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Title: A Primavera
Author: Castilho, Antonio Feliciano de
Language: Portuguese
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*** Start of this LibraryBlog Digital Book "A Primavera" ***


OBRAS

DE

Antonio Feliciano de Castilho


_Constando-me ter havido quem reimprimisse em França, sem licença minha,
dois volumes de minhas Obras, e sendo isto sobre iniquidade, manifesto
roubo, declaro que perseguirei em juizo com acção de furto, em quanto a
nossa Lei sobre imprensa não estabelecer outra propria para taes casos,
a quem quer que, sem minha expressa licença, reimprimir esta ou outra
qualquer Obra minha, ou impressas fóra as introduzir e vender neste
reino._

                                                     _A. F. de Castilho._



                               A PRIMAVERA

                                   POR

                    _Antonio Feliciano de Castilho_,

             _Bacharel Formado em Direito, Socio da Academia
                  das Sciencias de Lisboa, da Sociedade
                 Juridica e da dos Amigos das Letras da
             mesma Cidade, da Sociedade Literaria Portuense,
                   do Instituto Historico de Paris, da
               Academia Real das Sciencias e Bellas Letras
                                de Roão._

      _Mais correcta, emendada, e copiosissimamente accrescentada._

                                 Lisboa.
                   NA TYPOGRAFIA DE A.I.S DE BULHÕES.
              _Rua do Soccorro de Cima N.º 39. 1.º andar._
                                  1837.



    _Stet quicumque volet potens_
    _Aulœ culmine lubrico:_
    _Me dulcis saturet quies;_
    _Obscuro positus loco_
    _Leni perfruar otio;_
    _Nullis nota Quiritibus_
    _Ætas per tacitum flua_
    _Sic cum transierint mei_
    _Nullo cum strepitu dies,_
    _Plebeius moriar senex._
    _Illi mors gravis incubat,_
    _Qui notus nimis omnibus,_
    _Ignotus moritur sibi._

            _Sen. Thyest. Act. 11._



ANTE-PROLOGO.


Bem será para alguns motivo de maravilha, e de riso para muitos, a
declaração por onde me agrada começar este Ante Prologo; e he, que o
estou principiando, e querendo Deos o levarei ao cabo, antes de conhecer
a Obra para que vai feito. Quatorze annos, e não poucos d’elles bem
estirados, são hoje discorridos depois de impressa, e por tanto segundo
meu costume aposentada e esquecida, a minha _Primavera_. N’estes quatorze
annos, começados a contar aos vinte e dois da minha vida, não só se
encerrou, e desvaneceo aquella melhor, mais florída e derramada parte
d’ella, que tanto discrimina, e afasta o periodo seguinte do anterior,
senão que ahi se desatou tão desfeito temporal de successos estranhos,
de terrores e calamidades publicas; tantas certezas saírão vãs,
realisarão-se tantos impossiveis; por tal arte se transtornou e renovou
ora em bem ora em mal a face do nosso Portugal; tão fracas e tenues
reliquias de um passado, que ainda nós os moços alcançámos, subsistem
já agora quer nas pessoas, quer nas cousas e costumes, e emfim por tudo
isto nos petreficámos, e envelhecemos em tanta maneira, que por mim digo,
n’estes quatorze annos me parece ter a Fortuna desbaratado cabedal de
seculos, e o Tempo uma larga idade do mundo. Tantos e taes annos que da
minha Obra me separão, não custará muito a crer ma tenhão tornado ao cabo
tão alhea, como se d’ella só mui por longe me houvera susurrado uma leve
noticia. Esta idea confusa, mas suave e suavissima como apagado retrato
de antigos amores, como lua de estio contemplada em fundo de ermo, ou
como vista de remotas velas ao coração do que alem-mar definha desterrado
entre asperezas, esta idea toda mansa, toda rosada, toda primavera, mais
temo perdê-la do que todas as minhas outras illusões, se por ventura já
hoje alguma tenho. Talvez receie, e se receio talvez me não falte rasão,
que ao reler estes Poemettos, nem ache n’elles as côres que os longes
me figuravão, nem os gostos com que os hia não compondo, mas para assim
dizer colhendo e enramalhetando pelas varzeas e valles do Mondego: tanta
foi a metamorphose que de mim fizerão os livros, as couzas, e a idade!
Como que tenho uma dolorosa certeza de que me acontecerá com isto o que
ja me succedeo visitando, depois de espaçosissima ausencia, as cazas
onde a minha primeira infancia fôra brincada, amada e perdida: tudo
achei mesquinho, solitario e quasi mudo, tudo me dizia muita saudade
e nenhum prazer; cada pedra tinha sua historia, mas todas me clamavão
outros tantos desenganos. Grande differença esta entre as nossas
proprias antigalhas e as do mundo! as do mundo pelo seu mesmo misterio
nos deleitão, são a primeira pagina de um romanse para a imaginação;
as nossas pela sua certeza nos contristão, e são a pagina ultima de uma
historia que assaz nos corria formosissima.

Apraz-me por tanto boiar ainda por algumas horas ao de cima d’estas
fantasias, e antes de se me apagarem, se já he que isso tem de ser,
alegrar com o seu reflexo estas paginas, que mal poderáõ ser muitas:
sempre he cedo para lançar pelas janellas fóra os brinquedos de nossa
puericia; e mal haja quem o faz sem que todo o coração se lhe aperte
dentro no peito.

Por isto que digo, entenderáõ meus leitores o porque, exhausta logo
no primeiro anno a primeira impressão da _Primavera_, tantos se tem
devolvido sem que jamais me deliberasse a reimprimi-la. Pelos fins de
todos os invernos e começos da melhor estação, me era ella de todos
meus livreiros requerida; por mais de uma vez me senti abalado, mas a
lembrança do meu desencantamento me era sempre esquiva, e repugnava-me,
como uma certa simonia, o arriscar-me a por alguns cruzados malbaratar
uma dilicia do sanctuario de meu animo. N’esta parte não me entenderáõ
todos, mas os meus intimos confirmarião com juramento o que digo.
Agora porem que até a minha pobre bibliotheca já se ahi vai rareando
e desfazendo vendida, e me importa pôr entre mim e a terra do meu
nascimento muita outra terra de permeio, e Deos sabe para quanto tempo,
obedeço aos desejos de muitos dos que ainda lem, ao conselho dos amigos,
e á lei da necessidade. Reverei para a impressão, e perderei para mim
este livro de saudades, livro que só fechado eu poderia ler como me
convinha. E por quanto, depois de sua leitura talvez me desamparasse
a vontade de aventurar algumas reflexões sobre este genero de poemas,
fa-las-hei antes, e já aqui; deixando para o Prologo as que ácerca da
Obra me forem por ella mesma suggeridas.

A Poesia campesina, ou segundo vulgarmente lhe dão nome, pastoril, com
ser de todas a mais antiga, nunca em nenhuma parte se perdeo, dado em
muitas decaisse não raro do seu credito e lustre; e segundo todas as
mostras, deitará ainda até ao fim das idades literarias. Sempre moça
como a terra sua mãi, mansa como os arroios seus irmãos, formosa como
as flores que lhe guarnecem o chapeo de palha, livre e leve como os
zefiros pela assomada dos montes, alegre, namorada e innocente como as
aves na madrugada do anno, he de ver qual se vai sozinha e vivissima por
entre tantas couzas mais fortes que morrem; com o seu cajado de pastora,
segura entre tantos inimigos; girando todo o orbe, e por todo elle bem
vinda; vingando e vencendo todos os seculos; dando a alguns d’elles de
mais amoravel indole a sua propria fórma; e relevando-lhe, ainda os mais
ferozes e guerreiros, que lhes ella misture com a sua frauta do serão os
himnos da guerra, lhes entreteça maliciosa violetas com os louros, e os
campos que elles a ferro e fogo devastarão os repovoe ella de imaginadas
verdura, flores e felicidade.

Hum curioso reparo poderáõ ter feito os que os fazem no ler poetas, e
he, que apenas haverá algum dos chamados Epicos, para quem o campo e sua
vivenda não fosse deleitoso assumpto. Compraz-se Homero de travar com
as façanhas dos heroes toques e pinturas do viver natural e primitivo;
Virgilio, que ja primeiro que se abalançasse ás armas e guerras tinha
cantado os pastores, e doutrinado os lavradores, particularmente se
recreia quando no meio das batalhas pode a uns e outros mandar algumas
saudades; nos dois Orlandos e em todos os livros de cavallaria, vai igual
mistura; o mesmo na Jerusalem, cujo autor havia escrito o Amintas: e
d’entre os nossos, para por todos citar um, mas um que por todos valha,
Camoẽs, não só afamou os Portuguezes sujeitadores de elementos e homens,
mas todo se deleita em conversar os pegureiros e campos da nossa graciosa
Lusitania, terra cujos filhos, se me não engano, são por indole dotados
destes dois extremos, de brandura e de valor, de amor ao obscuro rusticar
e ao glorioso correr de aventuras e perigos: por onde entendo que para
muito mais do que são os fizera Deos, assim como fizera para muito mais
do que he o grandioso torrãozinho que habitão.

Disse engenho subtil, e bons juizos crêrão, que o desejo, ancia e
esperança de bem que todos temos innatamente, era claro argumento de
uma vida futura, ja que nesta se nos não deparava contentamento: assim
tambem dissera eu, que este natural e universal gosto á poesia amena he
um indicio de que, se jamais o homem foi homem e ditoso, la nos campos
o foi; que as plantas d’onde nos brotão sustento e recreação, exhalão
secretamente amor para os seus vizinhos, e que pelos saudosos valles
das idades patriarchaes, em quanto os bosques não caírão para em sua
vez se levantarem as muralhas, as bençãos do ceo orvalhavão muito mais
amiude. Alguma couza farão para aqui palavras do meu Florian, que porque
d’elle são as verterei de muito boa mente—“Oh se nós podessemos ler em
seu original texto os bons autores d’essa Allemanha, enlevar-nos-hia a
tanta singeleza, a tanta doçura por onde de todas as outras se estremão
suas obras! Em conhecer a natureza, e especialmente a natureza campezina,
levão-nos elles uma infinita vantagem: amão-na mais deveras, retratão-na
com tintas mais fieis. Todos nossos poemas pastoris nada tem que ver com
as meras traducções de Gessner. Ninguem jamais fecha a Morte de Abel,
os Idyllios ou Daphnis, sem ja se sentir mais soffrido, mais terno,
mais mavioso, e porque tudo diga, mais virtuoso que antes da lição.
Não respira senão moral pura e facil, e virtude d’aquella que logo
vem trazendo bemaventuranças. Fosse eu parocho de aldea, que sempre á
estação da missa havia de ler e reler Gessner aos meus fregueses: e por
certissimo tenho que todos meus aldeões se farião probos, todas minhas
parochianas castas, e ninguem me havia de ao sermão adormecer.”—

Isto dizia de Gessner Florian, digno de o louvar pelo mui bem que o sabia
comprehender e seguir. Isto não escrevia eu nem o dizia, mas amplamente
o sentia n’esse bom tempo que ja la vai. Gessner não era para mim um
nome, senão um individuo presente, um suavissimo contubernal; nem ja
suas obras me erão livros, mas realidade, vida e mundo.—Sei que se
não leva a bem o muito fallar um individuo de si proprio, mormente em
publico, e mormente ainda quando esse individuo he tão mesquinho sujeito
como eu: mas de que outra couza posso eu escrever? dos outros? não os
conheço; erudito, não o sou; descubrimentos não os fiz, nem ja agora os
farei: fólgo de espraiar conversa com os meus patricios, na falta de
melhor assunto, fallo-lhes de mim e de meus gostos.—O mais selecto de
todos elles era pois Gessner, no qual e na escolha de Poesias Allemãs
por Huber, andou por alguns annos cifrada toda minha leitura, porque
de quantos autores patrios meus conhecidos havião escrito e poetado de
couzas rusticas, nenhum havia que ou por sobejidão de engenho e argucia,
ou por mal cabida escuridade, ou pelo trivial do pensamento e dicção, ou
pelo desageitado do metro, ou pelo urbano artificio do que lhes parecia
singeleza, ou emfim por um não sei que de mais ou de menos, lhe não
lançasse lodo e arêa no jardim que bem ao meio da alma me havia sido por
Gessner plantado.[1] Muito aproveitei em tão boa escola: como poeta não,
que bem o sabem meus leitores; como homem sim, que disso tive mui cabal e
experimentada certeza. Minhas nativas propensões beneficas se arraigarão;
minha interior aspereza, que todos de si a tem, se amolleceo; sentia-me
palpitar no peito um coração da idade de ouro; esvoaçava-me na cabeça
uma alma inteira de Arcade; compunha todo o meu economico futuro de uma
choupana, um pomarinho, e pombas mui brancas e cordeiros mui nedios; em
summa, se Florian fosse meu parocho, propor-mehia nas suas homilias como
um santo da sua bemaventurança. Assim, e por esse tempo, foi a minha
_Primavera_ improvisada, e como ella as _Flores_ e as _Quatro Partes do
Dia_, Poemas que brevemente sairáõ estampados, e inteirão com o presente
volume o fragil monumentinho dos annos, em que fui tal, qual desejava
permanecer toda a vida.

Passe ainda adeante a sinceridade: com vergonha não só minha, mas do
tempo em que vivo, confesso que d’essa ingenua bondade, pela qual eu
mesmo a mim me comprazia, o de mais (como espirito que era subtilissimo)
se evaporou; parte se azedou no vaso com as más sementes de odio que
de fóra lhe lançavão; o resto se recozeo e estragou ao fogo das civis
dissensões: procuro-me e não me acho, ou se me acho não me amo. Ainda a
minha antiga choupana, os cordeiros nedios e as pombas alvissimas se me
fazem lembrados por uma noite de estio, mas riem menos, e não me acenão
senão fracamente. Tanto vi e vejo de alhêas maldades, tanto tem procurado
os entes mais abjetos e vis amargurar-me, que nem quasi na virtude
acredito, nem na possibilidade de ser feliz: e este estado, se não he
de todos o mais antipoetico, se na escola romantica pode até lograr os
foros do _bello ideal_ e ultimo sublime, pelo menos he o mais avêsso á
filosofia e mansidão Gessnerica. Oh quando poderáõ os dois monstros, em
cujas garras inexpertamente caí, quando poderáõ Politica e Romantismo
dar-me um longe, uma sombra dos interiores commodos que me lá ficarão com
a poesia natural e singela? E igual pergunta dolorosa poderia fazer o
mundo, a ter um coração e uma voz. Ja quanto á Politica me calo, que esse
voto fiz eu; mas quando será que o Romantismo exclusivo e tiranno qual
se presenta, se gabe de perfumar entendimentos para o amor, de reclinar
o amor como filho nos braços da virtude, e de transformar o templo da
virtude em caza do contentamento? Quando será que outro homem, da laia e
costumes dos nossos velhos, possa dizer na sinceridade da sua alma:—“Se
eu fosse parocho, leria Byron ou Schiller á estação da missa, para tornar
castas e probas as minhas ovelhas”? Mas todas estas reflexões de nado
valem: a torrente vai funda e rapida, ninguem, e muito menos eu lhe poria
dique. E até (que tão pouco dou pela minha filosofia) talvez que tudo o
que por ahi vai, que certamente: parece bem triste e bem máo, seja bem
necessario ao concerto e melhoria do mundo. Não digo eu o que as couzas
são, sim o que se me ellas figurão: não as sentencêo sem appellação; na
minha primeira instancia as julgo, e o que moralmente me parecem isso
assento com afoita liberdade. Perde ou ganha a humana especie em cada
vez mais se apartar por obra, por palavra, e por pensamento, do rural e
simples theor de seu primitivo ser? por minha experiencia affirmaria que
perde, mas os sabios que o decidão, e a mim seja-me licito pôr duvidas.

Não me intrometterei com o que vai por outros reinos; esse uso de
qualquer contrabandista literario de nunca chegar ás couzas patrias sem
primeiro haver tocado nas de França e Inglaterra, não me quadra a mim,
que ao menos tenho a sufficiente consciencia e pejo para não citar o que
mal conheço: em Portugal me limito. Somos nós mais felizes ou melhores
que nossos avós? Certo que não; e tanto, que se esses bons e honrados
velhos podessem ter adivinhado quaes seriamos nós, nós herdeiros de
seus nomes, escarnecedores de seus exemplos, e deshonradores de seus
castos e amigaveis costumes; nós que ao seu velho fallar e escrever de
_deveres_, substituimos o nosso novo fallar e escrever de _direitos_, e
á moda de ter palavra, a moda de ter palavras, ter-se-hião horrorisado
como de abominação, do pensamento de gerar. Acordai do sepulchro um
d’esses anciãos, que depois de pagar inteira a divida a pai e mãi,
viveo todo para a mulher, matou-se pelos filhos, guardou a palavra como
religião, a religião como necessidade, e cada paschoa de flores, bem
com Deos, contentissimo comsigo, se ufanava de sentar ao melhor lugar
de sua mesa o parocho, e todos os seus vizinhos de envolta com seus
filhos. Mostrai-lhe todos os nossos progressos, que em sós algumas
vantagens materiaes e corporaes se resumem: alardeai-lhe o que esperamos,
mas não lhe escondaes o que destruimos: lede-lhe a primeira pagina do
primeiro Jornal que topardes d’esse mesmo dia, raza de impudencia,
empapada com fel, estillando lagrimas, revendo sangue, suando calumnias
e desavergonhamentos, respirando e soprando odios de nação contra nação,
de cidade contra cidade, de familia contra familia, de irmão contra
irmão, de povos contra reis, de reis contra povos, e dos homens contra
a Providencia. Supponde que Deos lhe offerece renovação da vida, e
offerecei-lhe vós todas as blazonadissimas excellencias do nosso viver
e do nosso esperar: repellir-vos-ha com aquelle braço que antigamente
defendia e não apunhalava a Patria; tapará com o resto da mortalha o
rosto que só depois de cadaver córa pela primeira vez; e cerrando rijo os
olhos contra a luz, e deixando-se recair pezadamente, de vós não pedirá
mais do que um favor, o de lhe restituirdes a sua lagea.[2]

Emquanto assim vai o presente avesso do preterito pelo que toca á moral
e á felicidade, fallo da verdadeira felicidade, d’aquella em que a
moral entra como elemento, e não da fizica e corporal, da de fazenda
e honras, como hoje se entende; vejamos a que ponto subirão com o
_movimento_ e _progresso_ as nossas letras. Entrai as typografias, e
dizei-me porque assim amotinão com o seu noturno e diurno lavor a
vizinhança? perguntei-lhes porque assim gemem e se afadigão? em quaes
livros nos estão preparando mananciaes de doutrina, ou de costumes, ou
de suave, honesto e ja tão precizo desenfadamento? Dissereis que nossos
laboriosos maiores as deixarão esfalfadas com os copiosos frutos de
suas lucubrações: o mais com que se atrevem, são ridiculos farrapos de
bestiaes torpezas. Seguem-se os mezes aos mezes e os annos aos annos,
sem outras literarias novidades. Terra he que ja deo optimas searas e
vinhas abundosas; agora descultivada e baldia, e á lei da natureza bruta,
desata toda sua força e substancia em cardos, em ortigas, em venenos
e serpentes. Quantos livros, e quantos bons livros, que nós outros
nem conhecemos nem ja valemos a sopesar, saíão dos nossos prelos, nos
tempos em que a probidade, e a mansidão, e a concordia tinhão seu preço.
Um só reinado, e ainda bem chegado a nós, e de rei que por bom se não
cita, com tanta copia de literarios monumentos nos deixou avergadas as
bibliothecas, que dez centos de annos como o presente não produziráõ
a decima parte. São os nossos typógrafos de hoje, se com aquelles os
comparamos, como os nossos cutileiros de punhaes, comparados com os bons
armeiros que forjavão espadas como as de nossos heroes de boa data, que
só com sua pezada presença nos maravilhão, a nós, que por nossa verbosa
sabedoria, acabaremos de desbaratar tantas e tão longes terras, como nos
ellas ganharão esgremindo-se.

Tal vai pois o estado literario como o social; e nem menos podia ser,
porque estas duas couzas, como alma e corpo, se pertencem inseparaveis:
Mão de Deos que ao corpo politico quizesse restituir a saude, por ahi
lhe fortaleceria não menos o espirito; Sopro de Deos que ao espirito
restituisse a luz, por ahi lhe ordenaria e vigoraria todos os movimentos.
Por tanto, conhecendo e confessando que nem facil he nem possivel torcer
a carreira desenfreada que o nosso mundo leva não sei para onde, todavia
para mim tenho, se na cabeça está isto, se no coração, não o direi, mas
tenho para mim, que mui bem fará, e muito amado será dos rectos juizos
quem nos fizer volver olhos de saudade para a vida que ja se viveo, o
que ainda um ou outro, aqui ou acolá poderá inteira, ou quando mais
não fôr, em partes, em amostras reviver. E pois será isto uma illusão
minha? Se o geral da gente vai por entre dores para uma couza que se
chama perfeição, não pode um individuo em particular deixar-se ficar
atraz, despir essas suadas armas de milicia conquistadora, e recolher-se,
honrado desertor, lá onde viva seguro com Deos, comsigo, com poucos
vizinhos, logrando-se da natureza, e desfrutando em variados prazeres
todos as estações; prezentes que Deos enviou para todos os homens, mas
de que os das cidades só pela folhinha tem noticia! Por quão feliz se
não devêra dar o escritor desambicioso, se aos puros sons de sua lira
afinada nos bosques, lograsse, não como Anfião fundar e povoar cidades,
não como Orfeo arrancar as feras dos arvoredos e domestica-las; mas
arrancar d’entre feras humanas homens inda não corrutos, e assenta-los,
para sempre feriados do reboliço dos grandes povos, no divino remanso de
uma campestre solidão! De mui leves cousas e tenuissimos momentos pende
ás vezes o destino de toda uma vida: assim como de um encontro fortuito
resulta uma affeição amorosa, que logo produz um consorcio e um sisthema
completo de existir, assim de uma palavra em uma conversa casual, da
substancia de uma pagina lida em certa hora, do aspéto de um painel,
podem nascer, e mil vezes terão nascido, determinações, vocação, e fados
de individuos. E para vir a um exemplo recente e meu, aquelle bom livro
das _Prisões_ de Silvio Péllico (todo imbuido, releve-se-me a expressão,
de uma christã e filosofica filosofia, que a maior parte das assim
chamadas nem uma nem outra couza tem) aquelle bom livro, ja principiou e
talvez acabará de me curar o animo: não lhe restituirá a muita harmonia
com que o de Gessner mo temperára, porque a mocidade das illusões passa
e não volta; mas deixar-mo-ha provavelmente assaz alto e forte, que
ainda no meio das maiores tempestades repouze e abençoe tudo. E não he
isto maravilha, que a alguns outros que o lerão ja eu ouvi iguaes, senão
maiores encarecimentos de sua medicinal virtude.[3]

Este desvio, por onde me agora deixava ir, levar-me-hia longe, que assim
he accomodado a meus gostos; mas porque he desvio o largo, e retomo o
caminho que hia seguindo. A poesia amavel, a que nas mãos e seio nos
vinha offerecendo ramalhetes, e frutos no regaço, e amores nos olhos,
e nas fallas consolações, afastou-se d’entre nós, onde ainda a alguns
poderia aproveitar, e assim como outras muitas boas artes e prendas, foi
reclinar-se á espera na beira da torrente dos dias, d’onde não volverá,
sem que primeiro se restaurem muitas optimas couzas e todas suas, que
o mundo velho tinha produzido. Mas d’onde viráõ estas couzas? Do mesmo
mundo velho? mal o creio, que o novo quebrou a ponte que os juntava,
e rio de ufania vendo abismar-se fábrica que assim parecia eterna.
Renasceráõ por tanto da propria natureza da terra, da indole da alma
humana que ja uma vez as produzio, ou do sopro do ceo: renasceráõ tarde;
renasceráõ quando nós ja não formos; renasceráõ, talvez diversas, mas
renasceráõ. E quaes são estas couzas do mundo passado, cuja perda tanto
dóe ás Musas e á Virtude? são as formosuras e magnificencias da religião,
o respeito aos finados e a seus sepulchros, ás lições da experiencia, ás
obras dos antigos homens, a veneração ás cãs, o quasi culto ás mulheres,
a benevolencia e sociabilidade, o aferro aos usos e modas patrias, o
amor do estudo, que nós dissipámos com as leituras efemeras, e o amor do
torrão natal, nobre fecundissimo sentimento, mas impossivel onde se vive
sem muita brandura e sem firme certeza de permanecer. Tudo isto se perdeo
para nós, e não sei que bens haja em seu lugar posto a _Filosofia_. A que
verdadeiramente o he, ainda que esse nome se não dê, a que realmente faz
homens livres e felizes, não he Furia que destrua tão venerandos objetos;
ama-os, defende-os, reforma-os quando o tempo os viciou, concerta-os que
se amparem mutuamente, pede-lhes frutos, e com seus frutos se fortalece.

Quando de espaço me dou a escavar estas verdades, nada me assombra a
nossa crassa e desdenhosa ignorancia, mãi ou filha, e certamente socia
da nossa immoralidade. Esta mal agoirada ignorancia e esta immoralidade
cresceráõ; ja nossos filhos apenas saberáõ ler, e se o turbilhão que a
roda leva não houver quem o suspenda, brutos e ferozes sairáõ os netos.
Applicai todos os vossos sentidos ao coração da nossa Cidade: se a vida
he movimento, ahi trabalha vida; se porem a vida ha-de ter um perfume,
uma harmonia, ahi não ha senão morte, e aquelle movimento he de cadaver
que fermenta para se dissolver. Poesia, verdadeira poesia ja n’este
Reino, onde em todos os tempos pullullava espontanea, posto que raro
amadurecesse, ja por consequencia acabou: quanto desde hoje se poetar
nas enamoradas doçuras da vida aldeã, mais não será que recordações sem
germen de futuro. D’entre a memoria e o espirito, não da experimental
convicção do poeta, nasceráõ esses versos, como lagrimas de balsamo,
que não de dentro da arvore, mas d’entre a casca e o libro vem raras
gotejando, para cairem e se perderem no terreno bravio da solidão. Oh
Liberdade, Liberdade! quão mal te comprehendem os que te separão do
bello! quão mal te servem os que te malquistão com os homens de bem!
como involuntariamente te levão á morte os que só te pedem como summa
felicidade, o direito de nada respeitar, estradas de ferro, navios de
vapor, um himno, e punhaes ou carceres contra quem quer que não beber ás
suas mesas! Pobre Liberdade, não he este ainda o teu dia: não és tu idolo
de selvagens, mas Divindade benefica de homens prudentes.

Eis-me outra vez com a Politica, e o meu voto quebrado. Ja vejo que a
minha cura não está tão adeantada como o eu suppunha: não ha remedio,
amanhã releremos Silvio Péllico, e por hoje voltemo-nos com toda a
diligencia a rematar, como quer que seja, este escrito.

Sáe pois o presente livro por todos os modos extemporaneo, ja porque a
estação nem he d’elles nem para elles, ja porque lhe fallecêrão dias
para amadurecer e sasoar, e ja porque dos que lhe tomarem o sabor, uns
o taxaráõ de temporão, outros de serodio, sendo que uma e outra couza
he elle, e demais a mais pêco, segundo a planta de que se creou. Uma só
lembrança me consola, e he, que assim mesmo ja deveo ser peor, quando
da primeira vez appareceo, e mais lhe não faltárão gostadores; tanto he
assim que nunca faltaráõ simpathias ao que de sua origem he bom, ainda
quando desbotado e estragado pela impericia de quem o tratou. Melhor he
hoje do que então era; não porque o eu tornasse á forja e á bigorna, ou
o recorresse e lustrasse com esmerada lima, senão porque havendo hoje
menos dados á lição dos livros, e em especial d’este genero, tambem ja
não ha criticos, senão he para as acções da vida publica e domestica; por
onde as obras escritas podem passar a seu salvo, sem que suas pobrezas
e vergonhas sejão vistas e apupadas na praça. Desconsolada consolação
he esta de se poder desafinar cantando, por se cantar entre surdos:
mas esse mal, se o he, só a mim me toca, e para o descontar me sobra
a lembrança, de que alguns caladamente me agradeceráõ o diverti-los
do publico espetaculo. Para estes em boa hora sáia e sai o livrinho
fallador de campos e amores: suave appareça como a violeta sozinha
encontrada no passeio de inverno: suave e não estranhado como o raio de
sol por cima de campo de batalha apoz uma noite de geada; nada aproveita
elle aos cadaveres, mas alegra e consola como esperança aos que mal
feridos jazião, e a quem o regelado lentor das trevas coalhava o sangue,
desesperava as dores, tranzia os ossos, e os descoroçoava da providencia.

Ramalhete he de flores silvestres que a meus amigos deixo na hora do
apartamento, que ao menos em quanto durar lhes recordará que os amei.
Terra de Portugal e outr’ora de Portuguezes, terra namorada do mais
formoso ceo, terra sombreada de larangeiras e murtas, acobertada de verde
e bordada alcatifa, amorosamente abraçada do Oceano, talhada e regada de
tão espelhados rios, terra de tanta poesia e de tanto amor, eu te deixo!
E para que ja nunca onde quer que a fortuna me detenha, me cuides de ti
esquecido, terra do meu Portugal lembre-te que o meu ultimo pensamento ao
sair das tuas praias foi o da tua Primavera e o da minha Mocidade.

                                            _Lisboa: 1 de Dezembro 1836._



PROLOGO.


Não erão vãos os meus receios; acabo de visitar a _Primavera_, não ainda
para lhe emendar as miudezas, mas para a conhecer por alto, e podê-la
sentenciar no todo. Reconheci-a, mas demudada, mui outra da que a tinha
deixado na graça, geito e amores; trocarão-ma os annos, trocando-me.
Desama-la ainda não, mas ama-la tambem ja não! Se lhe não quero mal, he
só porque lhe quiz muito bem, e foi minha; mas como ja me risquei de seu
namorado, não hei de chamar-lhe formosa, que o não he, nem dissimular que
sejão defeitos, muitos que em bom tempo ja talvez lhe tive por perfeições
e primores. Não ha remedio, prometti-me seu juiz, passará por onde
houvéra de passar, se de inimigo fôra. Se ella perder do seu preço, e eu
do meu, consolemo-nos ambos d’esse pouco damno; ella por não receber de
mim injustiça, eu com ter obedecido á consciencia, que tambem em letras a
ha. Antes porem que entremos a contas e lhe formemos o summario, releva
anticipar uma dúvida não leve, que se me pode pôr, e desfazer um reparo,
que deixado a si pareceria de fôrça.

He o reparo e a dúvida; que pois he o Livro inamavel por defeitos a
seu proprio autor, não havia porque de novo o semear em público, antes
importava pôr todos os meios para que o nunca mais vissem, nem d’elle se
fizesse menção; que o contrario he faltar a toda a reverencia, que aos
leitores se deve, dando-os por broncos para conhecer o máo; ou á caridade
natural comsigo proprio, expondo-se sem fôrça de obrigação a menoscabos,
se não injurias.

Não quero responder que em dar o que ha quando ou emquanto não ha melhor,
ja o que o faz se ha de haver por desempenhado; nem que, para reo que sem
tratos e sôlto confessa os delitos, sempre por bom direito se usou de
misericordia; melhores me parecem do que estes, os meus fundamentos: e
ei-los aqui.

Primeiro: que andando a _Primavera_ ja impressa e corrente por muitas
mãos, e não podendo ser recolhê-la eu de novo, e desluzi-la da memoria
de muitos que a bem agazalharão, melhor arbitrio he, pois que tem de
se conservar no mundo, renascer n’elle expurgada de muitos vicios da
primeira impressão, e se a paciencia me acudir com o preciso valor,
retocada no que pertence ao literario.

Segundo: que havendo talvez ainda, e podendo vir a haver, moços que se
dem a poetar, acontecerá que entre os mais livros portuguezes que ás
mãos lhes cheguem, vão de envolta os meus (assim mo promette sua boa
fortuna, que os livros a tem como os homens, e ás vezes os mais ruins
muito melhor do que os bons): mãos de principiantes não sabem escolher,
os amores, amenidades e branduras da _Primavera_ cáem muito a gente moça,
ir-se-hião traz o gosto, e beberião muitos defeitos; do que seria minha a
culpa, se eu não procurasse agora arrancar boa parte d’elles, e contra os
demais os não precavesse com honestas advertencias.

Terceiro, finalmente: que eu pretendo antes ser bem conhecido pelo que
fui, sou, e hei de ser, do que só pelo que sou; porque nascendo-nos o
presente do passado, ainda que diverso, e produzindo-nos ainda que tambem
diverso, o futuro, o sermos só conhecidos pelo que somos não he sermos
conhecidos. He pensamento que merece ser entendido. Alexandre Dumas o
explicará. Sem pedir venia traduzo o passo, com quanto seja longo, certo
de que o não parecerá.

—“A maior desgraça da crítica, ainda quando se não sae com ignorancias
e velhacarias (diz elle no prologo da _Catharina Howard_) consiste em
sentenciar uma Obra nova desmembrada do feixe literario cuja he parte:
ahi está porque nunca se póde avaliar um livro com exacção antes da
morte do autor; e mais ainda he preciso que Deos lhe haja concedido
desde o primeiro até o ultimo, os dias, que para acabar seu edificio se
lhe fazião mister; por quanto, se antes de tempo morreo, o monumento
que traçára tem de ficar incompleto para sempre como a Sé de Colonia,
e os homens mal justos para com elle ainda para alem da sepultura,
lançar-lhe-hão á conta de humana fraqueza o ter-lhe ficado certo vão por
tapar, quando a morte de invejosa e apressada lhe veio atar as mãos, e
ja talvez para se arrematar mais não faltava que uma só pedra: ora por
aquelle vão, he que a crítica se mette e entra, quer o autor esteja vivo,
quer defunto.”

“De trez idades se compoem a vida de quem nasceo fadado a dar de si
produções, e em trez periodos se desparte: como couza alta e nobre que
he, tem primeiramente sua base por onde se começa; depois um cume onde
se chega; ultimamente la por dentro um motivo, tenção e fim particular
para onde se torna a descer. Pelo que, he necessario que o homem tenha
vivido todas estas trez idades e que o seu talento haja cursado estes
trez periodos, para se poder avaliar aquelle talento no seu todo, aquelle
homem na sua produção.”

“Primeira idade, quando a fantasia prevalece á rasão. A esta idade de
viço pertencem as horas que tão despedidas voão dos vinte e cinco aos
trinta e cinco. He o periodo para dever inventar _Hamlet_ quem se chamar
Shakespeare, o _Cid_ quem tiver nome de Corneille, os _Salteadores_ quem
for Schiller.”

“Segunda idade, em que a fantasia e a rasão se embalanção, ajudando-se
mutuamente, e vindo a formar das suas duas uma só força neutra. A esta
idade vigorosa pertencem os dias que vão correndo dos trinta e cinco aos
quarenta e cinco. He o periodo em que os mesmos trez sujeitos produzem _O
Rei Lear_, _Cinna_, _Wallenstein_.”

“Terceira idade, em que a rasão prevalece á imaginação. A esta idade de
reflexão pertencem os annos que descem dos quarenta e cinco aos cincoenta
e cinco. He o periodo em que elles compoem _Ricardo III_, _Polyeuctes_,
_Guilherme Tell_.”

“Ora pergunto, ficarião completos Schiller sem _Wallenstein_ e _Guilherme
Tell_, Corneille sem _Cinna_ e _Polyeuctes_, e Shakespeare sem _O Rei
Lear_ e _Ricardo III_?”

“Parece-me portanto que nunca devêra a crítica requerer de um poeta,
senão as obras de sua idade; e bem sabemos nós como o faz ella sempre
ao revez, sendo as obras que mais se empenha em querer extorquir de um
engenho as dos annos que ainda não vingou, ou as dos outros annos que ja
deixou transpostos. Pelo que toca a uma obra que vem condizendo com o
periodo d’onde dimana, nunca a impertinencia dos juizes a dá por cabal:
são uns Aristarchos sem paciencia, que acodem logo com a crítica a cada
pedra de per si, ao passo que ainda se está guindando, sem advertirem
que aquella pedra só assente e junta com as outras pedras he que ha de
dar prova da traça e desenho geral do architéto: são como uns pomareiros
esquipaticos, que não tomando em conta o inalteravel fio das quadras do
anno, pedem fruta madura á primavera, frutos verdes ao verão, e ao outono
flores.”—

Bem haja Alexandre Dumas, que tão artificiosa e claramente me decifrou, e
me ajudou a pôr em limpo uma verdade, cujos ares muito ha que eu tomava
de longe; uma verdade que eu andava adivinhando como por entre nevoas.

Ora pois, dos trez apontados motivos de determinação, foi este ultimo o
de maior momento: quiz dar completo o meu retrato, menos o intellectual
do que o moral, a quem desejasse conhecer-me: não podia omittir como
feição o que eu havia sido, e ainda antes d’aquella primeira idade, que
dos vinte e cinco decorre até os trinta e cinco annos. A _Primavera_,
escrita aos vinte e dois, tinha por tanto de entrar encorporada na
collecção das minhas Obras. Se a refundisse pelo meu gôsto de hoje
em dia, não sei se ficára melhor, mas sei que ficára outra, e por
conseguinte falsa como feição. Tudo quanto era seu geito, seu pensar,
seu ser proprio passará intato; e n’isso, se se hão de perdoar gabos
a quem sem disfarces nem dó se disciplina deante do Povo por peccados
poeticos, n’isso digo, alguma couza ha de bom, sem o que não tivera
agradado a tanta gente. O por onde a lima pode e deve correr afoita e sem
dó, são—_as numerosas faltas de boa falla portugueza—desleixo de frase—e
estiramento de períodos_.

Quero-me explicar, não para os Mestres, sim para os novéis no officio
de escrever, com os quaes particularmente converso nos meus prologos;
e porque não havia eu repartir do fruto de minha tanta ou quanta
experiencia com quem não a póde ainda ter, nem suppri-la com seguir
cursos de Bellas-letras que entre nós se não ensinão? Um dos maiores
delitos literarios, e em que mais usualmente cáem os moços, he o
_desprezo de lingua e corréção_; delito que per si basta para descontar
muitos meritos intrinsecos de escritura. Sem bem saber sua lingua, diz
Boileau, o autor mais divino nunca passará, por muito que faça, de máo
escritor. He ella a ferramenta para este genero de lavor da alma; e quem
poem as mãos na obra sem primeiro ajuntar, conhecer, escolher e apontar
bem os instrumentos de que se ha de valer, nem se pode mostrar bom
artífice, nem merecer desculpa de o não ser.

Toda a Musa em creança padece dispepsia de versos, diabetes disséra quem
se menos prezára de cortez com Divindades. Na primeira idade he costume,
e por muitas rasões, das quaes não será a mais fraca a aversão ao
trabalho, presumir-se antes de facilidade e presteza no escrever, do que
de corréção e primor: coração e fantasia tudo anda ligeiro, querem que a
penna lhes obedeça, como se ella podesse; forção-na, e dahi resulta que
pensamento ou afféto que lá dentro era soberbo, apparece cá fora frio,
mesquinho, desengraçado; e maravilha-se o escrevedor quando a mesma couza
que valentemente o agitava, em quanto em si a revolvia, depois de passada
para o papel adormenta os ouvintes, e a elle proprio o desconsola. De
todos os defeitos de autor, talvez se podesse affirmar que só este he
verdadeiro, real e absoluto defeito; porque, se os pensamentos e affetos
de cada idade são della, e dessoão e descontentão a todas as outras, tem
por si o serem d’ella, e como taes se defendem por conterem verdade e
pintarem o homem; não assim a lingua, que em todas as idades he ou deve
ser uma, não provando outra couza o faltar-se a ella, senão que se quer
fallar antes de se ter aprendido. Sou experimentado, e por bem do proximo
direi com vergonha minha, que no que me ficou escrito d’essa quasi
infancia poetica, as couzas nem me espantão nem me offendem, ainda quando
as desapprovo, mas a linguagem e o dizer me fazem de continuo caír as
faces; e por isso que he escolho em que naufraguei tão desastradamente,
o assignalo com tanta miudeza e teima; nem cançarei de o assignalar e
accender-lhe em cima boa luz de farol, em quanto vir, como vejo, outros,
que nem por idade se absolvem, esbarrar n’elle e perder-se a todas as
horas. Mancebos, (se os ha ahi que se dem ás letras) vós que encetaes a
mui ardua e perigosa vereda que pelas letras conduz á fama, seja qual
fôr o genero de poesia para onde propendais, seja qual fôr o vosso não
vulgar engenho, sejão quaes forem os louvores que os velhos na arte vos
concedão, e os applausos com que as sociedades vos afoutem, não vos deis
pressa de apparecer: os conselhos que Horacio vos deu, durão com toda a
fôrça que a natureza e a pratica lhe bafejarão. Deve-se compor de espaço,
consultar os bons e peritos, guardar por nove annos, chamar, e tornar a
chamar dez vezes á unha a obra ja perfeita. O amor proprio nos persuade
e impelle a apparecermos cedo, devia elle, se não fôra cego, ter-nos mão
para nos não sairmos senão a horas;

    _A melhor fruta colhe-se mais tarde._

                           (_F. R. Lobo._)

Muito mais vale começar jornada com dia claro, do que, para adeantar
horas, largar a pouzada pelo escuro da noite, em que os tropeços são
faceis, perigosas as quedas, e quasi certo o extravio, que a final
lançadas as contas nos farão chegar mais tarde e menos gostosos ao lugar
que demandâmos. Repetirei, porque nunca o repeti-lo será de sóbra, o
que ja por semelhante occasião disse em outro meu livrinho, contra
esta enfermidade que se tornou praga, e nos traz a todos lastimosamente
gafados; não ha mais remedio senão soccorrermo-nos aos livros mestres
de nossa lingua. A aversão que vós outros, gente moça, lhes tendes, bem
sei d’onde nasce, que tambem eu por ahi passei: correm para vós como
rio caudal os livros d’essa França, todos especiosos e doirados, todos
galhardos e louçãos, arrebicados e argutos no dizer, promettedores de
maravilhas nos titulos e indices, conversando comvosco paixões fortes
e brandos affetos, uns vomitando republica por todas as folhas, outros
por todos os poros exhalando commodissima incredulidade, e todos á uma
embebidos do presente, afinados pelo vosso ponto, e se o posso dizer,
mancebos como vós mesmos. Não ja assim os nossos patrios autores: estes
não vos sáem ao caminho; pouzão, antes jazem, pela escuridão êrma das
bibliothecas, mal envoltos na grosseira capa de seu tempo, enterrados
no pó, meio devorados dos bichos; se os olhais por fóra, parece-vos que
a vida vos não daria para um só volume: se os consultais por dentro ja
os titulos vos não namorão, os indices vos descoroçoão: folheai-los por
alto, vem os milagres incriveis, a historia encarecida ou chã, a poesia
enleada e escura, o estilo incorreto e desflorido, o amor grave e sizudo,
os costumes castos, a moral severa, a fé religiosa e inconcussa: cada
pagina na sua simplicidade apregoa Deos, revem por cada poro o cheiro
do mundo velho: mas esforçai, affazei-vos por alguns dias a soffrê-los
e comsenti-los; continuá-los-heis sem tedio, logo com gôsto, com ancia,
reconhecendo a final quanto as primeiras mostras vos havião mentido, como
pelo meio e fundo d’aquelle enganoso dissabor andavão sumidas galas,
joias, riquezas, maravilhas, que vos enchem os olhos, vos cativão a
vontade, e fazem que vos peze do tempo que os não conhecestes. Assaz nos
divertimos do caminho, rasão he que a elle nos tornemos.

O segundo defeito geral que me occorreo n’esta leitura, foi o que eu
chamei _desleixo de frase_. He este muito menos grave que a impureza da
lingua, sendo-o todavia assaz que mereça quanta reformação lhe eu possa
fazer. Quando quem não cura da pureza de sua lingua, cura ao menos de
lhe não deitar remendo de panno estranho ou novo que não seja vistoso
e garrido, quando o que se não preza de dizer limpa e castamente, ao
menos timbra no exprimir com viveza não vulgar, com certo matiz, com
certa novidade, algum passo mais se lhe póde conceder. Procurei se ao
menos teria eu posto algum pouco d’isto, e achei um desconsolado não. A
locução não me pareceo tão poeticameme figurada como convinha em poesia,
ainda pastoril; os epíthetos erão tão sem succo e bastos como a caruma no
mato. Uma e outra couza requerião, em quem as quizesse bem emendar, muita
paciencia, e muitissima mais da que eu tenho. De ambas, mormente dos
epíthetos, procurarei limpar a maior; todos não he possivel: tanto e por
tal geito estão com toda a Obra cozidos e enraizados, que lhes vale o que
ás ervas parasítas em parede velha mas necessaria; foução-se-lhe algumas
demazias, perdoa-se ao resto, com o medo que em faltando, se esboroe a
parede, e venha ao chão toda delida.

Tambem me queixei de _estiramento de períodos_. He defeito portuguez,
peninsular, meridional. Dava-me agora na vontade tornar a culpa ao
sol, que n’estas suas terras faz que tudo se desaperte, e derrame, e
desate em viço e sobejidão: mas fiquem esses milagres do sol para os
esquadrinhadores metafisicos, a quem inda assim, não quero mal; e eu,
melhor que a nenhuma outra causa, lançarei aquella minha diffusão ás
costas dos annos em que escrevia, com o que sempre fico de bom partido,
por das minhas a tirar. O que he grandemente verdade, he ser este defeito
para muitissimos leitores, principalmente mancebos ou hospedes nas regras
de escrever, virtude, e a virtude contrária vicio. Saírão a _Noite do
Castello_ e _Ciumes do Bardo_ muito mais contraídos e apanhados em couzas
e palavras, do que estes Poemettos e as _Cartas de Echo_: pois comtudo
muitos houve e ha, que por isso mesmo ficárão preferindo aos novos os
antigos e até velhos opusculos. A cada hora me diz um que me torne ao
meu primeiro caminho; outro que não desampare o novo: uns, que estas
ultimas obras se não lem senão de escaço numero; outros que as passadas
não occupão meia hora os olhos dos homens graves e bons juizes. Oh!
quem reconheceo nunca a verdade da fabula do velho, do rapaz e do burro
como o triste, que para expiação talvez d’algum grande peccado, entrega
e desampara a público os partos do seu tinteiro! Pois que não póde
ser contentar a todos, ir-me-hei como e por onde o meu juizo, gôsto e
natureza me levarem.

A poesia substancial e severamente escrupulosa, he o mais das vezes
descontada por uma certa desharmonia: a muita harmonia, ainda quando mais
apoucada de ideas, ja entretem suavemente: qualquer leitor se entende
com taes escritos, ninguem com elles se cança; são um genero de musica
facil, que ainda quando não exprime affetos, se ouve com gosto; são
como um deslizar de barco por uma agoa mansa: por isto he que os livros
do _Porto_ e _Tristezas_ de Ovidio se lem de um cabo a outro com muita
deleitação.—_Inter utrumque_: nem tanto apêrto como Almeno na chamada
tradução de Ovidio; nem tanta soltura como o seu amigo, e outr’ora meu
mestre, Elpino Duriense[4] nas poesias originaes; nem tanto pospor a
harmonia e clareza á brevidade como Filinto; nem tanto sacrificar o
entendimento ao ouvido como Elmano. Isto foi o que me pareceo lograr
na _Noite do Castello_, e _Ciumes do Bardo_, e não me arrependo se por
ventura o consegui.

Tanto não, mas alguma couza d’isto fôra o que eu quizera na _Primavera_:
alguma couza, para poder com ella reconciliar os severos; tudo não, por
não dessimilhar em demazia esta parte do retrato.

Até aqui descubrimos defeitos que importa emendar, agora os vamos ver
do outro genero, em que me não he licito bolir, por serem essencia do
livro: erão aquelles no tocante á lingua, estilo, e metro, que ainda que
importantes, não passão de accidentes da obra; estes são da alma, vida, e
pensamento da mesma obra. Entremos pelo descritivo (não será portugueza
a voz, mas o uso e necessidade lhe valeráõ.) Descritivos se chamão em
geral todos os poemas deste genero, e como a taes, parece que tudo quanto
for pintar dentro do quadro do seu painel, lhes compete e convem. Não
he comtudo bem assim, porque as descrições, por mui formosa e naturaes
que se ostentem, tambem canção a imaginativa de quem lê, quando umas
ás outras se vem succedendo perennemente e sem um bom entremeio de
narração, ou outro valente interesse, que por um modo verosimil as reuna,
separando-as ao mesmo tempo, para que se não confundão, nem se afrontem,
nem esmoreção. Não o advertio Delílle, e d’ahi procedeo não bastar seu
altissimo engenho para livrar seus poemas de enfadosos. Ora este livro
he quasi um embrechado massiço de descrições; e assim, se o posso dizer,
mais para ou olhos da alma do que para o seu entendimento. Mas serão ao
menos estas pinturas, consideradas uma por uma, de algum preço por fineza
de tintas, ou pontualidade de desenho? autos são em que me não compete
dar sentença. O Padre Kinsey, ou o Portuguez que em seu nome escreveo,
disse que eu não pintava bem a natureza; talvez que outro tanto, e
ainda peór, se devesse dizer da mór parte de nossos poetas; mas não he
contra elles, senão contra mim só que eu enfeixei varas no princípio
d’este prologo: como os applicados noviços se não enganem comigo por
minha culpa, que se desvairem e percão com os outros, paciencia! Aqui
está comtudo o que me parece; este descritivo he desbotado e de côres
pouco vivas e proprias se com o de Gessner ou Kleist se compara, mas
he o melhor que eu soube; eu que nem podia ir-me pelos campos fazendo,
como de si dizia Kleist, caçadas poeticas de imagens, nem discorrê-los
como Gessner, de lapis na mão. Ja póde ser que o Padre Kinsey, ou o seu
ponto, não houvessem de se me avantajar muito, se lhes coubesse tirar ás
escuras, ou quasi, o retrato da natureza: muito mais faz quem atravessa o
Tejo a nado, do que hum Almirante Inglez que em segura e bem apercebida
náo rodêa a esfera; poderá este trazer mais riquezas e informações, mas á
fé que não prova mais fôrças e esfôrço que o desconhecido nadador de uma
só corrente.

Passemos ávante, e das descrições entremos nos affetos. N’esta parte
direi pouco, porque sem embargo de que o desabrimento com que me castigo
onde entendo merecê-lo, me podia deixar alguma licença para tambem me
louvar pelo que em mim visse de bom, melhor he que nos louvores, em que
mais facilmente nos podêmos enganar, nos contentemos de ser ouvintes.
Ainda assim, não acabo eu de dizer tão pouco, que muito bem se não
entenda ja que no tocante a affetos não quero muito mal á minha Obra:
fallo dos affetos em geral, porque passos ha n’ella a cujo affeto não sei
ja hoje querer mal nem bem; honesto, formoso, e macio me parece, sei que
n’esse tempo devia ser meu, porque eu não compunha, tirava do coração,
mas ja o não posso entender cabalmente, e avaliar. Esses passos, apezar
de tudo e de mim, hão de passar intatos, que em assunto de branduras o
eu de hoje respeita religiosamente ao eu de algum dia; e porque tudo
diga, ainda que quizera emendar, não saberia. Sim me inclino a que haverá
(e ja de alguns m’o boquejarão) excesso, redundancia, languidez em
tantas suavidades, caricias e extremos de bem querer a tudo, e a todos.
Inclino-me e talvez o creio: mas que havia de cortar? a que havia de
perdoar, se assim como o eu antigo valia tanto mais que o eu presente,
póde ser que o melhor se me figurasse agora peór, e o peór melhor?

Digamos duas palavras da Mithologia. Ja não sou tão emperrado pagão como
n’outro tempo; desconsola-me ver o desmedido uso que d’ella fiz. Não se
entenda por isto que me alistasse debaixo das bandeiras triunfaes dos
modernos espanca-numes, nem que tiro vãgloria de botar pelo mundo pregáõ,
como Beranger, que os Deuzes ja saírão do meu credo. Todo o excesso
em crer ou não crer, em admittir, ou recusar me parece hoje em dia um
disparate, de que sempre, mais por aqui mais por ali, vem a resultar
contras e arrependimentos. Enjoa-me a fabula dos Lusiadas, e muita, e
muita, e muita outra: aborrece-me quasi todo o emprego que dos Romanos
para cá se tem feito d’ella, _incredulus odi_. Só consinto na fabula
parca, explicavel, e só a amo quando soberbamente poetada. Alumiarei
com um exemplo: quero-a assim como a derrama ás mãos chêas por suas tão
poeticas prozas o christianissimo Chateaubriand, esse mesmo que de longe
visto, assim parece guerrea-la. Nada d’isto acho eu pelo commum no meu
livro: de cada canto me surde uma Divindade; a boa parte d’ellas não
responde verdade, e se alguma couza ahi vierão fazer, certo que não foi
inspirar-me um só rasgo poetico. Porque pois as deixarei? porque não
substancia do livro, e n’elle tem posse velha e apozentadoria.

Dêmos a derradeira parte do prologo, que em prologos deve ser sempre
esta a de vantagem, a algum poucachinho dizer sobre a moral. Moral
hoje, moral em livro de poeta, grande novidade e grande estranheza! Sim
hoje, que ainda ha muito quem se preze de viver honesto, virtuoso e
pela antiga: sim em livro de poeta, e por isso mesmo; visto como tudo
quanto era contra ella o tem a proza a si tomado, não será muito que lhe
abra sua porta a poesia, e lhe dê guarida em um pobre cantinho térreo
de sua pousada, como he este: inda mal, que até cá, no fundo de tamanha
escuridão e penuria, por todas as fendas e agulheiros do mal reparado
edificio poetico lhe chegaráõ as risadas sem alma nem sal de seus
inimigos, e contra essas não ha valer-lhe. Ha pois do titulo d’este livro
a dentro, dado se não prometta senão primavera, um como ar de bondade e
saude para o animo, de socego e bemaventurança para a vida: e por isso
he que, a despeito da todas suas manchas, me parece bem, como ja no
Ante-Prologo deixei tocado, atira-lo, como sementinha de erva medicinal,
ao baldio sáfaro e corruto d’esta idade. Bem estou eu antevendo quantos
de mim hão de haver lástima, por me assentar no meio de tão ferida e
accesa batalha, por cantar entre tantas vozerias de odios. Paciencia!
tambem sei que homem sentado não sóbe, nem a trôco de cantigas se comprão
riquezas e valimentos: mas cada qual tem sua estrella, e a minha, que
outra vez descobrio depois de largo eclipse, esta foi, e esta ha de ser;
oxalá que para sempre! Com o bom de Archimedes me pareço n’isto, o qual
na hora que a cidade estava sendo entrada do inimigo, e alagada das
torrentes de ferro e fogo, nem tinha ouvidos para o estrondo, nem deixava
de proseguir na composição da lustrosissima esfera celeste, unicos amores
que no canto calado de sua casa o desvelavão. Havia ahi uma não sei que
magnanimidade; e a ninguem deixa de doer a cutilada do soldado feroz que
despede tal cabeça para cima de tal obra. Mas quando me ólho, e me vejo
a brincar com flores e cordeiros, ao tempo que em redor de mim estão no
chôco tão grandes destinos do mundo, não me lastimo, porem rio-me, e
cuido estar vendo em mim proprio um menino, que por um dia de tempestade,
enthesoura conchas e forma lagoazinhas na praia, emquanto andão á vista
galeões alterosos á luta com os elementos, e na mesma praia uns pasmão,
outros se aterrão, outros suspirão pelo instante do naufragio para se
arremessarem aos despojos, apenas o mar os cuspir.—Fugindo me hião agora
outra vez os pés pela antiga ladeira abaixo: e a moral, esquecida até
por quem lhe deo couto! Com ella sou, e com ella determino acabar.

He a moral na maior parte d’estes poemas pura, facil e amavel; e se não
tão efficaz como a de Gessner, não he porque o eu dezejasse menos, he
porque podia menos atavia-la, e aformozea-la do que elle, e atavios e
formozuras até servem para fazer do bom optimo. Todos os amores de que
se urde e tece a domestica felicidade, se achão aqui representados por
um modo que se recommendão, e d’elles se imbue de mui bom grado o animo;
o amor filial, o paterno, o materno, o conjugal, a amizade, até o affeto
aos animaes, arvores, flores, e mais creaturas de Deos, companheiras
nossas n’este mundo, aqui vem de envolta com a recreação. Porque tudo
diga, pelo gostador ou gostadora d’este livro daria eu mais, e mais
quizera viver com elle debaixo do mesmo telhado, e tratar quer negocios
quer passatempos, do que, se dizê-lo ouro, com gostadores e pregoadores
d’outros livros que estamos vendo rebentar de muito mais avultados
engenhos. Se eu tivesse filhos e filhas a quem dar criação, sei que
emquanto não podessem ler Gessner, e seus bons imitadores estrangeiros,
lhes daria a _Primavera_; e ja não digo o mesmo das _Cartas de Echo_, e
muito menos da _Noite do Castello_, e _Ciumes do Bardo_. Mas, acudirá
algum prudente, couzas se deparão na _Primavera_ que mais são para ser
defendidas a donzellas, e resguardadas de fantasias ainda verdes, do que
para se aconselharem por doutrina. Sim as ha, e todas essas paginas que
para idades encorpadas e apercebidas de experiencia bem podem não ser
damnosas e parar em mero deleite, todas rasgára e déra ao fogo antes de
lhes entregar a obra para lição: e porei exemplos; na _Festa de Maio_,
os fins dos episodios de Galatea e Ignez de Castro, no mesmo poema boa
parte da republica de Chipre, como o culto religioso da Natureza, os
bens em communidade, a nudez, o divorcio, o cazamento de um com muitas
_et cetera_. Antes de passar adeante, trasladarei, que alguma couza fará
para aqui, parte de uma Nota que ácerca da republica de Chipre se lia na
primeira edição, a pag. 169.

—“Note-se que este poema está muito longe de dever ser considerado como
didático; que toda esta republica de Chipre he meramente um Dithirambo,
aonde a licença do poeta he muito mais ampla do que em outro qualquer
genero de poesia; que esta sociedade de que se ha de formar a republica,
he de poetas, homens de quem vulgarmente se diz que mais dão ao prazer do
que á rasão; e que em boca de poeta se poem a arenga recitada no templo.
Para os avisados escusada fôra a nota, mas para os fanaticos, que ignorão
ter a Musa do Dithirambo licença para nos seus delirios arremetter contra
tudo, he indispensavel.”

Era este arrasondo o melhor que o caso admittia, porem melhor houvéra
sido não carecer d’elle; e se ainda por elle se pode perdoar á republica
de Chipre, não assim ás demais desenvolturas, como as dos dois ja
apontados episodios. Porque as puz umas e outras? vá mais penitencia. Puz
as pinturas amorosas em quasi nudez, porque estava n’aquella sazão da
vida e do anno, em que todos nos deliciamos nas fantasias sensuaes, e se
somos poetas, cuidamos morrer abrazados e afrontados em não desabafando.
Porque não expurguei d’ellas esta segunda edição? pelo mesmo motivo do
retrato, e não outro. Quanto ao culto da Natureza, e á gente nua, e aos
maridos de muitas mulheres, são necedades taes, que não merecem que
nos detenhâmos em as refutar: são d’aquellas demencias, cujo aggregado
dá o que entre moços que esfolheão livrinhos bem doirados e térsos, se
denomina filosofia, e que só dura emquanto a experiencia e o tempo nos
não desmamão da presunção; pelo que, e pela rasão geral, ja muitas vezes
apontada, de querer mostrar-me qual fui, vivão, durem e passem, que
depois d’isto ja a ninguem farão mal.

Eis aqui por alto, mas com toda a lealdade, o juizo que da _Primavera_
formei; he primavera por matos de serra, com mais flores do que graças,
com mais ares saudaveis do que ervas medicinaes, mui tibia de fragrancias
mimosas, mui nua em muita parte de terreno, mas com seus longes de campos
e cazaes felizes, e muitas saudades lá pelos extremos confusos do seu
horizonte. Quem se d’estas cousas contenta, fico se recreie com ella;
e quem com ella se recrear, para amigo o quero, que esse saberá, como
eu, amar muito os homens, fugindo-os; e enfadado, como eu, das terras
onde não ha ver passaros senão em gaiola, nem verdura fóra de gigas,
nem arvoredo que não seja pintado, nem pastores e innocencia senão na
opera e trajados de seda e veludo, nem felicidade senão em promessas de
políticos, irá procurar-se, achar-se, e lograr-se de Deos, de si, e dos
penhores de sua alma no seio e entranhas da vida campestre. Oh, se assim
fosse!... e se Deos a um tal me désse ainda por vizinho!...

                                          _Lisboa 4 de Dezembro de 1836._



_Post Scriptum._


_Lisboa 29 de Março de 1837._

Quando todo estava no trabalho de desempenhar minha palavra, e fazer
ainda mais do que no Prologo deixára promettido, revendo cuidadosamente,
afeiçoando, podando e enxertando de novo este volume, sobreveio-me aos
2 de Fevereiro passado, o maior infortunio de minha vida, uma perda de
que em nenhum tempo se me poderá o coração consolar. Quebrarão-se-me
as forças para continuar no trabalho, bem como se esvairão muitos,
antes todos, meus projetos. Ja não arrancarei (e para que?) este pouco
e inutil resto de mim mesmo da terra que encobre a minha melhor metade:
aqui procurarei, se tanto podér ainda, pagar com uma pouca fama e muitas
lagrimas, a quem a mim me deo até á sua ultima hora seus olhos, seu amor,
toda sua alma. Qual ficou este livro tal sae, e muito inferior ao que eu
promettia, podia e devia fazer. Se algum de meus leitores entende por
experiencia o que seja padecer n’uma viuvez uma completa orfandade, esse
passará com indulgencia, e ainda suspirando, pelos muitos defeitos que
na leitura lhe occorrerem. Aos sem alma não tenho que dizer: se quizerem
castigar o espirito meio morto, porque não pôde mais, fação-no, que dôres
d’essas não acharáõ ja em mim lugar nenhum.



EPISTOLA Á PRIMAVERA


_Vai a Epistola em tudo outra da que fôra na primeira Edição: conserva
a invenção e os pensamentos, mas emendou-se a linguagem, apertou-se o
estilo, deu-se alguma côr mais ás imagens, explicarão-se melhor alguns
pensamentos, reformarão-se e afinarão-se quasi todos os versos._



DEDICATORIA A MINHA IRMÃ.


_Eu mandei o meu Genio campestre apanhar flores por entre os gelos do
inverno. Formosas não saírão, bem o sei, porem n’esta estação do anno não
mas dá melhores o estreito jardimzinho que me as Musas doarão nas fraldas
do Parnaso. A ti, minha Irmã, me ordena o coração que as offereça.
Felicidade será para mim, se quando para o teu lado me tornar, tu me
disseres abraçando-me:—“Eu amo as flores que tu me enviaste, no meu seio
as guardo: as da primavera menos me contentão do que estas, que o teu
Genio campestre colhe no teu jardim, por entre os gelos do inverno.”_



DUAS PALAVRAS DE INTRODUÇÃO


Fôra o inverno de 1821 para 22 dos mais desabridos e temerosos de que
entre os vivos se faz memoria. Na Beira, onde me então achava, vião-se
arrancados e espedaçados bosques, olivaes e pomares, sementeiras
afogadas, pontes demolidas, e os rios sem margens. Dos 25 de Dezembro
até os 9 de Janeiro, que me demorei em uma aldeinha, uma legua desviada
de Coimbra, saboreando no trato cordeal de alguns amigos e parentes
as férias, então mui festivas, de meus estudos, foi sempre tão atada
e rigorosa a porfia das invernadas, que nos falseou quasi de todo a
recreação mais apetecida dos que fartos da cidade, vão alguma hora ao
campo desenfadar-se. De não passear nos vingavamos o melhor que o tempo
e lugar no-lo consentião: práticas desaffrontadas de constrangimento,
temperadas de bom sal, e muitas vezes substanciaes; a voltas d’ellas,
leituras accommodadas ao mais dos gostos, poesia, e improvisos de
_charadas_ e adivinhações nos enchião as horas não contadas. As
espaçosas noites e boa parte dos dias, se levavão n’estes e semelhantes
passatempos, em de redor de uma farta fogueira, segundo he costume
d’aquellas terras. Por alguma rara tarde, quando o sol descobria, e o ar
um pouco mitigado nos consentia saír, nos hiamos, ora pelo jardim onde
se explanava um soberbo lago, outr’ora pela orla mais assoalhada dos
laranjaes, que mui corpulentos e viçosos, acenavão de seus ramos com
frutos e flores, pondo a vista, o cheiro e o gôsto em doce competencia
de delicias. Era ainda aquillo, ou ja era, umas lembranças, uns longes
de primavera no coração do inverno, saíamos da prisão dos lares,
aproveitavão-se com sofreguidão: talvez nenhum dia de perfeita primavera
na longa cadêa d’elles me pareceo nunca melhor e mais ledo, do que estas
pobres tardes sonegadas ao mez do Natal. A fantasia enganada do sol, toda
se me desatava em poeticas flores, o que n’esses tempos só por maravilha
me acontecia fóra da primavera, e luares do verão. Quando vinha a noite,
acceita ao meu coração, (que sempre de si o conheci, não sei porque,
amigo de com ella suspirar saudades), e ja todos ao conchego do nosso
lume fiel nos tornavamos alvoraçados, comigo só me hia pouzar a um canto,
colhendo, concertando e accrescentando com mui entranhado contentamento,
quantas florinhas me havia brotado a fantasia. De saudades da primavera
me parece ainda agora que nascião todas; o que certo sei, he que ahi, e
n’um imaginar d’estes meus, me veio a lembrança e desejo de escrever á
Primavera uma Epistola. Se n’isto abusei ou não da licença tão concedida
a poetas, não o sei; sei que no ditar estes versos para se escreverem, e
no conceber-lhes o assunto a passear ou a seroar, gozei prazeres que ja a
crítica me não póde tirar. Se contra o bom juizo pequei, todo o meu pezar
he não poder outra vez peccar pelo mesmo modo, nem outra vez namorar-me
da Primavera: os annos que a trazem ás arvores no-la levão a nós, e ja la
vão quinze, (quinze annos!) sôbre o tempo em que eu brincava com estas
innocencias.

                                         _Lisboa: 9 de Dezembro de 1836._



EPISTOLA

_Á PRIMAVERA_.


    Corre a Noite, jaz muda a natureza;
    Os campos solitarios esmorecem;
    Mal se ouve ao longe o estrondo da corrente:
    De quando em quando a lua desmaiada
    Mergulha em nuvens, surde, outra vez morre;
    E das planicies a extensão geosa
    Ora resae e alveja, ora se apaga.

      N’esta cabana de grosseiros troncos,
    Tecido vime e colmo, onde sereno,
    Vento, e cuidados não coárão nunca,
    N’esta onde habita perennal fogueira,
    E onde he Penate o Genio da hospedagem,
    Venho entre amigos deslembrar tristezas:
    Do frio lá de fóra o ultimo resto
    Ja o atirei á chama tragadora.
    Em ti, Amores meus, em ti só fallo
    Ó Primavera minha; em ti só cuido;
    A ti quero escrever: inda ha bem pouco
    Em meu passeio a flor das larangeiras,
    E do sol que hia a pôr-se o extremo raio,
    Cá me derão de ti saudades tristes.

      Desde que ao scetro do raivoso Junho
    Tu doce com teus Zéfiros fugiste,
    Meu dia estendo em languidos suspiros.
    A noite em vagos sonhos me afigura
    Ver-te, cantar-te, desfrutar teus mimos:
    Mal desponta a manhã, mal foge o sono,
    Desespero-me, lido entre amarguras;
    Peço aos bosques sem folha, aos ermos campos,
    Aos rochedos de neve, ás turvas fontes,
    Ao ceo toldado, aos ares tempestosos,
    E a toda a natureza, a minha Amada.

      “Primavera, onde estás?” do outeiro exclamo;
    De valle em valle, de um cabêço em outro,
    “Primavera, onde estás?” responde o echo:
    No prado o guardador, no monte o Fauno,
    Pelo arvoredo as Dríades á escuta,
    “Primavera, onde estás?” depois exclamão.
    Emquanto assim fiel, por ti ó Deosa
    Me desentranho em ais, onde te escondes,
    Perguiçosa gentil? onde vagueas
    Bella inconstante que estes ais não ouves?
    Algum Deos namorado, em plaga estranha,
    Encheria de amor teus olhos livres?
    Esquecer-te-hião, (Ceos!) promessas tantas?
    Sim: que te importa o definhar de um vate?
    Do vate que te amou, te adora ausente?
    Tu folgas e elle gema; elle delire,
    Tu a prados sorris vestindo prados,
    Revês-te, amante nova, em novas flores:
    Fontes ha tambem lá, que importão éstas?
    De fonte ao claro espelho te engrinaldas;
    E ufana de encantar sensiveis peitos,
    Tambem, como entre nós, por lá dardejas
    Fogo de amor aos entes insensiveis.

      Volta, volta, ó cruel, aos campos nossos.
    Qual paiz no universo, a não ser Pafos,
    He mais digno de ti? ¿por onde achaste
    Para o cortejo teu, Ninfas, pastoras,
    Como éstas que entre a murta o ceo nos cria?
    Amantes mais fieis? florestas, rios
    Namorar-se, mais frescas, mais formosos?
    Mais doces flautas quando amor entoão,
    Aves mais doces quando amor gorgêão?
    ¿A tua Cintra, Elisio dos desejos,
    Nobre jardim do Oceano, onde folgavas
    Contemplar na alta noite em mista dança
    Ninfas das ondas, Ninfas das florestas,
    Assim te descaío? ja não proteges
    Os córos virginaes que ali passêão
    Sorrindo ao ver seu nome em bosque e bosque?
    ¿Por toda a parte as Graças que espairecem;
    Do aligero esquadrão travêssos brincos,
    Frechas doiradas em contínuo vôo
    Aqui e ali aos peitos descuidados,
    E se errão corações, ferindo os bosques,
    Porque os bosques ali tambem suspirão,
    Tudo pois te esqueceo? Volve, ó Querida;
    Cede, não sejas dura, a amor, aos versos.

      Desde que te ausentaste ahi pende a lira
    Nos braços nus de um álamo sem folhas,
    A minha lira ao vento abandonada!
    A lira d’oiro, onde entoei teu Nome,
    Onde a minha paixão soou mil vezes
    Na linguagem dos ceos a teus ouvidos,
    Ei-la sem honra; os ventos lhe roubárão
    Dos antigos festões o escaço resto!
    Ao passar com seu gado, e vendo-a muda,
    Diz suspirando a turba dos pastores:
    “E’sta a que dava alento ás nossas festas:
    Mal haja quem a trouxe a tal desterro!”
    Dríades ternas, que meu canto ouvião
    Não talvez sem prazer, dizem passando:
    “O vate emmudeceo longe da Amada!”
    Mas apenas teus Silfos precursores,
    C’roados de violetas assomarem
    Na ethérea região de nossos climas;
    Apenas este ceo pezado e turvo
    Mandar á terra os ultimos chuveiros;
    Apenas rebentando as novas folhas
    Se remoçar esse álamo tristonho,
    E entre a nova ramage, emtorno á lira,
    Cançada de seguir-te andar pouzando
    A rolinha estrangeira, e sócia tua,
    Á lira despirei do inverno o musgo;
    E n’ella, de aureas cordas melhorada,
    Só de ti chêo, na presença tua,
    Brotarei versos, como brotas flores.

      Oh voa, acode a consolar Cibele,
    Cibele a térrea mãi da especie humana,
    Cibele, amores teus, qual tu Deidade!
    Se ora a visses! ... do carro verdejante
    Os rebeldes tufões a derrubarão:
    Co’a trança descomposta, o manto em rios,
    A altiva c’roa em parte destruida,
    Nua jaz á vergonha, ao vento, á neve.
    Seu tanto desamparo he mágoa aos filhos:
    Mas para dar-lhe a mão, torna-la a Nume,
    Poder, qual em ti ha, não ha nos homens:
    Do fundo do teu lodo a ti só chama,
    Ai, leve-te algum vento as queixas d’ella!

      As torrentes sem freio divagando
    Contra marmóreas pontes indignadas,
    Investem, chocão, despedação, rojão
    Ruinas em montoẽs aos fundos mares.
    As Dríades, teu povo e tua gloria,
    Tremem, oh dor! ao furioso assalto
    D’Euros, e Notos, e Africos em guerra:
    A seu brutal furor nenhuma escapa:
    Crer-se-hia que as prisões da Eolia furna
    Para sempre arrazára a mão de Jove.
    Dríades nobres de arvores antigas,
    Refugio outr’ora das calmosas séstas;
    Dríades bellas de arvores vaidosas
    Co’a idade juvenil, verdura e fôrças,
    Tem a seus pés quaes vítimas caído.
    Co’os negros frutos oliveira amiga
    Baqueou; não lhe valeo celeste guarda;
    E Minerva prantêa o estrago enorme:
    Cáe o pinheiro amedrontando os valles,
    E Pan, sentado nos troncados restos,
    Triste espera por ti co’a flauta muda.

      ¿D’esta cabana a rustica fogueira
    Sabes quem a sustenta? ah! corre, vôa:
    Cedro, que eu te sagrei, caío por terra,
    E onde brincou favonio estalão chamas.
    Mui tarde chegarás se não-te apressas;
    Do colono e pastor os ais te invocão,
    A mesma natureza he morta quasi!

      Que fragor, que trovão! piedade ó Numes!...
    Este deu raio, e pérto.—Outro rebrama!...
    O Olimpo sobre nós desaba em fogo!
    Chlóe, e Amarilis trémulas, gritando,
    Desfeita a rubra côr em côr da morte,
    Enchem de seu terror esta cabana.
    O’ innocentes, miseras pastoras,
    Não griteis, não tremais; vereis em breve
    Dissipado este horror nos longes ares;
    Contra o crime orgulhoso os Deoses troão,
    Não fere o raio a rusticos alvergues.
    Não, não me engano, ouvís como se afasta?
    Como la vai ja longe? o mais do estrondo
    Ja he toada vã no vão dos bosques.
    Chuva propícia em caudalosa enchente
    Desce na escuridão; resoa o této
    Com o crebro saltitar das frias gotas:
    Sibila o vento na vizinha serra.
    Chlóe a porta fechou: nós apertâmos
    O cerco estreito em deredor do fogo.
    Cantou o gallo esperto: he meia noite!
    E eu vélo ainda, e velarei saudoso
    As horas todas que á manhã precedem!
    Horas, horas de paz no horror das trevas;
    Horas de estro, misterio, omnipotencia
    Ao que nasceo das Musas bafejado!
    Sonhe a ambição com purpuras, e scetros;
    Torpe avareza com os inuteis cofres;
    A vingança, fatal a si e aos outros,
    Cogite embora nas traições, no engano,
    Nos agudos punhaes, no sangue em jorros;
    Vulgar amante afine, esmere astucias,
    Com que succumba a tímida innocencia,
    E aos laços venha destramente armados:
    Eu dando a amor o que se deve ao sono,
    Em chama pura, porque he tua, ardendo,
    Alégro com teu Nome a horrenda noite,
    A saudade em saudades apascento,
    E inda ausente, comtigo ausente fallo.
    Como o perdido em temeroso escuro,
    Que ao mais leve rumor trémulo pára,
    Assacinos agoura em cada tronco,
    Não ouza resfolgar, prosegue a medo,
    Aqui lhe surde a silva, alem penedos,
    E lhe abrem fauces mil os precepicios,
    Só tem na aurora esp’rança, e mal que ao longe
    Annuncios d’ella vê, canta e renasce;
    Serei mais que feliz pois vas ser minha,
    Mal te sonhar ao longe, ó Primavera.

      Sim: eu te amo inda mais que a vide ao tronco,
    Mais do que o touro em maio ama a novilha;
    Quero-te mais que o Deos de amor ás trevas,
    Mais do que Flora ao Zéfiro inconstante.
    Eu suspiro por ti, como suspira
    Murchada planta por sereno orvalho,
    E ardente ceifador por fresca fonte:
    Es-me tão cara como a bella esposa
    A seu amante de chorar cançado,
    Quando no dia d’hirneneo se abração:
    Tão doce emfim como o primeiro beijo,
    Que uma terna pastora, a medo e a furto,
    Consente ao seu pastor levar-lhe aos labios.
    Qual dos amores, que no mundo girão,
    He mais grato que o meu? Este em delícias
    Excede tanto aos mais, como tu vences,
    Tu belleza do ceo, do mundo as bellas:
    Eu amo e para amar não me recato,
    Ao mundo inteiro meu ardor confesso,
    Tenho rivaes e do ciume zombo,
    Gozo-te, e nem pudor nem leis mo estorvão.

      Inda me está lembrando (hora doirada!)
    Quando longe do mundo, e a sós comtigo,
    Pela primeira vez te disse “Eu te amo!”
    Abria a Aurora o roxo mez das flores:
    Juntas em córos no arvoredo as aves,
    De ramo em ramo aos ranchos adejando,
    Em nunca ouvidos sons a luz saudavão:
    Inda do puro rio a opaca nevoa
    Bem não era desfeita ao sol nascido;
    Inda das folhas concavas pendião
    Trémulas gotas de luzente orvalho,
    Que depois leva o brincador Favonio;
    Quando (ai memoria doce!) eu dei comtigo
    Inda meia a dormir na fofa relva.
    N’alguns louros de roda entretecida
    Hera tenaz um toldo te formava:
    O melro grave, o rouxinol cadente,
    Para encantar-te os sonhos, diffundião
    Entre uns rosaes a musica dos prados;
    Enchia aroma puro os puros ares.
    Ligeiras, bellas Sílfides, velando
    Invisiveis teu placido retiro,
    Impedião que um Fauno petulante
    Ou rustico pastor pozessem olhos
    Em teu corpo sem véo, cheio de encantos.
    Alí me conduzio propicio acazo:
    Não mo impedirão Sílfides zelosas,
    A natureza inteira he franca ao vate.
      Ridente sono, da innocencia imagem,
    Cerrava ainda os olhos teus ao dia:
    Todo brandura o juvenil semblante,
    Até sem o saber, até dormindo,
    Faria suspirar homens e feras.
    Entre a face mimosa e a fria relva
    Tinhas meio curvado o braço lindo:
    Como ao desdem, na esquerda seguravas
    A cornucopia, a não poder com flores:
    Halito doce de fragancia amena
    Sáe do seio, que túrgido se eleva;
    Dos roseos labios, da pequena boca
    Vem tão doce, vem tal, que um peito humano
    Bafejado por elle, excede os numes,
    E a alma, em vez de pensar, delicias volve.

      Tal eras, tal fiquei ó Primavera!
    Espertaste de todo; e toda risos,
    E todos luz e amor os olhos verdes,
    O que era ja sem termo accrescentaste,
    Dobrou-se a graça ao mundo, o fogo aos peitos.
    Um mar de deleitosas fantasias
    Me soçobrou, confesso, e tempo largo
    Jazi com o ledo mundo em braços da alma.
    Depois tornando em mim, ví-te ja prestes
    Para baixar do outeiro aos amplos valles:
    Quão mais louçã, e em galas mais garrida!
    ¿Que muito, se a mais nova das trez Graças,
    De tuas mil Oréades servida,
    Pozera as proprias mãos ao vago enfeite?
    Erão-te manto ondado, e roupas simples,
    Quanto verde ha na terra, e flor nas plantas;
    Mas triunfava a rosa! aos botões d’ella,
    Nem ja todos botões, nem flores todos,
    Fôra o tépido seio em throno dado,
    E em vez de o embellezar, se ornavão d’elle:
    Erão raios do Sol a c’roa tua!...
    Parei de embevecido! e quem no mundo
    Te vio jamais como te vio teu vate?
    Em teu seio amoroso um Cupidinho,
    Qual borboleta d’oiro, esvoaçava
    De botões a botões, na escolha incerto.
    Vio-me; e curto farpáõ, doirado, agudo,
    Curto farpáõ que os olhos não percebem,
    Me arrojou, me sumio dentro no peito.
    Graças ao tiro do mimoso Alado!
    Na profundez da f’rida, e gôstos d’ella,
    Contente reconheço, adoro um Nome.

      Amante, desde então, ditoso amante,
    De dia a dia te encontrei mais terna.
    Incenso, que antes dava a falsas Musas,
    Off’reci-te, acceitaste, e foste a minha.
    Abriste-me a Aganippe em cada arroio,
    Cada monte foi Pindo, e Tempo os valles:
    E tu em cada valle, em cada monte,
    Ante a lua, ante o sol, me estavas sempre
    Musa do coração, presente aos olhos.
    De poetas foi sonho a voz das outras,
    A tua graciosa ciciava,
    De toda a parte vinha em tom macio,
    Que filtra inspirações, e a amor contenta.

      Se os de ambições miserrimos forçados
    Que ás cidades dão vida, e a si a roubão,
    Podessem vir um dia onde tu reinas!
    Se a mente que as paixões lhes anuvião,
    E olhos em que os cuidados, seus verdugos,
    Atárão com trez nós perpétua venda,
    Podessem ver-te a luz deliciosa,
    O manso da alegria, os gostos puros!...
    Deixando sem adeos tumulto e pompas,
    Mais de um, mais de um, salvando a tempo os filhos,
    Co’as pouzadas dos bons unirra a sua.
    E a quem darás tu nunca o riso cheio,
    Como o déras a este, que trocasse
    Oiro a virtude, e marmores a flores?
    ¿Que ja sôlto de si e a si tornado,
    Viesse pôr, para os livrar de queda
    E adora-los em ocio, os seus penates
    Á beira de uma límpida corrente,
    Que de um bosque atravéz susurra e foge.
    Víra os Genios da terra o anno inteiro
    A lhe aprestar a mesa; aqui brotando a
    No pomar curvo, ali na horta regada,
    Lá no chão da seara, alem na vinha
    Que o recôsto do outeiro alastra e enreda,
    Mais longe nos cabeços verdejantes
    Onde o gado em socego os leites cria.
    Não lhe ameaçára o raio o této humilde:
    As manhãs, d’entre as ramas espreitando
    Pela aberta janella, o acordarião,
    Por lhe alargar a vida: os passarinhos
    Lhe dirão nas frescas alvoradas
    “Bem vindo, alegre amigo, ás nossas casas!
    Nós cantamos teu Deos, somos felizes,
    Tu louva o nosso, e goza d’este mundo.”
    Se algum cuidado a vespera deixasse,
    Levar-lho-hia na vêa murmurante
    A correntinha onde lavasse o rosto.
    Vê zagalas fieis, vê perigrinas
    De formosura e joias não compradas,
    (Que uma da-lha a saude, outras o prado);
    Com ellas espairece a fantasia,
    E se inda o coração quer mais ventura,
    Ama; ao ceo que ja tinha, um Deos lhe accresce!
    Quanto via e pasmava em mortos quadros,
    Onde astuto pincel prodigios obra,
    Sombras vãs, cujo preço he rios d’oiro,
    Tudo agora real, vivo, mais bello,
    De mais subida mão pintura immensa,
    De graça lhe cercára o lar e a vida.
    Mas ah! porque me sólto em vãs ideas!
    Embora o preço teu não saiba o mundo,
    Primavera, eu te adoro e tu me afagas:
    Caro co’a lira vezes mil teu nome,
    E tu me infloras magamente a lira:
    Em longo mútuo abraço almas trocâmos;
    A minha he mansidão, frescor, perfume,
    Toda a tua, poesia, amor, extremos.
    Lanças-me em teu regaço, e quando a noite
    A lira e cornucopia aos dois nos furta,
    Das-me dormir co’a fronte no teu seio,
    D’onde me vem coando uns sonhos leves,
    Todos teus, todos candidos, na fórma
    De flores, de aves, de amorinhos, de auras.
    Assim, me queres teu até no sono!
    E porque sombras más o não perturbem,
    Mo ficas a velar á luz dos astros,
    O semblante pacífico ao sereno,
    Os olhos no ceo da alva, e o peito amores.

      Mas tu ... porque não vens?—Não não me engano,
    Inda agora os trovões rijo batalhão.
    Talvez rola n’esta hora a tempestade
    Pelo oceano de Atlante ondas sobre ondas;
    Rugindo estoira o mar em crespas serras:
    Possança de baixeis, esfôrço, industria
    Não vale a contrastar-lhe a valentia;
    De toda a parte a morte esvoaça, ruge
    Na horrenda cerração com sons do averno;
    O náufrago abraçado a sôlto lenho,
    De toda a parte a vê, a ouve, a sorve;
    Vai a abismos e a ceos repulso d’ambos,
    E perde, antes da vida, a luz e a mente.
    Sumio-se o ultimo audaz de sôbre as aguas!
    De nuvens atro veo submerge a lua;
    Não luz na escuridade alguma estrella;
    He o luto do Homem forte! Ó Mar és livre!
    Triunfaste, adormece.—Ah que de vezes
    Taes scenas, tal horror, maior, mais negro,
    Nos tem de si brotado a umbrosa quadra!
    Ó tu contrária sua, o tu dos homens
    Sempre invocada amiga, ethéreo Nume,
    A quem ceo, terra e mar dão vassallagem,
    Onde estás, que não vens com um leve assopro
    Trazer serenidade aos elementos?
    Se inda és a mesma, e súpplicas te movem,
    Sobe ao carro da aurora, os ares fende,
    E acode ao Luso clima, onde te invocão.

      ¿Lembra-te a gruta, a gruta onde Amarilis
    De seu ja quasi esposo Umbrano, o astuto,
    Acceitou, de sincera, a grave aposta?
    Qual era, que o pastor lhe não podia
    Dar n’uma tarde tantos beijos, tantos,
    Como as folhas do plátano vizinho,
    Sendo o premio da aposta inda outro beijo?
    ¿Aquella gruta, onde ambos consumirão
    Um dia teu, a adivinhar a ponto
    Todas as graças do primeiro filho;
    E só no sexo os votos discordavão,
    Porque Umbrano pintava outra Amarilis,
    E Amarilis raivosa um novo Umbrano?
    Pois n’essa, n’essa gruta os meus amigos
    Para hospedar-te um grão festejo tração.
    Pôr-se-ha do cedro á sombra altar gramíneo
    Com seus flóreos listões, onde c’roados
    Te libem vinho annoso e leite puro,
    Concertando himnos teus com lira e flautas.
    O lavrador da proxima campina,
    A estirada cantiga aos bois tardios
    Parando calará, para escutar-nos.

      Então, então começa o tempo d’oiro,
    Folgão no campo os naturaes prazeres,
    E a rustica alegria apraz aos deoses.
    Aqui, apoz as candidas ovelhas,
    Vai trigueira, descalça pastorinha
    Aos echos do arredor cantando amores;
    Ali galhudo Sátiro se esconde
    Para colher alguma Ninfa errante;
    Alem com ledos sons retine o bosque,
    O riso ferve, as flautas se misturão;
    Mais longe, aos pés de mal fingida ingrata,
    Se exhalão rogos apiedando as selvas.
    Um favonio subtil encrespa as ágoas,
    E enfada a Ninfa, que estudava uns geitos
    De se enfadar com quem de amor lhe falle.
    Priapo brincador gira saltando
    Nos jardins, nos vergeis, e nos pomares,
    Ramos bate, alvorota o plúmeo bando,
    Que foge, mas de Amor não foge ás settas.
    Amor e seus irmãos, com o facho em punho,
    Lanção tacito fogo a quanto existe.
    Junto da verde faia susurrando
    Se ouve outra faia um não sei que, tão doce,
    Que aos amantes apraz o seu murmúrio.
    Do rebanho o marido entre o rebanho
    Bala amoroso, e todas lhe respondem:
    Pela novilha se enfurece o toiro,
    Accomette o rival, goza o triunfo.
    Côr de neve, innocentes cordeirinhos
    Ja balão na verdura, ja recresce
    Maravilhando a serra, a grei profusa
    Das erradias cabras saltadoras:
    A nova creação corre exultando;
    Aquelle foge, os outros o perseguem,
    Voltão, saltão, empinão-se, discorrem
    Por toda a parte n’um momento o prado;
    Cresce o leite, e o pastor a quem ja faltão
    Cinchos para o queijar, tarros que o levem,
    Lédo se enraiva com riquezas tantas.
    Todo o arredor da aldea he movimento,
    Contente lida, esp’rança, amenidade.

      Porque se hão de calar da infancia os brincos?
    A infancia he primavera, he mundozinho
    Florente, de que nasce um grande mundo.
    Menino á espreita e mudo entre as silveiras,
    Apoz o som do grillo o vai buscando;
    Outro os ramos envisca, as redes arma;
    Prêzo de longo fio ao pé mimoso
    Passarinho pelo ar chirla e revoa,
    E crendo-se de novo o rei do espaço,
    De inconstante creança um dedo o rege.
    Um mais travêsso, ás árvores trepado,
    Nos ramos se embalança, ou furta os ninhos;
    Outro mais atrevido, emvão forceja
    Por montar no carneiro, que se escapa,
    Fazendo ao longe retinir os bosques
    Co’ o crebro som da aguda campainha.
    Tenra menina um malmequer desfolha,
    E pelo amor da mãi á flor pergunta;
    Em quanto seus irmãos vão na corrente
    Pôr de cortiça um concavo barquinho.
    Na luta, na carreira apostas fervem.
    Oh! da infancia do mundo amaveis scenas!
    Se inda as virtudes sôbre a terra existem,
    Se inda existe o prazer, o socio d’ellas,
    He no campo, no campo; e a quadra tua
    Nos mostra, ó Primavera, este prodigio.

    Mas da fogueira as chamas enfraquecem!
    Ja os gallos das proximas cabanas
    Vão começando a annunciar-me o dia:
    Que som grato! que enlêvo estar sentindo
    Por um sereno albor, estes vizinhos
    Nuncios da aurora, a cuja voz respondem
    Outros aqui e alem, com voz diversa!
    Sim, o dia começa: a luz nascente
    Pelas fendas do této está brilhando.
    Eis-me só junto ao lar! quem sabe ha quanto
    Se irião meus bons hospedes ao colmo:
    Agora em doce paz lá estão dormindo.
    Que breve noite! e he finda; ah toda he finda!
    Da fresta, onde cheguei, contemplo os ares,
    E claro vejo o ceo, de nuvens limpo:
    Mal brilha no horizonte a estrella d’alva.
    E os olhos meus (oh dor!) só descobrirem
    Como por um véo denso a natureza!
    Os montes que longissimo se alcanção
    De vinhas e arvoredo entresachados,
    O rio ao longe a fulgurar co’as ondas,
    Os remotos cazaes da gente humilde
    Pelas verdes campinas alvejando,
    Não vê-los eu! não ver!... Mas que murmúrio
    Sólta a folhagem do loureiro antigo,
    Que defronte de mim remonta aos ares?
    O Favonio acordou, que hontem de tarde,
    Cançado de girar, adormecêra
    Junto á cascata no pomar sombrio.
    Vai subito partir: em curtas horas
    Será comtigo, e te dirá meus versos.

    Meus Amores, adeos! adeos meu Nume!
    Da Epistola a resposta a vinda seja.



O DIA DA PRIMAVERA

POEMETTO EM DOIS CANTOS


_Em dois Cantos se divide agora este Poema, para commodo de quem lê.
Entendi em apertar melhor que da primeira vez, este feixe de flores, se o
he: algumas deitei fóra sem fazerem mingoa; as demais forão refrescadas,
e se me não engano mais algum viço ganharão. Puz-lhe com tão boa vontade
as mãos como na Epistola: pelo que, sem deixar de ser o mesmo, he outro;
he o mesmo no essencial e intrinseco, todo outro no lustre e na toada._



DEDICATORIA A MINHA MÃI.


_Á maneira das arvores, que acordando do sono do inverno ao bafo
omnipotente da primavera, como que ressuscitão com o riso e vida nos
primeiros olhos e flores, o meu engenho começa a matizar-se das suas,
com a tornada d’estes dias puros e deleitosos aos amigos do campo. As
primicias, que d’ellas pude colher, forão para a grinalda que apresentei
na Festa da Primavera celebrada com os meus amigos. Depois de a haver
tirado do altar da Deosa que governa a mocidade do anno, a quem senão a
ti, ó minha Mãi, devêra offerecer esta grinalda? sim: outrem qualquer
a engeitára por de nenhum preço; de ti sei eu certo que lhe acharás
uma graça especial, mais finas côres, e fragrancias mais suaves: emfim
me atrevo esperar que póstos amorosamente os olhos na minha Obra,
entenderás, sem o dizer, como eu sinto todo o amoroso da gratidão, ao
cuidar em quem me deo alem do ser, a educação, e todos os mais carinhosos
desvelos: alguns suspiros e lagrimas, para cúmulo da minha felicidade,
serão talvez por ti, ó minha Mãi, espalhados na minha ausencia._



HISTORIA DA FESTA DA _PRIMAVERA_.


Remontando a vêa do Mondego até obra de um quarto de legua para cima da
Cidade, encontra-se na margem do poente um gracioso retiro, selvatico
sem aspereza, e como que enfeitado sem arte: dissereis que em hora
de contentamento o fizera a Natureza, para algum dia hospedar no
regalo d’aquellas suas sombras um ajuntamento de poetas seus. De _Lapa
dos Esteios_ pozerão nome ao sítio em dias remotos, segundo soa, os
vinhateiros e pomareiros que de umas e outras varzeas do rio costumavão
acudir ali por paos, com que estear suas parreiras e arvores derreadas
com o pezo da fruta. Ainda permanece o nome, porem ja o arvoredo se não
desbarata pelos vizinhos, e a Lapa, de tão solitaria e amena que he,
parece a appetecida estancia do Genio da liberdade.

Entra-se por um breve cáes ornado de cinco alterosas arvores, das quaes
uma torcendo-se toda para o rio, se debruça para saudar e cobrir com
a sua sombra os bateis que chegão. No tôpo do cáes, e fronteira a quem
desembarca, se alevanta um genero de muralha nativa de rochedo, rôto em
muitos seios. Esta penedia, até aos nove ou dez palmos de altura, sóbe
nua e só ornada de sua mesma aspereza; d’ahi para cima, como envergonhada
de sua dura condição, se esconde toda com um frontal de heras, que ora
resaem como cabeços pendurados, ora se recolhem para fantasiarem la
por dentro suas grutazinhas e labirinthos, d’onde ás vezes se estão
vendo saír por um cabo e por outro os passaros, que depois de beber e
se banharem na vêa da agoa, se empoleirão pelos lamegueiros vizinhos,
namorando e cantando a suavidade e fresquidão de suas habitações. Pelo
lado direito d’esta aprazivel scena, sóbe uma cerrada espessura de bosque
pequeno, onde os olhos se enleão na confusão de troncos e folhagem:
pelo esquerdo abre-se para cima uma escada rustica mas commoda, de doze
degraos. Tecem-lhe estendido toldo dois lamegueiros velhos, e outras
arvores mais pequenas se abração por ali, travadas com mil voltas de
hera. Dá esta subida em uma planura sôbre o comprido com seus assentos
de ambas as bandas, isto he da terra e do rio, o qual por entre um basto
arvoredo, que d’ahi por uma especie de promontorio, vai descendo até
lhe metter os pés na corrente, se está vendo a furto transparecer: das
primeiras cabeças d’este arvoredo cáe para os assentos uma boa a vedada
sombra. O puro e perfumado dos ares, a vária presença da terra e aguas,
o susurrar dos ramos abanados da viração, as melodiosas querellas das
aves, em summa o natureza enfeitada só de suas mãos, e paz e descanço
de deserto, são a fonte perenne dos encantamentos d’este sítio. Uma
ladeira suave opposta á escada, e ainda mais sombreada, despede em outro
cáes com seus degraos nativos de rocha até á agua. He este menos bem
assombrado que o primeiro: não tem relva, nem arvore, nem verdura afóra
ada muralha no tôpo, toda velada de musgos, matizados com seus tufos de
fetos silvestres, congossas e um sem numero de outras plantas e ervas,
sobresaindo a espaços alguns ramos solitarios de figueira brava: mas o
que de interior graça lhe fallece, lho compensa a larga vista que para
fóra desfruta.

Era chegado o primeiro dia de primavera. Tratado e assentado estava de
ha muito entre mim e meus amigos, como iriamos passa-lo juntos, em uma
romaria e festa poetica á honra d’aquella mais formosa parte do anno. Não
faltavão á volta da Cidade muitos sitios accommodados ao intento, antes
não creio que possa haver no mundo outra verdadeira Arcadia, que em tão
pequeno espaço resuma tantos: mas d’entre todos coube á Lapa dos Esteios
a palma da competencia. De doze se compunha o rancho, todos amigos,
poetas e academicos.

Por volta de meio dia, pouco mais, nos ajuntámos com muita alegria e
abraços, e todos com as nossos ramalhetes de primavera nas mãos, nos
pozemos alvoraçadamente em caminho para o rio, onde ja o barco nos
aguardava. O ar estava puro: contra o sol que ardia rijo, nos acudia com
refrigerio um pouco vento, que ao mesmo tempo nos fazia mui boa feição
para contrastar a corrente. Saltámos e partimos.—Em quanto alguns por
um e outro bordo ajudavão o favor do ar com o trabalho de suas varas,
repellindo o álveo, e fazendo-nos resvalar mais prestes á medida de
nossos desejos, os demais amotinavão ao longe ambas as ribeiras com suas
cantigas de amores, entoadas em chusma. A cada momento porem se quebrava
por si o canto, para se contemplar e encarecer o muito que a natureza
e o artificio podérão e soubérão crear para enlevo de olhos, por ambas
aquellas dilatadas margens e campos: pradaria verde e florída, outeiros
risonhos, cazaes branqueados, grangearia e recreação de quintas, pomares,
hortas, jardins, e mil arbustos curvos por entre choupos e salgueiros até
beijarem a agua, esse era o painel em que meus amigos se hião enlevando,
e que a mim, que pelo longe que era posto, o não podia nem por nevoas
enxergar, me desentranhou algum suspiro, dando-me a sentir no meio da
geral alegria alguns momentos magoados, recostado na borda da embarcaçaõ.

Mil couzas pequenas, e por ventura vãs (mas quaes ha que sejão taes para
gente moça em dia de júbilo?) matizarão toda esta viagem: taes como a
grita que de subito alevantámos ao passar por baixo do arco grande da
ponte, aonde as vozes, refletindo do massiço da cantaria, nos ressortião
para os ouvidos com uma estranha soada, como que por aquella porta e
esteiro estivessemos entrando um mar nunca d’antes descoberto; despedidas
á Cidade que de nós se alongava, branca e assentada em seu monte, até que
desapparecia, e ás margens que para nós arremettião correndo com seus
estendaes, lavradores e rebanhos, para logo nos passarem alem, fugir-nos
e perderem-se; a vista de um bando immenso de pombas, que levantando-se
espavoridas com a nossa passagem, de um ilheo de arêa onde se estavão
a beber e banhar-se, nos atravessarão pela proa e forão derramar-se
todas queixosas pela ribanceira vizinha; o ceo a espelhar-se inteiro
nas aguas ufanas de retratarem multiplicado o sol da primavera com toda
sua magnificencia: semelhantes nadas produzião em somma um genero de
felicidade a estes moços Anacreontes viajando, á qual, para de todo o
ser, só faltava poder durar.

De instante para instante importunavamos os barqueiros, perguntando
insoffridos quanto nos restava do caminho. Cuidava-se ver a Lapa dos
Esteios em quantas soledades apraziveis nos apparecião ao longe. Emfim
a apontárão com o dedo; levantão-se todos, todos com clamor unísono a
saudão. Saltámos logo no primeiro cáes, deixando o nosso barco amarrado
a uma arvorezinha, que se algum curioso vier visitar aquelle sitio,
he a terceira da parte esquerda. Uns de outros derramados, nos fomos
prestesmente por onde o acaso ou a fantasia nos levavão, correndo e
devassando toda aquella solidão, que por algumas horas vinhamos povoar:
e tornando-nos a ajuntar no alto, onde tão commodos assentos se nos
deparavão. “Esta Lapa disse um, para estancia e habitação das Musas
parece feita; por aqui as heras pendem de toda a parte!” Sobre o que, se
procedeo logo á lição dos poemas que todos levavamos. Aqui usarão meus
amigos para comigo de huma cortezia, de que por mais que fiz me não foi
possivel defender-me, ordenando-me com seus rogos que os meus versos,
para os quaes o ultimo lugar em tal companhia podéra ainda ser de muita
honra, rompessem antes de outros aquelle acto. Estes, a que eu pozera o
titulo que ainda tem _O Dia da Primavera_, ja primeiro que o sitio fosse
escolhido se achavão feitos, rasão porque não ha que procurar n’elles a
pintura d’elle. Concebêra eu um dia de Primavera levado pelos campos em
contentamento com aquelles companheiros; tomei de minha livre imaginação
o que me pareceo bastaria para o encher; e poetei-o sem me obrigar a
nenhuma outra verdade.

_Elmiro_ (que todos havião arcadicamente tomado para si nomes de
pastores) assim como a leitura foi rematada, veio para mim com um listão
de heras nas mãos, e mo lançou, a todo o poder que eu pude para me
escusar, do hombro direito ao lado esquerdo.—Seguio-se _Anfrizo_, o qual
em pé junto de mim, e com uma coroa em punho, recitou uma formosa Ode,
toda floreada dos louvores que a amisade lhe figurava poderem-me bem
assentar; e chegado que foi á ultima estrofe, me coroou abraçando-me.
Tambem a esta honra me foi forçado ceder, com quanto claramente em mim
sentisse o muito que vinha mal empregada: a amisade ordenava, o dia era
seu, rendi-me. Era a grinalda de artificiosissimo lavor, mui fresca, e
tecido de louros, heras e cópia de flores naturaes; guardei-a com ufania
e como joia; quizera conserva-la para sempre, mas representava gloria, e
minha, murchou, desfez se, largos annos ha que he pó, e pó disperso.

Dado que ja então fosse tal o meu triunfo, qual nem em sonhos de ambição
o podéra antever, _Josino_, a cuja feiticeira Musa ja eu era, muito
havia, devedor, inda o subio de ponto, lendo antes de um poema, pequeno
em extensão mas grande e grandissimo em merecimento, um elogio a mim em
tão delicados versos, que não posso menos de perdoar-lhe a lisonja.

_Aulizo_[5] leo um longo poema intitulado _A Primavera_, que todo
respirava amor aos campos e á virtude, ataviado de mui mimosas galas
poeticas, e de mui particular doçura e sabor para os ouvidos: nem se
cuide que sangue ou amisade ou vãgloria me fazem fôrça para o dizer,
que antes o dissimulára eu, se o ser irmão e amigo fossem partes para,
quando a todos os mais vou distribuindo seu preço, lho sonegar a elle; e
ainda assim talvez o não ousára, se tão boas testemunhas não valessem a
confirma-lo.

Foi esta leitura interrompida de uns sons de flauta, que por cima
das cabeças, e de mui perto nos vinhão: era o meu caro amigo,
Horacio portuguez, José Fernandes de Oliveira Leitão de Gouvea, que
alvoraçando-nos e alvoraçado, nos apparecia ao cimo da curta escada que
da Lapa sobe para a _Quinta das Canas_, que lhe fica sobranceira. Forão
tudo clamores de alegria, recebendo entre nós, poetas todos verdes, o
nosso decano e patriarcha; cercámo-lo com abraços, das mãos lhe furtarão
a flauta, foi levado de repente a todos os recantos do nosso Parnaso,
contando-lhe todos á uma o que até ali se passára, que vezes se fallára
n’elle, e se desconfiára de sua promettida vinda. Este homem amavel,
jovial, incapaz de estudadas gravidades, dado e corrente com todos, bom
sem merecimento de esfôrço, filosofo sem o cuidar, coração que ainda não
saío nem ja agora sairá da infancia, homem só comsigo parecido, que a
ninguem imitou nunca, nem de outrem será nunca imitado, e cuja vida, se
alguem soubesse escrevê-la, sairia tão original e unica como elle mesmo,
este digo, nascido para ser alma de qualquer ajuntamento moço e alegre,
tomou para logo seu quinhão na Festa. Deu-se fim ao poema interrompido
com a chegada do novo socio, que muitas outras vezes o tornou a
interromper com applaudir e abraçar o poeta. _Josino_, que assim como o
ouvia fôra entrançando uma coroa de hora da arvore mais chegada, mal que
o ultimo verso expirou, se foi com ella, por entre as palmas de todos,
premiar a fronte do cantor.

_Elmiro_, que de apoz se seguio, nos cativou as attenções com um poema
de muita invenção e belleza, aonde outra vez a amizade me brindou com
perfumes seus, para os não dizer da lizonja. Igualmente o coroámos; e
outro tanto se foi fazendo aos demais, que recitarão poemas mais breves
ou traduções.

_Salicio_[6] repetio uma mimosissima tradução livre de uma parte da
_Primavera_ de Thompson: _Albano_, uma tradução em lindas quadras do
Idillio Primavera de Gessner: _Francilio_, uma tradução em proza de Utz,
que leo de pé com o copo em punho, e rematou com um brinde: _Franzino_
uma versão da _Primavera_ de Cramer: cerrando-se finalmente este rico
banquete poetico com mais de quatrocentos versos de um poema de meu irmão
José Feliciano de Castilho, que pelo muito menino que ainda áquelle tempo
era, não foi dos menos vitoriados.

Todos estavamos coroados, e o rancho se espalhou. “Ja la vai o sol
abaixo; os seus raios apenas tocão ja os cumes dos outeiros d’alem:
aproveitar o tempo!” bradarão alguns amigos da borda de uma eira que
dominava a Lapa: e todos sentimos que a tarde nos hia insensivelmente
escapando. Então ao som da flauta do nosso Horacio, começarão todos
de dançar e saltar, e as aves incitadas da musica, levantarão mais
alto os gorgeios da tarde. As folhas das heras, que por ali guarnecião
todas as arvores, e algumas flores voavão ás mãos chêas como em chuva,
de uns contra os outros. De quando em quando se alevantava alguma voz
inculcando, porque o fossem todos ver, algum particular gracioso e ainda
não observado d’aquelle sítio. Chamando _Aulizo_ pelos outros, lhes
fez notar do cáes mais arido, o como o rio d’ali visto, á conta de sua
curvidade se afigurava lago cercado de collinas desiguaes, coroadas e
semeadas de larangeiras, oliveiras e pinheiros, e cazaes alvejando,
enxergando-se mais a longe, e por entre estes, outros outeiros, quasi a
se desvanecer na distancia e sombra da tarde. Debuxava eu no animo toda
aquella scena saudosa; saía-me o quadro maravilhoso, mas era por ventura
verdadeiro? não o sei.

Uma merenda saborosa nos appareceo de repente e como por encanto:
_Elmiro_ fôra o magico providente. Toalhas brancas de neve estendidas no
cáes do desembarque, forão povoadas de primorosos manjares, garrafas ja
de dias, e copos coroados de verdura: uns rolos de arvores estendidos
em quadro nos valerão de assentos: dois meninos gémeos, vestidinhos da
branco, erão os Ganimedes do nosso banquete folgazão. Parte assentados,
parte reclinados em diversas posturas, outros por entre estes girando com
os copos e pratos na mão, boas descaídas, descuidos a tempo, apontadas
graciosidades e risos do íntimo, brindes com o copo alto na direita,
enviados a mui longes e mui diversas terras (que não havia um só que da
sua não padecesse ausencia e se não finasse com saudades), outras saudes
ora mais ora menos sumidas, a objetos nomeados umas vezes e outras não,
mas mui bons de adivinhar pelos suspiros e geito do saudador, a voltas
e proposito d’isso narrativas e contos para folgar, musicas alegres de
flauta mil vezes começadas e outras tantas interrompidas, e outros muitos
nadas com que a penna se não atreve, convinhão em aprazivel mistura para
encantar a ultima hora da Festa da Primavera.

Posto era o sol, mas o ceo ainda não carregado de noite: havia-se de
partir, faltava o animo para o fazer; instavão os barqueiros, crescião
n’elles a rasão e o importunar, acabárão comnosco que nos rendessemos.
Despedidos os amorosamente da Lapa ja áquella hora entranhada de
escuridão temerosa; com os pés ja postos na beira da agua, nenhum queria
ser primeiro que trocasse terra de tanta festa, por um barco que nos
hía tornar para onde vida de proza e cuidados nos aguardava: senão
quando, levantando o bom Gouvea a voz, com ella suave e chêa que se hía
por aquellas margens alem, começa de cantar _A minha Lilia morreo_;
improviso seu, chêo de uma branda tristeza, que aos cançados e não fartos
de gozar costuma ser segundo gozo. Assim hia elle até n’isto imitando
o seu Horacio, que nos poeticos festins que dava ao Genio da alegria,
nunca se esquecia com seu quinhão de pensamento para a morte. Profundo
era o silencio que de toda a parte cercava o nosso cantor; só se ouvia o
murmurio baixinho da corrente.

Não havia quem nos apartasse: por derradeira vez nos tornámos ainda á
Lapa, travou-se uma dança por despedida, e fez-se uma saude geral ao
lugar e ás trez Graças que ali costumão a vir muitas vezes[7], até que
emfim nos embarcámos, com as nossas coroas na cabeça. Foi aos barqueiros
defendido usar de vara, antes se lhes encommendou que nos deixassem
embora ir, tão mansa e perguiçosamente como á vêa mal desperta do rio
parecesse, e ainda n’aquelle pouco descer das aguas houvéramos nós tido
mão, se podessemos.

Pareceo bem, para atalhar a confusão de tantas vozes como as que ali
fervião juntas, nomear á maneira do Rei do vinho nos festins dos antigos,
um que nos governasse. Este foi Gouvea por acclamação unanime. Lembrou
um que d’ahi ao deante nos ficassemos uns aos outros dando o tratamento
de confiança, que a boa amizade consente e requer: approvou-se. “E
quemquer que a esta lei desobedeça, haja-se por expulso da _Sociedade
dos Amigos da Primavera_.” Approvou-se com alvoroço; levantarão-se todos
abraçando-se, apertando-se entre si as mãos, e dando-se entre risos o
tratamento novo tão amiudado para lhe quebrar a estranheza, que ninguem
se entendia.—“Todos os Socios (gritou outro, e de novo se fez silencio)
hão de conservar até que o tempo as destrua, estas suas coroas, se não
monumentos de gloria, penhores certo que mais vale, de horas felizes:”
approvou-se por lei o que ja todos levavão no coração bem votado.
Suscitou-se depois que recitasse cada um segundo a ordem dos assentos,
alguma sua poesia breve, e que mais lhe parecesse accommodada á occasião.
Não faltárão aqui seus debates, lembrando uns como apoz tanto recitar,
tinha a cantoria muito melhor cabida do que os versos nus, outros
affirmando que a flauta melhor que nenhuma outra cousa diria com a hora,
sítio, e calada grande do rio: até que um veio conciliar a diversidade
dos pareceres, dizendo que umas couzas não tolhião as outras, antes
podião ir todas a revezes tendo seu lugar: o que assim se cumprio.

A serenidade da noite junta com as saudades do dia, nos fez achar
inefavel doçura nos sons da flauta, que parecião modulados pela
melancolia, e se esvaíão ao longe nos ares. Se ás vezes o acaso nos
levava mais para uma das margens, uns frouxos echos chêos de doçura a
tristeza se comprazião de repetir a musica e as palmas com que a nós
applaudiamos. Emquanto um só cantava em meia voz, e nós o ouviamos
calados, a face na mão, e meio reclinados contra o rio, suave nos era
escutar como as quasi insensiveis ondas, com som muito mais baixo nos
vinhão beijar os lados do batel, d’onde, se fugião partindo, com um
murmurinho saudoso.

Descemos em terra, e abraçando-nos repassados de igual amizade, e das
mesmas lembranças, votámos logo ali nova Festa em honra do primeiro dia
de Maio, a qual se veio a fazer, como ao deante o declarará o volume: e
todo esse meio tempo de uma até á outra, foi tecido de doces memorias,
fantasias poeticas, tenções e esperanças de prazer.

Assim se podia e sabia ainda então passar dias mansos, innocentes e
bemaventurados!

                                          _Lisboa: 2 de Janeiro de 1837._



O DIA DA PRIMAVERA.

CANTO I.

_A Manhã_


      Ei-la que chega a amante Primavera!
    Logo ao romper do dia susurrando
    Vós, Favonios azues, a annunciaveis.
    Chega ... chegou! as aves a festejão
    Desatinadas, doidas; ja com verdes
    Braços lhe acena o bosque; estão-se os rios
    A retrata-la; as fontes a murmurão;
    Traz gala o monte; os valles se alcatifão;
    Ri-lhe o ceo todo, a Natureza he d’ella!

      Mais cedo ao leito do marido annoso
    Hoje a Aurora fugio; tomou regaço
    De orientaes aljofares mais rico,
    Mais cópia em seio e mãos de ethéreas flores.
    Aos umbraes inda escuros do horisonte
    Quem a aguardava, quem? os meus Amores
    Que encontro! que abraçar-se!... O Zefirinho
    Que ja por entre nós passou trez vezes,
    Trez vezes ao passar mo ha segredado:
    Vio tudo, tudo ouvio, que era elle proprio
    Um dos que pelo ar vinhão soprando
    O matizado pavilhão de nuvens,
    Em que ás terras baixava o Par celeste.
    Rosto a rosto inclinado; as mãos unidas;
    Mago riso um só riso em bocas duas;
    Absortos em luz mutua os mutuos olhos;
    Duas Gémeas do ceo, duas Virtudes
    N’uma Virtude só, se afiguravão.
    —“Ó minha Irmã (dizia a Primavera)
    “Quem nos ha de estremar? tu es do dia
    “A Primavera, eu sou do anno Aurora”—
    —“Filha como eu do Sol (acode rindo
    “A Aurora), ó doce Irmã, vérte-te o Fado,
    “Não q eu to inveje, os bens de urna mais ampla:
    “Deu-te folgar sem mim, deu-te a alegria
    “Dos dias que eu só abro, e os tão gabados
    “Prazeres que eu não vi, não verei nunca,
    “Prazeres do sol pôsto, e de alvas noites.
    “A mim lida perenne, a mim rigores
    “De oppostas estações, reinar de instantes,
    “Contínua fuga, e os odios dos ditosos,
    “E as maldições de Amor comtigo affavel.
    “Eis porque a meu pezar, já por costume,
    “De olhos que espargem luz se orvalhão choros.
    “Perdôa-mos teu jubilo mos sécca.
    “Desce, eu parto, urge o Tempo, e ja me acena
    “Co’a mão rugosa para novos climas.
    “Fica-te em nossa amada Lusitania,
    “Inda pouco ha tão triste. Observa os cumes
    “Contra o nosso nascente; ahi vês á espera
    “A turba toda dos campestres Deozes,
    “Flora, Cibele, Dríades, Napéas,
    “Hamadríades, Náiades, Silvano,
    “A caçadora Cinthia, Amores, Graças,
    “Os ledos Risos, a amorosa Venus;
    “E Pan ha muito tempo em nova flauta,
    “No verde cume do apartado monte,
    “Lá onde canas trémulas susurrão,
    “Para a tua chegada estuda um hino,
    “A cujo estrondo os Sátiros voltêem.”—
    Diz: olha para traz, vê o Sol, desmaia,
    Beija a Amiga, e fugindo a entrega ao dia.

      Desfez-se a névoa eis Sol! Joelho em terra,
    Amigos meus; he o Sol da Primavera!
    “Ó Sol das flores, Salve! Ó Sol de amantes,
    “Salve! E trez vezes Salve! ó Sol dos vates!”
    Vêde-o doirando do arvoredo os cumes;
    Vêde nas aguas límpidas fervendo
    De reflexos de luz áureo cardume.
    Corramos n’um momento os campos todos!
    Como esta luz do Ceo, que a toda a parte
    Desce, rompe, insinua-se, alvoroça;
    Como esta luz do Ceo, vates mancebos,
    Devassemos a terra: uma só gruta
    Não fique, um arvoredo, ou valle, ou fonte,
    Por onde não mergulhe a vista, o estro.

      Esta, que ora seguimos, tortuosa
    Concava senda, ha pouco estreito rio
    Co’as grossas chuvas da vizinha serra,
    Parece de um jardim curiosa rua!
    De um lado e d’outro os còmaros pendentes
    Ja não são montes de crueis espinhos,
    Montes são de verdura, e roxas flores,
    Onde n’outra estação viráõ c’os cestos
    Colher nevadas mãos negras amoras:
    Recende o legacão, e a madresilva.
    De madresilva ornemo-nos as frontes ...
    Mas não: fique-se em paz a flor nevada;
    Quer-se antes a violeta, eu sei outeiro
    Onde ella mora, he flor da Primavera;
    D’esta eu fiz elleição não quero d’outra,
    Vós, se outra preferís, apanhai d’essa.

      Por aqui vai a encosta desfarçada:
    Como que ja de cór meus pés a sabem.
    Ja vós de cá vereis, la quasi ao cimo,
    Um ramalhete espesso de aveleiras,
    E de dentro luzindo uma apparencia
    De alvo lirio entre verde, um cazalinho;
    Pois essa he a casa de Egle. E mais avante,
    No alto; não voltêão solitarias
    As pandas velas de veloz moinho?
    Tambem ja la pouzei n’uma afrontada
    Tarde do estio, e lhe dormi á sombra.
    Tudo isto me conhece! Esta ladeira
    De rusticos degráos, que ahi desce á dextra,
    De perenne verdor acobertada,
    Cáe na fonte da aldea. (Ahi vão por agua
    Com seus vermelhos cantaros as moças.
    Outras cá vem, com passo mais tardio,
    Sobindo ja, com os potes á cabeça
    Lustrosos, vacillando e sempre firmes)
    Não presumis quanto he social a boa
    Da fontinha aldeã! não ha formosa
    Que ali se não detenha e não se enfeite;
    Não ha pastor cortez, que ao fim da tarde,
    Ja recolhido o gado, ali não desça
    Para ajudar a encher; inda não houve
    Na vizinhança amor, cantiga nova,
    Ou fallado successo, que cem vezes
    Do fundo de seu antro os não ouvisse
    A Náiade anciã; nem bôda alguma,
    Sem se enramar o portico musgoso.

      Á esquerda, pela varzea anda rebanho;
    Que ouvi balar, e ainda ouço a cantilena
    De pegureira voz. Dizei-me á pressa,
    Que scena off’rece a varzea? a relva molle
    De alvas boninas trémulas brincada,
    Onde o calor nascente o orvalho enxuga,
    O sombrear das arvores dispersas,
    Bellos não são de ver? he vasto o bando
    Das ovelhas pacíficas? he linda
    A guardadora sua? está sozinha
    Em pé volvendo o fuso e olhando o pasto,
    Ou com algum pastor sentada em ocio?
    Traz disperso o cabello ou prezo em rosas?
    Que donoso cantar! que peregrina
    Poesia que esperdiça aquella moça
    Com broncas solidões e ovelhas rudes!
    Couza que assim namore a fantasia
    Não quero que haja, não: virgem formosa
    Sozinha sob o ceo; velando em brutos
    A que era de velar como um thesouro;
    A graça envolta em lãs, contente e rica;
    E annos verdes, sem pena aqui florindo,
    Longe de olhos e amor, jogos e esp’ranças!

      Detende-vos: o aroma he de violetas.
    Ei-las! irei tecendo a c’roa minha
    Com estas, que escondidas, pudibundas,
    Como a pastora, em paz desabrocharão,
    O ar, como a pastora, em roda encantão.

      Ja percebo o rugir das aveleiras;
    Não vejo inda o cazal estancia d’Egle,
    Mas perto, oh perto vem: todo esse rôlo
    De espesso fumo que serpêa aos ares,
    He da interna fogueira que amanhece,
    Cuidadosa do almoço, aos moradores.

      Entremos no pomar. Ja Primavera
    Copiosa o bafejou, de agradecida
    Ás pomareiras mãos que lho aprestárão.
    Inda folhas não ha, mas tudo he flores!
    Vede como ante o sol tremúla e brilha
    O pecegueiro co’o vermelho ornato:
    Vede alem da pereira a branca véste,
    Da cerejeira, do abrunheiro a cópa:
    Vede como uma vide em cada tronco
    Tenaz se enlêa em tortuoso abraço;
    Ja seus pequenos pampanos rebentão,
    Verdejantes festões ja vão formando:
    Do cheiroso morango a planta humilde
    Aqui e ali no verde chão rasteja.
    Arvores, plantas d’Egle, a nomeada
    Em todo este arredor pelas delicias
    Dos ricos frutos seus, não se numérão,
    Nem sei louvor que lhes não ceda, e muito.
    O porque sejão taes, fique em segredo
    Quando vo-lo eu disser. — Aqui Vertumno
    Veio uma tarde do passado outono,
    Mudado em rouxinol, cantar nos ramos,
    D’onde, mais bella que a gentil Pomona,
    Egle andava colhendo a rica fruta.
    Julgou ver sua Deoza o terno amante,
    E tão doce cantou por entre os frutos,
    Tão queixoso gemeo, gemeo tão meigo
    Cercou-a tanto com chorosos pios,
    Tantas vezes pouzou na mão de neve,
    Na trança negra, no virgineo seio,
    Que Egle o metteo no candido regaço,
    O levou toda ufana ao lar paterno,
    E em pintada gaiola inda hoje o guarda,
    Que o Deos não quer fugir do cativeiro.
    Quando a sente acordar pela alta noite,
    Acalenta-a com languidos requebros:
    Ao romper da manhã, quando no bosque
    Ouve perto cantando as outras aves,
    Logo a acorda com vividos gorgeios:
    Mas quando a vê surgir, qual Venus da agua,
    Sem mais vestido que a esparsida coma ...
    Ahi he o pipillar, o esvoaçar-se,
    O encrespar de plumage, o dar sem tino
    Contra os duros varões co’ o peito brando:
    Ahi o abrir do bico a pedir beijos,
    E o revelar calado o amor e o nume.
    Por isso he que ao pomar onde foi prezo
    Fadou, quanta vos prende, infinda graça.

      Como he puro este ceo do campo d’Egle!
    Como he doce este Zéfiro que folga
    Entre as arvores d’Egle! este he ditoso!
    Ei-la que sáe de seu campestre alvergue.
    Calados se podeis, entre estes verdes
    Porque vos não descubra, olhai-a um pouco.
    Quereis ver como a ponto lhe adivinho
    Os passos, e o que faz, e os pensamentos?
    Sim, Egle he sempre aquella, he sempre a mesma;
    Arvore sem enxerto he sua vida,
    Dá sempre a flor igual, iguaes os frutos.
    Mas silencio, Vertumnos insoffridos,
    Ja vo-la pinto, e me direis se eu érro.
    Do braço nu e candido lhe pende
    De louro milho o próvido cestinho.
    Chama as pombas, lá vão pouzar no alpendre;
    Á eira arroja os grãos, lá são na eira,
    Arrulhão, comem sofregas, refogem;
    Ahi vai novo punhado, ahi vem de novo.
    Uma d’ellas, mais alva do que o leite,
    Vai pouzar no cestinho ao lado d’Egle,
    E mansa come na formosa dextra;
    Furtão côres com o sol o collo, as azas.
    Egle lhe chama filha; affirmarieis
    Que o brutinho a entendeo, salta-lhe ao seio,
    Espaneja-se: agora lhe promette
    O pombo mais fiel para consorte,
    E um ninho todo fôfo, e muito afago
    Aos pequeninos seus; mas quer em paga
    Um beijo, e um beijo pede: a face inclina,
    O bico a vem libar; alonga os labios
    Unidos em botão, corre o biquinho,
    E ao centro do botão lhe leva o beijo.

      Agora vem ao tanque, aos rubros peixes
    Trazer segundo almoço: oh!—providencia
    Não ha mais desvelada, ou mais formosa!
    Mal que o choveo nas aguas transparentes,
    Por entre os crebros circulos assoma
    De vivos olhos purpurina turba,
    Tragão-no, e fogem requebrando as caudas:
    Ermo o lago outra vez ficou dormindo.

      Que dizeis? volve a casa? em manhã d’estas
    Egle volve ao cazal! tornará logo.
    Mas vós não ficareis, que o não consinto;
    Hoje he só Divindade a Primavera.
    Emquanto a hora da Festa inda vem longe,
    Irmos correndo á sôlta, irmos folgando
    He o nosso dever, foi jura nossa.

      ¿Mas que risadas d’esta parte sôão
    Entre os salgueiros, do regato á borda?
    Rasgado o cinto, desgrenhada a trança,
    Uma Ninfa gentil é quem sozinha,
    Se ouve rir no pacífico arvoredo!
    La vai na vêa d’agua bracejando,
    E a soltar de afflição piedosos gritos
    Um Sátiro infeliz! ja muito longe
    A corrente lhe leva o odre e a flauta.
    Agora á flôr das agoas apparece,
    Some-se agora no lodoso fundo.
    Em vez de o soccorrer, o apupão rindo
    Da opposta varzea os rusticos pastores.
    —“Dize, bom guardador das vaccas nedeas
    “Que successo foi este?”—“Eu vo-lo conto.
    “A Ninfa hia correndo, antes voando,
    “Ao longo d’esta margem que verdeja,
    “Quando eu dei fé; suava-lhe no alcance
    “O mofino do Sátiro ... (Que vejo!
    “Inda poude aferrar ... Más horas leve
    “A agua que o não tragou! Pois ja não larga
    “Os vimes que aferrou co’a mão pelluda.
    “La trepa ... Vê-lo em cima! Oh como o bruto
    “Se estira ao sol e arqueja!) Hia no alcance
    “Da pobre Ninfa o Sátiro; umas silvas
    “A prendêrão, travando-lhe do cinto.
    “Carpia-se a coitada entre alaridos,
    “Como passaro prezo; esta novilha
    “Não muge com mais ancia em vendo os lobos.
    “Bate as palmas o fero, e mais ligeiro
    “Atropella a carreira, e vai clamando
    —“Venci-te—Avida mão ja lhe lançava,
    “Senão quando (tomado está dos vinhos)
    “O pé caprino na orvalhada relva
    “Resvala: vê-lo vai de tombo em tombo
    “Medindo a ribanceira, e dá no rio!
    “Logo ao caír, fugíra-lhe dos hombros
    “O odre do vinho, e a flauta d’entre os dedos.
    “Mal poude resfolgar—Ó flauta! ó odre!—
    “Disse trez vezes, e esqueceo-lhe a Ninfa”—
    —“Bem hajas, guardador das nedeas vaccas:
    “Mais feliz sejas tu com teus amores,
    “E menos apressada a que seguires.”

      Socios, que mais ha ahi? Que vos demora
    Em de redor de um choupo? Letras, versos
    Entalhados no tronco! uma grinalda
    A abraça-lo, outras mil por toda a cópa,
    Que parece um rosal! na terra mirtos!
    Lede-me esse letreiro: algum queixume
    De infeliz namorado. Oh! ceos, he crivel?
    LEI DE AMOR tem por titulo? se fosse
    Da propria mão do Nume aqui gravada!

        _Amar, amar! viver d’amores!_
      _Que o tempo off’rece e nunca espera;_
      _Aos corações bem como ás flores_
      _Não se renova a Primavera._

      Oh Lei, porta de Elisio antes da morte!
    Sim, sim, de Amor tu es; vós sois das Graças
    Coroas que a ufanaes, a encheis de aroma.
    Socios, ministros das Piérias Deozas,
    Erguei mão não profana ás flores sacras,
    Privilegio he do estro, ouzai colhê-las:
    Levará cadaqual no peito a sua
    Bem sobre o coração, tão perto d’elle
    Que ouvindo-o palpitar lhe falle amores.

      Pois he lei quero amar: sim. Porém onde
    Onde estará da Primavera a Deoza?
    Por toda a parte os seus vestigios nóto,
    Mas não a posso achar. Ah! vós que rides,
    A insólita paixão julgaes chimera.
    Existe, existe a Virgem graciosa,
    Dos Ceos a Filha occulta anda na terra:
    Não são sem divindade estes prodigios.
    Quem faz tão branda murmurar a fonte?
    Quem abre a rosa na materna planta?
    Quem dá cheiro á violeta, e côr ao lirio,
    Ao ar fresco o regalo e verde aos campos?
    Quem poesia de amor ensina ás aves?
    Quem é que influe no coração dos homens
    Tanto amor, tanta paz, doçura tanta?
    Existe, existe a Virgem graciosa,
    A minha doce Amante, a minha Amada,
    Dos Ceos a Filha occulta anda na terra.
    Sinaes de sua mão, pizadas suas,
    Fragrancias que espirou, por toda a parte
    Me envolvem, me arrebatão, me endoidecem;
    Mas busco-a e não se mostra; exclamo, he surda!
    O dia he fallador, he distraído,
    Deidade virginal recêa o dia,
    Casta, só quer talvez ás castas sombras
    Revelar seu misterio, abrir seu peito.
    Oh quem me dera que baixasse a noite!
    Da noite no pacífico silencio
    Côa pelo ar vazio o som mais leve:
    Por isso a Filomela a quiz por sua,
    E o mocho lhe confia as longas queixas:
    Quem me ja déra que baixasse a noite!
    Irei clamar do cume dos outeiros
    “Ó Primavera, ó minha Primavera!”
    E depois que trez vezes repetirem,
    Ao longe os echos meu tristonho grito,
    Attento escutarei se me responde.
    Se nada ouvir, prostrando-me, e cobrindo
    De igneos beijos a terra (os igneos beijos
    Tem valor de conjurio entre amadores)
    Com maior devoção, dobrada fôrça,
    Clamarei “Primavera, ó Primavera!”
    E os campos todos correrei bradando.
    Na solitaria gruta alguma Ninfa
    Ha de acordar, e á parte do oriente
    Lançar a vista, procurando a aurora:
    A aurora não virá, e eu longo tempo
    Andarei pelas trevas suspirando.
    Se trez vezes o sol descer ás ondas,
    Sem que possa encontrar a minha Amada,
    E sem que algum mortal dê novas d’ella,
    Apagarei no peito o incendio inutil,
    Pensando que era ingrata, ou que por sonhos
    Somente a víra em extases do estro.

      Mas viver sem amar, sem ser amado?
    Vida entre gelos equivale á morte,
    No pasto ao coração mantem-se a vida;
    Sois brandas affeições, a essencia d’ella.
    Confessar-me da Lei que abrange a todos,
    O primeiro infrátor? Ó Chlóe, ó bella,
    Serás tu d’entre mil, o preferido
    Emprego aos versos meus e aos meus excessos.
    Ja tens da Primavera o genio, as graças,
    Sua fama terás, terás seus hinos.
    Quando com teu rebanho para o rio
    O bosque ao fim da tarde atravessares,
    De longe me verás na flórea margem
    Sobre um penedo a celebrar teu nome.
    Quando o quente redil ao gado abrires
    No frescor da manhã, dir-te-ha meu rosto
    Que entre as da tua porta arvores caras
    Não fui amanhecer, mas toda a noite
    De amor andei cercando o teu descanço,
    Sentindo-te o respiro, ou crendo ouvi-lo.
    Quando na sésta, á sombra da oliveira
    Tiveres descuidosa adormecido,
    Em sons de flauta escutarás por sonhos
    O cantar novo que te mais recreie.

      Mas vede como leve escapa o tempo!
    Ja alto e rijo o sol encurta as sombras.
    Largo se ha divagado! Hora purpúrea,
    A mais social, mais folgazã das horas,
    Chamando está por nós co’a mesa agreste.
    Onde a iremos tomar? n’algum tugurio
    De solitaria Baucis? nem de feno
    Pobres tétos consente o sacro Dia.
    Ali temos o outeiro alcatifado,
    Rico montáõ de flores! Que mui frescos
    Pela assomada os louros se entrelação!
    Mas sobre tudo que aprazivel gruta!
    Por fóra he de hera um tufo luzidio,
    Dentro um fôrro de musgo. Alvitre novo
    Ó Socios escutai. Esta collina
    Desde hoje para nós fique Parnaso.
    Eis a gruta de Cirrha, onde costuma
    Febo sonhar magníficas imagens!
    Esses louros são delle! Aquella fonte
    (Ceos nada falta!) he fonte de Castalia!
    No remanso diáfano boiando
    Niveos ganços as azas empavezão;
    Fingi-lhes doce a voz, chamai-lhes cisnes:
    Lindas pastoras nossas Musas sejão.
    Respiremos o estro! Ó lá de Cirrha
    Virações, acudi-nos contra a calma:
    E vós louros selvaticos, ó louros,
    Velai com vossa abobada frondente
    Os vates e o banquete, o rir e os versos.
    A primeira saude a Bacho e Ceres,
    A Palles e Pomona, ora presentes
    Do banquete á rural simplicidade.
    Para dias iguaes, plantar-lhes voto
    Cá bem no viso do sagrado outeiro,
    Densa cabana de perpetua folha:
    Para aqui, de canceiras feriados,
    Viremos amiude abrir os peitos
    Ao bachico folguedo, a Amor e aos cantos,
    Co’a alegria assombrar, e co’a amizade
    Do loureiral as Dríades vizinhas.

      Na venturosa paz d’este retiro,
    Não virá perturbar nossa humildade
    Com seus trovões, com seus _coriscos horridos_
    Turba sublime de soturnos vates.
    Alçando o collo, enfaticos praguejem
    Contra os _tirannos_, contra os _monstros barbaros_;
    Pintem de rôjo os _prepotentes déspotas_,
    Fulminem os _perversos aristócratas_,
    E fujão por estudo á natureza.
    Não lhes invejo, não, a bronsea tuba,
    Que despede trovões e rasga ouvidos.
    De nosso humilde genio estou contente:
    Nada mais temos que uma agreste flauta;
    Com ella muda, ás vezes longas horas,
    Da natureza os quadros estudâmos.
    Socios dos rouxinoes, só diffundimos
    Depois de meditar, nossos gorgeios;
    Em quanto o mocho a luz aborrecendo,
    Nos amenos vergeis nunca discorre;
    Dorme o formoso dia em cava furna,
    E sólta pela noite horrendos guinchos,
    Pouzado junto ao ceo, mas entre horrores.

      Elmiro, ó tu que, tanto como odêo,
    Odêas as sonoras bagatelas,
    E ris, como eu, dos estrondosos nadas;
    Nunca te afastes da florída róta,
    Por onde a Natureza o Genio chama.
    Da madrugada nos mimosos sonhos,
    Costumas ver de murtas coroada,
    A amavel Sombra do risonho Géssner.
    Oh! quando aos campos teus um dia voltes,
    Á sombra do teu cedro será doce
    Ouvir-te prantear perdida amante!
    Entre as folhas cheirosas susurrando,
    Qual favonio indeciso, os Manes d’ella,
    Mansa tristeza ao coração te enviem.
    Emquanto no escarceo da grão Cidade
    Eu misero, eu saudoso andar lutando,
    La no fertil torrão verás contente
    Por ceos de teu jardim nascer a aurora:
    Regarás pela fresca as flores tuas
    Junto da terna Mãi, que este só gôsto
    Na morte conservou do esposo amado;
    Triste e formosa qual viuva rôla.
    Outras vezes as pombas que sustentas,
    Terno irás vizitar co’as Irmãs bellas,
    Qual entre as Graças passeára Adonis
    Nos arvoredos da ociosa Chipre.
    Elmiro, ¿e alguma vez tambem meus versos
    Serão do teu retiro um passatempo?
    Quando eu tos enviar, vós reunidos
    Junto do fogo nos serões do inverno,
    Contentes os lereis; e tu, girando
    Co’a vaga idea nos passados tempos,
    Dirás a suspirar “He meu amigo”.

FIM DO CANTO PRIMEIRO.



O DIA DA PRIMAVERA.

CANTO II.

_A Tarde._


    Ja dos louros as grimpas se embalanção:
    Surgir, surgir da relva sonolenta!
    Ja fresca viração consola os ares:
    Que zoada que vai por toda a selva!
    Estrépito de rio impetuoso
    Na calada da noite a crê mil vezes
    O viandante perdido. Hora da Festa,
    Bem te ouvimos anciosa estar chamando.
    ¡Da Primavera á Festa, á gruta, ó Socios,
    De Amarilis e Umbrano á vasta gruta!
    Ja agora o bom de Anfrizo ha de ter pronto
    De sua déstra mão o altar gramíneo,
    Arqueado em docel do cedro a cópa,
    E do cedro no pé com flórea tarja
    Da nossa Primavera aberto o nome,
    Se he que amor lhe não fez gravar _Dorinda_;
    Dorinda, cujos magicos encantos
    Na lira do amador gerão milagres;
    Cujos olhos, tão negros como a noite,
    São como a noite ao Deos de amor tão caros.

      Sim, vamos — Vedes vós o pequenino
    Que la vem amontado em verde cana?
    Quão guapo agita as redeas côr de rosa,
    E açouta co’a varinha a brava fera!
    Ouvis-lhe a doce voz que por mim chama?
    —“Salve, menino! e adeos, que hoje não posso.
    “Outro dia virei, toda uma tarde,
    “Trabalhar nas flautinhas, que arremedem
    “Cantar de rouxinol soprando-as n’agua.
    “Amanhã me procura aqui no outeiro,
    “Verás, verás que historias te não conto.”—

      Partio: como galopa afervorado!
    Ja vai conta-lo á mãi. Este menino
    He da aldea a doudice, e os meus amores.
    He dote de seus annos a innocencia,
    Como do botãozinho he dote a graça:
    Mas aqui ha melhor, he botãozinho
    Ja fragrante, he virtude antes do sizo.
    N’aquella sésta do abafado agosto,
    Quando fostes nadar, eu passeava
    Sozinho a espairecer pela frescura;
    Eis para mim correndo este menino,
    Vergonhoso me diz:—“Queres atar-me
    “Este cordel nas pontas do meu arco,
    “Bem seguro, bem forte, que não quebre?”—
    —“Sim, amavel menino (eu lhe respondo)
    “Sim quero atar-to bem seguro e forte”—
    E emquanto lho fazia, assim lhe disse:
    —“Vais caçar borboletas? ou mordeo-te
    “Alguma abelha, e queres castiga-la?”—
    —“Não, não: vou dar em minha mãi um tiro”—
    —“Um tiro em tua mãi!”—“Sim n’outro dia
    “Deo-me tanto nas mãos, que me ficarão
    “A doer, tão vermelhas como as rosas”—
    —“E porque assim te deo, que te ficassem
    “As mãozinhas vermelhas como as rosas?”—
    —“Eu tinha (acudio elle) um melro novo:
    “Era meu, apanhou-o a minha rede.
    “Sempre estava a cantar; era tão lindo!
    “E quando assobiava? os outros melros
    “Punhão-se la do bosque a responder-lhe,
    “Queria tanto á nossa Mirtilinha!
    “(A nossa Mirtilinha he a mais pequena
    “Das minhas trez irmãs): e ella tratava-o,
    “Quando eu hia á seara ás cegarregas.
    “No outro dia esqueceo nos a gaiola
    “Ao sol toda a manhã: quando fui vê-lo,
    “Não se podia ter, abria o bico
    “E não tomava nada. Um pequenito
    “Me disse que era calma: agarro n’elle,
    “Vou-me ao tanque, e mergulho-o cinco vezes.
    “Ficou muito peór: punha-o direito,
    “E elle sempre a caír, fechava os olhos,
    “E estremecia todo. Aquietou-se:
    “Cuidei eu que dormia e disse, Dorme,
    “Veio um velho, abanou-o, e disse, He morto.
    “Fui com elle na mão chorando, e em gritos, ta,
    “Procurar minha mãi. Ficou pasmada
    “Quando o vio, e eu lhe disse—Ahi está, não can-
    “Nem ja faz festa á nossa Mirtilinha—
    “Poz-se a ralhar por isto, e castigou me”—
    “Cruel menino (lhe volvi severo),
    “Cruel menino, e em tua mãi pretendes
    “Ir com setas vingar-te?”—“Oh! não (me torna),
    “Não lhe hei de fazer mal. Se tu soubesses
    “O que uma seta faz!...”—“Não te percebo,
    “E pois que faz? explica-te, saibamos”—
    —“Na cabana de Silvio (me responde)
    “Ha um cópo de páo todo pintado,
    “Que elle ja prometteo que me daria
    “Se eu lhe levasse a fita, com que ás vezes
    “A minha irmã Glicera ata os cabellos.
    “Por fóra do tal cópo está com um arco,
    “Para atirar a uma pastora linda,
    “Um menino como eu, com os olhos negros
    “Voltados para mim, e sempre a rir-se.
    “Anda nuzinho ao frio, e tem nos hombros
    “Azas, que lhe não ganha a borboleta.
    “Silvio disse-me o nome que lhe davão,
    “Porem ... ja me esqueceo: tambem me disse
    “Que elle costuma á gente descuidada
    “Atirar muita vez d’aquellas setas.
    “Eu cuidava que as setas matarião,
    “Tinhão-mo dito um dia os caçadores,
    “Mas Silvio me jurou que não matavão,
    “E contou-mo sem rir; Silvio não mente.
    “Aquellas setas vem, entrão no peito
    “Sem ferida nem sangue, e até sem dores.
    “Se obrigão a chorar e a ficar triste,
    “Como ás vezes succede ao meu bom Silvio,
    “Em toda esta tristeza ha tanto gôsto,
    “Que he mais doce gemer, que estar alegre.
    “Eu d’isto nada entendo, porem Silvio
    “Me disse que algum tempo o entenderia.
    “Lembra-me agora! o tal menino d’azas (certo
    “Chama-se _Amor_; não he verdade?”—“He
    (Lhe respondo, apertando-o nos meus braços),
    “Chama-se Amor, e he como tu formoso.”—
    —“E seus tiros não fazem que fiquemos
    “Tão amigos de alguem, como o cordeiro
    “Que anda a brincar com seu irmão no prado?”—
    —“Sim he verdade”—“Então venha o meu arco,
    “Ja tenho em casa muitas setas prontas,
    “Vou ferir minha mãi.”—“Louco! o teu arco
    “Como o d’elle não he (lhe brado rindo):
    “Lança-te ao collo seu, perdão lhe pede,
    “Beija-a, conta-lhe tudo, e eu te prometto
    “Por cada beijo teu, mil beijos d’ella”—
    Não me ouvio mais, correo: e de caminho
    Colheo para offertar-lhe algumas flores.

      Mas eis-no; ja no suspirado sitio!
    Essa a gruta: este o cedro annoso e immenso,
    Condigno pavilhão do altar votivo.
    Inda as c’roas vos faltão, ela ó Socios,
    Rompei demoras, ide ás flores, ide,
    E volvei logo a dar princípio á Festa.

      Só fiquei: se eu podesse aqui no prado
    Por meus olhos tambem colher algumas!
    (Que as violetas que hei posto andão ja murchas.)
    —“Ó pastorinha de formoso gado,
    “Se podes, nem te peza alguns momentos
    “Perder comigo, apanha-me violetas,
    “Ensinar-te-hei por prémio outros cantares.
    “Teu rafeiro no emtanto o gado vele.”
    Partio, deixando ao lado meu, na relva
    O cordeiro que tinha em seu regaço,
    Tão alvo, tão pequeno como um lirio.
    Pobre innocente! nos meus dedos busca
    Da mãi, que ao longe bala, a doce têta!
    Se comer ja soubesse, eu lhe daria
    D’estas papoulas, d’esta fina grama.

      Que silencio! mal ouço uma fontinha;
    Serena viração de quando em quando;
    O crepitar miudo dos raminhos,
    Que a leve cabra arranca do espinheiro;
    A voz d’um lavrador aos bois tardios;
    E o cançado gemer de um carro ao longe.

      Cá volve a minha Flora! estou c’roado:
    “Graças ó doce e rustica Belleza!
    Sempre emtorno de ti rebentem flores
    Que o teu rebanho cobiçoso pasça;
    Nunca te falte pelo estio a sombra:
    E amor te volte em fruto as esperanças,
    Se esperanças de amor no peito nutres.
    Vês tu aquelle altar? foi obra nossa,
    Foi por nós consagrado á Primavera,
    E vamos festeja-la. Altar sem Nume
    Faz menos devoção; se tu quizesses,
    Bem o podias ser. Anda, mimosa
    E amavel pastorinha; enflora á pressa
    A trança, o collo, o seio, e no regaço
    Lança flores quaesquer, qualquer verdura:
    Oh! da-me este prazer. Do cedro ao tronco
    Vai-te encostar do modo que te digo,
    Co’a mão na face, e com o sorrir nos labios[8].
    Direi aos socios meus, quando voltarem:
    “Invoquei tanto e tanto os meus Amores
    (Nome he que á Deoza dou, não tenhas susto
    “Nem me furtos a mão) e he tão benigna,
    “Tão docil, tão cortez a Primavera,
    “Que saío do seu bosque, e apraz-lhe ouvir-nos.”
    Folgaremos de os ver caír no engano,
    Ajoelhar-se á fingida Primavera,
    E mais de coração cantar-lhe os hinos.
    De que te ris, singela rapariga?
    Porque foges de mim? Se não consentes,
    Cedo iremos buscar-te nos teus montes,
    Chamar-te Deoza, em dôbro envergonhar-te.”

      Que he isto! ja volveis? mostrai-me as c’roas.
    Como escolheste bem, terno Josino,
    Meigo no coração, na voz mavioso!
    Goivos com mirtos para ti cazaste,
    Com o suave condiz a suavidade.
    Se nos campos do ceo, reino do Genio,
    Eu podesse colher miudos astros,
    Dos versos onde alçaste ao ceo meu nome
    C’roa de ethérea luz seria prémio.
    Dou-te o que posso, gravarei teu nome
    Em bosque, onde Hamadríades o leão:
    Decoraráõ com o verso os teus louvores,
    E alguma em si dirá: “Quem me ora désse
    Em minhas solidões este Josino,
    Por ver se he no cantar, qual dizem, meigo.”

      Vejamos meu Irmão[9] a tua escolha.
    Eis-te como eu cingido de violetas;
    Ah quanto são iguaes os gostos nossos!
    Abraça-me cantor da natureza,
    Um a outro, um pelo outro aqui juremos
    Juntar sempre em busca-la a industria nossa.
    Abraça-me outra vez: nossa amizade,
    Nossa terna amizade, e nosso estudo
    Aperte mais e mais do sangue os laços.
    Se jamais fado atroz nos separasse ...
    Longe do pensamento esse impossivel!
    Duas vidas irmãs que medrão juntas
    Tem uma só raiz; dão flor, dão fruto
    Nas mesmas estações, e ás horas mesmas.
    Quer benção mande o ceo, quer sôpro de ira,
    Um só bem, um só mal abrange as duas,
    Emquanto uma existir persiste a sócia.
    Vai para o nosso altar, um só momento
    Me prende, o meu lugar tu la conserva
    Entre ti e o das Musas ja mimoso
    Nosso irmão, que no berço achou a flauta:
    Menino, a quem cingistes de alvas rosas,
    Como elle emblemas da innocencia breve.

      Elmiro, o teu diadema he bello e simples;
    Mirto e teixo pregões de amor e mágoa.
    Não são menos de ver, nem menos proprias
    As vossas, bom Franzino, alegre Albano.
    Do amor perfeito as flores melindrosas
    Tecem, Franzino, a tua, e tem por joia
    Uma saudade a tremular na fronte.
    De teus suspiros o ditoso emprego
    Longe está, bem o sei, mas não suspires:
    Tua amada fiel na ausencia chora,
    Sua imaginação durante o dia
    Voa a buscar-te aos campos do Mondego;
    Dos campos do Mondego aos braços d’ella
    Sua imaginação te leva em sonhos.
    Albano, a ti o amor foi mais propício:
    Vês amiude os olhos que te inflammão
    E o sorrir facil que te muda em louco.
    Não muito abertas, incendidas rosas
    Cercando as tuas fontes, me afigurão
    A imagem ver de envergonhados beijos.

      Vem meu Anfrizo: a tua d’entre todas
    He por certo a mais funebre grinalda;
    Um ramo de cipreste e alguns suspiros.
    Ah tua mãi tão cedo abandonar-te!
    Orfão triste, perdoa ao vate amigo,
    Que em chaga inda tão fresca a mão te ha pôsto.
    Se para ella ha balsamo no mundo,
    Só Amor sabe d’elle, e mãos de neve
    Tem para to applicar virtude innata.
    Sim, Dorinda gentil como que busca
    Esse ermo de tua alma encher de affetos,
    E no vão do teu peito insinuar-se.
    Mas a saudade maternal he muito;
    Todo o mundo, a amizade, e até Dorinda
    Só poderáõ na angustia confortar-te.
    Teu mal sustido chôro eis recomeça!
    Só a dor te contenta, á dor sirvamos:
    Narrar-te quero a historia do cipreste,
    Que dos ramos feraes partio comtigo.

      Prêzo das graças da opulenta Silvia
    Titiro guardador de pobre armento,
    Com seus ais estes montes abalava.
    A bella desdenhosa, muitas vezes
    Quando o sentia a modular ternura
    Ao som da flauta n’um sombrio valle,
    Torcia, por não ve-lo, o seu caminho.
    Ah se o visse, estendido entre o rebanho,
    O pranto a borbulhar nos fitos olhos,
    E ao som da flauta, em baixa voz unidos
    De quando em quando um ai, e o nome d’ella!
    Rigores virginaes, desdens de rica
    A amor, á compaixão talvez cedessem,
    E ficasse mais bella, a ser piedosa.
    Por só consolação de seus desgostos,
    Co’a pèga que ja foi da ingrata Silvia
    Folgava repetir de Silvia o nome.
    Nunca a avezinha ao misero deixava,
    Que assim a havião prêza os novos mimos.
    Só ás vezes aos lares revoando
    Da formosa cruel, de la trazia
    Furtada alguma prenda ao pobre dono;
    Sem querer lhe atiçava o fogo inutil.
    Era triste, mas doce, ouvir de noite
    Pelos bosques bradar “Ó Silvia, ó Silvia”
    O terno amante; e acompanha-lo a pêga,
    Ja pouzada em seu hombro, ou ja gritando
    La de cima de um tronco “Ó Silvia, ó Silvia!”
    Longos tempos assim pelas florestas
    Vagar se ouvirão solitarios ambos;
    Té que o loquaz brutinho de cançado
    Veio um dia caír entre as mãos d’elle,
    Bateo as azas, terminou seus dias.
    Á fiel companheira ultimas honras
    Deo como poude Titiro: sagrou-lhe
    Um pequenino tumulo de barro,
    E um ciprestinho de anno, que por novo
    Inda estudava o geito de ser triste.
    Aos Numes implorou que o não crescessem:
    Mas pouco e pouco o tronco foi subindo,
    E com elle de Titiro a saudade.
    Bem póde ser que o tumulo não visses,
    Que ervas espessas de redor o afogão
    Ah desde que o pastor tambem jaz morto,
    Morto ás mãos da saudade, e em terra alhêa!

      Tempo he da Festa. Á Festa!—Ahi estão as flautas
    Ja silvando rebate ás alegrias!
    Travai dança, alta dança ruidosa,
    Quaes em seu monte os Sátiros a saltão!
    Venhão de apoz os hinos: logo Bacho
    Nos acuda co’as taças, menineiro
    No aspéto e no palrar, no resto annoso,
    De cãs a reluzir por entre as parras.
    Ser-lhe-ha boa salva o retinir dos cópos
    E os das saudes misturados gritos.
    Do altar meu canto agora ascenda ao Nume!

      Vem ó Dona das Graças e Flores,
    Volve á terra teu mago calor;
    Aos que fogem de amor gera amores,
    Nos que a amores se dão cria amor.

      Tu és Venus, a Grecia delira
    Crendo-a Filha do túrbido mar,
    Tu és Venus e Musa da lira,
    Cumpre á lira teu Nume exaltar.

      Tu és Dríade, e Náiade, e Flora,
    Mocidade e Saude e Prazer,
    Com mil nomes o mundo te adora,
    Mil poderes compoem teu poder.

      Do Ceo puro és a noiva córada,
    És só d’elle como elle he só teu;
    Rica em trajos, de aromas banhada
    A seus beijos te off’rece Himeneo.

      Feliz extase, abraço jocundo
    Do consorcio completa as prizões,
    Primavera, em teu seio fecundo
    Ja pullullão mais trez estações.

      Á voz tua amorosa e macia,
    A teu mago e perpetuo sorrir
    Tudo cede, e te adora á porfia,
    Como te ha de o mortal resistir?

      Léda brinca a feliz meninice,
    Léda a ninfa em seus dons se revê,
    Lédo o velho desruga a velhice,
    Tudo he lédo, e não sabe o porque.

      Onde assomas o mato florece,
    Desatina a avezinha a cantar,
    Côr d’esp’ranças a terra amanhece,
    Arde o peixe nas brenhas do mar.

      Perde as iras a rábida fera,
    E se estranha de ter coração.
    Primavera, que és tu Primavera?
    Vida, fôrça, virtude, união.

      Desde que abre ao carneiro doirado
    Hora alegre o celeste redil,
    E das sombras e gelo espalhado
    Despe as terras Favonio subtíl;

      Despe a mente por ti bafejada
    Suas neves e escuro invernal,
    Ressuscita de flores toucada,
    Enche a lira, nem sôa mortal.

      Pois tu és quem me acorda e me inflamma,
    A ti, Deoza, os meus versos serão.
    Mas debalde o meu estro te chama,
    Os meus olhos jamais te verão!

      Amigos, baixo he o Sol, findem-se os hinos:
    Ponde silencio aos copos falladores;
    Assaz he tempo. O dia era dos campos,
    Ás aguas toca a noite; a noite grave,
    Recolhida, saudosa, ama pascer-se
    No murmurinho de deserto rio:
    Tambem o coração tem dia e noite,
    E precisa dos bens desenfadar-se.
    Largo dista a corrente; o passo aperte
    Quem sabe quanto he grato á luz de estrellas
    Ouvir palrar as Náias a deshoras.
    Vamos tomando o gôsto aos fins da tarde;
    E emquanto mais ligeiro o bom Josino
    Corre a aprestar a barca, entreteremos
    O caminhar, colhendo rosmaninho
    Para o colchão nóturno. ¡Que delicias,
    Ir-se acamado em flores aboiando
    Á luz modesta da nascente lua!
    Ama o rio os cantares de saudade;
    Cantares de saudade atiraremos
    Até ao mar pelas sombrias margens.
    Logo que o não rogado, amigo sono,
    De papoulas toucado perguiçosas,
    Lá nos for procurar, e manso e manso
    Forem caindo os sons e pensamentos,
    Iremos amarrar na margem muda
    A qualquer tronco a barca flutuante:
    Lançaremos por cima o branco toldo,
    Bastante abrigo do nóturno orvalho:
    E estendidos macio, e conversando
    Em voz baixa, embalados cederemos
    Ao começado sono os restos da alma.
    Quando alta noite algum de nós acorde
    A um leve crepitar do linho undaute,
    Cuidará que uma Náiade surgíra
    Fóra da agua a cabeça curiosa,
    E inclina o seio ao bôrdo; e nos espreitas
    Assim como alvoreça, a luz da aurora,
    E vós, madrugadoras andorinhas,
    Para o campo acordado heis de acordar-nos.
    Correremos as candidas cortinas,
    E veremos de subito, encantados,
    Sobre nós a verdura estar pendente,
    Do pranto da manhã ja rociada.

      Não tarda o Sol momentos em sumir-se;
    No mais vivo escarlate ensopa os campos,
    Tinge a folhage, os rostos nos accende,
    Por montes e olivaes dos ceos oppostos
    Começa a desdobrar seu manto a noite.
    Busca o rustico azilo o boi tardio;
    Por toda a parte os gados vão passando.
    Sustenhamos o halito, escutemos
    Esta distante musica toada
    Que assim transporta os animos em gôstos:
    He toda feminil, toda feitiços,
    Vem toda ao coração; oh se a conheço!
    Pastoras são, que ao longe no arvoredo,
    Vão para a aldea recolhendo em chusma
    O tropel dos rebanhos misturados.
    Cantão, porque he sazão de primavera,
    E peito de mulher, como avezinha,
    Desfaz-se em canto e amor em vendo flores:
    Cantão, porque de um dia assim formoso
    Serão formoso as toma, e o fuso leve
    Que andou por solidões um dia inteiro,
    Vai girar no conchego da fogueira;
    E cantão, porque flautas de pastores
    Que vão na companhia, as desafião.
    Mas tantos sons confunde-os a distancia,
    Figura-se uma voz de tantas vozes;
    Como que uma só boca a manda aos ares,
    Exprime um só afféto, um só deseja.
    Oh Natureza! oh Tarde! oh Primavera!...
    Lagrimas de prazer vertem meus olhos!
    Somos em bosques de propícias Fadas?
    Ou vaguêo ja Sombra, e vós comigo,
    Na semi-vida e semi-luz do Elisio?

      Ja tudo se esvaío, tudo he silencio:
    Por campo e campo ao largo impera a Noite.
    Erguida a lua nova o horror lhe troca
    Em saudosa tristeza, e o mocho alerta
    La do alto a ajuda com o piar carpido:
    Ja ouço o estrepitar das frescas aguas.
    Vem barquinha da noite, perguiçosa,
    Vem, toma o rosmaninho, e a nós recebe,
    Oh que ameno he pousar passada a lida,
    Em meio de aguas tantas, rodeado
    De amigos bons, e triste, não de proprias
    Tristezas, sim das mansas do Universo!
    Ouvi, amigos meus, os meus dezejos,
    Quaes mos ora no seio estão brotando
    A hora, o sítio, a lua, aquelles pios;
    Relevai que ao folgar vos furte instantes.

      Seios Deozes minhas supplicas ouvissem,
    Um torrão fertil, rústica vivenda,
    Houvérão de abrigar-me a vida pura:
    La minhas ambições se fartarião
    De nobre, de quieta obscuridade.
    Mas pois que de outra sorte aprouve aos Deozes,
    E o fio, não de lã grosseira e nívea,
    Me torcem, mas de ferro as trez do Averno,
    Guardai vós na memoria o meu dezejo.

      Depois que entre os abraços delirantes
    De todos os que amei, findar meus dias,
    Sepultai-me n’um valle ignoto e fertil[10].
    Para marcar da sepultura o sítio,
    Sôbre o cadaver, que vos foi tão caro,
    Mangeronas plantai, cuja verdura
    Em roda fechem variados lirios.
    Na raiz funda de soberba olaia
    Pouze a minha cabeça, e o tronco amigo
    Sobre mim curve a cópa florecente.
    Mil piteiras unidas, ostentando
    Na hastea vaidosa as flores amarellas,
    Em quadrado não grande me defendão
    Das incursões das cabras roedoras.
    Em meu tronco se escreva este epitafio:

      _Foi poeta amador da Natureza:_
    _D’entre as sombras ancioso a procurava,_
    _Qual terno amante a bella fugitiva._

    Sôbre isto pendurai sonora flauta,
    Que se revolva á discrição do vento.
    Não cerque os ossos meus, não mos ensombre
    Nem teixo nem cipreste; arvores quatro
    Quizéra só no meu jardim de morte.
    N’um canto a larangeira graciosa,
    Que mescla util e doce, a flor e o fruto:
    N’outro a figueira sob as amplas folhas
    Modesta occulte seus nectareos mimos:
    Defronte um pecegueiro em frutos mostre
    Que amavel he pudor, quando enche faces
    De penugem subtil inda cobertas:
    No ultimo canto ... (a escolha me confunde)
    Plantai no ultimo canto uma ginjeira,
    He a arvore da infancia, até na altura;
    D’esta por sua mão colhe um menino
    A mui ridente baga, e ri de ufano.
    Alguns tempos depois que a fria terra
    Meus restos encerrar, á minha olaia
    Vós, meus amigos, vós dareis meu nome,
    Pois de mim se nutrio, e eu serei n’ella.

      Dos guerreiros nos tumulos afiem
    Faminta espada os barbaros guerreiros:
    No sepulchro do sabio o sabio estude;
    E dos reis nos marmoreos monumentos
    Vá sonhar a ambição, grandeza e pompas:
    Vós soltos de freneticas loucuras
    Aqui vireis mil vezes vizitar-me,
    Na amizade pensar que nos uníra,
    E unir-nos deverá transposto o Lethes.
    Porque me interrompeis com taes suspiros?
    Ah! deixai-me acabar. Quando sentados
    Emtorno a mim na flórida alcatifa,
    Guardardes meditando alto silencio,
    Se d’entre as mangeronas que me cobrem,
    Saír acaso a borboleta errante,
    ¿Não vereis n’ella o espirito do amigo
    Que vem gozar do sol a claridade?
    Quando o suave rouxinol de noite
    Da minha olaia gorgear nos ramos,
    Não pensareis, de santo horror tranzidos,
    Que feito rouxinol, meus cantos sólto?
    Sim pensareis, e erguendo-se inspirado
    Algum lhe ha de bradar “Ó meu Amigo!”
    Responderáõ “Ó meu Amigo” os bosques;
    E vós direis que o meu fantasma errante
    Da argentea lua á muda claridade,
    Á conhecida voz d’alem responde,
    E em tudo encontrareis a imagem minha.

      Se inda então meus costumes vos lembrarem,
    Se vos lembrar meu coração piedoso,
    Velai que em meu retiro as bellas aves
    De caçador cruel cantem seguras:
    Amor, o leve Amor, com arco d’oiro,
    Só elle e mais ninguem, logre atirar-lhes;
    Careço de amorosa melodia
    Que me poetize o sono derrabeiro:
    Morto que nada tem preciza d’estas
    Pobres delicias rusticas, se folga
    Que a namorada moça, o terno amante
    Juntos ou sós, a vizitá-lo acudão.
    Então ao som de languidos suspiros,
    De alegres cantos, de amorosos versos,
    De ternas queixas, de perdões suaves,
    Muitas vezes contente a minha Sombra;
    Formando ao pôr do sol vermelha nuvem,
    Girará n’estes ares, revolvendo
    Da passada existencia almas lembranças.

FIM DO POEMETTO



NOTAS AO POEMETTO ANTECEDENTE.



_Pag. 109. verso 10._

    Com seus trovões, com seus coriscos _horridos_.


Trazia este verso na primeira edição a seguinte Nota—_Eis àhi os
primeiros esdruxolos que fiz em minha vida, e espero que sejão os
ultimos, ainda que por isso que fique excluido da communhão de certa
Seita moderna._—Supprimi-a, e no declarar o porque, vou dar não equivoca
prova da minha candura. Prezar-se um escritor de mais amigo da verdade
que de Platão e de Aristoteles, alguma couza he; mostrar porem que mais
do que a si proprio a ama, certo que não he vulgar o exemplo, e esse
tenho eu dado, e não raro, ja fallando ja escrevendo limpa e rasgadamente
o que de minhas Obras me parece. He um bom propozito que eu fiz em meu
interior, e espero não quebrantar nunca, não só porque de si he honesto
e nobre, senão que por este meio, o qual não custa mais do que algum
suspiro á nossa vaidade que sempre se torce e confrange de ser mostrada
nua, me estremarei da manada dos charlatães literarios, de quem nem
o estomago me consente fallar. E porque chegue por direito caminho á
questão dos esdruxolos, recordarei com vénia e boa paz dos leitores, o
que ja no Prologo da terceira Edição das minhas _Cartas de Echo_ deixei
tocado; com a differença, que d’esta vez o farei mais explicitamente.

No tempo em que eu cursava meus estudos na Universidade de Coimbra,
florecia ella com muitos e bons engenhos de mancebos dados ás
Bellas-letras. E porque ainda então se não tinhão accendido os
desastradissimos odios das parcialidades políticas, a Hobbesiana
propensão de guerrear se exercia nas letras. Duas seitas de escrever
se contavão; a cada uma das quaes não faltavão admiradores, apostolos
e evangelistas, assim como por isso mesmo inimigos, escarnecedores e
parodiadores. Os Livros em que uma juramentava os seus adeptos, erão
Gessner e Bocage; Filinto era o Alcorão da outra. Gessner quanto ás
couzas e affétos, e Bocage quanto ao térso e lustroso de estilo e metro,
erão os idolos de uma; os da outra erão, quanto a couzas e affétos
Filinto, quanto a estilo e metro Filinto, e Filinto quanto a tudo em
que Filinto podesse bem ou mal ser imitado. Tinha cada uma d’ellas suas
vantagens e seus descontos, como agora claramente diviso, quando as
considero com animo livro e desassombrado de preoccupações. Não fallarei
aqui de Gessner, porque ja no Prologo o fiz; confrontarei somente, e de
corrida, Elmano e Filinto.

A ambos dotára natureza de talentos, bem que entre si diversissimos,
assaz fortes todavia que podessem cunhar á sua feição a poesia do seus
tempos. Elmano, que talvez em seu genero nos ficará sendo unico, de
fôrça devia deslumbrar e encantar pelo caudal inexhaurivel, brilhante e
estrepitoso de sua vêa, que eu appellidarei, e ria quem rir, um Niagara
de talento: e assim como, os que pasmão deante d’essa grande catarata de
puro embevecidos em sua cópia e magnificencia, não tem olhos para notar
o esteril do seu curso, o assolador do seu ímpeto, e os penedos que rója
envoltos e desfarçados com suas aguas, assim os que presentes assistirão
ao poetar de Bocage, ou da tradição o receberão, fascinados com os seus
estrondos, espumas e iris, mal se podem lembrar de lhe desejar afféto,
sizo, e exatidão, que muitas vezes lhe fallecem.

Cinco couzas, pelo menos, para o bom poeta se requerem: _faculdade
inventiva_—_faculdade sensitiva_—_sciencia_—_lingua_—_e ouvido_; e ainda
com estas cinco outra, que talvez resultará rempre de sua união, e sem a
qual todas as mais seráõ baldadas; fallo d’aquelle discernimento pronto,
que a muitos erradamente pafeceo instinto, e a que se costuma dar nome
de _gôsto_. Em raros sujeitos concorrem tantos predicados; por isso só
de longe a longe apparecem os maximos poetas, e ja se dão por grandes
aquelles a quem menos faltou d’estes requisitos. —

_Faculdade inventiva_ ou não a tinha, ou apenas a tinha Manoel
Maria; a sua queda para tradutor bastaria para indicio, se de
indicios te carecesse aonde claras reluzem as provas: um _Fado_, um
_Jove_, _Eternidade_, _Natureza_, _Sóes_ e _Caos_ são o _index rerum
notabilium_ da maior parte de seus escritos; e tanto abunda n’estes
bordões sustedores e disfarçadores de sua fraqueza, como Ferreira (e
quem descobrirá os meus?) na cançada repetição do _esprito_, Jorge de
Montemayor na de _hermoso_ e _hermosura_, Pina e Mello na de _alento_
e _impulso_, Alfeno Cynthio na de _santo_ (epítheto, que por mais não
ter onde o pegue, até o poem, se bem me lembro, como arrebique na cara
de suas pastoras e namoradas): com a differença que os particulares
bordões d’estes poetas, e ainda outros de outros muitos, não são em suas
Obras senão meras circunstancias e accidentes, e os de Bocage menos são
estribilhos do que fundo o substancia de inteiros e repetidos periodos.

De _faculdade sensitiva_ talvez o houvesse menos escaçamente dotado a
natureza, mas outras qualidades que lhe ella mesma deo em maior auge,
taes como volubilidade de fantasia, aspereza de condição, espirito
sobranceiro e satírico, e coração, como elle mesmo confessa.

_Mais propenso ao furor do que á ternura,_ lhe entibiarão os affétos
benignos, de que sé a longes distancias lhe sáe, como a descuido, algum
reflexo. A estes máos e naturaes elementos accrescêrão desvarios da
fortuna ou do acaso, bem valentes para de todo lhe seccarem a fonte das
branduras. Vida mal preparada de educação, nua dos amoraveis habitos
domesticos, desalumiada de doutrina e estudo, aturdida de applausos
contínuos e encarecidos, amargurada amiude de pobreza, vagabunda entre
amigos não amados e por terras não suas, vida, porque tudo diga, corrida
á ventura e sem norte conhecido, desenfreada de todas as leis, sôlta por
todos os vicios, cínica por timbre, e por indole silvestre e bravia,
como podia ser que lhe não tisnasse no germen os affétos maviosos? Isso
foi, e isso conhece quem bem attento o ler e meditar. Mas em desconto,
as paixões fortes como o ciume, a colera, a vingança, sente-as e
pinta-as vigoroso, assim como todos os objétos grandiosos, remontados,
encarecidos, ou terriveis. Não vos debuxará um mendigo, avergado de
annos, estendido n’umas palhas esquecidas, junto do cão seu ultimo
companheiro, e orando no desamparo da noute, por quem, sem o convidar
para a sua fogueira do inverno, lhe deo fóra da porta meia fatia de pão;
nem ainda as carícias de uma mãi a seu filho: mas dir-vos-ha, rico e
altisono, os impetos de uma tempestade, a sanha de uma batalha, as iras
de uma madrasta, ou as furias de um infeliz que pragueja sua má ventura.

Os affétos e a invenção póde a _sciencia_ por álgum modo suppri-los,
opulentando-nos com os affétos e invenção de melhores autores, uma
vez que por nós tenhamos a arte de bem escolher, bem digerir, e bem
converter esses literarios alimentos em substancia nossa, em nosso
proprio ser: ainda mui boa estrella he essa, e não poucos dos afamados
desde Virgilio até ós nossos dias, só á sciencia, e a essa arte de a
aproveitar, haverão devido a melhor parte do seu credito. He o saber,
princípio e fonte de bem escrever, dizia o Mestre dos poetas; e dizia o
dos oradores, que uns e outros era mister entenderem de tudo. E se ja
isso foi nos tempos antigos conselho e quasi preceito, preceito absoluto
se tornou, e necessidade, para quem escreve n’estes tempos, em que a luz
se derramou mais ampla, em que as sciencias, cançadas de viver sobre
si, se congregarão como boas irmãs em uma só familia, juntarão os seus
patrimonios em commum, e cada uma ajudando a todas as outras, vem a por
todas ellas receber um infinito accrescimo em seu peculio. Limitadissima
era a instrução de Bocage: o latim e o francez, na primeira de cujas
linguas mormente era primoroso sabedor, segundo referem, podérão ter-lha
dado copiosissima: mas nem a viveza de seu animo, os prazeres e os
divertimentos que em seu cerrado círculo o trazião como enfeitiçado, lhe
permittião estudos, nem são elles facil couza para pobres e viciosos,
nem o que era saudado por divino, como quer que _desatasse na voz o
acceso turbilhão_ de suas ideas, carecia de ir excavar em livros o suado
cabedal, com que outros negocêão veneração.

Quanto á _linguagem_, não será pêjo dizer, que a usava limpa e sã, não
se podendo taxar a sua de mendiga e remendada, como a ja muitos de seus
contemporaneos vinha acontecendo, nem encarecer de rica e ambiciosa:
pouco tinha lido do portuguez, mas esse pouco com aproveitamento: só
d’isso ajudado, e do latim la se foi remindo e esteando a sua Musa
sem emprestimos do francez; e este carecer de vicios ja então era
grande virtude. Para lhe darem, como a texto, cabimento em nosso
Diccionario[11], não vejo eu razão sufficiente, assim como a não ha para
o desprezo e esquecimento, em que os havidos por puritanos o deixárão
cair. Uma couza he porem verdade irrefragavel, e he, que em nenhum
escritor, antigo nem moderno, apparece a lingua portugueza mais senhoril
e polida, mais igual e ao meio entre o usual e o sublime, entre a penuria
e a prodigalidade.

Somos chegados á _harmonia_, o mais eminente merito de Bocage, e no qual
nem antecessor teve, nem ainda até hoje successor. De todas as partes
que em Bocage concorrião para poeta, nenhuma havia tão delicada, e em
que tanto se houvesse a natureza esmerado como o ouvido. A verdadeira
musica dos nossos metros, particularmente do hendecassíllabo, não só
a desempenhou e ensinou elle, senão que a inventou; e com felicidade
tão rara, que não cuido se possa a pontar hespanhol, e nem por ventura
italiano que o iguale, e mais he o italiano pela abundancia de suas
brandas e variadas vogaes, pelo moderado e macio de suas consoantes,
pelas licenças e elasticidade de seus vocabulos, muito mais pronto e
domavel para todo o uso métrico do que o portuguez. Poucos estafárão
tanto os consoantes como Bocage (e ainda ahi he grande o seu louvor, que
não he dado rimar mais primorosamente); mas a ninguem erão os consoantes
mais escuzados: são esses para o verso uns arrebiques e sinaes com que
os mal assombrados se disfarção, para poderem apparecer, mas de que os
graciosos e bellos não carecem, nem os devem consentir, por não parecerem
menos do que são. Porque não ouzarei eu dizer, que mais são os seus
versos poeticos, do que era poeta elle proprio? Como simples cantilena
agradão, agradão ainda quando por vãos os engeita o juizo e o coração
por frios: um estrangeiro que ignorante d’esta lingua os ouvisse bem
e devidamente ler, recrear-se-hia como com a toada de um bem tangido
instrumento. Grande excellencia por certo he esta, á qual principalmente
deveo levar traz si suspensos e encantados os animos, e por onde logrou
ser, sem o cuidar, fundador de uma escola, que se me não engano, ainda
de todo não passou. Toda a gloria de engenho he oiro em que nunca
faltão fezes: o produzir pela mágica de sua versificação uma seita de
versificadores, por honroso se podéra haver, se aos discipulos podesse
ter transmittido, juntamente com as normas, o talento, a fôrça, a graça e
o gôsto com que as produzia e aperfeiçoava: porem quiz algum Genio máo,
para lhe humilhar a vaidade e descontar a vitoria, que a maior parte
de seus sectarios menos lhe tomassem a melodia do que os escarcéos, as
empollas, os trocadilhos, as apóstrofes, as redundancias, e os versos que
ja se hoje chamão de dobrar,

      _Seu mais doce penhor, seu bem mais doce.—_
    _Vio n’ella os risos, vio as graças n’ella.—_
    _Um Deos não he perjuro, um Deos não mente._
    _Que não paga de um Deos, de um Ceo não paga,_
    _Ouzaste pregoar mais Ceos, mais Deozes.—_

versos, que parcamente lançados, como nas Obras de Virgilio, tem graça;
semeados a frouxo são affeites e desdoiros do estilo.

Do seu _gôsto_ ja me julgo dispensado de fallar, porque me parece que
o que d’isso podéra dizer por si mesmo está nascendo do que fica dito.
Concluamos: o que de Bocage digo em geral, com suas exceções se ha
de entender, porque por uma parte muitas paginas ha suas, mormente
em algumas traduções do francez, onde parece lhe esqueceo pôr o tal
verniz de dicção e sons que para si inventára, e de que a ninguem
deixou a verdadeira receita: e por outra parte tambem, obras ternos
suas, mormente sonetos e traduções latinas, cabaes e redondissimamente
perfeitas.—Passemo-nos já a tomar iguaes contas a Filinto.

Muito mais melindroso he este processo, até porque ja o querer tomar-lhas
será para seus apaniguados um crime de leso Apollo, e primeira cabeça.
Valha-me porem a declaração que faço, de que em tudo quanto disser, não
seguirei outras partes que as de minha razão, declarando previamente
que muito pouco dou eu mesmo por ella; mais são consultas que faço
que sentenças que profiro, e antes exercicios de imparcialidade do
que acintei de inimigo: de ninguem o sou, quanto mais de poetas, de
perseguidos, de velhos, de mortos. Foi tempo em que eu, obscuro poetastre
do Mondego, ria e vazava epigrammas contra o tradutor dos _Martyres_:
hoje se me afigure muito mais valioso. He elle o mesmo, mudei eu; Deos
sabe quantas vezes mudarei ainda com os annos: do mudar não he nossa a
culpa; nossa he porem, e feíssima a de persistir no erro conhecido; se
a republica literaria tivesse inquisidores, por heresia e contumacia
que não havião relaxar ao braço secular. Ha por ahi muito homem do meu
officio que possa dizer de si outro tanto? Mas deixemos esses que estão
vivos, e vamo-nos a Filinto.

Se he ou não _creador_, ja vi ser renhida questão entre ociosos: para
mim tenho que semelhante titulo mal lhe pode caber. O frequente verter
ha pouco disse eu que denunciava esterilidade; e podéra accrescentar uma
sentença ainda mais desabrida, que ha muito encontrei, cuido que nas
Lições literarias do Doutor inglez Blair, e que muito me caío; a saber,
que o costume de traduzir, bem que olhado pela rama pareça dever ser
frutífero, sempre ao cabo vem a desgastar-nos a faculdade inventiva.
Compara-lo hei com o linho, que apezar de tão precizo no mundo e de
tão agradavel aos lavradores depois de colhido, por isto só desgosta a
muitos d’elles, que a terra onde se criou fica magra, e como elles dizem
queimada para outras novidades. Muito mais de metade dos tomos de Filinto
trazem no titulo os nomes de autores estranhos, devendo-se ainda lançar a
este rol por boa restituição, bastantes Obras, que talvez por descuido,
imprimio sem nenhuma menção de serem, como erão, vertidas. As imitações
são no merito e inconvenientes meias traduções, e as do nosso poeta são
numerosissimas, disfarçadas umas, outras manhosamente dissimuladas. No
resto que he de sua lavra, apenas se nos depara couza que abone talento
original e produtivo a: são os chamados lugares communs de poesia
filosofica, que ja por safados custão a passar, e as tão esfalfadas
visões e apparecimentos de Apollos, de Musas, de Amores, de Pégasos, e
de outros mil defuntos, a quem o tempo ja comeo o balsamo, e que todavia
são ainda a unica povoação de quasi todos seus poemas, tanto jocosos como
sérios. Algumas vezes me vem desconfianças de que n’aquelle passo da
Sátira do _Bilhar_, em que o nosso Tolentino parece rir de certas Odes,
contra Filinto hia tirada a seta de sua crítica:

      _Co’as verdes mãos o serpeado Tejo_
    _Alça o trilingue, mádido tridente;_
    _Mas que Górgona filtra? eu vejo, eu vejo ..._
    Em dizendo isto he Ode certamente.

Em _affétos_ porem sobreleva a Bocage, e não abunda. A espaços lhe
vislumbrão assomos d’aquella sismadora melancolia, que mais ou menos
respira em todos os bons poetas. As amarguras e saudades, que em tão
larga vida e desterro lhe não faltárão, alguma, e não rara vez, lhe
soprárão versos amoraveis, e deliciosos de tristeza. He este de todos
os dotes de poeta o mais caramente comprado; sendo assim que Deos sabe
quantas vezes em applaudir um verso que nos toca, batemos por ventura
palmas a calados infortunios de quem no-lo escreveo. Não nos assuntos
ditos _sentimentaes_ se conhece tanto o verdadeiro sentimento, como
nos de indole mais fria e izenta; porque, se n’estes ultimos apparece
inesperada uma palavra maviosa, n’uma flor de festa uma nôdoa de lagrima
a descuido, ahi vem o infallivel documento de ternura e suavidade: e
d’estas sombras de lagrimas, d’estas palavras, maviosas achamo-las em
Filinto.

Na _sciencia_ he que elle mais notoriamente leva a palma ao seu
contendor. Que muito? com o dôbro de vida, com precizáõ de estudar para
se divertir das mágoas e ganhar pão, com o ar e tráfico de Paris onde
todos inspirão e expirão letras, e com tão espaçosa velhice, pingue
quadra em que as paixões quietando nos deixão todo o silencio, remanso
e curiosidade necessarios para o estudo! Tornarão-se-lhe familiares
os classicos portuguezes e latinos, de uns e outros dos quaes talvez
Bocage não tivesse acabado dois ou trez volumes; familiares os classicos
francezes, hespanhoes e italianos, e ainda as versões dos inglezes e
allemães. Á roda d’elle chovião de dia a dia, e de hora a hora, os frutos
novos de todos os ramos das Sciencias, de que he impossivel a quem por lá
vive não provar, até sem querer, e ao cabo não se nutrir e fortificar.
Entretanto repararia eu, se o ousasse, que para quem logrou concurso de
tão favoraveis circunstancias, como as que a sua má estrella lhe deparou,
não saío Filinto o que se podéra esperar de noticioso e culto; e ou
desaproveitou o maná que ás mãos do espirito lhe chovia, ou se o tomou
lhe não luzio. Á primeira d’estas duas conjéturas me inclino, porque
segundo o que de seu natural alcanço por suas Obras, parece-me que na
lição das estranhas mais se hia á caça de vocabulos e frases curiosas,
insolentes e atrevidas, do que de doutrinas e filosofia. A sua era meã
e usual: cançados louvores á Liberdade, á Amisade e á sã Virtude, ao
estudo, ao descanço e ao deleite, alguns arremeços de encontro aos Bonzos
e Naires, eis ahi sondado até ao lastro o seu poço de saber moral: alguma
historia não rara antiga e moderna, eis todo o seu saber positivo; e todo
o seu saber natural, alguns dos principios geraes e diarios das Sciencias
fisicas. E certo, que se mais avultados fossem estes seus cabedaes, e vêa
mais fecunda lhe consentisse anciar mais altas couzas do que palavras
e frases, não se deixára ficar tanto atraz no meio de um seculo novo
e alado de poesia; não se contentára o seu estro abstémio com a agua
do Parnaso até á ultima hora da vida; e não nos deixára seus volumes
pejados quasi só de fabula, como armarios de muzeu antiquario, onde se
não vai procurar qual he o mundo em que vivemos, mas deduzir de troncados
e desluzidos fragmentos, o que em tal ou tal parte da terra houve lá
n’outros tempos, com os quaes e com a qual só pouco ou nada temos. Diz um
Escritor insigne[12], que a poesia assim como ontr’ora viveo de fabula,
revive hoje e se apascenta de verdade. Melhor dissera que de verdade
viveo em todos os tempos a nobre poesia, pois que o que para nós se
descubrio fabula, era nos dias em que appareceo e florio, verdade de
factos, ou capa allegórica de verdades, mui crida e sincera.—Resumamos;
Filinto soube mais que Bocage, menos do que podéra, e diverso do que
devêra saber.

A _linguagem_, de que pela ordem se me segue fallar, mais requeria n’este
caso um tratado, do que uma nota de fugida. Algum dia o tentarei, quando
me achar mais de assento e sobre mão do que agora, que as justas raias
d’este escrito me estão tolhendo. He a linguagem e elocução a principal
feição caraterística de Francisco Manoel, como de Manoel Maria o he a
harmoniosa elegancia.

A torrente das hipérboles e conceitos hia arrazando e engolindo todo o
nosso Parnaso, quando para lhe pôr a ella diques, e a elle salva-lo,
e repovoa-lo de natureza, appareceo a Arcadia. Detençosa e ardua se
representava a obra, como aquella em que a razão nua tinha de lutar com a
imaginação delirante. Para anteparar ímpetos de vêa tão engrossada com as
contínuas nascentes e tão copiosas de Italia, Hespanha e Portugal, ja tão
senhora do leito e dominadora das margens, era mister que braços fortes
lhe levantassem muralhas solidas de grossa e pezada cantaria. Virão os
Arcades como lhes estavão á mão as obras, não todas primorosas, mas
quasi todas massiças dos nossos quinhentistas e dos romanos classieos:
erão accommodadas ao intento, dizião com seu gôsto e costume; valerão-se
d’ellas, accrescentarão-lhes as suas proprias, levantarão o muro; bramio,
quebrou e escoou-se a inundação. Raro he o bem, que só porque o he, não
traga outros comsigo: dos trabalhos, que havião tido por fim acabar com
os nojos e puerilidades do falso engenho, nasceo um conhecimento mais
profundo da linguagem, mais extremoso amor á sua pureza, e o comêço do
encarniçado e ainda não findo pleito, entre a puridade e o gallicismo.
Verdade he que n’este segundo campo se não guerreou com tão favoravel
marte como no primeiro, porque se as maravilhas da _Fenix Renascida_
passárão, os gallicismos fôrão em successivo crescimento, sendo ja hoje
tão caudaes e trasbordados, que princípio a desconfiar não haverá remedio
senão rendermo-nos, encruzar os braços, e deicharmo-nos ir ao fundo:
tanto estou convencido de que nem a propria razão he poderosa contra o
espirito de um povo: e a final de contas, Deos sabe, até n’isto, o que he
razão!

Era Filinto, por sua amizade e commercio íntimo com os sujeitos de maior
credito na Arcadia, e por motivos de sua propria conveniencia, homem que
de necessidade devia entrar na pendencia, e sustenta-la até á ultima:
n’isso assentou, e o cumprio mui pontualmente. Entendeu desde todo o
princípio, como aquelle a quem não fallecia bom juizo, em se prover das
armas seguras e bem temperadas, sem que lhe não conviria arriscar-se
no combate: e se as defensivas que vestio lhe podessem ter saído tão
impenetraveis ás setas do ridiculo como as offensivas que meneou erão
fortes e penetrantes, guapissimo Cavalleiro houvéra apparecido, e
invencivel. Do antigo portuguez e do latim instituio concertar toda sua
armadura: com diurna e nóturna mão versou pois os monumentos de ambas
estas linguas; e quanto do portuguez ja feito se podia enthezourar, ou
se lhe podia accrescentar por derivação, por composição, por analogia,
por translação, ou por qualquer outra licença poetica, sem embargo
de desenvolta e extrema, tudo ouzou com ardimento verdadeiramente
admiravel. Fez estranheza a novidade, offenderão-se os mimosos com o
escabroso e difficil de tal estilo, arripiarão-se os pusillanimes com o
arrôjo, os ignorantes e priguiçosos com a immensa fadiga que bem vião
seria necessaria para entender, não só imitar e seguir, quem tão por
fóra caminhava das veredas batidas e vulgares. Todos estes, e com elles
os invejosos, saírão em campo, combaterão, e apuparão, e quanto mais
apupavão e combatião, mais recrescia em Filinto o acintoso proposito de
se não descer do começado, antes encarecê-lo sempre até o ultimo ponto.
Outra causa havia que para isto lhe fazia fôrça, e era conhecer como
sem estes bordados, recamos e relêvos de frase, o cabedal de suas galas
poeticas appareceria, qual em realidade era, grosso, commum e de mui
baixa valia. Mas quer o movesse esta causa bem perdoavel, quer fosse
generosidade com que se offerecia aos motejos, e desapreço de muitos, com
o só intuito de restaurar, e avantajado, o edificio do idioma portuguez,
sempre fica certo que n’este particular mereceo mui bem de sua patria,
e a deixou muito mais medrada do que a achára. Oxalá que dois ou trez
mais, dotados de igual credito, pozessem como elle peito á empreza; e
muito embora demaziassem como elle: cunhassem a flux tudo quanto dão
as minas portugueza e romana; ainda muito oiro puro de dicção viria
enriquecer-nos, e facilitar-nos o tracto; pôsto que tambem como elle lá
cunhassem á mistura oiro enfezado, não de lei, nem de receber: o juizo
público estremaria umas de outras moedas, e as engeitadas a ninguem
farião mal, se não fosse ao credito de seu autor. Assim crescêra cabedal,
que ainda mingoa para as obras do engenho patrio. Nossa lingua, qual por
ora a temos, e até restituindo-lhe todos seus fóros caídos, todas suas
joias enterradas, não supre as hodiernas precizões do espirito. Quando
a esfera do saber, sentir e pensar se está de hora para hora dilatando
no mundo, do qual nós outros (ainda que o não pareçâmos) somos tambem
parte, forçado hé que a esféra da expressão ao mesmo compasso se dilate,
e engrandeça. Repôr ao idioma quanto ja teve será louvavel consciencia,
porem não bastará, se apoz isso se lhe não dér com mão liberal, mas
prudente, quanta substancia nova elle possa receber e commutar, para que
na apostada carreira que os entendimentos das nações agora levão para o
infinito desconhecido, o da nossa, por fraco e sem azas, se não deixe
ficar atraz.

Uma reflexão quero eu aqui fazer, mais que a taxem de digressão; não será
nova para os que escrevem, mas servirá para que os que lem se abstenhão
mais de acoimar pobrezas em nossos poetas. Ja das palavras se averiguou
serem ellas fio e arrimo de que a mente se vale para melhor ir seguindo
por suas ideas sem queda nem tropêço. Pois se as palavras, que não passão
de reflexos e retratos do pensamento, tem virtude para o fecundar,
menos ainda se duvidará precizar a imaginação poetica de uma abundante
linguagem, para se manifestar por obras, assim como o pintor de finas e
variadas tintas para seus paineis, e o musico de instrumento pronto e
copiosamente registado, para enlevar os animos. O poeta francez, porque
tem uma lingua que á fôrça de bem cultivada por muitos e differentes
engenhos, se accommoda préstes e serviçal aos pensamentos mais subtis
e novos, e aos affétos mais delicados e passageiros, d’ella se ajuda
para inventar, e com ella exprime completamente o que inventou. Não
assim nós, que em pertendendo alçar-nos por cima das communs ideas do
nosso paiz, nos achâmos, sem o cuidar, pensando em francez; e se isso,
que bem ou mal nos apparece na alma, tentâmos passa-lo para o papel,
suâmos, bramimos, aqui nos faltão de todo as expressões, ali só tibias
nos acodem, outras mal determinadas e mal entendidas, outras estiradas
em perífrases. Dai-me o proprio Lamartine nascido nas margens do Tejo,
e pedi-lhe uma só _Meditação_, uma só epocha de _Jocelyn_; grande será
o acêrto se as conceber, quasi impossivel que as escreva. Ponderou
Condillac mui avizadamente, que a razão porque apparecião em certo povo
e tempo maior numero de varões abalisados em letras, era o ponto de
crescimento e sufficiencia abastada a que chegou n’esse tempo a lingua
d’esse povo. Melhor será que o deixemos por sua boca doutrinar-nos, que
bom missionario he em couzas d’estas.

“Acontece com as linguas (diz elle) o mesmo que com os algarismos dos
geómetras: quanto mais perfeitas são, mais vistas novas nos offerecem, e
mais nos dilatão o espirito. Os bons acertos de Newton de antemão havião
sido preparados pela escolha dos sinaes que antes d’elle se fizera, e
pelos methodos de calculo ja imaginados. Se mais cedo nascesse, podéra
ter sido homem grande para o seu seculo, mas não fôra agora maravilha
d’este nosso. Outro tanto vai pelos demais generos. A boa fortuna dos
engenhos mais bem aparelhados inteiramente depende dos progressos da
lingua no seculo em que vivem, porque os vocabulos correspondem aos
algarismos dos geómetras, e o modo de empregar os vocabulos corresponde
aos methodos do calculo. Por tanto, em uma lingua aonde ha penuria de
palavras ou de construções bem azadas, ha os mesmos obstaculos em que a
geometria topava antes do invento da algebra. O idioma francez foi por
largo discurso de tempo tão pouco ageitado aos progressos do espirito,
que se imaginarmos Corneille em cada um dos seculos ascendentes da
monarchia franceza, quanto mais ao remontar nos fôrmos afastando do em
que viveo, tanto mais, e gradualmente, irá mingoando o seu engenho, e
chegar-se-hia por ultimo a um Corneille que nenhuma prova poderia dar de
talento.”

Voltemos a Filinto. Não decedirei se houve ou não bom fundamento
para o allegarem por autor e texto, como o fizerão na quarta edição
do Diccionario de Moraes: nem ouzaria eu pôr mão no fogo pela
infallibilidade de sua pureza, porque (mas a medo e sommisso vai o dito,
que por dito e não sentença merece vénia) aqui ou acolá se me figura
enxergar por suas paginas algumas nódoas d’aquella mesma côr a que nunca
perdoou odio. Mas se as ha, são manchas, no passo que o geral de sua
escritura he recheado de muitas preciosidades para quem poz peito a bem
escrever esta lingua. Por toda a parte lhe estão pullullando lusitanismos
em vocabulos, frases, collocação, inversões, geito e feição de períodos,
que se houver gôsto em quem lê para os joeirar e limpar de alguma mistura
chôcha ou sédiça, farão muito bom sustento para poetas e prozadores. Se
houver gôsto, puz eu, e muito que o puz de indústria, porque, os que
d’elle carecerem, lição tal só os fará mais ridiculos; os que ainda o não
houverem formado, e se metterem por esses onze e mais volumes sem bom e
constante Mentor, não sei se em linguagem e em poesia viráõ nunca a dar
fruto que bem saiba e se abençoe.

Em summa, Francisco Manoel do Nascimento foi um martyr da religião de
nossa lingua: para lhe lançar mais gloria cerceou a sua propria: com o
excessivo das joias com que a arreou, deixou-a affétada, e menos matrona
grave do que bailarina de corda; sim habilidosa e leve, mas dengosa
e presumida: mostrou-lhe o como e por onde devia subir á perfeição,
a que por outros, porem tarde e mui tarde, será levada: foi, porque
tudo diga, um destemperado despertador, que nos poz a pé para o dia
das letras.—Quero repetir, fez serviço talvez maior que nenhum dos
classicos, mas he de todos o menos para seguir ás cegas. Bem haja elle
que tocou a alvorada para nos acordar, mas mal haja quem quizer ficar com
trombeta tão rouca e dissonante a tocar alvoradas todo o dia: ja estamos
acordados, cabe agora aproveitar o tempo, como gente de juizo.

Se da lingua passâmos em Filinto á _harmonia métrica_, damos maior salto
que o de Léucade, e como cumprindo igual oraculo, ou nos afogamos em
um mar bravo, ou de lá surdimos curados de todo o amor a tal poeta.
Em nenhuma das quatro ou cinco partes do globo, e em nenhuma era se
metrificou jamais lão dura, desleixada e insolentemente. Se alguma vez
se esquece com dois ou trez versos bons, logo se vinga com duas ou trez
duzias, que se os reduzissem a linhas iguaes, não serião mais nem menos
que desaceiada proza. E ainda he para agradecer quando só lhe falta
melodia, porque algumas vezes nos dispara versos, em que as pauzas vem
todas desconjuntadas, e outros, em que sobejão síllabas, por mais que a
maço as procuremos entalar e embeber umas por outras.—A sua rima he por
via de regra desnatural a pobre: os seus sonetos e toda sua lírica de
consoantes, enxabimentos ou arripíos. Bem se alcança como erão arrufos
de maltratado, as injurias que em muitas partes vomitou contra a rima, e
não como as de Boileau, vozes só de um juizo rigoroso, que de dentro das
letras as media. Nos defeitos de versificador fez de idade para idade
successivos enotados progressos, sendo assim que ou por desleixo, ou por
certa petulancia, em que engenhos grandes muitas vezes cáem, tomando
por timbre o escarnecer do Publico, quanto mais hia usando do officio,
tanto mais desprimoroso se foi mostrando, até ganhar tão duro callo na
consciencia, que nem a deliciosa harmonia dos versos de Racine lhe podia
ja ao cabo inspirar, um só verso toleravel de tradução.

Do muito que só deixo apontado se deduz a idea que para mim tenho do seu
_gôsto_; melhor será do que só deixa-la deduzir, declara-la. Parece-me
pois ser o seu gôsto pouco e máo; e n’isto estribo o parecer: 1.º que
para suas Obras originaes costumava de escolher fracos sujeitos—2.º
que as pejava de taes invenções que ja em tempo de Romanos o não
erão—3.º que por vida se repete, e por costume redunda—4.º que na ordem
desordenadissima em que seus escritos pôz, anda o peor tão travado com
o melhor, e as puerilidades vergonhosas com as Odes que lhe lucrárão
nome, que sem que o lustre do bom disfarce o máo, o esqualor e nojo
d’este deturpa e estraga aquelle—5.º que se para traduzir elegeo ás vezes
bons originaes, taes como o Oberon e os Martyres, outras os escolheo
desenganadamente incapazes, taes como a triste historia em verso da
Guerra Púnica: outras vezes, escolhendo originaes optimos, nem antevio,
nem pelo discurso do trabalho conheceo, nem sequer sentio depois de
findo (porque talvez se o sentisse nos houvéra poupado a ler a versão),
que havia n’essas Obras exclusivos e essencialidades, quer da lingua em
que estavão feitas, quer do engenho que as fizera; haja vista ás tão
graciosas e admiraveis fabulas de Lafontaine, que em Filinto parecem
tanto as mesmas, como a estampa de Bertoldo se podéra julgar retrato do
Apollo de Belveder. etc. etc. etc. etc.

Taes são hoje para mim Filinto e Bocage: mui outros dos que ja me
parecêrão, e talvez dos que me hão de parecer quando novos livros,
novas couzas, e o rodear dos annos me houverem feito sou ordinario e
incontrastavel officio. N’aquellas eras pois, que ja eras antigas se me
representão aquelles meus tempos, caía todo com o meu Gessner em braços,
para a parte de Bocage, mancebo e lustrozo; e se me figurava que se
lograsse trava-los, fundi-los em um, faria obra de se me agradecer. Os
partidarios de Filinto, que não sei porque, trazião guerra declarada com
Bocage, vierão saindo de seus montes escarpados, empeçados e tenebrosos,
para dar váias e tirar remêssos de epigrammas ao nosso bando: cerrámo-nos
com a bandeira, démos sobre elles com iguaes armas, foi batalha campal,
rôta e sem misericordia: não houve mórtos nem cativos, poucos transfugas,
feridos muitos. Recolhidos nas trincheiras, cantámos uns e outros,
como he costume, o _Te deum_ da vitoria; dobrámos a altura aos vallos,
e profundez aos fossos que nos estremavão; jurámos não acceitar nunca
pazes, quanto menos commette-las, nem consentir em alguma couza que ás
dos inimigos se parecesse. Eu que fôra dos mal feridos e ainda palpava
as costuras, como havia de faltar a nenhum ponto da conjuração? Muitos
d’elles merecerião tratados, mas porque não fazem para o fim d’esta Nota,
venho aos esdruxolos, e só libarei a materia.

Da natureza, como quer que seja, nos vem sempre o gôsto; mas sendo que
a moda, que muitas vezes se gera de um acaso, introduz o uso, e este
chega a mudar ou alterar a natureza, vem a ser o gôsto em muitos casos
enleada materia e muito esquiva para questão, abonando-se talvez por ahi
o proverbio, que sobre gôstos prohibe disputar. Dir-me-hão, que nada
tem a natureza com os métros, que só a moda a seu talante os cria e os
acaba: he e não he verdade; mas tambem isso deixaremos de parte, por
pedir digressão larga e mui sobida filosofia. Em breve, parece-me que a
fantasia ou o acaso inventa os métros, a moda os espalha e rege, a nossa
natureza se lhes affaz, mas deve quanto podér afeiçoa-los e conchega-los
comsigo. Das dez, onze ou doze síllabas de que pode constar o nosso verso
heroico, quiz a moda que o numero de onze fosse em Portugal, Hespanha
e Italia o usual e corrente; moda que estribou no ser d’estas linguas,
em que a quantia de vozes graves excede á das agudas e dactílicas.
Costumou-se o ouvido com a igualdade da queda, criou uma certa natureza,
e todas as vezes que inopinadamente o obrigão a outra queda maior ou
menor, como que se espanta e sobresalta: porei exemplo nos que sobem ou
descem ás escuras e ja pelo tino uma escada; se lhes falta no subir um
degráo com que ainda contavão, o pé que no ar pôz firmeza cáe em falso,
e comsigo leva todo o corpo estremecido; se lhes sobeja um no descer, o
pé que ja se dava por assente, não desce mas atropella e traspoem. Por
tanto, regra geral, o verso grave, que he o da moda e tambem o da nossa
natureza, he o de que nos deveremos servir: como porem entre as couzas
sujeitas á poesia, se nos deparem algumas, cuja indole póde ser esse
mesmo estremeçáõ, ou atropellamento, razão será que em taes casos bem
averiguados e por via de excéção, acudamos á idea com o verso que melhor
lhe condiz: os exemplos são faceis de colher nos autores, não gastaremos
com elles papel. Ora para se consentir n’esta excéção, não deixa de haver
outro motivo de algum momento, e verdadeiramente he elle o mesmo em que
a regra geral se fundou; porque as estranhezas, que por desagradaveis
persuadírão á regra, por uteis nos conformão com a excéção, sendo que
tem virtude para nos espertarem, quando o embalar da monotonia nos vai
adormecendo. Não por outra causa, vierão os melhores metrificadores
latinos em variar, ainda que rarissima vez, os seus hexámetros perfeitos
com o espondaico ou com um monosíllabo final: ambos nos abalão; os
primeiros em certo modo como os esdruxolos, os segundos como os agudos;
e abalando-nos a propozito, por exemplo para sentirmos a queda do animal
no famoso _procumbit humi bos_, deixão-nos afiados para proseguir com
attenção, e melhor tomar o gôsto ao caminho, que outra vez continúa lizo
e macio, passado o tropêço.

Assentámos o princípio, vejamos se o uso lhe tem sido conforme. A Italia,
attenta a prontidão, e musica de sua lingua, devêra ser d’estes trez
povos do sul o mais aprimorado em toda a qualidade de metrificação, e
todavia he o contrario no hendecasíllabo sôlto, podendo dizer por si o
que o seu Ovidio poz na boca de Narciso, que a sua riqueza a fez pobre:
os seus poetas, ainda os modernissimos, sôbre não curarem dos sons
que recheão o verso, e quantas vezes nem das pauzas, sôbre estirarem
desmesuradamente os seus períodos, consentindo que os versos se travem e
encadêem de contínuo, misturão sem nenhum motivo de effeito, os versos
agudos e esdrúxolos com os graves, segundo o acaso lhos vai deparando.
He o mesmo que succede a quem possue terra de sobejo fertil e facil:
ella que supra por si ás primeiras precizões; trabalhe-se o necessario
para que não falte, o resto, que bastaria para a fazer paraizo, dê-se á
priguiça. Os francezes, que tão menos poetica lingua tinhão, obrigados
por essa mesma pobreza a cultiva-la, esmerados e incançaveis, ¡quanto a
não levão ja por arte, adeante do que por natureza podéra ser a italiana!
são n’uma parte os paúes de Hollanda a produzir; na outra, terras pingues
e dobradas de Otaiti a regalar com pão e frutos espontaneos aos semi-nus
e ociosos naturaes. D’este versejar de italianos, me dizia uma vez José
Agostinho de Macedo, que a maior parte de taes poesias lhe dava a lembrar
as récuas de mulos de almocreve, que enfiados e prezos uns a outros, ao
som dos chocalhos enfadosos, la se vão, ora tropeçando ora erguendo-se,
continuando o caminho, e sempre chegão com a carga onde tem de ir.
Quando assim fallo, quero que se entenda que me não refiro a todos sem
excéção, mas só ao geral d’aquelles poetas. Bem pode ser que os haja
agora primorosissimos que eu não conheça, e dos conheçidos alguns ha com
quem não serei tão severo taes como Monti na tradução da Illiada, Fóscolo
se me não engana a lembrança que d’elle me ficou, Alexandre Manzoni, e
Felice Romani.

Em Portugal, pois que a lingua era tambem préstes e serviçal, e os que
n’ella poeta vão se comprazião de se irem sempre na pista dos Toscanos,
sente-se nos poetas antigos o mesmo desmazelo. La andão com os versos
graves os esdruxolos inuteis, ainda que não frequentes e os agudos aos
cardumes. Camões, que de todos elles foi por ventura o de mais delicado
ouvido, rimando hendecasíllabos, até na epopea não duvidou em os pôr,
quando acaso lhe apparecião, e sem nenhuma intenção ou fito poetico; o
que a Vasco Mauzinho de Quebedo seu inferior em poesia, mas superior, se
he lícito dizê-lo, em metrificar, por tal arte desagradou, que em todo
o poema de Affonso Africano nunca interpolou com elles versos graves, e
d’isso faz alarde em seu prologo.

N’esta incerteza correo a couza até os nossos tempos, em que dois
homens de fôrça, dois athletas da poesia, representando cada um uma das
encontradas opiniões, devião ter perante os olhos publicos um calado
e rijo certame, para decisão ultima da contenda. Foi Bocage o mancebo,
cavalleiro da metrificação liza e uniforme; o velho Filinto da mista
e libérrima. Todo o empenho de Bocage era a harmonia constante, todos
os seus versos forão graves, e de compasso batido. Nascimento queria
por cima de todas as outras couzas dar todas suas ideas, boas ou más,
graudas ou miudas, mui bem pintadas e repintadas, que ainda quando
insignificantes, não deixassem de ferir na vista. Servia Bocage ao metro
como a senhor: Nascimento, como de escravo se servia d’elle, trazia-o
rôto, contrafeito, demudado, e por todas as ilhargas estalando com o
pezo da carga. Se he lícito comparar estes dois poetas com outros dois
romanos, de muito mais subidos quilates, digo, que são na metrificação
hendecasíllaba, o que nos dístichos elegíacos eróticos forão Ovidio e
Propercio. O dísticho de Ovidio he sempre torneado por medida, nada
lhe falta nem sóbra, reluz de polido, e algumas vezes pouco péza: nos
de Propercio ha sempre mais succo de couzas (bastante espremeo d’elles
Ovidio para seu remedio); mas o hexámetro sáe amiude desalinhado, o
pentámetro dissonante da sua usual toada, acabando não em dissíllabo,
como para bem o requer o geito de tal metro, mas em trissílabos e
quadrissíllabos á moda de Catullo; partem-se menos apuradamente os
hemistíchios, embebe-se e embrulha-se em demazia o pentámetro no
hexámetro, e, o que mais rijo he, o hexámetro de um dísticho no
pentámetro do anterior; o que não tira ser Propercio, em meu conceito, um
poeta de mui alta valia (e não sei se diga que o unico amante apaixonado
dos antigos, com licença dos grammaticos e dos priguiçosos que o engeitão
por escuro), e Ovidio um dos mais bem assombrados engenhos do mundo.

Do que levo ponderado, se he exáto como cuido que he, segue-se que nem
Bocage, nem Filinto erão para modellos absolutos, e que tão desacordado
andava quem não consentia em verso que grave não fosse, como quem
esdruxolava por vida e fóra d’aquelles casos em que o esdruxolar traz
em si mesmo a desculpa e o louvor. Entendi que ja por acinte o fazião,
e por acinte contra acinte escrevi essa Nota da primeira edição, que
atraz deixo trasladada. Fôra o voto pueril, conheci-o assim como o sangue
alvoraçado da batalha me esfriou, mas tão sobre maneira se oppunha a
vergonha a uma retratação, que permaneci até hoje sem um esdruxolo em
tantos versos soltos como tenho impresso, e tantos mais que ainda não
saírão á luz. Quantas vezes, compondo a _Noite do Castello_ e o _Bardo_,
não senti tentações e ímpetos de romper e acabar por uma vez com uma
prizão imaginária, que a olhos vistos me estava tolhendo mui bons
effeitos poeticos; e comtudo confrangia-me, esquivava-me, escrupuleava,
e não podia acabar comigo que me resolvesse, podendo dizer como aquelle
rei de França _La se vai tudo, menos a honra_. Os passos d’esses poemas
em que tal me acontecia, por si se estão indo agora denunciando, póstos
os dactílicos imitativos nos lugares, que abaixo do final se podem
reputar pelos mais autorizados e distintos do verso, que são o ponto do
hemistíchio ou pauza do meio verso, e o comêço do seguinte, quando fica
bem cortado e estremado. — D’este livro ao deante me dou por desobrigado
do voto; e eis aqui, me parece, o como lã para os outros me hei de haver:
nunca porer só por pôr ou por me forrar trabalho, verso dactílico; nunca
o engeitarei quando a fôrça, graça ou qualquer outra vantagem da poesia
o requererem. Bem quizera dizer outro tanto dos agudos, mas ahi ainda
o meu antojo he forte; sei que a razão não está menos por elles, e não
ouzo segui-la: veremos o que o tempo, grande causador de mudanças, poderá
trazer comsigo.



NOTA

_de Augusto Frederico de Castilho._

_Pag. 118. verso 6._

    Vejamos, meu Irmão, a tua escolha. &c.


Quando um autor, para publicar os seus pensamentos se entrega á nossa boa
fé o lealdade, os nossos olhos e mãos para logo mudão de dono, ficão
seus; tem de vigiar e selar o depósito confiado, para que nada se lhe
accrescente nem cercêe: qualquer palavra, qualquer vírgula de mais ou de
menos, por muito que as pareção estar pedindo este ou aquelle passo do
texto, são mais que violação de testamento, porque ideas são propriedade
mais real e sagrada do que bens da fortuna. Assim he, mas cumpre que não
seja assim na presente occasião: faltarei ao direito do autor e á minha
obrigação de secretario, para cumprir com outra mais santa lei, a do amor
fraterno, alliviando aqui, e em mais de uma maneira, o meu coração, ás
escondidas do mesmo autor, para quem serão grande novidade estas linhas,
quando de alguem (que não de mim) as chegar a ouvir ler.

Direi em primeiro lugar, que na Festa da Primavera, cujas honras forão
na maior parte a meu Irmão, os versos a que esta Nota vai lançada
tanto abalo fizerão em mim, que pela primeira vez os lia, que eu me vi
necessitado a interrompê-los coberto de lagrimas e afogado em soluços,
para me ir lançar no seio d’elle, protestando-lhe assim, com um silencio
que eu não tive palavras para romper, que os seus dezejos de vivermos
para sempre unidos, ja em mim erão necessidade, e que o pensamento de
separação se me representava tão _atroz_ e _impossivel_ como a elle.
Eu o vi profundamente commovido entre os meus braços, e foi esta a
primeira vez em que nos-fizemos uma declaração tão expressa e amor,
nós que semelhantes aos _Dois amigos_ de Gessner, sempre tinhamos
vivido e contávamos com viver um para o outro, sem ainda uma só vez nos
havermos dado o nome de amigos. O meu voto, ufano-me de o dizer, tem
sido santamente cumprido: ja la vão quinze annos, e eis-me aqui ao lado
d’elle, eis-me tão inseparavel como tinha sido desde menino até áquella
hora! que digo? ainda mais, porque para reparar a perda horrivel que elle
acaba de experimentar; eu carecia de ter agora em mim, em vez de um, dois
ou mais corações para lhe offerecer.

Agora cumpre-me preencher o principal fim d’esta Nota, transcrevendo
para aqui alguns versos parallelos a estes, de um meu Poemetto, que
com o titulo de _Primavera_ recitei n’aquelle mesmo Dia. Os elogios
que o leitor vai achar, não mos inspirou só a amizade fraternal, mas a
convicção em que ainda hoje estou, e hoje muito mais, do subido mérito do
elogiado. Aqui era o lugar de desmentir um grande numero, talvez a maior
parte das sentenças, que sôbre a valia d’estes poemas a sua modestia (em
tudo excessiva) lhe dictou no Ante-Prologo, e principalmente no Prologo
d’este Livro: mas não cuido que a minha licença possa chegar tanto
adeante: calar-me-hei, bastando-me agora ter desabafado, por algum modo,
nos versos que se vão ler.

    E tu, meu caro Irmão, tu me arrabatas,
    Quando magico attráes aos sons da lira,
    As Musas da Danubio á foz do Tejo.
    Oh dize-me onde has visto a Natureza,
    Virgem tão bella para ti sorrindo?
    La na idade infantil, quando teus olhos
    Inda na luz formosos se espraiavão,
    ¿Veio ella mesma perfumar-te o berço,
    Tingir-te em rósea côr dos ceos o espaço,
    Encher-te o ar de ignotas harmonias,
    De affétos orvalhar-te o brando seio,
    E com magas visões doirar teus sonhos?
    Sim veio; e quaes na mente que as afaga
    As maternas feições impressas ficão,
    Taes seu olhar, e voz, e graça, e tudo
    Te vivem, te reluzem pela mente,
    Doirão-te a escuridão, compõem-te um mundo,
    Em silencio te admiro ha longo tempo;
    E até (que fui tão louco) ouzei co’as tuas
    Minhas fôrças medir, tentar-te a gloria.
    Não somos nós irmãos, me disse eu mesmo?
    Não corremos iguaes no longo estudo?
    Pois ha de a lira d’elle ousar prodigios,
    Sem que, para a imitar, desperte a minha?
    Mas que vale o dezejo, o sangue, o estudo!
    Tu sabes remontar-te aos ceos n’um vôo:
    Eu tento, eu me debato, ergo-me, cáio,
    No inglorio chão cançado me adormeço:
    Será pois d’elle só a eternidade.
    Só d’elle? a sua gloria aos dois nos basta;
    Qual nossos corações amor vincula,
    Tal has de unir, ó fama, os nomes d’ambos.
    Com todo o eterno sôpro enchendo a tuba,
    “Este o maior, dirás dos lusos vates!”
    Dirás depois mais baixo: “Este com os olhos
    “Leo e estudou do Irmão, do terno amigo.”



OS CANTOS DE ABRIL IDILLIO.


_O mais deslavado e insôsso Poemetto na primeira edição, erão Os
Cantos de Abril. Só a invenção fôra boa; na execução e estilo revia um
tão contínuo desprimor, que me foi necessario demolir e reedificar.
Por tanto, com o mesmo titulo he obra diversa, muito melhor, mas não
perfeita, porque ja para a emenda da emenda não chegou a paciencia._



DEDICATORIA A MEU PAI.


_He a educação o maior prezente que de homem se pode haver. Vós, meu Pai,
fizestes mais do que educar-me: superior a uma preoccupação tão geral
quão perniciosa, vistes nascer o meu engenho poetico e não o destruistes,
viste-lo crescer e não o contrastastes, senão que antes lhe déstes
amparo, bafo e desvelos. Eis aqui por tanto um reconhecimento da minha
gratidão._

_Oxalá possão estes versos, que me afouto a vos offerecer, agradar-vos
tanto, como os Cantos de Abril, no silencio da noite e debaixo do
parreiral da cabana, agradárão ao bom Menalca._



ADVERTENCIA.


Notar-se-ha que por todos os Poemettos d’este livro se dão sempre versos
á infancia, e n’este Idillio tem ella não uma parte, nem a principal,
senão o todo: se o porque, pode importar a alguem, agora lho direi
brevemente.

Parece-me um Menino, de todas as couzas graciosas que Deos fez u
graciosissima. Aquelle ajuntamento e consonancia de tantos dotes;
formosura, d’elle proprio nem buscada nem sabida; graças que lhe ninguem
ensinou; singeleza e candura; alegria, fraqueza, innocencia; e muito
afféto, e muito mostra-lo; e total descuido do porvir; e não o temer
nada; e a poesia particular do seu dizer; e a sua grammaticazinha natural
que a nó nos faz rir, couzas são estas que apoz si me levão esquecido
e encantado. No trato d’estes botões da humanidade, que vem abrindo,
parece-me, e ja pareceo a muitos, poderem-se lucrar boas vantagens:
ja não fallo em seu bondoso contentamento que talvez se pega, e na
felicidade de recobrarmos horas de meninice, imitando-os, sem saber, a
elles, como elles nos imitão a nós; fallo porem no muito que o nosso
espirito se acostuma então a estremar o bom do máo, e a joeirar cá
dentro o puro do impuro, para nem por sonhos profanar o que das mãos da
natureza saío e se conserva santo. E demais, um Menino não sabe nada,
quer saber tudo, e por tudo nos pergunta: ¿não he isso estar-nos pondo
a caminho de muitos descobrimentos de verdades e relações das couzas,
que nunca aliás por nossa preguiça ou descuido fariamos?—Muitas pessoas
vejo, e faz-me pena, desamarem as creanças, despreza-las, havê-las por
menos de gente, tolher-lhes as fallas, as obras de sua idade, e Deos sabe
se tambem o entendimento: eu por mim, quero-lhes muito, porque entendo
que excedem em valia aos seus desprezadores, e sinto que a mim me levão
grande vantagem em bondade e ventura. De um ajuntamento esplendido mil
vezes tenho fugido para elles: no campo, melhor que em nenhuma outra
parte, saboreio esta doçura a meu contento. Todos os pequenos das aldeas
em que tenho estado me conhecem, e sei que são meus amigos: apinhão-se-me
ao redor em me vendo; invento jogos, historias ou conversas para elles;
divirto-os, divertem-me; uns com outros, e uns de outros aprendemos.

Erão horas bem doiradas essas de minha vida, como as ja tivéra João
Jaques, como as terão tido muitos, e como as poderáõ ter quantos as
dezejarem.

                                          _Lisboa: 7 de Janeiro de 1837._



OS CANTOS DE ABRIL IDILLIO.


    Por um serão de Abril suave e ameno,
    Menalca, a bella Dafne, e seus trez filhos,
    Estavão-se a folgar ante a cabana.
    Por entre as parras do sonoro alpendre
    A mansa lua chêa se enlevava,
    Espreitando esta rústica familia.
    Menalca erà ja velho: os justos Deozes,
    Querendo premiar lhe a larga vida
    Passada em os amar e amar aos homens,
    De Citheréa ao Filho havião dito:
    “Filho de Citheréa, entrega Dafne
    Por esposa na Menalca, a fim que o velho
    Remoce, vendo ao lar a mocidade,
    E a virtude que tem o alegre em outrem.”
    Amor nem sempre aos Deozes obedece,
    Porem amava a Dafne; entrançou logo
    A florente cadêa, e vendo-os prezos,
    Tanto a si mesmo do que fez se aprouve,
    Que ficou sempre entre elles na cabana.

      “Filho de Citheréa, accrescentárão
    Depois os Deozes, da-lhe o teu retrato
    Em filhos, e uma filha irmã das Graças,
    A fim que em seu crepúsculo da tarde.
    O velho inda se alegre, e abrace esp’ranças:
    Da-lhe prole, o fada-la a nós pertence.”
    E Amor lhe déra prole, dois meninos
    Seu retrato, e uma filha irmã das Graças.
    Ja rosas de abril decimo florecem
    No semblante de Silvia; um anno a vence
    Titiro; e vence a este um anno Alexis.

      Menalca, em juncos molles estendido,
    Tem da esposa no candido regaço
    Como em ninho amoroso a branca fronte:
    Pelas feições transpira-lhe bondade;
    O mistico luar o diviniza.
    Dafne o contempla muda, e niveos dedos
    De afagar umas cãs sentem vaidade.
    Elle a querida mão colhe entre as suas,
    Beijada a achêga ao rosto, os fracos olhos
    Derrama pelos céos alumiados,
    E fitando-os na lua “Olhai, meus filhos,
    Olhai, disse elle, como brilha a lua!
    Que suavidade e paz não côa ao largo
    O astro das noites! como attráe da terra
    Nosso espirito humilde a pensamentos
    De outro mundo melhor, mansão de Deozes!
    Que esp’ranças, de saudades misturadas,
    Não traz a pura noite ás almas puras!
    Dias que em vão suspiro, amenos dias
    Da minha mocidade...! agora jazo
    Como arvore das folhas despedida,
    Que mais não florirá, porque o machado
    Ja lhe abrio marca para se ir ao fogo.
    Então era eu cantor chamado ás festas,
    E afamado por longe entre os cantores
    Na frauta e no rabil, porque os meus cantos
    Erão sempre á Virtude e á Natureza.
    Por uns serões assim, como acodião
    Todos a ouvir-me! As Ninfas era fama
    Que descião do bosque, e pelas sarças
    Vinhão pôr mais de perto o ouvido á escuta:
    E os ventos se detinhão, recostados
    Aos duros troncos, sem bolir co’os ramos.
    Té dizião que a frauta, em que eu tangia,
    O benevolo Pan ma déra em sonhos.
    E ora jaz, annos ha, de pó coberta!
    Em tôrno ao meu fogão ja não se apinhão
    Os pegureiros a aprender-me os cantos,
    Meu cabello nevou, nevou minha alma.
    Ah! se não fosseis vós, Dafne, meus filhos,
    Vivido tenho assaz, pedíra aos Numes
    Tornar a ver meus pais n’outras cabanas,
    Onde he perpetua a luz, e a eternidade
    Uma estação de musicas e flores.
    Quando eu la renascer á vossa espera,
    Á tua espera ó Dafne, á vossa ó filhos,
    Resurgirá comigo a minha frauta;
    E com ella enganando aquella ausencia,
    Penosa até no Elisio, em versos novos
    Louvando os Immortaes, e eterno eu mesmo,
    Pedir-lhes-hei comtudo que só tarde
    Vos levem para mim; que vos derramem
    De virtudes e bens copiosas bençãos
    Sempre n’esta cabana, onde hei nascido;
    E que no meu sepulchro o passageiro
    Diga parando—Ó bom pastor Menales,
    Leve te seja a terra, e tu contente
    Porque os teus filhos te excedêrão todos.”

      Aqui sentio caír na fronte calva
    Uma calada lagrima, e doeo-lhe
    Ter nublado o prazer de seus Penates.
    Senta-se, alegra o rosto, enchuga os olhos;
    E unindo ao seio a esposa “Ouvi meus filhos:”
    O cantar diz co’a noite, agrada á lua,
    Contenta á vossa mãi. Cantai louvores
    D’este suave Abril; nunca em meus versos
    Deixei de o celebrar, quando era moço.
    Os pastores de outr’ora Abril sagrarão
    A Venus, graciosa Mãi de tudo.
    Vede-a n’aquella estrella estar sorrindo;
    As glorias do seu mez são glorias d’ella.
    Alexis, principia, eu te acompanho
    Co’a tua mesma frauta; os sons da frauta
    Dão como vida ás solidões da noite.
    Seja a toada a que inventei (quão lédo!)
    No dia que nasceste, e a nossos olhos
    Se doirou de alegria esta cabana:
    Bem a sabes, começa, e Pan te ajude.

    ALEXIS.

    Eu amo o verde Abril, porque he formoso,
    Todo está chêo de arvores vestidas.

    TITIRO.

    Eu amo o alegre Abril, porque he sonoro;
    Vem cantado por bandos de avesinhas.

    SILVIA.

    Eu amo o rico Abril porque he cheiroso,
    Espalha em cada prado um mar de flores.

    ALEXIS.

    A folhagem traz sombra, as sombras trazem:
    Seus folgares da sésta á gente grande,
    E a nós para brincar franca licença.

    TITIRO.

    As aves são dos ares alegria;
    Chamão na madrugada os preguiçosos,
    E divertem na lida aos lavradores.

    SILVIA.

    Flores dão côr á terra, e cheiro ás auras;
    Flores são mãis da fruta; os Deozes rindo
    As crearão, e rindo acceitão flores.

    ALEXIS.

    O Pan que está na gruta do arvoredo
    Não pára senão lá, por mais que o mudem;
    Sinal que um bosque e a sombra apraz aos Deozes.
    Tudo ali he formoso á maravilha!
    Por baixo a fresquidão, por cima o verde;
    A terra de reflexos variada;
    O této sonoroso e movediço;
    Mais alto, o ceo azul, dado ás amostras.
    E que direis do rio entre arvoredos?
    ¿Como se pintão na agua aquellas folhas,
    E o vento que as revolve, e as pombas alvas
    Pelos ramos, e um sol desfeito em muitos?
    Parece que no fundo do remanso
    Tem Pan outro arvoredo, igual em tudo.
    Quando hoje eu lá passava, a Pan dei graças,
    Porque achei que um tal sítio encantaria
    Ó meu Pai, teus passeios solitarios.

    TITIRO.

    Fonte como a das Náiades nenhuma:
    Cantão-lhe em volta passaros sem conto;
    Sinal que o bando alado apraz ás Ninfas.
    Por ali me regala ir espreitando
    Tantos ninhos por entre tantas folhas.
    Admiro a perfeição d’aquelles berços,
    E o tino com que os pobres de uns brutinhos
    Os souberão livrar a soes e a chuvas:
    Aqui uma avezinha inda sem pennas,
    Outra a romper da casca; alem uns ovos
    Branquejão d’entre o musgo, e ja palpitão;
    Se os tóco, sinto dentro o passarinho,
    E fujo com temor que a mãi o engeite.
    ¡Ver as mãis vir do pasto alvoraçadas,
    Darem o almoço aos filhos que pipilão,
    E co’as azas e peito agazalha-los!
    E ver logo os maridos tão contentes
    A gorgear-lhe á roda! o porque o fazem
    Mal sabeis vós; cuidais que he diverti-las!
    Oh que não: he ja dar lições e exemplos
    De canto aos filhos seus: não de outra sorte
    O nosso pai nos ensinou seus versos.

    SILVIA.

    C’roas frescas de rosas cada dia
    De Citheréa ás portas amanhecem;
    Sinal que a Citheréa aprazem flores.
    Todo o anno era Abril se eu fôra a Deoza!
    Nunca no meu altar e ás minhas portas
    Faltarião montões de flores frescas.
    Todas só para ti as cobiçava,
    Ó minha mãi: com ellas te enfeitára
    Cada hora do dia; cada noite
    As renovára ao leito onde tu dormes;
    Não porias teus pés senão em flores.
    Se o passageiro ás vezes me pergunta,
    Quando me encontra á borda do caminho,
    “Quem he a tua mãi?” eu lhe respondo
    Chêa de gloria “A minha mãi he Dafne!”
    Hontem de tarde o graciosa Amintas,
    O pobre guardador das duas cabras,
    Quando o meu pão lhe dei pedio-me um beijo,
    Chamou-me bella, e disse que o meu rosto
    Era como o de Dafne, ou como as rosas.
    Sendo assim, bella sou, que outra pastora
    Igual a minha mãi não ha na aldea,
    Nem flor em todo o mundo irmã da rosa.

    ALEXIS.

    O vizinho Milão, que hoje he tão rico,
    Não tinha mais que uma arvore, e de terra
    Só quanto aquella sombra lhe cobria.
    “Corta-a Milão, dizião-lhe os pastores,
    Alegras teu campinho, e terás lenha
    Para aquecer a choça um meio inverno”—
    —“Eu? respondia o triste, eu pôr machado
    Na boa da minha arvore? primeiro
    Me falte lume alheio o inverno todo,
    Que eu mate a que a meu pai ja dava séstas;
    A que de meu avô me foi mandada,
    Que a não poz para si; e a que nos braços
    Me embalou tanta vez sendo menino.
    Os Deozes a existencia lhe dilatem,
    Que assim lhe quero eu muito, e o meu campinho
    Produza o que podér, que eu sou contente.”—
    Sorrião-se os pastores; o carvalho
    Cada vez mais as sombras estendia,
    E Milão de anno em anno hia a mais pobre.
    Lembrou-lhe um dia, em bem, que uma videira
    Plantada a par com o tronco, o enfeitaria,
    E os cachos pendurados pela cópa
    Lhe darião tambem sua vindima:
    E eis que ao abrir a cova, acha um thesouro!
    Desde então ficou rico, e diz-me sempre,
    Que os Deozes immortaes lhe hão dado em prémio
    Por amar suas arvores. He elle
    Quem mas ensina a amar, são d’elle os versos,
    Com que ao bosque de Pan cantei louvores.

    TITIRO

    Deozes, tocai o peito de Mirtilo
    Porque não sáia máu quando fôr grande.
    Hoje, entrando na mata, o vi la dentro
    Andar armando aos passaros. Que pena,
    Disse em mim; não ser passaro um momento;
    Não poder ir correndo o bosque aos pios,
    E dizendo em cada arvore “Cautella
    Meus irmãozinhos do ar; vejo inimigo;
    Não saiaes; o inimigo anda no bosque...!”
    Paciencia, assim mesmo hei de acudir-lhes.
    Vou-me por entre as moutas rastejando
    Até ao ouco e immenso castanheiro,
    Que abre em seu tronco uma portada de heras,
    E se nomêa a casa de Silvano.
    Trepo, e dentro me escondo: os meus vizinhos
    Lá por cima na cópa papeavão,
    Cuido que adivinhando o que eu faria.
    Encósto a boca á fresta carcomida,
    Que está fronteira ao portico da entrada,
    E clamo em rouca voz “Pára Mirtilo.”
    Parou, ergueo-se, e poz-se a olhar em roda;
    Vendo tudo em socego ás redes torna.
    Com voz mais estrondosa e mais horrenda,
    Torno-lhe eu a bradar “Mirtilo pára.”
    Não esperou terceira: arroja tudo,
    Salta, vôa; oh que riso! uns echos fêos
    Lhe hião gritando apoz “Mirtilo pára.”
    Somio-se; á terra pulo, espreito o mato,
    Acho as redes, os presos sólto, os mortos
    Levo-os onde ôlho de ave os não descubra:
    Encho-as de pedras, na torrente as lanço,
    E corro a procura-lo—“Oh tu não sabes,
    Lhe digo, de que morte escapo agora!
    Não te engano, era um Deos, vi-o eu, rangia
    Os dentes, bracejava uma alta fouce,
    Vinha a saír das sombras do arvoredo;
    Vio-me e gritou me “Pára” eu páro e chóro.
    —“Es tu que andas armando ás minhas aves?
    Pois eu vou dar-te o ensino; as tuas redes
    Ja te lá vão por esse rio abaixo,
    E agora has de ir tu morto á caça d’ellas.”—
    E então vem para mim, co’a fouce aos lanços
    Cortando pelo ar—“Bom Deos, perdoa,
    Lhe grito a soluçar co’as mãos erguidas,
    Eu sou Titiro, o filho de Menalca,
    As tuas aves amo, e temo os Deozes:
    Eu redes, eu caçar!”—“Estou perdido!
    Disseste que eu ... Mirtilo me interrompe.”
    —“Não, Mirtilo, socega, eu não lho disse,
    Nem sabia que tu ... fallemos baixo
    Que nos não ouça o Deos. Olha, este p’rigo
    Passou, mas outra vez não te aventures,
    Que eu bem sei como o vi, não te perdoa.
    Deixa ás pobres das aves innocentes
    Divertir-te e cantar; nada mais querem;
    Não tens razão, não teus de as perseguires.
    Quanto ás redes, eu quero consolar-te:
    Ouve Mirtilo, acceita este cestinho
    De cana entretecida em juncos verdes,
    E este meu cajadinho em boa altura
    Liso, airoso, e sem nós.”—Assim dizendo,
    Enfiei-lhe no braço o meu cestinho
    De cana entretecida em verdes juncos,
    E entreguei-lhe o cajado. Então Mirtilo
    Me abraçou, e saltando de contente,
    Jurou-me nunca mais armar ás aves.

    SILVIA.

    Glicera por vaidosa he que ama as flôres:
    Apanha-as para si não para os Deozes,
    Não lhas merece a Mãi e alcança-as Mopso.
    Quando em nosso jardim vejo Glicera,
    Ja me eu ponho a tremer: corta as melhores,
    He seu costume; enfado-me, sorri-se;
    Chóro, ri-se; e enfeixando-as, me repete:
    “Que te servem por ora estas floritas?
    Deixa passar mais cinco primaveras,
    E então sim, nem mais uma hei de furtar-te;
    Pois sei te hão de servir quaes me hoje servem.”
    Coitado de quem he como eu menina,
    Que se manda esperar por primaveras!
    Que podia eu fazer? queixei-me ás Ninfas.
    Hontem, ja pôsto o sol, quando erão horas
    De logo vir Glicera, a presumida,
    Que furta e vai cantando; ajoelhei-me
    Co’as mãos póstas por entre as minhas flôres.
    E disse: “Como as arvores tem ninfas,
    Que lhes morão la dentro e as aviventão,
    Ha ninfazinhas a velar nas flores.
    Ninfazinhas das flores, escutai-me:
    Se a rega, com que as folhas aquecidas
    Vos refresquei ha pouco, vos foi grata,
    Olhai por vós, fazei com que Glicera,
    Como eu vos vi e ouvi, vos veja e ouça;
    Apparecei-lhe como a mim, por sonhos,
    Vestidas de mil côres, perfumadas,
    Pequenas, mui mimosas, e só outras
    Em não mostrar-lhe a ella um ar festivo.
    Dizei-lhe como os Deozes vos crearão
    Para amores de zefiros, recreio
    De borboletas e olhos, e formosas
    Copeiras do formoso mel doirado:
    Dizei-lhe que tão bella e curta vida
    Não se deve encurtar, que as deshumanas
    Tem máo fim, que apezar de passageiras,
    Ninfas sois, e o Destino ha de vingar-vos:
    Que se tornar sacrílega a colher-vos,
    Vossos fragrantes ultimos suspiros
    Seráõ de queixa aos ceos, e antes de tempo
    As rosas no seu rôsto hão de murchar-se.”
    Como eu isto dizia, entrou Glicera:
    Murchas trazia as rosas de seu rôsto,
    Não rio, nem colheo nada, e suspiráva.
    Penada de a assim ver, beijei-a, e disse:
    “Se alguma d’estas flores te contenta,
    Eu mesma a vou cortar.”—“Não (me responde)
    Ja não quero mais flores, Mopso ingrato
    As que ultimas lhe dei deo-as a outrem:
    Como as flores me engeita hei de engeita-lo.”
    Ao que eu logo acudi—“Vês tu, Glicera,
    Fallei verdade ou não? nascem as flores
    Só para as nossas mãis, e para os Deozes,
    Da-lhas tu, e verás se hão de engeitar-tas.”

    MENALCA.

    Basta meus filhos, basta; não ha sombras
    Tão gratas no verão, cheiro de flores
    Tão suave, ou tão ledo canto de aves,
    Que me recrêem como os vossos versos.
    Vinde, vinde, abracemo-nos, ó filhos:
    Dei-vos eu a doutrina; engenho os Fados;
    Mas os Deozes virtude: alcatifais-me
    De bem viçosa esp’rança o meu declivio:
    Dais-me o que nem pedir ouzava aos Deozes.
    Antevejo a florir-me a sepultura ...

    DAFNE.

    Entremos na cabana: aquella nuvem
    Quer encobrir a lua; ergueo-se o vento,
    Não tarda muito algum ligeiro orvalho.



NOTA AO IDILLIO.


Na muita rama que ao Idillio decotei para esta segunda edição, ninguem,
por mais que a cate, poderá achar fruto, nem sequer uma triste flôr,
se a não he o passo que para aqui traslado, da falla de Alexis pag. 96
na primeira edição; ácerca do qual e de tudo o mais quanto supprimi ou
accrescentei, releva reclamar pela maior indulgencia dos leitores. Não ma
negará quem ja alguma vez houver experimentado como de todas as couzas,
que parecendo tenues, são agras e laboriosas, a mais agra, laboriosa, e
não sei se diga impossivel, he poetar e metrificar as fallas da infancia:
caminho he esse que estreitissimo corre por entre precipicios, sendo
maravilha que ahi os maiores engenhos se tenhão, e sigão sem caír ou para
a direita ou para a esquerda. O primeiro e melhor juiz do homem candido
he a sua consciencia: a minha me diz que os trez filhos de Menalca nem
sempre, antes poucas vezes, fallão como conviria: de sobejo são poetas
para meninos e rusticos; e tanto, que se não fôra a resalva, que logo
do comêço lhes vai lançada, de serem filhos de improvizador, e por elle
doutrinados no canto, não haveria perdão que de ridiculos os salvasse.

Segue-se o excerpto, com todos seus defeitos e aleijões de nascença:

    O MENINO ALEXIS.

    Ver-me no bosque de prazer me enchia;
    Quando Amintas, chamando-me da gruta,
    Aonde estão de musgo revestidas
    As imagens das Náiades da fonte,
    Assim me disse, dando-me uma rosa:
    —“Eu te darei uma pequena ovelha,
    Toda branca, na testa só malhada,
    Se fores ter com Egle, e lhe entregares
    A rosa, que te dou, se lhe disseres
    “Egle, Amintas por ti morre de amores.”
    Beija-a depois na face, e continúa;
    “Egle, este beijo é do extremoso Amintas.”
    ¿Não a vês la ao longe entre os salgueiros,
    Apascentando as candidas novilhas?
    Corre; e não tardes a buscar a ovelha.”—
    Eu fui correndo a ella, dei-lhe a rosa,
    Beijei-lhe a face, e disse-lhe: “Este beijo,
    Egle, este beijo é do extremoso Amintas.”
    Nada me respondeo, sorrio-se, e as faces
    Como a rosa encarnadas lhe ficárão.
    Abraçando-a depois, lhe disse alegre,
    “Egle, Amintas por ti morre de amores.”
    Rio-se outra vez, e dando-me na face,
    “Oh como tu és máo! vai-te, me-disse,
    Não posso ... não, não quero acreditar-te.”
    Nada lhe respondi, voltei á gruta,
    Onde o Pastor contente e alvoraçado
    Me deo sem custo uma pequena ovelha
    Toda branca, na testa só malhada.
    ¡Como a minha ovelhinha é bella, e mansa!
    Andei com ella todo o dia ao pasto
    Pela relva do bosque, etc.



A FESTA DE MAIO

POEMETTO EM DOIS CANTOS.


_Se nos trez Poemettos precedentes pude fazer muito mais do promettido
no Prologo, n’este último fica a minha palavra empenhada. Pouquissimos
de seus defeitos mais palpaveis cheguei a apagar, e esses quasi só de
linguagem. Receoso de me vir a faltar o tempo ou o animo, se desde a
primeira pagina do Livro me começasse a esmerar seguidamente, fôra minha
primeira occupação ir por todo elle despontando, á ventura e sem ordem, o
que me apparecia pessimo, justamente como no Prologo deixára promettido.
Conheci logo que este trabalho era insufficiente: entrei no outro mais
miudo e ordenado; refundi a cito_ a Epistola, o Dia da Primavera, os
Cantos de Abril, _nenhuma das quaes Obras cheguei com tudo a lustrar. A_
Festa de Maio, _por ser a derradeira, quasi ficou, e até nova edição (se
algum dia se fizer) ficará, como era. O maior bem que lhe pude fazer, foi
abri-la em dois Cantos, para que o leitor achasse marco onde descançar em
tão enfadonha e comprida estrada._



DEDICATORIA ÁS SENHORAS DA LAPA DOS ESTEIOS.


SENHORAS,

_A segunda tarde, que passámos em Festa na vossa Lapa, não tem jamais
de nos esquecer. O vosso gracioso e cortez descer a ouvir-nos, as
carícias com que amimastes o nosso Maiozinho, dando-lhe entre vós
assento, detendo-o nos regaços, beijando-o, ¿como he que nos não havião
de cativar, a nós, que o cingíramos de suas galas, o sentáramos em
throno, pôsto que menos para apetecer, e o levantáramos por Divindade em
nossos Cantos? Finalmente aquelle vosso generoso trocar de nome á Lapa,
querendo que por nosso respeito se ficasse chamando_ dos Poetas, _em
tamanhos obrigações nos pozerão, que as Musas nos acodiráõ para um dia
vos provarmos que nós, Sacerdotes seus, não somos ingratos. A minha, de
mais atrevida que he, me envia adeante, a tributar-vos este Poema, que
pois o approvastes, ja não he de vós indigno. He prezente de uma Deoza do
Parnaso, não podem as trez Graças rejeita-lo._



HISTORIA DA FESTA DE MAIO.


Pelas trez horas da tarde do primeiro dia de Maio de 1822 ja nós, a
Sociedade dos poetas _Amigos da Primavera_, nos achávamos á sombra das
arvores, pelo Encanamento do Mondego, esperando anciosamente o batel, que
nos havia de tornar á Lapa dos Esteios, para celebrarmos a Festa de Maio:
de tantos que lá fôramos no Dia da Primavera, só faltava _Anfrizo_, em
cuja vez recebêramos _Antíono_, mancebo mui dado a bons estudos, versado
na lingua e poesia allemã, e autor ja então de Anacreonticas e Idillios
de muito preço.

O suspirado batel acudio cedo á nossa ancia: todo toldado, alcatifado e
cingido com mui curiosas invenções de verdes e flores, vinha parecendo
o naviozinho do _Primeiro Navegante_. Abica, saltâmos-lhe dentro todos
juntos; larga, vogâmos contentes e cantando. Quem bem quizesse pintar com
a penna affétos do coração, não achára bastante um volume para historiar
esta só tarde. Dezejára eu muito convidar cortezmente meus leitores a nos
acompanharem, tomando seu quinhão em nosso folgar; mas não o posso, e
ainda mal, que o de maior valia fica-lo-hão perdendo. Hiamos todos tão
unidos em vontade, conformes em gôsto, feriados de cuidados, crentes na
ventura, chêos e cercados de poesia, e namorados da natureza, que os
todos só parecião um, um só moço, transportado em bemaventurança.

Ora cantando, ora encarecendo, quasi adorando as varias gentilezas
que a perto e a longe, e por toda a parte se presentavão e renovavão
de contínuo, aportámos apoz uma hora, na formosa Lapa dos Esteios.
Erguemo-nos, vozeâmos, voão do barco para o ceo foguetes que todo o ar
estrugem, e para a margem os hinos de uma orchestra que comnosco hia. Diz
a musica muito com todos os affétos da alma, mas do contentamento, onde o
ha, faz alvorôço, que muitas vezes prorompe em lagrimas. D’esta maneira
triunfal saltámos para o cáes, voámos ao alto da Lapa. Conhecia-nos o
sítio pelos mesmos, desconheciamo-lo nós por melhorado: obrados erão
sobre a natureza milagres de Maio. Ja as arvores alardeavão ás virações
montes de folhagem, que pelo ar se embalavão ao sol; era agora o rio
ainda mais puro, os ares mais temperados e benignos. ¿Quereis haver
alguma idea da habitação das almas felizes? quereis pintar os lugares
onde as Ninfas, os Faunos e Pan apparecião aos pastores innocentes na
idade de oiro? entrai a Lapa dos Esteios pelos graciosos dias de Maio.
He a Primavera nos princípios uma linda menina; mas não sabe firmar o
passo, balbucia, tudo teme, não se decide em nada, suas graças ja se
annuncião claramente mas ainda se não desenvolverão; em Maio he moça toda
viçosa de mocidade, a quem ledos cortejão Amores e Prazeres, cujo sorrir
endoidece o pensamento, e vai entender com os corações. Tinha a Natureza
dado a segunda mão e ultima ao lugar; mas a Arte quizera entrar com ella
á competencia, sem comtudo lhe desacatar a primazia: tudo estava varrido
e puro e concertado de um sem numero de vasos de muitas, e finissimas
flores.

No alto assentámos o altar do Deozinho Maio: todo elle era verdura; duas
colunas, artificiosamente fabricadas de flores, e rematadas em umas
maçanêtas de igual marmore, se alevantavão dos dois cantos da frente, e
communicando-se no cimo por um semicirculo, que na materia e primor não
desdizia do resto, ajudavão a formar um genero de portico bem vistoso e
engraçado; os lados, fundo e abobada do recinto erão de ramos verdes de
todas as qualidades, bem entrelaçados e bordados de frescas e vermelhas
rosas; no meio estava um assento pequeno, á feição de poial rústico,
tecido de lustrosas heras, onde se via recostado o Maio em acto mui
gentil, e com um geito todo seu. Era um Menino de cinco annos, louro como
o sol, e alvo como a neve, cabellos crespos e annelados, caídos por um e
outro hombro: de roupagem, não tinha outra de seu que um aventalinho,
que debaixo dos peitos lhe descia aos joelhos; o qual, assim como os
listões que de cima dos hombros lho vinhão tomar encruzando-se por
deante e pelas costas, estava recamado de cedro e buxo, com sua orla mui
accesa de flores de romeira, cravos, e rosas: calçava cothurnos de seda
escarlate; na cabeça ostentava corôa de verdura, e do braço esquerdo como
que acenava ás vontades com um cabazinho, farto dos frutos do seu tempo;
e tudo por modo tal, que a bôca se não sabia determinar se o diria nu
ou vestido, nem a fantasia dos poetas se o quereria simples Menino, ou
verdadeira Divindade.

Mandámos por dois dos nossos vizitar e convidar para a Festa as amaveis
Senhoras, cuja he a Lapa, as quaes na quinta que por cima fica tem seu
perpétuo domicilio. Não tardarão: recebemo-las como convinha, nós com
a festa dos nossos musicos, e com muitos seus abraços as Senhoras, que
abaladas dos annuncios de tão bôa tarde, nos tinhão feito a honra de
acudir ao sítio. Ja era crescido o auditorio, e muito para contentar
e accender engenhos: fomo-nos uns a outros seguindo com os poemas que
levavamos, os quaes em fórma de rito religioso, se recitavão em pé
deante do altar, fazendo a nossa orchestra uma harmoniosa ráia de poema
a poema, que para tudo as tardes de Maio deixão tempo. Poz-se-lhe remate
com os vinhos e saudes d’uma saborosa merenda, como á primeira tarde da
Primavera se havia feito. Passou-se o serão parte pelas salas, outra
parte pelo jardim das nossas hospedeiras.

A noite era uma das mais bellas de tal mez: a lua brilhantissima despedia
até os horisontes um clarão quasi diurno, não se enxergando nuvem por
todo o descampado do seu céo; refletia-se, e desenrolava sua alcatifa de
movediça prata ao longo d’esse Mondego tão digno de seus amores; o ar era
tão manso e quêdo, que as luzes, curiosamente distribuidas por entre os
vasos de flores, nem de leve estremecião; suave era de ver sair por toda
a parte d’entre planta e planta uns reflexos verdejantes mui amigos dos
olhos, muito mais da fantasia de poetas.

Prazeres que o coração estriou por uma noite assim enfeitiçada, não são
para se poderem pintar. Pouco tardou que a sociedade, como acontece, se
não soltasse e dispartisse em ranchos pequenos: a musica errante e fóra
dos olhos, umas vezes folgando, suspirando outras, e outras como quem
sismava algumas amorosas mágoas, hia-se ja pelos arvoredos da quinta,
ja ribeiras do rio acima e abaixo, tão grata, que ainda não sei couza
que mais quizesse. Muitos e muitas baillavão arcadicamente sob a abobada
do céo, em quanto nós outros, os que das Musas só fôramos fadados para
versos, os estudavamos e repetiamos á porfia. Algumas semelhantes horas
devia ter passado o primeiro que escreveo Elisios.

Era a noite crescida para muito alem do meio, quando nos despedimos; e
la foi caír na eternidade um dia, que ainda agora me persegue saudoso, e
apoz o qual nenhum outro veio semelhante.



A FESTA DE MAIO.

POEMETTO

CANTO I.


      Eia, amigos, ao campo! ha ja trez horas,
    Que os Tindáreos Irmãos no aéreo espaço
    Vírão do meio dia o rôsto ardente:
    Eia, amigos, ao campo! as horas vôão,
    E o Maio alegre ás féstas nos convida:
    Os Zéfiros ligeiros, embalando
    Do parreiral a trémula folhagem,
    Ao rio, ao barco estão chamando a turba.
    ¿O Deos Menino, o gracioso Maio
    Não vamos celebrar na fresca Lapa?
    Pois que se tarda? os Numes não consentem
    No culto seu ministros preguiçosos.
    Chamai á pressa as pastorís Camenas,
    Tomai as flautas, coroai as frontes
    Co’as grinaldas, que em premio vos cingírão
    Da Primavera no primeira tarde.
    Como! o tempo ... (ai da flor da mocidade!)
    O tempo as destruio! de graças tantas
    Que existe pois? um pó. Jazem desfeitas,
    Sem perfume, sem côr as lindas flores,
    E as verdes folhas se enrolárão murchas!
    Ah! corramos; o pezo, que as esmaga,
    Róla tambem sôbre a existencia nossa:
    Nossas grinaldas nos festins vivêrão,
    Morrêrão no prazer; e nós, como ellas,
    Devemos esperar, brincando, a morte.

      Cedo nos hombros do nervoso Atlante
    O eixo voluvel em perpétuo giro
    Ha de erguer ante o Sol novas esferas:
    O Touro ja fugio: Castor, e Pollux
    Succedêrão-lhe agora: hão de apoz elles
    Os astros scintillar, que nos conduzão
    Da estiva calma os importunos tempos.
    Então fenecem pelo campo as flores,
    Tépidas correm na planicie as fontes,
    Calão-se as aves nos cavados troncos,
    E fallece a frescura ás proprias noites.
    Vamos, emquanto as flores não perecem,
    Emquanto soprão lisongeiras auras,
    Emquanto um doce frio as ondas levão,
    Emquanto as aves pelos ares cantão,
    E as claras noites co’a frescura aprazem;
    Vamos correndo: de vergonha córe
    Quem último chegar do rio á margem.

    ¡Graças aos ceos, que a suspirada arêa
    Ja pizâmos emfim! mas pelas faces
    Abrazado suor me está caindo.
    Inda o barco não chega: eia, sentai-vos.
    D’esta aura carinhosa ao fresco sôpro
    Quanto he doce voltar o rosto ardente,
    E ora uma face, ora outra offerecer-lhe!
    Ella as beija brincando, e espalha em ondas
    Os escuros anneis, que lhas roubavão.

      Verde canavial, salve trez vezes!
    Co’as boliçosas, arqueadas folhas
    Nos escondes a rir de Febo aos olhos.
    Ninfa adorada pelo Deos da Arcadia,
    (Deos dos pastores, inventor da flauta)
    Sacrilego furor não nos incita:
    Não te offendas se agora as nossas dextras
    De tuas canas adornadas vires:
    Sua altiveza airosa nos agrada,
    Vates somos, os trémulos seus cumes
    Ondulando, os lascivos seus abraços
    A cada viração que vai fugindo,
    Tudo isso nos namora, e diz poesia.
    Não te offendas ó Ninfa, ei-las colhidas!
    Gravai com ellas n’esta arêa os nomes
    Das vossas bellas, imprimi-lhe um beijo,
    E partamos, que o barco ahi fere a margem.
    Bem: eu lancei da Primavera o nome
    Em caratéres taes, que ao longe possa
    Lê-los o pescador no fim da tarde.

      Eis-nos emfim nas transparentes ondas!
    Agora cumpre diligencia, esfôrço,
    Para vencer as fugitivas aguas.
    Ferva o trabalho, as varas não descancem;
    No fundo leito redobrai os golpes,
    E suavisai com musica a fadiga.
    Eu deitado na pôpa, eu dicto os versos;
    Cantai, e o echo em baixa voz aprenda.

      Ouvi Ninfas do placido Mondego,
    Ouvi com ledo rôsto as preces nossas.

      Saí correndo das limosas grutas:
    Occultas no cristal do patrio rio,
    Vós podeis impellir co’as mãos de neve,
    E fazer que o batel, qual aguia, vôe.
    Bellas Filhas do lúcido Mondego,
    Vamos passar a tarde á grata sombra,
    Das lindas Graças na famosa Lapa.
    Ali, se acaso não me illude o estro,
    Vós, Ninfas, vós com ellas muitas vezes
    As noites do luar passais em danças:
    Sôbre um tronco musgoso Amor sentado,
    Para acertar as rápidas choréas
    Com saudosa flauta a Noite acorda,
    E Venus compassiva lhe desata
    Dos olhos entretanto a escura venda.
    Mil Amorinhos sem farpões, sem facho,
    (Nem onde vós estais carecem d’elles)
    Vôão aqui e ali por entre os ramos.

      Ouvi Ninfas do placido Mondego,
    Ouvi com ledo rôsto as preces nossas.

      Dai-nos breve chegar, sereis cantadas;
    E iremos outro dia erguer altares
    De cada vosso chôpo á sombra amiga,
    Pondo-lhe em roda uma vistosa grade
    D’aureas canas com murtas revestidas:
    Em vossas ondas lançaremos rosas,
    E puro leite, e saboroso vinho.
    Porque tardais, ó Náiades esquivas?
    Turba innocente de mancebos rindo
    Bem merece o favor dos sacros Numes.
    Nós não vamos em lenhos alterosos,
    Roçando as nuvens com soberbas velas,
    C’o ferro a lampejar nas bravas dextras,
    Levar da guerra a furia aos outros povos,
    Lançar em fogo os bosques, e as cidades,
    Para voltar aos mares tormentosos
    Co’um pouco do metal, que gera os crimes:
    Nós vamos procurar vizinha praia
    Para rir, e beber de Maio em honra;
    Vamos c’roar-nos de verdura, e lirios,
    Cantar ao som da flauta a Natureza,
    Dançar no meio de innocentes gostos,
    E longe dos mortaes, viver ditosos,
    Poucas horas sequer, na paz dos campos.

      Ouvi, Ninfas do placido Mondego,
    Ouvi com ledo rôsto as preces nossas.

      Terra, terra: éstas árvores das margens,
    Que ora nos vão passando sôbre as frontes,
    Convidão a colher sua folhagem:
    Saltai, colhei os mais viçosos ramos,
    Teça-se um tôldo, que nos roube á calma.

      Ávante! adeos, ó Driades, ficai-vos
    Em doce paz; o orvalho vos fecunde;
    Ache vossa raiz no estio as aguas
    Tão abundantes, como as tendes hoje.
    Nós vamos celebrar o mez das flores,
    Quando voltarmos vos daremos graças.
    Ávante! não cesseis, alegres nautas!
    Cantai: eu voas ensino um canto novo.

      Das Filhas de Nereo a mais formosa
    Foi Galatéa candida, e rosada.
    Por seus olhos azues morreo de inveja
    Aglaia, irmã de Amor; a curta boca
    Ciumes acendeo no peito d’Egle,
    Bem que da boca d’Egle um doce beijo
    O scetro pagaria ao rei dos Numes;
    E Eufrosina, entre os Deozes celebrada
    Pelos aureos anneis da longa trança,
    De Galatéa a trança cobiçava.
    E o seio! o seio túrgido e nevado,
    Mais nevado que a espuma em que se tornão
    Na frente de um cachopo as crespas vagas,
    O seio era melhor que o teu, ó Cípria!
    Treze vezes floríra a primavera,
    Depois que aura vital gozava a Ninfa,
    E ja no mar, no ceo, no mundo inteiro
    Das bellas todas triunfava a bella,
    E ais e louvores a seguião sempre.
    Nereo, chamando-a á funda gruta um-dia,
    Assentou-a nos trémulos joelhos,
    Ao hombro lhe lançou paterna dextra,
    E beijando-a lhe diz.—“Assaz he tempo,
    “Filha, de rematar da infancia os brincos.
    “Tu conheces teu rôsto, ¿e não conheces
    “Que he preciso fugir á turba insana,
    “Que te rodêa, que te chama bella?
    “Crê tu nas cãs de um pai, de um pai no afféto;
    “Quanto mais suas fallas te agradarem,
    “E mais seus modos lisongeiros vires,
    “Mais pérfidos serão. Cabe a meus annos
    “Dar prudente conselho á tenra idade;
    “Perdoa-me, acautello-te a innocencia.
    “De meus delfias o lúbrico rebanho,
    “Desde hoje apascentar he teu cuidado:
    “Não convem á belleza ociosa vida.”—
    Disse, e poz-lhe na mão, como a pastora,
    Cajado de coral com ponta d’oiro;
    Entregou-lhe a rebanho, e conduzindo-a
    De seus mares a um placido retivo,
    —“Fica, pastora, aqui, lhe-disse o Velho,
    “Vir-te-hei vêr muita vez.”—Rio-se, e deixou-a.

      Alguns dias ali viveo contente
    Com seu rebanho a equorea pegureira.
    Ora entre as moutas dos coraes ramosos
    O levava a pascer os brandos limos,
    Ora ao marinho cão deixando-o entregue,
    Hia colher das perolas as conchas.

      Uma tarde de Maio, quando aos braços
    De Thetis vio que o sol hia descendo,
    Ouzou sair do fundo, e foi sentar-se
    A gozar do espétaculo dos bosques
    Na alegre entrada de uma verde gruta.
    Nas ondas por acaso então nadava
    Acis gentil de encantadores olhos:
    Vio-o, e visto, calou seu canto alegre;
    Sólta um suspiro, e se perturba, e córa.
    Do paternal preceito inda lembrada,
    Quer na gruta esconder-se até que parta
    Das ondas o mancebo: eis se arrepende,
    Ja não quer occultar-se, e quer que a veja.
    D’entre o verde do mar o níveo corpo,
    Que os olhos cega, e o coração cativa,
    As proporções, a ligeireza, a graça,
    Com que agora se occulta, agora assoma,
    E em modos mil as posições varía,
    Tudo, tudo a detem. De quando em quando,
    Sem conhecer que o faz, se lhe aproxima;
    As tranças, que trazia ao vento sôltas,
    Sem saber o porque, reparte e lança
    Sôbre os hombros de neve, e cobre o seio:
    Consulta no mar lizo a propria imagem;
    Quer mais bella tornar-se, e mais não póde.

      Cançado de banhar-se o Moço emtanto
    Vinha a praia ganhando: ella assustada
    Corre á gruta; ali cora, ali desmaia,
    Quando o mancebo, quando o pai lhe lembra.
    O bello nadador não tarda muito,
    Entra na gruta, onde largára as vestes ...

      Amigos, vós parais como esquecidos?
    Deixais que o lenho na corrente desça?
    Ah! voltai ao trabalho; e por castigo
    Não ouvirèis do alegre canto o resto.

      Novo me inspira agora esse murmúrio,
    Com que a Fonte das lagrimas se lança
    Da serpeada varzea ao rio aberto.

      Junto á fresca matriz d’este ribeiro,
    Onde gozou em seculo remoto
    O mais ditoso par de amor os mimos,
    Meu estro agora placido voltêa
    Por entre os cedros, e os feraes ciprestes;
    E ora ao lago pacífico se arroja,
    Ora da fonte nos penedos pouza.
    Comvosco não existe o vosso amigo;
    Gira fóra d’aqui no sítio umbroso,
    La conversa co’a Musa, aprende, e canta
    Gratas histórias dos passados tempos.

      Uma noite de Maio Inez formosa,
    Ao pallido clarão da argentea lua,
    Com seu Pedro fiel aqui vagava.
    De seu candido amor primeiro fruto,
    Lindo, qual dos Amores o mais lindo,
    Um tenro filho, que a fallar começa,
    Co’a pequenina mão á mãi seguro,
    A passos desiguaes a acompanhava.
    No dextro braço do gentil consorte
    O alvo braço despido entrelaçando,
    Languidamente a bella se apoiava.
    Traja da côr da neve, ornão-lhe as tranças
    Rúbidas rosas que reveste o musgo:
    Sob um véo raro e sôlto arfão dois peitos,
    Que estrema, que matiza, e que perfuma
    A flor, que he d’entre mil só digna d’elles,
    O amor perfeito em fresco ramalhete.
    Pelo silencio, e paz da noite amiga,
    Nos extasis de amor arrebatados,
    Ebrios ambos do nectar da ternura,
    Vagueando em seu ermo, respiravão
    Todo quanto prazer nas almas cabe.
    —“Inez, dizia Pedro, olha estes cedros,
    “Que doce murmurando agita o vento!
    “Olha as aguas do tanque, onde tão clara
    “Se está dos Ceos a Lua retratando!
    “Ouve o rumor das ondas transparentes,
    “Que vem brotando da cavada penha!
    “Cara Inez ... ah! calemo-nos; escuta
    “O amante rouxinol como gorgeia!
    “Não o sentes mui proximo? quem sabe!
    “Talvez que em teu jardim celébre agora
    “Ao lado de uma esposa os seus prazeres:
    “Se assim he, refinai perfume, ó flores,
    “E vós levai-lho, zefiros da noite,
    “No instante em que Himeneo tem de ajuntal-los.
    “Ó minha Inez, não ser inda possivel
    “Confiarmos á luz nossa ventura,
    “E eu dizer, sou de Inez!...”—N’isto o mancebo,
    Apertando a seu peito o braço d’ella,
    De beijos lhe inundava a mão mimosa.
    Em silencio e cuidosa a linda Castro
    Parava contemplando os ceos, o esposo,
    E unindo a regia dextra ao seio oppresso,
    Dava a resposta n’um fiel suspiro.
    —“Oh! (dizia depois) que Deos contrário
    “Ao terno amor, á candída innocencia,
    “Poz peito, ó doce encanto, a separar-nos?
    “Quão melhor fôra haver nascido em choças!
    “La, tendo por imperio um só rebanho,
    “Lãs por purpura, e flores por diadema,
    “Pedro fôra pastor e Inez pastora.
    “Teu solio quantas lagrimas nos custa!
    “Mas se fosse teu solio um manso outeiro,
    “Docel um parreiral firme em colunas
    “Das que dão fruto e flor, saude, e agrados,
    “Não cortíra em meus sonhos o remorso,
    “Teu coração ninguem mo disputára,
    “Não se encobríra o meu amor ...”—“Oh cessa,
    “Cessa (Pedro lhe diz interrompendo-a):
    “De que servem, querida, essas lembranças!
    “Se te adoro, que temes? se me adoras,
    “Que posso eu mais querer! Virtudes tantas,
    “Raros dons quaes os ceos em ti resumem,
    “Não são para jazer na escuridade;
    “Dos reis, de teus avós te poem no estrada,
    “Para luzires nos corrutos dias,
    “Como astro de bondade entre os humanos.
    “Gozemos do prazer. Olha esta noite
    “Como he formosa, minha Inez; não tornes,
    “Eu to peço por mim, por ti, por esse
    “Fruto do nosso amor que te he tão caro,
    “Não tornes a acordar taes pensamentos.
    “Queres tu, minha amada, á curta noite
    “Dar emprego melhor, mais proprio d’ella?
    “O assento ao pé da fonte nos convida,
    “Vem-me outra vez cantar os magos versos,
    “Onde quasi exprimiste o enlevo d’ambos,
    “Quando a primeira vez nos vimos juntos
    “Tambem de noite, e n’este sítio mesmo.”

      Disse, e Inez imprimindo-lhe nos labios
    Co’a meiga curta boca um longo beijo,
    —“Vamos, responde, apraz-me esse meu canto,
    “E agradar-te, inda mais; partamos logo.”—
    Diz, e ja leva ao collo o seu filhinho.
    Forceja o pai furtar-lhe o doce pezo,
    Ella a ninguem o cede:—“O meu menino
    “He meu, lhe diz; quando eu tiver meninas,
    “Dar-tas-hei, desde ja chama-lhe tuas;
    “Pertence o filho á mãi, e ao pai a filha.”—
    Sorrindo com ternura o ledo Amante,
    —“Ser-me-ha dado, lhe diz, que de teu filho
    “Ao menos colha uns beijos que me deve,
    “Ou hei de só com os teus ficar contente”?—
    —“Se tos deve meu filho, eu vou pagar-tos”
    Inez responde, e lhe pagou mil beijos.

      Chegados são aos bancos do rochedo.
    —“Ja do sol o calor morreo na pedra;
    “Para assento, he mister ser estufada.
    “Não rias, o brocado hão de ser ramos;
    “Para a pastora Inez, nenhum mais proprio”—
    Voa ao proximo cedro, os ramos corta,
    Alastra-os sobre o marmore, e reclina
    O infantinho, que pósta a loira fronte
    No maternal joelho, eis adormece.

      Absorto no painel delicioso,
    Não podendo parar nem desviar-se,
    Como homem, que formosa feiticeira
    Prende e agita n’um círculo encantado,
    Vaga o Principe á luz voluptuosa
    De lua por entre arvores. Desponta
    No ermo silencio o canto namorado!
    O suave da voz, o doce estilo,
    A musica tocante, a frase meiga
    Alhêão-no de si, todo elle he fogo:
    Não conhece onde está, quem he não sabe:
    No cahos do prazer, em que se abisma,
    Só vê brilhar Inez, Inez só ouve;
    E qual se nunca em braços a apertára,
    E virgem melindrosa o ceo benigno
    Lha houvéra ali chovido aquella noite,
    Arde e delira em sofregos dezejos.
    Já não sabe conter-se, o fim do canto
    Já não póde esperar; “Ó minha, exclama,
    “Ó minha ...” e sem findar, pois não encontra
    Nome que exprima o que lhe ferve na alma,
    Voa a abraça-la sem poder fallar-lhe;
    A voz com loucos beijos lhe interrompe,
    Quer dos labios sorver-lhe os sons divinos;
    Mas ella rindo, e a boca desviando,
    Que a deixe terminar lhe pede a custo.
    —“Sim, acaba (responde), Inez, acaba”—
    E emtanto hia beijando o collo, o seio.
    Depois, como ante Nume, ajoelhando,
    Suspenso a contemplava espaço longo;
    E depois no regaço o rôsto acceso
    Lhe punha, como em ninho de delicias,
    E no certo esperar crescia o fogo.
    Só vós caladas arvores no emtanto
    A canção namorada ouvindo estaveis
    Da mui ditosa Inez! Como expirava
    A derradeira nota, estremecendo
    Acorda o moço, alvoraçado surge,
    E tomando á cantora a mão submissa,
    —“Vamos, lhe diz, a lua vai descendo,
    “O tácito poente a chama ao sono:
    “Oh quão leve entre nós foge esta noite!
    “As auras pela relva estão dormindo,
    “Pendem com sono as arvores seus cumes,
    “Do largo tanque as aguas nem se encrespão.
    “O rouxinol que ha pouco gorgeava ...
    “Ja tambem se calou: sabes a causa?”—
    —“Talvez lhe empeça a voz, responde a bella,
    “Teimoso furto de continuos beijos.”—
    —“Não, não, responde o amante, agora occulto
    “Co’a docil companheira em quente abrigo,
    “Aperta o rouxinol de amor os laços.
    “E nós Inez? ah toma o teu menino,
    “Talvez não tarde a aurora, ao leito vamos,
    “E do fresco da noite ali zombemos.”

      Emfim chegámos! c’o ligeiro impulso
    Bate a proa no cáes, o lenho treme,
    Tremem com elle de seu tôldo as folhas.
    Salve ameno lugar, que as Graças pizão!
    Glória ao sacro arvoredo, que diffunde
    Sôbre a calma do vate a sombra fria!
    Glória ás auras, que prêzas n’este sítio,
    Das Dríades por mão aos troncos d’ellas,
    Agitão com susurro a massa enorme
    Da folhagem suspensa! honra aos que brincão
    Puros raios do sol sôbre o terreno,
    Mal que um favonio lhes descobre a entrada!
    Eterno amor ás aves, que em seus ramos
    A vinda nossa a gorgear celebrão!
    Paz ao dezerto, onde comnosco as Musas,
    Esquecidas de Pimpla, se contentão
    De encher de alegres canticos os ares!

      Á festa, á festa! Reuni-vos todos,
    Vinde colhêr as fugitivas horas:
    Como vaga que passa, ou flôr que murcha,
    Para mais não voltar, se escoa o tempo.
    Á festa, amigos! Oh! n’esta eminencia
    Eis ja pronto um altar! ei-lo cingido
    Com largas fitas de pintadas flores!
    Ante elle o rosmaninho, a murta, as rosas
    Té não curta distancia o chão tapizão;
    Heras, e lirios candidos o toldão:
    De heras e lirios adornai as frontes.
    Ajoelhai: lá sobe a Divindade!
    Silencio! paz!... Retumbe pelos echos,
    Sem mistura de voz, o som das flautas.
    No coração, no espirito me chovem
    D’estro divino eléctricas centelhas.
    Ja me sinto mudado em branco cisne!
    Cercai-me: eu vou cantar; calam-se os ventos!

      Voa invisivel das Hemonias serras,
    Tu que no Xantho as aureas tranças lavas:
    E se he tua, qual Roma suppozera,
    Ésta a melhor porção da florea quadra,
    Do cantor de teu mez protege a audacia.

      D’entre os filhos da immensa eternidade,
    D’entre esses doze Irmãos, que repartido
    Tem por sua influencia o anho inteiro,
    Maio foi sempre o mais gentil de todos:
    Qual dos cachos o Deos, e o Deos das setas,
    Goza brincando eterna mocidade.
    As Graças infantis, e a Formosura
    O creárão nos ceos com o proprio leite.
    Mal que o mundo surgio do horrendo cáhos,
    Veio formar-lhe os seus primeiros dias,
    E Maio foi da terra a fresca aurora.
    Em mimos escondendo a magestade,
    He Maio o pai, e o rei da Natureza:
    Qual em soberbo paço, anda nos bosques;
    Ou, qual em solio, nos outeiros verdes
    Se assenta, ao lado da risonha Flora.
    Compõe-lhe o seu cortejo Auras, Favonios,
    Que das plumas azues fragrancia espargem
    Furtada ha pouco ás pudibundas rosas.
    Em seu reinado insolita doçura
    Exhala o canto dos volateis bandos,
    E canoro parece o bosque inteiro.
    Em seu reinado os prados florecentes
    Só curão de ostentar perfume e cores:
    E a Ninfa ás vezes longas horas fica
    A meditar na escolha dos ornatos.

      Co’a folhagem densissima susurra
    O bosque annoso a celebrar-te, ó Maio;
    Susurra a celebrar-te o rio, a fonte.
    Com serena alegria o sol derrama
    Vasto oceano de luz no aereo espaço.
    A pompa da manhã, da tarde o brilho
    Tem não visto matiz d’oiro e de rosas,
    E côr de fogo sôbre um ceo de leite.
    Toda patente a abobada de estrellas,
    Toda brilhante a prateada lua,
    Te dão, como as do Elisio, alegres noites,
    De importuno calor desafrontadas,
    Chêias de encanto, da saudade amigas,
    Gratas a um tempo ao coração, e ao estro.
    Aqui, e ali os rouxinoes se escutão
    Longas horas c’os echos porfiando.
    Gira, vaguêa pelas fracas trevas
    Dos pirilampos o lustroso bando:
    Resoa em cada aldêa alguma frauta,
    E emtôrno d’ella as camponezas danção:
    Bala no aprisco impaciente o gado
    As poucas horas, que á manhã precedem.

      Como he doce o teu mez, benigno Maio!
    Alegra-se o viandante ao ver nos campos
    Do verde trigo as trémulas searas
    Iguaes a um vasto lago, onde os favonios,
    Nascidos inda ha pouco entre as florestas,
    Aprendem a encrespar as verdes aguas.
    Aqui a par de um campo, onde começa
    O milho a despontar, desprega aos ares
    Com vaidosa soberba altas bandeiras
    De outros milhos o exército infinito.
    Ostentando riqueza alem menêão,
    Entre a argentea folhagem pendurados
    Cachos de flor, os olivaes fecundos.
    Os pomares de frutos se carregão,
    Que ja sem medo aos furacões, e ás chuvas,
    Com áncia a côr, e a madureza esperão.
    As aves da manhã, quando revôão
    Com longo canto pela immensa altura,
    Se aprazem de os olhar; e ás vezes descem,
    E vem pouzar nos encurvados ramos,
    O futuro sustento ali festejão:
    Tal de annos onze uma pequena virgem
    De adoradores mil se vê cercada;
    Bem que á sua belleza inda lhe faltem
    Terno expressivo olhar, globos de neve,
    Voluptuoso dezejo entre suspiros,
    Buscado enfeite, graciosas fallas,
    Rodêão-na comtudo, adivinhando
    Pelo botáõ fechado a flor aberta.

      Mas, ó Maio, o teu mez não brilha esteril!
    La se ergue o laranjal c’os frutos d’oiro;
    Doces limões, e saborosas limas,
    D’entre a larga folhagem descobrindo
    A amarellada tez e o forte aroma,
    Prendem sentidos convidando ao furto;
    Ri-se entre as mais a alegre cerejeira,
    Que ainda que no gôsto a muitas cede,
    Mais que todas seduz co’as vivas bagas;
    A ginjeira com ella aposta encantos,
    Mas apenas gostada, a palma he sua;
    Iguaes a um coração em côr, em fórma
    Os suaves morangos ja maduros,
    Contentes da humildade, estão dormindo
    No fresco seio da materna planta:
    D’ali, se vem um zefiro acorda-los,
    Olhão em roda as pampinosas vinhas;
    E vendo como os pequeninos cachos,
    Que a fronte cingem do celeste Bromio,
    E um dia gratos brilharáõ nas mezas
    Mudados no licor, que gera os risos,
    Do nativo terreno apenas se erguem,
    Zombando riem da vaidosa audacia,
    Com que somem no ceo pomposo cume
    Árvores tantas menos uteis que elles.
    Por toda a parte as desveladas hortas
    C’o verde alegre das crescidas plantas
    O suor do colono estão pagando;
    Seu terreno sulcado está coberto
    De immensas produções, que vão nas mesas
    Ser preciso sustento, ou grato mimo,
    E ora entrar na choupana, ora nos Paços.

      Em teus dias, ó Maio, as vélas sólta
    Sem medo o nauta pelo vasto oceano,
    E olhando puro o ceo, de leite as ondas,
    A cujas furias escapou nadando,
    Sobre a pôpa da náo regendo o leme,
    Pensa na esposa, nos filhinhos pensa;
    Prometteu-lhes voltar; nem ja receia,
    Maio, fiado em ti, ser-lhes perjuro:
    Sobre a cana do leme encosta os braços,
    E ou sólta em grande voz grosseiros versos,
    Ou costumada musica assobia
    Olhando a estrada de alvejante espuma,
    Que d’um e d’outro lado á prôa foge.
    Brinca nas aguas, e ou se esconde, ou salta
    De vagos peixes prateada turba;
    Na verde superficie as Ninfas danção,
    Da tarda noite nas caladas horas,
    Das estrellas á doce claridade.

      Mas eu quero soltar mais altos vôos,
    Trazer ao mundo incognitas verdades.
    Em teus dias, ó Maio, os Páfios bosques
    Vírão nascer os trêfegos Amores!
    N’um valle opaco, onde buscando o fresco
    Costumavas dormir entre mil flores,
    La teve a Deoza o seu fecundo parto.
    Apenas sobre a attonita verdura
    Cípria depunha um pequenino alado,
    Logo o via nos ceos voar, sumir-se:
    Tal dos Amores o soberbo genio!
    Quando cançados de brincar nos ares,
    Um passatempo á terna Mãi pedião,
    Tu lhes foste ensinar pelas florestas
    A formar arcos de flexiveis ramos,
    E despedir, sem nunca errar, seus golpes.
    Tu lhes mostraste os rezinosos troncos,
    De que havião formar brilhantes fachos.
    Tu mesmo entre elles companheiro e mestre,
    Pelos campos as flores procuravas,
    Com que doces prizões tecer devião.

      Tudo em teus dias no universo adora;
    O sexo, a idade, as condições não livrão.
    Entre o rebanho, que amoroso bala,
    Amoroso pastor canta ou suspira;
    Ternas gorgêão no arvoredo as aves;
    Ragem ardendo de dezejo as feras;
    Suspiros ouço ás arvores, e aos ventos;
    Abrem o seio as virgemzinhas flores,
    E Venus as fecunda, e mãis se tornão.
    Em cada gruta, em cada bosque ás Ninfas
    Uma emboscada os Sátiros aprestão.
    Em bellezas mortaes embevecido,
    Canta em rustica voz novos amores
    C’roado de pinheiro o Deos da Arcadia,
    E ante a Ninfa gentil mudada em canas
    Pelas canas da flauta os sons varía
    Com ar alegre, que perjuro o torna.
    Sensivel para o Sol se volta Clície;
    O Sol na terra outras bellezas busca,
    E outras acha, que o peito lhe cativão,
    E fazem que mais tarde a Thetis desça.
    Entre os astros as Pléiades luzentes
    Com saudade seus thalamos recordão:
    Junto d’ellas o Touro inda parece
    Mugir lembrado da formosa Europa.
    Mais placida refulge a Cípria estrella;
    Dissereis que saudosa indaga os sitios,
    Onde comtigo, venturoso Adonis,
    Passava as noites do formoso Maio:
    E quando foge, a Aurora se envergonha,
    E cora por voltar tão cedo ao mundo;
    Pois quem ha que não saiba os seus segredos?
    Quem de Céfalo a história não repete?
    Em cada tronco um dísticho de amores,
    Ou dois nomes se lem, como enlaçados.
    Uma sombra, uma só não ha nos campos,
    Onde Amor não recorde, ou não prepare,
    Ou não veja presente uma vitoria.
    Foi, Maio, foi teu mez que ao Rei das sombras
    Fez que deixasse o sempiterno cáhos,
    Para roubar a encantadora esquiva,
    Do flóreo campo de Enna ornato, e Deoza.
    Foi, Maio, foi teu mez que ouviu primeiro
    Diana a suspirar, arrepender-se
    De ser das virgens tutelar Deidade.

      Graças ao teu poder, e ao teu influxo!
    És tu que a rir convidas gracioso
    Minerva um pouco a abandonar seus livros[13].
    Quem póde resistir-te? emfim te cede,
    Toma-te pela mão, para que a leves
    A divagar em teus vistosos campos;
    O ar de meditação troca em agrados,
    E vê contente abandonar-lhe a côrte
    De seus alunos juvenil caterva,
    Que alvoraçada aos patrios lares vôa.
    Sim, Maio, eu voarei aos patrios lares!
    Mas cuidas que jamais distancia ou tempo
    D’este dia a memoria hão de apagar-me?
    Não: onde quer que os fados me conduzão
    Sempre te hei de cantar, sempre c’roado
    De teus altares me verás ministro:
    Mas d’esta sociedade, e d’estes brincos,
    Em quanto a noite se adornar de estrellas,
    Nunca a lembrança volverei sem mágoa.

      De generoso vinho enchei-me o copo,
    Que de mírtea grinalda ornado quero.
    Imitai-me tambem. Por este, ó Maio,
    Suavissimo licor, pai da alegria,
    Por este, digo, cuja taça empunho,
    Juro ante o ceo, de teu altar em frente,
    Que um anno só não deixará meu estro
    De exaltar tua glória, e a minha amada,
    A Deoza tua mãi, a Primavera.
    Reformai-me outra vez a funda taça.
    Em honra a vós, formosas moradoras
    D’este ameno lugar, esta se esgote.

      Aguardai, cabe agora o sacrificio;
    Vou-me a buscar a vítima, que a trouxe
    Occulta e prêza do batel na pôpa.
    Eis-me, abri-me caminho! eu volto ás aras:
    Para a santa ablução trazei-me um vaso.
    Silencio! fallo ao Deos!—“Sejão-te acceitos
    A vida, e leve espirito do prezo
    Que vem n’esta gaiola, o qual eu vate
    Por todos nós agora te dedico,
    E dedicado entrego ás livres Parcas.
    Digna he de ti formoso ave formosa
    Como esta; pintasilgo ativo em canto,
    Garrido em côres, no brincar esperto,
    Mestre em tirar do cristalino poço
    Com o balde de avelã sua bebida:
    Outro melhor nunca girou nos bosques.
    D’esta estação n’um dos primeiros dias,
    Segundo o meu costume antes da aurora
    Saí a espairecer nos campos verdes,
    Ouvir das aves os primeiros cantos,
    E aquecer-me sentado sobre a relva
    Ao primeiro calor do sol nascente.
    Banhei o rôsto n’um remanso puro,
    Colhi as flores inda ha pouco abertas;
    E co’a mente serena, e possuido
    Do amor do campo, e dos campestres gostos,
    Voltei de novo ao lar. Junto á janella
    Por onde largo sol ja vinha entrando,
    Fui sentar-me a pascer em vãs delicias.
    Eu sonhava acordado! ah nos meus sonhos
    Não via mais que bosques e pastores,
    Rebanhos, fontes, rusticas choupanas!
    Dono me cria d’um torrão pequeno
    Mas pingue, de uma choça pequenina
    Mas alva, entre nogueiras, rodeada
    De alvos cordeiros nédeos e alvas pombas.
    Eis que afoitando um vôo, esta avezinha
    Me entra por casa; ao seu gorgeio acórdo,
    Pois junto a mim pouzava gorgeando.
    Ouves, Maio, este som, com que parece
    Approvar adejando o que te conto?
    Ouves? repara bem: tal modulava
    Quando amoroso a vizitar-me veio.
    Ganhando confiança a pouco e pouco,
    Saltou-me para o hombro, e de improvizo
    Prêzo se vio na minha mão fechado.
    Quiz debater-se, emvão; piou, carpio-se,
    O bom coraçãozinho lhe batia.
    Beijei-o, puz-lhe mesa; o sem ventura
    Nada acceitava, anciando só fugir-me.
    “Conheces-me bem mal, pobre innocente,
    Lhe digo; essa gaiola he teu palacio
    Não carcere, eu teu servo e não tirano.
    Servo e palacio um dia de experiencia
    Talvez tos faça amar: se não, prometto
    Abrir-te a porta e libertar-te os vôos.”
    Á janella da minha a estancia d’elle
    Penduro; os aureos grãos e a clara linfa,
    Cama fôfa entre ramos florecentes,
    Vista de campo e céo por toda a parte,
    Mas livres um de açôr, outro do tiros,
    Manso, mansinho ás grades o affizerão:
    Comeo, bebeo, cantou. “Pois que tu cantas,
    Vatezinho silvestre, em nossa casa,
    Juntos e amigos ficaremos sempre.
    Tu serás de meus dias a harmonia,
    Eu tua providencia; a fonte e a messe
    Te viráõ procurar, dar-te-hei florestas
    La dentro em teus penates de cortiça,
    E porque logres tudo, uma consorte
    Virgem, bella, fagueira, e cujos filhos
    Seráõ só teus, e como tu formosos.”
    Desde então ledo vive, e tanto aos mimos
    Se acostumou domesticos, e tanto
    A amizade entendeo, que lhe abro a grade
    Fronteira aos ceos da aurora, aos bosques amplos,
    E nem bosques nem ceos lhe dizem—foge.—
    Da liberdade que lhe acena á porta
    Se despede cantando, e empoleirado,
    Reizinho em casa sua, a mim e a ella
    Nos compara, e lhe diz: “Aquelle humano
    Deos foi que para mim creou taes ocios!”

      “He esta, ó Maio, a vítima que trago
    Ao sacrificio teu! perco um amigo!”
    Com esta mimosissima grinalda
    De sensitiva lhe circundo o collo,
    Para sinal da dor que me comprime.
    Vamos, venha o punhal, que eu limpo o pranto.
    Ó ceos!... quanto me custa! He sacrilegio
    Qualquer demora mais: ânimo agora,
    Saudoso coração!... Venceste, ó Maio!
    Venceste! consumou-se o sacrificio!
    O fio prêzo ao pé cortei de um golpe,
    Lancei-o ao ar; voou; nem ja o ouvimos.
    Foi rever seus antigos companheiros,
    Sua amada, seu bosque, e o seu alvergue.
    Oh! como será doce emtôrno ao sócio
    Que julgárão perdido, apinhoada
    Papear parabens a alada tribu!
    Oh tu lhes dize então do amigo o nome,
    Que vezes te beijei de madrugada
    Por me acordares co’o suave canto,
    Para trocar o leito pelo grato
    Passeio da manhã, d’onde trazia
    Pera a tua gaiola hastes de flores.
    Ouvirá leda a esposa a leda historia,
    E a contará depois aos tenros filhos.
    Talvez que em meu passeio inda algum dia,
    A festejar-me, emtôrno a mim se junte
    Chêa de gratidão toda a familia,
    Tu meu amigo, a tua esposa, e prole.

      Dispersai-vos, bebei, cantai, amigos,
    Ride, e dançai, porque invejoso o tempo,
    Co’as cãs na fronte, e o coração gelado,
    As horas do prazer furta aos mancebos.
    Mas ai de nós, que o perfido voando
    Ja nos fugio co’a encantadora tarde!

      Desçamos ao batel: adeos ó Lapa,
    Adeos, fica-te em paz; e cedo espera
    Ver de novo juntar-se á sombra tua
    Da Natureza os candidos Amigos.
    Deixai as varas, gracejemos antes,
    Não cumpre trabalhar, para fugirmos
    De um bosque sacro a Maio, e sacro ás Musas.

FIM DO CANTO PRIMEIRO.



A FESTA DE MAIO.

POEMETTO

CANTO II.


      D’essa garrafa de cristal doirado
    Duas taças me enchei. Venha a primeira:
    Esta se esgote da amizade em honra.
    Ó divino licor! se o puro nectar,
    Que Hebes formosa a Jove ministrava,
    Comtigo competir podesse ao menos,
    Jove lhe perdoára o seu descuido,
    Nem dos bosques Ideos arrebatado
    Ganimedes gentil voára aos Numes.

      Dai-me, dai-me a segunda. Em honra agora
    Do celeste prazer, que nos encende,
    Este liquido fogo ao peito envio.
    Graças ás mãos, que á terra afortunada
    Derão em hora boa éstas videiras!
    Graças a Baccho, ao protétor, que tanto
    Desvelo lhes prestou! Graças á turba
    De alegres raparigas, que levárão
    Os cachos ao lagar em largos cestos!
    A vós mancebos rusticos e alegres,
    Que aos pés calcastes as cheirosas uvas!
    E a ti, lenho feliz, em cujo seio
    Os sagrados toneis se transportárão
    Desde os campos de Chipre aos campos nossos!
    Do celeste perfume ébrias as Ninfas
    Te acompanhárão na veloz carreira;
    Continuamente as velas te enfunárão
    Com halito propício os frescos ventos,
    Que lá brincavão pelas ferteis vinhas,
    Faceis criando, e colorindo as uvas:
    E o mesmo Baccho (eu não vos minto, amigos:
    Ah! dai-me a taça, os labios se me seccão);
    Baccho em pessoa, o vencedor das Indias,
    Invisivel na pôpa revirava
    O leme dirétor co’a mão divina.
    Dai-me á pressa outro copo: outro: mais cinco:
    Mais um que eu vote a Febo, e nove ás Musas.
    Sinto o meu coração desfeito em gôsto!
    Ah! por piedade rodeai-me todos;
    Quando entre amigos bebo, um só não basta
    Para me encher atropelados copos.
    A cada qual de vós uma saude
    Quero fazer; mais uma a cada Ninfa;
    Aos Numes todos, que na terra habitão,
    Aos Numes todos, que dos ceos nos olhão,
    A todos que no Elisio nos esperão;
    Farei uma saude a cada vaga,
    Que desde a Herminea Serra[14] aos mares corre,
    Álua, a cada estrella, a quanto existe.
    Do mais vivo prazer me volvo em braços!
    Rio, e respiro magicas delicias!

      Gelos, que em serras coroais as fontes,
    D’onde as urnas as Náiades inclinão
    Para mandar-nos de tão longe as aguas,
    Derretei-vos em subitas correntes:
    Brami de roda dos Hermineos lagos,
    Ventos da tempestade; as átras nuvens
    Reuní, condensai: retumbe ao longe
    O ronco do trovão pelas florestas,
    E o monte enorme em seus abismos trema.
    Todo em chuveiros se desate o polo:
    E cedo (oh! praza aos ceos!) e cedo o rio
    Vença o leito, e com impeto revolva
    Tropel ruidoso de espumosas vagas.
    Sem poder contrastar-lhe a furia immensa,
    Perto da margem sem poder ganha-la,
    No escuro turbilhão de rôjo iremos.
    Quando a aurora assomar, ja muito longe
    Nos verá pelo Atlantico engolfados.
    Do enfeitado batel voltando a prôa
    Contra as vagas austraes, candidas velas
    Presentaremos ao ligeiro Boreas.
    Em dia bonançoso, e mar de rosas
    Iremos sem temor, chêos de assombro,
    Gozando entre as equoreas Divindades
    Scenas de Maio no ceruleo campo.
    Cedo veremos verdejando e rindo
    O alto Cabo surgir na extrema ponta
    Da Lusitana terra: erguendo aos astros
    A nautica celeuma, alvoraçados.
    Poremos no occidente o vago leme
    Para afrontarmos as Titóneas plagas.
    Entre o Barbaro solo, e o solo Hispano
    Passaremos cantando o Estreito, aonde
    As Colunas ergueo famoso Alcides.
    Pelos ventos Hesperios ajudados,
    Movendo assombro ás cérulas Nereidas,
    Cortaremos, voando, em curtos dias,
    Mediterraneo, tua longa estrada.

      Nossos astros serão por entre as ondas
    O astro de Venus luminoso, e claro,
    Ariadne, a esposa do contente Bromio,
    E os Tindáreos Irmãos, cuja concordia,
    Cuja amizade nos será de exemplo.
    Eolo prenderá com mil cadêas
    Euro o nosso contrario: as verdes ondas,
    Ouvindo de Tritão troar o buzio,
    Sem furia, sem fragor do barco emtôrno,
    Chêas por cima de alvejante espuma,
    Saltaráõ quaes no prado os cordeirinhos.
    Que, meus amigos! receais procellas?
    Procellas contra nós! Assáz os Numes
    Nas almas sabem ler; nós demandâmos
    Chipre, votada aos candidos prazeres:
    Do vinho a Deoza, a Deoza dos amores,
    Os Numes da amizade, eis nossos astros;
    Que havemos de temer? Não, não me importa
    Que o ar, que o pégo em furias se revolva:
    Por entre a serração, por entre a morte,
    Voaremos a rir de Chipre aos campos,
    Quaes na barca da Estige um dia iremos
    Dos lagos avernaes ao grato Elisio.

      Não ha que recear. Dai-me outro copo;
    Outro bebei, e ouvi-me. Amigos fados
    Da Ilha encantadora ao melhor sítio
    Nos hão de conduzir: ja cuido vê-la!
    Um cáes em meia lua, um cáes não grande,
    Ja nos hospeda na conchosa arêa:
    Unidas penhas de elegante aspéto
    O anfitheatro deleitoso fórmão:
    Todas se vestem de verdura, e flores,
    Todas tem fria gruta, ou doce fonte.
    D’estas fontes, que emtôrno enchem os ares
    De um desigual, suavissimo murmúrio,
    Umas descem chovendo entre os penedos,
    Outras em larga enchente se arremeção,
    Sem o musgo occultar, de rocha em rocha,
    Té que ás bacias espumosas saltão.
    Aqui um mirto, alem uma roseira
    Coroa a entrada das pequenas grutas,
    Ou lhes fórma seu tôldo, ou quasi as cobre.
    Por toda a parte melindrosos ninhos
    Se ouvem piar; por toda a parte adejão
    Co’o sustento no bico as ternas aves.
    D’esta folhagem se levanta o melro,
    E vai pouzar na proxima folhagem:
    Queixa-se n’uma gruta Filomela
    Quando Progne sentida eleva o canto.
    Prezos aos troncos Zéfiros murmurão;
    Auras, dos valles proximos correndo,
    Das invisiveis azas nos derramão
    Almos efluvios de cheirosas flores.
    Vede assentos, que a mão da Natureza
    Nos rochedos abrio, que a mão do Tempo
    Cobrio, amaciou com verde estofo;
    Aqui se tem as Ninfas assentado
    Pelas tardes de Maio muitas vezes,
    Para gozar os brincos dos Amores,
    Que ora lutão na arêa, ora apostando,
    Se arrojão de mergulho aos verdes mares,
    E apparecem depois nadando e rindo.

      Vamos: por esta parte o cáes nos deixa
    Na Ilha penetrar: commoda entrada
    Nos off’rece este portico de murtas.
    Deozes! que vamos vêr! Salve cem vezes,
    Bosque sombrio, magestoso, immenso!
    Do desmedido Atlante a espadoa enorme
    Não, não he quem sustem o eterno Olimpo,
    És tu, sagrado bosque; a vista humana
    Chegar não póde a teus soberbos cumes!
    Serras, diluvios de ondeantes folhas
    Sôbre colunas mil, que o raio assustão,
    Se agitão sôbre nós. Longe, ó profanos!
    Vates, erremos pelas frescas trevas!
    Alem, se não me engano, o sol penetra.
    Corramos. Oh prazer! oh maravilha!
    Eis um retiro aos Numes consagrado,
    Incognito aos mortaes, de encantos fertil!
    Tu que vizitas cada dia o mundo,
    Ó Sol, ¿que outro lugar no mundo encontras,
    Onde com mais prazer teus raios lances?
    Vede este prado, cujo fundo escondem
    De Hibleas flores animadas nuvens:
    Olhai sem guardador pingues rebanhos
    Livres saltando nos outeiros verdes:
    Vêde encostas de pampanos cobertas;
    Fontes á sombra de arvores sagradas;
    Jardins fechados de cheirosos muros
    De altos lilazes, de azareiro e cedro;
    Tanques no meio, onde em repuxo aos ares
    Voão do bico de marmoreos cisnes
    Argenteas linfas, que no ar se cruzão,
    Mil arcos, mil abobadas formando,
    E em fresca chuva vem mover os lagos!

      Que ditoso paiz! não sei que sinto
    No meio agora d’estes sons campestres,
    Respirando balsamicos vapores,
    Em sacra habitação, entre os amigos,
    Longe dos homens, da innocencia ao lado!
    Abraçemo-nos. Sim: desde hoje unidos,
    Seremos d’este sítio os habitantes.

      D’esse ribeiro na fecunda varzea,
    Ali, onde hospedagem graciosa
    Presta ás aves do ceo pequena selva;
    Ali, onde estendidos pela grama
    Junto ás novilhas candidas, repouzão,
    Co’a cornígera fronte entre as papoulas,
    Mansos touros, que o jugo inda não vírão,
    Ali se vos apraz, se apraz aos Deozes,
    Vamos pois construir nossas moradas.

      Do Genio do lugar primeiro em honra
    Cumpre fazer as libações, e os votos;
    Venerar, depois d’isto, a turba agreste
    Das Ninfas do paiz; e culto, e nome
    Dar ás fontes, aos campos, e ás collinas
    D’estas gentis, incognitas paragens.

      Vede faias aqui, pinheiros, chôpos;
    Abatei-os, tecei nossas cabanas.
    Formemos uma aldêa: a cada alvergue
    Juntemos um jardim, que ao fundo banhem
    Do claro rio as fugitivas aguas.

      Não falte o culto ás sacras Divindades.
    Á obra, á obra! o templo se levante
    Nobre, proprio de nós, digno dos Deozes,
    Com paredes de cedro á luz vedadas.
    Deixamos á vaidade altas colunas,
    Cúpulas d’oiro, abobadas suspensas
    Em meia altura da extensão dos ares;
    De trémula parreira um této basta.

      Ponde no tôpo o altar da Natureza,
    De nossa adoração primeiro objéto:
    Firmada sôbre um globo, como o nosso,
    Uma estatua gentil figure a Deoza,
    Virgem, bella, risonha, affavel, nua,
    Guardando-lhe o pudor sendal ligeiro:
    Colar de flores lhe atavie o collo,
    C’roa de frutos lhe circunde a fronte,
    Diversos ramos as madeixas ornem:
    Tenha n’uma das mãos celeste chama;
    Penda da outra, e por seguro fio,
    O Genio do prazer, que as azas bata
    Para voar-lhe ao cobiçado seio:
    Cerquem-lhe o pedestal em turba immensa
    Homens, feras, volateis, nadadores,
    E quanto emfim por seu influxo existe:
    Vejão-se á volta os poderosos Genios,
    Que a seu sabor os elementos movem,
    Salamandras, Ondins, Silfos, e Gnomos.
    D’esta ara ao lado se verão pendentes
    As flautas nossas, pois lhe são votadas.

      Sôbre outro altar a Deoza de Cithéra,
    Não de marfim, nem marmore talhada,
    Mas de alva cera das abelhas nossas,
    Feita por nossas mãos encante a vista.
    Quero-a nua de todo: ao seio amime
    Entre os braços de neve o filho alado;
    E co’a ternura languida nos olhos,
    Como para o beijar lhe estenda os labios,
    Curta tornando, como a d’elle, a boca.
    As trez Irmãs de Amor pequenas, bellas,
    Como invejando do menino a sorte,
    Forcejem por trepar da Mãi ao collo,
    Emquanto o Irmão travêsso a rir pretende
    Co’as delicadas mãos lança-las fôra.
    Duas turbas de Amores apinhados
    Se ergão d’aqui d’ali: tenhão por terra
    Os arcos, e os farpões; na dextra empunhem
    Fachos, que hão de brilhar nos festos dias,
    Por nossas mãos com sacro lume accesos.

      Defronte d’esta, na parede opposta,
    Outro brilhe votado á Primavera.
    Ali se mostre a Deoza, cuja veste
    Um manto seja de tecidas flores;
    De flores o toucado; a planta nua
    Sôbre floreo torráõ firmada alveje:
    Durma a seus pés o aurígero carneiro;
    O Maio, filho seu, tenha em seus braços,
    Igual em perfeições á Mãi formosa,
    Alado como os Zéfiros e Amores,
    Que os Amores, que os Zéfiros mais lindo.
    Tenha na dextra um ramo florecente,
    Onde pouzem pintadas borboletas:
    No esquerdo braço um cabazinho grave,
    C’os doces frutos, que em seu mez se colhem,
    E a rir pareça á Deoza appresenta-los;
    Mas a Deoza, estendendo a mão de neve,
    Como que busque o grávido cestinho
    Tirar de sôbre o seio, onde elle o punha.
    De Favonios um bando se reparta
    Aos dois lados do altar, em cujas dextras
    Ponhamos bem fingidas cornucopias
    Chêas d’agua, onde flores se conservam.

      Atrio cercado de sombrios louros
    Haja na frente do sagrado alcaçar.
    Por trez frondosos porticos se passe
    Do templo ao atrio: emtôrno d’elle avultem,
    Dos loureiros á sombra, as Deozas nove,
    E o Nume protétor do equorea Delos.

      Um de nós cada mez será por sorte
    Da sacra estancia o sacerdote, e o guarda.
    Ficaráõ a seu cargo os festos dias,
    Dos altares o culto, os hinos sacros,
    E a protéção dos ninhos melindrosos,
    Que as aves formaráõ do této em volta;
    Para que nunca violados sejão,
    Santa hospitalidade, os teus direitos.

      Da nossa aldêa ás proximas campinas
    Daremos de cultura uteis desvelos.
    Vertumno, e Ceres, e Pomona, e Flora
    Hão de favonear trabalhos nossos,
    E em sustento pagar nossas fadigas.

      Ricas hortas, dulcissimos pomares,
    Doiradas messes, pampinosas vinhas
    O celleiro commum nos terão chêo.
    Da ociosidade vã não será filha
    Nossa innocente e solida riqueza.
    Algum de nós ao trato dos rebanhos
    Seus cuidados dará: que importa o mundo?
    Vida de nossos pais! vida dos campos!
    Quem te nomeia humilde, e vergonhosa?
    Vive o pastor no seio da innocencia;
    No meio da pobreza he rico, e folga.
    Emquanto os grandes entre escravos gemem,
    Canta o pastor entre o rebanho, ou dorme,
    Fiado em seu amigo, em seu rafeiro:
    Nem ao menos que ha leis sabe nos campos.
    São seus dias cadêas de prazeres,
    E seus prazeres innocencia todos.
    Não cala seu amor, canta-o nos bosques
    Em alta voz, ou goza-lhe as delicias.
    Ao transmontar do sol volta a seus lares;
    Conta á porta o rebanho, e junto ao fogo
    Vai co’a cêa frugal entre os amigos
    Restaurar o vigor para o trabalho.
    Repouza em paz sobre o macio feno
    Emquanto alguma luz no ceo não raia:
    Não ha cuidado, que lhe rompa o sono;
    Se acaso sonha, os sonhos não lhe pezão,
    Pintão passados bens, ou bens futuros,
    E volta ao mesmo quando nasce a aurora.
    Vergonhosa ésta vida! ó desgraçados,
    Corai no meio das grandezas vossas:
    Se o pastor conhecesse o vosso estado,
    Nem de olhar-vos sequer nem se dignava.

      No regaço feliz da natureza,
    Ao lado da ventura, os dias nossos
    Serão a imagem dos doirados dias.
    Como os primeiros pais da especie humana,
    Viveremos frugaes entre a abundancia,
    Ricos sem pompa, sem vaidade sabios,
    Socegados sem leis, sem armas fortes.
    Hão de mil vezes os campestres Numes,
    E o sacro Povo, morador do Olimpo,
    Compràzer-se de olhar a nossa aldêa.
    Ao romper da manhã, ser-lhes-ha doce
    Ver-nos todos sair dos proprios lares
    Co’a alegria na face: uns diligentes
    C’os instrumentos rusticos nas dextras,
    Ou seguindo seus bois, tornar-se aos campos;
    Outros guiando para os ferteis pastos
    Longa tropa lanígera balante.
    Ser-lhes-ha doce o ver como trabalhão
    Todos no bem commum, sem que se escutem
    Do _meu_ e _teu_ os nomes perigosos.

      Quando o gallo doméstico no aldêa
    Soltar ao meiodia o canto agodo,
    Correremos á mesa: unidos todos
    De um bosque á sombra nos calmosos tempos
    E junto ao fogo quando reine o frio,
    Não veremos deante a rica prata
    Com vivo resplendor cegando os olhos;
    Nem dourados cristaes, nem porcelanas,
    Cuja louca ambição furiosa arrasta
    Tantos loucos mortaes, dignos de pranto,
    D’entre os braços dos seus aos torvos mares,
    E em fragil pinho, que rodêa a morte,
    De longinquo paiz os leva aos portos.
    De facil construção vermelho barro
    Fará nossa baixella; e cavos troncos
    Fundos, polidos, de jasmins c’roados,
    Servir-nos hão de o rúbido falerno.

      De nossas hortas vegetaes gostosos,
    Os teus dons, ó Pomona, e os teus, ó Ceres,
    O mel puro e doirado, e o branco leite
    Bastão assaz da Natureza aos filhos.

      E que? algum de nós contra o que vive
    Ouzaria vibrar da morte a fouce!
    O touro soffredor, cuja fereza
    Para servir-nos se abateo ao jugo,
    O touro, o nosso amigo, e o nosso escravo,
    Que sem ter parte alguma em nossos gostos
    Tomava parte nas fadigas nossas;
    Que armado pelas mãos da Natureza
    Podia, se quizesse, oppôr-se aos fracos,
    Que a paz, que a liberdade ouzão roubar-lhe,
    Depois de longo, aviltador serviço
    Deve ... (oh pejo! oh furor! oh sacrilegio!)
    Caír ás mãos do barbaro assassino,
    Para quem só viveo! por quem mil vezes
    Coberto de suor, chêo de espuma,
    Co’a fronte baixa, sem mugir ao menos,
    Queimado pelo sol, até soffria
    Duro, ferreo aguilhão se fraquejava!
    Qual ouzaria ensanguentar a dextra
    Na mansa ovelha, da innocencia imagem;
    Que incapaz de offender, nunca rebelde
    Aos brados do pastor, seu proprio leite
    Entre seus filhos e elle repartia,
    E até para cobri-lo as lãs lhe dava!
    Lindos filhos do ar, ternos cantores,
    Que innocentes voais pelas florestas,
    Nos prazeres, no Amor gastando a vida,
    Filhos do ceo, modelos, que adorâmos,
    Não temais habitar nos campos nossos.
    Se o açor, se o falcão por estes sítios
    Passar alguma vez, vinde, eu vos peço,
    Vinde-vos esconder em nossos lares,
    De vossa timidez sacra guarida:
    Se nos virdes passar nos sitios, onde
    Entre os ramos, á sombra vos agrada
    Divertir gorgeando a terna esposa,
    Que muda, e carinhosa esconde, e aquece
    Entre as azas seus filhos pipilando,
    Se nos virdes passar ... oh! por piedade
    Não fujais, prosegui vossas cantigas;
    Sois como nós da Natureza filhos;
    A Mãi commum vos deo a liberdade,
    Sustenta-vos, bem como nos sustenta:
    Sois fracos, tanta basta; e nós não somos
    Nem tiranos, nem perfidos, nem baixos
    Para abusar da fôrça: he jus terrivel!
    Se para vos matar compete ao homem,
    Para o homem matar compete ao tigre.
    Não: vivei entre nós, como entre amigos:
    Somos todos irmãos: arcos, e setas,
    Redes, e visco, passatempos torpes,
    Não usa quem adora a Natureza:
    Serião entre nós nefandos crimes.

      Se um dia á caça algum de nós (os Deozes
    Affastem para longe o agouro horrendo),
    Se um dia á caça algum de nós corresse;
    Coberto de suor, de sede extinto
    Praza aos ceos que discorra os duros campos;
    Curve-o das armas o terrivel pezo;
    Não ache onde empregar da morte as furias;
    Seus proprios cães os membros lhe lacerem
    Té que as entranhas vis ao sol descubrão,
    E rôto arqueje o coração perverso:
    Semivivo, rugindo, ardendo em raiva,
    Entre penedos se revolva, e espume,
    C’os olhos ja sem luz, chêos da morte,
    Pallido o rosto, ensanguentada a coma;
    Té que, mugindo em subita voragem,
    Se rasgue a terra ao detestavel pezo,
    E ao fundo o arroje dos sulfureos lagos.
    E se o malvado consummar seu crime,
    Se as mãos tingir no sangue do innocente,
    O rio onde correr para banha-las
    As ondas atropelle, e volte á fonte,
    Fique attonito o monstro, e o leito sêcco;
    E quando sôbre o fogo os miseraveis
    Membros pozer, que o sangue inda gotejão,
    Que inda tem no tremor de vida um resto,
    Chêas de horror e de piedade as chamas,
    Deixando intáto o funebre cadaver,
    Com medonho estampido abandonando
    N’um momento seu lar, se ergão aos ares
    Para chover no algoz, torna-lo em cinzas.

      Mas vá longe de nós o quadro infame!
    Somos frugaes, e simplices; e basta
    Olhar-nos para ver nossa virtude.
    Sim: que a lavrada seda, o oiro, as telas,
    E dos insanos cortezãos a pompa
    Não nos ha de cubrir. No inverno algente,
    Contra os rigores da estação nublosa
    Usaremos da lã que nos revista,
    Sem que do artista a dextra insultadora
    Lhe desfigure a côr, lhe mude o aspéto:
    Se no outono reinar do inverno o frio
    Voltaremos á lã: na primavera
    Basta o candido linho: emfim no estio,
    (Deixe-me em paz, ou seus ouvidos serre
    Quem no corruto coração fomenta
    De prejuizos vãos caterva impura!)
    No estio, amigos meus, com vosco fallo,
    Seremos todos nus: rião-se embora
    Os perversos, que ao vício costumados,
    Até na natureza encontrão vício.
    Sim, andaremos nus; nus se mostrárão
    Os pais, e as mãis do mundo em tempos d’oiro,
    Nos vaguêão da America nos bosques
    Da Natureza não corrutos filhos,
    Nem os tinge o rubor, a côr do pejo,
    Que o pejo nasce se a innocencia morre:
    A Innocencia, a Verdade, as Graças bellas
    Pintão-se nuas: nuas pelos bosques
    Errão as Ninfas: d’entre as ondas nua
    Venus saío de encantos rodeada:
    Seu Filho, qual nasceo, se mostra ainda:
    E todos nós, dizei, como nascemos?
    Quando, depois de trabalhosas dores,
    Nos cingem nossas mãis aos ternos peitos,
    Tecidas vestes sobre nós encontrão?
    Não: se o tempo o exigir cubra-se o corpo;
    Se o tempo o não requer, porque insensatos,
    Vãos, inuteis incommodos buscâmos?

      Prazeres me pédis, dou-vos prazeres:
    A musica suave, a dança, os versos,
    Dos bons ditos o sal, carreiras, lutas,
    Tecer grinaldas de campestres flores,
    Fresco, e murmúrio de favonios, e aguas,
    Os ternos sons de aligeros cantores,
    Da natureza o estudo, as graças d’ella,
    As formosas manhãs, as bellas tardes.
    Iremos navegar pelo ribeiro
    N’este mesmo batel; a branca lua
    Deante nos irá para guiar-nos:
    Os ventos dormiráõ pelos outeiros:
    De um, d’outro lado as arvores ao longo
    Das socegadas margens, docemente
    Se ouviráõ susurar de quando em quando:
    O astro da noite ledo e scintillante
    Se verá na corrente em longa estrada:
    Echos repetiráõ nossas cantigas:
    D’entre um canavial a Filomela
    Se ouvirá gorgeando convidar-nos:
    Com mil olhos de luz o ceo da noite
    De ver nossa alegria ha de alegrar-se.
    Algum campestre Fauno, que aturdindo
    Com voz immensa a silenciosa margem,
    Seus amores contar da fonte ás Ninfas,
    O canto estrugidor alguns momentos
    Suspenderá, de assombro arrebatado.
    Se tivermos calor volta-se a proa
    Sobre uma ilhota de vermelha arêa,
    E encalhando o batel salta-se ás ondas:
    N’uma noite encalmada um banho fresco
    Nos consola, e refaz: ali se julga
    Acima estar da natureza o homem;
    Vive em novo elemento, em cujo seio
    Revestido se crê de essencia nova.
    Ao brando frio os membros pouco a pouco
    Se conformão, se affazem, se contentão;
    Dissipa-se o tremor, e a voz anciada
    Um momento depois se resserena.
    Todo o vivo prazer então começa:
    Ora apraz o nadar contra a corrente,
    Ora girar nas aguas escondido,
    Ou c’os olhos na lua ir descançado
    Em parte occulto, em parte descoberto,
    De costas, ao som d’agua, escorregando.
    De quando em quando um toma pé no fundo,
    Assemelhando o busto de uma estatua
    De marmore polido, que se eleva
    Fronteira á lua, e solitaria brilha;
    Os companheiros de redor o cercão,
    E com muito clamor sobre elle atirão
    Co’as plantas, e co’as mãos ondas sobre ondas.
    Elle grita, elle ri, jura, e promette
    De os punir, de vingar-se; então se arroja
    Ás ondas outra vez, e os segue, e os urge,
    Chove sobre elles desmedidas vagas.
    C’o festival combate o rio ferve,
    Perturba-se a corrente, os echos bradão
    Oh como he doce um banho entre mancebos!
    Um ri contando uma engraçada história,
    Outro grita, outro canta, e todos folgão.
    No fundo desigual talvez se encontre
    Dormindo alguma Náiade entre as conchas.
    Sois mortaes? e que importa? humano he Páris,
    He Páris um pastor, goza entretanto
    Ternos abraços de immortal Enone,
    Que deixa por goza-lo a propria fonte,
    E vem sentar-se entre um rebanho humilde;
    E ai de vós, se das Ninfas não moverdes
    Os puros corações para a ternura!
    Mulheres não as ha nos campos nossos,
    E vazia de amor a vida he nada.
    Redobrai a attenção, pois devo agora
    Fallar em baixa voz, porque receio
    Que as formosas Mondágides me escutem.

      O mesmo coração, dezejos, gostos,
    Que tem nossas mortaes no peito occultos,
    Tem as Ninfas tambem: de exemplos quantos
    Se não póde cingir ésta verdade!
    Sobre as aras de Amor todas off’recem:
    Os ais do adorador nenhuma offendem,
    Comprazem-se de ouvir que as chamão bellas,
    E a gloria prezão de enxugar o pranto,
    O pranto que ellas sós nos arrancárão.
    Se nos ouvem crueis, se esquivas fogem,
    He porque insana lei de atroz costume
    Lhes ordena o fugir, lhes insinua
    Que he delito em seu sexo a natureza:
    Mas contra a natureza em vão combatem
    De cega educação fataes abúsos!
    A mãi universal ou cedo ou tarde
    Vence, triunfa, e no triunfo leva
    O sexo encantador ja maniatado.
    Todas oppõe sabida resistencia,
    Mas cumpre não ceder: por nós combatem
    Seu mesmo coração e a natureza,
    Que auxilio inefficaz jamais nos farão.
    ¿E não sabeis que emquanto desdenhosas
    De nossos ais parecem offendidas,
    Quaes se as mordesse venenosa serpe,
    Tremem, recêão que ao temor cedamos,
    E frouxa timidez nos furte as armas?
    Inda que ostentem ríspida esquivança,
    Agrada-lhes a guerra, e occultos votos
    Fazem a Amor para ficar vencidas.
    Implorar-lhes perdão he ultraja-las;
    Contra ellas ser audaz he ser-lhes caro,
    He dar-lhes bens, poupando-lhe a vergonha.
    Mas a regra primeira, a grande, o tudo
    Entre as regras de amor, he o artificio.
    He vasta a gradação de sentimentos
    Da innocencia á ternura. Em cume altivo
    De alta montanha, cujo aspéto assombra,
    Tem seu templo a Ternura, onde cercada
    Das Graças, dos Prazeres, dos Amores,
    Encanta os corações benigna Venus:
    He forçoso galgar toda a montanha,
    Subir de rocha em rocha, e p’rigo em p’rigo
    Para se entrar no deleitoso alcaçar.
    Quem pretender poupar um passo ao menos,
    Quem saltar pretender, perde o ja ganho,
    Para mais não surgir baquêa em terra.
    Amor azas não tem, como se pinta;
    A curtos passos, devagar só anda.

      Começaremos offertando ás Ninfas
    Sôbre altares campestres, levantados
    Das arvores á sombra, ao pé das fontes,
    Ou nas grutas do fresco, ou sôbre outeiros,
    Festões, grinaldas, passarinhos, frutos,
    E capellas de búzios e de conchas,
    Mais brilhantes, mais bellas do que o Iris.
    Formaremos cantigas, em que aos echos
    Dos campos entre a lida repitamos
    As perfeições, os méritos, os nomes
    Das Napéas, das Dríades formosas,
    Hamadríades, Náiades, e quantas
    Filhas da Natureza a terra habitão,
    Para formar com dextra occulta e sábia
    Do rústico o prazer, do vate o encanto.
    Isto, e a nossa virtude, e a vida nossa
    Laboriosa, honrada, alegre, e quasi
    Igual á vida dos campestres Deozes,
    Disporáõ para nós seu terno peito.
    Talvez qué pouco a pouco minorado
    O custo susto de encontrar humanos,
    Não fujão de mostrar-se a seus cantores.
    Se eu descançar junto de um cedro antigo,
    Ou de uma faia, ou reclinar a fronte
    Sôbre a raiz em parte descoberta
    De uma oliveira, ou castanheiro antigo,
    Darei graças á Dríade, que habita
    No tronco bemfeitor, que me faz sombra;
    E d’elle a amavel Dríade saindo
    Virá sentar-se ao lado meu na relva.

      Depois que pouco e pouco transformado
    Se houver em confiança o pejo, o susto,
    Mudaremos de estilo: em nossos versos,
    E só, e de contínuo a formosura
    Em fogo nos porá do estro as azas.
    Hão de sorrir-se e comprazer-se, e muitas
    Suspenderáõ em seu caminho os passos.
    He lei sem excéção; domina em todas
    A sêde, a gloria de chamar-se bellas.
    Mas bellas tão somente heis de chama-las,
    Sem falar-lhes de amar: depois de affeitas
    A ouvir a narração de seus encantos,
    Dizei-lhes que por certo as rochas mesmas,
    Os troncos, e o cristal das frias aguas
    Ardem cativos de bellezas tantas;
    Que o sol com mais prazer detem seus olhos
    Nos campos d’ellas, só por ver seus rostos.
    Se virdes que um sorriso gracioso
    Vos recompensa o canto, audacia, amigos!
    Avante um passo, e n’este passo cumpre
    O segredo buscar. Desde esse instante
    Não lhes falleis deante das mais Ninfas;
    Buscai até que os socios vos não oução.

      Suppõe tu, caro Antíeno, encontrar-te
    (Esta supposição perdoe Alcippe)
    N’um bosque solitario, onde vaguêa
    Quem te faz delirar em novo incendio.
    Se ella está pensativa, “Oh venturoso
    O objéto, lhe dirás, em que se occupa
    Tua imaginação, formosa Ninfa!
    Se eu o fosse!... ai de mim! porque revolve
    Loucas esp’ranças, se chorar só devo?”
    Se a vires sôbre o espelho do cascata
    Com brancas rosas concertando as tranças,
    Qual sôbre o teu ribeiro o faz Alcippe,
    “Feliz rainha das mimosas flores,
    Feliz rosa, dirás, inda que perdes
    Ao pé das graças d’ella as graças tuas!”
    Se pozer sôbre o seio as melindrosas
    Roxas flores de amor, dirás: “Que inveja!
    Por ser vós um momento eu dera a vida!”
    Mas isto em meia voz, para que julgue
    Que não he por te ouvir que assim fallaste.
    Não se irritou? prosegue, e de mais perto,
    “Permitte-me, (dirás com ar ingenuo,
    Chêo de timidez) permitte, ó Ninfa,
    Que eu te torne mais bella, e te componha
    Essas flores, que um pouco se desmandão.”
    Se ella o permitte, a occasião não percas:
    Se ella hesita e se cala, não recusa;
    Compõe-lhe o ornato no formoso seio,
    E sorrindo, lhe dize: “Alguem no mundo
    Existe que não ame as proprias obras?
    E’sta obra, que findei, me agrada tanto!...”
    N’isto beija-lhe o seio, e deixa as flores.
    D’aqui avante o mar he ja tranquillo,
    Propício o vento, e mui vizinho o porto:
    Ja de piloto o lenho não carece;
    Quanto offerece amor tudo he ja vosso.

      Ja vejo sôbre os ceos dos nossos campos
    Todo o dia brincando em roseo coche
    Pelas pombas tirada a amavel Cípria:
    Coroado de louro, ei-la contente
    Entre palmas, que sombra lhe derramão!
    Ei-la por toda a parte sacodindo
    Do misterioso cinto encantos, gostos,
    Delicias, tudo emfim que obriga a Jove
    Mudado em branco cisne, ou chuva d’oiro,
    A trocar pela terra o sacro Olimpo!
    Desde então mais ditosa he nossa aldêa,
    Mais risonhos seus bellos arrabaldes:
    Ha misterios de amor em qualquer gruta,
    Em qualquer solidão brincão prazeres.

      Eis os frutos de amor, que desabrochão!
    Ja os vejo das bellas entre os braços,
    Qual pequeno botáõ nascido apenas
    Da rosa ja perfeita ao lado brilha.
    Ei-las co’o proprio leite a sustenta-los;
    Taes como descreveo nos magos versos
    Francilia; Musa de meu patrio rio,
    A doce amiga sustentando o filho,
    _Igual a Venus com Amor nos braços._
    Eu as vejo, depois de afagos ternos,
    Soltar de si os cintos azulados,
    Em dois troncos prender as pontas ambas,
    Abri-los, deitar dentro entre mil flores,
    Depois de o ter beijado, o tenro infante,
    Para ser dos favonios embalado.
    Eu as vejo nos troncos encostar-se
    Co’as mãos na face, e os olhos no innocente,
    Juntando aos sons das aves em seu ninho
    Ternos cantos, que os filhos adormeção.

      Ja co’a turba infantil recresce a aldêa:
    Succedem ao silencio alegres brincos,
    Gostosos passatempos se preparão,
    De nossos bens o número se aumenta.
    Vai crescendo em razão, crescendo em fôrça
    Ésta prole feliz, que os Cíprios valles
    Como os Amores, como as Graças, honra.
    Creados longe do tropel das côrtes,
    Puros no coração, que ninguem busca
    Semear de illusões, de prejuizos,
    Educados na paz, sem ver tiranos,
    Sem ouvir discorrer pedantes sabios,
    Té das Sciencias ignorando os nomes,
    Terão destinos, que excedendo os nossos,
    Não hajão que invejar os puros dias,
    Que cegamente se nomêão d’oiro.
    D’oiro! ai d’elles se o oiro então se visse!
    Mais nocivo que o ferro, a bemfazeja
    Terra o sumio nas maternaes entranhas,
    Sôbre leitos de pallido veneno.
    Quando o Genio do mal o trouxe ao dia,
    Chêas de assombro, de tropel correndo,
    Fugírão co’a Justiça almas Virtudes;
    E pelas fundas minas, que o guardavão,
    Surgio do patrio inferno a perseguir-nos
    Chusma de Vicios, e raivosas Furias,
    Que os Vicios inspirando, os Vicios punem.
    Se alguma vez os descendentes nossos,
    Quando a terra pacificos romperem,
    Encontraram com oiro, um grito soltem;
    A aldêa se reuna ardendo em raiva,
    Qual se dos bosques férvido saisse,
    Igual ao raio, o bruto d’Erimantho;
    E o pallido fulgor da massa infesta
    Vão longe sepultar nos verdes mares.
    “Monstro contrário a nós, sê devorado
    Pelo monstro do mar, que em furia vences”
    Dirão todos em chusma; e socegados
    Tornaráõ a lavrar seus ferteis campos.

      Que idea pelo espirito me adeja
    Chêa de luz, de encantos rodeada!
    Ja vejo pelos ares scintillando
    Os fachos de Himeneo. Ja pelas ruas
    Vestidos de alvo linho, e coroados
    De fresca mangerona os moços correm,
    “Ó Himeneo! Vem Himeneo!” gritando.
    “Ó Himeneo! Vem Himeneo!” respondem
    Os campos d’echo em echo; e pelas casas,
    Chêas de gôsto, e de esperança as virgens
    “Vem Himeneo, ó Himeneo!” repetem.
    As ruas de verdura estão juncadas,
    Listões de flores coroando as portas
    Enchem os ares de composto cheiro:
    E os meninos, que as causas não percebem
    Do confuso prazer, vão transportados
    Correndo em chusmas, e batendo as palmas,
    Gritando, “Ó Himeneo!” La desce, e pouza
    O Nume sôbre o altar da Cípria Deoza!
    O venturoso par la vai sobindo
    Por entre a multidão, que attenta o mede.
    La chega ao sítio destinado aos votos.
    Sacerdotes não ha: da aldêa os velhos
    Os cercão de redor. La se abraçárão!...
    He curto o voto seu. “Juro adorar-te
    Emquanto o doce amor tiver no peito.”
    Unindo o seio ao seio, e face á face,
    Depois se beijaráõ por largo tempo;
    E o Nume da alliança, o carinhoso
    Filho de Urania os cingirá dos mirtos,
    Que de Venus, e Amor as frontes ornão.
    Depois algum de nós se erga c’roado,
    Para fallar d’ésta maneira ao povo.

      “Nasceo Amor para encantar os homens,
    Não para ser dos corações tirano.
    Menino ama o brincar, e quer ser livre.
    Cura o tempo as feridas que elle fórma:
    Depois de alto clarão, que cega os olhos,
    Seu facho, pouco e pouco enfraquecendo,
    Vem por fim a apagar-se: a Natureza,
    Nada produz que não succumba á morte.
    Os animaes, as flores, os arbustos
    Tem curta duração: vai manso, e manso
    O tempo destruindo altas montanhas,
    Gasta-se o escolho c’o bater das ondas;
    Succede a lua ao sol, á noite o dia,
    Uma estação perece, outra renasce:
    Tudo he mortal na terra, e mais que tudo
    As humanas paixões insulta a morte:
    Succede ao riso o pranto; á dor prazeres;
    Ao odio amor; ao terno amor a raiva.
    Eu vi moraes affétos n’um só dia
    Nascer e terminar, qual nasce e murcha
    N’um só dia de abril a rubra rosa.
    Ditoso par! amai-vos extremosos
    Emquanto a natureza vos consinta,
    E oxalá que o consinta em largos annos!
    E oxalá que de vós o que entre os mortos
    Primeiro descançar, sinta regadas
    Pelos olhos do sócio as mudas cinzas.
    Feliz quem n’um só fogo arde constante;
    Feliz, mas raro como os negros cisnes!
    E ha loucos, e ha perversos, que ante as aras
    Jurem guardar uma constancia eterna?
    Cegos, que a natureza desconhecem,
    Ou zombão d’ella escarnecendo os votos.
    Jurão-se amar sem fim, e ou tarde ou cedo,
    Sem fim, e sem remorsos se detestão!
    Jurão-se amar sem fim! Mal que resoa
    Debaixo das abobadas o voto,
    Calcando o arco aos pés com ar maligno
    O pobre Amor retira-se chorando
    D’ésta afronta cruel; pois sua glória,
    Seu prazer, e seu timbre he ser voluvel.
    Crepitando em faiscas derradeiras
    Se apaga o facho, que debalde agita,
    E emtôrno espalha venenoso fumo,
    Fumo, que obriga a lágrimas eternas.
    Entre pios e agouros desgraçados,
    Ao leito nupcial os acompanha
    Entre alegre e assustada a meiga Venus.
    Co’as serpes do cabello desgrenhadas,
    Mas inda sem silvar, detraz os segue
    Impaciente a rabida Discordia.
    De flores se coroa a lauta mesa,
    Voão-lhe em roda as graças, e o falerno,
    E riso, e confusão de encantos chêa.
    Mas ah! cedo os pezares, e os suspiros,
    A desesperação, e as vãs querellas,
    E a desordem, e as lágrimas rodêão
    Os lares do prazer; a scena infausta
    Não rara vez negro punhal termina,
    A viuvez, o luto envolve o leito!
    Mas vós, ditoso par, vós, cujos labios
    Não proferírão temerario voto,
    Folgai, vivei, nos braços da ternura,
    Melindrosa ternura, que não morre
    Se lhe não lanção vergonhoso jugo.
    Para amar-vos fieis por largo tempo
    Sede amaveis, ou sede virtuosos
    Porque a doce virtude he sempre amavel.
    Se o fogo se acabar, voltai ao templo,
    A prender novo objéto em novos laços.”

      Ouvindo este discurso o povo inteiro
    O applaude em baixa voz, e á Mãi das Graças
    Se canta o hino, que remata a festa.
    O resto d’este dia he dado aos jogos,
    Gasta-se a noite á roda das fogueiras
    Em musicas e em danças variadas.

      Engano-me, ou queixosa a Natureza
    Escuto suspirar? não, não me engano!
    Ella suspira, e pede-nos vingança
    D’outra injustiça, que lhe faz o mundo.
    Ouvi, e concordai: sabeis que muito
    Em número nos vence o amavel sexo.
    Se a Mãi universal não gera um ente,
    Que não consagre a amor; e a lei sagrada,
    Que obriga a propagar a propria especie,
    He lei universal, que abrange a todos,
    ¿Com que jus, por que horrenda tirania
    Privadas d’Himeneo suspirão tantas?
    Não: cada esposo esposas enumere,
    Té que uma só sem thalamo não fique;
    Todas d’est’arte viveráõ contentes;
    A honra de ser mãi pertence a todas:
    Cresce a aldêa, não brada a Natureza;
    Infamadas não são as que procurão
    Os prazeres de amar, de ser amadas:
    Não se ouvirá que um barbaro veneno
    Dera a mãi a seu filho inda no ventre;
    Ou que um férreo punhal, ou laço infame
    Logo ao nascer lhe terminára os dias:
    Nem Venus corará vendo offertar-se
    De ternura venal corsutos mimos.

      Quão bellos correráõ nossos momentos,
    Longo, e tão longe dos polidos povos!
    Quasi Numes na vida encantadora,
    Até na duração quasi seremos
    Rivaes do povo habitador do Elisio.
    O fio d’oiro da existencia nossa
    Inteiro volveráõ no fuso as Parcas.
    Com pé tardío a inevitavel Deoza,
    Que o Mundo despovoa, e bebe o pranto,
    E acompanha a saudade entre os ciprestes,
    Sem terror, e sem fouce, e até sorrindo,
    Sem que a precedão seus fataes ministros,
    Nos levará de manso e a curtos passos,
    Coroados do cãs para o sepulcro.
    Mas, amigos, quem sabe! as Cíprias Ninfas,
    Se o fado o não tolher, talvez nos mostrem
    A verde planta, que ao cerúleo reino
    Deo mais um Nume, transformando a Glauco.
    Semideozes então, nos tornaremos
    De nossa aldêa os sacros protétores!
    Mas não: a lei da morte he lei terrivel,
    Que rara vez os Numes quebrantárão.

      He forçoso morrer!... Longe os temores!
    He forçoso morrer, morra-se embora.
    Não faltaráõ dulcissimos transportes,
    Prazeres e ternura ao lance extremo!
    Sôbre o funereo leito o moribundo,
    Ja sem côr, ja sem fôrça, e quasi extinta
    Em seus olhos a luz, e a voz nos labios,
    Erguendo a fraca dextra acena, e chama
    Cadaum junto a si; vai despedir-se
    Para o sono sem fim! Sôbre as heranças
    Que ha de recommendar se não tem nada?
    Nada excéto a virtude, e os instrumentos
    Com que a terra lavrou. Sua cabana
    Vai ter outro senhor; as flores suas
    Implorão no jardim desde este instante
    D’outro cultor a próvida tutella:
    D’outro, sim; cuja mão todos os dias
    Irá de madrugada aos sacros manes,
    Pendurar sôbre o tumulo orvalhado
    Uma grinalda de orvalhadas flores.

      Elle abre inda uma vez seus frouxos olhos,
    Onde começa a derramar-se a noite,
    E de seus labios tremulos, por onde
    Ja põe a occulta morte a mão gelada,
    Sólta chêo de afféto a voz, que expira,
    E seus amigos, e seus filhos chama:
    Os seus amigos mudamente o cercão,
    E não mostrar-lhe as lágrimas procurão:
    Áluz da tibia alampada contemplão
    Quanto a hora fatal ja se aproxima.
    E seus pobres filhinhos entretanto
    N’um canto da cabana estão sentados;
    Dos amigos no gesto, e nas maneiras
    Ler seu destino impacientes buscão,
    E attonitos, e tristes nem se atrevem
    A fallar, a fazer qualquer pergunta,
    Porque os não lancem d’este sítio fóra:
    Mas olhão-se entre si co’um ar tão meigo,
    Lastimoso, innocente, que podéra
    Desfazer de piedade a propria morte,
    Se o fado não contasse os nossos dias.
    Seu Pai, que os adorou, quer inda vê-los,
    Lançar-lhes a sagrada, última benção,
    Ver seu pranto, gozar dos seus afagos,
    Quer chama-los. A voz faltou de todo!
    E deixando caír de lado o rôsto,
    Soltou da vida o derradeiro arranco.

      Ao profundo silencio altos clamores
    Succedem n’um momento; e o pranto, e os gritos
    Por toda a parte na cabana sôão.
    Os meninos confusos se levantão,
    Ouvem a nova, attentão no cadaver:
    Ouriçado o cabello, o sangue frio,
    Pallido o rosto, e vacillante o passo,
    Fogem para o jardim, por onde os segue
    A imagem de seu Pai, no susto envolta.
    Qual o vírão ha pouco, o tem comsigo!
    Dos parreiraes as sombras os perturbão,
    Vem nos troncos das árvores fantasmas.
    Vão buscar o luar do rio á borda;
    Mas lembrão-se que ali todas as noites
    Passeavão com elle: ésta lembrança
    Os torna a perseguir; e em tudo encontrão
    De um Pai tão caro o aspéto, que os assusta,

      Pela aldêa se espalha a infausta nova,
    E parece que a morte em cada casa
    Arvorára um trofeo! Domina em todos
    A dor, que se desfaz em pranto e gritos!
    Dir-se-hia que furioso, insuperavel,
    Hia de této em této um vasto incendio.
    Depois que um pouco em lúgubres transportes
    A dor se evaporou, por toda a parte
    Sôão louvores do chorado amigo.
    Cadaum lhe encarece uma virtude,
    E de cada virtude exemplos contão.

      O Justo dorme em paz: mas entretanto
    Ninguem dorme na aldêa. Ouvio-se o gallo
    Cantar, quando expirou da noite em meio:
    Torna o gallo a cantar na madrugada;
    E em contínua vigilia discorrêrão
    As longas horas, que á manhã precedem!
    Torna o gallo a cantar na madrugada,
    A aurora quer nascer; enchem-se os ares
    De uma luz, que ao luar excede um pouco.
    Do ninho suspendido em nossos tétos
    A andorinha ja sáe; vôa cantando
    Defronte agora das janellas nossas
    Para nos saudar, pois entra o dia.
    Ja dos ceos pelos flúidos espaços
    Circula a cotovía, que não cança
    No longo canto, ou desmedido vôo:
    Ja o rumor das arvores e fontes,
    Que da noite na paz costuma ouvir-se,
    Vai fugindo com as trémulas estrellas;
    Torna a alegria ao mundo, e ao campo as cores:
    Mas a alegria d’entre nós he longe,
    Os campos todos para nós tem luto.
    Ja se ouvem resoar da aldêa as portas;
    Ja sáe, ja se reune o povo inteiro.
    O ar de meditação domina em todos,
    Todos trazem de pranto rociadas
    As recentes grinaldas, que tecêrão.

      Em plantas aromaticas envolto,
    Do alvergue, ha pouco seu, la vem saindo
    O deplorado amigo: ao caro pêzo
    Submettem quatro os hombros vigorosos.
    Bençãos, bençãos ao Justo, em cujo aspéto
    Por entre a pallidez inda ressumbrão
    Mansa innocencia, affétos generosos!
    A lenta marcha á turba consternada
    Rompem com baixo tom sonoras flautas,
    Que de triste alverôço o peito agitão.
    Apôz ellas, o funebre cadaver
    Dos Anciãos vai precedendo á chusma.
    Estes, fronte inclinada, olhos em terra,
    Vão suspirando, e a vista lacrimosa
    Lanção de quando em quando ao doce amigo,
    Que os precedeo na regiáõ da morte.
    Em seguida, modestos se confundem
    Os mancebos, de teixo coroados,
    Co’as bellas raparigas, que parecem
    Mais formosas co’a languida tristeza:
    Elles cantão em côro aos longos echos
    O como a quanto existe abrange a morte;
    Ellas em tom mais doce a voz levantão,
    Para mostrar como a existencia curta
    De prazeres doirar-se ao menos deve.
    Vão depois os meninos innocentes
    De ambos os sexos em confuso bando:
    Levão em suas mãos para o sepulcro
    Pequenas oblações; pomos, e flores,
    Taças de leite e mel, de vinho e d’agua
    Tomada em fonte viva antes da aurora,
    E de barro thuribulos não grandes.

      Ja se chega ao lugar sagrado á morte:
    He um valle sombrio, onde se abração
    Mil arvores diversas, onde habitão
    Meigas filhas do ceo, canoras aves:
    Reveste fresca relva a terra fria,
    Pallido musgo os carcomidos troncos.
    Aqui frescos favonios adejando
    Pelas folhudas grimpas, docemente
    Só se ouvem suspirar: aqui mais terna
    Derrama a aurora o pranto matutino;
    Mais terna geme e rôla; e mais delirios
    Na alma gera o luar por estes campos.
    He fechado o lugar de mil rochedos,
    Por onde algumas fontes se derivão
    Com tacito rumor, que inspira os sonos:
    Pelas profundas, tenebrosas grutas,
    E sôbre os agudissimos rochedos
    Crê-se ver e escutar sagrados manes,
    Em frouxa voz, que as auras assemelha,
    Cantando os gostos da passada vida.
    La não geme a coruja, ou pia o mocho:
    Reina em vez do terror branda saudade,
    Terna melancolia, encanto, enlêvo
    Dos corações, das almas bem nascidas.

      Que estrondo he este pelo chão de morte?
    São as férreas enchadas, que se alternão
    Para formar do eterno sono o leito.
    Agora cresce a dor na despedida.
    La chega, la se arroja, la se esconde
    Da Mãi universal no seio um filho!
    “Paz ao homem de bem!” dizem de roda
    Os velhos, e retirão-se chorando.
    “Leve te seja a terra!” os moços gritão,
    E partem derramando-lhe folhagem.
    Chega a turba infantil, seus dons off’rece,
    E vai juntar-se á multidão, que torna
    Aos trabalhos de novo á sua aldêa.

      Mas ah! qual d’entre nós terá primeiro,
    Caros amigos, de fechar seus dias?
    Quaes choraráõ no tumulo silvestre!
    Talvez eu vos preceda, e vá saudoso
    Ver na Tenárea porta o Cão trifauce,
    Na Estige nebulosa a barca horrenda,
    E do Elisio paiz os gratos campos,
    La onde os vates do universo inteiro,
    Ja Numes, em republica se unírão.

      Mas não pensemos n’isto: he Maio agora
    Que devemos cantar: nós o jurámos.
    Recomponde na fronte as vossas c’roas;
    Ergamo-nos, enchei de vinho as taças;
    E ante o Ceo, ante a Lua, que nos ouve,
    Entre os Favonios, e as formosas Ninfas,
    Que escondidas nas ondas nos rodêão,
    Saudemos novamente o alegre Maio,
    Jurando que desde hoje em nossas liras
    Ha de escutar cada anno os seus louvores.

      Ó Maio, eu fallo; escuta-me. “Por este
    Licor de Bassareo, que me arrebata;
    Pelos Filhos gentís da branca Leda,
    Que pela mão a nós te conduzírão;
    Por tuas flores, com que estou soberbo;
    Por tuas fontes, zéfiros e bosques;
    Por teu ceo graciosa; e por ti mesmo;
    E pela tua amiga, a minha Musa,
    Juro de consagrar emquanto viva,
    Todo o teu mez ao teu louvor, e ás festas.”

FIM DA FESTA DE MAIO.



NOTAS Á FESTA DE MAIO.



CANTO I.

_Pag. 204. verso 4.º_

    Das Filhas de Nereo a mais formosa
    Foi Galatéa candida e rosada.


Como das bagatelas que forçadamente tenho semeado por alguns d’esses
Jornaes, que he o mesmo que escrever em folhas e atira-las ao ar, algumas
haja que não mereção de todo perder-se, estas me pareceo i-las recolhendo
a meus livros, por qualquer modo que fossem achando cabida, para não ser
como a Sibilla de Cumas, que em uma vez se lhe desmandando com os ventos
as folhas que tinha escritas, ja para sempre tirava d’ellas o sentido:
_neo ponere in ordine curat_. Por isso traslado do Num. 3 do _Jornal dos
Amigos das Letras_, todo o seguinte Artigo[15].

    _Antonii Feliciani de Castilho_,

    GALATEA: CARMEN.

    ADVERTENCIA PRELIMINAR

    O fragmento latino que se vos offerece, sob o titulo de
    Galatea, he huma tentativa e nada mais: e quem mo quisesse
    haver a ostentação, não só mostrára quam pouco me conhece,
    mas ainda com atrocissima injúria me aggravaria. Discorridos
    são hoje mais de dez annos, depois que, desejoso de refrescar
    lembranças de conhecido com as Romanas Musas companheiras e
    alegria de minha infancia, me dei ao passatempo de metrificar
    em latim, ja os pensamentos que primeiros me occorrião, ja
    algum episodio de minhas proprias obrinhas; sendo assim,
    que esta fabula de Galatea a trasladei do Poema da _Festa
    de Maio_, no meu livro da _Primavera_. Sei bem que não ha
    hoje, e especialmente por cá, leitores para o latim, sendo a
    final chegado o prazo de, com razão e sem o mínimo escrupulo,
    se poder chamar tal lingua morta e enterrada: sei mais que,
    inda mal, não respondem estes meus versos ao que eu anciára
    que elles fossem, e nem valem mais que uma boa parte dos ahi
    impressos na custosa Coléção de Poetas do nosso Padre Reis;
    e com tudo, a despeito d’estas duas tão fortes razões, e tão
    valentes para me deverem dissuadir, convim em que tão pobre
    couza se désse á estampa. Será, segundo muitas vezes se escreve
    em Prologos, para incitar engenhos a fazerem melhor? não. Pois
    será, como tambem em Prologos se usa de escrever, para que
    os Aristarchos me ensinem o que, o como, e o por onde devo
    corrigir e melhorar? menos; que não sei eu de um só que se hoje
    occupe com semelhantes vaidades. Como por tanto me livrarei da
    desmerecida taxa de presunçoso? confessando, como tambem em
    Prologos se costuma, mas d’esta vez com verdade, que o faço por
    obedecer a dezejos de pessoa, com quem muito me importa estar
    em tudo bem.

    GALATEA

    _Carmen, ex Lusitano Latine redditum._

      Assiduis, juvenes, proscindite flumina remis,
    Dum vacat et picto lœtos juvat ire phaselo;
    Intereaque meo vestrum fallente laborem
    Carmine, Romanas percurram pollice chordas.

      Nereidas inter quondam pulcherrima Nymphas
    Nympha fuit Galatea maris: cui lilia mixtis
    Ore rosis, flavæque comæ, roseique labelli,
    Cæruleoque oculi placido fulgore micantes,
    Et sinus albenti in scopulis albentior unda,
    Qualem nec Paphiis habuit quæ regnat in arvis.

      Tertia postdecimam vernantia tempora brumam
    Floruerant, postquam vitali vescitur aura
    Nympha; nec in terris, aut cœlo, aut æquore toto
    Est quæ formosis ausit contendere formis.
    Multi illam juvenes, multi petiere deorum,
    Undique blanditiis et laudibus insidiantes,
    Nulli illi juvenes, nulli placuere deorum.

      Hanc pater undisono sub gurgite in antra vocavit,
    Amplexumque dedit, tremulisque sedere coegit
    In genibus, tales fundens post oscula voces:
    “Filia, tempus adest pueriles linquere ludos.
    “Non te pulchra latet, qua subjicis omnia, forma;
    “Tene latet quantis fugiendi viribus, instant
    “Qui toties, laudesque ferunt, gressusque sequuntur?
    “Crede patris canis et amori crede paterno;
    “Quò plus obsequiis, quò plus sermone placebunt
    “(Parce seni juvenem patri non grata monenti)
    “Hóc magis incautæ protendent retia formæ.
    “Filia, tempus adest pueriles linquere ludos:
    “Sit tibi cura meos posthac delphinas in undis
    “Pascere, perque salum deformes ducere phocas;
    “Non bene pigra tuis ignavia convenit annis.”

      Dixit: et e patrio discerpta coralia ponto,
    Cuspide inaurata, pastoria munera, virgam
    Tradidit, atque pecus natæ commisit habendum.
    Est virides inter, Nereus quibus imperat, undas
    Valle locus tuta, nec divo pervius ulli,
    “Hic maneas, dixit, te sæpe deinde revisam.”
    Arrisit, natamque pater sine teste reliquit.

    Haud semel ignifero radiarant lumine currus,
    Phæbe tui, dum lœta pecus Galatea marinum,
    Gurgitis inter opes, viridanti paverat alga.
    Interdum æquoreis linquens armenta molossis
    Ibat, et in calathos modo tinctas murice conchas,
    Et modo lucentes baccas contenta legebat.
    Ver erat, et pictos zephyris mulcentibus agros,
    Mense renidebat tellus lætissima Majo;
    Aureus in liquidæ Sol brachia Thetidos ibat.
    Deserere ima maris, solum conscendere littus
    Ausa fuit virgo, non sic reditura sub undas.
    Summa petens scopuli viridi sub rupe recessit,
    Unde fretum, terrasque lubens circumspicit omnes.
    Hic sedet, et pascens animos novitate locorum,
    Miratur, facilesque oculos fert omnia circum.
    Ut mediis vidit formosum fluctibus Acin
    Æquora jactatis tranantem cana lacertis,
    Versibus abstinuit, versus nam forte canebat;
    Erubuit, turbata silet, suspiria ducit;
    Nunc subeunt jussus, subeunt hortamina patris;
    Jam cupiat tutis fugiendo immergier undis,
    Nec potis est cupiens, et littore perdita inhæret:
    Nunc libet et tacito cautæ latuisse sub antro,
    Donec arenoso mutarit littore fluctus
    Discedensque puer securam liquerit oram;
    Pænitet inde fugæ, sistit, mavultque videri.
    Corpora, cæruleas inter candentia lymphas,
    Quam numeris perfecta suis! quam fortia pulsis
    Devectantur aquis! quam multa est gratia nanti!
    Quam bene suffuso sua membra liquore teguntur,
    Quam bene disperso nudantur eburnea ponto!
    Cuncta tenent oculos, in cunctis Nympha moratur.
    Interdum propius sensim vestigia ponit,
    Nec propiora tamen fieri vestigia sentit.
    Queisque prins sparsis volitaverat aura capillis,
    Nescia cur fingat, vel collo dividat apte,
    Dividit illa tamen, studioque indulget inani.
    Hinc littus petit, ac vultus speculatur in unda,
    Et quanquam ipsa sibi pulcherruma tota videtur,
    Pulchrior exoptat fieri, frustraque laborat.

      Interea juvenis, jam fessus nasse, redibat,
    Et prope jam fulvas manibus tangebat arenas:
    Illa fugit, trepidatque, et rupe reconditur ima.
    Hic latet, et votis contraria vota rependens,
    Nunc patris hortatus, et nunc reminiscitur Acin,
    Et rubet, et pallet, nec vultibus hæret in isdem.

      Haud mora: nudus adest, antrumque Simethius intrat
    Acis, ut abjectas repetat sub tegmine vestes.

      Quid remi cecidere, quid ó cessatis amici?
    Nonne retro refugisse ratem, dumque ora tenetis,
    Aversam in portus sentitis abire relictos?
    Instaurate opus, ac totis incumbite remis:
    Quó pœnas detis, dictis nihil amplius addam.



CANTO II.

_Pag. 237. versos 15 e 16._

    E que? algum de nós contra o que vive


A questão, se sim ou não se ha de o homem alimentar de substancias
animaes, tem sido muitas vezes, e com oppostas sentenças, debatida por
filosofos, poetas, naturalistas e medicos. A affirmação e a negação
achárão para argumentos ja uso e consenso de povos em todos os tempos,
ja razões intrinsecas tiradas de nossa propria conveniencia. He assunto
que requeria larga escritura, e em que a qualquer seria facil dissertar
eruditamente. Voar-lhe-hei pelas summidades.

Aquella vaga tradição, que em toda a parte permanece, de uma primitiva
idade do mundo innocente e felicissima, entre as couzas de que reza,
aponta sempre o não se comer de animal algum, senão só de frutas, hervas,
leite e mel. De outro modo se não podião sustentar, conforme parece
pelo ancianíssimo Genesis, os moradores do Paraizo, não só homens,
porem todos os viventes. Quadrava o preceito e toava o uso pelo menos
á humana natureza, que ainda agora, se a bem espreitarmos na infancia,
ou antes de alterada por contrarios habitos, se afflige e revolve com
o aspéto do sangue e morte. Verdade he, que depois da queda de nossos
primeiros pais, nem o Testamento velho nem o novo, tornão a prohibir as
carnes; mas toques da mesma nativa compaixão para com os animaes não
lhes faltão, dos quaes pelo menos se deduz por bom discurso, que se os
tivermos de comer, ainda ahi nos devemos haver com a possivel mansidão,
poupando cruezas escuzadas, como são, e se costuma, atormenta-los na
agonia por lhes refinar o sabor, caçar, montear e pescar por passatempo
e pelo mero gôsto de malfazer. Lê-se nos Proverbios, segundo as versão
dos Setenta: _Justus miseretur animas jumentorum suorum; viscera autem
impiorum crudelia._—O que justo fôr ha de se apiedar da condição dos seus
brutos; mas as entranhas dos impios não se apiedão da nenhuma couza.—No
Exodo: _Non coques hædum in lacte matris suæ._—Não cozas o cabrito no
leite de sua mãi.—He dito para ser ruminado, pelo mimoso do afféto que
recende. No Deuteronomio: _Si ambulans per viam, in arbore vel in terra
nidum avis inveneris, et matrem pullis vel ovis desuper incubantem, non
tenebis eam cum filiis sed abire palicris, ut bene sit tibi, et longo
vivas tempore._—Se o acaso te deparar no caminho, quer em arvore quer no
chão, um ninho de ave, e a mãi estiver a agazalhar os filhos ou os ovos,
não a tomes com os filhos, senão que em boa hora a deixes ir, para que
boa estrêa te venha, e vivas largos annos.—

Entre os Santos Padres, que são os depositarios e dispenseiros do
espirito christão, alguma couza se podéra citar que autorizasse este
genero de piedade. Sabida he a de que usou S. Anselmo, uma vez para
com uma lebre, outra para com um passarinho. Tertulliano se maravilha
de que entre christãos, os haja que se accommodem a ser carniceiros:
_nescio an dolendum an erubescendumn sit_;—não sei, diz elle, se mais he
para se haver lástima, se vergonha. S. João Chrisosthomo escreva, que
se não podia ser santo sem uma estremada suavidade de affétos, e muita
vehemencia de bem querer, não só aos nossos, mas ainda aos estranhos, em
tanta maneira que até aos brutos animaes abranja essa mansidão. (_Homil.
29. na Epist. ad Rom._) E dizia bem, que nas vidas de não poucos santos
resplandecem as provas. S. Francisco de Assiz resgatava os cordeiros
que hião para o córte, pagava e soltava as redadas dos peixes e os
viveiros das aves. Mas não apontemos mais, por não enjoar filosofos,
digo filosofos de nossa terra, dos que nos assoalhão filosofia de torna
viagem, porque os lá de fóra ja deixarão muito para traz a impiedade.

Não he porem necessario ser christão, senão que basta ser homem,
para repartir com os brutos do thesouro da charidade, de que muitos
d’elles usão a seu modo, não só para com os seus, mas para comnosco.
Sendo assim que onde os não maltratão, são elles de indole muito mais
benigna: em Inglaterra, segundo se diz, nem ha cão que ladre, nem besta
que escoucinhe: em não sei que ilha dezerta, acharão os primeiros
descobridores, em aportando, (segundo encontrei na Escolha de Viagens
por John Adams) serem tão cortezes as aves de que toda era chêa, que
não fogião dos novos hospedes, antes os festejavão e se deixavão pôr a
mão; semelhantemente ao que da ilha das Garças aponta João de Barros
_Dec. 1 Liv. 1 Cap. 7_, aonde “como não erão traquejadas de gente (as
garças e outras aves), ás mãos tomarão (os marinheiros de Nuno Tristão)
tanta quantidade d’ellas, que ficou por refresco ao navio.” Dos leões he
corrente entre os naturalistas não perseguirem, mas esquivarem-se dos
perseguidores, embrenhando-se cada vez mais pelos seus sertões adentro,
sendo alias mui leves de domesticar, e folgando de acompanhar, como
rafeiros innocentes, a trôco de qualquer esmola de pão, por largo espaço
de leguas. Muitas são em toda a parte, mormente em Africa, as serpentes,
que namoradas do bom gazalhado, trocão seus matos pelas pouzadas humanas,
e n’ellas se hão como boas comadres da familia. O cavallo do Arabe he o
contubernal e primeiro amigo de seu dono: um bom Arabe na morte do seu
cavallo deveria de se expressar pouco mais ou menos como Millevoye o
suppoem na Elegia. Muitos prezos tem logrado domesticar aranhas e ratos,
até o ponto de, no meio das asperezas de um segredo, se poderem esquecer
por muitas horas do seu desamparo, crueldades e injustiças humanas. No
páteo da rezidencia parochial de S. Mamede da Castanheira do Vouga,
todos os dias a horas certas viamos acudir ao almoço e cêa que ás nossas
pombas desparriamos, todos os passarinhos da vizinhança, que ja traziamos
tão correntes, que nos vinhão comer aos pés, por saberem (porque os
brutinhos sabem muito mais do que nós outros cuidâmos) que n’aquella
cazinha da solidão moravão amigos seus, e nunca terem ouvido tiro, nem
enxergado rede no pequeno arredor do templo e passaes solitarios.[16] Se
a tudo isto e a muitos outros exemplos se lançar conta, alguma verdade se
achará no affirmarem poetas, que no discaír da idade de oiro, ao mesmo
tempo que se os homens corromperão degenerando em crueis, se forão as
feras tornando bravias e desabridas.

Em todos os tempos, e até por fóra e mui longe d’esta religião charidosa,
houve quem bem entendesse como entes nossos conterraneos n’este
orbe, irmãos nossos em viver, sentir, padecer e acabar, com sangue e
coração como nós, com amor, prazeres e filhos como nós, bebendo como
nós no immenso vaso do pai commum o mesmo ar, a mesma luz, as mesmas
aguas, e comendo comnosco á mesma mesa do universal banquete, poderião
quando muito servir-nos de pasto; mas fóra d’ahi, qualquer injúria
que se lhes accrescentasse, seria hortorosa profanação e violação da
natureza. Plutarcho e Quintiliano referem, que os Athenienses castigarão
severamente algumas sevicias commettidas contra animaes. O Alcorão
espalhou por todos os povos, que largamente senhorea, muita d’esta
benignidade: raro Mahometano deixará de matar a fome ao cão de seu
inimigo. Na China passa esta beneficencia muito adeante. Que no-lo diga
em seu estilo chão o nosso Fernão Mendes, ou talvez o Jesuita que em seu
nome, e por um modo tão rijo de crer, compilou tantas e tão preciosas
noticias do Oriente, mui desacreditadas em tempo, ja hoje em parte mui
abonadas de verdadeiras. Padre ou marinheiro, diz assim: (falla de uma
feira que no rio de Batampina, em caminho de Nanquim para Pequim, se faz
com mais da duas mil ruas de barcaças, nas quaes ha para vender tudo a
que no mundo se pode pôr nome.) “Ha tambem outras embarcações em que os
homens trazem grande soma de gayolas com passarinhos viuos e tangendo com
instrumentos musicos dizem em voz alta á gente que os ouve, que libertem
aquelles cativos que são criaturas de Deos, a que muita gente acede a
lhes dar esmola com que resgata daquelles cativos os que cada um quer e
os lança logo a avoar, e toda a gente dando hũa grande grita lhe diz,
_pichau pitanel catão vocaxi_, que quer dizer, _dize lá a Deos como cá
o servimos_. Ha outros homens que noutras embarcações trazem grandes
panellas cheyas de agoa, em que trazem muitos peixinhos viuos que tomão
nos rios nũas redes de malha muyto miudas, tambem pela mesma maneira
vem bradando que libertem aquelles cativos por seruiço de Deos que são
innocentes que nunca peccarão, a que tambem a gente dando sua esmola,
comprão daquelles peixinhos os que querem e os tornão logo a lançar no
rio, dizendo, _vayte embora, e lá dize de mym este bem que te fiz por
seruiço de Deos_. E estas embarcações em que estas cousas se trazem a
vender não se hão de contar por menos soma que de cento e duzentas para
cima.”

Na India são n’esta virtude extremosissimos. Alguns viajantes tanto
encarecem a couza, que chegão a affirmar haverem por lá, ainda no seculo
passado, hospitaes para as mais asquerosas sevandijas, como piolhos,
pulgas e persovejos.

Pôsto que tudo quanto até aqui tenho trazido, possa parecer uma diversão
do principal propozito, não o he, por quanto d’estes misericordiosos
affétos he que se tem em parte derivado a abstinencia de carnes,
observada por muitas pessoas, communidades, seitas e povos: em parte
digo, porque em outros diversos fundamentos tem tambem estribado, como
veremos.

E pois que a ultima que tocámos foi a India, a ella tornemos, levando por
explorador e lingua, não algum estrangeiro, de que outros se contentão
mais, mas um patricio nosso, dos varios que para tal officio se podérão
tomar: he Duarte Barbosa, e diz:

“Ha neste regno (de Guzarate) outra sorte de Gentios, que chamaom
Bramanes, estes nom comem carne, nem pescado, nem nenhũa cousa que
mora, nem mataom, nem menos querem uer matar, por asy lho defender sua
idolatria; e guardaom isto em tamanho estremo que he cousa espantosa,
porque muytas uezes acontece leuarem-lhe hos Mouros bichos, e pasarinhos
uiuos, e fazerem que hos querem matar perante eles, e estes Bramanes lhos
compraom e resgataom, dando-lhe por eles muyto mais do que ualem, por
lhe saluarem has uidas, e soltalos. Se tambem El Rey, ou ho gouernador
da tera, tem algũu homem, porculpas que cometese, julgado ha morte;
ajuntamse eles, e compramno ha justiça, se lho quer uender, pera que nom
mora; e tambem algũus Mouros pedintes, quando querem auer esmola destes,
tomaom muy grandes pedras, e daom com elas emsima dos ombros e barigas,
como que se querem matar perante eles, e porque ho nom façaom, lhe daom
muytas esmolas, e que se uaom em pas; outros trazem faquas, e daom-se
cõelas cutiladas pelos braços e pernas, e pera se nom matarem lhes daom
muytas esmolas; outros lhe uem has portas ha querer lhe degolar ratos e
cobras, ha hos quaes eles daom muyto dinheiro por ho nom fazerem, e desta
maneira saom dos Mouros muy apreciados: estes Bramanes se achaom no
caminho algũu golpe de formiguas, aredam-se buscando por honde pasem sem
bas pisarem. E em suas casas de dia çeaom; de dia nem de noyte acendem
candea, per caso de algũs mosquitos nom irem morer no lume da candea; e
se todauia tem grande necesidade de acenderem de noyte, tem hũa alenterna
de papel ou de pano agomado, pera cousa nenhũa uiua poder ir morer dentro
no fogo; se estes criaom muytos piolhos, nom hos mataom, e quando hos
muyto aqueixaom mandaom chamar hũs homeins que antre eles uiuem, que
tambem saom gentios, e eles hos haom por de santa uida, e saom come
irmytães, uiuendo em muyta abstinença por reuerencia dos seus Deoses;
estes hos cataom, e quantos piolhos lhe tiraom poemnos em suas cabeças,
e hos criaom com suas carnes, em que dizem fazerem muy grande seruiço ha
seu Idolo, e asy guardaom hũus e outros com muyta temperança ha ley de
nom matarem: estes Gentios saom muy delicados e temperados em seu comer;
seus manjares saom leites, manteiga, açuquar, e aros, e muytas conseruas
de diuersas maneiras; seruem-se muyto de cousas de fruyta e ortaliça, e
deruas de campo pera seus manjares; honde quer que uiuem tem muytas ortas
e pomares.”

Na _Historia de Mysore_, lê-se que em Bengala, quando a violencia da fome
a devastou em 1774, consumindo-lhe obra de trez milhões d’almas, forão
em muito grande numero os Indios que antes quizerão deixar-se morrer á
mingoa, do que acabar comsigo comer carne de animaes.

Frequente e antigo he na India este antojo, e tão notorio, que não ha
porque afogar o discurso com mais exemplos. Bem podia proceder isso em
parte da vegetavel abundancia e espantosa cultura d’aquellas terras,
e de alguma especial compleição do clima, ou natureza ou costumes
dos moradores, ou algumas outras circunstancias, segundo as quaes os
corpos se dessem melhor com os pastos leves e frugaes: viria depois a
religião consagrar por dogmas seus os conselhos da higiene, como com
vinho, toucinho e abluções aconteceo em muito oriente á conta da lepra:
para melhor incutir o preceito, cerca-lo-hia de fabulas amigas da
imaginação do vulgo, como a encarnação dos Deozes em corpos de brutos, e
a transmigração das almas humanas por differentes sortes de viventes até
parar na vacca; materias estas de que as historias e perigrinações fazem
larga menção. Dos Indios podérão tomar por mão a crença os Egipcios, os
quaes, sendo moradores de solo não menos liberal, devião tambem perdoar
grandemente aos animaes, em quem reverenciavão suas Divindades, ou
santuarios ambulantes que d’ellas forão: e confirma-me na suspeita a
conveniencia, que ja de alguem deverá ter sido notada, do boi Apis do
Egito com a vacca ainda hoje sagrada dos Indios. Do Egito provavelmente
trouxe Pithagoras para a Italia, em tempos de Numa ou Servio Tullio, a
sua metempsícosa com a defensão do uso das carnes. Não pegou a invenção,
se não foi em alguns escolares fanaticos de tamanho mestre; e nem
filosofos pelo tempo adeante a sustentarão, nem poetas se valerão d’ella,
afóra Ovidio nas metamorfoses, e só como narrador; e mais não deixava de
ser fecunda e bem assombrada crença para poesias. Não pegou, porque não
vinha propria á indole do solo ou ao temperamento dos Italos, ou, o que
he mais certo, porque encontrava os antiquissimos usos de umas gentes,
que primeiro tinhão sido pastoras e depois guerreiras.

Na Ilha da Palma, acharão os nossos, quando descobrião, conquistavão e
amansavão aquelle archipelago, (senhorio traspassado depois em Castella,
mas padrão glorioso do nosso Infante D. Henrique) serem mantimento dos
moradores hervas, leite e mel.—Com este particular exemplo me acóde a
memoria, mas alguns outros semelhantes de outras ilhas me parece ter
achado pelas historias, de que me não ficou nem fiz a lembrança preciza.

Com a propagação da fé christã renasceo religiosa a abstinencia na
Europa, por motivo não de brandura, mas de mortificação. Apparecerão
Ordens numerosas de religiosos, primeiro só de homens, logo tambem
de mulheres, que renunciando todos os carnaes deleites para melhor
apurarem os do espirito, tomando o exemplo dos primitivos eremitas que
se abastavão com as hervas, raizes, frutas silvestres, e aguas dos
montes, não só cortarão pelas demazias na quantidade do sustento, não só
o estreitarão com regra de jejuns, mas em varios de seus institutos o
expurgarão de todo animal terrestre ou volatil, não consentindo, quando
muito, senão em algum marisco secco e fraco, para regalo das festas. E he
para notar como ainda os mais rígidos observantes logravão saude inteira
e robusta, e chegavão ao ultimo fio da velhice: _mens sana in corpore
sano_.

Annos ha que me recordo de ter achado em uma Gazeta de Lisboa, estar-se
creando em Manchester uma seita, que por filosofica defendia tomar
qualquer sustento animal. Era noticia de Gazeta, não affirmarei que
tivesse pé, e se o teve, não sei em que parou.

Ja que estamos com Inglezes, fallemos de Franklin. Este homem, a quem a
probidade e o juizo fizerão filosofo e liberal, e não a devassidão e o
estouvamento, tendo lido, di-lo elle, o livro em que Tryon recommenda
a dieta vegetal, determinou-se em a observar. Pô-lo por obra, e
limitando-se em arroz e batatas, e ás vezes ainda em menos, como passas,
bolaxa ou pão, com uma gota de agua, não só forrou do seu salario (era
ainda então compositor de imprensa) com que poder comprar livros, mas
do seu tempo acerescentou para estudos o que as refeições e digestões
lhe podérão consumir: fez progressos proporcionados á clareza de ideas e
fortaleza de percepção, que são o fruto da temperança no comer e beber.
Seguio constante por algum tempo, não pouco, até que chega á ilha de
Block, assiste a uma pesca, revolvem-se-lhe nas entranhas as maximas do
seu Tryon, dá por genero de assassinio aquelle matar viventes, que nem
tinhão feito nem erão capazes de fazer o mínimo mal. Poem-se os mortos ao
lume, recende o guizado; o filosofo no seu tempo gostára apaixonadamente
de peixe; entra pelo nariz a tentação, estremece a filosofia, e em boa
hora lhe acode com uma bulla de composição, lembrando-lhe como ao abrir e
limpar d’aquelles peixes, lhes víra dentro do buxo outros peixinhos mais
pequenos. “Pois que he isto, diz elle entre si, se vós uns a outros vos
comeis, porque não hei de eu tambem comer-vos a vós?” N’essa hora e com
esta palavra se lhe quebrou o fadario; o que muito bem prova, acrescenta
o bom homem, sermos nós _animaes racionaes_, sabendo, como sabemos, achar
pretextos plausiveis para quanto nos póde dar gôsto.

Outro autor muito afamado de nossos dias, Raynal, era igualmente sobrio.
A Senhora Marqueza d’Alorna, que muitas vezes o teve a jantar, me contou,
que nunca o víra comer mais que algumas poucas hervas e fruta, nem beber
senão agua. Era, observava ella, como um conviva das Ninfas, custando a
crer como com aquellas refeições de idillio se podessem sustentar tantos
nervos d’alma e de pensamento.

Se depois de autores de livros se póde citar quem não sabe ler, em Grada,
lugarejo da Bairrada, vivia um moço que eu conheci, o qual nunca provára
vacca. Perguntado a causa, não era religião, nem filosofia, nem tedio
natural, mas effeito de um vehementissimo e entranhado amor que tinha
aos bois, com quem se creára, com quem vivia, lavrava, e dormia paredes
meias. Rústico era, e sem o cuidar discorria e fallava como o Sabio de
Cheronea, quando dizia, que por tudo quanto o mundo tinha, não venderia
nunca o boi que em seu serviço envelhecêra.

Afóra os monges, filosofos e amigos dos bois, ha ainda uma grande quantia
de homens, puro comedores de vegetaes em quasi todo o anno: são os
moradores das serras e aldêas pobres, a quem a estreiteza de sua fortuna
mal dá licença para chegarem á carne por entrudo e paschoa, e poucas
mais vezes e só escassissimamente, ao pescado, vizita mui rara em terras
mesquinhas do sertão. De choupanas sei eu, e quasi de inteiros lugares,
pelas abas da Serra do Caramulo, onde oito annos vivi, que de pouco mais
se sustentão que do pão de centeio e milho, batatas e alguns legumes: e
estes asperissimos banquetes, em que até pelo demais fallece o agro vinho
verde de seus montes, trazem-os comtudo mais rijos e sãos no trabalho,
do que as grandes ucharias aos mimosos das cidades.

Acabarei estes exemplos com o que melhor conheço, que he o meu. Quando
eu compuz estes versos da _Festa de Maio_, era como ja no Ante-Prologo
disse, todo Gessnérico: trazia a alma toda a nadar no coração empapado
com os mais brandos affétos do mundo, como rosa a boiar em vaso de leite:
amava as plantas e tratava com ellas como com entes sensitivos; todos
os entes sensitivos amava-os como amigos e companheiros: tinha fantasia
pronta, que muito ajuda em todo o genero de bem querer; esta me revelava
de contínuo e me ataviava de suas fabulas e côres a particular vida e
cheíssimo mundo de cada inséto; e porque esse seu mundo e vida dizia
tanto com o meu, e o commum de seus substanciaes interesses com o commum
dos substanciaes interesses dos homens, acontecia que imaginando-me ora
grilo, ora passaro, ora borboleta, tinha aprendido uma perfeita, e se
dizè-lo posso, egoista charidade para com todos elles. Ouvi debater a
questão do uso das carnes: as razões affirmativas podião ter mais fôrça,
mas as negativas dizião com o meu gôsto; he meia persuasão; caírão-me
tão bem, que logo me dei, se não por convencido, por persuadido: e como
persuadido e convencido escrevi os versos, que por isso aos indifferentes
se de contrária sentença, devem parecer, como em verdade são, sobejos,
exagerados e declamatorios.

Era o escrito fruto de minha opinião; mas esta, como accontece, se
roborou por elle, e até tal ponto se confirmou, que do que até alí não
passára de poetica theoria, instituí fazer prática minha em toda a vida,
renunciando qualquer genero de alimento animal. Por duas vias se fazia de
mal o tenta-lo, ja porque em couza tão excetuada do geral não deixarias
de caír estranhezas e zombarias, ja porque tanta sobriedade entre quem
a não usava, era genero de martirio continuamente renovado. Mas contra
estes dois contrastes prevalecião outros dois argumentos: primeiro, minha
consciencia, que repugnava banquetes de sangue: segundo, o presuposto em
que estava, de que as faculdades da alma se havião de adelgaçar e crescer
onde o corpo fosse favorecido da parcimonia. Metti-me Pithagorico aos
vinte e trez d’Agosto do anno de 1822, tendo sido gastos os mezes, que
desde a feitura do poema decorrerão até esse, em acabar de me resolver e
aparelhar para tão grande façanha; e permaneci na observancia do voto até
vinte e trez d’Agosto do seguinte anno. Acabei o noviciado, e em lugar de
professar, despedi-me. Tive minhas razões; e ainda que pouco se me havia
de dar agora do que se podesse dizer ácerca de um indivíduo, que n’esse
tempo tinha o nome que eu hoje tenho, e do qual, segundo as theorias dos
medicos, não conservo hoje uma só particula, sendo eu um, vivo e junto;
elle outro, morto e disperso por todo esse mundo: todavia, porque ainda
temos commum um leve som, que he o nome, quero lançar pontualmente na
balança do juizo dos meus leitores os seus porques; e bons ou máos, forão
estes.—Primeiro: que a abstinencia de uma só pessoa não poupava uma unica
existencia de animal. Segundo: que era presunção ridicula o desquitar-se
um sujeito, por alguns argumentos, de uma opinião e uso quasi universal,
sendo assim que todos os homens, guerreando-se entre si por crenças
religiosas, por sisthemas filosoficos, por principios de política e
sciencias, por modas e gostos, todos se conformavão no comer das carnes.
Terceiro: que realmente era obstinação o desconhecer como a natureza nos
não aparelhára só para comer e digerir vegetaes. Quarto: estar-nos ella
dando nos proprios animaes, que uns de outros se sustentão, uma prova
de ser menos escrupulosa do que Pithagoras e a poesia. Quinto: que ella
propria os multiplica á proporção do que uns a outros devem tragar.
Sexto: que se ella faz com que cada passada, cada pedra que movemos, cada
gota de agua que engolimos, cada fruto ou folha que aproveitamos, cada
sôpro que inspiramos ou expiramos, cada movimento emfim que fazemos,
ainda dos mais indispensaveis para a vida, a destrua a milhões e milhões
de entes conhecidos, e a numero talvez ainda maior de desconhecidos,
não ha porque nos tenha a grande peccado, o aumentar-mos por nosso
bem a lista com mais algumas unidades. Setimo: que o adelgaçamento e
crescimento de minhas faculdades intelletuaes que eu esperára d’aquella
mais leve nutrição, não só se não tinha verificado, mas antes o contrário
succedêra, pôsto que de diversas causas podésse pender o successo:
e por muito tempo me ficou o costume de, quando via versos fracos e
desengraçados, dizer: Devião estes de ser compostos por quem não comia
senão hervas. Outavo, ultimo, e não leve motivo: que ainda que pouco dado
ás delicias da gula, o cheiro e presença de melhores iguarias do que as
minhas, de dia em dia me tentava mais, e quando succedia achar-me entre
gente alegre e em mesa de festa, as ondas de tentação, que eu forcejava
dissimular o melhor que podia, crescião e redobravão com os motejos dos
circunstantes, que bem poderião ter sal, mas não que adubasse as minhas
insôssas hervas.

De todos os varios antecedentes deduzo, que sem embargo das objeções,
autoridades e exemplos, o uso das carnes se ha de ter por licito, e por
dithirambico o que lá fica no texto: mas que fóra do caso de necessidade
ou clara utilidade, e alem do ponto em que essa necessidade ou utilidade
pararem, toda a sevicia contra viventes he immoral, injusta, insensata, e
digna de muito grande castigo.

E tanto isto assim he, que, porque todo o carniceiro de officio contrahe
na alma e nos modos alguma couza de cruento e de tigre, em muitas partes
se tem por infame. Em Portugal, nenhum mechanico honrado e de conta
acceitaria um tal para sogro ou genro, ainda com grosso cabedal de
renda; nem de boca plebea pode saír mais afrontosa injúria que o nome
de magarefe. Em Inglaterra não os admittem jurados em causa crime. Na
principal ilha das Canarias encontrárão seus descobridores, que os
naturaes, com viverem á lei de sua rudeza silvestre, “havião por couza
mui torpe esfolar alguem gado, e n’este mister de magarefes lhes servião
os cativos que tomavão; e quando lhe estes falecião, buscavão homens dos
mais baixos do povo para este officio, os quaes vivião apartados da outra
gente e não os communicavão em aquelle mister” (_Barr. Dec. 1. L. 1. C.
12._)—Bem hajão os inglezes, que formão sociedades para proteger animaes,
e abençoado seja o inglez Deputado Martin, que para lhes fazer bem, se
arrosta com os escarneos dos praguentos. Bem hajão os allemães, que em
seus campos não perdoão multa municipal aos que, no levar rezes pelos
caminhos, as atravessão deante de si na albardadura, ou tolhidamente as
apinhoão dentro em carros. E bem haja a nossa Camara, quando conseguir
desterrar o escandalo do afrontoso trato que nossos carreiros dão a seus
bois, como ja desterrou a atroz e immoral matança dos porcos perante os
olhos do povo.

Quero rematar com uma reflexão, que ja acima podéra ter cabido, mas que
por dezejar da-la por conselho, e pô-la onde melhor se recommendasse,
muito de industria deixei para o fecho. Vai o dito a pais e educadores,
a quem toca. Nada importa mais, do que affazer cedo os meninos a uma
grande suavidade de costumes: assim foi creado o bom Montaigne. Se os
eu tivesse, parece-me que tambem assim os crearia, e bem bons frutos
lhes havia de colher na minha velhice. Primeiro que tudo, parece-me que
me conformaria com Rousseau em os não alimentar desde o leite senão com
vegetaes, por entender como elle, serem estes mais accommodados a suas
naturezas, e mais proprios para fisicamente os suavizar e humanar. Mas
não quero agora averiguar isto que pertence a medicos; outro he o meu
alvo. Não consentíra jamais que presenceassem espetaculos de atrocidades
ou injustiça; e quando a minha má estrella lhos presentasse, procuraria
afea-los com boas razões, mais de affétos e lagrimas que de raciocinios.
As urbanas corridas de touros e as aldeanas festas de alanceamento de
pombos, frangos e patos, como couzas antiquissimas e nacional feição,
as respeito; mas não levára la os meus tenrinhos, que são mui branda
cera para qualquer bom ou máo cunho. Se de alguem lhes fosse insinuada a
correntissima abusão de nossos provincianos, de que em casa que devasta
ou maltrata os ninhos do seu beirado, tudo vai para traz e de fôrça se ha
de aguardar por enterramento, calára-me, porque acho razão a Fontenelle
em dizer, que se na mão tivesse fechadas todas as verdades do mundo, Deos
o defendesse de a abrir.

    _Magnànima menzogna, or quando è il vero_
    _Si bello, che si possa a te preporre?_

Dar-lhes-hia, da Historia natural poetizada, tanta luz, quanta bastasse
para levarem grande interesse nos fados de cada individuozinho que
respira: um raio de tal luz póde bastar para pôr fim a muita dureza que
provenha de cegueira. Conheci e tratei com um parocho de fóra da terra,
que desgostoso de que uma sua fregueza, rapariga nova, não pozesse reparo
em maltratar animaes, a chamou brandamente, explicou-lhe como tudo
que era nascido devia ter algum entendimento, capacidade para dores e
prazeres, parentes, amigos e affeições. Com isto só a fez outra, e tão
outra desde essa hora, que onde depois se lhe fazia de mister dar morte
a uma pomba ou gallinha, ainda que em seu páteo não forão creadas, ja o
coração se lhe confrangia, tremião-lhe os pulsos, e chegada á execução,
não corria mais sangue da ferida, que mal acertava, do que lagrimas de
seus olhos.—De mim mesmo me parece agora, que se escrevi os versos a que
me refiro, e em commenta-los me alargo tanto, e uma e outra couza de tão
boa mente, de tudo deve ter sido raiz a creação, em tudo excellente e
n’esta parte bem empregada, que meu pai se esmerou em dar a todos seus
filhos.

Outra couza fizera eu principalmente; era commetter-lhes o trato e
tutela de alguns animaes caseiros, a quem podessem chamar seus. N’este
exercicio aprenderião a ser observadores, vigilantes, serviçaes; tomarião
com o gôsto da propriedade o amor do trabalho, havendo-se ja por algum
modo como pais de familias; costumar-se-hião a acautelar, previnir e
amar; tomarião para toda a vida o geito de amparar fracos e desvalidos,
e de não ver um qualquer indivíduo, sem logo compor na imaginação a
historia completa do seu viver, do seu padecer, do seu precizar.

Da efficacia de tal methodo, e tão simples, e tão formoso, tenho eu uma
muito amavel prova de minhas portas a dentro. Uma mulher, toda boa, toda
extremosa, tomou unicamente a peito o vingar-me da natureza; cerca-me
de contínuo, como um anjo, de amor e de luz; empresta-me olhos para eu
ver o mundo e as obras dos seculos; tira deante dos meus passos todos
os espinhos no caminho da vida; inventa-me um encantamento novo para
cada minuto; diz-me e faz-me entender como a verdadeira felicidade se
não compoem de grandes pedaços, mas sim de atomozinhos que de longe se
não podem perceber; repete-me e persuade-me que nasci para as Musas
e para o amor, e não para a política, nem para os odios, serve-me,
vela-me e defende-me como a filho, ama-me como a esposo, zela o meu nome
como o de irmão; lançou a sua vida na minha vida, o seu pensamento no
meu pensamento; existe pelo meu amor, morreria se lhe elle faltasse.
Quem lhe ensinou tão generosa, tão nova benevolencia? quem lhe deo
tantos segredos de fazer feliz? as suas aves e pombas, a sua amiga, e
alguns livros, unica sociedade da cella, onde desde seus annos verdes a
Providencia ma estava guardando e aperfeiçoando[17].



_Pag. 243. verso 18 e seguintes_

    O mesmo coração, dezejos, gostos,
    Que tem nossas mortaes no peito occultos,
    Tem as Ninfas tambem &c.


Por estes versos começa uma torrente caudal de couzas vãs e doidas ácerca
das mulheres, e relações dos dois sexos, que ora mais, ora menos turva,
se vai alongando até pag. 254. A pezar de se devolver por leito de quasi
proza, e por entre margens para meu gôsto mal assombradas, bom seria que
por ellas nos podéramos ir detendo a pescar, e a examinar algumas das
couzas mais graúdas que vão na chêa: serião questões apraziveis de ociosa
filosofia, mas prometti no prologo despreza-las; perdoar-lhes-hemos,
deixa-las ir seu caminho. Passem a seu salvo as regras de namorar á
antiga; a arte não de amar mas de enredar e colher, como o são quantas
com titulo de amar se tem escrito; a poligamia, menos de Mahometano do
que de Tupinamba; o divorcio e ulteriores nupcias dos divorciados e
divorciadas; a botecuda nudez dos sexos &c. La se avenhão como poderem
todas essas puerilidades com seus inimigos, que se de minha Musa
nascêrão, muito ha que eu e ella as desherdámos. O meu ponto agora he
assentar boas pazes para sempre com as damas. Todas minhas Obras, não
só esta, _Cartas de Echo_, _Amor e Melancolia_, _Noite do Castello_,
_Ciumes do Bardo_, me devem ter perante ellas representado cavalleiro
descortez de desleal poesia. Tempo he de mudar de cores, abjurar o erro,
e para merecer o perdão, que ellas de puro boas concedem antes de pedido,
romper lanças em favor de sua fama, não só contra inimigos, se os podem
ter, mas contra mim proprio, pelas ter aggravado. He uma Nota estreita
arena para tão singular duello: mas embora, que para outro dia e campo
desafiado fica o eu mancebo desatinado e altivo d’outro tempo por mim
grave, reflexivo e respeitoso; o eu versejador por mim pensador; o eu
academico e solteiro por mim cazado e recolhido: emfim por mim conhecedor
do terreno do combate o eu ignorante d’elle, a cuja face ja n’esta hora
arremésso a luva, e lhe digo “Mentiste, e mercê de Deos e de minha Dama,
provar-to-hei.” Mas pois que he forçado ficar para outro dia a pendencia,
aqui não farei mais do que um pouco ensaiar-me para ella, campeando
soltamente e esgremindo nos ares.

Nenhuma couza tem sido mais experimentada no mundo e mais vezes definida
que o amor, nenhuma ha tão mal e imperfeitamente comprehendida como o
amor. Fallo do amor dos homens, unico de que os homens podem fallar: o
das mulheres he ainda mais incomprehensivel, e certamente muito mais
espantoso, quando verdadeiro. O que pretende dar regras de amar, como
alguns outros fizerão antes de mim, e como eu proprio supponho que
pretendi, assemelha-se ao astronomo, que tendo endoidecido á força de
ter velado as noites a observar os astros, presumisse, riscando órbitas
com o lapis, constrangê-los a segui-las: as esferas e os affétos saem do
nada ao sôpro de Deos, resplandecem com a sua luz propria e misteriosa,
vão-se ora afastando ora aproximando de seus centros pelo caminho que
sua natureza lhes ordena, eclipsão-se na hora prescrita, desappareceráõ
quando Deos fôr servido; sem que em tudo isso haja querer, escolha,
presciencia, ou conhecimento de nossa parte. Amamos uma mulher, e certa
mulher; porque temos de a amar; porque he necessidade sua e nossa que
a amemos; amamo-la pelo modo que a natureza quer e não outro, não he
uma acção mas uma paixão: se a premião o premio he gratuito, se a punem
he injusto o castigo, porque não recáem sôbre um effeito de eleição.
Ama-se uma mulher, repito, sem o procurar, sem o cuidar, sem arbitrio, a
despeito da razão, da vontade e dos votos, como á rosa, como á lua, como
á harmonia, como aos sabores dos frutos deliciosos. Para ellas se vai
como os rios dos montes para os valles, como a chamma para o ceo, como
a pedra do ar para a terra, como o menino para os peitos da ama, como o
coração para o prazer. N’estas occasioẽs todo em nós he extraordinario,
e se o posso dizer, sobre-natural: sentimo-nos fôrças que não possuiamos
para querer, seguir, abraçar e reter: o pensamento se torna infinito,
porque o objéto que procurâmos, como uma metade nossa que nos foge,
nos apparece infinito. Por dentro d’aquellas graças fisicas, de que
os sentidos se namorão, imagina-se um mundo estranho e illimitado de
perfeições, de que se namora a alma: ahi se dezeja tudo quanto he capaz
de embellezar a vida; o dezejo he logo esperança, a esperança certeza,
a certeza delirio, e novamente dezejos; e quem porá limites a dezejos,
a delirios, a esperanças? O abrangimento do infinito da Divindade em um
corpo humano não he misterio que o amor não saiba muito bem entender. He
aqui o lugar de confessar que a este sobre-humano conceito, que da mulher
amada se faz, mil vezes corresponde plenissima realidade.

Por mais que a natureza se aprimore em modelar, tornear, corar, amaciar,
brunir, bafejar e endeozar o fisico da mulher, as suas graças, o seu
merito, o seu ser de mulher não são esses dotes, sujeitos ao tempo e
dependentes de um ar, assim como nas flores não são mel as pétalas
vistosas e coradas, o cheiro suave e attrátivo, que o sol e o vento
attenuão e desbaratão. Diz-se que as feiticeiras tem o seu encantamento
em um novêlo; o novêlo do feitiço das mulheres está no seu coração e no
seu espirito, que n’ellas he tambem coração. O coração da mulher não
mora descançadamente reclinado no peito como o nosso, por toda sua alma
esvoaça perdido de amor, gemendo de amor, como uma ave mãi e feliz por
todos os ramos de um bosque de primavera: sente-se-lhe o frémito das
azas, ouve-se-lhe a harmonia em tudo quanto diz, em tudo quanto cala,
no que faz como no que deixa de fazer, no que pensa, recorda ou espera,
nas lagrimas e no riso, no enfado e no contentamento, na vigilia e no
sono. O coração lhe está á porta interior de cada sentido recebendo as
impressões; para elle e por elle veẽm, para elle e por elle ouvem, para
elle e por elle presencêão a natureza, communicão com ella e comnosco. Um
sôpro divino formou a alma do homem, a da mulher de um beijo delicioso
deveo ser formada.

Este afféto, esta doçura, esta, quero eu dizê-lo, feminidade da mulher
são de tão alta natureza, tão estremes de liga, tão independentes do fim
mesmo para que a providencia a destinou, que me parece ainda despojada de
sentidos, poderia amar vehementemente como os espiritos angelicos. Que
será quando os sentidos confluem, para atear com sua materia inflammavel
este fogo celeste? ¿quando a Vestal, afrontando todo o futuro, deixa
apagar no altar da Deoza de sua infancia a luz virginal que velou por
tantos dias e noites? ¿quando na turbação insólita d’estas trevas
desconhecidas, se entregou toda e com todo seu futuro ao ente que a
implorou como Divindade, e que ella sabe e sente em si tornará feliz
por cima de todas as felicidades? ¿quando uma vez encetou prazeres,
cujo maior encanto para ella se da-los recebendo-os, e não os receber
sem ao mesmo tempo consummar mais de um doloroso sacrificio? Oh então
he o amar do amar! o afféto, que ja em profundeza não podia crescer,
cresce em superficie, e trasborda todo e para toda a parte, como um
perfume abundante; então he que sem voz pronunciou o _sempre_; que sentio
apertar-se-lhe nas entranhas a indissolubilidade do consorcio, porque o
amor de fantasia se fez realidade, de dezejo destino, de suspiro occulto
gloria; a tudo tem ja direito porque ja deo tudo, não póde dezejar ser
de outrem porque a outrem não teria tanto que dar. E he esta a grande
differença da mulher ao homem, e do amor ao amor: o d’ella tem um abono
e côr de eternidade, o nosso um elemento e uma côr de tempo. Podéra
ser emblema do nosso, uma náo alterosa e possante, surta em uma bahia
aprazivel, mercadejando e folgando com a terra, empavezando ufania
de flammulas e galhardetes, aferrada ao fundo do mar com uma unha de
ferro, mas podendo de uma hora para outra arranca-la ou picar a amarra,
desfraldar as velas que sempre estão prestes, e vogar atravez de todas
as ondas, por cima de todos os abismos, a mercadejar e folgar no extremo
opposto do mundo: emquanto a feminil affeição, como barquinha contente e
desambiciosa, feita para os ocios de sua enseada, coroada a pôpa ora de
flores abertas ora de esperançosos verdes, sem deitar nenhuma ancora, não
foge nunca d’entre aquellas margens conhecidas; por entre ellas vai e vem
avoejando de contínuo, levando e trazendo sempre commodos e alegrias, sem
curar que de sua barra em fóra haja outros mares, n’esses mares outras
bahias; delicia-se na sua, onde tudo a festeja e saúda por seu nome, onde
se entende com todos os ventos, todos os refugios conhece para o dia
da tempestade. O amor do homem, com os sentidos satisfeitos muita vez
se satisfaz e adormece; como o frizão dos Jogos Olímpicos, que chegado
apoz violenta carreira a tocar na meta, surdo até ás vozes da gloria que
esporeou, se estirava para repouzar ou para morrer. O amor da mulher,
satisfeitos os sentidos, se restaura, resurge mais puro e extremoso,
mais vivaz e promettedor; semelhante ás plantas, quando desfallecidas
nos afrontamentos do verão se dessedentão com a chuva de uma nuvem que
passsou, e viçosas reverdecem para embalsamar os ares de seu valle.
Uma de muitas razões que para esta differença podem concorrer, he que
n’essa hora adquirio a mulher direitos, o homem contrahio obrigações; as
obrigações pezão, os direitos agradão, as obrigações limitão e apoucão,
os direitos accrescentão e engrandecem. Trocarão-se os papeis na scena,
o seguidor esquiva-se, a perseguida segue. O amor do homem he só amor,
o amor da mulher he amor e amizade: elle, porque pertence ao mundo, á
gloria e a tantas outras paixões, só tem meio coração, meia vontade,
meio tempo para dar á sua companheira; esta, separada do mundo pelo
mesmo mundo e pela natureza, por isso mesmo mais raramente accessivel a
outras paixões, dá ao seu amigo todo o coração, toda a vontade e toda
a vida; dar-lhe-hia se podesse mais vida, e mais coração, mas não mais
vontade: com elle, por elle, e para elle existe, na propria ausencia o
tem presente; e quando cessa de abraça-lo, he para se gozar de o ter
abraçado, e cuidar como logo o abraçará de novo, e volverá a ser d’elle
amado, fazendo-o feliz.

Tal he o theor da natureza: tem excéções e numerosas. Corações ha de
homens, que sem ser effeminados, não desdirião n’um peito feminino;
e corações de mulheres, que talvez bem nascidos e bem fadados, mas
torcidos depois pela educação, quebrados pela sociedade, corrutos pelos
exemplos, merecem as satiras, demaziadamente geraes, com que os autores
de sua degeneração todos os dias lhe poem ferrete: mas essas, mais
infelizes do que culpadas, os desgraçados que as pintem e condenem, eu
pinto a mulher amante, a mulher perfeita, a mulher mulher, a mulher
como a concebi, como a conheço, como a adoro. Foi esta a que Deos fez e
temperou de poesia e harmonia lá na origem do mundo, quando vio que não
era bom que o homem vivesse só. Esta he a que depois de nos dar a vida,
no-la suaviza e apura; no-la multiplica em entes novos; no-la adoça nos
momentos derradeiros; nos ama ainda, quando ja não somos; dá seus beijos
amorosos a uma pedra, porque do nosso nome lhe conserva uma letra; e
consummando o seu destino de amar, felicitar, sacrificar-se, ajoelhada na
terra, nos vizita no mundo das sombras; estreitando o seu commercio com
os ceos que a esperão, para nós só os invoca, e depois de no-los ter dado
em amostra no tempo á fôrça de amor, á fôrça de amor no-los grangêa na
eternidade.

Custa a crer como um ente, que he metade da nossa especie, que das duas
he a mais amavel metade, a mais carinhosa, em tantas couzas nosso igual
para nos attraír, mas com tantas differenças de nós para se nos unir
ainda mais, que se tem defeitos de nós os recebe, e nos dá em troca,
sem o cuidar, tantas das virtudes que possuimos, custa, digo, a crer
como um talento, a quem sua propria fraqueza devêra tornar inviolavel,
pôde ver-se em todos os tempos, e provavelmente continuará a ser até ao
fim dos seculos, alvo e emprego das críticas mais desabridas, e mais
grosseiras calúnias. Divindade extraordinaria, a quem seus proprios
ministros e sacrificadores insultão adorando-a, e que de cima de seu
altar, fragil mas eterno, inalteravel em sua mansidão, derrama sôbre bons
e máos a felicidade! Que a filosofia as injuriasse não espantára. La
Bruyere foi cruel para com ellas, Larochefoucault furioso, nenhum d’elles
justo, nem sequer francez: a filosofia não anda sem os filosofos, e todos
sabem como os dados a esse triste officio, são pelo demais almas seccas
e incapazes de avaliar branduras, entendimentos sem olhos de imaginação,
unicos proprios para julgar da verdadeira belleza; homens emfim
eremiticos, rusticos e ignorantes no meio da sociedade; e para remate de
suspeição, ja alongados pelo inverno da vida: da-se á filosofia o que as
mulheres ja não querem.

A poesia não tem sido menos descomedida: a poesia, que d’ellas e para
ellas nasceo, cujas Divindades forão com razão pelos antigos fabuladas em
fórma feminil, como as Graças, como os Genios de tudo quanto ha amavel na
natureza, a poesia, a seu máo grado, lhes tem sido rebelde todas quantas
vezes os poetas, por de sobejo amantes e zelosos, precizárão desabafar
desgraças verdadeiras ou fantásticas: a lira acostumada a lhes entoar
seraficamente não louvores senão hinos, resoou execrações, ás quaes
respondêrão numerosos echos; porque onde o numero dos ingratos e indignos
era grande, não podia o dos maltratados e queixosos ser pequeno: e d’ahi
nascêrão essas civis guerras da literatura a favor e contra o sexo,
guerras batalhadas nas salas e saráos, nos passeios em romagens, nas
merendas das comadres e nas academias, desde o Japão até Portugal, desde
os serões da arca diluviana até os nossos dias, em que o amor cedeo á
política, e as questões das mulheres ás questões dos ministerios: _Factus
est repente de cœlo sonus, tamquam advenientis spiritus vehementer_....
Ahi vinha ja querendo-se intrometter o meu demonio meridiano: ápage!

Para as grandes pelejas de que fallava, se despejárão todos os arsenaes
da mística theologia, da methafísica, da historia sagrada e profana, das
fabulas e anecdotas, da fisiologia e novellas. Ficou largamente juncado o
campo de cadaveres em folio, em quarto, em outavo, em doze, em dezeseis,
em trinta e dois, em sessenta e quatro; de pergaminho, de marroquim, de
seda, de taboa, de papelão, de carneira, de papel: defuntos quasi todos
sem amenta, e cujos nomes, se os houvesse de compilar, encherião maior
livro do que este. Depois do derramamento de tantos rios de tinta, ainda
pende a mesma questão; ainda até ao fim do mundo se tem de trazer para
ella couzas que pareção novas; e as cinzas de Lucrecia, Dido, Phryne,
Sapho, Aspasia, Arria, Cornelia, Osmia, Heloiza; Christina, Catharina,
Maria Thereza; as cinzas das que habitárão cazaes, harens, palacios,
mosteiros; as cinzas de Ninivitas, Gomorritas, Babilonicas, Espartanas,
Atticas, Romanas, Africanas, Botecudas, Amazonas bellicosas, Indicas
Bailladeiras, Viuvas Indostanicas, continuárão a ser revolvidas, pizadas
e adoradas por modos sempre differentes, e quasi sempre cegamente, até
á consummação dos seculos. A mulher fisica principia a ser conhecida, a
mulher intellétual sê-lo-ha, a mulher moral he o infinito.

A mocidade, quadra da vida em que reinão os mais encontrados ventos, em
obras a maior vassalla e tributária do sexo, he, fallando, escrevendo,
e talvez pensando, a sua maior detrátora. Uma conversação de mancebos,
embora amantes, não se detem senão em rebaixar o merito das mulheres:
nascidos os disséreis das pedras de Deucalião e criados ás tetas das
lobas. Qual pode ser a causa d’esta mais que montezinha ferocidade?
Será inveja á superioridade modesta? será despeito de vencidos? não;
essas vitorias, e ainda essas superioridades em virtudes, que não são
as distintivas do nosso sexo, facilmente se perdoão. He a causa o mesmo
natural instinto, que faz que os soldados em tempo de guerra, seroando
entre as armas á fogueira ociosa do seu rancho, encareção as derrotas
do inimigo, e lhe assaquem fraquezas que não tem, para a si proprios
accrescentarem animos e determinação para as futuras pelejas.

Facil he carecer das loucuras da idade que ja não temos, ou que ainda
não temos; blazona-se d’isso, mas não he virtude: carecer porem dos
vicios proprios dos nossos annos seria virtude, mas tão rara he, que o
despossui-la deve merecer vénia dos sizudos. Era eu em toda a fôrça de
minha adolescencia, quando entre coetâneos e a seu contento, cantava em
meus versos destinados os fracos e imperfeições de algumas mulheres,
como fracos e imperfeições de todas ou da maior parte. Da falsidade
que n’isso havia me corro, mas muito mais do pouco delicado tom do meu
cantar, porque se me figura agora delito ainda muito mais grave, do
que attribuir-lhes defeitos, o pintar-lhos inamavelmente: a graça he
o seu primeiro mérito, injuria-las graciosamente ainda não he de todo
injuria-las. De muita nuvem se desaffronta, e de mui grande carga respira
um coração confessando suas culpas, mormente quando pelas confessar
se torna a entrar absolto e regenerado na estima e benevolencia das
dominadoras do mundo: quasi se folga, como me está succedendo, de ter
tido a culpa, para merecer a vénia e saborear a reconciliação.

Transfuga dos arraiaes dos levantados, ás trincheiras d’ellas me
recolho, não só com as armas com que as guerriei, para as defender, mas
com uma bandeira para chamamento e reunião de outros. Ressuscitaria,
se podesse, para o meu novo campo todos os bem nascidos espiritos das
idades cavalleiras e cortezes, para procurarmos salvar da ultima ruina
o feminil imperio, que de dia para dia vai sendo entrado, talado e
engolido da Política; fero monstro em que tão mal assenta feminino! E se
o conseguissemos, se os moços que deixárão os affétos pelos debates, as
sociedades pelos _clubs_, os versos e cartas apaixonadas pelos jornaes
frios e praguentos, quizessem volver a seu natural officio de amar, de
agradar e divertir-se, ¡como se não amaciaria esta bruteza quasi, cínica
de nosso tempo illuminado, em que se não sabe ler! A propria Liberdade
lucraria, porque os seus nervos e verdadeiros espiritos vitaes não são
outros senão as virtudes e as bondades: ¿e quem como as mulheres, nos
poderia ainda attrair da praça onde se briga, odêa e persegue, para a
casa onde se quer bem e se folga, para a cosa onde até á ultima velhice
nos educâmos, para a casa onde de bondades e virtudes nos dão ellas a
todos os momentos exemplos vivos e formosissimos? _Tellus, et domus, et
placens uxor!_ Oh se eu podesse mostrar este meu pensamento, como me
está florejando na alma! dizer com palavras a mulher como a sei no meu
coração!... mas feminina he a mão com que escrevo, ¿como dezenharia ella
o seu retrato?



_Pag. 261._

FIM DA FESTA DE MAIO.


Se o fim de qualquer obra he a sua coroa, custará a achar obra tão mal
coroada como esta _Primavera_. Dos quatro Poemas he a _Festa de Maio_
o ínfimo, não contribuindo pouco para isso o seu estirado comprimento:
e da _Festa de Maio_ a ínfima parte he sem nenhuma dúvida a segunda e
última. Boa e mui fertil era a idea primitiva, na qual, mas só na qual,
mui casualmente me encontrára com o allemão Gerstenberg no dithirambo
que traz titulo _Chipre_. Desenvolveo elle a sua, pôsto que em prosa,
como poeta mui valente: derramei eu, e enfraqueci a minha em pobrissimos
versos (era tempo que na maior parte dos dias compunha trezentos e mais)
que bem podérão, sem detrimento de pensamentos, ser reduzidos ao terço
do seu numero. Ja poderei parecer importuno com tanto repetir confissão
das minhas faltas; mas antes isso, do que se diga que eu as córo ou
tapo, ou com tantos annos ainda não caí em as conhecer cabalmente. Quem
a este meu cortar pelas proprias roupas chamasse affétação, muito se
enganára comigo: censuro-me, não para atalhar alhêas censuras; menos
para provocar defezas aos que sempre folgão, quer em bem quer em mal,
de encontrar as opiniões dos que escrevem; mas censuro-me e em todas
minhas couzas marco seu preço, para que os agora principiantes lá ao
deante se não queixem de mim, como eu podéra agora queixar-me de outros,
com cujos livros me criei. Consciencia e Verdade, ainda em mesquinhas
letras, devem de ser escrupulosamente servidas: tem uma e outra alguma
couza de tão divinas, que por mais dolorosos sacrificios que de nós
lhes façamos, no-los pagão com íntima satisfação. Certo he que fazendo
o que eu faço, se corre perigo de vir a um grande dissabor, como he,
depois de sinceramente confessados os defeitos, saírem os nescios na
arte de criticar, e que nunca uma só linha escrevêrão, aproveitarem-se
cobardemente de taes revelações, vozea-las como descobrimentos seus, e
vingando-se de sua propria esterilidade, triunfar miseravelmente dos
descuidos, sem nenhuma menção das boas partes. Ja isso por mim passou
depois que dissertei ácerca da invenção da _Noite do Castello_. Onde tal
se escreveo, quem o escreveo, e como o escreveo não o direi, que não
quero em livros meus andar carreando dementes para a posteridade, se he
que meus livros tem de la chegar, como cá chegárão alguns bem ruins dos
tempos atraz. E a final, que valem semelhantes pregoẽs e taes pregoeiros,
comparados com as suas duas maiores inimigas que são a verdade e a
consciencia? podéra accrescentar a vergonha. Em meu conceito nada. Por
tanto sigão elles por seu caminho, onde se afogão em lodo, e todos lhes
cospem na face; e eu, que nem sequer os tenho em assaz de conta para os
odiar, continue o dar documentos do unico merito de que me prézo, que he
a candura. Para dar culto á Verdade e á Consciencia, não sacrificarei
alhêas famas, que me não pertencem, mas pela minha rasgarei afoito:
far-lhes-hei de meu sujeito intellétual, o que de seus corpos diz Fernão
Mendes que fazião la em Tinagoogoo certos penitentes, que em procissões
públicas se hião espedaçando ante os carros triunfaes dos seus idolos,
e por fim se arremessavão por deante das rodas, para serem talhados e
esmagados: _a que toda a gente_, como refere o bom perigrino, _com uma
grande grita dezia: pachiloo a furão; que quer dizer: a minha alma com a
tua. E decendo logo de cima do carro um sacerdote ... se chegava áquelles
bemaventurados ou malaventurados ... e ajuntando os pedaços e as cabeças
... os mostravão ao povo de cima do mais alto sobrado do carro onde hia
o idolo, dezendo n’um tom muito sentido:_ “_Rogai peccadores todos a
Deos, que vos faça dignos de serdes santos como este que agora morreo em
sacrificio de cheiro suave._”

FIM.



MAIS PRIMAVERA.



ADVERTENCIA.


Os trez seguintes Artigos vem, _mutatis mutandis_, trasladados da _Guarda
Avançada_, Jornal campeão da CARTA e da RAINHA, como todos os d’esse
tempo, sem excétuar um unico; Jornal exagerado, e muitas vezes injusto
sem querer, como o serão sempre os redigidos por almas novas e ardentes,
sinceras e poeticas, inexpertas e temerarias, que presumem que uma
revolução póde realizar os filantrópicos sonhos de um solitario; Jornal
emfim de que eu fui collaborador, quando vivia para a política, ainda que
não da política, e do qual perante minha consciencia me recordo com pezar
mas sem peijo, porque talvez fez males e grandes males, não aspirando
senão ao bem. Tanto he verdade, que só a moderação he capaz de dar frutos
abençoados! Relêa-se o meu Prologo do _Tributo Portuguez_. Aqui não quero
accrescentar mais nada sobre materias, sim importantissimas, mas que eu
ja dou todas por um malmequerzinho dos campos. — Sáem pois os Artigos
substancialmente os mesmos. Pena será, se passado agora tanto tempo
depois de escritos, os que por la estão espectadores das couzas públicas
os acharem muito mais applicaveis aos presentes dias; e ainda maior
lástima, se para o deante não vierem a perder boa parte de sua verdade.

Remato com o louvor, que no Prologo deixei promettido, de meu mestre e
amigo o Snr. Antonio Ribeiro dos Santos: fragmento copiado do _Num. 2_ do
_Jornal dos Amigos das Letras_. Se a alguem parecer que não cáe este sob
o titulo de _Primavera_, paciencia; recebão-no como Nota, agazalhem-no
como filho de gratidão. Para mim recende elle muita primavera de
puericia, e de um jardim das Musas.



MARÇO

(PRINCÍPIO DA PRIMAVERA)


Eis aqui os primeiros dias da graciosa estação. Das flores lhe chamárão
os poetas; melhor podérão chamar-lhe flor do anno. A terra, como viuva
ainda verde que se enfeita para novas bodas, a terra pelo sol repassada
de amorosa quentura, vendo-o volver a afaga-la, depois de lhe haver por
tanto tempo fugido, arrêa-se de todas suas galas, esperançosa sorrí por
entre a sua grinalda florída, embebe-se em perfumes, acerca-se de musicas
voluptuosas, e suspira brandamente dentro nos arvoredos recem vestidos,
nos valles alcatifados, pelas margens dos rios outra vez serenos. Com
razão foi a Primavera consagrada dos antigos ás Musas e Graças: com razão
se escolhião as suas vésperas para o Pontifice Maximo accender o novo
fogo, que devia durar todo o anno: com razão os pais de nossa lingua
derão a esta parte do anno um nome feminino, e os pintores apparencias
de formosa moça; emquanto Estio, Outono e Inverno pela aspereza, pela
fôrça, pela gravidade, pertencião a outro sexo. Cada fonte se aliza em
um espelho; cada pedra se veste em assento aveludado; cada haste nua se
desaperta n’um ramalhete: tornão-se os bosques outras tantas republicas
populosas, cujos cidadãos, livres como as virações, voão, cantão,
brincão, acaricião-se, desposão-se, educão a sua prole bafejada do ceo,
e parecem não respirar senão o prazer da independencia, da ternura e da
melodia. A natureza revoca á vida innumeraveis especies de animaes de que
o Inverno só continha o germen; ás outras infunde, como aos passaros,
um contentamento, uma ligeireza, uma attráção, que o Inverno lhes havia
roubado ou amortecido. Do ceo chove fecundidade sôbre tudo que he vivo;
e tudo o que he vivo sáe trajado de festa, e por toda a parte encontra
mesa que Deos lhe assoalha, carregada de sua abundancia com luxo,
magnificencia e formusura.

A humana especie não podia em tão geral favor ser esquecida, antes foi
o seu quinhão de todos o mais largo. O amor, que para nós não tem uma
estação exclusiva, n’esta entretanto se nos desenvolve com recrescida
atividade: he porque o proprio ar, empregnado de elementos vitaes, nos
está coando aos peitos uma extraordinaria energia: he porque tudo em
de redor exemplos são que nos cativão: he porque o alvoroço e festa do
universo convidão o coração a gozar: he porque ao florir da rosa dos
jardins, muita e muita rosa esmorecida se reanima nas faces da belleza:
he porque a voz da mulher então sáe, não sei como, ainda mais doce; e
tanto ellas mesmas sem o saber o sentem, que em toda a parte em que as
horas e circunstancias do seu canto não andão assentadas nas tarifas da
moda, insensivelmente se achão a cantar, e este novo attrátivo parece
n’ellas uma necessidade, como he nas aves da primavera. Dir-se-hia que
a natureza nos manda as flores nos dias em que o amor nos instiga a
offerecê-las.

Mas os feitiços da Primavera não se limitão nos da recreação e amor.
Um medico vos dirá que he ella a estação da saude; um sabio a do vigor
mental; um navegante a do princípio de confiança nos seus mares: o
artífice a saúda como a que abre a porta a longos dias; o pastor como a
mãi da abundancia; o agrícola vê as esperanças do anno desparzidas por
suas terras, por suas vinhas, por seus pomares. Ah! só os homens das
cidades, tristemente condenados á fadiga e ao luxo, quasi não encontrão a
primavera no seu anno! Para esses reduz-se a mais algumas horas de luz,
e a uma pouca mais serenidade em um ceo sem horizontes. Se ao menos se
podesse esta serenidade reflétir nas nossas almas!... mas os redemoinhos
das novidades, os raios das intrigas ambiciosas, o frio do desalento
e carregadas nuvens ao longe esterilizão tudo, e se uma ou outra flor
de esperança nos desabrocha a medo, lá está logo a reflexão, filha do
conhecimento dos homens, que a faz com um sôpro desapparecer. O anno dos
nossos destinos teve um inverno bem longo e rigoroso: n’elle sulcámos
a terra para semear liberdade e ventura, adubámo-la com o nosso sangue
e corpos de nossos irmãos, regámo-la com o nosso suor e lágrimas; e
agora que nós e nossos filhos esperavamos ao menos a florescencia que
nos augurasse frutos para o futuro, a Deos approuve de outro modo, e uma
torrente de iniquidades, que não quer parar, continúa a assolar a terra
de nossos avós.



ABRIL


Este mez, assim chamado por abrir o seio da terra á fecundidade;
consagrado desde a infancia de Roma á Deoza da formosura, á Mãi das
Graças, Amores, e Jogos, he o primeiro que ouza, por debaixo ainda das
últimas nuvens chuvosas do inverno, sair e folgar com seu manto verde, e
bordado de flores. O dia da sua entrada era para os nossos antepassados
uma festa popular, menos estrepitosa que o Carnaval, de que parecia
imitação, mas tambem mais innocente e serena. Ignoro se esse costume
o herdárão elles de nações mais antigas, com quanto dos Romanos o não
houvessem, de quem tantos outros lhes vierão. Tão pouco me recordo de
haver lido alguma origem historica aos brinquedos rituaes do primeiro de
Abril; mas sabido he que elles existírão em nossa terra, e inda hoje se
lhes conservão os restos, mormente pelas Provincias. O dinheiro pregado
nas ruas, as cartas, e prezentes de lôgro, a pedra que chamavão das
agulhas, a fôrca de Judas, e outras quejandas bagatelas para rir, estão
entretendo n’esta hora bastantes dos nossos aldeões do norte.

As lembranças velhas tem para mim muito grande saudade, e doçura; doe-me
o coração quando vejo ir-se perdendo estas seculares tradições que a
ninguem fazião mal, ainda que nascidas em berço de superstição, e que
de bom tinhão o transportar-nos a tempos sabidos, e remotos, ou a tempos
mais remotos ainda, e ignorados. E que he o que as apaga, e fica em seu
lugar? odios, pobreza, e desgraças. Oh! aonde estará um poeta amigo dos
serões e da innocencia, que se apresse em nos escrever os Fastos do
nosso bom Portugal? No meio da confusão desconsolada do presente, nós
beijariamos essa obra como santa reliquia em terra de infieis: veriamos
um iris vão mas brilhante, entre nuvens de tormenta. Para excitar
algum bom engenho a no-lo dar, he que eu coméço, e continuarei sempre
a recordar nos seus dias proprios as nossas antiguãlhas: o que farei
com muita avidez, porque d’aqui a alguns annos, o investiga-las será
ja tarde. Assim os pintores Italianos se deleitão copiando os restos
amortecidos das pinturas a fresco que sobre-vivem ao grande Imperio,
e os antiquarios trasladão avidamente os enrolados livros das cidades
soterradas, antes que de todo se desfação em pó.



MAIO.


He a apparição d’este mez uma festa da natureza, em que sempre os homens
se alegrárão: quizeramos poder tributar-lhe algumas flores pelas tantas
que nos elle concede. Não teçamos o seu encomio d’aquillo que sendo
sensivel a todos não carece de ser descrito. Zéfiros e rosas, rolas e
rouxinoes, abelhas e borboletas, a terra toda verde, o ceo todo azul, as
noites começando a fugir como envergonhadas de esconder as alegrias da
natureza, objétos são que ainda que desde a origem do mundo se apresentem
sempre novos, já se tornárão lugares communs nas descrições da poesia.
Voltemo-nos para as recordações; embalemos e adormeçamos com ellas por
um pouco o espirito martirisado dos absurdos e crueldades d’estes máos
tempos, em que ja se não crião fabulas risonhas e innocentes, coloridas
pela imaginação, animadas pelo amor.

Forão os homens antigos os que idolatras da concordia, para melhor a
insinuarem á terra, collocárão nos astros a sua imagem brilhante, e ao
signo de Maio chamarão o signo dos Gémeos. Elles forão os que sensiveis
aos encantos das Artes, consagrarão este mez a um Deos, que vivificando
a natureza pela luz e calor, presidia com a Lira na mão aos prestigiosos
artificios que a embellezão. Almas petrificadas ha ahi, para quem estas
saudades do mundo antigo são frivolas, comparadas com um artigo de
gazeta; para nós he delicioso andar mergulhando pelo oceano dos seculos,
e não voltar a assentar-nos na nossa Ilhota escabrosa e esteril, senão
carregados dos coraes, das pérolas, das riquezas formosissimas, que se cá
não produzem. O fundador de Roma dedicou aos mancebos (_Juvenes_) o mez
de Junho; era essa a idade que lhe fazia ganhar vitorias, mas ja primeiro
havia consagrado o Maio aos velhos (_Majores_), porque feroz como era,
Romulo experimentava o afféto que nos attráe para com o antigo. Passemos
por alto Festas misteriosas da Deoza Bona, celebradas pelas Romanas no
primeiro de Maio, em todo o segredo dos Penates e sem testemunha de
varão; visitas das Vestaes ao Pontifice Maximo e principaes Magistrados
da Republica; contemplemos a expiação dos Lémures, pois que usos nossos
me parecem ter d’ahi recebido origem.

Á meia noite levantava-se o pai de familias, hia-se descalço, calado, e
chêo de terror santo, á fonte, dando por todo o caminho amiudados estalos
com os dedos para afugentar os genios máos. Lavava trez vezes as mãos,
e tornando-se para casa, vinha atirando uma a uma, por cima da cabeça e
para traz de si, favas negras, de que trazia chêa a boca, e articulando
taes palavras—_com estas favas me resgato a mim e aos meus_:—o que por
nove vezes repetia, sem olhar para traz, para não espantar o espétro
que vinha apanhando as favas negras. Tomava agua por uma ou duas vezes,
batia n’um vaso de bronze, e para conjurar a sombra a lhe largar a casa,
por nove vezes repetia—_Sahi, ó manes paternos_.—Eis provavelmente
d’onde provierão estes sustos vagos que ainda se dão a sentir aos homens
rusticos no princípio de Maio; este uso de se repartirem e comerem
castanhas seccas para evitar que o Maio se apodere de nós. A imaginação
do bom povo perdeo de vista essas larvas, mas o medo que ellas produzírão
lhe ficou: he uma especie de moeda, que safada como está de passar de
mãos em mãos, ainda conserva a sua valia.

Outros costumes de Maio tem o nosso Portugal, a que folgáramos que
alguem escavasse e descobrisse a raiz, sendo certo que na historia a
devem ter. O Maio pequenino, que seguido de todas as crianças do bairro,
corre enfeitado de flores, as ruas da cidade, ao som de um cantar antigo
e uniforme; aquellas mimosas Maias tão arraiadas e donosas, que á orla
dos caminhos se encontrão comprimentando os passageiros; aquell’outro
estilo, ja talvez hoje passado, de se deitarem n’um mesmo leito um casal
de creanças innocentes, para se lhes cantar em roda um como epithalamio,
ou trova de suas bodas; os descantes amorosos dados com a viola n’esta
occasião pelos aldeões ás suas escolhidas; não provirá tudo isto de
alguma ja perdida lembrança de cultos da Deoza Maia? E a usança de
ornar com flores Maias as portas e interior das casas, não será reflexo
distante dos festejos Romanos á Deoza Bona?

A religião, que para si tomou ornato de tantas joias ao Paganismo, não
se desdenhou tambem de perfilhar este mez. Em muitas freguezias, pelas
nossas provincias do norte, o bom Parocho vai benzer no princípio de Maio
a bandeja de rosas que entre os devotos se distribuem e se commungão,
porque esta flor abençoada traz felicidade.—Vem depois aquellas tão
esperançosas, tão cantadas e tão sabidas Ladainhas de Maio.—Hoje os
camponezes de França vão plantar o seu Maio á porta das pessoas honradas
da sua freguezia: os Inglezes renovão de certo modo as antigas _Vigilias
de Venus_: os Gregos, como se os seus poetas d’outro tempo os inspirassem
ainda, e a era das Elegias tornasse a reviver, vão descantar amores e
pendurar grinaldas aos umbraes das suas inclinações: e os moradores de
Roma, segundo nos foi dito por quem lá foi a essa terra de saudades,
ainda agora se reunem na fonte de Egeria a respirar as delicias da
natureza, debaixo d’aquelle ceo de tanto amor, que não a pensar em Numa e
na grandeza antiga dos Romanos, de que a elles só veio em herança a terra
coberta de muitas ruinas.

¿Para que servem todas estas memorias, nos estão perguntando os
insaciaveis de Politica? e nós não lhes sabemos responder senão que
a nós estes pensamentos nos fazem muito bem, e que aos amigos de
passatempos innocentes se não ha de prohibir o que a ninguem faz mal.
Deixai-nos ser algum dia do anno semi-pagãos. São as superstições da
Politica ambiciosa as que empecem á felicidade, mas estes graciosos
prejuisos de nossos pais a nenhuma couza do mundo danão. E de mais,
se havemos de dizer toda a verdade, a fé, que a estes pobres erros
acompanha, costuma trazer comsigo muita piedade religiosa, e n’ella
alguma doçura moral, que nem sempre vai por onde vai a desenganada
Filosofia. Ditoso d’aquelle engenho que podesse trazer outra vez ao
mundo a innocencia que nos lá ficou no paiz das fabulas! mas interromper
um sonho de poesia quando se julga que a felicidade vem apoz os nossos
passos, voltarmo-nos, como Orfeo, para a abraçar, e vermo-la fugir e
desapparecer n’um ai, e um mundo de realidades dolorosas estender-se
immenso deante de nós, oh! isto he muito triste!



_ÁCERCA DA PESSOA DO Sr. Antonio Ribeiro dos Santos._


Pôsto que o escrever de Varão tão conhecido dentro e fóra d’este
Reino, qual foi o Sr. Antonio Ribeiro dos Santos, já possa a muitos
parecer escusado, o deixar de o fazer, mais que seja por alto, nem
a opportunidade da occasião mo consente, nem menos mo consentiria o
gôsto, que sempre do refrescar essas memorias me resulta; por quanto na
primavera de minha vida, e primeira manhã de minha poesia, foi que a boa
de minha fortuna me deu conhecer este Nestor de nossa Literatura, que
já então, ao cabo da sua longa e proveitosa carreira, ornado de muitos
méritos de sciencias e virtudes, respeitado e apontado de longe, pouzava
sereno e magestoso, aguardando pela sua hora, á beira da eternidade.

Que fosse nascido nas terras do Douro, d’onde lhe prouve tomar nome
de Elpino Duriense; que fizesse com bons mestres seus estudos; que se
tornasse, lendo na Universidade de Coimbra, um de seus mais lustrosos
luminares; que na Igreja e no Estado occupasse mui subidos empregos; que
fosse o amigo e centro de quantos bons engenhos em seu tempo florecerão,
não faltará quem o escreva entre seus outros muitos louvores. Tão
pouco me deterei dispartindo entre a Jurisprudencia, a Historia, as
Antiguidades, a Literatura, e a Poesia o opulentissimo cathalogo de suas
Obras, cuja maxima, e por ventura optima parte, ainda até agora não viu
a luz. Não hão de ser mãos tão debeis como as minhas as que revolvão
tamanhos trofeos, nem em tão pequeno espaço como este coubéra retratar
completo Homem que abrangeu duas idades, bem fazendo-lhes mutuamente a
uma pela outra; anticipando em meio do seculo passado o gôsto, o apuro,
a filosofia d’este nosso; transplantando para o presente o estudo, a
boa fé, o saber do passado; e legando ao futuro thesouros que andou
desencantando das antiguidades remotissimas. Menos arremessados são meus
dezejos, e mais seguros, que só quero levar meus leitores a com este bom
velho encetarem conhecimento.

Corre a primavera do anno de 1814 ou 15, que eu certo o não sei. A
morada de Elpino, que em um dos mais desafrontados altos de Lisboa está
formosamente situada, longe do bolicio, como bem cabia á sua indole
pacifica e genio estudioso, he um templo de Musas, religiosamente vedado
aos olhos e vozes de profanos, isto he dos máos e ignorantes, unicos
de todos os entes para quem sua porta e animo não erão hospedeiros.
Por aquellas salas, gravemente ataviadas á laia dos nossos antigos, de
sedas e arrazes, alcatifas, tremós, espaldares e soberbos quadros dos
mais perigrinos pintores, reina o silencio, e uma lembrança dos antigos
e abundosos tempos de nossos avós, que tanto conforma com os nobres e
portuguezes pensamentos de suas poesias, as quaes se raras vezes voão
sublimes, nunca, nem por sombras, desmentem da boa moral e sã filosofia.
Aqui o bom Elpino nos recebe cordialmente, a meus irmãos e a mim; os
filhos do seu amigo são seus amigos, os estudiosos das Musas portuguezas
e romanas são os seus amores. O ancião, que ainda entre sabios podéra
ser ouvido como oraculo, remoça-se conversando com meninos, apouca-se
para que o melhor comprehendão, orna-lhes a moral e o estudo com quantas
flores sabe; do centro da gloria lhes ensina por onde se abre o caminho
que para lá conduz; e pelo grande espirito e persuasão com que falla,
talvez consegue crear algumas vehementes vocações literarias. Outras
vezes nos convida para a bibliotheca, suas delicias, e nos acompanha
com a alegria na boca. Os seus olhos, como que ao fim de tanto lêr ja
quizessem descançar para sempre, não lhe alumião o caminho; e semilhante
áquelle grande Bardo Ossian, a quem velho e cego, piedosa conduzia a
moça Malvina para os logares usados de sua inspiração, no hombro de uma
menina, sua afilhada e leitora, segurava o bom de Elpino uma das mãos,
emquanto com a outra arrimada a um bordão, palpava o caminho, e se
ajudava em seu quebrado andar.

Era a bibliotheca o íntimo retiro d’este ermitão do Parnaso, fugida para
longe das casas, pôsto que tão quietas, e frescamente assentada em meio
de muitas sombras, verduras e aromas de seu jardim, hortas e pomares.
Grandissima cópia de livros, longamente procurados e custosamente juntos,
e entre os quaes se estremavão no numero e riqueza os Gregos, os Romanos,
e os antigos Portuguezes, alí estavão juntos, entre o susurro estudioso
das ramas e os cantares descuidosos dos passaros. Um Apollo de marmore
com a sua lira em punho, parecia estar-se mui bem cabido e contente no
meio d’aquelle seu alcaçar, cercado de tantos seus cultores, servido por
tão venerando Sacerdote. Lembranças são estas que trago colhidas de minha
infancia, e que transplanto para aqui, por não querer que se percão.

Áquelle Homem, n’aquellas tardes, e debaixo d’aquelle této, devo a grande
veneração que ainda hoje consagro aos meus livros latinos, não poucos
dos quaes mos deu elle proprio; e tocados de suas mãos poeticas, me
inspirão ainda agora poesia e virtude, até cerrados, e n’elles confio que
me hajão de servir de pranchas, com que n’este pélago de freneticas e
descompostas innovações, me não deixe, como tantos que mais valião do que
eu, totalmente sossobrar. Nos seus ouvidos indulgentes lançava não só as
primicias dos meus versos, mas ainda as traças e esperanças de obras que
borbulhavão de uma seiba virgem de quatorze annos. Escutava elle tudo com
desvellada benevolencia, umas vezes apontando-me melhores caminhos ou
mais faceis, outras desviando-me de commettimentos maiores que meus annos
e forças; agora revelando-me regras, logo insinuando-mas com exemplos,
com que sempre fiel e muito a ponto lhe acudia a memoria. Não he verdade
que ha em tudo isto um não sei que, por onde o que o pratíca não póde
menos ser de um grande homem? Oxalá meus esforços melhor houvessem
respondido a suas diligencias, ou me não houvesse elle desamparado no
começo da carreira, para a qual apenas me aparelhou! Sim, porque embora
me hajão a vaidade, a gratidão péde que eu publique, foi este Pontifice
das Musas que me iniciou no seu culto, e no seu paternal enthusiasmo
me disse—Tu serás poeta.—Scena digna de um pincel eloquente: um ancião
coroado de louros, e cego como Homero, sagrando ao culto da mais bella
das Artes, um menino cego como elle!



NOTAS


[1] Alguma vez publicarei o que acerca d’isto disputamos por Cartas,
de Lisboa para Coimbra, o Padre José Agostinho de Macedo e eu. Negava
aquelle escriptor, de incontrastavel talento, que a Poesia Allemã e
Suissa mais fosse do que a nossa rica em graças naturaes, e amena
frescura, antes affirmava que a nossa a excedia grandemente. Ou não
escrevia elle deveras, ou se convenceo do erro, como será de ver das
Cartas, quando ellas aparecerem. O motivo porque até hoje as tenho dos
publicos olhos resguardadas, outro não foi senão recêo de que se me
attribuisse a vãgloria a publicação de uma disputa em que tamanho sujeito
me cedeo, principalmente sendo notorio que o favor que em seus escritos
deu ás minhas primeiras tentativas poeticas e infantis, jamais o denegou
com o andar do tempo, antes o reforçou com mui graciosos louvores.

[2] Conceder-lha-heis, se ja não tiverdes determinado emprega-la em outro
uso, ou fundar nesse sitio alguma caza de Commissão que nada faça, ou
algum quartel de guarda que legisle sobre os destinos publicos.

[3] O Livro _Le mie Prigione_, quanto á utilidade prática leva, me
parece, a palma á _Imitação_ de Kempis. Em Kempis apparece a descrição
da caridade e piedade, em Silvio a applicação d’ellas aos successos da
vida. Kempis aconselha, Silvio ensina a perdoar, a amar, e a ser feliz,
em despeito da fortuna: dá o exemplo d’isso, he elle proprio o exemplo.

[4] Quem bem reparar na justiça rigorosa (de cruel a taxaráõ alguns)
com que eu proprio trato a minha Musa, perdoar-me-ha quando por amor ás
nossas letras, aponto um defeito em meu mestre e amigo o Snr. Antonio
Ribeiro dos Santos. Inda assim, porque me não fique remordendo a
consciencia, como expiação, e mui suave, porei no fim do volume um penhor
do meu respeito e grato animo a tão grande varão; capitulo ja impresso no
_Jornal dos Amigos das Letras_, mas por isso mesmo apenas conhecido.

[5] Meu irmão Augusto Frederico de Castilho.

[6] Meu irmão Adriano Ernesto de Castilho.

[7] As Senhoras Mellos, a quem pertence a Lapa e a Quinta das Canas.

[8] Na _Primavera_ de meu Irmão Augusto Frederico de Castilho ha um lugar
parallelo, não quanto á expressão, mas quanto ao pensamento principal.
Releva porem que em duas couzas se advirta: a uma, que nenhum de nós
foi plagiario, nem o podiamos ser, porque todos compunhamos em segredo;
a outra, que o passo do poema, em que elle descreve Nize a figurar de
Primavera, leva grande vantagem de valia a estes versos!

[9] Augusto Frederico de Castilho.

[10] O meu amigo Jose Vitorino Freire Cardozo da Fonseca (_Etmiro_) tinha
começado em uma sua quinta na Beira um jardim, tal como o descrevo aos
seguintes versos, e que pretendia consagrar á minha memoria. Mal haja
aquelle, a quem semelhante penhor de amizade não enternece!

[11] Veja-se a Quarta Edição do Diccionario chamado de Moraes.

[12] Lamartine no Prologo de _Jocelyn_

[13] Em Maio se poem o ponto aos Estudos da Universidade, que eu
n’aquelles tempos cursava. Só os que por ahi tem passado, podem entender
o alvoroço com que he recebido.

[14] Antigo nome da Serra de Estrella d’onde nasce o Mondego.

[15] Por esta occazião me importa fazer um annuncio ao Publico. Ei-lo:
declaro que se esse Jornal inexperadamente acabou, não foi minha a culpa,
assim como de nenhum dos sócios, mas somente dos acontecimentos, assim
publicos como privados da Sociedade: com elle nunca tive outras algumas
relações senão as onerosas e de trabalho, que eu tomava comtudo com muito
gôsto. Todos os sócios o sabem, mas interessa-me que o saiba toda a
gente, para me salvar de quaesquer desasizadas reclamações.

[16] Em podendo ser, publicarei um volume de poesias, que lá compuz
acerca d’aquella bemaventurada solidão, onde annos vivi ignorado e
contente, na residencia de meu Irmão Augusto Frederico.

[17] Tudo isto, que eu julgava para sempre meu, passou! Aprouve a Deos
mostrar-me só de relance a felicidade! Pouco mais de dois annos a
illustre e digna sobrinha de Nicolau Tolentino de Almeida, a Senhora
D. Maria Izabel de Baenna Coimbra Portugal, se sacrificou toda a
felicitar-me: o Pai de todo o amor e de toda a virtude a chamou logo
para o seu seio: era aquelle um Anjo que faltava no ceo. Esta Nota ao
poema, vai como se achava feita quando ella ja me não escrevia, senão
a espaços, mas ainda se comprazia de me ouvir dictar. Quando o seu fim
era ja inevitavel, todos o sabião e talvez ella mesma, e eu contava
ainda com largos annos de fortuna. O mesmo advirto quanto ás mais Notas
e accrescentamentos d’este Livro, que tudo estava pronto (faltando só
algumas poucas notas que não fiz nem ja farei) antes do fatal dia um
de Fevereiro passado: dois se imprimio erradamente no Post Scriptum do
Prologo. Se outrem não tivesse conservado essa data, e me não advertisse
da inexatidão em que mal informado caí, ainda agora a podéra eu ignorar:
esse dia, as vesperas e os seguintes não tiverão para mim nenhuma ráia
nem de luz, nem do sôno, nem de alguma outra das couzas que estremão os
dias.—_12 de Maio de 1837._



INDEX.


                                                            Pag.

    Ante-Prologo                                              5

    Prologo                                                  25

    _Post-Scriptum_                                          47

    Epistola á Primavera                                     49

      Dedicatoria a minha Irmã                               51

      Duas Palavras de Introdução                            53

      Epistola                                               57

    O Dia da Primavera Poemetto                              75

      Dedicatoria a minha Mãi                                77

      Historia da Festa da Primavera                         79

      O Dia da Primavera Canto I
        _A Manhã_                                            95

      O Dia da Primavera Canto II
        _A Tarde_                                           111

      Notas ao Poemetto antecedente                         131

      Nota 1.ª (_Elmano e Filinto—versificação
        esdruxola e aguda_ &c.)                             131

      Nota 2.ª de Augusto Frederico de Castilho             162

    Os Cantos de Abril Idillio                              167

      Dedicatoria a meu Pai                                 169

      Advertencia                                           171

      Os Cantos de Abril                                    173

      Nota ao Idillio (_Excerpto de alguns
        versos da primeira Edição do Idillio,
        rejeitados n’esta segunda_)                         186

    A Festa de Maio Poemetto                                189

      Dedicatoria ás Senhoras da Lapa dos
        Esteios                                             191

      Historia da Festa de Maio                             193

      A Festa de Maio Canto I                               199

      —— Canto II                                           225

      Notas á Festa de Maio                                 263

      Nota 1.ª (_Com a tradução para latim
        dos amores de Galatea no Cant. 1 da
        Festa de Maio_)                                     263

      Nota 2.ª (_Piedade para com os animaes—alimento
        animal_ &c.)                                        269

      Nota 3.ª (_Em desaggravo das mulheres_)               291

      Nota 4.ª (_Sôbre o 2.º Canto da Festa
        de Maio_)                                           305

    Mais Primavera                                          309

      Advertencia                                           311

      Março (_Princípio da Primavera_)                      313

      Abril                                                 317

      Maio                                                  319

      Ácerca da Pessoa do Sr. Antonio Ribeiro
        dos Santos                                          324

FIM



Lista de Assignantes.


    S. M. F. A RAINHA D. MARIA II.
    S. M. I. A DUQUEZA DE BRAGANÇA.
    S. A. R. O PRINCIPE D. FERNANDO AUGUSTO.

    A. A. A. Moreira.
    Ab. M.ᵃ J. Paiva Manso.
    Abrahão Weelhause.
    A. Carneiro.
    Achilles de Pereira.
    A. Eustaquio da Silva.
    Ag.ᵗᵒ de Castro da Gama Lobo.
    —— José Pereira.
    —— Roïz da F. Soares.
    A. J. R. Leitão.
    Albino F. de Figueiredo.
    Conselh.ᵒ Alexandre Alb. de Serpa Pinto. _4 Ex._
    Alexandre Lahmeyer.
    D. Alvaro.
    Amaro Coutinho Pereira.
    Anacleto José da Silva.
    André Joaquim Ramalho.
    —— Perez.
    A. Neves de Sequeira.
    Angelo Augusto Martins.
    D. Anna C. Guimarães.
    —— Ifig. do Valle de S. e Menezes.
    —— Lucinda Mont.ʳᵒ
    —— Ludovina.
    —— Margar.ᵈᵃ Fructuoso de Ar.ᵒ
    —— Victoria da Rocha Torres.
    Anonimo. _2 Exempl._
    Anselmo J.ᵉ Braamcamp.
    Ant.ᵒ Adolfo Ferr.ᵃ Sarmento. _15 Exempl._
    —— Adriano da Mata P.ᵗᵃ
    —— Ag.ᵒ Per.ᵃ Lacerda.
    —— Alves Souto.
    —— Aluisio Jervis d’Atouguia.
    —— Augusto Gonsalves.
    —— B. de Brito e Cunha.
    —— Cardoso e Silva.
    —— C. da Costa e Sousa.
    —— Coelho Bragante.
    —— da Costa Paiva. 130 _Exempl._
    —— Dias d’Azevedo.
    —— —— Monteiro.
    —— —— Rodão.
    —— Diniz Couto Valente
    —— Ezequiel d’Aguiar.
    —— F. Mag.ᵃᵉˢ Coutᵒ
    —— F. Mendonça Arraes.
    —— Frz. Alves Fortuna.
    —— Florencio Reixa.
    —— Fr. Alv. Guimarães.
    —— Freire Castello Br.ᶜᵒ
    —— de Freitas.
    —— Gaud. S.ᵃ Monteiro.
    —— G. Barreto de Pina.
    —— Gomes Lima.
    —— Glz. d’Alm.ᵈᵃ Rino.
    —— Gueifão Bello Per.ᵃ
    —— Guilherme da Costa.
    —— Henriques Doria.
    —— Jacinto Santarem.
    —— Joaquim de Abreu.
    —— Cons.ᵒ Antᵒ Joaq.ᵐ da Costa Carv.ᵒ 6 _Ex._
    —— Joaq.ᵐ Reis Junior.
    —— —— da Silva.
    —— —— Teix.ᵃ S.ᵃ
    —— J. d’Oliveira Lima.
    —— José d’Avila.
    —— J.ᵉ Bot.ᵒ da Cunha.
    —— —— Ferr.ᵃ de Sousa.
    —— —— Glz. Basto.
    —— —— —— Duarte.
    —— —— de Oliveira.
    —— J.ᵉ de Oliveira e S.ᵃ
    —— —— R. Guim.ᵃᵉˢ 3 _Ex._
    —— —— de Sá Camello.
    —— —— da S.ᵃ Milheiros.
    —— —— de Sousa Martins.
    —— —— Teixeira Leal.
    —— —— de Vasc.ᵒˢ 20 _Ex._
    —— Leite Pereira Lobo.
    —— Lopes de C. Alm.ᵈᵃ
    —— Lour. Coelho. 5 Ex.
    —— Luiz Nogᵃ e Freitas.
    —— M.ᵉˡ R. Abranches.
    —— —— Vargas.
    —— M.ᵃ d’Almeida e S.ᵃ
    —— —— de Campos.
    —— —— Ferreira.
    —— —— L. M. Queiroz.
    —— —— Machado.
    —— —— Thovar Lemos.
    —— Martins dos Santos.
    —— de Mello Breyner.
    —— N. Roïz. Cancella.
    —— Nunes dos Reis.
    —— Pedro de Carvalho.
    —— P. X. O. B. Leite.
    —— Pereira de Faria.
    —— Porfirio de Freitas.
    —— Ramos Azev.ᵒ Maia.
    —— Rib. Azev.ᵒ Bastos.
    —— Ribeiro de Faria.
    —— Sald.ᵃ R. Albuq.ᵉ
    —— Samp. X. Casqueiro.
    —— dos Santos Monteiro.
    —— de Sá Per.ᵃ Samp.
    —— da Silva Bastos.
    —— da Silva Leitão.
    —— S.ᵃ Monteiro. 2 _Ex._
    —— Sotero Sz.ᵃ Falcão.
    —— Thomaz Aquino S.ᵃ
    —— Vicente de Sousa.
    —— Vieira de Carvalho.
    A. P. Ardisson.
    A. P. B. de Saldanha.
    A. R. Sealy.
    Assemblea Lisbonense.
    —— Portuense.
    Associação Civilisadora.
    Augusto.
    —— Frederico Ferr.ᵃ
    Dr. Augusto Lavit. 2 _Ex._
    Augusto Maria Dermott.
    —— Victor Sabbo.
    Aureliano J.ᵉ de Moraes.
    Ayres Sá Nogueira. 3 _Ex._
    —— da Silva Coelho.

    Balthesar Lopes do Calheiros e Menezes.
    Bandeira—Ex-Governador do Castello. 4 _Ex._
    Barão d’Argamaça.
    —— de Ruivoz.
    Barnabé F. Paula Ataide.
    Bartholomeu dos Martires.
    Bento Alão.
    —— de Almeida.
    —— G. Brito Taborda.
    —— Guilherme Klingleofer. 3 _Exempl._
    —— J.ᵉ Teixeira Penna.
    —— de Moura Portugal.
    —— Pereira.
    Bernardino J.ᵉ dos Santos.
    Bernardo José de Miranda.
    Busch.

    Dr. Cabral Teix.ᵃ Moraes.
    Caet.ᵒ Alberto Orlandi.
    —— J.ᵉ Alves d’Araujo.
    —— José M.ᵃ de Sena.
    —— Xavier Diniz.
    C. Almeida.
    Camillo da Silva Ferraz.
    Candido José Roïz Vieira.
    Cap.ᵃᵒ Engenheiro Carv.ᵒ
    Carlos Augusto Poppe.
    —— Gould. 5 _Exempl._
    —— de Sá.
    —— Vieira da Silva.
    Carneiro.
    Castro Almeida.
    C. F. Altavilla.
    Christovão M.ᵃ dos Santos.
    Cipriano A. Rib. Freire.
    Cipriano Dom. Vianna.
    C. Lagrange.
    D. Clara Clorinda Lopes Pereira de Vasconcellos.
    Clem.ᵉ A. O. M. Alm.ᵈᵃ
    —— Augusto Bolonha.
    D. Clementina Adelaide da Silva Monteiro.
    C. Massa.
    C. M. Caula.
    Conde da Cunha.
    —— de Lumiares.
    —— de Mello. 6 _Ex._
    —— de Villa Real.
    Condeça de Belmonte D. Jeronima.
    —— de Mello. 2 _Ex._
    —— de Villa Real.
    Cosme José Dias. 10 _Ex._

    Daniel Cesar S.ᵃ Ferraz.
    —— Sotero Caio dos S.ᵗᵒˢ
    D. A. R. Varella.
    David Ubaldo S.ᵃ Leitão.
    Diogo Ant.ᵒ de Sequeira.
    —— Aug. C. Constancio.
    —— P. Mtr.ᵒ Bandeira.
    Domingo Garcia Peres.
    Domingos Fr. Santos Lim.
    —— Monteiro de Albuquerque e Amaral.
    —— Ribeiro de Faria.
    —— —— dos S.ᵗᵒˢ
    Duque da Terceira.
    Duqueza da Terceira.

    C.ᵉˡ E. C. C. F. Furtado.
    Eduardo Frederico Lour.ᵒ
    Emilia C. de Figueiredo.
    D. Emilia Martinini.
    Epifanio Fr. de Miranda.
    Ernesto Adolfo de Freitas.
    —— M. V. Montenegro.
    —— José Ferreira.

    D. Faustina M.ᵃ das Dominações Simões.
    F. C. de M.
    Feliciano Alm.ᵈᵃ Vidal.
    Fernando Affonso Giraldes de Mello e Sampaio.
    Fernando Theod. Arnaut.
    F. L. Bettencourt.
    Figueiredo. 13 _Exempl._
    Filippe Folque.
    Fortunato José Barreiros.
    —— —— N. M. e Mello.
    D. Francisca de Noronha.
    Fran.ᶜᵒ Abrantes.
    —— Adrião Pereira.
    —— Affonso da Costa Chaves e Mello. 12 _Ex._
    —— Alves Souto.
    —— —— Alm.ᵈᵃ Reixa.
    —— Ant.ᵒ de Pinho.
    —— —— Cerqueira S.ᵃ
    —— —— F. S.ᵃ Ferrão.
    —— —— dos Santos.
    —— de Assis Almeida.
    —— —— —— Alm.ᵈᵃ C.ᵗᵉ Real.
    P. Francisco d’Assis Biga.
    Fran.ᶜᵒ Brito P. Almeida.
    —— Candido Mend.ᵃ
    —— de Castro Freire.
    —— C. Judice Samora.
    —— da Conc.ᵃᵒ Soares.
    —— Dias Brandão.
    —— Eduardo Andrade.
    —— Fabião de Mend.ᶜᵃ
    —— Gaspar Lahmeyer.
    —— Gomes Loureiro.
    —— Joaq.ᵐ da Cunha Travassos Cast.ᵒ Branco.
    —— —— da Fonseca.
    —— —— dos Santos.
    —— J.ᵉ de Freitas.
    —— J.ᵉ de Sousa Nunes.
    —— —— Tavares Junior.
    —— Luiz de Sousa.
    —— da Mãi dos Homens Annes de Carvalho.
    —— M.ᵉˡ C. Pimenta.
    —— —— de Negreiros.
    —— M. Silvr.ᵃ Menezes.
    —— —— de S.ˢᵃ Brandão.
    —— —— de Maris Coelho.
    —— M. Walsh. 4 _Ex._
    —— Nunes da Silva.
    —— Paula Costa Feio.
    —— —— Seg. Lemos.
    —— —— S.ˢᵃ V. Boas.
    —— —— V. Campos.
    —— —— Zuzarte.
    —— P. Taboada Junior.
    —— P.ᵗᵒ de Magalhães.
    —— Raim. d’Andrade.
    —— da Silva Falcão.
    —— Vieira S. Barradas.
    Frederico Aug.ᵗᵒ Martha.
    Fructuoso Dias Mendes.
    —— —— de Paiva Card.ᵒ
    F. Z. Fer.ᵃ d’Ar.ᵒ 5 _Ex._

    Dr. G. Centazzi.
    Gabriel Fran.ᶜᵒ Ribeiro.
    —— Lopes de Lima.
    G. A. Pereira de Sousa.
    Gaspar dos Reis e Sousa.
    —— Schindler.
    D. Genoveva Victoria da Rocha Farinho.
    D. Gervasia Joaquina de Sousa Falcão.
    Greg.ᵒ Mag.ᵃᵉˢ Collaço.
    Guilherme Ignacio Basto.

    H. D. Wems.
    Henriq. J. Passos Chaves.
    Hermano Estanisláo Orlandi.
    H. Hodgson. 10 _Exempl._
    H. J. Moser.
    H. O. Maya. 2 _Exempl._
    Honorio Ces. Mendonça.

    Ignacio Cabral Arez da Silveira Barros.
    Vice Almirante Ignacio da Costa Quintella.
    —— José de Sá.
    —— P. Qt.ᵃ Emaus.
    D. Ignez Raim. Prado.
    D. Ildefonso Olheiro.
    Isidoro H. C. Semmedo.
    Izidro Costa.

    Jacinto de Freitas Oliv.ʳᵃ
    —— José de Mattos.
    —— José de Sá Lima.
    —— de Sousa Falcão.
    —— —— —— —— 2 _Exempl._
    Jacomo Pereira de Carv.ᵒ
    J. Bento Pereira.
    J. B. Massa.
    J. B. S. L. de Almeida Garrett.
    J. C. Bastos.
    Jeronimo José da Silva.
    —— Perᵃ Vasconc.ᵒˢ
    —— —— da S.ᵃ Cardoso.
    J. F. Danin.
    J. F. Passos.
    J. F. R. S. de Azevedo.
    J. F. Thomaz.
    J. G. Toussaint.
    J. J. A. Redondo.
    J. J. da C. J.
    J. J. Loureiro.
    J. J. Manitti.
    J. M. Chaves.
    J. M. F. Dias.
    J. M. S. Freire.
    João A. de S.ˢᵃ Queiroga.
    —— A. Lobo de Moira.
    —— Anastacio Simões.
    —— Antonio Biga Nunes.
    —— —— Colasso da S.ᵃ 2 _Exempl._
    —— —— Marques.
    —— —— Pereira.
    —— Bap.ᵗᵃ da Costa.
    —— —— da Cunha Fer.ᵃ
    —— —— e Mafaos.
    —— —— Sabo Junior.
    P.ᵉ João Baptista da S.ᵃ
    João Bpt.ᵃ S.ᵃ Malafaia.
    —— Bento da Costa.
    —— Bonifacio Guimarães.
    D. João da Camara.
    João Coelho de Gibraltar.
    —— —— da Silva.
    —— Dias X. do Loureiro.
    —— Ferr.ᵃ Azev.ᵈᵒ Junior.
    —— —— Camp. 10 _Ex._
    —— —— dos S.ᵗᵒˢ S.ᵃ J.
    P. João Franc.ᵒ B. Lança.
    João Gomes Roldão.
    —— —— dos Santos.
    Dr. João Gonç. Miranda.
    Dr. João Gonç. M. Robalo.
    João Guilherme Caldeira.
    —— Ignacio Curvo.
    —— Januario V. Rezende.
    —— José da Assumpção.
    —— —— Ferr.ᵃ de Sousa.
    —— —— Freitas Aragão.
    —— —— Machado Ferr.ᵃ
    —— Lameira M. V. Lobos.
    —— Lourenço Ferr.ᵃ Braga. 4 _Exempl._
    —— Luiz de Sousa Falcão.
    —— —— Talone.
    —— Manoel de Aral.
    P.ᵉ João Maria Cardeira.
    João Maria Feijó.
    D. João Martins Falcão.
    João da Matta e Silva.
    —— Mend. A. Barbarino.
    —— Neves Gomes Eliseu.
    —— Nogueira Gandra.
    —— Nunes da Silva.
    —— Pedro Coelho.
    —— —— Heitor Alcant.ᵃ
    —— —— Nol. Cunha.
    —— Per.ᵃ Queiroz Basto. 20 _Exempl._
    —— Silva Fonseca.
    —— Procopio Tavares.
    —— Saecadura Botte Corte Real. 2 _Exempl._
    —— da Silva Falcão.
    D. João Silva Pessanha.
    João da Silva Serrão.
    —— de Sousa Falcão.
    —— Vic.ᵗᵉ P.ᵗᵉˡ Mald.ᵈᵒ
    —— de V.ˡᵃ N.ᵛᵃ de Vasc.ˡᵒˢ Correia de Barros.
    Joaq.ᵐ Xavier da Maia.
    —— Ant.ᵒ Aguiar. 5 _Ex._
    —— —— Barbosa Torres.
    —— —— da Costa.
    —— —— da Fonseca.
    —— —— Tenreiro.
    —— —— Vidal da Gama.
    —— Augusto Burlamaqui Marecos.
    —— Barreto de Castilho.
    —— Corrêa Moreira.
    —— Felix Moreira 6 _Ex._
    —— Francisco Danim.
    —— G.ᵐᵉˢ V.ʳᵃ Gaio.
    —— José Bernardes.
    —— —— Costa Macedo.
    —— —— Costa Portugal.
    —— —— da Cunha.
    —— —— Dias Lopes de Vasconcellos. 3 _Exemp._
    —— —— Figueira.
    —— —— Gião.
    —— —— Lobo.
    —— —— Marques Cald.ᵃ
    —— Julio da S.ᵛᵃ Ferraz.
    Cons.ʳᵒ Joaq. Larcher.
    Joaq. Lucio Arbues M.ʳᵃ
    —— das Neves Franco.
    —— Pedro Abreu Lima.
    —— Romão Lob.ᵗᵒ Pires.
    —— da Silva Cordeiro.
    —— da Silva Machado.
    —— Torquato Alvares Ribeiro. _6 Exemp._
    —— Victor S.ᵃ Gosmão.
    —— Urbano de Sampaio.
    D. Joaq.ⁿᵃ Carlota Fons.ᶜᵃ
    Jorge Oom.
    José Anastasio Pereira.
    —— Antonio de Almeida.
    —— —— de Castro.
    —— —— Cob.ʳᵒ d’Azevedo Gentil.
    —— —— Mello Ar.ʲᵒ
    —— —— da Silveira.
    —— —— Soares M.ᵈᵉˢ
    —— d’Ar.ʲᵒ Coutinho V.ⁿᵃ
    —— —— Machado.
    —— Aug.ᵗᵒ Correa Leal.
    —— Bernardino Frazão.
    —— de Brito.
    —— Caetano Rebello.
    —— Candido Alz. Torres Barata Araujo e Lima.
    —— Carlos Cerveira Val.ᵗᵉ
    —— —— da Costa P.ʳᵃ
    —— —— Guimarães.
    B.ᵉˡ José Cesar da Silveira.
    José C. M.
    —— do Coração de Jesus.
    —— Crispim da Cunha.
    —— Ricardo P.ʳᵃ Cabral.
    —— Roïz. da S.ᵃ Vianna.
    —— dos Santos Nazareth.
    —— Servulo Costa e S.ᵃˢ
    —— Silverio da Fonseca.
    —— Silvestre de Andrade.
    —— Sousa Falcão Senior.
    —— —— —— Junior.
    —— Tello Mag.ᵃᵉˢ Collaço.
    —— Vaz Araujo Veiga.
    José Victorino Freire da Fonseca Cardoso.
    —— —— Zuzarte Coelho da Silveira.
    Jovencio Pedroso Oliv.ʳᵃ
    J. Paulo da Silva.
    J. P. N. X. de L. Brito.
    J. P. R. G.
    J. R. Blanco.
    J. R. Manco.
    J. R. Pinto.

    K. Pinto.

    L. A. M. Brandão.
    L. J. de Gouvea.
    Leandro Capistrano d’Almeida Figueiredo.
    Lourenço de Almeida.
    —— Justiniano Lima.
    —— M. Telles Mattos.
    L. T. H. de Brederode.
    Luciano S. Carv.ᵒ para si e seus amigos 40 _Ex._
    Luiza Mathey.
    Luiz A. Bello Reis Junior.
    —— Antonio de Freitas.
    —— B. Ribeiro Vianna.
    —— Caet.ᵒ Guerra Santos.
    —— C. Alm.ᵈᵃ Botelho.
    —— da Costa Pereira.
    —— —— —— Pinto.
    —— Joaquim de Sampaio.
    —— José da Silva.
    D. Luiz M.ᵃ da Camara.
    Luiz de Mello Breyner.
    —— —— —— Corrêa.
    —— Miguel d’Azevedo.
    —— O. da Costa.

    M.ᵉˡ Alves do Rio Junior.
    —— Antonio Rodrigues.
    —— —— Vianna.
    —— Bento Rodrigues.
    D. Manoel da Camara.
    M.ᵉˡ de Castro Pereira.
    —— —— —— e Silva.
    —— Coelho Bragante.
    —— Felix Oliv. Pinheiro.
    —— Ferreira Borges.
    —— Francisco Dias.
    —— —— —— das Neves.
    —— Gonçalves Pombo.
    —— I. Cunha Menezes.
    —— I. Moreira Freire.
    —— Joaq.ᵐ Cardoso Castello Branco. 2 _Ex._
    —— —— Fortes.
    —— —— Freire.
    —— —— Moreira.
    —— —— Pereira Silva.
    —— —— Santiago.
    —— José Cordeiro Galão.
    —— —— Esteves Campos.
    —— —— da Motta.
    —— Maria da Rocha.
    D. M.ᵉˡ M. Sousa Falcão.
    M.ᵉˡ Per.ᵃ Lima Tavares.
    —— Ramos.
    —— Roïz Costa Salgado.
    —— dos Santos.
    —— Thomaz S.ˢᵃ Menezes.
    —— de Vasconcellos.
    —— Urbano.
    Marcellino Ant.ᵒ Moraes.
    D. M.ᵃ B. C. Vilella.
    —— —— C. S.ˢᵃ Falcão.
    —— —— Carlota Vidal Gama Lobo.
    —— —— Carmo Guimarães.
    —— —— C. Guimarães.
    —— —— Clara Braamcamp.
    —— —— F. Paes de Mattos.
    —— —— H. Sousa Falcão.
    —— —— José Ozorio.
    —— —— J. Sanches Brito.
    —— —— Luiza d’Albuquerque. 2 _Exempl._
    —— —— Magdalena Sousa.
    —— —— Manoel Vidal da Gama Lobo.
    —— —— M. Silva Falcão.
    —— —— R. Sousa Falcão Ferreri.
    —— —— Vicencia de Mello.
    —— —— Xavier Falcão.
    D. Margarida Silva Machado Figueiredo.
    D. Marianna C. Ribeiro.
    —— —— G. Pereira de Beça.
    —— —— Noronha.
    —— —— da Silva Machado Figueiredo.
    Marquez de Fronteira.
    —— de Saldanha.
    M. F. da Costa.
    Miguel Ferreira da Costa.
    —— Fran.ᶜᵒ Saldanha.
    —— João Coelho.
    —— Joaquim Pires.
    —— J.ᵉ Okeeffe. 2 _Ex._
    —— M.ᵃ Gomes de Andrade e Leiros.
    M. J. M. Dantas. 2 _Ex._
    M. T. H. de Brederode.

    N. H. Klingelhoufer. 3 _Exempl._
    D. Nicasio Canete y Moral.
    Nicoláo Maria Nobre.
    Nicoláo C. P.ᵗᵒ Queiros.
    —— S. James.
    Nuno José Gonçalves.

    Pedro A. N. Domingues.
    D. Pedro Cunha Menezes.
    Pedro Jacome de Calheiros e Menezes.
    —— José de Oliveira.
    —— M.ᵃ Costa Almeida.
    —— Paulo Ferr.ᵃ Sousa.
    —— —— Vasconcellos.
    —— P.ᵗᵒ Moraes Sarm.ᵗᵒ
    Bacharel Pedro dos Santos Freire.
    Pedro da Silva Ferraz.
    —— de Sousa Cardoso.
    P. G. Toussaint.
    P. M. Lagan. 4 _Exempl._
    Prior da Magdalena.
    —— de Marv.ᵃ de Sant.ᵉᵐ
    —— do Milagre de Sant.ᵉᵐ

    Quintino Teixeira Carv.ᵒ
    D. Quiteria da Silva Machado Figueiredo.

    Rafael Antonio de Brito Pimenta d’Almeida.
    —— Archanjo de Carv.ᵒ
    Reis e Irmão.
    Roberto Wanzeller.
    Rodrigo de Azevedo Sousa da Camara.
    —— José Dias Lopes de Vasconcellos.
    —— Limpo Rav.ᶜᵒ Pereira de Lacerda.
    Rosa Coelho de Gibraltar.
    D. Rosa Dioguina Lopes Pereira de Vasconcellos.

    Sebastião André Xavier.
    —— Casqueiro Vieira Gago.
    —— de Gargamala.
    —— J. Villaça Gama.
    —— Xavier Botelho.
    Servulo M.ᵃ de Carvalho.
    S. J. de Gouvea.
    Silencio Christão Barros.
    Simplicio Moura Mach.ᵈᵒ

    Tertuliano Turibio Lobato Pinto Ferreira.
    D. Ther.ᵃ Hedeviges Leite de Moraes Castilho.
    —— —— Maria Botelho.
    —— —— Miquelina Alves de Sousa.
    —— —— Theodora da Soledade Martins.
    —— —— Xavier Botelho.
    Thomaz Aq.ᵒ S.ˢᵃ 2 _Ex._
    —— Pinto Saavedra.
    —— Rufino Monteiro.
    Thomé A. Frnz. Roxo.
    Torcato Francisco Carn.ʳᵒ

    D. Vasco Guterre Cunha.
    Vicente Altavilla.
    —— Pires da Gama.
    D. Vic.ᵗᵉ Segur. Menezes.
    Victorino José Gomes.
    —— Manoel de Oliveira Mascarenhas.
    Visconde do Porto Covo. 2 _Exempl._
    Vital Jorge Maia Canhão.



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