117).

Os Tapuytapéras, cujo nome deviam á uma localidade do Maranhão, tinham
cabellos cumpridos. Pertenciam á raça Tupy, pois que _Migan_, o
interprete natural de Dieppe, entendia sua linguagem, e o mesmo succedia
aos de Commã, cuja aldeia tinha indios com este nome.

Os Cahetés, no seculo XVI, constituiam uma nação essencialmente bellicosa
occupando a maior parte do territorio de Pernambuco. Fallavam a lingua
Tupica, ou _lingua geral_. Encontram-se as mais curiosas particularidades
á respeito de sua organisação interna no _Roteiro do Brasil_, manuscripto
existente na Bibliotheca Imperial de Pariz.

Hoje está sabido, que este livro, tão notavel, composto em 1587 por
Gabriel Soares, é o trabalho mais completo, que existe sobre as diversas
tribus do Brasil existentes no tempo do padre Ivo.

Passados muitos annos a Academia Real das Sciencias de Lisboa,
reconhecendo a sua importancia, imprimio-a nas suas _Noticias das
nações ultramarinas_, e depois o Sr. Francisco Adolpho de Varnhagem,
colleccionando todas as copias d’esta mesma obra, embora sob diversos
titulos, publicou uma nova edicção superior á todas, sob o titulo de
_Tratado descriptivo do Brasil em 1587, obra de Gabriel Soares de Sousa,
senhor de engenho na Bahia, nella residente dezesete annos, seo vereador
da Camara_. _Rio de Janeiro._—1851 em 8.º


51 (pag. 118).

O padre Ivo quando quer designar o tubarão, escreve impropriamente
_requin_, quando na primitiva era _requiem_. Pode bem ser, que o nome
imposto a este peixe tão voraz provenha da rapidez com que mata.


52 (pag. 120).

O _Maracá_ era um instrumento symbolico, usado tanto nas festas
religiosas como nas profanas. Thevet, o guarda das curiosidades do Rei, o
descreveo muito bem em seos manuscriptos, inedictos, e como sei que não
será desagradavel para aqui transcrevo as suas palavras:

Tendo nas mãos um ou dois _maracás_, que é um fructo grande, de forma
oval, similhante ao ovo de abestruz, e da grossura de uma abobora, mais
agradavel á vista do que ao paladar, pelo que ninguem o come, fazem com
elles muitos mysterios e superstições tão extravagantes como incriveis.
Cavam o fructo, enchem-no de milho graudo, amarram-no a ponta de uma
haste, enfeitam-no com pennas e enterrando a outra ponta, fica ella
em pé. Cada casa tem um ou dois Maracás, que respeitam como si fosse
_Tupan_, trazendo-o sempre na mão, quando dançam e fazendo chocalhar.

Pensam que é _Tupan_ que lhes falla (Manuscripto de André Thevet,
conservado na Bibliotheca Imperial de Pariz.)

Hans Staden e Lery, Roulox Baro escreveram largas paginas a respeito do
Maracá, e o proprio Malherbe falla dos que ouvio em Paris por occasião do
baptismo de tres indios sendo padrinho Luiz XIII.

Chegando a Pariz, e residindo no Convento dos seos protectores, os indios
revestidos dos seos bellos adornos, e com o _maracá_ em punho, excitaram
muito enthusiasmo, a ponto de haver muita paixão pela sua dança e pela
sua propria musica.

Seria muito curioso si hoje se achasse a Sarabanda composta em honra
d’elles pelo famoso Gauthier. Malherbe escreveo ao celebre Peirese
dizendo tel-a mandado á Marco Antonio «como excellente peça digna de
ouvir-se» (Vide _Correspondance_, pag. 285, antiga edicção.)

Ainda, passadas 12 paginas Malherbe tratou da musica então em voga, e
do seo auctor, dizendo «ser Gauthier considerado o primeiro no officio,
ignorando porem si sahira bem, e si o gosto da Provincia se conformará
com o da Côrte.»

Não se contentaram somente de proporcionar aos pobres selvagens
distracções ligeiras, pois procuraram obrigal-os a residir em França.

Diz o poeta pag. 275 «os Capuchinhos, para obsequiarem completamente
estes pobres selvagens, resolveram algumas beatas a casarem-se com elles,
e ja deram começo a excursão d’este plano.»

Emquanto porem eram bem acolhidos os guerreiros do Maranhão, suas
mulheres não gozavam iguaes favores.

Uma certa Princesa cujo nome calla o poeta, manifestando opinião
singular, dizia «que para elles tinha muita satisfação de dar-lhes casa e
comida, mas que ás senhoras, suas mulheres, não podiam ser senão...» bem
me entendeis, e por isso não podia recebel-as em sua casa.


53 (pag. 120).

É mui curioso o saber-se, que esta expedição exploradora ás margens do
Mearim, reconheceo logo serem essas terras essencialmente proprias para
a plantação da canna de assucar, a que se empregam todos os braços de
15 annos para cá, sendo esta revolução agricola devida á influencia do
Dr. Joaquim Franco de Sá. A charrua despresada por tão longos annos hoje
sulca este solo admiravel.


54 (pag. 122).

Deve lêr-se _Mutum_ sendo a especie mais pequena designada pelo nome de
_Mutum Pinima_. (Vide _Diccionario Tupy_ de Gonçalves Dias.)

Trata-se aqui de Hocco _Crax Alector_, caça mui procurada.

A imperial sociedade de acclimatação emprega actualmente louvaveis
exforços para naturalisar em França este passaro do Brasil e da Goyana.


55 (pag. 122).

É uma linda especie de periquito, conhecida no Brasil pelo nome de _Tui_.

Forma ás vezes bandos tão grandes a ponto de ser um dos flagellos da
agricultura.


56 (pag. 123).

É a palmeira chamada—_Tucum_—pelos brasileiros.

Consulte-se a magnifica _Monographia das palmeiras_ por Martius. O
_Tucum_ tem fibras verdes e macias, das quaes se faz excellente fio,
proprio para cordas.


57 (pag. 123).

Ivo d’Evreux não hesita com sua sinceridade habitual a formar um verbo
derivado da lingua indigena.

Desde as margens do Orenoco até as do Rio da Prata era o _Cauim_
preparado em grande quantidade.

Tinha o mesmo nome em toda a parte esta especie de cerveja, ou talvez
melhor de cidra, quer fosse preparada com milho mastigado pelas mulheres,
quer com mandióca cajú ou jabuticaba.

Encontramos este fabrico e nome até entre os Araucans. (Vide a importante
obra, do Chili, do Sr. Claudio Gay.)

A palavra _cauin_ atravessou espaços immensos, são os mesmos em toda a
parte os processos para o seu fabrico, o que prova estreito parentesco
entre os povos mais distantes, uns dos outros.

Hans Staden, Lery, Thevet tem apontado seos abusos, e chamamos a attenção
dos nossos leitores para as suas curiosas narrativas.

O que os nossos antigos viajantes chamavam _Cauinage_ era afinal uma
solemnidade, cujo sentido religioso não conhecemos.

Precediam ou succediam estas orgias ás grandes expedicções.

O «vinho da Europa» se chama hoje _Cauin Pyranga_, e a aguardente tão
fatal aos indios, _Cauin Tata_, «bebida de fogo.»


58 (pag. 123).

Descreve com minuciosa curiosidade João de Lery esta festa solemne, na
qual se infiltrava o _espirito de coragem_, aos guerreiros prestes a
partirem para uma expedição.

Uma das estampas do seo livro representa até esta ceremonia.

Entre todas as tribus da raça tupy o tabaco é considerado como planta
sagrada.

Reunimos tudo que se sabia ha alguns annos á respeito da origem do
_Petum_ na carta, que dirigimos a Mr. Alfredo Demersay, sobre a
introducção do tabaco em França, (Vide _Etudes economiques sur l’Amerique
meridionale. Du Tabac du Paraguay_. Pariz. Guillamin. 1851 em 8.º)


59 (pag. 125).

O nome d’esta nação tão pouco conhecida, e que se apresenta á penna do
padre Ivo, é uma garantia da exactidão das suas narrações.

Ainda em 1817 existiam alguns _Tramembez_ entre os trabalhadores brancos
do Ceará: cultivavam mandióca e residiam na villa de _Nossa Senhora da
Conceição d’Almofalla_, onde haviam muitas salinas. (Vide Ayres Casal,
_Corographia Brasilica_, T. 2º, pag. 235.)

Gaba o padre Ivo o valor e a industria d’estes indios, inimigos
encarniçados dos Tupinambás.


60 (pag. 125).

Tratamos d’este famoso indio quando elle se revestio do commando.

É a figura indigena mais predominante nas duas obras do padre Claudio
d’Abbeville e padre Ivo.

Na _lingua geral_ a palavra _japim_ é o nome de um lindo passaro, de
pennas amarellas e negras, que anda em numerosos bandos e que em toda a
parte faz tão lindos ninhos.

Pode tambem dar-se-lhe outra significação. _Japy_ significa na lingua
indigena do Maranhão, «o choque, o golpe.» (Vide Gonçalves Dias,
_Diccionario_.) A primeira explicação é a unica adoptada. Japy-uaçú era o
que se chamava um _Mitagaya_, um grande guerreiro.


61 (pag. 126).

Deixa-se o padre Ivo levar muito pelas recordações da Europa.

_Jeropary-açú_, de que tratam escriptores portuguezes, nada tem de commum
com um principe ou um rei, taes como eram representados no novo-mundo por
convenção hierarchica.

Este erro ja havia sido anteriormente commettido por André Thevèt na sua
_França antartica_ e na sua _Cosmographia_. O historiador de Portugal, La
Clede, que vivia no seculo XVIII foi mais longe ainda na enumeração dos
pomposos titulos, que dá a alguns pobres chefes de tribus.


62 (pag. 127).

Com o nome de _cabaças_ conhece-se geralmente no Brasil vasilhas
ordinarias, feitas com o fructo da cabeceira.

Em Venezuella chama-se _Tutumas_.

Algumas destas vasilhas naturaes mostram delicados ornatos, cores
inalteraveis pela agua e grande brilho. (Vide a este respeito Claudio
d’Abbeville, _Histoire de la mission des péres Capucins_.)


63 (pag. 128).

É isto confirmado por Magalhães de Gandavo, o primeiro escriptor
portuguez, que escreveo uma historia regular do Brasil em 1576.

Este amigo de Camões recorda a expressão indigena de que se serve o padre
Ivo, porem não partilha sua opinião, antes crê ser o ambar um producto
vegetal formado no fundo do mar. O que é certo é, que nos seculos XVI
e XVII o encontro, quasi sempre casual, de enormes pedaços de ambar,
arremeçados pelas ondas em praias não exploradas, enriqueceo muita gente.


64 (pag. 131).

Debalde procuramos este nome no livro de Ayres do Casal, e no Diccionario
de Milliet de Saint Adolphe.

A região habitada pelos Cahetés de que trata, sabemos com certesa ser na
provincia de Pernambuco.

A palavra _Cahetés_ significa _floresta grande_, e se applica a diversas
localidades.

Foram os _Cahetés_, que em 1556 mataram e devoraram o primeiro Bispo do
Brasil, D. Pedro Fernandes Sardinha.

Este sabio prelado, natural de Setubal, e educado na universidade de
Pariz, regressava á Lisboa, onde ia queixar-se do governador da Bahia.

Mostra-se ainda hoje a colina, onde elle morreu, e não cresce ahi planta
alguma, segundo a crença do povo. (Vide Adolpho de Varnhagem—_Historia
Geral do Brazil_.)

O livro de Gabriel Soares contem tudo quanto se deseja á respeito dos
Cahetés, indios considerados geralmente como invensiveis guerreiros, e
que se gabavam de habeis musicos.

A exploração do _Uarpy_, de que aqui se trata, e emprehendida pelo Sr. de
Pezieux é uma prova evidente do cuidado, que havia de explorar-se esta
região, percorrendo-se de N. a S.


65 (pag. 131).

Estas minas de oiro, que se esperava encontrar no Maranhão em 1613,
existem hoje na serra de _Maracassumé_.

Encontra-se o metal precioso sobre tudo em _Piranhas_, (districto de
_Santa Helena_) nas cabeceiras dos rios Pindaré, Gurupy, Cabello de Velha
(_Cururupu_) Prata (Santa Helena) na Revirada, nas margens do Tomatahy,
etc., etc., porem em pequena porção.

Existe cobre na Chapada no lugar _Fazendinha_ e no Alto Pindaré.

Ferro existe em mais lugares, nos montes de Tirocambo e em Pastos-Bons.

Suppõe-se haverem minas de estanho, porem ainda não se sabe com certesa.

Encontra-se tambem o carvão de pedra, precioso mineral no estado
actual da industria: depararam-se ja com alguns indicios no canal do
Arapapahy, e affirma-se haver uma mina na distancia de meia legoa do
Codó, na fazenda de Santo Antonio, cujas amostras provam ser de superior
qualidade. Dizem haver tambem em Vinhaes.

Em Sam José dos Mattões encontram-se cristaes de rocha e pedras
semi-preciosas, e saphiras em Sam Bernardo da Parnahyba.

De passagem lembramos que as primeiras minas de ouro, ou para melhor
dizer, os primeiros veios de ouro, destinados a enriquecerem o Brasil,
somente foram descobertos em Minas-Geraes, no anno de 1595.

Pelas Provincias do norte não conheceo a Metropole as riquezas
metalicas d’este vasto territorio, onde desemboccam o _Rio doce_, e o
_Jequitinhonha_.

Sabe-se que este ultimo rio que toma o nome de Belmonte na occasião em
que se lança no mar, pouco distante do primeiro, com o andar dos tempos
deo á corôa enorme quantidade de diamantes.

Estas pedras, encontradas em 1729, principalmente no valle cercado
de alcantiladas rochas, chamado pelos indios—_Ivitur_, e pelos
portuguezes—_Serro do Frio_, não eram completamente despresadas pelos
indios, pois seos filhos as ajuntavam, e com ellas brincavam.

No Maranhão não ha diamantes.


66 (pag. 141).

Mostra-se o padre Ivo aqui mui parco em suas descripções, porem deve-se
desculpal-o por não ser naturalista como um theologo do seo tempo. Foi
ainda mais parco o seo predecessor.

O que disse de algumas plantas do genero _mimosa_ indica a sua
preoccupação á respeito de certos phenomenos naturaes.

As qualidades maleficas, que reconhece no succo do Cajú, de que se
fabrica uma especie de cidra, são mui exageradas.

Diremos de passagem, que a palavra _Cauin_ deriva-se do nome indigena
d’esta arvore. _Caju-y_, licor de _Caju_.


67 (pag. 145).

Á flor da paixão (_Grenadilla cœrulea_) na qual a imaginação prevenida
encontra santos attributos, gozava então de prodigioso favor. Foi
descripta em varias obras, e gravada exagerando-se os pontos de
similhança, que podia ter com os instrumentos do supplicio de Jesus
Christo.

Ivo d’Evreux encontrou nos campos do Brasil magnificas flores d’estas, e
mostrou-as aos amadores. Alguns annos depois elle se teria aproveitado da
descripção poetica, que d’ella fez o poeta popular Santa Rita Durão no
poema intitulado _Caramuru_.

Lembramos aos amadores de flores phantasticas uma gravura do seculo
XVII, mui curiosa, mostrando a planta com o seo tamanho natural na obra
_Antonii Possevini Mantuani Societatis, Jesu cultura ingeniorum, examen
ingeniorum Joannis Huartis. Expenditur Coloniæ Agrippinæ_. 1610 em 12.


68 (pag. 146).

O guará (_Ibis rubra_, ou _Tantalus ruber_) desappareceo em parte de
varias localidades do littoral, onde costumava expandir sua brilhante
plumagem, sujeita, conforme a idade, a diversas modificações.

Na obra curiosa de Hans Staden, publicada na Allemanha em 1557, vê-se
qual é o papel, que representa esta ave na industria indigena.

Formavam os Tupinambás em tempo certo verdadeiras expedições para
procurar as pennas d’ellas, sempre raras, afim de servirem nas festas com
que as tribus se obsequiavam reciprocamente.

Em caso de necessidade eram substituidas por pennas de gallinhas, tinctas
com uma preparação vermelha de _Ibirapitanga_, ou pau-brasil.

Actualmente refugiou-se o guará nas margens, pouco frequentadas, do rio
de Sam Francisco, e principalmente nas desertas regiões do Rio Negro.
Ainda tambem encontram-se algumas na _lagoa dos patos_, e em _Guaratuba_.
(Vide _le second voyage d’Aug. St. Hilaire_. T. 2º, pag. 222.)


69 (pag. 152).

É impossivel aos que não leram as obras da idade media interpretar bem o
sentido d’esta frase.

O livro conhecido sob o nome de _Phisiologus_ gozava ainda de certo
credito no tempo do padre Ivo de Evreux. Quem quizer informar-se d’isto
minuciosamente leia o precioso resumo d’esta curiosa obra, publicada
pelos Rvds. padres Cahier e Martin, sob o titulo _Melanges d’Archéologie,
d’histoire et de litterature_. 4 vol. in-fol.


70 (pag. 156).

As mulheres Tupinambás, que assim cantavam para attrahir as formigas, e
activar a caça d’estes insectos, não o faziam somente para destruil-as,
ou para resguardar suas plantações de milho de uma invasão invencivel.

As formigas grandes torradas eram consideradas como uma das golodices
mais preciosas, cuja receita foi por ellas ensinada a alguns colonos
do Sul, e sem duvida não será desputada pelos nossos modernos Brillat
Savarin.

Assim como os Arabes comem ainda hoje gafanhotos, conservados em sal ou
pela dissecação, e os Guaraons das margens do Orénoco apreciam muito
as larvas da palmeira Muriti (não fallando de outra comida da terra do
mesmo genero), assim tambem os nossos selvagens guardam grandes provisões
d’estes insectos para sua nutrição.

Augusto de Saint-Hilaire, o mais verdadeiro viajante, que percorreo o
Brasil, achou ainda em vigor o costume de se comer formigas assadas.

Depois de ter affirmado ser muito apreciado esse manjar no Espirito
Santo, pelo que os habitantes de Campos, sempre rivaes dos da Cidade
da Victoria, os chamavam _Tata Tanajuras_, «comedores de formigas»,
accrescentou «eu mesmo comi um prato d’estes animaes, preparados por uma
mulher Paulista, e não lhes achei mau gosto.» (Vide _Le second voyage au
Brésil_. T. 2.º pag. 181).

Martim Soares de Souza, com rasão chamado o Gregorio de Tours dos
Brasileiros, é mais claro a respeito do proveito que os indios tiravam
das formigas como alimento.

Copiamos aqui o que elle tão curiosamente disse. Depois de haver fallado
da especie grande, a que chamam Içans, escreveo—«_E estas formigas comem
os indios, torradas sobre o fogo, e fazem-lhe muita festa; e alguns
homens brancos andam entre elles, e os mistiços as tem por bom jantar, e
o gabam de saboroso, dizendo que sabem a passas de Alicante: e torradas
são brancas dentro._»


71 (pag. 156).

O pretendido cão, de que aqui falla o nosso Missionario, está muito longe
da raça canina: é apenas o _papa-formigas_, chamado pelos indigenas
_tamanduá_, e pela sciencia _Myrmecophaga jubata_.

O naturalista Waterton, que com tanta curiosidade estudou os quadrupedes
do novo mundo nos proprios lugares, onde com plena liberdade se entregam
aos seos instinctos, fez excellente descripção d’este animal.

Ha no Brasil muitas especies de papa-formigas, sendo rarissima a chamada
pelos portuguezes _Tamanduà-cavallo_: parece ter sido este sobrenome o
causador de haver o padre Claudio d’Abbeville errado, quando disse ser o
_papa-formigas_ do tamanho de um cavallo.

A palavra india, que designa este curioso animal, é composta de duas
Tupis—_taixi_, «formiga,» e _mondê_ ou _mondâ_, «tomar.»


72 (pag. 157).

Deve escrever-se _Taranyra_, cujo nome pertence a um pequeno lagarto.
Falla-se aqui do _Tiú_ (_Tupinambis monitor_).

É excellente a carne d’este reptil, e muito havia de concorrer para
tornal-a saborosa a preparação culinaria tão gabada pelo Padre Ivo
d’Evreux.

A repugnancia d’esse bom Padre para taes comidas, não é de fórma alguma
partilhada pelos descendentes dos Europeos, acostumados ás melhores mezas.

A carne de Tui pela sua côr e maciesa muito assimilha-se á da gallinha
mais preciosa, e por isso apparece nas melhores mezas do Brasil.


73 (pag. 162).

O nosso autor quer fallar da _Aranha caranguejeira_, (_Aranea
avicularia_) porem aqui enganou-se. Exagera muito as dimensões d’este
insecto, na verdade nojento, como se pode vêr em todas as collecções
de entomologia. Não é verdade dizer-se que não fabricam fios para suas
teias: a sua picada não mata, porem envenena. Na lingua Tupy chama-se
_Nhandu-Guaçu_ ou de _Jandu_.


74 (pag. 163).

O que nos diz o bom Religioso do barulho da cigarra denota gosto de
observação na historia natural, muito raro n’aquella epoca, mas convem
não confundir a cigarra brasileira com o insecto assim chamado na Europa.


75 (pag. 165).

Na lingua _Tupi_ escreve-se _Okiju_. (Vide _Martius_, _Glossaria ling.
bras._ pag. 465).


76 (pag. 168).

Ivo d’Evreux confesse-se, está aqui muito inferior á seo contemporaneo o
Padre du Tertre.

É verdade porem tudo quanto elle diz da luz dos _pyrilampos_.

A entomologia estava então muito pouco adiantada para que houvesse uma
classificação entre os insectos, e não temos habilitações para preencher
esta falta. Actualmente conhece-se no Brazil oito especies de pyrilampos
a saber:

    _Lampyris crassicornis_,
    _   «     signaticollis_,
    _   «     concoloripennis_,
    _   «     fulvipes_,
    _   «     diaphana_,
    _   «     hespera_,
    _   «     nigra_,
    _   «     maculata_.

Pode tambem juntar-se a estes lindos insectos a _lucidota thoraxica_.


77 (pag. 169).

É muito exacto, e as abelhas do Brazil não tem aguilhão: eis o que diz um
observador sabio e veridico.

Depois de haver affirmado, como o Padre Ivo, que as abelhas não picavam,
disse Augusto de Saint Hilaire «uma especie chamada _tataira_ deixa,
segundo dizem, escapar pelo anus um liquido ardente; e por isso é só á
noite que se colhe o seo mel.»

As especies chamadas _uruçú-boi_, _sanharó_, _burá_, _bravo_, _chupé_,
_arapua_ e _tupi_ se defendem, quando são atacadas, mas parece não terem
aguilhão, limitando-se a morderem como fazem as outras.

É muito liquido o mel das diversas especies, e a cera tem a côr parda
muito carregada, não se podendo até hoje conseguir tornal-a branca, como
a da Europa.

Spix e Martius dão curiosas informações a respeito d’estes uteis
insectos, que completam as do nosso grande botanico. (Vide _Voyage dans
les provinces do Rio de Janeiro e de Minas Geraes_. T. 2.º, pag. 371 e
seguintes.)


78 (pag. 176).

Não ha talvez no mundo região alguma, que tenha maior variedade de
macacos do que o Brazil.

Creio que aqui se trata primeiro da _guariba_, ou _mycetes ursinus_,
e depois do macaquinho _stentor_, que intentou descrevêr o nosso bom
Missionario.

É provavelmente d’esta especie a descripção tão agradavel e tão animada,
feita pelo nosso velho escriptor.

Convem observar porem que o Padre Ivo fez-se echo de uma crença popular
muito vulgar no seculo XVI.

Esta especie de legenda das florestas, muito mais applicavel aos macacos
da Africa e da Asia do que aos do novo-mundo, não se extinguio ainda
de todo nos campos da America Meridional, e mostraram a M. Castelnau
uma india, que julgava ter escolhido seo marido entre os macacos das
florestas (Vide _Expedition dans les parties centrales de l’Amérique du
sud, de Rio de Janeiro á Lima et de Lima au Pará, exécutée par ordre du
governement français_. Paris 1851, _partie historique_. 5 vol. in 8.º)


79 (pag. 177).

Basta ter-se vivido nas florestas habitadas por macacos para conhecer-se
a exactidão do que escreveo o Padre Ivo.


80 (pag. 180).

Ha aqui com certesa erro, ou então exageração.

O Padre Claudio d’Abbeville, que descreve a mesma ave de rapina (pag.
232) julga ser elle «duas vezes mais corpolento do que a aguia, ter a
perna da grossura de um braço, e a pata em fórma de unhada.»

Poderia ser esta descripção do Condor, porem não existe esta ave na
America do Sul.

Diz o Coronel Ignacio Accioli ter o _gavião real_ tanta força a ponto de
fazer parar em sua carreira um viado por mais forte que seja.

É tão phantastica a descripção do Padre Ivo, que á primeira vista se pode
applical-a ao abestruz americano de _Nandú_, que se encontra somente no
Ceará e Piauhy.

Um escriptor contemporaneo, Gabriel Soares, tantas vezes citado,
restabelece a verdade fallando do _Ura-açu_ disse «são passaros, como os
milhafres de Portugal, sem differença alguma, negros e de azas grandes,
de cujas pennas utilisam-se os indios para emplumarem suas flexas, e
vivem de rapina.» (Vide _Tratado descriptivo do Brasil em 1587_. Rio de
Janeiro.—1851 1.º vol. in 8.º pag. 232.)

Lembramos de passagem, que debaixo do ponto de vista scientifico a parte
ornithologica é muito imperfeita, embora a bellesa do estylo do nosso
velho viajante.

O que diz, por exemplo, o Padre Ivo do passaro mosca, ou do colibri,
é inteiramente inexacto, pois elle não tem o tal canto agudo, que faz
lembrar o grito da cotovia.

Confundiram-se as recordações com a distancia.


81 (pag. 181).

Ivo de Evreux quer dizer, que os Indios se _fazem galans_, preparando-se
com pennas de papagaios.

Faziam os Tupinambás com estas pennas não só mantos, diademas e
perneiras, mas tambem cortavam bem miudinhas as pennas pequenas e
coloridas d’estes passaros, e cobriam com esta pennugem o corpo, e n’elle
grudavam-na com certa gomma.

Este enfeite selvagem e singularmente original ainda é muito usado e
apreciado em certas tribus.

Segundo conta João de Lery durou mais de tres seculos.

A viagem pittoresca de Debret apresenta uma amostra.


82 (pag. 185).

Basta, é bastante. Os hespanhóes e os portuguezes conservaram a palavra
_bastar_.


83 (pag. 185).

Já pagamos justo tributo de saudade a este Religioso, tão cheio de
bondade como de zelo, cuja sepultura no antigo cemiterio do pequeno
Convento não é sabida em Maranhão.

Como indica o seo sobrenome de Religião, nasceo o Padre Ambrosio na
Capital da Picardia, «de parentes abastados, diz o manuscripto dos
elogios, e que lhe deram educação conforme permittiam seos negocios.»

Depois de haver estudado na Sorbona, quando estava prestes a receber a
sua carta de licenciado, foi abalado pelas prédicas do Padre Pacifico de
São Gervasio, e entrou no Convento em 1575, quasi no tempo da fundação do
Mosteiro de Santo Honorato.

Em 1599 acabou seo noviciado, e com satisfação começou a preencher as
obrigações de irmão leigo.

Cedo passou a prégador, e então adquirio essa fama de caridoso, que o fez
tão popular.

Aspirava a mais do que isto, «porque queria converter todas as Indias»,
diz a noticia a elle dedicada.

O Padre Ivo cercava de todos os cuidados os seos confrades quando
emprehendiam viagens tão incommodas principalmente n’aquelle tempo.

Estava já muito enfraquecido, e sem forças, quando em 26 de setembro de
1612 cahio doente, em sua pobre cabana de pindoba.

Ardente febre o devorava, e comtudo, ainda depois de receber a extrema
uncção, conservou em bom estado e sempre firme o uso de suas faculdades
intellectuaes.

Transcrevamos aqui algumas palavras, que mostram qual foi o fim de tão
bom velho.

Claudio d’Abbeville assim o conta:

«Cahindo sobre elle um pequeno painel da Imagem de S. Pedro, pendurado
por cima de sua cama, e a que dedicava profunda devoção, elle
disse—vamos, grande Santo, partamos, ja que vieste buscar-me.—

«Dizendo isto olhou para o Crucifixo e após curta agonia restituio ao
Creador sua alma tão bôa em 9 de Outubro de 1612, dia da festividade do
Glorioso Apostolo de França, S. Diniz, Bispo de Pariz:

«Foi sepultado no lugar chamado S. Francisco, consagrado ao nosso
Patriarcha, como premicias dos Capuchinhos Francezes.» (Vide tambem
«_Éloges historiques de tous les illustres religieux capucins de la
ville de Paris, les uns par la prédication, les autres par les vertus
et sainteté de leurs œuvres, les autres par les missions parmy les
infidelles etc. etc._ sob numero _Capucin_ Saint Honoré 4 (ter).)»

É para sentir-se e muito que se tenha perdido ha alguns annos o 1.º vol.
d’esta importante collecção, contendo os Annaes da Provincia.


84 (pag. 186).

Prova esta phrase tão rigorosa do velho missionario a rapidez, com que
se espalhou na Europa o _avati_, dos brasileiros, o _milho_ dos ilheos
visto, bem como o tabaco, por Christovão Colombo na primeira viagem em
1493.

Levantaram os botanicos grande questão, ainda não resolvida, sobre a
origem primitiva do milho.

Pelo que diz respeito ao Brasil citamos a opinião d’um viajante, que por
seu saber pode passar por authoridade.

Augusto de St. Hilaire pensa ter nascido no Paraguay, onde o vio em
estado inculto.

A cultura do milho é ao Sul d’America a planta nutritiva por excellencia,
e prepara-se sua farinha por processos simples, e que dão optimo gosto.

Enviamos nossos leitores, que desejam instruir-se de tudo quanto se
refere á esta graminea para o precioso livro do Dr. Duchesne—_Traité
complet du maüs ou blé de Turquie_. Paris. Renouard, 1833 em 8º, e para a
grande obra de M. Bonafous.


85 (pag. 187).

Falla aqui verdade o padre Ivo, porem não se segue que ao norte do Brasil
se possa fazer vinho.

O maior obstaculo, que encontra este fabrico, está no amadurecimento do
fructo sob os tropicos.

No mesmo cacho ao lado de muitas uvas maduras encontra-se grande numero
de verdes.

È voz corrente ter-se feito algum vinho na visinhança da Bahia.

Caminhando-se para o sul, na região temperada de Mendoza, a uva amadurece
perfeitamente, e dá vinho precioso. (Vide, entre outras viagens a
respeito d’este ponto curioso de agricultura americana—_Sallusti_,
_Storia delle missione del Chile_. 4. vol. em 8.º Padre Barrére.
_Nouvelle Relation de la France equinoxiale_. Paris, 1743. 1º vol. em 12,
pags. 53 e 54.)


86 (pag. 187).

Trata-se aqui do fio que se extrahe com abundancia de uma especie de
Ananaz. (_Ananas non aculeatus_, _Pitta dictus Plum_.)

Com elle os portuguezes faziam meias, quasi tão procuradas como as de
seda.


87 (pag. 191).

Não se encontra esta palavra no Diccionario de Nicot, irmão de Villemain.

Podemos affirmar, que se deve escrever _hansares_—que significa—uma foice
de grande tamanho.


88 (pag. 192).

Fazer certo sussurro expellindo com força o ar pelo nariz. É expressão
do povo, confundida no Diccionario da Academia com a palavra—_renâcler_
«roncar» usada trivialmente no stylo familiar.


89 (pag. 194).

São por Cardim muito bem pintadas essas recepções de indios.

Os brasileiros não podem preferir, na bellesa da narração e no encanto
das particularidades, senão um só viajante portuguez á Ivo d’Evreux e á
Claudio d’Abbeville, e é aquelle cujo nome acabamos de proferir.

Este escriptor agradavel porem muito conciso, pertence á ordem dos
jesuitas.

Foi para o Brasil em 1583, e ahi ficou revestido de todas as dignidades
até o fim de 1618: soube portanto do estabelecimento dos francezes ao
Norte do Brasil, e certamente na Bahia soube de sua expulsão, e sobre
isto infelizmente nada disse.

Fernão Cardim estava em posição bem diversa da do padre Ivo d’Evreux.

Pelas costas do Brasil, onde elle se apresentava, submettiam-se os indios
ao christianismo, perdendo sua grandeza primitiva e conservando a maior
parte dos seos usos.

O Missionario francez ao contrario cathequisa os indigenas, que combatem
pela sua independencia contra seos conquistadores.

Os dois bons missionarios tiveram ambos a mesma sincera indulgencia e
admiração para com os povos ainda na infancia, aos quaes pregaram, e cuja
prévidencia é o seo maior e mais terrivel defeito.

As cartas de Fernão Cardim foram felizmente descobertas pelo incansavel
autor da _Historia geral do Brasil_.

O Sr. Francisco Adolpho de Varnhagem não pôz seo nome n’esta preciosa
publicação, honra que aqui lhe restituimos, e a que tem direito como
homem de saber e gosto.

O opusculo de Fernão Cardim tem o titulo de _Narrativa epistolar de uma
viagem e missão jesuitica pela Bahia, Ilheos etc etc._—_Lisboa_, 1847, em
8.º de 123 paginas.

Parece-me que o sabio edictor não se lembrou de haverem preciosas
informações á respeito de Cardim e dos missionarios contemporaneos do
Brasil n’um escriptor de Toulon por nome Jarric. (Vide _La 2me partie des
choses plus memorables advenues tant aux Indes orientales que autres pays
de la découverte des Portugais en l’establissement de la foi chrestienne
et catholique etc. Bordeaux 1610_ em 4.º É dedicado a Luiz XIII. O que
n’este livro se refere ao Brasil, e particularmente ás regiões visinhas
do Maranhão, acha-se na pag. 248 até 359.)

Morreo o padre du Jarric em 1609.

Foi sua obra traduzida em latim, e impressa na Colonia em 1615.

Esta traducção, augmentada em alguns lugares, foi publicada em 4 vol. em
8.º


90 (pag. 194).

Ha quasi certesa de não ter o nosso bom missionario lido a narração de
André Thevet, publicada em 1558, e nem a viagem mais recente de João de
Lery, cujas opiniões religiosas deviam afastal-o d’essas obras.

Comparando-se estes velhos viajantes entre si, facilmente nota-se a
similhança das narrativas.

Eis o que disse João de Lery á respeito da recepção, que lhe fizeram os
Tupinambás.

Descrevendo as ceremonias, que fazem os _Tuupinambaults_ para receberem
seos amigos, que os vem visitar, merece dizer-se em primeiro lugar,
que apenas chega o viajante a casa do _Mussacat_, isto é, do bom pae
de familia, dá de comer aos que por ahi passam, e que elle escolher
para seo hospede, facto que se hade praticar em toda e qualquer aldeia,
por onde se transitar, sob pena de cauzar enfado se não é procurado
immediatamente. Assenta-se depois n’uma rede onde fica por algum tempo
em silencio. Vêm depois as mulheres, sentam-se no chão, tapam os olhos
com as mãos deplorando a bôa vinda d’aquelle, cujos louvores farão em
occasião apropriada.

Por exemplo:—tiveste tanto trabalho para nos vêr; tu és bom, e valente:
si é um francez, ou outro qualquer estrangeiro, accrescentam—trouxestes
para nós tão bellas obras, como aqui não temos, e immediatamente derramam
muitas lagrymas, e assim aplaudem e lisongeam.

Si o recem-chegado assentado em seo leito quer pagar-lhes as finezas,
dizendo de sua parte coisas agradaveis, não querendo porem chorar, (como
eu sei alguns dos nossos, que vendo as maneiras d’essas mulheres perante
elles, foram tão nescios, que as imitaram) devem ao menos por fingimento
exhalar alguns suspiros.

Feitos assim estes primeiros cumprimentos pelas mulheres, entra depois
o _mussacat_, isto é, o velho dono da casa, que fingirá durante um
quarto d’hora não vos vêr (caricia mui opposta ás nossas embaixadas,
cumprimentos e apertos de mão á chegada dos nossos amigos). Chega-se
depois onde estaes, e diz _ereiubé_, isto é, chegaste? etc. etc. (vide
_Jean de Lery, istoire d’un voyage en la terre du Brésil_. Rouen, 1578,
em 8º, 1ª edicção.)


91 (pag. 195).

Ha no Brasil um sapo de grande tamanho, a que se deo o nome de «_sapo
boi_.»

Claudio d’Abbeville diz—«n’aquelle paiz encontram-se uns sapos muito
grandes a que chamam _cururu_. Alguns ha que tem mais de um pé ou pé
e meio de diametro: quando são esfolados, é impossivel dizer-se quam
branca é a sua carne, e como são bons para comer-se. Vi alguns fidalgos
francezes comel-a com apetite.


92 (pag. 203).

Mui visivelmente falla-se aqui da lenda brasileira relativa a _Sumé_, o
legislador dos Tupys.

No curioso opusculo, que a respeito d’este personagem publicou o Sr.
Adolpho de Varnhagem, conta a sua chegada á Ilha do Maranhão, e como
desappareceo na occasião, em que se preparavam todos para sacrifical-o.

A palavra—_Maratá_—nos põe em embaraços, pois debalde a procuramos em
Ruiz de Montoya: é alteração da palavra _Mair_ ou _Maïr_, tantas vezes
empregada por Lery e Thevèt, para mostrar ou indicar um estrangeiro, ou
uma pessoa extraordinaria. Não podemos dar uma resposta satisfatoria. O
Sumé, que propaga a cultura da mandióca, é barbado.

Diz-se com razão ser personagem analoga a Manco Capac dos peruanos, e ao
Quetzalcoalt dos Azetecas, e ao Zamma da America Central. (Vide Adolpho
de Varnhagem, _Historia geral do Brasil_. T. 1º pag. 136, e _Sumé.
Lenda mytho-religiosa americana etc. agora traduzida por um Paulista de
Sorocaba_. Madrid, 1855, broch. in 8 de 39 pag.)


93 (pag. 205).

O verbo _cantar_ na linguagem tupy é _Nheengar_. Um _Nheengaçara_ é um
cantor propriamente dito.


94 (pag. 220).

Parecerá estranho ao leitor serem os francezes comparados n’este lugar
aos Caraibas.

Os que lerem com attenção as obras de Humboldt acharão a chave d’este
enigma. Os Caraibas do continente americano, nação immensa, eram notaveis
em toda a America pelo seo valor e penetração. Seos piayas, ou antes seos
feiticeiros os elevavam acima de todas as outras nações: eram no Novo
Mundo o mesmo que os Chaldeos no velho. Simão de Vasconcellos nos dá a
prova d’esta supremacia intellectual: no sul do Brasil os _Caraibe-bébé_,
eram feiticeiros ou advinhadores notaveis: assim se chamavam os homens
intelligentes, os espiritos, e os anjos, e depois tambem os estrangeiros.
O Sr. Adolpho de Varnhagem fez notar, que o nome de _Carayba_ foi em seo
principio dado aos Europeos, sendo todos os Christãos assim chamados.
(Historia geral, pag. 312.)


95 (pag. 220).

Um _Caramémo_ é que se chama em Guyana um _Pagará_, isto é, um paneiro
leve, feito com folhas de certa palmeira e ás vezes com bonita forma.

Claudio d’Abbeville assim tambem o chama, quando descreveo os utensilios
de uma casa indigena. Barrère fez desenhar este lindo _Specimen_.


96 (pag. 226).

Ivo d’Evreux, familiarisado com todos os symbolos em voga no seo tempo,
não se esqueceo de uma graciosa alegoria na qual figura o Unicornio.
Vide _Le Monde enchantée_, e especialmente a dissertação intitulada
_Revue de l’histoire de la Licorne par un naturaliste de Montpellier_.
(P. J. Amoreu.) Montpellier Durville, 1818, em 8.º 47 pags.


97 (pag. 239).

É sabido ser esse o nome, que aos portuguezes davam os Tupinambás.

_Pero_ quer dizer _cão_ na lingua de Camões, mas suppõe-se que o
nome—_Pedro_—muito usado no Brazil, provinha de tão estranha designação.

Ayres Casal conta até á este respeito uma historiasinha, recorrendo á
tradicção, de como um serralheiro, chamado Pedro, fôra arremeçado pelas
ondas, após um naufragio, ás praias do Maranhão. Graças a sua habilidade
no trabalho do ferro fez-se este homem agradavel aos indios, e seo nome
com pequena modificação servio d’ahi em diante para fazer conhecidos os
individuos, que se julgavam ser da sua raça.

Em sua _Corographia_ o Dr. Mello Moraes escreveo esta _legenda_ muito
mais completa.


98 (pag. 242).

Não se tem procurado esclarecer por meio de uma discussão
grammatical—esta parte do livro.

Differenças mui sensiveis, produzidas pelo tempo e sobre tudo pela
pronuncia, fizeram este lugar para assim dizer indicifravel. Nada é
mais dificil do que traduzir pelos caracteres da nossa escripta os sons
das linguas indigenas. Essas inflexões tão delicadas, e as vezes tão
fugitivas, em sua apparente rudeza são dificultosamente ffixadas no
papel. Notou Humboldt pertencerem ellas algumas vezes á certos caracteres
physicos das raças.

As nações européas, as mais habituadas á estes estudos, não percebiam
da mesma fórma os sons, e nem os escreviam da mesma maneira: quando
os portuguezes ouvem _Oca_, por exemplo, ou então _Toba_, o francez
percebe _Oc_ e _Tob_, e quando aquelle ouve _Murubixaba_ este percebe
_Muruvichave_. Deixa a differença de ser grande quando são as palavras
pronunciadas conforme o genio de cada lingua.

A palavra _Tupinambás_, como se acha escripta no principio d’esta nota,
(_Tobinambos_) equivale absolutamente pelo som na lingua portuguesa á
palavra _Tupinambus_, como a pronunciavam os contemporaneos de Malherbe.

Para a historia da linguistica não é sem interesse esta curta doutrina
christã, podendo ser comparada com certas obras do mesmo genero,
escriptas por penna portuguesa, estando n’este caso, entre outras, os
canticos religiosos em lingua tupy por Christovão Valente, os quaes
incluí no opusculo—_Une fête brésilienne_. Pariz. Techener, 1850.

Não se póde achar o livro que os contem, e talvez só exista na
Bibliotheca Imperial.

Reproduzimos aqui seo nome—_Cathecismo brasilico da doutrina christã,
com o ceremonial dos sacramentos e mais actos parochiaes. Composto por
padres doutos da Companhia de Jesus, aperfeiçoado e dado á luz pelo padre
Antonio de Araujo da mesma Companhia, emendado nesta segunda impressão
pelo padre Bertholomeu de Lean da mesma Companhia_, Lisboa, na officina
de Miguel Deslandes 1861, em 8.º pequeno. A primeira edicção foi em 1618.

Si se quizesse, poder-se-ía completar este estudo comparativo procurando
os seguintes manuscriptos, citados por Barbosa Machado, e que seria coisa
curiosa si fossem publicados.

Ludewig os ommittio em seo importante trabalho, completado por Mr.
Trubener. O Padre João de Jesus _explicação dos mysterios da fé_. O Padre
Manoel da Veiga _Cathecismo_. F. Pedro de Santa Rosa _Confessionario_.
André Thevèt nos seos manuscriptos conservados na Bibliotheca Imperial
de Pariz, dá o _Pater_ e o _Credo_ em lingua _tupy_, depois reproduzidos
em sua grande _Cosmographia_. São preciosos estes dois documentos
especialmente por sua antiguidade, pois datam de 1556.

Entre os livros d’este genero um dos mais modernos e dos mais curiosos
é o do Padre Marcos Antonio, intitulado: _Doutrina e perguntas dos
mysterios principaes de nossa santa fé na lingua Brasila_. Foi composto
em 1750 e Ludewig menciona-o como fazendo parte das collecções do
_British Museum_.


99 (pag. 250).

Lery ja tinha asseverado o effeito, que faz nos indios o canto
melancolico do Macauhan. A crença nos mensageiros das almas, nos
passaros propheticos ainda não se extinguio de todo, pois ainda existe
na poderosa nação dos Guayacurus, depois de haver exercido antigamente
sua poderosa influencia em todas as tribus dos Tupys, porem o padre Ivo
deo-lhe extensão que nunca teve, visivel alteração nas antigas ideias
mythologicas.

O nome d’este passaro respeitado é escripto em portuguez _Acaúan_, e
tambem _Macauan_: nutre-se de reptis, e não tem esse aspecto sinistro,
que lhe dá o nosso bom Missionario.

Tem a cabeça muito grossa em relação ao corpo, é côr de cinza, o peito e
o ventre vermelhos, azas e cauda negras com pintas brancas. Pensa hoje em
dia a maior parte dos indios, que a missão deste passaro é annunciar-lhe
a chegada de algum hospede. Consulte-se sobre o Acaúan, Accioli,
_Corographia Paraense_, e Gonçalves Dias, _Diccionario da lingua Tupy_.
Martius na palavra _Oacaoam_ diz ser o Macagua de Felix de Azara. Falco
(herpethocheres).


100 (pag. 257).

No tempo de Ivo d’Evreux, eram chamados _Barbeiros_, os cirurgiões mais
habeis, e alguns annos antes até o illustre Ambrosio Paré era assim
conhecido.

Como os _Piayes_, _Pagé_, _Pagy_, _Boyés_ ou _Piaches_ (por todos estes
nomes são conhecidos) cuidam de curar feridas e molestias.

O padre Ivo, como se verá adiante, os compára por despreso aos barbeiros,
mas entenda-se, aos barbeiros das aldeias.

Este capitulo é por certo um dos mais curiosos do livro, e deve ser
com todo o cuidado comparado com o que escreveo Simão de Vasconcellos,
(_Chronica da Companhia de Jesus_, in fol.) e com todas as _Memorias_
publicadas pelo Instituto Historico do Rio de Janeiro sobre a religião
primitiva dos indigenas, achando-se ahi bem claramente definidos os
attributos de Jeropary.

É na verdade para sentir-se a falta de uma folha, porque nos trouxe a
perda de preciosos documentos de homens praticos e habeis, que entre si
conservavam as tradicções.


101 (pag. 264).

No tempo d’esta narração eram ainda os morcegos classificados como
passaros.

O que aqui diz o nosso viajante sobre os vampyros não é exageração.

Consulte-se a este respeito Ch. Watterten (_Excursions dans l’Amerique
meridionale_, p. 15 e 389.)

Este sabio naturalista descreveo com minucioso cuidado o genero da
ferida, que produz o morcego americano nas pessoas, que dormem. Matou um
vampyro, que tinha 32 pollegadas de extensão de azas abertas. Em geral
são muito menores.


102 (pag. 268).

Entre os antigos viajantes do seculo XVII é Ivo d’Evreux o unico, como
notamos, que menciona entre os Tupinambás os rudimentos de estatuaria
(imperfeita sem duvida) com applicação á mythologia d’estes povos.

D’estas coisas nada escreveram Thevèt, Hans Stadens, e Lery,
Vasconcellos, Cardin e Jaboatão.

Eram os Tupys unicamente caçadores, e só per accidens se entregavam á
vida agricola. Os unicos vestigios de cultura, que d’elles conhecemos,
se referem aos seos _Macanas_, ou a sua _Lyvera-péme_, especie de armas
pesadas, que elles enfeitavam á capricho.

Tinham por costume pôr um Maracá, enfeitado de bonitas pennas na prôa de
suas canôas de guerra, tão esguias como elegantes, e será bem possivel,
que a base d’esse instrumento seja ornado de sculpturas similhantes
ás que se observam entre os insulares da Polynesia. É provavel que
multiplicando-se suas relações com os Europeos, tenham os Tupinambás
bebido entre elles ideias de sculptura rudimentar que applicam á suas
divindades grosseiras.

O veridico Barrére, que escreveo mais de um seculo depois de Ivo
d’Evreux, falla de um piaya fazendo uma estatueta de _Anaanh_, genio do
mal, que não é senão o _Anhanga_ do padre Nobrega e de Anchieta, cuja
terrivel missão sobre a terra foi tão bem descripta por João de Lery, que
sempre o chamou _Aignan_.

Dêem-lhe nas ilhas ou nos continentes os nomes de _Uracan_, de
_Hyorocan_, de _Jeropary_, de _Maboya_, de _Amignao_, reconheçam-se os
genios secundarios, como seos mensageiros (apenas citarei um, o malicioso
_Chinay_, que faz emmagrecer os pobres indios sugando-lhes seo sangue.)
Anhanga teve sempre fama terrivel nos seculos XVII e XVIII.

Este typo primitivo da sculptura religiosa dos Tupys foi infelizmente
aberto em madeira muito molle, e por isso não poude resistir á acção
do tempo, ou á invasão das formigas: duvidamos que se encontre um só
_specimen_ de dois seculos atraz.

Eis finalmente a passagem tão curiosa de Barrére que confirma as
palavras do padre Ivo. «Tem os indios outra sorte de feitiçaria, que os
singularisa. Fazem uma figura do diabo n’um pedaço de madeira molle e
sonora: esta estatua do tamanho de tres a quatro pés é muito feia pela
sua immensa cauda, e grandes lanhos.

«Chamam-na _Anaantanha_ que parece dizer—_imagem do diabo_, porque
_Tanha_ significa figura, e _Anaan-diabo_. Depois de haverem soprado
sobre os enfermos, trazem os _Piayas_ esta figura para fóra da
_casa-grande_:

«Ahi elles o interrogam, esbordoam-na á cacete, como para obrigar o
diabo, bem a seu pesar, a deixar o enfermo.» (Vide _Nouvelle Relation
de la France équinoxiale, contenant la description des côtes de la
Guiane, de l’isle de Cayenne, le commerce de cette colonie, les divers
changements arrivés dans ce pays_ etc. etc. Paris. 1743, em 12 gr.)

N’um capitulo precedente Ivo d’Evreux ja fallou de uma boneca que tinha
uma especie de mecanismo, que servia para as nigromancias do Piaya.

É para sentir-se, que não se encontrasse um só d’estes idolos nas
collecções etnographicas, que então começou-se a fazer.

Poucos annos antes de haver la Ravardiere explorado o rio do Amasonas,
João Mocquet, o guarda das curiosidades do Rei, percorreo essas praias, e
seria de rara felicidade para a archeologia americana si elle encontrasse
alguns dos idolos de que falla o padre Ivo.


103 (pag. 271).

É mui provavel, que estas lustrações sejam feitas á imitação das
ceremonias, que entre os christãos viram os _Tupinambás_.

Pode bem ser, que o mesmo aconteça á respeito da pretendida confissão
auricular de que falla o autor um pouco mais adiante.

Os antigos viajantes, Hans Staden, Lery e Thevèt nada dizem, que tenha
relação com tal costume.


104 (pag. 272).

Parece á primeira vista ter recebido este _piaga_, tão influente, um nome
francez: assim porem não aconteceu.

Havia n’esse tempo um poderoso Chefe, chamado _Pacquara-behu_ «barriga
d’uma paca cheia d’agoa». _Pacamont_ pode significar a «paca agarrada na
armadilha», (_Pacamondé_).

O nome da terra, onde tinha influencia, significa a «região das plantas
leitosas», e escreve-se _Cumá_.


105 (pag. 280).

Vatable ou Vateblé era um celebre sabio na lingua hebraica, no seculo
XVI, restaurador na França dos estudos orientaes.

Morreo em 1547.

Suas notas sobre o antigo testamento acham-se na Biblia de Robert Etienne.


106 (pag. 282).

Prova-nos esta phrase ter o Padre Ivo escripto sua obra na Europa, e
saber da missão dirigida pelo Padre Archangelo.

Affirma Marcellino de Piza terem 565 indios recebido o baptismo n’esta
segunda expedição religiosa. (Vide _Annales historiarum ordinis minorum_.
Lugd. 1676 in fol.)

O Padre Archangelo, acompanhado por 12 confrades, portador de magnificos
ornamentos bordados pela Duqueza de Guize devia por certo cercar-se de
outra pompa, que não tiveram os quatro Geraes Capuchinhos, que deram
principio á missão.

Graças aos documentos, que nos são proporcionados pela marinha, e que
devemos ao obsequio do Sr. P. Margry, soubemos por uma carta inedicta
do Sr. de Beaulieu a Mr. de Razilly, que o Padre Archangelo, muito
conhecedor do valor do dinheiro abstrahindo o seo voto de pobresa, não
quiz embarcar-se antes de lhe haverem dado a esperança de conseguir
subsidios.

Apesar dos recursos, de que dispunha o seo chefe espiritual, ainda está
por fazer a historia d’esta segunda missão: não deixou até vestigios,
e ficará para sempre ignorada em quanto não descobrirmos o livro de
Francisco de Bourdenare.

Sabemos apenas que muito mais favorecido, que Ivo d’Evreux, por seos
superiores, recebeo, graças ás suas cartas de obediencia, o direito de
admittir noviços em seo Convento.

Não teve tempo de utilisar-se de tal privilegio, mas quando regressou á
Europa, em recompensa do seo zelo foi em 1615 nomeado Guardião do grande
Convento da rua de Santo Honorato.

Todos estes factos, omittidos naturalmente pelos historiadores do
Maranhão, acham-se referidos nos _Éloges historiques_, manuscripto da
Bibliotheca Imperial, e seria injustiça esquecer serem elles tambem
narrados pelo Padre Marcellino de Piza.

Depois de haver contado como o Geral dos Capuchinhos Paulo de Caesena
deo licença á Honorato de Pariz, então Provincial, para mandar á America
uma segunda missão, disse:—«_Ille nihil cunctatus, duodecim fratres ad
hanc expeditionem, aptos elegit quorum animosa phalanx navem conscençâ
secedens in Indiam, a barbara illa natione jam capucinorum placidis
moribus assueta per humaniter fuit excepta_.»

Na entrada dos portuguezes o Padre Archangelo de Pembroke retirou-se com
os Capuchinhos francezes ficando em lugar d’elles os Franciscanos, que em
numero de vinte se recolheram ao Mosteiro.

Sob a direcção de Frei Christovão Severino teve então o Convento nova
regra.

Foram as bases lançadas em 1624 porem só foram cumpridas pontualmente em
4 de Agosto do anno seguinte.

Abstemos-nos porem de offerecer ás vistas do leitor as desgraçadas
peripecias, porque passou este Mosteiro durante 225 annos: basta dizer,
que no fim de um seculo estava quasi reduzido a ruinas.

Em 1860 o actual Guardião, que tinha sob seo governo somente dois
franciscanos, mas que soube felizmente captar as sympathias dos
habitantes de São Luiz, recorreo á caridade publica afim de concertar-se
como merece este edificio, a que se ligam interessantes recordações do
paiz.

A Ordem é actualmente muito pobre, porem offerece grande contraste,
segundo é voz geral, quando em seo zelo é comparada com outros
Conventos[BL] opulentos da Cidade, que estão se arruinando.

Não foram em vão as supplicas de Frei Vicente de Jesus, pois elle
arrecadou grandes quantias, que chegaram para reparar os estragos do
tempo.

Conservando a humilde Capella, onde orou o Padre Ivo d’Evreux, fizeram-se
novas edificações que tornaram a Igreja de Santo Antonio a mais linda de
tão bella Cidade.


107 (pag. 301).

É mui curioso vêr aqui o Padre Ivo d’Evreux fazer uma especie de allusão
á antigas crenças d’esses povos, as quaes Thevet, ou talvez o Cavalheiro
de Villegagnon tinham guardado desde 1555, e que parece ser ignoradas
pelos nossos viajantes do Seculo XVI, pois não tratam d’ellas em suas
narrações.

Uma nota, mesmo concisa nos levaria muito longe, e vêr-nos-iamos forçados
a chamar a attenção do leitor para um opusculo, no qual reunimos tudo o
que podemos encontrar á respeito das ideias mythologicas dos Tamoyos e
dos Tupinambás. (Vide sobre os _Maraïta—Une fête bresilienne célébrée
à Rouen em 1550 suivie d’un fragment du XVIme siécle roulant sur la
Théogonie des anciens peuples du Brésil_. Paris, Techener, 1850 gr. in
8.º)


108 (pag. 301).

A legenda brazileira de geração em geração transmittio a narração das
perigrinações de dois prophetas, bem distinctos, igualmente estimados por
esses selvagens, que os chamou _Tamandaré_ e _Sumé_.

Como Boudaha, deixou o ultimo impressas as suas pegadas sobre a rocha
viva, quando deixou a terra.

O mytho de Tamandaré, que se lê na descripção do diluvio americano, é
contado extensamente por Vasconcellos nas suas _Noticias do Brazil_, pag.
47 e 48.

Ahi se lerá como o Noé americano subindo ao cume de uma palmeira, que
tocava com o seo vertice o Ceo, e agarrando d’ahi sua Familia poude
salval-a, e com ella repovoou a terra.

Na phrase aqui citada, Ivo d’Evreux alludio ao legislador mais moderno,
Sumé, este Triptolémio brazileiro, que ensinou a cultura da mandióca aos
descendentes de Tamandaré.

Simão de Vasconcellos diz mui positivamente, que «havia entre elles
tradicção muito antiga, transmittida de paes a filhos, dizendo haverem
apparecido, muitos seculos depois do diluvio, homens brancos n’estas
terras, que fallavam aos povos de um só Deos e de outra vida. Um d’elles
chamava-se _Sumé_, que parece quer dizer _Thomé_.»

Preferindo a tradicção, que dá a São Bartholameu a honra de haver
evangelisado os povos longiquos, provou com isto o Padre Ivo o seo
conhecimento das origens.

Com effeito, segundo diz Eusebio, chegou este Apostolo viajante até a
extremidade das Indias, São Pantene percorreo o interior da Asia desde o
III seculo, e ahi já achou vestigios do christianismo, que bem se podiam
attribuir ás prédicas de Sam Bartholameo.

Prevaleceo comtudo no Brasil a legenda em contrario, como a outra na
India. (Vide _Jornada do Arcebispo de Goa dom Frei Aleixo de Menezes,
quando foi ás serras de Malauare, lugares em que moram os antiguos
christãos de S. Thomé_. Coimbra, 1606, in fol.)

No tempo de Vasconcellos bem visiveis eram os signaes dos pés de S.
Thomé, ao norte do porto de S. Vicente, perto da Villa.

Estes signaes de dois pes nùs por maravilha impressos na rocha (_tão
vivos e expressos, como si em um mesmo tempo juntamente se fizeram_) não
eram vistos debaixo d’agoa.

O religioso franciscano Jaboatam achou no Recife, em Pernambuco, pegàdas
santas.

N’esta segunda edicção da legenda, somente apparece um pé como o
de um menino de 5 annos, que suppõe ser o piedoso narrador o de um
jovem companheiro do Apostolo. (Vide _Novo Orbe Serafico_, reimpresso
ultimamente pelos esforços do _Instituto Historico e Geoqraphico do Rio
de Janeiro_.)

Não se encontram esses afamados signaes somente em diversos pontos do
littoral, e sim em outros lugares, o que seria enfadonho enumerar.

Não contentes ainda com isto fizeram com que o santo viajante se
embrenhasse corajosamente pelo interior do Brasil, onde em caracteres
gigantescos sobre pedras ou rochas escreveo a historia da sua missão.

Ha em Minas uma aldeia, a que se deo o nome chamando-a _Sam Thomé das
Lettras_.

Um observador circumspecto, o general Cunha Mattos, não vio taes
inscripções, e combateo a tradicção dizendo que esses traços
phantasticos, que se observam n’um dos lados da _Serra das lettras_
foram formados por accidentes de terreno, isto é, por dendrites, para
servir-me de suas expressões. (Vide _Itinerario do Rio de Janeiro ao Pará
e Maranhão_. Rio de Janeiro. 1836. 2 vol. em 8.º T. 1.º pag. 63).

Dura até hoje esta opinião sobre a gigantesca inscripção da _Serra das
lettras_, e acredita-se actualmente serem devidos a infiltração de
particulas ferruginosas obrando sobre o grão da serra, e por est’arte
simulando caracteres escriptos.

No Brasil são muitos os hieroglyphos grosseiramente embutidos, e ninguem
duvida serem devidos á origem indigena. Muitas obras nos mostram os seos
_fac-simile_.

A grande viagem pitoresca de Mr. Debret tem dois, que não deixam de ter
interesse.

Fallamos da inscripção do monte de _Anastabia_, e das esculpturas
embutidas n’uma rocha, que se encontra perto das margens do rio Yapurá,
na provincia do Pará, bem pode ser que as palavras do Padre Ivo se
refiram á este monumento, grosseiramente trabalhado, e de que trata Mr.
Debret na pag. 46 do seo T. 1º, porem em alguns não acha a mais prevenida
imaginação bases para assentar uma opinião historica ou religiosa.

Pelo que se refere _ás rochas incisadas_, de que falla o nosso bom frade,
é tradicção geral em toda a America, que estes accidentes, resultados
de grandes commoções da natureza, são sempre explicados pela legenda
indigena, que os attribue ao supremo poder de um semi-Deos, que, a sua
vontade, quebra as montanhas mais resistentes ao trabalho do homem e,
algumas vezes, até os mais gigantescos.

Em Nova-Granada o salto de Tequendama não teve outra origem, pois foi
feito, como se sabe, pelo grande Bochica: poderiamos tambem citar a
abertura feita no _recife_, que margina o littoral de Pernambuco, e
que se attribue ao grande Sumé, ou ao seu representante christão, o
Apostolo viajante. (Vide Frei Antonio de Santa Maria Jaboatão, _Novo
Orbe Serafico Brasilico_, ou _Chronica dos frades menores da provincia do
Brasil_. 2.ª edicç. Rio de Janeiro. 1858.)

Jaboatão escreveu em 1761.


109 (pag. 311).

Tinha este chefe indigena um nome bem conhecido na ornithologia do
Brasil. O _Jacupema_ é o _Penelopsupereiliaris_ uma das melhores caças do
Brasil.


110 (pag. 334.)

Na familia dos Foulon, de que gozava muita consideração em Abbeville,
tinham muitos dos seos membros se dedicado á vida monastica.

O padre Marçal esteve em Pariz com seo irmão o padre Claudio; este
ultimo, cujo artigo está tão cheio de erros na biographia universal, era
ja guardião do convento na sua patria desde 1608, mas, como o padre Ivo,
começou o seo noviciado em 9 de junho de 1595.

A bibliotheca do Arsenal possue um opusculo, hoje raro, do padre Claudio,
cujo titulo é—_L’arrivée des Pêres Capucins et la conversion des sauvages
a nostre sainte Foy déclarés par le R. P. Claude d’Abbeville, prédicateur
capucin à Paris_, chez Jean Nigaut, rue de St. Jean de Latran, em 1613.
Pode comparar-se este escripto com o artigo intitulado—_Retour du sieur
de Rasilly en France et des Toupinambous qu’il amena á Paris._ _Mercure
française_. T. 3, pag. 164. _L’histoire chronologique de la bienheureuse
Colette, réformatrice des trois ordres du Seraphique Pere St. François._
Paris. Nicolas Buon, 1628, em 12: não é do padre Claudio, como suppõe
Eyriés. A dedicatoria tem a assignatura de Fr. S. d’A, indigno
capuchinho. Já tinha morrido Claudio d’Abbeville quando appareceo esta
obra. Depois de ter 23 annos de religião, falleceo em Ruão em 1616 e não
em 1632.


111 (pag. 335).

Leia-se _Plymouth_: Claudio d’Abbeville escreve _Pleme_.


112 (pag. 335).

Trata-se aqui do _Rio do Ouro_.


113 (pag. 336).

Difficilmente por este nome se sabe ser a _Ilha de Fernão de Noronha_, e
não _Fernando de Noronha_, como escreve alguns geographos.

Está a 75° long. E. N. E. do Cabo de Sam Roque, e na lat. de 3° 48, á
52′. Explica-se esta alteração de nome pela sua visinhança do Cabo de Sam
Roque.

Alguns viajantes antigos escreveram _Fernando de la Rogne_: n’esse caso
está o padre Claudio.


114 (pag. 337).

Omittio o padre Claudio d’Abbeville esta ultima circumstancia.


115 (pag. 339).

Leia-se _Tupan_ em vez de _Iupan_. Quanto a palavra Matarata, que
ahi se lê, não se pode entender pelo adjectivo _Mbaraeté_, que
significa—_forte_. Parece estar sob esta significação no _Tesoro de la
lingua Guarany_, do padre Ruiz de Montoya.


116 (pag. 341).

O capitão du Manoir estava ha muito tempo estabelecido na Ilha, onde
tinha muitas relações.

Foi elle quem hospedou os Missionarios, e lhes offereceo uma festa
«tão magnifica como podia ser em França» disse o padre Claudio, a qual
assistiram os Srs. de Rasilly e Pezieux. Foi da sua habitação que
partiram os nossos para tomar posse do lugar, onde se edificou o _Forte
de Sam Luiz_. Regressou á França antes de ser o Maranhão tomado pelos
portuguezes.

Quando evacuaram as nossas forças navaes o porto do Maranhão, muitos
francezes não seguiram o exemplo de Manoir, e se estabeleceram na nova
Colonia, onde só foram permittidos artistas.

Erraria quem suppozesse ter sido abandonada a missão fundada com tanto
zelo pelos nossos Religiosos: sem a menor alteração foram incumbidos
d’ellas os Franciscanos: a este respeito achou-se tudo quanto podia
desejar-se no _Orbe Seraphico_ do padre Jaboatão.

Contem este resumo uma longa biographia de Frei Francisco do Rosario,
frade celebre na Ordem de Sam Francisco, que tomou posse do Convento dos
Capuchinhos perto de dez annos depois, que estes o abandonaram de todo.

Embrenhava-se muitas vezes este zeloso Missionario nos desertos
desconhecidos do Maranhão, onde ia cathequisar os indios.

Em 1630 compôz uma obra aproveitavel sobre as tribus que visitou.
Infelizmente nunca foi publicada, e o seria se fosse encontrada, como
precioso commentario á obra do padre Ivo.

Cansado por seos trabalhos, cuja multiplicidade espanta até a imaginação,
foi para a Bahia, onde revestido das dignidades da ordem falleceo com
cheiro de santidade em 24 de fevereiro de 1650.

Afirma-se haver elle predicto muitos annos antes os grandes
acontecimentos politicos, que, produzindo a expulsão da Hespanha, dava
independencia ao Brasil.

Parece que vio-se obrigado a reconstruir em 1625 os edificios que
deixaram em começo os nossos Religiosos, e por isso foi elle em Sam Luiz
julgado como o primeiro fundador do Convento da sua Ordem.

Vamos ainda dizer uma palavra para acabar estas notas. Serão ellas ainda
um dia completadas pelo trabalho, que ha de preceder a _Relação do Padre
Claudio d’Abbeville_, e si se quizer, o podem ser ja, consultando se
varias obras francezas contemporaneas, absolutamente despresadas, sob
este ponto de vista, pelos historiadores da America. N’este caso, entre
outros, está o padre Pedro du Jarric, pois, na verdade, ninguem pensaria
achar n’uma _Historia das Indias orientaes_ todos os factos religiosos,
acontecidos em Maranhão antes de 1607.

Consultando-se o 5.º volume d’esta volumosa obra, encontra-se a
tragica historia dos padres Francisco Pinto e Luiz Figueira, jesuitas
portuguezes, os primeiros que visitaram os desertos desconhecidos, cujo
littoral occuparam os francezes.

Francisco Pyrard, o viajante Belga, residente na pequena cidade de Laval,
nos contou tambem na sua _Relação das Indias e especialmente das Ilhas
Maldivas_, o que na Europa se pensava do Brasil no tempo, em que viveo o
padre Ivo. Não trata do Maranhão, e bem o podia fazer.

Deve ainda dizer-se que esta bella provincia, conhecida mais pela obra de
Mr. Herald do que por outras antigas, ficou por muito tempo fóra da toda
a vida politica.

Doada a principio aos filhos de José de Barros, o famoso historiador das
Indias, só foi conhecida na Europa por uma lastimavel catastrophe, pois
era esquecida apesar da fertilidade e da magnificencia da sua vegetação.

Apparece comtudo n’um dos monumentos geographicos mais importantes, onde
se verificou o que era o Brasil no seculo XVI: queremos fallar da bella
_Carta_ de Gaspar Viegas, que tem a data de outubro de 1534, hoje na
Bibliotheca Imperial de Paris.

Nenhum historiador até hoje ainda a mencionou, apezar de sua exactidão
tão admiravel para aquelles tempos e ainda continuaria a ser esquecida
se o Sr. de Cortambert não nos fizesse o favor de communicar-nos a sua
existencia.

Sentimos muito praser recordando-nos, que este bello trabalho do
desconhecido geographo vae de hora em diante ligar-se ao mais vasto e ao
mais exacto reconhecimento das costas do Brasil, que tem podido obter a
sciencia n’estes ultimos tempos, e d’ella fará objecto de especial estudo
o Sr. capitão da fragata Mouchez na sua grande obra nautica a respeito do
littoral do Brasil.

Deviam acabar aqui as notas indispensaveis para conhecer-se na França e
mesmo na America o texto do nosso velho viajante.

Accrescentaremos apenas uma palavra, talvez indispensavel para
comprehender-se o valor do documento por nós exhumado.

O padre Arsenio de Pariz, o fiel companheiro do padre Ivo d’Evreux, disse
em 1613 ao Superior do seo Mosteiro á proposito das regiões, por onde
evangelisou, o seguinte:

«Eu vos asseguro, meo padre, que quando estiver um pouco estabelecido,
será um verdadeiro paraiso terrestre.»

A esperança do bom Religioso não era das que se podem realisar
completamente: não caminham assim as coisas neste mundo, porem não sendo
o paraiso, é o Maranhão uma das provincias de um vasto Imperio, que vae
progredindo.

No meio de prosperidades reaes, e apezar dos esforços de espiritos
felizmente bem intencionados, o progresso intelletual do paiz está muito
longe do que devia ser.

As recordações do passado, que tanto desenvolvem as populações, ahi não
existem.

Não ha archivos, bibliothecas publicas, e nem instituições litterarias,
e tanto é verdade isto, que o Imperador, o Sr. D. Pedro 2º, ha dez annos
incumbio um dos homens mais activos e eminentes d’este paiz para examinar
na Cidade de Sam Luiz o estado real dos depositos litterarios da Capital
do Maranhão.

Não reproduziremos aqui as queixas judiciosas e bem fundadas do Sr.
Gonçalves Dias sobre o lamentavel estado dos estabelecimentos, objecto de
suas investigações.

Pode lêr-se o seo _Relatorio_ escripto em bom estylo na _Revista
Trimensal_ publicada com tanto zelo pelo Instituto Historico do Rio de
Janeiro.

Citaremos apenas, que ha dez annos, Gonçalves Dias achou 2:000 volumes
na Bibliotheca Publica e no Almanach de 1860, edictado pelo Sr. B. de
Mattos, apparecem 1:030 em deploravel estado!

Possa a reimpressão da obra do padre Ivo d’Evreux marcar uma nova era na
patria de Odorico Mendes, de Gonçalves Dias, e de João Lisboa.


FIM.


NOTAS

[BG] Consulte-se a respeito de todos estes assumptos o meo _Diccionario
historico e geographico do Maranhão_. Iria longe se eu quizesse
acompanhar _parí passu_ esta publicação, onde não poucas vezes foi
illudida a bôa fé de Mr. Ferdinand Diniz.—Do traductor.

[BH] Outro engano. Aqui não se conhece esta dóca.—Do traductor.

[BI] 40 leguas? Não, e sim 4 leguas. Vide art. _Alcantara_ no meo
_Diccionario_.—Do traductor.

[BJ] É engano. O major Fidié não foi vencido, e sim capitulou
honrosamente em 1.º de Agosto de 1823. (Vide _Historia da Independencia
do Maranhão_ (1822 a 1823) pelo Dr. Luiz Antonio Vieira da Silva, hoje
Senador do Imperio, pag. 109 a 127.)—Do traductor.

[BK] Mr. Ferdinand Diniz foi illudido por escriptos politicos, embora
habilmente manejados porem sempre com paixão.

Não foi o Conselheiro Furtado a quem se deve esse estado de paz, e sim a
outro cidadão como ja disse no meo _Diccionario_ neste trecho que para
aqui transcrevo.

—Durou este triste e lamentavel estado de ferocidade ou dezespero até
o tempo, em que o fallescido Dr. Eduardo Olympio Machado perante os
escolhidos da Provincia em 1851 recitou estas palavras:

«A febre homicida, que ía lavrando pelo municipio de Caxias, tem feito,
vae para tres mezes, prolongada remissão. E qual o reagente que conseguio
acalmar seos lugubres accessos? A energia e actividade do actual
delegado de policia o Dr. João de Carvalho Fernandes Vieira, o qual,
formando culpa aos delinquentes, perseguindo-os com incansavel zelo,
devassando as casas de certos individuos, que até então contavam, senão
com acquiescencia, com o silencio da auctoridade publica, tem conseguido
restituir á tranquilidade o districto de sua jurisdicção.»

Foram estes valiosos e importantes serviços apreciados pelo Governo
Central, pois mandou por mais de um Aviso louvar o Dr. João de Carvalho.

D’ahi a poucos annos houve quem intentasse arrancar esses louros da
fronte do energico e activo ex-juiz municipal e delegado de policia de
Caxias para offerecer a outro, que nada fez, não cuidando da historia que
tudo registra e a todos faz justiça!

Esta acção, por demais injusta, nos faz lembrar estes versos do poeta de
Mantua:

    Hos ego versiculos feci: tulit alter honores
    Sic vas non vobis, nidificates, aves etc etc.

Do traductor.

[BL] É injustiça confundir-se nesta censura o Convento do Carmo, graças
ao zelo do seo benemerito Provincial o Revd. Frei Caetano de Santa Rita
Serejo.—Do traductor.



INDICE.


    Ao leitor

    Introducção                                                          1

    Ao Rei                                                               1

    Ao Rei                                                               3

    Prefacio                                                             7

    Da construcção das capellas de S. Francisco e S. Luiz do
      Maranhão                                                           9

    Do estado do poder temporal em sua primitiva                        11

    Da construcção do Forte de S. Luiz, e do interesse dos
      selvagens em carregar terra                                       14

    Dos preparativos dos Tupinambás para uma viagem ao Amazonas         19

    Partida dos francezes para o Amazonas em companhia dos
      selvagens                                                         23

    Do que aconteceo na Ilha durante esta viagem, e principalmente
      das astucias de um selvagem chamado Capitão                       27

    Da chegada de uma barca portugueza a Maranhão                       31

    Do valor e dos costumes dos selvagens do Miary                      36

    Das incisões, que fazem estes selvagens em seos corpos e como
      escravisam seos inimigos                                          40

    Leis do captiveiro                                                  44

    Outras leis para os escravos                                        48

    Quanto são misericordiosos os selvagens para com os criminosos
      por acaso e sem malicia                                           52

    Quanto é facil civilisar os selvagens á maneira dos francezes e
      ensinar-lhes os officios que temos em França                      58

    Quanto são aptos os selvagens para aprenderem sciencias e
      virtudes                                                          63

    Continuação do objecto antecedente                                  67

    Ordem e respeito da naturesa entre os selvagens, observada
      inviolavelmente pela mocidade                                     71

    A mesma ordem e respeito é observada entre as raparigas e as
      mulheres                                                          79

    Da consaguinidade entre os selvagens                                84

    Dos caracteres incompativeis entre os selvagens                     90

    Da economia dos selvagens                                           94

    Do cuidado que do seo corpo tem os selvagens                        95

    De algumas indisposições naturaes, a que os selvagens se acham
      sujeitos, e quaes os nomes que dão aos membros do corpo          101

    De algumas molestias particulares á estes paizes de indios e de
      seos remedios                                                    106

    Da morte e dos funeraes dos indios                                 111

    Do regresso á ilha do Sr. de la Ravardiere e de alguns
      Principaes, que o seguiram                                       116

    Viagem do capitão Maillar pela terra firme á casa de um grande
      feiticeiro. Descripção desta terra e das zombarias d’elle        120

    Da vinda dos Tremembés, como foram perseguidos, suas habitações
      e procedimento                                                   125

    Da chegada dos Cabellos-compridos á Tapuytapéra e da viagem ao
      Uarpy                                                            129

    Dos astros e do sol                                                132

    Ventos, chuvas, trovões e relampagos em Maranhão e suas
      circumvisinhanças                                                135

    Mar, agoas e fontes do Maranhão                                    139

    Singularidades de algumas arvores do Maranhão                      141

    Dos peixes, passaros e lagartos, que se encontram n’estes
      paizes                                                           146

    Da pesca do Pery                                                   148

    Da caça dos ratos, das formigas e das lagartixas                   153

    Das aranhas, cigarras e mosquitos                                  165

    Dos grilos, dos camaleões e das moscas                             160

    Das onças e dos macacos do Brazil                                  173

    Das aguias, dos passaros grandes e dos passarinhos d’aquelle
      paiz                                                             178

    Resposta a muitas perguntas, que fazem n’aquelle paiz á
      respeito das Indias Occidentaes                                  184

    Instrucção para os que vão pela primeira vez ás Indias             189

    Do acolhimento, que fazem os selvagens aos francezes
      recem-chegados, e como convem proceder para com elles            193

    Dos fructos do Evangelho, que appareceram cedo pelo baptismo de
      muitos meninos                                                   201

    Do baptismo de muitos enfermos e velhos, que falleceram depois
      de christãos                                                     210

    Do baptismo de muitos adultos, especialmente d’um chamado
      Martinho                                                         217

    Do que fez este christão em beneficio da instrucção e conversão
      dos seos similhantes                                             225

    De um Indio condemnado á morte, que pedio o baptismo antes de
      morrer                                                           230

    Formulario dos discursos, que faziamos aos selvagens quando
      nos vinham vêr, para chamal-os ao conhecimento de Deos e á
      obediencia de nosso Rei                                          234

    Formulario da doutrina christã, que aprendiam e recitavam de
      cór, antes de serem baptisados                                   241

    Qual a crença natural dos selvagens a respeito de Deos, dos
      espiritos e da alma                                              246

    Dos principaes meios usados pelo diabo para conter em suas
      cadeias por tão longo tempo estes selvagens                      252

    Como falla o diabo aos feiticeiros do Brasil, suas falsas
    profecias, idolos e sacrificios                                    259

    De algumas outras ceremonias diabolicas praticadas pelos
      feiticeiros do Brasil                                            271

    Claros signaes do reino do diabo em Maranhão                       275

    Os filhos do Brazil darão cabo do reinado de Lucifer e
      começarão a restabelecer o reinado de Jesus Christo              283

    Primeira conferencia com Pacamão, grande feiticeiro de Commã       289

    Segunda conferencia que tive com Pacamão                           296

    Conferencia com o grande feiticeiro de Tapuytapéra                 304

    Conferencia com Jacupen                                            311

    Conferencia com o principal de Orubutin                            317

    Conferencia com o Onda, um dos principaes de Commã                 321

    Congratulação á França etc. etc.                                   329

    Fidelissima narração etc. etc.                                     334

    Narração d’um marinheiro                                           344

    Notas criticas e historicas por Mr. Ferdinand Diniz                347





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