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Title: Contos e Phantasias
Author: Carvalho, Maria Amalia Vaz de
Language: Portuguese
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  CONTOS E PHANTASIAS



  D. MARIA AMALIA VAZ DE CARVALHO


  CONTOS

  E

  PHANTASIAS


  2.ª EDIÇÃO


  LISBOA

  PARCERIA ANTONIO MARIA PEREIRA

  LIVRARIA EDITORA

  Rua Augusta--50, 52 e 54

  1905



  LISBOA

  OFFICINAS TYPOGRAPHICA E DE ENCADERNAÇÃO

  Movidas a vapor
  DA
  Parceria Antonio Maria Pereira

  _Rua dos Correeiros, 70 e 72, 1.º_

  1905



PRIMEIRA PARTE



UMA HISTORIA VERDADEIRA


I

Era uma physionomia incaracteristica, apagada, tristissima.

Não se podia dizer a idade que tinha, nem mesmo se tinha idade.

Tanto podia ter trinta ou quarenta como setenta annos.

Curvado pela idade ou pelos desgostos? Encanecido porque os annos tinham
corrido por sobre a cabeça d'elle, ou porque lhe tinham pesado
duplamente sobre os hombros debeis?

Quem o podia dizer?

Era uma organisação acanhada e rachitica, podia mesmo chamar-se
incompleta.

Para elle com certeza que a adolescencia não tivera as suas madrugadas
azues tão gorgeadas e tão festivas, nem a virilidade tivera a fanfarra
estridente dos seus clarins, a florescencia escarlate dos seus rosaes
voluptuosos.

Tinha sempre vivido debaixo de uma estranha pressão dolorosa.

Dependêra de todos primeiro porque era fraco e inerme, depois porque
fôra pobre, dependente, sem aquella aspera dignidade que os atrictos da
vida tornam mais rude e que é a armadura moral que salvaguarda o homem
nos duros combates sociaes.

Nasceu n'uma casa opulenta que lhe não pertencia, cresceu no meio de um
luxo de que seus paes erão parasitas voluntarios e de que elle era...
parasita inconsciente.

Começára por ter medo de tudo e de todos; um medo que não raciocinava,
que não sabia, que não indagava mesmo a sua propria origem.

Nasceu assustadiço, como certos animaes silvestres, e toda a vida
conservou a mesma expressão inquieta e medrosa da lebre perseguida.

Em primeiro lugar tinha medo de seu pae; um homem alto, espadaúdo,
plethorico, de voz grossa e modos brutaes, que comia como um abbade, que
bebia como um _lansquenete_, que praguejava como um carreiro, e que se
vingava nos poucos entes que tinha debaixo do seu dominio, das
complacencias servis que era obrigado a mostrar aos que o mantinham
n'aquella farta ociosidade de commensal que só goza e não paga.

Depois tinha medo de sua tia; a dona da casa, a _senhora_, a suzerana
ante a qual todos se curvavam submissos.

E no emtanto ella era bonita, delgada, flexivel, muito branca.

Uma figura ideal de pintor inglez.

Mas que culpa tinha elle, o pequenino parea, se os olhos d'essa graciosa
e delicada senhora lhe pareciam frios e metalicos, com umas
scintillações azuladas como as do aço fino? se as suas mãos esguias e
brancas se lhe affiguravam duas tenazes que podiam apertal-o, apertal-o
até o torcerem todo, até o esphacelarem e fazerem d'elle, do seu pequeno
corpo tão fraquinho, uma grotesca massa informe, que o mundo inteiro
pisasse, onde o mundo inteiro cuspisse!

Seria allucinação d'aquelle cerebro enfermo e condemnado ás scismas
doentias?

Quem sabe?

O caso é que o sentia, e que nunca pudera esquivar-se a essa
preoccupação intensa e dilacerante!

Um d'estes dous entes que dominaram de estranho terror a sua infancia,
maltratava-o nas explosões brutaes de seu temperamento de touro bravo.

O outro--a senhora--muito altiva, muito fria, muito desdenhosa, nem
sequer lhe fallava.

Olhava-o ás vezes como se olha para um animal repugnante, para um sapo,
ou para uma carocha, e passava adiante, imperturbavel e olympica.

Havia, porém, um outro sêr, dos que mais em contacto estavam com elle,
que nem o maltratava, nem o desprezava com a glacial frieza do seu
desdem.

E comtudo era d'esse que elle tinha ainda mais medo.

Era seu tio; uma figura original, uma physionomia de titan que por um
engano qualquer da natureza não pôde conseguir passar de anão.

Seu tio!... Como esta individualidade extraordinariamente accentuada,
como este rosto ironico, irregular, convulsionado, dominou para sempre o
destino obscuro da infeliz creança que eu conheci já velho!

Seu tio não o perseguia nem lhe manifestava uma repugnancia muda, pelo
contrario.

Chamava-o continuamente para o pé de si, ensinava-lhe, quando estava só,
palavras, esgares, visagens grotescas que lhe fazia repetir diante de
gente, n'um côro de gargalhadas asperas e hostis como gumes de espadas!

Vestia-o de um modo desusado e extravagante, vestia-o de marujo, de
escossez, com as suas pequenas pernas magras, trigueiras, ossudas, n'uma
nudez friorenta que lhe doia, e o fazia tiritar; vestia-o de tyrolez, o
que lhe dava um aspecto comico, que arrebentava com riso a criadagem.

Ás vezes nos seus dias de melhor humor sahia com elle, que tinha apenas
sete annos de idade, de casaca, chapéo-alto, e berloques na cadeia do
relogio.

Tinha tempos em que não podia passar sem a sua companhia; a creança era
a unica distracção do anão.

As caricias d'esse homem singular, de olhar faiscante, de cabelladura
revolta e electrica, de voz sonora e rica de inflexões estranhas, doíam,
porém, ao pequeno muito mais do que os desprezos ou os máos tratos dos
outros.

Ao pé d'estes sentia-se perseguido, ao pé d'aquelle sentia-se humilhado.

Um dia o marquez--o tio do pequeno Thadeu era marquez,--achou comico
mandar introduzir a creança no cofre acharoado que havia junto ao fogão
do gabinete de trabalho, destinado a guardar a lenha ou o carvão que se
consumia.

De minuto em minuto abria-se a tampa e sahia a cara vermelha e
congestionada do pequeno, uma cara de animal assustado, o que divertia
extraordinariamente as visitas.

Outra vez, n'uma ceia alegre em que havia rios de _champagne_ e risadas
crystallinas de mulheres, Thadeu com um fato de meia preta a cobril-o
todo e dous castiçaes nas pequenas mãos, servia de centro agachado n'uma
posição grotesca no meio da meza.

Sahiu d'alli com uma febre que o teve um mez entre a morte e a vida,
delirante, sem conhecer ninguem, com a mãe debulhada em lagrimas á
cabeceira.

Mas Thadeu não gostava de sua mãe.

Era uma creatura tão debil como elle, pallida como uma defunta, inerme,
estupida, sem vontade.

As lobas defendem os seus filhos, a mãe de Thadeu não o sabia defender!

Entregava-o ás coleras descompostas do pae; aos desprezos gelidos da
tia; aos caprichos monstruosamente comicos do marquez; ás apupadas
brutaes das aias e dos lacaios; aos risos das visitas; ao pasmo
desprezador das outras creanças, que iam áquella casa opulenta e ruidosa
acompanhadas por seus paes, vestidas de velludo, com plumas nos seus
lindos chapéus, o ar grave de meninos bem creados, e que não tinham
licença de brincar com aquelle pequeno histrião, feio, ridiculo, doente,
com gesto de epileptico, com fatos de palhaço e com soluços de martyr.


II

Um dia, porém, fez-se na vida atormentada e tempestuosa do pequeno
Thadeu uma claridade de luar, uma claridade opalisada e doce.

Houve treguas nos seus varios martyrios, e sua mãe, n'uma bella manhã de
primavera em que os passaros cantavam ao desafio nas grandes arvores do
jardim, levou-o pela mão, pé ante pé, a um quarto forrado de setim côr
de rosa, um quarto digno de servir de habitação á fada mais linda que
uma phantasia de poeta oriental houvesse imaginado.

N'aquelle quarto havia um ninho todo branco feito de rendas, de fitas de
setim, de pennugem de passaros, e n'esse ninho dormia uma creancinha que
parecia uma rosa.

--É tua prima; murmurou baixinho a mãe de Thadeu, emquanto este, mudo,
surpreso, extasiado, fitava os seus olhos vitreos, onde o jubilo acendia
uma luz desusada, nos grandes olhos luminosos e pasmados do _bébé_ que
acordára.

Oh! como Thadeu adorava aquella creança! Como na sua vida houve de
repente um ficto, uma esperança, uma luz!

Sua tia, uma vez em que a _bebé_ chorava muito nos braços da ama,
dissera a Thadeu com uma voz menos glacial do que o costume:

--Thadeu, brinca com a prima a vêr se ella se cala.

E elle fizera calar a rabujenta pequerrucha.

Desde esse dia soube-se que a _menina_ tinha o insolito capricho de
adorar Thadeu, de rir quando elle estava de joelhos dobrado sobre o seu
berço, de chorar quando alguem o levava d'alli para fóra.

A ama tomou o costume de o chamar e de o fazer estar horas e horas a
entreter a _menina_.

Ao principio elle fazia-lhe carêtas e momices, como as que usava fazer
para divertir seu tio; depois, sem bem perceber porque, adoptou outro
systema inteiramente opposto.

Percebeu que a pequenina não queria um bôbo, como esse espirito embotado
e pervertido que o victimára com os seus caprichos. O que a _bebé_
queria, na ingenuidade adoravel do seu despotismo infantil, era um
companheiro de seus brinquedos, um socio, um escravo que a adorasse.

Thadeu era tudo para ella: queria-o perto da grande tina em que tomava o
seu banho de manhã; queria-o junto da pequena mesa de nacar onde a ama
lhe dava as sopinhas; queria-o no berço ao adormecer; queria-o no
jardim, á sombra das arvores, sobre a arêa finissima, onde se rolava,
vestida de rendas brancas, a rir como uma perdida.

Chamaram-lhe Margarida.

Margarida quer dizer perola, e Thadeu, que vira muitas vezes sua tia
vestida de baile, achava um nome muito bem posto áquella creança branca,
transparente, loura, idealmente graciosa.

Oh! Thadeu ainda andava muita vez vestido de marujo, de granadeiro, de
tyrolez e de alferes, ainda o introduziam no cofre da lenha, ainda o
faziam fumar um charuto depois de jantar, cheio de ancias, de nauseas,
de gritos abafados de angustia!... Mas que importava!

Logo que podia escapava-se para o quarto da fada, para o estojo côr de
rosa da sua _perola_, da sua Margarida, e então eram risadas sem fim,
eram corridas delirantes por sobre o tapete, era um papaguear de duas
aves felizes.

Margarida com a idade ia-se fazendo despotica.

Pudera!

Ou ella não fosse mulher, e estremecida pelo seu humilde escravo!

Mas era assim mesmo que elle a queria.

Quando as mãosinhas polpudas e brancas de Margarida lhe batiam, Thadeu
sentia-se feliz como um rei.

Quando ella o obrigava a agachar-se no chão para lhe servir de jumento,
o rapazinho tinha tentações de rinchar de prazer, fazendo o passo bem ao
vivo.

Porque no fim de contas, apezar de todas as suas adoraveis crueldades,
Margarida gostava d'elle.

A presença de Thadeu illuminava de risos o seu rosto oval coroado de
cabellos louros annellados, o seu rosto a um tempo angelico e gaiato!

Margarida não o achava feio, nem tolo, nem ridiculo, nem doente.

Não desprezava a fraqueza dos seus braços, nem a pobreza absoluta da sua
imaginação.

Pelo contrario! Admirava o!

Sim; ella dera-lhe essa sensação poderosa e extraordinaria, a sensação
dos que se vêem admirados com ingenua confiança.

Margarida pedia-lhe cousas enormes, com uma serenidade ineffavel de
crente!

Pedira-lhe um ninho de melros, e o que é mais! conseguira que elle tão
medroso, tão debil, tão assustado, trepasse pelos braços nodosos de uma
grande arvore e lh'o fosse buscar lá cima.

Que triumpho este d'ella, ao ver satisfeito o seu capricho! mas que
triumpho maior ainda o d'elle ao comprehender, que alcançara essa cousa
prodigiosa, que nem nos sonhos mais arrojados das suas noites de febre
elle ousara até ali conceber!

Um dia Margarida, em frente d'aquelle rasgo assombroso de valentia que
collocara Thadeu ao lado dos maiores heroes, puzera se grave,
meditativa, e apontando com serena magestade para a lua que se reflectia
n'um tanque do jardim, pedira a lua ao seu amigo Thadeu!

Está claro que elle lh'a não pôde dar, mas gostou d'aquillo!

Percebeu que o julgavam capaz de cousas grandes, de levar a cabo
emprezas impossiveis, e esta idéa que alguem tinha da sua força, fê-lo
crescer aos seus proprios olhos.

O marquez conhecendo que o pequeno deixára de ser seu joguete,
simplesmente para ser joguete de sua filha e herdeira, applaudiu-se de
lhe haver dado aquella educação especial, e prohibiu que o distrahissem,
fosse sob que pretexto fosse, das suas novas funcções.

Margarida era ainda muito pequenina para entreter os paes.

Elle precisava das excitações da politica, das luctas do parlamento, dos
sorrisos falsos ou verdadeiros, caros ou baratos das formosas mulheres,
do jogo, da ambição, do amor, da violencia corrosiva de todas as
pequenas e grandes paixões!

Ella precisava do luxo, das joias que scintillam, das sedas que se
quebram em ondulações brilhantes, do côro das adulações mentidas, de
todas as ephemeras alegrias que só o mundo lhe podia dar.

Para ambos Margarida seria um remorso, se a não vissem tão nedia, tão
roliça, tão alegre, com chispas de travessura maliciosa no olhar, sempre
acompanhada do seu pequeno amigo, submisso e fiel como um cão.

Deixaram-os, pois, crescer e viver juntos sob o olhar das aias, sempre
um pouco hostil para Thadeu e por isso tanto mais insuspeito.

Foi o verdadeiro paraiso que este conheceu na terra, foi a sua idade de
ouro.

Ha entes que nunca nem por um instante só conheceram a completa ventura.

São de todos os mais desgraçados.

Thadeu mais tarde podia ao menos recordar-se!

E elle sabia apreciar tão bem aquellas alegrias que em manhã abençoada
tinham cahido sobre a sua pobre cabeça!...

Um dia Margarida travessa e caprichosa como era, desattendendo todas as
advertencias de Thadeu, deixara-se cahir dentro do tanque do jardim.

O pequeno não sabia nadar.

Que importa!

Sem premeditação, sem raciocinio, obedecendo a um instincto de dedicação
inteiramente canina, deitou-se n'agua atrás d'ella.

As criadas, acudindo, tiraram do tanque as duas creanças abraçadas.

Imagine-se o que iria em casa!

Thadeu, castigado severamente, não quiz condemnar a sua amiguinha, para
se salvar a si.

Foi ella que, soberba, graciosa, com a sua magestade de pequena rainha,
disse aos paes:

--Não batam n'elle. Elle pediu-me que não fosse. Eu é que quiz ir.

Acharam-na adoravel; encheram-na de caricias e de gulodices, mas ninguem
pensou na acção tão simples e tão heroica do pequeno Thadeu, a quem
tinham posto a alcunha de _medroso_.


III

Foi assim que Margarida fez nove annos.

Era linda e indomita.

Tinha um corpo airoso, flexivel e forte.

Ninguem opprimira nunca aquella altiva natureza aristocratica.

D'ahi a sua isenção, a liberdade dos seus movimentos, o fulgor radioso
dos seus grandes olhos azues, onde um observador veria talvez as
scintillações metallicas que davam tamanha dureza ao olhar de sua mãe.

Margarida tinha uma vontade de ferro, e uns nervos de mulher caprichosa.

Quando a professora allemã que seus paes mandaram buscar, quiz sujeitar
o seu espirito a uma certa disciplina, Margarida revoltou-se n'um impeto
de insubordinação selvatica.

Tivera criadas que a serviam, um escravo que tremia diante d'ella, e
paes que transigiam com todos os seus pequenos desejos de creança.

Dera-se bem n'aquelle meio, não queria outro, não o aceitava, nem
curvaria a sua cabecinha erecta e firme com uma aureola de anneis de
ouro a cerca-la, a nenhum dominio que não fosse o da sua vontade.

       *       *       *       *       *

Um dia Thadeu ouviu fallar vagamente n'uma viagem que seus tios iam
fazer ao estrangeiro, e viu começar os preparativos para ella.

Ficou no céo.

Viveria só na grande casa com Margarida e o rancho dos criados.

Seriam livres.

Ella teria um balouço no jardim, uma rede brazileira no kiosque, e um
barquinho no lago.

Eram os seus tres sonhos ainda irrealizados.

Thadeu dirigiria todos os trabalhos.

Diria aos operarios que tinha dezeseis annos, e que era sobrinho do
marquez.

Os operarios haviam de respeital-o.

Elles não tinham precisão nenhuma de se rir do seu corpo enfezado e
rachitico.

Não é preciso ser-se athletico para se ser respeitado pelos homens a
quem se paga.

Thadeu havia de arranjar algum meio de lhes pagar.

Andava então doente, exquisito, com uma excitação nervosa que o
torturava.

O seu affecto por Margarida tivera uma recrudescencia violenta e
dolorosa.

Tinha vagos presentimentos que o faziam chorar.

Parecêra-lhe que sua tia, uma vez, ao encontral-o n'um corredor, olhára
para elle com uma aguda ironia malevola.

       *       *       *       *       *

--Não sabes, Thadeu? gritou Margarida entrando como um raio de sol no
quarto onde costumava brincar com o primo. Não sabes?--E atirou-lhe
negligentemente aos pés com um feixe de flôres e de folhas verdes que
estivera colhendo na quinta.--Tambem eu vou com o papá e a mamã. Vamos
a Paris... muito longe... muito longe... Estive á escuta... percebi umas
cousas mas não percebi outras. Fallaram n'um convento... no _Sacré
Cœur_... Sabes o que é?...

Thadeu sabia.

Não disse nada, mas no outro dia não pôde levantar-se da cama.

Tinha dôres em todo o corpo e um grande cançasso, como de quem deu uma
larga caminhada.

Gemia baixinho abrazado em febre, e quando pediu muito humildemente, com
medo de recusa, para ver Margarida, disseram-lhe que a doença d'elle
podia pegar-se e que as meninas não iam ao quarto dos homens.

Pois isto é um homem? pensava Thadeu desolado.

       *       *       *       *       *

Margarida de endoudecida com a mudança, com o movimento, com a
espectativa de uma existencia desconhecida e nova, esqueceu-se
completamente do enfermo.

Partiu sem pedir sequer para lhe dizer adeus!...

Quando Thadeu ao cabo de um mez de doença sahiu do quarto com o rosto
macilento, abatido, cançado, como o de um velho, com a espinha dobrada e
as magras pernas vacillantes, pediu para ir ao quarto onde brincava com
a sua _perola_, e agachou-se a um cantinho a chorar com uns uivos
dolorosos, com uns uivos caninos que faziam mal.

Sentia-se para sempre só...


IV

O marquez tinha ido sósinho para França. Fôra, ao que se dizia, buscar a
filha ao _Sacré-Cœur_.

A educação de Margarida devia estar completa. Fôra-se embora com nove
annos de idade, e haviam já passado sete depois que ella partira.

Sete annos! que longo periodo!

A casa dos marquezes era pouco mais ou menos a mesma cousa.

Thadeu perdêra sua mãe, mas aquella figura apagada, melancolica, de uma
debilidade de valetudinaria, pouca falta havia feito no palacio
illuminado e radioso.

O marquez aconselhado por alguma pessoa de juizo e de caridade tinha
consentido a que logo depois da partida de Margarida seu sobrinho
entrasse para um collegio.

Tambem já lhe não servia para nada.

Com o seu corpo magro e desengonçado, um corpo de funambulo, um corpo de
grotesco, tinha melancolias _quixotescas_ que incommodavam quem o via.

Os criados deram por mais de uma vez com o rapazola a chorar de bruços
n'um recanto do jardim, chamado o _canteiro de Margarida_.

Era um pequeno espaço semeado de flôres, onde principalmente abundavam
os malmequeres brancos que tinham o poetico nome da filha do marquez.

Havia ali uma grande arvore, um castanheiro copado cuja rama folhuda
abrigava as longas scismas dolorosas de Thadeu.

Não se podia consolar!

Era ali n'aquelle sitio fresco, esmaltado de flores, exhalando um cheiro
agreste e sadio, que elle se deixava ficar horas e horas esquecido de
todos, n'uma especie de lethargo bestial, o lethargo de um animal
ferido.

E desfiava na memoria todo o seu passado, toda a vida que vivêra,
abandonado, desprezado, perseguido de chufas ou de maus tratos, de
caprichos humilhantes, ou de observações glacialmente desdenhosas.

Só _ella_ nunca o ferira! só ella fôra no seu viver de cão apedrejado um
consolo dulcissimo! uma nesga do céo que se entreabrira!

Só _ella_ nunca se tinha rido á custa d'elle, e fôra elle--o misero, o
abandonado, o enfermo--que tivera o primeiro sorriso d'aquella boquinha
de rosas, o primeiro beijo d'aquelles labios frescos e humidos de leite!

Era feio, era rachitico, era estupido e desastrado.

Todos o conheciam, todos o repetiam em alto e bom som para que elle o
não ignorasse, mas _ella_ amava-o; ella não o dizia, não o pensava, não
o tinha notado sequer!

Para _ella_ era forte, e grande, e poderoso!

A elle é que Margarida confiára sempre os seus desejos, os seus sonhos,
os seus affectos de creança mimosa.

Ralhava-lhe ás vezes, batia-lhe, quando aspirava ao impossivel que
Thadeu lhe não podia dar, mas as creanças ricas têm horas de tedio só
comparaveis ás horas sinistras de um imperador romano, e Thadeu
comprehendia isso tanto, que antes queria as coleras, do que os
desalentos rapidos e violentissimos da sua _perola_.

Tudo que houvera bom na sua vida lhe tinha vindo d'ella.

Dos outros--nada!

E elle odiava todos os outros, só para poder adoral-a com um culto
exclusivo de negro pelo seu _fetiche_.

Não perguntava noticias; para que?

Tinha a certeza intima de que lh'as não dariam completas nem
verdadeiras.

Antes não queria saber nada, do que banalisar a sua idolatria,
revelando-a a seus _inimigos_.

Ella tambem lhe não escrevêra, o que o não surprehendera nada.

Estava tão costumado a ser _uma cousa_ inutil e desprezada, que nunca
lhe viera á idéa a possibilidade sequer de possuir uma carta _d'ella_.

No entanto ia adoecendo, definhando, parecia uma sombra.

Um medico que o viu torceu o nariz, e deu claramente a entender que
_aquillo_ nunca chegaria a ser um homem.

Foi então que se lembraram de o mandar para um collegio, em primeiro
lugar para não terem o desgosto de o vêr a cada passo, em segundo lugar
para o distrahirem da idéa fixa que o estava consumindo.

No primeiro dia em que Thadeu fez a sua entrada no collegio houve uma
tal galhofa, um gaudio tão extraordinario entre a rapaziada, que os
professores para manterem a ordem tiveram de empregar severos castigos.

Não havia meio de o vêr sem rir.

Tinha um _tic_ nervoso a um canto da bocca, tinha os olhos de vidro
embaciado, tinha as pernas muito magras e muito cambadas, e um modo de
fallar timido, acanhado, medroso que era de fazer morrer de riso os
rapazes.

Os proprios mestres tinham de fazer esforço para se não rirem quando o
viam.

Na hora de recreio tornou-se a victima, o bode expiatorio do collegio.

Um dia, porém, a brincadeira attingiu taes proporções que degenerou em
perversa brutalidade.

Thadeu cahiu no chão extenuado a lançar jorros de sangue pelo nariz.

Do grupo estupefacto e arrependido dos collegiaes destacou-se então um,
o mais velho, o mais valente o que nunca entrava n'aquellas farçadas
brutaes, e disse com voz decidida:

--Tomo esse pobre diabo debaixo da minha protecção. O primeiro que lhe
tocar tem os ossos n'um feixe.

Ninguem se atreveu a responder uma palavra.

Henrique de Souza era temido e respeitado.

Nas aulas era o primeiro; nas brincadeiras era o mais forte; na lucta
era o mais destemido.

Orphão de pae, era sustentado no collegio pelo trabalho insano da mãe e
da irmã mais velha que se haviam feito costureiras para o poderem
educar.

Henrique fizera-se homem antes de tempo.

O seu pensamento fixo era poder pagar a divida sagrada que contrahira
com as duas heroicas e dedicadas mulheres.

Quando Thadeu despertou do desmaio em que a fraqueza o mergulhára, fixou
os seus tristes olhos esgazeados e humildes na physionomia meiga e viril
de Henrique.

Comprehendeu que tinha achado um amigo e cahiu-lhe nos braços a soluçar.


V

Thadeu conservára-se cinco annos no collegio, e sahira de lá um pouco
mais forte e um pouco menos desgraçado.

Henrique, que havia tres annos tinha completado a sua educação, e que
agora cursava a escola de medicina, nunca deixára de o ir visitar de
tempos a tempos, levando-o muitas vezes por occasião das férias a passar
o dia em casa de sua mãe.

O moço estudante de medicina dava lições de francez e inglez nas horas
vagas, para augmentar os minguados recursos da familia, e como um tio
que morrera lhe tivesse deixado uma pequena pensão, viviam agora todos
tres mais desaffogadamente.

Occupavam uma casa pequenina mas muito aceiada e quasi nova; tinham um
quintal com tres gallinhas, um casal de pombos e um canteirinho semeado
de flôres.

O trabalho da casa era a mãe de Henrique quem o fazia; a irmã costurava
e bordava para fóra, o irmão vivia de estudar e de esperar.

Muito unidos, muito resignados; em certos momentos mesmo, muito alegres,
d'uma alegria serena e doce, a alegria dos corações honrados que confiam
na providencia de Deus!

Henrique era formoso sem dar por isso. O unico modo possivel de um homem
ser formoso.

Joanninha, a irmã, que já fizera vinte e sete annos, era uma doce e
casta physionomia de virgem que tem padecido muito.

Nos seus grandes olhos melancolicos havia a tranquilla doçura dos que
repouzam depois de uma lucta esmagadora.

Tinha a certeza de que havia na terra alegrias que nunca seriam d'ella,
e no entretanto não se revoltára; puzera n'outro ponto mais alto a sua
mira.

Desdobrára a sua individualidade, vivia da vida e das esperanças de seu
irmão.

N'este interior recolhido e casto, Thadeu sentiu pela primeira vez
acordar a consciencia.

Soffria muito ali pelas comparações dolorosas que fazia, mas
comprehendeu que n'esse mesmo soffrimento havia um progresso do seu
espirito e affeiçoou-se ás torturas que elle lhe dava.

O trabalho era a lei d'aquella casa, e Thadeu não sabia trabalhar.

Ali concebia-se a vida de um modo elevado e justo, a dignidade do homem
estava identificada com a sua independencia, e Thadeu não passava de um
parasita.

Aprendeu na convivencia de Henrique e de sua mãe e irmã muito mais do
que aprendêra em todos os 18 annos de sua desconsolada existencia.

Determinou ter uma occupação, um officio, exercer um trabalho qualquer,
mas bem depressa adquirio a desoladora certeza de que a sua fraqueza
physica o tornava incapaz de qualquer esforço aturado e violento.

Com vinte e tres annos conseguira tão sómente, por fim de porfiada
lucta, ser uma especie de caixeiro de guarda-livros de seu tio.

Aprendeu a fazer bem contas, e tornou-se util n'aquella desordenada
administração de uma casa collossal.

Isto não era de certo cousa que satisfizesse as ambições de outro
qualquer, mas para elle isto já era uma grande, uma sublime conquista.

Ganhava o pão que comia.

Era um escripturario humilde, mas tinha direito a dizer que não dependia
de ninguem.


VI

No dia em que Thadeu soube que Margarida ia chegar, a sensação que fez
vibrar todo o seu sêr, foi violenta de mais para que possa ser
descripta.

Acudiram-lhe em tropel, desordenadamente, n'uma confusão louca, todas as
lembranças do passado, todas as queridas visões d'aquelles nove annos de
extase que elle vivêra.

Estava tudo intacto n'um cantinho luminoso da sua alma, onde elle não
entrava com medo de fazer fugir as avesinhas azues que eram as suas
saudades.

Margarida! Bebé! A sua alegria! A loura cabecinha encaracollada, os
olhos côr de azul, limpidos, transparentes, crystallinos, como um céo de
primavera! os pequeninos braços gordos e nedios! a boquinha risonha! a
voz musical, uma voz de cotovia acordando os écos da alvorada!

Todo aquelle conjuncto de graças ia ser d'elle outra vez.

Com que delicia soffrega elle não beijaria os pézinhos da sua fada
pequenina e loura!

Como lhe contaria tudo que tinha passado longe d'ella!

As saudades sem consolo, as lagrimas que chorára, as humilhações que
soffrêra no meio d'aquelles perversos de faces rosadas e imberbes, que
se tinham constituido em algozes da sua fraqueza e do seu desamparo!

Oh! amal-a-hia tanto e tanto, que ella havia de dar-lhe por força um
bocadinho de affecto, e esse bocadinho só bastaria a torna-lo mais feliz
do que um rei.

Margarida!

E ao repetir baixinho com um calafrio de prazer este nome querido, via
saltar n'um raio de sol uma figurinha esbelta, graciosa, de fato muito
curto e muito simples, um vestido branco, um cinto azul, um bibe de
cercadura bordada, onde as amoras colhidas por elle tinham posto uma
mancha vermelha, com os espessos cabellos louros em anneis soltos, e uma
risada a vibrar ainda em torno d'ella como um rosario de perolas que se
desfiasse dentro de um cofre de crystal.

Henrique julgou que elle endoudecia, e Joanninha com a sua voz velada,
onde havia uns toques de doçura maternal, dizia-lhe:

--Mas olhe que ella é uma senhora! Já não póde ser a mesma. Não tenha
uma esperança que vai converter-se-lhe em martyrio!

--A minha Margarida, repetia elle alheiado, meio louco! A minha filhinha
adorada! Nunca tive uma alegria que d'ella me não viesse! Todos me
tratavam mal, só ella gostava de mim e me queria sempre ao seu lado. Has
de vêl-a, meu Henrique, verás se ha no mundo uma creança mais linda,
mais mimosa, é uma fada, é uma _perola_, é a minha unica amiga n'este
mundo!


VII

No dia seguinte á hora em que uma brilhante festa de familia, uma
especie de baile muito intimo, reunia nas salas do marquez todos os
parentes, alliados e amigos que vinham solemnisar a chegada da sua filha
e herdeira, Thadeu na pequenina sala de jantar de Henrique, dobrado
sobre o peitoril da janella n'uma postura de desolação e de abandono,
soluçava baixinho, ao pé de Joanninha, que tentava em vão consolal-o.

Estava de casaca, coitadinho; Joanna não seria capaz de rir do
desgraçado, mas como a casaca lhe ficava mal!

Tinha-se vestido para assistir ao jantar.

Antes do jantar não conseguira vêr Margarida.

--A sr.ª D. Margarida vinha muito cançada, estava no seu quarto.
Dormia. Não havia ordem de a acordar.

Eis as seccas respostas que as criadas,--aquellas perversas--tinham dado
ás supplicas phreneticas do pobre Thadeu.

Emquanto a ir ao encontro d'ella como tanto sonhára, não tinha podido.

Seu tio, agora que lhe descobrira algum prestimo--muito secundario, é
verdade, mas um prestimo em todo o caso--abusava d'elle horrorosamente.

Tinha-o tornado uma machina de fazer contas, contas de sommar, de
repartir, de multiplicar, o inferno!

Não pudera ir, mas esperava vê-la logo que ella chegasse, vê-la só,
poder beijar-lhe as mãos, a testa, os cabellos, os pés! Vesti-la toda de
beijos como d'antes!

E depois sabia que tambem ella havia de ter saudades! Que tambem se
havia de lembrar muito do seu amigo, do seu Thadeu, do seu cão fiel!

Estava impaciente, estava no ar. Mas quando teve a certeza de que só a
veria na sala, foi vestir-se logo, envergou uma casaca de seu pae que
este mandára arranjar para elle, uma casaca muito larga, já fóra da
moda, de panno azulado.

Que lhe importava! Ia vê-la!

Vê-la era o céo.

Vinha-lhe á lembrança aquelle ninho de melros que apanhára um dia--sabe
Deus com que trabalho--para lhe dar, e o dia em que ella lhe pedira a
lua com uma gravidade tão comica, apontando para o tanque, e o balouço
que ambos tinham projectado fazer, e as historias que elle lhe contava
debaixo do castanheiro á tarde, emquanto que a musica do piano suspirava
ao longe, e havia no ar uns rumores indefinidos de que ella lhe
perguntava a explicação.

--São os passarinhos que andam a arranjar-se para se deitarem a dormir
dentro dos seus ninhos--costumava dizer Thadeu.

E ella ria-se virando a cabeça muito esperta para a cupula do
castanheiro, a ver se descobria como se faz a _toilette_ nocturna dos
passarinhos.

Entrára emfim na sala.

Havia grupos aqui e ali. Graves politicos que discutiam, financeiros de
abdomen volumoso, matronas severas, moços elegantes, e no meio de tudo
um bando de raparigas alegres, garridas, a chilrearem, a rirem e a
cochicharem entre si, contentes da nova companheira que lhes chegava de
longe, mas muito mais contentes ainda d'aquella atmosphera festiva e
perfumada que as envolvia.

No meio d'esse grupo encantador é que _ella_ estava de pé.

Um corpo deliciosamente modelado, de uma graça franzina e toda moderna.

Tinha um vestido de _foulard_ muito justo, muito elegante, e no meio dos
rôlos do seu crespo cabello louro aninhava-se uma rosa vermelha, uma
rosa côr de sangue.

Os olhos azues, altivos e desdenhosamente fixos lembravam... os olhos
metallicos de sua mãe.

Pois era aquella a sua Margarida?!

Era.

Não lhe restava a menor duvida. Apesar de todas as differenças tinha-a
conhecido logo.

A sua limpida testa de creança um pouco curta, indicio de obstinação e
de capricho; a sua bocca pequenina, até alguma cousa dos seus gestos
antigos, tudo trouxe ao coração de Thadeu uma lufada de saudades
irresistivel.

Correu para ella como doudo, atravessou pelo meio de toda aquella gente,
sem a menor timidez, sem o menor receio, sem notar sequer o espanto que
a sua comica apparição tinha excitado.

As raparigas que faziam um circulo em torno de Margarida separaram-se
n'uma subita explosão de risadinhas, e ella, olhando muito fixa para
Thadeu, exclamou rindo, rindo sem poder mais:

--Ih! credo, primo Thadeu, que casaca!... que figura!... Pelo amor de
Deus vá já tirar essa casaca e venha depois!

E ria, ria sem disfarce, emquanto elle com os braços quebrados, o rosto
estupido, a physionomia espavorida, sentia dentro de sua pobre alma sem
consolo esphacelar-se, desfazer-se, diluir-se em lagrimas de fel a
ultima esperança da sua vida!


VIII

Tres dias depois, Margarida, que se esquecêra completamente d'aquelle
insignificante episodio em que Thadeu figurára, encontrou-o por acaso na
Baixa, onde andava fazendo compras com sua mãe, ao lado de Henrique, que
para o distrahir tinha ultimamente fingido precisar absolutamente da sua
companhia.

Margarida sahia de uma loja e ia a saltar ligeira, elegante com a sua
graça parisiense para dentro do _coupé_ delicioso que, de proposito para
a filha, o marquez havia encommendado mezes antes á casa Binder, e que
dous finos cavallos inglezes esplendidamente ajaezados faziam voar pelas
ruas da nossa pacata Lisboa.

A vista de Thadeu despertou-lhe umas poucas de idéas que ainda não lhe
tinham occorrido.

Lembrou-se, por exemplo, de que não o vira mais, desde o instante em que
elle se apresentára diante d'ella com uns transportes ridiculos e uma
_toilette_ horrorosa, na sala povoada pelas suas novas amigas, tão
ironicas, tão cruelmente maliciosas...

Por que não tornára ella a vê-lo? Tinha-lhe esquecido perguntar por
elle, fôra muito ingrata...

E sem raciocinar aquelle impulso estranho, parou, esperou em uma
attitude de _coquetterie_ irresistivel que os dous amigos se
approximassem, visto que ambos caminhavam na direcção em que ella
estava, e estendendo a Thadeu a sua mão esguia e fina, a sua mão de
loura, enluvada de pellica côr de bronze, disse com uma expressão de
finura e malicia intraduzivel:

--Então seu ingrato! Não me tem querido apparecer! Por onde tem andado?

E ficou a olhar para elle, como quem espera alguma cousa, interrogadora,
fascinante, sempre aristocratica.

A marqueza, que já estava dentro do trem, murmurou levemente enfastiada:

--Então, Margarida, ficamos aqui?...

E Thadeu córando, balbuciando, resmoneava confusamente uma banal
desculpa.

       *       *       *       *       *

Margarida saltou emfim o estribo que o criado conservava desdobrado,
envolvendo n'um olhar magnetico dos seus scintillantes olhos azues, a
bella e viril figura de Henrique de Sousa, que presenciára mudo aquella
scena inexplicavel.

       *       *       *       *       *


IX

Uma noite em S. Carlos estreiava-se uma celebridade lyrica na _Norma_,
que então estava muito na voga.

Henrique vivamente instado pela mãe e pela irmã e tambem um pouco pelo
seu proprio desejo, determinou ir ouvir a opera adoravel, que é uma
verdadeira perola musical.

Havia tempos que elle andava nervoso e inquieto.

Não sabia bem o que tinha mas sentia-se mal.

Tinha impaciencias nervosas que nunca havia conhecido no seu organismo
equilibrado e harmonico.

Surprehendia-se ás vezes doentiamente, a fazer planos impossiveis antes
de adormecer; a imaginar quanto seria bom ser muito rico, viver na alta
roda, n'aquella esphera aristocratica e distincta em que se não
trabalha, em que se falla de um modo especial e caracteristico, com
termos escolhidos, com inflexões muito mais suaves, com uns certos
desdens que d'antes lhe pareciam ridiculos e que lhe estavam agora
parecendo superiormente requintados. Ter um palacete com alguns salões
apainelados em cuja escadaria de marmore povoada de estatuas e de
plantas raras, se aprumassem espadanados lacaios de farda; ter
equipagens luxuosas, ter uma mulher loura, franzina, de testa curta, de
olhos piscos, com um sorriso felino, quasi cruel nos labios vermelhos, e
um corpo flexivel, delicado, _mignon_ de estatueta de _biscuit_... Uma
mulher que se chamasse Margarida.»

N'este ponto da sua scisma Henrique suspendia-se como que sentindo a
estranha impressão de quem vae caminhando por uma estrada lisa e de
apparencias tranquilisadoras, e encontra de repente, debaixo dos pés,
quando menos o espera um reptil desconhecido.

Margarida! que tinha elle com Margarida?!

Lembrava-se que a desprezára e amaldiçoára no dia em que vira chegar a
sua casa, pallido, desfeito, com uma casaca grotesca e uns olhos
inchados e vermelhos de chorar, o seu pobre amigo Thadeu, que na vespera
o tinha deixado tão louco de alegria e tão triumphante de felicidade!

Margarida!

Vira-a depois loura, elegante, com o seu desdenhoso olhar de myope,
subir com ligeiresa fidalga o estribo de uma carruagem, descobrindo os
finos bordados das suas saias, o pequeno pé primorosamente calçado, todo
um poema de mysteriosas elegancias.

Nunca mais a vira, nunca mais desejára vêl-a!

Para que?

Ella lá tão em cima, elle cá em baixo lidando, tressuando, luctando para
alcançar... o que talvez não tivesse nunca!

Um nome, uma posição, o pão de sua mãe e de sua irmã, sem amarguras e
sem pequenas privações humilhantes!

       *       *       *       *       *

N'aquella noite em S. Carlos a musica sentimental e enervante de
Bellini, o contacto de todo aquelle mundo ocioso e rico ainda o tornava
mais nervoso e excitado. Estava quasi arrependido de ter vindo.

N'isto sentiu que lhe batiam no hombro e uma voz aflautada, uma voz
_tremelicante_, com inflexões muito alegres, disse-lhe ao ouvido:

--Anda cá acima, pediram-me para te vir buscar, para te apresentar;
gostam muito de ti! Não imaginas como és estimado pela minha querida
Margarida, desde que soube que tens sido o meu unico amigo, o meu
auxilio na vida, aquelle a quem mais devo depois d'ella.

E Thadeu, porque era elle, arrastava pelos corredores das frisas
Henrique surprehendido, contrariado, com uma estranha sensação de
desconforto a comprimir-lhe fortemente o peito.


X

Na frisa, radiante de mocidade, de fina distincção, com todos os
requintes da moda a fazer realçar a sua belleza moderna, fragil,
quebradiça, alguma cousa amaneirada estava Margarida.

A marqueza ao lado d'ella conversava com um velho diplomata.

Á entrada dos dous a mãe teve um comprimento um pouco secco, a filha um
sorriso de graça adoravel, de garridice innata mas irresistivel.

--Quiz vêl-o porque soube que tem sido muito bom para Thadeu,
excellente mesmo. Elle contou-me tudo.

Pobre rapaz! _poor dear boy!_ e sorriu-se outra vez com um aspecto
bondoso e protector que a transfigurou por instantes.

--Eu tinha-me esquecido, o Thadeu é que se lembrava de tudo. Fez-me
reviver a minha infancia. Sempre é bom. Agora já estou tão velha que
acho immensa graça a estas recordações do passado.

E graciosa, maternal, afastando toda e qualquer idéa que não traduzisse
uma solicitude encantadora para o seu companheiro da infancia, Margarida
foi o que seria a noiva idealisada pelo austero coração de Henrique.

E d'ali em diante o amigo de Thadeu deixava-se arrastar de oito em oito
dias até o palacete dos marquezes.

Era ali optimamente recebido.

Margarida, adorada pelos paes, dava a lei em casa. Sabiam-n'a
voluntariosa, cheia de caprichos e de phantasias, tinham medo de
irrital-a resistindo-lhe.

Depois, Henrique com as suas maneiras de _gentleman_, com a gravidade
desaffectada do seu porte, com os generosos ardores da sua rica
organisação, revelava-se o que era: um homem de futuro, um homem que
havia de ter nome mais tarde.

O marquez, cynico como a vida o tornára, era juiz excellente n'este
assumpto.

Conhecia um _homem_ depois de duas horas de conversação.

As proprias severidades do moço, amollecidas agora ao contacto da
perturbadora formosura de Margarida, agradavam ao marquez como uma cousa
nova, picante, inteiramente imprevista para elle.

Thadeu nadava em um jubilo celeste.

Era muito bem tratado; Margarida tinha com elle umas garridices
angelicas que ás vezes o deixavam pallido e suffocado, encostado a uma
arvore ou a um banco do jardim para não cahir no meio do chão desfeito
em lagrimas.

Thadeu tinha agora de vez em quando um odio selvagem á sua mesquinha e
enfezada personalidade.

Se elle não fosse como era... se fosse alto, esbelto, forte... póde
ser... tem-se visto tanta cousa...

E tambem ficava absorto, idiota, seguindo com um olhar esgazeado umas
visões que o iam enlouquecendo.

Ella no emtanto vinha alegre, radiosa, cheia de vida, com o seu vestido
de _foulard_ côr de carne a desenhar-lhe as fórmas flexiveis, com uma
rosa nos seus cabellos louros, dava-lhe o braço, e arrastava-o enlevado
e estupido pelas alamedas do jardim.

--Conta-me lá o que tu fazias quando eu cá não estava! conta-me em que
pensavas. Estavas muito triste? Quando é que viste pela primeira vez o
teu amigo Henrique? Que lhe dizias tu de mim? E elle?... elle que idéa
fazia d'esta endiabrada pessoa que tu lhe descreveste tanta vez com a
tua phantasia de poeta--porque tu quando se trata de mim és poeta, meu
pobre Thadeu!--Anda, falla, conta-me o que vocês faziam, gosto tanto de
te ouvir!

E toda dobrada sobre o hombro d'elle, meiga, electrica, fascinadora, com
meneios de serpente, levava horas passeando pelo braço de Thadeu.

       *       *       *       *       *

Um anno depois d'esta época, Margarida declarava terminantemente aos
paes que voltava para França, que ia morrer freira no convento onde
vivêra educanda, se elles a não casassem com Henrique.

E dizia-lhes estas palavras n'uma tal violencia de gritos e de soluços,
tão magra, tão empallidecida n'aquella lucta intima de doze longos
mezes, que o marquez encolheu os hombros com a suprema indifferença que
fazia d'elle um _viveur_, e que a marqueza animada pela placidez do
marido ao encarar esta questão magna, declarou á filha, hoje seus unicos
amores, que ia fazer tudo para lhe dar o noivo da sua alma, o escolhido
pela sua ardente paixão juvenil.

Teve medo de ver a filha definhar-lhe e morrer-lhe nos braços. Via-a tão
abatida, tão triste, tão enfastiada da vida, que a idéa de perdêl-a
sobrelevou a todos os seus escrupulos de rica e de fidalga.

Margarida auctorisada pelos paes pôde dizer a Henrique, que o amava!

Quanto amor! que enthusiasmo febril n'este sublime impudor da creança
opulenta, formosa, aristocratica, disputada por dezenas de noivos tão
ricos e tão nobres como ella, que vem espontaneamente offerecer a sua
mão e a sua vida inteira ao obscuro plebeu que passa confundido no meio
das multidões desconhecidas!

E esse impudor ninguem mais fidalga e altivamente do que Margarida o
soube ter.

Sabia-se adorada, estremecida, sabia que um riso d'ella bastaria para as
alegrias e para as torturas de uma semana passada por Henrique na
labutação da sua mesquinha existencia; mas sabia tambem que elle era tão
grande, tão forte, tão orgulhoso e digno que podia morrer, mas que
morreria calado, sem que uma palavra revelasse o seu martyrio!

--Thadeu, meu querido Thadeu, meu amiguinho, tenho sido muito má, não
tenho querido contar-te nada com medo de que lhe dissesses a _elle_
alguma cousa. Eu queria ser a primeira a dizer-lh'o, queria gozar do seu
sorriso, do seu olhar de anjo, de martyr beatificado, do seu olhar que
me enlouqueceu para sempre... Agora digo-te, já não tenho motivo nenhum
para t'o esconder.

Vou casar-me, vou ser d'elle, só d'elle... levar-te-hei comnosco... Olha
que foi elle que m'o pediu... Vê como elle é bom. Eu a fallar a verdade
estava tão douda que nem me lembrei de similhante cousa; mas elle fallou
logo em ti, foi a sua primeira vontade! Adoro-te visto que elle é teu
amigo. Has de aborrecer-me ás vezes, meu pobre Thadeu, porque nunca
entendes a tempo quando deves ir-te embora, mas eu hei de educar-te.
Verás! Viveremos todos tres. Nunca mais te hei de tratar mal! nunca mais
me hei de rir da tua casaca. E, a proposito, tu ainda a tens, aquella
malfadada casaca? Não me faças rir no dia do meu casamento, pelo amor de
Deus manda fazer uma nova para esse dia. Não tenhas medo de gastar. Eu
tenho muito. Sou rica, muito rica, somos todos tres muito ricos.

E douda, anhelante, no delirio da creança que venceu a sua primeira
teima, na dilatação ampla de uma alma que conquistou o seu desejo
supremo, Margarida expandia n'estas palavras diffusas, incoherentes, sem
nexo, toda a felicidade que era hoje d'ella e que julgava eterna.

Thadeu escutava com o olhar morto e vidrado de um somnambulo.

Depois emmudecido por uma dôr aguda que lhe rasgava as carnes de todo o
seu corpo como um punhal de muitas laminas, sahiu do quarto cambaleando
como um ebrio.

       *       *       *       *       *

No dia do casamento de Henrique houve dous entes que na humilde tristeza
de uma pobre casa, choravam unidos todas as lagrimas da sua alma.

A um d'esses entes pungia-o uma angustia dilacerante demais para que a
palavra humana a pudesse traduzir.

A outro sobresaltava-o um presentimento horrivel, como que um dobrar de
finados que lhe écoava lá dentro, e ao qual não podia fechar os ouvidos.

Esses dous entes esquecidos, voluntariamente afastados das pompas
principescas d'aquelle dia, das festas d'aquella solemnidade esplendida
eram Thadeu e a irmã de Henrique.


XI

De feito havia já cinco annos que viviam juntos em uma casa espaçosa e
lindissima de Buenos-Ayres.

Henrique pedira com tão meigas e sentidas palavras a Thadeu para que
elle os não deixasse, que depois da viagem de rigor feita pelos noivos á
Suissa e á Italia o _bom cão fiel_ foi viver junto d'elles.

As investigações da sciencia, o estudo paciente dos homens e das cousas,
altas aspirações inspiradas pelo marquez a uma gloriosa carreira
politica, absorviam Henrique, emquanto que Thadeu mais amadurecido agora
pela experiencia da vida, administrava a casa, tomava contas aos
feitores e criados, punha em ordem os róes, recebia os rendimentos,
pagava aos fornecedores, era por assim dizer o mordomo mór da opulenta
fortuna da sua companheira de infancia.

Margarida continuava a ser o enlevo e o mimo de quantos viviam junto
d'ella.

De uma organisação delicada, nervosa e vibratil, com um aspecto
infantil, que infundia uma vaga e doce idéa de protecção; boa, d'esta
bondade superficial e egoista, que consiste em não gostar de ver ninguem
triste ao pé de si, todos os seus caprichos se convertiam n'outras
tantas graças, todas as suas exigencias se impunham com a tyrannia
adoravel de uma supplica!

O marido tinha por Margarida aquella paixão deleteria e quasi covarde,
que ella lhe inspirára logo no primeiro dia.

Não sabia resistir senão a muito custo, a um olhar d'aquelles olhos
humidos e radiantes, a um sorriso d'aquelles labios vermelhos, a um
gesto d'aquellas mãos finas, esguias, pallidas, da suave pallidez dos
lyrios.

Não era bem amor, era uma fascinação, uma embriaguez, uma d'estas
doenças que exercem no cerebro a sua acção paralysadora.

Margarida que nenhuma força superior tentava dominar, déra expansão
completa a todos os caprichos da sua colorida e quente phantasia.

Adorava o luxo, as cousas d'arte, a musica, as flores raras, frequentava
muito o alto mundo onde era requestadissima, vivia na perpetua idolatria
de si propria, que a pouco e pouco a inutilisava para os graves deveres
da vida.

Thadeu no meio da sua céga e embrutecedora adoração obedecia-lhe como um
escravo. Só elle sabia as despezas collossaes, as extravagancias
principescas d'aquella pequenina pessoa, activa, graciosa, phantasista
como um poeta oriental.

Mas economisava ridiculamente em todas as verbas, para que _ella_, a
rainha, a _perola_, a _Margarita_ dos seus sonhos d'outro tempo não
franzisse um minuto a sua testa curta, a sua testa de teimosa, na
contrariedade de um desejo insaciado.

E ella estava tão habituada á submissão e á humildade d'aquelle pária,
que o tratava como um traste, um objecto seu, com o qual não tinha de
mostrar o minimo constrangimento, a minima attenção affectuosa.

--Thadeu, quero isto! Thadeu, quero aquillo! Thadeu, vi hoje na loja de
F. um adereço de um conto de réis. Se o não mandar buscar até ámanhã
vendem-n'o. Eu quero-o. Não me deixes ficar sem elle. Fazias-me chorar!

Não lhe pedia a lua como em outro tempo, mas quantas vezes lhe pedia
cousas quasi tão inacessiveis como a lua!

Margarida tinha dous filhos. Um menino e uma menina. Dous cherubins.

Mais meigos do que a mãe nunca fôra, mais doceis, mais tranquillos,
tendo no olhar a serenidade melancolica do olhar de seu pae!

Thadeu envelhecido, de uma velhice precoce que assombrava os que o
haviam conhecido na infancia, tinha por essas duas creanças um louco
amor de avô.

Aquelles quatro seres eram a sua vida.

Fundia-os a todos na mesma adoração apaixonada e timida.

Vivia d'elles e para elles.

Henrique era o seu respeito. Margarida o idolo do seu passado, os dous
cherubins louros, a unica esperança suave do seu futuro.

Sacrificar-se, esquecer-se, abnegar de si, eis o modo obscuro e sublime
pelo qual elle sabia querer!

Mas os dous pequeninos que não eram turbulentos nem crueis, tinham nas
suas caricias inconscientes o balsamo poderoso, o balsamo divino para as
chagas occultas d'aquelle coração que a vida ulcerára tanto e tanto.


XII

Desde algum tempo que Thadeu andava inquieto.

Com o seu faro finissimo de rafeiro fiel presentia no ar um perigo
desconhecido, alguma cousa de mysterioso e de sinistro, que ouvia rugir
ao longe como no fundo de uma voragem.

Na apparencia todos viviam tranquillos:

Henrique sempre bom, sério, pensativo, de uma indulgencia de forte, de
uma doçura de heroe.

Margarida sempre buliçosa, inquieta, cheia de desejos infantis, de
caprichos, de alegrias ruidosas ou de melancolias subitas que ás vezes
no silencio da sala fôfa e discreta pareciam a Thadeu um grito de alarme
na monotonia do deserto.

As criancinhas... sempre os seus mais dôces amores, aquelles de que
jámais lhe proviera uma amargura.

Quando Thadeu pensava que podia uma fatalidade qualquer separal-o dos
seus dous anjos, desatava a chorar como um perdido na solidão do seu
quarto.


XIII

Elle estava sentado ao pé da mesa. Primeiro estivera fazendo contas,
róes de casa, agora pendia-lhe a cabeça embevecido n'uma vaga scisma.

Sem saber explicar por que, n'aquelle dia lembravam-lhe tantas cousas do
seu passado!...

Sentia dentro de si uns vagos assomos de revolta, lembrando-se das
humilhações que padecêra, dos tratos com que lhe haviam enfraquecido o
corpo e atrophiado a intelligencia. Depois... na sua vida, até ali
obscura e dolorosa, surgia de repente envolta nas rendas brancas do seu
berço uma visão deliciosa, uma pequena fada, a sua amiguinha, a sua
Margarida!...

Como fôra feliz com ella e por amor d'ella...

Comtudo... pensando bem... para essa felicidade chymerica fôra elle quem
fornecêra todos os elementos. Ella nunca vira no pobre Thadeu senão um
instrumento dos seus caprichos, um escravo das suas vontades...

Em todas as delicias com que dourara a sua vida não havia uma só que
fosse nascida da vontade de ser-lhe boa, util, consoladora!...

--É verdade, murmurava o pobre doudo, é verdade! Ella nunca teve
coração!

E suspendeu-se como que aterrado d'aquella blasphemia.

N'este momento Margarida entrava pelo quarto de Thadeu, pallida como um
cadaver, com os grandes olhos dilatados n'uma expressão de
indescriptivel pavor.

Agarrou-se-lhe ao braço e disse lhe baixo, n'uma voz estrangulada e
rouca:

--Henrique chegou da quinta. Eu não o esperava. Contava que elle viesse
ámanhã. No meu gabinete ha uma pessoa que deve sahir sem que meu marido
a veja. Ouves? Estou perdida... Estava perdida mas lembrei-me de ti...
Salva-me...

Não me digas nem uma palavra, proseguio vendo que elle ia fallar. Uma
demora de segundos perde-me sem remissão.

E sahiu com o seu passo miudinho, o seu passo _chic_, aprendido de
passagem nos _boulevards_ de Pariz.

Thadeu sahiu do quarto, e quando tornou a entrar ali, acompanhava-o um
moço muito pallido, de bigode louro, cabello cuidadosamente frisado e
_toilette_ irreprehensivel.

Não trocaram uma palavra. Thadeu apontou-lhe para uma cadeira, fechou a
porta do quarto á chave e sentou-se junto da janella, que dava sobre o
jardim.

Era em plena primavera. Pela janella aberta entrava um perfume vago e
subtil, um perfume de rosas, de madresilva e de baunilha em flôr.

Ouvia-se o rir e o chilrear das duas creanças, e entre as ramarias
entrelaçadas dos grandes arbustos exoticos, Thadeu viu passar com os
seus meneios serpentinos, o seu vestido branco, a sua cabelladura
d'ouro, a figura esbelta de Margarida pendida ao braço do esposo com
quem fallava baixinho.

Foi a ultima visão que teve d'ella.

Uma visão de perfidia felina e de felina formosura.


XIV

--Deixe-se estar quieto. Não vê que não póde sahir d'este quarto senão á
noite? pronunciou a voz enrouquecida de Thadeu.

E sem dar mais attenção ao seu odioso hospede, poz-se a arranjar papeis,
uma trouxa de roupa, algumas velhas reliquias, os retratos dos seus dous
pequeninos, dos seus _netos_ como elle lhes chamava.

Depois despregou da parede as duas photographias de Henrique e de
Margarida. A d'elle beijou-a, e guardou-a com as dos pequeninos. A
d'ella... approximou-a d'uma vela que acendêra e deixou-a arder até que
ficaram só cinzas. Estava medonhamente livido.

       *       *       *       *       *

Era noite: sentiu o rumor conhecido da hora de jantar, esperou que o
criado viesse chamal-o e respondeu-lhe:

--Diga aos senhores que jantem. Eu hoje estou convidado fóra, não os
posso acompanhar.

Olhou para o homem que alli estava na mudez estupida dos malvados, que
são ridiculos, e disse-lhe:

--Venha d'ahi.

Sahiram juntos.

Thadeu nunca mais voltou; não pôde.

Pediu a esmola de um agasalho á irmã de Henrique, e achou meio de fazer
n'um escriptorio cópias que lhe rendem tres tostões diarios!

D'isso come e d'isso se veste.

Fingiu-se offendido com Henrique por uma duvida mesquinha de contas, que
este nunca chegou a perceber.

Aceitou o papel degradante do ingrato que morde a mão que o soccorreu.

Ninguem pôde nunca arrancar-lhe nem uma palavra do seu segredo.

Tem 35 annos e dão-lhe setenta.

As poucas pessoas que o vêem ou o desprezam por absolutamente
insignificante ou têm por elle a commiseração que inspira um idiota.



O TIO SEBASTIÃO


I

Não havia cousa que mais alegrasse o tio Sebastião, um velhito que
conheci em uma aldeia perto de Braga, do que fallarem-lhe no filho que
estudava em Coimbra.

Sorriam-se-lhe os olhos, e um contentamento intraduzivel
espelhava-se-lhe no rosto.

Quando lhe elogiavam o caracter, o talento, a bondade e a applicação do
rapaz, elle fingia que não acreditava, dizia que não era tanto assim...
e repetia:

--Favores, meu amigo, favores...

Mas lá no intimo agradecia aquillo tudo, e tinha vontade de apertar nos
braços a pessoa que fallava com tamanho louvor do filho estremecido.

Quando elle descobria o seu fraco, era quando lhe elogiavam na presença
outro rapaz, outro estudante.

--Sim, sim, mas como o meu! Não é porque o rapaz seja meu filho, mas
disse-me o prior, e olhe que o prior não é tôlo nenhum, pois disse-me o
prior que o meu pequeno era o melhor estudante que andava nas aulas de
Braga, que lh'o tinham dito os proprios mestres. Aquillo tem uma
memoria! E então lêr! Ás vezes estava horas e horas a ouvil-o, fazia
gôsto. O talho da lettra já foi melhor, isso foi, mas o prior, a quem eu
disse isto, consolou-me, dizendo-me que todos os doutores tinham má
lettra. Assim será, mas as primeiras cartas que o pequeno me escreveu,
quando foi para o estudo, podem mostrar-se... Quer você vêr uma d'essas
cartas?...

Toda a gente da aldeia gostava do velho, e não havia uma só pessoa que
para o lisongear, ao encontral-o, lhe não perguntasse pelo filho.

--Obrigado, vae bom! e com um sorriso doce, enternecido e caridoso
envolvia o da pergunta.

O tempo das ferias, sobretudo as do Natal, que é quando se mata o porco,
e se fazem filhós, e se conversa animadamente em volta da lareira, era
anciosa e impacientemente esperado pelo velho; todas as noutes ia ao
reportorio, que tinha á cabeceira da cama, e pondo uma cruz no dia que
findára, dizia jubiloso:

--É de menos um!

Na vespera da chegada do filho, era uma azafama, um revolver as velhas
arcas de onde se exala um forte cheiro de maçãs camoezas, e um andar
tudo n'uma poeira n'aquella casa.

--Esta cama não tem roupa bastante, Joanna, dizia para a creada; vá
buscar mais um cobertor!

E alisava a colcha, endireitando a fronha da travesseirinha, e
repetindo:

--O estudante é muito mimoso, e depois faz frio que não é brincadeira!

Ia á cosinha, era preciso comprar isto e mais aquillo. Examinava os
armarios, passava revista aos frascos das compotas, e punha de banda as
garrafas de vinho antigo.

--Não que elle gosta do que é bom!

Na rua não esperava que lhe perguntassem pelo filho:

--Chega ámanhã, chega ámanhã!

As ancias eram no dia da chegada. Vinha para a porta, esfregando as
mãos, rutilante de prazer. Todo o pobre que passava tinha uma esmola,
todo o transeunte um cumprimento benevolo e affavel. Os visinhos
exploravam aquelle grandissimo e sagrado affecto.

--Com que então é hoje, hein?

--É verdade, pelo menos assim o espero. Queira Deus que lhe não succeda
alguma no caminho. Isto de rapazes...

--Ha rapazes e rapazes. O seu é uma joia...

--Sim, sim, mas ha más companhias...

--Qual! E então o juizo e o talento para que servem? Eu tenho ido com
elle algumas vezes a Braga, e bem vejo as pessoas com quem o seu menino
se dá. É tudo gente da melhor. E não lhe fazem favor. Todos me gabam a
sabedoria do seu estudante, todos...

--E eu que o diga, affirmava outro.

--Então porque não entram? Vejam se apanham um catharral! Está muito
frio. Ó Joanna, traze duas malgas d'aquelle vinho que sabes, e não te
esqueças de trazer uma talhada de presunto. Vão beber pinga de
substancia! Este é do tal que faz peito, hê, hê, hê!

--Com que então--diziam os biltres--á saude do sr. doutor!

--Que Deus fará! Tornava o bom do lavrador, com as lagrimas nos olhos.
Mas eu não tenho malga, traze-me tambem uma, que quero beber á saude
aqui dos amigos.

E bebia de um trago, valentemente, com alma.

O estudante ás vezes, na vinda de Coimbra, chegava a Braga, onde tinha
amigos e condiscipulos antigos, e ficava mais um dia. De fórma que o
velho esperava, e ia deitar-se cheio de cuidados; não pregava olho toda
a noute.

A Joanna, que bebera o mesmo leite que Sebastião, ouvindo-o gemer e
suspirar, erguia-se, e perguntava-lhe:

--Tem alguma cousa, sô Sebastião?

--Que é? O estudante chegou? Já me levanto, traze-me a candeia!

E era preciso que a velha lhe explicasse tudo, e que o emballasse
carinhosamente com aquellas doces palavras com que as mães adormecem os
filhos rabugentos.

       *       *       *       *       *

O tio Sebastião, quando casou, tinha cincoenta annos, uns cincoenta
annos limpos e rijos como não ha ahi muitos trinta.

Emquanto a mãe foi viva, não lhe quiz dar nóra.

--Nada! dizia ás pessoas que lhe aconselhavam o casamento, nada! Que
lucro eu com isso? A velhinha podia não se dar com o genio da mulher que
eu trouxesse para casa e isso era o inferno para mim. Quem manda
n'aquella casa é minha mãe, e ha-de mandar em quanto fôr viva. Ella
ralha, ella grita, ella dá por paus e por pedras, por dá cá aquella
palha. Deixal-a! Quando rabuja de mais, saio de casa, e a Joanna que a
ature! São mulheres, e lá se entendem. Se eu me casasse, tinha de acudir
por uma ou por outra... Nada! boi solto lambe-se todo...

E ainda solteiro fechou os olhos da mãe que lhe morreu nos braços.

Joanna ficou senhora de tudo. Era ella que olhava pela casa, que dava
ordens, a verdadeira dona da casa emfim. Aquelle novo modo de vida,
porém, começou a pesar-lhe, entrou a ter saudades do antigo jugo, queria
receber ordens e não dal-as; a domesticidade era para ella um habito de
que não havia desacostumal-a.

--Sabe o que mais, sô Sebastião? disse ella um dia ao patrão. O tempo
das rapasiadas passou. Por que não toma estado? Moças é que não faltam.
É verdade que o mundo vai perdido de todo, mas ainda ha raparigas
perfeitas e tementes a Deus.

--Endoudeceste, Joanna! Eu caso me lá, n'esta edade! Só se fôr
comtigo...

--Lá começa elle com as tolices do costume.

Agua molle em pedra dura...

O tio Sebastião entrou um dia em casa com noiva. Era orphã de pae e
mãe, era pobre, não tinha parentes a não ser um irmão que fôra para o
Brazil, e de quem não havia noticias ha muito tempo; contava trinta e
tantos annos, mas era madrugadôra como um gallo, direita como um vime, e
valia por dous homens no amanho da vida.

Quando o tio Sebastião lhe fallou em casamento, ella fez-se vermelha
como uma papoula, hesitou um momento, e atirando com a fouce com que
andava a cegar fêno, lançou-se-lhe nos braços, e n'um amplexo formidavel
de leôa, rompeu com isto:

--Esperava esta felicidade ha dez annos. Abrace-me, sô Sebastião, que se
não fosse comsigo, não me casava senão com a cóva.

Vinha de longe o affecto d'esta mulher pelo bondoso homem.

O pae de Carlota cahiu entrevado; o tio Sebastião ao passar-lhe um dia á
porta ouviu choros e lamentações; entrou e soube que havia alli
necessidade e quasi fome; a filha unica do invalido, Carlota, tinha de
ficar á cabeceira do catre; as ultimas economias haviam-se extinguido
pouco a pouco.

O tio Sebastião soccorreu aquella gente, mandou chamar o medico a Villa
Verde, pagou os remedios da botica e por fim o enterro do infeliz.

Entre as poucas pessoas que acompanharam á egreja o modesto ataúde, ia
o tio Sebastião curvado, melancolico, com o seu rosto barbeado, e cheio
de bondade e lhaneza.

Carlota, que chorava a um canto do albergue, com as mãos atadas á cabeça
despenteada, ao vêr entrar o bemfeitor, não lhe agradeceu as esmolas com
palavras ociosas--arrastou-se para elle de joelhos, e agarrando-lhe nas
mãos beijou-as com devota soffreguidão.

Passados tempos o tio Sebastião esquecera-se d'aquelle episodio, e nem
sequer reparou que a melhor cantadeira do logar, que inquestionavelmente
era a Carlota, deixava de cantar todas as vezes que elle passava por uma
certa azinhaga...

Se elle volvesse o rosto veria no meio das hervas altas e humidas, ou em
cima dos castanheiros folhudos e entrelaçados de pampanos, um vulto de
mulher voltado para elle, a devoral-o com a vista, a seguil-o, a
banhal-o na luz cariciosa de um longo olhar enamorado.

Não deu por tal o tio Sebastião; Joanna, porém, que era amiga de
Carlota, adivinhou o segredo, e o resultado sabe-o o leitor.

       *       *       *       *       *

Tres annos depois do casamento o tio Sebastião enviuvára.

Ficou-lhe um filho, uma creancinha loura e adoravel, o vivo retrato da
mãe.

O lavrador concentrava no pequeno todos os affectos, amava-o até á
insania.

O rapaz cresceu rodeado de caricias, de mimos e de ternos cuidados.

Não havia vontade que se lhe não fizesse. Era um pequeno rei despotico a
cuja voz o pae e a velha Joanna se curvavam com cega obediencia.

Ao completar seis annos, por conselho do prior, começou o pequeno a
estudar as primeiras lettras com o professor régio da freguezia.

--Temos homem, dizia o prior ao velho; o rapaz vae bem, estuda e aprende
com facilidade.

--Quando me lembro que posso morrer sem o ouvir cantar a missa nova,
parece-me que estalo de pena.

--Ó senhor prior, o meu rapaz dava ou não dava um padre de mão cheia?

Era para padre que o velho destinava o filho, sonhava todas as noutes
com a sua primeira missa, via-o com as vestimentas engommadas e duras
do sacerdocio, deante do altar da egreja da freguezia, no meio de nuvens
de incenso, emquanto os padres cantarolavam ao som plangente e arrastado
do orgão, e os sinos tangiam alegres repiques, e subiam ao ar as
girandolas de foguetes impregnando de um espesso cheiro de polvora o
adro enramilhetado de murtas...

Prompto nas primeiras lettras, foi o pequeno Sebastião para Braga onde
se matriculou no lyceu.

N'este entrementes chegou do Brazil o irmão de Carlota. Foi á aldeia
natal, procurou os parentes, e soube que todos tinham fallecido,
restando-lhe tão sómente um sobrinho.

O brazileiro era solteiro, e doente; não vinha millionario, mas tinha
mais do que o sufficiente para dar uma bonita carreira ao estudante.

--Olhe, mano, disse ao cunhado, deixe isso ao meu cuidado, eu me
encarrego do menino. O bem que desejava fazer a meus paes, que
infelizmente não encontrei, hei de revertel-o em favor de meu sobrinho.

Uma condicção exijo: não quero que o rapaz se ordene. Quero dizer, se
isso fôr da sua vontade, d'elle, não me opponho, mas deixemos o tempo ao
tempo. Cá a minha opinião é que elle deve estudar medicina. Os medicos
ganham muito dinheiro em toda a parte, e no Brazil sobretudo, onde o
mais réles tem carruagem. Está por isto? O rapaz quando acabar os
estudos em Braga vae para Coimbra?

O tio Sebastião custou a descer d'aquelle sonho em que andára tantos
annos embevecido. Mas por fim cedeu.

O brazileiro demorou-se alguns annos ainda em Portugal. A quebra, porém,
de uma casa importante do Rio chamou-o ao Brazil, para onde partiu
deixando ao sobrinho, que até então se havia portado com singular e
exemplarissimo discernimento, ordem franca para receber tudo que lhe
fosse preciso n'uma das casas mais acreditadas do Porto.

       *       *       *       *       *

Um dos estudantes que mais dinheiro gastava em Coimbra por aquelles
tempos era Sebastião Alves, a quem a convivencia com os rapazes oriundos
das mais nobres familias de Portugal empavonára e envaidecêra
extremamente.

No seu quarto, que elle adornára com excessivo e inaudito luxo para um
estudante, reuniam-se todos os que sobresahiam em Coimbra pela
fidalguia, pela força, e pela estroinice.

Sebastião entrou a ser explorado; pediam-lhe dinheiro que nunca era
restituido, vestiam-lhe o fato, calçavam-lhe as botas, e comiam-lhe
ceias abundantes e regadas de vinhos caros.

Com aquella vida era incompativel o estudo e a reflexão. Deixou de ir ás
aulas. Enganava o tio e o pae, enviando-lhes certidões falsas dos
_actos_ que nunca fizera.

Havia dous annos já que não ia á aldeia, cujo viver lhe aborrecia e se
lhe figurava mesquinho e chato.

Quando os estudantes partiam para férias, contentes e alegres para os
abraços da familia, Sebastião Alves deixava tambem Coimbra, percorria as
praias, ia ao Porto, a Cintra, ao Bussaco.

Aquella vida inutil e varia era de quando em quando remordida pelo
remorso, todas as vezes que o vadio recebia as cartas do pae, que,
apesar de não terem ortographia, e de serem escriptas com uma lettra
grotesca e pesada, lhe avivavam o entranhado amor com que elle era
querido por aquelle amantissimo coração de velho.


II

O brazileiro voltára a Portugal. Em Santa Apolonia comprou bilhete para
Coimbra, mas adormecendo profundamente só acordou quando ouviu um
empregado gritar: Granja!

--É o mesmo, disse comsigo. Até é melhor. Fico no Porto, e escrevo ao
Sebastião que venha ter commigo se quer ir vêr o filho a Coimbra.

Escreveu. Se o tio Sebastião queria ir a Coimbra! N'isso pensava elle
havia semanas, porque já não podia com as saudades.

--Já cá estão dous carros e uns pósinhos, dizia elle, se não fosse isto,
quem ia vêr o rapaz era o filho de minha mãe...

O convite do cunhado alvoroçára-o de alegria e de desusado
contentamento. Ria alto, andava radiante, cantava:

      Á uma hora nasci,
      Ás duas fui baptisado,
      Ás tres andava de amores,
      Ás quatro estava casado.

--Queres tu vir d'ahi, Joanna? dizia elle para a creada que lhe
arranjava a mala.

É verdade, ó Joanna, não te lembras assim de uma cousa que o estudante
goste? Uma cousa bonita...

A creada que era gulosa, lembrava-lhe marmelada, doce de ginja, pêras de
calda...

--Upa! cousa melhor...

--Quer saber? disse a velha, com os olhos accesos de quem achou um
thesouro, e a mim que me não lembrou logo! Eu cá se fosse o sô Sebastião
comprava uma medalha de ouro como a que o sr. Morgado traz no cordão do
relogio; mettia-lhe dentro o retrato da fallecida, e levava isso ao
menino que ha de ficar no ceu ao vêr a mãesinha que Deus lhe levou.

O tio Sebastião approvou a ideia. O retrato foi tirado da parede, tinha
sido feito em Braga, logo nos primeiros tempos do casamento.
Representava Carlota vestida com uma saia de seda preta, lustrosa, cheia
de vincos, com grossas arrecadas, e uns enormes grilhões no peito largo
e afflante, os pés nús n'umas chinellas bicudas de verniz. Na mão
direita tinha um lenço cheio de bordados, tufado. A esquerda descançava
nas costas de uma cadeira, e os grossos dedos d'essa mão pendiam para a
palhinha, lanzudos, reluzentes de anneis. Nos olhos de Carlota havia o
espanto de quem vê bruxaria, uma especie de pavôr disfarçado.

O lavrador pegou no retrato, e esteve a olhar para a mulher. Não chorou,
nem teve saudades, estava absorvido por um sentimento superior.

--Ó Joanna, mas o retrato é grande e a medalha pequena. Eu não tenho
alma de degolar o retrato...

A creada sorriu-se.

--Pois leve o retrato e a medalha ao menino, e elle lá que o mande
arranjar...

Na manhã seguinte almoçava o tio Sebastião com o cunhado, e partia
n'essa mesma tarde para Coimbra, onde chegaram de noute. O brazileiro,
cheio de cansaço, adoentado, propoz que se adiasse a visita ao estudante
para o outro dia. Que eram horas d'elle estar a estudar; que não era bom
distrahil-o das suas obrigações. O tio Sebastião, porém, não se
convenceu. Disse que iria só, que não podia esperar, que não dormiria
bem sem dar um abraço no filho. Partiram ambos.

Os viajantes bateram á porta da casa de Sebastião Alves, maravilhados de
verem as janellas abertas e a casa completamente ás escuras. Ninguem
lhes respondeu.

Bateram de novo.

Uma visinha com a sua voz fina e cantada perguntou o que desejavam, e
explicou que o sr. Sebastião Alves tinha ido ceiar com uns amigos a uma
hospedaria da baixa.

Perguntou o brazileiro onde era essa hospedaria, e para lá se encaminhou
com o ancioso companheiro, que ao vel-o meditativo resmungava como que
para attenuar a extravagancia:

--Rapazes! um dia não são dias.

As ruas da alta estavam solemnemente silenciosas, os transeuntes eram
raros.

Ao passarem por uma casa, cujo primeiro andar tinha as janellas abertas,
viram um estudante com a cabeça encostada ás mãos, absorvido e com os
olhos n'uns livros...

--Aquelle tambem é rapaz, tornou o brazileiro com gesto sentencioso, mas
faz a sua obrigação. Quem vem para aqui é para estudar...

Ao subirem as escadas da hospedaria ouviram um grande rumor, vivas, e
_hurrahs_ freneticos e enthusiasticos; os creados açodados, vermelhos,
passavam com largas travessas fumegantes...

--Desejamos saber, disse o brazileiro a um dos creados, se o sr.
Sebastião Alves está aqui.

--Está, sim senhor, se lhe querem fallar, vou dar-lhe parte...

O brazileiro tirou meia corôa da bolsa de prata, e dando-a ao creado
continuou:

--Não queremos perturbar o sr. Sebastião, fallar-lhe-hemos depois. O que
desejamos é um quarto onde possamos esperar até que finde a ceia. Faça
favor de lhe não revelar que estamos aqui, é uma surpreza que queremos
fazer ao estudante; e sorriu contrafeito.

O creado conduziu-os a uma sala, separada d'aquella em que os estudantes
ceiavam simplesmente por uma porta.

O tio Sebastião tinha o coração aos pulos dentro do peito.

--Eu vou lá; dizia baixo com a voz tremula, quero vel-o.

O cunhado conteve-o.

--Espreite pelo buraco d'essa fechadura que já o vê.

O velho curvou-se e olhou.

--Lá está elle! lá o vejo. Está mais magro... aquillo talvez seja do
estudo. Coitado! Mas que chibante que elle anda! Os outros ao pé d'elle
parecem uns pobretões! Um até tem a vestea toda rota e cheia de nodoas.
Aquillo que elles trazem é assim a modo de batina de padre... pois não
é? Espera, ó mano! lá vae o meu filho levantar-se. Ó meu rico filho da
minha alma!

Sebastião levantára-se de facto para fazer um brinde.

Tinham bebido á saude das mulheres, do amor, da gloria, do talento...

Sebastião, um tanto inflammado de repetidas libações, fez uma saude a
um velho que estava sentado á meza, um pouco distanciado do grupo dos
estudantes.

O brinde foi estrepitosamente victoriado.

O velho agradeceu n'estes termos:

«Muito obrigado, meus senhores! Reconhecido pela deferencia com que me
honram, consintam que beba á saude do pae do cavalheiro que me brindou.»

O brazileiro disse:

--Tome, mano! aquillo é comsigo!

--Mas eu vou lá, vou dar um abraço n'aquelle honrado homem que se
lembrou de mim...

Os estudantes ergueram os copos.

--Á saude de teu pae, clamaram.

--Que infelizmente está longe, disse commovido pelo vinho Sebastião
Alves.

--Longe! qual longe, nem meio longe, tartamudeou o tio Sebastião, e ia
para lançar-se pelo corredor fóra, quando o brazileiro de novo o reteve.

--Espere homem! o rapaz talvez fique envergonhado se lhe apparecermos
assim de repente.

--É verdade, meus senhores, disse um dos da roda, um que passava por
orador e que gostava de fazer estylo.

«O pae de Sebastião está longe, vive em plagas distantes, em terra de
Santa Cruz n'esse paiz uberrimo, monstruoso, gigante, que se chama o
Brazil, e onde os nossos recebem uma hospitalidade tão franca e tão
generosa. Brindando ao pae de Sebastião, brindo aos nossos irmãos de
além-mar.»

--O que diz elle? resmungou o tio Sebastião, que eu estou no Brazil? Não
é má!... e atabafava o riso.

O brazileiro comprehendeu tudo e murmurou: canalha!...

Um dos rapazes que fôra condiscipulo de Sebastião em Braga, voltando-se
para este, disse:

--É verdade, ó Sebastião, aquelle velhinho que uma vez te acompanhou á
mala posta, e que eu vi a chorar como uma creança na rua da Conega
quando se despediu de ti, era teu avô? Muito gostei eu do velhinho.
Parece que o estou a vêr a acenar-te com o lenço, correndo com as suas
pernas tropegas e cansadas atraz da carroagem, a dizer: O Senhor vá na
tua companhia!

Sebastião avincou o rosto, um rubor subito incendiou-lhe as faces, e
partindo uma noz, respondeu:

--Esse velho era caseiro de uma quinta que meu pae comprou quando esteve
ultimamente em Portugal.

O tio Sebastião voltou-se para o brazileiro. Estava livido, tinha os
labios apertadamente unidos, os olhos injectados de sangue. Esteve um
segundo, com os olhos fitos nos do cunhado, sem poder articular uma
palavra, bamboleando a cabeça, respirando offegantemente pelas narinas
palpitantes e dilatadas; depois cahiu nos braços do cunhado e prorompeu
n'um soluçar dilacerante e pungitivo:

--Ingrato! ingrato!

       *       *       *       *       *

Quando o tio Sebastião chegou á sua aldeia, vinha pallido, desfeito,
parecia desenterrado.

A velha Joanna assustada perguntou-lhe:

--Que foi? que foi? E o menino?

--Morreu!



O ANNEL DO DIPLOMATA


--Parecia que vendia saude... tão forte que era!...

--É verdade! quem o havia de dizer!

--Era uma creança ainda, pouco mais tinha de setenta annos, volveu outro
que, pela figura e pelo andar tropego e vacillante, denotava ter os seus
oitenta, bem puxados.

--E olhe que era um bom homem! Você não viu como a filha chorava quando
o pozemos em cima da cama? Cortava o coração, coitadita!

--E honradinho! Eu sei cá! Poucos se topam por ahi com tão bons
sentimentos e com cara tão limpa...

--Lá isso!...

--Não, que quem sahe aos seus não degenera!

--Era muito amigo da pobreza! tartamudeou uma velha.

--Ó Christo! era o pai da pobreza, é o que vossemecê deve dizer, tia
Joaquina.

--E depois olhe que era o melhor letrado d'estas oito leguas em redondo.

--Aquillo era um _selvage_...

Assim fallavam alguns individuos pertencentes a diversas cathegorias da
pequena sociedade da villa de X***, descendo as escadas da casa do
advogado Vasconcellos que cahira mortalmente fulminado por uma congestão
cerebral, no momento em que defendia calorosamente um individuo que
n'uma allucinação brutal de ciume assassinára a mulher e dous filhitos.

       *       *       *       *       *

O advogado Vasconcellos morrêra pobre, sorte de todos os causidicos de
provincia, que logram vencer, quando muito, por mez, o que qualquer dos
collegas de Lisboa e Porto dá aos seus agaloados trintanarios.

Filho segundo de uma casa de bom nome na provincia do Minho, cursava
canones e leis na Universidade, no anno de 1828, emigrando n'esse mesmo
anno, e vindo terminar o curso mais tarde, depois de ter defendido a
causa da liberdade, de parceria com outros condiscipulos, que tão
assignaladamente se distinguiram depois na politica, nas armas e nas
lettras.

Depois de formado, recolheu-se á sua villa natal, e não podendo contar
com a mezada que seu irmão lhe arbitrára, visto que os rendimentos da
casa mal chegavam para a alimentação e sustento do primogenito, abriu
banca de advogado, dependurando de um dos lados da estante de pinho,
encimada pela pasta verde e encarnada de quintanista, a lata com os seus
pergaminhos de bacharel _in utroque_, e de outro lado a farda impregnada
da polvora de vinte combates e varada pelas balas dos servidores
d'el-rei nosso senhor, no cerco do Porto.

A formosa irlandeza que o acompanhára no exilio, e que lhe foi denodada
companheira nas asperas provações da vida, morreu-lhe pouco tempo
depois, deixando-lhe dous filhos, um rapaz e uma menina.

Tanto um como outro eram educados com sollicitude e esmero, que para a
educação dos dous não se forrava aquelle pae amantissimo nem a despezas
nem a trabalhos.

O rapaz foi para Coimbra, e a menina para o convento das Salesias em
Lisboa, de onde recolheu quando o irmão entrava para o primeiro anno
juridico.

--É preciso estudar, Antonio, olha que se eu não tivesse aquellas
cartas, tinha de andar a cavar nas hortas de meu irmão, ou de esmolar
nas escadas ignobeis das secretarias um logar de porteiro ou de
amanuense, e isto ainda assim, apresentando como documento dos meus
serviços aquella farda...

Não eram necessarios estes conselhos. Antonio de Vasconcellos foi sempre
um sisudo moço, estudioso, o que não quer dizer que aquella mocidade
fosse bisonha e avessa ás ridentes alegrias dos vinte annos.

Pobre da arvore que ao sorrir da primavera se não estrelleja de flores,
e em cujos ramos folhudos e a revêrem seiva não cantam as toutinegras e
não assobiam os melros!

       *       *       *       *       *

Recolhia-se á sua casa, em Coimbra, o moço estudante, alegre e contente
de si por ter correspondido bizarramente, n'uma sabbatina, ao alto
conceito em que o curso o tinha, quando lhe entregaram uma parte
telegraphica.

Rasgou alvoroçadamente o sobrescripto, leu e empallideceu horrivelmente.

--Meu querido pae! murmurou, e curvado sobre a sua mesa de estudo deixou
cahir a cabeça nos punhos fechados. Pobre pae! pobre pae! que me não
chegou a ver bacharel!

Na manhã do dia seguinte entrava por casa dentro, ao passo que descia as
escadas o caixão em que vinha mettido o pae.

Quizeram-no affastar, esconder-lhe aquelle espectaculo lutuoso, mas elle
resistiu, e abraçado ao cadaver do pae chorava como choram os que de
repente sentem que o braço amoravel que os guiava n'esta vida enfraquece
e esfria para sempre, deixando-os na mais desconsolada e algida das
solidões.

Amparado nos braços de um amigo da infancia, entrou no aposento em que a
irmã pallida e desfeita expedia gritos clamorosos e hystericos.

--Sósinha, repetia a misera, sósinha!

--E eu, minha querida Francisca? Não te lembraste do teu irmão? disse o
moço engulindo as lagrimas, e fazendo-se forte para dar coragem á
desgraçada menina.

Assim no alto mar quando o temporal arripia e ennovela as ondas, e o
velame bate nos mastros com o ruido molhado das azas de uma ave que se
afoga, e a marinhagem assustada grita e pragueja ante a morte proxima e
inevitavel, o capitão que tem filhos e esposa, longe n'uma pequena
aldeia á beira-mar, dá ordens com voz tranquilla, e commanda a manobra
com a serenidade de quem vê perto as aguas quietas e espelhadas do
ancoradouro.

       *       *       *       *       *

Volvidos alguns dias, desceu o estudante ao escriptorio. Examinou as
gavetas e os moveis, a vêr se o pae havia feito as suas ultimas
disposições. Não encontrou senão minutas, autos, libellos em principio,
considerações juridicas.

--Parece-me que o estou vendo! A ultima vez que o vi, estava aqui
sentado e perguntou-me a rir se eu sabia o que era um libello!--disse o
moço para a irmã, que o acompanhava.--Respondi-lhe, e elle tornou:

--Caspité! Pois olha, que quando deixei Coimbra não o sabia. A minha
universidade foi esta banca. Aqui é que se aprende, deixa lá! E depois
tu verás!

Mal sabia elle que eu nunca havia de vêr isso...

--E porque, Antonio?

--Porque? porque estamos pobrissimos. O pae morreu honrado, mas sem
recursos. O que nos resta, filha, são umas cincoenta moedas, que a nossa
velha Joanna ajuntou com as soldadas ganhas no serviço da casa de nossos
avós, e n'esta... casa que é hoje d'ella, porque é ella que nos tem
sustentado desde que nos faltou o nosso querido amigo...

Bateram n'este momento á porta do escriptorio, Antonio de Vasconcellos
foi abrir. Appareceu no limiar da porta um lavrador que disse,
desbarretando-se:

--Queria dar uma palavra ao sr. doutor...

--Meu pae falleceu esta semana...

--O que! E eu que o vi ainda ha dias tão fero e rijo! Em nome do Padre e
do Filho... É o que nós somos n'este mundo... Que Deus o tenha na sua
gloria, que era um homem ás direitas... Então queira perdoar.

E sahiu emquanto os dous com os olhares atados um no outro, perguntavam
n'aquella muda linguagem, o que seria d'elles desamparados e sós
n'aquelle temporal, que tão a subitas lhes escurecera o azul sereno da
vida.

       *       *       *       *       *

Alguns amigos do advogado e um parocho d'aquellas circumvisinhanças,
reunidos n'um sagrado pensamento, ajustaram entre si dar uma mensalidade
a Antonio de Vasconcellos, que a rogos da irmã acceitou aquelles
adiantamentos como uma divida que satisfaria mais tarde.

Temos o nosso estudante formado e prompto. Logo que se viu senhor dos
titulos alcançados pelo seu estudo e applicação, foi á villa natal
agradecer aos que o haviam tão evangelicamente amparado, e, por
conselhos de um condiscipulo, dirigiu-se a Lisboa, onde fixou
residencia, e entrou a frequentar o escriptorio de um dos advogados de
mais renome no fôro da capital.

Ir para a provincia trabalhar como um mouro, estudar como um
benedictino; para que? O resultado conhecêra-o elle, que o exemplo lhe
fôra mais que manifesto na propria familia. Em Lisboa encontraria campo
mais dilatado onde desafogar as suas altas aspirações.

O peior seria o primeiro anno e ainda o segundo, mas depois acudiriam os
clientes, e o seu nome adquiriria a gloriosa reputação com que outros
de menos talento se ufanavam.

--Ao principio, Francisca, dizia o moço doutor, não correrá tudo á
medida dos nossos desejos, mas tu has de ter muita coragem, não é assim?
Quando eu entrar em casa, e vir um sorriso na tua boca, verás como me
lanço ao trabalho com vontade e com intrepidez...

Pobre creança!

       *       *       *       *       *

N'aquella época chegara a Lisboa um individuo que fôra o mais perdulario
dos _leões_ da Lisboa de ha trinta annos, e que presentemente occupava
um elevado lugar diplomatico em uma côrte estrangeira.

Contavam-se d'este homem excentricidades que fariam morrer de inveja o
mais fastiente e _spleenetico_ dos _lords_. Batera-se vinte vezes e por
motivos diversos, por questões de jogo, por questões de mulheres, e por
questões de politica.

Espirituoso, valente e rico, passou pelo mais bem acabado producto do
seu tempo e do seu meio.

Agora velho mas sempre original e taful, era estimado por todos, querido
nas salas, temido ainda na imprensa e respeitado pelos politicos a quem
asseteava com o acre azedume de quem já mourejou nos bastidores da
politica, e lhes conhece de sobejo os fumosos mysterios.

Estava Antonio de Vasconcellos no Chiado, conversando com um
condiscipulo, quando o diplomata se apeou de um trem, e se deteve a
conversar alguns instantes com umas senhoras que iam passando.

--Sabes quem é aquelle sujeito? perguntou-lhe o condiscipulo.

--Não.

--É Jorge de Alvim. O velho mais moço que passeia n'esta cidade
sorumbatica e sôrna...

--Esse nome não me é estranho. Foi condiscipulo de meu pae que o
estimava e tinha em grande conta, e até se me não engano, queimei uma
larga correspondencia travada entre aquelle homem e meu pae. A elle
pessoalmente não conhecia, mas é sympathico.

--E homem de grande influencia politica.

N'este momento o cavalheiro F. e o ministro L. que passavam,
acercaram-se do diplomata e demoraram-se com elle em palestra em que
pareciam enlevados.

--Repara tu como elles o tratam! concluiu o condiscipulo de Vasconcellos
ao dar-lhe o aperto de mão de despedida.

       *       *       *       *       *

--Sempre me decido, Francisca.

--Pois vae, Antonio, vae que não deshonra pedir trabalho e protecção...

--Receber-me-ha elle bem?

--Quem te não ha de receber bem, tôlo? vae que eu fico a pedir a Deus
por ti!

Antonio de Vasconcellos foi e fallou com o velho amigo de seu pae, Jorge
Alvim. Contou-lhe toda a sua vida trabalhosa, as luctas obscuras, as
miserias que affrontára, descreveu-lhe a núa e triste agua-furtada em
que viviam, elle e a irmã, as longas e plumbeas noites mal dormidas, a
costura mal remunerada, a dureza dos senhorios.

E no gabinete cheio de conforto e de luxo aquellas palavras tristes,
desesperadas e expirantes soavam lugubremente como um grito de agonia
nas alegrias de um noivado...

--V. ex.ª não sabia de uma cousa que lhe vou agora dizer. Seu pae
salvou-me da morte uma vez no cerco do Porto, eu salval-o-hei custe o
que custar das... garras da...

--Miseria, disse o moço com o rosto ligeiramente carminado.

--Pois seja assim! Começaremos a combater o monstro hoje mesmo. Para
isso é preciso que V. Ex.ª envergue as armas proprias para combates
d'esta ordem. Em vez do arnez, do broquel, das cannelleiras e do elmo,
aconselho-lhe que se vista com elegancia igual á sua gentileza, porque
vae combater a féra no salão da mais elegante senhora de Lisboa, e ante
a presença das nossas mais acentuadas celebridades politicas e
litterarias. Até logo, não é assim? disse o velho estendendo com uma
graça adoravel a mão a Antonio de Vasconcellos que desceu as escadas
enceradas com o coração cheio de sol e de alegria.

       *       *       *       *       *

--Não estejas triste, a casaca fica-te bem, não está muito nova, mas
ninguem repara. Põe este botão de rosa na casa. É bonito. Vaes mesmo um
taful--dizia a irmã de Antonio de Vasconcellos recuando e examinando
amoravelmente o moço.

Depois, com um gesto impregnado de um mixto singular de protecção e de
doce auctoridade, continuou:

--Prohibo-te que estejas com essa cara desconsolada. Digo-te eu que és
o mais bonito que lá apparece. Depois m'o contarás.

E conversando e rindo n'um abandono divino e infantil, aquelles dous
camaradas na adversidade, edificavam castellos de ventura, esquecidos de
que o padeiro n'aquelle dia recusara fiar-lhes mais pão. Oh mocidade!

       *       *       *       *       *

Jorge de Alvim n'aquelle dia parecia exceder-se a si proprio, tão
brilhantes eram as suas respostas, tão finas as suas ironias, tão cheias
de sal as anedoctas com que encantava os conselheiros, ministros e
jornalistas que estavam á mesa da elegante condessa de X***.

Fallou-se em diamantes. Jorge de Alvim desde logo entrou a historiar
casos e anedoctas a tal respeito. Narrou as aventuras de diamantes que
se tornaram celebres pelas peregrinações em que andaram, e assim
precisou com uma erudição graciosa a historia do _Sancy_, diamante que
foi de Carlos o Temerario, e que das mãos d'este passou para as de um
Duque de Florença e depois para o poder do Prior do Crato, que o
empenhou ao intendente das finanças em França, Harley de Sancy, de onde
lhe proveio o nome.

--Ainda aqui não pára, minhas senhoras, a odysséa d'esta pedra. Harley
de Sancy quando Henrique IV de França antes de ser reconhecido se achou
em grandes apuros de dinheiro, mandou vender esse diamante aos judeus de
Metz. O homem encarregado de tão preciosa missão, cahindo nas mãos de
uma quadrilha de bandidos, e receiando que lhe roubassem o thesouro que
levava, engulira a pedra...

--Ora essa! disse a dona da casa.

--Verdade pura, minha senhora. O cadaver foi descoberto passados tempos
no bosque de Dôls, e aberto o ventre, acharam o diamante que foi vendido
a Jacques II de Inglaterra, de cujo poder passou para o de Luiz XIV.

--E depois? disse uma das senhoras. Não póde parar ahi esse longo
peregrinar de que V. Ex.ª está sendo um Fernão Mendes...

--Minto?... pois seja assim. O que posso afiançar a V. Ex.ª é que esta
pedra, depois de varias e encontradas vicissitudes acabou por onde
acabou a esposa de Meneláu... Foi roubada, e hoje pára nas mãos dos
Russos.

--Justamente o que mais dia menos dia succederá ao seu magnifico annel,
Sr. Jorge de Alvim, tornou a mesma interruptora, dardejando um olhar
guloso e felino á pedra do annel...

--E é verdade que é lindissimo e de appetite o seu annel; deixa-m'o ver,
Sr. Alvim? disse uma das senhoras que estava ao lado de Antonio de
Vasconcellos.

O annel foi passando de mão em mão crivado de admirações e de quentes
cobiças...

A conversação tomára outro rumo; era o momento dos _toasts_, e então
Alvim explicou uma usança que lá fóra estava agora muito em moda nos
jantares da alta vida, a _taça da amizade_.

Ia a descrever este costume elegante quando a senhora que estava á
esquerda de Vasconcellos soltou um grito.

--Ah!

--Que foi? O que foi? repetiram em roda.

--Tinha aqui o annel e desappareceu-me!

Levantaram-se pratos, arredaram-se cadeiras, houve varias conjecturas.

--Estaria aqui? talvez estivesse ali...

E sempre debalde.

Ergueram-se todos, sem cerimonia, turbulentamente, como da mesa de um
hotel...

O annel não apparecia.

Um dos convivas, celebre no fôro, começou a examinar o rosto de cada
criado, como quem tenta descobrir o author de um crime.

--Uma joia tão rica!

--Não está alli por menos de duzentas libras, affirmou um banqueiro.

--Ora, pelo amor de Deus, meus senhores, volveu o velho casquilho. O meu
annel que julgo não tem ainda por ora aventuras, ouvindo as minhas
narrativas de ha pouco encheu-se de brios, e quiz provar aos incredulos
que tambem lhe estão reservados altos destinos... Vou propôr a V.
Ex.ᵃˢ uma cousa que lhes parecerá excentrica, mas que me relevarão,
já que em Lisboa passo por um ente singular e extraordinario. Ahi vai a
singular excentricidade que me passou pela cabeça: ao sahir d'esta sala
hão de todos deixar-se revistar pelos donos da casa. Rejeitam ou
approvam?

Ouvindo aquella proposta exquisita e quasi que offensiva, alguns
sorriram, indignaram-se outros, franzindo os sobrolhos, e um pesado
silencio constrangido cahiu n'aquella sala ha pouco tão sonora de vozes,
de risos e do fino tilintar da prata e dos crystaes.

--Peço perdão, mas opponho-me e rejeito essa proposta!

Quem assim fallava era Antonio de Vasconcellos. Estava pallido como a
morte, tentava sorrir, mas os dentes cerravam-se-lhe nervosamente, e os
cabellos empastavam-se-lhe na testa gotejando suor.

--Seria elle? disse a dona da casa baixo, e fitando-o tristemente.

E toda a gente que o ouvira como que por instincto affastou-se do pobre
moço.

Podia ser, que fosse elle. Era pobre, pois não viam isso claramente?

Os olhos de todas as mulheres que alli estavam começaram então
desapiedadamente a analysal-o por miudo, e passavam-lhe em revista a
casaca cossada, a pouca finura da camisa, a gravata branca ligeiramente
encardida, as joelheiras luzidias das calças pretas.

--E não é feio rapaz!

--Pois sim, mas Lacenaire tambem não era feio, volveu outra menos
caridosa e mais letrada.

Antonio de Vasconcellos approximou-se de Jorge de Alvim, e baixo com voz
concentrada disse lhe:

--Uma palavra, Sr. Alvim, desejo dar-lhe uma palavra...

--É melhor mais tarde... depois..., replicou desdenhosamente Jorge de
Alvim.

Repararam todos na insistencia de Antonio de Vasconcellos, e as
suspeitas mais e mais se enraizaram no espirito dos convivas.

O pobre rapaz, que conhecia a falsa posição em que se collocara com a
sua phrase, sentia-se humilhado e como que vendido n'aquelle meio.

Os proprios criados olhavam-no com manifesto desprezo.

Vasconcellos disse ainda ao diplomata:

--Sr. Jorge de Alvim, pela ultima vez, quer ouvir-me?

--Homem, já sei; é pobre, teve uma fascinação, já li isso não sei
aonde... Ah! já sei... n'um conto de Balzac...

E voltou-lhe as costas.

N'esse instante uma voz entaramellada e rouca echoou na sala:

--Peço que me escutem! como sou o unico pobre que aqui está, e como
todas as circumstancias são em meu desfavor, podem julgar que fui eu que
roubei esse annel. Se não consenti na proposta feita pelo Sr. Jorge de
Alvim,--e na pallidez do seu rosto destacavam-se duas rosas de
pejo,--foi porque, se me revistassem, encontravam-me no bolso isto que
eu furtei para levar á minha irmã que não come desde hontem... disse o
mancebo tirando da algibeira um pão.

       *       *       *       *       *

Houve um grande e profundo silencio angustioso. A condessa foi a
primeira a rompel-o adiantando-se para Vasconcellos.

--Pobre rapaz!...

E com o movimento que fez, um objecto brilhante faiscou nas franjas do
seu vestido.

--Permitta-me V. Ex.ª, condessa, disse o banqueiro abaixando-se e
desprendendo das franjas o objecto que reluzia e chispava: aqui está o
annel.

       *       *       *       *       *

Antonio de Vasconcellos occupa hoje com geral applauso e com grandes
creditos o lugar de secretario, na embaixada de que é ministro seu amigo
e cunhado Jorge de Alvim.



A ESCOLHA DE GASTÃO


Fez verdadeiramente o que se chama _escandalo_, em todas as salas da
alta roda, o casamento do filho do visconde das Lagôas.

O visconde, cujo nome primitivo era João do Moinho Novo, e que depois
não sei porque artes se appellidava João Silveira, fôra para o Brazil
muito moço, creio que com dezoito annos, e voltára de lá com cincoenta e
archi-millionario.

_Rosnava-se_ muito ácerca das origens d'esta nebulosa e extraordinaria
fortuna.

Uns fallavam de escravatura, alguns de contrabando, todos de negocios
pouco lisos e pouco licitos. No fim de contas, porém, o principal é que
uma pessoa seja muito rica.

Lá o _como_ e _porquê_ são questões secundarias, com que se preoccupam
muito os invejosos, e um pouco os escrupulosos.

O resto das pessoas, e já se vê que são muitas, essas nem para ahi
voltam os olhos.

Acham este esmiuçar impertinente das vidas alheias além de enfadonho
pouco aristocratico.

O visconde passava o verão na provincia do Minho, n'uma povoação perto
de Vianna, onde comprára um velho palacio, cuja frontaria ennegrecida
elle mandára cuidadosamente caiar.

O portão do palacio era encimado pelo brazão d'armas da familia
arruinada a que pertencêra. O visconde, que não quizera conservar mais
nada intacto, teve a caridosa lembrança de o conservar a elle.

Mandou-o limpar das hervas e dos musgos damninhos que se tinham
introduzido entre as fisgas da pedra, e dos ninhos que a phantasia
errante das andorinhas alli armára no estio.

Depois de limpo pareceu-lhe um ornato sympathico e nada contradictorio
com os seus gostos plebeus, e deixou-o alli ficar, com tenção firme de o
cobrir de crepe, no caso de lhe morrer algum dos seus.

Foi depois d'isto que se decidiu a pedir ou por outra a comprar, dos
poderes publicos complacentes o seu titulo de visconde.

O mais modificou-o e transformou-o á sua vontade.

Detestava as ruinas por instincto.

As vastas salas apainelladas e forradas de custosos pannos de Arrás,
mandou-as estucar á moderna, de côres claras e alegres, vendendo a um
amador de curiosas velharias,--o mais caro que poude, já se
entende--aquellas colgaduras ennegrecidas e esfiadas, cujo merito não
havia nunca logrado perceber.

Vendeu igualmente a velha mobilia, que punha como que um perfume de
grandeza extincta no arruinado casarão, as credencias marchetadas, os
tremós de espelho partido ao meio, e em cuja moldura dançavam estranhas
figurinhas, as cadeiras abbaciaes de couro e pregaria amarella, os
cofres de pau santo, os tamboretes de carvalho, as reliquias d'um mundo
que desabára.

Os dominios do visconde depois de transfigurados pelo seu opulento
proprietario perderam aquelle aspecto desolador, saudoso e melancolico
que os recommendava aos artistas e aos... morcegos.

Ninguem por mais phantasioso e poeta que fosse, seria capaz de evocar na
sombra dos longos corredores claustraes, uma d'aquellas figuras que são
a graça mysteriosa do passado.

Uma castellã pallida e esguia, sustendo nas suas mãos de marfim o missal
de ricas illuminuras... Um pagem louro e namorado, embevecido no sonho
de longinquas aventuras e de impossiveis amores... Um vulto de abbade
austero e glacial, trazendo para o meio do mundo a gelida mortalha da
sua piedade monastica...

Nenhuma d'essas visões podia agora evocar-se.

Foram derrubadas as arvores silvestres cuja sombra envolvia o palacio
n'uma austera solidão; arrancaram-se as heras possantes que cobriam com
o manto vigoroso da sua folhagem verde-negra os muros gastos e
esburacados; calçaram e ladrilharam os pateos por onde a herva crescia
indomada e livre, e onde fontes enormes choravam dia e noite com uma
triste e somnolenta melopeia.

Um jardineiro inglez veio de proposito cortar as moitas de buxo espesso
do jardim, onde umas estatuas de pedras mutiladas e musgosas pareciam
ainda relembrar no desamparo da sua nudez friorenta, uma vida inteira
que o passado abysmára.

Aquella desolação das ruinas e aquelle indomito luxo da natureza
entregue a si, foram substituidos por todas as graças e coquettismos da
moderna jardinagem.

Uma estufa de plantas raras, de extranho colorido, de fórmas
phantasticas e inquietadoras, de cheiro irritante e acre; taboleiros de
_gazon_ d'uma frescura esmeraldina, camelias, rosas, trepadeiras
floridas, tudo que as tyrannias da arte teem misturado nas liberdades da
Natureza.

O visconde depois de haver-se rodeado de tudo que póde tornar aos ricos
a vida não só aprazivel o que é pouco, mas invejavel o que é muitissimo,
começou a grangear relações, e a receber com bizarra hospitalidade os
amigos que durante o inverno adquiria nas salas da capital.

Em Lisboa não era menos rica, nem menos confortavel, a habitação do
millionario.

Vastos salões ricamente mobilados, equipagens de alto estylo, criadagem
insolente e ociosa, escadarias alcatifadas, bailes e ceias onde toda a
côrte concorria tão cheia de curiosidade como de gulodice, jantares aos
quaes eram convidados os ministros, os titulares, os diplomatas
estrangeiros e os funccionarios mais influentes, tudo emfim que póde dar
á vida um aspecto opulento e principesco, tudo que constitue o orgulho
supremo dos mediocres e a inveja brutal dos ambiciosos.

De resto o dono da casa era tão pouco conhecido da maioria dos
frequentadores das suas festas, que mais d'um o tomou pelo criado de si
mesmo, e lhe pediu com desdenhosa insolencia, o paletot, ou um copo de
agua.

O visconde enviuvára antes de deixar o Brazil, e os que haviam conhecido
sua mulher, não lamentavam que a pobre senhora fosse dispensada pela
Providencia de assistir á espectaculosa _mise-en-scéne_ da vida dos que
tinham sido seus.

O visconde tivera do seu matrimonio, duas filhas e dois filhos.

Na epocha em que elle maior ostentação desenvolvia, teriam as meninas
dezoito a vinte annos.

Tinham sido educadas em casa, por uma mestra franceza escolhida pelo
pae. Vestiam-se da _Aline_, quando não mandavam vir directamente de
Pariz as suas _toilettes_ extraordinarias, e sempre muito além da moda.

Usavam tudo que havia de mais excentrico. Os chapeus mais pequenos, ou
os chapeus de mais largas abas, os vestidos que deixassem vêr o pé todo,
ou os vestidos cuja cauda roçagante lembrasse um manto de rainha... de
theatro.

Havia tempos em que usavam na cabeça o cabello de uma duzia de mulheres,
e outros tempos em que appareciam de repente de cabello cortado como os
rapazes, encaracollado e de risco ao lado.

Timbravam em não se parecer com mais ninguem.

Mas não podiam eximir-se a um defeito especial que as fazia darem muito
na vista. Occupavam-se extremamente de si.

Fallavam do seu _boudoir_, das suas _toilettes_, das meias de sêda de
tres libras ou doze mil réis--as unicas que traziam--, do elegante
_edredon_ do seu leito, das finas perfumarias do seu toucador.

Isto fazia rir com riso amarello as _amigas_ mais intimas, que diante de
gente, costumavam _puxar-lhes pela lingua_.

De resto as filhas do visconde seguiam rigorosamente os preceitos e
regras da _alta-vida_.

Tinham assignatura em S. Carlos, para serem vistas, e frequentavam
assiduamente a egreja, para se parecerem com as filhas de condes
pallidas e anemicas, cujo luxo superior é a devoção e a caridade,
diluidas ambas as cousas em pequeninas praticas de todos os dias.

Sabiam conversar pouco mais ou menos sobre tudo, sendo no fundo d'uma
crassa ignorancia ácerca de todas as cousas.

Como dissemos fôra franceza a mestra que as dirigira. Dera-lhes o verniz
da educação, e mais nada.

De linguas sabiam o bastante para conversarem com os diplomatas; de
musica, para criticarem o physico das cantoras; de artes para revellarem
a cada instante a negação profunda que tinham para o bello.

Respeitavam e invejavam todas as superioridades sociaes; o dinheiro, a
fidalguia herdada ou comprada, a posição, as honras, a formosura.

Desprezavam profundamente uma só cousa: a pobreza.

Quando viam alguem pobre, pouca ou nenhuma attenção lhe prestavam; mas
se esse _alguem_ tivesse a inaudita ousadia de apresentar uma ideia, uma
opinião, um juizo, de contrarial-as, de escarnecer alguma das cousas que
ellas acima de tudo reverenciavam viam-as então revellar um pasmo
sincero, um espanto que tinha o seu quê de tragicamente ridiculo.

Um dia ouviu alguem a uma d'ellas este aphorismo extraordinario.

_Quem é pobre não tem opinião._

E tinham um modo de levantar a voz, de alçar altivamente a cabeça, de
sublinhar vigorosamente as palavras, que mais do que tudo confirmava que
ellas como pessoas que possuiam duzentos mil réis por mez, só para os
seus alfinetes, não tinham nunca imaginado sequer a possibilidade de não
terem razão.

Era uma maneira não menos auctoritaria, porém menos correcta de dizer o
que á senhora de Stael disse um dia a duqueza de la Ferté.

_Il n'y a que moi, chère amie, qui aie toujours raison._

Ahi estão pouco mais ou menos as duas filhas do visconde.

       *       *       *       *       *

O filho mais velho, que partilhara no Brazil os primeiros trabalhos e as
primeiras luctas de seu pae, adquirira com a victoria d'elle, que era
tambem sua, o mesmo ar de ingenua superioridade.

Tinham trazido do Brazil uma fortuna collossal, logo tinham o direito de
dominarem onde quer que estivessem.

Toda a gente que frequentava a casa d'elles, que lhes aturava a
impertinencia boçal, confirmava pela sua servil condescendencia esta
convicção; porque é pois que não haviam de a sentir?

O primogenito do visconde occupava-se muito, com verdadeira alegria de
seu pae, de cifras e de operações bancarias; jogava em fundos
extrangeiros, tinha a vocação mercantil pronunciadissima, e nos
intervallos que estas occupações transcendentes lhe deixavam, governava
um carro, e mandava _correr_ os seus cavallos.

Estivera em Londres, quando lá fôra deixar n'um collegio o seu irmão
mais novo, e voltara com certas aspirações a _gentleman rider_.

Fallava pouco, com ar sacudido, apressado, sentencioso.

Usava suissas e vestia d'um alfaiate inglez. Queria ser homem sério,
respeitavel, homem de pezo, e pensava n'uma candidatura como n'um
pedestal proprio para as suas attitudes.

É no meio d'esta familia admiravelmente feita para a sua epocha e para a
posição que tem, que vamos encontrar Gastão, o ultimo filho do visconde,
um phenomeno destinado a contrariar tudo que se tem dito e escripto
sobre a lei da hereditariedade.

Gastão tem vinte e um annos, é alto, delgado, d'uma constituição tão
delicada e nervosa, que ao lado de suas irmãs com o seu ar masculino e
as suas inflexões duras, elle é que parece a mulher e ellas é que
parecem os homens.

Dizem os que um dia se atreveram a chasqueal-o pelo ar timido e suave
que apparenta, que nos seus olhos azues, d'uma expressão triste e
soffredôra, passou um relampago de colera, pouco tranquilisador para os
que abusarem da sua excellente educação.

Gastão da Silveira, chegara havia pouco d'uma viagem que fizera pela
Europa, depois de concluir a sua formatura n'uma Universidade de
Inglaterra.

Da sua familia não sabia senão que era rica, e que vivia grandemente,
como elle tinha visto viver os opulentos banqueiros inglezes, nas suas
deliciosas casas dos arrabaldes da cidade, confortaveis e luxuosas.

Esta informação não lhe faltava porque seu pae, suas irmãs, seu irmão
mais velho, nunca se cançavam de lh'a repetir em todas as cartas.

Isto porém não bastava a Gastão. O que elle desejaria profundamente, era
conhecer a fundo o caracter dos seus, e o que d'esse caracter lhe
revellavam as cartas seccas e laconicas de que fallamos, teimava elle na
sua fé juvenil, em não o acceitar como prova ou como manifestação.

Tinha pelos seus amigos e condiscipulos conhecido a vida ingleza em
relação á familia, fôra convidado para passar as ferias, em casa de
ricos industriaes na companhia de alguns dos seus mais caros collegas de
estudo, e podera conceber um ideal realisavel, de paz, de conchêgo, de
conforto domestico, que anciava encontrar no seio da sua familia.

Tinham-lhe dito que seu pae ganhara pelo trabalho a grande fortuna que
possuia, e Gastão habituado a observar a actividade enorme, incansavel,
persistente, a fecunda actividade ingleza, sentira crescer o amor pelo
visconde ao saber a tenacidade com que elle trabalhara.

Intelligente, d'uma intelligencia fina e delicada, a viagem que fizera
desenvolvera-lhe o espirito, e afinara-lhe o gosto.

Voltava cheio de ideias, de factos, de noções praticas, respeitando
acima de tudo a intelligencia, e a dignidade da vida.

Como homem educado ao contacto da vida inglesa, avaliava o dinheiro mas
não como um fim, simplesmente como um meio, o mais energico e infallivel
dos meios para chegar a grandes fins.

No dia em que Gastão conheceu seu pae e seus irmãos imaginem a dolorosa
surpresa que elle sentiria.

       *       *       *       *       *

No animo do visconde e de seus filhos excitou porém o apparecimento
d'aquelle bello moço de maneiras distinctas, affavelmente dignas, de
espirito superiormente cultivado, de conhecimentos scientificos
excepcionalmente desenvolvidos, a mais agradavel das impressões.

Um irmão d'aquelles, um filho de tal maneira elegante e fino, dava-lhes
honra, dava-lhes importancia e realce. Se fosse um extranho ter-lhe-hiam
inveja, mas emfim, Gastão pertencia-lhes, era d'elles, a sua graça, a
sua superioridade, a sua distincção communicava-se-lhes, _destingia_
sobre as suas pessoas.

O visconde pensava que no fim de contas o que constituia o especial
encanto do filho, a educação, fôra elle quem a comprára muitissimo cara.

Podia orgulhar-se de Gastão diante dos extranhos mas queria dominal-o,
subordinar as opiniões d'elle ás suas, mostrar lhe bem claro, que o
adorava pelo que elle transmittia a sua vida de elegante e de superior,
mas que o considerava um objecto raro adquirido por muito bom preço, e
do qual dispunha absolutamente.

As _manas_, essas não occultaram no primeiro momento de enthusiasmo que
a posse de Gastão lhes dava muito mais _chic_ do que a posse do seu
_coupé_ novo tirado por dois cavallos inglezes _pur sang_ e cujos
arreios irreprehensiveis tinham sido louvados pelo embaixador de França.

--Ora tu verás, dizia a mais velha para a outra, que as Pimentas em
vendo Gastão ficam de _fel e vinagre_. Repara bem para a cara que ellas
fazem, sobretudo se vierem acompanhadas do _mano_, d'aquelle Leopoldo,
de olhos vesgos, de quem toda gente se ri, e que ainda não acertou a
fazer uma conta de sommar.

E exhibiam o irmão pelas salas das suas _amigas_, sob pretexto de que
não tinham quem as acompanhasse, e repetiam _em segrêdo_ a todas as
pessoas do seu conhecimento:

--Não fazem ideia! O mano Gastão é um poço de sciencia. Sabe todas as
linguas. Eu creio que elle até sabe sanskrito. O papá gastou immenso,
mas que educação que elle lhe deu!

E por aqui adiante uma ladainha em que se confundiam a _sciencia do
mano_, os _gastos_ do papá, a inveja que todos tinham d'ambos, e a
gloria que a ellas provinha da inveja, dos gastos e da sciencia.

Gastão tornara-se o luxo superior da familia.

       *       *       *       *       *

Foi por esse tempo que o visconde entendeu que era necessario casar o
filho mais novo, visto que o mais velho dissera com desdem supremo que
só se atiraria a esse abysmo do casamento, quando tivesse completado os
seus folgados quarenta annos.

--Quando Gastão casar, as pequenas poderão frequentar mais os bailes, os
saraus e os passeios.

Eu gosto de receber em casa; não me incommodo com isso, mas lá para
andar sempre pelo meio da rua é que não estou. E depois Gastão póde
fazer um casamento esplendido. Está n'esses casos por todos os motivos.

E foi resolvido em conselho de familia, que Gastão tomasse estado.

A casa do visconde das Lagôas tornou-se a _mansão de todos os prazeres_,
como o bom do homem dizia na praça aos seus amigos titulares e
merceeiros. Bailes, jantares, _petites sauteries intimes_, concertos, a
fortuna!

A _leôa_ d'estas reuniões, que os noticiaristas immortalisavam na secção
da alta elegancia mundana, chamava-se Clotilde de Magalhães. O pae
ambicionava um titulo que ainda não tinha podido alcançar _dos
governos_, mas que mediante um avultado donativo a não sei que
estabelecimento bafejado pelo favor da côrte, lhe fôra promettido para
muito breve.

O conselheiro Magalhães dissera porém ao seu amigo o visconde das
Lagôas, que essa promessa lhe não bastava, que o que elle queria e
alcançaria decerto, visto que ao dinheiro nada é impossivel, era um
titulo em duas vidas, um titulo que elle podesse transmittir a sua filha
e portanto a seu genro.

O visconde ouviu e comprehendeu.

Desde esse dia as duas familias acariciaram como uma esperança
lisongeira, o projecto de enlace entre Clotilde de Magalhães, a filha
unica d'esse conselheiro millionario, e Gastão da Silveira, o elegante
filho do visconde das Lagôas.

Clotilde tinha vinte e dous annos. Uma esplendida physionomia peninsular
illuminada por um par de olhos negros, dos que ateariam incendios ha
trinta annos no seio apaixonado dos tetricos trovadores.

Era intelligente o bastante para occultar o soberano orgulho, que lhe
esterilisava o coração.

Tudo quanto a educação das salas tem de mais requintado e precioso
possuia-o Clotilde em larga escala.

Manejava facilmente duas ou tres linguas, cantava com uma voz de
contralto quente e apaixonada as arias mais enervantes dos mestres
italianos, dançava com uma perfeição de attitudes que a tornavam celebre
nos salões, vestia-se bem, sem excentricidades e sem plebeismos de mau
gosto.

As filhas do visconde das Lagôas invejavam-na ardentemente
conhecendo-lhe a superioridade dominadora, mas fingiam adoral-a, porque
da frequencia de Clotilde em casa d'ellas, resultava grande animação
para as suas _soirées_.

Clotilde que era caridosa em certas horas, e que ostentava o capricho da
_protecção_, tinha em sua casa, como companheira, pupilla ou o que quer
que fosse, uma parenta pobre de sua fallecida mãe.

Muitas vezes a levava comsigo ás reuniões mais intimas talvez por um
refinado instincto de garridice.

Tão admiravel e triumphante era a belleza de Clotilde, como doce,
modesta, soffredora, era a apparencia de Angelina. D'este contraste que
a todos os olhos se impunha, resultavam sempre grandes alegrias de amor
proprio para a elegante herdeira.

Angelina tinha pois uma dupla missão, inteiramente passiva. Fazer
sobresahir a bondade de Clotilde e a sua formosura.

       *       *       *       *       *

Quando Clotilde conheceu mais de perto aquelle que seu pae lhe
promettera muito brevemente para esposo, comprehendeu logo, com a rara
perspicacia que a distinguia, que o que na sua pessoa havia de mais
brilhante e admirado pouca ou nenhuma influencia exerceria no coração
d'elle.

Uma noite em que a filha do conselheiro Magalhães estivera mais rodeada
de admirações lorpas e de cultos banaes, em que, ebria d'esse grosseiro
incenso das salas, ella exhibira todas as suas raras e distinctas
prendas de mulher bonita e de mulher garrida, ousou sorrindo perguntar a
Gastão, que mais d'uma vez a tinha olhado com mal disfarçada ironia:

--Não me dirá qual é o seu ideal de mulher? Vejo-o sempre tão
reservadamente cortez com todas as senhoras, que ainda não percebi o que
é preciso ser para lhe agradar.

--Meu Deus! não ha nada mais facil--respondeu o moço fictando o olhar
limpido e honesto no altivo olhar de Clotilde.--É preciso ser uma mulher
em quem ninguem repare.

--Julguei que a mediocridade o não captivava a esse ponto--volveu
Clotilde mordendo os beiços de colera.

--Mas é que não é ser mediocre ser modesta. É que a mulher que gosta de
brilhar, não sabe o que é sacrificio e abnegação, é que para mim todos
os encantos que se apreciam nas salas, não valem um bom e candido
coração que saiba amar-me e viver só para mim.

Não se póde dizer que Clotilde adorava Gastão, mas emfim a verdade é que
gostava muito d'elle. Achava-o superior, correcto, distincto, d'uma
aristocracia innata que a encantava.

Achava-o digno de si.

Não lhe sacrificaria nenhum dos seus triumphos, nenhuma das suas
vaidades, nenhum dos seus gozos, mas sacrificava-lhe com certeza todos
os seus adoradores.

Ser mulher d'elle era para ella um sonho radioso.

Discordavam, porém, em tudo, nos gostos, nas ideias, nos sentimentos, na
maneira de entenderem a vida.

Clotilde na arte preferia tudo que é brilhante e apparatoso; Gastão
amava tudo quanto é grande e dedicado. Clotilde só vivia no meio das
opulencias sociaes; Gastão tinha a ambição das alegrias intimas e
ignoradas.

Ella gostava do incenso de todas as lisonjas por mais grosseiramente
capitoso que fosse; elle mais d'uma vez dissera que achava ignobil da
parte d'uma mulher consentir que um sujeito de casaca, engravatado e
ridiculo, tivesse a audacia de lhe declarar perto do ouvido que a estava
achando formosa e cubiçavel.

--Só digo finezas ás mulheres a quem desprezo. São as unicas que nos dão
direito de lhes dizermos o que nos passa pela cabeça.

Um homem que diz cousas ternas a uma senhora, fazendo _boquinhas_ e
phrases romanticas, insulta-a d'um modo indigno.

Como é que as mulheres são tão absurdamente educadas que não percebem
isto?

Um dia perguntaram a Gastão diante de Clotilde se gostava da musica
italiana.

--Conforme! Gosto do bom que ha em todas as escolas. N'esse ponto sou
ecletico e creio que todos o deviam ser. Agora a musica italiana das
salas acho-a ridicula e pouco decente. Uma senhora a cantar arias em que
se falla de _amor_, de _paixão_, de _extasis inolvidaveis_, etc., que
diz _io t'amo_ revirando os olhos ao primeiro sujeito que passa, perdeu
o direito a que um homem serio a escolha para sua mulher.

Desde esse dia Clotilde deixou de cantar.

Gastão não percebeu o sacrificio, ou pelo menos não mostrou que o
percebera.

Era um espirito logico e recto, e tinha o defeito de se guiar na vida
pelas opiniões que professava.

       *       *       *       *       *

Dançavam todos em casa do visconde das Lagôas, e junto d'uma pequena
mesa de trabalho, no gabinete das filhas do visconde, uma figura loura e
delicadissima, inclinada sobre um album de retratos, parecia ignorada e
esquecida de toda aquella multidão que se divertia.

--Porque não dança, senhora D. Angelina? perguntou jovialmente a voz de
Gastão. Se eu lhe pedir que seja meu par, recusa-me?

--Recuso, respondeu ella docemente, e uma côr viva tingiu-lhe as faces.

Recuso por muitas razões. Em primeiro lugar é um pouco extranho dançar
quando se tem a posição que eu tenho, porque emfim eu não sou mais que
uma _dame de compagnie_, uma aia, uma governante ou como queiram
chamar-me, de casa dos meus caridosos parentes.--Ao dizer isto, talvez
involuntariamente, na voz de Angelina havia umas inflexões de amargura
resignada.

--Depois--continuou--não danço porque me faria mal. Dóe-me muito o
peito!

Gastão sentiu dentro d'alma como que a brotar subitamente, um sentimento
que lhe era desconhecido e em que havia dó, tristeza, admiração, um
enternecimento sem nome que lhe embargava a voz.

Angelina era tão delgada, tão fragil, d'uma physionomia tão
delicadamente melancolica!

Para tudo a fizera o destino, menos para combater e para luctar. A
desgraça despedaçara-a sem que ella tentasse resistir-lhe sequer.

Como seria doce protegel-a, guial-a na vida, abrigal-a no peito contra
os embates hostis da adversidade!

Era assim que Gastão havia sonhado uma adoravel e submissa mulherzinha,
com aquelle olhar largo e limpido que lembrava um lago da Suissa, com
aquelles louros cabellos ondados emmoldurando uma testa setinosa e côr
de marfim.

Trocaram mais duas ou tres palavras, e depois separaram-se de novo.
Angelina talvez ficasse a scismar, que nunca mais teria occasião de ver
postos nos seus uns olhos onde se lesse tão doce e tão honesta
sympathia.

       *       *       *       *       *

O visconde das Lagôas convidou a familia do conselheiro para estar um
mez na sua quinta do Alto Minho.

Angelina acompanhou naturalmente a sua gentil parenta e protectora.

No campo estabelecem-se facilmente intimidades que na cidade parecem
inconvenientes e impossiveis.

Gastão entre aquellas duas bellas creaturas, d'uma belleza tão diversa
como diversos eram os caracteres, poude apreciar e aquilatar a alma e o
coração de ambas.

Durante um mez Clotilde foi a rainha acclamada e triumphante do solar
provinciano povoado de numerosos hospedes que alternadamente chegavam,
ou partiam.

Era ella quem organisava as festas, quem dirigia as partidas, quem
inventava as distrações e os jogos. Activa, intelligente, soberanamente
caprichosa, ser dominada por ella constituia uma seducção. Emquanto
assim era o centro da animação festiva que se notava na opulenta casa do
visconde, Clotilde empregava para captivar Gastão todos os seus
artificios de sereia.

Envolvia-o no magnetismo irresistivel dos seus sorrisos mysteriosos, do
seu espirito acerado e mordaz, da sua graça magestosa e altiva.

Punha aos pés d'elle todas as homenagens de que era objecto.

Ás vezes á noite, sentava-se á meza com o desleixo creoulo que sabia
fingir, e punha-se a desenhar, com uma _verve_ comica imcomparavel, as
caricaturas dos galans suspirosos que a cercavam. Depois, conscia de que
a sua mão valia um milhão, e sem attender aos desesperos que excitava,
offerecia a Gastão os desenhos com um gesto ironico e submisso de que só
ella possuia o segredo encantador.

Os serões animava-os com a sua presença, com a sua voz, com a sua
mestria musical, com os seus conhecimentos variados adquiridos nas
viagens e nas leituras.

Angelina voluntariamente occulta no canto mais escuro da sala, assistia
a todo este jogo brilhantissimo com a silenciosa resignação de quem se
sente para sempre expulsa de todos os prazeres da vida.

Nem sequer percebia que era para o lugar em que ella trabalhava, que os
olhos de Gastão se dirigiam constantemente, e que elle tão desdenhoso e
tão ironico para com as outras, lhe fallava sempre timidamente,
respeitosamente, como os devotos fallam com o seu Deus, como as mães
fallam com os seus filhos doentes.

Houve um dia em que uma resposta quasi insolente de Clotilde a fez
padecer muito.

Arrazaram-se-lhe os olhos de lagrimas, levantou-se e foi encostar-se á
varanda toda enredada de trepadeiras que dava sobre o jardim.

Não percebeu que a crueldade de Clotilde significava um despeito, um
ciume, talvez uma agonia profunda de amor proprio! Pensou sómente que a
herdeira rica e poderosa insultava diante da sua familia, diante do seu
noivo, a orphã desamparada, e chamou baixinho por sua mãe, pedindo lhe
que a levasse comsigo para o ceu.

Então uma voz grave, sonora e viril, a voz d'um homem de coração e de
coragem, murmurou perto d'ella:

--Quer ser minha mulher, Angelina? Ha muitos dias que tenho vontade de
fazer-lhe esta pergunta e não me atrevia!

É que se me recusar, juro-lhe que me dá um desgosto muito grande! Não
faz idéa! Parece-me que a conheço desde que nasci, que nunca vi outra
mulher, que nunca achei possivel ter outra esposa... Talvez não creia...
mas olhe... hei de fazel-a muito feliz... hei de amal-a com uma devoção
tão profunda...

Angelina não o deixou concluir. Tapou-lhe a bocca com uma das suas mãos
diaphanas, e pallida, a tremer, deixou-lhe cahir a cabeça sobre o peito
a soluçar..............................

       *       *       *       *       *

A familia de Gastão quando o moço lhe participou a resolução definitiva
que adoptára, repelliu-o do seu gremio illustre com o mais indignado
espanto.

Aquelle mesquinho enlace que vinha destruir tantas esperanças pomposas,
era para todos uma vergonha.

O visconde, as duas manas, o irmão mais velho, o conselheiro Magalhães,
tudo se revoltára contra o que chamavam o _romantismo_ de Gastão.

Só uma pessoa o acceitou sem colera e sem protestos.

Foi Clotilde.

Quiz ella propria conduzir á egreja a sua juvenil protegida, e até á
ultima hora teve para com ella e para com o homem a quem um dia no
intimo do coração chamára--o seu noivo--uma attitude irreprehensivel de
serena dignidade.

Gastão e Angelina vivem n'uma deliciosa casinha em Buenos-Ayres, onde ha
dias os visitei.

Elle alcançou uma excellente collocação n'uma casa bancaria; ella tem o
singular segredo de ser economica com elegancia e laboriosa com gentil
dignidade.

São ambos felizes como dois leaes corações que se estremecem e se
entendem.

No seu gabinete confortavel e artisticamente arranjado pelas mãos de
Angelina, quantas vezes á noite no tranquillo recolhimento do serão
commum, os dois noivos não lamentam a sorte dos seus parentes
millionarios!

Clotilde não casou ainda nem casará talvez.

Apparece em todas as festas, em todos os bailes, em todos os theatros,
sempre com o seu eterno sorriso mordaz nos labios empallidecidos.

Ha porém quem julgue lêr na sua bella physionomia altiva, uns toques de
intraduzivel soffrimento.



O ROMANCE DE ADELINA

(FRAGMENTOS DE CARTAS)


Meu pae, minha mãe, as pessoas que me cercam dizem-me continuamente que
a vida é triste, que o dever tem sempre um aspecto difficil, que as
chiméras da nossa imaginação nunca chegam a realizar-se...

Eu ouço-os, mas affirmo-te que não estou nada convencida.

Supponho ás vezes que vejo a existencia pelo avesso, que tenho um modo
muito extravagante de comprehender as cousas.

Ouço por exemplo chamar _romanescas_ a todas as mulheres loucas ou
desgraçadas.

Ás que deixam seus maridos para seguir um sujeito de bigode e collete
branco que lhes recitou versos ao piano entre dois candelabros; ás que
andam toda a vida á procura de um _ideal_ que ora encontram ora deixam,
percebendo que se enganaram; ás que usam olheiras e cabellos cahidos, e
fallam do seu _desespero_ inconsolado entre uma quadrilha e uma valsa.

Para mim essas mulheres são tudo menos romanescas.

Sabes ao que eu chamo romantismo?

A uma aspiração delicada, a tudo que é bello e bom. A um desejo ardente
de perfeição que se não satisfaz facilmente. A uma tendencia para
idealisar os deveres e os sentimentos.

Crê, minha boa Thereza, que não ha ninguem mais romantica do que eu!

Chego ás vezes a ter medo de que isto seja um pendor funesto que me
arraste a algum desvario.

No outro dia casou aqui uma prima minha.

É uma galante rapariga, bem educada e intelligente.

Encontrou o noivo uma duzia de vezes, elle pediu-lhe licença para
confessar aos paes que a amava muito.

D'alli a dous mezes, concluidos os preparativos, casaram-se.

Não se conhecem nada, mas como as fortunas, as idades, e as posições
dos paes estavam em harmonia, concluiram que se haviam de dar
optimamente.

Aquelle casamento que agradou a toda a gente, consternou-me a mim.

O meu casamento ha de ser o unico romance da minha vida, mas affirmo-te
que o quero bem longo, bem completo. Quero que as suas paginas luminosas
lidas uma vez me dourem de mysteriosa claridade todo o futuro. Quero
amar o meu noivo para adorar eternamente o meu marido.

Dizem que o dever é sempre custoso de cumprir.

Conforme!

Eu tenho dezoito annos, e nunca até hoje liguei á ideia do dever uma
ideia que não fosse de satisfação intima.

Sou tão feliz em amar meus paes, em soccorrer os desgraçados, em
cultivar o meu espirito, em sacrificar os meus prazeres aos prazeres de
alguem!

O sacrificio seja elle de que genero fôr, parece-me uma dôr suave, uma
sensação de pungitiva delicia, que nos eleva e nos engrandece.

Só os que sabem sacrificar-se affirmam a sua superioridade.

Tenho medo de ser criminosamente aristocrata.

Parece-me que assim como as pessoas bem educadas nunca se deixam
avassallar pela gula, pela violencia dos appetites grosseiros, assim as
almas finas não devem entregar-se a uma ambição desregrada de prazeres.

Soffrer é uma condição humana, mas ha soffrimentos que são a mais
requintada das doçuras.

Ás vezes olho para minha mãe e lembro-me que se pudesse trocar a minha
robustez pela sua debil saude, a minha cabelleira densa e loura pelos
seus lindos cabellos brancos, a minha alegria exhuberante pelo seu
sorriso meigo e soffredor, conheceria um gráo de felicidade mais puro,
mais alto do que todos os gozos que até agora experimentei.

E no emtanto ao dar-lhe a minha mocidade, ao receber em troca a sua
velhice, de certo que sentiria infinitas saudades!

Não se renuncia friamente a todas as esperanças do futuro!

Seria, porém, uma das taes dôres que eu amo, uma d'aquellas tristezas
divinas que fazem bem á alma e como que a depuram das imperfeições da
terra.

Será isto romantismo, Theresa?

       *       *       *       *       *

Andam commigo agora de baile em baile, de _soirée_ em jantar.

Imaginam que me enganam, os queridos velhinhos!

Elles que gostam tanto do cantinho do fogão, onde conversam, e se
recordam de tudo que passou, fingem um subito e inexplicavel desejo de
distrações mundanas.

Eu sigo-os com um sorriso malicioso que ás vezes os assusta.

Sabes as minhas ideias, não é verdade?

Que garantias de futuro me daria a mim um marido apanhado a laço á luz
dos lustres dourados, em uma sala de baile frivola e banal?

Não é ahi que eu encontrarei de certo o noivo da minha alma!

Porque é que se não poderá alliar a poesia do coração com os deveres da
realidade? Não entendo isto!

Pois só serão deliciosos os amores vedados?

A mim parece-me que a vida com o seu cortejo de dores, de deveres, de
sacrificios, de affectos, a vida com a sua manhã purpurea e gorgeada,
com o seu meio dia luminoso em que rompe em ondas crystallinas a musica
triumphante dos vinte annos, com a sua tarde melancolica d'uma doçura
indefinida e dubia, com a sua noite emfim, noite estrellada e calma, em
que esmorecem e expiram todos os rumores da terra, é como que um poema
completo, uma symphonia em que ha todas as notas, todos os tons, todas
as expressões.

Os que amaldiçoam a vida, ou querem fugir das suas commoções naturaes,
procurando n'um meio artificial, n'uma atmosphera de estufa outros
gozos, outros prazeres, outras angustias, são esses que não entendem a
opulencia harmoniosa da criação!

Ser filha, e noiva e esposa e mãe! onde acharemos estados da alma mais
completos que aquelles que resultam naturalmente d'estes modos de ser?

Aqui ha tudo! Alegrias, dôres, sobre-saltos, esperanças, sonhos,
arrebatamentos, extasis ineffaveis!

Não proscrevamos o romance da vida, pelo contrario identifiquemol-o com
a vida!

Ponhamos no nosso modo de sentir a maior porção de ideal, a que sejamos
accessiveis.

Pensar que o dever só póde comprehender-se _terra a terra_ é amesquinhar
e rebaixar o dever!

A paixão não precisa de ser criminosa para nos dar gozos supremos; creio
mesmo que é o crime que a torna amarga aos labios e dolorosa ao coração!

       *       *       *       *       *

Perguntavas-me no outro dia maliciosamente se eu faço a minha leitura
predilecta da _Moral em acção_.

Não faço.

Se ha cousa que eu acho desmoralisador é um tratado de moral _chaufé à
froid_.

Sabes quem são os meus mestres do bom e do bello? São Beethoven, Mozart,
Hayden, os meus queridos e nobres artistas.

Cada dia me deixo levar mais apaixonadamente por este amor da musica que
me consola, e me levanta e por assim dizer me realiza todos os sonhos
ambiciosos da minha alma.

Presinto que se chegar na vida para mim uma hora sombria em que veja por
terra os meus idolos, a musica me ha de consolar de tudo!

Ha pessoas que choram com a musica. Foge sempre da musica que faz
chorar. É enervante, é perigosa e traiçoeira.

Mozart e Beethoven não enfraquecem, fortificam. Dão-nos á alma como um
grande banho de ar puro.

Fazem-nos subir ás alturas immaculadas e de lá ver tudo que é pequeno,
ephemero, transitorio aos nossos pés.

Ó Beethoven, se eu alguma vez fôr trahida envolve-me nas tuas azas de
luz!

       *       *       *       *       *

Não te disse eu que o meu romance existia algures, n'um mysterioso
recanto onde eu ainda não déra com elle?

Não me enganei.

Existe.

Tem vinte e cinco annos, ha muita gente que diz que elle é feio. Eu
acho-o simplesmente adoravel.

Tem uns bellos olhos escuros que a paixão illumina, de que a ironia faz
chispar faiscas sombrias, e que em horas de embevecimento e de ternura
tem segredos doces de uma bondade ineffavel! Tem uma testa larga e
pensativa, e uma boca desdenhosa como se o sarcasmo a houvesse
affeiçoado.

Acham-lhe innumeros defeitos, eu acho-lhe sómente alguns.

Mas é para aquelles que a vida endureceu e azedou, que as almas moças
devem abrir os mananciaes da sua fé.

Hontem disse-me, depois de me ter ouvido tocar piano durante tres horas,
que eu lhe fizera tanto bem, que se esquecia por amor de mim do mal que
todos os outros lhe tinham feito.

Estas palavras que em outra boca seriam uma banalidade, na boca d'elle
pareceram-me um juramento que vinculava para sempre as nossas duas
vidas.

       *       *       *       *       *

Tres annos de silencio! Como é que tu has de perdoar-me, Thereza!

Mas se eu te disser uma cousa, só uma cousa, perdôas-me de certo.

Sou muito infeliz.

Quiz talvez realizar o impossivel, quiz achar no amor de meu marido o
conjuncto de todos os amores de que eu me sentia capaz.

Fiz tudo para conservar a felicidade, e a felicidade fugiu-me.

_Elle_ vê em mim um pezo, uma prisão, talvez que um grande
desapontamento.

Nunca me queixo. Para que?

A gente não deve queixar se, porque é uma humilhação escusada e inutil.

Procuro convencer-me de que na vida de todas as mulheres ha d'estes
cilicios occultos que ellas supportam ageitando nos labios um sorriso
heroico.

Não renego nenhuma das minhas ideias. O dever consola, o dever compensa.

Não comprehendo que, porque um faltou ao contrato ideal que fez com a
consciencia, o outro deva faltar tambem.

Emquanto _elle_ me quizer junto de si, hei de dar-lhe toda a minha vida,
feliz d'este sacrificio sem paga.

Illudi-me porque lhe quiz muito, e perdôo-lhe por que me illudi.

       *       *       *       *       *

Hontem, minha mãe, a pobre velhinha que succumbe ás agonias da sua
recente viuvez, dizia-me diante do berço de meu filho desamparado, do
meu orphãozinho, cujo pae vive ainda:--Acabou-se tudo! Naufragámos todos
tres!

Pelo contrario! Agora é que tudo começa!

Não imaginas a coragem e a energia que eu sinto em mim!

Sou eu, minha mãe e meu filho.

Uma quasi que perdeu a consciencia, o outro não a tem ainda. Sou eu que
preciso pensar e trabalhar por todos tres.

Na grande desgraça que me feriu, a ideia de que sou necessaria, de que
me tornei indispensavel aos entes a quem mais quero, inoculou-me no
espirito dilacerado uma força superior.

Mas como foi que tudo isto succedeu? perguntas tu cheia de pasmo.

Não sei! Uma mulher que passou, uma artista que tinha em talento o que
lhe faltava em coração e que o levou atrás de si, satelite desprezivel,
de um astro cahido.

Não tenho saudades d'elle, crê que não tenho.

O homem que eu amei era uma nobre e digna creatura, incapaz de transigir
com a honra, e de submetter-se á tyrannia dos appetites brutaes.

Tinha defeitos, era violento, apaixonado, irascivel, mas era honesto.

Esse homem morreu, ou não existiu nunca.

O que fugiu não se parecia com elle.

Quando estou só, estremeço ás vezes com um asco intraduzivel de mim
propria.

Quem é que se consola das maculas de um tal amor?

Não te disse eu, que se tudo me faltasse, os meus velhos mestres, os
meus amigos, as almas sonoras e transparentes que sabem traduzir em sons
tudo que ha de bello na natureza, as côres, os perfumes, as linhas, o
mundo da materia e o mundo do espirito; não te disse eu que elles me
consolariam e me haviam de amparar?!

Chegou o momento supremo.

Chamei os e não faltaram ao meu apello.

Mostrei-lhes o meu coração partido, o meu orgulho machucado, as minhas
illusões desfeitas e disse-lhes: Consolai-me! Mostrei-lhes o meu filho
pequenino, e a minha mãe decrepita, e disse-lhes: dae-lhes pão!

E ouviram-me as almas adoraveis!

Sinto em mim a virilidade augusta dos fortes.

       *       *       *       *       *

O meu Arthur tem hoje quinze annos.

É um formoso adolescente, louro e timido como uma virgem.

Vivemos eu e elle n'uma casinha de um bairro tranquillo e retirado.

De dia elle frequenta o lyceu, e eu dou as minhas lições de musica, á
noite lemos, conversamos e tocamos juntos.

Todos os annos, n'um dia certo, fazemos uma romagem piedosa.

Vamos visitar ao cemiterio o tumulo de pedra, pobre e modesto, onde
dorme o seu tranquillo somno a minha querida mãe.

Foram serenos e doces os ultimos dias que ella viveu na terra.

Ajudou a crear o meu Arthur, que era tão endiabrado e travesso como hoje
é tranquillo e scismador!

Eu sahia de casa muito cedo, e deixava-os a ambos juntos a papaguearem
alegremente, porque não ha nada que illumine a tristeza dos velhos como
a alegria dos netos.

Ao principio era-me doloroso aquelle monotono trabalho de ensinar os
principios de musica, mas quando vi desenvolver-se em casa o conforto
devido aos meus pertinazes esforços, cobrei nova coragem e alentos
novos.

Sahia com mais animo e voltava com mais alegria.

Em mim faziam-se dous trabalhos: Procurava afazer-me á minha nova
existencia e apagar da memoria o meu passado enganoso.

Tivera o meu romance, e o romance deixára-me na boca o travor amargo das
cousas insalubres!

Em todo o caso nunca me arrependi de ter aspirado a saciar a minha sêde
de ideal nas fontes puras do coração.

Era mais feliz na minha infelicidade que os outros nas suas alegrias!

A minha vida de professora, fazendo-me penetrar em muitas casas
diversas, deu-me ensejo para conhecer melhor o mundo.

Encontrei muita gente alegre e satisfeita que me causou profundo dó.

Marido e mulher separados pelas ideias moraes, pelas crenças religiosas,
pelas occupações, pelas indoles diversas, pelo modo antithectico de
encarar as cousas; unidos sómente por um laço, o habito; por uma força,
as conveniencias sociaes.

Oh! antes o meu desamparo, antes o abandono em que eu fiquei na flôr da
vida!

Conheci muitas mulheres que procuravam no turbilhão mundano consolação
para intimas tristezas; outras, que me confessaram chorando, que a
ingratidão e a inconstancia do marido as arrastára á perdição, ao
desprezo de si proprias.

Não as repelli, porque não tinha direito para ser implacavel;
lamentei-as, não porque as achasse dignas de lastima, mas porque me
pareciam dignas de desdem!

Como se o crime posterior da mulher não fosse a justificação do crime
anterior do marido!

Ser boa e digna e virtuosa, quando tudo nos ajuda a isso, grande
milagre!

Na solidão, no abandono, na injustiça do mundo, é que a honestidade da
mulher se acrisola!

Se meu marido não houvesse fugido de mim, deixando-me nos braços uma
creancinha de mezes, como poderia eu conhecer as luctas da vida e ter
sahido triumphante das provações da desgraça?

Não imaginas, querida amiga, como hoje é doce e tranquillo o meu
outomno!

Em primeiro lugar o querido anjo que eu eduquei sósinha, depois a
musica, as flôres e os bons livros. Falta-me a minha mãe querida, mas
essa morreu abençoando-me!

Ao domingo, quando eu e Arthur nos achamos bem sós, no nosso pequeno
gabinete de trabalho, chego a conceber a beatitude do paraizo.

Sento-me ao piano e toco, toco até me sentir sem forças.

Converso longamente com os amigos da minha mocidade, com os que me
vestiram a alma da crystallina armadura que resistiu a todos os
attrictos da miseria humana.

Conto-lhes as luminosas aspirações da minha adolescencia, a ideia que eu
fazia da abnegação, do amor, do sacrificio; e os esforços que empreguei
para me cingir sempre a essa ideia levantada e superior.

Conto-lhes o bello instante radioso em que na minha vida desabrochou a
flôr mysteriosa que elles me haviam ensinado a julgar o premio mais dôce
de um coração cheio de fé. E com que extremos eu cultivei essa flôr que
um dia se desfez em cinzas nas minhas tremulas mãos! E como a doce
illusão de a possuir me fizera melhor!

Depois conto-lhes a tempestade que subitamente fez sobre mim a sua
explosão sinistra, e o meu desamparo e a minha dôr fulminadora, e a
vacillação tremenda em que eu vi tudo que julgara immutavel prestes a
desabar, deixando-me só ruinas!

Foi então que o amor d'elles me salvou, foi então que as suas vozes
divinas me chamaram, e que, na esphera elevada em que elles moram, eu
me senti penetrar da calmaria adormecedora de todas as paixões ruins!

No outro dia, depois de tocar duas horas, esquecida de tudo, procurei
meu filho e achei-o de joelhos ao pé de mim.

Tinha a gentil cabeça loura mergulhada nos meus vestidos, e, quando
levantou os olhos cheios de lagrimas, disse-me com uma voz em que se
fundiam todas as musicas:

--Ó mãe, Deus te abençôe, porque foste ultrajada e trahida, e eu posso
amar-te e respeitar-te.



A CIGANA


Quando o gageiro gritou do alto das vergas--terra!--toda a gente que
vinha a bordo da galera _Terrivel_ sentiu uma grande e indefinida
alegria.

Subiram uns para o tombadilho, outros deixaram-se ficar no convez, e os
passageiros da prôa, os mais pobres, encarapitaram-se na amurada;
começaram todos a olhar com uma anciedade febril para a facha escura que
a pouco e pouco avultava no horizonte.

A viagem tinha sido longa; a galera levára cincoenta dias a chegar do
Rio de Janeiro.

Mas, todas essas penas, todo esse aborrecimento que assaltam o viajante
que durante dias e dias não vê mais que o céo e o mar, desapparecem
como que por encanto ante essa palavra magica, solta pelo
gageiro--terra!

Os passageiros eram, na maior parte, gente de baixa condição e de
ambições modestas: tinham sido no Brazil carroceiros, feitores de roça,
carpinteiros e pedreiros.

Vinham com pouco dinheiro, mas traziam grande abundancia de saudades;
tinham soffrido, padecido longe da patria, mas como ella os ia compensar
de todas essas amarguras!

A alegria bailava em todos os olhos.

Ah! o capitão Navarro, apezar de ter feito aquella viagem cincoenta
vezes, tambem vinha contente e esfregava as mãos, tomado de um jubilo
desmedido.

Quando o piloto se correspondia com o castello da barra, o capitão
impaciente, mas sem perder o seu aspecto risonho e benevolo, perguntava:

--Deixam-nos ou não nos deixam entrar a barra?

--Estão-me agora a perguntar se morreu alguem a bordo.

--Ora essa! Morto estou eu por me vêr em Massarellos. Querem vêr que
ainda temos que ir dar com os ossos em Vigo? Com mil bombas! Era o que
me faltava agora!

Mas não aconteceu o que o capitão receiava: do castello fizeram signal
que a galera podia entrar, e foi com uma voz vibrante de enthusiasmo e
de um prazer intenso que o capitão commandou a manobra.

A galera como um cavallo que obedece facilmente á pericia de um optimo
cavalleiro, proejou a barra em meio das exclamações dos impacientes e
saudosos passageiros.

       *       *       *       *       *

A galera fundeou defronte de Massarellos.

No dia seguinte, já não havia alli senão parte da tripulação e um ou
outro marinheiro que não tinha familia e que olhava para o cáes com
repugnancia e com desdem.

As capoeiras em redor do tombadilho estavam despovoadas, a roda do leme
reluzia ao sol, parada, sem movimento, as tampas enceradas da meia
laranja abriam-se como as azas de uma enorme borboleta em repouso, e as
mangueiras de linho cheias, retezadas, levavam o ar á camara e ao porão.

Um bello dia de agosto!

O capitão Navarro assistia ao descarregar sentado em uma barrica de
farinha de mandioca; o contra-mestre no portaló olhava mais lentamente
para o Douro como quem procura enxergar uma cousa desejada e cubiçada.

--Ainda nada? perguntou o capitão.

--Admira, capitão! Das outras veses pouco se deixa esperar essa visita.

E com a mão em quebra-luz continuava a observar o movimento dos botes e
das catraias.

De repente, a _Cigana_, uma cadella de fila que era o idolo de toda a
tripulação do navio, deu um salto, subiu as escadas do portaló, e
alongando o pescoço, meneou festivamente a cauda e ladrou de contente...

Era um latir alegre e de boa feição, o latir que ouvimos aos cães das
nossas casas, quando recolhemos depois de longa ausencia.

--Espera! disse o contra-mestre, a _Cigana_ tem faro. Ahi vem a sua
gente, capitão!

Navarro ergueu-se, olhou e viu um barco que, á força de remos, se
dirigia para a galera.

--Até que emfim! disse o capitão, e desceu cheio de contentamento as
escadas do portaló...

A cadella, vendo descer o dono, acompanhou-o e saltou ao mesmo tempo que
elle para o interior do barco.

O contra-mestre olhava de cima aquelle quadro e murmurava entre alegre e
melancolico:

--Parece que é bom ter familia e ter uma pequerrucha bonita como a do
capitão que nos venha dar um abraço quando vimos de longe...

--Assim será, meu contra-mestre, mas quando essa filha vem de luto,
devendo vir vestida de côres alegres; quando ella nos vem dizer com a
voz abafada em lagrimas e soluços--a mamã morreu!--não me parece que
seja muito para invejar, meu rude celibatario, que não tens outro
affecto senão pela tua galera e pelo mar, a quem confiaste a tua
mocidade e a quem confiarás um dia o repouso do teu corpo!

       *       *       *       *       *

De sorte que aquelle momento tão appetecido pelo capitão foi-lhe
amargurado pela noticia da morte da mulher que elle extremecia devéras.

Eram quatro os affectos do capitão: a mulher, a filha, a _Cigana_ e a
sua bonita e garbosa galera.

O primeiro affecto desapparecêra, restavam-lhe ainda os tres; não tinha
muito que se queixar do destino: a galera ali estava capaz ainda de
arrostar com sessenta viagens, a filha dependurava-se-lhe do peito amplo
e largo, cheia de viço e de adoravel meiguice, e aos pés de ambos,
rojava-se latindo baixo a _Cigana_, acariciando-os com os olhos onde
havia o indefinido das vagas, e como que um lampejo humedecido de uma
ternura doce e humana.

A filha de Navarro, depois de haver chorado no seio do pae, abaixou-se e
passou a mão pela cabeça da cadella.

--Quando partir de novo, papá, deixe-me a _Cigana_, sim? A mamã era tão
amiga d'ella!

A _Cigana_, parecendo comprehender aquellas palavras, endireitou-se, e
pousando as patas no collo da menina, beijou-lhe carinhosamente as
mãos...

Quando Navarro chegava do Brazil e ia passar algum tempo a Lessa com a
familia, levava sempre em sua companhia o seu querido animal! Imagine-se
como este seria amimado, festejado e cheio de affagos quando souberam
que uma vez no alto mar...

       *       *       *       *       *

Não sei quantas milhas devorava n'esse momento a galera.

Era meio-dia, fazia um sol de rachar, os marinheiros á prôa comiam o
rancho, e na tolda não estava senão o capitão, a _Cigana_, e o homem do
leme.

O piloto fôra buscar ao seu beliche um mappa que o capitão lhe pedira, e
demorara-se mais que o tempo necessario. Navarro ergueu-se do banco de
vime e encostou se ás grades da ré.

Como foi aquillo? Vertigem? Congestão cerebral?

Foi elle encostar-se á grade, estar alli cousa de dous ou tres minutos,
e de subito borcar-se-lhe o corpo nas ondas...

O homem do leme viu aquillo, e afflictivamente exclamou:

--Jesus! acudam!

E quando os passageiros correram ao tombadilho e a tripulação veiu saber
o que succedera, o piloto, pallido e assustado, mandou colher todo o
pano; podia vêr-se ao longe em meio das aguas, que faiscavam e
transluziam os raios do sol, um ponto negro e que pouco a pouco parecia
affastar-se, affastar-se...

Os dous escaleres da ré foram descidos ao mar, e dentro d'elles os mais
robustos dos tripulantes.

--A modo que elle não estava bom! disse o homem do leme. Que eu só
reparei n'elle quando o vi no ar...

--Deitem-lhe a boia! gritou o contra-mestre.

N'aquelle momento de anciedade, procurou-se a boia e não se encontrou.

O contra-mestre estava desesperado, as pragas mais violentas sahiam-lhe
em borbotões por entre os dentes, que apertavam estreitamente o tubo
fumoso do cachimbo.

O navio afrouxára a sua marcha, comtudo os escaleres ainda iam bastante
longe do ponto negro que todos julgavam ser o capitão.

--Lá bom nadador é elle, dizia o contra-mestre, mas se ha tubarões
assim! e reunia os dedos em pinha.

Estendia os braços, dependurava-se da grade da pôpa, e com gestos
anciosos tentava animar os marinheiros dos escaleres.

--Força, rapazes!

No rosto de todos os passageiros lia-se um grande terror e uma pena
profunda.

Era impossivel escapar. O capitão apesar de bom nadador já estava velho
e cançado, depois os tubarões...

Os marinheiros contavam casos horrendos que haviam presenciado, e em que
figuravam esses assanhados tigres do mar.

--Valha-nos o senhor de Mattosinhos! conclamavam n'um grito lancinante
aquelles homens, que tantas vezes tinham luctado heroicamente contra as
colericas sanhas da tempestade, e que adoravam o bondoso velho, o seu
capitão.

O ponto negro ia-se distinguindo mais nitidamente: ás vezes
afundava-se, outras vezes immergia-se; e emquanto os escaleres voavam, o
contra-mestre continuava a gritar, posto que as suas vozes já não
pudessem ser ouvidas pelos que iam em salvamento de Navarro.

Quando o vulto vinha a distancia de uma milha o contra-mestre exclamou,
affirmando a vista:

--Ou eu me engano, ou o capitão não vem sósinho... esperem! é a _Cigana_
que traz a reboque o patrão!...

Era a _Cigana_ effectivamente. Quando o velho cahira ao mar, o animal
atirara-se logo atrás, e mergulhando conseguira apertar nos dentes as
roupas do capitão, e desde esse instante nunca mais o largára.

Quando os escaleres se aproximaram dos dous, a pobre _Cigana_ estava
quasi exhausta e sem forças.

Arrancaram-lhe a custo da boca o seu querido fardo e ella continuou a
nadar frouxamente sem poder resistir ás ondas que a levavam de chofre de
encontro aos escaleres.

Quiz subir, galgar a borda de um dos escaleres, e não pôde, resvalou na
agua, ganindo dolorosamente, sendo preciso que um dos marinheiros a
empolgasse com força, arrebatando-a assim á morte inevitavel.

Da galera, applaudiram a acção da _Cigana_, e quando ella e o capitão
chegaram, não sei bem qual dos dous foi mais abraçado.

--Bravo, _Cigana_! exclamou o contra-mestre, não ha homem que te valha.
Dá cá um abraço!

O capitão foi levado por dous marinheiros para a sua camara, emquanto a
_Cigana_, resfolegando alto, com os olhos embaciados, o corpo escorrendo
agua e todo tremulo, tentava arrastar-se para onde lhe levavam o dono.

       *       *       *       *       *

Ora, aqui está porque a _Cigana_ era tão querida e estimada na pequena e
alegre casa do capitão em Lessa, e aqui está a razão por que a filha do
velho e bondoso Navarro lhe pedia com tão amavel meiguice que deixasse
ficar a _Cigana_ quando para a outra vez tivesse de fazer viagem.

Quando a galera _Terrivel_ partiu, não levava a seu bordo nem o capitão
nem a _Cigana_. Porque?

Se o leitor é pae diga-me, se no caso do capitão Navarro, teria forças
de fazer-se ao largo e deixar sósinha uma filha de quinze annos,
graciosa e encantadora.

Não tinha forças para tal, acreditamos.

Ao capitão succedeu o mesmo. Despediu-se dos seus companheiros, chorou
quando viu pela primeira vez a _Terrivel_ fazer-se de vela sem elle, mas
ficou em terra.

Tinha saudades, isso tinha, do mar, da solidão magestosa das aguas, da
melancolia das horas da calma, das tempestades que, de quando em quando,
o visitavam, mas fitava os olhos azues da filha e bebia n'elles
consolações que lhe amorteciam essas maguas.

Ás vezes, sahia de casa acompanhado pela _Cigana_, e ficava-se á beira
do mar, observando os navios que passavam a distancia, absorvendo a
plenos pulmões o saudavel ar maritimo, regalava-se conversando com os
pescadores e com os embarcadiços, e n'essas tardes recolhia mais alegre
e com o corpo mais direito e rejuvenescido.

Outras vezes, ia n'um bote pelo amenissimo rio Lessa acima, e n'essas
excursões levava quasi sempre a sua querida Luiza, e quasi sempre
n'esses passeios em que elle contava á filha as peripecias de toda a sua
vida trabalhosa, encontrava-se com outro bote em que ia ao leme um moço
de vinte annos, elegante e galhardo que o comprimentava respeitosamente.

Á terceira vez que aquelle encontro se deu, o velho disse á filha:

--Não sei se conheço aquelle moço? É o filho unico de um meu antigo
companheiro. O pae está rico, está. Eu tambem por aquelle preço podia
estar como elle ou melhor. Que se elle tem muito de seu, a mim m'o deve.
Joaquim Antonio Ferreira, que depois foi feito Conde da Guaratiba, bem
queria que eu fosse capitão de uma sua barca, recusei, porém, sempre, e
apresentei-lhe um dia Gouvêa, o pae d'esse rapaz, que afinal de contas
depois de seis ou sete viagens felizes á Africa, deixa a vida do mar e
foi um dos que mais lotes de escravos levava aos armazens de Vallongo...
Ser rico á custa de tantas lagrimas não era para o filho de meu pae...

E aqui entrava o capitão a contar a Luiza cousas da sua mocidade, e
absorvido n'essas recordações não reparava que a filha seguia com a
vista anciosa o barco em que ia o herdeiro do millionario Gouvêa.

       *       *       *       *       *

Luiza amava, e amava com o primeiro e grande affecto de quinze annos.

Segregada das moças da sua idade, não tinha a quem confiar tantos e tão
amantissimos segredos: embriagada por aquelle amor, deixava-se ir
deliciosamente pela correnteza, sem medo de encontrar um dia a voragem
que a tragasse, o abysmo em que se lhe afundasse a honra e a vida.

Nunca tinha fallado ao noivo da sua alma; via-o de longe, ora passar a
cavallo pela rua em que morava, ora no rio quando o pae a levava aos
costumados passeios.

Conhecia-o pelas cartas, que lia, relia e decorava, e a todas ellas
respondêra, menos á ultima cujo conteudo a trazia surpreza, enlevada,
vibrante...

O não responder a essa carta era como que um assentimento a um pedido
que n'ella se fazia.

O velho capitão n'essa noite pedira á filha que lhe lesse uns livros de
viagem. Luiza lia perfeitamente, com uma entoação harmoniosissima, e
dando com a voz um relevo maravilhoso á narrativa. O capitão, com o
corpo reclinado na poltrona, o cachimbo apertado nos dentes, e a cabeça
da _Cigana_ nos joelhos, sorria na plena beatitude de um goso
indefinido. De vez em quando, accordava d'aquella deliciosa somnolencia
e emendava as incoherencias e os enganos do escriptor.

--Nada, nada, isso não é assim. Venham cá dizer-m'o a mim, que passei
por esse ponto mais de trinta vezes...

Ás dez horas serviu-se o chá, a _Cigana_ foi levada para o quintal, e
Luiza acompanhou o pae até ao limiar do quarto.

--Deus te abençôe, minha filha, disse o velho ao despedir-se, e beijou
Luiza na testa.

--Hoje tenho pouco somno, papá, fico ainda a lêr um bocadito na sala, se
o papá quizer alguma cousa chame-me, sim? Vou acabar de lêr este livro,
acho-o muito bonito. Gosto tanto da vida do mar!

--Filho de peixe sabe nadar, volveu o capitão sorrindo com o divino
sorriso dos paes, que se crêem unicos senhores dos affectos dos filhos.

Passada meia hora, ouviu-se no quintal o ladrar continuo, frenetico e
raivoso da _Cigana_.

O capitão gritou da cama:

--O que é aquillo, filha? A _Cigana_ está hoje como nunca a vi. Vai
socegal-a, se não tens somno, e prende-a. Naturalmente os pescadores
saltaram-me á fructa. É o que é. Deixal-os lá, coitados! Estes dias tem
havido pouco peixe. Não vá a _Cigana_ fazer alguma das suas... Ora vae,
anda, tem paciencia... Eu não vou porque me sinto fatigado e exquisito
hoje... A _Cigana_ ouvindo-te, socega...

       *       *       *       *       *

Luiza desceu ao pateo.

Abriu com mão tremula a cancella e encostou-se vacillante, agitada e
convulsa ao muro. O ladrar da cadella cessára. Adiantou-se. No fundo do
jardim sob a latada, um vulto cosia-se com a parede. A pobre menina
levou as mãos ao peito, como para socegar a douda violencia do coração
que parecia suffocal-a; quiz fallar e não pôde. O corpo vergava-se-lhe
frouxo, molle, sem forças...

De repente sahiu das sombras das arvores a _Cigana_, que se arrastou
para Luiza, ganindo dilacerantemente, movendo com difficuldade a cauda,
com a parte posterior do corpo quasi paralytica, escorrendo-lhe da boca
uma baba espessa, com os olhos dilatados desmedidamente...

N'aquelle olhar que a claridade da lua deixava distinguir havia um
pedido, uma supplica.

--_Cigana!_ exclamou Luiza.

Ouvindo aquella voz, a cadella, que se sustentava difficilmente nas
patas dianteiras, ergueu ainda, por um supremo esforço, a cabeça, e,
tomada de uma ancia afflictiva, convulsionando-se-lhe o corpo n'um
estremecimento instantaneo, soltou um gemido rouco, escabujou
violentamente, e cahiu morta aos pés da filha do capitão.

--A sua _Cigana_ é muito má, mas ainda é mais gulosa, disse o vulto que
se escondia sob a latada.

--Que mal lhe fez este animal, sr. Gouvêa? perguntou reprehensivamente
Luiza, estrangulando-se-lhe a voz na garganta.

--Boa pergunta! Não subisse eu tão depressa para o muro e estava
asseiado a estas horas! O demonio do bicho! Mas vinha prevenido,
atirei-lhe uma bola, que lhe soube como se fosse manteiga. Ora deixe lá
o cão, querida, não se faça piégas...

Luiza interrompeu bruscamente aquellas palavras tolissimas, e
endireitando o corpo, ergueu a voz quebrada pelas lagrimas:

--Saia, saia depressa; se não quer que meu pae o venha aqui matar sem
ser tão cobardemente como o senhor acaba de matar a minha pobre
_Cigana_.

E emquanto o vulto marinhava pelo muro, a desditosa creatura abraçava a
_Cigana_, e chorava como sómente uma vez em vida chorára, quando lhe
levaram para fóra de casa o corpo de sua mãe.

--_Cigana_, minha pobre _Cigana_! repetia Luiza, fui eu que te matei!

Ao outro dia murmurava o capitão, fingindo-se sereno e forte para poder
consolar a filha:

--Vão lá depois fazer bem... Eu mandava prender a _Cigana_ para que não
fizesse mal a ninguem, e pagaram-me d'esta fórma!...

E o velho, para não chorar tambem, fingia que não reparava nas lagrimas
que rolavam como perolas pelo rosto descolorido e pallido da filha.



DUAS FACES DE UMA MEDALHA


Ella tinha já feito vinte e cinco annos, elle contava apenas vinte e
dous.

Era uma creança triste e ambiciosa.

Sonhava no impossivel, e n'esse sonho creava forças heroicas para todas
as luctas da realidade.

Margarida distinguira-o no meio de todos os homens ricos, elegantes,
nobres ou poderosos, que a rodeavam e acclamavam rainha.

É que na fronte d'elle, já cavada por duas linhas profundas, lia o que
não lera ainda nos outros--o pensamento e a energia.

Sabia, porém, que seu pae, o banqueiro millionario, só a daria com
prazer a quem trouxesse mais lustre ou mais dinheiro á sua casa, e
timida, melancolica, sem disposições para as luctas da vida,
repugnava-lhe tudo que fosse combate ou resistencia.

Tinha sido doente desde pequenina, era um organismo nervoso e delicado,
cheio de caprichos inconscientes, mais artistico do que reflexivo.

Gostava de musica, de flores, de versos, das cousas bellas e
harmoniosas, tinha um vago desdem silencioso por tudo quanto via ser o
enlevo e a preoccupação exclusiva dos seus.

O dinheiro! sempre o dinheiro!

Ninguem fallava em torno d'ella senão em dinheiro, e no entanto ella,
que vivia n'um voluptuoso ninho de princeza de conto de fadas, tinha
pelo dinheiro em si o mais soberano desdem.

Salvava-a isto da vulgaridade que mais ou menos contamina as mulheres
ricas.

Margarida no inverno vivia em Lisboa.

Tinha então a vida futil e ociosa de todas as rainhas da alta vida.

Ia muito a S. Carlos, recebia n'uma certa noite da semana, presidia aos
jantares dados por seu pae, ia passar muitas noites fóra, fazia compras,
corria as modistas acompanhada sempre por miss Brown, uma correcta
ingleza de sacca-rolhas côr de açafrão, que seu pae descobrira
felizmente n'uma das suas viagens a Londres.

No meio d'esta vida artificial tão vazia e tão fatigante ao mesmo
tempo, que lugar havia para que ella pensasse, sentisse, desejasse
alguma cousa para fóra do circulo estreito que a encerrava?

Margarida deixava-se viver.

Um dia, porém, n'um baile, apresentaram-lhe Eduardo de C., e depois de
meia hora de conversação sentiu por elle o que não sentira ainda por
nenhum outro.

Ficaram conhecidos.

Elle na sombra, de longe, já se vê; ella lá em cima na plena irradiação
da sua graça, da sua formosura, da sua opulencia, de todo o seu
esplendor.

Cumprimentavam-se com uns toques de familiaridade, e n'um ou n'outro
baile d'estes a que vae _toda a gente_, a boa e a má, tinham-se apertado
a mão mutuamente, e tinham trocado algumas phrases affectuosas.

No verão, o pae de Margarida, que tinha propriedades em varios pontos de
Portugal, consultava a filha para que lhe indicasse a quinta em que mais
gostaria de passar as calmas do estio.

Pouco tempo depois do encontro com Eduardo, Margarida, disse a seu pae,
que a consultava como de costume:

--Este anno vamos para o Minho, sim? Sinto-me tão fraca, tão doente! O
ar do Minho ha de por força fazer-me bem.

É verdade que nas vesperas, n'um baile, Eduardo dissera-lhe,
approximando-se d'ella:

--Peço licença para apresentar a v. exc.ª as minhas despedidas.
Alcancei uma collocação em Vianna do Castello, e parto para alli um dia
d'estes.

--Vianna! pensou Margarida emquanto dous raios de alegria se accendiam
nas suas pupillas de um azul sombrio.

--É em Vianna a nossa quinta.

       *       *       *       *       *

Partiram.

Na provincia a intimidade estabelece-se forçadamente entre pessoas que
não pertencem ás mesmas camadas sociaes.

Para se admittir um sujeito em qualquer sala de provincia exige-se
simplesmente que tenha uma educação limpa, e que possua alguma _prenda
de sociedade_.

Em Vianna, na sala do grande banqueiro tão altivo e tão inaccessivel,
reuniam-se não só os fidalgos mais primorosos das cercanias, como tambem
os humildes funccionarios do Estado, que por aquellas regiões se achavam
accommodados.

Margarida, com o seu porte de soberana, o seu sorriso altivo e
distrahido, a graça ondeante da sua gentil figura, recebia a todos com a
mesma benevola indifferença.

Todos a contemplavam fascinados e quasi medrosos.

Ninguem se atrevia a dirigir-lhe finezas banaes: de tal modo o olhar
d'ella sabia tornar-se glacial, logo que adivinhava a pretenção de um
namorado na amabilidade um tanto desastrada de algum dos seus convivas
provincianos.

--Não ha aqui um empregado chamado Eduardo de C.? perguntava um dia na
sala a elegante filha do banqueiro.

--Ha. Um rapaz muito estudioso, muito concentrado, que desenha muito
bem, acudiu espevitadamente d'alli uma menina que fazia as delicias das
_soirées_ de Vianna, pela sua voz de falsete sempre prompta a torturar
os ouvidos do proximo. Conhece-o?

--Foi-me apresentado este inverno em Lisboa; respondeu Margarida.

E accrescentou mentalmente:--Quem me dera que elle aqui apparecesse!
Como me distrahiria de tudo isto que me cérca.

_Isto_ era uma duzia de _cavalheiros_ da _provincia_ acompanhados das
suas respectivas esposas ou _manas_, tudo gente preoccupada dos
interesses mais mesquinhos, das pequenas intrigas mais pueris, fallando,
gesticulando, dançando, tocando, cantando, murmurando e constituindo a
unica diversão das noites de Margarida.

Não sabemos de que traças usou a gentil lisboeta: sabemos que algumas
noites depois d'esta, Eduardo de C. era apresentado por um fidalgote,
aspirante e litterato, na sala do banqueiro.

Desde esse dia elle e Margarida formaram em commum uma especie de
refugio contra a frivola banalidade d'aquellas noites.

Eduardo desenhava com muito chiste caricaturas e graciosos _croquis_,
que Margarida guardava contentissima; ella cantava com a sua voz meiga e
flexivel algumas simples melodias allemãs, ou tocava as musicas dos
velhos mestres classicos, tão queridos de Eduardo.

Fallavam a respeito de tudo com a liberdade de pessoas que se entendem e
apreciam.

Discutiam litteratura, musica e versos.

Ás vezes fallavam ambos do futuro.

--Que tem tenção de fazer? perguntava Margarida.

--Ora! Não sei bem. Com certeza hei de fazer alguma cousa. Ando a crear
forças para a lucta. Ha de ser tenaz, ha de ser terrivel, bem sei, mas
eu hei de vencer!

--Quer que lhe dê um talisman para entrar no fogo?

Elle envolveu-a em um olhar ardente; depois, baixando a vista, respondeu
quasi com violencia:

--Não brinque comigo. Olhe, que me faz muito mal.

       *       *       *       *       *

Margarida sabia que era amada.

Tambem ella sentia por elle o que nunca sentira, mas não tinha coragem
para resistir ás ordens de seu pae.

Por esse tempo andava elle a arranjar o casamento da filha com o conde
de V., um moço que tinha nas veias o sangue dos reis godos, e na cabeça
a mais crassa estupidez de que ha memoria desde o tempo dos ditos.

Margarida sabia ou suspeitava do caso, mas deixava-se ir n'uma
indolencia de crioula á mercê dos acontecimentos da sua vida.

Ao pé de Eduardo sentia-se bem, e quando elle a fixava com o seu bello
olhar de ambicioso e de pensador, Margarida esquecia-se de tudo que não
fosse a delicia de ser preferida por aquelle homem.

       *       *       *       *       *

N'uma noite em que os hospedes habituaes estavam na sala, e em que junto
da meza redonda do serão Eduardo e Margarida liam esquecidos de tudo que
os cercava, felizes, despreoccupados como os dous amantes do florentino,
ouviu-se o rodar de uma carruagem que parava á porta do palacio.

O banqueiro levantou-se rapidamente da banca do voltarete e sahiu da
sala relanceando para a filha um olhar de esconso.

Margarida, sem saber porque, fez-se pallida como uma morta.

--Ó meu amigo--exclamou n'um impeto ardente, irresistivel, que não soube
conter,--chegou o fim da nossa felicidade!

Eduardo olhou para ella desvairado.

--Que diz? que é isso? a que se refere?

N'este momento entrava na sala o pae de Margarida dando a direita ao
ultimo herdeiro de nobres avoengos.

--O sr. conde de V... pronunciou com o orgulho humilde dos burguezes
ambiciosos de honrarias sociaes, apresentando o recem-chegado a toda a
companhia.

Margarida accolheu-o com um sorriso gelado.

Conhecia-o, sabia que o pae queria pôr-lhe sobre a cabeça loura e altiva
uma corôa de condessa, e sentiu que dentro d'alma lhe estalava uma corda
que nunca mais tornaria a vibrar!

       *       *       *       *       *

D'alli a seis mezes todos os jornaes annunciavam na secção do
_high-life_ o casamento da filha do banqueiro opulento com o neto dos
heroes medievicos.

Os noticiaristas fundavam as mais ardentes esperanças n'este consorcio
que alliava o sangue nobilissimo e a fortuna collossal, e contavam com
grandes minudencias as pompas d'aquella festa principesca, os presentes
riquissimos que a noiva recebera, a _toilette_ d'esta, a alegria dos
numerosos convidados, etc., etc.

O que ninguem sabia é que esse casamento despedaçára duas vidas!

       *       *       *       *       *

No fim de dez annos o conde de V... déra cabo do dote da mulher, e da
vida do sogro, que morreu amaldiçoando-o.

Continuava, porém, _la vie à grandes guides_, que tinha começado no dia
seguinte ao seu noivado, e já havia quem calculasse muito pela rama por
quanto tempo podia durar ainda a desenfreada orgia d'aquella existencia
de _Marialva_ estupido.

Em casa da condessa o luxo não se modificára com as aproximações da
pobreza.

No olhar d'ella divisava-se uma profunda e desdenhosa indifferença da
vida.

Nem o amor maternal conseguira salval-a do desespero.

Ligada a um homem que desprezava do intimo d'alma, entristecida para
sempre por uma d'estas recordações que lavram dia a dia, e que por fim
se apossam de uma existencia inteira, Margarida procurava esquecer-se de
si, aturdir-se no turbilhão das festas mundanas.

Os filhinhos estavam entregues ao cuidado d'aquella pobre miss Brown que
ao vêr o abandono dos pobres anjos, innocentes das culpas de seus paes,
se dedicára por elles com a abnegação profunda de que só é capaz uma
ingleza feia!

Margarida passeava de carruagem, ia ao theatro, ao paço, aos bailes, ás
festas de beneficencia, vendia nos bazares de caridade elegante, fazia e
recebia visitas, e de vez em quando, se no meio d'este turbilhão
avistava o marido, media-o de alto a baixo com um olhar de profundo e
inconcebivel tedio!

Eduardo durante estes dez annos tambem soffrera grandes modificações na
sua vida.

Luctara como um homem, e soubera vencer a mediocridade do seu nascimento
e da sua posição.

No instante em que aquella que elle um dia amara como a noiva
estremecida da sua alma, sentia vagamente afundar-se no sorvedouro negro
da miseria, elle recusara altivamente uma pasta de ministro e uma noiva
brazileira, possuidora de duzentos contos fortes, isto depois de uma
sessão legislativa, em que a sua palavra viva, nervosa, eloquente,
colorida e artistica havia deslumbrado o paiz.

--Não me vendo por dinheiro, nem pelas honras mentirosas com que os
tolos lançam poeira á cara uns dos outros; respondera a quem o
interrogava espantado ácerca d'estas duas recusas.

       *       *       *       *       *

Alguem, que me contou este vulgar episodio da vida moderna, mostrou-me o
fragmento de uma carta que Margarida escreveu doze annos depois de
casada a uma socia das suas antigas alegrias.

«É a ti que prefiro escrever. Conheceste-me solteira, feliz, idolo de um
pae, que, ai de mim! se perdeu e me perdeu pela vaidade. Has de ter dó
de mim.

«Tenho dois filhos e preciso ganhar honestamente o pão que elles hão de
comer!

«Presinto o teu espanto, as tuas interrogações, os brados afflictivos da
tua surpreza!

«Não me perguntes nada.

«Pergunta-o se quizeres, a essa Lisboa, que assistiu ao louco esphacelar
de uma fortuna enorme, com o sorriso banal e adulador que ella tem para
todos os perdularios.

«Sabes a educação que recebi.

«Creio que seria uma mestra capaz de cumprir com a minha ardua missão.

«Em nome dos teus louros pequeninos, tão fartos de gulodices e de
beijos, arranja-me algum meio de ganhar um pedaço de pão para os meus
filhos.»

       *       *       *       *       *

Dava lições!

A brilhante Condessa de V..., a filha adorada de um dos homens mais
ricos de Lisboa, a rainha dos salões luxuosos, a _estrella_ mais
fulgurante do alto mundo, dava lições para sustentar os dous filhos que
lhe restavam, unicos vestigios de um passado de pomposas mentiras.

O infortunio nobremente supportado transfigurara aquelle rosto
desdenhoso e soberbo de garrida mundana.

Deixára de ser rainha e levantára-se martyr!

Levantava-se de manhã muito cedo, bebia á pressa uma chicara de café,
que a sua fiel Miss Brown, companheira dos triumphos e das desventuras
lhe preparava por suas proprias mãos, e sahia, modestamente vestida de
preto, a cumprir a sua improba tarefa.

Só voltava a casa de noite.

Divulgára-se rapidamente a noticia d'aquella excepcional desventura, e
muita gente, que vira com desprazer a prodigalidade da caprichosa
condessa, compadecia se agora, sem pensamento reservado, d'aquella digna
e santa expiação.

Margarida tinha muitas discipulas.

Fazia pena vel-a, muito delgada, quasi diaphana, com os olhos pisados,
as faces córadas pelo cansaço e pela febre, e um sorriso triste
resignado, humilde, n'aquelles labios que tinham sabido tregeitar com
tão altivo desdem.

Era sempre a mesma alma sem energia.

Não esperava cousa nenhuma da terra senão a morte, levando a consciencia
de ter expiado os erros do seu orgulho.

Cumpria uma penitencia, não encetava uma lucta heroica de que esperasse
sahir vencedora.

N'uma tarde do mez de janeiro, chuvosa, humida e fria, Margarida subia a
muito custo a calçada de S. Bento, em Lisboa, onde morava uma das suas
discipulas.

A rua, viscosa e lamacenta, inspirava-lhe aquella repugnancia patricia,
que a infeliz ainda não soubera vencer.

A atmosphera plumbea e carregada dava-lhe ao coração uma dose de
invencivel tristeza.

Sentia-se predisposta para as recordações cruciantes para as inuteis
fluctuações de um sonho que se extinguira.

Comprehendia com angustia que lhe faltava coragem para levar a cabo o
doloroso dever que a si propria impuzera.

Oh! ella bem sabia que a sua alma não era da tempera das que luctam e se
sacrificam!...

N'isto uma carroagem elegante descia a calçada ao passo de dous formosos
cavallos inglezes.

Margarida, vendo a alguns passos o correio agaloado, percebeu que era um
ministro e, sem querer, movida por um impulso subito, levantou os olhos
e fitou os no homem que ia dentro do trem.

O que ella sentiu não se explica.

O ministro era Eduardo de C.

Os olhos dos dous encontraram-se.

Margarida quiz saborear a voluptuosa tortura de vêr n'esses olhos o
brilho de um satanico orgulho, de um triumpho sinistro e mau.

Não viu!

Eduardo teve tempo de inundal-a em um d'estes olhares doces, unctuosos,
cheios de misericordia, de doçura, de perdão; em um d'estes olhares que
só podem comparar-se ao olhar do Christo redimindo a Magdalena!

Só de longe a tinha visto de vez em quando nas salas do alto mundo:
nunca lhe fallara então; não quiz humilhal-a fallando-lhe agora!

Ella sentiu que se lhe despedaçara no peito alguma cousa indispensavel á
vida.

Apertou em torno do corpo friorento e emmagrecido as pregas do seu pobre
chale preto, abaixou a cabeça instinctivamente, como se fizesse pender
para a terra um pezo estranho, e continuou a subir devagarinho,
arrimando-se á parede, aquella eterna calçada, cheia de agua e de lama.

Cahia uma chuva fria e miuda que lhe encharcava o fato.

       *       *       *       *       *

Um mez depois, da casa pequenina de Margarida sahia um enterro aceiado e
modesto.

Era o enterro d'ella.

Miss Brown explicava que a pobre senhora voltara uma noite muito
constipada das lições, que teimara em sahir ainda no dia seguinte, mas
que tivera de recolher-se á cama, onde penou pouco menos de um mez.

O enterro de Margarida levava por acompanhamento unico uma carruagem sem
brazão.

N'essa carruagem ia Eduardo de C.

Margarida, antes de morrer, escrevera-lhe uma carta cujas supplicas
dolorosas iam apagadas pelas lagrimas.

Os dous orphãos de Margarida estão agora a educar-se em um dos melhores
collegios de Lisboa, e todas as despezas da sua educação são pagas por
um protector invisivel e mysterioso.

Ha quem dê a essa Providencia ignota o nome sympathico e hoje glorioso e
querido de Eduardo de C.



A TIA IZABEL


Conhecia-a em casa de uma familia amiga da minha.

Affirmavam os que a tinham conhecido em menina, que fôra bonita; a mim
parecia-me simplesmente sympathica.

Era alta, magra, loura e muito branca, uma physionomia serena e
melancolica, sem muito relevo, mas com muita doçura.

Andava sempre vestida de escuro, com uma simplicidade em que
transpareciam, porventura, vislumbres de antigas elegancias.

Ao olhar para ella conhecia-se que havia de ter gostado de certas
puerilidades mundanas, de se vestir e pentear bem, por exemplo, de ser
citada pelo esmero do seu gosto, e pela distincção finissima de suas
maneiras.

Hoje todas as vaidades se tinham apagado; fizera quarenta annos, e
acolhêra-os com resignação, com dignidade, com uma certa graça
melancolica que lhe ficava muito bem.

Nenhum dos rapazes que frequentavam aquella casa se atrevia a chamar-lhe
_solteirona_.

A _solteirona_ é a mulher solteira que não sabe acceitar resignada as
amarguras da sua isolação, e as converte em ridiculos quando as não
converte em pessimas qualidades.

A _solteirona_ é pretenciosa, presumida, avida de attrahir a attenção,
revolve os olhos sentimentalmente, lê romances, come gulodices, tem um
_king charles_ e inveja tudo o que é moço, radiante, feliz, tudo que tem
esperanças e para quem o futuro desabrocha em promessas.

A _solteirona_ é egoista, incommodam-na como uma injuria que lhe é
particularmente dirigida todas as alegrias que não tem, persegue-a
atrozmente a aspiração irrequieta a um pobre marido que podesse
atormentar á vontade; sente-se na vida como n'uma casa que não é sua;
d'aqui o seu mau humor continuado que torna d'ella quasi sempre o
flagello da familia onde se sente pária!

A tia Izabel, porém, não era nada d'isto, pelo contrario.

Tinha para os sobrinhos um coração que, sem ser de mãe, encerrava muito
de maternal, sobretudo no que as mães têem de indulgente!

Nunca a vi colerica, nunca a vi tambem excessivamente animada.

Não se ria, mas tinha habitualmente um sorriso placido, quasi
distrahido, o sorriso de quem se sente um pouco estranha a todas as
alegrias que a rodeiam, mas que nem por isso deseja projectar as suas
sombras na luz que os outros espalham em torno d'ella.

Era muito estimada pelo irmão, pela cunhada e pelos sobrinhos, uns
traquinas que andavam sempre a recorrer á sua inexgotavel paciencia, e
que nunca foram expulsos com um gesto de irritação ou de desamor.

Sabia a difficil sciencia de se tornar util a todos, quasi
indispensavel; estreitando d'este modo os laços que a prendiam aos seus,
tornando-os por assim dizer inquebrantaveis:

Sentia-se assim menos só!

Nos jantares de familia os melhores pratos eram sempre executados
debaixo da sua direcção; era ella quem fazia o _menu_, quem distribuia
os lugares, quem presidia a todos os arranjos de casa.

Encarregava-se das tarefas mais enfadonhas, d'aquella parte aborrecida
que tem uma festa e que as donas da casa acceitam com tédio, mas que
lhes é mais tarde compensada no applauso, na satisfação, ás vezes mesmo
na inveja disfarçada em risos dos seus convivas.

N'essas occasiões solemnes em que ninguem dava por ella, creio que se
permittia um instante de innocente amor proprio, vendo a meza bonita,
bem disposta, com a elegante e symetrica poesia das grandes jarras do
Japão cheias de flores, dos crystaes facetados onde o vinho tomava as
olympicas apparencias do nectar, da bella louça da China de lavores
extravagantes e phantasiosos, da roupa fresca, pesada, macia, de linho
da Russia adamascado, tendo bordadas iniciaes... que não eram as d'ella.

Depois voltava para o seu logar secundario, obscuro, e voltava de
boamente com simplicidade despreoccupada.

Estava sempre bem com todos, sem se curvar obsequiosamente diante de
alguem.

Tinha mesmo um modo seu de dizer as verdades com firmeza e com brandura,
sem transigencias cobardes, sem severidade excessiva.

Quando havia em casa um doente, sentava-se-lhe tranquillamente á
cabeceira, fazia-lhe sentir com discreta suavidade a sua influencia boa,
perdia as noites com um aspecto de intrepidez e de meiguices; era
inapreciavel emfim.

Tinha uma infinidade de pequenas idéas que punha em pratica e de cada
uma das quaes resultava um allivio para o doente: arranjava as
almofadas, aconchegava as roupas do leito, dir-se-hia que a sua mão
esguia, branca, um pouco secca, tinha o segredo de verter balsamo em
todas as feridas de um corpo enfermo.

Na convalescença lia alto.

Escolhia muito bem os livros, tinha a maravilhosa intuição de todas as
necessidades de um espirito adormecido, n'aquella dubia luz crepuscular
da doença physica.

A sua voz vellada, sem grande sonoridade, tinha umas notas macias que
entravam até ao fundo do coração e que o amolleciam docemente.

Ainda nos desgostos de familia, na hora das crises e das catastrophes
era para ella que instinctivamente todos os braços se estendiam.

É que ella, com o seu passo miudinho, o seu ar sereno, os seus habitos
methodicos, nem diante das maximas catastrophes perdia a placidez
necessaria.

Uma das suas particularidades mais accentuadas era a repugnancia pelo
barulho, pelo espalhafato, por todas as exterioridades apparatosas.

Andava, fallava, trabalhava, movia-se sempre devagarinho.

Lembro-me perfeitamente do quarto d'ella, como d'uma especie de pequeno
sanctuario onde poucas vezes penetravam as travêssas creanças de quem
ella era como que segunda mãe.

Quando eu acertava de lá entrar com ellas, emquanto a pequenada corria
de um lado para outro, vendo, tocando tudo, perguntando informações de
todas as cousas, eu observava callada com o meu olhar de mais velha,
mais penetrante e mais curioso.

Tudo alli era limpo, aceiado mas tudo antigo, datando sem duvida da sua
adolescencia, do tempo em que ella fôra feliz, porventura requestada e
formosa.

A alcova branca, discreta, com o seu oratorio de pau santo, cheio de
bellas imagens, a Virgem risonha e loura com o menino nos braços, o
Christo macerado e sangrento com a expressão de sobre-humana agonia no
amortecido olhar.

No gabinete contiguo as cortinas, os reposteiros de chita, as poltronas,
as pequeninas mezas cobertas com os seus panos de _crochet_, as estantes
de livros, tudo emfim era bem conservado, sem ser novo; via-se que tinha
sido o objecto de attentos cuidados, que todas aquellas cousas mudas
haviam sido as companheiras unicas de uma existencia concentrada e
solitaria.

Nas paredes, sobre as pequenas _étagères_, muitos retratos, todo um
cortejo moço e triumphante que passava ao longe.

Exhalava se d'aquelles objectos tão esmeradamente cuidados, um vago, um
indistincto perfume de saudade, como d'um herbario de flôres seccas,
colhidas entre risos de crystal, nos dias radiantes da primavera...

Os pequenos então, com a sua inconsciente crueldade infantil, faziam mil
perguntas, impacientes, curiosas...

--Quem era esta menina, tia Izabel? tem um vestido de seda decotado e na
mão um malmequer que está desfolhando. Como ella scisma tão embebecida!
Em que scismaria ella, minha tia?

--No futuro!... respondia ella sorrindo com o seu bello sorriso
intraduzivel em que havia talvez muitas saudades.

--Que é feito d'ella? Era sua amiga, não era? Porque é que a não vem cá
vêr nunca?

--Ao principio veio, depois casou-se; o marido levou-a a viajar, foram
muito longe, divertiram-se, provavelmente ella esqueceu-se. Quando
voltou trazia um filho, um _baby_ louro e côr de rosa como o teu
irmãosinho Arthur. Só o vi uma vez. As creanças absorvem muito as mães,
por causa d'ellas esquecem-se de tudo, até das amigas da infancia. Hoje
só sei que é muito feliz, e quando tenho saudades olho para o retrato
d'ella!... Fômos tão amigas!

E callava-se baixando os olhos, receiosa de que a vissem contemplar com
demasiado enlevo os dias que já não podiam voltar.

Todos aquelles retratos tinham uma historia.

Aquelle cortejo de juvenis visões louras, morenas, travêssas ou
melancolicas faziam parte do passado, por isso lhes queria tanto.

Umas tinham casado, eram felizes, viviam absorvidas pelo divino egoismo
da familia, todas entregues ao bem estar dos seus, aos interesses, ás
alegrias, ás dôres do seu pequeno circulo de affectos.

Outras tinham morrido; eram as que alli nos appareciam mais pallidas,
com um vago reflexo de luz febril nos olhos pasmados e pensativos.

Tinham morrido na plena florescencia do seu imaginar juvenil, levando
para a cova, como levariam uma flôr ainda constellada pelos orvalhos
matinaes, a dôce chymera que nenhum sôpro brutal lhes havia desfeito.

Fecharam os olhos cercados por todas as apparições fulgidas, que
envolvem a mocidade como n'um circulo de estrellas, e foram
despertar--quem sabe! n'outras regiões de que ninguem ainda voltou, do
sonho feliz que haviam começado na terra.

Não eram essas as menos bemfadadas.

Ella, porém, ficára só.

Porquê?

Condemnação de que não conhecia o implacavel segredo!

Tambem fôra môça, tambem tivera crenças, esperanças, pequenos
sobresaltos de amor proprio, ephemeras vaidades de quem se julgara
querida!

Estremecera muita vez, ao sentir abrir uma porta, echoar um passo
ligeiro e firme nos vastos corredores, vibrar uma voz viril, grave e
terna!

Tivera rubores subitos, sentindo pousar na sua fronte branca, a luz d'um
olhar quente e caricioso; colhêra uma rosa, prendera nos cabellos um
cacho de madresilva, vestira um dia um certo vestido branco, cheia de
alegria, agradecendo a Deus ter feito a vida tão boa, o céu tão azul, o
cheiro das arvores tão penetrante e tão sadio!

Olhava n'este tempo para as creanças, beijava-as como a ensaiar as
graças da maternidade, fazia-lhes festas, pensando que tambem havia de
ter um dia uns pequeninos como aquelles, que lhes havia de querer muito,
e leval-os a passear, seguida pelo olhar invejoso das outras mães...
cujos filhos seriam forçosamente feios.

Então consultava comsigo mesma o systema de educação que adoptaria, e o
modo porque os havia de vestir, e concluia vendo-os entrar para a
Universidade, n'um dia de muitas lagrimas e de muitos dilaceramentos,
altos, esbeltos, um pouco altivos, com um buçosinho louro, appetitoso
como a pennugem d'um pecego mal maduro.

Foram-se-lhe dias e dias n'este sonhar que a entretinha, como a leitura
d'um romance cujo interesse nunca afrouxa.

Um dia, porém, por acaso viu-se ao espelho, e despediu-lhe o seio um
grito de angustia.

Despontava-lhe entre os fártos cabellos louros, o primeiro cabello
branco, um fio de prata, tenue, quasi imperceptivel, uma cousa em que
ninguem reparava.

Reparou ella.

Reparou tambem n'esse momento que todas ou quasi todas as companheiras
tinham casado, que muitas das suas illusões se tinham desfeito ás
asperas nortadas da realidade, que se ia sentindo na vida muito só.

Teve umas horas de lucta, de revolta, quasi de desespero.

Alguem, ou _alguem_ invisivel em que ella sempre acreditára, mandou-lhe
a força, porque lhe mandou a resignação!

Quando o pae lhe morreu veio para casa dos irmãos, e a pouco e pouco
achou em si a fonte de todas as riquezas mysteriosas, que espalhava
pelos affectos que o seu coração adoptou!

       *       *       *       *       *

Eis pouco mais ou menos a _historia da tia Izabel_.



O MELHOR SOMNO DO MILLIONARIO


Tinha ido para o Brazil ha muitos annos.

Ainda havia frades em Portugal e fôra até um seu tio frade que o
acompanhara a bordo de um brigue e que lhe dissera com voz solemne e
sentenciosa, no momento da despedida, estendendo os braços n'um largo
gesto de pregador:

--Deus te leve a salvamento, Francisco!

O sr. Francisco Cerqueira lembrava-se de todos os pormenores e
incidentes trabalhosos da jornada que elle fizera desde a sua pequena e
risonha aldeia minhota até Lisboa.

Era um gosto ouvil-o á mesa, ao domingo, quando o armazem repousava na
sua humidade claustral, e não se ouvia o estrepitoso labutar dos negros
carregadores, a voz arrastada dos Mineiros freguezes da casa, e a
melopéa das quitandeiras na rua.

Os socios muito mais moços que Cerqueira _puxavam-lhe pela lingua_
conforme a pittoresca locução do povo, e á sobremesa, recostados, com os
charutos accesos, ouviam-no discretear alegremente.

Lembrava-se de tudo o sr. Cerqueira. Era uma chronica viva. Recordava-se
da sua aldeia, narrava historias da sua infancia, descrevia com rudes
mas pittorescas phrases a aula de primeiras letras, o abbade da
freguezia, as proezas do tio frade, que com um varapáo nas unhas era
homem para varrer toda uma feira, e enternecia-se até ás lagrimas,
quando tocava no assumpto de despedida da mãe.

--Ah! vocês não imaginam! Não me sahe d'aqui! Parece que tenho um nó na
garganta, quando me lembro d'aquelle momento. Abraçava-me a chorar e a
soluçar que era uma cousa por maior! Inda me parece que a vejo ao pé das
carvalheiras do adro da igreja, estendendo-me os braços de longe e
gritando suffocada:

--Ah! rico filho, rico filho da minha alma!...

Que idade terá ella hoje? Ora, espera, eu tenho cincoenta e seis; ella,
pelas minhas contas, vem a ter os seus setenta bem puxados... quem me
dera vêl-a!

--Mas, _seu_ Cerqueira, nada mais facil! Por que se não resolve? Em
dezoito dias está lá...

--Sim, é verdade.

E ficava triste e meditabundo por instantes...

--Mas tenho medo de chegar e de não a encontrar. O unico motivo que me
leva á Europa, é ella, a pobre velhinha... É o unico parente que tenho,
que não sei se vocês sabem, que da nossa familia restamos tão sómente
nós, ella e eu... a minha terra é aqui, para aqui vim creança, e aqui me
fiz gente... Que vou eu fazer á Europa, não me dirão?

Isto dizia o sr. Cerqueira; mas o que se lhe passava no intimo era bem
diverso. Tinha saudades, tinha-as e bem fundas da aldeia em que nascêra
e da casa em que se creára.

Porque a sua vida fôra um luctar sem treguas, um batalhar decidido e um
inferno, á sahida do qual elle contava, como o mythologico Orpheu, rever
as appetecidas Eurydices--a mãe e a patria...

Escrevia á mãe de tres em tres mezes, e nunca deixava de lhe recommendar
que conservasse tal e qual como estava a casita, e que não mexesse nunca
no leito em que elle dormira nos annos proximos á partida para o
Brazil.

«Porque desejo morrer n'elle», escrevia Cerqueira á mãe amantissima.

E ia-se deixando ficar.

Por duas vezes os socios estiveram em Portugal, mas o nosso Cerqueira
não se decidia.

Ás vezes parecia tomado de uma forte resolução, e, ouvindo as
descripções das viagens dos socios:

--Homem, parece-me que sempre me resolvo!

No outro dia, porém, lá andava pelos armazens mourejando, dando ordens,
e n'aquella atmosphera de trabalho vivificante e saudavel parecia
transfigurado e como que esquecido da promessa que a si proprio fizera.

       *       *       *       *       *

Um dia, quando o sr. Cerqueira encarapitado no alto banco de palhinha
sobre a secretária, revendo se na sua bella letra ingleza e floreada,
entrou no escriptorio um dos caixeiros annunciando-lhe que estava alli
um sujeito que desejava fallar-lhe.

Cerqueira collocou a penna atraz da orelha, puxou do lenço vermelho, e
abrindo a caixa enterrou unidos, no tabaco, o pollegar e o index, e mal
acabava de absorver a pitada pela narina direita, tamburinando
voluptuosamente com os restantes dedos na esquerda, quando lhe surgiu á
porta um rapaz bem trajado e modesto, que figurava ter quando muito
dezeseis annos.

--Creio que fallo ao snr. Francisco Cerqueira?

--É verdade.

--Cheguei hoje de Portugal e trago-lhe esta carta.

E o rapaz desabotoando o fraque, tirou do bolso uma carta que entregou
respeitosamente ao negociante.

Olhou attento para a lettra do sobrescripto e sorriu-se; um bom sorriso
beatifico e dourado de mocidade que lhe illuminou o semblante.

Depois abriu a carta, desdobrou-a e collocando-a ante o rosto começou a
lêl-a devagar, como que saboreando cada palavra e cada phrase. Ás vezes
parava, e como um namorado que espreita por cima d'um muro, erguia os
olhos acima do papel e examinava attentamente o rapaz, que se conservava
de olhos baixos, direito e tranquillo.

Chegando ao fim da carta, voltava de novo a lêl-a. Era como que um
conversar com aquellas letras que vinham de longe e que lhe traziam um
pouco de perfume das larangeiras do paiz natal, e um tudo nada das
lagrimas de sua mãe.

--Queira sentar-se, disse benevolamente o commerciante ao mancebo.

E continuou a ler. A carta era pequena, mas n'aquellas letras
arrevesadas e tremulas elle via um rosto, umas feições adoradas, e logo
depois como nas tintas esbatidas e aereas de um sonho de convalescente,
levantava-se uma figura de mulher ainda moça e vigorosa, ao pé de umas
carvalheiras, e essa mulher estendia-lhe os braços e dizia-lhe de longe
com uma voz entrecortada de lagrimas:

--«Ah! rico filho, rico filho da minh'alma!»

Arrancado d'aquella visão, o sr. Cerqueira dobrou a carta devagar com as
mesmas dobras, abriu a larga carteira de marroquim vermelho e collocou-a
com grande cuidado n'um determinado compartimento.

Em seguida levantou-se e pitadeando de novo:

--Olhe, o nosso guarda-livros vai espairecer até Buenos-Ayres, e creio
que por lá ficará. Coitado! aquillo vai mal!... Quer o senhor occupar
esse lugar n'esta casa?

O moço acceitou reconhecido, e ia a levantar-se quando um preto velho em
mangas de camisa abriu a porta do escriptorio:

--O jantar está na mesa, nhônhô...

       *       *       *       *       *

Passados dias notaram os socios do sr. Cerqueira que este não parava em
casa um instante. Sahia frequentemente, andava mais contente e lepido
que o costume. Pouco fallava ao jantar; de communicativo que era,
tornara-se recolhido comsigo, mas no olhar lampejava-lhe uma doce e
ineffavel alegria.

Ora que fazia o sr. Cerqueira?

Andava envolvido n'uma terrivel conspiração, queria desfazer-se,
desligar-se dos queridos laços, creados pela sua longa e trabalhosa vida
de perto de quarenta annos, n'aquella terra a que elle de entranhas
queria, e aonde aportara pobre, desprotegido, sem recursos...

Logo pela manhã, depois de dar as suas ordens no escriptorio, mettia-se
a caminho, percorria as ruas, examinando attentamente cousas que antes
lhe haviam passado desapercebidas.

Entrando nos _americanos_, dirigia-se aos formosos arrabaldes da
côrte...

Lembrava-se então das suas merendas saudosas e illuminadas pelo sol dos
vinte annos, no morro de Santa Thereza, nas chacaras ridentes do
Botafogo, á sombra das arvores do Corcovado.

E passava distrahido sem corresponder aos frequentes e affaveis
cumprimentos que lhe faziam os conhecidos e amigos, do alto da imperial
dos omnibus, ou da plata-forma dos _americanos_.

Alguns dos companheiros dos seus passeios e folguedos da mocidade tinham
morrido, outros haviam deixado o Brazil e viviam na Europa, em Portugal.

--Como poderam elles deixar isto sem saudade? É verdade que eu gostava
de morrer lá, onde nasci, na minha pobre aldeia, ao pé de minha mãe...
pensava o sr. Cerqueira.

E á hora do jantar, já não havia o conversar, e aquelle teimoso
questionar que tanto alegrava os dois socios!

É que o sr. Cerqueira continuava a fallar comsigo e a passar uma a uma
pelos dedos as contas do mystico rosario das suas saudades...

       *       *       *       *       *

Uma tarde os socios de Cerqueira bateram-lhe á porta do quarto. Houve
uma certa demora em se abrir essa porta. Insistiram. Cerqueira veio
emfim saber o que era.

Entraram os dous e recuaram surprehendidos ante a mudança que
observaram.

No meio do quarto estava uma grande mala escura cravejada de pregos
amarellos; em cima do canapé esgarçado avultavam montes de roupa branca,
e pequenas malas inglezas com fechos dourados e reluzentes. As gavetas
da commoda estavam corridas, havia n'aquelle quarto em fim a apparencia
d'uma casa saqueada...

--O que é isto, _seu_ Cerqueira?

--É o que vocês estão vendo. Ámanhã é o dia da partida... Resolvi-me
emfim...

--E eu que tinha apostado aqui com o _seu_ Fernandes que você nunca se
resolvia...

--Pois, meu amigo, perdeu a aposta, cortou o Cerqueira, sorvendo
sybariticamente uma pitada.

Na manhã do dia seguinte, no tombadilho d'um dos vapores da Companhia do
Pacifico, emquanto os dous socios do Cerqueira riam e diziam facecias,
deitando com ares de casquilhos atabalhoados as lunetas a algumas
francezas, que, com os seus vestidos de fazendas claras animavam
alegremente aquelle conjunto de pessoas possuidas de tão estranhos e
contradictorios sentimentos, o nosso viajante olhava com os olhos de
quem se despede de um sitio amado para os armazens, para os trapiches
que se retratavam nas aguas da bahia, para as torres das egrejas que se
arrendavam nitidamente no claro céo azul.

       *       *       *       *       *

Em Lisboa pouco se demorou.

No hotel, alguns amigos quizeram prendel-o ainda, tentando-o com o
theatro lyrico, com Cintra e com as poucas fascinações baratas de
Lisboa.

Cerqueira resistiu, e n'uma bella manhã, mettido em uma diligencia que
partia de Braga, dirigiu-se para Ponte de Lima. Aqui alugando uma
cavalgadura endireitou para a aldeia em que nascêra.

A meio caminho apeou-se, despediu o homem que o acompanhara, e deitando
ao hombro uma pequena mala que trouxera, encaminhou-se para o seu lugar.

Seriam quando muito duas horas da tarde. O calor era grande. Pouca gente
na estrada. Cerqueira parou a contemplar o quadro.

De um dos lados do caminho viam-se algumas raparigas com largos chapéos
desabados e saias apanhadas segando herva, á compita, e misturando o seu
canto ao metalico e monotono cantar das cigarras...

Do outro lado, um rapazito meio nú, de carapuça, sentado no chão,
estava de guarda a meia duzia de bois que pastavam tranquillamente na
herva macia e tenra...

De vez em vez, quando um dos bois se approximava de algum castanheiro, o
rapaz agarrava de um calhau, e atirando-lhe rasteiramente, gritava:

--Eh! malhado...

--Quantas vezes eu tambem guardei as vaccas da nossa casa! pensou
Cerqueira.

--Seu moço, venha cá, disse para o rapaz, venha cá, menino!

O rapaz olhou para o forasteiro com um olhar estupido e embezerrado e
deixou-se ficar.

--Venha cá, menino, que lhe não quero mal...

O pequeno não se movia.

--O rapaz é mouco, disse comsigo o viajante, e como quem conhece o
coração humano, tirou a bolsa e mostrou-lhe uma moeda de prata.

--Queres isto?

De um salto o rapaz poz-se a pé, tirou a carapuça, e coçando a cabeça
aproximou-se.

--Diga-me uma cousa, menino, é aqui do lugar?

--Saiba vossemecê que sim senhor.

--Conhece a tia Genoveva?

--Uma que é assim a modo bexigosa, e já muito velhinha?

--Essa mesma.

--Olhe, ainda ha pouco a vi passar da banda do rio... São horas de a
topar em casa...

Cerqueira estava emfim tranquillo.

Desapparecera o receio de não encontrar a querida velhinha.

Verdade é que podia ter tido novas d'ella em Lisboa escrevendo ao
abbade, mas queria fazer uma supreza, chegar de improviso.

Áquella hora as aldeias do Minho são silenciosas e calmas, e ha n'ellas
como que a intima paz das fabricas ao domingo.

Os homens andam no campo, as mulheres, quando os não acompanham, estão
nos lavadouros ensaboando, e poucas pessoas, a não serem os velhos e
algumas creanças, ficam em casa.

Na sombria humidade das tabernas descobre se a taberneira fiando,
emquanto no quinteiro proximo os porcos com os focinhos semi-enterrados
na lama grunhem voluptuosamente.

Um ou outro cavalleiro que passa ás vezes pela estrada n'um choito
endiabrado, com o páo de choupa apertado nos joelhos, levantando uma
nuvem de poeira dourada. E é então que os cães acordam aquelle silencio,
latindo e correndo atrás dos cavalleiros, e que apparecem ás janellas e
ás portas as raras pessoas que ficaram em casa.

Quando Cerqueira bateu á porta da casa pulava-lhe o coração de um modo
desusado.

--Quem é?

--Alguem é, respondeu o viajante.

--Pois empurre o postigo, puxe pela aldraba e entre, se isso o não
incommoda.

Assim o fez o nosso Cerqueira e entrou na saleta em que a tia Genoveva
dobava...

Ante aquelle homem estranho, a velha surprehendida parou, e pondo uma
das mãos diante dos olhos como uma palla:

--Que me quer vossemecê?

--Um abraço e um beijo, balbuciou o que entrara com voz enternecida e
expirante...

--Elle que diz? Ó Christo!

E levantando-se foi direita á janella para chamar por soccorro
imaginando vêr-se a braços com um doudo.

--Olhe que não estou doudo, santinha! Venho de longe e trago-lhe um
beijo e um abraço de uma pessoa que é muito sua amiga.

--Do meu Francisco? exclamou a velha. Venham de lá não só um mas muitos
abraços, que elle no dinheiro é mais generoso, valha-o Deus! Um só
abraço!

E a velhita apertou nos braços Cerqueira, que com as lagrimas nos olhos
murmurava:

--E eu que pensei que me conhecia! Pois não me conhece, minha mãe? Eu é
que sou o seu Francisco, sou eu, repare bem...

A velha então explodiu um alto e clamoroso grito, e chorando e rindo,
cahiu nos braços do filho.

--Agora conheço, sim, estava tonta! Esta cabeça! Mas se tu eras uns _dez
réis_ de gente quando abalaste d'aqui... Onde está a tua roupa? Já
jantaste? Cá a gente janta ao meio dia, mas arranja-se tudo, não tem
duvida... a Joanna foi á cidade, vou eu mesma matar uma gallinha... Tens
fome? deves ter, sim? A minha cabeça... a minha cabeça! O meu Francisco!
Mas porque me não mandaste dizer que chegavas, rapaz? Valha-te Deus,
manicanso!...

E a tia Genoveva no meio do seu contentamento sahia da sala para logo
voltar, amontoando perguntas sem nexo.

--Gostas d'isto? gostas d'aquillo? Do que vaes gostar é do vinho, é do
nosso _caco de salsa_ e sahiu-me d'aquella casta! O presunto vamos com
Deus, que tambem me sahiu bom. Vaes provar... Ora o peccado do rapaz que
me não avisou de nada!

E sahia para d'ahi a pouco voltar com a mesma abundancia de perguntas e
de phrases penetradas de amoravel reprehensão...

       *       *       *       *       *

Oh! que bom e que intimo foi aquelle jantar!

A sala alegre e caiada de branco, a toalha aspera, grossa e nevada, os
talheres de cabo d'osso fabricados em Guimarães, os copos com um friso
dourado nas bordas, as janellas abertas e dando para os campos onde
cahiam suavemente as tintas do sol posto, tudo dava uma quieta e serena
beatitude ao coração do _brazileiro_.

A mãe encostada ao espaldar da cadeira em que estava sentado o filho
servia-o com muito carinho, fazendo-lhe perguntas sem conta a que elle
respondia com o rosto inundado e clareado pelas lembranças de um passado
que as palavras da mãe evocavam renascido.

Depois coube-lhe a elle fazer tambem perguntas: o que era feito d'este,
se ainda era vivo aquelle, se no sitio de tal ainda existiam aquellas
carvalheiras onde havia d'antes tanto ninho de melro, e se uma casára, e
outra tinha muitos filhos, eu sei! um mundo de recordações e de
saudades!

E com o olhar humedecido, Cerqueira percorria tudo, o velho armario
pintado, as grades da varanda, as medas levantadas no meio da sombria
verdura dos campos...

Ia cahindo a noite, ouvia-se já na aldeia um certo borborinho de vida,
vinham da estrada trechos ruidosos de conversações. Recolhiam do campo
os trabalhadores.

E os dois a conversar ainda!

--E a Joanna que não chega da cidade! É sempre assim!

Quando ha pressa é que não vem... Queres tu dar uma volta pelo lugar,
Francisco?

--Nada, minha mãe! Este dia é só para si. Inda bem que ninguem me viu, e
que se não sabe que cheguei... Conversemos, tenho tanto que dizer, tanto
que ouvir...

Entrelaçava-se de novo a conversa, e assim estiveram até que a velha
disse:

--E então não querem vêr que o rapaz quer tirar-me dos meus habitos! São
horas de deitar. Vou fazer-te a cama, está ahi quedo que eu já volto.

Voltou d'ahi a pouco com um candieiro de tres bicos. A luz batia-lhe no
engelhado rosto cheio de bondade, e um sorriso de ventura brincava-lhe
nos olhos e na bocca.

E, empuxado suavemente pela mãe, o brazileiro entrou no quarto que lhe
estivera preparando.

A velha abeirou-se da cama, desdobrou as roupas, ageitou a
travesseirinha de largos bordados tesos e engommados, e voltando-se para
o filho que examinava tudo curiosamente:

--Agora toca a deitar! Tenho tanta pena que me não trouxesses uma nora!
pois eu creio que lá no Brazil ha muitas moças bonitas, pois não ha?

O brazileiro sorria-se, e a mãe incansavel enchia-o de perguntas, de
mimos, de recommendações, até que sahiu abençoando-o com toda a sua
alma, rude mas extremosa.

       *       *       *       *       *

Francisco Cerqueira deitou-se, e ainda que lhe parecesse que o haviam de
incommodar os pesados lençoes de linho duros e asperos, adormeceu
profundamente.

Sonhou. Estava no Brazil, os socios tinham chegado da Europa, vinham
queimados da viagem, mas contentes; contavam anecdotas e casos
succedidos durante o passeio.

Que Portugal era um jardim, o Minho sobretudo! não se fazia ideia.

Narravam a maneira como tinham sido recebidos na aldeia natal, as
festas, as alegrias da chegada, as noites de esfolhada, as romarias
ruidosas... Cerqueira ouvia-os, e lá por dentro do coração, sentia a
grande e plumbea nostalgia do paiz natal... Se eu pudesse lá ir! Mas
para que? Estou velho... e depois póde ser que a velhinha já não
viva!...

E continuava a trabalhar, a dar ordens no humido armazem sombrio entre
os escravos...

N'isto saccudiram-no uma, duas vezes, tres vezes...

--Ó grande mandrião, pois isto são horas de dormir ainda? Olha que já
estou a pé ha duas horas! Na cozinha vae tudo raso com trabalho! Arriba,
homem! Não tens vergonha, dorminhoco?

E o _brazileiro_, estendendo os braços e esfregando os olhos com os
punhos fechados, perguntou bocejando:

--Que horas são?

--Dez horas, grandecissimo perguiçoso!

--Ha quarenta annos que não durmo um somno tão bom, minha mãe!



A PERCEPTORA


Chamava-se Martha de Vasconcellos.

Era alta, loura, delicada como uma figura de _Keepsake_.

Uma physionomia suave e infantil que captivava pelo seu encanto
inconsciente.

Á primeira vista, nas _soirées_ semanaes do commendador Gonçalves,
vestida de branco, com um simples velludo negro nos seus cabellos
crespos de um louro fulvo e ardente, parecia uma creança despreoccupada
e frivola.

Não o era.

Quem a conhecesse de perto sabia que ella tinha a seriedade precoce dos
que já padeceram muito.

Nenhuma sentimentalidade falsa no seu olhar azul, meigo e pensativo.
Nenhuma ideia errada, nenhuma chiméra juvenil na sua cabecinha d'uma
lucidez singular.

Sabia conservar-se na sombra, sem deixar de ser digna; tinha a
consciencia da mesquinhez do seu destino, sem ter nunca aprendido a ser
humilde.

Pouco fallavam com ella, e no entanto parecia não dar pelo desdem quasi
brutal de toda aquella gente que a cercava.

Tinha um modo docil e meio risonho de sentar-se ao piano, e tocava uma
noite inteira valsas, contradanças, lanceiros, que outras dançavam, na
expansão da sua alegria burgueza.

Nunca lhe perguntavam se estava cançada, nunca lhe davam a menor mostra
de interesse ou de sympathia.

Pagavam-lhe integral e generosamente, tinham direito aos serviços
correspondentes a essa remuneração.

As suas relações paravam aqui.

Não sabiam se ella tinha uma alma, se essa alma se iria azedando a pouco
e pouco ao contacto d'aquella indifferença cruel; não sabiam do seu
passado senão que era honesto e puro, nunca pensavam no seu futuro senão
vendo-a eternamente curvada ao pezo do mesmo destino ingrato.

Martha era mestra de duas filhas do commendador, duas rapariguinhas de
treze a quinze annos, muito presumidas da sua riqueza, muito vaidosas do
seu luxo, das carruagens em que andavam, dos vestidos de seda que
vestiam, das festas com que os paes alteravam de vez em quando a chata
monotonia do seu viver de negociantes retirados.

O commendador tinha um filho muito mais velho do que as irmãs, que se
educára na Allemanha; e que depois de viajar pela Europa inteira, havia
regressado emfim á casa paterna, onde, aqui para nós, se enfastiava
poderosamente.

O commendador queria dar tambem ás filhas uma educação brilhante, uma
educação que correspondesse ás dimensões da sua _burra_, eis porque,
depois de as tirar do convento, onde tinham estado até áquella idade,
escolhera para professora Martha de Vasconcellos.

De resto as idéas do commendador e da mulher sobre a educação de suas
filhas, não eram das mais engenhosas e atiladas.

A pobre gente--n'este caso, _pobre_ significa riquissima--a pobre gente
não era obrigada a ter um ideal muito levantado.

Sabiam que a filha do barão de tal tocava pianno, e queriam que suas
filhas soubessem tocar muito melhor.

Tinham ouvido louvar os desenhos da menina _Fulana_ e juraram aos seus
deuses que as suas meninas lhe haviam de levar a palma.

Não tinham ideias absolutas, tinham simplesmente ideias relativas.

Excitar a admiração parecia-lhes uma cousa réles e insignificante; o que
elles queriam era excitar a inveja.

As pequenas comprehendiam isto maravilhosamente.

Em vendo uma amiga da infancia, uma conhecida qualquer com um vestido
mais bonito ou com uma prenda intellectual mais preciosa, tinham ataques
de desespero surdo.

Ralava-as uma vaga inveja de todos os esplendores sociaes.

Andavam á busca de gente a quem podessem offuscar.

Eram simplesmente ridiculas!

Ás vezes entravam no quarto de Martha e diziam-lhe n'um transporte de
colera:

--Quero saber allemão. A Mariquinhas sabe allemão, emquanto eu não sei.

--Quero aprender a bordar de matiz, a Julia fez um quadro que eu não sei
fazer.

Era assim que iam progredindo no estudo.

Marta conformava-se docilmente ás aspirações das discipulas:
ensinava-lhes tudo o que sabia, mas o que ella de todo não pudera, era
inocular-lhes a vida interior que animava e coordenava todos os seus
conhecimentos adquiridos ou intuitivos.

       *       *       *       *       *

Dizia-se que Marta conhecera melhores dias, affirmava-se mesmo que não
fôra para servir de mestra a burguezinhas pretenciosas que seu pae, um
pae extremoso, lhe adornára o espirito de todos os primores de uma
educação excepcional.

Conhecia as linguas modernas, mas não como as conhecem as meninas que
por ahi conversam com os diplomatas, resumindo n'isso todas as suas
ambições de estudo.

Penetrára no espirito d'ellas, comprehendera o genio especial de cada
uma, sabia de cór e escolhia principalmente os poetas que synthetisam
uma nacionalidade ou uma civilisação.

Tinham-lhe ensinado a raciocinar, a pensar, a estudar a fundo todos os
problemas em que outras mulheres tocam sómente ao de leve.

A curiosidade natural ao espirito feminino, essa qualidade preciosa,
que, descurada, se torna quasi sempre em um vicio antipathico, fôra
n'ella tão bem dirigida, disciplinada com tal mestria, que se tornára
em fonte dos mais puros gozos do seu espirito.

Não sabia _can-cans_ de salão, sabia o que dizem na sua muda lingua os
astros e as plantas; não tentara penetrar na vida intima das suas
amigas, contentava-se em saber a vida intima da Creação.

Nunca lhe viera á idéa penetrar com o espirito no pélago revolto das
paixões insalubres; a sua curiosidade insaciada debruçava-se de melhor
vontade no pélago profundo das ondas, a quem horas e horas perguntava
pelas mysteriosas riquezas do seu seio.

No meio d'isto, despretenciosa e simples, julgando-se a mais ignorante
das creaturinhas do bom Deus, não sabendo que era artista, que era
intelligente, que tinha alma capaz de entender todas as grandes cousas.

O pae, que a vinha ver muitas vezes á casa da senhora a quem na infancia
a confiára, disse-lhe um dia com o pejo a ruborisar-lhe as faces, com
lagrimas a marejarem-lhe os olhos, que ella era uma filha natural, mas
que tencionava reconhecel-a, regularisar a sua posição, dar-lhe todos os
direitos que ella por tantissimos lados merecia.

A adoravel creança não o percebeu.

Então--castigo terrivel das suas culpas--o pae teve de explicar, de
fazer comprehender áquelles castos ouvidos de quinze annos uma historia
deploravel, a historia do seu crime!

Martha escutou-o n'um silencio dolorido, com uma expressão de doçura
triste no olhar.

Depois abraçou-o melhor ainda que nos outros dias, porque até alli só
tivera muito que agradecer e d'alli por diante sentia vagamente que
tinha muito que perdoar.

--E minha mãe?--perguntou depois com uma tremura na voz.

--Tua mãe morreu.

O pae de Martha era casado, tinha filhos, vivia para sempre longe d'ella
nas tranquillas alegrias da familia, uma familia em que ella só podia
ser a intrusa!

Desde esse dia Martha estudou com dobrado afinco, aprendeu com uma ancia
dolorosa, com um não sei quê de impaciencia inexplicada.

Sentia que havia de ter muito que soffrer, muito que luctar.

Tratou de robustecer a alma e de dilatar o espirito.

Era uma especie de iniciação heroica.

       *       *       *       *       *

O pae de Martha morreu.

Um dia, ao acabar de jantar, cahiu para o lado inesperadamente,
fulminado pela ruptura d'um aneurisma.

A morte surprehendera-o. Não tinha tido tempo de fazer nada em favor da
sua desvalida Martha.

Oito dias depois, entrava esta, vestida de luto, muito pallida, mas com
uma expressão estranha de firmeza no olhar, em casa do commendador
Gonçalves.

       *       *       *       *       *

Julião, o filho do commendador, tinha 23 annos quando Martha foi para
casa do pae. Ao principio pouco reparou n'ella. Imaginava-a uma mestra
como as outras, o mesmo livro tirado a centenas de exemplares.
Reconheceu sómente que era um pouco mais bonita que a generalidade das
suas collegas.

Um dia, porém, que elle lia Gœthe no original, e que uma phrase
obscura do poeta o fazia parar na leitura um tanto impacientado e
confuso, lembrou-se--acaso ou presentimento--de recorrer á mestra de
allemão de suas irmãs.

Entrou na sala de estudo, com um certo desdem a transparecer-lhe na
physionomia.

Póde ser-se educado na Allemanha e não comprehender o _Fausto_: o que
era no emtanto absolutamente impossivel, na opinião do moço, era não ter
nunca estado na Allemanha e conhecer Gœthe como um poeta nosso
compatriota.

Martha conhecia-o.

Pegou no livro que Julião lhe estendia, deitou um relance de olhos para
o verso de que se tratava, e depois, com um sorriso não isento de certa
malicia innocente, explicou a Julião a ideia do poeta.

Havia tanta clareza nas suas palavras, uma tão superior intuição
artistica nos seus rapidos e despretenciosos commentarios, que o moço
olhou para ella devéras espantado.

Pareceu-lhe que a via pela primeira vez.

Não lh'o disse, porém; pelo contrario, sentiu uma especie de surda
irritação ao perceber a sua inferioridade intellectual perante aquella
creança tão simples, e que todos olhavam com tamanho desdem.

Martha percebeu porventura a impressão que despertára; o caso é que a
malicia que lhe chispava no olhar accentuou-se com um indeciso cambiante
de ironia.

«A pequena creio que se atreve a fazer escarneo de mim», pensou Julião,
sahindo da sala, onde a juvenil perceptora ficou com as discipulas.

Desde esse dia Julião e Martha observaram-se mutuamente com mais
attenção.

Elle achava-a graciosa, sympathica e boa sobretudo, tinha muita pena
d'ella, ao vêl-a desdenhada por tanta gente que lhe era inferior na
intelligencia, na coragem, na distinção, em tudo que póde tornar
adoravel uma mulher.

Martha sentia-se silenciosamente comprehendida, e agradecia áquelle moço
esbelto e pensativo as delicadezas mudas com que a compensava do desamor
de todos os mais.

Tocou então para elle as mais doces e sentidas musicas que sabia; os
apaixonados _nocturnos_ de Chopin, as queixosas melodias de Schübert, as
sonatas mais bellas d'esse sublime surdo chamado Beethowen.

Conversavam um com o outro através da musica, sem nunca se fallarem de
outro modo senão nas cousas mais banaes da vida de todos os dias.

Á tarde, depois de jantar, emquanto o commendador resonava a sua sésta
sobre a prosa elegante do _Diario de Noticias_, emquanto a
_commendadora_ meditava o rol d'aquelle dia, digerindo um bom jantar, e
um ataque de furia contra as suas criadas presentes e futuras, emquanto
as meninas debruçadas á janella, trocavam substanciosos commentarios
ácerca de um alferes que morava no predio fronteiro, e de uma menina
muito _namoradeira_ que morava no predio do lado, Martha, sentada ao
piano, desfiava sósinha o longo rosario das suas saudades.

Julião ouvia-a, fingindo ler um jornal ou um livro, e a apaixonada
artista bem comprehendia que uma alma a estava escutando, e que essas
limpidas notas que ella arrancava ao piano iam vibrar divinamente em um
coração que a entendia.

Tudo os separava na terra: o orgulho feroz de uma familia de _parvenus_,
o santo orgulho d'ella, não menos implacavel, porém muito mais nobre, os
preconceitos, o dinheiro, quasi que a honra; mas, que importava?

Podiam entender-se e amar-se através d'isso tudo.

E Martha, empallidecida pelas commoções que lhe agitavam a sua alma de
artista, com uma expressão soffredora e apaixonada nos seus bellos olhos
d'um azul escuro, contava a meia voz n'aquella linguagem ineffavel as
suas dôres, as suas humilhações, as suas lembranças, todas as alegrias
que tivera, tudo que ella havia esperado na terra e que um dia se lhe
havia desfeito nas mãos, deixando-lhe apenas uma immensa, uma
desoladora, uma eterna saudade!

Ás vezes o piano chorava com uma desesperação tão inconsolavel e tão
profunda, que Julião tinha desejos de erguer-se da cadeira em que
estava, de protestar contra os energicos lamentos que traduziam a dôr
insanavel de um destino, e de gritar:

--Aqui me tem, prompto a luctar peito a peito contra o seu infortunio, e
a vencêl-o.

Mas não se atrevia!

Que diriam todos, que diria seu pae, que diria a propria Martha?

Quem lhe dava a elle direitos de interpretar d'aquelle modo a sublime
execução d'essa artista ignorada?

Quem pudera affirmar-lhe que era pessoal essa dôr mysteriosa que tinha
soluços tão doces, queixas tão resignadas e tão mansas, lamentações de
tão ineffavel ternura?

Um dia Julião quiz sondar o coração tão calado da pobre mestra. Procurou
fazer-lhe umas perguntas que não fossem por demais indiscretas.

Martha desatou a rir.

É verdade que no meio da sua crystallina risada os olhos se lhe afogaram
em lagrimas; mas n'esse instante Julião sentia-se tão envergonhado da
curiosidade que revelára, que se não atreveu a olhar para a sua
interlocutora.

       *       *       *       *       *

O commendador Gonçalves era ambicioso.

Pudera!

Ou não fosse elle _commendador_.

Estava riquissimo, mas queria que os filhos fossem ainda mais ricos do
que elle.

Para isso andára a moirejar a vida inteira, por isso se sustentára de
pão negro e de bacalhau durante os annos mais florentes da mocidade!

O seu mais intimo amigo, possuidor de um baronato, de avultada riqueza e
de uma filha unica tão prendada como elle desejava as suas, fallou-lhe
um dia disfarçamente, com certa labia, a respeito de Julião.

_A meio entendedor meia palavra basta_; d'ahi a quatro mezes o
commendador dava uma pequena _soirée_ intima, em que a menina Adriana,
filha do sr. Barão de X, e chegada havia dias do _Sacré Cœur_, era
apresentada ao seu futuro noivo, o Sr. Julião Gonçalves.

Estavam só pessoas de familia em casa do commendador.

Elle, a mulher, as duas filhas, o filho e Martha. Emquanto ao barão,
viera simplesmente acompanhado pela filha.

Adriana era... o que d'alli a alguns annos haviam de ser as futuras
cunhadas.

Tinha a mais umas tincturas de _coquetterie_ parisiense, _coquetterie_
mal ensaiada, mais collegial do que mundana.

Não se iguala nem se descreve o desdem com que ella cumprimentou Martha.
Era uma vingança retrospectiva do que as suas proprias mestras lhe
haviam feito passar.

Nos olhos azues de Martha passou um relampago de colera fugitiva, mas
não disse nada. O que havia ella de dizer áquella gente, que a
considerava um traste... bem pago?

Adriana, a quem cabiam as honras da noite, sentou-se ao piano e tocou.

Tocou as musicas de Martha, com a agilidade e com o brio de uma pianista
experimentada.

Depois, levantando-se no meio de palmas e de bravos, indicou á mestra o
lugar que deixára n'uma especie de altivo desafio.

É que uma das irmãs de Julião lhe dissera n'um risinho de malicia, que o
irmão gostava muito de ouvir Martha.

A moça levantou-se com um gesto automatico, sentou-se ao piano e sem
mesmo olhar para as musicas dispersas principiou a tocar.

Foi um adeus soluçante, cheio de lagrimas, onde a espaços passavam como
brisas refrigerantes, umas vozes indizivelmente cariciosas!

Foi uma historia muito triste, que ainda ninguem tinha ouvido até alli,
a historia de um coração despedaçado!

Como ella lhe havia querido, ao seu bello sonho desfeito, e com que
dilacerante agonia lhe dizia para sempre adeus!

Na sala havia um silencio angustioso e profundo.

O silencio inconsciente que inspiram as grandes commoções.

Desde esse dia nunca mais ninguem ouviu a querida voz de Martha, aquella
voz que tinha por interpretes os mais sublimes artistas do mundo.

Ella continúa a dar lições ás filhas do commendador, e ha no seu sorriso
uma expressão divinamente dolorida, quando falla com Adriana, a feliz
esposa de Julião.



A MORTE DE BERTHA

(A NALY)


Minha Naly, ás vezes nos teus dias de bom humor, e sobre tudo nos raros
dias em que estás um pouco menos traquinas, vens sentar-te ao pé de mim,
n'um banco pequenino, e pegando n'um livro,--o teu livro de grandes
bonecos coloridos--, finges que estás lendo umas cousas que a tua
inquieta phantasiasinha de duende te representa, escriptas n'aquellas
paginas ainda mudas para os olhos da tua intelligencia.

Com o teu adoravel instincto imitador, arremedas-me inconscientemente.

És o meu epigramma vivo, um delicioso epigramma de olhos garços muito
abertos, muito intelligentes, muito maganos, como ainda não vi outros em
ninguem. Hontem, porém, estavas estranhamente curiosa.

Não te bastava o que fingias ler, querias mais, querias que alguem
inventasse por tua conta e risco, _fingisse ler_ para que tu ouvisses.

Levantaste a loura cabeça inquieta, e disseste com a voz que os anjos
costumam ensinar ás creanças:

--Contas-me uma historia?

Que historia te hei de eu contar, Naly? Com a tua alma de quatro annos,
tão limpa, tão transparente, tão cheia de ignorancias ideaes; com a tua
alma de flôr, só se entende a linguagem dos lyrios, só podem
comprehender-se cantos feitos de luar, de perfumes, de cantos de aves,
alguma cousa etherea, que eu te não sei dizer.

Venho contar-te esta historia para tu a leres mais tarde, quando a mão
de alguem--pede a Deus que seja a mão de tua mãe, Naly--houver arrancado
ao teu doce espirito de borboleta o pollen immaculado e scintillante com
que Deus o polvilhou e que tem um nome lindo, sabes qual?--a ignorancia!

Então saberás o que significam estas linhas escuras, alinhadas
symetricamente na brancura do papel; terás chorado muita lagrima, meu
anjo! a aprender cada uma d'estas letras, que hoje interpretas conforme
te inspira a tua vagabunda e caprichosa imaginação!

E sentada n'uma cadeira grande, muito direita, um pouco revestida da
elevada importancia do teu cargo de ledôra, repetirás alto á tua irmã
pequenina este conto verdadeiro que em tua intenção aqui venho traçar
hoje.

       *       *       *       *       *

A pequena Bertha tinha cinco annos, um só mais do que os que hoje
contas, Naly.

Era como tu, loura, muito loura; dera-lhe Nossa Senhora uma cabelleira
de anjo, fulva, luminosa, feita de pequeninos anneis que se enroscavam,
e que scintillavam ao sol, formando em torno d'ella como que um
esplendor de gloria.

Os olhos muito grandes, transparentes, azues pareciam ter no fundo um
segredo de doce tristeza. Um segredo que ella havia de saber muito
cedo... no céo!

O seu pequeno corpo, macio, feito da brancura das assucenas que
desabrocham em maio, exhalava como que um aroma de flôr.

Bem vês que Bertha era linda! Um amor! O orgulho e a ventura dos paes
que se reviam n'ella.

Vivia n'uma grande casa aristocratica, discreta, forrada de colgaduras,
de tapetes, de bellos quadros antigos.

Descendo os degraus de marmore da casa em que ella jantava, entre o pae
e a mãe, na sua cadeirinha de pés muito altos, ia ter a um grande jardim
cheio de arvores cuidadas e decotadas pela mão habil de um jardineiro
inglez.

Muito gostava do seu jardim a pequenina Bertha!

Imagina tu se ella não havia de gostar, Naly!

Havia lá tantas flôres, tantas flôres! e depois eram de tantos feitios!
Umas triumphantes, purpurinas, como se as tingisse um sangue novo e
generoso, outras tão brancas como os braços eburneos da mãe de Bertha,
algumas tinham uma pallidez fina e morbida, que lembrava a das bellas
senhoras que ella via passar resvalando como sombras gentis, pelos
atapetados salões da sua casa. Outras eram, de uma côr de rosa desmaiada
e doce, que acariciava os olhos de quem as via.

As campanulas azues, esbeltas, ephemeras, lembrando pequeninos calices
de crystal da Bohemia, trepavam amorosamente em volta dos troncos mais
robustos que as cercavam; as margaritas com a sua alvura _mate_ e o seu
feitio de estrellas resaltavam n'um adoravel contraste da verdura clara
e fresca dos taboleiros de relva.

Havia flôres muito direitas e esbeltas no pedunculo delgado, que faziam
scismar Bertha,--não sei bem porquê--, nas lindas princezas dos contos
de fadas, que vivem nos seus palacios á beira do mar, escondidas,
discretas e cheias de magestosa gentileza.

As camelias com a victoriosa belleza do seu teclado de côres vivas e tão
varias, lembravam a Bertha a musica que ella ouvira uma vez, n'um dia de
parada, no desfilar apparatoso das tropas, musica brilhante, sonora,
marcial, feita do estridor dos clarins, da fanfarra triumphante dos
instrumentos de cobre, de todas as notas bellicas que rebentavam no
espaço, como que n'uma explosão harmonica e sonora!

Gostava muito das violetas--pequeninas e modestas, denunciando-se a medo
pelo seu rasto de perfumes,--e que ella costumava procurar nas hervas
para encher com ellas a jarra de porcellana de Sèvres, que havia sempre
sobre a mesa de costura de sua mãe.

E não penses tu que gostava menos das arvores! oh! a alma de Bertha
expandia-se naturalmente para tudo que é bom e que é bello.

Levava horas a espreitar através dos ramos delicadamente recortados pela
thesoura do Celeste Jardineiro, o alto céo azul, tão cheio de luz, e
que sem ella saber porque, a estava chamando sempre!

Depois nas arvores é que vivem os passaros, é alli que elles dependuram
os ninhos, que elles modulam as suas cantigas sem _libretto_, que elles
cantam a quem passa as suas alegrias e as suas saudades.

As arvores são boas, hospitaleiras e carinhosas, como se tivessem uma
alma occulta sob a rugosa cortiça dos seus troncos.

Ellas dão sombra, dão frescura, dão fructos, dão flôr, dão um bom cheiro
sadio, que reconforta e alegra; as arvores, minha Naly, são as nossas
melhores amigas.

Tu has de saber mais tarde, que no mundo ha muito riso falso, muita
amizade fingida, muita cousa que a gente julga solida, e que no fim de
contas está construida sobre a areia; mas os vegetaes, os eternos amigos
do homem, os que o nutrem e se nutrem d'elle, oh! esses nunca nos mentem
nem atraiçoam, nem dão conselhos máus!

O jardim era, pois, para a nossa Bertha um mundo riquissimo, um mundo
mysterioso, onde a vida palpitava, no insecto, na planta, no musgo, na
ave, na terra fecunda e robusta, na arvore frondosa, na agua limpida e
corrente, em tudo que rescende e murmura, e canta, e pullula, em tudo
que enlaça a alma do homem n'uma cadeia feita de embevecimentos magicos.

       *       *       *       *       *

E as boas horas passadas no _gabinete azul_, o que ellas não valiam para
o pequenino coração de Bertha!

Sabes o que era o gabinete azul? era a saleta toda forrada e estofada de
setim azul, em que a mãe da nossa pequenina se conservava habitualmente.

Chamava-se Margarida a mãe de Bertha, e era formosa, de uma delicada e
fragil formosura, que despertava ao vel-a instinctos de piedade e de
protecção.

Alta, esbelta, levemente scismadora, como quem tem cuidados que a
preoccupem, sempre vestida de seda com punhos de cabeção de rendas
finas, um pouco amarelladas, que punham na _toilette_ de casa uns toques
de aristocratica distincção. Nos cabellos bastos, louros e frisados, uma
flôr quasi sempre colhida por Bertha.

O pae, esse era forte, robusto e sadio, mas tinha a virtude dos
valentes: a bondade. N'aquella physionomia accentuada e trigueira o
sorriso era tão doce que lembrava o desabrochar de um lyrio.

Não estava muito em casa, tinha que fazer fóra, andava ganhando a vida
de elegancias e de confortos, que viviam inconscientes, innocentemente
egoistas, os seus dous frageis amores--a mulher e a filha.

Mas quando elle estava, que festa!

Bertha, ora ennovellada aos pés da mãe, nas felpas avelludadas do
tapete, e com os grandes olhos curiosos fitos nos d'ella, ora folheando
um grande livro de imagens--como o teu, minha Naly--, ora empoleirada no
espaldar da larga poltrona onde o pae estava sentado, e passando-lhe a
pequenina mão crestada pela cabelladura revolta e crespa, Bertha era a
mais feliz das creaturinhas do bom Deus!

Era um gosto vel-os alli a todos tres, na intimidade d'aquelle viver de
familia!

Margarida, ao principio, trabalhava sempre; n'uns dias, um vestidinho
para a sua querida filha, n'outros dias, um pequeno objecto galante e
mimoso para o escriptorio do seu marido; de tempos a tempos um enxoval
para uma pobresinha, um enxoval muito aceiado, que Bertha dobrava e
desdobrava, que servia de thema para longas interrogações, e como que
iniciação da creança na doce caridade de sua mãe.

O pae, quando voltava, tinha sempre tanto que contar!

Gente que vira, casos que lhe haviam succedido! planos de futuro que
andava devaneando, e depois risos, brinquedos, correrias atrás do
diabrete da Berthazinha, eu sei!... o demonio a quatro!

Havia alli um conchego tepido, uma alegria, uma benção de Deus,
repartida por tres almas, e que parecia reflectir-se nas cousas mudas
que o cercavam servindo lhe de elegante e rendilhada moldura.

       *       *       *       *       *

Queres tu saber, Naly? Bertha tinha um defeito. Era um bocadinho
egoista. Um egoismo de tres, já se entende, porque ella não sabia
separar a sua vida da de seus paes.

Uma das manifestações mais claras d'este egoismo era a repugnancia que
tinha pelos estranhos.

Sentia frio ao pé d'elles; fugia muito pensativa e muito arisca quando
via um indifferente interpôr-se importunamente entre ella e as caricias
que eram o seu alimento de todos os instantes.

Mas a pessoa que mais lhe aggravava esta impressão hostil, era um primo
que por aquelle tempo começara a frequentar mais a casa.

Um moço, alto, elegante, bem parecido, muito fallador n'umas horas de
expansão, muito concentrado n'outras horas, de bigode retorcido e
triumphante, olhares que sabiam ser doces, e que eram quasi sempre
altivos.

E, comtudo, que meigo que elle era para Bertha, espreitando-lhe os
caprichos, conformando-se com as brincadeiras d'ella, trazendo-lhe
_bonitos_, flores, cousas novas, delicadas, que ella não vira nunca, e
que, no emtanto, vindas da mão d'elle lhe desagradavam instinctivamente.

É que tambem o _primo_ tornara-se d'uma assiduidade irritante!

_Primo_ para aqui, _primo_ para alli, toda a gente gostava d'elle, para
cada pessoa tinha um dito amavel, uma intenção delicada, uma lisonja
habilmente escondida!

Tratavam-n'o por _tu_, era admittido nas festas intimas da familia, ia
ao jardim apanhar flores, acompanhava a _mamã_ ao theatro! Uma usurpação
em fórma, uma usurpação revestida de todas as circumstancias
aggravantes!

E depois usava essencias.

Bertha declarara com ar solemne e magestoso, que embirrava muito com o
primo, porque elle cheirava a _pat-chouly_.

E ella que andava habituada aos aromas frescos e sadios da livre
natureza, não podia supportar aquelle cheiro de essencias requintadas, a
que dava este nome generico e detestado.

A _mamã_ por ter de atural-o a cada instante, renunciára aos seus dôces
trabalhos d'outro tempo, de que Bertha gostava tanto, e que davam ás
suas mãosinhas travessas a sensação grata das sedas, das bonitas
fazendas desdobradas sobre o estofo das poltronas, de todas as graciosas
cousas com que podia brincar.

Andava triste a sua adorada mãesinha.

Tinha horas de melancholia morbida em que a cabeça lhe cahia no peito,
como se tivesse dentro estranho pezo. E ficava-se horas e horas calada e
desfallecida, com um livro aberto no regaço, ou com um trabalho apenas
começado cahido aos pés, sem ouvir o papaguear festivo da sua pequena
Bertha.

Quando voltava a si d'aquellas scismas doentias, parecia acordar d'um
mau sonho, passava a mão pela testa, bebia agua, muita agua, e beijava a
filha com um arrebatamento que lhe fazia mal.

A pequenita enfastiava-se!

Pudéra!

Fugia só para o jardim, sem que uma voz sollicita e assustada a chamasse
de longe, sem que uns olhos inquietos a velassem de perto, e punha-se
n'uma indistincta e muda linguagem que só as suas flores entendiam a
queixar-se das tristezas vagas, que a definhavam longe do calor que
d'antes a acalentava e aquecia.

As tardes do _gabinete azul_, os principios da noite, quando cahia do
alto dos céos a penumbra indecisa e dubia do crepusculo, tudo aquillo
perdera a sua graça, a sua antiga e ideal doçura!

No silencio constrangido da saleta, retiniam então os passos
conquistadores do _intruso_, e Bertha com vontade de romper em soluços,
pedia muito depressa que a fossem deitar.

Chamava-se a creada, vinha, levava-a pela mão, amuada, e ella, ao
aconchegar-se nas roupinhas do seu leito, sentia ainda uma estranha
impressão de desconforto e de frio. Era o beijo distrahido e formalista,
que lhe haviam imprimido na testa os labios quentes, seccos e febris de
sua mãe.

       *       *       *       *       *

Era noite de festa para Berthazinha.

Estavam sós todos tres no _gabinete azul_, o paraiso d'outr'ora, onde
agora não havia senão flores... que ella não colhêra!

Bertha alcançara licença para se deitar ás nove horas.

Que bom!

Um longo serão de risos, de conversas sem tom nem som, de tagarelice
inextinguivel. O livro das grandes imagens, a boneca deitada no tapete,
uma profusão de _bonitos_ de todos os feitios--alguns, por peccados de
Bertha, tinha-lh'os dado o negregado primo! emfim por aquelle dia,
Bertha estava magnanima. Perdoava-lhes o virem da mão de quem vinham!--e
elles dous, os dous amores, o _papá_ e a _mamã_ ao fogão, conversando
com a intimidade feliz de quem se quer muito!

É verdade que a mamã estava pallida, tinha até nos olhos umas orlas
rôxas que pareciam de febre, e uma luz exquisita que lembrava aquelles
clarões subitos e phosphoricos, que costumam accender as bruxas, quando
fazem os seus encantamentos e _maus olhados_.

Oh! mas que importavam a Bertha symptomas que ella não via!

Estava contente, contente, e ia-se enthusiasmando a pouco e pouco, á
proporção que a alegria lhe inundava como uma onda a pequenina alma
luminosa!

Um beijo no papá, uma festinha na mamã, e aqui desmanchava um canudo,
acolá despregava um alfinete, depois fechava um livro que ia começar a
ler, amarrotava uma renda, trepava para cima d'uma cadeira!

Que anjo! que demonico, feito d'um bocadinho de azul!

N'isto, por um movimento rapido e imprevisto, atirou-se ao collo da mãe,
mergulhou a mãosinha no decote quadrado do vestido, amachucou uma rosa,
que ali parecia aninhar-se no meio das rendas, e arrancou com gesto
triumphante um papel, um papel côr de perola amarrotado.

--Oh! gritou a mãe, fazendo-se mais branca do que a cal; dá cá, dá cá,
isso é-me preciso.

Quem disse lá que ella respondia!

Fugira rindo, rindo como uma doudinha, e fôra esconder-se entre os
joelhos do pae, agitando com um gesto de graça inimitavel o roubado
trophéo.

A mãe erguêra-se convulsa, tremula, com tamanho desvairamento e tamanha
angustia no olhar e na voz, que dir-se-hia que a esmagava uma
catastrophe imprevista e tremenda.

--Dá cá, dá cá, murmurou ainda desfallecida e supplicante.

--Papá, papá, esconde tu, respondia Bertha, n'uma convulsão de riso. Ih!
cheira a _pat-chouly_, cheira a _pat-chouly_.

Elle e ella, a mãe e o pae, olharam-se.

Tu nunca viste um olhar assim, Naly, nem eu, e Deus nos defenda de o
vermos nunca!

Foi mudo, foi longo, foi sinistro! Um poema de agonias silenciosas!

Depois o pae de Bertha, afastando a creança com um gesto lento,
desdobrou o papel e leu.

       *       *       *       *       *

Já lá vai um anno depois d'aquella noite de festa, em que Bertha
alcançou licença para se deitar ás nove horas.

N'um anno quantas differenças póde fazer uma existencia!

É muda e triste a casa onde vimos tantos risos, está descuidado e cheio
de hervas o jardim onde brincava um pequenino sêr feito da luz das
auroras, e da innocencia dos lyrios.

Bertha está doente.

Na sua alcova branca e silenciosa, á luz dubia de uma lamparina de
jaspe, vela uma criada, emquanto a loura pequenina fita no tecto os
grandes olhos azues e parece seguir as visões phantasticas de um sonho
de febre.

Ao principio era feliz, muito feliz. Quem e que viera destruir todas
aquellas alegrias que pareciam querer durar sempre? A pobre doentinha
não o sabia.

Diante dos olhos d'ella dançava teimosamente um grande demonio escuro,
com muitos _bonitos_ nas mãos e com um bigode retorcido e triumphante.

Que vinha fazer alli aquelle demonio? Quem póde explicar o que são as
visões de um delirio!

Depois uma certa noite, doce, allumiada, festiva. Que succedêra n'essa
noite? Meu Deus! Ella brincára muito, ainda mais que o seu costume. Não
lhe lembrava mais nada, senão que fôra deitar-se a chorar. Tambem não
sabia porquê.

Desde então é que a sua vida mudára.

O pae repellia-a de si, sempre que ella lhe estendia os bracinhos,
empurrava-a quando ella queria beijal-o!

Nunca mais houvera os serões do gabinete azul, nunca mais ouvira aquella
voz paterna, tão grave, tão meiga, tão musical, acaricial-a como
antigamente!

E a mãe?... A mãe definhava sósinha, mas n'aquella tristeza desolada,
não admittia os beijos da sua Bertha d'outro tempo.

Um dia dissera-lhe asperamente, com um brilho secco no olhar:

--Vae-te d'aqui! És a causa da minha desgraça toda.

Bertha não percebeu o que aquellas palavras significavam, mas percebeu o
ar com que foram ditas!

Nunca mais foi ao jardim! nunca mais viu a capoeira nem o viveiro dos
canarios, nem os peixinhos vermelhos do tanque!

Tinha sempre frio, muito frio.

Tiritava horas e horas a um canto da _casa de engommar_ onde as criadas
riam e palestravam indifferentes, com uma expressão de espanto, de
surpresa, de desolação selvagem no olhar!

Parecia-lhe a ella que tambem estava na vida como uma intrusa. O que
viera ella cá fazer? Por que se não ia embora?

Sentia que alguem estava á espera d'ella, lá em cima, n'um sitio onde
havia muito azul, muitas flôres, um jardim mais bonito que o que fôra
d'ella, uns serões mais placidos e mais cheios de risos e de caricias
que os amados serões de outro tempo... que não podiam voltar!

E abrindo os braços, fez um doce gesto de ave espavorida que vae
levantar o vôo para o infinito!

       *       *       *       *       *

--Ai! a menina que vae morrer!--bradou a criada com muita ancia.--Chamem
a senhora, chamem o senhor, este anjinho diz que lhes quer dizer adeus!

Ouviam-se portas que se abriam, vozes angustiosas que chamavam...
depois, por duas portas differentes, entraram duas pessoas.

Dous espectros do que tinham sido.

Olharam-se como que admirados de se verem alli juntos!

Miraram-se curiosamente como para sondarem os grandes abysmos que os
separavam dos dias d'outr'ora!

Depois sem quererem, olharam ambos movidos pelo mesmo impulso para o
pequeno leito de cortinados brancos.

Uma voz dulcissima, toda mimo e toda supplica, chamou-os d'alli:

--Papá! mamã! adeus! Digam-me que são meus amigos agora que eu vou
morrer! Como é bom ir para o céo! Nunca mais hei-de ter frio!...

Se não fosse a voz e a expressão divina d'aquelle olhar, quem diria que
aquella que fallava era a pequenina Bertha!

--Ó papá, console a mamã, já que eu me vou embora! Voltem para o
gabinete azul, e ao serão não se esqueçam de fallar de mim!

Puxou-os a ambos com uma força que não parecia já d'este mundo, e
abraçou-os unidos contra o coração!

Todos tres como d'antes!

       *       *       *       *       *

Quando ambos se ergueram d'aquelle supremo abraço, os bracinhos d'ella
tinham afrouxado e cahido.

--Perdôa-me pela nossa filha que morreu! soluçou a voz d'aquella mãe
dolorida!

--Perdão! papá! ciciou como uma caricia de aragem uma voz que ninguem
soube dizer se vinha da terra se do céo.

       *       *       *       *       *


FIM DA PRIMEIRA PARTE



SEGUNDA PARTE



A PROPOSITO DE UM LIVRO


Ha momentos em que eu não posso deixar de me sentir desconsolada.
Parece-me n'esses momentos que a humanidade está passando por uma das
crises mais graves da sua vida de tantos seculos.

E quem terá forças para conservar-se espectador indifferente d'essa
dolorosa tragedia de que é theatro o mundo inteiro!

Theorias que se atropellam e se contradizem, systemas politicos que
mutuamente se combatem, opiniões tão variadas, ácerca das cousas graves
e das cousas insignificantes, que não nos resta meio algum de
descortinar a verdade em meio de tão babylonica confusão.

Na pratica o desmentido formal e permanente a todas as doutrinas que se
prégam e se propagam!

Celebra-se a apotheose da familia, e a familia decadente, desnorteada,
desunida, apresenta o reflexo fiel d'esta quadra de desalento e de
incerteza!

Emquanto os sonhadores erguem um altar á justiça, como á deusa moderna
que mais cultos merece, a injustiça acclamada, protegida, triumphante
campeia n'este mundo onde a victoria já não pertence ao mais forte, mas
sim ao mais astuto!

A politica, que parecia dever ser aquella sciencia complexa e
respeitavel de conduzir as sociedades ao mais alto grau de
aperfeiçoamento material e moral, não é senão um mercado abjecto, onde
se debatem os mesquinhos interesses individuaes, não aquelles interesses
que são a base do bem collectivo, mas os que se traduzem na exploração
do homem pelo homem.

A guerra aqui acesa e selvagem, de uma selvageria refinada e
scientifica, acolá disfarçada e hypocrita, arma-se por toda a parte,
como nos seculos que lá vão, egualmente funesta, embora a revistam mais
prestigiosos aspectos.

Falla-se em paz, em fraternidade universal, préga-se uma religião humana
que parece querer e dever supprir a religião divina, mas os modernos
crentes d'esse dogma que assenta no direito, na justiça, no amor
universal, atraiçoam tanto as suas doutrinas, como atraiçoavam a sua fé
os catholicos mal esclarecidos das épocas de ascetismo rude, e de
fanatica superstição.

Para onde vamos nós?

Se vamos para o Bem, o que é que origina esta dolorosa inquietação, que
avassalla e confrange todas as almas, este contraste incomprehensivel,
entre o que se pratica e o que se pensa?

Se vamos para o Mal, para que nos fallam do progresso, da
perfectibilidade humana, das conquistas da civilisação, dos arrojos
felizes da sciencia, de tudo que parece preparar ao homem uma quadra
luminosa, feliz, nunca realisada até agora?

D'antes, n'estas horas de duvida, de angustia oppressiva, iamos nós
procurar consolação na palavra animadora e harmoniosa dos que, com os
olhos fitos na estrella do ideal, indicavam ao homem o rumo que elle
tinha a seguir, para não se perder na sua gloriosa ascenção.

Hoje, esses pilotos da náu do futuro estão mudos ou descrêem tambem!

Mais doloroso ainda que o silencio desalentado, é o rictus sarcastico
com que elles assistem á lucta estranha e confusa de tantos elementos
contradictorios e incompativeis.

Depois a litteratura, que é o espelho da alma das sociedades, é hoje
por toda a parte um brado unanime de negação.

Não reconstrue, não modifica o que está feito, trata de o desmoronar
pedra por pedra!

Ha um homem em França que refaz, collocado n'um ponto de vista diverso,
a obra collossal de Balsac.

O romancista mais admiravel da França, aquelle que fez do romance um
ramo das sciencias sociaes, fez n'um momento, que tem por força de
ficar, a synthese de sua época.

Pintou, e com que potencia da verdade! os reis, e os operarios, as
duquezas sentimentaes, e os artistas convulsionados pela _nevrose_ do
seu tempo, os politicos, os sabios, os pensadores, os litteratos; as
peccadoras do alto mundo, e as peccadoras do mundo equivoco; os
financeiros, e os luctadores ambiciosos; os que vinham perder a alma e
gastar o corpo n'essa Pariz electrica e absorvente, que attrahe os
genios e os monstros, e os que vinham alli conquistar a fortuna, o
poder, a soberania omnipotente.

Na sua obra complexa, enorme, que ás vezes tem na distancia um não sei
que de monstruoso, encontra-se viva, palpitante, com os seus vicios, com
as suas paixões, com o seu talento ardente, com a sua magnetica e
irresistivel seducção, uma das épocas mais caracteristicas da
civilisação da França, o que significa a civilisação da Europa.

Se em Balzac encontramos as florescencias rubras do mal, nem por isso
nos seduzem menos as suavidades castas da virtude.

Ao pé de Madame de Marneffe, a pequenina e graciosa féra parisiense,
felina e nervosa, com caricias que mordem e furores que acariciam, ha a
doce figura de Eugenia Grandet, a mais dolorosa virgem, que a imaginação
moderna ainda concebeu e idealisou.

Ao pé de Luciano de Rubempré o ambicioso effeminado e morbido; de
Vautrin o brutal luctador que seria um _condottiere_ do seculo XVI e que
só póde ser um forçado no seculo XIX; ao pé de Marsay o politico sagaz,
que faz dos homens, das mulheres e das cousas, meros instrumentos da sua
fortuna, que não tem lei nem fé, e que é capaz de assassinar com um
sorriso de _dandy_, temos d'Arthés o pensador austero, e pobre escriptor
para quem a litteratura é um magisterio e não um officio, temos Cesar
Birotteau, a sublimidade burgueza, o honesto commerciante que tem
palavra de duque, que é perfumista com a mesma nobreza de abnegação e de
honradez, com que se é sacerdote, e que glorifica toda uma classe de que
se riem os frivolos, sem saber quanta heroicidade é precisa para saber
guardar immaculada em um peito de burguez, a honra de um paladino.

Dizem que o vicio pollula na obra de Balzac com uma exhuberancia de
vegetação inacreditavel.

Elle não foi mais do que o analysta apaixonado da sua época.

Adorou-a pelo que ella tinha de grande, comprehendeu que lhe podia
desnudar as chagas, visto que ao lado d'ellas podia mostrar tão
admiraveis bellezas.

Foi implacavel na sua justiça.

O seu tempo seduziu-o pelo que havia de brilhante nos seus vicios, de
fecundo e poderoso nas suas paixões, de arrebatado e creador no seu
genio, de raro e dedicado nas suas virtudes.

Hoje no artista que segue as pisadas de Balsac, que não tem a sua
potencia creadora, mas que tem como elle, e talvez mais methodicamente
do que elle, o estudo paciente e investigador, que vemos nós que possa
dar-nos aquella sensação de prazer agudo que a leitura conscienciosa de
Balzac dá a um verdadeiro artista?

Emilio Zola tambem descreve a sua época.

É artista, porque sente e sabe fazer sentir.

Diz-se imparcial!

Faz viver nos seus livros a sociedade de que faz parte; entra nos
palacetes de pedraria rendilhada dos modernos financeiros, os reis do
mundo actual, percorre os salões doirados e os _boudoirs_ phantasistas,
as salas de jantar, onde se reunem as reliquias mais preciosas de umas
poucas de civilisações, janta nos _restaurantes_ de mais fama, visita
nos seus camarotes da _opera_ ou dos _italianos_ as mundanas mais
elegantes, as _hautes gommeuses_ mais admiradas e invejadas, está no
segredo de todas as operações da Bolsa, escutou a uma porta todas as
combinações e convenios diplomaticos, penetrou com a sua perspicacia
tenaz no interior da alma que anima o seu tempo, fallou com os artistas,
com os sabios, com os poetas, com as mulheres; subiu aos oitavos andares
onde dormem amalgamados n'uma dolorosa e medonha promiscuidade os
miseraveis d'essa Pariz, cuja superficie é tão seductora e tão
brilhante; viu os farrapos que cobriam o corpo d'esses indigentes, e os
vermes que corroiam a alma d'esses parias; escutou as perfumadas
confidencias que murmuram devagarinho uns labios frescos e vermelhos,
por detraz d'um leque onde dançam a _gavotte_ umas pastorinhas de
Watteau.

Observou de perto o que ha de mais brilhante e o que ha de mais abjecto,
o que ha de mais puro e o que ha de mais ignobil.

D'essa observação tão variada e tão completa que resultado colheu?

Não o posso dizer ao certo, sei só que não ha nada mais desolador e mais
triste do que a leitura d'um livro de Zola.

E Zola é, depois de Tlambert, o grande _mestre_ que morreu, o escriptor
de mais pulso da moderna geração realista.

Os outros não téem o talento d'elle, não téem o alcance funesto ou bom,
mas em todo o caso poderosissimo da sua obra, não téem a sua paciencia
de benedictino, exercida com os processos da nova escola.

Isto não é dizer mal dos que trabalham agora, é notar e assignalar um
dos symptomas da confusão que hoje nos desnorteia.

       *       *       *       *       *

Acudiam-me todos estes pensamentos, imagina como, leitora?

Ao lêr um novo livro de Feuillet, ultimamente publicado em Pariz _Le
journal d'une femme_.

Feuillet é por excellencia o escriptor elegante e delicado.

No fundo, póde ser que a obra d'elle tomada no seu conjuncto não seja de
uma moralidade tão cauterisadora como a que resulta dos livros de Zola.

Ninguem diga que Zola é um escriptor immoral, não; elle é simplesmente
um escriptor mysantropo: vê as cousas pelo lado mais negro, e as suas
bachanaes, nuas como são, não téem effeitos enervantes, doem como um
caustico applicado sobre uma ulcera aberta.

Ao lel-o, a gente não tem de certo tentações de imitar os seus
deploraveis heroes; pelo contrario. Sente-se ferida, humilhada, quasi
que angustiada, e exclama tristemente: Meu Deus! pois a humanidade é
isto!

Octavio Feuillet é, por assim dizer, o contraste do seu illustre
contemporaneo.

Escreve das mulheres e para as mulheres com penna d'ouro e nacar.

Feuillet é o ultimo romantico, depois do romantismo ter morrido, como
Balzac é o primeiro realista antes do _realismo_ nascer.

Para Feuillet, o delicado observador, as paixões são doenças da alma;
para Zola, o anatomista implacavel, as paixões são doenças do corpo.

O convulso e repugnante hysterismo das mulheres de Zola não tem nada que
vêr com a sentimentalidade melancolica das mulheres de Feuillet.

Nenhuma d'ellas--deixe-se isto bem claramente registrado para honra e
felicidade do sexo feminino--nenhuma d'ellas é a verdadeira mulher, a
que tinha a obrigação de ser a mulher do futuro, já me não atrevo a
dizer da que o será.

Octavio Feuillet, que está talvez perto demais das cruas pinturas do
realismo, intentou n'este seu ultimo livro, chamado _Le journal d'une
femme_, rehabilitar as ideias romanticas, que visto perderem tantas
mulheres, podem tambem salvar algumas.

Elle que sabe tão bem dar vida ás suas pallidas e nervosas heroinas, que
téem na bocca o sorriso da esphinge, que téem na voz uns feitiços
mysteriosos, que téem no gesto uma graça irrequieta e caprichosa, que
sabem arrastar o homem até á beira do crime com um aceno das suas mãos
esguias e aristocratas, elle, o creador do Conde de Camors, esse ultimo
producto da litteratura byroniana, que endoudeceu de _amor litterario_
tanta mulher, eil-o que se propõe d'esta vez o difficil thema de
explicar a que nobres e altos sacrificios o _romantismo_ bem entendido
póde levantar uma mulher.

Foi arrojada a empreza; arrojada, mas feliz.

_Le journal d'une femme_, livro que eu já d'aqui recommendo a todas as
minhas leitoras, é uma joia admiravel, cinzelada pela mão de um artista
de coração.

E depois são taes os exageros e desmandos da chamada _escola realista_,
é tal o amesquinhamento a que ella reduz a humanidade, que é bom que um
escriptor de tão prestigiosa eloquencia como é _Octavio Feuillet_ mostre
que, no fim de contas, nem tudo era mau na geração que os moços de hoje
tentam desthronar com tão arrogante desdem.

Roubar ao homem e sobretudo á mulher aquelle ideal em que até agora
todos punham a mira embora o julgassem inacessivel, é despir a vida das
poucas flôres que ella póde ter.

Não; o homem não é só um ser organisado que pensa, é tambem uma alma que
ama, espera e crê!

N'esta era de transformação e de incerta claridade, é bom que uma voz se
erga e diga bem alto que a paixão só é criminosa quando mal dirigida,
que o excesso do sentimento só é ridiculo quando mal applicado, que a
abnegação inteira e absoluta tem gozos superiores a todos os gozos da
materia, e que as almas boas e as almas grandes descobriram uma
linguagem mysteriosa, na qual fallam com Deus.

Não basta descrever minuciosamente com uma perversão de gosto, devéras
deploravel, tudo que ha mau, grotesco, ou vicioso na creação; não basta
ter em si tão accentuada preoccupação horrivel, que se deseje vêr com o
microscopio do naturalista, para bem lhe distinguir os defeitos, as
anfractuosidades, as maculas, os vermes, de tudo que á simples vista
seria harmonioso e bello.

Áquelle a quem se roubam todas as illusões salutares cumpre apontar para
algum bem que ainda lhe ficará na terra, bem verdadeiro que o compense
de todas as suas perdidas alegrias mentirosas!

Não basta negar, é necessario affirmar com convicção robusta; não basta
demolir, é preciso ao lado dos edificios que se derrubam e desmoronam
construir novos edificios mais ricos e mais seguros.

Octavio Feuillet fez este livro, como um protesto de escola, sem comtudo
perder com esta qualidade um tanto dogmatica, o seu interesse dramatico,
a vida intensa, tão indispensavel ás verdadeiras obras d'arte.

Dado o caso de se chamar romantismo ao excesso de certos e determinados
sentimentos, á concepção mais ou menos chimerica que temos das cousas da
vida, resta provar se o romantismo póde ou não póde ser nocivo conforme
o terreno em que medrar e o meio em que se desenvolver.

A principal heroina do romance, aquella que escreve o seu Diario, ao
qual dá o titulo de livro, é uma rapariga apaixonadamente romantica,
tudo quanto ha mais romantico, quer dizer tudo quanto ha de menos
pratico e real.

Por isso sendo moça, formosissima, sentindo cantar dentro da sua alma a
festiva e triumphante symphonia dos vinte annos, tendo uma d'estas
bellezas caracteristicas que dão a certas mulheres um aspecto de deusas,
amando com aquella primeira e casta ternura das virgens um homem em tudo
digno d'ella, sacrifica todas estas superioridades da natureza, todas
estas radiosas promessas de felicidade a quem? a que?

A um pobre mutilado que morria de amor por ella, a um soldado que
voltára da guerra sem uma perna e sem um braço, informe, grotesco,
irremediavelmente desgraçado, e que, assim mesmo do fundo do abysmo em
que o destino o lançára, ousou amar aquella mulher olympica, e teve a
audacia de tentar morrer por causa d'ella.

Emquanto elle viveu, foi-lhe fiel como as mulheres dignas o sabem ser,
consolou-o de tudo que perdera, levou a luz da sua caridade bemdita aos
antros em que aquella pobre alma se debatera inutilmente por tanto
tempo.

Mais tarde quando o marido morre, abençoando-a como se abençôa um anjo,
ella, livre de novo, torna a encontrar o homem que amou uma vez, e que
não soube esquecer.

Esse é então marido da amiga, da infancia, da juvenil viuva.

Não são felizes, os dous, mas ella, a intrepida, a caridosa creatura, lá
está tentando da abnegação de cada um d'elles fazer a felicidade de
ambos.

Não o consegue, e quando a amiga, culpada e arrependida se mata para
fugir ao horror de mentir eternamente a seu marido, só ella no mundo
recebe a confidencia do seu crime, confidencia que n'uma carta repassada
de dôr a douda creança lhe pede que transmitta ao esposo ultrajado.

Ficaram ambos livres em face um do outro, ambos viuvos, ambos tendo
cumprido a missão que o destino lhe confiára.

Nada os desune agora, nada, a não ser uma duvida que punge o animo
d'aquelle, que hoje ella ama perdidamente com a paixão concentrada de
tantos annos de sacrificio.

--Porque foi que a minha mulher se matou? pergunta elle então. Ás vezes
lembro-me que foi talvez o desamor que eu não soube occultar bastante.
Se assim fôr, fugirei. Não quero gozar uma ventura de que não sou digno.
Se eu matei uma innocente e casta creança, quem me dá direito a ser
ainda feliz na terra?

Só ella o sabe, só d'ella depende aquella ventura divina, de que o dever
e a caridade a fizeram fugir n'outro tempo.

Pois a ninguem revelou o segredo da sua amiga morta, da doce creatura
que a paixão fustigara e que a paixão matou!

Calou-se, deixou que o noivo da sua alma se affastasse para sempre,
pungido por um remorso que o separava da ventura, e olhando para o berço
da filha escreveu estas palavras que vertem lagrimas, as santas
lagrimas, que os _realistas_ não conhecem:

«Restas-me tu, minha filha... Escrevo estas linhas ao pé do teu
bercinho... Espero que um dia estas paginas façam parte do teu enxoval
de noiva; talvez ellas te digam que queiras muito á tua pobre mãe, tão
romantica!... D'ella saberás talvez que a paixão e o romance podem ser
bons, com a ajuda de Deus, porque elevam os corações e ensinam-lhes os
deveres superiores, os grandes sacrificios, as elevadas alegrias da
vida. É verdade que eu chóro ao dizer-te isto, mas olha que ha lagrimas
que causam inveja aos anjos.



MADAME DE BALSAC


I

Ha tempo annunciaram os jornaes que a viuva do grande romancista vinha
fazer uma viagem á Peninsula e que partira já de Paris em direcção á
capital de Hespanha.

Senti então um impeto de curiosidade verdadeiramente irresistivel.

Pensei em vêr a deliciosa russa e em conhecer n'ella humanado e visivel,
um de aquelles immoredouros typos femininos, de que Balsac foi o
analysta assombroso, se é que não foi o phantastico creador.

Em Madame de Balsac havia de haver por força muito d'aquelle homem que é
o producto mais genuino da sua época e do seu meio; homem prodigio, que
era ao mesmo tempo o espirito mais sceptico e o mais supersticioso, o
mais corrupto e o mais infantil, o mais cultivado e o mais ignorante, o
mais positivo e o mais phantasista, o mais atrozmente eivado de todos os
venenos corrosivos da civilisação moderna, e o mais primitivo e
adoravelmente poetico que existe no mundo da Arte.

Ella conhecera-o por muitos annos, mesmo antes de ser sua mulher,
amparara-o muitas vezes nas suas luctas cyclopicas contra os modernos
monstros--a Divida, a Calumnia, a Inveja--e tantos outros que lhe
retalhavam o coração com as garras sanguinarias; acolhera-o muitas
outras, cançado, vencido, aniquillado, depois de uma d'aquellas
vertiginosas viagens pelos mundos chymericos do Impossivel; vira-o
partir montado no fogoso Pegaso do sonho. Imaginario terrivel, moderno e
mais complicado D. Quichote, em busca de tesouros que nunca existiram,
de fabulosas hypotheses em que ninguem acreditava, de ideaes entrevistos
que lhe davam o deslumbramento extatico e paradisiaco; ouvira-lhe depois
no seu regresso ao mundo da realidade o rir estrondoso e _rabelaisiano_,
rir de um gigante em horas de gaudio, rir só digno d'aquella natureza
robusta e fecunda em contrastes, que tinha todos os requintes
aristocraticos e todas as grossas expansões plebeias; conheçera-o a
fundo, debaixo de todos os aspectos, e aos meus olhos havia n'ella uma
attração extranha e magnetica como quem visitou o antro de um leão e o
domou meigo e dôce aos seus pés pequeninos.

Levei então horas e horas ideiando o meio porque me havia de approximar,
eu obscura e desconhecida da illustre mulher, duplamente celebre pelo
merito pessoal, e pelo genio de que era como que o reflexo vivo.

Quando estava no meio d'estas locubrações inoffensivas aconteceu o que
era de esperar: a condessa Hanskan de Balsac, entendeu que Portugal, o
Portugal tão querido dos poetas patriotas, não era digno de uma visita
sua.

Resignei-me, portanto, a conhecêl-a sómente atravez de um livro que é a
obra-prima de Balsac, o auctor de tantas obras primas que não morrem.

Este livro é a _Correspondencia_ do grande escriptor, publicada ha pouco
pela casa Calmann Levy.

Não conhecemos, podemos affoitamente confessal-o, livro mais dramatico,
mais cheio de vida e de interesse, mais _empoignant_, permitta-se-nos o
expressivo francezismo.

N'estes dous volumes de cartas apparece-nos Balsac em toda a potencia da
sua extraordinaria individualidade, e conhecer Balsac é como que
conhecer a sua época, a sociedade que o produziu e formou, os vicios,
virtudes, preoccupações, sentimentos, ideias e paixões do seculo
extraordinario, de que elle é a synthese mais completa, seculo agitado
por esse poder fecundo e malefico chamado _Oiro_ que tamanha influencia
exerceu na vida intima de Balsac.

Nos livros devidos á penna do fecundo escriptor, o oiro com o seu brilho
fulvo, com as suas tentações diabolicas, com o seu cortejo de visões
sinistras ou luminosas, com as suas miragens attrahentes e enganadoras,
com as paixões phreneticas que elle cria, que elle excita, que elle
exacerba, com os milagres de que é a fonte tantas vezes turva, com os
explendores de que é o mais perfeito creador, o oiro, esse inimigo, esse
auxiliar, esse idolo humano, scintilla, tremeluz, precipita-se em
cascatas fulgidas, doira com o seu reflexo infernal todas as cousas,
communica um não sei que de vertiginoso e satanico a todas as creaturas
e a todos os objectos, produz allucinações doentias que desorientam e
desvairam.

Esta preoccupação, que tanto nos espanta nos romances eminentemente
modernos de pintor mais perfeito e mais _realista_ que a sociedade
franceza do seculo XIX encontrou, transparece, na existencia inteira do
homem, e explica-se por todos os factos do seu agitado viver.

Ganhar dinheiro, muito dinheiro, o que bastasse para saciar as ambições
mais desregradas, os desejos mais insensatos, o ideal de luxo mais
artistico e requintado, os sonhos mais orientaes de um _nababo_ ebrio de
_haschish_, eis o ficto que preencheu a vida de Balsac.

Á primeira vista a gente imagina que o escriptor lhe sacrificou e
subordinou tudo o mais.

Engano!

Emquanto aquella phantasia desenfreada e febril revolvia milhões,
aspirava á opulencia das _Mil e uma noites_, se lançava nas mais doidas
especulações, escavava minas que não havia, procurava thesouros
occultos, se exhauria emfim n'uma lucta impossivel e tenaz contra a
mediocridade da sua fortuna, o escriptor severo e consciencioso não
sacrificava ao ganho nem uma diminuta parcella da sua legitima gloria.

Os editores ajustavam pagar-lhe um livro por certa e determinada
quantia, muitas vezes vantajosa para o orçamento do poeta, mas
conhecendo-lhe a singularidade do caracter especificavam no contracto
que o auctor só teria direito a receber um certo numero de provas, e
que, excedido elle, as correcções seriam por sua conta.

Muitas vezes todo o preço do romance era esgotado nas correcções que
Balsac fazia á sua custa, tão elevada era a ideia que elle tinha da
perfeição da Arte.

Esmagado debaixo do peso das dividas, que todos os dias pagava e todos
os dias cresciam, trabalhou como um titan, trabalhou sem descanço, sem
treguas, com phrenezi, com paixão, com tenacidade de que só era capaz
aquelle organismo d'uma robustez antiga, e ao mesmo tempo vibratil,
nervoso, delicado como o de uma mulher.

Chegou a escrever consecutivamente e sem descanço pelo espaço de
quarenta e oito horas, conservando-se n'uma exaltação artificial,
produzida pelo fortissimo café, que bebia em grandes doses.

Quem deixaria de succumbir a esta vida de martyrio?

Apesar do seu estranho vigor, aos cincoenta e um annos Balsac succumbia
a um aneurisma, tendo produzido dezenas e dezenas de obras admiraveis,
que bastariam, repartidas, para constituir a fama de vinte escriptores.

Morreu com a penna na mão, tendo attingido as duas ambições supremas da
sua vida; morreu sendo _amado_ e sendo _celebre_, mas morreu antes de
haver podido saborear no repouso e na dilatação tranquilla da alma o
_amor_ conquistado em annos e annos de servidão cavalleiresca, de
castidade monastica, de paixão secreta e delicada; a _celebridade_
adquirida em trinta annos do mais infatigavel e violento labutar que
ainda um espirito de homem concebeu e realisou.

Quanto mais se estuda aquella vida singular, maior pasmo nos avassalla o
entendimento.

Todo elle era contrastes incomprehensiveis, dos quaes, no entanto, tinha
a consciencia definida e clara.

Pondo na bocca d'um dos seus protagonistas pensamentos que eram seus,
diz elle analysando a sua propria vida:

«Amante effeminado da preguiça oriental, namorado dos meus sonhos,
sensual por temperamento, trabalhei sempre sem repouso, recusando-me a
todos os gozos da vida parisiense; guloso, fui sobrio; gostando dos
grandes passeios, das longas viagens maritimas, desejando conhecer todos
os paizes da terra, vivi constantemente immovel, sedentario, com a penna
na mão, amarrado á banca do trabalho; fallador, loquaz, communicativo,
ia escutar em silencio os professores nos cursos publicos da bibliotheca
e do museu; vivi solitario como um monge benedictino, e a mulher no
entanto era a minha chimera unica, chimera sempre acariciada, e sempre
esquiva.»

O que elle aqui não diz, mas o que mais d'uma vez lhe foge dos labios e
dos biccos da penna, n'um grito doloroso e dilacerante de agonia
prophetica, é que a morte implacavel ha de vir colhel-o no instante em
que elle já extenuado de tantas luctas ia tocar a méta do seu desejar
infrene.

O que torna mais digno de um curioso estudo a indole litteraria de
Balsac é a revelação feita pelos seus amigos e confirmada por elle
proprio, da excessiva difficuldade, que o romancista encontrava para
achar um molde adequado ao seu pensamento tão profundo e complexo.

A palavra trahia-o a cada instante, a lingua, como a Galatheia da
fabula, recusava-se a ceder ás febris solicitações do seu pensamento,
fugia-lhe ondeante e caprichosa, e elle impotente, desesperado, ardendo
em febre, luctava noites e noites com a fórma tyrannica que se não
queria deixar domar!

«N'essas batalhas nocturnas,--diz Théophile Gauthier, no admiravel
estudo que consagrou a Balsac,--e das quaes o escriptor acabava de manhã
despedaçado, mas vencedor, quando o lume do fogão se apagava e a
atmosphera arrefecia, a cabeça d'elle exhalava fumo, e do seu corpo
sahia uma especie de nevoeiro vizivel como do corpo dos cavallos em
tempo de inverno.

«Ás vezes uma só phrase occupava uma vigilia inteira; era empolgada,
tornada a empolgar, torcida, amassada, martellada, allongada, encurtada,
escripta de mil modos differentes, e coisa notavel! a fórma necessaria,
absoluta, não apparecia senão depois de se haverem exgotado as fórmas
approximativas. O metal, sem duvida, corria muitas vezes de um jacto
mais cheio e mais solido, mas poucas paginas existem de Balsac que
ficassem exactamente iguaes ao primeiro rascunho.»


II

É ainda Théophile Gauthier quem nos deixou de Balsac o retrato mais
expressivo, aquelle que se nos affigura mais fiel.

«Usava elle sempre, diz o escriptor já citado, em vez de _robe de
chambre_, o habito de cachemira ou de flanella branca, preso á cintura
por um cordão grosso, com o qual, mais tarde, se fez retratar por Luiz
Boulanger.

«Que phantasia o levára a escolher de preferencia aquelle vestuario que
nunca mais deixou? Não o saberemos dizer.

«Talvez que elle aos seus olhos symbolisasse a vida claustral a que o
seu trabalho o condemnava, e, benedictino do romance, adoptara o trajo
da sua vocação.

«Como quer que seja, a verdade é que lhe ficava muito bem.

«Gabava-se sempre mostrando-nos as suas mangas intactas, de não lhes
haver jámais manchado a alvura com a menor nodoa de tinta, porque, dizia
elle, «o verdadeiro homem de lettras deve ser aceiado no trabalho.»

«O habito, um pouco aberto, deixava-lhe vêr o pescoço de athleta ou de
touro, redondo como um troço de columna, sem musculos salientes, e de
uma alvura assetinada, que fazia perfeito contraste com o tom mais
colorido das faces.

«N'essa época, Balsac, em todo o vigor da sua virilidade, apresentava
indicios de uma saude violenta, pouco em harmonia com a pallidez
esverdeada que o romantismo tinha posto á moda.

«O puro sangue da Touraine fustigava-lhe as faces tintas de purpura
vivaz, e dava-lhe um colorido quente aos grossos labios bondosos e
espessos, tão accessiveis ao riso; um pequeno bigode e uma pêra
impercetivel accentuavam-lhe os contornos sem os esconder; o nariz
quadrado na extremidade, repartido em dois lobulos, de narinas amplas e
dilatadas, tinha um caracter inteiramente original e unico; a ponto de
Balsac dizer a David de Angers em quanto este lhe modelava o busto: «Dê
attenção ao meu nariz;--o meu nariz é um mundo!»

«A testa era bella, vasta, nobilissima, muito mais branca do que o
rosto, sem rugas, a não ser um sulco perpendicular; as protuberancias da
memoria dos logares formavam uma saliencia pronunciadissima, por cima
das arcadas superciliarias; os cabellos longos, abundantes, asperos e
negros, arripiavam-se para traz como uma juba leonina.

«Quanto aos olhos nunca houve outros que se parecessem com os d'elle.

«Tinham uma vida, uma luz, um magnetismo inconcebiveis.

«Apesar das longas vigilias nocturnas, a esclerotica conservava-se-lhe
pura, limpida, azulada, como a de uma creança, ou a de uma virgem, e
engastava dois diamantes negros, a espaços allumiados por oppulentos
reflexos de ouro. Eram olhos para fazerem baixar as palpebras ás aguias;
olhos capazes de lerem atravez das paredes e dos corações, de fulminarem
uma féra furiosa: olhos de soberano, de vidente e de domador!»

Madame de Girardin, no seu romance intitulado: _A bengala do snr. de
Balsac_, falla d'estes olhos esplendidos:

«_Tancredo avistou então no cabo d'esta especie de masso, turquezas e
ouro, cinzeladuras maravilhosas; e por detraz de tudo isto dois grandes
olhos negros mais brilhantes que todas as pedrarias._

«Logo que a gente encontrava o olhar d'estes olhos extraordinarios, não
podia notar sequer o que as outras feições tinham de trivial ou de
irregular.

«As mãos de Balsac eram de rara formosura, verdadeiras mãos de prelado,
brancas, de dedos pequenos e redondinhos, unhas roseas e brilhantes; era
muito presumido d'ellas, e sorria-se de prazer quando via que as
notavam».

Diante d'este retrato é mais facil comprehender o escriptor com a sua
admiravel potencia intellectual, e as suas pequenas manias pueris;
sympathico, bom, com vaidades inoffensivas, e austeros orgulhos, sedento
de um affecto _unico_, e de uma _celebridade_ que fosse só d'elle.

Nas suas cartas de uma eloquencia irresistivel, volteiam constantemente
as duas grandes preoccupações da sua vida--_a gloria_ e _a mulher_!

«Tenho a alma profundamente triste, escreve elle. Só o trabalho me
ampara na vida. Não haverá para mim no mundo a mulher a que eu aspiro?
As minhas melancolias e tedios physicos cada dia se aggravam mais, se
tornam mais longos e mais frequentes. Cahir d'este trabalho esmagador ao
_nada_ mais completo! não ter nunca ao pé de mim aquelle doce e
carinhoso espirito da mulher, por quem tenho feito tanto!»

E fez! digam o que disserem os seus detractores, ninguem como elle
comprehendeu a mulher,--principalmente a mulher do seu tempo,--nas suas
fraquezas, nos seus crimes, nas suas delicadezas occultas, nas suas
aspirações morbidas e doentias, nas exigencias despoticas da sua alma e
dos seus nervos, nas abnegações sublimes de todo o seu sêr, nas suas
vaidades ferozes, no esquecimento absoluto, na abdicação completa de
qualquer egoismo, em tudo emfim que ella tem de bello e de feio, de
grandioso e de ridiculo, de puro e de maculado.

Que o digam Eugenia Grandet, a mais doce e mais melancolica das suas
creações; _La Fossette_, idylica visão tão sympathica como a Mignon, e
mais real do que ella; a condessa de Morsauf, a martyr do dever; a
viscondessa de Bauseant, a duqueza de Langeais, madame de Restaud, lady
Dudley, a monumental Valeria Marneffe, e tantas outras, tragicas
peccadoras, fascinantes, demonios que teem filtros na voz e no olhar;
productos de uma civilisação gasta e apodrecida; figuras typicas que
hão de ficar umas, caracteristicas da sua época e do seu meio, outras,
eternas e sempre verdadeiras como a humanidade!

Em Balsac ha muitas vezes expansões de candido orgulho que seriam
ridiculas n'outro homem, e que a elle o tornam mais sympathico.

Tem mais do que a consciencia clara do seu valor, tem uma confiança
enorme em si, no seu talento, na sua obra, na sua missão.

Imagina-se apto para todos os misteres, julga-se não só um grande
romancista, mas alguma cousa menos--um grande politico!

Escrevendo _Seraphita_ e _Luiz Lambert_, duas obras que lhe foram
inspiradas pelas suas leituras de philosophia espiritualista, e pelas
tendencias _Swedenborgistas_ que houve n'elle n'um dado momento da sua
existencia, tão _intellectualmente_ accidentada, julga preencher uma
grande lacuna, produzir alguma cousa de grande que os seculos vindouros
possam pôr ao lado do Fausto!

Curiosa illusão do genio!

Como se houvesse nada menos nebuloso, menos metaphysico do que esse
vigoroso _realista_, observador potente para quem a vida com todas as
paixões que a convulsionam e agitam não conservou um unico segredo.


III

São de 1835 as primeiras cartas que na _Correspondencia_ de Balsac
apparecem dirigidas a madame Hanska, se bem que já de mais tempo
dactassem as suas relações de pura e platonica amisade com a elegante e
fidalga mulher, que muito mais tarde foi sua esposa.

Duram cerca de dezesete a dezoito annos estas relações que o tempo
modificou, e estreitou tão profundamente, mas desde a época em que esta
mulher superior apparece no seu destino, a vida de Balsac tem um
profundo e apaixonado interesse.

Vinte horas por dia trabalhava elle então, para conseguir encher aquelle
horrivel tonnel das Danaides, que era a sua divida!

Apesar d'isso, lograva ainda roubar alguns instantes a este agro
labutar, para escrever umas cartas que todos os criticos hão de
consultar no futuro, para conhecerem a fundo a vida e o caracter do
prodigioso escriptor.

São caricias ideaes, interrompidas por calculos monetarios, são queixas
dilacerantes a que se segue uma longa risada de inoffensiva ironia;
porque elle, que soube pintar tão bem os cynicos, os depravados, os
terriveis escarnecedores, cujo riso corroia como um caustico, era no
intimo bom, quasi infantil; depois confidencias, esperanças, sonhos
politicos, sonhos financeiros, sonhos industriaes, planos gigantescos de
trabalho, phantasias de artista, desejos de mulher garrida e bonita,
observações profundas, divagações poeticas, melancolias de alma
solitaria que ninguem na terra sabia entender.

Entendia o ella, a adoravel slava, que vêmos atravez d'estas cartas,
altiva para todos, consoladora e maternal para elle; grave, magestosa,
fidalga como a sua velha raça, e no entanto cheia de graciosas
delicadezas, que endoideciam de jubilo e de amor o plebeu namorado de
todos os requintes aristocraticos, o trabalhador eternamente exilado de
todas as alegrias do amor, o artista que tão bem sabia avaliar o lado
elevado e bello de todos os sentimentos.

É um estudo interessante e curiosissimo vêr como o tom ao principio
respeitosamente affectuoso das cartas de Balsac vae seguindo gradações
successivas e harmonicas, tornando-se terno, apaixonado, confiante,
expansivamente amoroso.

É que madame Hanska, quando elle a conheceu, é uma senhora casada e
sinceramente virtuosa.

O adoravel _monstro_ parisiense de juba de leão e olhos de brilho fulvo
e diamantino, poude attrahir-lhe a curiosidade, excitar-lhe a
imaginação, seduzir-lhe o espirito, mas parou aqui o seu terrivel poder!

E só depois de viuva, quando, sem crime, a altiva dama póde entregar-se
á tendencia tão violenta do seu coração, é que ella o acolhe com o
abandono de mulher amada e amante, que lhe deixa conceber esperanças que
o fascinam, e que por fim as corôas, dando a sua fina mão branca, esguia,
principesca, ao pobre artista, ao louco aventureiro do genio, que tão
fiel e estremecidamente lhe quiz, em longos annos de casta abstenção.

Mas elle trabalhara, luctara, padecera tanto; por tanto tempo desejara
aquelle enlace, que era ao mesmo tempo a realização das suas chymeras de
ambicioso, e dos seus sonhos de homem e de poeta; empregára tão
violentos esforços para pagar até ao ultimo ceitil a sua enorme divida,
para entrar desassombrado e digno na vida conjugal, em que, aos olhos
d'esta sociedade ignorante, elle dava tão pouco e recebia tanto;
realisára taes prodigios para mobilar, como um artista millionario, o
ninho em que havia de receber a adorada mulher que deixava por elle as
pompas seculares da sua vida opulenta, que succumbiu ao excesso das
fadigas e que ao tocar com os labios sofregos o pômo tantas vezes
sonhado, o sentiu esvaír-se em cinzas, como em cinzas se esvaía a sua
vitalidade opulenta!

É esta lucta d'um tragico sublime, mais interessante do que todos os
romances que Balsac escreveu, que se desenrolla com uma belleza
maravilhosa na sua _Correspondencia_, cuja leitura aconselhamos sem
hesitação a todas as nossas leitoras, cousa que não fariamos a respeito
da obra do escriptor, apesar da sua incontestavel e radiante formosura.

É preciso ler estes dois volumes para saber como o grande romancista
soffreu e como se compram caras as glorias do genio, tão invejadas pela
turba.

«Não tenho nem uma hora para chorar, nem uma noite para descançar!», diz
elle n'uma das suas cartas.

Madame Hanska é comtudo para o titan, infatigavel e sempre vencedor, a
suprema doçura, o balsamo ineffavel de todos os instantes.

«_Ó_ minha querida alma fraternal, tu és a santa, a nobre, a dedicada
creatura a quem eu entrego toda a minha vida e toda a minha felicidade
com a mais ampla confiança! Tu és o pharol, a estrella luminosa e _la
sicura richezza senza brama_! Em ti comprehendo tudo, até as tuas
tristezas e por isso as amo tanto! Comtigo a _sociedade moral_ não
existe! eis o grande segredo, o segredo supremo de felicidade.»

Mas para que havemos de fazer citações sempre incompletas e sempre
inuteis?

Quem quizer conhecer a que foi esposa e hoje é viuva d'um dos maiores
genios da França, que leia o livro de que temos extrahido rapidos
trechos.

Vel-a-ha serena, intelligente, instruida, não bella d'aquella belleza
juvenil, que agrada aos mais profanos, mas da grave formosura, que
envolve o outomno da mulher n'uma nuvem de indefinivel saudade, sabendo
curvar a sua gentil e orgulhosa cabeça de _madonna_ ao jugo d'uma
elevada ternura, e comtudo conservar intacta a sua dignidade de senhora,
duplamente illustre pela virtude e pelo nascimento; tendo para o genio a
admiração e a indulgencia; comprehendendo com uma finura toda feminil,
feita de talento e de experiencia, o que ha de infantil n'um grande
homem, o que ha de fraqueza n'uma potencia intellectual, abdicando
todas as falsas vaidades, cultivando em si todos os verdadeiros
orgulhos, n'uma palavra a mulher completa, tal como a sonhamos e como
quereriamos vel-a mais vezes realisada.



LINCOLN E GRANT


De vez em quando a tela monotona d'esta nossa vida de Lisboa, unicamente
bordada de pequeninos _cancans_ politicos, litterarios e sociaes,
rompe-se com a chegada, ou para melhor dizer, com a passagem de um
viajante illustre.

Em geral os viajantes que por cá apparecem não _chegam_, _passam_.

É mais verdadeiro o verbo, embora lisongeie muito menos a vaidade
nacional.

Este nosso modesto _Jardim da Europa á beira-mar plantado_, como a
caridosa phantasia do poeta do _D. Jayme_ lhe chamou, tem poucos
attractivos que chamem os viajantes.

D'entre os que nos teem visitado, só um, e esse na sua qualidade de
mulher tinha amplo direito para se entreter com devaneios illusorios, só
um--M.ᵐᵉ Ratazzi--descobriu em nós qualidades extraordinarias que
nos vaticinam brilhante futuro, além de nos dotar de genios pouco
vulgares, de obscuros Shakespeares, para quem soará brevemente a hora
gloriosa da fama universal.

A propria M.ᵐᵉ Ratazzi se offereceu bizarramente para apressar essa
hora, que já ia tardando, não só pondo em prosa franceza a prosa dos
nossos escriptores, como tambem encarregando-se ella propria de
personalisar, n'um dos eternos _theatrinhos_ que anda armando por toda a
parte, as creações mais ou menos formosas dos ditos Shakespeares,
desconhecidos.

Será bom que a gente peça a Deus d'aqui por diante nas suas orações mais
fervorosas não excitar a dedicada admiração d'aquella illustre, mas
indiscreta dama!

Quem lhe manda a ella andar apreguando lá por fóra nossas glorias!

Nós bastamos ao menos para nos applaudirmos mutuamente.

A que vem, porém, todas estas divagações? pergunta de certo a leitora.

E pergunta com muita justiça, porque a minha imaginação, está _folle du
logis_ indisciplinada, não tem direito para cansar assim a benevola
attenção dos que me lêem.

Vinha tudo isto a proposito de ter estado ha pouco entre nós, vindo
embarcar no nosso porto, o general Ulysses Grant, um dos vultos mais
importantes da moderna historia.

O apparecimento d'este homem modesto, que foi um heróe, além de ser um
grande cidadão, pouca ou nenhuma impressão produziu no espirito dos
lisboetas.

Porque, emfim, sejamos justos, o general Grant que direito podia ter á
fervida admiração dos seus contemporaneos?

O general Grant não inventou, como o seu patricio Boyton, um apparelho
de borracha para andar por cima d'agua; o general Grant não é um palhaço
afamado dos que attrahem o _High life_ ao circo Price; o general Grant
não tem nem a voz de _Manrico_ ou de _Arthur_, nem a capa e o chapeu de
pluma d'estes cavalheiros; o general Grant não passa de um homem muito
vulgar, que salvou o seu paiz na guerra, e que o reconstruiu,
desenvolveu, fortificou e engrandeceu durante a paz!

Que significarão estas cousas para quem só gosta de aventureiros e de
_poseurs_?

Nós, porém, é que, lendo que chegara á cidade em que vivemos o
ex-presidente dos Estados-Unidos da America, tivemos curiosidade de
lançar um relance de olhos, comquanto rapido, sobre a vida d'esse homem
singular, d'esse moderno luctador, vida que se nos afigura um estudo
proprio para levantar e robustecer o espirito dos que acreditam nos
futuros destinos da democracia.

Não é possivel separar na historia os dous nomes de Lincoln e de Grant.

Ambos combateram pela mesma nobre causa, ambos concorreram igualmente
para o seu grande e difinitivo triumpho.

O nome de Lincoln tem a suprema aureola que dá o martyrio, o nome de
Grant tem o prestigio fascinador que dá a heroicidade.

Nenhum conhece o apparato, a ostentação, esta humilde vaidade que torna
os povos latinos tão doudamente namorados de tudo que fulgura.

Ambos elles pertencem profundamente, mais ainda pelo caracter do que
pelo nascimento, ao paiz de que são filhos.

Paiz estranho, gigantesco, sempre agitado, onde o homem tem campo vasto
para desenvolver a sua multipla actividade, para exercitar e pelo
exercicio permanente robustecer as suas varias e complexas faculdades, e
onde, tendo de dever sómente ás suas forças individuaes a elevação a que
forçosamente aspira, elle tem de empregar n'essa lucta de ambições
fecundas todos os recursos, todas as energias da sua intelligencia,
todas as riquezas da sua organisação.

O que ha de extraordinario n'estes dous homens é que ambos alcançaram o
mesmo fim, ambos partiram da mesma origem, e comtudo não ha nada mais
divergente do que o caracter d'elles e os meios que empregaram para
subir ao mesmo posto supremo da sua nação.

É fóra de toda a duvida que hoje a ideia democratica tende a triumphar
por toda a parte.

É uma ideia que germinou ha dezenove seculos, e que, antes de bracejar e
florir á luz crua do dia, lançou até ás entranhas da terra as suas
raizes vigorosas, cresceu, medrou, sugou a mais exhuberante e a mais
substanciosa seiva, minou lentamente tudo que lhe ficava em torno, e,
quando emfim appareceu a todos os olhos, já vinha forte e robusta demais
para que ousassem derrubal-a.

A democracia não é um modo de ser transitorio das sociedades modernas;
quando as leis e os costumes, quando os acontecimentos e os homens, se
modificaram e transformaram á sua grande voz, já ella tinha direito de
asylo em todas as consciencias.

Os que a repulsam não desconhecem o feio crime que perpetram.

Os que a atacam são movidos pelo seu proprio interesse, que ella muitas
vezes tem de magoar ou de destruir, mas nunca pela sinceridade das suas
convicções.

A democracia bem entendida não póde separar-se da ideia da justiça.

Desde que uma despontou sobre a terra, outra começou a apparecer
imponente e irresistivel ao espirito dos que sabem ler em vagos
prenuncios as transformações fataes de que teem de ser theatro as
sociedades.

A democracia não está, pois, destinada a morrer como as outras fórmas
sociaes que a precederam, e que não foram senão a lenta preparação do
seu triumpho, comquanto pareçam as suas inimigas irreconciliaveis.

Entre os elementos que constituiram o passado, e os que vão constituir o
futuro, não ha inimizade, ha incompatibilidade.

Uns teem de succumbir para que os outros triumphem, eis tudo.

N'esta grande evolução que nunca pára, o que ás vezes se nos afigura
mais contrario a uma causa é justamente aquillo que lhe está preparando
a victoria absoluta.

É bom que tenhamos isto sempre bem presente, para que não sejamos
accintosamente inimigos do que foi, nem loucamente vaidosos do que vai
ser.

Os acontecimentos não são nunca o resultado de uma causa isolada; são a
consequencia fatal de uma lei relacionada com todas as outras, parte que
está em perfeita harmonia com o seu conjuncto.

A geração de hoje, e a que foi sua predecessora, fizeram muito, é
verdade, em favor da causa democratica, porém não foram ellas que no
curto espaço de um seculo semearam o germen, regaram a planta, a viram
transformada em arvore gigantesca, e lhe colheram os fructos abençoados.

Seria demais para tão pouco tempo.

É bom que o repitamos: ha dezenove seculos que a humanidade caminha, sem
parar um só instante.

Tem tido dias que podem chamar-se seculos, e em compensação tem tido
seculos que pódem chamar-se dias; em todo o caso, é porque ella ainda
não estacionou que hoje avista emfim o ponto a que se dirigia.

Tenhamos o santo orgulho do que temos feito, mas não desprezemos o que
os outros fizeram antes de nós.

       *       *       *       *       *

A America é o paiz em que o pensamento democratico tem tido mais pratica
e mais positiva realização.

Sem entrarmos em considerações que seriam inopportunas, sem analysarmos
todas as condicções excepcionaes que favoreciam este povo, para que elle
pudesse, mais do que nenhum outro, dar uma forma real ao que tem sido o
sonho de tantos utopistas e de tantos martyres, basta-nos percorrer
rapidamente a vida dos dous homens notaveis de que fallamos para
conhecermos a fundo quanto os costumes, as ideias, as leis, os
sentimentos do povo americano estão profundamente penetrados do
principio da _igualdade de condições_, que é no fim de contas a base de
toda a verdadeira democracia.

Tanto Lincoln como Grant sahiram das mais humildes posições sociaes.

Lincoln foi até aos vinte annos carpinteiro e barqueiro; Grant foi até
aos trinta e tantos annos operario como seu pae, operario humilde e
obscuro.

Se me perguntarem qual dos dous me inspira mais sympathia, responderei
que prefiro Lincoln.

Ambos teem a suprema distincção da honestidade, esta virtude moderna,
que é indispensavel aos grandes homens, os quaes tinham d'antes ampla
licença para serem aventureiros felizes, sem por isso deixarem de ser
admiraveis e admirados.

Mas, emquanto Grant é simplesmente um homem de energia inquebrantavel, e
de espirito positivo e clarissimo, Lincoln, que é tambem isso, é mais
ainda do que isso, porque é uma alma de poeta.

De poeta, sim; não se riam, minhas queridas leitoras.

A poesia que se escreve é muito inferior áquella que se sente e que se
pratica.

Não admira que a alma do martyr americano se colorisse na mocidade de
todas as tintas opulentas da genuina poesia.

Elle conhecêra de perto a natureza grandiosa do seu paiz; ouvira,
humilde, pobre, talvez inconsciente, o que diz no silencio das noites ou
no acordar festivo das madrugadas a voz sonora, grave, religiosa das
florestas insondaveis.

Depois, o seu primeiro livro, aquelle em que aprendeu a lêr na obscura
escola da terra em que vivia, o que mais o inspirou, o que lhe deu
adoraveis côres para as suas tão finas parabolas, eloquencia e uncção
para advogar a causa de tantos milhões de parias, arrojo, audacia e
valor para proclamar a redempção dos seus irmãos escravos--e escravos na
terra onde uns poucos de homens intemeratos tinham vindo erguer o
estandarte da liberdade, desconhecido na Europa--o livro, emfim, da sua
mocidade foi a Biblia, o grande, o immutavel poema, o maior de todos,
porque não é o poema de um homem, é o poema de um povo.

Lincoln teve, como todos os poetas do coração, o culto mais profundo
pela mãe.

--Tudo que sou a ella lh'o devo,--dizia.

E, no entanto, ella morrêra-lhe quando o filho contava apenas dez annos,
e fôra em vida uma creatura simples, uma alma ingenua e ignorante.

Quem póde, porém, affirmar que não existisse uma communhão mysteriosa
entre a alma da mãe e o espirito do filho!

Quem sabe se a ella lhe faltou apenas cultivo esmerado para ser uma
creatura superior, e se a creança rude e obscura, que foi mais tarde o
grande homem e o grande martyr, não deveu as qualidades que o tornaram
tão distincto á influencia occulta da que o gerou no seio?

Como quer que seja, a verdade é que o pobre operario conseguiu á força
de estudo--estudo ainda assim que nada teve de methodico--improvisar-se
advogado.

Lincoln n'esta nova posição, conquistada pela sua energica vontade,
tinha uma singularidade que deve espantar altamente: só acceitava a
defeza de causas justas.

A feição mais caracteristica do espirito de Lincoln é uma jovialidade
conceituosa, uma malicia benevola, uma graça de moralista, que faz das
fabulas e das parabolas armas infalliveis de argumentação.

Nunca se deu ao trabalho de improvisar arrojos de eloquencia, tinha
sempre ao serviço das suas convicções umas anecdotas a um tempo cheias
de graça e de bom senso, umas pequenas historias que deitavam por terra
toda a laboriosa rethorica dos adversarios.

Aos trinta annos o advogado modesto viu-se de repente orador popular e
candidato á legislatura da sua terra.

Não que elle fizesse nenhum d'esses discursos tribunicios que arrastam e
enthusiasmam as massas, mas sempre pela força irresistivel do seu bom
senso, que era tão raro e tão completo, que o punha a par dos homens de
genio.

Todos conhecem a vida de Lincoln, que, depois de ser um dos oradores
mais populares e mais queridos das reuniões publicas do seu paiz, foi
duas vezes eleito presidente dos Estados-Unidos, e durante os ultimos
annos da sua vida gloriosa sustentou e venceu uma das guerras mais
assoladoras dos modernos tempos, e arrancou da terra que lhe deu o sêr
essa lepra--hoje felizmente desconhecida no mundo civilisado--que se
chama escravidão!

Foi pouco tempo depois de ter assignado o decreto que remia dos horrores
do captiveiro quatro milhões de desgraçados, que Lincoln, um dos heróes
da humanidade, um dos santos, um dos conquistadores, um dos martyres de
que falla com mais louvor a historia, cahiu morto, ás mãos covardes de
um assassino!

Nada mais pathetico e de uma tristeza mais commovente e mais profunda do
que a descripção do funeral do libertador da patria, do grande
emancipador da raça escrava.

O seu cadaver, consagrado pela admiração d'esse povo gigante, foi levado
de capital em capital, desde Washington até á pequenina cidade de
Springffel, patria de sua mocidade laboriosa e humilde.

Foi um caminho de triumpho, que lembrava, mas de bem diverso modo, o
caminho que elle andara em vida, desde a sua terra pequena e pobre, até
á grande capital, onde o tinham levantado á primeira magistratura do
paiz.

D'alli voltava elle agora, martyr da sua causa que era a causa da
patria, da humanidade da pura democracia, e que deixára vencedora e
triumphante.

Não póde haver existencia mais cheia, não póde haver gloria mais pura,
nao póde haver destino mais digno de admiração.

       *       *       *       *       *

Grant, que fôra desconhecido até muito mais tarde do que Lincoln,
revelou-se d'outro modo á attenção dos seus patricios.

Longe de ter a facilidade graciosa do espirito do seu predecessor, o
espirito de Grant era acanhado e silencioso. Na infancia e na mocidade
nenhuma superioridade visivel o distinguia dos seus companheiros.

Educado á custa do Estado na escola de West-Point, sahio d'alli como
alferes graduado do 4.º regimento de infanteria, e partindo para a
guerra do Mexico, distinguiu-se ás ordens do general Taylor no cerco de
Vera Cruz.

Depois de sete annos de serviço, em que se mostrou sempre militar
valente, pediu a sua demissão, e estabeleceu-se como simples rendeiro no
Missouri, proximo de S. Luiz.

Muito pobre, se bem que muito trabalhador, tendo já quatro filhos, Grant
não tinha remedio senão ir elle proprio vender as madeiras da sua matta
á cidade de S. Luiz, e muitos habitantes d'essa cidade se hão de lembrar
ainda de vêr aquelle homem agil, laborioso, calado, quasi mudo, passar
na sua carroça, ao galope dos cavallos, que sempre teve bons,
descarregar a lenha que trazia, e partir de novo, tão mal trajado, que
muitos dos seus antigos camaradas do exercito se envergonhavam de se
darem por conhecidos d'aquelle grotesco figurão.

Não lhe correu, porém, favoravel a fortuna, apesar da energia com que
elle trabalhava.

E o futuro presidente dos Estados-Unidos, cançado de luctar em vão
contra a má sorte, voltou para junto da sua familia, que toda vivia do
commercio dos couros, e começou tambem a trabalhar n'este humilde ramo
de industria.

Foi d'esta posição, de que na nossa aristocratica Europa ninguem era
capaz de sahir, por mais que soubesse e por mais que valesse, que Grant
subiu a commandante em chefe do exercito dos Estados-Unidos, e depois a
presidente da Republica.

Como? porque?

Eis o que só se comprehende comprehendendo bem a indole do povo
americano.

Subiu mesmo pelos motivos que entre nós inutilisam os homens.

Subiu porque conhecia a miseria e o trabalho; por que não o amedrontava
o perigo, porque tinha a energia concentrada e omnipotente dos que,
tendo nascido para altas emprezas, são longos tempos esmagados pela
desgraça.

Elle era destemido e energico, tinha--não a instrucção--mas a intuição
guerreira; antes d'elle o norte fôra sempre vencido pelo sul, na
terrivel guerra civil, que começára em 1861; depois d'elle apparecer
succederam-se rapidas e brilhantes as victorias do norte.

Em 1865 a auctoridade federal restabelecia-se em todo o territorio dos
Estados-Unidos, o general Lee aceitava a capitulação de Richmond, e
Lincoln entrara na cidade que o fogo destruira, descobrindo-se diante
dos miseraveis negros, que recebiam pela primeira vez n'aquella
homenagem, a confirmação da sua dignidade de homens.

Foi um anno de triumphos devidos á audaciosa iniciativa do general
Grant, que além da bravura do soldado, tinha em alto grau a bravura do
general.

Tão excepcional foi sempre a sua energia, como são raras as suas
palavras.

Os seus ditos, de uma concisão antiga, nas horas de crise de sua vida,
são dignos de ficarem registrados pela historia.

Nenhuma ostentação, nenhuma pretenção nos seus modos excepcionaes.

Na carreira triumphal de militar e de cidadão conservou o seu feitio de
rude agricultor ou de obscuro operario.

Não admira que a morte de Lincoln désse o posto supremo a Grant.

Lincoln fôra o advogado de uma causa da qual Grant foi o guerreiro.

A herança era logica a natural.

Quando o elegeram presidente, Grant respondeu com esta simples carta á
communicação que recebera:

«Procurarei applicar as leis com boa fé, e serei economico. Tenhamos
paz, emfim.»

Esta carta define-o.

Elle não tinha levantadas theorias, não tinha planos concebidos, não
tinha presumpçosos systemas.

Estava resolvido a ter economia, boa fé, respeito ás leis.

Todo o segredo de uma administração magistral.

E quantos obstaculos encontrára!

Tudo em roda d'elle eram vestigios do assolador flagello que passára,
desvastação, fome, miseria; que vasto campo, e ao mesmo tempo que missão
perigosa e difficil!

Pois cumpriu-a.

Cinco annos depois de finda a guerra já o exercito estava dispersado;
mais de oito mil homens tinham ido com os seus braços dar um novo
impulso á agricultura, á industria, ao commercio, a todos os ramos uteis
da actividade de um povo.

As leis eram rigorosamente executadas, a divida diminuira, a protecção
aos antigos escravos estava plenamente confirmada, a America emfim
entrava definitivamente em uma phase de reconstrução e de prosperidade.

E tudo isto se devia á energia, á intelligencia, á actividade de um só
homem.

E este homem, tão modesto na apparencia, tão laconico nas fallas, tão
simples no viver, este homem que recusa recompensas apparatosas, porque
julga que a suprema recompensa é a da propria consciencia, este homem
que póde apresentar-se como a personalisação da democracia moderna, é o
mesmo que Lisboa ha pouco viu passar com a estupida e distrahida
indifferença que ella tem para tudo que é verdadeiramente grande, e por
isso mesmo despretencioso e simples.



AS FILHAS DE VICTOR HUGO


Ha pouco tempo um escriptor francez desconhecido entre nós, o sr.
Gustavo Rivet, publicou um livro intitulado _Victor Hugo chez lui_, no
qual pinta o grande poeta francez, surprehendido, por assim dizer, na
intimidade dos seus pensamentos, de seus gostos, das suas attitudes mais
familiares.

Desce do pedestal onde a nossa phantasia se compraz em o collocar, o
poeta da _Lenda dos Seculos_, e mostra-nol-o com a _robe de chambre_ e
os pantufos de qualquer honesto _rentier_ do Marais.

Victor Hugo não perde em ser visto assim.

A sua alma amantissima, desnudada diante do nosso olhar corresponde
positivamente a tudo que d'ella esperavamos.

O avô brincando no tapete do seu quarto de trabalho com a graciosa
Joanninha que a _Art d'être grand père_ immortalisou, não desmente de
modo algum o justiceiro implacavel dos _Châtiments_.

Comtudo não é o pae de familia, que nós vamos hoje estudar em Victor
Hugo, como o nosso titulo um tanto phantasista parece estar indicando.

_As filhas de Victor Hugo_, que nós tentaremos apresentar diante dos
olhos das leitoras, não são as filhas do seu matrimonio de simples
mortal, são as radiosas filhas do seu genio, as visões illuminadas que
elle evocou com palavras de mysterioso encantamento d'esse Olympo
inaccessivel onde vivem e nascem as creações immortaes dos grandes
artistas.

Para nós que temos vivido da palavra do mestre, que temos seguido com
enternecimento apaixonado todas as phases do seu espirito, essas
mulheres ideaes é que são as suas verdadeiras filhas. Que nos importam
as outras no fim de contas, se atravez d'estas é que elle se revelou tal
como é?

Todos os artistas de primeira ordem criam um typo de mulher, em que
consubstanciam e sinthethisam todos os sonhos que tiveram, todas as
aspirações que tem concebido.

A mulher que elles fazem viver com a penna, se são poetas, com o escopro
ou com o pincel, se são estatuarios ou pintores, não é como alguns
querem que seja, a mulher que elles amaram: é mais do que isso, é a
mulher que elles queriam amar!

Para essa é que a sua lyra tem cantos mais ardentes, o seu cinzel mais
avelludadas caricias, a sua palêta côres mais suaves, a sua penna traços
mais vivos, analyses mais delicadas, intenções mais graciosas e mais
finas.

E como o coração dos homens é tão vasto que n'elle cabem dous cultos que
se não prejudicam mutuamente, quasi sempre esses artistas de que
fallamos tratam com o mesmo primoroso esmero dous typos de mulher bem
diversos, e que representam como a dupla face do seu modo de sentir.

Um d'elles personifica a virginal creança cujas seducções mais
irresistiveis se chamam innocencia, pudor, candura, ou ignorancia;
lyrios que o orvalho da manhã corôa com um diadema de perolas, lyrios
que uma aragem mais quente crestaria, e que o contacto de uns dedos
brutaes lançaria por terra murchos e amarrotados. Outro, a mulher na
plena posse da sua perigosa soberania, a mulher sereia que encanta e
embriaga e mata, consciente dos seus maleficios, e gosando do seu fatal
poder!

Consoante o espirito do artista se enamora da sombria belleza do mal, ou
da immaculada candura do bem, assim elle trata com mais delicada
predileção o _eterno feminino_ que representa uma das faces do mesmo
problema insoluvel.

Porque o homem grande ou pequeno, intelligente ou mediocre, ha de sempre
amar a mulher debaixo de qualquer d'estas duas formas, ou antes debaixo
d'ellas ambas.

Até os bons nas suas horas de perversão, nas crises em que no coração
d'elles triumpha a _porção de dominio_ que ha até mesmo na alma dos
anjos, hão de sentir-se attrahidos por este mysterio luminoso e sombrio,
que na arte pagã se chamou Circe ou Helena, que na edade média foi
Melusina, que na Renascença foi Imperia ou Lucrecia Borgia, que os
modernos emfim conhecem debaixo de tantos nomes, que o genio de tantos
homens tem revestido de prestigio magico e de superior fascinação.

Os maus... escusado é dizer que os maus, só n'essas mulheres symbolos do
mal, symbolos de todas as seducções insalubres, hão de achar a graça
magnetica que arrasta e que enlouquece.

Não é por isso de admirar que todos os poetas as tenham cantado, que
todos os romancistas as tenham descripto, mas na feição peculiar que
cada um d'elles dá ao modo por que as estuda e as pinta, é que consiste
a superioridade ou inferioridade do eterno typo.

Quanto ás outras, ás boas, ás candidas, ás angelicas, poucos as
comprehendem na sua genuina e original pureza, e os que as souberam
comprehender teem produzido obras primas!

Shakespeare é o poeta a quem se deve uma galeria mais radiosa e pura
d'estas divinas creanças impeccaveis.

Umas absortas n'um sonho de eterna tristeza, envoltas como que n'um
presentimento de inevitavel desdita, como Ophelia ou Desdemona; outras
deixando florir nos labios frescos a rubra flôr da alegria matinal, mas
todas lindas, e meigas e innocentes, todas fazendo crer no bem até os
mais cynicos.

Victor Hugo tem, como Shakspeare, d'estas criações risonhas e
sympathicas.

As mulheres de um como as mulheres do outro, téem na alma um pouco da
alma das aves.

Téem a ligeireza alada do sonho, téem a graça imponderavel das visões.

Não ha ninguem que não quizesse ter por filha uma d'essas creanças
borboletas; não sei se todas as quereriam para esposas.

E no entanto são boas, de uma doce bondade inconsciente que d'ellas se
exhala como o aroma se exhala da flôr; mas tambem as creanças são boas,
e comtudo ninguem como ellas sabe ser engenhosamente cruel.

       *       *       *       *       *

Victor Hugo com a sua alma de forte, que não precisa de auxilio, e não
precisa de guia, não comprehende a mulher como os modernos aspiram a
encontral-a.

Não quer a companheira robusta d'esse athleta moral, que é o luctador de
hoje; não quer a mulher de animo reflectido, de coragem viril, de
consciencia illuminada e austera, que na hora do perigo ou na hora da
vacilação criminosa, arrasta ao impulso da sua voz o espirito do homem
esmorecido ou duvidoso.

Elle, cuja vida tem sido uma ascenção progressiva para o bem, elle, que
não precisa d'outra bussola que não seja a luz interior que nunca se
apaga nem bruxoleia, não teve necessidade de crear ao lado de Marius, ao
lado de Didier, ao lado de Gennaro, ao lado dos seus altivos heroes, uma
mulher forte que os auxiliasse e fortalecesse na grande lucta do bem!

Oh! não era de força que elles careciam.

Era de luz nas sombras do seu caminho sombrio!

Didier saberia resistir ás seducções da criminosa voluptuosidade;
Hernani saberia responder ao sinistro som da trompa funeraria; Gennaro
saberia confessar as suas indignações austeras e os seus odios
inquebrantaveis; Marius saberia amar a honra impolluta como as virgens,
brilhante como as espadas, implacavel como a eterna justiça.

Do que elles precisavam era de risos, de flôres, de caricias e de
beijos.

Precisavam de quem os arrancasse á contemplação do seu deslumbramento
ideal e lhes dissesse ao ouvido ternamente, melodiosamente:

--Olha! eu sou a graça, sou a poesia, sou o esquecimento, sou a
embriaguez. Tenho só um nome, que vale por todos e a todos sobreleva: eu
sou o amor!

E não são mais nada as mulheres creadas pelo genio portentoso de Hugo!

O amor, sempre o amor.

O amor egoista, o amor cego, o amor absorvente, exclusivo, com os seus
pudores instinctivos, as suas ignorancias virginaes e as suas aspirações
insaciadas a fatalidade irresistivel da sua força!

No seu primeiro drama, Hugo todo imbuido das ideias cavalleirescas do
_romanceiro_, creou um typo de mulher que é talvez um dos mais bellos da
sua formosa e radiante galeria.

_Dona Sol_ sabe amar impetuosamente, ardentemente, e n'esse amor que é a
nota predominante do seu caracter, encontra força para todas as
resistencias viris.

Como ella é dôce e humilde enlaçada pelos braços valentes do seu
_senhor_, do seu leão das montanhas, do seu principe bandido, do seu
rebelde e indomavel cavalleiro!

Sorrisos, olhares, vozes, caricias, tudo é de velludo!

Um desejo d'elle, tem-na escrava! no entanto sabe por instincto, que
elle o heroe, o forte lhe não póde pedir cousa alguma que a filha de um
paladino das Hespanhas deva recusar envergonhada.

Quem dirá que aquella graça póde fazer-se indignação, que aquella
flexibilidade ondeante póde transformar-se em revolta implacavel?

É que n'ella ha de tudo! porém esse _tudo_ é simplesmente amor.

Appareça outro que a requeste, outro que ouse amal-a, e a pomba saberá
ser leôa, para defender o seu thesouro!

Mas de que lhe vem a força com que ella domina, a indignação austera que
a transfigura? Do coração.

As mulheres de Hugo não pensam, não raciocinam, amam! Isso lhes basta.

E se a fome ás vezes as perde, se a maldade e a perfidia do homem as
arrasta, nunca o amor deixou de as redimir.

Para ellas o amor não é a perdição, é o resgate!

Vêde Marion, a cortezã incredula, a serpente de enganosas caricias, que
um sentimento verdadeiro purifica e exalta, e que d'elle recebe uma nova
e mysteriosa virgindade! Vêde Eponine, a filha das lamas de Pariz, a
quem um olhar de Marius inocula o amor, o sacrificio, a abnegação e a
heroicidade!

Mas--contradicção á primeira vista inexplicavel e que no fundo tem
talvez uma significação sublime--o amor que transfigura e santifica e
illumina as peccadoras, torna egoistas, torna ingratas as puras!

Eponine immola-se, porque ama, e Cosette, porque ama, esquece tudo que
não seja o seu amor, e com a mesma pequena mão com que abre a Marius os
paraisos inacessiveis enterra o punhal no seio de João Valjean!

Marion, de Magdalena impudica e triumphante, levanta-se Magdalena
arrependida e piedosa, e Esmeralda não tem a esmola, a caridade de um
sorriso bom para Quasimodo!

Porque?

Ah! é que umas são a ignorancia na sua perfeição mais divina, outras
guardam na bocca o gosto amargo de todos os fructos vedados que teem
devorado!

Umas não conhecem nada para além da nuvem iriada que as envolve e lhes
intercepta o mundo, outras possuem a medonha sciencia que é feita de
todas as decepções, de todas as agonias, de todos os tedios, de todos os
remorsos, de todas as nauseas da vergonha e do desprezo proprio!

Umas entram no amor, triumphantes, immaculadas, curiosas, ébrias de
harmonias nunca ouvidas, sedentas de alegrias nunca sonhadas, absortas
pela radiante visão que as transporta a mundos desconhecidos.

Viviam d'antes? tinham affectos? prazeres? distracções?

Não sabem.

Sabem que as inundou a luz de um olhar, e que, a essa luz, viram o que
nunca tinham visto, esqueceram tudo mais que fôra seu.

As outras vão alli á porta d'aquella região de que hão de ser as eternas
exiladas, pedir a esmola de um perdão, a caridade de umas horas de
esquecimento.

E em troca d'esse consolo supremo a que se julgam sem direito, são
capazes de todos os sacrificios, de todos os renunciamentos sublimes
que inventa a mulher depois de ter perdido a esperança de ser feliz.

       *       *       *       *       *

Leitora, estás cansada das chatas e incaracteristicas figuras que tens
encontrado na vida real? Entristecem-te dolorosamente os typos hediondos
ou repugnantes da moderna arte?

As Gervasias, as Bovarys, as Fannys, as peccadoras da França juvenil?

Pois bem, deixa que desfile por diante do teu olhar pensativo a gloriosa
legião das filhas de Victor Hugo.

Oh! crê que não aprenderás com ellas cousa alguma que rebaixe o teu
espirito, que fira o teu coração, que surprehenda cruelmente o teu
entendimento.

Ellas sabem todas o que é o amor, muitas o que é o arrependimento, o
remorso, a vergonha, a expiação; nenhuma sabe o que é o triumpho
impudico do vicio, a ostentação criminosa das vaidades mundanas, a
impenitencia immoral das que medram no meio do crime.

As peccadoras contar-te-hão a dolorosa historia das suas amarguras, as
virgens a doçura sonhadora dos seus extasis!

Amaram, acreditaram, sentiram na plenitude do coração que a vida é boa,
e que o paraiso póde encontrar-se n'um canto da terra.

Não sabem nada de _toilettes_, de pequenas intrigas, de namoros, de
vicios mesquinhos, de invejas e de tagarelices; atravessaram o mundo com
os olhos fitos n'outros olhos, com as mãos enlaçadas n'outras mãos, com
a alma a cantar-lhes um _hosanna_ de mysticos arroubos!

Se queres estudar os escaninhos caprichosos de um coração de mulher
bonita e garrida, não as procures, mas tambem lhes não peças que te
fallem nos nossos piedosos e obscuros deveres de todos os dias.

São as hallucinadas do amor! Arrastou-as uma tempestade para outras
espheras ardentes onde se não vive a vida que conhecemos!

Vê tu--Esmeralda! que bem posto nome!

Toda ella scintilla ao sol como a pedra preciosa que lhe serviu de
baptismo; os seus dedos de _gitana_ crestados e finos arrancam ao
pandeiro do seu paiz doidos e extranhos sons! Fascina com um olhar
inconsciente dos seus olhos de velludo, com uma nota da sua voz
crystallina, com um meneio do seu corpo de serpente.

Que sabe ella da vida? Nada; a não ser que a vida é bella, visto que ha
dous olhos que ao fixar nos seus os banharam de fulgor!

E Cosette! vive ao pé d'ella um enygma sombrio! um espirito sobrehumano!
um luctador d'estas luctas interiores cujo reflexo se estampa na frente
que as encerra.

Ella nunca interrogou essa alma, e nunca tentou decifrar esse enygma, e
nunca sequer comprehendeu a existencia d'essas luctas.

Ao seu companheiro triste, humilde, heroico, adoravel ella deve durante
quinze annos a ventura mais perfeita que póde gosar-se na terra.

Satisfez-lhe todos os desejos; todos os brinquedos d'aquella fada,
encarregou-se de os fornecer a natureza na liberdade plena, nos seus
idyllios primaveris! Estava na escuridão, e deram-lhe luz; era escrava
fizeram-n'a rainha.

Não importa! Marius appareceu e Cosette louca, deslumbrada, esquecida,
deixa morrer de dôr o amigo da sua risonha mocidade.

É má?

Não; é ignorante. Não sabe que se morre visto que elle vive na posse de
uma ventura que nunca até alli conhecera.

Não sabe que se tem saudades, porque ao pé de Marius nunca esse espinho
lhe mordeu no coração!

Pois é possivel ser desgraçado quando eu sou tão feliz! pergunta
tacitamente com barbaridade que se ignora, cada um dos sorrisos de
ventura que ella atirara em redor de si, sem se importar onde lhe vão
cahir!

Ai! Cosette, Cosette! eu gosto de ti, borboleta, ébria de luz! és uma
das visões luminosas que ficarás para sempre moça e querida! és uma
estatua branca que ninguem ousará mutilar e que os seculos verão erguida
no teu pedestal de flôres! Mas como eu te amaria muito mais ainda se em
vez de seres o Amor fosses o Sacrificio!

Um dia Victor Hugo pediu ás neblinas matinaes dos climas do norte, uma
porção de renda branca e transparente com que ellas corôam a crista das
montanhas e... fez Déa!

Que doce, vaporosa e lendaria visão!

Não ha n'ella cousa alguma que seja realidade!

Toca na terra ao de leve; não tanto que pareça filha d'ella, não tão
pouco que lhe não seja dado consolar alguem votado ás dores sem consolo.

É cega!

Amada por um monstro sabe verter-lhe n'alma as alegrias de um Deus!

Não vê o homem que a ama, vê o amor de que elle a veste!

Abençoada cegueira que faz dous felizes!

       *       *       *       *       *

Ao lado d'ella--supremo contraste!--sorri Josiane com o seu sorriso de
deusa pagã!

No olho azul da patricia ingleza scintilla em chispas uma diabolica
ironia.

Josiane é a amante do impossivel! Procura o que nunca ninguem achou!

Quer um sonho que a sacie, o amor de um Titan, ou de um cyclope, o amor
de Apollo ou de Polyphemo!

Estranha figura, producto doentio de uma noite de febre!

       *       *       *       *       *

Dona Sol, Maria de Neuburgo, Marion, Eponine, Cosette, Déa, quantas
figuras radiosas, quantas humanições esplendidas da mulher sonhada!

Nas horas de desalento ou de amarga duvida, nas horas em que as miserias
que nos cercam, nos fizeram encarar a vida pelo seu aspecto mais
desolado e mais escuro olhemos para ellas!

Dir-nos-hão os poetas de hoje que ellas não existem, e, o que é peior,
que ellas não puderam existir nunca.

Oh! é bem triste, é bem esteril a arte que só trata de rebaixar o que em
nós é de mais elevada essencia, e só quer que vejamos a fatalidade
brutal do instincto, onde viamos d'antes a fatalidade mais nobre do
sentimento.

Não acreditemos o que elles nos dizem, porque na sua preoccupação
exagerada do horrivel, elles mentem muito mais do que os outros mentiam
na sua preoccupação exagerada do bello!

Estes reunindo todos os vicios e hediondezas que encontraram dispersos
n'uma só figura, conseguem apenas crear... um monstro, um ser hybrido e
infecundo que a ninguem aproveita!

Os outros synthetisando n'uma filha do seu genio as harmonias, as
feições, os encantos, que estudaram e amaram em toda a natureza,
conseguiram alguma coisa mais!

Crearam o ideal immutavel e eterno e ensinaram-nos a fitar n'elle os
olhos da nossa alma, e a invocal-o como um consolo adoravel nas nossas
horas de desalento e de agonia.


                                   FIM



                                 INDICE


                             PRIMEIRA PARTE

                                                      PAG.

           I--Uma historia verdadeira                    7

          II--O tio Sebastião                           59

         III--O annel do diplomata                      79

          IV--A escolha de Gastão                       99

           V--O romance de Adelina                     125

          VI--A Cigana                                 141

         VII--Duas faces de uma medalha                157

        VIII--A tia Izabel                             173

          IX--O melhor somno do millionario            185

           X--A perceptora                             203

          XI--A morte de Bertha                        219


                             SEGUNDA PARTE

           I--A proposito de um livro                  241

          II--Madame de Balsac                         257

         III--Lincoln e Grant                          277

          IV--As filhas de Victor Hugo                 295





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