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Title: Ambições
Author: Osório, Ana de Castro
Language: Portuguese
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from the Google Books project.)



AMBIÇÕES



Obras de ANNA DE CASTRO OSORIO


INFELIZES (_historias vividas_)—Livro de contos.

PARA AS CRIANÇAS (_bibliotheca infantil_)—Publicação mensal illustrada:

    Contos tradicionaes portuguezes—7 volumes.

    Contos originaes, educativos—2 volumes, (_Alma Infantil_ e _As
    boas crianças_).

HOMENAGEM A GARRETT (_de collaboração com_ =Paulino de
Oliveira=)—Opusculo commemorativo do centenario garretteano, edição de
luxo.

A BEM DA PATRIA (folhetos de propaganda, distribuição gratuita):

    _I As mães devem amamentar seus filhos._

UMA MISSÃO DO PADRE GRAINHA, por =Alberto Osorio de Vasconcellos=—_Edição
em livro, feita e apreciada por_ =Anna de Castro Osorio= _e_ =Paulino de
Oliveira=.

AMBIÇÕES (_romance de costumes_).


A PUBLICAR

A VICTIMA (romance em continuação do AMBIÇÕES).

HOJE E AMANHÃ (revista mensal illustrada, litteraria, scientifica
e educativa, sob a direcção de =Anna de Castro Osorio=)—A sahir em
fevereiro d’este anno.

OS ANIMAES (10.º volume da publicação: _Para as crianças_)—contos
originaes, já em publicação.



                         _ANNA DE CASTRO OSORIO_

                                AMBIÇÕES

                                 ROMANCE

                              [Illustration]

                                  1903
                           _LIVRARIA EDITORA_
                        GUIMARÃES, LIBANIO & C.IA
                       _108, Rua de S. Roque, 110_
                                 LISBOA



I


É na botica d’uma villa de provincia, velho burgo acastellado, orgulhoso
dos seus foraes e brazões como da nobreza que em tempos d’alli sahiu e se
espalhou pelo reino, deixando fortes raizes na terra, que ainda exporta
fidalgos como podia exportar qualquer mercadoria.

Despoetizada pela moda que tudo confunde e baralha e pela turba de
veraneadores que a procuram para refazerem os pulmões e os nervos, a que
os invernos de Lisboa esgotam a energia, é ainda assim das mais typicas e
formosas da provincia.

Afóra dos muros, os campos estendem-se verdes—do verde escuro dos
pinheiros, do verde cinzento das oliveiras, do verde brilhante dos
castanheiros... de longe em longe, manchas risonhas de pomares,
salpicadas de casaes brancos, com recortes de velhos campanarios,
fachadas ennegrecidas dos antigos solares, e as ermidas caiadas nos cimos
dos montes cobrindo com um leve e translucido véo de mysticismo pagão a
hilariante festa da natureza.

Nada mais proprio, em verdade, para uma villegiatura alegre, do que esse
recanto de provincia,—valle ameno entre montanhas, com o rio cachoando ao
fundo, deslisando mais adeante entre salgueiraes, como assustado da sua
propria fúria.

Ha alli de tudo para deleite dos ociosos que no verão passeiam pelas
provincias os tedios e as _toilettes_ da moda.

Para os _pic-nics_, a sombra de velhas arvores em quintas senhoreaes; o
rio, com as madrugadas de pescarias alegres; e lá para setembro a caça a
rôdos pelos matagaes da serra; e para cúmulo as estradas bem conservadas
pelo interesse que a gente da villa mostra em dar boa conta de si perante
a civilisação dos _pur-sangs_ e dos cocheiros inglezes.

Mas estamos no inverno, n’uma fria tarde de fins de janeiro. Ora o que
se hade fazer no inverno n’uma terra de provincia, quando a neve cobre o
cimo das serras e o vento corta as carnes como vergastadas? Procura-se
então um bocado de sociedade para encurtar as noites sempre grandes para
os preguiçosos e os paroleiros.

Vae-se para a botica, pois para onde se hade ir?...

Aquillo é o club, o centro onde tudo se reúne e as novidades se sabem e
commentam, primeiro que em parte alguma.

Toda a gente tem entrado n’uma pharmacia e conhece mais ou menos o
cheiro especial dos remedios, o feitio classico dos boiões das pomadas,
os frascos bojudos com tampas de vidro e letreiros em grossas lettras
sábias, os passaros empalhados entre o aquario com peixesinhos vermelhos
e a balança na sua maquineta de mogno polido.

Em coisa alguma sahia dos antigos moldes consagrados a propriedade do
sr. Domingos José da Silva, chamada a _botica velha_, para se distinguir
da _nova_: envernizada de fresco, com mobilia de casquinha folheada em
mogno, fabricado n’uma marcenaria do Porto.

Comtudo, a velha pharmacia rotineira e modesta não perdêra os freguezes
antigos, como se não cançava de o apregoar o seu feliz dôno, que não
soffria sem verdes olhares d’inveja o luxo sybarita do competidor.

Por largos annos fôra o unico pharmaceutico n’umas poucas de leguas em
redor e gabava-se que não havia quem lhe levasse a palma na confecção
d’umas certas pastilhas contra os vermes. Essa e a dos cães damnados eram
muito suas e a ninguem as daria senão no ultimo arranco.

Mas um dia—questões de politica, infamias, invejas!...—eis que lhe surge
pela prôa a nova pharmacia, com proprietario rapaz a modos litterato e
suas vistas altas de quem tem um curso e faz os rótulos em latim.

Ia tendo uma apoplexia o sr. Domingos! A cada innovação que o seu rival
trazia ás velhas costumeiras de botica provinciana, elle desabafava em
murros no mostrador e furioso sorver de rapé.

Andou atrapalhado uns tempos. O filho aconselhava que mandasse dar uma
pintadella ás portas, comprasse estantes e livros encadernados, e lá
emquanto aos letreiros mandava-se ao mano, que estudava no seminario, que
os escrevesse.

—Que não!—berrava o velho em vermelhas guinadas d’orgulho—que assim tinha
vivido sempre e assim queria morrer; que levasse o diabo os modernismos!

N’estes sentimentos era appoiado pela mana Joaquina, resmungando sempre
encatharroada contra as novidades e contra o rheumatismo que mal lhe
deixava arrastar as pernas trôpegas.

Mas o caso é que a botica nova não lhe tirou freguezia, apezar dos fumos
de sabichão do pharmaceutico, porque a boa gente da provincia gosta
sempre de andar pelo seguro:—_ná_, diziam elles, temo-nos governado com
o _sô Domingos_, e com as suas drogas nos iremos medicando; nada de
venenos, que são os remedios novos!

E batiam familiarmente nas costas do velhote, que esfregava as mãos
triumphante.

Passára-lhe já a maior furia, mas o rancor ficára latente e resmungão,
como cachorro mal acostumado ao canil. Pessoa que, por acaso, ou
propositadamente, entrasse na _nova_—como dizia com ironico despreso—era
certo incorrer para sempre no desagrado geral da familia.

Mas, isto era ao accender dos candieiros de petroleo,—não chegou ainda
a civilisação do gaz a todos os cantos de Portugal—por um fim de dia de
frigido janeiro.

Lá fóra a escuridão fazia-se rapidamente, com um tremôr d’estrellas que
annunciavam muita geada por essa noite fóra.

O sr. Domingos José da Silva, _matriculado_ pharmaceutico no largo da
Fonte, (como de si proprio dizia com grossa voz fanhosa e expedimentos de
perdigotos por demais explicativos para quem lhe ficava em frente) estava
nos seus momentos felizes.

Era á hora a que os parceiros do _solo_ e da má lingua começavam a
chegar, e toda a sua grossa pessoa rejubilava festiva.

Não que elle fosse positivamente um mau homem, que não era! Mas aquelle
fraco por saber o que se passava na terra, fazia-o esperar pela noite
como pelo melhor bocadinho da sua estupida vida, partilhada entre as
tizanas, as descomposturas aos freguezes pobres, e o desvanecimento pela
esperteza propria e a da familia.

Não era raro ouvir-lhe contar os adeantamentos e habilidades da sua
prole, n’estes e n’outros discursos por igual demonstrativos.

—«O meu filho _Antoino, cabalidade, cabalidade_!... Deu os riscos p’ró
chafariz novo. Ainda os pintava melhor, a _cambra_ é que não quiz gastar
dinheiro. Mas deixem-me ser _vérador_ que o caso é _oitro_...»

Tinha ferrado no bestunto esse ideal supremo de labrego, que ao acaso de
muito pontapé da sorte conseguira largar o cabo da enxada pela mão do
almofariz.

Passeava, pois, o sr. Domingos José da Silva ao longo e largo da
pharmacia, para melhor aquecer os pés mettidos em tamancos forrados;
esfregava as mãos vermelhas e enfrieiradas vestidas de _mitenes_
d’algodão verde salsa; tossia para o _cache-nez_ enrolado ao pescoço, e
esperava os parceiros emquanto o filho _Antoino_ accendia as luzes e
preparava as cartas para a partida.

N’uma das voltas do passeio, que o poz em frente da porta, deu de cara
com a Engracia da Luz, a velha criada, quasi da familia, de casa dos
Mellos.

Estacando deante d’aquella visita inesperada, onde farejou um principio
d’intriga para o serão do padre cura e mais freguezes, perguntou solicito:

—«Que é lá isso, _nhora_ Engracia? Está alguem doente lá por casa?!
Parece que a vejo assim a modos assarapantada!...

—«Ai! deixe-me aqui _sô_ Domingos. Eu vinha em busca do sr. dr. Ramalho.
Disse o Zé Leandro que vira chegar umas malas grandes no carro da
estação, que talvez fosse o senhor doutor... E vae eu vim em cata d’elle,
porque a minha menina está muito mal, muito mal!...—puxando a ponta do
avental, n’um arremesso á desgraça, limpou as lagrimas que lhe corriam em
fio.

—«Olha que _lanzudo_ aquelle! Essas malas que diz são do caixeiro das
amostras, que até está em casa do Brito. O bruto não sabe _cabriram_ as
_cambras_ e o dr. Ramalho é deputado? Que eu _tamem_, não sei o que alli
anda!... Elle não pára cá em chegando o inverno...—piscava os olhos ao
filho com ar de finura laponia, o que escancarava n’um regosijo a bocca
do rapazola. Mas, reparando no ar desinteressado da Engracia que se
voltava já para a porta, tornou:

—«Olhe cá, então o dr. Viegas, o doutor _novo_, não está lá sempre
mettido em casa, não é até o noivo da Pillarsinha?

—«Pois é, é!... E não sei que lhe diga, _sô_ Domingos, mas aquelle
casamento foi a nossa desgraça. Nem elle se faz, que a minha menina
morre!...

—«Elle que é medico hade curá-la, e com remedios da _nova_ a sua menina
irá a melhor, verá!...

Ria n’um pigarro escarninho, que arrepiava.

—«Olhe, _sô_ Domingos, eu não sei d’essas coisas. Os senhores é que lá
entendem d’essas guerras! Só cá me consolava o coração que o sr. dr.
Ramalho visse agora a minha menina. Está _finadinha_ de todo. Aquillo é
uma fraqueza de peito, uma canceira que nem parece a mesma! _Decoadinha_
como a senhora da _Solidade_! Valha-me o _Senhor dos Afflictos_ da
egreja, que só a elle a gente se póde apegar!...

—«E os paes!?...

—«Ora, os paes?!... A mãe chora dia e noite e o pae anda assim como
maluco, nem toma tento no que se lhe diz.

—«Mas porque não mandaram vir o dr. Ramalho?

—«Todos os dias fallâmos n’isso, mas a menina não quer, diz que está
melhor e se o mandam vir é porque a acham muito mal. Até disse que se
escondia, que lhe não fallava. Não se hade contrafazer uma doentinha.
O dr. Vilhegas tambem diz que não é preciso!... Ai, não estar cá o
Joãosinho!...

—«E a prima, a Candidita, o que faz?

—«Está uma boa delambida, essa!... Aquillo nem parece prima da minha
menina, uma soberbona, uma tola... Emfim... vou me que tenho pressa.
Adeus, _sô_ Domingos, recados á _sora_ Joaquina.

—«Obrigada. Até outra vez, _nhora_ Engracia!

Deixou-a partir sem mais conversa, por lobrigar o gabão do padre cura que
atravessava o largo.

—«Boa noite, meus senhores,—entrou dizendo e deitando para baixo a golla
de pelles, o padre, novo ainda, espadaúdo, cacete nas unhas, cigarro nos
beiços, e grossas botas tamancos.

—«Então como vae isso, _mestre_ Domingos, rijo e fero, hein? Isto por
cá está hoje muito só. Estes senhores teem medo do frio, que está de
rachar. Não temos parceiros para o _sólo_, aposto!—escarrava para o chão,
raspando com o pé.

—«Ainda não é tarde, ainda não é tarde. O Neves não tarda por _hi_.

—«Aquella que sahiu não era a Engracia dos Mellos?

—«Era, vinha em busca do dr. Ramalho; imaginava que tinha vindo, porque,
_plos_ modos a Pillarsita está a _espichar_.

—«Ora adeus! A você o que o faz fallar é a inveja.

—«Inveja, eu?! Agora de que havia eu de ter inveja? Pois qu’é o _Antoino_
de Mello mais _camim_? A mulher sim, não digo nada, agora elle!... Olha a
grande _jaração_!

—«Não é lá d’isso que você tem inveja, _sô_ Domingos; deixe-se de
cantigas! O que a você o rala é a pequena ser tratada pelo Vilhegas que
os levou para a _nova_.

—«Quê?!...—rouco de furia contida, recomeçava o Domingos o passeio n’uns
impetos de fera, vendo o padre torcer-se ás gargalhadas.

Era o pratinho do cura metter ferro ao pharmaceutico; e este, sabendo
isso, não queria responder para não dizerem que dava o cavaco.

O padre cura era o unico a quem elle desculpava umas certas graçolas e
o unico que acceitava na sociedade depois de o saber frequentador da
_nova_. Um pouco por medo, porque o padre tinha genio de varrer uma feira
e não raro se fallava de romarias em que o seu cacete se cruzára com o
dos mais _pimpões_, e um pouco, tambem, por curiosidade de saber o que se
passava no campo inimigo.

Ainda o padre se torcia com riso quando entraram o Braga uzurario e o
recebedor, que, só de o verem rir, começaram tambem a rir, comprehendendo
logo do que se tratava pela cara apopletica do boticario.

O recebedor—muito vermelho, quasi cego, atarracado e obeso—interveio,
conciliador!

Lá está o Domingos _a dar a casca_; deixe lá, homem, não faça caso. Ó sr.
padre Mathias, deixe-o lá!

—«Eu pego-lhe?! Só lhe digo as verdades, e vae elle põe-se que nem uma
barata.

—«Podéra não! Vem cá dizer que tenho inveja da _nova_...

—«Pois não tem, não!...—recomeçava o riso que endoidecia o outro.

—«Ó padre!...—avançava irado.

—«Deixe lá, deixe lá, aquillo é graça—amansou o Braga, lambendo-se por
novidades... Vamos a saber a que veio a historia?

—«Conta lá homem, desembucha.

—«É a pequena do Mello que está doente—explicou o cura, levantando-se
para ir contar as cartas em cima do mostrador—e cá o mestre Domingos diz
que são venenos da _nova_...

—«Ó sr. padre Mathias! O senhor põe-me doido, olhe que me póde metter em
trabalhos. Eu disse lá semelhante coisa, crédo, que _home_ este, como as
inventa!...

—«Ora, se o não disse pensou.

—«Não pensei, não senhor!

—«Então hade pensar.

—«Ora isto, isto! Mas que mal fiz eu a Deus, para aturar este _home_!

—«Pois sim, diga-lhe d’essas. Venham os senhores jogar uma partida
emquanto elle desabafa.

—Mas conte sempre—acudiu o Braga, muito curioso.

—«Não é mais nada. A pequena está doente: nem ella melhorou em termos
desde a pneumonia, pleurosia ou lá o que foi...

—«Aquillo foi doença do diabo, foi—commentou o recebedor.

—«E depois?—apressou o uzurario.

—«Depois, o medico é o Vilhegas que vae á _nova_. E o Domingos
desespera-se porque não está o Ramalho, que é cá da _velha_. Vae pelo
_antigo regimen_...

—«Não, o Ramalho não tem preferencias, e lá bom medico é elle.

—«Ó recebedor, você está sempre a defender todos, sem que ninguem lhe
pague o sermão. Não digo que seja mau, mas muito adiantado não está, não
se póde comparar com um rapaz sahido da escola, conhecedor de todos os
processos mais modernos.

—«Não sei. Eu cá só me quero com elle. O Vilhegas será muito bom, não
contesto, mas cheira-me a intrujão.

—«Pois não é, fique sabendo que é um talento!

—«Será!...

—«Mas o que tem a pequena?—perguntou o Braga, que não estava ainda
satisfeito.

—«Não sabem ao certo. Dizem que é nervoso. O nervoso agora serve para
tudo. Ella é fraquita. O João é que fica um bom partido, para mais de
quinhentos contos!...

—«Hum! Não lhe hãode durar muito, acostumado a viver no estrangeiro...

—«Deixe lá, amigo Braga, um estudante lá fóra não gasta mais do que gasta
por cá; e sempre trazem outro lustro—contradictou o cura todo de ideias
avançadas e amigo do progresso.

—«Ha o perigo de se não darem cá depois, como succedeu ao Pedro d’Athayde
da casa da Fradosa. Veio lá de Paris com taes ideias que não podia
tolerar a familia—ponderou o recebedor.

—«Não, esse caso foi outro. Sei-o eu melhor do que ninguem, porque fui
amigo do Pedro desde a escola do padre _Zé_. Era um bom rapaz! Generoso,
franco, não podia ver uma desgraça que não a alliviasse com dinheiro,
conselhos e favores, tudo! Era uma joia. Mataram-n’o os beatos que se
metteram lá em casa e que elle não podia supportar. Com as suas ideias
livres, a sua consciencia clara, era um escandalo na casa que se tornou
um asylo de quantas irmãsinhas, frades e freiras, apparecem por ahi. O
rapaz dizia, e dizia bem, que não se importava que rezassem e jejuassem
sempre que lhes appetecesse, mas que o não quizessem converter a elle,
que o deixassem em paz ir para o inferno ou para o céo á sua vontade.
Houve questões horrorosas entre elle e o pae, que é o verdadeiro beato da
casa. Por fim descoroçoou e partiu outra vez para França. Lá morreu, ou
se matou. Viram-se livre d’elle e agora resam-lhe por alma. Eu sou padre,
mas não gosto de beaterios. Tambem tenho tanta vocação para isto como
para fiar na roca.

—«Ora, deixe se de contos, homem! Aquillo são tolices do Mello que perdeu
o juizo com o dinheiro do Brazil. Metteu-se a fidalgo, casou com a prima
da viscondessa, já quer os filhos educados como principes.

—«E soberbo!...—começou o Domingos, já serenado, visto que a _critica_
principiava—não ha quem lhe chegue! E quer fazer _lordes_ de toda a
familia. Ao Vilhegas, lá porque era primo em decimo grau, emprestou-lhe o
dinheiro _p’rós estudios_. Já se viu assim uma coisa?!

—«Quem os conheceu!...—grunhiu o Braga entre uma baforada de cigarro e um
_solo_ resmungado a _mezza voce_.

—«Deixem lá, que elle é bom homem—terminou o cura, com a ultima carta que
lhe sahiu das mãos. Só o que elle tem feito á sobrinha, que a tem em
casa como filha!

—«Hum! Uma boa prenda a tal menina, segundo diz a Engracia—informou o
Domingos.

—«Bonita a valer. Se a vissem no verão passado, nos annos da viscondessa!

—«Então eu não estava lá? É muito bonitinha, é!

—«Bonitinha! Onde tem você visto melhor, _seu_ Braga?! É uma bella mulher!

—«Ó cura, você parece que se lhe não dava de casar com ella.

—«Se não fosse este diabo da batina, não lhes digo nada. Ainda que
mulheres d’aquellas não são boas para pobres.

—«E parece que não tem namorado—lembrou o recebedor, sempre comezinho nos
commentarios.

—«Pois quem ha por ahi capaz de a tentar?! Você imagina que ella é parva,
que se não conhece? Ó Braga, você é que podia casar com ella. Levava uma
mulher que muitos lhe invejariam.

—«Eu?!... Na minha idade, uma rapariga bonita, que hade querer luxos...
Você vê-me algum _t_ na testa?!

—«Não sei; ella é de fazer perder a cabeça... e você é rico... Sabe o
que é ser rico? É ter tudo quanto se deseja. Se eu fosse rico como você,
deixava crescer a corôa e ia até Roma para que me livrassem das ordens;
depois casava com a pequena, olá se casava!...—estendia as pernas e
cantarolava, esperando as cartas que o recebedor muito myope a custo
despegava das mãos.

—«Hum! Ella hade pentear se para o primo.

—«O João, sim! Quer lá agora a Candida sem vintem e sem
educação!...—acudiu o recebedor—Que isso lá, verdade, verdade, eu não
quero nenhuma; sou casado, não ha que desconfiar, mas a Pillar é _outra
fazenda_. É muito fina, muito boa, não se compara...

—«Pois sim, mas a Candida é uma mulher a valer! Depois, a Pillar está
noiva do Vilhegas, não ha que pensar n’ella.

—«Casar?... Se não morrer primeiro, intrometteu-se o boticario.

—«Lá torna você, homem; olhe que já é mania!

—«_Nan sei!_ Elle lá está de dentro, vê as duas; talvez se arrependesse
e...

—«Calle-se ahi, homem de Deus, não diga _barbarismos_. Lá vem o Neves.

O Neves, ainda rapaz, entrou tossindo a sua asthma, magrizella,
sem emprego certo, mas cheio sempre d’affazeres, muito prestavel e
comprimentador para os _grandes_, risonho no seu ar de pobre diabo.

—«Vivam, meus senhores!

—«Adeus, Neves, então o que ha lá por fóra?

—«Não sei nada—respondeu sacudido, como se as phrases lhe sahissem aos
pedaços, aos arrancos, da bocca embrulhada.

—«Dizem que a Pillarsita está doente. É verdade?—interrogou o cura.

—«Verdade, é; mas o meu primo disse-me hoje—não perdia occasião
de referir-se ao parentesco que o engrandecia, com a grandeza do
Vilhegas—que não era coisa para as afflicções dos paes. Noivo é elle e
não vê motivo para tanta apoquentação.

—«Talvez não veja bem... disse entre dentes o pharmaceutico.

—«Que é lá isso, ó _sô_ Domingos? Você parece que me traz _quesilha_
desde que veio o meu primo. Olhe que eu não tenho nada com as suas
zangas...

—«Quem diz isso? É que hãode ver muita coisa!... Eu cá sei!...

—«Sabe o quê? Diga aos amigos, desembuche.

—«Nada, nada!...

—«Está doido—rematou o cura, ainda preoccupado com a belleza da Candida.



II


Era verdade. A Pillarsita havia uns tempos—depois d’uma pleurezia que a
tivera entre a vida e a morte—puzera-se n’um esmorecimento de flôr que se
estiola.

Não se queixava, que a doença não lhe pedia remedios nem desejos de
melhorar—só os que ainda teem esperança de felicidade se apegam á vida e
querem convencer-se de que o queixar-se lhes traz allivio.

A pequena, dantes tão alegre, d’uma vivacidade gárrula d’avesinha
amorosa, entristecêra subitamente, e, taciturna, aborrecida, ninguem
diria que era a mesma. De bondosa e tolerante que era, tornára-se
impertinente e irritavel, como se os nervos lhe andassem desorientados
sob a pressão d’um grande mal.

Essa mesma susceptibilidade morbida, que transformára a rapariga
d’outr’ora, alegre, boa e egual, n’uma nevrotica, minada de desejos
e caprichos que logo se convertiam em saciamentos de vontade doente,
dava-lhe por vezes tambem dias de tanta meiguice e passividade que o seu
espirito não parecia ter mais energia do que o d’uma criança recemnascida.

O noivo, o Emygdio Vilhegas, tinha para desculpar estes caprichos e
phases, discursos e theorias sobre as doenças nervosas, que deixavam os
paes, senão satisfeitos, ao menos mais socegados sobre a gravidade do
estranho mal.

Elle e a prima da Pillar, a Candida, que fôra a sua companheira e amiga
intima desde a infancia, não podiam comprehender a quasi aversão com que
a enferma os olhava e por vezes até repellia.

No principio da doença, quando a pleurezia se apresentára dupla e
d’uma violencia mortal, elles arvoraram-se em enfermeiros solícitos e
era impossivel exigir aos seus affectos maior vigilancia e cuidados.
Mas desde que a febre cedêra e a doente começára a reconhecê-los,
affastára-os systhematicamente, com uma friesa de maneiras que mais se
evidenciava pelo contraste com a mãe, a quem desejava sempre ao pé do
leito, sem uma hora de repouso que não fosse substituida pela velha
Engracia.

—«Porquê?!...» os dois, no vão d’uma janella, n’um fugitivo momento de
solidão, olhavam-se apavorados e trocavam rapidamente essa pergunta.

—«Porquê?!—dizia o Emygdio—terá acaso desconfiado alguma coisa?

—«Parece!...

—«E se diz aos paes?!

—«Que importa? Não o devem saber mais dia menos dia?...—murmurou a
Candida, fitando os seus olhos carregados de duvidas nos olhos que o
Emygdio desviava intencionalmente, ao mesmo tempo que respondia:—«Ah, mas
por emquanto não... Bem vês!... Devemos-lhes tanto!... É urgente saber,
custe o que custar, o que ella sabe de nós.

A conversa, cheia de reticencias e sub-entendidos, foi interrompida
pelo arrastar de passos trôpegos no soalho do corredor. Era a Engracia
que entrava para levar um caldo á doente, que no quarto ao lado se ia
finando. Olhou os dois com severa desconfiança, emquanto o medico n’uma
voz de perfeito socego fingia dar as ultimas recommendações á inferma:

—«Logo que venha o remedio da pharmacia dê-lho d’hora a hora, até que eu
volte.

A Candida affastou-se silenciosamente, emquanto o rapaz a ficava olhando
embevecido. Era na verdade linda, mulher de fascinar e não d’encantar,
talvez, de uma belleza cheia, fria, e esculptural, que se impunha.

Branca como um lirio e tão branca que o seu busto triumphal mais parecia
talhado no marmore de que se fizeram as maravilhas da estatuaria grega.
Cabeça alta e pequena levemente inclinada para traz, como que vergando ao
peso dos fartos cabellos d’um castanho que á luz toma reflexos d’oiro;
a bocca delgada, sempre aberta n’um sorriso frouxo de contemplação
propria; e nos olhos negros, velados d’uma placidez funda d’abysmo, nada
se poderia lêr do que lhe ia na alma. Muito alta e direita, nobremente
lançadas todas as linhas do seu corpo—era uma verdadeira maravilha da
carne.

Nada parecida com a Pillar, que fôra sempre d’uma graciosidade fina
de intellectual; alta apenas para ser elegante; magra, sem o aspecto
quebradiço dos doentes; d’uma pallidez moreno-perola: era em tudo o
contraste da prima.

Criadas juntas, mas desemelhantes, tanto physica como moralmente,
tinham-se feito mulheres e seguiam os seus gostos e inclinações, que os
paes da Pillar não contrariavam na filha, que adoravam, e menos ainda na
sobrinha orphã e pobre, que a bondade d’elles agasalhára e criára como
egual aos seus.

Antonio de Mello, o pae da Pillar, fôra uma criança ainda para o Brazil,
chamado por um tio que, como elle, partira havia muitos annos, deixando
com lagrimas d’amarga saudade os amigos e companheiros de jogos e
romarias, o seu rebanho, a terra amada, que era a sua patria.

Voltára annos depois—quando a morte do tio lhe déra liberdade para
liquidar a fortuna—um pouco abatido pela nostalgia, mas ainda vigoroso
de corpo e são d’alma, como fôra. Um bom coração de rapaz que adormecêra
na trabalheira mercantil, acordando já quando os outros, os que passam a
mocidade em folgança, se sentem sem energia para amar sã e nobremente.

Como viera bastante rico e tinha uma finura natural, de temperamento
delicado, na maneira de apresentar-se, conseguiu captar as boas graças
d’um velho fidalgo da terra, que tinha ao tempo uma filha para casar.
Tinha a filha, o velho original, e uma pequena mas solida fortuna
ajuizadamente administrada, e uma e outra, as paixões dos ultimos annos,
elle queria entregar em mãos de homem capaz de asestimar.

—«Emquanto a fidalguia—dizia a quem fallava na humildade do nascimento do
Antonio de Mello—era coisa de que nunca lográra comer...

Era bonita a joven Josephina, bonita e sadia de corpo e d’alma, como quem
fôra criada nas serras e com a natureza aprendêra a bondade natural e
humana dos fortes.

Mal que a viu alegre e moça, como arbustosinho agreste que em seu tempo
proprio se reveste de perfumadas flores, sem complicações de tracto, nem
agasalhos de estufa, amou a Antonio de Mello apaixonadamente. Doía-lhe
no entanto recebê-la acompanhada d’um valioso dote, elle que a amava com
a simplicidade primitiva d’uma alma e d’um corpo que se dão em troca de
outro corpo e de outra alma por egual amante.

O homem que sahira do povo mais humilde, que arrastára uma vida
trabalhosa luctando pela fortuna, encontrava ainda, no seu coração
de trinta e oito annos, um crepitar de paixão e um desinteresse
verdadeiramente juvenis.

Confessára-lho; e tão simples, tão honestamente, que a rapariga o ficára
amando toda a vida.

Foram felizes como o podem ser dois espiritos que se ligam sem se
absorver, que se estimam e comprehendem, desculpando-se mutuamente.

Com a felicidade inesperada do coração, Antonio de Mello tornára-se
alegre, quasi criança; era a phantasia alada que doira a existencia e
que um bom casal não pode dispensar, sob pena de cahir na realidade banal
que mata o amôr.

Josephina, a boa e resignada alma, com a sua maneira serena e pacificante
de encarar a vida, trazia áquella felicidade um não sei quê de
intimamente religioso, que infundia respeito ainda aos mais familiares.

D’essa união tão completa nasceram dois filhos. Primeiro, o João, que
fôra sempre uma bella e forte criança de boas côres e moderada phantasia,
como a mãe. Alegre, prompto a defender os mais fracos, o seu espirito
não se perdia nas nebulosidades dos sonhos, que atormentam as crianças
precocemente, doentiamente emotivas.

Oito annos depois, quando o pequeno já bocejava sobre os livros das
primeiras letras, nasceu a Pillar, de uma finura, de uma graça de
estatueta. O irmãosito adorava-a e ria perdidamente, quando a via nos
braços da mãe procurando o seio como um animalsinho voraz, e de farta
deixá-lo depois e adormecer como um anjo. Mal entrava em casa, lá ia
elle, pé ante pé, se a criança estava a dormir no bercinho, afogada em
rendas e cambraias, contemplá-la com um affecto que mais parecia d’uma
pequena mamã. E já quando maiorsinha, João servia-lhe de protector e
amigo, de promotor de todos os festejos e brincadeiras que distrahissem a
irmã. E assim, ella criou-se sob o affecto carinhoso dos que a rodeavam,
como avesita fragil que um nada pode matar.

Talvez mesmo por isso, desde pequenina que os nervos lhe vibravam
intensamente todas as alegrias e tristezas da alma. Intelligente e com
uma grande vivacidade, a imaginação, como a do pae, viajava sempre pelos
caprichosos trilhos do ideal. Não sendo positivamente bella, as suas
feições eram tão finamente desenhadas, que o perfil esbatido em sombra
sob a cabelleira revolta fazia-lhe uma verdadeira cabeça de modelo.
Depois, quando fallava e ria, os olhos castanhos irradiavam um tal fulgor
de intelligencia que, incondicionalmente, a diziam bonita.

Um dia, quando ella era ainda muito criança, o pae levára-a, e ao João,
a uma quinta arredada onde deixava viver um irmão, que viera encontrar
na miseria, apezar do muito que do Brazil lhe mandára. Um mandrião,
um vicioso, que para alli ia morrendo aos encontrões da mulher e dos
filhos que o não estimavam. Só o irmão não se esquecia do desgraçado,
visitando-o amiúdadamente e dando-lhe tudo que elle necessitava.

Quando n’essa tarde chegaram á quinta encontraram a familia em gritaria
confusa, porque o homem, n’um phrenesi de bebedo, cahira do patamar da
escada de pedra e o sangue sahia-lhe ás golphadas pela bocca.

Assim morreu, sem dar mais accordo de si, apezar de todos os remedios
ordenados pelo medico, que o irmão mandára buscar immediatamente.

A Pillar sentiu uma impressão tão forte, que os seus frageis nervos de
precoce e feminil sentir conservaram eternamente a lembrança de aquella
espantosa scena. Chorou muito, abraçada á primita, a Candida, que era a
mais nova dos filhos do morto, mas apezar d’isso tres annos mais velha
do que ella.

D’uma friesa quasi hostil, a pequena torcia na bocca a ponta do bibe de
riscado, contemplando, com admiração inconsciente de pequena selvagem,
o vestido bordado, d’alvura deslumbrante, que a Pillar trazia com a
indifferença do habito.

Não querendo prolongar o espectaculo doloroso, que o acaso dera ás
crianças, Antonio de Mello quiz mandá-las na carruagem, emquanto elle
ficava até ao fim, mas a filha, muito enthusiasta e affectiva, é que já
não quiz partir sem levar a prima.

E foi desde essa hora amargurada que as duas ficaram inseparaveis—mais do
que duas amigas, irmãs.

Os sobrinhos, empregados; a cunhada e uma filha mais velha partiram para
a terra, deixando-lhe naturalmente, sem quasi o agradecer, o cuidado
da pequena Candida, que era um estorvo para todos, sendo na verdade
«_formosa de mais para pobre_», como dizia a mãe.

Ficaram juntas, dormindo no mesmo quarto, tendo os mesmos professores e
criados, os mesmos brinquedos e alegrias.

Diziam-nas as melhores amigas, apezar da profunda desemelhança dos
caracteres; mas se da parte da Pillar havia sinceridade no affecto, o
mesmo não succedia á Candida, que invejava a prima por tudo em que lhe
era inferior.

A vaidade enchera-lhe a alma d’ambições e ruins invejas e a belleza
physica não correspondia ao desenvolvimento das faculdades intellectuaes.

D’uma passividade infermiça para tudo quanto não fosse o seu prazer,
desde criança que o tempo que a prima levava a lêr e a estudar o passava
ella a contemplar-se ao espelho, a ataviar-se, ou a entregar-se a
pensamentos de que ninguem podéra nunca conhecer o fito.

Orgulhosa, d’uma susceptibilidade irritante, filha d’esse mesmo orgulho
que a dilacerava, supportava mal a posição que a sorte lhe destinára.

Se os primos e os tios a tratavam com a confiança que dá a amizade,
ella lia nas suas maneiras sómente o dó. Soffria porque os criados, que
adoravam os filhos dos patrões, tinham sorrisos e ápartes de despreso
pelos seus modos de rainha de emprestimo; soffria porque a Pillar tinha
a graça e o espirito, que traz a intelligencia cultivada; mas soffria
principalmente e desesperadoramente pela falta de fortuna que a punha
n’aquella dependencia.

E calava-se, comprimindo sob a frialdade do sorriso um fundo de
entranhadas cobiças. Incapaz de procurar a independencia pelo trabalho,
incapaz mesmo de considerá-lo uma coisa possivel para naturezas
excepcionaes como a si mesma se considerava, ia continuando a receber
tudo d’aquelles que no seu intimo odiava, por isso mesmo que tudo lhes
devia.

Não tendo sido nunca uma criança ingenua, porque o convivio d’uma familia
em que o pae era bebedo e a mãe e os irmãos mal educados lhe tinha feito
muito cedo conhecer da vida tudo quanto ella tem de inferior e baixo;
foi muito precoce no desejo de agradar e no convencimento de que só um
marido rico lhe daria a superioridade que ambicionava sobre todas, a do
luxo e dos faceis triumphos que o dinheiro traz a uma mulher bella.

Por isso, ainda de vestidos curtos e tranças cahidas, começára a olhar
para o João, já então um rapaz que entrava na vida com todo o enthusiasmo
dos vinte annos.

Mas elle, ou porque realmente não gostasse da prima, ou porque a achasse
criança, ou talvez por ter a cabeça cheia d’outros sonhos, o que é certo
é que a tratava com mais indiferença do que affecto.

A Candida soffria com isso, tanto mais que os rapazes ricos não abundavam
por alli e aos pobres não queria dar nem sequer a sombra d’uma esperança;
consentia-lhes apenas que a admirassem, de longe...

A Pillar, é que parecia querer fazer-lhe esquecer, á força de bondades
e delicadezas, a desegualdade das suas fortunas. Enchia a prima de
presentes, queria-a sempre egualmente bem vestida, e muitas vezes
puzera de parte joias de valor para não maguar a amiga. E dizia-lhe
ingenuamente, não vendo que irritava uma ferida que o despeito
fizera:—que seria o seu maior prazer vê-la casada com o irmão.

—«Porque razão não gostam vocês um do outro? Seria tão bom sermos irmãs a
valer!...

—«Não é preciso, querida! Pois não somos nós irmãs pela
amizade?...—respondia-lhe a Candida sorridente e beijando-a.

Como Antonio de Mello era muito bom para a familia, os parentes, ainda
os mais arredados, vinham sollicitar-lhe os maiores e mais abusivos
favores. Foi assim que o pequeno Emygdio, companheiro de João em
instrucção primaria, se valêra d’um affastado parentesco para pedir o seu
auxilio e continuar a estudar.

Conhecendo-lhe sagacidade e uma grande e tenaz vontade de subir,
sympathisou com o rapaz e mandou-o para o collegio onde o filho fazia os
preparatorios na mais alegre despreoccupações.

Quando vinham a férias, João apresentava o companheiro como modelo dos
estudantes, não lhe regateando elogios, apesar de lhe não seguir o
exemplo.

Macambuzio como um aldeão espantado, humilde, mal vestido, não despertava
senão despreso á Candida. Emquanto a prima o tratava com a affabilidade
que merece o companheiro e amigo d’um irmão, ella olhava-o desdenhosa,
com o despreso com que tratava os inferiores em posição, vingando-se
n’elles da sua propria inferioridade.

Mas o Emygdio não ligava importancia a tal coisa; tinha, como ella, um só
desejo, um unico horizonte se abria á sua pesada imaginativa de ambicioso
vulgar—_subir_, ser _alguem_. Para isso estudava, que não para saber.
Agarrara-se aos livros com a persistencia estreita e contumaz d’um homem
que por aquelle caminho intentou trepar para o futuro de gosos e de
vaidades satisfeitas de que a pobresa e a humildade de posição o tinham
affastado até ahi. Com os olhos fitos na futura grandeza pouco se lhe
dava com as humilhações da hora presente.

Assim, que lhe importava o despreso da Candida, tão rica como elle? O
que o tentava, o que o fazia rojar-se no pó para um dia se poder erguer
triumphante, era o dote da Pillar.

Teimosamente, com a paciencia d’um colleccionador, sem descançar nem se
desviar do seu fim, começára, desde os primeiros annos de intimidade com
João, um cerco muito habil á meiga criatura que lhe levaria a posição e a
fortuna almejadas.

Ella que primeiro o estimára como a um bom rapaz, companheiro do irmão e
a quem este fazia os mais rasgados elogios, que o admirára depois pela
fama de talento que a applicação persistente ás aulas lhe trouxe, n’um
paiz em que os rapazes geralmente pouca energia de vontade dispensam
ao estudo, começára por fim a enlear-se na rede invisivel que elle lhe
tecêra e ia armando, com a sua calculada timidez de caracter probo, mal
encobrindo um irresistivel affecto, que a ingenua acreditou muito puro.

Amou-o então, sinceramente, cegamente, com tudo quanto na sua alma havia
de enthusiastico e nobre.

Era tão feliz na embriaguez d’aquelle primeiro amôr, que desabrochava
n’um esbanjamento de força e perfume como na primavera as flores nascem e
crescem espontaneamente, que não soube occultar de ninguem o absorvente
anseio em que toda a sua pessoa se prendia.

Os paes, sabedores do desejo da filha, annuiram logo ao casamento—para
quando o Vilhegas acabasse a formatura em medicina e ella completasse os
vinte e um annos.

Porque não? Se a filha o amava tanto, e elle parecia tão bom, tão
sincero, tão intelligente; porque razão se opporiam?

—Ser pobre não era motivo para recusas, pois que a pequena tinha, graças
a Deus, o bastante para os dois...—dizia o pae satisfeito por ver na
escolha da filha uma sinceridade e desinteresse que toda lhe transmittira
com o seu sangue salubre de generoso plebeu.

De maneira que a Pillar passára do desejo á realidade, n’um
deslumbramento de sonho, que a tornava a mais ditosa das mulheres.

A alegria radiosa d’um grande amôr que se julga correspondido e não
tem preoccupação que lhe empane o fulgor, fazia d’ella a noiva mais
adoravel que um homem de espirito e de coração poderia desejar. O Emygdio
mostrava-se d’uma correcção e d’um enthusiasmo, que talvez fossem
sinceros, no seu papel de noivo feliz e enamorado.

Porque, se era verdade que intimamente não sentia a paixão que
aparentava, tambem lhe não era indifferente a rapariga, que alem de rica
e bem educada tinha a intelligencia e a graça que conveem á mulher d’um
grande politico, que ambicionava vir a ser.

Não sentia por ella impetos de paixão, como ainda os não sentira por
outra qualquer. A ambição de subir, aspiração exclusivista e absorvente,
parecia ter-lhe embotado toda a affectividade do seu ser.



III


«Porquê?—perguntára o Emygdio. Porque razão os despresava a Pillar, ella
que os tinha amado tão ardentemente, que fundira a amizade pela prima
e o amôr pelo noivo em tão intima communhão, que não sabia bem como
destrinçar qual occupava maior e melhor logar em sua alma?!...

Presentia que os seus sonhos de grandeza desabavam, que toda a sua
ambição de subir baqueava ante aquelle estupido amôr que o enlouquecêra.
Amar a Candida—que loucura!... Como fôra que isso se lhe mettêra em
cabeça? Como se deixára vencer pelo capricho d’uma rapariga leviana,
enlear ingenuamente n’uma intriga perigosa, quando se julgava superior a
bagatellas de sentimento?!...

—«Oh que estupido—que estupido e que fraco!—dizia a meia voz, levando
os punhos á fronte na ansia de arrancar do cerebro aquella ideia
mortificante.

Dava-se uma situação d’estas quando já se via formado, quando apenas
esperava que a noiva completasse os vinte e um annos para encetar a vida
de prazeres que de criança vinha ambicionando com tão feroz egoismo!
Quando o triumpho lhe estava assegurado é que esbarrára n’esse escolho
imprevisto—a paixão por uma rapariga pobre.

Que ironia da sorte! E não poder fugir ao imperio que a belleza material
da Candida exercia despoticamente sobre o seu organismo, mortificava-o,
por deprimente para o seu orgulho de forte. Elle, que unicamente amára o
seu sonho de grandeza, vergára todo inteiro ao primeiro olhar em que essa
soberba mulher o envolvêra.

Soffria no cachoar de paixões, em que se sentia tão outro; escravo d’um
sentimento imprevisto, quem fôra sempre tão senhor dos seus desejos, quem
soubera guiar os seus mais insignificantes actos com a pericia e sangue
frio d’um habil _sportman_ guiando os cavallos de fina raça por entre o
turbilhão da multidão que se acotovella. Parecia-lhe uma illusão da sua
cabeça enfebrecida; nem comprehendia como isso lhe viera só agora, tendo
conhecido a Candida desde pequena.

Não comprehendia, mas o problema era de facil solução. Criados juntos,
era verdade, mas affastados moralmente como se os separassem milhares
de leguas, tinham-se visto sem se vêr, empolgados um e outro pelos seus
aureos devaneios.

Quando o João partira para a Belgica, n’um subito desejo de sérios
estudos, sem ter manifestado á prima a mais leve sombra sequer de amoroso
interesse, teve ella uma decepção fundissima. O seu orgulho de mulher
bonita fê-la sentir, como um insulto, a indifferença d’um homem que tinha
desejado conquistar. Julgou-se victima de injustificavel perseguição do
destino e o seu fundo invejoso de egoista azedou se mais ainda.

Despresára o Emygdio, achára o vulgar e desageitado; quando a prima lhe
confessára o seu amôr, tivera mesmo um mordente risinho de troça, mas
agora que o via com uma posição bastante para a tirar da dependencia que
a torturava, embora para viver modestamente, começára a notar que não era
de todo feio aquelle solido rapaz de hombros largos, cabeça loira e rosto
imberbe e rosado, agora, desde que ganhava dinheiro, sempre enfiado em
collarinhos da ultima moda e gravatas espectaculosas. Convenceu-se de que
o casamento da Pillar seria mais uma injustiça revoltante. Era um medico,
afinal! Não teria sido melhor ter pensado antes n’elle do que no João?...

Desde que esta ideia se lhe fixára na cabeça, foi d’uma provocante e
tenaz amabilidade, dando-se um ar quasi ingenuo de fraternal carinho,
a que o rapaz não soube resistir. Conhecia pouco a vida para se poder
esquivar ao dominio d’uma formosa mulher que ia ao seu encontro, o
requestava quasi.

Conquistado, julgou-se conquistador—o que o envaideceu e lhe fez perder o
sangue frio.

—«Talvez fosse ella quem lh’o dissesse—pensava o rapaz passeando inquieto
pelo quarto onde se encontrára com a Candida.

Mas não fôra. Não estimava por certo a prima, odiava a mais do que a
estimava, mas tinha habilidade bastante para não comprometter o presente
sem ter a certeza do futuro. Ora a certeza de que o Emygdio se resolvesse
a desmanchar o auspicioso casamento que tinha contractado, para a tomar
como esposa, não a tinha; porque, se em conversas de amôr o achava de
uma eloquencia de que até o julgára incapaz, logo que se tratasse de
interesses e de futuro encontrava-o d’uma frialdade e d’um mutismo muito
para desconfiar. Se não era d’uma intelligencia excepcional, era bastante
fina para comprehender até onde chegava o dominio exercido sobre os seus
adoradores—o que de resto não é prova de talento, antes de preoccupação
mesquinha de quem se occupa sómente com a sua pessoa e funda as mais
caras esperanças no agrado dos outros.

Não fôra pois ella, mas um simples acaso que tudo revelára á Pillar.

Uma noite já fria do ultimo outomno, acordára altas horas, muito contra
o costume dos seus bons somnos de saudavel e feliz. Voltara-se na cama,
aconchegando a roupa, enterrando mais a cabeça na almofada macia, mas
uma pallida claridade que vinha do quarto de vestir sobresaltou-a pelo
inesperado. Abriu muito os olhos para se convencer de que não sonhava,
sentou-se na cama e chamou a prima. Como lhe não respondesse, chamou mais
alto, n’uma voz entrecortada de sobresalto, e só ouviu o bater do proprio
coração de encontro ás paredes do peito.

Não sabendo como explicar somno tão pesado em quem de ordinario pouco
dormia, saltou ao chão e foi á cama acordá-la. A cama estava vazia.

Não poderia explicar o que pensou, porque ha momentos em que o
instincto, de ordinario emudecido pelas conveniencias, pela educação
e pelo sentimento, se insurge, apodera-se de todo o nosso ser animal,
impelle-nos com a força bruta da natureza que se vinga, para a frente,
para a verdade, para o abysmo muitas vezes...

Correu ao quarto de vestir e viu que a claridade que tanto a intrigára
era a do luar que entrava a jorros por essa mesma porta de vidros a que o
Emygdio ora se encostava, e era sahida para o jardim.

Um ligeiro sussurrar de vozes veio morrer ao seu ouvido sobreexcitado.

Estaria a Candida no jardim? E com quem?

Perguntava a si mesma, sem poder adivinhar a resposta... Talvez que
n’esse rapido instante de incerteza ella presentisse o derruir de todos
os sonhos de ventura, architectados com tão amoroso enthusiasmo, talvez...

Abriu a porta de vidros mal encostada, com a cautella, o susto de quem
pratica o primeiro crime, e, de subito, encostou-se á hombreira para não
cahir, e alli ficou por instantes, trémula, tiritante, como assombrada.

Viu-os de costas, affastarem-se enlaçados; ouviu a voz, que sempre aos
seus ouvidos tinha chegado como symbolo do amôr e da verdade, murmurar
blandicias aos ouvidos de outra mulher; toda a vida se lhe concentrou
nos olhos e nos ouvidos, que n’esse esforço de vontade adquiriram uma
acuidade suprema.

Conhecia-os bem; a imagem d’elle, principalmente, estava gravada tão
funda na sua retina de apaixonada, que o reconheceria logo, ainda mesmo
que o som das suas vozes não lhe viesse bater no ouvido como enxadadas de
coveiro que lhe estivesse abrindo a cova sob os olhos apavorados.

A decepção foi d’uma surpresa tão triturante, tão esmagadora, que para
alli se ficou como empedrada, encostando-se á parede branca de cal, como
ella immovel e livida. Envolta em luar, a cabeça descahida, a bocca
entreaberta n’um estorcer de angustioso espasmo, apenas vestida pela
camisa fluctuante que só lhe descobria os pés nús, as mãos finas e a
cabeça que a surpresa desvairava—era a verdadeira encarnação do desespero.

Voltavam; já as vozes se aproximavam, n’um murmurio que se confundia com
o tremor das folhas emurchecidas que se desprendiam das arvores que o
outomno amarellecêra e com o cahir da agua nos tanques.

A Pillar estremeceu; voltar para traz, esconder-se, fugir, foi o
pensamento que a assaltou, logo seguido de outro, de muitos outros,
d’um tumultuar de desejos desencontrados, que a deixavam indecisa,
esbogalhando os olhos para a mancha empastada das arvores onde os dois se
escondiam.

A noite muito clara, n’uma cheia de luar, estava fria, d’essa algidez
penetrante que dá a proximidade das montanhas coroadas de neve.

Um estremecimento prolongado e doloroso lhe sacudiu o corpo. O sangue
batia-lhe na cabeça e punha-lhe nos ouvidos uma zoeira de atordoamento,
cascalhavam os dentes uns contra os outros, todo o seu fragil organismo
se debatia n’uma crise de nervos assustadora.

Teve medo de morrer alli, e sob o esforço, pela pressão violenta da
propria dôr, conseguiu entrar e fechar a porta como a encontrára, e
depois, aos solavancos, desequilibrando-se, esbarrando nos moveis, chegou
á cama onde se metteu mais por habito do que pelo claro juizo do que
fazia.

Quando a Candida recolheu já não estava em estado de a sentir; e ella,
nada ouvindo de anormal, julgou que mais uma vez a aventura passaria
despercebida.

De manhã a febre era intensa e o delirio hallucinado. O dr. Ramalho e
o Vilhegas, chamados a pressa, olharam se preoccupados, n’uma clara
demonstração de desânimo. Ambos os pulmões estavam atacados e a pleuresia
manifestava-se com a violencia d’aquellas de que só um prodigio póde
salvar a doente.

Salvaram-na com effeito, á força de cuidados e desvelos; como que a
arrancaram á morte, n’uma lucta braço a braço travada.

O Vilhegas foi o mais cuidadoso enfermeiro, não se deitando, não comendo
senão de pé ao canto d’uma meza, alli mesmo no quarto de vestir.

A Candida, presentindo que a doença era mortal, teve um momento de
orgulhoso triumpho, mas calára-se, fingindo esquecer o Emygdio,
affectando um enorme interesse pela doente. Não queria escutar os tios
que a mandavam repousar e despresava os conselhos que a velha Engracia
lhe dava, n’um modo arreliento de desconfiança.

—«Não, minha tia, não me obrigue a desobedecer-lhe—porque eu não deixo a
Pillar, dizia, abraçando a pobre mãe lavada em lagrimas de reconhecimento.

Não a deixava de facto, nem de dia nem de noite, como expiando a morte
bemfeitora que lhe arredaria aquelle unico estorvo ao seu sonho supremo.

Mas a morte foi vencida d’esta vez.

Quando o dr. Ramalho e o Vilhegas participaram aos paes que o grande
perigo passára, elles não souberam senão chorar, tão verdade é ser o
grande contentamento quasi doloroso pela intensidade do sentir.

Começou a melhorar devagarinho, n’um ateamento de vida que vem aos
poucos, preenchendo as lacunas da memoria; mas á proporção que a luz
se fazia no cerebro abalado da doente, um desespero sem nome se lhe ia
pintando no rosto. Os olhos tinham uma expressão de desvairamento quando
se fixavam na prima e no Emygdio pelos quaes manifestára uma subita
aversão, que parecia desolá-los. Só os consentia no quarto, quando de
todo não encontrava pretexto para os affastar. A Candida, principalmente,
causava-lhe uma irritação profunda, que roçava pela repugnancia.

Os nervos, n’aquelle organismo depauperado pela doença, tornaram-se
senhores absolutos e d’uma susceptibilidade que lhe chamava lagrimas aos
olhos a cada momento.

Infantil por vezes, muito tolerante para os paes e para a velha Engracia
que a acompanhava sempre como pessoa da familia, que quasi já o era
pela quantidade d’annos que servia a casa, deixava que a boa velha a
entretivesse como em criança a contar historias, visto que o dr. Ramalho
a prohibira de todo o trabalho intellectual—nada que a emocionasse!...

—«Conta lá, Engracia—dizia a sorrir vagamente, os olhos esquecidos a
fixar qualquer coisa—conta aquella historia d’uma princeza que morreu
d’amôr...

—«Ora, ora! Sempre a mesma não tem graça, menina! Agora hade ser a do
«Bernal Francez».

—«Pois sim, a que tu quizeres...—No fim do _rimance_, que a velha entoava
com modalidades de voz apropriadas:

    —«Filhos que d’ella tiveres
    Ensina-lhe melhor que a mi.
    Que se não percam por homens,
    Como eu me perdi por ti...»

Ella sorria ainda, com o mesmo vago sorriso e o mesmo olhar fixo,
enternecidos de tantissima tristeza...



IV


O dr. Ramalho—homem de trinta e oito annos, mais insinuante do que
bello—fôra para alli logo ao sahir da Universidade, era a Pillar
ainda uma criancita a quem beijava e contava contos. Vira-a crescer
com o desvanecimento d’um pae ou irmão mais velho, não a considerando
mulher senão quando ella lhe confessou, n’um impeto de franqueza, o
seu enthusiastico amôr pelo Emygdio. Um d’estes amôres romanticos de
rapariga, que sente um prazer morbido de sacrificada em offerecer ao
homem, julgado infeliz, todas as alegrias e felicidades da terra. O dr.
Ramalho tentára então tratá-la com ceremoniosas excellencias, o que a
fazia rir perdidamente, terminando por lh’o prohibir.

É que a intimidade acarreta mais vezes affeições assim ternas e simples
do que traz o amôr—paixão.

N’esta altura abriram-se as camaras e o dr. Ramalho, que era deputado,
teve que sahir para Lisboa.

Á despedida animára os paes, dizendo lhes que, a pleuresia aguda estando
vencida, ella ficava livre de perigo e bem entregue aos cuidados do
collega; mas se sobreviesse qualquer imprevista recahida o chamassem
logo. E terminava em confidencia—«o abalo physico foi tão forte e a
fraqueza é tanta que ha muito a recear um desequilibrio nervoso, que
temperamentos como o d’ella teem sempre mais ou menos latentes. Que era
urgente uma radical mudança em toda a sua vida... Que apressassem o
casamento. A realisação d’esse ardente desejo do seu coração havia de a
curar.

Os paes concordaram de boa vontade em apressar o casamento; tudo quanto
a filha desejasse elles fariam para a melhorar. Mas a doente sorrindo
desdenhosa á proposta e olhando o Emygdio que a fitava ansiado e a
Candida que se fingia desinteressada da conversa, respondeu que não tinha
pressa, que havia muito tempo... queria que o João assistisse, queria
melhorar de todo...

Desde esse dia é que o Vilhegas se mortificava a procurar o motivo
d’aquella mudança da noiva, que lhe roubava assim a fortuna ambicionada
quando elle já estava de mãos estendidas para a agarrar.

Redobrou de cuidados e de medicamentos, mas a Pillar, em vez de melhorar,
de dia para dia se mostrava mais enfraquecida, mais desanimada e perto
da morte. Quando os paes, cheios de dôr, fallavam em mandar vir o dr.
Ramalho, ella oppunha-se, chorava, dizia que estava melhor, e que
se elles o queriam chamar é porque a julgavam muito mal, em estado
desesperado...

Sabia-se condemnada, e comprazia-se em ver o Vilhegas soffrer sósinho,
na impossibilidade de a curar; e elle, vaidoso, preferia tambem ser o
unico a tratá-la para assim ganhar o terreno que sentia esboroar-se-lhe
sob os pés. Queria illudir-se, não vendo que a noiva tinha na face, quasi
cadaverica, um sorriso torturado de quem tudo comprehendia; e morria
vingada porque a sua morte era o castigo d’elle. Á Candida sabia bem
que o não deixava; conhecia-o agora ambicioso e vulgar tal qual era,
incapaz de se sacrificar por uma mulher ou por um interesse que não fosse
exclusivamente seu.

Morria, a pobre, mais por ter visto morrer o seu ideal do que pela doença
que lhe consumia o corpo.

Não lhes dizia nada, sentindo um mortal prazer em vê-los estorcer-se na
incerteza e no pavor. Crueldade verdadeiramente humana e bem desculpavel
a quem soffrera esse despedaçar de illusões em que corpo e alma se lhe
caem esphacelados.

Tinha dias d’uma passividade dolorosa em que era impossivel, mesmo á
propria mãe, arrancar-lhe uma palavra ou um gemido; outros em que fallava
e ria, mas de tal maneira confrangida e amarga, que antes a preferiam nos
dias de maior tristeza.

Tudo n’ella se transformára ou modificára. O proprio affecto pela mãe,
que era d’antes mais respeitoso do que carinhoso, tornára-se n’um grande
amôr apaixonado de quem se refugia, mortalmente ferido, no logar em que
a acolhida é mais amoravel e certa. Queria-a ao seu lado, sem fazer nada,
toda embebida a olhá-la, enchia-a de caricias, e atormentava a com as
palavras de mais desconsolador desânimo.

—«Oh mãesinha,—dizia lhe um dia—se não fosse o João, pedia-te, e ao papá
tambem, para morrerem commigo. Querias?!...

—«Oh meu anjo, mas tu não hasde morrer. Para que pensas n’essas tolices?
Não vês o que diz o Vilhegas? A tua doença tem muito de nervoso, hade
passar, verás!...

—«Pois é, eu sei... mas dize: gostarias de morrer commigo?

—«Oh se gostava! Que maior felicidade pode haver para uma pobre mãe?!...
Não deixar n’este mundo egoista e mau os filhos do seu coração, não os
vêr partir levando-lhes a alma?!...

—«Pensas como eu, somos bem irmãs no sentir! Se tivesse filhos... Oh!
se tivesse um filho!...—os olhos enchiam-se-lhe de lagrimas, com uma
grande magua de virgem que sente que todo o seu ser se revolta vendo-se
privada injustamente da mais alta, nobre e bella das alegrias femininas,
o orgulho de ser mãe.—Olha, se eu tivesse um filho havia de amá-lo assim.

Ficava-se horas esquecidas deitada sobre os joelhos da mãe, não podendo
sentir nem o barulho d’um relogio sem gritar que lhe espetavam alfinetes
no cerebro. De dia para dia peorava e a irritabilidade nervosa augmentava
a ponto de a pôr a cada instante em crises de soluços e lagrimas que lhe
avermelhavam a bocca com o sangue que os pulmões não comportavam já.

Emygdio, desanimado scientificamente, queria conservar a todo o custo uma
illudidora esperança; d’essa esperança sem base que está no intimo de
todos os seres humanos, inferiores ou superiores, eternas crianças que
somos, só fortes á custa de raciocinio e vontade consciente e educada.

Mas n’essa manhã desconsoladora de inverno, vira-a tão desmudada e
cadaverica, que desanimára de todo. A correr se dirigira ao telegrapho
para chamar o dr. Ramalho e para alli voltára logo e alli se conservava
na espectativa do grande desastre.

Os paes encaravam-se espavoridos, sem manifestação de sentimento, porque
a dôr quando assim forte é como anesthesico para o espirito que se
concentra no ultimo reducto da esperança, no impossivel, no milagre...

A noite cahia com a lentidão pastosa das tardes de chuva, que se afogam
em lama silenciosamente. Os criados, em bicos de pés, accendiam as luzes
indispensaveis para o serviço, trocando phrases a meia voz em que a
palavra morte se repetia já como um dobre de sinos, e soluços abafados
se suffocavam. Por toda a casa pesava o mesmo silencio funebre que se
presentia cheio de gritos prestes a explodir...

O Emygdio, junto da janella, olhava inconsciente a sombra rapida que
crescia no jardim, as arvores encharcadas pingando no chão já empoçado,
as hastes despidas de folhagem enlaçando n’uma alliança macabra aquellas
que o inverno não pode desnudar nas suas furias loucas. Como era
differente o aspecto do jardim, n’essa amorosa noite de outomno, a
ultima em que estivera com a Candida, aquella em que a Pillar adoecêra!...

Do quarto da doente vinha um murmurio de vozes, que se differençavam.
Todas as vezes que a da Pillar, um pouco rouca, já estortorosa, se ouvia,
elle enterrava as unhas nas palmas das mãos, n’um desespero de vencido.

Ella soluçava n’esse momento, deitando os braços ao pescoço da mãe como
se quizesse agarrar-se ainda á vida que lhe fugia:

—«Soffro, soffro muito!... Vão chamar o papá! Quero ver o João... Tenho
medo, mãe, tenho medo!...

—«Medo de quê, filhinha? Estou eu aqui, não vês?...—respondia-lhe
estrangulando os soluços a triste mãe.

—«Não sei!... Tenho medo de tudo!... Queria morrer sem ver chegar a
morte!...

—«Não hasde morrer, meu anjo! Deus terá piedade de nós!...

Hallucinada, reerguendo-se da cama, respondeu arquejante:

—«Não lh’o peças, ouviste? Podia attender-te, e eu não quero viver, não
quero!...

Vendo a angustia da mãe cahiu em si, e rouquejou um soluço de perdão.

—«A Candida?—inquiriu n’um cicio, d’ahi a momentos.

—«Está lá dentro. Tráta-la tão mal, que a pobre menina não se cança de
chorar.

—«É da doença,... Trato mal todos, a ti tambem.

—«Não digas isso.

—«Trato, bem sei... Mas tudo vae mudar em breve... Serei tão bôa... Vae
chamá-la, que venha, que pode vir... Não lhe farei mal...—Tão amarga
ironia resumbravam estas palavras que mais pareciam o riso funebre d’uma
caveira.

A Candida entrou sob a gelida impressão de quem entra como réo avergado á
culpa, n’um tribunal em que a consciencia é juiz inilludivel e implacavel.

Presentia que o momento solemne das explicações chegára inappelavelmente
e não podia avaliar o resultado final d’aquella entrevista que a podia
atirar para a miseria mais desoladora, a dos incapazes para o trabalho.

A doente entreabriu os olhos, acenou á mãe e á Engracia para sahirem, e
ficou só com a prima. Fixou-a em silencio, com os grandes olhos pasmados
dos moribundos, vendo-a estorcer-se n’um supplicio sem ousar avançar nem
recuar, querendo fugir á suggestão d’aquelle olhar que a condemnava mais
do que a sentença d’um juiz.

—«Vem...—murmurou por fim a inferma.

Deu dois passos cambaleando e foi cahir de joelhos junto do leito onde a
Pillar arquejava, levantando-se n’um esforço supremo de vontade, fincando
o cotovello direito nas almofadas.

Vendo-a tão proxima de si, teve um instinctivo movimento de repulsa, mas,
vencendo-se logo, poude agarrar-lhe o pulso com tudo quanto lhe restava
de vida:

—«Mataste-me, lembra-te d’isto... Sei tudo!... Vi tudo!

N’um arranco tragico, gaguejava palavras entrecortadas, que nada diziam,
nada do que ella queria talvez dizer. N’um esforço prodigioso de energia,
empurrou a prima, sentou-se na cama, e estendeu os braços no vacuo; logo
a seguir retezou-se toda, cahindo sobre a ruma d’almofadas que lhe tinham
feito supportavel a cama.

O aspecto da pobresita era terrificante, olhos escancarados como se
procurassem a luz que lhes fugia, a camisa desabotoada descobrindo as
claviculas descarnadas, a bocca augmentada pela emaciação contrahida n’um
rictus doloroso, e a pelle a que a luz da lamparina dava um tom azulado
enrugada como velho pergaminho. Os braços descahiram-lhe ao longo do
corpo e as pequenas mãos transparentes arrepanhavam a roupa...

A Candida levantou os olhos que baixára para fugir á obcessão d’aquelle
olhar condemnatorio, e a impressão de horror foi tal que d’um salto se
pôz á porta, clamando pelo Emygdio, que vira no quarto proximo.

—«Perdidos, perdidos—murmurou n’uma voz que o terror fazia trémula e
soluçante como se um frio intenso a sacudisse.—Diz que a matámos, sabe
tudo... vae dizer aos paes!...

O rapaz recuou tambem aterrorisado, até á porta, poz-se a considerar o
pequeno volume que o corpo, que fôra uma tão harmonica conjugação de
linhas graceis, reduzido á miseria d’um esqueleto sem fórma, fazia sob a
cobertura.

Rodeada de luxo e mimos, cheia de esperança e de alegria, intelligente,
boa, educada; um pequeno nada bastára para a matar—uma traição tão
grosseira e vil, que n’esse instante duvidava até que a tivessem
praticado...

Matára-a, bem certo que a matára, com o seu procedimento d’uma maldade
e estupidez revoltante e com a covardia de não querer ver o mal quando
talvez fosse ainda tempo de o remediar...

Tudo quanto na sua alma havia ainda de honesto estremecia de pavor e
remorso; depois todos os seus sonhos de grandeza se evolavam n’uma
debandada de desânimo: Tanto sacrificio pela Candida... se valia a pena!
Olhou a, pareceu-lhe como nunca formosa, d’uma imponente formosura
dramatica de Magdalena de Rubens, mas como nunca tambem a ideia de não a
esposar se apresentou nitida no seu cerebro.

Foi ella quem primeiro readquiriu todo o seu sangue frio, abeirou-se da
cama para tocar na mão que a prima conservava fóra do leito, na esperança
talvez de a sentir enregelada pela morte, incapaz de se levantar para a
apontar como traidora.

A moribunda, como se áquelle contacto fosse chamada á vida, abriu os
olhos desmedidamente, que eram já como janellas rasgadas para o mysterio;
conheceu os dois rostos lividos de medo que a fitavam, e sorriu, com um
despreso tão fundo, tão vincado nas pregas d’essa ultima mascara de vida,
que mais parecia petrificada.

Os dois recuaram espavoridos, apertando-se um contra o outro,
procurando-se para se protegerem mutuamente d’esses olhos de moribunda
que os fitavam, que os perseguiam como se quizessem levar para a terra
a imagem dos assassinos, bem juntos no mesmo crime, bem apavorados e
martyrisados por essa suprema vingança da morte.

Então, ao mesmo tempo que o corpo se lhe dobrava para traz e o queixo
descahia já sem vida, soltou um gemido tão estortoroso, tão rouco e tão
espantosamente exprobatorio, que a Candida fugiu a gritar, com a cabeça
perdida, pondo em toda a casa o desespero que o respeito pela moribunda
tinha contido até ahi.

O Emygdio foi cahir de joelhos junto da morta, e tentava fechar esses
olhos que o endoideciam.

Mas as palpebras oppunham aos seus dedos trémulos uma resistencia fria
de coisa morta. Carregava com força, brutalmente, com risco de estoirar
as pupilas, mas quando levantava os dedos elles lá estavam envidraçados,
n’um espanto tragico e vasio.

Era uma preoccupação independente da sua vontade, uma infantilidade
quasi, parecia-lhe que se ficasse assim de olhos abertos toda a gente
n’elles poderia ler o seu crime. Não ouvira tantas vezes contar, quando
criança, que assim se vingavam as victimas dos seus algozes?!... E que
extraordinaria vingança aquella! Conservar eternamente nas pupilas sem
vida a imagem de quem lh’a tirára!...

Não era o medico, o homem de sciencia que alli estava, hesitante,
enraivecido, todo em lagrimas; era um criminoso vulgar cheio de sustos e
preconceitos.



V


O sol fôra inclemente em todo esse dia de julho.

Anoitecia, e, apezar d’isso, nem a mais leve viração se levantára
consoladora a arrepiar, n’um trémulo de caricia, a folhagem das arvores,
que tinham o banal aspecto de plantas de folha pintada a que o tempo e a
poeira debotára a côr.

Na paysagem de serras e fraguedos, que o homem conseguiu cultivar e
esplanar em sucalcos successivos, os restolhos punham manchas de oiro
no verde sombrio de agreste vegetação; e o céo, d’um azul que o proprio
calôr velára, tornára-se vermelho sanguineo, agora, que o sol desfallecia
no poente.

Os jornaleiros recolhiam silenciosos aos casebres, sem riso ou cantiga
que alliviasse penas, mortificados pela trabalheira rude das ceifas
e malhas sob a rudeza d’um sol impiedoso. Nem as raparigas na fonte
gargalhavam, como de costume, emquanto a agua, correndo muito lenta e
diminuida, lhes enchia os cantaros de barro.

Só muito ao longe, pelas quebradas da serra, resoavam os chocalhos
dos rebanhos indo para o pasto e a flauta do pastor a guiá-los até á
madrugada,—que depois a calma aperta e os pobres animaes, de agoniados,
nem podem comer. Mais longe ainda, o chiar rangente dos carros de bois,
como um longo gemido angustioso... Dir-se-hia que todas as coisas
soffriam do calor asphyxiante e cahiam n’uma invencivel preguiça de viver.

É pequeno o verão nas montanhas—alguns dias de julho e agosto, quando
muito os primeiros de setembro—mas esses são pezados, infernalmente
longos e ardentes, sem nenhuma compensação e consolo de leve aragem
pelas tardinhas. Em casa abafa-se, não ha sombra que resista á subida do
thermometro quando o mercurio chega á linha do Senegal, n’um escarneo a
paizes temperados. Na rua, noite alta mesmo, não se sente nenhum allivio;
da terra sóbe uma baforada quente de fornalha, que afflige.

Abafa-se... mas é moda ir-se em julho para lá, não obstante ser
infinitamente mais agradavel um canto de praia—onde o mar põe levezas de
ar salino e um frescôr de permanente banho de espumas, as gaivotas veem á
babugem da agua gritar as sonoras alegrias das coisas simples e humanas,
e os olhos navegam longe, com a amplidão suggestiva das azas e das velas.

E passam na cidade,—n’aquelle afadigamento de distracções e afazeres,
que chegam a ser monotonos á força de repetidos—os que obedecem á
moda por preguiça intellectual de pensar e querer, os dias criadores
de primavera—quando os caminhos lá das serras se alcatifam de musgos
velludosos, as arvores se cobrem de flôres e verduras tenras, e as
nascentes correm mais abundantes e limpidas da rocha viva; quando as
andorinhas se acasalam e toda a natureza canta o grande hymno magnifico
da vida é que a montanha se torna acolhedora e falla ás almas, como uma
bôa e amorosa mãe.

Mas... não está decretado pelo habito dos que dão a nota de elegancia em
todos os actos da vida ainda os mais intimos e graves, e por isso a villa
estava radiante com os seus hospedes de verão.

João de Mello atravessou melancholico e vagaroso o largo da Fonte e
dirigiu-se á botica velha, onde o sr. Domingos José da Silva se debatia
contra o calor e distillava suor em mangas de camisa, como se tivesse
sobre as costas pezada armadura medieva. Soprava em bochechas de
affrontado, limpava a cara ao tabaqueiro de ramagens, escancarava os
braços como a arejálos, e cahia esfalfado n’uma cadeira para se levantar
incontinente como se tivesse por assento um brazeiro inquisitorial em vez
de innocente palhinha.

—«Oh meu querido sr. João de Mello—berrou descompassado, mal viu assomar
á porta a figura melancholica do rapaz—quanto folgo, quanto folgo de o
ver! Cuidámos que não queria nada _cô a gente_.

Abraçou-o expansivo e correu dentro a chamar o filho para accender as
luzes. Estava radiante com a visita do feliz herdeiro de quinhentos
contos, a melhor casa da comarca em dinheirinho de contado e bôas terras
livres, sem fallar nos fóros que se recebiam sem conto pelo S. Miguel
de cada anno. Era bôa, talvez mais extensa em propriedades, a casa do
Visconde, mas a politica como as demandas e o jogo onde entram fazem
largo rombo... Estas e outras considerações expunha elle á mana Joaquina,
sentados á fresca, sob a parreira do quintal.

—«Muito bôas noites, sr. Domingos; eu venho...—tentou dizer o João.

—«Espere, espere que já o attendo. Deixe-me cá chamar a mana _qu’ella_
está morta por o ver! _Inda honte_ tinhamos fallado, ora a graça! Ó
_Jêquina_!...—gritou para cima, para o primeiro andar, e voltou logo a
reprehender o filho porque a torcida mal cortada enegrecia a manga do
candieiro de latão.

—«Nós cá sabiamos que chegou na segunda feira. Não se pode fazer moeda
falsa, tudo se cá sabe...—Estrondosa gargalhada completava a phrase. E
depois, sem interrupção—disseram que ninguem lhe punha a vista em cima,
_qu’anda_ assim como amalucado, macambuzio... Então que vem a ser,
_soidades, soidades_, hein?!...

—«Olha o sr. Joãosinho, o meu _Janequinho_!—entrou dizendo e arrastando a
sua perna trôpega a sr.ᵃ Joaquina Ritta—uma sua criada, para os servir e
louvar a Deus Nosso Senhor, continuava ella a dizer para se apresentar.

—«Vê lá que _home_ ahi tens, a fazer a gente velha!—dizia emphatico o
boticario.

—«Pois está um _homezarrão_, está! Quem o conheceu e quem o vê! Faz uma
pessôa velha, nem já se lembra da gente, nem das tardes que passava
a cavallar no quintal com os rapazes?! Sempre era um diabrete! Mais
traquinas inda não vi! A mana é que não, sempre foi um _peringalhinho_
que não prestava para nada. O que ella queria era sentar-se ao pé de mim
a costurar ou a ler aquelle meu livro da _Felor de Maria_, do _Renhónhó_
e da _Cúrúja_. Não se lembra, ás vezes ao serão ao pé da brazeira? Um
botãosinho d’aquelles tinha uma pausa na leitura _caté_ a gente chorava
com as fallas do principe _Rodolpho_.

Os _Mysterios de Paris_, com suas gravuras baratas, e a cartilha do
_Mestre Ignacio_ eram toda a bibliotheca da sr.ᵃ Joaquina Ritta. A muita
leitura de romances e casos sentimentaes, parece que embota o coração,
pois a bôa mulher possuia sómente aquella enredada historia que relia
amiudadas vezes com a alma confrangida e os olhos distillando amargo
pranto pela desgraçada Flor de Maria. Alli havia conhecimentos e tirava
maximas para todos os casos da vida.

Já disse, não sei quem, que um só livro bem meditado é thezoiro
inexgotavel.

—«Lembro me de tudo, lembro-me!... E com saudades, sr.ᵃ Joaquina, que só
eu sei!... e os olhos de João velaram se de lagrimas.

—«Não falles n’essas coisas—reprehendeu o Domingos. Isto de mulheres
estão sempre a dar _co’a_ lingua nos dentes.

—«Tens razão, tens, mano. É que sempre foi uma _disgracia_!... Nem me
vai d’aqui, até se me dá um nó na _greganta_ quando penso n’aquella
menina!... Mas tem razão, não fallêmos em coisas tristes. Ora diga-me,
menino João, a mãesinha como vae, bôa, sim?

—«Vae indo, bôa não.

—«_Dês_ que la fui dar pesames que não a tornei a vêr. Nem tornou a
sahir, aquillo teve um sentimento! _Tamem_, não houve na terra grande nem
pequeno que não chorasse.

—«Lá tornas á mesma! As mulheres sempre são!...

—«É verdade, tem razão, esta minha cabeça! Olhe cá, menino, então gosta
de lá estar _pr’os estrangeiros_?

—«Muito. São melhores terras do que as nossas, e a gente é mais bem
educada. Olhe que não ha por lá muito quem não saiba ler nem escrever,
como cá.

—«O quê? Mesmo os _travalhadores_ de enxada e as criadas de servir?

—«Mesmo esses. As criadas então, não ha nenhuma que não leia e escreva
menos mal.

—«Ai, não sei que me lembra. Criadas tão _doutoras_ como as amas... Não
_hadem_ prestar, não ha nada como as nossas terrinhas e cá a nossa gente.

—«Calla-te ahi! Aquillo nem é para _acomparar_! As mulheres não
percebem nada cá no mundo. Em as tirando do canto da casa já nada lhes
presta—sentenciou o boticario.

João, no meio d’aquelle turbilhão de palavras que lhe cahiam em cima como
graniso, conseguiu dizer:

—«Isto hoje não é visita.

—«Ai não?! Ainda o diz, olha que ingrato!

—«Não era hoje, mas hade ser breve, sr.ᵃ Joaquina. Heide ir lá cima para
o quintal e conversaremos como d’antes.

—«Ah! Cuidei que nos esquecia...

—«Não, eu vinha aqui á pharmacia para o sr. Domingos me fazer duas
hostias de antipyrina?

—«Anti, anti, quê?!...—abria a bocca e os olhos de espanto, o boticario.

—«Antipyrina. Não tem cá? É remedio para a dôr de cabeça; não tem, não
conhece?—volveu João impacientado.

—«Talvez tenha, talvez. Mas é que esses remedios _estrambolicos_, quem os
arranja é o sr. dr. Ramalho. Como elle é que os receita!... Eu cá não me
criei com esses venenos.

—«São venenos, são, mas a gente já se não sabe curar com outra coisa e
então é melhor o sr. Domingos arranjar um praticante.

—«Tem razão, já pensámos n’isso, por isso é que o meu _Dóminguinhos_ anda
nos _estudios_.

—«Ai, é tão esperto!—acudiu a sr.ᵃ Joaquina—fez _inzâme oitro dia_.

—«Ficou bem?—perguntou João por delicadeza, sem nenhum interesse.

O velho respondeu logo:

—«Olhe que não sei, menino João. Elle mandou-me dizer que sim, mas cá
o _mê Antoino disse me logo «mê pae não infinte em estudantes, olhe
que são todos, com perdão de Vossa Senhoria, uns tratantes_!» E vae eu
escrevi ao meu _cômrrespondente_ e disse-lhe assim: «eu, Domingos José
da Silva, _phramaceutico matriculado_ no largo da Fonte, quero saber se
meu filho Domingos José da Silva _Juniór_ fez os _inzâmes_ que disse e se
ficou approvado ou reprovado.» E o _cômrrespondente_ mandou dizer «que
o estudo que fôra _bô_ mas que a respeito de _inzâmes_ se lhe tapou a
_falla nas góllas_ que não disse nem uma nem duas.

João olhou-o estupefacto, apezar de ha muito conhecer as bernardices do
boticario, não sabendo verdadeiramente se lhe devia dar os parabens se os
sentimentos, perdido de riso como estava. Livrou-o de maior maçada e do
compromettimento d’uma resposta, o dr. Ramalho que entrou na occasião.

—«Inda bem que chegou o senhor doutor,—disse o Domingos esfregando as
mãos e empurrando a irmã para dentro, sem a deixar despedir, ao que ella
oppunha séria resistencia.

—«Está alguem doente lá em casa?—perguntou o Ramalho, cuidadoso.

—«Não!... Ou sim... doentes estamos todos.

—«E bem doentes... incuravelmente doentes, meu pobre amigo.

—Apertaram-se as mãos affectuosamente, e o medico continuou:

—«Mas essa doença não se cura com remedio de botica. O que vinhas buscar?

—«Umas hostias de antipyrina. Este calor endoidece-me.

—«Ah sim... O Domingos não sabia dar-te esses remedios _novos_.

Sorrindo tirou as luvas, que poz com o chapéo e a bengala sobre uma
cadeira, e foi elle mesmo escolher, pezar e metter nas capsulas o
medicamento desejado, que entregou ao João.

—«Vaes já para casa?

—«Vou, não me interessa nada andar cá por fóra; detesto tudo isto,
aborrece-me.

—«Acompanho-te; hontem não pude lá ir porque tive uma visita longe,
amanhã vem tua prima, naturalmente tambem de lá vão á estação, e é
provavel que não tenha tempo de ir até lá antes da noite...

Despediram se do Domingos e sahiram conversando.

—«Ainda bem que vae! Acho a minha mãe tão mudada, tão triste!...

—«Não admira. A dôr de teu pae foi mais violenta; quando cheguei tinha
tua irmã acabado de expirar, vi-o perdido, convenci me que endoidecia.
Depois resignou se um pouco... Tua mãe não! Não perdeu aquella serenidade
mortificada, que não ha meio de consolar, só sendo tu que o possas fazer.

—«Pobre mãe! Eu consolá-la não poderei, sabe? Quando penso que a minha
irmã, a Pillar, aquelle encanto de graça e intelligencia é já a esta hora
um punhado de ossos ou, peor, uma horrivel podridão que nos causaria
nauseas a nós mesmos que a adorámos em vida e que a não podemos esquecer
em morta!... É horrivel, é para endoidecer, doutor!

—«Ó João, vê lá, sê rasoavel. Um desespero d’esses não é para uma
intelligencia culta como a tua, para uma razão clara.

—«Não ha intelligencia para o soffrimento, meu amigo! Eu sei que ella
já não existe, que da sua pessôa que tanto nos encantou já nada vive
senão a lembrança na nossa alma; mas vejo-a em toda a parte tal qual
me dizem que ella viveu nos ultimos tempos; oiço-lhe a voz arquejante,
que chamou por mim; segue-me, vive commigo, porque a tenho dentro do
coração... Consolar minha mãe, como o poderei fazer, se ella é mais feliz
do que eu porque espera uma outra vida melhor em que tornará a ver a
filha querida... e eu, e nós?... De que temos a certeza? De que o corpo
é materia e a materia se transforma... E que mais? E a parte superior do
nosso ser, aquillo que nos faz amar e querer, que nós amâmos nos outros
porque é a parte mais essencial do nosso ser... onde está? Em que se
torna? Tanto saber para se chegar á triste convicção de que a sciencia
que não traz comsigo uma porção de indifferença a couraçar a alma, é um
martyrio superior á intelligencia humana. Felizes os ignorantes e os
ingenuos...

—«Oh! Estás n’uma excitação doentia. Não te levo assim para casa.
Entremos aqui no meu escriptorio e vamos conversar um pouco com mais
tranquilidade.

João deixou-se conduzir passivamente, sentou-se junto á meza, emquanto
o doutor accendia a luz e se ia sentar do outro lado, no logar onde
costumava trabalhar.

—«Mas o que eu não posso comprehender—disse o João bruscamente d’ahi a
momentos—é o motivo porque me não chamaram logo que ella adoeceu. Foi
uma barbaridade, foi até um crime. Pois será justo que lhe recebessem o
ultimo suspiro, precisamente aquelles que foram, talvez, a causa da sua
morte?!...

—«Ó meu amigo, pelo amor de Deus!...

—«Não me diga que não—e levantou-se agitado, n’um passear febril,—houve
qualquer coisa de anormal, isso houve, tenho a certeza.

—«Parece impossivel! Então tu, João, um rapaz intelligente e culto, estás
fallando pela bocca da Engracia?!...

—«E o doutor jura-me pela sua honra de que está convencido que a pobre
velha desvaira?—dizia apertando-lhe o braço com força.—Diga, jura,
jura?... Diga, tire-me d’esta duvida, que é medonha.

—«Tem sangue frio, homem, não sejas criança!...

—«Ah, não jura?!... A duvida tambem lhe entrou no espirito, confesse.

—«Anda cá, João, vamos fallar com socego, como homens. Primeiro, factos:
o que sabes, o que desconfias?

—«Que a Pillar morreu victima d’um crime ou, pelo menos, de desgosto...
que quasi o fosse.

—«Mas que crime, que desgosto?

—«Não sei! E isso é que eu saberia se aqui estivesse. Lembra-se bem de
todas as particularidades com que se apresentou a pleuresia, que foi o
principio da doença? O doutor esteve lá a passar a noite, achou-a como
sempre alegre e bem disposta. Vão deitar-se, e de manhã estava cheia de
febre, com um delirio terrivel... A causa?

—«As doenças nem sempre se apresentam da mesma fórma; podia bem ser que
ella estivesse já atacada, sem nenhuma manifestação externa.

—«Pode ser... Tudo pode ser n’essa infame sciencia que não nos dá nunca
uma certeza senão a da morte.

—«Não ha mais horrorosa profissão, você tem razão—respondeu sorrindo com
bonhomia o medico.

—«Pois sim, mas supponhâmos por um instante que estava bôa como parecia,
até aos seus olhos perspicazes de profissional. O que temos? Uma pessôa
que se deita sã e accorda com uma pleuresia dupla. Estou fallando com
serenidade, bem vê. É crivel que a apanhasse mettida na cama?

—«Não é natural que chegasse á janella, que apanhasse uma corrente de ar,
que se descobrisse!?...

—«É possivel que a Candida dormindo no mesmo quarto não sentisse nada?

—«Gente nova, sem cuidados, tem o somno pezado.

—«Não é isso que ella diz. E depois, o que me diz você a essa pulseira
da Candida que a Engracia encontrou no caramanchão na manhã seguinte? Já
não quero dar ouvidos á opinião da velha, que diz tê-la visto córar como
lacre quando lh’a entregou.

—«Ora, coisas da Engracia; nada mais natural do que a rapariga tê-la
perdido de tarde...

—«Pode ser... Pois se eu tivesse a certeza! Mas o que o doutor não sabe,
é que o Manuel lavrador, que sahiu de noite para amanhecer na matta do
rio onde ia buscar lenha, disse ter visto saltar a grade do jardim um
homem com um varino. Sabe que o Emygdio trouxe um de Coimbra e usa-o
muitas vezes, principalmente á noite. E se fosse ratoneiro, sabe que a
Favorita não é para brincadeiras...

—«Tudo isso são supposições...

—«E o odio que manifestou nos ultimos tempos ao Emygdio e á Candida, a
minha irmãsinha que os amava tanto?!...

—«Ora! As doenças trazem por vezes taes desequilibrios, uns pensamentos
tão desvairados...

—«Sim... e tambem uma lucidez mais aguda... a minha irmã estaria louca?
Não o creio, nem o doutor tambem. Alli houve qualquer coisa de anormal, e
não a conhecer é o que me tortura.

—«Eu nem digo que creio nem que descreio. Não sei nada.

—«Mas heide eu sabê-lo. Os acontecimentos seguem sempre uma logica fatal,
que não illudem por muito tempo um espirito investigador. Diga-me como as
coisas se passaram tal qual as viu e observou que eu preciso juntar ás
minhas as suas informações. Recusa fazê-lo?

—«Não, pelo contrario, julgo que é até o meu dever, visto que no teu
espirito se levanta uma duvida. Fá-lo-ia com um indifferente, quanto mais
comtigo que estimo como irmão; tratando-se sobre tudo da morte da Pillar,
que é uma saudade vivissima para o meu coração.

O medico concentrou-se um instante e depois começou pausadamente, como
quem faz um relatorio, sob os olhares ansiosos do rapaz.

—«Quando cheguei de Lisboa, chamado por um telegramma do Emygdio, fui
directamente a tua casa. A Candida sahiu do quarto aos gritos, apavorada,
como louca. Eu nem reparei que teu pae desvairado se debatia nos braços
dos criados que lhe não deixavam despedaçar a cabeça pelas paredes, e
que tua mãe cahira como fulminada com os sentidos perdidos. Não vi nada!
Corri ao quarto na vaga e disparatada esperança de a salvar ainda...

—«E a desditosa criança estava já morta?!...

—«Ouve. A Pillar fallecêra n’esse instante; ainda não estava
completamente fria. O Vilhegas, junto d’ella, parecia idiotisado pelo
soffrimento...

—«Ou pelo remorso?!...

—«Não sei; já te disse que não avento opiniões, conto-te o que vi.
Tentava fechar-lhe os olhos, n’uma preoccupação de doido, que me
impressionou bastante...

—«D’ahi para deante já eu sei, nem tão poucas vezes m’o tem contado a
pobre Engracia. Foi ella quem vestiu a morta; nem quiz ninguem para a
ajudar, que a sua menina só a ella a queria...

O João escondeu a cabeça nos braços cruzados sobre a meza, n’um soluçar
de angustia.

—«Então que tolice é essa, João?!...—ralhou amigavelmente o Ramalho.

—«Tem razão, isto não é proprio d’um homem... Continúe, mas deixe-me
antes agradecer-lhe os cuidados e carinhos que n’essa occasião dispensou
aos meus pobres paes.

—«Não falles n’isso, deixa-me continuar. Quando vi que não havia alli
nada a fazer, corri para junto dos que mais soffriam. Nunca vi uma dôr
egual, e tenho assistido a bastantes!... Cheguei a pensar em mandar-te
chamar, mas, perdôa se pensei mal, vi-os tão sentidos com o desgosto
que julguei perigoso todo e qualquer abalo. Ver repentinamente o filho
que ficava quando a outra lhe fugia para sempre, era exacerbar a dôr.
A Natureza tem em si mesma o unico calmante para as grandes maguas,
o tempo. A vida, meu caro, tem-me ensinado estas coisas. Quando o
soffrimento é sincero, a propria distracção o irrita e faz maior.

—«Ah, mas o que eu soffri sósinho quando o soube! O que eu curti
só, longe dos meus, sem um amigo que bastante o fosse para soffrer
commigo!... Sem uma pessôa que ao menos me lamentasse na linguagem que o
meu coração melhor podia entender n’uma situação d’aquellas, a minha! Ah
meu amigo, que eu não sei como não enlouqueci!...

—«Pois sim, lá soffrias o mesmo, ou talvez mais, mas não tinhas a
brutalidade d’estas scenas mortuarias que forçam a dôr até á revolta.
Elles cá ir-se-hiam habituando... que a resignação é habito, filho.

—«Sim, convenço-me que fez bem, mas o que me tresvaría é a desconfiança
de que _elles_ a matassem!

—«Mas com que fim? Não era o interesse do Emygdio casar com tua irmã?

—«Seria o d’elle, mas não era o da Candida.

—«Hum!...—rosnou o doutor estendendo os beiços incredulo.—Convences-te de
que tua prima quizesse o Vilhegas emquanto te visse solteiro?

—«O que podia ella esperar de mim, que nunca a cortejei?

—«As mulheres, quando são bellas e ambiciosas como a Candida, não se
prendem com essas frioleiras...

—«Não sei, digo eu agora. O que sei é que a Engracia os surprehendeu por
mais d’uma vez conversando em voz baixa pelos cantos.

—«Lá voltas com os ditos da Engracia...

—«A Pillar aborreceu-os a ambos. Elle parece evitar-me, acanhado... A
Candida ficou despeitada, parece, pela minha sahida para a Belgica sem
lhe declarar amôr... Isto, meu amigo, são factos. Lá em casa não se pode
fallar em tal, que para meus paes a Candida é um anjo. Eu é que desconfio
muito d’aquella bondade sonsa. Desde pequena que me persegue, e,
confesso, nunca mulher nenhuma me repugnou tanto como ella, sendo aliás
bonita.

—«Formosissima, dize, que não lhe fazes favor.

—«Não acho, não a tolero. Ha n’aquella passividade, que quer fazer passar
por bondade, uma tão grande vaidade e não sei o quê de falso que me
irritou e affastou sempre.

Levantou-se inquieto e começou a passear pelo escriptorio, murmurando
palavras, como se estivesse só. De repente estacou em frente do medico:

—«Só queria saber a verdade! Mas como?! Ah, que se elles se namoram, se
casam!... Mato-os como cães damnados, percebe?

—«Ora deixa-te d’isso, casam lá!...

—«Juro-lhe que os matava por minhas mãos. É a unica prova que aguardo.
Até já pensei em namorar a Candida para descobrir alguma coisa, mas
quando lhe fallo... estou como a Engracia, parece que vejo a sombra da
Pillar a prohibir-mo!... Se ella era tão pura, como poderia querer uma
mentira?!...

—«Não te sabia _espiritista_...

—«Não sou, não era! Que eu já nem sei o que sou! Não posso com a ideia de
que minha irmã não é mais do que uma pouca de materia que se transforma
estupidamente, immundamente, na terra!...



VI


Na botica velha, apezar do excessivo calor, iam-se já reunindo os
frequentadores do costume.

Mas não entravam, porque o pequeno recinto a que os remedios davam um
cheiro enjoante era pouco convidativo, por uma noite assim quente, para
tantos pulmões que reclamavam ar.

Cada um que chegava ia dentro buscar cadeira, e, formando circulo,
sentava-se fóra da porta, abanando-se com o chapéo n’um desabafo de
asphixiados.

Apezar d’isso, a palestra corria animada porque eram muitos os assumptos
a discutir, e não ha temperatura, por mais alta que seja, que possa fazer
morrer o microbio da _má lingua_.

O Padre Mathias, de quinzena curta, escanhoado de fresco, e, por
excepção, de collarinhos engommados e gravata limpa, dizia para o Braga:

—«Você quer vir d’ahi jogar uma partida a casa do Maximiano?

—«Eu não, homem; elle não faz nada do que se lhe pede... Veja lá se
arranjou pôr em praça a casa do _Barnabé_, uma coisa que era mesmo uma
justiça!

—«Pois compre-a você ao Bernabé, que elle vendê-lha.

—«Pois sim, mas que _dinheirama_ elle não pedirá?!

—«Você quer ter as coisas e não as quer pagar, é bôa!... Eu cá, se fosse
rico, é que me ralava bem com taes miserias—em querendo uma coisa,
comprava-a.

—«Se fosse rico, se fosse rico!... É com o que lhe dão. O que tenho
custou muito a ganhar ao meu pae e a mim tambem, não é para agora o
_esbaratar_ sem mais nem menos.

—«Não está mau ganho aquelle,—commentou o Neves ao ouvido do Domingos—se
não fosse o roubo da casa do Olival queria ver o que elles tinham!...

—«E o juro a cem por cento?...—respondeu o outro na mesma—quem lhe sabe
da _caronica_!...

—«Oh homem, não diga tal—continuava o cura. Se o Maximiano lhe não fizer
ir a casa á praça, por expropriação, ninguem lho faz.

—«O Visconde está agora de cima e com elle me entenderei.

—«Você verá se o Visconde assigna essa trapalhada! Hade tratá lo com
muito bons modos, mas não lho faz, tenha a certeza.

—«Veremos!

—«Pois veremos.

—«Amanhã vou esperar o Visconde e se calhar fallo-lhe logo.

—«Vae feliz. O Visconde tem escrupulos de mais para politico; se o
Maximiano possuisse o dinheiro d’elle, com a cabeça que tem! Ainda o
havemos de ver, quem sabe?!... Talvez presidente da republica!

—«Pois elle está agora republicano?!

—«Não, por emquanto não, mas se ella viesse!... E você não quer vir a
casa do Maximiano, oh Neves?—terminou, desviando a conversa que lhe não
agradava com o teimoso do Braga.

—«Vou lá um bocadito.

—«Então vamos, que são horas. Vendo o relogio de ferro oxidado—já nove!
Irra, estas noites de verão são uns _nicos_!

—«Eu tambem vou—disse o recebedor.

—«E eu tambem—acudiu o Móttasinho escrevente do pae tabellião, imberbe,
voz aflautada e ares importantes de janota provinciano.—Estou com
curiosidade de ver como vem este anno a Hortensia—e puxou uma fumaça do
cigarro, que ainda o engasgava.

—«Talvez imagine que ella fica apaixonada—casquinou ironico o escrivão de
fazenda, secco e triste como um arenque fumado, apertando o estomago que
a dyspepsia assaltava.

—«Bem podia ser, sem ser milagre!...

—«Aquella não é para o seu dente, Móttasinho—veio dizer do lado o cura,
batendo lhe no hombro familiarmente.

—«Não sei porque não, tem se visto coisas mais impossiveis; lá pela
riqueza, tambem ella não tem muita—respondeu enrubecido como timido
menino o pobre do Móttasinho.

—«Rica não é, lá isso é verdade; mas a protecção do pae vale bem a
fortuna aqui do sr. Braga. E olhe que é uma rapariga educada na alta—só
falla em francez!

—«Pois eu ainda conheci a avó a nem saber fallar portuguez.

Uma gargalhada geral abafou o dito que o velho dr. Pinto atirou lá do
seu grupo. O advogado, de barbas brancas e ondeantes, apezar de não ser
ainda um velho, com os seus olhos negros e inquietos de pouco fiel e
desconfiado, gosava todas as regalias de commentador ironico da vida
provinciana.

—«A pequena não tem nada com a ignorancia da avó—respingou azedo o Padre
Mathias.

—«Oh homem, não se escandalise, que isto é graça, não é fallar em
desabono da _sua gente_—e sublinhava com uma gargalhada que lhe fazia
tremer a barba sobre o peito, como n’um soluço.

—«Fallem, fallem, que ainda os heide ver lá todos cahidos... Quando se
convencerem que os homens ricos como o Visconde, que não faz da politica
modo de vida, não são capazes de fazer um favor a um amigo!...

—«Sim, o Maximiano para fazer favores á custa do estado é um _barra_! Mas
ainda tem tanto parente pobre que primeiro que chegue aos estranhos ainda
levará tempo—tornou, rindo sempre, o advogado.

—«Oh Neves, para onde vae você?—desviou o cura, na sua febre de
movimento, vendo passar o professor.

—«Vou fallar ao meu primo.

Effectivamente dirigiu-se para o Vilhegas, que passava de largo,
affectando não ver a gente da _velha_.

O cura foi ter com elle, aproveitando o ensejo de deixar airosamente a
roda.

—«Então para onde vae, doutor?

—«Um bocado até á botica nova conversar com o Telles.

—«Está lá um calor de todos os diabos; porque não vem antes a casa do
Maximiano? Olhe que se passa lá bem.

—«Não tenho quasi nenhumas relações com elle.

—«Não faz mal; vae commigo, é o bastante.

—«Outro dia qualquer.

—«Porque não hade ser hoje? Venha d’ahi.

—«Hoje não, nem estou vestido...

—«Deixe-se d’isso. Aquillo não tem as ceremonias da Viscondessa. Está-se
á vontade. Venha d’ahi, ande!...—Vendo-o irresoluto, lá o foi arrastando
até casa do conselheiro, seguido pelo Neves, o recebedor, o Móttasinho e
mais uns poucos.

—«Olha o Padre Cura a arrebanhar as rezes para o sacrificio—casquinou
para o grupo o dr. Pinto.

—«Aquillo sempre é um _typo_!...—resmungou o Braga.

Em casa do Maximiano as portas e janellas abriam-se de par em par
illuminando a rua da villa, pouco abundante de candieiros municipaes.
As vozes que vinham de lá, o vulto do conselheiro que por momentos
se debruçou na varanda atirando fóra a ponta do charuto meio acceso,
a aproximação emfim d’essa gente que mal conhecia, fizeram recuar o
Emygdio, que, no fundo, era um acanhado. Mas o reverendo é que o não
largou senão dentro da sala, pondo-o mesmo em frente do Maximiano.

—«Sr. Conselheiro, este senhor não queria cá vir por não estar vestido
convenientemente, e não o conhecer e não sei que mais...

—«E o _Padre Cura_ deu-lhe ordem de prisão?! Fez muitissimo bem.

—«Oh, sr. Conselheiro, eu tinha o maior gosto em vir, mas, na verdade,
para uma primeira visita, não venho em _toilette_ competente.

—«Oh, meu caro, nada de ceremonias. Esteja como em sua casa. Gosta de
jogar?

—«Não sei. Quasi não conheço as cartas.

—«Então vamos a uma partida de bilhar, que o bilhar é como o vinho:
aquece no inverno e refresca no verão.

E, conversando animadamente, seguiram á sala de bilhar, d’onde vinham
vozes alegres de gente moça.

A filha do conselheiro, acompanhada por uma velha _bonne_ e meia duzia
de rapazes e raparigas, que a ouviam enlevados, fazia traquinada com
as bolas, ria alto, rodava sobre os calcanhares, puxava o cinto bem
abaixo para salientar a incrivel cintura, e papagueava em francez com a
_mademoiselle_, voltando-se logo a vêr o effeito, para a roda embasbacada
dos admiradores.

Quando o pae lhe apresentou o Vilhegas, curvou a cabecinha frisada em
pôpa e murmurou com a ponta dos beiços um cumprimento inintelligivel.
Depois, simulando indifferença, foi para a janella arrastando os
companheiros. De ahi a pouco a sua voz esganiçada sobresahia a todas
as outras, e as rendas brancas que enfeitavam o vestido muito justo de
_piquet_ azul pallido andavam n’um rodopio.

—«Quem é aquelle rapaz?—perguntou á Aurora Costa, uma vesga e morena, que
abria em bico a blusa verde-couve.

—«Aquelle? É o doutor novo, o medico que estava para casar com a Pillar
de Mello.

—«A pequena que morreu tysica?!... Ah, bem sei!... Agora a quem faz elle
a côrte?

—«Agora?! Então ainda o outro dia lhe morreu a noiva...

—«E por isso não hade namorar mais? Ora adeus! Bem se vê que és da
provincia. Quantos _flirts_ tens tu?

—«Não sei o que é...

—«_Flirt_ é como agora se chama ao namôro, que é uma palavra muito baixa.

—«Eu?!... Nenhum.

—«Nenhum?! Isso é uma vergonha, positivamente.

—«Costumas ter mais do que um?

—«Sempre és muito parva! Este inverno cheguei a ter vinte e cinco ao
mesmo tempo—mas a gente chama-lhe _flirtar_. É _plus distingué_, e sabe
ao mesmo.

—«E se te chamam namoradeira?

—«_Ça m’est égal_...—cantarolou, voltando-se a meio para o Móttasinho,
que se curvava ceremonioso:

—«_Oh mr. Móttá, comment vous portez-vous?_

—«Ganhou. Agora, visto que não gosta de outro jogo—disse o Maximiano
muito amavel para o Vilhegas, ao mesmo tempo que punha o taco sobre o
bilhar—aqui o deixo entre a gente nova. Esteja á sua vontade, meu caro.
Gosto que venham a minha casa, mas não posso ver ninguem contrafeito. Eu
vou até lá dentro molhar a minha sôpa—terminou em ar de graça.

Quando já ia a cruzar a porta, encontrou o juiz que se encostava gottoso
a uma forte bengala de bambú, atarracado, grosseiro, de barba sal e
pimenta, e dois olhinhos de porco incertos e máus. Trauteando sempre,
brutal com os inferiores, mettendo-se a gracioso com as senhoras, a quem
dizia insolencias por amabilidades, queria dar-se uns ares de honrada
isempção que muito faziam rir o dr. Pinto.

—«Olá! Então hoje por aqui?—cumprimentou expansivo o conselheiro.

—«Venho vê-lo.

—«Ámanhã não pode decerto, seu maganão!... Já sei que vem o visconde.

—«Não é por isso, é que ha dois dias que o não via...

—«Então não vae á estação?

—«Naturalmente não posso deixar d’ir. A viscondessa é d’uma amabilidade
extrema para minha mulher; mal parece não ir, pelo menos eu, esperá-la.

—«Sim, a viscondessa é muito amavel e o visconde tem tanta influencia no
ministerio da justiça!...

—«Eu não mendigo empenhos, senhor Conselheiro. Lá em cima conhecem bem a
integridade do meu caracter e sabem que eu não me vendo por...

—«Quem falla em tal, meu caro! Isto era brincadeira. Tambem eu sou amigo
do visconde, apesar de adversario politico; lá por Lisboa não se levam as
coisas a sério como cá na Parvonia. Muito a sério, ninguem conhece tão
bem como eu a sua honestidade e desinteresse, por isso desejaria vê-lo
collocar na vaga que se vae dar com a aposentação do Dr. Saavedra.

—«Sério?! Elle aposenta-se?

—«Mandaram me hoje dizer.

—«Que logarzão!... Em Lisboa, e fazendo quanto quizer!...

Pulso livre, claro—e a meia voz lá foram conversando até á sala
d’entrada, onde, em volta d’uma grande meza, se reuniam os jogadores de
_polis banque_. Aos lados, em mezitas pequenas, estavam os caturras do
_voltarete_, do _whist_, do _boston_ ou do _sólo_.

Mal o conselheiro appareceu, quasi todos os logares do _polis_ se lhe
offereceram amavelmente; logo elle, unctuoso, sempre risonho, com
maciezas de voz e de phrase muito estudadas:

—Oh, meus amigos, por quem são! Eu fico bem de pé, não se encommodem...
mas, ante o protesto geral, foi sentar-se á direita do banqueiro, o Motta
tabellião, um bilioso de cabello e bigode pintado e lunetas brilhantes
á força de as limpar nas circumstancias graves. Sómente a face se lhe
distendia em riso de satisfação quando, como agora, as notas, as moedas
de prata e as marcas d’osso que substituiam o cobre, se lhe amontoavam
diante dos olhos avaros.

Vendo o Maximiano acceitar o logar da direita, estremeceu. Era uma
honra, na verdade, mas tambem um perigo, porque ninguem como elle,
acostumado ao grande jogo de Lisboa e Cascaes, para abafar uma banca logo
á primeira. O baralho tremeu-lhe entre os dedos ao dar cartas ao visinho.

Mas o conselheiro não jogou e um sorrisinho de alivio veio desfranzir-lhe
os beiços e mostrar os dentes apodrecidos. Já fallava, já ria dos
_pontos_ que iam perdendo pequenas paradas, e pagava sem regatear ás
senhoras.

—«Jógo!—disse do outro lado da meza a mulher do Maximiano, que estendia
sobre o panno verde as mãos cheias d’anneis de brilhantes.

—«O sr. conselheiro não jóga no jogo da sr.ᵃ D. Maria Adelaide? perguntou
o Motta, cortez.

—«Eu tópo—insistiu ella seccamente—tire carta.

O banqueiro mordeu os beiços despeitado e começou a puxar as cartas,
vagaroso, muito molle, como se lhe estivessem colladas aos dedos.

—«Perdi, quanto é?—disse atirando o seu jogo á meza e olhando com
simulada indifferença para as mãos lampejantes que se entretinha a
revirar para mostrar o brilho dos anneis.

—«São vinte e cinco mil réis, fóra estes miudos que não vale a pena
contar.

O tabellião fazia de generoso, não cabendo na pelle de regosijo.

—«Conte tudo—ordenou orgulhosamente, para mostrar á pelintrice
provinciana como se joga no _grande mundo_.

A não ser o conselheiro, que conversava com a maior naturalidade para
as outras mezas, todos os que estavam a meza do _polis_ e os que de pé
jogavam de fóra ou, meros _mirones_, simplesmente viam e commentavam,
tinham seguido ansiosamente a partida arrojada da conselheira.—O Motta
estava com uma sorte! Já não faltava senão dar mais uma vez; se passasse
d’essa já não se desforravam com elle. Asneira tinha elle feito em
retirar metade da banca logo no principio.

Pensavam todos o mesmo, invejosos, seguindo em silencio o movimento do
baralho.

—«Falta a ultima, amigo Motta, e ahi é que a porca torce o rabo—disse
o padre Mathias, de pé, com os tentos apertados na mão de mistura com
cédulas já de ganho.

Quando o Maximiano tornou a receber cartas olhou-as indifferente, pô las
em cima da meza diante de si e continuou meio voltado a conversar com o
juiz.

O Motta, esperançado de que elle não jogasse, deu confiadamente o resto
das cartas.

—«Oh, doutor—disse o conselheiro para o juiz, que, a cantarolar um
estribilho muito da sua cabeça desafinada, ia já a voltar para outro
lado—você não joga?

—«Não senhor! O jogo é uma ladroeira.

—«Parece-lhe?

—«Pois pudéra! Então parece-lhe bem que alli aquelle senhor ganhasse
vinte e cinco mil reis a sua esposa d’um instante para o outro?

—«O dinheiro fez-se para girar, meu caro. Quer que todos façam tulha de
libras como o senhor?

—«Eu, sim!? Sou um _pobretana_.

—«Todos os honestos dizem o mesmo. Devia jogar para enriquecer. Eu gosto
do jogo porque é a imagem da vida. Os pacatos, os que seguem sómente o
caminho trilhado por outras pessoas mais experientes, esses não arruinam
os banqueiros nem perdem as casas, quando muito perdem... a linha. Os que
são capazes de arrojar uma fortuna sobre uma carta, são tambem capazes de
tudo arriscar para chegar onde a ambição lhes pôz os olhos...

—«Jóga, senhor Conselheiro?—perguntou, officioso, o tabellião.

—«Tópo.

E a carta voltada fez-lhe passar para a mão todo o dinheiro que estava
sendo a cubiça dos outros.

O Motta, a pretexto de cansaço, levantou-se a tomar ar. Estava
desesperado.

Com o seu eterno sorriso de bonhomia, começava o Maximiano a contar o
dinheiro para pôr na banca, quando a filha entrou pelo braço do Vilhegas,
dizendo com a sua vózinha aguda atirada com petulancia:

—«Oh papá, não imagina como o sr. Vilhegas e eu nos entendemos bem! Sabe
historias deliciosas e lindos versos para a guitarra.—Chegando ao pé da
meza e mudando de tom:—O papá é que faz banca? Hade ser _vacca_, sim?—E
para o Emygdio, torcendo-se risonha: aposto que tambem não sabe o que é
fazer uma _vacca_?

—«Ah, isso sei por experiencia... de perder. Muitas vezes em Coimbra me
pediram dinheiro para ellas.

—«E não ganhou nunca?

—«Creio que não, porque nunca mo deram.—Respondeu já senhor de si,
vaidoso por se ver recebido com tanta expansão pela filha do grande
politico, cujo lendario talento era ainda ponto de fé, até para os
adversarios.

—«Parece incrivel que não saiba jogo algum. _Je ne crois pas!_

—«É tão completa a minha ignorancia que até me parece que serei incapaz
de vir a aprender.

—«Nem o _bluff_?

—«Esse menos do que nenhum, nem mesmo sei o que é.

—«_C’est incroyable!_ É um jogo d’enganos; só pelas cartas serem
differentes já tem graça. Pode ganhar-se sem ter jogo nenhum, é questão
de finura. Olhe, o papá ganha sempre e com jogos ordinarissimos. Engana
toda a gente.

—«Realmente sou um grande ignorante. Preciso aprender algum d’esses
jogos, já não digo todos...

—«Deveras? Então eu ensino-o...

—«Pois desde já prometto ser o mais submisso dos discipulos.

—«A sério?

—«Muito a sério.

—«Oh, mas é delicioso!... Aprenderá comigo todos os jogos, sim!?...

—«Todos que V. Ex.ᵃ souber.

—«Mas se eu sei todos! Vamos já hoje começar a lição?

—«Com todo o gosto.

—«Mas... por qual? Oh papá, o que heide ensinar primeiro?

—«O burro, que é o que tu sabes melhor.

Toda a sala riu da graça do conselheiro.

—«Bom, lá está o Papá a fazer troça... Imagina que eu não sei jogo nenhum
porque não tenho a prática que o Papá tem?!... Ora espere, venha cá,—e
correu ao fundo onde estava uma pequena meza de pé de gallo.—Oh sr.
Motta, dê me cá esses castiçaes.—O Móttasinho, que ia a entrar, correu a
executar a ordem.—Accenda-os, faça favor. _Merci._ Agora os marcadores,
as cartas do _bézigue_, bom! Sente-se aqui, sr. Vilhegas, vou ensinar-lhe
um jogo engraçadissimo, por ser só de duas pessoas—um verdadeiro _tête à
tête_.

—«Um encanto, principalmente quando uma d’ellas é V. Ex.ᵃ.

—«_Comme vous êtes aimable, merci bien._

—«Não digo mais de que V. Ex.ᵃ merece.

—Sabe uma coisa? Eu gosto mais que me tratem por Mademoiselle Hortense. É
assim que todos me tratam e eu estou tão habituada a fallar francez desde
o collegio, que ás vezes dou ordens aos criados e só quando os vejo olhar
para mim com caras de parvos, é que percebo que elles não comprehenderam
porque fallei francez. É quasi a minha lingua...

—«Pois se Mademoiselle deseja, fallaremos tambem em francez.

—«Pois falla?

—«Alguma coisa.

—«Oh, mas o que me espanta é que sendo um homem tão educado e
intelligente possa viver n’uma terra da provincia como esta. Viver toda a
vida n’uma aldeia, oh que horror!—e deitava a cabeça para traz n’um gesto
verdadeiramente de horrorizada.

—«Vamos ao nosso jogo?—desviou a conversa o Emygdio, vendo que todos
o observavam e que no dia seguinte os proprios partidarios invejosos
espalhariam pela terra o acolhimento que elle tivera em casa do chefe da
opposição.

—«_C’est vrai. J’avais oublié! Ma pauvre tête!_ Repare bem, pega-se na
primeira dama e no primeiro rei que nos veem á mão e faz-se um casamento.

—«O que se chama aqui um casamento?

—«É apresentar os dois juntos, é uma especie de casamento civil...

—«Que é lá isso, que é lá isso, perguntou da roda do _polis_ o padre
cura.—Já fallam em casamento, sem me ouvirem em confissão?!...—e riu da
graçola, a que o Móttasinho achou muito chiste.

—«Não são d’esses casamentos—respondeu com imperturbavel serenidade
mademoiselle Hortense—são casamentos sem padres. Duram apenas o tempo da
partida e dispensam bençãos papaes. Casamentos _nouveau style_. É um jogo
delicioso, não acha mr. Vilhegas?

—«Divino, minha senhora!...



VII


Primeiro do que ninguem tinha o dr. José Ramalho chegado á estação para
esperar os viscondes, que vinham no ultimo comboio.

Mal se começavam a reunir os empregados, bocejantes, e os guardas tinham
apenas accendido os candieiros de petroleo, com as torcidas em bicos
fumarentos, que mal alumiavam a sala de espera.

—«Uma bôa estafa este comboio das onze da noite!

—«E hoje então que a Viscondessa hade trazer _pr’a-hi_ um _rôr_ de
bagagens!

—«Ficam _p’rá manhã_.

—«Isso ficam ellas!... O chefe, _antão_... Se fosse _cô oitros_, não
digo menos, mas _cô estes_ é todo _politicas_...—Conversavam dois
carregadores, encostados á hombreira da porta, na espera ociosa e
enfastiada que precede a hora da tabella, cortada a espaços pelo resoar
da campainha electrica que nos sobresalta alegremente como voz amiga que
já nos falla dos que esperâmos, dizendo-nos a sua aproximação.

O doutor estava, contra o costume, n’uma disposição de espirito
arrelienta, nervoso, maldisposto, com vontade de implicar e dizer mal.

Aproveitando a liberdade que o seu logar de medico da companhia lhe dava,
levantou o balcão e pela casa das bagagens atravessou para a gare, que
estava ainda em profunda treva.

—«Então o que é isto!? Hoje não accendem as luzes?—perguntou mal humorado
aos homens que o tinham seguido.

—«Ainda não deu a partida, senhor doutor.

—«Ora adeus! Accendam isso que são horas—commandou energico, emquanto os
outros, vencidos, iam de má vontade buscar um caixote para chegar aos
candieiros.

Começou de passear para acalmar os nervos, e de momento a momento parava,
olhava o mostrador de duas faces do relogio da estação, puxava da
algibeira o seu _remontoir_, e confrontava-os, achando sempre que ambos
deviam estar atrazados.

Chegava a Viscondessa, causa unica e involuntaria d’aquella agitação...
Para que negá-lo? Era um sonho de muitos annos, a porção incorporea
e ingenua do seu sentir, o ideal que lhe tornava supportavel a vida
trabalhosa, solteira de affectos. Julgavam-no egoista, solteirão
incorrigivel, todo avesso a phantasias amorosas, e afinal... Desde muito
novo que esbarrára n’aquelle sonhar impossiveis que lhe fechára olhos e
coração a qualquer outro sentimento.

Nunca sentira necessidade de confessar-lhe, nem a si proprio, mesmo,
quanto havia de profundo amôr no interesse que ella lhe inspirava.

Para quê, afinal? Era tão feliz na doçura tépida e confiante d’aquella
amizade fraternal, que nem mesmo queria averiguar o que de vulgar e
humano ella continha.

Para que perturbar esse enlevo com a materialisação d’um sonho, que na
realidade não passaria d’uma vulgar intriga?

Depois, a Viscondessa era d’uma honestidade tão simples e consciente,
e com tanta graça e tanta nobreza sustentada, que nem a sombra de uma
suspeita impura ousaria roçar-lhe pela alma. E era ainda por isso que
mais a estimava, que a adorava, quasi—porque era adoração o que sentia ao
vê-la tão serena e tão bôa, tão intellectual e distincta! Tinha vontade
de ajoelhar, silencioso, resignado, e até feliz na passividade do extasi.

Elle, que era um tanto rude na franqueza do dizer, achava, para as suas
intimas conversas de bons amigos, phrases d’uma tão carinhosa ternura
como só as sabe ter um coração de mãe.

Tão pouco humano, tão desinteressado era aquelle affecto, que não
sentia pelo Visconde a mais leve repulsão. Se não eram amigos, como era
natural que o não fossem, sendo tão fundamentalmente dispares, era-lhe
todavia dedicado bastante para o auxiliar politicamente, e para lhe
ser até agradavel a sua intima convivencia. Invejava-lhe um pouco,
talvez,—criancices de amoroso—a delicadeza do seu perfil aristocratico,
a maneira requintada de vestir, a simplicidade suprema com que punha o
alfinete de perola na gravata de setim preto, collocava uma flôr na
botoeira, guiava um carro ou fallava sobre arte.

Amá-lo-ia a Viscondessa por essas miudas preoccupações que tornam certos
homens tão queridos á maioria das mulheres?

Mas o Visconde não era sómente isso, e decerto a mulher, cujo espirito
adquirira com a convivencia vibratilidades d’artista, amava muito esse
homem, _dilletante_ na politica como na arte, colleccionador por moda,
um pouco litterato e um pouco _sportsman_; sempre distincto, invejado e
imitado.

Casados por paixão, era evidente que se amariam como no principio. E
era tão natural—pensava por vezes o doutor—primos chegados, a mesma
educação e tradição de familia, fortunas eguaes, não tendo uma recordação
que pelos dois não fosse partilhada, deviam amar-se e ser felizes como
pareciam, como toda a gente queria, apezar da delicada reserva com que se
abordavam.

Pensava incoherentemente todas essas coisas, percorrendo em largas
passadas regulares o restricto espaço da plataforma onde chegava a luz.
Toda a tensão de nervos se lhe conhecia no mordiscar febril do charuto e
no franzir da testa a cada momento.

Assim se conservava ainda, quando a _gare_ foi invadida pelas pessôas
importantes da terra, que vinham, como elle, esperar os viscondes. O
Braga, azafamado, empurrando todos, grosseirão e bruto, n’uma grande
preoccupação de ser sempre o primeiro. O Neves, o Domingos, as meninas
Souzas e as Costas, com vestidos d’um exagero que pretendiam ser a moda,
olhando-se invejosas por cada fita ou flor a mais que qualquer d’ellas
pozesse.

Até as sr.ᵃˢ Rebellos, com chapéos de repolhudas flores vermelhas atados
ás velhas caras rugosas, que o pó d’arroz tentava amaciar; o juiz,
arrastando a perna gottosa encostado ao chapéo de chuva e á bengala,
tencionando já pedir desculpa pela falta da mulher, motivada por doença,
diria, mas em verdade porque não quizera alugar carro, e assim, a meias
com o delegado, o dr. Pinto e o escrivão sahia-lhe mais barato. Não, que
era preciso fazer economias, desde que os emolumentos do crime se iam
pela agua abaixo e era uma raridade um bom inventario...

Depois, ainda, os partidarios certos do visconde e aquelles que não
sabiam ainda para onde se virar.

O doutor, que estava sempre disposto a aturar aquella gente com a
inestancavel paciencia de medico e de politico, não poude n’essa noite
vê-los sem que o espirito se lhe confrangesse n’uma repulsão instinctiva,
que o fez affastar para a sombra, propositadamente, com vontade de
criticar, de ter alguem com quem podesse fallar, alguem de muita
confiança que o desculpasse sem tentar comprehender aquelle estado de
espirito, que torna os homens, mais do que as mulheres, intractaveis em
questões de amôr.

Quando por fim o João appareceu, foi-lhe ao encontro, de mão estendida,
sem se importar com os outros.

—«Já cá estava, e eu fui por sua casa para o trazer no carro—disse-lhe
logo o João.

—«Obrigado pela lembrança; não tinha que fazer, vim a pé por ahi abaixo.
Se soubesse que tinha tão bôa companhia, esperava, decerto. Mas o
agradecimento é o mesmo.

—«Não tem nada a agradecer, o favor era para mim. A mamã pediu-me para
acompanhar a Candida e como o _tête-à-tête_ me não é agradavel ia
procurar o meu amigo para o trazer comnosco.

—«E vieram juntos? Desculpa a curiosidade.

—«Vim a governar, e ella dentro. Espere... Venha cá,—levados naturalmente
por egual desejo de solidão, tinham-se refugiado na sombra, e d’ahi vira
o João chegar o Vilhegas junto da Candida, que se endireitava soberba, em
plena luz—repare com que intimidade elles se fallam!... E ainda o doutor
diz que não ha nada! Dava tudo por os ouvir!...—Agitadissimo apertava o
braço do medico, como se quizesse com a poderosa tensão do seu espirito
aprehender as palavras que os outros a distancia trocavam.

A Candida, ainda de preto,—que teimava em usar porque descobrira que lhe
adelgaçava o busto cheio, e lhe fazia sobresahir o brancomate da pelle e
o castanho loiro dos cabellos,—estava formosissima.

Alta, silenciosa e grave entre a multidão remexida das pequenas
provincianas, com um grande chapéo de rendas e plumas todo preto a
completar a _toilette_ muito leve e custosamente simples, e com o seu
glorioso ar de desdem, ella era na verdade a soberba materia que
avassalla as almas.

O Emygdio curvou-se rendido.

—«Onde esteve hontem?—murmurou incisiva, irritante, tratando-o
propositadamente por senhor.

—«Hontem, hontem...

—«Não se canse a procurar mentiras. Sei que foi a casa do Maximiano.
Fallou com M.ᵉˡˡᵉ Hortense?...—frisou, ironica.

—«Quem t’o disse?

—«Que te importa? Sei que foste; se lá voltas acabarei com tudo.

—«Mas isso é um desproposito; fui lá, é verdade, mas só vi o Conselheiro,
juro-te!—tentava convencer, afflicto, temendo que n’um d’esses ataques de
ciumes ella o compromettesse escandalosa e irremediavelmente.

Perdê-la, quasi o não incommodava já. Era formosa na verdade, mas d’uma
exigencia tão absorvente que ha muito o desgostára, a elle que não era um
artista que pozesse na belleza a aspiração suprema da sua idiosyncrasia.

Desde a morte da Pillar que tentava fugir-lhe, mas, sem um pretexto que o
desculpasse, agarrara-se agora áquelle da vinda do João e á necessidade
de por isso espaçar as visitas para fugir um pouco áquella pressão
esmagadora.

A sua intelligencia inferiorisada pela ambição obscurecia-se por completo
n’um pavor de tortura, quando assim a via imperiosa e enygmatica,
fascinando-o apezar de tudo.

—«O que dizes?—perguntou com ironia, olhando-o d’alto.

—«Decerto não irei sempre, mas...

—«Ah!... Oh sr. Braga—chamou ella o velho, que a contemplava embasbacado
havia momentos, coisa que lhe não escapára—quer acompanhar-me até junto
de meu primo?

—«Oh, minha senhora!—gaguejou o ricaço, offerecendo presuroso o braço
onde ella mal tocou com a ponta dos dedos enluvados.

Com a sua grossa mão vermelhuça puxou-lhe o braço para cima e não soube
senão dizer com uma ternura bruta:

—«Que felicidade, que felicidade!...

—«O quê, sr. Braga, acha felicidade que eu lhe peça um favor?

—«Se acho! Dava contos de réis para que fosse toda a vida assim!—córado
até ao extremo violaceo da apoplexia, esforçava-se por dizer alguma coisa
que podesse agradar áquella mulher, que havia uns tempos, desde que o
Padre Mathias na botica velha dissera aquellas coisas, lhe andava a pôr
doida a cabeça; que d’antes só as cifras enchiam.

—«Tanto dinheiro por uma coisa tão insignificante e tão natural!... Não
valia a pena, sr. Braga!—respondeu meiga, com uma voz quebrada que acabou
de atordoar o homem.

—«Lá isso valia, até tudo o que tenho! E olhe que é _p’ra_ mais de
duzentos contos—regougou o animal.

—«E vive aqui!...

Um apito prolongado do comboio ao longe terminou as conversas, na
mesma curiosidade de todos que aguardavam os Viscondes, trazidos por
desencontrados desejos e interesses.

—«Como viria vestida a Viscondessa?—perguntavam as mulheres.

—«Como os receberia o Visconde—a si mesmos perguntavam os homens que na
politica punham a sua ambição.

A machina avançava, cuspindo brazas, offegante, deixando fugir a força
com o vapor que se lhe ennovelava em cabelleira. As lanternas vermelha
e amarella furavam a noite como dois olhos de monstro phantastico que
avançava esbaforido, chocando-se em traquinada de molas e correntes.

Na plataforma todos se agitavam, adiantando-se, querendo ser vistos
primeiro. O chefe empertigou-se com a bandeirinha verde na mão, obrigando
com o seu gesto imperioso a retirar os mais atrevidos. Atraz da machina
seguiram os wagons carregados de saccos fedorentos de guano para as
terras, depois as bagagens, a terceira classe com soldados e maltezes
que vinham das ceifas do Alemtejo, estremunhados, espreguiçando-se ás
janellas... E o comboio, que mal se arrastava já sob a pressão dos
travões, parou por fim n’um choque que se prolongou até ás ultimas
carruagens.

O wagon-leito ficou um pouco acima e todos correram açodados a
cumprimentar o Visconde, que se apeou logo, esbelto ainda, mesmo bonito
homem apezar dos cabellos que iam branqueando na aproximação dos
quarenta. Mal puzera pé em terra e logo os vigorosos braços do Domingos o
apertavam n’uma expansão perdoavel a um partidario tão intransigente.

O Visconde deixava-se abraçar por todos, tendo uma palavra para cada um,
sorrisonho e amavel, apezar d’uma vaga sombra de cansaço, sustentando com
distincção o difficil papel de politico acclamado pelo seu burgo.

Logo a seguir appareceu a Viscondessa, á portinhola, vestida de azul
escuro, gravata de seda branca, chapéo que uma simples fita enfeitava,
sorrindo bondosa, recebendo com egual deferencia todos os cumprimentos.
Só quando o dr. Ramalho e o João conseguiram aproximar-se é que a sua
physionomia muito movel se abriu n’um lampejo de sincero contentamento.

Acceitando as mãos que ambos lhe offereceram saltou para o chão, dizendo
n’um sorriso de intimidade que raro prodigalisava:

—«Já me tardavam!... Como tem passado, doutor?... Como está tua mãe, João?

—«Como a prima pode imaginar!...

—«Sim, faço ideia! Se ámanhã a mamã não estiver muito fatigada irei
abraçar a minha pobre Josephina.

—«Como é bôa e como lho agradeço—murmurou o João commovido.

—«A sr.ᵃ D. Genoveva fez bem a jornada?—interrogou o medico cuidadoso.

—«É muito longa, deixa-a fatigada por uns dias, mas apezar d’isso não
está mal. Para se não incommodar com cumprimentos, pedi-lhe que ficasse
na carruagem com a D. Luzia até nós retirarmos.

—«Foi bem pensado. É preciso a maior cautella com aquelles
nervos—respondeu o dr. Ramalho.

—«Nervos?!... Emfim, pode ser!... Mas venham cá; vem cá, João, que te
quero apresentar uma pessôa que muito estimo.

—«E que eu não conheço?—«Nem eu tambem?—inquiriram os dois a um tempo.

—«O doutor conhece, tu é que não—e voltando-se chamou para dentro da
carruagem—«oh Bella!»

—«Estava a procurar a minha malinha na confusão das vossas malas,
malinhas, embrulhos, cabazes... Sei lá o que para ahi vem!—veio dizendo,
ao mesmo tempo que saltava da carruagem, uma delicada figura de mulher,
vestida de flanella branca riscada de azul, chapéo remador de palha
branca, collarinho e gravata, e no bolso do casaco o lenço de linho fito,
n’um geito um tanto masculino.

—«Oh meu caro doutor, como está, como tem passado desde o
inverno?!...—dirigiu-se ao medico, n’uma grande expansão de amizade, a
que elle correspondia affectuoso.

—«Minha filha—sorriu a Viscondessa—guarda para logo os teus comprimentos
ao doutor, que já é conhecido velho, agora deixa-me apresentar-te o meu
primo João de Mello.

—«Escusas de dizer mais, conheço-o perfeitamente—respondeu séria,
estendendo-lhe a mão, para um _shake-hands_, á ingleza, e dizendo com uma
naturalidade encantadora.—A Maria Helena descreveu-mo de tal maneira que
o reconheceria em qualquer parte.

—«Se tu o conheces—acudiu a Viscondessa, rindo—não te conhece elle,
que não teve quem, tão bem como eu, te descrevesse. É preciso
apresentar-te:—Isabella Burns, a minha maior e melhor amiga.

—«_Certainly_—terminou rindo Isabella.

—«Podemos partir—veio dizer o Visconde.

—«Quando quizeres.

—«Entrega a relação das bagagens ao Bernardo. Como o comboio não passa
hoje d’aqui, não haverá confusão.

—«Pois sim.—Abrindo a carteira de coiro da Russia onde brilhava o oiro
do monogramma e a corôa, tirou um papel que entregou ao administrador,
curvado para receber as ordens e comprimentar Sua Ex.ᵃ:—Veio o _coupé_
para minha mãe?

—«Sim, sr.ᵃ Viscondessa.

—«Tenha cautella, Bernardo, olhe se os cavallos estão folgados que vão
muito depressa...

—«V. Ex.ᵃ pode confiar em mim.

—«Bem sei, tenho toda a confiança no seu juizo, mas por isso mesmo não
quero que entregue esta obrigação a ninguem.

—«V. Ex.ᵃ pode ir descançada.

—«Bem, bem—e voltou ainda á carruagem, a fazer as mesmas recommendações.

—«Quem é aquella senhora que o Visconde cumprimentou?—perguntava
Izabella, acceitando o braço de João.

—«É minha prima.

—«Apresenta-ma?

—«Da melhor vontade, mas... perdôa-me a indiscrição d’uma pergunta? Para
que deseja essa apresentação?

—«Ora para quê!? Porque é muito bonita e quero admirá-la de perto. Ri-se?

—«Não rio; é que acho um pouco estranho esse desejo.

—«Estranho em quê? Eu admiro a belleza, e onde quer que a encontro gosto
de a contemplar.

—«É que, em geral, as senhoras não costumam fallar com essa justiça da
belleza das outras.

—«Que me importa o que as outras fazem, se eu não sou como ellas?!...

—«Tem cautella, João, olha que a Bella faz da vida um paradoxo e a maior
parte das vezes não pensa exactamente o que diz—disse a Viscondessa, que
vinha logo atraz pelo braço do doutor.

—«Agora é sómente o que penso, sem exaggero nenhum. Desejar vêr de perto
uma mulher bonita, parece-me que não é nada extraordinario. Vá, venha
apresentar-nos.

Como se tornava impossivel alcançar o Visconde e a Candida, apertados e
embaraçados por toda aquella gente que queria sahir a um tempo, chamou
alto o Visconde, que se voltou logo e esperou com o seu amavel sorriso de
homem galante. E foi alli, entre o gargalhar de toda aquella gente que se
sentia feliz da sua propria importancia, que o João apresentou a Candida,
um pouco contrafeita sob o claro olhar perscrutador de Izabella.

—«A sr.ᵃ D. Candida quer dar-nos a honra de ir na tua carruagem—disse o
Visconde á mulher.

—«Com o maior prazer.

—«A sua carruagem é fechada, Visconde?—Bella interrogou.

—«É esta _victoria_, que trouxeram fechada, não sei para quê.

—«Que pena, com uma noite d’estas!—sahindo para fóra, continuou—mas de
quem é então aquelle _phaeton_ tão bonitinho?

—«É meu, e se me atrevesse punha-o á disposição de V. Ex.ᵃ—respondeu João.

—«Mas porque se não hade atrever?! Ah!...—E, como fallando comsigo,—que
sensaboria!

—«O que dizias?—perguntou a Viscondessa.

—«Nada!... Olha lá, parecerá mal ir no carro de teu primo—disse a meia
voz, n’uma resposta que era uma pergunta.

—«Sósinha, não... Mas pode ir mais alguem, parece me que são poucos os
carros para tanta gente.

—«Pode ir o doutor...

—«O doutor, não—emendou o João apressado—como V. Ex.ᵃ prefere o meu
carro, vae o dr. Ramalho com os primos e eu vou convidar as sr.ᵃˢ
Rebellos e o Domingos que vieram a pé.

—«As manas Rebellos e o boticario, não é? Já conheço tudo por tradição;
chame-os depressa, olhe que fogem,—apressou Izabella, batendo as palmas
satisfeitissima, empurrando-o quasi para o lado onde o Domingos e as
cunhadas já estavam fazendo as suas despedidas ao Visconde.

Pouco depois, todos acamados como foi possivel, puzeram-se as carruagens
em marcha com a gravidade ceremoniosa d’um casamento pomposo.



VIII


A tarde alongava-se n’um crepusculo aguarellado em leves tintas doiradas,
com longes de porcelana japoneza e recortes miudinhos nos primeiros
planos.

No terraço, illuminado pela luz do poente sem agonias, as rosas-chá
abriam-se aromaticas e dôces.

A viscondessa, reclinada n’uma cadeira da Ilha com baldaquinos bordados,
fitava os olhos na _Vesper_,—que era um ponto mais brilhante no oiro
em que o sol se fundia—n’um alheamento, n’um abandono de si mesma, que
a puzera triste, d’essa inexplicavel tristeza que infiltram na alma as
tardes assim bellas e silenciosas.

O vestido leve de seda escura, com enfeites de renda preta, contrastava
fortemente com a pallidez marfinea do rosto. O cabello castanho
simplesmente penteado descobria-lhe a fronte alta de intelligencia e
juizo claro. A bocca, d’um córte rasgado, trazia-a franzida n’um sorriso
de paciente melancolia, que ás vezes se azedava n’um leve sarcasmo de
quem muito conhece, e de muito a conhecer se irrita, com as mentiras da
sociedade. Alta e elegante, o seu corpo tinha ficado delgado, de mulher
que nunca tivera filhos, apezar dos trinta e cinco annos que ia contando.
Mas o que sobre tudo agradava n’ella era a maneira senhoril, nobre e
consciente e ao mesmo tempo desafectada de andar, de sorrir, de fallar
para todos e em qualquer assumpto com as palavras precisas, sem um gesto
a mais nem uma pausa de menos, como se toda a sua pessoa tivesse sido
harmonicamente feita n’um mundo superior de materia differente da dos
outros.

O creado, que chegára á porta, perguntava pela terceira ou quarta vez—se
sua ex.ᵃ poderia receber o sr. dr. João Ramalho.

—«Mande entrar para aqui—respondeu como que acordando.

Emquanto o creado ia transmittir a ordem, ella endireitava-se na cadeira
para receber o doutor, a quem estendeu a mão branca de dedos afusados, e
disse alegremente, n’um afugentar de maus pensamentos que a alliviava:

—«Ainda bem que veiu, doutor, principiava a entristecer, com esta luz,
este céo, esta solidão...

—«Como era só principio, ainda venho a tempo de evitar maior
tristeza—respondeu a sorrir, ao mesmo tempo que se sentava na cadeira
defronte. Se é que a minha companhia póde distrahir alguem!...

—«Aquelles que sinceramente nos estimam, são sempre a companhia que mais
nos deve distrahir. Não é verdade?

—«Assim deve ser.

—«E quantas vezes não é!...

—«Não admira, o que não deve ser é o que mais acontece cá por este mundo.

—«É verdade...

—«O Visconde?

—«Deve ter sahido a cavallo, como costuma, antes de jantar. Talvez esteja
na bibliotheca, ou tenha visitas... Não lho posso dizer ao certo. Só nos
reunimos ao jantar, e para isso é ainda cedo—concluiu, olhando para o
cinto onde, preso a uma _agrafe_ d’oiro esmaltado, trazia um pequenino
relogio de crystal.

—«Em Lisboa sei que é esse o costume, pelos muitos affazeres do Visconde,
mas julguei que aqui lhe pertencesse mais, n’esta liberdade de férias no
campo.

—«Não, para nós é já um habito. Depois, aqui tem a politica que o absorve
e distrahe: ouvir um influente, attender a outro, escrever cartas e fazer
combinações... Toda essa embrulhada, a que sou perfeitamente estranha.

—«Não se interessa então nada pela politica?—respondendo ao signal de
negativa que ella fez com a cabeça, continuou—Imaginei que sim. Tenho-a
tido sempre como um poderoso elemento na influencia partidaria do
Visconde.

—«Porquê?

—«Porque a vejo sempre amavel para os influentes, conhecendo-lhes os
fracos e os interesses...

—«Sómente para fazer a vontade ao Duarte, que é a unica coisa que me
pede com interesse. Mas é contra minha vontade que elle se mette
n’esta vergonha da politica. Os de _cá_, os _pequenos_, como os de
_lá_, os _grandes_, é tudo afinal a mesma coisa. Egoistas, ambiciosos,
interesseiros, não ha um unico que queira vêr a miseria em que a patria
agonisa e se sacrifique para a salvar. E se algum apparecesse, os
outros affastá-lo-iam como um perigo para as suas bolsas que o thezoiro
enche... Debaixo a cima, a lucta furiosa d’ambições para chegar ao poder;
depois... ninguem se salva... O que me desgosta é vêr o Duarte viver com
elles, ter os mesmos ideaes estreitos, acceitar os mesmos compromissos
para identicos fins. Elle, que é pessoalmente honesto, politicamente
iguala-se ao Maximiano Carneiro—porque é igualar-se tê-lo como adversario.

—«Não diga tal, Viscondessa! Pois não a consola que seu marido seja
apontado entre os partidos da rotação como um dos raros honestos?

—«Sim, nada do que nós temos nos veiu com a politica, mas isso, meu
amigo, é a honradez vulgar do creado de servir que não tira o dinheiro ao
patrão mas vê sem protestos os outros encherem as algibeiras.

—«Não crê que em volta do nome honrado do visconde se forme um partido
novo a que se juntem as almas ainda impollutas dos moços, cheios de
coragem para luctar, resignação para a miseria, e esperança no futuro?

—«Não creio n’esse dôce sonho côr de rosa. Em primeiro logar porque os
novos já não são como ha vinte annos os depositarios dos enthusiasmos e
das grandes ideias altruistas. Tem-se educado a mocidade para politicos
e empregados publicos. Os independentes são uma pequena minoria, que os
proprios companheiros alcunham de doidos... Os homens práticos n’este
paiz são os que aos vinte annos só teem confiança... nos empenhos.

—«Como está descrente! O Visconde ainda fará alguma coisa, verá...

—«Não creio, o Duarte transige com os meios, e para salvar isto seria
preciso não haver transigencias de qualidade alguma. Seria preciso cortar
fundo e a direito, sem olhar absolutamente a conveniencias pessoaes.

—«Quer então um novo Pombal?!...—perguntou o medico, rindo.

—«Sem as barbaridades que deslustraram a sua bella obra de resurgimento
patrio. Viesse elle!...

—«É então por esse ideal... sebastianico, que lhe não interessa a
politica contemporanea?!

—«Decerto! A não ser que o doutor me explique o que o paiz ganha e o que
póde advir de grande e compensador para a collectividade portugueza,
com a entrada do sr. _Domingos da botica_ para a vereação da camara
municipal, ou com a realisação do empenho do Braga, em fazer expropriar
a casa do Bernabé, porque affronta o seu _chalet_ mirabolante de burguez
endinheirado e estupido. Sim, o meu bom amigo, que é tambem politico,
poderá explicar-me essas _vantagens_...

—«Eu sou um politico... d’agua morna. Auxilio o Visconde por amizade,
e acceitei, como sabe, ser deputado por um circulo qualquer para que
elle tenha mais um voto na camara... Nunca me encommodei com os meus
constituintes, que teem tido o bom senso de não pensarem tambem no seu
representante.

—«Quer isso dizer que o doutor, que em toda a sua vida particular não tem
uma mancha a enodoar lhe o nome, acha que é natural ser representante
d’um povo porque o governo lhe disse que o fosse?! Acceita isso, e acha
até muito natural que se faça, o que n’um paiz civicamente bem educado se
não faria; e porquê? Porque é politica. Triste palavra que tanta coisa
má faz desculpar! Os senhores não creem nos homens que seguem; não teem
partido porque não teem convicções!...

—«Mas isso é quasi uma descompostura...—disse de bom humor o medico.

—«Talvez, mas justa, confesse. Um de meus avós recusou representar uma
das nossas colonias nas famosas côrtes da regencia de Izabel Maria,
porque era impossivel, materialmente impossivel por falta de tempo,
apresentar-se eleito pelos seus constituintes com legalidade, visto que
as viagens duravam seis mezes e as côrtes constituiram-se em dois...
Então, um homem cheio de filhos e responsabilidades, não se importou
de desobedecer a uma ordem que ia de encontro á sua consciencia, e
agora? Os mais honestos teem a philosophia do doutor. Os homens teem uma
consciencia mais lata...

—«E as mulheres fariam outra coisa, minha senhora feminista?

—«Oh, as mulheres não são melhores, porque nem mesmo querem dar-se ao
trabalho de pensar. Se ellas pozessem no bem da patria e da familia a
energia que dispendem em futilidades, alguma coisa poderiam fazer...

—«Se todas fossem como a Viscondessa decerto que o melhor que teriamos a
fazer era ser governados...

—«Não perca os seus madrigaes commigo, meu caro.

—«Mas é sinceramente que digo isto, tenha a certeza.

—«Pois então digo-lhe que está enganado. Quanto mais banal e frivola é a
mulher, mais influencia tem no espirito do homem, até ás vezes os mais
intelligentes. Na nossa sociedade, que se apregôa a ultima palavra da
civilisação, raramente a mulher é a companheira do homem. Elle quer ser
senhor; ella, como todo o escravo, corrompe-o. Ora esse papel é baixo e
uma alma superior de mulher nunca se sujeita a elle, prefere a sombra da
sua modestia...

—«Mas, se a Viscondessa me permitte uma observação...

—«Diga.

—«Parece-me que V. Ex.ᵃ não poderá queixar-se nunca porque é, felizmente,
uma excepção a essa regra; o seu lucidissimo espirito deve exercer no do
visconde uma salutar influencia.

—«Está enganado; meu marido, como a maior parte dos homens, dispensa o
espirito... caseiro.

—«É d’uma ironia pungente—respondeu o doutor, admirado do que ouvia,
tão differente do que imaginára. Depois d’um instante de silencio, em
que as suas almas se comprehenderam talvez, melhor do que em annos de
convivencia, elle perguntou:

—«Ha quanto tempo casaram?

—«O que lhe diz o thermometro?

—«Que o mercurio ainda não gelou...

—«Nem gelará, descance!—respondeu sorrindo e encostando o cotovello a
uma pequena meza de jardim.—Temos uma temperatura de estufa, elegante,
cuidadosa e sabiamente entretida. Estamos livres das grandes temperaturas
tropicaes como dos resfriamentos polares.

—«Permitta-me que duvide um pouco d’essa theoria de velhos egoistas em
gente tão moça?!

—«Moços?! Não é tanto assim, sabe que idade tenho?

—«Cálculo trinta... creio que não se importa que o diga.

—«Engana se, tenho trinta e cinco.

—«Somos quasi da mesma idade, eu tenho trinta e oito.

—«Tem graça que só hoje fizessemos esta _descoberta_.

—«Quando eu vim para aqui era a Viscondessa quasi uma criança.

—«E o doutor outra, pois que somos quasi da mesma idade.

—«Eu sempre fui mais velho que os meus annos. Isto foi ha treze...

—«Tinha eu vinte e dois; estava casada havia cinco...

—«Estão casados ha vinte?!...

—«É muito, não acha, para um homem gostar d’uma mulher?

—«Pelo contrario, parece-me pouco quando ella é... o que deve ser.
Casaram muito novos.

—«Eramos primos e noivos desde crianças...

Calaram-se ambos, como admirados de dizerem tanto; é que a tarde, cahindo
pacificante e bella, trouxera-lhes aos labios phrases de confidencia que
o tumultuar do mundo lhes não deixára nunca sahir do recesso mais intimo
dos seus corações.

—«Como sou distrahido... ainda não perguntei pela senhora D.
Genoveva!?—disse o doutor d’ahi a minutos, para dizer alguma coisa.

—«Hoje está muito rasoavelmente; estes quinze dias de socego têm-lhe
feito bem.

—«O socego é para ella a melhor medicina. E a sua amiga?

—«Bella? Foi passear á quinta. Gosta de andar muito e não se cança. Tem
aquella boa educação ingleza que faz homens e mulheres sadios, resolutos,
fortes, coisas que eu tanto admiro...

—«E no emtanto a Viscondessa nada tem de ingleza...

—«Nem de inglezada. Admiro a Inglaterra como educadora, mas detesto-a
como nação alliada. É mesmo por eu ser uma incorrigivel meridional,
cheia de mollezas e desânimos, que admiro e aprecio os que fazem da vida
uma coisa simples, alegre e boa. Compare o meu espirito cheio d’amargas
duvidas e incertezas crueis com a saudavel e boa razão de Bella!... E
ainda o doutor não conhece bem o fundo de probidade e inteireza do seu
caracter. Alli onde a vê, é a cabecinha de mais juizo que eu conheço;
sem falsas ingenuidades nem descaramentos de _demi vierge_, tem uma clara
noção da vida e acceita a tal qual é, sem covardias nem tristezas.

—«Parece ser sinceramente sua amiga...

—«Se é! Tenho a certeza d’isso. Creio n’ella como em mim mesma. É a
minha unica amiga intima, a unica com quem fallo sem reservas, com uma
franqueza que não poderia ter com outra que vivesse n’um meio differente.
A prima Josephina, por exemplo, é minha amiga, eu tambem a estimo
immenso, mas, comprehende, é um espirito completamente alheio ao meu.
Tendo vivido sempre n’este meio restricto da provincia, toda absorvida no
santo egoismo de esposa feliz e de mãe, não é, nem podia ser, a grande
amiga intellectual que é Bella.

—«E agora, com a morte de Pillar, a pobre senhora está n’uma tal
depressão moral, que nem sei o que lhe possa interessar!...

—«Com toda a razão; ter uma filha como aquella e vê-la morrer, deve ser
para endoidecer! Só pensar n’isso me arrepia!—nervosamente levou a mão
á fronte arredando algum cabello mais teimoso.—Sabe o que me disse a
Engracia?...

—«Deu-lhe attenção? Olhe que está quasi maluca desde a morte da Pillar.

—«Será tudo imaginação d’ella? O João tambem vagamente me fallou em
quaesquer desconfianças...

—«Sim, esse tambem desconfia coisas pavorosamente romanticas; parece que
o consola mais a ideia de que a pobre criança não morreu d’uma simples
doença para que estava predisposta... Ha n’isso uma especie de vaidade,
creia. Na minha vida de medico é frequente deparar com estes exemplares:
pessoas que querem ter doenças extraordinarias, que dizem soffrer e
sentir coisas espantosas, que querem por força que se lhes diga um nome
scientifico para baptizarem a mais ligeira dôr de cabeça, e que ficam
radiantes quando se lhes diz que é um caso desconhecido ou raro... Poucas
são as pessoas que não sentem como que uma certa vaidade dolorosa, mas
que é consoladora ao mesmo tempo, em constatar que alguem da sua amizade
morreu de uma doença com um terrivel nome na medicina.

—«Pois sim, será, mas o doutor não desconfia de nada?!...

—«Eu nada desconfiei e nada vi que authorisasse tal supposição.

—«O Vilhegas parece-me um ambicioso sem escrupulos, talvez mau...

—«Não, mais ambicioso do que outra coisa. Agora é todo M.ᵉˡˡᵉ Maximiano,
dizem.

—«Mas essa não é rica, o pae deve tres vezes mais do que tem. Apezar do
estadão que apresenta, creio que está mettido em tanta negociata que
impossivel será sahir-se de todas.

—«Homens como elle nunca vão ao fundo, boiam sempre nas aguas turvas como
se fôssem o seu elemento. Elle fará subir o genro, puxando o a si...

—«Pelas orelhas, bem póde...

—«Tenho notado que os Maximianos este anno veem cá muito menos.

—«Visitaram-me durante os primeiros oito dias, como é da etiqueta... São
abominaveis! Agora heide ir visita-los antes dos meus annos, para depois
se convidarem para o baile. Não imagina o que me irrita esta maneira de
vêr do Duarte! Ora se são adversarios, se não se podem tolerar, para que
será conservar esta apparencia de relações?!

—«Porque assim mais facilmente se vigiam...

—«Mentiras sobre mentiras para esse ignobil fim?

—«Quer dizer que é um usurpador dos direitos de suzerania do Maximiano cá
no burgo?!...—disse o doutor a rir.

—«Deixemos esse assumpto, que me irrita os nervos. O que me diz da
Candida?

—«É muito formosa e um tanto incomprehensivel.

—«Eu não sympathiso muito com ella... Estou em crêr no que diz o João...

—«Fallavam em mim?—perguntou este, que tinha entrado sem se fazer
annunciar, com toda a liberdade de parente proximo que era dos viscondes,
pela mãe.

—«Ora não tinhamos nada mais interessante em que fallar...—respondeu a
prima gracejando para não ter que explicar-se mais claramente.

—«Pois é uma ingratidão que tenho a registar, tanto maior quanto é certo
ter passado a tarde a ouvir o seu elogio.

—«Estiveste lá em cima com minha mãe?

—«Nem só a tia Genoveva a elogia, minha senhora.

—«Então, quem mais?

—«Adivinhe.

—«A não ser a mamã, só em tua casa ou Bella; mas essa foi para a quinta,
e decerto não a procuraste lá por palpite.

—«Pois foi ella mesma quem encontrei, não á beira de poetica fonte
desfolhando rosas como Ophelia, mas em plena serra, em caminho da Senhora
do Monte.

—«Deveras?! Aquillo é que são pernas!

—«E combinámos voltar no dia da romaria.

—«Juntaram-se os andarilhos; temos desafio como n’aquelle conto da
princeza que ia á fonte buscar uma bilha d’agua emquanto os admiradores
não tinham tempo de chegar a meio caminho...—observou com paternal
bonhomia o doutor.

—«O que mais admira é andarem por este calor na serra e apparecer-me este
n’uma frescura de _toilette_ branca de verdadeiro anglo-maniaco...

Elle córou como uma menina sob o sorriso dos dois, que olhavam o seu
irreprehensivel fato de flanella branca, a flôr na botoeira, os sapatos
de salto raso e a gravata preta, ultimo signal de lucto.

—«Mas, prima, lá em cima não estava calor—respondeu apressado.

—«Ó filho, não me digas isso, que mudo para lá a casa...

—«Sério, prima, na mina estava até fresco...

—«Tens a certeza de teres reparado bem se estava frio ou calor?...—E ria
como poucas vezes, assim despreoccupada e feliz.

—«Estava fresquissimo, minha querida—entrou dizendo Bella, vestida de
seda crua, já preparada para o jantar.—Adeus doutor, como está? não se
resolve a vir um dia dar a volta ao mundo?—Apertava a mão ao medico com
amistosa franqueza e continuava para a amiga:—Acredita, Maria Helena,
estava tão deliciosamente fresco que encontrei lá as mais bellas avencas
que tenho visto.

—«Que exagero! E diz isto uma creatura que tem uma estufa com os mais
lindos exemplares que existem em Portugal!...

—«Que barbaridade, queridinha!—e inclinava-se por traz da cadeira a
beijar a viscondessa com ternura.—Pois ha nada que iguale o que a
natureza nos dá espontaneamente, sem artificios nem cuidados?

—«Preferes então a rosa dos vallados á _Marechal Niel_?

—«Talvez que sim, vê tu que a rosa vulgar tem mais e melhor perfume do
que aquella que a civilisação apenas poude alindar...

—«Sempre o paradoxo!

—«Olha; e apresentava-lhe um pequeno ramo feito de botões de rosas
singelas rodeados de avenca muito fresca—queres dizer que é feio este
ramo que te trouxe?

—«Este é lindissimo, principalmente pela intenção.

Beijou-a n’um agradecimento commovido.

A noite tinha vindo, entretanto, mas tão claramente illuminada pela lua
cheia que mais parecia o continuar d’esse crepusculo doce de verão que as
roseiras perfumavam...

O criado que annunciára o doutor veio dizer, n’uma reverencia,—que a
sr.ᵃ D. Candida e o tio estavam com o senhor Visconde na casa de jantar,
esperando-os.

—«Porque não mandaste entrar para aqui?

—«Como o jantar vae ser servido, o sr. Visconde deu ordem para vir
prevenir v. ex.ᵃ

—«Vamos!—disse ella, voltando-se para os tres, que promptamente se
levantaram.

Na espaçosa sala de jantar, aberta sobre um terraço sobranceiro ao
jardim, as luzes estavam acezas e dispostas de maneira a illuminar a casa
sem lhe tirar de todo o encanto um pouco sombrio das antigas habitações,
de tecto apainelado e pintado a fresco e de paredes revestidas de
azulejos até meia altura.

Sobre o linho alvissimo da toalha, os crystaes lavrados e as porcelanas
marcadas, harmonisavam-se com os fructos e as flores espalhadas um pouco
por toda a parte, em pequeninas jarras, em cestos, em ramos, ao lado de
cada conviva, n’uma prodigalidade que a riqueza do jardim authorisava.
Nos aparadores de rica talha Renascença, a baixella de prata, que um
artista cinzelara e de Italia fôra trazida para aquelle palacio por
um avô dos viscondes, dava um forte destaque de luz junto ao severo
mobiliario.

Na parede do fundo, entre as duas portas da bibliotheca, que pesados
reposteiros com o brazão d’armas vedavam, um quadro a oleo tomava toda a
altura. Era simples a scena e palpitante de vida: um cavalleiro, imberbe
ainda, segurava pelo freio um cavallo que se empinava soberbo, espumando,
o pello luzidio de suor.

O ar energico e sereno do retratado era de tal maneira humano, que
ninguem duvidaria que o pintor tirara do original essa figura, decidida
a tudo, antes do que a abdicar. O calção branco e a casaca encarnada do
cavalleiro, moço fidalgo e rico homem, destacava-se sangrentamente no
fundo plumbeo da tela. Em pé, diante do quadro, o Visconde e a Candida
conversavam, emquanto Antonio de Mello, filado pelo Braga, agora seu
companheiro insacudivel por causa da sobrinha, e do visconde por causa da
casa do Bernabé, estava no vão d’uma janella ouvindo pela millesima vez a
pretensão do homensinho.

—«Quando em pequena aqui vinha—dizia entretanto a Candida—nada me
interessava como este quadro.

—«Porquê? Não é, apezar de bem feito, uma obra prima que merecesse a
attenção de V. Ex.ᵃ

—«Não é isso, que eu pouco conheço de pintura para o apreciar como
artista, era a historia do cavalleiro que me fazia scismar!

—«É uma historia romanesca, na verdade, uma lenda d’amôr que não admira
que tivesse fallado á imaginação d’uma formosa criança como V. Ex.ᵃ era.

—«Não é certo que foi amado por uma rainha aquelle cavalleiro?

—«É certo! Amado por uma rainha que desprezou para casar com a menina que
amava desde a infancia.

—«E por isso foi desterrado para este palacio, não é verdade? O que lhe
era elle, sr. Visconde?

—«Meu decimo quinto avô e tambem da Maria Helena e da Josephina, porque
descendemos todos do mesmo ramo.

—«Como o sr. Visconde deve ter orgulho em ser neto d’um homem que foi
amado por uma rainha!

—«O que vale uma rainha impudíca ao pé do meigo e ideal typo de Griselia,
a honesta pastora que torna ditoso o seu senhor á força de resignação e
amôr?!...—respondeu a voz clara e insinuante de Bella, que vinha pelo
braço de João e estava atraz d’elles.

—«Estou d’accordo—retorquio o visconde, emquanto as duas se
cumprimentavam com expansão desusada por parte da Candida e polida frieza
em Izabella.—É sempre rainha a mulher que amâmos. Mais do que rainha,
porque a pômos alta como as estrellas. E rainhas são todas que dominam
pela formosura e pelo espirito como V. Ex.ᵃˢ, minhas senhoras—disse para
as duas, mas voltando se intencionalmente para a Candida.

—«Eu, por mim, sou uma rainha sem throno—respondeu ella com sorriso
d’amargo desdem.

—«Oh não diga tal, minha senhora: V. Ex.ᵃ possue o triplice throno da
belleza, da juventude e da bondade.

—«Por isso procura o do oiro para ficar com quatro pés... muito mais
segura—murmurou a viscondessa para o Ramalho, apontando o Braga, n’um tom
sacudido, pouco natural na sua costumada frieza.

—«É cruel, viscondessa.

—«Não ouve e nem que ouvisse percebia...

—«Ou fingia não perceber?...

—«Qualquer das coisas me é bem indifferente.

Chegando ao grupo cumprimentou a Candida que se desfazia em amabilidades
e desculpas por a não ter logo visto.

—«Não admira, estavamos no terraço...

Voltando se logo, cumprimentou o Antonio de Mello com affabilidade e o
Braga com um ligeiro inclinar de cabeça.

—«A sr.ᵃ viscondessa está servida—disse o mordomo de pé, ao cimo da meza.

—«Preveniram minha mãe?

—«A sr.ᵃ D. Genoveva mandou dizer que não esperassem, que descia já.

Effectivamente appareceu logo á porta a mãe da viscondessa pelo braço
da dama de companhia. Alta como a filha, apezar de já se dobrar ao peso
dos annos, a sua cabeça, como a d’ella, tinha uma dôce expressão que a
fazia venerada por todos. A mais do que a filha tinha, não obstante a
sua velhice adoentada, um aberto sorriso de quem fruia os ultimos annos
d’uma velhice sem desejos nem sobresaltos, n’uma atmosphera confortavel
de respeito e grandeza.

A filha correu para ella e carinhosamente a fez sentar no primeiro logar,
onde todos depois lhe foram fazer os seus cumprimentos.

—«Aos seus logares!—clamou o visconde estranhamente animado.

Silenciosos, os criados começaram a servir o jantar.



IX


—«Visto isso, as festas encadeiam-se agora brilhantemente!? N’este
diabo de terra é sempre assim. Passa a gente um inverno inteiro sem
uma distracção que nos traga ao espirito refulgencias de luz, e depois
vem as festas todas juntas, mal a elegancia da capital arriba a estas
paragens...—dizia arrebicado, puxando os punhos engommados e estendendo
o pé pequeno, calçado em botas de _chagrin_ côr de tijolo, o Telles da
botica nova.

D’um moreno terroso, magrinho, as orelhas a fugirem-lhe para a nuca, a
pelle borbulhenta e quasi sem barba, fallando muito e depressa n’uma
verbosidade saltante de nevrotico que se orgulhava de ser, assim como
poeta incomprehendido, devorado pela Arte,—com A grande—e conquistador
irresistivel.

—«É verdade, hoje e amanhã temos a romaria da Senhora do Monte, depois o
_pic-nic_ na Matta, e no fim, a coroar a série, o baile da viscondessa.
Já tiveste convite?—respondeu o Vilhegas cavalgando uma cadeira, o
chapéo molle deitado para a nuca e embrulhando um cigarro entre os dedos
com minuciosa attenção.

—«Os Viscondes convidam me sempre, mas ainda não sei se os meus nervos me
deixarão tolerar esse ruido.

Passava a mão pelos cabellos, encostando-se, nostalgico e sentimental, á
secretária onde costumava escrever.

—«Homem, essa constante preoccupação é que te adoenta! Tens nervos como
toda a gente; tens saude por sete, deixa te de manias.

—«Se eu não sentisse os terriveis symptomas que sinto!? O que quer
dizer então este desespero de tudo e de todos, este odio ao banal que
me torturiza e me distanceia da multidão, esta febre de movimento logo
seguida das crises de passividade mais completa e absoluta?! Sou um
neurasthenico, tenho a certeza.

—«Tanto pensas em sê-lo que te hasde tornar, isso é corrente. Mas eu não
te largo, porque sem ti não vou ás festas.

—«Obrigadissimo por esse desejo, mas se eu não poder ir não vás tambem.

—«Isso é que é impossivel. A Hortensia vae e eu não quero faltar.

—«Não sei o que tu fazes com essa coisa! Casar com a Pillar,
comprehendia-se, era a fortuna, era um futuro sem sobresaltos que
preparavas; approvei a ideia desde que em Coimbra me contaste os teus
sonhos de ambição.

—«Lembras te d’esse tempo, oh Telles?—perguntou o outro, a sério.

—«Se me lembro! Quando tu entraste pela porta dentro e me disseste que te
matarias se te não emprestasse o dinheiro para a matricula!...

—«Era verdade. No ultimo anno, era a minha vida inteira que perdia!
Quando penso!...

—«E afinal nunca se descobriu quem te roubou o dinheiro, pois não?

—«Nunca! O que diria o Antonio de Mello e meu pae e todos!?... Que eu
tinha jogado, naturalmente. Ficava desacreditado! Salvaste-me a vida, crê.

—«Ora que ideia! Fiz o que tu ou outro qualquer faria no meu logar.

—«Fizeste o que poucos seriam capazes de fazer: pôr a tua casa, a tua
bolsa, tudo quanto tinhas á minha disposição...

—«E tu não me pagas com amizade?!

—«E sincera que ella é: a unica grande amizade que tenho. A prova está em
que não guardo um segredo para ti, não tenho pensamento que te não confie.

—«Ahi está o que desejo: como não tenho grandes ambições com as tuas me
contento. E a proposito—que tolice é essa agora da Hortensia?

—«Então que queres? A Pillar era uma escada d’oiro para subir, esta é
uma escada de corda, mas tambem por ella se trepa... Questão de tempo e
de vontade. Metteu-se o diabo com aquelle negocio e foi um desastre!...
Este é de mais trabalho, mas n’um paiz como o nosso tem tambem maiores
vantagens.

—«Isso está muito bem, mas o que dirá a Candida? Não tencionas casar com
ella?

—«Com ella, eu?!... Se a prima lhe tivesse deixado a fortuna, não digo
que não.

—«Vê lá em que te mettes! Olha que essas mentiras e enganos não pódem dar
bom resultado. Suppõe que a Candida falla...

—«O que hade ella dizer que a não comprometta mais do que a mim? Deixa,
que ella não é tola e tem um medo ao João que a não deixa abrir bico.
Além d’isso creio bem que desistiu da minha pessoa em favor da fortuna do
Braga.

—«Pobre Braga! Paga na velhice todos os crimes da sua vida de avarento.
Ella não tem escrupulos... Como tu cahiste na asneira de a namorar!...

—«Tu, que és o unico senhor d’este segredo, a perguntar-me isso! A
culpada foi só ella.

—«Sim, eu sou o unico a quem o disseste, mas quem o diria á Pillar?

—«Não posso comprehender. Na minha vida dão-se coisas que eram para fazer
succumbir outro de menos coragem.

—«Seria a propria Candida?

—«Cheguei a pensar isso, mas pelo susto da ultima hora convenci-me de que
não foi. A Engracia é que talvez desconfiasse... Não sei! Acautellava-me
tanto...

—«Foi um desastre. A Pillar gostava de ti a valer.

—«Isso!...

—«Era o menos para ti, homem pratico, mas era alguma coisa.

—«Já passou o tempo do _teu amôr e uma cabana_... Não se compra nada com
essa moeda.

—«Mas quando se allia a fortuna ao amôr é a felicidade na terra.

—«Homem, já parece estylo de noticiarista!

—«Faze troça, faze... Mas, emfim, com essa vá, comprehendia que
sacrificasses a tua liberdade, agora com a Hortensia que não tem
vintem!...

—«Vocês, os poetas, não sabem nada da vida. Pois uma protecção como a do
Maximiano Carneiro não vale uma grossa fortuna? Deixa me casar com ella
e tu verás como me hasde ver deputado, chefe de repartição, director de
companhias, ministro, sei lá!... Tudo.

—«Tu? mas como?

—«Pois o Maximiano, que tem empregado a familia inteira, que tem criado
logares para simples parentes da mulher, para amigos, para influentes
do bairro, pode-se dizer; o Maximiano, que custa ao país com a sua
parentella e afilhados mais de um conto de réis por dia, não ha de pôr
toda a sua influencia e esperteza em campo para fazer subir o marido da
filha?...

—«Talvez tenhas razão.

—«Já se vê que tenho.

—«Bom, isso é que eu desejo. Mas tu gostas da pequena?

—«O bastante para me divorciar sem desgosto, se me fôr preciso.

—«Tem graça! És impagavel!...—E ambos desataram a rir, n’um gosto franco
de rapazes que se divertem com futilidades.

—«Agora outra coisa,—disse d’ahi a momentos, quando já acalmado o riso, o
Telles:—o que me dizes áquella inglezita que veio com a Viscondessa, será
rica?

—«Creio que não. A Hortensia disse me que é filha d’um _trampolineiro_
que, depois de ter roubado meia Lisboa, fugiu para o Brazil. Ella foi
educada com um tio riquissimo e inglêsmente excentrico. Parece que lhe
não deixa nada porque ella até veio para aqui por estarem mal.

—«Essa é que é interessante e bonita, d’uma graciosidade de _bibelot_, um
verdadeiro encanto physica e intellectualmente. Vou fazer-lhe a côrte, tu
que dizes? Tenho bastante para me conceder a extravagancia de casar por
paixão.

—«E passares a vida a dedilhar a lyra. É bonito, mas pouco substancial. O
que me parece é que o João te toma o passo...

—«Ora! Entre mim e o João não pode haver hesitações para uma mulher
intelligente como ella é.

—«Pois se queres começar o cerco vamos até á romaria.

—«E eu que os acompanho, disse da porta o Padre Mathias que entrava
precisamente na occasião.

—«Olá, caro _bispo_, por aqui?! Com todo o gosto o levamos na nossa
amavel companhia—respondeu expansivamente o medico, querendo já tornar-se
popular á moda do Maximiano.—Sabe se o conselheiro já foi?

—«Venho agora de lá, tinham o carro á porta.

—«Sempre vieram os taes hospedes?

—«A baroneza d’Amieira, veio. E muita gente tambem para casa do Visconde.
Este anno vae ser animadissima de concorrencia _selecta_ a nossa romaria.

—«Pois vamos nós tambem até lá. Anda d’ahi, oh Telles, chama o rapaz e
entrega-lhe a chave.

Dadas as ordens de patrão e recommendado tudo ao rapaz que servia ao
pharmaceutico, dirigiram-se os tres para o largo á procura de carro que
os levasse até lá cima, á capella da Senhora do Monte, que se destacava
cheia de luzes no fundo escuro do céo.

Era desusado o bulicio em toda a terra e estradas da redondeza pois
a romaria annual da Senhora do Monte tinha fama de ser a melhor da
provincia. Com a civilisação que trouxera as diligencias e os comboios
a preços reduzidos, perdêra talvez um pouco d’aquelle caracteristico
verdadeiramente popular que a tornára das mais falladas e rendosas;
começava a accentuar-se na villa o elemento burguez com suas
mirabolancias de gostos e desdens pelo povo, que por lhe estar perto na
origem cuidam affastar deixando de o comprehender.

Pelas estradas era ainda povo e bem portugues e regional o que cantava e
dançava em ranchos, ao som da viola e dos ferrinhos.

Os carros de bois com suas pipas enramalhetadas, passavam para se irem
collocar no sitio onde seriam esvasiadas pelos amadores da _bôa pinga_
até que o carroceiro e vendeiro as levantasse n’uma exclamação de
triumpho; e outra viria, e outra depois, fazendo—quantas vezes!—com que
o vinho espumoso se tornasse em sangue rubro n’alguma d’essas richas de
romarias e feiras em que ninguem tem razão, nem culpa... senão as pipas
enramalhetadas que sobre os carros de bois são esvasiadas copo a copo.

Os pequenos negociantes da limonada, com as mesas á cabeça, mais as
mulheres dos bolos e do pão corriam açodados para apanhar o melhor
sitio da venda; e por toda a terra se sentia esse fremito de enthusiasmo
que trazem as festas que estão bem dentro da alma e dos costumes d’uma
população.

No largo da Fonte não havia quem se entendesse á procura de carros; a
villa em peso ia para o fogo, e achavam de somenos importancia percorrer
aquelles tres kilometros a pé, por entre o povoléo; mas o padre Mathias
tinha conhecimentos e influencias e depressa arranjou uma _carriola_ que
levou os tres pela estrada nova em seguimento do _char-à-bancs_ onde os
Maximianos se tinha resolvido a acamar, como sardinhas em canastra, não
tendo maneira de arranjar mais carros.

       *       *       *       *       *

Como tinham combinado, João e Bella apearam-se na bifurcação dos caminhos
e deixaram que a Viscondessa e a Candida, o dr. Ramalho e o Visconde,
continuassem em carruagens pela estrada nova, com os mais hospedes,
vindos propositadamente para assistir ás festas, e seguiram elles pelo
caminho velho.

Subiram depois as escadas de pedra que se espreguiçam serra acima em
largos degraus orlados de sobreiros seculares e capellinhas brancas em
cada patamar.

Todo o campo estava cheio de gente, e desde a villa que um vozear surdo,
como de mar batendo ao longe na penedia da costa, chegava aos ouvidos.

Grupos alegres estendiam-se pelo chão, chalaceando para espantar o somno,
á espera do fogo d’artificio, outros dormiam já, no costume das noites
começadas logo ao pôr do sol.

Os pobre aleijados e esfarrapados, começavam aqui e alli a escancarar as
suas miserias, supplicando em vozes ladainhentas cinco reisinhos para
tamanha desgraça... De tempos a tempos, para entreter o povinho, um
foguete de lagrimas enchia o céo d’estrellas multicôres e abria todas as
boccas n’um prolongado _oh!_ admirativo.

Bella ia subindo ao lado de João, divertindo-se em observar esse «vivo
muzeu ethnographico,» como ella dizia.

Achava graça a tudo, e parava a cada passo para ouvir uma cantiga ou vêr
um rancho de raparigas a dançar. Desde o primeiro degrau, que começára a
dar dinheiro a todos os mendigos, a comprar bonecos de pão e bugigangas
sem importancia, só pelo prazer de comprar, de ter muita coisa que lhe
recordasse mais tarde aquelle espectaculo novo para os seus olhos de
quasi extrangeira.

Por mais que João lhe dissesse que era muito lá em cima, no alto do
monte, no terreiro da capella, que a verdadeira feira se juntava, ella
não queria crer que fosse mais pittoresco.

A noite puzera-se escura e quente, com relampagos de calor para as bandas
da _Serra_.

Á maneira que iam subindo, a multidão dos romeiros ia augmentando,
apertando-se n’uma gritaria, n’um desmancho e rudesa que quasi a
allucinava, a ella que nunca estivera tanto em contacto com o povo.

Insensivelmente tomou o braço que João desde o principio lhe offerecêra
e ella recusára na independencia orgulhosa de rapariga habituada a andar
só.

Caminhavam difficilmente, empurrando a multidão que se entrechocava
subindo e descendo pelo pequeno espaço deixado no meio das escadas pelas
vendedeiras e mendigos.

Raparigas com lenços cahidos, os chales atados á cinta, as chinellas de
côr com biqueira de verniz preto, riam alto, saracoteavam-se e fallavam
mais desembaraçadas e vivas do que os homens que as seguiam. Esses,
com chapeus braguezes enfeitados com imagens da santa, bonecas de pão
e flores de papel, desciam deitando o tronco para traz e firmando-se
bem nos sapatos de salto de prateleira e no varapau, cambaleantes, como
se o habito de andar dobrados sobre a enxada lhes tirasse o de andar
verticalmente.

Por entre a multidão festiva, amortalhadas de branco, pobres raparigas
que a morte tinha poupado, iam depôr aos pés do altar onde morava a
esperança da sua crença, com as tranças dos cabellos as ultimas lagrimas
do seu piedoso reconhecimento. Penitentes, homens e mulheres, novos e
velhos, com velas na mão, amparados por amigos e parentes seguidos pelos
olhares respeitosos de todos, subiam de joelhos ou de costas os trezentos
e tantos degraus de pedra, cumprindo promessas, quem sabe de quantas
lagrimas feitas!...

—«Oh João, como é possivel que isto se faça e se consinta!?—dizia
Isabella nervosa, apertando-lhe o braço quasi phrenetica.

—«Pois não se havia de consentir a consolação d’uma tão grande fé?

—«Fé?! Não diga isso. É ignorancia, fanatismo, loucura a d’estes
desgraçados que nenhuma luz de razão illumina. É maldade da parte das
leis e dos seus encarregados, deixar ao povo, que não tem liberdade para
coisa alguma, liberdade para este horror... Subâmos depressa; ainda falta
muito? O caminho parece-me hoje mais comprido...

—«É porque está aborrecida e cançada do barulho. Sentêmo-nos um
bocadinho, quer?

—«Pois sentêmo-nos, mas alli mais no escuro, onde houver menos passagem,
que sinto a cabeça esvaída.

Sentaram-se fóra da escada, sobre umas pedras, na sombra d’uma capella.

Ao lado d’elles e por toda a parte empurravam-se—fallavam, riam,
apregoavam ou dormiam centenas de pessoas que assim se julgavam felizes,
emquanto Isabella se sentia triste,—d’uma pungitiva tristeza que mais a
encommodava por lhe vir assim, tão contra sua vontade e espectativa.

—«Estou arrependido de a ter acompanhado n’esta estravagancia, porque é
uma verdadeira estravagancia, que devia prever a encommodaria deveras.

—«Porque? Estravagancia e desusada em mim, é isto. Pois que tenho eu de
mais ou de menos para não sentir como elles, para não me divertir da
mesma maneira, para me encommodar até o contacto d’esta bôa gente, que é
portuguesa como eu, nascida sob o mesmo céo?!...

—«Miss Bella é um pouco mais inglesa....

—«Oh, mas muito pouco, quasi só pela amizade que dedico a meu tio. Mas
sou toda portuguesa pela alma. Que differença ha pois entre nós?

—«A educação, minha senhora.

—«Que despresivel coisa ella é, para assim nos distanciar dos nossos
irmãos!

—«Pelo contrario, que supremo ideal, que divina conquista do espirito
sobre a materia... O que me differenceia a mim filho d’um homem nascido
no povo, d’esses que por ahi se estendem sobre as urzes a dormir pezados
somnos d’inconsciencia? Se meu pae continuasse a guardar ovelhas até
homem e depois se agarrasse ao cabo da enxada, como os irmãos e parentes
que por ahi ficaram, o que seria eu mais do que elles?!

—«Tem razão, comprehendo que deve ter razão; mas que quer? Eu esperava
outra coisa, alegrias novas para o meu espirito na aproximação do povo,
que só conhecia dos livros. Cheguei a sentir a sensação de que sonhava,
de que me esmagava um pezadello. Agora estou melhor, podemos continuar.

—«Quando quizer.

Apezar de toda a sua boa vontade, Isabella não podia vencer o mal
estar que lhe causava sempre o contacto com a multidão, e que sentira
como nunca n’essa noite de festa; e foi, silenciosos, quasi tristes,
que continuaram a subir por entre os vendedores e vendedoras que os
disputavam uns aos outros, mostrando-lhes, uma a canastra de pão alvo,
descobrindo outra a toalha de largo _crochet_ para que vissem os loiros
bolinhos d’ovos, ou mettendo-lhes á cara as bonecas de centeio cobertas
de assucar, ou puxando-os para que escolhessem um cravo com verso ou uma
imagem da Senhora, que era reproduzida infinitamente com o mesmo immovel
sorriso d’imagem, a saia e o manto em balão e o menino nos braços... Foi
quasi uma batalha vencida quando conseguiram chegar ao primeiro terreiro
onde as barracas se enfileiravam como um acampamento: as do peixe frito
á direita, com o vinho ao lado, e atraz as melancias em monte, as de
quinquilharias sempre cheias de compradores, as mezas com os bolos e
limonadas, os ourives estatelando sobre empoeirados cartões forrados de
velludilho preto os cordões, as arrecadas e os anneis, ambição suprema
das raparigas casadeiras.

Os assobios e os gritos guinchavam e estridulavam de todos os lados,
punham uma nota de inconcebivel desafinação por sobre aquelle vozear
ensurdecedor, onde mal se distinguiam as cantigas e os toques.

Bella parou, n’um assombro. Nunca os seus limpidos olhos azues tinham
visto coisa que se assemelhasse á loucura d’esse remecher de gente que
berrava e folgava de mil maneiras, sob a luz desegual e fumarenta dos
candeeiros de petroleo sem vidro, n’uma alacridade verdadeiramente
animal. Kermesse barulhenta e nocturna, que assumia por vezes, pela sua
intensidade e desmanchamento, as proporções d’uma allucinação de _sabbat_.

Fechava os olhos e continuava a ver as boccas escancaradas que riam
alvarmente e fallavam uma lingua que parecia desconhecida; tapava os
ouvidos e a memoria reproduzia-lhe a mesma musica descompassada dos
assobios e pequenos instrumentos rudimentares que enchiam o arraial, os
pregões da agua fresca, a offerta persistente dos vendedores...

João arrastava-a, n’um atordoamento de inconsciencia, pela rua dos
ourives, menos concorrida, e por onde lhes seria mais facil chegar
junto da Viscondessa, que os esperava no terreiro da igreja em coreto
reservado, expressamente feito para a occasião. Quando alli se viram,
um suspiro d’alívio lhes alevantou o peito n’um tomar fôlego de quem
atravessou a nado, e com perigo de vida, um rio caudaloso.

A Viscondessa fazia as honras do coreto com a mesma simples e nobre
lhaneza—sem uma falsa amabilidade de burgueza que quer agradar, nem
distracções prenunciadoras de pouca consideração—com que recebia na sua
casa, á Lapa, tudo que Lisboa considera elegante e distincto.

Escutava, como se isso lhe fosse d’um grande interesse, o bisbilhotar
das Sr.ᵃˢ Rebellos—muito importantes, com suas luvas d’algodão cinzento
e vestidos côr de mel bordados a seda—que lhe desfiavam a historia de
quantos lhes passavam ao alcance da vista.

Respondia ás perguntas impertinentes dos hospedes lisboetas, dispostos a
troçar a provincia; conversava com o dr. Ramalho ou com o velho abbade,
que ás romarias já não ia senão para estar de _palanque_, dizia.

A Candida, a um lado, escutava os galanteios cada vez mais insistentes
do Visconde e animava com sorrisos as tolices do Braga, que passára ao
estado de suggestionado permanente, tendo ainda monosylabos animadores
para um dos elegantes da capital que punha o monoculo e fazia uma careta
a cada phrase que julgava de effeito seguro.

Defronte, em coreto semelhante, os Maximianos recebiam tambem os seus
intimos, teimando em disputar aos viscondes primasias de ostentação e
popularidade á custa de dividas e de favores feitos com a politica.

O Vilhegas inclinava-se sobre o hombro da Hortensia, que se voltava n’um
sorriso triumphante torcendo o esguio pescoço de chlorotica; fallavam com
intimidade de noivos...

Mas o Telles, mal descobriu o vulto esvelto de Izabella, que conversava
em pé com o dr. Ramalho e com João, apressou-se a ir comprimenta-los,
perguntando com ar de superior:—se ella se não sentia mal entre a bruta
multidão, que a elle lhe fazia tanger os nervos n’um desespero de quem
se sente perdido entre animaes d’uma outra especie. E ainda havia quem
dissesse que as almas eram eguaes; nem que a sua se parecesse com a
d’aquelles selvagens!...

E Bella, que contava ao doutor a dolorosa impressão que sentia no meio
d’uma alegre multidão que não correspondia a nenhum dos seus sentimentos
e gostos, voltou-se para o pharmaceutico e respondeu n’um ligeiro tom
de ironia, que o não magoava porque a tola vaidade a fazia receber como
verdadeira:

—«Selvagens, não! Por não terem o talento e a cultura do sr. Telles, não
os poderemos chamar assim!... É o povo, na sua inconsciencia e rudeza,
dando-nos um espectaculo verdadeiro, humano, superior pelo colorido e
espontaneidade ao que a multidão dos civilisados nos dá por vezes.

João sorria intimamente satisfeito por a ver tratar assim o Telles, que
detestava, por o saber amigo intimo, quasi irmão do Vilhegas, connivente
porventura no crime que imaginava, e pelos ares de artista neurasthenico
e _raro_ que elle affectava.

—«O quê—respondeu elle passando os dedos abertos pela cabelleira de
romantico, n’um gesto familiar—pois V. Ex.ᵃ não acha brutal, não sente
que os seus nervos se crispam, que o seu espirito delicado se confrange
n’esta feira franca de vulgaridades?!...

—«Não, sr. Telles! Em primeiro logar porque os meus nervos são as
_pessoas_ mais pacatas e commodas d’este mundo; depois porque o meu
espirito comesinho se compraz com as alegrias simples do povo. Repare
como cantam e como é excepcionalmente movimentado este _motivo_.

Inclinaram-se todos sobre o paredão para melhor destinguirem um côro de
vozes que entre as outras avultava, pela uniformidade e enthusiasmo com
que acompanhavam a roda sapateada:

    «Liberdade, liberdade,
    Quem a tem chama-lhe sua.»

Repetiu Izabella cantarolando o que em baixo se cantava a plenos pulmões.

—«Quem poderá ter liberdade junto de V. Ex.ᵃ?!...—commentou amavelmente o
Telles.

—«O quê, acha-me com cara de policia ou figados de
carcereiro?...—respondeu a rir.

—«É o mais terrivel dos carcereiros porque nos algema com a etherial
graça do seu espirito e nos prende para sempre só com a força d’um
sorriso...

—«Por quem é, não desperdice a poesia, sr. Telles! Dizer coisas tão
lindas, d’um perfume tão pronunciadamente _ancien régime_, em plena
_kermesse_ popular, e em prosa, confesse que é commetter um crime de lesa
arte... Espero que me repetirá o mesmo em alexandrinos.—Voltando-se para
o Ramalho:—sabe que estou com um desejo immenso de vêr ámanhã a romaria
á luz do sol, com muita poeira e moscas, como dizem que são boas as
toiradas, que para mim não passam d’um espectaculo monotono... Isto hade
ser mais pittoresco, pois não, doutor?

—«Muito mais! Como não sou tambem um _aficionado_, acho mais caracter e
movimento n’uma romaria ou n’uma feira.

—«Mas quer voltar pelas escadas?—inquiriu receoso o João.

—«Não,—assegurou, sorrindo do susto—podemos vir no seu _phaeton_, que por
ser descoberto tem as mesmas vantagens sem os inconvenientes da travessia
a pé.

—«Então amanhã tambem me abandonas?—perguntou-lhe quasi ao ouvido a
Viscondessa.

—«É só amanhã, querida, para vêr bem este bello espectaculo que tanto
interessa e diverte o meu espirito banal...—frisou n’um meio sorriso
escarninho, olhando o Telles que amuára.

—«Então ajuda-me agora a levar a cruz...—murmurou a Viscondessa
percorrendo com os olhos a roda dos convidados.

—«Ai filha, tenho tão pouca coragem e força para Cyrenéo de cruz tão
pesada!...



X


Onze horas. O sol, a prumo, punha na terra incandescencias de dia
tropical.

O largo sem arvores fazia ophtalmias com a sua areia granitica a
escaldar, reverberando sob esse sol que pesava e se cingia ao corpo como
as tunicas de fogo de que nos faliam os livros santos descrevendo os
tormentos infernaes.

Apesar d’isso, a animação e concorrencia á romaria da _Senhora do Monte_
não afrouxára desde a vespera. Pelo contrario, até o sol parecia ter
subido ás cabeças, a pôr mais vivacidade e mais ardor nos risos e nas
cantigas.

Desde a madrugada que os carros se desconjunctavam n’uma pressa de
despique, levantando pela estrada, falha de brita, nuvens de poeira.

Os cocheiros, congestionados, nem tendo tempo de limpar o suor que lhes
escorria pelas faces, atavam ao pescoço os lenços d’assoar e chamavam os
freguezes n’uma pressa d’aviar, como se fosse empreitada carregar com
toda aquella gente lá para cima, a tempo de assistirem á missa da festa
e ouvirem o sermão do conego Almeida, o melhor prégador da provincia.
Cruzavam-se na estrada, paravam no meio do caminho para voltarem a cima
com algum descorajoso que não tinha pernas para mais, ajustavam por
todos os preços, gritavam para o povo que seguia a pé, obrigando-o a
saltar para fóra do caminho, para o matto curto da serra, que parecia uma
fornalha a arder.

O pequeno _phaeton_ de João de Mello passava, elegantemente posto e
guiado com firmeza, por entre toda aquella inferneira de carros, desde
o envernizado _char-à-bancs_ ás galopadas, trasbordando de gente até
ao tejadilho, a velha _victoria_ comprada em segunda mão, a caleche, o
_coupé_, até ao classico carro toldado com vistosas colchas de ramagens,
vindo das terras onde o _macadam_ não chegava ainda e que só os bois
podiam arrastar. Dentro, as senhoras levantavam os vestidos para os não
enxovalhar ao pé das canastras da merenda e riam e gralhavam como quem na
roda do anno tem poucas festas assim.

Bella, vestida de branco, com um largo chapéo egualmente branco, que lhe
punha uma tenue sombra no rosto enrubecido, endireitava-se risonha e
firme na almofada, segurando as redeas nas pequenas mãos muito habeis.

João, ao seu lado, concentrava toda a attenção na maneira de seguir por
esse caminho eriçado de impedimentos, e pedia-lhe que tivesse cautella,
que fosse devagar. Mas quê? ella sentia um prazer louco e uma certa
vaidade em levar o cavallo a trote, furtando-o a todos os perigos,
não deixando que nenhum outro carro lhe passasse á frente. As azas do
seu fino narizito batiam nervosamente, os dentes apertados, a testa
franzida n’uma unica préga de poderosa attenção e vontade energica, tudo
demonstrava n’ella a excitação da partida. Para traz tinham ficado ha
muito as carruagens em que o visconde e os hospedes seguiam, com mais
segurança e menos alegria.

Ranchadas de raparigas com as saias arregaçadas, a mostrarem os saiotes
amarellos e vermelhos, descalças, para irem mais depressa, lenços
vistosos cahidos para traz, blusas frescas as da villa, de casacos
azul Prussia algumas, ou brancos e engommados as da aldeia,—sorriam
e commentavam com sympathia a passagem d’esse carro novo, duma graça
artistica, que assim ia guiado por uma criança vestida de branco como
a mais linda fogaceira. Velhos e novos desviavam-se de motu-proprio e
seguiam com louvores a mocidade e a formosura triumphantes.

Dir-se-hia que esta festa em plena natureza, resto de paganismo que ficou
na ascetica religião christã, como remendo de purpura em fato de burel,
commovia e expansibilisava a ingenua e rude alma popular, e resuscitava
por momentos o nobre culto da belleza humana.

Á entrada da romaria tiveram que parar; a turba multa dos festeiros
impedia os carros de seguirem adeante. Bella, entregando as redeas ao
criado, saltou airosamente e n’uma confiança fraternal tomou o braço de
João para atravessarem a multidão que ondeava como um revolto mar.

Logo ao apearem-se, uma mulhersinha que alli estava desanimada, n’um
sitio de pouca venda, junto á mina, pediu por esmola que lhe comprassem
alguma coisa.

Sem esperar que João a ouvisse, atirou-lhe o dinheiro para o regaço
e pegou na primeira coisa que viu, um buzio com assobio de chumbo
que pretendia imitar o silvo do comboio. Achava engraçado mettê-lo
disfarçadamente na bocca e fazê-lo resoar n’um apito prolongado, que se
ia confundir com todos os outros que enchiam o arrayal.

Um bando de homens descia então, cantando e dançando pezadamente adeante
de duas guitarras, um harmonium e um violão, que vagarosamente os seguiam.

Os dois pararam e afastaram-se para dar passagem ao _toque_ e seus
admiradores. Quando Bella ia levar o assobio á bocca, n’uma tentação
infantil, um dos homens cantou, abrindo os braços n’um gesto largo que
lhe attingiu a mão e lho fez voar não soube mais para onde:

    O amôr tem gestos lindos,
    Tem preitos enganadores...

Riu divertidissima com o desespero de João, que já queria ir bater no
bruto.

—«Ora deixe lá—dizia.—Não vê que aquillo é um _gesto lindo_ do amôr?

Olharam-se e, sem bem saber porquê, córaram violentamente, depois
desviaram os olhos a um tempo, e sorrindo encetaram a gigantesca empreza
de atravessar a multidão.

Estavam na maior balburdia da romaria. O sol de setembro enchia de fogo
toda aquella variegada e ruidosa confusão de côres e vozes, que, á força
de disparatadas, chegavam a dar um conjuncto harmonico.

Izabella, n’uma alegria de excitação lembrou, logo que chegaram ás
barracas, comprar alguma coisa que podesse trazer sempre a recordar
aquelle bello espectaculo.

Mas, por mais que procurassem entre as bugigangas empoeiradas, não viam
coisa que lhes désse uma idéa local.

Depois de muitas e muitas pesquizas, lembrou Bella a uma mulhersinha, que
por força lhe queria vender alguma coisa:

—«Mas vocemecê não tem nada que dê felicidade, que livre de feitiços e
maus olhados?

—«Isso tenho, mas é uma coisa tão _somenos_...

—«Deixe lá vêr, avie-se—acudiu João, um quasi nada impacientado com
aquella demora sob o sol, na passagem contínua dos feirantes.

—«Eu mostro, mas os senhores não hão de querer...

A custo, como que envergonhada da pobreza da mercadoria, apresentou na
tampa d’uma caixa uns anneis de ferro toscamente gravados com um _X_ ao
meio.

—«Deixe cá vêr, é isto mesmo, tem até muita graça!—E, descalçando a luva
da mão direita, tirou os anneis preciosos, cujo brilho deixou a vendedora
estarrecida, para enfiar o pobre e primitivo aro de ferro de que a
mulhersinha affirmava as grandes virtudes para afugentar feiteiceiras e
maus olhados...

—«Quer isto?—perguntou João sorrindo e escolhendo o mais pequeno d’entre
os que lhe apresentavam.

—«Então, não tem caracter?

—«Tem!... É para trazer sempre, não é?—perguntou á mulhersinha,
entregando um tostão para pagar o vintem do custo.

—«Decerto que é para trazer sempre—respondeu Bella sorrindo, emquanto se
affastavam—se não fôsse isso não era talisman.

—«Quando olhar para esse infimo annel, tão deslocado entre os outros,
pensará em mim, Bella?—sorriu melancholico.

—«Dúvida? Mesmo sem esta recordação eu pensaria em si. Então não somos já
dois velhos amigos?

—«Eu sou... muito, muito seu amigo.

—«E, eu não?... Olhe que essa dúvida offende-me.

—«Se o fosse!...

—«O que aconteceria?

—«Nada, não é nada... Sempre quer ir á igreja?—perguntou n’outro tom.

—«Quero, mas é melhor esperarmos pela Maria Helena, não acha?

—«É melhor. Esperemos aqui.

Como estavam no meio do arrayal, ainda que um pouco desviados da
passagem, viram a Hortensia, pelo braço do Vilhegas, esticada n’um
vestido de seda, ás riscas, com _boléro_ côr de cereja e um grande chapeu
enflorado que lhe cobria a pequena cabeça de passaro tonto.

—«Não reparou que fingiu que nos não viu?

—«Talvez não visse.

—«Isso sim!... Ainda a não conhece pessoalmente?

—«Devo tê la conhecido em criança; mas, como sabe, ha uns poucos d’annos
que n’esta epoca vou para fóra. Aborrece-me toda esta pretenção de terra
de provincia a acapitalar-se.

—«Pois tem perdido bastante, porque ha interessantissimos exemplares
d’esta sociedade que cae de podre. Esta m.ᵉˡˡᵉ Hortense Mouton, por
exemplo, é deliciosa de tolice.

—«_Mouton_, quem é?

—«Pois não sabe que ella traduziu o appellido infamemente portuguez?

—«Ora póde lá ser! Diz isso por graça, não diz?

—«Não; é certo. Affiançou-me, pelo menos, uma das suas mais intimas
amigas que tem cartas assignadas assim.

—«O que prova a eterna perfidia feminina...

—«Nem que os homens a não tivessem egual, ou peor! Olhe, não procuremos
mais longe. Vê aquelles tres elegantes que seguem no coice do prestito
_maximiano_, levando em triumpho a baroneza da Amieira?

—«Só conheço, e mal, o visconde de Alvora.

—«Esse é _attaché_ na legação da Russia, onde nunca poz os pés, mas
recebe uns mil reis diarios como official do ministerio dos estrangeiros,
onde só vae nos princípios dos mezes para lhe darem o ordenado. O outro
é o sr. D. Manuel Pereira de Vasconcellos, que se diz descendente do
condestavel Nuno Alvares Pereira, não sei porque bullas, nem mesmo quero
perguntar, para não ficar esmagada sob uma alluvião de nobiliarchias.
Esse é bacharel formado e espera collocações varias; não escolhe
profissão. O terceiro é o sr. Jorge Cabrella, filho d’um rico negociante
de cordas, mas que tem o defeito maximo de apertar os cordões á bolsa
quando se trata das extravagancias do filho. É um bom homem, sem
educação, mas que tem trabalhado muito e sabe o que lhe custa a vida. A
mulher é que faz do filho o inutil que vê, querendo-o fazer fidalgo. Em
geral são as mães que perdem os filhos, em Portugal, porque conservam o
estupido preconceito da bastarda fidalguia que para ahi ficou depois da
extincção dos vinculos e dos conventos—de que o trabalho é um desprezo.
Sabe o que estes tres homens procuram? Uma mulher que lhes traga em dote
a certeza de poderem continuar as suas vidas de ociosos. E lá vão atraz
da viuva riquissima, que se fosse pobre ninguem receberia em sua casa...

—«Conhece pessoalmente a baroneza?

—«Conheço e até sympathiso com alguns traços do seu caracter, que, apezar
de tudo, é energico e tem certa grandeza. Mas quem me tem fallado d’ella
é meu tio, que é das suas relações desde o tempo em que deslumbrou
Lisboa com o esplendor das suas carruagens e a extravagancia do seu
procedimento. Dizem que muitas vezes se vestiu de homem para andar á
vontade. Muitas pessoas se lembram ainda de a ter visto percorrer a
cavallo as alamedas de Cintra, de charuto na bocca, acompanhada de
rapazes, novos como ella, quando o velho marido se torcia nos ultimos
ataques que a livraram da sua incommoda pessoa. Conta-se que alguns
assassinios se fizeram por sua causa... não sei! Do meu tempo não é mais
do que aquillo, uma viuva rica que se diverte a arrastar uma cauda de
pretendentes.

—«São-no aquelles?

—«Com certeza. Mas a baroneza faz-lhes partida, a todos. Não creio
que venha a casar, ella que comprou a liberdade e a riqueza que hoje
disfructa com os melhores annos d’uma mocidade torturada por um velho
avarento e mau; mas, a casar, será com o administrador que lhe tem
augmentado a fortuna. Entre todos o que mais merece, o pobre Bento da
baroneza, como lhe chamam por lá.

—«Mas tudo isso não prova que aquelles tres rapazes vão alli com essa
pretenção ignobil, porque nenhum decerto lhe tem amôr.

—«Mas teem-no ao dinheiro, e procuram-no onde o encontram.

—«Como se pode affirmar isso?

—«Perfeitamente. Na capital eram meus admiradores...

—«E não são aqui?

—«Achei um pó insecticida para os afugentar...

—«Não poderei saber a receita?

—«Talvez precise... tem o merito que eu tinha lá...—ria com muita vontade.

—«Então diga.

—«É segredo entre a Maria Helena e eu, mas ao João digo, vá lá.

—«Obrigado pela confiança, vamos então a saber.

—«Fiz constar que vinha para aqui de mal com meu tio... Percebe?

—«Não, confesso que não percebo.

—«Pois não sabe que meu tio representa uma das maiores fortunas que
habitam Lisboa? Pois bem, meu tio criou-me como filha e não tem mais
parente nenhum. Quem é, pois, a sua presumida herdeira?... Bom, agora
supponha que estou mal com esse tio, eu, que não tenho fortuna propria...

—«Não diga isso! Rapazes a entrarem na vida são lá capazes d’um cynismo
d’esses!

—«Creia que é a verdade mais verdadeira.

—«Pensando assim, como pode ter relações com elles?

—«Que ingenuidade a sua! Se fossemos a só fallar aos bons, aos honestos,
em pouco tempo teriamos que nos esquecer da linguagem, por inutil...
A comedia social diverte-me, porque me não prende nas suas mentiras e
vaidades.

—«V. ex.ᵃ poderá fazer isso pela sua educação muito ingleza e pela
independencia em que a colloca a fortuna de seu tio. No entanto,
parece-me que ainda ha de soffrer com o contacto d’essa gente tão pouco
digna. Cá por mim prefiro viver só.

—«Tambem eu preferiria, mas como estou na sociedade em que elles estão,
divirto me a observá-los e ás vezes a fazer-lhes partidas. Pois não acha
engraçado que elles me julguem de mal com meu tio, aquelle adorado tio
_William_ que nunca teve para mim senão palavras consoladoras e risos de
approvação?!

—«É muito seu amigo, não é?

—«Muito! É toda a minha familia, e não havia mãe nem pae que fossem mais
bondosos e disvelados do que elle tem sido. Não ha ninguem melhor, mais
delicado, mais instruido, mais consciencioso, mais artista!

—«Mas que enthusiasmo!

—«E tudo elle merece, creia. Depois me dirá.

—«Espera o aqui?

—«Recebi carta hontem e diz-me que não supporta a Inglaterra sem mim...
que vem buscar-me ou estar commigo, como eu quizer. A minha vontade é a
sua.

—«Como estão, _miss_ Isabella Burns e o sr. João de Mello?—comprimentou
por traz d’elles e com um risinho de mofa o Conselheiro, que o padre
Mathias acolytava.

—«Nós perfeitamente bem, e o sr. Conselheiro parece tambem que não ha mal
que lhe chegue—respondeu Bella, olhando o d’alto, com um ligeiro tom de
impertinencia.

—«Então os Viscondes não vieram?

—«Estamos esperando que cheguem para irmos á igreja. Creio que o sermão
não se dirá sem a comparencia de quem tanto dá para a festa.

—«Ora! A Senhora do Monte não precisa das esmolas dos ricos, tem bastante
dos pobres—acudiu brutalmente o padre Mathias.

—«No entanto, a missa não principiou ainda, pois que vemos por aqui o sr.
padre Mathias.

—«Já lá estão a cantarolar. A mim é que só na ultima extremidade me
apanham para aquellas maçadas. Logo de madrugada disse o _missóte_ a uma
gentinha que me pagou bem e ainda logo me dão da merenda...

—«Bom negocio, hein?—sorriu o conselheiro para aquelle seu infatigavel
agente.

—«É como diz.

—«Miss Bella não está aborrecida com esta algazarra?

—«Não, pelo contrario, diverte-me, porque é uma novidade para o meu
espirito. Agora o Conselheiro aqui é que é para admirar.

—«Os negocios... Aborrecimentos e cuidados é que passeiam por aqui os
meus cabellos brancos. Miss Bella tem melhores companhias...

João franziu o sobrolho e ia responder azedamente, mas a rapariga não o
deixou, continuando com malicia:

—«E no entanto já me não acompanham titulares nem descendentes de figuras
primaciaes como Nun’Alvares...

—«Quem tem essa ascendencia illustre?

—«Pois será possivel que desconheça esse avô ao seu hospede sr. D. Manuel
Pereira?

—«Tambem não é grande honra descender d’um assassino e ladrão—intrometteu
se a dizer, o padre, querendo sempre saber de tudo.

—«Não se trata de Diogo Alves, o assassino celebrado pelas figuras
de cera. É do santo _Condestabre_, D. Nuno Alvares Pereira.
Conhece?—respondeu João muito a sério.

—«_Ná_, esse não sei quem é.

Isabella, com o lenço na bocca, ria perdidamente, emquanto o conselheiro,
imperturbavel, fazia as suas despedidas.

—«Que estupido!—dizia depois para João.

—«Não é! Ignorante, faccioso e maledicente sim, mas de bruto não tem nada.

—«O que a Maria Helena se demora! São capazes de faltar ao sermão. Vamos
vêr se os encontrâmos?

—«Vamos lá.

Tornaram a atravessar o arrayal. A um lado, sobre uns penhascos, toda
uma familia de padre acampára comendo o farnel. João, que era conhecido,
foi chamado pelo padre Miguel, que esbrugava uma perna de gallinha com
os seus rijos dentes de velho sadio.—Que não acceitava, mas agradecia,
respondeu João tirando o chapéo delicadamente.

—«Homem, não seja esquisito, nas romarias não se olha a etiquetas. A sr.ᵃ
sua prima talvez goste do nosso vinhito branco...

Isabella pensou, pela primeira vez, que era na verdade temerario
affrontar assim os preconceitos portugueses e provincianos
principalmente, apresentando-se n’uma festa tão publica com um rapaz
que lhe não era familia. Na sua altiva honestidade de rapariga educada
para se guardar a si mesma e responsabilisar-se pelos proprios actos,
não comprehendêra o que o seu procedimento podia ter de inconveniente
aos olhos de toda essa gente, habituada a tudo fazerem menos desprezar
_as linguas do mundo_... Fizeram-na córar mais do que o proprio sol,
os olhares curiosos das mulheres que arranchavam com o padre Miguel e
melhor a distinguiam da Candida, por quem o velhote a tomou. Lembrou-se
do risinho do Maximiano ao encontrá-los, e essa lembrança feriu-a como
um insulto. A garganta apertou-se-lhe n’uma crise de choro, vencida com
esforço.

Quando a Viscondessa se apeou, correu para ella n’um impeto de
reconhecimento e disse-lhe, desopprimida d’um certo mal estar que lhe
obscurecia a alma:

—«Como se demoraram tanto?!

—«Nós viemos cuidadosamente, porque a estrada esta má e a concorrencia é
enorme. Vocês é que parecia que tinham azas; fizeram successo...

Beijaram-se; Bella tomou-lhe o braço e não mais a largou, como criança
atemorizada que se acolhe á protecção materna e só alli encontra valor
para resistir.

       *       *       *       *       *

Na igreja a missa da festa ia effectivamente em meio, mas o sermão
demorara-se porque o conego Almeida, pago pelos Viscondes e seu
commensal, aguardava na sachristia que elles chegassem para subir ao
pulpito e encher a igreja com a sonoridade da sua voz.

Curvou-se deante da Viscondessa com requintes de cortezia, a que
ella correspondeu sorrisonha, apresentando-o aos seus hospedes e
comprimentando-o antecipadamente pelo seu discurso, que devia ser bom,
como sempre... Depois, com o seu pisar firme e gracioso ao mesmo tempo,
atravessou a capella-mór, onde tinham logares reservados, baixando a
cabeça aos Maximianos, que os defrontavam, como potencia a potencia.

O templo, bastante grande, doirado e pintado de fresco pelas ultimas
eleições, estava cheio a não poder mais...

Isabella, que na vespera o tinha visto a meia luz servindo de dormitorio
aos romeiros pacatos, quasi o desconhecia na gloria do sol entrando
pelas janellas com cortinados vermelhos, no triumpho das luzes, do
incenso subindo em espiraes e dos ricos paramentos.

Desinteressada das lithurgias, deixava que os seus olhos e o seu espirito
vagueassem pelo recinto sagrado sem que a isso a levasse uma consciente
vontade, e sem mesmo pensar deixou-os perderem-se na contemplação dos
_ex-votos_, que se alinhavam como um rosario de lagrimas na parede
fronteira. Sorriu complacente aos laudatorios quadros em que a cama e o
doente, na ausencia de toda a perspectiva, se alevantam no mesmo plano,
em agradecimento á milagrosa santa que arrancára o infeliz condemnado da
escuridão sepulchral... Tranças de cabello, roídas pela traça, junto das
offertas de cera, amarellecidas umas pelo tempo, diaphanas ainda, como da
ultima hora, outras, cabeças, pernas, braços, todo o corpo humano sujeito
á dôr, baralhado e destruncado pelo acaso do soffrimento... Mortalhas
amarfanhadas e destingidas, pequeninos caixões com bonecos representando
a vida d’uma criança resgatada de prematura morte, caixões esguios para
homens, outros brancos para virgens...

Tanta desgraça, tanta miseria a acolher-se á crença no milagre, como
se a vida sem elle não fosse mais do que um desterro! Bella evocava
as dôres que representavam essas offerendas, e a sua alma energica
confrangia-se n’uma duvida, n’uma como ansiedade de quem presente que o
temporal se aproxima e não tem a certeza de se achar bem couraçado para a
resistencia.

Como um raio de sol a alegrar uma enfermaria, as _fogaças_ lá estavam
tambem com as suas offertas de milho ou pão de ló em açafates armados em
alta roca com flôres e laços enastrados. Nem todas formosas, mas alegres
e sadias na graça hesitante do sahir da infancia, com seus vestidos
brancos e os peitos cobertos de oiro, ellas representavam tambem um
reconhecimento e uma crença, mas a sua offerta significava abundancia
e vida; a sua crença ingenua transformava-as em oblata inconsciente ao
culto da alegria e da mocidade.

Por fim os seus olhares cahiram sobre os homens de sorriso unctuoso,
que recebiam as esmolas, e pensou com amargura na ingenuidade que a
hypocrisia explora sempre...

N’esse momento todos se levantaram e sentaram, tossindo, escarrando,
installando-se com a maior commodidade compativel com o espaço, para
ouvir o sermão.

Depois d’alguns momentos de recolhimento, o conego Almeida ergueu-se
no pulpito; alto, moreno, a bocca n’um risco de amavel sorriso, a face
azulada de muito escanhoada, o olhar firme, de quem tem a certeza de
possuir o auditorio.

Isabella olhou-o e logo recahiu no inconsciente scismar que a levava não
sabia para onde, que a tornava tão estranhamente indifferente ao que se
passava.

—«O amôr—dizia o conego com a sua voz propositadamente espaçada, para que
as palavras se seguissem umas ás outras, n’uma ordem de formatura—é a
base da vida. É o principio e o fim de todas as coisas...

Bella ouvia phrases truncadas que lhe entravam na alma e mais a
mergulhavam no mysterioso cogitar em que se embebêra.

O amôr!... Era a segunda vez que n’essa manhã o ouvia proclamar, por bem
differentes vozes, e com intenções diversas. Sim, porque devia ser o
amôr divino esse a que o orador se referia, mas era _amôr_, alguma coisa
superior e forte que transforma a vida e das mais aridas almas faz brotar
flores de poesia...

A Viscondessa julgou-a adormecida quando, no fim da festa, lhe tocou no
braço e a viu estremecer n’um sobresalto de estremunhada.

—«Dormias? Estarás doente!?

—«Não... O espirito é que me parece que sonhava...

—«Então gostaste do conego?

—«Gostei, é eloquente.

Os Maximianos abeiraram-se, a comprimentar. Era para o dia seguinte o
_pic-nic_ projectado e era preciso pormenorizar os ultimos arranjos. A
Viscondessa pedia que se não encommodassem; era mais um jantar dado na
quinta, para evitar etiquetas, do que verdadeiramente _pic-nic_, em que
todos são obrigados a fornecer iguarias.

Despediram-se depressa para irem até á porta, onde os homens esperavam
já; mas ahi pararam estonteadas.

Toda a gente corria, gritando n’um terror pânico; as mulheres agarravam
as canastras e fugiam, encolhendo-se, cobrindo-as com o corpo;
outras seguravam os homens ou chamavam os filhos; crianças gritavam
desesperadamente e todos gesticulavam e fallavam sem que fosse possivel
comprehender o que assim alarmava e varria o arrayal, havia pouco tão
animado e alegre.

—«O que foi, o que foi?!—perguntaram as senhoras vendo o dr. Ramalho
dirigir-se apressado para casa do sachristão.

—«Um homem morto, um homem morto—commentava-se de todos os lados.

—«Não se assustem—disse o Visconde—nós vamos acompanhá-las á carruagem e
depois lá iremos ter a casa.

—«Oh Duarte, será melhor não sahirmos d’aqui—aventou a Viscondessa.

—«Não póde ser. Se o povo se lembrasse de invadir a igreja, o que seria
de vós? O mais seguro é partirem já.

—«Oh sr. Visconde, não nos abandone, ai que horror! Eu morro de mêdo!...
Só de vêr este barulho já estou mal—gemeu a Candida enfiada.

—«Não se afflija, minha senhora, isto não é nada, não ha perigo nenhum,
vamos aqui por detraz da igreja, não chega cá, a balburdia!...

—«O melhor é tu dares o braço á sr.ᵃ D. Candida, Duarte. Bella e eu
vamos com o João; como somos mais corajosas, basta um defensor para as
duas... V. Ex.ᵃˢ sigam-nos de perto, ou se preferem vão adeante, como
entenderem...—determinou a Viscondessa, voltando-se para os hospedes, não
deixando de aflorar-lhe nos labios o mesmo sorriso de calma delicadesa.

A confusão e a berraria vinham do primeiro largo, de ao pé das pipas
desramalhetadas do vinho forte da região, e elles affastavam-se seguindo
por detraz da igreja e descendo um bocado de serra até á estrada real,
que se desenrolava em caprichosas curvas costeando o monte.

—«Gostava de vêr aquillo de perto—disse Isabella para a Viscondessa e
João, ouvindo distinctamente o entrechocar-se dos varapaus e a grita
descompassada—deve ser um simulacro de batalha.

—«Isso sim! Tudo aquillo é do vinho a rôdos... Não tem grandesa nem
belleza. É raro o anno que não ha desgraças n’esta romaria.

—«Lembra-se de ha dois annos, prima? Ficou ferido o morgado Albuquerque.
O que a Pillar se impressionou de o vêr lavado em sangue, cuidando que
estava morto! Lembra se?

—«Lembro-me muito bem...

—«Quem serão este anno as victimas?!...



XI


—«O que tens, Bella, estás doente?—perguntava a viscondessa
carinhosamente, passando o braço pela cinta da amiga e levando-a para
fóra da clareira onde os criados preparavam a meza para o jantar.

—«Porque perguntas isso?

—«Porque ha dias que te vejo entristecida, silenciosa, tão mudada que nem
já me pareces a minha Bellasinha, a alegria de nós todos!

—«Todos!...—e suspirou fundamente.

—«Todos, sim; temos duvidas de menina romantica? Mas o que sentes?

—«Nem eu sei. Creio que estou na mesma; não sinto nada, não me doe nada.

—«Naturalmente foi o sol da Senhora do Monte que te fez mal...—disse-lhe
ainda a viscondessa, sorrindo com uma pontinha de amigavel malicia.

—«Não me fez mal nenhum; e porque havia de fazer? Estou habituada a
sahir com todo o tempo. Não tenho nada, sinto-me bôa... Pois tu não vês
que estou na mesma?...—e olhava para a amiga, tentando convencê-la,
appellando para uma força que já não tinha, a da serenidade d’ânimo.

—«O que querem então dizer essas lagrimas a bailarem-te nos olhos?...
Queridinha, não se tem impunemente vinte e dois annos!

—«Mas o que tenho eu? Oh, _Mary_, se sabes o que sinto, se desconfias
alguma coisa, dize, por Deus te peço! Eu não sei o que é.

—«Deveras?... Á tua cabecinha tão ajuisada não veio nunca o pensamento de
que ha em nós um coração, um doido, que se póde conservar adormecido, mas
que em acordando faz sempre loucuras?!...

—«Mas que loucuras póde fazer o meu, que tão egualmente reparto entre ti
e meu tio?

—«E mais ninguem merece a sua sympathia, minha senhora?!... Nem aquelle
que alem vem com tão melancolica sombra?—perguntou-lhe ao ouvido e
indicando João que se aproximava acompanhado pela Candida e seguido por
mais pessoas que vinham ao _pic-nic_.

—«João? Sou muito amiga d’elle, sou, mas que tem isso de extraordinario?
Não é teu primo, quasi filho pela amisade? Estimo-o por isso como a um
irmão muito querido.

—«Sabes? É custoso acreditar n’essa amisade fraternal entre uma rapariga
como tu e um rapaz como o João, educados n’um meio de intellectualidade
que lhes fará difficil a escolha em Portugal, ambos livres e
comprehendendo-se bem... Elle é muito bondoso; gostava que se entendessem
definitivamente. Não te poderia vêr casada com qualquer homem, Bella.
Seria uma profanação vêr-te nas garras d’esses abutres... de dotes. E
tambem não gostava de vêr o João ligado á maior parte das mulheres que
conheço.

—«Eu não me casarei nunca!

—«É possivel, mas não é provavel, filha. Eu sei que não admittes o
casamento como estado social, como unico emprego para a arrumação da
mulher, mas és muito affectiva e muito expansiva para que as amisades de
teu tio e a minha, por maiores que sejam, te possam encher a existencia.

—«Maria Helena—respondeu Bella sombriamente—tu sabes o segredo
tristissimo da minha vida, comprehendes que não posso casar, que não
posso, ou não devo, gostar d’elle, de ninguem que seja honesto. Não, não
posso amar a sério!...

—«Oh, filha!...

—«Sou brutal, não achas? Mas concorda em que sou rasoavel. Imaginas que
teria a triste coragem de contar ao João, ou a outro qualquer homem que
amasse—e se o amasse é porque o julgava honesto e bom—que meu pae fez
dividas que não pagou, e jogou o que tinha e o que não tinha, fugindo
sob a maldição de toda a sociedade, e vive sabe Deus em que miserias, ou
morreu de fome e vergonha?! Querias que impudicamente abrisse a minha
alma e lha mostrasse despedaçada como ma fez a vergonha de meu pae?
Querias isto? Não! Ha muito que resolvi não casar, para me não prostituir
acceitando qualquer d’esses sem honra nem brio, que pouco se lhes
daria do nome de meu pae fazendo-me meu tio sua herdeira. Julgava-me
forte, incapaz de gostar d’um homem a ponto de me parecer um martyrio
incomportavel a memoria d’aquelle, que, apesar de tudo, foi um carinhoso
pae!...

—«Isabella, imaginas que o João te accusaria das faltas de que não és,
não podes sêr por fórma alguma, responsavel?...

—«É natural; por isso que é honesto, é que mais lhe deve repugnar a filha
d’um...

—«Cala-te! Encommoda-me vêr-te assim. Não, o João não era capaz d’isso.
Tenho mesmo a certeza que deve já ter havido alguma _bôa alma_ que lhe
dissesse não só a verdade, como a mentira... E vê lá se elle por isso te
abandona um instante.

—«Talvez não saiba nada... Ninguem seria capaz d’essa infamia. Não é a
mais negra das vilesas essa de contar a vida dos outros?...—um soluço
fundo apertou-lhe na garganta a voz ansiada e terminou, quasi n’um
tremulo de lagrimas:—Porque me não hão de deixar gosar esta dôce amisade
espiritual que tanto me consola?... É tão bom, tão delicado, tão ao
contrario dos outros, que o meu espirito, educado no despreso pelos
homens, se depura e eleva na convivencia do d’elle.

—«Pois farás o que entenderes, com a condição de te não vêr triste e
muito menos infeliz.

—«Cumprindo o meu dever não o poderei ser, não é verdade?

—«Se o dever nos desse felicidade!... Depois, o dever é tambem ser franco
para quem estimamos...

Chegou n’esse momento o grupo em que vinha o João, um pouco affastado e
silencioso como sempre, n’aquellas companhias.

A Candida, radiante, dava o braço ao Visconde, e jungia ao seu carro
triumphal o Braga, cada vez mais apaixonado, e os rapazes hospedes da
casa.

Depois da ceremonia dos comprimentos, dirigiram-se em festiva algazarra
para o sitio destinado para a festa, uma clareira entre arvores seculares
onde se cruzavam ruas de copados cedros. D’uma cascata, perto, a agua
cahia a cantar de pedra em pedra por entre as begonias velludosas, os
fetos arrendados e a avenca franzina.

Chegava o juiz, arrastando a perna gottosa ao lado da mulher vestida de
côr de canna,—«com um fato usado, explicava o marido, porque para festas
no campo não se podia levar coisa boa.

O dr. Pinto veiu logo atraz, rindo sempre muito alto, a sacudir as barbas
brancas de propheta; depois chegou o Domingos, de sobrecasaca preta bem
lustrosa como se assistisse a casamento ou enterro. As cunhadas, as
manas Rebellas, falladoras e alegres, mettiam as raparigas a um canto. E
vieram ainda as meninas Costas e as Souzas, a rir e a gralhar, guinchando
a proposito de tudo e de nada: achando pilhas de graça ao Móttasinho,
chamando o Neves para a sua róda, olhando para o Telles como para uma
praça forte a desafiar conquista.

Por fim, fazendo se propositadamente esperar como pessoas reaes, chegaram
os Maximianos, com espavento e comitiva. O padre Mathias á frente, a
baroneza pelo braço do conselheiro, o Jorge Cabreira fallando ao ouvido
da conselheira n’uma intimidade que trazia sorrisos a todas as boccas. No
coice do prestito, mademoiselle Hortense, entre o Vilhegas e o visconde
d’Alvora, com o descendente de Nun’Alvares ao lado. Toda de escarlate,
com cinto preto, semelhava uma papoila, e ria, encantada com aquella
festa:—d’um _chic hors ligne_. Perfeitamente aristocratica: já lhe
parecia estar em Cintra ou n’outra _villegiatura_ civilisada. Nem menos
de tres viscondes, um conselheiro, uma baronesa e duas viscondessas, não
fallando dos bachareis, que esses eram a _élite_ do pensamento—voltava-se
toda para o Vilhegas, envolvendo-o n’um olhar desvanecido e languido.

—«Oh, mademoiselle Hortense, sabe lá o que é vêr titulares
reunidos!—commentou o d’Alvora, desdenhoso.—Em Portugal não ha o que se
póde chamar uma nobreza. Em Hespanha, sim, aquillo é que é grandeza!
Uma vez em casa do duque d’Ossuna, a uma ceia, reunimo-nos seiscentos
titulares.

—«Ih!... Essa agora foi d’arromba; o que vale é estarmos ao ar livre, oh
Visconde!—commentou o D. Manuel Pereira.

—«Não acreditas? Pois olha que em Hespanha ha trezentos duques, fóra o
resto. Palavra d’honra, oh menino!...

Quanto mais crúa fosse a mentira, com mais segurança elle fallava,
endireitando-se, estendendo a mão em juramento, torcendo o bigode
encerado.

Decididamente, mademoiselle Hortense estava com a sua gente. Era
impagavel aquelle Visconde. Ninguem como elle para marcar um
_cotillon_ e saber fallar a uma _grande dame_ ou a uma _jeune fille_
na ultima corrida de _Longchamp_, na cantora em voga, nos escandalos
de _foyer_, no _couplet_ mais _gamin_. Tinha como ninguem o _savoir
vivre d’un vrai azuré_. Não era possivel sem elle fazer-se uma festa
_distinguée_—explicava ao Vilhegas, um pouco deslocado entre aquella fina
flôr da elegancia lisboeta.

A Viscondessa ia-os recebendo a todos com aquella amabilidade que
chega a ser natural á força de usada nas pessôas de que a posição
social fez escravos. Ouvia o juiz gabar o peixe assado que mandára, uma
especialidade lá da casa—ella diria depois se a mulher não tinha um
optimo paladar de cosinheira...

Respondia gentilmente a um e a outro, procurava para cada qual a phrase
mais propria a causar-lhe a satisfação da vaidade, sabendo de ante-mão o
que interessava a toda essa gente para quem o marido lhe pedia que fosse
amavel.

Isabella acompanhava-a como de familia e ajudava-a com um interesse que
não estava nos seus habitos e a affastava de João, que, junto do dr.
Ramalho e outros, ouvia os commentarios á romaria da vespera.

—«Creia você, dr. Pinto, que o homem não está nada bem; deram-lhe a matar
com um marmeleiro que lhe circundou a cabeça; não affirmo que se salve.

—«Oh diabo, que lá se vae um quarenta maior!...

—«Dois, porque o Manuel Duarte, da Povoa, é que bateu,—veiu dizer o
padre Mathias com um arsinho picante de troça.

—«Ainda se não sabe quem foi.

—«Foi elle, ha testemunhas. Além d’isso, você bem sabe que ha muito que
andavam de rixa por causa da agua da Lameira.

—«É o mesmo, elle ou outro, o exame medico é egual—respondeu o dr.
Ramalho.

—«Se os não _corrompo_ na conversa...—achegou-se o Domingos.

—«Ora essa!—riu ás escancaras o dr. Pinto—o amigo Domingos não _corrompe_
ninguem, nem a si mesmo, é incorruptivel.

A conversa estirou-se renhida sobre o assumpto que a todos interessava
como caso que se dera quasi á sua vista e que tanto peso tinha na
politica local.

No mais acceso d’ella, affastou-se o padre Mathias sorrateiramente e
chamou o Maximiano a um lado.

—«Sr. Conselheiro, nas eleições dos quarenta temos o Manuel Duarte por
nós.

—«A esse tempo deve elle estar na Penitenciaria, homem.

—«Não irá para lá, se V. Ex.ᵃ quizer. O caso é que não morra o Cabral, de
S. Mamede...

—«O que quer você dizer com isso, padre Mathias?

—«Depois lhe explicarei. Vá segurando o juiz, que eu logo fallo com o da
Povoa. O Ramalho não percebe nada de politica. Perder um quarenta maior
sem mais nem menos... é parvoeira... Eu vou fallar ao Vilhegas. Não
percebe a tramoia?

—«Eu não, por emquanto ainda não attingi o que você quer.

—«Não me posso agora explicar. Só duas palavras: supponha que o
homem não morre e o juiz manda fazer novo exame e esse exame é feito
por medico nosso, que do processo de jury faça um processo criminal
de _galão branco_, em que o réo fica á mercê do juiz...—atabalhoou
confidencialmente.

—«Sim senhor, sim senhor, você vale um thesouro; não ha de ser um triste
abbade de aldeia—aqui é que eu o quero!—o velhote que trate das contas e
do breviario.

Deixando radiante o incansavel galopim, encaminhou-se para o juiz,
fingindo naturalidade, fallando com um e com outro, até que o poude
abordar. O padre chamou o Vilhegas e arrastou-o para longe da criadagem,
que se azafamava nos ultimos detalhes da meza.

—«Está por isto ou não está?—ouviram-lhe ainda dizer.

—«Se o conselheiro fizer empenho—respondeu a meia voz o medico.

—«Nada que não ha de fazer, é uma cartada de mestre. Se é! De uma
assentada apanhamos os quarenta em que elles teem tido a maioria. É um
rombo d’alto lá com elle. Se o Manuel Duarte vae comnosco, temos mais
o pae e os dois cunhados marchantes... O Cabral, doente... É como lhe
digo, quando mal se percatam temos o concelho na mão. Uns parvalhões que
ainda fazem politica com lealdade...—e ria surdamente, satisfeito de
si.—E você? vae ou não vae adeante com o negocio do casorio? Olhe que o
pae gosta de você, homem, _basculeja-me_ até de que o prefere para genro
antes do que a esses _bonifrates_ de Lisboa.

O Vilhegas, n’um d’aquelles rasgos de quixotesco orgulho que são sempre
de effeito em almas de meridionaes, e de que elle abusava, um pouco
sinceramente, tambem, sem mesmo dar por isso, respondeu com emphase:

—«Sim, tambem me parece que elle me vê com bons olhos. O padre Mathias
comprehende que sendo eu, como elle, filho do meu trabalho e da minha
intelligencia, o conselheiro me estime. Os meus pergaminhos são as cartas
de bacharel conferidas pela Universidade de Coimbra. Hei de subir e fazer
subir os meus; agora lá vae o meu irmão Pedro para Coimbra, e em breve
poderei dizer que tenho mais um bacharel na familia!

O padre Mathias, muito terra á terra, não percebeu, n’aquellas phrases
descosidas, o embryão de um discurso de futuro deputado da minoria
affirmando os seus principios democratas e liberaes, para mais depressa
ser chamado ao paço e entrar nos salões da alta burguezia que tem
titulos e dinheiro, e nas relações dos grandes nomes historicos, que,
apesar de tudo, ainda exercem influencia no espirito d’esses ambiciosos
ansestralmente servos, a quem a educação e a vida ensinou o caminho
por onde se sobe aos pinaculos de uma sociedade em descalabro, mas não
ensinou a verdadeira liberdade, que só dão o trabalho e o despreso por
taes processos e correlativos premios.

—«O que é verdade é que você tem boa familia—affirmava o cura—O João
com uma fortuna d’aquellas, a Candida uma belleza... Olhe a roda que lhe
fazem todos esses janotas da capital.

—«Que me importa d’esses parentes que só valem pelo dinheiro e pela
formosura? Eu valho pelo talento, que é mais.

—«Decerto que é. E a pequena, a Hortensia?

—«Veja como ella já me anda procurando com os olhos.

—«Bom, bom, homem, isso é que eu desejo. É aproveitar, olhe que a fortuna
não bate á porta duas vezes... Depois, veja lá se esquece dos amigos,
hein?!—batia-lhe no hombro com familiaridade:—Olhe que fui eu que o
apresentei em casa do conselheiro...

—«Protegê-lo hei, pode crêr—terminou o outro com importancia.

—«O que andará o cura a tramar?—dizia o dr. Pinto ao ouvido do Ramalho,
que encolheu os hombros indifferente.

—«Minhas senhoras e meus senhores, dizem os praticos que vamos emfim ser
servidos—gritou o Visconde alegremente.

As conversas suspenderam de prompto e todos, n’uma celeridade que
denotava bons appetites, correram para a comprida mesa de pedra, que
comportava mais de cem convivas.

Cada qual procurou o logar que melhor convinha aos seus interesses e
affeições, foi o motivo por que Bella se encontrou, sem saber como, á
direita de João de Mello e com o Telles á esquerda.

Defronte assentava-se a Viscondessa e a muito espirituosa Viscondessinha
de Pereira, sua hospede e amiga, casada com o mais condescendente dos
maridos e não sabendo que mais mal dissesse do casamento—essa prisão
celular para um espirito de mulher superior—dizia. O pobre rapaz, de um
loiro deslavado e uns olhos de velha porcelana desmorecida pelo uso,
olhava-a encantado com tanta graça e belleza e considerava o casamento a
melhor das instituições.

Seguia-se o Ramalho, o dr. Pinto, a baroneza com a sua côrte de
pretendentes, e ao fundo o Visconde junto da Candida, que enfeixava
no seu côro de louvadores o Braga e os mais rapazes de fóra que a sua
excepcional belleza attrahia.

—«Está doente, _miss_ Bella?—perguntou João, cuidadoso, á sua visinha.

—«Não, porquê?

—«Ainda a não vi comer nada...

—«As deusas não comem mais do que petalas de rosa e bebem a doce
ambrosia—respondeu do lado o Telles, com o seu ar pretencioso de janota e
lyrico provinciano.

—«As do Olympo, pode ser... As que habitam este valle de lagrimas
achariam pouco substancial—alimento tão poetico.

—«As senhoras vivem de poesia.

—«Já vejo que sou o escandalo do meu sexo, pois prefiro um sangrento bife
á ingleza a uma _grinalda poetica_. Uso de um appetite nada ideal, como
vê.

—«Mas hoje está-se desmentindo, _miss_ Bella—censurou com bondade o João.

—«Ora! Pois, se tenho estado sempre junto dos cestos da merenda, fui-me
aproveitando da situação...

—«Fallaram para ahi em bifes—reclamou o dr. Pinto—onde é que ha bifes?

—«Aqui, vindos da casa do sr. Conselheiro—respondeu da extremidade da
mesa a voz grossa do padre Mathias.

—«Deixe lá ver isso, homem, não faça monopolio!—Recebeu o prato
esbracejando alegre, serviu-se abundantemente, comeu e ainda com a
bocca cheia dirigiu se ao Maximiano:—Estão muito bons, estão optimos,
uma especialidade, sim senhor. Ainda assim, Conselheiro, não chegam aos
calcanhares dos que se comiam na hospedaria de sua mãe, a sr.ᵃ Joaquina,
lembra-se?

O conselheiro mordeu os beiços e agradeceu com um sorriso amarello a
lembrança do dr. Pinto. A conselheira, vermelha como a lagosta de que
se servia com gulodice, voltou-se para o Cabreira e achou intoleravel
aquella gente de provincia. Se a familia do marido e principalmente
aquella mãe estalajadeira eram o pesadello da burgueza afidalgada, que
não perdia a occasião de fallar nos tios, titulares da ultima hora,
que nas quintas phyloxeradas do Alto Douro tinham encontrado o filão
d’uma grande fortuna e pelas praias e thermas passeavam as filhas e as
flatulancias dos seus estomagos.

A Hortensia é que não tinha ouvido nada, entretida como estava a dizer
para o Vilhegas,—que a lingua franceza era afinal muito pobre.

—«Não ha maneira de se dizer _é preciso_!

—«Ha—respondeu muito sério o dr. Ramalho—é que V. Ex.ᵃ se esqueceu.

—«Como, então?

—«_Il est précis_...

—«_C’est vrai, c’est vrai!_...—continuou muito interessada a sua conversa
em _francês_, não reparando no fungar sarcastico dos que tinham percebido
a troça do medico.

—«Oh Visconde—chamou o d’Alvora com emphase—nós agora podiamos dizer como
n’aquella historia dos Viscondes: _Sêmos aqui tres Viscondes!_ É _sêmos_
ou _samos_?...

—«É verdade, o terceiro era o mais prudente, que respondeu não saber.
Temos bons colegas, não ha duvida...—respondeu o amphytrião rindo e
deixando cahir sobre alguns dos convivas o seu olhar scintillante de
ironia.

A festa prolongou-se pela tarde fóra sem esmorecimento de animação. Os
ditos voavam de conviva para conviva, ás vezes do fundo para o principio
da mesa, n’um esfusiar de alegrias despreoccupadas que contrastava
rudemente com o luminoso e tranquillo cahir d’aquelle dia estival.

Ás gargalhadas e ás vozes juntava-se o tinir dos copos e dos talheres
n’uma algazarra e sem cerimonia, para a qual os criados davam o seu
contingente, correndo, fallando, pedindo coisas uns aos outros, n’um
reboliço que unicamente lhes desculpavam n’aquelle caso excepcional.

Terminara o jantar, que já só era seguido pelos mais destemidos campeões
do garfo e faca. Já d’aqui e d’alli rompiam effusivos os brindes que as
pragmaticas baniram dos grandes jantares de ceremonia.

Bella, que durante todo o tempo conversara com João e com o Telles, disse
a este, vendo-o recusar o vinho loiro e perfumado que o chefe da mesa
vinha offerecendo:

—«O quê?! O sr. Telles não bebe vinho?!

—«Oh! não, minha senhora! Não posso tomar nada que me excite os nervos
doentiamente emotivos...

—«É incrivel! Um poeta não beber o nectar que reluz como topasio no fundo
da copo, é quasi uma blasphemia. Não sei que poeta latino disse que
parecia impossivel que se trocasse por miseraveis moedas de prata o oiro
liquifeito e perfumado que se vertia em taças de crystal, nos banquetes
da civilisada Roma!?...

—«Apesar de toda a sua decadencia ainda podiam com isso os descendentes
de Romulus, mas nós, os abastardados filhos dos grandes navegadores, com
os nervos crispantes como temos...

—«E porque tem assim os nervos? Uma raça só é decadente quando o quer ser
pelo desleixo da sua educação e costumes... Mas não vamos entrar agora
em sabias discussões educativas, que mal iriam a um fim de jantar em
pleno campo. Diga-me antes, que mal lhe poderá fazer uma gotta de _Kumel_
tomado com o café?

—«Mas se eu tambem não bebo café!

—«Tambem não? Nem fuma, aposto! É então um verdadeiro regimen de
abstinencia a que sujeita esses pobres nervos pelo crime de sentirem a
vida com mais acuidade?!...

Divertia-se a faze-lo fallar, com a presumpção do costume, sobre a
neurasthenia artistica que dizia ter contrahido desde que perdera noites
e dias a escrever o livro de edição esvaída, que dava a toda a gente:
_Verde mar_... Para se divertir com o espanto do Telles tomava um ar
masculinisado que não tivera nunca, apesar da sua livre educação feita
ao lado do tio, errando pela Europa em busca da egualdade de clima, que,
dizia elle, os medicos lhe recommendavam e só uma constante emigração
pode fornecer aos super-civilisados que o requinte do luxo e da arte
fizeram regressar ao nomadismo dos povos primitivos.

—«Pois eu, sou exactamente o contrario—continuava a rir—posso beber
impassivelmente todos os excitantes porque os meus nervos, se é que os
tenho, não se lembram de me encommodar.—Pegou na garrafa e continuou com
ironica amabilidade.—Bebe, sr. Telles? Só hoje, para nos acompanhar...

—«V. Ex.ᵃ manda! Beberia até a cicuta que matou Socrates offerecida por
tão delicadas mãos—respondeu desvanecido, apresentando o calice.

—«Não posso agradecer-lhe o desejo de fazer das minhas pobres mãos
cumplices de tão nefando crime. Agora, sr. Telles, á minha saude, e a
voltar—levou o copo á bocca e pousou o com naturalidade, vasio, sobre a
mesa.

Quando olhou para o pharmaceutico e o viu torcer-se em caretas
caricaturaes e apertar o estomago como quem se escaldou, partiu na mais
sonora gargalhada que durante a festa se tinha dado.

João não poude deixar de sorrir das caretas do Telles, apesar da
tristeza que lhe causava ver esse espirito habitualmente calmo e simples
estorcer-se em risos de troça, n’uma desforra da natureza, que não
esquece nem poupa, que no rosto angelico, na alma limpida de Bella
apresentava quando a amargura lhe acicatava os nervos, um como reflexo
do sangue d’esse pae que era ainda para elle um mysterio, mas que
lhe diziam, em carta anonyma, aventureiro e elegante, sem escrupulos
nem piedade, o homem de mais espirito e de mais coragem que se tem
apresentado a deslumbrar e a enganar Lisboa.

—«O senhor acha isto forte?—dizia ella ainda a rir.

—«É lume, minha senhora.

—«Pois eu achei tão agradavel que vou repetir; dá-me, João?

—«Oh Bella!...—disse este a meia voz, entristecido, emquanto lhe deitava
o licor.

—«O que é?—Olhou-o bem de frente e vendo-o com parecer desapprovador
fingiu esquecer-se do que estava a fazer, e mettendo a faca por debaixo
do copo fê-lo cahir com um telintar crystalino sobre a meza de pedra.

—«O que foi?—perguntaram algumas vozes.

—«Nada—disse a Viscondessa, que tinha observado a scena—crystal partido
_porte-bonheur_.

—«Um telegramma para a sr.ᵃ D. Isabella—veio dizer o guarda-portão,
entregando o subscripto amarello a um criado que logo lho apresentou,
sobre uma salva de prata.

—«Oh! Vê, Maria Helena.

—«Então o que dizia eu? É uma grande felicidade para nós.—E muito alto,
propositadamente:—Duarte, um telegramma de M. Burns prevenindo-nos de que
vem ámanhã no comboio das nove. Para ser amavel até ao fim, depois de se
ter sacrificado, privando-se da companhia da sua adorada sobrinha, vem
ainda assistir á nossa festa.

—«Muitos parabens, miss Bella! Ámanhã irei esperar seu tio e
pedir-lhe-hei que se continue a sacrificar, ficando tambem.

Ella abaixou a cabeça agradecendo, emquanto toda a meza estremecia n’um
fremito de respeito.

Os pretendentes da baroneza olhavam se desconfiados com pressa de
retomarem os seus logares junto da presumptiva herdeira do riquissimo
inglês.

—«Grande subida de cambio!...—disse a meia voz, escarninhamente, o dr.
Pinto.



XII


Chegára finalmente a noite do baile que trazia alvoraçadas as cabeças em
toda a villa e arredores.

Poucos havia que se não estivessem preparando para a festa, porque os
viscondes que em Lisboa se prodigalisavam pouco, tinham na provincia
relações com todos, e a todos convidavam para o baile que costumavam dar
depois da romaria, nos annos da Viscondessa.

Aquella boa gente que durante o anno pouco se mostrava, como que
armazenando energia e dinheiro para gozar por atacado durante os dois
ou tres mezes em que os forasteiros lhe animavam a terra; não fallava
n’outra coisa, não pensava senão no baile e nos arranjos para se
apresentarem á altura de quem os convidava...

Não seria possivel calcular as horas angustiosas que tal divertimento
fizera já passar ás meninas da terra. Esta, porque uma impingem maldita
lhe nascera na face; outra, porque o teimoso papá lhe não déra a certeza
de a levar, e só á ultima hora diria que sim, quando fosse impossivel
arranjar o vestido, e a ter que levar um fato já visto todas preferiam
não ir.

Desde manhã que as meninas Souzas, em saias de baixo e papelotes,
mascaradas de _cold cream_ para amaciar a pelle, o collete apertado
para adelgaçar a cinta, se afadigavam nos ultimos preparativos, fazendo
uma préga mais funda, cosendo _plissés_, lustrando os sapatos e lavando
as luvas, mandando a criada percorrer as lojas, pondo emfim a casa
n’uma dobadoira para que os seus vestidos fizessem morder de inveja
as amigas Cunhas e as delambidas das Costas mais as do recebedor e as
do escrivão... Umas e outras não pensavam n’outra coisa e contavam as
horas com a solicitude de quem vae contando os momentos que os separa da
suprema felicidade.

A Viscondessa, innocente causa de tantos cuidados e despezas, desde as
oito horas que entrara na sala e conversava com os convidados que já a
esperavam perfilados em trajes de gala.

Mal terminara o jantar subira a mudar de vestido e descera logo por saber
o costume da velha-guarda, as Rebellas com as suas saias embaloadas de
sedinha antiga, a irmã do velho abbade, o Domingos e outros, que ainda
pertenciam aos bons tempos honestos em que os saraus terminavam com
escandalo depois da meia noite.

Isabella, desejosa de ajudar a amiga e tambem porque a espicaçasse a
curiosidade de ver o primeiro desfilar solemne de toda aquella gente que
já conhecia, apressou-se a descer á sala de recepção.

O seu rosto delicado de pequena loira estava como nunca de um encanto
espiritual, que enlevava. A sombra de melancolia que lhe enodoava a alma
desde aquelle passeio á romaria, realçava-lhe a formosura, tornando-a
mais feminil e humana.

Os olhos tinham menos vivacidade maliciosa, o sorriso franzia-se n’um
quasi preguear de quem quer com elle encobrir lagrimas, os gestos eram
mais lentos e as faces empallidecidas já não semelhavam um rosicler de
dia álacre.

Ao lado da Viscondessa, toda de preto, o decote a envolver-lhe o busto
em soberbas rendas hespanholas, afogada e coroada de brilhantes, a cauda
a faze-la mais alta; Bella, simplesmente de branco, um ligeiro vestido
de crepe da China, transparente e leve como a espuma, com a saia redonda
cahindo naturalmente, sem enfeites que a arrebicassem, sobre o pé calçado
de meias de seda preta e sapato sem salto, sem mais joias alem de um
collar de perolas que o tio lhe escolhera uma a uma com meticulosidade de
conhecedor e capricho de milionario; ellas harmonisavam-se bem, apezar
do contraste, como duas flores criadas com luxuoso esmero na mesma
atmosphera de elegancia e riqueza.

Uma entrava apenas na vida, sentia-lhe o primeiro golpe e curvava a
cabeça com resignação apezar do seu espirito naturalmente revoltado,
porque a sua dôr era d’aquellas que amachucam almas delicadas e
quebrantam a vontade dos caracteres impollutos. A outra, levantava-a
já com orgulho, como se os desgostos fossem cadinho onde a alma se lhe
purificasse e enrijasse para supportar a existencia.

Iam chegando os convidados e eram já tantos que o salão de entrada, uma
linda miniatura da sala dos espelhos de Queluz, tornava-se pequeno para
tanta gente.

—«Vae-se tornando impossivel respirar aqui—disse a Viscondessa á
amiga.—Vae lá para dentro, minha filha, bem basta que soffra eu, já que
não tenho outro remedio.

—«Não, estou melhor junto de ti.

—«Fazes-me mais favor indo ver o que se passa pelas outras salas,
insistiu para a convencer.

—«Encarrega-se d’isso a Laura, respondeu indicando a Viscondessa de
Pereira que só n’esse instante appareceu pelo braço do marido, bem posta
no seu vestido lilaz, que lhe ia a matar á côr branca de leite.

—«Não é a mesma coisa, bem sabes que faço cerimonia com ella.

—«Pois então deixa primeiro entrar as meninas Souzas.

—«Quando virão ellas!?

—«Não se demoram, ouvi guinchos, vejo a pera militaresca do tio, e o
nariz achatado do pae alem á porta da entrada, já os garotos furam por
todos os lados... não devem tardar, verás... Olha que isto de levar
crianças a festas d’estas é espantoso! Eu se fosse a ti prohibia.

—«Posso lá fazer isso! Quem dá prova de falta de educação e de senso é
quem os leva; os donos de casa tem que se aguentar...

—«Se alguem fizesse isto em Inglaterra era logo accusado a uma sociedade
protectora da infancia como autor de infanticidios...

A Viscondessa teve apenas tempo de disfarçar o riso para receber as
quatro irmãs, direitas como fakires que engulissem espadas, o cabello em
carapinha sobre os olhos, o pó de arroz empastado sobre a pelle de um
trigueiro requeimado, quasi amarello sépia. As duas primeiras de azul e
verde, sem sombra de gase que tentasse velar o largo decote que exhibia o
peito forte; as mais novas escondendo a indecisão dos bustos de anemicas,
a sahir da infancia, com exagerados folhos de _crêpe-lisse_ amarella.

Atraz a mãe, gorda e ofegante, mostrava a physionomia lorpa e
materialmente inexpressiva que as filhas terão aos sessenta annos, depois
de uma mocidade consumida a procurar marido, logo inferiorisadas após o
casamento, tornando-se criadas dos filhos e as servas do homem que as
sustenta e veste.

As raparigas fitaram Bella com o sobrecenho desdenhoso de quem tem visto
muito nos clubs das praias onde o tio as levava, de annos a annos, á
pesca de marido.

—«Oh Maria Helena, não me deixas continuar aqui?—perguntou ella
disfarçando o riso com o lenço.

—«De modo nenhum, além de ser um incommodo, parece-me que és capaz de me
comprometter... Olha o João, que vem mesmo a proposito para te offerecer
o braço.

—«Da melhor vontade—disse este adeantando-se—tanto mais que andava já
procurando V. Ex.ᵃ para ser meu par na primeira quadrilha e na primeira
valsa. Não é isso o que diz o seu _carnet_?

—«Exactamente.

Isabella tomou-lhe o braço com uma perturbação inexplicavel e, como na
romaria, iam em silencio atravessando a multidão buliçosa.

—«Oh, miss Bella—cumprimentou o Telles, que encontraram vindo da sala
onde os homens rodeavam o visconde—hoje como nunca a abreviatura do nome
de V. Ex.ᵃ é a expressão da verdade.

—«É realmente mais bonita a abreviatura do que o nome, não importa que
não corresponda á pessoa.

—«Oh se corresponde! E plenamente, como um delicioso nome de princeza
encantada que é.

—«Sim, recordo-me de que me contavam a historia de uma princeza, Bella,
que foi amada por uma féra...

—«E que por fim se commoveu e chegou a amar o pobre monstro que a
adorava!...

—«Porque afinal não era mais do que um principe encantado. N’estes tempos
banaes em que os encantamentos não existem, as _bellas_ já deixaram de
amar as _féras_ que as perseguem...

Deixou o Telles desapontado, a morder o raro bigode nervosamente, e
seguiu pelo braço do João.

—«Foi de uma crueldade para o desgraçado!...—disse-lhe este quasi a
mostrar no riso a alegria que lhe déra.

—«O que quer!? Tenho dias em que me sinto sem paciencia nenhuma para
aturar parvos. Se as minhas palavras fôssem veneno, matava-os a todos.

—«Que barbaridade!

—«Era uma limpeza que a hygiene aconselharia...

—«A bondade acolhedôra com que ás vezes os attende é que os convence de
que pódem dispensar-lhe os seus galanteios.

—«É simplesmente para conversar, mas nunca lhes dei motivo para se
julgarem auctorisados a dirigirem-me galanteios. Se é que taes baboseiras
o são.

—«Com esta gente quanto menos conversas melhor...

—«Despresa os então muito?

—«Em geral não despreso ninguem, mas aborrecem-me os seus ridiculos.
Depois, são maldizentes e invejosos. A não ser com o dr. Ramalho, com o
abbade e uns cinco ou seis rapazes que fôram meus companheiros na escola
do Padre-Mestre, e que são hoje uns honestos trabalhadores, vivendo dos
seus officios, poucas relações tenho na villa. Como sabe, ha uns poucos
d’annos que vivo mais tempo fóra do que aqui.

—«Sim, os seus provincianos tem defeitos, mas olhe que os lisboetas não
lhes são superiores. Ora repare no modo impertinente, pela sobranceria
e insistencia com que a Viscondessa de Pereira fita o _lorgnon_ em todo
o mundo. É, impossivel aquella Laura! Vê? Ahi está, é boa rapariga, e
intelligente, mas tem a mania das relações de nome; tudo quanto não seja
_fazer_ a Avenida, como lá dizem, ir a S. Carlos, vender prendas nos
bazares de caridade ou frequentar celebridades, é fóra do _tom_ e faz
perder a _linha_. E que infinidade de pessoas pensam como ella em Lisboa!

—«Nem V. Ex.ᵃ imagina o que por lá existe! Que miserias a fingir
opulencia, quantas dôres que só a vaidade causa, que tristeza nessa vida
postiça e sem elevação moral!

—«Conhece bem a vida de Lisboa?

—«Muito bem, tenho vivido lá bastante e sei perfeitamente o que tem de
falsa. De quantas familias sei eu que passam o verão calafetadas em casa
para dizerem que _villegiaturam_ pelas praias elegantes!

—«O que quer dizer que tinha eu razão quando lhe dizia que é peor ainda a
pretenção dos lisboetas...—retrucou Bella sorrindo.

—«Não sei... O que quer dizer é que, julgando-se differentes, não são
mais do que eguaes productos de uma sociedade sem elevação, pobretona,
sem amôr ao trabalho e sem modestia, uma sociedade em que todos são
fidalgos e tem vergonha de serem o que realmente são.

—«Resumindo...

—«Póde viver-se apenas com raros que se isentam d’este vicio geral. E é o
que eu faço aqui e em toda a parte.

—«Eu tambem—volveu Bella—tenho um horror intimo, instinctivo, quasi
louco, ao contacto com a multidão...

—«Haja vista a noite da romaria em que cuidei que ficaria doente.

—«É certo, mas não foi n’aquella festa por ser popular. Pelo
contrario, eu estimo o povo e desejava poder-me identificar com as
suas festas, que têm de superior a sinceridade na alegria, a animação
sem convencionalismos; hoje, a impressão não é de assombro como foi no
arraial, é de tristeza, de profundo desgosto; toda esta gente grave
imaginando que se diverte dá-me a impressão de uma mascarada n’um
enterro...

—«A mim tambem esta festa me afflige muito, mas eu tenho outras razões....

—«Não se podem dizer?

—«Podem. Faz um anno que a Pillar aqui estava, e tão cheia de vida, tão
alegre!... Dançou toda a noite com aquelle estupido que já hoje a esquece
pela Carneiro!... Não imagina como isto me faz soffrer!

—«_Les morts vont vite_, meu amigo.

—«Quando não eram verdadeiramente queridos. Eu sinto hoje como no
primeiro dia a dôr violentissima que a morte de minha irmã me causou.
Não pode comprehender a repugnancia que o Vilhegas me inspira! Ás vezes
como que uma onda de sangue me sobe á cabeça e penso que me seria
agradavel despedaça-lo com as unhas, ferozmente, como um animal bravio.
Um estremecimento nervoso lhe percorreu o corpo.

—«E ella amava-o?!...

—«Muitissimo, desde criança. E pensar em que se vivesse seria hoje a
mulher de tal homem!... Antes morta, está mais descançada.

—«Não diga isso! Eu queria tanto que a Pillar vivesse! Seriamos duas
irmãs, porque os nossos espiritos se irmanavam, tenho a certeza, pelo que
d’ella me têm contado.

Insensivelmente tinham-se affastado para a ultima sala, ainda deserta, e
sentado no vão de uma janella.

—«Tem rasão. Foi um horror a sua morte. Não faça caso. A minha cabeça
fraqueja sempre que fallo n’isto. Mudemos de assumpto, que miss Bella
não tem culpa das minhas dôres para com ellas entristecer o seu espirito
despreoccupado...

—«Imagina que eu não tenho tambem lagrimas a recordar e a verter ainda?...

—«V. Ex.ᵃ?!

—«Eu, sim! Sob esta apparencia de alegria e despreoccupação, sabe lá que
amarguras posso recordar! Poderá sequer comprehender as vergonhas e as
dôres de que a minha infancia se teceu?

—«Tambem soffre? Oh, desculpe o egoismo, mas quasi o estimo porque sômos
assim mais irmãos, pela amargura...

—«Sim, irmãos, e como tal o estimo, João!

—«Só como irmão?...

—«Sim...—vendo que queria protestar accrescentou:—não perturbemos o
encanto d’este affecto, sejamos apenas irmãos...

Estendeu-lhe a mão, n’um d’aquelles seus antigos gestos de rapariga
educada sem biôcos, e na preoccupação evocativa em que o seu espirito se
alheava não reparou que toda estremecia ao contacto d’essa mão que queria
considerar fraterna.

—«Se o João soubesse o que foi a minha infancia!—proseguiu.

—«Não viveu sempre com seu tio?

Abanou a cabeça negativamente, e, passados momentos:

—«Já tinha dez annos quando fui para a sua companhia.

—«Até ahi?!...

—«Vivia com... em casa de meu pae. Não se póde dizer que vivesse com
elle, porque só raramente o via. Ah! como isto me faz mal, fico nervosa,
sabe?!

—«Faz-lhe mal, sim. Está n’uma tremura e tem as mãos geladas... mudemos
de assumpto. Tudo quanto lhe diz respeito me interessa, mas não a quero
vêr triste—disse-lhe com doçura.

—«Não,—respondeu sacudida, querendo fugir á commoção que a tomava e
a fazia estremecer, deliciada, por encontrar uma tão grande ternura
a diluir-se em palavras tão simples, mas tão repassadas de affecto
e respeito, ditas n’aquella voz um pouco velada, de amoroso.—Quero
contar-lhe o que foi a minha primeira infancia. Não lhe disséram ainda de
quem sou filha?!...

—«Tentaram dizer-mo, recusei saber tudo aquillo que não viesse da sua
bôcca.

—«Como esse procedimento é nobremente orgulhoso! Admiro o pelo
caracter, mas, mais me obriga ainda a dizer-lhe o que me entristece e
envergonha.—Como o João ia responder, atalhou—não me responda! Deixe-me
dizer-lhe tudo de uma vez só, sem respirar, como quem se resolve a
beber um remedio custoso. Toda a demora me faria perder a coragem. Meu
pae chamava-se Pedro Avellar; nunca ouviu fallar de um banqueiro com
este nome que foi accusado de falsificar lettras e quebra fraudulenta e
que n’essa quebra arrastou muita gente que lhe tinha confiado as suas
fortunas e tinha negocios com elle? Antes do escandalo final desappareceu
e ninguem mais soube onde pára. Esse era o meu pae. Um desgraçado, uma
victima mais do que um malfeitor. A sociedade tinha-lhe permittido todos
os desregramentos porque era rico e para o exilio pouco ou nada terá
levado d’aquillo que dizem ter subtrahido; as mulheres e o jogo tinham-no
arruinado primeiro. A minha mãe é que era inglesa, sobrinha unica do tio
Burns que a tinha educado e criado com os mesmos cuidados e mimos com
que depois me tratou a mim. Mas a minha mãe era melhor do que eu, de uma
doçura, uma passividade angelical. Nunca abriu os labios para um gemido
de queixa. Os escandalos que meu pae deu, logo após o casamento, eram
taes e tantos que o tio queria que ella requeresse separação. Como não
quiz, sahiu elle de Portugal, onde então vivia tambem uma grande parte
do anno. Nunca mais se viram. Quando eu tinha dois annos morreu minha
mãe—de desgosto, de saudade!? Sei lá comprehender em que rios de lagrimas
se affogou aquelle pobre coração! As horas que eu tenho passado a querer
evocar a dolorosa physionomia da sua ultima hora, quando concentrasse
em mim todas as suas forças vivas, n’um ultimo olhar de angustia!...—Um
soluço nervoso sacudiu-lhe todo o corpo doridamente. João, com os olhos
avermelhados de lagrimas que reprimia, quiz interrompê-la com alguma
palavra consoladora, mas suspendeu o com um gesto e continuou:

—«Não diga nada, que a piedade da sua attenção vale bem mais do que todas
as palavras.

Cahiu n’um fundo meditar; depois continuou n’uma voz quebrada, vinda do
sonho da sua recordação infantil, como a recitar sem interesse phrases
que lhe sahiam dos labios já feitas, a contar essa historia milhões e
milhões de vezes pensada e nunca repetida, que se lhe tinha fixado na
memoria como melodia sempre egual de um instrumento mechanico.

—«Imagine o que seria a vida d’uma criança passada entre criados que,
a não ser a _bonne_, uma pobre velha inglesa que criára a mamã, eram
d’esses que a fortuna traz e leva, como lama de enxurrada. Raras vezes
via meu pae, mas quando o via eram tantas as festas e os presentes que
me dava que eu tinha por elle uma verdadeira adoração. Não houve decerto
criança que mais faustosamente fosse passeada pelas ruas de Lisboa, nem
que mais rica fôsse em brinquedos e mimos. A criadagem, sabendo que tudo
lhes era desculpado se me tratassem com carinho, não havia capricho que
me não satisfizessem. Podia dizer-se que era feliz, se não houvesse não
sei que saudades ou presentimentos infantis, que por vezes me punham em
crises de lagrimas. Um dia, já então tinha oito annos, sahi a passear
com a _bonne_, e vi n’uma montra o brinquedo mais interessante que até
então tinha visto. Maravilha chegada de Paris e que o negociante não
imaginava, por certo, vender tão depressa. Imagine uma linda bonequinha
vestida como uma marquesa do seculo desoito, com alta cabelleira empoada
e vestido no rigor da moda de _Versailles_, n’um palacio verdadeiramente
principesco. Tinha tudo aquella feliz imagem de outras bonecas vivas, que
egualmente envelhecem e morrem na ociosidade e no luxo em que a minha
pobre boneca se fanou. Cadeirinha para passear, criados empoados, pequena
sala de receber no mais rigoroso _rocaille_, salão, casa de jantar,
alcova com seu leito baixo de grande cabeceira entalhada e doirada...
emfim era uma verdadeira marquesa do grande seculo á qual não faltava a
_soubrette_ theatral, o abbade poeta, nem o fidalgo galante. Parece que
estou a vêr todo este encanto da mais louca phantasia infantil,—terminou
sorrindo á ingenua recordação, que dava um pouco de frescura e mimo ao
sombrio evocar de uma infancia de orphã, criada no fausto, e tão pobre de
alegrias simples e de affectos desinteressados.

João sorria tambem de tanta ingenuidade á mistura com o estranho vibrar
de uma alma de mulher já feita pela dôr e pelo pensamento.

Bella continuou:

—«Quando vi aquella maravilha estaquei defronte da loja, ao cimo do
Chiado, e custou muito á _bonne_ arrancar-me d’alli. Devia ser coisa bem
cara para que a pobre mulher apertasse as mãos na cabeça quando fallei
em pedir a meu pae que ma comprasse. Mas que valor póde dar ao dinheiro
a pessôa que não lhe sentiu nunca a falta? No entanto, com os discursos
da velha inglesa, sempre me acanhei de pedir a realisação d’esse desejo.
Tão pouco habituada estava a uma contrariedade que, de noite, não dormi
com o socego de costume, e quando de manhã fui fallar a meu pae, que por
acaso não tinha dormido fóra, elle estranhou-me o parecer. Inquirida com
interesse, não tive forças de negar e, n’um mar de lagrimas, confiei a
minha dôr pelo desejo não realisado. Elle sorriu-se, acarinhou-me com a
delicadeza de uma affectuosa mãe e, passado duas horas de ter sahido de
casa, appareceu me um gallego á porta com o meu thesoiro. A alegria, que
tive ao vêr desempacotar, peça por peça, o que constituia o meu sonho
realisado, não se descreve. Já elle então luctava com difficuldades, mas
não recuou em arcar com mais essa despesa para satisfazer o capricho de
uma criança mimosa! No entanto, pouco se importava com a minha educação
moral; que para a outra tinha professoras que pagava generosamente para
me aturarem com paciencia... E costumava dizer, quando lhe censuravam
a maneira como me educava, ou... me deixava por educar, que é mais
proprio:—O unico fim da existencia na sociedade em que vivemos é a
felicidade, e a pequena assim é feliz!... E era o como poucas crianças o
tem sido, n’uma inconsciencia, n’uma innocencia, que a maldade passava
por mim sem me macular o espirito, porque a não comprehendia. D’este
sonho fui despertada um dia brutalissimamente por uns agentes da justiça,
que nos sellavam as portas e poriam na rua se a _bonne_ não conseguisse
que eu habitasse no meu quarto até que o tio Burns respondesse ao seu
telegramma. Eu fiquei como que assombrada, cahida d’um mundo desconhecido
onde me collocara, com a minha marquesinha, sem chegar bem á comprehensão
nitida do que me succedia... Foi desde então que me chamaram Isabella
Burns, e nunca mais me fallaram de meu pae—como coisa vergonhosa...

Terminou n’um murmurio, curvando a cabeça para esconder as lagrimas que
lhe corriam silenciosamente pelas faces.

—«Pobre criança!—disse João apertando-lhe a mão com respeito.

—«O quê?! Pois não me quer mal por ter aquelle pae, que a sociedade me
manda despresar, depois de o ter pervertido, e que eu, apesar de tudo,
recordo com a affectuosa saudade?...

—«Como poude pensar tal, Bella? Ao contrario, parece que a estimo mais,
muito mais ainda, porque sabe o que é soffrer.

Levantou os olhos, ainda humidos de pranto, e ia responder-lhe, mas foi
interrompida pela Viscondessa que entrava pelo braço do Dr. Ramalho.

—«Então vocês vêm se esconder a um canto despresando a valsa?! Sim
senhores, dão um grande apreço á minha festa, vejam o que tenho a
agradecer-lhes!...

—«É verdade que sim! Tinhamo-nos esquecido de que estavamos n’um baile...

—«Cabecinhas de vento! Ora vão recuperar o perdido, andem, a valsa
convida.

—«E tu não vens tambem dar uma volta?—perguntou-lhe a amiga levantando-se
e beijando a com uma nervosa affectuosidade que deu logo a perceber á
Viscondessa que alguma coisa se passára de estranhamente grave entre os
dois.

—«Eu? Já estou velha para valsas, quando muito o passeio da contradança
cerimoniosa. E mesmo isso, querem crêr que já me fatiga?! Estou
positivamente velha.

—«A prima deu agora na galanteria de se querer fazer uma _avósinha_...

—«Infelizmente sem netos. Já me vão tardando os que tu me has de dar,
sabes?!...

João sorriu e não protestou. Isabella tomou-lhe o braço e disse, como
quem quer terminar a conversa:

—«Vamos então á nossa valsa?

—«Miss Burns, encontro-a finalmente—entrou dizendo o visconde d’Alvora,
retorcendo o bigode e empertigando-se para disfarçar a rotundidade do seu
corpo abbacial.

—«Que empenho era esse, visconde? Julgava-me perdida e queria merecer
alviçaras?

—«Oh não! O simples empenho que tem todo o cavalheiro em offerecer o
braço á sua dama.—E offerecia-lho na verdade, sempre retorcendo o bigode
e olhando João com altivez desprezadora.

—«Peço perdão, sr. Visconde, mas eu prometti a primeira valsa ao sr. João
de Mello.

—«Mas, minha senhora, nós já estamos na segunda.

—«Não posso considera-la assim, visto que não assisti á primeira. Espero
que me desculpará, meu caro visconde.

—«Eu não devo prescindir da honra concedida...

—«Mas prescinde porque eu desejo, e porque é de justiça. E vou já passar
procuração ao tio William, que vem atravessando a multidão dos valsistas
com a mesma impassibilidade com que atravessaria uma avenida deserta,
para ser arbitro n’este importante pleito.

Na verdade Mr. William Burns vira de longe a sobrinha e sem mais
cerimonias resolveu atravessar o enorme salão onde os pares dançavam ou
esperavam a sua vez, fazendo roda, apertando-se e confundindo-se.

Olhava-os com interesse de observador, fitando todos com a viva
curiosidade de uns olhos azues que lhe illuminavam a fronte de propheta e
attenuavam o geito da bocca d’uma ironia mordente.

Alto e robusto, hombros largos, voz, olhar, gestos e o proprio andar,
demonstrando a placida serenidade do homem saudavel e forte, bem
equilibrado na vida; e que, apezar dos longos annos de existencia
laboriosa, ainda se sente com musculos superiores aos dos rapazes a quem
uma infancia atrophiada preparou uma mocidade rachitica.

Olhou o Telles a calçar as luvas e apressurando-se em amabilidades
para a mais velha das Souzas, arrogante na pretenção de valsista
incansavel e elegancia sem rival. Ouviu de passagem que ella respondia
aos enthusiasmos litterarios do rapaz por Loti e Huysmans com a sua
predilecção por Paul Féval e Montepin, que conhecia dos folhetins.

—«Garrett—dizia estendendo o beiço carnudo—não conheço. É francês? De
Herculano já ouvi dizer que tinha um romance bonitinho, empresta-mo?!...

O inglês sorriu e cumprimentou a baroneza que estava de pé, pelo braço do
D. Manoel Pereira, que lhe ficara fiel, e disse lhe com amavel bonhomia:

—«Sempre gentil, minha cara baroneza: dir-se-hia que descobriu a receita
da bella Diane de Poitiers...

—«Mr. Burns sempre galanteador e... mordaz. Assim me passa uma certidão
d’idade compromettedora...—ria francamente, porque tinha o bom senso de
não querer ser moça pelos annos, contentando-se em o ser de facto pela
elegancia e pelo espirito.

Mr. Burns que a estimava pelas suas reaes qualidades, escurecendo
defeitos com os quaes nada tinha, respondeu sorrindo e continuando o
caminho:

—«O que quer, minha amiga? diz o ditado português que ha _um sujeito_
velho, que não aprende linguas novas...

No meio da sala esbarrou com o par valsista por excellencia, Mademoiselle
Hortense e o Vilhegas, que no dia seguinte seriam _fiancées_—participava
a todo o mundo.

A mãe não estava menos soberba com o seu vestido _rosa velha_ com
_traine_ de velludo verde e adereço de esmeraldas, tal qual fôra ao paço
quando ministra e merecêra descripção especial no _Illustrado_. Mr. Burns
parou para a cumprimentar, achando-a cada vez mais formosa, parecendo
irmã da filha.

Agradeceu a amabilidade que lhe não era das mais agradaveis, porque
detestava o titulo de _mamã_. Até por muitos annos a filha vivera quasi
sem que as relações da mãe dessem por isso, ou no collegio ou em casa
de parentes ou entre os criados, quando em familia, para que a mãe se
não apresentasse com tal certidão de idade... Só o desejo de a casar
e livrar-se assim de uma companhia importuna por indiscreta, vencera o
receio de se envelhecer com a sua apresentação na sociedade.

Rodeando um pouco para não ser atropelado, mr. Burns encontrou o visconde
que ia tirar a Candida para valsar. Sorridente, recusou, a não ser que
o sr. Braga consentisse, pois o considerava como noivo, faltando-lhe
apenas que o Visconde, em seu nome, fallasse ao tio. O velhote, como que
assoberbado com tanta felicidade n’uma idade e com um physico que não
eram os mais proprios a inspirar amoroso interesse, consentiu em que
dançasse com o illustre amigo.—Ora essa, a menina bem sabia que não tinha
outra vontade que não fosse a sua...

O inglês teve um rapido franzir de sobrancelhas de quem vê um caminho
que lhe não parece o mais direito e ficou um instante parado a seguir a
casaca preta do Visconde, que no giro da valsa se confundia com o vestido
negro com palhetas d’oiro d’essa formosissima mulher sorrindo bondades
e de uma quasi ingenua perfidia á força de inconscientemente sentida e
usada.

Já voltavam e paravam deante do uzurario a quem dizia n’um meigo arrastar
de phrase:—que o visconde a encarregara de lhe dar a boa nova de que
estava emfim resolvido a seu favor o negocio da casa de Bernabé...—e
ainda o velho William alli estava a considera-los attentamente.

Depois encolheu os hombros e foi mais adeante, até onde a mais nova das
Costas conversava com a mais nova das Souzas, ambas insignificantes,
inferiorisadas pelas irmãs, a Costa um pouco mais bonita, clarinha e
gorda, com grandes olhos inexpressivos em que as pestanas demasiado
compridas davam um aspecto de boneca de loiça. Viu-as alongar a vista
pela grande sala de baile—a que os espelhos das portas dobravam, pela
illusão, o tamanho—em procura de par e ouviu-as murmurar:

—«Parece que não ha rapazes!...

—«Elle ainda os ha—commentou a dos olhos tristes—mas parece que viram
lobo!...

Sorriu ainda; e foi com o rosto aberto n’esse sorriso entre caridoso e
ironico que chegou ao pé da sobrinha, o seu enlevo como artista, o seu
amôr como tio, quasi pae.

—«Jesus, que longa e difficil travessia, querido tio! Julguei por
vezes vê-lo sossobrar em tão perigoso mar!—dizia-lhe ella a rir, com
affectuosidade.

—«Ainda por cima a ingratidão de uma troça! Ora eu que emprehendi esta
_jornada_ só para a vêr, porque a minha amiguinha já nem se importa de se
mostrar ao velho tio! Sim senhor, deixa-me á meza com os caturras, não me
procura na sala de jogo onde os velhos se refugiam... estou perfeitamente
posto á margem.

—«Não diga tal, querido tio! Pelo contrario, estava-o esperando para lhe
dar a honra de o fazer juiz n’um pleito que ora aqui se debate. Exponha a
sua queixa, visconde.

—«Oh, miss Burns está brincando, eu cedo sempre á vontade das damas,
embora a justiça lhes faça mingua.

—«Oh, muito obrigada pela generosidade, mas nós as mulheres já temos os
nossos direitos: queremos tambem as nossas responsabilidades. Despresamos
a vossa piedade cavalheiresca, que nos dava a irresponsabilidade... das
crianças.—Respondeu Bella com certo entono comico, que muito divertiu o
tio e fez esboçar um sorriso ao João, a quem a questão não agradava.

—«Vamos, Visconde, não ha remedio: ella reclama justiça, justiça se fará,
mas... talvez de moiro, que é o que ellas querem...

—«Se elle não apresenta a queixa, já vê que é uma prova de que não está
seguro da sua justiça...

—«Menina, isso é um sophisma.

—«Não é tal! O caso é que a valsa acaba e a questão não acaba antes. Eu a
exponho em duas palavras. O sr. João de Mello convidou-me para a primeira
valsa e o Visconde para a segunda. Ora eu estive lá dentro e só agora
venho dançar,—qual é a primeira para mim?

—«Realmente!—Burns deu uma alegre risada—um theologo não defenderia
melhor um dogma arrevezado. Tu tens razão, o teu par é o João e o meu
caro Visconde vae ficar compensado passando pelo _Messias_ desejado de
duas almas em pena que lhe vou mostrar.

E levou o alegremente a uma das pobres raparigas que lamentaram não ter
par que dançasse com ellas uma vez ao menos...

Bella agradeceu-lhe com um sorriso, e, pondo a fina mão desluvada no
hombro de João, deixou que elle a enlaçasse com um respeito quasi de
religioso tocando em preciosidade cultual.

Seguiram na valsa colleante que os levava na corrente de um rythmo de
musica vinda do norte, do paiz dos longos amores sentimentaes e dos
lendarios castellos alcandorados nas montanhas...

Iam, levando-se nos braços um do outro, sem se verem nem ouvirem por
entre aquella confusão divertida, obedecendo quasi mechanicamente ao
espreguiçar inebriante da musica, n’um estonteamento de felicidade
que parecia dar-lhes asas n’uma inconsciencia a roçar pelo sonho, tão
intenso, tão extra-terreno era esse goso.

Só quando os ultimos acordes morreram nos violinos chorosos é que elles
pararam, ambos egualmente atordoados e commovidos, deante de uma das
portas do terraço, onde se ia respirar um pouco d’ar puro embalsamado
pelas rosas trepadeiras.

—«Sabe que está encantadora, miss Bella!?—murmurou João levando-a para a
varanda onde se refugiaram os conversadores.

—«Não diga isso, meu amigo.

—«Porque não, se é a verdade, o que sinto, o que vejo com os meus
proprios olhos?!...

—«É o mesmo que qualquer outro me diria.

—«E que culpa temos nós de que as palavras estejam tão banalisadas que
não haja meio de exprimir com ellas uma coisa nova, delicada, e sentida
como eu a sinto?!

—«Que voz a sua, João! não me falle assim! Atemorisa-me. Eu, que nunca
tive medo de coisa alguma, estou agora tremendo como uma criança—dizia
commovida, encostando-se á balaustrada de pedra e ficando toda na sombra.

—«E porque é que a sua voz treme como a minha, porque é que nos seus
olhos as lagrimas querem rebentar, Bella?!...

—«É verdade, estou a chorar, mas porquê?!...—e tentava sorrir mas não
conseguia dominar a tremura do seu pequenino queixo de uma pureza de
linhas verdadeiramente infantil.

—«Porque me ama, Bella. Para que nega-lo? Porque me ama como eu a amo,
com toda a minha alma, com todo o meu sangue, com a certeza de que o seu
espirito e o meu se identificarão sem se absorverem, que seremos dois
amigos para caminharmos juntos na jornada da vida...

Fallou por muito tempo, muito, tecendo sonhos, bordando phantasias, que
ella ouvia enlevada, encostando a cabeça á mão que lhe deixava livre,
numa passividade deliciada.

Calaram-se ambos, sem nada encontrarem que exprimisse a ternura immensa
que transbordando da alma lhes enchia os olhos de lagrimas de ventura.

Elle, mais forte, conseguiu articular uma palavra que dizia o desejo
ansiante do seu coração na sua mesma simplicidade—«Amo-a!...

Bella estremeceu toda, como se fosse emergindo n’um banho de caricias, e
ciciou n’um halo de sonho:—«tambem eu o amo...

E de mãos enlaçadas, olhos nos olhos, sorriso com sorriso, assim ficaram
completamente alheados do borborinho e esbanjamento de alegrias e
egoismos que se degladiavam na arena do baile com brutalidades de feras
em pleno circo romano...



XIII


Os azedumes e as rivalidades accentuaram-se depois do baile, onde,
parece, se tinham querido reunir n’uma ultima revista de forças os dois
campos que a politica, com todo o seu cortejo de baixas vinganças e
mesquinhas ambições, conseguira levantar na pequena e socegada villa
sertaneja.

Em tal lucta ia de vencida o grupo do visconde porque elle, apesar do
seu elegante cynismo e da obliteração quasi completa do senso moral no
sentido rigoroso da palavra, que lhe fizera o habito de viver no mundo
e n’uma sociedade que a custo se sugeita ao direito commum, julgando-se
crédora de isempções e privilegios, era todavia incapaz de uma vileza ou
de uma flagrante injustiça para alcançar os seus fins. Tanto mais que
não fazendo da politica modo de vida, não disputava com desesperos de
esfomeado o direito de trepar.

Depois, a seu lado, usando ainda assim de processos que á viscondessa não
pareciam bons no seu grande e puro ideal da reformadora, mas n’esses
mesmos processos conservando uma certa dignidade e limpesa, agrupavam-se
os mais honestos, os mais sinceros, os que menos culpas tinham a
exprobar-se.

O exame directo imparcialmente feito pelo dr. Ramalho no Cabral, de S.
Mamede, ferido na romaria da Senhora do Monte pelo Manuel Duarte, da
Povoa, em desforço de rixa velha em questões d’aguas, diziam algumas
testemunhas, levantára descontentamentos entre os partidarios e alguns
já diziam pelas tavernas—que se passariam para o Maximiano nas primeiras
eleições, visto o dr. Ramalho não ter coragem de salvar um amigo da
cadeia lá porque n’uma romaria bebêra uma pinga e dera umas pancadas.

É certo que o Cabral morrera, mas o Vilhegas affirmava a todos,
confidencialmente, que a morte não resultára da pancada mas da
deficiencia do tratamento que deixára sobrevir uma meningite.

Debalde o medico se esforçava por conservar o sangue frio e explicar a
sua attitude, não como acusador nem desejoso de ver um homem condemnado,
n’uma iniqua lei de Tallião que a sociedade arbitrariamente se arrogou,
soffrendo porque fez soffrer, mas porque acima de tudo estava a verdade
e o seu dever de perito era dize la completa e inteira sobre o caso que
sujeitavam ao seu julgamento. O juiz que fizesse o que entendesse, mas
que por um interesse politico não fossem condemnar ou absolver, fiados
n’uma mentira.

Mas feriam-no aquellas luctas traiçoeiras, magoavam-no muito mais do que
as floreadas correspondencias do Telles para um jornal de Lisboa, em
que tinha phrases de sapiencia e de effeito como aquella de citar Diogo
Arias—o celebre valido de D. João de Castella que no mundo só desejava
ter um prego com o qual podesse pregar a roda da fortuna—isto para
insinuar que o Dr. era um malvado que não acudira ao Cabral para fazer
mal á infeliz victima da politica, o Manuel Duarte, curtindo na enxovia a
sua innocencia...

O Ramalho contava a Bella, que muito se indignava com tal meada de
embustes, que o Manuel Duarte era o primeiro a rir-se d’elles porque
dizia a quem o queria ouvir—que bem se ralava de que o mandassem para a
Penitenciaria, pois já lá estivera dois annos e como tinha empenhos sahia
á cidade e até trouxera dinheiro ganho a vender chapéos de sol. Que para
tudo se queria sorte e o sr. Conselheiro o protegeria, porque eram o pae
e os dois cunhados marchantes todos por elle na eleição dos quarenta.

—«Já vê, minha senhora—dizia-lhe n’uma tarde de quinta feira nos ultimos
dias de setembro, na varanda do palacio dos viscondes—que não vale a pena
explicar. Descobrem-se bem os grosseiros manejos do padre cura. Primeiro
quiz requerer novo exame para que o Vilhegas dissesse que o caso não era
perigoso; mas como o homem morreu, fui eu que o matei...

—«Oh, mas é indecente, uma lucta assim feita de mentiras!

—«Pois é; mas que fazer? A não se querer usar dos mesmos processos, mais
vale não lhes ligar importancia.

—«O dr. hade confessar—dizia lhe o João indignadissimo—que tanta
porcaria, tal esterquilinio d’almas desperta o desejo de caminharmos para
o futuro varrendo todo esse lixo sem dó nem piedade...

—«João, João, cautella, não te mettas a regenerar o mundo, olha que
se estes são o que vês, a _canalha_ sem eira nem beira ainda se lhes
avantaja em atrevimento...—respondia o visconde sybariticamente deitado
n’uma cadeira de baloiço, soprando para o azul hilariante do céo o fumo
leve do charuto.

—«Mas suppondo mesmo que a _canalha_, como o primo diz, seja mais
exigente nas suas reclamações, tem direito a faze-las tendo arrastado
seculos de captiveiro, tendo a vingar rios de sangue e de lagrimas...

—«Deixa lá, João,—acudiu a viscondessa para terminar uma discussão que
sempre a irritava entre o egoismo do visconde e o ardente enthusiasmo do
primo, que trouxera da Belgica, a par de uma grande instrucção, uma fé
sem limites n’um melhor futuro para os despresados de hoje—O dr. soffre o
castigo de ser honesto e ter entrado em politiquices de campanario.

—«Queres então dizer que eu não sou honesto, não é verdade?—sorriu com
indifferença o visconde.

—«Não é isso, mas tu como chefe tens tido sempre melhor posição e menos
responsabilidades locaes...

A conversa terminou, felizmente, pela entrada da Candida que vinha
convidar a viscondessa para madrinha do casamento.

Apesar da indiferença que aparentava, o dr. Ramalho soffria com tal
campanha; demasiado honesto para usar de processos identicos e pagar
diffamação com diffamação, sentia-se adoentar n’uma crise de desânimo que
o deixava impotente para a lucta.

Só o dr. Pinto sustentava a retirada desembestando ironias a torto e a
direito e conseguindo ridicularisar o Maximiano e a sua malta a ponto
de obstar a que todo o partido do visconde, por um resto de pudor, se
passasse com armas e bagagens para o campo inimigo.

Mas, contra esta influencia, mais paralysadora do que militante,
alevantava-se a do padre Mathias carreando descontentes e ambiciosos
que pediam empregos e ganhos, que não se regateavam no partido aos bons
serviços politicos.

A sua bilis de atrabiliario extravasava em doestos e arremetidas que
visavam todos os contrarios e em particular o abbade a quem odiava e
invejava.

O velho padre, que era um bom e um humilde, sem sombra de maldade nem
ambições gananciosas, fechava os olhos e desattendia-se para evitar
questões, que se lhe afiguravam pouco em harmonia com os deveres da
posição de ambos.

Bastas vezes fingira não saber dos desregramentos do cura, que a pretexto
de ter sido feito padre pela violencia da vontade paterna não olhava a
conveniencias que o mais simples homem livre tem o dever de attender.
Mas porque o bom abbade não podera calar um dia a murmuração do povo
pela escandalosa vida do novo cura e o admoestou em palavras mansas de
caritativo pastor, o outro embezerrou e d’alli lhe veio odio terrivel,
d’estes odios sem mercê que crescem na fria sombra das sacristias e se
erguem como floração insalubre a ligar e a prender os movimentos até á
suffocação dos miseros que n’elles pozeram um pé em falso.

Com um desejo de vingança e uma ambição a satisfazer, entrara para o
serviço do Maximiano, tornando-se em breve o principal agente e o seu
mais util auxiliar.

A conselheira é que, mal se annunciara o outomno, fixara a sua partida,
para ainda poder gosar uns dias de praia elegante, em Cascaes ou Estoril.
Era sempre contrariada que vinha para a villa e só se mostrava alegre e
amavel no dia em que marcava o regresso ao mundo civilisado, segundo a
sua expressão.

Irritava-a alli a preponderancia e real superioridade da viscondessa
que era estimada pelo povo miseravel, que a ella recorria como a fonte
inexgotavel de soccorros.

Eram noivas a quem dava dotes e enxoval, casas que deixava habitar de
graça pelos mais pobres, crianças e velhos que era preciso vestir e
metter em asylos e hospitaes a não ser que a familia recebesse alguma
coisa para os tratar... Ella satisfazia todos os pedidos, feliz por se
tornar util, não pensando sequer na gratidão, que afinal lhe tributavam
todos.

Ora estas e outras superioridades de riqueza e de espirito eram um
continuo manancial de sensaborias para o orgulho da conselheira que
recebia n’essa noite, pela ultima vez antes de partir, os frequentadores
das suas quintas feiras.

Como de costume, a maior animação era em volta das mezas de jogo.

Só a baroneza da Amieira se affastara com o D. Manuel Pereira—porque,
dizia ella, era o jogo o unico vicio que nunca lhe dera prazer. Se
perdesse, não se encommodaria, porque o dinheiro pouco valor tinha aos
olhos da viuva que aos deseseis annos comprara, com o inestimavel preço
do seu corpo juvenil e bello, uma fortuna quasi ingastavel. Se ganhasse,
de que lhe serviria o dinheiro, que aos outros fazia tanta falta?!...

Não seriam positivamente essas considerações altruistas a causa da sua
abstenção, mas como era divertimento de que não gostava, sabia com
ellas tornar se sympathica. Chegava mesmo a sê-lo, apezar de todas as
loucuras que os annos não tinham ainda interrompido. Intelligente, de
uma saúde vigorosa, activa e com muito espirito, ousára fazer sempre o
que a vontade e o capricho lhe aconselhavam sem sombra de respeito pela
sociedade que conhecia cheia de tolerancias para as que, como ella, se
escudam na fortuna, e tão austera soe sêr para as pobres que prevaricam.

No intimo da sua alma leviana havia um fundo de instinctiva justiça que
a fazia prodiga com os miseraveis e sem maledicencia que ennodoasse as
outras, como quem se quer desculpar com o exemplo alheio.

Se não era honesta e não dava grande valor a essa virtude que só lhe
parecia bôa para pobres usarem, tambem não era hypocrita; e chegava a ser
ingenua á força de impudencia na phylosophia adquirida no longo convivio
de pessôas que se habituara a julgar o typo commum.

Pelo braço do D. Manuel Pereira affastara-se para a sala de bilhar onde,
a um canto, a Hortensia languidamente recostada n’uma commoda mas feia
cadeira inglesa, conversava com o Vilhegas, em requebros, retorcimentos
de pescoço e gritinhos de cãosito de regaço. Ao fundo da sala, a meia
voz, o conselheiro conferenciava com o juiz.

—«Então o que lhe dizia eu, D. Manuel? Onde menos gente houvesse é que
era mais certo encontrar os noivos—dizia a baroneza alegremente.

—«Procuravam-nos?—perguntou M.ᵉˡˡᵉ Hortense voltando meio corpo, como
manequim de uma só peça.

—«Não, precisamente, mas procuravamos alguem que não estando a jogar
podesse dizer alguma coisa que distrahisse.

—«Viemos bater a má porta; estes senhores estavam tão absorvidos na sua
felicidade que chega a ser um crime distrahi-los.

—«Pelo contrario, D. Manuel, dão-nos muito prazer. Estavamos fazendo _un
petit bout de causerie intime_, mas temos para isso tanto tempo!

—«Faço ideia! Vão-lhes parecer seculos estes mêses. Quando casam?

—«Lá para o fim da primavera, para se sahir para Cintra ou para
o Bussaco. A mamã queria que fôsse já, mas eu prefiro noivar
durante o inverno, é mais chic e não corro perigo de me privar dos
bailes...—sublinhou com impudor.—Já mandamos fazer participações de
_fiançailles, qui est du dernier chic_.

A baroneza riu francamente e respondeu a meia voz qualquer coisa a que
outra replicou n’um esgare de enjoada:

—«Tem suas conveniencias _le rôle de madame_ mas é d’uma falta de chic
_assomante_ ser mamã. _Oh! les petites bêtes!_ uff!...

D’ahi a conversa foi derivando entre risos e anedoctas em que a rapariga
representava o primeiro papel, com um despreso soberbo de todas essas
velharias a que se chama pudor e ingenuidade. O Vilhegas, um pouco
compromettido porque aquillo bulia-lhe ainda com todos os preconceitos
provincianos, de que tentava limpar o espirito, contava tambem as suas
graçolas, dizia historias de Coimbra.

—«Olhe, doutor—disse por fim a baroneza, sempre procurando novas
distracções—parece-me que entrou agora o seu amigo Telles e esse é que
nos vae entreter recitando alguma coisa. Chame-o e peça-lhe.

—«Da melhor vontade, mas se fôsse V. Ex.ᵃ a pedir teria muito mais valor.

—«Olha, parece-me que se anima a _soirée_. Lá entraram as Souzas e as
Cunhas. Onde estaria toda esta gente mettida?

—«E o Móttasinho tambem, esse póde dizer charadas, dizem que tem geito.

—«É melhor chama-los todos para aqui, se os deixam ir para o jogo, então
acabou se!... Faz falta o visconde d’Alvora,—commentou a baroneza.

—«Ah, esse agora é todo viscondes—começou o Telles que se adeantára a
saudar.

—«Desde a noite do baile que lá está e nem ao menos uma visita!... _C’est
incroyable!_

—«Ha muitos annos que é amigo intimo de sir William Burns e deve-lhe
mesmo grandes favores—defendeu o D. Manuel.

—«É muito louvavel o seu procedimento, descendo á liça por um amigo
ausente, sim senhor! Bem se vê que é descendente de Nun’alvares, o
cavalleiro sem macula. Mas olhe que o visconde não merece defesa porque é
um transfuga—riu a baroneza.

—«Elle quer chegar á sobrinha pendurando-se no braço do tio—retorquiu o
Telles com azedume.

—«Vae mal por esse caminho, porque sei, e agora já não ha inconfidencia
porque toda a gente o sabe, que Bella está pedida por seu primo, creio
que é seu primo o João de Mello, não é, sr. Vilhegas?—respondeu e
perguntou a um tempo a baroneza.

—«É meu primo affastado...

—«O quê, Isabella Burns vae casar com o Mello?

—«Parece que se admira, Hortensia?! Pois não é para isso; é até casamento
bem igual. Ambos novos e bonitos, educados e ricos, é um verdadeiro
casamento d’amôr, coisa rara n’estes tempos de brutal utilitarismo.

—«Ora adeus! O João de Mello é um sensaborão—_une vrai bête fauve_.

—«Por não ter o seu espirito perfeitamente gaulez, não se segue que não
seja muito interesante. Ha pessoas intelligentes, que não gostam de
conversar. Eu não o conheço a fundo, mas parece-me sympathico e muito
instruido.

—«A sr.ᵃ baroneza está sempre disposta a defender.

—«É para me vingar dos que me accusam, meu caro dr.—respondeu para o
Vilhegas.

—«Além d’isso, a Bella é galantinha, mas a baroneza sabe o que foi o
pae...—tornou Hortense com gesto desdenhoso.

—«Não pense em tal, minha querida; bem sabe que para a sociedade essas
coisas dos paes só lembram quando não ha tios ricos. E, aqui para nós,
com toda a imparcialidade, quem não tiver um parente cujo procedimento o
faça corar, que lhe atire a primeira pedra.

—«Oh, mas o pae deu um escandalo medonho!... Foi um verdadeiro ladrão!...

—«A Hortensia é muito nova para julgar, um facto que tem a sua
explicação, como tudo no mundo. O pae de Bella era um perfeito homem da
sociedade, fez o que outros têm feito impunemente, foi infeliz...

—«A baroneza conheceu-o?

—«Conheci-o admiravelmente, era das minhas intimas relações. Tinha
deffeitos que mais ou menos todos nós temos, mas, a par d’elles, quanta
bôa qualidade tambem!...

—«Pois sim, mas se não fôsse o tio rico talvez o João de Mello, que
sempre passou por tão serio e esquisito, não achasse muito merecimento
n’uma menina que vae para uma romaria só com um rapaz...—insinuou a mais
velha das Souzas que tinha vindo com as outras juntar-se ao grupo sem
interromper a conversa.

Já percebera que a assiduidade do Telles a devia ao despeito que lhe
causava a indifferença de Bella e isso enraivecia-a, não poupando doéstos
á _inglesa_, como por escarneo a tratavam.

—«Decerto que um homem honesto não poderia já acceita-la para
esposa—frisou ainda o pharmaceutico.

—«É que o sr. Telles não sabe, talvez, que Isabella Burns foi educada em
Inglaterra. O que n’uma terra pequena de provincia portuguesa lhes parece
escandaloso é perfeitamente natural e correcto em todos os paizes onde as
mulheres são mais respeitadas. O senhor, que é homem, sabe perfeitamente
que só é deshonesto quem o quer ser...

—«Sim, nós sabemos que a educação e os costumes ingleses são outros,
mas temos obrigação de respeitar os costumes da sociedade em que
vivemos—acudiu o Vilhegas em defeza do amigo.

—Decerto, os que vivem d’ella e para ella. Mas Isabella é bastante
independente para despresar commentarios malevolos de quem em tudo lhe é
inferior. Terminou seccamente, quasi agressiva e n’aquelle tom que não
admittia replicas, porque Isabella era uma das suas grandes sympathias,
e a baroneza, quando gostava d’alguem, não queria mesmo averiguar se era
retribuida a sua affeição para francamente se pôr em campo pelos que lhe
agradavam.

O Vilhegas porêm não desistiu e com o gesto largo e o tom emphatico de
quem sonha bancadas parlamentares ainda accrescentou:

—«Oh senhora baroneza, mas isso é negar toda a virtude e condemnar sem
remissão uma sociedade de que V. Ex.ᵃ faz parte.

—«É por isso que fallo com conhecimento de causa, o que se requer
é hypocrisia e dinheiro, bem sei, sentimentos intimos e nobres são
frioleiras... Pois se ha pessoa que esteja acima de todos os egoismos e
mentiras é Isabella, pode crêr! Se casa com João é porque decerto muito o
ama.

—«Oh, dizem que sim,—atreveu-se a dizer a Aurora Cunha, que havia algum
tempo estava morta por fallar, retrahindo-se logo com acanhamento—um amôr
assim nunca se viu. Andam ambos tão felizes, tão contentes, que até dá
gosto vê-los.

—«A menina vae lá?—perguntou a baroneza com interesse.

—«Eu era amiga da Pillar, que me tratava com muito agrado. Agora vou
lá menos, mas a Engracia, que é muito amiga da minha avó, foi hontem
fazer-lhe uma visita e contou isto. Lá em casa gostam tanto da noiva, que
até ella, que d’antes só fallava na sua Pillarsinha, agora já diz que
esta é um anjo do céo que Deus lhes mandou para pagar o roubo que lhes
fez...

O Vilhegas torcia-se nervoso desde que a conversa tomara aquelle rumo,
e Hortensia desviava a cabeça com enjôo, contando, por disfarce, os
berloques que trazia no cordão de oiro ao pescoço. O Telles quiz desviar
a conversa, mas a baroneza perguntou ainda com interesse.

—«A menina sabe quando elles casam?

—«Á Engracia disse que era depois de janeiro, porque faz um anno que
morreu a Pillar. A Candida é que casa primeiro.

Novo estremecer do Vilhegas trocando olhares de intelligencia com o
Telles.

—«Sim? Com quem casa essa? É uma formosura, não é, D. Manuel? Olhe que em
Lisboa, convenientemente emoldurada em luxo, e n’uma frisa de S. Carlos,
era d’um soberbo effeito—disse com a convicção de quem se não julga
prejudicada pela mocidade nem pela belleza, forte no seu reducto de oiro.

—«É realmente perfeita! Faz pena ver escondida entre serras uma tão rara
planta—respondeu o Pereira, que ás vezes se mettia em floreados de phrase
recordando tempos de Coimbra.

—«Em casando já ella vae para Lisboa viver—tornou a menina Aurora, que
estava tendo um verdadeiro successo com tanto saber de vidas alheias.

—«Quem é esse marido ideal?

—«É o Braga, v. ex.ᵃ não conhece? Cá chamam-lhe o Braga usurario,
porque empresta dinheiro a noventa por cento. É muito rico. No baile da
viscondessa estava sempre ao pé d’ella, não viram?—voltou-se a pedir
confirmação ao dito, ás irmãs e ás meninas Souzas, que abanaram a cabeça
affirmativamente e começaram todas a fallar ao mesmo tempo, querendo ser
interessantes com o saber muito d’esse casamento, que era o escandalo da
terra.

—«Dizem que o velho está doido pela Candida.

—«Até já fallou aos pedreiros para deitarem abaixo a casa do Bernabé,
que o visconde sempre fez com que a camara expropriasse por utilidade
publica...

—«É um verdadeiro escandalo, uma arbitrariedade sem nome, uma d’estas
coisas que só se fazem n’uma terra de cafres como esta!...—apostrophava o
Telles pensando já na correspondencia para o jornal de Lisboa.

E uma das meninas ainda elucidava:

—«Dizem que para o anno já hade ter um _chalet_ como nunca se viu outro
cá!...

—«O tio comprou-lhe um enxoval que nem que fosse para uma rainha—disse
ainda outra com inveja.

—«Diz se que casam já para o mez que vem...

—«Ora ahi está _un vrai mariage d’amour_!...—casquinou a Hortencia.

—«Não se ria, minha querida,—respondeu a baroneza, que tinha o gosto
particular de contrariar a filha do Maximiano—elle gosta sinceramente, e
n’este genero de negocios um quasi sempre é enganado, quando não são os
dois!...—sorriu com finura.

—«Oh Vilhegas—chamou do fundo da sala o conselheiro.

O Emygdio correu com interesse de subordinado humilde a perguntar o que
lhe queria o patrão.

—«Venha cá, meu amigo. O sr. juiz pode ter algumas duvidas e quero que
lhe diga com a mão na consciencia se o Cabral morreu assassinado pela
pancada ou em resultado da doença que lhe deixaram sobrevir.

—«Não tenho duvida nenhuma em affirmar que foi da doença...

—«Deixem-me dizer-lhes—continuou o esperto politico—que o meu interesse
pelo Manuel Duarte é apenas filho da revolta que toda a injustiça me
causa, notem que nem é meu partidario... Mas o dr. Vilhegas, que em breve
será meu filho, faça o mesmo que eu, feche os olhos a resentimentos e
diga sempre o que a sua probidade mandar.

—«Sr. Conselheiro—começou o medico, dando um passo atraz e pondo a mão no
peito n’um gesto de comediante sentimental—eu respeito v. ex.ᵃ mais do
que ao meu próprio pae—e n’isto era sincero porque não fazia grande caso
do barbeiro d’aldeia que lhe dera o ser...—mas acima dos affectos humanos
está a justiça e a consciencia. Eu farei sempre o que uma e outra me
ordenarem; se v. ex.ᵃ me pedisse o contrario teria muita e sincera magua,
mas não cederia...

Isto é que já soava como bilha rachada, mas o conselheiro bateu-lhe no
hombro e disse com enthusiasmo:

—«Bravo, meu rapaz! Assim é que eu aprecio o caracter d’um homem! É
com toda a confiança que lhe porei nas mãos os meus negocios e sei que
não usará da minha influencia senão para o bem d’este desgraçado paiz
que caminha para o abysmo!... Dê cá um abraço, homem!—abraçaram-se com
gravidade.

—«O sr. dr. Vilhegas—começou o juiz, arrastando a phrase como arrastava
a perna gottosa—é um rapaz a entrar na vida com nobre caracter e agúda
intelligencia. Abre-se aos seus passos um largo caminho que não hade
querer manchar com uma injustiça inspirada pela má paixão da politica,
como usam alguns seus collegas; fico pois com a minha consciencia
tranquilla.

—«Agradeço o conceito que v. ex.ᵃ forma do meu caracter e tenho a vaidade
de o julgar justo.

—«Mas não o prendâmos por mais tempo, aliás a Hortencia ficará
zangada...—disse o conselheiro empurrando-o com amavel sombra.
Depois continuou n’aquelle ar de indifferença bem calculada que
todos os politicos conhecem para despertar a curiosidade que desejam
espicaçar:—Sabe que é definitiva a aposentação do dr. Saavedra? Escrevi
ao ministro para não dispor do logar sem me ouvir...

—«O que respondeu?!...—perguntou o outro arregalando os pequenos olhos de
porco, n’um esfusear de curiosidade.

Interrompeu-os o padre Mathias, fulo com o Neves que se lhe fôra pôr ao
lado e o fizera perder todos os cobres,—porque _engallinhava_ com aquelle
typo... dizia, bufando.

—«Ora—respondia-lhe o conselheiro sorrindo—vocês não sabem jogar, perdem
logo a cabeça! Vae-se tenteando emquanto se perde com pouco dinheiro;
depois, quando a sorte vem, é só uma cartada bastante para a desforra.

—«Isso era bom se todos soubessem e tivessem a felicidade de v. ex.ᵃ

—«Então hoje está o caso muito feio; hein? Vamos lá ver.

Dirigiram-se para a outra sala emquanto o juiz rodeava, arrastando a
perna e trauteando o estribilho favorito, até ao grupo das senhoras
ás quaes costumava dirigir grosserias que imaginava deviam tomar por
amabilidades.

—«Oh sr. Telles—dizia a baroneza, para terminar a conversa das vidas
alheias que já a enfadava—eu tinha pedido aqui ao seu amigo para
interceder por nós junto de v. ex.ᵃ.

—«Que valor tenho para merecer um pedido de v. ex.ᵃˢ?!...

—«Tem o valor de ser poeta, acha que é pequeno? Nós queriamos ouvir
recitar alguma das suas poesias.

—«Oh, sr.ᵃ baroneza, os meus pobres versos são pedaços d’alma angustiada
que não podem interessar aos felizes da terra!...

—«As obras d’arte, quando sinceras, são comprehendidas por
todos e commovem as almas menos sensiveis, não é verdade, sr.ᵃ
baroneza?!...—disse o Vilhegas querendo que o amigo figurasse.

—«Decerto—respondeu ella.

—«Não se faça rogado, sr. Telles, _j’aime beaucoup vos
poésies_!...—acrescentou Hortencia languidamente cerrando os olhos e
apertando os beiços com denguice.

Um coro de insistentes pedidos rodeou o Telles, que se fazia grave,
mettia os dedos nos cabellos, fechava os olhos, dizia não se lembrar nada
do seu livro _Verde-mar_... Por fim, como que victimado, mas radiante
de vaidade, levantou-se, pôz a mão sobre as costas da cadeira, levou a
outra ao coração, fez ainda um gesto vago de quem se lhe tinha varrido
tudo da memoria, o que impacientava os ouvintes, e começou com voz
sibilando entre sorrisos de superioridade.

—«Dedicatoria: Á Doce e Pura que a minha alma espera para entrar na
_Turris eburnia_ da Perfeição.

Mas a palavra foi-lhe cortada violentamente pela explosiva apparição
da conselheira n’um desmanchamento de modos de quem precisa desabafar
arrelía séria.

Offegante, rubra de indignação, dirigiu se á baroneza como se quizesse
toma-la para testemunha da justiça que lhe assistia.

—«Veja isto, veja isto!—e mostrava-lhe uma grande folha de papel
escarlate por aparar, com uma enorme corôa de visconde ao centro
encimando floreado brazão—aquelle pelintra que já desdenha assistir ás
nossas partidas!... Não ha maior desaforo!

—«Mas o que é afinal?—perguntou a baroneza, que apreciava pouco scenas
tragicas no seu epicurismo de pessoa que quer tirar da vida só o fructo
saboroso e leve.

—«Leiam, vejam isto, desde que veio o inglês para lá está assoldado...
Não se lembra o pobretana que veio para ahi sem roupa; até foi preciso
emprestar-lhe camisas do Maximiano!... Ainda hontem a costureira me
veio mostrar um par de meias d’elle que não tem por onde se lhe dê um
ponto!... Agora, o figurão já não perde tempo a vir aqui...—voltando-se
indistinctamente para quem tinha mais perto e calhou ser o Telles—leia o
senhor o que manda por um lacaio. Só visto!...

O discurso ameaçava não deixar occasião para se ler a carta, porque
a conselheira, vendo-se benevolamente escutada, não tinha mão nos
improperios. Interrompeu-a a baroneza benevolamente:

—«Deixe que o sr. Telles leia a carta, aliás não percebemos nada.

—«Pois que leia, para verem quem é aquella bisca!... Só a chicote!...

O Telles pegou na carta traçada com larga calligraphia inglesa propria de
_sportman_ e de pessôas de poucos dizeres, e leu:

—«Minha ex.ᵐᵃ e querida senhora. Venho humildemente a seus pés depôr
a minha homenagem e pedir desculpa pela falta que hoje darei na sua
_quinta-feira_. Não _poço_.—O sr. Visconde escreveu posso com ç, não sei
se quer dizer o mesmo, commentou o Telles com litteratica ironia.

—«Deixe lá os erros e diga para deante—apressou a baroneza.

—«Não póde deixar a _partida_ de mr. Burns, a quem acompanhará n’uma
caçada á serra ás tres da manhã—resumiu o Vilhegas, que acabou de ler por
cima do hombro do amigo.

—«Ora então, coitado do rapaz, tambem tem alguma razão—desculpou a
baroneza.

A conselheira ia sair-se talvez com nova ladainha de injurias e
improperios, se o Jorge Cabreira a não chamasse da porta, n’um gesto
desesperado. Estava pallido; o bigode, que enrolava furiosamente entre
os dedos, mostrava bem a excitação nervosa que o tomava.

O conselheiro tinha-lhe _limpado_ todo o dinheiro n’um _baccarat_
rijamente sustentado, e elle vinha pedir á mulher que lhe emprestasse
mais para tirar a desforra do marido...



XIV


Tinha passado o tempo das festas com os primeiros rebates de um inverno
que vinha rudemente soprado pelas ventanias da serra, a afugentar os
veraneadores.

Primeiro sahiram os Maximianos, seguidos pelo Emygdio, que, fiado em
tão bôa escóra, resolvera a sua ida immediata para a capital. Estava
_lançado_, como por ahi se diz n’um francesismo de mau gosto, o que
ao dr. Pinto fazia commentar: só um estomago de avestrus como o do
conselheiro teria bojo para expellir tão grande maroto!

Os viscondes seguiram-os tambem, depois de assistirem ao casamento da
Candida, a quem Maria Helena serviu de madrinha, visto Josephina não
sahir de casa nem assistir a festas, lamentosa como continuava ainda pela
morte da Pillar.

A Bella, que primeiro partira com o tio, fôra em breve reunir-se o João,
para juntos combinarem todos os preparativos para a sua vida commum, que
elles queriam bem harmonicamente organisada como em harmonia estavam
sempre os seus gostos e maneira de vêr e sentir.

Retomára, pois, a villa o seu ar de pacatês provinciana; e se não fossem
os odios e luctas politicas ateados pela proximidade das eleições,
ninguem diria senão que aquillo era burgo medievo esquecido pela
civilisação, cujos habitantes o tempo tinha mumificado.

Nem carruagens de luxo nem garboso trotar de cavallos de raça pelas
calçadas desiguaes faziam assomar ás janellas entreabertas as cabeças,
entre curiosas e receosas, das meninas da terra. Cahiam no marasmo que
ataca as provincianinhas ambiciosas por movimento e vida, que se resignam
a só mostrar os vestidos de luxo aos domingos, á missa das onze, e a
passear funebremente, quando a musica toca na praça, as suas anemias
sentimentaes de quem não tem um nobre e util destino a preencher, de quem
lhes falta, para sacudir os nervos e hygienisar a alma, uma educação de
trabalho remunerador que as liberte da escravatura feminina, que tem por
carta d’alforria... só a porta da igreja que dá para o casamento.

As _partidas_ arrastavam-se somnolentas pelo anno fóra, sem despertarem
o enthusiasmo e o interesse das reuniões de verão. Emquanto as mesas do
sólo e da manilha se armavam para os velhos junto da brazeira, os outros
rodeavam a mesa do centro para o jogo ou para a conversa, e era então
o momento escolhido para se rememorarem os acontecimentos da passada
estação e darem-lhes a fórma anedoctica que depois se transmitte de
geração em geração, como as receitas dos dôces e os lençoes de linho
caseiro.

E não fôra, na verdade, das menos ferteis em acontecimentos sensacionaes,
essa que originára o casamento do melhor herdeiro das redondesas com
uma _estrangeira_: o que fazia, apesar das poucas esperanças que João
déra sempre ás meninas casadeiras da terra, com que todas se julgassem
offendidas.

Depois, o casamento, mais que imprevisto, do velho Braga com a formosa
sobrinha de Antonio de Mello—que era o caso escandaloso por excellencia.
Commentava-se o insolito luxo que o homem botára, elle que fôra sempre
considerado o maior dos avarentos, o que enraivecia as raparigas e fazia
dizer aos paes—«que bem o tinham previsto: o Braga seria o ideal dos
maridos, babadinho pela mulher...» Ellas gritavam repugnancias que não
sentiam, e os velhotes encolhiam os hombros:—«tolices de raparigas!
Sabem lá o que custa a vida e o que uma mulher perde quando despresa um
casamento rico!... Depois é que torcem a orelha. A Candida, sim, essa
é que tivera juizo. Não ha como as mosquinhas mortas para se saberem
governar.

Fallando com a segurança de quem não tivera o Braga como genro porque as
meninas o não tinham querido, não pensando, na sua illusoria vaidade,
que só uma invencivel e tresloucada paixão transformaria em prodigo
amante o homem que, na sua já larga vida, não tivera mais desejos que não
fosse os de accumular oiro, mais orgulho que o de juntar propriedade á
propriedade, ambição que não fosse a da riquesa pelo prazer avaro de a
possuir.

Por fim, até o Vilhegas, que, depois da morte da Pillar ainda fôra
uma esperança de marido rasoavel, até esse era levado pela filha do
Maximiniano Carneiro!...

Estes e outros factos contados e completados pela bisbilhotice da
criadagem, davam alimento para as conversas em todas as infindaveis
noites de inverno.

O rico enxoval da Candida, mandado fazer pelo tio nas melhores casas
de Lisboa, com duzias de duzias de cada peça, rendas finas, sedas
e bretanhas, as joias de preço com que o noivo a brindára, os mais
presentes que tivera, tudo se commentava trazendo á baila a pobreza da
rapariga, o que seria ella n’esse momento sem a generosidade dos tios,
na mediania quasi pobreza em que vivia a mãe e os irmãos... Depois, a
cerimonia do casamento, a que tinham assistido por convite do Braga,
chegado ao delirio da paixão, todos querendo associar á sua alegria. O
orgulho da Candida, a arrastar a cauda do seu branco vestido de noiva;
o véo de verdadeiro _tule_ de seda e as flores de larangeira a coroá-la
n’uma alvinitencia de castidade; a cara do noivo e a sua figura ridicula,
que ainda mais os fazia morrer de riso; a partida para Lisboa e a
permanencia lá durante o inverno... nada ficava por dizer e commentar.

Quando este acontecimento já ia aborrecendo por demais refervido,
como o chá de Tolentino, começaram alguns jornaes da capital a trazer
umas noticiasinhas sorrateiras, que interessavam a todos. Tratava-se
do Vilhegas, fallado em pequenas mas insistentes locaes, no corpo
do jornal, que lhe apregoavam o talento formoso, a sua delicadesa e
habilidade profissionaes, o casamento ajustado, para a primavera, com a
gentil filha do illustre estadista...

Na botica velha o dr. Pinto ria sem respeito das _maximianices_, como
costumava chamar ás espertesas do habil conselheiro, e affirmára ás
gargalhadas, quando viera no _carnet mondain_ de um jornal elegante que o
enxoval da noiva fôra encommendado em Paris, que o vira a fazer em casa
das meninas _Sebastianas_, as pobres costureiras e bordadeiras de roupa
branca, que um escrivão de fazenda chamado Sebastião alli deixára na
miseria.

Chamava o Neves e fazia-o fallar, elogiando-lhe o primo, fingindo-se de
boa fé. O outro, coitado, ia dizendo, no seu grande fanatismo de parente
pobre que julga engrandecer-se com a grandesa dos seus:

—«O rapaz vae a ministro, não tarda, o sr. doutor verá! Não, que uma
cabeça como aquella... ha poucas!

O _finorio_, cofiando as barbas brancas, em que punha vaidade, ria
sorrateiramente, achando que era realmente esperto, que se soubera
arranjar, que casava bem...

—«Mas que bem!—dizia o outro tomando a deixa.—Casamento de trús! O sogro
entende-se bem com elle; ha de leva-lo a tudo!...—Voltando á sua idéa
fixa:—Não tarda que seja ministro, o sr. doutor verá!

—«Sim, sim, é natural. D’aquella massa é que elles se fazem por cá.
O sogro, em demasia conhecido, dá homem por si, sim senhor, é bôa
tactica!—Despedia gargalhadas jubilosas, batendo fortes palmadas nos
joelhos.—É um patusco, aquelle Maximiano! E comem-na, vocês verão!...

Voltava-se para a roda dos frequentadores da botica velha, que iam
rareando á proporção que a _nova_ crescia em créditos e fama, o que
trazia o Domingos estomagado.

O caso do Manuel Duarte responder n’um processo correccional em que o
juiz lhe déra por pena o tempo decorrido na cadeia, antes do julgamento,
isto fundado no exame e na autopsia feitos pelo Vilhegas, com patente
desconsideração ao Ramalho, suscitára contendas varias nos partidarios de
um e de outro campo, e rompimento de hostilidades.

Da parte da velha fallava-se com indignação e sem rebuço no procedimento
do juiz, peitado pelo conselheiro, e de todos os mais que haviam
entrado no conluio. O delegado, um pobre rapaz sem vontade, especie de
serventuario do juiz, torcia-se, mas não fazia nada que fosse contra as
suas indicações.

D’ahi descomponendas nos jornaes por uma parte e por outra, mas
principalmente pelo lado do Maximiano, feitas pelo Telles em redundancias
de estylo a que o Dr. Pinto respondia em chalaça. Nessa tarde caturrava
elle com o Neves, que não queria estar mal com uns nem com outros—«_por
causa da engrenagem dos governos_», dizia.

—«Você desculpe, eu não quero dizer mal do seu primo, mas esta de
certificar que um homem que leva com um marmeleiro na cabeça e morre em
seguida de uma meningite, não é em resultado de pancadas, é de cabo de
esquadra.

—«O sr. dr. bem vê, elle depende do sogro...

—«Deixe lá, ha coisas que se fazem só de vontade. Elle é seu primo, é
verdade, mas isto brada aos céos...

—«Pois decerto, ora essa!... á vontade, sr. doutor; entre amigos não ha
cerimonias, que eu, aqui para nós, o que quero é que o meu primo Emygdio
vá a ministro. Depois é só eu lá chegar...

—«Com certeza... Pelo menos director da instrucção!—ria entre dentes.

—«Eu cá não quero muitas grandezas. Tamanha é a náu tamanha é a tormenta.
Para mim basta-me um logarsito que me dê tanto como o do Manuel Vilhegas,
uns dois mil reisitos por dia... e mais esse mal sabe assignar o seu nome.

—«Não é muito, é até rasoavel,—respondeu com sarcastica seriedade o
doutor—mas diga-me, oh Neves, porque razão se assignavam os seus primos
Viegas e agora são Vilhegas?! Olhe que isto dá-me que pensar...

—«O Emygdio começou a assignar-se assim lá nos estudos, depois os outros
fizeram o mesmo.

—«Diga-me d’essas; é o que se chama uma _nobresa de repuxo_... Elles têm
razão, o nome fica mais bem soante; isto de Viegas lembra pobreza, gente
sem representação...

—«Pois é por isso; elle como está mettido na politica!

—«Não tem outro remedio.

Não se fartava de troçar o pobre homem, com applauso de toda a roda.

       *       *       *       *       *

Na botica nova não era menor a azafama de parlatorio e coscovilhices
azedas.

Quasi sempre era o Telles, como senhor da casa e mais versado em
litteraturas e oratoria facil, quem tomava a palavra para declamar contra
os adversarios.

Achava elle, no ultimo artigo de arromba,—que ninguem de bôa fé deixaria
de seguir essa gloria da terra, esse homem que, nos pinaculos do
fastigio politico, não desdenhava a patria que o vira nascer e para
a qual projectava tantos melhoramentos que fastidioso se tornaria
enumera-los. Melhor seria que o povo abrisse os olhos para vêr, e então
desfolhariam aos seus pés, como homenagem de corações sinceros, as flores
do agradecimento... Bem se sabia o que até ahi tinham feito os magnates
da aristocracia, exhibindo escandalosos feitos de protecção descarada
aos seus adeptos, que de ha muito servem de muletas ao _illustre côxo da
medicina_...

Este era o Ramalho...

Enumerava as phantasmagorias com que o conselheiro trazia embaidos os
papalvos:—telephone para todas as aldeias, estradas em todos os sentidos,
luz electrica, um lyceu, e até um americano a vapor, vários parques
e jardins, e a exploração de umas aguas medicinaes que se esperava
apparecessem na Senhora do Monte...

De jornal em punho o Telles lia ao seu auditorio attento e approvador,
de que era principal figura o Padre Mathias, que dizia com um certo ar de
compunção que ultimamente adoptára:

—«Está bem, sôr Telles, mas veja lá se o povo percebe... Seria melhor
dizer ahi que _esse côxo da medicina_, o tal materialista que não conhece
Deus nem o Diabo, não frequenta os sacramentos e para encobrir a sua
irreverencia se finge philantropo á moda nova, tratando sómente do corpo
e deixando a alma perder-se e cahir nas profundas do inferno!...

—«Isso não; olhe que o povo gosta d’elle e deve-lhe muito. E, escorado
pelo abbade, ninguem poderá chama-lo hereje por não ser um frequentador
assiduo da igreja.

—«Pois ahi é que está o ponto. Os que não são por nós são contra nós.
Acabaram-se os tempos da transigencia culposa. Que o povo saiba que tem
um abbade sem fé!...

—«Homem, não diga isso; eu sou um crente, mas olhe que uma das paginas
mais negras da humanidade é sem duvida a da Inquisição e de todas as
perseguições feitas em nome da religião...

—«Pois sim, sim, você tambem... é um poeta. O que se quer é força, é
energia; se viesse a Inquisição, não se perderiam senão as que cahissem
no chão, como o outro que diz...

—«Isso é retrogradar, padre. Muito ensino, muita luz, é do que carece o
povo.

—«Você parece que me está a sahir jacobino!...

—«Deixe ser, antes isso do que retrogrado...—respondeu o Telles, com uma
importancia impertigada de chefe, vendo-se assim considerado na terra
pela intima amizade que o ligava ao Emygdio.

E, no entanto, nem elle nem o padre Mathias conseguiam manter o
equilibrio de opiniões e ideias que o Maximiano conservára sempre, sem
levantar attritos.

O primeiro não liberto ainda do ideal de progresso que o fizera em
Coimbra o redactor de um jornal republicano em que toda a mocidade
intellectual e livre exposera as suas opiniões progressivas; o outro,
mudado nos ultimos meses, transformado não se sabia bem porque
influencias estranhas...

Havia um certo tempo, desde umas visitas amiúdadas que fizera á capital
do districto e de umas conferencias que tivera, dizia-se á bocca pequena,
com o chefe da sua diocese, considerado o protector do reaccionarismo
regional, que o cura mudára tão completamente que se dizia que o tinham
voltado do avesso.

Seguira o conselho do Maximiano, que, em ar de chalaça, como dizia tudo,
o avisára um dia:—Olhe que isto de _padres liberaes_ é uma asneira. Já
ninguem os quer. Deixe para os tolos dizerem o que pensam... Falle com o
bispo se quer ser o nosso abbade... As coisas mudaram muito nos ultimos
dez annos... Nós só referendâmos o que os bispos querem.

O padre meditára; e n’aquella sua maneira impulsiva e violenta de atacar
as situações, marchára para a cidade, confessára as suas culpas n’uma
confissão geral, e desfizera-se em arrependimentos, que a benção do
bispo santificaram.

Do antigo e expansivo cura de aldeia, gritando aos quatro ventos a
sua revolta ao dogma, a contrariedade da vida que forçado adoptára, o
despreso com que calcava as mais comesinhas noções da honestidade vulgar
e consagrada, pouco ou nada restava, apparentemente.

Sempre sério, olhos no chão, viver regrado e quasi ascetico, toda a
violencia d’aquelle temperamento de camponio mal desbastado se voltava
agora, como arma de dois gumes, tornando-o um fanatico perigoso, que aos
proprios amigos incommodava ouvir.

Entre as beatas já era tido por santo, e não faltava pobre velha senil
que não affirmasse que aquella reviravolta miraculosa tinha sido visão
que tivera na missa, entre o calice e a hostia.

Aproveitando a occasião e para se tornar effectivo e mais assiduo na
convivencia do grupo com o qual contava subir até ao logar ambicionado,
lembrou-se o padre Mathias de implantar n’aquelle meio, até ahi
refractario a beaterios, graças ao bom do abbade, a devoção ao _Coração
de Jesus_.

Fallou com o seu chefe, que lhe louvou particularmente o seu zelo e o
aconselhou a interessar em tão meritoria obra o parocho da freguezia,
porque era da melhor disciplina christã não relegar os superiores.

O cura sorriu: conhecia o bondoso velho que seguia a lettra do evangelho
cuidando cumprir o seu dever de padre, não reparando, na sua simplicidade
de primitivo, quanto se distanciava do catholicismo triumphante...
Tinha a certeza de que o abbade não annuiria ao seu intento, e isso
convinha-lhe para a intriga em que o queria illaquear.

Assim foi. Consultado sobre a urgencia de se abrir uma subscripção
entre os fieis para a compra da imagem do Coração de Jesus, o velho não
acquiesceu a essa opinião e respondeu ao cura:

—«Que bem mais do que de novas imagens precisavam os parochianos de quem
os soccorresse em tanta fome e miseria como havia por esses casebres...

Voltou o padre Mathias a conferenciar com o bispo, aggravando com
unctuosas e velhacas palavras de desculpa o procedimento do parocho—mas
que, graças a Nosso Senhor, as damas fieis se tinham quotisado entre si e
a imagem estava encommendada ao santeiro de mais fama.

Quando chegou á matriz a imagem, reluzente de vermelho e oiro, atarracada
e sem elegancia nem sombra de espiritualidade esthetica, o abbade
mandou-a collocar no altar-mór, visto a recommendação do prelado, sem
reluctancia nem enthusiasmo.

Achava aquillo disparate, com tantos santos que havia na igreja e até na
arrecadação, quando tantas obras de urgencia eram necessarias, desde o
telhado até ao altar do Santissimo.

Passados dias viera o padre Mathias ter com elle para conferenciarem
sobre a festa de inauguração que se devia fazer em breve, com toda
a pompa, e pedir-lhe o seu auxilio moral e bôa vontade para a nova
devoção tão cheia de indulgencias e promessas divinas, pela qual o sr.
Bispo tanto se interessava e n’ella tanto fiava para a regeneração da
humanidade.

O pobre velhote, alma lavada, coração virgem de rancores, respondeu ao
cura:—que interessar-se por essa nova irmandade não podia, pois que
estava velho e cançado. Mas á festa prestaria o seu concurso como a outra
qualquer que particularmente os seus parochianos quizessem fazer. No
entanto, sempre lhe dizia á bôa parte que melhor se lhe antolhava que
protegessem as confrarias existentes e que de tanta utilidade corporal
seriam como por exemplo, a do Santissimo, a da Misericórdia tão digna de
protecção para sustentar o hospital e o asylo, e a da Senhora do Carmo
tão util aos seus associados, e tão antiga, tão portuguesa! Deixasse
aquella, invenção de uma ordem riquissima e poderosissima, que só era bôa
para gente ostentosa e sem obrigações, ou para frades e freiras que pouco
mais têm que fazer que desfiar rezas.

Quando á tarde contou o succedido em casa, a irmã mais velha, que mal se
mexia na cadeira onde a paralysia a tinha presa, levantou do livro que
lia os olhos embaciados de présbyta, e avisára:—que na sua opinião mal
andára usando tanta franqueza com o cura; bem sabia que elle o odiava e
lhe ambicionava o logar!...

—«Cá lhe fica quando eu morrer; deixe a mana estar que o não levo. Não me
dê Deus outros cuidados. Quero mas é descançar, quando a minha vez vier...

—«O mano bem sabe—tornou ella ainda com a sua voz mansa—que o cura é
impaciente. Bem sabe de que gente elle vem, que o pae nunca achou
obstaculos ao seu querer...

—«Ora, mana! Não se faça echo desses boatos!... Dado mesmo que o pae
fôsse, como dizem, companheiro do Braga pae no assalto á casa do Olival,
que culpa tinha o filho?

—«Tinha culpa, tem culpa de ter aquelle sangue—que se fôsse só o roubo da
casa do Olival!...

—«Pois sim, pois sim, não vamos agora esmiuçar a historia dos que Deus
já lá tem e a quem já pediu contas... O rapaz até hoje não tem sido
máu—leviano, doidito, verduras da mocidade... Até bem mudado está elle,
nem já parece o mesmo que era!

—«Pois é o que me espanta, é o que me dá cuidado; a natureza d’uma
pessoa mudar assim d’um dia para o outro, só por grande milagre, mano
Antonio!... E os milagres vão tão raros, que até parece Nosso Senhor já
os não querer fazer!

—«Ora Joanninha, desde que a mana tolhida se pôs só a lêr e a pensar, já
me parece que de todo perdeu a confiança na humanidade; até ás vezes se
me affigura que já descrê mesmo da Providencia divina!?...

—«Nem uma nem outra. Cada vez creio mais na humanidade, que bem guiada
e educada não pode ser má. A Providencia nos acudirá n’este angustioso
transe, em que tudo parece andar fóra do seu logar, em que os pobres, sem
ninguem que os dirija para o bem, pensam na vingança tremenda que fere ás
cegas bons e maus, culpados e innocentes. Mas tambem me convenci de que
a hypocrisia é o peor inimigo do homem justo!... Lembre-se o mano do que
lá diz Frei Luís de Souza:—«Oh abysmo de toda a verdade!... Quão medonho
monstro é a apparencia!»

Olhava o abbade, estarrecido de espanto, do ar illuminado de pithonissa
que a irmã mais velha tomára desde que, paralytica, não se levantava da
cadeira senão para ser levada em braços para a cama.

Desde criança que se habituára a respeitar essa irmã poucos annos mais
velha do que elle, mas que á morte da mãe tomára a direcção da familia
e fôra quem os criára e educára, tendo sempre grande amôr á leitura
e aos livros que em casa dos antigos viscondes, de quem o pae fôra
zeloso e honrado administrador, encontrára sempre ás ordens. Mas nunca,
como n’aquelle dia, comprehendeu quão fundos eram os pensamentos da
intelligente senhora.

Valeu-lhe para acabar o mal estar de tal conversa, a irmã mais nova, que
da cosinha, onde fazia uns bolos, ouvira do que se tratava e viera tambem
dizer:

—«Queira Deus, queira Deus que o mano se não mettesse em alguma!... Não
sabe que o padre Mathias anda agora mettido com todos os beatos; não sabe
que o sr. Bispo o confessou e absolveu?!... Ora Deus queira!... Este
homem é um _barbeiro abafado_, ora porque não faz o mano como elles?...

—«É verdade, sr. abbade,—acabou por intrometter-se a criada, que no
costume patriarchal das boas casas antigas tinha vindo ao desmamar para
a sua companhia e fallava como da familia—já me disse a mulher do Antonio
da Capellinha que é raro o dia em que elle não vae a casa da viuva do
Marques; que é ella quem protege a irmandade e quer trazer para cá um
collegio de jesuitas e irmãs de caridade para o hospital.

—«Vê o mano?!... Ricos, protegidos do sr. Bispo, e com os jesuitas a
aconselha-los, o que será de nós?!...

—«Hade ser o que Deus quizer, mas hão-de contar commigo—respondeu
o abbade, com uma ruga na fronte. Depois terminou alegremente,
levantando-se da cadeira onde se assentara defronte da irmã—Mas deixem-se
vocês de lamentações e vamos ao nosso jantar. São bem capaz de me terem
deixado esturrar as sôpas, suas falladoras. É aviar, que ainda vou a
Maceira ver um rapaz que lá está com um typho e que aquelles brutos não
querem tratar. Á tardinha heide estar de volta para examinar os pequenos
da doutrina, á noite a lição do filho do José sapateiro que tem o exame
á porta, coitado!... Hoje é um dia cheio e ainda vocês me vêm maçar
com essa historia de beatos e Coração de Jesus!... Nem que Jesus nos
não tivesse já dado o coração no Evangelho; eram lá precisas aquellas
maluqueiras, que até contradizem a palavra do Senhor!...

—«Ai mano, não diga essas coisas, credo! Se o ouvem!...

—«Deixe ouvir, dê-nos a mana os bolos e deixe o resto por minha conta.

Tinha sido um bom dia para o abbade. Quando elle assim o achava e
satisfeito se assentava á meza comendo as suas sopas, é que muita lagrima
podéra enxugar, é que muita dôr, muita miseria, conseguira suavisar.
Era por isso que o povo o estimava como a um pae, e era por elle, por
Josephina, pela viscondessa e pelo dr. Ramalho, todos collaboradores
de uma grande obra de simples beneficencia prática, que a eleição do
Maximiano, apesar de tudo quanto usava gravata lavada, no dizer do
Telles, o seguir, estava muito tremida. Isto, sem contar os caseiros das
tres grandes casas da comarca: a dos Mellos, a dos viscondes e a dos
Athaydes, da Fradosa, ainda seus parentes, que todos á uma, por ordem dos
patrões, levavam votos ao visconde.



XV


Como se previa, e apesar da lucta desesperada do partido maximianista a
que se tinham aggregado todos os _trunfos_ da terra, ainda n’essa lucta
eleitoral fôra o visconde o vencedor. Mas não desanimava nem afrouxava
o enthusiasmo dos vencidos, porque o governo, após as eleições e apesar
da maioria nas camaras, cahira vergonhosamente com a publicidade de uns
casos de empenhos e empregos por demais escandalosos.

Dissolvidas as camaras pelo novo gabinete, esperava-se que o governo em
dictadura marcasse data para eleições, e para ellas trabalhavam já com
affan.

Os partidarios do visconde pleiteavam, mais por honra da firma do que
pelo interesse que verdadeiramente a lucta já lhes despertava, visto que
o chefe a pouco e pouco, tambem, se tinha desinteressado da politica, não
faltando mesmo já quem affirmasse que era combinação com o Maximiano,
senão pouca vontade de gastar dinheiro... Affirmações estas tão gratuitas
quanto mostravam o desconhecimento completo do caracter do visconde, tão
incapaz de se prestar a uma traição assim grosseira como era incapaz de
vestir uma camisa manchada ou uma casaca fóra da moda; tão incapaz de
antepor o dinheiro aos seus compromissos como era incapaz de faltar a
um dever de cortezia ou de acrescentar as suas colleções com um objecto
de que não podesse authenticar a procedencia. Não obstante, era certo e
bem certo que o enthusiasmo da politica lhe passára como até alli lhe
tinham já passado muitos outros. Voluvel, apaixonado e enthusiasta, era
um d’estes caracteres que não se dão a meio e com a violencia passional
com que se entregam a um desejo ou capricho, com o mesmo arrebatamento o
abandonam sem piedade nem recordação.

Ficára, pois, deputado, como ficaria sempre emquanto o recenseamento
não fosse falsificado ou se desse um caso que não previam, pela forca
numerica dos caseiros das tres casas grandes da comarca e pela vontade
espontanea do povo da villa que mais lhe queria, apezar de todos os seus
defeitos, do que ao Maximiano, que não tinha pretensões nem desejos
ambiciosos a realisar-lhes. A noticia de ter vencido recebeu-a com a
mesma risonha indifferença com que receberia a da derrota.

Outro era agora o seu empenho, outra a sua ambição e cuidado.

Como o inverno se passára assim na villa decorria o verão, que esse anno
não chegou a ter o bulicio e o animado convivio dos precedentes.

Ao conselheiro, agora no partido governamental, não convinha affastar-se
muito das altas regiões onde se jogam os interesses politicos; era
occasião de acceitar o pretexto que a mulher francamente lhe fornecia
com o seu odio confessado á provincia em geral e muito particularmente á
terra do marido.

O Vilhegas, casado de fresco, viera apenas com a senhora, no principio
da estação, visitar os paes e irmãos de quem se fizera protector e
respeitoso amigo, seguindo a maxima do sogro: de que os parentes pobres
não se despresam—empregam-se.

E era o que ia fazendo, tendo já á sua conta uma não pequena parte de
responsabilidade pelo dinheiro esbanjado criminosamente n’este paiz.

Mandára ainda pedir licença aos Mellos para os visitarem, querendo
seguir á risca os preceitos do conselheiro que não gostava de levantar
atritos, principalmente com gente rica; mas tanto Josephina como o marido
pretextaram doença para os não receber. A maneira porque se apressára
em arranjar casamento que lhe servisse os planos ambiciosos davam-lhes
a prova de quanto eram justificadas as desconfianças de João e quasi
a certeza de que a morte da filha a causára elle mostrando d’alguma
maneira, que ainda não conheciam, que era a fortuna que elle visava
quando mostrava um tão ardente amôr.

Hortencia, durante a sua estada na villa, aborrecia-se francamente, agora
que já casada não encontrava na conversa com o marido os attrativos
picantes do galanteio, e para uma sã e honesta intimidade espiritual nem
um nem outro tinham alma nem educação. Affirmava cathegoricamente ao
Móttasinho e ao Telles e mais ás Souzas e ás Cunhas, que lhe formavam a
limitada côrte,—que se o Emygdio quizesse podia ficar; emquanto a ella,
_pas possible_... A mamã esperava-a para irem juntas para Cascaes e não
podia trocar por nenhuma a companhia da mamã, que demais a mais escolhera
a praia _chic_, onde se reune a côrte e com ella toda a _haute-gomme_...
_Cela va sans dire_...

A Candida tambem conseguira que o Braga a não obrigasse a vir alli passar
o verão, tendo demais a mais o _chalet_ em obras, que lhe não podia dar
o conforto a que estava habituada. E o visconde, a pretexto de que o ar
das montanhas não é aconselhado aos cardiacos, convenceu a viscondessa
em procurar para a mãe uma estancia onde passasse socegada os grandes
calores de julho a outubro, mais perto da casa e das commodidades da
capital.

Apenas João e Isabella se estabeleceram alli, depois de uma visita larga
a Inglaterra e d’alguns doces dias de inverno italiano passados a reverem
juntos o que ambos já conheciam e admiravam.

Mas nem um nem outro animavam a terra: «dois bichos—no dizer espevitado
das Souzas—que nem sabiam para que lhes servia o dinheiro e a educação...

Indifferentes a taes opiniões, um e outro começavam a pôr em prática
o sonho de altruismo que juntos tinham architectado. No meio da sua
grande felicidade um como pugir de remorsos lhes amargurava o espirito,
achando injusta a vida que a uns colloca tão alto, bafejados pela fortuna
em calentoso ninho, e a outros faz rastejar tão baixo pela estrada
poeirenta da miseria e da dôr.

Ha muitos, ricos como elles, que sentem no silencio das suas almas
piedosas o agrôr da comparação, e gosando do desafogo da propria vivença
não podem fechar os olhos inteiramente á pávida realidade. Mas, incapazes
de juntar a acção ao pensamento, traduzem essa piedade que os devia
tornar uteis obreiros na grandiosa obra que o futuro reclama, dando
esmolas, protegendo um ou outro, associando se á caridade farfalhuda e
acomodaticia, fazendo o que se convencionou chamar o _bem philantropico_,
e não passa de fórmula egoista para assocegar aturvados ânimos em
sobresaltos...

João e Bella intentavam pôr em prática o seu ideal humanitário, não dando
esmolas para entreter o vicio da pobreza mas educando individuos que,
conscientes do seu valor e dos seus direitos e deveres, se acerquem da
meza lauta que a natureza e a industria reservam aos que juntarem ao
esforço material de obreiros a intelligencia e a educação.

Ajudada pelo dr. Ramalho e pelo velho abbade, já Isabella tinha
organisado um rasoavel serviço de inspecção á miseria, que nas populações
ruraes é tanto ou mais desoladora do que é nas cidades. Visitados pela
doença e pela morte amiudadas vezes, curtindo fomes e frios sem alimento
nem abrigo, quasi inconscientes e irresponsaveis pela ignorancia profunda
em que se abysmam, mais do que a entes humanos se podem comparar a bravos
animaes do monte...

Adaptando provisoriamente para hospital e para escolas duas velhas
casas pertenças da familia, esperava em breve completar esses beneficios
criando officinas, instituindo a créche, juntando ao asylo-escola para
crianças, um asylo para velhos, mas governado de maneira a não fazer dos
desditosos que se obstinam em viver uma especie de revoltados contra a
propria beneficencia que os força á prisão.

Entretanto ia João pondo em execução o seu plano de um bairro operario,
com casas simples mas não desprovidas do encanto que só a arte pode dar,
bem saneadas e arejadas, com janellas e portas bem largas e com seu
jardinsinho á frente e pateo interior onde se faziam as construcções
proprias para acomodação dos animaes, que em toda a população rural fazem
parte integrante e importantissima da familia.

João, todo radical e violento, como o avô materno que não transigira
nunca com opiniões e preconceitos alheios, queria dispensar o concurso
de toda essa gente da villa, que de sobra conhecia, e entender-se só com
aquelles que devia melhorar. Mas n’isso não concordavam Isabella nem
o abbade e o próprio Ramalho, antes mais habil lhes parecia utilisar
elementos existentes para a organisação immediata de uma escola onde
rapazes e raparigas aprendessem officios e misteres que os habilitassem
a ganhar a vida no futuro. Para isso foram convidadas as pobres
_Sebastianas_, que serviriam como professoras de bordados e roupa branca,
o que fez com que a Aurora Costa, invocando a amisade da Pillar, viesse
pedir tambem um emprego—pois o pae ganhava pouco e a familia era muita.
Sabia talhar alguma coisa, se bem que nunca tivesse sido ensinada, e
fazia flores e bordados muito especiaes em cascas e aparas...

Isabella teve um sorriso de amargurada censura a tão pouco prática
educação e disse-lhe—que sim, que a utilisaria como ajudante de uma
professora de córte que mandára procurar em Lisboa, e que, mais tarde,
se essa senhora não quizesse ficar ou ensinasse outra qualquer coisa, a
Aurora, em sabendo bem, tomaria o seu logar.

—Mas—lembrava-lhe ainda—precisava d’uma senhora que a auxiliasse no
trabalho de escripturação e contas que taes emprehendimentos necessitam,
um trabalho material que não requer grandes conhecimentos e sim
escrupulosa meticulosidade e uma lettra rasoavel. Se quizesse, podia
ficar já n’esse logar.

A Aurora córou e confessou, vexada, que escrevia muito mal e que de
contas sabia pouco; piano é que tocava alguma coisinha, se fosse preciso
ensinar...

—Não,—respondeu-lhe a outra tambem vexada porque, naturalmente bondosa,
nunca fazia sentir a ninguem a sua inferioridade—piano não precisava,
porque pretendiam educar para o trabalho e para a vida, e o piano, como
qualquer outro instrumento ou arte, só se queria cultivado em pessoas de
rarissima vocação e ensinado por professores bem habilitados, aliás era
uma inutilidade. Mas experimentasse ella estudar um pouco de contas e
português e depois com a prática faria o resto.

O abbade andava radiante: aquillo sim, aquillo é que era a verdadeira
religião, que fervorosamente praticava. Mal de manhã dizia a missa
conventual, abalava para os campos a farejar desgraça, que podessem
minorar. E doente que encontrasse ou criancita a mandar para a escola,
ou mulher a reclamar cuidados de sabia hygiene, era logo apontado na
carteira, com o alvoroço de quem aponta rendoso negocio a aproveitar e
que não deve esquecer.

Práticas que fazia aos domingos todas versavam sobre a conveniencia de se
instruirem e trabalharem, que era assim que Deus queria o seu povo.—«Casa
onde não ha pão todos ralham e ninguem tem razão—dizia na sua phrase chã,
simples como a sua alma e facil de comprehender por todos os humildes
que lhe frequentavam a igreja—ora vocês trabalhando e tendo saude têm
que comer. Aos domingos, se se entretiverem a estudar um pouco, a lerem
bons livros para não ficarem uns brutos como os animaes que os servem, se
cultivarem as suas flores no quinxoso ou nos vasos da janella, que isso
não é peccado nenhum, desamparam as tabernas e não se mettem em rixas e
bulhas que não dão bom pão. Olhem vocês que o que Deus quer é a alegria e
a felicidade de nós todos; deixai dizer quem préga o contrario...

Na sua santa inconsciencia, que bem preoccupava as irmãs, deixava que
o cura se assenhoreasse a pouco e pouco das obrigações da parochia que
traziam bem estar e lucro, que as outras as ia desempenhando sempre o
velho. Era agora elle, o padre Mathias, quem dizia a missa das onze
e esperava na sachristia a passagem das senhoras que se habituavam
a encontra-lo alli para tratarem dos negocios espirituaes em que as
entretinha. Era elle que as confessava e lhes insuflára o gosto pela
devoção do mez de Maria, tão habilmente escolhida para esse dulcido
mez de maio em que as rosas desabrocham perfumando a atmosphera, e os
corações moços deliquiescem em ansias de consoladora ternura... Era quem
lhes fazia as novenas e lhes levava as filhas á primeira communhão, em
procissional theoria; era o indispensavel em tudo.

E gabava-se para o Telles:

—«Você verá quem vem para a festa do Sagrado Coração! É uma bomba que ha
de estoirar ahi.

—«Quem é então?

—«Se lho disser fica sabendo mais do que eu...

—«Ora diga lá, ande, bem sabe que sou de confiança. É alguem que eu
conheça?

—«É alguem que nos dá a certeza de nunca mais cá metterem o bico no
concelho...

—«Ah!... É o André de Athayde?...

—«Adivinhou ou alguem lho disse. Apre! Tem custado, mas agora é que é
definitivamente nossa a victoria.

—«O recenseamento já não estava mau...

—«Mas o grande caso ainda não é esse...

—«Então qual é?

—«Não digo; confio em você mas o seguro morreu de velho...

—«Olhe que isso até me offende! Sendo eu de confiança do Emygdio, que até
me fará seu secretario particular logo que seja ministro, nem sei agora
o que pensar dos seus segredos.

—«Vá lá, não se zangue. O caso é que não só vem o André Athayde com o
Padre Sancho como trazem os dois missionarios que têm levantado toda essa
provincia com a sua palavra temerosa!...

—«O que vejo é que você mudou de todo! Ha pouco mais de um anno que era
todo liberalão e até tinha raiva a esse André da Fradosa por causa de ter
causado a morte ao filho, com a beatice. Lembra-se?

—«Agora vejo as coisas melhor... O Pedro era um asno, quem no mandou
fallar antes de tempo? Casasse primeiro que depois de senhor da fortuna
da prima é que podia cantar...

—«Mas você era o primeiro que dizia que elle era uma joia, um caracter
esplendido, e que foi o pae quem o matou com as más ideias reaccionarias.

—«Não se queria sugeitar, pois neste mundo quem quer ser independente de
mais acontece-lhe assim. Diz que foi o pae que o matou, ora! Foram mas
foi as pandegas lá de Paris.

—«Oh homem, já lhe ouvi dizer, e a muita gente mais, que o Pedro era
até um rapaz honesto e sério, como dizem que é o sobrinho, que foi
companheiro e amigo intimo do João de Mello...

—«Pois sim, era até honesto de mais porque chegava a ser parvo com as
taes franquesas. E d’ahi, que mal lhe faziam os padres e as irmãsinhas lá
em casa? Deixasse. Hãode ir para muito longe os taes meninos educados nas
ideias modernas!

—«Oh Sr. Padre Mathias, olhe que parece que o voltaram de pernas para o
ar. Parece até impossivel que um homem como você era se mudasse assim!
Isto até me faz mal, creia. Tomára que o Vilhegas me arranjasse um logar
lá por Lisbôa, porque aqui abafa-se. Hãode tornar esta terra inhabitavel.
Eu, que me preso de ser liberal e tenho confiança que a sciencia e a
instrucção hãode transformar o mundo, sinto-me manietado e impotente, com
os nervos tangidos n’um sobresalto deante do reaccionarismo triumphante.

—«E você cuida que lá por Lisbôa não é o mesmo?... Está enganado,
pergunte ao Vilhegas quem é que lá manda agora.

—«Mas a par d’isso ha muito quem se liberte, ha maneira mesmo de se
reagir sem todavia ser um revoltado.

—«Pois sim, faça você versos, que eu cá trato da vida comforme calha. E
deixa-me ir á prosa, que é como quem diz á vida, que a morte é certa.
Preciso de encontrar sem falta aquelle velho tonto do abbade que sae de
madrugada e só recolhe á noite. Hade ganhar muito em se metter com a
ralé, deixe, assim como o Ramalho e a tal inglesa e o marido que querem
fazer d’estes brutos gente livre!...

—«E porque não?

—«Você é _nephelibata_, oh Telles! Eu cá não o entendo. Pois se approva
aquellas _lindas ideias_,—que lhes hãode dar na cabeça, verão!—vá com
elles.

—«Olhe, sr. padre Mathias, a dizer a verdade, a minha sympathia
intellectual têm-na toda. Não vou com elles porque sou amigo do Emygdio
e tenho necessidade de subir, de ser mais alguma coisa do que simples
boticario d’aldeia. Para isso têm cá o Domingos desde que você o passou,
com a tropa toda, para o seu lado...

Torcia o bigode, ironico, emquanto o cura, para não responder, protestava
pressa e ia dizendo entre dentes:

—«Pois sim, rala-te! Tem mais juiso do que tu com as tuas
republicanices...

Foi a correr para apanhar o abade na igreja depois de recolher do enterro
de uma pobre viuva, que deixava quatro filhos sem outro patrimonio mais
do que o dia e a noite. Preferia fallar-lhe alli, de surpreza, antes do
que em casa, onde os olhos de D. Joanna o obrigavam a morder-se n’uma
impotencia de remordimento culposo.

Tão feliz que foi a tempo de o abordar já quando recolhia, tiradas as
vestes cultuaes, e, de passagem, piedosamente, se ajoelhára nos degraus
do altar mór.

Pedia-lhe o seu consentimento e concurso para que nova e mais luzida
festa se fizesse ao Coração de Jesus, coincidindo com a communhão das
meninas, que andava preparando...

—«Que sim,—respondera o velho, farto de ouvir reprimendas da irmã mais
nova e de perceber os sustos em que vivia D. Joanna—que prestaria o seu
concurso de bôa vontade. Como era servir a Deus, de qualquer maneira lhe
agradava...

—«Mas, sr. abbade, é que nós tinhamos ideia de convidar os dois santos
missionarios que têm levantado a sua voz auctorisada até na Sé, deante
do sr. bispo, para virem fazer algumas práticas e preparar as crianças, e
moralisar esse povo tão desenfreado...

Aqui deu um salto o velho abbade e, olhando o cura de alto a baixo,
respondeu-lhe com uma voz vibrante, que o tornava respeitavel, apesar da
sua estatura quasi a dobrar e da sua pobre batina no fio:

—«Mal me parece, sr. cura, que venham a esta terra, onde só ha ovelhas
mansas, esses caçadores de terriveis lobos, para, em vez dos seus
pastores naturaes, as conduzirem a melhor pastio. Se para missionarios
têm vocação, para que preferem estas bôas terras onde todos adoram Nosso
Senhor Jesus Christo e na sua lei vivem, e abandonam tanto infiel á negra
ignorancia e idolatria?!...

—«Nós não temos nada com isso; prouvera a Deus que eguaes meritos me
fizessem a mim tão admirado e estimado como elles.

—«Pois sim, mas esta gente é que não precisa de quem lhe faça práticas,
antes lhe faz mingua quem lhe dê pão...

—«Sr. abbade, sr. abbade,—gritou o cura desvairadamente, vendo-se
contrariado por quem até ahi lhe não tolhêra o passo.

—«O que é?—respondeu o velho com serena grandeza.

—«Veja o que faz, olhe que o sr. bispo approva a nossa ideia e elle
saberá quem nos contraria.

—«O sr. bispo, como meu superior, póde affastar-me da minha igreja, mas
não pode, emquanto eu estiver sentado n’aquella cadeira de parocho,
obrigar-me a receber intrujões que só querem desvirtuar a palavra de
Christo e conduzir o povo ao barbarismo. A isso não me obrigará elle, nem
ninguem!...

—«Previno-o mais uma vez, sr. abbade!... Olhe que lá diz o dictado: «com
teu amo não jogues as peras».

—«Podem tirar-me o pão, mas ninguem me obrigará a falsear a minha
consciencia.

—«Aqui não ha consciencia, ha desobediencia,—gritou fóra de si.

—«Vá, sr. cura; demais sei eu o que o senhor é e o que pretende.
Diga ao sr. bispo que estes braços trémulos de velho, cançados de se
levantarem em supplicas ao Deus piedoso e bom que nos deixou o testamento
do Evangelho, ainda terão forças para pegar na enxada e ganhar o pão
honradamente para mim e para os meus.

—«Sr. abbade, não me cance a paciencia—rouquejou o cura, vendo o
sachristão e o sineiro pararem assombrados á porta da sachristia.

—«Paciencia demais tenho eu tido, sr. cura, e já me basta de lhe ouvir
as hypocrisias e fingimentos. Nunca por nunca, fique sabendo, emquanto
eu fôr parocho d’esta terra, hãode ouvir os meus parochianos quem os
desnorteie e afflija.

O padre Mathias sahiu a deitar lume pelos olhos—na expressão ingenua do
sachristão—e n’essa mesma noite partiu aforradamente para Fradosa, a
conferenciar com o fidalgo e com os missionarios seus hospedes.

Tres dias depois teve a resposta á sua justa objurgatoria, na noticia de
que a missa lhe era tirada, ficando suspenso emquanto não respondesse ás
accusações que lhe eram feitas:—de despresar o culto divino, tratar tão
sómente do bem corporal, entravar com seus discursos e opposição toda a
iniciativa dos bons catholicos para uma salutar propaganda religiosa... A
seu tempo seria chamado para se defender.

—«Defender-me eu?—dizia, mal segurando a carta nas pallidas e vacillantes
mãos—defender-me de quê, se de nenhum mal me accusa a consciencia?!...

—«Então que lhe dizia eu, mano?! Se o seu defeito é ser franco!...

—«Pois fui e não estou arrependido; tiram-me a igreja, tiram-me as
obrigações, mas tenho as devoções...

—«E obrigações tambem, querido amigo,—disse Isabella que tinha entrado,
chamada pela criada do abbade que n’um pulo a fôra prevenir d’aquella
grande afflicção.

Abraçou os velhos soluçantes, tentando em vão conter as lagrimas que a
pungitiva scena lhe repuxava aos olhos.

Por fortuna não tardou que João accorresse ao seu chamamento e, para
maior consolo dos velhos, acompanhado pelos paes: Josephina, não querendo
abandonar as amigas n’essa hora de provação; Antonio de Mello, muito
grave, pesando bem as palavras da carta que o abbade lhe entregára.

—«Mas o que é isto—dizia João, animadoramente—ha aqui quem chore e
esmoreça por ser perseguido em nome da hypocrisia e da ambição?!...
Ora vamos, tia Joanna—desde criança que assim chamava a velhinha, que
bem como sobrinho o amára sempre—isso nem me parece seu! O nosso abbade
já o não é da parochia, melhor nos póde servir e ao povo que tanto ama.
Tiram-lhe a igreja, tem a escola; tiram-lhe a missa, tem a communhão
espiritual dos infelizes. Não acompanhará os mortos que vão para a vala,
ajudará a bem morrer os que não tem que deixar em testamento...

—«Vamos, sr. padre Antonio,—ajudou Isabella—mais do que nunca o seu
concurso nos é preciso, mais do que nunca é urgente que se dedique á
nossa obra de redempção.

—«Nada de lagrimas, que felizmente não lhe tiram o pão. Procuravamos um
director para o asylo, têmo-lo felizmente agora, e o melhor que podiamos
esperar.

—«Não é a falta de dinheiro que nos mortifica, Joãosinho, é a
desconsideração...

—«E vêr aquelle marôto tomar o logar do nosso irmão, como se já estivesse
morto!—soluçou a outra irmã.

—«Deixe, mana, que isso não me magôa. Bemventurados os que soffrem
perseguição pela justiça. E vamos mas é tratar de sahir d’esta casa, que
desde hoje deixa de pertencer-me.

—«Ora até que emfim!—disse João, sorrindo—É preciso trabalharmos todos
para hoje mesmo irem para nossa casa e deixarem a residencia para o _sr.
cura_...

—«Não, prefiro que me alugue a primeira casa que se acabou no nosso
bairro. Pois não sou eu agora um operario, um trabalhador, como aquelles
a quem as destinamos?!

—«Concedido e approvado, e será a melhor festa de inauguração que
podiamos sonhar!

—«Chega a ser symbolico—concordou Isabella gravemente—e hade dar-nos
ventura, porque prova a justiça da nossa causa.



XVI


Ia o inverno quasi no fim, e, apesar de não estar frio, os ultimos dias
tinham vindo tão chuvosos e tristes que a viscondessa se conservava junto
do fogo n’um enregelamento d’alma tiritante de abandonada e tediosa.

O que lhe custára esse ultimo verão que passára, sacrificada, sem ir
gosar os seus mezes de verdadeiras férias na casa de provincia em que
tinha nascido e onde lhe andavam esparsas as melhores saudades da sua
vida, diziam-no bem o empallidecimento das suas faces, o amortecimento
dos seus bellos olhos de peninsular. A melancolia que a principio fôra
uma ligeira sombra, como nuvem que se esgarça e dilue em céo puro,
começava a avolumar-se, carregando-lhe a expressão e avelhentando-a quasi.

Era a impressão que teria quem lhe podesse vêr o ar mortiço, o
quebramento de forças e de vontade que a tinha alli em frente do
fogão,—um livro aberto, no regaço, os olhos presos na chamma que se
avivava ou amortecia, seguindo caprichos de fórmas e phantasias de
desenhos varios.

N’aquella hora triste que precede a noite, quando o céo enlividece com a
ultima claridade de um dia que se arrastou pardacento e molle, e nas ruas
encharcadas o gaz começa a reflectir-se em largas manchas espelhadas, os
pregões n’um rouquejar de miseria atiram para a vida o ultimo soluço e
os que passam açodados sob a chuva têm o ar de sombras que se esgueiram
e desapparecem mysteriosamente na noite, a viscondessa sentia-se tão
desoladamente só, tão abandonada de gosto e desejo que pouco mais tinha
da vida além do brilho dos olhos, que conservava presos no faiscamento do
brazido.

Cahira, havia mezes, n’uma d’essas tristezas vagas e sem causa aparente,
que nenhum divertimento consegue afugentar e que já na medicina é tida
como prognostico de doença que é das mais teimosas e caprichosas que
atacam as almas e os cerebros rudemente experimentados pelo trabalho ou
pelo soffrer.

É que a paixão de Bella e João, observada e sentida de perto, como se a
sua alma lhe fôsse abrigo, levara-lhe todo um anno n’uma sobre-excitação,
n’uma alegria que a volvera criança, que a fizera viver essa época unica
da sua existencia em que amara, fôra amada e sonhara a vida um roseo
sonho sem despertar, que julgou a realidade.

Ao lado da amiga, aconselhando-a, acompanhando-a e guiando-a em todo
o complexo assumpto do enxoval, o seu espirito chegaria, talvez, a
possuir-se da ideia de que era sua aquella felicidade.

Depois, com o casamento d’elles, a solidão fizera-se-lhe mais completa,
a sua alma cahira mais fundo na indifferença d’uma existencia que não
tinha um fim.

É certo que não abandonara o que chamava os seus deveres de mulher de
sociedade, tendo camarote em S. Carlos, indo ás primeiras representações,
frequentando as festas elegantes, dando o seu nome para todos os
divertimentos de caridade, recebendo semanalmente n’umas reuniões intimas
a que ia toda a Lisboa, ella que não tinha intimidade com ninguem.

Mas tudo isso o fazia por habito, com o espirito alheado e desinteressado
d’aquella vida em que o corpo se lhe fatigava.

Não obstante,—tão grande é em nós essa força!—adquirida pelo uso
conseguia communicar ás suas festas uma alegria de que estava bem longe,
e tinha espirito e intelligencia bastantes para intellectualisar mesmo
essas reuniões, que havia dois invernos estavam na moda e para as quaes
se mettia empenhos para ser convidado, como se fosse a iniciação da
suprema elegancia ser recebido n’aquelle interior aristocratico.

Na verdade, a severa compostura do seu porte e a graça exangue do seu
sorriso diziam bem com o rico mobiliario herdado e que o visconde
acrescentava sempre n’um enthusiasmo de apaixonado bric-a-braquista.

Entre os pesados cadeirões com pés de garra, os tamboretes de velludo
lavrado, os pannos d’Arrás forrando as paredes onde os avós se alinhavam
em solemnes attitudes, os reposteiros armoriados, os bufetes e
contadores, n’uma uniformidade de estylo que era a maior preocupação do
visconde, essa nobre figura de mulher d’um ancestral perfume como que
completava o conjuncto.

No entanto, a verdadeira alma de todas aquellas festas era o proprio
visconde, que nos ultimos tempos mudara as suas predilecções e habitos, a
quasi ser outro homem. Conservava-se sempre no salão junto das senhoras,
indo de fugida e contrariado á sala de jogo, respondendo distrahidamente
a quem o abordasse para negocios e politica.

Tornára-se o idolo das mulheres, que lisongeava nos seus gostos e
caprichos, discutindo modas, organisando festas onde podiam exibir o
encanto dos sorrisos e o luxo dos vestidos copiados dos grandes retratos
de mestres, escolhendo as musicas com que as fazia dançar, e não deixando
fugir os rapazes para as salas de fumo, sendo emfim a alma de toda uma
sociedade que vive para se divertir.

Tinha ditos de espirito que faziam época, e a pessôa que distinguisse uma
vez tinha a certeza de estar em evidencia, pelo menos oito dias.

Mas eram ainda as mulheres as suas mais sinceras admiradoras, porque lhes
deviam momentos de orgulho satisfeito, porque as envaidecia e lisongeava
sem o dizer, só porque era um homem d’espirito que se divertia e se
mostrava alegre junto d’ellas.

Por isso sorriam n’uma tacita desculpa, quando os descontentes e os
adversarios boquejavam sobre a sua grande intimidade com o Braga
usurario, que aproveitava a situação politica do Visconde para fazer o
seu jogo e augmentar a fortuna, sem embargo do fausto em que a Candida
vivia.

Tambem esta se tornára a mulher da moda, em que todos fallavam, que as
modistas vestiam como figurino, que os homens cortejavam, que as outras
invejavam, procurando-a e convidando-a, não obstante, para todas as
festas, porque seria uma falta de actualidade imperdoavel não mostrar
entre as flores das grandes jarras da China, os espelhos de Veneza e os
biombos laqueados, esse busto de mulher que se desnudava com orgulho e
tinha soberbas attitudes de marmore antigo.

Sorria, sentia-se feliz, quasi bondosa á força de felicidade n’aquelle
meio elegante e futil que correspondia a todas as aspirações do seu
espirito. Se n’elle tivesse nascido, se não tivesse consumido a infancia
no sonho ardente de todos os gosos que o dinheiro pode trazer a uma alma
que de vaidades vive, não teria sido a mesma Candida que empurrara para a
sepultura a que lhe fôra mais do que irmã.

Perversamente egoista e ambiciosa era tão culpada por isso como pela
belleza fatal que a tornara uma força da natureza.

Filha do meio, herdeira d’um sangue que o alcool envenenara, adulada em
vez de severamente orientada pela educação, era como bella e orgulhosa
flor cujo pé mergulhado no pantano de morte e podridão nutre o encanto
das suas petalas.

Desvanecida a anthipathia que a principio inspirara á Viscondessa,
tornara-se á força de delicadezas e blandicias a sua amiga mais intima,
quasi da familia, um dos atractivos das suas festas. E n’esse convivio
aprendêra o segredo de usar o luxo com a indifferença elegante, que raro
alcançam os ambiciosos que a fortuna visitou tarde, já depois da miseria
lhes ter imprimido a marca de vulgaridade.

A Viscondessa é que não era feliz n’um meio onde tudo é falso mas
brilhante, onde só se cuida de apparencias, n’uma sociedade que se
acotovella desrespeitosa na ambição de gosar e subir, n’uma sociedade que
despresa almas e sómente se curva ao dinheiro e ao poder.

D’ahi aquelle eterno sorriso, aquelle deixar correr a existencia sem
lagrimas nem alegrias, que lhe dava o ar mortiço e egual de quem anda por
habito no mundo, sem energia nem desejo de correr á feira d’interesses e
luctas que desvaria quasi todos.

Sentia-se só. Faltava-lhe a companhia de Isabella Burns, cujo espirito
arejado e vivo se tornara uma necessidade do seu coração. Porque, se é
verdade que Bella tinha uma dôce e nobre alma feita para comprehender
os mais elevados ideaes, no seu espirito deixara fundo traço a educação
prática que recebera. Era uma meredional pelo queimor do sangue, pela
vivacidade da phrase e pela paixão; mas tinha a dar-lhe a fórma viavel no
mundo o altivo bom senso, que a tornava um espirito prático, um d’estes
caracteres que as mesquinhas contrariedades não quebrantam e á força de
persistente energia realisam o que no dizer da maior parte não passa de
utopias de sonhadores.

As suas cartas vinham cheias de enthusiasmo pelos trabalhos já
executados e vibrantes de esperança pelo muito que ainda tencionavam
fazer. Fôra por ellas que a viscondessa soubera da intriga que tornara
o velho abbade uma victima das invejas e ambições do cura, e fôra por
ellas tambem que lhe constara a entrada para o hospital e para o asylo
da Misericordia das irmãs hospitaleiras, tornados assim succursaes de
conventos e collegios, com pretexto de beneficencia... O que podiam fazer
os seus amigos n’uma terra assim illaqueada, com a protecção interesseira
do Maximiano que sem embargo se apregoava ainda um velho e convicto
liberal?!... Por ella, sem força nem vontade para luctar, decerto que
desistiria limitando-se a fazer o bem compativel com as suas forças. Mas
Isabella protestava.—Que lhe importava que todos esses burguezes roidos
de ambições e mesquinhos de interesse preferissem continuar a viver na
ignorancia e na falsidade?! Ella oppunha-lhe o futuro com a fundação da
sua escola de enfermeiras para a qual o tio lhe abrira já um crédito
no banco de Londres, opporia a illustração e a intelligencia á rotina
e á ignorancia. Quando tivesse no seu instituto enfermeiras bastantes,
educadas segundo os preceitos da sciencia e da hygiene moderna, com ellas
se apresentariam a todos os medicos dos hospitaes portugueses e veria
então a Maria Helena se esses homens, que representam a sciencia e são
como que os fiadores da vida de seus irmãos, teriam coragem, ainda os
mais reaccionarios, para lhes preferirem outras, ainda que bondosas, mas
sem illustração ou curso que as faça uteis collaboradoras na obra da
sciencia. Esperava fazer em Portugal a luminosa obra que em Inglaterra
realisou Miss Florence Nightingale, assim vivessem... E com respeito a
asylos e escolas o seu projecto era o mesmo... A não ser que n’este pais
já se tivesse obliterado por completo a noção da justiça, claro que os
mais bem apercebidos para a lucta é que seriam preferidos...

Maria Helena duvidava... tinha já visto tanto e sentia-se tão desanimada
de triumphos que a politiquice e a mariolada eleitoral não bafejassem,
que sem querer o espirito se lhe entravava na descrença que aliena tantos
corações honestos, que quebra tanta iniciativa proveitosa.

Quedava-se n’aquelle vago scismar que era agora a sua melhor distracção,
quando uns passos apressados pararam á porta e uma voz perguntou de fóra:

—«Minha senhora, minha senhora, posso entrar?

—«Entra.

E Rosalina, a criada de quarto, uma trigueirita alegre que adorava a ama,
entrou dizendo vivamente:

—«É a senhora D. Bella, apeou-se agora, vae entrar...

—Que tolice!—duvidou, entre alegre e desconfiada, a viscondessa.

—«Tenho a certeza!—affirmava a rapariga, expansivamente, feliz em trazer
uma alegria assim.

Emquanto ella ia á janella ver se descobria alguma coisa que confirmasse
a noticia, Rosalina accendia o candieiro velado pelo _abat-jour_ de
seda rosa e dispunha com uma certa ordem os livros e retratos que se
amontoavam sobre o grande buffete do centro.

Mas a porta abriu-se logo e a voz clara de Isabella chamou:

—«Maria Helena, estás aqui?

Por um momento as duas estiveram abraçadas, beijando se e rindo com
aquelle riso chalrante de mulheres novas que se estimam e se vêem depois
de grande ausencia.

—«Bôa surpreza! Como se resolveram?...—perguntava, custando-lhe ainda a
acreditar.

Foi preciso que Bella recebesse primeiro os comprimentos de Rosalina
e lhe desse noticias circunstanciadas dos seus, que tinham ficado de
saude e mandavam recados; que se desembaraçasse depois do chapéo e da
grande capa de viagem e passasse ligeira os dedos pelos cabellos, a
concertá-los, para responder ás perguntas insistentes da amiga.

—«Não imaginas como vinhamos alegres pela alegria que tu sentirias—dizia
pouco depois.—Durante a viagem não fallámos n’outra coisa, o João e eu.

—«É verdade, e o João onde está?

—«Foi arranjar quarto no Alliança e mandar para lá as malas, emquanto eu
vim dizer-te que tinhamos chegado. Quiz ir ajuda-lo, mas não consentiu
porque entendeu que nós estavamos anciosas por nos abraçarmos. Era
verdade, não era?

Voltou-se toda, pondo as mãos nos hombros da amiga.

—«Mas o que é isso, Bella?! Estás d’uma gordura espantosa!

Rindo muito, a outra sentou-se com a maneira pesada e desgraciosa da
mulher gravida, e respondeu:

—«É verdade, _carrée_, como diria mademoiselle Hortense, d’uma gordura
que nos enche de esperanças e de felicidade.

—«Oh Bella, e não me dizias nada?!

—«Isto era a maior surpreza projectada.

—«Como eu vou amar esse pequenino anjo que é teu, que é do João, que hade
tambem ser um pouco meu, não é assim? E não dizeres nada! É capaz de lhe
teres já feito enxoval sem eu ter pensado em coisa alguma. Quem o déra
ver! de quanto tempo, para quando vem?

Sorria para a amiga, pegando-lhe na mão, enchendo-a de carinhos
maternaes, approximando um tamborete para descançar os pés, voltando o
_écran_ para lhe tirar o calor do rosto, perguntando coisas, fallando
sempre na criancita que lhes viria encher a existencia, vibrando na
approximação d’essa maternidade que a tornava quasi mãe, a ella que
soffrera sempre da esterilidade que a deixara em irremediavel solidão,
quando, por desilludida, o amôr do marido lhe desaparecera.

Bella sorria pacificamente, n’uma grande beatitude de felicidade intima;
a voz tornara-se-lhe mais grave, pontoada de grandes silencios extaticos,
por vezes irritada, outras, á menor contrariedade, chorando nervosamente
por coisa nenhuma.

—«Isto—contava, risonha, á amiga—faz andar o João sempre em cuidados, e
parece que mais me estima ainda pelo que eu soffro.

—«Mas soffres muito, muito? Porque mo não dizias? É preciso consultar
algum medico.

—«Para quê? D’aqui a cinco mezes todos os encommodos serão passados...

—«Como és corajosa, bravo! não sentes então nenhum receio?

—«Para fallar com franqueza, lembra-me ás vezes que posso morrer e isso
faz-me passar um calafrio pela espinha. Não me importaria morrer se fôsse
infeliz, mas sinto-me tão amada, que na verdade seria estupida a morte.
Demais tendo tanto desejo de ter filhos, que já me ia tardando esta
gravidez, que me deixou mais de um anno na espectativa... Nem eu queria
dizer o desgosto que tinha para não torturar o João!... Mas agora estou
socegada; anima-me o pensamento de que ha tantas mulheres que têm filhos
sem perigo, que é impossivel que a mim me não aconteça o mesmo. Quando
vejo os pastores trazerem á tarde para casa os cabritinhos e cordeiritos,
que as mães tiveram no campo entregues a si mesmas, sem trabalhos nem
perigos... penso que nós não devemos ser menos protegidas pela sabia
natureza. É uma coisa tão natural esta!...

—«Pois é, e tu has de ser muito feliz, verás. Dizem os medicos que a
vida sedentaria e a má educação physica da mulher é que trazem todos os
perigos á mãe dos nossos dias.

—«É verdade. Todos os tratadistas o dizem.

—«Já vês; então não ha perigo para ti, que tiveste uma educação physica
bem dirigida e ainda hoje tens uma vida activa.

—«No fim de contas, é uma questão de sorte. Quantos animaes soffrem
e morrem tambem!... No entanto, não vale a pena pensar n’isso, é uma
pequena percentagem.

—«Ora, tu has de ser feliz, tenho a certeza. Quem me dera já ver o
focinhito tontinho do nosso bébé! Eu que gosto tanto de crianças, como
hei de amar esse que é nosso!... Acho-lhes tanta graça quando são
pequeninos e fecham as mãosinhas em murro, e riem, e fazem caretas!...

—«Que estupida coisa não teres filhos! E tantas mulheres que os não
desejam, que os aborrecem até. Vem-lhes como castigo.

—«Pobres d’elles!

—«A proposito, que interessante ha-de ser o desespero de m.ᵉˡˡᵉ Hortense
quando perder a sua elegancia de fada!

—«Faço ideia!

—«Não os tornaste a vêr?

—«Só de longe, felizmente.

—«O Vilhegas está empregado?

—«Quem o poderia estar melhor?! Medico no hospital, especialista em
doenças de senhoras, consultorio elegante na rua Nova do Carmo, deputado,
lente, e dizem que o primeiro indigitado para ministro...

—«Tudo é possivel n’este paiz.

—«Elle é, incontestavelmente, intelligente.

—«Mas tambem, incontestavelmente, um vil, sem caracter nem escrupulos.

—«O que se diz por lá de politica e do Duarte?

—«Que não fazia caso dos amigos, que não respondia ás cartas de empenhos,
e que, por esse motivo, se vão passar os ultimos _fieis_. Com o auxilio
do _vosso rico primo_ da Fradosa aquillo ficou nas mãos dos maximianos,
mas aggravado pelo fanatismo que o padre Mathias vae atiçando...

—«E o nosso abbade? Devia ser uma scena desoladora a da sahida da
residencia!

—«Se te parece ha quarenta annos que alli viviam! Já a tinham como
propriedade sua. A tia Joanna portou-se com heroicidade. O velho chorava
de dôr e de alegria, levado em triumpho por toda aquella bôa gente do
povo que chorava e gritava. As mulheres faziam uma bulha!... Se houvesse
alli quem quizesse dirigi-las, parece-me que o cura havia de passar um
mau bocado.

—«Já lá vi duas revoltas d’essas, interessantissimas, uma por causa
do fisco, outra d’uns maninhos que queriam tirar ao povo,—sorriu a
Viscondessa.

—«Mas o nosso bom abbade não queria violencias; coitado, elle que é todo
paz!... A irmã mais nova é que esteve com os sentidos perdidos immenso
tempo.

—«Parece impossivel como ha coragem para fazer uma intriga assim tão
infame.

—«Pois ha, e lá vive satisfeito e poderoso o sr. abbade que tudo manda.
A tal festa ao Coração de Jesus foi um verdadeiro desafio, as crianças
da communhão todas de branco e fita azul á cinta, coroadas de rosas como
senhoras de Lourdes, os missionarios gritando improperios... As damas de
fitinha escarlate no peito... uma verdadeira revista de forças.

—«E o povo?

—«Deixou passar, indifferente e desinteressado.

—«Ah! este povo português que parece já não ter sangue que lhe suba
ás faces com vergonha... E ainda vocês sonham com o futuro! Com este
povo que só parece já viver pelo unico interesse material de existir e
comer!...

—«Falta-lhe educação. Não desanimemos, que talvez alguma coisa se faça
ainda. O que me consola, n’aquelle caso do da Fradosa, é que o Pedro
ha de vingar a morte do tio e secundar a nossa obra... Por emquanto é
segredo entre nós. É um bello caracter.

—«Basta que seja o que foi o tio, coitado, que bem infeliz foi! Dizes
então que o Duarte deixa de ter partido?!...

—«Parece, quando o _Dómingos_ lhe fugiu!... O outro dia fez-se encontrado
com o João e começou por lhe dizer que estava muito mal, passára toda a
noite a _conspirar_ para ver se lhe passava a constipação.

—«É mesmo d’elle!

—«Mas sabes o que queria? Que empregassemos o filho _Dómingos_ Junior na
pharmacia do nosso hospital, o tal que não fez _inzame_ porque se lhe
tolheu a falla nas _gólas_.

—«E vocês?—perguntou em frouxos de riso.

—«Dissemos-lhe que não. Ficou desesperado e não ha mal que não diga de
todos nós.

—«Agora que está senhor do bolo, ninguem lhe chega á importancia.

—«É verdade, o que é o Telles, sabes?

—«Inspector não sei de quê...

—«É espantoso!... Em todo o caso eu é que ganhei com tudo isso. Ficarei
livre de uma vez para sempre dos influentes politicos?!... Poderei pensar
na minha terra e na minha casa sem o pesadello que me amargurava o tempo
que lá estava, o melhor do meu anno?!...

—«Não soffres então com o triumpho dos maximianos!...—perguntou-lhe
Isabella por troça.

—«Oh filha, quanto lho desejava ha muito!

—«Pois nem elle, nem principalmente a mulher, pensam ter-te dado tanta
satisfação.

—«Bem sei. Nem admiro que não comprehendam o meu sentir. Somos tão
differentes! A politica, esta nauseante politica portuguêsa de empenhos
e partidinhos, fez-se para gente com o seu feitio. Custava-me vêr o nome
do Duarte baralhado no mesmo jogo. Prefiro vê-lo outra vez o _arbitro da
elegancia_...

—«Um novo Petroneo d’este baixo imperio...—riu ainda Bella.

—«Sim, visto por um binoculo ás avessas, como tudo é por cá... Sabes
que a Candida é tambem considerada a elegante maxima de Lisboa?!
Tem feito successo. Se a visses este anno em Cintra, n’uma festa de
caridade vendendo bilhetes na barraca da Belleza, estava realmente um
deslumbramento, a verdadeira personificação do bello. O triumpho mais
completo da materia sobre o espirito...

—«Na barraca da Belleza! Como então?!... Não me contaste isso.

—«Não me lembrou realmente. Era uma barraca que o Duarte dirigia e
ornamentou consagrada ao amôr como supremo creador da belleza universal...

—«E a Candida é que estava n’essa barraca?...

—«Escolheram para lá as mais bonitas, mas era incontestavelmente ella a
mais formosa.

—«E o que vendiam?

—«Objectos d’arte, flores...

—«Dás-te muito com ella?

—«Dou, afinal é uma bôa rapariga que só tem o defeito da vaidade,
desculpavel um tanto em quem tem de que a ter...

—«Não me parece, mas emfim!... Visita-te amiudadas vezes?

—«Coitada, aproveita todos os momentos que lhe deixam livres, que não são
muitos, para me acompanhar.

—«E tu... gostas muito d’ella?

—«Muito, não, este gostar d’alma que se sente comprehendida e
comprehende, não. Mas gosto mais do que d’outras a quem dou o nome de
amigas. É muito delicada, muito serviçal, muito meiga. Depois, é um
encanto ve-la, está cada vez mais formosa. Aqui tens o seu ultimo retrato.

Tirou uma moldura de crystal de sobre um contador indio com incrustações
de madreperola e mostrou uma linda photographia da Candida, largamente
decotada, arrastando uma longa cauda de rainha.

—«É realmente bonita, mas uma formosura fria que me assusta—volveu Bella,
entregando o retrato.

—«É porque a conheces mal. A mim succedeu-me o mesmo, sentia até uma
especie de repulsão.

—«Emfim... eu cá estou para a ver e modificar as minhas opiniões.

—«É verdade, ainda não te perguntei nada lá de casa. Josephina como está?
Ainda muito queixosa da morte da filha?

—«Sempre o mesmo. Estimam-me muitissimo e eu como que preencho o grande
vacuo que a infeliz deixou no coração de todos. Mas a casa está tão cheia
d’ella que eu mesma me desespero com tal morte.

—«E não a conheceste! Era uma criança encantadora, tudo quanto possas
imaginar de mais gracioso e intellectual. A morte d’um filho deve ser
para enlouquecer!

—«E deve!... Só eu pensar que me pode morrer o meu filho, e mais ainda
não vive senão dentro em mim, parece-me que endoideço!...

—«Bem, mas não se deve agora fallar em coisas tristes, faz-te mal. Teu
tio, já o viste?

—«Não. Imagina onde estará por este bello tempo dos cães beberem de pé?

—«Aonde?

—«Em Cintra! já para lá telegraphamos. Sabes que vive agora no hotel,
aborrecido de se ver só em casa, enfastiado de aturar criados. Mobilou
tres quartos e lá está com o velho Dick.

—«Confessou-me o outro dia que está realmente aborrecido de viver
só e muito resolvido a fazer-te a vontade indo para a provincia...
Offereci-lhe a nossa casa, agora deshabitada e... já me pareceu mais
longe d’isso.

—«Quem me dera que assim fosse! Se te lá apanhasse a ti e a elle, era
completamente feliz. Vive-se tão bem longe de tudo e de todos!...

—«Lá por mim, se não vou não é por falta de vontade. Agora dizem-me
que o clima é mau para mamã... Não creio muito, mas não quero tomar a
responsabilidade comprehendes.

—«Pois, na verdade, tua mãe é de lá, sempre lá se deu bem!... Coisas do
mundo. E o Duarte como está?

—«Creio que bem, ainda hoje o não vi. Ao almoço não appareceu, mandando
pedir desculpa por ter de sahir cedo.

—«Não sabes onde foi?

—«Não sei.

—«É-te indifferente isso?

—«Quasi...

—«Mas o que o retem tanto por fóra?

—«Talvez ainda a politica, talvez os negocios. Sabes que a sua ultima
mania é o bric-á-brac?

—«Sempre foi um colleccionador intelligente.

—«Mas agora é negociante. Tem comprado coisas de um alto valor
artistico, pequenas maravilhas de arte que nos suggerem toda a grandeza
e magnificencia do nosso pais. É prodigioso o que havia e o que ainda
existe por ahi!

—«Tem tudo cá em casa?

—«Pouco, o mais precioso e o indispensavel para decorar segundo as suas
ideias de artista e de estudioso. Não me interesso como possuidora por
essas riquezas que a maré do seu capricho e do seu dinheiro amontôa ou
espalha. Doe-me a consciencia só de pensar que o melhor tem seu caminho
para o estrangeiro—e nós sem um verdadeiro museu d’arte em Portugal!...
Preferia que o Duarte não negociasse, comprasse só para si. Em todo o
caso, antes isso do que a politica...

—«Estimas que deixasse a politica pelo bric-á-brac, mas aposto que não
gostarias que a abandonasse por uma mulher...

A viscondessa sorriu com amarga ironia.

—«Por uma... meu marido!?... Creio que não conhece o singular nesse
genero.

Bella teve um franzir de labios—que queria ser um sorriso—e um gesto de
imperceptivel desânimo, emquanto a amiga continuou:

—«Bem sabes que vivemos de modo que não se comprehenderiam os ciumes.
Exijo-lhe apenas a delicadeza de não me tornar ridicula e o dever de
não amargurar os ultimos dias de minha mãe... Mas espera, nós aqui a
conversar, a conversar, e afinal, isto devem ser horas de jantar. Olha,
já oito! Como o tempo corre quando se está bem; querida Bella, que
alegria me deste hoje! Estava n’um d’estes estagnamentos d’alma em que
alegrias e tristezas passam pelo nosso espirito como gota d’agua correndo
sem o molhar sobre um panno enxuto... Vieste sacudir-me d’este torpôr,
fizeste-me um bem que nem tu sabes!

Ao tempo que se levantava para dar ordem de servirem o jantar, um ruido
de vozes fê-la parar na espectativa e a porta, abrindo-se, fez-lhe soltar
uma exclamação de alegria ao deparar com o dr. Ramalho.

—«Meu Deus, mas hoje então é o dia das surpresas agradaveis?—dizia
comprimentando. E perguntava á amiga se sabia que o doutor estivesse
tambem em Lisboa.

—«Viemos juntos.

—«Porque me não disseste?

—«Para ser surpresa completa. Espera, parece-me que oiço a voz do João.

—«Vamos que estou morta por o vêr.

Mas João não se fez esperar, appareceu á porta, sorridente, já de mão
estendida para comprimentar a prima, que o abraçou n’uma grande ternura
maternal.

—«Agora, para a mesa, que já é tarde para estomagos de viajantes—disse
encaminhando-se para a casa de jantar.

—«E teu marido?

—«São oito e um quarto, não appareceu é porque janta fóra.

Os dois homens e Bella entreolharam-se e seguiram-na sem mais fallar no
assumpto.

—«Amanhã é que teremos de jantar mais cedo—disse, quando já sentados á
meza—para não perdermos nada da Duse. É claro que vão comnosco.

—«Oh filha, cá por mim e pelo João se não tiveres logar não te
apoquentes. Eu já a vi em Milão, em Paris e em Madrid, conheço-a em todo
o seu reportorio.

—«Mas não fazes sacrificio em vê-la, não?

—«Isso não, pelo contrario. É sempre um saboroso prazer ouvir uma grande
artista.

—«Então iremos.



XVII


Quando os viscondes, com João e Bella, entraram na sua frisa no D.
Amelia, a sala tinha o aspecto buliçoso e alegre das grandes noites
de enchente. Já no vestibulo os homens quasi se esmurravam, apesar de
apparencias de cortezia, junto do cubiculo do bengaleiro que não tinha
mãos a medir para guardar abafos e bengalas.

Alguns, mais impacientes, não duvidavam empurrar as senhoras que
aguardavam os maridos para entrar na sala, com o desplante que geralmente
usam os homens quando o egoismo os mostra tal qual os tem feito seculos
de supremacia social e que torna identicos em todas as classes os
processos que usam para se desembaraçarem de importunos.

Toda essa multidão, partindo do vestibulo, se escoava pelas portas e
corredores, apressando-se a occupar o seu logar antecipadamente obtido e
acariciado como sonho que a fortuna realisára. O pittoresco e o brilho
d’esses espectaculos, muito caros e de pouco interesse para o vulgo,
accentuavam-se nas poucas noites em que a Duse se apresentava ao publico
de Lisboa, ávido de se mostrar á altura da civilisação que lá fóra
consagrára a grande actriz.

Não havia logares inferiores, de cima a baixo todos representavam um
preço que não admittia a blusa do operario e o vestidinho domingueiro da
costureira ou o côco dos pequenos burguezes, bem indifferentes de resto a
acontecimentos artisticos, para os quaes lhes falta a educação esthetica.

As casacas pretas crusavam-se nos corredores do terceiro andar como nos
do primeiro, e senhoras conhecidas na sociedade, que não tinham podido
obter melhores logares, riam de se encontrarem nas varandas com artistas,
principalmente litteratos novos, cujas bolsas lhes não abonavam mais
commodo logar para satisfazer a necessidade intellectual de ouvir e vêr
a genial artista, faziam uma festa picante, com sabôr a extravagancia,
d’essa invasão elegante em todo o theatro.

A cada momento se abriam portas de camarotes, e mulheres meio-vestidas
de gala, refulgentes de pedrarias, vinham encostar ao parapeito carmezim
da balaustrada os braços enluvados. O ruído das conversas enchia a casa
de um rumorejar de colmeia e os leques agitavam-se como azas palpitantes
de loucas phalenas nocturnas que a luz atrae e queima. Sentia-se uma
atmosphera quente de primavera que já floria os primeiros lilazes e
enverdecia as arvores do passeio sem embargo da chuva que todo esse
inverno se mostrara, com raros intervallos, irritante pela persistencia.

Os homens na plateia voltavam as costas ao proscenio, passavam em revista
as espectadoras, punham o monoculo e acariciavam o bigode, sorrindo,
satisfeitos, do mundo e de suas pessoas. Outros discutiam politica, liam
os jornaes da tarde, ou amodorravam-se nas cadeiras ao lado das esposas.

Como nessa tarde fôra a primeira toirada da época, que terminára sob
uma forte batega de agua, espessa como fumo, que n’um abrir e fechar
d’olhos evacuára a praça, contavam-se incidentes picarescos da volta
sob a chuva violenta que não admittia chapéos e cegava os que na lucta
por americanos e carros tinham ficado vencidos, tendo de esperar em
qualquer abrigo de porta ou resolver-se a aguentar o peso d’agua caminho
de suas casas. Discutia-se Guerrita, que não estivera nas suas melhores
tardes de _sorte_; fallava-se na Duse, que alguns já tinham visto lá
fóra, que outros ardiam por vêr, dispostos a acharem extraordinaria essa
notabilidade que uma fama universal precedia—Messias de uma arte nova,
toda feita de verdade flagrante, commovendo com lagrimas e alegrando com
risos copiados da sua maneira de sentir a vida, gritos arrancados ás suas
proprias dôres, gestos usados nas scenas reaes em que a superioridade
intellectual da artista apreende e estuda no corpo da mulher que a
materia despoticamente reivindica.

Sarah, a sacerdotisa—magna, amada sobre todas, vinha aos labios dos
fanaticos como um desafio á tragica italiana. Os que as conheciam, a
ambas, discutiam apaixonadamente, ora dando a supremacia áquella que na
sua voz cantada no ritmo da phrase, no choro contido a custo, consegue
hypnotisar a multidão, vencer o bom senso que requer a verdade, subjugar
os profanos e os descrentes até que o seu fragil corpo se estorça em
gritos que arrepanham a alma, que a esfrangalham n’uma lancinante
espectativa e lha atiram aos pés, frenetica de applausos, para se não dar
em lagrimas e contorsões de hystería.

Outros desdenhavam a francêsa, vantajosamente apresentada a um povo que
vive intellectualmente da França, copiador servil dos seus modelos,
e aclamavam como a maior de todas, a mulher de verdade que a Duse se
mostra, fazendo do palco uma escola de anatomia em que a sua alma
escalpella com a precisão scientifica de um operador retalhando fibra a
fibra o corpo que a doença ou a morte lhes trouxeram á mesa das operações.

Na frisa da direita, onde a Viscondessa e a amiga se sentavam entre
os maridos, discutira-se arte, evocara-se nomes e situações em que os
artistas favoritos se excediam a si proprios, e Bella lembrára Novelli,
o artista que para ella, mais ainda do que a Duse, realisava o supremo
ideal da arte moderna, a verdade, que é para os nossos espiritos
fatigados de sentir e soffrer pela imaginativa o oasis onde nos
comprazemos em descançar das orgias poeticas e romanticas de ha vinte
annos.

Mas o Visconde não se sentia n’essa noite disposto a conversas que
exigissem esforço de maior attenção, e a meia voz, n’uma visivel
sobre-excitação de nervos que se mascarava em risos, notava figuras,
recordava escandalosinhos que andavam na boca de todos, contava casos que
faziam sorrir os companheiros, principalmente na descripção dos _raouts_
que esse inverno inaugurára o Maximiano e onde os jornaes do _high-life_
diziam encontrar-se quanto ha de mais selecto na _nossa_ melhor roda.

—«A _nossa_ é a d’elles, jornalistas—ria com soberano despreso—O que os
faz enternecer é a abertura do bufete á meia noite e a possibilidade de
um empregosinho disfarçado...

—«Temos então o Maximiano singrando com vento de feição no mar largo das
grandezas?! Como a conselheira não exultará com a civilisação britannica
das suas reuniões da moda!...—commentou João.

—«É plantio d’estaca, ainda está longe da floração...

—«É ridicula esta gente na sua mania imitadora!—disse, séria, a
Viscondessa.—Nem o nosso meio, nem a educação, nem as fortunas,
comportam essas festas inventadas pela aristocracia de Londres, que em
divertimentos como em negocios não pode esbanjar tempo, e que n’um mesmo
dia tem que assistir a muitas reuniões, sob pena de deserção.

—«Mas se o nosso feitio é de perpetuos imitadores, que se lhe hade
fazer? Já nos não contentâmos em imitar a França, invadimos agora a
nossa _perfida alliada_, que qualquer dia reclama por indemnisação e
contribuição de guerra qualquer das nossas possessões... Com perdão de V.
Ex.ᵃ, minha querida prima inglêsa!...

—«Só _meia inglesa_, meu caro Visconde, e não tiro d’isso motivo de
orgulho superior ao de ser portuguêsa...

—«Pois nem todos dirão o mesmo, quantas pessoas desejariam ter uma
costellasinha de qualquer país estrangeiro para maior lustre e chic dos
seus nomes!...

—«Não vi ainda a Candida—reparou a Viscondessa.—Não virá?

—«Hade vir, mas tarde, com os ares de soberana que se arroga...

—«O camarote está vasio.

—«Mais uma razão. Se ella não viesse já o Braga o teria occupado, para
não perder tudo. Não encontrando a quem o passar, o que não seria facil a
estas horas, viria elle mesmo, para tirar o seu rico dinheiro a limpo.

—«Pobre homem! Vocês riem-se d’elle e afinal é um bom marido, que faz
tudo que a mulher deseja.

—«Oh prima, essa opinião é a das meninas lá da terra, por isso se
desesperam de o não ter conquistado—sorriu João á convicta lamentação da
Viscondessa.

—«Nem com todas teria a mesma docilidade. A Candida é uma força viva que
não convem alienar a quem se arrisca por caminhos de que só a politica
conhece as encrusilhadas.

Esta, como todas as outras phrases do Visconde, sahira lhe cortante de
ironia, tão amarga, por intencional, que João e Bella se entreolharam
surpresos da revelação. O ciume escancarava aquella alma que o estudo e o
habito tinham conseguido conter na reserva que a essas ligações exige a
hypocrisia social.

Ingenuamente, a Viscondessa continuou:

—«Não acredito nada d’isso que dizem; para que fosse verdade o ministro
da fazenda estar ao dispôr do Braga pelo interesse que a Candida lhe
inspira, seria preciso que ella o animasse.

—«Sei lá, mulheres!...

—«Nem todas são o mesmo. Apesar de _coquette_, creio bem que a Candida é
honesta.

Para cortar a conversa que lhe indispunha os nervos e como que os tornava
cumplices no engano em que a amiga se ridicularisava, Isabella perguntou
se não era a baroneza d’Amieira que entrára na frisa correspondente
á sua. Tomando habilmente a deixa, o Visconde desviou a conversa
scintillante de espirito, exuberante de risos, que, bem observados, se
sentiriam falsos e contrafeitos.

De instante a instante os seus olhos interrogavam, manifestamente
impaciente, o camarote fronteiro, fechado até ahi com uma persistencia
desesperadora.

Eram quasi horas de começar o espectaculo quando a physionomia se lhe
illuminou n’um jubilo illimitado ao vêr a Candida apparecer, como que
surgindo de entre as rendas da capa de baile, triumphante de belleza,
irisante de pedrarias, n’uma opulencia de trajar que attrahiu todos os
olhares. Da plateia muitos cumprimentos e sorrisos a procuraram como
votivo incenso que se eleva do pó até ao throno das divindades, n’uma
offerta de idolatria.

E o Visconde d’Alvora dizia bem alto a um grupo de amigos, cofiando o
bigode e empertigando-se na ponta dos pés,—que jurava aos deuses ser a
mulher mais linda que em sua vida conhecêra! Isto depois de ter viajado
por toda a Europa e ter chegado de Hespanha enjoado, positivamente, de
ver caras bellas. Palavra de honra, meninos!...

A campainha electrica deu o signal de se levantar o panno, e os homens,
excepcionalmente, apressaram-se a occupar o seu logar antes de começar o
espectaculo, o que fez com que a tragica podesse logo ser ouvida desde
a primeira scena. Desempenhava n’essa noite o papel de Magda, a mulher
soberba de independencia e energia que a traição e a infamia do homem, em
vez de quebrantar em baixesas de victimas, faz erguer n’um protesto de
indignação.

A actriz, soberana da Arte, dominando em todos os países onde o capricho
de artista a leva, sublime bohemia, que o mundo aclama exaltado, faz
vivo, arquejante de interesse, esse typo symbolico da mulher de que
a sociedade fez uma revoltada e que uma vez lançada fóra do ramerrão
comesinho da existencia burguesa, impossivel se lhe torna a vida entre os
seus, cujas ideias a amesquinham e irritam, que ella propria escandalisa
com as suas palavras e modos, de pessoa que conhece dos preconceitos
sociaes o bastante para avaliar a sua hypocrisia.

Quando a Duse (Magda, a grande cantora) entra já fatigada da lucta embóra
coroada de loiros em que o dinheiro lhe não faz mingua, mas soffrendo da
miseria affectiva em que se vê, como filha espúria de um mundo feito de
harmonia e amôr, e vem recorrer á familia, como fonte inesgotavel de
carinho, apenas encontra estranheza e hostilidade...

É então que a artista se revella extraordinaria de sentimento,
flagrantissima de psychologia feminina, mais ainda do que nas scenas
violentas de paixão, reconhecendo quanto differe da pequena irmã que na
sua ingenuidade lhe mostra o que já fôra e nunca mais poderá ser, fatal
sciencia do mal que uma vez adquirida não mais se pode esquecer nem
limpar da memoria.

Magda pensa com horror no brutal egoismo do amante que, fugindo como
covarde á responsabilidade do crime, o faz recahir esmagadoramente sobre
os hombros mais fracos da mulher, que deixa de ser cumplice para se
tornar victima.

A Duse, encarnada n’esse papel, deixa de ser uma pessôa que representa a
ficção alheia para se mostrar ella mesma, elevada e transfigurada pelo
proprio esforço e talento; tão depressa carinhosa e dôce, como mãe que
encontra um filho perdido, junto da irmã, recebendo-lhe as confidencias,
revivendo n’ella o seu passado de pureza e sentindo a devastadora mágua
dos factos irremediaveis; logo, ironica e vaidosa da leviandade que
escandalisa as burguezas puritanas que frequentam a casa dos paes; cheia
de nobre dignidade quando recusa o marido que lhe impõe o abandono do
proprio filho em respeito ao mundo; extraordinaria de paixão, quando
responde com o seu despreso de mulher que só o talento, e um feliz acaso
da natureza que lhe deu uma garganta privilegiada, salvaram da miseria
e da vergonha de que tantas outras, por desajudadas, se não podem mais
erguer. Que lhe importa uma sociedade á qual nada deve?!...

Mas não se tem impunemente uma generosa alma de mulher sequiosa de
affectos simples, não se é uma ingenua de que a vida fez uma sincera
revoltada; o grito de dôr e de remorso que lhe arranca a subita morte do
pae é tão humano e desesperadamente sentido que se fica na duvida se é
realmente para applaudir se para retirar respeitosamente, com a commoção
propria de quem assiste a um drama de familia.

Logo no primeiro acto, que terminou com ruidosa manifestação, chamadas
e applausos delirantes, o visconde sahiu com João, mas appareceu pouco
depois, já só, no camarote da Candida, que o Braga prudentemente deixára,
protestando urgentes negocios que o chamavam ao jardim d’inverno, a
fallar com uns amigos.

Retirados para a penumbra do camarote, reconhecia-se, pelo gesticular
phrenetico do visconde, que era de importancia a conversa em que elle
punha todo o ardôr da paixão e em que ella o ouvia sem deixar de sorrir
vagamente no seu sorriso incolor de imagem.

A baroneza d’Amieira vira Isabela e perguntára duvidosa a mr. William,
que a comprimentava na passagem,—se realmente era ella, a querida
criança?!...

Á sua affirmação retrucou expansiva que lhe reclamava a companhia até á
frisa dos viscondes.—Ha quanto tempo não via a Bellasinha! E mesmo Maria
Helena havia muito se não encontrava senão em casa, e ella ultimamente
tinha tido outros deveres nas suas noites.

Á entrada d’elles na frisa, onde já estavam o João e o Dr. Ramalho, a
conversa animou-se com a discussão da these debatida no drama, que a
baronesa achava de grande exagero.—Casada, a Magda seria uma mulher
recebida na sociedade, respeitada por todos; mais tarde pensaria no
filho...

Bella contestava com indignação, exaltava-se mesmo e parecia-lhe até
impossivel que a baronesa, sinceramente despresadora de preconceitos,
ainda tivesse tão injustas ideias, applaudisse tal hypocrisia.

—«O que quer, minha querida!? Embora se sinta que é injusto, é mais
commodo pensar como toda a gente... Para que serve discutir e protestar?
Se o mundo é o que é e não o que devia ser!

—«Mas é dever nosso, dos que pensâmos conforme a razão e aspirâmos á
justiça, protestar, luctar pelo futuro—respondeu-lhe João sinceramente.

—«Admiro estes seus sobrinhos, mr. William, são dois verdadeiros
apostolos, cheios de fé e de energia.

—«Por isso hãode triumphar, verá.

—«Tambem já o conquistaram, já lhe insuflaram no ânimo o fogo sagrado da
nova religião?

—«Parece... e aconselho-a, Baronesa, se tem amôr ao actual estado
de coisas, a fugir d’estes terriveis evangelisadores; são perigosos
exactamente porque são convictos, o que é raro.

—«Crê que se vença porque se tem fé, tio? Eu, não; se assim fosse não
veriamos triumphando tantos cynicos que abraçam qualquer religião, como
qualquer ideia que lhes convenha aos seus fins.

—«Esses não têm fé em coisa nenhuma. Triumpham, é certo, mas a sua obra
desmorona-se rapidamente, como edificio construido sobre lama. Só a obra
dos verdadeiros crentes, dos sinceros, é que pode resistir e fructificar.
Crês que fosse a ambição, o orgulho e a mentira dos padres, que fizeram
do christianismo uma religião? Não, foi a humildade, a sinceridade e a
fé dos convictos... É por isso que creio no futuro da vossa empresa e
aconselho a Baronesa a fugir se não quer tornar-se tambem uma convicta...

—«Pois vou-me já, tomo o seu conselho, meu caro. Nada, que não quero dar
aos meus conhecimentos o espectaculo grotesco de fazer dançar nos meus
salões os criados da lavoura nem de medir pela mesma bitola a moral da
cosinheira e a da grande dama...

—«A Baronesa a fingir-se o que não é! Todos sabemos que não ha ninguem
melhor para os seus inferiores—contradictou Maria Helena.

—«Tratá-los bem, trato, mas julgá-los meus eguaes, com direitos e deveres
como nós, isso, filho, é muito grande inovação para uma velha como eu.

—«Mas não é isso, cada um no seu logar, mas crédor do nosso respeito, tão
superior no seu officio como nós no nosso.

—«Sim, eu vejo que a razão está do vosso lado. Mas... eu afinal de contas
ainda me não dei mal com o mundo como elle está.

—«Para que V. Ex.ᵃ tenha essa consoladora phylosophia, quantos terão
soffrido miserias inconfessaveis, quantos terão amaldiçoado mil vezes a
hora em que nasceram!

—«Ora, querida Bella, se fossemos todos a pensar assim, não estaria aqui
ninguem dos que deram o seu dinheiro para vêr a Duse.

—«Porque não? Se nós viemos e podémos dar um preço exagerado, porque
temos necessidades de espiritos educados e possuimos fortuna para
realisar o nosso gosto, justo é que os que menos tem egualmente possam
frequentar divertimentos mais baratos e mais em harmonia com os seus
gostos e conhecimentos.

—«Ahi está em contradicção, logo não somos todos eguaes, vê?!

—«Jesus, que confusão! Não queremos todos eguaes, queremos todos felizes,
o que é differente. Queria a minha amiga que eu, porque detesto os
bailes, os passeios, os divertimentos em que ha muita gente, obrigasse os
outros, que só assim se divertem, a tornarem-se anachoretas? Imagina que
não ha muita gente, muitissima mesmo, que preferisse a uma recita da Duse
uma corrida de toiros?!... Até aqui, entre muitos que vieram por luxo,
porque é moda vir ao theatro por maior preço quando vem uma celebridade
estrangeira...

—«E hade ser cara, porque se fôr pelos preços da casa já não tem o mesmo
merecimento. Quando penso no Novelli a representar para as cadeiras, aqui
mesmo, pelo centenario da India!—disse a viscondessa.

—«É verdade, até nós viemos cá sempre para protestar—respondeu Bella.

—«Além do prazer de ver representar como poucas vezes na vida se pode vêr!

—«Mas tudo isso não me chega a convencer de que seja o vosso o mais
commodo caminho.

—«Isso não é, mas o melhor.

—«O que importa o bem dos outros, no fim de contas? Gente que está
habituada a soffrer não lhe custa tanto. Melhor é contentar-se cada um
com a sorte que tem.

—«Quando a má fôr para os outros...

—«Claro.—Ria desabusadamente—vejam alli a Candida se precisa pensar no
trabalho ou na ignorancia dos pobres, na felicidade ou na infelicidade
do proximo, para ser hoje a mulher mais linda de Lisboa. Não digo uma
_profissional beauty_ porque a frase é importante demais para a nossa
modestia e mesmo porque não tenho a mania de M.ᵐᵉ Vilhegas.

—«Ó Baronesa, mas de que serve ser-se bello sem mais nada?

—«Ora de que serve, mr. William, agrada aos outros. Repare n’ella, veja
se no meio de tanta cara vulgar, de tanto rostosinho miúdo de chloroticas
caiadas, não é um prazer para os olhos deparar com aquelle typo de
perfeita belleza—repostou com leviandade.

—«É uma opinião de artista. Mas é tão fragil o reinado da belleza
material—disse por fim o Ramalho, que até ahi se tinha conservado
silencioso.

—«É certo, mas emquanto dura, a belleza é um merecimento como outro
qualquer. Uma superioridade como a do talento ou a da bondade.

Respondeu a viscondessa, mas de modo tão singelo, que todos se
entreolharam na dúvida, se seria uma illudida ou uma cynica. Só Isabella,
que a conhecia bem, poderia affirmar a sua completa ignorancia de um
facto que para ninguem já era mysterio. Ciumes, dôr pungente de coração
offendido, sabia que os não teria, porque o amôr pelo marido lhe
desapparecêra ha muito com o despreso que lhe inspirára a leviandade
do seu caracter, mas esperava d’elle respeito bastante para a não
inferiorisar em convivencias equivocas, para a não obrigar hypocritamente
a ter relações que deprimiam a sua dignidade de mulher honesta.

Por isso Isabella, sentindo todo o amargôr da situação, soffria pela
amiga tão intimamente que o resto do espectaculo o passou desattendida,
apesar do interesse que a artista lhe despertava, a ella cuja alma
finamente temperada se enlevava sempre na comprehensão de todas as
grandes manifestações de arte, a ella que alheada de si mesma já seguira
uma vez, como em extasis, o desenrolar d’esse mesmo drama, só grande
pelos interpretes, quando o papel da mulher se subalternisava e quasi
desapparecia, vendo Novelli, no papel do intransigente e rigido coronel,
tomar toda a scena, encher de assombro todos os espiritos, com a verdade
tragica da sua dôr e da sua morte.

Desattendida tambem passou o intervallo do segundo acto, que lhes trouxe
á frisa innumeros conhecidos, fatigada de cumprimentos e conversas a
que não ligava sentido, com os olhos a fugirem-lhe para a Candida que
avultava em proporções quasi tragicas, nova lady Macbeth maculada pela
mentira e pela traição, laivada pelo sangue das suas victimas, aquellas
que mais acariciadoras achegava ao coração.

Quando entrou finalmente no quarto do Alliança teve a sensação de allivio
que sente o dormente acordado do pesadello esmagador.

—«Estou cançada—dizia desapertando o vestido e cobrindo os hombros
com uma capa para chegar á varanda, onde João fumava um resto de
cigarro—estou fatigada de arte, de luzes, de barulho, de gente, sobre
tudo de gente.

—«Ou isto ou o socego da nossa casa!—respondeu João, passando-lhe o braço
pela cinta, fatigado tambem de impressões, aborrecido de mentiras e
convencionalismos.

—«Que longe já estamos d’essa miseria—accrescentou ella, reclinando a
cabeça no hombro do marido—parece que vivemos em outro mundo.

—«N’um mundo que tu criaste, no reino da felicidade pelo amôr e pelo bem,
querida.

—«Tenho já tantas saudades da nossa casa, que parece que sahi ha muito de
lá. E tu?

—«Tambem eu, muitas, da nossa casa, da nossa familia, das nossas flores,
de todas as coisas que lá nos interessam, e sobre tudo da alegria e do
descanço que têm os nossos espiritos, crentes na obra redemptora que
encetámos e da qual chego a duvidar cá por fóra ouvindo o riso escarninho
de todos estes egoistas epicurianos, ou sinceramente desilludidos, como a
Maria Helena.

—«D’essa é que tenho pena... quem me déra podê-la levar para a nossa
_republica_ de bons! O que terá feito o nosso velhinho agora assoberbado
com todo o trabalho?

—«Coitado! O que terá andado do hospital para o asylo, do asylo para as
obras!... Que fortuna foi obrigarem-no a sahir da igreja! É assim muito
mais util á sociedade.

—«Não ha nada para certos caracteres se depurarem e redobrarem de energia
como as injustas perseguições. Outros desanimam na lucta e ficam com a
vontade quebrada, como a pobre Maria Helena.

—«Eu acho a na mesma, filha.

—«Não acho eu, desespera-me aquella indifferença resignada que até lhe
fecha os olhos para o procedimento do marido com a Candida.

—«Que é infamissima, como sempre. Quanto mais a conheço mais se confirma
para mim a opinião que formou d’ella a Engracia. Na sua ingenuidade
de ignorante viu melhor do que nós todos. Quando lhe vejo o impudôr,
afigura-se-me que a Pillar a aponta ao meu odio.

—«Odio, não; ao teu despreso, João.

—«Tivesse eu a _certeza_, querida, que não sei se teria coragem de _só
despresar_. Quanto daria por essa certeza, quanto!

—«Não devias dar nada; a responsabilidade dos criminosos é tão limitada,
que ninguem tem o direito da vingança.

—«Oh, minha querida, isso não é bom theoricamente, mas criminosos como a
Candida, embora irresponsaveis, são um perigo social.

—«Mais do que ella são criminosos os Vilhegas ambiciosos e os viscondes
no seu papel de fina hypocrisia. E mais do que elles todos é criminosa
a sociedade que os acolhe e os cobre com a sua cumplicidade, que faz
d’elles ornamento respeitavel da sua vida.

—«Tens razão, mas a morte da Pillar foi um repelão do destino, tão
brutal, tão cruel, que ainda me faz ter ideias de vinganças, se penso que
houve culpados!... A sangue frio concordo, a sua morte não será vingada
porque ella mesma o não desejaria; de que serve esmagar uma vibora n’um
campo juncado d’ellas? Exemplos nunca emendaram ninguem nem eu creio no
arrependimento, sublime illusão de Christo. Cada um é filho do seu meio e
da sua ascendencia, producto hibrido que só a educação e a remodelação da
sociedade poderia orientar para o bem.

—«Jesus, lá vae o meu João ao extremo!...—respondeu Bella rindo
mansamente á sua exaltação e afagando-o carinhosa—não vale desanimar,
talvez de productos pouco contaminados d’esta floração pantanosa ainda
alguma coisa se possa retirar para o novo campo saneado e moralisado.

—«Tudo isso para eu confessar que foi um acto de bôa politica acceitar
bondosamente a collaboração da pequena Costa e das Sebastianas, não é
verdade?

—«Coitadas, essas não fazem muito mal ao mundo. Mas o que me interessa
sobre tudo é a pobre Maria Helena. O que dirá ella em sabendo das
relações do marido com a Candida?

—«O que hade dizer? A situação na sociedade em que vivem, está tão
vulgarisada que não lhe dará a minima importancia.

—«Não creio! É vulgar sim, tanto que nem chega a ser escandalo, mas é
estupido para uma mulher honesta que tem invencivel repugnancia pela
mentira reconhecer que tem vivido rodeada d’ellas. Pobre Maria Helena!
Quando a vejo tão desgraçada, não sendo feliz nem fazendo feliz o marido,
podendo-o ser tanto com quem a ama e... ia jura-lo, ella ama tambem!

—«O dr. Ramalho?

—«Sim. Se houvesse divorcio tudo se liquidava bem.

—«É um triste remedio.

—«Mas sempre era remedio, e assim é a condemnação irremediavel das
mulheres honestas.

Calaram-se ambos olhando o céo scintillante d’estrellas, que um
vento fresco limpára de nuvens. Pelo Chiado passavam apressados os
retardatarios que tinham ido cear aos restaurantes. Raros garotos
apregoavam ainda os jornaes da noite humidos de tinta e cheirando
fortemente a papel impresso; um cautelleiro gritava n’uma melopeia
triste:—é o 3:499, amanhã anda a roda! Quem se habilita?... É o
3:499. Quem quer ser rico sem trabalhar tem o 3:499, tres... mil...
quatrocentos... e noventa e nove...—repetia na cantilena que todo o dia
tinha gritado pela cidade, que arrastava pela noite fóra como um pungir
de saudade e de vaga esperança...

Toda a psycologia dolorosa de um povo, vivendo de aventuras e de
milagres, alli estava no pregão do cautelleiro, inconsciente do bem e
do mal, cego como o destino que deu a sorte grande um dia a este povo
corajoso e submisso para, após longos annos de baldões, seculos de
aureas miserias, chegar á suprema inconsciencia de hoje.

—«Quem quer ser rico sem trabalhar?—isto é, quem quer viver para gosar de
todos os luxos e commodidades, sem comprar com o seu labor o direito de
possui-las?

Trabalhar, para quê?! Se foi a _sorte_ que nos guiou á conquista do
mundo; se é a _sorte_, a cega roda da fortuna que girando sobre si mesma
nos pode dar a fruíção dos gosos sem o cançaço do trabalho? Se é a sorte,
o arbitrio, o empenho, que eleva os nullos aos primeiros logares, e se é
na esperança d’ella ser favoravel uma vez, que todos, desde o operario
que arranca á sua miseria os vintens para a cautella até aos ricos que
põem nas despesas obrigatorias um bilhete da loteria grande, têm a vaga
esperança de um dia a _sorte_ lhes ser favoravel!... A fatalidade, a
sorte, o destino, são palavras de desânimo e resignação passiva, palavras
que trazem impressas em si mesmas a porção de sangue mosarabe que por cá
ficou...

A pouco e pouco toda a vida da cidade parou, suspensa por um pouco,
emquanto não começavam os varredores o seu trabalho de forçados.

As estrellas punham tremores nervosos na impassibilidade do céo, uma
aragem leve lembrava que a primavera ainda de todo não escorraçara o
inverno... João e Bella sentiam-se tranquilisar, como que adormentados
de espirito, longe do mundo que os irritava, muito alto sobre a cidade
adormecida.



XVIII


                                                   Querida Isabella

    Como se passaram quinze dias desde que me deixaste, não sei!...
    Sei apenas que te escrevo hoje num destes momentos de profundo
    quietismo que a vida nos traz após as maiores desgraças.
    Desgraças?!... que eu não posso bem chamar assim ao facto
    succedido hoje, com a mais _elegante_ simplicidade, e que, ao
    receberes esta, já não será novidade para vocês porque todos os
    jornaes fallam n’elle,—a fuga da Candida e do Duarte.

    Qual o motivo que os levou a este escandalo, não sei, posso
    apenas dizer-te que ainda hontem estivemos em S. Carlos, que
    ella me beijou affectuosamente á despedida e que o Duarte me
    acompanhou a casa. Depois... partiram no expresso para Paris,
    ao que dizem.

    Sinto-me enojada de tanta baixesa de caracter e de tanta
    hypocrisia! Enojada, e vexada tambem, um pouco, pelo papel
    ridiculo que me obrigaram a desempenhar em toda essa vergonhosa
    intriga. Nunca o Duarte tinha descido a impôr-me as suas
    amantes para amigas intimas—faltava-me essa vulgar consagração
    mundana!... É de morrer a rir, e a chorar.

    Agora comprehendo tudo, os sorrisos que acolhiam os meus
    elogios á Candida, as phrases com dois sentidos da baroneza, as
    palavras trocadas a meia voz, até a tua má vontade para ella e
    a raiva do João, o vosso aborrecimento súbito e que tão poucos
    dias os conservou aqui, tudo eu comprehendo e tudo eu vejo
    agora!...

    Tu sabes melhor do que ninguem o que tem sido a minha vida;
    conheces-me, pois tens a minha alma, palpitante de soffrimento,
    agasalhada no teu coração de verdadeira e unica amiga. É
    portanto escusado vir com rodeios. Demais isto é um facto
    consumado, uma coisa indiscutivel:—meu marido fugiu para França
    com _umadas minhas amigas intimas_. Eis a singela e fatal
    verdade.

    E eu não encontro, Isabella, no fundo da minha alma, nada,
    absolutamente nada, que me faca soffrer d’este abandono.
    Orgulho, parece que já o não tenho! Offensa da mulher, que
    veio a minha casa, que me beijou, que era a primeira a dizer
    mal d’elle—quando eu nada me importava de procurar saber
    a sua vida intima—confesso-te, querida, que não chego a
    recebê-la. Despreso-a e lamento-a; desculpa-la-hia talvez, se
    fosse sincera no seu affecto; mas não é, não! Uma _coquette_
    vulgar que vae seguindo o seu capricho ou—o que é peor—a sua
    ambição. Não me offendeu, porque eu vivo como estranha n’esta
    sociedade convencional. Conheço demasiadamente _este mundo_
    para que me prenda nas suas redes de hypocrisias. Vim do
    conchêgo dulcissimo da minha familia patriarchal para este meio
    desmanchado e futil, que só me deu amarguras em paga do que
    lhe trouxe—o meu coração virginal, a minha alma ingenuamente
    enthusiasta, a minha mocidade ingenua.

    Ninguem sentira como eu a vida assim vasia, assim desconsolada,
    assim inutil! Viver não é nenhum bem para mim, a morte tambem
    nada me diz... Que posso encontrar na cóva?—A eterna paz do não
    ser, o somno do esquecimento dos outros e de mim mesma...—Isso
    encontrei na vida. Nada me interessa, senão apparentemente, e
    a ninguem interesso senão a ti, oh minha dôce amiga, e á pobre
    velhinha que é minha mãe! Olha, o que eu não tenho podido
    soffrer com este escandalo, em que o meu nome será murmurado
    entre sorrisos escarninhos e lamentos falsos, como falso é tudo
    isto, tem ella soffrido, a desgraçadinha! Adoeceu de mágua e de
    surprehendida, porque não sabia as relações em que eu estava
    com o Duarte. Tu só, querida Bella, foste a minha confidente
    das horas amarguradas de lucta e revolta, tu só presenciaste
    e ungiste com o balsamo consolador da amizade as feridas
    sangrentas do meu coração; por isso, minha filha, só a ti sei
    confiar a minha alma em farrapos. Se eu podia ter dito á minha
    pobre mãe o inferno de soffrimentos em que vivi?!... Para ella
    soffrer mais ainda:—que o coração das mães soffre duplamente as
    amarguras dos filhos!

    Foi isto unicamente o que hoje me affligiu. Se elle me tivesse
    dito que me queria deixar para ir com a minha _amiga_ eu, crê,
    ter-lhe-hia dito:

    —«Vae! Que me importa isso? Com essa ou com outra é-me
    indifferente, mas despede-te de minha mãe, da pobre senhora
    tão velhinha e doente que morrerá d’um primeiro desgosto. Tem
    dó d’ella—ao menos tem esse sentimento bom—ajuda-me na mentira
    santa em que a tenho deixado viver socegada.»

    Oh! se elle tivesse feito isto, de joelhos lhe beijaria as
    mãos, agradecida o cobriria de bençãos. Mas não, nenhuma
    delicadeza, nenhuma bondade, n’aquella alma egoista.

    Avalia o que eu soffri com a scena que hoje se passou!

    Á hora do almoço o Duarte não appareceu, mas isso era tão
    vulgar que eu nem perguntei por elle ao criado respondendo á
    minha mãe: «Teve que fazer e sahiu mais cedo naturalmente»...
    Mas o Bernardo adiantando-se:—«Se V. Ex.ᵃ me dá licença
    direi que o Sr. Visconde mandou o José arranjar as malas
    e encarregou-me de dizer a V.ᵃˢ Ex.ᵃˢ que partia para o
    estrangeiro.»

    Imaginas bem como eu fiquei pelo sobresalto em que vi a minha
    mãe! Ante o meu olhar de censura o pobre Bernardo, coitado,
    daria tudo por não ter dito tal coisa, mas era muito tarde!
    Tentei ainda convencê-la de que sabia d’aquella viagem, que
    tinha sido combinada commigo, mas quê?! Os jornaes deram logo
    a noticia tão transparentemente velada que tudo foi inutil.
    Coitadinha! Se a ouvisses dizer-me:

    —«Eras então infeliz e nada dizias, filhinha?!...

    Foi uma censura e um agradecimento, que ella bem percebeu a
    minha delicada intenção. Não poude mais!—As lagrimas que ha
    tantos annos lhe escondia vieram todas juntas cahir-lhe no
    coração de mãe amantissima.

    O que foram esses momentos não tentarei descrever-te.
    Sente-os tu com o teu coração de mulher—que o sentimento tão
    amoravelmente maternisa. Depois d’isto, compôz a phisionomia
    para apparecer _com dignidade_ ás _amigas_ presurosas
    que vieram, sob variados e engenhosos pretextos, buscar
    assumpto para entreter a sociedade... Estive quasi tentada
    a dizer que não recebia, que me deixassem para sempre; mas
    a mamã aconselhou, pediu-me quasi, para que respeitasse as
    conveniencias. _Oh, as conveniencias!_... Como as despreso e me
    importam pouco, e como tenho sido escrava d’ellas!

    Logo á noite consegui fazer recolher á cama a minha adorada
    mãesinha, que o seu organismo abalado por tantos desgostos e
    doenças já não podia mais.

    Achei-lhe febre e mandei chamar o medico. Sahiu agora mesmo
    depois de lhe dar um calmante, que a adormeceu no mais infantil
    dos somnos. Que delicia dormir assim! Como o seu pobre rosto
    serenado sorri santamente! E hei-de vê-la acordar amanhã, para
    soffrer?... Oh Isabella, Isabella, que não sei o que deseje!...

    A minha pobre cabeça perde-se de todo n’este inferno de
    dúvidas e sobresaltos. E como não posso dormir, venho repartir
    comtigo as minhas lagrimas, que a tua amizade tomaria como
    indigno egoismo, se as guardasse todas para mim, não é
    verdade? No silencio da casa adormecida sinto-me mais só,
    mais abandonada que nunca, e por isso encontro ainda algum
    consolo em conversar com o unico espirito meu irmão. Recordo
    com infinita ternura as horas de paz que a tua amizade me
    tem dado. Lembras-te da primeira vez que nos encontrámos?
    Parece que te estou a vêr: muito fina, d’uma elegancia um
    pouco infantil, um sorriso de bondade divina na tua bocca
    graciosa. Convalescias d’uma perigosa doença e eu arrastava
    os desesperos da minha felicidade _manquée_. Só uma doente de
    corpo e uma doente d’alma iriam procurar a solidão religiosa
    da natureza, por aquelle principio de primavera, no Bussaco,
    quasi inverno ainda! Talhadas uma para a outra, as nossas
    almas reconheceram-se logo. Os mesmos passeios, as mesmas
    predilecções pelos largos horizontes, os mesmos embevecimentos
    pantheistas deante da natureza. Já nos tinhamos encontrado
    tanta vez na Cruz-alta, procurando o mar no poente longinquo
    e querendo vê-lo na rosea claridade do céo... no Calvario, na
    Memoria, recordando tempos passados, admirando a gravidade
    pachorrenta da sentinella, divagando pelas ruas cheias de
    sombra por todo esse cantinho paradisiaco, mais bello ainda
    na solidão de thebaida em que o encontravamos. A nossa
    conversa primeira tida alli na Fonte-fria, ao compasso da agua
    murmurante, sob a cópa das arvores seculares, foi intima e
    confiada como se nos conhecessemos desde o berço. Sob a reserva
    das minhas maneiras, que fundo de ingenuidade encontraste! Na
    infantilidade dos teus risos, que bom senso e conhecimento da
    vida tu já tinhas! Bem se podia prever a equilibrada e corajosa
    mulhersinha que soube fazer da sua casa um verdadeiro refugio
    d’almas, que da fortuna que tão felizmente lhe cahiu nas mãos
    fez uma salutar obra de progresso, de combate pela justiça.

    Querida, querida Isabella, recordar as lagrimas que me viste
    chorar durante aquella consoladora convivencia de mezes, é
    quasi um prazer. Então ainda eu soffria, então ainda vivia.
    Hoje... é isto que vês.

    Lembro-me agora, com uma nitidez desesperante, das tuas
    palavras sensatas quando se fallava em divorcio:—Para quê?...
    Em Portugal não ha divorcio; apenas temos o desquite, que é
    a prisão maior para as mulheres. Não vale a pena ir contra a
    opinião geral que condemna a mulher separada do marido, para
    tão pequeno resultado.

    Como a opinião dos indifferentes me importava pouco, lembravas
    me então a minha familia, a minha mãe. A minha mãe!... Por
    ella consenti em ficar amarrada de pés e mãos a esta situação
    quasi infame para mim. E queres saber? N’esse tempo ainda ella
    poderia supportar o golpe, agora... não sei o que se dará.
    Tremo pela sua vida tão abalada!

    Não me queixo de ti, minha joia, podias porventura imaginar
    que seria _elle_ o primeiro a despedaçar escandalosamente as
    cadeias, que só foram pesadas para mim?

    Que estupido destino o meu! Aos desesete annos, cheia de
    enthusiasmos e de infantis curiosidades, deixo-me convencer que
    era amôr o que sentia por meu primo. Amôr egual ao que elle me
    confessava em phrases, que eu então imaginava só ditas para
    mim, santas como o seu affecto.

    Um bello casamento o nosso—fortunas eguaes, familias eguaes,
    paixão, alegrias, festas, nada faltou!

    Mas que profunda differença entre esse rapaz vaidoso, futil,
    sempre morto por se divertir, com um fundo de egoismo e de
    hypocrisia atroz; e a rapariga cheia de sonhos, amante e
    infantilmente crédula que eu então era! E tudo lhe perdoava,
    tudo n’elle me parecia toleravel, porque o amava e o julguei
    sincero. Enganou-me como se pode enganar uma criança de seis
    annos, até que o acaso se encarregou de me abrir os olhos á
    verdade brutalissima da vida. Em tantos annos de casada não
    houve um só dia em que eu desconfiasse da lealdade do seu
    caracter, e não houve um só dia em que elle me não enganasse
    vergonhosamente. Depois de saber isto estava mulher, uma
    passiva ter-se-hia resignado, algumas fariam o mesmo que elle,
    outras ainda encontrariam nas vaidades mundanas a phylosophia
    cinica a que usam chamar _savoir vivre_. Eu, era uma selvagem,
    não me resignei, e fugi como um animal ferido para a solidão
    magnifica da natureza, resolvida a tudo acabar pela separação.
    Encontrei a tua amizade santa e ella me obrigou a comprehender
    a vida e a resignar-me na apparencia. Os teus poucos annos
    de rapariga educada no mundo e para viver no mundo souberam
    aconselhar a mulher que apenas tinha vivido pela alma.
    Disseste-me que fingisse—fingi! Que ninguem devia vêr as minhas
    lagrimas—e ninguem as viu senão tu. Mas que friesa tumular
    foi a nossa vida desde então! O capricho que lhe inspirei
    esvaira-se, como fumo, n’aquella alma inconstante. O sincero
    affecto que eu lhe dedicara tinha morrido sem que eu soubesse
    como. O que então mais soffria em mim era o que já não tenho
    hoje—o orgulho, a vaidade de mulher nova e bonita.

    Que vida a minha! Se eu tivesse um filho—a suprema aspiração da
    minha alma—então teria ainda esperança de ser feliz, assim!...
    Mas se o tivesse, que dôr eu sentiria vendo-o despresar seu
    pae, porque o despresaria decerto, e nada se pareceria com
    elle. Desgraçado, não lhe tenho nenhum odio. Odio só tenho á
    sociedade que me liga eternamente a um homem que me despreza
    e a quem egualmente despreso. Só isso me faz ainda vibrar os
    nervos n’uma revolta! Has-de perguntar para que queria eu a
    liberdade dada pela lei, visto que já nada espero do mundo?...

    Não sei. Era livre, ao menos, não tinha o meu nome ligado ao
    d’elle—já era alguma coisa!

    Olha, Isabella, quando criança sonhei uma vez que ia por uma
    estrada cheia de sol e poeira. Caminhava, caminhava n’um
    desconsolo de cansaço e solidão. Muita gente passava por
    mim e corria para a frente empurrando-me e deixando-me cada
    vez mais desconsolada. Os campos em volta eram d’uma aridez
    desolante—nem um pedaço de paisagem verde, nem uma sombra onde
    podesse descançar os olhos mortificados. No fim de tanto andar,
    que os pés em sangue já se recusavam a continuar a marcha,
    encontrei a sombra rachitica d’uma arvore, cahi extenuada e
    alli fiquei sem pensar em mais nada. Das pessôas que tinha
    visto, muitas voltavam abatidas e tristes, outras corriam ainda
    para a frente, lindas de esperança e alegria.

    Vendo-me tão abandonada, os conhecidos chamavam-me, os outros
    olhavam-me lamentosos, e eu, indifferente a uns e a outros,
    não me levantava, cançada para sempre d’esse caminho árido.
    Levantar-me, para quê?

    A traz sabia eu que nada havia bom, para a frente não tinha
    coragem de procurar saber.

    A minha vida é isto, Bella: fecho os olhos e deixo-me adormecer
    na desgraça—que me falta a coragem para procurar existencia
    melhor.

    Não sei se comprehenderás esta carta, que não tenho coragem de
    reler. Vae n’ella toda a minha alma ansiante acolher-se ao teu
    coração honesto. Dize-me que vivo, que eu já não sei o que isso
    é!

    Adeus. Lembra-te sempre da tua:

                                                    _Maria Helena_.

    _P. S._—Esta carta escripta hontem vae tal qual a senti e a
    penna a traçou; não a rasgarei para te dar mais uma prova de
    quanto confio no teu affecto. A mamã está mais socegada e
    com a sua saude volta-me a coragem e o sangue frio para ver
    claramente a situação que meu marido me deixou.

    Vou aproveitar definitivamente a liberdade que me dá. É quasi
    um allivio, depois de tantos annos de servidão. O dr. Ramalho
    acaba de sahir d’aqui e affiançou-me que em tres dias a mamã
    poderá acompanhar-me. Sahiremos então desta casa que é d’elles
    e que devo deixar sem a mais leve saudade... Sem saudades?...
    Não sei que têm estas coisas inanimadas que nos rodeiam para
    assim nos custar a separação, mesmo quando apenas foram
    testemunhas de maguas... Do que é seu fará o que entender;
    o que nós temos chega para a nossa sustentação mais do que
    modesta. Sinto-me tão serena que já me parece que sou feliz. O
    que me aconselhas que faça? Espero a tua resposta para sahir
    d’aqui.

    Abraça o João e recebe muitos beijos da tua do coração:

                                                           _Maria_

A entrada sobresaltada de João, com os jornaes onde lêra o escandalo da
_alta roda_ bem claramente expresso por iniciaes e certas indicações,
arrancou Isabella ao absorto meditar em que a carta a fizera cahir.

Não que a surprehendesse ou interessasse a fuga do Visconde e da Candida,
realisadas com a mais moderna e despoetisada simplicidade, á sahida de
um espectaculo, onde a mulher cumprimentára affectuosamente a amante,
entrando para um commodo expresso que os affastava de um meio mesquinho
que mal correspondia aos seus gostos e desejos de goso, para os levar a
uma civilisação requintada, vivendo luxuosamente no vicio de que fez
um sacerdocio, esbanjando dinheiro, actividades e energias vitaes no
desesperado empenho de usufruir a existencia intensamente, como quem não
pode dispôr do incerto dia de amanhã. Era um destes casos do dia que
apenas despertam o interesse pela evidencia os nomes que desempenham os
principaes papeis e que fazem convergir para uma determinada e minima
parte da sociedade a attenção de todos, despertando risos, odios,
despreso ou pena, conforme o temperamento e a orientação de cada um. O
que lhe feria o espirito, o que a entristecia, era essa carta que lhe
ficára aberta nas mãos trémulas, sangrenta de sinceridade, eloquente na
sua acusação, como um grito de victima esmagada sob as rodas triumphaes
do carro doirado donde os preconceitos sociaes dictam as suas leis.

Arrependia-se de ter aconselhado a amiga á inerte resignação, que é uma
transigencia; arrependia-se de a não ter mesmo incitado a despresar toda
a hypocrita consideração mundana e tornar-se sinceramente o que os seus
nervos e o seu lucido criterio lhe diziam que fosse—uma revoltada.

Os annos que Maria Helena levára na paciente resignação de uma voluntaria
sacrificada, pesavam-lhe como um crime proprio; porque Isabella, como
todos os conscientes, caminhava das trevas para a luz com segurança,
despresando hoje o que hontem ainda a amedrontava, vendo a pequenez
das coisas que a maioria respeita, demolindo no seu proprio espirito
os idolos sociaes e criando novos ideaes de justiça, de bondade e de
obrigações para com os outros e para com a propria existencia que não
temos direito de sacrificar á dôr, por conveniencias de egoismo alheio.

—«O que se ha de fazer?—perguntou João, depois de ler a carta, acostumado
a encontrar na mulher o primeiro conselho que orienta e vence o
sobresalto, dispondo-nos á lucta.

—«Acho que devemos mandar um telegramma a prevenir a Maria Helena de que
partimos no primeiro comboio, para a trazermos para a sua casa. É onde
ficará melhor.

—«Mando já o telegramma, mas a prevenir só da minha ida; tu não vaes,
queridinha, tenho medo por ti e pela chegada do nosso pequenino hospede.

—«Estou em cuidado na Maria Helena, que nunca se viu só a tratar dos seus
negocios.

—«Descança em mim, verás que mereço a tua confiança, minha vaidosa.

Ella sorriu ao sorriso d’elle, erguendo a cabeça, que apenas lhe chegava
ao hombro, para receber na bocca o beijo que lhe offerecia amorosamente.

O sol entrava pela porta de vidros que descia para o jardim, onde as
rosas se abriam á primeira caricia da primavera, e nimbava-os de luz
n’uma transfiguração milagrosa de vida.

Fôra alli, n’aquelle mesmo quarto, pela transparencia d’aquella mesma
janella, na impassivel cumplicidade das coisas, que a Pillar assistira,
por uma lucida noite de lua, ao desmoronar de todas as suas illusões.
Fôra d’alli que vira, com seus proprios olhos, a traição d’essa mesma
Candida que continuava, atraiçoando sempre, o seu caminho de viciosa e
ambiciosa perfidia.

Mal poderiam imaginar, olhando o bello sol primaveril que se escoava
pela folhagem das arvores cahindo em chuva d’oiro, buliçoso e alegre,
nas ruas areadas e na relva dos canteiros, que fôra exactamente n’esse
quarto, encostando-se a essa mesma janella, que o Vilhegas se consumira
na dúvida, por uma tragica e revolta noite de inverno que vergastava as
arvores desguarnecidas, sobre a causa da doença e do horror que por elle
e pela cumplice manifestára a noiva moribunda...



XIX


Fôra grande o escandalo em Lisboa pela fuga do Visconde, repercutindo-se
fortemente na villa onde tantos interesses os ligavam a todos.

Havia quem acusasse violentamente a Candida pela leviandade de que dera
provas; outros tornavam o Visconde como unico responsavel de todo o mal,
e visto que, definitivamente, tinha deixado a politica, já não havia
considerações que tolhessem a livre critica dos seus antigos partidarios.

Houve tambem quem arrastasse por todas as baixesas o nome do Braga,
ambicioso e usurario, a quem o caso não déra maior abalo, o que parecia
indignar os homens sérios e convulsionar em risos chocarreiros as
meninas, que a proposito segredavam coisas, pelos modos, nada edificantes.

Não faltou até quem perfidamente quizesse attingir a Viscondessa,
que viera acolher-se aos muros amigos da velha casa e se fechára
resolutamente na mais completa reserva, porque ao tempo que o caso se
déra estava o Ramalho em Lisboa e com João as acompanhára alli.

A pretexto da doença de D. Genoveva escusara-se ella ás visitas dos que
pressurosos accorrem sempre onde ha desgraças, não pela natural piedade
de corações bem formados mas pelo gosto de insectos poisando com delicia
sobre cadaveres e podridões.

Esse affastamento, que em boa logica não devia fornecer pasto á
malevolencia, era o que mais a expunha ás considerações dos que nenhuma
idealisação affasta da mesquinha curiosidade das vidas alheias e mais
irritava as opiniões que tão agremente se referiam já aos primos.

O menoscabo das suas pessoas calava fundo no orgulho d’aquella gente e
fazia desembestar saraivadas de doéstos pelas salas e lojas, com estupida
superioridade do boticario Domingos José da Silva, appoiado pela mana
Josepha, que procurava em vão no principe Rodolpho caso similar e bradava
não ter nunca visto uma ingratidão assim.

O Padre Mathias, grave e conspicuamente, como lhe pedia a sua nova
encarnação, bordava commentarios phylosophicos sobre o caso, que cahiam
no ânimo dos ouvintes como sentenças de prégador. Fazia-os notar o
orgulho e ingratidão d’esses herejes, comparada á lhaneza proverbial do
conselheiro, que era um talento—a melhor cabeça do paiz! Nem elles sabiam
apreciar o bem que tinham com tal protector,—um homem de vastissimos
conhecimentos e de uma prodigiosa faculdade assimiladora—coisas que
ouvira ao Telles n’uma noite em que tivera que se defrontar em discussão
acalorada com um antigo companheiro de casa, algo desdenhoso pelos
méritos da Excellencia.

—Sim, comparassem elles o que tinham ganho os seus partidarios, desde
o Telles secretario particular e inspector das escolas, até ao Neves
vantajosamente empregado na fiscalisação do alcool, ganhando dinheiro
sem sahir de casa, nem fazer mais do que assignar o nome no fim de cada
mez. E os adversarios?! Nada tinham obtido com a sua dedicação, politica,
recebendo por paga o despreso da _fidalga_ que achara maior prazer na
degradante companhia dos _esfarrapados_, seguindo as pisadas da tal
_inglesa_, e do orgulhoso padre a quem o sr. Bispo tivera que expulsar do
gremio christão...

Entretanto ia a Viscondessa retemperando as forças, e o seu espirito tão
dolorosamente abalado a pouco e pouco se ia alevantando no sadio regimen
moral das verdadeiras dedicações, das amisades sem movel interesseiro.

Bella affirmava peremptoriamente que a queria vêr feliz e que não lhe
bastava para isso o socego de espirito; precisava tambem de tonificar o
organismo, despir, como quem arremessa do corpo uns miseraveis andrajos,
os habitos de cidadã que do campo só ama e conhece as avenidas sombreadas
dos jardins e quintas de regalo. Seria ella, uma _estrangeira_, quem lhe
faria as honras da paysagem, que já conhecia como os seus dedos. Quem
lhe mostraria os mais doces caminhos afofados de musgos que o sol tonisa
em toda a brilhante gama de verdes. Quem a acompanharia por essa serra
que os castanheiros vestem alternando com os pinhaes sombrios o seu
bello verde luzente; ella quem lhe ensinaria os sitios onde a agua corre
fresca e leve entre arrendados de avencas e fetos, chorada pelas pedras
barbaras do monte.

—Ah como esse paiz é lindo e como até ahi o tinha desconhecido, assim
como tinha ignorado o encanto de ser livre, de viver ao seu gosto,
sem ser confragida pela vontade alheia!—pensava ella, remoçada,
tendo readquirido, no pouco tempo que decorrera, o encanto do riso
sem constrangimento, a alegria das côres perdidas na descrença e na
melancolia, que envenenam o espirito e o sangue.

E com a saude e a serenidade vinha-lhe o desejo de trabalhar, de ser
util, de acrescentar á iniciativa dos primos a energia da sua actividade
e da sua intelligencia. Isto alegrava Isabella, que assim a via resurgir
para a vida e para a felicidade como se milagre fosse, e de boa vontade
lhe ia confiando as multiplas obrigações, que nos derradeiros tempos de
gravidez já lhe custavam a desempenhar.

Planeavam novos estabelecimentos, gisavam melhorías nos existentes, que
urgia completar para que a obra fosse verdadeiramente justa e util.
Queriam todos que a criança de pequenina arrancada á miseria e á dôr não
tivesse que voltar para a vida mais infeliz do que nunca, com a alma
vulneravel a todas as amarguras, a todas as faltas, que mais sentirá
depois de ter conhecido o aconchego e asseio da roupa, a delicia de uma
cama limpa, a fortuna de comer sem ter sentido o estomago crispar-se
com fome, o luxo das abluções e dos sabonetes, tendo adquirido, pelo
simples uso de singelissimos habitos de hygiene, necessidades materiaes,
impossiveis de satisfazer entre a miseria dos seus, tendo aberto o
espirito a horisontes largos, que a tornarão na propria familia uma
estrangeira, victima indefesa da philantropia usada luxuosamente por quem
nada se importa da desgraça alheia.

Para evitar esse mal é que tinham criado, como continuação do asylo e
do hospital, as escolas-officinas onde rapazes e raparigas adquiriam
aptidões para seguirem o caminho traçado pela propria intelligencia
e gosto, tendo junto real a real e com o proprio trabalho, o pequeno
capital com que fazer face aos primeiros embates da lucta, chegados que
sejam á idade de serem livres e tratar de si.

De todo o paiz tinham já vindo modelos de industrias acompanhados por
quem as podesse ensinar alli, porque Isabella punha muito de phantasia e
de arte na maneira prática de ver e apreciar a vida.

Mas para o trabalho de administração propriamente dita, para seguir
pacientemente o fio encetado, esperando que o tempo lhe trouxesse o
resultado benefico, não tinha maior paciencia. Não, para isso era melhor
Maria Helena e o proprio dr. Ramalho, encarregando-se de calculos
meticulosos, sempre sereno e bondoso, sob a mesma calma e apparencia de
reserva.

O velho abbade, que não descançava um instante, descobrindo meio de ser
util em toda a parte, augmentando cada dia o asylo, enchendo a créche
de pequenos, que vinham entregar-lhe sem receio, desde que constara que
não se olhava a procedencia nem se esperava idade para admissão, que se
dispensava dinheiro e enxoval, não só a desgraçadas sem marido infelizes
que os homens abandonam com um filho nos braços e a fome a brutalisa-las
ferozmente, como a casa das cujos homens mal podem sustentar o rancho
esfomeado que pede pão, com o producto da sua enxada de cavador ou das
ferramentas officinaes.

Trouxessem lhe pequenos entes fracos a criar e a proteger, que a todos
egualmente abriria os braços e o coração, novo apostolo dos desherdados,
casto como uma virgem, puro como criança de um anno, ardendo em fogo
sagrado de espiritual fraternidade.

João triumphava com o seu lindo bairro operario—o encanto de mr. Burns,
que ajudava todos com o seu lucido criterio e vastos conhecimentos,
aconselhando, fornecendo capitaes, e comprando, por fim, terrenos
incultos que repartia com egualdade em arrendamentos que terminariam pela
posse, em tempo marcado para a remissão. Lembrava ao sobrinho a utilidade
de uma industria que aproveitasse e desenvolvesse energias e aptidões,
que fosse o complemento do trabalho rural, como a escola deve completar o
asylo, seguido da aprendizagem prática.

O tempo caminhava e com elle cresciam as impaciencias e cuidados, que
mais ou menos todos sentiam por ver chegar o momento em que Bella, emfim
livre dos incommodos e do mal estar que em vão tentava disfarçar, lhes
desse o pequenino anjo que tantos braços esperavam para acalentar, que
tantos carinhos encontraria á sua chegada ao mundo.

Antonio de Mello e Josephina sentiam-se remoçar aguardando o primeiro
neto, como outrora tinham esperado com alvoroço a vinda do primeiro
filho. A velha Engracia descrevia ás amigas o enxoval que esperava o
seu menino e não se continha sem mostrar cada peça de roupa que das
artisticas mãos da mãe e da viscondessa sahia, como modelo de outros
mais, que a Aurora Cunha fazia executar no asylo.

Maria Helena contava as horas e os dias e em cada noite que se despedia
não deixava de recommendar—que havendo qualquer coisa a fossem prevenir.

Uma madrugada, emfim, Isabella queixou-se mais. João, nervoso, correra
ao quarto da mãe, que lhe dizia em modo de consolação:—coitadinha,
soffria, soffria muito, mas então!? Tivesse paciencia, quem lhes dera que
soffresse muito mais, que era para se despachar depressa.

Pobre João! elle queria sorrir da prática phylosophia da mãe, queria
convencer-se da justeza das suas observações, mas custava-lhe tanto ver
Bella muito pallida, silenciosa, encostando-se aos moveis a cada assalto
das dôres, arrumando o enxoval na cestinha forrada de seda azul—pois se
seria um rapaz, todos sabiam!...—sorrindo-lhe com resignação e coragem,
entre dois gemidos abafados.

Elle mexia em tudo, arrumava tambem, pensava em muitas coisas, excitado,
atordoando-se um pouco, dando ordens, e pretendendo ser o que tinha mais
sangue frio para pensar em todas as coisas; para o provar repetia mil
vezes que fossem chamar a _comadre_, e que não se esquecessem tambem de
ir ao palacio prevenir Maria Helena, e a casa do dr. Ramalho, isto já
quando todos estavam em casa e rodeavam a doente.

Emquanto ao tio, lembrou Bella que o não prevenissem e encarregassem
o abbade de o levar para longe n’alguma visita ás propriedades que
adquirira e que andava melhorando.

Soffreu ella muito todo o dia; João já desanimava, perdia a energia,
pareciam-lhe eternas aquellas horas, e, disfarçadamente, a cada gemido de
Bella, limpava uma lagrima silenciosa que lhe vinha aos olhos.

Só mais tarde já quando no horizonte aclarava o céo de uma rosea aurora
primaveril, é que; n’uma convulsão de dôres e de gritos, a criança nasceu.

Josephina chorava de alegria recebendo o embrulho precioso que a parteira
lhe pusera nos braços, indo palavrosa e desembaraçada tratar da mãe, que
já sorridente e feliz perguntava—se era rapaz.

Todos fallavam a um tempo, em voz baixa, havia risos felizes olhando
João, que não queria crêr que fosse um menino—nem já lhe importava, nem
mesmo que morresse, o que queria era a mãe com vida, a mulher que amava
com todos os transportes de amante, que o sentimento paternal não podia
extinguir e tão sómente completar.

—Viviam ambos, felizmente, e que engraçado que era o gorducho, e tão
feiosinho com a carita inchada de recemnascido, mas tão engraçado aos
seus olhos, e tão amado tambem!

O restabelecimento foi rapido, e com a saude voltou a Bella a sua
energia e bom humor. A criancita crescia a olhos vistos, querido e
amimado por todos, só lhe chegando aos braços na hora marcada para mamar.
Mas então o seu orgulho de mãe satisfazia-se bem com a alegria animal do
pequenino glotão, que era bem seu, duas vezes seu, pelo sangue rubro de
que o alimentara em seu seio e pelo branco leite correndo dos seus peitos
como fonte de vida, de alegria e de amôr.

No meio da satisfação geral sómente D. Genoveva soffria da doença
incuravel que trazia a filha em sobresalto e da ferida que o seu orgulho
sentira com o escandalo dado pelo visconde, aggravado a seus olhos pela
noticia que lera nos jornaes de que um grande leilão liquidaria em
breve o palacio de Lisboa recheado de magnificencia e preciosidades, um
verdadeiro museu de arte e mobiliario, como se não reuniria tão cedo
outro na capital.

Sentia-se ferida na sua vaidade vendo o nome do genro, que era o seu
proprio como tia, lançado assim á curiosidade publica, baralhado na
confusão da sociedade como o de qualquer bricabraquista interesseiro
ou pretencioso. Achava que a viscondessa se devia oppôr a tal venda, e
era baldado o esforço do velho abbade para lhe fazer comprehender as
vantagens que da presente situação advinham á filha, senhora emfim de
viver ao seu gosto na serenidade de uma existencia sem obrigações, que
intimamente despresava.

Muito agarrada aos velhos codigos nobiliarchicos, á boa senhora era
custosa a conformação com essa maneira simples de ver as coisas, que
se lhe antolhava por demais despresadora das leis da sociedade a que
pertenciam.

A seu ver não devia Maria Helena ter sahido de sua casa, do seu mundo,
não deveria ter despresado os parentes e amigos que em Lisboa lhe fariam
uma côrte, de lamentos, anathematisando o procedimento do Visconde.

Custava-lhe realmente a comprehender que se preferisse a solidão
d’aquelle grande palacio ao convivio das relações mundanas. Não attingia
o motivo que levara a filha a, mesmo alli, cortar relações com toda
a gente que mais ou menos a distrahiriam. Dir-se-hia que era ella a
criminosa, ella a que tinha motivos para se envergonhar e fugir.

Depois essa maneira de fazer bem educando os filhos do povo para serem
tanto ou mais do que os nobres, não lhe quadrava.

—Decididamente já não comprehendia nada do mundo, nem a gente nova se
parecia com a velha—concluia pegando no _crochet de_ lã grossa com que
se entretinha a fabricar saias e casacos para as criancitas pobres, na
convicção intima de que era assim que se praticava o _bem_; distribuir
esmolas a uns e a outros conforme o capricho e a sympathia de cada qual,
sem livros e sem escolas... Escolas para que?! Só se era para os criados
se julgarem mais senhores do que os proprios patrões... A seus olhos,
o mundo tinha-se voltado do avesso; se até o velho abbade passava sem
dizer missa e respondêra com o despreso ás accusações que da camara
ecclesiastica lhe tinham mandado!...

Valia-lhe o dr. Pinto, a irmã mais nova do abbade e as Cunhas para lhe
fazerem a partidinha do whist e lhe irem contando os casos da villa; era
o que a distrahia um pouco depois das rezas obrigatorias e da leitura,
feita pela dama de companhia, de toda a grinalda romantica do principio
do seculo passado.

Com a aproximação do inverno seguinte a sua saude resentira-se-lhe
e muitos dias havia já em que a filha a não podia deixar. Habituada
áquelle affecto sempre prompto e tocante, acostumara-se tambem a vê-la
sacrificada sem um murmurio e acceitava como obrigatorio o que só o amor
lhe offerecia.

N’um d’esses dias, em que, por Maria Helena não sahir, Bella a fôra
visitar, viu com surpreza, á sahida, que uma carroagem parava ao portão
e um homem se apeava, fechando-a logo cuidadosamente. Ia passar sem
procurar conhecer o visitante, mas sabendo que a amiga não tinha segredos
para ella e presentindo desgosto ou incommodo que a sua interferencia
podia talvez evitar, resolveu dirigir-se ao desconhecido.

Sem saber porquê, pensou no Visconde e lembrou-se que seria porventura
estrangeiro rico seduzido pelas maravilhas de arte expostas no catalogo
do leilão, que preferisse comprar a propriedade em globo e para isso
necessitasse a assignatura da viscondessa.

Tudo isto lhe atravessou o cerebro apenas no tempo preciso para se lhe
dirigir perguntando o que desejava.

Muita habituada a conhecer a sociedade a que pertence qualquer individuo
pelo exame rapido de toda a sua pessoa, Bella constatou no olhar em que o
envolveu por completo que nada faltava ao trajo, consagrado pelo figurino
britannico, de um homem rico em viagem.

Não sabendo muito bem em que lingua devia fallar a um homem que o
cosmopolitismo parecia ter marcado fórtemente tirando-lhe a distincção de
qualquer nacionalidade, perguntou em francez o que desejava.

Elle parou, cumprimentando. Era um homem de que se não poderia bem
precisar a idade porque, se o busto se endireitava n’uma arrogancia de
juventude, o cabello e o bigode já grisalhos davam-lhe uma apparencia de
velhice precoce.

A pelle de um amarello verdoso denunciava longos annos de vida nos
tropicos, as pregas mal difarçadas junto aos olhos, de uma intelligente
viveza, accusavam uma longinqua mocidade mal aproveitada em vigilias e
prazeres ou esgotadoramente trabalhosa. A bocca, onde fortes dentes ainda
brilhavam, tirava ao rosto toda a expressão de bondade, franzida n’um
rictus de ironia.

—«V. Exc.ᵃ poder-me-ha dizer se a sr.ᵃ Viscondessa está?—respondeu no
mais correcto portuguez, acompanhando a phrase do seu riso escarninho,
como quem esperava gosar do espanto da interlocutora.

Mas Bella pensou:—bom, já sei que é brazileiro que deixou a patria e com
ella o _soutaque_ da pronuncia e que vive cá pela Europa muito ao seu
gosto. Conheço o typo geral, tão poucos existem, por cá! Principalmente
em Paris, que é para todo o legitimo brazileiro o resumo das perfeições
humanas, a terra promettida onde vão terminar todos os seus sonhos de
ambição.—E respondeu sem se desconcertar:

—«A sr.ᵃ Viscondessa tem a mãe tão perigosamente enferma, que me parece
inutil qualquer pedido de attenção. Mas se não é caso urgente, V. Ex.ᵃ
esperará...

Reprimindo sob o seu eterno sorriso um gesto de impaciencia, respondeu:

—«Perdão, o caso não admitte a menor de longa.

—«Então, asseguro a V. Ex.ᵃ que minha prima não tem segredos para mim e
pode confiar-me a sua pretensão. N’este momento é inteiramente impossivel
obter d’ella uma audiencia.

—«Em todo o caso, repito, o que tenho a dizer-lhe não admitte delongas...

—Entraremos, pois, porque me parece que o mysterio se liga á urgencia e
V. Ex.ᵃ me confiará a sua missão, subindo eu depois a communicar-lha. É o
unico remedio que vejo.

—«Effectivamente...—respondeu curvando-se—não ha grande inconveniencia
em dar contas a uma amiga da sr.ᵃ Viscondessa da minha espinhosa e
mysteriosa missão.

Isabella baixou a cabeça e passando á frente fê-lo subir alguns degraus
e entrar na sala, de que fechou cautelosamente a porta. Sentou-se junto
a uma meza e indicou-lhe uma cadeira a que elle preferiu encostar-se,
ficando de pé.

Tudo isto tinha sido feito com tanta serenidade e gentileza natural, tão
sem sombra de pretenção ou vaidade, que o estrangeiro, evidentemente
apreciador e habituado a julgar os mais raros exemplares da graça
feminina, não poude deixar de manifestar no sorriso o encanto que o
subjugava.

—«V. Ex.ᵃ dirá...—começou Bella para terminar o silencio.

—«Não sei bem como principiar, pois é estranho, em verdade, o motivo que
me traz...—disse um pouco embaraçado.

—«Em todo o caso...—sublinhou com ironia.

—«Sim, em todo o caso o tempo urge e eu não posso deixar de dizer a V.
Ex.ᵃ o que vinha pedir á dona da casa. Em primeiro logar, minha senhora,
é da mais rudimentar cortezia dizer-lhe o meu nome. Chamo-me Pedro de
Albuquerque. Isto decerto nada lhe diz porque estes grandes appellidos
andam em todas as caras cá no nosso paiz...

—«Ah! V. Ex.ᵃ é portuguez?

—«Não e sim. Sou realmente portuguez de origem, e brasileiro de adopção.
Mas como qualquer dos dois paizes me agrada menos do que Paris, foi lá
que fixei residencia. E foi lá tambem que conheci ha alguns mezes uma
pessoa, um homem que... por certo ainda deve interessar vivamente a amiga
de V. Ex.ᵃ

—«Não me parece que exista hoje algum homem em Paris que disperte
interesse a minha prima—respondeu ella friamente.

—«Um homem que foi, que é ainda, porque no nosso bello paiz não ha a lei
redemptora do divorcio, o seu proprio marido—continuou sem deixar o tom
de ironia que lhe era habitual.

—«A minha amiga dispensa bem a liberdade conferida pela lei, sentindo-se
moralmente divorciada desse homem.

—«E no emtanto, veja V. Ex.ᵃ o que são as coisas! Eu venho exactamente
trazer esse homem moribundo e pedir para elle a piedade da
esposa—respondeu imperturbavel.

Bella levantou-se firme, crescida de orgulho e indignação.

—«Nunca lha pedirá, senhor.

—«Pelo amor de Deus, não me obrigue a ser indelicado, insistindo...

—Não! É um abuso, uma violencia. Ha um homem que atraiçôa vilmente
sua mulher, que a despreza, sendo-lhe inferior, que a sujeita a todas
as vergonhas e que por fim lhe atira com o nome á lama das ruas com o
descaramento de um bandido que deixa no cofre, donde roubou os valores, o
seu cartão de visita...

—«Minha senhora, mas esse homem está hoje morto e o desgraçado que lhe
trago não tem de familia mais ninguem, alem da esposa. É justo que junto
a ella se acôlha...

—«Justo porquê? Esse homem deixou de ter familia desde que foi o proprio
a despreza-la; com que direito a procura agora?!

—«V Ex.ᵃ não me deixou explicar, não é elle que pede, somos nós, os seus
amigos, ou antes os seus companheiros—emendou a um gesto de Bella—que
resolvemos tira-lo de Paris onde não poderia viver entregue a criados...

—«Ha muitas casas de saude onde vantajosamente o poderiam internar.

—«Oh, mas seria escandaloso, um homem com o nome d’elle, tendo familia,
patria, fortuna...

—«Oh o rico sentimentalismo masculino! Tudo o que elle fez, então, não
destruiu aos olhos de V. Ex.ᵃˢ essas raizes que prendem um caracter leal
e honesto?...—gargalhou com nervosa ironia.

—«Não seria bem feito, mas é tão vulgar...

—«Será, mas na minha opinião familia já a não tem porque a despresou
e insultou. Patria já não a merece. Fortuna gastou-a com as suas
leviandades. Portanto, nenhum direito assiste aos seus amigos de vir
exigir da esposa um novo e doloroso sacrificio.

—«Mas, tenha V. Ex.ᵃ embora razão, moralmente fallando, o que é certo é
que tambem se pode chamar uma crueldade o morrer no abandono o marido
tendo a esposa fortuna...

—«Não sei o que a minha amiga faria se fosse chamada aqui, creio que
seria bastante generosa para se sacrificar mais uma vez. Sou eu,
comprehende V. Ex.ᵃ, eu que não quero, que não consinto que ella saiba
esta traição que lhe querem fazer á sua generosidade, á nobreza do seu
caracter—respondeu com violencia.

—«Perdão, minha senhora, mas sou eu que não desisto. Não sahirei d’aqui
sem obter a resposta da propria dona da casa. Não posso reconhecer em V.
Ex.ᵃ o direito de me expulsar—replicou, já alterado tambem, sentindo no
embate de vontades crescer-lhe as violencias de um caracter energico.

—«Fallo-lhe em nome da justiça, senhor! Sei muito bem que os que vivem
n’essa brilhante e desvairada vida de prazeres e divertimentos, conhecem
d’esta palavra só o que dizem os codigos. Mas acima d’elles ha uma ideia
superior, um criterio mais justo a que não creio que o seu espirito se
tenha já fechado completamente. Milhares de homens e mulheres honestas e
trabalhadoras morrem por dia de miseria e de abandono, longe da patria,
escarnecidos pelo destino, abandonados de todos e de tudo. E ninguem
corre ansiado a protegê-los, a leva-los nos braços cuidadosamente para os
ir depôr na sua patria, para lhes ir deitar a cabeça moribunda no seio
das familias. E ha um homem como este, que não teve virtude nenhuma, que
não fez senão mal com o seu egoismo, de quem a propria intelligencia foi
na sociedade um elemento corruptor, que da vida usufriu todos os gosos,
e não ha lagrimas que não repuxem aos olhos, nem lenços de fina seda que
não abafem gemidos! O que o senhor e os seus amigos querem fazer, impondo
á mulher esse marido, que a villipendiou é, no meu criterio, uma infamia.
Oppor-me, é o meu dever.

—«Minha senhora, V. Ex.ᵃ abusa do seu sexo...

—«Pode responder como quizer, porque eu despreso tambem as conveniencias
que obrigam um homem a calar uma resposta altiva a uma mulher e o deixam
babujar insultos sob forma de galanteios á primeira que passa, queira ou
não ouvi-los.

Subjugado, vencido, o brazileiro respondeu conciliador:

—«E, no entanto, elle está lá em baixo moribundo, não contando ser
recebido porque não tem já bem a noção do que se passa, mas em todo o
caso devendo ser attendido.

—«E lá em cima está uma senhora, uma velhinha que era sua tia e foi-lhe
mãe, na orphandade, que é a mãe de sua mulher, e a quem não respeitou os
annos nem a saude. Tambem um abalo moral a poderá matar.

—«Mas n’esse caso?!... O que quer V. Ex.ᵃ que se faça?

—«Que o levem.

—«É impossivel. Para onde o levariamos agora?

—«Em Lisboa ha casas de saude.

—«Não chegaria lá. É uma crueldade!—E alterando-se de novo, n’uma
violencia de quem não esperava ser contrariado, continuou—hei-de fallar
á sr.ᵃ Viscondessa, não sáio sem isso. Elle é ainda o seu marido, o dono
legal d’esta casa.

—«Tem razão, senhor—disse por detraz d’elle a voz maguada de Maria
Helena, a quem tinha chamado a attenção a carroagem estacionada á porta
e Bella altercando na sala com um desconhecido, segundo lhe dissera a
criada de quarto. Descendo em seguida podera ouvir parte da discussão e
comprehender o sacrificio que o destino ainda lhe exigia.

A ultima phrase do brazileiro ferira-a no seu orgulho e fôra elle quem
lhe dictara a interferencia immediata.

Adiantando-se até ao grupo surpreso que os dois formavam, repetiu ao
estrangeiro, frizando com ironia a phrase:

—«Tem razão, senhor. Elle é ainda meu esposo, o dono legitimo d’esta
casa, o senhor da minha vontade... Pode faze-lo entrar, que eu dou ordem
para ser recebido como tal.

—«Ó Maria Helena!!...—gemeu a amiga abraçando-a, com as lagrimas a
assomarem-lhe aos olhos.

—«Minha senhora!—curvou-se elle, tambem vencido pela emoção.

—«Deixa, Isabella, o sacrificio ainda não estava consumado.

—«Isabella?... V. Ex.ᵃ disse?—tornou atraz o brazileiro ferido por esse
nome.

—«Isabella Burns, a minha unica amiga—repetiu a Viscondessa machinalmente.

—«Ó Isabella, como te não reconheci logo?!—rouquejou o desconhecido
estendendo os braços n’uma supplica.

—«O senhor?! Porque?!...

E ante o olhar apavorado do homem que a fitava n’uma agonia, Bella deu um
grito, reconhecendo-o tambem.

—«Meu pae?!...

—»Sim, sim—repetia estupidificado pela surpreza, recuando esverdeado e
tragico, a bocca contorcida pela amargura, o cabello empastado, o bigode
descahido n’uma lamentavel decadencia physica.



XX


—«Meu pae?!—perguntára Bella n’um grito que participava da angustia,
da surpreza e da alegria. Um grito que dizia claramente o complicado
drama psychologico que era n’ella a lembrança d’esse homem, muito amado
no silencio do seu coração, que a sociedade lhe mandava despresar como
criminoso e que a sua razão conseguira desculpar, ou mais, definir como
um symbolo d’essa mesma sociedade.

Passado o primeiro instante de indecisão, e emquanto a Viscondessa, pouco
attenta a esta scena, sahira a ordenar á instalação do doente e o seu
cuidadoso transporte da carroagem, venceu em Bella o amor enthusiastico
que em tempo lhe inspirára aquelle pae galante e pouco escrupuloso, e
correndo para elle apertou-lhe calorosamente as mãos e offereceu aos seus
beijos as faces molhadas de lagrimas.

—«Querida Bella, és ainda a minha filha, a mesma alma generosa, a
caprichosa e louca phantasista que me adorava, o unico amôr da minha
vida!...—Chorava em soluços de criança, o que lhe dava um aspecto de
velhinho dôce.

—«Ainda bem que te encontro, papásinho, ainda bem!...

—«Estimas? Oh! mas então, talvez te não dissessem, naturalmente não
sabes, o motivo porque te deixei?!...—inquiriu como criminoso obrigado a
confessar as culpas com a certeza de ser condemnado.

—«Disseram, sei tudo... Nesse particular não me têm poupado... respondeu
com amargura.

—«Pobre filha! E não me despresas, não me tens amaldiçoado mil vezes?

—«Não; antes muitas vezes te tenho lamentado.

—«E tinhas razão, que eu não fui o que quizeram dizer. Verdade seja
que tambem nunca fui dos mais infelizes.—Agora que tinha a certeza da
benevolencia, voltava ao riso e á ironia, de que fizera habito.—O que
me magoava era estar longe de ti e saber que te arrancariam da alma o
affecto que me tinhas.

—«Isso não; em casa nunca se fallou de tal.

—«O tio Burns fez de conta que eu tinha morrido...

—«Pouco mais ou menos.

—«E tu não me esqueceste, nem deixaste de me querer?!

—«E porque é que me não escreveste, papá? Porque não quizeste saber mais
de mim?

—«Primeiro, não poude... Quando sahi de Lisboa levava pouco dinheiro
e pouca esperança... Tambem, tinha-me prevenido, se não encontrasse
no Brazil as amizades com que contava para me tirarem de embaraços e
ajudarem a recomeçar a vida, tinha o meu revolver com cinco tiros para
o momento em que me sahisse da carteira a ultima nota de cinco mil réis.
Sempre considerei essa somma a minima para dinheiro de algibeira. Depois,
fui feliz, ganhei dinheiro, mudei de nome como quem muda a flôr que
murchou na botoeira, e _fui feliz_—accentuou com sarcasmo.

—«É nunca mais pensaste em mim, não é verdade?

—«Pelo contrario, pensei sempre em ti, mas não sabia as tuas ideias
e conhecia demasiadamente as do tio; tive medo de te alienar a sua
protecção mais proveitosa em todos os sentidos do que a minha.

—«Como podeste estar tanto tempo sem saber de mim, sem me veres?!...

—«E no entanto tens sido tu o meu unico affecto verdadeiro no mundo.
Mas, que queres, nasce-se affectivo como se nasce poeta. Os cuidados
sentimentaes são a poesia do coração, e eu, minha queridinha, nunca
passei de vil prosador. Este mesmo amôr que te consagro e é sentido
como não tive outro na vida, creio bem que é ainda uma forma do meu
egoismo. A vaidade do artista que se vê creador de uma obra perfeita,
porque estás perfeita, sabes? Não te reconheceria, não! Cresceste pouco,
vamos. Promettias tanto! quando te deixei eras uma mulherzinha. E estás
gorda, forte—fallava nervosamente, passando com volubilidade da ternura
quasi ingenua de um velho pae affectuoso, ao riso futil de um homem do
mundo, dizendo banaes comprimentos a uma senhora, outrora conhecida
criança.—Mas que casa tão escura! Não te vejo bem, vem aqui á janella.

A filha deixava-se conduzir docilmente, encantada tambem de rehaver esse
pae que tanto amara e admirara na infancia e que tanto a fizera soffrer.

Caminharam para o largo vão da janella onde tres cadeiras cabiam a par
e levantando o antigo reposteiro deixaram penetrar na sala o reflexo
doirado do ultimo raio de sol poente, que foi movimentar as graciosas
pastorinhas que n’um grupo de velho Saxe ensaiavam um alegre baile
campestre.

As talhas de porcelana China de um brilhante vidrado côr de chocolate
e phantastica floração, resaltaram do fundo pallido da parede donde se
dependurava, em magnifico quadro, o corpo sangrento de homem, virando
para o céo um olhos de angustiada esperança, emquanto o sangue corria
rubro das feridas feitas pelas frechas que se dependuravam, ou espetavam
ao acaso no corpo magro de martyr.

Em baixo, os criados com infinitas precauções arrancavam de entre as
mantas de viagem e traziam em braços um corpo tão emagrecido e um rosto
de tão mortal pallidez, que Bella recuou suffocando uma exclamação.

—«É o Visconde—respondeu o pae á sua muda pergunta.

—«Está morto?

—«Pouco lhe falta... Um cancro no estomago. Mataram no os ultimos dois
mezes de Paris, gosados com o desespero de quem se vê arruinado e...
abandonado.

—«E a Candida?!

—«Dize a _senhora viscondessa_, como por lá a apresentava.

—«E trouxeste-o á mulher, pae!—censurou gravemente.

—«Foi uma fortuna, para te encontrar...—gracejou com leviandade.

—«Porque o deixou ella, sabes?

—«Naturalmente porque o saberia arruinado physica e monetariamente.
Suppomos, porque, orgulhoso como era, não se queixou a ninguem quando
chegou de Luchon d’onde ella tinha partido com um principe russo, com
tantos rublos e servos como cabellos brancos.

—«Que desgosto e que desillusão para a sua grande vaidade!...

—«Não os manifestou senão lançando-se em Paris á mais extenuante vida de
deboche.

—«O que não posso é attingir o motivo porque, moribundo, o tiraram de lá.

—«Resolvemos isso, os amigos e compatriotas, para honra de todos nós.
Foi uma fuga aos _reporters_. Querias que á sua morte tudo se dissesse e
publicasse n’esses jornaes ávidos de escandalos, para a gargalhada d’esse
Paris que tanto se diverte da vida como da morte? Demasiadas occasiões
temos lá fóra para sermos fallados... malevolamente.

—«Levassem-no para Lisboa.

—«Não chegava lá. Aqui ficamos a meio caminho, alem de querermos evitar
escandalos.

—«N’esta casa, aquelle homem!...

—«Por pouco tempo, descança.

Calaram-se, subjugados pelo espectro da morte que passava na sala de
fóra representada pelo visconde, crescido pela extrema magreza, os braços
deitados ao pescoço de dois criados, quasi suspenso, parando a cada passo
apunhalado pelas dôres.

—«Acompanha-o. Eu vou a casa chamar o João e dar leite ao pequeno.

—«O João, o pequeno?!...

—«Sim, eu casei com um primo da viscondessa e temos um filho, um neto
teu, é verdade...

—«Ah, mas então!? Elle tambem sabe o que fui; quererá que me falles?

—«Sabe, o João sabe tudo, nem eu casaria sem isso. É o melhor caracter
que existe. Vou busca-lo.

—«Espera Bella e... e... teu tio?

—«Vive cá tambem.

—«Então?! Não me deixará estar comtigo... Deve despresar-me muito—tornou
outra vez angustiado pela duvida.

—«Não sei, nunca fallámos em tal já te disse. Logo se combina tudo com o
João.

A Viscondessa estava na ante-camara do quarto que rapidamente mandára
preparar para o marido e era o unico que havia no rez-do-chão, o quarto
da rainha, chamado assim porque uma alli dormira outrora, de passagem
pela villa.

Ao fundo uma larga alcova quasi cheia pelo leito baixo de cabeceira
preciosamente arrendada, encimado pelo docél doirado de que se
desprendiam as cortinas em pallida seda a que o tempo amortecêra
o colorido. Fóra, era a sala; forrada em seda Pompadour, decorada
luxuosamente no mais puro e authentico Luiz XV, o mobiliario mais do
gosto do Visconde, como se as preciosidades da fórma e o florido do
desenho fallassem ao seu espirito ligeiro, ainda que brilhante, falho
d’aquella sobriedade e rectidão proprias a quem encara a vida a sério.
E fôra um acaso, filho da commodidade, que fizera com que a Viscondessa
escolhesse para o rodear na morte que se annunciava banal de soffrimento
atroz, todo o brincado futil desse estylo, a desymetria na apparencia
tão symetrica, a sobreposição de ornatos heterogeneos no detalhe e tão
harmonicos e bellos no conjuncto, copia fiel de uma epoca e uma sociedade
assombrosamente grande pelo luxo, e pelo espirito, vista a distancia,
e tão pequena, tão mesquinha de preoccupações e sombria de crimes, tão
estranhamente formada de caracteres frisando entre si o mais absurdo
contraste. Era exactamente n’essa moldura de luxo e requintada elegancia,
entre raridades que tem o seu quê de libertino pela sensualidade das suas
linhas, como pelas historias galantes que suggerem, que morreria o bello
homem que fôra o Visconde, fazendo da vida apenas um jogo, egoista e
ambicioso, tudo e todos sacrificando ao capricho de um momento, symbolo
de uma outra sociedade, menos bella e mais banal por certo, mas como
a outra eivada de erros, preconceitos e crimes, como a outra vivendo
atordoada pelas proprias gargalhadas e festas, sem attender á multidão
que rola na sombra como vasa de esgoto, torva de dôr e de miseria, a
clamar vingança.

Longe estava a Viscondessa de taes pensamentos ao escolher esses quartos
só porque eram na extremidade da casa, affastados dos aposentos de D.
Genoveva que assim ficaria perfeitamente livre de saber o drama que
tragicamente se epilogava alli.

Uma certa repugnancia a conservava affastada do marido que os creados
deitavam e faziam gemer doloridamente a cada abalo, apesar de todas as
precauções.

Bernardo, o mais antigo serviçal da casa, soluçava sustentando-lhe a
cabeça esvaída; conhecera o desde criança, tão alegre, tão enthusiasta e
generoso, e no fim de tantos desgostos dados aos seus, via-o assim voltar
feito cadaver, apenas vivo para soffrer. Na angustia dos olhos sahidos
das orbitas, espantados e envidraçados pela dôr, fitos com dureza nos que
o rodeavam, podia ler-se com horror toda a immensa saudade da vida que
nunca lhe fôra amarga.

Na apparencia serena e digna, a Viscondessa sentia no travôr da bocca
o horror do momento que via approximado e que sinceramente nunca lhe
desejara.

Com a previdencia das pessoas habituadas a doenças, nada lhe esqueceu,
nenhum detalhe faltou á installação rapidamente feita: a lamparina para
a noite, o fogão acceso para tornar habitavel essas casas longo tempo
abandonadas, até não esquecera mandar chamar o velho abbade e o dr.
Ramalho, como amigos fieis, sempre promptos a acompanha-la na tristeza
como na alegria. E tudo ordenára com rapidez, sem precipitação e sem
barulho, como ella sabia fazer as coisas.

Pedro d’Avellar, depois de ter visto a filha atravessar ligeiramente
o pateo, dirigiu-se ao quarto do doente e alli se instalou, pedindo a
Viscondessa que se retirasse.

Doía-lhe o aspecto d’aquella mágua, que inutilmente viera acrescentar
á somma não pequena das que a vida dera já a essa mulher, que tinha
como toda a gente direito a ser feliz e que da sua superioridade apenas
conseguira tirar motivos para agudo padecer.

Se o egoismo fallava e o absolvia da crueldade, mostrando lhe que só
assim poderia ter encontrado a filha, a mesma felicidade que d’esse
encontro lhe advinha e que lhe fazia mergulhar o espirito n’um calentoso
banho de ternura, adoçava-lhe o coração e fazia-o soffrer do soffrer
alheio, o que n’outro qualquer momento da vida lhe não aconteceria.

O seu temperamento amolgado pelas necessidades da vida fizera-o um
sceptico. Muito novo ainda, tivera que defrontar-se com as miserias e
mentiras sociaes, n’uma lucta de interesses e ambições em que todos os
desejos de justiça e lealdade lhe foram fenecendo, tornados ridiculos
como utopias de poeta—o mais sangrento e offensivo epitheto que descobriu
a soberana mediocridade para lançar em rosto a um homem intelligente
que deseja acompanhar o trabalho com a iniciativa propria.—Torcendo-se
sobre si mesmo como planta trepadeira que não encontra apoio, procurára
no egoismo e na satyra, no orgulho e no despreso pelos outros, vasar
todo o rancor e nojo que lhe inspirava essa sociedade triumphante pela
hypocrisia, pela banalidade, pela ausencia de ideal e pelo roubo
legalmente feito.

Encontrando a filha encontrara mais do que um affecto, encontrara a
propria consciencia obliterada por tantos annos vividos n’um meio que se
habituara a julgar com despreso longe da patria e da familia, trabalhando
pelo prazer de ter dinheiro para gastar, aspirando pela fortuna para o
goso material e egoistico.

Pensando, revivia todo o passado aventuroso cortado de dissabores e
luctas que para outros teriam sido a morte e que para elle não tinham
passado de meros accidentes e episodios de uma historia que lhe era quasi
indifferente recordar.

Na meia luz em que estava o quarto e no relativo socego em que o
doente cahira, cançado pela viagem, todo esse passado revivia, toda a
inutilidade da sua existencia avultava como um remorso aos proprios
olhos. Fôra uma força perdida na natureza, um criminoso moral, porque
não utilisara a intelligencia e a energia luctando contra o erro, mas
sujeitando-se a elle, transigindo embora lhe negasse a superioridade e
com o riso causticante lhe quizesse fugir á cumplicidade.

Preoccupava-o o julgamento do genro, aterrorisava-o quasi o despreso do
velho inglez. O que tinha elle então, que voz era que lhe fallava de tão
differente maneira?

Tão absorvido estava que não reparou que os criados tinham sido
substituidos pelo velho abbade e que o medico observava o doente, que de
quando em quando gemia, desesperado, não reconhecendo ninguem, fallando
indistinctamente nos amigos de Paris.

Só quando Bella o veio buscar para a sala, onde João e a Viscondessa os
esperavam, é que voltou a si de um sonhar que lhe cavára rugas na fronte.

—«Então?—perguntou um tanto contrafeito pela duvida.

—«Vamos, o João quer ver-te.

—«O que diz?

Pegando-lhe na mão, levou-o sem responder.

João caminhou para elle, mal a mulher franziu o reposteiro e se affastou
para o deixar passar. Maria Helena levantou-se.

—«Papá—disse Bella com vivacidade—este é que é o João, que te ama tanto
como eu, abraça-o.

—«Se me dá licença, com que prazer o farei, João!

Foi com verdadeira ternura que os dois se abraçaram, como se o amôr de
Isabella os tivesse ligado pelos mesmos laços affectuosos.

É que João tinha realisado com ella o ideal do casamento, que precisa,
para dar a felicidade ansiosamente procurada pelo homem e pela mulher,
que o acaso de uma sympathia physica ou de um calculo grosseiro
passageiramente ligou, que os dois se completem sem se absorverem, que as
almas se transmittam mutuamente o seu sentir e o seu querer, sem que o
espirito e a iniciativa propria sejam absorvidas, para que o fraco se não
torne o martyr da vontade do mais forte.

Pouco depois, na sala de jantar de uso intimo onde a Viscondessa mandara
servir, já senhora de si, n’aquelle bem estar e quasi alegria que se
apodera logicamente dos que, cançados de ver soffrer, saem por momentos
de junto dos doentes, conversava, contava coisas, procurava mesmo mostrar
a sua graça um pouco mordente.

—«Ganhei muito dinheiro no Brazil—dizia—mas emquanto a fortuna me enchia
os cofres de dinheiro suado por milhares de desgraçados, que existem para
o unico prazer dos felizes, eu não philosophava sobre estas pequenas
bagatellas sociaes, claro! Sonhava, como todo o brazileiro que se presa
de civilisado, em voltar á Europa, em habitar Paris. Paris, minha
Bellasinha—dizia descascando com subtil delicadeza uma laranja doirada,
que lhe pôs galantemente no prato—é a segunda patria de todo o brazileiro
que se honra. Portugal é a terra de gallegos, embora seja o dos nossos
paes, embora seja a mais bella, embora seja o paiz que mais nos ama como
irmãos, embora o Brazil seja ainda para o portuguez a velha terra amada,
refugio de Portugal, onde se vive e fica como se nossa fosse, não a
defraudando como colonisadores vulgares que, fortunas feitas, ala para
suas casas! com a riqueza das terras que lhes deram asylo.

—«Ó papá, mas tu devias escrever isso, que é realmente justo, talvez se
podesse fazer alguma coisa...—respondeu Bella sempre sincera, sempre
misturando o idealismo com a prática.

—«Escrever para quê?! Cuidas que se convencem povos com livros?...
demais, que auctoridade têm os portuguezes para protestar contra a
franco-mania brazileira, se é mal que de cá lhes foi no sangue?!...

—«Pois sim, mas deve-se mostrar o mau caminho para que se emendem, cá e
lá. Amar a França, comprehende-se, porque tem virtudes e superioridadas
para isso, mas pô la acima de nós mesmos não deve ser, até por decôro
proprio.

—«Pois sim, filha, mas vae-lhes lá dizer! Ninguem te lerá, minha
encantadora ingenua! Manda-lhes romances francezes, falla-lhes de
Paris, dize-lhes coisas em nome do _cerebro do mundo civilisado_,
como ridiculamente alcunharam aquella deslumbrante cidade que mais
não tem que fazer senão pensar a sério em alguma coisa!... Falla-lhes
d’esse Paris que se diverte e que todos por lá adoramos, e que não é o
verdadeiro Paris, não é o que trabalha e pensa, não é a capital da França
intellectual e superior, mas o Paris galante que se prostitue como mulher
facil, o Paris que nos dá nos seus livros o requinte da desmoralisação
elegante, o Paris emfim que adoram os estrangeiros, como eu, que lá vivi
annos inconfessaveis de prazer illegal.

—«E durante esses annos era uma vez uma filha, não pensaste mais em
mim!... Que terrivel corruptora é na verdade essa Paris!...

—«Não te riás, querida. Eu pensava em ti, pensava até muito... Confesso
que não era sempre, vá lá... mas julguei-te por muito tempo em
Inglaterra, feita uma bôa e forte miss tratada a bifes em sangue, serena,
alegre sem enthusiasmo, flirtando como quem desempenha um sacerdocio;
tal qual como as innumeras _misses_ que na minha vida tenho encontrado
pelo mundo, jogando o _tennys_ ou subindo montanhas, dançando ou lendo
ingenuas novellas, montando a cavallo ou trabalhando, com o mesmo
chapelinho _cannotier_ ou boina de exploradoras, o mesmo cinto, os mesmos
_yesses_. Confesso-te que pensando em ti talqualmente, um certo frio de
_douche_ aplacava os meus enthusiasmos paternaes.

—«Repara que me insultas, papá, nos meus fóros de inglêsa, que
exactamente tem usado todos esses horrores—reprehendeu fingindo-se
indignada.

João ria francamente da descripção caricatural, e a propria Viscondessa
franzira os labios n’um meio sorriso.

Vendo-se applaudido, Pedro d’Avellar excedia-se a si mesmo em graça
esfusiante, tendo, como muita gente de espirito, a inferioridade de o
querer ter sempre, fazendo d’isso a sua obrigação social.

—«Ora tu não passas de uma inglêsa falsificada. Soubeste tirar da tua
ascendencia britannica todas as vantagens e despresaste os ridiculos...

—«Obrigada pelo comprimento, papásinho!

—«Não tinha reparado que o era, e não quero que por isso te enchas de
vaidade, aliás teria que me haver com a indignação de teu marido...

—«Oh! ella é incapaz de ter mais...—troçou João.

—«Então não me desacredita este homem!... deixa estar que te heide
castigar!

—«Vê lá! não sejas rigorosa, que vaes contrariar as tuas theorias...

—«Ó Maria Helena tu não me defendes deste bloqueio de ironias?

—«O melhor é bater em retirada perante a força numerica.

—«É prudente o conselho. Continúa então a tua historia, papá, julgando me
_inglêsa vulgaris de Lynneu_; não me procuraste mais...

—«Enganas-te. Um dia resolutamente embarquei para Inglaterra a procurar
o tio Burns, que é como quem diz procurar-te a ti, salvo as differenças.
E o que imaginas tu que me disseram por lá os importantes _gentlemen_
inquiridos, estendendo os beiços em prolongados oh, oh!? que o tio
viajava comtigo por paizes exoticos e constava até residir agora na
Africa. Á volta de tão desconsoladora viagem julguei-te perdida para
sempre, porque vá lá um homem imaginar em que parte do mundo, em que
paiz de barbaros vive um inglês que procura commoções que lhe afugentem
o _spleen_, e regiões ineditas para uma joven _miss_ que conhece o globo
como qualquer conhece a sua terra? Foi então que encontrei em Paris o
Visconde. Não me conheceu sob a encadernação nova de _brazileiro_ a
valer, e acreditou nas minhas antigas e frequentes viagens a Portugal
onde conhecia tudo. Mas como fugia de fallar na patria, poude apenas
apurar que era este o paiz exotico onde o tio Burns te tinhas vindo
esconder.

—«Pobre tio William, elle que nunca teve desejo de me contrariar em coisa
alguma!... És injusto para elle, papá, tão bom, tão honrado!

—«Injusto?! Não sou, tenho por elle a maior consideração. E, no entanto,
foi a sua feroz honradez que me precipitou no abysmo em que te perdi,
Bella—respondeu com amargura.

—«Elle que te perdeu!? Não creio, é incapaz de fazer mal a ninguem.

—«Se me tivesse respondido com o auxilio a uma carta supplicante que
lhe escrevi antes de irremediavelmente perdido, tinha-me salvo. Tenho
um medo atroz aos homens ricos e intransigentemente honrados porque não
comprehendem as necessidades alheias e chegam a ser crueis, como elle foi.

—«Quem sabe se não acreditou na extremidade em que lhe escreveste, papá?!
Não o julgues pelas apparencias...

—«Emfim, aconteceu o que tinha de acontecer e não lhe quero mal, basta
ter feito de ti o que és.

—«Talvez nem recebesse a tua carta.

—«Está bem, não fallemos mais n’isso; precisamos fallar do presente,
deixemos o passado ao passado—e continuou no tom ligeiro do
costume.—Quando soube pelo Visconde que tu vivias em Portugal, pensei
em voltar a Lisboa, fazer barulho de honradez, pagar as dividas e
rehabilitar-me legalmente. Isto para te poder rehaver e contar com o teu
affecto, que a rehabilitação aos olhos da sociedade é-me completamente
indifferente. As dividas que me pesavam na consciencia eram as que tinha
a bôa gente honesta que me entregára o seu dinheiro confiando-me a sua
fortuna por confiarem em mim. A esses, que não eram muitos, nem dos mais
altamente collocados, já mandei entregar os seus créditos acrescentados
com os juros. Os outros que me entregaram os seus capitaes na crença de
que a minha habilidade lhes traria lucros fabulosos, não me preoccupam.
Foi a sua cumplicidade que me atirou para essa vida de desperdicios e
loucuras em que tudo é justo se trouxer dinheiro; foi a sua ambição
que tentou a minha e foram elles os que depois de me verem atrapalhado
me saltaram em cima para que me afogasse mais depressa, foram os que,
maledicentes e vis, publicaram a minha infamia, não vendo que publicavam
a propria—porque homens como eu só podem existir quando existem creaturas
como elles. Por isso, não me preoccupei nunca com taes crédores, nem
sinto remorso absolutamente nenhum pelas suas perdas... No entanto,
far-se-ha o que teu tio exigir para que eu possa viver junto de vós.

Um silencio pesado, apenas interrompido pelo serviço leve do criado que
trazia o café e os licores, succedeu a esta conversa.

Bruscamente a porta abriu-se e Rosalina, a cria da deconfiança da
Viscondessa, entrou, pallida e assustada, dizendo que o visconde morrera.

—«Com certeza tinha morrido—explicava atabalhoadamente—porque se
levantára da cama, atirara fora as travesseiras e puzera-se em pé no meio
do quarto. Depois, sósinho, affastando os que o queriam ajudar, fôra
metter se na cama e deitara-se de costas, muito direito, como até ahi não
podera ainda fazer. Parecia já morto...

Levantaram-se e correram ao quarto, mas tudo tinha já voltado ao
relativo socego de uma camara de moribundo, onde, se pode dizer, os
minutos estão contados pelos gemidos.

A noite passou, e com ella os dias, porque a doença caminhava lentamente,
o estomago desfazia se em veneno, n’aquelle vomito negro e sanguineo que
momentaneamente allivia os padecentes; mas não tinha chegado ainda o fim.

O Ramalho provocava-lhe esse allivio momentaneo lavando-lhe o estomago
com infinita delicadeza, na sua grande piedade pela dôr, soffrendo da
impotencia a sciencia perante certos males que torturam a humanidade,
levando-a fatalmente á morte, e contra os quaes esbarram e sabe Deus se
deixarão algum dia de esbarrar, todo o saber e bôa vontade do medico.

Bella e João tinham fallado ao tio em Pedro d’Avellar, e, apesar de todo
o seu passado de impolluta honradez, do seu puritanismo quasi cruel,
tanta era a confiança no julgamento dos dois, que o velho inglez delegou
nas suas mãos a solução do caso.

Quem sabe quantas vezes não teria o honrado velho lamentado o rigorismo
que julga os outros pelo proprio caracter e não admitte as attenuantes
das circumstancias, da educação, da hereditariedade, e as proprias
differenças ethnographicas do meio em que nasceu e viveu o delinquente?
Psycologo profundo, habituára-se a desculpar o pae observando em Bella,
melhorados é certo pela educação e pela alta concepção do bem que herdara
da mãe, os mesmos caracteres differenciaes que os tinham affastado
primeiro, depois feito despresar o sobrinho.

O que n’um individuo lhe parecera defeitos imperdoaveis podera vê-los
reviver no outro tornados virtudes.

Bella, feita arbitra da questão que mais de perto a tocava, foi de
opinião que o pae se não rehabilitasse. «Para quê—dizia ella—se não é
o respeito pessoal pela sociedade que o leva a isso e tão sómente o
egoismo? Para que entregar esse dinheiro, ganho por um trabalho que nada
lhes devia, e que iria ser esbanjado, como dinheiro de jogo, inutil ou
criminosamente?

Respondendo á Viscondessa, que se inclinava pela rehabilitação, Bella
opinava ainda:

—«É um preconceito, Maria Helena, e é preciso revoltarmo-nos contra
elles. Não sou eu hoje exactamente o que seria amanhã se meu pae fosse
proclamado a mais illibada das creaturas? O facto deu-se e a nossos
olhos, de todos os que tenham consciencia, tem a sua desculpa logica. O
que poderá ganhar a humanidade, com o dinheiro entregue a quem d’elle só
tirará motivo de inutil goso, em existencias perfeitamente parasitarias,
aos cumplices de todo o mal que o victimou?...

—«E aos que mais severamente me julgaram e abocanharam o meu nome,
dize...—respondeu o pae.

—«E o que vale a honra que se compra a dinheiro, querida?

—«A Bella tem razão, prima—terminou João.—É preciso que se faça d’esse
sentimento que nobilita o homem uma ideia mais alta. E é para uma nova
maneira, mais humana, mais justa, e menos monetaria, de a comprehender,
que é preciso dirigir a humanidade.

—«A fortuna que o papá arranjou e com a qual poderia comprar a immaculada
honradez, sujeitando-se a uma romantica rehabilitação, melhor poderia ser
utilisada na obra de regeneração que nós intentamos.

—«Ah! Já sei, vocês querem fazer de mim uma edição barata do _Lucas_, do
_Trabalho_?

—«Não te rias, papá; então não te interessas pela obra que visitaste com
tanto gosto, dando conselhos e propondo modificações tão justas, e para a
qual offereceste já todo o teu appoio?!...

—«Não te zangues, Bellasinha, é que ainda me não me habituei a ser um
homem sério, um _representativo_ util á humanidade.

—«Tu dizes isso, mas eu bem sei que és bom, muito bom mesmo, e que a
tua alma habituada ao riso escarninho tambem conhece as lagrimas... Não
é verdade que hoje choravas com o nosso Pedrito ao colo quando elle
disse—pela primeira vez para ti: _abô_?!...—E apertou-lhe a cabeça entre
as mãos dando-lhe um beijo na testa, emquanto elle sorrindo de satisfação
intima respondia:

—«Não me desacredites fazendo-me passar por sentimental choramingas.

—«Não, só o que quero é que sejas sincero e que não queiras passar por
peor do que és. Soffres do vicio da sociedade que se compõe de tantos
Tartufos do bem como do mal... O teu luxo de espirito é mostrar-te peor
do que és, confessa.

—«Tens razão. Á força de viver comvosco heide modificar-me e tenho
esperança de que terei ainda no futuro a mesma crença que os anima, de
que a humanidade é bôa e de que é possivel agrupar-se em sociedade, dando
a todos egual quinhão de alegria e bem-estar, tendo a mentira como um
crime e despresando a hypocrisia por inutil... O vosso amôr me fará um
crente, fazendo-me comparticipante d’uma felicidade, que nunca tive.

N’essa noite o Visconde peorou. Já pouco fallava; era com os olhos
e levantando um dedo de cima das almofadas a que se agarrava com o
desespero de naufrago que se sente submergir, que manifestava o desejo de
qualquer coisa.

Indifferente, desde o principio, a tudo que o rodeava, parecia não ter
reconhecido a Viscondessa ou se a reconheceu o seu espirito já andava
muito longe para poder ligar factos que a doença lhe tinha feito recuar
até ás brumas do passado esquecido.

O que n’elle vivia ainda era a materia que se decompunha, a materia
triturada pela dôr e para o goso da qual tinha vivido a existencia
inteira.

Na alcova, João e o Ramalho procuravam socega-lo; junto da chaminé
conversavam em voz sumida Pedro d’Avellar e o Abbade; ao pé da meza onde
tinham collocado a lamparina, Isabella e a Viscondessa trocavam a meia
voz algumas palavras. De quando em quando, o doente, que já não tolerava
a posição horizontal, passava pelo somno com a fronte apoiada á rima
de travesseiras que lhe aguentavam o corpo; então calavam-se todos,
obedecendo ao gesto de Bernardo que, fielmente, como animal inferior que
não julga o dôno, se conservava aos pés da cama attento ao menor gesto,
ao mais leve volver d’olhos angustiados.

—«Por vezes, contrastando com esse silencio como uma gargalhada n’um
enterro, vinha d’uma sala proxima o retinir alegre do relogio doirado em
que um velho _Tempo_ marcava horas e quartos, batendo com um martelinho
de oiro no timbre de prata, e mais triste se fazia esse velar sem
esperança á cabeceira de um moribundo, que se vê soffrer na impotencia de
lhe dar allivio, a não ser na morte, no irremediavel da morte, contraste
da vida e sua logica successão e ao qual o espirito orgulhoso do homem
procurou sempre fugir, senão materialmente porque a materia não admitte
illusões, ao menos pela revolta do espirito creando a immortalidade para
elle.

Uma dôr mais intoleravel acordava o Visconde d’essa rapida somnolencia, e
com o soffrimento voltava um pouco de vida ao quarto em sombra.

—«Como elle soffre!—murmurou a Viscondessa.

—«Ainda o amas?

—«Não, creio bem que não, mas tenho dó d’elle, não o queria ver soffrer
assim, é horrivel!

—«Vem d’ahi. O que ganhas em estar sob a pressão d’esta longa tortura?

—«Não, parece-me que estando eu aqui não morrerá tão depressa...

—«Que tolice! Para que queres que elle viva?

—«Sei lá!... É uma loucura, mas ainda penso que ha esperança...

—«Ora, Maria Helena, isso não é teu. Não sabes o que é um cancro, não
sabes que o que alli está já pouco é mais do que podridão de cadaver?...

—«Sim, sei isso tudo, mas não posso ter essa visão clara e sem illusões
nem esperanças que tu tens...

Passados instantes, tornou a Viscondessa:

—«O que me esperará ainda depois d’isto, Bella?! minha mãe estava hoje
tão nervosa, parece que d’alguma coisa suspeita.

—«Isso sim, naturalmente é a estranhesa que lhe causa o movimento
desusado cá por baixo, talvez um pouco de sobresalto pelas tuas
frequentes ausencias.

—«Custa-me tanto representar serenidade quando estou com ella! Hontem
perguntou-me se estava alguem de fóra cá em casa.

—«E tu?

—«Disse lhe que não estava ninguem, e não foi mentira, não é verdade?

—«Mentira... não foi.—E pensou comsigo: para ti, elle não deve ser
_ninguem_ e a magua que imaginas sentir não é a da alma ferida no seu
amôr, é a piedade natural por tudo quanto é soffrer...

Uma dôr mais violenta fez o moribundo levantar-se n’uma crispação de
todos os membros e os seus olhos fixaram-se no _fauteuil_ onde já tinha
passado alguns momentos, quando a cama se lhe tornava intoleravel potro
de tortura.

O dr. Ramalho e João levantaram-no em peso e ajudados por Bernardo
assentaram-no na cadeira.

O corpo que a doença devastara e redusira a um pobre esqueleto
contorcido, procurou na mais absurda posição o descanço a que aspirava;
a cabeça descahiu-lhe para traz indo encontrar appoio sobre uma commoda
_Boule_ em que o Bernardo se apressara a collocar uma almofada, o tronco
torcia-se e as pernas ficavam direitas, cobertas _d’edredons_ e mantas.

Então começou o estertor, um rouquejar ansiante que já não era de vida,
a bocca aberta, os olhos fixos, os dedos enclavinhando se em movimentos
nervosos e inconscientes, o rosto macerado onde os beiços se arroxeavam,
de um amarello de palha tão accentuado, que mais parecia mascara de morto
modelada em cera velha. N’aquella hora pacificada já pela inconsciencia
da morte, as linhas do seu perfil alongavam-se doloridamente, tornando-o
a reproducção fiel do quadro que na sala apresentava a ultima agonia de
um santo.

Ao primeiro grito de Bernardo todos se tinham levantado e acercado do
grupo.

—«É escusado fazer-lhe nada,—disse o medico a meia voz—já não ouve nem vê.

—«Apertou-me agora a mão—respondeu o criado soluçante.

—«São contracções musculares independentes da vontade. Felizmente já não
soffre.

O estertor prolongou-se até á madrugada, depois fechou os olhos e cahiu
em modorra só cortada pelo arfar espacejado. Apesar da certeza de que não
via nem ouvia andava-se de vagar no quarto, fallava-se a meia voz como se
o ruido da vida ainda pudesse incommodar aquelle quasi cadaver, tornado
motivo de curiosa piedade para todos.

Maria Helena pensava em toda a sua vida sacrificada por elle, na sua
propria mocidade agonisante, como elle, na pavorosa lucta do coração que
aspira pela vida, fechado n’um corpo que se vê envelhecer... Para ella
tambem já não havia mais nada, dizia-lhe a razão; mas qualquer coisa
muito adentro da sua alma se revoltava e lhe fazia antever a esperança de
que a vida lhe daria ainda a porção de alegrias a que tinha direito, e
das quaes, avaramente, lhe regateara pequenas migalhas...

Quando o sol entrava já pela janella mal fechada, pondo raios d’oiro em
todas as frinchas por onde se escapava, João abriu as portas e o quarto
inundou-se de luz, uma alegria radiosa de manhã de inverno fazendo da
mais leve poeira um luminoso cantico á vida.

E foi na gloria de um sol triumphante, creador, purificador e bom, que a
vida deixou de alimentar esse corpo de homem que tantos odios e paixões
levantára, que tantas ambições servira e que apenas deixava aos corações
que o rodeavam, mais ou menos feridos pelo seu egoismo, a vulgar piedade
que se tem por todo o soffrimento physico.





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